domingo, 17 de dezembro de 2017

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO:O MACHÃO DA ZONA SUL - CARLOS AQUINO - FORMATO : PDF, EPUB,TXT E MOBI

O MACHÃO DA ZONA SUL



Estas são as coleções "sexy" da Cedibra:

OLHO MAGICO (4 séries)

Amarela — autor: Ricardo Veronese
Azul — autor: Bruno Altman
Verde — autor: Eduardo Rosso
Vermelha — autor: Marcelo Francis

kARINA (4 séries)

Amarela — autor: Ricardo Veronese

Azul — autor: Eliane Guerreiro
Verde — autor: Vic Lester
Vermelha — autor: Marcelo Francis

CORAL (4 séries)

Amarela — autor: Célio Santana

; Azul — autor: Eliane Guerreiro
Verde — autor: Eduardo Rosso
Vermelha — autor: Bruno Altman


O MACHÃO DA ZONA SUL


Carlos Aquino


cedíbra

Editora Brasileira Limitada


Copyright © MCMLXXIX CEDIBRA — Editora Brasileira Ltda.
Rua Filomena Nunes, 162 — CEP 21.021
Rio de Janeiro, RJ

Direitos exclusivos para o Brasil.

Composto e impresso pela Cia. Gráfica Lux
Estrada do Gabinal, 1521 — Rio de Janeiro, RJ

O texto deste livro não pode ser, no todo ou em parte, nem regis-trado,
nem retransmitido, nem reproduzido, por qualquer melo
mecânico, sem a expressa autorização do detentor do copyright.


CAPITULO 1

O DONO DO MUNDO

Uma alegria geral.

As pessoas enlouquecidas, nos vários salões, pulavam
e cantavam. Confetes, serpentinas e lança-perfumes. Mulheres
lindas, muito bem despidas, com fantasias que dei


xavam quase tudo à mostra.

Carnaval.

Os famosos três dias de folia, que na verdade são quatro,
assim como os três mosqueteiros. Quando as pessoas
colocavam suas máscaras no rosto, tirando as outras máscaras.



Corria o ano de 1956.

Toda a repressão sexual dos outros 361 dias explodia,
dando margem à realização dos desejos inconfessáveis.

Em cima de uma mesa, Danilo exibia-se junto com
Creusa e Virgínia. Duas garotas só para ele; não fazia
por menos.

No esplendor de seus dezoito anos, forte, bonito, queimado
de praia, rico, sentia-se o dono do mundo.

Com bebida ou sem ela, sua maneira de agir, de andar,
de falar, todo o seu ar, enfim, denunciava essa sua atitude
de superioridade.

O baile estava apenas começando, passavam poucos
minutos da meia-noite. Era a abertura do carnaval e Danilo
se propusera a se acabar naqueles dias.

Com um pequeno sarong (a fantasia que mais se via
no baile), Danilo exibia um tórax musculoso, fazendo gestos
obscenos com a mão. Abraçava as duas garotas que o
acompanhavam, pegava-lhes nas coxas, beijava uma na
boca, enquanto alisava a outra.

Turistas desajeitados tentavam acertar o passo.

* * *

Na porta, no meio das "pessoas do sereno" que espiavam
quem entrava no baile, estava Fausto. De origem humilde,
não tivera dinheiro para comprar o convite. E isso

o revoltava.
Amigo de Danilo, sabia que este estava se esbaldando
lá dentro. Mas eles eram amigos de praia, de peladas, de
cantar garotas pelas ruas.

Apesar de toda a camaradagem, uma distância os separava.
Fausto invejava-o, mas sabia que o outro não tinha
nenhuma obrigação de lhe comprar também um ingresso
para o baile. Já bastavam as contas dos bares que Danilo
pagava.

Assim, Fausto revoltava-se contra sua própria condição,
sua falta de sorte de ter nascido pobre, e não contra

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o amigo, que estava muito certo em desfrutar dos prazeres
que o dinheiro proporcionava.
Aos poucos, a pequena multidão da turma do sereno
foi diminuindo. Já não havia muito o que ver, uma vez
que o baile começara há mais de uma hora.

Fausto continuou por ali, observando em torno. Viu
duas garotas e procurou aproximar-se. Puxou conversa.
Achou uma delas até bem bonitinha. Podia fazer um carnaval
particular em sua companhia.

Vinte minutos de papo depois, Rosa despediu a amiga,
aceitando o convite de Fausto para uma volta pelas ruas.

— Em Copacabana quase não tem carnaval de rua.
Vamos até a cidade?
— Não acha melhor ficarmos por aqui? — sugeriu
Fausto. — Podemos fazer nosso próprio carnaval.
Ela riu, compreendendo as intenções do rapaz e aceitando
a sugestão.
Fausto morava num conjugado junto com toda a família,
pais e irmãos. Impossível levar a garota para lá. •

— A gente podia tomar um ônibus e ir até o final do
Leblon.
— Fazer o quê?
— Adivinhe...
Claro que Rosa adivinhou.
E concordou.
Foram até a Rua Barata Ribeiro. Realmente, durante
o carnaval as ruas de Copacabana ficavam quase desertas.
Grupos fantasiados, ou mesmo sem fantasia, passavam de
vez em quando dirigindo-se ou para a cidade onde o carnaval
corria solto ou para os diversos bailes.
O ônibus demorou a passar. Finalmente veio e os dois

o
tomaram.
Como haviam acertado antes, desceram no final do
Leblon
e dirigiram-se para a praia.
O local estava deserto.
Desceram para a areia.

— Vou me sujar toda — comentou Rosa.

— Isso tem importância?
— Já que não tem outro jeito...
Deitaram-se na areia.
Os corpos se encontraram.
Pouco depois atingiam o êxtase total.
Logo em seguida levantaram-se. Subiram de novo na
calçada e foram para a Rua Ataúlfo de Paiva, a fim de
tomarem a condução de volta.
Quase não se falavam. Não havia o que dizer.

— Ficou mudo? — perguntou Rosa, enfim.
Não obteve resposta. Fausto estava mergulhado em
seus pensamentos. Até que não fora ruim. Melhor do que
nada. Mas ele preferia estar naquele momento no lugar
de Danilo ou em algum baile qualquer.

Desceram em Copacabana e despediram-se. Uma despedida
sem muitas palavras, e cada um seguiu seu caminho.


Fausto ainda perambulou pelas ruas.
Vendo que nada de novo acontecia, rumou para casa.
Surpreendeu-se falando sozinho:


— Isso não vai acontecer de novo. No próximo carnaval
vou ter dinheiro para ir ao baile que quiser. Tenho que
me arrumar de qualquer jeito. Chega de miséria.
Parou de falar, com receio de que o vissem conversando
sozinho. Iriam pensar que era maluco.

* * *


O baile estava no auge.

Completamente embriagado, Danilo e suas duas garotas
já haviam descido da mesa, pelo simples fato de que
não podiam mais se equilibrar lá em cima.

Continuaram dançando no chão mesmo.

Deram várias voltas pelo salão.

Beberam mais uísque.

A alegria foi diminuindo, à medida que as pessoas
iam saindo.
Já madrugada alta, as orquestras tocaram "Cidade


Maravilhosa", a tradicional música de encerramento dos
bailes de carnaval.

Havia uma certa claridade nas ruas, quando Danilo,
Creusa e Virgínia tomaram o carro do rapaz. Ele as levou
para o apartamento que mantinha para seus programas
com garotas.

Ao entrarem no apartamento, Creusa, que durante a
viagem tinha ficado calada o tempo todo, falou:

— Estou muito enjoada. A boca amarga... Acho que
estou passando mal. Sinto que vou...
Acabando de dizer a frase correu para o banheiro. Virgínia
acompanhou-a.

Danilo achou o episódio muito desagradável. Mesmo
porque sentiu-se também um pouco enjoado.

— Tem algum remédio aí? — perguntou Virgínia lá
do banheiro.
Danilo tirou uma Alka-Seltzer do armário e entregou
à moça que viera até a sala.

— Ela já está melhor. Agora é só tomar o remédio
e passa tudo.
O rapaz arrancou o sarong, tirou a sunga e deitou-se
na cama.

Creusa lavou o rosto, tomou o remédio e saiu do banheiro
junto com a amiga. Deitou-se no sofá e Virgínia
a largou lá, indo ao encontro de Danilo na cama. Até fora
bom que a outra tivesse passado mal, pensou. Assim o rapaz
podia ser só seu.

Também tirou sua fantasia e atirou-se por cima dele.


Morderam-se e beijaram-se.

Ele fez algum esforço para ficar excitado. Também
bebera demais. Tudo, menos pifar numa hora daquelas.
Seria o maior vexame para seu orgulho de macho... Mas
conseguiu.

E possuiu Virgínia, enquanto Creusa, no sofá, adormecia.
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CAPITULO 2

UM CASAL DE VELHOS

Fausto acordou mal-humorado.

Dormira pouco, arquitetando um plano de ganhar dinheiro.
Sua situação não poderia ficar assim por muito
tempo.

Só em pensar que passaria o domingo, a segunda e a
terça-feira de carnaval na pior, tinha a impressão de que
ia enlouquecer.

Antes de dormir, lembrara-se de Valdir, um amigo que
morava no morro. Também jogava pelada com ele na praia.

Tomou o café e saiu à procura de Valdir.

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Não sabia direito em qual barraco ele morava. Mas
não seria difícil descobrir.

E de fato não foi. Encontrou-o ainda dormindo.

Desceram o morro juntos:

— Lembra daquilo que você me falou há uns tempos
atrás?
— O quê? A gente fala tanta coisa.
— O assalto.
— Ah...! Mas que assalto? Já me meti em uma porção.
Não vá me dizer que a polícia está atrás de mim.
— Não é isso. É que estou meio de saco cheio de viver
duro. Pensei que a gente podia boiar qualquer coisa assim
para ganhar dinheiro.
— Até que enfim você está a fim de fazer parte da
turma, hem?
— Então?
— Estou de olho num casal de velhos que mora num
apartamento logo ali. Agora no carnaval a coisa fica mais
fácil. Está todo mundo preocupado em pular, ou ir para
fora do Rio. Foi até bom ter me procurado.
— Quando a gente pode fazer o trabalho?
— Hoje mesmo.
— Hoje?!
— Não está a fim de arrumar dinheiro logo?
Marcaram um novo encontro para o fim da tarde.
Fausto deixou o amigo e voltou para casa meio preocupado.
Estava realmente louco para conseguir algum
dinheiro. Não apenas para brincar o carnaval. Também
queria comprar uma moto, igual a que Danilo possuía. E
não havia outra maneira a não ser roubando, íama vez
que não queria nada com o trabalho.

