quarta-feira, 8 de novembro de 2017

{clube-do-e-livro} A Casa de Ades

ATENçÃO : Cuidado com a página falsa com o nome da " máfia dos livros" no facebook, Existe
uma falsa usando o nosso nome para angariar membros e agindo como se fosse nós , ludibriando
e enganando a todos! MAFIA DOS LIVROS SÓ EXISTE UMA ­ QUALQUER OUTRA NO FACE QUE NÃO
ESSA ABAIXO É UMA FARÇA. Nosso Endereço verdadeiro é :
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Copyright © 2013 by Rick Riordan
Edição em português negociada por intermédio de Nancy Gallt Literary
Agency e Sandra Bruna Agencia Literaria, SL.

TÍTULO ORIGINAL
The House of Hades

TRADUÇÃO
Alexandre Raposo
Edmundo Barreiros

PREPARAÇÃO
Flora Pinheiro

REVISÃO
Janaína Senna
Carolina Lopes

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Julio Moreira

GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca

REVISÃO DE EPUB
Rodrigo Rosa

E-ISBN
978-85-8057-420-3

Edição digital: 2013
4/789


Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 ­ Gávea
Rio de Janeiro ­ RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
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Para meus maravilhosos leitores:
Lamento pelo último suspense.
Quer dizer, não, não de verdade. HAHAHAHA.
Mas, falando sério, adoro vocês, pessoal.

Rick Riordan
I




HAZEL

DURANTE O TERCEIRO ATAQUE, Hazel quase engoliu um pedregulho.
Tentava enxergar através da neblina, perguntando-se como podia ser
tão difícil voar por uma estúpida cordilheira, quando o alarme do na-
vio soou.
-- Tudo a bombordo! -- gritou Nico do mastro de proa do navio
voador.
Lá atrás, no leme, Leo girou o timão. O Argo II guinou para a es-
querda, os remos aéreos cortando as nuvens como facas enfileiradas.
Hazel cometeu o erro de olhar por cima da amurada. Uma forma
esférica e escura movia-se rapidamente em sua direção. Ela pensou:
Por que a lua está se aproximando? Então gritou e se jogou no con-
vés. A imensa pedra passou tão perto que soprou o cabelo caído em
seu rosto.
CRAC!
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O mastro de proa tombou -- vela, vergas e Nico, tudo caindo no
convés. O pedregulho, mais ou menos do tamanho de uma picape,
desapareceu na neblina como se tivesse mais o que fazer longe dali.
-- Nico!
Hazel chegou até ele com dificuldade enquanto Leo estabilizava o
navio.
-- Estou bem -- murmurou Nico, chutando as velas enroscadas
em suas pernas.
Ela o ajudou a se levantar e os dois cambalearam até a proa.
Hazel olhou com mais cuidado dessa vez. As nuvens se abriram o
bastante para revelar o topo de uma montanha logo abaixo: um cume
escarpado de rocha negra despontava das encostas verde-musgo. De
pé, no topo, estava um deus da montanha -- um dos numina
montanum, como Jason os chamava. Ou ourae, em grego. Qualquer
que fosse o nome, eles eram malvados.
Como os outros que haviam enfrentado, esse usava uma túnica
branca simples que cobria a pele áspera e escura como basalto. Era
extremamente musculoso, tinha pouco mais de seis metros de altura,
barba branca e comprida, cabelo desgrenhado e um olhar selvagem,
como o de um eremita louco. Ele gritou algo incompreensível para
Hazel, mas que com certeza não eram boas-vindas. Com as próprias
mãos, ele arrancou outro pedaço de rocha de sua montanha e
começou a moldar uma bola.
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A cena desapareceu na neblina, mas quando o deus da montanha
rugiu de novo outros numina responderam ao longe, as vozes eco-
ando pelos vales.
-- Malditos deuses das pedras! -- gritou Leo ao timão. -- Vou ter
que substituir o mastro pela terceira vez! Acham que eles dão em
árvores?
Nico franziu a testa.
-- Os mastros são feitos de árvores.
-- Essa não é a questão!
Leo pegou um de seus controles, adaptado de um Nintendo Wii, e
girou-o em círculo. A alguns metros dali, um alçapão se abriu no con-
vés. Surgiu um canhão de bronze celestial. Hazel só teve tempo de
tapar os ouvidos antes de aquilo disparar para o céu, espalhando uma
dúzia de esferas de metal que deixou um rastro de fogo verde. Em
pleno ar, esporões brotaram das esferas como as pás de um
helicóptero, e elas se afastaram em meio à névoa.
Pouco depois, uma sequência de explosões ecoou pela cordilheira,
seguida pelo rugido indignado dos deuses da montanha.
-- Há! -- gritou Leo.
Infelizmente, a julgar pelos dois últimos encontros, Hazel presu-
miu que a mais nova arma de Leo apenas irritara os numina.
Outra pedra silvou através do ar a estibordo.
-- Tire-nos daqui! -- gritou Nico.
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Leo murmurou alguns comentários pouco lisonjeiros sobre os nu-
mina, mas girou o timão. Os motores rugiram. O cordame mágico se
tensionou por conta própria, e o navio rumou para bombordo. O
Argo II ganhou velocidade, recuando para o noroeste, como vinha
fazendo nos últimos dois dias.
Hazel não relaxou até estarem longe das montanhas. O nevoeiro
se dissipou. Abaixo deles, o sol da manhã iluminava a pradaria itali-
ana: colinas verdes e campos dourados não muito diferentes
daqueles do norte da Califórnia. Hazel quase podia imaginar que es-
tava navegando de volta para casa, rumo ao Acampamento Júpiter.
Aquela ideia fez seu peito doer. O Acampamento Júpiter fora o
seu lar por apenas nove meses, desde que Nico a trouxera de volta do
Mundo Inferior. Mas ela sentia mais saudade dali do que de sua cid-
ade natal, Nova Orleans, e, definitivamente, mais do que do Alasca,
onde morrera em 1942.
Hazel sentia falta de seu beliche no bunker da Quinta Coorte.
Tinha saudade dos jantares no refeitório, com os espíritos do vento
conduzindo pratos pelo ar e legionários gracejando a respeito de jo-
gos de guerra. Ela queria passear sem rumo pelas ruas de Nova Roma
de mãos dadas com Frank Zhang. Queria saber como era ser uma ga-
rota normal pelo menos uma vez, com um namorado realmente doce
e atencioso.
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Mais que tudo, queria se sentir segura. Estava cansada de passar
o tempo todo assustada e preocupada.
Hazel ficou de pé no tombadilho. Nico extraía de seus braços os
estilhaços do mastro e, no painel de comando do navio, Leo socava
botões.
-- Bem, isso foi uma droga -- comentou Leo. -- Devo acordar os
outros?
Hazel estava tentada a dizer que sim, mas os outros membros da
tripulação haviam ficado com o turno da noite e mereciam descansar.
Estavam exaustos por defenderem o navio. Ao que parecia, de poucas
em poucas horas um monstro romano resolvia que o Argo II era na
verdade uma guloseima deliciosa.
Algumas semanas antes, Hazel não teria acreditado que alguém
pudesse dormir durante um ataque numina, mas, agora, imaginava
que seus amigos ainda estavam roncando abaixo do convés. Sempre
que ela tinha uma chance de descansar, dormia como se estivesse em
coma.
-- Eles precisam descansar -- disse ela. -- A gente vai ter que
descobrir outro caminho sozinhos.
-- Hum.
Leo olhou feio para o monitor. Com sua camisa de trabalho esfar-
rapada e a calça jeans manchada de graxa, parecia que tinha acabado
de perder uma luta contra uma locomotiva.
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Desde que seus amigos Percy e Annabeth haviam caído no Tár-
taro, Leo vinha trabalhando quase sem parar. Andava mais irritado e
até mesmo mais determinado do que o habitual.
Hazel estava preocupada com ele. Mas parte dela sentia-se alivi-
ada com a mudança. Sempre que Leo sorria e fazia piadas, ficava
parecido demais com Sammy, seu bisavô... o primeiro namorado de
Hazel, em 1942.
Droga, por que a vida tinha que ser tão complicada?
-- Outro caminho -- murmurou Leo. -- Você vê algum?
Um mapa da Itália brilhava em seu monitor. A cordilheira dos
Apeninos se estendia por todo o país em forma de bota. Um ponto
verde representando o Argo II piscava no lado esquerdo da tela, a al-
gumas centenas de quilômetros ao norte de Roma. Deveria ter sido
simples. Precisavam chegar a um lugar chamado Épiro, na Grécia, e
encontrar um antigo templo chamado Casa de Hades (ou Plutão,
como os romanos o conheciam, ou então, como Hazel gostava de
pensar nele, o Pior Pai Ausente do Mundo).
Para chegar a Épiro, tudo o que tinham de fazer era ir direto para
leste -- sobrevoando os Apeninos e atravessando o Mar Adriático.
Mas não foi o que aconteceu. Sempre que tentavam cruzar a coluna
vertebral da Itália, os deuses da montanha atacavam.
Nos últimos dois dias, margearam as montanhas rumo ao norte,
na esperança de encontrar uma passagem segura. Sem resultado. Os
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numina montanum eram filhos de Gaia, a deusa de quem Hazel
menos gostava. Isso os tornava inimigos muito determinados. O
Argo II não podia voar alto o bastante para evitar os ataques e,
mesmo com todas as suas defesas, o navio não conseguiria atravessar
a cadeia de montanhas sem ser despedaçado.
-- A culpa é nossa -- disse Hazel. -- Minha e de Nico. Os numina
podem nos sentir.
Ela olhou para o meio-irmão. Ele começara a recuperar as forças
desde que o resgataram dos gigantes, mas ainda estava muito magro.
A camisa preta e a calça jeans caíam folgadas no corpo esquelético. O
cabelo longo e escuro emoldurava olhos encovados. A pele morena
estava com um tom verde-claro doentio, cor de seiva de árvore.
Sua idade humana era só catorze anos, apenas um ano mais velho
do que Hazel, mas a história não terminava aí. Assim como ela, Nico
di Angelo era um semideus de outra era. Ele irradiava uma espécie de
energia antiga -- uma melancolia por saber que não pertencia ao
mundo moderno.
Hazel não o conhecia havia muito tempo, mas entendia e chegava
a compartilhar sua tristeza. Os filhos de Hades (ou Plutão, tanto faz)
raramente tinham uma vida feliz. E, a julgar pelo que Nico dissera na
noite anterior, seu maior desafio ainda estava por vir quando
chegassem à Casa de Hades -- um desafio que ele implorou que
Hazel mantivesse em segredo.
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Nico agarrou a empunhadura de sua espada de ferro estígio.
-- Espíritos telúricos não gostam de filhos do Mundo Inferior. É
verdade. Eles nos acusam de dar golpes baixos. Literalmente. Mas
acho que os numina sentiriam este navio de qualquer modo. Estamos
transportando a Atena Partenos. Essa coisa é como um farol mágico.
Hazel estremeceu, pensando na enorme estátua que ocupava a
maior parte do porão de carga. Eles sacrificaram muito para resgatá-
la da caverna subterrânea em Roma, mas não tinham ideia do que
fazer com ela. Até o momento, parecia que só servia para alertar
monstros de sua presença.
Leo deslizou o dedo pelo mapa da Itália.
-- Então, passar pela cordilheira está fora de questão. O problema
é que ela se estende por um bom pedaço nos dois sentidos.
-- Poderíamos ir pelo mar -- sugeriu Hazel. -- Contornar a ponta
sul da Itália.
-- É bem longe -- disse Nico. -- Além disso, não temos... -- Sua
voz falhou. -- Você sabe... nosso especialista do mar, Percy.
O nome pairou no ar como uma tempestade iminente.
Percy Jackson, filho de Poseidon... provavelmente o semideus que
Hazel mais admirava. Ele salvara a sua vida tantas vezes na ex-
pedição ao Alasca, mas quando Percy precisou de sua ajuda em Roma
ela havia falhado. Vira, impotente, Percy e Annabeth despencarem
naquele abismo.
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Hazel respirou fundo. Percy e Annabeth ainda estavam vivos. Ela
conseguia sentir. Ainda teria a chance de ajudá-los caso conseguisse
chegar à Casa de Hades, caso sobrevivesse ao desafio a respeito do
qual Nico a tinha alertado...
-- E se formos para o norte? -- perguntou Hazel. -- Tem que
haver uma passagem nas montanhas ou algo assim.
Leo mexia na esfera de bronze de Arquimedes que ele instalara no
painel de controle -- seu mais novo e mais perigoso brinquedo. Toda
vez que Hazel olhava para aquilo, ficava com a boca seca. Temia que
Leo girasse a combinação errada e, acidentalmente, ejetasse todos do
convés, explodisse o navio ou transformasse o Argo II em uma tor-
radeira gigante.
Felizmente, tiveram sorte. A esfera estendeu uma lente de câmera
e projetou sobre o painel uma imagem em 3-D dos Apeninos.
-- Sei lá -- disse Leo examinando o holograma. -- Não vejo nen-
huma boa passagem ao norte. Mas é uma ideia melhor do que voltar
para o sul. Já chega de Roma.
Ninguém discutiu. Roma não fora uma boa experiência.
-- Seja lá o que formos fazer -- disse Nico --, precisamos nos
apressar. Cada dia que Annabeth e Percy passarem no Tártaro...
Ele não precisou terminar. Tinham que manter a esperança de
que Percy e Annabeth sobreviveriam tempo suficiente para encontrar
o lugar do Tártaro onde ficavam as Portas da Morte. Então, supondo
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que o Argo II pudesse chegar à Casa de Hades, eles talvez conseguis-
sem abrir as portas pelo lado mortal, salvar os amigos e fechar a en-
trada, impedindo que as forças de Gaia reencarnassem infinitamente
no mundo mortal.
Sim, com certeza era um plano infalível...
Nico olhou feio para a pradaria italiana lá embaixo.
-- Talvez devêssemos acordar os outros. Esta decisão afeta a to-
dos nós.
-- Não -- disse Hazel. -- A gente pode encontrar uma solução.
Não sabia bem por que estava tão decidida, mas, desde que deix-
aram Roma, a tripulação começara a perder a coesão. Estavam
aprendendo a trabalhar em equipe e, então, bum... os dois membros
mais importantes caíram no Tártaro. Percy era a sua coluna verteb-
ral. Ele lhes dera confiança quando velejaram pelo Atlântico e en-
traram no Mediterrâneo. Quanto a Annabeth, ela fora a líder de facto
da expedição. Recuperara a Atena Partenos sozinha. Era a mais in-
teligente dos sete, aquela que tinha as respostas.
Se Hazel acordasse o restante da tripulação sempre que tivessem
um problema, eles apenas começariam a discutir novamente,
sentindo-se cada vez mais desamparados.
Hazel tinha que deixar Percy e Annabeth orgulhosos. Precisava
tomar a iniciativa. Não podia crer que seu único papel naquela ex-
pedição seria aquele do qual Nico lhe incumbira: o de remover o
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obstáculo que os esperava na Casa de Hades. Ela afastou tal
pensamento.
-- Precisamos ser criativos -- disse ela. -- Pensar em outra forma
de atravessar aquelas montanhas, ou uma maneira de nos esconder
dos numina.
Nico suspirou.
-- Se estivesse sozinho, eu poderia viajar nas sombras. Mas isso
não funcionaria com um navio inteiro. E, para ser sincero, não sei se
tenho forças para transportar nem a mim mesmo.
-- Talvez eu pudesse criar algum tipo de camuflagem -- disse
Leo --, como uma cortina de fumaça para a gente se disfarçar nas
nuvens.
Ele não soava muito entusiasmado.
Hazel olhou para os campos pensando no que havia abaixo deles,
o reino de seu pai, o senhor do Mundo Inferior. Ela só encontrara
Plutão uma vez, e na ocasião nem sabia quem ele era. Certamente
nunca esperara ajuda dele -- não em sua primeira vida, não durante
o período em que vagou como um espírito no Mundo Inferior e não
desde que Nico a trouxera de volta ao mundo dos vivos.
O servo de seu pai, Tânatos, o deus da morte, dera a entender que
Plutão poderia estar fazendo um favor a Hazel ao ignorá-la. Afinal,
ela não deveria estar viva. Se Plutão prestasse atenção nela, talvez
tivesse que devolvê-la à terra dos mortos.
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O que significava que recorrer a Plutão era uma ideia muito ruim.
E, no entanto...
Por favor, pai, viu-se orando. Eu preciso encontrar uma maneira
de entrar em seu templo na Grécia, a Casa de Hades. Se estiver aí
embaixo, mostre-me o que fazer.
No limiar do horizonte, um lampejo de movimento chamou a sua
atenção, algo pequeno e bege cruzando os campos a uma velocidade
incrível, deixando para trás um rastro de vapor, como um avião.
Era inacreditável. Hazel não se atrevia a ter esperança, mas tinha
que ser...
-- Arion.
-- O quê? -- exclamou Nico.
Leo emitiu um grito de felicidade diante da nuvem de poeira que
se aproximava.
-- É o cavalo dela, cara! Você perdeu essa parte. Não o vemos
desde o Kansas!
Hazel sorriu -- a primeira vez que sorria em dias. Era tão bom ver
seu velho amigo.
Cerca de um quilômetro ao norte, o pequeno ponto bege circun-
dou uma colina e parou no topo. Era difícil enxergar, mas quando o
cavalo empinou e relinchou, o som chegou até o Argo II. Hazel não
teve mais dúvidas: era Arion.
-- Precisamos ir até lá -- disse ela. -- Ele está aqui para ajudar.
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-- Tudo bem. -- Leo coçou a cabeça. -- Mas, hã, nós combinamos
não pousar mais o navio no chão, lembra? Você sabe, com Gaia quer-
endo destruir a gente e tudo mais...
-- Só me deixe perto dele. Vou descer pela escada de corda. -- O
coração de Hazel estava disparado. -- Acho que Arion quer me dizer
alguma coisa.
II




HAZEL

HAZEL NUNCA SE SENTIRA tão feliz. Bem, exceto na noite da festa da
vitória no Campo Júpiter, quando beijou Frank pela primeira vez...
mas este era seu segundo momento mais feliz.
Assim que chegou ao chão, ela correu em direção a Arion e ab-
raçou seu pescoço.
-- Senti saudade! -- Ela apertou o rosto contra o dorso quente do
animal, que cheirava a sal marinho e a maçãs. -- Por onde você
andou?
Arion relinchou. Hazel desejou poder falar com cavalos como
Percy fazia, mas entendeu a ideia geral. Arion soava impaciente,
como se estivesse dizendo: Não há tempo para sentimentalismos,
garota! Vamos!
-- Quer que eu vá com você? -- arriscou Hazel.
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Arion balançou a cabeça, trotando sem sair do lugar. Seus olhos
castanho-escuros brilhavam, apressando-a.
Hazel ainda não conseguia acreditar que ele estava realmente ali.
Arion era capaz de correr em qualquer superfície, até mesmo o mar,
mas ela teve medo de que ele não os seguisse nas terras antigas. O
Mediterrâneo era muito perigoso para semideuses e seus aliados.
Ele não teria vindo a menos que Hazel estivesse realmente precis-
ando. E parecia tão agitado... Qualquer coisa que fizesse um cavalo
destemido ficar arisco deveria aterrorizá-la.
Em vez disso, ela se sentia feliz. Estava tão cansada de enjoar no
ar e no mar... A bordo do Argo II, Hazel se sentia tão útil quanto uma
caixa de lastro. Estava feliz por pisar em terra firme de novo, mesmo
sendo território de Gaia. Ela estava pronta para cavalgar.
-- Hazel -- gritou Nico do navio. -- O que está acontecendo?
-- Está tudo bem!
Ela se agachou e extraiu uma pepita de ouro da terra. Tinha cada
vez mais controle sobre o seu poder. Pedras preciosas não mais bro-
tavam acidentalmente ao seu redor, e era fácil extrair ouro do chão.
Deu a pepita para Arion... seu lanche favorito. Então, sorriu para
Leo e Nico, que a observavam do topo da escada, uns trinta metros
acima.
-- Arion quer me levar a algum lugar.
Os rapazes trocaram olhares nervosos.
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-- Hã... -- Leo apontou para o norte. -- Por favor, não me diga
que ele está levando você para lá?
Hazel estava tão concentrada em Arion que não notara a perturb-
ação. A quilômetros de distância, no topo da colina seguinte, uma
tempestade se armava sobre umas velhas ruínas de pedra, talvez res-
tos de um templo romano ou uma fortaleza. Um funil de nuvens ser-
penteava em direção à colina como um filete de tinta preta.
Hazel sentiu gosto de sangue na boca. Olhou para Arion.
-- Você quer ir para lá?
Arion relinchou, como se dissesse: Claro, dã!
Bem... Hazel pedira ajuda. Seria esta a resposta de seu pai?
Ela esperava que sim, mas sentia algo além da influência de
Plutão naquela tempestade... algo sombrio, poderoso e não necessar-
iamente amigável.
Ainda assim, era a sua chance de ajudar os amigos -- de liderar
em vez de seguir.
Apertou as correias de sua espada de ouro da cavalaria imperial e
montou Arion.
-- Vou ficar bem -- gritou para Nico e Leo. -- Esperem por mim
aqui.
-- Esperar por quanto tempo? -- perguntou Nico. -- E se você não
voltar?
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-- Não se preocupe. Voltarei -- prometeu ela, esperando que fosse
verdade.
Ela esporeou Arion, e ambos dispararam pelo campo, seguindo
direto para o ciclone que se tornava cada vez maior.
III




HAZEL

A TEMPESTADE ENGOLIU A COLINA em um cone negro rodopiante.
Arion disparou naquela direção.
Hazel viu-se no cume da colina, mas sentia como se estivesse em
outra dimensão. O mundo perdera as suas cores. As paredes do tor-
nado, de um negro tenebroso, cercavam a colina. O céu estava cin-
zento. As ruínas pareciam tão brancas que quase brilhavam. Até
mesmo Arion mudara de marrom caramelo para um tom cinza-
escuro.
No olho do tornado, o ar estava estagnado. Hazel sentiu um cala-
frio na pele, como se tivesse sido esfregada com álcool. À sua frente,
um portal em arco nas paredes cobertas de musgo dava acesso a uma
espécie de recinto.
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Hazel não podia ver muito em meio à escuridão, mas sentia uma
presença ali, como se ela fosse um pedaço de ferro perto de um
grande ímã. O magnetismo era irresistível, forçando-a a avançar.
Ainda assim, hesitou. Ela puxou as rédeas de Arion, e ele golpeou
o chão com impaciência, fazendo o solo crepitar sob seus cascos.
Onde quer que ele pisasse, a grama, a terra e as pedras ficavam bran-
cas como gelo. Hazel se lembrou da geleira Hubbard, no
Alasca -- como a superfície se partira sob seus pés. Lembrou-se do
chão daquela horrível caverna em Roma se desfazendo em poeira,
lançando Percy e Annabeth no Tártaro.
Esperava que aquela colina em preto e branco não se dissolvesse
debaixo dela, mas decidiu que era melhor continuar andando.
-- Então vamos, garoto. -- Sua voz soava abafada, como se est-
ivesse falando com o rosto enfiado em um travesseiro.
Arion passou pelo arco de pedra. Paredes em ruínas rodeavam
um pátio quadrado mais ou menos do tamanho de uma quadra de
tênis. Havia três outros portais, um no meio de cada parede, nos sen-
tidos norte, leste e oeste. No centro do pátio, cruzavam-se dois pas-
seios calçados com seixos, formando uma cruz. A névoa pairava no
ar -- tiras brancas e nebulosas que se retorciam e ondulavam como se
tivessem vida.
Não uma névoa qualquer, percebeu Hazel. A Névoa.
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Durante toda a sua vida ela ouvira falar sobre a Névoa -- o véu
sobrenatural que ocultava o mundo mitológico da visão dos mortais.
Podia enganar os seres humanos, até mesmo os semideuses, fazendo-
os ver monstros como animais inofensivos, ou deuses como pessoas
normais.
Hazel nunca pensara naquilo como fumaça de verdade, mas ao
observá-la se fechar e envolver as patas de Arion, flutuando pelos ar-
cos quebrados do pátio em ruínas, os pelos de seus braços se arrepi-
aram. De alguma forma, ela sabia: aquela coisa branca era pura
magia.
Ao longe, um cão uivou. Arion não costumava ter medo de nada,
mas recuou, bufando, nervoso.
-- Está tudo bem -- disse Hazel acariciando seu
pescoço. -- Estamos juntos nessa. Vou desmontar, certo?
Ela desmontou. Na mesma hora, o cavalo se virou e partiu.
-- Arion, espe... -- mas ele já voltara correndo por onde viera.
Isso porque estavam juntos nessa...
Outro uivo rasgou o ar, dessa vez mais próximo.
Hazel deu um passo em direção ao centro do pátio. A Névoa se
agarrava a ela como neblina de congelador.
-- Olá -- chamou.
-- Olá -- respondeu uma voz.
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A figura pálida de uma mulher apareceu no portal norte. Não,
espere... no portal leste. Não, oeste. Três imagens esfumaçadas da
mesma mulher se moviam sincronizadas em direção ao centro das
ruínas. Sua forma era turva, feita de Névoa, e dois pequenos tufos de
fumaça a seguiam de perto, movimentando-se rapidamente a seus
pés como se fossem seres vivos. Algum tipo de animal de estimação?
Ela chegou ao centro do pátio e suas três formas se fundiram em
uma. Materializou-se em uma jovem que usava um vestido escuro
sem mangas. Seu cabelo dourado estava preso em um rabo de cavalo
alto, no estilo grego clássico. Seu vestido era tão sedoso que parecia
ondular, como se o tecido fosse tinta escorrendo de seus ombros. Não
parecia ter mais de vinte anos, mas Hazel sabia que isso não queria
dizer nada.
-- Hazel Levesque -- disse a mulher.
Ela era linda, embora muito pálida. Certa vez, em Nova Orleans,
Hazel fora obrigada a ir ao velório de uma colega de classe. Lembrou-
se do corpo sem vida da jovem no caixão aberto. Seu rosto fora muito
bem maquiado, para parecer que estava dormindo, o que Hazel
achou aterrador.
A mulher fez Hazel se lembrar daquela menina, só que seus olhos
estavam abertos e eram completamente negros. Quando inclinou a
cabeça, pareceu voltar a se dividir em três pessoas diferentes...
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imagens enevoadas e fora de foco se juntando, como o retrato bor-
rado de uma pessoa se movendo rápido demais na hora da foto.
-- Quem é você? -- Os dedos de Hazel seguraram o punho de sua
espada. -- Quer dizer... qual deusa?
Pelo menos daquilo Hazel tinha certeza. A mulher irradiava
poder. Tudo ao redor delas -- a Névoa rodopiante, a tempestade
monocromática, o brilho fantasmagórico das ruínas -- era por causa
de sua presença.
-- Ah. -- A mulher assentiu com a cabeça. -- Deixe-me lhe dar al-
guma luz.
Ela ergueu as mãos. Subitamente, segurava duas antiquadas
tochas de junco acesas. A Névoa recuou para as extremidades do pá-
tio. Junto às sandálias da mulher, os dois animais etéreos tomaram
formas sólidas. Um era um labrador preto. O outro era um roedor
comprido, cinzento e peludo com uma máscara branca ao redor do
rosto. Uma doninha, talvez?
A mulher deu um sorriso sereno.
-- Sou Hécate. Deusa da magia. Temos muito o que conversar se
quiser sobreviver a esta noite.
IV




HAZEL

HAZEL QUERIA CORRER, MAS SEUS pés pareciam presos ao chão
branco vitrificado.
Em ambos os lados do cruzamento, dois suportes de metal escuro
irromperam da terra como caules de plantas. Hécate prendeu as
tochas neles, então caminhou lentamente em torno de Hazel,
olhando-a como se fossem parceiras em uma estranha dança.
O cão preto e a doninha a seguiram.
-- Você parece com a sua mãe -- decidiu Hécate.
Hazel sentiu um nó na garganta.
-- Você a conheceu?
-- Claro. Marie era uma vidente. Vivia de encantos, maldições e
talismãs. Eu sou a deusa da magia.
Aqueles olhos absolutamente negros pareciam atrair Hazel, como
se estivessem tentando sugar a sua alma. Durante sua primeira vida
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em Nova Orleans, as crianças da escola St. Agnes a atormentavam
por causa da mãe. Diziam que Marie Levesque era uma bruxa. As
freiras murmuravam que a mãe de Hazel tinha coisa com o Diabo.
Se as freiras tinham medo de minha mãe, perguntou-se Hazel, o
que achariam desta deusa?
-- Muitos me temem -- disse Hécate, como se lesse os seus
pensamentos. -- Mas a magia não é boa e nem má. Trata-se de uma
ferramenta, como uma faca. Uma faca é má? Só se o seu dono for
mau.
-- Minha... minha mãe -- gaguejou Hazel. -- Ela não acreditava
em magia. Não de verdade. Apenas fingia, para ganhar dinheiro.
A doninha chiou e mostrou os dentes. Em seguida, emitiu um
ruído de seu traseiro. Em outras circunstâncias, uma doninha
soltando gases poderia ser algo engraçado, mas Hazel não riu. Os ol-
hos vermelhos do roedor voltaram-se sinistramente para ela, como
pequenas brasas.
-- Calma, Gale -- disse Hécate. Ela deu de ombros, desculpando-
se com Hazel. -- Gale não gosta de incrédulos e vigaristas. Ela já foi
uma bruxa, sabe?
-- Sua doninha era uma bruxa?
-- Na verdade é uma tourão -- esclareceu Hécate. -- Mas, sim.
Gale já foi uma desagradável bruxa humana. Ela cuidava muito mal
da higiene pessoal, além de ter muitos, hã, problemas
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digestivos. -- Hécate balançou a mão diante do nariz. -- Isso dava má
fama para meus outros seguidores.
-- Tudo bem.
Hazel tentou não olhar para a doninha. Ela realmente não queria
saber dos problemas intestinais do roedor.
-- De qualquer modo -- continuou Hécate --, eu a transformei em
um tourão. Ela fica muito melhor assim.
Hazel engoliu em seco. Ela olhou para o cão negro, que esfregava
carinhosamente o focinho na mão da deusa.
-- E o seu labrador...
-- Ah, é Hécuba, ex-rainha de Troia -- disse Hécate, como se isso
fosse algo óbvio.
A cadela rosnou.
-- Você está certa, Hécuba -- disse a deusa. -- Não temos tempo
para longas apresentações. O fato, Hazel Levesque, é que sua mãe
podia alegar não acreditar, mas ela detinha a verdadeira magia. E
acabou percebendo isso. Quando buscou um feitiço para invocar o
deus Plutão, eu a ajudei a encontrá-lo.
-- Você...?
-- Sim. -- Hécate continuou andando ao redor de Hazel. -- Eu vi
potencial em sua mãe. E vejo ainda mais potencial em você.
Hazel ficou tonta. Ela se lembrou da confissão de sua mãe pouco
antes de morrer: como invocara Plutão, como o deus se apaixonara
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por ela, e como, por causa de sua cobiça, sua filha Hazel nascera
amaldiçoada. Hazel era capaz de extrair riquezas da terra, mas
qualquer um que as usasse sofreria e morreria.
Agora, aquela deusa estava dizendo que ela provocara tudo
aquilo.
-- Minha mãe sofreu por causa da magia. A minha vida inteira...
-- Sua vida não teria acontecido sem mim -- disse Hécate
simplesmente. -- Eu não tenho tempo para a sua raiva. Nem você
aliás. Sem a minha ajuda, você morrerá.
A cadela rosnou. A tourão trincou os dentes e soltou gases.
Era como se os pulmões de Hazel estivessem se enchendo de areia
quente.
-- Que tipo de ajuda? -- perguntou.
Hécate ergueu os braços pálidos. Os três portais pelos quais en-
trara -- norte, leste e oeste -- começaram a girar com a Névoa. Um
turbilhão de imagens em preto e branco brilhou e cintilou, como nos
velhos filmes mudos que ainda passavam às vezes nos cinemas
quando Hazel era pequena.
No portal oeste, semideuses romanos e gregos com armaduras
completas lutavam entre si na encosta de uma colina, sob um grande
pinheiro. A grama estava repleta de feridos e moribundos. Hazel viu
a si mesma montando Arion, avançando pela luta corpo a corpo e
gritando, tentando pôr um fim à violência.
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No portal leste, Hazel viu o Argo II caindo sobre os Apeninos. Seu
cordame estava em chamas. Um pedregulho atingira o tombadilho.
Outro perfurara o casco. O navio se rompeu como uma abóbora
podre, e o motor explodiu.
As imagens do portal norte eram ainda piores. Hazel viu Leo in-
consciente -- ou morto -- caindo através das nuvens. Ela viu Frank
cambaleando sozinho por um túnel escuro, segurando o braço, com a
camisa encharcada de sangue. E viu-se em uma vasta caverna repleta
de fios de luz, como uma teia luminosa. Ela lutava para avançar en-
quanto, ao longe, Percy e Annabeth estavam deitados e imóveis ao pé
de duas portas de metal preto e prata.
-- Escolhas -- disse Hécate. -- Você está em uma encruzilhada,
Hazel Levesque. E eu sou a deusa das encruzilhadas.
O chão sob os pés de Hazel tremeu. Ela olhou para baixo e viu o
reflexo de moedas de prata... milhares de antigos denários romanos
irrompendo na superfície ao seu redor, como se toda a colina est-
ivesse fervilhando. Ela estava tão agitada por conta das visões nos
portais que devia ter invocado toda a prata dos campos ao redor.
-- Neste lugar, o passado fica próximo à superfície -- disse Héc-
ate. -- Nos tempos antigos, duas grandes estradas romanas se encon-
travam neste ponto. Notícias eram trocadas. Negócios eram realiza-
dos. Amigos se encontravam, e inimigos lutavam. Exércitos inteiros
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tinham de escolher uma direção. Encruzilhadas sempre são lugares
de decisão.
-- Como... como Jano. -- Hazel se lembrou do santuário de Jano
na Colina dos Templos, no Acampamento Júpiter. Os semideuses
iam até lá para tomar decisões. Lançavam uma moeda, cara ou coroa,
e esperavam que o deus de duas faces os guiasse pelo bom caminho.
Hazel sempre odiara aquele lugar. Nunca entendera por que seus
amigos estavam tão dispostos a colocar suas escolhas na mão de um
deus. Depois de tudo por que passara, Hazel confiava na sabedoria
dos deuses tanto quanto confiava em uma máquina caça-níqueis de
Nova Orleans.
A deusa da magia sibilou, enojada.
-- Jano e seus portais. Para ele, todas as opções são preto ou
branco, sim ou não, dentro ou fora. Na verdade, não é tão simples as-
sim. Sempre que você chega a uma encruzilhada, há ao menos três
maneiras de prosseguir... quatro, se você contar com a possibilidade
de retornar. Você está em uma encruzilhada assim agora, Hazel.
Hazel olhou de novo para cada portal: uma guerra de semideuses,
a destruição do Argo II, sua ruína e a de seus amigos.
-- Todas as escolhas são ruins.
-- Todas as escolhas implicam riscos -- corrigiu a deusa. -- Mas
qual é o seu objetivo?
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-- Meu objetivo? -- Hazel apontou impotente para os por-
tais. -- Nenhum deles.
Hécuba rosnou. Gale, a tourão, descreveu um círculo ao redor dos
pés da deusa, peidando e mostrando os dentes.
-- Você poderia voltar -- sugeriu Hécate. -- Retornar a Roma...
mas as forças de Gaia estão esperando por isso. Nenhum de vocês
sobreviverá.
-- Então... o que você sugere?
Hécate se aproximou da tocha mais próxima. Ela pegou um pun-
hado de fogo e esculpiu as chamas até ter em suas mãos um pequeno
mapa em relevo da Itália.
-- Você pode ir para oeste. -- Hécate afastou o dedo do mapa
flamejante. -- Volte para a América com o seu prêmio, a Atena
Partenos. Seus companheiros em casa, gregos e romanos, estão à
beira da guerra. Volte agora e talvez salve muitas vidas.
-- Talvez -- repetiu Hazel. -- Mas Gaia deve acordar na Grécia. É
lá que os gigantes estão se reunindo.
-- Verdade. Gaia escolheu o dia primeiro de agosto, a Festa de
Spes, deusa da esperança, para a sua ascensão ao poder. Ao acordar
no Dia da Esperança, ela pretende destruir para sempre toda a esper-
ança. Mesmo que você consiga chegar à Grécia a tempo, conseguirá
detê-la? Eu não sei. -- Hécate correu o dedo ao longo dos Apeninos
flamejantes. -- Você pode ir para leste, atravessando as montanhas,
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mas Gaia vai fazer de tudo para impedi-la de cruzar a Itália. Ela
lançou os deuses da montanha contra vocês.
-- Percebemos -- disse Hazel.
-- Qualquer tentativa de atravessar os Apeninos resultará na
destruição de seu navio. Ironicamente, esta pode ser a opção mais se-
gura para a sua tripulação. Eu prevejo que todos vocês sobreviveriam
à explosão. É possível, embora improvável, que você ainda possa
chegar a Épiro e fechar as Portas da Morte. Você poderia encontrar
Gaia e impedir a sua ascensão. Mas, a essa altura, ambos os acampa-
mentos dos semideuses estariam destruídos. Você não teria um lar
para onde voltar. -- Hécate sorriu. -- Provavelmente, a destruição de
seu navio os deixaria presos nas montanhas. Isso significaria o fim de
sua missão, mas pouparia você e seus amigos de muita dor e sofri-
mento nos dias que virão. A guerra contra os gigantes teria de ser
ganha ou perdida sem vocês.
Ganha ou perdida sem nós.
Uma pequena e culpada parte de Hazel achou aquilo tentador. Ela
ansiava pela chance de ser uma garota normal. Não queria mais nen-
huma dor ou sofrimento para si ou para seus amigos. Eles já haviam
sofrido tanto...
Hazel olhou para o portal do meio, atrás de Hécate. Viu Percy e
Annabeth caídos diante daquelas portas pretas e prata. Uma enorme
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forma escura, vagamente humanoide, pairava agora sobre eles com o
pé erguido, como se estivesse a ponto de esmagar Percy.
-- E eles? -- perguntou Hazel, com a voz falhando. -- Percy e
Annabeth?
Hécate deu de ombros.
-- Oeste, leste, ou sul... eles morrem.
-- Não é uma opção -- disse Hazel.
-- Então você tem apenas um caminho, embora seja o mais
perigoso.
Hécate arrastou o dedo pelos Apeninos em miniatura, deixando
uma linha branca brilhante sobre as chamas vermelhas.
-- Há uma passagem secreta aqui no norte, um lugar sob o meu
controle, por onde Aníbal cruzou certa vez quando marchou contra
Roma.
A deusa traçou uma longa volta... até o topo da Itália, depois para
leste sobre o mar e, em seguida, para o sul, ao longo da costa ocident-
al da Grécia.
-- Depois de atravessarem a passagem, vocês viajarão para o
norte até Bolonha, e, depois, para Veneza. A partir daí, navegarão no
Mar Adriático até o seu objetivo: Épiro, na Grécia.
Hazel não era muito boa em geografia. Não tinha ideia de como
era o Mar Adriático. Nunca ouvira falar de Bolonha, e tudo o que
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sabia sobre Veneza eram histórias vagas sobre canais e gôndolas.
Mas uma coisa era óbvia:
-- Isso é tão fora de mão...
-- Justamente por isso Gaia não vai esperar que vocês sigam por
este caminho -- disse Hécate. -- Eu posso ocultar um pouco o seu
progresso, mas o sucesso de sua viagem dependerá de você, Hazel
Levesque. Você deverá aprender a usar a Névoa.
-- Eu? -- O coração de Hazel estava disparado. -- Usar a Névoa
como?
Hécate apagou seu mapa da Itália. Em seguida, acenou em
direção a Hécuba. A Névoa se concentrou ao redor da labradora até
ela estar completamente envolvida por um casulo branco. A neblina
desapareceu com um sonoro puft! e, no lugar da cadela, surgiu uma
gatinha preta e tristonha com olhos dourados.
-- Miau -- reclamou.
-- Eu sou a deusa da Névoa -- explicou Hécate. -- Sou respon-
sável por manter o véu que separa o mundo dos deuses do mundo
dos mortais. Meus filhos aprendem a usar a Névoa a seu favor, para
criar ilusões ou influenciar as mentes dos mortais. Outros semi-
deuses também podem fazer isso. Assim como você, Hazel, se quiser
ajudar os seus amigos.
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-- Mas... -- Hazel olhou para a gata. Ela sabia que, na verdade, era
Hécuba, a labradora preta, mas não conseguia acreditar. A gata pare-
cia tão real. -- Eu não vou conseguir fazer isso.
-- Sua mãe tinha o dom -- disse Hécate. -- O seu é ainda maior.
Como filha de Plutão que voltou dos mortos, você entende o véu
entre os mundos melhor do que a maioria. Você pode controlar a Né-
voa. Caso contrário... bem, seu irmão Nico já a advertiu. Os espíritos
sussurraram para ele, contaram-lhe sobre o seu futuro. Quando
chegar à casa de Hades, você encontrará uma inimiga formidável. Ela
não pode ser vencida pela força ou pela espada. Só você poderá
derrotá-la, e para isso precisará de magia.
Hazel sentiu as pernas ficarem fracas. Ela se lembrou da ex-
pressão séria de Nico enquanto ele apertava seu braço com força.
Você não pode contar para os outros. Ainda não. A coragem deles já
está no limite.
-- Quem? -- perguntou Hazel com a voz trêmula. -- Quem é essa
inimiga?
-- Não pronunciarei o nome dela -- disse Hécate. -- Isso seria o
mesmo que alertá-la sobre a sua presença antes de você estar pronta
para enfrentá-la. Vá para o norte, Hazel. Pratique invocar a Névoa
durante a viagem. Quando chegar a Bolonha, procure os dois anões.
Eles os levarão a um tesouro que poderá ajudá-los a sobreviver na
Casa de Hades.
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-- Não entendi.
-- Miau -- reclamou a gatinha.
-- Está bem, está bem, Hécuba. -- A deusa moveu a mão outra
vez. A gata desapareceu e a labradora preta ocupou o seu lugar.
-- Você vai entender, Hazel -- prometeu a deusa. -- De vez em
quando, enviarei Gale para verificar o seu progresso.
A tourão sibilou, com os olhos vermelhos e redondos repletos de
malícia.
-- Maravilha -- murmurou Hazel.
-- Antes de chegar a Épiro, você deverá estar preparada. Se con-
seguir, então talvez nos encontremos novamente... para a batalha
final.
Uma batalha final, pensou Hazel. Ah, que alegria.
Hazel perguntou-se se seria capaz de impedir as previsões que
vira na Névoa: Leo caindo pelo céu; Frank cambaleando no escuro,
sozinho e gravemente ferido; Percy e Annabeth à mercê de um gi-
gante sombrio.
Ela odiava os enigmas dos deuses e seus conselhos obscuros. E es-
tava começando a detestar encruzilhadas.
-- Por que está me ajudando? -- perguntou Hazel. -- No Acampa-
mento Júpiter disseram que você tomou o partido dos titãs na última
guerra.
Os olhos escuros de Hécate brilharam.
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-- Porque eu sou uma titã, filha de Perses e Astéria. Muito antes
de os olimpianos chegarem ao poder, eu dominava a Névoa. Apesar
disso, na Primeira Guerra dos Titãs, há milênios, lutei ao lado de
Zeus contra Cronos. Eu não estava cega para a crueldade de Cronos.
E esperava que Zeus se mostrasse um rei melhor.
Ela deu uma curta risada amarga.
-- Quando Deméter perdeu a filha Perséfone, sequestrada por seu
pai, eu a guiei com as minhas tochas pela noite mais escura,
ajudando-a na busca. E quando os gigantes se ergueram pela
primeira vez, de novo fiquei do lado dos deuses. Lutei contra meu
arqui-inimigo, Clítio, criado por Gaia para absorver e derrotar toda a
minha magia.
-- Clítio. -- Hazel nunca ouvira esse nome, mas pronunciá-lo fez
os seus membros parecerem mais pesados. Ela olhou para as im-
agens no portal norte: a enorme forma escura pairando sobre Percy e
Annabeth. -- Ele é a ameaça na Casa de Hades?
-- Ah, ele está lá à sua espera -- disse Hécate. -- Mas primeiro vo-
cê deve derrotar a bruxa. Se não conseguir...
Ela estalou os dedos, escurecendo todos os portais. A Névoa se
dissipou, e as imagens desapareceram.
-- Todos precisamos fazer escolhas -- disse a deusa. -- Quando
Cronos se rebelou pela segunda vez, cometi um erro. Eu o apoiei.
Estava cansada de ser ignorada pelos chamados deuses maiores.
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Mesmo com todos os meus anos de serviço fiel, ainda desconfiavam
de mim, não permitiam que eu ocupasse um lugar no seu salão...
A tourão Gale chiou com raiva.
-- Isso não importa mais. -- A deusa suspirou. -- Fiz as pazes com
o Olimpo. Mesmo agora que estão por baixo, com suas personas gre-
gas e romanas lutando entre si, eu os ajudarei. Grega ou romana,
sempre fui apenas Hécate. Vou ajudá-los na luta contra os gigantes,
se você se mostrar digna dessa ajuda. Portanto, a escolha é sua, Hazel
Levesque. Você vai confiar em mim... ou vai me desprezar, como os
deuses do Olimpo fizeram tantas vezes?
O sangue rugia nos ouvidos de Hazel. Poderia confiar naquela
deusa sombria, que dera para a sua mãe a magia que arruinara a sua
vida? Não. E não gostara muito do cão de Hécate e da doninha
peidona.
Mas também sabia que não podia deixar Percy e Annabeth
morrerem.
-- Seguirei para o norte -- respondeu. -- Usaremos a sua pas-
sagem secreta pelas montanhas.
Hécate assentiu, com uma ponta de satisfação no rosto.
-- Você escolheu bem, mas o caminho não será fácil. Muitos mon-
stros enfrentarão vocês. Até mesmo alguns de meus próprios servos
passaram para o lado de Gaia, na esperança de destruir o seu mundo
mortal.
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A deusa pegou as duas tochas de seus suportes.
-- Prepare-se, filha de Plutão. Se você conseguir derrotar a bruxa,
nós nos encontraremos novamente.
-- Vou conseguir -- prometeu Hazel. -- E, Hécate? Saiba que não
estou escolhendo um de seus caminhos. Farei o meu próprio.
A deusa arqueou as sobrancelhas. A tourão se contorceu, e a ca-
dela rosnou.
-- A gente vai descobrir uma maneira de deter Gaia -- disse
Hazel. -- E vamos resgatar os nossos amigos do Tártaro. Manteremos
a tripulação e o navio unidos e impediremos que o Acampamento
Júpiter e o Acampamento Meio-Sangue entrem em guerra. Faremos
tudo.
A tempestade uivava, e as paredes negras do tornado giravam
cada vez mais rápido.
-- Interessante -- disse Hécate, como se Hazel fosse o resultado
inesperado de uma experiência científica. -- Essa seria uma magia
especial.
Uma onda negra obscureceu o mundo. Quando Hazel voltou a
enxergar, a tempestade, a deusa e seus minions haviam desapare-
cido. Hazel ficou na encosta da colina sob o sol da manhã, sozinha
em meio às ruínas, com exceção de Arion, que trotava ao seu lado, re-
linchando, impaciente.
-- Concordo -- disse Hazel para o cavalo. -- Vamos sair daqui.
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***

-- O que aconteceu? -- perguntou Leo quando Hazel embarcou no
Argo II.
As mãos da menina ainda tremiam por conta da conversa com a
deusa. Ela olhou pela amurada e viu o rastro de poeira levantado por
Arion enquanto ele cruzava as colinas da Itália. Ela queria que o
amigo tivesse ficado, mas não podia culpá-lo por querer se afastar
daquele lugar o mais rápido possível.
O campo brilhava à medida que o sol de verão iluminava o or-
valho matinal. Na colina, as velhas ruínas brancas permaneciam si-
lenciosas -- nenhum sinal de estradas antigas, deusas ou doninhas
peidonas.
-- Hazel -- chamou Nico.
Seus joelhos falharam. Nico e Leo a agarraram pelos braços e
ajudaram-na a subir os degraus do tombadilho. Ela ficou envergon-
hada por estar desfalecendo como uma donzela de conto de fadas,
mas a sua energia se esgotara. A lembrança daquelas cenas na en-
cruzilhada a enchiam de pavor.
-- Estive com Hécate -- conseguiu dizer.
Ela não contou tudo. Lembrou-se da advertência de Nico: a cor-
agem deles já está no limite. Mas falou sobre a passagem secreta
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pelas montanhas ao norte, e sobre a rota que, segundo Hécate,
poderia levá-los até Épiro.
Quando terminou o relato, Nico segurou sua mão. Os olhos dele
estavam repletos de preocupação.
-- Hazel, você encontrou Hécate em uma encruzilhada. Isso é...
isso é algo a que muitos semideuses não sobreviveriam. E aqueles
que sobrevivem nunca são os mesmos. Tem certeza de que você...
-- Eu estou bem -- insistiu ela.
Mas sabia que não estava. Hazel se lembrou de como havia se
sentido ousada e furiosa ao dizer à deusa que encontraria o seu
próprio caminho e faria tudo. Agora, sua resposta orgulhosa parecia
ridícula. Sua coragem a abandonara.
-- E se Hécate estiver nos enganando? -- perguntou Leo. -- Essa
rota pode ser uma armadilha.
Hazel balançou a cabeça em negativa.
-- Se fosse uma armadilha, acho que Hécate teria feito a rota
norte parecer tentadora. Acredite, ela não fez isso.
Leo tirou uma calculadora do cinto e apertou alguns números.
-- Isso fica uns... quatrocentos e oitenta quilômetros fora de
nosso caminho para chegar a Veneza. Então, teríamos de voltar e
descer o Adriático. E você disse algo sobre anões pamonhas?
-- Anões em Bolonha -- corrigiu Hazel. -- Acho que Bolonha é
uma cidade. Mas por que temos que encontrar anões por lá... não
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faço ideia. Tem a ver com algum tesouro para nos ajudar em nossa
busca.
-- Hum -- murmurou Leo. -- Quer dizer, adoro tesouros, mas...
-- É a nossa melhor opção -- opinou Nico, ajudando Hazel a se le-
vantar. -- Precisamos recuperar o tempo perdido, viajar o mais
rápido que pudermos. A vida de Percy e Annabeth pode depender
disso.
-- Rápido? -- Leo sorriu. -- Deixa comigo.
Ele correu até o painel de controle e começou a acionar
interruptores.
Nico segurou o braço de Hazel e conduziu-a até onde não
pudessem ser ouvidos.
-- O que mais Hécate falou? Nada sobre...
-- Não posso -- interrompeu Hazel.
As imagens que vira haviam sido devastadoras: Percy e Annabeth
indefesos diante daquelas portas de metal negro, o gigante sombrio
pairando sobre os dois, ela mesma presa em um labirinto de luz bril-
hante, incapaz de ajudar.
Você deve derrotar a bruxa, dissera Hécate. Só você pode
derrotá-la. Se não conseguir...
O fim, pensou Hazel. Todos os portais fechados. Toda a esperança
extinta.
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Nico a advertira. Ele se comunicara com os mortos, ouvira-os
murmurando pistas sobre o seu futuro. Dois filhos do Mundo Inferi-
or entrariam na Casa de Hades. Teriam de enfrentar um inimigo im-
possível. Apenas um deles conseguiria chegar às Portas da Morte.
Hazel não conseguia encarar o irmão.
-- Eu lhe digo mais tarde -- prometeu, tentando manter a voz
firme. -- Agora devemos descansar enquanto podemos. Hoje à noite,
cruzaremos os Apeninos.
V




ANNABETH

NOVE DIAS.
Enquanto caía, Annabeth pensou em Hesíodo, o antigo poeta
grego que especulara que o tempo que leva para alguém cair da terra
até o Tártaro seria de nove dias.
Esperava que Hesíodo estivesse errado. Tinha perdido a noção de
por quanto tempo Percy e ela estavam caindo... horas? Um dia? Pare-
cia uma eternidade. Eles estavam de mãos dadas desde que foram
laçados no abismo. Depois, Percy a havia puxado mais para perto,
abraçando-a com força enquanto despencavam pela escuridão
absoluta.
O vento assoviava nos ouvidos de Annabeth. O ar ia ficando mais
quente e úmido, como se estivessem mergulhando na garganta de um
dragão enorme. O tornozelo quebrado latejava, mas não sabia dizer
se ainda estava envolto em teias de aranha.
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Aracne, aquele monstro maldito. Apesar de ter sido capturada por
sua própria teia, atropelada por um carro e lançada no Tártaro, a
aranha tinha conseguido sua vingança. De algum modo seu fio de
seda tinha se emaranhado na perna de Annabeth e a puxado para o
abismo, arrastando Percy junto.
Annabeth não podia imaginar que Aracne ainda estivesse viva, em
algum lugar na escuridão abaixo deles. Não queria encontrar aquele
monstro outra vez quando chegassem ao fundo. Pensando pelo lado
positivo, supondo que houvesse um fundo, Annabeth e Percy
provavelmente seriam esmagados com o impacto, por isso aranhas
gigantes eram a menor de suas preocupações.
Abraçou Percy e tentou não chorar. Ela nunca havia esperado que
sua vida fosse fácil. A maioria dos semideuses morria jovem nas
mãos de monstros terríveis. Era assim desde a Antiguidade. Os gre-
gos inventaram a tragédia. Eles sabiam que os maiores heróis não
tinham finais felizes.
Mesmo assim, não era justo. Ela tinha passado por tanta coisa
para recuperar aquela estátua de Atena. Quando enfim conseguiu e
as coisas estavam parecendo melhorar e ela reencontrara Percy, eles
tinham despencado para a morte.
Nem os deuses poderiam imaginar um destino tão cruel.
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Mas Gaia não era como os outros deuses. A Mãe Terra era mais
velha, mais perversa, mais sanguinária. Annabeth podia imaginá-la
rindo enquanto eles despencavam nas profundezas.
Annabeth encostou os lábios no ouvido de Percy.
-- Amo você.
Não sabia se ele podia ouvi-la, mas, se morressem, ela queria que
aquelas fossem suas últimas palavras.
Tentou desesperadamente pensar em um plano para salvá-los.
Era uma filha de Atena. Tinha provado seu valor nos túneis sob
Roma, superado uma série de desafios apenas com sua inteligência.
Mas não conseguia pensar em um modo de reverter ou mesmo re-
duzir a velocidade de sua queda.
Nenhum deles tinha o poder de voar, não como Jason, que era
capaz de controlar o vento, ou Frank, que podia se transformar em
um animal alado. Se chegassem ao fundo em velocidade terminal...
bem, ela entendia o suficiente de física para saber que seria terminal.
Estava se perguntando seriamente se eles poderiam montar um
paraquedas com suas camisas (sim, o desespero chegara a esse
ponto) quando algo mudou ao seu redor. A escuridão assumiu um
tom cinza avermelhado. Ela se deu conta de que enxergava os cabelos
de Percy. O assovio em seus ouvidos se transformou em algo mais
parecido com um rugido. O ar ficou insuportavelmente quente,
permeado por um fedor que lembrava ovos podres.
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De repente, o poço por onde estavam caindo se abriu em uma
caverna ampla. Annabeth conseguiu ver o fundo cerca de um quilô-
metro abaixo deles. Por um instante, ficou atônita demais para
pensar direito. Toda a ilha de Manhattan caberia no interior daquela
caverna. E ela nem conseguia vê-la por inteiro. Nuvens vermelhas
pairavam no ar como se fossem vapor de sangue. A paisagem, pelo
menos o que podia ver dela, era composta por uma planície negra
rochosa, pontuada por montanhas íngremes e abismos causticantes.
À esquerda de Annabeth, o chão se abria numa série de penhascos
semelhantes a degraus colossais que levavam para ainda mais fundo
do abismo.
O fedor de enxofre dificultava a concentração, mas ela encarou o
chão diretamente abaixo deles e viu uma faixa de um líquido negro
reluzente, um rio.
-- Percy! -- gritou no ouvido dele. -- Água!
Gesticulou freneticamente. Era difícil interpretar a expressão de
Percy naquela penumbra avermelhada. Ele parecia exausto, em es-
tado de choque e apavorado, mas assentiu com a cabeça como se
tivesse entendido.
Percy era capaz de controlar a água, supondo que o que estivesse
abaixo deles fosse água. Ele podia dar um jeito de suavizar a queda.
Claro que Annabeth tinha ouvido histórias horríveis sobre os rios do
Mundo Inferior. Eles podiam roubar suas lembranças, queimar seu
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corpo e sua alma até virarem cinzas. Mas decidiu não pensar nisso.
Aquela era sua única chance.
O rio se aproximava rapidamente. No último segundo, Percy
soltou um grito desafiador, e então a água jorrou em um gêiser gi-
gantesco que os engoliu inteiros.
VI




ANNABETH

O IMPACTO NÃO A MATOU, mas o frio quase conseguiu.
A água congelante expulsou o ar de seus pulmões. Seus membros
ficaram rígidos, e ela soltou Percy e começou a afundar. Gemidos es-
tranhos enchiam seus ouvidos, milhões de vozes infelizes, como se o
rio fosse feito de tristeza destilada. As vozes eram piores que o frio.
Elas a faziam afundar e deixavam seu corpo dormente.
Por que lutar?, perguntaram a ela. Você já está morta mesmo.
Nunca vai sair deste lugar.
Ela podia submergir até o fundo e se afogar, deixar que o rio
levasse seu corpo. Seria mais fácil. Podia simplesmente fechar os
olhos...
Percy agarrou sua mão e a puxou de volta para a realidade. Ela
não conseguia vê-lo na água escura, mas de repente não queria mais
morrer. Juntos, nadaram e chegaram à superfície.
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Annabeth encheu os pulmões, agradecida pelo ar, por mais sul-
furoso que fosse. A água girava em volta deles, e ela se deu conta de
que Percy estava criando um rodamoinho para fazê-los flutuar.
Apesar de não conseguir ver o que havia ao redor, sabia que
aquilo era um rio. E rios tinham margens.
-- Terra -- disse com voz rouca. -- Vá para o lado.
Percy parecia morto de exaustão. Normalmente a água o revig-
orava, mas não aquela água. Controlá-la devia ter exigido toda a sua
energia. O rodamoinho começou a se dissipar. Annabeth passou um
braço pela cintura dele e lutou contra a corrente. O rio estava contra
ela: milhares de vozes chorosas murmurando em seus ouvidos, em
seus pensamentos.
Vida é desespero, diziam elas. Nada faz sentido, e depois você
morre.
-- Sem sentido -- murmurou Percy.
Seus dentes batiam de frio. Ele parou de nadar e começou a
afundar.
-- Percy! -- gritou ela. -- O rio está mexendo com a sua cabeça. É
o Cócito, o Rio das Lamentações. Ele é feito de infelicidade!
-- Infelicidade -- concordou ele.
-- Resista!
Ela movia as pernas e fazia um enorme esforço para manter os
dois na superfície. Outra piada cósmica para a diversão de Gaia:
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Annabeth morre tentando impedir que o namorado, o filho de Pos-
eidon, se afogue.
Não vai acontecer, sua bruxa, pensou Annabeth.
Abraçou Percy com mais força e o beijou.
-- Conte-me sobre Nova Roma -- pediu. -- Quais eram seus pla-
nos para nós?
-- Nova Roma... para nós...
-- É, Cabeça de Alga. Você disse que poderíamos ter um futuro,
lá! Me fale sobre isso!
Annabeth nunca tivera vontade de deixar o Acampamento Meio-
Sangue. Era o único lar de verdade que conhecera. Mas alguns dias
antes, no Argo II, Percy dissera que imaginava um futuro para os
dois entre os semideuses romanos. Na cidade de Nova Roma, veter-
anos da legião podiam se estabelecer com segurança, fazer faculdade,
se casar e até ter filhos.
-- Arquitetura -- murmurou Percy. Seus olhos começaram a en-
trar em foco. -- Achei que você ia gostar das casas, dos parques. Tem
uma rua cheia de chafarizes bem legais.
Annabeth já conseguia vencer a correnteza. Seus membros pare-
ciam sacos de areia molhada, mas Percy agora a estava ajudando. A
linha escura da margem estava a alguns metros de distância.
-- Faculdade -- disse ela, ofegante. -- Será que poderíamos
estudar juntos?
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-- É... É -- concordou ele, com um pouco mais de segurança.
-- O que você estudaria, Percy?
-- Não sei -- admitiu ele.
-- Biologia marinha? -- sugeriu ela. -- Oceanografia?
-- Surfe? -- perguntou ele.
Ela riu. O som produziu uma onda pela água, e o impacto fez os
lamentos se reduzirem a um ruído de fundo. Annabeth se perguntou
se alguém já havia rido antes no Tártaro, apenas uma risada pura e
simples de prazer. Ela duvidava.
Usou o que restava de suas forças para alcançar a beira do rio.
Seus pés afundaram no leito arenoso, e ela e Percy saíram da água
com dificuldade. Os dois tremiam, ofegavam e desmoronaram sobre
a areia escura.
Annabeth queria se encolher junto de Percy e dormir. Queria
fechar os olhos, na esperança de que tudo aquilo fosse apenas um
pesadelo, e acordar no Argo II, em segurança e junto de seus amigos
(bem... tão em segurança quanto pode estar um semideus).
Mas, não. Eles estavam mesmo no Tártaro. Aos seus pés, o Rio
Cócito passava rugindo, uma torrente de tristeza e infelicidade líqui-
das. O ar sulfuroso fazia os pulmões e a pele de Annabeth arderem.
Quando olhou para os braços, viu que já estavam cobertos com feias
manchas vermelhas. Ela tentou se sentar, mas ofegou de dor.
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A praia não era de areia. Estavam sentados em um campo de ca-
cos de vidro afiados, alguns dos quais agora estavam nas mãos de
Annabeth.
Então o ar era ácido. A água era infelicidade. O chão era vidro
quebrado. Tudo ali era feito para machucar e matar. Annabeth
respirou fundo com dificuldade e se perguntou se as vozes no Cócito
estavam certas. Talvez lutar pela vida não fizesse sentido. Eles estari-
am mortos em menos de uma hora.
Percy tossiu ao seu lado.
-- O cheiro deste lugar é igualzinho ao do meu ex-padrasto.
Annabeth conseguiu dar um leve sorriso. Não conhecia Gabe
Cheiroso, mas já ouvira várias histórias sobre ele. Amava Percy por
tentar melhorar seu ânimo.
Se tivesse caído no Tártaro sozinha, pensou Annabeth, estaria
condenada. Depois de tudo pelo que passara no subterrâneo de
Roma e de ter encontrado a Atena Partenos, aquilo era simplesmente
demais. Ela teria se encolhido e chorado até se transformar em outro
fantasma e se dissolver no Cócito.
Mas não estava sozinha. Tinha Percy. E aquilo significava que não
podia desistir.
Ela se concentrou para avaliar a situação. Seu pé continuava en-
volto na tala improvisada com madeira e plástico bolha, ainda
emaranhado em teias de aranha. Mas quando o moveu, não sentiu
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dor. A ambrosia que comera nos túneis sob Roma devia finalmente
ter curado a sua fratura.
Sua mochila tinha desaparecido, perdida durante a queda, ou
talvez levada pelo rio. Odiou ter perdido o laptop de Dédalo, com to-
dos os seus programas e informações fantásticos, mas tinha prob-
lemas piores: sua faca de bronze celestial tinha sumido, a arma que
carregava desde os sete anos.
Quando percebeu essa perda, quase desmoronou, mas não podia
se permitir pensar muito nisso. Mais tarde teria tempo para chorar.
O que mais eles tinham?
Sem comida, sem água... basicamente sem suprimentos.
É. Um começo bastante promissor.
Annabeth olhou para Percy, que estava com uma aparência
péssima. Seus cabelos negros estavam grudados na testa, e a camis-
eta, toda esfarrapada. Seus dedos haviam ficado em carne viva por
terem se agarrado à beira do precipício antes de caírem. O mais pre-
ocupante de tudo: ele não parava de tremer, e seus lábios estavam
azuis.
-- Precisamos ficar em movimento ou vamos ter hipo-
termia -- disse Annabeth. -- Você consegue se levantar?
Ele assentiu com a cabeça. Os dois fizeram um grande esforço
para ficar de pé.
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Annabeth o abraçou pela cintura, mas não tinha certeza de quem
estava dando apoio a quem. Ela examinou os arredores. Acima, não
viu sinal do túnel pelo qual haviam caído. Não conseguia enxergar
nem o teto da caverna, apenas nuvens cor de sangue flutuando no ar
cinza e enevoado. Era como olhar através de uma mistura de cimento
com sopa de tomate.
A praia de cacos de vidro se estendia por uns cinquenta metros,
até a beira de um precipício. De onde estava, Annabeth não con-
seguia ver o que havia abaixo, mas a borda tremeluzia com luz ver-
melha como se estivesse iluminada por grandes fogueiras.
Uma lembrança distante a incomodou, algo sobre o Tártaro e
fogo. Antes que pudesse pensar melhor, Percy arquejou.
-- Veja! -- Ele apontou rio abaixo.
A uns trinta metros de distância, um carro italiano azul-bebê fa-
miliar tinha batido de frente na areia. Parecia exatamente o Fiat que
caíra sobre Aracne e a arremessara no abismo.
Annabeth esperava estar errada, mas quantos carros esportivos
italianos poderia haver no Tártaro? Parte dela não queria chegar nem
perto do veículo, mas ela precisava descobrir. Agarrou a mão de
Percy com força, e os dois foram cambaleantes na direção do carro
destruído. Um dos pneus tinha se soltado e estava flutuando sobre
um rodamoinho em um remanso do Cócito. As janelas do Fiat tin-
ham se espatifado, e uma camada de vidro mais claro cobria a praia
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escura como se fosse neve. Sob o capô amassado havia os restos re-
luzentes de um gigantesco casulo de seda, a armadilha que Annabeth
fizera Aracne tecer. Não havia dúvida de que estava vazia. Riscos na
areia formavam uma trilha que levava rio abaixo... como se algo
pesado e com várias pernas tivesse corrido para se esconder na
escuridão.
-- Ela está viva. -- Annabeth estava tão horrorizada, tão revoltada
com toda aquela injustiça, que teve ânsias de vômito.
-- É o Tártaro -- disse Percy. -- Lar e corte dos monstros. Talvez
aqui embaixo eles não possam ser mortos.
Olhou envergonhado para Annabeth, como se percebesse que não
estava ajudando o moral da equipe.
-- Ou talvez esteja gravemente ferida e tenha rastejado para mor-
rer em algum lugar.
-- Vamos torcer para que seja isso -- concordou Annabeth.
Percy ainda tremia. Annabeth também não estava se sentindo
mais aquecida, apesar do ar quente e úmido. Os cortes de vidro em
suas mãos ainda sangravam, o que era estranho. Ela costumava se
curar rapidamente. Sua respiração foi ficando entrecortada.
-- Este lugar está nos matando -- disse ela. -- Quer dizer, ele vai
literalmente nos matar, a menos que...
Tártaro. Fogo. A lembrança distante surgiu em sua mente. Ela ol-
hou para a terra adiante, para o penhasco iluminado por chamas.
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Era uma ideia absolutamente louca. Mas podia ser sua única
chance.
-- A menos que o quê? -- perguntou Percy. -- Você tem um plano
brilhante, não tem?
-- É um plano -- murmurou Annabeth. -- Não sei se brilhante.
Temos que encontrar o Rio de Fogo.
VII




ANNABETH

QUANDO CHEGARAM À BEIRADA DO penhasco, Annabeth tinha certeza
de que os estava levando para a morte.
O precipício tinha mais de trinta metros de altura. No fundo havia
uma versão pesadelo do Grand Canyon: um rio de fogo passando por
fendas obsidianas irregulares. A corrente vermelha brilhante pro-
jetava sombras terríveis nas faces rochosas do penhasco.
Mesmo do alto do cânion, o calor era intenso. O frio do Rio Cócito
não tinha saído dos ossos de Annabeth, mas agora sentia o rosto ar-
dido parecendo queimado de sol. Respirar era cada vez mais difícil,
como se seu peito estivesse cheio de bolinhas de isopor. Os cortes na
mão sangravam mais em vez de menos. O pé de Annabeth, que es-
tava praticamente curado, parecia piorar de novo. Ela havia tirado a
tala improvisada, mas agora estava arrependida. Seu rosto se contor-
cia de dor a cada passo.
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Supondo que conseguissem chegar ao rio de chamas, o que ela
duvidava, seu plano parecia uma insanidade absoluta.
-- Hã... -- Percy examinou o penhasco.
Ele apontou para uma pequena fissura que descia em diagonal da
beirada até o fundo.
-- A gente podia tentar aquela saliência. Talvez dê para descer por
ali.
Ele não disse que seria loucura tentar. Conseguiu parecer esper-
ançoso. Annabeth ficou feliz por isso, mas continuava preocupada
por talvez o estar conduzindo para a morte.
Claro que se ficassem ali iam morrer de qualquer jeito. O ar
quente do Tártaro estava deixando seus braços cobertos de bolhas.
Aquele ambiente era quase tão saudável quanto a área de uma ex-
plosão nuclear.
Percy foi na frente. A saliência mal era larga o bastante para eles
apoiarem as pontas dos pés. Suas mãos procuraram qualquer
rachadura na rocha vítrea. Toda vez que Annabeth se apoiava no pé
machucado, tinha vontade de gritar de dor. Tinha arrancado as man-
gas da camiseta e usado o tecido para envolver as palmas das mãos
sangrentas, mas seus dedos ainda estavam fracos e escorregadios.
Alguns passos abaixo dela, Percy resmungou enquanto procurava
outro apoio para a mão.
-- Então... como se chama mesmo esse rio?
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-- Flegetonte -- disse ela. -- Você devia se concentrar em descer.
-- Flegetonte? -- Ele seguia caminhando pela saliência estreita e
se segurava onde podia. Tinham percorrido um terço do caminho até
o fundo do penhasco, mas, da altura em que estavam, ainda morreri-
am se caíssem. -- Parece até nome de bicho pré-histórico: flegetonte,
mastodonte...
-- Por favor, não me faça rir -- disse ela.
-- Só estou tentando aliviar o clima.
-- Obrigada -- grunhiu Annabeth, quase pisando fora da saliência
com o pé machucado. -- Vou despencar para a morte com um sorriso
no rosto.
Eles seguiram em frente, um passo de cada vez. Os olhos de An-
nabeth ardiam com o suor. Seus braços tremiam. Mas, para sua sur-
presa, finalmente chegaram ao fim do penhasco.
Quando chegou ao fundo, tropeçou. Percy a segurou. Annabeth
ficou assustada ao sentir que a pele dele fervia. Bolhas vermelhas
haviam irrompido em seu rosto, fazendo-o parecer uma vítima de
varíola.
Sua própria visão estava embaçada. Sentia como se a garganta es-
tivesse cheia de bolhas, e seu estômago estava mais apertado que um
punho cerrado.
Temos de nos apressar, pensou.
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-- Só até o rio -- disse a Percy, tentando não parecer em
pânico. -- Vamos conseguir.
Caminharam com dificuldade por saliências escorregadias de
vidro, contornando enormes blocos de rocha e evitando estalagmites
que os teriam empalado ao menor escorregão. Suas roupas esfar-
rapadas soltavam vapor devido ao calor do rio, mas eles seguiram em
frente até caírem de joelhos às margens do Flegetonte.
-- Temos de beber -- disse Annabeth.
Percy hesitou com os olhos semicerrados. Ele contou até três
antes de responder.
-- Er... beber fogo?
-- O Flegetonte corre do reino de Hades para o Tártaro. -- Anna-
beth mal conseguia falar. Sua garganta estava se fechando por conta
do calor e do ar ácido. -- O rio é usado para punir os maus. Mas além
disso... algumas lendas o chamam de Rio da Cura.
-- Algumas lendas?
Annabeth engoliu em seco, tentando não desmaiar.
-- O Flegetonte preserva os maus para que eles tenham que
suportar os tormentos dos Campos de Punição. Eu acho que... pode
ser o equivalente do Mundo Inferior da ambrosia e do néctar.
O rosto de Percy se contorceu quando cinzas se ergueram do rio e
giraram perto dele.
-- Mas isso é fogo. Como vamos...
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-- Assim. -- Annabeth enfiou as mãos no rio.
Burrice? Sim, mas ela estava convencida de que não tinham
escolha. Se esperassem um pouco mais, iriam desmaiar e morrer. Era
melhor tentar algo idiota e torcer para funcionar.
Ao primeiro contato, o fogo não era doloroso. Ele parecia frio, o
que provavelmente significava que era tão quente que estava sobre-
carregando os nervos de Annabeth. Antes que pudesse mudar de
ideia, pegou um pouco do líquido flamejante nas mãos em concha e o
levou à boca.
Esperava que tivesse um gosto parecido com o de gasolina. Mas
era muito pior. Certa vez, em um restaurante lá em São Francisco, ela
tinha cometido o erro de provar a pimenta mais picante do mundo,
que vinha com um prato de comida indiana. Após mordiscá-la, achou
que seu sistema respiratório fosse implodir. Beber do Flegetonte era
como virar um copo do suco concentrado daquela pimenta. Suas
cavidades nasais se encheram de chamas líquidas. A boca parecia es-
tar sendo frita. Os olhos derramaram lágrimas ferventes, e todos os
poros de seu rosto pipocaram. Ela desmoronou, engasgando e vomit-
ando enquanto o corpo inteiro tremia violentamente.
-- Annabeth! -- Percy agarrou seus braços, impedindo-a por pou-
co de rolar para dentro do rio.
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O acesso passou. Ela respirou fundo com dificuldade e conseguiu
se sentar. Sentia-se horrivelmente fraca e enjoada, mas a respiração
seguinte foi mais fácil. As bolhas nos braços começaram a sumir.
-- Funcionou -- disse com voz rouca. -- Percy, você precisa beber.
-- Eu... -- Ele revirou os olhos e caiu sobre ela.
Desesperada, Annabeth encheu outra vez as palmas em concha.
Ignorando a dor, pingou o fogo líquido na boca de Percy. Ele não
reagiu.
Tentou de novo, derramando as mãos cheias em sua garganta.
Dessa vez, ele engasgou e tossiu. Annabeth o segurou enquanto Percy
tremia e o fogo mágico agia em seu corpo. A febre passou. As bolhas
sumiram. Ele conseguiu sentar e estalar os lábios.
-- Ergh -- disse ele. -- Apimentado, mas nojento.
Annabeth riu sem forças. Estava tão aliviada... ficou até meio
tonta.
-- É. Isso mais ou menos resume tudo.
-- Você nos salvou.
-- Por enquanto. O problema é que ainda estamos no Tártaro.
Percy piscou. Olhou ao redor como se começasse a aceitar que es-
tavam ali.
-- Por Hera! Nunca pensei... bem, não tenho certeza do que pen-
sei. Talvez que o Tártaro fosse um espaço vazio, um poço sem fundo.
Mas este é um lugar real.
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Annabeth lembrou da paisagem que vira enquanto caíam: uma
série de platôs que iam descendo até sumir na escuridão.
-- Nós ainda não vimos tudo -- alertou ela. -- Isto pode ser só
uma parte mínima do abismo, os degraus da entrada.
-- O tapete de boas-vindas -- murmurou Percy.
Os dois olharam para as nuvens cor de sangue que pairavam na
névoa cinzenta. Não tinham forças para subir aquele penhasco de
volta de jeito nenhum, mesmo que quisessem. Agora só havia duas
opções: subir ou descer o Flegetonte, acompanhando suas margens.
-- Vamos achar uma saída -- disse Percy. -- As Portas da Morte.
Annabeth estremeceu. Ela se lembrava do que Percy dissera pou-
co antes de caírem no Tártaro. Tinha feito Nico di Angelo prometer
levar o Argo II até Épiro, até o lado mortal das Portas da Morte.
Encontramos vocês lá, dissera Percy.
A ideia parecia ainda mais louca do que beber fogo. Como eles po-
deriam sair andando pelo Tártaro e encontrar as Portas da Morte?
Mal tinham conseguido cambalear por cem metros naquele lugar
venenoso sem morrer.
-- Temos que conseguir -- disse Percy. -- Não apenas por nós,
mas por todos os que amamos. As Portas têm que ser fechadas pelos
dois lados, ou os monstros vão continuar a passar. As forças de Gaia
acabarão dominando o mundo.
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Annabeth sabia que ele tinha razão. Mesmo assim... era impos-
sível pensar em um plano com alguma chance de sucesso. Eles não
tinham como localizar as Portas. Não sabiam quanto tempo iam de-
morar, sequer se o tempo passava na mesma velocidade no Tártaro.
Como poderiam sincronizar um encontro com seus amigos? E Nico
dissera que a legião dos monstros mais fortes de Gaia vigiava as
Portas do lado do Tártaro. Annabeth e Percy não podiam exatamente
fazer um ataque direto.
Ela resolveu não mencionar nada disso. Os dois sabiam que não
tinham muita chance. Além do mais, após nadarem no Rio Cócito,
Annabeth tinha ouvido lamentos e gemidos o bastante para uma
vida. Prometeu a si mesma nunca mais voltar a reclamar.
-- Bem. -- Ela respirou fundo, grata por seus pulmões finalmente
terem parado de arder. -- Se ficarmos perto do rio, vamos sempre ter
um modo de nos curarmos. Se descermos o rio...
Aconteceu tão rápido que Annabeth teria morrido se estivesse
sozinha.
Os olhos de Percy se fixaram em algo atrás dela. Annabeth girou
quando uma forma escura enorme se lançou em sua direção, uma
massa monstruosa com pernas finas cobertas de espinhos, olhos re-
luzentes e presas à mostra.
Só teve tempo de pensar: Aracne. Mas estava paralisada de medo,
sem conseguir raciocinar por causa do cheiro doce enjoativo.
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Então ouviu o SHWINK da caneta esferográfica de Percy se trans-
formando em espada. A lâmina de bronze reluzente descreveu um
arco acima da cabeça de Annabeth. Um gemido horrível ecoou pelo
cânion.
Ela ficou ali parada, atônita, enquanto a poeira amarela, os restos
de Aracne, caía ao seu redor como uma chuva de pólen de árvore.
-- Você está bem?
Percy examinou os penhascos e blocos rochosos, à procura de
outros monstros, mas nada mais apareceu. A poeira dourada da
aranha caiu sobre as rochas obsidianas.
Annabeth olhou impressionada para o namorado. A lâmina de
bronze celestial de Contracorrente brilhava ainda mais forte na es-
curidão do Tártaro e emitiu um silvo desafiador ao cortar o ar denso
e quente, como uma serpente furiosa.
-- Ela... ela teria me matado -- gaguejou Annabeth.
Percy chutou a terra sobre as rochas com a cara amarrada e um ar
nada satisfeito.
-- A morte dela foi muito rápida, considerando como torturou vo-
cê. Ela merecia pior.
Annabeth não podia negar isso, mas o tom duro de Percy a inco-
modou. Ela nunca vira alguém ficar tão raivoso ou vingativo por
causa dela. Ficou quase feliz por Aracne ter morrido tão rápido.
-- Como você reagiu tão depressa?
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Percy deu de ombros.
-- Temos que cuidar um do outro, não é? Agora, você estava
dizendo... rio abaixo?
Annabeth assentiu com a cabeça, ainda confusa. A poeira amarela
se dissipou sobre a margem rochosa e virou vapor. Pelo menos agora
sabiam que era possível matar monstros no Tártaro... apesar de ela
não ter ideia de por quanto tempo Aracne permaneceria morta. An-
nabeth não planejava ficar ali o bastante para descobrir.
-- É, rio abaixo -- conseguiu dizer. -- Se o Flegetonte vem dos ní-
veis superiores do Mundo Inferior, deve correr para as profundezas
do Tártaro...
-- Na direção mais perigosa -- completou Percy. -- Que é
provavelmente onde ficam as Portas. Sorte a nossa.
VIII




ANNABETH

TINHAM PERCORRIDO APENAS algumas centenas de metros quando
Annabeth ouviu vozes.
Annabeth estava seguindo em frente lentamente, parte dela ainda
em choque, tentando pensar em um plano. Como era filha de Atena,
os planos deviam ser sua especialidade. Mas era difícil raciocinar
com o estômago roncando e a garganta queimando. A água caustic-
ante do Flegetonte podia tê-la curado e lhe dado força, mas não
ajudou a saciar sua fome ou sede. O objetivo do rio não era fazer com
que ninguém se sentisse bem, imaginou Annabeth. Ele apenas
mantinha a gente viva para poder experimentar mais dor
excruciante.
Sua cabeça começou a pender de exaustão. Então ela as ouviu,
vozes femininas em algum tipo de discussão, e ficou imediatamente
alerta.
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-- Percy, se abaixe! -- sussurrou ela.
Ela o puxou para trás da rocha mais próxima, tão espremida con-
tra a margem do rio que seus sapatos quase tocavam o fogo líquido.
Do outro lado, descendo o rio pela passagem estreita entre o Fle-
getonte e o penhasco, vozes irritadas ficavam mais altas ao se
aproximarem.
Annabeth tentou manter a respiração estável. As vozes soavam
vagamente humanas, mas isso não significava nada. Ela pressupunha
que todos no Tártaro fossem seus inimigos. Não sabia como os mon-
stros ainda não os tinham localizado. Eles podiam farejar semi-
deuses, especialmente os poderosos como Percy, filho de Poseidon.
Annabeth duvidava que se esconder atrás de uma rocha fosse adi-
antar alguma coisa quando os monstros sentissem o cheiro deles.
Mesmo assim, conforme os monstros se aproximavam, não mu-
davam de tom. Seus passos irregulares -- scrap, clump, scrap,
clump -- não se aceleravam.
-- Falta muito? -- perguntou um deles com uma voz rouca, como
se tivesse acabado de fazer um gargarejo com o fogo do Flegetonte.
-- Ah, meus deuses! -- resmungou outra voz. Parecia bem mais
jovem e muito mais humana, como de uma adolescente mortal no
shopping, ficando irritada com os amigos. Por alguma razão, a voz
soava familiar. -- Cara, vocês são muito chatos! Eu já falei, é a três di-
as daqui.
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Percy agarrou o pulso de Annabeth e a olhou alarmado, como se
também tivesse reconhecido a voz da garota do shopping.
Houve um coro de resmungos e reclamações. As criaturas, talvez
meia dúzia, calculou Annabeth, tinham parado bem do outro lado da
rocha, sem dar sinal de terem farejado os semideuses. Annabeth se
perguntou se os semideuses tinham um cheiro diferente no Tártaro,
ou se os outros odores ali eram fortes o suficiente para mascarar a
aura de um semideus.
-- Eu acho -- disse uma terceira voz, séria e velha como a
primeira -- que talvez você não saiba o caminho, minha jovem.
-- Ah, cale a boca, Serefone, sua imbecil -- retrucou a garota do
shopping. -- Quando foi a última vez que vocês escaparam para o
mundo mortal? Eu estive lá há alguns anos. Sei o caminho! Além
disso, eu sei o que estamos enfrentando lá em cima. Vocês não têm a
mínima ideia!
-- A Mãe Terra não fez de você nossa líder! -- interveio uma ter-
ceira voz aguda.
Mais sussurros, sibilos, discussões e gemidos ferozes, como uma
briga de gatos de rua gigantes. Por fim, a que se chamava Serefone
berrou:
-- Basta!
O bate-boca morreu.
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-- Por enquanto, vamos seguir você -- disse Serefone. -- Mas se
não nos conduzir direito, se descobrirmos que mentiu sobre as in-
vocações de Gaia...
-- Eu não minto! -- respondeu bruscamente a menina do shop-
ping. -- Podem acreditar, tenho um bom motivo para entrar nessa
batalha. Tenho inimigos a devorar, e vocês vão se banquetear no
sangue dos heróis. Deixem apenas um pedaço especial para mim...
um chamado Percy Jackson.
Annabeth se segurou para não rosnar também. Esqueceu seu
medo. Queria pular por cima da rocha e fazer picadinho dos mon-
stros com sua faca... só que a tinha perdido.
-- Podem acreditar em mim -- continuou a garota do shop-
ping. -- Gaia nos convocou, e vamos nos divertir muito. Antes do fim
desta guerra, mortais e semideuses vão tremer ao som de meu nome:
Kelli.
Annabeth quase soltou um grito. Olhou para Percy. Mesmo à luz
vermelha do Flegetonte, o rosto dele parecia branco como cera.
Empousai, disse sem som, apenas mexendo os lábios. Vampiras.
Percy assentiu com a cabeça, preocupado.
Ela se lembrava de Kelli. Dois anos antes, no primeiro ano de ori-
entação de Percy, ele e a amiga Rachel Dare foram atacados por em-
pousai disfarçadas de líderes de torcida. Uma era Kelli. Mais tarde, a
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mesma empousa os havia atacado na oficina de Dédalo. Annabeth a
apunhalara nas costas e a enviara... para lá, para o Tártaro.
As criaturas continuaram a andar, e suas vozes foram sumindo.
Annabeth rastejou até o canto da rocha e arriscou uma espiada.
Como esperava, cinco mulheres caminhavam lentamente sobre per-
nas de tipos diferentes, mecânicas de bronze à esquerda, e peludas e
com cascos à direita. Seus cabelos eram feitos de fogo, e suas peles
eram brancas como ossos. A maioria delas usava túnicas gregas anti-
gas esfarrapadas, menos a líder, Kelli, que usava uma blusa
queimada e rasgada com uma saia curta plissada... seu disfarce de
líder de torcida.
Annabeth cerrou os dentes. Enfrentara muitos monstros malva-
dos ao longo dos anos, mas seu ódio pelas empousai era maior que o
normal.
Além de suas garras e presas perigosas, tinham o poder de manip-
ular a Névoa. Conseguiam mudar de forma e usar o charme, en-
ganando mortais e fazendo-os baixarem a guarda. Homens eram es-
pecialmente suscetíveis. A tática favorita de uma empousa era fazer
com que um homem se apaixonasse por ela para depois beber seu
sangue e devorar sua carne. Não era um bom primeiro encontro.
Kelli quase tinha matado Percy. Ela havia manipulado o amigo
mais antigo de Annabeth, Luke, levando-o a cometer atos cada vez
mais sombrios em nome de Cronos.
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Annabeth queria muito ainda ter sua faca.
Percy ficou de pé.
-- Elas estão indo para as Portas da Morte -- murmurou
ele. -- Sabe o que isso significa?
Annabeth não queria pensar naquilo, mas, infelizmente, aquele
grupo de mulheres devoradoras de carne dignas de um circo de aber-
rações podia ser a coisa mais próxima de boa sorte que teriam no
Tártaro.
-- Sei -- disse ela. -- Temos de segui-las.
IX




LEO

LEO PASSOU A NOITE LUTANDO com uma Atena de doze metros de
altura.
Desde que trouxeram a estátua a bordo, Leo estava obcecado em
descobrir como funcionava. Tinha certeza de que ela possuía poderes
especiais. Tinha de haver um interruptor secreto, uma placa de
pressão ou algo assim.
Ele deveria estar dormindo, mas simplesmente não conseguia.
Passava horas rastejando sobre a estátua deitada, que ocupava a
maior parte do convés inferior. Os pés de Atena estavam enfiados na
enfermaria, de modo que quem quisesse um analgésico tinha que se
espremer por entre seus dedos de marfim. O corpo da estátua ocu-
pava todo o corredor de bombordo, e sua mão estendida chegava até
o interior da casa de máquinas, segurando na palma a estátua em
tamanho real de Nice, como se dissesse: Aqui, tome um pouco de
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Vitória! O rosto sereno de Atena ocupava a maior parte dos estábulos
dos pégasos, na popa, que felizmente estavam desocupados. Se Leo
fosse um cavalo mágico, ele não gostaria de morar em um estábulo
com uma deusa da sabedoria gigante olhando para ele.
A estátua tomava todo o corredor, por isso Leo tinha de subir nela
e se esgueirar sob os seus membros, procurando alavancas e botões.
Como sempre, não encontrou nada.
Leo andara pesquisando sobre a estátua. Ele sabia que fora feita a
partir de uma estrutura de madeira oca coberta de marfim e ouro, o
que explicava por que era tão leve. Estava em muito bom estado,
considerando-se que tinha mais de dois mil anos de idade, fora
roubada de Atenas, levada para Roma e estivera secretamente escon-
dida na caverna de uma aranha por praticamente dois milênios. A
magia, combinada com o excelente trabalho artesanal, devia tê-la
mantido intacta, supunha Leo.
Annabeth dissera... bem, ele tentou não pensar em Annabeth.
Ainda se sentia culpado por ela e Percy terem caído no Tártaro. Leo
sabia que a culpa era dele. Deveria ter trazido todos em segurança a
bordo do Argo II antes de começar a prender a estátua. Ele deveria
ter percebido que o chão da caverna era instável.
Contudo, lamentar-se não traria Percy e Annabeth de volta. Ele
precisava se concentrar nos problemas que podia resolver.
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De qualquer forma, Annabeth dissera que a estátua era a chave
para derrotar Gaia. Ela poderia pôr fim à rixa entre os semideuses
gregos e romanos. Leo imaginava que devia haver ali mais do que
simples simbolismo. Talvez os olhos de Atena disparassem raios
laser, ou a serpente por trás de seu escudo cuspisse veneno. Ou talvez
a figura menor da deusa Nice ganhasse vida e executasse alguns
golpes ninja.
Leo imaginava todo tipo de coisas divertidas que a estátua poder-
ia fazer caso ele a tivesse projetado, mas quanto mais a examinava,
mais frustrado ficava. A Atena Partenos irradiava magia. Até mesmo
ele conseguia sentir. Mas aparentemente não fazia outra coisa além
de parecer impressionante.
O navio adernou em uma manobra evasiva. Leo resistiu ao im-
pulso de correr até o timão. Jason, Piper e Frank estavam de plantão
com Hazel agora. Eles podiam lidar com fosse lá o que estivesse
acontecendo. Além disso, Hazel insistira em assumir o leme para
guiá-los pela passagem secreta que a deusa da magia mencionara.
Leo esperava que Hazel estivesse certa a respeito do longo desvio
ao norte. Ele não confiava naquela tal de Hécate e não entendia por
que uma deusa esquisita que dava arrepios de repente decidira ser
prestativa.
Claro, ele não costumava confiar em magia. Por isso estava tendo
tantos problemas com a Atena Partenos. A estátua não tinha peças
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móveis. Seja lá o que fizesse, aparentemente funcionava com pura
feitiçaria... e Leo não gostava disso. Ele queria que aquilo fizesse sen-
tido, como uma máquina.
Finalmente, ficou exausto demais para pensar direito. Encolheu-
se sob um cobertor na sala de máquinas e ficou ouvindo o reconfort-
ante murmurar dos geradores. Buford, a mesa mecânica, estava em
um canto, em modo de espera, emitindo seus roncos vaporosos: sh-
hh, pfft, shh, pfft.
Leo até gostava de seus aposentos, mas se sentia mais seguro ali,
no coração do navio, em uma sala repleta de mecanismos que sabia
controlar. Além disso, se passasse mais tempo perto da Atena
Partenos, talvez acabasse compreendendo os seus segredos.
-- Sou eu ou você, Dona -- murmurou, puxando o cobertor até o
queixo. -- Você vai acabar cooperando.
Ele fechou os olhos e dormiu. Infelizmente, isso significava
sonhar.

***

Tentando salvar a própria vida, ele corria pela antiga oficina de sua
mãe, onde ela morrera em um incêndio quando Leo tinha oito anos.
Ele não sabia bem o que o estava perseguindo, mas sentia que se
aproximava com rapidez -- algo grande, escuro e cheio de ódio.
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Ele esbarrou em bancadas, derrubou caixas de ferramentas e
tropeçou em cabos elétricos. Viu a saída e correu naquela direção,
mas uma figura surgiu à sua frente: uma mulher trajando uma túnica
de terra seca rodopiante, com o rosto coberto por um véu de poeira.
Aonde vai, heroizinho?, perguntou Gaia. Fique e conheça meu
filho favorito.
Leo correu para a esquerda, mas o riso da deusa da terra o seguiu.
Na noite em que sua mãe morreu, eu o avisei. Disse que as Par-
cas não me permitiriam matá-lo naquela ocasião. Mas agora você
escolheu o seu caminho. Sua morte está próxima, Leo Valdez.
Ele se chocou contra uma mesa de desenho, o antigo local de tra-
balho de sua mãe. A parede atrás da mesa era decorada com desen-
hos feitos por Leo com giz de cera. Ele soluçou em desespero e tentou
voltar, mas a coisa que o perseguia estava agora em seu caminho, um
ser colossal envolto em sombras de forma vagamente humanoide,
com a cabeça quase tocando o teto, seis metros mais acima.
As mãos de Leo se incendiaram. Ele atacou o gigante, mas a es-
curidão engoliu o fogo. Leo tateou à procura do cinto de ferramentas,
mas os bolsos estavam costurados. Ele tentou falar -- dizer qualquer
coisa que pudesse salvar sua vida --, mas não conseguia emitir som
algum, como se o ar tivesse sido roubado de seus pulmões.
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Meu filho não permitirá fogos hoje à noite, disse Gaia do fundo
do armazém. Ele é o vazio que engole toda a magia, o frio que en-
gole qualquer fogo, o silêncio que engole todas as vozes.
Leo quis gritar: E eu sou o cara que vai dar o fora!
Sua voz não funcionava, então usou os pés, correndo para a
direita, esquivando-se das gigantescas mãos sombrias que tentavam
agarrá-lo, e atravessou a porta mais próxima.
Subitamente, viu-se no Acampamento Meio-Sangue, só que o
lugar estava em ruínas. Os chalés eram cascas carbonizadas. Campos
queimados ardiam ao luar. O pavilhão de jantar desmoronara em
uma pilha de escombros brancos, e a Casa Grande estava em chamas,
e suas janelas brilhavam como olhos de demônios.
Leo continuou a correr, certo de que o gigante de sombra ainda
estava atrás dele.
Desviou de corpos de semideuses gregos e romanos. Queria verifi-
car se estavam vivos. Queria ajudá-los. Mas por algum motivo sabia
que seu tempo estava se esgotando.
Leo correu em direção às únicas pessoas vivas que viu -- um
grupo de romanos na quadra de vôlei. Dois centuriões casualmente
inclinados contra seus dardos, conversando com um sujeito louro
alto e magricela, vestindo uma toga roxa. Leo tropeçou. Era aquele
estranho Octavian, o áugure do Acampamento Júpiter, que estava
sempre clamando por guerra.
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Octavian se voltou para ele, mas parecia estar em transe. Estava
com o rosto relaxado e de olhos fechados. Quando falou, foi com a
voz de Gaia: Isto não pode ser evitado. Os romanos estão se deslo-
cando a leste de Nova York. Eles avançam em direção ao seu acam-
pamento, e nada poderá detê-los.
Leo se sentiu tentado a dar um soco no rosto de Octavian. Em vez
disso, continuou correndo.
Ele subiu a Colina Meio-Sangue. No cume, um raio partira o pin-
heiro gigante.
Ele parou, atônito. A parte de trás da colina fora devastada. Mais
além, o mundo inteiro desaparecera. Leo viu apenas nuvens bem lá
embaixo, um tapete prateado estendendo-se sob o céu escuro.
Uma voz aguda disse:
-- Bem?
Leo se assustou.
No pinheiro partido, havia uma mulher ajoelhada à entrada de
uma caverna que se abrira entre as raízes da árvore.
A mulher não era Gaia. Mais parecia uma Atena Partenos viva,
com a mesma toga dourada e os braços nus de marfim. Quando ela se
levantou, Leo quase caiu da borda do mundo.
Seu rosto era belo como o de uma rainha, com maçãs do rosto
proeminentes, grandes olhos escuros e cabelo cor de alcaçuz
trançado em um elegante penteado grego, enfeitado com uma espiral
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de esmeraldas e diamantes que para Leo lembrava uma árvore de
Natal. Sua expressão irradiava puro ódio. Tinha os lábios retorcidos.
O nariz franzido.
-- O filho do deus remendão -- zombou ela. -- Você não é ameaça,
mas suponho que minha vingança deva começar em algum lugar.
Faça a sua escolha.
Leo tentou falar, mas estava paralisado de tanto medo. Entre
aquela rainha furiosa e o gigante que o perseguia, não tinha ideia do
que fazer.
-- Ele estará aqui em breve -- avisou a mulher. -- Meu amigo
sombrio não lhe dará o luxo de uma escolha. É o precipício ou a cav-
erna, garoto!
Subitamente, Leo entendeu o que ela queria dizer. Ele estava en-
curralado. Poderia saltar do precipício, mas isso seria suicídio.
Mesmo que houvesse terra sob aquelas nuvens, morreria na queda,
ou talvez simplesmente caísse para sempre.
Mas a caverna... ele olhou para a entrada escura entre as raízes da
árvore. Cheirava a podridão e morte. Ele ouviu corpos movendo-se lá
dentro, vozes sussurrando nas sombras.
A caverna era a casa dos mortos. Se ele entrasse, nunca sairia.
-- Sim -- disse a mulher.
Trazia ao redor do pescoço um estranho pingente de bronze e es-
meralda, como um labirinto circular. Seus olhos estavam tão
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zangados que Leo finalmente entendeu por que se dizia que alguém
ficava "louco de raiva". Aquela mulher havia enlouquecido de tanto
ódio.
-- A Casa de Hades o espera -- disse ela. -- Você será o primeiro
roedor insignificante a morrer em meu labirinto. Tem apenas uma
chance de escapar, Leo Valdez. Aproveite-a.
Ela fez um gesto em direção ao penhasco.
-- Você está doida -- disse ele, recuperando a fala.
Não devia ter dito aquilo. Ela o agarrou pelo pulso.
-- Talvez eu devesse matá-lo agora, antes da chegada de meu
amigo das trevas.
Passos faziam a encosta tremer. O gigante se aproximava, envolto
em sombras, enorme, pesado e sedento de sangue.
-- Você já ouviu falar sobre morrer em um sonho, rapaz? -- per-
guntou a mulher. -- Isso é possível, nas mãos de uma feiticeira!
O braço de Leo começou a fumegar. O toque da mulher era ácido.
Ele tentou se libertar, mas os dedos dela pareciam feitos de aço.
Leo abriu a boca para gritar. O enorme volume do gigante pairou
sobre ele, obscurecido por camadas de fumaça negra.
O gigante ergueu o punho e uma voz penetrou em seu sonho.
-- Leo -- Jason sacudia o seu ombro. -- Ei, cara, por que você está
agarrando a Nice?
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Leo abriu os olhos. Seus braços estavam ao redor da estátua em
tamanho natural na mão de Atena. Ele deve ter se debatido durante o
sono e se agarrado à deusa da vitória, como costumava se agarrar ao
travesseiro na infância quando tinha pesadelos. (Cara, isso era tão
embaraçoso quando acontecia em lares adotivos...)
Ele se desvencilhou da estátua e se sentou, esfregando o rosto.
-- Nada -- murmurou. -- Estávamos apenas nos abraçando. Hã, o
que está acontecendo?
Jason não caçoou dele. Esta era uma coisa que Leo apreciava no
amigo. Os olhos azul gelo do garoto estavam calmos e sérios. A
pequena cicatriz em sua boca estremeceu, como sempre acontecia
quando trazia más notícias.
-- Conseguimos atravessar as montanhas -- contou
ele. -- Estamos quase chegando a Bolonha. Você deve encontrar a
gente no refeitório. Nico tem novas informações.
X




LEO

LEO PROJETARA AS PAREDES DO refeitório para exibir cenas em tempo
real do Acampamento Meio-Sangue. No começo, achara que era uma
ótima ideia. Agora, já não tinha tanta certeza.
As cenas de casa -- as cantorias ao pé da fogueira, os jantares no
pavilhão, os jogos de vôlei do lado de fora da Casa Grande -- pare-
ciam entristecer seus amigos. Quanto mais se distanciavam de Long
Island, pior ficava. Os fusos horários mudavam, fazendo com que Leo
sentisse a distância toda vez que olhava para as paredes. Ali na Itália,
o sol acabara de nascer. Já no Acampamento Meio-Sangue era de
madrugada. As tochas crepitavam às portas dos chalés. O luar refletia
nas ondas do Estuário de Long Island. A praia estava coberta de
pegadas, como se uma grande multidão tivesse acabado de ir
embora.
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Subitamente, Leo se deu conta de que o dia anterior -- certo, a
noite anterior, na verdade -- fora o Quatro de Julho. Eles haviam
perdido a festa anual do Acampamento Meio-Sangue com os fogos de
artifício incríveis preparados pelos irmãos de Leo no chalé 9.
Decidiu não comentar nada com a tripulação, mas esperava que
os amigos em casa tivessem se divertido. Eles também precisavam de
algo para manter o moral elevado.
Lembrou-se das imagens que vira em seu sonho: o acampamento
em ruínas, repleto de corpos; Octavian na quadra de vôlei, falando
despreocupadamente com a voz de Gaia.
Ele olhou para seus ovos com bacon e desejou poder desligar as
imagens da parede.
-- Então -- disse Jason --, agora que estamos aqui...
Ele se sentou à cabeceira da mesa meio que de modo automático.
Desde que perderam Annabeth, Jason vinha se esforçando ao máx-
imo para assumir o papel de líder do grupo. Como fora pretor no
Acampamento Júpiter, provavelmente estava acostumado. Mas Leo
sabia que o amigo estava estressado. Ele parecia mais abatido, e seu
cabelo louro estava desarrumado, como se tivesse se esquecido de
penteá-lo, o que era estranho para ele.
Leo observou o restante da mesa. Hazel também estava com os ol-
hos vermelhos, mas ela passara a noite em claro, guiando o navio
pelas montanhas. Seu cabelo encaracolado cor de canela estava preso
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por uma bandana, o que lhe dava um ar de soldado de elite que Leo
achou meio sensual -- e logo em seguida se sentiu culpado por isso.
Ao lado dela estava sentado seu namorado, Frank Zhang,
vestindo calça preta de ginástica e uma camiseta romana de turista
com a palavra: CIAO! (Aquilo chegava a ser uma palavra?). Trazia sua
antiga medalha de centurião presa à camiseta, apesar de os semi-
deuses do Argo II serem agora os Inimigos Públicos Números 1 a 7
do Acampamento Júpiter. Sua expressão sombria apenas reforçava
sua infeliz semelhança com um lutador de sumô. Em seguida, vinha o
meio-irmão de Hazel, Nico di Angelo. Sério, aquele garoto era muito
esquisito. Usava uma jaqueta de couro de aviador, camiseta e calça
jeans pretas, aquele anel de prata sinistro em forma de caveira no
dedo e trazia ao seu lado a espada de ferro estígio. Os cachos na pon-
ta de seu cabelo preto pareciam asas de filhotes de morcego. Tinha
olhos tristes e um tanto vazios, como se tivesse olhado para as pro-
fundezas do Tártaro -- como de fato olhara.
O único semideus ausente era Piper, que manejava o timão ao
lado do treinador Hedge, seu acompanhante sátiro.
Leo desejou que Piper estivesse ali. Ela tinha um jeito de acalmar
as coisas com aquele seu charme de Afrodite. Depois de seus sonhos
na noite anterior, Leo gostaria de se acalmar.
Por outro lado, provavelmente era bom que ela estivesse no con-
vés superior, acompanhando o acompanhante deles. Agora que
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estavam nas terras antigas, tinham de ficar constantemente em es-
tado de alerta. Leo tinha medo de deixar o treinador Hedge voando
sozinho. O sátiro tinha um dedo muito leve no gatilho, e o timão
tinha muitos botões brilhantes e perigosos que poderiam explodir as
pitorescas vilas italianas abaixo deles.
Leo estava tão fora do ar que não percebeu que Jason ainda es-
tava falando.
-- ... a Casa de Hades -- dizia. -- Nico?
Nico inclinou-se para a frente.
-- Fiz contato com os mortos na noite passada.
Ele disse aquilo com a maior naturalidade, como se estivesse con-
tando que recebera uma mensagem de texto de um amigo.
-- Descobri mais a respeito do que vamos enfrentar -- prosseguiu
Nico. -- Nos tempos antigos, a Casa de Hades era um importante
lugar de peregrinação para os gregos. Eles iam até lá para falar com
os mortos e homenagear os antepassados.
Leo franziu a testa.
-- Parece com o Día de los Muertos. Minha tia Rosa levava esse
negócio a sério.
Ele se lembrava de ter sido arrastado por ela até o cemitério local,
em Houston, onde limparam os túmulos de seus parentes e fizeram
oferendas de limonada, biscoitos e cravos frescos. Tia Rosa forçava
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Leo a participar de um piquenique, como se o fato de passar um
tempo com os mortos abrisse o apetite.
Frank resmungou:
-- Os chineses também fazem isso: adoram os antepassados e var-
rem as sepulturas na primavera. -- Ele olhou para Leo. -- Sua tia
Rosa teria se dado bem com a minha avó.
Leo teve uma visão aterrorizante de sua tia Rosa e uma velha
chinesa em trajes de luta, se digladiando com porretes pontiagudos.
-- É -- disse Leo. -- Tenho certeza de que teriam sido melhores
amigas.
Nico pigarreou.
-- Muitas culturas têm tradições sazonais para honrar os mortos,
mas a Casa de Hades ficava aberta o ano inteiro. Os peregrinos po-
diam realmente falar com os fantasmas. Em grego, o lugar era cha-
mado de Necromanteion, o Oráculo da Morte. Você atravessava
diferentes níveis de túneis, deixando oferendas e bebendo poções
especiais...
-- Poções especiais -- murmurou Leo. -- Que delícia.
Jason lançou-lhe um olhar tipo já chega, cara.
-- Prossiga, Nico.
-- Os peregrinos acreditavam que cada nível do templo os aprox-
imava mais do Mundo Inferior, até os mortos aparecerem diante
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deles. Se ficassem satisfeitos com as oferendas, respondiam às per-
guntas, talvez até mesmo revelassem o futuro.
Frank deu um tapinha em sua caneca de chocolate quente.
-- E se os espíritos não ficassem satisfeitos?
-- Alguns peregrinos não encontravam nada -- disse Nico. -- Al-
guns enlouqueciam ou morriam após saírem do templo. Outros se
perdiam nos túneis e nunca mais eram vistos.
-- O fato -- acrescentou Jason rapidamente -- é que Nico encon-
trou uma informação que pode nos ser útil.
-- É. -- Nico não parecia muito animado. -- O fantasma com que
falei ontem à noite... ele era um ex-sacerdote de Hécate. Ele confirm-
ou o que a deusa disse para Hazel ontem na encruzilhada. Na
primeira guerra contra os gigantes, Hécate lutou ao lado dos deuses.
Ela matou um dos gigantes, um que fora concebido como o anti-Héc-
ate. Um sujeito chamado Clítio.
-- Sujeito tenebroso -- adivinhou Leo. -- Envolto em sombras.
Hazel se voltou para ele, estreitando os olhos dourados.
-- Como é que você sabe disso, Leo?
-- Tive uma espécie de sonho.
Ninguém pareceu surpreso. A maioria dos semideuses tinha
pesadelos vívidos sobre o que estava acontecendo no mundo.
Seus amigos ouviram o relato atentamente. Leo tentou não olhar
para as imagens do Acampamento Meio-Sangue na parede enquanto
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descrevia o lugar em ruínas. Falou sobre o gigante tenebroso e sobre
a estranha mulher na Colina Meio-Sangue, oferecendo-lhe diferentes
opções de morte.
Jason afastou o prato de panquecas.
-- Então o gigante é Clítio. Acho que ele vai estar nos esperando,
guardando as Portas da Morte.
Frank enrolou uma das panquecas e começou a mastigar. Não era
o tipo de sujeito que deixava a morte iminente ficar entre ele e um
café da manhã saudável.
-- E a mulher no sonho de Leo?
-- Ela é problema meu. -- Hazel passou um diamante entre seus
dedos em um truque de mágica. -- Hécate mencionou um inimigo
poderoso na Casa de Hades, uma bruxa que só poderia ser derrotada
por mim, por meio da magia.
-- Você sabe magia? -- perguntou Leo.
-- Ainda não.
-- Ah.
Ele tentou pensar em algo otimista para dizer, mas se lembrou
dos olhos furiosos da mulher e de como seus dedos de aço fizeram
sua pele fumegar.
-- Tem alguma ideia de quem ela é?
Hazel balançou a cabeça.
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-- Só que... -- Ela olhou para Nico, e algum tipo de discussão si-
lenciosa ocorreu entre eles.
Leo teve a sensação de que os dois tiveram algumas conversas
particulares a respeito da Casa de Hades e não estavam compartil-
hando todos os detalhes.
-- Só que ela não vai ser fácil de derrotar.
-- Mas temos algumas boas notícias -- disse Nico. -- O fantasma
com quem conversei explicou como Hécate derrotou Clítio na
primeira guerra. Ela usou as suas tochas para pôr fogo no cabelo
dele. Clítio morreu queimado. Em outras palavras, o fogo é a sua
fraqueza.
Todos olharam para Leo.
-- Ah -- disse ele. -- Tudo bem.
Jason assentiu, animado, como se aquela fosse uma ótima notícia,
como se esperasse que Leo avançasse em direção a uma gigantesca
massa de trevas, disparasse algumas bolas de fogo e resolvesse todos
os seus problemas. Leo não queria decepcioná-lo, mas ainda podia
ouvir a voz de Gaia: Ele é o vazio que engole toda a magia, o frio que
engole qualquer fogo, o silêncio que engole todas as vozes.
Leo tinha certeza de que precisaria de mais do que alguns fósforos
para atear fogo àquele gigante.
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-- É um bom começo -- insistiu Jason. -- Pelo menos a gente sabe
como matar o gigante. E essa feiticeira... bem, se Hécate acredita que
Hazel pode derrotá-la, então eu também acredito.
Hazel baixou os olhos.
-- Agora, só precisamos chegar à Casa de Hades, abrir caminho
em meio às forças de Gaia...
-- Além de um bando de fantasmas -- acrescentou Nico, som-
brio. -- Os espíritos naquele templo podem não ser amigáveis.
-- ... e encontrar as Portas da Morte -- completou
Hazel. -- Supondo que de alguma forma a gente consiga chegar ao
mesmo tempo que Percy e Annabeth e resgatar os dois.
Frank engoliu um pedaço de panqueca.
-- Nós podemos fazer isso. Precisamos conseguir.
Leo admirou o otimismo do grandalhão. Pena que não sentia o
mesmo.
-- Então, com este desvio -- disse Leo --, estimo quatro ou cinco
dias de viagem até chegarmos a Épiro, presumindo que não haja at-
rasos como, vocês sabem, ataques de monstros e outras coisas assim.
Jason sorriu amargamente.
-- É. Isso nunca acontece.
Leo olhou para Hazel.
-- Hécate disse que Gaia estava planejando a sua grande Festa do
Despertar para primeiro de agosto, certo? O Festim de Sei Lá o Quê...
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-- Spes -- disse Hazel. -- A Deusa da Esperança.
Jason virou o garfo.
-- Teoricamente, temos tempo suficiente. Ainda é cinco de julho.
Devemos conseguir fechar as Portas da Morte e, depois, encontrar o
quartel-general dos gigantes e os impedir de despertar Gaia antes de
primeiro de agosto.
-- Teoricamente -- concordou Hazel. -- Mas eu ainda gostaria de
saber como vamos entrar na Casa de Hades sem enlouquecer ou
morrer.
Ninguém deu qualquer sugestão.
Frank largou a sua panqueca como se subitamente ela não tivesse
mais um gosto tão bom.
-- É cinco de julho. Ah, droga, eu nem me lembrei...
-- Ei, cara, tudo bem -- disse Leo. -- Você é canadense, certo? Eu
não estava esperando que me desse um presente de Dia da
Independência ou algo assim... a menos que você fizesse questão...
-- Não é isso. A minha avó... ela sempre me disse que sete era um
número de azar. Era um número fantasma. Ela não gostou quando
contei que haveria sete semideuses em nossa missão. E julho é o sé-
timo mês.
-- É, mas... -- Leo tamborilou nervosamente sobre a mesa. Ele
percebeu que estava dizendo eu te amo em código Morse, do jeito
que costumava fazer com a mãe, o que teria sido muito
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constrangedor caso seus amigos entendessem o código Morse. -- Mas
é só uma coincidência, não é?
A expressão de Frank não o tranquilizou.
-- Lá na China, as pessoas chamavam o sétimo mês de mês fant-
asma. Era quando o mundo dos espíritos e o mundo dos homens
ficavam mais próximos. Os vivos e os mortos podiam atravessar de
um para o outro. Acha mesmo que é uma coincidência estarmos pro-
curando as Portas da Morte no Mês Fantasma?
Ninguém disse nada.
Leo queria acreditar que uma velha crença chinesa não teria nada
a ver com gregos e romanos. Totalmente sem relação, certo? Mas a
existência de Frank era prova de que tais culturas estavam interliga-
das. A árvore genealógica de Zhang remontava à Grécia Antiga. Pas-
saram por Roma e pela China e, finalmente, chegaram ao Canadá.
Além disso, Leo não parava de pensar sobre seu encontro com a
deusa da vingança, Nêmesis, no Great Salt Lake. Nêmesis o chamara
de a sétima vela, o forasteiro naquela missão. Ela não quis dizer sé-
timo no sentido de fantasma, certo?
Jason apoiou as mãos nos braços da cadeira.
-- Vamos nos concentrar no que podemos resolver. Estamos
chegando a Bolonha. Talvez tenhamos mais respostas quando encon-
trarmos esses anões que Hécate...
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O navio adernou como se tivesse batido em um iceberg. O prato
de Leo deslizou pela mesa. A cadeira de Nico tombou para trás e ele
bateu a cabeça no aparador. Então caiu no chão, com uma dúzia de
taças e pratos mágicos virando em cima dele.
-- Nico!
Hazel correu para ajudá-lo.
-- O que...? -- Frank tentou se levantar, mas o navio adernou para
o outro lado. Ele tropeçou na mesa e caiu de cara no prato de ovos
mexidos de Leo.
-- Vejam! -- Jason apontou para as paredes. As imagens do
Acampamento Meio-Sangue piscavam e mudavam.
-- Impossível -- murmurou Leo.
Não havia como aqueles encantamentos exibirem algo além de
cenas do acampamento, mas de repente um enorme rosto distorcido
preencheu toda a parede de bombordo: dentes amarelos e tortos,
uma barba vermelha desgrenhada, nariz cheio de verrugas e olhos as-
simétricos: um muito maior e mais alto do que o outro. O rosto pare-
cia estar tentando entrar na sala.
As outras paredes piscaram, mostrando cenas do convés. Piper
estava no leme, mas havia algo errado. Do pescoço para baixo ela es-
tava enrolada em fita adesiva, e tinha também a boca amordaçada e
as pernas amarradas ao painel de controle.
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No mastro principal, o treinador Hedge também estava amarrado
e amordaçado, enquanto uma criatura de aparência bizarra -- uma
combinação de gnomo com chimpanzé sem muito bom gosto para
roupas -- dançava ao redor dele, fazendo pequenas tranças no cabelo
do treinador e prendendo-as com elásticos cor-de-rosa.
Na parede de bombordo, a enorme cara feia recuou para exibir
seu corpo: era outro gnomo chimpanzé com roupas ainda mais malu-
cas. Ele começou a saltitar pela plataforma, enfiando coisas em um
saco de estopa -- a adaga de Piper, o controle de Wii de Leo. Então,
arrancou a esfera de Arquimedes do painel.
-- Não! -- gritou Leo.
-- Ai -- gemia Nico no chão.
-- Piper! -- gritou Jason.
-- Macacos! -- gritou Frank.
-- Não são macacos -- resmungou Hazel. -- Acho que são anões.
-- Estão roubando as minhas coisas! -- gritou Leo, e correu para a
escada.
XI




LEO

LEO ACHOU QUE TINHA OUVIDO o grito de Hazel:
-- Vá! Eu cuido de Nico!
Como se Leo pretendesse voltar. Claro, ele esperava que di Angelo
estivesse bem, mas tinha seus próprios problemas a resolver.
Galgou os degraus com Jason e Frank logo atrás dele.
A situação no convés era ainda pior do que ele temia.
O treinador Hedge e Piper tentavam se libertar da fita adesiva,
enquanto um dos macacos anões demoníacos dançava pelo convés,
pegando tudo o que não estivesse amarrado e enfiando em um saco.
Tinha cerca de um metro e vinte de altura, ainda mais baixo que o
treinador Hedge, com pernas arqueadas e pés de chimpanzé, e suas
roupas eram tão extravagantes que deixavam Leo tonto. A calça xad-
rez verde com bainha virada era presa por suspensórios vermelhos
sobre uma blusa feminina listrada de preto e rosa. Usava meia dúzia
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de relógios de ouro em cada braço e um chapéu de caubói com es-
tampa de zebra, que tinha uma etiqueta de preço pendurada na aba.
Seu corpo era coberto por pelos ruivos desgrenhados, embora
noventa por cento de seus pelos corporais parecessem estar con-
centrados nas imensas sobrancelhas.
Leo mal formulara a pergunta Onde está o outro anão? quando
ouviu um clique atrás de si e percebeu que levara os amigos para uma
armadilha.
-- Abaixem-se!
Ele caiu no convés no momento da explosão ensurdecedora.
Anotação mental, pensou Leo, ainda grogue. Não deixar caixas
de granadas mágicas onde anões possam alcançá-las.
Ao menos estava vivo. Leo vinha fazendo experiências com todo
tipo de armamento a partir da esfera de Arquimedes que recuperara
em Roma. Criara granadas que podiam soltar ácido, fogo, estilhaços,
ou pipoca amanteigada. (Ei, você nunca sabe quando vai ter fome
durante uma batalha.) A julgar pelo zumbido nos ouvidos de Leo, o
anão detonara uma granada de luz e som, que ele enchera com um
raro frasco de extrato puro e líquido da música de Apolo. Não era let-
al, mas fazia Leo se sentir como se tivesse caído de barriga em uma
piscina.
Ele tentou se levantar. Seus membros não respondiam. Alguém
estava puxando a sua cintura, talvez um amigo tentando ajudá-lo?
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Não. Seus amigos não cheiravam a jaulas de macacos extremamente
fedorentas.
Conseguiu se virar. Sua visão estava fora de foco e em tom rosado,
como se o mundo estivesse imerso em geleia de morango. Um rosto
sorridente e grotesco pairava sobre ele. O anão de pelo castanho
vestia-se ainda pior do que o amigo: usava um chapéu-coco verde,
como o de um leprechaun, brincos compridos de diamantes e uma
camisa preta e branca com listras verticais. Ele exibiu o objeto que
acabara de roubar -- o cinto de ferramentas de Leo -- e então se
afastou dançando.
Leo tentou agarrá-lo, mas seus dedos estavam dormentes. O anão
saltitou alegremente até a balista mais próxima, que seu amigo de
pelo ruivo armava para o lançamento.
O anão de pelo castanho pulou sobre o projétil como se fosse um
skate, e seu amigo o disparou para o céu.
Pelo Ruivo desfilou arrogantemente até o treinador Hedge. Deu
um beijo estalado no rosto do sátiro e, em seguida, pulou na
amurada. Ele fez uma reverência para Leo, tirando o chapéu de
caubói de zebra, e deu um mortal de costas sobre a borda.
Leo conseguiu se levantar. Jason já estava de pé, tropeçando e es-
barrando nas coisas. Frank se transformara em um gorila de dorso
prateado (por quê? Leo não sabia. Talvez para se comunicar com os
macacos anões), mas a granada de luz e som o atingira em cheio. Ele
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estava caído no convés, língua de fora, com os olhos de gorila revira-
dos para cima.
-- Piper! -- Jason cambaleou até o leme e cuidadosamente retirou
a mordaça dela.
-- Não perca tempo comigo! Vá atrás deles!
No mastro, o treinador Hedge resmungou:
-- Humm!
Leo imaginou que aquilo queria dizer "MATEM-NOS!". Era fácil de
traduzir, já que a maioria das frases do treinador envolvia a palavra
matar.
Leo olhou para o painel de controle. Sua esfera de Arquimedes
não estava mais lá. Ele levou a mão à cintura, onde deveria estar seu
cinto de ferramentas. Estava voltando a pensar com clareza e se en-
cheu de indignação. Aqueles anões haviam atacado seu navio. Tin-
ham roubado os seus bens mais preciosos.
A cidade de Bolonha estendia-se abaixo deles: era um quebra-
cabeça de edifícios de telhas vermelhas em um vale cercado por coli-
nas verdejantes. Se Leo não encontrasse os anões em algum lugar
daquele labirinto de ruas... Não. O fracasso não era uma opção. E
nem esperar os seus amigos se recuperarem.
Ele se voltou para Jason.
-- Você está se sentindo bem o bastante para controlar os ventos?
Preciso de uma carona.
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Jason franziu a testa.
-- Claro, mas...
-- Bom -- disse Leo. -- Temos que pegar alguns macacos.

