quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

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Dante Alighieri

A Divina Comédia

Copyright desta edição
Editora Nova Cultural Ltda., 2002
Todos os direitos reservados

Título original: La Divina Commedia

Coordenação Editorial: Janice Florido
Editores: Eliel Silveira Cunha e Fernanda Cardoso
Revisão: Levon Yacubian
Editoras de arte: Ana Suely S. Dobón e Mônica Maldonado
Editoração eletrônica: Dany Editora Ltda.

Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10º andar
CEP 05424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
2003

DANTE ALIGHIERI

A DIVINA COMÉDIA

Tradução: Fábio M. Alberti
PATRoCíNIo CULTURAL
SUZANO
Uma empresa que assume o seu papel.

Primeira parte

Inferno

Canto I

Perdido numa medonha selva, Dante vaga por ela durante toda a noite. Ao amanhecer, deixando-a, começa a subir por uma colina. Súbito, atravessam-lhe a passagem uma pantera, um leão e uma loba, e o afastam para a selva. Então, aparece-lhe a imagem de Virgílio, que o reanima e oferece-se a tirá-lo da selva, fazendo-o passar pelo Inferno e pelo Purgatório. Depois, Beatriz o conduzirá ao Paraíso. Dante o segue.
Ergui os olhos e vi, iluminando as encostas da colina, o planeta que sempre indica o bom caminho; isso fez diminuir o assombro que durante aquela angustiante noite turvara o lago do meu coração. Como o náufrago que, mesmo salvo das bravias ondas, fita o ameaçador mar no qual se agitara, assim meu ânimo, tremendo ansioso, pôs-se a remirar o espaço percorrido, que nenhum homem jamais cruzou ileso. Depois de dar algum descanso a meu corpo lasso, segui viagem pela subida deserta, firmando bem, em cada passo, o pé mais baixo.
Iniciava a subida, e subitamente surgiu, ágil e veloz, uma pantera de pele matizada. A fera não me perdia de vista; e de tal modo obstava minha caminhada que muitas vezes desejei retornar. No firmamento a aurora já brilhava; o sol se alçava, cercado de astros ... com ele criados quando o divino Amor deu vida aos céus. O movimento dos astros, a hora amena e o dorso vivaz e variegado da fera infundiram-me esperança. Mas o horror acossou-me mais uma vez o peito: vi-me diante de um enorme e ferocíssimo leão ... tão feroz que parecia atemorizar o próprio ar. Surgiu depois uma loba muito mirrada e ameaçadora; ela guardava as ambições sórdidas que levaram muitos homens à miséria. Dominado pelo medo que seu terrível aspecto me infundia, acreditei que não seria capaz de chegar ao alto da colina ... e nisso assemelheime ao homem que, visando em tudo apenas o lucro, explode em prantos se perde em vez de ganhar. A fera levou-me a agir assim; arremetendo contra mim, obrigou-me a recuar para o lugar onde não havia sol ... o vale do qual eu saíra. Enquanto aos tropeções eu caminhava, espezinhado pela fera, vi alguém mover-se perto de mim; de sua boca som nenhum saía.
Assim que o encontrei em tão escuro deserto, bradei, desesperado: "Piedade! Tem piedade de mim, quer sejas sombra, quer homem de carne e osso!" "Não sou homem", respondeu- me," mas, verdade seja dita, já fui, de pais lombardos, nascidos ambos em Mântua, amada cidade. Quando nasci, Júlio César estava muito longe de seus áureos tempos; vivi em Roma, na época do bom Augusto, em que ainda se adoravam falsos deuses. Fui poeta; cantei os feitos do justo filho de Anquises, que, após a bela Ílionter se incendiado, veio de Tróia. Mas por que voltas a esse vale desolado? Por que não escalas o deleitoso monte, que alegrias infinitas guarda em seu seio?
Falei, então, curvando respeitosamente a fronte: "Oh! Tu, tu és Virgílio, cuja eloqüência ... qual fonte ... jorra versos fartamente? Mestre dos poetas, luz que os ilumina! Valha-me o longo tempo em que, com profundo amor, entreguei-me à leitura de seus versos em busca de sapiência! És meu único modelo no mundo; graças a ti, hoje o munddo louva a harmoniosa feição de meus versos. Vês a fera que me impede de andar, notável sábio; acode, então, livra-me do perigo! De tão transtornado, tremo da cabeça aos pés".
Condoído ante minhas súplicas, ele respondeu: "Para fugir à selva e a seus perigos, convém que de ora em diante tomes outra rota. A fera que te faz ge lar o sangue de horror não permite que ninguém passe por aqui impunemente, e quem insiste em opor-lhe resistência encontra a morte. É uma criatura tão má, e tão contundente, que jamais consegue saciar o enorme apetite ... sente até mais fome, depois que come. Com muitos seres semelhantes a ela se acumplicia, e assim continuará fazendo até que a enfrente o galgo que haverá de dar-lhe morte medonha. Este heróico ser, imune às tentações do ouro ou do poder, cheio de virtude, amor e saber, virá de humilde origem. Será o amparo poderoso da pobre Itália, por quem Camila, a virgem, dera a vida, e Turno, Euríalo e Niso encontraram a morte. Ele perseguirá implacavelmente a fera, por todas as partes, até atirá-la enfim no recinto infernal, bem lá onde a inveja fora buscá-la.
Agora, para salvar-te, eu tenciono te levar comigo; guiar-te-ei na região do eterno sofrimento. Ali, ouvindo gritos lancinantes, verás almas antigas, na amargura, suplicar segunda morte em altos brados. Também irás ver os que, mesmo penando em meio às chamas, alimentam a esperança de um dia ascender ao Paraíso. Se quiseres, contudo, lá subir, terás de contar com um guia superior a mim; eu te deixarei, então, à porta do reino. Ocorre que, a fim de castigarme a rebeldia, o Imperador do céu não consente que eu entre em seus domínios. Ele em toda parte reina onipotente, mas seu trono ... rodeado daqueles, felizes, que escolheu ... tem sua augusta sede no empíreo".
Disse-lhe então: "Poeta, eu te suplico, por esse Deus que tu não conheceste: afasta de mim todo o mal que me espreite! Que, sendo sempre por ti conduzido, eu logre chegar à porta de São Pedro, meu destino, e veja os maus que tinhas mencionado". Depois que falei, o poeta pôs-se a caminhar, e eu o segui.

Canto II

Após invocar as Musas, Dante, em virtude de sua fraqueza, hesita em aventurar-se na viagem. Virgílio, porém, diz-lhe que Beatriz ordenara que fosse em frente, e que havia quem se interessasse por sua salvação. Diante disso, Dante determina-se a segui-lo, e enceta com seu guia o árduo caminho.
o dia chegava ao fim, e a aproximação da noite convidava já as criaturas terrenas ao descanso. Entretanto eu, velando, preparava-me para a guerra
.. do caminho e da piedade ... que minha memória, com exatidão, retratará.
Ó musas! Socorrei-me, divindade! Valei-me! Mente fiel, que encerraste tudo que vi, sê agora mais precisa que nunca!
Principiei a falar: "Poeta, vê bem se mereço que me guies, se guardo em mim potência suficiente. O pai de Sílvio - tu o disseste - ainda vivo fora donduzido ao inferno, com seu corpo de homem. Mas Aquele que é inimigo do mal permitiu tal coisa por um nobre motivo: tratava-se do homem que buscava a glória de Roma e de seu Império - lugares santos, destinados aos sucessores de Pedro -, e que fora escolhido pelo céu. Nesse feito, por ti rememorado, ouviu coisas que serviram de inspiração para seu triunfo, e o do papado. Lá foi depois o Vaso da Eleição, no intuito de robustecer a crença que é essencial à salvação. Mas eu - por que eu lá iria? E por que semelhante honra? Quem poderia comparar-me a Enéias ou a Paulo? Nem eu, nem ninguém. Receio que empreender tal jornada seja uma grande insensatez. Mas tu, sábio, és capaz de entender o que a mim causa tanta confusão".
Assim procedi na pavorosa encosta - Como quem ora quer, ora não quer, e tem a alma aberta a toda sorte de idéias, sem nada decidir, nem resolver. Refletindo, tendia a desistir de lançar-me à jornada, decisão formada à pressa e que me desagradava. "Pelo que pude perceber do que disseste", tornoume o magnânimo poeta, "tu estás dominado pelo medo; porém, o homem que se acovarda perde a razão, passando a agir como um animal assustado. Desejo livrar-te dos temores; direi por que vim, e tudo que ouvi no lugar em que fui inteirado de seus contratempos. Encontrando-me suspenso entre as almas do Limbo, uma bela e piedosa dama chamou-me, e eu a atendi, prestimoso. Os seus olhos brilhavam mais que uma estrela; ela me disse suavemente, em sua singela língua pátria: Nobre alma mantuana, que ainda hoje em dia gozas no mundo fama tão intensa, que, enquanto houver mundo, perdurará: um meu amigo, desamparado pelo destino, teve o seu caminho interrompido na vertente descampada e perigosa. Receio que já esteja tão perdido que não haja mais como socorrê-lo, por tudo o que no céu eu tenho ouvido. Segue, pois, e com tua poderosa eloqüência, ajuda-o. Estarás com isso me consolando. Sou Beatriz, e te envio a meu amigo. Desejo retornar sem demora de onde venho. Por amor é que vim ter contigo; prometo que, voltando ao meu Senhor, irei sempre louvar-te por tal feito'. Quando ela silenciou, eu lhe disse: 'Virtuosa senhora, que tem sido grandioso exemplo à espécie humana, tanto apraz-me a missão que me conferes que, mesmo cumprindo-a imediatamente, eu saberia ter demorado. É lei tua vontade; mas espera, e me diz por que motivo, senhora, resolvestes descer até aqui, vinda do céu, ao qual tornarás agora'. Se é teu desejo ser esclarecido', tornou-me, eu te direi, em poucas palavras, por que não receei descer às sombras. Devemos temer unicamente o que pode de fato causar dano; e o simples temor não pode fazer mal. Deus concedeu-me a soberana graça de manter-me imune à vossa miséria e a este incêndio devorador e insano. Há no céu uma piedosa dama, cuja prece o Eterno sempre ouve, que se condoeu dos perigos aos quais te envio; esteve mesmo inclinada a suspender tão austera sentença. Pois esta Senhora chamou Luzia e lhe disse: O teu fiel servo corre tanto perigo que em tuas mãos devo entregá-lo agora'. Luzia, suave inimiga de toda crueldade, moveu-se até onde eu me achava sentada, ao lado de Raquel.
Generosa Beatriz', disse-me apressada, Por que não vais salvar quem te amou tanto, e só por ti superou a mediocridade humana? Não percebes seu doloroso pranto? Não vês que a morte, mais terrível que o mais caudaloso dos mares, se acerca dele? Ninguém jamais fugiu ao mal ou procurou o bem com o mesmo afã que me envolvia quando, ao tomar conhecimento do que sucedia, deixei o alto para cá embaixo vir - a fim de recorrer à tua gentil eloqüência, na qual acredito, e que honra a ti e a quem te pode ouvir'."
"Assim ela me falou, baixando o olhar; vi que nele uma lágrima brilhava, e isto me fez chegar a ti o quanto antes. E aqui estou, conforme ela queria: consegui salvar-te da temível fera que te impedia de escalar o monte. Que fazes, pois? Por que estás hesitante? Por que te pões tão triste? Não te é suficiente que três santas na realeza do céu estejam querendo protegerte, por meu intermédio?
Então, quais flores que, à noite, enregeladas, emurchecem, e à luz do sol renascido alçam-se fortes na haste, como novas, assim se refaz meu ânimo caí do. Um novo alento invadiu-me o coração, e eu disse em voz alta, firme e convicto:
"Bendita a que me trouxe a salvação! E tu, que prontamente obedeceste ao celestial pedido da dama! Tuas palavras acenderam em mim grande desejo de enfrentar a jornada; já não meço esforços para o objetivo que propuseste. Assim sendo, apertemos nosso passo: irás me guiar, meu senhor, meu mestre!" Assim falei-lhe. E segui atrás dele, lesto, pelo caminho rude e silvestre.

Canto III

Chegados à porta do Inferno, os dois poetas deparam a ameaçadora inscrição. Entram e encontram no vestíbulo o caminho; alcançam o Aqueronte, rio onde Caronte, o barqueiro infernal, conduz as almas dos danados à margem oposta, rumo ao suplício.
"Por mim se vai à cidade das dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se vai à gente condenada. Foi Justiça que inspirou o meu Autor; fui feito por Poderes Divinais, Suma sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e eu, eterno, perduro. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais!"
Estas palavras, em letreiro escuro, vi escritas por cima de uma porta. Eu disse: "Mestre, o sentido delas me é obscuro". E Virgílio, atento a meus receios, respondeu, rápido: "Aqui, convém deixar de lado toda suspeita, toda debilidade". Enfim nos encontramos no lugar onde verás a gente atormentada que não pôde conservar a luz do bem. Tomando-me a mão amigavelmente, animando-me com seus gestos, fezme entrar no misterioso ambiente. Ali, soavam queixas e lamentos; enchiam o ar, em meio à escuridão, e meteram-me medo por uns momentos. Diversas línguas, muita murmuração, gemidos, brados de ira e de dor, urros, sons de mãos chocando-se contra o corpo - tudo isso compunha um turbilhão que girava continuamente, como areia revolvida por tufão. Tal horror espicaçava-me a mente, e eu disse a Virgílio:
"Mestre, que ouço agora? Que gente é esta, que a dor está prostrando?"
"Queixa-se dessa maneira", tornou-me, "quem viveu com indiferença a vida, sem ter nunca merecido nem louvor nem censura ignominiosa. Faz-lhes com panhia um grupo de anjos mesquinhos, que a Deus não manifestaram nem fidelidade, nem rebeldia, pensando apenas em si mesmos. Foram, com desdouro, expulsos dos céus; nem o inferno profundo os acolhera, pois os anjos rebeldes se jactariam de lhes serem superiores em algo."
"Que dor tão cruel se apodera deles e os faz gritar, urrar tão fortemente?", eu perguntei. "A razão disso é simples", respondeu-me ele. "Não lhes é permitido esperar o descanso da morte, e, com sina tão vil e abjeta, passam a invejar qualquer outra sorte. Seus nomes passaram pelo mundo sem deixar marca; o perdão e a justiça divina os desdenharam. Mas não desperdicemos mais tempo com eles: olha-os e segue em frente."
Meus olhos fitaram uma bandeira que, tremulando, bem veloz corria, e a sua agitação não cessava. Uma multidão compacta a seguia: difícil crer que a morte arrebataria um dia tanta gente de entre os vivos. Já havia reconhecido alguns vultos. De repente, olhando, distingui a sombra daquele que fez a grande renúncia, torpemente. Logo compreendi que se tratava da facção das almas envilecidas, que os maus detestam e que Deus repele. As desgraçadas - que em vida eram destituídas de vontade - sempre estavam nuas, e as torturavam as aguilhoadas de vespas e tavões. As lágrimas regavam seus rostos, misturadas com sangue; e, caindo-lhes aos pés, serviam de alimento a abjetos vermes.
Dirigindo os olhos para a margem de um largo rio, avistei outro bando de almas; então disse: "Mestre, eu te peço, fala-me dessa gente, e me explica por que desejam tanto atravessar o rio, se os vejo bem sob esta vacilante luz?" Sua resposta foi: "Terás uma explicação minuciosa quando alcançarmos a assombrosa margem do rio Aqueronte". Depois de ouvir isto, prossegui de olhos baixos e abatido; acreditava que o tivesse importunado.
Súbito, aproxima-se num barco um velho de cabelos brancos, bradando: "Ai de vós, condenados! Nunca vereis o Céu! Levados por mim à sombra eterna, na outra vida, sereis encerrados para sempre no fogo e no gelo. E tu, criatura viva misturada aos mortos, vê se te afasta!" Depois disse, já que eu não o obedecia: "Deverás usar um caminho que não este para ires ao porto, onde há bom transporte, onde encontrarás barca menos lenta".
Meu guia então dirigiu-se a ele: "Caronte, não te agastes! Isso já foi decidido lá onde Quem pode ordena. Portanto, não faze mais perguntas". Acalmando-se, o idoso navegante do triste lago silenciou. Contudo, ao ouvir palavras tão duras, as almas se inquietaram; mostravam extrema palidez no semblante; seus dentes rilhavam. Ultrajaram Deus e amaldiçoaram a humanidade, a pátria, o tempo, a origem da sua vida, os pais de que nasceram. Mergulhando então no pranto, elas sofriam, agrupando-se no horrendo lugar destinado aos que a Deus não temem. Caronte, remexendo os olhos ígneos, chamava-as e a todas recebia; e ia batendo com o remo nas que se demoravam. Como a árvore que, no outono, principia a perder as flores, e se desnuda, devolvendo à terra o que lhe cabia, assim os filhos de Adão, corrompidos, se aproximavam da praia, um a um, como aves atraídas por chamados. Viajavam sobre as sombrias águas; e antes de terem chegado ao outro lado, novos grupos já no oposto esperavam.
"Meu caro filho", disse o mestre amado, "para cá vêm os que encontram a morte, tendo encolerizado a Deus em vida. Buscam sem demora os rios, e se acham tão sedentos da justiça de Deus - pois reconhecem sua culpa - que seu medo se transforma em desejo forte! Alma inocente aqui jamais transita; para que Caronte volte-se contra ti, há evidente razão, que tanto o irrita."
Meu mestre mal terminara de falar quando o negro descampado tremeu, tão fortemente que me banho de suor ao relembrar a experiência - o mesmo suor frio que o medo fizera escorrer de meu rosto então. A terra lastimosa expeliu vento, na forma de clarão avermelhado; isso fez com que eu perdesse os sentidos, e eu tombei, como em sono mergulhado.

Canto IV

Despertado por um trovão, Dante se acha no primeiro Círculo do Inferno, onde estão as almas de crianças e adultos que não foram batizados. Também vê os sábios da Antiguidade, que tiveram vida virtuosa, mesmo sendo pagãos.
Fui acordado do assombroso sono por um sonoro estampido, estremecendo, como quem é bruscamente despertado. Pus-me em pé e, já movendo os olhos, procurei saber onde me encontrava, atento a tudo. Na verdade, eu me achava junto à borda do indescritível vale das dores, de onde soavam infinitos ais.
Era um vale tão profundo, sombrio e nebuloso que, por mais que eu olhasse, nada divisava no antro horroroso. "Sigamos, enfim, para baixo, rumo ao ne gro mundo!", exclamou o poeta, estremecendo. "Eu vou primeiro, e tu irás em seguida." Notando a sua lividez, tornei-lhe: "Não sei; pois me parece que estás tomado de medo, quando era confiança o que eu esperava de ti". Ele me respondeu: "Não é medo o que vês impresso em meu rosto, mas misericórdia, inspirada pelo terrível sofrimento dos que iremos encontrar. Mas apressemo-nos, que será longa a jornada".
Entramos no primeiro círculo, em que o abismo já começava a estreitar-se. Prestei atenção: não mais havia choro lastimoso, só suspiros, que murmuravam, ecoando suavemente por todo o espaço. Tais suspiros nasciam de um sofrimento sem martírio, experimentado por homens, mulheres e crianças que ali se aglomeravam.
"Não queres saber", disse meu bom Mestre, "que espíritos são esses que agora vês padecendo? Antes que vás em frente, convém saberes que não pecaram; porém, mesmo tendo realizado boas obras, estão aqui porque lhes falta o batismo, portal da fé, no qual acreditas e és ditoso por isso. Viveram no tempo que antecedeu ao Cristianismo, e jamais prestaram culto a Deus: eu, que venho do paganismo, sou um deles. Por tal defeito - outros não nos mancharam - somos torturados com o castigo de ter nossos desejos para sempre frustrados."
Tal revelação encheu-me o coração de dor. Na verdade, conheci muitas almas de grande valor que não haviam sido poupadas da desolação do Limbo. Pedi-lhe, buscando resguardar minha fé contra qualquer juízo precipitado: "Diz-me, meu mestre e senhor: alguém, por merecimento próprio ou por intermédio de outro, já daqui saiu, subindo ao céu?" Penetrando imediatamente em minhas intenções, o mestre faloume: "Pouco tempo depois que cheguei a este lugar, vi descer um forte guerreiro, cingido por gloriosa coroa. Libertou almas - nosso pai primeiro, e Abel, Noé, Moisés, que legislara por Ele, Abraão, íntegro na fé e na obediência, e Davi, que sobre os hebreus reinara; e Israel, com seu pai e sua prole vasta, e Raquel, por quem muito se afainara. Outros mais retirou do Limbo e elevou ao Céu. Antes de Ele vir, contudo, jamais alguém fora salvo". Marchávamos enquanto ele falava, embrenhando-nos na selva de almas, que a cada passo aumentava.
Quando ainda nos achávamos perto da entrada, divisamos um fulgurante clarão, que iluminava um pouco a banda das trevas. Estávamos longe dali, mas eu já podia perceber que lá se reunia nobilíssima gente. Perguntei a Virgílio: "O tu, que a ciência e a arte glorificaram, quem são esses que desfrutam o grande privilégio de manter-se afastados da turba?"
"São os escolhidos", respondeu-me o mestre, "do Céu, que recompensou a fama alta e preclara com que na terra foram engrandecidos." Neste momento, escutei dizerem em voz poderosa e clara: "Que seja honrado o altíssimo poeta! Sua sombra, que estivera ausente, volta agora a nosso convívio". Notei quatro sombras se aproximando de nós assim que se aquietou o rumor. Em seus semblantes, nenhuma alegria se mostrava, nem nenhuma tristeza. Meu mestre disse, após alguns instantes:
"Observa aquele que, como um orgulhoso monarca, traz a espada à mão e está à frente dos outros três: é Homero, rei dos poetas. O outro é o satírico Horácio;
a seu lado, Ovídio, e logo atrás Lucano. As vozes que acabamos de ouvir eram deles; honrando a mim com semelhante atitude, praticam um ato que honra a eles próprios".
Assim vi reunida a bela escola do alto mestre do glorioso canto, águia voando sempre mais alto que os demais. Tendo conversado entre si por alguns momentos, a mim se voltaram com gesto amigável, e meu mestre sorriu ante tanto encanto. Mas demonstraram apreço maior quando quiseram que eu me reunisse a eles, dando-me o sexto lugar em seu grêmio. Caminhei em sua companhia na direção da luz; enquanto andávamos, tratamos de assuntos sublimes, que prefiro não revelar.
Chegamos a um resplendente castelo, cercado por sete muralhas altas; cingia-o um lindo, porém singelo, ribeiro. Atravessei-o andando, como se suas águas fossem sólida terra, e, sempre acompanhado das ilustres almas, passei por sete portas, caminhando até um suave prado de relva fresca. As sombras que ali vi ostentavam graves, pausados olhos; elas eram discretas e falavam pouco, e seu aspecto era primoroso. Posicionamo-nos sobre local alto e iluminado, e de lá avistamos o numeroso grupo daquelas nobres almas. O mestre, sobre o esmaltado verde da relva, indicava insignes sombras: ainda me extasia pensar que alvoroçava-me ao vê-los. Vi Eletra, acompanhada de heróis - entre os quais Enéias e Heitor -, e também César, que nos volvia seus brilhantes olhos. Vi também Pentesiléia, e o rosto crestado de Camila; o rei Latino, sentado, enternecia-se com sua Lavínia. Notei Márcia, Lucrécia, Bruto - o que expulsou Tarquínio -, Cornélia e Júlia; e, afastado dos demais, Saladino.
Alteando os olhos, tomado de respeito, vi o mestre de todos os filósofos, cercado de pensadores, que o observavam e admiravam. Achavam-se ali Platão e Sócrates, os que, em nobreza, mais se lhe aproximam. Junto a Demócrito, o atomista, estavam Tales, Heráclito, Zenão e Anaxágoras, e Empédocles e Diógenes. E ainda Dióscoris, sábio que estudara com afinco a natureza, e Orfeu, e Túlio, o eloqüente; também estavam presentes Sêneca, o douto, que investiga a moral, Euclides, Hipócrates, Ptolomeu, Galeno e Avicena; e Averróis, comentador sapiente. Não me é dado relacionar todos quantos vi, pois me demoraria demais, o que talvez me levasse a ser omisso. Nosso grupo de seis então se dividiu; o mestre trilhou comigo outro caminho. Saímos do lugar sereno para o lugar tremente - e chegamos lá onde luz não brilha.

Canto V

À porta do segundo Círculo está Minos, que julga as almas e lhes decide a pena. Nesse Círculo acham-se os luxuriosos, que são incessantemente arrastados e atormentados pela ventania. Aqui, Dante encontra Francesca da Rimini.
E assim rumei ao segundo Círculo, cujo espaço é mais estreito, mas onde o poder da dor é mais profundo. Em fúria, Minos rangia os dentes: ele avaliava as culpas junto à entrada, dando a sentença enquanto fazia voltas à cauda. Quando uma alma desgraçada posta-se ante ele, confessa-lhe seus erros; e Minos, que conhece muito bem os pecados, determina a que Círculo infernal ela será enviada enrolando sua cauda: pelo número de voltas que lhe dá, sabe-se em que parte do abismo a alma se precipitará. Há sempre muitos condenados em sua presença, cada um esperando a vez de ser julgado: fala, ouve, cai, desaparece.
Ao ver-me, Minos bradou, furioso, interrompendo sua grave tarefa: "Ó tu, que entras onde a dor fez morada! Não penses que poderás depois sair tão fa cilmente como estás entrando!" "Por que falar gritando?", disse-lhe meu guia. "Não faças ameaças; não ouses tolher a viagem: isso foi decidido lá onde o que se ordena se faz. Que te seja forte esta certeza!"
Logo comecei a ouvir as lamúrias da infernal geena: aproximava-me já do lugar em que se padecia ferozmente. Era um local privado de toda luz, que rugia como mar assolado por ventos furiosos. O furor da tormenta, nunca apoucado, flagelava eternamente as almas, agitava-as e as espicaçava, sem nunca parar. Quando à beira do abismo as precipitava, ais, choros e lamentos rompiam. A multidão de malditos blasfemava contra Deus. Ouvi dizer que sofriam de modo horrendo os que se dedicavam aos vícios carnais, submetendo a eles o discernimento.
Os espíritos eram lançados de um lado a outro, ao talante do tufão - quais estorninhos que, paralisando as asas, são levados pelo vento, em bando, no inverno -, sem esperança de parar; nem mesmo podiam sonhar com um breve descanso. Vi uma turba de almas gemendo sob o látego do tufão; semelhavam grous em vôo tortuoso, soltando o seu grasnido. Então, disse: "Mestre, que almas são aquelas que o vendaval castiga enfurecido?"
Respondeu Virgílio: "A primeira entre as sombras das quais desejas ter notícias regeu nações. Decretou que a lascívia seria lícita e agradável, a fim de legitimar as torpes práticas nas quais se excedia. Semíramis era seu nome. Ela herdou o trono estável de Nino, e foi a sua esposa; governou a terra que agora pertence ao sultão. A outra morreu por amor, traindo as cinzas de Siqueu, a quem jurara fidelidade. Segue-a a libidinosa Cleópatra. Também podes ver Helena, a causa mentirosa de muitos males, e o glorioso Aquiles, lançado ao último combate pelo amor. Eis também Páris e Tristão". E mostrou-me mais um bando de sombras que o amor conduzira à sepultura, nomeando-as.
Confrangia-me o coração ouvir os nomes dessas damas e senhores antigos, conhecer suas dores. Comecei: "Poeta, desejo muito falar aos dois companheiros que ali se acham, um ao lado do outro, parecendo tão ligeiros ao vento!" Respondeu-me: "Quando estiverem mais perto, chama-os, em nome do amor que os uniu: eles virão sem pejo".
Quando o vento os trouxe para mais perto de nós, gritei: "Vinde! Vinde falar-nos, almas dolorosas, se alta lei não o impede". Como as pombas que, conduzidas pelo amor, de asas tensas, rumam em direção ao ninho, assim, deixando os outros no caminho, ambos foram se aproximando de nós, respondendo ao meu grito de carinho. "Ente benigno, piedoso e brando, que nos vem visitar neste escuro abismo, a nós, que vertemos nosso sangue impuro no mundo do qual viestes! Se nossos rogos pudessem ser ouvidos pelo Senhor, pediríamos por tua salvação, pois te condóis do nosso mal perverso. Enquanto o vento estiver calmo, o que disseres haveremos de ouvir atentamente, e diremos tudo o que desejarias ouvir.
Nasci naquela terra onde o rio Pó, com seus afluentes, volta-se para o mar, como que anelando a paz. Este, que ao meu lado está, quedou-se de amor por minha beleza - daquele amor que se apossa dos corações subitamente -, a qual me foi roubada, tão abruptamente que ainda agora me ofende. Mas, exigindo em troca igual ternura, este amor uniu nossos corações de maneira tão definitiva que mesmo aqui, no vale das sombras, ele perdura. Quanto a quem nos deu morte violenta, seu destino é encontrar Caína". Isto dito, o silêncio foi feito.
Inclinando a cabeça, pus-me a meditar amargamente nas terríveis aflições daquelas pobres almas. Vendo-me, o poeta exclamou: "Em que pensas?"
Assim que pude, falei: "Que destino! Tanto arrebatamento, tão doce encanto, e tiveram um fim tão trágico!" Entretanto, dirigindo-me ao par, disse-lhes: "Tuas penas, Francesca, me angustiam, levam-me a triste e compassivo pranto. Revela-me como, dos doces murmúrios e do casto amor, chegaste a sucumbir ao desejo, pecado que agora expias". Ela disse: "Não há tormento mais dorido que relembrar os tempos felizes na desgraça; teu mestre sabe bem disso. Mas porque queres saber como vingou a flor do nosso afeto, eu te satisfarei, muito embora vá chorar enquanto fale. Tudo se deu assim: como passatempo, eu e meu amado líamos o relato do amor de Lancelote. Estávamos sós, absortos; nossos olhos às vezes se encontravam durante a leitura, e nós corávamos. Então, chegamos ao trecho que mudaria nossos destinos. Ao lermos que o febril amante beijara os tão desejados lábios da mulher amada, este, que jamais de mim se separa, beijou-me a boca, arfante, trêmulo. Bem, nesse dia, por culpa do autor e de seu escrito, a leitura foi interrompida".
Enquanto ela contava a triste história, ele gemia tanto que eu, transido pela dor e pela piedade, como que desfalecia; até que tombei enfim, como tomba corpo morto.

Canto VI

Acham-se no terceiro Círculo os gulosos, condenados a ficar prostrados sob forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas garras de Cérbero. Dante encontra entre os condenados Ciacco, que faz a Dante desastrosas previsões sobre Florença.
Quando minha mente aflita - que o sofrimento dos dois cunhados mergulhara em desalento pungente - retornou do desmaio, mais uma vez encontrei me cercado de outros miseráveis, de outras agruras, que estavam em toda parte, ao longe e ao lado. Era o terceiro Círculo: caíam eternas chuvas, gélidas, escuras, pesadas - sempre as mesmas, sempre impuras. Despencavam sem cessar, de alturas tenebrosas, granizo grosso, neve e água, espalhando pelo chão um odor pestilento.
Cérbero, cão furioso e horrendo, ladrava, escancarando suas três colossais bocarras, para as turbas submersas de pecadores. Seus olhos são vermelhos, seu ventre, desmedido; traz a barba suja e as garras muito aguçadas - rasga, lanha, despedaça a infeliz gente. Como ganiam os pobres condenados! Mudavam sempre de lado, buscando defesa e alívio, essas almas infaustas.
Ao ver-nos, o monstruoso Cérbero rugiu, expondo os dentes e agitando os membros com raiva. Abrindo as mãos, meu guia as encheu de terra, e lançou às goelas assassinas da fera essa iguaria amarga. Como o cão, que em latidos retumbantes brada de fome e acalma-se ao devorar algo, assim procedeu o demônio semelhante a um mastim, torturador de almas: cerrou as bocas tremendas, fez cessar o urro ensurdecedor que delas vinha.
o solo em que pisamos se povoava de sombras, que as chuvas derrubavam: tinham forma e aparência de pessoa. Estendidas na terra, deitavam-se; mas uma delas sentou-se assim que nos avistou. Disse: "Tu, que és guiado pela estrada do inferno, vê se acaso me conheces: nasceste antes de eu vir a esta morada". Respondi-lhe: "A grande angústia que sofres não permite que eu me lembre de tuas feições; de ti não guardo nenhuma lembrança. Quem és, que em tal lugar tão duramente te castigam por teus pecados? Pois pode existir pena maior, mas nenhuma é tão deprimente". Ele me respondeu: "Em tua cidade - já totalmente corroída pela inveja - gozei existência contente e serena. Todos os de lá chamavam-me Ciacco. Pelo vício da gula eu sofro à chuva, miseravelmente, enregelado e fraco. Entretanto, não peno sozinho, pois os que aqui estão com castigo foram punidos por igual pecado".
"Com muita dor", tornei-lhe, "eu te digo que o seu tormento me comove. Sabes, porém, se os partidos inimigos colocam Florença, já tão degradada, em risco? Por que motivo? E responde-me mais uma pergunta: há ali algum justo?"
"O ódio excessivo os levará ao combate, e o partido selvagem, triunfante, expulsará ferozmente o outro. Ao cabo de três sóis, chegará o momento de ser derrotado pelos vencidos, graças a alguém que age em favor de ambos os lados. Então este vencedor, ousado, atormentará os do outro partido, que se submeterá, envergonhado. Só há dois justos, mas ninguém lhes dá ouvido. A soberba, a avareza e a inveja têm incendiado o peito dos florentinos." Resumiu-se a isso sua previsão.
Eu lhe disse: "Dê-me mais informações: será um favor a este que deseja te ouvir. Onde estão Farinata e Thegghiaio, de alma justa, Jacó Rusticucci, Mosca, Arrigo, e outros tantos, de grande virtude? Diz-me se os verei, amigo; quero muito conhecer seu paradeiro, isto é, se estão no inferno ou no céu. Respondeu-me: "Acham-se entre os que penam da forma mais cruel, lá no fundo, pois são muitos os seus pecados. Se lá fores, irás encontrá-los. Quando voltares ao saudoso mundo, narra aos de lá meu fado, meu tormento. Vou me calar agora; retornarei ao silêncio profundo". Então, fitou-me com seus olhos imóveis, de viés, e, curvando a fronte, caiu entre os mais cegos.
Disse o mestre: "Eles esperarão assim, em sono incessante, o angélico chamado, quando os for julgar o Onipotente. Cada qual deixará a triste tumba, ressurgindo na carne e na figura, e ouvirá a voz que no céu ecoa eternamente".
Assim, caminhando lentamente pela mistura de sombras e de chuva, falávamos da vida futura. Então, indaguei: "Mestre, depois da sentença final esse suplício crescerá? Terá igual efeito? Será mais brando?" "Lembra", disse-me, "o velho fundamento: Verás que quanto mais o ser se eleva com o bem, mais cresce o sentimento da dor. Embora esta gente fadada à treva nunca atinja a altura da perfeição, após o Juizo sentirá mais dor."
Percorremos a extensão do Círculo discorrendo acerca de temas que não repito, até descer para outro escuro Círculo, onde vimos Plutão, grande inimigo.

Canto VII

Montando guarda à entrada do quarto Círculo, Plutão, com palavras cheias de ira, tenta amedrontar Dante. Neste Círculo encontram-se os pródigos e os avarentos, condenados a rolar enormes pesos e a se injuriarem mutuamente. Depois, descendo ao quinto Círculo, os poetas deparam os irascíveis, mergulhados no Estige.
Pape Satan, pape Satan, aleppe!"bradou Plutão, com voz rouquenha. Para que eu me mantivesse tranqüilo, meu sábio mestre disse-me: "Faze desaparecer de tua mente aterrada todo o susto! Plutão não pode nos tolher a entrada". Voltando-se então ao vulto negro de ódio, gritou-lhe: "Cala-te, lobo horroroso! Consome a ti mesmo com tua ira! Se descemos ao abismo tenebroso, é que assim dispôs o alto, onde Miguel subjugou os rebeldes orgulhosos". Como o mastro que, caindo, traz as velas consigo, o feroz inimigo baqueou-se por terra. Então o quarto Círculo se abriu, e seguimos adiante no horrendo abismo, ao qual o mundo envia todo seu mal.
Justiça divina! Por que acumulas tanta dor e sofrimento? Por que a venda da culpa nos molesta? Como, em Caribde, duas ondas encontram-se e ambas se quebram, espumantes, assim eu vi turba com turba se chocar. Um sem-número de almas rolava fardos de um lado a outro com extrema dificuldade, muito ofegantes e gritando atrozmente. Investiam umas contra as outras, até se encontrarem violentamente; depois gritavam, retrocedendo: "Por que dissipar?", e "Por que gastar?" Repetiam este movimento indo de um lado a outro do Círculo, apregoando sem cessar seu bordão.
Subjugado pela piedade, indaguei: "Mestre, há razão para se acharem aqui? Os que estão à esquerda são clérigos para usarem tonsura?" "Por serem moralmente transviados", tornou-me ele, "entregaram-se ao desperdício, como testemunham suas próprias bravatas ao outro grupo. Aqueles desprovidos de cabelos foram papas, clérigos ou cardeais, dominados pela torpe avareza."
Disse eu: "Em meio a tantos, mestre, decerto haverá muitos a quem conheci, conspurcados pelo pecado vergonhoso!"
Tornou-me ele: "Estás errado. A obscuridade em que viveram lá em cima tornou-os cá embaixo ocultos a qualquer identidade. Assim como os vês permanecerão pela eternidade; ao ressuscitar, uns terão as mãos fechadas, e outros, quase nada dos cabelos. Por fazer mau uso das coisas, por mal guardar, viram fechadas as portas do Céu, e sofrem agora tormentos que as melhores palavras não conseguem descrever. Que com isso possas ver quanto é ilusória e vã a porfia dos homens que na Fortuna situam a finalidade principal da vida. Todo o ouro que se acha sob o Sol não bastaria a dar repouso a uma só destas almas".
"Dizei-me, mestre: essa Fortuna de que falas - que coisa é realmente, para exercer tal domínio sobre as criaturas?"
E ele a mim: "Criaturas cegas, quanta ignorância vos conturba a mente. A ti, porém, direi o que penso. Deus, cujo saber transcende a todas as coisas, ao criar os Céus criou também seus guias, que de uma parte a outra parte esplendem, graças à luz que lhes foi concedida; assim também criou dispensadora de graças para os esplendores humanos dando-lhes regras e limites, para que em tempo hábil os bens enganadores mudassem de nação a nação, de raça a raça - mudança que se dá mesmo contra a vontade e o esforço humanos. Pois eis que um povo domina, outro sucumbe conforme os caprichos da Fortuna, serpente que na relva da campina se esconde. Contra ela de nada valem o vosso poder e o vosso querer; ela provê, ajuíza e rege em seu domínio, como sobre ela mesma a vontade divina reina. Vai provendo as suas mudanças sem cessar jamais, pois ser veloz é imperativo da Fortuna. É por isso que, no mundo, a sorte muda tão rapidamente. Tal é a Fortuna, amiúde insultada com censuras injustas, mesmo por aqueles que teriam razões para louvá-la. Feliz, porém, nada disso ela escuta. Primitiva como as criaturas originais, basta-lhe ser como é. Mas agora desçamos a ver espetáculo ainda mais triste. Já desmaiam as estrelas que brilhavam ao partirmos; é preciso que nos apressemos".
Assim, atravessamos o círculo, até uma fonte cujas águas ferventes haviam escavado o próprio leito. Sua água era negra. Acompanhando o seu curso, chegamos a um pantanal, por nome Estige, formado pelo ribeiro triste que seguíamos ao pé de suas escuras margens. Eu percebi sombras vagando no pântano. Estavam desnudas, cobertas de lodo, e traziam irritação no semblante fosco. Flagelavam-se, não apenas com as mãos; também da cabeça, do peito e dos pés faziam azorragues. Com os dentes, dilaceravam membro a membro.
o sábio mestre assim falou: "Eis as almas dos que pela ira foram vencidos. Sob essa água imunda há gente que suspira muito, fazendo em borbulhas fremir as ondas por toda a extensão que tua vista alcança. Imersas no lodo, recitam estas palavras: Tristes fomos sob os doces ares que o Sol aquece e que nossa ira toldou. Hoje, mais tristes somos neste negro lodo'. Assim se lamentam com voz vacilante".
Caminhamos ao longo da onda escura, descrevendo arco pela borda enxuta, mirando a multidão perdida. Assim deparamos uma torre.

Canto VIII

Os dois poetas - que ainda se encontram no Círculo Quinto - atravessam o Estige na barca de Flégias, chegando às portas da cidade de Dite, ou Lúcifer, a qual reúne todos os demais Círculos do Inferno. Não conseguem, contudo, entrar na cidade.
Ainda longe da torre, olhamos para o seu ponto mais alto. Notamos ali dois fachos lançando luz muito viva; respondia-lhes um terceiro, de tão longe que mal se podia divisar sua luz. Indaguei àquele que conhecia o sentido de todas as coisas: "Que dizem esses dois lumes? Que responde o terceiro sinal? E quem os acendeu?" Respondeu-me:
"Se o nevoeiro permitir, através desse charco imundo logo verás a quem desejas".
Nunca corda alguma de arco expediu frecha tão veloz quanto era rápida a barca que distingui singrando em nossa direção, tripulada por um único galeote, o qual gritava: "Enfim chegas, ó alma perversa!"
"Flégias, Flégias, (1) de nada te servirá gritar", disse-lhe o mestre. "À tua mercê nos terás apenas o tempo que dure a travessia." Como quem se dá conta de haver incorrido em grave erro, Flégias reprimiu sua cólera.
Meu guia entrou para a barca, fez-me segui-lo, e foi só então que o barco se inclinou. "Dante exercia peso sobre a embarcação, pois conservava seu corpo; já com os outros tal não ocorria, pois eram sombra."

* (1) Personagem mitológico. Flégias incendiou por vingança o templo de Apolo, o qual lhe violara a filha amada. *

Assim que o guia e eu nos acomodamos, a antiga proa, abrindo sulco profundo como jamais fizera, partiu. Singrávamos o estagnado plano quando aproximou-se um vulto, coberto de lama, e perguntou-me: "Quem és, que vens antes de tua hora?" Respondi-lhe: "Vim, mas não para ficar. E tu, quem foste para acabares imundo assim?" Respondeu: "Sou apenas um que chora!" Falei-lhe: "Permanece a sofrer no lodo mergulhado, ó espírito maldito! Embora desfigurado, eu te reconheço". (2) Ele, então, pousou ambas as mãos na borda do barco, mas o mestre prontamente o repeliu, bradando: "Junta-te aos outros cães, maldito!" Em seguida, o mestre abraçou-me e beijou-me o rosto, dizendo: "Nobre alma, bendita quem te concebeu altivo e digno! Aquele espírito, no mundo, foi sobremodo orgulhoso. Não deixou memória de bondade; e mesmo aqui ainda esbraveja. Quantos reis há, tidos por grandes na terrena vida, e que baixarão como porcos a se revolver neste lodo, deixando lá acima lembrança daninha!"
Falei: "Mestre, de bom grado veria esta criatura mergulhar no mais profundo antes que terminemos de cruzar este lago". E ele: "Antes que a margem oposta divisemos, verás satisfeito teu desejo". Pouco depois testemunhei a turba demoníaca torturar aquele farrapo enlameado de gente. E eram tais que, ao recordá-los, louvo e agradeço a Deus. "Maldito Filipe Argenti!", bradavam; e a florentina sombra, contra si se revoltando, mordia-se em feroz loucura. Depois disso, dele não fiz mais caso.

* (2) Trata-se de Filipe Argenti degli Adimari, desafeto do poeta, que aqui se vinga do adversário vitorioso no terreno da política. *

Entretanto, um lamento golpeou-me os ouvidos. Para a frente estendi o olhar enquanto o bom mestre explicava: "Filho, Dite (3) já está próxima. É cidade habitada por uma turba miserável". E eu disse: "Mestre, creio distinguir as suas torres de vigia, rubras como se revestidas de chamas". Ele explicou: "É o fogo eterno que as faz vermelhas, pois ali dentro lavra chama voraz, como já vistes neste Baixo Inferno".
Aproximamo-nos de profundos fossos, quaís valos que a praça circundassem; os muros pareciam de ferro. Não sem antes traçar largo giro, arribamos a um sítio onde o barqueiro com voz poderosa mandou: "Saiam, essa é a entrada!"
À porta havia mais de mil demônios iguais àqueles que um dia o Céu de si expulsou. Bramiam de cólera. "Quem é este que, sem ser morto, penetra o reino dos mortos?" Meu sábio mestre lhes acenou convite para em segredo parlamentarem. Sustando seu iroso desdém, responderam: "Vem tu sozinho; fique onde está o atrevido que penetrou neste reino. Que retorne, se puder, pela estrada que percorreu desavisadamente. Tu, no entanto, ficarás, pois que o tendes guiado até aqui".
Não pode o leitor imaginar meu sobressalto ouvindo tão terríveis palavras. Temi nunca mais poder retornar.
"Ó venerável guia!", implorei, "que mais de sete vezes me confortaste, não me abandones neste perigo iminente e desgraça imensa. E se prosseguir nos é vedado, juntos tornemos e prontamente partamos."

* (3) Cidade infernal, entrada para as regiões mais profundas do Inferno. *

Ele porém, que tão distante me havia conduzido do ponto inicial, acalmou-me: "Não temas, eles não poderão nos vedar a passagem que por Deus nos foi designada. Espera por mim, alça o espírito abatido, alimenta-o com a esperança de que não serás abandonado neste horrendo mundo".
o bondoso pai afastou-se. Em meu íntimo, a esperança e o receio se alternavam. Não pude ouvir o que ele lhes propôs. A demora foi curta e logo, à pressa, os malditos se recolheram para dentro da cidade. A porta rijamente fecharam diante do mestre, o qual retornou para mim, com passos lentos. Tendo baixos os olhos e despido o olhar da antiga segurança, murmurou: "Quem me negou entrada na cidade dos que choram!"
E disse-me: "Não te deixes abater por minha aflição. Hei de vencer a resistência que nos tolhe o acesso à cidade! Essa audácia do inimigo não é nova, já foi provada em outra porta, que sem ferrolho agora está. Viste-a comigo, e leste a soturna inscrição do cimo. Vindo do alto, já desce a este reino da iniqüidade um Ser que prescinde de guia, e por suas virtudes nos franqueará as portas da cidade".

Canto IX

Os dois poetas, sem poder entrar em Dite, tentam encontrar solução para seus problemas. Um anjo lhes abrirá as portas do Círculo Sexto, onde heréticos jazem em sepulcros inflamados.
A palidez que cobrira meu rosto ao ver assim tornar o guia levou-o a recuperar-se depressa de sua própria turbação. Quedou-se então atento, qual homem que perscruta e procura ouvir; pois a treva e a neblina espessa o impediam de enxergar bem.
"É preciso não esmorecer...", murmurou, "pois socorro hábil nos foi prometido... Ó quanto tarda a sua chegada!"
Percebi que o sentido receoso das suas primeiras palavras fora emendado, nas seguintes, por outra idéia que pronto lhe ocorrera. A mim, contudo, vencera-me o receio; eis que, levado pelo temor, dera a tais palavras intenção pior do que a que realmente tinham. Indaguei: "A este fundo do páramo infernal, onde o esperar também é duro sofrimento, desceu jamais alguém do Limbo?"
Respondeu: "Raras vezes percorremos estes descaminhos que baixam ao abismo. É verdade, porém, que já de outra vez, esconjurando-me, para cá me enviou Eritone (4), bruxa que sabia como ligar os espíritos às carnes mortas.

* (4) Feiticeira invocada por Pompeu na véspera da batalha de Farsália. Pouco antes dessa batalha morrera Virgílio. Virgílio se declara o enviado de Eritone ao Inferno para buscar o espírito a ser ressuscitado. *

Havia pouco que das carnes me desnudara quando sua magia fez-me adentrar esses muros a fim de retirar um espírito ao círculo onde Judas se acha. É esse o lugar mais fundo e infame, o mais distanciado do Céu. Eis por que conheço bem o caminho, estejas certo disso! Este pântano, que tão horrível cheiro exala, circunda a cidade dolorosa, onde sem luta não lograremos entrar".
Não me recordo o que mais disse, pois fixara os olhos no cimo da torre chamejante onde surgiram, com horripilante aspecto, três Fúrias, tintas de sangue, feminis nos membros e nos gestos, de verdes hidras cingidas, ostentando sobre a cabeleira serpentes e cerastas enrodilhadas na fronte.
Conhecendo-as como servas da rainha da dor e do acerbo pranto, apontou-as a mim, dizendo: "Observa as ferozes Erínias. A da esquerda é Megera; a que à direita chora é Alecto; a que vês entre as duas é sífone". Isso dizendo, calou-se.
As Fúrias usavam as unhas para rasgar o próprio peito, batiam palmas, levantavam tão alto clamor que, atemorizado, ao poeta me acheguei. Olhando-se fixamente, elas gritavam: "Vem, Medusa, vem transformá-lo em pedra, pois não está ainda bem castigado o assalto do ímpio Teseu". (5)
"Volta-lhes as costas e mantém cerrados os olhos, pois se Górgona (o rosto infernal de Medusa) puder fixar-se em teus olhos, jamais retornarás a seu mundo!", avisou-me meu mestre; e, juntando as suas mãos às minhas, cobriu-me os olhos com presteza.

* (5) Teseu desceu ao Inferno para raptar Prosérpina; condenado por isso a não mais voltar, ele enganou as Fúrias e regressou ao mundo. Querem elas vingança contra Dante. *

Ó vós, que tendes a inteligência sã, buscai perceber o sentido exato que nestes versos, por vezes, está oculto!
Súbito, sobre as turvas águas, reboou violento e espantoso estrondo. As praias ouviram-no; semelhava o impetuoso vento que, em contrários ardores se excitando, castiga a selva incessantemente e raivoso agride, abate, carrega os ramos, e por uma nuvem de pó vai precedido, pondo em fuga tanto a fera quanto o pastor.
Descobrindo meus olhos, disse o mestre: "Aguça a vista até a espuma antiga (o rio Estige), onde a neblina fica mais forte".
Como rãs que, descobrindo serpente voraz, no seio das águas buscam refúgio, indo encontrar abrigo no fundo do charco, assim vi milhares de espíritos fugindo em desordem à passagem de um ser que, a pé enxuto, cruzava as águas do Estige. Ao seu redor, o vulto dissipava toda neblina com o agitar da mão esquerda, e apenas esse esforço turbava a divinal pureza do rosto. Dei-me conta de que se tratava de enviado celeste. Voltei-me para o mestre, que me fez sinal, ordenando-me inclinasse, mudo e quieto, ante aquele ser. Ah! quão pleno de desdenhosa ira este se me afigurou! Apenas tocou de leve com sua vara na porta e ela se escancarou.
O enviado bradou no limiar do funesto sítio: "Ó ignaras criaturas do Céu expulsas, de onde tomastes tamanha audácia? Como resistir à vontade divina, contra a qual força alguma jamais pôde se opor, e que em muito pode aumentar vossas dores? Julgai estar em vós o opor-se à Providência? Tende na lembrança Cérbero, vosso igual, que inda traz marcado o mento e o colo". Tornou logo a refazer o caminho pelo qual viera, sem mais falar, parecendo ter a mente ocupada com preocupações em nada relacionadas ao problema com que acabara de lidar.
Seguimos em direção à cidade, confiantes naquelas palavras santas. Entramos sem encontrar resistência. E eu, que desejava ardentemente ver o que guardavam em seu recinto as muralhas ultrapassadas, tão logo me vi dentro delas, para toda parte dirigi o olhar. E percebi, de cada lado, uma campanha infinda, plena de dores e de penas inacreditáveis.
Assim como o Ródano, em Arles, se transforma em brejo; como em Pola, junto do Guarnaro que banha a fronteira da Itália, o chão se vê desigual e incerto pela sucessão de túmulos inumeráveis, assim era o lugar por onde passávamos. Mais triste, porém, dado que entre os sepulcros serpenteavam chamas dedicadas a manter as tumbas inda mais esbraseadas do que a arte de amoldar requer do ferro. Abertos, os túmulos deixavam escapar gemidos lancinantes.
"Mestre", disse eu, "que gente é esta que desse modo deixa ouvir seu sofrer imenso?" E ele: "Aqui estão reclusos os heresiarcas e seus seguidores. Bem mais do que podes julgar, estão cheias essas tumbas. Aí se encontram iguais com iguais, réus dos mesmos crimes; as tumbas queimam segundo a gravidade da heresia feita."
Seguiu então rumo à direita, e passamos entre a muralha e os supliciados.

Canto X

No Sexto Círculo, onde os dois poetas ainda se encontram, Dante dialoga com Farinata e com o pai do poeta Guido Cavalcanti, seu amigo.
Entre a muralha e as campas tormentosas - uma via estreita -, caminhamos. o mestre ia à frente, e eu o seguia.
Pedi a ele: "Tu que és a sabedoria e que me conduzes por esta estância infernal, satisfaz o meu desejo de bem conhecer este lugar. Aqueles que habitam estes sepulcros podem ser vistos e entrevistados? As lápides estão erguidas e não se vê nenhum guarda". Ele então me respondeu: "Todos esses túmulos serão de novo, e então eternamente, selados, no dia em que, regressando de Josafá, os espíritos trouxerem o corpo que na Terra tiverem deixado. Aqui se encontra Epicuro com todos os que, seguindo-o, professaram a doutrina da morte da alma junto com a do corpo. Quanto ao desejo que manifestaste, será mais satisfeito, como também será esse desejo que não revelaste, mas que alimentas". Acudi: "Bondoso guia, com satisfação abriria meu coração, mas aprendi contigo a valer-me das palavras com parcimônia".
"O toscano, que vivo conseguiste penetrar na cidade ígnea e que disso fazes modéstia, concede parar um pouco. o teu acento mostra claramente que foste nascido nessa nobre pátria à qual suponho ter sido um dia molesto." Subitamente, tais palavras subiram de uma das tumbas, causando em mim tamanho medo que me aproximei do mestre, receoso. Ele, porém, tranqüilizou-me: "Que fazes? Vê, é Fitrinata que em seu túmulo se levanta. Podes vê-lo, da cintura para cima".
Contudo eu já o fitava, olhos nos olhos, e ele, altivo, empinava o peito e a cabeça, parecendo desdenhar o próprio Inferno. As animosas mãos do meu guia, por entre as muitas sepulturas, conduziram-me para aquela, enquanto me dizia: "Fala-lhe, mas com jeito".
Mal aproximei-me da tumba, olhou-me o ocupante e com gesto severo e desdenhoso perguntou: "Quem foram teus antepassados?" Eu, que desejava obedecer, nada lhe ocultei, dizendo claramente quanto sabia a respeito. Os sobrolhos arqueando em menoscabo, comentou ele: "Ferozes adversários foram de mim, de minha gente, de meu partido. Por duas vezes eu os dispersei..." De pronto retorqui: "Se foram expulsos, souberam voltar de todos os exílios; os vossos, entretanto, não puderam aprender tal arte".
Ao lado dele, do sepulcro, surgiu então outra figura, o rosto nos voltando. Creio que havia estado sobre os joelhos. Ao meu redor olhou, como se à procura de alguém que comigo peregrinasse. Depois que sua esperança dissipou, disse-me em prantos: "Se a este cárcere escuro podes baixar por prêmio às tuas virtudes, onde está meu filho? Por que não vem contigo?" E eu a ele: "Não vim por vontade minha. Esse que me espera é meu guia, a quem vosso filho Guido não deu o devido apreço". Respondi-lhe diretamente porquanto as suas palavras e a pena que sofria haviam-no identificado.
Levantando-se subitamente, gritou: "Por que disseste que meu filho não lhe deu o merecido apreço? Ele não vive mais? Não mais a doce luz solar ofusca seus olhos?" Intuiu a verdade pela demora que pus em responder; tombou de costas e não pude mais vê-lo.
O espírito que me havia interrogado antes não mudara o aspecto, não arfara o peito, não movera o flanco durante este breve diálogo. Prosseguiu: "Se a arte de voltar não deu lustro ao meu nome, tal coisa me causa sofrimento ainda maior que o deste leito maldito. Mas não terá a rainha do Inferno mostrado ao mundo cinqüenta vezes a sua face acesa (1) sem que experimentes todo o amargor que em tal arte existe. E se conseguires tornar ao convívio humano, possas explicar por que se mostra o nosso povo, por intermédio de suas leis, tão desumano para com os meus".
Respondi-lhe: "É levado a decisões tão drásticas pela lembrança do morticínio que tingiu de vermelho as águas do Árbia". (2) Inclinando a cabeça, suspirou e disse: "A essa batalha não me dirigi sozinho, nem lutei sem levar razões. Mas estive só quando na reunião do Conselho, de rosto descoberto, defendi Florença contra os que desejavam a sua ruína".
"Que teus descendentes conheçam a paz", bradei; "mas desata o véu que envolve o meu confuso raciocínio. Se bem entendo, o curso do futuro te é possível conhecer. Quanto ao conhecimento do presente, procedes de modo bem diferente do de outros."

* (1) Prosérpina, rainha do Inferno, é aqui identificada com a Lua. Antes de se passarem quatro anos, Dante seria exilado de Florença.
(2) Foi às margens deste rio que se travou sanguinolenta batalha entre bandos rivais de Florença, com a vitória do gibelino Farinata. *

Explicou-me: "Assim como os que têm a vista defeituosa, enxergamos melhor os sucessos distantes do que os próximos. Para os fatos do presente, falta-nos lucidez, e os que chegam nos informam o pouco que nos é dado saber".
Mas o guia já me chamava. Apressado, roguei a Farinata nomeasse as almas que dele se avizinhavam. Disse-me: "Mais de mil jazem comigo. Entre eles, Frederico Segundo e aquele cardeal... Dos outros, contudo, não falarei".
Volvi meus passos então ao poeta amigo, refletindo sobre o vaticínio adverso que ouvira. O mestre, andando, interrogou-me: "Por que te inquietas?" Explicando o agouro, respondi à sua pergunta. Ordenou-me, então: "Conserva na memória quanto contra ti escutaste". E indicando o alto com um dedo, continuou: "Quando estiveres diante daquele cujo olhar tudo ilumina, tomarás conhecimento de quanto te reserva o futuro".
Tomou a esquerda; distanciando-se do muro, conduziu-me para o centro da campina. Por um atalho, passamos a um vale que tresandava.

Canto XI

Ao pé do sepulcro do Papa Anastácio, Virgílio explica demoradamente a Dante como se distribuem os pecados no Inferno.
Alcançamos o cume de uma alta penedia, formada por blocos de rudes rochas, avistando abaixo um sem-número de almas sujeitas a castigos ainda mais temíveis. Do pavoroso abismo subiam emanações de tal modo pestilentas que fomos obrigados a recuar para o abrigo de túmulo monumental. Na tampa, li: "Guardo o Papa Anastácio, a quem Fotino desviou do caminho reto". (1)
"Paremos um pouco na descida", propôs Virgílio, "pois convém acostumar o olfato ao mau cheiro. Assim não sofremos tanto seus maus efeitos." Disse-lhe eu: "Então, mestre, faz com que o tempo da espera não fique sem proveito". Respondeu-me: "Cuidei disso". E prosseguiu: "Nesta rocha que descemos são três os círculos escavados, iguais aos que atrás deixaste; estão cheios de condenados. Para que bem os conheças com um só passar de vista, ora te vou dizer quais os pecados aqui punidos, e quais castigos serão aplicados.
"Todo mal que é cobrado nesses degraus tem origem na prática da injustiça, seja pela violência ou pela fraude. Sendo a fraude vício especialmente cultivado pelo homem, com maior rigor é punido pelo Céu: o réu de semelhante pecado sofrerá no mais fundo Inferno.

* (1) Fotino, diácono de Tessalõnira. teria levado o Papa Anastácio à heresia. *

"Reserva-se o primeiro círculo aos violentos; este círculo divide-se em três partes, uma para cada tipo de violência. A Deus, a si próprio e ao próximo o violento ofende, agindo contra as pessoas ou os bens que elas possuam, conforme agora explico. Ao próximo, violenta na pessoa, matando-o ou ferindo-o; também o violenta nos seus bens, destruindo-os, incendiando-os ou deles se apossando. Homicidas, agressores, saqueadores e ladrões acham punição no primeiro dos três fossos.
"São castigados no segundo os que em si mesmos puseram mão violenta, ou em seus haveres, privando-se de viver em vosso mundo ou dissipando os bens com os quais poderiam viver dignamente.
"Os homens agem de modo violento contra Deus se o negam; se, perdidos em raiva, blasfemam ou menosprezam a natureza e os dons que desta ema nam. Por isso, no terceiro fosso está recluso o usurário de marca maior, que, tal e qual Sodoma, representa os que ofenderam a Deus.
"A fraude, seguida por eterno remorso, é praticada traindo-se a confiança conquistada ou tramando danos contra o próximo que confia. Quem por este segundo modo ofende a doce lei do amor fraterno encontra seu castigo no círculo segundo. Nele se acham os hipócritas, os aduladores, os falsários, os mistificadores, os rufiões, os simoníacos e outros do mesmo jaez.
"Trair a confiança violenta os afetos verdadeiros que a natureza inspira em almas simples. É, pois, sobre os traidores que pesa o maior castigo. No menor dos três círculos, onde tem assento Dite, a alma do traidor pena continuamente."
Disse eu: "Mestre, tua explicação foi claríssima; fez-me conhecer como é disposto este báratro e quem o habita. Mas dizei-me: os iracundos mergulhados na fúnebre lagoa, os luxuriosos castigados pelo vento, os gulosos sob a chuva incessante, os pródigos e os avaros em contínuo disputar, por que não estão reclusos na cidade demoníaca? Não acenderam eles também a ira divina? E se não, por que assim são torturados?"
O mestre respondeu: "Foram acaso varridos de tua mente aqueles sãos princípios a que sempre foste submisso? Que sentido dás ao teu raciocínio? Esqueces porventura a clara lição da Ética, de que três são as disposições condenadas pelo Céu: malícia, bestialidade e incontinência, sendo esta a que menos se castiga? Se bem aceitas esta doutrina reta e a memória te recorda quem viste além do muro sofrendo penitência, concluirás que com justiça aqueles e estes sofrem separados; porque sendo menos grave a culpa, menos pesado é seu castigo".
"Tua lição é como o Sol", eu lhe disse. "Ilumina meu discernimento. Tanto bem me fez a explicação que a dúvida transformou-se em deslumbramento. Desse modo encorajado, peço-te que expliques como a usura ofende a Deus violando a lei do Céu".
Então, Virgílio assim falou: "A filosofia ensina, a quem a estuda, que a natureza se origina no Divino Intelecto e em Sua Arte. Também a Física logo ao princípio revela que o engenho humano segue, imita, como o aluno ao mestre, as criações do Eterno Artista. A obra humana é neta de Deus, dele descende. Se lembrares o Gênese, entenderás que o homem retira da natureza o seu sustento e a felicidade. O usurário, no entanto, nega a ambas, desprezando a natureza e o modo de vida que ela ensina, pois outros são seus ideais. Mas agora segue-me, é hora de continuar: eis que Peixes assoma no horizonte e sobre o Cauro a Ursa ora descansa. (2) Inda há muito que descer".

* (2) Indicação de que a Aurora se aproxima. *

Canto XII

Descendo ao sétimo Círculo, que é guardado pelo Minotauro, os dois poetas deparam os que praticaram violência contra o próximo; estes se acham mergulhados em sangue fervente.
A trilha pela qual descíamos era tão rude, tão desprovida de encantos, que a todo olhar causaria assombro.
Lembrei-me daquele precipício que se vê sobre o Adige, aquém de Trento, produzido por terremoto ou porque as águas abalaram o leito. Do alto, de onde escorreu o monte até a falda, é tão íngreme a escarpa que parece impossível a descida. O mesmo aspecto apresentava o desfiladeiro, em cuja borda, ereto na penedia abrupta, velava Minotauro, monstro nascido de falsa vaca, terror e suplício dos cretenses. Apenas nos descobriu, pôs-se a morder-se furiosamente, qual homem que não domina a cólera. Meu sábio mestre gritou-lhe: "Acaso pensas que este que vem comigo é o príncipe ateniense que no mundo terreno te venceu e deu morte? Refreia-te, besta; este jamais ouviu as lições de tua irmã. Peregrina para conhecer as penas que se pagam neste poço".
Como o touro que, sob golpe mortal, perdendo o tino, já não pode reger-se e vacila para cá e para lá, assim o Minotauro abandonou-se à impotência.
"Depressa", gritou meu guia, "passa depressa, enquanto a besta queda paralisada pelo furor." Baixamos então àquele solo coberto de pedras que gemiam ao peso de meus pés, carga a que não estavam acostumadas.
Notando meus receios, disse o poeta: "Não te assuste esse monte de pedras soltas, reino da fera brava que há pouco silenciei. É bom que saibas: da outra vez em que desci ao Baixo Inferno, essa montanha ainda não havia ruído. Mas pouco antes de vir - se bem me lembro -, Aquele que a Dite tornou valiosa presa no primeiro círculo, o vale tremeu tão fortemente e abalou o mundo inteiro; de tal modo que pensei ocorrer uma nova Criação, pois muitos crêem que várias vezes o mundo voltou ao caos. Naquele momento essa velha rocha rompeu em muitas partes. Mas observa o vale, já se vê o rio de sangue onde os homicidas são castigados".
ó cupidez cega! Fúria desumana, que durante a curta existência a muitos desgoverna, conduz para sempre à perdição! Divisei dali um vasto fosso que, em forma de arco, abrangia o horizonte, tal como o anunciara o guia. Pela margem, como barreira erguida sobre o rio, vigiavam esquadrões de centauros, manipulando flechas como se caçassem no mundo terreno. Vendo-nos descer, pararam, e três deles contra nós avançaram, tendo as flechas prontas para o disparo. Um gritou: "A que pena vindes destinados, vós que baixais da encosta? Dizei daí mesmo ou disparo". Meu mestre atendeu: "Responderemos somente a Quíron. Quanto a ti, domina o furor, pois dele conseguiste tão-somente o mal".
Tocou-me, e me disse: "Esse é Nesso, o que morreu por amor a Dejanira e ao morrer vingou-se de seu matador. o do meio, com o olhar voltado para o peito, foi aio de Aquiles: é o famoso Quíron. o outro é Folo, sempre em ira. Milhares de outros centauros estão pela margem, flechando as almas que se elevam acima do nível que lhes marca a pena no poço de sangue fervente". Chegados junto dos ágeis monstros, Quíron, servindo-se do fundo de uma flecha, separou a barba que lhe ocultava a boca. Tendo descobertos os lábios, observou aos companheiros: "Perceberam que o que vem por último afunda as pedras sobre as quais pisa? O mesmo não ocorre com os pés dos mortos". Meu mestre, colocando-se junto àquele ponto no centauro onde a natureza humana une-se à natureza animal, explicou: "Ele vive. E a mim incumbe mostrar-lhe o vale maldito. Necessidade, e não prazer, move-o. Interrompendo lá no Céu os cantos celestiais, um ser bendito "Beatriz" confiou-me tal encargo. Não é ele um condenado, nem eu sou um perdido. Em nome, pois, daquele Poder que me anima a percorrer tão horrendos caminhos, destaca um de teus centauros para nos mostrar onde cruzar o rio de sangue, e para levar a este na garupa, pois, não sendo alma, voar não pode".
Voltando-se para a direita, Quíron ordenou a Nesso: "Serás o guia e cuidarás que os nossos não os perturbem".
Conduzidos por este guarda, fomos costeando as ondas vermelhas, ouvindo os gritos dos que nelas cozinhavam. Viam-se almas mergulhadas até os olhos. O centauro explicou: "São os tiranos, os que viveram da pilhagem e do sangue derramado. Aqui são pagos impiedosos danos. Aqui chora Alexandre, e o fero Dionísio, que por muitos anos flagelou a Sicília. A cabeça na qual vês cabelos negros é de Azzolino; a de cabelos louros é Obizzio d'Este, que foi morto por um bastardo".
Virgílio disse-me: "Por ora, dá atenção primeiro a ele; eu serei segundo". Pouco além, o centauro pôs-se a fitar multidão de espíritos que sustentavam apenas a cabeça fora da voragem sanguinosa. o guarda explicou-me apontando um solitário: "Esse feriu diante de Deus um nobre coração que o Tâmisa ainda relembra". Havia outras almas, tirando do rio em ebulição apenas o busto ou a cabeça. Pude reconhecer muitos dos que vi.
o nível do rio baixava até o ponto onde mal cobriria os pés. Foi onde vencemos o canal fervente. "Aqui o fervedouro não tem leito profundo", ensinou o centauro. "Fica porém sabendo que o seu fundo desce acentuado para a banda oposta, até o pélago onde gemem, imersos em trevas, os déspotas do mundo. Ali, com mão de ferro, a justiça divina castiga Átila - carrasco da Terra - e Pirro e Sexto faz que chorem sem cessar, e redobra a agonia de Rinier da Cometo e de Rinier Pazzi, salteadores sem coração, pelo mal que nas estradas praticaram."
E se foi pelo vau, discretamente.

Canto XIII

No segundo recinto do Círculo Sétimo, os dois poetas encontram os que praticaram violência contra si próprios, e os violentos contra os próprios bens; os suicidas são transformados em árvores, e cães ferozes perseguem e destroçam os dissipadores.
Nesso ainda não chegara à outra margem quando adentramos uma floresta de tal modo espessa que por trilha alguma era cortada. Sua fronde não era ver de, mas escura; não eram lisos seus ramos, e sim nodosos, e deles pendiam, em lugar de frutos, farpas venenosas. As bestas ferozes que buscam abrigo nas brenhas desertas de Cecina e Corneto (1) ali estariam bem escondidas.
Em semelhantes árvores nidificam aquelas hórridas Harpias que, em tempos remotos, induziram os troianos a abandonar as ilhas Estrófades, anunciando-lhes perigos os mais cruéis. Largas têm as asas; o colo e o rosto de mulher; garras no lugar dos dedos; emplumado o ventre volumoso. Seus lancinantes gritos ecoam por toda a horrenda floresta.
Disse a mim meu mestre: "Antes que prossigamos, fica ciente de que estamos no segundo recinto e nele estaremos enquanto houver deste tenebroso areal. Repara e hás de ver coisas aptas a justificarem o que a tal respeito já comentei".
Vinha-me de todos os lados aiar dolorido, mas eu não alcançava vislumbrar os que assim gritavam.

* (1) Lugares nos quais, ao tempo de Dante, escondiam-se animais selvagens. *

Detive-me, confuso e angustiado. Creio que o guia supôs estivesse eu acreditando procederem os gritos de turba que entre as árvores de nós se houvesse escondido. Ele observou: "Se quebrares um ramo dessa fronde, verás que teu pensar não é correto".
Arranquei então o ramo de um galho. E o tronco clamou: "Por que me partes?" Cobrindo-se logo de negro sangue, prosseguiu: "Por que me feres? Não possuis um mínimo de piedade? Já fomos homens, hoje somos lenho; mas se fôssemos almas de serpente, menos cruel tua mão seria".
Como o lenho verde que, atirado ao fogo, de um lado se contorce, do outro crepita por ação do vapor dele desprendido; notei que daquele ramo partiam sangue e vozes, o que foi motivo para deixá-lo cair, quedando-me espantado.
Socorreu-me meu sábio guia, dirigindo-se ao malferido: "Se este houvesse dado crédito ao que a tal propósito antecipo em meus versos (2) deixar-te-ia ileso. Para que acredite neste mistério, levei-o a fazer-te mal, proceder que a mim me pesa. Mas dize-lhe quem foste e ele, em troca, ao voltar ao mundo dos vivos, conforme lhe é concedido, há de celebrar o teu nome".
E o tronco: "Acedo, pois é confortador e amigo o teu falar. Não te aborreça, entretanto, que os detenha um pouco mais, sobre meu passado dissertando. Fui aquele a quem o Imperador Frederico entregou as chaves do seu coração; com elas, quer dissuadindo quer persuadindo, usei métodos tão suaves que a ninguém permiti partilhar os seus segredos. Nesse empenho fui constante e fiel, nele perdendo a tranqüilidade e a saúde.

* (2) Na Eneida, Virgílio menciona episódio semelhante quando Enéias arranca ervas nascidas sobre o túmulo de Polidoro. *

Porém a inveja, meretriz que do trono dos césares não desvia o torvo olhar, peste e vício dos palácios, acendeu contra mim o ódio do mundo e desse fogo inflamou o imperador, o qual, retirando-me as honras, cobriume de mágoas. Desenganado, acreditando pela morte suprimir o desgosto, para comigo fui carrasco. Pelas raízes novas deste tronco eu juro: ao meu senhor jamais faltei à fé jurada. Rogo àquele de vós que regressar ao mundo: um nome honrado seja a memória que houver de mim, vítima que fui, destruído pela inveja". (3)
o tronco emudeceu. Mas o poeta exortou-me: "Se mais queres saber, e se ele se cala, fala-lhe; não percas tal oportunidade". Respondi: "Fala-lhe tu, que ficarei satisfeito em ouvir; pois a piedade me paralisa". Virgílio então lhe disse: "Para que este vivo generosamente cumpra o que lhe pediste, ó alma encarcerada, ajuda-o, revela como pode o espírito ligar-se a um tronco e se tais cadeias rompendo é possível livrar-se".
Da miserável árvore partiu sopro rijo que em voz humana isto fez ouvir: "Serei breve e preciso na resposta. Quando homem violento, dominado pelo furor, voluntariamente apaga a sua vida, é atirado por Minos ao sétimo círculo. Cai, ao acaso, no meio da floresta, qual semente germina e se faz árvore, cuja fronde serve de pasto às Harpias, as quais, provocando a dor, a esta abrem a janela que são os gritos. No dia do Juízo Final, como os demais iremos procurar os nossos corpos sem podermos jamais nos revestir deles, pois em vida os rejeitamos. Serão arrastados para aqui e permanecerão pendentes dos galhos da árvore na qual a alma acha-se prisioneira".

* (3) Este é Pier delle Vigne, secretário e confidente do Imperador Frederico II, que mandou prendê-lo e cegá-lo. *

Nós nos mantínhamos ao pé da árvore, esperando que a voz continuasse a nos falar, quando nos surpreendeu um rumor intenso, igual àquele que anuncia ao caçador, pelo estalar dos galhos e o uivar dos cães, _a aproximação do javali. Súbito, pela esquerda Irromperam dois espíritos a correr, nus, maltratados, em desespero tamanho que na fuga rompiam os obstáculos. Gritava o da frente: "Vem, ó morte!" O segundo, sempre mais atrás, bradava: "Lano, tuas pernas não foram assim tão ágeis lá no Topo!" (4) E tombou sem forças sobre o ervaçal. Perseguia-os um bando de cadelas negras, velozes, ferozes quais mastins deixados a seu talante. Investiram sobre o espírito caído, fizeram-no em pedaços e retiraram-se.
Meu guia tomou-me pela mão e levou-me para junto do ervaçal, o qual, também ferido, em vão exalava queixumes débeis: "Por que, ó lacopo da Santa Andrea, junto de mim vieste procurar refúgio? Por que devo com minha dor resgatar tua culpa?" Meu mestre lhe perguntou: "Quem és, que por tantas feridas nos fazes ouvir reclamo tão doloroso?"
Respondeu-nos ele: "Ó almas que juntas contemplais o meu estado!, aliviai o meu sofrer, recolhendo os ramos partidos e juntando-os às suas raízes. Nasci naquela cidade que trocou pelo Batista o seu antigo patrono, mudança que de tal modo a malquistou com o deus antigo que, se na ponte sobre o Arno não restasse um sinal do velho culto, talvez não pudesse recuperar-se de seus males e com isso malograsse o esforço dos que a reedificaram quando Átila a reduziu a pó. Ali enforquei-me em minha própria casa".

* (4) Referência a Pieue del Topo, batalha sangrenta. Os perseguidos são Ercolano da Siena e Iacopo da Santa Andrea, dissipadores conhecidos. *

Canto XIV

No terceiro recinto do Sétimo círculo, os dois poetas ouvem o orgulhoso Capâneo, rei de Tebas. Neste recinto se acham os violentos contra Deus, contra a arte e contra a natureza, os quais são atingidos por uma chuva de fogo que nunca cessa.
Genuíno amor à pátria moveu-me em favor daquele desgraçado. Reuni os ramos dispersos e os dei ao ervaçal, já fraco de tanto que falara.
Não demoramos a alcançar o limite entre o segundo e o terceiro recinto, onde presenciei horrível obra da justiça.
Para descrever com clareza o que vi, direi que chegáramos a um campo deserto sobre o qual planta alguma vegetava. De um lado cercava-o a selva de braços dolorosos; do outro, tal como a própria selva, era cingido pelo rio de sangue. Temeroso, ali pousei os pés, quando a areia grossa e seca recordar me fez aquela outra que no passado Catão pisara.
Ó justiça divina, quem não te reverenciará entendendo o que aos meus olhos foi manifesto!
Almas nuas choravam lamentosamente, por meios vários purgando culpas. Parte dessa multidão jazia pela areia; sentada mantinha-se outra porção, enquanto terceiro bando girava sem cessar. Este último era turba especialmente numerosa e menor a dos que, imóveis no sofrer, com seus lamentos demonstravam uma dor maior.
Em todo o areal, lentamente tombava uma chuva de fogo, igual à neve a descer sobre a serrania, estándo ausente o vento. Assim viu Alexandre, nas cálidas regiões da índia, chuva de labaredas requeimar o solo e os seus soldados, havendo ordenado que pisassem as chamas à medida que caíam, para que em incêndio não se juntassem elas. Desse modo, descia ali do céu aquele ardor eterno, qual fagulha reunida à estopa, o tormento duplicando aos condenados. Eles agitavam sem parar as mãos, na esperança de anular o efeito da chuva de faíscas.
Disse eu: "Mestre, que sobre todos os anteriores obstáculos triunfaste, com a só exceção da furiosa malta de demônios que em Dite nos cortou a estrada, dize-me quem é esse espírito altivo que não foge ao fogo!"
Percebendo ser o objeto de minha curiosidade, a própria sombra respondeu: "Continuo, morto, a ser o que fui em vida. Pode Júpiter cansar no trabalho o seu forjador de raios, com os quais, no último dia, saciou em mim o seu furor vingativo; pode ativar os seus ciclopes na forja de Mongibello, a negra oficina, incitando-os aos gritos de Acode, bom Vulcano, ou serei vencido!', como gritou na batalha de Flegra, nem assim conhecerá a vingança".
Virgílio então respondeu, com um tom de voz enérgico como eu jamais ouvira: "Capaneu, a quem a morte não diminuiu a soberba: sofre por isso a maior pena. Não há castigo igual ao teu nem se concebe punição capaz de cobrar tamanha fúria".
E de modo mais brando, dirigiu-se a mim: "Foi um dos sete reis que sitiaram Tebas. Parece que a Deus vota desdenho, menosprezo. Ouviste porém o que eu lhe disse: a sua ira está em proporção ao seu castigo. Agora, segue-me, cuidando para que não se queimem teus pés nessa areia ardente; é preciso mantêlos sempre junto ao bosque".
Fomos caminhando em silêncio, até onde vi jorrar do bosque riacho tão vermelho que ainda de seu rubor a lembrança me atormenta. Fluindo cálido pela areia, recordou-me o Bulicame, rio eleito pelas mulheres de vida pecaminosa. As margens e a orla, de ambos os lados, assim como o fundo do leito, eram em pedra, proporcionando caminho a quem tivesse coragem de segui-lo.
"Dentre tudo de mais assombroso que te foi revelado desde que cruzamos aquela porta que a todos dá acesso, nada viste que se iguale a este arroio, que apaga quanta chama sobre si caia." Havendo assim o guia excitado o meu desejo de conhecer detalhes, roguei que continuasse a falar.
Ele disse: "Jaz em meio ao mar um país agora desolado, por nome Creta. Sob o mando de Saturno, conheceu a idade áurea. O monte Ida, de aprazível aspecto, ali se ergue, hoje esquecido como ruína mas àquele tempo apreciado por suas águas e bosques. Réia escolheu-o para seguro berço de seu filho, fazendo cobrir os vagidos do menino com grande alarido. Há nas entranhas desse monte um ancião venerando que, voltadas as costas para Damieta, tem os olhos postos em Roma como em espelho embevecedor. De ouro fino é a sua cabeça; de pura prata o peito e os braços; em bronze o tronco; de ferro as pernas menos o pé direito, que em argila é moldado e sobre o qual, mais do que sobre o outro, está ereto. Salvo pelo ouro, tudo o mais que o constitui destila um fio de lágrimas que, reunidas, geram uma fonte que, de rocha em rocha, baixa a estes negros vales, forma os rios Estige, Aqueronte e Flegetonte, chega ao lugar mais profundo do Inferno, onde se forma o Cocito - o qual hás de conhecer no devido momento".
Disse a ele: "Como se explica que, provindo tal água do nosso mundo lá acima, vemo-la apenas neste lugar horrível?"
E ele: "Sabes que este lugar tem forma circular. Sendo assim, embora já tenhamos percorrido parte extensa, baixando à esquerda, ainda não o cruzamos inteiro. Portanto, não sejas dominado pelo espanto diante de novos acontecimentos".
"Mestre", insisti, "por onde correm o Flegetonte e o Letes? A respeito deste nada dizes; do outro contas ser filho desta chuva de lágrimas humanas".
Virgílio assim respondeu: "Esse curso rubro que aí vês, fervendo, responde a uma parte de tua pergunta. Quanto ao Letes, hás de vê-lo, mas fora do Inferno, pois é onde as almas já redimidas vão purificar-se". E continuou: "É tempo de nos afastarmos desta floresta. Sigamos junto da margem, pois ali o furor das chamas se apaga".