Valdir já o tentara outras vezes, mas ele nunca quisera
se meter em complicações. Agora estava resolvido.

No entanto, à medida que se aproximava o momento
de reencontrar Valdir, começou a sentir-se amedrontado.
Afinal, era a primeira vez. E se tudo desse errado? Ele não
tinha experiência nenhuma.

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Porém não desistiu. Mesmo porque não deixaria o
outro esperando-o.

— Está armado? — perguntou ao chegar na esquina
combinada.
— Claro.
— E se não der certo?
— Como que não vai dar? Já estudei o local direitinho.
Uma empregada dos vizinhos dos velhos me deu todas
as informações.
— E os vizinhos?
— Viajaram. São só dois apartamentos por andar. Os
vizinhos foram passar o carnaval em Petrópolis. Sei disso
porque Adelaide, a tal empregada, ficou de folga e também
viajou para a casa da família dela no Estado do Rio.
Eu estava mesmo a fim de fazer este serviço hoje. Só que
o Bira não quer saber de outra coisa a não ser sambar
nestes dias. Ia até procurar você, mas como você nunca
topava, tinha desistido.
— Não é perigoso?
— Vai ver como é fácil. Depois não vai querer outra
vida.
— Mas você já foi preso uma vez.
— Bem... tudo tem seu risco.
Fausto teve vontade de desistir. Na porta do prédio,
parou um instante. O outro chamou:

— Vamos entrar logo. Se a gente fica aqui parado
podem desconfiar. Vamos aproveitar que o porteiro não
está por perto.
Já tinham acertado como agiriam. Simplesmente tocariam
a campainha e quando o velho ou a mulher viesse
atender, Valdir encostaria o revólver e entraria. O resto
seria fácil.

— E se tiver visita com eles?
— Adelaide me disse que os dois nunca recebem visitas.
Subiram até o apartamento e tocaram a campainha.
Alguém perguntou lá dé dentro:

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— Quem é?
— É o novo porteiro — respondeu Valdir.
O homem verificou pelo olho-mágico, viu apenas um
dos homens (o outro ficara mais adiante para não ser
visto), e abriu a porta.

Valdir puxou rápido o revólver e o obrigou a deixá-los
entrar. Fausto fechou a porta atrás de si.

— Quem está aí, Abel? — perguntou uma voz feminina
do interior do apartamento.
Não obtendo resposta, a mulher veio até a sala e ficou
lívida ao deparar com o quadro: Valdir com o revólver encostado
na altura do coração do marido.

Abriu a boca para gritar, mas não o fez diante da
ameaça:

— Se gritar, eu puxo o gatilho. Onde vocês guardam
o dinheiro?
— Não temos dinheiro em casa — balbuciou o velho.
— Não venha com mentiras. Diga logo onde está para
o seu próprio bem.
Dizendo isso, deu-lhe uma bofetada.
A mulher falou:
— Tudo que temos em casa está no armário do quarto.
— Vá até lá e faça a limpeza — disse Valdir para o
companheiro.
Este tremia quase tanto quanto o casal que estava
sendo assaltado.
Mas obedeceu e foi até o quarto. Viu um armário,
Abriu as gavetas. Encontrou dois mil e poucos cruzeiros.
Voltou com o dinheiro e entregou a Valdir:

— Só isso?
— É o que temos.
— É muito trabalho para pouco tostão.
— Não temos mais nada. É todo o dinheiro que existe
aqui — falou Ismênia, com a voz trêmula.
Valdir não lhe deu atenção e ordenou de novo
Fausto:

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— Deve ter jóias e outras coisas de valor. Vá procurar.


Automaticamente, Fausto tornou a obedecer.

Deu uma busca completa nas gavetas.

Encontrou uma pequena caixinha.

Abriu-a.

Arregalou os olhos.

Havia um par de brincos e um anel dé brilhantes. Re


tornou à sala com o estojo na mão:

— Veja o que encontrei.
Ismênia tinna os lábios trêmulos. Abel olhou os dois
assaltantes com ódio.
Valdir ficou entusiasmado:

— Isso pode dar uma nota.
— Só que vai ser difícil vender.
— Deixe comigo. Tenho quem compre. Tenho muitos
conhecimentos!
Abel falou:


Levem tudo, menos isso.
Valdir deu uma gargalhada:
— Está pensando que a gente é otário?
— Por favor — insistiu o velho. — São jóias de estimação.
Têm um valor muito grande para nós.
— Para a gente também — retrucou Valdir. — Vamos
ganhar um bom dinheiro com isso.
Os olhos de Ismênia estavam marejados. Abel ainda
tentou impedir:

— Vocês não vão levar isso. Não vou deixar...
. Com o revólver, Valdir interrompeu-o, dando-lhe uma
violenta coronhada, que o fez cair no chão sem sentidos,
enquanto Ismênia abafava com as mãos um grito. O marginal
virou-se para ela apontando o revólver:

— Fique calada. Nada de barulho, já avisei. Se não
quer que eu atire.
Com muito esforço, Ismênia conseguiu continuar chorando
em silêncio. Qualquer pessoa se emocionaria com

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o quadro, mas não Valdir. Fausto não se sentiu bem e
teve pena:
— A gente podia deixar as jóias.
— Está maluco? Assim quase não adiantaria nosso
trabalho. A gente correu esse risco todo só para levar o dinheiro?
Está se vendo que você é calouro na profissão.
Vamos embora. Não se deve demorar muito num assalto.
Quanto mais rápido, melhor.
Fez o outro sair primeiro e olhar se tinha alguém no
corredor. Fausto verificou:

— Não tem ninguém.
O outro disse:

— Chame o elevador.
Quando viu que este já tinha chegado, sempre andando
de costas com o revólver apontado para a velhinha,
Valdir também saiu do apartamento, puxando a porta
atrás de si.

Entraram no elevador.

Parada no meio da sala, Ismênia não sabia o que
fazer, se gritava por socorro, se corria para avisar o porteiro
ou se acudia o marido que estava caído no chão.

Sabia que os vizinhos estavam viajando e que até
chamar o porteiro, os dois já teriam escapado. Além disso,
muito mais importante do que as jóias era Abel.

Correu para ele, colocou a mão sobre seu peito e viu
que respirava.

Segurou-lhe a cabeça com cuidado e viu que sangrava.
Ficou mais assustada. Tentou recobrar-lhe os sentidos:

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— Abel, Abel...
O marido continuava desacordado.

Dirigiu-se ao telefone. Os dedos não queriam obedecer-
lhe.

Discou várias vezes e atrapalhou-se outras tantas, em-,
baralhando os números. Finalmente conseguiu ligar para

o médico do qual eram clientes antigos, contando-lhe confusamente
o que acabara de acontecer e pedindo-lhe para
vir imediatamente.
Desligou o telefone e esperou a chegada do médico,
que por sorte morava perto e em poucos minutos estaria
ali.

Ajoelhou-se no chão, junto do marido, levantou-lhe
a cabeça novamente e colocou-a em seu colo.

Ficou parada, olhando-o, as lágrimas escorrendo pelos
olhos, em silêncio.

Esquecera os dois marginais, o roubo do dinheiro e
das jóias. Só desejava que Abel não morresse, que o ferimento
não fosse grave, que o médico chegasse a tempo...

* * *

Depois de andarem uma quadra e dobrarem a esquina
mais próxima em passos normais, Fausto e Valdir desandaram
a correr. Somente muitas ruas adiante pararam
para tomar fôlego.

— Agora já estamos fora de perigo — disse Valdir
arfando.
— Tive pena da velhinha.
— Deixe de besteira.
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— Você não devia ter batido no velho com o revólver.
— Bati de leve. Não vai acontecer nada. É só fazer
um curativo e ele volta ao normal.
— Tem certeza?
— Não estou dizendo? Sou macaco velho. Sei agir.
Não me envolvo com morte. Só faço dar o susto e roubar.
Agora vamos até o barraco para a gente dividir a grana.
O dinheiro foi dividido irmãmente. Quanto às jóias,
Valdir venderia logo depois do carnaval e daria uma parte
da quantia apurada ao outro.

Fausto saiu do barraco com dinheiro no bolso e peso
na consciência. Será que se acostumaria àquilo? Não gostara
do que vira nem do que fizera.

Tivera pena do casal de velhinhos. A imagem dos dois
não lhe saía da cabeça. Fora muita covardia. Se tinham
que roubar, pelo menos que não fosse de duas criaturas
frágeis e completamente indefesas.

Chegou em casa, tomou um banho, trocou de roupa.

Apalpou o dinheiro no bolso. Sairia apenas com uma
parte. O resto guardaria em casa.

Não tinha fantasia nem traje a rigor. Mas com o dinheiro
poderia comprar um ingresso num clube qualquer
que não exigisse aqueles trajes e se divertiria do mesmo
jeito. Podia tomar uísque, encher a cara, arrumar a mulher
que quisesse.

Pelo menos não passaria um carnaval em brancas
nuvens.

* * •

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Pulando no meio do salão, abraçado com uma mulata
sensacional, depois de muitos chopes na cabeça, esquecera
completamente o casal que assaltara.

E, enquanto se divertia, fazia novos planos de novos
assaltos. Agora, não sentia mais remorsos. Tudo era uma
questão de começar, como dissera Valdir. Depois, acostumava.


E precisava arrumar bastante dinheiro. Não apenas
para ir aos bailes, mas também para comprar sua tão sonhada
motocicleta.

* * *

Na quarta-feira de cinzas depois do meio-dia foi para
a praia e encontrou Danilo. Ambos estavam com uma tremenda
ressaca dos dias de folia.

Apareceram outros amigos. Contaram suas respectivas
aventuras de carnaval, as mulheres que tinham arranjado,
etc.

Valdir também apareceu. Quando entraram na água,
deu um jeito de se aproximar de Fausto e dizer-lhe, sem
que pudesse ser ouvido pelos outros:

— Na semana que vem, eu vendo as jóias e dou sua
parte. Por falar nisso, você leu no jornal?
— O quê?
— Sobre o assalto.
Fausto não se lembrara disso.

— Saiu no jornal?
— Claro.
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— A polícia suspeita da gente?
— Vai ser difícil descobrir.
— Mas os velhos viram nossas caras.
— Estavam tão assustados que não souberam dizer
direito como a gente é. Foi um serviço bem feito, pode
acreditar.
Por uns dias, Fausto ficou preocupado. Mas depois,
aos poucos, o receio desapareceu e recebeu sua parte na
venda das jóias.

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CAPITULO 3

EM BUSCA DE AVENTURAS

O caminho estava aberto.

Como em todas as coisas, o mais difícil era o início.