***

Jason e Leo aterrissaram em uma grande praça repleta de prédios
governamentais de mármore branco e cafés ao ar livre. Bicicletas e
Vespas entupiam as ruas em torno, mas a praça estava vazia, exceto
pelos pombos e alguns velhos tomando café espresso.
Nenhum dos moradores parecia notar o enorme navio de guerra
grego pairando sobre a praça, ou o fato de que Jason e Leo desceram
dele voando, Jason empunhando uma espada de ouro, e Leo... bem,
Leo de mãos vazias.
-- Para onde? -- perguntou Jason.
Leo olhou para ele.
-- Bem, eu não sei. Deixe-me pegar o GPS de rastreamento de an-
ões em meu cinto de ferramentas e... Ah, espere! Não tenho um GPS

rastreador de anões... e nem o meu cinto de ferramentas!
-- Tudo bem -- resmungou Jason. Ele olhou para o navio como se
estivesse tentando se orientar e, em seguida, apontou para o outro
lado da praça. -- A balista lançou o primeiro anão naquela direção,
eu acho. Vamos.
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Atravessaram um mar de pombos, então entraram em uma rua
transversal com lojas de roupas e sorveterias. As calçadas tinham
fileiras de colunas brancas cobertas de pichações. Alguns mendigos
pediam trocados (Leo não sabia italiano, mas o significado era
óbvio).
Ele não parava de levar a mão à cintura, esperando que seu cinto
de ferramentas reaparecesse magicamente. Não reapareceu. Tentou
não entrar em pânico, mas ele dependia daquele cinto para quase
tudo. Era como se alguém tivesse roubado uma de suas mãos.
-- Nós vamos encontrá-lo -- prometeu Jason.
Normalmente, Leo teria se tranquilizado. Jason tinha talento para
se manter calmo durante uma crise e já tirara Leo de vários apuros.
Hoje, porém, Leo só conseguia pensar naquele estúpido biscoito da
sorte que quebrara em Roma. A deusa Nêmesis prometera ajudá-lo, e
ajudou: deu a ele o código para ativar a esfera de Arquimedes.
Naquele dia, Leo não tivera outra escolha a não ser usá-la para salvar
os amigos. Mas Nêmesis o avisara que sua ajuda teria um preço.
Leo se perguntou se esse preço já teria sido pago. Percy e Anna-
beth se foram. O navio estava centenas de quilômetros fora do curso,
a caminho de um desafio impossível. Seus amigos contavam com ele
para vencer um gigante terrível. E agora não tinha nem o seu cinto de
ferramentas nem a esfera de Arquimedes.
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Vinha tão ocupado sentindo pena de si mesmo que não percebeu
onde estavam até que Jason agarrou seu braço.
-- Veja.
Leo olhou para cima. Tinham chegado a uma praça menor. Diante
deles havia uma enorme estátua de bronze de Netuno completa-
mente nu.
-- Ai, deuses! -- Leo desviou o olhar. Ele não estava com a menor
vontade de ver a genitália de um deus logo de manhã cedo.
O deus do mar estava de pé sobre uma grande coluna de már-
more, no meio de uma fonte que não estava funcionando (o que pare-
cia um tanto irônico). Em ambos os lados de Netuno sentavam-se de-
spreocupadamente alguns cupidos, tipo, e aí, beleza? O próprio Ne-
tuno (evite olhar para a virilha) projetava o quadril para o lado em
um movimento à Elvis Presley. Segurava o tridente frouxamente com
a mão direita e estendia a esquerda para a frente como se estivesse
abençoando Leo, ou, talvez, tentando fazê-lo levitar.
-- Alguma pista? -- perguntou Leo.
Jason franziu a testa.
-- Talvez sim, talvez não. Há estátuas dos deuses por toda a Itália.
Eu me sentiria melhor se encontrasse Júpiter. Ou Minerva. Qualquer
um, menos Netuno.
Leo subiu na fonte seca. Pousou a mão sobre o pedestal da es-
tátua, e uma enxurrada de informações percorreu as pontas de seus
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dedos. Ele sentiu engrenagens de bronze celestial, alavancas mágicas,
molas e pistões.
-- É mecânico -- disse ele. -- Talvez seja a entrada para o escond-
erijo secreto dos anões.
-- Uooou! -- gritou uma voz próxima. -- Esconderijo secreto?
-- Eu quero um esconderijo secreto! -- gritou outra voz mais
acima.
Jason recuou, espada em punho. Leo quase ficou com torcicolo
tentando olhar para dois lugares ao mesmo tempo. O anão de pelo
ruivo com chapéu de caubói estava a uns trinta metros deles, sentado
a uma das mesas do café mais próximo tomando um espresso com
seu pé de macaco. O anão de pelo castanho com chapéu-coco verde
estava empoleirado no pedestal de mármore, aos pés de Netuno,
pouco acima da cabeça de Leo.
-- Se tivéssemos um esconderijo secreto -- disse Pelo Rui-
vo --, gostaria que tivesse um poste de bombeiros.
-- E um toboágua! -- disse Pelo Castanho, que tirava ferramentas
aleatórias do cinto de Leo, jogando fora chaves de porcas, martelos e
grampeadores.
-- Pare com isso!
Leo tentou agarrar os pés do anão, mas não conseguia alcançar o
topo do pedestal.
-- Muito baixinho? -- perguntou Pelo Castanho, compreensivo.
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-- Você está me chamando de baixinho? -- Leo olhou em volta
procurando algo para arremessar, mas não havia nada além de pom-
bos, e ele duvidava que conseguisse agarrar algum. -- Devolva o meu
cinto, seu estúpido...
-- Ora, ora! -- interrompeu Pelo Castanho. -- Nós ainda nem nos
apresentamos! Sou Acmon. E o meu irmão ali...
-- ... é o bonitão! -- O anão de pelo ruivo ergueu a xícara de café
espresso. A julgar pelos olhos dilatados e o sorriso meio louco, não
precisava de mais cafeína. -- Passalos! Cantor de canções! Bebedor
de café! Ladrão de coisas brilhantes!
-- Ora, vamos! -- gritou seu irmão, Acmon. -- Eu roubo muito
melhor do que você.
Passalos deu uma risadinha irônica.
-- Até parece! Só se for melhor em roubar doce de criança!
Ele pegou uma adaga -- a adaga de Piper -- e começou a palitar os
dentes.
-- Ei! -- gritou Jason. -- Essa adaga é da minha namorada!
Ele investiu contra Passalos, mas o anão de pelo ruivo era muito
rápido. Saltou da cadeira para a cabeça de Jason, depois deu uma
cambalhota e aterrissou ao lado de Leo, com os braços peludos em
torno da cintura do semideus.
-- Você me salva? -- pediu o anão.
-- Cai fora!
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Leo tentou empurrá-lo, mas Passalos deu uma cambalhota para
trás e saiu de seu alcance. A calça de Leo imediatamente escorregou
até os joelhos.
Ele olhou para Passalos, que agora estava sorrindo e segurando
uma pequena tira dentada de metal. De alguma forma, o anão
roubara o zíper da calça de Leo.
-- Devolva... o zíper... idiota! -- gaguejou Leo, tentando brandir o
punho e erguer a calça ao mesmo tempo.
-- Ah, não é brilhante o suficiente. -- Passalos jogou o zíper fora.
Jason atacou com sua espada. Passalos pulou bem alto e de re-
pente estava sentado no pedestal da estátua, ao lado do irmão.
-- Diga que não tenho os meus truques -- gabou-se Passalos.
-- Tudo bem -- disse Acmon. -- Você não tem os seus truques.
-- Ora! -- disse Passalos. -- Cadê o cinto de ferramentas? Quero
ver.
-- Não! -- Acmon o afastou com uma cotovelada. -- Você já tem a
faca e a bola brilhante.
-- É, a bola brilhante é bonita.
Passalos tirou o chapéu de caubói. Como um mágico tirando um
coelho de uma cartola, ele fez surgir a esfera de Arquimedes e
começou a mexer nos antigos discos de bronze.
-- Pare! -- gritou Leo. -- Essa é uma máquina sensível.
Jason ficou ao lado de Leo e olhou para os anões.
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-- Quem são vocês dois, afinal de contas?
-- Os cêrcopes! -- Acmon olhou para Jason com suspeita. -- E
aposto que você é um filho de Júpiter, não é mesmo? Eu sempre
acerto.
-- Igual ao Nádegas Negras -- concordou Passalos.
-- Nádegas Negras?
Leo resistiu ao impulso de tentar agarrar os pés dos anões de
novo. Ele tinha certeza de que Passalos quebraria a esfera de Ar-
quimedes a qualquer momento.
-- É, sabe? -- disse Acmon, sorrindo. -- Hércules. Nós o chamáva-
mos de Nádegas Negras porque ele costumava sair por aí pelado. Ele
ficou com a bunda tão bronzeada que...
-- Pelo menos tinha senso de humor! -- disse Passalos. -- Ele ia
nos matar quando o roubamos, mas nos deixou ir porque gostou de
nossas piadas. Não era como vocês dois. Ranzinzas, ranzinzas!
-- Ei, eu tenho senso de humor -- rosnou Leo. -- Devolva as
nossas coisas e vou contar uma piada de morrer de rir.
-- Boa tentativa! -- Acmon tirou uma chave catraca do cinto de
ferramentas e girou-a como se fosse uma matraca. -- Ah, muito legal!
Vou ficar com isso, com certeza! Obrigado, Nádegas Azuis!
Nádegas Azuis?
Leo olhou para baixo. Suas calças haviam escorregado até os
tornozelos outra vez, revelando sua cueca azul.
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-- Chega! -- gritou. -- Devolvam. Minhas coisas. Agora. Ou vocês
vão ver como anões em chamas são engraçados.
Suas mãos se incendiaram.
-- Ah, agora sim -- aprovou Jason, apontando a espada para o
céu.
Nuvens negras começaram a se juntar sobre a praça. Ouviu-se um
trovão.
-- Ai, que meda! -- ironizou Acmon.
-- Sim -- concordou Passalos. -- Se ao menos tivéssemos um local
secreto para nos escondermos.
-- Infelizmente, esta estátua não é a porta de um esconderijo
secreto -- disse Acmon. -- Tem uma finalidade diferente.
Leo sentiu um frio no estômago. O fogo de suas mãos se apagou e
ele percebeu que algo estava muito errado.
-- Uma armadilha -- gritou, pulando para fora da fonte.
Infelizmente, Jason estava muito ocupado convocando a sua
tempestade.
Leo, caído no chão, virou-se a tempo de ver cinco cordas doura-
das saírem dos dedos da estátua de Netuno. Uma quase prendeu os
seus pés. As outras cordas foram lançadas na direção de Jason,
laçando-o como se fosse um bezerro em um rodeio e deixando-o de
cabeça para baixo.
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Um relâmpago atingiu o tridente de Netuno, enviando ondas de
eletricidade por toda a estátua, mas os cêrcopes já tinham
desaparecido.
-- Bravo! -- Acmon aplaudia de uma mesa de um café próx-
imo. -- Você dá uma bela pinhata, filho de Júpiter!
-- Dá mesmo! -- concordou Passalos. -- Hércules já nos pendurou
de cabeça para baixo, sabia? Ah, como a vingança é doce!
Leo conjurou uma bola de fogo. Ele a arremessou mirando em
Passalos, que tentava fazer malabarismos com dois pombos e a esfera
de Arquimedes.
-- Opa! -- O anão esquivou-se da explosão, derrubando a esfera e
deixando os pombos voarem.
-- Hora de ir embora! -- decidiu Acmon.
Ele baixou a ponta do chapéu-coco e saltou de mesa em mesa.
Passalos olhou para a esfera de Arquimedes, que rolara até parar
entre os pés de Leo.
Leo conjurou outra bola de fogo.
-- Pode vir -- rosnou.
-- Tchau!
Passalos deu um mortal de costas e seguiu o irmão.
Leo pegou a esfera de Arquimedes e correu até Jason, que ainda
estava pendurado de cabeça para baixo, completamente amarrado,
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com exceção do braço da espada. Tentava cortar as cordas com a
lâmina de ouro, mas não estava se saindo muito bem.
-- Espere -- disse Leo. -- Se eu encontrar um interruptor para sol-
tar você...
-- Vá! -- rosnou Jason. -- Eu o encontro quando sair dessa.
-- Mas...
-- Vá atrás deles!
A última coisa que Leo queria era ficar a sós com os anões maca-
cos, mas os cêrcopes já estavam dobrando a esquina no outro ex-
tremo da praça. Leo deixou Jason pendurado e correu atrás deles.
XII




LEO

OS ANÕES NÃO SE ESFORÇARAM muito para despistá-lo, o que deixou
Leo desconfiado. Ficavam sempre no seu campo de visão, correndo
sobre os telhados de telhas vermelhas, derrubando jardineiras das
janelas, comemorando, gritando e deixando um rastro de parafusos e
pregos do seu cinto de ferramentas, quase como se quisessem ser
seguidos.
Leo correu atrás deles, soltando palavrões a cada vez que suas
calças caíam. Ele dobrou uma esquina e viu duas antigas torres de
pedra elevando-se até o céu, lado a lado, muito mais altas do que
qualquer outra construção nas redondezas -- talvez fossem torres de
vigia medievais. Inclinavam-se em direções diferentes, como as
alavancas de marcha de um carro de corrida.
Os cêrcopes escalaram a torre da direita. Quando chegaram ao
topo, deram a volta até a parte de trás e desapareceram.
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Teriam entrado? Leo enxergava algumas pequenas janelas cober-
tas com grades de metal lá no alto, mas duvidava que aquilo det-
ivesse os anões. Ficou olhando durante um minuto, mas os cêrcopes
não reapareceram. O que significava que Leo teria de subir até lá e
procurar por eles.
-- Ótimo -- murmurou.
Não tinha nenhum amigo voador para levá-lo até lá. O navio es-
tava longe demais para ele poder pedir ajuda. Talvez pudesse impro-
visar algum tipo de dispositivo voador com a esfera de Arquimedes,
mas só se tivesse o seu cinto de ferramentas -- coisa que não tinha.
Leo examinou as construções vizinhas, tentando pensar. Meio
quarteirão adiante, duas portas de vidro se abriram e uma senhora
idosa saiu devagar, carregando sacolas plásticas de compras.
Um mercado? Humm...
Leo apalpou os bolsos. Para a sua surpresa, ainda tinha alguns
euros dos dias que passaram em Roma. Aqueles anões idiotas tinham
levado tudo, menos o seu dinheiro.
Correu até a loja o mais rápido que sua calça sem zíper permitia.
Percorreu os corredores procurando coisas que pudessem ser
úteis. Não sabia dizer em italiano "Olá, onde estão seus produtos
químicos perigosos, por favor?", mas tudo bem. Também não queria
acabar em uma prisão da Itália.
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Felizmente, não precisava ler rótulos. Bastava pegar um tubo de
pasta de dente para saber que continha nitrato de potássio. Encon-
trou carvão. Encontrou açúcar e bicarbonato de sódio. A loja vendia
fósforos, repelente contra insetos e papel-alumínio. Praticamente
tudo de que precisava, além de um fio de varal que poderia usar
como cinto. Acrescentou às compras um pouco de junk food italiana,
apenas para disfarçar seus produtos mais suspeitos e, em seguida, le-
vou tudo até a caixa registradora. Uma senhora de olhos arregalados
fez-lhe algumas perguntas que ele não compreendeu, mas conseguiu
pagar, encher a sacola de compras e ir embora correndo.
Ele se agachou junto à porta mais próxima, de onde poderia ficar
de olho nas torres. Então começou a trabalhar, conjurando uma
fogueira para secar e cozinhar materiais que, de outro modo, teriam
levado dias para ficarem prontos.
Vez por outra, lançava um olhar furtivo para a torre, mas não
havia nenhum sinal dos anões. Esperava que ainda estivessem lá em
cima. Preparar seu arsenal demorou apenas alguns minutos -- ele era
realmente muito bom nisso --, mas pareceram horas.
Jason não apareceu. Talvez ainda estivesse preso na fonte de Ne-
tuno, ou percorrendo as ruas à procura de Leo. Ninguém mais do na-
vio veio ajudar. Provavelmente estavam ocupados tirando os
elásticos cor-de-rosa do cabelo do treinador Hedge.
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Isso significava que Leo estava sozinho com sua sacola de junk
food e algumas armas altamente improvisadas feitas de açúcar e
creme dental. Ah, e a esfera de Arquimedes. Era um detalhe import-
ante. Esperava não tê-la estragado enchendo-a de pó químico.
Correu para a torre e encontrou a entrada. Começou a subir a es-
cada em espiral, apenas para ser detido diante de uma bilheteria por
algum zelador que gritou com ele em italiano.
-- Sério mesmo? -- perguntou Leo. -- Olha, cara, sua torre está
infestada de anões macacos. E sou o dedetizador. -- Ergueu a lata de
inseticida. -- Está vendo? Dedetizador Molto Buono. Borrifa, bor-
rifa, Ahhhhh!
Ele imitou um anão desmanchando-se, apavorado, o que, por al-
gum motivo, o italiano não pareceu entender.
O sujeito simplesmente estendeu a mão, pedindo dinheiro.
-- Caramba, homem -- resmungou Leo. -- Gastei todo o meu din-
heiro em explosivos caseiros e outras coisas. -- Ele remexeu em sua
sacola de compras. -- Será que você aceitaria... hã... o que é isso?
Leo ergueu um saco amarelo e vermelho de algo chamado
Fonzies. Achava que fosse algum tipo de batatas chips. Para sua sur-
presa, o zelador deu de ombros e aceitou o saco.
-- Avanti!
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Leo continuou a subir, mas disse a si mesmo para não se esquecer
de estocar Fonzies. Aparentemente, funcionavam melhor do que din-
heiro na Itália.
A escada subia, subia e subia. A torre inteira parecia ser apenas
uma desculpa para construírem a escada.
Parou ao chegar a um patamar e encostou-se em uma estreita
janela gradeada, tentando recuperar o fôlego. Suava como um porco,
e seu coração batia forte. Cêrcopes idiotas. Leo imaginou que assim
que chegasse ao topo eles fugiriam antes que tivesse a chance de usar
as suas armas, mas precisava tentar.
Continuou subindo.
Finalmente, com as pernas moles como macarrão cozido, chegou
ao topo.
O cômodo era do tamanho de um armário de vassouras, com
janelas gradeadas nas quatro paredes. Havia sacos de tesouros
empilhados pelos cantos e objetos brilhantes espalhados pelo chão.
Leo viu a adaga de Piper, um velho livro com capa de couro, alguns
dispositivos mecânicos interessantes e ouro suficiente para causar
uma indigestão no cavalo de Hazel.
A princípio, achou que os anões tinham ido embora. Então, olhou
para cima. Acmon e Passalos estavam pendurados de cabeça para
baixo, presos às vigas pelos pés de chimpanzé, jogando pôquer
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antigravidade. Ao verem Leo, ambos jogaram as suas cartas como
confete e irromperam em aplausos.
-- Eu disse que ele viria! -- gritou Acmon, felicíssimo.
Passalos deu de ombros, pegou um de seus relógios de ouro e o
entregou ao irmão.
-- Você ganhou. Não achei que ele fosse tão burro.
Ambos pularam das vigas. Acmon usava o cinto de ferramentas.
Estava tão perto que Leo teve que resistir ao impulso de tentar
agarrá-lo.
Passalos ajeitou o chapéu de caubói e chutou a grade da janela
mais próxima, abrindo-a.
-- O que o faremos escalar agora, irmão? A cúpula de San Luca?
Leo queria estrangular os anões, mas forçou um sorriso.
-- Ah, isso parece divertido! Mas, antes de irem, saibam que es-
queceram algo brilhante.
-- Impossível! -- Acmon fez uma careta. -- Fomos muito
cuidadosos.
-- Tem certeza?
Leo ergueu a sacola de supermercado.
Os anões se aproximaram. Como Leo esperava, sua curiosidade
era tão grande que não conseguiam resistir.
-- Vejam.
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Leo pegou a sua primeira arma, um punhado de produtos quími-
cos secos embrulhados em uma folha de papel-alumínio, e acendeu-a
com a mão.
Afastou-se antes da explosão, mas os anões estavam olhando
diretamente para o artefato. Pasta de dente, açúcar e repelente de in-
setos não eram tão bons quanto a música de Apolo, mas causavam
uma explosão de som e luz bem decente.
Os cêrcopes gritaram, levando as patas aos olhos. Cambalearam
em direção à janela, mas Leo já detonara seus rojões caseiros,
mirando-os nos pés descalços dos anões para desequilibrá-los. Então,
só para garantir, Leo girou um disco em sua esfera de Arquimedes, o
que espalhou uma nuvem branca por toda a sala.
A fumaça não afetava Leo. Como era imune ao fogo, ele entrara
em fogueiras fumacentas várias vezes, suportara sopros de dragões e
limpara forjas ardentes. Enquanto os anões tossiam e ofegavam, re-
cuperou o cinto de ferramentas que estava com Acmon, retirou
calmamente alguns cabos de bungee jump, e amarrou os anões.
-- Meus olhos! -- exclamou Acmon, tossindo. -- Meu cinto de
ferramentas!
-- Meus pés estão pegando fogo! -- lamentou-se Passalos. -- Isso
não é nada brilhante! Não mesmo!
Quando teve certeza de que estavam devidamente imobilizados,
Leo arrastou os cêrcopes até um canto e começou a vasculhar seus
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tesouros. Recuperou a adaga de Piper, alguns de seus protótipos de
granadas e uma dezena de outros objetos que os anões haviam
roubado do Argo II.
-- Por favor! -- lamentou-se Acmon. -- Não tome nossos brilhos!
-- Vamos fazer um acordo! -- sugeriu Passalos. -- Nós lhe dare-
mos dez por cento se você deixar a gente ir embora!
-- Acho que não -- murmurou Leo. -- É tudo meu agora.
-- Vinte por cento!
Naquele momento, ecoou um trovão. Relâmpagos brilharam e as
barras da janela mais próxima começaram a derreter,
transformando-se em tocos incandescentes de ferro derretido.
Jason entrou voando como Peter Pan, com a eletricidade crepit-
ando em torno dele e de sua espada de ouro fumegante.
Leo assobiou, admirado.
-- Cara, você acaba de desperdiçar uma entrada triunfal.
Jason franziu a testa. Então, viu os cêrcopes amarrados.
-- Mas que...
-- Fiz tudo sozinho -- interrompeu Leo. -- Sou super especial.
Como você me encontrou?
-- Hã, a fumaça -- conseguiu dizer Jason. -- E ouvi estampidos.
Houve um tiroteio por aqui?
-- Tipo isso.
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Leo atirou-lhe a adaga de Piper e continuou a vasculhar o lugar.
Lembrou-se do que Hazel dissera sobre encontrar um tesouro que os
ajudaria em sua jornada, mas não sabia exatamente o que estava pro-
curando. Havia moedas, pepitas de ouro, joias, clipes de papel, rolos
de papel alumínio, abotoaduras.
E sempre voltava a topar com alguns objetos que não pareciam
combinar com o conjunto. O primeiro era um antigo dispositivo de
navegação feito de bronze, como o astrolábio de um navio. Estava
muito danificado e parecia que algumas de suas peças estavam
faltando, mas ainda assim Leo o achou fascinante.
-- Pode levar! -- ofereceu Passalos. -- Foi Odisseu quem fez,
sabia? Leve-o e deixe a gente ir embora.
-- Odisseu? -- perguntou Jason. -- Tipo, o Odisseu?
-- Ele mesmo! -- berrou Passalos. -- Fez isso quando já estava
velho, em Ítaca. É uma de suas últimas invenções. E nós a roubamos!
-- Como funciona? -- perguntou Leo.
-- Ah, não funciona -- disse Acmon. -- Acho que é por causa de
um cristal que está faltando.
Ele olhou para o irmão em busca de ajuda.
-- "É o meu maior arrependimento" -- disse Passalos. -- "Deveria
ter pegado um cristal." Era isso que ele resmungava durante o sono,
na noite em que o roubamos. -- Passalos deu de ombros. -- Não faço
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ideia do que queria dizer, mas o brilhante é todo seu! Podemos ir
agora?
Leo não tinha certeza de por que queria o astrolábio. O objeto es-
tava obviamente quebrado, e ele tinha a sensação de que não era isso
que Hécate queria que encontrassem. Ainda assim, guardou-o em um
dos bolsos mágicos de seu cinto de ferramentas.
Voltou a atenção para o outro item estranho: o livro com capa de
couro. O título era folheado a ouro, escrito em uma língua que Leo
não conseguia entender, mas era a única coisa brilhante naquele liv-
ro. E não achava que os cêrcopes gostassem muito de ler.
-- O que é isso?
Ele balançou o livro diante dos anões, que ainda estavam lacrime-
jando por causa da fumaça.
-- Nada! -- disse Acmon. -- Só um livro. Tinha uma bela capa de
ouro, por isso o roubamos dele.
-- Dele quem? -- perguntou Leo.
Acmon e Passalos trocaram um olhar nervoso.
-- Um deus menor -- disse Passalos. -- Em Veneza. Realmente,
não é nada.
-- Veneza. -- Jason franziu a testa para Leo. -- Não é para lá que
devemos ir em seguida?
-- É.
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Leo examinou o livro. Não entendia o que estava escrito, mas
havia muitas ilustrações: foices, plantas diferentes, uma imagem do
sol, uma parelha de bois puxando uma carroça. Não conseguia ver a
importância daquilo, mas se o livro fora roubado de um deus menor
em Veneza -- o próximo lugar que Hécate lhes dissera para visit-
ar --, então era aquilo que eles estavam procurando.
-- Onde, exatamente, podemos encontrar esse deus men-
or? -- perguntou Leo.
-- Não! -- gritou Acmon. -- Você não pode devolver para ele! Se
ele descobrir que a gente o roubou...
-- Ele vai destruir vocês -- deduziu Jason. -- E é o que vamos
fazer se não responderem, e estamos muito mais perto de vocês.
Encostou a ponta da espada na garganta peluda de Acmon.
-- Tudo bem, tudo bem! -- gritou o anão. -- La Casa Nera! Calle
Frezzeria!
-- Isso é um endereço? -- perguntou Leo.
Os anões assentiram, desesperados.
-- Por favor, não conte que roubamos -- implorou Pas-
salos. -- Ele não é nada legal!
-- Quem é ele? -- perguntou Jason. -- Que deus?
-- Eu... eu não posso dizer -- gaguejou Passalos.
-- É melhor falar logo -- avisou Leo.
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-- Não -- disse Passalos, apavorado. -- Quer dizer, eu realmente
não consigo dizer. Não consigo pronunciar! Tr... tri... É muito difícil!
-- Truh -- disse Acmon. -- Tru-toh... Tem sílabas demais!
Ambos irromperam em lágrimas.
Leo não sabia se os cêrcopes estavam dizendo a verdade, mas era
difícil ficar bravo com anões chorando, por mais malvestidos e irrit-
antes que eles fossem.
Jason baixou a espada.
-- O que você quer fazer com eles, Leo? Mandá-los para o
Tártaro?
-- Por favor, não! -- choramingou Acmon. -- Levaremos semanas
para voltar.
-- Isso se Gaia permitir! -- fungou Passalos. -- Ela controla as
Portas da Morte agora. Vai ficar muito zangada conosco.
Leo olhou para os anões. Já enfrentara muitos monstros e nunca
se sentira mal por dissolvê-los, mas aquilo era diferente. Teve que
admitir que tinha alguma admiração por aqueles sujeitinhos. Eles
pregavam boas peças e gostavam de coisas brilhantes. Leo se identi-
ficava com eles. Além disso, Percy e Annabeth estavam no Tártaro
(Leo esperava que ainda estivessem vivos), caminhando em direção
às Portas da Morte. A ideia de enviar aqueles macacos gêmeos até lá
para enfrentar o mesmo pesadelo... Bem, não parecia certo.
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Imaginou Gaia rindo de sua fraqueza: um semideus de coração
mole demais para matar monstros. Lembrou-se de seu sonho sobre o
Acampamento Meio-Sangue em ruínas, corpos de gregos e romanos
espalhados pelos campos. Lembrou-se de Octavian, falando com a
voz da deusa da terra: Os romanos estão se deslocando a leste de
Nova York. Eles avançam em direção ao seu acampamento, e nada
poderá detê-los.
-- Nada poderá detê-los -- pensou Leo em voz alta. -- Eu me
pergunto...
-- O quê? -- indagou Jason.
Leo olhou para os anões.
-- Farei um acordo com vocês.
Os olhos de Acmon se iluminaram.
-- Trinta por cento?
-- Vamos deixá-los com todo o seu tesouro -- disse Leo --, a não
ser as coisas que nos pertencem, o astrolábio e este livro, que vamos
devolver para o cara lá em Veneza.
-- Mas ele vai nos destruir! -- lamentou-se Passalos.
-- Não vamos contar onde o conseguimos -- prometeu Leo. -- E
não vamos matar vocês. Vamos deixá-los em liberdade.
-- Hã, Leo...? -- perguntou Jason, hesitante.
Acmon guinchou de alegria:
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-- Eu sabia que você era tão inteligente quanto Hércules! Vou
chamá-lo de Nádegas Negras, o Retorno!
-- Certo, não, obrigado -- disse Leo. -- Mas, em troca de poupar-
mos sua vida, vocês terão que fazer algo para nós. Vou enviá-los a um
lugar para roubarem algumas pessoas, atormentá-las e infernizar a
vida delas de todas as maneiras possíveis. Vocês terão de seguir ex-
atamente as minhas instruções. Têm de jurar pelo Rio Estige.
-- Juramos! -- disse Passalos. -- Roubar pessoas é a nossa
especialidade!
-- E adoro atormentar! -- concordou Acmon. -- Para onde es-
tamos indo?
Leo sorriu.
-- Já ouviram falar em Nova York?
XIII




PERCY

PERCY LEVARA A NAMORADA PARA passeios românticos antes. Este
não era um deles.
Seguiam o Rio Flegetonte. Caminhavam com dificuldade sobre o
solo negro de cacos de vidro. Saltavam fendas e se escondiam atrás
de rochas sempre que o grupo de vampiras reduzia o passo à frente
deles.
Era difícil ficar para trás o bastante para não serem notados e ao
mesmo tempo perto o suficiente para não perderem de vista Kelli e
suas amigas em meio ao ar escuro e enevoado. O calor do rio tostava
a pele de Percy. Cada vez que respirava era como se estivesse in-
alando fibra de vidro com cheiro de enxofre. Quando ficavam com
sede, o máximo que podiam fazer era tomar um gole refrescante de
fogo líquido.
É. Percy sabia mesmo fazer uma garota se divertir.
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Pelo menos o tornozelo de Annabeth parecia estar melhor. Ela
quase não mancava mais. Seus vários cortes e arranhões tinham de-
saparecido. Ela prendera os cabelos louros com uma tira que rasgara
da calça jeans e, na luz abrasadora do rio, seus olhos cinzentos bril-
havam. Apesar de exausta, imunda e vestida como uma mendiga,
Percy achava que ela estava linda.
E daí que estavam no Tártaro? E daí que tinham uma chance ín-
fima de sobreviver? Ficou tão feliz por estarem juntos que sentiu uma
necessidade ridícula de sorrir.
Fisicamente, Percy também estava melhor, apesar de suas roupas
parecerem ter passado por um furacão de cacos de vidro. Estava com
sede, fome e morrendo de medo (mas não ia contar isso para Anna-
beth), porém estava livre do frio desesperançado do Rio Cócito. E por
pior que fosse o gosto do fogo líquido, ele parecia lhe dar forças.
Era impossível ter noção do tempo. Continuavam a acompanhar
penosamente o rio que cortava a paisagem. Por sorte, as empousai
não caminhavam muito rápido. Arrastavam as pernas diferentes,
umas de bronze outras de burro, reclamando e discutindo entre si,
aparentemente sem pressa de chegar às Portas da Morte.
Em certo momento, as vampiras, animadas, apertaram o passo e
enxamearam em torno de algo que parecia uma carcaça lançada na
praia às margens do rio. Percy não conseguiu identificar o que era...
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um monstro morto? Algum tipo de animal? As empousai a atacaram
com voracidade.
Quando os demônios retomaram seu caminho, Percy e Annabeth
foram até o local e nada encontraram além de alguns ossos quebra-
dos e manchas reluzentes secando ao calor do rio. Percy não tinha a
menor dúvida de que as empousai devorariam semideuses com o
mesmo prazer.
-- Vamos lá. -- Ele afastou Annabeth gentilmente daquela
cena. -- Não queremos perdê-las de vista.
Enquanto caminhavam, Percy se lembrou da primeira vez em que
enfrentara a empousa Kelli na orientação dos alunos de primeiro ano
do ensino médio na Goode High School, quando ele e Rachel Eliza-
beth Dare ficaram presos na sala de música. Na época, parecia uma
situação sem saída. Agora, daria qualquer coisa para que seus prob-
lemas fossem assim tão simples. Pelo menos naquele tempo estava
no mundo mortal. Ali não havia para onde fugir.
Uau! Já estava até pensando na guerra contra Cronos como os
bons tempos... Isso era triste. Mantinha as esperanças de que as
coisas fossem melhorar para ele e Annabeth, mas a vida de ambos só
ficava cada vez mais perigosa, como se as Três Parcas estivessem lá
em cima fiando o seu futuro com arame farpado em vez de fios só
para ver quanto dois semideuses podiam aguentar.
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Após alguns quilômetros, as empousai desapareceram por trás de
uma elevação do terreno. Quando Percy e Annabeth chegaram lá,
encontraram-se diante de outro precipício gigantesco. O Rio Fle-
getonte despencava em uma série irregular de cascatas flamejantes.
O grupo de mulheres demônios descia o precipício, pulando de uma
saliência a outra como cabras montanhesas.
O coração de Percy quase saiu pela boca. Mesmo que ele e Anna-
beth chegassem ao fundo do abismo vivos, o futuro não era promis-
sor. A paisagem abaixo deles era uma planície desolada e cinzenta de
onde se projetavam árvores negras, como pelos de um inseto. O chão
estava coberto de bolhas. De vez em quando uma delas inchava e ex-
plodia, fazendo surgir um monstro parecido com uma larva saída de
um ovo.
De repente, Percy perdeu toda a fome.
Todos os monstros recém-formados rastejavam e mancavam na
mesma direção, rumo a uma barreira de nuvens negras que engolia o
horizonte como se uma tempestade se aproximasse. O Flegetonte
seguia seu curso e, perto do centro da planície, encontrava outro rio
de águas negras, quem sabe o Cócito? As duas correntes se mis-
turavam em uma corredeira fervente e borbulhante e seguiam juntas
na direção da névoa preta.
Quanto mais Percy olhava para aquela tempestade de escuridão,
menos queria ir até lá. Aquilo podia esconder qualquer coisa: um
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oceano, um poço sem fundo ou um exército de monstros. Mas se as
Portas da Morte ficassem naquela direção, era sua única chance de
voltar para casa.
Espiou a borda do precipício.
-- Queria que a gente pudesse voar.
Annabeth esfregou os braços.
-- Lembra dos tênis voadores de Luke? Será que ainda estão por
aqui?
Percy lembrava. Aqueles tênis tinham uma maldição que os fazia
arrastar para o Tártaro qualquer um que os calçasse. Quase haviam
levado Grover, seu melhor amigo.
-- Eu me contentaria com uma asa-delta.
-- Talvez não seja uma boa ideia.
Annabeth apontou para o alto, onde formas escuras aladas
descreviam círculos, entrando e saindo das nuvens vermelho-sangue.
-- Fúrias? -- perguntou Percy.
-- Ou algum outro tipo de demônio -- supôs Annabeth. -- No Tár-
taro há milhares deles.
-- Incluindo o tipo que devora asas-deltas -- comentou
Percy. -- Está bem, então vamos descer o penhasco.
Ele não conseguia mais ver as empousai lá embaixo. Elas tinham
desaparecido por trás de alguma outra elevação, mas isso não im-
portava. O caminho estava claro. Como todas as larvas monstruosas
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que rastejavam pelas planícies do Tártaro, eles deviam seguir na
direção do horizonte sombrio. Percy mal podia esperar.
XIV




PERCY

QUANDO COMEÇARAM A DESCER O penhasco, Percy se concentrou nos
desafios mais imediatos: não perder o equilíbrio, evitar derrubar
pedras para não alertar as empousai de sua presença e, é claro,
garantir que ele e Annabeth não despencassem para a morte.
Na metade da descida, Annabeth disse:
-- Percy, espere. Vamos parar um pouco.
As pernas dela tremiam tanto que Percy se xingou mentalmente
por não ter sugerido uma parada antes.
Eles se sentaram juntos em uma saliência ao lado de uma feroz
cascata de fogo. Percy passou o braço em torno de Annabeth, que se
aconchegou a ele, trêmula de exaustão.
Ele não estava muito melhor. Seu estômago parecia ter encolhido
até ficar do tamanho de uma bala de goma. Caso se deparassem com
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mais alguma carcaça de monstro, temia empurrar uma empousa
para fora de seu caminho e tentar devorá-la.
Pelo menos ele tinha Annabeth. Iam encontrar uma saída do Tár-
taro. Tinham que conseguir. Não acreditava muito em destino e pro-
fecias, mas estava convencido de uma coisa: Annabeth e ele precis-
avam ficar juntos. Não haviam sobrevivido a tanta coisa só para mor-
rerem ali.
-- Podia ser pior -- arriscou a garota.
-- É? -- Percy não via como, mas tentou parecer animado.
Ela se aninhou nele. Seus cabelos cheiravam a fumaça, e se
fechasse os olhos, Percy quase podia imaginar que estavam junto da
fogueira no Acampamento Meio-Sangue.
-- Podíamos ter caído no Rio Lete -- disse ela. -- E perdido nossas
lembranças.
Percy sentiu arrepios só de pensar nisso. Já tivera problemas sufi-
cientes com amnésia para uma vida inteira. Menos de um mês antes,
Hera tinha apagado suas lembranças para botá-lo entre os semi-
deuses romanos. Percy tinha ido parar no Acampamento Júpiter sem
saber quem era ou de onde vinha. E alguns anos antes, lutara contra
um titã nas margens do Lete, perto do palácio de Hades. Ele atacara
o titã com água daquele rio e apagara sua memória.
-- É, o Lete -- murmurou ele. -- Não é meu preferido.
-- Qual era mesmo o nome daquele titã? -- perguntou Annabeth.
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Hã... Jápeto. Ele disse que significava o Empalador ou algo
assim.
-- Não, o nome que você lhe deu depois que ele perdeu a
memória. Steve?
-- Bob -- corrigiu Percy.
Annabeth conseguiu dar uma leve risada.
-- Bob, o titã.
Os lábios de Percy estavam tão rachados que sorrir doía. Ele se
perguntou o que teria acontecido com Jápeto depois que o deixaram
no palácio de Hades... se ele ainda estaria feliz em ser Bob, simpático,
alegre e bobalhão. Percy esperava que sim, mas o Mundo Inferior
parecia despertar o pior em todos: monstros, heróis e deuses.
Observou as planícies cinzentas. Os outros titãs deveriam estar ali
no Tártaro, talvez acorrentados ou vagando sem rumo, ou quem sabe
escondidos em alguma daquelas fendas escuras. Percy e seus aliados
tinham destruído o pior titã, Cronos, mas seus restos mortais podiam
ainda estar ali, em algum lugar, um bilhão de partículas raivosas de
titã flutuando nas nuvens cor de sangue ou espreitando na neblina
negra.
Percy resolveu não pensar mais naquilo e beijou a testa de
Annabeth.
-- Temos que ir andando. Quer beber mais fogo?
-- Eca. Não, obrigada.
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Levantaram-se com dificuldade. Parecia impossível descer o resto
do penhasco. Tudo que tinham pela frente eram saliências minúscu-
las, mas Percy e Annabeth seguiram em frente.
O corpo de Percy estava no piloto automático. Sentia câimbras
nos dedos. Bolhas começavam a surgir em seus tornozelos. Estava
tremendo de fome.
Perguntou-se se iriam morrer de inanição ou se o fogo líquido os
manteria vivos. Lembrou-se do castigo de Tântalo, preso para
sempre em um lago sob uma árvore frutífera, mas sem poder al-
cançar nem a água nem o alimento.
Caramba, Percy não pensava em Tântalo havia anos. Aquele
sujeito idiota tinha sido brevemente perdoado para ser diretor do
Acampamento Meio-Sangue. Provavelmente estava de volta aos
Campos de Punição. Percy nunca tinha sentido pena do imbecil
antes, mas agora sentia certa compaixão por ele. Podia imaginar
como seria sentir cada vez mais fome por toda a eternidade sem ja-
mais conseguir comer.
Continue a descer, disse a si mesmo.
Cheesebúrgueres, respondeu seu estômago.
Cale a boca, pensou.
Com fritas, protestou o estômago.
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Um bilhão de anos mais tarde, com mais umas dez bolhas nos
pés, Percy chegou ao fundo. Ajudou Annabeth a descer, e os dois de-
sabaram no chão.
Diante deles se estendiam quilômetros de terra estéril fervilhando
com larvas monstruosas e árvores que pareciam pelos gigantescos de
inseto. À direita, o Flegetonte se dividia em braços que riscavam a
planície, abrindo-se em um delta de fumaça e fogo. Ao norte, ao
longo do curso principal do rio, havia inúmeras entradas de cavernas.
Aqui e ali, colunas de rocha se projetavam para o alto como pontos
de exclamação.
Ao tocar o solo, Percy o achou estranhamente quente e macio.
Tentou pegar um punhado de terra, mas então percebeu que sob uma
fina camada de terra e caliça, o chão era uma única grande mem-
brana... que parecia pele.
Quase vomitou, mas conseguiu se conter. Não havia nada em seu
estômago além de fogo.
Não disse nada a Annabeth, mas começou a sentir que algo os ob-
servava, algo grande e maligno. Não conseguia dizer exatamente de
onde, porque a presença estava ao seu redor. Observar também era a
palavra errada. Isso pressupunha olhos, e esta coisa apenas sabia que
estavam ali. A sequência de penhascos diante deles começava a se
parecer menos com degraus e mais com fileiras de dentes enormes.
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As colunas de pedra pareciam costelas quebradas. E se o solo fosse
pele...
Percy se obrigou a pensar em outra coisa. Estava morrendo de
medo daquele lugar. Era simples assim.
Annabeth se levantou, limpou a fuligem do rosto e olhou para a
escuridão do horizonte.
-- Vamos ficar completamente expostos quando atravessarmos
essa planície.
Cerca de cem metros à frente deles, uma bolha estourou no chão.
Um monstro saiu, abrindo caminho com suas garras... Um telquine
com pelo liso, corpo como o de uma foca e membros humanos atrofi-
ados. Conseguiu rastejar apenas alguns metros quando algo saiu dis-
parado da caverna mais próxima, tão rápido que Percy só conseguiu
vislumbrar uma cabeça reptiliana verde-escura. O monstro abocan-
hou o telquine e o arrastou para a escuridão, enquanto a presa
guinchava.
Renascer no Tártaro só para ser devorado dois segundos depois.
Percy se perguntou se aquele telquine surgiria em algum outro lugar
do Tártaro e quanto tempo levaria para que seu corpo tornasse a se
formar.
Engoliu em seco, ainda sentindo o sabor amargo do fogo líquido.
-- Que a diversão comece.
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Annabeth o ajudou a se levantar. Ele olhou para os penhascos
uma última vez, mas não havia volta. Teria dado mil dracmas de ouro
para que Frank Zhang estivesse com eles naquele momento, o bom e
velho Frank, que sempre aparecia quando era necessário e podia se
transformar em uma águia ou dragão e carregá-los voando por cima
daquela terra idiota, estéril e desolada.
Começaram a andar, evitando as entradas das cavernas e per-
manecendo perto da margem do rio.
Estavam acabando de contornar uma das colunas quando os ol-
hos de Percy captaram um vislumbre de movimento, algo correndo
entre duas rochas à direita deles.
Estavam sendo seguidos por um monstro? Ou talvez fosse algum
vilão aleatório a caminho das Portas da Morte.
De repente, ele se lembrou por que enveredaram por aquele cam-
inho e parou de andar.
-- As empousai. -- Agarrou o braço de Annabeth. -- Onde elas
estão?
Annabeth olhou em volta. Seus olhos cinza reluziram alarmados.
Talvez as empousai tivessem sido apanhadas por aquele réptil na
caverna. Se ainda estivessem à frente deles nas planícies, deveriam
estar visíveis.
A menos que estivessem escondidas...
Percy sacou a espada tarde demais.
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As empousai surgiram das rochas em volta deles, e as cinco form-
aram um círculo. Uma armadilha perfeita.
Kelli se adiantou mancando com aquelas suas pernas diferentes.
Seus cabelos flamejantes caíam em cascata sobre os ombros como a
miniatura de uma cachoeira do Flegetonte. O uniforme esfarrapado
de líder de torcida estava coberto de manchas de um marrom
acobreado, e Percy tinha quase certeza de que não eram de ketchup.
Ela o encarou com os olhos vermelhos brilhantes e exibiu as presas.
-- Percy Jackson -- exclamou ela alegremente. -- Que maravilha!
Nem preciso voltar ao mundo mortal para destruir você!
XV




PERCY

PERCY SE LEMBROU DO PERIGO que Kelli representara da última vez
que haviam lutado no Labirinto. Apesar das pernas diferentes, ela se
movia muito rápido quando queria. Tinha desviado de seus golpes de
espada e teria acabado com ele se Annabeth não a houvesse es-
faqueado pelas costas.
Agora ela estava acompanhada de quatro amigas.
-- E sua amiga Annabeth está com você! -- sibilou Kelli com uma
risada. -- Ah, sim, eu me lembro muito bem dela.
Kelli tocou o próprio esterno, por onde saíra a ponta da lâmina
quando Annabeth a esfaqueara.
-- Qual é o problema, filha de Atena? Perdeu sua arma? Que
chato. Eu gostaria de usá-la para matar você.
Percy tentou raciocinar. Ele e Annabeth ficaram ombro a ombro
como haviam feito muitas vezes antes, prontos para a batalha. Mas
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nenhum dos dois estava em condições de lutar. Annabeth estava de
mãos vazias. Estavam em grande desvantagem numérica. Não havia
para onde correr. Não chegaria nenhuma ajuda.
Por um segundo, Percy considerou chamar a sra. O'Leary, sua
amiga cão infernal que podia viajar pelas sombras. Mesmo que ela o
ouvisse, será que conseguiria chegar ao Tártaro? Era para lá que os
monstros iam quando morriam. Chamá-la até ali podia matá-la, ou
fazê-la voltar a seu estado natural de monstro feroz. Não, não ia con-
seguir fazer isso com sua cadela.
Então, nada de ajuda. E não tinham chances no combate corpo a
corpo.
Com isso, restavam as táticas favoritas de Annabeth: trapaça,
conversa, postergação.
-- Então... -- Começou ele. -- Acho que deve estar se perguntando
o que estamos fazendo no Tártaro.
Kelli deu uma risadinha de desdém.
-- Na verdade, não. Só quero matar você.
A conversa teria terminado aí, mas Annabeth entrou no papo.
-- Que chato -- disse ela. -- Porque vocês não fazem ideia do que
está acontecendo no mundo mortal.
As outras empousai começaram a andar em volta deles, observ-
ando Kelli à espera de uma deixa para atacar; mas a ex-líder de tor-
cida só rosnou e saiu do alcance da espada de Percy.
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-- Sabemos o bastante -- disse Kelli. -- Gaia falou.
-- Vocês estão rumando para uma grande derrota. -- Annabeth
parecia tão confiante que até Percy se impressionou. Ela olhou para
as outras empousai, uma por uma, depois apontou acusadoramente
para Kelli. -- Essa aí diz que as está conduzindo a uma vitória. É
mentira. Da última vez em que esteve no mundo mortal, Kelli era re-
sponsável por manter meu amigo Luke Castellan fiel a Cronos. No
fim, Luke o rejeitou e deu a vida para expulsá-lo. Os titãs perderam
porque Kelli falhou. Agora ela quer conduzir vocês a um novo
fracasso.
As outras empousai murmuravam e se moviam inquietas em seus
lugares.
-- Já chega! -- As unhas de Kelli cresceram e se transformaram
em longas garras negras. Ela olhou para Annabeth como se estivesse
fazendo picadinho dela mentalmente.
Percy estava quase certo de que Kelli tivera uma queda por Luke
Castellan. Luke tinha esse efeito sobre as garotas, mesmo nas vam-
piras com perna de burro, e Percy desconfiava de que mencionar seu
nome não fora uma ideia muito boa.
-- A garota está mentindo -- disse Kelli. -- Sim, os titãs perderam.
Ótimo! Isso era parte do plano para despertar Gaia! Agora a Mãe
Terra e seus gigantes vão destruir o mundo mortal, e a gente vai de-
vorar um super banquete de semideuses!
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As outras vampiras mostraram os dentes em um frenesi. Percy es-
tivera no meio de um cardume de tubarões em uma água cheia de
sangue. Mas aquilo não fora nem de perto tão assustador quanto em-
pousai prontas para se alimentarem.
Ele se preparou para atacar, mas de quantas daria cabo antes que
elas o dominassem? Não seria o suficiente.
-- Os semideuses se uniram! -- gritou Annabeth. -- É melhor
pensar duas vezes antes de nos atacar. Romanos e gregos vão
combatê-los juntos. Vocês não têm a menor chance!
As empousai recuaram nervosamente, sibilando: "Romani."
Percy pressupôs que elas haviam tido alguma experiência anterior
com a Décima Segunda Legião e o resultado não fora nada bom para
as empousai.
-- É, isso mesmo, Romani. -- Percy desnudou o antebraço e
mostrou a elas a marca que recebera no Acampamento Júpiter, as le-
tras SPQR, com o tridente de Netuno. -- Você sabe o que acontece
quando mistura gregos e romanos? O resultado é um BUM!
Ele bateu o pé com força no chão, e as empousai se afastaram cor-
rendo. Uma caiu da rocha sobre a qual estivera parada.
Isso fez com que Percy se sentisse bem, mas elas logo se recuper-
aram e voltaram a cercá-los.
-- Vocês estão bem confiantes para dois semideuses perdidos no
Tártaro -- provocou Kelli. -- Baixe a espada, Percy Jackson, e mato
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você rápido. Acredite em mim, há maneiras piores de morrer aqui
embaixo.
-- Espere! -- tentou Annabeth outra vez. -- As empousai não são
servas de Hécate?
Kelli pareceu contrariada.
-- E daí?
-- E daí que Hécate agora está do nosso lado -- disse Anna-
beth. -- Ela tem um chalé no Acampamento Meio-Sangue. Alguns de
seus filhos semideuses são meus amigos. Se lutarem contra nós, vão
deixá-la com raiva.
Percy teve vontade de abraçar Annabeth. Ela era absolutamente
brilhante.
Uma das outras empousai rosnou.
-- Isso é verdade, Kelli? Nossa senhora fez as pazes com o
Olimpo?
-- Cale a boca, Serefone! -- gritou Kelli. -- Deuses, vocês são
insuportáveis.
-- Não vou contrariar a Senhora das Trevas.
Annabeth aproveitou a deixa.
-- É melhor vocês todas ouvirem Serefone. Ela é mais velha e
mais sábia.
-- É! -- gritou Serefone com sua voz aguda. -- Sigam-me!
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Kelli deu o bote tão rápido que Percy não teve chance de levantar
a espada. Por sorte, ela não o atacou. Avançou sobre Serefone. Por
meio segundo as duas empousai viraram um borrão de garras e pres-
as afiadas.
Então acabou. Kelli ficou de pé triunfante sobre um monte de
poeira. Os restos esfarrapados do vestido de Serefone pendiam de
suas garras.
-- Alguém tem mais algum problema? -- perguntou Kelli
ameaçadoramente para as irmãs. -- Hécate é a deusa da Névoa! Seus
desígnios são misteriosos. Quem sabe de que lado ela realmente está?
Também é a deusa das encruzilhadas e espera que façamos nossas
próprias escolhas. Eu escolho o caminho que vai nos render mais
sangue de semideuses! Escolho Gaia.
Suas amigas sibilaram em aprovação.
Annabeth olhou rapidamente para Percy, e ele viu que ela estava
sem ideias. Ela havia feito o possível. Conseguira que Kelli eliminasse
uma delas mesmas. Agora não havia mais nada a fazer além de lutar.
-- Por dois anos eu me debati no vazio -- disse Kelli. -- Você tem
ideia de como é absolutamente chato ser vaporizada, Annabeth
Chase? Tipo, recuperar a forma bem devagar, estando totalmente
consciente e sofrendo uma dor terrível por meses e anos enquanto
seu corpo torna a crescer, para então finalmente romper a crosta
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deste lugar infernal e se arrastar com as garras de volta à luz do dia?
Tudo porque uma garotinha a esfaqueou pelas costas?
Seus olhos ameaçadores encararam os de Annabeth.
-- O que será que acontece se um semideus for morto no Tártaro?
Duvido que já tenha acontecido antes. Vamos descobrir.
Percy atacou, brandindo Contracorrente em um arco amplo. Cor-
tou um dos demônios ao meio, mas Kelli se esquivou e atacou Anna-
beth. As outras duas empousai se lançaram sobre Percy. Uma agar-
rou o braço da espada. A amiga pulou nas costas dele.
Percy tentou ignorá-las e avançou com dificuldade na direção de
Annabeth, determinado a morrer defendendo-a, se fosse preciso.
Mas Annabeth estava se saindo muito bem. Ela desviou para um lado
e escapou das garras de Kelli. Quando se levantou, trazia uma pedra
na mão, com a qual golpeou o nariz da adversária.
Kelli urrou. Annabeth pegou um punhado de cascalho e o jogou
nos olhos da empousa.
Enquanto isso, Percy se debatia, tentando se livrar da empousa
que pegara carona nas suas costas, mas as garras dela afundaram
ainda mais em seus ombros. A segunda empousa segurava seu braço,
evitando que ele usasse Contracorrente.
Pelo canto do olho, viu Kelli saltar e cravar as garras nos braços
de Annabeth, que gritou e caiu.
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Percy cambaleou em sua direção. A vampira em suas costas afun-
dou os dentes em seu pescoço. Uma dor intensa percorreu todo o seu
corpo, e seus joelhos vacilaram.
Fique de pé, disse para si mesmo. Você tem de vencê-las.
Então a outra vampira mordeu o braço da espada, e Contracor-
rente caiu no chão com um ruído metálico.
Era isso. Sua sorte finalmente acabara. Kelli erguia-se sobre An-
nabeth, saboreando sua vitória. As outras duas empousai cercaram
Percy com as bocas salivando, prontas para outra mordida. Então
uma sombra passou por Percy. De algum lugar acima, ouviu-se um
sonoro grito de guerra, que ecoou pelas planícies do Tártaro, e em
seguida um titã caiu no campo de batalha.
XVI




PERCY

PERCY ACHOU QUE ESTAVA ALUCINANDO. Não era possível que uma
figura prateada enorme caísse do nada bem em cima de Kelli e a
transformasse em poeira de monstro.
Mas foi exatamente o que aconteceu. O titã tinha três metros de
altura, cabelos prateados e desgrenhados como os de Einstein, olhos
inteiramente prateados e braços musculosos saindo do uniforme
rasgado de zelador. Ele carregava uma enorme vassoura, e seu
crachá, para espanto de Percy, dizia: BOB.
Annabeth gritou de dor e tentou se afastar, rastejando, mas o ze-
lador gigante não estava interessado nela. Ele se virou para as em-
pousai que ainda estavam em cima de Percy.
Uma foi tola o suficiente para atacar. Ela se lançou com a velocid-
ade de um tigre, mas não teve a menor chance. Uma ponta de lança
projetou-se da extremidade da vassoura de Bob. Com um único golpe
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mortal, ele a cortou e a transformou em poeira. A última empousa
tentou fugir. Bob lançou a vassoura como se fosse um bumerangue
gigante (será que existia algo como um vassourangue?), que atraves-
sou a empousa e voltou para suas mãos.
-- VARRER! -- O titã sorriu com prazer e fez uma dança da
vitória. -- Varrer, varrer, varrer!
Percy não conseguia falar. Para ele, era impossível acreditar que
alguma coisa boa tinha mesmo acontecido. Annabeth parecia igual-
mente chocada.
-- C-como...? -- gaguejou ela.
-- Percy me chamou! -- disse o zelador, satisfeito. -- É, ele
chamou.
Annabeth se afastou um pouco mais. Seu braço estava sangrando
muito.
-- Chamou você? Ele... espere. Você é Bob? O Bob?
O zelador fez uma expressão preocupada ao ver o ferimento de
Annabeth.
-- Ai!
Annabeth se encolheu quando ele se ajoelhou a seu lado.
-- Está tudo bem -- disse Percy, ainda zonzo de dor. -- Ele é um
amigo.
Ele se lembrou de quando conheceu Bob. O titã tinha curado uma
ferida feia no ombro de Percy só de tocá-la. Exatamente o que
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aconteceu agora: o zelador deu um tapinha no braço de Annabeth,
que cicatrizou na mesma hora.
Bob riu, feliz consigo mesmo, depois foi até Percy e curou o
pescoço e o braço que sangravam. As mãos do titã eram sur-
preendentemente quentes e delicadas.
-- Agora está tudo bem! -- declarou Bob, com os estranhos olhos
prateados brilhando de prazer. -- Eu sou Bob, amigo de Percy.
-- Ah... sim. -- Foi o que Percy conseguiu dizer. -- Obrigado pela
ajuda, Bob. É muito bom ver você de novo.
-- É mesmo -- concordou o zelador. -- Bob. Esse sou eu. Bob,
Bob, Bob. -- Ele não parava quieto, obviamente feliz com o
nome. -- Estou ajudando. Ouvi meu nome. Lá em cima no palácio de
Hades, ninguém chama Bob a não ser que haja uma sujeirada. Bob,
varra esses ossos. Bob, limpe essas almas torturadas. Bob, um zumbi
explodiu na sala de jantar.
Annabeth olhou intrigada para Percy, mas ele não tinha
explicação.
-- Então ouvi meu amigo chamar! -- disse orgulhoso o
titã. -- Percy disse: Bob!
Ele segurou o braço de Percy e o levantou.
-- Isso é incrível -- disse Percy. -- É sério. Mas como você...
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-- Ah, mais tarde teremos tempo para conversar. -- A expressão
de Bob ficou séria. -- Precisamos ir antes que encontrem vocês. Eles
estão a caminho. Estão, sim.
-- Eles? -- perguntou Annabeth.
Percy observou o horizonte. Não viu monstros se aproximando.
Não havia nada além da terra estéril cinzenta e desolada.
-- É -- confirmou Bob. -- Mas Bob conhece um caminho. Ven-
ham, amigos! Vamos nos divertir!
XVII




FRANK

FRANK ACORDOU COMO UMA PÍTON, o que o deixou confuso.
Não por estar em uma forma animal. Ele fazia isso o tempo todo.
Mas nunca se transformara durante o sono. Tinha certeza de que não
adormecera como cobra. Normalmente, dormia como cão.
Descobrira que dormia muito melhor na forma de um buldogue
encolhido em seu beliche. Por algum motivo, tinha menos pesadelos.
A constante gritaria em sua cabeça quase desaparecia.
Ele não fazia ideia de por que se transformara em uma píton re-
ticulada, mas isso explicava o sonho no qual engolia lentamente uma
vaca. Sua mandíbula ainda estava dolorida.
Preparou-se e voltou à forma humana. Imediatamente, a terrível
dor de cabeça retornou, junto com as vozes.
Lute contra eles!, gritou Marte. Tome o navio! Defenda Roma!
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A voz de Ares gritou em resposta: Mate os romanos! Sangue e
morte! Armas gigantescas!
As personalidades romana e grega de seu pai gritavam em sua
mente com a habitual trilha sonora de ruídos de batalha: explosões,
rifles de assalto, turbinas rugindo -- tudo pulsando como se houvesse
um amplificador de som no cérebro de Frank.
Ele se sentou no beliche, zonzo de tanta dor. Como fazia todas as
manhãs, inspirou profundamente e olhou para o lampião sobre a es-
crivaninha -- uma pequena chama que queimava noite e dia, ali-
mentada pelo azeite de oliva mágico da despensa.
Fogo... o maior medo de Frank. Manter uma chama acesa em seu
quarto o aterrorizava, mas também o ajudava a se concentrar. O
barulho em sua cabeça tornava-se apenas um ruído de fundo, e assim
ele conseguia pensar.
Ele melhorara, mas durante dias fora quase um inútil. Assim que
a luta irrompera no Acampamento Júpiter, as duas vozes do deus da
guerra haviam começado a berrar sem parar. Desde então, Frank an-
dava por aí confuso, quase incapaz de agir. Vinha se comportando
como um idiota, e tinha certeza de que seus amigos achavam que ele
tinha perdido o juízo.
Frank não podia lhes dizer o que havia de errado. Eles não po-
diam fazer nada, e, ouvindo as suas conversas, Frank confirmou que
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não estavam com o mesmo problema de ter seus divinos pais grit-
ando em seus ouvidos.
Típico de Frank, mas ele tinha de se recompor. Seus amigos pre-
cisavam dele, especialmente agora, com a ausência de Annabeth.
Annabeth fora gentil com Frank. Mesmo quando ele estava per-
turbado e fazendo várias trapalhadas, ela fora paciente e prestativa.
Enquanto Ares gritava que os filhos de Atena não eram confiáveis, e
Marte ordenava aos berros que ele matasse todos os gregos, Frank
passara a respeitar Annabeth.
Agora que estavam sem ela, Frank era a melhor opção do grupo
em termos de estrategista militar. Precisariam dele na jornada que
tinham pela frente.
Ele se levantou e se vestiu. Felizmente, conseguira comprar
roupas novas em Siena dois dias antes, substituindo a roupa suja que
Leo usara como isca na mesa Buford. (Longa história). Ele pegou um
jeans, uma camiseta verde do exército e separou seu pulôver favorito,
mas lembrou que não precisava daquilo. Fazia muito calor. Mais im-
portante: não precisava mais de bolsos para proteger o pedaço de
madeira mágica que controlava o seu tempo de vida. Hazel o
mantinha em segurança para ele.
Talvez isso devesse deixá-lo nervoso. Se o graveto queimasse,
Frank morreria: fim da história. Mas confiava em Hazel mais do que
em si mesmo. Saber que ela protegia a sua maior fraqueza o fazia se
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sentir melhor, como se tivesse colocado o cinto de segurança antes de
uma perseguição em alta velocidade.
Ele pendurou no ombro o arco e a aljava, que imediatamente se
transformaram em uma mochila comum. Frank adorava aquilo. Ja-
mais teria descoberto a camuflagem de sua aljava sem Leo.
Leo!, rugiu Marte. Ele deve morrer!
Estrangule-o!, gritou Ares. Estrangule todo mundo! Espere, de
quem estamos falando mesmo?
Os dois começaram a gritar um com o outro de novo, por cima do
som das bombas que explodiam dentro da cabeça de Frank.
Ele se apoiou na parede. Durante dias, Frank ouvira aquelas vozes
exigirem a morte de Leo Valdez.
Afinal, fora Leo quem começara a guerra com o Acampamento
Júpiter ao disparar uma balista contra o Fórum. Claro, ele estava
possuído naquele momento, mas Marte exigia vingança mesmo as-
sim. E Leo piorava as coisas ao debochar sempre de Frank, e Ares
exigia que Frank retaliasse cada insulto.
Frank mantinha as vozes sob controle, mas não era fácil.
Em sua viagem pelo Atlântico, Leo dissera algo que não lhe saía
da cabeça. Quando descobriram que Gaia, a malvada deusa da terra,
pusera todos eles a prêmio, Leo desejou saber o valor.
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Quer dizer, posso entender por que não sou tão caro quanto
Percy ou Jason, talvez..., dissera, mas valho, tipo, dois ou três
Franks.
Era apenas mais uma das piadas idiotas de Leo, mas ele havia
colocado o dedo na ferida. No Argo II, Frank definitivamente se sen-
tia como o JMV, ou Jogador Menos Valioso. Claro, ele podia se trans-
formar em animais. Mas e daí? Sua maior utilidade até agora fora
virar uma doninha para escapar de uma oficina subterrânea, e até
mesmo isso fora ideia de Leo. Frank era mais conhecido pelo Fiasco
do Peixe Dourado Gigante, em Atlanta, e também por ontem, após
ter se transformado em um gorila de duzentos quilos apenas para ser
derrubado por uma granada de som e luz.
Leo ainda não fizera nenhuma piada sobre gorilas às suas custas,
mas era apenas uma questão de tempo.
Mate-o!
Torture-o! Depois mate!
Os dois lados do deus da guerra pareciam estar brigando dentro
da cabeça de Frank, usando seus seios da face como ringue.
Sangue! Armas!
Roma! Guerra!
Fiquem quietos, ordenou Frank.
Surpreendentemente, as vozes obedeceram.
Muito bem, pensou Frank.
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Talvez pudesse finalmente controlar aqueles irritantes min-
ideuses. Talvez hoje fosse um bom dia.
Mas a esperança foi destruída assim que subiu ao convés
superior.

***

-- O que são esses bichos? -- perguntou Hazel.
O Argo II estava atracado a um cais muito movimentado. De um
lado estendia-se um canal de navegação com cerca de meio quilô-
metro de largura. Do outro, a cidade de Veneza: telhados vermelhos,
cúpulas metálicas nas igrejas, torres com campanários e edifícios
banhados pelo sol, pintados em todas as cores daqueles doces em
forma de coração típicos do Dia dos Namorados: vermelho, branco,
ocre, rosa e laranja.
Por toda parte havia estátuas de leões: sobre pedestais, em cima
das portas de entrada, nos pórticos dos edifícios maiores. Havia tan-
tos que Frank concluiu que o leão devia ser o mascote da cidade.
Em lugar de ruas, canais verdes tomados por lanchas cortavam os
bairros. Ao longo das docas, as calçadas estavam abarrotadas de
turistas fazendo compras nos quiosques de camisetas, lotando as lo-
jas e relaxando ao longo dos quilômetros de mesas de cafés ao ar
livre, como um bando de leões-marinhos. E Frank tinha achado que
Roma era cheia de turistas... Veneza era uma loucura.
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Mas Hazel e o restante de seus amigos não estavam prestando
atenção em nada disso. Reuniam-se à amurada a boreste olhando
para dezenas de estranhos monstros peludos misturados à multidão.
Cada monstro era mais ou menos do tamanho de uma vaca, com
as costas curvadas como as de um cavalo exaurido, pelo cinzento
emaranhado, patas finas e cascos negros fendidos. A cabeça das cri-
aturas parecia pesada demais para o pescoço. Os longos focinhos de
tamanduá chegavam quase até o chão. As longas jubas acinzentadas
cobriam completamente seus olhos.
Frank observou uma das criaturas vagar pesadamente pelo pas-
seio, farejando e lambendo o chão com a língua comprida. Os turistas
passavam ao seu lado sem esboçarem surpresa. Alguns chegavam até
mesmo a acariciá-lo. Frank se perguntou como aqueles mortais po-
diam estar tão calmos. Então, a figura do monstro tremeluziu. Por
um instante, sua aparência era a de um velho e gordo beagle.
-- Os mortais pensam que são cães de rua -- resmungou Jason.
-- Ou animais de estimação perambulando por aí -- disse
Piper. -- Meu pai fez um filme em Veneza certa vez. Eu me lembro de
ele ter dito que havia cachorros em todo lugar. Os venezianos adoram
cães.
Frank franziu a testa. Sempre se esquecia de que o pai de Piper
era Tristan McLean, um grande astro do cinema. Ela não falava
muito sobre ele. Piper era uma garota muito equilibrada para alguém
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que havia crescido em Hollywood. Frank achava isso ótimo. A última
coisa de que precisavam naquela missão era de paparazzi tirando fo-
tos de todos os seus fracassos épicos.
-- Mas o que são esses bichos? -- Ele repetiu a pergunta de
Hazel. -- Parecem... vacas desnutridas com pelo de pastor inglês.
Esperou que alguém lhe desse alguma explicação. Ninguém disse
nada.
-- Talvez sejam inofensivos -- sugeriu Leo. -- Estão ignorando os
mortais.
-- Inofensivos -- debochou Gleeson Hedge.
O sátiro trajava seu short de ginástica de sempre, camiseta es-
porte e apito de treinador. Parecia mal-humorado, como de costume,
mas ainda tinha um elástico cor-de-rosa no cabelo, preso pelos anões
ardilosos em Bolonha. Frank estava com medo de avisá-lo.
-- Valdez, quantos monstros inofensivos já encontramos? A gente
devia apontar essas balistas e botar para quebrar!
-- Hã, não -- disse Leo.
Pela primeira vez, Frank concordou com Leo. Havia muitos mon-
stros. Seria impossível atingir um sem acertar também a multidão de
turistas. Além disso, se aquelas criaturas entrassem em pânico e de-
satassem a correr...
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-- Teremos de passar por eles e torcer para que sejam pacífi-
cos -- disse Frank, já odiando a ideia. -- É a única maneira de encon-
trarmos o dono do livro.
Leo tirou o manual encadernado em couro de debaixo do braço.
Ele colara uma nota adesiva na capa com o endereço que os anões lhe
deram em Bolonha.
-- La Casa Nera -- leu. -- Calle Frezzeria.
-- A Casa Negra -- traduziu Nico di Angelo. -- Calle Frezzeria é a
rua.
Frank tentou não recuar ao perceber que Nico estava ao seu lado.
O sujeito era tão quieto e sombrio que parecia desaparecer quando
não estava falando. Hazel podia ter voltado dos mortos, mas Nico era
muito mais fantasmagórico.
-- Você fala italiano? -- perguntou Frank.
Nico lançou-lhe um olhar de advertência, tipo: Cuidado com o
que pergunta. Mas respondeu calmamente:
-- Frank está certo. Precisamos encontrar esse endereço. E a ún-
ica maneira de fazer isso é andando pela cidade. Veneza é um
labirinto. Teremos que enfrentar as multidões e esses... seja lá o que
forem.
Um trovão retumbou no céu claro de verão. Eles tinham en-
frentado tempestades na noite anterior. Frank achara que haviam
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terminado, mas agora não tinha certeza. O ar estava tão quente e
abafado quanto o de uma sauna a vapor.
Jason franziu a testa ao fitar o horizonte.
-- Talvez eu devesse ficar a bordo. Tinha muitos venti na tempest-
ade de ontem à noite. Se decidirem atacar o navio outra vez...
Não precisou terminar. Todos haviam sentido a fúria dos espíritos
do vento. Jason fora o único que tivera alguma chance de combatê-
los.
O treinador Hedge resmungou:
-- Bem, estou fora também. Se vocês, bebezinhos de coração
mole, vão passear por Veneza sem nem mesmo dar uns tabefes na
cabeça desses animais peludos, não quero nem saber. Não gosto de
expedições tediosas.
-- Tudo bem, treinador -- disse Leo, sorrindo. -- Ainda temos que
consertar o mastro de proa. Então, precisarei de sua ajuda na sala de
máquinas. Tenho uma ideia para uma nova instalação.
Frank não gostou do brilho nos olhos de Leo. Desde que o filho de
Hefesto encontrara a esfera de Arquimedes, vinha planejando um
monte de "novas instalações". Normalmente elas explodiam ou
produziam fumaça, que subia até a cabine de Frank.
-- Bem -- Piper mudou o peso do corpo de um pé para o
outro. -- Quem quer que vá deve saber lidar com animais. Eu, bem...
admito não ser muito boa com vacas.
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Frank percebeu que havia uma história por trás daquele
comentário, mas resolveu não perguntar.
-- Eu vou -- disse ele.
Não sabia dizer por que se oferecera, talvez por estar ansioso para
ser útil para variar. Ou talvez por não querer que se adiantassem
dizendo: Animais? Frank pode se transformar em animais! Ele é
que deve ir!
Leo deu um tapinha no ombro dele e entregou-lhe o livro com
capa de couro.
-- Ótimo. Se você passar por alguma loja de ferragens, pode me
trazer algumas tábuas 2x4 e um galão de alcatrão?
-- Leo -- censurou Hazel. -- Ele não está indo fazer compras.
-- Eu vou com Frank -- ofereceu-se Nico.
Os olhos de Frank começaram a tremer. As vozes dos deuses da
guerra ficaram mais altas dentro de sua cabeça: Mate-o! Escória
grega!
Não! Eu amo a escória grega!
-- Hã... você é bom com animais? -- perguntou.
Nico forçou um sorriso.
-- Na verdade, a maioria dos animais me odeia. Eles podem sentir
a morte. Mas há algo nesta cidade... -- Sua expressão se tornou som-
bria. -- Muitas mortes. Espíritos inquietos. Se eu for, talvez consiga
mantê-los afastados. Além disso, como você notou, eu falo italiano.
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Leo coçou a cabeça.
-- Muitas mortes, hein? Pessoalmente, estou tentando evitar
muitas mortes. Mas divirtam-se!
Frank não sabia o que o assustava mais: as monstruosas vacas pe-
ludas, as hordas de fantasmas inquietos ou ir a algum lugar sozinho
com Nico di Angelo.
-- Também vou. -- Hazel tomou o braço de Frank. -- Três é o
melhor número para uma missão de semideuses, certo?
Frank tentou não parecer muito aliviado. Ele não queria ofender
Nico. Mas se voltou para Hazel e agradeceu com os olhos: Obrigado,
obrigado, obrigado.
Nico fitou os canais, como se estivesse se perguntando quais nov-
os e interessantes tipos de maus espíritos poderiam estar espreitando
por lá.
-- Tudo bem, então. Vamos encontrar o dono deste livro.
XVIII




FRANK

FRANK TERIA GOSTADO DE VENEZA se não fosse verão, no meio da
alta temporada, e se a cidade não estivesse tomada por enormes cri-
aturas peludas. Espremidas entre as fileiras de casas antigas e os
canais, as calçadas já eram estreitas demais para a multidão que se
acotovelava e parava para tirar fotos. Os monstros deixavam tudo
ainda pior. Vagavam de cabeça baixa, esbarrando nos mortais e fare-
jando o chão.
Um pareceu ter encontrado algo de seu agrado à margem de um
canal. Mordiscou e lambeu uma rachadura entre as pedras até con-
seguir remover uma espécie de raiz esverdeada. O monstro a consu-
miu alegremente e se afastou.
-- Bem, eles são vegetarianos -- disse Frank. -- Essa é uma boa
notícia.
Hazel segurou sua mão.
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-- A menos que complementem a sua dieta com semideuses. To-
mara que não.
Frank ficou tão feliz por estar de mãos dadas com Hazel que as
multidões, o calor e os monstros subitamente não lhe pareceram as-
sim tão ruins. Sentia-se necessário. Útil.
Não que Hazel precisasse de sua proteção. Qualquer um que a
tivesse visto montada em Arion, cavalgando em direção a um inimigo
e brandindo a espada, saberia que ela podia cuidar de si mesma.
Ainda assim, Frank gostava de estar ao seu lado, imaginando ser o
seu guarda-costas. Se qualquer um daqueles monstros tentasse feri-
la, ele se transformaria em um rinoceronte com todo o prazer e o em-
purraria para dentro do canal.
Será que conseguiria se transformar em um rinoceronte? Frank
nunca tentara.
Nico parou.
-- Ali.
Entraram em uma rua menor, deixando o canal para trás. À
frente deles havia uma pequena praça cercada por prédios de cinco
andares. O lugar estava estranhamente deserto, como se os mortais
sentissem que ali não era seguro. No meio do pátio com calçamento
de seixos, umas doze vacas peludas farejavam um antigo poço de
pedras cobertas de musgo.
-- Um monte de vacas em um mesmo lugar -- observou Frank.
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-- É, mas veja -- disse Nico. -- Atrás daquele arco.
Os olhos de Nico deviam ser melhores do que os dele. Frank
forçou a vista. Na outra extremidade da praça, um arco de pedra en-
talhado com leões levava a uma rua estreita. Logo após o arco, uma
das casas era preta; o único edifício dessa cor que Frank vira até en-
tão em Veneza.
-- La Casa Nera? -- arriscou ele.
Hazel segurou a mão de Frank com mais força.
-- Eu não gosto desta praça. Está... fria.
Frank não tinha certeza do que Hazel queria dizer, já que ainda
estava suando como um porco.
Mas Nico assentiu. Ele estudou as janelas da casa, a maioria
fechada com venezianas de madeira.
-- Tem razão, Hazel. Este lugar está cheio de lemures.
-- Lêmures? -- perguntou Frank, nervoso. -- Suponho que você
não esteja se referindo aos pequenos animais peludos de
Madagascar.
-- São fantasmas furiosos -- esclareceu Nico. -- Os lemures re-
montam ao tempo dos romanos. Eles perambulam por muitas das
cidades italianas, mas nunca senti tantos em um mesmo lugar.
Minha mãe dizia que... -- Ele hesitou. -- Ela me contava histórias
sobre os fantasmas de Veneza.
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Novamente, Frank ficou curioso sobre o passado de Nico, mas
tinha medo de perguntar. Ele olhou para Hazel.
Ela parecia estar dizendo: Vá em frente. Nico precisa de mais
prática em conversar com pessoas.
Os sons de rifles de assalto e bombas atômicas ficaram mais altos
dentro da cabeça de Frank. Marte e Ares estavam tentando superar
um ao outro com Dixie e O Hino de Batalha da República. Frank fez
o possível para ignorá-los.
-- Nico, sua mãe era italiana? -- perguntou. -- Era de Veneza?
Nico assentiu, relutante.
-- Ela conheceu Hades aqui, na década de 1930. Com a Segunda
Guerra Mundial prestes a estourar, fugiu para os EUA comigo e com
minha irmã. Quer dizer... Bianca, minha outra irmã. Não me lembro
muito da Itália, mas ainda sei falar o idioma.
Frank tentou pensar em uma resposta. Puxa, que legal não pare-
cia apropriado.
Ele estava perto não de um, mas de dois semideuses tirados de
seu tempo. Tecnicamente, ambos eram uns setenta anos mais velhos
do que ele.
-- Deve ter sido difícil para a sua mãe -- disse Frank. -- Acho que
fazemos qualquer coisa pelas pessoas que amamos.
Hazel apertou sua mão de modo aprovador. Nico olhou para os
seixos do calçamento.
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-- É -- disse com amargura. -- Acho que fazemos.
Frank não sabia o que Nico estava pensando. Tinha dificuldade
em imaginar Nico di Angelo fazendo algo por amor, exceto, talvez,
por Hazel. Mas decidiu que já fizera muitas perguntas pessoais.
-- Então, os lemures... -- Ele engoliu em seco. -- Como podemos
evitá-los?
-- Já estou cuidando disso -- respondeu Nico. -- Enviei uma
mensagem dizendo que devem ficar longe e nos ignorar. Esperemos
que seja o bastante. Caso contrário... as coisas podem ficar
complicadas.
Hazel não parecia convencida.
-- Vamos em frente -- sugeriu ela.
Quando estavam no meio da praça, tudo deu errado. Mas não foi
por causa dos fantasmas.
Eles contornavam o poço no centro da praça, tentando manter
certa distância dos monstros bovinos, quando Hazel tropeçou em um
pedaço solto de calçamento. Frank a segurou. Seis ou sete daquelas
enormes criaturas cinzentas voltaram-se para eles. Frank vislumbrou
um olho verde brilhante sob uma juba e imediatamente foi tomado
por uma onda de náusea, como a que sentia quando comia muito
queijo ou sorvete.
As criaturas emitiram profundos sons guturais, como sirenes
furiosas.
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-- Vacas boazinhas -- murmurou Frank, tranquilizador. Ele se
colocou entre seus amigos e os monstros. -- Pessoal, acho que deve-
mos sair daqui bem devagar.
-- Eu sou uma estabanada -- murmurou Hazel. -- Me desculpem.
-- Não é culpa sua -- disse Nico. -- Olhe para os seus pés.
Frank olhou para baixo e ofegou, surpreso.
Sob seus pés, as pedras do calçamento se moviam: gavinhas pon-
tiagudas surgiam das rachaduras.
Nico recuou um passo. As raízes serpentearam em sua direção,
tentando segui-lo. As gavinhas ficaram mais grossas, exalando um
vapor verde que cheirava a repolho cozido.
-- Essas raízes parecem gostar de semideuses -- observou Frank.
A mão de Hazel segurou o punho da espada.
-- E as vacas gostam das raízes.
Todo o rebanho olhava agora em sua direção, emitindo rosnados
repetidos que lembravam sirenes e batendo os cascos no chão. Frank
sabia o suficiente sobre comportamento animal para entender a
mensagem: Vocês estão pisando em nossa comida. Isso os torna
nossos inimigos.
Frank tentou raciocinar. Havia monstros demais, não tinham
como enfrentá-los. E algo nos olhos das criaturas, escondidos sob as
jubas peludas... Frank ficara nauseado apenas com um olhar de rel-
ance. Tinha o mau pressentimento de que, caso aqueles monstros
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fizessem contato visual, pudessem deixá-lo muito mais do que
nauseado.
-- Não olhem para os olhos deles -- advertiu. -- Vou distraí-los.
Vocês dois recuem bem devagar em direção à casa negra.
As criaturas se prepararam para atacar.
-- Esqueçam o que eu disse -- disse Frank. -- Corram!

***

No fim das contas, Frank descobriu que não conseguia se transform-
ar em rinoceronte e perdeu um tempo precioso tentando.
Nico e Hazel correram para a rua lateral. Frank se posicionou na
frente dos monstros, na esperança de chamar a sua atenção. Ele ber-
rou o mais alto que pôde, imaginando a si mesmo como um temível
rinoceronte, mas com Ares e Marte gritando dentro de sua cabeça,
não conseguia se concentrar. Continuou o Frank de sempre.
Dois dos monstros bovinos se destacaram do rebanho para
perseguir Nico e Hazel.
-- Não! -- gritou Frank para as criaturas. -- Aqui! Eu sou um
rinoceronte!
O restante da manada o cercou. Os animais rosnavam, e um gás
verde-esmeralda saía de suas narinas. O semideus recuou um passo
para evitar o vapor, mas o fedor quase o fez desmaiar.
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Muito bem, nada de rinoceronte. Outra coisa. Frank sabia que
tinha apenas alguns segundos antes que os monstros o pisoteassem
ou o envenenassem, mas não conseguia raciocinar. Não conseguia se
concentrar na imagem de animal nenhum tempo o bastante para se
transformar.
Então, olhou para uma das varandas das casas e viu uma escul-
tura em pedra, o símbolo de Veneza.
No instante seguinte, Frank era um leão adulto. Soltou um rugido
desafiador, então pulou para longe dos monstros que o cercavam e
aterrissou a oito metros dali, em cima do antigo poço de pedra.
Os monstros rosnaram em resposta. Três deles fizeram sua in-
vestida ao mesmo tempo, mas Frank estava preparado. Seus reflexos
de leão eram feitos para o combate ágil.
Ele transformou os dois primeiros monstros em pó com suas gar-
ras, afundou as presas na garganta do terceiro e jogou-o para o lado.
Restavam sete, e mais os dois que perseguiam os seus amigos. As
chances não eram boas, mas Frank precisava manter o rebanho con-
centrado nele. Rugiu para os monstros, que se afastaram.
Sim, eles estavam em vantagem numérica. Mas Frank era um pre-
dador top de linha. Os monstros do rebanho sabiam disso. Tinham
acabado de assisti-lo mandar três de seus amigos para o Tártaro.
Ele se aproveitou da vantagem e saltou do poço, ainda mostrando
as presas. O rebanho recuou.
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Se pudesse simplesmente contornar o grupo correndo e ir atrás
de seus amigos...
Frank estava se saindo bem, até recuar um passo em direção ao
arco. Uma das vacas, a mais corajosa ou mais estúpida, interpretou
aquilo como um sinal de fraqueza. Ela avançou e soprou gás verde no
rosto de Frank.
Ele transformou o monstro em pó com suas garras, mas o estrago
já estava feito. Frank prendeu a respiração. Ainda assim, sentia os
pelos do focinho queimando. Seus olhos ardiam. Cambaleou para
trás, meio cego e tonto, vagamente consciente de Nico gritando o seu
nome.
-- Frank! Frank!
Ele tentou se concentrar. Estava de volta à forma humana, com
ânsia de vômito e cambaleante. A pele do rosto parecia estar descas-
cando. A nuvem de gás verde flutuava entre ele e o rebanho à sua
frente. Os monstros bovinos restantes olhavam-no desconfiados,
talvez se perguntando se Frank tinha algum outro truque na manga.
Ele olhou para trás. Sob o arco de pedra, Nico di Angelo empun-
hava a espada negra de ferro estígio, acenando para que Frank se
apressasse. Aos pés de Nico, duas poças escuras manchavam a
calçada -- sem dúvida restos dos monstros bovinos que os
perseguiram.
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E Hazel... estava encostada na parede atrás do irmão. Ela não se
movia.
Frank correu em sua direção, esquecendo-se do rebanho de mon-
stros. Passou correndo por Nico e agarrou os ombros da garota. A
cabeça de Hazel tombou na direção do peito.
-- Ela levou uma baforada de gás verde no rosto -- contou Nico,
arrasado. -- Eu... eu não fui rápido o bastante.
Frank não sabia dizer se ela estava respirando. Raiva e desespero
lutavam dentro dele. Sempre tivera medo de Nico. Agora, queria dar
uma voadora no filho de Hades e jogá-lo no canal mais próximo.
Talvez não fosse justo, mas Frank não se importava. Tampouco os
deuses da guerra que gritavam em sua cabeça.
-- Precisamos levá-la de volta para o navio -- disse Frank.
O rebanho de monstros bovinos rondava cautelosamente, um
pouco além do arco, lançando os seus berros de sirene. Nas ruas em
torno, outros monstros respondiam. Reforços. Logo os semideuses
estariam cercados.
-- Nunca conseguiremos voltar a pé -- disse Nico. -- Frank,
transforme-se em uma águia gigante. Não se preocupe comigo. Leve-
a de volta ao Argo II!
Com o rosto ardendo e as vozes gritando em sua mente, Frank
não sabia se conseguiria mudar de forma, mas estava prestes a tentar
quando uma voz atrás deles disse:
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-- Seus amigos não podem ajudá-los. Eles não conhecem a cura.
Frank se virou na direção da voz. À entrada da casa negra havia
um homem jovem vestindo calça e camisa jeans. Tinha cabelos pre-
tos encaracolados e um sorriso amigável, embora Frank duvidasse
que ele fosse um amigo. Provavelmente nem era humano.
Naquele momento, Frank não se importava nem um pouco.
-- Você pode curá-la?
-- É claro -- disse o homem. -- Mas é melhor entrarem logo. Acho
que vocês irritaram todos os catóblepas de Veneza.
XIX




FRANK

FOI POR POUCO QUE CONSEGUIRAM entrar.
Assim que o anfitrião trancou o ferrolho, os monstros bovinos ur-
raram e se atiraram contra a porta, fazendo-a estremecer em suas
dobradiças.
-- Ah, eles não podem entrar -- assegurou o sujeito de
jeans. -- Vocês estão seguros agora!
-- Seguros? -- exclamou Frank. -- Hazel está morrendo!
O estranho franziu a testa, como se não tivesse gostado de Frank
ter estragado o seu bom humor.
-- Sim, sim. Tragam-na por aqui.
Frank carregou Hazel seguindo o homem para o interior do pré-
dio. Nico se ofereceu para ajudar, mas não era preciso. Hazel não
pesava nada, e o corpo de Frank estava sob efeito da adrenalina. Ele
sentia os tremores de Hazel, o que significava que ao menos ela
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estava viva, mas sua pele estava fria. Os lábios assumiram um tom
esverdeado, ou seria apenas a visão embaçada de Frank?
Seus olhos ainda ardiam por causa do hálito do monstro. Seus
pulmões queimavam como se ele tivesse inalado um repolho em
chamas. Não sabia por que o gás o afetara menos do que a Hazel.
Talvez ela tivesse respirado mais gás. Frank teria dado qualquer coisa
para trocar de lugar com ela caso isso significasse salvar sua vida.
As vozes de Marte e Ares gritavam dentro de sua cabeça,
incitando-o a matar Nico, o homem de jeans e qualquer um que en-
contrasse, mas Frank controlou o barulho que faziam.
O primeiro cômodo da casa era uma espécie de estufa. Ao longo
das paredes havia mesas com bandejas de plantas sob lâmpadas
fluorescentes. O ar cheirava a fertilizante. Será que os venezianos
faziam seus jardins dentro de casa, já que estavam cercados de água
em vez de terra? Frank não tinha certeza, mas não perdeu muito
tempo pensando no assunto.
A sala dos fundos parecia uma mistura de garagem, dormitório de
faculdade e laboratório de informática. Junto à parede da esquerda
ficava uma bancada de servidores e laptops, com protetores de tela
que exibiam imagens de tratores e campos arados. Encostada na
parede da direita havia uma cama de solteiro, uma mesa bagunçada e
um guarda-roupa aberto repleto de mais jeans e uma pilha de instru-
mentos agrícolas, como forcados e ancinhos.
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A parede dos fundos era uma grande porta de garagem. Estacion-
ada ali perto via-se uma carruagem aberta vermelha e dourada com
um único eixo, como as carruagens em que Frank correra no Acam-
pamento Júpiter. Das laterais do compartimento do condutor brota-
vam asas com penas gigantescas. Enrolada ao aro da roda esquerda,
uma píton malhada roncava alto.
Frank não sabia que pítons roncavam. Esperava não tê-lo feito
quando assumira a forma de uma na noite anterior.
-- Deite a sua amiga aqui -- instruiu o homem de jeans.
Frank colocou Hazel cuidadosamente na cama. Ele pegou sua es-
pada e tentou deixá-la confortável, mas ela estava tão inerte quanto
um espantalho. Sua pele definitivamente assumia um tom
esverdeado.
-- O que eram aquelas coisas bovinas? -- perguntou Frank. -- O
que fizeram com ela?
-- São catóblepas -- disse o anfitrião. -- Significa que olham para
baixo. São chamados assim porque...
-- Estão sempre olhando para baixo. -- Nico deu um tapa na pró-
pria testa. -- Claro, eu me lembro de ter lido sobre eles.
Frank olhou feio para Nico.
-- Agora você lembra?
Nico encarou o chão, e sua cabeça ficou quase tão baixa quanto a
de um catóblepa.
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-- Eu, hã... costumava jogar aquele jogo de cartas idiota quando
era mais novo. Mitomagia. O catóblepa era uma das cartas de
monstro.
Frank piscou.
-- Já joguei Mitomagia. Nunca vi essa carta.
-- Ela vinha na expansão Africanus Extreme.
-- Ah.
O anfitrião pigarreou.
-- Vocês dois, hã, já saíram do surto de nerdice?
-- Certo, desculpe -- murmurou Nico. -- De qualquer modo, os
catóblepas têm hálito e olhar venenosos. Eu achava que só viviam na
África.
O homem de jeans deu de ombros.
-- É a terra natal deles. Foram acidentalmente trazidos para
Veneza há centenas de anos. Vocês já ouviram falar em São Marcos?
Frank queria berrar de frustração. Não via como aquilo podia ser
relevante, mas, se o seu anfitrião podia curar Hazel, decidiu que
talvez fosse melhor não aborrecê-lo.
-- Santos? Não fazem parte da mitologia grega.
O homem de jeans riu.
-- Não, mas São Marcos é o padroeiro desta cidade. Ele morreu
no Egito há muito tempo. Quando os venezianos se tornaram poder-
osos... bem, relíquias de santos eram uma grande atração turística na
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Idade Média. Os venezianos decidiram roubar os restos mortais de
São Marcos e trazê-los para a sua grande igreja de San Marco. Eles
contrabandearam o corpo em um barril de carne de porco em
conserva.
-- Isso é... nojento -- disse Frank.
-- Sim -- concordou o sujeito, com um sorriso. -- O problema é
que você não pode fazer algo assim sem sofrer as consequências. In-
voluntariamente, os venezianos contrabandearam algo mais para
fora do Egito: os catóblepas. Vieram a bordo do navio e têm procri-
ado como ratos desde então. Adoram as raízes mágicas venenosas
que crescem por aqui, plantas do pântano fedorentas que brotam dos
canais. Isso torna o hálito deles ainda mais venenoso! Os monstros
costumam ignorar os mortais, mas semideuses... ainda mais no cam-
inho deles...
-- Já entendi -- disse Frank rispidamente. -- Você pode curá-la?
O homem encolheu os ombros.
-- Talvez.
-- Talvez?
Frank precisou usar toda sua força de vontade para não estrangu-
lar o sujeito. Ele levou a mão às narinas de Hazel. Não podia sentir
sua respiração.
-- Nico, por favor, me diga que ela está fazendo aquele negócio de
transe de morte, como você fez na jarra de bronze.
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Nico fez uma careta.
-- Não sei se Hazel pode fazer isso. Tecnicamente, o pai dela é
Plutão, não Hades, então...
-- Hades! -- exclamou o anfitrião. Ele se afastou, olhando para
Nico com desagrado. -- Então é esse o cheiro que estou sentindo. Fil-
hos do Mundo Inferior? Se eu soubesse disso, jamais os teria deixado
entrar!
Frank se levantou.
-- Hazel é uma boa pessoa. Você prometeu que a ajudaria!
-- Eu não prometi.
Nico sacou a espada e rosnou:
-- Ela é minha irmã. Eu não sei quem você é, mas se pode curá-la,
então precisa ajudar, ou eu juro pelo Rio Estige...
-- Ah, blá-blá-blá!
O homem fez um gesto de desprezo com a mão. De repente, no
lugar de Nico di Angelo surgiu um vaso de planta com um metro e
meio de altura, folhas verdes pendentes, tufos de palha e meia dúzia
de espigas maduras de milho amarelo.
-- Pronto -- disse o homem, apontando para o pé de
milho. -- Não recebo ordens dos filhos de Hades! Vocês deviam falar
menos e ouvir mais. Pelo menos agora você não tem mais boca.
Frank tropeçou na cama.
-- O que você fez... por que...?
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O homem ergueu uma sobrancelha. Frank soltou um gritinho que
não soou muito corajoso. Estivera tão preocupado com Hazel que
havia esquecido o que Leo dissera sobre o sujeito que estavam
procurando.
-- Você é um deus -- lembrou-se Frank.
-- Triptólemo -- confirmou o homem com uma reverên-
cia. -- Meus amigos me chamam de Trip, então não me chame assim.
E se você for outro filho de Hades...
-- Marte! -- disse Frank rapidamente. -- Filho de Marte!
Triptólemo fungou.
-- Bem... não é muito melhor. Mas talvez você mereça algo mais
do que um pé de milho. Que tal um sorgo? Sorgos são muito bonitos.
-- Espere! -- implorou Frank. -- Nós viemos em paz. Trouxemos
um presente. -- Bem devagar, ele enfiou a mão na mochila e pegou o
livro com capa de couro. -- Isso é seu?
-- Meu almanaque! -- Triptólemo sorriu e aceitou o livro. Ele fol-
heou as páginas e começou a dar pulinhos. -- Ah, mas isso é
fabuloso! Onde o encontraram?
-- Hum, Bolonha. Foram aqueles... -- Frank se lembrou de que
não deveria mencionar os anões -- ... monstros terríveis. Arriscamos
as nossas vidas, mas sabíamos que era importante para você. Então,
talvez pudesse, quem sabe, trazer Nico de volta ao normal e curar
Hazel.
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-- Hein?
Trip ergueu os olhos do livro. Estivera alegremente recitando
trechos para si mesmo, algo sobre a época de plantio de nabos. Frank
desejou que Ella, a harpia, estivesse ali. Ela se daria muito bem com
aquele cara.
-- Ah, curá-los? -- exclamou Triptólemo de modo desap-
rovador. -- Estou grato pelo livro, é claro. E definitivamente posso
deixar que você vá embora, filho de Marte. Mas tenho um problema
de longa data com Hades. Afinal, devo meus poderes divinos a
Deméter!
Frank vasculhou a memória, mas era uma tarefa difícil com as
vozes gritando em sua cabeça e o veneno do catóblepa deixando-o
tonto.
-- Ah, Deméter -- disse ele --, a deusa das plantas. Ela... ela não
gosta de Hades, porque... -- Subitamente ele se lembrou de uma
velha história que ouvira no Acampamento Júpiter. -- Sua filha,
Prosérpina...
-- Perséfone -- corrigiu Trip. -- Prefiro a forma grega, se não se
importa.
Mate-o!, gritou Marte.
Adoro esse cara!, retrucou Ares. Mas mate-o assim mesmo!
Frank decidiu não se ofender. Não queria ser transformado em
um pé de sorgo.
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-- Tudo bem. Hades raptou Perséfone.
-- Exatamente! -- disse Trip.
-- Então... Perséfone era sua amiga?
-- Na época eu era apenas um príncipe mortal -- desdenhou
Trip. -- Perséfone não teria me notado. Mas sua quando mãe,
Deméter, foi atrás dela, procurando por toda a Terra, muitas pessoas
se recusaram a ajudar. Hécate iluminou seu caminho à noite com
tochas. E eu... bem, quando Deméter veio à minha propriedade na
Grécia, dei a ela um lugar para ficar. Eu a consolei, alimentei e
ofereci a minha ajuda. Na ocasião, não sabia que era uma deusa, mas
minha boa ação valeu a pena. Mais tarde, Deméter me recompensou
tornando-me deus da agricultura!
-- Uau -- exclamou Frank. -- Agricultura. Parabéns.
-- Eu sei! Muito legal, não é? De qualquer modo, Deméter nunca
se deu bem com Hades. Então, naturalmente, você sabe, tenho que
tomar o partido de minha deusa padroeira. Filhos de Hades, nem
pensar! Na verdade, um deles... Sabe aquele rei cita chamado
Linceu? Então, quando eu tentei ensinar agricultura para seus
conterrâneos, ele matou a minha píton da direita!
-- Sua... píton da direita?
Trip foi até a carruagem alada e pulou nela. Então, puxou uma
alavanca, e as asas começaram a bater. A píton malhada na roda es-
querda abriu os olhos e começou a se mexer, enrolando-se em volta
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do eixo como uma mola. A carruagem entrou em movimento, mas a
roda direita ficou parada, o que fez com que Triptólemo girasse em
círculos; a carruagem batia as asas e subia e descia como um carros-
sel defeituoso.
-- Viu? -- perguntou ele, ainda girando. -- Não funciona! Desde
que perdi minha píton da direita, não pude mais disseminar a agri-
cultura, pelo menos não pessoalmente. Agora, preciso recorrer a
cursos on-line.
-- O quê?
Assim que perguntou, Frank se arrependeu.
Trip pulou da carruagem enquanto esta ainda girava. A píton de-
sacelerou até parar e voltou a roncar. Trip correu até a bancada de
computadores. Tocou nos teclados e as máquinas despertaram. Os
monitores exibiram um site em marrom e dourado com a imagem de
um fazendeiro feliz vestindo uma toga e um boné John Deere e em-
punhando uma foice de bronze em um campo de trigo.
-- Universidade de Agricultura Triptólemo -- anunciou com or-
gulho. -- Em apenas seis semanas, você pode obter o seu bacharelado
na emocionante e vibrante carreira do futuro: a agricultura!
Frank sentiu uma gota de suor escorrer pelo seu rosto. Não se im-
portava com aquele deus maluco, sua carruagem movida a cobras ou
seu curso universitário on-line. Mas Hazel estava ficando cada vez
mais verde. Nico tinha virado um pé de milho, e ele estava sozinho.
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-- Veja. Nós recuperamos o seu almanaque. E meus amigos são
muito legais. Não são como os outros filhos de Hades que você con-
heceu. Então, se houver alguma maneira de...
-- Ah! -- Trip estalou os dedos. -- Entendi aonde você quer
chegar!
-- Hã... entendeu?
-- Claro! Se eu curar a sua amiga Hazel e fizer o outro, Nicholas...
-- Nico.
-- ... voltar ao normal...
Frank hesitou.
-- Sim?
-- Então, em troca, você ficará comigo e abraçará a agricultura!
Um filho de Marte como meu aprendiz? É perfeito! Que grande
porta-voz você será. Podemos transformar espadas em arados e nos
divertir muito!
-- Na verdade...
Frank tentava desesperadamente bolar um plano. Ares e Marte
gritaram em sua cabeça: Espadas! Armas de fogo! Grandes
explosões!
Se recusasse a oferta de Trip, o sujeito provavelmente se ofender-
ia e ele acabaria como um pé de sorgo, trigo ou alguma outra cultura
rentável.
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Se fosse a única maneira de salvar Hazel, então tudo bem, aceitar-
ia as exigências de Trip e se tornaria um agricultor. Mas essa não po-
dia ser a única maneira. Frank se recusava a acreditar que tinha sido
escolhido pelas Parcas para integrar aquela missão apenas para
acabar estudando o cultivo de nabo em um curso on-line.
Seus olhos se voltaram para a carruagem quebrada.
-- Tenho uma proposta melhor. Eu posso consertar isso.
O sorriso de Trip desapareceu.
-- Consertar... a minha carruagem?
Frank teve vontade de se matar. Que ideia era aquela? Ele não era
Leo. Ele nem mesmo conseguira desvendar aquele par de algemas
chinesas estúpidas. Mal conseguia trocar as pilhas de um controle re-
moto de tevê. Não poderia consertar uma carruagem mágica!
Mas algo lhe dizia que era a sua única chance. Aquela carruagem
era a única coisa que Triptólemo realmente desejava.
-- Descobrirei uma forma de consertar a carru-
agem -- ofereceu. -- Em troca, você cura Nico e Hazel e nos deixa ir
embora. E... e nos dá qualquer ajuda que puder para derrotarmos as
forças de Gaia.
Triptólemo riu.
-- O que o faz pensar que posso ajudá-lo com isso?
-- Hécate nos disse que podia -- afirmou Frank. -- Ela nos
mandou para cá. Ela... ela decidiu que Hazel é uma de suas favoritas.
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O rosto de Trip empalideceu.
-- Hécate?
Frank esperava não estar exagerando. Não precisava que Hécate
também ficasse brava com ele. Mas se Triptólemo e Hécate eram
amigos de Deméter, talvez isso convencesse Trip a ajudar.
-- A deusa nos guiou até o seu almanaque em Bolonha -- contou
Frank. -- Ela queria que nós o devolvêssemos a você porque... bem,
ela deve saber que você tem algum conhecimento que pode nos
ajudar a atravessar a Casa de Hades em Épiro.
Trip assentiu com a cabeça bem devagar.
-- Sim. Entendi. Sei por que Hécate o enviou para mim. Muito
bem, filho de Marte. Encontre uma maneira de consertar a minha
carruagem. Se conseguir, farei tudo o que me pedir. Caso contrário...
-- Já sei -- resmungou Frank. -- Meus amigos morrem.
-- Isso mesmo -- disse Trip alegremente. -- E você dará um belo
pé de sorgo!
XX




FRANK

FRANK SAIU TROPEÇANDO DA CASA NEGRA. A porta se fechou atrás
dele, e o semideus se encostou na parede, cheio de culpa. Por sorte os
catóblepas tinham ido embora, senão havia grandes chances de que
Frank ficasse ali sentado e deixasse que o pisoteassem. Ele merecia.
Havia abandonado Hazel lá dentro, agonizando indefesa, à mercê de
um deus agricultor louco.
Mate os agricultores!, gritou Ares em sua cabeça.
Volte para a legião e lute contra os gregos!, exclamou Marte. O
que estamos fazendo aqui?
Matando agricultores!, gritou Ares em resposta.
-- Calem a boca! -- gritou Frank. -- Os dois!
Duas velhas senhoras com sacolas de compras passando ali perto
olharam estranho para Frank, murmuraram algo em italiano e con-
tinuaram a andar.
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Arrasado, Frank olhava para a espada de cavalaria de Hazel caída
aos seus pés, ao lado de sua mochila. Ele poderia voltar correndo
para o Argo II e chamar Leo. Talvez o filho de Hefesto pudesse con-
sertar a carruagem.
Mas, por algum motivo, Frank sabia que aquele não era um prob-
lema para Leo resolver. Era tarefa de Frank. Ele tinha de provar o seu
valor. Além do mais, a carruagem não estava exatamente quebrada.
Não havia nenhum problema mecânico. Apenas faltava uma
serpente.
Frank poderia se transformar em uma píton. Talvez o fato de ele
ter despertado naquela manhã como uma serpente gigante tivesse
sido um sinal dos deuses. Não queria passar o resto da vida girando a
roda da carruagem de um agricultor, mas se isso significasse salvar a
vida de Hazel...
Não. Tinha que haver outra maneira.
Serpentes, pensou Frank. Marte.
Será que seu pai tinha alguma ligação com serpentes? O animal
sagrado de Marte era o javali, não a serpente. Ainda assim, Frank
tinha certeza de ter ouvido algo certa vez...
Só conseguia pensar em uma pessoa a quem perguntar e, relut-
ante, abriu a mente para as vozes do deus da guerra.
Preciso de uma serpente, disse. Como?
Ha, ha!, gritou Ares. Sim, a serpente!
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Como aquele Cadmo desprezível, disse Marte. Nós o castigamos
por ter matado o nosso dragão!
Os dois começaram a gritar tanto que Frank pensou que sua
cabeça fosse explodir.
-- Tudo bem! Parem!
As vozes se aquietaram.
-- Cadmo -- murmurou Frank. -- Cadmo...
Ele se lembrou da história. O semideus Cadmo matara um dragão
que por acaso era filho de Ares. Frank não queria nem saber como o
deus da guerra acabara tendo um filho dragão, mas o fato é que,
como punição, Ares transformou Cadmo em uma serpente.
-- Então você pode transformar os seus inimigos em ser-
pentes -- disse Frank. -- É disso que preciso. Agora tenho que encon-
trar um inimigo. Então, vou precisar que você o transforme em uma
serpente.
Pensa que eu faria isso por você?, rugiu Ares. Você não provou o
seu valor!
Apenas um grande herói poderia pedir tal graça, disse Marte.
Um herói como Rômulo!
Romano demais!, gritou Ares. Diomedes!
Nunca!, retrucou Marte. Aquele covarde foi derrotado por
Hércules!
Horácio, então, sugeriu Marte.
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Ares ficou em silêncio. Frank sentiu-o concordar, de má-vontade.
-- Horácio -- disse Frank. -- Tudo bem. Se é isso que você quer,
provarei que sou tão bom quanto Horácio. Hã... o que ele fez?
Imagens inundaram a mente de Frank. Ele viu um guerreiro
solitário em uma ponte de pedra, enfrentando todo um exército que
se reunia do outro lado do Rio Tibre.
Frank se lembrou da lenda. Horácio, o general romano que soz-
inho detivera uma horda de invasores, sacrificando-se naquela ponte
para impedir que os bárbaros atravessassem o Tibre. Ao dar tempo
para que seus companheiros romanos concluíssem as suas defesas,
ele salvou a República.
Veneza foi invadida, disse Marte, como Roma está prestes a ser.
Purifique-a!
Destrua a todos! disse Ares. Crave sua espada no coração de
cada um deles!
Frank voltou a ignorar as vozes. Ele olhou suas mãos e ficou sur-
preso por não estarem tremendo.
Pela primeira vez em muitos dias, seus pensamentos clarearam.
Ele sabia exatamente o que precisava fazer. Ainda não sabia como
faria aquilo. Tinha grandes chances de morrer, mas precisava tentar.
A vida de Hazel dependia disso.
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Ele guardou a espada de Hazel no cinto, transformou a sua
mochila em uma aljava e arco, e correu em direção à praça onde lut-
aria contra os monstros bovinos.