Canto XV

Os dois poetas, ainda no terceiro recinto do sétimo Círculo, deparam os sodomitas, que sob o fogo não cessam de mover-se.
Fomos por uma passagem empedrada, defendida, como também a água, contra a chuva de fogo, pelo vapor que da torrente se elevava. Eram essas margens iguais aos diques erguidos pelos flamengos temerosos da ação marítima, entre Bruges e Cadsand; ou àqueles outros que os paduanos levantam para opor-se às águas do rio Brenta antes de que o degelo comece em Quiarentana. Eis como eram as bordas desse rio medonho, embora um construtor prudente não lhes fosse dar tal altura nem tal espessura.
Já afastados da selva - tanto que, voltando a cabeça, não poderia vê-la -, deparei compacta multidão de almas que, sob a ardência das chamas, avançava costeando a pedregosa margem, tendo fixos em nós os olhares, com a insistência que o caminhante põe ao encontrar outro caminhante, ao fim do dia, sob luz escassa. Contraíam os olhos para nos ver, como faz o velho alfaiate para enxergar a agulha.
Terminado o exame minucioso, um deles me reconheceu; puxou então minha roupa e bradou: "Ó prodígio!" Fixei nele os olhos e embora o ardor eterno lhe houvesse requeimado as faces pude ver, mais na memória do que na retina, o seu retrato vero. Erguendo para ele a mão, exclamo: "Ó Brunetto! (1) vós aqui!?"

* (1) Brunetto Latini, o mestre predileto de Dante. *

E ele: "Filho, consente que teu Brunetto por um pouco refaça o caminho, a teu lado, deixando esta triste companhia". Respondi-lhe: "Se depender de mim, por longo tempo ficarei te ouvindo". Mas ele: "Filho, se um de nós, condenados que assim purgamos pecados, por um só momento sustar os passos, por cem anos, em paga, ficará imóvel, torturado pelo fogo. Caminha e seguirei perto. Falaremos e depois voltarei a juntarme aos míseros que sofrem e choram".
Não ousei descer da margem para caminhar ao seu lado, mas para ele inclinei reverente a fronte, a ouvi-lo. Ele começou: "Que sucesso ou destino, antes da morte, para aqui te conduziu? E quem é esse que o caminho te mostra?"
Respondi-lhe: "Antes de haver na Terra o meu tempo de vida cumprido, vi-me perdido em vale desolado. Ontem pela madrugada pude deixá-lo, quando este que vai comigo me socorreu e me reconduz a casa por estrada singular".
E ele: "Tua estrela ainda há de te conduzir a gloriosa altura, se bem vaticinei em vida. Se eu não houvesse morrido antes de poder dar-te bons conselhos, vendo o Céu para contigo tão benigno, tua tarefa em muito teria auxiliado. Mas esse ingrato povo que do povo de Fiesole descende e guarda a natureza dura da pedra será teu inimigo, porque és bom. Isso já era de se esperar; pois entre os ásperos ramos do sobreiro não pode frutificar o doce figo. Uma velha tradição os diz cegos, orgulhosos, avarentos e invejosos. Evita o contágio de seus muitos vícios. Tamanha será a tua glória que os partidos te disputarão; mas de todos eles conserva-te afastado, pois serás sua presa. Revolvem-se os vícios fiesolanos em seu próprio lodo, mas poupam ao lodo a planta que na esterqueira germinou de semente santa (1) para cantar e glorificar o nome romano ali deixado, quando tanta malícia se ergueu".
Então eu disse: "Fosse meu querer considerado lá no Céu e a branda luz terrena ainda animaria teus olhos, pois a tua veneranda imagem vive em minha memória desde quando lá no mundo hora a hora me ensinaste como pode o homem imortalizar-se. Enquanto vivo for, reconhecido, ao mundo inteiro hei de proclamá-lo. Quanto ao agouro sobre o meu futuro, guardo-o junto a outro bem funesto. Sábia dama há de explicá-lo se a sua presença eu for admitido. No mais queda-te certo de que estou pronto a arrostar os golpes da sorte adversa. Os males que profetizaste já me haviam sido ditos. Como quer que a Fortuna gire a sua roda, dela não cuido, como não reparo de que lado o camponês deita a sua enxada".
Então Virgílio, volvendo para a direita, virou-se para trás e me disse: "Melhor aproveita quem põe mais atenção ao que lhe narram".
Continuei conversando com Brunetto enquanto caminhava. Pedi que indicasse os mais famosos de seus companheiros; ele atendeu: "Quanto a alguns deles, farei como pedes. A respeito, porém, da maioria, é louvável deixá-los no silêncio, mesmo porque o nosso tempo é curto. Fica sabendo que foram letrados - alguns até famosos clérigos -, manchados pelo negro e igual pecado. Nessa turba vão marchando, sob a chuva afogueada, Francisco d'Accorso e Prisciano. (2)

* (1) Dante orgulha-se de descender dos romanos, que, com os fiesolanos, fundaram Florença.
(2) Francisco dAccorso, jurisconsulto; Prisciano, gramático. *

Poderia mostrar-te outro se tanta infâmia não te repugnasse. É o que o servo dos servos - o papa - transferiu do bispado do Arno para o de Bacchiglione, onde morreu. Poderia dizer mais; porém, o andar e o falar mais longos não podem ser. No areal, entre a nuvem afogueada e vaporosa, entrevejo aproximar-se outra multidão de almas e não nos é permitido estar em turba diferente. O meu Tesouro eu recomendo a teus cuidados, pois só por causa dele lá no mundo sou lembrado".
E assim partiu, veloz como o corredor velocíssimo que nas festas de Verona disputa em corrida a glória de conquistar o pálio verde. E ao correr, mais parecia ser o que ganha do que o que é derrotado.

Canto XVI

Os poetas permanecem no sétimo Círculo, e encontram um novo grupo de sodomitas. Antes de descerem ao oitavo Círculo, Virgílio invoca uma presença que irá fascinar Dante.
Alcançamos uma paragem onde se ouvia o ribombar da água tombando para o círculo seguinte, lembrando o ruído de enxamear de abelhas; súbito, de uma turba que passava a gemer sob o peso do castigo pluvial, separaram-se três almas e dirigiram-se correndo em nossa direção. Bradavam: "Pára, ó tu que pela vestimenta mostras ser de nossa brava terra!".
Que horríveis chagas vi, novas e antigas, cobrindo seus membros. Só com o recordá-las, sinto terrível tristeza.
o mestre, que os ouvira, voltando para mim o rosto, concedeu: "Espera e atende aos seus pedidos. E não fora pela chuva de fogo própria do lugar, a pressa seria mais apropriada a ti do que a eles".
Notando que parávamos, voltaram a gritar e ao nosso redor vieram formar círculo fechado por suas mãos unidas. Assim como os lutadores, na arena, tendo já o corpo untado, estudam-se procurando o ponto fraco do adversário, aqueles três, sempre me encarando, moviam o corpo menos o rosto, de tal sorte que a face e os pés ficavam às vezes opostos.
Um deles então disse: "Se a miséria a que fomos reduzidos, se o funesto aspecto de nossa comburida face te leva a desprezar nosso pedido, que a fama de nossos nomes terrenos supere tal desânimo e te induza a nos dizer quem és - tu que, antes de findar a vida na Terra, o Inferno pisas. Malferido e nu, como ora vês a este outro de nós três, lá no mundo desfrutou poder imenso. Descendente de Gualdrada, chamou-se Guido Guerra na vida que ilustrou com a mente e com a espada. O que vem depois é Tegghiaio Aldobrandi (1), a cujos conselhos e trabalhos devera nossa pátria ser grata. Eu, que com eles partilho a pena, fui Jacó Rusticucci (2) e a causa principal dos meus pecados foi ter uma mulher má".
Não fosse aquele fogo terrível, eu os abraçaria. Nisso, creio, teria o mestre consentido. Mas pelo fogo teria sido consumido; assim, em meu peito o medo venceu a vontade de ir consolá-los abraçando-os.
Contudo, eu lhes disse: "Não desprezo, e sim mágoa a vossa triste sorte em mim excita. E tanto que a custo é que hei de dissipá-la. Tão logo ouvi de meu guia que gente ilustre nos viria ao encontro, soube que éreis vós, assim que vos deparei. Vim de vossa cidade onde sempre reverenciei vosso nome e os grandes feitos que vos deram honras. Quanto à minha viagem, levado por este guia veraz, vou deixando as amarguras deste sítio em busca dos doces pomos celestiais. Mas é forçoso que passe ainda pelo Centro da Terra e suba por ali".

* (1) Florentino de grande prestígio; Dante, ao falar a Ciacco (canto VI, verso 79), mostrou-se preocupado com seu fim.
(2) Jacó Rusticucci, nobre florentino, coberto de ridículo pelas humilhações que sua mulher lhe impunha. *

"Que a alma fique por muito tempo ainda em teu corpo, e a glória de teu nome seja resplendente!", exclamou o condenado, que prosseguiu: "Mas dize-nos se em nossa cidade a honra, o valor ainda residem, ou se dali foram expelidos pelo ódio, que a tudo corrompe; pois Guilherme Borsiere, chegado há pouco e junto a nós sofrendo nesta fogueira, trouxe-nos a esse propósito notícias desalentadoras".
Bradei, de cabeça erguida: "Chefes improvisados, fortunas repentinas, acenderam em Florença tal soberba e tamanhos vícios que de maus resultados ela mesma se arreceia". Os três, que às minhas palavras estiveram atentos, entreolharam-se desgostados da verdade. Tornaram: "Feliz de ti, se com tamanha franqueza e sempre expões teu pensamento. Com isso, grande fama hás de granjear. Mas, pedimos-te, quando voltares a mirar as estrelas, deixando este lugar horrendo, e jubiloso puderes dizer eu estive lá de fato!', não permitas que nossos nomes sejam esquecidos no mundo dos vivos!" Então, desfazendo o círculo, partiam. Velozes, como se de asas munidos, desapareceram antes mesmo que eu pudesse dizer amém!
Por isso o mestre pôs-se a caminho e aos seus passos seguiram-se os meus. Havíamos pequena distância percorrido quando de água a cair ouvimos o fragor, mas já tão próximo e tão forte que para a voz um do outro ser ouvida, gritar-nos não seria bastante. Tal qual o rio que abre o seu caminho e, em Veso nascendo, flui para oriente, ao lado esquerdo dos Apeninos, e, correndo por terras altas, leva o nome de Aquaqueta, diversamente chamado nas alturas de Forli e que de repente estruge e tomba junto de São Benedito; assim, das alturas de elevado penhasco rugia em catarata o caudal vermelho, com estrondo tal que quase me ensurdeceu.
Mantinha comigo a corda com que havia tentado prender a pantera de pêlo cambiante. Obediente ao dizer do mestre, desenrolei-a de ao redor do corpo e entreguei-a a ele. Voltando-se para a direita, ele atirou a corda na direção do precipício. Pensei: "A este gesto algo de espantoso há de responder decerto, pois q o mestre a segue com os olhos".
Muita cautela e igual prudência devem ter os homens quando lidam com os que enxergam não somente as coisas, mas percebem também o que se pensa. Pois me disse o mestre: "Logo se realizará o que tens no pensamento. Surgirá depressa o que aguardo".
o homem sábio evita sempre dizer a verdade quando ela possa parecer mentira, a fim de não ser injustamente tido por mentiroso. Mas nada posso omitir, leitor, do que vi. Juro por esta Comédia que vi subir, nadando com asas por aquele ar pastoso, escuro, uma figura de tal modo assustadora que ao peito mais valoroso e forte causaria espanto. Subia, como o marujo que mergulhou para desprender a âncora presa por ocultos embaraços e que, subindo, encolhe as pernas e os braços estende.

Canto XVII

Virgílio fala a Gerido, símbolo da fraude. Dante se aproxima dos que praticaram violência contra a arte; estes se acham sentados, debaixo da chuva de fogo. No final, os dois poetas rumam para o oitavo Círculo no dorso de Gerido.
Meu guia assim falou: "Eis o monstro de cauda pontiaguda, com a qual fura couraças, atravessa muralhas e montes, e cuja peçonha envenena o mundo!" Acenou depois à fera para que baixasse o corpanzil junto de nós, sobre a pétrea margem. Da fraude o vulto obedeceu ao mandado. Pousou o busto, mas a disforme cauda manteve suspensa no vazio do abismo. o rosto e as feições, na harmonia da forma e na maciez da pele, de homem justo pareciam. De serpente era todo o mais do corpo. Os braços ostentavam pêlos até as axilas; o dorso e o peito perdiam-se em nódoas e torvelinhos. Tantos matizes em si revelava como jamais tecelões tártaros e turcos usaram em suas telas; nem Aracne teceu nada parecido.
E como um barco que tivesse a proa na areia, a popa ainda imerge em água, ou como os germanos glutões observam o castor entregue à pesca - assim estava o monstro descansando na orla que o precipício cerca. Movia no ar a peçonhenta cauda de ponta bipartida, lembrando o escorpião que se apronta para o golpe.
o guia disse: "Convém nos desviemos do caminho até onde nos apela o monstro que aí vês". Tomamos, pois, a trilha da direita e, inclinados para fugir ao fogo e ao ardor da areia, avançamos dez passos. Quando nos aproximamos da besta, pude ver, para além dela, um bando de condenados sentados junto do abismo.
o mestre sugeriu: "Para que tenhas ciência de quanto neste recinto acontece, aproxima-te e conhece quem são aqueles e o que padecem. Mas sê lacônico. Entrementes, pedirei a esta fera que nos faça empréstimo de suas fortes espáduas".
Adiantei-me até o limite extremo deste círculo sétimo, indo ao encontro daquela triste gente. Buscando diminuir a ardência do solo sobre o rosto, continuamente agitavam as mãos enquanto os olhos, sem parada, lacrimejavam. É assim que no estio agita-se o cão buscando com as patas e o focinho alívio contra as pulgas, moscas e moscardos que o atormentam. Pondo reparo nos fúnebres semblantes que o fogo supliciava, não reconheci um só. Notei porém que do peito pendia bolsa a ostentar sinais e cores heráldicos, cuja contemplação parecia tranqüilizá-los.
Andando e observando, vislumbrei impressa figura de leão azul em campo de ouro; outra exibia a brancura de um ganso em fundo sangüíneo. Um que trazia na bolsa figura de javali azul sobre campo branco interpelou-me: "Que buscas neste abismo? Retira-te de imediato, mas antes, embora vivo, fica sabendo que o lugar à minha esquerda espera por Vitaliano. Sou paduano entre estes muitos florentinos que continuamente me desassossegam com o gritar: Venha para o nosso meio o rei dos usurários, o que na bolsa traz três chifres esculpidos! Isso dizendo, o danado estirou a língua para fora da boca e lambeu os beiços, como faz o boi sedento. Eu, porém, receando que a longa demora desagradasse a Virgílio, que recomendara urgência, deixei os condenados em seu suplício.
Deparei meu mestre grimpado na garupa do monstro e a me dizer: "Agora, sê forte! Melhor que o ânimo tenhas preparado! Cumpre que desçamos e este
é o meio. Monta à minha frente! Ficarei entre ti e a cauda venenosa para que ela não venha a te ferir". Como o maleitoso que se põe a tremer supondo estar por um acesso acometido, tendo arroxeadas as unhas só por haver penetrado local de frescura e sombra, assim tremi ao ouvir semelhantes palavras. Veio em meu auxílio aquela vergonha que muita vez, ante o bom senhor, faz o servo corajoso. Sentando-me sobre as brutais espaldas, eu quis gritar "acode-me com teus braços!", porém a voz não me saiu. Mas ele, que já antes tanta coragem me havia transmitido, abraçou-me com força, ordenando à fera: "Gereão, tem cuidado, que hoje levas carga especial. Desce em vôo tranqüilo".
Como um barco que deixa suavemente a praia, Gereão alçou vôo e pôs a cauda onde havia descansado o peito. E tal qual a enguia toma impulso e ganha movimento, assim fez. Faetonte, quando da mão perdeu os freios, em desastre de que o céu ainda guarda os traços, não se quedou mais assustado do que eu fiquei então. Nem ícaro, ao ter as asas de cera derretidas e ouvindo ao pai gritar: "Ai que te perdes!", provou pavor maior do que eu ao me ver cercado pelo ar apenas, nada enxergando senão a fera. Voamos lentamente, e eu sabia que descíamos, pois o ar que vinha de baixo no rosto me batia.
Já se ouvia claramente, à direita, a catarata trovejar; ousei voltar os olhos. Estremeci ao distinguir lampejo de outro fogaréu e o ecoar de alteroso pranto. Encolhi-me transido, e soube que tocávamos o fundo em virtude dos lamentos que vinham de todas as direções.
Semelhante ao falcão que, planando sobre asas, demorou-se muito e, retornando sem presa, ouviu o protesto de seu dono a lhe gritar: "Como? Já de vol ta?!", e exausto e abatido afastou-se do amo, dando-lhe apenas um desdenhoso olhar, assim Gerião pousou no fundo do vale. E tão logo nos deixou sobre rochedo abrupto, como liberto de opressivo peso, fugiu de nós mais rápido que uma flecha.

Canto XVIII

Os poetas entram no oitavo Círculo, onde recebem castigo os que cometeram fraude; estes são distribuídos por dez diferentes valas. Neste canto é narrada a visita às duas primeiras valas.
Existe no Inferno um lugar chamado Malebolge; é cercado por muralhas de pedra em férreo colorido e na rocha escavado. No centro desse campo maldito abre-se um poço muito largo e profundo, de cuja estrutura falarei oportunamente. Tem forma circular o labirinto estendido entre o ápice da ribanceira e o fundo, o qual é dividido em dez covas iguais. Assim como os muros dos castelos possuem fossos que os tornam mais seguros, estas covas ostentam natureza e desenho iguais àqueles. E mais: qual fortaleza que estende sobre o fosso e para fora dele a sua ponte levadiça, as covas de que falo lançam entre uma e outra pontes, unindo os vales entre si, e terminando junto ao poço central.
Tal era o local em que nos encontramos ao descer das espaldas de Gerião. O meu poeta tomou à esquerda e eu, após ele, movi-me. O que vi à direita, na primeira das covas, encheu-me de piedade pelas novas penas e pelos tormentos novos que nelas observei. Marcham nus, lá no fundo, os pecadores. Uns iam em direção oposta à nossa; outros, na mesma direção que seguíamos, porém com passos mais velozes. Assim, no tempo do Jubileu, caminhavam em Roma as multidões sobre a ponte que então se inaugurou. De um lado os que, tendo o castelo à frente, procuravam São Pedro; do outro lado os que seguiam pelo monte. De um lado e de outro, sobre a rocha tétrica, demônios corníferos apressam a marcha dos condenados, fustigando-os pelas costas com grandes azorragues. Quão rápido moviam os calcanhares logo ao primeiro golpe! Nenhum esperava pelo segundo, muito menos pelo terceiro.
Andando, mirei um condenado e disse: "Não é esta a primeira vez que o vejo!" Para bem recordá-lo demorei um passo. Comigo deteve-se o meu bom guia, prontamente consentindo que para trás eu me voltasse. Baixando os olhos, o fustigado presumia furtar-se aos meus, mas não logrou o seu intento. Gritei-lhe: "Ó tu que baixas o olhar! Se tuas feições não foram muito alteradas pelo castigo, és Venedico Caccianemico! Que pecado cometeste para seres reduzido a tal estado?"
E ele: "Eu te responderei com má vontade. Cedo ao som desse falar gentil que à memória me trouxe a felicidade antiga. Fui aquele que induziu sua irmã, a bela Gisola, a satisfazer os desejos do marquês. Só agora revelo tal acontecimento. Mas não sou, aqui, o único bolonhês. Estas covas contêm deles número maior do que os que lá no mundo, entre o Rio Savena e o Reno, usam dizer sipa (1); e se disso quiseres provas, basta-te lembrar quanto aquela gente é votada à avareza". Ia dizer mais quando um demônio o golpeou, gritando: "em frente, rufião, aqui não há mulheres a que possas explorar!"

* (1) Trata-se de uma referência aos bolonheses, que habitam entre tais rios; em seu dialeto, sipa quer dizer seja. *

Voltei para meu guia, e com poucos passos alcançamos lanço do rochedo distendido a unir a margem vizinha. Facilmente por ele subimos, e cruzando essa ponte da primeira cova nos distanciamos.
No vão da ponte, sítio em que pelo arco abaixo passam os condenados, o meu guia alertou: "Pára e procura olhar no rosto desses desgraçados, feições que ainda não observaste, pois na mesma direção que a nossa eles iam".
Da velha ponte, vi a fileira de frente, pois em nossa direção ela marchava, fustigada sem detença. O guia, embora nada lhe houvesse perguntado, diz: "Observa aquele de alta postura, a quem a dor não lava o rosto com lágrimas. Quanto de rei ainda existe nele! É Jasão, o que mediante ardis e força arrebatou o velocino da Cólquida. Tocou em Lemnos, logo depois que as desapiedadas mulheres dessa ilha aos homens todos haviam dado morte. Ali, com palavras e modos enganosos, seduziu Hipsípile - donzela que, por sua vez, a todas as mulheres enganara. Abandonou-a grávida e sem amparo. Tal culpa, a punição que vês justifica, e a Medéia dá vingança. E a mesma pena receberá quem como ele enganar. Mas já basta o que sabemos desta cova e dos que nela são torturados".
Alcançamos um local estreito, de outra ponte sendo o firme esteio, já dentro da cova seguinte. Ouvíamos lamentos doloridos dos reclusos na cova segunda, os quais, bufando fortemente, com as mãos a si mesmos fustigavam. Eram as ribas encobertas por feia e negra pasta, que aos olhos horroriza e ao olfato nauseia, produto do condensar-se do hálito dos condenados. o abismo é tão fundo que, para vê-lo, não basta fixá-lo sem subir ao ponto onde o arco mais se alteia.
Subimos, pois, e vislumbramos, no mais profundo do fosso, gente metida em cloaca tamanha que parecia a única latrina do mundo. Enquanto o fundo com os olhos investigava, notei figura por tal forma coberta de imundícies que sequer consigo decidir se de leigo se tratava, se de clérigo. Gritou-me: "Por que me olhas fixamente, só a mim, e não aos outros condenados?" E eu: "Porque, se bem recordo, já te conheci com os cabelos limpos. És Alessio Interminei, de Lucca. Os demais não consigo reconhecer". Volveu ele, desferindo violentos murros na própria cabeça: "Eis quanto me afundaram as lisonjas em que minha boca, no mundo, foi hábil e incansável".
Então disse-me o guia: "Faz que teus olhos avancem a modo de poderes fixar a mulher imunda e desgrenhada que toda se arranha com unhas emporcalhadas, quer esteja em pé, quer deitada. É Taís, a rameira que, ouvindo o amante perguntar: Ainda gostas de mim?', respondeu: Como nunca antes!' Mas vamo-nos, já vimos o bastante".

Canto XIX

Os dois poetas, na terceira vala do oitavo Círculo, encontram os simoníacos, enterrados de cabeça para baixo em covas abertas na pedra. Apenas ficavam de fora seus pés, em chamas, e parte das pernas.
Ó mago, ó Simão (1) e seus míseros imitadores, pelos quais as graças divinas inseparáveis da bondade são adulteradas e trocadas por ouro e prata! Por ti e pelos teus soa a trompa supliciante; eis que estais enterrados na terceira cova!
Indo pela rocha altaneira, erguida a meio sobre o fosso, penetramos em outra cova temerosa. Ó suma justiça, total é a perfeição que exibis no Céu, na Terra e no mundo infernal! E quão perfeita sois na distribuição de castigos!
Vi, pelas margens e no fundo dessa cova, buracos abertos na lívida pedra. Todos de igual tamanho e rotundos. Não me pareceram maiores ou menores do que as pias que na minha formosa igreja de São João serviam para o batismo. Uma dessas pias quebrei, faz anos, no afã de salvar a alguém que ali se afogava; e se o dano agora revelo é para que a razão do ato seja conhecida.
Do pecador metido em tal vala ficava de fora a parte que vai dos pés à barriga da perna; o resto do corpo não se via.

* (1) Simão, famoso mago da Samaria, propôs vender aos apóstolos o dom de invocar o Espírito Santo. De seu nome vem simonia - negociar com as coisas sagradas. *

Ardiam-lhes as plantas dos pés, acesas por inteiro, e nesse sofrer tanto se estorciam que teriam podido romper laços e cordas. Do calcanhar aos dedos corriam chamas, inflamadas como se flamejassem sobre corpo untado com gordura.
"De quem se trata?", perguntei ao mestre, "quem vejo eu cercado por labaredas mais vivas e altas e que mais do que os outros mostra-se agitado?" Respondeu-me: "Se queres, levo-te ao plano estendido logo abaixo. Ali, dele próprio saberás quem é e o mal que praticou". Tornei: "Sempre me agrada o que a ti parece justo. És quem comanda e não me aparto do teu querer, pois conheces os meus desejos".
Descemos, indo à esquerda, até baixar à quarta cova, de fundo estreito, esburacado. O mestre de mim não se separou senão quando chegamos junto daquele cujo frenético agitar dos pés indicava sofrimento.
Conclamei: "ó tu, corpo metido no solo qual estaca, se podes, fala-me!" Sentia-me qual o monge que, havendo confessado o assassino já metido na cova, ouve que este ainda outra vez o chama para, confessando-se de novo, retardar a execução. (2)
E o mísero gritou: "És tu que por fim chegas a esta vala, ó Bonifácio? Em vários anos errei a tua idade. Estás por fim saciado da ambição a que te entregaste, por amor dela profanando e enganando a linda esposa?"
Quedei-me como quem ouve resposta e não a compreende e, aturdido, termina sem palavras.
Virgílio, então, disse: "Responde-lhe por este modo: Não sou, não sou quem pensas..

* (2) Dante se sente como um padre chamado pelo assassino que, já a meio caminho de ser enterrado uivo, quer ser ouvido em confissão, buscando retardar sua morte. *

Fiz conforme aconselhado. o infeliz, com isso, mais fortemente torceu os pés e clamou, com voz de pranto: "Por que, então, tens interesse tamanho em saber quem sou, a ponto de até aqui alongar o caminho? Fica sabendo que enverguei o grande manto. Filho de Urso, empenhado em ajudar os meus ursinhos, muitos bens pus na minha bolsa e eis por que termino aqui embolsado. (3) Abaixo de mim, sobrepostos, muitos estão que, simoníacos, foram castigados antes de mim. Descerei mais fundo, quando chegar aquele que ainda há pouco julguei que fosses. Mas o tempo que passei assim metido, com os pés ardendo, é já mais longo do que o tormento que a ele se prepara. Pois logo em seguida à sua chegada, e ainda mais carregado de pecados, baixará do Ocidente um pastor sem lei, o qual empurrará a mim e ao outro mais para o fundo. Será esse último um novo Jasão - como se lê no livro dos Macabeus -, condescendente havendo este sido ao seu rei como aquele em aceitar como senhor o rei da França".
Creio ter sido então demasiado rude ao responder, no seu mesmo tom: "Dize-me que tipo de tesouro porventura exigiu Nosso Senhor de São Pedro ao lhe confiar as chaves? Certo que nada pediu a não ser vem comigo!' E nem Pedro nem os mais apóstolos reclamaram de Matias ouro ou prata quando o elegeram para o cargo que o traidor havia perdido. Bem te está, pois, a pena que aí sofres. Guarda a moeda vil que extorquiste e contra Carlos(4) te fez erguer.

* (3) A Gasconha, de onde procederá o Papa Clemente V.
(4) Carlos de Anjou. *

Não fosse o grande respeito que ainda guardo pelas santas chaves que empunhaste um dia, durante tua vida regalada, palavras ainda mais duras clamaria, pois tua cupidez escandalizou o mundo, serviu de estímulo aos maus, aborreceu os bons. De ti já se ocupara o evangelista ao ter a visão daquela que pousa sobre as águas, a fornicar com os poderosos. Nascera com sete cabeças, de dez cornos haurindo forças para manter-se esposa virtuosa, enquanto seu esposo é virtuoso. (5) Puseste o alvo em um deus de ouro e de prata; és bem a imagem idólatra que, em vez de um deus, adora a cem! Ah! Constantino, de quanto mal foi causa, não a tua conversão, mas a riqueza que doaste ao papa e à qual outras riquezas se juntaram".
Enquanto tais palavras eu lhe dirigia, ele ou de ira incendido, ou por remorsos pungido, agitava os pés com maior braveza. Porém acredito que minhas palavras tenham agradado a Virgílio, que sorria ouvindo as duras verdades por mim bradadas. Logo mais, aconchegando-me ele ao peito, voltamos a subir pelo caminho seguido na descida. Cingido pelo seu braço, alcancei do arco o alto cimo - passagem para a quinta cova. Ali ele colocou-me docemente sobre rocha tão íngreme e esconsa que às próprias cabras seria obstáculo. Dali, outro vale me foi mostrado.

* (5) As sete cabeças são as virtudes, e os mandamentos, os dez cornos. A esposa seria a Igreja; o esposo seria o papa. *

Canto XX

O cenário agora é a quarta vala do oitavo Círculo; neste recinto se acham mágicos, adivinhos e farsantes, os quais têm a cabeça plantada ao contrário no corpo, ou seja, voltada para as costas.
Este canto - o vigésimo - desenhará a meu talante novas penas que no infernal abismo reservam-se aos ímpios submersos.
Observava o abismo aberto aos meus pés, vale profundo, do qual vinha um pranto amargo, e vislumbrei, da cova ao longo, multidão de almas caladas e lacrimosas, avançando ao passo tardo que no mundo é próprio das procissões. Mais acuradamente observando, percebi que, de modo espantoso, todo justiçado tinha voltados para as costas o mento e o pescoço, caminhando como quem recua, pois lhes era proibido olhar para a frente.
Talvez, em virtude de paralisia, haja alguém que traga o corpo assim torcido. Não vi nem creio que haja. Que a lição, prazendo a Deus, te seja útil, leitor, e por ti mesmo avalia se me era possível manter os olhos enxutos, com a crescida compaixão que me trazia o avistar nos condenados a figura humana tão deformada que o seu pranto, descido dos olhos, pelas nádegas rolava.
Buscando apoio no rochedo, eu chorava, e com tal estridor que o mestre me disse: "Como todos aqui, és louco? Aqui, é virtuoso o que piedade não sente - pois quem pode ser tão perverso quanto o que se apieda do mau castigado pela justiça divina? Ergue, pois, a fronte e fita aquele que se abismou na terra ante os tebanos que lhe gritavam: Para onde te precipitas, Anfiarau, que por tão estranho modo deixas o campo de guerra?' E, entrementes, no abismo ele imergia até o sítio onde Minos a todos aferra. Por haver tentado antecipar o futuro, traz as costas no lugar do peito; e só pode avançar recuando; e só consegue enxergar o que para trás ficou.
"Lá está Tirésias, que sendo homem, transformou-se em mulher, os membros todos alterando; para recuperar o antigo físico, viu-se obrigado a, com um golpe de bordão, separar duas serpentes ligadas entre si. Segue-o Aronte, que às costas a barriga voltou: no monte Luni, que se ergue ante Carrara, habitou gruta de mármore, à entrada da qual, sem obstáculos para a vista, consultava os belos astros e o mar infindo.
"E essa mulher, que oculta os seios em trança flutuante e o corpo traz de pêlos recoberto, foi Manto, que após errar incerta por muitas terras, naquela onde nasci achou repouso, e a respeito de quem gostaria de que me ouvisses um pouco mais. Vendo ela que o fim chegava para seu pai, e reduzida à escravidão a cidade de Baco (Tebas), saiu a girar pelo vasto mundo. Na formosa Itália, há um lago nos Alpes, junto do Tirol, já na fronteira alemã, que tem por nome Benaco. A água sua formadora provém de fontes mil, entre Garda e Val Canonica. Uma ilha no meio se ergue, sobre a qual o pastor trentino e, como ele, os bispos de Bréscia e de Verona possuem de benzer igual direito. No lugar onde a margem largamente se espraia, avulta o forte de Pesquiera, frontejando Bréscia e Bérgamo. É por aquele local que a água impossível de guardar no lago se despenha e corre feito rio, banhando fartamente prados verdejantes. Nesse correr, recebe outro nome, e perde o antigo. Chama-se então Míncio até o local onde ao Rio Pó se acrescenta. Quando ainda o seu curso é reduzido, cruza planície a que no estio inunda, formando um pantanal que representa risco à saúde do homem.
"A virgem cruel, passando por ali, percebeu o terreno desabitado, inculto. Assim, naquele pântano, renegando o convívio humano, fixou-se com seus servos, deu-se à magia até receber da morte o aceno. o povo, que já pelo arredor se repartia, vendo firme o lugar que o pântano abraça e protege, levantou sobre a tumba de Manto a cidade que por isso se chamou Mântua. Fizeram-no em sua lembrança e sem de outro nome haver cogitado. Foi esta, outrora, a cidade mais povoada, antes que a intriga de Pinamonte e a loucura de Casalodi a prejudicassem. E, por fim, ainda afirmo que se de outra fonte a minha cidade afirmarem haver nascido, não consintas que a falsidade substitua a verdade".
Tornei-lhe: "Mestre, o que ensinas é verdadeiro e merece minha fé a tal ponto que, a isso comparada, qualquer outra lição parece carvão extinto. Mas dize me: outro daqueles vultos que avançam merece atenção? Nisso, agora, me concentro".
Disse-me ele: "Esse cuja barba escorre do queixo à espádua foi áugure num tempo em que a Grécia guerreira só nos berços dispunha de homens. Em Áulida, tendo Calcas por igual, este indicou o tempo da partida da primeira nau. Chamou-se Eurípilo; sua história é retratada num de meus versos, bem o sabes, pois no poema embebeste a mente. O outro, franzino de figura, foi Miguel Scott, ativo executor de fraudes. Repara depois em Guido Bonatti, em cara e dentes, que não deveria ocupar-se senão do couro e da sovela, infidelidade de que agora inutilmente se arrepende. E eis o cortejo triste das que deixaram a agulha e a roca e puseram-se a praticar toda sorte de malefícios com ervas e imagens.
"Mas sigamos; eis que no limite que os hemisférios reparte surge Caim (1) com seus espinhos, e o mar já vai tocando o baluarte de Sevilha. Ontem, a noite foi de lua cheia, conforme deves recordar, pois assim a contemplaste, da selva onde te auxiliou o seu branco palor."
Assim falou-me enquanto caminhávamos.

* (1) Caim: a lua. No tempo de Dante, dizia-se que as manchas lunares representavam a figura de Caim a carregar um feixe de espinhos. *

Canto XXI

Os dois poetas chegam à quinta vala do Círculo oitavo, onde são punidos os que se beneficiaram de tráfico de cargos e de influência: os corruptos e os prevaricadores, mergulhados em betume fervente.
Íamos de uma ponte a outra, falando de coisas que nesta Comédia não cabe comentar, quando a certa altura nos detivemos a observar a outra cova escura de Malebolge, da qual subiam lamentos insanos.
Assim como o betume, nos estaleiros de Veneza, ferve o dia inteiro, naquela época própria para o reparo dos barcos avariados no mar; e todos, ali, labu tam à porfia, um construindo um novo barco, outro calafetando o costado já muito viajado; uns martelando na popa e outros na proa; este aparelhando um remo, aquele torcendo ou cortando o linho, aqueloutro preparando velas grandes e pequenas; assim ali na cova eu via ferver o pez. Não por efeito de fogo e sim por disposição divina. Era um pez bastante grosso, a tornar viscosas, em toda a sua extensão, as margens do valado. Observei que a superfície não perdia a efervescência, levantando bolhas que inchavam e cresciam até estourar, num processo que nunca cessava.
Enquanto eu observava o fundo do pélago, o meu guia alertou: "Cuidado! Atenção!", e de onde eu estava para onde ele estava atraiu-me. Voltei-me qual o homem que tarda em reconhecer o perigo de que foi mandado fugir e, vazio de toda coragem, olha ao redor enquanto foge. Olhando, vi atrás de nós, sobre a rocha, o mais negro demônio a correr em nossa direção. Como era feroz seu aspecto! E que de ameaças percebi em suas abertas asas e em seus pés ligeiros! Sobre os ombros enormes e fortes carregava um pecador, tendo-o seguro pelos calcanhares.
Alcançando a ponte sobre a qual estávamos, gritou: "Ó Malebranche, eis um dos anciãos de Santa Zita! Mergulha-o no pez enquanto volto àquela terra onde abundam criaturas iguais a esta, todas venais, com exceção de Bonturo (1), habilíssimas em, por dinheiro, transformar o sim em não!" Lançou a vítima ao pez e refez o caminho com mais fúria e pressa do que em perseguir ladrão demonstra o mastim para isso estimulado.
O condenado afundou e voltou à tona encurvado como se de joelhos. Sob a ponte, os demônios gritavam-lhe: "Aqui não há imagem de Cristo diante da qual te devas curvar, nem se pode nadar como nadavas no Serchio. Se não queres provar a agudeza de nosso ferir, não te deixes ver fora do pez". Depois de com mais de cem aguilhões fustigar o pecador, observaram: "Dança lá no fundo a tua dança. E ali, oculto, que roubarás o que porventura puderes roubar". É com este mesmo falar que, na cozinha, o mestre ordena aos ajudantes mergulharem no caldeirão a carne que permanece à superfície.
Meu mestre assim falou-me: "Não convém que esses demônios te vejam e te molestem. Busca abrigo num desvão de rochedo e aguarda. Quanto a mim, não receies que me possam ferir. Sei como aplacar o seu furor".

* (1) Malebranche: nome comum aos demónios do quinto valado. *

Seguiu para além do extremo da ponte; entretanto, quando firmou os pés sobre a sexta borda e já por ela subia, foi-lhe preciso mostrar coragem no gesto, pois com a fúria e o rumor que a matilha põe no acossar o pedinte exausto que parou à espera da esmola, assim os demônios investiram-no, brandindo as armas. Gritou-lhes, ousado: "Que nenhum se atreva! Antes, avance até mim um dentre vós, e ouça-me, decidindo depois se mereço golpes ou bom tratamento". O bando deliberou: "Que vá Malacoda!" Adiantou-se o que se chamava assim, ficando para trás os demais. "Que desejas?", perguntou Malacoda. Respondeu-lhe o mestre: "Acreditas que eu aqui chegaria, de ti e de tuas armas não padecendo medo, se não o fizesse por ordem de um querer supremo? Deixa que eu passe, pois esse poder divino dispôs que eu a outrem servisse de guia". Tais palavras demoliram o orgulho do demônio, que aos pés deixou cair o forcado, ao mesmo tempo que aos de sua grei clamava: "Este irá sem ser molestado".
Meu guia disse-me: "Tu, que cauto e quieto te abrigas entre rochedos, vem a mim, sem receios". Pressurosamente, corri ao seu encontro. Os demônios, descobrindo-me, agitaram-se tão ameaçadores que, aflito, receei não cumprissem a promessa de paz. Tanto quanto tremi então, vi tremerem os soldados que saindo de Caprona encontraram-se rodeados por inimigos. Ao mestre eu lançara braços e corpo, enquanto nos turvos gestos dos demônios punha bom reparo. Os croques traziam levantados e dois gritavam: "Quer que o fisguemos pelo costado?", ao que outros responderam: "Sim, sim, seja espetado". Mas aquele diabo que com o mestre parlamentara, aos outros vivamente ordenando, bradou: "Está quieto, ó Scarmiglione!" (2) E para nós viajantes disse: "Avançar além, por este caminho, não vos será possível, pois o sexto arco jaz de todo em todo destruído. Sigam desta borda a direção. Pouco adiante, há rochedo que a passagem favorece. Ontem, cinco horas mais tarde do que este instante, fez mil duzentos e sessenta e seis anos que a ponte para o fundo descaiu. Enviarei alguns dos meus naquela direção, para ver se do pez nenhum danado se ergueu. Ide com eles, que nenhum mal intentarão". Voltando-se para o bando, dispôs: "Calcabrina abrirá a marcha, Alichino será o segundo, Cagnazzo acompanhará aos dois, Barbariccia comandará a decúria formada ainda por Draghignazzo, Libicocco, Graffiacane, Ciriatto, Farfarello e Rubicante. Que os condenados não escapem do pez! E quanto a estes dois estranhos, em perfeita paz sejam conduzidos até passar o exato lugar da ponte".
Disse: "Que vejo, ó mestre? Se o caminho te é conhecido, partamos sós e de imediato; dispensemos tais guias. Prudente sempre foste, continua a sê-lo, pois não vês que eles os dentes vão rangendo e com furor mal contido nos encaram?" Mas ele a mim: "Não haja receio. Deixa-os ranger quanto desejem, pois a fúria endereçam não a nós, mas aos que no pez sofrem submersos".
Os demônios se voltaram para a esquerda. Antes de marchar, porém, exibiram a língua fora da boca e apontaram-na para seu chefe. Este, por sua vez, voltou-lhes as costas e do seu traseiro extraiu sons de trombeta, em postura repelente.

* (2) Nome de um demónio, assim como Calcabrina, Alichino, Cagnazzo e outros. *

Canto XXII

Vi cavaleiros desarmando suas tendas e correndo para a batalha, brilhando em desfiles cheios de garbo; vi-os até mesmo em fuga a fim de salvar a vida. Vi vossos campos devastados, ó aretinos. Assisti a cavalgatas, justas e torneios; contemplei esquadrões manobrando ao som de tubas, címbalos e tambores, ou por sinais hasteados nas praças fortes. Mas jamais vi nada igual ao demoníaco instrumento de sopro!
Seguíamos, pois, os dez diabos; mas, enfim, na igreja com os devotos e na taberna com os glutões. No entanto, eu não cessava de observar o pez fervente, procurando conhecer quais tormentos e quais atormentados a negra vala guardava.
Assim como o golfinho, arqueando o dorso, avisa ao marinheiro que se deve preparar para a tormenta, aqui e ali, na fervura, alguns condenados, mostrando o lombo à superfície, procuravam alívio para seu tormento. Mas logo, velozes qual raio, no fundo se ocultavam. E, à maneira de como, à beira dos brejos, a rã deixa ver a cabeça fora mantendo ocultos corpo e pernas, no pez os pecadores, vislumbrando Barbariccia, recolhiam-se sob as bolhas. Entretanto, vi um condenado demorar-se à superfície, qual rã imóvel, enquanto as companheiras fogem. Tal lembrança sempre haverá de causarme horror! Graffiacane, que lhe estava próximo, célere agarrou-o pela empastada cabeleira e, como quem da água retira a lontra fisgada, assim o suspendeu. Os apelidos de todos os dez demônios eu sabia, desde quando chamados pelo seu chefe. Ouvindo-os então nomear, atentei para o que fariam. "Rubicante, agarra-o pelo costado! Crava-lhe os ferrões! Arranca-lhe a pele!", gritavam os diabos, excitados.
Pedi: "Mestre, se podes, identifica esse infeliz caído nas garras dos malditos". Aproximou-se-lhe o meu guia e perguntou-lhe pelo sítio de nascimento. "Nasci no reino de Navarra" (1) , respondeu. "Depois que meu pai destruiu seus bens e sua vida, minha mãe me pôs a serviço de grande fidalgo. O bom Rei Teobaldo fez-me seu familiar e eu vendi seus favores. Pago agora por isso."
Então Ciriatto - que de cada lado da boca exibia dentes iguais aos do javali - enfiou-lhe as presas, lacerando-lhe a pele. Entre gatos cruéis fora cair o rato, mas eis que, abraçando-o, Barbariccia gritou: "Para trás! A mim cabe despedaçá-lo!" E a meu mestre explicou: "Antes de que o meu bando o dilacere, interroga-o, se algo mais desejas saber".
O meu guia então perguntou: "Diz-me se entre estes pecadores há algum latino". O condenado respondeu: "Deixei, faz pouco, um que da Itália foi vizinho. Se em sua companhia ainda estivesse não haveria de temer agora ferrões e farpas". Libicocco interrompeu-o: "Acabou-se a nossa paciência!" E ao dizêlo, com sua farpa arrancou ao desgraçado parte de um braço. De seu lado, Draghignazzo preparava-se para atingi-lo em uma das pernas, mas o iroso líder do bando demoníaco aos dois encara, moderando-os.
Diminuído o rumor, meu mestre apressou-se em perguntar ao infeliz, que as próprias feridas contemplava: "Quem foi essa alma, condenada como tu, que ao subires à tona embaixo deixaste?"

* (1) Trata-se de Ciampolo de Navarra. Tendo caído nas graças de Teobaldo II, abusou da confiança real trapaceando e prevaricando. *Explicou: "Frei

Explicou: "Frei Gomita de Galura, que todas as fraudes conhece, protetor dos inimigos de seu amo. Por ouro os pôs em segurança e os serviu; amealhar fortuna era seu principal objetivo. Em muitas e várias ocasiões deu prova de que em matéria de falsidade foi soberano. Com ele discorre sobre a Sardenha - pátria comum -, em palestras em que jamais se cansam, Miguel Zanche, o que foi juiz de Logodoro. Mais eu diria se não receasse o avanço desse demônio que se aproxima!" Disse então o chefe a Farfarello, que se aprestava para ferir: "Monstro carniceiro, arreda!".
O condenado então prosseguiu: "Se tendes vontade de ver e de ouvir toscanos e lombardos, posso convocá-los até o número de sete, pois é uso entre nós, malditos, assobiar um som de aviso para os que desejam vir à tona sem perigo. Convém, no entanto, que os demônios estejam a distância, para que deles os meus iguais não se arreceiem". A estas palavras, Cagnazzo alçou o focinho e, sacudindo a cabeça, exclamou: "Ah! essa é então a malícia dos que detestam a fervura?" Ao que o precito respondeu: "E justo que me toque o título de malicioso, quando aos meus companheiros preparo um acréscimo de dores?" A esta observação respondeu Alichino: "Se pensas fugir sem castigo, sabe que ao teu encalço irei, não correndo, mas as asas batendo sobre o pez. Protege-te como puderes junto à margem! Se, sozinho, vales mais do que nós é o que veremos".
Agora, leitor, saberás qual foi o ardil. Cada qual dos demônios voltou o rosto, mais rápido sendo o que maior crueldade demonstrara. O navarrês calculou bem o tempo, sobre a margem firmou-se e, num átimo, mergulhou rumo à liberdade. Grande desgosto sentiram com isto os diabos todos, e em bem maior escala o que fora causa de escapada, o qual urrava: "Já te apanho!" Porém o medo foi mais veloz do que a asa, e enquanto ao fundo chegava o fugitivo, no ar o perseguidor detinha-se. Assim mergulha o pato selvagem ao avistar o falcão e este volta, exausto e vencido. Calcabrina, enfurecido com o logro, voltou contra seu companheiro as garras e a ira. Raivosos se atracaram e o outro, gavião feroz, as unhas lhe cravou. Enlaçados, caíram sobre o pez, cujo calor prontamente os apartou. Mas em vão tentam escapar à fervura, pois suas asas foram endurecidas pelo betume. Barbariccia, que ao fato assistia, condoeu-se deles e enviou quatro dos seus, armados de croques, para ajudá-los. Chegaram velozmente e estenderam os forcados aos companheiros, já quase cozidos pela massa ardente. E a isso dedicavam-se eles quando partimos.

Canto XXIII

Fugindo da presença dos demônios, os dois poetas conseguem chegar à sexta vala do oitavo Círculo, onde se acham os hipócritas. Estes desfilam em prantos, revestidos de grossas capas feitas de chumbo.
Seguimos em silêncio, sozinhos, um atrás do outro, como marcham pelas estradas os frades menores. A rixa entre os diabos fizera com que eu evocasse a fábula de Esopo na qual a rã ilude o rato. Comparando o princípio e o fim de ambos os casos - a rixa e a fábula -, encontrava-os iguais. E visto que um pensamento imprevisto nasce de outro pensamento, logo daquele vieram outros pensares, trazendo-me receio. Pois eu dizia a mim mesmo: "Esses demônios que por nossa causa foram logrados e conheceram vergonha, decerto contra nós alimentam rancor. Virão atrás de nós com a fúria que move o cão de caça quando por fim alcança a lebre".
Já o medo me dominava e, olhando para trás, ao meu guia fui dizendo: "Mestre, se não nos escondermos prontamente, os demônios nos alcançarão. Parece-me ouvi-los". Respondeu: "Se eu fora espelho, não refletiria tão claramente a tua imagem quanto vejo estampado o que tens na alma. De forma tão exata o teu pensamento coincide com o meu que um só se fazem os dois pensares. Ou me iludo ou para a direita se inclina a encosta. Se baixarmos ao vale próximo ao descê-la, estaremos livres da perseguição".
Não terminara o seu parecer quando os demônios surgiram em seu vôo de asas tendidas, e não iam longe. Rapidamente o guia tomou-me nos braços, qual mãe que despertando se vê cercada por violento incêndio e, apertado o filho contra o seio, foge totalmente apressada que nada além da camisa lhe cobre a nudez. O mestre escorregou comigo do cimo da riba fragosa para o fundo da cova. Água não despenca mais veloz pela calha que faz girar roda e moinho do que a rapidez com que Virgílio desceu, levando-me estreitado ao peito qual seu filho, não seu companheiro. E da cova apenas tocara o fundo quando lá em cima os demônios fizeram-se notar, ainda mais irados pelo fracasso do seu intento. Porém, não havia mais o que recear: a Providência, que da cova quinta os tornara guardiões, não permitia que na cova sexta ingressassem.
Naquele fundo vimos, após, gente de cor brilhante revestida, a avançar chorando e com passos tardos, nos semblantes mostrando fadiga extrema. Traziam, os infelizes, capa e capuz que os olhos mantinham ocultos, à moda usada entre os monges de Colônia. Dourados por fora, são por dentro de plúmbeo tom e assim pesados que, a eles comparados, pareceriam de palha as capas de Frederico. (1) E por toda a eternidade tinham de conduzir o fatigante manto.
Com semelhantes almas ao lado, caminhávamos, a ouvir, atentos, o seu doloroso pranto. Exaustas sob o duro peso, tão lentamente se moviam que a cada passo nosso tínhamos aos flancos companhia nova. Disse ao meu guia:

* (1) Referência às capas que o Rei Frederico II mandava vestir em seus inimigos - capas de chumbo muito pesadas, com as quais os réus eram atirados ao fogo. *

"Teus prestativos olhos sem cessar procurem, a fim de que entre tantos eu identifique pecador notável no mundo ou pelo nome ou pelos feitos". E eis que um daqueles atrás de nós, ouvindo os sons da língua toscam, gritou: "Abrandai a pressa com que atravessais este sítio infame e vos direi quanto vos interesse ouvir". O mestre então aconselhoume: "Pára um instante e cadencia teus passos pelos dele". Detive-me e vi dois vultos que aceleravam seu andar no intento de acercarem-se; não conseguiam fazê-lo, porém, por causa do peso do manto e da estrada muito ruim.
Com seus vesgos olhos eles fitaram-me longamente, sem falar. Depois, disseram-me: "Este é vivo, como se pode perceber pelo respirar. E se mortos am bos fossem, qual privilégio os exime desta opressora capa?" Clamaram em minha direção: "Toscano, que ainda em vida vieste conhecer o desfile do triste bando dos hipócritas, não recuses dizer-nos quem és". Respondi: "Nasci e cresci à margem do formoso Arno, na linda Florença. Ainda tenho corpo mortal. Mas vós, cujos olhos vertem incessantemente tão amargo pranto, quem sois? Qual penar é o vosso que, dourado na aparência, tanto vos exaure?"
Disse-me um deles: "Sob o dourado destas capas, tanto peso carregamos que a cada passo oscilamos como para tombar, quais pratos de balança manejada. Estivemos na Terra entre os chamados frades gaudentes (2) e somos, ambos, bolonheses. Eu sou Catalano, e este é Loderigo. Como se pessoa única fôssemos, recebemos o governo de Florença para o cultivo da paz. Em vez disso, as ruínas que ainda se vêem lá em Gardingo foram por nós causadas".

* (2) Eram conhecidos por "Gaadentes"em virtude de sua vida cheia de brilho e fausto. *

Principiei a dizer: "Frades, o vosso mal..." e mais não pude, pois diante de meus olhos mostrou-se um infeliz por três cravos sobre o solo crucificado. Ao me ver, contorceu-se desesperado, suspirou e cuspiu na barba. Frei Catalano, de mim acercado, explicou: "Esse crucificado (3) foi quem sugeriu aos fariseus, invocando o bem do povo, que a um homem dessem morte. Está nu e estendido sobre a passagem, conforme vês, para que de cada passante suporte o peso. Neste mesmo vale, padecem igual suplício o sogro e os demais participantes do Conselho que para os judeus se tornou fonte de desgraça".
Virgílio mostrou-se estupefato ao conhecer a identidade do crucificado. Em seguida a Catalano dirigiu estas palavras: "Dizei, se vos é permitido e de vosso conhecimento, se à direita deste recinto existe trilha que dele nos retire, de modo que tal auxílio não sejamos obrigados a pedir a algum demônio". Respondeu o perguntado: "Mais próximo do que esperais, ergue-se rochedo que se estende para longe, abraçando, sobranceiro, os vales infernais, exceção deste onde não lançou arco. Passareis por brecha que em aclive conduz ao alto". O guia baixou por instantes a fronte, e afinal concluiu: "Bem erradas informações nos deu aquele que os pecadores tiraniza". E o frade: "Já em Bolonha ouvi dizer que entre os muitos vícios do Diabo salta aos olhos o de ser pai da mentira e impostor".
O mestre afastou-se rapidamente, o semblante mudado pela ira. Deixando os que penavam sob os execráveis mantos, fui seguindo meu guia.

* (3) Caifás, o que aconselhou os fariseus a crucificarem Jesus, e seu sogro Anás. *

Canto XXIV

Os dois poetas logram alcançar a sétima vala do oitavo Círculo. Lá deparam os ladrões, que correm em meio a serpentes gigantescas; quando picados por elas, reduzem-se a cinzas, para logo em seguida renascerem.
Na fase do ano novo em que os raios do Sol se fazem ardentes, igualando o dia e a noite sob o signo de Aquário; quando a geada ainda recobre o campo, perfeita imagem de sua irmã, a neve - imagem que logo se desvanece; o pastor, a quem tudo falta, sai a reconhecer o campo e, vendo-o esbranquiçado, volta para sua casa lamentando-se, tendo já perdido as esperanças. Mas recupera o ânimo ao deparar a terra despida do triste manto branco, e com forças renovadas, tomando o cajado, apressa as ovelhas rumo do pasto. Semelhante desânimo senti ao perceber coberto pelo desalento o semblante do meu guia. Mas ele sem demora ao mal deu remédio; tão pronto chegamos à ponte derrocada, voltou-se para mim, exibindo a mesma serenidade doce demonstrada no início da nossa jornada. Depois de refletir por algum tempo, examinando o estado das ruínas, abraçou-me. E qual o homem que de tarefa complicada antecipa no raciocínio vários lances, enquanto me ajudava a escalar uma das rochas, para outra, à frente, olhava e dizia: "Sobre aquela devemos também subir; antes, porém, vejamos se ela pode suportar teu peso".
Apesar de Virgílio ser espírito, e de me amparar na subida, era com grande custo que passávamos de uma saliência à outra. Não sei quanto ao mestre, eu porém teria desfalecido não fosse a rampa que subíamos bem mais curta que a do sítio precedente. Mas porque Malebolge inclina-se em direção ao mais fundo do poço infernal, tivemos ali a prova de que, em cada cova, uma das margens é aclive e declive a outra. Chegamos enfim ao ponto culminante, onde a última pedra se eriçava. Não pude dar, de tão cansado, um só passo mais à frente: assim como cheguei, sentei-me.
"Ânimo!", pediu-me o mestre. "Não é cedendo ao ócio nem refestelando-se sobre plumas que se obtém êxito. Aquele que à inatividade se entregar deixará de si sobre a terra memória igual ao traço que o fumo risca no ar e a espuma traça na onda. Vence a fadiga e o torpor, recobra o ânimo, que das vitórias sobre os perigos, a primeira é a da vontade sobre o corpo. Pensa que devemos subir muito mais alto e que foi pouco o haver saído desse abismo. Se o que disse te aproveita, demonstra-o." Levantei-me, procurando mostrar coragem que não possuía. Disse ao guia: "Sigamos adiante! Sobram-me forças e determinação!"
Em meio a escolhos, tomamos áspero caminho, mais estreito e hostil do que o anterior. Para não dar sinal de fraqueza, eu falava ao caminhar, e eis que ouço, vindas de outra cova, palavras incompreensíveis, só me dando a conhecer estar irado quem falava. Forçando a vista, sondei o fundo do poço, mas aos meus olhos mortais não se fenderam aquelas trevas. Pedi ao mestre: "Desçamos um pouco, pois alguém fala e não o compreendo; olho e não vejo". Tornou: "Outra resposta não te darei senão a favorável, pois um pedido prudente deve ser atendido, não discutido".
Atravessando a ponte, atingimos o extremo onde principia a oitava margem, e logo a cova inteira apareceu. Serpentes incontáveis se embalavam, tão horríveis de ver que só com o recordá-las nas veias se me gela o sangue. Não mais se envaideça a Líbia de suas serpes, pois se produz quersos, jáculos, cêncris, faréias e anfisbenas, jamais tal quantidade foi mostrada; nem pelas praias do Mar Vermelho, nem no sertão da Etiópia se viu número e vulto semelhantes.
Pelo meio do feroz e cruel enxame, corria gente desnuda e descomposta, sem jamais esperar descanso e a quem não valeria o heliotrópio. Algumas das serpes atavam as mãos dos infelizes atrás das costas. Outras, apertando a cauda sobre seus rins, uniam cabeça e cauda no peito do supliciado. E eis que a um dos condenados, próximo de nós, atirou-se uma das feras e cravou os dentes em sua garganta. Não se escreveu nunca um O ou um I mais rapidamente do que o infeliz incendiou-se e virou pó. Estando por terra derrubado, juntou-se por si a sua cinza, e logo da cinza ele se ergueu, e se fez tal qual era antes. É assim, conforme os escritos dos sábios, que, ao se avizinhar dos quinhentos anos, a Fênix morre e logo mais renasce. Nem de erva nem de grão ela se nutre, mas de lágrimas de incenso, e é de nardo e mirra que faz o leito para o momento da despedida.
E como o homem que tomba, sem se dar conta, sob o poder do demônio que o sujeita por terra, ou cai em convulsões por efeito de um mal qualquer, e depois, recuperando os sentidos, ainda atordoado pelo sofrimento, pasmo e estupefato olha ao redor e suspira; assim recuperou-se o condenado havia pouco perdido em chamas. Ó justiça divina, quão dura sois! que tamanhos golpes desferis na punição extrema dos pecados!
Meu guia então indagou ao infeliz quem ele era, e este respondeu: "Faz pouco da Toscana precipiteime neste hórrido abismo. Vivi existência reservada a um mulo (1) , e muito pouco humana. Sou Vanni Fucci, e Pistóia me foi o justo covil". Dirigi-me ao mestre: "Dize-lhe que não se afaste e pergunta-lhe pelo crime que lhe valeu tal condenação. Ladrão e assassino sabia já que fora". O pecador, que bem me entendera, não se esquivou. Voltou para mim o rosto onde a vergonha à tristeza se misturava.
Disse então: "Maior dor me causa o haveres presenciado a minha atual miséria do que a sofrida no dia em que da vida terrena fui tirado. Mas não negarei o que me pedes. Nesta fundura me encontro por haver roubado à sacristia de uma igreja alfaias e ornamentos e desse crime a outrem haver acusado. Mas para que não te seja conforto o meu padecer, ao saíres destas paragens sombrias, ouve bem o que anunciarei: Pistóia expulsará de si a facção dos negros, Florença mudará seus mandantes e sua política. No Val di Magra, o deus Marte prepara um raio (2) que, envolto em torvas nuvens, fará desencadear violenta tempestade. Quando o combate houver findado, cada um dos brancos estará ferido. Digo-te tais coisas para deixá-lo sem ânimo".

* (1) Trata-se do nome dado aos filhos bastardos dos negros.
(2) Os partidos negros e brancos achavam-se em luta permanente pelo domínio da Toscana. Dante pertencia ao dos brancos. O raio é referência ao Marquês Morello Malaspina; as nuvens retratam os combatentes negros vindos de Florença, Pistóia e Lucca para a batalha contra os brancos, travada em Campo Piceno, em 1301. *

Canto XXV

Ainda caminhando pela sétima vala do oitavo Círculo, os poetas encontram peculatários florentinos, e vêem almas transformarem-se em serpentes e serpentes transformarem-se em almas.
Terminando de falar, o ladrão levantou as mãos em figa e gritou: "Bom proveito, Deus, são tuas!". Passei a considerar amigas as serpentes quando uma delas enrolou-se-lhe ao pescoço, como a dizer: "Não blasfemarás!" Outra já o impedia de erguer os braços, por tal modo envolvendo-os que gesto algum podia ele esboçar. Ah! Pistóia, Pistóia, bem devias reduzir-te a cinzas, de vez que teus filhos avançam no mal para além dos teus fundadores. Não vi, em todos os sombrios descaminhos do Inferno, pecador tão orgulhoso!
Agora calado, o ladrão fugia; porém eis vejo avançar centauro, irado, a perguntar aos brados: "Onde está o celerado?" Até o ponto onde o homem começa a ser animal, tantas serpentes trazia o centauro sobre a garupa que não creio em tal número as possuísse Marema inteira. Na espádua lhe pousava dragão de asas distendidas, a cuspir fogo contra quem o fitasse. Explicou-me o guia: "Esse é Caco, ladrão que, nas faldas do Aventino, muito sangue derramou, comprazendo-se com tais lagos. De seus irmãos não pode gozar a companhia por haver, com sutil esperteza, roubado o sacro rebanho que pastava vizinho à sua gruta. Ali cessaram seus crimes, pois, como efeito deles, veio a morrer sob a clava de Hércules, que, dizem, desferiu-lhe uma centena de golpes, dos quais nem dez pôde sentir".
Enquanto o mestre falava, afastou-se o centauro e deparamos três espíritos já próximos, nos quais nem eu nem o guia havíamos posto reparo. Gritaram-nos: "(quem sois?", interrompendo nossa conversa, pois então somente deles nos ocupamos. Não os reconheci, mas eis que, assim acontece amiúde, um deles, interrogando o outro a respeito do terceiro, os denunciou. Perguntara: "E Cianfa, onde está?" A essa voz, volteime para o guia, pondo o dedo sobre os lábios como a pedir-lhe atenção.
Leitor, se não acreditares no que narrarei não me surpreenderás, pois vi então prodígios em que mal ouso acreditar eu próprio. Enquanto aos três observava, serpente com não menos de seis pés contra um atirou-se e nele se enlaçou. Com os pés dianteiros lhe deu nos braços apertado nó; com os do meio corpo cingiu-lhe o ventre; e usando os traseiros imobilizava do condenado as pernas, enquanto lhe mordia a face e com a cauda feria os rins. Jamais houve parasita assim entrelaçado a ramos como a serpente se enroscava àquele corpo. E como se de cera amolecida fossem homem e serpente, misturando formas e cores, nem um nem outro já mostrava o que pouco antes havia sido, tal qual sucede ao papel que sujeito ao fogo escurece e, sem ser de todo negro, branco já não é. Os outros dois espíritos, assistindo a tudo, gritavam ao companheiro: "Como estás mudado, Agnel!"
As duas cabeças haviam se tornado uma só, e confundidos estavam os dois semblantes. Dois braços se agitavam onde antes houvera quatro; as co xas, de mistura com as pernas; o ventre e o peito, de envolta, formaram membros que iguais jamais se viram. Assim perderam-se as feições antigas, enquanto na estranha mistura de dois seres nenhum novo ser resultara.
Então, qual lagarto que em dia caloroso, buscando moita fresca, cruza atalho com fulmínea rapidez, vi cobra, escura qual grão de pimenta, lívida, inflamada, arrojar-se contra o segundo dos outros dois malditos. Picou-lhe o umbigo, que é por onde a criatura recebe o primeiro alimento. E logo aos seus pés tombou estendida. O mordido fitava-a sem dizer palavra, imóvel, em bocejos, como se acossado por sono ou febre. A cobra devolvia o fixo olhar do homem, e este pela ferida e aquela pela boca fumegavam; e as fumaças se misturavam.
Silencie, pois, Lucano, acerca do que ocorreu com Sabélio e com Nassídio. (1) Silencie e ouça o prodígio maior que ora descrevo. Cale Ovídio a história de Cadmo e Aretusa, pois, se, poetando, a esta mudou em fonte e àquele em serpente, não lhe tenho inveja. Nunca transmudou duas naturezas, postas frente a frente, sem estarem dispostas à troca. Aqui se vê prodígio superior! De tal modo acomodaram-se ambas as partes que a cauda da serpente, bifurcando-se, formou pernas de homem e os pés do homem, juntando-se, formaram cauda de serpente. Tudo, com perfeição tamanha que da juntura não restou vestígio ou sinal. A cauda, em duas partida, tomava a forma atrás perdida e sua pele tornou-se branda ao tempo em que a do homem enrijeceu.

* (1) Soldados de Catão, personagens do poema Farsália, de Lucano, Sabélio e Nassídio são picados por serpentes; Sabelo inchou até estourar, e Nassídio a cinzas foi reduzido.

Vi braços penetrarem axilas e tanto estendia a cobra os seus curtos pés quanto o homem encolhia seus longos braços. Retorcendo os pés extremos, o monstro exibiu o membro que o homem traz escondido, ao passo que o condenado teve aquele apêndice transformado em pés.
o fumo que os envolvia roubou os cabelos ao homem e os colocou na cobra. Ergueu-se a serpente, rojou-se ao solo o homem, tendo um no outro o olhar cravado, a conhecer das feições as diferenças. o que se ergueu compôs a fronte com os largos sobejos de matéria e modelou as orelhas, apontou o nariz e formou a boca orlada pelos lábios. Ao que em terra ficou rojado sumiram as orelhas, qual caracol que recolhe as antenas. Em troca, partiu-se-lhe a língua em falar desavisada, na boca que em focinho se mudou. E isto aconteceu no instante em que do outro a língua antes forquilhada num órgão único se tornou. A fumaça dissipou-se. Aquela alma transformada em réptil, sibilando, disparou vale afora. A cobra, feita sombra humana, usando a língua nova, na direção do fugitivo escarrou e, voltando-lhe as costas, disse à terceira sombra: "Que Buoso ande como eu o fazia: rastejando".
Estas as temíveis transformações que vi na sétima vala, cuja estranheza exige estilo sem adornos. Foi ali que, embora com os olhos e o ânimo empanados pela piedade, pude reconhecer Puccio, o Desancado, o único daquelas três sombras que não mudara. O outro era aquele por cuja morte, ó Gaville, pagaste muito caro. (3)

* (3) Cidade próxima de Florença, a qual executou o bandido Francesco Cuercio Cavalcanti. Foi duramente atacada pelos parentes e amigos do morto. *

Canto XXVI

Os poetas, agora na oitava vala, vêem acesas longas chamas, em grande número; dentro delas se encontram as sombras dos falsos conselheiros.
Exulta, Florença! Tão célebre é teu nome que abre asas por terras e mares, e mesmo no Inferno é lembrado! Entre os ladrões, na cova destes, encontrei cinco de teus filhos - coisa que a mim envergonha e a ti nenhuma glória representa. E se é mesmo certo que cedo se sonham aqueles sonhos reflexos da realidade, verás breve o que a gente de Prato deseja a ti, para tua desgraça. Quisera eu que o mal não demorasse a desabar sobre ti, pois quanto mais rápido ele vier, menos sofrerei.
Fomo-nos. O guia refez os degraus por que havíamos descido e após si me conduziu. A trilha erma e rude, desfilando entre fraguras ásperas, exigia que as mãos ajudassem os pés. As dores que então sofri ainda as sinto quando avivo a memória daquele ínvio caminhar. Tal lembrança me anima a perseverar da vida no bom caminho, seguindo as sendas da virtude.
O homem simples, no alto da colina, na estação em que por mais tempo o Sol está de fora, no instante em que o vaga-lume sucede à mosca, não consegue notar no vale onde ara ou vindima pirilampos tão numerosos quanto as luzes que ao nosso olhar brilhavam, pasmado pelo que divisamos ao tocarem nossos pés o fundo do oitavo poço. Qual o personagem vingado pelos ursos (1) que, vendo subir ao céu em sulcos de fogo o carro de Elias, não pôde segui-lo com a vista, mas apenas distinguir a chama sutil, tal nuvem a vagarem céu sereno; assim surgiu diante de mim uma multidão de luzes congregadas. A alma de um pecador jazia presa a cada uma delas.
A fim de vê-los, sobre a ponte eu me inclinava, apoiado em rocha que, vizinha, um socalco me estendia. Sem o que por certo eu despenharia para o fundo da hórrida cava. Dando-se conta o mestre do meu embevecimento, esclareceu: "Envolvido em cada chama arde um espírito condenado". Respondi: "Que assim se passa, eu suspeitava apenas, mas já agora creio. Dize, porém, da razão que separa no vértice aquela chama em duas, lembrando a labareda levantada da pira que de Etéocles e de seu irmão foi ara". (2) Ele tornou: "Ardem no interior dessa dupla chama Ulisses e Diomedes, unidos no castigo assim como unidos foram ao merecê-lo. Purgam a traição do cavalo que de resto foi a porta pela qual entrou na Itália o gentil sêmen romano; pagam o ardil que levou a morta Deidamia a chamar por Aquiles; são castigados pelo roubo do Paládio sagrado".
"Mestre", eu pedi, "se lhes é permitido falar de dentro de suas ígneas vestimentas, suplico e rogo não deixes de satisfazer o meu desejo. Que eu possa ouvir o que tem a dizer a chama bipartida que para nós se dirige". E ele a mim: "Digno de satisfação é o teu desejo. Serás atendido, mas convém que te cales.

* (1) Perturbado por arruaceiros, o Profeta Eliseu fez com que dois ursos saíssem da floresta próxima e atacassem seus oponentes.
(2) Filhos de Édipo, Etéocles e Polinice deram fim um ao outro num duelo. Postos na mesma pira, a chama desta partiu-se em duas, como se as duas almas ainda lutassem. *

Deixa que eu fale; sei bem o que deseja ouvir, e pode suceder que teu pedido não faça eco na vaidosa alma desses gregos".
Tendo aquela chama se aproximado e considerando o guia azados a situação e o momento, por este modo lhes falou: "Ó vós que sois dois em um único facho; se ao cantar também os vossos feitos, nos versos que em vida escrevi, algum mérito ganhei, detende-vos, e que um dos dois reconte onde e como morreu".
A parte mais alta da antiga chama, agitando-se com murmúrio igual ao da lâmpada que oscila ao vento, inclinando-se em vários rumos conforme é próprio da língua eloqüente, disse: "Quando fugi dos feiticeiros encantos de Circe, os quais por todo um ano me retiveram junto de Gaeta, antes que Gaeta por Enéias viesse a ser assim chamada, nem a forte saudade do Filho, nem a lembrança da provecta idade do pai, nem o puro amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em mim o desejo de conhecer o vasto mundo, o aspecto dos demais mortais e a sua valia respectiva. Fiz-me de velas sobre o amplo mar aberto, na só companhia de um barco e de um punhado de bravos que jamais me desertou. Em ambas as costas do mar cursei as praias da Espanha, do Marrocos, da Sardenha e de países outros que as águas do mesmo mar cercam e banham. Já éramos velhos alquebrados, eu e meus seguidores, quando chegamos enfim ao estreito que Hércules deu por limites ao mundo. (3) À esquerda havia já ultrapassado Ceuta, e à direita deixara Sevilha.

* (3) Referência ao Estreito de Gibraltar. *

Eu disse: ó irmãos, que superando cem mil perigos chegastes ao extremo do Ocidente, não seja pelo pouco de vida restante que vos negueis a investir a terra estendida para além do Sol, vazia de gente. Considerai a raça de que sois! Fostes feitos para perseguir a aventura e a glória, não para dar margem a temores injustificados'.
"Tais palavras ergueram tanto o ânimo deles que logo se dispuseram a seguir em frente. E voltando a popa no rumo da aurora, dos remos fizemos asas, vogando firme, à direita deixando o ocaso. À noite vi no céu as estrelas que adornam o outro pólo, enquanto o nosso mergulhava na planície marítima. Cinco vezes o Sol que ilumina deixou acender a Lua e outras tantas a extinguiu depois que nos déramos ao árduo intento, quando, para nosso espanto, se mostrou, envolta em brumas, uma montanha alta como eu nunca vira antes. Depressa nossa alegria se desfez em pranto: dessa terra nova contra nós investia um furacão. Três vezes a proa da nave sobre si mesma foi torcida e, na quarta, a popa erguendo muito alto, voltou a proa para o fundo e, como se obedecesse ordens de alguém, foi descendo. E o mar terminou por nos sepultar."
Canto XXVII
Ainda na oitava vala, os poetas tomam conhecimento de que Guido de Montefeltro ocupa o interior de uma das chamas; vão então falar-lhe.
A labareda aquietou-se, e, obtida a permissão do poeta, afastava-se em silêncio; então outra chama, vindo atrás da turba, atraiu nosso olhar à sua cima; confundia-nos o som que ela emitia.
Tal como o boi siciliano que fez seu primeiro mugido do pranto de quem o construíra-bramia pela voz do torturado (1), de modo que, sendo de cobre, parecia ter por recheio o medo e a dor; assim as palavras daquele espírito desgraçado confundiam-se com o estalejar do fogo, não havendo conduto que as trouxesse até nós. Mas quando, afinal, pôde articulá-las com a perfeição desejada pela língua ao lhes dar passagem, pudemos ouvir e entender que exclamava: "Ó tu, a quem me dirijo e que momentos atrás disseste no idioma lombardo podes ir, já não te exorto a responder', ainda que eu signifique atraso em tua viagem, não te enfade a conversares comigo, como eu não me aborreço; antes podes ver que me alegro com o desceres a este mundo escuro.