Tendo se dado bem no primeiro assalto, Fausto tornou-
se o companheiro de Valdir em outros roubos e começou
a juntar o dinheiro que necessitava para adquirir
sua moto.

Depois que a comprasse — prometia a si mesmo —
acabaria com aquela vida. Iria divertir-se com a motocicleta,
acompanharia Danilo em seus passeios em alta velocidade,
arrumaria garotas com mais facilidade.

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Poucos meses depois, seu sonho tornou-se realidade.
Quando Danilo o viu com a moto, não escondeu a
surpresa:

— Onde conseguiu?
— É segredo.
— Assaltou algum Banco? — perguntou Danilo, brincando.
O outro assustou-se:

— Por quê? Não posso ter uma moto sem precisar
roubar?
— Não precisa ficar com raiva. Falei de brincadeira.
A partir daí tornaram-se mais inseparável ainda.
Corriam pela cidade e pelas estradas, à procura de
aventuras. Gostavam também de fazer arruaças, subir as
calçadas e encostar nas mesas dos bares montados em
suas motocicletas.

Agora, com o fruto de seus assaltos, Fausto também
andava bem vestido, ou melhor, vestido como mandava o
figurino: blusão de couro, calça americana. Não sentia
mais nenhuma inferioridade diante de Danilo.

No entanto, este era sempre o líder, quem resolvia os
programas que deviam fazer, os lugares onde iam.
Montados em seus cavalos de aço, os dois seguiam

pela estrada.
O vento batia em seus cabelos.
Danilo aumentou a velocidade.
Fausto fez o mesmo.
Sentiam-se felizes, libertos, tomados por uma espécie

de embriaguez que a velocidade
proporcionava.
Comendo as distâncias, deixando paisagens e postes
para trás.

— Para onde vamos?
— Para qualquer lugar — respondeu Danilo.
E seguiram sem destino, em busca de aventuras.
Chegaram a uma pequena cidade do interior do Estado
do Rio.
Rodearam a praça em louca disparada.

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Logo chamaram a atenção de duas mocinhas que iam
passando e pararam para olhar os dois, magnetizadas.

— Já arrumamos programa — gritou Danilo para o
outro.
Pararam as motos quase em cima das garotas fascinadas.


— Não querem dar uma volta?
Tentadas, mas meio desconfiadas, não se decidiram
logo a responder. Finalmente aquiesceram com a cabeça.
Cada uma sentou na garupa de uma das motos e dirigiram-
se para fora da cidade.

— Para onde estão levando a gente? — perguntou
uma das moças.
— Para dar um passeio.
— Onde?
— Você vai ver daqui a pouco.
Como sempre, Danilo ia na frente, determinando o
caminho. Fausto o seguia.
Estacionaram junto de um matagal.
Danilo pulou de sua moto e ajudou a garota a saltar.

Fausto fez o mesmo.
Puxando-as pelo braço, levaram-nas para dentro do
matagal.

— O que vão fazer com a gente? — perguntou uma
delas.
— Vocês não sabem? — respondeu Danilo com outra
pergunta.
As duas relutaram um pouco, mas terminaram obedecendo
aos dois rapazes.
Mesmo porque não havia outra opção.
Danilo abraçou a que estava com ele e jogou-se no

chão por cima dela. Fausto fez mais ou menos a mesma
coisa com a sua.
Elas resistiam, principalmente a que estava com Danilo.


— O que está havendo? Não quer?
— Não.
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— Acha que vou trazer você até aqui para não fazer
nada?
Danilo tentava levantar-lhe o vestido à força.
A companheira de Fausto cedeu com mais facilidade.
Já impaciente com a recusa da sua, e disposto a usar

de violência, se fosse preciso, Danilo estava também cada
vez mais excitado.

Olhou para o amigo que por estas alturas já conseguira
que sua garota fizesse o que queria. Aquilo o excitou
ainda mais e rasgou as calcinhas da que estava com ele:

— Quer me dizer por que não quer?
— Eu sou virgem.
— Tanto melhor. Vai deixar de ser algum dia. Por
que não hoje? Você tem até sorte em perder a virgindade
comigo, um rapaz boa-pinta.
— Eu tenho medo.
— Não se preocupe. Só vai doer um pouquinho. Mas
você vai ver como é bom.
A jovem estava gostando do contato do seu corpo com

o do rapaz. Na verdade, estava louca de vontade de entregar-
se a ele. Apenas tinha receio de fazê-lo.
Aos poucos, Danilo foi conseguindo...

* * *

Os quatro levantaram-se do matagal. A moça que estava
com Danilo tinha a fisionomia triste. Falou qualquer
coisa baixinho.

— O que foi que você disse?
— Quando Roberto descobrir...
— Quem é Roberto?
— Meu namorado.
— Ele não vai se incomodar muito. Você agora poderá
fazer com esse tal Roberto o que fez comigo. No fim
ele vai sair ganhando.
Voltaram para as motocicletas e deixaram as duas
garotas na mesma praça onde as haviam encontrado.

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Acenaram com a mão e partiram em disparada.

As jovens ficaram olhando-os desaparecer no horizonte.


— A menina ainda era virgem? — perguntou Fausto.
— Era.
— A minha, não.
— Ela tinha que fazer isso com alguém. Por que não
comigo?
E seguiram pela estrada.
Sem remorsos, sem culpas.
Felizes com a liberdade que desfrutavam, iam aumen


tando cada vez mais a velocidade.
Quando retornaram ao Rio, foram para um bar na
Avenida Atlântica.
Sentados diante de seus copos de chope, comentaram
a aventura.

— Foi bom — disse Danilo.
— Para você melhor do que para mim.
— É.. . eu gosto de meninas virgens.
— Eu também.
— A gente parece até irmão. Se eu tivesse um irmão,
acho que não seria tão parecido comigo.
— Sabe que nunca possuí uma garota virgem?
— Não brinca!
— Verdade.
— Não sabe o que está perdendo.
E rememoraram com detalhes a aventura daquela tarde
com as garotas de quem não sabiam nem os nomes.

— Gostaria de encontrar com ela de novo? — perguntou
Fausto.
— Não. Para quê? O bom é isso. A gente fazer amor
com uma garota e nunca mais ver a cara dela.
— Então você nunca vai casar.
Danilo deu uma gargalhada:
— Por enquanto é muito cedo para pensar nisso. Não
posso nem imaginar ter que agüentar a mesma mulher
todo dia. Eu gosto de variar.
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— Eu também.
— Mas sei que algum dia vou ter que casar.
— Por quê?
— Porque vou. Tenho que ter uma família, não é?
Mas isso só daqui a muitos anos. Quando estiver lá pelos
trinta.
— E aí vai começar a engordar, virar um burguesão.
— Nada disso. Vou continuar o mesmo Danilo de sempre.
Bonitão, cheio de mulheres. O fato de casar, não quer
dizer que vá morrer para o mundo.
— Taí, isso é uma coisa que quero ver. Danilo casado.
Vou dar boas gargalhadas.
— Por quê? Com você vai acontecer a mesma coisa.
— Comigo não.
— Pretende ficar solteiro a vida inteira?
— Claro. Nunca vou me amarrar a ninguém.
— Bem, pelo menos nisso somos diferentes.
Pediram mais um chope.
— Não tinha que ter essa história da gente envelhecer
— falou Danilo, dando continuidade à conversa.
— E morrer muito menos.
— A gente devia ficar a vida toda na casa dos vinte
anos. A pior coisa que existe é ficar velho.
— Mas não tem outro jeito.
— Pelo menos a gente tem a garantia de que isso não
vai acontecer tão cedo. E o melhor que temos que fazer
é mudar de assunto. Daqui a pouco estamos na fossa.
Beberam ainda vários chopes.
Já escurecera.
A muitos quilômetros dali, a jovem que fora desvirgi


nada por Danilo trancara-se no quarto de sua casa, chorando.


Como acontecera tudo aquilo? Como explicar a Roberto
quando ele descobrisse? Estragara sua vida completamente.


Lamentou o fato de estar na praça no momento em

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que os dois rapazes passaram. Por que cometera aquele
ato de loucura?
Não sabia nem o nome do rapaz que fizera aquilo com
ela. E nunca mais iria encontrá-lo.

E se ele aparecesse de volta? Se ficasse apaixonado
e retornasse à cidade à sua procura? Então, se amariam
e se casariam. Roberto ficaria louco de ciúmes, mas ela
seria feliz.

Afinal, o rapaz da moto com quem fizera amor pela
primeira vez era muito mais bonito do que seu namorado.
A perspectiva de que ele voltasse, fez com que as lágrimas
parassem de cair.

Lembrou-se então da amiga que se entregara ao outro,
sem maiores problemas. Não sabia que Hilda não era mais
virgem. Quem teria sido seu primeiro homem?

A curiosidade fez com que esquecesse o próprio sofrimento,
mesmo porque alimentava agora a esperança dé
que o desconhecido com quem fizera amor voltasse.

Limpou o rosto, ajeitou-se e foi à procura da amiga
outra vez.
Hilda surpreendeu-se quando a viu batendo em sua
casa:

— O que houve?
— Nada. Achei bom vir bater um papo contigo sobre
o que aconteceu hoje de tarde.
— Então é melhor a gente ir para a porta da rua,
para que ninguém ouça a conversa.
Na porta da pequena casa, livres de ouvidos curiosos,
falaram sobre a experiência.

— Eles devem ser do Rio de Janeiro.
— Também acho.
— Se eu lhe fizer uma pergunta, não vai ficar com
raiva?
— Não. O que quer saber?
— Você não era mais virgem... por que nunca me
contou?
— Contar para quê? PÁG 27

— Quem foi o primeiro?
— Não posso lhe dizer.
— Por quê?
— Porque não posso.
— Se não contar, fico com raiva.
— Não insista, que não conto.
— O que é que tem? Não vou dizer a ninguém.
— Não posso lhe dizer, só isso.
— Por que não? Afinal, não sou sua melhor amiga?
Você não sabe quem foi o meu primeiro homem? Você até
assistiu tudo.
— Não conto. Não adianta.
— Eu quero saber.
— Quer mesmo?
— Quero.
Hilda arrependeu-se depois, mas na hora achou melhor
abrir o jogo, dizer logo tudo, pois sabia que a amiga
insistiria o resto da vida para saber quem fora:

— Foi...
— Quem?
— Roberto.
— Que Roberto?
— Roberto...
— Meu namorado?
— Sim.
— Então você andou com ele?
— Você não queria saber?
— Nunca pensei... Foi antes ou depois dele começar
a namorar comigo?
— Você não está ainda satisfeita em saber que foi
ele? Quer ficar sabendo de tudo?
Possessa, compreendeu que fora depois que estava namorando
com Roberto. Deixou Hilda na porta de sua casa
e foi embora.