***

O plano tinha três fases: perigosa, muito perigosa, e super ultra mega
perigosa.
Frank parou ao lado do poço de pedra. Não havia catóblepas à
vista. Ele sacou a espada de Hazel e a usou para erguer alguns seixos
do calçamento, desenterrando um grande emaranhado de raízes pon-
tiagudas. Os tentáculos se esticaram, exalando o fedorento vapor
verde enquanto se arrastavam em direção aos pés de Frank.
O semideus ouviu ao longe o urro de um catóblepa. Outros se
seguiram, vindos de todas as direções. Frank não tinha certeza de
como os monstros poderiam saber que ele estava roubando a sua
comida favorita, talvez tivessem apenas um excelente olfato.
Agora, teria que ser rápido. Frank cortou um longo pedaço de
vinha e a amarrou em um dos passadores de sua calça, tentando ig-
norar o ardor e a coceira nas mãos. Logo, ele tinha um cinto brilhante
e fedorento de ervas venenosas. Oba.
Os primeiros catóblepas chegaram à praça galopando e urrando
de ódio. Os olhos verdes brilhavam sob suas jubas. Seus longos
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focinhos sopravam nuvens de gás, o que os fazia parecerem máqui-
nas a vapor peludas.
Frank preparou uma flecha. Sentiu uma momentânea pontada de
culpa. Aqueles não eram os piores monstros que encontrara. Tratava-
se basicamente de ruminantes que por acaso eram venenosos.
Mas Hazel estava morrendo por causa deles, lembrou-se.
Disparou a flecha. O catóblepa mais próximo caiu, desintegrando-
se em poeira. Frank preparou uma segunda flecha, mas o resto da
manada já estava quase em cima dele. E outros catóblepas chegavam
à praça pela direção oposta.
Frank se transformou em leão. Deu um rugido desafiador e saltou
em direção ao arco, pulando por cima do segundo rebanho. Os dois
grupos de catóblepas se chocaram, mas logo se recuperaram e pas-
saram a persegui-lo.
Frank não tinha certeza se as raízes ainda teriam cheiro depois
que ele mudou de forma. Normalmente, suas roupas e pertences
meio que se misturavam à sua forma animal, mas pelo visto ainda
cheirava a um suculento e venenoso jantar. Toda vez que passava por
um catóblepa, o monstro rugia indignado e se juntava ao desfile do
Mate o Frank!
Entrou em uma rua maior e abriu caminho entre a multidão de
turistas. Não sabia que cena os mortais estariam vendo. Talvez um
gato sendo perseguido por uma matilha de cães. Pessoas xingaram
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Frank em uns doze idiomas diferentes. Cones de sorvete foram der-
rubados. Uma mulher deixou cair uma pilha de máscaras de carnav-
al. Um sujeito foi parar dentro do canal.
Quando Frank olhou para trás, havia no mínimo uns vinte mon-
stros em seu encalço, mas ele precisava de mais. Precisava de todos
os monstros de Veneza, e precisava manter os que vinham atrás dele
furiosos.
Encontrou um espaço no meio da multidão e voltou à forma hu-
mana. Sacou a espata de Hazel, que nunca fora a sua arma preferida,
mas ele era grande e forte o bastante para que a pesada espada de
cavalaria não fosse problema. Na verdade, estava contente com a
arma de alcance mais longo. Golpeou com a lâmina de ouro, destru-
indo o primeiro catóblepa e deixando os outros se amontoarem à sua
frente.
Tentou evitar encará-los, mas podia sentir os olhares dos mon-
stros queimando sua pele. Imaginou que se todas aquelas criaturas
soprassem ao mesmo tempo a nuvem venenosa resultante seria sufi-
ciente para derretê-lo. Os monstros avançavam e se chocavam uns
nos outros.
Frank gritou:
-- Vocês querem as minhas raízes venenosas? Então venham
pegá-las!
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Transformou-se em um golfinho e saltou no canal. Torcia para
que os catóblepas não soubessem nadar. No mínimo, pareciam relut-
antes em segui-lo, e ele não podia culpá-los. O canal era nojento, fe-
dorento, salgado e tão quente quanto uma sopa, mas Frank o
atravessou, esquivando-se de gôndolas e lanchas, parando de vez em
quando para lançar insultos na língua dos golfinhos aos monstros
que o seguiam pelas calçadas. Quando chegou à doca de gôndolas
mais próxima, Frank voltou à forma humana, matou mais alguns
catóblepas, para mantê-los enfurecidos, e saiu correndo.
E assim foi.
Após algum tempo, caiu em uma espécie de transe. Atraía mais
monstros, dispersava mais multidões de turistas e conduzia seu en-
tão enorme séquito de catóblepas pelas ruas sinuosas da velha cid-
ade. Sempre que precisava escapar rapidamente, mergulhava em um
canal como um golfinho ou se transformava em uma águia e saía
voando, mas nunca se colocava muito longe de seus perseguidores.
Cada vez que os monstros pareciam estar perdendo o interesse,
Frank parava em um telhado, pegava o arco e abatia alguns catóble-
pas no centro do rebanho. Balançava o cinto de plantas venenosas e
insultava o mau hálito dos monstros, provocando-os até ficarem
furiosos. Em seguida, continuava a correr.
Voltou por onde veio. E se perdeu. Em dado momento, dobrou
uma esquina e deu de cara com o final do cortejo que o perseguia.
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Deveria estar esgotado, mas de algum modo encontrou forças para
continuar, o que era bom. A parte mais difícil ainda estava por vir.
Frank até viu algumas pontes, mas achou que não serviriam. Uma
era elevada e completamente coberta; não havia como fazer os mon-
stros se espremerem por ela. A rua estava cheia de turistas. Mesmo
que os monstros ignorassem os mortais, aquele gás venenoso não po-
dia ser muito benéfico. Quanto maior o rebanho de monstros, mais
mortais seriam empurrados para o lado, jogados na água ou
pisoteados.
Finalmente Frank viu algo que serviria. Pouco mais à frente, de-
pois de uma grande praça, uma ponte atravessava um dos canais
mais largos. Era feita de madeira, em um arco de vigas entrecruza-
das, como uma antiga montanha-russa, com cerca de cinquenta met-
ros de comprimento.
Do alto, Frank, em forma de águia, não viu nenhum monstro do
outro lado. Todos os catóblepas em Veneza pareciam ter se juntado
ao rebanho e avançavam pelas ruas atrás dele enquanto os turistas
gritavam e se dispersavam, talvez pensando terem sido pegos no
meio de uma correria de cães de rua.
A ponte estava vazia. Era perfeito.
Frank desceu e retomou a forma humana. Então correu até o
meio da ponte -- lugar onde esta se estreitava -- e jogou a isca de
raízes venenosas para trás.
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Quando o rebanho de catóblepas alcançou o início da ponte,
Frank sacou a espata de ouro de Hazel.
-- Venham -- gritou. -- Vocês querem saber o valor de Frank
Zhang? Venham!
Ele se deu conta de que não estava gritando apenas para os mon-
stros. Extravasava semanas de medo, raiva e ressentimentos. As
vozes de Marte e Ares se juntaram à dele.
Os monstros avançaram. A visão de Frank ficou vermelha.
Mais tarde, não conseguiu se lembrar dos detalhes com clareza.
Matou monstros até ficar com pó amarelo na altura dos tornozelos.
Sempre que ficava encurralado e as nuvens de gás começavam a
sufocá-lo, mudava de forma, tornando-se um elefante, um dragão,
um leão, e cada transformação parecia limpar os seus pulmões,
dando-lhe uma nova explosão de energia. Sua mudança de forma se
tornou tão fluida que era capaz de iniciar um ataque com a espada
em forma humana e terminar como um leão, arranhando o focinho
de um catóblepa com suas garras.
Os monstros batiam com os cascos no chão. Exalavam gás e en-
caravam para Frank com seus olhares venenosos. Ele deveria ter
morrido. Deveria ter sido pisoteado. Mas, de alguma forma,
manteve-se de pé, ileso, e desencadeou um furacão de violência.
Não sentiu qualquer tipo de prazer naquilo, mas também não
hesitou. Apunhalou um monstro e decapitou outro. Transformou-se
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em um dragão e cortou um catóblepa ao meio. Em seguida, virou ele-
fante e esmagou três dos monstros de uma vez com as patas. Ele
ainda via tudo em vermelho, e percebeu que seus olhos não o es-
tavam enganando. Seu corpo brilhava, rodeado por uma aura rosada.
Não entendia por quê, mas continuou lutando até que sobrou
apenas um monstro.
Frank enfrentou-o com a espada desembainhada. Estava
ofegante, suado, coberto de poeira de monstro, mas não estava
ferido.
O catóblepa rosnou. Não devia ser o mais inteligente do rebanho.
Apesar de centenas de seus irmãos terem acabado de morrer, o anim-
al não recuou.
-- Marte! -- gritou Frank. -- Provei o meu valor. Agora, preciso de
uma serpente!
Frank duvidava que alguém já tivesse pronunciado tais palavras.
Era um pedido meio estranho. Nenhuma resposta veio dos céus. Pela
primeira vez em muito tempo, as vozes em sua cabeça ficaram em
silêncio.
O catóblepa perdeu a paciência. Investiu contra Frank, deixando-
o sem escolha. O semideus golpeou de baixo para cima. Assim que a
lâmina o atingiu, o catóblepa desapareceu em um clarão vermelho-
sangue. Quando a visão de Frank voltou ao normal, viu uma píton
birmanesa marrom enrolada aos seus pés.
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-- Muito bem -- disse-lhe uma voz familiar.
A poucos metros dali estava seu pai, Marte, usando uma boina
vermelha e uniforme verde-oliva com a insígnia das Forças Especiais
italianas e um rifle de assalto pendurado no ombro. Seu rosto era rí-
gido e anguloso, e ele usava óculos escuros.
-- Pai -- conseguiu dizer Frank.
Não podia acreditar no que acabara de fazer. O terror começou a
atingi-lo. Tinha vontade de chorar, mas achava que não seria uma
boa ideia fazer isso na frente de Marte.
-- É natural sentir medo. -- A voz do deus da guerra estava sur-
preendentemente calorosa, cheia de orgulho. -- Todos os grandes
guerreiros têm medo. Só os idiotas e os loucos não o sentem. Mas vo-
cê enfrentou o seu medo, filho. Fez o que tinha que fazer, como Horá-
cio. Esta foi a sua ponte, e você a defendeu.
-- Eu... -- Frank não sabia o que dizer. -- Eu... eu só precisava de
uma serpente.
Marte deu um leve sorriso.
-- Sim. E agora você a tem. Sua bravura uniu as minhas formas,
grega e romana, mesmo que apenas por um instante. Vá. Salve os
seus amigos. Mas ouça, Frank. Seu maior desafio ainda está por vir.
Quando enfrentar os exércitos de Gaia no Épiro, sua liderança...
De repente, o deus se curvou, segurando a cabeça. Sua forma
tremulou. Seu uniforme se transformou em uma toga, depois em
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uma jaqueta e uma calça jeans de motociclista. Seu rifle se transfor-
mou em uma espada e, em seguida, um lançador de foguetes.
-- Agonia! -- berrou Marte. -- Vá! Depressa!
Frank não fez perguntas. Apesar da exaustão, transformou-se em
uma águia gigante, pegou a píton com suas garras enormes e alçou
voo.
Quando olhou para trás, viu um cogumelo atômico em miniatura
no meio da ponte, com anéis de fogo irradiando do centro, e duas
vozes -- Marte e Ares -- gritaram:
-- Nããão!
Frank não sabia bem o que acabara de acontecer, mas não tinha
tempo para pensar naquilo. Sobrevoou a cidade, agora sem mon-
stros, e se dirigiu à casa de Triptólemo.

***

-- Você conseguiu! -- exclamou o deus agricultor.
Frank o ignorou. Invadiu La Casa Nera, arrastando a píton pela
cauda como um estranho saco de Papai Noel, e a soltou perto da
cama.
Ajoelhou-se ao lado de Hazel.
Ainda estava viva. Verde e trêmula, mal respirando, mas viva.
Quanto a Nico, ainda era um pé de milho.
-- Cure-os -- disse Frank. -- Agora.
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Triptólemo cruzou os braços.
-- Como vou saber se a serpente vai funcionar?
Frank rangeu os dentes. Desde a explosão na ponte, as vozes do
deus da guerra pararam de gritar em sua cabeça, mas ele ainda sentia
a raiva de ambos, fundidas, agitando-se dentro dele. Fisicamente,
também se sentia diferente. Será que Triptólemo tinha ficado mais
baixo?
-- A serpente é um presente de Marte -- rosnou Frank. -- Vai
funcionar.
Como se esperando a deixa, a píton birmanesa deslizou até a car-
ruagem e se enroscou na roda direita. A outra serpente acordou. Elas
se entreolharam, tocaram o focinho e então moveram as rodas ao
mesmo tempo. A carruagem andou para a frente, batendo as asas.
-- Viu? -- disse Frank. -- Agora, cure os meus amigos!
Triptólemo deu um tapinha no próprio queixo.
-- Bem, obrigado pela serpente, mas não estou gostando do seu
tom de voz, semideus. Talvez eu o transforme em...
Frank foi mais rápido. Agarrou Trip e o empurrou contra a
parede, apertando a garganta do deus.
-- Pense bem no que vai dizer -- advertiu Frank, incrivelmente
calmo. -- Ou, em vez de enfiar a minha espada em um arado, vou
cravá-la em sua cabeça.
Triptólemo engoliu em seco.
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-- Sabe... acho que vou curar os seus amigos.
-- Jure pelo Rio Estige.
-- Juro pelo Rio Estige.
Frank o soltou. Triptólemo tocou a garganta, como se quisesse ter
certeza de que ela ainda estava ali. Deu um sorriso nervoso para
Frank, passou a uma distância segura dele e saiu correndo para a sala
da frente.
-- Só estou... só estou colhendo ervas!
Frank observou o deus recolher folhas e raízes e esmagá-las em
um pilão. Ele enrolou uma bola verde e gosmenta do tamanho de
uma pílula, correu até Hazel e colocou a bola nojenta sob a língua
dela.
Instantaneamente, Hazel estremeceu e se sentou, tossindo. Seus
olhos se abriram. A pele voltou à cor normal.
Ela olhou em torno, confusa, até ver Frank.
-- O quê...?
Frank a abraçou.
-- Você vai ficar bem -- disse ele, arrebatado. -- Está tudo bem.
-- Mas... -- Hazel agarrou seus ombros e o olhou com es-
panto. -- Frank, o que aconteceu com você?
-- Comigo? -- Ele se levantou, subitamente desconfortável. -- Eu
não...
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Olhou para baixo e entendeu do que Hazel estava falando.
Triptólemo não ficara mais baixo. Era Frank quem estava mais alto.
Sua barriga diminuíra. Seu peito parecia mais musculoso.
Frank já tivera surtos de crescimento. Certa vez acordara dois
centímetros mais alto do que no dia anterior. Mas aquilo era loucura.
Era como se um pouco do dragão e do leão tivesse permanecido nele
quando voltou à forma humana.
-- Hã... Eu não... Talvez eu possa consertar isso.
Hazel riu com prazer.
-- Mas por quê? Você está incrível!
-- E-estou?
-- Quer dizer, você era bonito antes! Mas agora parece mais
velho, mais alto, tão imponente...
Triptólemo suspirou de modo dramático.
-- Sim, obviamente algum tipo de bênção de Marte. Parabéns,
blá-blá-blá. Agora, já acabamos por aqui?
Frank olhou feio para o deus.
-- Ainda não. Cure Nico.
Triptólemo revirou os olhos e apontou para o vaso com a planta e
BUM! Nico di Angelo apareceu em uma explosão de palhas de milho.
O garoto olhou em torno, em pânico.
-- Eu... eu tive um pesadelo muito esquisito com pipocas. -- Ele
franziu a testa para Frank. -- Por que você está mais alto?
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-- Está tudo bem -- assegurou Frank. -- Triptólemo estava
prestes a nos dizer como sobreviver na Casa de Hades. Não é mesmo,
Trip?
O deus agricultor olhou para o teto, como se perguntasse: Por que
eu, Deméter?
-- Tudo bem -- disse Trip. -- Quando chegarem a Épiro, será
oferecido a vocês um cálice do qual devem beber.
-- Oferecido por quem? -- perguntou Nico.
-- Não importa -- respondeu Trip, mal-humorado. -- Mas saibam
que está cheio de um veneno mortal.
Hazel estremeceu.
-- Então você está dizendo que não devemos beber.
-- Não! -- exclamou Trip. -- Vocês terão que beber, ou nunca ser-
ão capazes de atravessar o templo. O veneno vai ligá-los ao mundo
dos mortos, permitindo que sigam para os níveis mais baixos. O se-
gredo para sobreviver é... -- Seus olhos brilharam. -- ... Cevada.
Frank o encarou.
-- Cevada.
-- Levem um pouco de minha cevada especial que está na sala da
frente. Façam bolinhos com ela e comam antes de entrarem na Casa
de Hades. A cevada absorverá o pior do veneno, de modo que vocês
serão afetados por ele, mas não morrerão.
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-- Só isso? -- perguntou Nico. -- Hécate nos mandou até o outro
lado da Itália para você nos dizer para comer cevada?
-- Boa sorte! -- Triptólemo atravessou a sala correndo e pulou em
sua carruagem. -- E, Frank Zhang, eu o perdoo! Você é corajoso. Se
mudar de ideia, minha oferta continua de pé. Adoraria vê-lo se form-
ar em agricultura!
-- Claro... -- murmurou Frank. -- Obrigado.
O deus puxou uma alavanca em sua carruagem. As serpentes-ro-
das giraram. As asas começaram a bater. No fundo da sala, as portas
de garagem se abriram.
-- Como é bom poder viajar outra vez! -- gritou Trip. -- Há tantas
terras ignorantes que necessitam de meu conhecimento. Vou
ensinar-lhes as glórias da lavoura, da irrigação, da adubação! -- A
carruagem decolou e saiu da casa enquanto Triptólemo gritava para o
céu:
-- Avante, minhas serpentes! Avante!
-- Isso foi muito estranho -- comentou Hazel.
-- As glórias da adubação. -- Nico espanou algumas palhas de
milho de seu ombro. -- Podemos sair daqui agora?
Hazel pousou a mão sobre o ombro de Frank.
-- Está tudo bem mesmo? Você lutou por nossas vidas. O que
Triptólemo o obrigou a fazer?
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Frank tentou se conter. Censurou-se por se sentir tão fraco. Era
capaz de enfrentar um exército de monstros, mas bastava Hazel ser
gentil e ele tinha vontade de entregar os pontos e chorar.
-- Aqueles monstros bovinos... os catóblepas que a envenen-
aram... Tive que destruí-los.
-- Isso foi corajoso -- disse Nico. -- Devia ter o quê? Uns seis ou
sete que sobraram daquele rebanho?
-- Não, foram todos eles. -- Frank pigarreou. -- Matei todos os
catóblepas da cidade.
Nico e Hazel o encararam em um silêncio atordoado. Frank es-
tava com medo de que duvidassem dele ou começassem a rir. Quan-
tos monstros tinha matado naquela ponte? Duzentos? Trezentos?
Mas viu em seus olhos que os dois acreditavam nele. Eram filhos
do Mundo Inferior. Talvez pudessem sentir a morte e a carnificina
pela qual passara.
Hazel beijou seu rosto. Agora, tinha que ficar na ponta dos pés
para alcançá-lo. Os olhos dela estavam incrivelmente tristes, como se
tivesse percebido que algo mudara em Frank, algo muito mais im-
portante do que o crescimento físico repentino.
Frank também sabia. Jamais seria o mesmo. Só não sabia se isso
era bom.
-- Bem -- disse Nico, aliviando a tensão. -- Alguém faz ideia de
como é a cevada?
XXI




ANNABETH

ANNABETH CONCLUIU QUE OS MONSTROS não iam matá-la. Nem a at-
mosfera venenosa, nem a paisagem traiçoeira com seus poços, pre-
cipícios e rochas afiadas.
Não. O motivo de sua morte seria, muito provavelmente, a over-
dose de bizarrices que faria seu cérebro explodir.
Primeiro, ela e Percy tiveram que beber fogo para se manterem
vivos. Depois, foram atacados por um bando de vampiras,
comandado por uma líder de torcida que Annabeth matara dois anos
antes. Por fim, foram resgatados por um titã zelador chamado Bob,
que tinha cabelos de Einstein, olhos de prata e técnicas mortíferas de
luta com vassoura.
Claro. Por que não?
Seguiram Bob pela paisagem estéril e acompanharam o Fle-
getonte até se aproximarem da tempestade de trevas. De vez em
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quando, paravam para beber o fogo líquido, o que os mantinha vivos,
mas Annabeth não estava nada feliz. Era como se estivesse o tempo
todo fazendo gargarejo com ácido de bateria.
Seu único conforto era Percy. De vez em quando, ele a olhava e
sorria ou apertava sua mão. Devia estar tão apavorado e arrasado
quanto ela, mas Annabeth o amava por tentar fazê-la se sentir
melhor.
-- Bob sabe o que está fazendo -- assegurou Percy.
-- Você tem amigos interessantes -- murmurou Annabeth.
-- Bob é interessante! -- O titã se virou e deu um sorriso. -- É,
obrigado!
A audição do grandalhão era bem aguçada. Annabeth não podia
se esquecer disso.
-- Então, Bob... -- Ela tentou soar despreocupada e simpática, o
que não era fácil com a garganta ardendo por causa do fogo
líquido. -- Como você chegou ao Tártaro?
-- Eu pulei -- disse ele como se fosse óbvio.
-- Você pulou no Tártaro porque Percy disse seu nome?
-- Ele precisava de mim. -- Seus olhos prateados brilharam em
meio à escuridão. -- Não tem problema. Estava cansado de varrer o
palácio. Venham, estamos quase chegando a um abrigo.
Abrigo.
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Annabeth não conseguia imaginar o que aquela palavra signi-
ficava no Tártaro. Lembrou-se de quando ela, Luke e Thalia eram
semideuses sem-teto lutando pela sobrevivência e dependiam dos ab-
rigos que encontravam em sua jornada.
Esperava que, aonde quer que Bob os estivesse levando, houvesse
banheiros limpos e uma máquina que vendesse salgadinhos. Conteve
o riso. É, estava mesmo ficando maluca.
Annabeth continuou a mancar, tentando ignorar o estômago, que
roncava. Observou as costas de Bob enquanto ele os conduzia na
direção da muralha de escuridão, agora a apenas algumas centenas
de metros de distância. O uniforme azul de zelador tinha um grande
rasgo entre as omoplatas, como se alguém houvesse tentado
esfaqueá-lo. Havia panos de limpeza saindo de seu bolso. Trazia no
cinto uma garrafa plástica, e o líquido azul em seu interior balançava
de modo hipnótico.
Annabeth se lembrou da história de Percy sobre como conhecera
o titã. Thalia Grace, Nico di Angelo e Percy tinham se unido para
derrotar Bob às margens do Lete. Depois de apagar sua memória,
não tiveram coragem de matá-lo. O titã se tornou tão gentil, sim-
pático e prestativo que os semideuses o deixaram no palácio de
Hades, onde Perséfone prometeu que cuidariam dele.
Aparentemente, o rei e a rainha do Mundo Inferior entendiam
que "cuidar" de alguém era dar à pessoa uma vassoura e mandá-la
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limpar sua sujeira. Annabeth achou muita insensibilidade, até
mesmo para Hades. Jamais sentira pena de um titã antes, mas não
parecia certo pegar um imortal que teve a memória apagada e
transformá-lo em um zelador que não recebia salário.
Ele não é seu amigo, lembrou a si mesma.
Morria de medo de que, de repente, Bob se lembrasse de quem
era. O Tártaro era o lugar para onde os monstros iam se regenerar. E
se ele recuperasse a memória e voltasse a ser Jápeto? Bem, ela o vira
dar cabo daquelas empousai. Annabeth estava desarmada. Ela e
Percy não estavam em condições de enfrentar um titã.
Olhava nervosamente para o cabo da vassoura de Bob,
perguntando-se em quanto tempo aquela lança oculta se projetaria
para fora e apontaria para ela.
Seguir Bob pelo Tártaro era um risco absurdo. Infelizmente, não
podia pensar em plano melhor.
Seguiam pelas terras desoladas e cinzentas quando um relâmpago
vermelho reluziu nas nuvens tóxicas. Apenas mais um dia agradável
nas masmorras da criação. Annabeth não podia ver muito longe no ar
enevoado, entretanto, quanto mais caminhavam, mais certeza tinha
de que estavam descendo.
Ela ouvira descrições conflitantes do Tártaro. Era um poço sem
fundo. Uma fortaleza cercada por paredes de metal. Não era nada
além de um vazio infinito.
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Uma história o descrevia como o contrário do céu, o interior oco
de um enorme domo de rocha invertido. Essa parecia a descrição
mais precisa, porém, se o Tártaro fosse um domo, Annabeth achava
que era como o do céu: sem um fundo de verdade, mas composto por
várias camadas, cada uma mais escura e menos acolhedora que a
anterior.
E nem isso contava toda a horrível verdade...
Passaram por uma bolha que brotava do chão. Era translúcida e
do tamanho de uma minivan. Em seu interior estava o corpo semifor-
mado de um drakon. Bob perfurou-a com a lança sem pensar duas
vezes. Ela explodiu em um gêiser de gosma amarela e fumegante, e o
drakon se desintegrou.
Bob continuou em frente.
Monstros são espinhas na pele do Tártaro, pensou Annabeth. E
estremeceu. Às vezes desejava não ter uma imaginação tão fértil,
porque agora estava certa de que caminhavam por algo vivo. Toda
aquela paisagem bizarra, o domo, poço ou fosse qual fosse seu nome,
era o corpo do deus Tártaro, a mais antiga encarnação do mal. Assim
como Gaia habitava a superfície da Terra, Tártaro habitava as
profundezas.
Se aquele deus os notasse caminhando por sua pele, como pulgas
em um cachorro... Chega. Chega de pensar nisso.
-- Aqui -- disse Bob.
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Pararam no topo de uma elevação. Abaixo deles, em uma de-
pressão parecida com uma cratera lunar, havia um círculo de colunas
de mármore em ruínas cercando um altar de rocha negra.
-- Um santuário de Hermes -- explicou Bob.
Percy franziu a testa.
-- Um santuário de Hermes no Tártaro?
Bob riu com prazer.
-- É. Caiu de algum lugar há muito tempo. Talvez do mundo mor-
tal. Talvez do Olimpo. Enfim, os monstros não chegam perto dali. A
maioria.
-- Como sabia que isso estava aqui? -- perguntou Annabeth.
O sorriso de Bob desapareceu. Seu rosto ficou sem expressão.
-- Não lembro.
-- Tudo bem -- apressou-se em dizer Percy.
Annabeth ficou furiosa consigo mesma. Antes de Bob virar Bob,
ele era Jápeto, o titã. Como todos os seus irmãos, tinha sido pri-
sioneiro no Tártaro por eras. É claro que conhecia bem o lugar. Mas
se ele se recordava desse santuário, podia começar a lembrar de out-
ros detalhes de sua velha prisão e de sua velha vida. Isso não seria
nada bom.
Penetraram na cratera e entraram o círculo de colunas. Annabeth
desabou em uma placa rachada de mármore, exausta demais para
dar um passo que fosse. Percy ficou de pé ao seu lado, em uma
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postura protetora, examinando os arredores. A enorme tempestade
negra agora estava a menos de trinta metros, ocultando tudo o que
havia adiante. A borda da cratera impedia a visão da terra estéril por
onde tinham vindo. Ficariam bem escondidos ali, mas, caso algum
monstro se deparasse com eles, seriam pegos de surpresa.
-- Você disse que havia alguém atrás da gente -- lembrou Anna-
beth. -- Quem?
Bob limpava a base do altar com sua vassoura, agachando-se de
vez em quando para examinar o chão, como se estivesse à procura de
algo.
-- É, vocês estão sendo seguidos. Eles sabem que vocês estão aqui.
Gigantes e titãs. Os derrotados. Eles sabem.
Os derrotados...
Annabeth tentou controlar o medo. Quantos titãs e gigantes ela e
Percy tinham enfrentado ao longo dos anos? Cada um dos inimigos
parecera um desafio impossível. Se todos estivessem ali embaixo no
Tártaro, caçando Percy e Annabeth...
-- Então por que estamos parando? Devíamos seguir em frente.
-- Daqui a pouco -- disse Bob. -- Mortais precisam de descanso.
Aqui é um bom lugar. É o melhor lugar... por perto. Vou proteger
vocês.
Annabeth olhou para Percy transmitindo silenciosamente a
seguinte mensagem: Ah, não. Andar por aí com um titã já era ruim o
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bastante. Dormir sob a guarda do titã... não era preciso ser filha de
Atena para saber que aquilo era maluquice.
-- Por enquanto você dorme -- disse Percy. -- Eu e Bob ficamos
de vigia.
Bob concordou.
-- Isso, boa. Quando você acordar, a comida deve ter chegado!
O estômago de Annabeth roncou à menção de comida. Não ima-
ginava como Bob faria surgir alimento no meio do Tártaro. Talvez
também fosse cozinheiro além de zelador.
Não queria dormir, mas foi traída por seu corpo. Suas pálpebras
viraram chumbo.
-- Percy, me acorde para o segundo turno. Não dê uma de herói.
Ele deu aquele sorriso sarcástico que ela aprendera a amar.
-- Quem, eu?
Ele a beijou com lábios febris e ressecados.
-- Durma.
Annabeth se sentiu como se estivesse de volta ao chalé de Hipnos,
no Acampamento Meio-Sangue, caindo de sono. Encolheu-se no
chão duro e fechou os olhos.
XXII




ANNABETH

MAIS TARDE, ELA TOMOU UMA decisão. Nunca, jamais dormir no
Tártaro.
Os sonhos dos semideuses eram sempre ruins. Mesmo na segur-
ança de seu beliche no acampamento, tinha pesadelos horrorosos. No
Tártaro, eles pareciam mil vezes mais reais.
Primeiro, era novamente uma garotinha que não conseguia subir
a Colina Meio-Sangue. Luke Castellan segurava sua mão, ajudando-a.
Grover Underwood, seu guia sátiro, esperava inquieto no topo, grit-
ando: "Corram! Corram!"
Thalia Grace ficara um pouco para trás, contendo um exército de
cães infernais com seu escudo que invocava o terror, Aegis.
Do alto do morro, Annabeth podia ver o acampamento no
vale -- as luzes cálidas dos chalés, a possibilidade de refúgio.
Tropeçou e torceu o tornozelo, e Luke a carregou nos braços. Quando
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olharam para trás, os monstros estavam a apenas alguns metros de
distância. Havia dezenas deles cercando Thalia.
-- Podem ir! -- gritou ela. -- Vou segurá-los.
Ela brandiu sua lança e raios bifurcados varreram as fileiras de
monstros; porém, à medida que os cães infernais morriam, outros to-
mavam seus lugares.
-- Corram! -- gritou Grover.
Ele os conduziu até o acampamento. Luke o seguiu, enquanto An-
nabeth chorava, debatendo-se em seus braços e gritando que não po-
diam deixar Thalia sozinha. Mas era tarde demais.
A cena mudou.
Annabeth, mais velha, subia até o topo da Colina Meio-Sangue.
No local da batalha final de Thalia agora erguia-se um pinheiro alto.
O céu estava tomado por uma forte tempestade.
Os trovões faziam o vale tremer. Um raio caiu na árvore, abrindo
uma fenda fumegante que ia até as raízes. No pé da colina, Reyna,
pretora de Nova Roma, estava parada na escuridão. Sua capa era da
cor de sangue recém-derramado. Sua armadura dourada reluzia. A
jovem olhava para cima, com expressão altiva e distante, e suas pa-
lavras ecoavam diretamente nos pensamentos de Annabeth.
Você agiu bem, disse Reyna, mas a voz era de Atena. O resto de
minha jornada deve ser nas asas de Roma.
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Os olhos escuros da pretora ficaram cinzentos como as nuvens da
tempestade.
Preciso ficar aqui, disse Reyna. Os romanos devem me trazer.
A colina estremeceu. O chão se moveu em ondas; a grama se
transformou nas dobras de seda do vestido de uma deusa enorme.
Gaia ergueu-se diante do Acampamento Meio-Sangue. Seu rosto ad-
ormecido era do tamanho de uma montanha.
Cães infernais chegavam em bandos pelas colinas. Gigantes de
seis braços nascidos da terra e ciclopes selvagens atacavam da praia.
Destruíram o refeitório e incendiaram os chalés e a Casa Grande.
Depressa, disse a voz de Atena. A mensagem precisa ser enviada.
O chão se rompeu aos pés de Annabeth e ela caiu na escuridão.
Seus olhos se abriram de repente. Ela gritou e agarrou os braços
de Percy. Ainda estava no Tártaro, no Santuário de Hermes.
-- Está tudo bem -- disse Percy, tranquilizando-a. -- Pesadelos?
Seu corpo formigava de medo.
-- Já é... é meu turno de vigia?
-- Não, não. Estamos bem. Pode dormir.
-- Percy!
-- Ei, está tudo bem. Além disso, estava empolgado demais para
dormir. Veja.
Bob, o titã, estava sentado de pernas cruzadas ao lado do altar,
devorando alegremente uma fatia de pizza.
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Annabeth esfregou os olhos, achando que ainda estava sonhando.
-- Isso é... pepperoni?
-- Oferendas queimadas -- explicou Percy. -- Sacrifícios do
mundo mortal para Hermes, acho. Surgiram em uma nuvem de fu-
maça. Temos meio cachorro-quente, algumas uvas, um prato de ros-
bife e um saquinho de M&MS de amendoim.
-- M&MS para Bob! -- disse o titã, contente. -- Hã, tudo bem?
Annabeth não protestou. Percy levou até ela a travessa de rosbife,
e ela os devorou com a voracidade de um lobo. Nunca comera algo
tão bom. A carne ainda estava quente, com uma crosta doce e api-
mentada exatamente como a do churrasco do Acampamento Meio-
Sangue.
-- Eu sei -- disse Percy, lendo sua expressão. -- Acho que veio
mesmo do Acampamento Meio-Sangue.
A ideia deixou Annabeth morta de saudades de casa. Em todas as
refeições, os membros do acampamento queimavam parte da comida
em honra a seus pais divinos. A fumaça supostamente agradava aos
deuses, mas Annabeth nunca tinha pensado para onde aquela com-
ida ia depois de queimada. Talvez as oferendas reaparecessem nos al-
tares dos deuses no Olimpo... ou mesmo ali, no meio do Tártaro.
-- M&MS de amendoim -- disse Annabeth. -- Connor Stoll sempre
queimava um pacote para o pai no jantar.
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Lembrou-se de quando se sentava no refeitório e observava o sol
se pôr no estreito de Long Island. Aquele foi o lugar em que ela e
Percy se beijaram de verdade pela primeira vez. Seus olhos ficaram
marejados.
Percy pôs a mão em seu ombro.
-- Ei, isso é bom. Comida de verdade, de casa, certo?
Ela assentiu. Terminaram de comer em silêncio.
Bob engoliu seus últimos M&MS.
-- A gente tem que ir agora. Eles vão chegar em alguns minutos.
-- Alguns minutos?
Annabeth ia tentar sacar sua faca quando lembrou que não estava
mais com ela.
-- É... bem, eu acho que são alguns minutos... -- Bob coçou os ca-
belos prateados. -- O tempo é uma coisa meio complicada no Tár-
taro. Não é igual.
Percy subiu com cautela até a borda da cratera e olhou na direção
de onde tinham vindo.
-- Não estou vendo nada, mas isso não quer dizer muito. Bob, de
quais gigantes estamos falando? Quais titãs?
Bob resmungou.
-- Não sei os nomes. Devem ser seis, talvez sete. Posso senti-los.
-- Seis ou sete? -- Annabeth achou que ia pôr a comida toda para
fora. -- E eles podem sentir você?
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-- Não sei. -- Bob sorriu. -- Bob é diferente! Mas eles com certeza
podem farejar semideuses. Vocês dois têm um cheiro muito forte!
Bom e forte. Como... humm. Como pão com manteiga derretida.
-- Pão com manteiga. Nossa, que ótimo -- disse Annabeth.
Percy voltou para perto do altar.
-- É possível matar um gigante no Tártaro? Quer dizer, já que não
temos um deus para nos ajudar?
Olhou para Annabeth como se ela soubesse a resposta.
-- Percy, não sei. Viajar pelo Tártaro, lutar contra os monstros
aqui... é a primeira vez que alguém faz isso. Será que Bob poderia nos
ajudar a matar um gigante? Será que um titã conta como deus?
Simplesmente não sei.
-- É... -- disse Percy. -- O.k.
Annabeth podia ver a preocupação nos olhos dele. Por anos Percy
contara com ela para encontrar respostas. Agora, quando ele mais
precisava, Annabeth não conseguia ajudá-lo. Odiava estar tão per-
dida, mas nada do que aprendera no Acampamento Meio-Sangue a
havia preparado para o Tártaro. Só tinha certeza de uma coisa: pre-
cisavam seguir em frente. Não podiam ser pegos por seis ou sete
imortais hostis.
Ela se levantou, ainda desorientada por conta dos pesadelos. Bob
começou a arrumar tudo, juntou o lixo em uma pequena pilha e
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borrifou o líquido da garrafa de seu cinto no altar, limpando-o com
um pano.
-- Vamos para onde, agora? -- perguntou Annabeth.
Percy apontou para a muralha de trevas e tempestade.
-- Bob diz que é para lá. Aparentemente, as Portas da Morte...
-- Você contou a ele? -- exclamou Annabeth. Não teve a intenção
de ser dura, mas Percy estremeceu.
-- Enquanto você estava dormindo -- admitiu Percy. -- Annabeth,
Bob pode nos ajudar. Precisamos de um guia.
-- Bob ajuda! -- concordou o titã. -- Vamos para as Terras Som-
brias. As Portas da Morte... Humm, ir andando direto até elas seria
ruim. Lá há muitos monstros. Nem Bob pode varrer tantos assim.
Eles matariam Percy e Annabeth em dois segundos. -- O titã franziu
a testa. -- Acho que são segundos, o tempo é complicado no Tártaro.
-- Está bem -- resmungou Annabeth. -- Mas tem outro jeito?
-- Escondidos -- disse Bob. -- A Névoa da Morte pode ocultar
vocês.
-- Ah... -- Annabeth de repente se sentiu muito pequena à sombra
do titã. -- Hã... O que é essa Névoa da Morte?
-- Ela é perigosa -- advertiu Bob. -- Mas se a senhora lhes der a
Névoa da Morte, talvez vocês consigam se esconder. Se pudermos
evitar a Noite. A senhora é muito ligada à Noite. Isso não é bom.
-- A Senhora -- repetiu Percy.
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-- É. -- Bob apontou para a escuridão absoluta à frente deles. -- É
melhor irmos.
Percy olhou para Annabeth, obviamente em busca de alguma ori-
entação, mas ela não tinha nada a oferecer. Estava pensando em seu
pesadelo, na árvore de Thalia rachada por um raio, em Gaia se
erguendo na encosta e lançando seus monstros contra o
Acampamento Meio-Sangue.
-- Então está decidido -- disse Percy. -- Acho que vamos ver uma
senhora para falar sobre uma Névoa da Morte.
-- Esperem -- disse Annabeth.
Sua mente passou por um turbilhão. Ela pensou no sonho com
Luke e Thalia. Lembrou-se das histórias que Luke contara sobre o pai
dele, Hermes, o deus dos viajantes, guia dos espíritos dos mortos,
deus da comunicação.
Ficou algum tempo olhando para o altar negro.
-- Annabeth? -- Percy parecia preocupado.
Ela caminhou até a pilha de lixo e pegou um guardanapo ra-
zoavelmente limpo.
Lembrou-se da visão de Reyna parada sob os restos fumegantes
do pinheiro de Thalia, falando com a voz de Atena.
Preciso ficar aqui. Os romanos devem me trazer.
Depressa. A mensagem deve ser enviada.
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-- Bob -- disse ela. -- As oferendas queimadas no mundo mortal
aparecem neste altar, certo?
Bob, aparentando desconforto, franziu a testa, como se fosse um
aluno que não se preparou para um teste surpresa.
-- Sim?
-- E o que acontece se eu queimar algo aqui no altar?
-- Hã...
-- Tudo bem -- disse Annabeth. -- Você não sabe. Ninguém sabe
porque isso nunca foi feito.
Havia uma chance, pensou ela, uma ínfima chance de que uma of-
erenda queimada naquele altar aparecesse no Acampamento Meio-
Sangue.
Não dava para ter certeza, mas se funcionasse...
-- Annabeth? -- Percy tornou a dizer. -- Você está planejando al-
guma coisa. Está com aquela cara de estou planejando alguma coisa.
-- Não tenho uma cara de estou planejando alguma coisa.
-- Tem, tem sim. Você franze a testa e aperta os lábios, e...
-- Tem uma caneta? -- perguntou ela.
-- Está brincando, certo? -- Ele sacou a Contracorrente.
-- É, mas você consegue usá-la para escrever?
-- Eu... eu não sei -- admitiu ele. -- Nunca tentei.
Ele destampou a caneta. Como sempre, ela se transformou em
uma grande espada. Annabeth o havia visto fazer aquilo centenas de
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vezes. Percy costumava simplesmente descartar a tampa quando ia
lutar. Ela sempre reaparecia mais tarde em seu bolso. E quando a en-
costava na ponta da espada, a lâmina voltava à forma de uma caneta
esferográfica.
-- E se você colocar a tampa na outra ponta da espada? -- pergun-
tou Annabeth. -- Como faria se fosse realmente escrever alguma
coisa.
-- Hã... -- Percy pareceu ter ficado em dúvida, mas pôs a tampa
no cabo da espada.
Contracorrente se transformou de novo em uma caneta esfero-
gráfica, e agora a ponta de escrever estava exposta.
-- Posso? -- Annabeth tirou-a da mão dele.
Então apoiou o guardanapo no altar e começou a escrever. A tinta
da Contracorrente reluzia com cor de bronze celestial.
-- O que está fazendo? -- perguntou Percy.
-- Enviando uma mensagem. Só espero que Rachel a receba.
-- Rachel? Está falando da nossa Rachel? A Rachel do Oráculo de
Delfos?
-- Ela mesma -- confirmou, contendo um sorriso.
Sempre que Annabeth mencionava o nome de Rachel, Percy
ficava nervoso. Houve uma época em que Rachel estivera a fim de
Percy. Mas já fazia muito tempo. As duas garotas tinham se tornado
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amigas. Annabeth, porém, não se importava em deixar Percy um
pouco desconfortável. É sempre bom manter o namorado esperto.
Annabeth terminou o bilhete e dobrou o guardanapo. Na parte
externa, escreveu:

Connor,
Entregue isto a Rachel. Não é uma brincadeira. Não seja idiota.
Beijos,
Annabeth


Respirou fundo. Estava pedindo a Rachel Dare que fizesse algo
absurdamente perigoso, mas era a única maneira que conseguia ima-
ginar de se comunicar com os romanos, a única forma de evitar o
derramamento de sangue.
-- Agora só preciso queimar isso. Alguém tem fósforo?
Do cabo de vassoura de Bob surgiu a ponta de uma lança. Ela
soltou faíscas ao bater no altar e irrompeu em chamas prateadas.
-- Ah, obrigada.
Annabeth pôs fogo no guardanapo e o deixou no altar. Ela o
observou virar cinzas e se perguntou se estaria louca. Será que a fu-
maça conseguiria sair do Tártaro?
-- Temos que ir agora -- aconselhou Bob. -- Temos mesmo que ir.
Antes que matem a gente.
Annabeth encarou a parede de trevas à frente deles. Em algum
lugar lá atrás havia uma senhora que fornecia uma Névoa da Morte
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que talvez conseguisse ocultá-los dos monstros, um plano concebido
por um titã, um de seus piores inimigos. Outra dose de bizarrice para
fundir seu cérebro de vez.
-- Tudo bem -- disse ela. -- Estou pronta.
XXIII




ANNABETH

ANNABETH LITERALMENTE tropeçou no segundo titã.
Depois de entrarem na tempestade, avançaram com dificuldade
durante o que pareceram horas, contando com a claridade da lâmina
de bronze celestial de Percy e com Bob, que brilhava levemente no
escuro, como uma espécie de anjo zelador esquisito.
Annabeth só conseguia ver pouco mais de um metro à frente. É
estranho, mas as Terras Sombrias a faziam lembrar de São Francisco,
onde o pai dela morava, quando as tardes de verão tinham uma né-
voa úmida e fria que engolia Pacific Heights. Só que ali no Tártaro a
névoa era feita de nanquim.
Rochas gigantescas surgiam do nada. Poços apareciam de repente
diante de seus pés, e por pouco Annabeth não caiu. Rugidos mon-
struosos ecoavam nas trevas, mas ela não sabia de onde vinham. Só o
que podia dizer com certeza era que o terreno continuava em declive.
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Para baixo. Essa parecia ser a única direção no Tártaro. Se Anna-
beth recuasse um passo sequer, sentia-se cansada e pesada, como se
a gravidade aumentasse para desencorajá-la. Supondo que todo
aquele lugar era o corpo de Tártaro, Annabeth tinha a péssima
sensação de que estavam descendo direto pela garganta.
Estava tão distraída com essa preocupação que não percebeu a
saliência de rocha até ser tarde demais.
-- Ei! -- gritou Percy.
Ele tentou agarrar seu braço, mas ela já estava caindo.
Felizmente, o buraco era raso. A maior parte dele estava ocupada
por uma bolha de monstro. Aterrissou em uma superfície quente e
macia e estava se sentindo com sorte. Até que abriu os olhos e se viu
encarando, através de uma membrana dourada e reluzente, outro
rosto, muito maior.
Ela gritou, perdeu o equilíbrio e caiu ao lado da depressão. Seu
coração quase saiu pela boca.
Percy a ajudou a se levantar.
-- Você está bem?
Não se julgava em condições de responder. Se abrisse a boca, po-
dia gritar de novo, o que não seria uma atitude digna. Ela era filha de
Atena, não uma personagem histérica de filme de terror.
Mas, deuses do Olimpo... Encolhido dentro da membrana da
bolha diante dela havia um titã completamente formado, com
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armadura dourada e pele cor de bronze polido. Estava de olhos
fechados, mas sua expressão era tão furiosa que ele parecia prestes a
soltar um apavorante grito de guerra. Mesmo através da bolha, An-
nabeth podia sentir o calor que irradiava de seu corpo.
-- Hiperíon -- disse Percy. -- Odeio esse cara.
De repente, um antigo ferimento no ombro de Annabeth começou
a latejar. Durante a Batalha de Manhattan, Percy tinha enfrentado
aquele titã no reservatório, água contra fogo.
Foi a primeira vez que Percy invocou um furacão, algo que Anna-
beth jamais esqueceria.
-- Achei que Grover tinha transformado esse sujeito em uma
árvore.
-- Pois é -- concordou Percy. -- Talvez a árvore tenha morrido e
ele acabou aqui outra vez.
Annabeth se lembrava das explosões causticantes provocadas por
Hiperíon e de quantos sátiros e ninfas ele matara antes que Percy e
Grover conseguissem detê-lo.
Estava prestes a sugerir que estourassem a bolha de Hiperíon
antes que ele despertasse. O titã parecia pronto para se libertar a
qualquer momento e começar a carbonizar tudo em seu caminho.
Então ela olhou para Bob. O titã prateado observava Hiperíon
com uma expressão de concentração, talvez identificando-se com ele.
Os dois eram muito parecidos.
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Annabeth conteve um palavrão. É claro que eles se pareciam.
Aquele era seu irmão. Hiperíon era o titã Senhor do Leste. Jápeto,
Bob, era o Senhor do Oeste. Se substituíssem o uniforme e a vassoura
de zelador por uma armadura, cortassem seus cabelos e trocassem o
visual prata pelo dourado, seria praticamente impossível distinguir
os dois.
-- Bob -- chamou ela. -- Temos que ir.
-- Ouro, não prata -- murmurou Bob. -- Mas ele parece comigo.
-- Bob -- chamou Percy. -- Ei, parceiro, aqui.
O titã se virou, relutante.
-- Sou seu amigo? -- perguntou Percy.
-- É. -- Bob pareceu perigosamente confuso. -- Somos amigos.
-- Você sabe que alguns monstros são bons. E outros são maus.
-- Humm. Tipo... aqueles lindos espíritos de mulheres que servem
Perséfone são bons. E zumbis que explodem são maus.
-- Isso -- disse Percy. -- E alguns mortais são bons, e outros,
maus. Com os titãs também é assim.
-- Titãs...
Bob, imenso, estava parado diante deles, brilhando. Annabeth
tinha certeza de que seu namorado havia acabado de cometer um
grande erro.
-- É isso o que você é -- disse calmamente Percy. -- Bob, o titã.
Você é bom. É incrível, na verdade. Mas alguns titãs não são assim.
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Esse cara aí, Hiperíon, é totalmente do mal. Ele tentou me matar...
tentou matar um monte de gente.
Bob piscou os olhos prateados.
-- Mas ele parece... Seu rosto é tão...
-- Vocês se parecem -- concordou Percy. -- Ele também é um titã.
Mas não é bom como você.
-- Bob é bom. -- Os dedos dele apertaram o cabo da vas-
soura. -- É. Sempre existe pelo menos um que é bom... Monstros,
titãs, gigantes.
-- Hã... -- Percy fez uma careta. -- Bem, não tenho tanta certeza
sobre gigantes.
-- Ah, sim. -- Bob balançava a cabeça gravemente.
Annabeth sentia que já tinham ficado tempo demais naquele
lugar. Seus perseguidores deviam estar se aproximando.
-- Precisamos ir -- insistiu ela. -- O que fazemos em relação a...?
-- Bob -- disse Percy. -- Você decide. Hiperíon é da sua espécie.
Nós podemos deixá-lo em paz, mas se ele despertar...
A vassoura-lança de Bob passou em um movimento rápido. Se o
titã quisesse atingir Annabeth ou Percy, eles teriam sido cortados ao
meio. Em vez disso, Bob furou a bolha, que explodiu em um gêiser de
lama quente e dourada.
Annabeth limpou a gosma de titã dos olhos. No lugar onde Hiper-
íon estivera não havia mais nada, apenas uma cratera fumegante.
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-- Hiperíon é um titã mau -- anunciou Bob, com expressão
séria. -- Agora não pode mais machucar meus amigos. Ele vai ter que
se refazer em outro lugar do Tártaro. Tomara que demore bastante.
Os olhos do titã pareciam brilhar mais que o normal, como se ele
estivesse prestes a chorar mercúrio.
-- Obrigado, Bob -- disse Percy.
Como ele conseguia se manter tão calmo? O modo como con-
versara com Bob deixou Annabeth pasma... e talvez um pouco
desconfortável. Se Percy falara sério sobre deixarem a decisão com
Bob, o fato de ele confiar tanto no titã não a agradava. E se manip-
ulara Bob para fazer a escolha que eles queriam... Bem, ela ficaria
surpresa por ele agir de modo tão calculista.
Os olhares dos dois se cruzaram, mas ela não conseguiu ler sua
expressão. O que também a incomodou.
-- É melhor irmos andando -- sugeriu ele.
Percy e ela seguiram Bob, e os respingos da explosão da bolha de
Hiperíon brilhavam em seu uniforme de zelador.
XXIV




ANNABETH

DEPOIS DE ALGUM TEMPO, ANNABETH estava com a impressão que
seus pés tinham virado purê de titã. Continuava a seguir Bob, ou-
vindo o ruído monótono do líquido dentro de sua garrafa de limpeza
balançar.
Fique alerta, disse para si mesma, mas era difícil. Sua mente es-
tava tão dormente quanto as pernas. De vez em quando, Percy se-
gurava sua mão ou fazia algum comentário encorajador, mas dava
para perceber que a paisagem sombria também o estava afetando.
Seus olhos pareciam mais apagados, como se seu ânimo aos poucos
estivesse se extinguindo. Ele se jogou no Tártaro para estar com vo-
cê, disse uma voz na cabeça dela. Se ele morrer, vai ser sua culpa.
-- Pare com isso -- disse em voz alta.
Percy franziu a testa.
-- O quê?
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-- Não, você não. -- Ela tentou dar um sorriso reconfortante, mas
falhou. -- Preciso parar de falar comigo mesma. Este lugar... está
mexendo com a minha cabeça. Me faz ter pensamentos sombrios.
As linhas de preocupação em torno dos olhos verde-mar de Percy
se acentuaram.
-- Ei, Bob, para onde exatamente estamos indo?
-- Ver a Senhora -- respondeu o titã. -- Névoa da Morte.
Annabeth tentou conter a irritação.
-- Mas o que isso significa? Quem é essa Senhora?
-- Dizer o nome dela? -- Bob olhou por cima do ombro. -- Não é
uma boa ideia.
Annabeth deu um suspiro. O titã tinha razão. Nomes tinham
poder, e dizê-los ali no Tártaro era provavelmente muito perigoso.
-- Sabe pelo menos dizer se estamos muito longe? -- perguntou
ela.
-- Não sei -- admitiu Bob. -- Só posso sentir. Vamos esperar a es-
curidão ficar mais escura, aí fazemos um desvio pelo lado.
-- Pelo lado -- murmurou Annabeth. -- É claro.
Estava tentada a pedir para descansarem, mas não queria parar.
Não ali naquele lugar escuro e frio. A névoa negra penetrava em seus
ossos, transformando-os em isopor úmido.
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Ela se perguntou se Rachel Dare receberia sua mensagem. Se
Rachel pudesse de algum modo levar sua proposta para Reyna sem
ser morta...
Uma esperança ridícula, disse a voz em sua cabeça. Você só pôs
Rachel em perigo. Mesmo que ela encontre os romanos, por que
Reyna confiaria em você depois de tudo o que aconteceu?
Annabeth teve vontade de responder à voz aos gritos, mas se con-
trolou. Mesmo que estivesse enlouquecendo, não queria parecer que
estava enlouquecendo.
Precisava desesperadamente de algo para animá-la. Um gole de
água de verdade. Um momento à luz do sol. Uma cama quente. Uma
palavra doce de sua mãe.
De repente, Bob parou e ergueu a mão: Esperem.
-- O que foi? -- sussurrou Percy.
-- Shhh -- alertou Bob. -- Ali na frente. Tem algo se movendo.
Annabeth apurou os ouvidos. De algum lugar na neblina vinha
um ronco contínuo, como o giro lento do motor de um grande trator.
Ela podia sentir as vibrações em seus sapatos.
-- Vamos cercá-lo -- murmurou Bob. -- Cada um de vocês vá por
um lado.
Pela milionésima vez, Annabeth desejou ter sua faca. Pegou um
pedaço de obsidiana negra afiada e seguiu pela esquerda. Percy foi
pela direita, com a espada na mão.
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Bob foi pelo centro com a ponta de sua lança brilhando em meio
ao nevoeiro.
O ronco ficou mais alto e começou a sacudir o cascalho sob os pés
de Annabeth. O barulho parecia vir de um ponto diretamente à frente
deles.
-- Prontos? -- murmurou Bob.
Annabeth se encolheu, se preparando para saltar.
-- No três?
-- Um -- murmurou Percy. -- Dois...
Uma figura surgiu na névoa. Bob ergueu a lança.
-- Esperem! -- gritou Annabeth.
Bob se deteve bem a tempo. A ponta de sua lança parou a poucos
centímetros da cabeça de um pequeno filhote de gato de pelagem
bege, laranja e preta.
-- Rrrrrriauuuu? -- fez o filhote, obviamente nada impressionado
com o plano de ataque deles. O animalzinho esfregou a cabeça no pé
de Bob e ronronou alto.
Parecia impossível, mas o ronco grave e vibrante vinha do filhote.
Quando ronronava, o chão tremia e os seixos dançavam. O gatinho
fixou seus olhos amarelos como lâmpadas em uma rocha bem entre
os pés de Annabeth e saltou até lá.
O gato podia ser um demônio ou um horrível monstro do Mundo
Inferior disfarçado. Mas Annabeth não conseguiu resistir. Ela o
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pegou e aninhou no colo. O bichinho estava muito magro, mas, fora
isso, parecia perfeitamente normal.
-- Como ele...? -- Ela nem conseguia formular a pergunta
direito. -- O que um gatinho desses está fazendo...?
O gato foi ficando impaciente e se desvencilhou de seus braços.
Caiu no chão com um baque surdo, foi até Bob e começou a ronronar
enquanto se esfregava nas botas do titã.
Percy riu.
-- Alguém gostou de você, Bob.
-- Deve ser um monstro bom. -- Bob ergueu os olhos, preocu-
pado. -- Não é?
Annabeth sentiu um nó na garganta. Ao ver o titã enorme e
aquele gatinho minúsculo lado a lado, de repente, sentiu-se insigni-
ficante em comparação à vastidão do Tártaro. Aquele lugar não tinha
respeito por nada, bom ou mau, pequeno ou grande, inteligente ou
não. O Tártaro engolia titãs, semideuses e gatinhos
indiscriminadamente.
Bob se ajoelhou e pegou o filhote. Ele cabia perfeitamente na
palma de sua mão, mas queria explorar. Escalou o braço do titã,
aninhou-se em seu ombro, fechou os olhos e começou a ronronar
como um trator. De repente, seu pelo brilhou. Com um clarão re-
pentino, o gatinho se transformou em um esqueleto fantasmagórico,
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como se estivesse sendo visto por uma máquina de raios-X. Depois
virou um gatinho normal outra vez.
Annabeth piscou.
-- Vocês viram...?
-- Vi. -- Percy franziu a testa. -- Ah, cara... Eu conheço esse gat-
inho. É um daqueles do Smithsonian.
Annabeth tentou entender do que Percy estava falando. Ela nunca
tinha ido ao Smithsonian com ele... Então se lembrou de quando
tinha sido capturada pelo titã Atlas vários anos antes. Percy e Thalia
lideraram uma expedição para resgatá-la. Pelo caminho, viram Atlas
conjurar esqueletos guerreiros de dentes de dragão no Museu
Smithsonian.
Segundo Percy, a primeira tentativa do titã não deu certo. Ele
plantou por engano dentes de tigres-dentes-de-sabre, invocando um
bando de gatinhos esqueletos.
-- Esse é um deles? -- perguntou Annabeth. -- Como chegou
aqui?
Percy estendeu as mãos sem saber o que dizer.
-- Atlas disse a seus servos que se livrassem dos filhotes. Talvez
tenham destruído os gatos e eles renasceram no Tártaro. Não sei.
-- É bonitinho -- disse Bob enquanto o gatinho cheirava sua
orelha.
-- Mas não será perigoso? -- perguntou Annabeth.
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O titã coçou o pescoço do bichinho. Annabeth não sabia se era
uma boa ideia sair por aí com um gato criado a partir de um dente
pré-histórico, mas isso agora obviamente não importava. O titã e o
gato tinham ficado amigos.
-- Vou chamá-lo de Bob Pequeno -- disse Bob. -- Ele é um mon-
stro legal.
Fim de papo. O titã pegou sua lança, e eles continuaram a camin-
har para o interior da escuridão.

***

Annabeth andava quase em transe, tentando não pensar em pizza.
Para se manter distraída, observava Bob Pequeno, o gatinho, que an-
dava e ronronava nos ombros de Bob, transformando-se de vez em
quando em um esqueleto brilhante de gatinho e em seguida voltando
a ser a bola de pelo tricolor.
-- Aqui -- anunciou Bob.
Ele parou tão de repente que Annabeth quase esbarrou em suas
costas.
Bob olhou para a esquerda, como se estivesse mergulhado em
pensamentos.
-- É aqui? -- perguntou Annabeth. -- Onde nós desviamos?
-- É -- concordou Bob. -- Mais escuro, então desviamos para o
lado.
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Annabeth não sabia dizer se estava realmente mais escuro, mas o
ar parecia mais frio e denso, como se tivessem entrado em um micro-
clima diferente. Mais uma vez se lembrou de São Francisco, onde era
possível ir de um bairro ao outro e sentir a temperatura cair dez
graus. Perguntou-se se os titãs teriam construído seu palácio no
Monte Tamalpais porque a região da Baía de São Francisco os lem-
brava do Tártaro.
Que pensamento deprimente. Só titãs veriam um lugar tão bonito
como um potencial posto avançado do Mundo Inferior, um lar in-
fernal longe de casa.
Bob seguiu para a esquerda. Eles foram atrás. O ar definitiva-
mente ficou mais frio. Annabeth se encostou em Percy para se aque-
cer. O namorado a envolveu com um braço. Era uma sensação boa
estar perto dele, mas ela não conseguia relaxar.
Entraram em uma espécie de floresta. Árvores negras muito altas
se erguiam na escuridão, perfeitamente redondas e sem galhos, como
monstruosos folículos capilares. O chão era liso e claro.
Com a nossa sorte, pensou Annabeth, estamos andando pelo so-
vaco do Tártaro.
De repente, ela ficou completamente alerta, como se alguém
houvesse soltado o elástico do estilingue em sua nuca. Encostou a
mão no tronco da árvore mais próxima.
-- O que é isso? -- perguntou Percy, erguendo a espada.
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Bob se virou e olhou para trás, confuso.
-- Vamos parar?
Annabeth ergueu a mão para pedir silêncio. Não sabia o que a
alertara. Nada parecia diferente. Então se deu conta de que o tronco
estava oscilando. Perguntou-se por um instante se era o ronronar do
gato. Mas Bob Pequeno continuava adormecido no ombro do Bob
Grande.
A alguns metros de distância, outra árvore estremeceu.
-- Há algo se movendo acima da gente -- murmurou Anna-
beth. -- Vamos ficar juntos.
Bob e Percy se aproximaram, e os três ficaram de costas uns para
os outros.
Annabeth forçou a vista para tentar ver acima deles na escuridão,
mas nada se moveu.
Tinha quase chegado à conclusão de que estava paranoica quando
o primeiro monstro caiu no chão a menos de dois metros de
distância.
A primeira coisa que lhe ocorreu foi: As Fúrias.
A aparência era praticamente a mesma: uma velha enrugada com
asas de morcego, esporões de metal e olhos vermelhos reluzentes.
Usava um vestido de seda preta esfarrapado, e seu rosto estava dis-
torcido e com aparência faminta, como uma avó demoníaca pronta
para matar.
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Bob grunhiu quando outra caiu diante dele, e em seguida mais
uma na frente de Percy. Em pouco tempo estavam cercados por meia
dúzia das criaturas, e outras mais sibilavam nas árvores acima.
Então não podiam ser fúrias. Só havia três delas, e aquelas bruxas
aladas não tinham chicotes. Isso não tranquilizou Annabeth. Os es-
porões dos monstros pareciam perigosos o suficiente.
-- O que são vocês? -- indagou ela.
As arai, sibilou uma voz. As maldições!
Annabeth tentou localizar quem havia falado, mas nenhum dos
demônios tinha mexido a boca. Seus olhos pareciam mortos; as ex-
pressões, imóveis, como a de um fantoche. A voz simplesmente se
propagou no ar como a de um narrador de um filme, como se uma
única mente controlasse todas as criaturas.
-- O que... o que vocês querem? -- perguntou Annabeth, tentando
manter um tom confiante.
A voz soltou uma gargalhada maligna. Amaldiçoá-los, é claro!
Destruí-los mil vezes em nome da Mãe Noite!
-- Só mil vezes? -- murmurou Percy. -- Ah, ainda bem... achei que
estávamos com problemas.
O círculo de mulheres demoníacas se fechou.
XXV




HAZEL

TUDO CHEIRAVA A VENENO. DOIS dias depois de sair de Veneza, Hazel
ainda não conseguira deixar de sentir o fedor tóxico de colônia de
monstro bovino.
O enjoo marítimo não ajudava. O Argo II navegava pelo
Adriático, uma bela imensidão azul brilhante, mas Hazel não
conseguia apreciá-la devido ao constante oscilar do navio. No convés,
tentava manter os olhos fixos no horizonte, mirando os penhascos
brancos que pareciam estar sempre a apenas alguns quilômetros a
leste. Que país seria aquele? A Croácia? Não tinha certeza. Hazel só
queria voltar a pisar em terra firme.
Mas o que mais lhe provocava náuseas era a doninha.
Na noite anterior, o animal de estimação de Hécate, Gale, apare-
cera em sua cabine. Hazel acordou de um pesadelo pensando "Que
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cheiro é esse?" e encontrou o animal peludo em seu peito,
observando-a com os olhos negros e redondos.
Nada como acordar gritando, chutar as próprias cobertas e sair
pulando pela cabine enquanto uma doninha corre por entre seus pés,
chiando e peidando.
Os amigos correram até lá para ver se ela estava bem. Foi difícil
explicar a presença da doninha. Hazel sabia que Leo estava se es-
forçando muito para não fazer uma piada.
Pela manhã, quando tudo se acalmou, Hazel decidiu visitar o tre-
inador Hedge, já que ele podia falar com animais.
Ela encontrou a porta de sua cabine entreaberta e ouviu o tre-
inador lá dentro, falando como se estivesse ao telefone, embora não
houvesse aparelhos a bordo. Talvez estivesse mandando uma
mensagem mágica de Íris. Hazel ouvira dizer que os gregos as
usavam bastante.
-- Claro, querida -- dizia Hedge. -- Sim, eu sei, amor. Não, é uma
ótima notícia, mas... -- Sua voz falhou de emoção.
De repente, Hazel se sentiu horrível por estar espionando. Teria
dado meia-volta, mas Gale chiou em seus calcanhares. Hazel bateu à
porta do treinador.
Hedge pôs a cabeça para fora, fazendo cara feia como de costume,
mas seus olhos estavam vermelhos.
-- O que foi? -- resmungou.
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-- Hum... desculpe -- disse Hazel. -- Está tudo bem?
O treinador deu uma curta risada amarga e abriu a porta.
-- Que raio de pergunta é essa?
Não havia mais ninguém na cabine.
-- Eu... -- Hazel tentou lembrar por que estava lá. -- Gostaria de
saber se você poderia falar com a minha doninha.
O treinador a olhou com desconfiança. Então baixou a voz:
-- Estamos falando em código? Há um intruso a bordo?
-- Bem, mais ou menos.
Gale apareceu entre os pés de Hazel e começou a tagarelar.
O treinador pareceu ofendido. Respondeu à doninha e ambos
mantiveram o que pareceu ser uma discussão bastante acalorada.
-- O que ela falou? -- perguntou Hazel.
-- Um bocado de grosserias -- resmungou o sátiro. -- Resumindo:
ela está aqui para ver como será.
-- Como será o quê?
O treinador Hedge bateu o casco no chão.
-- Como vou saber? Ela é uma doninha! Elas nunca dão respostas
diretas. Agora, se me dá licença, tenho, hã, coisas...
E fechou a porta na cara dela.

***
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Após o café da manhã, Hazel ficou parada na amurada de bombordo,
tentando acalmar o estômago. Ao lado dela, Gale corria para cima e
para baixo da amurada, soltando puns, mas o forte vento do
Adriático ajudava a afastar o cheiro.
Hazel se perguntou o que tinha acontecido com o treinador
Hedge. Ele devia estar mandando uma mensagem de Íris para al-
guém, mas se recebera boas notícias, por que parecia tão arrasado?
Ela nunca o vira tão abalado. Infelizmente, Hazel duvidava que o tre-
inador pedisse ajuda caso precisasse. Não era exatamente do tipo cal-
oroso e aberto.
A garota olhou para a cordilheira branca ao longe e se perguntou
por que Hécate enviara a doninha Gale.
Ela está aqui para ver como será.
Algo estava prestes a acontecer. Hazel passaria por um teste.
Não entendia como poderia aprender magia sem qualquer treina-
mento. Hécate esperava que ela derrotasse uma feiticeira super po-
derosa, a senhora do vestido de ouro que Leo vira em seu sonho. Mas
como?
Hazel passava todo o seu tempo livre tentando descobrir isso. Ol-
hava para sua espata, tentando fazê-la tomar a forma de uma
bengala. Tentava invocar uma nuvem para ocultar a lua cheia.
Concentrava-se até seus olhos ficarem vesgos e seus ouvidos estalar-
em, mas nada acontecia. Não era capaz de manipular a Névoa.
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Nas últimas noites, seus sonhos pioraram. Via-se de volta ao
Campo de Asfódelos, vagando sem rumo entre fantasmas. Em
seguida, estava na caverna de Gaia, no Alasca, onde Hazel e sua mãe
morreram com o desabamento do teto, e a voz da deusa da terra ui-
vou de ódio. Via-se na escada do apartamento da mãe em Nova Or-
leans, cara a cara com o pai. Os dedos frios de Plutão agarravam o
seu braço. O tecido de seu terno de lã preta se retorcia de almas apri-
sionadas. Ele a encarou com olhos escuros e furiosos e disse: Os mor-
tos veem o que acreditam que verão. Os vivos também. Esse é o
segredo.
Ele nunca dissera aquilo na vida real. Hazel não tinha ideia do
que significava.
Os piores pesadelos pareciam vislumbres do futuro. Hazel se via
tropeçando por um túnel escuro enquanto a risada de uma mulher
ecoava ao seu redor.
Domine isso se puder, filha de Plutão, provocou a mulher.
E sempre sonhava com as imagens que vira na encruzilhada de
Hécate: Leo caindo do céu; Percy e Annabeth deitados e incon-
scientes, possivelmente mortos, diante de portas de metal negro, e
uma figura amortalhada diante deles, o gigante Clítio envolto em
escuridão.
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Ao seu lado, parada na amurada, Gale, a doninha, chiava, impa-
ciente. Hazel sentiu-se tentada a empurrar aquele bicho estúpido no
mar.
Não consigo nem controlar os meus próprios sonhos, quis gritar.
Como posso controlar a Névoa?
Sentia-se tão arrasada que não notou a aproximação de Frank até
ele estar ao seu lado.
-- Está se sentindo melhor?
Frank segurou sua mão, com os dedos cobrindo completamente
os dela. Era inacreditável como o namorado crescera. Ele se trans-
formava em tantos animais que Hazel não entendia por que tinha fic-
ado tão surpresa com mais uma transformação... mas de repente
Frank crescera até ficar com uma estatura compatível com o próprio
peso. Ninguém mais poderia chamá-lo de gordinho ou fofinho. Pare-
cia um jogador de futebol musculoso com um novo centro de gravid-
ade. Os ombros estavam mais largos. Caminhava com mais
segurança.
O que Frank fizera naquela ponte em Veneza... Hazel ainda estava
pasma. Nenhum deles testemunhara a batalha, mas ninguém duvi-
dava. Frank estava completamente mudado. Até mesmo Leo parara
de fazer piadas às suas custas.
-- Eu estou... estou bem. -- Hazel conseguiu dizer. -- E você?
Ele sorriu, enrugando os cantos dos olhos.
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-- Eu, hã, estou mais alto. Fora isso, tudo bem. Sabe, realmente
não mudei por dentro...
Seu tom trazia um pouco de sua antiga insegurança e falta de
jeito -- era a voz do seu Frank, que sempre tinha medo de ser um de-
sastrado e estragar tudo.
Hazel sentiu-se aliviada. Gostava dessa parte dele. A princípio,
sua nova aparência a chocara. Ficou com medo que sua personalid-
ade também tivesse mudado.
Agora, Hazel estava começando a relaxar quanto a isso. Apesar de
toda a sua força, Frank era o mesmo sujeito adorável de sempre.
Ainda era vulnerável. Ainda lhe confiava sua maior fraqueza: o ped-
aço de madeira mágica que ela carregava no bolso do casaco, junto ao
coração.
-- Eu sei, e estou feliz com isso. -- Ela apertou a mão
dele. -- Não... não é exatamente com você que estou preocupada.
-- Como vai Nico? -- resmungou Frank.
Hazel estava pensando em si mesma, mas seguiu o olhar de Frank
até o topo do mastro, onde Nico estava empoleirado em uma verga.
O garoto dissera que gostava de vigiar porque tinha uma boa
visão. Hazel sabia que não era esse o motivo. O topo do mastro era
um dos poucos lugares a bordo onde Nico podia ficar sozinho. Os
outros lhe ofereceram a cabine de Percy, uma vez que o amigo es-
tava... bem, ausente. Mas Nico se recusou terminantemente. Passava
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a maior parte do tempo no cordame, onde não precisava conversar
com o resto da tripulação.
Desde que fora transformado em um pé de milho em Veneza,
tornara-se ainda mais recluso e taciturno.
-- Não sei -- admitiu Hazel. -- Nico passou por muita coisa. Foi
capturado no Tártaro, aprisionado naquele jarro de bronze, viu a
queda de Percy e Annabeth...
-- E prometeu nos levar a Épiro. -- Frank assentiu. -- Tenho a
sensação de que ele não gosta de trabalhar em equipe.
Frank se aprumou. Usava uma camiseta bege com a figura de um
cavalo e as palavras: PALIO DI SIENA. Ele a comprara havia alguns
dias, mas agora estava muito pequena. Quando se espreguiçou, sua
barriga apareceu.
Hazel percebeu que estava olhando fixamente. Ela logo desviou o
olhar, enrubescida.
-- Nico é meu único parente. Não é fácil gostar dele, mas... obri-
gada por ser gentil com ele.
Frank sorriu.
-- Ei, você aguentou minha avó, em Vancouver. Não precisa nem
falar em não ser fácil de gostar.
-- Eu adorei a sua avó!
Gale, a doninha, correu até eles, peidou e fugiu.
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-- Eca. -- Frank balançou a mão para afastar o cheiro. -- Por que
esse bicho está aqui, afinal?
Hazel ficou quase feliz por não estarem em terra. Sua agitação era
tão grande que com certeza teria ouro e pedras preciosas brotando ao
seu redor.
-- Hécate enviou Gale para observar.
-- Observar o quê?
Hazel tentou tirar forças da presença de Frank, com sua nova
aura de solidez e força.
-- Não sei -- admitiu ela, afinal. -- Algum tipo de teste.
De repente, o barco deu um solavanco.
XXVI




HAZEL

HAZEL E FRANK TROPEÇARAM UM no outro. Ela acidentalmente bateu
com o punho da espada no peito e ficou encolhida no convés, ge-
mendo e tossindo com gosto de veneno de catóblepa na boca.
Através de uma névoa de dor, ouviu a figura de proa do navio,
Festus, o dragão de bronze, ranger em sinal de alarme e cuspir fogo.
Confusa, Hazel se perguntou se haviam atingido um iceberg. Mas
como? No mar Adriático, durante o verão?
O navio virou para bombordo produzindo um ruído impression-
ante, como postes telefônicos partindo-se ao meio.
-- AHH! -- gritou Leo em algum lugar atrás dela. -- Ela está
comendo os remos!
Ela quem?, pensou Hazel. Tentou se levantar, mas algo grande e
pesado prendia as suas pernas. Percebeu que era Frank, resmun-
gando, enquanto tentava se desvencilhar de uma pilha de cordas.
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Estavam todos atrapalhados. Jason saltou sobre os dois, com a
espada em punho, e correu em direção à popa. Piper já estava no
tombadilho, atirando comida de sua cornucópia e gritando:
-- Ei! Ei! Coma isso, sua tartaruga idiota!
Tartaruga?
Frank ajudou Hazel a se levantar.
-- Você está bem?
-- Estou -- mentiu Hazel, apertando a barriga. -- Agora vá!
Frank subiu correndo os degraus, tirando do ombro a mochila,
que instantaneamente se transformou em um arco e uma aljava. No
momento em que chegou ao timão, já havia disparado uma flecha e
preparava a segunda.
Leo lutava freneticamente com os controles do navio.
-- Não consigo retrair os remos. Tira esse bicho daí! Tira esse
bicho daí!
No topo do mastro, Nico estava em estado de choque.
-- Pelo Estige... É enorme! -- gritou. -- Bombordo! Para
bombordo!
O treinador Hedge foi o último a chegar ao convés. Compensou
seu atraso com entusiasmo. Subiu os degraus, sacudindo o taco de
beisebol, sem hesitação, galopou até a popa e saltou sobre a amurada
com um alegre:
-- Rá-RÁ!
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Hazel cambaleou até o tombadilho para se juntar aos amigos. O
barco estremeceu. Mais remos se partiram, e Leo gritou:
-- Não, não, não! Maldita filha de uma mãe cascuda!
Hazel chegou à popa e não podia acreditar no que via.
Quando ouviu a palavra tartaruga, pensou em um animal bonit-
inho do tamanho de uma caixinha de joias, sentado em uma pedra no
meio de um lago. Quando ouviu tartaruga enorme, sua mente tentou
se adaptar: muito bem, talvez fosse como uma daquelas tartarugas de
galápagos, que vira quando visitou o zoológico, com cascos grandes o
bastante para se montar em cima.
Ela não imaginara uma criatura do tamanho de uma ilha. Quando
viu a enorme e escarpada cúpula de quadrados pretos e pardos, a pa-
lavra tartaruga simplesmente deixou de fazer sentido. Seu casco era
realmente como uma ilha -- colinas de ossos, brilhantes vales perola-
dos, florestas de algas e musgos, rios de água do mar escorrendo
pelos sulcos de sua carapaça.
No lado boreste do navio, outra parte do monstro emergia como
um submarino.
Lares de Roma... seria aquilo a cabeça?
Os olhos dourados eram do tamanho de espelhos d'água; as pu-
pilas, fendas horizontais e escuras. A pele brilhava como camuflagem
militar molhada, marrom salpicada de verde e amarelo. A boca
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vermelha e desdentada poderia ter engolido a Atena Partenos em
uma única mordida.
Hazel viu quando a criatura partiu meia dúzia de remos.
-- Pare com isso! -- gritou Leo.
O treinador Hedge estava em cima da tartaruga, batendo inutil-
mente com o bastão de beisebol e gritando:
-- Tome isso! E mais isso!
Jason voou da popa e caiu sobre a cabeça do animal. Golpeou-o
bem entre os olhos com a espada dourada, mas a lâmina escorregou
para o lado, como se a pele da tartaruga fosse de aço engraxado.
Frank lançou flechas nos olhos do monstro, sem sucesso. As pálpeb-
ras internas da tartaruga piscavam com incrível precisão, desviando
cada disparo. Piper atirou melões na água, gritando:
-- Pegue isso, tartaruga idiota! -- Mas o animal parecia focado em
devorar o Argo II.
-- Como chegou tão perto? -- questionou Hazel.
Leo ergueu as mãos em desespero.
-- Deve ser o casco. Acho que não é detectável pelo sonar. Maldita
tartaruga invisível!
-- O navio pode voar? -- perguntou Piper.
-- Com metade dos remos quebrados? -- Leo socou alguns botões
e girou a esfera de Arquimedes. -- Tenho que tentar uma coisa
diferente.
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-- Ali! -- gritou Nico do alto. -- Você pode nos levar até aquela
restinga?
Hazel olhou para onde ele apontava. A menos de um quilômetro a
leste, existia uma longa faixa de terra que corria paralela aos penhas-
cos costeiros. Era difícil ter certeza ao longe, mas a extensão de água
entre eles parecia ser de apenas vinte ou trinta metros, possivelmente
larga o bastante para o Argo II atravessar, mas definitivamente não
era larga o suficiente para uma tartaruga gigante.
-- É. Sim. -- Leo aparentemente compreendeu. Girou a esfera de
Arquimedes. -- Jason, fique longe da cabeça desse bicho! Tive uma
ideia!
Jason ainda golpeava o rosto da tartaruga, mas quando ouviu Leo
dizer "Tive uma ideia", fez a única coisa inteligente que conseguiu
pensar. Voou para longe dali o mais rápido possível.
-- Treinador, hora de partir! -- chamou Jason.
-- Não, eu resolvo isso! -- disse Hedge, mas Jason o agarrou pela
cintura e decolou. Infelizmente, o treinador se debateu tanto que a
espada de Jason escorregou e caiu no mar.
-- Treinador! -- reclamou Jason.
-- O quê? -- disse Hedge. -- Eu a estava dominando!
A tartaruga deu uma cabeçada no casco, quase arremessando
toda a tripulação para bombordo. Hazel ouviu um estalo, como se a
quilha tivesse se partido.
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-- Só mais um minuto -- disse Leo, com as mãos voando sobre o
painel de controle.
-- Podemos não estar mais aqui em um minuto!
Frank disparou sua última flecha.
Piper gritou para a tartaruga:
-- Vá embora!
Por um momento, realmente funcionou. A tartaruga se afastou do
navio e mergulhou a cabeça na água. Mas, então, voltou e bateu com
mais força.
Jason e o treinador Hedge aterrissaram no convés.
-- Você está bem? -- perguntou Piper.
-- Tudo bem -- murmurou Jason. -- Sem minha espada, mas
inteiro.
-- Fogo no casco! -- gritou Leo, girando o controle do Wii.
Hazel pensou que a popa estava explodindo. Jatos de fogo jor-
raram atrás deles, atingindo a cabeça da tartaruga. O navio deu uma
guinada para a frente, derrubando-a novamente.
Ela se ergueu e viu que o Argo II saltava sobre as ondas a uma ve-
locidade incrível, deixando para trás um rastro de fogo, como um
foguete. A tartaruga já estava a uns cem metros, com a cabeça car-
bonizada e fumegante.
O monstro urrou de frustração e começou a segui-los; suas
nadadeiras cortavam a água com tal poder que ela realmente
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começou a se aproximar. A entrada da restinga ainda estava meio
quilômetro mais à frente.
-- Alguma coisa para distraí-la -- murmurou Leo. -- Não con-
seguiremos chegar lá a menos que tenhamos alguma coisa para
distraí-la.
-- Para distraí-la... -- repetiu Hazel.
Ela se concentrou e pensou: Arion!
Não sabia se aquilo funcionaria. Mas, imediatamente, avistou
algo no horizonte, um borrão de luz e vapor atravessando a água. Em
um piscar de olhos, Arion estava no tombadilho.
Deuses do Olimpo, pensou Hazel, como eu amo este cavalo.
Arion bufou como se dissesse: Claro que me ama. Você não é
burra.
Hazel montou no cavalo.
-- Piper, seu charme pode ser útil.
-- Teve uma época em que eu gostava de tartarugas -- resmungou
Piper, aceitando a mão que lhe era oferecida. -- Agora não!
Hazel esporeou Arion. Ele saltou para fora do barco, atingindo a
água a todo galope.
A tartaruga nadava com rapidez, mas não era tão rápida quanto
Arion. Circulavam sobre a cabeça do monstro, Hazel golpeando com
sua espada, Piper gritando orientações aleatórias como:
-- Mergulhe! Vire à esquerda! Atrás de você!
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A espada não causou dano algum e cada orientação só funcionava
por um instante, mas estavam irritando a tartaruga. Arion relinchou
com desdém quando a criatura tentou abocanhá-lo, apenas para ficar
com a boca cheia de vapor.
Logo, o monstro havia esquecido completamente o Argo II. Hazel
continuou golpeando a cabeça. Piper continuou gritando orientações
e usando a cornucópia para atirar cocos e frangos assados nos olhos
da tartaruga.
Assim que o Argo II adentrou na restinga, Arion interrompeu a
perseguição. Aceleraram rumo ao navio, e, pouco depois, estavam de
volta ao convés.
O fogo se extinguira, embora os fumegantes escapamentos de
bronze ainda se projetassem da popa. O Argo II avançava devagar,
impulsionado pelas velas, mas seu plano dera certo. Estavam em se-
gurança naquelas águas, com uma ilha longa e rochosa a boreste e os
penhascos brancos do continente a bombordo. A tartaruga parou na
entrada da restinga e olhou para eles malignamente, mas não tentou
segui-los. Obviamente, seu casco era largo demais.
Hazel desmontou e recebeu um grande abraço de Frank.
-- Belo trabalho! -- parabenizou ele.
Ela enrubesceu.
-- Obrigada.
Piper desmontou ao seu lado.
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-- Leo, desde quando temos propulsão a jato?
-- Ah, sabem... -- Leo tentou parecer modesto e falhou. -- Foi
uma coisinha que bolei em meu tempo livre. Gostaria de ter con-
seguido mais do que alguns segundos de queima, mas ao menos nos
tirou de lá.
-- E assou a cabeça da tartaruga -- disse Jason, agradecido. -- O
que faremos agora?
-- Matem-na! -- exigiu o treinador. -- Você ainda pergunta? Te-
mos distância suficiente. Temos balistas. Preparem as armas,
semideuses!
Jason franziu a testa.
-- Treinador, para começo de conversa, você me fez perder a
minha espada.
-- Ei! Não pedi para ser retirado!
-- Em segundo lugar, não acho que as balistas sejam eficazes.
Essa carapaça é como a pele do leão da Nemeia. E sua cabeça não é
mais macia.
-- Então, disparamos goela abaixo -- disse o treinador. -- Como
fizeram com aquele camarão monstruoso no Atlântico. Vamos
explodi-la de dentro para fora.
Frank coçou a cabeça.
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-- Poderia funcionar. Mas, então, teríamos uma carcaça de cinco
mil toneladas bloqueando a entrada da restinga. Se não podemos
voar com os remos quebrados, como tiraríamos o navio daqui?
-- Você aguarda e conserta os remos! -- disse o treinador. -- Ou
simplesmente navega na outra direção, seu marinheiro de água doce.
Frank pareceu confuso.
-- O que é um marinheiro de água doce?
-- Ei, pessoal! -- gritou Nico do alto do mastro. -- Quanto a nave-
gar na outra direção, não acho que dê certo.
Ele apontou para além da proa.
A meio quilômetro mais à frente, a longa faixa rochosa se curvava
e se encontrava com os penhascos. O canal terminava em um V
fechado.
-- Não estamos em um estreito -- disse Jason. -- Estamos em um
beco sem saída.
Hazel sentiu frio nos dedos das mãos e dos pés. Na amurada de
bombordo, Gale, a doninha, estava sentada sobre as patas traseiras.
Olhando para ela, ansiosa.
-- É uma armadilha -- disse Hazel.
Os outros a encararam.
-- Não, está tudo bem -- disse Leo. -- Na pior das hipóteses,
fazemos os reparos. Pode durar a noite inteira, mas consigo fazer o
navio voar de novo.
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À entrada do estreito, a tartaruga rugiu. Não parecia interessada
em ir embora.
-- Bem -- Piper deu de ombros. -- Ao menos ela não pode nos
pegar. Estamos protegidos.
Aquilo era algo que nenhum semideus deveria dizer. Piper mal
terminou de falar quando uma flecha se cravou no mastro principal,
a quinze centímetros de seu rosto.

A tripulação se dispersou em busca de abrigo, com exceção de Piper,
que ficou paralisada, boquiaberta, olhando para a flecha que quase
fizera um piercing no seu nariz do modo mais difícil.
-- Piper, abaixe! -- sibilou Jason.
Mas nenhuma outra flecha foi disparada.
Frank estudou o ângulo do projétil no mastro e apontou para o
topo dos penhascos.
-- Lá em cima -- informou ele. -- Um único atirador. Estão
vendo?
O sol a impedia de ver claramente, mas Hazel percebeu uma
pequena figura na borda do penhasco. Sua armadura de bronze
brilhava.
-- Ai, caramba! Quem será? -- perguntou Leo. -- Por que está
atirando na gente?
-- Pessoal? -- A voz de Piper soava trêmula. -- Tem um bilhete.
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Hazel não tinha percebido, mas havia um pergaminho amarrado
à haste da flecha. Não sabia por que, mas aquilo a enfureceu. Foi até
lá e retirou o bilhete.
-- Hã, Hazel? -- disse Leo. -- Tem certeza de que é seguro?
Hazel leu o bilhete em voz alta.
-- Primeira linha: Parem e entreguem.
-- O que isso quer dizer? -- reclamou o treinador
Hedge. -- Estamos parados. Não por querer, mas mesmo assim. Se
esse cara está esperando um entregador de pizza, esqueça!
-- Tem mais -- disse Hazel. -- Isto é um assalto. Envie dois dos
seus até o topo do penhasco com todos os objetos de valor. Não mais
do que dois. Deixem o cavalo mágico. Nada de voar. Sem truques.
Apenas subam.
-- Subir como? -- perguntou Piper.
Nico apontou.
-- Por ali.
Havia no penhasco uma escadaria estreita entalhada, que ia até o
topo. A tartaruga, o beco sem saída, o penhasco... Hazel tinha a
sensação de que aquela não era a primeira vez que o autor da carta
emboscara um navio ali.
Pigarreou e continuou a ler em voz alta:
-- Refiro-me a todos os seus valores. Caso contrário, minha tar-
taruga e eu vamos destruí-los. Vocês têm cinco minutos.
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-- Use as catapultas! -- gritou o treinador.
-- P.S. -- leu Hazel. -- Nem pensem em usar suas catapultas.
-- Maldição! -- exclamou o treinador. -- Esse cara é bom.
-- O bilhete está assinado? -- perguntou Nico.
Hazel balançou a cabeça negativamente. Ouvira uma história no
Acampamento Júpiter, sobre um ladrão que trabalhava com uma tar-
taruga gigante, mas, como sempre, assim que precisava de uma in-
formação, esta ficava irritantemente ocultada em sua memória, fora
de seu alcance.
Gale, a doninha, encarou Hazel, esperando para ver o que ela
faria.
O teste ainda não acontecera, pensou Hazel.
Distrair a tartaruga não fora suficiente. Hazel não provara poder
manipular a Névoa... principalmente porque não conseguia manipu-
lar a Névoa.
Leo estudou o topo do penhasco e murmurou.
-- Não é uma boa trajetória. Mesmo que pudesse armar a cata-
pulta antes que o cara fizesse chover flechas, não acho que
conseguiria atingi-lo. Está a centenas de metros, quase em linha reta
para cima.
-- Sim -- resmungou Frank. -- Meu arco também é inútil. Ele tem
uma enorme vantagem estando acima de nós. Não conseguiria
atingi-lo.
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-- E, hum... -- Piper cutucou a flecha que estava cravada no mas-
tro. -- Tenho a sensação de que é bom de tiro. Não creio que pre-
tendesse me atingir. Mas se quisesse...
Não precisou continuar. Quem quer que fosse o ladrão, podia
acertar um alvo a centenas de metros de distância. Poderia matá-los
antes que pudessem reagir.
-- Eu vou -- disse Hazel.
Odiava a ideia, mas tinha certeza de que Hécate planejara aquilo
como uma espécie de desafio doentio. Esse seria o teste de Hazel -- a
sua vez de salvar o navio. Como se precisasse de uma confirmação,
Gale correu ao longo da amurada e pulou sobre seu ombro, pronta
para pegar uma carona.
Os outros olharam para ela.
Frank agarrou seu arco.
-- Hazel...
-- Não, prestem atenção -- disse ela --, esse ladrão quer objetos
de valor. Posso ir até lá, invocar ouro, joias, tudo o que ele quiser.
Leo ergueu uma sobrancelha.
-- Acha que realmente vai nos deixar ir embora se lhe dermos o
que quer?
-- Não temos muita escolha -- disse Nico. -- Entre aquele cara e a
tartaruga...
Jason ergueu a mão. Os outros ficaram em silêncio.
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-- Vou também -- disse ele. -- A carta exige duas pessoas. Levo
Hazel até lá e a trago de volta. Além do mais, não gostei dessa es-
cadaria. Se Hazel cair... bem, posso usar os ventos para evitar que
cheguemos ao chão do jeito mais doloroso.
Arion relinchou em protesto, como se dissesse: Você vai sem
mim? Está brincando, certo?
-- É preciso, Arion -- disse Hazel. -- Jason... Sim. Acho que você
está certo. É o melhor plano.
-- Só gostaria de ter a minha espada. -- Jason olhou feio para o
treinador. -- Está lá, no fundo do mar, e não temos Percy para
recuperá-la.
O nome Percy passou por eles como uma nuvem. O clima no con-
vés ficou ainda mais sombrio.
Hazel estendeu um braço. Não pensou. Apenas se concentrou na
água e invocou o ouro imperial.
Foi uma ideia idiota. A espada estava muito longe dali, provavel-
mente a centenas de metros de profundidade. Mas sentiu um puxão
rápido em seus dedos, como uma mordida em uma linha de pesca, e
a espada de Jason saiu da água e acabou em sua mão.
-- Tome -- disse ela, entregando-a.
Os olhos de Jason se arregalaram.
-- Como...? Estava a quase um quilômetro daqui!
-- Tenho praticado -- disse ela, embora não fosse verdade.
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Esperava não ter acidentalmente amaldiçoado a espada de Jason
ao invocá-la, assim como amaldiçoava as joias e os metais preciosos.
De alguma forma, porém, pensou, com armas era diferente. Afi-
nal, Hazel retirara um bocado de equipamento de ouro imperial da
baía da geleira e o entregara para a Quinta Coorte. E fora um sucesso.
Hazel decidiu não se preocupar com isso. Estava com tanta raiva
de Hécate e tão cansada de ser manipulada pelos deuses que não
deixaria que problemas insignificantes a impedissem de continuar.
-- Agora, se não há outras objeções, temos que encontrar com um
ladrão.
XXVII




HAZEL

HAZEL GOSTAVA DA VIDA AO ar livre. Mas escalar um penhasco de
sessenta metros em uma escadaria sem corrimão com uma doninha
mal-humorada no ombro já era exagero. Especialmente quando po-
deria ter montado em Arion e chegado ao topo em questão de
segundos.
Jason caminhava atrás dela para poder pegá-la caso caísse. Hazel
gostou da ideia, mas aquilo não tornava a queda menos assustadora.
Ela olhou para a direita, o que foi um erro. Seu pé quase escor-
regou, lançando um punhado de cascalho pela borda. Gale guinchou,
alarmada.
-- Você está bem? -- perguntou Jason.
-- Estou. -- O coração de Hazel estava disparado. -- Tudo bem.
Não havia espaço para ela se virar e olhar para Jason. Só podia
confiar que ele não a deixaria despencar para a morte. Já que
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conseguia voar, ele era a retaguarda mais lógica. Ainda assim, Hazel
preferia estar com Frank, Nico, Piper ou Leo. Até mesmo... bem,
certo, talvez não o treinador Hedge. Mas, ainda assim, Hazel não
conseguia entender Jason Grace.
Desde que chegara ao Acampamento Júpiter, vinha ouvindo
histórias sobre ele. Os campistas falavam com reverência a respeito
do filho de Júpiter que surgira das fileiras mais baixas da Quinta
Coorte e se tornara pretor, levou-os à vitória na Batalha de Monte
Tam e, em seguida, desapareceu. Mesmo agora, depois de tudo o que
acontecera nas últimas semanas, Jason parecia mais uma lenda do
que uma pessoa. A princípio, Hazel tivera dificuldade em aceitá-lo,
com aqueles olhos azuis gélidos e sua cautelosa introspecção, como
se calculasse cada palavra antes de dizê-la. Além disso, não conseguia
se esquecer de que ele se mostrara disposto a descartar seu irmão
Nico quando descobriram que ele era prisioneiro em Roma.
Jason achava que Nico era a isca de uma armadilha. Estava certo.
E, talvez, agora que Nico estava em segurança, Hazel pudesse en-
tender por que a cautela de Jason fora uma boa ideia. Ainda assim,
não sabia o que pensar sobre aquele cara. E se ambos se metessem
em problemas no topo daquele penhasco e Jason decidisse que
salvá-la não era a melhor estratégia para a missão?
Ela olhou para cima. Não podia ver o ladrão dali, mas sentiu que
ele os esperava. Hazel estava certa de que poderia invocar ouro e
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pedras preciosas suficientes para impressionar até o mais ganancioso
dos ladrões. Ela se perguntou se os tesouros que invocava ainda
traziam má sorte. Não tinha certeza se aquela maldição fora
quebrada quando morrera pela primeira vez. Parecia ser uma boa
oportunidade para descobrir. Qualquer um que roubasse semideuses
inocentes com uma tartaruga gigante merecia algumas maldições
detestáveis.
Gale, a doninha, pulou de seu ombro e saiu em disparada na
frente. Ela olhou para trás e chiou, ansiosa.
-- Estou indo o mais rápido que posso -- murmurou Hazel.
Não conseguia se livrar da sensação de que a doninha estava ansi-
osa para vê-la fracassar.
-- Você teve alguma sorte nesse negócio de, hã, controlar a Né-
voa? -- perguntou Jason.
-- Não -- admitiu Hazel.
Não gostava de pensar em seus fracassos: na gaivota que não con-
seguira transformar em dragão, no taco de beisebol do treinador
Hedge que teimosamente se recusara a se transformar em um
cachorro-quente. Simplesmente não conseguia se convencer de que
tais coisas fossem possíveis.
-- Você vai conseguir -- disse Jason.
Seu tom a surpreendeu. Não era um comentário leviano apenas
para ser agradável. Ele parecia realmente convencido daquilo. Hazel
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continuou a subir, mas o imaginou olhando para ela com aqueles ol-
hos azuis penetrantes, o queixo erguido e confiante.
-- Como você pode ter certeza? -- perguntou ela.
-- Tendo. Sou bom em avaliar aquilo de que as pessoas são
capazes. Semideuses, pelo menos. Hécate não a teria escolhido se não
acreditasse que você tem poder.
Talvez isso devesse fazer Hazel se sentir melhor. Mas não fez.
Ela também era boa em avaliar as pessoas. Hazel entendia o que
motivava a maioria de seus amigos, até mesmo seu irmão, Nico, que
não era fácil de decifrar.
Mas Jason? Ela não fazia a menor ideia. Todos diziam que ele era
um líder nato. Ela acreditava nisso. Lá estava ele, fazendo-a se sentir
como um membro valioso da equipe, dizendo que ela era capaz de
qualquer coisa. Mas do que Jason era capaz?
Não podia conversar sobre suas dúvidas com ninguém. Frank ad-
orava o cara. Piper, é claro, estava totalmente apaixonada. Leo era
seu melhor amigo. Até mesmo Nico parecia não hesitar em seguir sua
liderança.
Mas Hazel não podia esquecer que Jason fora o primeiro movi-
mento de Hera na guerra contra os gigantes. A Rainha do Olimpo
pusera Jason no Acampamento Meio-Sangue, o que dera início a
toda aquela cadeia de eventos para deter Gaia. Por que Jason
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primeiro? Algo dizia a Hazel que ele tinha um papel central no plano
da deusa. E Jason também seria sua cartada final.
Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado. Era o que dizia a
profecia. Por mais que Hazel temesse o fogo, ela temia mais as tem-
pestades. Jason Grace podia invocar tempestades bem grandes.
Ela ergueu a cabeça e viu o fim do penhasco apenas alguns metros
mais acima.
Chegou ao topo, ofegante e suada. Um vale longo e inclinado se
estendia à sua frente, repleto de oliveiras retorcidas e pedras calcári-
as. Não havia sinais de civilização.
Suas pernas estavam trêmulas por causa da escalada. Gale parecia
ansiosa para explorar. A doninha chiou, peidou e correu até os arbus-
tos mais próximos. Lá embaixo, o Argo II parecia um barquinho de
brinquedo flutuando no canal. Hazel não entendia como alguém po-
deria atirar uma flecha com precisão daquela altura, levando-se em
conta o vento e o reflexo do sol na água. Na enseada, o rígido casco
da tartaruga brilhava como uma moeda polida.
Jason se juntou a ela no topo, parecendo não ter sido afetado pela
escalada.
Ele começou a dizer:
-- Onde...
-- Aqui! -- disse uma voz.
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Hazel deu um pulo. A apenas três metros de distância, um
homem com um arco e uma aljava presa ao ombro surgiu, empun-
hando duas antiquadas pistolas de duelo. Usava botas de couro de
cano alto, calça de couro e uma camisa de pirata. O cabelo preto e en-
caracolado parecia o de uma criança e seus olhos verdes e brilhantes
eram bastante amigáveis, embora uma bandana vermelha cobrisse a
metade inferior de seu rosto.
-- Bem-vindos! -- exclamou o bandido, apontando as armas para
eles. -- O dinheiro ou a vida!

***

Hazel tinha certeza de que ele não estava ali um segundo antes.
Simplesmente se materializou, como se tivesse saído de trás de uma
cortina invisível.
-- Quem é você? -- perguntou ela.
O bandido riu.
-- Círon, é claro!
-- Quíron? -- perguntou Jason. -- Como o centauro?
O bandido revirou os olhos.
-- Cí-ron, meu amigo. Filho de Poseidon! Ladrão extraordinário!
Um sujeito incrível! Mas isso não importa. Não estou vendo nada de
valor -- gritou ele, como se isso fosse uma excelente notícia. -- Isso
significa que vocês querem morrer?
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-- Espere -- disse Hazel. -- Temos objetos de valor. Mas como ter
certeza de que você vai nos deixar ir embora assim que os
entregarmos?
-- Ah, sempre perguntam isso -- disse Círon. -- Juro pelo Rio
Estige que, se me entregarem o que quero, eu não atirarei em vocês.
Eu os mandarei penhasco abaixo.
Hazel lançou a Jason um olhar cauteloso. Rio Estige ou não, o
juramento de Círon não a tranquilizou.
-- E se lutarmos com você? -- perguntou Jason. -- Não pode nos
atacar e manter nosso navio refém ao mesmo...
BANG! BANG!
Aconteceu tão rápido, que o cérebro de Hazel precisou de um
tempo para entender.
Fumaça saia da lateral da cabeça de Jason. Logo acima de sua
orelha esquerda, havia um sulco em seu cabelo que parecia uma faixa
de carro de corrida. Uma das pistolas de Círon ainda estava apontada
para o rosto dele. A outra estava apontada para baixo, para além do
penhasco, como se o segundo tiro de Círon tivesse sido disparado
contra o Argo II.
Hazel engasgou com o susto tardio.
-- O que você fez?
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-- Ah, não se preocupe! -- Círon riu. -- Se pudesse ver de tão
longe, o que você não pode, veria um buraco no convés entre os pés
do jovem grandalhão, aquele com o arco.
-- Frank!
Círon deu de ombros.
-- Se você diz... Isso foi apenas uma demonstração. E poderia ter
sido muito pior.
Ele girou as pistolas. Os cães voltaram a se armar e Hazel teve a
impressão de que as pistolas se recarregavam magicamente.
Círon ergueu as sobrancelhas para Jason.
-- Então! Para responder à sua pergunta, sim, eu posso atacá-lo e
manter seu navio refém ao mesmo tempo. Munição de bronze celesti-
al. Bem mortal para semideuses. Vocês dois morreriam primeiro:
bang, bang. Então, eu poderia abater seus amigos no navio com
calma. Tiro ao alvo é muito mais divertido com alvos vivos correndo
e gritando!
Jason tocou o sulco que a bala fizera em seu cabelo. Pela primeira
vez, não parecia muito confiante.
Os tornozelos de Hazel fraquejaram. Frank era o melhor arqueiro
que ela conhecia, mas aquele bandido, Círon, era desumanamente
bom.
-- Você é um dos filhos de Poseidon? -- Hazel conseguiu pergun-
tar. -- Pelo modo como atira, podia jurar que era de Apolo.
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As rugas ao redor de seus olhos se aprofundaram.
-- Ora, muito obrigado! Mas é apenas prática. A tartaruga gi-
gante, esta sim devo a meu pai. Você não pode sair por aí domestic-
ando tartarugas gigantes se não for um filho de Poseidon! Eu poderia
afundar seu navio com uma onda, é claro, mas é muito trabalhoso. E
nem é tão divertido quanto emboscar e atirar nas pessoas.
Hazel tentou organizar seus pensamentos e ganhar tempo, mas
era bem difícil fazer isso encarando os canos fumegantes daquelas
pistolas.
-- Hã... para que serve a bandana?
-- Assim ninguém me reconhece! -- respondeu Círon.
-- Mas você já se apresentou -- disse Jason. -- Seu nome é Círon.
Os olhos do bandido se arregalaram.
-- Como você... Ah. Verdade, acho que já me apresentei. -- Ele
baixou uma pistola e coçou a lateral da cabeça com a outra. -- Ter-
rível descuido de minha parte. Desculpem. Acho que estou um pouco
enferrujado. De volta dos mortos e tudo o mais. Permitam-me tentar
outra vez.
Ele ergueu as pistolas.
-- Parem e entreguem tudo! Sou um bandido anônimo, e vocês
não precisam saber meu nome!
Um bandido anônimo. Hazel teve um lampejo de memória.
-- Teseu. Ele matou você uma vez.
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Os ombros de Círon arriaram.
-- Poxa, por que você tinha que mencioná-lo? Nós estávamos nos
dando tão bem!
Jason franziu a testa.
-- Hazel, você conhece a história desse cara?
Ela assentiu, embora lhe fugissem os detalhes.
-- Teseu o encontrou no caminho para Atenas. Círon matava suas
vítimas quando, hum...
Algo sobre a tartaruga. Hazel não conseguia se lembrar.
-- Teseu era um trapaceiro! -- reclamou Círon. -- Não quero falar
sobre ele. Voltei dos mortos agora. Gaia prometeu que eu poderia
ficar no litoral e roubar todos os semideuses que quisesse, e é isso o
que farei! Agora... onde estávamos?
-- Você estava prestes a nos deixar ir embora -- arriscou Hazel.
-- Hum -- disse Círon. -- Não, tenho certeza de que não era isso.
Ah, lembrei! O dinheiro ou a vida. Onde estão seus objetos de valor?
Não têm nenhum? Então terei que...
-- Espere -- disse Hazel. -- Tenho objetos de valor. Ao menos,
posso consegui-los.
Círon apontou uma das pistolas para a cabeça de Jason.
-- Bem, minha querida, então seja rápida ou meu próximo tiro ar-
rancará mais do que o cabelo de seu amigo!
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Hazel mal precisou se concentrar. Estava tão aflita que o chão es-
tremeceu embaixo dela e imediatamente rendeu uma abundante col-
heita: metais preciosos afloraram à superfície, como se a terra est-
ivesse ansiosa para expulsá-los.
Ela se viu rodeada por uma pilha de tesouros que chegava à altura
de seus joelhos: denários romanos, dracmas de prata, antigas peças
de ouro, diamantes, topázios e rubis, o suficiente para encher vários
sacos daqueles bem grandes.
Círon gargalhou de prazer.
-- Como você fez isso?
Hazel não respondeu. Pensou em todas as moedas que haviam
aparecido na encruzilhada de Hécate. Ali havia ainda mais: séculos
de riquezas ocultas de cada império que tomara aquela terra para si:
gregos, romanos, bizantinos e tantos outros. Os impérios haviam de-
saparecido, deixando apenas uma árida faixa de litoral para o ban-
dido Círon.
Tal pensamento a fez sentir-se pequena e impotente.
-- Basta levar o tesouro -- disse ela. -- Deixem-nos ir.
Círon riu.
-- Ah, mas eu disse todos os seus bens. Acredito que vocês es-
tejam levando algo muito especial naquele navio... uma certa estátua
de marfim e ouro com, digamos, doze metros de altura?
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O suor começou a secar no pescoço de Hazel e ela sentiu um cala-
frio na espinha.
Jason deu um passo para a frente. Apesar da arma apontada para
seu rosto, seus olhos pareciam duros como safiras.
-- A estátua não é negociável.
-- Você está certo, não é! -- concordou Círon. -- Ficarei com ela!
-- Foi Gaia quem lhe falou sobre ela -- adivinhou
Hazel. -- Mandou que você a roubasse.
Círon deu de ombros.
-- Talvez. Mas ela me disse que eu poderia ficar com a estátua. Di-
fícil recusar uma oferta dessas! Não pretendo morrer de novo, meus
amigos. Quero viver uma vida longa como um homem muito rico!
-- A estátua não lhe servirá de nada -- disse Hazel. -- Não se Gaia
destruir o mundo.
Os canos das pistolas de Círon oscilaram.
-- Como é?
-- Gaia está usando você -- disse Hazel. -- Se levar a estátua, não
seremos capazes de derrotá-la. Ela pretende exterminar todos os
mortais e semideuses do mundo, deixando seus gigantes e monstros
no lugar. Então, onde você vai gastar seu ouro, Círon? Isso se Gaia
permitir que você viva.
Hazel deixou a ideia assentar. Achava que Círon não teria di-
ficuldade em acreditar na traição, sendo um bandido e tudo o mais.
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Ele ficou em silêncio por uns dez segundos.
Finalmente as rugas ao redor de seus olhos reapareceram.
-- Tudo bem! -- concordou Círon. -- Sou um cara razoável.
Fiquem com a estátua.
Jason piscou.
-- Podemos ir?
-- Só mais uma coisa -- disse Círon. -- Sempre exijo uma demon-
stração de respeito. Antes de deixar minhas vítimas irem embora, in-
sisto que elas lavem meus pés.
Hazel não tinha certeza se ouvira direito. Então Círon tirou as
botas de couro, uma de cada vez. Seus pés eram as coisas mais repug-
nantes que ela já vira... e já vira coisas muito nojentas.
Eram inchados, enrugados e brancos como massa de pão, como
se estivessem imersos em formol havia alguns séculos. Tufos de ca-
belos castanhos brotavam de cada dedo deformado. Suas unhas ir-
regulares eram verdes e amarelas, como o casco de uma tartaruga.
Então o cheiro a atingiu. Hazel não sabia se o palácio de seu pai
no Mundo Inferior tinha uma lanchonete para zumbis, mas se
tivesse, o lugar cheiraria exatamente como os pés de Círon.
-- Então! -- Círon remexeu os dedos dos pés nojentos. -- Quem
quer o esquerdo e quem quer o direito?
O rosto de Jason ficou quase tão branco quanto os pés de Círon.
-- Você... só pode estar brincando.
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-- De jeito nenhum! -- disse Círon. -- Lavem meus pés, e estamos
quites. Eu os mandarei penhasco abaixo. Juro pelo Rio Estige.
Círon fez a promessa com tanta facilidade que um alarme soou na
mente de Hazel. Pés. Mandar vocês penhasco abaixo. Casco de
tartaruga.
Ela se lembrou da história e todas as peças que faltavam se en-
caixaram. Ela se lembrou de como Círon matava suas vítimas.
-- Nós dois poderíamos conversar um instante? -- perguntou
Hazel para o bandido.
Os olhos de Círon se estreitaram.
-- Para quê?
-- Bem, é uma decisão importante -- disse ela. -- Pé esquerdo, pé
direito. Precisamos discutir.
Dava para ver que ele estava sorrindo sob a bandana.
-- É claro -- disse ele. -- Sou tão generoso que darei a vocês dois
minutos.
Hazel saiu de cima da pilha de tesouros e levou Jason o mais
longe que se atrevia, uns quinze metros mais abaixo no penhasco,
onde esperava que Círon não conseguisse ouvi-los.
-- Ele chuta suas vítimas do penhasco -- sussurrou Hazel.
Jason fez uma careta.
-- O quê?
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-- Quando se ajoelham para lavar os pés dele -- disse Hazel. -- É
assim que ele as mata. Quando estão desequilibrados, tontos pelo
cheiro de seus pés, ele as chuta da borda. E elas caem direto na boca
da tartaruga gigante.
Jason levou um momento para digerir aquilo. Olhou para além da
borda do penhasco, onde o rígido casco da tartaruga brilhava debaixo
d'água.
-- Então teremos que lutar -- disse Jason.
-- Círon é muito rápido -- replicou Hazel. -- Ele nos matará.
-- Então estarei pronto para voar. Quando ele me chutar, flutu-
arei até o meio do penhasco. E, quando chutar você, eu a pegarei.
Hazel balançou a cabeça.
-- Se ele chutar com força e rapidez suficientes, você ficará muito
tonto para voar. E mesmo que consiga, Círon tem os olhos de um
atirador de elite. Ele observará você cair. Se você flutuar, ele vai atir-
ar em você.
-- Então... -- Jason agarrou o punho da espada. -- Espero que vo-
cê tenha outra ideia.
A poucos metros dali, Gale, a doninha, surgiu em meio aos arbus-
tos. Rangeu os dentes e olhou para Hazel como quem diz: Então?
Você tem?
Hazel tentou se acalmar e evitar extrair mais ouro do chão. Ela se
lembrou do sonho que tivera com o pai. A voz de Plutão: Os mortos
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veem o que acreditam que verão. Assim como os vivos. Esse é o
segredo.
Percebeu o que tinha que fazer. Hazel odiava a ideia mais do que
odiava a doninha peidorreira, mais do que odiava os pés de Círon.
-- Infelizmente, sim -- disse Hazel. -- Precisamos deixar Círon
vencer.
-- O quê? -- perguntou Jason.
Hazel lhe contou seu plano.
XXVIII




HAZEL

-- ATÉ QUE ENFIM! -- EXCLAMOU CÍRON. -- VOCÊS demoraram bem
mais do que dois minutos!
-- Desculpe -- disse Jason. -- Foi difícil decidir... qual dos pés.
Hazel tentou esvaziar a mente e imaginar a cena através dos olhos
de Círon: o que ele desejava, o que esperava.
Essa era a chave para usar a Névoa. Não podia forçar alguém a
ver o mundo como ela queria. Não conseguiria fazer a realidade de
Círon parecer menos crível. Mas caso mostrasse o que ele queria
ver... Bem, era filha de Plutão. Passara décadas com os mortos,
ouvindo-os ansiar por vidas passadas das quais lembravam apenas
vagamente, vidas distorcidas pela nostalgia.
Os mortos viam o que acreditavam que veriam. Assim como os
vivos.
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Plutão era o deus do Mundo Inferior, o deus da riqueza. Talvez
essas duas esferas de influência estivessem mais relacionadas do que
Hazel pensava. Não havia muita diferença entre anseio e ganância.
Se era capaz de invocar ouro e diamantes, por que não poderia in-
vocar outro tipo de tesouro -- uma visão do mundo que as pessoas
quisessem ver?
Claro, poderia estar errada. Neste caso, ela e Jason estavam
prestes a virar comida de tartaruga.
Apoiou a mão no bolso do casaco, onde o graveto de Frank pare-
cia mais pesado do que o habitual. Agora, não estava guardando
apenas a vida dele e, sim, a de toda a tripulação.
Jason deu um passo à frente, com as mãos erguidas em sinal de
rendição.
-- Serei o primeiro, Círon. Lavarei o seu pé esquerdo.
-- Excelente escolha! -- Círon mexeu os dedos peludos e cadavéri-
cos. -- Acho que pisei em algo com esse pé. Estava um tanto melado
dentro da bota. Mas sei que vai limpá-lo adequadamente.
As orelhas de Jason ficaram vermelhas. Pela tensão em seu
pescoço, Hazel percebeu que o filho de Júpiter estava tentado a aban-
donar o plano e atacar Círon -- um golpe rápido com a sua espada de
ouro imperial. Mas Hazel sabia que ele falharia.
-- Círon -- interrompeu ela. -- Você tem água? Sabão? Como va-
mos lavar...
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-- Com isto! -- Círon rodou a pistola esquerda que, subitamente,
transformou-se em um borrifador com um trapo. Ele jogou aquilo
para Jason.
Jason leu o rótulo.
-- Você quer que eu lave os seus pés com limpador de vidro?
-- Claro que não! -- Círon franziu a testa. -- Aí diz limpador mul-
tissuperfície. Meus pés definitivamente podem ser definidos como
uma multissuperfície. Além disso, é antibacteriano. Preciso disso.
Acredite, água não funcionaria com estes bebês.
Círon mexeu os dedos de novo, exalando mais fedor de lanchon-
ete de zumbis pelo penhasco.
Jason engasgou:
-- Ah, deuses, não...
Círon deu de ombros.
-- Você também pode escolher o que tenho na outra mão.
Ele ergueu a pistola esquerda.
-- Ele vai lavar -- disse Hazel.
Jason a encarou, mas Hazel ganhou a disputa de quem olhava
mais feio.
-- Tudo bem -- murmurou ele.
-- Excelente! Agora...
Círon foi até a pedra calcária mais próxima, que era do tamanho
certo para servir de apoio para o pé. Ele olhou para o mar e pousou o
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pé sobre a pedra, de modo que mais parecia um explorador que
acabara de descobrir um novo país.
-- Observarei o horizonte enquanto você esfrega os meus
joanetes. Será muito mais agradável.
-- É -- disse Jason. -- Aposto que sim.
O garoto se ajoelhou diante do bandido, na borda do penhasco,
onde era um alvo fácil. Um chute e ele cairia.
Hazel se concentrou. Imaginou ser Círon, o senhor dos bandidos.
Estava olhando para um patético garoto de cabelos louros que não
representava qualquer ameaça, era apenas mais um semideus
derrotado prestes a se tornar sua vítima.
Em sua mente, visualizou o que aconteceria. Ela invocou a Névoa,
chamando-a das profundezas da terra como fazia com ouro, prata ou
rubis.
Jason esguichou o produto de limpeza. Seus olhos lacrimejaram.
Ele limpou o dedão de Círon com o trapo e virou o rosto com ânsia de
vômito. Hazel mal podia olhar. Quando o chute aconteceu, ela quase
não o viu.
Círon acertou o peito de Jason, que foi lançado da beira do pre-
cipício, agitando os braços e gritando enquanto caía. Quando estava
prestes a atingir a água, a tartaruga emergiu, engoliu-o em uma bo-
cada e, em seguida, submergiu.
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Alarmes soaram no Argo II. Os amigos de Hazel se espalharam
pelo convés, preparando as catapultas. Hazel ouviu o grito de Piper.
Foi tão perturbador que ela quase perdeu a concentração. Forçou
sua mente a se dividir em duas partes: uma completamente con-
centrada em sua tarefa enquanto a outra desempenhava o papel que
Círon precisava ver.
Gritou, indignada.
-- O que você fez?
-- Ah, querida... -- A voz de Círon parecia triste, mas Hazel tinha
a impressão de que ele escondia um sorriso sob a bandana. -- Foi um
acidente, eu juro.
-- Agora, meus amigos vão matar você!
-- Eles podem tentar -- disse Círon. -- Mas, enquanto isso, acho
que você vai ter tempo de lavar o meu outro pé! Acredite em mim,
querida. Minha tartaruga está satisfeita agora. Ela não a quer. Você
estará segura, a menos que recuse.
Ele apontou a pistola para a sua cabeça.
Hazel hesitou, deixando-o perceber sua angústia. Não poderia
concordar com muita facilidade, ou Círon não pensaria que ela estava
derrotada.
-- Não me chute -- implorou ela quase chorando.
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Os olhos de Círon brilharam. Era exatamente o que ele esperava.
Ela estava derrotada e indefesa. Círon, filho de Poseidon, vencera
outra vez.
Hazel mal podia acreditar que aquele cara tinha o mesmo pai que
Percy Jackson. Então lembrou-se de que Poseidon tinha uma person-
alidade mutável, como o mar. Talvez seus filhos refletissem isso.
Percy era filho do melhor lado de Poseidon -- poderoso, embora gen-
til e útil, o tipo de mar que leva os navios com segurança para terras
distantes. Círon era filho do outro lado de Poseidon, o tipo de mar
que açoita incansavelmente o litoral até erodi-lo, que arrasta inocen-
tes da praia e os afoga, ou que esmaga navios e mata tripulações in-
teiras sem misericórdia.
Ela pegou o borrifador que Jason deixara cair.
-- Círon, seus pés são a coisa menos nojenta em você -- res-
mungou ela.
Seus olhos verdes endureceram.
-- Apenas limpe.
Ela se ajoelhou, tentando ignorar o fedor. Foi um pouco para o
lado, forçando Círon a ajustar a sua postura, mas imaginou o mar
ainda às suas costas. Manteve tal visão em mente enquanto ia de
novo para o lado.
-- Comece logo a lavar! -- exigiu Círon.
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Hazel reprimiu um sorriso. Havia conseguido fazê-lo girar cento e
oitenta graus, mas ele continuava a ver o mar à sua frente e a pais-
agem rural às suas costas.
Ela começou a limpar.
Já fizera muito trabalho nojento anteriormente. Limpara os es-
tábulos dos unicórnios no Acampamento Júpiter. Cavara e enterrara
latrinas para a legião.
Isso não é nada, disse consigo mesma. Mas era difícil não vomitar
quando olhava para os dedos de Círon.
Quando o chute veio, ela foi jogada para trás, mas não foi muito
longe. Caiu sentada na grama, a alguns metros dali.
Círon olhou para ela.
-- Mas...
De repente, o mundo mudou. A ilusão se desfez, deixando o ban-
dido totalmente confuso. O mar estava às suas costas. Apenas
chutara Hazel para longe da borda.
Baixou a pistola.
-- Como...
-- Pare e entregue -- disse Hazel.
Jason mergulhou do céu, bem acima da cabeça dela, e deu um en-
contrão no bandido, lançando-o do penhasco.
Círon gritou enquanto caía, disparando a pistola desesperada-
mente, mas, pela primeira vez, seus tiros não atingiram nada. Hazel
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se levantou. Chegou à borda do penhasco a tempo de ver a tartaruga
surgir e abocanhar Círon em pleno ar.
Jason sorriu.
-- Hazel, isso foi incrível. Sério... Hazel? Ei, Hazel?
Hazel caiu de joelhos, subitamente tonta.
Podia ouvir seus amigos comemorando no navio. Jason se aprox-
imou dela, mas se movia em câmera lenta. Sua figura parecia bor-
rada, e era impossível compreender o que dizia.
A geada cobriu as pedras e a grama à sua volta. O monte de te-
souros que ela invocara voltou a afundar na terra. A Névoa rodopiou.
O que eu fiz?, pensou em pânico. Algo deu errado.
-- Não, Hazel -- disse uma voz grave às suas costas. -- Você se
saiu muito bem.
Ela mal se atrevia a respirar. Ouvira aquela voz uma única vez,
mas a repetira em sua mente milhares de vezes.
Voltou-se e se viu diante de seu pai.
Ele estava vestido em estilo romano: cabelo escuro cortado bem
curto, rosto pálido, anguloso e barbeado. Sua túnica e toga eram de lã
preta, bordadas com fios de ouro. Rostos de almas atormentadas
agitavam o tecido. A bainha de sua toga tinha uma linha da cor do
carmim de um senador ou de um pretor, mas ondulava como um rio
de sangue. No dedo anelar de Plutão havia uma enorme opala, como
um pedaço polido de Névoa congelada.
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O seu anel de casamento, pensou a garota. Mas Plutão nunca se
casara com a mãe de Hazel. Deuses não se casam com mortais.
Aquele anel deveria ser de seu casamento com Perséfone.
O pensamento a deixou com tanta raiva que ela ignorou a tontura
e se levantou.
-- O que você quer? -- perguntou.
Hazel esperava que seu tom de voz o ferisse, deixasse-o magoado
depois de toda a dor que ele lhe causara. Mas um leve sorriso
esboçou-se nos lábios de Plutão.
-- Minha filha. Estou impressionado. Você ficou mais forte.
Não graças a você, Hazel teve vontade de dizer. Não queria sentir
qualquer prazer com aquele elogio, mas ainda assim seus olhos
arderam.
-- Pensei que vocês, deuses maiores, estivessem incapacita-
dos -- conseguiu dizer. -- Que as suas personalidades gregas e ro-
manas estivessem lutando umas contra as outras.
-- Estamos -- concordou Plutão. -- Mas você me invocou com tal
força que me permitiu aparecer... mesmo que apenas por um
instante.
-- Não o invoquei.
Contudo, sabia que não era verdade. Pela primeira vez, Hazel
aceitava de bom grado ser uma filha de Plutão. Havia tentado en-
tender os poderes de seu pai e aproveitá-los ao máximo.
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-- Quando vier à minha casa, em Épiro, você deverá estar pre-
parada -- avisou Plutão. -- Os mortos não vão recebê-la bem. E a
feiticeira Pasifae...
-- Pacífica? -- perguntou Hazel.
Percebeu então que aquele devia ser o nome da mulher.
-- Ela não se deixará enganar tão facilmente quanto Círon. -- Os
olhos de Plutão brilhavam como pedra vulcânica. -- Você passou em
seu primeiro teste, mas Pasifae pretende reconstruir o seu domínio, o
que colocará todos os semideuses em risco. A menos que você a de-
tenha na casa de Hades...
Sua forma bruxuleou. Por um instante, ficou barbudo, usando
uma túnica grega e uma coroa de louros dourados na cabeça. A seus
pés, mãos esqueléticas romperam a terra.
O deus rangeu os dentes e fez uma careta.
Sua forma romana se estabilizou. As mãos esqueléticas voltaram a
se dissolver na terra.
-- Não temos muito tempo. -- Seu pai parecia um homem so-
frendo de uma terrível doença. -- Saiba que as Portas da Morte estão
no nível mais baixo do Necromanteion. Você deve fazer Pasifae ver o
que ela deseja ver. Você está certa. Esse é o segredo de toda a magia.
Mas não será fácil quando estiver no labirinto dela.
-- Como assim? Que labirinto?
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-- Você vai entender -- prometeu Plutão. -- E, Hazel Levesque...
sei que não acredita em mim, mas estou orgulhoso de sua força. Às
vezes... Às vezes, a única maneira de cuidar de meus filhos é me
mantendo afastado.
Hazel engoliu um insulto. Plutão era apenas mais um deus pai
desnaturado dando desculpas esfarrapadas. Mas seu coração batia
forte enquanto repetia mentalmente suas palavras: Estou orgulhoso
de sua força.
-- Vá encontrar os seus amigos -- disse Plutão. -- Eles vão ficar
preocupados. A viagem até o Épiro ainda lhes reserva muitos perigos.
-- Espere -- disse Hazel.
Plutão ergueu uma sobrancelha.
-- Quando conheci Tânatos -- disse ela --, você sabe... a Morte...
ele falou que eu não estava na lista de espíritos extraviados a serem
capturados. Disse que talvez por isso você estivesse mantendo distân-
cia. Se me reconhecesse, teria que me levar de volta para o Mundo
Inferior.
Plutão esperou.
-- O que quer saber?
-- Você está aqui. Por que não me leva para o Mundo Inferior, de
volta para os mortos?
Plutão começou a desaparecer. Ele sorriu, mas Hazel não podia
dizer se estava triste ou feliz.
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-- Talvez isso não seja o que eu queira ver, Hazel. Talvez eu nunca
tenha estado aqui.
XXIX