* (1) Perilo construiu para Falaride, tirano de Agrigento (Sicília), uma nova máquina de tortura: um touro fundido em cobre, o qual, recebendo em seu interior os inimigos do governante, seria aquecido ao rubro, por baixo. Os gritos de dor da vítima resultariam em sons iguais ao bramir do animal. Falaride mandou que testassem a eficiência do invento encerrando nele o próprio inventor, Perilo. *

Se é certo que vieste daquela doce terra latina onde em tempos passados pequei o meu pecado, dize-me se na Romanha há paz ou guerra, pois nasci entre Urbino e os montes que originam o Tibre".
Eu o ouvia, quando o guia, tocando-me, sugeriu: "Fala com ele, é italiano". E eu, que já tinha pronta a palavra, sem demora disse: "Ó alma que sob chama tão forte estás reclusa, fica sabendo que a tua Romanha jamais uma hora sequer gozou de paz no coração dos tiranos que a oprimem. Mas não está, agora, em guerra declarada. Ravena continua, como há muito, sob as garras da águia de Polenta, a qual também sobre Cervia estendeu as asas. Forli, terra outrora mártir e gloriosa, que aos franceses causou enormes danos, definha sob as garras do leão verde. (2) E tanto o velho quanto o novo mastim de Verruchio, que liquidaram Montagna, conservam igual sanha no morder. As cidades banhadas pelo Lamone e pelo Santerno são governadas pelo Leão do Ninho Branco', que muda de partido a cada inverno; e aquela outra cidade de que o Savio banha o flanco (Cesena), assim como se ergue entre montes e planura, também ora é oprimida, ora está em liberdade. Mas rogo-te nos reveles quem és; menos cortês não sejas conosco do que fomos para contigo, para que tua história possa ser lembrada".
Então aquele fogo rumorejou e, como se comovido estivesse, a ponta agitou de um lado para outro, dando-nos a ouvir estas palavras: "Se acreditasse responder a quem de volta estivesse à luz do mundo, permaneceria calado.
* (2) Alusão a Sinibaldo Ordelaffi, tirano de Forli. *

Mas porque sei ao certo que jamais se libertou quem ao Inferno veio ter, falarei sem receio de infâmia. Primeiro fui homem de armas, e depois, franciscano, supondo que o santo cordão pudesse salvar-me. Nisso estava eu certo, não sucedesse que o papa - a quem mal haja! - me induzisse a retornar ao caminho do pecado. O como e o porquê, eis te vou narrando. Enquanto mantive a forma de carne e ossos que me deu minha mãe, os meus feitos imitaram mais os da raposa que os do leão. Nas astúcias e nos ardis fui mestre e tanto essa arte pratiquei para meu proveito que os confins da Terra alcançou a fama de meu engenho. Quando me vi chegado àquela parte da vida na qual todos deveriam amainar as velas e colher os cabos, aborreci-me das coisas que antes havia cobiçado e, arrependido, fiz-me penitente, na esperança de que minha alma se salvasse.
"Pobre de mim! o perdão teria alcançado, por certo. Mas o príncipe dos novos fariseus lá de Latrão declarou guerra, não contra judeus ou sarracenos, mas contra cristãos que jamais haviam cometido crimes iguais ao de sitiar o Acre ou de traficar com o sultão. Nessa hora, nem cuidou ele do seu santo ofício, nem reparou no cordão que eu cingia e cujo destino foi macerar quem o instituíra outrora. Ao contrário, tal como no passado Constantino foi à solidão de Soracte pedir a Silvestre que da lepra o curasse, assim este me tomou por conselheiro a fim de livrá-lo de suas vaidades. Prudente, calei-me, pois em suas palavras percebi a insensatez. Insistiu: Não haja receio; desde já a absolvição te concedo se me ensinas o ardil com que haja de tomar Palestina. Abro e fecho o Céu, como bem sabes, pois manejo as chaves desprezadas por meu antecessor'. Abalado por tão graves ponderações, entendi que partido ruim seria o meu silêncio, e disse: Padre, se desde já me absolves do pecado que cometerei, triunfarás sobre o teu objetivo, prometendo muito e cumprindo pouco'.
"Depois que morri, veio São Francisco buscar minha alma; foi interrompido no feito por negro demônio, que lhe gritou: Não o leves, não me faças in justiça! O lugar desse entre os meus foi apontado. Desde quando deu conselho fraudulento, tenho-o sob meus cuidados. Não basta, para salvar, a contrição de um momento, pois é pecaminosa a contradição entre arrepender-se e simultaneamente planejar o mal'. Ah! que mágoa e dor senti ao ouvi-lo assim falar, de mim se apoderando: Pensavas que eu não possuía lógica bastante e astúcia suficiente?' A Minos me levou e este ao redor do corpo oito vezes a cauda enrolou, e mordendo-a, raivoso, sentenciou: É culpado dos crimes que se pagam no interior das chamas'. Por isso aqui me vês, nestas vestes chamejantes, lamentando ter me perdido."
Isso dito, partiu a chama lamuriosa, vibrando a sua ponta de um lado para o outro.
Quanto a mim e a meu guia, seguimos viagem. Pelo rochedo em ruínas subimos ao arco sucessivo, do qual se via o fosso onde cumprem pena os que promoveram a discórdia.

Canto XXVIII

Os poetas chegam à nona vala - a penúltima do oitavo Círculo. Neste recinto estão os que desencadearam cismas religiosos, e os que semearam o ódio e a discórdia.
Quem, em verso ou em prosa, lograria descrever o sangue e as espantosas chagas que vi por ali? Nenhuma língua poderia tanto, nem nenhum talento.
Ainda quando o que buscasse tal feito pudesse reunir todos os que, na infeliz terra apuliana, derramaram sangue na luta ingente às mãos dos romanos, e depois, em favor destes, na guerra em que tantos anéis se perderam (1), conforme narrou Lívio, que não exagera; e mais a gente que foi por golpes abatida quando se opunha a Roberto Guiscardo (2); e aquela cujos ossos ainda se podem ver em Ceperano, campo de batalha onde cada apuliês falseou seu partido, e que também se vêem em Tagliacozzo, onde o velho Alardo venceu sem combater; e se todos esses mortos reunidos exibissem ferimentos e mutilações - ainda assim, tudo isso seria nada comparado ao que deparei no fosso de número nove.
Qual um barril desfeito em arcos, assim se achava um pecador, bem no fundo. O corpo todo aberto se lhe via, do queixo ao reto. Entre as pernas, as entranhas; exibidos os pulmões e o feio saco onde o alimento se torna excremento.

* (1) Alusão à batalha na qual Aníbal aniquilou um exército romano. Das últimas foram retirados muitos anéis.
(2) Roberto Guiscardo, famoso mercenário, passou a vida em batalhas. Responsável pela morte de milhares de homens, é o que afirma o poeta. *

Contemplava-o, tomado de horror, quando ele gritou, abrindo mais o esfacelado seio: "Repara como tenho lacerado o peito! Vê quão estropiado ficou Maomé. Precede-me na marcha e nos lamentos Ali, que traz desfeito o rosto, do mento à testa. E todos os mais que por aqui percebes foram em vida semeadores de cismas e de escândalos. Somos perseguidos por um demônio cruel, que nos mutila sem descanso. Ao fim de giro completo desta dolorosa estrada, as feridas se fecham antes que se volte a defrontá-lo. Mas tu, quem és? Ficando aí na ponte estás, quem sabe, aumentando a pena a que foste condenado!"
O mestre por mim respondeu: "Ainda não é morto, nem sentença há que o condene. Vem para conhecer como aqui se padece. E eu, já morto, devo conduzi-lo através do Inferno, de fosso em fosso. E tal como refiro, é tudo verdadeiro". Tendo-o ouvido, mais de cem condenados pararam para me encarar, esquecendo suas dores .
A alma prosseguiu: "Tu que talvez em breve voltes a ver o Sol, diz a Frei Dolcino (3) que, se não deseja em breve seguir meus passos, fartamente se abasteça de comestíveis, antes que o bloqueio de neve dê triunfo à gente de Novara, a quem vencê-lo será então empresa fácil". Antes de dizer tais palavras, já havia Maomé um pé alçado, e tão logo as pronunciou, pousou o pé e foi-se embora.

* (3) Fundador de uma seita que exigia o uso comum dos bens e das mulheres. Perseguido, foi se esconder no Monte Zebelo; mas não suportou a fome, e rendeu-se. Foi preso e publicamente queimado em Nouara. *

E outro ainda, com o pescoço perfurado, o nariz quebrado e uma só orelha, que entre outros contemplava-me pasmado, adiantou-se aos demais e, escancarando a boca, de onde irrompia sangue, falou: "Tu, que entre sofredores não sofres e a quem já vi, quando vivo, na pátria latina, isso se não me engana uma grande parecença, recorda-te de Pier de Medicina quando voltares a ver a doce planura estendida entre Vercelli e Marcabó. E adverte aos probos cidadãos de Fano, o nobre Angiolello e o honrado Guido, que, se não erro no antever o futuro, morrerão, por traição de cruel tirano, junto à Católica, atirados fora de seu navio. (4) Nem por piratas ou por gente argólica perpetrado, entre Chipre e Maiorca, jamais viu Netuno crime igual. O traidor, que de um olho é privado e tiraniza a terra onde um dos que estão comigo preferiria jamais haver entrado, há de chamar àqueles dois para acordo amigável, mas fará que contra o vento de Focara não precisem nem de preces nem de abrigo".
Respondi: "Se queres que lá acima de ti eu dê notícias, indica-me e identifica quem é esse que em certa cidade preferiria não haver entrado". Ele, tocando com a mão a face de um seu igual, escancarou-lhe a boca enquanto gritava: "É este, mas não tem língua. A dúvida de César dissipou outrora, afirmando que ao homem preparado é prejudicial toda demora". Cúrio, infeliz! Triste vê-lo, assim cortada na garganta a língua que sobre a Terra tamanha audácia aconselhara! (5)
Um condenado a quem amputaram as mãos ergueu seus cotos no ar, a banharem-lhe com sangue o triste rosto, e gritou: "Lembra-te também de Mosca". (6)

* (4) Malatestino mandou atirar ao mar dois nobres adversários, os quais atraíra ao seu campo prometendo a paz.
(5) Caio Ctírio aconselhou César a cruzar o Rubicão, precipitando a guerra civil, que condenou milhares de homens à morte.
(6) Mosca dei Lamberti, que suscitou ódio entre guelfos e gibelinos, levando-os à guerra. *

"Tu, Exclamei: "O que se diz, faça!", frase que origem de tantos males foi para a gente toscana. "E morte aos teus", acrescentei. A isto, ele fugiu, desesperado.
Depois, coisa tão assombrosa me foi dado ver que hesito em narrá-la, provas não havendo comigo senão a assistência da minha consciência, fiel companheira que ao homem dá coragem, quando é pura. Certamente vi, e inda cuido ver, avançar em meio ao infeliz cortejo um corpo sem cabeça. Caminhava, segurando pelos cabelos a própria testa, tendo-a suspensa à guisa de lanterna. Os olhos dessa cabeça fitavam-nos, e repetidamente ouvi dizer: "Oh! eu!"
Usava a própria cabeça como lanterna, um feito em dois, e dois reduzido a um. Como isto é possível, sabe-o apenas Aquele que lá de cima a tudo discipli na. Quando, enfim, o desgraçado chegou ao pé da ponte, vi que erguia a cabeça nas mãos, para melhor ouvirmos o que nos diria: "Tu que vivo visitas os mortos, dize-me se viste jamais castigo que se compare ao meu. Regressando ao mundo lá de fora, dê-lhe notícias minhas. Sou Bertram de Born, o que deu ruins conselhos ao Príncipe João. (7) Tornei inimigos pai e filho, como Aquitofel fizera entre Absalão e Davi. Trago minha cabeça do tronco separada, tal como separei pai e filho".
* (7) Bertram de Born instigou o jovem Henrique a se rebelar contra o rei inglês Henrique II, seu pai. *

Canto XXIX

A décima e última vala do oitavo Círculo - onde se acham os falsários - é alcançada pelos poetas. Os pecadores, estendidos no chão, estão recobertos de lepra.
Chorei copiosamente ao ver tamanha multidão, e as feridas que a corroíam. Virgílio perguntou: "Por que fixas a vista nos tristes mutilados e em seus cruéis tormentos? Não foi assim que procedeste nos fossos antes percorridos. Se queres contar quantos são, lembra-te de que este fosso tem circunferência de vinte e duas milhas e que a Lua já está sob nossos pés. É escasso nosso tempo, e sabes quão longo é ainda o caminho". Respondi: "Se soubesses por que me detive com certeza ter-me-ias concedido mais tempo".
Contudo, o mestre partiu, e eu, acompanhando-o, completei a fala: "Naquele fosso, onde o lacrimoso olhar mais demorei, creio que alguém de minha família paga os pecados cometidos no mundo". Retorquiu: "Não o lamentes mais, pensa que neste antro padece culpa merecida. Atrás, ao pé da ponte, eu o vi quando a ti indicava, com o dedo erguido, em gesto enfurecido. Geri del Bello - assim o chamavam. Não o notaste então, entretido que estavas com aquele que foi o Senhor de Hautefort. Somente quando já havia passado o percebeste".
"Ó mestre, a morte violenta por ele padecida, e não vingada por alguém da nossa estirpe, foi o que o levou a apontar-me com reprovação e a afastar-se de mim. Tal desdém causou-me maior piedade".
Assim argumentando chegamos ao ponto do rochedo de onde outro fosso se descortinaria, do alto ao fundo, se lá embaixo não faltasse luz. Estávamos, pois, na última clausura de Malebolge, sobre o arco a que chegavam os ais e os lamentos dos danados reclusos em recinto imundo. Tapei os ouvidos, terrivelmente comovido com os sons cruentos.
Tão acerba era a dor nos ais descrita, qual se no calor de entre julho e setembro fosse possível reunir todos os enfermos das pantanosas regiões da Maremma, da Sardenha e das chusmas que vão buscar remédio nos hospitais da Valdichiana. De poço mais profundo subia o fedor que costuma fugir dos corpos em decomposição.
Volvendo à esquerda, descemos até o extremo, claramente discernindo então a soleira infeliz da cova escura. É aquele o sítio mais baixo do Inferno onde a justiça infalível do Senhor pune de modo inflexível os falsários cujos feitos ali de volta em volta são rememorados.
Não acredito ter conhecido maior tristeza o povo de Egina ao ver os seus adoecendo e o ar pestífero aos animais trazer a morte, tanta impureza havendo em tudo que até os vermes morreram. Segundo narram os poetas, para repovoar a ilha foi preciso que a nova população fosse feita com o sêmen das formigas. Ao presenciar os males que a fúnebre turba afligiam, não foi menor a minha mágoa. Um espírito vi que pousava sobre o ventre; outro que sobre um terceiro se estendia, cada qual se arrastando e se estorcendo no lajedo torpe. Passo a passo avançamos e, sem falar, vimos e ouvimos os míseros em vão esforço pretenderem pôr-se em pé. Notei dois, sentados, um no outro a se apoiar, quais torteiras uma a outra se aquecendo; estavam da cabeça aos pés cobertos de crostas apodrecidas. Nunca vi criado posto em pressa pelo patrão ou guarda que vigiando de má vontade percebe chegar o superior. Manejar com tamanha fúria a forte escova quanto veloz e fortemente aqueles dois sobre si raspavam as unhas, buscando aliviar o ardume que os afligia continuamente. Com as unhas retiravam da pele crostas horrendas, e grandes como nem mesmo as têm os peixes.
Virgílio falou a um dos dois: "ó tu, que os dedos transformas em tenazes para com extrema fúria raspares o próprio corpo, dize-me se, entre estas almas castigadas, alguma é de italiano. E por nisso me atenderes, desejo que tuas unhas, pela eternidade, sejam suficientes ao teu serviço". Chorando, o interpelado respondeu: "Ambos o somos. Mas tu quem és, que assim nos interrogas?" Explicou meu guia: "Devo conduzir a este, ainda vivo, de círculo em círculo, mostrando-lhe o Inferno inteiro". A isto, os dois deixaram o comum apoio, para mim se voltando; e a turba que passava prestamente os imitou. O meu bom guia, acercando-se, aconselhou-me: "Fala-lhes segundo teu desejo". Comecei: "Que nunca a tua memória desapareça do mundo dos homens, mas com eles permaneça por muito tempo! Dize-me quem és e de onde vieste. Não te cause vergonha narrar-me a pena e por que ela te foi aplicada".
"Fui de Arezzo", começou o primeiro, "e Alberto de Siena queimou-me vivo. (1)

* (1) Griffolino d Arezzo, alquimista conhecido, foi condenado à fogueira por haver apregoado ser capaz de voar e não ter capacidade de realizar a proeza. *

Mas é outra a razão queme condenou. Dissera-lhe, gracejando: Posso, querendo, voar pelos ares!' e ele, possuindo grande ambição e pequeno entendimento, desejou ardentemente lhe ensinasse tal arte. Como não pude torná-lo um novo Dédalo, fez que me mandasse à fogueira aquele que o tinha por filho. No último dos fossos vim cair por sentença rigorosa de Minos, que na alquimia enxergou meu crime.
Falei ao meu mestre: "Existiu jamais gente tão vaidosa quanto os sieneses? Decerto nem a francesa é tão cheia de si!"
O segundo dos leprosos, ouvindo-me, respondeu: "Abra exceção para Stricca, sempre amigo da poupança, e para Nicolau, que criou o costume requintado de com o cravo indiano temperar a boa comida; e ainda para Caccia d'Asciano e os companheiros seus, com os quais esbanjou o valor de bosques e vinhedos; e também para Abbagliato, o galante. (2) Mas se queres saber quem te informa destas coisas, deste modo aos sieneses censurando, repara no meu triste rosto e recordarás que já o viste um dia. Sou a sombra de Capocchio, o que falsificava metais com os recursos da alquimia".

* (2) Trata-se de ironia. Stricca, seu irmão Nicolau, Caccia d Asciano, Abbagliato - todos conhecidíssimos perdulários e inconseqüentes. *

Canto XXX

Ainda na décima vala, os poetas encontram outra espécie de falsários.
No tempo em que Juno, com ciúme de Sêmele, jurou vingança contra o sangue tebano - disposição de que por muitas vezes deu provas -, com tamanha loucura perturbou o cérebro de Atamante que este, encontrando a esposa a lhe exibir no colo os dois filhinhos, pôs-se a gritar: "Estendam a rede! Eia, vamos apanhar a leoa e os leõezinhos!" E isso dizendo, tresloucado, estendeu os braços, apanhou um dos meninos, Learco, e girando-o no ar destroçou-lhe a cabeça num rochedo. A mãe, abraçada ao outro filho, atirou-se ao mar.
E quando a fortuna da guerra reduziu a cinzas a pujança de Tróia, pouco antes tão altiva, e morrendo, o rei morria com o seu reino; a triste Hécuba, mísera, prisioneira, depois de ver morta a filha Políxena, encontrou o filho Polidoro morto em praia esquiva, e ali, por grande angústia possuída, uivou como se fosse cadela, tanto lhe pungira a alma ferida. Mas nem em Tebas nem na Tróia destruída, homens e feras jamais revelaram raiva em proporções tão desmedidas como testemunhei existir em duas lívidas almas que passaram a correr, nuas, os dentes nos mostrando, quais porcos fugidos à pocilga. Uma delas atingiu Capocchio e, aferrando-o pela nuca, pôs-se a arrastá-lo, o ventre raspando a rocha dura. O espírito do homem de Arezzo, tremente, disse-me: "É Gianni Schicchi esse raivoso que de outros condenados usa agravar o sofrimento". Pedi-lhe então: "Se do outro furioso conseguires fugir, não deixes que ele se vá sem que eu saiba de quem se trata". Respondeu: "É a alma antiga de Mirra, a infame que, movida por paixão ímpia, induziu o pai a fazer-se seu amante. Para torná-lo conivente, falsificava em seu corpo as formas de outra mulher. Esse que me agarrou, ardil empregou um dia para ganhar a égua mais valiosa da manada. Apresentou-se como sendo Buoso Donati e a um falso testamento deu forma legal".
Observei atentamente os dois furiosos até que passaram. Volvi-os então para os outros desgraçados. Vi um com o tronco talhado na parte onde se bifurca em pernas. Castigava-o grave hidropisia, cujo humor, formado pelo sangue mau, deforma o corpo, desproporcionando ventre e cabeça. Mantinha a boca escancarada como faz o ético, pungido pela sede, que retorce um dos lábios para a testa e o outro para o peito.
Bradou-nos: "Ó vós, que a este negro abismo descestes, ignoro por quais mercês isentos de pagar as duras penas, ponde reparo em minha miséria e conhecereis toda a história de Mestre Adão. (1) Outrora, na Terra, conheci o gozo do mando e dos prazeres. Hoje, por gota de água suspiro em vão. Dos riachos que murmurando procuram o rio Àrno, na verde encosta de Cosentino, ao longo de frescas e doces canaletas; sem cessar a saudade reavivo. Esse grato memorar meus sofrimentos e mágoa aumenta, aumentando o mal que me desfigura.

* (1) Falsário queimado em Florença por haver falsificado a moeda florentina que tinha por efígie São João Batista. *

Impõe a justiça, que me castiga implacavelmente, que - para aumento e continuidade dos tormentos - seja recordado o sítio ameno onde pequei. Foi em Romena que com falsos cunhos em dinheiro gravei a imagem do Batista e por isso meu corpo foi queimado. E mais me contrista o não ver aqui as almas de Guido, de Alessandro e de seu irmão. Por vê-las, a visão da própria Fonte-Branda esqueceria. Se é que os raivosos que sem cessar vão por aqui girando não pretendem enganar-me, uma daquelas três almas já para aqui baixou. Mas isso, que valia me traz? Em vão tento caminhar! Se em um século inteiro eu fosse bastante rápido para avançar uma polegada, pôr-me-ia sem demora a procurar por aquele espírito detestado, embora tenha este vale infernal onze milhas de comprido e quase uma de largura. Seus conselhos me arruinaram; levaram-me a falsificar florins".
Tornei a perguntar: "Quem são aquelas duas sombras que ora vejo à tua direita, a deitar fumaça como no inverno sucede às mãos umedecidas?" Explicou-me: "Assim estavam quando desci e creio ali os verei em tal postura pelo tempo sempiterno. Uma é a falsa mulher que acusou José; o outro é Sínon, o Grego, traidor de Tróia. Por força de uma febre abjeta, uma fumaça fedorenta se desprende deles".
Uma das sombras mencionadas, certamente melindrada ao ouvir lembrada a sua traição, esmurrou de tal modo o ventre de Adão que a barriga soou qual tambor percutido. Mestre Adão, em troca, lhe bateu no rosto e, ainda brandindo o punho igualmente duro, gritou: "Mesmo não podendo mover agilmente o corpo, tenho o braço veloz o bastante para rechaçar a tua ofensa". O outro, por sua vez, o exprobrava: "Foste mais do que lento e sem vontade quando ao cadafalso te conduziram por causa do dinheiro falsificado". A isto, o hidrópico repôs: "É verdade, mas verdade não disseste quando de ti, em Tróia, exigiram juramento". "Se falseei a verdade", insistiu o grego, "falsificaste o cunho; estou aqui por crime único; tu, por mais crimes do que os de qualquer demônio." Retorquiu o da barriga inchada: "Lembra-te do cavalo, façanha que ainda agora a toda gente causa asco!" Devolveu Sinon: "Bem haja a sede que te consome e que o teu ventre faz inchar a ponto de ocultar a vista!" Treplicou o moedeiro falso: "Só veneno, sempre, sabe lançar a tua boca. Se o humor malsão me toma o corpo, o teu corpo arde em febre, e não seria preciso mais do que uma palavra para que te debruçasses à fonte de Narciso".
Eu ouvia os dois atentamente, quando Virgílio advertiu: "Irei zangar-me contigo se continuares a lhes dar atenção!" Ao ouvi-lo assim falar, fixei-o com tal vergonha que ainda hoje, ao relembrá-lo, me ruborizo. E como quem, sonhando com maus sucessos, mesmo no sonho deseja que tudo não passe de pesadelo, queria desculpar-me e não o conseguia nem dava tento a que o meu silêncio era já um pedido de desculpas. o mestre assossegou-me: "Mesmo vergonha menor do que a tua escusaria culpa bem maior. Liberta-te de todo pejo. E lembra-te, se presenciares outra vez esse tipo de discussão, faze de conta que ao teu lado eu digo: comprazer-se em ouvi-la é torpeza.
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Canto XXXI

Deixando o oitavo Círculo, Dante e Virgílio chegam ao Poço dos Gigantes. O gigante Anteu acomoda os poetas em sua imensa mão e os coloca com suavidade no nono e derradeiro Círculo.
A mesma língua que me causara vergonha logo mais foi meu remédio. Assim ouvi dizer da prodigiosa lança de Aquiles e de seu pai, a qual curava feridas que ela mesma abria.
Deixamos o triste valo, atravessando a borda do muro ao seu redor distendido. Não sendo noite e não sendo dia, pouco à frente eu enxergava, mas eis um estrugir de trompa retumbando tão alto que nenhum trovão poderia soar mais alto. Para o lado de que viera, voltei o rosto, ali concentrando a atenção. Tão potente não soara a trompa de Orlando quando Carlos Magno perdeu a santa batalha.
Olhando com atenção, julguei perceber várias e elevadas torres. Indaguei: "Mestre, que estranha cidade é aquela?" Respondeu: "A distância e a luz crepuscular induzem à ilusão. Aprenderás, ao chegar lá, como a distância os sentidos iludem o bom juízo. Por ora, apressa o passo". Tomou-me a mão e com voz amiga prosseguiu: "Antes que nos adiantemos, quero dissipar teu engano. O que vês não são torres, são gigantes. Embora isso pareça confuso e raro, hás de vêlos mergulhados no poço até o umbigo".
Tal como ao dissipar da névoa mais e melhor a visão discerne aquilo que o vapor mantinha fosco; assim, à proporção que penetrava com o olhar a sombria atmosfera, achegando-nos à borda, apagava-seme o engano e crescia o medo; pois ao modo pelo qual os muros do castelo de Montereggione coroam-se com torres, ali a margem ao redor do fosso aparecia torreada por meias figuras de formidáveis gigantes. Júpiter do céu ainda ameaça com trovões.
Já podia divisar um deles; seu rosto, suas espáduas, o peito, boa parte do bojudo ventre e, além das costas, os dois braços. Bem fez a natureza quando se esqueceu de como gerar tais monstros, privando desses instrumentos ao guerreiro deus Marte. Se a selva e o mar ainda são povoados pelo elefante e a baleia, quem cogita desse detalhe com retidão de pensamento entende por que a natureza, agora como dantes, cria tais bichos. Pois somente quando a força e a inteligência se unem a um gênio perverso, como sucede em relação àqueles gigantes, não é possível ao homem resistir-lhes. A face daquele que eu mirava pareceume tão larga e comprida quanto a pinha de São Pedro, em Roma. (1) Os demais membros eram proporcionais. Acima da borda do poço, apenas se via metade do seu corpo. No entanto, calcula-se bem que, se o medíssemos da cabeça à cintura, três frisões hercúleos não somariam igual altura, pois estimo que trinta largos palmos lhe corressem dos flancos até o pescoço.
"Rafel maí amech zábi almos" gritou de súbito a assustadora boca, que não sabia entoar mais doces salmos.

* (1) Havia, no tempo de Dante, na praça da Basílica de São Pedro, em Roma, uma pinha de bronze com quatro metros de altura *.

Contra ela gritou o meu guia: "Ó alma rude e bravia! Faz soar a trompa se com ela podes aliviar a ira ou outra paixão que em ti, ardente, lavra. Busca ao redor do pescoço, ó alma sem oriente, e vê que teu largo peito imobiliza a correia". Depois, a mim anunciou: "Ele mesmo, do que eu disse se acusa. É Nemrod, e por haver persistido em doida empresa é que o mundo uma só linguagem não usa. É inútil que lhe falemos; não entende nenhum idioma, e o que usa ninguém consegue compreender".
Seguimos rumo à esquerda. Outro gigante se nos depara a tiro de besta, superior ao primeiro em corpulência. Não sei quem tivera forças para tal fazer, mas é fato que seu braço direito estava ligado ao dorso e o outro braço ao peito preso por cadeia de rijo laço que, com cinco voltas, lhe cingia do enorme corpo a parte descoberta. Disse o meu guia: "Este soberbo pretendeu provar a sua força contra o sumo Júpiter e eis o fruto do orgulho que o perdeu. É Efialtes, e mesmo que se diga que com seus irmãos aos céus causou receio, os braços que então movia já não move". E eu a ele: "Gostaria de ver o gigantesco corpanzil do desmesurado Briareu". Ao que me respondeu: "Verás Anteu (2) que anda livre e é o que nos deporá no fundo deste fosso, centro infernal. O que mencionaste encontra-se longe, e este que está vizinho lhe é semelhante em tudo, tendo a mais, horror maior na face".
Jamais houve terremoto tão violento, que abalasse com tal presteza torres e muralhas, qual a agitação de Efialtes, que nisto se movia. Eu nunca como então receei a morte; e decerto só com o medo morreria, se não o soubesse muito bem algemado.

* (2) Trata-se de um gigante mitológico conhecidíssimo. Era prodigioso caçador de leões. Foi morto por Hércules. *

Seguimos viagem; mais à frente avistei Anteu, cuja cabeça em cinco braças sobrepujava a borda do penedo. Assim lhe falou meu mestre: "Ó tu, que no vale afortunado, que ainda hoje marca a glória alcançada por Cipião no dia em que Aníbal, com os seus, voltou-lhe as costas, atrevidamente caçaste mil leões por vanglória, e que, se aos teus irmãos houvesses ajudado na ousada guerra, talvez a história registrasse a vitória dos fortes filhos da fecunda Terra: não te enfades conosco e suavemente leva-nos abaixo, ali onde o Cocito faz rolar suas frias águas. Não nos induzas a fazer este pedido aos titãs Tifeu e Tício. Este, ao meu lado, te pode dar o que mais deseja: bom nome lá no mundo, pois ele ainda vive e espera viver muito, se antes do tempo a morte não o convocar".
Sem demora Anteu empolgou o mestre com aquela mão que já fizera o próprio Hércules sofrer. Virgílio, ao sentir-se empalmado, disse-me: "Aproxima-te para que te abrace". E logo eu e ele formávamos um só feixe, bem unidos. Como aquele que olhando a Carisenda(3), do lado em que ela pende, ao passar no céu nuvem apressada crê que para o outro lado a torre caia, assim vi curvar-se para nós o altíssimo Anteu. Naquele instante, bem quisera encontrar-me em estrada muito distante. Mas foi suavemente lá, naquele fundo onde Lúcifer e Judas em estreiteza se comprimem, que ele nos deu assento. Então, aquele gigante curvado empertigou-se novamente.

* (3) Torre inclinada, em Bolonha. *

Canto XXXII

Dante e Virgílio chegam à planície do nono Círculo. Percorrem o primeiro recinto - a Caína, para os que traíram os do próprio sangue - e o segundo - a Antenora, para os traidores da pátria.
Se eu descrevesse com rimas duras, rascantes, o fúnebre paço, razão de ser do Inferno, far-lhe-ia justiça. Mas rimas assim não quero; e é pois timidamente que intento fazê-lo. Descrever o mais profundo buraco do universo não é tarefa que se cumpra com prazer, nem que calhe a quem sabe apenas dizer papá e mamã. Peço às Musas que auxiliem meu verso como ajudaram um dia Anfião a murar Tebas; porque a realidade não desejo distorcer.
Desgraçado bando o que encontrei em lugar tão difícil de retratar - fôsseis antes gado!
Alcançamos o fundo de escuro poço, mais baixo que os pés dos gigantes. Eu ainda olhava, pasmado, o alto muro circundante, quando ouvi dizerem: "Atenção, caminhante, para que não pises a cabeça de teus irmãos desventurados". Voltei-me e olhei fixamente. Diante de mim, e sob meus pés, divisei lago coberto de gelo, tão plano que de vidro pareceria a muitos. A correnteza do Danúbio não seria em toda a Áustria mais duramente enrijecida em pleno inverno, nem a do rio Don na sua pátria seria mais fria. Tão duro este gelo que se por cima lhe caísse o Tambernic ou o Pietrapana, certamente não o romperia. Como a rã que no charco se esgoela a coaxar, com o focinho de fora, enquanto na sua cabana a camponesa sonha com as alegrias do respigar; assim gemiam as almas na frieza do gelo, metidas nele até a cintura, lívidas, batendo o queixo com a mesma rapidez com que as cegonhas batem o bico. A cabeça pendendo para o peito, a boca a tremer de modo repelente, juntavam nos olhos sinais de amargura.
Quando reparei nas almas que me cercavam, mesmo junto aos pés, descobri duas tão próximas uma da outra que cabelo com cabelo se mesclavam. Perguntei-lhes: "Quem sois, que os peitos assim juntais em tão estreito laço?" Voltando-se, por curto instante me encararam, mas de seus olhos, úmidos, correram lágrimas e não palavras, e o frio reinante logo gelo fez das lágrimas, desse modo velando aqueles olhos. Quais tábuas fixadas pelo prego, assim estava unido o par sombrio, embora à moda de carneiros; cada qual a marrar, no outro buscou saciar a fúria ingente.
Contudo alguém - que perdera as orelhas em virtude do intenso frio - observou: "Serão meus companheiros teu espelho? (1) Queres saber quem foram aqueles dois? o vale por onde o Bisenzio abre o curso já lhes pertenceu e a seu pai, Alberto. Nasceram do mesmo ventre e em toda a Caína, ainda que procures, não encontrarás outros tão dignos de estar no gelo sepultados. Nem aquele a quem, com golpe de lança, Artur rompeu o peito e a sombra; (2)

* (1) Os olhos mortais de Dante eram refletidos pelo pavimento de gelo, coisa que foi percebida pelos condenados.
(2) O Rei Artur teria assassinado seu filho, Mordrec, com um golpe de lança, abrindo-lhe no corpo tal ferida que através dela poderia passar um raio de sol. *

nem Foccaccia nem esse que a cabeça inclina para não mostrar a fronte, e que se chamou Mascheroni Sassol, nome bem conhecido, sobretudo de ti que és toscano. E agora, para que saibas, sou Camicion dei Pazzi; e meus crimes serão atenuados quando aqui chegar Carlino".
Anotei mais de mil outros vultos, arroxeados, tiritantes, de tal modo assustadores que por arrepios ainda sou tomado quando, diante de vastidões geladas, recordo o que ali presenciei.
E avançando para o centro em que o universo reúne o seu peso, trêmulo, a treva eterna conheci. Por isto foi que a contragosto, por sorte ou acaso, entre cabeças desfilando, a uma delas pisei. Ela reclamou, chorando: "Por que me pisas? Se não é teu propósito tomar vingança do sucedido em Montaperti, por que me queres causar dano?" E eu: "Mestre caro, espera-me. Este danado lançou-me dúvida e quero esclarecêla. Caso percamos nisso tempo, depois buscarei recuperá-lo".
Virgílio parou e perguntei ao pecador, que então bradava suas blasfêmias: "Quem és, que me censuras?" Tornou: "Antes dize quem és tu, que pela Antenora caminhas, a espezinhar faces alheias. Ainda que fosses vivo, bem violento foi o golpe desferido". Respondi: "Vivo sou e, se alcançar no mundo fama, poderei auxiliar-te a situar o teu entre outros ilustres nomes". E ele a mim: "Muito outro é o meu desejo! Vai-te, pois! Demasiado nos tens molestado. Aqui não há lugar para a lisonja". Agarrei-o então pela cabeleira, ameaçando: "Ou me dás teu nome, ou nem um fio te restará hoje na cabeça". A isto respondeu: "Ainda que mil vezes me arranques os cabelos todos, não te direi quem sou nem te mostrarei meu rosto".
Tinha já envolvido as mãos em suas melenas e uma parte dos cabelos lhe arrepelara. Mas ele baixava sempre mais o rosto. Eis quando outro condenado grita: "Que tens, ó Bocca? Não te basta bater o queixo? Já é preciso latir? Que diabo te tortura?" Ao que tinha prisioneiro em minhas mãos proclamei: "Basta! Podes estar calado. Já sei quem és, vil traidor! Para teu castigo, por toda a Terra contarei o teu destino". Exclamou: "Vai e conta o que desejares, se puderes sair deste abismo infame. Mas descreve também a sorte deste outro, o indiscreto. Narra que ele ainda chora o ouro pelo qual se vendeu aos franceses. Podes dizer: Vi Boso Duera com muitos de seus iguais no gelo sepultado'. E se perguntarem por esses outros, a fim de que possas responder, olha ao redor e verás Beccheria, que Florença mandou degolar; ao lado de Gianni dei Soldanier, Ganelon, e aquele Tribaldello, que quando Faenza dormia lhe abriu as portas".
Eu já me afastara daquele ponto, seguindo o guia, quando duas cabeças enxerguei, em fenda de tal modo postas, que a nuca de uma saía da boca da outra. Qual faminto que o pão agarra e morde, os dentes de uma no crânio da outra se aferravam, assim como Tideu a dentadas lacerava o crânio do morto Menalipo. Exclamei: "Ó tu que, qual fera enlouquecida, mostras tanto ódio contra esse a quem mordes, que ofensa tão grande ele te fez? Se tens razão para tal proceder, dize-me quem és para que eu possa fazer a tua defesa - se a língua não me secar antes!"

Canto XXXIII

Na Antenora, Dante e Virgílio ouvem a narrativa da desgraça de Ugolino. Chegam à Ptoloméia, onde se acham os que traíram os amigos.
Tirando a boca do seu repasto, limpou-a o pecador na cabeleira do crânio que ia devorando. E disse: "Desejas que eu reviva a dor atroz que me oprime; tão grande que antes mesmo de narrá-la me tortura! Mas se minhas palavras forem sementes da infâmia do traidor que me serve de pasto, eu falarei. Não sei quem és nem como pudeste aqui chegar, mas florentino eu te diria pela pronúncia. Na Terra me chamei Conde Ugolino, e este outro foi o Arcebispo Rogério. Explicarei por que meu desatino. Não precisarei narrar como, à traição, fui por este preso e morto. o que ignoras é o tipo de morte que me foi dado. Dize-me se já vistes alguém sofrer tão cruelmente.
"Na torre - chamada depois desses acontecimentos de torre da Fome', onde outros padecerão ainda -, através de estreita fresta pude contar a passagem de muitas luas, quando certa noite, um sonho mau, fendendo o véu que oculta o futuro, deu-me notícia do que me fora reservado. Este aqui apareceu-me no sonho como guia e chefe de feroz caçada, encurralando um lobo e seus lobinhos naquele monte que aos pisanos impede enxergarem Lucca. Terríveis lobos famintos, em matilha formada por Gualandi, Sismondi e Lanfranchi, perseguia-nos em fúria. Vi, ao fim de curta perseguição, pai e filhos tombarem, e os raivosos dilacerando-lhes os flancos.
"Quando despertei, ao clarão da alva, meus filhinhos pediam pão; dormiam ainda, sonhando em meio a gemidos. Se ouvindo isso não sentes o que então eu antevi, és o mais cruel dos seres e nunca por nada mais irás chorar. Acordaram os meninos pela hora em que usualmente a magra comida nos traziam. Da horrível torre então ouvi pregarem as portas. Nos quatro pequenos pousei a vista, já quase morta. Choravam. Eu não podia chorar, pois tinha a alma petrificada. Um deles, Anselmuccio, observou: Que tens, pai, que nos olhas com tão estranho olhar?'
"Não chorei nem disse palavra todo aquele dia e a noite que se lhe seguiu, até que de novo o Sol sobre o mundo levantou-se. À primeira luz entrada no doloroso cárcere, pude ver o meu macerado rosto nos quatro pequenos rostos retratado. De ira, mordi as mãos. Eles, cuidando que o gesto eu devesse à fome, levantaram-se e disseram-me: Pai, sofreremos dor menor se de nossa carne te nutrires. Dela, foste tu a nos vestir; agora tira dela o teu sustento'. Silenciei para mais não contristá-los. E aquele dia e o outro dia, estivemos todos silenciosos. Ó dura terra, por que a nossos pés não te abriste? E sucedeu que, ao quarto dia, Gaddo atirou-se-me aos pés murmurando: Pai, por que não me socorres?' E morreu. E assim como me estás vendo, vi morrer os outros três, um a um, entre o quinto e o sexto dia. Apalpando, busquei seus corpos, pois já cego estava, não os podendo ver. Dois dias passei, seus nomes repetindo. E para acabar comigo, o que não puderam dor e sofrimento, pôde o longo jejuar".
Quando tais palavras disse, torcendo a vista, voltou, furioso, a remorder o crânio do mesquinho, qual mastim que fortemente rompe um osso.
Ah! Pisa! vergonha dos que habitam a meiga terra onde o doce si ressoa; uma vez que teus vizinhos em te punir são lentos, auguro que velozmente Caprara e Górgona (1), postadas na foz do Arno, impedindo das águas a saída, levante-as até afogar a última das tuas gentes! E se o pobre Ugolino foi acusado de haver ao inimigo entregue os teus castelos, por que também os filhos punir com tal castigo?
Eram inocentes pela própria idade, esse Uguccione, esse Brigata e os dois irmãos sobre os quais usaste tal ferocidade, ó nova Tebas!
Passamos para a seguinte estância (Ptoloméia), onde, não voltada para o alto, mas supina no gelo, vi outra casta de pecadores. Tendo o rosto voltado para as costas, não podem do pranto auferir alívio. As lágrimas para o peito lhes refluem, aumentando em muito o sofrer. Antes de rolar, petrificada em gelo, a lágrima forma, em cada órbita, venda de neve sobre o olho inteiro.
Embora o extremo frio houvesse tornado insensível o meu rosto, pareceu-me perceber aragem branda. Surpreso, perguntei: "Mestre, que produz tal vento, se não há aqui vapor de que ele se faça?" (2) Respondeu: "Breve chegaremos a um ponto onde teus olhos darão resposta aos ouvidos, dando-te a conhecer como este vento é produzido".

* (1) Caprara e Górgona, ilhotas do Mediterrâneo, diante da foz do Arno. (2) Acreditava-se à época que o vento resultasse da evaporação da Terra. Não chegando o Sol até o fundo do Inferno, como a evaporação se daria?

Eis que um dos padecentes gritou: "ó almas cruéis! ó almas perdidas, que à última estância infernal fostes condenadas! Libertai meus olhos da gelada cobertura para alívio dar ao peito aflito, antes que novas lágrimas cristalizadas aumentem meu penar!" Retorqui: "Se queres ajuda, dize-me quem és, e se eu faltar ao trato, seja metido entre os danados do derradeiro sítio". Explicou-me: "Sou Frei Alberigo, o que serviu as frutas do mau horto. Aqui, por castigo, recebo tâmara por figo". Exclamei: "Pois então morreste?"
E ele: "Eu mesmo não sei se lá no mundo meu corpo é morto ou vivo. Coisa tamanha só em Ptoloméia sucede: as dores aqui pungem antes que Átropos (3) mova o dedo. E para que tu, com diligência maior, removas dos meus olhos as endurecidas lágrimas, revelo que no corpo do traidor, no instante em que a traição consuma, penetra demônio que o governa até o momento extremo, estando a alma já de muito nesta caverna. Ainda vivo e feliz em seu país natal tu supões esteja alguém que ao meu lado agora inverna. Se é que vieste de pouco, hás de saber que há muito mais de ano ele está aqui recluso". Contestei: "Creio que te enganas. Branca d'Oria (4) ainda é vivo a esta hora, e come e dorme e veste-se de pano". Tornou: "Ao poço lá em cima, onde ferve o pez, e que se chama Malebranche, não havia ainda chegado Miguel Zanche, quando um demônio tomou lugar no corpo deste e de um parente seu, cúmplice na traição. Mas agora, estende as mãos e ajuda-me a abrir os olhos".

* (3) Átropos, a mais velha e implacável das Parcas, era quem cortava o fio da existência humana.
(4) Branca d'Oria, genovês, assassinou o sogro para herdar-lhe a fortuna e o cargo que este desempenhava na Sardenha. *

Mas não o ajudei, pois entendi haver errado ao querer com tal canalha ser gentil. Ah! genoveses, gente divorciada dos bons costumes, amantes do pecado, por que não sois dispersos pelo mundo? Eis que junto ao pior espírito da Romanha encontrei um de vós, traidor a tal ponto infame, que sua sombra no Cocito já se banha enquanto seu corpo se mostra no mundo, bem vivo.

Canto XXXIV

Os dois poetas se avistarão agora no quarto recinto do nono Círculo - a Judeca, onde são punidos os traidores de seus chefes e benfeitores.
"Vexilla regis prodeunt Inferni (1) em nossa direção: à frente, pois, observa e hás de vê-los, se o teu olhar puder discernir", disse o mestre. E assim como se distende neblina espessa, ou quando, em nosso hemisfério, a noite fecha e um moinho ao longe, tendo as pás agitadas pelo vento, chama a nossa atenção - pareceu-me divisar vulto igual.
O vento que soprava abrigo me fez buscar junto do mestre, que outro amparo por ali não existia. Havíamos por fim chegado - tremo ao descrevê-lo em versos - àquele ponto onde os condenados, cobertos pelo gelo, nele transpareciam como trincas no bom vidro. Alguns vi, deitados; outros eretos; grande número, com as pernas para o alto, vários deles, vergados a ponto de com os pés e as faces formarem arco.
Quando, no entender do mestre, avançáramos o bastante, decidiu-se a indicar-me a criatura que outrora exibira formoso semblante. Tocou-me e me deteve, dizendo: "Eis Lúcifer! Este é o local onde de extrema fortaleza convém que armes o espírito". o quanto, então, me senti gelado e oco, não me perguntes, leitor, que não o saberia dizer, pois todas as palavras são poucas para descrevê-lo. Não morri e contudo não vivia.

'* (1) Vençam os estandartes do rei do Inferno... *

Se acaso és dotado do suficiente engenho, imagina o quanto estive privado, tanto da vida quanto da morte.
O imperador do reino doloroso erguia o peito para fora da geleira. Eu, com minha estatura, mais próximo estou de um gigante do que um gigante comparado com o braço, apenas, de Lúcifer. Imagina pois, leitor, quão grande será Lúcifer se calculado pelo tamanho de seus braços. Se um dia foi belo, quanto é hoje horrendo; se contra seu Criador alçou a fronte, bem entendo seja ele a fonte única do mal que o mundo chora. Ah! Qual não foi minha estupefação ao aperceber-me de que de três faces era a sua cabeça. Era vermelha (a indicar o ódio que o move) a face que eu via de frente; as outras repousavam, cada uma sobre largo ombro, mas lá em cima, no alto crânio, formavam as três um só conjunto. A da direita estava entre o branco e o amarelo; a da esquerda lembrava a cor que amorena a gente nascida e afeita à terra onde o Nilo tem seu curso. Sob cada face, duas asas vastas o quanto convém a um ser de tal modo volátil e mau. Velas assim grandes não vi jamais em nau de alto-mar. Não tinham penas, e mais lembravam pela forma as asas dos morcegos. Continuamente agitadas, produziam os três ventos gélidos que mantêm enregelado o Cocito. Pelos seis olhos chorava; por três peitos escorriam suas lágrimas, pranto feito de sangue e espuma. Em cada boca triturava um pecador, qual moinho a esmagar o grão. Para o condenado da boca fronteira o morder era pouco, pois com as garras, em constante fúria, Lúcifer lhe arrancava a pele.
Indicou-me o mestre: "Essa alma que sofre maior padecimento é Judas Iscariotes. Dentro da bocarra infernal tem a cabeça, e fora as pernas não cessa de agitar. Os que vês das outras bocas pendentes são Bruto, preso à boca de cor mais negra (repara como se contorce e silencioso se mantém), e Cássio o de membros especialmente robustos. Porém, eis que a noite se anuncia. É tempo de partir. Vimos o que devia ser visto".
Conforme me instruiu, abracei-o fortemente. Ele escolheu o tempo e o modo azados, e quando foram abertas as asas infernais, àquelas costas peludas agarrado, de velo em velo fomos avançando, entre o gelo e o compacto pelame. Atingida a altura em que os quadris se unem às coxas, reparei que o guia, exausto e angustiado, voltava a cabeça para a direção em que até ali apontava com os pés, agarrando-se como se, em vez de descer, quisesse subir. De modo que supus para o Inferno estar voltando.
Com voz de homem ao extremo fatigado, Virgílio instruiu-me: "Segura-te bem que só por este singular caminho se pode abandonar o império do mal". Por uma fenda na rocha, saiu e fez-me sentar. Junto a mim ficou, ereto, vigilante.
Ergui o olhar, esperando ver Lúcifer tal como o havia deixado e eis que o vejo de pernas para cima. o quanto nesse instante me senti embaraçado, pense-o a gente sem instrução e todos quantos ignoram qual era o fulcro pelo qual eu havia passado.
o mestre comandou: "Ergue-te! Vamos! A jornada é longa, o caminho ruim e da meia-terça já esplende o sol.
o caminho não era piso de palácio, mas simples trilho em galeria subterrânea, com mau traçado e de lume carecente. Quando pude pôr-me em pé, murmurei: "Antes que deixe o escuro abismo, dissipa-me, ó mestre, dúvida que me atormenta. Onde está o gelo?
Aquele maldito que ereto vi há pouco, como é que, agora, assim se encontra? E como, tão rápido, fez o Sol o trajeto da noite à madrugada?"
Tornou-me: "Acreditas que ainda nos encontramos além do centro, lá onde me agarrei ao pelame do verme que com o pecado empesta o mundo. Ali estiveste enquanto desci. O centro, porém, cruzaste no exato ponto em que me voltei para direção oposta. Tal ponto é o centro para onde, de toda parte, o peso é atraído. Ali passaste para o hemisfério que se opõe àquele das terras ressequidas, em cujo alto monte foi morto um justo que nasceu e viveu sem pecado. Tens os pés, agora, firmados sobre pequena esfera fora da Judeca. Se aqui é manhã, lá anoitece, e esse cujo pêlo nos serviu de escada não mudou nem lugar nem posição. Aqui ele tombou do Céu, e a Terra, que neste ponto emergia, por horror ao chegadiço cobriu-se com o véu do mar e para outro hemisfério deslizou. E talvez tenha sido também por medo a ele que esta cavidade deixou, ao fugir além, aquela montanha que longe aparece na outra metade do mundo".
Naquelas fundas paragens há um ponto que dista tanto de Belzebu quão largo é deste o sepulcro, o qual ponto não há de ser localizado pela vista, mas pelos ouvidos. Anuncia-o murmúrio de arroio que o seu curso tortuoso escavou na rocha e que pouco pende. Ao longo de seu manso curso, pelos ouvidos seguindo ínvio trilho, meu guia e eu buscamos regressar ao claro mundo superior. Sem jamais considerar, nem ele nem eu, em pelo caminho tomar descanso, fomos subindo, o mestre à frente eu em segundo, até que por abertura circular pude notar as maravilhas do céu escuro. E depois, saindo, as estrelas se nos descortinaram.

Segunda parte

Purgatório

Canto I

Os dois poetas retornam do Inferno pela galeria subterrânea, e alcançam a superfície da terra. Acham-se perto do Monte Purgatório. Entre a praia e o sopé da montanha, deparam Catão, que guarda o lugar.
Singrando em águas favoráveis, a barca do meu engenho alçou velas, deixando para trás o pélago cruel. Eis que passo a cantar o segundo reino, onde o espírito, purgando culpas, faz-se digno de ascender ao Céu. Para isto, ó santas Musas, fazei que eu recupere o vigor da poesia antiga e que Calíope empreste ao meu cantar o tom alto e digno que não permitiu às pegas esperar que seu atrevimento fosse perdoado.
Linda tonalidade de safira oriental espargia-se pelo horizonte sereno até onde o primeiro céu alegra a vista aumentando a minha alegria por haver, afinal, deixado as auras mortas que me haviam pungido o olhar e o coração. O formoso astro que auspicia o amor fazia esplender o oriente inteiro, velando a constelação de Peixes que lhe faz escolta.
Voltando-me à direita, avistei o outro pólo e eis descubro quatro estrelas jamais vistas senão pela antiga gente. Ao seu rutilar, mais alegre parece o firmamento. Ó setentrião!, vale por viuvez o não haveres contemplado tão rutilantes astros!
Tendo-os admirado longamente, atentei para direção oposta, onde o carro solar se havia rompido, e diviso, bem próximo, ancião que de mim merecia reverência tanto quanto filho algum já fez ao pai. Longas barbas, brancas quais os cabelos, lhe desciam ao peito. Tal fulgor punham em seu rosto aqueles quatro astros que eu o via como se o Sol lhe estivesse adiante.
Disse-me, agitando as veneráveis barbas: "Quem és, que vencendo o rio trevoso fugistes da prisão eterna? Quem te guiou, iluminando o caminho, para que pudesses deixar o infernal espaço onde é sempre noite escura? Acaso estão anuladas as leis do Abismo? Ou o Céu, rompendo a própria ordem, permite aos condenados invadir este domínio?"
Acenando e movimentando as mãos, Virgílio indicou-me o que me incumbia fazer. Curvei joelhos e baixei os olhos, enquanto ele respondia: "Não vim por vontade. Dama do Céu baixada rogou-me prestasse socorro a este vivente, servindo-lhe de guia. Mas visto que desejas conhecer em pormenores a nossa condição, ora te darei explicação devida.
"Ainda não é chegada a hora fatal para este a quem guio, mas, por seus pecados, esteve tão próximo dela que bem pouco lhe faltou para perder-se. Já dis se o porquê de tê-lo socorrido. Para tirá-lo do perigo não há caminho senão o que vamos percorrendo. Mostrei-lhe, ao longo dele, a gente que paga as suas maldades. Ora, neste lugar entendo exibir-lhe a grei que sob os teus cuidados se purifica. Demasiado longo seria narrar-te quanto vimos. Sabes provir do Alto a ordem que me impôs trazê-lo para ver-te e ouvir-te. Sê, pois, benigno a quem a liberdade aspira - e o quanto ela é preciosa bem o sabe quem por ela rejeitou a vida. Por ela não terá sido amarga a tua morte em Utica, sítio que guardou teu corpo, gesto esse teu que no Juízo Final sob luzes favoráveis será considerado. Não violamos leis divinas pois ele é vivo e Minos não me impediu, pois sou daquele círculo onde também se encontra a tua Márcia, cujo puro olhar parece estar rogando que ainda a consideres tua. O recordála amorosamente te faça propício a nós peregrinos. Acede a que cruzemos os teus sete reinos e eu, grato, hei de referir a Márcia a tua benignidade, se isso te agradar".
Catão por sua vez disse: "A tal ponto alegrava Márcia os meus olhos que, no mundo, quanto quis lhe concedi. Agora, porém, não me é dado mover-me para além do rio que tudo limita. Ao deixar o Limbo, tal decreto me foi imposto. Quanto a vós, se dama celestial vos patrocina, é indispensável que rogueis beneplácito. Vai, rápido! Cinge a este vivente, com a haste do junco lava-lhe o semblante, para que de toda sombra infernal seja liberto. Pois é mister que quando defronte o primeiro anjo, sentinela do Paraíso, névoa alguma lhe oculte o olhar. Para além, no ponto mais baixo onde o mar bate a costa, esta ilha é ornada por alastrado juncal. Planta alguma, mais rija ou alterosa, ali viveria, não sabendo dobrar-se ao embate do mar. Feito isto não regresseis aqui, de nada adiantaria. À luz do Sol que vai nascendo, descobrirás o melhor caminho para remontar a montanha".
Assim falou, e desapareceu. Ergui-me e, silencioso, olhos postos no semblante do meu guia, amparei-me nele. Disse: "Segue-me, filho. Voltemos, eis daqui vai-se inclinando o chão para o mais fundo vale". Recuava o crepúsculo, e pude ver, distante embora, o ondular marinho. Andávamos por deserta planície, como quem volta à estrada antes perdida, tornando o caminho inútil.
Quando alcançamos um ponto em que a luz não lograra espancar a sombra e pela relva ainda havia rocio, o mestre sobre a erva molhada deslizou as mãos. Seu intento compreendendo, ofereci-lhe as faces. O passar das mãos bastou para devolver-me a cor e o viço perdidos no Inferno.
Enfim chegamos à erma praia, cujas águas jamais haviam sido domadas por homem nenhum. Aí fui cingido, segundo mandara Catão. Ó Maravilha! Vi, renascida, a planta no lugar de que fora arrancada.

Canto II

Caminhando à orla da praia, os poetas vêem chegar uma nave pilotada por um Anjo, da qual desembarcam almas rumo ao Purgatório. Dante reconhece, entre essas almas, o músico florentino Casella.
o Sol já começava a surgir na fímbria do horizonte da ilha do Purgatório, cujo meridiano é o ponto mais alto de Jerusalém; já a noite, que traça itinerário oposto, elevava sobre o Ganges a constelação da Balança, oscilante em suas mãos. A esse tempo, ali onde me encontrava, a branca e rósea cor da aurora tinha seus tons alterados pelo avançado da hora.
Avançávamos ainda ao longo do mar; éramos como aqueles que, embevecidos, apressam apenas a mente, ficando seus pés lentos. Eis que, assim como sobre as dobras da manhã Marte fulgura entre a névoa, além, no poente dos pagos marinhos, uma luz - queira Deus torne a vê-la! - percebi a correr sobre o mar, com tal velocidade que vôo de ave alguma se lhe compara. Inda mais rútila e poderosa me pareceu depois que, tendo-me voltado para o guia, a interrogálo, novamente a mirei.
Pensei ter visto em suas bordas um não sei quê branquejar, que logo, na parte inferior, foi também surgindo. Meu mestre não disse palavra, até que tais brancuras em asas se definissem. Então, reconhecendo o navegante, assim falou:
"Ajoelhado, e de mãos postas! Eis um anjo de Deus! Compõe as mãos! Daqui para a frente, ditoso, muitos outros hás de ver. Observa que, desdenhando os recursos humanos - remos ou velas -, apenas com as asas remotos sítios vai percorrendo. Vê como as orienta rumo do céu, movendo agilmente as eternas plumas, que não mudam nem caem qual sucede aos cabelos mortais".
Contudo, mais e mais se avizinhando, bem se desenha o divino mensageiro, fazendo-me baixar os olhos deslumbrados. Tocou a praia, veloz e leve, qual barca que sequer tocasse a água! Na popa do barco vinha celestial barqueiro, na fronte parecendo ostentar o seu feliz estágio. Dentro, vinham mais de cem espíritos a cantar "In exitu Israel de Aegypto" entre outros. Após o sinal-da-cruz, dirigiram-se à praia, e o anjo como veio tornou, sem perder tempo.
Os que permaneceram mostraram-se deveras espantados, olhando ao redor, o que é comum nos que provam conhecimentos novos. Em todos os pontos o Sol frechava com luzes o dia nascido, e com seus fulgores acelerava o tramonto das estrelas de Capricórnio, quando os recém-chegados perguntaram-nos:
"Se sabeis, mostrai-nos o caminho para subir o monte". E Virgílio falou-lhes: "Supondes sejamos conhecedores deste sítio, mas peregrinos somos, tal como vós. De pouco vos precedemos, chegados por caminho tão áspero e temeroso que, comparado a ele, será aprazível subir".
Então aquelas almas notaram, pelo meu respirar, que eu vivia; e empalideceram tal sua surpresa. E qual multidão curiosa envolve o mensageiro a os tentar ramos de oliveira, desejando por primeiro ouvir as notícias, sem atentar no desconforto da aglomeração, assim cercaram-me as almas venturosas. Em meu rosto fixaram interesse alvoroçado, quase esquecidas de que marchavam para a suprema formosura. Uma delas, adiantando-se, esboçou o propósito de abraçar-me, e com tal ímpeto que de entusiasmo igual fui tomado. Vã tentativa, pois a sombra era verdadeira só em aparência! Três vezes querendo estreitá-la, três vezes ao peito eu trouxe apenas as minhas mãos. Ante o meu demonstrado espanto, sorriu e retirou-se. Principiei a segui-la. Mas com suavidade disse que eu me detivesse. Ouvindo-a, reconheci quem era, e pedi-lhe que comigo falasse.
Respondeu-me: "Como te estimei revestido de corpo mortal, assim te estimo ainda. Pergunta e atenderei ao que desejas". Tornei-lhe: "Casella, faço esta viagem para retornar ao ponto terreno de onde parti. Mas tu, que há muito faleceste, como só agora chegas aqui?" E ele: "O anjo que toma na sua barca a quem e quando deseja, nenhuma injustiça me fez ao retardar minha passagem, pois a Sumo Querer obedecia. Há três meses apenas que ele, em sua barca, deu entrada a quantos entendia. Encontrava-me onde o Tibre entrega águas ao mar, e pelo anjo fui recolhido. Para aquele sítio o vôo freqüentemente endireita, pois ali se congregam as almas que não estão sujeitas às penas do Aqueronte".
E eu a ele: "Se lei não te proíbe memorar e recitar o amoroso canto que suavizou mágoas de meu viver, concede consolar meu espírito que para aqui vindo juntamente com o corpo tantos horrores viu".
Amor que em minha mente me sugere...'; começou ele a cantar, com doçura tamanha que inda agora enternece minha alma. O mestre, eu e aquela gente nos quedamos tão contentes que com nada mais ocupamos a mente.
Pendíamos de suas notas quando aquele ancião venerando [Catão] acorreu bradando: "Que é isto, ó espíritos descuidados? Que negligência, que preguiça
é esta? Correi, subi a montanha, a liberar-vos das impurezas que não vos permitem contemplar a Deus". Como pombos que entretidos com comida, distraídos, são despertados por algo que os angustia, e súbito arrancam, de pavor tomados - assim aquela turba o amável canto esquece e corre na direção da encosta, em desespero.
Nem nossa partida foi menos breve.

Canto III

Dante e Virgílio dirigem-se ao sopé do monte, onde o Antepurgatório começava. Avistam os excomungados, que para ascender aguardavam o decurso do prazo.
Enquanto a turba era impelida, por aquela súbita dispersão, rumo ao monte onde castigo merecido a esperava, acheguei-me ao companheiro fiel. Não fosse ele, como teria encontrado o caminho? Quem me conduziria à montanha?
Observei que o remorso o perturbava, dado que a mais leve falta motiva aborrecimento às almas puras! Quando diminuiu a pressa no andar, que não era apropriada ao lugar, eu, que até ali sentira a mente angustiada, alarguei o alvo das atenções e voltei o olhar para a montanha que, mais alto do que todas as outras, é a que do céu mais se aproxima.
Atrás de nós fulgia o Sol, a dardejar a luz que meu corpo interrompia, lançando sombra diante de meus passos. Vendo a sombra única e receando haver sido abandonado, presto voltei-me para o lado. Aquele que era meu conforto perguntou-me, incisivo: "Por que suspeitas? - Não crês que eu continue, cuidadoso, a guiar teus passos? Vai nascendo a estrela Vésper lá onde repousa o corpo dentro do qual eu também projetava sombra. É Nápoles, que recebeu meu corpo de Brindisi. (1)

* (1) Virgílio morreu em Brindisi, porém seus restos foram transferidos para Nápoles. *

Se diante de mim não existe sombra, não te seja isso maravilha, como não deve maravilhar, lá no Céu, uns aos outros, que os astros não impeçam a passagem da luz. (2) Aptos a suportar grandes tormentos, extremos entre o gélido e o fervente, a Suma Virtude cria, sem mais explicações, corpos como o meu. Louco é quem acredita ser a razão humana capaz de apreender a infinita grandeza onde vige o Ente que é Uno em Três substâncias. Ó homem, que o quia te baste (3) pois se ao Supremo Saber vos fosse dado elevar-vos, não teria dado à luz Maria. Para o homem, é inútil procurar a solução dos grandes problemas que mesmo para não serem entendidos lhe foram apresentados. Refiro-me a Aristóteles, a Platão e a outros mais".
Baixando a fronte, silenciou, muito perturbado. Assim chegamos ao sopé do monte. Este era tão escarpado que a escalada nos pareceu impossível. A mais difícil e triste de quantas veredas existiam entre Lerici e Turbia resultará dócil escada se comparada à trilha deste monte.
Detendo-se, o mestre disse: "Quem poderá saber onde se abre o monte em trilha mais amena, passível de ser superada por quem não possua asas?"
Enquanto ele refletia sobre o melhor caminho, passei a vista ao redor e descobri, à direita, turba que para nós se encaminhava em passo tão lento que nem parecia estivesse caminhando. Alertei ao mestre: "Volta a atenção para esses que se aproximam. Podem nos mostrar a via desejada, se não a achaste por si só".

* (2) De acordo com o sistema ptolemaico, os astros das esferas inferiores eram dotados de transparência; não impediam a passagem da luz dos astros das esferas superiores.
(3) quia: aquilo que é. O homem deve contentar-se com que uma coisa exista, sem indagar sua razão. *

Dirigiu-me o olhar já serenado e disse: "Vamos ao seu encontro, pois bem lentamente avançam. Até lá, mantém acesa a esperança, querido filho". Estava bem longe aquela gente, pois havíamos caminhado já mil passos e ainda nos encontrávamos a tiro de pedra lançada por destro atleta, quando eis que os espíritos cerram espaço e fazem alto junto ao penhasco, como se vigiassem, desconfiados, os que deles se aproximam.
Virgílio falou-lhes: "Ó vós, finados na graça divina, espíritos eleitos para aquela graça que, suponho, seja vosso grande anelo! Revelai-me o ponto onde essa penedia fragosa, abrandando a sua dureza, permite-nos escalar; pois escasso é o tempo e difícil a nossa missão.
Como ovelhas que deixam o redil a uma, a duas, a três, mantendo as mais assustadas os olhos e a cerviz baixados, todas seguindo os passos da primeira, aconchegando-se-lhe quando ela pára, seguindo-a quando avança, dóceis e quietas sem saber por quê; assim notei que se movia para nós a testa daquela coluna de almas afortunadas, pudicas no olhar, simples no andar.
Mas quando as primeiras dentre elas puderam ver que minha sombra, estendida à direita, crescia sobre a rocha, estacaram surpresas; deram um passo para trás, imitadas pelas que as seguiam.
"Sem que pergunteis, digo-vos ser vivo o corpo que aí vedes, no solo interrompendo, com sua sombra, a marcha da luz solar. Não vos cause o fato excessivo pasmo, eis que, por vontade divina auxiliado, pretende ele atingir deste monte o cimo".
"Assim falou meu mestre, à guisa de explicação. E aquela digna gente respondeu: "Voltai-vos e caminhai à nossa frente!" e com mover de mão indicavam o roteiro. Logo, disse-me um deles: "Quem quer que sejas, sem deixar de caminhar volve teu rosto para o meu e procura recordar se viste minha face alguma vez".
Olhei-o com atenção: era louro, belo, de nobre aspecto; trazia porém o sobrolho dividido por rude golpe. E quando respeitosamente neguei conhecê-lo, exibiu-me no peito uma larga ferida, dizendo: "Repara!" Depois, sorrindo, continuou:
"Eu sou Manfredo, neto da Imperatriz Constança. Quando voltares à Terra, rogo-te que narres a verdade à minha filha - a qual concebeu esses reis que honram Sicília e Aragão -, pois a verdade não lhe contaram. Recebendo duas feridas mortais, rendi-me, chorando, àquele que é o Sumo Perdão. Réu me fiz de pecados horrendos, mas a Bondade Infinita estende seus braços a todos quantos suplicam-lhe a graça. Se o bispo de Cosenza, que o Papa Clemente enviou a desenterrar meus ossos, houvesse meditado nesse mistério da divina graça, talvez meus restos ainda se achassem perto da ponte próxima de Benevento. Agora são fustigados pela chuva e revolvidos pelos ventos, longe dos limites do que foi meu reino, nas margens do Rio Verde, em lugar cheio de escuridão e indigno. Mas nenhum anátema é tão poderoso que deserde a alma do amor divino enquanto a esta alma restar a confiança no Sumo Amor. Essa alma deve permanecer fora do Purgatório trinta vezes o tempo em que na Terra viveu apartada da Santa Igreja, se preces do mundo não lograrem encurtar tal período. Agora entendes que bem me podes auxiliar revelando à minha boa Constança como achaste-me aqui, e quanto alívio se pode alcançar pelas preces dos vivos".

Canto IV

Os poetas começam a subida do monte, já no Antepurgatório. Deparam as almas de indolentes, negligentes e omissos, e de gente que mostrou arrependimento no momento extremo.
Quando a alma é tomada, seja pela felicidade ou pela desgraça, chega-se a supor que a nada mais ela se faz sensível - o que é, por sinal, o melhor testemunho contra aquela errônea crença de que há em nós uma alma dentro de outra alma embutida.
Assim, quando o homem ouve ou contempla maravilha que lhe absorva a atenção e as faculdades da alma, vai-se o tempo sem que o perceba; pois suas qualidades concentra apenas no que vê ou ouve. Por um lado isca atado, pelo outro permanece desinteressado. Ouvindo falar aquela sombra, tive a verdadeira prova disso.
O sol já havia subido cinqüenta graus (1) sem que de tal me apercebesse, quando a turba que seguíamos, indicando certo ponto, gritou: "Entrai, entrai aqui!"
O vinhateiro costuma proteger com braçadas de ramas espinhosas o acesso à vinha já amadurecida. Pois mais áspera e estreita era a senda alcantilada por onde o meu guia e eu, depois dele, fomos subindo, tão logo a multidão afastou-se de nós. Assim se alcança Noli, descendo por San-Leo, e se chega ao pico de Bismântova.

* (1) Já haviam se passado mais de 3 horas, visto que o Sol percorre 15 graus por hora. *

Ideal seria dispor de asas de ave robusta, ou de inabalável obsessão, para seguir como seguia o mestre, de quem me vinha esperança e luz para o caminho. Subíamos por um caminho aberto entre rochas, esfregando-nos em ambos os lados nas paredes; e usávamos mãos e pés em tal tarefa.
Alcançando um ponto mais alto da penedia, perguntei: "Que direção tomamos, querido mestre?" E ele a mim: "Fica perto, até que tenhamos orientação segura". Não podia a vista calcular tão íngreme inclinação, ainda superior à linha que corta o centro de um quadrante. Adiante, sem forças, supliquei: "Ó doce pai, põe reparo em mim; ficarei abandonado se continuas sem mim". Disse-me: "Filho, arrasta-te para ali", e com o gesto indicava espaço pouco acima a vincar a escarpa.
Tais palavras foram para mim grande estímulo. Rastejei seguindo seus passos, até chegar à altura mencionada. Lado a lado nos sentamos, voltados para o nascente, quais exaustos peregrinos a fitar a palmilhada estrada. Então olhei para baixo. Ao Sol volvi depois o olhar e, pasmado, constatei que pela esquerda nos vinha sua luz.
O poeta notou meu enleio diante da posição solar já pelo norte entrada. Por isso, disse-me: "Se Castor e Pólux (2) iluminassem prontamente ambos os hemisférios, verias brilhar mais junto das estrelas da Ursa a roda do zodíaco, pois mantida estaria a velha rota astral. Se quiseres esclarecer esse mistério, imagina que este monte e aquele outro que é de Jerusalém a máxima altura estão sobre o mesmo horizonte mas em posição antípoda, pois situados em diferentes hemisférios.

* (2) Estrelas da constelação dos Gêmeos. *

Assim, a estrada que o Sol no céu percorre - se a razão não te falhar no raciocínio - contrária parecerá, pois enquanto um o vê de um lado, é visto do lado oposto no outro monte".
Eu disse: "Bom mestre, jamais, como agora, o meu entendimento alcançou o que antes parecia obscuro. Sei que a linha mediana do terreno círculo equador é chamada em astronomia, e sempre separa o inverno do verão. Se compreendi a tua lição, é este monte o antípoda de Jerusalém, e assim vemos o Sol brilhar no norte enquanto os hebreus o podem ver ao sul. Mas agora, se consentes, gostaria de saber - pois meus olhos não divisam o cume da montanha - quanto ainda teremos de cumprir".
Ele respondeu: "É próprio deste monte causar maior fadiga no início da escalada; quem mais alto vai, menos cansaço sente. Ao fim do caminho a escalada será tão suave que o subirás lépido e alegre, tal como a favor da corrente usa descer a nave. Após o esforço, sentirás alívio, no corpo e na mente. É a verdade".
Mal o mestre terminou de falar, uma voz fez-se ouvir perto: "Talvez antes do fim necessites repousar!" Ao som de tal voz ambos nos voltamos, buscando conhecer o que falara. Vimos à esquerda alterosa rocha na qual só então pusemos reparo. Para ali fomos e, tendo-a contornado, deparamos multidão de almas acolhida à sombra, repousando como se vencidas por preguiça. Uma, que mais do que as outras parecia exausta, estando sentada abraçava as pernas e prendia os joelhos entre a cabeça.
Exclamei: "Vede, ó caro mestre, quanto ama a negligência esse que irmão da preguiça me parece". Aquele, então, sem alterar postura, a nós voltando os olhos, murmurou: "Segue tu, que te proclamas valente!" Reconheci-o. Embora ainda ofegante, para ele encaminhei os passos. À minha aproximação, mal ergueu a testa, e com sossego foi que disse: "Reparaste como à esquerda é que o Sol conduz seu carro?" Seu lento mover-se, sua voz arrastada a um sorriso me dispuseram. Tornei: "Belacqua, não choro o que a ti ocorreu, mas dize-me por que ficas aí sentado? Esperas por quem te guie ou também aqui pela preguiça és dominado?" (3)
Respondeu-me: "Irmão, de pouco me adianta subir mais. O anjo que custodia a porta dos martírios do Purgatório não me permitiria entrar. Antes de que eu entre, o céu deve girar ao meu redor tempo igual ao que tive em vida. Isso se em contrário orações não me ajudarem; pois só quando o fim chegou é que me arrependi".
Mas já o poeta prosseguia na penosa ascensão. "Vem!", chamou-me. "Já resplandece o Sol no meiodia, e a noite já assenta seus pés em Marrocos!"

* (3) Trata-se de Belacqua, fabricante de instrumentos musicais em Florença, do círculo de amizade do poeta; era famoso por sua indolência. *

Canto V

Ia me afastando das lentas almas, acompanhando a sombra do meu guia; súbito uma delas, em minha direção apontando o dedo, gritou: "Olhem! A luz do Sol não atravessa o que vai mais demoradamente e que se conduz como se fosse vivo!"
Voltei-me para a direção de onde o grito viera, e percebi que as almas todas olhavam, perplexas, a mim e à minha sombra. Perguntou o mestre: "Por que, filho, te perturbas a ponto de retardar os passos? Incomoda-te o murmurar desta gente? Segue-me de perto e deixa falar. Sê como torre firme, cujo cimo não desaba ao soprar dos ventos. Pois é certo que, entregando-te ao mesmo tempo a vários pensamentos, perdes em firmeza e teu ideal afastas, dado ser próprio de um pensamento enfraquecer a força do que lhe é anterior".
Respondi o que devia responder, e o fiz enrubescendo: "Já vou". Mas eis que pelo atalho subiam almas, em grande número, entoando o Miserere. Quan do se deram conta de que meu corpo à luz do Sol não permitia passagem, mudaram o religioso canto para um "Oh!" rouco e prolongado, e duas dentre elas, à guisa de exploradores, avançaram para junto de nós, pedindo: "Instruí-nos sobre quem vós sois!"
E meu mestre: "Informai aos que vos enviaram que a vida terrena ainda não abandonou o corpo deste que me acompanha. Se, conforme presumo, os vossos passos detivestes por ver-lhe a sombra humana, a devida explicação já vos dei. Ora, a vós convém ter-lhe respeito".
Mais velozes do que costumam as estrelas cadentes cortar o sereno infinito, ou a névoa crepuscular do céu ser soprada, aquelas duas almas retornaram para junto de seus iguais. Uma vez reunidos, vieram ao nosso encontro qual esquadrão a galopar desenfreado.
O poeta alertou-me: "Avultada é a multidão e todos vêm para interrogar-te. Não convém, por causa disso, sustar a marcha. Segue caminhando, mas escuta enquanto anda".
Assim gritavam, enquanto iam se aproximando: "ó alma que sobes para a alegria celeste revestida dos membros com os quais nasceste, diminui um pou co o vigor dos passos. Observa-nos, a ver se reconheces alguém dentre nós, a fim de levar ao mundo notícias dele! Mas por que continuas assim, com tanta pressa? Por que não paras? Vê, todos nós fomos vítimas de morte violenta, pecadores, portanto, até o momento derradeiro, quando nos chegou a graça divina. Assim que, saindo da vida, sofrendo e perdoados, para cá viemos, com Deus pacificados, agora movidos tão-somente pelo desejo de vê-lo".
Respondi: "A ninguém entre vós reconheço, pelas alteradas feições. Mas se algo posso fazer que de agrado vos seja, ó espíritos votados à luz, de boa mente o farei, pois que busco, por este sábio espírito conduzido de mundo em mundo, seguir caminho".
Disse um dos espíritos: "Sem necessidade de jura damos fé às tuas palavras de que podes cumprir tudo quanto nos acenaste. Aos outros eu me antecipo rogando tua atenção. Se acaso fores ter àquela cidade erguida entre a Romanha e a praça que é possessão de Carlos de Anjou, procura os meus familiares em Fano e roga-lhes que com piedosas preces abreviem o suplício com o qual pago os pecados outrora cometidos. Nasci ali, mas os rudes, sanguinosos golpes que a cara existência me cortaram recebi-os nos campos, onde habitam os descendentes de Antenor, região onde mais seguro eu julgara estar. Assim o exigiu a fúria do Marquês d'Este, o qual meu fim planejara, cheio de ódio. Ah! se na fuga eu me houvesse orientado para Mira, que está entre Pádua e Oriago, talvez ainda me encontrasse no mundo onde se come e respira. Mas os esbirros me alcançaram; corri pelo pântano, sem rumo certo, tombando por fim, em juncos e canas enleado, vendo meu sangue derramar-se fartamente no chão".
Outro clamou, depois: "Se puderes realizar o desejo de ultrapassar esse alto monte, por mim te mova a piedade prometida. Fui de Montefeltro e me cha mei Buonconte. Ninguém se lembra de mim, nem mesmo Giovanna, minha esposa; por isso ando de cabeça abaixada".
Disse-lhe eu: "Qual força ou qual desdita te arrastou tão longe de Campaldino, que nem se sabe onde é tua sepultura?" Replicou: "Junto ao Casentino corre um rio chamado Archiano, o qual nasce sobre Ermo, nas alturas apeninas. Lá, onde seu nome vão se torna, cheguei, ferido na garganta, fugindo a pó. Ao perceber que perdia a vista e a fala, clamei, antes do derradeiro suspiro: Maria!' Meu corpo tombou, pela alma abandonado. Direi verdade, podes repeti-la ao mundo. Ao anjo que meu espírito recolhia, o Demônio bradava: Por que me tomas esta presa, ó tu que vens do Céu? Dele me tomas a parte que é eterna, por graça de uma mísera lágrima final, mas sobre a parte corruptível exercerei um bom governo!' Bem sabes que o vapor, de água retorna quando pelo frio é acolhido nas elevadas alturas. Insistiu aquele danado, que em nome do mal grandes coisas pode, e contra mim moveu o fumo e o vento. Por fim, terminado o dia, do vale do Pratomagno à alta serra a neblina por inteiro envolvia, de luto, cobrindo a celestial abóbada. Na forma de chuva cai o vapor convertido em água, e as gotas que não se embebem na terra, tombando nos vales, formam regatos que velozmente em torrentes se convertem, contra as quais nenhum obstáculo eficaz se opõe. Junto à sua foz encontrando o meu cadáver, o avolumado Archiano empurrou-o ao Arno, desfazendo então a cruz que com meus braços formara quando pela dor caí vencido. Rodou-me o rio pelas margens e pelo fundo, cobrindo-me com areia e lodo e tudo quanto nele havia".
Quando calou-se o segundo espírito, um terceiro pôs-se a falar: "Ah! quando voltares ao mundo, e houveres repousado desta dura jornada, recorda-te de mim; sou Pia. (1) Siena me fez, Maremma me desfez! Bem o sabe quem me havia ornado com seu anel nupcial, preciosa gema".

* (1) Pia del Guostelloni foi morta por Nello Pannocchieschi, seu marido, que o fez por suspeitar de suas ligações com um jovem das vizinhanças. *

Canto VI

Ao final de um jogo de zara (1), o perdedor, entristecido, põe-se a ensaiar lances afortunados que lhe teriam mudado a sorte. Os assistentes partem, seguin do o vencedor. Todos querem a sua atenção. Sem deter-se, a este e àquele dá ouvidos, furta a mão daquele que a empolgou, e assim se vai defendendo dos que o pressionam. Do mesmo modo cercava-me a multidão compacta. Ora a um, ora a outro me dirigindo, com promessas logrei escapar de todos eles.
Entre eles estava o aretino que dos braços robustos de Ghin di Tacco teve morte horrível e ainda outro aretino que, andando à caça de homens, pereceu afogado. Adiante, mãos postas; erguia-me súplicas Federigo Novello e aquele pisano que ao pai, Marzucco, fez parecer varão muito forte. Vi também o Conde Orso e aquela alma separada do corpo, não por culpa cometida, mas por inveja e ódio. Refiro-me a Pier della Broccia, por cuja causa deve a que ora impera no Bradante expiar suas faltas para que não acabe entre os que sofrem suplício mais terrível.
Quando desliguei-me, enfim, da multidão que aflitamente encomendava orações abreviadoras de sua entrada na Mansão Divina, perguntei ao guia: "Bem claramente afirmas, em passagem de teu livro, que as preces não bastam para demover as disposições celestes. Contudo, ansiosamente as pede essa turba imensa. Será inútil a esperança de tantas almas ou compreendi mal teu texto?"