Então Roberto possuíra sua amiga e ela não sabia de_
nada. De certa forma, fora bom saber a verdade. Agora

28


não precisava ter remorsos pelo que fizera naquela tarde.

Roberto merecia. E nunca mais falaria com Hilda.

Aquilo serviü-lhe de consolo pela perda da virgindade.

E mais do que nunca desejou que o rapaz desconhe


cido, com quem estivera no matagal, voltasse um dia para
reencontrá-la.
Todavia, além dela, outras pensavam da mesma forma.

29



CAPITULO 4

UMA VIAGEM TRANQÜILA

Elisa olhou o relógio na parede.
Um relógio antigo, daqueles que não estavam mais s
usando há muito anos.
Os ponteiros andavam tão devagar, que mesmo fixai
do a vista neles, não se conseguia vê-los avançando.
Os minutos demoravam tanto a passar. E, no entanto
por que sempre se dizia que o tempo passava depressa?
Que a vida era curta?
Que os anos voavam?
Principalmente quando se está esperando, o tem?
custa demais a passar.

30


E ela esperava Caio, seu noivo, que ficara de vir apanhá-
la às sete e quarenta e cinco.

E já eram oito e dez.

Estava pronta há quase meia hora.

'
'
Tc"viam acabado de jantar e estavam sem empregada.
A mãe, na cozinha, lavava os pratos.

O pai lia um jornal qualquer em seu quarto.

Só Elisa permanecia na sala, ouvindo o tic-tac do relógio.


Olhou em volta.

Não gostava do apartamento em que morava com a
família. Não propriamente do apartamento. Mas dos móveis,
da decoração.

Quando casasse, o que aconteceria dentro de mais
quatro semanas, mudaria dali e iria para seu próprio apartamento,
ali próximo, em Ipanema mesmo.

Estava em fase de decoração. Desejava todos os móveis
modernos, de cores vivas, alegres.

O apartamento em que vivia com seus pais era justamente
o contrário. Tudo muito antigo. Os móveis todos
escuros, os quadros nas paredes, os enfeites, tudo lhe desagradava.
Parecia que cheiravam a mofo, a coisa velha.

Na realidade, eram móveis antigos, que muitos achavam
valiosíssimos. Mas não lhe agradavam. Tinham um aspecto
de decadência, de coisas fora do tempo. Achava deprimente.


Ouviu a campainha tocar.

Deu um pulo do sofá onde se encontrava sentada, os
pensamentos fugiram imediatamente e ela correu a abrir
a porta.

Caio beijou-lhe no rosto.

Iam a um cinema.

— Você se atrasou. Estou esperando há um tempão. _
— Tive que ficar no trabalho até mais tarde.
— Não acredito.
— O que pensa que foi?
— Não foi encontrar com outra antes de vir?
v

31


— Você sabe que não.
— Estava brincando com você. Só que agora não dá
mais tempo de pegar a sessão das oito.
— Não faz mal, a gente chega um pouquinho atrasado.
— Detesto entrar no cinema com a sessão começada.
— Podemos ir para outro lugar.
— Para onde?
— Na rua a gente resolve.
Na rua permaneceram discutindo para onde iriam.
— Por que não damos uma volta de carro?
— Já que não vamos ao cinema, para mim tanto faz,
Entraram no automóvel de Caio.
Foram até Copacabana pela Avenida Atlântica. Alcançaram
o final do Leme. Ele parou o carro. Ficaram olhando

a
praia.
Caio abraçou a noiva e a beijou na boca.
Depois, sugeriu:


— Vamos até o apartamento?
— Fazer o quê?
— Você sabe...
— Não sei, não.
— Sabe, sim — falou rindo o rapaz.
— Já disse mil vezes que isso só depois da gente casar,
— Por quê?
— Porque sim.
— Não agüento esperar mais um mês.
— Quem esperou um ano, pode muito bem agüentar
. mais um pouco.
— Eu sou doido por você.
Ela riu:
— Lugar de louco é no hospício.
— Nem sempre. Tem muitos por aí, soltos pela rua.
— E você é um deles? PÁGINA 32
— Quem sabe? Pelo menos, sou maluco por você.
Tornaram a se abraçar e se beijar. Caio mostrou-se
um pouco atrevido. Elisa deixou. Afinal, algumas liber



dades não faziam mal a ninguém. Contanto que não se
excedessem.
Excitadíssimo, Caio voltou a insistir:

— Vamos até lá.
— Não.
— Veja o meu estado.
— Justamente por isso. É um perigo.
— A gente já vai casar, Elisa, não tem nada demais.
— Tem, sim.
— Você não gosta de mim?
— Claro que gosto, senão não iria casar com você.
— Então?
— Então o quê?
— Por que não vamos para o apartamento?
— Você já me pediu isso mil vezes. E eu já respondi
outras tantas.
— Mas não me convenceu. Continuo querendo ir.
— Não, Caio. Desista de uma vez por todas. Você
não tem força de vontade? É só mais um mês. Aliás, nem
chega a um mês.
— Eu quero você agora.
— Não estou aqui ao seu lado?
— Mas eu quero você todinha...
Ficaram dentro do automóvel mais de uma hora. Elisa
permitiu algumas outras intimidades, mas não deixou o
noivo ir além do limite que estabelecera.
Desejava chegar virgem ao casamento.
Fora assim que havia sido criada. Dentro dos mais

rígidos princípios de religião e moral. Não se afastaria deles
por nada deste mundo.
Amava Caio acima de tudo. Mas sua formação falava
mais forte. Sabia esperar.

Realizaria o seu grande sonho. Casar virgem. Ser possuída
por Caio na noite do casamento. Ter uma lua-de-mel
verdadeira, consentida, e não escondida.

Sabia que algumas de suas amigas tinham experiên


33


cias sexuais antes de casarem. Mas com ela isso não acon


teceria.
E também só teria um homem em sua vida.
Caio.
Mais ninguém.
Atravessariam toda a existência juntos.
Os momentos bons e os ruins.
Às dez horas ele a deixou na porta do edifício onde

morava. Despediram-se com mais um beijo. Ele ainda disse

— Estou com raiva.
— Mentira.
— Estou, sim.
— Por quê?
— Porque você não quis ir.
— Nem vou.
— Você é ruim comigo.
— Não sou não.
— É, sim.
Beijaram-se outra vez e Elisa saltou do carro.
Deu adeus ao noivo com a mão antes de entrar edifício.
Caio deu saída no automóvel e partiu.

* * *

As quatro semanas passaram.
O dia do casamento chegou.
Foi uma festa inesquecível.
Elisa entrou na Igreja de braço com o pai.
Disse "SIM" emocionada quando o padre pergunto


se aceitava Caio como seu legítimo esposo.
Da igreja seguiram para a recepção em sua casa.
Os beijinhos das amigas.
Os desejos de felicidades.
No meio da festa, Caio chegou perto dela e disse:

— Vamos fugir?
— Está maluco? Deixar a festa no meio?
34


— Claro.
Ela sorriu.
Ele acrescentou:
— Afinal já estamos casados. Você não pode mais me
impedir de nada.
Concordaram em largar a festa no meio. Trocaram de
roupa e tomaram o carro em direção a Petrópolis, onde passariam
a lua-de-mel.

Elisa sentia-se invadir de felicidade. Uma felicidade tão
grande que tinha a impressão de que não conseguiria suportar.
Afinal, o sonho estava realizado.

Ela também estava impaciente. Quase tanto quanto
Caio.
Porém, os convidados não deixaram os dois partirem.
E quando conseguiram livrar-se deles, já era dia claro.
A viagem corria tranqüila.
De vez em quando, olhavam-se e sorriam enlevados.
Nada mais impediria que ela fosse dele.
Até que no meio da estrada, aconteceu um imprevisto.
De repente, o carro pifou.

— O que aconteceu?
— Não sei — respondeu Caio. — Estava tudo bem.
Mas não havia jeito do automóvel sair do lugar.
Elisa permaneceu dentro do veículo, enquanto Caio
desceu para ver o defeito, avisando porém antes:

35


— Não vai adiantar nada. Eu não entendo disso. temos
que pedir socorro.
— A quem?
— Ao primeiro carro que passar.
— Logo agora que isso foi acontecer?
— O que se pode fazer? Essas coisas acontecem.
— Mas logo hoje?
Ele colocou a cabeça dentro do automóvel e beijou
Elisa:

— Não fique assim. Daqui a pouco a gente resolvi
problema.
36



CAPÍTULO 5

A SURPRESA

Danilo e Fausto vinham pela estrada em suas motocicletas.
De repente, avistaram o casal fazendo sinais.
Eles pararam.

— O que aconteceu? — perguntou Danilo.
Caio explicou:
— Imagino que o motor do carro pifou e eu não entendo
nada destas coisas. Será que vocês podem me ajudar?
Fausto manifestou-se:

— Eu dou um jeito nisso num instante. Já trabalhei
como mecânico de automóvel há algum tempo.
37


— Que sorte! — exclamou Caio.
Os dois amigos desceram da moto e Fausto colocou
mãos
à obra.
Caio voltou-se para Elisa:

— Viu? Tudo vai dar certo. Nem precisamos esperar
muito.
O sol estava forte. Fausto suava tentando consertar

o motor, enquanto Caio começou a conversar com Danilo:
— Nós estamos em viagem de lua-de-mel e logo agora
foi acontecer isso. Não é o fim?
— Ah, estão em lua-de-mel?! — perguntou Danilo.
— Sim. Vamos para Petrópolis.
Danilo riu malicioso:
— Está doido para chegar logo, hem?!
Com o canto do olho, Danilo observou Elisa. Achou-a
bonita, não era absolutamente de se jogar fora.
E como ele gostava de virgens! Mas será que ela ainda
era virgem? Ou o noivo já a tinha passado na cara?
Alimentou o papo com Caio:
—• Não se preocupe que meu amigo dá um jeito nisso.

Daqui a pouco volta a funcionar.

— Não sei como agradecer a vocês.
(Danilo sabia uma maneira maravilhosa de Caio agradecer-
lhe. Era só oferecer-lhe a mulher.)

— Realmente é muito chato quando acontece um negócio
destes. Principalmente na situação de vocês. Já estão
parados aqui há muito tempo? — e olhou diretamente
para Elisa.
Ela baixou o rosto encabulada.