PERCY

FOI UM ALÍVIO PARA PERCY quando as vovós demoníacas se aproxim-
aram para a matança.
Ele estava apavorado, claro. Não gostava da desvantagem de três
contra várias dezenas. Mas pelo menos lutar lhe era familiar. Camin-
har pelas trevas, apenas à espera de ser atacado... Isso o estava deix-
ando maluco.
Além do mais, ele e Annabeth tinham lutado juntos inúmeras
vezes. E agora tinham um titã do seu lado.
-- Para trás.
Percy brandiu Contracorrente na direção da bruxa enrugada mais
próxima, mas ela apenas deu um sorriso de desprezo.
Nós somos as arai, ecoou outra vez a estranha voz, como se a
floresta inteira estivesse falando. Vocês não podem nos destruir.
Annabeth encostou-se nele.
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-- Não encoste nelas -- alertou a garota. -- São os espíritos das
maldições.
-- Bob não gosta de maldições -- disse o zelador, decidido.
O gatinho esqueleto, Bob Pequeno, desapareceu dentro do
macacão do titã. Gato esperto.
Bob descreveu um arco amplo com a vassoura e forçou os espíri-
tos a recuarem, mas eles voltaram como uma onda.
Nós servimos aos amargos e derrotados, disseram as arai. Servi-
mos aos que foram mortos e rezaram por vingança em seu último
suspiro. Temos muitas maldições para dividir com vocês.
O fogo líquido no estômago de Percy começou a subir por sua gar-
ganta. Como seria bom se o Tártaro tivesse uma maior opção de bebi-
das, ou talvez uma árvore de frutos antiácidos.
-- Muito obrigado -- agradeceu ele. -- Mas minha mãe me disse
para nunca aceitar maldições de estranhos.
A criatura demoníaca mais próxima deu um bote. Suas garras se
projetavam como navalhas de ossos. Percy a cortou ao meio, mas as-
sim que ela se evaporou, os lados do peito dele arderam de dor.
Recuou, com as mãos apertando a caixa torácica. Quando viu seus
dedos, estavam molhados e vermelhos.
-- Percy, você está sangrando! -- gritou Annabeth, o que àquela
altura era meio óbvio para ele. -- Ah, meus deuses, dos dois lados.
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Era verdade. Sua camisa esfarrapada estava ensopada de sangue
dos lados direito e esquerdo, como se ele tivesse sido atravessado por
uma lança.
Ou uma flecha...
A sensação de náusea quase o derrubou. Vingança. Uma
maldição dos que foram mortos.
Ele se lembrou de uma luta no Texas dois anos antes, contra um
fazendeiro monstruoso que só podia ser morto se todos os seus três
corpos fossem atingidos ao mesmo tempo.
-- Geríon -- disse Percy. -- Foi assim que eu o matei...
Os espíritos mostraram suas presas. Mais arai saltaram das
árvores negras, batendo suas asas de morcego.
Isso, concordaram elas. Sinta a dor que você infligiu a Geríon.
Tantas maldições foram lançadas contra você, Percy Jackson... De
qual você vai morrer? Escolha, ou vamos destruí-lo!
De algum modo Percy conseguiu continuar de pé. O sangue parou
de escorrer, mas ele ainda sentia como se uma barra de metal quente
estivesse atravessando suas costelas. O braço da espada estava
pesado e fraco.
-- Não entendo -- murmurou ele.
A voz de Bob parecia muito distante, como se ecoasse do fim de
um túnel comprido.
-- Se matar uma, ela passa uma maldição para você.
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-- Mas se nós não as matarmos... -- disse Annabeth.
-- Elas vão matar a gente de qualquer jeito -- adivinhou Percy.
Escolha!, gritaram as arai. Quer ser esmagado como Campe? Ou
desintegrado como os jovens telquines que matou aos pés do Monte
Santa Helena? Você causou muita morte e sofrimento, Percy Jack-
son. Nós vamos lhe dar o troco!
As bruxas aladas se aproximaram mais. Tinham um bafo azedo, e
seus olhos brilhavam de ódio. Pareciam Fúrias, mas Percy concluiu
que eram criaturas ainda piores. Pelo menos as três Fúrias estavam
sob o controle de Hades. Essas coisas eram selvagens e não paravam
de se multiplicar.
Se elas eram realmente as personificações das maldições lançadas
à beira da morte de todos os inimigos que Percy destruíra... então es-
tava com sérios problemas. Tinha enfrentado muitos inimigos.
Um dos demônios avançou em Annabeth. Ela se esquivou in-
stintivamente, golpeou a cabeça da velha com sua pedra e a transfor-
mou em poeira.
Annabeth não teve escolha, assim como Percy. Instantaneamente,
entretanto, Annabeth soltou a pedra e gritou apavorada.
-- Não consigo ver!
Ela tocou o rosto, olhando desesperada de um lado para outro.
Seus olhos estavam completamente brancos.
Percy correu para seu lado enquanto as arai falavam.
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Polifemo a amaldiçoou quando você o enganou com sua invisib-
ilidade no Mar de Monstros. Você disse se chamar Ninguém. Ele
não podia vê-la. Agora é você que não vai ver quem a atacar.
-- Estou aqui -- disse Percy.
Ele envolveu Annabeth com um braço, mas quando as arai
avançassem, ele não sabia como poderia proteger nenhum dos dois.
Uma dúzia de demônios atacou de todas as direções, mas Bob
gritou:
-- VARRER!
Sua vassoura passou zunindo acima da cabeça de Percy. Toda a
linha ofensiva das arai foi derrubada como pinos de boliche.
Outras avançaram. Bob acertou uma na cabeça e perfurou outra,
transformando-as em pó. As demais recuaram.
Percy prendeu a respiração, à espera de que seu amigo titã fosse
derrubado por alguma maldição terrível, mas Bob parecia bem, um
guarda-costas enorme e prateado que mantinha a morte a distância
com a mais assustadora de todas as ferramentas de limpeza.
-- Bob, você está bem? -- perguntou Percy. -- Sem maldições?
-- Nada de maldições para Bob! -- confirmou ele.
As arai rosnavam e formaram um círculo, atentas à vassoura. O
titã já está amaldiçoado. Por que deveríamos torturá-lo mais? Você,
Percy Jackson, já destruiu a memória dele.
A lança de Bob baixou rapidamente.
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-- Bob, não dê ouvidos a elas -- pediu Annabeth. -- Elas são más!
O tempo pareceu ficar mais lento. Percy se perguntou se o espírito
de Cronos estaria em algum lugar por perto, espreitando na escur-
idão e se divertindo tanto com aquele momento que desejara fazê-lo
durar para sempre. Percy se sentiu exatamente como quando tinha
12 anos, enfrentando Ares naquela praia em Los Angeles, no mo-
mento em que a sombra do senhor dos titãs passou pela primeira vez
sobre ele.
Bob se virou. Seus cabelos prateados desgrenhados pareciam um
halo.
-- Minha memória... Foi você?
Amaldiçoe-o, titã!, insistiram as arai com os olhos vermelhos e
brilhantes. Aumente nossas maldições!
O coração de Percy bateu mais rápido.
-- Bob, é uma longa história. Não queria que você fosse meu in-
imigo. Tentei fazer de você um amigo.
Roubando sua vida, disseram as arai. Eles o deixaram no palá-
cio de Hades para limpar o chão!
Annabeth segurou a mão de Percy.
-- Para onde? -- sussurrou. -- Se tivermos que correr.
Ele entendeu.
Se Bob não os protegesse, sua única chance era correr, o que sig-
nificava que na verdade não tinham chance.
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-- Bob, escute -- disse, tentando de novo. -- As arai querem que
você fique com raiva. Elas são fruto de pensamentos amargos. Não dê
a elas o que querem. Nós somos seus amigos.
Mesmo enquanto dizia essas palavras, Percy se sentiu um
mentiroso. Ele tinha deixado Bob no Mundo Inferior e nunca mais
pensara nele desde então. Por que seriam amigos? Só porque precis-
ava do titã agora? Percy sempre odiava quando os deuses o usavam
para realizar suas tarefas. Agora estava tratando Bob do mesmo jeito.
Está vendo o rosto dele?, rosnaram as arai. O garoto não con-
segue nem se convencer. Ele visitou você alguma vez depois que
roubou sua memória?
-- Não -- murmurou Bob. Seu lábio inferior estava trêmulo. -- O
outro visitou.
Percy ficou confuso.
-- O outro?
-- Nico. -- Bob o olhou de cara feia, com uma expressão ma-
goada. -- Nico me visitou. Ele me falou de Percy. Disse que Percy era
bom. Disse que ele era amigo. Foi por isso que Bob ajudou.
-- Mas... -- A voz de Percy falhou como se alguém o tivesse at-
ingido com uma lâmina de bronze Celestial. Nunca tinha se sentido
tão baixo e vil, tão pouco merecedor de uma amizade.
As arai atacaram, e dessa vez Bob não as deteve.
XXX




PERCY

-- ESQUERDA! -- PERCY PUXOU ANNABETH, golpeando as arai com a
espada para abrir caminho. Provavelmente tinha recebido uma
dezena de maldições, mas não as sentiu imediatamente, por isso não
parou de correr.
Sentia apenas uma pontada de dor no peito que aumentava a cada
passo. Desviava das árvores, conduzindo Annabeth a toda velocid-
ade, apesar da cegueira da garota.
Percy percebeu quanto ela confiava nele para resolver o prob-
lema. Não podia decepcioná-la, mas como poderia salvá-la? E se ela
ficasse permanentemente cega... Não. Ele se obrigou a ficar calmo.
Mais tarde descobriria uma maneira de curá-la. Primeiro tinham que
escapar.
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Asas coriáceas cortavam o ar acima deles. Sibilos raivosos e o cor-
rer de pés com garras deixavam claro que os demônios os
perseguiam.
Quando passaram por uma das árvores negras, partiu o tronco
com a espada. Ele a ouviu cair, e, logo depois, o agradável barulho de
dezenas de arai sendo esmagadas.
Se uma árvore cai na floresta e esmaga um demônio, será que a
árvore é amaldiçoada?
Percy partiu outro tronco e outro em seguida. Isso atrasou seus
perseguidores, mas não o suficiente.
De repente, a escuridão adiante ficou mais densa. Percy percebeu
o que era bem a tempo. Agarrou Annabeth antes que os dois caíssem
direto em um precipício.
-- O que foi? -- gritou ela. -- O que aconteceu?
-- Precipício -- respondeu sem fôlego. -- Precipício enorme.
-- Então para onde vamos?
Percy não conseguia ver a altura do penhasco. Seria de dez ou mil
metros. Não dava para saber o que havia no fundo. Podiam saltar e
torcer pela melhor das hipóteses, mas duvidava que o "melhor"
acontecesse no Tártaro.
Então havia duas opções: direita ou esquerda, acompanhando a
borda do penhasco.
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Estava prestes a escolher aleatoriamente quando um demônio
alado pairou sobre o vazio à sua frente batendo com suas asas de
morcego, próximo mas fora do alcance de sua espada.
O passeio foi bom?, perguntou a voz coletiva, ecoando à sua volta.
Percy se virou. As arai estavam saindo da floresta e formando
uma meia-lua em torno deles. Uma agarrou o braço de Annabeth,
que gritou de raiva. Deu um golpe de judô no monstro e pulou no seu
pescoço, pondo todo o peso do corpo em um golpe com o cotovelo
que teria deixado qualquer lutador profissional orgulhoso.
O demônio se desintegrou, mas, quando Annabeth se levantou,
parecia atônita e assustada, além de cega.
-- Percy? -- chamou com a voz trêmula pelo pânico.
-- Estou aqui.
Tentou tocar em seu ombro, mas ela não estava no mesmo lugar.
Tentou de novo e descobriu que ela estava alguns metros mais dis-
tante. Era como tentar agarrar algo dentro da água, quando a luz
fazia a imagem mudar de lugar.
-- Percy! -- gritou a voz de Annabeth. -- Por que você me
abandonou?
-- Não abandonei! -- Ele encarou as arai, com os braços trêmulos
de raiva. -- O que fizeram com ela?
Não fizemos nada, disseram os demônios. Sua amada liberou
uma maldição especial... um pensamento amargo para alguém que
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você abandonou. Você puniu uma alma inocente deixando-a só.
Agora o desejo mais cheio de ódio dessa alma se realizou: Annabeth
sente o desespero dela. Também morrerá sozinha e abandonada.
-- Percy? -- Annabeth estendeu os braços para tentar localizá-lo.
As arai recuaram e deixaram que ela andasse cegamente e aos
tropeções através delas.
-- Quem eu abandonei? -- perguntou Percy. -- Eu nunca...
De repente, sentiu como se seu estômago tivesse caído no
precipício.
As palavras ecoaram em sua mente: Uma alma inocente.
Solitária e abandonada. Lembrou de uma ilha, uma caverna ilumin-
ada pelo brilho suave de cristais, uma mesa de jantar na praia servida
por criados invisíveis.
-- Ela não... -- balbuciou. -- Ela jamais iria me amaldiçoar.
Os olhos dos demônios se misturaram como suas vozes. Percy
sentiu as laterais do corpo latejarem. A dor no peito estava pior,
como se alguém estivesse girando lentamente um punhal.
Annabeth caminhava em meio aos demônios, chamando deses-
peradamente por ele. Percy ansiava por correr até ela, mas sabia que
as arai o impediriam. A única razão para não a terem matado ainda
era porque estavam desfrutando de sua desgraça.
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Percy cerrou os dentes. Não ligava para quantas maldições so-
fresse. Tinha que manter aquelas decrépitas bruxas coriáceas con-
centradas nele e proteger Annabeth enquanto conseguisse.
Furioso, gritou e atacou todas elas.
XXXI




PERCY

POR UM EMPOLGANTE MINUTO, PERCY sentiu como se estivesse ven-
cendo. Contracorrente cortava as arai como se fossem feitas de
manteiga. Uma entrou em pânico, correu e deu de cara com uma
árvore. Outra gritou e tentou escapar voando, mas ele cortou suas as-
as e lançou-a girando para o abismo.
Cada vez que um demônio se desintegrava, Percy recebia uma
nova maldição, o que fazia crescer nele uma sensação de medo. Algu-
mas maldições eram cruéis e dolorosas: uma punhalada na barriga,
ou uma sensação de queimação como se estivesse sendo atacado por
um maçarico. Outras eram sutis: um calafrio na espinha, um tique
incontrolável no olho direito.
Fala sério, quem usa o último suspiro para amaldiçoar você com:
Espero que tenha um tique nervoso!
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Percy sabia que tinha matado muitos monstros, mas nunca pen-
sou nisso do ponto de vista de suas vítimas. Agora, toda a dor, raiva e
amargura delas se derramaram sobre ele, minando sua resistência.
Mesmo assim as arai continuavam a atacar. Para cada uma que
derrubava, pareciam surgir mais seis.
O braço que segurava a espada ficou ainda mais cansado. Seu
corpo doía, e a visão começou a embaçar. Tentou abrir caminho na
direção de Annabeth, mas ela estava longe demais, chamando-o e an-
dando sem rumo entre os demônios.
Enquanto tentava chegar até ela, um demônio deu um bote e cra-
vou os dentes em sua coxa. Percy urrou e transformou o demônio em
pó com um golpe, mas caiu de joelhos.
Sua boca queimava mais do que se houvesse engolido fogo líquido
do Flegetonte. Ele se curvou, tremendo e com ânsias de vômito, sen-
tindo como se serpentes de chamas descessem por seu esôfago.
Você escolheu, disse a voz das arai. A Maldição de Fineu... uma
morte dolorosa excelente.
Percy tentou falar, mas sua língua parecia estar assando. Lem-
brou do velho rei cego que tinha perseguido harpias por Portland
com um aparador de grama. Percy o desafiou para um confronto, e o
perdedor bebeu o fatal sangue de górgona. Percy não se lembrava de
ouvir o velho moribundo murmurar uma maldição em seus segundos
finais, mas enquanto Fineu se dissolvia e voltava para o Mundo
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Inferior, provavelmente não desejara a Percy uma vida longa e
próspera.
Depois da vitória, Gaia o alertou: Não abuse da sorte. Quando
chegar a hora de sua morte, prometo que ela será muito mais dol-
orosa que o sangue de górgona.
Agora estava no Tártaro morrendo por causa do sangue de gór-
gona além de muitas outras maldições torturantes enquanto via a
namorada cambalear sem rumo, indefesa, cega e acreditando que
fora abandonada. Apertou a espada. As juntas dos dedos começaram
a fumegar. Uma fumaça branca veio subindo de seus antebraços.
Não vou morrer assim, pensou ele.
Não apenas por ser um jeito doloroso e extremamente tosco, mas
porque Annabeth precisava dele. Quando morresse, os demônios se
concentrariam nela. Não podia abandoná-la.
As arai se amontoaram em torno dele, rindo, rosnando e
sibilando.
Primeiro, a cabeça dele vai explodir, especulou a voz.
Não, a voz respondeu a si mesma de outra direção. Ele vai entrar
em combustão espontânea.
Estavam fazendo apostas sobre sua morte... sobre o formato da
marca calcinada que deixaria no chão.
-- Bob -- gemeu sem forças. -- Preciso de você.
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Era uma súplica desesperada. Mal conseguia ouvir a si mesmo.
Por que Bob deveria atender seu chamado pela segunda vez? O titã
agora sabia a verdade. Percy não era amigo.
Ergueu os olhos uma última vez. Tudo em torno dele parecia
tremeluzir. O céu fervia e o solo estava coberto de bolhas.
Percy percebeu que o que vira no Tártaro era apenas uma versão
diluída de seu verdadeiro horror, apenas aquilo com que seu cérebro
de semideus podia lidar. O pior ficava oculto, do mesmo modo que a
neblina escondia os monstros de olhos mortais. Agora, enquanto
morria, Percy enxergou a verdade.
O ar era a respiração de Tártaro. Todos aqueles monstros eram
apenas células sanguíneas que circulavam por seu corpo. Tudo que
Percy via era um sonho na mente do deus sombrio das profundezas.
Nico deve ter visto Tártaro assim, e isso quase o enlouquecera.
Nico... uma das muitas pessoas que Percy não tinha tratado bem o
suficiente. Ele e Annabeth só tinham conseguido chegar tão longe no
Tártaro porque Nico Di Angelo tornara-se amigo verdadeiro de Bob.
Está vendo o horror das profundezas?, disseram as arai em voz
tranquilizadora. Desista, Percy Jackson. Não é melhor morrer do
que sofrer aqui?
-- Sinto muito -- murmurou Percy.
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Ele está se desculpando!, as arai riram de prazer. Ele se arre-
pende de sua vida fracassada, de seus crimes contra os filhos do
Tártaro!
-- Não -- disse Percy. -- Sinto muito, Bob. Devia ter sido honesto
com você. Por favor... me perdoe. Proteja Annabeth.
Não esperava que Bob ouvisse ou se importasse, mas pareceu o
certo a fazer para ter a consciência limpa. Não podia culpar mais nin-
guém por seus problemas. Nem os deuses. Nem Bob. Nem sequer
Calipso, a garota que deixara sozinha naquela ilha. Talvez ela
houvesse ficado amargurada e, por desespero, amaldiçoado a namor-
ada de Percy. Mesmo assim... ele devia ter buscado informações
sobre Calipso e se assegurado de que os deuses a houvessem liber-
tado de seu exílio em Ogígia como prometeram. Não a tratara nem
um pouco melhor do que tratara Bob. Nem pensou muito nela,
apesar de sua planta de enlace lunar ainda florescer na jardineira da
mãe dele.
Usou suas últimas forças e conseguiu se levantar. Todo seu corpo
exalava vapor. Suas pernas tremiam. Suas entranhas se revolviam
como o interior de um vulcão.
Pelo menos partiria lutando. Percy ergueu Contracorrente.
Mas antes que pudesse atacar, todas as arai à sua frente ex-
plodiram e viraram pó.
XXXII




PERCY

BOB SABIA MESMO COMO USAR uma vassoura.
Golpeava a torto e a direito, destruindo demônios um atrás do
outro com o gatinho Bob Pequeno em seu ombro, arqueando as cost-
as e rosnando.
Em poucos segundos, as arai desapareceram. A maioria evapor-
ou. As inteligentes tinham voado para a escuridão gritando
aterrorizadas.
Percy queria agradecer o titã, mas não conseguiu falar. Suas per-
nas fraquejaram. Os ouvidos zumbiam. Em meio a um brilho ver-
melho de dor, viu Annabeth a alguns metros de distância, andando
sem rumo e às cegas em direção ao precipício.
-- Não! -- grunhiu Percy.
Bob acompanhou o olhar dele, correu e tirou Annabeth do chão.
Ela gritava, chutava, e socava a barriga do zelador, mas ele não
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parecia se incomodar. Carregou-a até Percy e a colocou no chão com
delicadeza.
O titã tocou a testa dela.
-- Ui!
Annabeth parou de lutar. Seus olhos desanuviaram.
-- Aonde... o quê...?
Ela viu Percy, e uma série de expressões passaram por seu rosto:
alívio, alegria, choque, horror.
-- O que houve com ele? -- gritou ela. -- O que aconteceu?
Ela abraçou Percy e chorou sobre sua cabeça.
Ele queria dizer que estava tudo bem, mas claro que não estava.
Não sentia mais o próprio corpo. Sua consciência parecia um balãoz-
inho, amarrado frouxamente no alto de sua cabeça. Não tinha peso,
nem força. Apenas continuava a se expandir, ficando cada vez mais
leve. Sabia que logo explodiria, ou a linha iria se romper, e sua vida
flutuaria para longe.
Annabeth tomou seu rosto nas mãos. Ela o beijou e tentou limpar
a poeira e o suor dos olhos dele.
Bob estava parado perto dos dois com a vassoura fincada no chão
como uma bandeira. Era impossível compreender o que sentia ol-
hando seu rosto, luminosamente branco no escuro.
-- Muitas maldições -- explicou Bob. -- Percy fez coisas ruins com
monstros.
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-- Você pode curá-lo? -- implorou Annabeth. -- Como fez com
minha cegueira? Cure Percy!
Bob franziu o cenho. Cutucou o crachá em seu uniforme como se
fosse uma casca de ferida.
Annabeth tentou de novo.
-- Bob...
-- Jápeto -- disse Bob, com uma voz que soava como um ronco
grave. -- Antes de Bob. Era Jápeto.
Tudo pareceu congelar. Percy se sentia desamparado, mal con-
ectado com o mundo.
-- Prefiro o Bob. -- A voz da menina estava surpreendentemente
calma. -- De qual você gosta?
O titã olhou para ela com seus olhos de prata pura.
-- Não sei mais.
Ele se agachou ao lado dela e examinou Percy. O rosto do titã
parecia exausto e envelhecido, como se de repente sentisse o peso de
todos os seus séculos de vida.
-- Eu prometi -- murmurou ele. -- Nico me pediu para ajudar.
Acho que nem Jápeto nem Bob gostam de quebrar promessas.
E tocou a testa de Percy.
-- Ui -- murmurou o titã. -- Um Ui muito grande.
Percy voltou para seu corpo. O zumbindo nos ouvidos desapare-
ceu, e sua visão clareou. Ainda tinha a sensação de ter engolido uma
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fritadeira, e suas entranhas borbulhavam. Podia sentir também que o
veneno tivera apenas sua velocidade reduzida, não havia sido
expurgado.
Mas estava vivo.
Tentou fitar Bob para expressar sua gratidão. Sua cabeça caiu sem
forças sobre o peito.
-- Bob não consegue curar isso -- explicou ele. -- Veneno demais.
Maldições demais acumuladas.
Annabeth abraçou Percy. Ele queria dizer: Agora posso sentir. Ai.
Apertado demais.
-- O que podemos fazer, Bob? -- perguntou Annabeth. -- Tem
água em algum lugar por perto? Talvez água o cure.
-- Não tem água -- disse Bob. -- Tártaro é mau.
Eu percebi, Percy teve vontade de berrar.
Pelo menos o titã chamava a si próprio de Bob. Mesmo que o cul-
passe por tirar sua memória, talvez ajudasse Annabeth se Percy não
conseguisse.
-- Não -- insistiu ela. -- Não, tem que haver um jeito. Algo que
possa curá-lo.
Bob pôs a mão no peito de Percy. Um formigamento frio como
pomada de eucalipto espalhou-se sobre seu esterno. Mas assim que
Bob tirou a mão, o alívio parou. Os pulmões de Percy voltaram a
queimar como se estivessem cheios de lava.
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-- Tártaro mata semideuses -- disse Bob. -- Cura monstros, mas
vocês não são. Tártaro não vai curar Percy. As profundezas odeiam
sua espécie.
-- Não me importa -- disse Annabeth. -- Mesmo aqui, tem que
haver algum lugar onde ele possa descansar, algum elixir curativo
que possa tomar. Talvez lá atrás, no altar de Hermes, ou...
Ao longe, ouviu-se uma voz alta, grave e profunda, uma voz que
Percy reconheceu, infelizmente.
-- SINTO O CHEIRO DELE! -- ribombou o gigante. -- CUIDADO, FILHO

DE POSEIDON! EU VIM PEGAR VOCÊ!
-- Polibotes -- disse Bob. -- Ele odeia Poseidon e seus filhos. E
agora está muito perto.
Annabeth se esforçou para ajudar Percy a se levantar. Ele odiava
dar tanto trabalho, mas se sentia como se fosse um saco de batatas.
Mesmo com Annabeth sustentando quase todo o seu peso, mal con-
seguia se manter de pé.
-- Bob, vou seguir em frente, com ou sem você -- disse
ela. -- Você vai ajudar?
Bob Pequeno começou a miar e ronronar, se esfregando contra o
queixo de Bob.
Bob, o titã, olhou para Percy, e Percy desejou poder interpretar
sua expressão. Estava com raiva, ou apenas pensativo? Será que
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estava planejando vingança, ou simplesmente se sentindo chateado
porque Percy mentira sobre ser seu amigo?
-- Tem um lugar -- disse Bob por fim. -- Tem um gigante que
pode saber o que fazer.
Annabeth quase deixou Percy cair.
-- Um gigante. Hum, Bob, gigantes são maus.
-- Um é bom -- insistiu Bob. -- Confiem em mim, e eu levo vo-
cês... a menos que Polibotes e os outros nos peguem.
XXXIII




JASON

JASON ADORMECEU EM PLENA MISSÃO. O que era ruim, já que estava a
mais de trezentos metros de altura.
Deveria ter imaginado. Era a manhã seguinte de seu encontro
com Círon, o bandido, e estava no ar, lutando com alguns venti
selvagens que ameaçavam o navio. Quando destruiu o último,
esqueceu-se de prender a respiração.
Um erro idiota. Quando um espírito do vento se desintegra, cria
um vácuo. Se você não estiver prendendo a respiração, o ar é sugado
de seus pulmões. A pressão nos ouvidos internos cai tão rápido que a
pessoa desmaia.
Foi o que aconteceu com Jason.
Para piorar, ele mergulhou imediatamente em um sonho. Do
fundo de seu subconsciente, perguntou-se: Sério? Agora?
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Precisava acordar ou morreria; mas não conseguiu se concentrar
nesse pensamento. No sonho, estava no teto de um edifício alto, a sil-
hueta dos prédios de Manhattan espalhando-se à sua volta na pais-
agem noturna. Um vento frio açoitava suas roupas.
A poucos quarteirões dali, algumas nuvens se juntavam acima do
Empire State -- a entrada para o Monte Olimpo. Relâmpagos
cortavam o céu. O ar estava metálico, cheirando a chuva iminente. O
topo do arranha-céu estava iluminado como de costume, mas as
luzes pareciam não estar funcionando direito. Ficavam mudando de
roxo para laranja, como se as cores estivessem em uma disputa.
Junto com Jason no teto do prédio estavam seus antigos compan-
heiros do Acampamento Júpiter: uma tropa de semideuses trajando
armaduras, suas armas e escudos de ouro imperial brilhando na es-
curidão. Viu Dakota e Nathan, Leila e Marcus. Octavian estava um
pouco afastado, magro e pálido, os olhos avermelhados devido à in-
sônia ou à raiva, com vários bichinhos de pelúcia para sacrifícios
presos ao cinto. Usava o manto branco de áugure sobre uma camiseta
roxa e uma calça cargo.
No meio da fileira estava Reyna com os cães de metal Aurum e
Argentum a seu lado. Ao vê-la, Jason sentiu uma grande pontada de
culpa. Ele a deixara crer que os dois tinham um futuro juntos. Nunca
fora apaixonado por ela, e não lhe dera esperanças... mas também
nunca a desencorajara.
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Ele desaparecera, e Reyna teve que liderar o acampamento soz-
inha. (O.k., aquilo não fora exatamente ideia de Jason, mas mesmo
assim...) Então voltou para o Acampamento Júpiter com sua nova
namorada, Piper, e um bando de amigos gregos em um navio de
guerra. Dispararam contra o Fórum e fugiram, deixando-a com uma
guerra nas mãos.
No sonho, ela parecia cansada. Os outros podiam não notar, mas
Jason já trabalhara com Reyna por tempo suficiente para reconhecer
o cansaço em seus olhos, a tensão em seus ombros sob as tiras da ar-
madura. Seu cabelo escuro estava molhado, como se tivesse tomado
um banho rápido.
Os romanos encaravam a porta de acesso ao teto do prédio como
se estivessem à espera de alguém.
Quando a porta se abriu, duas pessoas surgiram. Uma delas era
um fauno -- não, pensou Jason --, um sátiro. Aprendera a diferença
no Acampamento Meio-Sangue, e o treinador Hedge sempre o corri-
gia quando ele se confundia. Os faunos romanos vagavam por aí
mendigando e comendo. Os sátiros eram mais úteis, mais envolvidos
com os assuntos dos semideuses. Jason não acreditava ter visto
aquele sátiro em particular antes, mas tinha certeza de que ele estava
do lado dos gregos. Nenhum fauno caminharia com tanta segurança
em direção a um grupo armado de romanos no meio da noite.
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Ele usava uma camiseta verde do Nature Conservancy com im-
agens de animais ameaçados de extinção, baleias, tigres e outros tan-
tos. Nada cobria seus cascos e suas pernas peludas. Tinha um cavan-
haque espesso, cabelos castanhos encaracolados escondidos sob um
gorro rastafári e uma flauta de bambu pendurada no pescoço. Ele re-
mexia na barra da camisa, mas, considerando a maneira como estu-
dava os romanos, prestando atenção em suas posições e armas,
Jason percebeu que aquele sátiro já estivera em um combate.
Ao seu lado estava uma menina ruiva que Jason reconhecia do
Acampamento Meio-Sangue: era o oráculo, Rachel Elizabeth Dare.
Ela tinha longos cabelos encaracolados, usava uma blusa branca e
uma calça jeans cheia de desenhos feitos à mão. Segurava uma
escova de cabelo de plástico azul que batia nervosamente na coxa,
como um talismã da sorte.
Jason lembrou-se dela junto à fogueira do acampamento, recit-
ando a profecia que o enviara junto com Piper e Leo em sua primeira
missão. Ela era uma adolescente mortal normal -- não uma semi-
deusa --, contudo, por razões que Jason jamais entendera, o espírito
de Delfos a escolhera como seu porta-voz.
A verdadeira questão era: o que ela estava fazendo com os
romanos?
A garota deu um passo à frente, os olhos fixos em Reyna.
-- Você recebeu minha mensagem.
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Octavian sorriu com desdém.
-- Esse é o único motivo de terem chegado vivos até aqui, grae-
cus. Espero que tenham vindo para discutir os termos de sua
rendição.
-- Octavian -- advertiu Reyna.
-- Ao menos os reviste! -- protestou Octavian.
-- Não há necessidade -- disse Reyna, estudando Rachel
Dare. -- Vocês estão armados?
Rachel deu de ombros.
-- Certa vez, acertei o olho de Cronos com esta escova. Fora isso,
não.
Os romanos pareciam não saber como reagir àquela resposta. A
mortal não parecia estar brincando.
-- E seu amigo? -- Reyna apontou para o sátiro. -- Pensei que
viria sozinha.
-- Este é Grover Underwood -- disse Rachel. -- Ele é um líder do
Conselho.
-- Qual conselho? -- questionou Octavian.
-- Conselho dos Anciãos de Casco Fendido, cara. -- A voz de
Grover soava alta e esganiçada, como se estivesse com medo, mas
Jason suspeitou que o sátiro era mais corajoso do que deixava trans-
parecer. -- Sério, os romanos não têm natureza, árvores e tal? Tenho
algumas notícias que vocês precisam ouvir. Além disso, sou um
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protetor de carteirinha. Estou aqui para, vocês sabem, proteger
Rachel.
Reyna parecia estar tentando segurar o riso.
-- Sem nenhuma arma?
-- Apenas a flauta de bambu. -- A expressão de Grover tornou-se
melancólica. -- Percy sempre disse que meu cover de "Born to be
Wild" deveria contar como uma arma perigosa, mas não creio que
seja tão ruim assim.
Octavian zombou:
-- Outro amigo de Percy Jackson. Só me faltava essa.
Reyna ergueu a mão pedindo silêncio. Seus cães de ouro e prata
farejaram o ar, mas se mantiveram calmos e atentos ao seu lado.
-- Até agora nossos visitantes só disseram a verdade -- disse
Reyna. -- Estejam avisados, Rachel e Grover, que, se começarem a
mentir, esta conversa terminará muito mal para vocês. Digam o que
vieram dizer.
Rachel puxou um guardanapo do bolso da calça jeans.
-- Uma mensagem. De Annabeth.
Jason não tinha certeza se ouvira direito. Annabeth estava no
Tártaro. Ela não podia mandar um bilhete em um guardanapo para
ninguém.
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Talvez eu tenha caído na água e morrido, disse seu subcon-
sciente. Esta não é uma visão real. É uma espécie de alucinação
pós-morte.
Mas o sonho parecia muito real. Ele podia sentir o vento varrendo
o teto do prédio. Podia sentir o cheiro da chuva. Relâmpagos
cortavam o céu sobre o edifício Empire State, fazendo as armaduras
dos romanos brilharem.
Reyna pegou o bilhete. Enquanto lia, suas sobrancelhas se er-
guiam cada vez mais. Abriu a boca, chocada. Finalmente, olhou para
Rachel.
-- Isso é uma piada?
-- Gostaria que fosse -- disse Rachel. -- Eles realmente estão no
Tártaro.
-- Mas como...
-- Não sei -- respondeu Rachel. -- O bilhete apareceu no fogo sac-
rificial do pavilhão de refeições. Essa é a letra de Annabeth. E ela cita
seu nome.
Octavian se intrometeu.
-- Tártaro? O que você quer dizer com isso?
Reyna entregou-lhe o bilhete.
Octavian murmurou enquanto lia:
-- Roma, Aracne, Atena... Atena Partenos? -- Ele olhou em volta,
indignado, como se esperasse que alguém questionasse o que estava
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lendo. -- Um truque dos gregos! Os gregos são famosos por seus
truques!
Reyna pegou o bilhete de volta.
-- Por que pedir isso a mim?
Rachel sorriu.
-- Porque Annabeth é esperta. Acredita que você é capaz, Reyna
Avila Ramírez-Arellano.
Jason sentiu como se tivesse levado um tapa. Ninguém nunca
usava o nome completo de Reyna. Ela odiava ter que dizê-lo a al-
guém. A única vez em que Jason o dissera em voz alta, apenas para
tentar pronunciá-lo corretamente, ela lhe lançou um olhar assassino.
Esse era o nome de uma menininha em San Juan, dissera para ele.
Deixei-o para trás quando saí de Porto Rico.
Reyna fez uma careta.
-- Como você...
-- Hum... -- interrompeu Grover Underwood. -- Quer dizer que
suas iniciais são RA-RA?
A mão de Reyna baixou até sua adaga.
-- Mas isso não é importante! -- disse o sátiro rapida-
mente. -- Olhe, não teríamos nos arriscado a vir até aqui se não con-
fiássemos nos instintos de Annabeth. Um líder romano devolvendo a
mais importante estátua grega para o Acampamento Meio-Sangue...
ela sabe que isso pode evitar a guerra.
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-- Isto não é um truque -- acrescentou Rachel. -- Não estamos
mentindo. Pergunte aos seus cães.
Os cães metálicos não reagiram. Reyna acariciou a cabeça de Aur-
um, pensativa.
-- A Atena Partenos... então a lenda é verdadeira.
-- Reyna! -- exclamou Octavian. -- Você não pode estar consider-
ando isso seriamente! Mesmo que a estátua ainda exista, perceba o
que eles estão fazendo. Estamos prestes a atacá-los, a destruir esses
gregos cretinos de uma vez por todas, e eles inventam esta missão
idiota para desviar sua atenção. Querem que você rume para a pró-
pria morte!
Os outros romanos murmuraram entre si, olhando feio para os
visitantes. Jason se lembrou de quão persuasivo Octavian poderia
ser, e ele estava ganhando o apoio dos oficiais.
Rachel Dare encarou o áugure.
-- Octavian, filho de Apolo, você deveria levar isso mais a sério.
Até mesmo os romanos respeitam o Oráculo de Delfos de seu pai.
-- Há! -- disse Octavian. -- Você é o Oráculo de Delfos? Certo. E
eu sou o imperador Nero!
-- Pelo menos Nero entendia de música -- murmurou Grover.
Octavian cerrou os punhos.
Subitamente, o vento mudou de direção. Passou a rodopiar em
torno dos romanos com um som sibilante, como um ninho de cobras.
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Rachel Dare emanava uma aura verde, como se tivesse sido ilumin-
ada por um suave refletor de luz esmeralda. Então o vento voltou ao
normal e a aura se foi.
O desprezo se esvaiu do rosto de Octavian. Os romanos se remex-
eram, inquietos.
-- A decisão é sua -- disse Rachel, como se nada tivesse aconte-
cido. -- Não tenho nenhuma profecia específica para oferecer a vocês,
mas posso ter vislumbres do futuro. Vejo a Atena Partenos na Colina
Meio-Sangue. E vejo ela trazendo a estátua. -- Rachel apontou para
Reyna. -- Além disso, Ella tem murmurado trechos dos livros
sibilinos.
-- O quê? -- interrompeu Reyna. -- Os livros sibilinos foram
destruídos há séculos.
-- Eu sabia! -- Octavian bateu com o punho na palma da
mão. -- Aquela harpia que eles trouxeram ao voltarem da missão,
Ella. Sabia que ela estava recitando profecias! Agora entendo. Ela...
de algum modo memorizou uma cópia dos livros sibilinos.
Reyna balançou a cabeça em sinal de descrença.
-- Como isso é possível?
-- Não sabemos -- admitiu Rachel. -- Mas, sim, parece ser esse o
caso. Ella tem memória eidética. E adora livros. Em algum lugar, de
algum modo, ela leu o livro romano de profecias. Agora é a única
fonte deles.
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-- Seus amigos mentiram -- disse Octavian. -- Eles nos disseram
que a harpia apenas murmurava coisas sem sentido. Eles a
roubaram!
Grover bufou, indignado.
-- Ella não é sua propriedade! É uma criatura livre. Além disso,
quer ficar no Acampamento Meio-Sangue. Está namorando um de
meus amigos, Tyson.
-- O ciclope -- lembrou-se Reyna. -- Uma harpia namorando um
ciclope...
-- Isso não é relevante! -- disse Octavian. -- A harpia conhece
profecias romanas valiosas. Se os gregos não a devolverem, devemos
tomar seu oráculo como refém! Guardas!
Dois centuriões avançaram com as pila em riste. Grover levou a
flauta aos lábios, tocou uma rápida melodia, e as lanças se transform-
aram em árvores de Natal. Os guardas as largaram, surpresos.
-- Basta! -- gritou Reyna.
Não costumava erguer a voz. Quando o fazia, todos a ouviam.
-- Estamos nos desviando do assunto -- disse ela. -- Rachel Dare,
você está me dizendo que Annabeth está no Tártaro. No entanto, ela
encontrou um modo de enviar esta mensagem. Quer que eu leve essa
estátua das terras antigas para o seu acampamento.
Rachel assentiu.
-- Apenas um romano pode devolvê-la e restaurar a paz.
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-- E por que os romanos buscariam a paz depois que seu navio
atacou nossa cidade? -- perguntou Reyna.
-- Você sabe por quê -- replicou Rachel. -- Para evitar esta guerra.
Para reconciliar as personalidades gregas e romanas dos deuses. Pre-
cisamos trabalhar juntos para derrotar Gaia.
Octavian se adiantou para falar, mas Reyna lançou-lhe um olhar
fulminante.
-- De acordo com Percy Jackson -- disse Reyna --, a batalha con-
tra Gaia será travada nas terras antigas. Na Grécia.
-- É onde estão os gigantes -- concordou Rachel. -- Seja qual for a
magia ou o ritual que os gigantes estejam planejando para despertar
a Mãe Terra, sinto que isso vai acontecer na Grécia. Mas... bem, nos-
sos problemas não estão limitados às terras antigas. Por isso trouxe
Grover para conversar com vocês.
O sátiro passou a mão pelo cavanhaque.
-- Sim... Ao longo dos últimos meses, estive conversando com
sátiros e espíritos da natureza por todo o continente. Todos dizem a
mesma coisa. Gaia está despertando, quer dizer, está no limiar da
consciência. Ela está sussurrando nas mentes das náiades, tentando
convencê-las a mudar de lado. Está causando terremotos, arran-
cando as árvores das dríades. Só na semana passada apareceu em sua
forma humana em uma dúzia de lugares diferentes, assustando meus
amigos até os chifres. No Colorado, um punho de pedra gigante
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ergueu-se de uma montanha e acertou alguns pôneis de festa como se
fossem moscas.
Reyna fez uma careta.
-- Pôneis de festa?
-- É uma longa história -- disse Rachel. -- O fato é: Gaia vai se
erguer em toda parte. Já está despertando. Nenhum lugar estará se-
guro. E sabemos que seus primeiros alvos serão os acampamentos
dos semideuses. Ela quer nos destruir.
-- É tudo especulação -- disse Octavian. -- Uma distração. Os gre-
gos temem nosso ataque. Estão tentando nos confundir. É mais um
Cavalo de Troia!
Reyna mexeu no anel de prata que sempre usava, com o símbolo
da espada e da tocha de sua mãe, Belona.
-- Marcus -- disse ela. -- Traga Cipião dos estábulos.
-- Reyna, não! -- protestou Octavian.
Ela voltou-se para os gregos.
-- Farei isso por Annabeth, pela paz entre nossos acampamentos,
mas não pensem que me esqueci dos insultos ao Acampamento
Júpiter. Seu navio disparou contra nossa cidade. Vocês declararam
guerra, não nós. Agora, saiam.
Grover bateu com o casco no chão.
-- Percy jamais...
-- Grover, vamos -- disse Rachel.
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Seu tom de voz dizia: Antes que seja tarde demais.
Depois que os dois se foram, Octavian voltou-se para Reyna.
-- Você ficou louca?
-- Sou pretora da legião -- disse Reyna. -- Creio que isso seja do
interesse de Roma.
-- Morrer? Infringir nossas mais velhas leis e viajar para as terras
antigas? Como pretende encontrar o navio deles, supondo-se que
sobreviva à jornada?
-- Vou encontrá-los -- disse Reyna. -- Se estão navegando para a
Grécia, conheço um lugar que Jason terá que visitar. Para enfrentar
os fantasmas na Casa de Hades, precisará de um exército. Há apenas
um lugar onde pode conseguir esse tipo de ajuda.
No sonho de Jason, o prédio pareceu se inclinar sob seus pés. Ele
se lembrou de uma conversa que tivera com Reyna anos antes, uma
promessa que fizeram um ao outro. Sabia ao que ela estava se
referindo.
-- Isso é loucura -- murmurou Octavian. -- Já estamos sob
ataque. Devemos assumir a ofensiva! Aqueles anões peludos estão
roubando nossos suprimentos, sabotando nossos batedores. Você
sabe que eles foram enviados pelos gregos.
-- Talvez -- disse Reyna. -- Mas você não vai lançar um ataque
sem que eu ordene. Continue a monitorar o acampamento dos gre-
gos. Mantenha a posição. Reúna todos os aliados que puder e, se
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capturar os anões, você tem minha autorização para enviá-los de
volta ao Tártaro. Mas não ataque o Acampamento Meio-Sangue até
eu voltar.
Octavian estreitou os olhos.
-- Enquanto você estiver fora, o áugure é o oficial sênior. Estarei
no comando.
-- Eu sei. -- Reyna não parecia feliz com aquilo. -- Mas você ouviu
minhas ordens. Todos ouviram. -- Ela examinou o rosto dos
centuriões, desafiando-os a questioná-la.
A garota saiu bruscamente, o manto roxo esvoaçando atrás dela, e
os cães seguindo-a de perto.
Depois que ela se foi, Octavian voltou-se para os centuriões.
-- Reúna todos os oficiais seniores. Quero uma reunião assim que
Reyna partir para essa missão ridícula. Haverá algumas mudanças
nos planos da legião.
Um dos centuriões abriu a boca para responder, mas, por algum
motivo, falou com a voz de Piper:
-- ACORDE!
Jason abriu os olhos e viu a superfície do oceano aproximando-se
rapidamente.
XXXIV




JASON

JASON SOBREVIVEU, MAS POR POUCO.
Mais tarde, seus amigos explicaram que não o viram cair até o úl-
timo segundo. Não houve tempo para Frank se transformar em uma
águia e pegá-lo, nem para formular um plano de resgate.
Apenas o raciocínio rápido e o poder das palavras de Piper sal-
varam sua vida. Ela gritou ACORDE! tão alto que Jason sentiu como se
tivesse levado um choque de um desfibrilador. No milésimo de se-
gundo que lhe restava, convocou os ventos e evitou se transformar
em uma poça flutuante de gordura de semideus no meio do
Adriático.
De volta a bordo, Jason puxou Leo para o lado e sugeriu uma
mudança de curso. Felizmente, Leo confiava nele o suficiente para
não fazer perguntas.
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-- Lugar estranho para passar as férias -- disse Leo, sor-
rindo. -- Mas tudo bem, você que manda!
Agora, sentado com os amigos no refeitório, Jason se sentia tão
acordado que duvidava que fosse conseguir dormir durante uma se-
mana. Suas mãos estavam irrequietas. Não conseguia parar de bal-
ançar os pés. Imaginou que era assim que Leo se sentia o tempo todo.
Só que Leo tinha senso de humor.
Depois do que vira em seu sonho, não estava com vontade de con-
tar piadas.
Enquanto almoçavam, Jason contou a eles sobre a visão que teve
em pleno ar. Seus amigos ficaram em silêncio por tempo suficiente
para o treinador Hedge terminar de comer um sanduíche de
manteiga de amendoim com banana, inclusive o prato de cerâmica.
O navio rangia enquanto navegavam pelo Mar Adriático, com os
remos restantes ainda desalinhados devido ao ataque da tartaruga gi-
gante. De vez em quando, Festus, a figura de proa, rangia e guin-
chava pelos alto-falantes, relatando a situação do piloto automático
naquela estranha linguagem de máquina que só Leo conseguia
entender.
-- Um bilhete de Annabeth. -- Piper balançou a cabeça,
pasma. -- Não vejo como isso é possível, mas se for...
-- Ela está viva -- disse Leo. -- Graças aos deuses e me passe o
molho de pimenta.
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Frank franziu a testa.
-- O que isso significa?
Leo limpou as migalhas do rosto.
-- Isso significa: me passe o molho de pimenta, Zhang. Ainda es-
tou com fome.
Frank passou o molho.
-- Não podia imaginar que Reyna iria tentar nos encontrar. É
tabu vir às terras antigas. Ela vai perder a pretoria.
-- Se sobreviver -- disse Hazel. -- Foi muito difícil para nós
chegar tão longe com sete semideuses e um navio de guerra.
-- E eu -- lembrou o treinador Hedge. -- Não se esqueça, docinho,
vocês tiveram a ajuda de um sátiro.
Jason teve que sorrir.
O treinador Hedge podia ser bem ridículo, mas Jason estava feliz
que ele tivesse vindo. Lembrou-se do sátiro que vira em seu sonho,
Grover Underwood. Ele não poderia imaginar um sátiro mais difer-
ente do treinador Hedge, mas ambos pareciam corajosos a seu modo.
Aquilo fez Jason pensar nos faunos do Acampamento
Júpiter -- se poderiam ser como os sátiros caso os semideuses ro-
manos exigissem mais deles. Outra coisa a acrescentar à sua lista...
Sua lista. Não tinha percebido que tinha uma lista até aquele mo-
mento, mas, desde que deixara o Acampamento Meio-Sangue, vinha
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pensando em maneiras de tornar o Acampamento Júpiter mais...
grego.
Crescera no Acampamento Júpiter e se dera bem por lá. Mas
Jason sempre fora um tanto não convencional. Ele se irritava com as
regras.
Ingressou na Quinta Coorte porque todos lhe disseram para não
fazer isso. Ele foi avisado de que era a pior unidade. Então pensou:
Ótimo, vou transformá-la na melhor.
Quando se tornou pretor, fez uma campanha para mudar o nome
da Décima Segunda Legião para Primeira Legião, simbolizando um
novo começo para Roma. Sua ideia quase provocou um motim. Nova
Roma era muito apegada à tradição e aos costumes -- as regras não
mudavam com facilidade. Jason aprendera a conviver com isso e até
mesmo chegara ao topo.
Mas agora que vira os dois acampamentos, não conseguia se liv-
rar da sensação de que talvez o Acampamento Meio-Sangue tivesse
lhe ensinado mais sobre si mesmo. Caso sobrevivesse àquela guerra
contra Gaia e retornasse ao Acampamento Júpiter como pretor, po-
deria melhorar as coisas?
Esse era seu dever.
Então, por que a ideia o enchia de medo? Sentia-se culpado por
deixar Reyna no comando sozinha, mas mesmo assim... parte dele
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queria voltar para o Acampamento Meio-Sangue com Piper e Leo.
Supôs que isso o tornava um péssimo líder.
-- Jason? -- chamou Leo. -- Argo II para Jason. Responda.
Ele percebeu que seus amigos o olhavam com expectativa. Precis-
avam ser tranquilizados. Voltando ou não à Nova Roma depois da
guerra, Jason teria que tomar a frente agora e agir como pretor.
-- Sim, desculpe. -- Tocou o buraco que Círon, o bandido, abrira
em seu cabelo. -- Cruzar o Atlântico é uma viagem difícil, sem
dúvida. Mas jamais apostaria contra Reyna. Se há alguém que pode
fazer isso, é ela.
Piper remexeu sua sopa com a colher. Jason ainda ficava um pou-
co preocupado, temendo que ela tivesse ciúmes de Reyna, mas, ao
encará-lo, ela abriu um sorrisinho que parecia mais provocante do
que inseguro.
-- Bem, eu adoraria ver Reyna de novo -- disse ela. -- Mas como
vai nos encontrar?
Frank ergueu a mão.
-- Você não pode lhe mandar uma mensagem de Íris?
-- Elas não estão funcionando muito bem -- intrometeu-se o tre-
inador Hedge. -- A recepção anda horrível. Todas as noites, juro,
tenho vontade de chutar aquela deusa do arco-íris...
Ele hesitou. Seu rosto ficou vermelho.
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-- Treinador? -- Leo sorriu. -- Para quem você tem ligado todas
as noites, seu bode velho?
-- Ninguém! -- vociferou Hedge. -- Nada! Só quis dizer...
-- Ele quis dizer que já tentamos isso -- interveio Hazel. O
treinador lançou-lhe um olhar agradecido. -- Alguma magia está in-
terferindo... talvez seja Gaia. Contatar os romanos é ainda mais difí-
cil. Acho que eles têm algum tipo de proteção.
Jason olhou de Hazel para o treinador, perguntando-se o que es-
tava acontecendo com o sátiro, e como Hazel sabia daquilo.
Pensando bem, havia um bom tempo que o treinador não men-
cionava sua namorada, Mellie, a ninfa das nuvens...
Frank tamborilou os dedos na mesa.
-- Será que Reyna tem celular...? Ah. Não importa. Provavel-
mente teria uma péssima recepção com ela voando sobre o Atlântico
em um pégaso.
Jason pensou na viagem pelo mar a bordo do Argo II, nas
dezenas de encontros quase mortais. Pensar em Reyna fazendo
aquela viagem sozinha... não conseguia decidir se era aterrorizante
ou inspirador.
-- Reyna vai nos encontrar -- disse ele. -- Ela mencionou algo no
sonho. Espera que eu vá a um determinado lugar em nosso caminho
para a Casa de Hades. Eu... eu tinha me esquecido dele, na verdade,
mas ela está certa. É um lugar que preciso visitar.
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Piper se inclinou em sua direção, a trança caindo sobre o ombro.
Seus olhos brilhantes não o deixavam pensar direito.
-- E onde fica esse lugar? -- perguntou ela.
-- Em uma... hã... uma cidade chamada Split.
-- Split.
Ela cheirava muito bem, como madressilvas florescendo.
-- Hum, sim.
Jason se perguntou se Piper estaria usando algum tipo de magia
de Afrodite -- por exemplo: toda vez que ele mencionasse o nome de
Reyna, ela o confundisse a tal ponto que ele não conseguiria pensar
em mais nada além de Piper. Não era uma vingança das piores.
-- Na verdade, devemos estar perto. Leo?
Leo apertou o botão do interfone.
-- Como vão as coisas aí em cima, cara?
Festus, a figura de proa, rangeu e soltou vapor.
-- Ele disse que estamos a uns dez minutos do porto -- informou
Leo. -- Embora eu ainda não entenda por que você quer ir para a
Croácia, especialmente para uma cidade chamada Split. Ora, se você
batiza uma cidade de Split está praticamente dando um aviso: se sep-
ararem. É como chamar uma cidade de Dê o fora!
-- Espere -- disse Hazel. -- Por que estamos indo para a Croácia?
Jason notou que os outros estavam relutantes em encará-la.
Desde seu truque com a Névoa contra Círon, o bandido, até mesmo
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Jason se sentia um pouco nervoso perto dela. Sabia que isso era in-
justo com Hazel. Já era muito difícil ser uma filha de Plutão, mas ela
fizera magia de verdade naquele penhasco. E, depois, de acordo com
Hazel, o próprio Plutão aparecera para ela. Isso era algo que os ro-
manos normalmente chamariam de mau agouro.
Leo empurrou para o lado o molho de pimenta e as batatinhas
chips.
-- Bem, tecnicamente, estamos em território croata há mais ou
menos um dia. Este litoral pelo qual estamos navegando é da Croá-
cia, mas acho que, no tempo dos romanos, chamava-se... como foi
mesmo que você disse, Jason? Bodácia?
-- Dalmácia -- disse Nico, assustando Jason.
Santo Rômulo... Jason desejou poder amarrar um sino no
pescoço de Nico di Angelo para lembrá-lo de que o garoto estava por
perto. Nico tinha o hábito perturbador de ficar quieto em um canto,
misturando-se às sombras.
Deu um passo à frente, os olhos escuros fixos em Jason. Desde
que fora resgatado do jarro de bronze em Roma, Nico vinha dor-
mindo muito pouco e comendo menos ainda, como se ainda estivesse
sobrevivendo daquelas sementes de romã de emergência do Mundo
Inferior. Ele lembrou a Jason um ghoul comedor de carne com quem
lutara em San Bernardino.
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-- A Croácia era a Dalmácia -- disse Nico. -- Uma grande provín-
cia romana. Você quer visitar o Palácio de Diocleciano, não é?
O treinador Hedge soltou um arroto heroico.
-- Palácio de quem? E os dálmatas vêm da Dalmácia? Aquele
filme dos 101 Dálmatas... ainda tenho pesadelos.
Frank coçou a cabeça.
-- Por que alguém teria pesadelos com isso?
O treinador Hedge parecia estar prestes a iniciar um longo dis-
curso sobre a maldade dos dálmatas de desenho animado, mas Jason
decidiu que não queria ouvir.
-- Nico está certo -- disse ele. -- Preciso ir ao Palácio de Dioc-
leciano. É para onde Reyna irá primeiro, porque ela sabe que eu iria
até lá.
Piper ergueu uma sobrancelha.
-- E por que Reyna pensa isso? Você sempre teve um louco
fascínio pela cultura croata?
Jason olhou para o sanduíche intocado em seu prato. Era difícil
falar sobre sua vida de antes de Juno ter apagado sua memória. Seus
anos no Acampamento Júpiter pareciam inventados, como um filme
no qual ele houvesse atuado décadas antes.
-- Reyna e eu conversávamos sobre Diocleciano -- disse
ele. -- Nós meio que idolatrávamos o cara como um líder. Dizíamos
como gostaríamos de visitar o Palácio de Diocleciano. Claro que
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sabíamos que isso era impossível. Ninguém podia viajar para as ter-
ras antigas. Mas, ainda assim, fizemos um pacto de que, se um dia
pudéssemos, era para lá que iríamos.
-- Diocleciano... -- Leo pensou no nome, então balançou a
cabeça. -- Não conheço. Por que ele é tão importante?
Frank pareceu ofendido.
-- Foi o último grande imperador pagão!
Leo revirou os olhos.
-- Por que não estou surpreso que você saiba disso, Zhang?
-- Por que não saberia? Ele foi o último imperador a adorar os
deuses do Olimpo antes de Constantino assumir o poder e adotar o
cristianismo.
Hazel assentiu.
-- Lembro-me de algo sobre isso. As freiras de St. Agnes nos en-
sinaram que Diocleciano era um grande vilão, como Nero e
Calígula. -- Ela olhou de soslaio para Jason. -- Por que você o
idolatra?
-- Ele não era um vilão completo -- disse Jason. -- Está certo que
perseguiu cristãos, mas, tirando isso, era um bom governante. Dioc-
leciano começou do nada, unindo-se à legião. Seus pais eram ex-es-
cravos... ou pelo menos sua mãe era. Os semideuses sabem que ele
era filho de Júpiter e foi o último semideus a governar Roma. Foi
também o primeiro imperador a se aposentar, tipo, pacificamente e a
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abrir mão de seu poder. Era da Dalmácia, então voltou para lá e con-
struiu um palácio para passar o restante da vida. A cidade de Split
cresceu em torno...
Ele vacilou ao olhar para Leo, que fingia estar tomando notas com
um lápis invisível.
-- Vá em frente, professor Grace! -- disse Leo com os olhos ar-
regalados. -- Quero tirar dez na prova.
-- Cale a boca, Leo.
Piper tomou outra colherada de sopa.
-- Mas por que o Palácio de Diocleciano é tão especial?
Nico inclinou-se e pegou uma uva. Provavelmente era tudo o que
ele comeria naquele dia.
-- Dizem que é assombrado pelo fantasma de Diocleciano.
-- Que era filho de Júpiter, como eu -- disse Jason. -- Seu túmulo
foi destruído há séculos, mas Reyna e eu costumávamos imaginar se
poderíamos encontrar o fantasma de Diocleciano e perguntar onde
ele foi enterrado... bem, de acordo com as lendas, seu cetro foi enter-
rado com ele.
Nico lançou a Jason um sorriso irônico e assustador.
-- Ah... essa lenda.
-- Que lenda? -- perguntou Hazel.
Nico voltou-se para a irmã.
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-- Supostamente, o cetro de Diocleciano pode convocar os fantas-
mas de qualquer legião romana que adorasse os deuses antigos.
Leo assobiou.
-- O.k., agora estou interessado. Seria bom ter um exército de
zumbis pagãos da pesada ao nosso lado quando entrarmos na Casa
de Hades.
-- Eu não colocaria dessa forma -- murmurou Jason. -- Mas, é
isso mesmo.
-- Não temos muito tempo -- advertiu Frank. -- Hoje já é nove de
julho. Temos que chegar a Épiro, fechar as Portas da Morte...
-- Que são protegidas por um gigante sombrio e uma feiticeira
que quer... -- Hazel hesitou. -- Bem, não tenho certeza. Mas, de
acordo com Plutão, ela pretende "reconstruir o seu domínio". Seja lá
o que isso signifique, é ruim o suficiente para que meu pai viesse me
avisar pessoalmente.
Frank resmungou.
-- E, se sobrevivermos a tudo isso, ainda teremos que descobrir
onde os gigantes vão despertar Gaia e chegar lá antes de primeiro de
agosto. Além disso, quanto mais tempo Percy e Annabeth ficarem no
Tártaro...
-- Eu sei -- disse Jason. -- Não vamos demorar muito em Split.
Mas vale a pena tentar encontrar o cetro. Enquanto estivermos no
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palácio, posso deixar uma mensagem para Reyna informando nossa
rota para Épiro.
Nico assentiu.
-- O cetro de Diocleciano poderia nos dar uma grande vantagem.
Você vai precisar da minha ajuda.
Jason tentou não demonstrar seu desconforto, mas sua pele se ar-
repiou com a ideia de ir a qualquer lugar com Nico di Angelo.
Percy lhe contara algumas histórias perturbadoras sobre o rapaz.
Suas lealdades nem sempre eram claras. Ele passava mais tempo
com os mortos do que com os vivos. Certa vez, atraíra Percy para
uma armadilha no palácio de Hades. Talvez Nico tenha compensado
tudo isso ajudando os gregos contra os titãs, mas ainda assim...
Piper apertou a mão dele.
-- Ei, parece divertido. Irei também.
Jason queria gritar: Graças aos deuses!
Mas Nico balançou a cabeça.
-- Você não pode ir, Piper. Apenas Jason e eu. O fantasma de
Diocleciano pode aparecer para um filho de Júpiter, mas qualquer
outro semideus provavelmente... hum, o mataria de medo. E eu sou
o único que pode falar com seu espírito. Nem mesmo Hazel seria
capaz de fazer isso.
Os olhos de Nico tinham um brilho de desafio. Ele parecia curioso
para saber se Jason protestaria ou não.
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O sino do navio soou. Festus rangeu e zumbiu no alto-falante.
-- Chegamos a Split -- anunciou Leo. -- Hora de nos separarmos.
Frank gemeu.
-- Podemos deixar Valdez na Croácia?
Jason levantou-se.
-- Frank é o encarregado de defender o navio. Leo, você tem re-
paros a fazer. Quanto ao resto de vocês, ajudem sempre que possível.
Nico e eu... -- Olhou para o filho de Hades. -- Precisamos encontrar
um fantasma.
XXXV




JASON

JASON VIU O ANJO PELA primeira vez perto do carrinho de sorvete.
O Argo II ancorara na baía ao lado de seis ou sete navios de
cruzeiro. Como sempre, os mortais não notaram o trirreme, mas, por
precaução, Jason e Nico pegaram uma carona no escaler de um dos
barcos para se misturarem à multidão de turistas quando desembar-
cassem na praia.
À primeira vista, Split parecia um lugar legal. Perto do porto
havia um extenso calçadão ladeado por palmeiras. Jovens europeus
passavam o tempo nas mesas dos cafés na calçada, falando dezenas
de idiomas diferentes e aproveitando a tarde ensolarada. O ar
cheirava a carne grelhada e a flores recém-colhidas.
Além da avenida principal, a cidade era uma mistura de torres de
castelos medievais, muralhas romanas, casas de pedra com telhados
vermelhos e modernos edifícios comerciais. Ao longe, colinas verde-
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acinzentadas iam em direção ao cume de uma montanha, o que deix-
ou Jason um pouco nervoso. Ele continuou olhando para aquela es-
carpa rochosa, esperando que o rosto de Gaia surgisse das sombras.
Estava com Nico vagando pelo calçadão quando viu o cara com
asas comprando um picolé em uma carrocinha. A vendedora parecia
entediada enquanto separava o troco. Os turistas circulavam junto às
enormes asas do anjo sem nem olhar duas vezes.
Jason cutucou Nico.
-- Está vendo aquilo?
-- Estou -- respondeu Nico. -- Talvez devêssemos comprar um
sorvete.
Enquanto caminhavam em direção à carrocinha, Jason se per-
guntou se aquele sujeito alado seria um filho de Bóreas, o Vento
Norte. O anjo carregava uma espada de bronze muito parecida com
as dos boreadas, e o último encontro de Jason com eles não termin-
ara muito bem.
Mas aquele cara parecia mais frio do que a própria frieza. Usava
uma regata vermelha, bermudas e sandálias alpercata. Suas asas pos-
suíam vários tons de vermelho, como um galo bantam ou um pôr do
sol preguiçoso. A pele era bronzeada, e o cabelo preto quase tão enca-
racolado quanto o de Leo.
-- Ele não é um dos espíritos que voltaram -- murmurou
Nico. -- Nem uma criatura do Mundo Inferior.
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-- Não -- concordou Jason. -- Duvido que fossem comer picolés
de chocolate.
-- Então o que é? -- perguntou Nico.
Estavam a uns quatro metros de distância quando o cara alado ol-
hou diretamente para eles. Sorriu, apontou por cima do ombro com o
picolé, e se dissolveu no ar.
Jason não podia vê-lo de verdade, mas tinha experiência sufi-
ciente controlando os ventos para conseguir acompanhar o trajeto do
anjo: um fiapo quente vermelho e dourado passando do outro lado
da rua, espiralando pela calçada e soprando cartões-postais dos dis-
plays em frente às lojas de lembranças para turistas. O vento foi em
direção ao final do calçadão, onde se erguia uma grande estrutura
parecida com uma fortaleza.
-- Aposto que é o palácio -- disse Jason. -- Vamos.
Mesmo após dois milênios, o palácio de Diocleciano ainda era im-
pressionante. A muralha externa era apenas um muro de granito
rosa, com colunas em ruínas e grandes janelas em arco, mas estava
quase intacta, e seus quinhentos metros de comprimento por quase
vinte e cinco metros de altura faziam as lojas e casas modernas que
se amontoavam abaixo dela parecerem peças de uma maquete. Jason
imaginou como seria o palácio recém-construído, com guardas im-
periais caminhando pelos bastiões e as águias douradas de Roma
brilhando nos parapeitos.
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O anjo de vento -- ou o que quer que ele fosse -- entrou e saiu
pelas janelas de granito rosa, e então desapareceu do outro lado.
Jason procurou uma entrada na fachada do palácio. A única que en-
controu estava a vários quarteirões de distância, com um grupo de
turistas em fila para comprar ingressos. Não tinham tempo para isso.
-- Precisamos alcançá-lo -- disse Jason. -- Segure-se.
-- Mas...
Jason agarrou Nico e se lançou ao ar.
Nico soltou um protesto abafado, e eles voaram por cima da mur-
alha até um pátio onde havia ainda mais turistas tirando fotografias.
Uma criança os encarou quando aterrissaram. Então seus olhos
ficaram vidrados e ela balançou a cabeça, como se estivesse
afastando uma alucinação induzida por suco de caixinha. Ninguém
mais prestou atenção neles.
No lado esquerdo do pátio havia uma fileira de colunas sustent-
ando arcos acinzentados pelo tempo. No lado direito havia uma con-
strução de mármore branco com muitas janelas altas.
-- O peristilo -- disse Nico. -- Esta era a entrada para a residência
particular de Diocleciano. -- Ele franziu as sobrancelhas. -- E, por fa-
vor, não gosto que me toquem. Nunca mais me segure assim de novo.
Os ombros de Jason ficaram tensos. Pensou ter ouvido uma
ameaça velada, tipo: a menos que queira levar uma espadada de
ferro estígio na cara.
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-- Hum, tudo bem. Desculpe. Como você sabe o nome deste
lugar?
Nico observou o átrio. Seu olhar se focou em uma escadaria que
levava para baixo em um canto afastado.
-- Já estive aqui antes. -- Seus olhos eram tão escuros quanto a
lâmina de sua espada. -- Com minha mãe e Bianca. Uma viagem de
fim de semana, vindos de Veneza. Eu tinha o quê... seis anos?
-- Isso foi quando...? Nos anos trinta?
-- Trinta e oito, por aí -- disse Nico, distraído. -- Que importância
isso tem para você? Está vendo aquele cara com asas em algum
lugar?
-- Não. -- Jason ainda estava tentando entender o passado de
Nico.
Ele sempre tentou manter um bom relacionamento com as pess-
oas de sua equipe. Aprendera da maneira mais difícil que se alguém
tinha que cuidar de sua retaguarda em uma batalha, era melhor que
ambos tivessem alguma afinidade e confiassem um no outro. Mas
Nico era difícil de decifrar.
-- É que... não posso imaginar quão estranho isso deve ser, vir de
outro tempo.
-- Não, você não pode. -- Nico encarou o chão de pedra e inspirou
profundamente. -- Olhe... Não gosto de falar sobre isso. Na verdade,
acho que o caso de Hazel é ainda pior. Ela se lembra muito mais de
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quando era criança do que eu. E teve que voltar dos mortos e se ad-
aptar ao mundo moderno. Eu... eu e Bianca ficamos confinados no
Hotel Lótus. O tempo passou muito depressa. De um jeito estranho,
isso tornou a transição mais fácil.
-- Percy me falou sobre esse lugar -- disse Jason. -- Setenta
anos... mas pareceu apenas um mês.
Nico cerrou o punho até seus dedos ficarem brancos.
-- É. Tenho certeza de que Percy contou tudo a meu respeito.
Sua voz estava cheia de amargura, mais do que Jason conseguia
entender. Ele sabia que Nico culpara Percy pela morte da irmã, Bi-
anca, mas supostamente haviam superado aquilo, pelo menos de
acordo com Percy. Piper também mencionara um boato de que Nico
tinha uma queda por Annabeth. Talvez isso tivesse alguma coisa a
ver.
Ainda assim... Jason não entendia por que Nico afastava as pess-
oas, por que nunca passava muito tempo em nenhum dos dois acam-
pamentos, por que preferia a morte à vida. Ele realmente não enten-
dia por que Nico prometera levar o Argo II a Épiro se odiava tanto
Percy Jackson.
Os olhos de Nico percorreram as janelas acima deles.
-- Há romanos mortos por toda parte... Lares. Lemures. Estão ob-
servando. E estão furiosos.
-- Com a gente? -- Jason levou a mão à espada.
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-- Com tudo. -- Nico apontou para uma pequena construção de
pedra na extremidade oeste do pátio. -- Aquilo era um templo para
Júpiter. Os cristãos o transformaram em um batistério. Os fantasmas
romanos não gostaram.
Jason olhou para o portal sombrio.
Nunca conhecera Júpiter, mas sempre pensava em seu pai como
uma pessoa viva -- o cara que se apaixonara por sua mãe. Claro que
sabia que ele era imortal, mas, de alguma forma, o pleno significado
daquilo nunca passara por sua cabeça até então, enquanto olhava
para um portal que romanos atravessaram havia milhares de anos
para adorar seu pai. A ideia lhe deu dor de cabeça.
-- E ali... -- Nico apontou para o leste, em direção a uma con-
strução hexagonal rodeada de colunas. -- Ali era o mausoléu do
imperador.
-- Mas a tumba não está mais lá -- concluiu Jason.
-- Há séculos -- disse Nico. -- Quando o império caiu, o lugar foi
transformado em uma catedral cristã.
Jason engoliu em seco.
-- Então, se o fantasma de Diocleciano ainda está por aqui...
-- Provavelmente não está feliz.
O vento soprava, espalhando folhas e embalagens vazias de com-
ida por todo o peristilo. Pelo canto do olho, Jason teve um vislumbre
de movimento -- um borrão vermelho e dourado.
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Quando se virou, uma única pena cor de ferrugem pousava sobre
os degraus que levavam para baixo.
-- Por aqui. -- Jason apontou. -- O cara com asas. Aonde acha
que esta escada vai dar?
Nico sacou a espada. Ele era mais inquietante quando sorria do
que quando fazia cara feia.
-- No subterrâneo -- disse. -- Meu lugar favorito.

***

O subterrâneo não era o lugar favorito de Jason.
Desde seu passeio sob Roma com Piper e Percy, lutando com
aqueles gigantes gêmeos no hipogeu sob o Coliseu, tinha muitos
pesadelos com porões, alçapões e bolas gigantes para hamster.
E Nico estar ali ao seu lado não era reconfortante. A espada de
ferro estígio parecia tornar as sombras ainda mais densas, como se o
metal infernal estivesse absorvendo a luz e o calor a sua volta.
Os dois chegaram a um vasto porão com grossas colunas de
sustentação apoiando o teto abobadado. Os blocos de calcário eram
tão antigos que haviam se fundido devido a séculos de umidade,
fazendo o lugar se parecer muito com uma caverna natural.
Nenhum dos turistas se aventurara ali. Obviamente, eram mais
espertos do que semideuses.
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Jason empunhou sua gladius. Eles caminharam sob as arcadas
baixas, seus passos ecoando no chão de pedra. Havia uma fileira de
janelas gradeadas no topo de uma parede, no nível da rua, mas isso
só deixava o lugar ainda mais claustrofóbico. Os raios de sol pare-
ciam barras de prisão inclinadas, rodopiando com poeira antiga.
Jason passou por uma viga de sustentação, olhou para a esquerda
e quase teve um ataque cardíaco. Um busto de mármore de Dioc-
leciano olhava diretamente para ele, o rosto de calcário carrancudo
em sinal de desaprovação.
Tratou de controlar a respiração. Aquele parecia ser um ótimo
lugar para deixar o bilhete que escrevera para Reyna informando
sobre a rota deles para Épiro. Era um lugar meio escondido, mas
tinha certeza de que Reyna o encontraria. Ela tinha os instintos de
uma caçadora. Ele colocou o bilhete entre o busto e o pedestal, e se
afastou.
Os olhos de mármore de Diocleciano o deixavam nervoso. Jason
não podia evitar pensar em Término, a estátua falante em Nova
Roma. Esperava que Diocleciano não gritasse com ele ou subita-
mente começasse a cantar.
-- Olá!
Antes que Jason pudesse perceber que a voz viera de outro lugar,
cortou a cabeça do imperador. O busto caiu e se espatifou no chão.
-- Isso não foi muito legal -- disse a voz atrás deles.
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Jason se virou. O homem alado da carrocinha de sorvete estava
encostado em uma coluna próxima, jogando casualmente um
pequeno aro de bronze para o ar. Ao lado de seus pés havia uma cesta
de piquenique repleta de frutas.
-- Quer dizer -- disse o sujeito --, o que Diocleciano lhe fez?
O vento soprou ao redor dos pés de Jason. Os pedaços de már-
more se reuniram em um minitornado, espiralaram de volta ao ped-
estal e recompuseram o busto, com o bilhete ainda escondido sob ele.
-- Hã... -- Jason baixou a espada. -- Foi um acidente. Você me
assustou.
O cara de asas riu.
-- Jason Grace, o Vento Oeste já foi chamado de muitas coisas...
quente, gentil, restaurador e diabolicamente atraente. Mas nunca fui
chamado de assustador. Deixo o comportamento grosseiro para
meus irmãos esquentadinhos do norte.
Nico recuou.
-- O Vento Oeste? Quer dizer que você...
-- Favônio -- disse Jason. -- Deus do Vento Oeste.
Favônio sorriu e fez uma reverência, nitidamente feliz por ter sido
reconhecido.
-- Você pode me chamar pelo meu nome romano, é claro, ou
Zéfiro, se for grego. Não me importo com isso.
Nico pareceu muito preocupado com esse detalhe.
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-- Por que suas personalidades grega e romana não estão em con-
flito, como as dos outros deuses?
-- Ah, tenho dores de cabeça às vezes. -- Favônio deu de om-
bros. -- Algumas manhãs acordo vestindo uma chiton grega quando
tenho certeza de que fui dormir com meu pijama SPQR. Mas, princip-
almente, a guerra não me incomoda. Sou um deus menor, vocês
sabem, e nunca fui realmente o centro das atenções. As batalhas
entre vocês, semideuses, não me afetam tanto.
-- Então... -- Jason não tinha certeza se devia embainhar a es-
pada. -- O que faz aqui?
-- Várias coisas! -- disse Favônio. -- Saio por aí com minha cesta
de piquenique. Sempre carrego uma cesta cheia de frutas. Gostaria
de uma pera?
-- Estou satisfeito. Obrigado.
-- Vejamos... antes eu estava tomando sorvete. Agora estou
jogando esta argola de quoits.
Favônio rodou a argola de bronze no dedo indicador.
Jason não tinha ideia do que era quoit, mas tentou se concentrar.
-- Quer dizer, por que você apareceu para nós? Por que nos
trouxe a este porão?
-- Ah! -- Favônio assentiu. -- O sarcófago de Diocleciano. Sim.
Este foi o lugar de seu descanso final. Os cristãos o tiraram do
mausoléu. Em seguida, alguns bárbaros destruíram o ataúde. Eu só
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queria lhes mostrar -- ele estendeu as mãos, infeliz --, que o que pro-
curam não está aqui. Meu mestre o levou.
-- Seu mestre?
Jason lembrou-se de um palácio flutuante em Pikes Peak, no Col-
orado, onde visitou (e quase não sobreviveu) o estúdio de um met-
eorologista maluco que alegava ser o mestre de todos os ventos.
-- Por favor, me diga que seu mestre não é Éolo.
-- Aquele cabeça de vento? -- Favônio bufou. -- Não, claro que
não.
-- Ele quer dizer Eros. -- A voz de Nico soava nervosa. -- Cupido,
em latim.
Favônio sorriu.
-- Muito bom, Nico di Angelo. A propósito, fico feliz em revê-lo.
Faz tempo que não nos encontramos.
Nico franziu as sobrancelhas.
-- Nunca encontrei você.
-- Você nunca me viu -- corrigiu o deus. -- Mas o estive observ-
ando. Quando veio aqui, ainda menino, e várias outras vezes desde
então. Sabia que acabaria voltando para olhar para o rosto de meu
mestre.
Nico ficou ainda mais pálido do que o habitual. Seus olhos vascul-
haram o porão cavernoso, como se estivesse começando a se sentir
em uma armadilha.
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-- Nico? -- disse Jason. -- Do que ele está falando?
-- Não sei. Nada.
-- Nada? -- gritou Favônio. -- A pessoa mais importante para vo-
cê... lançada no Tártaro, e ainda assim não vai admitir a verdade?
Subitamente, Jason sentiu como se estivesse bisbilhotando a con-
versa alheia.
A pessoa mais importante para você.
Ele se lembrou do que Piper lhe contara, sobre Nico gostar de An-
nabeth. Aparentemente, os sentimentos dele eram bem mais pro-
fundos do que apenas gostar.
-- Só viemos por causa do cetro de Diocleciano -- disse Nico,
claramente ansioso para mudar de assunto. -- Onde ele está?
-- Ah... -- Favônio meneou a cabeça com tristeza. -- Achou que
bastava enfrentar o fantasma de Diocleciano? Lamento que não,
Nico. Suas provações serão muito mais difíceis. Sabe, bem antes disto
aqui ser o Palácio de Diocleciano, era a porta de entrada para a corte
de meu mestre. Morei aqui durante eras, trazendo à presença de Cu-
pido aqueles que procuravam o amor.
Jason não gostou da menção às difíceis provações. Não confiava
naquele deus esquisito com a argola, e as asas e a cesta de pique-
nique. Mas se lembrou de uma história antiga, algo que ouvira no
Acampamento Júpiter.
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-- Como Psique, a esposa de Cupido. Você a levou para seu
palácio.
Os olhos de Favônio brilharam.
-- Muito bem, Jason Grace. Deste exato lugar, carreguei Psique
com os ventos e a levei até os aposentos de meu mestre. Na verdade,
é por isso que Diocleciano construiu o palácio dele aqui. Este lugar
sempre foi agraciado pelo gentil Vento Oeste. -- Ele abriu os
braços. -- É um local de tranquilidade e amor em um mundo turbu-
lento. Quando o palácio de Diocleciano foi saqueado...
-- Você levou o cetro -- concluiu Jason.
-- Para mantê-lo em segurança -- concordou Favônio. -- É um
dos muitos tesouros de Cupido, uma lembrança de tempos melhores.
Se vocês o quiserem... -- O deus voltou-se para Nico. -- Terão que en-
frentar o deus do amor.
Nico encarou os raios de sol que atravessavam a janela, como se
desejasse poder escapar por aquelas aberturas estreitas.
Jason não tinha certeza do que Favônio queria, mas se enfrentar
o deus do amor significava forçar Nico a confessar de alguma forma
qual era a garota de quem gostava, não parecia tão ruim.
-- Nico, você pode fazer isso -- disse Jason. -- Talvez seja em-
baraçoso, mas é pelo cetro.
Nico não parecia convencido. Na verdade, dava a impressão de
que ia vomitar. Mas ele endireitou a postura e concordou.
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-- Tem razão, eu... eu não tenho medo de um deus do amor.
Favônio abriu um largo sorriso.
-- Excelente! Gostariam de fazer um lanche antes de ir-
mos? -- Pegou uma maçã verde da cesta e franziu as sobrancel-
has. -- Ah, droga. Sempre esqueço que meu símbolo é uma cesta de
frutas verdes. Porque o vento da primavera não tem mais crédito? O
verão fica com toda a diversão.
-- Tudo bem -- disse Nico rapidamente. -- Apenas nos leve até
Cupido.
Favônio girou a argola no dedo e o corpo de Jason se dissolveu no
ar.
XXXVI




JASON

JASON VIAJARA NO VENTO DIVERSAS vezes. Ser o vento era outra
história.
Sentia-se fora de controle, com os pensamentos dispersos, sem
separação entre o seu corpo e o resto do mundo. Imaginou se era as-
sim que os monstros se sentiam quando eram derrotados, ex-
plodindo em pó, impotentes e disformes.
Jason podia sentir Nico próximo. O Vento Oeste levou-os ao céu
acima de Split. Juntos, sobrevoaram colinas, antigos aquedutos ro-
manos, rodovias e vinhedos. Quando se aproximaram das montan-
has, Jason viu as ruínas de uma cidade romana espalhadas em um
vale lá embaixo -- paredes em ruínas, alicerces quadrados e estradas
rachadas, tudo coberto de vegetação -- parecendo um gigantesco jogo
de tabuleiro coberto de musgo.
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Favônio aterrissou-os no meio das ruínas, ao lado de uma coluna
quebrada tão alta quanto uma sequoia.
O corpo de Jason se recompôs. Por um momento, pareceu-lhe
ainda pior do que ser o vento, como se subitamente tivesse sido enro-
lado em um casaco de chumbo.
-- É, corpos mortais são terrivelmente volumosos -- disse
Favônio, como se lesse seus pensamentos. O deus do Vento Oeste
acomodou-se com a sua cesta de frutas em um muro perto e abriu as
asas avermelhadas ao sol. -- Honestamente, não sei como vocês
suportam isso, dia após dia.
Jason investigou o entorno. A cidade aparentava ter sido enorme
no passado. Dava para perceber as estruturas de templos e casas de
banho, um anfiteatro semienterrado e pedestais vazios que outrora
suportaram estátuas. Fileiras de colunas levavam a lugar nenhum. As
velhas muralhas da cidade serpenteavam pela encosta como uma
linha pedregosa costurando um tecido verde.
Existiam pontos de escavação em algumas áreas, mas a maior
parte da cidade estava abandonada, como se tivesse sido abandonada
à ação dos elementos nos últimos dois mil anos.
-- Bem-vindos a Salona -- disse Favônio. -- Capital da Dalmácia!
Local de nascimento de Diocleciano! Mas antes disso, muito antes
disso, aqui era a casa de Cupido.
O nome ecoou como se vozes sussurrassem entre as ruínas.
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Aquele lugar tinha algo que o fazia parecer ainda mais assustador
do que o porão do palácio em Split. Jason nunca pensara muito em
Cupido. Certamente nunca pensara em Cupido como assustador.
Mesmo para os semideuses romanos, o nome trazia a lembrança de
um tolo bebê alado com um arco e flecha de brinquedo, voando e
sacudindo suas fraldas no Dia dos Namorados.
-- Ah, mas ele não é assim -- disse Favônio.
Jason estremeceu.
-- Pode ler a minha mente?
-- Não preciso. -- Favônio atirou o aro de bronze para o
alto. -- Todos têm a impressão errada de Cupido... até encontrarem
com ele.
Nico encostou-se em uma coluna, as pernas visivelmente
trêmulas.
-- Ei, cara... -- Jason andou em sua direção, mas Nico acenou
para que se afastasse.
A grama ficou marrom e murcha sob os pés do semideus. O
trecho morto se espalhou ao redor, como se veneno vazasse da sola
de seus sapatos.
-- Ah... -- Favônio balançou a cabeça em sinal de simpatia. -- Não
o culpo por estar nervoso, Nico di Angelo. Sabe como eu acabei
servindo a Cupido?
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-- Não sirvo a ninguém -- murmurou Nico. -- Especialmente a
Cupido.
Favônio continuou como se não tivesse ouvido.
-- Eu me apaixonei por uma criatura mortal chamada Jacinto. Ele
era extraordinário.
-- Ele...? -- O cérebro de Jason ainda estava confuso por ter se
tornado vento, de modo que demorou um segundo para processar
aquilo. -- Ah...
-- É, Jason Grace -- disse Favônio, arqueando uma so-
brancelha. -- Eu me apaixonei por um homem. Isso o choca?
Honestamente, Jason não tinha certeza. Tentava não pensar nas
minúcias da vida amorosa dos deuses, não importando por quem eles
se apaixonassem. Afinal, seu pai, Júpiter, não era exatamente um
modelo de bom comportamento. Comparado a alguns dos escândalos
amorosos do Olimpo sobre os quais ouvira falar, o fato do Vento
Oeste se apaixonar por um mortal não lhe parecia muito chocante.
-- Acho que não. Então... Cupido o atingiu com sua flecha e você
se apaixonou.
Favônio riu com desdém.
-- Você faz parecer tão banal. Ah, o amor nunca é banal. Veja, o
deus Apolo também gostava de Jacinto. Ele alegava que eram apenas
amigos. Não sei, não. Mas, certo dia me deparei com os dois juntos,
jogando quoits...
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Aquela palavra estranha outra vez.
-- Quoits?
-- Um jogo com esses aros -- explicou Nico, embora sua voz
soasse trêmula. -- Como lançar ferraduras.
-- Mais ou menos -- interrompeu Favônio. -- De qualquer jeito,
fiquei com ciúmes. Em vez de ir falar com eles e descobrir a verdade,
mudei o vento e lancei um pesado anel de metal na cabeça de Jacinto
e... bem. -- O deus do vento suspirou. -- Enquanto Jacinto morria,
Apolo transformou-o em uma flor, o jacinto. Tenho certeza de que
Apolo teria se vingado de mim, mas Cupido me ofereceu sua pro-
teção. Fiz algo terrível, mas enlouqueci por amor, de modo que ele
me poupou, com a condição de que trabalhasse eternamente para ele.
CUPIDO.
O nome ecoou entre as ruínas de novo.
-- Essa é a minha deixa -- disse Favônio, levantando-se. -- Pense
bem sobre como agir, Nico di Angelo. Não pode mentir para Cupido.
Se deixar a raiva governá-lo... bem, o seu destino será ainda mais
triste que o meu.
Jason sentia como se seu cérebro estivesse voltando a se trans-
formar em vento. Não compreendia o que Favônio estava dizendo ou
por que Nico parecia tão abalado, mas não tinha tempo para pensar
naquilo. O deus do vento desapareceu em um redemoinho vermelho
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e dourado. O ar do verão subitamente tornou-se pesado. O chão es-
tremeceu, e Jason e Nico sacaram as suas espadas.

***

Então.
A voz passou raspando pelo ouvido de Jason como uma bala.
Quando ele se voltou, não havia ninguém ali.
Vocês vieram reivindicar o cetro.
Nico posicionou-se às suas costas, e, pela primeira vez, Jason
ficou contente por ter a companhia do garoto.
-- Cupido -- chamou Jason. -- Onde você está?
A voz riu. Definitivamente não soava como a de um anjinho bon-
itinho. Parecia profunda e melodiosa, mas também
ameaçadora -- como um tremor antes de um forte terremoto.
Onde você menos espera, respondeu Cupido. Como sempre
acontece com o amor.
Algo trombou com Jason arremessando-o do outro lado da rua.
Ele caiu sobre alguns degraus e se esparramou no chão de um porão
romano escavado.
Achava que soubesse disso, Jason Grace. A voz de Cupido rodo-
piou em volta dele. Você encontrou o verdadeiro amor, afinal de
contas. Ou ainda duvida de si mesmo?
Nico desceu os degraus correndo.
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-- Você está bem?
Jason aceitou a mão estendida e se levantou.
-- Estou. Só fui feito de otário.
Ah, você esperava que eu fosse justo? Cupido riu. Sou o deus do
amor. Nunca sou justo.
Naquele momento, os sentidos de Jason estavam em alerta máx-
imo. Sentiu o ar ondular quando uma flecha se materializou, dis-
parada em direção ao peito de Nico.
Jason interceptou-a com a espada e a desviou para o lado. A fle-
cha explodiu contra a parede próxima, salpicando-os com estilhaços
de calcário.
Eles subiram a escada correndo. Jason puxou Nico quando outra
rajada de vento derrubou uma coluna que o teria esmagado.
-- Esse cara é Amor ou Morte? -- rosnou Jason.
Pergunte aos seus amigos, disse Cupido. Frank, Hazel e Percy
conheceram o meu antagonista, Tânatos. Não somos tão diferentes.
Só que a morte às vezes é mais gentil.
-- Tudo que queremos é o cetro! -- gritou Nico. -- Estamos tent-
ando deter Gaia. Você está do lado dos deuses ou não?
Uma segunda flecha atingiu o chão entre os pés de Nico, bril-
hando incandescente. Ele cambaleou para trás quando a flecha es-
tourou em um gêiser de chamas.
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O amor está em todos os lados, disse Cupido. E do lado de nin-
guém. Não pergunte o que o amor pode fazer por você.
-- Ótimo -- disse Jason. -- Agora está recitando músicas bregas.
Movimento atrás dele: Jason girou, golpeando o ar com sua es-
pada. A lâmina atingiu algo sólido. Ouviu um grunhido e atacou
novamente, mas o deus invisível já não estava mais lá. Sobre as
pedras do calçamento, brilhava um rastro dourado de icor -- o
sangue dos deuses.
Muito bom, Jason, disse Cupido. Ao menos você pode sentir a
minha presença. Um mero relance do amor verdadeiro é mais do
que consegue a maioria dos heróis.
-- Então, ganho o cetro? -- perguntou Jason.
Cupido riu.
Infelizmente, você não poderia controlá-lo. Apenas um filho do
Mundo Inferior poderia convocar as legiões mortas. E apenas um
oficial romano poderia liderá-las.
-- Mas...
Jason vacilou. Ele era um oficial. Era pretor. Então se lembrou de
suas dúvidas quanto a que lugar pertencia. Em Nova Roma, oferecera
sua posição para Percy Jackson. Será que isso o tornava indigno de
liderar uma legião de fantasmas romanos?
Jason decidiu enfrentar o problema quando chegasse a hora.
-- Nós resolvemos -- disse ele. -- Nico pode invocar...
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A terceira flecha zuniu sobre o ombro de Jason. Não conseguiu
impedi-la. Nico ofegou quando o projétil se alojou no braço que se-
gurava a espada.
-- Nico!
O filho de Hades cambaleou. A seta se dissolveu, sem deixar
sangue ou ferimento visível, mas o rosto do semideus estava retor-
cido de raiva e de dor.
-- Chega de brincadeira! -- gritou Nico. -- Apresente-se!
É complicado olhar para a face do amor verdadeiro, disse
Cupido.
Outra coluna tombou. Jason afastou-se.
Minha esposa Psique aprendeu esta lição, prosseguiu Cupido.
Ela foi trazida para cá éons atrás, quando aqui era o meu palácio.
Só nos encontrávamos no escuro. Ela foi advertida a nunca olhar
para mim, e ainda assim não conseguiu suportar o mistério. Temia
que eu fosse um monstro. Certa noite, acendeu uma vela e viu o meu
rosto enquanto eu dormia.
-- Você era assim tão feio?
Jason localizou a voz de Cupido na borda do anfiteatro, a uns
vinte metros de distância, mas queria ter certeza.
O deus riu.
Acho que eu era bonito demais. Um mortal não pode contemplar
a verdadeira forma de um deus sem sofrer as consequências. Minha
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mãe, Afrodite, amaldiçoou Psique por sua desconfiança. Minha
pobre amante foi atormentada, forçada ao exílio e recebeu tarefas
terríveis para provar ser digna. Chegou a ser enviada ao Mundo In-
ferior em uma missão para provar sua dedicação. Conseguiu voltar
para o meu lado, mas sofreu muito.
Agora peguei você, pensou Jason.
Apontou a espada para o céu e um trovão sacudiu o vale. Um raio
abriu uma cratera no lugar de onde vinha a voz.
Silêncio. Jason já estava pensando: Cara, isso realmente funcion-
ou, quando uma força invisível o derrubou. Sua espada escorregou
até o outro lado da rua.
Boa tentativa, disse Cupido, com a voz já distante, mas o amor
não pode ser detectado tão facilmente.
Ao lado dele, um muro desabou. Jason conseguiu rolar para o
lado por pouco.
-- Pare com isso! -- gritou Nico. -- É a mim que você quer. Deixe-
o em paz!
Os ouvidos de Jason zumbiram. Estava tonto de tanto que fora ar-
remessado. Sua boca tinha gosto de pó calcário. Não entendia por
que Nico achava ser o alvo principal, mas Cupido pareceu concordar.
Pobre Nico di Angelo. A voz do deus estava repleta de decepção.
Não sabe o que você quer, muito menos o que eu quero. Minha
amada Psique arriscou tudo em nome do amor. Era a única
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maneira de expiar a sua falta de fé. E você, o que arriscou em meu
nome?
-- Estive no Tártaro e voltei -- rosnou Nico. -- Você não me
assusta.
Eu o assusto muito, muito mesmo. Encare-me. Seja honesto.
Jason se levantou.
Ao redor de Nico, o chão estremeceu. A relva murchou e as pedras
racharam como se algo estivesse se movendo embaixo da terra, tent-
ando abrir caminho até a superfície.
-- Queremos o cetro de Diocleciano -- disse Nico. -- Não temos
tempo para brincadeiras.
Brincadeiras? Cupido atingiu Nico, jogando-o de lado contra um
pedestal de granito. O amor não é uma brincadeira! Não é a suavid-
ade das flores! É trabalho pesado, uma busca que nunca termina.
Exige tudo de você, especialmente a verdade. Somente então lhe
concede recompensas.
Jason resgatou sua espada. Se aquele cara invisível era o Amor,
Jason estava começando a pensar que o Amor era algo superestim-
ado. Gostava mais da versão de Piper: atencioso, gentil e belo. Afrod-
ite ele conseguia entender. Já Cupido parecia mais um bandido, um
opressor.
-- Nico, o que esse cara quer de você?
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Diga-lhe, Nico di Angelo, replicou Cupido. Diga-lhe que você é
um covarde, com medo de si mesmo e de seus sentimentos. Diga-lhe
o verdadeiro motivo pelo qual fugiu do Acampamento Meio-
Sangue, e por que está sempre sozinho.
Nico emitiu um grito gutural. O chão aos seus pés se abriu e es-
queletos se arrastaram para fora: romanos mortos sem as mãos,
crânios afundados, costelas partidas e mandíbulas soltas. Alguns es-
tavam vestidos com os restos de suas togas. Outros traziam bril-
hantes peças de armadura penduradas ao peito.
Vai se esconder entre os mortos, como sempre faz?, provocou
Cupido.
Ondas de escuridão emanavam do filho de Hades. Quando at-
ingiram Jason, ele quase desmaiou, oprimido pelo ódio, pelo medo,
pela vergonha...
Imagens cruzaram sua mente. Viu Nico e sua irmã em um pen-
hasco nevado, no Maine, e Percy Jackson protegendo-os de um
manticore. A espada de Percy brilhava no escuro. Fora o primeiro
semideus que Nico vira em ação.
Mais tarde, no Acampamento Meio-Sangue, Percy pegou Nico
pelo braço e prometeu manter sua irmã Bianca em segurança. Nico
acreditou nele. Olhou em seus olhos verde-mar e pensou: Ele não
pode fracassar. É um herói de verdade. Percy era o jogo favorito de
Nico, Mitomagia, trazido à realidade.
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Jason viu o momento em que Percy voltou e disse para Nico que
Bianca morrera. O garoto gritou e chamou-o de mentiroso. Ele se
sentiu traído, mas ainda assim... quando os guerreiros esqueleto ata-
caram, não pôde deixá-los ferir Percy. Nico invocara a terra para
engoli-los, e então fugiu, aterrorizado com seus próprios poderes,
suas próprias emoções.
Jason viu mais uma dezena de cenas como esta do ponto de vista
de Nico... E elas o atordoaram, deixando-o incapaz de se mover ou de
falar.
Enquanto isso, os esqueletos romanos de Nico avançaram e agar-
raram algo invisível. Cupido lutou, empurrando os mortos,
quebrando costelas e crânios, mas eles continuavam a surgir, pren-
dendo os braços do deus.
Interessante!, disse Cupido. Você tem a força, afinal?
-- Deixei o Acampamento Meio-Sangue por amor -- disse
Nico. -- Annabeth... ela...
Ainda se escondendo, disse Cupido, partindo outro esqueleto em
pedaços. Você não tem a força.
-- Nico -- Jason conseguiu dizer --, está tudo bem. Eu entendo.
Nico o encarou com dor e aflição estampadas em seu rosto.
-- Não -- disse ele. -- Você não tem como entender.
E assim você volta a fugir, repreendeu Cupido. De seus amigos,
de si mesmo.
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-- Não tenho amigos! -- gritou Nico. -- Deixei o Acampamento
Meio-Sangue porque não pertenço àquele lugar! Nunca pertencerei!
Os esqueletos haviam imobilizado Cupido, mas o deus invisível
riu tão cruelmente que Jason desejou invocar outro raio. Infeliz-
mente, duvidava que tivesse força.
-- Deixe-o em paz, Cupido -- reclamou Jason. -- Isto não é...
Sua voz falhou. Queria dizer que aquilo não era problema do
deus, mas percebeu que isso era exatamente problema de Cupido.
Algo que Favônio dissera continuava a zumbir em seus ouvidos: Você
está chocado?
A história de Psique finalmente fez sentido para ele: entendeu por
que uma garota mortal teria tanto medo. Por que correria o risco de
burlar as regras para olhar o rosto do deus do amor, temendo que ele
pudesse ser um monstro.
Psique tinha razão. Cupido era um monstro. O Amor era o mais
selvagem de todos os monstros.
A voz de Nico soou dolorida.
-- E-eu não estava apaixonado por Annabeth.
-- Você estava com ciúmes dela -- disse Jason. -- É por isso que
não queria ficar perto dela. Especialmente, era por isso que não quer-
ia ficar perto... dele. Isso explica tudo.
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Toda a luta e negação de Nico pareceram se esvair ao mesmo
tempo. A escuridão diminuiu. Os romanos mortos desmoronaram
em pilhas de ossos e viraram pó.
-- Eu me odiava -- disse Nico. -- Odiava Percy Jackson.
Cupido se tornou visível -- um jovem magro, musculoso com asas
brancas como a neve, cabelos lisos e negros, uma túnica branca
simples e calça jeans. O arco e a aljava pendurados no seu ombro não
eram de brinquedo. Eram armas de guerra. Seus olhos eram vermel-
hos como o sangue, como se todos os corações de Dia dos Namorados
do mundo tivessem sido espremidos e destilados em uma mistura
venenosa. Seu rosto era belo, mas também duro, tão difícil de olhar
quanto um holofote. Observou Nico com satisfação, como se tivesse
identificado o local exato onde sua próxima seta garantiria uma
morte limpa.
-- Tive uma queda por Percy -- disse Nico. -- Essa é a verdade.
Esse é o grande segredo.
Ele olhou para Cupido.
-- Feliz agora?
Pela primeira vez, o olhar de Cupido pareceu simpático.
-- Ah, eu não diria que o Amor sempre o faz feliz. -- Sua voz soava
menor, muito mais humana. -- Às vezes, ele o faz ficar incrivelmente
triste. Mas ao menos agora você enfrentou isso. Essa é a única
maneira de me vencer.
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Cupido dissolveu-se em vento.
No chão, no lugar onde estivera, havia um cajado de marfim de
um metro de comprimento, com um globo escuro de mármore polido
do tamanho de uma bola de beisebol no topo, aninhado nas costas de
três águias romanas de ouro. O cetro de Diocleciano.
Nico se ajoelhou e pegou o cetro. Olhou para Jason, como se à es-
pera de um ataque.
-- Se os outros descobrirem...
-- Se os outros descobrirem -- disse Jason --, você terá mais pess-
oas a apoiá-lo, capazes de liberar a fúria dos deuses contra quem lhe
trouxer problemas.
Nico fez uma careta. Jason ainda sentia a raiva e o ressentimento
emanando dele.
-- Mas a decisão é sua -- acrescentou Jason. -- A decisão de com-
partilhar ou não é sua. Só posso dizer que...
-- Não me sinto mais assim -- murmurou Nico. -- Quer dizer...
Desisti de Percy. Eu era jovem e impressionável, e eu, eu não...
Sua voz falhou, e Jason viu que o garoto estava prestes a ficar com
os olhos marejados. Se Nico realmente desistira de Percy ou não,
Jason não podia imaginar o que ele passara durante todos aqueles
anos, mantendo um segredo que teria sido impensável compartilhar
na década de 1940, negando quem ele era, sentindo-se completa-
mente sozinho -- ainda mais isolado do que os outros semideuses.
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-- Nico -- disse ele gentilmente --, já vi um monte de atos de cor-
agem. Mas o que você fez? Esse talvez tenha sido o mais corajoso de
todos.
Nico ergueu a cabeça, incerto.
-- Devemos voltar ao navio.
-- É. Podemos voar...
-- Não -- anunciou Nico. -- Desta vez viajaremos nas sombras.
Quero ficar longe dos ventos por um bom tempo.
XXXVII




ANNABETH

FICAR CEGA FOI BEM RUIM. Ser separada de Percy foi horrível.
Mas agora que conseguia enxergar de novo, vê-lo morrer lenta-
mente envenenado por sangue de górgona sem poder fazer nada para
impedir era a pior maldição de todas.
Bob carregava Percy em seu ombro como se fosse um saco de
equipamentos esportivos, e o gatinho esqueleto Bob Pequeno se an-
inhou nas costas de Percy, ronronando. Bob caminhava a passos
rápidos, mesmo para um titã, o que tornava praticamente impossível
para Annabeth acompanhá-lo.
Parecia que seus pulmões não iam aguentar mais. Sua pele voltou
a ficar coberta por bolhas. Provavelmente precisava de mais um gole
de fogo líquido, mas o Rio Flegetonte tinha ficado para trás. Seu
corpo estava tão cansado e dolorido que ela havia esquecido como
era não sentir dor.
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-- Falta muito?
-- Demais -- respondeu Bob. -- Mas talvez não.
Grande ajuda, pensou Annabeth, mas estava praticamente sem
fôlego para falar.
A paisagem mudou de novo. Ainda estavam descendo a encosta, o
que deveria facilitar a locomoção; mas o solo se inclinava justamente
no ângulo errado; íngreme demais para correr, traiçoeiro demais
para poderem baixar a guarda por um momento sequer. A superfície
era de cascalho solto em alguns pontos e coberta de limo em outros.
Annabeth precisava desviar de pelos curtos afiados o suficiente para
atravessarem seu pé, e montes de... bem, não eram exatamente
rochas. Pareciam mais verrugas do tamanho de melancias. Se Anna-
beth tivesse que imaginar onde estava (e não queria fazer isso), diria
que Bob a estava conduzindo pelo enorme intestino do Tártaro.
O ar estava mais pesado e fedia a esgoto. Talvez a escuridão não
estivesse tão densa quanto antes, mas só conseguia ver Bob por causa
do brilho dos cabelos prateados e da ponta de sua lança. Percebeu
que ele não a retraíra desde que enfrentaram as arai. Isso não a tran-
quilizou nem um pouco.
Percy não parava quieto, o que fazia o gatinho mudar de posição
para se ajeitar nas costas dele. De vez em quando, seu namorado
gemia de dor, e Annabeth sentia um forte aperto no coração.
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Ela se lembrou de quando tomou chá com Piper, Hazel e Afrodite
em Charleston. Deuses, isso parecia ter acontecido havia tanto
tempo... Afrodite tinha suspirado de saudade dos bons tempos da
velha Guerra Civil, falando sobre como o amor e a guerra sempre
caminhavam juntos.
A deusa tinha apontado para Annabeth com orgulho, usando-a
como exemplo para as outras garotas:
Uma vez prometi a ela que ia tornar sua vida amorosa interess-
ante. E não foi o que fiz?
Annabeth teve vontade de esganar a deusa do amor. Já vivera
coisas interessantes mais do que o suficiente. Agora só queria um fi-
nal feliz. Sem dúvida isso era possível, independentemente do que as
lendas diziam sobre heróis trágicos. Tinha que haver exceções, certo?
Se o sofrimento fosse recompensado, então ela e Percy mereciam re-
ceber o grande prêmio.
Pensou nas fantasias de Percy sobre Nova Roma. Os dois poderi-
am morar lá e frequentar a faculdade juntos. No início, ficou horror-
izada com a ideia de viver entre os romanos. Ainda se ressentia deles
por a terem afastado de Percy.
Agora aceitaria essa oferta com prazer.
Se sobrevivessem àquilo. Se Reyna tivesse recebido a mensagem.
Se um milhão de coisas impossíveis acontecessem.
Pare com isso, repreendeu-se ela.
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Tinha que se concentrar no presente, em pôr um pé na frente do
outro, em completar aquela caminhada intestinal morro abaixo uma
verruga gigante de cada vez.
Seus joelhos estavam fracos, como se estivessem a ponto de ar-
rebentar. Percy gemia e murmurava algo que ela não conseguia
entender.
De repente, Bob parou.
-- Vejam.
Mais à frente, no escuro, o terreno se aplainava e terminava em
um pântano negro. Pairava no ar uma névoa sulfúrica amarela.
Mesmo sem luz solar, havia plantas de verdade: moitas de juncos,
árvores esqueléticas sem folhas e até algumas flores de aparência
doentia desabrochavam naquele lugar tétrico. Trilhas escorregadias
serpenteavam entre os poços de piche borbulhantes. Impressas no
lamaçal bem à frente de Annabeth havia pegadas do tamanho de
tampas de latas de lixo, com dedos compridos e pontudos.
Desanimada, Annabeth tinha quase certeza de a quem elas
pertenciam.
-- Drakon?
-- É. -- Bob sorriu para ela. -- Isso é bom.
-- Hã... por quê?
-- Porque estamos perto.
Bob entrou no pântano.
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Annabeth teve vontade de gritar. Odiava estar à mercê de um titã,
ainda mais de um que começava a recuperar a memória e os estava
levando até um gigante "bom". Não gostava nem um pouco da ideia
de atravessar um pântano que era obviamente território de um
drakon.
Mas Bob estava com Percy. Se ela hesitasse, ia perdê-los no
escuro. Por isso, correu atrás dele, pulando de uma faixa de musgo
para outra e rezando a Atena para não cair em algum buraco.
Pelo menos o terreno obrigava Bob a ir mais devagar. Quando An-
nabeth o alcançou, não foi difícil ficar bem atrás dele e de olho em
Percy, que delirava e estava com a testa quente demais. Várias vezes
balbuciou Annabeth, e ela teve que se segurar para não chorar. O gat-
inho apenas ronronou mais alto e procurou uma posição mais
confortável.
Finalmente a névoa amarela se abriu e revelou uma clareira lama-
centa que parecia uma ilha no meio do pântano repugnante. O solo
estava pontilhado de árvores decrépitas e montes de verrugas. No
meio, havia uma enorme cabana de teto abobadado feita de ossos e
couro esverdeado. Uma coluna de fumaça se erguia de um buraco no
teto da cabana. A entrada estava coberta por cortinas de pele es-
camosa de réptil, e era ladeada por duas tochas feitas de fêmures co-
lossais que queimavam com uma luz forte amarela.
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O que mais chamou a atenção de Annabeth foi o crânio de
drakon. A cinquenta metros, mais ou menos entre eles e a cabana,
um carvalho enorme projetava-se do chão a um ângulo de 45 graus.
As mandíbulas de um crânio de drakon envolviam o tronco como se a
árvore fosse a língua do monstro morto.
-- É -- murmurou Bob. -- Isso é muito bom.
Nada naquele lugar parecia bom para Annabeth.
Antes que ela pudesse protestar, Bob Pequeno arqueou as costas e
chiou. Atrás deles, um rugido poderoso ecoou pelo pântano, um som
que Annabeth ouvira pela última vez na Batalha de Manhattan.
Ela se virou e viu o drakon correndo na direção deles.
XXXVIII




ANNABETH

A PIOR PARTE?
O drakon com certeza era a coisa mais bonita que Annabeth vira
desde que caíra no Tártaro. Suas escamas tinham manchas verdes e
amarelas como o chão de uma floresta coberto de folhas salpicadas
de luz do sol. Seus olhos reptilianos tinham o tom verde-mar favorito
de Annabeth, com os de Percy. Quando as escamas em torno da
cabeça se levantaram, ela não pôde deixar de pensar que aquele mon-
stro prestes a matá-los tinha uma aparência nobre e maravilhosa.
Ele era praticamente do tamanho de um trem de metrô. Suas gar-
ras enormes afundavam na lama conforme avançava, agitando a
cauda. O drakon sibilou e lançou jatos de veneno verde que fumega-
vam ao cair no repugnante chão lamacento e incendiavam poços de
piche, o que deixou o ar com o aroma de pinho fresco e gengibre. O
monstro até cheirava bem. Como a maioria dos drakons, não tinha
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asas, era mais longo mais parecido com uma cobra do que com um
dragão. E pelo visto, estava faminto.
-- Bob -- disse Annabeth. -- O que vamos ter que enfrentar?
-- Um drakon maeônio -- disse Bob. -- Da Meônia.
Outra informação super útil. Annabeth teria acertado a cabeça de
Bob com sua própria vassoura se conseguisse levantá-la.
-- Há alguma forma de matá-lo?
-- Nós? -- disse Bob. -- Não.
O drakon rugiu como se quisesse deixar isso bem claro e encheu o
ar de mais veneno com cheiro de pinho e gengibre, o que teria sido
um excelente perfume para aromatizadores de carros.
-- Leve Percy para um lugar seguro -- instruiu Annabeth. -- Vou
distraí-lo.
Não tinha ideia de como ia fazer isso, mas era sua única opção.
Não podia deixar Percy morrer, não se ainda estivesse de pé.
-- Não precisa -- disse Bob. -- A qualquer momento...
-- ROOOOOOAAARRR!
Annabeth se virou no instante em que o gigante saía de sua
cabana.
Ele tinha mais de cinco metros, a altura típica de um gigante. A
parte superior de seu corpo era humanoide; e as pernas, escamosas e
reptilianas, como as de um dinossauro bípede. Não tinha arma. Em
vez de armadura, vestia apenas uma túnica feita com peles de
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carneiro e retalhos de couro esverdeado. Sua pele era vermelho-
cereja; a barba e o cabelo, ruivos, estavam entrelaçados com tufos de
grama, folhas e flores do pântano.
Ele gritou em desafio, mas felizmente não estava olhando para
Annabeth. Bob a tirou do caminho quando o gigante correu na
direção do drakon.
Seguiu-se uma bizarra cena natalina de combate, o vermelho con-
tra o verde. O drakon expeliu veneno. O gigante se esquivou com um
salto, agarrou o carvalho e o arrancou do chão, com raízes e tudo. O
crânio velho se desfez em pó quando o gigante ergueu a árvore como
faria com um taco de beisebol.
A cauda do drakon se enroscou na cintura do gigante e o puxou
para mais perto de suas presas. Mas assim que o gigante ficou a seu
alcance, enfiou a árvore na garganta do monstro.
Annabeth esperava nunca mais ter que testemunhar uma cena tão
horrível. A árvore perfurou a garganta do drakon e o empalou no
chão. As raízes começaram a se mover e se arraigaram ao tocar o
chão, fixando o carvalho de um modo tão firme que a árvore parecia
estar naquele mesmo ponto havia séculos. O drakon se sacudia e es-
trebuchava sem parar, mas foi rapidamente imobilizado.
O gigante, então, socou com toda a força o pescoço do drakon.
CRACK. O monstro parou imediatamente de se mover. Começou a se
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desfazer e deixou apenas restos de ossos, carne e escamas, e um novo
crânio de drakon passou a envolver o carvalho.
Bob deu um grunhido.
-- Boa!
O gatinho ronronou em aprovação e começou a limpar as patas.
O gigante chutou os restos do drakon e os examinou com atenção.
-- Não tem ossos bons -- reclamou. -- Queria uma bengala nova.
Hunf. Mas tem pele boa para a latrina.
Arrancou parte das dobras de pele macia que havia em torno do
pescoço do drakon e as enfiou no cinto.
-- Hã... -- Annabeth teve vontade de perguntar se a ideia do gi-
gante era usar couro de drakon como papel higiênico, mas achou
melhor não fazê-lo. -- Bob, você podia nos apresentar?
-- Annabeth... -- Bob deu um tapinha nas pernas de Percy. -- Este
é Percy.
Annabeth esperava que o titã só estivesse brincando com ela,
apesar de a expressão de Bob não revelar nada.
Ela cerrou os dentes.
-- Estou falando do gigante. Você prometeu que ele ia ajudar.
-- Prometeu? -- O gigante deixou de lado o crânio e voltou sua
atenção para Bob. Seus olhos se apertaram sob as sobrancelhas dens-
as e ruivas. -- Uma promessa é algo importante. Por que Bob pro-
meteria que eu ia ajudar?
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Bob pareceu desconfortável. Titãs eram assustadores, mas era a
primeira vez que Annabeth via um deles ao lado de um gigante. Em
comparação ao matador de drakons, Bob parecia um filhotinho
desamparado.
-- Damásen é um gigante bom -- disse Bob. -- Ele é pacífico. E
sabe curar venenos.
Annabeth observou o gigante Damásen, que agora estava arran-
cando pedaços de carne sangrenta da carcaça do drakon com as pró-
prias mãos.
-- Pacífico. É, estou vendo.
-- Carne boa para o jantar. -- Damásen se aprumou e estudou An-
nabeth como se ela fosse outra fonte de proteína em potencial. -- En-
trem. Hoje vamos ter ensopado. Depois falamos dessa promessa.
XXXIX




ANNABETH

ACONCHEGANTE.
Annabeth nunca pensou que descreveria um lugar no Tártaro as-
sim, mas, apesar de a cabana do gigante ser do tamanho de um plan-
etário e feita de ossos, lama e pele de drakon, ela era sem dúvida
aconchegante.
No centro queimava uma fogueira feita de ossos e piche; apesar
disso, a fumaça era branca e sem cheiro, e saía através da abertura no
meio do teto. O chão estava coberto com grama seca do pântano e
uns trapos de lã cinza. De um lado havia uma cama enorme feita de
peles de carneiro e couro de drakon. Do outro, penduradas em prate-
leiras e ganchos havia plantas secando, couro curtido e o que pare-
ciam tiras de carne seca de drakon. Todo o lugar cheirava a en-
sopado, fumaça, manjericão e tomilho.
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A única coisa que preocupava Annabeth era o rebanho de carneir-
os amontoado em um curral nos fundos da cabana.
A garota se lembrou da caverna de Polifemo, o ciclope, que de-
vorava semideuses e carneiros sem distinção. Ela se perguntou se os
gigantes teriam um gosto parecido.
Parte dela estava tentada a sair dali correndo, no entanto, Bob já
tinha posto Percy na cama do gigante, onde ele quase desaparecia no
meio da lã e do couro. Bob Pequeno saltou de cima de Percy e em
seguida se enfiou nos cobertores, ronronando com tamanha força
que a cama passou a tremer como se fosse uma cadeira
massageadora.
Damásen foi até a fogueira. Jogou a carne de drakon em uma
panela pendurada que parecia feita com o crânio de um velho mon-
stro, então pegou uma concha e começou a mexer.
Annabeth não queria ser o próximo ingrediente de seu ensopado,
mas tinha ido até lá por uma razão. Por isso, respirou fundo e camin-
hou decidida até o gigante.
-- Meu amigo está morrendo. Você pode curá-lo ou não?
A voz dela vacilou na palavra amigo. Percy era muito mais que
isso. Nem namorado era o suficiente para descrever a relação deles.
Os dois tinham passado por muita coisa juntos. Àquela altura, Percy
fazia parte dela, às vezes uma parte irritante, é claro, mas sem
dúvida uma parte sem a qual não podia viver.
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Damásen olhou para ela, franzindo a testa e as grossas sobrancel-
has ruivas. Annabeth tinha conhecido muitos humanoides assusta-
dores antes, mas Damásen a perturbava de um modo diferente. Não
parecia hostil. Ele irradiava pesar e amargura, como se estivesse tão
ocupado com a própria infelicidade que se ressentia por Annabeth
tentar fazê-lo dar atenção a outra coisa.
-- Não costumo ouvir essas palavras no Tártaro -- resmungou o
gigante. -- Amigo. Promessa.
Annabeth cruzou os braços.
-- E sangue de górgona? Você conhece uma cura, ou Bob super-
estimou seus talentos?
Provocar um matador de drakons de mais de cinco metros de al-
tura provavelmente não era uma estratégia muito inteligente, mas
Percy estava morrendo. Ela não tinha tempo para diplomacia.
Damásen a olhou de cara feia.
-- Você está duvidando de minhas habilidades? Uma humana
quase morta chega se arrastando no meu pântano e duvida de min-
has habilidades?
-- É -- disse ela.
-- Hunf. -- Damásen entregou a concha a Bob. -- Mexa.
Enquanto Bob cuidava do ensopado, Damásen remexeu em seus
ganchos e prateleiras e pegou várias folhas e raízes. Jogou um
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punhado de plantas na boca, mastigou-o e então o cuspiu em um
pedaço de lã.
-- Caneca de caldo -- ordenou Damásen.
Bob pôs algumas conchas do caldo do ensopado em uma cabaça
vazia. Ele a entregou a Damásen, que jogou a bola nojenta que tinha
mastigado no caldo e o mexeu com o dedo.
-- Sangue de górgona -- murmurou ele. -- Isso está longe de ser
um desafio para meus talentos.
Foi devagar até a cama e pôs Percy sentado com apenas uma das
mãos. Bob Pequeno, o gatinho, farejou o caldo e chiou. Arranhou os
lençóis como se quisesse enterrá-lo.
-- Você vai dar isso para ele beber? -- perguntou Annabeth.
O gigante olhou irritado para ela.
-- Quem é o curandeiro aqui? Você?
Annabeth calou a boca. Observou enquanto o gigante fez Percy
beber o caldo. Damásen o tratava com uma delicadeza sur-
preendente, murmurando palavras de encorajamento que ela não
conseguia entender direito.
A cada gole, a cor de Percy melhorava. Ele bebeu tudo, e seus ol-
hos piscaram e abriram. Ele olhou ao redor com uma expressão atôn-
ita, viu Annabeth e lhe deu um sorriso bêbado.
-- Me sinto ótimo.
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Seus olhos giraram nas órbitas. Caiu de costas na cama e começou
a roncar.
-- Algumas horas de sono -- anunciou Damásen. -- Ele vai ficar
como novo.
Annabeth deu um suspiro aliviado.
-- Obrigada.
Damásen a encarou com tristeza.
-- Não me agradeça. Vocês ainda estão condenados. E eu cobro
por meus serviços.
Annabeth engoliu em seco.
-- Hã... que tipo de pagamento?
-- Uma história. -- Os olhos do gigante brilharam. -- O Tártaro é
muito entediante. Você pode me contar a história enquanto
comemos, hein?