* (1) Jogo de dados popular da Idade Média *.

Disse-me: "Meu texto é claro, e a esperança destes não é vã. O mais Alto Juízo em nada se altera se o ardor de caridade, por via das preces, redime o padecente. E lá onde tal coisa afirmei, por estar distante de Deus quem orava, nenhuma prece pode ter valia. Não te perturbe tão profunda dúvida. Logo mais será desfeita por aquele lume que há de ser a ligação entre o teu intelecto e a Suma Verdade. Falo de Beatriz. Risonha e feliz a verás quando atingires o cume deste monte".
Respondi: "Mestre, urge caminharmos mais depressa; não sinto mais a fadiga que me atrasava os passos e do alteroso cimo já diviso a sombra". Tornou: "Continuaremos conforme estiverem nossas forças e enquanto o dia esteja claro. Mas advirto que as coisas não são como ao teu desejo parecem. Antes de que chegues ao cimo, tornarás a ver o Sol ora escondido pelo monte, em modo tal que já a tua carne não lhe intercepta os raios. Observa porém aquela alma solitária, cuja atenção está voltada para nós; irá nos ensinar o melhor caminho para subir".
Aproximamo-nos: Ó nobre alma lombarda, quão altiva e desdenhosa estavas, grave e lentamente movendo os olhos. Qual leão em repouso, majestosamente deixava-nos aproximar, sem nada dizer.
Virgílio achegou-se a ele, rogando nos mostrasse a melhor via. Por resposta nos perguntou qual a nossa pátria e a vida. O guia, todo meiguice, começou por dizer: "Em Mântua..." e já a sombra, comovida, a ele se endereçou, clamando: "Sou Sordelo, teu conterrâneo!" E em abraços ambos se estreitaram. Ah! serva Itália, morada das angústias, nau sem piloto em mar tempestuoso, imperial outrora, lupanar agora! Aquele nobre espírito, com o só ouvir o doce nome da terra, comum, ao conterrâneo abre os braços deleitosos, enquanto os teus filhos vivos travam em teu solo crua guerra, atiram-se uns contra os outros os irmãos que a mesma cidade encerra. Olha, miserável, o teu território inteiro, e vê se em algum lugar se pode fruir a paz! De que serviu Justiniano preocupar-se em ajustar os bridões, se ainda tens vazia a sela? Não fora essa ausência talvez fosse bem menor tua vergonha. Ah! gente de religião, ocupa-te das devoções e deixa que governe o imperador, cumprindo a lei por Deus promulgada! Nota como a falta de aguilhões açulou a fera dos maus instintos, depois que mãos sem firmeza tomaram as rédeas do governo. Ó Alberto da Germânia, que abandonas essa Itália tornada indomável, a qual deverias reger com dureza; caia sobre ti, por causa desse abandono, o justo castigo do Céu - castigo tão nítido e forte que todos compreendam a sua razão -, de modo que teu sucessor dele tenha receio. É culpa tua e de teu pai - mantidos, por mera cobiça em terra estranha - que o Jardim do Império se encontre em tal modo abandonado. Vê, ó negligente, Capuletos e Montéquios em permanente angústia; Monaldi e Filisppeschi em constante fúria! Vem, ó insensível, sentir a opressão em que vivem teus seguidores e ocupa-te em minorar-lhes as mazelas. Corre a Santafior, para saber como são tratados!
Vem ver tua Roma, que em deplorável estado, viúva e só, noite e dia chora e clama: "Por que não me acodes, ó César?" Vem medir o amor que reina entre teu povo, e se em nosso favor piedade não te move, mova-te a vergonha por tua descurada fama! Se me é permitido, ó Sumo Deus - por amor aos homens sacrificado -, estarão acaso Teus olhos justiceiros fixos em outras bandas? Ou, na profundidade insondável da Tua mente, nos reservas algum bem, ora vedado ao nosso entendimento? A infeliz Itália está repleta de tiranos, e qualquer um crê poder tornar-se um Marcelo.
Ó Florença, felizmente tal comentário não te diz respeito, mercê do proceder de teu povo, de outros povos exemplo! (2) Muitos destes trazem no coração o anelo da justiça mas não o demonstram precipitosamente, preferindo, prudentemente, aguardar momento favorável, enquanto o teu povo a tem nos lábios, permanente! Muitos recusam os encargos públicos, mas teus filhos, solícitos, respondem aos gritos, sem esperar chamado: "Eu me ofereço". Alegra-te, pois em ti o mundo encontra riqueza, prudência, paz! De que digo a verdade, os efeitos são a prova. Atenas e Esparta, que a elevada altura foram guindadas por leis e instituições, curto progresso tiveram se comparadas contigo, que te acostumaste a ver revogadas em novembro leis promulgadas em outubro. Quantas vezes, em muito pouco tempo, foram transformados leis, moedas, usos e costumes; transtornado o quadro dos cidadãos. E se sabes julgar com acerto, concluirás que bem te assemelhas a doente que no leito se agita constantemente, procurando em vão alívio para a dor.

* (2) Trata-se de cortante ironia do poeta para com a sua pátria *.

Canto VII

Conduzidos por Sordelo, os dois poetas chegam a um vale ameno, em que há belíssimo jardim. Neste vale avistam-se as almas de reis e príncipes que, tendo vivido apenas para desfrutar os prazeres do mundo, voltaram seus pensamentos para Deus apenas no instante final.
Depois de várias vezes repetidas as demonstrações de amizade, Sordelo afastou-se, perguntando: "Quem és?"
Eis a resposta dada por meu guia: "Antes que a este monte se endereçassem almas ao gozo do bem chamadas por Deus, já Otávio meus ossos enterrara. Sou Virgílio. Não foi por pecar que não entrei no Céu, mas por haver desconhecido a fé".
Estupefato, Sordelo se perguntava: "Será? Ou não?", Humilde, baixou a fronte, aproximou-se do poeta e abraçou-lhe os joelhos, clamando: "Ó glória dos latinos, que tão alto ergueste o nosso idioma! Honra eterna da amada pátria! Qual prodígio ou mérito me concede ver-te? Diz-me se vens do Inferno, e de região dele".
Virgílio respondeu: "Através dos círculos todos do reino dolente venho subindo, por virtude do Céu conduzido e a este outro conduzindo. Não por haver pecado, mas por não ter conhecido a fé, não me é permitido ver o Sol que ambicionas. Demasiado tarde Ele me foi revelado. Lugar existe, lá embaixo, destinado não a martírio, por trevas somente angustiado, onde se ouvem suspiros, mas não gemidos. Ali estou (no Limbo), em meio à grei inocente mordida pelos dentes da morte antes que da culpa humana fosse redimida. Permaneço entre os que, não conhecendo as virtudes da teologia, souberam contudo praticar as virtudes cardiais. Mas podes nos ensinar o caminho mais fácil para o Purgatório?".
E Sordelo: "Aqui, não nos é fixado lugar para detença. Posso ir e vir livremente. Sigo, pois, a servirte de guia. Mas, repara, o dia declina e subir, à noite, não se pode. Busquemos local para a pousada. À direita e a distância, está queda multidão de almas. Se concordas, levo-te até lá e, quem sabe, conhecê-las te alegre".
Foi-lhe respondido: "Como assim? Quem desejasse ir acima à noite ver-se-ia impedido? Ou não o conseguiria?"
O bom Sordelo, usando o dedo, fez um traço no chão: "Vês? Nem apenas este traço conseguirias cruzar depois de tramontado o Sol. Não devido a qualquer obstáculo erguido, mas à trevosa noite que dobra a vontade mais animosa. Se, porém, quisesses baixar caminho, ao redor da montanha, poderias livremente fazê-lo enquanto o horizonte oculta o dia".
Aturdido, meu mestre disse: "Leva-nos, pois, ao sítio a que aludiste, pois a demora e a ansiedade iguais vão se fazendo". Pouco adiante, observei, abriam-se vales iguais aos das montanhas terrenas. Anunciou a sombra amiga: "Iremos além, até onde a encosta se encurva, e ali o novo dia aguardaremos".
Inclinando-se entre escarpa e planalto, um caminho meio rude, meio sereno conduziu-nos ao vale, sua inclinação mais que ao meio se atenuando. Ouro
e prata de lei, vermelho, branco, azul profundo, marfim límpido e lustroso, verde puro de esmeralda ao se partir fulgente, felizes cores pelo vale se impunham às ervas e flores como o menor sujeita-se ao maior. E não só em pinturas se esmerava a natureza, mas de mil perfumes fizera essência única, misteriosa. Almas até ali ocultas pela concavidade do vale, quais flores sentadas sobre a relva, entoavam o Salve, Rainha.
Sugeriu o mantuano que nos conduzia: "Enquanto ainda houver sol de fora, não chegaremos mais próximos da turba. Desta altura, poderás reconhecer as feições e os atos dos que estão ali ainda melhor do que se vizinhos estivéssemos. Aquele que mais ao alto aparece negligenciou os seus deveres, e ora não abre a boca para seguir, dos demais, o canto. É Rodolfo, imperador que bem poderia ter sanado os males que deixaram tão rota a Itália - mas não o fez. O seguinte, que a olhá-lo parece oferecer conforto, reinou lá onde o Moldávia conflui no Elba e o Elba conflui no mar. Otocar é o seu nome e já na infância valia mais do que o filho, Venceslau, o Barbudo, rei totalmente dedicado ao ócio e à luxúria em vida.
"O de pequenino nariz, que com o anterior parece manter colóquio, ao morrer fugitivo, deslustrou a florde-lis. (1) Observa como bate no peito. Repara nesse outro que suspira, acamando na mão o rosto. (2) O pai e o sogro do mal de França: conhecendo a sua existência indigna, dela fazem a culpa que lhe atiram. (3) Esse membrudo, que faz coro ao cantar com o que tem nariz desmedido, foi guardião das virtudes. (4)

* (1) Trata-se de Filipe II, rei da França.
(2) Henrique III, de Navarra.
(3) Filipe III e Henrique III, pai e sogro de Filipe, o Belo, o mal da França.
(4) Pedro III de Aragão, o membrudo, e Carlos I de Anjou*.

E houvesse tido por sucessor no trono o jovem que à retaguarda vês sentado, o valor de um grande rei seria herdado por outro rei; mas tal não aconteceu com os que o sucederam. Nem Jaime nem Frederico (5), possuindo o reino, herdaram o melhor - as virtudes paternas.
"Raro a probidade é transmitida de geração para geração. Esta é disposição d'Aquele que a distribui, para que se saiba constituir ela um dom todo Seu. A esse de nariz grande, tais palavras se aplicam, bem como a Pedro que, a seu lado, canta enquanto Apúlia e Provença gemem. Tanto menor é o filho comparado ao pai quanto Beatriz e Margarida são inferiores em virtude àquele (Pedro III) cuja viúva é Constança. Ali se pode ver o rei de vida simples, Henrique da Inglaterra, sentado a sós; teve melhor sorte com seus descendentes. Mais para baixo, sentado e a olhar o céu, está Guilherme, por quem Alessandria, com a guerra, levou Monferrato e Canavese à ruína".

* (5) O que poderia ter sido bom rei é Afonso, o qual morreu jovem. Seus irmãos foram Jaime II, em Aragão, e Frederico, na Sicília *.

Canto VIII

Dante e Virgílio preparam-se para passar a noite no vale florido. Dante reconhece Nino Visconti entre as almas; e tem, de Conrado Malaspina, augúrio de seu exílio próximo.
Era a hora em que mais o navegante sofre de saudade naquele dia em que diz adeus a amigos queridos; o instante em que mais fere o amor ao que por ele se fez peregrino, ao ouvir, distante, um campanário chorar o fim do dia.
Parei de ouvir e observei a sombra que, erguendo-se, com gestos de mãos requeria ouvíssemos. Aproximou-se e alçou as mãos, olhos fitos no oriente, como que dizendo a Deus: "Só Tu importas a mim!" Te lucis ante, murmurou, com tamanha doçura e devoção que fez-me esquecer as preocupações. Logo, com devoção igual e igual enlevo, as outras almas seguiram-na a cantar o hino, olhos postos no alto.
Leitor, repara agora: convém aguçares o entendimento para enxergar além do véu da imagem ora bem sutil, para que seja fácil transpô-lo.
A multidão silenciou, humilde e pálida, a observar o céu, em ansiosa espera. E vi baixar da mais alta esfera dois anjos a empunharem flamejantes gládios de truncada ponta. Verdes quais recém-abertas folhas, os seus vestidos, elevados pelo vento, passavam além das flabelantes asas. Veio um deles pousar junto de nós, indo o segundo para a margem oposta, ficando entre os dois a nobre turba congregada. Eu discernia claramente seus cabelos louros, porém meus olhos, ofuscados por virtude excelsa, não podiam reconhecer seu rosto.
Então Sordelo anunciou: "Da parte de Maria ambos descem, a custodiar o vale contra a serpente que logo chegará". Não sabendo por onde viesse a maligna, com temor circunvaguei o olhar e enregelado de medo busquei o amparo das espáduas. Sordelo continuou: "É momento de ouvir aqueles altos espíritos. Desçamos, pois, ao vale. Irão alegrar-se ao nos ver".
Três passos pareceram-me suficientes para baixar ao vale e divisar um na turba a me fitar como que se esforçando por conhecer quem eu fosse. Já o ar se convertia em trevas, mas não ainda o bastante para ocultar aos olhos seus e meus que ambos fôssemos. A mim veio, a ele fui. Ó Nino, juiz excelente! Quanto me alegrou ver que não estivesses entre os condenados.
Foi aprazível o nosso encontro. Depois, perguntou: "Há quanto tempo chegaste, através do mar, ao pé desta montanha?" Tornei-lhe: "Oh! ainda esta manhã, não pelo mar, mas ao longo dos tristes sítios infernais. Ainda no gozo da vida terrena, nesse vaguear pelos soturnos pagos vou buscando merecer a vida eterna".
Ouvida a minha resposta, Sordelo e Nino, pasmados, recuaram, como quem de súbito cai em confusão. Um voltou-se para Virgílio e o outro disse à alma que lhe estava sentada próxima: "Vem, Conrado, ver o que pôde permitir a vontade divina!" E a mim, clamou: "Pela gratidão que deves Àquele que ao nosso entendimento oculta a Sua vontade primeira, imploro-te, ao regressares ao mundo além do mar temível: diz à minha filha Joana que rogue por mim, sendo Deus especialmente sensível à inocência. Não espero que sua mãe o faça, pois retirou os véus de viúva e casou-se novamente. Não faltarão à infeliz dores que a mortifiquem. Por ela se pode conhecer quão pouco arde na mulher a chama do amor se o contato ou a vista da pessoa amada não a alimentar sem cessar; melhor teria sido se não se casasse de novo, a modo de substituir em sua lousa sepulcral o galo de Gallura pela víbora de Milão". Isto disse, inflamado por aquele zelo que faz abrasar o coração.
Eu fixara no alto os olhos, lá no pólo, onde parece mais lento o giro das estrelas, como a parte da roda mais junto ao eixo. Perguntou meu guia: "Filho, que coisas miras lá no alto?" E eu a ele: "Aqueles três astros rutilantes (1) a cujo fulgor todo o pólo esplende". Tornou-me: "As quatro estrelas que vimos pela manhã ora jazem ocultas. Brilham estas em seu lugar, agora".
Virgílio ainda falava quando Sordelo anunciou, tocando-o: "Eis que chega o inimigo!", fazendo o dedo insistir na direção dos olhos. Logrei descobrir, na parte exposta do vale, uma serpente - a mesma talvez que induzira Eva a provar o mau alimento. Avançava entre ervas e flores, volteando a cabeça para um e outro lado, a língua alongando para tocar o dorso. Não vi, e pois descrever não posso, como foi que os guardiães celestes contra o réptil se atiraram. Percebendo o ar fender-se sob as verdes asas, fugiu a serpente, e então, voando calmamente, tornaram os anjos ao lugar de origem.
A alma que viera unir-se à do juiz continuara a fixar-me durante o tempo em que os anjos voavam.

* (1) Referência às três virtudes teologais. *

Começou por dizer: "A divina graça que ilumina o teu caminho seja alimento do teu desejo honesto e te conceda quanto necessário para atingires o Paraíso. Mas ora, se sabes alguma novidade acerca de Val di Magra ou vizinhanças, conta-ma, que eu lá tive domínio. Fui Comado Malaspina. Não o antigo, mas seu descendente: o amor que dediquei aos meus purifica-se aqui .
Tornei-lhe: "Jamais por ali andei, mas não há lugar na Europa em que a alta fama dos teus feitos não haja despertado ecos. A glória que teu brasão ressuma faz honra à gente e ao lugar, e mesmo quem não o viu seu valor proclama. Juro que se lá acima chegar, essa honra da estirpe terá para sempre aclamada a sua liberalidade e seu valor. Natureza e costumes excelentes fazem com que, enquanto no mundo os maus chefes tudo põem a perder, só essa estirpe despreza o vício em todas as suas formas".
Disse-me ele: "Parte, agora. Antes que o Sol percorra sete vezes o espaço que a constelação do Aries ocupa e cobre com suas quatro patas nos caminhos celestes, tua opinião a respeito dos Malaspina te será gravada no coração com fatos bem mais marcantes do que palavras ditas com mais ênfase(2). A não ser que o destino siga diferente curso".

* (2) Os Malaspina dariam acolhida a Dante durante os anos de exílio. *

Canto IX

Dante, em sonho, pensa estar sendo conduzido para o céu por uma águia de asas douradas; mas era Santa Lúcia que o levava à porta do Purgatório.
Já exibia sua alvura sobre o oriente a concubina de Titão antigo, deixando os braços de seu doce amigo. Sua fronte era ornada por uma jóia brilhante, a formar a figura do animal que com a cauda fere o homem. No lugar em que os cinco nos encontrávamos, elevando-se, já a noite percorrera espaço igual a duas horas; e se aproximava o terceiro espaço quando eu, herdeiro de Adão vencido pelo sono, recostei o corpo no solo e adormeci.
Pouco antes do amanhecer, quando a andorinha principia a emitir tristes soluços, pondo talvez em sofrer antigo o recordar, não mais sentindo o espírito opresso pelo medo; livre, portanto, para pensamentos altos, em visões divinas mergulhei.
Era como se pairasse no espaço águia de penas de ouro, asas abertas, intensa a baixar o vôo. Julgava-me na montanha em que Ganimedes abandonara os seus, para subir ao seio do alto consistório. Pensava: bem pode ocorrer que tal ave, acostumada a estas paragens, em nenhum outro lugar queira exercitar a caça. Depois de descrever algumas voltas e veloz qual raio, afigurou-se contra mim partir e para a região do Fogo Supremo alçar-me prontamente. Presumi, então, que eu e ave ardêssemos, e isso com tanta veracidade que o sono foi interrompido pelo vigor do falso fogo.
o próprio Aquiles não se surpreendeu tanto ao vagar os olhos despertos por local desconhecido quando Tétis maternalmente o tirou de Quíron e o levou a Sciro, de onde mais tarde seria pelos gregos encontrado. Assim fiquei, fugido o sono às pálpebras, tendo o semblante lívido.
Sempre a meu lado, o mestre me confortava. o Sol avançara mais de duas horas e para o mar eu olhava fixamente. Dizia-me o guia: "Tranqüiliza-te, não está longe o porto seguro. Ao Purgatório, por fim, chegaste. Um muro de rochedos o limita. Aquilo que aparenta ser falha no muro é a entrada. Ao crepúsculo matutino, quando no vale estavas imerso em sono sobre a relva florescida, apresentou-se distinta dama e disse: Sou Lúcia (1). Vou tomar a este que dorme e sua jornada tornar bem leve'. Sordelo e as outras três nobres almas permaneceram onde estavam. Apanhou a ti e, sendo já claro o dia, subiu, e eu lhe segui os passos. Aqui deixou-te, e com os olhos indicou-me a desejada porta. Depois, ela e o sono se foram".
Como o homem que, tendo padecido dúvidas, alegra-se e converte o temor em confiança ao ver restabelecida a verdade, senti-me transformado. Percebendo o guia que temor algum me sujeitava, partiu rumo ao alto. E eu o segui.
Leitor, já vês como elevo o tom do meu estilo. Não te seja estranho se com mais arte, com mais brilho doravante procure sublimar minha arte.
Em passo acelerado, já alcançávamos aquele ponto onde eu presumira divisar abertura na muralha.

* (1) Lúcia, símbolo da graça luminosa. *

Vislumbrei três degraus, cada qual de uma cor diferente, levando à porta guardada por um porteiro imóvel. De mais perto examinando-o, notei estar sentado no degrau superior. Ofuscou-me sua face refulgente. Na mão, trazia espada nua, a refletir sobre nós seus raios. Diversas vezes tentei fixá-la, em vão.
Inquiriu: "Qual é o vosso propósito? Quem vos guia? Não temeis as conseqüências de tamanha ousadia?" Respondeu o mestre: "Dama do céu, de tais conseqüências sabedora, nos instigou: Avançai por ali! É essa a suspirada entrada!"' Repôs o solícito porteiro: "E que ela faça progredir vossos passos no caminho do bem! Prossegui. O caminho para vós acha-se livre!"
Ao subirmos, percebi que o primeiro degrau era de alvíssimo mármore, tão bem polido que nele pude espelhar-me por inteiro. O segundo era escuro, não polido, talhado em pedra tosca e requeimada, fendida ao longo e de través. O terceiro, sobre os dois anteriores, era de pórfiro e de flamejante cor rubra; lembrava o sangue jorrando de uma artéria rompida. Neste degrau é que o anjo rutilante firmava os pés, sentado porém na soleira, que parecia feita de um só diamante.
Segui o guia obedientemente, ouvindo-o dizer: "Deves, com humildade, rogar que descerre a porta!" Pus-me de joelhos ante os sacros pés do anjo, rogan do-lhe por misericórdia que abrisse, e três vezes devotamente bati no peito com os dedos.
Gravou-me ele sete vezes a letra P (2) na fronte com a ponta daquela espada, ao tempo em que ensinava: "Lá dentro, arrependido, lava estes traços do pecado".

* (2) Inicial da palavra pecado. *

De sob as vestes, cuja cor repetia a de terra seca ou cinza, retirou duas chaves: de ouro uma; de prata, a outra. Primeiro a chave branca, depois a amarela aplicou na porta, tornando com isso completa a minha alegria. Explicou: "Se a fechadura não funciona ao impulso de uma das duas chaves, quer isso dizer que se nega entrada ao postulante. Se uma tem maior valia, mais arte e mais apuro tem a outra no abrir, cedendo-lhe ao empenho a prisão mais crua. Aconselhou-me Pedro, que as confiou a mim, que ao usá-las eu antes errasse em ser condescendente no atendimento do que em mantê-la cerrada, tendo o mundo ajoelhado aos pés".
Empurrou a porta sagrada, acrescentando: "Entra!, mas devo advertir que fica para fora quem se volta para trás!" Já descerrava a porta a visão do divino recinto, rangendo nos gonzos de metal fino e cantante. Não foi com estrondo igual que as portas de Tarpéia se abriram, quando resultaram vãos os esforços de Metelo, e o tesouro (de Roma) foi roubado.
Julguei ouvir cantar por mavioso coro o Te Deum laudamus. Tal melodia infundia-me a imagem que se tem quando, durante os coros acompanhados ao órgão, perdem-se algumas palavras entre as muitas que se consegue entender.

Canto X

Ultrapassando a porta, os dois poetas entram no terraço do Purgatório. Era um espaço estreito, três vezes maior que o corpo humano. Dante e Virgílio deparam ali os soberbos e os orgulhosos.
Transpusemos o limiar da porta bem pouco usada, pois o desordenado amor humano aceita por reto o caminho errado, quando, pelo estrondo ouvido, com preendi voltara ela a ser trancada. Mas se me detivesse para olhá-la, que explicação haveria de dar para a falta contra a qual fora bem avisado?
Por uma fenda aberta no rochedo, subíamos. Aconselhou o guia: "Aqui, o preciso é uma certa habilidade no acostar-se ora a um lado ora a outro".
Caminhávamos devagar, e já o crescente lunar se reclinava em seu leito no horizonte quando, afinal, deixamos a trilha, desembocando em espaço aberto ao pé do monte, sítio onde a subida fazia descanso.
Minhas forças já estavam no fim. Sem saber ao certo que caminho seguir, quedamo-nos em veredas mais solitárias que as do deserto. Calculamos que a sua borda distava da borda oposta, sobre a qual o rochedo se afirmava, distância igual a três vezes a altura de um homem. E tudo quanto meu olhar podia discernir, quer à esquerda, quer à direita, me dizia ser uniforme aquele lugar na sua largueza.
Ainda não tínhamos pisado em tal planura e percebi que a escarpa circundante, empinada a ponto de tornar impossível a escalada, era de mármore muito alvo, adornado com entalhes; para reproduzi-los, fora preciso recorrer ao talento de Policleto e à arte da própria natureza.
Aquele anjo que levou à Terra decreto de paz, durante muitos anos desejado por ser o acordo que abria ao homem o Céu, surgia ali esculpido, tão verdadeiro no gesto e no aspecto que nem parecia de pedra (1). Poderia jurar que bradava o Ave!, mesmo porque ali estava também figurada aquela que alto amor divino soubera volver a chave (para que Deus novamente amasse aos homens). Na postura suave parecia que dissesse de "Ecce ancilla Dei", tão nitidamente quanto uma cópia feita de cera.
Assim disse-me o mestre: "Não tenhas a mente presa unicamente a esse relevo!", e isso disse tendo-me daquele lado em que palpita o coração. Movi o olhar e divisei então à direita, para além de Maria, outra história imposta no mármore. Para vê-la melhor fui além de Virgílio. E admirei, esculpidos, o carro e seus bois a conduzirem a Santa Arca da Aliança lembrando aos leigos um gesto de humildade. Ao redor, aglomerava-se a gente, dividida em sete coros e aos meus sentidos cantos diversos entoando, pois enquanto meus ouvidos diziam "Não!", os meus olhos diziam "Sim, eles cantam!" Percebia igualmente subir o fumo do incenso e me parecia ao olhar que sim e ao olfato que não.

* (1) Referência ao Arcanjo Gabriel, que anunciou a Maria a Encarnação do Verbo. *

Precedendo o bendito vaso, dançava, com fervor, humilde, o salmista mais e bem menos que rei naquele instante. Além, debruçada à janela de grão palácio, Micol, ao assistir tal dança, admirava-se, mulher que era, orgulhosa e triste.
Afastei-me de onde me encontrava, a fim de ver de perto outra história que para além de Micol branquejava na pedra. No candor marmóreo, rebrilhava a altissonante legenda desse famoso romano imperador, por quem Gregório obteve tão alta glória. Refiro-me a Trajano, cujo cavalo é seguro pelo freio por mulher viúva, do cruel sofrer é prova o largo pranto. Ao redor se aglomeravam cavaleiros e sobre as bandeiras erguiam-se as águias latinas de ouro, esvoaçando aos ventos. Rodeada pelos guerreiros, parecia dizer a infeliz mulher: "Vingança, senhor! Morto está o meu filho e eu sem conforto choro!" E pôde-se ouvir Trajano responder: "Espera o meu regresso". Ela respondeu: "Senhor, e se não regressas?!" E ele: "Quem me suceder te ouvirá". Ela: "Como esperar que outro cumpra em teu nome o dever de que tu próprio foges?" E ele: "Tua desgraça e teu ânimo me convencem. Cumprirei meu dever sem mais demora!"
Aquele para quem nada é novo produzira tal prodígio novo para nós, pois neste mundo tal não existe. Enquanto eu me encantava na observação de tais exemplos de humildade, o poeta dizia:
"Um sem-número de almas se aproxima, em passos lentos. Conheceremos por seu intermédio as vias que nos hão de conduzir ao cimo".
Meus olhos, que se compraziam no admirar os portentos, rápido volvi para atentar na turba. Não pretendo, ó leitor, que dos retos pensamentos ora te afastes ao ouvir como é que Deus pretende lhe sejam pagos os débitos do pecado. Não ponhas na pena a tua atenção, mas concentras na suma beatitude que seguirá à expiação, pois além da sentença não alcança o castigo.
Eu respondi: "Mestre, o que vem para cá não me parece sejam almas. o que possam ser, contudo, não me sugere o meu turbado espírito". E ele a mim: "o peso de seu castigo constringe-os a caminhar assim, curvados para o solo. Tanto que também a minha vista à vista deles se turbou. Mas já podes perceber que, sob o peso de grandes pedras, todos vêm batendo no peito".
Cristãos cheios de soberba, infelizes de alma cega que para trás caminhais na doutrina, não julgando sequer adiante, dai-vos conta de que os homens somos o verme de que surgirá a borboleta angelical que sobe à justiça divina sem obstáculos. Por que vos ensoberbece o orgulho, se não sois mais do que insetos imperfeitos, incompletos no seu desenvolvimento? É comum ver-se a sustentar forro e telhado, cariátide com os joelhos unidos ao peito; e quem a olha comove-se pela falsa postura e pela dor suposta. Dor igual senti ao reparar nas almas que se aproximavam. Vinham curvadas - umas menos, outras mais - segundo o peso de seus pecados. E parecia que as ouvia dizer: "Não posso agüentar mais!"

Canto XI

No primeiro recinto do Purgatório, Dante e Virgílio ouvem Humberto Aldobranesco; não podem, porém, identificá-lo em meio à turba dobrada ao peso das gigantescas pedras. Dante reconhece o pintor Oderísio de Gúbio.
"Ó Pai nosso, que estais no Céu, porém não circunscrito, mas sim por dedicar maior amor às primeiras de Vossas criações - que todas as criaturas louvem Vosso nome e poder, nas Vossas três pessoas. Venha a nós a paz do Vosso reino - que aspiramos a alcançar, não por nossos méritos, mas por Vossa bondade; como a vontade própria dos anjos se humilha ante o querer Vosso, sob os doces cantos do hosana, assim se humilhem os homens. Dai-nos o pão cotidiano, sem o qual, neste áspero deserto, retrocede o que julga andar avante. E à medida que perdoamos a quantos nos fazem mal, perdoa, benigno, os nossos pecados, sem olhar a pequenez de nosso merecimento. Nossa virtude, que tão facilmente se deixa abater, não a sujeiteis à prova com a tentação do inimigo, mas fortalecei-a contra ele, que a procura vencer. Esta última prece, Senhor, não a fazemos por nós, que de seus efeitos já não temos necessidade, mas pelos que ficaram para trás!"
Assim avançavam as pobres sombras, curvadas ao peso de suas culpas, como em pesadelos que sofremos às vezes. Cruzavam, ofegantes, o primeiro círculo, expurgando-se das manchas trazidas do mundo terreno. Se lá por nosso bem elas oram, aqui no mundo o que podemos dizer ou fazer em benefício de quem já recebeu o sinal da graça? Ajudemo-las (com nossas preces) a lavar as impurezas do pecado, para que, sem jaça, alcancem o páramo estelar.
"Que justiça e piedade consigam para vós breve alívio, a fim de que possais livremente mover as asas, conforme é vosso desejo! Socorrei-nos, agora, indican do-nos a vereda mais curta e menos escarpada, se mais de um caminho existir para a escalada, pois este a quem acompanho, gravado ainda pelo peso das carnes de Adão, por mais que se esforce, é a custo que avança."
As palavras com que se deu resposta às palavras do meu guia não identificaram quem as pronunciava. Mas ouvimos: "Vinde conosco à direita, ao longo da encosta, e encontrareis o passo que melhor há de servir a esse ainda vivo. Não pelo peso da pedra que, domando meu orgulho, mantém no solo o meu olhar, gostaria de fixar o rosto desse que vive, a fim de constatar se não o conheci e obter que me seja compassivo. Nasci na Itália, de toscano ilustre. Guglielmo Aldobrandesco chamou-se meu pai e presumo que seu nome vos seja conhecido. A glória e o renome do sangue antigo tamanho orgulho em mim despertaram que deslembrado da origem comum das criaturas por todos os homens alimentei desprezo. Nesse estado morri, conforme é sabido por todos os seneses, e em Campagnatico sabem-no até mesmo as crianças. Humberto foi meu nome; a punição pelo orgulho desmedido não tocou somente a mim, mas coube por igual a todos os meus. Bem mereci, portanto, este fardo que meus passos embaraçando demonstram o acerto da justiça divina. Se não paguei quando estava vivo, é justo que pague morto".
Curvei a cabeça enquanto escutava. Um daqueles, não o que falava, mas outro, estorcendo-se debaixo do fardo, fixou-me e, reconhecendo-me, gritou meu nome, com esforço mantendo em mim o seu olhar. Contudo, caminhávamos, e eu ia como eles curvado. Eu lhe disse: "Não és Oderísio, mestre da iluminura?" Volveu-me: "Irmão, mais coloridos e mais alegres são os trabalhos que atualmente agradam, como aqueles de Franco de Bolonha. A sua glória é também minha, em parte. Esta verdade não proclamei no mundo, quando vivo, pois a isso me impedia o mundano desejo de em tudo ser o primeiro. Dessa soberba aqui se paga a pena. Estaria em pior lugar, não houvesse mostrado a Deus que de meus pecados, no extremo momento, me arrependera. Ó glória vã dos ímpetos humanos! Quão pouco dura o verde no cimo, se não seguido de época medíocre! Cimabue julgou ter o cetro da pintura, mas hoje sua fama é menos que nada; o nome de Giotto, por outro lado, é celebrado (1). Assim um Guido a outro tomou o cetro da poesia e bem provável é haver nascido o que a ambos há de superar. A glória mundana não é senão sopro de brisa que ora vem daqui ora dacolá, mundano o nome conforme muda de lado. Que fama haverá, pois, de ti, ao fim de um milênio, quer deixes a vida no extremo passo da velhice ou ao tempo do inconsciente balbucio infantil? Pois da eternidade à face, o mais dilatado tempo é menos que um bater de cílios lá do Céu no mais tardo círculo.

* (1) Cimabue parecia acreditar ser o maior pintor de seu tempo. o juízo crítico atribuiu esse privilégio a Giotto di Bondone, discípulo daquele. *

Esse que caminha à minha frente a tão lentos passos foi a seu tempo, na Toscana, senhor de grande renome. Agora é apenas lembrado em Siena, onde dominava quando ela foi atacada pela fúria florentina, poderosa então quanto é hoje desprezada. A fama dos homens - flor que se abre e definha mercê do mesmo Sol que a fizera vingar".
Disse-lhe eu: "O teu dizer instila-me humildade e abominação ao orgulho. Mas quem é esse a quem te referiste?"
Respondeu: "É Provenzan Salvani e aí vês no que resultou a presunção de com suas mãos subjugar Siena. Deve caminhar assim, sempre curvado, sem jamais deter-se, desde sua morte. É sua paga por ter se dedicado à soberba no mundo".
E eu: "Se o espírito do homem que no fim da vida se arrependeu de seus pecados deve aguardar lá embaixo (no Antepurgatório), até que se escoe tempo igual àquele que viveu, contando com o só auxílio das orações, como se explica haver podido Provenzan chegar aqui em cima?"
Respondeu-me: "Quando tinha poder, percorreu por vontade própria, e com humildade, a cidade de Siena; qual pobre penitente esmolou, a fim de obter o resgate de um amigo tido em prisão pelo Rei Carlos. Nesse mister tremeu, mísero e angustiado. Mais não direi. Se julgas que meu falar é obscuro, teus conterrâneos hão de te fazer conhecer, bem pronto, quanto custa sofrer. O gesto de Provenzan livrou-o de penar mais atrozmente".

Canto XII

Os dois poetas continuam seu caminho pelo primeiro terraço do Purgatório. Um anjo lhes indicará a passagem para o próximo recinto.
Íamos - como os bois levados lado a lado pelo jugo - eu e aquela alma opressa, quando meu mestre aconselhou: "Deixa de estufa-la agora; sigamos em frente. Convém dar mais velocidade a nosso barco, valendo-nos de vela e remo".
Pus ereto o corpo e comecei a andar; seguia os passos de Virgílio, embora meus pensamentos continuassem modestos e humildes. Movendo os pés mais rapidamente, busquei não ficar atrás do meu mestre.
Ele me disse: "Mais fácil te será a caminhada se atentares para o solo em que pisas!" Tal qual, nas sepulturas dispersas pela terra, as lápides pretendem manter viva a memória dos mortos pelo aflorar das lembranças que soem pungir as almas piedosas; assim vi, esculpidas com bem maior qualidade artística, muitas figuras sobre o leito da estrada que subia, ao longo da encosta.
Vi o ser mais nobre do que qualquer outra criatura, que terminou expulso do céu, qual raio fulgurante. Também vi Briareu, fulminado pelo projétil celeste, gelidamente estendido sobre o solo. Timbreu, Marte e Palas vi ainda ostentando suas armas, reunidos ao redor de Júpiter, seu pai, a fitar os esparsos membros dos gigantes derrotados (1). Vi Nemrod a volver o olhar espavorido para os companheiros que, como ele, junto a Sanaar, se perderam pela soberba, na feitura da obra desmedida (2). Ó Níobe, com que tristes olhos figuravas ali, entre os mortos - sete e mais sete filhos teus! (3) Ó Saul, ali estavas, extinguida a vida pela tua própria espada, tal como se deu na montanha de Gilboé - a qual, depois disso, nunca mais recebeu a bênção da chuva ou do orvalho! (4) Ó Arame enlouquecida, pude ver-te já pela metade em aranha transformada, entre os escombros da obra que de teus males foi a causa! Ó Roboão, aqui temor já não causa o teu franzido cenho; antes, cheio de susto, estás de fugida em célere carruagem. Ainda mostrava o duro pavimento como foi que Alcmeão obrigou a mãe a pagar mui caro seu funesto adorno. Mostrava ainda, exemplo de feroz castigo, Senaquerib assassinado, em um templo, por seus próprios filhos. Exibia a desgraça e o cru exemplo de Tâmiris dizendo a Ciro: "Tiveste sede de sangue, sacia-te agora". Indicava como haviam fugido os assírios em seguida à morte de Holofernes, e os castigos que nessa fuga conheceram. Pude ver Tróia, inflada de soberba, reduzida a pó e ruínas. Ó poderoso Ílion, quão humilhante foi o teu final!"

* (1) Trata-se dos cadáveres dos gigantes que haviam ousado assaltar a morada dos deuses.
(2) A obra mencionada é a torre de Babel.
(3) Tendo sete filhos e sete filhas, Níobe quis humilhar Latona, que só teve dois filhos, Apolo e Diana; furiosos, estes dois mataram a flechadas os catorze filhos de Níobe.
(4) Derrotado pelos filisteus no Monte Gilboé, Saul - primeiro rei de Israel - matou-se com a própria espada. *

Que artista, no cinzel ou no pincel, pudera deixar sombras e figuras passíveis de maravilhar o observador dotado do mais alto espírito crítico? Mortos os mortos e vivos os vivos, assim os contemplei, e mesmo aquele que alcançou ver os originais desses fatos não viu algo mais perfeitamente verdadeiro do que eu vi no chão enquanto cabisbaixo avançava. Curvai a fronte, abandonai a postura altiva, filhos de Eva, e observai sob os pés o vosso caminho sombrio!
O Sol desenhara seu giro pelo céu bem mais adiante do que eu pensava, absorto; aquele que sempre atentamente caminhava ao meu lado disse: "Le vanta a cabeça! Basta de caminhar tão absorvido. Observa aquele anjo que a toda pressa vem ao nosso encontro. No curso do dia, passou já a sexta hora. Reveste de reverência teu olhar e teus gestos, para que o anjo nos deixe subir à altura seguinte. A manhã deste dia que termina não retornará".
Habituara-me a seguir o princípio do meu guia, de bem aproveitar o tempo. Foi por isso que em suas palavras não encontrei exagero. Junto a nós chegava aquele ser formoso, trajando branco, resplendente a face qual trêmula estrela matutina. Abertas as asas e estendidos os braços, bradava: "Vinde! Estão próximos os degraus pelos quais se pode subir e o aclive é mais brando. Poucos são os que podem ouvir este convite. Ah, raça humana, que Deus criou para voar nas altas esferas! Por que te aniquila o mais tênue vento?"
Guiou-nos para degraus escavados na rocha, e com uma das asas me roçou a fronte, tranqüilizou-me na subida. Quem pela face direita subir aquele monte donde se avista a igreja que domina Florença, ao pé do Rubaconte, percebe que a inclinada escarpa é vencida graças aos degraus abertos na rocha em um tempo quando ainda a malversação e a falsificação estavam longe de turvar a tarefa cívica dos florentinos. Do mesmo modo, onde eu me achava os degraus atenuavam a fragura da rocha, entre um e outro círculo; quem subisse se encontraria comprimido pela penedia de ambos os lados.
Galgávamos os degraus quando ouvimos cantar Beati pauperes spiritu! em tão suave voz que não alcanço descrever por mais que me esforce. Ah! quão diversos são estes círculos daqueles antros infernais! Aqui, cantares divinos; lá, gritos irados!
Quanto mais subia eu os degraus santificados, mais ágil me sentia. Mesmo na planura anterior, nunca me parecera tão fácil seguir caminho. Observei: "Diz-me, mestre, qual fardo ingente me foi retirado. Sucede que neste rápido e íngreme caminhar não sinto mais cansaço!"
E ele me respondeu: "Quando os PP que ainda tens traçados com nitidez sobre a fronte forem apagados, hás de ver como a alma posta em pureza pode aligeirar o ritmo dos pés, a ponto de nenhum cansaço desde então sentir. Ao contrário, alegria há de ser para ti a continuação da caminhada".
Como quem, tendo algo na cabeça que lhe foi colocado sem que soubesse, começa a suspeitar de algo estranho pelos sinais que os passantes lhe fazem, e termina por levar a mão à cabeça - assim foi que, levando à minha cabeça os dedos da mão direita, percebi que das letras PP traçadas pelo anjo havia apenas seis. O mestre, que me observara, sorriu.

Canto XIII

Dante e Virgílio encontram, no segundo recinto, as almas dos invejosos; elas nada viam, pois suas pálpebras estavam costuradas nos olhos por fios de metal. Dante fala com Sapia, uma dama de Siena.
Atingíramos o alto da escada, onde novamente o monte tinha a passagem estreitada no caminho das almas que sobem expiando os pecados.
Uma cornija cingia a colina inteira, diferindo da anterior apenas por apoiar-se em arcos menos largos. Não exibia, como a outra, formas e figuras em relevo. Era toda lisa, desde a entrada escarpada, e tinha a cor neutra da pedra.
O guia me disse: "Se ficarmos esperando quem nos mostre o caminho, receio que nos atrasemos". Erguendo os olhos para a posição do Sol, firmou o corpo sobre o pé direito e voltou-se para a esquerda.
Disse: "Tu, a quem por completo me entrego, pois és luz clara que tudo ilumina, conduz-nos, aqui, pelo caminho que melhor se oferece, aclarando o recinto. És quem aquece o mundo, luzindo sobre ele. Se razão mais alta do que a nossa não to impede, faz com que teus luminosos raios nos guiem sempre!"
Distância igual àquela que na Terra se conta por milha havíamos coberto, dado que o desejo apressava nossos passos, quando julgamos perceber, voan do em nossa direção, alguns espíritos invisíveis, alternando em doces vozes convites para a freqüência à mesa de amor e caridade. A primeira das vozes que por nós passou disse com clareza: Vinum non habent!, e a frase ainda repetia, muito além do ponto em que nos achávamos. Mas antes de perder-se aquela voz, outra nos dizia: "Sou Orestes!", e sem demora para o além dirigiu-se.
"Que vem a ser isso, mestre?", clamei. Mas tão logo pronunciei tais palavras, eis que a terceira se fazia ouvir: "Amai os vossos inimigos!" o mestre foi dizendo: "Este círculo faz purgar a culpa da inveja. É oamor quem vibra o instrumento de castigo, pois o corretivo desse mal é bem o seu contrário - a caridade. Antes de que atinjas o portão que dá entrada ao círculo seguinte deverás ter disso exemplo, segundo firmemente creio. Por ora fixa atentamente a frente e verás, ao longo da parede rochosa, multidão de espíritos a esperar".
Pus-me mais atento do que nunca. Pude assim distinguir sombras inúmeras, envoltas em mantos da cor da fria rocha. E quando ainda um pouco mais adiante fomos, ouvimos que invocaram: "Rogai por nós, ó Maria!" E outros invocavam Pedro, e Miguel, e muitos outros santos. Não acredito caminhe pelo mundo homem de coração indiferente a ponto de não se comover com o que então presenciei. Aproximei-me, procurando distinguir melhor em cada sombra qual fosse o seu aspecto e o seu gesto; quando constatava seu sofrimento, lágrimas sem conta me rolaram pelas faces. Um ao outro servia de arrimo e todos na rocha buscavam alívio, cobertos de cilícios. É assim que os cegos, aos quais falta o mais necessário, nos dias de indulgência vão pedir esmolas ao redor das igrejas, uns aos outros sustentando, coisa que nos corações bondosos logo desperta a piedade, menos pelo soar das palavras rogatórias do que pelo testemunho do comum sofrer. E como aos olhos dos cegos o Sol não chega, assim também, no lugar que ora descrevo, não queria a luz do Céu alcançar aquelas sombras.
Um fio de ferro lhes fechava as pálpebras, tal qual se usa para reduzir a fúria do gavião selvagem, o qual nem por isso se mostra tranqüilo.
Pareceu-me indigno andar ao seu redor, buscando reconhecer-lhes as feições, quando não podiam observar as minhas. Mudamente pedi ajuda ao mestre, com os olhos. Sem esperar que eu insistisse, ele disse: "Fala, mas sê breve e arguto!" Virgílio caminhava, nesse instante, daquela banda do caminho onde nenhum resguardo protege contra o precipício. Do meu outro lado ficavam as almas cujos olhos costurados vertiam lágrimas abundantemente.
Comecei: "Ó almas, que estais seguras de chegar a contemplar o Excelso Lume, ambição que é vosso desejo único! Que a graça apague em vós todos os traços do pecado, de modo que limpidamente perpasse por ela o fio luminoso da vontade, a fim de que me digais se há gente que tenha vindo da Itália. Talvez possa eu reconhecer alguém".
"Todos somos cidadãos da mesma pátria, mas tu perguntas quem de nós viveu na saudosa Itália." Tais palavras pareceu-me ter ouvido, em resposta às minhas. Mas de longe vinham; avancei então, para melhor conhecer a quem me devia reportar.
Uma sombra entre as demais parecia aguardarme, ereto o mento, como se em linguagem de cego perguntasse: "Quem?" Perguntei: "Tu, que para subires te purificas no sofrimento, se és quem há pouco respondeu ao meu apelo, dize-me quem foste, e de onde vieste".
"Fui senesa. Choro, implorando perdão Àquele que pode perdoar; ofereço reparação pelos muitos pecados de uma vida daninha. Sábia não fui, embora Sapia me chamasse. Maior felicidade tive ao saber da infelicidade alheia do que gozando a minha própria ventura. E para que não creias que te engane, conhecerás quão desatinada fui pelo que te vou narrar, sucedido já no declinar da vida. Estavam os meus conterrâneos nos campos de Colle, dando ao inimigo combate, e eu pedi a Deus que se opusesse aos que por mim lutavam. Derrotados, puseram-se em triste fuga e eu, vendo-os envoltos na desgraça da perseguição, alegrei-me como nunca. A tal ponto chegou a minha ousadia que, para o céu erguendo o olhar, clamei contra Deus: Já não O temo!', sonora qual melro a gozar no meio do inverno uma tépida bonança. Paz roguei a Deus quando o fim da vida me chegou; não poderia resgatar a grande dívida com que minha alma estava onerada se o bom Pier Pettinagno em suas santas orações, movido por espírito de caridade, não se houvesse de mim lembrado. Mas quem és tu que nos podes interrogar, podendo respirar e enxergar livremente?"
Eu lhe disse: "Os olhos também eu os terei ligados aqui, embora por tempo curto, pois grande não é a minha falta no terreno da inveja. Bem maior é o receio que tenho do tormento que se conhece no primeiro círculo, e isso a ponto de já me parecer pesarme sua carga".
Ela me perguntou: "Quem te conduziu até aqui, para o meio de nós, e te faz estar certo de que ao mundo tornarás?" E eu: "Este que ao meu lado permanece silencioso. Eu ainda vivo e se pretendes que lá na Terra obtenha sufrágios em teu favor, usa comigo de sinceridade".
Tornou-me ela: "Maravilha-me tanto o que dizes! Sem dúvida tens o favor divino. Rogo-te, pois, me auxilies com tuas orações. Pelo que te for mais caro, quando voltares a pisar a terra da Toscam, aviva o meu nome entre meus descendentes. Irás encontrá-los entre a gente estulta que se esforça em vão em Talamone, onde, tal como ao tempo em que se procurava o curso do Diana, os almirantes irão nele se afundar".

Canto XIV

Ainda no segundo recinto do Purgatório - onde se encontram os invejosos -, Dante é interrogado por espíritos cujos olhos estão costurados.
"Quem é este que nos vem visitar sem que a morte lhe tenha ordenado isso, e que pode cerrar e abrir os olhos à vontade?" "Ignoro quem seja, mas sei que não vem sozinho. Interroga-o tu, que lhe estás mais próximo; e assegura-lhe que terá boa acolhida."
Assim, à minha direita, dois espíritos falavam a meu respeito, alçando ambos as tristes cabeças. Disse-me um deles:
"ó alma que ainda ligada à prisão corpórea podes escalar o caminho do Céu: acede em consolar-nos, segundo os princípios da santa caridade, e dize-nos quem és e de onde vens. É enorme nossa surpresa ante tua aparição".
Eu lhes disse: "Através da Toscana flui um rio que humilde nasce em Falterona e por mais de cem milhas estende o curso. Desde um sítio à sua margem conduzo este meu corpo cansado. Inútil seria dizer-vos quem sou, pois meu nome não ganhou ainda notoriedade".
E me respondeu uma das almas: "Se bem entendo, ao falar de rio, fazias referência ao Arno". A outra sombra interrompeu: "Por que não mencionaste do rio o nome verdadeiro? Tal palavra possui talvez sentido mau?"
Quem lhe respondeu foi a sombra que falou primeiro: "Isso não sei, mas bom seria que também o nome do vale por onde tal rio passa fosse esquecido por todos. Desde o nascer, lá onde é rica de águas a serrania que Peloro unira outrora; e percorrendo regiões menos irrigadas, até o ponto em que o mar recebe compensação pela água que o céu lhe toma, graças à evaporação que dá vida e volume a muitos rios: todos os homens, nesse trajeto, livraram-se das virtudes como se fossem víboras, ou por efeito do clima adverso ou por código moral que repele o bem. Os habitantes desse triste vale tiveram tão mudada sua condição humana que parecem apascentados pela maga Circe. Principia o rio por abrir caminho entre porcos dignos de bolotas e não de manjares gratos ao paladar do homem. Baixando o curso, encontra gente acostumada a aparentar virtudes que não possui, povo do qual o rio, por desdém, desvia o curso. Vai baixando rumo à planura, e quanto mais engrossa esse maldito e infeliz caudal, mais encontra cães mudados em lobos. Irrompe em leito dilatado e depara raposas tão matreiras que armadilha alguma logra aprisioná-las. Do futuro direi coisas espantosas a quem me quiser ouvir. E bom será, para este que me ouve, conservar tais palavras na memória, pois oportunidade encontrará de verificar que a verdade é que me inspira. Vejo teu neto, feito caçador, perseguir aqueles lobos sobre a margem desse rio maldito, destruindo-os todos. Vende a carne deles quando ainda vivos, mata-os depois, como se abate rês inútil. A muitos priva da vida e a si mesmo priva da honra. Sai ensangüentado da amarga selva, deixando-a de todo exangue".
Quem ouve um aviso de perigo mostra-se perturbado, seja qual for a desgraça mencionada. Assim ficou o outro espírito, que, tendo-se voltado para entender melhor, triste se pôs ao conhecer tais profecias. Ouvir a um e assistir do outro ao gesto fez-me curioso de saber quem fossem. Roguei me satisfizessem. O espírito que iniciara a conversação recomeçou:
"Queres que eu diga meu nome, quando não quiseste revelar o teu. Mas sendo evidente que por Deus é favorecido, não me furtarei ao que pedes: sou Guido del Duca. Meu sangue por tal forma se excitou sob o mal de inveja, que sorriso surpreendido em rosto alheio no meu rosto espargia rancor. Estou colhendo o que semeei! Ó raça humana, por que induzes o coração a inclinar-se por aquela paixão malsã que não permite a partilha da felicidade? Este ao meu lado é Rinier: honra e glória da casa dos Calboii, em cuja estirpe ninguém lhe herdou o valor. E não somente a sua gente se fez mísera de virtudes entre o Pó e as montanhas, entre o mar e o Reno, renunciando àquela bondade necessária à verdade e a uma vida honesta. Mas, pior ainda, pela extensão de seus domínios alastram-se o vício e a desordem, de modo que nenhuma cultura sadia é ali possível. Onde estão os bons Lizio e Arrigo Manardi? E Pier Traversaro? E Guido di Carpigna? Bolonha, quando terás um novo Fabbro? Quando surgirá em Faenza outro Bernardin di Fosco, tronco robusto nascido de modesta semente? Não te espante o meu prantear, ó toscano, pois rememoro nossos coetâneos, Guido da Prata, Azzo Ugolino; e Federigo Tignoso e sua gente; e as grandes casas Traversara e Anastagi, dignas de meu lamento por se extinguirem sem herdeiros; damas e cavaleiros, de cuidados e gestos inspirados em amor e cortesia, já não se vêem nessas terras onde os corações se fizeram empedernidos! Ó Brettinoro, por que não desapareces, depois que as melhores entre as tuas famílias fugiram para não se contaminarem com os teus pecados? Bem fazem os condes de Bagnacaval, que não têm mais filhos homens; mal age a estirpe de Castrocaro e pior ainda a de Confio, que geram fidalgos tão perversos. Bem farão os Pagan quando os deixar o Demônio; sem que, no entanto, jamais possam livrar-se da triste pecha. Ó Ugolin de Fantolin, seguro ficou o teu bom nome, pois já não tens varão que o possa deslustrar. Mas segue, agora, ó toscano; pois me amarguram tanto as lembranças da pátria que o pranto consola-me mais do que as palavras".
Sabíamos que aquelas almas podiam ouvir nossos passos, e que, calando-se, nos asseguravam quanto ao acerto do caminho escolhido. Tendo-as deixado, eis que nos ares vibra esta voz repentina:
"Quem me encontrar, me mate!", que fugiu tal trovão ao se afastar, se a nuvem que o contém se rompe. Assim que cessou esse clamor, sucedeu outro de igual fragor, como um trovão depois de outro trovão: "Sou Aglauro, transformado em rocha!"
Procurando aproximar-me de Virgílio dei um passo, não avante, mas lateral. Já por todos os lados estava quieto o ar, e o mestre disse:
"Este troar deveria significar para o homem freio capaz de contê-lo em seus limites. Mas mordeis sempre o anzol, agarrando a isca que vos é dada pelo demônio, sem dar importância a freios ou advertências. Chama por vós o Céu que vos cerca, exibindo belezas eternas, mas vossos olhos estão fixos à terra; pelo que sois punidos pelo Todo-Poderoso".

Canto XV

Dante e Virgílio alcançam o terceiro recinto, e deparam os iracundos. Dante experimenta uma espécie de visão; voltando a si, vê que se adensa a sua frente uma nuvem de fumaça.
O espaço da esfera de luz, que, tal qual uma criança, está sempre em movimento, mediava entre a terceira hora e o crepúsculo. Declinando o Sol como que para na noite dar entrada, lá era o instante das vésperas; aqui, a meia-noite.
Os raios de luz feriam o nariz, mas eis que havendo em torno do monte caminhado, dirigíamos passos na direção do ocaso, quando senti em pleno rosto fulgor muito mais intenso que o outro. Dominou-me aquele estupor que é próprio dos prodígios. Elevei, pois, as mãos para cima dos olhos, buscando minorar os efeitos da forte luz. Como ao se refletir em água calma ou em espelho um raio de luz toma direção oposta, de modo que o ângulo de incidência é igual ao de reflexão - conforme ensinam ciência e experiência -, assim me parecendo ter a vista ferida por luz refletida, desviei o olhar.
Indaguei: "Quem é, ó mestre amado, esse que me ofusca a ponto de não poder fitá-lo e que parece vir ao nosso encontro?"
Respondeu-me: "Esse que se aproxima é mensageiro celestial a convidar-te para subir mais alto. Prontamente entenderás - e com alegria - que por efeito de tal graça te sentirás tão gloriosamente feliz quanto é dado a ser humano".
O bendito anjo se aproximou e, com meiga entonação, anunciou: "Vinde, que este lanço da escada é menos difícil que os anteriores".
Subíamos, já longe da entrada, quando ouvimos atrás de nós cantar o Beati misericordes! e o Alegra-te, ó triunfador! O mestre e eu subíamos. Pensei po der, em tal circunstância, tirar proveito dos conhecimentos seus. Perguntei: "Que tencionava dizer-nos aquele espírito da Romanha ao aludir a gozos impossíveis de repartir?"
Respondeu-me: "Conhecendo agora as conseqüências do seu pecar, não lhe causa estranheza que os homens na Terra não façam algo para aliviar o seu tormento no Purgatório. A inveja é mal que conduz a muitos suspiros intranqüilos, pois que os desejos do invejoso objetivam unicamente os bens mundanos, e estes, devendo por sua natureza serem gozados por muitos possuidores, fazem que a parte usufruída por cada qual resulte sempre menor, desprezível mesmo. Bem o contrário ocorre quando o desejo dos homens se volta para o amor divino. Não haja receio de que, sendo muitos a gozar da beatitude celeste, resulte menor a delícia de cada um, pois é da natureza divina que o bem-estar do indivíduo aumente o bem-estar geral".
Eu lhe disse: "Agora estou ainda menos esclarecido a este propósito do que antes de haver-te interrogado, pois tuas palavras sugerem dúvidas maiores. Como pode ser que um bem dividido entre muitos enriqueça o bem geral ainda mais do que se o mesmo bem fosse entre alguns poucos dividido?"
E ele: "É que continuas raciocinando segundo interesses terrenos. Assim, onde brilha a luz mais forte não consegues senão ver trevas. Esse bem inefável, celestial, procura o amor dos homens tal qual o raio de luz procura corpo que o reflita. Quanto mais intenso for o amor da alma na busca da luz divina, tanto mais essa divina luz envolverá e aquecerá a bendita alma. E quanto mais gente para o Céu for subindo, cada uma das almas terá aumentada a capacidade de amar e mais fundamente se aplicará ao amor divino, pois cada qual, à guisa de espelho, reflete sobre as outras a sua própria felicidade. Se ainda minhas explicações não esclarecerem tuas dúvidas, hás de encontrar em Beatriz argumentos mais adequados para inteirar-te das razões divinas. Esforça-te, pois, para que depressa te sejam canceladas as cinco manchas que ainda em tua fronte vejo impressas. Há de apagálas contrição sincera".
Antes que eu dissesse "Começo a compreender!", eis que penetramos no círculo imediatamente superior. Calei, para os lados voltando olhos ansiosos por novidades. Quedei extático, acreditando vislumbrar um grande templo, onde numerosa multidão se entregava à prece. Meiga matrona à entrada interrogava com semblante caridoso:
"Filho, por que procedeste assim para conosco? Eis que teu pai e eu ansiosos te buscávamos". Pronto escapou-me a visão. Mas logo divisei segunda senhora com o rosto molhado por aquelas gotas que o sofrer destila, anunciadoras de mágoas aninhadas por despeito em ânimo iroso. Clamava:
"Se és senhor da cidade por cuja posse os deuses guerrearam e onde todas as ciências têm cultores, castiga os ímpios braços que ousaram, ó Pisístrato!, enlaçar a nossa filha!" O convocado, sereno e justo, sem rancor no rosto, respondia: "Que deveremos então fazer com aqueles que nos querem mal, se castigarmos aqueles que demonstram amar-nos?" Em seguida assisti a multidão desvairada, em raiva acesa, lapidar a um jovem, aos gritos de "Mata! Mata!" Já curvado para o solo, o triste moço endereça olhar aos portais celestes, encontrando, em tamanho sofrimento, forças para em favor dos cruéis perseguidores orar ao Senhor dos Céus. Em seu rosto sofrido, o piedoso sorriso da virtude resplandecia.
Quando meu espírito retornou ao corpo, dando-me ver não visões, mas a realidade circundante, reconheci que no êxtase vira não ilusões falseadas, mas a face da verdade. O mestre, que me via proceder qual pessoa do sono ainda mal desperta, perguntou: "Que há contigo para caminhares assim vacilante? Mais de meia légua, por certo, vens andando com inseguro mover dos pés, os olhos cerrados qual indivíduo que os sentidos houvesse entregue ao sono ou ao vinho". Disse-lhe: "Caro mestre, se consentes em dar-me ouvidos, dir-te-ei quanto meus olhos contemplaram enquanto titubeantes podias ver os meus joelhos". Ele tornou: "Se trouxesses a face coberta por uma centena de máscaras, não me seriam ocultos, por menores que fossem, os pensamentos que ainda há pouco te enlevaram. Tudo quanto te foi dado ver lá em cima foi decretado, a fim de que se abra mais facilmente o teu entendimento às fontes do amor que eternamente fluem do coração de Deus. Não perguntei Que tens?' como faz aquele que só vê com os olhos do corpo; mas sim perguntei para acelerar teus pés. Pois cumpre ativar o passo aos que por lassidão retardam o andar, mesmo estando acordados".
Caminhando pela tarde, e alongando o olhar pelo caminho tão longe quanto podíamos, fomos rumo ao fulgente raio vespertino. Eis que vimos levantar-se fumaça, que se condensou à nossa frente, tenebrosa qual noite escura. Fomos cobertos por ela de todo.

Canto XVI

Dante e Virgílio entram na nuvem de fumaça dos iracundos. São acompanhados pelo espírito de Marco Lombardo, que entabula com Dante uma conversação sobre a corrupção na Lombardia, bem como no mundo.
A fumaça nos encobria, provocando escuridão tal que nem no Inferno eu vira. Jamais algo assim espesso e pungente fora estendido contra meu rosto (1). Cerrei os olhos, não suportando tê-los abertos. O meu sábio e diligente companheiro, vindo em ajuda, em seu ombro deu-me guarida. Qual o cego que a seu guia vai unido para não se extraviar ou não se chocar com obstáculo que o moleste, talvez o mate, assim eu, por aquele ar tenebroso, imundo, segui meu condutor, que repetia: "Cuidado para não te afastares de mim!"
Eu ouvia vozes; parecia-me que suplicassem misericórdia ao "Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo". Principiavam pelo Agnus Dei, sendo uniformes as preces e a melodia, de modo a revelar geral concórdia. Perguntei ao mestre: "São espíritos os que ouço cantar?" Respondeu-me: "Sim. E por esse modo desatam os nós da ira que os ataram ao pecado".
"Quem és tu, que a névoa fendes e falas a nosso respeito como criatura viva a medir o tempo pelo calendário?" Foi dito por uma das vozes. O mestre aconselhou-me: "Responde, e pergunta se por aqui se vai subindo". * (1) Uma densa fumaça envolve os iracundos, lembrança da ira que na Terra não lhes permitiu enxergar as virtudes e seus méritos. *

Acrescentei: "Ó criatura afanada em tornar-te isenta de culpa junto d'Aquele que te criou; ouvirás maravilhas se me seguires". Respondeu: "Seguir-teei quando me for permitido, e se a fumaça não facultar que nos vejamos, as vozes ajudarão a nos mantermos unidos".
Comecei: "Ainda trago o espírito vestido por aquele corpo que a morte usa suprimir. Subo desde as baixuras infernais. E se Deus me favoreceu ao permitir que eu chegue a ver a Sua Corte, por modo estranho aos costumes vigentes, dize-me quem foste antes de morto e qual o caminho para a subida. Tuas palavras seguiremos".
"Meu nome é Marco, e fui lombardo. Conheci bem o mundo e amei aquelas virtudes às quais, hoje, ninguém dá valor. Para encontrar o bom caminho, avança à frente", disse, e acrescentou: "Rogo intercedas por mim ao chegares lá acima".
Assegurei-lhe: "Acredito em ti. Prometo fazer quanto pediste. Mas angustio-me em meio à dúvida que necessita ser esclarecida. No princípio era simples, mas palavras tuas e outras, ouvidas antes, fazem-na dobrada. Segundo dizes, o mundo terreno está deserto de virtudes, grávido e sepulto pelos pecados. Rogo-te aclares os motivos de tão funesto estado, para que eu aprenda e os reproduza a outrem. Eis que alguns o atribuem a desígnio divino, outros à perversão humana".
Um suspiro sentido escapou-lhe do peito. Depois, disse: "Irmão, o mundo é cego e bem vejo que dali procedes. Vós, os viventes, atribuís ao Céu as causas de todos os efeitos, como ser por ele tudo determinado resultasse. Se assim realmente acontece, destruído o livre-arbítrio, não seria justo receber alegria pelo bem e dores pelo mal. De fato as vossas ações são iniciadas com a permissão divina. Não digo que todas; mas admitindo que assim suceda, tendes a luz da razão que permite discernir o bem do mal. Sendo livre a escolha, quem se esforça e obtém a vitória em nome do Céu tudo o mais vencerá, se do bem se nutre. Natureza mais poderosa vos concede o raciocínio, o arbítrio, para que, usando-o, não fiqueis, em tudo, na dependência do Céu. Se, apesar disso, o mundo desviou-se do bom caminho, em vós está a causa. Disto, dar-vosei agora cabal demonstração. Sai a alma das mãos do Criador (que a ama antes que ela exista), a modo de criança brincalhona, ora ri, ora soluça. Apenas criada, toda ingenuidade, ela inclina-se para tudo o que lhe dá prazer, pois emana de Deus, suprema alegria. (2) Volta-se para os gozos fúteis, extraviando-se a seguilos, se regras ou freios não regulassem o próprio amor, impedindo seja perdida a visão da justiça divina. Leis, portanto, existem; mas quem as segue? Ninguém, pois o pastor, que aos mais precede, rumina as palavras, mas nega o bom exemplo. Desse modo, o povo, que observa o cobiçoso proceder dos chefes - uns e outros ansiando pelo gozo dos bens terrenos -, ceva-se nestes, nada mais de nobre cultivando. Agora podes facilmente deduzir que a má conduta dos chefes, e não a decadência ou condescendência das leis naturais, é causa de haver-se o mundo corrompido. Costumava, essa Roma que modelou o mundo, iluminar-se com dois sóis: o das leis terrenas e o das regras divinas. Ora, um ao outro apagou; juntaram-se o báculo e a espada;

* (2) Dante resume a doutrina de Santo Tomás de Aquino. *

mal unidos, à força, mal caminham, pois não se respeitam mais, na união forçada. Se às minhas palavras não dás crédito, repara na natureza que não mente, pois cada erva se conhece pela semente que produz. Valor e cortesia encontravam-se em abundância nas terras banhadas pelo Adige e o Pó, antes que Frederico movesse guerra à Igreja. Atualmente, todo desalmado pode tranqüilamente adentrar a Lombardia, sem receio de incômodos, pois toda a região está viciosa, corrupta. Três anciãos há, contudo, nessa terra, que com suas vidas contrastam os costumes antigos e os modernos, tardando sabiamente Deus em chamá-los a melhor viver. São eles: Conrado da Palazzo, o bom Gherardo e Guido de Castel, chamado, segundo o estilo francês, o Lombardo. A Igreja Romana, por reunir ambos os poderes antigos, enlameia-se e de fazer o bem abre mão".
Eu então disse: "Marco, ouvindo tais argumentos, percebo por que os filhos de Levi, sacerdotes, foram excluídos de qualquer herança. Mas que Gherardo
é esse que invocaste, representante da glória e brasão de antiga raça, censurando este século repleto de vícios?"
Tornou: "Pretendes que eu fale ainda mais ou me queres enganar! Pois como é possível, falando italiano, que ignores Gherardo? Com outro nome não o conheço. Só posso dizer mais ser o pai de Gaia. Bem, acompanhe-vos Deus; já não posso seguir convosco. Eis que branqueja o dia por entre a fumaça. Devo partir, pois o dia antecede ao anjo".
Dito isso, foi-se, sem mais nada desejar ouvir.

Canto XVII

Os dois poetas alcançam a entrada do quarto recinto do Purgatório - no qual se redimem os que negligenciaram as obras da fé e da caridade. Virgílio explica a Dante como se distribuem as almas nos sete círculos do Purgatório.
Leitor, se alguma vez já foste surpreendido na cordilheira por névoa densa, através da qual não podias enxergar, tal qual uma toupeira, recorda-te de que ao principiar a descerrar-se a cortina úmida e espessa iam-se infiltrando débeis raios de Sol. Podes então imaginar qual foi o Sol que logrei rever. Pisando as pegadas do meu fiel mestre, saí da cerrada nuvem para a luz solar, que já não iluminava a base da montanha.
Ó fantasia, que podes enlevar o espírito a tal ponto que do enlevo não desperta nem com o soar de mil tubas, que te move, estando dormidos os senti dos? Move-te a luz no Céu formada por si ou por um querer onipotente. Pois minha imaginação me levou a contemplar aquela que por castigo de seus crimes foi transformada na ave que em cantar encontra alento. Por tal modo ficou presa minha mente a tal visão que nenhuma outra impressão exterior podia dominála. No mesmo êxtase, em seqüência, vi homem na cruz distendido, conservando, enquanto morria, arrogância e altivez (1).

* (1) Trata-se de Amã, ministro do Fiel Assuero; é o segundo exemplo de ira punida. *

Ao seu redor estavam Assuero, o grande rei, Ester, sua esposa, e o prudente Mardoqueu, que foi sempre reto no dizer e no fazer.
Mas esta visão fugiu-me tão rapidamente quanto a bolha que, formada pela água, à falta da água de que nasceu rebenta. Foi-me dado ver em seguida donzela a exclamar, em prantos: "Por que, ó rainha, por vias da ira buscaste a morte? Não querendo perder Lavínia, perdeste a vida e a mim tens perdida, a chorar a tua desgraça mais do que outra qualquer tristeza". (2) Assim como o sono é interrompido quando luz forte e repentina bate nas pálpebras cerradas, e elas pestanejam antes que tudo se desvaneça; assim desapareceu a visão, ao ter eu sobre as faces clarão tão vivo que igual na Terra jamais foi observado. Voltei-me, buscando reconhecer o sítio onde me encontrava; porém, desse intento desisti ao ouvir voz que comandava: "Sobe por aqui!" Minha alma foi então assaltada por desejo tão ardente de conhecer quem tal dissera que certamente ficaria conturbada se não o satisfizesse. Mas assim como o Sol, deslumbrando a vista, impede-a de fixá-lo, faltaram-me forças para fixar a fonte de tal voz.
Assim falou meu guia: "Trata-se de espírito celeste que, sem ser solicitado, vem indicar o bom caminho. Em sua própria luz se mantém oculto. Age para conosco qual o homem em relação a outro homem, pois aquele que percebendo semelhante em apuros aguarda o pedido de socorro já está, malignamente, a excogitar recusa. Apressemo-nos em aceitar tão útil convite, pois convém subamos antes que a noite desça.

* (2) A Rainha Amata, supondo que Turno, noivo de sua filha Lavínia, houvesse sido morto por Enéias, suicidou-se num acesso de ira. É o terceiro exemplo de punição. *

Mais tarde, não o poderemos fazer, senão esperando que o Sol regresse". Caminhamos então rumo à escada divisada. Chegávamos ao primeiro degrau quando percebemos ruflar de asas; presumi sentir bafejo no rosto, e ouvi: "Beati pacifici, pois estão livres da ira!" Já acima de nós empalideciam os raios solares que precedem a noite, surgindo estrelas por todos os lados. "Ó ânimo! Por que me abandonas?", murmurei de mim para mim, ao sentir-me desfalcado das forças que às pernas dão vigor. Havíamos atingido o ponto mais alto da escada. Ali nos quedamos imóveis, qual o navio que, finda a viagem, na praia se imobiliza. Atentei para ver se algo podia ouvir do novo círculo, voltando depois a interrogar o mestre:
"Dize-me, ó pai querido!, quais pecados são purgados neste círculo? Não esteja o teu verbo tão silencioso quanto imóveis estão nossos pés!" E ele a mim: "Aqui, o sofrimento aplica castigo merecido àqueles que na prática do bem foram remissos. o tardo remeiro aqui se apressa e pune. Para que melhor compreendas, dá-me a tua atenção, bem aproveitando, desse modo, nossa parada. Nem ao Criador nem à criatura faltou jamais amor, quer venha da própria alma, quer seja instilado pela natureza. o amor natural é sempre livre de erro. o outro, porém, pode errar. Ou na direção, ou por excesso, ou por tibieza. Quando se endireita no rumo dos bens divinos, considerando menos os bens terrenos, não pode dar como resultado um criminoso afeto. Se, contudo, se desvia para o mal e em proporções se excede, ofende ao Criador do qual é criatura. Podes agora compreender que o mesmo amor, nos homens, pode ser semente de virtudes ou germe de todos os pecados. Ora, aceitando que o amor não pode desviar o seu propósito da finalidade que o criou, e da qual e para a qual vive, segue-se que, havendo amor, é impossível que o amor se torne ódio. E porque nenhuma criatura existe sem que exista o Criador, no próprio amor confundem-se aquela e Este, nenhum ódio entre ambas existindo.
Não podendo, pois, o homem odiar nem a si próprio nem ao seu Criador, resta odiar o próximo; e este amor ao mal por três modos diferentes atua sobre o humano limo. Há os que, cobiçosos de grandeza e glória, intentam alcançá-las mediante a ruína de outrem, a quem sonham ver por terra, destruído, suprimido. Há os que, temerosos de perder glória, poder, honra e fama, se outrem se apresenta a disputar-lhas, contristam-se ao vê-lo progredir, pois mais apreciariam saber que recuava. E há os que, atingidos por injúria, fazem da vingança seu objetivo, esmerando-se em praticar o mal contra o semelhante. Nos planos inferiores a este, são purgadas estas três formas de perversão do amor. E agora atentes para o sucedido com o que desordenadamente insiste em procurar o bem. Cada qual idealiza confusamente o que seja o bem, e ao redor dessa iìdealização se aflige e contende para alcançar a plenitude do bem. Aqui se dá, conforme a contrição, o merecido castigo àquela forma de amor que se mostrou no mundo lento e incerto ao eleger e cultivar o verdadeiro bem. Outro bem existe (3) que, porém, ao homem não dá felicidade; pois não é a felicidade, não sendo a essência do bem, fruto e raiz de toda virtude. O amor voltado aos bens materiais recebe castigo nos três círculos acima. Melhor do que as minhas palavras, contudo, é que o vejas tu mesmo."

* (3) É o amor às coisas materiais. *

Canto XVIII

A noite cai. Virgílio mostra a Dante que a alma tende naturalmente para o bem e para o prazer, mas sofre influência da vontade. Eis que surgem as almas dos negligentes na prática do bem e da virtude.
Terminando seu discurso, Virgílio, observando a expressão em meu rosto, procurava saber se eu ficara satisfeito. Para ele eu calava, mas dizia a mim mesmo: "Talvez o aborreça com tantas perguntas!" Mas aquele que valia por verdadeiro pai, apercebendo-se do meu tímido e silencioso querer, falando, deu-me a coragem necessária. Disse-lhe, pois:
"Mestre, quando ensinas, tanta luz derramas em meu espírito que alcanço clara e distintamente quanto desejas que eu compreenda. Rogo-te, doce e paciente guia, reveles a origem desse amor a que atribuíste a causa de todas as ações, boas ou nocivas". Replicou: "Concentra em mim toda a força do teu intelecto, e ser-te-á patente quanto erra o cego que se propõe a servir de guia. Sendo a alma criada com inclinação para o amor, corre ao encontro de tudo que lhe acene alegrias, se em nome do amor nessa direção for convocada. Para que o instinto do amor se transforme em ato de amor, o teu entendimento recolhe imagens que, desenvolvidas no íntimo, atraem outras almas. E quando elas se entregam, essa entrega é o amor, é a própria natureza que, pelo liame do prazer amoroso, de novo se funde com o homem. É qual chama que busca elevar-se, em virtude de sua forma que para o alto sempre tende, em direitura do centro onde sua remota origem ainda arde; é pelo desejo que a alma se incendeia, num impulso espiritual que não aplaca enquanto do objeto amado não consegue a posse ambicionada.
"Agora estás habilitado a conhecer quanto permanece oculta a verdade para as criaturas que sinceramente crêem ser toda espécie de amor, por si mesma, coisa acertada e boa. Eis que a matéria pode parecer sempre boa, mas nem todo selo será bom, ainda que a cera de que se compõe seja de boa qualidade". Respondi-lhe eu: "Se tuas palavras e minha atenção completa puderam revelar-me a natureza do amor, estimularam em mim outras dúvidas ainda maiores. Pois se o incentivo ao amor vem de fora do ser, e se a alma se move em direção do amor, ao ser pelo amor atraída, o encaminhar-se pela via do amor para um caminho bom ou mau não me parece que deva ser, para ela, certo ou errado".
E ele: "No que toca a esse tema, posso dar-te apenas argumentos que apelam à razão. Mas como para essa dúvida a solução se acha mais no terreno da fé que no da razão, deves aguardar que Beatriz te elucide. A substância espiritual, distinta da matéria, mas nem por isso menos identificada com esta, guarda virtude específica que somente é sentida quando atua; de si denunciando o efeito pela ação assim como o verdor das folhas demonstra existir vida na planta. Eis por que o homem desconhece de onde lhe vem o entendimento das primeiras sensações, o inclinar-se inicial das paixões, as quais são instintivas, como é instintivo para as abelhas preparar o mel. Ora, esta primeira tendência - a de querer amar - não acarreta nem louvores nem admoestações.
"Mas precisamente para que, em torno e em seqüência deste primeiro querer, se acrisolem altos objetivos é que a razão é inata em nós, incumbindo-lhe a vigilância da porta pela qual entram as paixões na alma. Este é o princípio donde provém o castigo ou o prêmio, segundo a razão faça inclinar para o bem ou para o mal a paixão amorosa. Os filósofos que se aprofundaram em estudos sobre esta inata liberdade de escolher vo-la transmitiram nas lições de moral. Por ela se aprende que ainda quando, por necessidade, todo o amor possível em vosso imo se acendesse, restar-vos-ia, para discipliná-lo, o exercício do autodomínio. Beatriz considera essa alta virtude como livrearbítrio. Ela discorrerá a tal respeito, mais à frente."
A Lua, quase à meia-noite, ia surgindo, e fazia as estrelas ainda mais pálidas ao nosso olhar. Contra o fundo celeste, percorria caminho contrário àquele por onde o Sol busca o crepúsculo, conforme é visto pelos romanos a fulgurar entre a Sardenha e a Córsega. Virgílio rematara resposta à minha dúvida. E eu, que recebera explicações lúcidas e completas sobre a questão proposta, sentia-me qual homem que, sonolento, vaga entontecido. Desta sonolência fui subitamente acordado por multidão de almas que à nossa retaguarda e em nossa direção se encaminhava. E como os rios Ismeno e Asopo, outrora, viram-se cruzados por bandos desesperados de tebanos, dentro da noite clamando em altas vozes pelo deus Baco; assim os daquela turba penitente, por desejo reto e por justo amor impelidos, apressavam-se, ofegantes, a cruzar o círculo. Correndo, alvoroçada, logo alcançou-nos a multidão em cuja vanguarda dois vultos, em prantos, bradavam: "Maria corre pressurosamente para a montanha" e "Para subjugar Lérida, César venceu Marselha antes de voar à Espanha. Depressa! Avante! Não haja perda de tempo, não falte o zelo de apressar o passo!", alguns clamavam; e gritavam outros: "Que o desejo do bem revigore em nós a graça divina!".
"ó almas em quem o atual fervor substitui, busca apagar a incúria e a negligência do passado, quando na prática do bem não se aplicara, dizei a este que é vivo, e com isto mentira não vos digo - o qual aspira a prosseguir subindo, tão logo surja a aurora -, dizei onde está situada a escada certa!" -, foram palavras do meu guia. Respondeu-lhe um dentre os espíritos: "Acompanhai-nos e encontrareis a passagem. Não podemos parar, tão intenso é o anelo de cumprir nossa estrada, e isto esclareço para que entendais não haver injúria na pressa com que andamos. Fui abade de São Zeno, em Verona, sob o reinado de Barba-Roxa, o Bom, a quem Milão recorda tristemente. Alguém, que já um pé tem dentro da cova, há de em breve nesse mosteiro ser chorado juntamente com o poder de que fora exornado. Pois em prejuízo do chefe verdadeiro, foi colocado ali um filho aleijão, bastardo e estúpido".
Não sei se silenciou, tanto já se achava à nossa frente. Mas essas palavras pude ouvir com clareza, e as memoro com prazer. Foi quando Virgílio, que me socorria em todas as necessidades, sugeriu: "Olha para ali, para aqueles dois espíritos que acerbamente reprovam a lentidão dos preguiçosos". Postados à retaguarda da multidão, clamavam: "Por preguiça foi morta aquela gente para quem se abriu o mar, antes de receber do Jordão a herança. Depois morreram, perdendo por seu querer alta fama e grande glória, aqueles que desistiram de seguir o filho de Anquises".
Quando a fila das almas afastou-se tanto que eu já mais nada podia distinguir, nova inquietude se apoderou de mim. Desta vieram outras, e por tal forma entre uma e outra vagueava o pensamento que cerrei meus olhos, lentamente, e do pensar deslizei para o sonhar.