— Não. Coisa de cinco minutos. Fizemos sinal para
alguns carros, mas ninguém parou.
— As pessoas hoje não querem saber de solidariedade.
— É verdade.
— Está todo mundo com pressa.
— Cada qual com seu problema.
— E os outros que se danem.
— Você disse tudo.
38


Fausto continuava trabalhando. Após uns quinze minutos,
falou:

— Pronto, está tudo resolvido.
— Tem certeza? — perguntou Caio incrédulo.
— Claro.
Caio entrou no automóvel e experimentou. Realmente
o motor voltara a funcionar. Elisa sentou-se ao seu lado no
carro.
— Não sei o que seria da gente, se não fossem vocês
— falou Caio. — Muito obrigado, mas muito obrigado
mesmo.
Elisa sorriu agradecida.
Os dois rapazes ao lado de suas motos também sor


riram.
O automóvel partiu.

— Tive uma idéia — falou Danilo.
— Será a mesma que tive?
— Talvez... Qual foi a sua?
— Acompanhar o casal...
— Isso mesmo.
Montaram nas motocicletas e seguiram o automóvel.
— Eles não vão desconfiar se virem que os estamos
acompanhando.
— Afinal, acabamos de prestar um grande favor.
— E íamos mesmo nesta direção. Mas para executarmos
bem nosso plano, precisávamos de uma arma. Você...
— Estou armado, sim.
— Então, está pra gente.
Fausto continuava com os assaltos, mesmo depois que
comprara a moto. Seus pianos de deixá-los de lado eram
sempre adiados. Com Valdir, praticava diversos furtos, e
comprara até mesmo um pequeno revólver, que se tornara
seu terceiro companheiro.

— Será que a garota é mesmo virgem?
— Você é tarado por virgem, hem?! Ela tem cara.
— Quem vê cara não vê coração.
— Mas para ver se ela é virgem só verificando...
39



— E é isso que vamos fazer — acrescentou Danilo
com um riso canalha.
Acompanharam o automóvel a uma certa distância.

— Eles estão nos seguindo — disse Elisa.
—Devem ir também para Petrópolis.
— Não gosto de quem anda de motocicleta.
— Por quê?
— Sempre penso que são marginais.
— Não têm cara disso. O que conversou comigo parece
gente de dinheiro.
— O que não quer dizer nada.
— Esqueceu que foram eles que nos tiraram da enrascada?
— E você esqueceu aquele filme de Marlon Brando,
"O Selvagem"?
— O que tem a ver o filme com isso?
— Eles sempre provocam arruaças.
— Nos filmes.
— Dizem que a arte imita a vida.
— Humm...! Está muito metida a intelectual!
Riram e não se preocuparam mais com os dois ra.
pazes.
Chegaram a Petrópolis. Seguiram para a rua onde ficava
a casa onde passariam a lua-de-mel.
Danilo e Fausto continuaram acompanhando-os, dando
porém uma. distância maior.

— Eles não podem desconfiar de nossas intenções.
— Não vão desconfiar depois do que eu fiz. Afinal,
consertei o motor do carro dele.
— Mesmo assim temos que agir com cuidado.
Caio parou o automóvel diante de sua casa, que ficava
mais ou menos retirada das outras, com um bonito jardim
em volta. Desceu junto com Elisa.
Danilo e Fausto tinham parado suas motos em um
recanto de onde podiam ver o casal, sem serem vistos.
Elisa olhou em torno:
.— Eles desapareceram.


40


— Ainda está preocupada com os rapazes?
— Não.
Olharam-se e beijaram-se. Felizes.
Um beijo muito longo.
De longe, Danilo e Fausto observavam tudo.
— Estão se beijando.
— Nem imaginam o que vai acontecer.
Caio abriu o portão da garagem e entrou com o carro.
Depois tirou as malas e levou-as para dentro da residência.
Elisa olhava as flores do jardim.

O marido veio buscá-la e os dois entraram na casa
abraçados.

— Vamos? — perguntou Danilo.
— Vamos.
Dirigiram-se para a casa e pararam suas motos em
frente. Desceram, abriram o portão do jardim e tocaram
a campainha.

Caio veio abrir. Sorriu meio desconcertado ao ver os
dois.

— Vocês?!
Danilo sorriu.
Fausto apontou-lhe o revólver.
— O que está acontecendo? — perguntou Caio, surpreso.
— Isso mesmo que está vendo. Quer chamar sua mulherzinha,
por favor?
— O que estão pretendendo?
— Você faz muitas perguntas. É um sujeito muito
curioso. Não precisa se afobar. Fique calado e acompanhe
os acontecimentos.
Escutando as vozes, Elisa veio ver de que se tratava
e ficou apavorada.

— Eu bem que achei que havia alguma coisa de estranho
neles.
— Achou, foi, belezinha? O que você viu em mim dé
estranho? Isso aqui?
— e apontou para baixo.
Elisa virou o rosto chocada e amedrontada. Caio pen


41


*

sou em reagir, mas Fausto já se aproximava dele com o
revólver.

— Fique tomando conta deles, enquanto eu procuro
alguma coisa para amarrar este sujeito — disse Danilo,
indo para o interior da casa.
Fausto permaneceu na sala, apontando o revólver para

o jovem casal:
— Vamos, fiquem mais juntos um do outro.
Elisa obedeceu, aproximando-se do marido.
— Como é mesmo seu nome, belezinha?
Ela não respondeu:
— Não quer dizer? Olha que posso fazer uma besteira.
E é fácil. Um pequeno movimento com o dedo e a
bala dispara. Como é mesmo seu nome? Não quer me dizer?
Por quê?
Ela falou com voz fraca:

— Elisa.
— Bonito nome. Igual a dona.
— Vocês estão querendo dinheiro?
— Não.
— O que é então?
— Você vai ver.
Caio compreendeu o que iria acontecer e pensava num
meio de livrar-se daqueles dois marginais. No entanto, via
que não havia nenhuma possibilidade de sair daquela situação.


Danilo começou a rasgar um lençol e pouco depois
voltou com várias tiras de pano. Pegou Caio com violência
e amarrou suas mãos nas costas.

Depois arrastou-o para perto de um móvel, amarrando-
o nele.

- Caio, enquanto se retorcia, gritava:
— Vocês não podem fazer isso.
— Por que não podemos? — perguntou Danilo.
— E cale esta boca, se não quer que atire — disse
Fausto.
' Depois que verificou que o homem não poderia se sol


42


tar, Danilo colocou uma faixa de pano em sua boca. Em
seguida, dirigiu-se a Elisa:

— Como é seu nome?
Fausto respondeu pela moça:
— Elisa. Ela já me disse.
— Então, Elisa, agora vamos começar.
Cada vez mais assustada, ela conseguiu pronunciar:
— Começar o quê?
— Você não é tão ingênua assim. Já sabe o que lhe
espera.
E chegou perto de Elisa, afagando-lhe o ombro. A moça
encolheu-se. Não, não podia ser verdade. Aquilo não estava
acontecendo com ela. Aquelas coisas só ocorriam nos
filmes, como dizia Caio.

Mas a mão de Danilo mostrava claramente qué tudo
era realidade. Ele estava ali, apalpando-a.

Sentiu medo, nojo, vontade de gritar.

Mas o outro permanecia com o revólver apontado, o

dedo no gatilho, pronto a disparar a qualquer momento.
Súbito, ela armou-se de coragem:

— Eu não vou deixar.
— Vai, sim.
— Não!
— E vai gostar.
— Vocês não podem atirar. Alguém pode ouvir os tiros
e vocês vão para a cadeia.
— O que houve? Está metida a valente? As casas vizinhas
ficam bem distantes.
— Mesmo assim, podem ouvir.
Danilo olhou em torno de si e riu ao ver a eletrola:
— Você me deu uma idéia. Realmente precisamos ser
mais cuidadosos.
Ela não entendeu o que o rapaz iria fazer. Danilo
aproximou-se da eletrola. Escolheu entre os muitos discos,.,
um de "rock", que colocou para tocar no mais alto volume.

— Agora. Estamos salvos. O barulho da música faz
com que não se ouça os tiros, se tivermos que atirar.
43


Elisa teve certeza então de que tudo estava perdido.
Aquilo não seria um pesadelo, do qual acordaria dentro
de mais alguns instantes.

Observou o rosto de Fausto, que apontava o revólver.
Este sorriu. Danilo voltou para perto da mulher.

Segurou-a fortemente pelos ombros e beijou-a à força,
na boca.

Ela se contorcia, fazendo o possível para não deixar
que o fizesse. Mordeu-lhe os lábios, com força, fazendo-os
sangrar. Danilo soltou-a e disse um palavrão. Limpou a
boca com a mão e viu o sangue.

— Sangue por sangue — disse o rapaz.
Fausto observava a cena divertido.

E Caio, com os olhos arregalados, impotente para qualquer
reação, assistia a tudo. 1

Revolta, ódio, desejo de vingança.

Um dia ainda pegaria aqueles dois cafajestes. Nem
que fosse preciso levar a vida inteira, haveria de persegui-
los até levá-los para a prisão.

Pegando o vestido de Elisa pelo decote, Danilo rasgou-
o de cima a baixo. Depois, arrancou-lhe as peças íntimas,
deixando-a completamente nua.

Do seu canto, Caio fechou os olhos.

Não, não podia presenciar aquilo sem fazer nada. Revirou-
se, procurando soltar-se. Mas era impossível. Emitia
grunhidos de raiva, tentava afrouxar a mordaça, mas não
conseguia.

O som do "rock" estava no mais alto volume.

44


Fausto viu Caio fechar os olhos, e ameaçou:

— Você vai abrir bem estes olhos, seu pilantra. Não
vou deixar que perca o espetáculo.
Aproximou-se de Caio e com a mão abriu-lhe os olhos
a pulso.

Elisa encolhia-se, procurava esconder sua nudez, enquanto
Danilo esfregava-se nela. A moça reagia de todas
as maneiras possíveis, dando-lhe pontapés e metendo-lhe
os braços na cara.

— A garota é metida a valente. Acabo já com esta
folga.
Atirou-a no chão.

A cabeça de Elisa bateu no assoalho. Mas a pancada
não deu para que perdesse os sentidos. E Danilo jogou-se
por cima dela, que fechava as pernas, com força.

O rapaz tentava violentá-la de qualquer maneira.

A reação de Elisa era muito mais feroz do que podia
supor. Estava quase pensando que não conseguiria. Impaciente,
começou a esbofeteá-la cada vez com mais força.

Finalmente, sem resistência, Elisa relaxou e Danilo
aproveitou. Em poucos minutos desfazia-se em violentos
espasmos, sob o olhar de ódio de Caio. Fausto, excitado com
a cena, divertia-se a mais não poder.

Terminado o ato, Danilo levantou-se, ajeitou a roupa,
enquanto Elisa permanecia deitada. E completamente desesperada
com os últimos acontecimentos.

Um louco, um estranho, um marginal a violentara.
Não adiantara nada ter se conservado pura até aqueledia.
Caio assistira tudo.