***

Annabeth se sentiu desconfortável contando seus planos a um
gigante.
Mesmo assim, Damásen era um bom anfitrião. Ele salvara Percy.
O ensopado de carne de drakon estava excelente (especialmente
quando comparado ao fogo líquido). Sua cabana era quente e con-
fortável, e pela primeira vez, desde que caíram no Tártaro, Annabeth
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sentiu que podia relaxar. O que era irônico, já que estava jantando
com um titã e um gigante.
Contou a Damásen sobre sua vida e as aventuras com Percy. Ex-
plicou como Percy tinha conhecido Bob, apagado sua memória no
Rio Lete e o deixado sob os cuidados de Hades.
-- Percy estava tentando fazer uma coisa boa -- garantiu a
Bob. -- Ele nunca pensou que Hades fosse ser tão canalha.
Aquilo não soou convincente nem para ela. Hades sempre tinha
sido um canalha.
Ela pensou no que as arai haviam dito, em como Nico di Angelo
foi a única pessoa a visitar Bob no palácio do Mundo Inferior. Nico
era um dos semideuses menos amistosos e extrovertidos que Anna-
beth conhecia. Mesmo assim, tinha sido bom com Bob. E ao conven-
cer o titã de que Percy era seu amigo, Nico sem querer salvara a vida
deles. Annabeth se perguntou se algum dia ia conseguir entender
aquele cara.
Bob lavou sua tigela com o produto de limpeza e um trapo.
Damásen gesticulou com sua colher encorajadoramente.
-- Continue a história, Annabeth Chase.
Ela contou sobre sua jornada no Argo II, mas quando chegou na
parte sobre como deveriam impedir o despertar de Gaia, vacilou.
-- Ela é, hum... ela é sua mãe, certo?
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Damásen raspou sua tigela. Seu rosto era coberto por velhas
queimaduras de veneno, marcas profundas e cicatrizes grossas, por
isso parecia a superfície de um asteroide.
-- É. E Tártaro é meu pai. -- Ele fez um gesto amplo mostrando a
cabana. -- Como pode ver, fui uma decepção para meus pais. Eles es-
peravam... mais de mim.
Annabeth ainda não conseguia acreditar que estava tomando
sopa com um homem de pernas de lagarto de cinco metros de altura
que era filho da Terra e das Profundezas do Tártaro.
Já era difícil imaginar os deuses olimpianos como pais, mas pelo
menos eles tinham aparência humana. Já os deuses primordiais,
como Gaia e Tártaro... Como você podia sair de casa e ser independ-
ente de seus pais quando eles, literalmente, englobavam o mundo
inteiro?
-- Então... Você não se importa que a gente esteja em guerra com
sua mãe?
Damásen bufou como um touro.
-- Boa sorte. No momento é com meu pai que devem se preocu-
par. Se ele está contra vocês, então não têm a menor chance de
sobreviver.
De repente, Annabeth perdeu a fome. Pôs sua tigela no chão. Bob
Pequeno se aproximou para investigá-la.
-- Como assim, contra nós? -- perguntou ela.
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-- Tudo isso. -- Damásen quebrou um osso de drakon e usou uma
lasca para palitar os dentes. -- Tudo o que você vê é o corpo de Tár-
taro, ou pelo menos uma manifestação dele. Ele sabe que vocês estão
aqui, e tenta deter seu avanço a cada passo. Meus irmãos estão
caçando vocês. É incrível que tenham sobrevivido até agora, mesmo
com a ajuda de Jápeto.
Bob franziu a testa ao ouvir seu nome.
-- Os derrotados estão atrás de nós, é. Agora devem estar
chegando bem perto.
Damásen cuspiu fora o palito de dentes.
-- Posso ocultar seu rastro por algum tempo, o suficiente para vo-
cês descansarem. Tenho poder neste pântano. Mas, no fim, eles vão
alcançar vocês.
-- Meus amigos precisam chegar às Portas da Morte -- disse
Bob. -- É lá que fica a saída.
-- Impossível -- murmurou Damásen. -- As portas são bem
guardadas demais.
Annabeth inclinou-se para a frente.
-- Mas você sabe onde elas ficam?
-- É claro. Todo o Tártaro corre para um lugar: seu coração. É
onde ficam as Portas da Morte. Mas vocês não vão conseguir chegar
lá vivos só com Jápeto.
-- Então venha com a gente -- pediu Annabeth. -- Ajude.
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-- H A!
Annabeth sobressaltou-se.
Na cama, Percy delirava em seu sono:
-- Ha, ha, ha.
-- Filha de Atena -- disse o gigante. -- Não sou seu amigo. Já
ajudei mortais uma vez, e veja o que me aconteceu.
-- Você ajudou mortais? -- Annabeth sabia muito sobre lendas
gregas, mas o nome Damásen não lhe dizia nada. -- Eu... eu não
entendo.
-- História ruim -- explicou Bob. -- Gigantes bons têm histórias
ruins. Damásen foi criado para se opor a Ares.
-- É -- confirmou o gigante. -- Como todos os meus irmãos, nasci
para reagir a determinado deus. Meu inimigo era Ares. Mas Ares era
o deus da guerra. Por isso, quando nasci...
-- Você era o seu oposto -- arriscou Annabeth. -- Você era
pacífico.
-- Pelo menos para um gigante -- respondeu Damásen com um
suspiro. -- Andei sem rumo pelos campos da Meônia, a terra que vo-
cês agora chamam de Turquia. Cuidava de meus carneiros e colhia
minhas ervas. Era uma vida boa. Mas não queria combater os deuses.
Minha mãe e meu pai me amaldiçoaram por isso. E o insulto final:
certo dia, um drakon maeônio matou um pastor humano, um amigo
meu, por isso cacei a criatura e a matei, cravando uma árvore em sua
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garganta. Usei o poder da terra para fazer as raízes da árvore tornar-
em a crescer, e plantei o drakon firmemente no chão. Queria garantir
que ele não aterrorizasse mais os mortais. Foi um feito que Gaia não
poderia perdoar.
-- O fato de ter ajudado alguém?
-- É. -- Damásen pareceu envergonhado. -- Gaia abriu a terra e
fui consumido, exilado aqui na barriga do meu pai, Tártaro, onde se
juntam todos os destroços inúteis... todas as criações com as quais ele
não se importa. -- O gigante tirou uma flor do cabelo e a olhou dis-
traído. -- Eles me deixaram viver, cuidando de meus carneiros e col-
hendo minhas ervas, para que eu aprendesse como era desprezível a
vida que havia escolhido. Todos os dias... ou o que conta como dia
neste lugar sem luz... o drakon meonian se recompõe e me ataca.
Matá-lo é minha tarefa por toda a eternidade.
Annabeth olhou ao redor da cabana, tentando imaginar há
quantas eras Damásen estava exilado ali, matando o drakon e recol-
hendo seus ossos, couro e carne, sabendo que ele voltaria a atacar no
dia seguinte. Mal conseguia imaginar sobreviver a uma semana no
Tártaro. Exilar o próprio filho ali por séculos... era de uma crueldade
inimaginável.
-- Desfaça a maldição -- disse de repente. -- Venha com a gente.
Damásen riu com amargura.
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-- Pensa que é tão fácil? Não acha que já tentei deixar este lugar?
É impossível. Não importa para que direção eu viaje, sempre acabo
voltando. O pântano é a única coisa que conheço... o único destino
que consigo imaginar. Não, pequena semideusa. Fui vencido por
minha maldição. Não me resta nenhuma esperança.
-- Nenhuma esperança -- repetiu Bob.
-- Deve haver um modo. -- Annabeth não podia aguentar a ex-
pressão no rosto do gigante, que lembrava a de seu pai, nas poucas
vezes em que confessara ainda amar Atena. Ele ficava extremamente
triste e abatido, desejando algo que sabia ser impossível.
-- Bob tem um plano para chegar às Portas da Morte -- insistiu
ela. -- Ele disse que podíamos nos esconder em algum tipo de Névoa
da Morte.
-- Névoa da Morte? -- Damásen olhou de cara feia para
Bob. -- Você os levaria até Akhlys?
-- É o único jeito -- defendeu-se Bob.
-- Vocês vão morrer -- disse Damásen. -- Uma morte dolorosa.
No escuro. Akhlys não confia em ninguém, não ajuda ninguém.
Bob parecia querer discutir, mas cerrou os lábios e ficou em
silêncio.
-- Há algum outro jeito? -- perguntou Annabeth.
-- Não -- admitiu Damásen. -- A Névoa da Morte... esse é o mel-
hor plano. Infelizmente, é um péssimo plano.
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Annabeth sentia como se estivesse pendurada no abismo outra
vez, sem conseguir se içar pela borda, sem conseguir continuar se se-
gurando... sem boas opções.
-- Mas não acha que vale a pena tentar? -- perguntou ela. -- Você
podia voltar para o mundo mortal. Podia ver o sol outra vez.
Os olhos de Damásen pareciam as órbitas do crânio do drakon:
escuros e vazios, destituídos de qualquer esperança. Ele jogou um
osso quebrado no fogo e ficou de pé com as costas bem retas, um
enorme guerreiro vermelho vestindo pele de carneiro e couro de
drakon, com flores secas e ervas nos cabelos. Annabeth podia ver
como ele era o antiAres. Ares era o pior deus, temperamental e viol-
ento. Damásen era o melhor gigante, bondoso e prestativo... e por
isso tinha sido condenado ao tormento eterno.
-- Durmam um pouco -- disse o gigante. -- Vou preparar
suprimentos para sua viagem. Sinto muito, mas não posso fazer mais
nada.
Annabeth quis contestar, mas assim que ouviu a palavra dormir
foi traída por seu corpo, apesar de sua decisão anterior de nunca
mais dormir no Tártaro. Estava de barriga cheia. O crepitar do fogo
era agradável. As ervas penduradas a faziam lembrar das colinas em
torno do Acampamento Meio-Sangue no verão, quando os sátiros e
náiades colhiam plantas silvestres nas tardes tranquilas.
-- Talvez dormir um pouco -- concordou ela.
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Bob a pegou como se fosse uma boneca de pano. Ela não
protestou. Ele a pôs ao lado de Percy na cama do gigante, e ela fechou
os olhos.
XL




ANNABETH

ANNABETH ACORDOU OLHANDO PARA AS sombras que dançavam no
teto da cabana. Não tivera nenhum sonho. Isso era tão estranho que
não sabia se estava realmente acordada.
Deitada ali, com Percy roncando a seu lado, e Bob Pequeno ron-
ronando em cima de sua barriga, ouviu Bob e Damásen conversando.
-- Você não contou a ela -- disse Damásen.
-- Não -- admitiu Bob. -- Ela já está com medo.
O gigante resmungou.
-- E é para estar. E se você não conseguir guiá-los além da Noite?
Damásen disse "Noite" como se fosse um nome próprio... um
nome maligno.
-- Tenho que conseguir.
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-- Por quê? O que os semideuses fizeram por você? Apagaram seu
velho eu, tudo o que você era. Nós, titãs e gigantes... devíamos ser os
inimigos dos deuses e de seus filhos. Não devíamos?
-- Então por que você curou o garoto?
Damásen suspirou.
-- Nem eu sei. Talvez porque a garota tenha me desafiado, ou
talvez porque... acho esses dois semideuses intrigantes. São muito
resistentes para terem chegado tão longe. Isso é admirável. Mesmo
assim, como podemos ajudá-los mais? Não é nosso destino.
-- Talvez -- disse Bob, sentindo-se desconfortável. -- Mas... você
gosta de seu destino?
-- Que pergunta. Será que alguém gosta de seu destino?
-- Eu gostava de ser Bob -- murmurou. -- Antes de começar a me
lembrar...
-- Hum.
Annabeth ouviu um ruído, como se Damásen estivesse enchendo
uma bolsa de couro.
-- Damásen, você se lembra do sol? -- perguntou o titã.
O ruído parou. Annabeth ouviu o gigante suspirar outra vez.
-- Lembro. Era amarelo. Quando tocava o horizonte, deixava o
céu com cores bonitas.
-- Tenho saudade do sol -- disse Bob. -- Das estrelas, também.
Queria dar um oi para as estrelas outra vez.
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-- Estrelas... -- Damásen pronunciou a palavra como se tivesse
esquecido seu significado. -- Ah, é. Elas criavam formas no céu
noturno. -- Ele jogou no chão algo que caiu com um baque
surdo. -- Ah. Essa conversa não vai levar a nada. Não podemos...
A distância, o drakon maeônio rugiu.
Percy acordou e se sentou imediatamente.
-- O quê? O que... onde... o quê?
-- Está tudo bem.
Annabeth tocou seu braço.
Quando o garoto compreendeu que estavam deitados na cama de
um gigante com um gato esqueleto, pareceu mais confuso que nunca.
-- Esse barulho... onde estamos?
-- Do que consegue lembrar?
Percy franziu a testa. Seus olhos pareciam alertas. Todos os seus
ferimentos haviam desaparecido. Tirando as roupas esfarrapadas e
algumas camadas de terra e fuligem, ele parecia nunca ter caído no
Tártaro.
-- Eu... as velhas demônios... e depois... Pouca coisa.
Damásen surgiu ao lado da cama.
-- Não há tempo, pequenos mortais. O drakon está voltando.
Temo que seu rugido atraia os outros, meus irmãos que estão atrás
de vocês. Vão chegar aqui em poucos minutos.
O coração de Annabeth passou a bater mais rápido.
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-- O que vai dizer a eles quando chegarem aqui?
Damásen torceu a boca.
-- O que eu poderia contar? Nada importante, desde que vocês já
tenham partido.
Jogou para eles duas sacolas de couro de drakon.
-- Roupas, comida e bebida.
Bob levava uma sacola parecida, mas maior. Estava apoiado em
sua vassoura, olhando para Annabeth como se ainda estivesse reflet-
indo sobre as palavras de Damásen: O que os semideuses fizeram por
você? Eram inimigos, inimigos imortais.
De repente, Annabeth foi surpreendida por um pensamento tão
claro e afiado que parecia uma lâmina da própria Atena.
-- A Profecia dos Sete -- disse ela.
Percy já tinha descido da cama gigantesca e estava colocando a
sacola no ombro. Ele a olhou com expressão séria.
-- O que tem ela?
Annabeth segurou a mão de Damásen, o que fez o gigante se
sobressaltar. Ela franziu a testa. Sua pele era áspera como pedra.
-- Você precisa vir com a gente -- suplicou ela. -- A profecia diz
inimigos com armas às Portas da Morte. Achava que isso significava
gregos e romanos, mas não. Somos nós, semideuses, um titã e um gi-
gante. Precisamos de você para fechar as Portas!
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O drakon rugiu lá fora, cada vez mais perto. Damásen retirou a
mão da de Annabeth com delicadeza.
-- Não, menina -- murmurou ele. -- Minha maldição é aqui. Não
posso escapar dela.
-- Pode, pode, sim -- disse Annabeth. -- Não enfrente o drakon.
Pense em um modo de romper o ciclo! Encontre outro destino.
Damásen sacudiu a cabeça.
-- Mesmo que pudesse, não consigo deixar este pântano. É o
único destino que consigo visualizar.
A mente de Annabeth era um turbilhão.
-- Existe outro destino. Olhe para mim! Lembre-se do meu rosto.
Quando estiver pronto, me procure. Vamos levá-lo para o mundo
mortal conosco. Você vai poder ver a luz do sol e as estrelas.
O chão estremeceu. O drakon estava perto, atravessando o
pântano com passos pesados, destruindo árvores e musgo com seu
jato de veneno. Mais longe, Annabeth ouviu a voz do gigante
Polibotes, incentivando seus seguidores.
-- O FILHO DO DEUS DO MAR! ELE ESTÁ PERTO!
-- Annabeth -- insistiu Percy. -- É a nossa deixa para ir embora.
Damásen pegou algo em seu cinto. Em sua mão enorme, a
pequena lasca branca parecia outro palito de dentes, mas quando ele
a entregou a Annabeth, a garota percebeu que era uma espada... uma
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lâmina de osso de dragão mortalmente afiada, com uma empun-
hadura simples de couro.
-- Um último presente para a filha de Atena -- disse o gigante
com sua voz retumbante. -- Não posso mandá-la para a morte desar-
mada. Agora vão! Antes que seja tarde demais.
Annabeth teve vontade de chorar. Pegou a espada, mas não con-
seguiu nem articular um agradecimento... Sabia que o gigante dever-
ia lutar ao lado deles. Era essa a resposta, mas Damásen se afastou.
-- Temos que ir -- disse Bob, apressando-os, enquanto o gatinho
voltava para seu ombro.
-- Ele tem razão, Annabeth -- acrescentou Percy.
Eles correram para a entrada. Annabeth não olhou para trás en-
quanto seguia Percy e Bob pântano adentro, mas ouviu Damásen at-
rás deles soltar seu grito de guerra para o drakon que o atacava, com
a voz vacilante devido ao desespero de enfrentar seu velho inimigo
mais uma vez.
XLI




PIPER

PIPER NÃO SABIA MUITO SOBRE o Mar Mediterrâneo, mas tinha cer-
teza de que ele não devia congelar em julho.
Depois de dois dias em mar aberto após saírem de Split, nuvens
negras dominaram o céu. As ondas ficaram mais fortes, lançando no
convés uma chuva fina, que formava uma camada de gelo sobre
amuradas e cordas.
-- É o cetro -- murmurou Nico, erguendo o cajado antigo. -- Só
pode ser.
Piper ficou desconfiada. Desde que Jason e Nico voltaram do
palácio de Diocleciano, estavam agindo de maneira nervosa e reser-
vada. Algo importante tinha acontecido lá, algo que Jason não queria
contar a ela.
Tinha lógica o cetro ter provocado aquela mudança de tempo. A
orbe negra no topo parecia drenar a cor do ar, e as águias douradas
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na base tinham um brilho frio. O cetro supostamente controlava os
mortos, e ele definitivamente emitia vibrações ruins. Quando o tre-
inador Hedge viu aquela coisa, ficou pálido e avisou que ia para o
quarto se consolar com vídeos de Chuck Norris. (Mas Piper descon-
fiava que, na verdade, ele estava mandando mensagens de Íris para
sua namorada, Mellie; o treinador andava muito agitado em relação a
ela, apesar de não contar a Piper qual era o problema.)
Então, sim... Talvez o cetro pudesse provocar uma tempestade de
gelo assustadora. Mas Piper não achava que fosse isso. Temia que o
motivo fosse outro... Algo ainda pior.
-- Não podemos conversar aqui -- decidiu Jason. -- Vamos adiar
a reunião.
Todos tinham se reunido no tombadilho superior para discutir es-
tratégias conforme se aproximavam de Épiro. Agora estava evidente
que lá não era um bom lugar para ficar: o vento varria o gelo pelo
convés, o mar se revolvia sob eles.
Piper não se incomodava muito com isso. O balanço e a movi-
mentação das ondas a faziam lembrar das vezes em que fora surfar
com o pai na costa da Califórnia. Mas notou que Hazel não estava
passando bem. A pobre da garota ficava enjoada até com o mar tran-
quilo. Ela parecia estar tentando engolir uma bola de sinuca.
-- Preciso...
Hazel teve ânsia de vômito e apontou para baixo.
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-- Claro, desça.
Nico beijou-a no rosto, o que surpreendeu Piper. Ele raramente
dava demonstrações de carinho, nem mesmo com a irmã. Parecia
odiar qualquer contato físico. Beijar Hazel... era quase como se fosse
uma despedida.
-- Vou com você.
Frank passou um braço pela cintura de Hazel e a ajudou a descer
as escadas.
Piper torcia para que Hazel ficasse bem. Nas últimas noites, de-
pois daquela luta contra Círon, tinham conversado muito. Serem as
únicas meninas a bordo era meio complicado. Dividiam histórias, re-
clamavam sobre os hábitos nojentos dos meninos e choravam juntas
por Annabeth. Hazel contou como era controlar a Névoa, e Piper se
surpreendeu ao descobrir que era muito parecido com usar o charme.
Piper se ofereceu para ajudá-la com o que precisasse. Em troca,
Hazel prometeu ensiná-la a lutar com espadas, uma habilidade na
qual Piper era péssima. Sentia que ganhara uma nova amiga, o que
era maravilhoso... supondo que vivessem tempo o bastante para des-
frutarem dessa amizade.
Nico espanou um pouco de gelo dos cabelos e franziu o cenho di-
ante do cetro de Diocleciano.
-- Eu devia guardar essa coisa. Se está mesmo provocando esse
tempo, talvez levá-lo lá para baixo ajude...
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-- Claro -- disse Jason.
Nico olhou para Piper e Leo, como se estivesse preocupado com o
que poderiam dizer na sua ausência. Piper percebeu que ele estava
mais na defensiva, como se estivesse se encolhendo em uma bola
psicológica, como quando entrara no transe de morte dentro do jarro
de bronze.
Quando ele desceu, Piper estudou a expressão de Jason. Seus ol-
hos estavam carregados de preocupação. O que acontecera na
Croácia?
Leo pegou uma chave de fenda no cinto.
-- Que grande reunião de equipe. Parece que é só a gente de novo.
Só a gente de novo.
Piper recordou de um dia de inverno em Chicago, em dezembro
do ano anterior, quando os três aterrissaram no Millennial Park em
sua primeira missão.
Leo não mudara muito, exceto por parecer mais à vontade em seu
papel de filho de Hefesto. Ele sempre tivera um excesso de energia
nervosa. Agora sabia como usá-la. Suas mãos estavam sempre em
movimento. Pegava coisas em seu cinto, mexia nos controles, brin-
cava com sua adorada esfera de Arquimedes. Hoje a havia retirado
do painel de controle e desligado Festus, a figura de proa, para ma-
nutenção, algo sobre reprogramar seu processador para aprimorar o
controle do motor com a esfera, o que quer que isso significasse.
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Quanto a Jason, parecia mais magro, mais alto e mais desgastado.
O cabelo, antes bem curto, no estilo romano, agora era comprido e
desgrenhado. O sulco que Círon fizera do lado esquerdo do couro ca-
beludo também era interessante, acrescentava um toque de rebeldia.
Seus olhos azuis como o céu pareciam de algum modo mais velhos,
cheios de preocupação e responsabilidade.
Piper sabia o que seus amigos murmuravam sobre Jason: era per-
feito demais, rigoroso demais. Se isso um dia fora verdade, não era
mais. A missão tinha acabado com ele, e não apenas fisicamente. As
dificuldades que enfrentou não o enfraqueceram, mas ele tinha sido
curtido e amaciado como couro, como se estivesse se tornando uma
versão mais afável de si mesmo.
E Piper? Só podia imaginar o que Leo e Jason pensavam quando
olhavam para ela. Com certeza não se sentia mais a mesma pessoa
que era no inverno anterior.
Aquela primeira missão para resgatar Hera parecia ter ocorrido
séculos atrás. Tanta coisa havia mudado em sete meses... ela se per-
guntou como os deuses aguentavam viver milhares de anos. Quantas
mudanças eles teriam presenciado? Talvez não fosse de surpreender
o fato de os olimpianos parecerem um pouco loucos. Se Piper tivesse
vivido por três milênios, teria ficado doidinha.
Ela olhou para a chuva fria. Daria tudo para voltar ao
Acampamento Meio-Sangue, onde o clima era controlado até no
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inverno. As imagens que vira em sua adaga ultimamente... bem, não
lhe davam muitos motivos para ficar animada.
Jason apertou seu ombro.
-- Ei, vai ficar tudo bem. Estamos perto de Épiro. Só mais um dia,
se as indicações de Nico estiverem corretas.
-- É. -- Leo brincava com sua esfera, batendo e apertando as joi-
as. -- Amanhã de manhã, mais ou menos, vamos chegar na costa
leste da Grécia. Depois mais uma hora de caminhada e pronto, a CASA
DE HADES! Vou comprar uma camiseta de lembrança!
-- Oba -- murmurou Piper em voz baixa.
Não estava muito ansiosa para mergulhar novamente na escur-
idão. Ainda tinha pesadelos com o ninfeu e o hipogeu sob Roma. Na
lâmina de Katoptris, vira imagens parecidas com as que Leo e Hazel
descreveram a partir de seus sonhos, uma feiticeira pálida em um
vestido dourado, cujas mãos teciam luz dourada no ar como seda em
um tear, e um gigante envolto em sombras descendo por um
corredor comprido iluminado por tochas nas paredes. Conforme ele
passava, as chamas se apagavam. Ela viu uma caverna enorme cheia
de monstros (ciclopes, nascidos da terra e coisas mais estranhas) cer-
cando a ela e a seus amigos em tamanha superioridade numérica que
não lhes dava qualquer esperança.
Cada vez que via essas imagens, uma voz interior não parava de
repetir a mesma frase.
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-- Gente -- disse ela. -- Tenho pensado sobre a Profecia dos Sete.
Era preciso muito para desviar a atenção de Leo de seu trabalho,
mas isso foi suficiente.
-- O que pensou? -- perguntou ele. -- Tipo... coisas boas, certo?
Ela reajustou a alça que prendia sua cornucópia ao ombro. Às
vezes a trompa da fartura parecia tão leve que se esquecia dela. Em
outras, parecia tão pesada quanto uma bigorna, como se o deus do
Rio Aqueloo estivesse enviando energias ruins para puni-la por pegar
seu chifre.
-- Na Katoptris -- começou ela. -- Não paro de ver aquele gigante
Clítio, o cara sempre envolto em sombras. Sei que o ponto fraco dele
é o fogo, mas em minhas visões ele assopra as chamas aonde quer
que vá. Todo tipo de luz é sugado por sua nuvem de escuridão.
-- Parece o Nico -- disse Leo. -- Será que são parentes?
Jason fechou a cara.
-- Ei, dá um tempo pro Nico, o.k.? Então, Piper, o que tem esse
gigante? O que você está pensando?
Ela e Leo trocaram um olhar intrigado, tipo: Desde quando Jason
defende Nico di Angelo? Ela preferiu não comentar.
-- Não paro de pensar em fogo -- respondeu Piper. -- Como es-
peramos que Leo derrote esse gigante porque ele é...
-- Um cara quente? -- sugeriu Leo com um sorriso.
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-- Humm, acho que a melhor definição é inflamável. Enfim, esse
trecho da profecia me incomoda: Em tempestade ou fogo, o mundo
terá acabado.
-- É, já sabemos isso -- afirmou Leo. -- Você vai dizer que sou
fogo. E que Jason é a tempestade.
Piper assentiu com relutância. Sabia que nenhum deles gostava
de discutir o assunto, mas todos deviam ter sentido que era verdade.
O navio lançou-se abruptamente para estibordo. Jason agarrou a
amurada congelada.
-- Então você está preocupada que um de nós prejudique a mis-
são e acidentalmente destrua o mundo?
-- Não -- disse Piper. -- Acho que temos interpretado esse trecho
do modo errado. O mundo... a Terra. Em grego, a palavra para isso
seria...
Ela hesitou, sem querer dizer o nome em voz alta, mesmo no mar.
-- Gaia. -- Os olhos de Jason cintilaram com um interesse
súbito. -- Você quer dizer que Em tempestade ou fogo, Gaia terá
acabado?
-- Ah... -- Leo deu um sorriso ainda maior. -- Sabe, gosto muito
mais da sua versão. Porque se Gaia não resistir a mim, o sr. Fogo, vai
ser muito maneiro.
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-- Ou a mim... a tempestade. -- Jason a beijou. -- Piper, isso é in-
crível! Se estiver certa, são ótimas notícias. Só precisamos descobrir
qual de nós destrói Gaia.
-- Pode ser. -- Ela se sentiu desconfortável por deixá-los tão es-
perançosos. -- Mas, vejam, é tempestade ou fogo...
Desembainhou Katoptris e a pôs sobre o painel. Imediatamente a
lâmina piscou e acendeu, mostrando a forma escura do gigante Clítio
caminhando por um corredor e apagando as tochas.
-- Estou preocupada com Leo e essa luta contra Clítio -- afirmou
ela. -- Aquele trecho na profecia pode dar a entender que só um de
vocês conseguirá. E se o trecho "em tempestade ou fogo" estiver rela-
cionado com o terceiro verso, "Um juramento a manter com um
alento final"...
Não concluiu o raciocínio, mas pelas expressões de Jason e Leo,
percebeu que eles tinham entendido. Se estivesse interpretando a
profecia corretamente, ou Leo ou Jason iria derrotar Gaia. O outro
morreria.
XLII




PIPER

LEO OLHOU PARA A ADAGA.
-- O.k.... então não gosto tanto da sua interpretação quanto
pensava. Você acha que um de nós vai derrotar Gaia, e o outro mor-
rer? Ou talvez um de nós morra enquanto a derrota? Ou...
-- Gente -- disse Jason. -- Vamos ficar loucos se pensarmos
muito nisso. Vocês sabem como são as profecias. Os heróis sempre se
ferram quando tentam mudá-las.
-- É -- murmurou Leo. -- E nós odiaríamos isso. Porque as coisas
estão indo perfeitamente bem até agora.
-- Você sabe o que quero dizer. O trecho do alento final pode não
estar ligado à parte da tempestade ou fogo. Pelo que sabemos, nós
dois podemos nem mesmo ser a tempestade e o fogo. Percy pode cri-
ar furacões.
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-- E eu sempre posso incendiar o treinador Hedge -- observou
Leo com humor. -- Então ele seria o fogo.
A ideia de um sátiro em chamas gritando "Morra, sua vaca!" en-
quanto atacava Gaia quase conseguiu fez Piper rir... Quase.
-- Espero estar enganada -- disse com cautela. -- Mas a missão
começou com a gente: encontramos Hera e despertamos o rei dos gi-
gantes, Porfírio. Tenho a sensação de que nós também vamos termin-
ar esta guerra. Para o bem ou para o mal.
-- Ei -- disse Jason. -- Eu, pessoalmente, gosto do nós.
-- Concordo -- acrescentou Leo. -- Nós são minhas pessoas
favoritas.
Piper conseguiu sorrir. Amava mesmo aqueles dois. Queria poder
usar seu charme nas Parcas, descrever um final feliz e forçá-las a
torná-lo realidade.
Infelizmente, era difícil imaginar um final feliz com todos aqueles
pensamentos sombrios na cabeça. Temia que o gigante Clítio tivesse
sido mandado atrás deles para tirar Leo do caminho. Se isso fosse
verdade, significaria que Gaia também ia tentar eliminar Jason. Sem
tempestade ou fogo, a missão deles fracassaria.
E aquele frio também a incomodava... tinha certeza de que estava
sendo provocado por algo além do cetro de Diocleciano. O vento frio
e a chuva de granizo pareciam agressivos e hostis. E, de algum modo,
familiares.
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Aquele cheiro no ar, um cheiro forte de...
Piper devia ter percebido o que estava acontecendo antes, mas
morara durante a maior parte da vida no sul da Califórnia, com tem-
peraturas amenas o ano todo. Não tinha crescido com aquele cheiro...
o cheiro de neve iminente.
Todos os músculos em seu corpo se contraíram.
-- Leo, toque o alarme!
Piper não tinha percebido que estava usando o charme, mas Leo
largou a chave de fenda imediatamente e apertou o botão do alarme.
Franziu a testa quando nada aconteceu.
-- Hum, não está funcionando -- lembrou Leo. -- Festus está des-
ligado. Me dê um minuto para colocar o sistema on-line de novo.
-- Não temos um minuto! Fogo, precisamos de frascos de fogo
grego. Jason, convoque os ventos. Ventos quentes, do sul.
-- Como é? -- Jason olhou para ela, confuso. -- Piper, qual o
problema?
-- É ela! -- respondeu Piper já empunhando a adaga. -- Ela
voltou! Temos que...
Antes que pudesse terminar, o barco guinou para bombordo. A
temperatura caiu tão rápido que as velas congelaram imediatamente.
Os escudos de bronze ao longo das amuradas saltaram como uma
rolha de champanhe.
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Jason sacou a espada, mas era tarde demais. Uma onda de
partículas de gelo caiu sobre ele, cobrindo-o como a calda de uma
maçã do amor e paralisando-o no lugar. Sob a camada de gelo, seus
olhos estavam arregalados de surpresa.
-- Leo! Fogo! Agora! -- berrou Piper.
A mão direita de Leo pegou fogo, mas o vento girou em torno dele
e apagou as chamas. Ele segurou a esfera de Arquimedes com força
quando um redemoinho de chuva e neve o ergueu do chão.
-- Ei! -- gritou ele. -- Ei! Me solte!
Piper correu em sua direção, mas uma voz na tempestade disse:
-- Ah, sim, Leo Valdez. Vou soltar você, e vai ser para sempre.
Leo disparou para o alto tão rápido que pareceu ter sido arremes-
sado por uma catapulta, e desapareceu nas nuvens.
-- Não! -- Piper ergueu a adaga, mas não havia nada para atacar.
Olhou desesperada para as escadas, torcendo para ver os amigos
chegando para resgatá-los, mas um bloco de gelo havia selado a
escotilha. Tudo abaixo do convés principal devia estar completa-
mente congelado.
Ela precisava de uma arma melhor para lutar -- algo melhor que
sua voz, uma adaga que dizia o futuro e uma cornucópia da qual
saíam presunto e frutas frescas.
Piper se perguntou se conseguiria chegar à balista.
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Então seus inimigos surgiram, e ela se deu conta de que nenhuma
arma seria suficiente.
No meio do navio, Piper viu uma garota usando um vestido es-
voaçante de seda branca, o cabelo negro preso com um arco crave-
jado de diamantes. Tinha olhos escuros como café, mas sem qualquer
calor.
Atrás dela estavam seus irmãos -- dois rapazes com asas de penas
roxas, cabelos muito brancos e espadas denteadas de bronze celestial.
-- É tão bom vê-la outra vez, ma chère -- disse Quione, a deusa da
neve. -- Já era tempo de termos um reencontro congelante.
XLIII




PIPER

PIPER NÃO TINHA PLANEJADO ATIRAR muffins de mirtilo. A cor-
nucópia deve ter sentido seu desconforto e achou que ela e os visit-
antes gostariam de coisas assadas e quentinhas.
Meia dúzia de muffins suculentos voou do chifre da fartura como
tiros de espingarda. Não era um ataque inicial dos mais eficazes.
Quione simplesmente deu um passo para o lado. A maioria dos
muffins passou por ela e caiu amurada abaixo. Cada um de seus
irmãos, os boreadas, pegou um bolinho e começou a comer.
-- Muffins -- disse o maior deles. Cal, Piper lembrou-se, apelido
de Calais. Estava vestido exatamente como em Quebec, com chuteir-
as de couro, calças largas e uma jaqueta vermelha de hóquei, e tinha
olhos pretos e vários dentes quebrados. -- Muffins são gostosos.
-- Ah, merci -- disse o irmão magrelo, que estava parado na
plataforma da catapulta com as asas abertas. Ela lembrou de seu
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nome, Zetes. Os cabelos brancos ainda eram daquele estilo mullet
horroroso dos tempos da discoteca. O colarinho de sua camisa de
seda aparecia acima do peitoral da armadura. Suas calças de
poliéster verde-limão eram grotescamente justas, e sua acne só tinha
piorado. Apesar disso, ele ergueu as sobrancelhas sugestivamente e
sorriu como se fosse um guru da pegação. -- Eu sabia que a garota
bonita ia sentir minha falta.
Falava o francês do Quebec, que Piper entendia sem esforço.
Graças a sua mãe, Afrodite, ela tinha a mente programada para a lín-
gua do amor, apesar de não querer usá-la com Zetes.
-- O que está fazendo? -- questionou Piper. E depois disse usando
o charme: -- Solte meus amigos.
Zetes piscou.
-- Devíamos soltar os amigos dela.
-- É -- concordou Cal.
-- Não, seus idiotas! -- disse Quione bruscamente. -- Ela está util-
izando o charme. Usem o cérebro!
-- Cérebro... -- Cal franziu o cenho como se não tivesse certeza do
que ela estava falando. -- Muffins são mais gostosos.
Ele botou o bolinho inteiro na boca e começou a mastigar.
Zetes pegou um mirtilo da cobertura de seu muffin e o mordeu
com delicadeza.
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-- Ah, minha bela Piper... esperei tanto tempo para revê-la. Infel-
izmente, minha irmã tem razão. Não podemos soltar seus amigos. Na
verdade, devemos levá-los para o Quebec, onde vão ser motivo eterno
de chacota. Sinto muito, mas são nossas ordens.
-- Ordens?
Desde o inverno anterior, Piper esperava que cedo ou tarde
Quione mostrasse sua cara congelada. Quando a derrotaram na Casa
dos Lobos em Sonoma, a deusa da neve jurara vingança. Mas por que
Zetes e Cal estavam ali? No Quebec, os boreadas pareceram quase
amistosos -- pelo menos comparados a sua irmã glacial.
-- Meninos, escutem -- disse Piper. -- Sua irmã desobedeceu
Bóreas. Ela está trabalhando com os gigantes, tentando despertar
Gaia. Planeja tomar o trono do pai de vocês.
Quione riu, um riso suave e frio.
-- Querida Piper McLean. Você tenta manipular meus irmãos de
mente fraca com seus encantamentos, como uma verdadeira filha da
deusa do amor. Que boa mentirosa você é.
-- Mentirosa? -- gritou Piper. -- Você tentou nos matar! Zetes, ela
está trabalhando para Gaia!
Zetes se encolheu.
-- Ah, bela garota. Estamos todos trabalhando para Gaia agora.
Infelizmente, essas ordens foram de nosso pai, o próprio Bóreas.
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-- O quê? -- Piper não queria acreditar naquilo, mas o sorriso
convencido de Quione mostrou a ela que era verdade.
-- Finalmente meu pai aceitou meu sábio conselho -- disse
Quione, satisfeita. -- Ou pelo menos ele fez isso antes que sua per-
sonalidade romana entrasse em conflito com a grega. Uma pena, pois
agora está um tanto incapacitado, mas me deixou no comando.
Ordenou que as forças do Vento Norte fossem usadas a serviço do rei
Porfírio. E, é claro... da Mãe Terra.
Piper engoliu em seco.
-- Mas como vocês conseguiram chegar até aqui? -- Com um
gesto, mostrou o gelo que cobria todo o navio. -- Estamos no verão!
Quione deu de ombros.
-- Nossos poderes aumentaram. As leis da natureza estão de
cabeça para baixo. Quando a Mãe Terra despertar, vamos refazer o
mundo como desejarmos!
-- Com hóquei -- disse Cal, ainda de boca cheia. -- E pizza. E
muffins.
-- Tá, tá -- desdenhou Quione. -- Tive que prometer algumas
coisas a este grandalhão simplório. E para Zetes...
-- Ah, minhas vontades são simples. -- Zetes passou a mão no ca-
belo e piscou para Piper. -- Eu devia tê-la mantido em nosso palácio
quando nos conhecemos, querida Piper. Mas logo voltaremos para lá,
juntos, e vamos viver um romance incrível.
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-- Obrigada, mas não, obrigada -- disse Piper. -- Agora solte
Jason.
Ela concentrou todo seu poder nas palavras, e Zetes obedeceu.
Estalou os dedos, e Jason descongelou imediatamente. Ele desabou
no chão, sem fôlego e exalando vapor. Mas pelo menos estava vivo.
-- Seu imbecil! -- Quione estendeu a mão, e Jason recongelou,
agora deitado no convés como um tapete de pele de urso. Ela
repreendeu Zetes. -- Se quer a garota como recompensa, deve provar
que pode controlá-la. Não o contrário!
-- Sim, é claro. -- Zetes parecia envergonhado.
-- E em relação a Jason... -- Os olhos castanhos de Quione bril-
haram. -- Ele e o resto de seus amigos vão se unir a nossa corte de es-
tátuas de gelo no Quebec. Jason Grace vai ficar uma graça no salão
do trono.
-- Que inteligente -- murmurou Piper. -- Você levou o dia inteiro
para pensar nessa piada?
Pelo menos Piper sabia que Jason ainda estava vivo, o que di-
minuiu um pouco seu pânico. O congelamento podia ser revertido.
Isso significava que seus outros amigos provavelmente ainda es-
tavam vivos sob o convés. Ela só precisava de um plano para libertá-
los.
Infelizmente, não era Annabeth. Não era tão boa em elaborar pla-
nos do nada. Precisava de tempo para pensar.
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-- E Leo? -- disse abruptamente. -- Para onde você o mandou?
A deusa da neve caminhou com passos leves em torno de Jason,
observando-o como se ele fosse uma escultura.
-- Leo Valdez merecia um castigo especial -- disse ela. -- Eu o
mandei para um lugar do qual nunca poderá voltar.
Piper mal conseguia respirar. Pobre Leo. A ideia de nunca mais
voltar a vê-lo quase acabou com ela. Quione deve ter visto isso em
seu rosto.
-- Ah, minha querida Piper! -- Ela deu um sorriso triun-
fante. -- Mas isso é por um bem maior. Não podia tolerar Leo nem
mesmo como uma estátua de gelo... não depois que me insultou. O
tolo se recusou a reinar ao meu lado! E seu poder sobre o
fogo... -- Ela sacudiu a cabeça. -- Não podemos deixá-lo se aproximar
da Casa de Hades. Lorde Clítio gosta ainda menos de fogo do que eu.
Piper agarrou sua adaga.
Fogo, pensou. Obrigada por me lembrar, sua bruxa.
Ela examinou o convés. Como fazer fogo? Havia uma caixa cheia
de frascos de fogo grego perto de uma das balistas, mas estava longe
demais. Mesmo que conseguisse chegar lá sem ser transformada em
uma estátua de gelo, o fogo grego queimaria tudo, incluindo o navio e
todos os seus amigos. Tinha que haver outra maneira. Seus olhos se
dirigiram à proa.
Ah.
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Festus, a figura de proa, podia expelir muitas chamas. Infeliz-
mente, estava desligado. E Piper não tinha ideia de como reativá-lo.
Nunca teria tempo de descobrir os botões certos no painel de con-
trole do navio. Tinha uma vaga lembrança de Leo mexendo no interi-
or da cabeça do dragão de bronze, resmungando sobre um disco de
controle; mas mesmo que Piper conseguisse chegar à proa, não
saberia o que fazer.
Apesar disso, seu instinto lhe disse que Festus era sua melhor
chance. Só precisava convencer seus captores a deixá-la chegar perto
o suficiente...
-- Bem! -- Quione interrompeu seus pensamentos. -- Sinto que
nosso tempo aqui esteja no fim. Zetes, por favor...
-- Espere! -- disse Piper.
Era um comando simples, e funcionou. Os boreadas e Quione en-
cararam a garota, atentos.
Piper estava quase certa de que poderia controlar os irmãos com o
charme, mas Quione era um problema. Seu poder não funcionava
muito bem se a pessoa não estivesse atraída por ela, ou se fossem
seres poderosos como os deuses ou se a vítima soubesse sobre o
charme e estivesse esperando por ele. Todas as alternativas se ap-
licavam a Quione.
O que Annabeth faria?
Enrolaria, pensou Piper. Na dúvida, continue falando.
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-- Você tem medo de meus amigos -- disse ela. -- Então por que
simplesmente não os mata?
Quione riu.
-- Você não é uma deusa, ou iria entender. A morte é tão curta,
tão... insatisfatória. Suas almas mortais insignificantes vão para o
Mundo Inferior, e o que acontece? O melhor que posso esperar é vo-
cês serem mandados para os Campos de Punição ou Asfódelos, mas
semideuses são insuportavelmente nobres. A chance de irem para o
Elísio ou renascerem é muito grande. Por que iria querer recom-
pensar seus amigos se posso castigá-los por toda a eternidade?
-- E eu? -- Piper odiou perguntar. -- Por que ainda estou viva e
não fui congelada?
Quione olhou com aborrecimento para os irmãos.
-- Um dos motivos é Zetes ter pedido você como recompensa.
-- Eu beijo magnificamente bem -- declarou Zetes. -- Você vai
ver, querida.
A ideia embrulhou o estômago de Piper.
-- Mas esta não é a única razão -- disse Quione. -- A outra é que
eu odeio você, Piper. Profundamente. Sem você, Jason teria ficado
comigo no Quebec.
-- Isso não é muita pretensão sua?
Os olhos de Quione ficaram duros como os diamantes do arco em
seu cabelo.
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-- Você é um peso morto, a filha de uma deusa que não serve para
nada. O que pode fazer sozinha? Nada. De todos os sete semideuses,
você não tem objetivo, não tem poder. Quero que você fique neste na-
vio, à deriva e desamparada, enquanto Gaia desperta e o mundo
acaba. E só para garantir que você permaneça fora do caminho...
Ela gesticulou para Zetes, que pegou alguma coisa no ar -- uma
esfera do tamanho de uma bola de tênis coberta de pontas de gelo.
-- Uma bomba -- explicou Zetes. -- Especialmente para você,
meu amor.
-- Bombas! -- Cal riu. -- Um dia bom! Bombas e muffins!
-- Hã... -- Piper baixou a adaga, que parecia ainda mais inútil do
que o normal. -- Flores já bastariam.
-- Ah, a bomba não vai matar a garota bonita. -- Zetes franziu o
cenho. -- Bem... estou quase certo disso. Mas quando o invólucro frá-
gil se romper em... ah, daqui a pouco... ele vai liberar a força dos ven-
tos do norte. O barco vai ser levado para longe de sua rota. Para
muito, muito longe.
-- Isso mesmo. -- A voz de Quione estava carregada de falsa sim-
patia. -- Vamos levar seus amigos para nossa coleção de estátuas, lib-
erar os ventos e lhe dar adeus! Você pode assistir ao fim do mundo
do... bem, do fim do mundo! Talvez consiga usar o charme nos peixes
e se alimentar com sua cornucópia. Pode andar de um lado para
outro no convés deste barco e assistir a nossa vitória na lâmina de
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sua adaga. Quando Gaia tiver despertado, e o mundo que você con-
hece estiver morto, aí Zetes pode retornar e torná-la sua esposa. O
que vai fazer para nos deter, Piper? Uma heroína? Há! Você é uma
piada.
Aquelas palavras doeram como chuva de granizo, principalmente
porque Piper tinha pensado exatamente as mesmas coisas. O que ela
podia fazer? Como podia salvar seus amigos?
Estava quase surtando -- pulando enfurecida sobre seus inimigos
e sendo morta por eles.
Olhou para a expressão arrogante de Quione e percebeu que a
deusa estava torcendo por isso. Queria que Piper surtasse. Queria
diversão.
A garota reuniu toda sua coragem. Lembrou-se das colegas que
zombavam dela na Escola da Vida Selvagem. Lembrou-se de Drew, a
cruel conselheira-chefe que ela substituíra no chalé de Afrodite; de
Medeia, que enfeitiçara Jason e Leo em Chicago; e Jessica, a velha
assistente de seu pai, que sempre a tratara como uma criança
mimada e inútil. Por toda sua vida foi menosprezada, chamada de in-
útil por todos.
Isso nunca foi verdade, murmurou outra voz, uma voz parecida
com a de sua mãe. Todos eles repreenderam você por temê-la e
invejá-la. Assim como Quione. Use isso!
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Piper não estava com vontade, mas forçou uma risada. Tentou de
novo, e a risada saiu com mais facilidade. Logo, estava às gargalha-
das, se dobrando de rir.
Calais se juntou a ela, até ser cutucado com o cotovelo por Zetes.
O sorriso de Quione vacilou.
-- O que foi? Qual é a graça? Acabei de condenar você!
-- Me condenar! -- Piper voltou a rir. -- Ah, deuses... des-
culpe. -- Tentou recuperar o fôlego e parar de rir. -- Ah, nossa... está
bem. Você acha mesmo que não tenho poder nenhum? Acha mesmo
que não sirvo para nada? Deuses do Olimpo! Seu cérebro deve ter
ressecado com o frio. Você não sabe do meu segredo, não é?
Os olhos de Quione se estreitaram.
-- Você não tem segredo nenhum -- disse ela. -- Está mentindo.
-- Está bem, como quiser -- disse Piper. -- Vá em frente e leve
meus amigos. Me deixe aqui... sem poder fazer nada. -- Ela resfoleg-
ou. -- Sim. Gaia vai ficar muito satisfeita com você.
Um turbilhão de neve girou em torno da deusa. Nervosos, Zetes e
Calais olhavam um para o outro.
-- Irmã -- disse Zetes. -- Se ela tem mesmo algum segredo...
-- Pizza? -- arriscou Cal. -- Hóquei?
-- ...precisamos descobrir qual é -- continuou Zetes.
Quione obviamente não tinha acreditado. Piper tentava se manter
séria, mas fez os olhos dançarem travessos e bem-humorados.
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Vá em frente, desafiou ela. Pague para ver.
-- Que segredo? -- perguntou Quione. -- Conte para nós!
Piper deu de ombros.
-- Como quiser. -- Apontou despreocupadamente para a
proa. -- Por aqui, pessoal do gelo.
XLIV




PIPER

ELA ABRIU CAMINHO ENTRE OS boreadas, o que foi como passar por
um grande freezer. O ar em torno deles era extremamente frio e
queimava o rosto dela. Parecia até que estava respirando neve pura.
Piper tentou não olhar para o corpo congelado de Jason quando
passou. Tentou não pensar nos amigos lá embaixo, ou em Leo
lançado para o céu, para um lugar sem volta. Ela com certeza tentava
não pensar nos boreadas nem na deusa da neve, que a estavam
seguindo.
Fixou os olhos na figura de proa.
O barco sacudia sob seus pés. Um único sopro de ar de verão
infiltrou-se em meio ao frio, e Piper inspirou, considerando isso um
bom presságio. Ainda era verão lá fora. Quione e os irmãos não per-
tenciam àquele lugar.
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Piper sabia que não podia vencer uma luta direta contra Quione e
dois caras alados que carregavam espadas. Não era tão inteligente
quanto Annabeth, nem tão boa para solucionar problemas quanto
Leo. Mas possuía poder. E pretendia usá-lo.
Na noite anterior, durante a conversa com Hazel, Piper se dera
conta de que o domínio do charme era muito parecido com o do uso
da Névoa. No passado, tivera muitas dificuldades para fazer seu
charme funcionar, porque sempre mandava inimigos fazerem o que
ela queria. Ela berrava "Não nos mate" quando o maior desejo do
monstro era matá-los. Botava todo seu poder na voz e torcia para que
fosse suficiente para superar a vontade do inimigo.
Às vezes funcionava, mas era exaustivo e incerto. Afrodite não era
conhecida por seus confrontos diretos. Ela era sutileza, inteligência e
sedução. Piper decidiu não se concentrar em mandar as pessoas
fazerem o que ela queria. Precisava levá-los a fazer o que eles
queriam.
Excelente na teoria, mas tinha dúvidas quanto à prática...
Parou no mastro principal e olhou para Quione.
-- Uau, acabei de entender porque você nos odeia tanto -- afirm-
ou, enchendo a voz de piedade. -- A gente a humilhou feio em
Sonoma.
Os olhos de Quione brilharam como café congelado, e ela lançou
um olhar desconfortável para os irmãos.
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Piper riu.
-- Ah, você não contou para eles! -- deduziu. -- Não a culpo. Você
tinha um gigante do seu lado, além de um exército de lobos e nascid-
os da terra e nem assim conseguiu nos derrotar.
-- Cale a boca! -- sibilou a deusa.
O ar ficou enevoado. Piper sentiu o gelo se acumular em suas so-
brancelhas e congelar seus ouvidos, mas fingiu sorrir.
-- Não importa. -- Ela piscou para Zetes. -- Mas foi bem
engraçado.
-- A garota bonita deve estar mentindo -- disse Zetes. -- Quione
não foi derrotada na Casa do Lobo. Ela disse que foi um... ah, qual
foi a expressão? Uma retirada estratégica.
-- Estra... o quê? -- perguntou Cal. -- Isso é de comer?
Piper empurrou o peito enorme do cara de maneira bem-
humorada.
-- Não, Cal. Isso significa que sua irmã fugiu.
-- Não fugi! -- gritou Quione.
-- Do que foi mesmo que Hera chamou você? -- Piper parou
pensativa. -- Ah, claro, uma deusa de meia-tigela!
Caiu novamente na gargalhada, e estava realmente se divertindo
tanto que Zetes e Cal começaram a rir também.
-- Isso é très bon! -- disse Zetes. -- Deusa de meia-tigela. Há!
-- Há! -- disse Cal. -- A irmã fugiu! Há!
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O vestido branco de Quione começou a emitir vapor. Uma ca-
mada de gelo se formou sobre a boca de Zetes e Cal para calá-los.
-- Mostre-nos seu segredo, Piper McLean -- grunhiu Quione. -- E
reze para que eu a deixe ilesa neste navio. Se estiver brincando cono-
sco, vou lhe mostrar os horrores das queimaduras provocadas pelo
frio. Duvido que Zetes ainda a queira sem os dedos das mãos ou dos
pés... talvez sem nariz ou orelhas.
Zetes e Cal cuspiram as tampas de gelo da boca.
-- A moça bonita ia ficar menos bonita sem nariz -- admitiu
Zetes.
Piper tinha visto fotos de vítimas de queimaduras provocadas
pelo frio. A ameaça a assustou, mas não deixou que isso
transparecesse.
-- Venham, então. -- Ela os conduziu na direção da popa, can-
tarolando uma das canções favoritas do pai, "Summertime".

***

Quando chegou à proa, pôs a mão no pescoço de Festus. Suas esca-
mas de bronze estavam frias. Não havia ruído de engrenagens em
funcionamento. Seus olhos de rubi estavam escuros e sem brilho.
-- Lembra de nosso dragão? -- perguntou Piper.
Quione riu com desdém.
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-- Esse não pode ser seu segredo. O dragão está quebrado. Seu
fogo se extinguiu.
-- Bem, sim... -- Piper acariciou o focinho do dragão.
Não tinha o poder de Leo para ligar motores ou acionar circuitos.
Não entendia nada sobre o funcionamento de máquinas. Tudo o que
podia fazer era falar com sentimento e honestidade e dizer ao dragão
o que ele mais queria ouvir.
-- Mas Festus é mais que uma máquina. É uma criatura viva.
-- Ridículo -- respondeu a deusa com raiva. -- Zetes, Cal...
peguem os semideuses congelados lá embaixo. Depois vamos destru-
ir a esfera dos ventos.
-- Podem fazer isso, rapazes -- concordou Piper. -- Mas aí não
vão ver Quione humilhada. Sei que gostariam disso.
Os boreadas hesitaram.
-- Hóquei? -- perguntou Cal.
-- Quase tão bom -- prometeu Piper. -- Você lutou do lado de
Jasão e os Argonautas, não lutou? Em um barco como este, o
primeiro Argo.
-- É -- concordou Zete. -- O Argo. Bem parecido com este, mas
não tínhamos um dragão.
-- Não preste atenção nela! -- repreendeu Quione.
Piper sentiu o gelo se formando sobre seus lábios.
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-- Você pode me calar -- disse depressa. -- Mas quer saber meu
poder secreto... como vou destruir você, Gaia e os gigantes.
O ódio fervilhava nos olhos de Quione, mas a deusa conteve seu
poder de congelamento.
-- Você... não... tem... nenhum... poder -- insistiu.
-- Falou como uma deusa de meia-tigela -- disse Piper. -- Uma
que nunca é levada a sério, que sempre quer mais poder.
Ela se virou para Festus e passou a mão por trás de suas orelhas
de metal.
-- Você é um bom amigo, Festus. Ninguém pode realmente
desativá-lo. É mais que uma máquina. Quione não entende isso.
Piper se virou para os boreadas.
-- Ela também não valoriza vocês, sabiam? Acha que pode man-
dar nos dois porque são semideuses, não são totalmente deuses. Ela
não entende que formam uma equipe poderosa.
-- Uma equipe -- grunhiu Cal. -- Como os ca-na-den-ses.
Cal se esforçou para dizer a palavra, já que possuía mais de duas
sílabas. Ele sorriu e pareceu muito satisfeito consigo mesmo.
-- Exatamente -- concordou Piper. -- Igual a um time de hóquei.
O todo é maior que as partes.
-- Como uma pizza -- acrescentou Cal.
Piper riu.
-- Você é esperto, Cal! Até eu subestimei você.
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-- Espere aí -- protestou Zetes. -- Também sou esperto. E bonito.
-- Muito esperto -- concordou Piper, ignorando a parte do e
bonito. -- Então largue essa bomba de vento e veja Quione ser
humilhada.
Zetes sorriu. Ele se agachou e jogou a esfera de gelo rolando pelo
convés.
-- Seu tolo! -- berrou Quione.
Antes que a deusa pudesse ir atrás da esfera, Piper gritou.
-- Nossa arma secreta, Quione! Não somos só um bando de semi-
deuses. Somos uma equipe. Assim como Festus é mais que um monte
de peças. Ele tem vida. Ele é meu amigo. E quando seus amigos es-
tão com problemas, especialmente Leo, ele desperta por conta
própria.
Pôs toda confiança na voz, todo seu amor pelo dragão de metal e a
lembrança de tudo o que ele fez por eles.
A parte racional dela sabia que era uma tentativa fadada ao fra-
casso. Como podia acionar uma máquina usando emoções?
Mas Afrodite não era racional. Ela exercia seus poderes através
das emoções. Era a mais velha e mais primordial dos olimpianos,
nascida do sangue de Urano em agitação no mar. Seu poder era mais
antigo que o de Hefesto, de Atena ou mesmo de Zeus.
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Por um minuto terrível, nada aconteceu. Quione apenas olhava
para ela. Os boreadas, então, começaram a sair de seu transe e pare-
ciam decepcionados.
-- Esqueçam nosso plano -- rosnou Quione. -- Matem-na!
Quando os boreadas ergueram suas espadas, a pele metálica do
dragão esquentou sob a mão de Piper. Ela saiu do caminho e saltou
sobre a deusa da neve, enquanto Festus virou a cabeça cento e oit-
enta graus, explodiu os boreadas e os vaporizou no ato. Por algum
motivo, a espada de Zetes foi poupada. Ela caiu no convés, ainda
fumegante.
Piper conseguiu ficar de pé. Viu a esfera dos ventos na base do
mastro principal. Correu para pegá-la, mas antes que conseguisse
chegar perto, Quione se materializou a sua frente em um redemoinho
de gelo. Sua pele reluzia com brilho o bastante para cegar.
-- Sua desgraçada -- rosnou. -- Acha que pode me derrotar? A
mim, uma deusa?
Atrás de Piper, Festus rugiu e expeliu vapor, mas a garota sabia
que ele não podia lançar fogo de novo sem acertá-la também.
Cerca de cinco metros atrás da deusa, a esfera de gelo começou a
rachar e emitir um chiado.
Piper não tinha mais tempo para detalhes. Berrou, ergueu a adaga
e atacou a deusa.
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Quione agarrou seu pulso, e o braço de Piper se cobriu de gelo. A
lâmina de Katoptris ficou branca.
O rosto da deusa estava a vinte centímetros do dela. Quione sor-
ria, sabendo que tinha vencido.
-- Uma filha de Afrodite -- repreendeu-a. -- Você não é nada.
Festus tornou a crepitar. Piper podia jurar que ele estava tent-
ando gritar palavras de estímulo.
De repente, seu peito se aqueceu, não devido à raiva ou ao medo,
mas ao amor por aquele dragão; e por Jason, que dependia dela; e
por seus amigos congelados; e Leo, que estava perdido e ia precisar
de sua ajuda.
Talvez o amor não fosse páreo para o gelo... mas Piper o havia
usado para despertar um dragão de metal. Mortais eram capazes de
feitos sobre-humanos em nome do amor o tempo todo. Mães er-
guiam carros para salvar seus filhos. E Piper era mais que uma
simples mortal. Era uma semideusa. Uma heroína.
O gelo em sua lâmina derreteu. Seu braço soltava vapor onde
Quione a segurava.
-- Ainda está me subestimando -- disse Piper para a
deusa. -- Você precisa reavaliar isso.
A expressão arrogante de Quione perdeu forças quando Piper
golpeou para baixo com sua adaga.
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A lâmina tocou o peito de Quione, e a deusa explodiu numa tem-
pestade de neve em miniatura. Piper desmoronou, sem forças por
causa do frio. Ouviu o ruído de Festus em funcionamento, e o som
dos alarmes foi reativado.
A bomba.
Piper se esforçou para levantar. A esfera estava a uns três metros
de distância, chiando e girando à medida que os ventos em seu interi-
or começavam a se agitar.
Piper pulou para pegá-la.
Seus dedos se fecharam ao redor da bomba no momento exato em
que o gelo se despedaçou e os ventos explodiram.
XLV




PERCY

PERCY SENTIA SAUDADE DO PÂNTANO.
Nunca imaginou que sentiria falta de dormir na cama de couro de
um gigante no interior de uma cabana construída com ossos de
drakon em um lugar nojento, mas naquele momento isso parecia até
o Elísio.
Ele, Annabeth e Bob avançavam com dificuldade pela escuridão.
O ar estava denso e frio, e ora passavam por trechos de rochas afia-
das, ora por poças gosmentas. O terreno parecia feito especialmente
para que Percy jamais pudesse baixar a guarda. Mesmo caminhar
dois metros era um sacrifício.
Começara se sentindo revigorado. Estava com a cabeça limpa e a
barriga cheia de carne-seca de drakon de seus sacos de provisões.
Agora suas pernas doíam. Todos os músculos latejavam. Vestiu uma
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túnica improvisada de couro de drakon por cima da camiseta esfar-
rapada, mas isso de nada adiantou para protegê-lo do frio.
Sua atenção estava toda concentrada no chão à sua frente. Não
existia nada além disso e de Annabeth ao seu lado.
Sempre que tinha vontade de desistir, desabar no chão e morrer
(o que acontecia a aproximadamente cada dez minutos), Percy se-
gurava a mão dela, só para poder se lembrar de que ainda havia calor
no mundo.
Depois da conversa de Annabeth com Damásen, Percy ficou pre-
ocupado com a namorada. Apesar de quase nunca se render ao
desespero, ela secava lágrimas enquanto andavam, tentando evitar
que Percy notasse. Ele sabia que Annabeth odiava quando seus pla-
nos não funcionavam. Estava convencida de que precisavam da ajuda
de Damásen, mas o gigante não atendera ao seu pedido.
Parte de Percy ficou aliviada. Já se preocupava o suficiente se Bob
ficaria do seu lado quando chegassem às Portas da Morte. Não sabia
se queria um gigante como aliado, mesmo que esse gigante soubesse
preparar um belo caldeirão de ensopado.
Ele se perguntou o que havia acontecido depois que deixaram a
cabana de Damásen. Fazia horas que não ouviam seus perseguidores,
mas Percy podia sentir seu ódio... especialmente o de Polibotes. O gi-
gante estava lá atrás em algum lugar, perseguindo-os e empurrando-
os cada vez mais para as profundezas do Tártaro.
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Percy tentava pensar em coisas boas para não se deixar abater,
como o lago no Acampamento Meio-Sangue ou a primeira vez em
que beijou Annabeth debaixo da água. Tentou imaginar os dois jun-
tos em Nova Roma, caminhando de mãos dadas pelas colinas. Mas
tanto o Acampamento Júpiter quanto o Acampamento Meio-Sangue
pareciam sonhos distantes. Tinha a impressão de que só existia o
Tártaro. Aquele era o mundo real: morte, trevas, frio, sofrimento.
Todo o resto era só fruto de sua imaginação.
Percy estremeceu. Não. Aquele era o Tártaro tentando fazê-lo de-
sistir. Ele se perguntou como Nico tinha sobrevivido ali sozinho sem
ficar maluco. Aquele garoto era mais forte do que Percy imaginara.
Quanto mais fundo chegavam, mais difícil ficava manter a
concentração.
-- Este lugar é pior que o Rio Cócito -- murmurou.
-- É -- retrucou Bob alegremente. -- Muito pior! Isso quer dizer
que estamos chegando.
Chegando onde? Mas Percy não teve forças para perguntar em
voz alta. Percebeu que Bob Pequeno havia se escondido de novo no
uniforme de Bob, o que reforçou suas suspeitas de que o gato era o
mais esperto do grupo.
Annabeth entrelaçou os dedos nos dele. O rosto dela ficava lindo à
luz de sua espada de bronze.
-- Estamos juntos -- lembrou ela. -- Vamos sair dessa.
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Ele tinha ficado tão preocupado em não deixá-la se abater, e era
Annabeth quem estava ali reconfortando-o.
-- É. Vai ser moleza.
-- Mas no próximo encontro quero ir a outro lugar.
-- Paris foi legal.
Ela conseguiu sorrir. Havia alguns meses, antes da amnésia de
Percy, eles jantaram em Paris com os cumprimentos de Hermes. Isso
parecia ter acontecido em outra vida.
-- Eu me contento com Nova Roma -- sugeriu ela. -- Desde que
você esteja lá comigo.
Cara, Annabeth era maravilhosa. Por um instante, Percy se lem-
brou de como era se sentir feliz de verdade. Sua namorada era
fantástica. Eles podiam ter um futuro juntos.
Então a escuridão se dissipou em uma lufada, como o último sus-
piro de um deus moribundo. Havia uma clareira diante deles, um
campo estéril de pedra e poeira. No centro, a uns vinte metros de dis-
tância, estava ajoelhada uma mulher repulsiva. Ela usava roupas es-
farrapadas, tinha membros macilentos e sua pele parecia couro es-
verdeado. Com a cabeça pendendo sobre o peito, chorava baixinho, e
aquele som destruiu as esperanças de Percy.
Ele se deu conta de como a vida não tinha sentido. Seus esforços
eram em vão. Aquela mulher chorava como se pranteasse a morte do
mundo inteiro.
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-- Chegamos -- anunciou Bob. -- Akhlys pode ajudar.
XLVI




PERCY

SE AQUELA CRIATURA CHOROSA ERA a ideia que Bob tinha de ajuda,
Percy com certeza não queria ser ajudado.
Mesmo assim, o titã avançou a passos largos. Percy se sentiu obri-
gado a segui-lo. Pelo menos aquela área era menos escura. Não ex-
atamente clara, mas havia ali um tipo de neblina branca e espessa.
-- Akhlys! -- chamou Bob.
A criatura levantou a cabeça, e o estômago de Percy gritou:
Socorro!
O corpo dela já era horrível. Parecia extremamente desnutrida.
Os braços e as pernas eram finos como varetas, com joelhos e
cotovelos ossudos. Estava vestida com farrapos e tinha as unhas das
mãos e dos pés quebradas. Havia terra incrustada em sua pele e
amontoada em seus ombros, como se tivesse ficado parada na parte
de baixo de uma ampulheta.
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O rosto era a imagem da miséria. Os olhos fundos e congestion-
ados vertiam lágrimas. O nariz escorria como um chafariz. Os cabelos
prateados, ralos e desgrenhados, estavam grudados à cabeça em
mechas sebosas, e suas bochechas tinham cortes e sangravam como
se ela tivesse arranhado o próprio rosto.
Percy não conseguia encará-la, por isso desviou o olhar. A mulher
tinha no colo um escudo antigo de madeira e bronze, amassado e
desgastado, pintado com a imagem dela mesma segurando um es-
cudo. Havia uma imagem dentro da outra, infinitamente.
-- O escudo -- murmurou Annabeth. -- É dele. Achei que fosse
apenas uma lenda.
-- Ah, não -- disse a velha repulsiva. -- O escudo de Hércules. Ele
pintou minha imagem em seu escudo para que a última visão de seus
inimigos fosse eu, a deusa da miséria. -- Ela tossiu com tanta força
que até o peito de Percy doeu. -- Como se Hércules soubesse o que é
miséria de verdade. A pintura não ficou nem parecida comigo!
Percy engoliu em seco. Quando ele e os amigos encontraram Hér-
cules no Estreito de Gibraltar o resultado não fora nada bom. Ter-
minara em muitos gritos, ameaças de morte e torrentes de abacaxis.
-- O que o escudo dele está fazendo aqui? -- perguntou Percy.
A deusa o encarou com seus olhos úmidos e leitosos. O sangue
que escorria de suas bochechas pingava e manchava o vestido esfar-
rapado de pontinhos vermelhos.
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-- Ele não precisa mais dele, precisa? Veio parar aqui quando seu
corpo mortal foi queimado. Um lembrete, imagino, de que nenhum
escudo é suficiente. No fim, a miséria vence todos vocês. Até
Hércules.
Percy chegou mais para perto de Annabeth. Tentou se lembrar do
porquê de terem ido até ali, mas o desespero que sentia prejudicava
seu raciocínio. Depois de ouvir Akhlys falar, não achou mais estranho
que ela tivesse arranhado o próprio rosto. A deusa irradiava
sofrimento.
-- Bob -- disse Percy. -- Não devíamos ter vindo aqui.
De algum lugar dentro do uniforme de Bob, o gatinho esqueleto
concordou com um miado.
O titã parecia desconfortável e fez uma careta de dor, como se
Bob Pequeno estivesse afiando as garras em suas axilas.
-- Akhlys controla a Névoa da Morte -- insistiu ele. -- Ela pode
esconder vocês.
-- Escondê-los? -- Akhlys emitiu um som gorgolejante. Ou ela es-
tava rindo, ou estava morrendo sufocada. -- Por que eu faria isso?
-- Eles precisam chegar às Portas da Morte -- disse Bob. -- Para
retornar ao mundo mortal.
-- Impossível! -- disse Akhlys. -- As forças do Tártaro vão
encontrá-los. E matá-los.
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Annabeth girou a lâmina de sua espada de osso de drakon, o que,
Percy teve que admitir, a deixou intimidante e sensual, como uma
princesa bárbara.
-- Então acho que essa sua Névoa da Morte não serve para
nada -- disse a garota.
A deusa mostrou os dentes amarelos e deteriorados.
-- Para nada? Quem é você?
-- Uma filha de Atena. -- Annabeth soava corajosa. Percy não en-
tendia como ela conseguia fazer isso. -- Não caminhei por meio Tár-
taro para uma deusa menor qualquer vir me dizer o que é ou não
impossível.
O chão estremeceu. Uma névoa começou a subir, e eles ouviram
um pranto agonizante.
-- Deusa menor? -- As unhas retorcidas de Akhlys se cravaram no
escudo de Hércules, perfurando o metal. -- Eu era velha antes do
nascimento dos titãs, sua ignorante. Era velha antes de Gaia desper-
tar. A miséria é eterna. A existência é uma miséria. Sou filha dos
mais antigos, o Caos e a Noite. Eu era...
-- Sim, sim -- disse Annabeth. -- Tristeza e miséria, blá-blá-blá. O
que importa é que você não tem poder suficiente para esconder dois
semideuses com sua Névoa da Morte. Como eu falei: não serve para
nada.
Percy pigarreou.
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-- Hã, Annabeth...
A filha de Atena lhe lançou um olhar de advertência que dizia:
colabore. Percy percebeu que Annabeth estava apavorada, mas não
havia alternativa. Aquela era a melhor chance que tinham de conven-
cer a deusa a fazer alguma coisa.
-- Quer dizer... Annabeth tem razão! -- arriscou Percy. -- Bob nos
fez vir até tão longe porque achava que você podia ajudar. Mas
parece que está ocupada demais olhando para esse escudo e chor-
ando. Não posso culpá-la. É a sua cara.
Akhlys deu um gemido de sofrimento e olhou para o titã.
-- Por que trouxe essas crianças irritantes até aqui?
Bob emitiu um ruído que era uma mistura de rugido com
choramingo.
-- Eu achei... achei...
-- A Névoa da Morte não existe para ajudar! -- gritou
Akhlys. -- Ela envolve mortais em miséria enquanto suas almas pen-
etram no Mundo Inferior. É a própria respiração do Tártaro, da
morte, do desespero!
-- Maravilha -- disse Percy. -- Será que podemos levar duas
porções para viagem?
Akhlys sibilou:
-- Peçam algo mais razoável. Também sou a deusa dos venenos.
Posso lhes oferecer a morte... Milhares de maneiras de morrer menos
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dolorosas do que a que escolheram ao decidir seguir para o coração
do Tártaro.
Flores brotaram na poeira em torno da deusa... botões roxo-
escuro, laranja e vermelhos que tinham um aroma doce e enjoativo.
Percy ficou tonto.
-- Erva-moura -- ofereceu Akhlys. -- Cicuta. Beladona, mei-
mendro ou estricnina. Posso dissolver suas entranhas, fazer seu
sangue ferver.
-- É muita gentileza sua -- disse Percy. -- Mas já tomei bastante
veneno para uma viagem só. Agora, você pode nos esconder em sua
Névoa da Morte ou não?
-- É, vai ser divertido -- incentivou Annabeth.
A deusa os observou com desconfiança.
-- Divertido?
-- Claro -- assegurou Annabeth. -- Se falharmos, pense como vai
ser ótimo para você poder se vangloriar quando morrermos em ago-
nia. Vai poder dizer "Eu avisei! Eu avisei!" por toda a eternidade.
-- Ou, se tivermos sucesso... -- completou Percy. -- Pense em
como os monstros aqui embaixo vão sofrer. Nosso objetivo é fechar
as Portas da Morte. Isso vai provocar muitos gemidos e lamentos.
Akhlys pareceu considerar a ideia.
-- Gosto de sofrimento. E também de lamentos.
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-- Então está combinado -- disse Percy. -- Faça a gente ficar
invisível.
Akhlys levantou com dificuldade. O escudo de Hércules caiu para
o lado e rolou até um arbusto de plantas venenosas.
-- Não é tão simples assim -- explicou a deusa. -- A Névoa da
Morte chega no momento em que se está perto do fim. Só então seus
olhos ficam nublados. E o mundo desaparece.
Percy sentiu a boca seca.
-- Tudo bem. Mas... isso vai nos esconder dos monstros?
-- Ah, vai -- disse Akhlys. -- Se sobreviverem ao processo, vão
passar despercebidos pelas forças do Tártaro. Não há a menor esper-
ança de sobreviverem, claro, mas, se estão mesmo decididos, podem
vir. Vou mostrar o caminho.
-- O caminho para onde, exatamente? -- perguntou Annabeth.
A deusa já estava se arrastando para a escuridão.
Percy virou-se, à procura de Bob, mas o titã havia desaparecido.
Como é que um cara prateado de três metros de altura com um gat-
inho muito barulhento desaparece do nada?
-- Ei! -- gritou Percy para Akhlys. -- Onde está nosso amigo?
-- Ele não pode seguir este caminho -- retrucou a deusa. -- Ele
não é mortal. Venham, tolinhos. Venham experimentar a Névoa da
Morte.
Annabeth suspirou e segurou a mão de Percy.
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-- Bem... Não pode ser tão ruim assim, não é?
O comentário era tão ridículo que Percy riu, apesar de isso fazer
seus pulmões doerem.
-- Verdade. Mas no próximo encontro, vamos jantar em Nova
Roma.
Juntos, seguiram as pegadas da deusa entre as plantas venenosas,
rumo às profundezas da névoa.
XLVII




PERCY

PERCY SENTIA FALTA DE BOB.
Tinha se acostumado a ter o titã ao seu lado, iluminando o cam-
inho com seus cabelos prateados e a temível vassoura de guerra.
Agora, seu único guia era uma senhora cadavérica com sérios
problemas de autoestima.
À medida que avançavam devagar pela planície poeirenta, a névoa
foi ficando tão densa que Percy teve que resistir ao impulso de afastá-
la com as mãos. Só conseguia seguir a trilha de Akhlys porque por
onde a deusa passava brotavam plantas venenosas.
Se aquele ainda era o corpo de Tártaro, Percy achava que deviam
estar na sola do pé, uma área áspera e calosa onde cresciam apenas
as plantas mais nojentas.
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Finalmente chegaram ao fim do dedão. Pelo menos era o que
parecia ser. A névoa, então, se dissipou, e eles se viram em uma
península em meio a um vazio negro como breu.
-- Chegamos. -- Akhlys se virou e lançou um olhar maligno para
eles.
O sangue de suas bochechas escorria e pingava na veste. Os olhos
doentios da deusa pareciam úmidos e inchados, mas de algum modo
entusiasmados. Será que a miséria consegue parecer entusiasmada?
-- Hã... ótimo. Mas chegamos onde? -- perguntou Percy.
-- À beira da morte final -- disse Akhlys. -- Onde a Noite encontra
o vazio abaixo do Tártaro.
Annabeth avançou alguns centímetros e espiou o precipício.
-- Pensei que não existisse nada abaixo do Tártaro.
-- Mas há, com certeza há... -- Akhlys tossiu. -- Até o Tártaro teve
que surgir de algum lugar. Este é o limite da escuridão mais antiga,
que era minha mãe. Abaixo ficam os domínios de Caos, meu pai.
Aqui vocês estão mais perto do nada do que qualquer mortal jamais
esteve. Não conseguem sentir?
Percy percebia o que a deusa queria dizer. O vazio parecia atraí-
lo, roubando o ar de seus pulmões e o oxigênio de seu sangue. Ele ol-
hou para Annabeth e viu que os lábios dela estavam ficando azuis.
-- Não podemos ficar parados aqui -- disse o semideus.
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-- Não mesmo! -- disse Akhlys. -- Vocês não sentem a Névoa da
Morte? Estão passando por ela agora mesmo. Vejam!
Havia uma fumaça branca se acumulando aos pés de Percy. Con-
forme aquilo o envolvia e subia por seu corpo, ele se deu conta de que
a fumaça não o estava cercando, mas emanava dele. Todo seu corpo
estava se dissolvendo. Examinou as mãos e viu que estavam turvas e
indistintas. Nem conseguia dizer quantos dedos tinha. Esperava que
ainda fossem dez.
Ele se virou para Annabeth e sufocou um gemido.
-- Você... hã...
Não conseguiu falar. Ela parecia morta.
Estava pálida, com os olhos escuros e fundos. Seus lindos cabelos
tinham secado e se transformado em um emaranhado feito teias de
aranha. Parecia ter ficado presa em um mausoléu frio e escuro por
décadas, secando e murchando devagar até virar uma casca
ressecada. Quando se virou para olhar para ele, seus traços mo-
mentaneamente se turvaram em uma névoa.
O sangue de Percy circulava como seiva em suas veias.
Por anos ele se preocupara com a morte de Annabeth. Quando vo-
cê é um semideus, isso vem no pacote. A maioria dos meios-sangues
não vivia muito. Você já sabia que o próximo monstro que enfren-
tasse poderia ser o último. Mas ver Annabeth daquele jeito era
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doloroso demais. Percy preferiria pular no Rio Flegetonte, ou ser
atacado por arai, ou pisoteado por gigantes.
-- Ah, deuses -- soluçou Annabeth. -- Percy, você...
Percy olhou para os próprios braços. Viu apenas bolhas de névoa
branca, mas para Annabeth ele devia estar parecendo um cadáver.
Deu alguns passos, apesar de não ser fácil. Seu corpo parecia não ter
substância, como se fosse feito de gás hélio e algodão-doce.
-- Já estive melhor -- reconheceu. -- Não consigo me mexer
direito. Mas estou bem.
Akhlys riu.
-- Ah, com certeza você não está bem.
Percy franziu a testa.
-- Mas agora vamos passar sem ser vistos? Podemos chegar às
Portas da Morte?
-- Bem, talvez vocês conseguissem -- respondeu a deusa. -- Se
sobrevivessem. O que não vai acontecer.
Akhlys abriu os dedos retorcidos. Mais plantas brotaram na beira
do precipício: cicutas, ervas-mouras e oleandros avançaram na
direção dos pés de Percy como um tapete letal.
-- A Névoa da Morte não é simplesmente um disfarce, sabiam? É
um estado. Eu não poderia lhes dar esse presente a menos que ele
fosse seguido pela morte, morte de verdade.
-- É uma armadilha -- disse Annabeth.
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A deusa deu uma gargalhada.
-- Vocês não esperavam que eu os traísse?
-- Esperávamos -- responderam Percy e Annabeth ao mesmo
tempo.
-- Ora, então nem foi realmente uma armadilha, não é? Foi mais
um acontecimento inevitável. A miséria é inevitável. A dor...
-- É, é -- rosnou Percy. -- Vamos logo à luta.
Ele sacou a Contracorrente, mas a lâmina tinha virado fumaça.
Quando golpeou Akhlys, a espada apenas esvoaçou ao redor dela
como uma brisa suave.
A boca arruinada da deusa se abriu em um sorriso.
-- Ah, será que me esqueci de dizer? Vocês agora são apenas né-
voa, uma sombra anterior à morte. Talvez, se tivessem tempo,
pudessem aprender a controlar sua nova forma. Mas não têm. E
como não podem me tocar, temo que qualquer luta contra a miséria
seja causa perdida.
Suas unhas cresceram e viraram garras. Sua mandíbula se deslo-
cou, e os dentes amarelados se alongaram em presas.
XLVIII




PERCY

AKHLYS SE LANÇOU SOBRE PERCY, e por uma fração de segundo o
semideus pensou: Ora, eu sou apenas fumaça. Ela não pode me at-
ingir, certo?
Ele imaginou as Parcas no Olimpo rindo de sua ingenuidade:
LOL, seu noob!
As garras da deusa arranharam seu peito e queimaram como água
fervente.
Percy cambaleou para trás, mas não estava acostumado ao corpo
de fumaça. As pernas se moviam muito devagar. Os braços pareciam
lenços de papel. Desesperado, arremessou a mochila nela, pensando
que talvez ficasse sólida quando saísse de suas mãos, mas não teve
essa sorte. Ela fez um ruído baixo e abafado ao cair.
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Akhlys rosnou e se agachou, preparando-se para saltar. Teria ar-
rancado o rosto de Percy com uma mordida se Annabeth não tivesse
avançado e gritado bem no ouvido da deusa:
-- Ei!
Akhlys levou um susto e se virou na direção do som.
Ela atacou, mas Annabeth era mais ágil que Percy. Talvez não est-
ivesse se sentindo tão feita de fumaça, ou talvez simplesmente tivesse
mais treinamento de combate. Vivia no Acampamento Meio-Sangue
desde os sete anos. Provavelmente tivera aulas que Percy nunca fre-
quentara, como Técnicas de Luta para Quando se Estiver em Forma
de Fumaça.
Annabeth deu uma cambalhota, passando por baixo das pernas
da deusa, e voltou a ficar de pé. Akhlys se virou e atacou, mas Anna-
beth estava preparada e se esquivou, como uma toureira.
Percy estava tão atônito que desperdiçou alguns segundos pre-
ciosos. Ficou olhando para o cadáver de Annabeth, envolto em névoa,
mas se movendo com a rapidez e a confiança de sempre. Então, en-
tendeu por que ela estava fazendo aquilo: para ganhar tempo. O que
significava que ele precisava ajudar.
Tentou raciocinar, desesperado, querendo bolar um plano para
derrotar a miséria. Como ele poderia lutar se não conseguia tocar em
nada?
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No terceiro ataque de Akhlys, Annabeth não teve a mesma sorte.
Tentou se virar de lado, mas a deusa agarrou seu pulso, puxou-a com
força e jogando-a longe.
Antes que a deusa pudesse dar o bote, Percy avançou, gritando e
brandindo a espada. Ainda se sentia tão sólido quanto um lenço de
papel, mas a raiva pareceu deixá-lo mais ágil.
-- E aí, feliz? -- gritou ele.
Akhlys se voltou para ele, largando o braço de Annabeth.
-- Feliz?
-- É! -- Ele se agachou quando a deusa tentou golpear sua
cabeça. -- Você está que é pura alegria!
-- Argh! -- Ela atacou de novo, mas estava sem equilíbrio.
Percy deu um passo para o lado e recuou, atraindo a deusa para
mais longe de Annabeth.
-- Simpática! -- chamou ele. -- Agradável!
A deusa rosnou, estremeceu e partiu na direção de Percy. Cada
elogio parecia atingi-la como uma bofetada.
-- Vou matá-lo bem devagar! -- grunhiu ela com os olhos e o nariz
escorrendo, e sangue pingando das bochechas. -- Vou cortá-lo em
pedaços em um sacrifício para a Noite!
Annabeth conseguiu ficar de pé. Começou a remexer em sua
sacola, com certeza à procura de algo que pudesse ser útil.
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Percy queria lhe dar mais tempo. Ela era o cérebro. Era melhor
que ele fosse atacado enquanto a filha de Atena bolava um plano
brilhante.
-- Fofa! -- berrou Percy. -- Tão macia e quentinha que dá vontade
de abraçar!
Akhlys emitiu um grunhido engasgado, como um gato tendo uma
convulsão.
-- Uma morte lenta! -- gritou ela. -- Uma morte por mil venenos!
Ao redor dela cresciam plantas venenosas que se avolumavam e
explodiam como balões de gás. Uma seiva verde e branca se acumu-
lava em poças e começava a se espalhar pelo chão na direção de
Percy. Os vapores de aroma adocicado o deixavam tonto.
-- Percy! -- A voz de Annabeth pareceu distante. -- Hã, ei, Miss
Simpatia! Felicíssima! Sorriso encantador! Aqui!
Mas a deusa da miséria estava concentrada em Percy. O garoto
tentou recuar outra vez. Infelizmente, estava cercado pelo icor venen-
oso, que corroía o chão e fazia o ar arder. Percy se viu preso em uma
ilha de poeira não muito maior que um escudo. A alguns metros de
distância, sua mochila virou fumaça e desapareceu em uma poça re-
pugnante. Percy não tinha para onde ir.
Ele se agachou, apoiando-se em um joelho. Queria mandar Anna-
beth correr, mas não conseguia falar. Sua garganta estava seca como
folhas mortas.
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Desejou que houvesse água no Tártaro, um belo lago em que
pudesse mergulhar para se curar, ou talvez um rio que conseguisse
controlar. Já ficaria satisfeito só com uma garrafa de água mineral.
-- Você vai alimentar a escuridão eterna -- prometeu
Akhlys. -- Vai morrer nos braços da Noite!
Percy ouvia Annabeth ao longe, gritando e arremessando pedaços
de carne-seca de drakon na deusa. O veneno verde e branco con-
tinuava a se acumular. Pequenos filetes escorriam das plantas,
aumentando o lago venenoso ao seu redor.
Lago, pensou. Rio. Água.
Provavelmente era só o seu cérebro fritando com os vapores ven-
enosos, mas Percy riu. O veneno era líquido. Se aquilo escorria como
água, devia ser parcialmente feito de água.
Ele se lembrou de uma aula de ciências em que aprendeu que a
maior parte do corpo humano era composta de água. Ele se lembrou
de quando fez sair a água dos pulmões de Jason, em Roma... Se tinha
conseguido controlar aquilo, então por que não outros líquidos?
Era uma ideia maluca. Poseidon era o deus do mar, não de todos
os líquidos.
Entretanto, o Tártaro tinha suas próprias regras. O fogo era be-
bível. O chão era o corpo de um deus sombrio. O ar era ácido, e semi-
deuses podiam ser transformados em cadáveres de fumaça.
Então por que não tentar? Não tinha mais nada a perder.
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Encarou fixamente a grande poça de veneno que o cercava.
Concentrou-se tanto que algo em seu interior estalou, como se uma
bola de cristal tivesse se espatifado em seu estômago.
Sentiu o calor fluir por seu corpo. A poça de veneno parou de se
aproximar.
Os vapores foram soprados para longe dele, na direção da deusa.
O lago de veneno fluiu na direção dela com pequenas ondas e
marolas.
Akhlys gritou.
-- O que é isso?
-- Veneno. É sua especialidade, não?
Ele levantou. Ficou cada vez mais furioso, sentindo a raiva fer-
vendo dentro de si. O veneno continuou a correr na direção da deusa,
e os vapores começaram a fazê-la tossir. Os olhos dela lacrimejaram
ainda mais.
Ah, ótimo, pensou Percy. Mais água.
Percy imaginou o nariz e a garganta dela se enchendo com as pró-
prias lágrimas.
Akhlys não conseguia falar.
-- Eu... -- A onda de veneno alcançou seus pés e começou a bor-
bulhar como gotas de água em uma superfície quente de metal. Ela
gemeu e recuou, trôpega.
-- Percy! -- chamou Annabeth.
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Ela havia se aproximado da beira do precipício, apesar de o ven-
eno não estar indo em sua direção. Parecia estar morrendo de medo.
Demorou para Percy se dar conta de que ela estava com medo dele.
-- Pare... -- suplicou ela com voz rouca.
Ele não queria parar. Queria sufocar aquela deusa. Queria vê-la se
afogar no próprio veneno. Queria ver quanta miséria a deusa Miséria
poderia aguentar.
-- Percy, por favor... -- O rosto de Annabeth ainda estava pálido e
cadavérico, mas seus olhos eram os mesmos de sempre.
A angústia neles fez a raiva de Percy desaparecer.
Ele se virou para a deusa. Fez a poça retroceder e escorrer pela
beira do penhasco.
-- Vá embora! -- gritou ele.
Para um quase esqueleto ambulante, Akhlys podia correr bem
rápido quando queria. A deusa se afastou aos tropeços, caiu de cara e
se levantou de novo, uivando enquanto corria escuridão adentro.
Assim que foi embora, as poças de veneno evaporaram. As
plantas venenosas viraram pó e foram levadas pelo vento.
Annabeth cambaleou na direção dele. Parecia um cadáver envolto
em névoa, mas Percy sentiu seu toque quando ela agarrou os braços
dele.
-- Percy, por favor, não, nunca mais... -- A voz dela falhou. -- Al-
gumas coisas não são feitas para serem controladas. Por favor.
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Ele ainda se sentia poderoso, mas a raiva estava desaparecendo.
O vidro estilhaçado dentro dele estava começando a perder o corte.
-- É -- concordou. -- É, tudo bem.
-- Temos que sair de perto deste precipício -- disse Anna-
beth. -- Se Akhlys nos trouxe aqui como algum tipo de sacrifício...
Percy tentou raciocinar. Estava ficando acostumado a se mexer
com a Névoa da Morte ao seu redor. Sentia-se mais sólido, mais
parecido com seu antigo eu. Mas seu cérebro ainda parecia feito de
algodão-doce.
-- Ela falou algo sobre nos dar à noite como alimento -- lembrou
ele. -- O que queria dizer com isso?
A temperatura caiu. O abismo diante deles parecia respirar.
Percy agarrou Annabeth e juntos se afastaram da beirada quando
uma presença emergiu do vazio, uma forma tão vasta e sombria que
ele teve a impressão de só então compreender o significado de
escuro.
-- Imagino -- disse a escuridão, em uma voz feminina tão suave
quanto um forro de caixão -- que ela se referia à Noite com N maiús-
culo. Afinal de contas, eu sou a única.
XLIX




LEO

NA OPINIÃO DE LEO, ELE passava mais tempo caindo do que voando.
Se existisse um programa de fidelidade para pessoas que caem
sempre, ele seria, tipo, cliente VIP.
Recobrou consciência enquanto estava em queda livre entre as
nuvens. Tinha uma vaga lembrança de Quione insultando-o antes de
ele ser lançado no céu. Não a vira, mas jamais esqueceria a voz
daquela bruxa da neve. Leo não sabia por quanto tempo ganhara alti-
tude, mas em algum momento desmaiara com o frio e a falta de ox-
igênio. Agora estava caindo, rumo à maior de todas as suas quedas.
As nuvens se abriram em volta dele. Viu o mar brilhando muito,
muito lá embaixo. Nenhum sinal do Argo II. Nenhum sinal de
qualquer litoral, conhecido ou não, a não ser uma ilhota no
horizonte.
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Leo não conseguia voar. Tinha no máximo dois minutos antes de
bater na água e plaft!
Decidiu que não gostaria de um final assim para a Balada Épica
de Leo.
Ainda estava agarrado à esfera de Arquimedes, o que não o sur-
preendeu. Inconsciente ou não, jamais largaria seu bem mais pre-
cioso. Com alguma dificuldade, conseguiu puxar uma tira de fita ade-
siva de seu cinto de ferramentas e prender a esfera ao peito. Aquilo o
fez parecer um Homem de Ferro de baixo orçamento, mas ao menos
ficou com as mãos livres. Começou a mexer furiosamente na esfera,
tirando de seu cinto de ferramentas mágico tudo o que achava que
pudesse ajudar: uma lona, extensores de metal, um pouco de corda e
argolas.
Trabalhar enquanto caía era quase impossível. O vento rugia em
seus ouvidos. Arrancava ferramentas, parafusos e telas de suas mãos,
mas, finalmente, ele conseguiu construir uma armação improvisada.
Abriu um compartimento na esfera, puxou dois fios e conectou-os à
armação.
Quanto tempo até atingir a água? Talvez um minuto?
Girou o botão de controle da esfera, que zumbiu ao entrar em
ação. Mais fios de bronze saíram, sentindo intuitivamente o que Leo
necessitava. Cabos fixaram a lona. A estrutura começou a se expandir
por conta própria. Leo tirou uma lata de querosene e um tubo de
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borracha e uniu-os ao novo e sedento motor que a esfera o estava
ajudando a montar.
Finalmente, fez um cabresto de corda e moveu-se para que a es-
trutura em X se adaptasse às suas costas. O mar se aproximava cada
vez mais, uma superfície brilhante de morte dolorosa.
Ele gritou de um jeito desafiador e socou o interruptor de ativação
da esfera.
O motor engasgou e ganhou vida. O rotor improvisado girou. As
lâminas de lona rodaram, mas muito lentamente. A cabeça de Leo es-
tava apontada para baixo, na direção do mar. Talvez faltassem uns
trinta segundos até o impacto.
Pelo menos não tem ninguém por perto, pensou amargamente, ou
eu seria uma eterna piada para os semideuses. Qual foi a última
coisa que passou pela cabeça de Leo? O Mediterrâneo.
Subitamente, a esfera se aqueceu junto a seu peito. As lâminas
giraram mais rapidamente. O motor engasgou e Leo inclinou-se para
o lado, cortando o céu.
-- ISSO! -- gritou.
Criara o helicóptero pessoal mais perigoso do mundo.
Disparou em direção à ilha distante, mas ainda perdia altitude
muito rapidamente. As lâminas estremeciam. A tela rangia.
A praia estava a apenas algumas centenas de metros quando a es-
fera ficou quente como lava e o helicóptero explodiu, lançando
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chamas em todas as direções. Se não fosse imune ao fogo, Leo teria
virado carvão. Contudo, a explosão em pleno ar provavelmente
salvou-lhe a vida. O impacto lançou-o para o lado enquanto a maior
parte de sua engenhoca em chamas colidia com a praia em alta velo-
cidade com um enorme CABUM!
Leo abriu os olhos, surpreso por ainda estar vivo. Estava sentado
em uma cratera na areia do tamanho de uma banheira. A poucos
metros de distância havia uma cratera muito maior, de onde erguia
uma coluna de fumaça negra e densa. A praia em volta estava repleta
de destroços menores em chamas.
-- Minha esfera.
Leo tateou o peito. Ela não estava mais lá. A fita adesiva e a corda
haviam se desintegrado.
Ele levantou com dificuldade. Nenhum osso parecia estar
quebrado, o que era bom, mas estava realmente preocupado com sua
esfera de Arquimedes. Se tivesse destruído seu artefato de valor ines-
timável para fazer um helicóptero flamejante que durara trinta se-
gundos, Leo perseguiria aquela estúpida deusa da neve, Quione, e a
espancaria com uma chave inglesa.
Cambaleou pela praia, perguntando-se por que não havia turistas,
hotéis ou barcos à vista. A ilha parecia perfeita para um resort, com
água cristalina e areia branca e fofa. Talvez não fosse conhecida. Será
que ainda existiam ilhas não descobertas no mundo? Talvez tivesse
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sido lançado para longe do Mediterrâneo. Ao que tudo indicava, es-
tava em Bora Bora.
A cratera maior tinha cerca de dois metros e meio de profundid-
ade. No fundo, as pás do helicóptero ainda tentavam girar. O motor
soltava fumaça. O rotor resmungava como um sapo pisoteado, mas,
caramba!, era bem impressionante para um trabalho feito às pressas.
Aparentemente o helicóptero caíra sobre algo. A cratera estava re-
pleta de madeira de mobília despedaçada, pratos de porcelana
quebrados, algumas taças de estanho meio derretidas e guardanapos
de linho flamejantes. Leo não sabia por que todas aquelas coisas el-
egantes estavam na praia, mas ao menos isso significava que, afinal
de contas, o local era habitado.
Finalmente avistou a esfera de Arquimedes -- fumegante e en-
egrecida, mas ainda intacta, emitindo cliques de insatisfação em
meio aos destroços.
-- Esfera! -- gritou ele. -- Vem com o papai!
Leo desceu ao fundo da cratera e pegou a esfera. Sentou de pernas
cruzadas, e aninhou o dispositivo nos braços. A superfície de bronze
estava muito quente, mas ele não se importou. Estava inteira, o que
significava que ainda poderia usá-la.
Agora, se Leo ao menos pudesse descobrir onde estava e como
voltar até seus amigos...
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Listava mentalmente as ferramentas de que poderia precisar
quando uma voz feminina o interrompeu:
-- O que você está fazendo? Você explodiu a minha mesa de
jantar!