Canto XIX

Dante, guiado por Virgílio, atinge a íngreme via que conduz ao quinto terraço; o Anjo suprime da fronte de Dante mais um sinal. Os poetas irão se encontrar com as almas dos avarentos, e conhecer seu suplício.
À hora da noite em que o calor do dia já não é suficiente para vencer o frio que sobe da Terra, ou que desce da Lua - momento em que os astrólogos podem observar surgirem as constelações dos Peixes e do Aquário a precederem a alva - foi mostrada a mim, em sonho, uma mulher; ela gaguejava, era vesga, era torta no caminhar, suas mãos eram deformadas e sua tez macilenta (1). Fitava-a, e assim como o Sol aquece os membros que pela noite o frio agrava, sob o efeito do meu olhar ela movia a língua, alçava o corpo e já no lívido, desbotado semblante surgiam cores agradáveis, como o quer o amor.
Tendo, pois, libertado o seu falar, principiou a entoar tão doce e inebriante canto que muito me custaria desviar dele a atenção. "Sou", dizia, "a sereia insinuante. Nos mares desgarro os navegantes, tamanha sedução se desprende do meu canto. Cantando seduzi Ulisses. Do enlevo a que conduz este cantar, poucos logram escapar!" Não havia cerrado os lábios quando, ao seu lado, a confundi-la com o olhar, surgiu dama celestial. "Ó Virgílio, ó Virgílio!", imprecou, severa, "quem é esta?"

* (1) Essa mulher simboliza a tentação que leva o homem a pecar entregando-se aos prazeres materiais. *

Acorreu o meu guia, respeitoso ante senhora de tão celeste aspecto, a qual, tolhendo as mãos da funesta sereia, rasgou-lhe as vestes, pondo-lhe o ventre a descoberto. Para acordar-me, o fedor que dali saía foi o bastante. Abri os olhos e ouvi o mestre dizer: "Três vezes pelo menos te chamei. Eia, ergue-te, sigamos procurando abertura por onde possas subir". Ergui-me, pronto. Já os picos do sacro monte estavam iluminados pelo dia. Às nossas costas nascia o Sol. Acompanhando o guia, eu tinha baixa a fronte, como quem leva a mente ao peso de dúvidas, curvado qual o meio arco de uma ponte, quando ouvi esta voz: "Vinde, por aqui se pode subir!", modulada em tom assim suave e benigno como igual não se ouve em nosso mundo. Tendidas as asas, iguais às de cisne em alvura, quem nos falara indicava passagem entre alcantis. Moveu em seguida as penas, agitando o ar ao nosso redor e clamando: "Venturosos os que choram, pois aqui terão a alma repleta de consolação!"
Passado o lugar onde o anjo pousara, o mestre perguntou-me: "Por que olhas somente para a terra?" Respondi: "Temor é que me mantém assim. Em sonho apareceu-me Figura por tal forma estranha que inda agora sua impressão não se desvaneceu". Tornou: "Viste aquela antiqüíssima feiticeira, razão dos males que no círculo acima são purgados. Verás como o homem dela se liberta. Basta desse cogitar, acelera o passo e fixa os olhos nesse céu que Deus criou quase como um convite para mirar".
Procedi como o falcão, que primeiro observa os seus pés e depois levanta vôo no afã de encontrar caça. Expeditamente venci o que restava do caminho escavado entre rochas, até o novo terraço onde se recomeça a caminhar em giro.
Penetrando no quinto círculo, deparei gente pranteando, posta em terra, rosto voltado para o solo. Adhaesit anima mea pavimento (2) murmuravam, entremeando palavras e suspiros, de modo tal que me foi difícil entender o sentido delas. "Ó eleitos de Deus, cujo sofrer encontra alívio na justiça e na esperança, dizei-nos como subir a degraus mais altos". "Se a vossa punição já foi cumprida e ora velozes pretendeis subir, avançai de modo a manter sempre a vossa direita para o exterior da rocha." Assim perguntou o poeta e assim lhe foi respondido por alguém que adiante se encontrava.
Supondo que em tais palavras existisse intenção oculta, consultei com os olhos os olhos do meu guia, e este, com ledo gesto, acedeu ao desejo que em meu olhar percebera. Podendo assim dispor de meu querer, afastei-me para o lado, em direção àquele vulto cuja voz atraíra minha atenção. Disse-lhe: "Ó espírito que lacrimoso expias culpas, eliminando o mal que te impede o acesso a Deus! Sustém um pouco, em meu proveito, esse prantear contínuo. Quem foste? Por quais pecados jazes voltado para o solo? Tais coisas espero que me digas, se desejas que lá no mundo de onde venho, vivo, em teu favor impetre algo valioso".
E ele a mim: "Dir-te-ei o porquê de nos castigar o Céu por este modo; mas antes convém que scias quod ego fui successor Petri. Entre Siestri e Chiavari corre um rio formoso. Dele tirou origem o título de minha estirpe. Em mês e pouco tive a prova de quanto pesa o grande manto papal a quem se proponha mantê-lo sem manchas.

* (2) "Minha alma rojou-se ao pó". *

Comparado a este, todos os mais fardos parecem feitos de plumas. Minha conversão, ai de mim!, foi tardia! Apenas eleito pastor de Roma, quanto é frívolo o viver mundano fiquei sabendo. Meu coração desconheceu a paz e a quietude. Dando-me conta de que mais alto não poderia subir na vida terrena, ardi por completo no amor desta vida divina. Mísera e distanciada de Deus era até então a minha alma, perdida em dura avareza, de que, conforme vês, vai sendo purgada. Aqui são punidos os avaros, no mais duro castigo purgado neste monte, pois ao céu nosso olhar não se pode erguer, fixando apenas as mesmas coisas terrenas que, por muito amadas, desviaram de Deus o nosso olhar. Havendo a avareza extinguido em nós a intenção do bem, a justiça divina quer-nos punir com fazer-nos apenas olhar as coisas terreais. Pés e mãos estreitamente unidos, enquanto aprouver a Deus aqui permaneceremos, imóveis, estendidos".
Eu havia me ajoelhado; queria falar-lhe mais. Ele, porém, percebendo meu gesto com o só tê-lo ouvido, atalhou-me observando: "Por que te curvas?" respondi-lhe: "Em reverência à vossa dignidade papal. Não quer minha consciência que me conserve ereto". Observou: "Fica de pé! Levanta-te, irmão! Não cometas tal erro! Iguais somos, eu, tu e todos os outros, obedientes a uma única potestade. Se compreendeste o sentido exato do Santo Evangelho, quando diz Neque nubent, conhecerás o porquê deste meu raciocínio.
Segue, agora. Já te detiveste aqui demais. Ocorre que tua presença aqui diminui o tempo de meu chorar, e é com lágrimas que apresso o perdão. Na Terra,
o único parente que me restou chama-se Alagia; é minha sobrinha, e tem bons sentimentos. Que a ruindade inata dos nossos não a tenha corrompido!".

Canto XX

Os poetas - ainda no quinto recinto - deixam o Papa Adriano V e vão se entreter com o espírito de Hugo Capeto; este lhes faz duros vaticínios. Pouco depois disso, um forte abalo faz tremer o Purgatório.
Uma vontade simples não pode superar uma vontade mais forte. Assim, para contentar aquela alma tive de deixar a minha descontente. Meu guia conduzia-me pela senda ao longo da rocha, tal qual, perlongando-se as ameias, se vai às torres de castelo. Do lado oposto, próximo à orla, aglomerava-se turba dos que, gota a gota, de muito lacrimar, expurgam aquela culpa que ao mundo todo avassala. Maldita sejas, velha, loba, cobiçosa mais que outras feras, jamais tendo mitigada a tua fome! O céu, a cujo mover-se, segundo se crê, devem ser atribuídas as mutações das condições humanas, quando será escorraçada do mundo a avareza?
Nossos passos eram lentos e medidos. Eu pusera atenção naquelas sombras que percebia a chorar e lamentar-se piedosamente. Eis que ouvi, à frente, "Doce Maria!" alguém clamar, com a entonação da mulher que padece dores de parto. E acrescentar: "O quanto foste pobre se pode aquilatar pela humílima estalagem em que deste à luz o teu fruto santo". E mais: "Ó bom Fabrício, que preferiste ser pobre virtuoso a viver em opulência pecaminosa". Tanto me agradaram tais palavras que apressei o avanço, a fim de conhecer o espírito do qual, segundo me pareceu, elas procediam. Seguia ele narrando o generoso proceder de São Nicolau para com as pobres donzelas, salvando-lhes o estado virginal.
Clamei: "Ó alma que falas com acerto, quem foste e por que somente a tua voz celebra tanta virtude? Não ficará sem prêmio o teu responder se eu voltar à vida terrena". Respondeu-me: "Dir-te-ei quanto desejas ouvir, não pelo consolo que da Terra possa receber, mas pela graça que vejo refulgir em ti, ainda vivo. Fui raiz dessa maligna planta que esteriliza o chão da cristandade, a ponto de ser causa de espanto um só fruto bom que por ventura venha a nascer. Porém, se a Douai, Gand, Lille e Bruges fosse possível, prontamente tomariam a vingança que rogo Aquele que tudo julga. Na Terra fui chamado Hugo Capeto, tronco dos Filipes e dos Luíses, que sob mando têm hoje a França. Nasci de um carniceiro de Paris. Quando os velhos reis se extinguiram, sem outro descendente que um ser votado ao claustro, às minhas mãos felizes vieram parar as rédeas daquele reino. Tanto prestígio alcancei, fiz tantas posses, tantos amigos consegui, que logrei fosse posta à cabeça de meu filho a coroa viúva de senhor. Teve então princípio a real estirpe. Até receberem o rico dote da Provença, os meus descendentes, ainda que não procedessem nobremente, nada fizeram de mais vergonhoso. Com aquele acréscimo principiou a sua rapina. Por vias de astúcia e violência, conquistaram o Pontois, a Normandia, a Gasconha. Carlos, entrando na Itália qual penitente, vitimou Corradino e no triunfo, à guisa de expiação, mandou também aos Céus Santo Tomás. Vejo chegar, em futuro não distante, da França outro Carlos, que fama inda mais sonora dará a si e aos seus. Sem outra arma que a de Judas, tendo-a apontada contra Florença, rasgar-lhe-á o peito segundo seu capricho. Não ganhará terras e sim pecados e infâmia, tanto mais pesados para sua alma quanto menos importância lhes der. Outro, que vislumbro sair prisioneiro do próprio navio, venderá a filha tal como os piratas vendem prisioneiros escravizados. Ó avareza!, que mais podes fazer de mal, se pudeste arrastar o meu sangue a tal vergonha que não lhe importou a própria carne? Mas, fazendo que pareçam menos graves os crimes passados e presentes de meus descendentes, antevejo o estandarte da flor-de-lis penetrando em Alagni, e Cristo em seu vigário ser aprisionado. De novo Ele é escarnecido; repete-se a oferta do fel e do vinagre e entre ladrões conhece morte lenta. Vejo o novo Pilatos que, não pondo fim à sua fúria, sem decreto escrito investe contra o Templo. O Senhor, quando terei a dita de assistir à justa punição que por agora em Teu seio conserva o segredo da sua hora? Quanto ao que curiosamente perguntaste, digo-te que as palavras que eu dirigia ainda há pouco à esposa única do Espírito Santo são nossas orações durante o dia. Sobrevindo a noite, nossas palavras lembram exemplo contrário. Recordamos Pigmalião que se fez traidor, ladrão e parricida, por sua sede de ouro; e a mísera condição a que Midas foi reduzido, escárnio do mundo por efeito de seu desejo insano; relembramos o gesto louco de Acão ao roubar os despojos e procurar furtar-se à ira de Josué; verberamos Safira e seu marido; memoramos os coices que repeliram Heliodoro. E todo o monte ecoa imprecações contra Polimestor, o que foi algoz de Polidoro. E no final gritamos: 'ó avarento Crasso, dize, pois deves sabê-lo: qual é o sabor do ouro?' Alguns bradam em altas vozes; outros em baixo tom murmuram, segundo o grau do afeto que os impulsiona, conforme seja forte ou fraco o seu avanço. Portanto, eu não era o único a entoar os cânticos exaltatórios da virtude, embora voz tão alta quanto a minha perto de mim não se levantasse".
Já nos tínhamos afastado daquela alma, esforçando-nos por vencer a íngreme ladeira à nossa frente, quando senti tremer o monte de repente. No peito, meu coração fez-se de gelo, qual de homem que avança rumo da morte. Decerto, assim tão fortemente não tremeu Delos quando por ninho a elegeu Latona, a que desejou parir dois luzeiros do céu. De todos os lados levantou-se tamanha grita que o mestre, voltando-se para mim, exclamou: "Não há perigo! Teu guia é quem o diz!" Era por muitas vozes entoado o Gloria in excelsis DeoI, segundo pude entender, quando, havendo avançado um trecho, consegui entender as palavras. Quedamo-nos imóveis, suspensos quais os pastores que ouviram tal cantar pela primeira vez. Assim permanecemos até todos os ruídos cessarem.
E reiniciamos o caminho santo, entre as almas prostradas vertendo o pranto costumeiro. Nunca fui acometido como então pelo desejo, filho da ignorância, de penetrar secretos fastos. Mas nem pela pressa eu ousava perguntar; nem do que ouvia tirava o esclarecimento desejado. Assim ia eu, pensativo e acanhado.

Canto XXI

Dante e Virgílio procuram passar à plataforma que conduz ao sexto recinto. Falam com o poeta Estácio, que lhes explica a razão do abalo ocorrido na montanha, entre outras coisas.
A sede que só pode ser saciada pela água cuja graça implorou a samaritana atormentava-me, e o dó pelo que via, embora sabendo justo tal castigo, punha urgência em meus passos pela estrada difícil. E eis que, tal como, segundo descreveu São Lucas na Sagrada Escritura, Jesus apareceu a dois caminhantes, surgiu-nos uma sombra. De trás de nós viera e, andando, contemplava a turba jacente.
Não havíamos reparado nela até que falou: "Deus vos dê a paz!". Voltamo-nos e Virgílio, com gesto amigo, respondeu à saudação: "No bem-aventurado sítio dos eleitos sejas posto pela mesma santa corte que a mim relega ao exílio eterno".
"Como avançais", respondeu, perguntando, "com animoso passo, se sois espíritos que lá acima Deus não deseja? Quem vos guia por estas plagas?" Meu guia tornou: "Se atentares para os sinais que este traz na fronte, aí impressos pelo devido anjo, perceberás que a ele está reservado entrar no reino dos eleitos. Mas, como aquela que dia e noite fia não lhe tenha ainda consumido a estriga que Cloto consigna a cada mortal nascituro, não teria podido, por si só, ascender até aqui essa alma que é tua e minha irmã, embora não veja ela as coisas conforme as vemos com os nossos olhos de mortos. Fui tirado do limiar do Inferno, para guiá-lo. E isso vou fazendo dentro das medidas do entendimento humano. Mas, ora, dize-me, se sabes, por que há pouco tremeu a montanha quando do pico à base ecoou da multidão um clamor pungido?"
Tal pergunta correspondia tão verdadeiramente ao meu desejo que, ouvindo-a formulada, logo me veio a esperança de ver diminuída a grande sede. A som bra principiou: "Não foi por razão incomum nem houve, com isso, quebra na harmonia reinante. Alterações aqui não são possíveis. Aquele que fez o Céu e é o Céu, toda ordem e disposição se deve. Jamais saraiva ou chuva, orvalho, neve ou bruma chegam acima dos três estreitos degraus da anteporta. Nuvens não se vêem, nem tênues nem compactas; relâmpagos não fuzilam, nem se estende o efêmero colorido da filha de Taumante o qual, oposto ao Sol, fulge diferentes sítios. Nem o seco vapor excede, aqui, na sua subida, aqueles três degraus onde o vigário de Pedro pousa as plantas.
Treme a montanha, talvez, embaixo, em suas bases, por força de ventos ocultos sob a terra, não sei por quais prodígios. Aqui acima, contudo, jamais tre meu, por terremoto. Treme, sim, quando alguma alma, sentindo-se afinal purificada, move-se rumo do Céu, saudada por festivo e forte clamor. De que está alfim purificada é prova bastante o poder alçar-se, sentindo livres os movimentos da subida, fruindo com isso a maior alegria. Tal desejo sempre a animara. Os movimentos, porém, eram tolhidos pelo rigor da justiça divina - assim como na Terra o ânimo para o pecado se opusera aos mandados celestes. Eu, que na espera sofri quinhentos e mais anos, sinto agora livres os passos na direção do Céu. Essa, pois, a causa do terremoto e das vozes dos santos espíritos aqui conglomerados, rendendo por todo o monte altos louvores, cada uma dessas almas rogando para que em breve seja também chamada!"
Assim falou; e meu prazer ao ouvi-lo foi indescritível. o sábio guia, por sua vez, disse: "Agora entendo a rede que vos detém neste páramo, como se desfazem os laços que vos tolhem a liberdade, como ocorrem os tremores do monte e por que levantais, em coro, o cântico do Gloria. Ora, dize-me quem foste, se te apraz fazê-lo; e por quais motivos durante séculos jazeste à espera. Possam as tuas palavras trazer resposta ao que pergunto".
"Quando Tito, com a ajuda do Sumo Rei, vingou as feridas por onde verteu aquele sangue vendido por Judas, eu estava entre os vivos", principiou o espírito. "Saudavam-me com o nome que mais alto soa - poeta. Era assaz famoso, mas não conhecia a fé. Tão altaneiro foi o som dos meus versos, que de Tolosa fui chamado a Roma, onde ganhei coroas de mirto. Meu nome - Estácio - inda soa no mundo! Cantei Tebas e cantava o grande Aquiles; porém a morte convocoume com a tarefa em meio. Foram sementes do meu ardor poético essas centelhas escaldantes, quais divinas chamas a inspirar mais de mil outros poetas: os versos da Eneida, mãe veraz, nutriz de meu estro. E para no mundo terreno existir ao tempo em que viveu Virgílio, passaria com satisfação um ano além do que os que tenho de cumprir". Isto ouvindo, Virgílio voltou-se para mim dizendo, embora sem falar:
"Cala-te!" Mas nem sobre todos os esforços a vontade logra vitória. O riso e o pranto, à paixão obedecendo, vencem toda vontade, ainda a mais forte, pois o dissimular é arte tanto mais difícil quanto mais verdadeira seja a pessoa dissimulante. Não ocultei, pois, um sorriso malicioso. Percebendo-o, a sombra calou-se e, fitando-me nos olhos, sítio onde o sentimento mais se identifica, exclamou: "Que leves a bom termo o forte empenho a que te propuseste. Mas dize-me a causa do riso que ainda agora denunciou-se em teu semblante".
Entre dois empenhos estava eu posto: um me impunha calar; outro me rogava o falar. Angustiado, suspirei. Compreendendo-me, o mestre socorreu-me: "Nada impede que fales. Revela a verdade pela qual ele tão exigente clama!"
Comecei: "Se meu riso, ó nobre espírito, causou-te maravilha, maior será teu pasmo com o que te revelo agora. Este que guia os meus passos para o alto é o mesmo Virgílio no qual hauriste inspiração para cantar os feitos dos homens e dos deuses. Se outra causa ao meu riso atribuíste, retifica-a. O motivo exato está nas palavras que a seu respeito disseste".
Já (Estácio) se inclinava para abraçar as pernas do meu guia, mas este o impediu, bradando: "Irmão, tal não intentes, pois és sombra o que de mim vês". E
o outro, erguendo-se: "Bem podes medir o profundo respeito que a ti eu voto pelo engano ora cometido de querer, vaidade humana, tratar sombras como se fossem matéria".

Canto XXII

Dante e Virgílio, juntamente com Estácio, alcançam o sexto terraço, deparando os espíritos dos que se entregaram à gula e à bebida.
Já fora ultrapassado à entrada o Anjo que nos encaminhara ao sexto giro, apagando-me então um dos traços da fronte. A multidão de almas sequiosas de justiça cantara o beati e com a voz de sitiunt se havia calado. Sentia-me leve quanto jamais em tal jornada. Rápido, sem cansaço, seguia os espíritos, velozes na subida, quando Virgílio começou por dizer: "o amor aceso em nome da virtude, uma vez alteada a sua chama, sempre ateia outro amor. Eis que tão logo entre nós, os do Limbo, foi chegado Juvenal, deume notícias do teu afeto por mim. Retribuí tal apreço com afeição tamanha que igual não se consagraram um ao outro entes entre si desconhecidos. É pois bem agradável avançar contigo nesta escalada. Mas dize - e como bom amigo perdoa se me faço exigente, pois em nome da amizade peço que raciocines e respondas: como foi possível à avareza ocupar lugar em teu ânimo voltado sempre para as coisas do espírito?"
Tais palavras ouvindo, Estácio primeiro riu e depois informou: "Qualquer pergunta que me fizeres soará aos meus ouvidos como interesse amistoso. Na verdade, muitas vezes ocorrem fatos que induzem a juízo errôneo, permanecendo oculta a sua causa verdadeira. Tua questão revela julgares que no mundo fui vítima de avareza, atendendo talvez a que estive recluso no círculo dos avaros. Pois fica sabendo que tanto fui o contrário do avaro que essa demasia veio a ser punida com um tempo igual a milhares de meses. E estaria incluído para sempre entre os danados do Inferno, não houvesse, em vida, encontrado cura ao ler os versos em que assim apostrofas aos viventes: A que excessos impeles os mortais, ó maldita fome de ouro!' Percebi que o muito abrir os dedos leva a prejudicar as mãos, e com isso arrependi-me daquele e de outros pecados. Quantos hão de ressuscitar com a cabeça rapada, por não haverem em vida fugido a essa culpa, sem contrição morrendo com ela. Sabes bem que o pecado contrário a outro pecado, oposto lhe sendo, é punido no mesmo círculo em que aquele é justamente castigado. Assim, se estive a purificar-me entre a turba que lamenta o vício da avareza foi não por haver sido avaro, mas por pródigo haver sido".
"Quando cantaste os feitos de armas que dupla tristeza causaram a Jocasta" (1), disse o cantor da felicidade campesina, "de Clio tomando o toque e a inspiração, não me parece que já te houvesse tocado o ardor da fé. E para salvar a alma, o bem sem a fé não basta. E se assim é, qual sol, qual estrela te foi iluminar em tão sombrio viver, de modo que assim como o pescador te converteste?"
Respondeu aquele: "Primeiro tu me encaminhaste para a doce inspiração poética do Parnaso, sendo, portanto, depois de Deus, aquele a quem devo a luz do entendimento.

* (1) Referência ao poema A Tebaida, de Estácio. *

Fizeste como aquele caminhante noturno a levar após si a lanterna, inútil para seus passos, mas que serve de farol aos outros, quando disseste: Os tempos se renovam; regressam justiça e virtudes primitivas; nova progênie baixará do Céu! Por ti, fui poeta; por ti, me fiz cristão! Mas para que melhor entendas o quadro que debuxei, quero dar mais expressão às suas cores. Já estava o mundo inteiro ilustrado a respeito da verdadeira fé, espargida pelos mensageiros do eterno reino, e os teus versos mencionados prestavam-se aos novos ensinamentos. Foi por isso que, ouvindo-os, o efetivo bem eu pude reconhecer. Tão santas me pareceram as lições de tais mensageiros que, ao persegui-los Domiciano, juntei meu pranto ao deles e, enquanto vivo, ajudei-os, chegando a admirar seus costumes puros e a desprezar outras pregações. Antes mesmo de, em versos, celebrar o fero cerco posto a Tebas, já eu renascera pelo batismo, embora por medo houvesse ocultado a conversão. Pagão ainda fingi ser por longo tempo, e por isso quatro largos séculos hei padecido no quarto círculo. Merecida foi a pena. Tu, pois, a quem devo ter podido rasgar o véu que ocultava o verdadeiro bem a que ora me refiro, dize-me - de vez que na subida o tempo sobeja -, onde se encontra Terêncio, nosso amigo; onde Cecílio, e Plauto, e Varro? Dize-me se estão condenados, e em qual círculo".
"Esses que mencionaste, e ainda Pérsio, eu e muitos outros acompanhamos o grande grego, o predileto das Musas, na estada no Limbo, cárcere cego. Freqüentemente tomamos por assunto temas do famoso monte das Camenas (o Parnaso). Eurípides está conosco, e também Anacreonte, e Simônides, e Agatão, e muitos gregos que souberam com ramos de louro ornar a fronte. E também heroínas, entre as que cantaste: Antígone, Deífile com Argia, e Ismênia, que a tristeza não abandona; vêem-se também (Isifile) a que mostrou a fonte Langia, Tétis, a filha de Tirésias, e Deidamia em companhia de suas irmãs."
Calaram-se os poetas, atentos a olhar em torno, vencida que fora a trilha ascendente. Para trás estavam as primeiras quatro horas do dia, juntando-se a quinta ao ardente carro solar, e no alto o acompanhando, quando o meu guia exclamou: "Penso que para a direita devemos caminhar, andando como de costume, até atingir o topo". Com isso tomávamos por mestra a experiência, e confiadamente prosseguimos, depois que de Estácio a aprovação nos veio.
À frente iam os poetas; eu, atrás, ouvindo-lhes o palestrar, que me ilustrava nos arcanos da poesia. Foi esse prazeroso diálogo interrompido pelo encontro de uma árvore em meio da estrada, carregada de pomos odorosos. Se os ramos do abeto vão decrescendo, à medida que sobem, os desta árvore, ao contrário, descendo, diminuíam. Supusemos que tal se dava para tolher qualquer subida. Do lado onde nosso caminho era impedido, cascateava da alta penedia linfa pura sobre a ramagem.
Os poetas apressavam-se para a árvore quando uma voz por entre a fronde gritou: "Deste manjar lamentareis a falta!" E logo ajuntou: "Maria mais se preocupava em que houvesse a devida honra ao término das bodas que com seu próprio prazer; e por vós ora responde. As antigas romanas contentavam-se em ter a boa água por bebida; e bem andou Daniel ao desprezar manjares, ganhando em sabedoria. Os primitivos tempos - idade do ouro - fizeram que pela fome as bolotas fossem proclamadas deliciosas e a ardência da sede em néctar mudou a água ribeirinha. O Batista alimentou-se de mel e de gafanhotos no deserto; e foi grandioso, segundo o Evangelho testemunha".

Canto XXIII

No sexto recinto, Dante e Virgílio testemunham a fome e a sede sofridas pelos gulosos, os quais se mostram esqueléticos. Dante encontra Forese Donati, seu amigo e conterrâneo.
Enquanto eu examinava os verdes ramos, o que para mim foi mais que um pai bradava: "Filho, aviemo-nos, é preciso dar melhor emprego ao tempo concedi do". Desviando o olhar da árvore, segui os poetas, em passo acelerado, atento ao que diziam, sem me fatigar com o rápido caminhar. Eis que entre prantos ouvimos o salmo Domine labia mea cantado por tal modo que prazer e pena igualmente me causou. Pedi: "Inteira-me, ó Pai, sobre as vozes que ouço!" E ele: "São almas, talvez, cumprindo o seu penar".
Assim como piedosos peregrinos, atentos só ao caminhar, encontrando gente estranha, voltam-se para vê-la, mas logo aceleram o passo, assim em nossa direção avançava, mais rápida que nós, turba de almas silentes, devotas. Olhos enegrecidos, encovados, faces magras e pálidas, a ponto de revelarem a forma óssea. Não creio que o próprio Erisitão exibisse tal magreza quando totalmente carecido de alimentos. Eu pensava: "Eis a gente que perdeu Jerusalém quando Maria do filho fez comida". Seus olhos pareciam anéis sem pedra, e quem sabe ler no rosto humano a palavra omo naqueles rostos somente veria a letra eme (1).

* (1) Os místicos medievais diziam ter a capacidade de ler a palavra omo no rosto das pessoas. Os olhos representariam as letras o e o nariz, mais as sobrancelhas, o m. *

Não conhecendo o motivo que ali os prendia, jamais acreditaria que os alentasse tanto desejo de sentir o aroma de um fruto ou enxergar o cristal de uma fonte. Maravilhado, eu perguntava pela razão última que tal magreza produzira, quando, pondo em mim o fundo recesso de suas órbitas, uma das sombras me fitou, gritando: "A que devo graça como esta?"
Quem seria, eu não alcançaria reconhecer por seu aspecto, mas a voz, sim, me deu indicação segura. Centelha de lembrança iluminou-me a memória e os demudados traços pude recompor até identificar Forese. "Ah!, não ponhas reparo na sarna que me descolore a pele, nem no macilento aspecto de minhas carnes, mas dize-me a verdade a teu respeito e sobre essas duas almas que te fazem escolta. Não permaneças calado, fala!"
Respondi: "Teu vulto, que chorei já morto, pena igual me dá vendo-o em tal estado. Mas, por Deus, enquanto passa o meu espanto, revela-me a pena que te faz sofrer, pois costuma errar quando fala quem tem o pensamento posto em querer ouvir". E ele a mim: "Por vontade divina, aquela água e aquela planta que viste há pouco em mim produziram consumação tamanha. Esta turba que chorando canta, por haver-se em vida entregado à gula, ora entre fome e sede recupera o santo estado. O aroma daqueles pomos e o frescor daquela água espargida sobre a fronde em nós acendem insaciável desejo de comer e de beber. A cada volta que damos pelo círculo, reacende-se o ardor de nossa pena... eu chamo pena o que deveria apelidar indulto. Tal desejo, que nos induz rumo da planta, tem a mesma origem daquele que fez dizer a Cristo Eli!, no instante em que com seu sangue nos redimiu".
E eu a ele: "Forese, não se passaram ainda cinco anos desde o dia em que deixaste o mundo por melhor vida. Se a possibilidade de pecar terminou antes de que chegasse para ti a hora do arrependimento, como se explica que te encontres aqui? Na verdade, eu te supunha no Antepurgatório, sítio onde a alma permanece por tempo igual àquele em que, na Terra, manteve-se apartada da lei divina".
Respondeu-me: "Foi Nela, minha esposa, quem, com seu incessante pranto e continuado rogo, levoume a expiar prontamente a pena, degustando as doces lágrimas do arrependimento. Assim, tendo em meu favor suas orações e suspiros, fui poupado ao sítio onde tanto se espera e a outros círculos destinado. Tanto a Deus é mais cara e mais dileta essa que é hoje minha viúva, e à qual muito amei em vida, quanto mais ela se esmera em obras de piedade. Pois é certo que a Barbagia da Sardenha entre suas mulheres mais pudor encontra do que a outra Barbagia onde a deixei. Ó irmão caríssimo, que esperas que te diga mais? Prevejo tempo no futuro, futuro não distante em que, por lei escrita, será proibido às desavergonhadas damas florentinas persistirem na ousadia de exibir os seios. As próprias mulheres pagãs ou sarracenas acaso necessitam de disciplinas espirituais, ou de qualquer outro gênero, para andarem decentemente cobertas? Mas se essas impudicas soubessem qual castigo o Céu lhes vai preparando, desde já, para uivarem de dor, teriam aberto as bocas. E se antevendo não cometo engano, tais tristezas serão provadas antes de que desponte a barba aos infantes que dormem em berço. Vamos, irmão, não mantenhas por mais tempo oculta a tua identidade. Nota que não sou o único a esperar tal revelação, mas toda esta gente, maravilhada, observa o ponto onde teu corpo, obstruindo a luz, projeta sombra". Disse-lhe, pois: "Se agora te aflorasse à mente quem foste, quem fui, quem fomos ambos na vida desregrada, provarias um sofrer ainda mais agudo. Da vida terrena me trouxe até aqui o que me vai à frente, quando no Céu estava plena a irmã desse a quem observas". E isto dizendo, mostrei-lhe o Sol. "Pelo profundo das trevas guiou-me entre os verdadeiros mortos, quando ainda a carne mortal cobre-me os ossos. Vim, assistido por ele, subindo os círculos desta montanha que em vós castiga os erros do mundo. Conforme disse, acompanhar-me-á até o páramo onde de Beatriz eu veja o semblante e onde da companhia deste guia serei privado. Virgílio se chama quem assim me guia." E indiquei-o. "O outro é a alma cuja salvação inda há pouco abalou a encosta inteira. Vai, enfim, de vosso reino sendo libertado."

Canto XXIV

Forese Donati indica a Dante algumas das almas presentes ali (no sexto terraço), e prevê o fim próximo de Corso Donati, seu irmão, chefe do partido negro de Florença. Exemplos de gula castigada são ainda ouvidos pelos poetas.
Conversando, íamos andando rapidamente, qual navio impelido por vento rijo. E as sombras, semelhando coisas mais do que mortas, exprimiam o espanto de me saberem vivo ao verem-me com seus olhos sem brilho. Eu, porém, continuando a discorrer, acrescentei:
"Essa alma prefere retardar a subida a fim de conosco ir discreteando. Revela-me, se sabes, onde está Picarda e se há quem tenha sido de nomeada ilustre entre as almas que curiosamente me observam." "Minha irmã, da qual não sei dizer se mais formosa ou virtuosa, já no Paraíso recebeu a sua coroa." Isso disse por primeiro. E ajuntou: "Aqui não conhecemos a proibição de nomear as pessoas, uma vez que o jejum tão longo fundamente alterou as fisionomias. "Esta", e apontou com o dedo, "é a alma de Bonagiunta da Lucca e aquela que lhe está vizinha, desfeita mais do que as outras, nasceu em Tours, da Igreja foi supremo chefe e aqui vai purgando, em jejum sem fim, a gula que cultivou pelas enguias de Bolsena condimentadas com vinho branco". Muitos outros nomeou, um a um, e os nomeados todos pareciam contentes com o ser apontados. Não vi um só rosto conturbado. Notei, sim, devorados pela fome, a ranger em vão os dentes, Ubaldin dalla Pila e Bonifácio, que com seu báculo regeu bastante gente. Vi Marchese di Forli, que, largo tempo de sua vida havendo dedicado ao vinho, jamais confessou aplacada a enorme sede. Mas, segundo procede o que observa a todos e por um se decide, inclinei-me para aquele de Lucca, o qual, a meu ver, maior interesse por mim manifestara. Ele murmurava a palavra "Gentucca", ou outra mal distintamente formulada, com a boca onde mais agudo sentia o castigo de desejar e não poder comer. Disse-lhe: "Ó alma, que tão manifestamente desejas falar comigo. Faz com que te entenda. E tu e eu, falando, nos satisfaremos".
Começou dizendo: "Mulher nasceu e não tem marido ainda, por cuja causa hás de dizer bem da minha cidade, embora outros dela falem mal. Com essa profecia hás de corrigir o erro cometido ao supor que sem nexo eu murmurava. Deste fato o futuro te há de recordar. Ora, dize-me se estou diante do autor da nova lírica que principia com este verso: Mulheres, que o amor haveis posto em mente"'.
Respondi: "Realmente versejo assim: segundo inspira o amor, em meu peito o sinto e o que me diz vou escrevendo". E ele: "Agora, ó irmão, entendo dificuldade poética encontrada por Notário, por Guittone e por mim, deixando-nos aquém do entendimento do doce e novo estilo. Compreendo que vossas penas seguem de perto o amor - inspirador potente -, coisa que com as nossas não sucedeu. E quem desejar com critério e profundidade ajuizar as diferenças entre a velha e a nova lírica, nenhuma diferença encontrará maior do que esta". Isso disse e, contente de o haver dito, calou-se.
Quais aves que pelo inverno buscam o abrigo do cálido Nilo, umas voando em bandos, outras em fileiras, assim as almas reunidas, ao nosso redor, voltando os rostos, apressaram os passos, tornadas mais velozes pela magreza e pela fome. E qual o homem de quem as forças já fugiram e na corrida diminui o ritmo, carecido de descanso, enquanto os companheiros além se afastam, Forese, que pressa não pusera nos passos lentos, deixou correr a turba santa e perguntou: "Quando hei de ver-te outra vez?"
Tornei: "Não sei quanto tenho ainda de vida. Mas não será tão longo esse tempo que o não abrevie o meu desejo de aqui volver, pois lá, no país onde nasci, dia a dia há menos virtude e à triste ruína ele parece voltado".
Retorquiu: "Aquele que disso tem a maior culpa vejo ser arrastado à cauda de um cavalo até o vale onde não conhecerá clemência. Sempre mais veloz corre a besta, com os cascos pisoteando e tornando em pasta vil o humano corpo. Não percorrerão grande caminho esses astros", isso disse de olhos voltados para o céu, "antes de que a realidade torne claro ao teu entendimento aquilo que em minhas palavras tenha ficado obscuro. Ora, fica em paz, que eu me distancio, pois aqui o tempo é assaz precioso e eu perco demasiado dele ao ir assim contigo, lado a lado".
Qual o paladino que galopando se dirige à arena a fim de ganhar as honras de ser o primeiro a apresentar-se para o combate, mas com rapidez inda maior, de nós Forese se afastou. Continuei ao lado de ambos aqueles espíritos, pelo mundo proclamados sumamente grandes. Quando Forese já se encontrava tão distanciado que mal podia minha vista distingui-lo - retendo embora a mente as suas palavras -, eis que meus olhos voltaram a fixar outra árvore com ramos verdejantes, pejados de pomos. Em brados, mãos alçadas, multidão de almas para ela se dirigia. A turba semelhava grupo de meninos ingenuamente furiosos ao constatarem que não lhes dava atenção aquele a quem apelavam. Antes, este, para mais os irritar, acenava-lhes com o objeto desejado e negado.
Afasta-se afinal a turba desiludida e nos acercamos da árvore indiferente a tantos rogos e tantas lágrimas. "Passai ao largo sem vos aproximar! A árvore de que Eva tomou o fruto está lá, mais acima, embora aquela seja a origem desta!", isso uma voz nos fez ouvir vinda dentre os ramos. Obedientes, Virgílio, Estácio e eu transpusemos aquele passo rentes à penedia oposta à árvore. Ainda ouvimos dizer: "Lembrai-vos dos malditos filhos da Nuvem, homens e cavalos a um só tempo, por Teseu virilmente aniquilados(1), e aqueles que em beber tanto se empenharam que Gedeão os recusou por companheiros quando desceu a lutar no vale de Madiã".
Íamos costeando a margem do círculo, seguindo o clamor que a punição à gula provocava. Havíamos avançado pela solitária estrada mais de mil passos, silenciosos, mergulhados em muda contemplação. "Em que andais cogitando, vós três?", subitamente bradou uma voz e vi-me sacudido pelo susto, qual ocorre com o novilho ou o poldro espantados.

* (1) Exemplo de gula castigada. Os centauros, filhos da Nuvem, embriagados, tentaram raptar Hipodãmia, sendo mortos por Teseu. *

Levantei a cabeça para identificar quem falara e afirmo jamais se viu, em forja ou fornalha, metal ou vidro assim ardente e rubro qual o anjo que vi, resplandecente, a acrescentar (2): "Se anelais a paz, este é o caminho. Mas para subir, aqui é forçoso dar volta". Deslumbrado, voltei o olhar para os meus guias, semelhando o homem que deve ouvir instruções para seguir seu caminho. E qual a aura de maio, anunciadora das auroras, esparge pelas brenhas doce aroma de ervas e de flores, chegou-me pela frente, em meio a um bater de asas, brisa suave a trazer consigo odor celeste.
E ouvi: "Felizes os que a graça divina livrou dos estímulos da gula, e que só com o necessário se contentam".

* (2) É o anjo da temperança, que monta guarda entre o sexto e o sétimo círculos, onde são punidos os luxuriosos. *

Canto XXV

Enquanto os três poetas sobem pelo caminho que os conduziria ao sétimo - e derradeiro - recinto, Estácio discorre acerca da geração do homem e da infusão da alma no corpo, e explica como as sombras mantêm, depois da morte, a aparência humana, bem como sentimentos e sensações humanos.
Era preciso que subíssemos mais velozmente, pois o Sol deixara o meridiano local para a constelação do Touro, e a noite cedia o passo às estrelas do Escorpião. Qual viandante que não refreia o passo, nem se distrai, mas segue avante, atento à necessidade que o impele, assim entramos pela via estreita, angusta a ponto de obrigar a que seguíssemos um atrás do outro (1). O filhote da cegonha, abrindo as asas na tentativa de voar, receando deixar o ninho, baixa-as cauteloso; assim crescia-me e logo arrefecia a ânsia de perguntar. Meu bom mestre, por mais rápido fosse o caminhar, não deixou de perceber minha ansiedade e disse:
"Dispara de vez a seta da interrogação, pois ao ponto máximo tens tendido o arco do desejo." Tranqüilizado, inquiri: "Como pode ser que emagreça quem já não necessita de alimento?" Tornou Virgílio: "Se recordares como se consumiu Meleagro ao morrer com a queima do tição, não será difícil entender este aparente prodígio (2).

* (1) Pela posição dada às estrelas, no hemisfério do Purgatório deveriam ser duas horas da tarde, e no hemisfério oposto, duas horas da madrugada. (2) Quando Meleagro - personagem mitológico - nasceu, as Parcas lançaram uma acha ao fogo, proclamando que o tempo de vida de Meleagro seria igual ao da madeira. A mãe salvou o tição e o escondeu. Mais tarde, tomada de ira contra o filho, lançou o tição à lareira e Meleagro extinguiu-se com ele. *

Igualmente fácil te será o entendimento, se lembrares como no espelho se move teu rosto conforme o próprio rosto movimentas. Mas a fim de que melhor penetres no arcano que anseias conhecer, eis Estácio, a quem rogo esclareça tuas dúvidas".
Disse o poeta Estácio: "Se me atrevo a desvelar do Céu este mistério, estando tu presente, ó mestre, é porque não te posso dizer não'. Filho, se minhas pa lavras gravares na mente, conhecerás o porquê do prodígio que te maravilha. O sangue puro não absorvido pelas veias, mas deixado como vianda intocada sobre a mesa, ao chegar ao coração recebe divinal virtude de compor os membros do corpo, assim como o sangue venal possui a virtude de nutrir os órgãos. Depois, digerido, desce até aquele canal viril, cujo nome, por decoro, é melhor calar, e por onde vai misturar-se a outro sangue em natural repositório. Este recebe aquele e um novo ser vai gerando, segundo a perfeição do sítio onde se encontram. Pronto essa comunhão principia a ter essência, coagulando primeiro e depois produzindo vida pela evolução do germe primitivo. Em alma, pois, se transforma a força ativa. Tal ocorre com as plantas, das quais no entanto difere, pois enquanto à alma é dado progredir, é a planta criada em apogeu. Crescendo em vida, semelhando fungo marinho, o novo ser, movendo-se e sentindo, vai formando órgãos para os sentidos de que é dotado. Ora nele se contrai, meu filho, ora se distende a virtude vinda do coração que o gerou e em todos os membros diferentemente manifesta. Falta ainda saberes como é que tal criatura recebe o dom do raciocínio, ponto este em que errou mesmo homem bem mais sábio do que tu(3); em sua doutrina ensinou ser o raciocínio separado da alma, por não ver no corpo humano órgão que a ambos comportasse. Agora, abre tua mente a esta verdade: já no feto está perfeito o cérebro. Deus, o Primeiro Motor, comprazendo-se com tal primor da natureza, lhe instila alma plena das virtudes naturais, as quais virtudes reúnem e congregam - formando um todo indiviso - o que de ativo e bom houver no feto. E este vive, sente, pensa. E para que bem avalies tal maravilha, medita em outra: o Sol, por seu calor unindo-se ao sumo da uva, transforma-se em vinho. Quando Láquesis já não tem linho para fiar, a alma deixa a carne, levando consigo quanto possua em virtudes humanas e divinas. Na mudez do jazigo ficam as potências corpóreas, enquanto as divinas - memória, vontade e entendimento - mais alento cobram. De imediato, seguindo movimento natural, precipita-se para uma ou outra margem das eternas plagas, para ali saber de seu eternal destino. Chegando ao lugar a que foi destinada, aquela força que lhe deu origem volta a envolvê-la e exercer o mesmo influxo que cumprira em vida. O ar, quando prenhe de unidade, reflete e decompõe um certo raio, ficando, em conseqüência, por muitas e belas cores adornado. Por igual modo o ambiente assume a conformação que lhe empresta a alma, fazendo que esta em seu centro permaneça.

* (3) Referência a Averróis. *

E semelhantemente ao fogo que acompanha a labareda, assim cada alma segue aquela nova forma. Essa espécie de visibilidade é chamada sombra e, uma vez formada, compõe sentidos, entre eles o da visão. Por essa razão podemos falar e rir, chorar e suspirar, o que já deves ter notado por aqui. Quando sobre ela atuam desejos e afetos, isso altera a conformação da sombra - o que explica a magreza que observaste em nós".
Tendo chegado ao recinto final do círculo, voltamo-nos para a direita, solicitados por outros cuidados. Da penedia brotavam chamas, enquanto da ou tra banda um vento favorável rebatia as labaredas, deixando livre estreito vau. Forçoso se fez seguirmos de um em um pela passagem mínima, de tal forma que de um lado eu receava o fogo e do outro temia precipitar-me. Meu guia alertou-me: "Neste local, aquele que não deseja dar um passo perigoso convém aos olhos pôr bom freio".
Summae Deus clementiae - ouvimos cantar entre o grande incêndio, com tal ardor que me deu vontade de para ali voltar os olhos. Vi espíritos caminhando por entre as chamas, com o qual espetáculo minha atenção foi dividida, alternando olhares entre os passos deles e os meus. Terminado o hino, aquelas almas gritaram: Virum non cognosco!; e logo, em voz baixa, ao cântico retornavam. Findo este, em coro bradavam: "Diana corre ao bosque, a expulsar Hélice por haver provado o filtro do amor". Recomeçavam a cantar, e, logo mais, esposas e maridos enalteciam a fidelidade conjugal imposta pela virtude e pelo juramento matrimonial. Acredito que tal modo de cantar e de gritar continuará enquanto houver almas envolvidas pelas chamas: pois só esse purgar de fogo, esse clamar constante são purificadores.

Canto XXVI

Dante, acompanhado de Virgílio e de Estácio, observa mais atentamente o grupo que marchava na mesma direção que eles, mas em meio às chamas. Vê aproximar-se outro grupo, em sentido contrário. o primeiro grupo era de luxuriosos de acordo com a natureza; o segundo, de lascivos contra a natureza - conforme explicou o poeta Guido Guinizelli.
Íamos pela borda do precipício, um depois do outro - lentamente -, e o meu bom mestre repetidamente alertava: "Atenção! Caminha com cuidado!" o Sol chegava-me pela direita, já mudando no céu o luminoso azul em alvura reluzente.
Minha sombra fazia as chamas parecerem mais roxeadas, e as almas que passavam, dando acordo desse fato, denunciavam sua estupefação. E este foi o motivo para que de mim principiassem a falar entre si, clamando: "É um corpo de verdade!" E logo em minha direção avançaram o quanto lhes foi possível, sem deixar os limites das labaredas em que ardiam.
"Ó tu que segues depois de outros, não por preguiça, mas por respeito evidente, fala comigo que em fogo e sede estou ardendo. Não sou o único a desejar ouvir-te; todos quantos vês por tua resposta anelam, mais que etíope ou índio pela água. Explica-nos como pode o teu corpo constituir-se em muro que se opõe à luz do Sol, como se ainda não tivesse sido colhido pela rede da morte." Assim me falou uma daquelas sombras. E quem sou, em resposta, lhe teria dito, se interesse bem diverso não me houvesse atraído a atenção. Pelo caminho incendido avançava multidão ao encontro daquela. Sustive a fala, mirando a novidade. E vi, de parte a parte, sofregamente, alma dirigirse a outra alma, oscularem-se e logo se afastarem, como que do breve encontro satisfeitas. Assim é que se encontram e afagam, em seus carreiros, as formigas, a intercambiar informações da estrada ou da rapina. Separando-se após o cordial encontro, antes de retomar da jornada o ritmo, ambas as coortes se afadigam em gritar, uma à outra: "Sodoma e Gomorra!" e "Pasífae entrou na vaca para que o touro lhe saciasse a luxúria!" (1) Quais grous a repartirem o bando, para a Líbia esta parte encaminhando-se, para os montes Rifeus outra facção se dirigindo; uma para o lado do Sol, outra para o lado do gelo distanciaram-se as turbas, de volta a seus cânticos e gritos.
Aquelas sombras, porém, que já antes me haviam interrogado, aproximaram-se outra vez, demonstrando no aspecto o desejo de me ouvir. E eu, que duas vezes lhes havia notado o propósito, comecei por dizer:
"Ó sombras, que tendes como certo, cedo ou tarde, alcançar a bem-aventurança: não morri. Comigo trago o corpo e todo seu sangue e suas articulações naturais. Aqui transito em busca de luz para o entendimento, pois excelsa dama obteve do Céu a graça de que, vivo, por esta trilha eu ascenda à Maior Altura. Faço votos de que breve sejais recebidos no Céu que de puro amor é cheio.

* (1) O primeiro exemplo de luxúria punida foi Sodoma e Gomorra. Pasífae, esposa do rei de Creta que, transida pela luxúria, quis unir-se a um touro; meteu-se então em uma capa de madeira. O Minotauro teria nascido dessa união. *

Dizei-me, para que melhor eu possa descrever, quem sois e que turba é aquela vinda ao vosso encontro".
A surpresa que intimida o rude, ignaro montanhês, quando pela primeira vez adentra uma cidade, não é maior que o pasmo então sofrido por aquelas almas. Mas depressa dele se libertaram, pois o espanto pouco dura em peito altivo. Respondeu, o que por primeiro me havia interrogado:
"Ditoso és, pois de nossa experiência podes colher a lição de viver melhor para bem morrer! Os que marcham em sentido contrário ao nosso purgam o pecado de haver César de Rainha (2). Eis por que, ao se apartar, vão-se acusando aos gritos de Sodoma!', acrescentando o pejo à punição do fogo. Nosso crime foi o do hermafrodito, ao transgredir o normal nas relações amorosas, copiando, quais brutos, o apetite das bestas. Para aumentar nossa vergonha e castigo, na ocasião em que os outros gritam, bradamos o nome daquela mulher que fingiu ser vaca para saciar seus desejos maus. Ora, sabes quais foram os nossos pecados, os crimes de que fomos réus. Quanto aos nomes que desejas conhecer, não os sei, nem tempo resta para perguntar aos outros. O meu de bom grado to revelo: sou Guido Guinizelli (3) e por me haver arrependido a tempo é que expio apenas o lustral castigo".

* (2) Júlio César, segundo Suetõnio, mantivera relações carnais com o rei oriental Nicomedes. A fim de aborrecê-lo, seus soldados, após a vitória contra os galos, saudaram-no aos gritos de "Viva a Rainha!"
(3) Guido Guinizelli, poeta bolonhês, deu início ao chamado dolce stil nuovo, que floresceu na Toscana (1235-76). *

Como os filhos do infeliz Licurgo correndo apressados ao encontro da mãe, revendo-a, assim me atirei para aquela sombra, cuidando, no entanto, não cometer excesso, pois o ardor do fogo me impedia amplexos, tal o impacto em mim causado por aquele nome, inspiração para meus versos e para os de muitos outros poetas que em doces rimas cantaram amores. Calado, sem procurar ouvir ou falar, longamente o contemplei, em poético enlevo. Pus-me depois a seu dispor, proferindo juramento".
Ele disse: "Tão fundamente gravaram-se em mim os teus protestos de filial estima, que não bastaria, para apagá-los ou deslustrá-los, o furor do Letes. Mas se tuas expressivas palavras continham sinceridade, faz-me conhecer a causa de tamanha afeição, anunciada no falar e no olhar". E eu a ele: "Foram os teus maviosos versos, os quais hão de ser amados enquanto nosso novo idioma existir".
Tornou-me: "Irmão, este que te indico", e com o dedo indicou-me a sombra ao lado, "foi melhor artista do que eu no versejar em língua italiana. Nos versos, nas novelas, superou a todos: só os tolos atreveram-se a dizer ter sido pelo Limosino ultrapassado. A simples vozes e não a fatos esses inclinaram o juízo, formando conceito prejudicado, sem à razão ou à arte fazer justiça. Assim outrora sucedeu com Guittone, de voz em voz exaltado até que a verdade reclamou seu lugar, o mesmo sucedendo com outros. Mas uma vez que alcançaste o privilégio de entrar nesse grande claustro do qual é abade o próprio Cristo, reza por mim um padre-nosso piedoso, mas só até aquele ponto da oração que se refira a nós". (4)

* (4) Ou seja, "Não nos deixeis cair em tentação"de nada valeria às almas que se no Purgatório penavam. *

Depois, para dar lugar ao espírito que o ladeava, sumiu em meio ao fogo, qual peixe a afundar na água. Acerquei-me do indicado e proclamei que ao seu nome, em meu afeto, estava reservado lugar de destaque. A resposta ele deu em fluente provençal: "Tão grato é para mim o teu rogo que, ouvindo-o, me escusar não poderia nem haveria de querer. Arnaldo sou e chorando e cantando vou purgando os tristes pecados meus. O dia feliz da salvação alegremente espero. Agora quero pedir, em nome da suma virtude que ao alto te vai erguer, lembres no mundo o meu tormento". Depois, no meio do fogo purificador, desapareceu.

Canto XXVII

Os três poetas seguem pelo sétimo recinto. Na metade da subida do monte, num caminho íngreme, são surpreendidos pela noite. Alcançam pela manhã o Paraíso; Virgílio diz a Dante que siga viagem sozinho dali em diante.
O Sol brilhava no ponto em que seus primeiros raios fulgem onde o Criador verteu Seu sangue, e a Libra esplendia a pleno sobre o Ebro, lançando luz ardente sobre o Ganges (1). Declinara, e muito, o seu luzir quando eis, ledo a nos defrontar, surge um anjo de Deus. Postava-se no caminho, para além das chamas, entoando com voz mais clara do que possa ser a voz humana Beati mundo corde, acrescentando: "Por aqui, ó almas santas, não se avança sem antes cruzar o fogo purificador. Ao fazê-lo, não sejais surdos às vozes que além estão cantando". De perto ouvindo a sua voz poderosa, tremi e ganhei aquela cor que ostentam os danados mergulhados em fossas tenebrosas. Estendi as mãos como se elas pudessem proteger-me; olhos fixos no flamejar, recordei-me de quantos corpos já vira em meio aos tormentos das chamas.

* (1) Indicação das horas. em Jerusalém, centro do mundo, o sol raiava; meianoite na Espanha, extremo ocidental; meio-dia no Ganges, extremo oriental, e no Purgatório o pôr-do-sol. *

Os dois poetas voltaram-se para mim; Virgílio disse: "Filho querido, aqui pode haver sofrimento, mas não morte. Recorda-te! Se até sobre o dorso de Gerião te conduzi a salvo, estando agora mais próximos de Deus, maior é meu empenho em bem guiar-te. Tem como certo que ainda quando por mil anos no centro desse chamejar permanecesses, nem a um só dos teus cabelos seria feito dano. Mas se duvidas que a verdade eu diga, por ti mesmo intenta a prova, avançando para o fogo e à ação das chamas expondo a fímbria das tuas roupas. Põe de lado temor sem fundamento, e conosco avança!"
Eu acreditava, porém não me movia. Vendo-me estático, obstinado e temeroso, ele insistiu: "Atente, filho, entre Beatriz e ti existe este único obstáculo!" Assim como o moribundo Píramo descerrou os olhos ao ouvir de Tisbe o chamado quando a branca amora se tornou vermelha, fixei meu guia ao som do nome que permanentemente em meu íntimo ecoa (2). Meneando a fronte, sorrindo qual homem que convenceu ingênuo infante ao acenar-lhe com formoso pomo, ajuntou: "Como assim? Ainda queres que aqui fiquemos?"
À minha frente, então, penetrou as chamas, acenando a Estácio para que o seguisse, o qual, até ali, de nós ambos viera ao meio. Tão logo por minha vez penetrei o fogo, veio-me a vontade de, para encontrar refrigério, atirar-me em vidro fervente, tamanho o calor provado. Procurando proporcionar-me alento, meu bom guia falava-me de Beatriz: "Já me parece ver-lhe os olhos!"

* (2) Píramo e Tisbe iam se encontrar debaixo da copa de uma amoreira. Chegando primeiro, Tisbe fugiu de um leão; o véu que na fuga deixara cair foi estraçalhado pela fera, que o manchou com o sangue de presa recente. Chegando em seguida, Píramo deparou com o trapo manchado de vermelho. Acreditando que a namorada estivesse morta, suicidou-se. Tisbe retornou ao lugar, chamou pelo amado, viu-o morto e matou-se também. Dante preferiu a versão, corrente na sua época, de que das amoras saíra o soco que manchara o véu. *

Atraiu-nos o canto de voz peregrina, e por aqueles sons guiando os nossos passos e transpondo o fogo, atingimos o poial. Venite, benedicti Patris mei!, dizia
o canto em meio de fulgente luz. Mas tão forte era tal fulgir que, deslumbrado, não consegui fitá-lo. Prosseguiu a voz: "Vai-se o dia, aproxima-se a noite. Não vos demoreis; avançai a passo ligeiro antes que o Ocidente mergulhe em trevas".
O caminho subia entre escarpas, de modo que os frouxos raios do Sol à minha frente eram cortados. Tínhamos subido uns poucos degraus quando, pelas inclinadas sombras, deduzimos, meus sábios guias e eu, que já nenhuma luz nos vinha do Sol. Aproveitamos, enquanto de trevas não se cobriu a esfera inteira, para cada qual fazer de um degrau um leito, pois a lei que proibia a escalada durante a noite nos desanimava.
As cabras agilíssimas que, rápidas, velozes, galgam penhascos à procura de pasto, logo depois de saciadas são apenas mansidão e brandura no rumi nar demorado, à sombra silenciosa. Vigia-as o pastor diligente, apoiado em cajado que é também o arrimo delas. De seu lado o zagal que nos plainos pernoita vigilante, junto de seu gado, permanece atento contra assaltos de feras noturnas. Assim estávamos os três: eu como se fosse uma cabra, eles como os pastores - um ao lado do outro, aconchegados sobre a fria rocha.
No alto, uma estreita abertura mostrava fulgores de estrelas, maiores, mais brilhantes do que costumeiramente eu vira. E mais nada lobrigava do mundo ao redor. Mergulhando em cismar e em vigília, fui tomado pelo sono, por esse tipo de sono que muitas vezes é anúncio do futuro.
Na hora em que Vênus, do Oriente - salvo engano - espalhava seus raios sobre o monte Citeréia, que de amor parece sempre estar ardendo, formosa donzela julguei enxergar, a qual, passeando por ameno vergel a colher flores, cantarolava: "Saibam os que por meu nome perguntarem que sou Lia, e com minhas mãos atentas vou tecendo uma grinalda. Quero, com ela, ver-me no espelho mais formosa. Minha irmã é Raquel, a que jamais repousa o espelho, sentada diante dele o dia inteiro. Seus olhos não se cansa de olhar, como eu de enfeitar-me não me fadigo; enquanto eu me agrado com movimentos, ela satisfaz-se na contemplação!"
Já os albores matutinos se desdobravam no céu com as luzes que dão ânimo ao peregrino. Fugia a treva ante a luz do amanhecer, e, com as trevas, o meu dormir. Ergui-me, encontrando já de pé os mestres. "O doce pomo que pelos angustiados mortais é procurado em tantas frondes hoje saciará a tua fome!", anunciou Virgílio. E jamais em minha vida desfrutei de prazer maior, ao ouvir aquelas palavras. Tanto em mim crescia o desejo de atingir o cimo que, a cada passo, suspeitava estivesse sendo por asas ajudado na subida. Quando a comprida escalada terminou e os pés firmamos no último degrau, Virgílio pôs em mim o olhar e disse: "Viste, filho, o fogo eterno e o fogo temporâneo e chegaste ao ponto além do qual eu nada posso mais. Até aqui, com engenho e arte guiei teus passos. Toma agora por guia o teu querer. Superaste as veredas íngremes, perigosas. Contempla o Sol que brilha à tua frente, e as ervas, as flores, os arbustos que sem trabalhos este solo faz viçar. Antes que possas fitar os olhos bem-aventurados que por virtude do seu prantear a ti me enviaram, podes repousar ou passear pelo campo. Não esperes mais de mim - nem voz nem aceno; guia-te pelo teu arbítrio livre, reto e bom. Consagro-te senhor de ti mesmo, com mitra e coroa."

Canto XXVIII

Dante caminha pela floresta do Paraíso; aproxima-se de um pequeno rio, o qual lhe impede o avanço. Na margem oposta, uma dama - Matelda - passa a falar a Dante.
Na ânsia de vagar pela belíssima floresta virgem, que a luz do novo dia descerrava ao meu olhar, apressei-me em deixar o patamar da encosta, adentrando a campina, a qual exalava aroma delicioso. Uma doce brisa, que soprava constante e brandamente, bafejava-me a fronte como um grato afago e agitava as frondes da parte onde o santo monte deitava já as primeiras sombras.
Não ficavam as frondes, porém, afastadas da sua posição natural a ponto de perturbar na ramada os pássaros a entoarem cantares com que saudavam a alvorada. Antes parecia que a folhagem, a murmurar cicios, lhes acompanhava o canto. É por modo igual que às margens do Chiassi as aves se acolhem aos ramos do pinhal quando Éolo deixa livre o caminho para o Siroco. Meu caminhar vagaroso já me havia levado tanto para dentro da antiga selva que não mais podia ver o lugar de onde partira. Eis que ribeiro vem tolher-me os passos, a deslizar para a esquerda, afagando com débeis ondas a erva às suas margens debruçadas. Tão pura era tal linfa que a seu confronto turvas pareceriam as mais límpidas águas do mundo. Essa transparência extrema ela mantém fluindo embora em valezinho umbroso, onde jamais chega raio de sol ou luz de lua.
Fazendo alto, só com o olhar cruzei o rio, querendo bem apreciar a beleza dos variados ramos que entrevia além, como se ali eternamente verdejasse o mês de maio. E apareceu-me, como costumam aparecer os prodígios que, nossa atenção requisitando, de outra qualquer preocupação no-la retiram, dama divinal, solitária a cantar, colhendo as mais formosas dentre as flores que salpicavam de beleza o seu caminho (1).
Saudei-a: "Bela dama, agraciada com favor divino, se pelo teu semblante posso acertadamente julgar os ardores que te animam! Se avançares até a margem do ribeiro, eu poderia entender as palavras do teu canto. Neste lugar, assim formosa, fazes lembrar Prosérpina arrebatada à mãe, ao perder ela também a primavera".
Com os pés resvalando o solo e curvando as débeis plantas, os seus passos mais pareciam graciosos movimentos de dançarina. Foi assim que entre flores vermelhas e amarelas a mim se encaminhou aquela graça virginal, os olhos puros voltados para a terra. Atendendo ao meu pedido, tanto se aproximou que, deliciado, pude enfim compreender o sentido dos versos que seguia dizendo. Chegada ao ponto em que a fina erva era banhada pela água cristalina, concedeume a graça de nos meus olhos descansar os seus. Não creio, sequer, dos próprios olhos de Vênus tanta luz fosse vertida ao feri-la o seu filho, por engano.
Sobre a margem oposta ela sorria, entretecendo algumas daquelas flores prodigamente espargidas em solo tão feraz.

* (1) É Matelda, citada nominalmente no Canto XXXIII. *

Três passos apenas o rio nos fazia distantes, mas, porque não me permitiu que eu para além cruzasse, mereceu-me ódio maior do que o votado por Leandro ao Helesponto, que o separava de sua amante (Heros), ao nadar entre Abidos e Sesto; mas que deixou passar a Xerxes em episódio ainda exemplar para prevenir o orgulho humano (2).
Ela disse: "És novo aqui, razão suficiente para estranhares o meu cantar na região paradisíaca escolhida para berço da espécie humana. Se julgares que nisso não há consenso divino, basta lembrar o salmo Delectasti (3) para que a dúvida seja esclarecida. Tu que aos outros te adiantaste e a mim rogaste ajuda, se algo mais queres conhecer, pergunta, pois estou pronta a responder".
"Esta água", disse-lhe, "e o som desta floresta opõem-se, com seu movimento e rumor, à lição que a este propósito recebi há pouco." E ela: "Como tal coisa pode suceder, dir-te-ei, e bem assim a causa de tua surpresa, dissipando, com isso, as nuvens que obscurecem o teu espírito. O Sumo Bem, que a Si próprio basta, criou o homem apto ao bem e por arras lhe concedeu este lugar de paz eterna. Por sua culpa, o homem aqui pouco demorou, transformando a vida entre prazeres num viver de desgostos. Para que os maus efeitos dos eflúvios resultantes das perturbações das águas e da terra, acompanhadas de calor violento, ao homem não causassem danos é que da porta do Purgatório até o alto esta montanha não padece perturbações atmosféricas. O ar gira sempre em círculo, seguindo impulso recebido de seu Primeiro Motor - Deus.

* (2) o Helesponto é hoje o Estreito de Dardanelos. Na mitologia, separava Leandro de sua amada Heros, pois uma habitava Abidos e o outro Sesto. Helesponto, porém, deixou passar livremente o rei persa Xerxes, embora assistisse ao retorno deste último, derrotado.
(3) Salmo 91, 4. *

Neste alteroso cimo, a todo ar exposta, sensível a qualquer movimento dele, a floresta repercute o perpassar da brisa, fazendo com que as plantas destilem os seus perfumes para que o vento a toda parte os conduza. Sendo a terra fértil, por si ou por obra do Céu concebe e produz plantas de variado gênero e virtudes. Não deveria, pois, ser causa de estupor o verificares que tantos lenhos brotam e vicejam sem proceder de comuns sementes. O santo solo em que te encontras contém em si germes de todas as espécies e de espécies que os humanos jamais viram. Essa água que aí vês não tem origem em nascentes alimentadas por gelo liquefeito, como sucede aos rios cujos leitos ora intumescem ora ressecam, mas sim procede de fonte inexaurível. E esta, na vontade divina, busca nascimento para dois fluxos que verte. De uma parte flui levando a virtude de apagar a lembrança do passado; de outra, assegura a memória eterna das boas ações. O primeiro veio se chama Eunoé, o outro, Letes; mas somente pode ser provado o efeito de um depois de haver do outro provado a linfa, a qual, em matéria de sabor, a todas sobrepuja. Não deveria seguir falando, pois respondi suficientemente ao que desejavas. Contudo, desejo completar o que iniciei, supondo que por espontânea não te desagrade a informação que mais do que o respondido te pode esclarecer. Os poetas que cantaram a idade de ouro e o seu estado feliz, situando no Parnaso tão radiante lugar, certamente vislumbravam um lugar como este. Aqui a raiz da espécie humana viveu em feliz inocência; aqui a primavera é eterna, eternos os frutos e esta água é o néctar ao qual os poetas se referiam".
Virei-me para onde Estácio e Virgílio se achavam. O sorriso em seus olhos me revelou haverem escutado quanto fora dito. Voltei então o rosto para a formosa dama.

Canto XXIX

Caminhando pelas margens do Letes vão Matelda e Dante. Uma forte luz ilumina a floresta; e parecia que tal luz ia na direção deles. O poeta então vê sete candelabros acesos, juntamente com um magnífico préstito.
Como se estivesse enamorada, assim se pôs a cantar: Beati quorum tecta sunt peccata! (1) E como se integrasse um bando de ninfas que pelo umbroso bosque perambulassem, algumas procurando o sol, outras evitando-o, pôs-se a caminhar ao longo da margem. Quanto a mim, resolvi segui-la. Não havíamos dado cem passos quando as margens estenderam-se paralelamente e assim me vi caminhando rumo do levante. Pouco havíamos avançado neste rumo quando, voltando-se para mim, disse ela: "Irmão, observa e ouve!"
Refulgiu por toda a floresta luz tão forte que julguei tratar-se de relâmpago. Mas fulgor tamanho não perdura depois do relâmpago e aquele aumentava, mais e mais esplendente, e eu me questionava: "Que prodígio é este?"

* (1) Salmo 31. *

Sons dulcíssimos fluíam pelo ar tornado luminoso, com o que, ardendo em zelo, observando quão prontamente céus e terras obedeciam a Deus, eu reprovava mentalmente o imprudente proceder de Eva, pois dava-me conta de que ela, origem da vida humana, violara preceitos divinos, rompendo o véu da simples obediência. Houvesse permanecido fiel, e eu, mais cedo e por mais tempo, desfrutaria aquela divina morada e suas indescritíveis delícias.
Enquanto divagava, entre primícias de prazeres eternos, desejoso de conhecer outras letícias, eis que à nossa frente, sob claridade intensa, o ar tornava-se brilhante sobre as ramas, ao tempo em que a melodia ganhava suavidade igual a doce cantar. Ó Musas - se a fome, o frio e as vigílias que por vós padeci merecem prêmio, é chegado o momento de vos pedir proteção. Ora convém que (a fonte) Hipocrene verse sobre mim as suas águas inspiradoras e que Urânia com o seu coro inspire-me a narrar em versos os prodígios que me foram dados ver.
Acreditava enxergar, não muito longe dali, sete árvores de ouro. Era aparência a que a distância dava aspecto de verdade, pois assim que delas me acerquei a evidência provou-me o quanto a parecença induz a erros, emprestando às coisas identidade falsa. A faculdade que permite à razão corrigir os enganos fezme saber que se tratava de candelabros e que os versos da melodia eram hosanas (2). Mais do que no céu, pela noite em meio, brilha a luz da Lua quando plenamente cheia, assim refulgia cada qual dos candelabros. Tomado de admiração, voltei-me para o sábio Virgílio. Porém, ele encarou-me com estupor igual ao meu. De novo fixei o lampadário que não imobiliza, antes vai prosseguindo, suave, lento, quais pudicas noivas a caminho do himeneu.

* (2) No Apocalipse, São João vê sete candelabros de ouro, símbolos dos sete sacramentos. *

Então me disse a dama: "Por que apenas com essas vivas luzes te deixas encantar, sem reparar naquilo que vem em seguida a elas?" Tratava-se de gente vestida de cor bem alva, tendo os sete luzeiros por guia, mostrando candor que igual na Terra jamais vi. A água à esquerda refletia o brilho das luzes, um brilho tão puro que repetia, qual se fora espelho, a minha imagem.
Quando tanto me aproximei dos candelabros que entre eles e eu só havia, então, o rio, fiz alto, para melhor observar. Vi-os desfilar, deixando atrás de si
o ar rasgado em faixas coloridas, pela sua fulgurante luz, qual ocorre com o traço de pincéis; de tal modo que o ar tingia-se com as sete cores que tingem o cinto de Délia e figuram no arco do Sol. Tanto se estendiam tais estandartes que eu os perdia de vista, havendo entre um e outro dez passos aproximadamente. Sob dossel tão belo seguiam, emparelhados, vinte e quatro anciãos, cingidas as frontes por bem alvos lírios (3). Cantavam, juntos e compassados: "Bendita sejas entre as filhas de Adão! Benditas as tuas altas virtudes!" Quando da margem fronteira, guarnecida com flores frescas e relva, afastou-se a santa grei, como às vezes sucede no céu que a luz de um astro siga a de outro, assomaram ali quatro animais tendo a cabeça ornada de verdes flores (4). Cada qual dotado de seis asas, sendo as penas destas guarnecidas de tantos olhos quantos possuía Argos ao tempo em que com todos eles enxergava. Em descrevê-los, leitor, não empenho rimas, eis que outro tema requer os meus cuidados, impedindo que neste eu mais me estenda.

* (3) Os 24 anciãos simbolizavam os 24 livros do Velho Testamento.
(4) Os quatro animais simbolizavam os quatro evangelhos. *

Mas deves ler o texto de Ezequiel, que os descreve tal como os viu baixar do norte, qual vento, qual nuvem, qual lampejo de fulgor. Assim os descreveu, assim os contemplou, vendo diferença apenas nas asas. E agora, deixando o relato de Ezequiel, o de João eu sigo.
Entre os quatro (animais) rodava, resplendente, um carro triunfal de dupla roda, por um grifo altivamente dirigido. Estendendo as asas, mostrava o grifo a sua pujança: estando sob a mediana das sete faixas coloridas, três mantinha a cada lado seu e a nenhuma tocava ou malfazia.
Não pode a vista atingir a altura a que se alçavam as suas extremidades. De ouro os membros do grifo na sua parte pássaro; branca e vermelha a parte leonina. Prodígio igual Roma nunca vira, nem mesmo quando do triunfo do Africano ou de Augusto; ante o fulgor deste, seria pálido bruxuleio o do próprio carro solar, que mal guiado foi incendiado por Júpiter, em ato de justiça, aos rogos dos humanos horrorizados.
À direita, dançando, três damas seguiam o sulco da roda. Era uma tão vermelha, que difícil seria distingui-la em meio de chamas; outra mostrava os ossos e a carne por tal modo verdes que sugeriam esmeralda; a terceira, de branca neve semelhava ser composta. Ora a branca, ora a rubra esforçavam-se por dirigir a dança; o cantar de uma sustentava os movimentos, enquanto os passos da outra regulavam o ritmo. A esquerda, surgiram outras quatro damas de púrpura vestida (5). A da frente guiava-as, e três olhos ostentava em plena testa. Fechavam a marcha dos grupos descritos dois anciãos (6)

* (5) As virtudes cardeais: justiça, fortaleza, temperança e prudéncia. (6) São Lucas e São Paulo. *

vestidos de modo diferente, semelhantes porém no aspecto grave. Parecia um ser membro da escola criada por Hipócrates visando ao bem da humanidade. Exibia o outro especial seriedade, levando tão grande e aguda espada que, embora a distância, assustei-me. Vinham atrás destes dois outros quatro (7) de modesta compostura; e bem isolado, um velho que, tendo embora cerrados os olhos, trazia bem aclarada a face (8). Estes sete vestiam-se como os quatro do primeiro grupo, mas não com lírios, e sim com rosas vermelhas, ornadas as frontes. Vendo-os, parecia-me que trouxessem, cada qual, incendiada a testa. Chegava o carro à minha frente quando ouviu-se um trovão, e a santa grei obedeceu de pronto àquele sinal. Como se houvesse algum impedimento, o cortejo parou, inclusive os que abriam a marcha.

* (7) São Pedro, São João, São Tiago e São Judas.
(8) Trata-se de São João. Diz-se, e Dante o confirma nesta passagem, que contaria noventa anos quando escreveu seu Evangelho. *

Canto XXX

A divina procissão estacou, e Dante viu uma dama velada surgir sobre o carro, entre cânticos e aclamações. O poeta, emocionado - pois intuiu quem era a dama -, voltou-se para falar a Virgílio; não encontrou porém seu guia, que havia partido.
Quando o setentrião do primeiro céu - que nunca conheceu ocaso nem oriente, nem outra névoa que não a da culpa, tornando os culpados cientes de seus deveres futuros, assim como o outro setentrião, o mais baixo, do mundo terreno é guia permanente, conduzindo o navegante a bom porto - estacou, a santo séquito, que ia logo depois do grifo, ao carro voltou o olhar, símbolo da paz (1). Um entre eles, qual arauto celestial, cantou por três vezes Veni, sponsa, de Líbano!, e a turba repetiu esse canto. Assim como no dia do juízo universal, hão de lestos ressurgir os eleitos, entoando hosanas com voz revigorada; assim uma centena de anjos, mensageiros da vida eterna, ad vocem tanti senis ergueu-se do divino carro, aleluiando: Benedictus qui venisl, e ao redor do carro espargindo flores: Manibus, o date, lilia plenis!