45


— Vamos embora — ordenou Danilo a Fausto.
Saíram da casa logo em seguida.
O "rock" alucinante continuava a tocar na eletrola.
Novamente em suas motos, percorriam a estrada de
volta.
Não havia sinais a respeitar.
Eles gostavam de correr assim, sem sinais, sem regras

a obedecer, sem nada que os impedisse de fazer o que
queriam.

46


CAPÍTULO 6

DOLOROSA REALIDADE

Durante muito tempo ainda, Elisa permaneceu deitada
no chão.

O corpo todo lhe doía. Suas entranhas estavam dilaceradas.
Mas não sabia se as dores físicas eram maiores
do que a moral.

Ficou de olhos fechados, sem coragem de abri-los. Com
medo de voltar a ver aquele rosto que, apesar de bonito,
lhe parecia pavoroso. O rapaz que a violentara devia ser
quase um adolescente. Como já podia ser tão monstruoso?

Também não abria os olhos porque tinha receio de

47


olhar para Caio. Como enfrentá-lo, depois daquilo tudo?

Não tinha culpa, ele sabia disso, mas o fato acontecera.
Acontecera mesmo?
Não teria sido um pesadelo? Quando tornasse a abrir

os olhos não veria que tudo não passara de um sonho ter


rível?
E resolveu abri-los.
Viu-se deitada, nua, o corpo cheio de manchas, pe


quenas manchas de sangue. Não fora um pesadelo. Era

realidade, uma realidade dolorosa.
Olhou para Caio. Ele estava cabisbaixo.
Levantou-se e pegou o vestido rasgado.
Cobriu-se com ele e aproximou-se do marido, tiran

do-lhe a mordaça.

Caio olhou-a. Ela não entendeu sua expressão. Um sofrimento
terrível transparecia do rosto do marido, mistu
rado com outros sentimentos que não sabia discernir.

Desamarrou-o do móvel, desatou suas mãos.

Apesar de livre, Caio permaneceu imóvel. Agora de
nada adiantava estar livre, uma vez que não tinha ao seu
alcance os dois facínoras.

E se tomasse o carro e os perseguisse?
Mas será que ainda havia tempo de alcancá-los?
E como saber que rumo eles tinham tomado?
Além disso, já fazia algum tempo que haviam par


tido. Elisa demorara muito para se levantar. Será que ela
demorara mesmo? Quanto tempo fazia que os dois tinham
ido embora?

Nem ele nem Elisa tinham a noção exata do tempo.
Ela foi até a eletrola e desligou-a. Aquele som aluci


nante iria fazer com que enlouquecesse mais depressa.
Fez-se o silêncio.
Ouviram o canto de pássaros.
Elisa quis abraçar Caio, mas não teve coragem. Sen


tiu, receio de que ele recusasse, com nojo dela.
E assim, os dois permaneceram a uma certa distância.

48


Caio sentado no mesmo canto como se ainda estivesse;
amarrado. Elisa ao seu lado, também sentada no chão.

— Está tudo perdido — falou Caio finalmente.
—• Não fale assim.
— Estou dizendo a verdade.
— Por que deixou que eles entrassem?
— Não podia adivinhar que fosse acontecer isso.
— Eu tinha avisado.
— Aquele sujeito destruiu tudo entre nós dois.
— Mas...
— Você não é mais a mesma.
— Caio, não diga isso. Não tive culpa.
— Eu sei. Mas isso não faz com que o fato não tenha
acontecido. Ter ou não ter culpa não vem ao caso.
— Você está querendo dizer...
— Não estou querendo dizer nada. Estou afirmando
uma coisa que aconteceu diante dos meus olhos. Tudo
isso, porque você sempre recusava quando eu pedia para
irmos ao apartamento.
— Eu estava me guardando para o dia do nosso ca.—
E terminou sendo possuída por um criminoso.
— Que culpa tenho eu? Não me atormente mais, Caio,
por favor.
— É capaz até de ter gostado.
Elisa levantou-se:
— Não torne as coisas piores do que estão.
— Elas não podem ficar piores do que estão. É impossível.
Elisa retirou-se da sala. Sentia-se ofendida. Como Caio
podia lhe dizer aquilo? Entrou no banheiro e tomou um
banho. Era a única coisa que podia fazer naquele momento
para diminuir o desespero.

Será que diminuiria? Será que a água tinha poderes
miraculosos que pudessem fazer com que voltasse a ser
a mesma Elisa de antes?

Enxugou-se, vestiu outra roupa, limpa.

49


Mas continuou sentindo-se suja.

Por dentro e por fora.

Voltou para a sala e viu Caio na mesma posição em
que o deixara.

— Temos que ir avisar a polícia.
Ele não respondeu, mas levantou-se.
— Poderemos comer alguma coisa no caminho —
acrescentou Elisa.
— Seu estômago suporta alguma comida? Eu estou
quase vomitando.
E dizendo isso, Caio começou realmente a vomitar. Em
seguida, dirigiu-se também para o banheiro.
Elisa achou melhor não falar mais. Depois, discutiriam
sobre o assunto. Ou não falariam mais nele.
Elisa abriu a geladeira. Tirou algumas frutas. Dirigiu-
se para a cozinha e preparou uma refeição leve.
Colocou os pratos na mesa.
Sentou-se e chamou Caio.

— Venha...
Ele encaminhou-se também para a mesa.
Comeram sem nenhum apetite, em silêncio.
Os pássaros da região cantavam e faziam seus ruídos
característicos.

Reinava muita paz no campo.

Mas não naquela casa, nem no íntimo dos dois.

Elisa escolheu um disco de musicas clássicas. A música
erudita serviria para acalmar os nervos.
Sentou-se no sofá e Caio em uma poltrona.
Não se olhavam.
Ela imaginou por onde andaria o rapaz que a violen


tara,
Deste lembrava-se perfeitamente. Do outro, que empunhava
o revólver, não sabia descrever direito como era

seu rosto.
Dariam queixa na polícia. Eles seriam castigados.
Mas, como dissera Caio, o fato não deixaria de ter

50


acontecido. Permaneceria como uma mancha na vida dos
dois. Que não havia borracha que pudesse apagar.

Os minutos passaram.

E novamente ela sentiu a eternidade daqueles minutos.


Custavam demais a passar, até se transformarem em
horas.

Esqueceriam algum dia aquilo tudo?

Certamente não.

Aquela casa, que antevia como o próprio paraíso, era
agora o próprio inferno.

— Caio... — balbuciou.
— O que é?
Ela não soube mais o que dizer.
Ele levantou-se e saiu da sala. Elisa não ousou acompanhá-
lo.

No jardim, Caio olhava as flores magníficas. Sempre
gostara daquela sua casa de Petrópolis. Pensara algumas
vezes em vendê-la, mas não o fizera. Também não gostava
de alugá-la. Tinha ciúmes. Sempre fora muito ciumento
de suas coisas.

E das pessoas que gostava.

E viera aquele delinqüente e fizera aquilo com sua
Elisa, ou melhor, com a ex-sua Elisa. Sim, porque ela não
era mais dele, pertencera a outro, à força, mas pertencera.

Com a mão acariciou algumas flores.
E teve vontade de chorar. Até aquele momento não
vertera uma só lágrima. Mas agora deixava que elas jorrassem
livremente, longe que estava de qualquer pessoa.
Verificou se Elisa também saíra da casa. Mas ela
permanecia lá dentro. Era melhor assim. Não queria que
ninguém, nem mesmo ela, o visse chorando.

Limpou o rosto com as mãos.

Enxugou as lágrimas, das quais se envergonhava.

Mas logo em seguida àquele momento de fraqueza,

tornou a sentir renascer o ódio, o desejo de vingança. Ape


51


sar de saber que qualquer que fosse a vingança, a situação
não podia mais ser consertada.

Tomando coragem, Elisa deixou o sofá e também foi
para o jardim. Aproximou-se timidamente de Caio. Mas
este afastou-se e entrou em casa.

Ela permaneceu no jardim. Sozinha. Nunca sentira
uma solidão tão grande. E logo no primeiro dia do seu
casamento.

E lembrou-se dos pais, dos parentes, das amigas. Todos
pensavam que estavam na maior felicidade e no entanto
...

Também acariciou algumas rosas.
As plantas deviam ser mais felizes do que os seres

humanos.
Seriam?
E novamente voltou a pensar no tempo.
Aquela noite que estava por vir certamente duraria

uma eternidade.
Ficou no jardim quase vinte minutos.
Sentindo-se irremediavelmente cansada, entrou de no


vo na casa. Caio estava recostado na poltrona.
Olhou-o.
Ele não lhe correspondeu o olhar.
Retirou os pratos que esquecera em cima da mesa.
Precisava ocupar-se com alguma coisa.
Não podia ficar só pensando, pensando, como Caio.
Lavou os pratos, arrumou tudo.
Terminada a tarefa, retornou à sala.
O marido continuava na mesma posição, como se es


tivesse petrificado. Parecia até qué não batia os olhos.

Então Elisa dirigiu-se para o quarto. Pegou sua camisola
de dormir. A camisola da noite de lua-de-mel. Aí, não
agüentou mais e prorrompeu em soluços.

Por que havia tanta gente ruim no mundo?
Por que logo com ela fora acontecer uma coisa da'
quelas?
Mas por que só devia acontecer com os outros?

52



Os jornais estavam fartos de relatar fatos tão ou mais
criminosos do que aquele pelo qual tinha passado.
Ficou soluçando alto durante muito tempo, o rosto

escondido na camisola de dormir.
Da sala, Caio ouviu os soluços.
Mas não se comoveu.
Estava muito preocupado com seu próprio sofrimento,

para pensar no dos outros.
Elisa cansou de chorar, vestiu enfim a camisola e deitou-
se.

Esperou que Caio viesse deitar-se também.
Mas as horas passaram e ele não veio para a cama.
No dia seguinte os passarinhos assanharam-se de novo


e retomaram seus cantos. Uma sinfonia natural, que em
outra situação, tanto Elisa como Caio teriam achado maravilhosa.


Mas estavam cansados e desesperados demais para
sequer ouvir o canto dos pássaros.
Não haviam dormido bem, apesar de terem se recolhido
ao entardecer, ainda. Tiveram pesadelos durante todo

o sono.
"Talvez fosse melhor anular o casamento", pensou
Caio.
Fixou-se naquele pensamento.
Anular o casamento.
Reconstruir sua vida.
Arranjar outra mulher.
Não amava mais Elisa. Não sabia por que reagia as


sim, mas o fato era que não a amava mais. O encanto
havia sido quebrado.
"Anular o casamento".
Era o melhor a fazer.