***

Imediatamente, Leo pensou: Opa...
Ele já conhecera um monte de deusas, mas a menina que o olhava
feio da borda da cratera realmente parecia uma deusa.
Usava um vestido branco estilo grego, sem mangas, com um cinto
de ouro trançado. Seu cabelo era longo, liso e castanho-claro, quase
da mesma cor de churros com canela que tinha o cabelo de Hazel,
mas a semelhança com a amiga terminava ali. O rosto da menina era
pálido como leite, com olhos escuros e amendoados e lábios car-
nudos. Parecia ter uns quinze anos, a idade de Leo, e, com certeza,
era bonita, mas aquela expressão furiosa o fazia lembrar de cada ga-
rota popular de cada escola que já frequentara -- aquelas que zom-
bavam dele, faziam muita fofoca, achavam-se muito superiores e, ba-
sicamente, faziam tudo o que podiam para tornar a vida dele
horrível.
Leo desgostou dela à primeira vista.
-- Ah, me desculpe -- disse ele. -- Acabo de cair do céu. Construí
um helicóptero em pleno ar que explodiu em chamas no meio do
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caminho, caiu, e eu quase não sobrevivi. Mas, claro, vamos falar
sobre a sua mesa de jantar!
Ele pegou uma taça meio derretida.
-- Quem põe uma mesa de jantar na praia, onde pode ser atingida
por semideuses inocentes em queda livre? Quem faz uma coisa
dessas?
A menina cerrou os punhos. Ele tinha certeza de que ela desceria
até o fundo da cratera e lhe daria um soco na cara. Em vez disso, ela
olhou para o céu.
-- VERDADE? -- Gritou para o vazio azul. -- Vocês querem piorar
ainda mais a minha maldição? Zeus! Hefesto! Hermes! Vocês não
têm vergonha?
-- Hã...
Leo percebeu que ela só escolhera três deuses a quem culpar, e
um era o pai dele. Não achou que aquilo fosse um bom sinal.
-- Duvido que estejam ouvindo -- prosseguiu ele. -- Você sabe, to-
do esse negócio de personalidade dividida...
-- Apareçam! -- gritou a menina para o céu, ignorando
Leo. -- Não basta estar exilada? Não basta tirarem de mim os poucos
bons heróis que estou autorizada a encontrar? Acham engraçado en-
viar este... este menino nanico e chamuscado para arruinar a minha
tranquilidade? Isso NÃO É ENGRAÇADO! Levem-no de volta!
-- Ei, flor do dia -- disse Leo. -- Estou bem aqui, sabia?
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Ela rosnou como um animal encurralado.
-- Não me chame assim! Saia desse buraco e venha comigo agora
para que eu o tire de minha ilha!
-- Bem, já que está pedindo com tanto carinho...
Leo não sabia por que a menina maluca estava tão alterada, mas
realmente não se importava. Se ela pudesse ajudá-lo a sair daquela
ilha, tudo bem. Pegou a esfera carbonizada e saiu da cratera. Quando
chegou ao topo, ela já se afastava pela praia. Teve que correr para
alcançá-la.
A menina gesticulou para os destroços em chamas, desgostosa.
-- Esta era uma praia imaculada! Olhe como está agora.
-- É, foi mau -- murmurou Leo. -- Eu deveria ter caído em uma
das outras ilhas. Ah, espere... não há nenhuma!
Ela rosnou e continuou andando junto ao mar. Leo sentiu cheiro
de canela. Seria o perfume dela? Não que ele se importasse. O cabelo
da menina caía pelas costas de um modo fascinante, e, é claro, ele
também não se importava com isso.
Leo examinou o mar. Assim como vira durante a queda, não havia
nem terra nem navios à vista. Olhando para a ilha, viu colinas verde-
jantes repletas de árvores. Uma trilha através de um bosque de ced-
ros. Ele se perguntou aonde aquilo levaria: provavelmente ao escond-
erijo secreto da garota, onde ela assava seus inimigos para comê-los
em sua mesa de jantar na praia.
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Estava tão ocupado pensando nisso, que não percebeu quando a
menina parou e acabou trombando nela.
-- Ai!
Ela se virou e se segurou em seus braços para não cair na água. As
mãos eram fortes, como se as usasse para se sustentar. No acampa-
mento, as garotas do chalé de Hefesto tinham mãos fortes assim, mas
aquela não parecia ser uma filha de Hefesto.
Ela olhou feio para Leo, os olhos escuros e amendoados a apenas
alguns centímetros dos dele. O cheiro de canela o fez lembrar do
apartamento de sua abuela. Cara, não pensava naquele lugar havia
anos.
A menina o afastou.
-- Tudo bem. Aqui está bom. Agora, diga que quer ir embora.
-- O quê?
O cérebro de Leo ainda estava meio confuso desde o pouso
forçado. Não tinha certeza se ouvira direito.
-- Você quer ir embora? -- perguntou ela. -- Certamente tem um
lugar aonde quer ir!
-- Hã... sim. Meus amigos estão em apuros. Preciso voltar para o
meu navio e...
-- Tudo bem -- retrucou a menina. -- Basta dizer: Quero ir em-
bora de Ogígia.
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-- Hã, tudo bem. -- Leo não tinha certeza do porquê, mas o tom
de voz dela meio que o entristeceu; o que era uma idiotice, já que ele
não se importava com o que aquela garota pensava.
-- Quero ir embora de... seja lá o lugar que você disse.
-- O-gí-gia -- pronunciou a menina lentamente, como se Leo
tivesse cinco anos de idade.
-- Quero ir embora de O-gí-gia -- disse ele.
Ela suspirou, claramente aliviada.
-- Ótimo. A qualquer momento, aparecerá uma jangada mágica.
Ela o levará para onde quiser ir.
-- Quem é você?
Ela pareceu estar prestes a responder, mas se conteve.
-- Isso não importa. Logo você irá embora. Obviamente você é um
erro.
Essa doeu, pensou Leo.
Passara tempo bastante pensando que era um erro: como semi-
deus, naquela missão, na vida em geral. Não precisava de uma deusa
louca para reforçar essa ideia.
Lembrava-se de uma lenda grega sobre uma menina em uma
ilha... Talvez um de seus amigos a tivesse mencionado. Não im-
portava. Desde que ela o deixasse ir embora.
-- A qualquer momento agora...
A menina olhou para a água.
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Nenhuma jangada mágica apareceu.
-- Talvez tenha ficado presa no trânsito -- disse Leo.
-- Isso está errado. -- Ela olhou feio para o céu. -- Isso está total-
mente errado!
-- Então... plano B -- disse Leo. -- Você tem um telefone, ou...
-- Argh!
A menina voltou-se e caminhou resoluta para o interior da ilha.
Quando chegou à trilha, correu pelo bosque e desapareceu.
-- Tudo bem -- disse Leo. -- Ou você pode simplesmente fugir.
Dos bolsos do cinto de ferramentas ele tirou uma corda e um gan-
cho e, em seguida, atou a esfera de Arquimedes ao cinto.
Olhou para o mar. Ainda nenhuma jangada mágica à vista.
Leo poderia ficar ali e esperar, mas estava com fome, sede, e
cansado. E estava bastante dolorido por causa da queda.
Não queria seguir aquela garota maluca, não importava quanto
fosse bom seu perfume.
Por outro lado, não tinha para aonde ir. A menina dispunha de
uma mesa de jantar, portanto tinha comida. E parecia achar a
presença de Leo irritante.
-- Irritá-la será uma espécie de bônus -- decidiu.
Ele a seguiu em meio às colinas.
L




LEO

-- SANTO HEFESTO -- DISSE LEO.
A trilha levava ao mais belo jardim que já vira. Não que tenha
passado muito tempo em jardins, mas, caramba. À esquerda havia
um pomar e um vinhedo: árvores de pêssego com frutas vermelho-
dourado que cheiravam deliciosamente sob o sol quente, vinhedos
cuidadosamente podados repletos de uvas, caramanchões de jasmins
florescentes e uma infinidade de outras plantas que Leo não sabia
nomear.
À direita havia maravilhosos canteiros de legumes e ervas, dispos-
tos como raios ao redor de uma grande fonte borbulhante onde
sátiros de bronze cuspiam água em um chafariz.
Nos fundos do jardim, onde terminava a trilha, abria-se uma cav-
erna na encosta de uma colina gramada. Comparada ao bunker 9 do
acampamento, a entrada era pequena, mas era impressionante à sua
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maneira. Em ambos os lados, a rocha cristalina fora esculpida em
forma de colunas gregas brilhantes. Os topos das colunas eram
unidos por uma vara de bronze que sustentava cortinas de seda
branca.
O nariz de Leo foi tomado por aromas deliciosos: cedro, zimbro,
jasmim, pêssego e ervas frescas. O cheiro que vinha da caverna real-
mente chamou sua atenção: parecia que havia um ensopado de carne
no fogo.
Começou a andar em direção à entrada. Sério, como poderia
evitar? Mas parou quando viu a menina. Estava ajoelhada em sua
horta, de costas para Leo. Murmurava para si mesma enquanto
cavava furiosamente com uma espátula de jardinagem.
Leo se aproximou pelo lado, para que ela pudesse vê-lo. Não
pretendia surpreendê-la uma vez que a menina estava armada com
um afiado instrumento de jardinagem.
Ela continuou xingando em grego antigo e esfaqueando o solo.
Tinha torrões de terra nos braços, no rosto e em seu vestido branco,
mas parecia não se importar.
Leo gostou do que viu. Ela ficava melhor com um pouco de lama.
Menos com cara de rainha da beleza, mais parecida com o tipo de
pessoa que mete a mão na massa.
-- Acho que você já castigou a terra o suficiente -- disse Leo.
Ela olhou feio para ele, com olhos vermelhos e lacrimejantes.
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-- Vá embora.
-- Você está chorando -- disse ele, o que era estupidamente óbvio,
mas vê-la dessa forma o desconsertou, por assim dizer. Era difícil
ficar bravo com alguém que estava chorando.
-- Isso não é da sua conta -- murmurou ela. -- A ilha é grande.
Apenas... encontre o seu lugar. Deixe-me em paz. -- Ela acenou vaga-
mente em direção ao sul. -- Vá por ali talvez.
-- Então, nada de jangada mágica -- afirmou Leo. -- Não existe
nenhuma outra maneira de sair desta ilha?
-- Aparentemente, não!
-- O que devo fazer? Ficar sentado nas dunas de areia até morrer?
-- Seria bom... -- Calipso baixou a espátula e amaldiçoou o
céu. -- Só que acho que ele não pode morrer aqui, não é mesmo?
Zeus! Isso não é engraçado!
Não pode morrer aqui?
-- Espere um pouco.
A cabeça de Leo girou como um eixo de manivela. Não conseguia
traduzir muito bem o que a garota estava dizendo, como quando
ouvia espanhóis ou sul-americanos falando espanhol. Sim, conseguia
entender mais ou menos. Mas soava tão diferente que era quase
outro idioma.
-- Preciso de algumas informações -- disse ele. -- Você não me
quer por perto, tudo bem. Também não quero ficar aqui. Mas não
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vou morrer em um canto. Preciso sair desta ilha. Tem de haver um
meio. Todo problema tem uma solução.
Ela riu amargamente.
-- Se ainda acredita nisso, não viveu muito tempo.
O modo como disse aquilo provocou-lhe um calafrio. Ela parecia
ter a mesma idade que ele, mas Leo se perguntou quantos anos real-
mente teria.
-- Você falou algo sobre uma maldição.
Ela flexionou os dedos, como se estivesse praticando a sua técnica
de estrangulamento.
-- É. Não posso deixar Ogígia. Meu pai, Atlas, lutou contra os
deuses, e eu o apoiei.
-- Atlas -- disse Leo. -- O titã Atlas?
A garota revirou os olhos.
-- Sim, seu pequeno impossível... -- Fosse lá o que ia dizer,
guardou para si. -- Fiquei presa aqui, onde não poderia causar prob-
lemas para os olimpianos. Há cerca de um ano, depois da Segunda
Guerra dos Titãs, os deuses prometeram perdoar os seus inimigos e
ofereceram anistia. Supostamente Percy os fez prometer...
-- Percy -- disse Leo. -- Percy Jackson?
Ela fechou os olhos. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto.
Ah, pensou Leo.
-- Percy esteve aqui -- murmurou ele.
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Ela enterrou os dedos no solo.
-- E-eu pensei que seria libertada. Atrevi-me a ter esperança...
mas ainda estou aqui.
Leo lembrava-se agora. A história era para ser um segredo, mas é
claro que isso significava que se espalharia como fogo pelo acampa-
mento. Percy contou para Annabeth. Meses mais tarde, quando ele
desapareceu, Annabeth contou para Piper. Piper contou para Jason...
Percy dissera ter visitado aquela ilha. Encontrara uma deusa que
se apaixonou por ele e queria mantê-lo por lá, mas acabou deixando-
o partir.
-- Você é aquela moça -- disse Leo. -- Aquela que tem nome de
música caribenha.
Os olhos dela faiscaram de ódio.
-- Música caribenha...
-- É. Reggae? -- Leo balançou a cabeça. -- Merengue? Espere, vou
me lembrar... -- Ele estalou os dedos. -- Calipso! Mas Percy disse que
você era incrível. Disse que era doce e útil, e prestativa, não, hum...
Ela se levantou:
-- Sim?
-- Hã, nada -- cortou Leo.
-- Você seria doce -- perguntou ela --, se os deuses esquecessem
de sua promessa de deixá-lo partir? Seria doce se debochassem de
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você enviando um outro herói, mas um herói parecido com... com
você?
-- Isso é uma pegadinha?
-- Di Immortales!
Ela se virou e entrou em sua caverna.
-- Ei!
Leo correu atrás dela.
Ao entrar, ficou atônito. As paredes eram feitas de pedaços de
cristal colorido. Cortinas brancas dividiam a caverna em diferentes
cômodos decorados com confortáveis almofadas, tapeçarias e pratos
de frutas frescas. Viu uma harpa em um canto, um tear em outro, e
uma grande panela no fogo, onde o ensopado borbulhava,
preenchendo a caverna com aromas deliciosos.
O mais estranho? As tarefas se executavam por conta própria.
Toalhas flutuavam pelo ar, dobravam-se e empilhavam-se
caprichosamente. Colheres lavavam a si mesmas em uma pia de
cobre. A cena fez Leo lembrar dos espíritos invisíveis que serviam o
almoço no Acampamento Júpiter.
Calipso estava diante de um lavatório, limpando a terra de seus
braços.
Olhou feio para Leo, mas não gritou para que saísse. Sua raiva
parecia estar perdendo a força.
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Leo pigarreou. Se pretendia obter qualquer ajuda daquela mulh-
er, precisava ser agradável.
-- Então... Entendo por que está com raiva. Provavelmente deseja
não ver nunca mais outro semideus. Acho que não ficou muito bem
quando, hã, Percy a deixou...
-- Ele foi apenas o mais recente -- rosnou Calipso. -- Antes dele,
foi Drake, o pirata. E antes dele, Odisseu. São todos iguais! Os deuses
me enviam os melhores heróis, aqueles que não me dão alternativa
senão...
-- Você se apaixonar por eles -- completou Leo. -- E então eles a
abandonam.
O queixo da garota tremia.
-- Essa é a minha maldição. Tinha a esperança de me livrar disso
agora, mas ainda estou aqui, presa em Ogígia há três mil anos.
-- Três mil. -- A boca de Leo formigou, como se tivesse acabado
de comer aquelas balinhas que estouram. -- Hã, você está inteiraça
para alguém que tem três mil anos.
-- E agora... o pior insulto de todos. Os deuses zombam de mim
enviando você.
A raiva borbulhou no estômago de Leo.
Sim, típico. Se Jason estivesse ali, Calipso se jogaria nos braços
dele. Imploraria para que ficasse, mas ele se faria de nobre, falaria
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sobre retomar seus deveres, e deixaria Calipso de coração partido. E
a jangada mágica certamente chegaria.
Mas Leo? Era o convidado chato de quem ela não podia se livrar.
Calipso nunca se apaixonaria por ele, porque ela definitivamente não
era para o seu bico. Não que se importasse. Afinal, a moça não fazia o
seu tipo. Era muito chata, e bonita, e -- bem, isso não importava.
-- Tudo bem -- disse ele. -- Eu a deixarei em paz. Vou construir
algo sozinho e sair desta ilha estúpida sem a sua ajuda.
Ela balançou a cabeça com tristeza.
-- Você não entende, não é? Os deuses estão rindo de nós dois. Se
a jangada não aparecer, significa que fecharam Ogígia. Você está
preso aqui, assim como eu. Nunca irá embora.
LI




LEO

OS PRIMEIROS DIAS FORAM OS piores.
Leo dormia ao ar livre, em uma cama de trapos sob as estrelas.
Fazia frio à noite, mesmo estando na praia e durante o verão, então
acendia fogueiras com os restos da mesa de jantar de Calipso. Isso o
animava um pouco.
Durante os dias, caminhava por toda a ilha mas nada despertava
seu interesse -- a menos que gostasse de praias e de mar sem fim
cercando-o. Tentou enviar uma mensagem de Íris nos arco-íris que
se formavam na espuma das ondas, mas não conseguiu. Não tinha
nenhuma dracma para fazer o pagamento e, aparentemente, a deusa
Íris não estava interessada em porcas e parafusos.
Nem estava sonhando, o que era incomum para ele -- ou para
qualquer semideus -- de modo que não tinha a mínima ideia do que
estava acontecendo no mundo exterior. Teriam os seus amigos se
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livrado de Quione? Estariam procurando por ele ou navegaram para
Épiro para completar a missão?
Ele sabia o que esperar.
O sonho que tivera no Argo II finalmente fazia sentido: a
feiticeira malvada lhe dissera para pular de um penhasco entre as
nuvens ou descer em um túnel escuro onde vozes fantasmagóricas
sussurravam. Aquele túnel deveria representar a Casa de Hades, que
Leo jamais veria. Preferira o precipício -- caindo do céu naquela ilha
idiota. Mas, no sonho, uma escolha lhe fora oferecida. Na vida real,
não tivera uma. Quione simplesmente arrancara-o de seu navio e o
lançara em órbita. Totalmente injusto.
A pior parte de estar preso ali? Estava perdendo a noção dos dias.
Certa manhã, ao acordar, não conseguia se lembrar se estava em Ogí-
gia há três ou quatro noites.
Calipso ajudou muito. Leo confrontou-a no jardim, mas ela apen-
as balançou a cabeça.
-- O tempo é complicado por aqui.
Ótimo. Para Leo, um século poderia ter se passado no mundo
real, e a guerra com Gaia acabado, para o bem ou para o mal. Ou
talvez só estivesse em Ogígia por cinco minutos. Poderia passar a sua
vida inteira, tempo em que seus amigos no Argo II levariam para to-
mar o café da manhã.
De qualquer maneira, precisava sair daquela ilha.
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Calipso teve pena dele. Enviou seus servos invisíveis para deixar
tigelas de ensopado e taças de sidra de maçã na entrada do jardim.
Chegou a enviar-lhe algumas mudas de roupa -- simples, calças de
algodão cru e camisas que ela devia ter feito em seu tear. Cabiam tão
bem que Leo se perguntou como ela conseguira suas medidas. Talvez
tenha apenas usado o seu molde genérico para MOLEQUE MAGRICELA.
De qualquer modo, estava feliz por ter roupas novas, uma vez que
as antigas estavam queimadas e muito fedorentas. Geralmente, con-
seguia evitar que as roupas queimassem quando pegava fogo, mas
aquilo exigia concentração. Às vezes, no acampamento, quando se
distraía trabalhando em algum projeto de metal na forja, olhava para
baixo e percebia que suas roupas tinham queimado, com exceção de
seu cinto de ferramentas mágico e uma cueca fumegante. Era meio
constrangedor.
Apesar dos presentes, obviamente Calipso não queria encontrá-lo.
Certa vez, enfiou a cabeça dentro da caverna e ela ficou furiosa, grit-
ando e atirando panelas em sua cabeça.
Sim, ela definitivamente era Time Leo.
Ele acabou montando acampamento perto da trilha, onde a praia
e as colinas se encontravam. Assim, ficaria perto o bastante para
pegar suas refeições, mas Calipso não o veria, evitando acessos de
raiva e arremessos de panelas.
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Construiu uma cabana com madeira e lona. Cavou uma vala para
a fogueira. Chegou a fazer um banco e uma mesa de trabalho com al-
guns troncos e galhos mortos de cedro. Passou horas consertando a
esfera de Arquimedes, limpando-a e reparando seus circuitos. Con-
struiu uma bússola, mas a agulha girava enlouquecida, não import-
ando o que ele fizesse. Avaliou que um GPS também seria inútil.
Aquela ilha fora projetada para ser indetectável, impossível de ser
abandonada.
Ele se lembrou do velho astrolábio de bronze que pegara em Bo-
lonha -- um dos anões lhe dissera que fora Odisseu quem o con-
struíra. Suspeitava que Odisseu estava pensando naquela ilha
quando o construiu, mas, infelizmente, Leo teve que deixá-lo no na-
vio com Buford, a Mesa Maravilha. Além disso, os anões afirmaram
que o astrolábio não funcionava. Algo sobre um cristal que estava
faltando...
Caminhava pela praia, perguntando por que Quione o enviara até
ali -- supondo-se que seu desembarque na ilha não fora um acidente.
Por que não apenas matá-lo? Talvez Quione quisesse que ele ficasse
no limbo para sempre. Talvez soubesse que os deuses estavam inca-
pacitados demais para prestarem atenção em Ogígia, de modo que a
magia da ilha fora desfeita. Talvez por isso Calipso ainda estivesse
presa ali e a jangada mágica não apareceria para Leo.
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Ou, talvez, a magia daquele lugar estivesse funcionando muito
bem. Os deuses puniam Calipso enviando-lhe caras corajosos que a
abandonavam assim que ela se apaixonava por eles. Talvez esse fosse
o problema. Calipso nunca se apaixonaria por Leo. Queria que ele
fosse embora. Então, estavam presos em um ciclo vicioso. Se esse era
o plano de Quione... uau. Era um super plano do mal.
Então, certa manhã, ele fez uma descoberta, e tudo ficou ainda
mais complicado.

***

Leo caminhava pelas colinas, seguindo um pequeno riacho que corria
entre duas grandes árvores de cedro. Gostava de lá, pois era o único
lugar em Ogígia onde não dava para ver o mar e conseguia fingir que
não estava preso em uma ilha. À sombra das árvores, quase sentia
como se estivesse de volta ao Acampamento Meio-Sangue, camin-
hando pela floresta em direção ao bunker 9.
Ele pulou o riacho. Em vez de aterrissar em terra macia, seus pés
atingiram algo muito mais duro.
CLANG.
Metal.
Empolgado, Leo cavou o musgo até ver brilho de bronze.
-- Uau, cara.
Ria como um louco enquanto escavava.
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Não sabia por que aquele material estava ali. Hefesto sempre se
desfazia de peças quebradas de sua oficina divina e enchia a terra de
sucata, mas quais as chances de algumas delas terem atingido
Ogígia?
Leo encontrou um punhado de fios, algumas engrenagens empen-
adas, um pistão que ainda poderia funcionar, e várias lâminas de
bronze celestial martelado -- a menor era do tamanho de um porta-
copos, a maior, do tamanho de um escudo de guerra.
Não era muito se comparado ao bunker 9 ou até mesmo ao seu
estoque a bordo do Argo II. Mas era melhor do que só areia e pedras.
Olhou para a luz do sol brilhando através dos ramos de cedro.
-- Pai? Se você enviou isto para mim, obrigado. Se não... bem,
obrigado mesmo assim.
Reuniu seu tesouro e o arrastou de volta ao acampamento.
Depois disso, os dias passaram mais rapidamente e com muito
mais barulho.
Primeiro, Leo construiu um forno com tijolos de barro, que cozin-
hou um a um com as suas próprias mãos fumegantes. Encontrou
uma pedra grande que poderia usar como base de bigorna, e tirou
pregos de seu cinto de ferramentas até ter o suficiente para derretê-
los em forma de uma superfície para martelar.
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Feito isso, começou a fundir a sucata de bronze celestial nova-
mente. A cada dia, seu martelo golpeava o bronze até a pedra da big-
orna quebrar, suas pinças dobrarem, ou ele ficar sem lenha.
Todas as noites, ele caía na cama encharcado de suor e coberto de
fuligem; mas sentia-se ótimo. Ao menos estava trabalhando, tent-
ando resolver o seu problema.
A primeira vez que Calipso veio vê-lo, foi para reclamar do
barulho.
-- Fumaça e fogo -- disse ela. -- Retinir de metal o dia inteiro.
Você está assustando os pássaros!
-- Ah, não, pobres pássaros! -- resmungou Leo.
-- O que você espera fazer?
Ele ergueu os olhos e quase esmagou o polegar com o martelo.
Vinha olhando para metal e fogo por tanto tempo que se esquecera
de quão bela era Calipso. Irritantemente bela. Ela ficou ali, com a luz
do sol em seu cabelo, a saia branca ondulando em torno de suas per-
nas, uma cesta com uvas e um pão recém-assado debaixo do braço.
Leo tentou ignorar que seu estômago roncava.
-- Espero sair desta ilha -- respondeu ele. -- É isso o que você
quer, certo?
Calipso franziu a testa. Colocou a cesta perto de sua cama de
trapos.
-- Você não come há dois dias. Faça uma pausa e coma.
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-- Dois dias? -- Leo nem notara, o que o surpreendeu já que
gostava de comer. Estava ainda mais surpreso que Calipso tivesse
notado.
-- Obrigado -- murmurou ele. -- Eu, hã, vou tentar fazer menos
barulho com o martelo.
-- Hum.
Ela não pareceu acreditar.
Depois disso, Calipso não reclamou mais do barulho ou da
fumaça.
Na vez seguinte em que o visitou, Leo dava os retoques finais em
seu primeiro projeto. Não a viu se aproximar até Calipso falar bem
atrás dele:
-- Trouxe isso para você...
Leo deu um pulo, deixando cair os seus fios.
-- Touros de bronze, garota! Não me assuste!
Ela estava usando vermelho naquele dia, a cor favorita de Leo.
Aquilo era completamente irrelevante. Ela ficava muito bem de ver-
melho. Também irrelevante.
-- Não estava tentando assustar -- afirmou ela. -- Vim lhe en-
tregar isso.
Ela mostrou as roupas que trazia dobradas: uma nova calça jeans,
uma camiseta branca, uma jaqueta militar... espere, aquelas eram as
suas roupas, só que não poderiam ser. Sua jaqueta do exército
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queimara meses antes. Ele não a estava usando quando desembarcou
em Ogígia. Mas as roupas que Calipso trouxera eram exatamente
como aquelas que usava no primeiro dia em que chegou ao
Acampamento Meio-Sangue, só que essas eram maiores, redimen-
sionadas para caberem melhor.
-- Como? -- perguntou.
Calipso colocou as roupas no chão e se afastou como se ele fosse
um animal perigoso.
-- Sei um pouco de magia, sabe? Você vive queimando as roupas
que lhe dou, então pensei em tecer algo menos inflamável.
-- Essas não vão queimar?
Leo pegou a calça jeans que parecia ser feita de tecido normal.
-- São completamente à prova de fogo -- prometeu
Calipso. -- Elas se manterão limpas e crescerão para se adaptarem a
você, caso se torne menos magrelo.
-- Obrigado.
Queria soar sarcástico, mas estava sinceramente impressionado.
Podia fazer muitas coisas, mas uma roupa autolimpante e não in-
flamável não estava na lista.
-- Então... você fez uma réplica exata de minhas roupas favoritas.
Será que me pesquisou no Google ou algo assim?
Ela franziu a testa.
-- Não conheço essa palavra.
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-- Você me pesquisou -- disse ele. -- Quase como se tivesse algum
interesse em mim.
Ela torceu o nariz.
-- Tenho interesse em não ter que lhe fazer uma nova muda de
roupas diariamente. Tenho interesse que não cheire tão mal e que
pare de andar pela minha ilha em trapos fumegantes.
-- Ah, sim. -- Leo sorriu. -- Você realmente está se interessando
por mim.
O rosto dela ficou ainda mais vermelho.
-- Você é a pessoa mais insuportável que já conheci! Só estava re-
tribuindo o favor. Você consertou a minha fonte.
-- Aquilo?
Leo riu. O problema fora tão simples que quase se esquecera. Um
dos sátiros de bronze virara de lado e a pressão da água estava baixa,
de modo que a estátua começou a produzir um tique-taque irritante,
balançando para cima e para baixo e jorrando água para fora do cha-
fariz. Ele pegou um par de ferramentas e consertou em dois minutos.
-- Não foi nada de mais. Não gosto quando as coisas não fun-
cionam direito.
-- E as cortinas na entrada da caverna?
-- A vara não estava nivelada.
-- E as minhas ferramentas de jardinagem?
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-- Veja, só afiei as tesouras. Cortar vinhas com uma lâmina cega é
perigoso. As tesouras de poda precisavam de lubrificação nas juntas
e...
-- Ah, sim -- disse Calipso, com uma boa imitação da voz de
Leo. -- Você realmente está se interessando por mim.
Pela primeira vez, Leo ficou sem palavras. Os olhos de Calipso
brilhavam. Sabia que ela estava debochando dele, mas de alguma
forma não parecia maldosa.
Calipso apontou para a mesa de trabalho.
-- O que está construindo?
-- Ah.
Leo olhou para o espelho de bronze, que ele acabara de ligar à es-
fera de Arquimedes. Na superfície polida da tela, seu próprio reflexo
o surpreendeu. O cabelo crescera e estava mais encaracolado. O rosto
estava mais magro e definido, talvez porque não estivesse comendo.
Seus olhos estavam sombrios e pareciam um tanto ferozes quando
não sorria -- uma espécie de olhar de Tarzan, se Tarzan fosse um
latino tamanho PP. Não podia culpar Calipso por rejeitá-lo.
-- Hã, é um dispositivo para ver -- explicou. -- Encontramos um
como este em Roma, na oficina de Arquimedes. Se eu puder fazer
isso funcionar, talvez descubra o que está acontecendo com os meus
amigos.
Calipso balançou a cabeça.
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-- Isso é impossível. Esta ilha está escondida, afastada do mundo
por uma magia poderosa. Nem o tempo flui da mesma forma por
aqui.
-- Bem, você deve ter algum tipo de contato com o exterior. Como
descobriu que eu tinha uma jaqueta assim?
Ela torceu o cabelo entre os dedos, como se a pergunta a
incomodasse.
-- Ver o passado é magia simples. Já ver o presente ou o futuro...
não.
-- Bem -- disse Leo. -- Veja e aprenda, gata. Acabei de ligar estes
dois últimos fios e...
A placa de bronze piscou. Fumaça exalou da esfera. A manga da
camisa de Leo pegou fogo. Tirou a camisa, jogou-a no chão e a
pisoteou.
Dava para ver que Calipso estava tentando não rir, mas ela tremia
com o esforço.
-- Nem começa -- advertiu Leo.
Ela olhou para seu peito nu, suado, ossudo, marcado por velhas
cicatrizes de acidentes na fabricação de armas.
-- Não há nada que mereça comentário -- assegurou ela. -- Se vo-
cê quiser que o dispositivo funcione, talvez deva tentar uma in-
vocação musical.
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-- Certo -- disse ele. -- Quando um aparelho não funciona, gosto
de sapatear ao redor dele. Sempre dá certo.
Ela inspirou profundamente e começou a cantar.
Sua voz atingiu-o como uma brisa fresca, como a primeira frente
fria no Texas, quando o calor do verão finalmente vai embora e você
começa a acreditar que tudo pode melhorar. Leo não compreendia as
palavras, mas a música era melancólica e agridoce, como se ela est-
ivesse descrevendo um lar para o qual nunca pudesse retornar.
Seu canto era mágico, sem dúvida, mas não era como a voz in-
dutora ao transe de Medeia, nem mesmo semelhante aos encanta-
mentos de Piper. A música nada queria dele. Simplesmente evocava
suas melhores lembranças: construindo coisas com sua mãe na ofi-
cina, sentado ao sol com seus amigos no acampamento. Aquilo fazia
com que sentisse saudades de casa.
Calipso parou de cantar. Leo percebeu que estava olhando para
ela como um idiota.
-- Algum avanço? -- perguntou ela.
-- Hã... -- Leo forçou os olhos de volta ao espelho de
bronze. -- Nada. Espere...
A tela brilhou. No ar acima, imagens holográficas surgiram.

***

Leo reconheceu o refeitório do Acampamento Meio-Sangue.
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Não havia som, mas Clarisse LaRue do chalé de Ares gritava or-
dens para os campistas, reunindo-os em fileiras. Os irmãos de Leo do
chalé 9 corriam, entregando armaduras e distribuindo armas para
todos.
Até mesmo Quíron, o centauro, estava vestido para a guerra. Tro-
tava para cima e para baixo nas fileiras, com o capacete emplumado
reluzente, suas cernelhas dotadas de protetores de bronze. Seu sor-
riso simpático habitual desaparecera, substituído por um olhar de
sombria determinação.
Ao longe, trirremes gregos flutuavam no mar em Long Island,
preparados para a guerra. Ao longo das colinas, catapultas estavam
sendo preparadas. Sátiros patrulhavam os campos, e os cavaleiros em
pégasos circulavam no céu, atentos a ataques aéreos.
-- Seus amigos? -- perguntou Calipso.
Leo assentiu. Seu rosto estava dormente.
-- Eles estão se preparando para a guerra.
-- Contra quem?
-- Veja -- disse Leo.
A cena mudou. Uma falange de semideuses romanos marchava
através de um vinhedo iluminado pelo luar. Em um letreiro luminoso
ao longe, lia-se: ADEGA GOLDSMITH.
-- Já vi esse letreiro -- disse Leo. -- Não fica longe do
Acampamento Meio-Sangue.
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Subitamente, as fileiras romanas se deterioraram no caos. Os
semideuses se espalharam. Escudos caíram. Dardos oscilaram louca-
mente, como se todo o grupo tivesse pisado em saúvas.
Movendo-se sob o luar com rapidez havia duas pequenas cri-
aturas cabeludas vestindo roupas descombinadas e chapéus extra-
vagantes. Pareciam estar em todos os lugares ao mesmo tempo,
batendo na cabeça dos romanos, roubando suas armas, cortando os
cintos fazendo com que as calças caíssem.
Leo não pôde deixar de sorrir.
-- Esses encrenqueiros adoráveis! Eles cumpriram a promessa.
Calipso inclinou-se, observando os cércopes.
-- Primos seus?
-- Muito engraçado... não -- disse Leo. -- Dois anões que conheci
em Bolonha. Pedi que atrasassem os romanos, e eles estão fazendo
exatamente isso.
-- Mas por quanto tempo? -- perguntou Calipso.
Boa pergunta. A cena mudou novamente. Leo viu Octavi-
an -- aquele áugure louro com cara de espantalho. Estava no estacio-
namento de um posto de gasolina, rodeado por SUVs pretas e semi-
deuses romanos. Ele ergueu um longo mastro envolto em tela.
Quando o descobriu, uma águia dourada brilhava no topo.
-- Ah, isso não é bom -- disse Leo.
-- Um estandarte romano -- observou Calipso.
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-- É. E esse atira raios, de acordo com Percy.
Assim que disse o nome de Percy, Leo se arrependeu. Olhou para
Calipso e viu em seus olhos o quanto ela estava lutando, tentando or-
ganizar suas emoções em fileiras ordenadas, como fios em seu tear. O
que mais surpreendeu Leo foi a onda de raiva que sentiu. Não era
apenas aborrecimento ou ciúme. Estava furioso com Percy por ter
magoado aquela menina.
Voltou a se concentrar nas imagens holográficas. Agora, via um
único cavaleiro: Reyna, pretora do Campo Júpiter, voando através de
uma tempestade montada em um pégaso castanho-claro. O cabelo
escuro de Reyna balançava ao vento. Seu manto roxo flutuava, rev-
elando a armadura brilhante. Sangue escorria de cortes nos braços e
no rosto. Os olhos de seu pégaso estavam arregalados, a boca tensa
pela difícil cavalgada. Mas Reyna avançava com firmeza em meio à
tempestade.
Enquanto Leo observava, um grifo selvagem mergulhou das
nuvens. Arranhou as costelas do cavalo, quase derrubando Reyna.
Ela sacou a espada e matou o monstro. Segundos depois, apareceram
três venti: espíritos da tempestade rodopiando como tornados em
miniatura, enfeitados por raios. Reyna avançou contra eles, gritando
em desafio.
Então, o espelho de bronze escureceu.
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-- Não! -- gritou Leo. -- Não, agora não. Mostre-me o que vai
acontecer! -- Ele bateu no espelho. -- Calipso, pode cantar outra vez
ou algo assim?
Ela olhou feio para ele.
-- Suponho que seja a sua namorada. Sua Penélope? Sua Eliza-
beth? Sua Annabeth?
-- O quê? -- Leo não conseguia entender aquela garota. Metade
das coisas que ela dizia não faziam sentido. -- Essa é Reyna. Não é
minha namorada! Preciso ver mais! Preciso...
PRECISO, uma voz ressoou no chão sob seus pés. Leo cambaleou,
subitamente sentindo como se estivesse sobre um trampolim.
PRECISO é uma palavra utilizada em excesso. Uma figura humana
rodopiante irrompeu da areia: a deusa menos favorita de Leo: a
Dama da Lama, a Princesa da Fossa Sanitária, a própria Gaia.
Leo atirou um alicate em sua direção. Infelizmente, a figura não
era sólida, e o alicate a atravessou. Seus olhos estavam fechados, mas
não parecia exatamente adormecida. Tinha um sorriso estampado
em seu rosto de redemoinho, como se estivesse ouvindo atentamente
à sua música favorita. Suas roupas de areia se moviam e dobravam,
lembrando as barbatanas ondulantes daquele estúpido e monstruoso
Camarãozilla com quem lutaram no Atlântico. Mas Gaia certamente
era mais feia.
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Você quer viver, disse Gaia. Quer se juntar a seus amigos. Mas
não precisa disso, meu pobre menino. Não faria diferença. Seus
amigos morrerão de qualquer maneira.
As pernas de Leo bambearam. Odiava aquilo, mas, sempre que
aquela bruxa aparecia, sentia ter oito anos novamente, preso no esta-
cionamento da oficina mecânica de sua mãe, ouvindo a voz calma e
maldosa de Gaia enquanto sua mãe, trancada dentro do armazém em
chamas, morria vítima do calor e da fumaça.
-- O que eu não preciso -- rosnou --, é de mais mentiras vindas
de você, Cara de Lama. Você falou que meu bisavô morreu na década
de 1960. Errado! Você falou que eu não poderia salvar meus amigos
em Roma. Errado! Você falou demais.
O riso de Gaia era um farfalhar suave, como terra escorregando
por uma colina nos primeiros momentos de uma avalanche.
Tentei ajudá-lo a fazer melhores escolhas. Você poderia ter se
salvado. Mas me desafiou a cada passo. Construiu o seu navio.
Juntou-se àquela missão tola. Agora está preso aqui, impotente, en-
quanto o mundo mortal morre.
As mãos de Leo explodiram em chamas. Queria derreter o rosto
de areia de Gaia em vidro. Então, sentiu a mão de Calipso sobre o seu
ombro.
-- Gaia. -- A voz dela soava severa e firme. -- Você não é bem-
vinda.
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Leo desejou poder soar tão confiante quanto Calipso. Então
lembrou-se de que aquela garota irritante de quinze anos era na ver-
dade a filha imortal de um titã.
Ah, Calipso. Gaia ergueu os braços como se fosse abraçá-la. Ainda
aqui, pelo jeito, apesar das promessas dos deuses. Por que será,
minha neta querida? Os olimpianos estão sendo vingativos,
deixando-a sem nenhuma companhia afora esse baixinho idiota?
Ou será que simplesmente se esqueceram de você porque não signi-
fica nada para eles?
Calipso olhou diretamente através do rosto rodopiante de Gaia,
em direção ao horizonte.
Sim, murmurou Gaia com simpatia. Os olimpianos são infiéis.
Eles não dão segundas chances. Por que manter a esperança? Você
apoiou seu pai, Atlas, em sua grande guerra. Sabia que os deuses
deviam ser destruídos. Por que hesita agora? Eu lhe ofereço uma
chance que Zeus jamais lhe daria.
-- Onde esteve nesses últimos três mil anos? -- perguntou
Calipso. -- Se você se preocupa tanto com o meu destino, por que só
veio me visitar agora?
Gaia voltou as palmas das mãos para cima.
A terra demora a despertar. A guerra virá no momento certo.
Mas não pense que esquecerá Ogígia. Quando refizer o mundo, esta
prisão também será destruída.
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-- Ogígia destruída? -- Calipso balançou a cabeça, como se não
pudesse imaginar essas duas palavras juntas.
Você não precisa estar aqui quando isso acontecer, prometeu
Gaia. Junte-se a mim agora. Mate esse menino. Derrame o sangue
dele sobre a terra e me ajude a despertar. Eu a libertarei e lhe con-
cederei qualquer desejo. Liberdade. Vingança contra os deuses. Até
mesmo um prêmio. Você ainda quer o semideus Percy Jackson? Eu
o pouparei para você. Eu o ressuscitarei do Tártaro. Ele será seu,
para ser punido ou amado, como desejar. Apenas mate esse menino
invasor. Mostre a sua lealdade.
Vários cenários passaram pela cabeça de Leo, nenhum deles bom.
Tinha certeza de que Calipso o estrangularia ali mesmo, ou mandaria
seus servos invisíveis de vento o transformarem em purê.
Por que não o faria? Gaia estava lhe propondo o acordo ideal:
mate um cara chato e ganhe um bonitão de graça!
Calipso ergueu a mão em direção a Gaia em um gesto de três de-
dos que Leo lembrava do Acampamento Meio-Sangue: o antigo sinal
grego contra o mal.
-- Esta não é apenas a minha prisão, avó. É a minha casa. E você é
a invasora.
O vento dissolveu a forma de Gaia em nada, espalhando a areia
pelo céu azul.
Leo engoliu em seco.
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-- Hã, não me leve a mal, mas você não me matou. Enlouqueceu?
Os olhos de Calipso brilhavam de ódio, mas pela primeira vez Leo
não achou que aquele ódio fosse destinado a ele.
-- Seus amigos devem precisar de você, ou Gaia não pediria a sua
morte.
-- Eu... hã, sim. Acho que sim.
-- Então, temos trabalho a fazer -- disse ela. -- Precisamos levá-lo
de volta ao seu navio.
LII




LEO

LEO SE ACHAVA UM SUJEITO ocupado. Mas quando Calipso cismava
com alguma coisa, transformava-se em uma máquina.
Em um dia, ela reuniu material suficiente para uma viagem de
uma semana: comida, garrafas de água e ervas medicinais de seu
jardim. Teceu uma vela grande o bastante para um pequeno iate e fez
cordas suficientes para todo o cordame.
Fizera tanto que, no segundo dia, perguntou se Leo precisava de
alguma ajuda em seu projeto.
Ele ergueu a cabeça da placa de circuitos que lentamente
montava.
-- Se não a conhecesse, acharia que está ansiosa para se livrar de
mim.
-- Isso é um bônus -- admitiu ela.
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Calipso estava vestida para trabalhar, com um jeans e uma camis-
eta branca encardida. Quando ele perguntou sobre a mudança de
guarda-roupa, ela respondeu que percebera quão práticos eram
aqueles trajes após fazer alguns para Leo.
Vestindo calça jeans, não parecia muito com uma deusa. Sua
camiseta estava coberta de grama e manchas de terra, como se
tivesse acabado de passar por uma Gaia rodopiante. Estava descalça
e o cabelo cor de caramelo estava amarrado em um rabo de cavalo, o
que fazia seus olhos amendoados parecerem ainda maiores e mais
surpreendentes. As mãos estavam calejadas, repletas de bolhas pelo
trabalho com as cordas.
Olhando para ela, Leo sentiu um inexplicável frio no estômago.
-- Então -- disse ela.
-- Então... o quê?
Calipso apontou para o circuito.
-- Posso ajudar? Como está indo?
-- Ah, hã, estou indo bem. Eu acho. Se conseguir ligar essa coisa
ao barco, devo ser capaz de navegar de volta para o mundo.
-- Agora tudo que precisa é de um barco.
Tentou ler a expressão no rosto de Calipso. Leo não tinha certeza
se ela estava irritada por ele ainda estar ali, ou triste por não estar
indo embora também. Então olhou para todos os suprimentos que
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ela empilhara, mais do que o suficiente para duas pessoas durante
vários dias.
-- Aquilo que Gaia disse... -- ele hesitou. -- Sobre você sair desta
ilha. Gostaria de tentar?
Ela franziu a testa.
-- Como?
-- Bem, não estou dizendo que seria divertido tê-la ao meu lado,
sempre reclamando e me olhando de cara feia e tudo o mais. Mas
suponho que posso suportar, se quiser tentar.
Sua expressão ficou um pouco mais amena.
-- Como é nobre -- murmurou Calipso. -- Mas não, Leo. Se ten-
tasse ir com você, sua pequena chance de fuga se reduziria a nen-
huma. Os deuses colocaram magia antiga nesta ilha para me manter
presa aqui. Um herói pode sair. Eu não. O mais importante é libertá-
lo para que possa deter Gaia. Não que eu me importe com o que
aconteça com você -- acrescentou ela rapidamente. -- Mas o destino
do mundo está em jogo.
-- Por que se preocuparia com isso? -- perguntou Leo. -- Quer
dizer, depois de ter ficado afastada do mundo por tanto tempo?
Ela arqueou as sobrancelhas, como se estivesse surpresa ao vê-lo
fazer uma pergunta sensata.
-- Suponho que é porque não gosto que me digam o que fazer,
seja Gaia ou qualquer outra pessoa. Por mais que odeie os deuses às
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vezes, ao longo dos últimos três milênios percebi que são melhores
do que os Titãs. Eles definitivamente são melhores que os gigantes.
Ao menos os deuses mantêm contato. Hermes sempre foi gentil
comigo. E seu pai, Hefesto, vem me visitar frequentemente. Ele é
uma boa pessoa.
Leo não tinha certeza do que significava seu tom distante. Ela
parecia quase estar ponderando o valor dele, não o de seu pai.
Calipso estendeu a mão e fechou a boca de Leo. Ele não tinha per-
cebido que estava aberta.
-- Agora, como posso ajudar? -- perguntou.
-- Hã...
Ele olhou para o seu projeto, mas, quando falou, deixou escapar
uma ideia que vinha se formando desde que Calipso fizera as suas
roupas novas.
-- Sabe aquele pano à prova de fogo? Acha que poderia me fazer
um saquinho daquele tecido?
Ele deu as dimensões. Calipso acenou com a mão, impaciente.
-- Isso só levará alguns minutos. Vai ajudar em sua missão?
-- É. Pode salvar uma vida. E, hum, poderia pegar um pedaço de
cristal de sua caverna? Não preciso de muito.
Ela franziu a testa.
-- Esse é um pedido estranho.
-- Confie em mim.
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-- Tudo bem. Considere feito. Farei a bolsa à prova de fogo hoje à
noite no tear, após me lavar. Mas o que posso fazer agora, enquanto
minhas mãos estão sujas?
Ergueu os dedos sujos e calejados. Leo não pôde deixar de pensar
que não havia nada mais excitante do que uma garota que não se im-
portava em sujar as mãos. Mas, claro, aquela era apenas um obser-
vação generalizada, não se aplicava a Calipso. Obviamente.
-- Bem -- disse ele --, você poderia enrolar mais algumas bobinas
de bronze. Mas esse é um tipo de trabalho especializado...
Ela se sentou no banco ao seu lado e começou a trabalhar, enro-
lando os fios de bronze mais rápido do que ele seria capaz de fazer.
-- É como tecer -- disse ela. -- Não é tão difícil.
-- Hum -- disse Leo. -- Bem, se você algum dia sair desta ilha e
quiser um emprego, me procure. Não é totalmente desajeitada.
Ela sorriu.
-- Um emprego, hein? Fazer coisas na sua forja?
-- Não. Poderíamos abrir nossa própria oficina -- disse Leo, sur-
preendendo a si mesmo.
Abrir uma oficina mecânica sempre fora um de seus sonhos, mas
ele nunca dissera aquilo para ninguém.
-- Garagem do Leo e da Calipso: Conserto de Automóveis e Mon-
stros Mecânicos.
-- Frutas e vegetais frescos -- sugeriu Calipso.
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-- Sidra e ensopado -- acrescentou Leo. -- Poderíamos até pro-
porcionar entretenimento. Você poderia cantar e eu poderia, tipo, ir-
romper em chamas de vez em quando.
Calipso riu, um som claro, feliz, que fez o coração de Leo disparar.
-- Viu? -- disse ele -- Sou engraçado.
Ela conseguiu parar de rir.
-- Você não é engraçado. Agora, de volta ao trabalho, ou nada de
cidra e ensopado.
-- Sim, senhora -- disse ele.
E trabalharam em silêncio, lado a lado, o resto da tarde.

***

Duas noites depois, o console de orientação estava concluído.
Leo e Calipso estavam sentados na praia, perto do local onde ele
destruíra a mesa de jantar, participando de um piquenique noturno.
A lua cheia transformava as ondas em prata. A fogueira que fizeram
lançava faíscas cor de laranja para o céu. Calipso usava uma camisa
branca limpa e uma calça jeans, que aparentemente decidira nunca
mais tirar.
Atrás deles, nas dunas, os suprimentos estavam cuidadosamente
embalados, prontos para a viagem.
-- Tudo o que precisamos agora é de um barco -- disse Calipso.
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Leo assentiu. Sentiu-se tentado a usar a palavra nós. Calipso deix-
ara claro que não iria com ele.
-- Amanhã posso começar a cortar a madeira em tábuas -- disse
Leo. -- Em alguns dias, teremos o suficiente para um pequeno casco.
-- Você já fez um navio antes -- lembrou Calipso. -- O Argo II.
Leo assentiu. Pensou em todos os meses que passara para criar o
Argo II. De algum modo, fazer um barco para sair de Ogígia parecia
uma tarefa ainda mais difícil.
-- Então, quanto tempo até ir embora? -- O tom de Calipso era
casual, mas ela não o fitou nos olhos.
-- Hã, não tenho certeza. Mais uma semana?
Por algum motivo, dizer aquilo fez Leo se sentir menos agitado.
Quando chegara, não via a hora de ir embora. Agora, estava feliz por
ter mais alguns dias. Estranho.
Calipso correu os dedos sobre a placa de circuitos terminada.
-- Isso demorou muito tempo para ser feito.
-- Você não pode apressar a perfeição.
Um sorriso brotou nos cantos dos lábios dela.
-- Sim, mas será que vai funcionar?
-- Para eu ir embora, claro -- disse Leo. -- Mas, para voltar, pre-
cisarei de Festus e...
-- O quê?
Leo piscou.
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-- Festus. Meu dragão de bronze. Assim que descobrir como
reconstruí-lo, vou...
-- Você me falou sobre Festus -- disse Calipso. -- Mas o que quer
dizer com voltar?
Leo sorriu nervosamente.
-- Bem... para voltar aqui, oras! Tenho certeza de que falei sobre
isso.
-- Você obviamente não falou.
-- Não vou deixá-la aqui! Depois do tanto que me ajudou? É claro
que voltarei. Assim que reconstruir Festus, ele poderá lidar com um
sistema de orientação aperfeiçoado. Há esse astrolábio que eu, hã...
Ele parou de falar, decidindo que era melhor não mencionar que
fora construído por uma das antigas paixões de Calipso.
-- ...que eu encontrei em Bolonha. Enfim, acho que com esse
cristal que você me deu...
-- Você não pode voltar -- insistiu Calipso.
O coração de Leo quase parou.
-- Porque não sou bem-vindo?
-- Porque não pode. É impossível. Nenhum homem encontra Ogí-
gia duas vezes. Essa é a regra.
Leo revirou os olhos.
-- Sim, bem, você já deve ter notado que não sou muito bom com
esse negócio de seguir regras. Voltarei aqui com o meu dragão, e a
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resgataremos. Nós a levaremos para onde você quiser ir. É mais do
que justo.
-- Justo... -- A voz de Calipso estava quase inaudível.
À luz do fogo, seus olhos pareciam tão tristes que Leo não
conseguia encará-los. Será que Calipso achava que ele estava
mentindo apenas para fazê-la se sentir melhor? Ele tinha certeza de
que voltaria e a libertaria daquela ilha. Como poderia não fazê-lo?
-- Como montaria a Oficina Mecânica Leo e Calipso sem
Calipso? -- perguntou ele. -- Não sei fazer cidra e ensopado e certa-
mente não sei cantar.
Ela olhou para a areia.
-- Bem, de qualquer forma, amanhã começarei com a
madeira -- acrescentou Leo. -- E, em alguns dias...
Ele olhou para a água. Algo oscilava sobre as ondas. Leo assistiu,
incrédulo, quando uma grande jangada de madeira foi trazida pela
maré e deslizou até parar na praia.

***

Ele estava atordoado demais para se mover, mas Calipso se ergueu.
-- Depressa!
Ela correu pela praia, pegou alguns sacos de suprimentos e levou-
os até a jangada.
-- Não sei quanto tempo ficará aqui!
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-- Mas...
Leo se levantou. Suas pernas pareciam ter se tornado pedra.
Acabara de se convencer de que tinha mais uma semana em Ogígia.
Agora, não tinha nem tempo para terminar o jantar.
-- Essa é a jangada mágica?
-- Dã! -- gritou Calipso. -- Talvez funcione como deve e o leve
para onde quer ir. Mas não podemos ter certeza. A magia da ilha ob-
viamente está instável. Você deve levar o seu dispositivo de ori-
entação para navegar.
Ela pegou o console e correu em direção à jangada, o que fez Leo
se mover. Ele a ajudou a prendê-lo à jangada e passar os fios até o
pequeno leme na popa. A jangada já era equipada com um mastro, de
modo que Leo e Calipso arrastaram a vela para bordo e começaram a
trabalhar no cordame.
Trabalharam lado a lado em perfeita harmonia. Nem mesmo
entre os campistas de Hefesto, Leo trabalhara com alguém tão intuit-
iva como aquela jardineira imortal. Em pouco tempo, puseram a vela
no lugar e todos os suprimentos a bordo. Leo apertou os botões na
esfera de Arquimedes, murmurou uma prece ao seu pai, Hefesto, e o
console de bronze celestial ganhou vida.
O cordame se esticou. A vela se voltou. A jangada começou a se
arrastar pela areia, forcejando para alcançar as ondas.
-- Vá -- disse Calipso.
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Leo virou. Ela estava tão perto que ele não conseguia suportar.
Calipso cheirava a canela e a lenha queimada, e achou que nunca vol-
taria a sentir um aroma tão bom.
-- A jangada finalmente chegou -- disse ele.
Calipso bufou. Seus olhos podiam estar vermelhos, mas era difícil
dizer ao luar.
-- Você notou?
-- Mas se ela só aparece para os caras de quem você gosta...
-- Não abuse da sorte, Leo Valdez -- disse ela. -- Eu ainda o
odeio.
-- Tudo bem.
-- E você não voltará -- insistiu Calipso. -- Então não me faça
promessas vazias.
-- Que tal uma promessa cheia? -- disse ele. -- Porque eu,
definitivamente...
Ela agarrou o rosto de Leo e puxou-o para um beijo, o que efetiva-
mente o calou.
Apesar de todas as suas brincadeiras e flertes, Leo nunca beijara
uma garota antes. Bem, já dera beijinhos fraternais no rosto de Piper,
mas aquilo não contava. Aquele era um beijo verdadeiro, de língua.
Se Leo tivesse engrenagens e fios em seu cérebro, teriam entrado em
curto-circuito.
Calipso o afastou.
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-- Isso não aconteceu.
-- Tudo bem.
A voz de Leo soou mais aguda que o habitual.
-- Saia daqui.
-- Tudo bem.
Ela deu as costas enxugando os olhos furiosamente e saiu cor-
rendo pela areia, a brisa despenteando seu cabelo.
Leo desejou chamá-la, mas a vela se inflou e a jangada deixou a
praia. Ele se dedicou a alinhar o console de orientação. Quando
voltou a olhar para trás, a ilha de Ogígia era uma linha escura ao
longe, a fogueira pulsando como um pequeno coração cor de laranja.
Seus lábios ainda formigavam pelo beijo.
Isso não aconteceu, disse para si mesmo. Não posso estar apaix-
onado por uma menina imortal. Ela definitivamente não pode estar
apaixonada por mim. Não é possível.
Enquanto a jangada deslizava sobre a água, levando-o de volta ao
mundo mortal, entendeu melhor um verso da Profecia: Um jura-
mento a manter com um alento final.
Entendeu quão perigosos podem ser os juramentos. Mas Leo não
se importava.
-- Voltarei para você, Calipso -- disse ele ao vento da
noite. -- Juro pelo Rio Estige.
LIII




ANNABETH

ANNABETH JAMAIS TIVERA MEDO DO escuro.
Mas normalmente a escuridão não tinha mais de dez metros de
altura, asas negras, um chicote feito de estrelas e uma biga sinistra
puxada por cavalos vampiros.
Nix era quase demais para se assimilar por inteiro. Pairando
sobre o abismo, a figura era indefinida, como se feita de cinza e fu-
maça, e quase tão alta quanto a estátua de Atena Partenos, só que
viva. Seu vestido era negro feito o vácuo, com as cores de uma nebu-
losa espacial, como se galáxias nascessem de seu corpete.
Era difícil ver o rosto em detalhes, exceto pelos pequenos pontos
de seus olhos que brilhavam como quasares. Quando batia as asas,
ondas de escuridão emanavam do abismo, fazendo com que Anna-
beth se sentisse pesada e sonolenta, e sua visão se turvasse.
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A biga da deusa era feita do mesmo material da espada de Nico di
Angelo, ferro estígio, puxada por dois cavalos pretos enormes com
caninos prateados e bem afiados. Os animais flutuavam acima do
abismo, e suas pernas se transformavam em fumaça quando se
moviam.
Os cavalos relincharam e mostraram as presas para Annabeth. A
deusa estalou seu chicote, uma fina fileira de estrelas que pareciam
farpas de diamante, e os cavalos empinaram.
-- Sombra, não! -- repreendeu ela. -- Calma, Trevas. Essas presas
pequenas não são para vocês.
Percy olhou para os cavalos que relinchavam e bufavam.
Continuava envolto na Névoa da Morte, então ainda parecia um
cadáver embaçado, o que deixava Annabeth arrasada sempre que ol-
hava para ele. Além disso, a camuflagem não devia ser muito boa, já
que Nix obviamente podia vê-los.
Annabeth não conseguia decifrar a expressão no rosto fantas-
magórico de Percy. Aparentemente, seu namorado não tinha gostado
do que os cavalos estavam dizendo.
-- Hã... Então não vai deixar que eles nos comam? -- perguntou à
deusa. -- Eles querem muito nos devorar.
Os olhos de quasar de Nix flamejaram.
-- É claro que não. Não deixaria meus cavalos devorarem vocês,
assim como não deixaria Akhlys derrotá-los. São prêmios tão
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especiais que me mataria se não pudesse dar cabo de vocês eu
mesma.
Annabeth não se sentia particularmente sagaz ou corajosa, mas
seus instintos lhe disseram para tomar a iniciativa, ou aquela seria
uma conversa muito curta.
-- Ah, não se mate! -- gritou ela. -- Não somos assim tão
assustadores.
A deusa baixou o chicote.
-- O quê? Não, não foi isso que eu quis dizer... Eu...
-- Ainda bem! -- Annabeth olhou para Percy e deu um riso
forçado. -- Não queremos assustá-la, não é mesmo?
-- Ha, ha. -- Percy riu, sem forças. -- Não, de jeito nenhum.
Os cavalos vampiros pareciam confusos. Empinavam, bufavam e
batiam a cabeça negra uma na outra. Nix puxou as rédeas.
-- Vocês sabem quem eu sou?
-- Bem, acho que você é Noite -- disse Annabeth. -- Quer dizer,
consegui reconhecê-la porque é cheia de escuridão e tudo mais,
apesar de o folheto não falar muito sobre você.
Nix piscou, atordoada.
-- Que folheto?
Annabeth tateou os bolsos.
-- Nós tínhamos um, não tínhamos?
Percy umedeceu os lábios.
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-- Aham.
Ainda estava atento aos cavalos, com a mão no punho da espada,
mas era inteligente o bastante para acompanhar o raciocínio de An-
nabeth. Agora ela tinha que torcer para não estar piorando as
coisas... se bem que, para ser sincera, não conseguia ver como as
coisas poderiam piorar.
-- Enfim -- continuou ela --, acho que o folheto não dava detalhes
porque você não era uma das atrações principais do tour. Vimos o
Rio Flegetonte, o Cócito, as arai, a clareira venenosa de Akhlys, e até
alguns titãs e gigantes aleatórios, mas Nix... humm, não, você não es-
tava no programa.
-- Atração principal? Programa?
-- É -- disse Percy, entrando na onda. -- Viemos aqui para fazer
uma excursão pelo Tártaro... tipo um destino exótico, sabe? O Mundo
Inferior todo mundo já conhece. O Monte Olimpo é uma armadilha
para turistas...
-- Deuses, e como! -- concordou Annabeth. -- Então compramos
o pacote com uma excursão ao Tártaro, mas ninguém mencionou que
íamos encontrar Nix. Ah, bem, acho que não acharam que você era
importante.
-- Não sou importante!
Nix estalou o chicote no ar de novo. Os cavalos empinaram e bat-
eram as presas prateadas. Ondas violentas de escuridão emanaram
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do abismo, deixando Annabeth apavorada, mas não podia demon-
strar o medo.
Agarrou o braço de Percy e o forçou a baixar a espada. Aquela era
uma deusa diferente de qualquer coisa que jamais tinham en-
frentado. Nix era mais velha que todos os olimpianos, titãs e gi-
gantes, mais velha até que Gaia. Não podia ser derrotada por dois
semideuses, pelo menos não pela força de dois semideuses.
Annabeth se obrigou a olhar para o rosto enorme e escuro da
deusa.
-- Bem, quantos outros semideuses que fizeram o tour vieram ver
você? -- perguntou com ar inocente.
Nix afrouxou as rédeas.
-- Nenhum. Ninguém. Isso é inaceitável!
Annabeth deu de ombros.
-- Talvez seja porque você na verdade não tenha feito nada para
ficar famosa. Quer dizer, entendo que Tártaro seja importante! Todo
esse lugar foi nomeado em sua homenagem. Ou se pudéssemos con-
hecer Dia...
-- Ah, sim -- intrometeu-se Percy. -- Dia? Seria incrível. Queria
muito vê-la e, quem sabe, pedir seu autógrafo.
-- Dia! -- Nix agarrou a lateral de sua biga. O veículo es-
tremeceu. -- Está falando de Hémera? Ela é minha filha! A Noite é
muito mais poderosa!
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-- Ah -- disse Annabeth. -- Gostei mais das arai, até mesmo de
Akhlys.
-- Elas também são minhas filhas!
Percy fingiu bocejar.
-- Você tem muitos filhos, hein?
-- Sou a mãe de todos os terrores! -- gritou Nix. -- Das próprias
Parcas! De Hécate! Da Velhice! Da Dor! Do Sono! Da Morte! E de to-
das as maldições! Estão vendo como mereço ser famosa?
LIV




ANNABETH

NIX CHICOTEOU O AR OUTRA VEZ. A escuridão ao seu redor se intensi-
ficou. Dos dois lados da deusa surgiu um exército de sombras, mais
arai de asas pretas, que Annabeth não ficou muito animada em ver,
um velho caquético que devia ser Geras, o deus da velhice, e uma
mulher mais jovem de toga preta, com olhos brilhantes e o sorriso de
um assassino em série; sem dúvida Éris, a deusa da discórdia. E out-
ras figuras continuavam a aparecer: dezenas de demônios e deuses
menores, cada um deles gerado pela Noite.
Annabeth queria correr. Estava diante de uma linhagem de cri-
aturas horríveis que podiam destruir a sanidade de qualquer um.
Mas se tentasse correr, morreria.
A seu lado, a respiração de Percy se acelerou. Apesar de sua
aparência de cadáver embaçado, Annabeth sabia que o namorado
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estava quase entrando em pânico. Ela tinha que manter a calma
pelos dois.
Sou filha de Atena, pensou. Controlo minha própria mente.
Imaginou uma espécie de moldura enquadrando a cena à sua
frente. Disse a si mesma que estava apenas vendo um filme. Um
filme assustador, verdade, mas que não podia feri-la. Estava no
controle.
-- É, nada mal -- reconheceu. -- Acho que podíamos tirar uma
foto para o álbum da viagem, mas não sei. Vocês são tão... escuros,
sabe? Mesmo que a gente usasse o flash, não sei se ia sair direito.
-- É-é... -- balbuciou Percy com certa dificuldade. -- Vocês não
são nada fotogênicos.
-- Seus turistas malditos! -- rosnou Nix. -- Como ousam não tre-
mer diante de mim? Como ousam não gemer de medo e implorar por
meu autógrafo e uma foto para seu álbum? Querem ouvir uma
história impressionante? Meu filho Hipnos uma vez fez Zeus dormir!
Quando Zeus o perseguiu pela Terra em busca de vingança, Hipnos
se refugiou em meu palácio, e Zeus não o seguiu. Até o rei do Olimpo
me teme!
-- Ah, tá. Legal. -- Annabeth se virou para Percy. -- Bem, está fic-
ando tarde. Acho que a gente podia almoçar em um dos restaurantes
recomendados pelo guia. Depois achamos as Portas da Morte.
-- Ahá! -- gritou Nix, triunfante.
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Sua prole de sombras se agitou e repetiu:
-- Ahá! Ahá!
-- Vocês querem ver as Portas da Morte? -- perguntou
Nix. -- Elas ficam no coração do Tártaro. Mortais como vocês nunca
conseguiriam chegar até elas, a não ser passando pelos salões de meu
palácio... a Mansão da Noite!
Ela gesticulou, apontando para algo atrás de si. Pairando sobre o
abismo, cerca de cem metros abaixo, havia um pórtico de mármore
negro que dava para um grande salão.
O coração de Annabeth estava tão acelerado que ela sentia sua
batida até nos dedos dos pés. Aquele era o caminho a seguir, mas a
entrada ficava muito longe, e era um salto quase impossível. Se não
conseguissem, cairiam no caos e se desintegrariam: uma morte
definitiva, sem chance de volta. Mesmo que conseguissem pular, teri-
am que passar pela deusa da Noite e suas crias mais assustadoras.
De repente, Annabeth se deu conta do que precisava acontecer.
Como tudo o que já havia feito, as possibilidades eram pequenas. De
algum modo, isso a acalmou. Mais uma ideia maluca diante da
morte?
Tudo bem, seu corpo pareceu dizer, relaxando. Estamos em ter-
ritório familiar.
Ela conseguiu fingir um bocejo de tédio.
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-- Acho que podíamos tirar uma foto, mas o grupo todo não vai
dar certo. Nix, que tal uma com seu filho favorito? Desses aí, qual é?
A prole se agitou. Dezenas de horríveis olhos brilhantes se vol-
taram para Nix.
A deusa ficou irrequieta, como se a biga estivesse esquentando
sob seus pés. Seus cavalos de sombra bufaram e bateram as patas no
vazio.
-- Meu filho favorito? Todos os meus filhos são aterrorizantes!
-- Sério? -- questionou Percy com desdém. -- Conheci as Parcas.
Conheci Tânato. Não eram assim tão assustadores. Tem que haver al-
guém aí pior que eles.
-- O mais tenebroso -- prosseguiu Annabeth. -- O mais parecido
com você.
-- Eu sou a mais tenebrosa -- sibilou Éris. -- Guerras e discórdia!
Já causei todas as formas de morte!
-- Sou ainda pior! -- rosnou Geras. -- Enfraqueço a visão e con-
fundo a mente. Todo mortal teme a velhice!
-- É, é -- disse Annabeth, tentando ignorar seus dentes que ba-
tiam sem parar. -- Não estou vendo ninguém sombrio o bastante.
Quer dizer, vocês são filhos da Noite! Quero ver trevas de verdade!
A horda de arai urrou e bateu as asas de morcego, gerando ondas
negras. Geras estendeu as mãos enrugadas e escureceu todo o
abismo. Éris exalou sombras compridas que acentuaram as trevas.
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-- Sou o mais sinistro! -- rosnou um dos demônios.
-- Não, eu sou!
-- Não! Vejam só as minhas trevas!
Nem se mil polvos gigantes expelissem nanquim ao mesmo
tempo, no fundo da fenda mais profunda e obscura do oceano, a es-
curidão poderia ser maior. Era como se Annabeth estivesse cega. A
garota agarrou a mão de Percy e tentou se acalmar.
-- Esperem! -- gritou Nix, entrando em um pânico re-
pentino. -- Não consigo ver nada.
-- É! -- gritou orgulhoso um de seus rebentos. -- Eu fiz isso!
-- Não, fui eu!
-- Idiota, fui eu!
Dezenas de vozes discutiam na escuridão.
Os cavalos relincharam, assustados.
-- Parem com isso! -- berrou Nix. -- De quem é este pé?
-- Éris está me batendo! -- gritou alguém. -- Mãe, mande ela
parar.
-- Não fui eu! -- berrou Éris. -- Ai!
O barulho de brigas e discussões aumentou. Apesar de parecer
impossível, a escuridão ficou ainda mais profunda. Os olhos de An-
nabeth estavam tão abertos que pareciam estar sendo arrancados de
suas órbitas.
Ela apertou a mão de Percy.
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-- Pronto?
-- Para quê? -- Depois de um instante, ele grunhiu, nada satis-
feito. -- Pelas cuecas de Poseidon, você não pode estar falando sério.
-- Alguém me dê um pouco luz! -- gritou Nix. -- Argh! Não posso
acreditar que disse isso!
-- É um truque! -- berrou Éris. -- Os semideuses estão fugindo.
-- Eu os peguei -- gritou uma arai.
-- Não, isso é meu pescoço! -- exclamou Geras, quase sufocando.
-- Pule! -- disse Annabeth a Percy.
Eles saltaram na escuridão na direção do portal bem, bem abaixo.
LV




ANNABETH

DEPOIS DE TER CAÍDO NO Tártaro, pular cem metros até a Mansão da
Noite devia ter passado rápido.
Em vez disso, o coração de Annabeth pareceu desacelerar. Entre
as batidas, teve tempo de escrever o próprio obituário.
Morreu Annabeth Chase, aos dezessete anos.
TUM-TUM.
(Supondo-se que seu aniversário, doze de julho, tivesse passado
enquanto estava no Tártaro, mas, na verdade, não tinha a menor
ideia.)
TUM-TUM.
Annabeth faleceu em decorrência de ferimentos graves sofridos
ao pular como uma idiota no abismo do Caos e se estatelar no hall
de entrada da mansão de Nix.
TUM-TUM.
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Deixou pai, madrasta e dois meios-irmãos que mal a
conheceram.
TUM-TUM.
Em vez de flores, favor enviar donativos para o Acampamento
Meio-Sangue, se é que Gaia já não o destruiu.
Seus pés tocaram o chão. O impacto fez suas pernas doerem, mas
cambaleou para a frente e logo estava correndo, puxando Percy atrás
de si.
Acima deles, no escuro, Nix e seus filhos ainda discutiam e
gritavam.
-- Eu os peguei! Ai! Meu Pé! Parem!
Annabeth continuou a correr. Já que não conseguiria enxergar de
qualquer jeito, fechou os olhos. Resolveu recorrer aos outros sen-
tidos: ouvir à procura do eco de espaços abertos, sentir as correntes
de ar que sopravam em seu rosto em busca de algum cheiro de
perigo, fumaça, veneno ou do fedor de demônios.
Não era a primeira vez que mergulhava na escuridão. Imaginou-
se de volta aos túneis subterrâneos de Roma, à procura de Atena
Partenos. Em comparação, sua jornada à caverna de Aracne parecia
uma viagem à Disneylândia.
Os sons das discussões dos filhos de Nix foram ficando mais dis-
tantes. Isso era bom. Percy ainda corria a seu lado, segurando sua
mão. O que também era bom.
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A distância, à frente deles, Annabeth começou a ouvir um som
pulsante como se fosse o eco das batidas de seu coração, tão amplific-
ado que fazia o chão tremer. O barulho a encheu de medo, então ima-
ginou que era o caminho certo a seguir. Correu em direção ao ruído.
À medida que as batidas ficavam mais altas, sentiu cheiro de fu-
maça e ouviu o crepitar de tochas à sua esquerda e direita. Achou que
em breve haveria luz, mas um arrepio que subia por sua nuca a aler-
tava que seria um erro abrir os olhos.
-- Não olhe -- advertiu ela a Percy.
-- Não pretendia fazer isso. Você também está sentindo, certo?
Ainda estamos na Mansão da Noite. Eu não quero vê-la.
Garoto esperto, pensou Annabeth. Costumava provocar Percy
dizendo que era burro, mas na verdade os instintos de seu namorado
em geral acertavam na mosca.
Quaisquer que fossem os horrores abrigados na Mansão da Noite,
não eram feitos para olhos mortais. Vê-los seria pior que olhar para o
rosto de Medusa. Era melhor correr no escuro.
A pulsação ficou mais alta, enviando vibrações que subiam pela
coluna de Annabeth. Parecia que alguém estava batendo no fundo do
mundo, exigindo que o deixassem entrar. Sentiu portas se abrirem
diante deles. O aroma do ar estava mais fresco, ou pelo menos não
tão carregado de enxofre. Havia outro ruído, também, mais próximo
do que a pulsação profunda... o som de água corrente.
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O coração de Annabeth se acelerou. Sabia que a saída estava por
perto. Se conseguissem sair da Mansão da Noite, talvez deixassem
aquela família de demônios sombrios para trás.
Começou a correr mais rápido, o que teria significado sua morte
se Percy não a tivesse detido.
LVI




ANNABETH

-- ANNABETH! -- PERCY A PUXOU PARA trás no exato instante em que
ela alcançou a beira de um penhasco.
Quase despencou para o interior de sabe-se lá o quê, mas Percy a
segurou e envolveu em seus braços.
-- Está tudo bem -- tranquilizou-a.
Annabeth pressionou o rosto contra o peito dele e manteve os ol-
hos bem fechados. Tremia, mas não de medo. O abraço de Percy era
tão quente e reconfortante que queria ficar ali para sempre, segura e
protegida... mas era apenas uma ilusão. Não podia se dar ao luxo de
relaxar. Não podia se apoiar em Percy mais do que o necessário. Ele
também precisava dela.
-- Obrigada... -- Ela se soltou de seus braços com del-
icadeza. -- Sabe dizer o que há à nossa frente?
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-- Água -- disse ele. -- Ainda não estou olhando. Acho que ainda
não é seguro.
-- Concordo.
-- Posso sentir um rio... ou talvez um fosso. Está no caminho e
corre para a direita em um canal aberto na rocha. A outra margem
fica a uns cinco metros de distância.
Annabeth se repreendeu mentalmente. Ouvira o barulho de água,
mas nem imaginou que podia estar correndo direto para ela.
-- Tem alguma ponte, ou...
-- Acho que não. E há algo estranho com a água. Escute.
Annabeth se concentrou. De dentro da água, milhares de vozes
gritavam, gemendo em agonia e suplicando por misericórdia.
Ajudem!, gemiam. Foi um acidente!
A dor!, uivavam. Façam com que pare!
Annabeth não precisava olhar para saber como devia ser o rio: um
córrego negro e salgado de almas torturadas, arrastadas cada vez
mais para as profundezas do Tártaro.
-- O Rio Aqueronte -- supôs. -- O quinto rio do Mundo Inferior.
-- Eu preferia o Flegetonte -- murmurou Percy.
-- É o Rio da Dor. O castigo final para as almas dos condenados,
especialmente os assassinos.
Assassinos!, lamentou o rio. Isso, iguais a vocês!
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Juntem-se, murmurou outra voz. Vocês não são melhores que
nós.
Inúmeras imagens dos monstros que Annabeth havia matado ao
longo dos anos surgiram em sua cabeça. Aquilo não era assassinato,
protestou ela. Eu estava me defendendo!
O rio mudou de curso em sua mente, mostrando Zoe Doce-
Amarga, que tinha sido morta no Monte Tamalpais porque fora res-
gatar Annabeth dos titãs.
Viu a irmã de Nico morrer quando Talos, o gigante de metal, des-
abou sobre Bianca enquanto ela também tentava salvá-la.
Michael Yew e Silena Beauregard... que morreram na Batalha de
Manhattan.
Você podia ter evitado isso, disse o rio a Annabeth. Devia ter
pensado em alguma coisa.
O mais doloroso de todos: Luke Castellan. Annabeth se lembrava
do sangue de Luke em sua faca depois que ele se sacrificou para im-
pedir que Cronos destruísse o Olimpo.
O sangue dele está em suas mãos!, gemeu o rio. Devia haver
outra maneira!
Annabeth tinha remoído essa ideia muitas vezes. Tentava se con-
vencer de que a morte de Luke não tinha sido culpa dela. O garoto
tinha escolhido seu destino. Mesmo assim... não sabia se a alma dele
encontrara paz no Mundo Inferior, se ele tinha renascido, ou se havia
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sido jogado no Tártaro por causa de seus crimes. O semideus podia
ser uma das vozes torturadas que passavam por eles naquele
instante.
Você o assassinou!, gritou o rio. Pule para cá e compartilhe a
punição dele!
Percy segurou o braço dela.
-- Não escute.
-- Mas...
-- Eu sei. -- A voz dele quase falhou. -- Estão me dizendo a
mesma coisa. Eu acho... acho que esse fosso deve ficar nos limites do
território de Noite. Se conseguirmos atravessar, acho que vamos ficar
bem. Mas vamos ter que pular.
-- Mas você disse que eram uns cinco metros!
-- É. Você vai ter que confiar em mim. Segure bem em meu
pescoço com os dois braços.
-- Como você vai conseguir...
-- Ali! -- gritou uma voz às costas deles. -- Matem os turistas
ingratos!
Tinham sido encontrados pelos filhos de Nix. Annabeth imediata-
mente agarrou o pescoço de Percy.
-- Vai!
De olhos fechados, só podia imaginar como ele conseguira. Talvez
tivesse usado a força do rio de alguma forma. Talvez estivesse apenas
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apavorado e sob o efeito da adrenalina. Percy saltou mais alto do que
Annabeth achava que fosse possível. Passaram por cima do rio en-
quanto suas águas se agitavam e emitiam lamentos, molhando os
tornozelos dela, que arderam com a água salgada.
E então... PLUNC. Estavam em terra firme de novo.
-- Pode abrir os olhos -- disse Percy, ofegante. -- Mas não vai
gostar do que vai ver.
Annabeth piscou. Depois da escuridão de Nix, até a penumbra do
halo vermelho do Tártaro parecia cegante.
Diante deles se estendia um vale grande o bastante para abrigar a
Baía de São Francisco. O barulho ritmado vinha de todos os lugares,
como se trovejasse sob a terra. Sob as nuvens venenosas, o terreno
aberto tinha um brilho roxo, com cicatrizes escuras vermelhas e
azuis.
-- Parece... -- Annabeth tentou conter a repulsa. -- Parece um
coração gigante.
-- O coração de Tártaro -- murmurou Percy.
No centro do vale havia um aglomerado irregular de incontáveis
pontos pretos. Estavam tão longe que Annabeth demorou um pouco
para se dar conta de que estava olhando para um exército de mil-
hares, talvez dezenas de milhares, de monstros agrupados em torno
de um ponto escuro central. Não conseguia distinguir bem por conta
da distância, mas não tinha dúvidas do que era o ponto. Mesmo da
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extremidade do vale, Annabeth podia sentir seu poder atraindo a
alma dela.
-- As Portas da Morte.
-- É. -- A voz de Percy estava rouca.
Ele ainda estava com o aspecto pálido e ressecado de um
cadáver... o que significava que parecia tão bem quanto Annabeth se
sentia.
A garota percebeu que havia se esquecido completamente de seus
perseguidores.
-- O que aconteceu com Nix?
Ela se virou. De algum modo, eles haviam aterrissado a centenas
de metros das margens do Aqueronte, que corria por um leito re-
cortado em colinas vulcânicas negras. Depois disso, não havia nada
além de escuridão.
Não havia sinal de ninguém vindo atrás deles. Aparentemente, até
os seguidores de Noite não gostavam de cruzar o Aqueronte.
Quando ia perguntar a Percy como ele tinha conseguido saltar tão
longe, ouviu o ruído de uma pedra caindo na colina à sua esquerda.
Ela sacou a espada de osso de drakon. Percy ergueu Contracorrente.
Cabelos brancos reluzentes surgiram acima da crista do morro e,
em seguida, avistaram um rosto sorridente e familiar com olhos
prateados.
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-- Bob? -- Annabeth ficou tão feliz que começou a pular. -- Ah,
meus deuses!
-- Amigos!
O titã caminhou na direção deles. As cerdas de sua vassoura es-
tavam queimadas. O uniforme de zelador estava rasgado com marcas
de garras, mas ele parecia contentíssimo. No ombro, o gatinho Bob
Pequeno ronronava quase tão alto quanto o coração pulsante de
Tártaro.
-- Achei vocês! -- Bob envolveu os dois em um abraço de quebrar
ossos. -- Vocês parecem gente morta enfumaçada. Isso é bom.
-- Uff -- disse Percy, sem ar. -- Como você chegou aqui? Pela
Mansão da Noite?
-- Não, não. -- Bob sacudiu a cabeça com firmeza. -- Aquele lugar
é muito assustador. Outro caminho... só para titãs e coisas assim.
-- Deixe-me adivinhar -- disse Annabeth. -- Você foi pelos lados.
Bob coçou o queixo, claramente sem palavras.
-- Humm... não, não pelos lados. Mais... pela diagonal.
Annabeth riu. Lá estavam eles no coração do Tártaro, diante de
um exército inacreditável. Tinha que aproveitar todo o conforto que
pudesse conseguir. Estava ridiculamente feliz por ter novamente a
companhia do titã Bob.
Ela beijou o nariz do imortal, o que o fez piscar.
-- Ficamos juntos agora? -- perguntou ele.
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-- Claro -- concordou Annabeth. -- É hora de ver se a Névoa da
Morte funciona.
-- E se não funcionar... -- Percy não terminou a frase.
Não fazia sentido levantar dúvidas. Estavam prestes a passar no
meio de um exército inimigo. Se fossem vistos, morreriam.
Apesar disso, Annabeth conseguiu sorrir. Seu objetivo estava à
vista. Tinham um titã com uma vassoura e um gatinho muito barul-
hento ao seu lado. Isso devia servir para alguma coisa.
-- Portas da Morte -- disse ela. -- Aí vamos nós.
LVII




JASON

JASON NÃO SABIA BEM O que esperar: tempestade ou fogo.
Enquanto aguardava por sua audiência diária com o senhor do
Vento Sul, tentou decidir qual das personalidades do deus, a romana
ou a grega, era a pior. Mas após cinco dias no palácio, Jason estava
certo de apenas uma coisa: era pouco provável que ele e sua tripu-
lação saíssem vivos dali.
Encostou-se no guarda-corpo da varanda. O ar estava tão quente
e seco que parecia sugar a umidade de seus pulmões. Durante a úl-
tima semana, sua pele escurecera e o cabelo ficara branco como
palha de milho. Sempre que se olhava no espelho, ele se assustava
com seu olhar selvagem e vazio, como se tivesse ficado cego ao vagar
a esmo em um deserto.
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Trinta metros abaixo, o mar da baía brilhava junto à praia de
areia vermelha. Estavam em algum lugar da costa norte da África. E
essa foi a única informação que os espíritos do vento deram a ele.
De onde Jason estava, o palácio se estendia para ambos os lados,
uma colmeia de salas, túneis, varandas, colunas e quartos cavernosos
esculpidos nos penhascos de arenito, tudo projetado para que o vento
soprasse através deles e fizesse o maior barulho possível. Os con-
stantes sons de órgão lembraram a Jason o covil flutuante de Éolo,
no Colorado, exceto que aqui os ventos pareciam não ter pressa.
O que era parte do problema.
Em seus melhores dias, os venti do sul eram lentos e preguiçosos.
Nos piores, eram tempestuosos e raivosos. A princípio deram boas
vindas ao Argo II, já que qualquer inimigo de Bóreas era amigo do
Vento Sul, mas pareciam ter se esquecido de que os semideuses eram
seus hóspedes. Os venti rapidamente perderam o interesse em ajudar
a consertar o navio. E o humor de seu rei piorava a cada dia.
No cais, os amigos de Jason trabalhavam no Argo II. A vela prin-
cipal fora reparada, o cordame, substituído. Naquele momento, eles
remendavam os remos. Sem Leo, ninguém sabia como consertar as
partes mais complicadas do navio, mesmo com a ajuda de Buford, a
mesa, e Festus (que agora estava permanentemente ligado graças ao
charme de Piper -- e ninguém entendia isso). Mas continuavam
tentando.
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Hazel e Frank estavam ao leme, mexendo nos controles. Piper
transmitia as ordens deles para o treinador Hedge, que estava pen-
durado na lateral do navio, martelando as mossas nos remos. Hedge
era a pessoa certa para martelar coisas.
Não pareciam estar fazendo muito progresso, mas, considerando
o que tinham passado, era um milagre que o navio ainda estivesse
inteiro.
Jason estremeceu ao se lembrar do ataque de Quione. Ele ficara
impotente -- congelado não uma, mas duas vezes, enquanto Leo era
lançado para o céu e Piper foi obrigada a salvar a todos sozinha.
Graças aos deuses eles tinham Piper. Ela se considerava um fra-
casso por não ter evitado a explosão da bomba de vento, mas a ver-
dade é que salvara toda a tripulação de virar esculturas de gelo em
Quebec.
Ela também conseguiu direcionar a explosão da esfera de gelo, de
modo que, embora o navio tivesse sido arremessado até o meio do
Mediterrâneo, não sofrera grandes danos.
Lá do cais, Hedge gritou:
-- Tentem agora!
Hazel e Frank puxaram algumas alavancas. Os remos a bombordo
ficaram enlouquecidos, subindo e descendo como se estivesse
fazendo uma ola. O treinador Hedge tentou se esquivar, mas um
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remo o atingiu no traseiro e o lançou para o alto. Ele caiu gritando
nas águas da baía.
Jason suspirou. Naquele ritmo, jamais seriam capazes de nave-
gar, mesmo que os venti do sul permitissem. Em algum lugar ao
norte, Reyna estava voando para Épiro, supondo-se que ela tivesse
encontrado seu bilhete no palácio de Diocleciano. Leo estava perdido
e em perigo. Percy e Annabeth... bem, na melhor das hipóteses ainda
estavam vivos, tentando chegar às Portas da Morte. Jason não podia
deixá-los na mão.
Um farfalhar o fez se virar. Nico di Angelo estava à sombra da
coluna mais próxima. Ele tirara a jaqueta. Agora vestia apenas uma
camiseta e um jeans preto. Trazia sua espada e o cetro de Diocleciano
pendurados no cinto.
Os vários dias sob o sol quente não bronzearam a pele dele. Se
muito, parecia ainda mais pálida. O cabelo escuro caía em seus olhos.
O rosto ainda estava magro, mas ele definitivamente parecia estar em
melhor forma do que quando deixaram a Croácia. Nico recuperara
peso suficiente para não parecer desnutrido. Os músculos de seus
braços estavam surpreendentemente firmes, como se tivesse passado
a semana anterior treinando com a espada. Jason achava que ele
vinha praticando escondido como invocar espíritos com o cetro de
Diocleciano para, em seguida, lutar com eles. Após a expedição em
Split, nada o surpreenderia.
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-- Alguma palavra do rei? -- perguntou Nico.
Jason balançou a cabeça.
-- A cada dia ele me recebe mais tarde.
-- Precisamos ir embora -- disse Nico. -- Logo.
Jason tinha a mesma sensação, mas ouvir Nico dizendo aquilo o
deixou ainda mais tenso.
-- Está sentindo alguma coisa?
-- Percy está perto das Portas -- respondeu. -- Ele precisará de
nós para atravessá-las com vida.
Jason percebeu que ele não mencionara Annabeth, mas decidiu
não comentar.
-- Tudo bem -- falou. -- Mas se não conseguirmos consertar o
navio...
-- Prometi levá-los à Casa de Hades -- disse Nico. -- De um jeito
ou de outro, é o que farei.
-- Você não pode viajar nas sombras com todos nós. E precisam-
os de todos nós para chegar às Portas da Morte.
A esfera no topo do cetro de Diocleciano brilhou na cor roxa. Na
última semana, ela parecia estar sintonizada com o humor de Nico di
Angelo. Jason não tinha certeza se aquilo era uma coisa boa.
-- Então você precisa convencer o rei do Vento Sul a ajudar. -- A
voz de Nico fervia de raiva. -- Eu não vim até aqui e sofri tantas
humilhações...
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Jason teve que se forçar a não levar a mão à espada. Sempre que
Nico ficava com raiva, todos os instintos de Jason berravam: Perigo!
-- Veja, Nico -- disse ele. -- Eu estou aqui se você quiser con-
versar sobre, você sabe, o que aconteceu na Croácia. Entendo como é
difícil...
-- Você não entende nada.
-- Ninguém vai julgá-lo.
A boca de Nico se contorceu em um sorriso de escárnio.
-- Sério? Seria uma novidade. Sou o filho de Hades, Jason. Pela
forma como as pessoas me tratam, parece que ando por aí coberto de
sangue ou água de esgoto. Não pertenço a lugar algum. Nem mesmo
sou deste século. Mas parece que isso não é suficiente para me ex-
cluir. Preciso ser... ser...
-- Cara, não é como se você tivesse escolha! É apenas quem você
é.
-- Apenas quem eu sou... -- A varanda estremeceu. Padrões
formaram-se no chão de pedra, como ossos subindo à super-
fície. -- Para você é fácil dizer. O menino de ouro, o filho de Júpiter.
A única pessoa que me aceitou foi Bianca, e ela morreu! Não escolhi
nada disso. Meu pai, o que sinto...
Jason tentou pensar em algo para dizer. Ele queria ser amigo de
Nico. Sabia que era a única maneira de ajudá-lo. Mas Nico não facil-
itava as coisas.
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Ele ergueu as mãos em submissão.
-- É, está bem. Mas, Nico, é você quem escolhe como viver a sua
vida. Você quer confiar em alguém? Então arrisque acreditar que sou
seu amigo de verdade e que vou aceitá-lo. É melhor do que se
esconder.
O piso entre os dois rachou. A fenda sibilou. O ar ao redor de Nico
tremulou com luz espectral.
-- Esconder? -- A voz de Nico soava mortalmente calma.
Os dedos de Jason coçavam para sacar a espada. Ele conhecera
muitos semideuses assustadores, mas estava começando a perceber
que Nico di Angelo -- pálido e magro como era -- podia ser mais po-
deroso do que imaginara.
Contudo, não desviou o olhar do de Nico.
-- Sim, se esconder. Você fugiu dos dois acampamentos. Está com
tanto medo de ser rejeitado que nem mesmo tenta. Talvez seja hora
de parar de se esconder nas sombras.
No momento em que a tensão tornou-se insuportável, Nico desvi-
ou os olhos. A fissura se fechou no piso da varanda. A luz fantas-
magórica desapareceu.
-- Honrarei minha promessa -- disse Nico, não mais alto do que
um sussurro. -- Vou levá-los a Épiro. Ajudarei vocês a fechar as
Portas da Morte. E só. Então vou embora... para sempre.
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Atrás deles, as portas da sala do trono se abriram com uma rajada
de ar escaldante.
Uma voz sem corpo disse: O sr. Austro o receberá agora.
Por mais que temesse aquela audiência, Jason sentiu-se aliviado.
Naquele momento, discutir com um deus do vento caduco parecia
mais seguro do que fazer amizade com um filho de Hades furioso. Ele
virou-se para se despedir de Nico, mas o outro já
desaparecera -- misturando-se novamente à escuridão.
LVIII




JASON

ENTÃO ERA DIA DE TEMPESTADE. Austro, a versão romana do Vento
Sul, estava dando audiência.
Nos dois dias anteriores, Jason lidara com Noto. Embora a versão
grega do deus fosse inflamada e ficasse com raiva rapidamente, ao
menos era rápida. Austro... bem, nem tanto.
Colunas de mármore branco e vermelho contornavam a sala do
trono. O piso áspero de arenito soltava fumaça sob os sapatos de
Jason. Vapor pairava no ar, como nas termas do Acampamento
Júpiter, só que elas normalmente não tinham tempestades estalando
no teto, iluminando o ambiente com relâmpagos desorientadores.
Venti do sul rodopiavam pelo salão em nuvens de poeira ver-
melha e ar superaquecido. Jason teve o cuidado de não tocar em nen-
hum. Em seu primeiro dia ali, acidentalmente roçara a mão em um
deles e ficara com tantas bolhas que seus dedos pareciam tentáculos.
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Nos fundos da sala ficava o trono mais estranho que Jason já
vira -- feito de partes iguais de fogo e água. O estrado era uma
fogueira. Chamas e fumaça se misturavam para formar o assento. O
encosto era uma agitada nuvem de tempestade. Os braços do trono
chiavam nos pontos em que a água se encontrava com o fogo. Não
parecia muito confortável, mas Austro estava relaxado como se est-
ivesse pronto para uma tarde tranquila assistindo a uma partida de
futebol.
De pé, o deus teria cerca de três metros de altura. Uma coroa de
vapor envolvia seu cabelo branco e desgrenhado. A barba era feita de
nuvens que constantemente relampejavam e derramavam chuva no
peito do deus, encharcando sua toga cor de areia. Jason se perguntou
se era possível fazer uma barba de nuvem de tempestade. Imaginou
que deveria ser irritante chover sobre si mesmo o tempo todo, mas
Austro não parecia se importar. Lembrava a Jason um Papai Noel en-
charcado, embora mais preguiçoso do que alegre.
-- Então -- a voz do deus ribombou como uma frente fria se
aproximando. -- O filho de Júpiter retorna.
Austro fez parecer que Jason estava atrasado. Jason sentiu-se
tentado a lembrar àquele estúpido deus do vento que ele passara
várias horas por dia lá fora esperando ser chamado, mas apenas fez
uma reverência.
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-- Meu senhor, já recebeu alguma notícia de meu
amigo? -- perguntou.
-- Amigo?
-- Leo Valdez. -- Jason tentou ser paciente. -- Aquele que foi
levado pelos ventos.
-- Ah... sim. Ou melhor, não. Não tivemos nenhuma notícia. Ele
não foi levado por meus ventos. Sem dúvida, isso foi trabalho de
Bóreas ou de suas crias.
-- Hã, sim. Já sabíamos disso.
-- Este é o único motivo de tê-los hospedado aqui, é claro. -- As
sobrancelhas de Austro ergueram-se em direção à coroa de va-
por. -- Bóreas deve ser combatido! Os ventos do norte devem ser
repelidos!
-- Sim, meu senhor. Mas, para combater Bóreas, precisamos tirar
nosso navio do porto.
-- Navio no porto! -- O deus se inclinou para trás e riu, a chuva
pingando de sua barba. -- Sabe o que aconteceu na última vez que
navios de mortais entraram no meu porto? Foi um rei da Líbia...
Psilo. Ele culpava a mim pelos ventos escaldantes que queimavam
suas plantações. Dá para acreditar?
Jason trincou os dentes. Ele sabia que Austro não devia ser apres-
sado. Em sua forma de tempestade, ele era lento, quente e
esporádico.
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-- E você queimou essas plantações, meu senhor?
-- Óbvio! -- Austro sorriu, bem-humorado. -- Mas o que Psilo es-
perava com plantações no limiar do Saara? O idiota lançou toda a sua
frota contra mim. Tinha a intenção de destruir minha fortaleza para
que o vento sul nunca pudesse soprar outra vez. Eu destruí a frota, é
claro.
-- É claro.
Austro estreitou os olhos.
-- Você não veio com Psilo, veio?
-- Não, sr. Austro. Sou Jason Grace, filho de...
-- Júpiter! Sim, claro. Eu gosto de filhos de Júpiter. Mas por que
seu navio ainda está no meu porto?
Jason conteve um suspiro.
-- Não temos sua permissão para partir, meu senhor. Além disso,
o navio está danificado. Precisamos de nosso mecânico, Leo Valdez,
para consertar o motor, a menos que o senhor conheça outra
maneira.
-- Hum... -- Austro ergueu os dedos e um redemoinho de poeira
se formou entre eles, como uma batuta. -- Sabe, as pessoas me acus-
am de ser inconstante. Às vezes, sou um vento escaldante, destruidor
de plantações, o siroco da África! Em outras, sou calmo, anunciando
as chuvas quentes de verão e os frescos nevoeiros do sul do Mediter-
râneo. E fora de temporada, tenho um lugar encantador em Cancún!
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De qualquer forma, nos tempos antigos, os mortais tanto me temiam
quanto me amavam. Para um deus, a imprevisibilidade pode ser uma
força.
-- Então o senhor deve ser muito forte -- disse Jason.
-- Obrigado! Sim! Mas o mesmo não se aplica aos semi-
deuses. -- Austro se inclinou para a frente, perto o suficiente para
que Jason pudesse sentir o cheiro de terra molhada e praias de areia
quente. -- Você me lembra de meus próprios filhos, Jason Grace.
Sempre vagando de um lugar a outro. Indeciso. Mudando a cada dia.
Se pudesse escolher a direção do vento, para onde sopraria?
O suor escorria pelas costas de Jason.
-- Perdão?
-- Você diz que precisa de um navegador. Que precisa da minha
permissão. Eu digo que você não precisa de nada disso. É hora de to-
mar uma decisão. Um vento que sopra à toa não serve para nada.
-- Eu não... Eu não estou entendendo.
Mas enquanto dizia isso, ele entendeu. Nico falara sobre não per-
tencer a lugar algum. Ao menos Nico estava livre de vínculos. Ele po-
deria ir para onde quisesse.
Jason estava tentando decidir a qual lugar pertencia durante
meses. Ele sempre se irritara com as tradições do Acampamento
Júpiter, os jogos de poder e a luta interna. Mas Reyna era uma boa
pessoa. Ela precisava de sua ajuda. Se ele desse as costas para ela...
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alguém como Octavian poderia assumir e destruir tudo o que Jason
amava em Nova Roma. Poderia ser tão egoísta a ponto de partir? Só
de pensar nisso sentia-se esmagado pela culpa.
Contudo, no fundo de seu coração, ele queria ficar no
Acampamento Meio-Sangue. Os meses que passara ali com Piper e
Leo lhe pareceram mais gratificantes, melhores do que todos os anos
no Acampamento Júpiter. Além disso, no Acampamento Meio-
Sangue havia ao menos uma chance de ele finalmente conhecer o pai.
Os deuses quase nunca apareciam no Acampamento Júpiter para dar
um oi.
Jason inspirou profundamente.
-- Sim. Sei qual direção desejo seguir.
-- Ótimo! E o que mais?
-- Hã, ainda precisamos consertar o navio. Existe alguma...?
Austro ergueu o dedo indicador.
-- Ainda esperando a orientação dos senhores do vento? Um filho
de Júpiter deveria ser mais esperto.
Jason hesitou.
-- Iremos embora, sr. Austro. Hoje.
O deus do vento sorriu e abriu os braços.
-- Finalmente anunciou seu propósito! Então têm minha permis-
são para partir, embora não precisem dela. Como navegarão sem o
seu mecânico, sem os motores consertados?
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Jason sentiu os ventos do sul sibilando ao seu redor, relinchando
em desafio como garanhões teimosos testando sua vontade.
Durante toda a semana ele esperara que Austro decidisse ajudá-
los. Durante meses se preocupara com suas obrigações com o Acam-
pamento Júpiter, esperando que seu caminho se tornasse mais claro.
Agora percebia que devia simplesmente fazer o que quisesse. Ele
tinha que controlar os ventos, e não o contrário.
-- Você vai nos ajudar -- disse Jason. -- Seus venti podem assum-
ir a forma de cavalos. Você nos dará uma tropa para puxar o Argo II.
Eles nos levarão até Leo.
-- Maravilhoso! -- exclamou Austro, sua barba carregada de elet-
ricidade. -- Agora... você pode cumprir o que suas palavras corajosas
prometem? Pode controlar o que deseja, ou será feito em
pedacinhos?
O deus bateu palmas. Os ventos rodopiaram ao redor de seu trono
e assumiram a forma de cavalos. Não eram escuros e frios como o
amigo de Jason, Tempestade. Os cavalos do Vento Sul eram feitos de
fogo, areia e água fervente. Quatro passaram perto do garoto, o calor
chamuscando os pelos de seus braços. Galoparam em torno das
colunas de mármore, cuspindo chamas, relinchando com o som das
tempestades de areia. Quanto mais corriam, mais selvagens se tor-
navam. Eles começaram a encarar Jason.
Austro coçou a barba chuvosa.
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-- Você sabe por que os venti podem aparecer como cavalos, meu
rapaz? De vez em quando nós, deuses do vento, viajamos pela terra
na forma de equinos. Em algumas ocasiões, já fomos conhecidos por
termos gerado os cavalos mais rápidos de todos.
-- Obrigado -- murmurou Jason, embora seus dentes batessem de
medo. -- Muita informação.
Um dos venti atacou Jason. Ele desviou para o lado, suas roupas
fumegando com a proximidade do cavalo.
-- Às vezes -- continuou Austro alegremente --, mortais recon-
hecem nosso sangue divino. Dizem: Este cavalo corre como o vento.
E por um bom motivo. Assim como os garanhões mais rápidos, os
venti são nossos filhos!
Os cavalos de vento começaram a circular Jason.
-- Como meu amigo, Tempestade -- arriscou ele.
-- Ah, bem... -- Austro fez uma careta. -- Infelizmente ele é um
filho de Bóreas. Como você conseguiu domá-lo, jamais saberei. Mas
estes são meus filhos, uma bela tropa de ventos do sul. Controle-os,
Jason Grace, e eles tirarão seu navio do porto.
Controlá-los, pensou Jason. Sei.
Os venti corriam para todos os lados, frenéticos. Como seu
mestre, o Vento Sul, estavam em conflito -- metade um siroco quente
e seco, metade um tempestuoso cúmulo nimbus.
Preciso de velocidade, pensou Jason, preciso de propósito.
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Ele se concentrou em Noto, a versão grega do Vento Sul -- escald-
ante, mas muito rápido.
Naquele momento, ele escolheu o grego. Apostou no
Acampamento Meio-Sangue, e os cavalos mudaram. As nuvens de
tempestade dentro deles se dissiparam, restando apenas poeira ver-
melha e ondas de vapor, como miragens no Saara.
-- Muito bem -- disse o deus.
Noto estava sentado no trono agora, um velho de pele bronzeada
usando uma chiton grega de fogo e uma coroa de cevada seca e fu-
megante na cabeça.
-- O que está esperando? -- perguntou.
Jason voltou-se para os cavalos de vento e fogo. Subitamente, não
tinha mais medo deles. Estendeu a mão. Um redemoinho de poeira
disparou em direção ao cavalo mais próximo. Um laço -- uma corda
de vento, mais poderosa do que qualquer tornado -- enrolou-se em
torno do pescoço do animal. O vento formou um arreio e o cavalo
parou.
Jason invocou outra corda de vento. Ele laçou um segundo cavalo,
submetendo-o à sua vontade. Em menos de um minuto, tinha amar-
rado os quatro venti. Ele os refreou. Ainda relinchavam e resistiam,
mas não podiam romper as cordas. O garoto parecia estar empin-
ando quatro pipas em um dia de vento forte -- difícil, sim, mas não
impossível.
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-- Muito bem, Jason Grace -- disse Noto. -- Você é um filho de
Júpiter, mas mesmo assim escolheu o próprio caminho, como todos
os grandes semideuses fizeram antes de você. Não pode controlar a
sua ascendência, mas pode escolher sua herança. Agora vá. Amarre
seus cavalos à proa e direcione-os para Malta.
-- Malta? -- Jason tentou se concentrar, mas o calor dos cavalos o
estava deixando tonto. Ele não sabia nada sobre Malta, apenas uma
vaga história sobre um falcão maltês. Será que o malte foi inventado
lá?
-- Assim que chegarem à cidade de Valetta -- disse Noto --, não
precisarão mais destes cavalos.
-- Quer dizer que... vamos encontrar Leo?
O deus tremulou, lentamente se dissipando em ondas de calor.
-- Seu destino está mais claro, Jason Grace. Quando tiver que
escolher novamente entre tempestade ou fogo, lembre-se de mim. E
não entre em pânico.
As portas da sala do trono se abriram. Ao sentirem o cheiro da
liberdade, os cavalos dispararam em direção à saída.
LIX




JASON

AOS DEZESSEIS ANOS, A MAIORIA dos jovens se preocupa com a prova
de baliza, tirar a carteira de motorista e ter dinheiro para comprar
um carro.
Jason se preocupava em controlar uma tropa de cavalos de fogo
com cordas de vento.
Depois de se certificar que seus amigos estavam a bordo e em se-
gurança sob o convés, ele atou os venti à proa do Argo II (coisa que
Festus não gostou nem um pouco), montou na figura de proa e
gritou:
-- Upa, lelê!
Os venti dispararam pelas ondas. Não galopavam tão rápido
quanto o cavalo de Hazel, Arion, mas eram muito mais quentes.
Levantavam uma nuvem de vapor que tornava quase impossível que
ele enxergasse para onde iam. O navio disparou para fora da baía.
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Em pouco tempo, a África era apenas uma linha nebulosa no hori-
zonte atrás deles.
Manter as cordas de vento exigia toda a concentração de Jason.
Os cavalos faziam força para se libertarem. Apenas a determinação
dele os mantinha sob controle.
Malta, ordenou. Para Malta.
Quando finalmente viu terra ao longe -- uma ilha montanhosa
coberta de pequenas construções de pedra --, Jason estava enchar-
cado de suor. Seus braços pareciam feitos de borracha, como se
tivesse sustentado um haltere sem dobrar o cotovelo por muito
tempo.
Ele esperava que tivessem chegado ao lugar certo porque não
conseguiria manter aqueles cavalos juntos por mais tempo. Jason
soltou as rédeas de vento. Os venti se dissolveram em partículas de
areia e vapor.
Exausto, ele desceu da proa e se apoiou no pescoço de Festus. O
dragão virou-se e recostou a cabeça no ombro dele.
-- Obrigado, cara -- disse Jason. -- Dia difícil, hein?
Atrás dele, as tábuas do convés rangeram.
-- Jason -- chamou Piper. -- Ah, deuses, seus braços...
Ele não percebera, mas sua pele estava repleta de bolhas.
Piper pegou um pedaço de ambrosia.
-- Coma isso.
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Ele mastigou. Sua boca se encheu com o sabor de brownies
recém-assados -- seu doce favorito nas padarias de Nova Roma. As
bolhas desapareceram de seus braços. Sua força voltou, mas o
brownie de ambrosia parecia mais amargo do que o habitual, como
se soubesse de alguma forma que Jason estava dando as costas para
o Acampamento Júpiter. Aquele gosto não o fazia mais se lembrar de
casa.
-- Obrigado, Pipes -- murmurou ele. -- Por quanto tempo
estive...?
-- Umas seis horas.
Uau, pensou Jason. Não é de se admirar que estivesse dolorido e
com fome.
-- E os outros?
-- Estão bem. Cansados de ficarem parados. Posso dizer que é se-
guro subir ao convés?
Jason lambeu os lábios secos. Apesar da ambrosia, sentia-se
trêmulo. Ele não queria que os outros o vissem assim.
-- Me dê um segundo para recuperar o fôlego.
Piper se encostou ao lado dele. Estava usando uma regata verde,
short bege e botas de caminhada, parecia pronta para escalar uma
montanha e então encarar um exército quando chegasse lá em cima.
Trazia sua adaga presa ao cinto e a cornucópia pendurada no ombro.
Ela tinha decidido ficar com a espada dentada de bronze que tirara
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de Zetes, o boreada, que era apenas um pouco menos intimidadora
do que um rifle.
Durante o tempo em que ficara no palácio de Austro, Jason obser-
vara Piper e Hazel treinando com as espadas durante horas, algo por
que Piper jamais se interessara anteriormente. Desde seu encontro
com Quione, ela parecia mais nervosa, tensa como uma catapulta ar-
mada, como se estivesse determinada a nunca mais ser pega de
surpresa.
Jason entendia o sentimento, mas tinha medo de que ela estivesse
sendo muito severa consigo mesma. Ninguém podia estar pronto
para qualquer situação o tempo todo. Ele devia saber: passara a úl-
tima batalha como um tapete congelado no chão.
Jason devia estar encarando Piper, porque ela acabou lançando-
lhe um sorriso compreensivo.
-- Ei, eu estou bem. Nós estamos bem.
Ela ficou na ponta dos pés e o beijou, e foi tão bom quanto a am-
brosia. Seus olhos tinham tantas tonalidades que Jason poderia ficar
olhando para eles o dia inteiro, da mesma forma que as pessoas as-
sistem às auroras boreais.
-- Eu tenho sorte de ter você -- disse ele.
-- Sim, você tem. -- Ela empurrou seu peito com del-
icadeza. -- Agora, como é que vamos levar este navio até o cais?
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Jason franziu a testa e olhou para a ilha. Ainda estavam a cerca de
um quilômetro de distância. Ele não fazia ideia se conseguiriam ligar
os motores ou içar as velas...
Felizmente, Festus estava ouvindo. Ele olhou para a frente e cus-
piu fogo. O motor do navio roncou e vibrou. Parecia uma enorme
motocicleta com a corrente partida, mas o barco começou a se mover.
Lentamente, o Argo II seguia em direção ao litoral.
Piper deu um tapinha no pescoço de Festus.
-- Bom menino.
Os olhos de rubi do dragão brilharam como se ele estivesse satis-
feito consigo mesmo.
-- Festus parece diferente depois que você o ligou -- disse
Jason. -- Mais... vivo.
-- Do modo como ele deveria ser. -- Piper sorriu. -- Acho que to-
dos nós precisamos ser despertados por alguém que nos ama de vez
em quando.
Perto dela, Jason se sentia tão bem que quase podia imaginar seu
futuro juntos no Acampamento Meio-Sangue quando a guerra
terminasse -- supondo-se que fossem sobreviver e que ainda
houvesse um acampamento para onde voltar.
Quando tiver que escolher novamente entre tempestade ou fogo,
dissera Noto, lembre-se de mim. E não entre em pânico.
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Quanto mais se aproximavam da Grécia, mais nervoso Jason
ficava. Estava começando a pensar que Piper estava certa sobre o
trecho da tempestade ou fogo da profecia: um deles, Jason ou Leo,
não voltaria vivo daquela viagem.
E era por isso que tinham que encontrar Leo. Por mais que dese-
jasse viver, Jason não poderia deixar seu amigo morrer por causa
dele. Não poderia viver com a culpa.
É claro que esperava estar enganado. Ele queria que ambos
saíssem daquela missão inteiros. Mas tinha que estar preparado. Ele
protegeria seus amigos e deteria Gaia -- a qualquer custo.
Não entre em pânico.
Sim. Fácil para um deus do vento imortal falar.
À medida que a ilha se aproximava, Jason viu as docas repletas de
barcos. Da costa rochosa elevavam-se paredões de uns quinze metros
de altura parecidos com fortalezas. Acima deles, erguia-se uma cid-
ade de aparência medieval com torres de igreja, domos e prédios
amontoados, todos feitos da mesma pedra dourada. De onde Jason
estava, parecia que a cidade cobria cada centímetro da ilha.
Ele examinou os barcos no porto. Cem metros à frente, amarrado
na ponta da maior doca, havia uma jangada improvisada, com um
mastro e uma simples vela quadrada de lona. Na proa, o leme estava
ligado a algum tipo de máquina. Mesmo a distância, podia ver o
brilho do bronze celestial.
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Ele sorriu. Somente um semideus faria um barco como aquele e
atracaria o mais perto possível do porto, onde o Argo II não poderia
deixar de notá-lo.
-- Chame os outros -- disse Jason para Piper. -- Leo está aqui.
LX




JASON

ENCONTRARAM LEO NO TOPO DAS fortificações da cidade. Ele estava
sentado em uma cafeteria ao ar livre, com vista para o mar, bebendo
café e vestindo... uau. Déjà-vu. A roupa de Leo era idêntica à que ele
usava no dia de sua chegada ao Acampamento Meio-Sangue: calça
jeans, camisa branca e uma velha jaqueta militar. Só que aquela
jaqueta havia sido queimada meses antes.
Piper quase o derrubou da cadeira com um abraço.
-- Leo! Deuses, onde você esteve?
-- Valdez! -- O treinador Hedge sorriu. Então, pareceu se lembrar
de que tinha uma reputação a zelar e forçou uma carranca. -- Se você
voltar a desaparecer assim, seu moleque, vou espancá-lo!
Frank deu um tapa tão forte nas costas dele que Leo fez uma
careta de dor. Até mesmo Nico apertou-lhe a mão.
Hazel beijou-o na bochecha.
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-- Pensamos que você estivesse morto!
Leo conseguiu esboçar um leve sorriso.
-- Oi, galera. Que isso, estou bem.
Jason podia perceber que ele não estava bem. Leo não os olhava
nos olhos. As mãos dele estavam perfeitamente imóveis sobre a
mesa. As mãos de Leo nunca ficavam paradas. Toda a energia parecia
ter sido drenada de seu corpo e substituída por uma espécie de
tristeza melancólica.
Jason se perguntou por que sua expressão lhe parecia familiar.
Então percebeu que Nico di Angelo ficara da mesma forma após con-
frontar Cupido nas ruínas de Salona.
Leo estava com dor de cotovelo.
Enquanto os outros foram puxar cadeiras das mesas próximas,
Jason se inclinou e apertou o ombro do amigo.
-- Ei, cara, o que aconteceu? -- perguntou.
Os olhos de Leo se voltaram para o grupo. A mensagem era clara:
Aqui não. Não na frente de todos.
-- Virei um náufrago -- disse Leo. -- É uma longa história. E
quanto a vocês? O que aconteceu com Quione?
O treinador Hedge riu com desdém.
-- O que aconteceu? Piper aconteceu! Estou lhe dizendo, esta ga-
rota tem talento!
-- Treinador... -- protestou Piper.
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Hedge começou a contar a história, mas na versão dele Piper era
uma assassina lutadora de kung fu e havia muito mais boreadas.
Enquanto o treinador falava, Jason observou Leo com preocu-
pação. Aquela cafeteria tinha uma vista perfeita para o porto. Leo de-
ve ter visto o Argo II chegar à costa. No entanto, ficara ali bebendo
café -- algo de que ele nem mesmo gostava --, esperando que eles o
encontrassem. Leo não era assim. O navio era a coisa mais import-
ante de sua vida. Quando viu que tinham ido resgatá-lo, Leo deveria
ter corrido até as docas, gritando com toda a força em comemoração.
O treinador estava descrevendo como Piper derrotara Quione
com um chute à Chuck Norris quando ela o interrompeu:
-- Treinador! Não foi nada disso que aconteceu. Não poderia ter
feito nada sem Festus.
Leo ergueu as sobrancelhas.
-- Mas Festus está desligado.
-- Hum, então -- disse Piper. -- Eu meio que o ativei.
Piper explicou sua versão dos acontecimentos -- como ela reini-
ciara o dragão de metal com o charme.
Leo tamborilou os dedos na mesa, como se um pouco de sua an-
tiga energia estivesse retornando.
-- Não deveria ser possível -- murmurou ele. -- A menos que as
atualizações permitam que ele responda a comandos de voz. Mas se
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agora ele está permanentemente ligado, isso significa que o sistema
de navegação e o cristal...
-- Cristal? -- perguntou Jason.
Leo fez uma careta.
-- Hum, esquece. De qualquer forma, o que aconteceu depois que
a bomba de vento explodiu?
Hazel continuou a história. Uma garçonete se aproximou e ofere-
ceu os cardápios. Logo estavam mastigando sanduíches, bebendo re-
frigerantes e aproveitando o dia ensolarado quase como um grupo de
adolescentes normais.
Frank pegou um panfleto turístico, preso sob o suporte de guard-
anapos, e começou a lê-lo. Piper deu um tapinha no braço de Leo,
como se não pudesse acreditar que ele estivesse realmente ali. Nico
estava na ponta da mesa, observando os pedestres em busca de pos-
síveis inimigos. O treinador Hedge mastigava os saleiros e
pimenteiros.
Apesar da reunião feliz, todos pareciam mais abatidos -- como se
estivessem refletindo o humor de Leo. Jason nunca percebera de fato
quão importante era o senso de humor dele para o grupo. Mesmo
quando as coisas estavam superdifíceis, sempre podiam contar com
Leo para alegrar o ambiente. Agora, parecia que toda a equipe per-
dera o ânimo.
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-- Então Jason domou os venti -- terminou Hazel. -- E aqui
estamos.
Leo assobiou.
-- Cavalos de ar quente? Caramba, Jason. Então, basicamente,
você acumulou um bocado de gás até chegar a Malta, e então soltou.
Jason franziu a testa.
-- Sabe, não soa tão heroico quando você fala desse jeito.
-- Sim, bem. Quando dou o ar da minha graça, pode ter certeza de
que ele vai ser quente. E ainda estou me perguntando, por que
Malta? Eu meio que cheguei aqui na jangada, mas isso foi uma coisa
aleatória, ou...
-- Talvez por causa disto. -- Frank bateu no panfleto. -- Diz aqui
que Calipso morou em Malta.
Leo ficou pálido.
-- O-o quê?
Frank deu de ombros.
-- De acordo com isto, ela morava na ilha de Gozo, ao norte da-
qui. Calipso é um mito dos gregos, não é?
-- Ah, um mito dos gregos! -- O treinador Hedge esfregou as
mãos. -- Talvez tenhamos que lutar com ela! Temos que lutar com
ela? Porque eu estou pronto.
-- Não -- murmurou Leo. -- Não temos que lutar com ela,
treinador.
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Piper franziu a testa.
-- Leo, o que há de errado? Você parece...
-- Não há nada de errado! -- Leo se levantou. -- Ei, precisamos ir.
Temos trabalho a fazer!
-- Mas... onde você esteve? -- perguntou Hazel. -- De onde você
tirou essas roupas? Como...
-- Caramba, moças! -- exclamou Leo. -- Agradeço a preocupação,
mas não preciso de duas mães extras!
Piper sorriu, hesitante.
-- Tudo bem, mas...
-- Temos navios para consertar! -- disse Leo. -- Festus para regu-
lar! Deusas da terra para ganhar socos na cara! O que estamos esper-
ando? Leo está de volta!
Ele abriu os braços e sorriu.
Leo estava fazendo uma tentativa corajosa, mas Jason podia ver
resquícios de tristeza em seus olhos. Algo acontecera com ele... algo
relacionado a Calipso.
Jason tentou se lembrar da história. Ela era um tipo de feiticeira,
talvez como Medeia ou Circe. Mas se Leo escapara do covil de uma
feiticeira malvada, por que parecia tão triste? Jason teria que con-
versar com ele mais tarde para se assegurar de que seu amigo estava
bem. Por enquanto Leo claramente não queria ser interrogado.
Jason se levantou e colocou a mão no ombro dele.
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-- Leo está certo. Devemos ir.
Todos entenderam a deixa e começaram a embrulhar a comida e a
terminar as bebidas.
Subitamente, Hazel ofegou.
-- Pessoal...
Ela apontou para o nordeste. A princípio, Jason não viu nada
além do mar. Então, um risco de escuridão cortou o ar como um raio
negro -- como se noite cerrada tivesse rompido através do dia.
-- Não vejo nada -- resmungou o treinador Hedge.
-- Também não -- disse Piper.
Jason olhou para o rosto dos amigos. A maioria estava confusa.
Nico era o único que parecia ter notado o raio negro.
-- Não pode ser... -- murmurou Nico. -- A Grécia ainda está a
centenas de quilômetros de distância.
A escuridão apareceu de novo, momentaneamente desbotando as
cores do horizonte.
-- Você acha que é Épiro?
Todo o corpo de Jason formigava como quando tomou um
choque de mil volts. Ele não sabia por que conseguia ver os raios de
escuridão. Não era um filho do Mundo Inferior. Mas estava com uma
sensação muito ruim.
Nico assentiu.
-- A Casa de Hades está aberta para negócios.
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Poucos segundos depois, um ruído estrondoso chegou até eles,
como tiros distantes.
-- Já começou -- disse Hazel.
-- O quê? -- perguntou Leo.
Quando o raio seguinte apareceu, os olhos dourados de Hazel es-
cureceram como uma folha no fogo.
-- O esforço final de Gaia -- respondeu ela. -- As Portas da Morte
estão trabalhando a todo vapor. O exército de Gaia está entrando no
mundo mortal em massa.
-- Nunca conseguiremos -- disse Nico. -- Até chegarmos lá, já
haverá muitos monstros.
Jason estava determinado.
-- Podemos vencê-los. Nós viajaremos rápido. Encontramos Leo,
ele nos dará a velocidade de que precisamos. -- Jason olhou para o
amigo. -- Ou você só apareceu para dar o ar da sua graça?
Leo deu um sorriso torto. Seus olhos pareciam dizer: Obrigado.
-- Hora de voar, crianças -- disse ele. -- Tio Leo ainda tem alguns
truques na manga!
LXI




PERCY

PERCY AINDA NÃO TINHA MORRIDO, mas já estava cansado de ser um
cadáver.
Enquanto seguiam penosamente para o coração do Tártaro, o ga-
roto não parava de olhar para o próprio corpo, perguntando-se como
aquele podia ser ele. Os braços eram como duas varetas envoltas em
couro descolorido. Suas pernas esqueléticas se dissolviam em fumaça
a cada passo. Tinha aprendido, mais ou menos, a se mover dentro da
Névoa da Morte, mas a mortalha mágica ainda parecia uma camada
de gás hélio.
Estava preocupado que a Névoa da Morte ficasse presa a ele para
sempre, mesmo que de algum modo conseguissem sobreviver ao Tár-
taro. Não queria passar o resto da vida parecendo um figurante de
The Walking Dead.
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Percy tentou se concentrar em outra coisa, mas não havia nen-
huma boa opção.
Sob seus pés, o chão reluzia em um roxo nojento, com veias puls-
ando. À luz mortiça das nuvens de sangue e envolta na Névoa da
Morte, Annabeth parecia um zumbi recém-saído da tumba.
A vista mais deprimente do mundo estava bem diante deles.
Um exército de monstros se estendia até o horizonte: bandos de
arai aladas, tribos de Ciclopes, espíritos malignos esvoaçantes. Mil-
hares de vilões, talvez dezenas de milhares, todos aguardando irre-
quietos e espremidos uns contra os outros. A visão lembrava o
corredor principal superlotado de uma escola no intervalo entre duas
aulas, mas neste caso os estudantes eram mutantes muito fedidos
que exageraram nos esteroides.
Bob os conduziu na direção do exército. Não tentou se esconder.
Não que isso fosse adiantar. Como uma figura prateada de três met-
ros de altura, Bob não era bom em passar despercebido.
A uns trinta metros dos monstros mais próximos, Bob se virou
para Percy.
-- Fiquem quietos e atrás de mim. Eles não vão notar vocês.
-- Tomara -- murmurou Percy.
No ombro do titã, Bob Pequeno acordou de seu cochilo, ronronou
um pouco, quase provocando um terremoto, e arqueou as costas,
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tornando-se esquelético por um segundo e voltando ao normal logo
em seguida. Pelo menos ele não parecia nervoso.
Annabeth examinou as próprias mãos de zumbi.
-- Bob, se estamos invisíveis... como você consegue nos ver? Quer
dizer, tecnicamente você é, você sabe...
-- Sei. Mas nós somos amigos.
-- Nix e seus filhos podiam nos ver -- lembrou Annabeth.
Bob deu de ombros.
-- Aquilo foi nos domínios de Nix. É bem diferente.
-- Hã... está bem.
Annabeth não pareceu muito convencida, mas já tinham chegado.
Não havia escolha.
Percy olhou fixamente para o enxame de monstros malignos.
-- Bem, pelo menos não vamos ter que nos preocupar em esbarrar
com nenhum outro amigo nesta multidão.
Bob sorriu.
-- É! Isso é uma boa notícia! Agora, vamos. A Morte está perto.
-- As Portas da Morte estão perto -- corrigiu Annabeth. -- Cuid-
ado com o que diz.
Enfiaram-se na multidão. Percy tremia tanto que teve medo de
acabar tirando a Névoa da Morte de cima de si. Não era a primeira
vez que via um grande grupo de monstros. Já havia lutado contra um
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exército deles durante a Batalha de Manhattan. Mas aquilo era
diferente.
Sempre que lutara contra monstros no mundo mortal, Percy pelo
menos sabia que estava defendendo seu lar. Isso lhe dava coragem,
por pior que estivesse a situação. Ali, Percy era o invasor. Estava tão
deslocado no meio daquela multidão de monstros quanto o
Minotauro estaria na estação central de Nova York na hora do rush.
A poucos metros, um grupo de empousai devorava a carcaça de
um grifo enquanto os companheiros do animal morto voavam ao
redor, grasnando furiosos. Um nascido da terra de seis braços e um
ogro lestrigão se atacavam com pedras, mas Percy não soube ao certo
se era sério ou se só estavam brincando. Um fio escuro de fumaça,
que o garoto imaginou ser um eidolon, possuiu um ciclope e fez com
que o monstro batesse na própria cara, em seguida o deixou e partiu
em busca de outra vítima.
-- Percy, veja -- sussurrou Annabeth.
A alguns metros, havia uma figura com roupas de vaqueiro
chicoteando cavalos que exalavam fogo. O sujeito usava um chapéu
de caubói por cima dos cabelos oleosos, jeans GG e botas de couro
pretas. De lado, podia passar por humano, até que se virou, e Percy
viu que a parte superior de seu corpo era dividida em três tóraces,
cada um vestido em uma camisa de faroeste de cor diferente.
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Sem sombra de dúvida, aquele era Geríon, que tinha tentado
matar Percy dois anos antes no Texas. Aparentemente, o rancheiro
maligno queria um novo rebanho. A ideia de esse cara sair caval-
gando pelas Portas da Morte fez com que o corpo de Percy voltasse a
doer. As costelas latejavam onde as arai o haviam acertado com a
maldição que Geríon lançou à beira da morte na floresta. Ele queria
ir até o vaqueiro de três troncos, dar um soco na cara dele e berrar:
Muito obrigado, Tex!
Infelizmente, não podia.
Quantos outros velhos inimigos estariam naquela multidão?
Percy começou a se dar conta de que cada um de seus triunfos tinha
sido apenas uma vitória temporária. Por mais forte ou sortudo que
fosse, não importava quantos monstros destruísse, Percy um dia ser-
ia derrotado. Era apenas um mortal. Ia ficar velho demais, fraco de-
mais ou lento demais. Ia morrer. E aqueles monstros... eles eram
eternos. Sempre voltavam. Talvez demorasse meses ou anos para se
reconstituírem, talvez até séculos. Mas iam renascer.
Ao vê-los reunidos no Tártaro, Percy se sentiu tão desamparado
quanto as almas no Rio Cócito. E daí que era um herói? E daí que
realizara feitos corajosos? O mal sempre estava presente,
regenerando-se, fervilhando sob a superfície. Percy não passava de
um pequeno estorvo para aqueles seres imortais. Eles só precisavam
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esperar. Um dia, os filhos ou filhas de Percy poderiam ter que en-
frentar todos aqueles monstros novamente.
Filhos e filhas.
O pensamento o atingiu em cheio. O desespero se foi tão rápido
quanto havia surgido. Olhou para Annabeth. Sua namorada ainda
parecia um cadáver enevoado, mas Percy a imaginou com sua ver-
dadeira aparência: os olhos cinza determinados, os cabelos louros
presos para trás com uma bandana, o rosto abatido e coberto de fuli-
gem, mas linda como sempre.
Tudo bem, talvez os monstros sempre voltassem. Mas os semi-
deuses faziam o mesmo. O Acampamento Meio-Sangue tinha sobre-
vivido por muitas gerações. Assim como o Acampamento Júpiter.
Mesmo separados, os dois locais tinham sobrevivido. Agora, se gre-
gos e romanos pudessem se unir, ficariam ainda mais fortes.
Ainda havia esperança: ele e Annabeth tinham chegado até ali. As
Portas da Morte estavam quase ao seu alcance.
Filhos e filhas. Uma ideia ridícula. Um pensamento maravilhoso.
Bem ali no meio do Tártaro, Percy sorriu.
-- Qual o problema? -- murmurou Annabeth.
Com seu disfarce de zumbi da Névoa da Morte, Percy provavel-
mente parecia estar fazendo uma careta de dor.
-- Nada -- disse ele. -- Eu estava só...
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De algum lugar mais à frente, ouviram uma voz profunda e
retumbante:
-- JÁPETO!
LXII




PERCY

UM TITÃ CAMINHAVA NA DIREÇÃO deles, chutando despreocupada-
mente monstros menores de seu caminho. Tinha mais ou menos a
mesma altura que Bob e usava uma armadura trabalhada de ferro es-
tígio, com um único diamante brilhando no centro do peitoral. Tinha
olhos branco-azulados, que lembravam uma geleira, e pareciam
igualmente frios. Carregava embaixo do braço um elmo de combate
na forma de uma cabeça de urso. No cinto pendia uma espada do
tamanho de uma prancha de surfe.
Apesar das cicatrizes de batalhas, o rosto do titã era belo e estran-
hamente familiar. Percy estava quase certo de nunca ter visto o
sujeito antes, mas seus olhos e seu sorriso lembravam alguém...
O titã parou na frente de Bob e o segurou pelo ombro.
-- Jápeto! Não diga que não reconhece o próprio irmão?!
-- Não! -- respondeu nervosamente Bob. -- Não diria isso.
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O outro titã deu uma grande gargalhada.
-- Ouvi dizer que havia sido atirado nas águas do Rio Lete, irmão.
Deve ter sido terrível! Mas sabíamos que, com o tempo, você se
reestabeleceria. Sou eu, Coio! Coio!
-- É claro -- disse Bob. -- Coio, titã do...
-- Do Norte! -- completou Coio.
-- Eu sei! -- gritou Bob.
Riram juntos e deram socos no braço um do outro.
Aparentemente incomodado por todo aquele empurra-empurra,
Bob Pequeno subiu na cabeça de Bob e começou a se aninhar nos ca-
belos prateados do titã.
-- Pobre Jápeto -- disse Coio. -- Que vil humilhação! Olhe só para
você! Uma vassoura? Um uniforme de criado? Um gato no cabelo?
Hades sem dúvida terá de pagar por esses insultos. Qual é o nome
daquele semideus que roubou sua memória? Temos que dar cabo
dele. Eu e você, hein?
-- Ha, ha. -- Bob engoliu em seco. -- É mesmo. Dar cabo.
Percy apertou sua caneta. Mesmo antes da ameaça de dar cabo
dele, não tinha gostado muito do irmão do amigo. Em comparação ao
modo simples de falar de Bob, Coio parecia recitar Shakespeare. Só
isso foi suficiente para irritar Percy.
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Estava pronto para tirar a tampa da Contracorrente se fosse ne-
cessário, mas até então Coio não parecia tê-lo notado. E Bob ainda
não os havia traído, apesar de ter tido muitas oportunidades.
-- Ah, como é bom vê-lo... -- Coio tamborilou os dedos no elmo
de cabeça de urso. -- Lembra como nos divertíamos antigamente?
-- É claro! -- disse Bob, animado. -- Quando nós... Hã...
-- Seguramos Urano, nosso pai, no chão -- disse Coio.
-- É! A gente adorava lutar com papai...
-- Nós o imobilizamos.
-- Foi o que eu quis dizer!
-- Para Cronos despedaçá-lo com sua foice.
-- É, ha, ha, ha. -- Bob parecia um pouco enjoado. -- Foi
engraçado.
-- Você agarrou o pé direito de nosso pai, se bem me lem-
bro -- disse Coio. -- E Urano deu um chute na sua cara enquanto
lutava para se soltar. Como implicamos com você por causa disso!
-- Fui um bobo! -- concordou Bob.
-- Infelizmente, nosso irmão Cronos foi desintegrado por aqueles
semideuses insolentes. -- Coio deu um suspiro. -- Ainda restaram al-
guns pedaços e partes de sua essência, mas nada que permita que ele
se forme outra vez. Há ferimentos que nem o Tártaro pode curar.
-- Infelizmente.
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-- Mas o resto de nós tem mais uma chance de brilhar,
hein? -- Ele se inclinou para a frente de modo conspiratório. -- Esses
gigantes podem achar que vão ficar com o poder. Deixemos que se-
jam nossa tropa de choque e destruam os olimpianos, todos eles,
completamente. Mas assim que a Mãe Terra despertar, vai se lem-
brar de que nós somos seus filhos mais velhos. Guarde minhas palav-
ras. Os titãs ainda vão dominar o cosmo.
-- Humm -- disse Bob. -- Os gigantes podem não gostar disso.
-- Não me importo com o que eles possam gostar -- disse
Coio. -- Eles, de qualquer modo, já atravessaram as Portas da Morte.
Voltaram ao mundo mortal. Polibotes foi o último. Foi há meia hora.
Ainda estava resmungando por ter perdido sua presa. Parece que um
semideus que ele perseguia foi engolido por Nix. Nunca mais torn-
aremos a vê-lo, aposto!
Annabeth agarrou o pulso de Percy. Ele não conseguia interpretar
muito bem a expressão dela por conta da Névoa da Morte, mas per-
cebeu que estava alarmada.
Se os gigantes já haviam passado pelas Portas, então pelo menos
não estavam mais à caça de Percy e Annabeth pelo Tártaro. Infeliz-
mente, isso também significava que seus amigos no mundo mortal
estavam correndo um perigo ainda maior. Todas as lutas anteriores
com os gigantes haviam sido em vão. Seus inimigos iam renascer for-
tes como sempre.
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-- Bem! -- Coio sacou a espada enorme. A lâmina irradiava um
frio mais profundo do que a Geleira Hubbard. -- Tenho que ir. Letó
já deve ter se regenerado. Vou convencê-la a lutar.
-- Claro -- murmurou Bob. -- Letó.
Coio riu.
-- Também se esqueceu de minha filha? Bem, faz tempo que não
a vê. Os pacíficos como ela sempre levam mais tempo para se reform-
ar. Desta vez, entretanto, tenho certeza de que Letó vai lutar por
vingança. O modo como Zeus a tratou depois que ela lhe deu os
gêmeos foi revoltante!
Percy quase grunhiu alto.
Os gêmeos.
Ele se lembrou do nome Letó: a mãe de Apolo e Ártemis. Esse tal
de Coio era vagamente familiar porque tinha os olhos frios de
Ártemis e o sorriso de Apolo. Aquele titã era o avô deles, o pai de
Letó. Percy ficou com dor de cabeça.
-- Então é isso! Eu o encontro no mundo mortal! -- Coio bateu
em Bob com o peito e quase derrubou o gato de sua cabeça. -- Ah, e
dois outros de nossos irmãos estão guardando este lado das Portas,
por isso vai vê-los em breve!
-- Vou?
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-- Sem a menor dúvida! -- Coio foi embora com passos pesados e
quase derrubou Percy e Annabeth, que por pouco conseguiram sair
de seu caminho.
Antes que a multidão de monstros ocupasse o espaço deixado
pelo titã, Percy fez um gesto para que Bob se abaixasse para falar
com eles.
-- Você está bem, grandão? -- murmurou Percy.
Bob pareceu confuso.
-- Não sei. No meio disso aqui... -- Ele fez um gesto amplo para
indicar o que estava em torno deles. -- O que significa estar bem?
Faz sentido, pensou Percy.
Annabeth olhou na direção das Portas da Morte, apesar de a mul-
tidão de monstros bloquear a visão delas.
-- Será que ouvi direito? Tem mais dois titãs vigiando nossa
saída? Isso não é bom.
Percy olhou para Bob. A expressão distante do titã o deixou
preocupado.
-- Você se lembrou de Coio? -- perguntou em um tom gen-
til. -- De todas aquelas coisas que ele contou?
Bob segurou a vassoura com mais força.
-- Quando ele contou, eu lembrei. Ele me devolveu meu passado...
de um jeito rápido como uma lança. Mas não sei se devo aceitá-lo.
Ele ainda será meu mesmo que eu não queira?
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-- Não -- disse Annabeth com firmeza. -- Bob, agora você é difer-
ente. Ficou melhor.
O gatinho pulou da cabeça do titã. Andou em torno dos pés dele,
batendo e esfregando o focinho na barra das calças de Bob, que não
pareceu notar.
Percy queria estar tão seguro quanto Annabeth. Queria poder
dizer a Bob com toda a confiança que ele deveria esquecer seu
passado.
Mas o garoto entendia a confusão do titã. Ele se lembrou do dia
em que abriu os olhos na Casa dos Lobos, na Califórnia, com a
memória apagada por Hera. Se alguém estivesse esperando Percy
acordar... se o tivessem convencido de que seu nome era Bob e que
ele era amigo dos titãs e dos gigantes... será que Percy teria acredit-
ado? Será que teria se sentido traído quando descobrisse sua ver-
dadeira identidade?
É diferente, disse a si mesmo. Nós somos os mocinhos.
Mas eram mesmo? Percy tinha deixado Bob no palácio de Hades,
à mercê de um novo mestre que o odiava. Agora, não achava ter
muito direito de dizer a Bob o que fazer... mesmo que suas vidas de-
pendessem disso.
-- Acho que você pode escolher, Bob -- arriscou Percy. -- Pegar as
partes do passado de Jápeto que quer guardar e abandonar o resto. O
que importa é seu futuro.
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-- Futuro... -- refletiu Bob. -- Esse é um conceito mortal. Não fui
feito para mudar, Percy, meu amigo. -- Ele olhou para a horda de
monstros em sua volta. -- Nós somos os mesmos... para sempre.
-- Se você fosse o mesmo, eu e Annabeth já estaríamos mor-
tos -- argumentou Percy. -- Talvez não devêssemos ter ficado ami-
gos, mas ficamos. Você tem sido o melhor amigo que eu poderia
querer.
Os olhos de Bob pareceram mais escuros que o normal. Ele es-
tendeu a mão, e Bob Pequeno pulou para ela. O titã se ergueu e ficou
de pé.
-- Então, vamos, amigos. Falta pouco.