* (1) Dante compara os sete candelabros com as sete estrelas do setentrião da Ursa Maior. Os sete candelabros, símbolos dos dons do Espírito Santo, no setentrião do Empíreo (primeiro céu criado), guiam a procissão mística tal como o setentrião do mundo, isto é, a Ursa Maior, guia os navegantes ao porto. *

Já contemplei as rosadas barras da alvorada ruborizarem o nascer do dia enquanto um trecho do céu em puro azul, sem nenhum vapor, deixa o Sol surgir envolto em névoa para que o homem possa encarar-lhe o natural fulgor. De igual modo, nuvem de flores, erguida por mãos de anjos, subia do carro e para ele retornava mansamente. Através de tal nuvem floral, por sobre o branco véu, vislumbrei sob coroa de ramos de oliveira formosa dama envolta em manto verde, trajando vestes cor de chama viva.
Por um longo tempo, meu espírito, ignorando esse tipo de encantamento, arrebatado e pasmo recolheu-se ante a visão divina. Sem que meus olhos lhe pudessem reconhecer as feições, meu espírito sentiu, mercê da força oculta nele deixada por amor antigo, sua profunda influência. Vi que estava de novo sob o império do sentimento que já na puerícia me arrebatara. À esquerda me voltei, com ansiedade própria do menino ao buscar o regaço materno, sob impulso do medo ou da aflição. Pensava dizer a Virgílio: "Em minhas veias não há uma só gota tranqüila de sangue; eis que me sinto arder nas chamas do antigo amor!" Virgílio, porém, partira! Virgílio, o pai dulcíssimo; Virgílio, a quem eu confiara a salvação! Nem a lembrança de tudo quanto, em tal local, perdera a primeira das mães pôde fazer-me conter as lágrimas, que caíam copiosamente.
"Dante, não te desesperes por Virgílio ter-se ido. Reserva a disposição e as lágrimas para mais intensa dor." Qual almirante experiente que da proa à popa observa o trabalho da maruja das naus sob seu mando, e a incentiva a proceder com brio, assim fiz correr o olhar pelo lado esquerdo do carro, ao ouvir meu nome que, aqui, tal como pronunciado eu o registro, pela necessidade de ser fiel ao ouvido. Vi a mesma dama que antes vislumbrara em meio do cortejo divinal, quando para aquém do rio o olhar a mim voltara. Embora trouxesse agora a fronte velada pela cortina de flores e pelos ramos de oliveira gratos a Minerva, pude ver que era à mesma. Com gesto altivo e o modo soberano dos que reservam as admoestações para o fim do seu discurso, continuou:
"Teus olhos não te iludem; sim, sou eu, Beatriz! Como ousaste subir até aqui? Não sabes que este lugar se reserva ao homem ditoso?" Baixei os olhos para o rio, mas, notando minha imagem refletida na água, volvi-os para a relva, tamanha era a vergonha que me dominara. Se me pareceu que Beatriz falara com o tom severo utilizado pela mãe ao repreender o filho, tal ocorreu porque ao castigo resulta amarga a piedade com que é observado. Calou-se e os anjos cantaram Inte, Domine, speraui, sustendo porém o doce salmo nas palavras pedes meos? Assim como a neve se congela entre as árvores das italianas montanhas, batidas e contraídas pelos ventos da Eslavônia, mas logo se liquefaz ao sopro quente subido do sul e, liquefeita, corre em caudal; por igual modo enregelado permaneci, sem lágrimas e sem suspiros, antes de ouvir o cantar angélico modulando hinos próprios das eternas paragens. Mas ao notar que em seu cantar havia mais compaixão por mim do que se explicitamente houvessem dito: "Senhora, por que tanto o reprovas?", o que parecia paralisado em meu peito subitamente transformou-se em chorar e suspirar.
Ela, contudo, ereta na parte esquerda do carro, voltou-se para a direita e falou àquelas piedosas criaturas, respondendo ao canto: "Vós, que vigiais durante o longo dia que é a eternidade, e a quem o sono ou a noite nada podem esconder, bem conheceis o que sucede no mundo. Se nesse dizer incluo pormenores a vós desnecessários, faço-o para que bem o entenda esse que chora, a fim de que a sua culpa pela dor seja medida. Não é apenas por efeito de influxo celeste que toda criatura cumpre seu destino, segundo a estrela sob cuja luz nasceu; mas também por efeito da graça divina baixada de tão alto que à sua origem não pode chegar a nossa vista. Esse homem, na meninice, foi ornado de tais graças divinas que, se as tivesse utilizado proveitosamente, poderia ter alcançado a excelência de todas as virtudes. Mas sucede que o mau terreno se faz tão mais danoso e selvagem quanto mais vigorosa for a semente ruim que gera, maligno. Mantive-o por algum tempo, com meu olhar de menina, em trilha amena e segura. Porém, ao encetar o término da segunda idade, deixei a vida terrena e ele, pronto, a outra dedicou-se. Quando de carne a espírito fui mudada, beleza e virtude em mim cresceram, mas, apesar disso, aos olhos seus fui menos querida. Dirigiu assim os passos por caminho errado, seguindo o que do bem era apenas falsa imagem - enganadora promessa de constância. Em vão, por meio de sonhos, procurei guiá-lo, e em vigílias fiz com que divisasse o verdadeiro bem. Com nada disso se importou. Tão fundo mergulhou no pecado que, para reerguê-lo, não havia senão um remédio: mostrar-lhe as penas que no Inferno aguardam as almas danadas. Com tal intenção é que penetrei o mundo dos mortos, e àquele que o guiou até aqui dirigi rogos e prantos. A justiça de Deus estaria ultrajada se ele cruzasse o Letes com a permissão de provar tal linfa restauradora, sem pagar com lágrimas e dores o preço devido".

Canto XXXI

Beatriz continua a repreender duramente Dante, expondo-lhe as fraquezas e os erros. Angustiado ao extremo, o poeta desmaia. Depois, encontra-se diante de Beatriz, face a face com ela; e ela, retirando o véu, lhe sorri.
"Ó tu, à frente do rio sagrado", continuou a falar-me, com palavras que antes me feriram obliquamente, e agora se voltavam diretamente contra mim; "confessa a verdade! É mister que ouvida a acusação se ouça a confissão do culpado."
Tão desnorteado fiquei que minha voz nem mesmo pôde chegar aos lábios. Ela aguardou um momento; depois insistiu: "Que pensas? Responde-me: inda não fizeste apagar pela água santa as lembranças do passado pecaminoso?" Turbação e temor, em porções iguais, impuseram-me um sim; tão inexpressivo, porém, que para entendê-lo seria preciso que os olhos ajudassem os ouvidos. Assim como de arco estendido, a ponto de romper-se a corda, a flecha chega ao alvo mas não tem força para penetrá-lo, estava meu espírito tão angustiado que, rompendo-se-me a alma em suspiros e lágrimas, terminei por perder de todo a voz.
Ela continuou: "Se, obediente ao meu desejo, teu propósito foi o de realizar o bem - além do que nada existe a que aspirar se possa -, quais os tremendos fossos a transpor, quais as pesadas cadeias que terminaram por tirar-te daquele caminho? Quais os atrativos e os lucros com que os bens mundanos te acenaram a ponto de tê-los abraçado?"
Um suspiro amargo saiu-me do peito, mal sobrado alento com que lhe falasse, a custo os lábios permitindo que a voz saísse. Chorando, disse eu: "Deixei me transviar pelos falsos prazeres mundanos, tão logo te partiste".
E ela: "Se calasses ou negasses a culpa que confessas, maior seria o crime, igualmente claro Àquele por quem serás julgado. Mas nesse juízo, quando é da boca do pecador que se ouve a acusação, a alta justiça torna-se mais branda. Contudo, para que teus erros te envergonhem, e a fim de que, no futuro, tais sereias ouvindo, saibas resistir, esquece a razão do prantear e ouve-me: saberás a qual e tão diverso rumo se propunha conduzir-te a minha morte. Jamais a natureza ou o engenho humano exibiram ao teu entendimento algo tão prazeroso quanto a minha formosura, pela morte desfeita. Assim, se comigo se foi para sempre o que era teu prazer maior, como te foi possível que te deixasses seduzir pelos atrativos de outra beleza menor e mortal? Deverias, ao descobrir-se assim tentado, elevar aos Céus a mente, até a minha condição de eternidade infalível, e não baixar para a comezinha terra o vôo da alma, expondo-a a novos pecados, ou por mulheres ou por vaidades momentâneas. O pássaro inexperiente é alvo certo para o caçador, mas uma ave já provada não se deixa apanhar tão facilmente".
Quedei-me como um menino que, mudo e com a cabeça baixa, ouve a repreensão materna arrependido, e se confessa culpado. E Beatriz prosseguiu: "Se apenas ouvindo te sentes magoado, levanta para mim tua barba e provarás dor maior ao fitar-me!" Com menor resistência do que a minha em obedecê-la o robusto carvalho se desraíza ao impacto do frio vento austral, ou do cálido tufão africano. E quando ela disse barba e não rosto, entendi-lhe a ironia. Erguendo enfim os olhos, prontamente me dei conta de que a falange de anjos radiantes não mais lançava flores ao ar. A tímida vista enderecei a Beatriz, voltada a fitar o grifo que, em sua única pessoa, reunia duas naturezas (1). Assim velada, distante, além do rio, pareceu-me ainda mais formosa do que o fora em vida, ela que em vida fora a mais formosa de quantas de formosura tinham fama. Foi então que fundamente me pungiu a urtiga do remorso, isso a ponto de perceber o quão vivamente odiava aquelas coisas que na Terra altamente amara, porque haviam me separado de Beatriz. Tal remorso golpeou-me duramente o espírito; perdi os sentidos, apenas tendo ciência do meu estado aquela que o causara.
Recobrando a consciência, vi, sobre mim inclinada, a dama que por primeiro eu vira junto ao bosque, a me dizer, agora: "Apóia-te em mim". No rio me fez mergulhar até o pescoço, e caminhou à flor da água, arrastando-me junto. Chegando à sagrada margem (oposta àquela da qual partira) ouvi cantar o Asperges me em tom indescritivelmente suave. Deixando minhas mãos, a formosa dama cingiu-me a fronte e submergiu-me, com o que forçoso foi que eu tragasse água. Assim purificado, conduziu-me ela para onde as quatro outras damas executavam formosa dança, e cada uma delas estreitou-me nos braços. "Aqui somos ninfas; no céu estrelas; antes que Beatriz baixasse ao mundo, fomos eleitas para servas dela.

* (1) Beatriz fita em adoração o grifo, que representava a natureza humana e divina de Jesus Cristo. *

Vamos levar-te até onde possas fitar os olhos seus, mas antes é necessário que o teu próprio olhar seja preparado para suportar tão poderoso lume. Isso farão três altas damas cuja virtude é mais alta do que a nossa." Tal disseram em ritmo de cantiga, e, depois, ante o grifo me conduziram. Ali, voltada para nós, estava Beatriz. Aconselharam-me as que me guiavam: "Observa com toda atenção os seus olhos, embora fites as esmeraldas que contra ti já atiraram dardos de amor". Mil desejos, mais ardentes do que chama, prenderam os meus aos seus luzentes olhos, insistentes na adoração ao grifo. Como sol refletido em espelho, na fera eu via natureza dupla - ora divina, ora humana. Imagina, leitor, meu pasmo ao constatar que o grifo não mudava de aspecto, ao passo que a sua imagem reflexa continuamente se alterava. Entre prazer e espanto eu gozava daquele manjar espiritual que, ao tempo que sacia faz aumentar a vontade de fruí-lo, quando, demonstrando pertencerem à mais alta ordem celeste, as três damas (mencionadas) adiantaram-se, cantando em ritmo angelical: "Volve, ó Beatriz, volve teus santos olhos ao servo fiel que para te ver tantos passos caminhou. Concede-nos a graça de para ele desvelar teu rosto, a fim de que divise, por segunda vez, a formosura que trazes oculta!"
o resplendor de viva luz eterna venha cantar quem pálido se tornou à sombra do Parnaso ou bebeu inspiração em sua fonte, e transtornado ficará esse poeta se tentar descrever qual te apresentaste (ó Beatriz) quando, já sem véu, na bela enquadratura do céu, ao ar expuseste a face!

Canto XXXII

Recomeça a marcha a procissão dos sete candelabros; chega a uma árvore enorme, e o grifo prende nela seu carro. O poeta adormece; ao acordar, vê Beatriz sentada sob a árvore, ao lado do carro.
Eu tinha os olhos tão fixos e absortos, tão ocupados em saciar o santo anseio de dez anos que em mim ficaram anulados os outros sentidos (1). Seu sorriso me atraía tanto que meus olhos pareciam reclusos entre muralhas levantadas pelos encantos antigos. Mas eisme forçado a desviá-los para a esquerda, para ouvir o que diziam as três divinas damas: "Observa com atenção!" Provei então a incapacidade de firmar a vista conhecida por quem é golpeado por raio de sol.
Mas quando à luz ali reinante pude acomodar novamente os olhos, notei que para a direita volvia a celestial falange, marchando à frente os sete candelabros e o sol flamante. Qual o evoluir de esquadrões que, antes de iniciar a marcha coletiva, erguem o estandarte e empós dele seguem quando a frente da formação inclina-se para nova direção, assim agiu a milícia celeste, desfilando, em marcha, antes de que o santo carro principiasse a se mover. Para junto das rodas voltaram as damas e o grifo fez rodar o sacro lenho, em manobra tão delicada que, em meio ao movimento, nem mesmo uma pena foi agitada.

* (1) Beatriz falecera em 1290, e o encontro celeste se dera supostamente em 1300. *

Aquela que me arrastara pelo rio, Estácio e eu seguíamos, acompanhando a roda pelo lado em que era menor a órbita descrita pelo adiantar-se do carro. Assim avançávamos pela floresta tornada erma por culpa daquela que deu crédito às falas da serpente; cada um de nós regulando os passos pelo divino cântico. Havíamos caminhado distância talvez igual a três vezes um tiro de flecha quando Beatriz desceu do carro. A grei inteira exclamou: "Adão!", caminhando em direção à planta despojada por inteiro de flores e sem folhas em qualquer dos ramos (2). Sua fronde mais se dilatava à medida que subia, prodígio capaz de causar espécie aos próprios índios afeitos às árvores gigantescas. "Feliz de ti, ó grifo, que isento de culpa não provaste desse tronco, agradável ao gosto, porém causa intestina de cruéis tormentos!", cantou a procissão inteira, disposta em torno do tronco assaz robusto. O grifo respondeu: "Assim, para sempre, se faz justiça!" E ao carro que conduzira pela floresta ele tornou, para trazê-lo ao pé do tronco despojado. E tronco e carro fez que estivessem unidos.
Quando, depois do luminoso signo dos Peixes, o astro-rei brilha dardejante sobre as terrenas plantas, eis que, túrgidas, elas se renovam, ganhando novo esmalte, e tal maravilha ocorre tão rápido que o Sol ainda não entrou no campo de outro signo. Foi assim que subitamente floresceu aquela árvore seca, desfolhada, exibindo cores vivas entre o rosa e o violeta. Não entendi, nem jamais em outra parte ouvi cantar o cântico entoado então; jamais também por outro alguém ouvido.

* (2) Trata-se da árvore do bem e do mal. *

Se pudesse descrever como foi que se fecharam os olhos do impiedoso Argos ao doce canto de Sírinx, sono pelo qual pagou alto preço aí, então, qual pintor que trabalha copiando de modelo, eu descreveria como sucedeu que adormeci. Mas isso deixo a quem melhor possa fazê-lo e passo ao momento em que despertei, sacudido por fulgor intenso que rompia o véu do sono, e por forte chamamento: "Desperta, que fazes?" Como, a ver as flores da macieira, cujo pomo delicioso é sempre cobiçado pelos anjos nas bodas eternas do Céu, João, Pedro e Tiago foram levados e depois da prostração reanimaram-se ao brado desse que rompeu sonos ainda mais profundos do que o meu; e tendo-se reanimado, aperceberam-se de que fora diminuída a companhia em que antes se encontravam, estando ausentes Elias e Moisés, do mesmo passo em que na túnica do mestre as cores haviam mudado - assim eu, ao despertar sob os resplendores de forte luz, vi a dama que já me fora guia à margem do rio, sobre as flores e a relva. Ela estava próxima. Desconcertado, perguntei-lhe: "Onde está Beatriz?"
Respondeu-me: "Podes ver como se acomodou sobre as raízes da planta rediviva; observa a companhia que a circunda. Seguindo o grifo, todos os outros subiram ao Céu, ao som dos cânticos mais lindos". Não sei dizer se ela continuou falando, pois tinha ante meus olhos aquela que era objeto da minha atenção inteira. Sobre o solo bendito tomara assento, sozinha, como se designada para guardar o carro atado ao tronco. Circundavam-na sete ninfas, tendo suspensos das mãos esses lumes que dos piores ventos - o Aquilão ou o Austro - atrevem-se a zombar.
"Por curto tempo habitarás esta selva. Irás, depois, comigo, à morada eterna, essa Roma em função da qual Cristo é romano. Por isso, em benefício do mundo que persiste no erro, fita o carro com atenção, e tudo quanto observares descreve em detalhes ao retornar à Terra." Assim falou Beatriz e havendo posto a seus pés o entendimento e o querer, para o carro voltei os olhos. Jamais com maior velocidade, arremessado dos confins imotos, algum raio desfez espessa nuvem de chuva carregada, como, surgindo em meio à ramagem, fendendo a fronde, derrubando flores e folhas, surgiu águia feroz. Com tamanho impulso abalroou o carro que este adernou, qual nave batida a estibordo e a bombordo pelo vento e pelas ondas. Em seguida, uma raposa (3) precipitou-se para dentro do carro, indicando estar há muito sem alimentar-se. Minha dama, porém, fê-la fugir com velocidade igual à magreza extrema. Depois, vindo por onde descera pouco antes, vi retornar a águia, deixando no estrado do carro boa parte de suas penas. Qual parte o clamor de coração ferido, ouvi baixar do céu um triste lamento: "Ó minha barca, carga bem ruim levas agora!" Pareceu-me então que a terra se abria por entre as rodas, dela surgindo dragão a aferrar com a comprida cauda o carro sagrado transfixando-o. Logo, o dragão, com a cauda em retirada, arrancou o fundo do carro e se foi, coleando, malévolo sempre. O que restou do carro lembrava terra fértil que se veste de erva, coberto da plumagem da águia, talvez ali semeada com intenção honesta e pura. Assim, também, o timão e as rodas. E tudo acontecera em tempo menor do que o exigido pela boca para exalar suspiro.

* (3) A águia simboliza o Império Romano, responsável por duras perseguições à Igreja. A raposa simboliza as heresias que ameaçaram a unidade da Igreja, nos seus primórdios. *

Do santo lenho assim mudado brotavam cabeças nos vários ângulos, uma de cada lado e três pelo timão. As primeiras tinham cornos iguais aos de boi; as demais, apenas um chifre. Monstros iguais jamais se viram! Ereta, qual rocha saliente em alto monte, sentada sobre o carro, vi então nua meretriz, os lascivos olhos girando à volta. Como pretendendo, sozinho, possuí-la, à sua retaguarda postava-se um gigante, e os dois se beijavam (4). Contudo, notando que em mim ela pusera os olhos cobiçosos, passou a espancá-la com violência. Depois, tomado de suspeitas e incendido pela ira, desprendeu o monstro e o conduziu para o bosque tão depressa que logo aos meus olhos se ocultaram a besta e a prostituta.

* (4) O gigante é o Rei Filipe, o Belo, ou toda a casa de França, ora amiga ora inimiga da Cúria Romana, a qual buscava silenciar mediante benefícios. *

Canto XXXIII

Beatriz vaticina o surgimento de um líder que porá fim à desordem política e espiritual. Matelda conduz Dante ao Rio Eunoé, o rio da Boa Memória, onde o mergulha; assim purificado, ele poderá subir ao Paraíso.
Deus, uenerunt gentes, alternando três ou quatro vozes, as ninfas suavemente salmodiavam, lacrimejando (1). Beatriz ouvia; e era tanta sua dor que pouco mais do que ela, junto à cruz, Maria mostrou sofrer. Mas logo que as outras virgens lhe deram oportunidade para falar, pondo-se ereta, afogueada pelo ardor disse-lhes: "Modicum, et non uidebitis me; et iterum - irmãs caríssimas - modicum et vos uidebitis me! (2) Em seguida, fazendo-se preceder pelas sete virgens, acenou a mim, a Matelda e ao poeta que restara - era um sinal para que a seguíssemos. Caminhamos com disposição e, acredito, dez passos não avançáramos quando seus olhos os meus encontraram, e com voz tranqüila disse: "Apressa-te, para que possas facilmente entender se me dispuser a falar contigo!" Segui suas recomendações, e ela continuou: "Irmão, por que não tomas a iniciativa de fazer perguntas, caminhando ao meu lado?" Senti-me como aquele que, alimentando por seus superiores respeito extremo e devendo falar diante deles, não consegue dar clareza e ritmo às palavras.

* (1) Neste trecho do Salmo 78, Davi lamenta a profanação do Templo.
(2) Evangelho de São João, XVI, 16. *

Assim, foi truncando o falar que principiei: "Conheceis, senhora, tudo quanto desejo perguntar e também que vos é dado esclarecer-me".
E ela me disse: "Deixa de lado o receio e a vergonha, de ora em diante; deixa de falar como quem sonha. Que o carro profanado há pouco pelo dragão já não está, como foi ofendido. E o criminoso saberá que à justiça divina nenhuma sopa se sobrepõe (3). Não há de ficar por todo o tempo sem herdeiros a águia que o carro cobriu com as suas penas, fazendo-se antes monstro e depois presa. Com os olhos no futuro, percebo o que anunciam as mais próximas estrelas sem que sombras ou obstáculos prejudiquem a visão do porvir: um quinhentos, dez e cinco virá, enviado por Deus, a fim de trucidar a ladra e o gigante seu cúmplice (4). É provável que não me compreendas perfeitamente, pois o obscuro é próprio das profecias, tal como sucedeu com Têmis e a Esfinge. Os fatos, contudo, farão com que venhas a me dar razão; quais Laiade (5) eles resolverão este enigma, sem causar dano ao trigo e ao gado. Atenta bem ao que te disse e tais quais de mim as ouves repete estas palavras aos vivos cujo viver é corrida sem detença rumo à morte. Mas toma cuidado, para que estas palavras (mais tarde) escrevendo, recordes que aflitamente viste esta árvore por duas vezes agredida. E adverte que todo aquele que a destrói ou mutila comete ofensa a Deus, com sério crime, pois foi para a Sua glória que Ele a criou.

* (3) Isto é, o culpado seria inevitavelmente punido. Segundo uma crendice toscara, o assassino que durante nove dias tomasse sopa sobre a tumba de sua vítima nenhuma vingança teria a temer.
(4) DXV- quinhentos, dez e cinco - é anagrama de DUX, líder, imperador.
(5) Édipo, o herói que solucionou o enigma proposto pela Esfinge. *

Por haver mordido uma de suas frutas, por mais de cinco mil anos ardeu a primeira das almas, sofrendo e esperando pela vinda d'Aquele que sobre si tomou todos os pecados. Em sonolência trazes o espírito se não consegues atinar com as razões de ser a copa dessa árvore mais larga à medida que se alteia. E se o prazer dos pensamentos vãos, quais as águas do Rio Elsa, não te tivesse obscurecido a visão da árvore como fez com Píramo o sumo da amoreira, entenderias por que a justiça divina proibiu o acesso à árvore. Mas trazes o entendimento afeito ao pecado. Assim, não alcanças entender os meus conceitos, que te ofuscam. Quero, pois, que os leves incisos na alma por sinal sensível, como as palmas com que o peregrino orna o seu bordão".
Tornei-lhe eu: "Como o sinete imprime sobre a cera a figura de seu cunho, assim está o vosso dizer perpetuado em mim. Mas por que é que sempre escapam a meu entendimento as vossas palavras?"
Respondeu: "É para que notes a falsidade da doutrina que orientou o teu modo de vida, tornando-te incapaz de compreender-me, a mim que somente a verdade exponho. Tão distante corre o caminho que seguiste da vereda reta que conduz a Deus, quanto o céu está remoto do ponto em que mais alto a Terra se levanta".
Observei, por minha vez: "Não me lembro haver jamais me furtado às vossas leis. Quanto a isso, nenhum remorso trago na consciência".
"É bem possível que hajas tal coisa esquecido", retorquiu a sorrir. "Observa que ainda há pouco bebeste da água do Letes. E se à vista do fumo se pode depreender a existência de fogo, o teu esquecimento demonstra que teu desejo se perdeu no erro. De agora em diante, porém, mais claras serão as minhas palavras para ti."
Com brilho mais intenso e passo mais vagaroso, o Sol já atingira o meridiano que divide ao meio os climas diferentes, quando fez alto o grupo das sete damas, segundo procede o guia avançado, ao deparar à frente novidade ou prenúncio dela. Tratava-se do limiar de sítio com bem pouca sombra, semelhante aos bosques de verdes ramos e troncos negros que orlam as frias espaldas alpinas. Pareceu-me que diante delas surgiram, oriundos de fonte única, o Tigre e o Eufrates, separando-se a custo, como amigos muito próximos.
"Ó luz, ó glória da raça humana! Que água é essa que aí conjunta nasce e se separa?" E ela: "Pede a Matelda que te dê a explicação!" A formosa dama, com
o tom próprio de quem se quer escusar de culpa, disse: "Esta e outras coisas já lhe expliquei e estou segura de que as águas do Letes não o podiam fazer esquecê-las".
Beatriz então disse: "Quem sabe, desusado interesse por maravilhas de maior expressão obscureceram-lhe a mente e os olhos. Eis Eunoé a deslizar. Leva
o para ali e, tal como se costuma fazer, mergulha-o, reanimando a virtude obnubilada".
Alma gentil que à obediência jamais se furta, antes tornando sua a vontade alheia, desde que por simples sinal isso lhe solicite, Matelda conduziu-me para junto de Estácio, dizendo-lhe com majestade: "Vem com ele!". Se eu dispusesse, ó leitor, de mais espaço para meu escrito, dedicaria trecho especial ao doce gozar então fruído. Entretanto, estando preenchidas as páginas destinadas a esta parte do poema, a arte poética não me permite ir além. Assim, emergi daquela santíssima água, purificado como as plantas que ganham nova floração - e pronto para alçar-me às estrelas.

Terceira parte

Paraíso

Canto I

Dante, buscando inspiração em Apolo, canta sua subida ao Paraíso.
A glória d'Aquele que a tudo deu vida penetra no universo inteiro; acima resplandece mais, e resplandece menos abaixo. Ao céu que recebe do Criador mais luz logrei chegar, e contemplei as maravilhas que nem pode nem sabe repetir quem de lá veio. Porque, à medida que o intenta, percebe que à memória não é dado invocar tanta perfeição.
Quanto a mim, tudo que daquele reino santo minha mente pôde reter será matéria para novo canto. Nesta última parte do meu trabalho, ó Apolo, nesta derradeira tarefa faze-me pleno de virtude poética! Que meus versos mereçam tua preciosa aprovação!
Até aqui, foi-me suficiente um só dos picos do Parnaso. Mas para a tarefa que me resta, penetra tu mesmo em meu peito, com o vigor por ti usado ao esfolar Mársias (1). Ó divina virtude, que eu possa descrever a visão do esplendor celeste tal qual o vi; e hei de me esforçar para receber de tuas mãos a coroa de louros, tornado digno dela pelo assunto e por tua ajuda. Raros os que podem receber tais louros, triunfando como guerreiros, ou poetas. Mas isso ocorre por culpa da humanidade - e para sua vergonha -, que não se dedica à conquista dessas glórias verdadeiras.

* (1) O Monte Parnaso, segundo se imaginava, tinha dois cimos: Elícona, reservado às Musas, e Cirra, do próprio Apolo. O auxílio das Musas bastara para os cantos referentes ao Inferno e ao Purgatório; mas agora, ao cantar o Paraíso, tinha de invocar Apolo, deus da poesia. *

A deidade délfica se alegra quando algum mortal faz por receber sobre a fronte o adorno de ramos de louro. Pequena faísca, grande incêndio provoca: é crível que meu exemplo induza poetas futuros a solicitarem auxílio de Cirra.
De diversos pontos do mundo a luz se mostra aos olhos mortais; porém o Sol é mais fecundo daquela parte em que três cruzes vêem-se unidas a quatro cír culos. Vinda de sob benfazeja estrela e percorrendo curso mais favorável, pode essa luz temperar e modelar a matéria. De um lado viera a luz; do outro chegara a noite. Assim, um dos hemisférios branquejava, enquanto o outro mergulhava em trevas, quando Beatriz voltou à esquerda sua atenção, fitando o alto Sol com firmeza incrível. E como um raio incidente provoca raio reflexo que retorna à altura de que o primeiro partira, qual romeiro ansioso pelo regresso - movido por seu olhar enderecei a mente e os olhos. Fitei o Sol com determinação - algo impossível para o homem. É lícito no Paraíso muito do que na Terra nos é vedado. Não pude suportar por longo tempo a luz solar, mas pude observar o Sol disparando chispas, como o ferro quando sai da forja. Logo percebi somar-se outra luz àquela, como se o Onipotente houvesse desejado adornar o céu com um segundo Sol. Beatriz prosseguia com os olhos fixos no eternal luzeiro, mas eu, que desviara os meus do Sol, passara a contemplá-la com adoração. Sentia-me transformar qual sucedeu a Glauco, que ao comer da erva fez-se igual a deuses marinhos. Visto que não posso descrever de modo exato o que essa transformação significa, é forçoso consignar que o exemplo basta para satisfazer àqueles a quem Deus concedeu a graça de experimentar o prodígio. Ó Deus! Tanto me elevaste, mas bem sabias que eu não era somente espírito, mas ainda carregava meu corpo mortal. Os Céus, que criaste para a eternidade, prenderam-me inicialmente pela harmonia que afinas e diriges. Vi o Sol tomar grande parte do céu; jamais, na Terra, a chuva e os rios puderam formar lago tão extenso. Tais sons, tais luzes - a meu ver inteiramente novos - acenderam em mim vivo desejo de conhecer-lhes as origens.
Beatriz, capaz de ler meus pensamentos tão bem quanto eu mesmo os conhecia, disse-me: "Teu espírito se deixa perder em raciocínio errado, pois julga-te ainda na Terra. Assim, não vês o que poderias estar vendo. Compreende que nem o raio desce tão veloz para a terra quanto estás subindo ao céu".
Enfim libertado da dúvida por aquelas palavras, logo em outra me enredei. Disse-lhe: "Aquietei-me da grande maravilha que me empolgara, mas eis-me ain da mais surpreso de como atravesso os corpos leves". (2) Ela suspirou profundamente, e em mim pôs os piedosos olhos. Com o tom de mãe que se dirige ao filho, ensinou-me: "Todas as coisas criadas seguem uma disciplina harmoniosa; o universo semelha a Deus. Os espíritos perfeitos podem perceber nele nítida a perfeição divina, fim supremo que é a Ordem Universal. As criaturas todas guardam inclinações segundo suas condições naturais, para situarem-se em menor ou maior vizinhança de Deus.

* (2) Referência ao ar e à luz. *

Eis por que buscam aperfeiçoar-se, por caminhos diversos, através do vasto mar de si próprias, cada qual seguindo o instinto por Deus concedido. Graças a isso, o ardor logra chegar à Lua; por isso é que se agitam os corações humanos; por isso a Terra prossegue em suas expansões e contrações. O arco do instinto não dispara flechas unicamente contra os seres mais rudes, mas também contra as criaturas que têm a razão apta para o reconhecimento de Deus. A Providência, que dispõe tal lei, com sua luz mantém aquietado o céu, onde gira o que vai mais rapidamente. Para ali, como em direção a posto determinado, o arco do instinto o amor divino aponta aos que a esse amor se entregaram. Verdade é que, muitas vezes, a forma final da matéria não corresponde à intenção do artista. Do mesmo modo, a criatura humana pretende escolher seu próprio rumo, desviando-se amiúde do correto e elegendo o que é errado. Se a vã felicidade mundana leva-a a desviar-se daquele impulso natural, divino, ela cai por terra, qual se pode ver da nuvem tombar o raio. Não há, pois, que admirar a tua ascensão; é natural que teu espírito suba, como é natural que o rio baixe da montanha ao vale. Seria de admirar se não subisses, nenhum impedimento te detendo, como se na terra pudesse a chama ardente ficar imóvel".
E voltou novamente os olhos para o céu.

Canto II

Dante chega à Lua - o primeiro Céu. Das nove esferas concêntricas do sistema ptolemaico, a Lua é a que está mais perto da Terra, e mais longe do Empíreo. Beatriz fala ao poeta sobre as manchas da Lua.
Ó vós, que tripulando frágil barca, ansiosos por ouvir, seguistes minha nau que entre cantos singra - volvei aos portos de que haveis saído. (1) Não penetreis o mar aberto, onde, perdendo-me, estareis perdidos. Pois esta água jamais se viu sulcar antes. Minerva me inspira; Apolo me guia; e as nove Musas indicam-me a Ursa. (2) Vós outros, porém, poucos entre muitos, que a tempo voltastes a atenção para esse pão dos anjos (a ciência divina) que alimenta mas não sacia jamais, podeis levar sem medo o vosso barco ao alto-mar, seguindo a minha esteira antes que se apague nas águas iguais. Vosso pasmo será maior do que o experimentado pelos heróis que em Colcos viram Jasão atrelar touros ferozes ao arado.
A sede inata de alcançar o Paraíso nos impulsionava. Beatriz olhava para o alto; eu olhava Beatriz. Em menor tempo talvez do que o necessário à flecha para atingir o alvo, minha vista foi atraída por estranho objeto. Beatriz, vendo patenteado o desejo que em mim intuíra, voltou-se e, leda quanto formosa, disse-me: "Em agradecimento, eleva a mente a Deus:

* (1) A barca a que Dante se refere é metáfora para conhecimento. Dante dirige-se aos leitores que não contam com preparo filosófico suficiente para compreender seu Paraíso.
(2) A Ursa, isto é, o rumo a seguir. *

chegamos ao primeiro céu!". Era como se estivéssemos cobertos por nuvem lúcida, espessa, sólida, polida qual diamante ferido pelo Sol. Penetramos o seio daquela margarida eterna do modo pelo qual a gota de água recebe o raio de sol sem se desfazer. Se eu era corpo, o mundo ignora como seja possível a um espaço comportar outro espaço sem que um corpo penetre outro; tal prodígio com maior veemência acenderia em nós o desejo de avistar a Suma Essência em que a natureza humana fundiu-se com a divina. Ali se fará patente aquilo em que se crê por força da fé, sem exigir provas, consagrando a primeira verdade a que o homem se deve agarrar.
Eu disse a ela: "Senhora, tão humildemente quanto me seja possível, rendo graças Aquele que me guindou até aqui, desde o mundo dos mortais. Mas dizei o que são essas manchas escuras que desde a Terra se percebem neste céu e que deram origem a tantas fábulas a respeito de Caim".
Sorrindo, ela me disse: "Erra sempre o juízo dos homens sobre as coisas, se a chave da sabedoria divina não acorre a lhes abrir a porta dos sentidos. Certo
é que não deverias ser tomado por tanta admiração, pois já pudeste conhecer quanto são curtos os vôos do conhecimento quando a razão entrega-se apenas aos impulsos dos sentidos. Mas dize-me: o que pensas a respeito disso?"
E eu: "Acredito que tal aconteça por serem os corpos ou mais densos, ou mais tênues". Ela retrucou: "Verás ser falso esse teu entendimento quando ouvires minhas razões em contrário. Na oitava esfera luzem muitos lumes, distintos entre si pelo vulto e pela qualidade da luz que emitem. Se a tenuidade ou a densidade originassem as sombras e as luzes, todas teriam virtudes similares e todas seriam iguais. Para que existam aspectos diversos, é forçoso que procedam de causas formais diversas, porém, segundo o teu raciocínio, todos os princípios, menos um, deveriam ser anulados. E mais, se a menor densidade fosse origem das manchas lunares, o astro em algum ponto apresentaria vácuos na espessura de sua matéria, tal como podes observar num corpo animal em que partes magras e partes gordas por vezes se sobrepõem; e se tal não ocorresse, faltariam folhas no livro da natureza.
"No primeiro caso, durante os eclipses, esses vácuos estariam patentes sob os efeitos da luz. Mas não é o que acontece. Quanto à outra hipótese - a de que
o denso e o rarefeito apresentem-se dispostos em camadas -, provarei que também está errada. Não se estendendo a camada rarefeita de um a outro lado deste astro, é forçoso existir um ponto onde a sua contrária não possa pelo corpo ser atravessada. Desta camada, o raio solar que ali incide é refletido, tal qual a camada plúmbea do espelho repele o lume que a face polida vai tocar. Replicarás que em alguns pontos o raio solar parece mais escuro por ser refletido de ponto mais interno. Dessa postura equivocada pode tirar-te uma experiência, se a ela te abalançares; pois a fonte do saber humano é a experiência. Toma três espelhos; coloca dois deles a curta distância e o terceiro, afastado. Servindo-te dos primeiros, fixa o último. Faz com que acendam, atrás de ti, luz que ilumine os três espelhos e, triplicada, volte a ti. Se bem que a imagem mais distante não pareça tão grande quanto as outras, ela brilhará tanto quanto estas.
"Assim como o calor do Sol derrete e funde a neve, deixando ver o que ela ocultava, desejo que a verdade cintile em teu rosto depois que a inteligência for aclarada. Lá no céu da divina paz gira o corpo em cuja força animadora tem origem a vida de tudo quanto nele está contido. O céu seguinte encontra-se repleto de astros luminosos, diferentes dele, variados na essência, mas dele recebendo ânimo. Os outros sete céus giram submissos a leis diversas, por vezes contrastando uns e outros, porém governados por harmonia perfeita, graduada pelo efeito e pela causa. Como poderás verificar, esses órgãos do mundo obedecem, no geral, a uma regra invariável: recebem influxos dos imediatamente superiores e os transmitem aos imediatamente inferiores. Medita acerca de quanto ouviste sobre a Verdade que almejas conhecer, a fim de que, uma vez deixado só, saibas orientar-te para Ela. Sobre o movimento e a ação destes céus atua o princípio do ferreiro e de seu martelo, a impulsionar os santos motores. O céu, tornado formoso por tantos lumes, daquela Mente Prodigiosa que o mantém no espaço toma a imagem e dela faz seu próprio selo. E qual alma que, vestindo a poeira do corpo humano, atuando nos diferentes membros impele-os a cumprirem diversas missões, assim a Inteligência criadora e motriz das estrelas em todos os astros infunde sua bondade, permanecendo imutável na unidade. Virtudes diferentes unem-se de forma diferente ao Corpo único, rutilando qual alegria a extravasar por pupila esperta. Daí resulta que uma luz é diferente de outra luz não por ter corpo mais denso ou mais rarefeito. O princípio divino é que produz o claro e o escuro".

Canto III

Dante depara as almas dos que, estando votados ao bem, foram impedidos de dar prosseguimento a sua vocação religiosa. O poeta encontra Picarda Donati.
O sol que fez arder de amor meu peito, outrora, agora desvendara, argumentando à perfeição, aos meus olhos a beleza da verdade divina. Reconhecen do meu erro e convencido da verdade, tanto quanto me foi possível ergui a fronte, intentando confessar-lhe tais coisas. Ao fazê-lo, porém, apareceu-me uma visão, e de tal modo me atraiu que a confissão não realizei. Se alguém olha através de vidro transparente e limpo, ou de espelho de água tranqüilo, puro e não profundo a ponto de ocultar o fundo, divisa imagens tão fracas em seus reflexos, que não afetam a pupila mais do que pérolas expostas em muito branca fronte. Por modo igual sucedeu ali, eis que vi rostos prontos a falarem comigo, o que me levou a incorrer em erro contrário àquele que estabeleceu elo de amor entre homem e fonte. De fato, apenas dei acordo de tais rostos, cuidei fossem efígies espelhadas. De imediato dediquei-me a identificá-los. Não o conseguindo, dirigi o olhar para o viso de minha doce guia, que sorrindo trazia os olhos plenos de santo amor, a me dizer:
"Não te cause estranheza o meu sorrir. É que o teu pensamento pueril revela que teus pés ainda não calcam a base da verdade. E uma vez que ainda pisas em falso no campo do conhecimento, fica sabendo que tais faces correspondem a figuras reais, detidas aqui por não haverem cumprido os votos formulados. Fala com elas; põe fé em quanto disserem, pois a luz da verdade, que as atrai e conforta, não lhes permite afastarem-se do bom caminho".
Voltando-me para a sombra que supus mais propensa a dialogar, disse, com o acento próprio do homem animado pela impaciência de obter ensinamentos: "Salve, afortunado espírito a gozar a doçura dos raios que informam a eternidade, doçura que nem ao menos se pode idealizar, mas apenas santamente fruir. Revela-me teu nome e destino".
Sem hesitar e com meigo sorriso respondeu: "Seguimos aqui as leis da caridade, que Deus impõe à Sua corte. Assim sendo, não posso cerrar ouvidos ao teu justo pedido. No mundo, fui monja, virgem. E se a tua memória não está ofuscada, concluirás que ora, aqui, sou mais bela do que fui lá. Reconhecerás que sou Picarda, entre estas almas bem-aventuradas; apenas espero, nesta esfera que é de todas a mais lenta. (1) Nossos afetos flamejam continuamente, abrasados que são pelo Espírito Santo, alegrando-se no conformar-se com o desejo seu. A sorte que nos coube, que parece inferior, devemo-la uns ao mau cumprimento de votos religiosos, outros ao esquecimento total de tais votos".
Tornei-lhe: "Há em vosso inefável aspecto algo celestial a tornar vossas feições diversas daquelas que ostentáveis na Terra. Por isso foi difícil reconhecer vos.

* (1) Picarda Donati, que professou na Ordem de Santa Clara. hFoi retirada à força do convento pela família, para desposar Rosselino delia Tosa - num casamento com objetivos políticos. *

Porém, auxiliado pelas vossas palavras, isso torna-se fácil. Mas, dizei-me se, mesmo sendo felizes neste sítio, aspirais a subir a mais alto páramo, mais próximo da Suma Sabedoria, para dela haurir maior contentamento".
Sorriu para suas iguais um sorriso breve, e respondeu-me, tão plena de alegria como se ardesse no mais puro amor: "Irmão, a virtude da caridade nos induz a desejar aquilo que possuímos, sem aspirar ao que não temos. Se anelássemos ser levadas a céus mais altos, estariam os nossos desejos em desacordo com os d'Aquele que aqui nos mantém. Entenderás não ser possível tal incoerência. Tal disposição é essencial a esta forma de bem-aventurança, pois, aqui, os desejos destas almas e os de Deus tornaram-se um desejo único. Disposição igual à nossa encontra-se por todo este reino, de céu em céu, segundo é do agrado de Deus, cujo querer é que queiramos aquilo que Ele quer. Seguir a Sua vontade é toda glória que buscamos - a qual é mar para onde confluem todas as coisas, seja produto direto de Sua vontade ou resultado de evolução natural".
Não tive a partir de então mais dúvidas de que qualquer das partes dos céus é o mesmo Paraíso, e que, contudo, a graça divina não reside por igual em todas aquelas partes. Assim também, se já nos saciamos de um alimento, o apetite permanece em relação a outro, e a este se procura, alegria havendo no encontrá-lo. Assim procedi, manifestando, com gestos e palavras, o desejo de conhecer a causa que a impedira de cumprir seus votos integralmente. Explicou-me: "Perfeição e méritos altíssimos ornam excelsa dama que acima se encontra. Hábito, véu e santas regras deixou no mundo. Até à morte quis dedicar-se inteiramente ao Esposo que aceita todo voto proferido em conformidade com o Seu querer. Para segui-la, ainda adolescente abandonei o mundo, encerrando-me em suas vestes e prometendo seguir-lhe as regras. Mas homens cruéis roubaram-me ao doce claustro e só Deus sabe qual foi a minha vida a partir de então. Repara, porém, no resplendor que à minha direita fulge com toda a luz possível nesta nossa esfera. Quanto disse de mim aplica-se a ela. Como eu, foi monja e também de sua fronte arrancaram as santas faixas. Mas, embora no mundo profano a repusessem por violência e contra seu desejo manifesto, jamais despiu da alma o véu sagrado. Essa é a luz e o espírito de Constança, excelsa, que ao segundo imperador da Suábia deu o herdeiro em quem a dinastia teve fim".
Assim ela falou; depois pôs-se a entoar a Ave Maria, e cantando desapareceu, tal qual desaparece pesado corpo em águas profundas. Voltei os olhos para alvo mais valioso. Eles se fixaram em Beatriz, mas a luz que dela emanava era tal que me ofuscou os olhos. E por essa razão não pude falar-lhe logo.

Canto Iv

Dante, que se encontra no primeiro Céu, vê-se às voltas com duas intensas dúvidas, as quais Beatriz procura esclarecer.
Um homem, vendo-se entre dois manjares igualmente irresistíveis e a distância igual, e tendo liberdade para escolher, morreria de fome antes de meter os dentes em um deles. Agiria do mesmo modo um cordeiro entre lobos, temendo a ambos; e um cão quedaria indeciso entre dois gamos. Eis por que permaneci em silêncio, guardando minhas dúvidas para mim mesmo. Calava; mas era tão evidente meu desejo de perguntar que nem seria preciso expressar tal vontade. Beatriz agiu, no ato, como Daniel outrora a fim de apaziguar Nabucodonosor, inclinado à ira injusta e violenta. Disse ela:
"Noto com clareza teu duplo desejo de conhecimento, e entendo tua hesitação para tomar partido entre um dos dois. Raciocina assim: se a vontade persistia no bem e somente pela violência de outrem no bem não continuaram, como pode essa violência diminuir o mérito de tais almas? Encontras aí argumento para duvidar da teoria de Platão segundo a qual as almas retornam aos astros de que provieram. São estas as dúvidas que com tanta intensidade te perturbam. Começo por elucidar-te a mais importante.
"O Serafim de maior hierarquia extasia-se em Deus, bem como Moisés, Samuel e o João que escolheres (o Batista e o Evangelista), e mesmo Maria - todos desfrutam a claridade da mesma esfera em que se acham estas almas aqui vistas. Nem a duração da eternidade é menor para estes do que para aqueles. Todos convivem no primeiro círculo e gozam em gradação diversa a beatitude divina, pois sentem em menor ou em maior grau o amor do Criador. As almas que viste nesta esfera, a ela não estão circunscritas; mas o estarem aqui indica a gradação de sua beatitude. Este é o modo de fazer com que teu entendimento penetre tais coisas, pois o ser humano aceita pelos sentidos antes fazê-lo pelo espírito. É por isso, aliás, que a Escritura faz ao entendimento mortal a concessão de representar Deus com pés e mãos, mesmo estando certa do contrário. Pela mesma razão, a Santa Igreja representa Gabriel e Miguel com feições humanas, e também aquele que livrou Tobias da cegueira. Vês, pois, que o ensinado por Timeu, em relação ao destino das almas, com o que testemunhas aqui não combina, se é que o entendimento costumeiro seja o mais correto para tal texto (1). Ele ensina que a alma retorna aos astros de que baixou num corpo terreno. Bem pode ocorrer que a intenção do autor tenha sido diferente do que se usa depreender do texto. Portanto, não convém desprezá-lo. Aceitando-se haver ele afirmado que das estrelas descem às almas influxos que justifiquem a glória ou a desdita, não atirou sua seta muito longe do alvo da verdade. A afirmativa, interpretada de modo errado, conduziu ao erro os antigos pagãos, levados a adorar Júpiter, Marte e Mercúrio, por lhes encontrarem essência divina.

* (1) Referência a Timeu, diálogo de Platão que contém a teoria do filósofo quanto à imortalidade da alma. *

"Quanto à tua outra dúvida, acredito que seja menos passível de afastar de mim tua alma. Que a justiça divina pareça injusta para os mortais é argumento de fé, não de má-fé herética. E sendo o entendimento humano apto a penetrar esta verdade, breve a terás, como queres. Se quem sofre violência nada consente a quem a pratica, se isenta; pois a vontade não se deixa vencer sem resistência: o sopro mil vezes pode curvar a chama, que mil vezes esta chama se erguerá. Mas se fraqueja, ou cede muito ou pouco à violência, com ela condescende. Isso se deu com estas almas que não voltaram para o claustro quando a força que as mantinha violentadas cessou. Não conservaram inteira a sua vontade, qual fez São Lourenço sobre as grelhas, e Múcio, deixando a mão consumir-se ao fogo. Tivessem conservado intacta sua vontade, voltariam a percorrer o caminho antigo. Mas é muito rara tanta integridade. "Se fizeste bom proveito do que eu disse, terás sanado dúvidas atrozes. Mas já se te apresenta outra dificuldade, a qual, sem o necessário auxílio, não conseguirias superar. Consegui, penso, imprimir em tua mente, como verdade absoluta, que não é dado à alma eleita mentir, por estar sob o influxo da Verdade Primeira. Trata-se de que ouviste dizer a Picarda, haver Constança mantido sempre os votos, com relação aos véus aceitos no coração. E isso te parece em contradição com minhas palavras. Sucede, muitas vezes, meu irmão, que por receio a malefícios praticam-se atos que repugnariam à consciência no mais das vezes. Foi por isso que Alcmeão, cedendo aos rogos do pai, sacrificou a mãe; por fidelidade à lei da obediência agiu de modo cruel. Se a vontade do violentado segue o impulso da violência, ele não pode se apegar a nenhuma escusa. Uma vontade firme não se cumplicia ao mal; quando ameaçada, retrai-se, temerosa de cometer males maiores. Ao falar, Picarda referiu-se à vontade absoluta, e eu, à vontade relativa; mas nós duas falamos a verdade, igualmente".
Fluindo daquele santo rio, vindas da Fonte da Verdade, tais palavras satisfizeram-me e devolveram-me a paz. Exclamei, portanto:
"Ó querida de Deus, ó senhora, vossa palavra me inunda de glória, exalta-me e eleva-me! Não pode o meu afeto ser tão grande que logre agradecer-lhe suficientemente. Supra minha falta Aquele que tudo vê e tudo pode! O intelecto humano só pode penetrar os mistérios divinos se iluminado pela Verdade, sem a qual não há luz. Uma vez penetrados, encontram-se neles fruição e sossego, qual a fera reentrando em seu esconderijo. Compreendê-los não é vedado ao homem; se o fosse, todos os intentos seriam vãos. Bem por isso a dúvida, qual vergôntea, nasce ao pé da certeza e, seguindo sua natureza, leva-nos de grau em grau para junto de Deus. Este raciocínio, ó senhora, assegura-me que posso, com a devida reverência, rogar-vos que me esclareça outra verdade que se mostra obscura a mim. Desejo saber se é permitido aos homens que romperam votos redimir-se com a prática de significativas obras pias, para equilibrar a balança da divina justiça".
Beatriz fixou em mim seus olhos, tão cheios de ardor divino que transido recuei; fiz então enorme esforço para não sucumbir.

Canto V

Beatriz fala a Dante acerca da natureza do voto religioso, bem como do problema da compensação de tal voto. Dante e Beatriz alcançam o segundo Céu - o céu de Mercúrio -, onde se encontram as almas dos que realizaram o bem para obter fama e glória.
"Se meu brilho te ofusca mais que o comum entre mortais, despojando-te da força dos teus olhos, não te espantes: tal provém da Visão Suprema, sempre revelando o bem aos nossos olhos. Posso assim perceber o quanto já resplende em teu entendimento o eterno lume, o qual, visto uma só vez, acende para sempre a luz do amor. E se na Terra outro alvo atrai o teu amor, trata-se de mal conhecido vestígio dele, a transluzir na matéria. Perguntas se com obras pias é dado às almas compensar o abandono dos votos sagrados."
E Beatriz, com talento oratório inigualável, deu início a sua explanação: "O maior dom que Deus concedeu ao mundo - aquele dom que melhor revela a Sua bondade -, o que Ele tem em mais alta conta, é o anseio de liberdade, do qual foram dotadas todas as criaturas pensantes. Isto dito, podes considerar qual seja diante de Deus a alta valia de um voto, pois nesse ato a aceitação d'Ele une-se ao querer humano. Ao realizar-se tal pacto entre Deus e o homem, este sacrifica o valioso tesouro do livre-arbítrio, e o faz exercendo esse mesmo privilégio. Que outro bem pode compensar o rompimento de tal voto? Se pensas novamente usar o que já tenhas oferecido, estarás querendo fazer bom uso de mérito ganho por meio de fraude. Assim, chegamos a bom termo quanto ao ponto principal. Mas pensarás que a Igreja, ao dispensar alguém dos votos, age contrariamente àquilo que ensinei. É preciso que, raciocinando com empenho sobre estes temas complexos, aguardes melhores esclarecimentos, sem os quais esta doutrina se mostrará obscura para ti. Presta atenção ao que explico e encerra-o na alma; pois não logramos aprender o que ouvimos e não guardamos.
"Duas coisas são necessárias para constituir a essência do sacrifício (o voto religioso): um é o objeto que se sacrifica, o outro é o pacto assumido. Quando não observado, este último nunca conhece cancelamento. Mas a tal propósito já fiz bem ampla exposição. Daí que os hebreus estiveram obrigados a cumprir perenemente o voto feito, embora, em alguns casos, conforme sabes, tenha sido possível permutar o objeto das promessas. Da matéria do voto é permitida mudança quando haja ensejo, sem que com isso se cometa falta. Mas ninguém ouse, sem o consentimento da Igreja, mudar o peso que livremente aceitou. Esteja, além disso, seguro de que toda permuta será inútil se o objeto substituto não for maior do que o substituído, da forma pela qual o quatro está contido no seis. Assim, se o voto feito for de tal grandeza que incline ao máximo o prato da balança, naturalmente não haverá voto maior que o compense. Assim sendo, ó mortais, não contraí votos em vão! Sede fiéis a tal objetivo, não agindo como Jefté agiu com sua filha. A ele melhor fora haver dito Não fiz bem!', descumprindo o voto, do que agir pior ainda ao cumpri-lo. Igualmente insensato foi o voto do chefe supremo dos gregos quando, pela lembrança de Ifigênia, fez chorar sábios e tolos, todos enfim que ouviram narrar a história de seu trágico sacrifício. Ó cristãos, sede ponderados em vossos votos! Evitai agir qual pluma sensível a todos os ventos, acreditando em que qualquer voto vos eleve aos olhos do Criador. Para orientar-vos, tendes o Velho e o Novo Testamento e o chefe da Igreja. Isso vos baste para alcançar a salvação! Não permitais que a cobiça material empane vossa virtude; sede homens e não inermes, a fim de que os judeus entre vós não zombem de vossa fé. Observai o cordeirinho que, mal deixando de sugar o leite materno, por capricho contra si mesmo age, vivaz e tolo, caminhando com descuido".
Exatamente assim falou Beatriz; depois, ansíosa, voltou-se para o alto, de onde procede a luz que ilumina o mundo. O haver calado e transmudado o semblante fez-me abafar o desejo de a ela comunicar que eu já concebera outras perguntas. E, qual flecha que atinge o alvo antes de que cessem as vibrações do arco, penetramos no segundo Céu rapidamente. Tão leda eu via a bem-aventurada Beatriz penetrando as luzes daquele céu, que mais esplendoroso o planeta se me afigurou. E imaginei, se o astro sorriu, transformando-se, como não me transformei eu, que, por efeito da natureza humana, estou sujeito a toda fantasia! Quando em pesqueiro de água tranqüila e pura cai algo que se pareça com comida, logo cardumes de peixes vêm para saciar-se. Com sofreguidão igual foi que vi acorrerem mais de mil resplendores, clamando em coro: "Eis que chega quem nosso ardor nutrirá!"
Quando se aproximaram de nós, em todos eles percebia-se divina alegria, denunciada pelo fulgor por eles irradiado. Leitor, qual não seria a tua angústia se eu interrompesse a narração neste ponto! Ajuiza, pois, à base desse raciocínio, qual tenha sido o meu desejo de conhecer a condição daquelas almas, desde o momento em que as revelei.
"Ó ser bem-nascido, ao qual é facultado presenciar a glória eterna do Céu quando ainda inscrito no rol da milícia terrestre. Pela luz da verdade que se esparge por todo o Céu estamos envoltos, e desejas obter informações a nosso respeito, de bom grado as daremos." Isto me foi dito por uma das almas que ali se achavam. E Beatriz acrescentou: "Formula tuas perguntas com clareza e calma, e nas respostas deposita a mesma fé que em Deus".
"Vejo que te serve de manto a luz que de ti mesmo irradia. Sei que é dos teus olhos que ela dimana, pois aumenta quando sorris. Mas ignoro, alma nobre, quem sejas, e por que vieste ocupar este degrau da escada velada aos olhos dos mortais por mais vivo lume." Assim falei à deslumbrante alma que se dirigira a mim, e deparei-a mais brilhante do que me parecera no início. Assim como o Sol, ao esvaecer-se, esconde em seu próprio esplendor o excesso de luz, em plenitude de alegria desapareceu entre seu mesmo refulgir aquela figura santificada; e oculta respondeu-me o que no próximo Canto se segue.

Canto VI

No segundo Céu, Dante encontra a alma do Imperador Justiniano, o qual relembra as glórias do Império Romano.
"Após Constantino ter conduzido a águia sagrada contra o curso do Sol, que até então ela seguira, invertendo o caminho de Enéias, a ave divina permaneceu duzentos anos naquele extremo da Europa, perto das montanhas de Tróia, onde se criou (1). Dali governou o mundo; sucederam-se os imperadores, até que o cetro viesse parar em minhas mãos.
"Sou Justiniano, e fui eleito César; por inspiração do Espírito Santo, expurguei as leis do que tinham de injusto e excessivo. Antes disso, porém, vivi tranqüilo sob a crença de que uma só natureza houvesse em Cristo. Contudo o bem-aventurado Agapito, o qual foi decerto pastor genuíno, converteu-me, com suas santas palavras, à verdadeira fé. Vejo agora que tudo quanto ensinou é certo, tão claramente quanto entre duas afirmações opostas percebe-se a verdadeira com facilidade. Logo que pelos passos da Igreja acertei os meus, Deus inspirou-me o trabalho a que me consagrei. Confiado o mando das armas a Belisário [o grande general de Justiniano], sua mão guerreira foi tão abençoada pelo Céu que interpretei isso como sinal para que me ocupasse de outra missão.

* (1) A águia sagrada é a insígnia do Império Romano. Constantino levou a águia do Ocidente para o Oriente (contra o curso do Sol), ao passo que Enéias, ao deslocar-se de Tróia para a Itália, seguira o curso do astro. *

Até aqui respondi à primeira parte da tua pergunta; o assunto, contudo, exige que algo seja acrescentado, para que percebas como são desprezíveis as razões que movem contra a águia romana os que dizem falar em seu nome, e os que a ela se opõem. Verás quanta virtude fê-la digna de suma reverência, desde quando Palante morreu para dar-lhe soberania. Sabes o que fez ela em Àlba por mais de trezentos anos, até que lutaram três contra três em sua disputa (2). Sabes quanto foi feito durante o reinado de sete reis para dominar os povos vizinhos, desde o rapto das Sabinas até o ultraje a Lucrécia. Conheces os feitos de tantos heróis romanos nas lutas contra Breno, contra Pirro e muitos outros reis e coligações reais; guerras que deram fama a Torquato, a Quíncio - que da grenha tirou o apelido de Cincinato -, aos Décios e aos Fábios, que reverencio, comovido. Fez desabar o orgulho dos cartagineses mandados por Aníbal na travessia das alturas alpinas, de onde correm as águas do Rio Pó. Jovens ainda, à sua sombra Cipião e Pompeu conheceram o triunfo; e à colina junto à qual nasceste mostrou-se violentíssima. Mais tarde, o Céu, desejando paz ao mundo inteiro, ditou leis conformes às leis de Roma e nas mãos de César colocou as nações. As façanhas que este praticou, do Varo ao Reno, tiveram por palco o Isara, o Ero, o Sena, e esse vale imenso onde o Ródano é dos rios o soberano. O que realizou foi tão importante, depois de sair de Ravena e atravessar o Rubicão, que não há como devidamente ser descrito. Levou seu exército contra a Espanha; contra Durazzo depois;

* (2) Ascánio, filho de Enéias, foi o fundador de Alóa Lona, onde o poder da águia manteve-se por três séculos, até que os três Horácios romanos lutaram contra os três Curiáceos. Venceram os primeiros, e o império foi unificado. *

Farsália acometeu para perturbar-se em seguida com os efeitos da ardência do Nilo. Reviu afinal o Simoente e o Antandro - seu berço original -, onde as cinzas de Heitor se acham; mas contra Ptolomeu se atirou, e fulminou Juba sem demora, volvendo, para o Ocidente, de onde ouviu sons de desafio lançados pelas tubas seguidoras de Pompeu. Mercê dos atos praticados por aquele que em seguida empunhou a águia (Augusto) é que gemem, no Inferno, Cássio e Bruto, junto com Módena, e Perúgia. Sofre também a mesquinha Cleópatra, que, com o auxílio de uma serpente, deu cabo a si própria. Tudo, até o Mar Vermelho, pertenceu à águia, e sobre o mundo desceu paz tão serena que foi possível as portas do templo de Jano cerrar.
"Tais maravilhas, que narro a propósito da sagrada águia, ocorreram nos primeiros tempos, quando ela fez, com total virtude, tudo quanto os negócios materiais exigiam. E tudo isso é nada se comparado ao que ocorreu nos dias do terceiro imperador [Tibério], se com ele for julgado de modo justo. Pois foi quem, com viva justiça, concedeu a glória de fazer aplacar a ira que nós, homens, lhe despertamos. Não cause espanto agora o que te vou dizer: aprouve a Deus vingar-se daquela vingança do pecado antigo, servindo-se de Tito. E quando as presas longobardas morderam a Santa Igreja, à sombra da ave augusta, salvou-a Carlos Magno do perigo. Podes agora bem julgar os crimes daqueles a quem me referi há pouco, os quais são a causa dos males italianos. Eis que, contra o santo estandarte, um desses partidos hasteou lírio de prata, enquanto o outro o quer para sua insígnia de guerra. É tarefa difícil dizer qual dentre eles tem mais culpa. Que os gibelinos pratiquem suas torpezas sob outro estandarte, pois este, que é santo, é contra os que a justiça desprezam. Nem pretenda o novo Carlos [Carlos 11 de Anjou] abatê-la com os guelfos; tenha, isso sim, receio das garras que souberam arrancar a juba inteira de fortíssimo leão. Sabe-se que mais de uma vez os filhos choraram por culpa dos pais; não pense Carlos de Anjou que Deus transferiu sua predileção da águia para a flor-de-lis.
"Nesta pequena estrela, muitos espíritos justos se esforçaram bastante no mundo para nele deixar honra e fama marcantes. Se demasiado empenho as almas põem em tal intento, tornam-se menos vivos os raios do verdadeiro amor que, então já esmaecidos, chegam ao Céu. Porém é parte de nossa dita comparar o mérito adquirido e o prêmio recebido, percebendo qual seja o equilíbrio justo, não os supondo nem menores nem maiores do que sejam de fato. Assim, a divina justiça abranda e amolda os nossos afetos, de modo que nem malícia nem inveja os embotem. Tal como várias vozes produzem harmonia de sons, os vários graus da beatitude geram a harmonia do Céu. Nesta gema brilha a luz de Romeu, cuja obra mais valiosa foi recompensada com ingratidão. Os provençais que contra ele conspiraram acabaram por não obter nenhum lucro; pois muito erra quem julga colher um bem do mal feito a outrem. Teve quatro filhas [o conde] Raimundo Berenger, e todas foram rainhas: e os quatro tronos deveram-se a Romeu, homem humilde e esforçado. No entanto, conselhos repletos de inveja levaram Raimundo Berenger a pedir explicações injustas àquele que, além de honesto, multiplicou o patrimônio confiado à sua guarda. Partiu então o homem velho e probo; e se o mundo o visse mendigando o pão aos passantes, Romeu haveria de ser muito mais exaltado do que é hoje".

Canto VII

Dante tem grandes dúvidas a respeito da crucificação de Jesus e o castigo que o Império Romano depois impôs a Jerusalém por isso. Beatriz põe fim a essas dúvidas.
'Uosanna sanctus Deus sabaoth, Superillustrans claritate tua Felices ignes horum malacothf" (1) *
Ao ritmo deste canto movia-se a alma sobre a qual dupla luz se insinuava, até sumir na distância - juntamente com outras que a seguiam - quais chispas. Tomado por dúvidas, dizia-me: "Pergunta de que se trata a essa dama que tem saciado tão plenamente tua sede de saber". Mas tanta emoção sinto apenas à menção de Be ou iz que fico calado, sem voz. Porém Beatriz não tardou a perceber meu constrangimento. Sorrindo de um modo que faria feliz mesmo o homem imerso em labaredas, disse: "Trazes turbado o espírito; não conseguindo entender como é possível que uma vingança justa tenha sido mais tarde justamente punida, como te narrou Justiniano. Atenta para as minhas palavras, que a expressão delas se ajusta com a mais alta verdade. Por não haver desejado colocar freio à sua liberdade de escolher e agir, aquele homem [Adão] que não nasceu de mulher deu sofrimento a si mesmo e à humanidade.

* (1) "Salve, ó Deus sagrado dos exércitos, que do alto lanças tua luz sobre este reino, sobre as almas!" *

Esta, enferma do pecado, por muitos séculos sofreu, avolumando o montante do erro, até que o Verbo Divino condescendeu em descer ao mundo, para, num ato de amor supremo, incorporar-se à natureza humana, que de seu Criador andava divorciada. A natureza humana, quando unida ao Criador, foi veraz, foi boa. Tão logo ficou entregue a si mesma, por sua culpa resultou expulsa do Paraíso, pois afastou-se do caminho da verdade e da vida. Assim sendo, se se considera a natureza humana assumida por Deus, a pena da cruz foi muito justa. Igualmente, pena alguma jamais foi tão injusta, se se leva em conta a natureza divina da Pessoa que a padeceu.
"O mesmo ato provocou resultados contraditórios: a Deus e aos judeus aprouve aquela morte, pela qual a Terra tremeu e o Céu se abriu. Não te cause pois admiração o ouvir que uma vingança justa cabia ser vingada por alto e justo tribunal. Contudo, vejo que tua mente, hesitando entre um e outro pensamento aflito, deseja muito ser libertada da confusão em que se acha. Dizes: Entendo o que dizes, mas não compreendo que para remir-nos Deus escolhesse este e não outro caminho'. O porquê dessa decisão se mantém oculto aos olhos dos que ainda não possuem o grau de entendimento adquirido através de estágio nessa flama de amor. Sendo certo que a propósito deste mistério pouco se indaga e pouco se aprende, eu te direi por quais razões se lançou mão desse processo de redenção. A divina bondade, que afasta de si todo rancor, arde por si mesma, em virtude das belezas eternas que contém e irradia. O que provém dela, sem intermédio, é eterno. Assim, tudo quanto imprime jamais perde seu cunho. O que nasce dessa fonte é livre de influências de outras substâncias. Agrada-lhe o que mais se lhe assemelha. Por isso, aquele santo ardor, que reveste os objetos criados, está mais presente nos objetos que com ela mais se pareçam. Toda esta graça é repartida entre os homens.
Porém, se um a deslustra e a perde, sua condição logo decai. o pecado é que faz descer o homem, que, não mais semelhando o Sumo Bem, não reflete mais o Seu lume. Nem pode recuperar a dignidade primitiva se, com justas penitências, não expiar o acúmulo dos pecados. Quando a natureza humana pecou - pela ação dos primeiros pais -, foi-lhe retirada aquela dignidade e, ao mesmo tempo, o Paraíso. Se atentares para a sutileza da questão, verás que o homem não podia reentrar no gozo de tal dignidade sem que se cumprisse uma destas condições: alcançar perdão proveniente da mera graça de Deus, ou pagar por seu pecado impondo-se penitências.
Agora, agora, a profundeza dos desígnios do Criador, seguindo atentamente minhas palavras. Sendo limitado o seu valor, por decaído, não poderia o homem oferecer-se jamais como justo holocausto, incapaz que é de atingir a humildade necessária. Tanto quanto elevar-se enganosamente ele desejara, deveria curvar-se então. Por isso o homem não estava em condições de remir a si mesmo. Portanto, a Deus se impunha, por Seus meios, restaurar o homem na plenitude da via íntegra, ou por Sua bondade, ou por Sua justiça, ou por ambas. Mas por ser verdade que a obra tanto mais satisfaz ao autor quanto mais reproduz as virtudes do coração que a tenha ideado, diligente e amoroso; a divina bondade que em toda parte transparece, podendo proceder em prol da Redenção por um dos modos mencionados, quis combinar ambos os caminhos.
Não houve tal ato de grandeza nem entre a noite do Juízo Final e o dia da Criação do Mundo, seja no campo da justiça, seja no da piedade. Eis que mais generoso mostrou-se Deus utilizando Seu sangue para redimir o homem do que se meramente lhe perdoasse. Outro processo empregado não bastaria a aplacar a alta justiça, necessário se fazendo que o Filho de Deus, humilhando-se, quisesse revestir-se de matéria. A fim de que toda esta doutrina bem apreendas, insisto em um ponto. Dizes tu: Observo que a água, o fogo, o ar, a terra e todos os seus compostos duram um tempo curto e sofrem alterações. E também são criações divinas e, pois, lógico seria que da corrupção estivessem isentos se os princípios por ti expostos representassem a verdade'. E eu te respondo: os anjos, irmão, e o Paraíso inteiro onde ora te encontras foram criados na plenitude da sua essência. Os elementos, porém, que citaste, e todos os derivados deles, são criados por influxo dos Céus, isto é, de coisa já existente. Assim foram criadas a matéria de que constam e a virtude formadora predominante nos astros que os cercam. A essência própria dos brutos e das plantas recebe a sua virtude potencial através do lume das estrelas santas, ao passo que a alma procede diretamente da Bondade Suprema, e recebe desta amor poderoso.
"Podes disso deduzir a ressurreição, ligando, no raciocínio, o ser e a essência da vida humana, quando o primeiro par foi criado."

Canto VIII

Dante e Beatriz alcançam o terceiro Céu - ou céu de Vênus -, onde encontram as almas dos que, não obstante terem sido suscetíveis ao amor físico, foram agraciados com a salvação.
O mundo acreditava que a bela Vênus, que gira no terceiro epiciclo celeste, infundisse no homem o amor carnal; por isso lhe tributava preces, rendia-lhe sacrifícios, adorando juntamente com ela sua mãe Dione e seu filho Cupido, Dido embalou suavemente, segundo se dizia. Deriva dela, de Vênus, o nome da estrela que às vezes acompanha o Sol, às vezes o precede.
Não me dei conta de que subira para tal astro; senti que tal ocorria ao notar que ainda mais formosa minha dama se ia tornando. A centelha acaba por resultar em chama; entre duas vozes que cantam, percebe-se qual sustenta a nota e qual vocaliza. De modo igual vi nessa luz diversas luzes, mais ou menos velozes em seu movimento, naturalmente de acordo com a intensidade de graça divina que cada um trazia consigo. De nuvem fria jamais sopraram ventos visíveis ou não que, em comparação com tais lumes, não parecessem demasiado lentos aos olhos de quem pudesse observar a marcha das luzes ao nosso encontro, deixando dança iniciada pelos Serafins nas derradeiras alturas. Além dos que primeiro se apresentavam, ecoava um hosana por tal modo suave que para sempre desejei tornar a ouvi-lo. Eis que um espírito, aproximando-se mais, começou a falar, e disse:
"Estamos prontos a te satisfazer; pergunta o que for de teu agrado! Aqui, giramos num só grau de ardor com o coro angélico dos príncipes celestes, a respeito dos quais, tu, no mundo, cantaste assim: Vós, os motores do terceiro Céu... Tal é nosso empenho em te agradar que toda demora em fazê-lo será prazerosa".
Voltei-me para a minha dama, e ela, feliz em poder dar-me consentimento. À alma que me fizera tão generosa promessa perguntei: "Quem és?", tendo a voz trêmula de gratidão. A felicidade que tal pergunta infundiu naquela alma fez com que sua luz brilhasse com intensidade ainda maior. E o espírito respondeu: "Foi curto o tempo que vivi na Terra. Mais tivesse ali permanecido e muitos males ora lamentados não teriam ocorrido(1). Minha alegria por aqui estar mantém-me oculto nesta luz tal qual o bicho-da seda em seu casulo. Muito me admiraste, e não o fizeste em vão, pois, se mais eu houvesse continuado no mundo, haveria de demonstrar com fatos meu afeto por ti. A margem esquerda daquela região que o Ródano banha, depois de receber o Sorga, esperava receber-me um dia por seu senhor hereditário, como também aquele corno de Ausônia, que tem por burgos Bari, Gaeta e Crotona, que ao Verde e ao Tronto dão saída ao mar. Já fulgia em minha fronte a coroa da região que o Danúbio rega [Hungria], depois que deixa as terras alemãs.

* (1) Trata-se de Carlos Martel, filho de Carlos II de Anjou, rei da Hungria (1294). *

E a bela Trinácria [Sícília], que fumega, não por culpa de Tifeu mas por emanações vulcânicas, naquele golfo onde ruge o vento Euro, ainda estaria obedecendo aos reis de sua própria estirpe e de minha. Mas um governo que aflige e aterroriza o povo exasperou Palermo aos gritos de: Morra! Morra!" (2) Se mais prudente fosse meu irmão, teria fugido à avara indigência dos catalães, não dando azo a que ocorresse tal desgraça; pois é mister que alguém, ao exercer mando supremo, por si ou por seu representante, adote cautela suficiente para não deixar seu barco afundar por excesso de carga. Eis que sendo avaro, não por ascendência, mas por índole, cumpria que meu irmão escolhesse para ministros homens menos preocupados com entesouramento".
"Acredito", disse-lhe eu, "que a alegria de ouvir provenha de Deus, no qual tudo principia e termina; quero supor que sintas, com o falar, alegria igual, certeza essa que faz aumentar meu contentamento. Quanto disseste, me é sobremodo caro, pois falas olhando para o espelho que é Deus. Pela jucundidade assim fruída, esclarece-me esta dúvida, suscitada por tuas palavras: como é possível que de doce semente resulte outra amarga?"
"Se eu te oferecer resposta correta, voltarás o rosto à verdade, assim como agora lhe voltas as costas. O Bem que alegra este reino a que acabas de subir - Deus - faz com que a Sua obra, nestes corpos celestes manifestada, torne-se virtudes aptas a influírem nos mundos inferiores. Na mente divina, não somente é prevista a natureza das coisas, mas também os meios para a salvação delas. Portanto, quanto de si despede este arco, vai atingir fim determinado, como toda flecha se dirige contra um alvo.
* (2) Aos gritos de Morte aos franceses!"; Palermo derrubou o poder dos reis da casa de Anjou, na ocasião das Vésperas Sictilianas. *

Se assim não fosse, o Céu que percorres não seria ordenado com razão e harmonia, mas um lugar arruinado. Isso, contudo, não ocorre, pois as inteligências que regem estes mundos não têm defeito, e nem poderia Deus ter falhado quando lhes deu a própria essência. Gostaria que lhe desse razões mais relevantes?"
Tornei: "Não; não acredito que a Providência possa falhar". Ele continuou, então: "Seria talvez pior se o homem não vivesse em consórcio organizado?" "Sim", respondi, "e nem preciso perguntar pelas razões dessa verdade." "E pode o homem ser na Terra cidadão prestante sem ocupar-se em misteres diversos e por modos diversos? Não, se o mestre filósofo [Aristóteles] estiver certo." Assim prosseguiu ele a comentar, concluindo: "Cumpre, em conseqüência, que efeitos diferentes procedam de causas diferentes. Eis por que, no mundo, um nasce Sólon, outro Xerxes, ou qual Melquisedeque, ou como o que perdeu o filho voando nos ares [Dédalo]. Os céus giram incessantemente, e enviam influxos aos mortais, sem cuidar de qual a casa em que venha a baixar esta ou aquela essência. Assim se explica haver sido Esaú tão diferente de Jacó, do qual, não obstante, era irmão sangüíneo; e que Rômulo tenha nascido de pai tão humilde que, para nobilitarem sua ascendência, disseram-no filho de Marte. Não fosse o influxo dos Céus, os filhos resultariam sempre iguais aos seus pais. Penso agora estar claro para ti o que antes permanecia obscuro. Para que bem conheças, contudo, a estima que te devoto, desejo que por ti mesmo descubras outra verdade. A natureza humana, se o caminho da fortuna não encontra, fracassa sempre, como a planta colocada em solo inapropriado. Se os mandatários do mundo indagassem de cada criatura qual a sua natural inclinação, encontrar-se-iam sempre artesãos afeitos ao seu ofício. Mas, ao contrário, fazem com que se torne religioso aquele que nascera para guerreiro, ou fazem rei a quem teria sido sacerdote exímio. Por essa razão, é quase sempre fora de sua estrada que os homens rumam".

Canto IX

No terceiro Céu, depois de ter deparado Carlos Martel, Dante ouve de Cunizza de Romano previsões sombrias acerca da Marca Trevisana. Dante também encontra Folco di Marsiglia, que por sua vez lhe aponta a prostituta Raab, a qual acolheu em sua casa.
Depois de esclarecer minhas dúvidas, bela Clemência, Carlos narrou os males que atingiriam sua descendência. "Cala-te!", disse-me ele. "Deixa os anos se passarem." Assim, só posso dizer que justo pranto virá em seguida aos vossos danos. E aquela fulgurante alma voltara já para o Sol que de muitas virtudes a exornava, sendo, como é, o Bem que supre as criaturas. Ó fúteis, vãos mortais que do Bem Supremo afastais os corações, por vaidade apenas!
Entretanto, outra luzerna de mim se avizinhou, demonstrando, com o aumentar do clarão circundante, seu agrado em fazê-lo. Os olhos de Beatriz, fixos em mim, como haviam permanecido durante o diálogo anterior, estimulavam-me a ouvir. Então, eu disse: "Aceda ao meu desejo sem hesitar, provando que em ti se reflete meu pensamento". A isto, o resplendor, ainda ignoto desde onde cantava, disse, atendendo-me: "Naquela parte malvada da bela Itália, entre Rialto e as nascentes do Brenta e do Piave [província da Marca Trevisana], há uma colina de pequena elevação. Dela, em tempos idos, baixou fogo que atiçou em todo o país terrível incêndio(1).

* (1) O "fogo" causador do incêndio é Ezzelino II da Romano, que governou Pádua; ele ficou famoso pela crueldade com que dominou os habitantes da região da Marca Trevisana. *

Da mesma raiz procedemos, ele e eu. Cunizza foi meu nome, e se nesta estrela me encontro é porque venceu-me a atração de Vênus, que rege os amores. Alegremente, a mim mesma perdôo o caminho que em vida percorri, o qual não me causa desgosto; entre os homens seria mal compreendido este meu modo de pensar. A fama desse alma luminosa [Folco di Marsiglia], que mais próxima de mim cintila, foi grande e será bem longa, pois, antes que ele se extinga, há de conhecer cinco inícios de século. Decide se convém ou não ao homem ser virtuoso; se morto sendo para a vida terrena, existe, com vida nova, na eternidade. Não é porém este o ideal do povo que vive entre os rios Adige e Tagliamento; é gente que não consegue se desgarrar dos malefícios, apesar dos infortúnios que estes lhe acarretaram. Assim é que, em breve, a obstinação maldosa de Pádua tingirá de vermelho as águas do paul (2). Lá onde o Cagnan e o Sile se reúnem, há quem agora altivamente exerça mando e, contudo, já está aberto o laço que o derrubará. Feltro há de chorar a traição de seu pastor, o maior criminoso que Malta [presídio para condenados à prisão perpétua] já deparou. O vaso que pudesse conter o sangue a ser derramado pelos ferrareses teria de ser enorme; e seria impossível pesá-lo. Sangue vertido por aquele maldoso pastor, por ardor partidário movido. Tal oferenda condiz com os feros hábitos daquela terra! No Empíreo existem espelhos aos quais vós, homens, chamais Tronos, mas que, por refletirem a vontade de justiça de Deus, fazem com que eu tenha esta profecia por certa".