De tudo que pensara após o ocorrido, e pensara era
muitas coisas (principalmente em matar o rapaz responsável
pelo drama), aquela devia ser a melhor idéia.

53



E Elisa?

Bem, ela se ajeitaria como pudesse.

Mas depois veio-lhe à cabeça as conseqüências deste

ato de anulação do casamento.
As explicações à família. Todo um processo doloroso
que se prolongaria.
Não, não era a melhor solução.
Na verdade, não havia solução.

* * *

Dos quinze dias da tão sonhada lua-de-mel, já se
haviam passado oito. Caio não tocou em Elisa. Esta estava
cada vez mais desesperada. Quase não se falavam e não
se referiam ao episódio degradante.

Aos poucos, Caio assumiu a posição mais cômoda de
não tomar nenhuma resolução.
Adiou.
Deixou para quando estivesse com a cabeça fria. Não
sabia quando isso aconteceria. Mas esperaria.
Elisa não tinha a menor idéia das intenções de Caio.
Sabia apenas que perdera seu amor.
Não deram queixa à polícia.

Caio preferiu não fazer mesmo nada. Para que tornar
pública sua infelicidade? Continuaria com Elisa. Até quando,
não sabia. Talvez se acostumasse, esquecesse...

E, após mais de uma semana de casados, deitou-se na
cama ao lado da esposa. Possuiu-a como a uma mulher
qualquer, uma prostituta que tivesse encontrado na rua.

Não se podia dizer que houvesse amor naquela relação.

Apenas amargura.

E amargura seria o sentimento constante daquela

união, apesar de continuarem juntos.

• * *

54


Ao fim de quinze dias retornaram ao Rio.

Foram recebidos pelas respectivas famílias com brados
de alegria.

Dissimularam a verdadeira situação em que se encontravam,
o desamor que experimentavam, a amargura que
não os abandonara.

55



CAPITULO 7

UMA MULHER REQUINTADA

Danilo e Fausto não falaram mais na aventura com
que tinham se envolvido com os jovens recém-casados.

Nem um nem outro preocupou-se com o assunto, nem
com o fato de que poderiam ser procurados pela polícia.
Danilo tinha muita segurança, sabia que, rico como era,
não despertava suspeitas.

Quanto a Fausto, tinha mais com que se preocupar:
os novos e constantes assaltos em que se envolvia, na tentativa
de ter um padrão de vida cada vez mais alto, que

o aproximasse mais do padrão que Danilo levava.
56


Só ficou preocupado, desta vez para valer, quando
Valdir, seu companheiro de furtos, foi preso. O amigo não

o denunciara. E sabia que não faria isso. Tinha confiança
absoluta.
O que o preocupava era o fato de que os assaltos não
continuariam enquanto Valdir estivesse na prisão. Não
agiria sozinho e não tinha coragem também de procurar
outro parceiro.

Assim, como viver sem o fruto dos assaltos?

Teria que desalugar o apartamento no qual vivia sozinho
depois que progredira com os roubos.
E voltou para a casa dos pais.
Vendeu alguns objetos de valor que adquirira, como

a geladeira, a televisão, o relógio, uma corrente de ouro,
um anel...
Só não venderia, por nada deste mundo, sua moto.

Vinha pela estrada em louca disparada, em companhia
de Danilo. De repente, numa curva, derrapou e sua
moto virou, atirando-o longe.

Danilo parou e foi em socorro do companheiro. Estava
muito ferido. Sem poder removê-lo, foi em busca de uma
ambulância. Quando esta chegou, Fausto já tinha morrido.

Apesar de julgar-se um forte, imune a qualquer tipo
de emoção que não julgava digna de um homem, Danilo
sentiu-se fraquejar diante da morte do amigo de tantas
aventuras.

Sentiu-se estranhamente sozinho.

Com quem faria aquelas aventuras loucas?

Como divertir-se sem ter um parceiro?

Tudo subitamente perdera a graça.

Estava perto de fazer vinte anos. Abandonara os estudos,
de trabalho não queria nem ouvir falar.

Pela primeira vez, sentiu que o tempo passava.

57



Que a vida não era apenas uma aventura alegre, irres


ponsável, sem se ter respeito pelos outros.
Diante da morte, sentiu-se fraco.
Lembrou-se de que o amigo dizia que nunca se ca


saria.
Por que lembrava-se daquela bobagem?
De fato. Fausto não tivera tempo para se casar.
Não foi ao enterro. Tinha pavor destas coisas.
Entrava nos bares sozinho, encontrava outros amigos,

mas não era a mesma coisa.
Andou pelas estradas montado em sua motocicleta.
Aumentava a velocidade. Não tinha medo de que acon


tecesse o mesmo com ele.

Mas o vento em seu rosto, assanhando-lhe os cabelos,
não lhe dava mais sensação de liberdade. E sim de uma
terrível solidão.

Via a imensidão da estrada em sua frente.
E não sentia o gosto da aventura.'
O que estava acontecendo com ele?


* * *

Elisa estava grávida.
Caio tinha dúvidas quanto à paternidade do filho.
Seria dele ou do delinqüente que violentara sua es


posa?
A mulher também tinha suas dúvidas.
O relacionamento entre os dois era frio, quase glacial.
Quando soube que a esposa estava esperando filho,

.Caio arranjara uma amante. Era uma fuga. Uma distração.
Uma coisa para dispersar os pensamentos deprimentes.
A criança nasceu.

O garoto não aproximou nem afastou mais um do
outro. Elisa e Caio continuavam a viver juntos, mas era
quase como se não vivessem.

Ele, com sua amante.

58


Ela, com sua conduta exemplar, de moça bem criada
e amargurada com a tragédia de sua vida.

No dia em que Danilo completou vinte anos, seu pai

o chamou:
— Hoje é um dia especial.
— Não sei por quê.
— Você está fazendo vinte anos.
— Esse negócio de aniversário é para criança.
— Você ainda não decidiu o que vai fazer na vida?
— Não entendi a pergunta.
Bernardo procurou não se impacientar com o filho:
— Vou ser mais claro. Você não quer estudar, não é?
— Para quê? Não fiz o ginásio e o científico?
— Acha bastante?
— Até demais.
— Não pode continuar a vida inteira na praia ou andando
montado nesta maldita motocicleta.
— Por que não?
— Porque não pode.
— O que quer que eu faça?
— Você vai começar a trabalhar, já que não quer estudar.
— Mas para quê? Não somos ricos?
— Somos.
— Então?
— Todo mundo trabalha ou estuda.
— E eu tenho que fazer o que todo mundo faz.
— Exatamente.
Suspirando para disfarçar a impaciência, Bernardo colocou
o braço no ombro do filho:

— Eu lhe arranjei um emprego.
— Sem me consultar primeiro?
— Isso mesmo.
59


— Pensa que não tenho direito de dar minha opinião?
Que me domina e faz o que quer comigo?
— Não é isso, Danilo. É que eu penso no seu futuro.
— Eu só penso no presente.
— Está errado.
— Como prova que estou errado? Posso estar mais
certo do que o senhor.
— Não está não. Todo mundo...
— Lá vem o senhor com essa história de todo mundo.
— Você não é diferente das outras pessoas.
— Já disse que não quero pensar no futuro. Se fosse
pobre, o senhor ainda tinha um argumento. Além disso,
lembra do Fausto, aquele meu amigo?
— O que morreu no desastre de moto?
— Ele mesmo.
—• Você devia ter aprendido a lição e dado fim a esta
motocicleta.

— Aprendi a lição de outra maneira: de que não se
deve pensar no futuro, porque pode-se morrer a qualquer
momento.
— E se não morrer?
— A gente sempre se arranja, principalmente quando
se tem dinheiro.
Procurando ser o mais compreensivo possível, Bernardo
explicou:

— Todos os jovens reagem mais ou menos assim como
você, diante da perspectiva de um trabalho. Vamos fazer
um acordo?
— Que tipo de acordo?
— Você experimenta o emprego. Se não gostar, larga.
— Já sei que não vou ficar nem uma semana.
• — Tem que ficar pelo menos um mês. Uma semana
é muito pouco, não dá para sentir.

— Para mim, um dia já é até demais.
— Prometa que fica um mês.
— Não sei...
— É um ótimo emprego. E não se preocupe que não
60


vai ter que trabalhar muito. Terá um excelente salário e
trabalhará pouco. É apenas para você começar a ter noção
de responsabilidade. Vai ver depois que estou com a razão,
e achar até bom. Pode acreditar que é bom ter uma obrigação.
Isso vai ajudá-lo muito.

A contragosto, Danilo prometeu aceitar a experiência.

— Não se preocupe — continuou Bernardo. — Vai
trabalhar apenas meio expediente. Dará tempo de ir à
praia, encontrar com as garotas, divertir-se. Se precisar,
faltar algum dia, também não tem importância. O principal
é que você comece a se acostumar com um trabalho
qualquer, alguma coisa que lhe discipline um pouco, que
lhe dará possibilidade de poder enfrentar os problemas que
algum dia surgirão quando estiver mais velho.
* * *

Danilo começou a trabalhar, num alto cargo, na firma
de um amigo de seu pai. A princípio, achou tudo muito
chato. Inclusive não sabia fazer absolutamente nada. Mas
a secretária que lhe colocaram à disposição, além de ser
uma mulher bonita, era muito eficiente e lhe ensinou o
que devia fazer.

Para tornar o emprego menos insípido, Danilo decidiu
interessar-se sexualmente por Celina, a secretária, apesar
desta ter mais de trinta anos. Ó que também lhe atraía.
Nunca andara com mulheres acima de sua faixa de idade.

— Quer jantar comigo? — perguntou Danilo uma
semana depois de ter assumido seu posto na empresa.
— Quando? — perguntou Celina. . .'
— Hoje.
— Onde?
— Você escolhe.
Jantaram juntos num restaurante sofisticado. Celina
era uma mulher independente, desquitada.

— Você é casada?
61


— Fui.
— Não é mais?
— Separei-me de meu marido há dois anos.
— E não tem outro?
— Marido?
— Não necessariamente.
— No momento, não.
Ele riu.
O garçom trouxe a sobremesa.
Celina olhou para Danilo com desejo. Era um bonito
rapaz. Devia ser ótimo na cama. E ele não queria outra

coisa. Ela também.
Beberam bastante vinho.
Alegres, saíram do restaurante.
Tomaram o carro de Danilo, que os levou até o edi


fício onde a mulher morava.

— Não quer que eu suba?
— Você quer?
— Claro.
Subiram.
No apartamento, Celina perguntou:
— Quer beber mais?
— Quero.
— O quê?
— Uísque.
Ela foi preparar o drinque.
O apartamento era bem montado. Danilo gostou do
ambiente. Celina era uma mulher fina, requintada, de
bom gosto, sofisticada. E bonita. Nem aparentava os trinta
e poucos anos que tinha.