***

Pisar no coração de Tártaro não era nem de longe tão divertido
quanto poderia parecer.
O chão arroxeado era escorregadio e pulsava de modo regular. A
distância, parecia liso, mas de perto era cheio de dobras e elevações
que dificultavam cada vez mais o avanço do trio. Emaranhados de
artérias e veias serviam de apoio para o pé de Percy, mas eles iam
adiante bem devagar.
E, é claro, havia monstros por toda parte. Matilhas de cães in-
fernais caçavam pela planície, latindo, rosnando e atacando qualquer
monstro que baixasse a guarda. Arai voavam em círculos com suas
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asas de morcego, e suas silhuetas negras eram visíveis contra as
nuvens venenosas.
Percy tropeçou. Ele se apoiou em uma artéria, e uma sensação de
formigamento subiu por seu braço.
-- Tem água aqui -- disse ele. -- Água de verdade.
Bob deu um grunhido.
-- Um dos cinco rios. O sangue dele.
-- Sangue dele? -- Annabeth se afastou do amontoado de veias
mais próximo. -- Eu sabia que todos os rios do Mundo Inferior de-
saguavam no Tártaro, mas...
-- É -- concordou Bob. -- Todos correm por seu coração.
Percy deslizou a mão por uma teia de vasos capilares. Será que
era a água do Estige que corria sob seus dedos? Seria o Lete? E se
uma daquelas veias estourasse quando pisasse nela? Percy es-
tremeceu. Ele se deu conta de que estava caminhando pelo sistema
circulatório mais perigoso do universo.
-- Vamos logo -- disse Annabeth. -- Se não conseguirmos...
Não pôde terminar a frase.
Diante deles, riscos irregulares rasgavam o ar, como raios, só que
completamente negros.
-- As Portas -- disse Bob. -- Um grupo grande deve estar
passando.
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Percy sentiu gosto de sangue de górgona na boca. Mesmo que
seus amigos do Argo II conseguissem encontrar o outro lado das
Portas da Morte, como poderiam enfrentar as ondas de monstros que
estavam passando por elas, especialmente se os gigantes já est-
ivessem à espera deles?
-- Todos os monstros passam pela Casa de Hades? -- perguntou
ele. -- De que tamanho é esse lugar?
Bob deu de ombros.
-- Talvez sejam mandados para outro local quando passam. A
Casa de Hades fica na terra, não é? Lá é domínio de Gaia. Ela pode
enviar seus súditos para onde quiser.
Percy ficou arrasado. Já era ruim demais que os monstros passas-
sem pelas Portas da Morte para ameaçar seus amigos em Épiro. De-
pois disso, passou a imaginar o solo no lado mortal como um enorme
sistema de metrô que despejava gigantes e outras criaturas malignas
onde quer que Gaia desejasse: no Acampamento Meio-Sangue, no
Acampamento Júpiter, ou no caminho do Argo II antes mesmo que o
navio chegasse a Épiro.
-- Se Gaia tem tanto poder, ela não poderia controlar onde nós
vamos parar? -- perguntou Annabeth.
Percy não gostou nada daquela pergunta. Às vezes desejava que
Annabeth não fosse tão inteligente.
Bob coçou o queixo.
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-- Vocês não são monstros. Talvez seja diferente com vocês.
Ótimo, pensou Percy.
Ele não gostou nada da ideia de Gaia esperando por eles do outro
lado, pronta para teletransportá-los para o meio de uma montanha.
Mas pelo menos as Portas eram uma chance de sair do Tártaro. Não
era como se tivessem uma alternativa melhor.
Bob os ajudou a subir até o topo de mais uma elevação. De re-
pente, as Portas da Morte surgiram diante deles: um retângulo de es-
curidão gigantesco no topo da colina-músculo seguinte, a cerca de
quinhentos metros de distância, cercado por monstros tão apinhados
que Percy poderia percorrer todo o caminho andando em cima de
suas cabeças.
Ainda estavam longe demais para vê-la em detalhes, mas os titãs
plantados de cada lado da porta eram bem reconhecíveis. O da es-
querda usava uma armadura dourada reluzente que emitia calor.
-- Hiperíon -- murmurou Percy. -- Esse cara não consegue ficar
morto.
O da direita usava uma armadura azul-escura, com chifres de
carneiro projetando-se nas laterais de seu elmo. Percy só o havia
visto em sonhos, mas com certeza era Crios, o titã que Jason tinha
matado na batalha pelo Monte Tam.
-- Os outros irmãos de Bob -- disse Annabeth. A Névoa da Morte
tremeluziu em torno dela, transformando por um breve instante seu
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rosto em um crânio sorridente. -- Bob, você consegue lutar com eles,
se precisar?
Bob ergueu a vassoura como se estivesse pronto para fazer uma
faxina pesada.
-- Precisamos ir logo -- disse ele, o que, Percy percebeu, não re-
spondia a pergunta. -- Sigam-me.
LXIII




PERCY

ATÉ ALI, O PLANO DE se camuflar com a Névoa da Morte parecia estar
funcionando. Então, naturalmente, Percy esperava que alguma coisa
desse muito errado no último minuto.
Quando faltavam apenas dez metros para chegar às Portas, ele e
Annabeth congelaram.
-- Ah, deuses -- murmurou Annabeth. -- Elas são idênticas.
Percy entendeu o que ela queria dizer. Emoldurado com ferro es-
tígio, o portal mágico era um elevador -- as portas decoradas com
painéis prateados e negros com desenhos art déco. Tirando o fato de
as cores serem invertidas, eram exatamente iguais às dos elevadores
do Edifício Empire State, a entrada do Olimpo.
Ao vê-las, Percy sentiu tanta saudade de casa que perdeu o fôlego.
Não sentia saudade apenas do Monte Olimpo. Sentia falta de tudo
que deixara para trás: a cidade de Nova York, o Acampamento Meio-
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Sangue, a mãe e o padrasto. Seus olhos arderam. Não tentou falar
por medo que a voz o traísse.
As Portas da Morte pareciam um insulto pessoal, criadas para
lembrá-lo de tudo que não podia ter.
Assim que superou o choque inicial, Percy reparou em outros de-
talhes: o gelo que se espalhava a partir das portas, o brilho arroxeado
em torno delas e as correntes que as prendiam no chão.
Correntes de ferro negro pendiam das laterais do portal, como os
cabos de sustentação de uma ponte suspensa. Estavam presas a gan-
chos fixados no solo carnoso. Os dois titãs, Crios e Hiperíon,
montavam guarda próximos a eles.
Enquanto Percy observava, o portal estremeceu. Um raio negro
atravessou o céu. As correntes sacudiram, e os titãs pisaram com
força nos ganchos para mantê-las presas. As portas do elevador
deslizaram, revelando o interior dourado.
Percy se preparou para avançar, mas Bob colocou a mão em seu
ombro.
-- Espere -- alertou ele.
Hiperíon gritou para a multidão ao redor.
-- Grupo A-22! Depressa, suas lesmas!
Uma dúzia de ciclopes se aproximou, sacudindo bilhetes vermel-
hos e gritando de empolgação. Eles não deveriam conseguir passar
pelas portas de tamanho humano, mas quando se aproximaram, seus
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corpos se distorceram e encolheram, e as Portas da Morte os sug-
aram para dentro.
O titã Crios apertou com o polegar o botão SUBIR do lado direito
do elevador. As portas se fecharam.
O portal tornou a estremecer. O relâmpago negro se esvaiu.
-- Vocês precisam entender como funciona -- murmurou Bob. Ele
estava se dirigindo ao gatinho em sua mão, talvez para que os outros
monstros não ficassem se perguntando com quem estava
falando. -- Cada vez que as Portas se abrem, elas tentam teletrans-
portar para um lugar diferente. Tânatos as fez assim para que apenas
ele pudesse localizá-las. Mas agora elas foram acorrentadas. As
portas não conseguem sair dali.
-- Então precisamos cortar as correntes -- sussurrou Annabeth.
Percy olhou para a forma reluzente de Hiperíon. Da última vez
que lutara com o titã, ele precisara de toda a sua força. E mesmo as-
sim quase morrera. Agora tinham que enfrentar dois titãs, com mil-
hares de monstros como reforço.
-- Nossa camuflagem... -- disse Percy. -- Ela vai desaparecer se
fizermos alguma coisa agressiva, como cortar as correntes?
-- Não sei -- disse Bob para seu gatinho.
-- Miau -- respondeu Bob Pequeno.
-- Bob, você vai precisar distraí-los -- disse Annabeth. -- Percy e
eu vamos dar a volta sem sermos vistos e cortar as correntes por trás.
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-- Está bem -- disse Bob. -- Mas ainda tem um problema. Quando
alguém passa pelas Portas, outra pessoa tem que ficar do lado de fora
para apertar o botão e defendê-lo.
Percy engoliu em seco.
-- Hã... defender o botão?
Bob assentiu enquanto acariciava o queixo do gatinho.
-- Alguém precisa continuar apertando o botão SUBIR por doze
minutos, ou a viagem não termina.
Percy olhou para as Portas. Era verdade, Crios ainda estava aper-
tando o botão SUBIR com o polegar. Doze minutos... De alguma forma,
teriam que afastar os titãs daquelas portas. Depois Bob, Percy ou An-
nabeth teria que manter o botão apertado por doze longos minutos,
no meio de um exército de monstros no coração do Tártaro, en-
quanto os outros dois subiam para o mundo mortal. Era impossível.
-- Por que doze minutos? -- perguntou Percy.
-- Não sei -- disse Bob. -- Por que doze Olimpianos ou doze titãs?
-- É, faz sentido -- disse Percy, sentindo um gosto amargo na
boca.
-- O que quer dizer com "a viagem não termina"? -- perguntou
Annabeth. -- O que acontece com os passageiros?
Bob não respondeu. A julgar por sua expressão aflita, Percy de-
cidiu que não queria estar naquele elevador se ele ficasse parado
entre o Tártaro e o mundo mortal.
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-- Se apertarmos o botão por doze minutos -- disse Percy -- e
cortarmos as correntes...
-- As Portas deverão se restaurar -- disse Bob. -- Pelo menos é
isso que deviam fazer. Vão desaparecer do Tártaro e ressurgir em
outro lugar, onde Gaia não possa usá-las...
-- Tânatos pode tomá-las de volta -- disse Annabeth. -- A morte
volta ao normal, e os monstros perdem seu atalho para o mundo
mortal.
Percy deu um suspiro.
-- Molezinha. Exceto por... bem, tudo.
Bob Pequeno ronronou.
-- Posso ficar e apertar o botão -- ofereceu Bob.
Uma mistura de sentimentos dominou Percy: tristeza, pesar,
gratidão e culpa. Aquilo tudo pesava tanto quanto cimento em seu
estômago.
-- Bob, não podemos pedir que faça isso. Você também quer pas-
sar pelas Portas. Quer ver o céu de novo, e as estrelas, e...
-- Eu ia gostar disso -- concordou Bob. -- Mas alguém tem que
apertar o botão. E quando as correntes forem cortadas... meus
irmãos vão lutar para impedir sua passagem. Não vão querer que as
Portas desapareçam.
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Percy olhou para a horda infinita de monstros. Mesmo se deixasse
Bob se sacrificar, como um único titã poderia se defender contra tan-
tos por doze minutos sem tirar o dedo do botão?
O cimento assentou dentro dele. Percy sempre desconfiara de
como aquilo ia acabar. Ele teria que ficar para trás. Enquanto Bob
enfrentava o exército, Percy pressionaria o botão do elevador para
garantir que Annabeth chegasse em segurança.
De algum modo, tinha que convencê-la a ir sozinha. Enquanto ela
estivesse a salvo e as Portas desaparecessem, ele podia morrer
sabendo que tinha feito a coisa certa.
-- Percy...? -- Annabeth o encarou, um tom desconfiado na voz.
Ela era inteligente demais. Se seus olhos se encontrassem, saberia
exatamente o que Percy estava pensando.
-- Uma coisa de cada vez -- disse ele. -- Vamos cortar estas
correntes.
LXIV




PERCY

-- JÁPETO -- GRITOU HIPERÍON. -- ORA, ORA. ACHEI que você est-
ivesse se escondendo embaixo de um balde em algum lugar.
Bob, de cara amarrada, caminhou pesadamente até ele.
-- Eu não estava me escondendo.
Percy foi discretamente para o lado direito das Portas e Annabeth,
para o esquerdo. Os titãs não pareceram reparar neles, mas Percy
não queria arriscar. Manteve Contracorrente na forma de caneta. An-
dava bem agachado, fazendo o mínimo de barulho possível. Os mon-
stros inferiores mantinham uma distância respeitosa dos titãs, por
isso havia espaço vazio suficiente para se mover ao redor das Portas;
mas Percy estava bem consciente da multidão que rosnava às suas
costas.
Annabeth decidira ir para o lado guardado por Hiperíon, pois
imaginara que o titã sentiria a presença de Percy mais facilmente.
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Afinal de contas, o garoto fora o último a matá-lo no mundo mortal.
Ele não se opôs. Depois de tanto tempo no Tártaro, mal conseguia ol-
har para a armadura dourada de Hiperíon sem que pontos escuros
surgissem em sua visão.
Do outro lado das Portas, Crios estava parado, sombrio e silen-
cioso, com o elmo de cabeça de carneiro cobrindo seu rosto.
Mantinha um pé no gancho das correntes e o polegar no botão SUBIR.
Bob encarou os irmãos. Plantou a lança no chão e tentou parecer
o mais feroz possível com um gatinho no ombro.
-- Hiperíon e Crios. Eu me lembro de vocês.
-- É mesmo, Jápeto? -- O titã dourado riu, olhando na direção de
Crios para dividir a piada. -- É bom saber disso! Soube que Percy
Jackson fez uma lavagem cerebral em você e o transformou em uma
empregadinha. Como ele rebatizou você... Betty?
-- Bob -- rosnou ele.
-- Bem, já era hora de você aparecer, Bob. Crios e eu estamos
presos aqui há meses...
-- Semanas -- corrigiu Crios.
Sua voz era um retumbar profundo no interior do elmo.
-- Não importa! -- disse Hiperíon. -- É um trabalho entediante:
guardar estas portas, fazer os monstros passarem por elas e seguir as
ordens de Gaia. Falando nisso... Crios, qual é o próximo grupo?
-- Vermelho Duplo -- respondeu Crios.
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Hiperíon deu um suspiro. As chamas brilharam mais quentes em
seus ombros.
-- Vermelho Duplo. Por que vamos de A-22 para Vermelho
Duplo? Que espécie de sistema é esse? -- Ele olhou para Bob. -- Isso
não é trabalho para mim... o Senhor da Luz! O titã do leste! Mestre
do Alvorecer! Por que sou obrigado a esperar na escuridão enquanto
os gigantes vão para a batalha e ficam com toda a glória? Agora, Cri-
os eu posso até entender...
-- Sempre fico com as piores tarefas -- murmurou Crios sem tirar
o dedo do botão.
-- Mas eu? -- disse Hiperíon. -- Ridículo! Este devia ser seu tra-
balho, Jápeto. Venha, fique no meu lugar.
Bob encarava as Portas, mas seu olhar estava distante, perdido no
passado.
-- Nós quatro seguramos Urano -- recordou ele. -- Eu, Coio e vo-
cês dois. Cronos nos prometeu os quatro cantos do mundo por ajudá-
lo a assassinar nosso pai.
-- É verdade -- disse Hiperíon. -- E eu gostei muito de fazer
aquilo! Teria usado a foice eu mesmo se tivesse tido a chance! Mas
você, Bob... você sempre esteve em dúvida sobre matá-lo, não é? O
titã gentil do oeste, fraco como o pôr do sol! Nunca vou conseguir en-
tender por que nossos pais o chamaram de Empalador. Está mais
para Chorão.
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Percy se abaixou ao lado do gancho. Tirou a tampa da caneta e
Contracorrente voltou à forma original. Crios não reagiu. Sua atenção
estava muito concentrada em Bob, que tinha apontado a lança para o
peito de Hiperíon.
-- Ainda posso empalar -- disse Bob, com a voz baixa e
firme. -- Você se gaba demais, Hiperíon. É forte e bravo, mas Percy
Jackson o derrotou mesmo assim. Soube que você virou uma árvore
linda no Central Park.
Os olhos de Hiperíon flamejaram.
-- Cuidado, irmão.
-- Pelo menos o trabalho de zelador é honesto -- disse Bob. -- Eu
limpo a lambança dos outros. Deixo o palácio mais bonito do que
quando o encontro. Mas você... você não liga para as cagadas que faz.
Seguiu Cronos cegamente. Agora recebe ordens de Gaia.
-- Ela é nossa mãe! -- berrou Hiperíon.
-- Mas não despertou para nossa guerra no Olimpo -- lembrou
Bob. -- Ela prefere seus outros filhos, os gigantes.
Crios resmungou.
-- Isso é bem verdade. Os filhos das profundezas.
-- Vocês dois, calem a boca! -- A voz de Hiperíon estava cheia de
medo. -- Nunca se sabe quando ele está ouvindo.
A campainha do elevador soou. Os três titãs pularam de susto.
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Já tinham se passado doze minutos? Percy havia perdido a noção
do tempo. Crios tirou o dedo do botão e chamou:
-- Vermelho Duplo! Onde está o Vermelho Duplo?
Grupos de monstros se agitaram e empurraram uns aos outros,
mas nenhum deles se aproximou.
Crios suspirou.
-- Eu disse a eles para conferirem os bilhetes. Vermelho Duplo!
Vocês vão perder o lugar na fila!
Annabeth estava pronta, posicionada bem atrás de Hiperíon. Ela
ergueu a espada de osso de drakon acima da base das correntes. Sob
a luz brilhante da armadura do titã, a Névoa da Morte a deixava pare-
cida com um ghoul em chamas.
Ela ergueu três dedos, pronta para fazer a contagem regressiva.
Tinham que cortar as correntes antes que o grupo seguinte tentasse
entrar no elevador, mas também precisavam se assegurar de que os
titãs estivessem o mais distraídos possível.
Hiperíon praguejou baixinho.
-- Que maravilha! Isso vai atrapalhar completamente o crono-
grama. -- Ele sorriu com desdém para Bob. -- Faça sua escolha,
irmão. Lute contra nós ou nos ajude. Não tenho tempo para suas
lições de moral.
Bob olhou de esguelha para Annabeth e Percy. Percy achou que
ele fosse começar uma briga, mas em vez disso, levantou a lança.
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-- Está bem. Eu fico de vigia. Qual de vocês quer tirar uma folga
primeiro?
-- Eu, é claro -- disse Hiperíon.
-- Eu! -- rebateu Crios. -- Estou segurando este botão há tanto
tempo que meu polegar vai cair.
-- Estou em pé aqui há mais tempo -- resmungou Hiper-
íon. -- Vocês dois vigiem as Portas enquanto eu vou para o mundo
mortal. Tenho que me vingar de alguns heróis gregos!
-- Ah, não! -- reclamou Crios. -- Aquele garoto romano está a
caminho de Épiro, aquele que me matou no Monte Otris. Ele teve
muita sorte. Agora é minha vez.
-- Ah! -- Hiperíon sacou a espada. -- Vou arrancar suas tripas
antes, cabeça de carneiro!
Crios ergueu a própria espada.
-- Você pode tentar, mas não vou ficar mais tempo preso neste
buraco fedorento!
Annabeth olhou nos olhos de Percy e falou sem emitir nenhum
som: Um, dois...
Antes que ele pudesse acertar as correntes, um silvo agudo per-
furou seus ouvidos, como o som de um foguete se aproximando.
Percy só teve tempo de pensar: Ah, ah, antes de uma explosão abalar
toda a encosta. Uma onda de calor o derrubou no chão. Estilhaços
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pretos atravessaram Crios e Hiperíon, despedaçando-os tão facil-
mente como papel em um triturador.
Uma voz inexpressiva ecoou pela vastidão, abalando o solo quente
e carnoso.
BURACO FEDORENTO.
Bob cambaleou, mas conseguiu permanecer de pé. De alguma
forma, a explosão não atingira o titã. Ele agitava a lança à sua frente,
tentando localizar a origem da voz. Bob Pequeno, o gatinho, desceu
de seu ombro e se escondeu dentro do uniforme.
Annabeth tinha aterrissado a uns cinco metros das Portas.
Quando conseguiu se levantar, Percy ficou tão aliviado ao vê-la viva
que levou um tempo para se dar conta de que ela estava com sua
aparência normal. A Névoa da Morte tinha evaporado.
Ele olhou para as próprias mãos. Seu disfarce também tinha
desaparecido.
TITÃS, disse a voz, cheia de desdém. SERES INFERIORES. IMPERFEITOS
E FRACOS.

Em frente às Portas da Morte, o ar escureceu e se solidificou. O
ser que apareceu era tão grande e irradiava tanta maldade que Percy
teve vontade de rastejar para longe e se esconder.
Em vez disso, forçou-se a olhar para o deus, começando por suas
botas de ferro negro, grandes como um caixão. As pernas estavam
protegidas por grevas negras; o corpo era musculoso e a pele, roxa e
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grossa como o chão. O saiote da armadura era feito de milhares de
ossos retorcidos e enegrecidos, unidos como os elos de uma corrente.
Ele era preso por um cinto de braços monstruosos entrelaçados.
No peitoral do guerreiro, gigantes, ciclopes, górgonas e drakons
se comprimiam, suas faces borradas se alternando na superfície
como se tentassem sair.
Os braços do guerreiro -- musculosos, roxos e reluzentes -- es-
tavam nus, as mãos grandes como pás de escavadeira.
Mas o pior de tudo era a cabeça: um elmo de rocha e metal retor-
cidos e sem forma aparente, apenas pontas irregulares e pedaços
pulsantes de magma. Todo o seu rosto era um redemoinho; uma es-
piral de escuridão. Enquanto Percy observava, as últimas partículas
da essência de titã de Hiperíon e Crios foram aspiradas pelo
guerreiro.
De algum modo, Percy conseguiu falar:
-- Tártaro.
O guerreiro produziu um som como o de uma montanha se
partindo ao meio. Percy ficou na dúvida se aquilo era um rugido ou
uma risada.
Esta forma é apenas uma pequena manifestação de meu poder,
disse o deus. Mas é o suficiente para lidar com vocês. Não costumo
interferir, pequeno semideus. Lidar com insetos como vocês não es-
tá à minha altura.
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-- Hã... -- As pernas de Percy estavam à beira do colapso. -- O
senhor... hum... não precisa se incomodar.
Vocês demonstraram ser surpreendentemente resistentes, disse
Tártaro. Chegaram muito longe. Não posso mais apenas observar
seu progresso.
Tártaro abriu os braços. Por todo o vale, milhares de monstros
uivaram e rugiram, batendo suas armas e gritando em triunfo. As
Portas da Morte estremeceram nas correntes.
Sintam-se honrados, pequenos semideuses, disse o deus das pro-
fundezas. Nem mesmo os olimpianos mereceram minha atenção.
Mas vocês... Vocês serão destruídos pelo próprio Tártaro!
LXV




FRANK

FRANK ESPERAVA FOGOS DE ARTIFÍCIO.
Ou ao menos um grande cartaz dizendo: BEM-VINDO AO LAR!
Três mil anos antes, seu ancestral grego -- o bom e velho Pericli-
meno, o metamorfo -- navegara para o leste com os Argonautas.
Séculos mais tarde, os descendentes de Periclimeno serviram nas le-
giões romanas orientais. Então, devido a uma série de desventuras, a
família acabou na China, finalmente emigrando para o Canadá no
século XX. Agora, Frank estava de volta à Grécia, o que significava
que a família Zhang fizera a volta ao mundo.
Parecia ser motivo de comemoração, embora o único comitê de
boas-vindas fosse um bando de harpias selvagens e famintas que ata-
caram o navio. Frank se sentiu mal ao abatê-las com seu arco. Não
parava de pensar em Ella, a amiga harpia assustadoramente inteli-
gente de Portland. Mas aquelas harpias não eram Ella e alegremente
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teriam arrancado seu rosto. Assim, ele as reduziu a nuvens de poeira
e penas.
A paisagem grega abaixo era tão inóspita quanto as harpias. As
colinas eram cobertas de pedras e cedros atrofiados que tremulavam
no ar nebuloso. O sol ardia como se estivesse tentando transformar o
campo em um escudo de bronze celestial. Mesmo a trinta metros de
altura, podia ouvir as cigarras zumbindo nas árvores, um barulho
sonolento e sobrenatural que fazia seus olhos pesarem. Até mesmo as
vozes do deus da guerra dentro de sua cabeça pareciam ter cochilado.
Mal incomodaram Frank desde que a tripulação chegara à Grécia.
O suor escorria pelo seu pescoço. Após ter sido congelado no con-
vés inferior pela louca deusa da neve, Frank pensou que nunca vol-
taria a se aquecer outra vez, mas agora as costas de sua camisa es-
tavam encharcadas.
-- Quente e úmido! -- Leo sorriu ao leme. -- Isso me dá saudades
de Houston! O que me diz, Hazel? Tudo o que precisamos agora são
alguns mosquitos gigantes e sentiremos como se estivéssemos na
Costa do Golfo!
-- Muito obrigada, Leo -- resmungou Hazel. -- Provavelmente
agora seremos atacados por mosquitos monstros da Grécia Antiga.
Frank os observou, admirando silenciosamente como a tensão
entre os dois desaparecera. Não sabia o que tinha acontecido com
Leo durante seus cinco dias de exílio, mas aquilo o mudara. Ainda
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fazia brincadeiras, mas Frank sentia que o filho de Hefesto estava
diferente, como um navio com uma nova quilha. Talvez não pudesse
ver a quilha, mas sabia que estava lá pela maneira como o barco
fendia as ondas.
Leo não parecia tão focado em provocá-lo. Conversava com mais
facilidade com Hazel, sem os olhares melancólicos e vagos que tanto
incomodavam Frank.
A garota indicara o problema em uma conversa entre os dois:
"Ele está apaixonado por alguém."
Frank estava incrédulo.
"Como? Onde? Como você pode saber?"
Hazel sorrira.
"Apenas sei."
Como se fosse uma filha de Vênus em vez de Plutão. Frank não
entendeu.
É claro que ficou aliviado por Leo não estar dando em cima de sua
namorada, mas Frank também estava um tanto preocupado com ele.
Claro, tinham as suas diferenças, mas depois de tudo o que passaram
juntos, não queria ver Leo ter seu coração partido.
-- Ali!
A voz de Nico tirou Frank de seu devaneio. Como sempre, Di An-
gelo estava empoleirado no topo do mastro. Apontou para um rio
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verde e brilhante que serpenteava pelas colinas a um quilômetro de
distância.
-- Leve-nos até lá. Estamos perto do templo. Muito perto.
Como que para confirmar sua informação, um raio negro atraves-
sou o céu, deixando manchas escuras diante dos olhos de Frank e
eriçando os pelos de seus braços.
Jason atou o cinto da espada.
-- Pessoal, peguem suas armas. Leo, leve-nos para perto, mas não
aterrisse. Nenhum contato com o solo além do necessário. Piper e
Hazel, peguem os cabos de ancoragem.
-- Agora mesmo! -- exclamou Piper.
Hazel deu um beijinho na bochecha de Frank e correu para
ajudar.
-- Frank -- disse Jason. -- Vá lá embaixo e chame o treinador
Hedge.
-- O.k.!
Ele desceu as escadas e dirigiu-se à cabine de Hedge. Ao se aprox-
imar da porta, diminuiu os passos. Não queria surpreender o sátiro
com barulho. O treinador Hedge tinha o hábito de pular no corredor
sacudindo seu taco de beisebol se achasse que havia invasores a
bordo. Frank quase teve a cabeça arrancada algumas vezes a caminho
do banheiro.
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Ergueu a mão para bater. Então, percebeu que a porta estava en-
treaberta. Ouviu o treinador Hedge falando lá dentro.
-- Vamos lá, meu bem! -- disse o sátiro. -- Sabe que não é assim!
Frank congelou. Não queria bisbilhotar, mas não sabia o que
fazer. Hazel mencionara estar preocupada com o treinador. Insistia
em dizer que algo o estava incomodando, mas Frank não tinha
pensado muito naquilo até então.
Nunca ouvira o treinador falar com tanta delicadeza. Normal-
mente, os únicos sons que Frank ouvia sair da cabine do treinador
eram de eventos esportivos na tevê, ou o treinador gritando: "É!
Pegue todos eles!" enquanto assistia a seus filmes favoritos de artes
marciais. Frank tinha certeza de que o treinador não estaria chaman-
do Chuck Norris de meu bem.
Ouviu-se outra voz. Feminina, embora quase inaudível, como se
viesse de muito longe.
-- Eu vou -- prometeu o treinador Hedge. -- Mas, hã, estamos a
caminho de uma batalha -- pigarreou. -- E pode ser feia. Apenas
fique em segurança. Eu voltarei. Prometo.
Frank não conseguiu aguentar mais. Bateu com força.
-- Ei, treinador?
A conversa parou.
Frank contou até seis. A porta foi aberta com violência.
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O treinador Hedge olhou feio para ele, com olhos injetados de
sangue, como se estivesse vendo muita tevê. Usava o boné de beise-
bol de costume e um short de ginástica, com uma armadura de couro
sobre a camisa e o apito pendurado ao pescoço, talvez para marcar
uma falta contra os exércitos de monstros.
-- Zhang. O que você quer?
-- Hã... estamos nos preparando para a batalha. Precisamos de
você no convés.
O cavanhaque do treinador estremeceu.
-- É. Claro que precisam.
Parecia estranhamente indiferente diante da possibilidade de
uma batalha.
-- Não queria... quer dizer, ouvi você falando -- gaguejou
Frank. -- Você estava enviando uma mensagem de Íris?
Hedge parecia a ponto de dar um tapa na cara dele, ou ao menos
soprar o apito bem alto. Então, seus ombros tombaram. Suspirou e
voltou para dentro da cabine, deixando Frank em pé e sem saber o
que fazer.
O treinador sentou em seu beliche, apoiou o queixo na mão em
concha e examinou a cabine com um olhar melancólico. O lugar
parecia um dormitório de faculdade depois de um furacão, o chão
coberto de roupas (talvez para usar, talvez para comer. Era difícil
saber quando o assunto eram sátiros), DVDs e pratos sujos espalhados
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sobre a cômoda em volta da tevê. Toda vez que o navio balançava,
uma variedade de equipamentos esportivos rolava pelo chão: bolas
de futebol, de basquete, de beisebol e, por algum motivo, uma única
bola de bilhar. Tufos de pelo de bode flutuavam pelo ar e se acumu-
lavam embolados sob os móveis. Se juntasse todos os tufos, dava
para fazer outro treinador Hedge.
Na mesa de cabeceira dele, havia uma tigela de água, uma pilha
de dracmas de ouro, uma lanterna, e um prisma de vidro para
produzir arco-íris. Obviamente, Hedge viera preparado para enviar
um monte de mensagens de Íris.
Frank lembrou que Piper lhe contara sobre a namorada ninfa do
vento do treinador, que trabalhara para o pai de Piper. Qual era
mesmo o nome dela...? Melinda? Mili...? Não, Mellie.
-- Hum, Mellie, sua namorada, está bem? -- arriscou Frank.
-- Não é da sua conta! -- rebateu o treinador.
-- Certo.
Hedge revirou os olhos.
-- Tudo bem! Se quer saber, sim, estava conversando com Mellie.
Mas ela não é mais a minha namorada.
-- Ah. -- Frank sentiu um peso no coração. -- Vocês se
separaram?
-- Não, seu idiota! Nós nos casamos! Ela é minha esposa!
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Frank teria ficado menos surpreso se o treinador tivesse lhe dado
um tapa.
-- Treinador, isso... isso é ótimo! Quando... como?
-- Não é da sua conta! -- gritou outra vez.
-- Hum... tudo bem.
-- Fim de maio -- disse o treinador. -- Pouco antes da partida do
Argo II. Não queríamos chamar muita atenção.
Frank sentiu como se o navio estivesse inclinando novamente,
mas devia ser apenas impressão sua. O equipamento esportivo con-
tinuava acumulado contra a parede oposta.
O treinador estivera casado todo aquele tempo? Apesar de recém-
casado, concordara em vir naquela missão. Não admira que Hedge
tenha ligado tantas vezes para casa. Não era à toa que estava tão mal-
humorado e agressivo.
Ainda assim... Frank sentia que algo mais estava acontecendo. O
tom de voz do treinador durante a mensagem de Íris dava a entender
que estavam discutindo um problema.
-- Não queria me meter -- disse Frank. -- Mas... ela está bem?
-- Era uma conversa particular!
-- É. Você está certo.
-- Tudo bem! Vou lhe dizer.
Hedge arrancou um pouco de pelo de sua coxa e deixou-o flutuar
no ar.
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-- Ela tirou licença de seu trabalho em Los Angeles e foi passar o
verão no Acampamento Meio-Sangue porque achamos que... -- Sua
voz falhou. -- Achamos que seria mais seguro. Agora ela está presa lá,
com os romanos prestes a atacar. Ela está... está muito assustada.
Frank se deu conta do emblema de centurião em sua camisa, da
tatuagem SPQR em seu antebraço.
-- Desculpe -- murmurou ele. -- Mas se ela é um espírito do
vento, não poderia apenas... você sabe, flutuar?
O treinador fechou os dedos em torno do cabo de seu taco de
beisebol.
-- Normalmente sim. Mas veja... ela está em uma condição del-
icada. Não seria seguro.
-- Condição delicada... -- Os olhos de Frank se ar-
regalaram. -- Ela vai ter um bebê? Você vai ser pai?
-- Grite um pouco mais alto -- resmungou Hedge. -- Acho que
não ouviram você na Croácia.
Frank não pôde deixar de sorrir.
-- Mas, treinador, isso é incrível! Um pequeno bebê sátiro? Ou
talvez uma ninfa? Você será um pai fantástico.
Frank não sabia por que, considerando o amor do treinador por
bastões de beisebol e chutes à Chuck Norris, mas tinha certeza que
sim.
O treinador Hedge ficou com uma cara ainda mais feia.
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-- A guerra está a caminho, Zhang. Nenhum lugar é seguro. Eu
deveria estar lá com Mellie. Se tiver de morrer em algum lugar...
-- Ei, ninguém vai morrer -- disse Frank.
Hedge olhou no fundo dos olhos do garoto. Ele podia ver que o
treinador não acreditava nele.
-- Sempre tive um fraco pelos filhos de Ares -- resmungou
Hedge. -- Ou Marte, como queira. Talvez por isso não o tenha pulver-
izado por fazer tantas perguntas.
-- Mas eu não estava...
-- Tudo bem, vou lhe contar! -- Hedge suspirou nova-
mente. -- Quando eu estava em minha primeira missão como investi-
gador, no interior do Arizona, trouxe uma menina chamada Clarisse.
-- Clarisse?
-- Sua irmã -- disse Hedge. -- Filha de Ares. Violenta. Rude.
Muito potencial. Enfim, enquanto estava fora, sonhei com a minha
mãe. Ela... ela era uma ninfa do vento, como Mellie. Sonhei que ela
estava em perigo e precisava de minha ajuda imediata. Mas eu disse a
mim mesmo: Não, é apenas um sonho. Quem faria mal a uma velha
e doce ninfa do vento? Além disso, preciso levar esta meio-sangue
para um lugar seguro. Então, terminei a minha missão, levei
Clarisse para o Acampamento Meio-Sangue. Depois, fui à procura de
minha mãe. Era tarde demais.
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Frank observou o tufo de pelo de bode pousar sobre uma bola de
basquete.
-- O que aconteceu com ela?
Hedge deu de ombros.
-- Não faço ideia. Nunca mais a vi. Talvez, se estivesse com ela, se
eu tivesse voltado mais cedo...
Frank queria dizer algo reconfortante, mas não tinha certeza do
quê. Perdera a mãe na guerra do Afeganistão e sabia quão vazias as
palavras sinto muito podiam soar.
-- Você estava fazendo o seu trabalho -- disse Frank. -- Salvou a
vida de uma semideusa.
-- Agora -- resmungou Hedge --, minha mulher e meu filho
ainda não nascido estão em perigo, do outro lado do mundo, e nada
posso fazer para ajudar.
-- Você está fazendo -- disse Frank. -- Estamos aqui para impedir
que os gigantes despertem Gaia. Essa é a melhor maneira de manter
nossos amigos a salvo.
-- É. É, acho que sim.
Frank queria poder fazer mais para animar Hedge, mas aquela
conversa estava fazendo com que se preocupasse com todos os outros
que deixara para trás. Ele se perguntou quem estaria defendendo o
Acampamento Júpiter agora que a legião marchara para leste, espe-
cialmente com todos os monstros que Gaia estava libertando pelas
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Portas da Morte. Ele se preocupava com seus amigos na Quinta
Coorte, e como deveriam estar se sentindo com Octavian ordenando-
os a marchar contra o Acampamento Meio-Sangue. Frank queria es-
tar lá, nem que fosse para enfiar um ursinho de pelúcia na garganta
daquele áugure desprezível.
O navio embicou. O equipamento esportivo rolou para baixo do
beliche do treinador.
-- Estamos descendo -- disse Hedge. -- É melhor subirmos ao
convés.
-- Sim -- disse Frank, com a voz rouca.
-- Você é um romano intrometido, Zhang.
-- Mas...
-- Vamos lá -- disse Hedge. -- E nem uma palavra sobre isso para
os outros, seu fofoqueiro.

***

Enquanto os outros fixavam as amarras aéreas, Leo pegou Frank e
Hazel pelos braços. Ele os arrastou até a balista de proa.
-- Muito bem, eis o plano.
Hazel estreitou os olhos.
-- Eu odeio os seus planos.
-- Preciso daquele graveto mágico -- disse Leo. -- Rápido!
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Frank quase engasgou com a própria língua. Hazel recuou,
cobrindo instintivamente o bolso do casaco.
-- Leo, você não pode...
-- Encontrei uma solução. -- Leo voltou-se para Frank. -- A de-
cisão é sua, grandalhão, mas posso protegê-lo.
Frank pensou em quantas vezes vira os dedos de Leo explodirem
em chamas. Um movimento em falso e ele poderia incinerar o pedaço
de lenha que controlava a vida de Frank.
Mas, por algum motivo, Frank não estava aterrorizado. Desde que
enfrentara os monstros bovinos em Veneza, ele mal pensara em sua
frágil linha da vida. Sim, qualquer fagulha poderia matá-lo. Mas tam-
bém sobrevivera a algumas coisas impossíveis e orgulhara seu pai.
Frank decidira que, não importava qual fosse o seu destino, não se
preocuparia com aquilo. Faria apenas o melhor que pudesse para
ajudar os amigos.
Além disso, Leo parecia sério. Seus olhos ainda estavam repletos
de uma estranha melancolia, como se estivesse em dois lugares ao
mesmo tempo, mas nada em sua expressão indicava qualquer tipo de
brincadeira.
-- Vá em frente, Hazel -- disse Frank.
-- Mas... -- Hazel suspirou profundamente. -- Tudo bem.
Ela pegou o pedaço de lenha e entregou-o para Leo.
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Nas mãos de Leo, não parecia muito maior do que uma chave de
fenda. A lenha ainda estava carbonizada em um lado, usado por
Frank para queimar as correntes de gelo que prendiam o deus Tân-
atos no Alasca.
De um bolso de seu cinto de ferramentas, Leo tirou um pedaço de
pano branco.
-- Vejam!
Frank fez uma careta.
-- Um lenço?
-- Uma bandeira de rendição? -- adivinhou Hazel.
-- Não, homens de pouca fé! -- disse Leo. -- Esta bolsa é feita com
um tecido muito legal, presente de uma amiga.
Leo guardou o pedaço de lenha na bolsa e fechou o cordão de
bronze com um laço.
-- O cordão foi ideia minha -- disse Leo com orgulho. -- Deu al-
gum trabalho adaptá-lo ao tecido, mas a bolsa não abrirá a não ser
que você queira. O tecido respira como pano comum, de modo que a
lenha não ficará mais abafada do que estaria no bolso do casaco de
Hazel.
-- Hum... -- disse ela. -- Então, qual a novidade?
-- Segure isso para você não enfartar.
Leo jogou a bolsa para Frank, que quase a deixou cair no chão.
Em seguida invocou uma bola de fogo branco em sua mão direita.
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Estendeu o antebraço esquerdo, sorrindo, enquanto as chamas lam-
biam a manga de seu casaco.
-- Estão vendo? -- disse ele. -- Não queima!
Frank não queria discutir com um sujeito que segurava uma bola
de fogo, mas respondeu:
-- Hã... você é imune às chamas.
Leo revirou os olhos.
-- Sim, mas tenho que me concentrar para que minhas roupas
não queimem. E eu não estou me concentrando, viu? Esse pano é
totalmente à prova de fogo. O que significa que sua lenha não quei-
mará dentro dessa bolsa.
Hazel não parecia convencida.
-- Como você pode ter certeza?
-- Nossa, que público incrédulo. -- Leo apagou o fogo. -- Creio
que só há uma maneira de convencê-lo. -- Ele estendeu a mão para
Frank.
-- Ah, não, não.
Frank recuou. Subitamente, todos aqueles pensamentos corajosos
sobre aceitar seu destino pareceram-lhe muito distantes.
-- Tudo bem, Leo. Obrigado, mas eu... eu não posso...
-- Cara, você precisa confiar em mim.
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O coração de Frank disparou. Será que confiava em Leo? Bem,
com certeza... com um motor. Para dar um trote. Mas com a sua
vida?
Lembrou-se do dia em que ficaram presos na fábrica subterrânea
em Roma. Gaia prometera que morreriam naquele lugar. Leo pro-
metera que tiraria Hazel e Frank daquela armadilha. E tirou.
Agora, Leo falava com a mesma confiança.
-- Muito bem. -- Frank entregou a bolsa para Leo. -- Tente não
me matar.
A mão de Leo se encheu de chamas. A bolsa não escureceu nem
queimou.
Frank esperava que algo desse terrivelmente errado. Contou até
vinte, mas ainda estava vivo. Sentia-se como se houvesse um bloco de
gelo derretendo logo atrás de seu esterno, um pedaço de medo conge-
lado ao qual estava tão acostumado que nem sequer se dera conta
dele até ter desaparecido.
Leo apagou o fogo. Ele levantou as sobrancelhas para Frank.
-- Quem é o seu melhor amigo?
-- Não responda esta pergunta -- disse Hazel. -- Mas, Leo, isso foi
incrível.
-- Foi, não é? -- concordou Leo. -- Então, quem quer ficar com
este agora-ultra-seguro pedaço de lenha?
-- Eu fico -- disse Frank.
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Hazel pressionou os lábios. Olhou para baixo para que Frank não
visse a mágoa em seus olhos. Ela protegera aquele pedaço de lenha
por uma série de árduas batalhas. Era um sinal de confiança entre
eles, um símbolo de seu relacionamento.
-- Hazel, não é por sua causa -- disse Frank, tão delicadamente
quanto podia. -- Não posso explicar, mas eu... eu tenho a impressão
de que precisarei tomar a iniciativa quando estivermos na Casa de
Hades. Preciso carregar o meu próprio fardo.
Os olhos dourados de Hazel estavam repletos de preocupação.
-- Entendo. Eu só... me preocupo.
Leo jogou a bolsa para Frank, que amarrou-a ao cinto. Sentia-se
estranho carregando seu defeito fatal tão abertamente, depois de
meses mantendo-o escondido.
-- Leo -- chamou ele. -- Obrigado.
Parecia pouco considerando o presente que lhe dera, mas Leo
sorriu.
-- Para isso que servem os amigos superdotados.
-- Ei, pessoal! -- gritou Piper da proa. -- É melhor virem até aqui.
Vocês precisam ver isso.

***

Eles encontraram a origem do raio negro.
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O Argo II pairava diretamente sobre o rio. A poucas centenas de
metros dali, no topo da colina mais próxima, havia um grupo de
ruínas. Não pareciam grande coisa, apenas alguns muros desmoron-
ados circundando as estruturas calcárias de um punhado de edifícios,
mas, de algum lugar dentro das ruínas, tentáculos de éter negro
erguiam-se em direção ao céu, como uma lula de fumaça espreitando
de sua caverna. Enquanto Frank observava, um raio de energia negra
cortou o ar, balançando o navio e lançando uma onda de choque fria
por toda a paisagem.
-- O Necromanteion -- disse Nico. -- A Casa de Hades.
Frank se equilibrou apoiando na amurada. Imaginou que era
tarde demais para sugerir que desistissem e estava começando a sen-
tir uma certa nostalgia quanto aos monstros que enfrentara em
Roma. Droga, caçar vacas venenosas em Veneza era mais legal do
que aquele lugar.
Piper se abraçou.
-- Eu me sinto vulnerável flutuando aqui assim. Não podemos
pousar no rio?
-- Não é uma boa ideia -- disse Hazel. -- Este é o Rio Aqueronte.
Jason estreitou os olhos, ofuscado pela luz do sol.
-- Eu achava que o Aqueronte corria no Mundo Inferior.
-- E corre -- disse Hazel. -- Mas a sua nascente fica no mundo
mortal. Este rio abaixo de nós? Flui para o subsolo, direto para o
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reino de Plutão... hã, de Hades. Desembarcar um navio de semi-
deuses nessas águas...
-- Sim, vamos ficar aqui em cima -- decidiu Leo. -- Não quero
água zumbi no meu casco.
Meio quilômetro rio abaixo, navegavam alguns barcos de pesca.
Frank imaginou que os pescadores não sabiam ou não se importavam
com a história daquele rio. Deve ser legal ser um mortal comum.
Ao lado de Frank, Nico di Angelo ergueu o cetro de Diocleciano.
Sua orbe brilhou com luz roxa, como se em sinal de solidariedade
com a tempestade escura. Relíquia romana ou não, o cetro inco-
modava Frank. Se realmente tinha o poder de convocar uma legião
de mortos... bem, Frank não tinha certeza se aquilo era uma ideia tão
boa assim.
Certa vez, Jason lhe dissera que os filhos de Marte tinham uma
habilidade similar. Supostamente, Frank poderia invocar soldados
fantasmas do lado perdedor de qualquer guerra para servi-lo. Nunca
tivera muita sorte com esse poder, provavelmente porque aquilo o
assustava bastante. Tinha medo de se tornar um dos fantasmas caso
perdesse a guerra, eternamente condenado a pagar por seus fracas-
sos, supondo que sobraria alguém para invocá-lo.
-- Então, hã, Nico... -- Frank apontou para o cetro. -- Você apren-
deu a usar esse treco?
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-- Vamos descobrir. -- Nico olhou para os tentáculos de escuridão
que emanavam das ruínas. -- Não pretendo tentar até ser necessário.
As Portas da Morte já estão fazendo hora extra para trazerem os
monstros de Gaia. Qualquer atividade a mais para trazer os mortos
de volta e as Portas podem ruir permanentemente, abrindo uma
fenda no mundo mortal que não poderá ser fechada.
-- Odeio fendas no mundo. -- resmungou o treinador
Hedge. -- Vamos cortar algumas cabeças de monstros.
Frank olhou para a expressão sombria do sátiro. Subitamente,
teve uma ideia.
-- Treinador, você deve ficar a bordo. Proteja-nos com as balistas.
Hedge fez uma careta.
-- Ficar para trás? Eu? Mas sou seu melhor soldado!
-- Podemos precisar de apoio aéreo -- disse Frank. -- Como fize-
mos em Roma. Você salvou as nossas braccae.
Ele não acrescentou: Além disso, gostaria que voltasse vivo para a
sua mulher e para o seu bebê.
O treinador aparentemente entendeu a mensagem. Sua carranca
relaxou. Seus olhos pareceram aliviados.
-- Bem -- resmungou --, suponho que alguém tenha de salvar as
suas braccae.
Jason deu um tapa no ombro do treinador. Então, meneou a
cabeça para Frank, agradecido.
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-- Então, está combinado. Todos os demais, vamos para as ruínas.
É hora de estragar a festa de Gaia.
LXVI




FRANK

APESAR DO CALOR DO MEIO-DIA e da furiosa tempestade de energia
mortal, havia um grupo de turistas nas ruínas. Felizmente, não eram
muitos e não deram muita atenção aos semideuses.
Após as multidões em Roma, Frank parara de se preocupar de-
mais com a possibilidade de serem notados. Se podiam entrar
voando no Coliseu com um navio de guerra e balistas em chamas sem
nem mesmo atrapalharem o tráfego, ele achava que podiam fazer
qualquer coisa.
Nico caminhava à frente do grupo. No topo da colina, escalaram
um velho muro de contenção e caíram do outro lado em uma
trincheira. Finalmente chegaram a um portal de pedra que levava
diretamente ao interior da colina. A tempestade mortal parecia se
originar bem acima de suas cabeças. Olhando para o turbilhão de
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tentáculos de escuridão, Frank sentiu como se estivesse preso no
fundo de uma privada. Aquilo realmente não acalmou seus nervos.
Nico encarou o grupo.
-- A partir daqui, fica difícil.
-- Legal -- disse Leo. -- Porque até agora estou achando tudo uma
moleza.
Nico olhou para ele.
-- Vamos ver por quanto tempo você mantém o senso de humor.
Lembrem-se, este é o lugar aonde os peregrinos vinham comungar
com seus antepassados mortos. No subsolo, vocês poderão ver coisas
que são difíceis de olhar, ou ouvir vozes que tentarão fazê-los se per-
derem nos túneis. Frank, você trouxe os bolos de cevada?
-- O quê?
Frank estava pensando em sua avó e em sua mãe, perguntando-se
se elas poderiam aparecer para ele. Pela primeira vez em dias, as
vozes de Ares e Marte voltaram a discutir no fundo de sua mente, de-
batendo suas formas favoritas de morte violenta.
-- Eu trouxe os bolos -- disse Hazel e pegou os biscoitos de cevada
mágica que fizeram com os grãos que Triptólemo lhes dera em
Veneza.
-- Comam -- aconselhou Nico.
Frank mordeu o biscoito da morte e tentou não engasgar. Parecia
que era feito de serragem em vez de açúcar.
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-- Eca! -- exclamou Piper. Até mesmo uma filha de Afrodite não
conseguiu evitar fazer uma careta.
-- Muito bem. -- Nico engoliu o restante da cevada. -- Isso deve
nos proteger do veneno.
-- Veneno? -- perguntou Leo. -- Perdi a parte do veneno? Porque
eu adoro veneno.
-- Logo -- prometeu Nico. -- Apenas fiquem juntos e talvez pos-
samos evitar ficarmos perdidos ou loucos.
Com essa feliz observação, Nico os guiou para o subterrâneo.
O túnel descia em uma espiral suave, o teto sustentado por arcos
de pedra branca que faziam Frank se lembrar da caixa torácica de
uma baleia.
Enquanto caminhavam, Hazel passou a mão pela parede.
-- Isso não faz parte do templo -- murmurou. -- Isso era... o
porão de uma casa senhorial, construída em tempos gregos
posteriores.
Frank achava estranho como Hazel poderia saber tanto a respeito
de um lugar no subterrâneo apenas estando ali. E ela nunca se
enganara.
-- Uma mansão? -- perguntou ele. -- Por favor, não me diga que
estamos no lugar errado.
-- A Casa de Hades fica mais abaixo -- assegurou Nico. -- Mas
Hazel está certa, o nível onde estamos agora é muito mais recente.
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Quando os primeiros arqueólogos descobriram este lugar, pensaram
ter encontrado o Necromanteion. Então perceberam que as ruínas
eram muito recentes, e decidiram que estavam no lugar errado. Mas
estavam certos. Apenas não cavaram fundo o bastante.
Todos dobraram uma esquina e pararam. À frente deles, o túnel
terminava em um enorme bloco de pedra.
-- Um desmoronamento? -- perguntou Jason.
-- Um teste -- disse Nico. -- Hazel, você faria as honras?
Hazel deu um passo à frente. Ela colocou a mão sobre a rocha e o
bloco de pedra virou pó.
O túnel estremeceu. Rachaduras se espalharam pelo teto. Por um
momento aterrorizante, Frank imaginou que seriam esmagados por
toneladas de terra -- uma forma decepcionante para se morrer de-
pois de tudo que tinham passado. Então, o ruído parou. A poeira
baixou.
Uma escada circular penetrava mais profundamente na terra. O
teto abobadado era sustentado por mais fileiras de arcos, estes mais
próximos uns dos outros e esculpidos em pedra negra polida. Os ar-
cos fizeram Frank se sentir tonto, como se estivesse olhando para um
espelho que refletia infinitamente a mesma imagem. Nas paredes
havia pinturas rústicas de gado negro marchando para baixo.
-- Eu realmente não gosto de vacas -- resmungou Piper.
-- Concordo -- disse Frank.
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-- Esse é o gado de Hades -- disse Nico. -- É apenas um símbolo
de...
-- Vejam -- apontou Frank.
No primeiro degrau da escada, brilhava um cálice dourado. Frank
tinha certeza de que aquilo não estava ali havia pouco. O cálice estava
cheio de um líquido verde-escuro.
-- Uhul! -- comentou Leo sem entusiasmo. -- Suponho que este
seja nosso veneno.
Nico pegou o cálice.
-- Nós estamos na antiga entrada do Necromanteion. Odisseu es-
teve aqui, assim como dezenas de outros heróis, buscando o conselho
dos mortos.
-- Será que os mortos os aconselharam a irem embora imediata-
mente? -- perguntou Leo.
-- Eu adoraria isso -- admitiu Piper.
Nico bebeu do cálice e, em seguida, ofereceu-o para Jason.
-- Você me falou sobre confiança e assumir riscos? Bem, aqui es-
tá, filho de Júpiter. O quanto você confia em mim?
Frank não tinha ideia do que Nico estava falando, mas Jason não
hesitou. Ele pegou o cálice e bebeu.
Eles o passaram entre si, cada um tomando um gole do veneno.
Enquanto esperava sua vez, Frank tentou controlar o tremelique nas
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pernas e o intestino. Ele se perguntou o que sua avó diria caso
pudesse vê-lo.
Ela provavelmente o repreenderia: Fai Zhang, seu idiota! Se to-
dos os seus amigos bebessem veneno, você beberia também?
Frank foi o último. O sabor do líquido verde lembrou-lhe de suco
de maçã estragada. Ele esvaziou o cálice, que se transformou em fu-
maça em suas mãos.
Nico assentiu, aparentemente satisfeito.
-- Parabéns. Supondo que o veneno não nos mate, devemos con-
seguir abrir caminho através do primeiro nível do Necromanteion.
-- Apenas o primeiro nível? -- perguntou Piper.
Nico olhou para Hazel e apontou para a escadaria.
-- Depois de você, irmã.

***

Logo, Frank se sentiu completamente perdido. A escadaria se dividia
em três direções diferentes. Assim que Hazel escolhia um caminho, a
escadaria se dividia outra vez. Eles abriam caminho através de túneis
interligados e câmaras mortuárias toscas que pareciam iguais: nichos
empoeirados entalhados nas paredes que outrora deveriam ter abri-
gado cadáveres. Os arcos sobre os portais tinham pinturas retratando
gado preto, galhos de álamo-branco e corujas.
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-- Eu pensei que a coruja fosse o símbolo de Minerva -- murmur-
ou Jason.
-- A coruja é um dos animais sagrados de Hades -- disse
Nico. -- Seu pio é considerado um mau presságio.
-- Por aqui. -- Hazel apontou para um portal que parecia igual a
todos os outros. -- É o único que não vai desabar sobre nós.
-- Boa escolha, então -- disse Leo.
Frank começou a sentir que estavam deixando o mundo dos
vivos. Sua pele formigava, e ele se perguntou se aquilo seria um efeito
colateral do veneno. A bolsa com o graveto que trazia presa ao cinto
pareceu ficar mais pesada. Sob o brilho sobrenatural de suas armas
mágicas, seus amigos pareciam fantasmas bruxuleantes.
Ar frio açoitava seu rosto. Em sua mente, Ares e Marte estavam
em silêncio, mas Frank pensou ter ouvido outras vozes sussurrando
nos corredores laterais, chamando-o para sair de seu caminho e se
aproximar para ouvi-las falar.
Finalmente chegaram a um arco esculpido na forma de crânios
humanos -- ou talvez fossem crânios humanos incorporados à rocha.
Sob a luz roxa do cetro de Diocleciano, suas órbitas vazias pareciam
piscar.
Frank quase bateu no teto quando Hazel tocou em seu braço.
-- Essa é a entrada para o segundo nível -- disse ela. -- É melhor
eu dar uma olhada.
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Frank ainda não percebera que estava parado em frente ao portal.
-- Ah, sim.
Ele abriu caminho para Hazel.
A garota correu os dedos pelos crânios esculpidos.
-- Não há armadilhas na porta, mas... tem algo estranho aqui.
Minha sensibilidade subterrânea está... está difusa, como se alguém
estivesse tentando me atrapalhar, escondendo o que está à nossa
frente.
-- A feiticeira sobre a qual Hécate nos advertiu? -- adivinhou
Jason. -- Aquela que Leo viu em um sonho? Qual era o nome dela?
Hazel mordeu o lábio.
-- Seria mais seguro não dizê-lo em voz alta. Mas fiquem atentos.
De uma coisa tenho certeza: deste ponto em diante, os mortos são
mais poderosos do que os vivos.
Frank não estava certo de como Hazel sabia daquilo, mas acredit-
ou nela. As vozes na escuridão pareciam estar sussurrando mais alto.
Ele vislumbrou movimento nas sombras. Pelo modo como os olhos
de seus amigos se moviam, eles também deviam estar vendo coisas.
-- Onde estão os monstros? -- perguntou Frank em voz
alta. -- Achei que Gaia tivesse um exército defendendo as Portas.
-- Não sei -- disse Jason. Sua pele pálida parecia tão verde quanto
o veneno do cálice. -- Neste momento eu quase preferiria uma luta
aberta.
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-- Cuidado com o que deseja, cara.
Leo produziu uma bola de fogo em sua mão, e pela primeira vez
Frank ficou contente ao ver as chamas.
-- Pessoalmente, espero que não tenha ninguém em casa. Nós en-
tramos, encontramos Percy e Annabeth, destruímos as Portas da
Morte e saímos. Talvez possamos até dar uma passadinha na loja de
suvenir.
-- Claro -- disse Frank. -- Pode ir esperando.
O túnel estremeceu. Escombros caíram do teto.
Hazel agarrou a mão de Frank.
-- Essa foi por pouco -- murmurou ela. -- Estes portais não resi-
stirão por muito tempo.
-- As Portas da Morte acabam de se abrir novamente -- disse
Nico.
-- Está acontecendo a cada quinze minutos -- observou Piper.
-- A cada doze -- corrigiu Nico, embora não tenha explicado como
sabia daquilo. -- É melhor nos apressarmos. Percy e Annabeth estão
próximos. Estão em perigo. Posso sentir isso.
Quanto mais se aprofundavam, mais os corredores se alargavam.
O teto se erguia a mais de seis metros de altura e era decorado com
elaboradas pinturas de corujas pousadas em galhos de álamo-branco.
O espaço extra deveria ter feito Frank se sentir melhor, mas tudo em
que ele conseguia pensar era na parte estratégica. Os túneis eram
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largos o bastante para acomodar grandes monstros, até mesmo gi-
gantes. Havia cantos cegos em toda parte, o que era perfeito para em-
boscadas. O grupo poderia ser facilmente flanqueado e cercado. Eles
não tinham muitas chances de retirada.
Todos os instintos de Frank lhe diziam para sair daqueles túneis.
Se não havia monstros visíveis, isso só queria dizer que estavam
escondidos, esperando para desencadear uma armadilha. Apesar de
ele saber disso, não havia muito que pudesse fazer a respeito. Eles
precisavam mesmo chegar às Portas da Morte.
Leo aproximou o fogo das paredes. Frank viu pichações em grego
antigo na pedra. Ele não sabia ler essa língua, mas achava que eram
orações ou súplicas aos mortos, escritas pelos peregrinos há milhares
de anos. O chão do túnel estava repleto de cacos de cerâmica e
moedas de prata.
-- Oferendas? -- supôs Piper.
-- Sim -- disse Nico. -- Se você quisesse ver seus antepassados,
tinha que fazer uma oferenda.
-- Não vamos fazer uma oferenda -- sugeriu Jason.
Ninguém contestou.
-- O túnel a partir daqui é instável -- advertiu Hazel. -- O piso
pode... bem, apenas me sigam. Pisem exatamente onde eu pisar.
Ela avançou. Frank caminhou bem atrás dela, não porque se sen-
tisse particularmente corajoso, mas porque queria estar perto caso
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Hazel precisasse de ajuda. As vozes do deus da guerra estavam nova-
mente discutindo em sua mente. Ele podia sentir o perigo -- muito
perto agora.
Fai Zhang.
Ele parou. Aquela voz... não era Ares ou Marte. Parecia vir bem
do lado dele, como se alguém estivesse sussurrando em seu ouvido.
-- Frank? -- Jason sussurrou atrás dele. -- Hazel, espere um se-
gundo. Frank, o que há de errado?
-- Nada -- murmurou em resposta. -- Eu só...
Pilo, disse a voz. Eu o espero em Pilo.
Frank sentiu como se o veneno estivesse borbulhando de volta à
sua garganta. Ele já se assustara diversas vezes antes. Ele chegara a
enfrentar o deus da morte.
Mas aquela voz o aterrorizava de uma maneira diferente.
Ressoava até os ossos, como se soubesse tudo sobre ele: sua
maldição, sua história e seu futuro.
A avó sempre fizera questão de homenagear os antepassados. Era
uma coisa chinesa. Você tinha que apaziguar os fantasmas. Você
tinha que levá-los a sério.
Frank sempre achara que as superstições da avó eram tolices.
Agora, ele mudou de ideia. Ele não tinha nenhuma dúvida... a voz
que falara com ele era de um de seus antepassados.
-- Frank, não se mova.
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Hazel parecia alarmada.
Frank olhou para baixo e percebeu que estava prestes a sair da
trilha.
Para sobreviver, você deve liderar, disse a voz. Quando a opor-
tunidade surgir, você deve assumir o comando.
-- Liderar para onde? -- perguntou Frank em voz alta.
Então a voz se foi. Frank podia sentir a sua ausência, como se a
umidade do ar tivesse diminuído subitamente.
-- Hã, grandalhão? -- disse Leo. -- Você poderia tentar não sur-
tar? Por favor e obrigado.
Todos olhavam Frank com preocupação.
-- Estou bem -- conseguiu dizer. -- Foi só... uma voz.
Nico balançou a cabeça.
-- Eu avisei. Isso só vai piorar. Devemos...
Hazel ergueu a mão pedindo silêncio.
-- Esperem aqui.
Frank não gostou, mas ela seguiu em frente sozinha. Ele contou
até vinte e três antes de Hazel voltar, rosto compenetrado e
pensativo.
-- Lugar assustador adiante -- alertou. -- Não entrem em pânico.
-- Essas coisas não combinam -- murmurou Leo.
Mas todos seguiram Hazel até o interior da caverna.
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O lugar era como uma catedral circular, com um teto tão alto que
se perdia na escuridão. Dezenas de outros túneis levavam a direções
diferentes, cada um deles ecoando com vozes fantasmagóricas. O que
deixou Frank nervoso foi o chão. Era um mosaico assustador de os-
sos e pedras preciosas -- fêmures, pelves e costelas de humanos re-
torcidas e fundidas em uma superfície lisa, pontilhada de diamantes
e rubis. Os ossos formavam padrões, como contorcionistas esqueléti-
cos caídos juntos, curvando-se para proteger as pedras precio-
sas -- uma dança da morte e da riqueza.
-- Não toquem em nada -- disse Hazel.
-- Não planejava tocar -- murmurou Leo.
Jason examinou as saídas.
-- Qual o caminho agora?
Pela primeira vez, Nico pareceu incerto.
-- Esta deve ser a sala onde os sacerdotes invocavam os espíritos
mais poderosos. Uma dessas passagens leva ao terceiro nível e ao al-
tar do próprio Hades. Mas qual...?
Frank apontou.
-- Aquela.
Em um portal na extremidade oposta da sala, um fantasma le-
gionário romano acenava para eles. Seu rosto era enevoado e indis-
tinto, mas Frank teve a sensação de que o fantasma olhava direta-
mente para ele.
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Hazel franziu a testa.
-- Por que aquela?
-- Vocês não estão vendo o fantasma? -- perguntou Frank.
-- Fantasma? -- questionou Nico.
Certo... se Frank estava vendo um fantasma que os filhos do
Mundo Inferior não podiam ver, algo estava definitivamente errado.
Ele sentiu como se o chão vibrasse debaixo dele. Então percebeu que
estava mesmo vibrando.
-- Precisamos chegar àquele portal -- disse ele. -- Agora!
Hazel quase teve que agarrá-lo para contê-lo.
-- Espere, Frank! Este piso não é estável, e por baixo... bem, não
tenho certeza do que há por baixo. Preciso encontrar um caminho
seguro.
-- Depressa, então -- insistiu Frank.
Ele sacou o arco e seguiu Hazel tão rápido quanto tinha coragem
de fazê-lo. Leo foi logo atrás, para fornecer luz. Os outros guardavam
a retaguarda. Frank percebeu que estava assustando os amigos, mas
não podia evitar. Ele tinha certeza absoluta de que tinham apenas al-
guns segundos antes de...
À sua frente, o fantasma legionário se vaporizou. A caverna rever-
berou com monstruosos rugidos: dezenas, talvez centenas de inimi-
gos vindos de todas as direções. Frank reconheceu o rugido gutural
dos filhos da terra, o berro dos grifos, os gritos roucos dos
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ciclopes -- sons que o faziam se lembrar da Batalha de Nova Roma,
amplificados no subterrâneo, ecoando em sua cabeça ainda mais alto
do que as vozes do deus da guerra.
-- Hazel, não pare! -- ordenou Nico. Ele tirou o cetro de Dioc-
leciano do cinto. Piper e Jason sacaram suas espadas enquanto os
monstros invadiam a caverna.
Um grupo de seis filhos da terra arremessou uma saraivada de
pedras que partiu o chão de ossos e joias como se fosse gelo. Uma fis-
sura se abriu no centro da sala, aproximando-se em linha reta de Leo
e Hazel.
Não havia tempo para ser cauteloso. Frank saltou em direção aos
seus amigos, derrubando-os, e os três deslizaram através da caverna,
aterrissando no limiar do túnel do fantasma enquanto pedras e
lanças voavam sobre suas cabeças.
-- Vamos! -- gritou Frank. -- Vamos, vamos!
Hazel e Leo entraram no túnel, que parecia ser o único livre de
monstros. Frank não tinha certeza se aquilo era um bom sinal.
Depois de percorrerem dois metros, Leo virou-se.
-- Os outros!
Toda a caverna estremeceu. Frank olhou para trás e sua coragem
se esvaiu. No meio da caverna havia um abismo de quinze metros de
largura, com apenas duas frágeis pontes de ossos unindo as bordas. A
maior parte do exército de monstros estava do lado oposto, uivando
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de frustração e arremessando tudo o que podia encontrar, incluindo
uns aos outros. Alguns tentaram atravessar as pontes, que rangiam e
estalavam sob seu peso.
Jason, Piper e Nico estavam na borda do lado oposto, o que não
era tão ruim, mas estavam cercados por ciclopes e cães infernais.
Mais monstros continuaram a entrar pelos corredores laterais, en-
quanto grifos voejavam acima de suas cabeças, alheios ao chão que
desmoronava.
Os três semideuses nunca chegariam ao túnel. Mesmo que Jason
tentasse voar, seria abatido.
Frank lembrou-se da voz de seu ancestral: Quando a oportunid-
ade surgir, você deve assumir o comando.
-- Precisamos ajudá-los -- disse Hazel.
A mente de Frank disparou, fazendo cálculos de batalha. Ele viu
exatamente o que aconteceria: onde e quando seus amigos seriam es-
magados, como todos os seis morreriam ali naquela caverna... a não
ser que Frank mudasse a equação.
-- Nico -- gritou ele. -- O cetro!
Nico ergueu o cetro de Diocleciano e a caverna brilhou com a luz
roxa. Fantasmas surgiram das fissuras e paredes, uma legião romana
preparada para o combate. Começaram a tomar forma física, como
zumbis, mas pareciam confusos. Jason gritou ordens em latim,
mandando que eles formassem fileiras e atacassem. Mas os mortos-
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vivos apenas vagaram por entre os monstros, causando alguma con-
fusão, mas aquilo não duraria muito tempo.
Frank se voltou para Hazel e Leo.
-- Vocês dois, continuem.
Hazel arregalou os olhos.
-- O quê? Não!
-- Vocês precisam continuar. -- Foi a coisa mais difícil que Frank
já fizera, mas sabia que era a única opção. -- Encontrem as Portas.
Salvem Annabeth e Percy.
-- Mas... -- Leo olhou por sobre o ombro de Frank. -- Para o
chão!
Frank se deitou no exato momento em que uma saraivada de
pedras passou por cima de sua cabeça. Quando conseguiu se le-
vantar, tossindo e coberto de poeira, a entrada do túnel já não existia.
Uma seção inteira da parede desabara, deixando uma montanha de
escombros fumegantes.
-- Hazel... -- A voz de Frank falhou.
Ele tinha que acreditar que ela e Leo estavam vivos do outro lado.
Frank não podia se dar ao luxo de pensar o contrário.
A raiva cresceu em seu peito. Ele se virou e avançou contra o exér-
cito de monstros.
LXVII




FRANK

FRANK NÃO ERA UM ESPECIALISTA em fantasmas, mas os legionários
mortos deveriam ter sido semideuses, porque eram totalmente hiper-
ativos e com déficit de atenção.
Eles saíam do abismo e então circulavam, sem rumo, esbarrando
uns nos outros sem motivo aparente, empurrando um ou outro de
volta ao abismo, atirando flechas para o ar como se estivessem tent-
ando matar moscas e, ocasionalmente, por pura sorte, arremessando
uma lança ou uma espada ou um aliado na direção do inimigo.
Enquanto isso, o exército de monstros ficava cada vez maior e
mais furioso. Nascidos da terra lançaram uma saraivada de pedras
que atingiu os legionários zumbis, esmagando-os como papel.
Demônios femininos com pernas incompatíveis e cabelos de fogo
(Frank supôs que fossem empousai) rangiam as presas e gritavam or-
dens para os outros monstros. Uma dezena de ciclopes avançou para
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as pontes em ruínas, enquanto humanoides em forma de fo-
ca -- telquines, como Frank vira em Atlanta -- arremessavam frascos
de fogo grego através do abismo. Havia até mesmo alguns centauros
selvagens no meio, atirando flechas flamejantes e pisoteando aliados
menores com seus cascos. Na verdade, a maior parte dos inimigos
parecia estar armada com algum tipo de arma de fogo. Apesar de sua
nova bolsa não inflamável, Frank não achou aquilo legal.
Avançou através da multidão de romanos mortos, abatendo mon-
stros até acabarem as suas flechas, lentamente abrindo caminho em
direção aos amigos.
Um pouco tarde, percebeu -- dã -- que devia se transformar em
algo grande e poderoso, como um urso ou um dragão. Mas assim que
lhe ocorreu tal pensamento, sentiu a dor explodir em seu braço.
Cambaleou, olhou para baixo e ficou incrédulo ao ver a haste de uma
flecha despontando de seu bíceps esquerdo. A manga de sua camisa
estava encharcada de sangue.
A visão do ferimento lhe causou tonturas. Mas, principalmente,
deixou-o furioso. Tentou se transformar em um dragão, sem sucesso.
A dor era forte demais para que pudesse se concentrar. Talvez não
pudesse mudar de forma enquanto estivesse ferido.
Ótimo, pensou. Agora eu descubro isso.
Largou o arco e pegou a espada de um ser caído... bem, realmente
não tinha certeza do que era aquilo, algum tipo de mulher guerreira
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reptiliana com corpos de serpentes em vez de pernas. Abriu caminho
tentando ignorar a dor e o sangue escorrendo pelo seu braço.
Cinco metros à frente, Nico brandia sua espada negra com uma
mão, erguendo o cetro de Diocleciano com a outra. Gritava ordens
para os legionários, mas estes não lhe davam atenção.
Claro que não, pensou Frank. Ele é grego.
Jason e Piper estavam às costas de Nico. Jason invocou rajadas de
vento para afastar dardos e flechas. Desviou um frasco de fogo grego
para dentro da garganta de um grifo, que explodiu em chamas e caiu
em espiral no abismo. Piper manejava com eficiência a nova espada,
enquanto lançava comida da cornucópia com a outra mão, usando
presuntos, frangos, maçãs e laranjas como mísseis interceptadores. O
ar acima do abismo se transformou em um espetáculo pirotécnico de
projéteis de fogo, estilhaços de rochas e comida fresca.
Ainda assim, os amigos de Frank não poderiam resistir eterna-
mente. O rosto de Jason já estava coberto de suor. Gritava em latim:
-- Formar fileiras!
Mas os legionários mortos também não o ouviam. Alguns dos
zumbis foram úteis apenas por estarem no caminho, bloqueando
monstros e sendo atingidos. Mas, se continuassem a serem ceifados,
não sobraria um número suficiente deles para organizar.
-- Abram caminho! -- gritou Frank.
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Para a sua surpresa, os legionários mortos se afastaram para ele
passar. Os mais próximos se voltaram e o olharam com olhos vazios,
como se à espera de novas ordens.
-- Ah, ótimo -- murmurou Frank.
Em Veneza, Marte lhe avisara que seu verdadeiro teste de lider-
ança estava por vir. O ancestral fantasma de Frank insistira que ele
devia assumir o comando. Mas se aqueles romanos mortos não quis-
eram ouvir Jason, por que deveriam ouvi-lo? Porque era filho de
Marte, ou talvez, porque...
A verdade o atingiu. Jason não era mais romano. Seu tempo no
Acampamento Meio-Sangue o mudara. Reyna reconhecera aquilo.
Aparentemente, os legionários mortos-vivos também. Se Jason não
emitia mais o tipo certo de vibração, ou a aura de um líder romano...
Frank conseguiu chegar até onde estavam os amigos no exato mo-
mento em que uma onda de ciclopes os atacava. Ergueu a espada
para desviar do porrete de um ciclope, então feriu o monstro na
perna, derrubando-o de costas no abismo. Outro atacou. Frank
conseguiu perfurá-lo, mas a perda de sangue o estava enfraquecendo.
Sua visão estava turva. Seus ouvidos zumbiam.
Estava vagamente consciente de Jason em seu flanco esquerdo,
desviando os projéteis com vento; Piper à sua direita, usando o
charme, incentivando os monstros a atacarem uns aos outros ou dar-
em um refrescante salto no abismo.
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-- Vai ser divertido -- prometia.
Alguns ouviram, mas do outro lado do abismo, as empousai con-
trariavam as suas ordens. Aparentemente, também sabiam usar o
charme. Os monstros se acumulavam tão densamente em torno de
Frank que ele mal conseguia usar a espada. O fedor dos corpos e dos
hálitos era quase suficiente para derrubá-lo, mesmo sem a dor da fle-
cha no braço.
O que deveria fazer? Tinha um plano, mas seus pensamentos es-
tavam ficando confusos.
-- Fantasmas idiotas! -- gritou Nico.
-- Eles não ouvem! -- concordou Jason.
Era isso. Frank tinha de fazer os fantasmas ouvirem.
Convocou toda a sua força e gritou:
-- Coortes, travar escudos!
Os zumbis em torno dele se agitaram. Eles se alinharam diante de
Frank, erguendo os escudos em uma desleixada formação defensiva.
Mas estavam se movendo muito lentamente, como sonâmbulos, e
apenas alguns responderam à sua voz.
-- Frank, como você fez isso? -- gritou Jason.
A cabeça de Frank estava confusa pela dor. Ele se esforçou para
não desmaiar.
-- Sou o oficial romano em comando -- disse ele. -- Eles... hã, eles
não o reconhecem. Sinto muito.
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Jason fez uma careta, mas não parecia particularmente surpreso.
-- O que fazemos?
Frank desejava ter uma resposta. Um grifo pairou acima dele,
quase decapitando-o com suas garras. Nico atingiu-o com o cetro de
Diocleciano, e o monstro se chocou contra uma parede.
-- Orbem formate! -- ordenou Frank.
Cerca de duas dezenas de zumbis obedeceram, lutando para
formar um anel defensivo em torno de Frank e seus amigos. Foi o su-
ficiente para dar aos semideuses um pouco de descanso, mas havia
muitos inimigos tentando avançar. A maioria dos legionários fantas-
mas ainda vagava, em transe.
-- O meu escalão -- Frank deu-se conta.
-- Todos esses monstros são do seu escalão! -- gritou Piper, fer-
indo um centauro selvagem.
-- Não -- disse Frank. -- Sou apenas um centurião.
Jason amaldiçoou em latim.
-- Ele quer dizer que não pode controlar uma legião inteira. Não
está em uma posição hierárquica elevada.
Nico cravou a espada negra em outro grifo.
-- Bem, então, promova-o!
A mente de Frank estava lenta. Não compreendeu o que Nico es-
tava dizendo. Promovê-lo? Como?
Jason gritou em sua melhor voz de sargento de treinamento:
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-- Frank Zhang! Eu, Jason Grace, pretor da Décima Segunda Le-
gião Fulminata, dou-lhe a minha última ordem: renuncio ao meu
posto e lhe dou uma promoção emergencial de campo de batalha,
tornando-o pretor, com plenos poderes de tal posição. Assuma o
comando desta legião!
Frank sentiu como se uma porta tivesse se aberto em algum lugar
na Casa de Hades, deixando entrar uma lufada de ar fresco que at-
ravessou os túneis. A flecha no braço subitamente não importava
mais. Seus pensamentos clarearam. Sua visão se aguçou. As vozes de
Marte e Ares falaram em sua mente, fortes e em uníssono: Acabe
com eles!
Frank mal reconheceu a própria voz quando gritou:
-- Legião, agmen formate!
No mesmo instante, cada legionário morto na caverna sacou a es-
pada e ergueu o escudo. Avançaram na direção de Frank, empur-
rando e cortando monstros no caminho até ficarem ombro a ombro
com os companheiros, organizando-se em uma formação de quad-
rado. Choviam pedras, dardos e fogo, mas agora Frank tinha uma
linha defensiva disciplinada que os protegia atrás de uma parede de
bronze e couro.
-- Arqueiros -- gritou Frank. -- Eiaculare flammas!
Não tinha muita esperança de que o comando funcionaria. Os ar-
cos dos zumbis não podiam estar em boas condições. Mas, para a sua
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surpresa, várias dezenas de arqueiros fantasmagóricos prepararam
as flechas em uníssono. As pontas de suas flechas pegaram fogo es-
pontaneamente e uma onda flamejante e mortal partiu das fileiras da
legião, diretamente em direção ao inimigo. Ciclopes tombaram. Cen-
tauros tropeçaram. Um telquine gritava e corria em círculos com
uma flecha ardente cravada na testa.
Frank ouviu uma risada às suas costas. Olhou para trás e não
pôde acreditar no que via. Nico di Angelo estava realmente rindo.
-- É isso aí -- disse Nico. -- Vamos virar o jogo!
-- Cuneum formate! -- gritou Frank. -- Avançar com as pila!
A linha de zumbis engrossou no centro, formando uma cunha
projetada para romper as linhas inimigas. Colocaram suas lanças em
linha e avançaram.
Nascidos da terra urravam e atiravam pedras. Ciclopes golpeavam
os escudos com punhos e porretes, mas os legionários zumbis não
eram mais alvos indefesos. Possuíam força sobre-humana, dificil-
mente vacilando sob os ataques mais ferozes. Logo, o chão estava
coberto de pó de monstro. A fileira de lanças abriu caminho em meio
aos inimigos como uma gigantesca arcada dentária, derrubando
ogros, mulheres serpentes e cães infernais. Os arqueiros de Frank
abatiam grifos em pleno ar e provocavam o caos na equipe principal
do exército de monstros do outro lado do abismo.
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As forças de Frank começaram a assumir o controle de seu lado
da caverna. Uma das pontes de pedra ruiu, porém mais monstros
continuavam a atravessar a outra. Frank teria de detê-los.
-- Jason -- disse ele --, pode fazer alguns legionários voarem at-
ravés do abismo? O flanco esquerdo do inimigo é fraco... está vendo?
Faça isso!
Jason sorriu.
-- Com prazer.
Três zumbis romanos ergueram-se no ar e voaram através do
abismo. Em seguida, outros três se juntaram a eles. Finalmente
Jason voou até onde estavam e seu esquadrão começou a atacar al-
guns telquines muito surpresos, espalhando o medo através das
fileiras do inimigo.
-- Nico -- disse Frank --, continue tentando ressuscitar os ro-
manos. Precisamos de mais soldados.
-- Pode deixar comigo.
Nico ergueu o cetro de Diocleciano, que brilhava em uma tonalid-
ade roxa ainda mais escura. Mais romanos fantasmagóricos vazaram
das paredes para se unirem à luta.
Do outro lado do abismo, empousai gritavam comandos em uma
linguagem que Frank não conhecia, mas a essência era óbvia.
Estavam tentando fortalecer seus aliados e fazer com que continu-
assem a atacar pela ponte.
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-- Piper! -- gritou Frank. -- Use o charme contra as empousai!
Precisamos de algum caos.
-- Pensei que nunca pediria.
Ela começou a debochar dos demônios femininos:
-- Sua maquiagem está borrada! Sua amiga disse que você é hor-
rível! Aquela ali está fazendo caretas às suas costas!
Logo as empousai estavam muito ocupadas brigando entre si para
gritar qualquer comando.
Os legionários avançaram, mantendo a pressão. Precisavam to-
mar a ponte antes de Jason ficar sobrecarregado.
-- Hora de liderar -- decidiu Frank.
Ele ergueu a espada emprestada e deu a ordem de ataque.
LXVIII




FRANK

FRANK NÃO PERCEBEU QUE ESTAVA brilhando. Mais tarde, Jason lhe
disse que a bênção de Marte o envolvera em uma luz vermelha, como
ocorrera em Veneza. Dardos não podiam atingi-lo. De algum jeito, as
pedras se desviavam. Mesmo com uma flecha cravada em seu braço
esquerdo, Frank nunca se sentira tão cheio de energia.
O primeiro ciclope foi destruído tão rapidamente que pareceu
mentira. Frank o cortou ao meio, do ombro à cintura. O grandalhão
explodiu em pó. O ciclope seguinte recuou, nervoso, de modo que
Frank cortou suas pernas e derrubou-o no abismo.
Os outros monstros que estavam do seu lado do abismo tentaram
recuar, mas a legião os deteve.
-- Formação Tetsubo! -- gritou Frank. -- Fila única, avançar!
Foi o primeiro a atravessar a ponte. Os mortos o seguiram, seus
escudos fechados em ambos os lados e sobre as suas cabeças,
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desviando todos os ataques. Quando o último dos zumbis atravessou,
a ponte de pedra desmoronou na escuridão, mas aquilo já não im-
portava mais.
Nico continuou invocando mais legionários para se juntarem à
luta. Ao longo da história do império, milhares de romanos serviram
e morreram na Grécia. Agora, estavam de volta, respondendo ao cha-
mado do cetro de Diocleciano.
Frank avançou, destruindo tudo à sua passagem.
-- Vou queimar você! -- guinchou um telquine, brandindo deses-
peradamente um frasco de fogo grego. -- Tenho fogo!
Frank o abateu. Quando o frasco começou a cair em direção ao
chão, chutou-o pela borda do penhasco antes que pudesse explodir.
Uma empousa arranhou o peito dele com as suas garras, mas
Frank nada sentiu. Transformou o demônio em poeira e continuou
avançando. A dor não era importante. A derrota era impensável.
Ele era o líder da legião agora, fazendo aquilo que nascera para
fazer: lutar contra os inimigos de Roma, manter o seu legado, pro-
teger as vidas de seus amigos e companheiros. Ele era o pretor Frank
Zhang.
Suas forças varreram o inimigo, frustrando todas as suas tent-
ativas de se reagrupar. Jason e Piper lutaram ao seu lado, gritando
desafiadoramente. Nico avançou contra o último grupo de nascidos
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da terra, transformando-os em montes de lama com sua espada
negra de ferro estígio.
Antes que Frank pudesse perceber, a batalha terminou. Piper
traspassou a última empousa, que se vaporizou com um grito
angustiado.
-- Frank -- chamou Jason. -- Você está pegando fogo.
Ele olhou para baixo. Algumas gotas de óleo deviam ter
respingado em sua calça, que estava começando a pegar fogo. Bateu
até a calça parar de fumegar, mas não estava particularmente pre-
ocupado. Graças a Leo, não precisava mais temer o fogo.
Nico pigarreou:
-- Hã... também há uma flecha cravada no seu braço.
-- Eu sei.
Frank arrancou a base e tirou a ponta da flecha. Sentiu apenas
uma sensação de calor e de algo saindo.
-- Vou ficar bem.
Piper o fez comer um pedaço de ambrosia. Enquanto enfaixava a
ferida, elogiou:
-- Frank, você foi incrível. Completamente assustador, mas
incrível.
Frank teve dificuldade para processar as palavras dela. Assusta-
dor não poderia se aplicar a ele. Era só Frank.
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Sua adrenalina se esvaiu. Olhou em volta, perguntando-se para
onde tinham ido os inimigos. Os únicos monstros que sobraram
eram os seus próprios mortos-vivos romanos, que estavam parados
em um estado de estupor com as armas abaixadas.
Nico ergueu o cetro, cujo orbe estava escuro e adormecido.
-- Os mortos não permanecerão muito mais tempo agora que a
batalha terminou.
Frank voltou-se para as suas tropas.
-- Legião!
Os soldados zumbis ficaram de prontidão.
-- Vocês lutaram bem -- disse Frank. -- Agora podem descansar.
Dispensados.
Eles se desfizeram em pilhas de ossos, armaduras, escudos e
armas. Então, até aquilo se desintegrou.
Frank sentiu como se estivesse a ponto de desmoronar. Apesar da
ambrosia, o braço ferido começou a pulsar. Seus olhos estavam pesa-
dos de exaustão. A bênção de Marte esvaecia, deixando-o esgotado.
Mas sua missão tinha terminado.
-- Hazel e Leo -- disse ele. -- Precisamos encontrá-los.
Seus amigos olharam através do abismo. Na outra extremidade da
caverna, o túnel em que Hazel e Leo entraram estava obstruído por
toneladas de escombros.
-- Não podemos ir por aquele caminho -- disse Nico. -- Talvez...
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Subitamente, ele cambaleou. Nico teria caído se Jason não o
tivesse amparado.
-- Nico -- disse Piper. -- O que foi?
-- As Portas -- disse ele. -- Alguma coisa está acontecendo. Percy
e Annabeth... precisamos ir agora.
-- Mas como? -- disse Jason. -- O túnel já era.
Frank trincou os dentes. Não fora tão longe para ficar ali, impot-
ente, enquanto seus amigos estavam em apuros.
-- Não será divertido -- disse ele. -- Mas há outro jeito.
LXIX




ANNABETH

SER MORTA PELO TÁRTARO NÃO parecia lá uma grande honra.
Ao encarar o redemoinho de escuridão que era seu rosto, Anna-
beth decidiu que preferia morrer de uma forma menos memorável.
Talvez caindo das escadas, ou uma morte pacífica durante o sono aos
oitenta anos, depois de uma vida tranquila com Percy. Sim, isso pare-
cia bom.
Não era a primeira vez que Annabeth enfrentava um inimigo que
não tinha condições de derrotar usando a força. Normalmente, isso
seria sua deixa para tentar ganhar tempo com alguma de suas con-
versas enroladoras de filha de Atena.
O problema é que sua voz não saía. Não conseguia nem fechar a
boca. Pelo que sabia, estava babando tanto quanto Percy quando ele
dormia.
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Estava vagamente consciente do exército de monstros correndo
ao seu redor, mas após seu rugido inicial de triunfo, a horda ficara
em silêncio. Àquela altura, Annabeth e Percy já deviam ter sido feitos
em pedaços. Em vez disso, os monstros mantinham distância, esper-
ando Tártaro fazer alguma coisa.
O deus das profundezas flexionou os dedos, examinando as garras
negras. Não tinha expressão, mas aprumou os ombros como se
tivesse ficado satisfeito.
É bom ter forma, entoou ele. Com estas mãos, posso eviscerar
vocês.
A voz dele soava como uma gravação tocada ao contrário, como se
as palavras estivessem sendo sugadas pelo vórtice de seu rosto em
vez de projetadas.
Na verdade, tudo parecia sugado pelo rosto daquele deus: a luz
fraca, as nuvens venenosas, a essência dos monstros, até a própria
frágil força vital de Annabeth. Ela olhou ao redor e se deu conta de
que tudo naquela vasta planície passara a exibir uma cauda vaporosa
de cometa apontada na direção de Tártaro.
Annabeth sabia que devia começar a falar, mas seus instintos lhe
diziam para se esconder, para evitar fazer qualquer coisa que pudesse
chamar a atenção do deus.
Além disso, o que poderia dizer? Você não vai conseguir se safar!
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Isso não era verdade. Ela e Percy só tinham sobrevivido até
aquele momento porque Tártaro estava ocupado saboreando sua
nova forma. Queria o prazer de fazê-los em pedaços com as próprias
mãos. Se Tártaro quisesse, Annabeth não tinha a menor dúvida de
que ele poderia devorar sua existência com um simples pensamento,
com a mesma facilidade com que havia vaporizado Hiperíon e Crios.
Será que haveria um renascimento depois daquilo? Annabeth não
queria descobrir.
Ao lado dela, Percy fez algo que ela nunca o havia visto fazer. Ele
largou a espada. Contracorrente simplesmente caiu de suas mãos e
bateu no chão com um ruído abafado. A Névoa da Morte não
ocultava mais seu rosto, mas ele ainda parecia um cadáver.
Tártaro rosnou de novo, o que possivelmente era uma risada.
O medo de vocês é um aroma maravilhoso, disse o deus. Entendo
o apelo de ter um corpo físico com tantos sentidos. Talvez minha
amada Gaia tenha razão ao desejar despertar de seu sono.
Ele esticou sua gigantesca mão roxa e poderia ter arrancado Percy
do chão como se o semideus fosse uma erva daninha, mas Bob o
interrompeu.
-- Vá embora! -- O titã apontou a lança para o deus. -- Você não
tem o direito de se meter!
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Me meter? Tártaro se virou. Eu sou o senhor de todas as cri-
aturas das trevas, Jápeto, seu insignificante. Posso fazer o que
quiser.
Seu rosto, a espiral de escuridão, começou a girar mais rápido. O
som uivante era tão terrível que Annabeth caiu de joelhos e tapou os
ouvidos. Bob se desequilibrou. Sua energia vital, na forma da cauda
de cometa, ficou mais alongada ao ser sugada na direção do rosto do
deus.
Bob rugiu em desafio. Partiu para cima do deus, mirando a lança
no peito de Tártaro. Antes que ela o atingisse, Tártaro jogou Bob para
o lado como se ele não passasse de um inseto incômodo. O titã foi
jogado longe.
Por que você não se desintegra?, perguntou Tártaro. Você não é
nada. É ainda mais fraco que Crios e Hiperíon.
-- Eu sou Bob -- disse Bob.
Tártaro rosnou.
O que é isso? O que é Bob?
-- Eu escolhi ser mais que Jápeto -- disse o titã. -- Você não me
controla. Não sou como meus irmãos.
A gola de seu uniforme se moveu. Bob Pequeno saiu de debaixo
da roupa e pulou para o chão. O gatinho aterrissou diante de seu
dono, então arqueou as costas e chiou para o senhor do abismo.
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Bob Pequeno começou a crescer diante dos olhos de Annabeth.
Sua forma não parou de tremeluzir até se transformar em um esquel-
eto de tigre-dentes-de-sabre em tamanho real.
-- Além disso... -- anunciou Bob. -- Eu tenho um bom gato.
Bob Não Tão Pequeno atacou Tártaro e cravou as garras em sua
coxa. O felino escalou sua perna e entrou por debaixo da cota de
malha do deus. Tártaro batia os pés e gritava, aparentemente deixan-
do de saborear sua forma física. Enquanto isso, Bob cravou a lança
no lado do corpo do deus, logo abaixo de seu protetor peitoral.
Tártaro rugiu. Ele tentou acertar Bob, mas o titã recuou e saiu de
seu alcance. Bob estendeu a mão. Sua lança se libertou da carne do
deus com um arranco forte e voou de volta para ele, o que fez Anna-
beth quase perder o fôlego tamanha a surpresa. Ela nunca havia ima-
ginado que uma vassoura pudesse ter tantas utilidades. Bob Pequeno
pulou de debaixo da saia de Tártaro e correu para o lado de seu dono,
com icor dourado escorrendo de seus enormes dentes de sabre.
Você vai morrer primeiro, Jápeto, decidiu Tártaro. Depois, vou
pôr sua alma em minha armadura, onde ela vai se dissolver lenta-
mente, várias e várias vezes, em agonia eterna.
Tártaro bateu o punho no peitoral de sua armadura. Os rostos
pálidos aprisionados no metal se agitaram e deram gritos silenciosos,
implorando para sair.
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Bob se virou para Percy e Annabeth. O titã sorriu, o que provavel-
mente não teria sido a reação da garota caso tivesse sido ameaçada
de morte e agonia eterna.
-- Cuidem das Portas -- disse o titã. -- Eu cuido do Tártaro.
O deus jogou a cabeça para trás e urrou, o que criou um vácuo tão
forte que os demônios que voavam mais próximos foram sugados
pelo vórtice de seu rosto e despedaçados.
Cuida de mim?, perguntou o deus em tom de zombaria. Você não
passa de um titã, um filho inferior de Gaia! Você vai pagar por essa
arrogância. E quanto a seus amigos mortais insignificantes...
Tártaro gesticulou para o exército de monstros, convidando-os a
avançar. DESTRUAM-NOS!
LXX




ANNABETH

DESTRUAM-NOS!
Annabeth já tinha escutado essas palavras tantas vezes que elas a
arrancaram de seu estado de paralisia. Ergueu a espada e gritou:
-- Percy!
Ele sacou Contracorrente.
Annabeth golpeou as correntes que prendiam as Portas da Morte
com toda a força. Sua lâmina de osso de drakon as cortou de
primeira. Enquanto isso, Percy repelia a primeira onda de monstros.
Ele atingiu uma arai e soltou um grito.
-- Argh! Maldições idiotas!
Em seguida, exterminou meia dúzia de telquines. Annabeth pas-
sou por trás dele e cortou as correntes do outro lado.
As Portas estremeceram, depois se abriram com um Ding!
agradável.
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Bob e seu ajudante de dentes de sabre continuavam a se movi-
mentar em volta de Tártaro. Atacavam e se esquivavam para ficarem
fora do alcance de seus golpes. Não pareciam causar muitos danos,
mas Tártaro, desengonçado, ia de um lado para outro. Era óbvio que
não estava acostumado a lutar em um corpo humanoide. Ele atacava
e errava, atacava e errava.
Mais monstros correram na direção das Portas. Uma flecha pas-
sou ao lado da cabeça de Annabeth. Ela se virou e enfiou a espada na
barriga de uma empousa, depois mergulhou e passou pelas portas
quando estavam começando a se fechar.
Ela as manteve abertas com o pé enquanto lutava. Como estava
no elevador, pelo menos não tinha que se preocupar em ser atacada
pelas costas.
-- Percy, venha! -- gritou ela.
Ele foi até a porta. O rosto dele pingava suor e sangue de vários
cortes.
-- Você está bem? -- perguntou ela.
Ele assentiu.
-- Uma das arai me lançou algum tipo de maldição de dor. -- Ele
atingiu um grifo em pleno ar. -- Dói, mas não vai me matar. Entre no
elevador. Vou segurar o botão.
-- Aham, até parece! -- Ela acertou um cavalo carnívoro no fo-
cinho com o cabo da espada e o fez voltar correndo para a turba de
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monstros. -- Você prometeu, Cabeça de Alga. Nós não íamos nos sep-
arar! Nunca mais!
-- Você é impossível!
-- Eu também amo você.
Toda uma falange de Ciclopes atacou, derrubando monstros
menores em seu caminho. Annabeth achou que ia morrer.
-- Tinham que ser Ciclopes -- resmungou ela.
Percy soltou um grito de guerra. Aos pés dos Ciclopes, uma veia
no chão explodiu, e o fogo líquido do Flegetonte espirrou nos mon-
stros. O rio podia ter curado mortais, mas não foi muito benéfico
para os Ciclopes. A veia arrebentada se fechou sozinha, mas os mon-
stros desapareceram, deixando para trás apenas algumas manchas
escuras no chão.
-- Annabeth, você precisa ir! -- disse Percy. -- Não podemos ficar
os dois aqui!
-- Não! -- gritou ela. -- Se abaixe!
Ele não perguntou por quê. Apenas se agachou, e Annabeth pulou
por cima do namorado e acertou a cabeça de um ogro muito tatuado
com sua espada.
Percy e ela estavam parados lado a lado no portal, à espera do
ataque seguinte. A veia que explodira tinha detido momentanea-
mente os monstros, mas não ia demorar para que se lembrassem: Ei,
espere aí, nós somos setenta e cinco zilhões, e eles, só dois.
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-- Bem, e então, você tem uma ideia melhor? -- perguntou Percy.
Annabeth bem que queria ter.
As Portas da Morte, sua saída daquele mundo de pesadelos, es-
tavam bem atrás deles. Mas não podiam passar por elas sem que al-
guém segurasse o botão do elevador por longos doze minutos. Se en-
trassem e simplesmente deixassem que as Portas se fechassem, An-
nabeth achava que os resultados não seriam nada saudáveis. E caso
se afastassem das Portas, o elevador provavelmente ia se fechar e de-
saparecer sem eles.
A situação era tão pateticamente triste que quase dava vontade de
rir.
Os monstros avançavam bem devagar, rosnando e tomando
coragem.
Enquanto isso, os ataques de Bob começavam a ficar mais lentos.
Tártaro estava aprendendo a controlar seu corpo novo. O Bob
Pequeno dentes-de-sabre saltou sobre o deus, mas Tártaro o jogou
para o lado. Bob correu na direção do deus, gritando de ódio, mas ele
apenas arrancou a lança das mãos do titã e o chutou morro abaixo,
fazendo-o derrubar uma fileira de telquines como se fossem pinos de
boliche na forma de mamíferos marinhos.
ENTREGUE-SE!, bradou Tártaro.
-- Não -- disse Bob. -- Você não é meu senhor.
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Então morra me desafiando, disse o deus das profundezas.
Vocês, titãs, não são nada para mim. Os meus filhos gigantes
sempre foram melhores, mais fortes e malignos. Eles vão deixar o
mundo superior tão escuro quanto meus domínios!
Tártaro quebrou a lança em duas. Bob uivou de dor. O Bob
Pequeno dentes-de-sabre saiu em defesa de seu dono, rosnou para
Tártaro e mostrou as presas. O titã tentava se levantar, mas Anna-
beth sabia que era o fim. Até os monstros se viraram para ver, como
se sentissem que seu mestre Tártaro estava prestes a se tornar o
centro das atenções. A morte de um titã era algo que merecia ser
visto.
Percy segurou a mão de Annabeth.
-- Fique aqui. Tenho que ajudá-lo.
-- Percy, você não pode -- gritou ela, rouca. -- Não se pode lutar
contra o Tártaro. Pelo menos, não nós.
Ela sabia que tinha razão. Tártaro estava em uma categoria única.
Era mais poderoso que deuses ou titãs. Semideuses não eram nada
para ele. Se Percy tentasse ajudar Bob, seria esmagado como uma
formiga.
Mas Annabeth também sabia que Percy não ia ouvi-la. Ele não
podia deixar Bob morrer sozinho. Simplesmente não era o jeito dele,
e essa era uma das muitas razões que a faziam amá-lo, mesmo que
fosse um pé no sacculum.
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-- Vamos juntos -- decidiu Annabeth, sabendo que aquela seria a
batalha final dos dois.
Se eles se afastassem das Portas, nunca mais deixariam o Tártaro.
Pelo menos morreriam lutando lado a lado.
Estava prestes a dizer: Agora!
Uma comoção tomou conta do exército. A distância, Annabeth
ouviu guinchos, gritos e um bum, bum persistente e rápido demais
para ser a pulsação do coração no chão. Era mais como algo grande e
pesado correndo a toda velocidade. Um nascido da terra girou no ar
como se tivesse sido arremessado. Um jato de gás verde-claro caía
em cima da horda monstruosa como se fosse uma mangueira de ven-
eno contra motins. Tudo em seu caminho se dissolvia.
Na outra extremidade do trecho de chão fervilhante e agora vazio,
Annabeth viu o motivo da comoção. Ela começou a sorrir.
O drakon maeônio abriu a pele em torno do pescoço e sibilou. Seu
hálito venenoso encheu o campo de batalha com o aroma de pinho e
gengibre. Ele moveu o corpo de dezenas de metros, sacudiu a cauda
verde pintalgada e varreu um batalhão de ogros.
Havia um gigante de pele vermelha montado em suas costas, com
flores nas tranças ruivas, um gibão de couro verde e uma lança de
costela de drakon na mão.
-- Damásen! -- gritou Annabeth.
O gigante inclinou a cabeça.
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-- Annabeth Chase, eu resolvi seguir seu conselho. Escolhi um
novo destino para mim.
LXXI




ANNABETH

O QUE É ISSO?, ROSNOU o deus das profundezas. Por que você veio,
meu filho renegado?
Damásen encarou Annabeth com uma mensagem clara nos olhos:
Vão! Agora!
Ele se virou para Tártaro. O drakon maeônio bateu as patas no
chão e rosnou.
-- Pai, você não desejava um adversário mais à sua altura? -- per-
guntou Damásen com calma. -- Eu sou um dos gigantes dos quais vo-
cê tanto se orgulha. Não queria que eu fosse mais beligerante? Talvez
eu comece destruindo você!
Damásen preparou sua lança e atacou.
O exército monstruoso se fechou ao seu redor, mas o drakon
maeônio destruía tudo em seu caminho, agitando a cauda e lançando
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veneno enquanto Damásen atacava Tártaro e forçava o deus a recuar
como um leão encurralado.
Bob se afastou da batalha cambaleando, com o tigre-dentes-de-
sabre ao lado. Percy deu a eles o máximo de cobertura que pôde. Fez
veias no chão explodirem uma atrás da outra. Alguns monstros fo-
ram vaporizados pela água do Estige. Outros levaram uma ducha do
Cócito e desmoronaram, chorando desesperançosos. Outros foram
banhados pelo Lete e, com olhos vazios, ficaram observando ao
redor, sem saberem ao certo onde estavam ou mesmo quem eram.
Bob foi mancando até as Portas. Icor dourado escorria dos feri-
mentos em seus braços e peito. O uniforme de zelador estava em far-
rapos. O titã estava retorcido e curvado, como se ao quebrar sua
lança Tártaro tivesse quebrado alguma coisa dentro dele. Apesar de
tudo isso, estava sorrindo e com os olhos prateados brilhando de
satisfação.
-- Vão -- ordenou ele. -- Eu vou segurar o botão.
Percy olhou para o titã, preocupado.
-- Bob, você não está em condições de...
-- Percy. -- A voz de Annabeth estava trêmula. Ela se odiou por
deixar Bob fazer aquilo, mas sabia que era a única maneira. -- Precis-
amos ir.
-- Não podemos simplesmente deixar os dois!
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-- Você precisa fazer isso, amigo. -- Bob deu um tapinha no braço
de Percy que quase o derrubou. -- Ainda consigo apertar um botão. E
tenho um bom gato para cuidar de mim.
Bob Pequeno dentes-de-sabre rugiu, concordando.
-- Além disso, é seu destino retornar ao mundo -- disse Bob. -- E
pôr um fim nessa loucura de Gaia.
Um ciclope aos gritos, dissolvendo-se por causa do veneno de
drakon, foi lançado por cima de suas cabeças.
A cinquenta metros, o drakon maeônio atropelava monstros. O
barulho de seus passos era úmido, como se estivesse pisoteando
uvas. Montado nele, Damásen berrava insultos e provocava o deus
das profundezas, atraindo Tártaro para mais longe das portas.
Tártaro o perseguiu com passos pesados. Suas botas de ferro
faziam crateras no chão.
Você não pode me matar!, gritou ele. Eu sou o próprio abismo. É
a mesma coisa que tentar matar a terra. Gaia e eu... somos eternos.
Nós possuímos você, sua carne e seu espírito!
Ele baixou seu punho enorme, mas Damásen desviou e enfiou sua
lança no pescoço de Tártaro.
Tártaro grunhiu, parecendo mais irritado que ferido. Virou seu
rosto, o redemoinho de vácuo, na direção do gigante, mas Damásen
saiu do caminho bem a tempo. Uns dez monstros foram sugados para
o interior do vórtice e se desintegraram.
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-- Bob, não! -- disse Percy com olhos suplicantes. -- Ele vai
destruí-lo para sempre. Sem volta. Sem regeneração.
Bob deu de ombros.
-- Quem sabe o que vai acontecer? Vocês precisam ir agora. Tár-
taro tem razão sobre uma coisa: nós não podemos derrotá-lo. Só po-
demos ganhar tempo para vocês.
As Portas tentaram fechar, mas o pé de Annabeth estava no
caminho.
-- Doze minutos -- disse o titã. -- Posso dar isso a vocês.
-- Percy... segure as portas. -- Annabeth deu um pulo e jogou os
braços em volta do pescoço do titã. Beijou seu rosto com os olhos tão
cheios de lágrimas que não conseguia ver direito. A barba por fazer
de Bob cheirava a produtos de limpeza: lustra-móveis com aroma
fresco de limão e outros produtos para limpar madeira.
-- Monstros são eternos -- disse para ele, tentando não cair no
choro. -- Vamos nos lembrar de você e de Damásen como heróis,
como o melhor titã e o melhor gigante. Vamos contar para nossos fil-
hos. Vamos manter a história viva. Um dia vocês vão se regenerar.
Bob esfregou os cabelos dela. Um sorriso fez surgirem rugas em
torno de seus olhos.
-- Isso é bom. Até lá, amigos, digam oi ao sol e às estrelas por
mim. E sejam fortes. Este pode não ser o último sacrifício que terão
que fazer para deter Gaia.
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Ele a empurrou com delicadeza.
-- Não há mais tempo. Vá.
Annabeth agarrou o braço de Percy. Ela o puxou para o elevador.
Teve um último vislumbre do drakon maeônio sacudindo um ogro
como se fosse um fantoche e de Damásen atacando as pernas de
Tártaro.
O deus das profundezas apontou para as Portas da Morte e gritou:
Monstros, detenham-nos!
Bob Pequeno dentes-de-sabre armou um bote e rosnou, pronto
para lutar.
Bob piscou para Annabeth.
-- Mantenham as portas fechadas do seu lado -- disse ele. -- Elas
vão resistir à sua passagem. Segurem...
As portas deslizaram e fecharam.
LXXII