* (2) Os paduanos iriam sofrer uma sanguinolenta derrota lutando contra seu inimigo Cangrande della Scala, em 1314. *

Silenciou então, e eu percebi que sua atenção voltara-se para outros alvos, retornando ao círculo do qual viera a falar comigo. Aquela outra alma a que aludira [Cunizza], fulgindo com esplendor especialmente vivo, brilhou aos meus olhos qual rubi golpeado por raio de sol. Assim como no mundo o riso demonstra alegria, no Céu ela é demonstrada pelo fulgor; assim como no Inferno os gestos soturnos denunciam o padecimento. "Deus vê tudo", disse-lhe, "e o teu ver se aclara no Criador. Assim, nenhum desejo passa despercebido ao teu conhecimento. Tu que cantando deleitas o Céu com voz igual à dos Serafins, e que te cobres com seis asas, por que não satisfazes o meu desejo? Eu, de mim, falaria sem mesmo ser solicitado, se percebesse tal desejo em ti, como estou certo de que estás percebendo em mim."
"O maior dos vales por água inundados", começou a responder, "afora o oceano que circunda toda a Terra, estende-se entre as opostas plagas, em direção contrária à do Sol; tanto que a linha do horizonte, para quem está a ocidente, é meridiano, para quem está a oriente. Nasci nas proximidades desse imenso vale, ali entre o Ebro e o Magra, divisa entre a Toscam e Gênova. Tendo praticamente o mesmo nascente e poente, estão no mesmo meridiano Buggia e a cidade que foi meu ninho, e cujos habitantes tingiram-lhe o porto com seu sangue [Marselha]. Sou Folco; e agora, mercê deste lume, vou ardendo pelo Céu tal como outrora este mesmo lume me fez arder de zelo. Mais do que eu, enquanto tive idade, não conheceu ardor amoroso a própria cilha de Belo [Dido], a que encheu de ciúmes a Siqueu e a Creusa; nem mesmo foi igual a mim aquela Rodopéia, abandonada por Demofoonte; nem o antigo Hércules, a Íole devotado.
"Aqui cabem risos, não remorso, mas não pela culpa de haver amado - essa o esquecimento já apagou - e sim pelo encontrar no amor a vontade divina que a ele nos dispôs. É por esse preceito que se observa aqui sabedoria cujo efeito motiva graças que possibilitam à Terra nivelar-se ao Céu. Desejo satisfazer todos os teus anseios de conhecimento; devo, portanto, ir um pouco além com o meu discorrer. Almejas saber quem é essa alma luminosa próxima de mim, a resplandecer qual raio solar reverberante. Sabe, pois, que ali está Raab, incluída em nosso coro, onde brilha com sumo esplendor. Neste céu, onde chega a ponta do cone de sombra projetado pela Terra, ela foi recebida antes de qualquer outra alma, elevada por Cristo em triunfo. Justo foi que se lhe reservasse lugar num dos céus como sinal da grande vitória alcançada na cruz, por Cristo.
"Raab cooperou para a primeira vitória de Josué na Terra Santa, glória que hoje pouca importância tem para o papa. A tua cidade [Florença], tendo sido assento daquele espírito que primeiro voltou as costas ao Criador, tornando-se causa, por inveja, de aflição universal, produziu também uma flor maldita [a moeda florentina], que, transviando as ovelhas e os cordeiros, transformou em lobo o pastor. Por ela votam-se ao abandono os Evangelhos e os doutos ensinamentos, utilizando, ao contrário e em demasia, as páginas das Decretais, já gastas pelo uso. Tendo posta nestas leis a sua atenção inteira, papa e cardeais esquecem-se de relembrar Nazaré, que viu abertas as asas do Arcanjo Gabriel. Entretanto, o Vaticano, cemitério da milícia que seguiu Pedro, em breve será libertado dos infiéis."

Canto X

O poeta sobe ao quarto Céu, ou céu do Sol. Depara as almas dos teólogos, cuja luz brilha mais do que a da própria estrela em que se acham. Uma dessas almas é a de Tomás de Aquino.
Deus Pai, a contemplar seu Filho mediante o Espírito Santo, que emana de Um e de Outro eternamente, criou o visível e o invisível, de modo tão perfeito que quanto à divindade de seu Autor dúvida não paira. Ergue comigo, leitor, os olhos para o alto e observa o ponto onde o equador e o zodíaco se cruzam. Dali podes imaginar a grandiosidade da obra do Criador, que por muito amar a Sua obra nunca o Seu olhar dela desvia. Nota como desse ponto parte o zodíaco, que contém os planetas e se alonga, cumprindo, nesse ponto, os reclamos do mundo, que quer benefícios dos astros. Se a sua estrada não guardasse tal obliqüidade, muita força no Céu seria inane e sua potência, na Terra, não existiria. Se tal linha se afastasse um pouco mais do que na realidade ela diverge, a ordem universal se perderia. Medita, leitor, nestes prodígios de cuja grandeza antecipei-te algo; pois sei que aprecias a satisfação antes do cansaço. Preparei-te o prato, serve-te dele se for de teu agrado. Quanto a mim, a matéria de que trato não me permite nem por momentos que em outro assunto ponha a atenção. É o ministro maior da natureza [o Sol], que faz sentida na Terra a influência do Céu e faz com que o tempo seja medido por sua luz. Do cruzamento a que me referi, ele se aproximava, avançando em espirais para o ponto mais próximo de nós. No seio de tal astro eu já me encontrava sem, no entanto, me dar conta disso; tal qual ocorre ao homem que não conhece seus pensamentos antes de que os tenha formulado.
Beatriz apareceu, demonstrando aumento em tudo para melhor, e isso ocorreu tão rapidamente como nunca antes havia visto. Radiosa que era antes, agora em pleno Sol tornara-se resplendente em altíssimo grau, não porque houvesse ocorrido mudança em seu brilho, mas porque este aumentou. Embora eu invoque engenho e arte, não descreverei tal prodígio de modo que por outros possa ser compreendido. Mas pode-se acreditar nele e desejar vê-lo. Não haja estranheza se baixa permanece minha fantasia quando desejara erguer-se, pois vista alguma além do Sol alcançou. Ali resplandeciam as almas destinadas ao quarto céu do Deus Pai, que as mantém extasiadas na contemplação dos mistérios da Encarnação e da Trindade. Beatriz disse: "Rende graças, infindas graças, ao Sol dos Anjos que por Sua bondade te permitiu subir até aqui, ao Sol!" Coração de mortal jamais esteve tão disposto à gratidão e a abandonar-se a Deus com todo seu reconhecimento como eu estive ao ouvir tais palavras. Meu amor por Ele foi tão forte naquele momento que superou até meu amor por Beatriz. Ela não se aborreceu, sorriu até; e percebi tamanho brilho em seus olhos que se dividiu em direções diversas a atenção que somente em Deus eu colocara.
Inúmeros fulgores, claros e vivos, circundavam, qual coroa de que fôssemos o centro. Mais doce era o seu canto do que forte sua luz. Por vezes, é assim que vemos a Lua, circundada por bem definido halo, quando o ar, saturado de vapores, reflete o luar.
No Paraíso, de onde vou regressando, há maravilhas tão preciosas e raras que apenas ali podem ser vistas e, pois, não é possível descrevê-las. Tais vozes eram uma daquelas maravilhas! Assim, quem não se empenha em subir a escutá-las, age como quem espera ouvir um mudo contar novidades. Os sacros lumes, cantando, deram três voltas ao nosso redor, como astros que em torno do seu pólo vão rodando. Lembraram-me as damas que dançando param por instante, no aguardo de notas que de novo as embale. Deles ergueu-se uma voz:
"O raio da graça, onde prende ardor o amor mais puro [Deus] e cresce por influxo dela, tanto resplende em ti, a guiar-te na escalada celeste pela qual ninguém desce sem tornar a subir, que aquele de nós que não satisfizesse teus desejos de conhecimento não estaria no gozo de sua liberdade. Buscas saber como se enflora essa coroa que cinge a fronte da formosa dama que te guia e estimula na caminhada. Fui cordeiro do rebanho santo que vai clamando na voz de Domingos, grei que propicia a salvação daquele que do Bem não se desvia. Esse que pela direita me está mais próximo foi meu irmão, meu mestre. Em Colônia chamou-se Alberto e eu chamei-me Tomás de Aquino. Se desejas conhecer os demais lumes, segue com os olhos o meu falar, fitando essa coroa de beatos. Aquela alma ridente é a de Graciano da Chiusi, que no foro civil foi tão nobre quanto no religioso, a ponto de merecer o Paraíso. O seguinte a adornar o nosso coro foi aquele Pedro Lombardo, que, semelhando à viúva da história, ofertou à Igreja o seu tesouro. A quinta das luzes, ultrapassando as mais em brilho, arde em tanto amor que o mundo terreno espera ainda receber seus bons influxos (1). Tão alta foi sua mente, tão vasto e profundo seu saber, que certo quanto a verdade outro igual não se ergueu na Terra. A seu lado está alma a exultar em seu lume, tal qual o círio ilumina-se com sua própria chama. Entre os mortais, foi o que mais fundo alcançou conhecer a natureza e a hierarquia dos anjos (2). Na luz menor, serena e pura, escarnece dos atuais desvios dos cristãos o advogado [Paulo Orósio] cujos escritos tanto agradaram a Agostinho. Creio que já tenhas identificado o oitavo dentre eles. Na contemplação de Deus se enleva essa alma santa [Mânlio Torquato] que o mundo falaz castigou injustamente, por meio da pessoa que dele apenas ouviu e recebeu o bem. Seu corpo jaz em Cieldauro; sua alma subiu a estas paragens divinas depois de exílio e de martírio demorados. Eis Isidoro, Beda [Beda de Weremouth] e Riccardo [Riccardo di San Vittore], que foi mais que homem ao tratar de teologia e de filosofia - foi sobrehumano. Esse de quem acabas de desviar a vista pondo-a em mim considerou, imerso em profundos estudos, que a morte talvez demorasse a chegar. Essa é a luz eterna de Siger [Siger de Brabante], cujas verdades, ditas sem receio, despertaram o ódio."
Como na hora em que a esposa de Deus inicia o dia cantando para delícia do Esposo, e o tintim dos sinos, com vibrantes notas, comove a alma boa, assim vi mover-se a roda gloriosa dos lumes, uma a uma entoando seu canto, com harmonia que apenas no Paraíso - onde a perfeição e a alegria são eternas - poderia ser encontrada.

* (1) Trata-se do Rei Salomão.
(2) É o espírito de Dionísio Areopagita, convertido por São Paulo, e suposto autor da De Coelesti Hierarchia. *

Canto XI
Entre os teólogos, no quarto Céu, Tomás de Aquino continua a falar a Dante. Tomás de Aquino faz comentários sobre São Francisco e São Domingos.
Ó traiçoeira ambição humana! Como são falsos os argumentos com que os homens prendem-se ao chão! Uns se escondem atrás das leis; outros atendem a aforismos; um faz-se sacerdote; outro governa valendo-se de força ou de fraude; dedicando-se ao roubo; a gerir negócios; consumindo-se em orgias; dando-se ao ócio. Mas eu, liberto destas inclinações, com Beatriz, alcei-me ao Céu, e fui acolhido com glória. Cada qual dos lumes regressara ao ponto do círculo onde estivera antes, firme a luzir qual círio em candelabro. E ouvi, provinda da luz que primeiro falara [Tomás de Aquino], voz suave, acentuando a pureza do seu brilhar:
"Assim como reflito essa luz eterna, ao fitá-la posso entender os teus pensamentos e as causas deles. Estás em dúvida e esperas que te esclareça, utilizando linguagem direta e clara, à altura do teu entendimento. Palavras que te dirigi há pouco deram origem a tais dúvidas: encontra salvação a alma daquele que do Bem não se desvia' e outro igual não se ergueu na Terra'. Necessária se faz uma explicação. A Providência governa o mundo com tamanha sabedoria que ofuscado se perde o entendimento de quem pretenda desvendar-lhe os mistérios. À Esposa d'Esse que em alto brado na cruz lhe deu o bendito sangue, em penhor de união, foram dados pela Providência, a fim de robustecer-lhe o ânimo e a fé, dois príncipes [São Domingos e São Francisco de Assis] que a seguissem por onde fosse, e em todas as circunstâncias. Um deles guardou sempre amor seráfico em relação a ela. o outro, por seu saber, espalhou pela terra querúbica fama e glória. Apenas de um deles eu te falarei, dado que louvar a um é louvar a ambos, pois os dois perseguiram o mesmo objetivo.
"Entre Tupino e o Rio Chiascio, que rola do monte Inzino, escolhido outrora para eremitério de Santo Ubaldo, fértil encosta pende da montanha. É dali que, pela Porta do Sol, descem a Perúgia o frio e o calor, enquanto na outra vertente do monte Subásio Nócera e Gualdo padecem cruel jugo. No ponto onde tal encosta mais se acentua, nasceu para o mundo um sol que brilha tanto quanto aquele contemplado pela gente de junto ao Ganges.
"Aquele que pretender dizer o nome daquele lugar, não o convoque unicamente por Assis, pois estará dizendo pouco; chame-o Oriente, que é o berço do Sol. Não havia ainda essa luz se afastado bastante de seu nascimento quando já a Terra começou a receber o conforto de suas altas virtudes. Muito jovem entrou em conflito com o pai por amor daquela dama [a pobreza]) à qual, assim como à morte, ninguém abre a porta com prazer. Então, na corte episcopal, diante de seu pai, recebeu tal dama por esposa amada e votou-lhe, desde aí, amor. Viúva e desprezada viveria ela onze séculos, e mais ainda, sem por outro amado ser procurada. Não é dizer a mesma coisa o afirmar que esse guerreiro [César] temido pelo mundo encontrou-a - hóspede constante - na choupana do pescador Amiclas. Também não é o mesmo proclamar que ela própria, fiel, íntegra, enquanto Maria permanecera ao pé da cruz, subira com Cristo para o alto da cruz. Para que possas entender-me bem, direi os nomes de tais esposos: Francisco e Pobreza chamaram-se. Sua alegria, suas feições serenas, o meigo semblante, o amor perfeito, geravam em todos pensamentos santos, tanto que o venerável Bernardo, o primeiro a descalçar-se para correr ao encontro daquela santa paz, ainda supunha fazê-lo com muita lentidão. ó riqueza oculta, és o verdadeiro bem! Eis descalço Egídio, descalço também Silvestre, seguindo o esposo por amor à esposa. Dali parte para o mundo aquele pai e mestre, com a sua consorte, tendo já família consigo, distinguida, na cintura, pelo cordão humilde. Não leva os olhos baixos, nem tíbio o coração por ser filho de Pedro Bernardone ou por sofrer humilhações sem conta. Cheio de santo zelo, revelou sua dura vida monástica ao Papa Inocêncio, do qual obteve o primeiro consenso para sua ordem.
"E quando progrediu, a família pobre daquele cuja vida heróica recebe no Céu louvores de anjos foi distinguida pelo Espírito Santo, com segunda coroa, ao tempo de Honório, em atenção ao piedoso desejo de seu fundador. Depois que, por sede de martírio, diante do sultão do Egito pregou a lei de Cristo e as palavras dos apóstolos, percebendo aquele povo imaturo para o batismo e não desejando que seu zelo resultasse inútil, regressou ao trabalho da messe italiana. Em dura rocha - o Monte Alverne - entre o Tibre e o Àrno, recebeu de Cristo o sinete maior, que por dois anos apresentou no corpo. Quando Aquele por quem praticou tanto bem chamou-o a Si, a fim de dar-lhe a merecida recompensa por sua caridade, recomendou a seus irmãos, seus herdeiros, amassem a dama [a pobreza] por ele tão querida e fossem constantes na fé. Do seio da pobreza partiu então, regressando ao legítimo reino, desejando para o corpo a terra nua, tão-somente.
"Assim sendo, pensa quem foi o digno seguidor de Pedro no conduzir por mar encapelado a Santa Barca em seu rumo correto! Tal o nosso Patriarca: quem lhe aceita os ensinamentos assume, segundo percebes, grave encargo de praticar obras pias. Mas o seu rebanho, novo pasto apetecendo, viu-se forçado a procurar e a derramar-se por variados rumos. E quanto mais erradias e dispersas se encontrem as suas ovelhas, menos fartas de leite retornam ao redil. Existem ainda as que, temendo perigos, aconchegam-se ao pastor; mas estas são pouquíssimas.
"Se fui bastante claro; se me ouviste atentamente, e guardaste na mente o que eu disse, ao menos em parte terei satisfeito o teu desejo; mas ainda verás onde
é que a ordem se desmerece, estando a correção nisto: Encontra salvação aquele que não se desvia do caminho do Bem.

Canto XII

Ainda no quarto Céu, um outro círculo brilhante de teólogos se coloca ao redor do primeiro. Um dos teólogos desta nova grinalda é São Boaventura, que narra a Dante a história de São Domingos.
Assim que a nobre alma luminosa pronunciou a última palavra, a santa coroa se pôs em movimento; e não dera volta completa quando foi envolvida por um círculo ainda maior, ambos no canto e no movimento coincidindo. Tal canto superava o das Musas e das sereias, na proporção em que o raio incidente supera em luminosidade o raio reflexo. Rodavam os dois arcos, paralelos, iguais nas cores lembrando o arco-íris, ancila de Juno a surgir entre nuvens tênues. O arco externo parecia nascer dos efeitos do interno, qual ocorreu com a ninfa que por amor se consumiu, assim como o Sol consome a névoa.
Deles decorre a crença humana de haver sido firmado um pacto entre Deus e Noé, segundo o qual o mundo não conhecerá outro dilúvio. Seguiam girando ao nosso redor as duas grinaldas de rosas sempiternas; a interior ia respondendo às vozes da exterior. Acelerava-se a dança e crescia o gáudio da festa animada por cantos e flamejantes esplendores de tais luzes afáveis e ledas, quando pararam, sustidas ambas por um só comando, assim como se fecham e se abrem os nossos olhos, alertados por algo que lhes interesse. Do imo de uma das luzes recém-vindas desprendeu-se voz para a qual me volvi, pelo modo como a agulha da bússola se volta em direitura à estrela polar. E disse:
"A graça que ora brilha em mim impõe-me falar sobre esse outro grande homem da Igreja [São Boaventura], pois nele se refletem os elogios dirigi dos ao primeiro. Ambos militaram pela mesma causa; cabe, pois, resplenderem ambos com a mesma glória. O exército de Cristo, custosamente reorganizado e diminuto, lento e pelo temor transido, seguia a bandeira divina quando Aquele Imperador que reina eternamente [Deus], reparando na milícia que avançava não por méritos próprios, mas por infusão da graça, decidiu, como já ouviste dizer, enviar em socorro de Sua esposa dois campeões ao redor de cuja pregação e de cujas obras o povo cristão, disperso, viesse a congregar-se. Na região onde o zéfiro suave faz germinar o primeiro verde primaveril [Espanha] para só depois, pouco a pouco, reverdecer a mais Europa; não distante da costa onde quebram as ondas do mar no qual o Sol, concluído o seu curso, vai repousar, situa-se Calaruega, em solo protegido pelo poderoso escudo em cuja representação um leão domina e é dominado. Nela nasceu o defensor ardente da fé cristã, o santo atleta, amável para os seus, feroz para os inimigos. Ao ser criado, foi a sua alma exornada de tamanha virtude que ele fez profecias ainda no ventre de sua mãe (1).

* (1) A mãe de São Domingos, grávida dele, viu em sonho um vigoroso animal branco e negro- as cores dos dominicanos-, levando na boca uma tocha com que incendiava o mundo. *

Logo entre ele e a fé, na pia batismal, foram celebrados solenes esponsais, com voto de mútua salvação. Sua madrinha, que as respostas deu por ele no batismo, viu, como em sonho, a colheita admirável que na seara de Deus haveriam de fazer ele e seus seguidores. E para que no próprio nome demonstrasse o que efetivamente era, inspiração divina sugeriu fosse batizado com o possessivo que o ligava a Deus. Por isso, Domingos foi chamado e falo dele como do hortelão a quem Deus elegeu para ajudá-Lo no amanho do seu horto. Mensageiro e servo quis ser e o primeiro amor que demonstrou no mundo foi ao primeiro ditame dado por Cristo.
Muitas vezes encontrou-o a ama prostrado em terra, desperto e silencioso, como a dizer: Para isto fui destinado!' Ó pai feliz de fato o seu! Realmente bem-aventurada sua mãe - se o nome Joana tem o significado que o povo lhe atribui (2). Não o atraía o mundo, que se esforça por seguir ao Ostiense e a Tadeu, mas por apetite quanto ao alimento espiritual em breve tempo se fez doutor sapiente, vigilante custódio da santa vinha, que prestes se estiola se tratada por vinhateiro negligente. Recorreu à sede pontifícia - hoje tão pouco atenta ao clamor de pedintes justos, não por culpa propriamente sua, mas de quem imerecidamente a ocupa. Não foi pedir dispensas lucrativas, nem a primeira vaga a ocorrer em postos bem rendosos, nem dizíamos que pertencem aos pobres por direito. Rogou, sim, permissão para combater os erros dos hereges, defendendo a semente da fé, da qual vês vinte e quatro luminosas plantas. "Armado da doutrina santa, por seu esforço, qual torrente que das alturas desce, espantou o mundo com apostólico fervor.

* (2) O pai de São Domingos chamava-se Feliz, e a mãe, Joana - nome que em hebraico significa portadora de graças". *

No extirpar as raízes da heresia, mais se incendiava o seu ímpeto onde mais tenaz encontrava a resistência. Desse caudal (de ardor) derivaram arroios que, agora irrigando o orbe católico, mais vida e força dão-lhe aos arbustos. Tal foi ele - uma das rodas sobre as quais se moveu, em defesa, o carro da Santa Igreja, levando os bons cristãos a derrotar os corruptos.
Talvez devesse patentear diante de ti as excelências da outra roda a respeito da qual Tomás, antes de mim, falou com tanta sabedoria. Mas a trilha que essa roda [a ordem dos franciscanos] traçou com as regras de seu fundador jaz abandonada, de modo tal que o bolor, agora, impera no tonel onde houvera bom vinho. Os franciscanos, que lhe seguiram os passos, da vereda primeira tanto se desviaram que praticam agora o contrário daquilo que o santo pregara. Desta ruim sementeira ver-se-á o resultado quando o joio for atirado fora, em vez de recolhido. Bem sei que, volvendo folha a folha os nossos registros, acharia um, ainda, em que se pudesse ler: Sou quem deveria ser'. Mas este não veio nem de Casale nem de Acquasparta; pois dali vêm apenas os que ou falseiam ou amesquinham as normas.
"Sou Boaventura; nasci em Bagnoregio, e no desempenho de elevados cargos procurei sempre deixar os interesses materiais em segundo plano. Nesta mesma coroa de luz encontram-se O Iluminado' e Agostinho, dois entre os primeiros que, tornando-se frades descalços, cingidos de cordão, serviram a Deus. Ugo da San Vittore está com eles e bem assim Pedro Mangiadore e Pedro Hispano, o que obteve fama pelos seus doze livros. Estão ainda aqui o Profeta Natã, o metropolitano João Crisóstomo, Anselmo e Donato, incomparável na arte da gramática. Vê ainda a Rabano e sabe que ao meu lado brilha o calabrês Abade Giovachino, que tem o dom de profetizar. Se exaltei o grande paladino, eu o fiz movido pela inflamada cortesia de Frei Tomás em sua oração perfeita. E toda esta companhia está perfeitamente de acordo com isso".

Canto XIII

Tomás de Aquino volta a falar a Dante (ainda no quarto Céu, ou céu do Sol). Ele esclarece ao poeta a dúvida acerca da incomparável sabedoria de Salomão.
Quem desejar compreender o que eu pude então ver, que grave minha narração na mente como se em rocha firme. Imagine quinze astros, em diversos pontos, iluminando o céu com luz capaz de penetrar a nebulosidade sideral; as refulgentes rodas do carro luminoso que no espaço imenso encontra espaço onde girar dia e noite, sem sair de nossa vista; imagine a boca daquele corno que principia junto ao eixo em torno do qual vai girando a primeira esfera; considere esses dois astros signo idêntico àqueles que a morte da filha de Minos originou. De ambas estas constelações imagine que se cruzam os raios, girando a primeira inclusa na segunda, rodando porém as duas em sentido oposto. Assim imaginando, terá o leitor idéia pálida de qual fosse a dupla constelação que eu via ao contemplar a dança dos bem-aventurados a circundarem o ponto em que me encontrava.
Tanto esse mistério transcende a compreensão humana quanto o lento fluir das águas do Rio Chiana é menos rápido que o velocíssimo girar do primeiro céu que a todos os mais precede. Naquele cantar, nem Baco nem Apolo foram louvados, mas sim a divina essência da Santíssima Trindade, numa delas honrando o Ser Humano de Deus descendido. Terminados ao mesmo tempo o canto e a dança, puseram os lumes santos em nós a sua atenção, transferindo a sua felicidade do cantar e do dançar para a satisfação de esclarecer a perplexidade e as dúvidas que me atormentavam.
Rompendo o silêncio, levantou a voz entre as almas aquela que narrara a admirável vida do "mendigo de Deus". Disse:
"Já dissipei algumas das tuas dúvidas, havendo separado o que é verdadeiro do que não é. A esclarecer as outras, o santo amor me impele. Acreditas ter existido peito do qual a retirada costela originou a boca gentil cujo pecado de gula é pago pelo inteiro gênero humano; e igualmente crês nesse outro peito que, varado pela lança, compensou o pecado original e todos os mais pecados cometidos depois deste, de modo a equilibrar de novo os pratos da justiça.
Assim também acreditas que toda ciência que um homem possa mostrar lhe vem de Deus - O qual criou tanto Adão quanto Jesus e está em todos os homens. Por isso te causa espécie que eu dissesse: tão profundo o seu saber que outro igual não se ergueu na Terra', quanto ao eleito que na quinta luz se acha [Salomão]. Abre teu entendimento ao que ora explico e verás, por fim, que a tua crença e a minha demonstração coincidem na pura verdade, tão exatamente quanto é um só o ponto central de uma circunferência. Aquilo que não pode morrer e aquilo que de morte é passível não passam de esplendores de uma idéia concebida por Deus como ato de amor. Essa luz que de seu Foco [o Padre] derrama, jamais d'Ele separa-se nem do outro amor que fica sendo o terceiro [o Espírito Santo]. Por mercê de Sua graça, que, por ser Sua, é como se em espelho se refletisse; em nove coros angélicos é dividida, embora eternamente uma permaneça. Daí vai baixando gradativamente às últimas potências, atenuando tanto o fervor da graça que, ao final, gera apenas breves existências. E nesta contingência entendo incluídas aquelas criações - que o céu, em seu movimento, vai multiplicando - com sementes ou sem estas. A matéria de que são compostas e o obreiro que lhes dá forma nem sempre concordam com a idéia divina relativa à criação. Disso resulta que plantas iguais produzam frutos desiguais, e que vós, homens, nasçais com diferentes índoles.
Se tal matéria fosse oferecida ao Criador no ponto adequado, e se a virtude celeste, ao baixar, não se atenuasse, em todas aquelas coisas a luz da virtude divina brilharia por igual. A natureza, porém, se faz imperfeita, qual artista que, embora conhecendo a sua arte, executa-a com mão tremente. Por isso, o ardente Amor divino [o Espírito Santo], a lúcida visão (o Filho) da primeira das virtudes (o Pai) sobre tal criação, faz que nesta se acrisole a perfeição. Com tal perfeição foi criada a Terra, a fim de receber o mais perfeito dos animais; e, permanecendo pura, concebeu a Virgem. Neste ponto do nosso discorrer, aprovo o teu pensamento de que a natureza humana nunca se apresentou nem se apresentará jamais qual foi nestas duas criaturas. Mas se aqui eu terminasse o meu discurso, com razão poderias objetar: Como, então, Salomão pôde ter sido igual em sabedoria?' "Assim, para que resulte bem claro aquilo que aparentemente não o é, anota de quem se tratava e o pedido que fez quando Deus lhe ordenou: Pede!' Falei bem claro a fim de que tua mente facilmente compreendesse que foi digno rei quem então pediu sabedoria para discernir entre o que um rei deve praticar e o que não deve. Não quis saber quantas fossem as inteligências angélicas motrizes do Céu; nem se de uma premissa necessária e de uma outra não necessária possa derivar uma conseqüência necessária; nem se non si est dane primum motum esse ou se em um semicírculo é possível inscrever um triângulo sem pelo menos um ângulo reto. Se entendeste o que até aqui eu disse, terás advertido que minhas palavras louvavam a prudência do mais sábio entre os reis.
Assim, se meditares no que eu disse, entenderás que me referia aos reis, os quais, sendo muitos, contam entre si poucos sábios e prudentes. Com esta acepção é que deves guardar o meu dizer. "Serve-te dela como chumbo para os pés que te permita avançar lentamente. Não tenhas pressa em responder "sim" ou "não", pois revela-se o mais tolo entre os tolos quem sem meditação afirma ou nega; eis que num e noutro caso cumpre ter ponderação, sendo a afoiteza causa de que muitas vezes a opinião geral conclua erroneamente com a paixão e não com o raciocínio. Mais do que inútil é deixar o porto - pois a ele não retorna ileso da procura - aquele que busca o vero mas a sua virtude não pratica. Disso deram prova ao mundo Parmênides, Melisso, Brisso e muitos outros que partiram nessa viagem sem saber como nem para onde iam. Assim fizeram Ário, Sabélio e outros estultos, como espadas a mutilar as Escrituras, a corrompê-las.
"Quem se apressa em julgar imita aquele que pretende calcular a safra de trigo antes que a seara amadureça. No inverno vi espinheiro mostrando puas duras e agressivas, para cobrir-se de flores na primavera, e barco vi navegar em rumo certo, e, depois de vencer a rota inteira, naufragar junto ao porto já alcançado. Não creiam Dona Berta e Dom Martinho que, embora um furte e a outra dê esmolas, possam antecipar o julgamento divino; pois é bem provável que um se perca e a outra seja salva".

Canto XIV

Chegam novos espíritos ao quarto Céu, os quais formam outra coroa luminosa - a terceira - em torno das duas que já havia. O poeta é alçado, juntamente com Beatriz, ao quinto Céu.
Quando a alma iluminada de Tomás terminou sua fala, veio-me à mente a imagem da água em um vaso, que, ao ser tocada no centro, move-se em direção à borda, e da borda ao centro. Esta imagem me acorreu à mente pela similitude de seu discurso e daquilo que em seguida a Beatriz disse: "O que este mortal necessita conhecer não o disse com voz e menos com o pensar. Aliás, nem cogita de que lhe expliqueis a origem de outra verdade. Informai-o se a radiosa substância em que vos enflorais será igual pela eternidade. E se assim deve suceder, dizei como será isso possível após o Juízo Universal, quando houverdes readquirido o invólucro carnal, e como poderão os vossos olhos suportar luz tanta, e tão forte".
Vez por outra, impelidos por excesso de júbilo, aqueles que andam à roda avivam os gestos e elevam a voz. Tal ocorreu nos círculos daqueles espíritos eleitos que, ao ouvir a piedosa rogatória, sublimaram-se no dançar e no cantar. O que se lamenta no mundo, ao perder a vida terrena para viver no Céu, o faz por não conhecer o encanto desta alegria eterna. Quem reina aqui é Uno, é Duplo, é Triplo e eternamente perdura em três, em duas, em uma pessoa - não circunscrito e tudo circunscrevendo. Cada espírito entoou três vezes este louvor com melodia tão grata que por si só fora prêmio suficiente. Ouvi o círculo menor e que por primeiro aparecera - com voz modesta [a voz de Salomão] qual deve ter sido a do Arcanjo Gabriel quando anunciou a Maria - dizer esta resposta: "Enquanto a bem-aventurança do Paraíso existir, estaremos envoltos na roupagem de luz que nos circunda. Sua luminosidade é proporcional ao ardor do afeto; o afeto iguala-se à graça concedida por Deus. Ao retomarmos a carne gloriosa e santa, mais felizes nos sentiremos, pois então mais completos seremos, avivando-se com isso a luz bendita com que o Sumo Bem nos exorna, a fim de que O possamos contemplar. Nossa visão será mais penetrante, maior o ardor que em nós se incenderá, mais coruscante o esplendor que dele emanará.
"O carvão, quando incendiado, despede brilho intenso que, não obstante, não oculta a sua forma. O mesmo modo o fulgor que ora nos contorna, sem se perder, permitirá seja visto o ressuscitado corpo hoje recoberto pela terra. E não seremos ofuscados então por luz tão forte, porquanto nossos sentidos serão adaptados a quanto for parte de nosso deleite".
Os coros tão alegre e apressadamente clamaram "Amém!" àquelas palavras, que nesse dizer demonstraram o desejo em que estavam de reaver seus corpos sem vida. Não talvez por si mesmos, mas por amor às mães, aos pais e a outros seres que conheceram e amaram antes de que se tornar almas iluminadas. Entretanto, eis que de encontro a lumes tão vivos avança outro clarão que àquele sobrepuja, qual ocorre no céu quando o horizonte se inflama de luz. E assim como ao cair da noite aumentam as sombras e no céu surgem estrelas, com dúbia luz brilhando aos nossos olhos, assim me pareceu brilharem alguns novos e indecisos lumes, a girar ao redor daqueles dois círculos. Ó vero fulgor do Espírito Santo! quando de súbito te mostraste, fulgente, meus olhos venceste, pondo-os deslumbrados. Porém, Beatriz rebrilhou tão formosa naquele instante que tal visão passou a figurar entre as que a mente não pode recordar. Quando meus olhos reabriram, encontrei-me transportado para um céu de maior beatitude, a sós estando com minha dama. De que havia subido obtive logo maior certeza pelo afogueado esplendor da nova estrela, em rubor não costumado. De todo coração e com a prece mental que constitui língua universal, a Deus louvei por mais uma graça. Não havia de meu peito exalado todo o ardor da prece e recebi provas de que ela fora bem aceita e julgada propícia. Eis que esplendoroso e rubro surgiu-me entre dois raios; exclamei: "Hélios, quão brilhantemente os trazes adornados!" A Via-Láctea, que em suas estrelas é ou mais ou menos brilhante, em uma porção de seu espaço permanece misteriosa, deixando os sábios confusos. De igual feição, qual constelação luzindo em Marte, aqueles raios formam, cruzando-se em retângulo, o sagrado sinal-da-cruz. Minha memória bem recorda o entrevisto, mas não basta o meu engenho para o descrever. Naquela cruz lampejava o Cristo e não alcanço dizê-lo com palavras. Aquele, porém, que for salvo por abraçar a Cristo, depois de ter visto fulgurar naquela cruz o próprio Cristo, desculpar-me-á por quanto eu não houver dito. De uma a outra extremidade dos braços e do mais alto ao mais baixo da cruz, milhares de fogos movimentavam-se, rutilando ainda mais ao encontrar-se e ao afastarem-se. Assim é que se costumam ver no mundo terreno corpúsculos, ou retos ou ondulados, velozes uns, vagarosos outros, com sempre diverso aspecto, estes longos, curtos aqueles, a bailar em réstia de sol entradiça em aposento ao qual o engenho humano quis dar frescura e sombra. Igualmente, a lira e a harpa, de cardas bem afinadas, produzem melodias doces o suficiente para encantar até os ouvidos incapazes de distinguir as notas.
Era assim que dos luzeiros mencionados defluía pela cruz melodia certamente angélica, pois que, sem entender qual hino fosse, caí extático. Deduzi tratar se de altos louvores, mas não entendendo senão as palavras "ressurge" e "vence", confusamente era que soava para mim tal melodia. Ouvi-a, porém, com tamanho enlevo que ainda agora nada mais ocorreu comigo que com vínculos tão suaves me houvesse atado. Tal conceito pode parecer ousado se medido pela alegria que fruo da contemplação dos olhos de Beatriz, nos quais minha angústia encontra sossego. Porém, que se leve em consideração que esses lindos olhos iam ficando mais belos à proporção que subíamos, e eu não podia então fitá-los.
Acusando-me, busco o perdão; seja pois em meu favor essa verdade. Nem dela se exclui o prazer mais santo, que é o de contemplá-la - prazer que tanto mais se apura quanto mais se ascende.

Canto XV

No quinto Céu, ou céu de Marte - onde se acham as almas dos que combateram pela Igreja e nesse mister morreram -, Dante depara o espírito de Cacciaguida, seu trisavô, que o acolhe muito afetuosamente e lhe fala da Florença de outros tempos.
A vontade benigna apresenta-se como permanente inclinação à prática do bem, ao passo que a cobiça dos valores terrenos traduz inclinação para a prática do mal. Aquela santa vontade silenciou o doce cantar, mantendo em repouso as maviosas cordas distendidas e afinadas pela mão do Criador. Como poderiam os nobres espíritos permanecer indiferentes aos meus rogos, se para dar o seu consenso a tal pedido foram unânimes em calar? É justo que sofre para sempre quem renuncie ao amor divino em troca de bens materiais. às vezes acontece, com céu tranqüilo e puro, que o olhar seja atraído pelo fulgir de repentina fagulha. Dir-se-ia estrela a mudar de sítio se uma delas faltasse naquele ponto celeste onde tal luz surgiu e brilhou por instante. Foi assim que do braço direito para os pés da cruz partiu um dos astros da constelação de lumes que resplende acolá. Não se perdeu a pérola do seu fio, ao descer pela fulgurante linha, qual chama a luzir sob alabastro. Assim pia foi vista comportar-se - segundo a descrição do nosso poeta maior - a alma de Anquises quando encontrou o filho Enéias nos Elísios. "O sanguis meus! O superinfusalGratia Dei; sicut tibi cuiBis unquam coeli janua reclusa?" (1) Assim falou aquele espírito. Minha atenção concentrou-se na alma que falava. Voltei o rosto para Beatriz e em uma e em outra obtive por resposta confusão.
Brilhava nos olhos da minha dama tal sorriso que ao encará-la julguei chegar ao imo da graça no eterno Paraíso. E aquele outro espírito - feliz no as pecto e no tom da voz - ajuntou às palavras que antes pronunciara outras que, por demasiado profundas, não pude compreender. Não voluntária, mas necessariamente, foi que as formulou assim complexas, pois o conceito delas estava acima do mortal entendimento. Em seguida, contudo, o distendido arco de elevado afeto afrouxou tanto a sua tensão que as palavras posteriormente pronunciadas estiveram ao nível da minha compreensão. E foram estas: "Louvado sejas, Tu que és Uno e Trino e benigno Te mostras para com os meus!" Foi isto o que inicialmente pude distinguir. Mas ele continuou:
"Vens cumprir, ó filho, o meu longo, ardente anelo, sonhado desde quando me foi possível ler no grande livro da eternidade, onde não se muda o que é bran co ou escuro. Agraciado por esta luz que me deu Aquele que também concedeu-te asas com que foi possível a subida, alcanço atingir o teu pensamento, pela virtude d'Esse que é o Primeiro em tudo, assim como o número cinco ou o número seis pela mesma unidade primeira se formam. Quem eu seja e por que te apareço com mais brilho que os outros desta grei venturosa, não demonstras curiosidade em saber.

* (1) "ó sangue meu! Ó infinita graça de Deus! A nenhum outro duas vezes as portas do Céu se abrirão?" É Cacciaguida quem fala, reconhecendo Dante. *

Ages corretamente, pois o espelho desta vida eterna vai refletindo o pensamento ainda antes que ele nasça, e a todos - os mais e os menos exornados - instantaneamente vai patenteando.
"Apesar disso, o grande amor que em mim perpetuamente arde em nome da santa caridade mais se acenderá e me estimulará se ouvir a tua voz segura, franca e leda formular pergunta, revelar desejo; pois a tal pedido já foi dado consentimento."
Voltei a atenção para Beatriz. Ouvindo-me antes que eu falasse, acedeu com gesto e sorriso tais que do meu desejo ainda mais se estenderam as asas. Comecei então por dizer:
"Em todos vós, ó bem-aventurados, o amor e o engenho foram dispostos igualmente em medida e peso, quando vos apareceu, pela primeira vez, Deus, que possui todas as qualidades em grau perfeitíssimo. Ele, a quem deveis a ardência, vos exorna com calor e lume de tal forma idênticos que nenhuma comparação o explica à suficiência. Mas, entre os mortais, a vontade e os modos para fazê-la atuante têm forma e poder diferentes, por motivos que a vós são patentes, mas escapam ao nosso discernimento. Eu, portanto, mortal, sujeito a tal desigualdade, posso retribuir apenas com o ardor da alma ao bondoso acolhimento. Ó figura resplendente, me dês a alegria de conhecer teu nome".
Respondeu-me com voz maviosa: "Ó descendente que sofregamente eu aguardava, sou um teu ancestral!" E prosseguiu: "O que te deu o nome familiar, há já mais de cem anos aguarda no Purgatório, no primeiro círculo. Meu filho foi o teu bisavô. Será conveniente, pois, que procures diminuir o seu penar no Purgatório através de preces e boas obras. Florença vivia em paz, casta, sóbria, cingida por antigos muros dentro dos quais fora erguido templo que mesmo hoje assinala a passagem das horas. Não havia ainda por ali colares encadeando jóias, nem diademas, saias recamadas e cintas adornadas, mais valiosas do que sua dona. Não sucedia que já no berço as filhas atormentassem o pai, pois então o tempo de casá-las e o seu dote combinavam-se de modo adequado. As residências não eram maiores do que o necessário para bem acomodar as famílias, não sendo ainda corruptos os usos florentinos, como se tornaram depois que os costumes de Sardanapalo induziram-nos a mostrar na praça o que deveria se restringir à alcova. Montemalo não havia ainda sido vencido pelo vosso Uccellatoio, o qual, superando o outro em magnificência, há de superá-lo ainda mais na queda.
"Cheguei a ver Bellincion Berti vestindo couro com botões de osso, enquanto a esposa baixava o espelho sem haver tingido as faces. Também testemunhei os Nerli e os Vecchio cobrindo-se com peles, sem indício de riqueza, enquanto suas consortes se ocupavam da roca e do fuso. Pois todas estavam certas do sítio de sua sepultura e nenhuma via o leito conjugal abandonado pelo marido em viagem pela França. Uma velava junto ao berço do filho, ninando-o naquele ingênuo linguajar que faz o encanto de pai e de mãe com criança pequenina. Outras, enquanto na roca trabalhavam o fio, narravam aos familiares as legendas dos troianos, de Fiesole e dos antigos romanos. Causaria nessa época enorme pasmo a existência de uma Cianghella e de um Lapo Salterello tanto quanto hoje a presença entre vós de Cornélia ou de Cincinato despertaria. Em tempo assim tranqüilo, em tão belo viver, reinado de concórdia entre as famílias, deu-me Maria à minha mãe, que entre gritos me recebeu. Na pia batismal recebi os nomes de cristão e de Cacciaguida. Meus irmãos foram Moronto e Eliseu. Minha esposa nasceu em Val-di-Pado: daqui teve origem seu sobrenome. Acompanhei depois o Imperador Comado, pelo qual fui sagrado cavaleiro, tanto se agradou ele dos meus atos. Segui-o na guerra contra o infiel que usurpa o vosso direito na Terra Santa, por culpa do pastor que a negligencia. Por aquela torpe gente fui tirado ao mundo; pelo martírio da morte subi ao Paraíso, encontrando a paz eterna".

Canto XVI

Cacciaguida continua a falar a Dante sobre a Florença de seu tempo, e sobre as ilustres famílias que a habitavam. O trisavô de Dante acreditava que o crescimento desordenado da cidade levara-a ao declínio.
Ó nobreza do sangue - estulta, vã! Se os homens dela se gabam neste mundo, onde todo afeto é frágil, não há de causar espanto que por ela eu me tenha ufanado aqui no Céu, onde toda aspiração se volta para o bem. És manto que encolhe demasiado se dia a dia não se põe emenda à sua fímbria, que a tesoura do tempo vai retalhando. Minha resposta principiou por aquele vós que Roma foi a primeira a tolerar na Antiguidade e hoje está em desuso entre seus próprios filhos. Beatriz então sorriu, trazendo-me à memória a tosse que acusou o primeiro dos erros de Genoveva.
Disse eu: "Vós sois meu genitor; de vós recebo ousadia suficiente para todo falar; vós me elevais com o falar-me, a me fazer mais do que sou. Tantas fontes deitam alegria em meu espírito que ele se esforça por conter, sem se partir, tamanha felicidade. Ora dizei-me, caro trisavô, quais os vossos ancestrais e os feitos mais assinalados da vossa juventude. Ilustrai-me a respeito do rebanho acolhido ao redil de São João e quantos, ali, foram dignos de ocupar postos de projeção".
Como o vento acende a chama de incendido carvão, assim mais se avivaram os fulgores do santo lume à proporção que me ouvia. E quanto mais formoso ia-se pondo aos meus olhos, tanto mais doce e suave era a voz com que me dizia, numa língua mais singela que a nossa: "Desde o dia em que o Anjo anunciou a Maria até aquele em que minha mãe, hoje santa, me deu à luz, calcula o tempo decorrido. Quinhentas e cinqüenta e mais trinta vezes este astro reacendeu sua luz e ativou seu calor junto das estrelas da constelação do Leão. Meus ancestrais e eu nascemos naquele bairro que era então o primeiro em nobreza e é hoje o derradeiro nas festas anuais.
"A respeito de meus maiores, bastam estas palavras. De como aí chegaram e quem foram, é mais conveniente calar. Naquele tempo, os habitantes da cidade em condições de fazer guerra, contados entre Marte e São João Batista, eram a quinta parte do que são agora. Mas então esse povo, que hoje se vê misturado com a gente recém-vinda de Campi, de Certaldo e de Fegghine, era florentino até o último de seus artesãos. Oh! quanto melhor fora que tal gente ainda continuasse vizinha e que a fronteira ainda se estendesse por Galluzzo e Trespiano, do que tê-la dentro dos muros e suportar o vilão Aguglione e as trapaças do de Signa, sempre pronto para enganar. Oxalá essa gente, ora no mundo a mais perversa, não se houvesse declarado cruel madrasta de César em vez de mãe benigna. Hoje, ela é florentina e só cogita de enriquecer negociando e fazendo câmbio; estariam melhor retornando a Simifonte, onde seus avós, esfarrapados, eram mendigos. Montemurlo pertenceria ainda aos Conti; ainda Acone estaria sob os Cerchi; e talvez Valdigrivia coubesse aos Buondelmonti.
"A mistura de povos sempre foi prejudicial às comunidades, assim como é causa de males para o corpo o alimento que se ingere sobre outro ainda não digerido. Touro cego cai mais depressa que cordeiro cego e muitas vezes uma só espada causa mais feridas do que cinco lâminas. Observa Luni, vistoria Urbisaglia e mede a sua decadência, caminho este que vão seguindo Sinigaglia e Chiusi. Se ouves, pois, dizer que decaem as famílias, não te cause isso maior espanto do que verificar como decaíram as cidades. Tal como ocorre a vós outros, também fenece tudo o que é vosso, e mesmo as mais duráveis das coisas terrenas têm um termo pouco além da breve existência humana. Qual a Lua que, girando sem cessar, vai cobrindo e descobrindo as terras, tal faz com Florença a Roda da Fortuna: dito isto, não te deve parecer estranho o que vou narrar a respeito de alguns florentinos cuja fama a mão do tempo apagou.
"Os Ughi, os Catellini, os Filippi, os Greci, os Ormanni e os Alberighi, já decaídos, outrora foram muito prósperos. As antigas e potentes estirpes dos Sanelli, dos Arca, dos Soldanieri, dos Ardinghi e dos Bostichi - eu as conheci. Bem conheces a porta de São Pedro, vergada hoje ao peso de tanta felonia que poderá afundar a barca do Estado florentino. Aí assistiam os Ravignani, de quem descende o Conde Guido e todos quantos têm diante do nome a marca dos Bellincione. O primogênito dos Della Pressa estava já no governo e em sua casa Galigaio trazia espada de áureos copos. Já avultava a coluna dos Vaio, Sacchetti, Giuochi, Fifanti, Barucci, Galli e aqueles [os Chiaromonti] que não se envergonharam de usar pesos falsos. Era robusto então o tronco dos Calfucci, e os Sizi e os Arrigucci haviam já ocupado altos cargos civis.
"Oh! Vi também famílias desfeitas, pela soberba vitimadas! Foi isso quando os globos áureos (dos Lamberti) luziam nos maiores atos de Florença. Eram estes pais dos que encontram aumento para suas glórias cevando-se com as vantagens obtidas nos consistórios convocados para preencher as vagas episcopais. Outro bando [os Adimari] - ousado, a perseguir ferozmente os que fogem, humildes quais cordeiros diante dos fortes e dos ricos - ascendia então, procedendo de gente tão vulgar que a Ubertin Donato desagradou que a um deles seu sogro unisse a outra filha. Já Caponsacco estava no mercado, proveniente de Fiesole, encontrando ali Giuda e Infangato, notórios pelo nome.
"Ora direi coisa difícil de se crer, mas verdadeira: no estreito recinto de Florença antiga, existia porta que tomara seu nome à estirpe Della Pera. Muitos que trazem a nobre insígnia do barão, cujo nome e fama são memorados quando da festa de São Tomás, devem-lhe o haverem sido armados cavaleiros, embora sejam hoje aliados do partido popular, trazendo suas bandas ornadas de ouro. Já os Gualderoti e os Importuni eram mencionados amiúde, mas Borgo gozaria maior paz se ainda não contasse com tais moradores. Uma dessas famílias foi causa da desgraça de vós outros florentinos. Ó Buondelmonti, foste tu a atear a justa cólera que te deu a morte e pôs fim à paz de Florença! Tal estirpe que te deu esposa merecia respeito; mas tu a renegaste por outros amores. Viveriam ainda alegres muitos dos que hoje choram, se Deus te houvesse afogado nas águas do Ema a primeira vez em que foste a Florença! Mas era forçoso que em holocausto ao mármore mutilado [do deus Marte], que está diante da grande ponte, terminasse para sempre a paz em Florença.
"Com tais pessoas, descrevi Florença a gozar sossego, sem ter motivos para lamentar. Com esses varões, era tão unido e glorioso o nosso povo que até aí jamais o seu lis havia sido deitado ao solo por lanças inimigas; nem tampouco lutas fratricidas tornaram vermelha sua bandeira branca".

Canto XVII

Cacciaguida decifra e explica a Dante as profecias ouvidas pelo poeta no Inferno e no Purgatório, sobretudo as que dizem respeito ao seu exílio.
Eu tinha então a mesma ansiedade que levou aquele que fez pais reprimirem seus filhos a interrogar Climene acerca do que ouvira contra ele (1). Beatriz pressentiu essa minha angústia; pressentiu-a também aquela santa alma que deixara o lado da cruz para falar-me. Minha dama disse: "Mostra teu desejo de saber, e que tuas palavras tornem claro tudo quanto em teu anseio esteja oculto. Não que o nosso conhecimento dos arcanos celestes possa aumentar com ouvir-te, mas sim porque é bom teres bem saciada a sede".
Assim falei a Cacciaguida: "Ó amado ancestral, glorioso a ponto de ascender ao Céu; assim como foi possível à mente humana entender que em um triângulo não podem estar contidos dois ângulos obtusos, assim tu, mirando aquele Ponto de onde todos os tempos podem ser devassados, consegues ver o futuro.
"Enquanto eu acompanhava Virgílio, subindo o monte onde os pecados encontram cura ou descendo para o mundo dos perdidos, ouvi, a respeito de minha vida futura, muitos ditos sombrios, que me habilitaram a sofrer impávido os golpes da má sina.

* (1) Ofendido com certas insinuações que ouvira, Faetonte foi perguntar à mãe, Climene, se era realmente filho do Sol. Isso, de acordo com Dante, teria feito com que os pais se tornassem severos com seus filhos. *

Não obstante, grato ser-me-ia conhecer o alcance de tais golpes, pois parece que voa com mais vagar a frecha que se vê ser disparada." Foi assim que, obedecendo ao conselho de minha dama, expus os meus desejos àquele espírito que, havia pouco, tão amistosamente me falara. Respondeu-me sem se utilizar daqueles obscuros vaticínios muito do agrado dos pagãos antes de que fosse imolado, para remissão dos pecados, o Cordeiro de Deus. Foi com palavras claras e em latim preciso que o amoroso ancestral satisfez meu pedido, envolto na ridente luz que patenteava sua alegria em fazê-lo:
"As contingências vãs de vosso mundo material estão claramente representadas no conspecto de Deus. Tais contingências caducas, no entanto, não recebem de Deus o caráter da indispensabilidade, precisamente como a nave que desce o rio a favor da correnteza não é minimamente influenciada por quem a observa. Decorre daí que tão suavemente como a doce harmonia do órgão impressiona os ouvidos, desfilam ante meus olhos os tempos futuros que dizem respeito a ti. Qual Hipólito que, por intrigas da madrasta maliciosa, foi forçado a partir de Atenas, assim cumpre que te afastes de Florença. Isto se quer, isto se requer e em breve há de ser alcançado por quem o vem buscando, dado que ali o próprio Cristo, a todo instante, vai sendo mercantilizado. E toda culpa há de ser atribuída ao vencido, como sempre ocorre. Mas a teu respeito, a vingança de Deus dará testemunho da verdade. Deixarás atrás tudo quanto te for mais querido, pois é esta a primeira grande dor que o exilado padece. Provarás como sabe a sal o pão alheio e quanto é fatigoso subir e descer degraus de escadas estranhas.
"Contudo, o que mais te fará sofrer será a necessidade de partilhar a companhia néscia, mesquinha, com que deverás cruzar o vale do desterro. Perversa quanto dissoluta, ingrata, voltar-se-á contra ti; mas em pouco, ela, e não tu, conhecerá a ruína. Seu proceder será prova de sua bestialidade, por tal modo categórico que a ti resultará bem o haveres deixado de participar das lutas políticas. Teu primeiro refúgio, primeiro consolo, será a fidalguia do Grande Lombardo, que ostenta por brasão a ave santa. A teu respeito será tão solícito que, em matéria de carecer e oferecer, entre vós dois será primeiro aquele que em outro ambiente seria o último. Junto dele hás de ver o herói que, nascido sob o influxo deste poderoso astro [Marte], será celebrado por seus grandes feitos. Aquela gente descuidada ainda não se apercebeu disso, por ser pouca ainda a sua idade; apenas nove vezes ao seu redor giraram as estrelas. Ver-se-ão, porém, centelhas de seu valor, de seu desprezo pelo ouro e o perigo, bem antes de que o Gascão engane o altivo Henrique. Sua atuação será tão eficaz que mesmo seus inimigos não deixarão de proclamá-la, conservando muda a língua. Deves contar com ele e com seus favores, pois ele mudará o destino de muita gente, trocando a condição de ricos e de mendigos. Dele, o que digo levarás gravado na mente, sem jamais o revelar..." e descreveu-me então proezas inacreditáveis, mesmo àqueles que as presenciaram. E acrescentou: "Esta, filho, é a explicação de quanto obscuramente te foi dito, essas as insídias que dentro de pouco surgirão diante de ti. Porém não deves invejar a teus conterrâneos, pois o teu renome há de ultrapassar em muito o tempo em que as perfídias daqueles receberão o merecido castigo".
Quando se calou aquela santa alma, após haver terminado de dispor a trama da tela cuja urdidura eu havia antecipado, comecei a falar como quem estando em dúvida busca aconselhar-se com alguém mais experiente e por quem se sabe estimado:
"Eu percebo, pai, como se prepara esse tempo que há de desfechar-me golpe tanto mais penoso porque opor-me a ele não me é possível. Por isso, é bom que me arme de prudência, a fim de que, se terminar sendo exilado da pátria que me é cara, não perca também outros refúgios mercê das afirmações contidas em meus versos. Percorri o mundo onde as penas não têm fim, subi o monte até o formoso cimo para onde me guiaram os olhos da minha dama. Depois, pelo Céu, de lume em lume peregrinando, aprendi maravilhas tais que, se as repetir, minhas palavras terão para muitos o travo do azedume. Se faltar à verdade, porém, é de se temer que a minha fama se perca entre os que chamarão de antigos a estes tempos em que sou vivo."
A luz na qual se ocultava o tesouro que eu havia descoberto fez-se tão coruscante quanto raio de sol refletido por espelho de ouro. E respondeu: "A consciência abalada por vergonha própria ou pecado alheio se irá ofender pelo teu ousado versejar; mas não hesites, deves repelir toda mentira! Expõe o teu pensar sem meias-palavras; cada qual cure a própria ferida! Teu dizer poderá ser molesto no início; porém, bem compreendido, produzirá resultados salutares. Teus brados serão quais ventos que mais agridem os alterosos cimos, e este fazer será para ti razão de não pequena glória. Nestas celestes paragens, no Monte do Purgatório e no Vale Doloroso, foram-te mostradas de propósito muitas almas vestidas com o brilho da fama. Isto porque os ouvintes dariam pouca atenção aos teus versos se eles fossem baseados em exemplos de gente desconhecida, ou em argumento vago".

Canto XVIII

Depois de indicar algumas almas de combatentes que naquela estrela (o quinto Céu) se encontravam, o ancestral de Dante desaparece. O poeta é transportado ao sexto Céu, o de Júpiter, onde se acham os espíritos dos príncipes justos.
Aquela santa alma silenciou, ficando só com os seus pensamentos; e eu cuidava dos meus, entre alegre - por tê-lo ouvido - e apreensivo - por suas predições. A certa altura, a dama que me levava rumo a Deus disse: "Não te aflijas tanto. Lembra-te de que estou perto d'Aquele que alivia as dores!" Voltei-me, ao som da voz que sempre me confortava, e qual fosse o santo afeto que então descobri em seus olhos, nem tento reproduzir. Não que eu descreia da minha capacidade, mas porque sem ajuda divina não pode mente humana subir àquela altura. Mirei-a então, e meu pensamento distanciou-se de outro qualquer desejo. Refletindo sobre mim a bem-aventurança que em seu rosto recebia do alto, ela me deslumbrara.
Ela me disse, despertando-me do êxtase com um sorriso: "Atenta em que não está em meus olhos tudo o que diz respeito ao Paraíso!" Por vezes se vê, aqui no mundo, refletir-se no semblante todo o amor que, por grandemente intenso, logra apoderar-se da alma por inteiro. Foi assim que, fixando o fulgir do albor tão santo, compreendi que Cacciaguida ainda desejava falar-me. Começou:
"Neste quinto céu do firmamento, que à semelhança de árvore perene estende ramadas para Deus, habitam espíritos que no mundo terreno alcançaram fama tamanha que para as Musas seriam ótimas sugestões. Observa bem os braços da cruz: ali verás, fulgindo qual relâmpago em nuvem fugidia, os vultos que eu nomear." Vi então, na cruz, luzir o espírito de Josué, mal acabara de ser o seu nome pronunciado. Isso de modo tal, que nem sei dizer se primeiro vi ou ouvi. Dito que fora o nome do grande Macabeu, outro espírito surgiu a girar qual pião, impelido pela mais intensa alegria. Tal fez Carlos Magno, o mesmo fez Orlando. Atento fui seguindo os movimentos seus, quais falcoeiros a seguir, no céu, da sua ave as evoluções. Surgiram depois aos meus olhos, que fitavam sempre a cruz, Guilherme, Renoardo, o Duque Godofredo e Roberto Guiscardo.
E então, Cacciaguida, foi reunir-se às companheiras; pôs-se a cantar, exibindo seu valor entre o coro celeste. Voltei-me para o lado direito, procurando des cobrir qual fosse a intenção de Beatriz. Em seus olhos percebi contentamento e fulgor que excediam aqueles entremostrados pouco antes. E como o prazer decorrente da prática cotidiana das virtudes faz sentir ao homem que seus méritos aumentam, acordei com sentimento igual, dando-me conta de que se fizera bem mais amplo o arco do céu em que então eu girava. Como retorna rapidamente a cor natural ao níveo rosto de mulher acometida pelo pudor que acende o pejo, foi assim que, pelo candor que minha visão experimentava, percebi haver sido recebido pela sexta estrela (a de Júpiter). Vi, na esfera argêntea, cintilarem espíritos de amor, compondo, com seus movimentos, desenhos de letras inteligíveis na Terra.
Quais aves de bando que, deixando as margens do ribeiro, felizes com o alimento encontrado, estendem vôo, formando círculo ou linha; aquela grei, em seus lumes bem-aventurados, voando e cantando, formava ora um D, ora um I, ora um L. Principiava movendo-se ao ritmo de um canto, para assumir a forma de uma letra, mantendo-se então, por um momento, calada e imóvel. Ó Pegásea diva do Parnaso, tu que dás maior grandeza aos gênios e imortalizas reinos e cidades, inspira-me para que eu logre descrever em palavras aquelas santas figuras tal como as tenho gravadas na mente, de modo que tua virtude e teu poder fiquem patentes em meus versos. Vi com clareza cinco vezes sete vogais e consoantes, divididas em grupos segundo a sua natureza.
Diligite justitiam: era desse modo, com o nome e o verbo, que por primeiro vi inscritos; com qui judicatis terram terminaram. Desenhado que foi o M da palavra quinta, agruparam-se ali as almas bem-aventuradas, de tal modo que com seus lumes pareciam ornar Júpiter de ouro. Outras luzes desceram para o cimo daquele M, ali pousando e iniciando um canto, supondo eu que seja o amor ao Bem o que para ali as atraía.
Aquele tição que, ao ser batido, expede de si centelhas abrasadas fornece aos supersticiosos elementos para augúrios. Centelhas assim brilhantes, em número superior a mil, do M partiam para o alto, subindo umas mais e outras menos, segundo a determinação de Deus, que as vivifica e as ordena, estando cada qual satisfeita em seu lugar. Com os fulgores dali assim partidos, assisti formarem-se a cabeça e o pescoço de uma águia. O Pintor [Deus] que ali vai pintando não carece de mestre; é antes dele que provêm todas as luzes e todas as formas.
Aquelas outras almas agrupadas sobre o cimo da letra M a modo de torná-la semelhante a um lírio, moveram-se um pouco, completando a figura da águia. Ó astro refulgente, bem me demonstraram aqueles muitos e rutilantes lumes que a nossa justiça tem origem no céu de que és gema preciosa. Imploro àquela Mente Altíssima de que provêm tua beleza e teu poder: que se esclareça qual a causa da névoa que o teu brilho embaça. e que de novo Ele, tomado de ira, expulse os mercadores do Templo [a Igreja] que tem por paredes os sinais dos milagres e dos martírios. Ó celeste milícia, em cuja visão me extasio, suplica a Deus em favor desses pervertidos que na Terra vêm seguindo maus exemplos. Outrora, era com espadas que se faziam as guerras; mas, agora, ela é feita tirando-se aos inimigos aquele pão espiritual que o Pai Celestial nunca nega a ninguém. E tu, que excomungas e perdoas tão generosamente, adverte que Pedro e Paulo - os quais morreram pela vinha que vais assolando - estão bem vivos no Céu. Bem podes clamar: "Sou muito devoto desse que, amando o deserto, conheceu martírio devido à mulher que amava a dança; de modo que tal devoção me fez esquecer Paulo e o Pescador".

Canto XIX

O símbolo da justiça divina, a águia - formada pelas almas dos príncipes bons, no sexto Céu - fala a Dante, e lhe esclarece nova dúvida.
Diante de mim, com as asas distendidas, a maravilhosa imagem do grande pássaro; cada uma das almas luminosas que o compunha semelhava um pequeno rubi no qual ardessem os raios do Sol, a ponto de resplenderem em meus olhos.
O que descreverei agora, e que testemunhei, jamais foi ouvido ou lido; nem mesmo pôde ser imaginado. Pois vi e também ouvi falar aquele rostro, eu e meu colocando nas palavras, mas significando nós e nosso. E isto foi o que disse:
"Por ter sido pio e justo, fui exaltado a esta glória, que sobreleva qualquer desejo humano. Deixei na Terra lembrança tal, que mesmo a pervertida gente louva minhas ações justas e generosas, posto que não lhe siga os exemplos." Assim como de brasas numerosas resulta calor único, de todas aquelas almas resultava uma só voz. E eu lhes disse: "Ó flores eternas dos jardins do Céu, que em um só perfume trescalais vossos múltiplos olores, saciai a fome de conhecimento que me consome há já muito tempo na Terra, onde tal alimento não se encontra. Bem sei que, muito embora em outra e superior ordem angélica [a dos Tronos] reflita-se a grandeza de Deus, também vós espelhais a divina justiça. Bem sabeis, pois, que estou pronto para vos ouvir com atenção. Sabeis também que, jamais saciado, vai-se fazendo bem antigo meu jejum".
O falcão a quem foi retirada a venda prontamente moveu a cabeça, distendeu as asas e deu mostras de querer alçar vôo, contente. Assim agiu aquela ave composta de lavores da divina graça, a entoar loas que o Céu, tão-somente, ouve. E começou por dizer: "Aquele que pôs limites ao extremo do mundo, e dentro deste dispôs coisas que são e outras que não são do nosso conhecimento, não podia deixar patente a sua virtude em todo o universo sem que ao entendimento do homem algo permanecesse inexplicado. Deixa-nos isso patente aquela criatura que foi o primeiro entre os soberbos, pois, embora gerada à perfeição, não esperou pela graça iluminante e caiu na imperfeição. Desse exemplo resulta claro que as criaturas inferiores àquela [Lúcifer] são recipientes pequenos demais para aquele Bem que apenas pode ser medido com a sua medida. Por isso impõe-se que vossa razão seja constituída e fortalecida por raios emanados da Mente que ocupa todo o espaço criado, pois não pode a vossa razão, por sua natureza e a despeito de sua vontade, entender Deus para além daquilo em que Ele próprio desejar. "A visão dada ao homem espraia-se sobre a Justiça Sempiterna como o olhar distendido sobre o oceano: se junto da orla pode enxergar o fundo, no mar alto isso não lhe é dado; sabe que ele existe, oculto pela própria profundidade. Não há luz de sabedoria que não proceda do foco divino, que não diminui jamais. Fora disso, o que há são trevas, sombras da carne ou venenos dela.
"Em boa parte já foram esclarecidas as dúvidas que muitas vezes confundiu teu entendimento a respeito da divina justiça, a ponto de raciocinares por esta forma: Nasce um homem junto ao rio Indo, onde não há quem escreva, quem fale, quem ensine a respeito de Cristo. Contudo, seus desejos e seus atos, tanto quanto possa julgar a razão humana, não contêm matéria de pecado, nem no agir, nem no falar. Morre sem batismo e sem fé. É justo que seja condenado? Se não sabe nem crê, que culpa tem?' Contudo, quem és tu que pretendes, de cátedra, julgar o que ocorre à distância de milhares de quilômetros, se podes enxergar somente poucos palmos? Certamente, quem deseja discorrer comigo a respeito de tais sutilezas, bem poderia cair em muitas dúvidas se não se valesse dos textos da Escritura. Ó vermes terrenos! ó estultícia! A Primeira Vontade, sendo como é o Sumo Bem, jamais se afasta de Si mesma. Assim, é justo o que com ela se coadune. Nenhum dos bens criados avoca-a para si. Contrariamente, é ela que cria todos os bens".
Encerrando o seu falar, a águia completou um giro, como faz a cegonha que sobrevoa o ninho depois de alimentar os filhotes, que a observam atentos. Er gui os olhos para a imagem santa, que agitava as asas, sustentadas por tantas almas iluminadas. Volteando, cantou. Depois, disse: "Assim como não entendes o que canto, também os homens não penetram as ações de Deus". Ordenaram-se ainda aqueles vivos luminares compondo o símbolo do Espírito Santo - que fez dos romanos os senhores do mundo. A águia continuou:
"Jamais subiu a estes reinos quem não acreditasse em Cristo, nem antes nem depois que Ele fosse cravado ao lenho. Não obstante, há muitos que, embora bradando Cristo! Cristo!', quando levados a juízo serão mandados para lugares mais afastados do que muitos que não O conheceram. Esses maus cristãos serão desprezados pelos próprios pagãos, no dia em que por fim houver apenas dois bandos: o dos eleitos e o dos danados. Que de coisas poderão dizer os reis persas contra os soberanos cristãos, quando puderem ler nos livros onde estão anotadas as malfeitorias destes? Ali se poderá ler, entre os feitos de Alberto, outros que serão em breve registrados e que assolarão o reino de Praga. Também se há de ver o Sena coberto de luto pelos efeitos da falsa moeda cunhada por esse rei que morrerá em caçada por força de um cerdo. Ver-se-á descrito o orgulho que dementa os reis da Escócia e da Inglaterra, nenhum dos quais satisfeito dentro de seus limites. Ver-se-á a luxúria, o epicurismo dos reis da Espanha e da Boêmia, que não praticam o valor viril, nem desejam fazê-lo. Ver-se-á que ao Manco de Jerusalém, com um I, foram assinaladas as boas obras, enquanto as obras más serão marcadas com um M. Será vista claramente a avareza, a vilania daquele que governa a ilha de fogo, onde Anquises terminou sua longa vida. E para que o seu grau de mesquinhez seja bem conhecido, os assentos a seu respeito serão reduzidos a cifras, a fim de que digam muito, ocupando pouco espaço. Serão patentes, aos olhos de todos, as ações vis do irmão deste, e do tio também; ações que desonram duas nobres nações e duas coroas.
"Serão ali dados a conhecer os males praticados pelos reis de Portugal e da Noruega, bem como o de Rascia, que em seu proveito adulterou os cunhos das moedas de Veneza. Feliz de ti, Hungria, se persistires em manter afastados os governos vis! Feliz de ti, Navarra, se dos teus montes fronteiriços fizeres contra a França defesas. Tão verdadeiro é o que digo que já Nicósia e Famagusta erguem e preparam rebeliões contra o seu tirano, que não é o melhor entre os já mencionados".

Canto XX

A águia continua a falar a Dante, mostrando-lhe algumas almas de reis e de príncipes cuja virtude se celebrizou.
Quando astro que o mundo aclara se desprende desse nosso hemisfério, o dia tem fim em todos os lugares; e o céu, que só por obra dele mostrava-se iluminado, passa a exibir a claridade das estrelas, que não mais fazem do que refletir o grande astro. (1) Esta imagem veio-me à mente quando emudeceu o símbolo do mundo [a águia] e de seus imperadores. Todas aquelas almas iluminadas, alteando o brilho, iniciaram cantos que a minha memória não soube reter.
ó doce amor, que em risos te ias velando e mesmo assim tanto sobressaías entre aqueles fulgores ateados por santos pensamentos apenas! Quando as almas refulgentes que eu vira adornar o sexto Céu calaram seus cantares angélicos, pareceu-me ouvir som igual ao de riacho murmurante cujas águas claras de pedra em pedra descem, mostrando a abundância de sua fonte original. E como o percutir da cítara resulta em som, como o sopro do flautista arranca da flauta sons maviosos, assim formou-se suave murmúrio que, subindo pelo colo da ave formosa, em som de voz foi-se externando pelo bico, em forma de palavras que em minha alma ansiosa ficaram retidas:

* (1) Acreditava-se ao tempo de Dante que a luz das estrelas fosse reflexo da luz do Sol. *

"Fixa atentamente o meu olho, olho que às águias mortais permite suportar o ardor do Sol", começou por dizer. "Destes lumes de que sou a estrutura, aqueles que compõem os meus olhos cintilantes sobrepujam em virtude a quaisquer outros. Esse que brilha no centro, qual pupila, foi o alto cantor do Espírito Santo, que de vila em vila a Arca conduziu. Agora, usufrui o mérito de tal cantar, conhecendo o efeito de seu esforço, pois recebe o prêmio em dobro. Meus cílios são formados por cinco lumes; aquele que do bico está mais próximo foi o que deu consolo à viúva pelo filho perdido. Ali destacado, pode avaliar o preço de não crerem Cristo, comparando a vida que leva aqui com a oposta, que lá embaixo conheceu. E o que se inculca na arcada superior a que me refiro logrou adiar sua morte mercê de esforçada penitência; e sabe que não se podem mudar os decretos do Eterno, se bem que uma fervorosa oração possa adiar, lá no mundo, os seus efeitos. O que se segue a ele, o Estado transferiu para a Grécia, deixando ao papado o seu lugar - intenção que produziu maus resultados, não obstante ser excelente.
"O mal decorrente de seu bom intento não lhe foi nocivo, muito embora para o mundo haja desastroso. E o que vês ali, no declive já do arco, é Guilherme por quem clamam os territórios que choram sob o domínio de Carlos e de Frederico. Fica, pois, sabendo que todo o Céu se rejubila quando um rei é bom, do que faz prova, ainda, o brilho que lhe fulge no semblante. Quem, no mundo terreno que tão mal ajuíza, poderia crer que o troiano Rifeu viesse a ser a quinta dessas luzes santas? Ele tem agora ciência de parte do mistério da graça divina, da qual o mundo conhece apenas uma ínfima parte. Mas ainda assim ele não logra penetrar seus mais profundos segredos."
Como a cotovia que canta em vôo e, calando-se, permanece enlevada com os sons finais de sua própria melodia, pareceu-me assim a imagem vista da Eterna Bem-aventurança, que dispõe que todas as coisas criadas sejam conforme seu desejo. Conquanto minha dúvida se assemelhasse ao vidro que pela transparência denuncia a cor do conteúdo, não pude esperar em silêncio que ela viesse a ser esclarecida. Bradei: "Que mistério é esse?" e ao impacto de tal grito vi resplenderem de satisfação os santos espíritos. Logo, com o olhar mais incendido, o Santo Símbolo, não desejando decerto que por mais tempo eu padecesse à espera, respondeu:
"Entendo que pões fé em quanto estás ouvindo, porque sou eu a dizê-lo, mas não alcanças as razões de tais prodígios. Procedes como aqueles que apren dem o nome das coisas, mas permanecem na ignorância do que seja a essência delas, se essa ignorância por outrem não é desfeita. o Reino dos Céus cede à força de um amor ardente e de uma viva esperança, a ponto de estes triunfarem sobre as disposições divinas. Mas em tal caso, essas virtudes não triunfam como usa um homem vencer a outro, mas porque a Suma Vontade consente em ser vencida - e, vencida, é quem vence pela graça da bondade. A primeira e a quinta das luzes do meu cílio causaram-te admiração por terem sido quem foram e adornarem agora a morada dos anjos. Eles não deixaram seus corpos como pagãos, mas sim quais cristãos de fé vigorosa, um acreditando em Cristo antes de Sua vinda, o segundo, depois dela. Outra das almas luminosas [a de Trajano], lá do Inferno onde jamais se ama o bem, retornou aos ossos em recompensa de fé muito viva, de um ardor santo empenhado em obter de Deus tamanha graça a ponto de haver logrado comover Sua vontade e levar o favorecido a praticar a fé verdadeira. Essa alma gloriosa de que falamos, retornando à carne onde pouco permaneceu, acreditou que Ele a poderia salvar; e perseverando na fé, ardeu em amor com tanta intensidade que, ao sofrer segunda morte, foi considerada digna de subir a este Céu. A seguinte luz salvou-se por amor de graça tão profunda que nenhum olho mortal pôde jamais penetrá-la até o fundo. Lá na Terra amou sobremodo ao Bem. Por isso, de graça em graça, Deus fê-la digna da redenção, pelo que, entregando-se à virtude e furtando-se ao erro do paganismo, viveu a verberar os vícios e a impiedade. As três damas que viste à direita da roda do carro, batizaram-no mil anos antes (de Cristo). (2)
"Ó predestinação! Estendes raízes tão longe que os olhos que as fitam não atingem nunca a sua inteireza! E vós, mortais, convém sejais prudentes em julgamentos, pois mesmo nós, que gozamos da contemplação de Deus, não conhecemos todos os seus eleitos; percebemos isso, e tal aceitamos, pois nosso bem pelo Sumo Bem se afina!"
Assim a divinal figura ministrou-me ensinamento, para alongar e aclarar o meu entendimento parco. E qual procede o bom cantor, que se faz acompanhar por hábil músico, tornando com isso mais harmonioso o seu narrar, lembra-me que, durante o seu falar, ambas as santas luzes [Rifeu e Trajano] agitavam suas flamas em perfeita harmonia, como olhos no movimento de abrir e fechar.