ANNABETH

-- PERCY, ME AJUDE! -- PEDIU ANNABETH, assustada.
Ela jogou todo o peso do corpo na porta da esquerda para mantê-
la fechada. Percy fez o mesmo do lado direito. Não havia maçanetas
nem nada em que se segurar. Conforme o elevador subia, as Portas
sacudiam e tentavam se abrir, ameaçando lançá-los no que quer que
houvesse entre a vida e a morte.
Os ombros de Annabeth doíam. A música ambiente típica de el-
evador não ajudava. Se todos os monstros tinham que ouvir aquela
música sobre gostar de piñas coladas e ser pego pela chuva, não era
de se espantar que chegassem ao mundo mortal loucos por uma
carnificina.
-- Deixamos Bob e Damásen para trás -- disse Percy com a voz
falhando. -- Eles vão morrer por nós, e nós simplesmente...
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-- Eu sei -- respondeu ela. -- Pelos deuses do Olimpo, Percy, eu
sei.
Annabeth estava quase feliz por ter que se preocupar em manter
as Portas fechadas. O medo que sentia pelo menos evitava que ela
caísse no choro. Abandonar Damásen e Bob tinha sido a coisa mais
difícil que fizera na vida.
Por anos no Acampamento Meio-Sangue, Annabeth sofria
quando outros colegas saíam em missões enquanto ela ficava para
trás. Tinha visto outros conquistarem inúmeras glórias... ou fracas-
sarem e não voltarem. Desde os sete anos, ela pensava: Por que não
posso provar minhas habilidades? Por que não posso liderar uma
missão?
Agora entendia que o teste mais difícil para uma filha de Atena
não era liderar uma missão ou enfrentar a morte em combate. Era to-
mar a decisão estratégica de sair do caminho e deixar que outra pess-
oa ficasse com a parte mais perigosa, especialmente quando essa
pessoa era sua amiga. Precisava encarar o fato de que não podia pro-
teger todo mundo que amava. Não podia resolver todos os
problemas.
Ela odiava isso, mas não tinha tempo para se lamentar. Piscou
para afastar as lágrimas.
-- Percy, as Portas -- alertou.
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Elas começaram a deslizar e se abrir, deixando entrar um sopro
de... ozônio? Enxofre?
Percy empurrou seu lado com toda a força e a fresta se fechou.
Seus olhos queimavam de raiva. Annabeth esperava que não fosse
raiva dela, mas se fosse, não podia culpá-lo.
Se isso fizer com que ele siga em frente, então é melhor que fique
com raiva.
-- Vou matar Gaia -- balbuciou ele. -- Vou despedaçá-la com min-
has próprias mãos.
Annabeth assentiu, mas estava pensando sobre o que Tártaro dis-
sera. Ele não podia ser morto. Nem Gaia. Nem titãs e gigantes po-
diam enfrentar tamanho poder. Semideuses não tinham a menor
chance.
Ela também se lembrou do aviso de Bob: Este pode não ser o úl-
timo sacrifício que terão que fazer para deter Gaia.
Algo lhe disse que o titã estaria certo.
-- Doze minutos -- murmurou ela. -- Doze minutos.
Então rezou para Atena. Pediu que Bob conseguisse segurar o
botão por esse tempo todo, e também pediu força e sabedoria.
Perguntou-se o que iriam encontrar quando chegassem ao fim
daquela viagem de elevador.
Caso seus amigos não estivessem lá, controlando o outro lado...
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-- Nós vamos conseguir -- disse Percy. -- Nós temos que
conseguir.
-- É -- disse Annabeth. -- É, temos, sim.
Mantiveram as portas fechadas enquanto o elevador estremecia e
a música continuava a tocar. Em algum lugar abaixo deles, um titã e
um gigante sacrificavam suas vidas para que os dois pudessem fugir.
LXXIII




HAZEL

HAZEL NÃO ESTAVA ORGULHOSA DE ter chorado.
Após o túnel desabar, chorou e gritou como uma criança de dois
anos fazendo birra. Não podia mover os escombros que separavam a
ela e a Leo dos outros. Se a terra se movesse mais um pouco, tudo po-
deria desabar sobre as suas cabeças. Ainda assim, socou as pedras e
gritou palavrões que teriam lhe valido uma lavagem da boca com
sabão de lixívia na Academia St. Agnes.
Leo olhou para Hazel, com os olhos arregalados e sem palavras.
Não estava sendo justa com ele.
A última vez que estiveram sozinhos, partilharam um flashback e
o apresentara a Sammy, seu bisavô e o primeiro namorado de Hazel.
Ela o sobrecarregara com uma bagagem emocional da qual Leo não
precisava, e deixara-o tão confuso que quase foi morto por um mon-
struoso camarão gigante.
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Agora, ali estavam os dois, sozinhos novamente, enquanto seus
amigos podiam estar morrendo nas mãos de um exército de mon-
stros, e ela estava dando um chilique.
-- Sinto muito.
Ela limpou o rosto.
-- Ei, sabe... -- Leo deu de ombros. -- Já ataquei algumas pedras
também.
Ela engoliu com dificuldade.
-- Frank está... ele...
-- Ouça -- disse Leo. -- Frank Zhang tem habilidades. Provavel-
mente vai se transformar em um canguru e dar alguns golpes de jiu-
jitsu marsupial naquelas carrancas horrorosas.
Ele a ajudou a se levantar. Apesar do pânico fervendo dentro dela,
Hazel sabia que Leo estava certo. Frank e os outros não estavam des-
amparados. Descobririam um jeito de sobreviver. O melhor que ela e
Leo podiam fazer era seguir em frente.
Ela olhou para Leo. Seu cabelo crescera e estava mais bagunçado,
o rosto mais magro, de modo que ele se parecia menos com um
diabinho e mais com um desses elfos de contos de fadas. A maior
diferença estava nos olhos. Estavam constantemente à deriva, como
se Leo estivesse procurando por algo.
-- Leo, sinto muito -- disse ela.
Ele ergueu uma sobrancelha.
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-- O.k.. Mas por quê?
-- Por... -- Ela gesticulou ao redor, impotente. -- Tudo. Por
pensar que você era Sammy, por iludi-lo. Quer dizer, não pretendia,
mas se eu fiz isso...
-- Ei.
Leo apertou-lhe a mão, mas Hazel nada percebeu de romântico
no gesto.
-- As máquinas foram feitas para funcionar.
-- O quê?
-- Acredito que o universo é basicamente como uma máquina.
Não sei quem fez isso, se foram as Parcas, os deuses, ou o Deus com
D maiúsculo, ou qualquer outro ente. Mas funciona como deve a
maior parte do tempo. Claro, algumas peças quebram e as coisas dão
errado de vez em quando, mas, na maioria das vezes... tudo acontece
por um motivo. Tipo nos encontrarmos.
-- Leo Valdez, você é um filósofo -- maravilhou-se Hazel.
-- Não -- disse ele. -- Sou apenas um mecânico. Mas acho que
meu bisabuelo, Sammy, manjava das coisas. Ele a deixou ir, Hazel.
Meu trabalho é lhe dizer que está tudo bem. Você e Frank... vocês
combinam. Todos superaremos isso. Espero que tenham a chance de
serem felizes. Além disso, Zhang não consegue amarrar os sapatos
sem a sua ajuda.
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-- Isso é cruel -- repreendeu Hazel, mas sentiu como se algo est-
ivesse se desatando dentro dela, um nó de tensão que vinha car-
regando havia semanas.
Leo realmente mudara. Hazel estava começando a pensar que en-
contrara um bom amigo.
-- O que aconteceu com você enquanto esteve sozinho? -- pergun-
tou ela. -- Quem conheceu?
Os olhos de Leo estremeceram.
-- É uma longa história. Eu vou contá-la um dia, mas ainda estou
esperando para ver onde isso vai dar.
-- O universo é uma máquina. Por isso vai dar tudo certo -- disse
Hazel.
-- Tomara.
-- Desde que não seja uma de suas máquinas -- acrescentou
Hazel. -- Porque elas nunca fazem o que devem.
-- Muito engraçadinha. -- Leo invocou fogo em sua
mão. -- Agora, qual o caminho, Miss Mundo Inferior?
Hazel examinou o caminho à sua frente. A uns dez metros dali, o
túnel se dividia em quatro artérias menores, todas idênticas, mas a
da esquerda irradiava frio.
-- Por ali -- concluiu. -- Parece ser o mais perigoso.
-- Estou nessa -- disse Leo.
Eles começaram a descer.
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***

Assim que chegaram ao primeiro arco, Gale, a doninha, os
encontrou.
Gale correu até Hazel e enroscou-se em volta de seu pescoço,
guinchando, zangada, como se dissesse: Onde você esteve? Você está
atrasada.
-- Essa doninha flatulenta outra vez -- reclamou Leo. -- Se essa
coisa soltar um pum assim tão perto do meu fogo, vamos explodir.
Gale chiou um palavrão de doninha para Leo.
Hazel mandou os dois se calarem. Podia sentir que o túnel à
frente inclinava-se levemente para baixo por cerca de uns cem met-
ros e, em seguida, abria-se em uma grande câmara. Nela havia uma
presença... fria, pesada, poderosa. Hazel não sentia nada parecido
desde a caverna no Alasca, onde Gaia a obrigara a ressuscitar Por-
fírio, o rei gigante. Hazel frustrara os planos da deusa na ocasião,
mas precisou fazer a caverna desabar, sacrificando a sua vida e a de
sua mãe. Ela não estava ansiosa para passar por uma experiência
semelhante.
-- Leo, prepare-se -- sussurrou ela. -- Estamos perto.
-- Perto de quê?
Uma voz feminina ecoou pelo corredor:
-- Perto de mim.
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Uma onda de náusea atingiu Hazel com tanta força que seus joel-
hos dobraram. O mundo inteiro rodou. Seu senso de direção, geral-
mente impecável no subterrâneo, ficou completamente confuso.
Ela e Leo pareciam não terem se movido, mas subitamente se
viram cem metros mais abaixo no corredor, na entrada da câmara.
-- Bem-vindos -- disse a voz feminina. -- Aguardei ansiosamente
por isso.
Os olhos de Hazel esquadrinharam a caverna. Não conseguia ver
quem estava falando.
O lugar lembrava o Panteão de Roma, só que era decorado no es-
tilo Hades Moderno.
As paredes de obsidiana eram entalhadas com cenas de morte: ví-
timas da peste, cadáveres no campo de batalha, câmaras de tortura
com esqueletos pendurados em gaiolas de ferro, tudo adornado com
pedras preciosas que de algum modo tornavam as cenas ainda mais
medonhas.
Como no Panteão, o teto abobadado era composto por um padrão
de painéis quadrados rebaixados, mas ali cada painel era uma estela,
uma lápide com inscrições em grego antigo. Hazel se perguntou se de
fato havia cadáveres por trás delas. Com seus sentidos subterrâneos
fora de sintonia, não era possível ter certeza.
Hazel não viu outras saídas. No cume do teto, onde ficaria a clara-
boia do Panteão, brilhava um círculo de pedra negra, como se para
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reforçar a ideia de que não havia nenhum jeito de escapar daquele
lugar: nenhum céu lá em cima, apenas a escuridão.
Os olhos de Hazel voltaram-se para o centro da câmara.
-- Sim -- murmurou Leo. -- São portas, com certeza.
A uns quinze metros dali, havia um conjunto de portas de el-
evador isoladas, com painéis entalhados em prata e ferro. Havia
fileiras de correntes em ambos os lados, fixando a moldura a grandes
ganchos no chão.
A área ao redor das portas estava repleta de entulho negro. Com
uma sensação de raiva crescente, Hazel percebeu que ali havia um
antigo altar para Hades, que fora destruído para abrir espaço para as
Portas da Morte.
-- Onde você está? -- gritou Hazel.
-- Não nos vê? -- provocou a voz feminina. -- Pensei que Hécate a
escolhera por suas habilidades.
Outro surto de mal-estar tomou conta do intestino de Hazel. Em
seu ombro, Gale latiu e soltou gases, o que não ajudou.
Manchas escuras flutuaram diante dos olhos de Hazel. Piscou
para afastá-las, mas só ficaram mais escuras. As manchas se con-
solidaram em uma figura sombria de seis metros de altura que pair-
ava junto às Portas.
O gigante Clítio estava envolto em fumaça negra, assim como
aparecera em sua visão na encruzilhada, mas agora Hazel podia
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distinguir vagamente a sua forma: pernas de dragão com escamas
cinzentas, um enorme tronco humanoide envolto por uma armadura
de ferro estígio, cabelo comprido e trançado que parecia ser feito de
fumaça. Sua pele era tão escura quanto a da Morte (Hazel devia
saber, já que conhecera a Morte pessoalmente). Seus olhos bril-
havam, frios como diamantes. Não portava nenhuma arma, mas isso
não o tornava menos aterrorizante.
Leo assobiou.
-- Sabe, Clítio... para um cara tão grande, até que você tem uma
bela voz.
-- Idiota -- sibilou a mulher.
A meio caminho entre Hazel e o gigante, o ar tremulou. A
feiticeira apareceu.
Trajava um elegante vestido sem mangas tecido com fios de ouro
e tinha o cabelo escuro preso em um coque rodeado de diamantes e
esmeraldas. Em torno de seu pescoço, usava um pingente em forma
de labirinto em miniatura, preso à ponta de uma corrente cravejada
de rubis que fizeram Hazel pensar em gotas de sangue cristalizadas.
A mulher era bela de um jeito atemporal, régia -- como uma es-
tátua que você pode até admirar, mas jamais poderia amar. Seus ol-
hos brilhavam com malícia.
-- Pasifae -- disse Hazel.
A mulher inclinou a cabeça.
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-- Minha querida Hazel Levesque.
Leo tossiu.
-- Vocês se conhecem? Como parceiras de Mundo Inferior, ou...
-- Silêncio, idiota. -- A voz de Pasifae era tranquila, mas repleta
de veneno. -- Não tenho tempo para meninos semideuses, sempre
tão cheios de si, tão atrevidos e destrutivos.
-- Ei, moça -- protestou Leo. -- Não destruo as coisas. Sou um
filho de Hefesto.
-- Um faz-tudo -- retrucou Pasifae. -- Pior ainda. Conheci Dédalo.
Suas invenções só me trouxeram problemas.
Leo piscou.
-- Dédalo... tipo, o Dédalo? Bem, então deve saber tudo sobre a
gente, os faz-tudo. Gostamos mais de consertar, construir e, ocasion-
almente, enfiar chumaços de oleado na boca de senhoras rudes...
-- Leo.
Hazel estendeu o braço sobre o peito dele. Ela tinha a sensação de
que a feiticeira estava a ponto de transformá-lo em algo desagradável
caso Leo não calasse a boca.
-- Deixe-me resolver isso, certo?
-- Ouça a sua amiga -- disse Pasifae. -- Seja um bom menino e
deixe as mulheres conversarem.
Pasifae caminhou lentamente diante deles, examinando Hazel
com os olhos tão cheios de ódio que fizeram a sua pele formigar. O
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poder irradiava da feiticeira como o calor de uma fornalha. Sua ex-
pressão era perturbadora e vagamente familiar...
De algum modo, porém, o gigante Clítio irritava Hazel mais.
Ele ficou em segundo plano, silencioso e imóvel, exceto pela fu-
maça escura que emanava de seu corpo, acumulando em torno de
seus pés. Ele era a presença mais fria que ela já sentira, como um
grande depósito de obsidiana, tão pesado que Hazel não poderia
movê-lo, poderoso e indestrutível e completamente desprovido de
emoção.
-- Seu... seu amigo não fala muito -- observou.
Pasifae olhou para o gigante e fungou com desdém.
-- Reze para que ele fique em silêncio, minha querida. Gaia me
deu o prazer de lidar com você, mas Clítio é o meu, hum, seguro.
Apenas entre nós, como feiticeiras irmãs, creio que ele também está
aqui para manter os meus poderes sob controle, no caso de esquecer
as ordens de minha nova senhora. Gaia é muito cuidadosa.
Hazel estava tentada a retrucar, dizendo que não era uma
feiticeira. Não queria saber como Pasifae planejava "lidar" com eles,
ou como o gigante mantinha a sua magia sob controle. Mas endireit-
ou as costas e tentou parecer confiante.
-- Seja lá o que esteja planejando, não vai funcionar -- disse
Hazel. -- Matamos cada monstro que Gaia pôs diante de nós. Se vo-
cês forem espertos, sairão do nosso caminho.
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Gale, a doninha, rangeu os dentes em sinal de aprovação, mas
Pasifae não pareceu impressionada.
-- Você não me parece ter muito valor -- ponderou a
feiticeira. -- Mas, afinal, semideuses nunca parecem. Meu marido,
Minos, o rei de Creta? Era filho de Zeus. Apenas olhando para ele, ja-
mais desconfiaria. Ele era quase tão magrelo quanto aquele ali.
Ela apontou para Leo.
-- Uau -- murmurou Leo. -- Minos deve ter feito algo realmente
horrível para merecer você.
As narinas de Pasifae se inflaram.
-- Ah... você não faz ideia. Ele era orgulhoso demais para fazer os
sacrifícios adequados a Poseidon, de modo que os deuses puniram a
mim por sua arrogância.
-- O Minotauro -- lembrou-se Hazel subitamente.
A história era tão revoltante e grotesca que Hazel sempre tam-
pava os ouvidos quando a contavam no Acampamento Júpiter. Pasi-
fae fora condenada a se apaixonar pelo touro premiado do marido.
Dera à luz o Minotauro, metade homem, metade touro.
Agora, enquanto Pasifae a fuzilava com os olhos, Hazel percebeu
por que sua expressão era tão familiar.
A feiticeira tinha no olhar a mesma amargura e ódio que a mãe de
Hazel exibia de vez em quando. Em seus piores momentos, Marie
Levesque olhava para a filha como se fosse uma criança monstruosa,
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uma maldição dos deuses, a fonte de todos os seus problemas. É por
isso que a história do Minotauro incomodava Hazel. Não apenas a
imagem repulsiva de Pasifae e do touro, mas a ideia de que uma cri-
ança, qualquer criança, pudesse ser considerada um castigo para seus
pais, um monstro a ser trancado e odiado. Para Hazel, o Minotauro
sempre fora a vítima da história.
-- Sim -- disse Pasifae afinal. -- Minha desgraça era insuportável.
Depois que meu filho nasceu e foi trancado no labirinto, Minos se re-
cusou a ter qualquer coisa comigo. Disse que tinha arruinado a sua
reputação! E você sabe o que aconteceu com Minos, Hazel Levesque?
Por seus crimes, por seu orgulho? Foi recompensado. Tornou-se um
juiz dos mortos no Mundo Inferior, como se tivesse o direito de jul-
gar os outros! Hades deu-lhe essa posição. Seu pai.
-- Plutão, na verdade.
Pasifae zombou.
-- Irrelevante. Então como percebe, odeio semideuses, tanto
quanto odeio os deuses. Gaia me prometeu que, se qualquer um dos
seus irmãos sobreviverem à guerra, poderei vê-los morrer lenta-
mente em meu novo domínio. Só gostaria de ter mais tempo para
torturar vocês corretamente. Que pena...
No centro da câmara, as Portas da Morte emitiram um agradável
som de sino. O botão verde de SUBIR no lado direito da moldura
começou a brilhar. As correntes estremeceram.
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-- Ali, estão vendo? -- Pasifae deu de ombros, se des-
culpando. -- As portas estão funcionando. Mais doze minutos, e elas
se abrirão.
O estômago de Hazel estremeceu quase tanto quanto as correntes.
-- Mais gigantes?
-- Felizmente, não -- disse a feiticeira. -- Estão todos mobilizados
no mundo mortal, prontos para o ataque final -- Pasifae lançou-lhe
um sorriso frio. -- Não, imagino que as Portas estejam sendo utiliza-
das por outra pessoa... alguém não autorizado.
Leo deu um passo à frente. Fumaça emanava de seus punhos.
-- Percy e Annabeth.
Hazel não conseguia falar. Não tinha certeza se o nó na garganta
era de alegria ou frustração. Se os amigos tivessem conseguido
chegar às Portas, se realmente apareceriam ali em doze minutos...
-- Ah, não se preocupe. -- Pasifae fez um gesto de desdém. -- Clí-
tio cuidará deles. Quando ouvirem a campainha outra vez, alguém do
nosso lado precisará apertar o botão de SUBIR ou as Portas não se ab-
rirão, e quem estiver lá dentro... puf. Já era. Ou talvez Clítio os deixe
sair para lidar com eles pessoalmente. Isso depende de vocês.
Hazel sentiu um gosto metálico na boca. Ela não queria pergun-
tar, mas tinha de fazê-lo.
-- Como exatamente isso depende de nós?
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-- Bem, obviamente, precisamos de apenas um grupo de semi-
deuses vivos -- disse Pasifae. -- Os dois sortudos serão levados para
Atenas e sacrificados para Gaia no Banquete da Esperança.
-- Obviamente -- murmurou Leo.
-- Então? Serão vocês dois, ou seus amigos no elevador? -- A
feiticeira estendeu as mãos. -- Veremos quem ainda estará vivo em
doze... na verdade, onze minutos agora.
A caverna se dissolveu em escuridão.
LXXIV




HAZEL

O GPS EMBUTIDO DE HAZEL ficou descontrolado.
Ela se lembrou de quando era muito pequena, em Nova Orleans,
no final da década de trinta, e sua mãe a levou ao dentista para ex-
trair um dente ruim. Foi a primeira e única vez que Hazel experi-
mentou éter. O dentista prometeu que aquilo a deixaria sonolenta e
relaxada, mas Hazel sentiu como se estivesse flutuando para longe de
seu corpo, em pânico e fora de controle. Quando o efeito do éter pas-
sou, ela ficou doente por três dias.
Aquilo parecia uma superdose de éter.
Parte dela sabia que ainda estava na caverna. Pasifae estava apen-
as alguns metros à sua frente. Clítio esperava em silêncio ao lado das
Portas da Morte.
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Mas camadas de Névoa envolviam Hazel, confundindo seu senso
de realidade. Ela deu um passo à frente e trombou com uma parede
que não deveria estar ali.
Leo encostou as mãos na pedra.
-- Que diabos? Onde estamos?
Um corredor se estendia para a esquerda e para a direita. Tochas
ardiam em suportes de ferro. O lugar cheirava a mofo, como um
túmulo antigo. No ombro de Hazel, Gale chiou furiosamente,
cravando suas garras na clavícula dela.
-- Sim, eu sei -- murmurou ela para a doninha. -- É uma ilusão.
Leo socou a parede.
-- Uma ilusão bastante sólida.
Pasifae riu. Sua voz soou fraca e distante:
-- É uma ilusão, Hazel Levesque, ou algo mais? Não percebe o
que acabei de criar?
Hazel estava tão tonta que mal conseguia ficar de pé, muito
menos pensar direito. Ela tentou expandir seus sentidos, ver através
da Névoa e encontrar a caverna novamente, mas tudo o que sentiu
foram túneis se dividindo em dezenas de direções, indo para todos os
lugares, exceto para a frente.
Pensamentos aleatórios pipocaram em sua mente, como pepitas
de ouro vindo à superfície: Dédalo. A prisão do Minotauro. Morrer
lentamente em meu novo domínio.
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-- O Labirinto -- disse Hazel. -- Ela está refazendo o Labirinto.
-- O quê? -- Leo estava batendo na parede com um martelo de
bola, mas se virou e franziu a testa. -- Pensei que o Labirinto tivesse
desabado durante a batalha no Acampamento Meio-Sangue, tipo,
que ele estava ligado à força vital de Dédalo ou algo assim, e então ele
morreu.
Pasifae soltou um muxoxo de desaprovação.
-- Ah, mas eu ainda estou viva. Você acha que Dédalo é o respon-
sável por todos os segredos do labirinto? Eu coloquei vida mágica
nele. Dédalo não era nada comparado a mim, a feiticeira imortal,
filha de Hélio, irmã de Circe! Agora o Labirinto será meu domínio.
-- É uma ilusão -- insistiu Hazel. -- Nós só precisamos atravessá-
la.
Enquanto dizia isso, as paredes pareciam ficar cada vez mais sóli-
das, o cheiro de mofo mais intenso.
-- Tarde demais -- cantarolou Pasifae. -- O Labirinto já foi des-
pertado. Ele vai se espalhar sob a superfície da terra mais uma vez
enquanto o mundo mortal é dizimado. Vocês, semideuses... vocês,
heróis... vagarão por seus corredores, morrendo lentamente de sede,
medo e tormentos. Ou talvez, caso me sinta misericordiosa, morrerão
rapidamente e com muita dor!
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Buracos se abriram no chão sob os pés de Hazel. Ela agarrou Leo
e o empurrou para o lado ao mesmo tempo em que uma fileira de es-
petos disparou para cima, cravando-se no teto.
-- Corra! -- gritou Hazel.
O riso de Pasifae ecoou pelo corredor.
-- Aonde acha que vai, jovem feiticeira? Está fugindo de uma
ilusão?
Hazel não respondeu. Estava muito ocupada tentando permane-
cer viva. Atrás deles, diversas fileiras de espetos disparavam contra o
teto com um persistente tump, tump, tump.
Ela puxou Leo para um corredor lateral, pulou uma armadilha
feita com uma corda e então parou à beirada de um poço de seis met-
ros de diâmetro.
-- Acha que é muito fundo? -- perguntou Leo, ofegante. Sua calça
estava rasgada no lugar onde um dos espetos o acertara de raspão.
Os sentidos de Hazel lhe diziam que o poço tinha pelo menos
quinze metros de profundidade e estava repleto de veneno. Mas po-
dia confiar em seus sentidos? Mesmo que Pasifae tivesse criado um
novo Labirinto, Hazel acreditava que ainda estavam na mesma cav-
erna, correndo sem rumo para a frente e para trás enquanto Pasifae e
Clítio se divertiam assistindo a tudo. Ilusão ou não, a menos que
Hazel descobrisse como sair daquele lugar, as armadilhas os
matariam.
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-- Faltam oito minutos -- disse a voz de Pasifae. -- Eu sincera-
mente adoraria vê-los sobreviver. Isso provaria que são sacrifícios
dignos para Gaia em Atenas. Mas então, é claro, não precisaríamos
de seus amigos no elevador.
O coração de Hazel disparou. Ela olhou para a parede à sua es-
querda. Apesar do que seus sentidos lhe diziam, aquela deveria ser a
direção das Portas. Pasifae deveria estar bem à sua frente.
Hazel desejou atravessar a parede e estrangular a feiticeira. Em
oito minutos, ela e Leo precisavam estar às Portas da Morte para
deixar seus amigos saírem.
Mas Pasifae era uma feiticeira imortal com milhares de anos de
experiência em feitiços. Hazel não poderia derrotá-la apenas usando
a força de vontade. Ela conseguira enganar a Círon, o bandido,
mostrando-lhe o que ele esperava ver. Hazel precisava descobrir o
que Pasifae mais desejava.
-- Sete minutos -- lamentou a feiticeira. -- Ah, se tivéssemos mais
tempo! Há tantas humilhações que eu gostaria que vocês sofressem...
Era isso, Hazel percebeu. Ela tinha que aceitar o desafio. Tinha
que fazer o Labirinto ficar mais perigoso, mais espetacular, precisava
fazer Pasifae se concentrar mais nas armadilhas do que na direção
para a qual o Labirinto os estava levando.
-- Leo, precisamos pular -- disse Hazel.
-- Mas...
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-- Não é tão longe quanto parece. Agora!
Hazel pegou a mão dele e ambos saltaram o poço. Ao caírem do
outro lado, Hazel olhou para trás e não havia nenhum poço, apenas
uma fenda de dez centímetros no chão.
-- Vamos!
Eles correram enquanto a voz de Pasifae dizia:
-- Ah, querida, não. Você nunca sobreviverá se for por esse cam-
inho. Seis minutos.
O teto acima deles se abriu. Gale, a doninha, chiou alarmada, mas
Hazel imaginou um novo túnel que levava para a esquerda -- um
túnel ainda mais perigoso e que ia para a direção errada. A Névoa
cedeu à sua vontade. O túnel apareceu, e os dois entraram nele.
Pasifae suspirou decepcionada.
-- Você não é muito boa nisso, querida.
Mas Hazel sentiu uma centelha de esperança. Ela criara um túnel.
Introduzira um pequeno rasgo no tecido mágico do Labirinto.
O chão desabou sob seus pés. Hazel saltou para o lado, puxando
Leo com ela. Imaginou outro túnel, voltando pelo caminho de onde
vieram, mas repleto de gás venenoso. O Labirinto o criou.
-- Leo, prenda a respiração -- alertou Hazel.
Eles passaram pela névoa tóxica. Os olhos de Hazel pareciam ter-
em sido mergulhados em molho de pimenta, mas ela continuou
correndo.
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-- Cinco minutos -- disse Pasifae. -- Que pena! Queria tanto vê-
los sofrer mais...
Eles chegaram a um corredor com ar fresco. Leo tossiu.
-- Queria tanto que ela calasse a boca.
Eles se abaixaram sob um garrote de fio de bronze. Hazel imagin-
ou o túnel se curvando um pouquinho na direção de Pasifae. A Névoa
cedeu à sua vontade.
As paredes do túnel começaram a se fechar sobre eles. Hazel não
tentou impedi-las. Ela as fez se fecharem mais rápido, estremecendo
o chão e abrindo rachaduras no teto. Ela e Leo correram para se sal-
var, seguindo a curva que os aproximava cada vez mais do que ela
achava ser o centro da câmara.
-- Uma pena -- disse Pasifae. -- Eu gostaria de poder matar vocês
e seus amigos no elevador, mas Gaia insiste que dois semideuses de-
vem ser mantidos vivos até o Banquete da Esperança, quando seu
sangue será bem utilizado! Tudo bem. Precisarei encontrar outras ví-
timas para meu Labirinto. Vocês dois foram fracassos de quinta
categoria.
Hazel e Leo pararam de correr. À frente deles estendia-se um
abismo tão largo que ela não conseguia ver o outro lado. De algum
lugar na escuridão abaixo, vinha o som de milhares e milhares de co-
bras sibilantes.
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Hazel sentiu-se tentada a recuar, mas o túnel estava se fechando
atrás deles, deixando-os ilhados em uma pequena saliência. Gale, a
doninha, passeou pelos ombros de Hazel e peidou com ansiedade.
-- Tudo bem, certo -- murmurou Leo. -- As paredes são móveis.
Têm que ser mecânicas. Preciso de um segundo.
-- Não, Leo -- falou Hazel. -- Não há caminho de volta.
-- Mas...
-- Segure a minha mão -- disse ela. -- No três.
-- Mas...
-- Três!
-- O quê?
Hazel pulou no poço, puxando Leo. Ela tentou ignorar seus gritos
e a doninha flatulenta agarrada a seu pescoço, e concentrou-se em re-
direcionar a magia do Labirinto.
Pasifae riu com prazer, sabendo que a qualquer momento os dois
seriam esmagados ou mordidos até a morte em um poço de repleto
de cobras.
Em vez disso, Hazel imaginou uma rampa na escuridão, bem à
sua esquerda. Ela se virou no ar e caiu naquela direção. Ela e Leo
acertaram a rampa e deslizaram para dentro da caverna, caindo bem
em cima de Pasifae.
-- Ai! -- A cabeça da feiticeira bateu no chão quando Leo caiu com
força sobre seu peito.
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Por um instante, os três e a doninha formaram uma pilha de cor-
pos estatelados e membros se debatendo. Hazel tentou puxar a es-
pada, mas Pasifae conseguiu levantar-se primeiro. A feiticeira se
afastou, o penteado tombando para o lado como a Torre de Pisa. Seu
vestido estava manchado de graxa do cinto de ferramentas de Leo.
-- Seus miseráveis -- gritou ela.
O labirinto desaparecera. A poucos metros dali, Clítio estava de
costas para eles, olhando para as Portas da Morte. Pelos cálculos de
Hazel, faltavam cerca de trinta segundos para que seus amigos
chegassem. Hazel estava exausta pela corrida através do labirinto en-
quanto controlava a Névoa, mas precisava lançar mão de mais um
truque.
Ela conseguira fazer com que Pasifae visse o que mais desejava.
Agora Hazel tinha que fazer a feiticeira ver o que ela mais temia.
-- Você deve odiar semideuses de verdade -- disse Hazel, tent-
ando imitar o sorriso cruel da feiticeira. -- Nós sempre exigimos o
máximo de você, não é mesmo, Pasifae?
-- Blasfêmia! -- gritou Pasifae. -- Vou acabar com vocês! Vou...
-- Nós estamos sempre puxando o seu tapete -- disse
Hazel. -- Seu marido a traiu. Teseu matou o Minotauro e roubou sua
filha, Ariadne. Agora, dois fracassos de quinta categoria viraram seu
próprio labirinto contra você. Mas você sabia que seria assim, não é
mesmo? Você sempre perde no final.
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-- Eu sou imortal! -- gemeu Pasifae. Ela deu um passo para trás,
tocando o colar. -- Vocês não podem me vencer!
-- Você é que não pode vencer -- rebateu Hazel. -- Veja.
Ela apontou para os pés da feiticeira. Um alçapão se abriu em-
baixo de Pasifae. Ela caiu, gritando, em um poço sem fundo que não
existia de verdade.
O chão se solidificou. A feiticeira se fora.
Leo olhou para Hazel, espantado.
-- Como você...
Logo em seguida, a campainha do elevador tocou. Em vez de
apertar o botão SUBIR, Clítio afastou-se do painel, mantendo Percy e
Annabeth presos lá dentro.
-- Leo! -- gritou Hazel.
Estavam a dez metros de distância -- longe demais para chegarem
ao elevador a tempo --, mas Leo pegou uma chave de fenda e a
lançou como uma faca. Um tiro impossível. A ferramenta passou por
Clítio e se chocou contra o botão SUBIR.
As Portas da Morte se abriram com um sibilo. Fumaça preta
começou a sair pela abertura e dois corpos caíram de cara no chão,
Percy e Annabeth, parecendo mortos.
Hazel ofegou.
-- Ah, deuses...
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Ela e Leo tentaram se aproximar, mas Clítio levantou a mão em
um gesto inconfundível: parem. Ele ergueu o enorme pé de réptil
sobre a cabeça de Percy em aviso.
A fumaça da mortalha do gigante se espalhava pelo chão,
cobrindo Annabeth e Percy com neblina escura.
-- Clítio, você perdeu -- rosnou Hazel. -- Deixe-os ir, ou acabará
como Pasifae.
O gigante inclinou a cabeça. Seus olhos de diamante brilhavam.
Aos seus pés, Annabeth teve um espasmo, como se tivesse sido at-
ingida por uma descarga elétrica. Ela virou de costas, fumaça preta
saindo de sua boca.
-- Não sou Pasifae -- disse Annabeth com uma voz que não era
dela, grave como um contrabaixo. -- Você não ganhou nada.
-- Pare com isso!
Mesmo a dez metros de distância, Hazel podia sentir a força vital
de Annabeth se esvaindo, seu pulso ficando cada vez mais fraco. Seja
lá o que Clítio estivesse fazendo para falar através de Annabeth,
aquilo a estava matando.
Clítio cutucou a cabeça de Percy com o pé. O rosto de Percy
tombou para o lado.
-- Não está morto. -- As palavras do gigante explodiram na boca
de Percy. -- Imagino que deva ser um choque terrível para um
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corpo mortal voltar do Tártaro. Eles ficarão desacordados por al-
gum tempo.
Clítio voltou sua atenção para Annabeth. Mais fumaça saiu por
entre os lábios dela:
-- Eu os amarrarei e levarei para Porfírio, em Atenas. Eles são o
sacrifício de que precisamos. Infelizmente, isso significa que não
tenho mais utilidade para vocês dois.
-- Ah, é? -- exclamou Leo, com raiva. -- Bem, talvez você tenha a
fumaça, amigo, mas eu tenho o fogo.
Suas mãos se incendiaram. Ele lançou colunas de chamas brancas
contra o gigante, mas a aura de fumaça de Clítio as absorveu no im-
pacto. Tentáculos de fumaça negra consumiram as colunas de fogo,
apagando sua luz e calor e cobrindo Leo com escuridão.
O semideus caiu de joelhos, agarrando a própria garganta.
-- Não! -- Hazel correu na direção dele, mas Gale chiou com ur-
gência em seu ombro, um aviso claro.
-- Eu não faria isso. -- A voz de Clítio reverberou na boca de
Leo. -- Você não entende, Hazel Levesque. Eu devoro magia.
Destruo a voz e a alma. Você não pode me vencer.
A fumaça negra se espalhou ainda mais pela câmara, cobrindo
Annabeth e Percy e se aproximando de Hazel.
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O sangue rugia em seus ouvidos. Ela precisava agir, mas como?
Se aquela fumaça negra podia incapacitar Leo tão rapidamente, que
chance ela teria?
-- F-Fogo -- gaguejou ela baixinho. -- Você deveria ser vulnerável
ao fogo.
O gigante riu, desta vez usando a voz de Annabeth:
-- Você estava contando com isso, não é mesmo? É verdade que
não gosto de fogo. Mas as chamas de Leo Valdez não são fortes o
bastante para me incomodar.
Em algum lugar atrás de Hazel, uma voz suave e lírica disse:
-- E quanto às minhas chamas, velho amigo?
Gale chiou com entusiasmo e pulou do ombro de Hazel, correndo
até a entrada da caverna, onde havia uma mulher loura com um
vestido preto, a Névoa girando ao seu redor.
O gigante cambaleou para trás, trombando nas Portas da Morte.
-- Você -- disse ele através da boca de Percy.
-- Eu -- concordou Hécate. Ela abriu os braços. Tochas ardentes
surgiram em suas mãos. -- Faz milênios que não luto ao lado de um
semideus, mas Hazel Levesque mostrou-se digna. O que você me diz,
Clítio? Quer brincar com o fogo?
LXXV




HAZEL

SE O GIGANTE TIVESSE FUGIDO gritando, Hazel teria ficado grata. Em
seguida, poderiam tirar o resto do dia de folga.
Clítio a decepcionou.
Quando viu as tochas ardentes da deusa, o gigante pareceu recu-
perar o ânimo. Bateu o pé, fazendo o chão tremer e quase pisando no
braço de Annabeth. Uma fumaça escura ergueu-se ao seu redor até
Annabeth e Percy ficarem completamente escondidos. Hazel não
conseguia ver coisa alguma além dos olhos brilhantes do gigante.
-- Palavras corajosas -- disse Clítio através da boca de
Leo. -- Mas você esqueceu, deusa, que quando nos encontramos pela
última vez, teve a ajuda de Hércules e de Dionísio, os mais poder-
osos heróis do mundo, ambos fadados a se tornarem deuses. Agora
você me traz... esses daí?
O corpo inconsciente de Leo se retorcia de dor.
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-- Pare com isso! -- gritou Hazel.
Ela não planejou o que aconteceu em seguida. Apenas sabia que
tinha que proteger os amigos. Imaginou-os atrás dela, da mesma
forma como imaginara os novos túneis que apareceram no Labirinto
de Pasifae. Leo desapareceu e reapareceu aos pés de Hazel, ao lado
de Percy e Annabeth. A Névoa rodopiou em torno dela, derramando-
se sobre as pedras e envolvendo seus amigos. A Névoa branca chiou e
emanou vapor quando encontrou a fumaça negra de Clítio, como lava
rolando para dentro do mar.
Leo abriu os olhos e ofegou.
-- O-o quê...
Annabeth e Percy permaneceram imóveis, mas Hazel podia sentir
os batimentos cardíacos cada vez mais fortes, a respiração cada vez
mais uniforme.
No ombro de Hécate, Gale, a doninha, chiou em sinal de
admiração.
A deusa se aproximou, com os olhos escuros brilhando à luz das
tochas.
-- Você está certo, Clítio. Hazel Levesque não é Hércules ou
Dionísio, mas creio que a achará tão formidável quanto eles.
Através da mortalha de fumaça, Hazel viu o gigante abrir a boca.
As palavras não saíam. Clítio fez uma careta de frustração.
Leo tentou sentar.
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-- O que está acontecendo? O que posso...
-- Cuide de Percy e Annabeth. -- Hazel sacou a espata. -- Fique
atrás de mim. Mantenha-se na Névoa.
-- Mas...
O olhar que Hazel lhe lançou deve ter sido mais grave do que ela
se deu conta.
Leo engoliu em seco.
-- Sim, entendi. Névoa branca é bom. Fumaça preta é ruim.
Hazel avançou. O gigante abriu os braços. O teto abobadado es-
tremeceu e a voz do gigante ecoou pela câmara, ampliada cem vezes.
Formidável?, perguntou o gigante. Ele soava como se estivesse
falando através de um coro de mortos, usando todas as almas infel-
izes sepultadas atrás das estelas da cúpula. Porque a menina apren-
deu os seus truques de magia, Hécate? Porque permitiu que esses
fracotes se escondessem em sua Névoa?
Uma espada apareceu na mão do gigante, uma lâmina de ferro es-
tígio muito parecida com a de Nico, só que cinco vezes maior. Não
compreendo por que Gaia acha que algum destes semideuses é
digno de sacrifício. Vou esmagá-los como cascas de nozes vazias.
O medo de Hazel se transformou em raiva. Ela gritou. As paredes
da câmara emitiram um som crepitante como gelo em água morna, e
dezenas de pedras preciosas dispararam em direção ao gigante, per-
furando a armadura como balas de chumbo.
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Clítio cambaleou para trás, a voz desencarnada gritando de dor. A
armadura de ferro estava salpicada de buracos.
Icor dourado escorria de um ferimento no braço direito. O manto
de escuridão se diluiu. Hazel podia ver a expressão assassina no rosto
do gigante.
Você, rosnou Clítio. Sua desprezível...
-- Desprezível? -- perguntou Hécate calmamente. -- Diria que
Hazel Levesque conhece alguns truques que nem mesmo eu poderia
ensinar.
Hazel ficou à frente de seus amigos, determinada a protegê-los,
mas sua energia estava enfraquecendo. A espada pesava em sua mão,
e ainda não a usara. Desejou que Arion estivesse ali. Poderia apro-
veitar a velocidade e a força do cavalo. Infelizmente, seu amigo equi-
no não poderia ajudá-la naquele momento. Era uma criatura nascida
para espaços abertos, não para o subterrâneo.
O gigante enfiou os dedos na ferida do braço. Tirou dali um
diamante e jogou-o de lado. A ferida fechou.
Então, filha de Plutão, retumbou Clítio, realmente acredita que
Hécate leva a sério os seus interesses? Circe era uma de suas favor-
itas. E Medeia. E Pasifae. E como elas acabaram, hein?
Atrás dela, Hazel ouviu Annabeth despertando, gemendo de dor.
Percy murmurou algo que soou como "Bob-bob-bob?"
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Clítio adiantou-se, segurando a espada casualmente, como se
fossem companheiros em vez de inimigos. Hécate não lhe dirá a ver-
dade. Ela envia acólitos como você para fazer o seu trabalho e cor-
rer todos os riscos. Se por algum milagre me incapacitar, apenas
então ela será capaz de atear fogo em mim. Então, reivindicará a
glória de ter me matado. Sabe como Baco lidou com os gêmeos
Aloadas no Coliseu. Hécate é pior. É uma titã que traiu os titãs.
Então ela traiu os deuses. Realmente acredita que será fiel a você?
O rosto de Hécate estava ilegível.
-- Não posso responder às acusações dele, Hazel -- disse a
deusa. -- Esta é a sua encruzilhada. Você deve escolher.
Sim, encruzilhada. O riso do gigante ecoou. Suas feridas pare-
ciam ter se curado completamente. Hécate lhe oferece obscuridade,
escolhas, vagas promessas de magia. Sou o anti-Hécate. Eu darei a
você verdade. Eliminarei as opções e a magia. Afastarei a Névoa de
uma vez por todas e mostrarei o mundo em todo o seu horror
verdadeiro.
Leo esforçou-se para ficar de pé, tossindo como um asmático.
-- Estou amando esse cara. -- Ele ofegou. -- Sério, devemos
mantê-lo por perto para dar palestras motivacionais. -- Suas mãos se
inflamaram como maçaricos. -- Ou eu poderia apenas incendiá-lo.
-- Leo, não -- disse Hazel. -- Aqui é o templo do meu pai. Minha
responsabilidade.
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-- Sim, está bem. Mas...
-- Hazel -- arquejou Annabeth.
Hazel ficou tão feliz ao ouvir novamente a voz da amiga que quase
virou, mas sabia que não deveria tirar os olhos de Clítio.
-- As correntes... -- Conseguiu dizer Annabeth.
Hazel inspirou rápido. Fora uma tola! As Portas da Morte ainda
estavam abertas, estremecendo contra as correntes que as prendiam
no lugar. Ela teria de quebrá-las para que desaparecessem e, final-
mente, ficassem fora do alcance de Gaia.
O único problema: um enorme gigante de fumaça em seu
caminho.
Você não pode acreditar seriamente que tem força para isso,
repreendeu Clítio. O que você fará, Hazel Levesque: atirar mais ru-
bis? Fazer chover safiras?
Hazel deu-lhe uma resposta. Ergueu a espata e atacou. Aparente-
mente, Clítio não esperava que ela fosse tão suicida. O gigante foi
lento ao erguer a espada. No momento em que desferiu o golpe,
Hazel se jogou entre as suas pernas e cravou a espada de ouro imper-
ial em seu gluteus maximus. Não foi a atitude de uma dama. As freir-
as da St. Agnes reprovariam. Mas funcionou.
Clítio berrou e arqueou as costas, afastando-se dela. A Névoa
ainda girava em torno de Hazel, sibilando quando tocava a fumaça
negra do gigante.
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Hazel percebeu que Hécate a estava ajudando, dando-lhe força
para manter um manto defensivo. Também sabia que, no instante em
que a sua concentração vacilasse e a escuridão a tocasse, cairia. Se
isso acontecesse, não tinha certeza se Hécate seria capaz -- ou estaria
disposta -- a evitar que o gigante esmagasse a ela e a seus amigos.
Hazel correu em direção às Portas da Morte. Sua lâmina quebrou
as correntes do lado esquerdo como se fossem feitas de gelo. Pulou
para a direita, mas Clítio gritou:
-- NÃO!
Por pura sorte ela não foi cortada ao meio. O lado plano da es-
pada do gigante atingiu-a no peito e jogou-a longe. Ela bateu na
parede e sentiu ossos se partindo.
Do outro lado da câmara, Leo gritou seu nome.
Através de sua visão embaçada, viu um clarão de fogo. Hécate es-
tava ali perto, sua forma tremulando como se estivesse prestes a se
dissolver. As tochas pareciam se apagar, mas isso poderia ser apenas
porque Hazel estava começando a perder a consciência.
Não podia desistir agora. Ela se obrigou a levantar. Um lado de
seu corpo parecia estar cortado por lâminas de barbear. Sua espada
estava no chão a uns dois metros dali. Cambaleou em direção à arma.
-- Clítio! -- gritou Hazel.
Ela quis que aquilo soasse como um desafio corajoso, mas saiu
mais como um gemido.
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Ao menos chamou a atenção dele. O gigante parou de prestar
atenção em Leo e nos outros. Quando a viu mancando, riu.
Boa tentativa, Hazel Levesque, admitiu Clítio. É melhor do que
eu esperava. Mas apenas magia não pode me derrotar, e você não
tem força suficiente. Hécate falhou com você. Assim como falhou
com todos os seus seguidores no final.
A Névoa ao redor dela estava se diluindo. No outro extremo da
sala, Leo tentava forçar Percy a comer um pouco de ambrosia, em-
bora o garoto ainda estivesse praticamente inconsciente. Annabeth
estava desperta, mas ainda tonta, mal conseguindo erguer a cabeça.
Com suas tochas, Hécate ficou observando e esperando -- o que
enfureceu Hazel a ponto de ela conseguir uma última onda de
energia.
Arremessou a espada. Não contra o gigante, mas em direção às
Portas da Morte. As correntes no lado direito se quebraram. Hazel
desabou em agonia, com um lado do corpo queimando, quando as
Portas estremeceram e desapareceram em um brilho de luz roxa.
Clítio rugiu tão alto que seis estelas caíram do teto e se partiram.
-- Isso foi pelo meu irmão, Nico -- ofegou Hazel. -- E por você ter
destruído o altar do meu pai.
Você perdeu o seu direito a uma morte rápida, rosnou o gigante.
Vou sufocá-la nas trevas, lenta e dolorosamente. Hécate não poderá
ajudá-la. NINGUÉM poderá ajudá-la!
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A deusa ergueu as tochas.
-- Não estaria tão certa disso, Clítio. Os amigos de Hazel só pre-
cisavam de um pouco de tempo para alcançá-la, tempo que você lhes
deu ao ficar se gabando e zombando.
Clítio debochou. Quais amigos? Aqueles fracotes? Eles não são
um desafio.
Diante de Hazel, o ar tremulou. A névoa se adensou, criando um
portal, e quatro pessoas o atravessaram.
Hazel chorou de alívio. Frank tinha o braço enfaixado e com man-
chas de sangue, mas estava vivo. Junto a ele, estavam Nico, Piper e
Jason, todos com as espadas desembainhadas.
-- Desculpem o atraso -- disse Jason. -- Esse é o cara que precisa
ser morto?
LXXVI




HAZEL

HAZEL QUASE SENTIU PENA DE Clítio.
Eles atacaram de todas as direções -- Leo lançando fogo em suas
pernas, Frank e Piper o golpeando no peito e Jason voando e
chutando seu rosto. Hazel estava orgulhosa de ver o quanto Piper
aprendera com suas aulas de esgrima.
Toda vez que o véu de fumaça do gigante começava a se fechar em
torno de um deles, Nico aparecia na hora para cortá-lo, tragando a
escuridão com sua espada de ferro estígio. Percy e Annabeth estavam
de pé, parecendo fracos e confusos, mas com as espadas desembain-
hadas. Onde Annabeth conseguira uma espada? E do que era feita?
Marfim? Pareciam querer ajudar, mas não havia necessidade. O gi-
gante estava cercado.
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Clítio rosnou, virando-se para trás e para a frente, como se não
conseguisse decidir qual deles matar primeiro. Esperem! Fiquem
parados! Não! Ui!
A escuridão em torno dele se dissipou completamente, deixando-
o sem qualquer proteção além da armadura danificada. Icor escorria
de uma dúzia de ferimentos. Eles se curavam quase tão rapidamente
quanto eram infligidos, mas Hazel percebeu que o gigante estava fic-
ando cansado.
Jason voou uma última vez em direção ao gigante, chutando-o no
peito e quebrando sua armadura. Clítio cambaleou para trás, largou a
espada no chão e caiu de joelhos. Os semideuses o cercaram.
Somente então Hécate se aproximou, mantendo as tochas ergui-
das. A Névoa cobriu o gigante, sibilando e borbulhando ao tocar sua
pele.
-- E assim termina -- disse Hécate.
Isso não terminou. A voz de Clítio ecoou de algum lugar acima,
abafada e quase ininteligível. Meus irmãos se levantaram. Gaia es-
pera apenas pelo sangue do Olimpo. Foi preciso todos vocês juntos
para me derrotar. O que farão quando a Mãe Terra despertar?
Hécate virou as tochas para baixo e as cravou como punhais na
cabeça de Clítio. O cabelo do gigante incendiou mais rápido do que
palha seca, o fogo espalhando-se por sua cabeça e por todo o seu
corpo até que o calor fez Hazel estremecer. Clítio caiu de cara sobre
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os escombros do altar de Hades com um baque surdo. Seu corpo se
desfez em cinzas.
Por um instante, todos ficaram em silêncio. Hazel ouviu um ruído
doloroso e irregular e percebeu que era a sua própria respiração. Um
lado de seu corpo parecia ter sido atingido por um aríete.
A deusa Hécate a encarou.
-- Você deve ir agora, Hazel Levesque. Tire seus amigos daqui.
Hazel cerrou os dentes, tentando conter a raiva.
-- Só isso? Nenhum "obrigada"? Nenhum "bom trabalho"?
A deusa inclinou a cabeça. Gale, a doninha, chiou -- talvez um ad-
eus, talvez um aviso -- e desapareceu nas dobras da saia da dona.
-- Você procura gratidão no lugar errado -- disse Héc-
ate. -- Quanto ao "bom trabalho", veremos. Vocês ainda precisam
chegar a Atenas. Clítio não estava errado. Os gigantes despertaram,
todos eles, e estão mais fortes do que nunca. Gaia está prestes a des-
pertar. O Banquete da Esperança não fará jus ao nome a menos que
vocês a detenham.
A câmara estremeceu. Outra estela caiu no chão e se quebrou.
-- A Casa de Hades está instável -- disse Hécate. -- Vá agora. Nós
nos encontraremos de novo.
A deusa desapareceu. A Névoa evaporou.
-- Muito simpática -- resmungou Percy.
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Os outros olharam para ele e Annabeth como se tivessem acabado
de perceber que estavam ali.
-- Cara.
Jason deu um abraço de urso em Percy.
-- De volta do Tártaro! -- gritou Leo. -- Esse é meu chapa!
Piper abraçou Annabeth e chorou.
Frank correu até Hazel e a abraçou com delicadeza.
-- Você está ferida -- disse ele.
-- Provavelmente quebrei algumas costelas -- admitiu ela. -- Mas,
Frank, o que aconteceu com seu braço?
Ele conseguiu sorrir.
-- É uma longa história. Estamos vivos. Isso é o que importa.
Ela estava tão tonta de alívio que levou um instante para reparar
em Nico sozinho em um canto, o rosto repleto de dor e dúvida.
-- Ei -- chamou Hazel, acenando com o braço bom.
Ele hesitou e, em seguida, aproximou-se e beijou-a na testa.
-- Estou feliz que você esteja bem -- disse ele. -- Os fantasmas es-
tavam certos. Apenas um de nós chegou às Portas da Morte. Você...
você teria deixado nosso pai orgulhoso.
Ela sorriu e tocou no rosto dele com delicadeza.
-- Nós não poderíamos ter derrotado Clítio sem você.
Hazel passou o polegar sob o olho de Nico e se perguntou se ele
estivera chorando. Ela queria muito entender o que estava
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acontecendo com ele, descobrir pelo que Nico passara nas últimas se-
manas. Depois de tudo pelo que tinham acabado de passar, Hazel es-
tava mais grata do que nunca por ter um irmão.
Antes que ela pudesse dizer isso, o teto estremeceu. Fissuras
apareceram nos ladrilhos restantes. Colunas de poeira caíram sobre
eles.
-- Precisamos sair daqui -- disse Jason. -- Hã, Frank...
Frank balançou a cabeça.
-- Acho que já gastei meu favor dos mortos por hoje.
-- Espere, o quê? -- perguntou Hazel.
Piper ergueu as sobrancelhas.
-- Seu namorado inacreditável pediu um favor aos mortos como
um filho de Marte. Ele convocou os espíritos de alguns guerreiros, fez
com que nos guiassem até aqui através das... hum, bem, não tenho
certeza. Das passagens da morte? Tudo que sei é que era muito,
muito escuro.
À esquerda, uma seção da parede se abriu. Dos olhos de um es-
queleto esculpido na pedra saltaram dois rubis, que rolaram pelo
chão.
-- Teremos que viajar nas sombras -- disse Hazel.
Nico fez uma careta.
-- Hazel, eu mal consigo me transportar sozinho. Com mais sete
pessoas...
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-- Vou ajudá-lo.
Ela tentou soar confiante. Hazel nunca viajara nas sombras antes
e não tinha ideia se podia, mas depois de trabalhar com a Névoa e al-
terar o Labirinto, ela tinha que acreditar que era possível.
Uma seção inteira de ladrilhos se desprendeu do teto.
-- Pessoal, deem as mãos! -- gritou Nico.
Eles formaram um círculo às pressas. Hazel visualizou os campos
gregos acima deles. A caverna desabou, e ela se sentiu dissolvendo-se
nas sombras.

***

Emergiram na encosta com vista para o Rio Aqueronte. O sol estava
nascendo, a água cintilava e as nuvens brilhavam com uma tonalid-
ade alaranjada. O ar fresco da manhã cheirava a madressilvas.
Hazel estava de mãos dadas com Frank e Nico. Estavam todos
vivos e mais ou menos inteiros. A luz do sol nas árvores era a coisa
mais linda que já vira. Ela queria viver aquele momento: livre de
monstros, deuses e espíritos malignos.
Então, seus amigos começaram a despertar.
Nico percebeu que estava segurando a mão de Percy e rapida-
mente a soltou.
Leo cambaleou para trás.
-- Sabem... Acho que preciso me sentar.
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Ele caiu. Os outros se juntaram a ele. O Argo II ainda flutuava no
rio a algumas centenas de metros dali. Hazel sabia que eles deviam
sinalizar para o treinador Hedge e dizer que estavam vivos. Será que
tinham passado a noite toda no templo? Ou várias noites? Mas, no
momento, o grupo estava cansado demais para fazer qualquer coisa
além de sentar, relaxar e se maravilhar com o fato de estarem bem.
Eles começaram a trocar histórias.
Frank explicou o que acontecera com a legião fantasma e o exér-
cito de monstros -- como Nico usara o cetro de Diocleciano e quão
bravamente Jason e Piper lutaram.
-- Frank está sendo modesto -- disse Jason. -- Ele controlou toda
a legião. Vocês precisavam ver. Ah, por falar nisso... -- Jason olhou
para Percy. -- Eu renunciei ao meu cargo e promovi Frank a pretor. A
menos que você queira contestar esta decisão.
Percy sorriu.
-- Por mim, tudo bem.
Hazel olhou para Frank.
-- Pretor?
Ele deu de ombros, desconfortável.
-- Bem... é. Eu sei que parece estranho.
Ela tentou abraçá-lo, então fez uma careta quando se lembrou de
suas costelas machucadas. Hazel se contentou em beijá-lo.
-- Parece perfeito.
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Leo deu um tapinha no ombro de Frank.
-- Muito bem, Zhang. Agora você pode mandar Octavian se atirar
contra a própria espada.
-- Tentador -- concordou Frank. Ele olhou para Percy, apreens-
ivo. -- Mas vocês... O Tártaro deve ser a grande história. O que
aconteceu lá embaixo? Como vocês...?
Percy entrelaçou os dedos com os de Annabeth.
Hazel examinou Nico e viu dor em seus olhos. Ela não tinha cer-
teza, mas talvez ele estivesse pensando na sorte que Percy e Anna-
beth tiveram por terem um ao outro. Nico atravessara o Tártaro
sozinho.
-- Nós contaremos a história -- prometeu Percy. -- Mas não
agora, tudo bem? Não estou pronto para me lembrar daquele lugar.
-- Nem eu -- concordou Annabeth. Então olhou para o rio e bal-
buciou: -- Hã, acho que nossa carona está chegando.
Hazel se virou. O Argo II rumava em direção ao porto, os remos
aéreos em movimento e as velas enfunadas. A cabeça de Festus bril-
hava sob o sol. Mesmo a distância, Hazel podia ouvi-lo rangendo e ti-
nindo de júbilo.
-- Esse é o meu garoto! -- gritou Leo.
Enquanto o navio se aproximava, Hazel viu o treinador Hedge de
pé na proa.
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-- Já não era sem tempo! -- gritou ele. Exibia sua melhor car-
ranca, mas seus olhos brilhavam como se talvez, apenas talvez, est-
ivesse feliz em vê-los. -- Por que demoraram tanto, docinhos? Vocês
deixaram a visita esperando!
-- Visita? -- murmurou Hazel.
Na amurada junto ao treinador Hedge, surgiu uma menina de ca-
belos escuros usando um manto roxo, o rosto tão coberto de fuligem
e arranhões ensanguentados que Hazel quase não a reconheceu.
Reyna havia chegado.
LXXVII




PERCY

PERCY ENCARAVA FIXAMENTE A ATENA PARTENOS, esperando que ela
o atacasse a qualquer momento.
O novo sistema de içamento mecânico de Leo tinha baixado a es-
tátua pela encosta com facilidade surpreendente. Agora, a deusa de
mais de dez metros olhava serenamente para o Rio Aqueronte. À luz
do sol, seu vestido parecia feito de ouro líquido.
-- Incrível -- reconheceu Reyna.
Ela ainda estava com os olhos vermelhos de choro. Logo depois
de aterrissar no Argo II, seu pégaso Cipião desabou, sucumbindo ao
veneno das garras de um grifo que os atacara na noite anterior.
Reyna sacrificou o cavalo para acabar com seu sofrimento. Com sua
faca de ouro, transformou o pégaso em uma poeira que se espalhou
pelo ar perfumado da Grécia. Talvez não fosse um final tão ruim para
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um pégaso, mas Reyna tinha perdido um amigo leal. Percy imaginou
que ela já havia aberto mão de muita coisa em sua vida.
Desconfiada, a pretora andou em torno da Atena Partenos.
-- Parece nova.
-- É -- disse Leo. -- Nós tiramos as teias de aranha e usamos um
bom produto de limpeza. Não foi difícil.
O Argo II pairava logo acima. Com Festus de vigia, atento a
ameaças no radar, toda a tripulação tinha resolvido almoçar na co-
lina enquanto planejavam o que fariam a seguir. Depois das últimas
semanas, Percy achava que mereciam uma bela refeição juntos. Na
verdade, qualquer coisa que não fosse fogo líquido ou sopa de
drakon.
-- Ei, Reyna -- chamou Annabeth. -- Tem comida aqui. Venha
sentar com a gente.
A pretora os olhou com a testa franzida, como se não conseguisse
processar direito a frase Venha sentar com a gente. Percy nunca
tinha visto Reyna sem sua armadura antes. Ela tinha ficado a bordo
do navio, sendo reparada por Buford, a Mesa Maravilha. Reyna ves-
tia jeans e uma camiseta roxa do Acampamento Júpiter, e parecia
quase uma adolescente normal, a não ser pela faca no cinto e a ex-
pressão cautelosa, como se estivesse esperando um ataque vindo de
qualquer direção.
-- Está bem -- disse por fim.
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Eles chegaram um pouco para o lado e abriram espaço para ela na
roda. Reyna sentou de pernas cruzadas ao lado de Annabeth, pegou
um sanduíche de queijo e começou a comê-lo devagar.
-- E então... -- disse Reyna. -- Frank Zhang... pretor.
Frank se mexeu, desconfortável, e limpou farelos do queixo.
-- Pois é. Fui promovido durante a batalha.
-- Para comandar outra legião -- observou Reyna. -- Uma legião
de fantasmas.
Hazel deu o braço a Frank em um gesto protetor. Depois de uma
hora na enfermaria do barco, os dois pareciam muito melhor; mas
Percy conseguia perceber que não sabiam lidar muito bem com a an-
tiga chefe do Acampamento Júpiter aparecendo para o almoço.
-- Reyna -- disse Jason. -- Você tinha que ver o Frank na batalha.
-- Ele foi incrível -- concordou Piper.
-- Frank é um líder -- insistiu Hazel. -- Ele é um grande pretor.
Reyna continuou observando Frank, como se estivesse tentando
adivinhar seu peso.
-- Acredito em vocês -- disse por fim. -- Eu aprovo.
-- É mesmo? -- perguntou Frank, surpreso.
Reyna deu um sorriso seco.
-- Um filho de Marte, o herói que ajudou a recuperar a águia da
legião... Posso trabalhar com um semideus assim. Só não descobri
ainda como convencer a Décima Segunda Fulminata.
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Frank pareceu preocupado.
-- É, eu tenho me perguntado a mesma coisa.
Percy ainda não acreditava em como Frank estava diferente. Um
"crescimento rápido" era muito pouco para descrever a mudança.
Estava pelo menos dez centímetros mais alto, mais magro, e forte
como um jogador de futebol americano. O rosto parecia mais forte, e
o queixo, mais marcante. Era como se Frank tivesse se transformado
em touro e, ao voltar à forma humana, tivesse mantido algumas cara-
cterísticas do animal.
-- A legião vai escutá-la, Reyna -- disse o novo pretor. -- Você at-
ravessou as terras antigas sozinha e chegou até aqui.
Reyna mastigava o sanduíche como se fosse um pedaço de
papelão.
-- Ao fazer isso, quebrei as leis da legião.
-- César não seguiu as leis quando atravessou o Rubicão -- argu-
mentou Frank. -- Grandes líderes às vezes precisam ir além do que se
espera.
Ela balançou a cabeça.
-- Não sou César. Depois de encontrar o bilhete de Jason no palá-
cio de Diocleciano, seguir seu rastro foi fácil. Só fiz o que achei
necessário.
Percy não conseguiu evitar um sorriso.
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-- Reyna, você é modesta demais. Voar sozinha metade do mundo
para atender à súplica de Annabeth porque você sabia que era a mel-
hor chance de garantir a paz? Isso é heroico pra caramba.
Reyna deu de ombros.
-- Falou o semideus que caiu no Tártaro e conseguiu voltar.
-- Ele teve ajuda -- lembrou Annabeth.
-- Ah, obviamente -- disse Reyna. -- Sem você, duvido que Percy
conseguisse sair de um saco de papel.
-- É verdade -- concordou Annabeth.
-- Ei! -- reclamou Percy.
Os outros começaram a rir, mas Percy não se importou. Era bom
vê-los sorrir. Droga, só estar no mundo mortal já era bom, respirar ar
sem veneno, sentir a luz do sol nas costas...
De repente, ele pensou em Bob. Diga oi para o sol e as estrelas
por mim.
O sorriso de Percy sumiu. Bob e Damásen tinham sacrificado suas
vidas para que ele e Annabeth pudessem estar ali sentados naquele
instante, aproveitando a luz do sol e rindo com os amigos.
Não era justo.
Leo pegou uma pequena chave de fenda de seu cinto de ferra-
mentas. Ele espetou um morango coberto de chocolate e o entregou
ao treinador Hedge. Em seguida, pegou outra chave de fenda e es-
petou um segundo morango para si mesmo.
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-- Bom, vamos então à pergunta que vale vinte milhões de
pesos -- disse Leo. -- Nós temos essa estátua seminova de mais de
dez metros de Atena. O que vamos fazer com ela?
Reyna mirou Atena Partenos com certa desconfiança.
-- Por mais bela que fique nesta colina, não viajei até aqui para
ficar admirando sua beleza. Segundo Annabeth, a estátua deve ser
devolvida ao Acampamento Meio-Sangue por um líder romano. Eu
entendi direito?
Annabeth assentiu.
-- Eu tive um sonho lá embaixo... você sabe, no Tártaro. Eu estava
na colina Meio-Sangue, e a voz de Atena disse: Devo ficar aqui. Os
romanos devem me trazer.
Percy observava a Atena Partenos, sentindo-se desconfortável.
Nunca teve uma boa relação com a mãe de Annabeth. Esperava que,
a qualquer momento, aquela Estátua Gigante da Mamãe fosse ganhar
vida e lhe dar um sermão por meter sua filha em tantos problemas,
ou talvez apenas pisasse nele sem dizer nada.
-- Faz sentido -- disse Nico.
Percy se sobressaltou. Parecia que Nico havia lido sua mente e
concordava que Atena deveria pisar nele.
O filho de Hades estava sentado do outro lado da roda, comendo
apenas uma romã, a fruta do Mundo Inferior. Percy se perguntou se
para Nico aquilo era uma piada.
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-- A estátua é um símbolo poderoso -- continuou o garoto mais
novo. -- Se um romano a devolvesse aos gregos... isso poderia acabar
com a desavença histórica, talvez até mesmo curar as personalidades
divididas dos deuses.
O treinador Hedge engoliu o morango junto com metade da chave
de fenda.
-- Agora esperem aí. Gosto da paz tanto quanto qualquer sátiro...
-- Você odeia a paz -- interrompeu Leo.
-- Valdez, a questão é... Estamos a apenas... o quê? Alguns dias de
Atenas? Temos um exército de gigantes lá à nossa espera. En-
frentamos vários obstáculos para salvar esta estátua.
-- Eu encarei a maioria dos obstáculos -- lembrou Annabeth.
-- ... porque a profecia a chamava de a ruína dos gi-
gantes -- prosseguiu o treinador. -- Então, por que não a levamos
para Atenas com a gente? Obviamente, é nossa arma secreta. -- Ele
olhou para Atena Partenos. -- Para mim, parece um míssil balístico.
Talvez se Valdez prendesse algumas engenhocas a ela...
Piper pigarreou.
-- Hã, é uma excelente ideia, treinador, mas muitos de nós tive-
mos sonhos e visões de Gaia despertando no Acampamento Meio-
Sangue...
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Ela desembainhou a adaga Katoptris e a pôs em seu prato.
Naquele momento, a lâmina apenas refletia o céu, mas olhar para ela
deixava Percy desconfortável.
-- Desde que voltamos ao navio -- disse Piper --, tenho visto
coisas muito ruins na adaga. A legião romana está quase perto o
bastante para atacar o Acampamento Meio-Sangue. Eles estão reun-
indo reforços: espíritos, águias, lobos.
-- Octavian -- resmungou Reyna. -- Eu disse que era para ele
esperar.
-- Quando assumirmos o comando -- sugeriu Frank --, uma de
nossas prioridades vai ser botar Octavian na primeira catapulta que a
gente encontrar e mandá-lo para o mais longe possível.
-- Concordo -- disse Reyna. -- Mas por enquanto...
-- Ele quer a guerra -- interveio Annabeth. -- E vai conseguir, a
menos que a gente impeça isso.
Piper virou a lâmina de sua adaga.
-- Infelizmente, essa não é a pior parte. Vi imagens de um futuro
possível... o acampamento em chamas, semideuses gregos e romanos
mortos. E Gaia... -- Não conseguiu terminar a frase.
Percy se lembrou do deus Tártaro em sua forma física, surgindo
enorme à sua frente. Nunca sentira tamanho terror e desespero.
Ainda morria de vergonha ao se lembrar de como deixara a espada
cair de sua mão.
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É a mesma coisa que tentar matar a terra, dissera Tártaro.
Se Gaia fosse tão poderosa assim e tivesse um exército de gigantes
ao seu lado, Percy não sabia como sete semideuses poderiam vencê-
la, especialmente com a maioria dos deuses incapacitada. Eles precis-
avam derrotar os gigantes antes que Gaia despertasse, ou seria o fim
da linha.
Se Atena Partenos fosse mesmo uma arma secreta, levá-la para
Atenas era uma ideia bem tentadora. Droga, Percy até que gostava da
ideia do treinador de usá-la como míssil e explodir Gaia em um
cogumelo atômico.
Infelizmente, seus instintos diziam que Annabeth estava certa. O
lugar da estátua era em Long Island, onde poderia impedir a guerra
entre os dois acampamentos.
-- Então, Reyna leva a estátua -- disse Percy. -- E nós seguimos
para Atenas.
Leo deu de ombros.
-- Por mim, tudo bem. Mas há, hã... alguns pequenos problemas
logísticos. Temos o quê? Duas semanas até o dia do banquete em
Roma quando Gaia pretende despertar?
-- O Banquete de Spes -- disse Jason -- é em primeiro de agosto.
Hoje é...
-- Dezoito de julho -- interveio Frank. -- Então são, a partir de
amanhã, catorze dias exatos.
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Hazel fez uma careta.
-- A gente demorou dezoito dias para vir de Roma até aqui, uma
viagem que deveria ter levado no máximo dois ou três dias.
-- Então, considerando nossa falta de sorte habitual -- disse
Leo --, talvez tenhamos tempo suficiente de chegar a Atenas, encon-
trar os gigantes e impedir que eles despertem Gaia. Talvez. Mas
como Reyna vai conseguir levar essa estátua enorme de volta para o
Acampamento Meio-Sangue antes que os gregos e romanos se
matem? Ela nem tem mais seu pégaso. Hã, desculpe...
-- Tudo bem -- respondeu Reyna, um pouco ríspida.
Ela até os estava tratando como aliados em vez de inimigos, mas
Percy percebia que a pretora não gostava muito de Leo, provavel-
mente porque ele tinha explodido metade do Fórum em Nova Roma.
Reyna respirou fundo.
-- Infelizmente, Leo tem razão. Não sei como transportar algo tão
grande. Eu achava... bem, esperava que todos vocês tivessem um
plano.
-- O Labirinto -- sugeriu Hazel. -- Eu... eu quero dizer, se Parsifae
o reabriu mesmo, e eu acho que sim... -- Ela olhou com apreensão
para Percy. -- Bem, vocês disseram que o Labirinto podia levá-los a
qualquer lugar. Por isso, talvez...
-- Não -- disseram Percy e Annabeth em uníssono.
-- Não é nada pessoal, Hazel -- disse Percy. -- É só que...
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Era difícil achar as palavras certas. Como poderia descrever o
Labirinto para alguém que nunca o tivesse explorado? Dédalo o havia
criado para ser um lugar vivo, sempre em crescimento. Ao longo dos
séculos, ele tinha se espalhado como as raízes de uma árvore sob toda
a superfície da terra. Claro, ele podia levá-lo a qualquer lugar. As dis-
tâncias não importavam lá dentro. Você podia entrar no labirinto em
Nova York, andar três metros e sair em Los Angeles, mas só se
descobrisse um modo confiável de se orientar por seus corredores.
Do contrário, ele ia enganá-lo e tentar matá-lo a cada curva. Quando
a rede de túneis desmoronou após a morte de Dédalo, Percy ficou
aliviado. A ideia de o labirinto se regenerar sozinho, abrir caminho
sob a terra outra vez e criar um lar novo e espaçoso para monstros
não o agradava nem um pouco. Ele já tinha muitos problemas.
-- Em primeiro lugar, as passagens no Labirinto são pequenas de-
mais para Atena Partenos. Não tem como levá-la lá para baixo...
-- E mesmo que o labirinto esteja reabrindo -- prosseguiu Anna-
beth. -- Não sabemos como ele pode estar agora. Já era bem perigoso
antes, sob o controle de Dédalo, e ele não era maligno. Se Pasifae
refez o labirinto como ela queria... -- Ela sacudiu a cabeça. -- Hazel,
talvez seu senso de orientação no subterrâneo possa guiar Reyna,
mas nenhuma outra pessoa teria a menor chance. E precisamos de
você aqui. Além disso, se você se perdesse lá embaixo...
-- Tem razão -- disse Hazel, chateada. -- Deixa pra lá.
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Reyna passou os olhos por todo o grupo.
-- Mais ideias?
-- Eu podia ir -- ofereceu-se Frank, sem parecer muito animado
com a sugestão. -- Se sou um pretor, eu devo ir. Talvez consigamos
montar uma espécie de trenó, ou...
-- Não, Frank Zhang. -- Reyna deu um sorriso desanimado para
ele. -- Espero que trabalhemos lado a lado no futuro, mas agora seu
lugar é com a tripulação deste navio. Você é um dos sete da profecia.
-- Eu não sou -- disse Nico.
Todos pararam de comer. Percy olhou fixamente para Nico do
outro lado da roda, tentando descobrir se ele estava brincando.
Hazel pousou o garfo.
-- Nico...
-- Eu vou com Reyna -- disse ele. -- Posso viajar pelas sombras
levando a estátua.
-- Hã... -- Percy levantou a mão. -- Quer dizer, sei que você
trouxe todos nós oito para a superfície, e isso foi incrível. Mas há um
ano você disse que transportar apenas você era perigoso e impre-
visível. Algumas vezes você foi parar na China. Transportar uma es-
tátua de mais de dez metros e duas pessoas para o outro lado do
mundo...
-- Mudei muito desde que voltei do Tártaro.
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Os olhos de Nico brilharam de raiva, com mais intensidade do
que Percy compreendeu. Ele se perguntou se havia feito algo para
ofender o cara.
-- Nico -- interveio Jason. -- Não estamos questionando seu
poder. Só queremos ter certeza de que você não vai se matar tent-
ando fazer isso.
-- Eu consigo -- insistiu ele. -- Vou fazer pequenas viagens. Apen-
as alguns quilômetros de cada vez. É verdade que não vou estar em
condições de enfrentar monstros. Por isso vou precisar de Reyna
para defender a mim e à estátua.
Reyna tinha uma expressão indecifrável. Ela estudou o grupo, ex-
aminou seus rostos, mas era impossível saber o que estava pensando.
-- Alguma objeção?
Ninguém falou nada.
-- Ótimo -- concordou ela, com a firmeza de um juiz. Percy
achava que, se ela tivesse um martelo, teria dado uma martelada para
selar a decisão. -- Não vejo alternativa melhor. Mas haverá muitos
ataques de monstros. Eu ia me sentir melhor se levasse uma terceira
pessoa. É o número ideal para uma missão.
-- O treinador Hedge -- disse Frank na hora.
Percy olhou para ele, sem saber se tinha ouvido direito.
-- Hã, o quê, Frank?
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-- O treinador é a melhor opção -- disse Frank. -- A única opção.
Ele é um bom lutador. Um protetor experiente. Vai dar conta.
-- Um fauno -- disse Reyna.
-- Sátiro! -- corrigiu o treinador, irritado. -- E, é, eu vou, sim.
Além disso, quando chegarem ao Acampamento Meio-Sangue, vão
precisar de alguém com contatos e diplomacia para evitar que os gre-
gos ataquem vocês. Deixem-me só mandar uma... quer dizer, pegar
meu taco de beisebol.
Ele se levantou e encarou Frank, dizendo sem palavras algo que
Percy não conseguiu entender direito. Apesar de ter acabado de se
apresentar como voluntário para uma missão potencialmente sui-
cida, o treinador parecia agradecido. Ele foi correndo até a escada do
navio, batendo os cascos no ar como uma criança empolgada.
Nico ficou de pé.
-- Preciso ir, também, e descansar antes da primeira viagem.
Vamos nos encontrar perto da estátua ao pôr do sol.
Depois que ele foi embora, Hazel franziu a testa, preocupada.
-- Ele está agindo de modo estranho. Não sei se pensou direito no
assunto.
-- Ele vai ficar bem -- disse Jason.
-- Espero que tenha razão. -- Ela passou a mão por cima do chão.
Diamantes irromperam na superfície, uma Via Láctea de pedras cin-
tilantes. -- Estamos em uma nova encruzilhada. A Atena Partenos vai
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para o Oeste. O Argo II, para o Leste. Tomara que tenhamos tomado
a decisão certa.
Percy quis dizer algo animador, mas não se sentia à vontade.
Apesar de tudo pelo que haviam passado e de todas as batalhas ven-
cidas, eles ainda não pareciam perto de derrotar Gaia. Claro, tinham
libertado Tânato e fechado as Portas da Morte. Pelo menos agora po-
diam matar monstros e eles ficariam no Tártaro. Mas os gigantes es-
tavam de volta. Todos eles.
-- Só tem uma coisa que me incomoda -- disse ele. -- Se o Festival
de Spes é daqui a duas semanas, e Gaia precisa do sangue de dois
semideuses para despertar... Como foi que Clítio chamou? O sangue
do Olimpo? Será que não estamos fazendo justamente o que Gaia
quer, indo para Atenas? Se não formos, e ela não puder sacrificar
nenhum de nós, não seria impossível para ela despertar por
completo?
Annabeth segurou a mão dele. Percy ficou embevecido ao olhar
para ela agora que estavam de volta ao mundo mortal, sem a Névoa
da Morte, com o sol banhando seus cabelos louros, ainda que ela est-
ivesse magra e abatida como ele, e seus olhos cinzentos parecessem
atormentados por pensamentos ruins.
-- Percy, as profecias são uma faca de dois gumes. Se não formos,
podemos perder nossa chance de detê-la. Nossa batalha está em
Atenas. Não temos como evitá-la. Além disso, tentar impedir
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profecias nunca funciona. Gaia pode nos capturar em algum outro
lugar, ou derramar o sangue de outros semideuses.
-- É, você está certa -- disse Percy. -- Eu não gosto disso, mas vo-
cê tem razão.
O estado de espírito do grupo ficou sombrio como o ar do Tártaro,
até que Piper quebrou a tensão.
-- Bem! -- Ela guardou sua lâmina na bainha e deu um tapinha na
cornucópia. -- Foi um ótimo piquenique. Quem quer sobremesa?
LXXVIII




PERCY

AO ENTARDECER, PERCY ENCONTROU NICO.
O filho de Hades estava amarrando cordas em torno do pedestal
da Atena Partenos.
-- Obrigado -- agradeceu Percy.
Nico franziu a testa.
-- Por quê?
-- Você prometeu levar os outros até a Casa de Hades -- disse o
filho de Poseidon. -- E cumpriu.
Nico amarrou as pontas das cordas juntas, fazendo uma espécie
de alça.
-- Você me tirou daquele jarro de bronze em Roma. E salvou
minha vida novamente. Era o mínimo que eu podia fazer.
A voz dele soou firme e contida. Percy desejava saber o que fazia
aquele cara demonstrar emoção, mas nunca conseguiu descobrir.
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Nico não era mais um garotinho nerd da Westover Hall com cartas
de Mitomagia. Nem era o solitário ressentido que perseguiu o fant-
asma de Minos pelo Labirinto. Mas quem era ele?
-- Além disso, você visitou Bob... -- disse Percy.
Contou a Nico sobre a viagem pelo Tártaro. Achou que se havia
alguém que pudesse entendê-lo, este era Nico.
-- Convenceu Bob de que podia confiar em mim, apesar de eu
nunca ter ido visitá-lo. Nunca mais pensei nele. Você provavelmente
salvou nossas vidas por ter sido legal com ele.
-- É, bem... -- disse Nico. -- Não pensar nas pessoas... isso pode
ser perigoso.
-- Cara, eu estou tentando agradecer.
Nico riu sem humor.
-- Estou tentando dizer que não precisa. Agora tenho que termin-
ar isto, se puder me dar um pouco de espaço.
-- Claro, claro, tudo bem. -- Percy deu um passo para trás en-
quanto Nico ajustava as alças de cordas. Jogou-as no ombro como se
a Atena Partenos fosse uma mochila gigante.
Percy não conseguiu evitar ficar um pouco chateado ao ser dis-
pensado daquele jeito. Mas afinal, Nico tinha passado por tanto. O
cara tinha sobrevivido sozinho no Tártaro. Percy sabia por experiên-
cia própria quanta força foi exigida dele.
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Annabeth subiu a colina para se juntar a eles. Pegou a mão de
Percy, o que o fez se sentir melhor.
-- Boa sorte -- disse ela a Nico.
-- É. -- Ele não a olhou nos olhos. -- Para você também.
Um minuto depois, Reyna e o treinador Hedge chegaram com ar-
maduras completas e mochilas nos ombros. Reyna parecia muito
séria e pronta para o combate. O treinador Hedge sorria como se est-
ivesse esperando uma festa surpresa.
Reyna deu um abraço em Annabeth.
-- Nós vamos conseguir -- prometeu.
-- Eu sei que vão -- respondeu Annabeth.
O treinador Hedge apoiou seu taco de beisebol no ombro.
-- É, não se preocupe. Vou chegar ao acampamento para ver
minha garota! Hã, quero dizer que vou levar esta garota para o acam-
pamento! -- Ele deu um tapinha na perna de Atena Partenos.
-- O.k. -- disse Nico. -- Segurem as cordas, por favor. É hora de ir.
Reyna e Hedge seguraram. O ar escureceu. A Atena Partenos des-
moronou para o interior de sua própria sombra e desapareceu, junto
com três acompanhantes.

***

O Argo II zarpou após o anoitecer.
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Tomou o rumo sudoeste até alcançar a costa, então desceu e
seguiu pelas águas do Mar Jônico. Percy estava aliviado por sentir as
ondas embaixo dele novamente.
A viagem até Atenas seria mais curta por terra, mas depois da ex-
periência da tripulação com espíritos da montanha na Itália,
acharam melhor não voar sobre o território de Gaia mais do que o
necessário. Fariam a volta na Grécia pelo mar, seguindo as rotas usa-
das pelos heróis gregos da Antiguidade.
Percy adorou isso. Amava estar de volta aos domínios de seu pai,
com o ar marítimo nos pulmões e borrifos salgados nos braços. Ele se
debruçou na amurada de boreste e fechou os olhos, sentindo as cor-
rentes abaixo. Mas imagens do Tártaro não paravam de surgir em
sua mente: o Rio Flegetonte, o chão repleto de bolhas onde os mon-
stros se regeneravam, a floresta sombria onde as arai voavam em cír-
culos no alto, em meio às nuvens da névoa de sangue. Mas, principal-
mente, pensava em uma cabana em um pântano com um fogo
quente, ganchos e prateleiras com ervas e carne de drakon secando.
Ele se perguntou se a cabana agora estaria vazia.
Annabeth encostou nele com seu calor reconfortante.
-- Eu sei -- murmurou ela, lendo sua expressão. -- Também não
consigo tirar aquele lugar da cabeça.
-- Damásen -- disse Percy. -- E Bob...
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-- Eu sei. -- A voz dela estava fragilizada. -- Temos que fazer com
que o sacrifício deles não tenha sido em vão. Temos que derrotar
Gaia.
Percy olhou para o céu noturno. Desejou que estivessem olhando
o céu da praia em Long Island em vez de a meio mundo de distância,
navegando rumo à morte quase certa.
Ele se perguntou onde estariam Nico, Reyna e Hedge naquele mo-
mento, e quanto tempo levariam para voltar, supondo que sobre-
vivessem. Imaginou os romanos em formação de batalha cercando o
Acampamento Meio-Sangue.
Faltavam catorze dias para chegarem a Atenas. Depois, de um
jeito ou de outro, a guerra seria decidida.
Na proa, Leo assobiava satisfeito enquanto mexia no cérebro
mecânico de Festus, murmurando algo sobre um cristal e um astrolá-
bio. No centro do barco, Piper e Hazel treinavam esgrima com suas
lâminas de bronze e ouro. Jason e Frank estavam no leme, falando
baixo, talvez contando histórias da legião ou compartilhando re-
flexões sobre ser pretor.
-- Nossa tripulação é muito boa -- disse Percy. -- Se tenho que
navegar rumo à morte...
-- Você não vai morrer antes de mim, Cabeça de Alga -- disse An-
nabeth. -- Lembra? Nunca ficaremos separados de novo. E depois
que chegarmos em casa...
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-- O quê? -- perguntou Percy.
Ela o beijou.
-- Pergunte de novo quando derrotarmos Gaia.
Ele sorriu, feliz por ter algo a almejar no futuro.
-- Como quiser.
Quando se afastaram da costa, o céu escureceu, e mais estrelas
surgiram.
Percy estudou as constelações, as mesmas que Annabeth tinha
ensinado a ele tantos anos antes.
-- Bob mandou um "oi" -- disse para as estrelas.
O Argo II navegou noite adentro.
GLOSSÁRIO

Acampamento Júpiter campo de treinamento para semideuses romanos,
localizado entre as Oakland Hills e as Berkeley Hills, na Califórnia

Acampamento Meio-Sangue campo de treinamento para semideuses gre-
gos, localizado em Long Island, Nova York

Aegis o escudo que provoca medo de Thalia Grace

Afrodite a deusa grega do amor e da beleza. Era casada com Hefesto, mas
amava Ares, o deus da guerra. Forma romana: Vênus

Akhlys deusa grega da miséria; deusa dos venenos, controla a Névoa da
Morte, filha do Caos e da Noite

Alcioneu o mais velho dos gigantes nascidos de Gaia, destinado a combater
Plutão

Aloadas gêmeos gigantes que tentaram atacar o Monte Olimpo empilhando
três montanhas gregas uma em cima da outra. Ares tentou detê-los, mas foi
derrotado e aprisionado em um jarro de bronze até ser resgatado por Her-
mes. Ártemis mais tarde destruiu os gigantes quando correu entre eles
transformada em veado. Os dois tentaram acertá-la com suas lanças, mas
erraram e acabaram atingindo um ao outro

alojamento aposentos dos soldados romanos
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Aníbal comandante romano que viveu entre 247 e 183/182 AEC. É considerado
um dos maiores estrategistas militares da História. Uma de suas maiores
conquistas foi conduzir um exército, que incluía elefantes, da Ibéria, através
dos Pirineus e dos Alpes, até o Norte da Itália

Aqueloo um potamus, ou deus-rio

Áquilo deus romano do Vento Norte. Forma grega: Bóreas

Aracne tecelã que alegava ter habilidades superiores às de Atena. Isso enfure-
ceu a deusa, que destruiu as tapeçarias e o tear de Aracne. A tecelã se enfor-
cou, e Atena a trouxe de volta à vida como aranha

arai espíritos femininos das maldições. Velhas enrugadas com asas de morce-
go e olhos vermelhos reluzentes. São filhas de Nix (Noite)

Ares o deus grego da guerra; filho de Zeus e Hera e meio-irmão de Atena.
Forma romana: Marte

argentum prata; nome de um dos dois cães de metal de Reyna que podem de-
tectar mentiras

Argo II o fantástico navio construído por Leo, que pode tanto navegar quanto
voar e tem a cabeça do dragão de bronze Festus como sua figura de proa. O
navio foi batizado em homenagem a Argo, a embarcação usada pelo grupo
de heróis gregos que acompanhou Jasão em sua busca pelo Velocino de
Ouro

Argonautas heróis da mitologia grega que viajaram com Jasão no Argo na
busca pelo Velocino de Ouro
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Ariadne filha de Minos que ajudou Teseu a sair do Labirinto

Arion pégaso incrivelmente rápido que corre solto e sem rumo, mas às vezes
atende aos chamados de Hazel. Seu petisco favorito são pepitas de ouro

Arquimedes matemático, físico, engenheiro, inventor e astrônomo grego que
viveu entre 287 e 212 AEC e é considerado um dos principais cientistas da
Antiguidade Clássica. Foi quem descobriu como calcular o volume de uma
esfera

astrolábio instrumento de navegação com base na posição dos planetas e
estrelas

Atena a deusa grega da sabedoria. Forma romana: Minerva

Atena Partenos uma estátua gigantesca de Atena; a estátua grega mais
famosa de todos os tempos

augúrio sinal de algum porvir, presságio; prática de adivinhar o futuro

aurum ouro; nome de um dos dois cães metálicos de Reyna que podem de-
tectar mentiras

Austro deus romano do Vento Sul. Forma grega: Noto

Baco o deus romano do vinho e da orgia. Forma grega: Dioniso

balista escorpião arma de cerco romana que arremessava grandes projéteis
em um alvo distante

Belona deusa romana da guerra

Boreadas Calais e Zetes, filhos de Bóreas, deus do Vento Norte
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braccae calças em latim

bronze celestial metal raro letal para monstros

Bunker 9 oficina escondida descoberta por Leo no Acampamento Meio-
Sangue, cheia de ferramentas e armas. Tem pelo menos duzentos anos e foi
usada durante a Guerra Civil dos Semideuses

Cadmo semideus que foi transformado em cobra por Ares ao matar o filho
dragão do deus da guerra

Calipso deusa ninfa da ilha mítica Ogígia; filha do titã Atlas. Ela deteve o her-
ói Odisseu por muitos anos

Campe monstro que na parte de cima é uma mulher com cabelos de serpentes
e, embaixo, tem o corpo de drakon; indicada pelo titã Cronos para vigiar os
ciclopes no Tártaro. Zeus a matou e libertou os gigantes de sua prisão para
que eles o ajudassem na guerra contra os titãs

Campos de Asfódelos parte do Mundo Inferior para onde pessoas que não
fizeram nem o bem nem o mal são enviadas após a morte

Campos de Punição parte do Mundo Inferior para onde pessoas que foram
más são enviadas para expiarem seus crimes após a morte

Casa de Hades local no Mundo Inferior onde Hades, deus grego da morte, e
Perséfone reinam sobre as almas dos mortos. Templo subterrâneo em
Épiro, na Grécia, dedicado a Hades e Perséfone, às vezes chamado de Nec-
romanteion, ou "oráculo da morte". Os gregos antigos acreditavam que ele
marcava uma entrada para o Mundo Inferior, e peregrinos iam até lá para
comungar com os mortos
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Casa dos Lobos mansão em ruínas, originalmente encomendada por Jack
London, perto de Sonoma, na Califórnia, onde Percy Jackson foi treinado
como semideus romano por Lupa

catapulta máquina de guerra usada para arremessar objetos

Catóblepa vaca monstruosa cujo nome significa "aquele que olha para baixo".
Foram acidentalmente trazidas da África para Veneza. Comem raízes ven-
enosas que crescem nos canais e têm hálito e olhar venenosos

Cavalo de Troia passagem da Guerra de Troia; um enorme cavalo de madeira
feito pelos gregos e deixado perto de Troia com um grupo selecionado de
homens escondido em seu interior. Após ser puxado pelos troianos para
dentro de sua cidade como um troféu de vitória, os gregos saíram de lá à
noite, permitiram a entrada do restante de seu exército e destruíram a cid-
ade, terminando definitivamente com a guerra

centauro raça de criaturas metade homem, metade cavalo

centurião oficial do exército romano

Cêrcopes anões com aparência de chimpanzé que roubam coisas brilhantes e
criam o caos

Ceres deusa romana da agricultura. Forma grega: Deméter

Ceto deusa grega dos monstros e das criaturas marinhas de grande porte, tais
como baleias e tubarões; filha de Gaia e irmã-esposa de Fórcis, deus dos
perigos do mar
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charme (na fala) bênção concedida por Afrodite a seus filhos, que os capacita
a persuadir outras pessoas com a voz

chiton traje grego. Túnica sem mangas de linho ou lã presa nos ombros por
broches e na cintura por um cinto

ciclope membro de uma raça primordial de gigantes que tem um único olho
no meio da testa

Cipião o pégaso de Reyna

Circe feiticeira grega. Nos tempos antigos, transformou a tripulação de Odis-
seu em porcos

Círon ladrão infame que emboscava viajantes e os forçava a lavar seus pés
como pedágio. Quando se abaixavam, chutava as vítimas do penhasco,
fazendo-as cair no mar onde eram devoradas por uma tartaruga gigante

Clítio gigante criado por Gaia para absorver a magia de Hécate e derrotá-la

Coio um dos doze titãs; Senhor do Norte

Coliseu anfiteatro elíptico no centro de Roma, Itália. Com capacidade para
cinquenta mil espectadores sentados, o Coliseu era usado para competições
entre gladiadores e para espetáculos públicos, como simulações de batalhas
navais, caçadas, execuções, e a reencenação de batalhas e dramas famosos

Contracorrente espada de Percy Jackson (Anaklusmos, em grego)

coorte grupo de soldados; uma das dez divisões de uma Legião Romana

cornucópia um grande recipiente em formato de chifre de onde transbordam
comestíveis ou algum tipo de riqueza. A cornucópia foi criada quando
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Héracles (Hércules, para os romanos) lutou com o deus-rio Aqueloo e ar-
rancou um de seus chifres

Crisaor irmão de Pégaso, filho de Poseidon e Medusa; conhecido como "o
Espada de Ouro"

Cronos deus grego da agricultura e das colheitas, da justiça e do tempo; filho
de Urano e Gaia e pai de Zeus. Forma romana: Saturno

Cupido deus romano do amor. Forma grega: Eros

Damásen gigante filho de Tártaro e Gaia. Criado para se opor a Ares; con-
denado ao Tártaro por matar um drakon que estava destruindo as terras
perto da casa de Damásen

Dédalo na mitologia grega, um hábil artesão que criou o Labirinto em Creta,
no qual o Minotauro (parte homem, parte touro) era mantido

Deméter a deusa grega da agricultura; filha dos titãs Reia e Cronos. Forma ro-
mana: Ceres

denário a moeda mais comum no sistema monetário romano

Diocleciano último grande imperador pagão e primeiro a se aposentar paci-
ficamente; semideus (filho de Júpiter). Segundo a lenda, seu cetro podia
convocar um exército de mortos

Diomedes um dos principais heróis gregos na Guerra de Troia

Dioniso deus grego do vinho e da orgia; filho de Zeus. Forma romana: Baco

dracma moeda de prata da Grécia Antiga
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drakon serpente gigantesca verde e amarela com garras afiadas e uma juba de
pele. Cospe veneno

dríades três ninfas

Efialtes e Oto gigantes gêmeos; filhos de Gaia

eidolon espírito possessor

Elísio (Campos Elísios) parte do Mundo Inferior para onde os abençoados
pelos deuses são enviados ao morrer para passar a eternidade

empousa (pl.: empousai) vampira com presas, garras, uma perna de
bronze e a outra de burro, cabelo de fogo e pele branca como ossos. Tem o
poder de manipular a Névoa, mudar de forma e usar o charme para atrair
suas vítimas para a morte

Éolo deus de todos os ventos

Épiro região onde atualmente estão o noroeste da Grécia e o sul da Albânia

Éris deusa da discórdia

Eros deus grego do amor. Forma romana: Cupido

escolopendra monstro marinho grego gigantesco com narinas peludas,
cauda semelhante à da lagosta e fileiras de patas palmípedes ao longo dos
flancos

espata espada pesada usada pela cavalaria romana

Euristeu neto de Perseu, que, por meio dos favores de Hera, herdou o reinado
de Micenas, o qual Zeus pretendia para Héracles
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falange formação compacta de tropas fortemente armadas

fauno deus romano da floresta, parte bode e parte homem. Forma grega:
sátiro

Favônio deus romano do Vento Oeste. Forma grega: Zéfiro

ferro estígio metal mágico forjado no Rio Estige, capaz de absorver a essên-
cia dos monstros e de ferir mortais, deuses, titãs e gigantes. Tem grande
efeito sobre fantasmas e criaturas do Mundo Inferior

fogo grego arma incendiária usada em batalhas navais, porque continua a
queimar mesmo na água

Fontana di Trevi fonte no bairro romano de Trevi, em Roma. Com vinte e
cinco metros de altura e vinte de largura, é a maior fonte barroca da cidade
e uma das mais famosas do mundo

Fórcis na mitologia grega, deus primordial dos perigos do mar; filho de Gaia e
irmão-marido de Ceto

Fortuna deusa romana da fortuna e da sorte. Forma grega: Tique

fórum o fórum romano era o centro da Roma Antiga, uma praça onde os ro-
manos faziam negócios, julgamentos e atividades religiosas

Fúrias deusas romanas da vingança. Normalmente caracterizadas como três
irmãs: Alectó, Tisifone e Megera. Filhas de Gaia e Urano. Vivem no Mundo
Inferior atormentando os mortos julgados culpados. Forma grega: Erínias

Gaia deusa grega da terra; mãe dos titãs, gigantes, ciclopes e outros monstros.
Forma romana: Terra
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Geras deus da velhice

Geríon monstro com três corpos que foi morto por Herácles/Hércules

gládio espada curta

gladius gládio, uma espada curta

górgonas três irmãs monstruosas (Esteno, Euríale e Medusa), cujos cabelos
eram serpentes venenosas. A mais famosa delas, Medusa, podia transform-
ar em pedra aqueles que a encaravam

Graecus termo usado pelos romanos referindo-se aos gregos

grevas peças da armadura para a canela

grifo criatura que tem a parte dianteira (incluindo as garras) e as asas de águia
e a traseira de leão

grisgris prática de vodu comum em Nova Orleans; o nome significa cinza em
francês (gris). Nela, ervas especiais e outros ingredientes são misturados e
colocados em uma bolsinha de flanela, que é usada ou guardada para
reestabelecer o equilíbrio entre os aspectos bons e maus da vida de uma
pessoa

Guerra de Troia na mitologia grega, guerra declarada contra a cidade de
Troia pelos Achaeans (gregos) quando Páris, de Troia, roubou Helena de
seu marido, Menelau, rei de Esparta

Hades deus grego da morte e das riquezas. Forma romana: Plutão

Hagno ninfa que teria criado Zeus. No Monte Liceu, na Arcádia, havia um
poço consagrado a ela e batizado em sua homenagem
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harpia criatura fêmea alada que rouba objetos

Hécate deusa da magia e das encruzilhadas. Controla a Névoa. Filha dos titãs
Perses e Astéria

Hebe deusa da juventude; filha de Zeus e Hera, casada com Héracles. Forma
romana: Juventa

Hefesto deus grego do fogo, do artesanato e dos ferreiros; filho de Zeus e
Hera, casado com Afrodite. Forma romana: Vulcano

Hemera deusa do dia. Filha de Noite

Hera deusa grega do casamento; esposa e irmã de Zeus. Forma romana: Juno

Héracles forma grega de Hércules; filho de Zeus e Alcmena; o mais forte dos
mortais

Hércules forma romana de Héracles; filho de Júpiter e Alcmena, nasceu com
grande força

Hermes deus grego dos viajantes; guia dos espíritos dos mortos; deus da
comunicação. Forma romana: Mercúrio

Hesíodo poeta grego que imaginou que seriam necessários nove dias para at-
ingir o fundo do Tártaro

Hiperíon um dos doze titãs. Titã do Leste

Hipnos deus grego do sono. Forma romana: Somnus

hipocampos criaturas que, da cintura para cima, têm corpo de cavalo e, da
cintura para baixo, têm corpo de peixe prateado, com escamas reluzentes e
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nadadeiras nas cores do arco-íris. Eram usadas para puxar a carruagem de
Poseidon, e seu movimento criou a espuma do mar

Hipódromo estádio grego para corridas de cavalos e carruagens

hipogeu a área debaixo de um coliseu que abrigava peças de cenário e o ma-
quinário usado para os efeitos especiais

Horácio general romano que, sozinho, deteve uma horda de invasores,
sacrificando-se em uma ponte para evitar que os bárbaros atravessassem o
rio

Hotel Lótus hotel e cassino em Las Vegas onde Percy, Annabeth e Grover
perderam tempo valioso durante uma missão

icor fluido dourado que é o sangue dos deuses e imortais

ictiocentauro peixe-centauro descrito como tendo patas dianteiras de cavalo,
torso e cabeça humanos e cauda de peixe. Às vezes é retratado com um par
de chifres semelhantes a garras de lagosta

Invídia deusa romana da vingança. Forma grega: Nêmesis

Íris deusa grega do arco-íris e mensageira dos deuses; filha de Taumante e
Electra. A forma romana tem o mesmo nome

Jano deus dos portais, inícios e transições. Descrito como tendo dois rostos,
porque olha para o futuro e para o passado

Jápeto um dos doze titãs; Senhor do Oeste. Seu nome significa Empalador.
Quando Percy o combateu nos domínios de Hades, Jápeto caiu no Rio Lete
e perdeu a memória. Percy o rebatizou de Bob
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Juno deusa romana das mulheres, do casamento e da fertilidade; irmã e es-
posa de Júpiter; mãe de Marte. Forma grega: Hera

Júpiter rei romano dos deuses; também chamado de Júpiter Optimus Max-
imus (o melhor e o maior). Forma grega: Zeus

Juventa deusa romana da juventude. Forma grega: Hebe

karpoi espíritos dos grãos

Katoptris adaga de Piper, que já pertenceu a Helena de Troia. A palavra signi-
fica "espelho"

Lar deus da casa, espírito ancestral romano

Labirinto labirinto subterrâneo construído originalmente na ilha de Creta
pelo artesão Dédalo para aprisionar o Minotauro (parte homem, parte
touro)

Lestrigão monstro canibal gigante do norte

legionário soldado romano

Lemures termo romano para fantasmas raivosos

Letó filha do titã Coio; gerou com Zeus Ártemis e Apolo; deusa da
maternidade

Linha Pomeriana limite em torno de Nova Roma e, nos tempos antigos, os
limites da cidade de Roma
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livros sibilinos conjunto de profecias em versos rimados escritos em grego.
Tarquínio Soberbo, rei de Roma, comprou-os de uma profetisa chamada
Sibila e os consultava em épocas de grande perigo

Lupa loba romana sagrada que amamentou os gêmeos abandonados Rômulo e
Remo

Mansão da Noite palácio de Nix

manticore criatura com cabeça humana, corpo de leão e cauda de escorpião

Marte deus romano da guerra; também chamado de Marte Ultor. Patrono do
império; pai divino de Rômulo e Remo. Forma grega: Ares

Medeia seguidora de Hécate e uma das maiores feiticeiras do mundo antigo

Mercúrio mensageiro romano dos deuses; deus do comércio, dos negócios e
do lucro. Forma grega: Hermes

Minerva deusa romana da sabedoria. Forma grega: Atena

Minotauro monstro com cabeça de touro e corpo de homem

Minos rei de Creta, filho de Zeus; todos os anos obrigava o rei Aegus a escolh-
er sete rapazes e sete moças para enviar ao Labirinto onde seriam devora-
dos pelo Minotauro. Depois de sua morte, se tornou um juiz no Mundo
Inferior

Mitra originalmente, deus persa do sol; Mitra era venerado pelos guerreiros
romanos como guardião das armas e patrono dos soldados

Monte Tamalpais local na região da Baía de São Francisco, na Califórnia,
onde os titãs construíram um palácio
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muskeg pântano

náiades ninfas da água

Narciso caçador grego célebre por sua beleza. Era excepcionalmente orgul-
hoso e desdenhava aqueles que o amavam. Nêmesis, ao perceber isso, at-
raiu Narciso até um lago, onde ele viu sua imagem refletida na água e por
ela se apaixonou. Incapaz de se afastar da beleza de seu reflexo, Narciso
morreu

nascidos da terra gegeines em grego. Monstros de seis braços que vestem
somente tangas

Necromanteion Oráculo da Morte ou Casa de Hades em grego. Um templo
de vários pavimentos onde as pessoas consultavam os mortos

Nêmesis deusa grega da vingança. Forma romana: Invídia

nereidas cinquenta espíritos femininos do mar; protetoras dos marinheiros e
pescadores e zeladoras das riquezas do oceano

Nesso centauro astuto que enganou Dejanira e a levou a matar Héracles

Netuno deus romano dos mares. Forma grega: Poseidon

Névoa força mágica que disfarça coisas aos olhos dos mortais

Nice deusa grega da força, da velocidade e da vitória. Forma romana: Vitória

ninfa deidade feminina que dá vitalidade à natureza

ninfeu santuário dedicado às ninfas

Noto deus grego do Vento Sul. Forma romana: Auster
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Nova Roma comunidade perto do Acampamento Júpiter onde os semideuses
podem viver juntos e em paz, sem a interferência dos mortais ou de
monstros

numina montanum deus romano da montanha. Forma grega: Ourae

Nix deusa da noite; uma dos primeiros deuses elementais antigos a nascer

ombreira peça de armadura para o ombro e a parte superior do braço

ouro imperial metal raro letal para monstros, consagrado no Panteão; sua
existência era um segredo muito bem guardado dos imperadores

Odisseu lendário rei grego de Ítaca e herói do poema épico de Homero A odis-
seia. Forma romana: Ulisses

Ogígia ilha mágica que é o lar e a prisão de Calipso

Ourae deus da montanha em grego. Forma romana: Numina montanum

Panteão construção em Roma, Itália, encomendada por Marcus Agrippa
como um templo dedicado a todos os deuses da Roma Antiga e reconstruída
pelo Imperador Adriano por volta de 126 EC.

Parcas, as Três na mitologia grega, mesmo antes da existência dos deuses,
havia as Parcas: Clotho, que fia o fio da vida; Lachesis, a medidora, que de-
termina a duração de uma vida; e Atropos, que corta o fio da vida com suas
tesouras

Pasifae esposa de Minos, amaldiçoada a se apaixonar por seu touro premiado
e dar à luz o Minotauro (metade homem, metade touro); conhece as ervas e
as artes mágicas
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pássaros da Estinfália na mitologia grega, aves devoradoras de homens,
com bico de bronze e penas metálicas afiadas que podiam ser lançadas con-
tra suas vítimas; consagradas a Ares, o deus da guerra

pater pai em latim; também é o nome de um antigo deus romano do Mundo
Inferior, mais tarde incorporado por Plutão

Pégaso na mitologia grega, cavalo divino alado; gerado por Poseidon, em sua
figura de deus-cavalo, e nascido da górgona Medusa; irmão de Crisaor

Periclimeno um Argonauta. Filho de dois semideuses e neto de Poseidon,
que deu a ele a habilidade de se transformar em vários animais

peristilo entrada da residência particular do imperador

Perséfone rainha grega do Mundo Inferior; esposa de Hades; filha de Zeus e
Deméter. Forma romana: Proserpina

Piazza Navona praça em Roma, construída no local do Estádio de Dom-
iciano, onde os cidadãos da Roma Antiga assistiam a jogos competitivos

pilum (pl.: pila) lança usada pelo exército romano

Plutão deus romano da morte e das riquezas. Forma grega: Hades

Polibotes gigante; filho de Gaia, a Mãe Terra

Polifemo ciclope; filho de Poseidon e Toosa

Porfírion rei dos gigantes na mitologia greco-romana

Portas da Morte portal para a Casa de Hades, localizado no Tártaro. As
portas têm dois lados: um no mundo mortal, o outro no Mundo Inferior
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Poseidon deus grego do mar; filho dos titãs Cronos e Reia, irmão de Zeus e
Hades. Forma romana: Netuno

pretor pessoa eleita para magistrado e comandante do exército romano

Proserpina rainha romana do Mundo Inferior. Forma grega: Perséfone

Psique jovem mortal que se apaixonou por Eros e foi forçada pela mãe dele,
Afrodite, a conquistá-lo de volta

Quione deusa grega da neve; filha de Bóreas

quoits jogo no qual os participantes arremessam ferraduras em uma estaca

Reia Sílvia sacerdotisa e mãe dos gêmeos Rômulo e Remo, que fundaram
Roma

Rio Aqueronte quinto rio do Mundo Inferior; Rio da Dor, a punição suprema
para as almas dos amaldiçoados

Rio Cócito o rio das Lamentações no Tártaro, feito de infelicidade

Rio Flegetonte rio de fogo que corre dos domínios de Hades para o Tártaro.
Mantém os maus vivos para que suportem mais tormentos nos Campos de
Punição

Rio Lete um dos vários rios do Mundo Inferior. Quem bebe dele perde a
memória e esquece a própria identidade

Rio Tibre o terceiro maior rio em extensão da Itália. Roma foi fundada às
suas margens. Na Roma Antiga, criminosos executados eram atirados no
rio
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Rômulo e Remo filhos gêmeos de Marte e da sacerdotisa Reia Sílvia, foram
atirados no Rio Tibre por seu pai humano, Amúlio. Resgatados e criados
por uma loba, fundaram Roma ao alcançar a idade adulta

sátiros deuses gregos da floresta, parte bode e parte homem. Forma romana:
faunos

Saturno deus romano da agricultura; filho de Urano e Gaia, pai de Júpiter.
Forma grega: Cronos

Senatus Populusque Romanus (SPQR) "O Senado e o Povo de Roma";
refere-se ao governo da República Romana e é usado como emblema oficial
de Roma

Spes deusa da esperança; a Festa de Spes, o Banquete da Esperança, cai no dia
primeiro de agosto

estela (stela, pl. stelae) placa de pedra com inscrições usada como lápide

Urano pai dos titãs

Tânatos deus grego da morte. Forma romana: Letus

Tântalo na mitologia grega, esse rei era tão amigo dos deuses que jantava à
mesa com eles. Até o dia em que contou os segredos deles para os mortais.
Foi mandado para o Mundo Inferior, onde sua maldição foi ficar preso em
um montante de terra, envolto por um lago e sob uma árvore frutífera, mas
sem jamais poder beber água ou comer uma fruta

Tártaro marido de Gaia; espírito do abismo; pai dos gigantes; também a re-
gião mais profunda do mundo
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telquines demônios marinhos misteriosos, ferreiros nativos das ilhas de
Chios e Rhodes; filhos de Tálassa e Pontos; conhecidos como crianças-
peixes, tinham cabeça de cachorro e, no lugar das mãos, nadadeiras

Tempestade amigo de Jason; um espírito das tempestades em forma de
cavalo

Término deus romano das fronteiras e dos marcos

Terra deusa romana do planeta Terra. Forma grega: Gaia

Teseu rei de Atenas conhecido por muitas proezas, entre elas matar o
Minotauro

Tibério imperador romano de 14 EC a 37 EC. Foi um dos maiores generais de
Roma, mas é lembrado por ter sido um governante recluso e sombrio, que
nunca quis ser imperador

Tique deusa grega da boa sorte; filha de Hermes e Afrodite. Forma romana:
Fortuna

tirso arma de Baco, um cajado encimado por uma pinha e envolto com hera

titãs poderosas deidades gregas, descendentes de Gaia e Urano. Governaram
durante a Era de Ouro e foram derrubados por deuses mais jovens, os
olimpianos

Triptólemo deus da agricultura. Ajudou Deméter quando ela procurava a
filha, Perséfone, que fora raptada por Hades

trirreme antigo navio de guerra grego ou romano com três fileiras de remo de
cada lado
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venti espíritos do ar

Vênus deusa romana do amor e da beleza. Era casada com Vulcano, mas
amava Marte, o deus da guerra. Forma grega: Afrodite

Via Labicana antiga estrada da Itália que levava na direção leste-sudeste, a
partir de Roma

Via Principalis principal rua em um acampamento ou forte romano

viagem nas sombras forma de transporte que permite que criaturas e filhos
de Hades viajem para qualquer lugar na Terra ou no Mundo Inferior. Deixa
o viajante extremamente cansado

Vitória deusa romana da força, velocidade e vitória. Forma grega: Nice

Vulcano deus romano do fogo, do artesanato e dos ferreiros; filho de Júpiter e
Juno, casado com Vênus. Forma grega: Hefesto

Zéfiro deus grego do Vento Oeste. Forma romana: Favônio

Zeus deus grego do céu; rei dos deuses. Forma romana: Júpiter
SOBRE O AUTOR




Rick Riordan nasceu em 1964, em San Antonio, no Texas, e hoje vive
em Boston com a mulher e os dois filhos. Autor best-seller do New
York Times, premiado pela YALSA e pela American Library Associ-
ation, por quinze anos ensinou inglês e história em escolas de São
Francisco, e é a essa experiência que ele atribui sua habilidade em es-
crever para o público jovem. Além das séries Percy Jackson e os
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olimpianos e Os heróis do Olimpo, inspiradas na mitologia greco-ro-
mana, Riordan assina a bem-sucedida série As crônicas dos Kane,
que visita deuses e mitos do Egito Antigo.
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Percy Jackson e os olimpianos:
Os arquivos do semideus




CONHEÇA OS LIVROS DA SÉRIE "AS CRÔNICAS DOS KANE"
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Os diários do semideus

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