* (2) As três damas são as virtudes teologais. *

Canto XXI
Dante logra alcançar o sétimo Céu, ou céu de Saturno, onde se acham os espíritos voltados à contemplação. Um deles é São Pedro Damião, o qual fala ao poeta.
Tinha eu os olhos novamente fixos no rosto da minha dama, e a mente nela perdida; de nada mais cuidava. Ela não sorria, e disse: "Se eu sorrisse, ocorreria contigo o mesmo que a Sêmele quando transformou-se em cinzas; pois minha formosura, conforme pudeste verificar, aumenta à medida que subimos os degraus desta eterna escada. Se eu não abrandasse os fulgores, ante tanto brilho o teu corpo sofreria qual tronco que o raio atinge. Eis que subimos ao sétimo Céu que, juntando a sua luz àquela do Leão, exerce alta influência sobre a Terra. Agora, faz com que tua mente e teus olhos reflitam a figura de divinal virtude que verás neste céu a espelhar com justiça forma celestial".
Quem pudesse avaliar o quanto os meus olhos se extasiavam na contemplação do bem-aventurado rosto de Beatriz, quando fui levado a cogitar de outro objeto, poderia conhecer a satisfação obtida ao obedecer o guia celeste, substituindo um prazer por outro. Plantada naquele cristalino e luzente planeta que, girando ao redor da Terra, leva o nome do grande rei [Saturno], sob cujo mando nenhum mal foi praticado - pois o mundo vivia a idade áurea - vi em seu centro uma escada de ouro que se elevava tão alto que a mais atilada vista não lhe poderia perceber o fim. Pelos degraus dessa escada desciam tantos lumes brilhantes que fui levado a pensar que ali se houvessem concentrado as luzes do Céu. Seguindo lei natural, a gralha tem por costume, ao abrir do dia, agitar-se sem cessar, a fim de aquecer as enregeladas penas. Em seguida, algumas delas partem para não mais voltar, enquanto, ao fim do dia, muitas outras voltam. Porém, várias, volteando, nem se afastam do mesmo sítio. Assim pareceu-me proceder a turba luminosa a mover-se até que cada qual ocupou lugar nos vários degraus. Aquela das luzes que se colocou mais próxima de nós por tal modo cintilou que pensei: "Entendo bem a mensagem de amor que me transmites!" Mas Beatriz, cuja indicação para falar ou calar eu sempre espero, permaneceu muda; isso me fez optar por calar. Ela, porém, que conhece os meus quereres, pois Aquele que tudo provê lhe faz bem manifestos tais pensamentos, disse: "Dá satisfação ao teu desejo mais ardente!"
Eu então disse: "Sei que meus méritos não bastam para merecer a tua resposta. Mas em nome dessa que me permitiu perguntar, satisfaz meu anelo de sa ber, ó alma eleita, que ocultas em luz a expressão de teu gozo celestial! Dize-me por que tal aproximação. E por que nesta clara esfera emudeceu a doce sinfonia do Paraíso tão claramente ouvida em outras paragens".
Respondeu: "Teus ouvidos são tão mortais quanto tua vista. Aqui, os cantos celestiais não soam pelo mesmo motivo por que Beatriz não sorri. Desci tantos degraus desta escada santa para te dar mostra evidente do prazer que aqui se frui com a luz e a voz de que sou ornado. Descendo um degrau mais do que as outras, não o fiz por estar possuído de mais amor que elas, pois mais acima ardor maior se encontra, segundo podes ver de seu fulgir brilhante. Mas a alta caridade que nos leva a obedecer prazerosamente à Vontade que governa o mundo indica os lugares que devemos ocupar".
E eu: "Para mim é claro, ó lume santo, que neste ponto do Paraíso o mais puro amor faz cumprir os mandados da Vontade Eterna. O que, porém, não alcanço conhecer é a razão pela qual, entre tantas almas dignas, foste tu a predestinada para este diálogo". Não pronunciara a última destas palavras e a resplendente alma girou ao redor de si mesma, qual mó em torno do eixo. E o amor divino, que em tal chama estava incluso, disse:
"Graça divina ora em mim vai incidindo, penetrando através da luz que continuamente me reveste. A minha visão e mais a virtude dela, combinadas, tanto me elevam que ao meu entendimento se descortina a Suprema Essência de onde ela promana. Daí origina-se a felicidade em que fulguro, pois quanto mais minha vista se aclara tanto mais aumenta o fulgor da minha chama. Contudo, mesmo a alma mais distinguida - o Serafim que no próprio Deus tem fixo o olhar - não poderá esclarecer tua dúvida, pois a pergunta feita por tal modo se aprofunda nos abismos de decretos estabelecidos por Deus para a eternidade, que a solução está além de todo ser criado.
"Quando regressares ao mundo dos mortais, repete o que ouviste a fim de que homem algum procure a solução do mistério da predestinação. A mente que no Céu se faz luz, na Terra existe circundada por nebulosidade. Considera, pois, não ser possível entender na Terra aquilo que não se pode compreender nem no Céu".
Diante de tais palavras, desisti de formular novas perguntas; limitei-me a perguntar seu nome, humildemente. E ele recomeçou a falar:
"Entre as duas costas da Itália, próximo da tua cidade natal, ergue-se serra tão alterosa que os trovões ribombam mais baixo do que elas. Um cimo en contra-se ali, o Catria sob o qual existe eremitério votado tão-somente ao amor de Deus".
"Nele dediquei-me ao serviço divino, alimentando-me de parcos alimentos e de azeite, suportando alegremente verão e inverno, em contemplação deixando decorrer a vida. Costumava aquele claustro preparar muitas almas para o Céu! Mudou, porém, e sob tal aspecto o quanto é inútil logo mais o mundo ficará sabendo. Naquele eremitério fui Pedro Damiano ao passo que me chamaram Pedro Pecador enquanto estive no Convento de Santa Maria, junto do Adriático. Pouca vida me restava quando fui revestido do capelo que atualmente de mal a pior é transmitido. Cefas e esse Vaso de Eleição, descalços, magros, assentavam-se a qualquer mesa, alimentando-se de quase nada. Os pastores modernos, no entanto, de uma a outra parte se movendo, sempre precisam ter servos por perto, para ajudá-los a manter-se em pé - tão gordos acabaram ficando -, e os auxiliar a permanecer eretos. Com o próprio manto cobrem a sua montada e assim uma só pele veste ambos os brutos! Ó paciência, até quando!"
Ao ouvir tais palavras, vi que, girando, desciam os degraus novos lumes, e a cada giro faziam-se mais belos. Reunindo-se qual multidão àquele que falara, desferiram todos um tão forte grito que nenhum som na Terra poderia igualar-se-lhe. Não compreendi o que diziam, pois o brado fora ensurdecedor.

Canto XXII

Ainda no sétimo Céu, entre as almas contemplativas, o poeta ouve o espírito de São Benedito. Depois sobe ao oitavo Céu, ou céu das estrelas fixas, no ponto em que se encontra a constelação de Gêmeos.
Entorpecido, à doce guia voltei-me, qual menino a buscar sempre a pessoa na qual confia cegamente. E ela, como faz a mãe pressurosa em atender ao filho caro e espavorido, socorreu-me: "Esqueceste de que te encontras no Céu? Ignoras, acaso, que no Céu tudo é santo, pois tudo provém da Suma Caridade? Imagina qual não seria a impressão em ti do meu riso ou do canto dos bem-aventurados se este grito impressionou-te tanto! Se pudesses penetrar o sentido dele, conhecerias, desde agora, a vingança que verás consumada antes que venhas a morrer. Eis que a espada celestial não é fulmínea ou lenta senão quando assim pareça para aquele que a receia, ou deseja. Desvia, porém, de mim os olhos e verás outros nobres espíritos".
Conforme aprazia a ela, volvendo o olhar deparei com centenas de esferas luminosas que uma à outra embelezava com suas luzes entrecruzadas. Quedei me como quem, sofrendo silenciosamente pontadas de desejo, receia tornar-se importuno se formular as perguntas que tem prontas.
Mas eis a maior e mais luminosa daquelas pérolas celestiais adiantar-se para dar satisfação ao meu anseio. E a voz vinda de seu imo fez-me ouvir: "Conhecesses, como eu, a caridade que em nós arde perenemente, terias expressado o teu pensamento. Mas para que, esperando, não retardes a caminhada para o alto, darei resposta à pergunta que não ousaste formular. (1) Esse monte que hoje ostenta o mosteiro Cassino em sua encosta foi outrora, em seus cabeços, habitado por gente perversa, afeita ao mal. Ali, fui o primeiro a pronunciar o nome d'Aquele que fez baixar à Terra a verdade que sobreleva o homem. Tamanha graça sobre mim foi acumulada pelos Céus, que pude, então, libertar do erro e do culto à impiedade várias cidades vizinhas.
"As luzes que aí vês foram outros tantos ermitãos, tocados por aquele ardor divino que faz desabrochar as flores e sazonar os frutos santos. Este é Macário; aquele, Romualdo; todos os mais meus irmãos que têm firmes os pés no chão do claustro!"
"O afeto", eu disse, "que demonstras ao falar comigo e o aspecto amável desses lumes que te cercam aumentam minha confiança, assim como a linda rosa, aberta ante o raio de sol, mais exibe sua grande formosura. Por tal estímulo é que te suplico, ó pai: acede a que eu receba a suprema graça de ver teu semblante".
Tornou ele: "Irmão, teu desejo será satisfeito na mais alta esfera, onde serão satisfeitos os anelos santos, inclusive o meu. Ali se cumpre, inteira, perfeita, madura, qualquer aspiração, pois ali somente todas as coisas estão onde sempre cumpriu estivessem. O Empíreo não está contido em nenhum espaço, não é limitado por nenhum pólo e ali tem fim a escada cujo cimo teus olhos não alcançam.

* (1) Trata-se de São Bento de Núrsia, fundador de inúmeros mosteiros. *

Viu-a porém o patriarca Jacó, ao atingir-lhe o topo, em visão durante a qual ela mostrou-se circundada por multidão angélica. Mas, para subi-la, já hoje ninguém destaca o pé da terra e com isso as minhas regras monásticas, inúteis, jazem no papel. Tornaram-se espeluncas os muros que serviam de abadias, e o capuz monástico transformou-se em saco para farinha de má qualidade.
"Mas a prática da feroz usura ofende menos ao querer divino que esse amor às riquezas que ensandeceu o coração dos monges; pois, na verdade, os bens da Igreja não são dela mas por ela custodiados em nome dos que pedem por amor de Deus, e, portanto, não podem ser distribuídos entre parentes e piores ainda do que estes. A matéria que compõe o homem é tão débil que as melhores intenções não duram mais tempo do que o gasto pelo carvalho desde que nasce até dar bolotas. Pedro iniciou a sua missão sem possuir ouro nem prata; eu, com orações e com jejuns; e Francisco, com humildade ergueu o seu convento. Se comparares o passado destes com o que hoje vemos, concluirás que o branco se fez preto com o passar do tempo. Correção para estes males seria milagre maior do que haver o Rio Jordão invertido seu curso e o Mar Vermelho abrir-se em obediência à vontade divina".
Ao terminar de falar, voltou para junto dos seus, e toda a luminosa grei estreitou-se para nas alturas desaparecer. A doce minha dama com um gesto fez me seguir pela escada empós deles, suprindo com sua virtude a minha fraqueza humana. Jamais na Terra houve quem subisse ou descesse como então ali eu velozmente pratiquei. Bem aspiro, ó leitor, tornar ainda ao devoto triunfo pelo qual choro os meus pecados e bato no peito: em menor tempo do que levarias para meter e retirar o dedo ao fogo, eu vi e me senti integrado na constelação que segue a do Touro. Ó gloriosas estrelas! ó lume impregnado pela alta virtude, a que reconheço dever o meu engenho, valha ele o que valer! De vós nascia e em vós se escondia esse [o Sol], gerador de toda vida mortal, quando principiei a respirar o ar da Toscana. Eis que havendo alcançado a graça de elevar-me à mais alta esfera, cumpre-me passar pela região que é vossa! Minha alma vos implora infundais nela a necessária virtude para triunfar do ingente passo a que foi constrita.
"Tão perto estás de deparar o rosto divino", começou Beatriz, "que cumpre esteja a tua vista clara e firme. E antes que avante te internes, é proveitoso que baixes o olhar e te dês conta de quantos mundos estão abaixo dos teus pés. Com essa constatação, mais venturoso o teu ânimo se há de apresentar à turba triunfante que alegremente acorre a este orbe circular."
Lançando, pois, a vista por todas as sete esferas, e observando quão mesquinha em tamanho era a nossa Terra, sorri constrangido, aprovando o conceito de quantos a consideram um astro de somenos e por grande sábio tenho aquele que em outros mundos põe os seus cuidados. Vi a filha de Latona, agora sem aquelas manchas que me levaram a crer fosse astro espesso ou tênue. De teu filho, Hiperião, pude aqui afrontar o rosto e observar como próximos e vizinhos dele movem-se os filhos de Mala e de Dione. Do mesmo modo vi o fulgurar de Júpiter, que tempera o frio do pai [Saturno] e o calor do filho [Marte]; vi como é que os astros variam movimentos e posições - pois os sete planetas fizeram-me patente quão grandes e velozes são, assim como as distâncias guardadas entre si na imensidão do Céu. Do seio dos dois eternos Gêmeos pude observar a Terra inteira, com montes e vales; ilhota conturbada pelos que vivem, de que o homem tanto se gloria. Depois, os olhos sempre ternos voltei a mirar.

Canto XXIII

Agora no oitavo Céu - ou céu das estrelas fixas, Dante conhece a magnífica alegoria do triunfo de Cristo.
Para a ave que passa a noite escondida na fronde, junto ao ninho, em meio à noite que tudo esconde, e espera que o Sol dê início ao dia para que ela possa rever seus filhotes e alimentá-los, as tarefas mais exaustivas parecem suaves. Minha dama assim permanecia ereta e atenta, a fitar aquele ponto no qual o Sol se move mais lentamente. Vendo-a absorta e fixa, quedei-me qual homem que, almejando determinado bem, aguarda, acalentando esperança. Mas pouco decorreu entre o momento em que me dispus à espera e o instante em que notei tornar-se o céu mais e mais abrilhantado.
Minha dama exclamou: "Eis as cortes do triunfo de Cristo e todos os frutos colhidos no girar destas esferas!" E nisso o seu rosto pareceu-me tão flamante, com arder em seus olhos alegria tamanha, que o melhor é sequer tentar descrevê-la. Assim como Trívia nos plenilúnios esplende entre ninfas eternas que pintalgam o céu, refulgindo sobre milhões de lumes, vislumbrei um Sol que a todos aqueles lumes emprestava os seus clarões, conforme faz o nosso com os demais astros. (1) Tão brilhante fulgurava a Divina Substância, por entre o aceso lume, ante o meu olhar, que o não pude sustentar.

* (1) Era Cristo, cujo brilho empanava todas as demais luzes. *

Beatriz, guia meiga e querida, disse-me: "O que te faz curvar os olhos é força invencível, incomparável. É todo o Poder e toda a Sabedoria, que abriram o caminho da Terra para o Céu, por muito tempo desejado em vão".
Como o raio se liberta da nuvem que já não consegue contê-lo e violentando lei natural fuzila para a terra, assim a minha mente, em meio àqueles prodígios espirituais, mergulhou no êxtase, saiu de sua natureza e agora não logra recordar o que então lhe sucedeu: "Abre os olhos e observa como sou. Viste coisas que ora te possibilitam sustentar o meu sorriso".
Encontrava-me como aquele que, acordando de visão desfeita, esforça-se inutilmente por recompô-la na mente, quando ouvi esse convite, merecedor de gratidão tamanha a ponto de jamais poder ser cancelada do livro do passado. Ainda que ressoassem para ajudar-me as línguas de todos os poetas inspirados por Polínia e outras musas, do modo mais genial, seu dulcíssimo e alto canto não bastaria para que eu cantasse dignamente a milésima parte daquele santo sorriso em face à luz da divina presença. Igualmente, ao descrever o Paraíso, cumpre fazer saltos no poema sacro, conforme procede o viajante que encontra seu caminho fechado. Os que cogitarem de quanto é pesado o tema e quanto é frágil o ombro que o sustenta, não me culparão de que diante do encargo eu trema. Não é para pequeno barco este mar que a proa ousada singra, nem para piloto incauto.
"Por que te concentras tanto em meu rosto e não te voltas para esse jardim formoso onde ao sol de Cristo abrem-se todas as flores? Ali está a rosa em que o Verbo Divino se fez carne; ali, os lírios a cujo suave odor abriram-se os caminhos da verdade."
Assim falou Beatriz, e eu logo obedeci, forçando meus débeis olhos. Qual oculto sol que, filtrando-se entre nuvens, ilumina campina em flor conservando se porém à sombra, assim notei turbas de esplendores a receberem do alto o fulgor de que se ornavam, sem divisar o fogo de que o recebiam. Ó Benigna Virtude, que os fazes esplendentes; e que então tomaste altura para que eu lograsse ver o que naturalmente ao meu olhar não se permitia! Ouvindo o nome da bela flor [Rosa Mística] que sempre invoco pelas manhãs e tardes, atentei para o maior dos lumes a fulgir. Vi essa viva estrela, maior em grandeza e luzimento, que todas as outras supera, no Céu e na Terra.
Baixou então do alto centelha em forma de diadema e, tendo-a cingida, girou ao redor dela. A mais doce melodia terrena, a que mais extasiasse a alma, soaria qual trovão de rota nuvem se comparada com a daquela lira a cujo som era coroada a divinal safira, a mais formosa de que o Céu se orna. "Sou o amor angélico, a girar indicando o prazer que vem do seio santo onde o Nosso Desejo [Cristo] encontrou abrigo; e continuarei a girar ao teu redor, ó Rainha do Céu, enquanto ao teu Filho fazendo companhia com teu esplendor adornares esta suprema esfera." Ao fim da melodia entoada em círculo, em suave cantar repetiam o nome de Maria as outras almas iluminadas.
O régio manto dos mundos, que próximo ao sopro de Deus mais se abrasa, tanto de nós então distava que de onde me encontrava não lhe podia distin guir a forma. Por isso meus olhos não alcançaram a Coroada Chama que se alteou, remontando ao Filho. Como a criança que, já saciada, para a mãe estende os braços pequeninos, alegremente, assim outros esplendores endereçaram suas luzes para o alto, patenteando o afeto a Maria. Enquanto à vista permaneceram, modulavam o Regina coeli, tão brandamente que o prazer de ouvi-los ainda ecoa, inefável, em meu espírito. Oh! quão grande é a uberdade contida nessas arcas riquíssimas, guardiãs dos frutos colhidos nas boas sementeiras deste mundo! No Paraíso se vive e se goza do tesouro acumulado com o pranto do exílio de Babilônia, sofrimentos ante os quais de nada vale o ouro! Ali triunfa, sob o Excelso Filho de Deus e de Maria, unido aos eleitos segundo as Leis Antigas e Novas, esse que guarda as chaves da eterna glória. (2)

* (2) São Pedro, a quem Cristo confiou as chaves da Igreja e, portanto, da salvação das almas. *

Canto XXIV

São Pedro interroga Dante sobre questões relacionadas à Fé; o poeta responde-lhe as perguntas com tanta propriedade que granjeia a admiração do santo.
"Ó gente escolhida para a ceia celestial, que vos nutre e satisfaz! Se por graça de Deus este homem alcança prelibar as delícias inumeráveis em vossa mesa antes que chegue o tempo da sua morte, tendo em conta o seu desejo enorme de conhecimento, rorejai-o com as gotas da verdade que manam da fonte em que bebeis e que ele anseia!"
Assim falou Beatriz, e aquelas ledas almas, quais cometas flamejantes, rodaram velozmente ao redor de seus eixos. As rodas do mecanismo de relógio fazem parecer, em seu girar, que a primeira está imóvel e que a última voa: assim aqueles círculos dançantes em velocidades variáveis anunciam a escala de sua hierarquia. Do círculo em que notei maior beleza vi destacar-se lume tão glorioso que nenhum outro sobre ele avantajava. Ao redor de Beatriz evoluiu três vezes, entoando canto tão mavioso que nem mesmo fantasiando poderia descrevê-lo. Porém, a pena escapuliu-me da mão e nada escrevo ou digo, pois nem com palavras nem com matizes tanta beleza pode ser reproduzida.
"Teu ardente apelo, ó doce irmã, fez que eu deixasse aquela formosa guirlanda de luz." Parando seus movimentos, o excelso lume dirigiu-se à minha dama, com as palavras que aqui transcrevo. E ela tornou: "Ó luz eterna do varão a quem Nosso Senhor confiou as chaves destes páramos celestes que levara para o mundo terreno, rogo-te, segundo teu alvitre, interrogues a este homem, sobre pontos simples e complexos, a respeito da fé que fez com que sobre o mar andasses. Visto que gozas da contemplação d'Esse em quem tudo se vê nitidamente impresso, a ti é patente se este alimentou a caridade, a esperança, a justa crença. Mas como só pela fé se alcança o reino divino, convém que o recém-chegado exalte-a com suas palavras".
Como o aluno que ouve calado a tese exposta pelo mestre, a fim de discuti-la, assim eu me preparei, e enquanto Beatriz falava, muni-me de argumentos dig nos tanto do argüidor quanto da matéria em si. "Torna-me claro, ó bom cristão, o que pensas ser a fé." Ergui a fronte para aquela luminosidade que assim me interrogava. Voltei-me depois para Beatriz, que por acenos me instigava a fazer jorrar a água do conhecimento da interna fonte onde a tinha guardada. Então, comecei: "A graça divina que me concede fazer minha confissão diante do primeiro grande paladino da fé, conceda clareza aos meus conceitos!" E prossegui: "Segundo escreveu a pena apraz de teu amado irmão [São Paulo] que, contigo, conduziu Roma ao bom caminho, fé é a substância do que se espera e argumento que, mesmo sem prova, leva à convicção. Esta definição parece-me boa".
"Bem terás falado", disse ele, "se bem compreendeste a substância definida, pois tua argumentação foi inteligente". Respondi: "As maravilhas que nestes altos sítios me foram presentes estão ocultas aos olhos do mundo terreno. São aceitas através da crença em que o homem baseia sua mais alta esperança; eis por que substância é chamada. Mas como impõe que sobre ela unicamente seja baseado o raciocínio, por argumento é também nomeada".
Ouvi então: "Se a doutrina ensinada lá no mundo fosse compreendida como o foi por ti, não haveria ali lugar para os sofistas". Tais palavras disse aquele lume de amor ardente. E acrescentou: "Bem enunciados foram a liga e o peso desta boa moeda. Mas, dize-me se a trazes em tua bolsa". E eu: "Sim, tenho-a e tão luzidia, tão redonda, que de seu bom cunho estou perfeitamente certo". Do imo, então, da luz fulgente, ouvi dizer: "E essa preciosa gema sobre a qual se erguem todas as virtudes, de onde a recebeste?"
"Da chuva abundante vertida pelo Espírito Santo sobre a Velha e a Nova lei", respondi-lhe. "Este é o argumento que me convenceu a respeito da fé verdadeira, com tal clareza que em face dela a mais clara demonstração parecer-me-ia totalmente equivocada". Ouvi em seguida: "E por que acreditas que foram divinamente inspirados o Velho e o Novo Testamento, em que tamanha confiança depositas?" "A prova de que são verdadeiros dão-me os milagres, os quais a natureza jamais pôde forjar nem moldar em sua bigorna." Foi-me perguntado: "Dize: quem te assegura que esses milagres foram efetivamente realizados? Depositas tua fé exatamente nas obras que ora deves provar!" "Se o mundo se houvesse convertido ao Cristianismo", disse eu, "sem milagres, seria este fato um milagre cem vezes maior do que outro qualquer. Tu mesmo, pobre, sem recursos, foste ao campo semear a excelsa planta que um dia foi vinha, mas hoje é espinheiro." Concluíra este dizer quando a corte santa entoa nas suas guirlandas de luzes um Te Deum laudamus com a doce melodia que apenas no Céu se canta. Aquele varão que com seu exame tanto me havia exaltado recomeçou:
"A mesma graça divina que te ornou a mente fezte falar até aqui de modo perfeito. Portanto, aprovo quanto respondeste. Mas ora é preciso que definas a tua crença e a fonte de onde crês que ela se tenha originado".
"Santo pai, em espírito podes ver aquilo em que acreditaste pois tamanha foi a tua crença que antecipaste no Sepulcro a pés mais jovens", eu disse; "queres que eu patenteie a essência do meu firme acreditar e a origem dele. Respondo: creio em um Deus único, eterno, que acede ao mover-se dos céus, não por mandado alheio, mas por clemência para com o anseio humano. A física e a metafísica provam essa existência, que é também provada por Moisés, pelos profetas, pelos salmos, pelo Evangelho e pelas páginas que escreveste depois de iluminado pelo Espírito Santo.
"Creio em três pessoas eternas, em que a sua essência seja una e trina, de tal forma que a ela se possa referir usando o são e o é. Do que proclamo a propósito dos mistérios da condição divina, muitas são as confirmações que tenho; com freqüência são elas avivadas em minha mente. Este é o princípio, a centelha que logo em viva chama se transmuda e, qual estrela celeste, brilha em mim".
E tal qual o bom senhor que atento e contente ouve seu servo transmitir-lhe boas notícias, e abraça-o quando ele se cala - assim, tão logo silenciei, o iluminado espírito de São Pedro abençoou-me volteando três vezes ao meu redor, em atitude de aprovação.

Canto XXV

Ainda no oitavo Céu, assim como a alma de São Pedro interrogara Dante sobre a Fé, São Tiago interroga o poeta acerca da Esperança.
Se porventura este poema sagrado, para o qual o Céu e a Terra contribuíram e em cuja feitura definhei por longos anos, puder amenizar a crueldade dos que mantêm cerrado para mim o doce redil onde, cordeiro, dormi, infenso aos lobos que lhe movem guerra; com voz mais sonora e os cabelos embranquecidos, retornarei poeta e na fonte do meu batismo receberei a coroa de louros.
Ali fui iniciado na fé que em face de Deus assinala as almas e isto foi causa de haver-me Pedro concedido aprovação depois do exame. Eis encaminha-se para nós outra das luzes do grupo de que viera a primeira, aquela que por seu vigário nos deixara o Cristo. A minha dama, tomada de júbilo, indicou-me: "Repara! Eis o santo pelo qual se vai em romaria à Galícia!"
Quando o pombo amorosamente acerca-se da companheira, um e outra, em giros e em arrulhos, procuram mostrar o mútuo ardor. Assim vi procederem os dois gloriosos príncipes, louvando o manjar que somente no Céu se degusta. Depois desse congratular recíproco, puseram-se à minha frente, mudos, tão fulgurantes que me vi obrigado a baixar o rosto. Sorrindo, então, Beatriz explica:
"Ó alma iluminada, que à perfeição descreveste os imensos tesouros de nossa fé! Neste alto do Céu, interroga a este a respeito da esperança. Bem o sabes fazer, pois tantas vezes figuraste a esperança quantas vezes Jesus demonstrou a seus três discípulos maior benevolência".
"Ergue a fronte, pois quem sobe a este ponto desde o mundo mortal deve sazonar-se a seus vivos raios!" O consolo de tais palavras me foi dado pelo segundo dos santos lumes e por virtude delas volvi àquelas montanhas de valor os olhos que me haviam feito baixar. "Permite a divina graça que antes da morte possas contemplar, nos paços mais recônditos, o nosso Imperador com os seus nobres, a fim de que, conhecendo a verdade aí contida, faças com que a esperança que a tantos serviu de alento ainda possa no mundo servir a ti e a muitos. Mas, por ora, dite-me o que é a esperança, como ela se acendeu em teu íntimo e onde a recebeste."
Isto disse o segundo lume; porém, a caridosa dama que a tais alturas guiara minhas débeis asas antecipou-se, explicando: "A Igreja Militante não conta filho mais pleno de esperança, como podes ver escrito nesse Sol (Deus) que a todos nós ilumina. Por isso lhe foi concedido que do Egito viesse a Jerusalém antes de que seu tempo vital expire. Interroga-o, sim, a propósito de outros dois pontos, não por supô-los ignorados, mas para que no mundo ele avive essa virtude que muito amas. Deixo que ele dê, sozinho, as respostas, sem disso tirar vanglória, pois nela não encontrará dificuldades se Deus a Sua graça lhe concede".
Qual discípulo atento que para o mestre vai discorrendo sobre tema de que tem domínio, satisfeito de patentear seus conhecimentos, fui dizendo: "A esperança é o aguardar, sem nenhuma dúvida, a glória futura, por efeito da graça divina e de mérito precedente. De alterosas estrelas me vem esta luz, mas quem por primeiro instilou-ma no peito foi o sumo cantor do Sumo Senhor. Afirmou ele em seus divinos salmos: Esperem em Ti os que conheçam Teu nome'. E quem não conhece tal nome, possuindo a fé que me anima? Tu também, com tua epístola, assim como ele fez com seu cantar, instilaste em mim a esperança que, por abundante, vou repartindo com outrem". Enquanto eu falava, do íntimo fulgurante daquele incêndio erguia-se chama intensa, qual relâmpago, a me responder:
"O amor por essa virtude [a esperança], que me acompanhou até alcançar a palma do martírio e da morte, ainda aqui me tem abrasado. É a força que te atrai a mim, pela felicidade que encontras nela. Dize-me, pois, o que é que te promete a esperança".
E eu: "As Escrituras Antiga e Nova exibem o símbolo da esperança qual pendão a ser seguido pelas almas às quais Deus é caro. Afirmou o Profeta Isaías que cada uma delas será cingida, na pátria celestial, de dupla veste; e a pátria delas é esta bem-aventurança eterna. Teu irmão, na passagem em que se refere às brancas vestes, mais claramente este conceito descreveu".
Tais palavras havia apenas proferido, quando Sperant inte acima de nós se ouviu cantar, despertando ecos nos círculos ao nosso redor devotos. E logo entre eles fulgurou um lume por tal modo brilhante que se estrela igual houvesse na constelação do Câncer, o inverno teria meses de um só dia. É qual a jovem pura que, em honra da amiga recém-desposada, alegre entra no baile, sem nos gestos ter malícia ou vício - aquele clarão resplendente vi aproximar-se do par de lumes que em círculos girava conforme convinha ao seu amor ardente. Formou o novo lume no canto e na dança que os outros executavam. A minha dama contemplava o trio, qual esposa tácita, imóvel.
"É este o que repousou ao peito do nosso Pelicano, por quem, do alto da cruz, foi destinado a elevado ofício!" Assim falou Beatriz, tendo o olhar embebido de novo na terceira luz, tal qual estivera antes de que tais palavras eu tivesse ouvido. Aquele que ousa encarar o Sol supõe que em pouco tempo lhe falte a vista, pois todo o seu esforço a luminosa potência anula. Isso ocorreu comigo ao fixar o terceiro resplendor, enquanto estas palavras eram ditas:
"Por que te cegas procurando ver o que no Céu não pode ser visto? Lá na Terra, em terra se transformou o meu corpo, e assim será com o de outros, até que o número dos mortos alcance a cifra prevista nos desígnios divinos. Mas com a alma e o corpo estão neste santo claustro aqueles dois lumes que se elevaram. Repete lá no mundo esta verdade".
Ditas tais palavras, silenciou o luminoso giro e com sua voz calou-se também a suave melodia que da tríplice luz evolava. Assim é que se imobilizam, ou para repouso ou para evitar perigo, ao som de um assobio, os remos que antes fendiam as águas. Mas, ai! por viva comoção fui abalado quando, ao procurar Beatriz, volvi-me e não a vi, embora lhe estivesse ao lado naqueles páramos de delícias!

Canto XXVI

Dante ainda se acha no oitavo Céu. A alma de São João Evangelista interroga Dante sobre a Caridade.
Receava ter perdido a visão; porém, da rútila chama que a ofuscara uma voz se ergueu: "Enquanto esperas recuperar a visão, anulada por haveres em mim fixado os olhos, convém que compenses a sua falta com honestos conceitos. Principia a expor o que te vai pela alma, ficando desde logo certo de que a tua vista está desfalecida e não defunta, pois a dama que por este mundo divino te conduz possui no olhar virtude semelhante à das milagrosas mãos de Ananias".
Eu disse: "Quando lhe aprouver, cedo ou tarde, dê ela remédio a estes olhos, portais por onde entrou em mim o fogo do amor em que ainda vou ardendo. O bem que desta corte faz enlevo é Alfa e Ômega de toda a Escritura que ou mais ou menos me acendeu eterno amor no peito.". A voz que me retirava o medo à eterna cegueira insistiu para que no tema eu continuasse a discorrer, dizendo:
"É bom que exponhas com mais clareza e pormenores o teu pensamento e indiques quem te fez apontar o arco para tal objetivo." E eu: "Argumentos filosóficos e impulsos que do Céu provêm - tal amor, como é de natureza, infundiram em mim. O bem, segundo é conhecido, em sua essência instila ardor tão intenso quanto é abundante a caridade que em si encerra. Em conseqüência disso, a divina essência da caridade é por tal modo avantajada, que todo e qualquer bem porventura existente fora dela não será senão reflexo pálido da sua virtude. Mais do que outra, atrai a alma que, voltada sinceramente ao vero amor, penetra, por tal arte, a verdade desta prova.
"Essa verdade esclarece ao meu entendimento a certeza de que o primeiro amor de todas as criaturas imortais é o seu Criador. Esclarece-o também a voz do Supremo Autor, quando disse a Moisés, falando de Si: Far-te-ei conhecer a verdade mais perfeita!' Também tu mo esclareces por meio da alta pregação, que supera qualquer outra revelação em verdade".
Ouvi, então: "Tendo em vista a perfeita concordância entre teu intelecto humano e a letra das Escrituras, o teu amor maior é consagrado a Deus. Mas se a tal amor és compelido por outras forças, dize quais são". Não me passou despercebida a intenção da Águia de Cristo [São João]; ao contrário, bem percebi para onde desejava que eu conduzisse minha exposição. Continuei, portanto:
"Os estímulos que levam o coração humano a voltar-se para Deus atuam, sem exceção, sobre meu espírito de caridade. A essência que formou o mundo formou-me também: Deus sofreu morte para que eu vivesse na esperança da eternidade, com todos os demais fiéis. A consciência de tal verdade é que me desviou do amor das coisas mundanas, endireitando-me para o caminho do amor divino. Em todas as criaturas que adornam o horto universal encontro o amor do Hortelão Supremo, pois entendo que só o bem o Criador infundiu nas criaturas." Apenas me calei, suavíssimo canto ressoou pelo Céu e a minha dama entoou com os mais espíritos: "Santo, Santo, Santo!"
Quando a capacidade de enxergar desperta bruscamente, indo ao encontro da luminosidade que pungentemente lhe invade os refolhos do órgão visual, o homem, acordado, não pode de imediato fixar a vista, pois tal despertar é inconsciente enquanto o uso da razão não auxilia o da visão. Foi assim que Beatriz, com um raio de seus olhos, retirou dos meus olhos todos os empecilhos, por menores fossem, fulgindo o seu mesmo olhar num espaço de mil milhas a mais. Pude então enxergar mais longe do que antes, e estupefato perguntei quem era o quarto lume ali presente. Minha dama explicou-me:
"Dentro desses raios, a primeira das almas criadas pela Alta Virtude contempla seu Criador" (1). Qual arvoredo que ao perpassar do vento dobra a fronde, mas volta a erguê-la por virtude da força que em si traz contida - sucedeu comigo que emudeci de pasmo, enquanto ela falava, para logo depois patentear o desejo que em mim se acendera de interrogar. Exclamei: "Ó único homem criado já adulto, ó primeiro dos pais, da qual toda esposa é filha e é nora! Com reverência te rogo, atende ao meu desejo, fala-me. Bem conheces o meu desejo; e não o repito, para sem demora ouvir-te".
O animal envolvido em uma manta às vezes tanto se agita que deixa ao homem entender os seus intuitos, pelos movimentos que imprime à tela. Por igual modo, a primeira das almas criadas, agitando-se em seu luminoso invólucro, revelava o prazer fruído no atender ao meu anelo.

* (1) Trata-se de Adão. *

Disse-me assim: "Sem que o reveles, conheço o teu desejo com clareza maior do que aquela que possas ter a respeito de algo que seja de teu inteiro conhecimento. Isso porque vejo no Espelho Verdadeiro, que, refletindo-as, faz todas as coisas iguais a Si e que em coisa alguma pode ser refletido.
"Perguntas quando colocou-me Deus no Jardim Terreal; para o alcançares, fez-se necessário que esta senhora tão longamente te houvesse preparado. Queres também conhecer quanto tempo ali permaneci; qual a causa verdadeira da cólera divina contra mim, e qual idioma, por mim criado, ali usei. Sabe, filho, que o fato de haver eu provado da maçã não foi a causa única de tamanho exílio, mas a desobediência a ordens divinas. Lá onde a tua dama foi buscar Virgílio (para te guiar), durante quatro mil trezentos e dois anos anelei o Paraíso. Na Terra vi passar o Sol pelos símbolos do zodíaco por novecentas e trinta vezes. A língua que falei extinguiu-se por completo ainda antes que a gente de Nemrod se ocupasse em dar início à obra interminável.
"A língua, filha da razão, como toda obra humana, nunca é perdurável, sujeita estando aos influxos naturais. É natural que o homem fale, mas que se expresse com este ou aquele acento é detalhe que a natura deixa ao alvitre humano. Assim, antes que eu baixasse ao Limbo, El era som que traduzia o Sumo Bem, que de alegria me cinge por inteiro, e Eli foi chamado mais tarde. Essa mudança é bastante aceitável, por ser próprio das coisas mortais que na mesma baste uma folha caia ao tempo em que outra vai brotando. No monte que mais se alteia sobre as águas [o Jardim do Éden] vivi em total pureza, que depois tornei culpada da primeira hora até depois da hora sexta.

Canto XXVII

São Pedro volta a falar a Dante - ainda no oitavo Céu -, e demonstra toda a sua indignação contra os desvios da igreja temporal. Dante está próximo de alçar-se ao nono Céu, juntamente com Beatriz.
Todo o Paraíso entoava seu louvor "Ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo!", num canto inebriante. Era como se sorrisse universo inteiro, e me houvesse posto extático, penetrando-me pelos olhos e ouvidos. ó existência de paz! ó tranqüilidade isenta de angústias, felicidade inefável!
Rutilavam ante meus olhos as luzes puríssimas dos três apóstolos e de Adão; mas mais brilhante tornou-se aos poucos aquele que por primeiro se apresentara [São Pedro]. Logo, sua aparência sugeriu-me a de Júpiter e a idéia de que, se aves fossem este e Marte, houvessem entre si trocado de plumagem. A Providência, que determina também ali o que cada criatura deve fazer e como deve fazê-lo, dispusera, então, silenciasse aquele mavioso coro. E nisto ouvi:
"Não te maravilhes por ver alterada a minha coloração, pois, à medida que eu for discorrendo, verás também em todos estes mudança igual. Eis que esse que na Terra usurpa o meu lugar, o meu lugar sim, o meu lugar - que, porém, o Filho de Deus considera vago - converteu o meu túmulo em sentina de sangue e podridão, sítio onde o perverso expulso do Céu goza delícias." Notei, então, que todo o Céu se fazia daquela mesma tonalidade purpúrea com que em certas albas e crepúsculos o Sol usa tingir as nuvens.
E assim como treme e enrubesce dama virtuosa, segura de seu proceder, ouvindo narrar as faltas de outra mulher, assim Beatriz teve alterado o seu as pecto. Não creio tenham sido maiores a comoção e o eclipse registrados quando da Paixão de Cristo. o grande Apóstolo pronunciou em seguida algumas palavras, com timbre tão estranho que reconheci haver na voz alteração maior do que na cor. Dizia:
"A Igreja não foi alimentada com o meu sangue nem com o de Lino e o de Cleto, para que tal sangue fosse transmudado em ouro por ganância desmedida. Foi decerto para garantir aos fiéis a fruição destas delícias que, depois de muito pranto, verteram também o próprio sangue Sisto, Calisto, Pio e Urbano. Não foi nosso propósito que o povo cristão viesse a sentar-se, uma parte à direita e outra à esquerda dos nossos sucessores, nem jamais foi determinado que as chaves a mim confiadas viessem a tornar-se estandartes na luta de irmãos contra irmãos; nem que a minha efígie servisse de selo nas concessões de privilégios comerciados e pervertedores, situação que me faz corar e arder em ira.
"Com vestes de pastor, vêem-se daqui lobos vorazes ocupando os redis. Ó cólera divina, por que não te fizeste sentir ainda? Para beber nosso sangue preparam-se os caorsinos e os gascãos. Ó doutrina santa, que tão bom princípio tiveste, quão baixo foste precipitada! Mas a Alta Providência, que pela espada de Cipião deferiu a Roma o mando universal, depressa virá em teu socorro, segundo espero. E tu, filho, que ainda retornarás à Terra como mortal, repete-lhe o que digo, sem nada ocultar!"
Assim como o ar aqui se coalha de flocos de neve pelo tempo em que o signo do Capricórnio toca a estrada do Sol, assim vi o éter ocupado por espíritos bem aventurados, que à nossa altura se encontravam na triunfal subida. Com a vista segui sua escalada, até onde a distância permitiu-me fazê-lo. Percebendo a minha dama que inutilmente eu mantinha os olhos levantados, disse: "Baixa o olhar e repara quanto espaço percorreste". Desde o momento em que pela primeira vez do alto eu contemplara a Terra do meio até o fim, já avançara todo o arco celeste que determina o primeiro clima. Divisei, pois, para além de Cádiz, a passagem que a Ulisses foi adversa; aquém, eu via a plaga onde Europa fora precioso fardo.
Poderia ter reconhecido uma parte bem maior da Terra, não houvesse já o Sol, debaixo das plantas dos meus pés, avançado distância igual à de um sig no. Então, a alma que eu trazia sempre enamorada, no desejo incessante de contemplar a dama sua senhora, mais do que nunca ia ardendo. Se a natureza ou a arte humana houvessem produzido algo capaz de conquistar a alma pela via dos olhos, nada representariam tais artifícios se postos em cotejo com o ridente viso de Beatriz quando voltou-me seu rosto iluminado pela luz divina. A virtude que o seu olhar infundiu em mim bastou para arrancar-me ao doce ninho de Leda e lançar-me para o alto com velocidade. As partes do céu, as próximas tanto quanto as mais distantes, eram tão uniformes em seu brilho e formosura, que fiquei sem saber a qual delas Beatriz me endireitava. Mas ela, compreendendo o meu embaraço e sorrindo com alegria tamanha que dir-se-ia o próprio Deus sorrir nela, disse:
"O movimento universal, que mantém a Terra imóvel e faz girar ao seu redor os demais astros, daqui se endereça ao universo inteiro. Este céu e esta força derivaram apenas da mente divina, donde lhe vem o amor que o faz mover-se e a virtude que em outros céus infunde. Luz e amor em um círculo o têm cercado; este circunda aos mais e o mistério desta possibilidade somente entende Aquele que criou. Não é de nenhum outro móvel dependente; os outros é que se medem por este, assim como o dez é medido pelo cinco e pelo seu quinto. Podes agora compreender como é dado ao tempo conter as suas raízes neste céu, enquanto suas ramagens por todos os mais céus se estendem.
"Ó cobiça que tão fundo submerges o homem, a ponto de ser-lhe inútil com a cabeça emergir desse pélago! No querer dos homens a boa vontade enflora, porém, as continuadas chuvas (dos erros) fazem com que murchem e pereçam os frustrados frutos. A fé e a inocência puras, que tão-somente entre as crianças se encontram, destas desertam antes que a primeira barba o mento lhes revista. Aquele que ainda balbuciante faz jejum, tão logo fale corretamente já se entrega a todo comer, mesmo em tempo de preceito. Há também os que, ao tempo do balbucio, atendem e amam à sua mãe; porém, tão logo percebem-se crescidos, não se comovem ao vê-la debaixo da mortalha. É assim que de alva torna-se negra a cútis da filha formosa desse que se nos apresenta com a manhã e nos deixa com a noite.
"Não estranhes, porém, ao saber o gênero humano tão transviado; têm culpa disso os governos que não governam. Mas antes que janeiro exclua da estação do inverno aquela fração de tempo desprezada, hão de rugir estes mundos superiores por tal forma que a fortuna - alvo dos desejos mais humanos - terá a popa no lugar da proa; as naves vogarão sob bom comando, e de boas flores virão sadios frutos em seguida."

Canto XXVIII

Tendo alcançado o nono Céu, Dante divisa, no alto, um foco de luz fortíssimo, em torno do qual nove anéis se moviam sem parar; seu brilho e sua velocidade diminuíam à medida que eles se afastavam do centro.
Após ouvir de tal maneira falar sobre a mísera existência dos mortais aquela que da minha mente faz paraíso [Beatriz], agi como quem, percebendo em espelho a claridade de tocha acesa à sua retaguarda, volta-se a fim de verificar se é real o que lhe exibe o cristal, e fazendo-o constata corresponder a imagem à verdade tão bem quanto a nota musical corresponde ao seu metro. Assim minha memória recorda que agi, enlevado na contemplação dos belos olhos dos quais o amor prendeu-me. Ao desviar a vista, porém, foram os meus olhos impressionados por efeito prodigioso que naquele sítio se revela a quem nele bem atenta. Divisei ponto do qual radiava luz tão intensa que a vista, ofuscada, não tinha senão que cerrar-se ante fulgor tamanho. A menos radiosa estrela se comparada à Lua teria proporção bem menor do que a mais rutilante confrontada com aquele ponto. Um astro envolvido por denso nevoeiro faz com que, a distância, pareça estar cingido por luminoso anel.
Assim, um Círculo ígneo girava com velocidade superior à do Primeiro Móvel [nono céu] - o que abrange o mundo e é o de giro mais pressuroso. E o primeiro círculo estava circundado por um segundo e este por um terceiro, e o terceiro por um quarto, e um quinto círculo envolvia o quarto, e um sexto envolvia o quinto. Em seguida ao sexto vinha um sétimo, já tão vasto que não lograria abrangê-lo nem mesmo o arcoíris que de Juno é mensageiro. Seguiam-se, na série, o oitavo e o nono círculos, cada qual com mais tardo movimento, à proporção que distanciavam do primeiro. Fulgurava com luz mais intensa e pura aquele que do luminoso ponto mais próximo se encontrava, dele recebendo, creio, poderoso influxo. Minha dama, percebendo que a grave aflição em que eu me encontrava, disse-me: "Desse Ponto dependem o Céu e a natureza inteira. Observa o círculo que lhe está mais vizinho e fica sabendo que seu girar velocíssimo é devido ao ardente amor por que é estimulado".
E eu a ela: "Se aos céus todos fosse imposta a mesma ordem em que giram esses círculos luminosos, bastar-me-iam ao entendimento as palavras que me deste. Mas no mundo sensível vejo que ardem mais de amor divino os orbes que do Centro são mais remotos. Se, pois, o meu desejo de conhecimento deve ser saciado neste maravilhoso e angélico templo que tem por limites apenas o amor e a luz, impõe-se que me expliques como o original e a cópia são entre si diversos".
"Em vão irás te esforçar para desatar o nó de tal mistério com tuas mãos; a nenhum ser vivo foi dado ainda tentar fazê-lo!", principiou por dizer Beatriz, para em seguida continuar: "Atenção ao que vou dizer e mantém alerta a mente, se desejas conhecer a solução.
"Os círculos corporais têm crescimento determinado pela proporção menor ou maior de virtude de que são imbuídas as suas partes componentes. A bondade realiza maior bem na proporção da sua grandeza; assim um corpo sensível recebe o bem na medida de sua própria extensão, se seus membros são bem proporcionados. Este círculo, por exemplo, que atrai todo o universo, é o orbe onde se concentra maior capacidade de amor e de conhecimento. Se quiseres medir com tua medida os efeitos de tal virtude, não te atenhas à aparência das substâncias angélicas que vês dispostas em forma circular. Perceberás quão admirável é a correspondência existente neste céu, entre este grau e aquele; cada céu com sua inteligência, em acordo pleno".
Vê-se a atmosfera bela e serena se Bóreas, inflando a boca, sopra, dando egresso à brisa suave, pois se esgarça e se dissolve o nevoeiro que toldava o ar. E então o céu sorri pelas garridices de todas as suas partes. Assim aconteceu comigo depois que minha dama encorajou-me com tais palavras e a verdade pude então fitar qual estrela em firmamento. Assim que rematara ela o seu dizer, cintilaram aqueles círculos luminosos com maior intensidade que a de ferro a faiscar, fervente. Cada centelha seguia de perto o respectivo círculo ígneo, e eram tantas estas centelhas que superavam elas em dobro a progressão geométrica das casas do jogo de xadrez. Ouvi ressoarem hosanas de coro em coro, dirigidas àquele Ponto que os mantém nos lugares a eles destinados. Aquela que podia perceber em minha mente os pensamentos interrogativos explicou:
"Os primeiros círculos são formados por Serafins e Querubins. Assim velozes, seguem os liames que os mantêm unidos a Deus, no desejo de se assemelhar ao Ponto quanto possam, e tanto mais podem quanto mais sublime é a visão que pela proximidade têm do Ponto. Os anjos que ao redor desses giram chamam-se Tronos, pelo divino aspecto. E com eles se conclui a primeira hierarquia angélica.
"Deves saber que, nas três categorias, eles tanto mais gozam quanto mais contemplam a Verdade, que é o supremo anelo do intelecto. Disto se deduz que a bem-aventurança celeste tem por base a contemplação de Deus e não o amor, ato que sucede àquele da visão. A medida do grau dessa visão são a graça e o vivo desejo que de grau em grau escalona o gozo da contemplação divina. Também a segunda hierarquia angélica floresce aqui, em primavera eterna, que as estrelas de Áries não alcançam perturbar. Perpetuamente entoam hosanas ritmados em tríplice harmonia, a ressoarem e tríplice ordem de bem-aventurança. Nesta hierarquia encontram-se três divinas essências: a primeira são as Dominações; seguem-se as Virtudes; as Potestades são a terceira essência. Girando nos penúltimos círculos estão os Principados e os Arcanjos, e o dos Anjos festivos é o último. Unidas, todas estas ordens mantêm fixo o olhar para o ponto que no último Céu resplende.
"O bom Dionísio entregou-se com tal amor ao estudo desta ordem que lhe deu as distinções e os nomes, tal qual eu os dou. Gregório, mais tarde, discordou dele; porém tão logo pôde abrir os olhos neste céu, riu-se do erro, ao percebê-lo. Não te deve espantar o fato de um mortal na Terra ter percebido este mistério. Quem já o havia visto descreveu a ele, com muitas outras verdades sobre o celestial arcano." (1)

* (1) São Paulo, que teria em vida ascendido ao Céu, aprendeu a ordenação celestial e revelou-a a Dionísio. *

Canto XXIX

Mais rápido que os filhos de Latona [o Sol e a Lua], um sob a constelação de Áries, outro na de Libra, mudam de hemisfério após brilhar na mesma zona, vi Beatriz silenciar; sorrindo, ela contemplava o Ponto que me deslumbrara. Disse-me:
"Respondo à tua pergunta sem que a tenhas formulado, pois teu desejo de saber me foi dado ver lá onde estão refletidos todos os onde e quando [Deus]. Não para adquirir maior virtude, que tal não é possível sendo Deus perfeito, mas para que Seu esplendor, fulgurando, proclame: Subsisto. Em sua eternidade, alheio ao tempo e a qualquer módulo de compreensão, condescendeu o eterno Amor em manifestar-se sob a forma de outros amores [os anjos]. Antes deles, porém, não jazera inerte; nem antes nem depois, quando Deus formulou a Criação do mundo.
"Formas e matérias, puras e distintas, foram criadas, sem qualquer defeito, assim como de arco de três cordas partem, irmãs, três setas. Por igual modo, incidindo em vidro, âmbar ou cristal, a luz do Sol é refletida com tal velocidade que da incidência à reflexão não decorre tempo algum. Assim a obra triforme do Sumo Autor instantânea radiou, sem entre elas haver primeira. Contemporaneamente à substância, foi criada ordem que a regesse. Por isso, na sumidade do universo foram colocados os anjos - forma pura. Também recebeu virtude pura a parte mais baixa [os céus], que-as ordens celestial e terrestre une com laços que não podem ser desatados. São Jerônimo escreveu que muitos séculos antes de criado o vosso mundo, já o mundo angelical fora criado.
"A verdade também figura nos escritos de muitos que proclamaram inspirados pelo Espírito Santo, verdade que poderás constatar se prestares atenção bastante. Por outro lado, a própria razão demonstra que não existindo os anjos para reger os céus, deveriam eles, na Criação, preceder a estes. Ora, já sabes como, onde e quando os anjos foram criados.
"Eis satisfeitos três dos teus desejos de conhecimento. Porém, em menos tempo do que se gasta em contar de um a vinte, se tanto, uma parte dos anjos turbou a paz do vosso mundo. A outra parte perseverou, assumindo a missão que ora a vês desempenhar, e isso com tamanho empenho que jamais cessa de girar. Causa da queda dos anjos foi a maldita soberba daquele que viste, lá no Inferno, suportando o peso do mundo inteiro. Os que vês aqui foram modestos ao reconhecer haverem sido criados pela bondade divina, que os fizera aptos ao reconhecimento do Sublime. Exaltados pela visão, enriquecidos em méritos pela graça iluminante, orientam-se por vontade reta e firme.
"Certo é que a recepção da graça divina é conseqüência do merecer de quem a recebe segundo o menor ou o maior ardor com que a deseja. Se o que eu disse em ti causou efeito, podes, sem mais auxílio, contemplar este sítio angélico. Mas, ensinando as escolas lá do mundo que a natureza dos anjos é de tal forma que podem eles perceber, memorar e manifestar vontade, acrescentarei algo para dar-te a conhecer a verdade completa que na Terra é confundida por equívocas leituras.
"Tais criaturas, depois de conhecerem a alegria inigualável de fitar a face de Deus, jamais desviaram d'Ele os olhos. Desse modo, não se distraem; não têm lembranças por cultivar. No mundo, os homens sonham mesmo acordados, creiam ou descreiam na verdade do que dizem, ganhando, pois, ou mais culpa ou maior vergonha. A preocupação filosófica encaminha os homens por veredas diferentes, impelidos pelo azo de ostentar sapiência ou de considerar vaidades. Esse divagar ao Céu ofende menos do que quando os mesmos homens pospõem ou falseiam os ensinamentos das Divinas Escrituras. Não consideram esses homens quanto sangue custou o disseminá-las pelo mundo e o quanto agradam a Deus os que nelas depositam fé. Pelo gosto de fazer figura, muitos inventam, e com tais invenções se distraem mesmo os pregadores, enquanto o Evangelho permanece mudo. Afirma um que pela Paixão de Cristo a Lua tornou atrás em seu curso e, interpondo-se entre o Sol e a Terra, privou a esta da luz daquele. Afirma que o lume solar apagou-se por si mesmo, quando o haver então ocorrido milagre é provado por terem os hindus, os israelitas e os espanhóis avistado o eclipse ao mesmo tempo. Não há em toda Florença tantos Lapi e tantos Bindi quantas fanfarronadas se dizem em um só ano, aqui e ali, acerca das coisas divinas. Desse modo, as inocentes ovelhas, desconhecendo o engano a que são induzidas, deixam as prédicas nutridas apenas de vento, sem se saberem enganadas.
"Cristo não disse aos seus apóstolos: Ide disseminar fantasias', mas Fazei da verdade o fundamento'; e somente a verdade foi pregada por aqueles que, das lutas em prol da fé, dos Evangelhos fizeram escudo e lança. Atualmente, é com desatinos e estultices que se compõem os sermões, os quais, despertando o riso, fazem inchar o capuz de pregador que de outro propósito não se ocupa. Se, no entanto, os fiéis pudessem enxergar o pássaro nefando [o Demônio] que se aninha dentro de tal pregador, entenderiam que nenhum valor possuem as indulgências obtidas de um símil sacerdote.
"Tamanha insensatez venceu a Terra que sem ter prova ou testemunho, todos acorrem ao encontro das mais errôneas promessas de perdão. Com essas promessas falazes, os frades da Ordem de Santo Antônio cevam os seus porcos e outros animais piores do que os cerdos, pagando com a moeda da indulgência sem valor. Mas por termos feito tão longa digressão, volvamos, cuidadosos, os olhos para o caminho reto e aproveitemos bem o tempo que nos resta. São tão numerosos os anjos, que não podem ser contados nem por voz nem por mente humana.
"Compreendeste, pelos escritos de Daniel, que os seus milhares de milhares não definiram o número exato de anjos. A Primeira das Luzes, que todas as mais luzes ilumina, é por tantos modos recebida nelas quantos são os anjos que testemunham a sua glória. Porém, seguindo-se à concepção o afeto, a doçura do amor divino diversamente se manifesta e aquece nas diversas ordens. Assim sendo, aprecia a imensidade do alto Valor, que, criador de tantos cristais nos quais tem seu brilho multiplicado, conserva-se Uno como era antes [da Criação]."

Canto XXX

Os nove coros de anjos foram se apagando, e ia crescendo a formosura radiante de Beatriz; Dante foi transportado ao Empíreo, sede da divindade.
Enquanto a seis mil milhas rumo ao oriente a hora sexta se esvai, e a Terra inclina a sua sombra em plano quase horizontal, o meio do céu, para nós estrelado, começa a clarear de tal modo que o brilho das estrelas já não nos chega. E à medida que baixa do céu a sua brilhante núncia - a aurora -, uma a uma apagam-se as estrelas, até a mais radiante. Assim vai girando o triunfante coro dos anjos ao redor daquele Centro.
A ciranda angélica parecia conter a Quem na verdade a sustinha contida. Meu olhar foi se apagando pouco a pouco, a ponto de não ver mais. Foi quan do o não ver e o amor fizeram com que me voltasse para Beatriz. Pretendesse eu resumir em louvor único os louvores que a ela tenho levantado, baldado e vão seria tal intento. A formosura que nela divisei transcende a todo entendimento, não só o humano mas também aquele elevado a ponto tão alto que, acredito, somente ao Sumo Fautor é dado apreciá-la. Neste empenho confesso-me vencido, mais do que em qualquer tempo haja sido superado pelo tema escolhido o mais brilhante escritor versado em temas divinos ou profanos. Pois, assim como o Sol ofusca mais fortemente a vista menos robusta, ao grato memorar daquele doce sorriso a minha mente se debilita e prostra. Desde a primeira vez em que fixei o seu semblante na vida terrena até este momento, jamais canseime de louvá-la. Mas ora é forçoso que desista.
Não consigo retratar com versos a sua beleza, qual artista que percebe haver chegado ao apogeu de sua capacidade criadora. Deixo, pois, a mais sonoro canto o empenho de louvá-la devidamente. Enquanto punha-me em paz com tal certeza, ela, com gesto e voz de guia que leva a termo sua difícil empresa, disse: "Passamos do nono céu para o Empíreo, que é luz pura, luz espiritual, plenitude de amor, amor ao verdadeiro bem, bem da completa alegria, alegria que sublima todas as dores. Aqui verás as duas milícias do Paraíso - os anjos e os bem-aventurados. Uma delas hás de ver na forma com que se apresentará no Juízo Universal".
Como o raio que súbito retira aos olhos dos mortais a potência da visão, de forma tão completa que a ofendida vista não nota nem mesmo luzes fortes - assim terminei por ficar quando um vivo clarão cercou-me, e o véu em que me envolveu impediu-me reconhecer algo.
"O amor que neste céu abunda é com semelhante saudação que acolhe a quem na vida elegeu o ardente fogo da caridade para iluminar o seu caminho." Ouvidas estas palavras, senti-me estimulado por forças muito superiores àquelas próprias de minha natureza humana. E recobrei a visão em tão elevado grau que percebi ter os olhos prevenidos para enfrentar a luminosidade mais poderosa. Vi luz a fluir qual rio fulgurante entre margens orladas pela obra da primavera divinal. Da corrente luminosa partiam centelhas que por todos os lados se uniam às flores, quais rubis a engastar-se em ouro. Depois, parecendo inebriadas pelo perfume das prodigiosas flores, as centelhas voltavam ao riacho luminoso; quando umas partiam, outras retornavam.
"O desejo que mostras, e que te estimula a conhecer a razão dos prodígios a que assistes é agradável mesmo em seu excessivo ardor. É bom, no entanto, que proves dessa água antes de ver saciada a vontade de conhecimento." Isto disse aquela que era luz dos meus olhos, acrescentando depois: "o rio e os topázios que saem e voltam para o leito, e o matiz das milagrosas flores, são apenas pálida antecipação da Verdade. Não são difíceis de ser entendidos estes símbolos; mas falta-lhes ainda o grau de sublimidade necessário à compreensão verdadeira".
Não há criança que tão rapidamente acorra ao seio materno, se desperta em hora mais tardia do que a usual, quanto rapidamente fui debruçar-me sobre o rio, procurando melhor espelho para os olhos e onde imergi-los. Tão logo molhara as pálpebras nas suas águas pareceu-me que o rio, de comprido, tornara-se circular. Qual pessoa que, apresentando-se mascarada, ao descobrir o rosto revela semblante bem mudado, aquelas centelhas e flores revestiram-se ao meu olhar de alegria maior, desvendando-me os anjos e os bem-aventurados sitos naquela corte celeste. Ó esplendor de Deus - que ao meu olhar antecipou o triunfo do verdadeiro reino -, inspira-me para que meus versos reflitam o que vi! Ali reside luz a tornar o Criador visível para as criaturas que encontraram a felicidade ao contemplá-lo. Dilata-se tal luz em forma circular, por vastidão tamanha que a sua área inteira marcaria ao redor todo o orbe solar. Um seu raio iluminava o Primeiro Móvel, levando-lhe influxo vital. No fio líquido, que saído de seu imo lhe escorre pela falda, espelha-se a colina, adornada de verdura e flores. Em meio aos resplendores da luz, miravam-se, dispostas em círculos ordenados, milhares de almas para ali subidas do mundo terreno. Se naquele inferior degrau da escada é tão viva a claridade, qual não será no cimo o fulgor da excelsa rosa! A minha vista alçava-se à amplitude sem perder pormenores de quão dilatada e viva fosse a alegria da bem-aventurança. Ela resplandecia por igual, de perto ou longe, pois não vige lei da natureza onde Deus impera sem mediação. Levando-me para o centro áureo da rosa eterna, a recender por muitas e dilatadas pétalas, louvando a Deus que lhe concede a eterna primavera, Beatriz me disse:
"Repara em quão elevado é o número dos bem-aventurados! Observa a amplidão desta cidadela e o quanto estão cerradas as fileiras, poucos mais beatos sendo aguardados. Esse assento, que por ostentar coroa atrai o teu olhar, será ocupado antes de que venhas a morrer e para aqui ser chamado, àquela alma augusta do grande Henrique, o qual descerá à Itália a fim de repô-la no caminho reto.
"Cobiça cega é o que leva à perdição os homens, qual criança que chorando fome recusa a nutriz. Sucederá, assim, ser feito papa a tal que pela força e por estratagemas irá opor-se aos desígnios daquele herói. Deus, no entanto, por curto tempo a este indigno conservará no santo encargo, fazendo-o mergulhar lá onde está Simão, o Mago. E sua queda carregará ainda aquele que foi de Anagni ainda mais para baixo."

Canto XXXI

Ainda no nono Céu - ou Primeiro Móvel -, Dante procura Beatriz, porém já não a encontra. Em seu lugar surge São Bernardo, que o convida a olhar na direção da gloriosa figura de Maria.
A meus olhos aparecia, pois, na forma de branca rosa, a santa milícia dos eleitos que em seu sangue Cristo sagrou esposa. A outra hoste, a dos anjos, enquanto adejava, prosseguiu a contemplar e a louvar a glória d'Esse em cuja visão permanece extasiada, pois foi a Sua bondade que a fez tal qual é.
Do mesmo modo que sai o enxame, indo e tornando, para colher nas flores aquele sumo que na colmeia sabe converter em mel, assim da rosa de pétalas inumeráveis baixavam mílites e logo retornavam ao centro, o foco sempre iluminado pelo eterno Amor. De viva flama traziam as faces; de ouro as asas; e o corpo de tal brancura que a tanto não chega a candidez da neve. Ao descerem, de sólio em sólio, pela flor, iam espargindo o ardor e a paz hauridos nos vôos junto de Deus. A interposição da tão numerosa falange, entre a Suma Altura e a rosa mística, não impediu que minha vista se estendesse pelo esplendor celeste, pois a luz divina penetra o universo na proporção em que este se faz digno dela, sem que nada lhe possa servir de impedimento.
Este reino tranqüilo e grandioso, povoado por gente que no mundo antecedeu e sucedeu a Cristo, tinha o Senhor como seu único objetivo. Ó Trina Luz que em uma só estrela refulgindo trazes aquelas almas assim inebriadas! Ilumina e acalma as procelas deste nosso mundo! Se os bárbaros, descidos das terras [frias] jamais iluminadas pela Ursa Maior a girar na vizinhança de seu filho, ao chegarem a Roma, observando as maravilhas ali construídas, quedaram estupefatos, em tempos em que Latrão mantinha a primazia sobre as coisas materiais; eu, em situação igual, do profano passando ao sagrado, do finito à eternidade, vindo da gente florentina para o meio de povo tão casto e puro, qual pasmo não deveria sofrer!
Emudecido, mergulhado em júbilo e em admiração, eu não desejava fazer perguntas. Estava tal qual o peregrino que, chegando ao templo, objeto de sua viagem, procura observá-lo nos pormenores, para bem descrevê-lo ao regressar: corria a minha vista pelos vários sólios, ora acima e logo mais abaixo; por todo o derredor mirava e remirava. Vi semblantes que convidavam à caridade, iluminados pela luz divina e por lume próprio, ornados, ademais, de todas as virtudes.
Devassara o Paraíso com o olhar, sem em nada haver por mais tempo demorado a atenção, quando, voltando-me a arder no desejo de formular perguntas à minha dama, e supondo falar-lhe, percebi que outra alma respondia. Quando pensava ver Beatriz, vi um ancião [São Bernardo] vestido pelo mesmo modo que os eleitos. Nos olhos e no todo transluzia nele a divina alegria, pois era o seu aspecto o de um pai a toda bondade afeito. "Onde está ela?", perguntei, aflito. E ele: "Baixar de meu assento ela me fez a fim de satisfazer ao teu desejo. Mas se olhares para o terceiro sólio, hás de vê-la ocupando o lugar mais que merecido". Sem responder, elevei o olhar e vi-a coroada por raios que, descidos do Céu, refletiam-se nela, circundando-a de luz.
O olho do mortal que jaz no mais profundo oceano não dista mais daquele alto céu onde se formam os trovões, quanto minha vista distava de Beatriz. Mas tal não importava, pois era-me dado divisar os seus traços, sem que nada, nem mesmo o ar, entre nós se interpusesse. Disse de mim para mim, como numa oração:
"Senhora minha, minha constante esperança, que não receaste, para me dar certeza, deixar teus vestígios no chão do Inferno! Em tudo quanto nesta viagem experimentei, reconheço tua forte presença, tua alta virtude. De servo que eu era, fizeste-me livre, exercendo, nesse caridoso intento, todos os meios e todos os gestos que a emergência requeria. Que ora eu seja fortalecido pelo teu valor; conservada em mim seja a tua munificência, até que minha alma, que purificaste, deixe, ainda pura, o corpo terreno!" E ela, embora parecendo estar tão distante, olhou-me e sorriu, para logo voltar a contemplar a Fonte da Eternidade.
"Para que possas perfeitamente chegar ao fim da peregrinação", disse-me então o santo velho, "moveram-me a ser teu guia as preces e o divino amor dessa que veneras. Admira com os olhos as flores deste jardim, pois tal prática há de preparar tua vista para contemplar a Suprema Beatífica Visão. A Rainha do Céu, pela qual ardo em constante amor, não me recusa auxílio.
"Se alguém, acaso, vem da Croácia em romaria, para ver o nosso Santo Sudário, não se farta de venerálo, movido pela antiga tradição. Mas em pensamentos recolhidos, expressa a dúvida: "Senhor meu Jesus Cristo, Deus verdadeiro, foi este realmente vosso semblante?" O mesmo sucedeu comigo, vendo a alta caridade desse que já no mundo antegozara vivos elementos desta paz.
"Filho da graça", o santo disse, "a completa alegria do Paraíso não poderás conhecê-la inteira se mantiveres o olhar fixo no plano mais baixo. Eleva-o para o círculo mais remoto, onde verás a Rainha sentada no trono ao redor do qual o Céu lhe é súdito devoto." Levantei o olhar. Assim como pela alvorada aquela parte do céu em que o Sol se ergue supera em claridade a outra onde a noite ainda domina; ou assim como aquele que do vale ao fundo ergue o olhar para descobrir o dia no cimo do monte - pude distinguir, no ápice de toda a altura, face por tal modo luminosa que a todo e qualquer lume superava. E como pelos lados do Oriente, onde se aguarda o surgimento daquele carro tão mal guiado por Faetonte mais rutila o Sol, ao passo que para os bordos do horizonte desmaia esse ardor luminoso, assim esta pacífica Auriflama fulgia mais intensa no centro, e seu brilho nas extremidades ia aos poucos diminuindo. Estava o centro rodeado por milhares de anjos voejantes, festivos, diverso cada qual no brilho e no aspecto. Vendo-os e ouvindo-os, manifestava alegria aquela beleza que era, por sua vez, a alegria presente nos olhos angelicais.
Ainda que dono de rica fantasia, e de eloqüência capaz do maior encanto, eu não poderia descrever um único traço de tal beleza. Notando Bernardo que eu tinha os olhos fitos na muito amada luz, volveu para ela os olhos seus, nos quais havia tamanho afeto que dobrou meu ardor em vê-la.

Canto XXXII

São Bernardo mostra a Dante como a Rosa Paradisíaca se dividia num corte vertical - reunindo as almas do Velho Testamento e as do Novo Testamento - e ainda num corte horizontal, reunindo adultos (na parte superior) e crianças (na parte inferior).
Absorto na visão de seu encanto, o espírito de São Bernardo recomeçou seu discurso santo: "A chaga que Maria sanou e ungiu fora aberta e pungida por essa bela [Eva] a seus pés. Abaixo desta, na terceira ordem, está Raquel, resplandecente como podes ver, ao lado de Beatriz. Seguem-na Sara e Rebeca, Judite e a que foi bisavó do salmista que, expiando erro, entoou contrito o Miserere mei. À medida que as nomeio, fácil será para ti reconhecê-las, uma após outra, sobrepostas segundo as diversas pétalas desta imensa rosa.
Da sétima ordem para baixo, como até ali, sucedem-se mulheres hebréias, dividindo a extensão da flor com uma linha que do alto chega à base. Desse modo é que separam, da santa rosa, em todo o comprimento, as almas que se agrupam conforme o modo pelo qual, a seu tempo, se acreditava em Cristo. Do lado esquerdo, onde não há espaços vazios, assistem as que acreditaram em Cristo antes que Ele viesse; do lado direito de Maria, situam-se os que creram em Cristo vindo ao mundo.
De um lado, essa divisão é assinalada pelo trono da Rainha do Céu, que a todos os mais sobrepuja e tem sotopostos. Do lado oposto, está o lugar preparado para aquele grande São João Batista que no deserto e na solidão encontrou a santidade e que por dois anos ainda permaneceu no Limbo. Logo abaixo dele estão Francisco, Bento, Agostinho e muitos outros, em ordem diferente de lugares. "Observa o alto proceder divino que desejou fosse este jardim celeste dividido por igual entre a fé antiga e a nova. Naquela ordem de lugares que secciona horizontalmente, e pelo meio, as duas grandes divisões de santos, ninguém conquistou assento por mérito, mas por caridade de Cristo, dado que seus espíritos abandonaram os corpos antes que pudessem abraçar a Fé. Basta observar seu semblante infantil e ouvir suas débeis vozes para perceber a verdade do que digo. Agora, duvidas, e duvidando te calas. Mas pretendo desatar os laços do pensamento angustioso em que te estreitas. Na amplidão deste reino, não entram causas acidentais de dano, nem fome, sede ou melancolia. Tudo quanto vês foi decretado por lei eterna, e na perfeição absoluta a criatura corresponde ao Criador, tal como o anel ao dedo. Portanto, não é sem razão precisa que mesmo estes infantes, de prematura morte, subam cada qual com menos ou mais excelência. O Rei que este reino criou dotando-o de tamanha paz e de tanto amor, provendo-o de delícias tais que ninguém ousou desejar um pouco mais - ao criar, à sua própria Face, os vários espíritos, dotou-os a Seu alvitre. Conhecer isso é o bastante; tal certeza está claramente expressa nas Santas Escrituras, no episódio dos gêmeos que desde o ventre materno entre si lutavam.
Assim a altíssima luz da justiça distribui a grinalda da graça segundo os méritos de que cada inocente é exornado. A estes, portanto, que nenhum mérito alcançaram na vida, cabem aqui gradações diversas, segundo a virtude que de Deus houverem recebido. Nos tempos antigos, para que a inocência do infante alcançasse a salvação, bastava que estivesse unida à fé dos pais. Mas decorrida a idade primitiva, para que os inocentes fossem salvos, legislou-se que aos varões se circuncidasse, até que, chegado o tempo da Redenção, Cristo determinou que a inocência morta sem batismo permanecesse conservada no Limbo.
"Fixa com atenção à face de Maria, que à de Cristo mais se assemelha; só ela pode preparar-te devidamente para contemplar o próprio Cristo." Aspergida pela perfeição angélica, vi então chover sobre Maria tanta alegria, que nenhuma de quantas maravilhas eu contemplara até então com aquilo de longe se comparava, pois era esta a maravilha anunciadora da vizinhança de Deus. O primeiro dentre os anjos, aquele que viera cantando Ave, Maria gratia plena!, diante dela distendeu as asas. E qual resposta ao canto angelical, por toda parte da celeste corte todas as faces resplandeceram, mais tranqüilas. "Ó santo pai, se mereço de ti atenção tamanha que em meu socorro baixaste do sólio que pela eternidade te foi concedido, dize-me que anjo é esse, tão feliz que pode fixar o olhar em nossa Rainha, a ponto de parecer em puro ardor incendiado?"
Ao dizer isto, de novo recorri à sabedoria daquele que se enlevava na contemplação de Maria, como a estrela da manhã faz com o Sol. Respondeu-me ele: "Franqueza e segurança, tanto quanto possa existir em anjo ou espírito bem-aventurado, existem nele, e com isso fruímos nós também grande alegria. Foi quem anunciou a Maria a vontade de Deus de revestir a Seu Filho com a carne humana (1). De ora em diante, contudo, acompanha com o olhar as minhas indicações, para que conheças os nobres patrícios deste império tão elevado.
"Os dois que mais acima brilham, felizes por se encontrarem próximo à Soberana Augusta, são como que duas raízes desta rosa. O que se posta à esquerda da Senhora é o pai comum [Adão], cujo apetite incontrolado resultou em amargo travo para a espécie humana. À direita está aquele vetusto pai da Igreja a quem Cristo confiou as chaves que guardam esta flor divina. Perto dele, à esquerda, está [São João Evangelista] o que antes de morrer previu duros tempos para a Bela Esposa [a Igreja] que Cristo conquistara ao ser lanceado e crucificado.
"Junto ao outro, desfruta a santa glória aquele capitão inabalável [Moisés] sob cujas ordens alimentou-se de maná o povo ingrato, volúvel e rebelde. Diante de Pedro vês sentada Ana, que tem imóveis os olhos na contemplação feliz de sua excelsa filha, enquanto canta hosanas. Ante o mais antigo pai de família está Lúcia, da qual valeu-se a tua dama quando cegamente tombavas.

* (1) O Arcanjo Gabriel. *

"Visto, porém, que o tempo concedido à tua visão se vai esgotando, suspendamos o reconhecimento, qual prudente alfaiate que talha a roupa segundo o pano de que dispõe. E para o Primeiro Amor eleva os olhos, com ardor tão intenso que, atentando n'Ele, o mais possível penetres o Seu Ardor. Para evitar, entretanto, que retrocedas em tua exaltação acreditando que avanças, impõe-se que, orando, rogues auxílio à Mãe Divina, que só com ela podes contar agora. Escuta-me com fervor."
E, contrito, a uma oração deu início.

Canto XXXIII

Dante finalmente é habilitado à contemplação da essência divina. O poeta vê representado o mistério da Encarnação.
"Ó Virgem mãe, filha de Teu Filho, a mais humilde e mais alta das criaturas, termo dos desígnios eternos! Enobreceste tanto a natureza humana que o Criador não desdenhou tomar a forma de sua criatura.
Em teu seio fulgiu o amor que, ardendo pela eternidade, germinou esta imensa rosa! No Céu, és a meridiana luz da caridade; na Terra, a fonte viva da esperança para a frágil humanidade! Tanto podes, Senhora, és tão grande, que pedir graças ao Céu sem teu auxílio é o mesmo que querer voar sem ter asas! Tua benignidade não socorre unicamente a quem ora, pedindo; mas antes, vezes sem conta, antecipa o pedido e a prece! Em ti a misericórdia, a piedade, a doçura estão somadas a uma bondade infinita!
Este, que do mais baixo degrau do mundo subiu a esta altura, observando os degraus da vida espiritual um a um, de ti suplica a graça de receber virtude suficiente para, com os olhos, elevar-se à Suma Virtude. Eu, que com meu ardor jamais pedi tanto, rogo-te atendas ao seu apelo! Com tua virtude seja dissipada a densa nuvem de sua condição mortal, a fim de que lhe seja possível divisar o Sumo Fautor. E mais ainda te rogo, ó Rainha: depois de haver alcançado tão alta visão, que a sua alma seja conservada pura, inimiga do pecado. Que tua proteção vença, nele, as paixões humanas. Olha Beatriz, olha os santos todos que, de mãos unidas, comigo vêm orar!"
Os olhos tão admirados do bom Deus [os olhos de Maria], fitando o meu intercessor, demonstrando aprovação à ardente oração. Então, os olhos da Rainha voltaram-se para o Eterno Lume, como a nenhuma outra criatura jamais foi dado fazer. E eu, que me aproximava do Termo de Todos os Desejos, sentia cessar em mim o ardor de todos os desejos.
Sorrindo, Bernardo acenava-me para que elevasse os olhos; mas por minha iniciativa já nesse ato me encontrava. Depurada, minha vista penetrava cada vez mais os raios da Luz Altíssima que por si mesma existe, verdadeira. A partir daquele instante, tudo quanto me foi dado ver esteve além de toda possibilidade de ser descrito em linguagem humana, ou mesmo de ser refeito pela memória. Qual homem que enxerga maravilhas em sonhos e uma vez acordado retém na memória apenas a impressão de haver divisado maravilhas, sem que o todo dela lhe retorne à mente - assim comigo ocorreu.
Quase por inteiro apagou-se-me a visão que tive, mas trago ainda no coração a doçura que nasce de um êxtase tamanho. Assim se funde a neve ao Sol, e as sim o vento dispersa os oráculos de Sibila, escritos em frágeis folhas. Ó Suprema Luz, que tanto sobrepujas o entendimento humano! faze com que o meu próprio entendimento recorde agora como foi que a ele Te revelaste. Sublima bem alto a minha voz, para que eu possa legar ao menos uma centelha da Tua glória às gerações futuras; pois ainda que um mínimo de lembranças me seja concedido, será suficiente para que a gente vindoura entenda melhor a Tua vitória, cantada em meus versos! Confio em que, pela agudeza do esplendor que então sofri, estaria perdido para sempre se os olhos houvesse naquele instante desviado de tão ardente lume. Recordo-me, sim, que ao fixálo ganhei fortaleza tal que meus olhos, alfim, devassaram a Deus - a Suprema Perfeição!
Socorrido por Ti mesma, Graça Altíssima, ousei mirar a Luz Eterna com meus olhos mortais, e ali fruí o divinal milagre! Internado em tão ardente foco, vi unido pelo amor em um ser único tudo quanto contém o universo. Substâncias, acidentes e sua união, apresentando-se na sua própria forma gloriosa (1).
Acredito ter visto, naquele estreito nó, a forma universal; pois tanto mais sinto meu ser inundado de alegria quanto mais falo de tal maravilha! Um só instante de tempo decorrido depois daquela visão parece-me equivaler a esquecimento maior do que os vinte e cinco séculos calados sobre o feito dos Argonautas, epopéia que impressionou ao próprio Netuno. Desse modo minha mente esteve presa, absorta na sublime contemplação. Retirar meus pobres olhos de Luz que tanto me atraía fora para mim impossível: pois o Bem que é objetivo da vontade humana estava diante da minha vontade; n'Ele, tudo era perfeito; fora d'Ele, tudo era imperfeito.
Para narrar o que vi, a voz humana é mais falha do que o balbuciar de uma criança que ainda se nutre do seio materno. Não que o aspecto daquela Luz sublime que eu vivamente contemplava tivesse mudado; era o mesmo.

* (1) Substância é o que existe por si. Acidentes são as coisas contingentes. *
À medida, porém, que minha vista se apurava, o Egrégio Ser parecia ganhar aspectos variados. Na profunda e clara essência de Deus, três círculos surgiram, parecendo de três cores distintas, mas de uma só conformação Semelhando íris que fosse reflexo de íris, acreditei que de ambos, por modo igual, derivava a flama do terceiro. Ah, como é insuficiente a expressão humana para descrever o que vi! Toda ela, a mais alta, não bastaria para reproduzir o mínimo que eu pretendesse referir. Ó Lume Eterno, que em Ti próprio tens sede, só Tu a Ti entendes e por Ti és entendido, e só por Ti és compreensão e amor! Aqueles três círculos que pareciam por Ti gerados, qual luz reflexa, eu contemplava extático, e eis que me pareceu ver a luz assumir forma e cor da figura humana, detalhe que me fez mais atentamente mirá-la. Como o geômetra concentrado em medir o círculo, na vã procura de princípio para seu propósito, assim sucedeu comigo ante a visão divina - ansiava por ver como pode a imagem humana adaptar-se ao círculo. As asas da mente não me levaram a tão alta compreensão; todavia, um relâmpago sacudiu-me, e satisfez meu desejo de compreensão. Aqui findou minha inspiração; mas o Amor - esse que move Sol e estrelas - tomava já as rédeas do meu querer, guiando-o a seu talante.


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