Lembrou-se de que talvez Celina tivesse filhos e ficou
curioso em saber.
Ela voltou com o uísque.

— Você tem filhos?
— Por que me pergunta isso? »
— Por nada. Tive vontade de saber.
— Tenho.
62


— Quantos?
— Três.
— Não vivem com você?
— Não.
— Por quê?
— Você tocou num assunto delicado.
— Desculpe.
— Não tem importância. Até gosto de seu interesse
por minha vida. É uma prova de que significo alguma
coisa para você.
Cada vez ele gostava mais do jeito tranqüilo e seguro
de Celina. Ela continuou:

— Meu desquite foi litigioso. Meu marido soube que
eu tinha um amante. Nos separamos e ele ficou com as
crianças.
— Nunca vi uma pessoa assim como você.
— Assim como?
— Com essa tranqüilidade. Não faz dramas com as
coisas.
— Para quê? Não se deve perder tempo com tragédias.
As coisas acontecem. E a gente dá um jeito de passar
por cima.
— Não tem saudades das crianças?
— Tenho uma vida muito cheia. O trabalho, meus
casos ocasionais. Falando assim, pode pensar que sou desu63



mana, que não tenho sentimentos. Mas não é isso. Apenas
sei aceitar as coisas. Por temperamento, não sou de me
desesperar por nada. Encaro tudo com a maior naturalidade.
De vez em quando vejo meus filhos, dou-lhes presentes.
Não tenho muito do que me queixar.

Danilo estava verdadeiramente fascinado e ao mesmo
tempo um tanto tímido diante da mulher. Nunca conhecera
nenhuma com tanta classe.

Ela continuou:

— Estou com pouco mais de trinta anos. Amo a vida
e a mim mesma. Tenho um ótimo emprego. Não passo
por dificuldades financeiras. Possuo este apartamento e
mais dois alugados. Posso me manter. Gosto de ser independente.
Minha família não aprova meu tipo de vida. Mas
não podemos agradar a todo mundo. Meu lema é este:
agradar primeiro a mim. Os outros vêm depois.
— Também penso assim. Primeiro eu, depois os outros.
— Dois egoístas juntos. O que vai sair disso?
Deram uma gargalhada. Ela retomou a palavra:

— Talvez um relacionamento muito agradável.
— Talvez — disse Danilo tomando mais um gole de
uísque.
— A vida é muito boa. Devemos aproveitá-la. É isso
que a gente leva da vida: vivê-la. Aproveitar todas as oportunidades.
E elas são muitas, pode acreditar.
Danilo acreditava. Naquela noite, tornou-se amante
de Celina. Experiente, ela soube conduzi-lo na cama, excitou-
o, fez com que sentisse mais prazer do que com as
outras com quem já tivera relações.

64


Mas tudo sem perder a classe. Celina não tinha nada
de vulgar.

* * *

Depois de um mês, Bernardo voltou a conversar com

o filho:
— Então, está gostando de sua experiência no trabalho?
— Estou.
— Eu não disse? Vai querer deixar o emprego?
— Não.
— Confesso que no início estava pessimista. Você está
me dando uma boa surpresa, rapaz.
O que Bernardo ignorava era que'Danilo estava gostando
do trabalho, única e exclusivamente por causa de
Celina.

E de certa forma, sentia-se mais importante do que
seus companheiros de farra. Desprezava-os agora por andarem
com aquelas garotas sem classe. Talvez mesmo, estivesse
entediado das loucuras da juventude.

A convivência diária com Celina.

As idas às boates.

As longas noites, deitado no sofá, com a cabeça em '

seu colo, bebendo uísque e ouvindo discos de Maysa. ;
Tudo muito requintado.
Estava gostando desta nova fase de sua vida.

65


Claro que um dia terminaria com Celina. Acharia chato
ter que vê-la diariamente. Mas por enquanto o romance
estava no auge, não se esgotara. E queria usufruí-lo até
a última gota.

Como o uísque que tinha no copo.

Celina perguntou:

— Quer mais?
— Não. Por hoje chega. Vamos para a cama.
E foram.

As pernas longas de Celina que o enlaçavam. Seus
braços também longos, que o abraçavam. Seus beijos demorados,
sua maneira de entregar-se a ele, e de, apesar de
tão segura de si, saber ser feminina.

66


CAPITULO 8

A LIÇÃO

O caso com Celina duraria a vida inteira, talvez, se
Danilo não notasse cinco meses depois, que estava se tornando
quase passivo diante da amante.

Durante todos aqueles cinco meses, tinha sido completamente
fiel, para com ela. Não encontrava-se mais Com
os companheiros nos bares, quase não andava mais de motocicleta,
que estava abandonada num canto da garagem
do edifício.

67


Quanto à moto ele estava mesmo a fim de aposentá-
la, desde a morte de Fausto, mas não o fizera antes,
para provar a si mesmo que não era covarde. Com Celina,
praticamente esquecera a motocicleta.

Mas o que lhe chamou a atenção para sua passividade,
foi justamente o fato de não tê-la traído durante
todos aqueles cinco meses.

Achou que não estava agindo como um homem. Co*
meçou a perceber que Celina estava querendo dominá-lo.
Propositalmente, faltou a um encontro com ela e foi para
as ruas, naquela, noite, à procura de uma mulher qualquer.


Encontrou uma de suas ex-garotas, Cássia, perambulando
pelos bares.

— Oi, Danilo, quanto tempo!
— Pois é...
— Pensei ãté que tinha morrido.
•— Que idéia! Não fale isso que dá azar.
- — O que houve? Ficou covarde de repente?


— Covarde por quê?
— Não se pode nem falar em morte que você morre
de medo? Por ond^tem andado?
— Agora não tenho muito tempo. Estou trabalhando.
— Trabalhando?!
— Por que o espanto?
— Não posso conceber você num escritório.
•. — Para você ver.
— Você não é rico?
— Sou.
— Então, para que trabalhar?
68


— O velho resolveu que eu tinha que aprender o que
era a vida.
— Ele acha que a vida é ficar trancado num escritório?
— Sem dúvida.
Riram.
— Como está enganado!
— Concordo.
— Mas você trabalha tanto que não tem tempo nem
de se divertir?
— Vou lhe contar um segredo.
— O que é?
— Não espalhe.
— Pode deixar.
— É que estou de caso com minha secretária e a mulher
não dá sossego.
— Ah, então já sei por que não está tão chateado
com o emprego! Ela é bonita?
— E eu já andei com mulher feia?
— Obrigada pelo elogio.
— Ela não quer me dar uma folga.
— Mas hoje você fugiu.
— Dei o bolo. Está me esperando.
— Coitada.
— A gente precisa variar um pouco de vez em quando,
não é?
— Quanto tempo está com ela?
— Dois meses — mentiu Danilo, com receio de .que
Cássia debochasse dele se soubesse que estava com ela a
mais tempo.
— E este tempo todo andando só com ela?
69


— Bem. .-.já dei umas duas ou três voltas com outras
— mentiu de novo Danilo. — Por falar nisso, tem algum
programa para hoje?

—' Se tivesse, não ia. Prefiro você.

E os dois foram para o apartamento que Danilo possuía
para seus programas e que há cinco meses não tinha
utilidade nenhuma.

Levou Cássia para a cama. Sentiu-se mais homem ao
seu lado. Não havia aquele clima que Celina sempre deixava
transparecer, ou seja, sua superioridade, seu ar meio
distante,, sua.'classe excessiva.

Não, com Cássia era diferente. Ele mandava. Sentia-se
mais homem, mais macho, mais animal.

Docilmente, Cássia submeteu-se a todos os seus caprichos.
Foi violento com ela, chegou mesmo a espancá-la.
Cássia não reclamou.

Assim era que ele gostava. Havia uma diferença, ele
era o homem e ela a mulher. Com Celina, não. Ela não
deixava aparecer a diferença, era como se os dois fossem
iguais.

Depois de fazer amor com Cássia, não se deu ao trabalho
de levá-la para casa.

E pensou em dar outra lição em Celina. Da próxima
vez que fosse para a cama com ela, também a submeteria
a todos os seus caprichos; a espancaria.

* * *

— O que houve ontem? — perguntou Celina no escritório,
no.dia seguinte.
— Não pude ir até sua casa. Só isso.
70


— Podia ter telefonado.
Danilo falou com cinismo, rindo:
— Não me lembrei.
Ela compreendeu:
— Não gosto de levar bolo.
— Azar o seu.
— Está aborrecido com alguma coisa?
— Não. Por quê?
— Então, por que está tão agressivo?
Fingiu-se grandemente surpreendido:."
— Eu?! Agressivo?
— Sim, você.
— Não acho.
— Eu que tinha razão de estar agressiva.
— Não sei por quê.
— Por que você faltou ao encontro. Não gostei. Se
está querendo bancar o machão pra cima de mim, desista,
meu filho.
E o tom de voz de Celina foi de absoluto desprezo, o
que desagradou Danilo. Mas se vingaria dela naquela noite.
Quando o expediente terminou, Celina despediu-se

friamente:

— Até amanhã.
— Não quer se encontrar comigo logo mais.
— Se você quiser... Mas não vou ficar esperando
como ontem.
— Claro que não. Vamos sair juntos. Jantamos e vamos
para sua casa.
Danilo estava mesmo disposto a dar uma lição em
Celina, acabar com sua superioridade, com sua classe, com;
tudo aquilo que a princípio tanto o atraíra. E ainda atraía,

71


só que por "alguma razão sentia-se ofendido em sua virilidade.
Queria provar que o homem era ele, de quem
dava as cartas.

Escolheram um restaurante sofisticado, como de costume.


E foram depois para o apartamento de Celina.

Para ter coragem de fazer o que planejara, Danilo
bebeu mais do que de hábito.

— Não acha que já bebeu demais? — perguntou Celina.
— Eu acho.
— Mas eu não.
— Detesto bêbados.
— O que eu tenho com isso?
— Você está em minha casa, em minha companhia.
Se eu não gosto que uma pessoa beba demais, você tem
que se controlar e não beber tanto.
— Por quê? Só para lhe agradar?
— Acertou. Não pensei que fosse tão inteligente!
Novamente, ele mal pôde dissimular sua irritação diante
-daquela mulher tão segura de si, que julgava que o
estava dominando. Ela veria logo mais na cama.

72


Celina decidiu não continuar reclamando. Terminaram
indo para a cama. Danilo deitou-se de sapato e tudo.

A mulher fez uma careta de desaprovação:

— Por que está se deitando vestido?
— Faz questão que tire a roupa?
— Mas claro...
Ele saiu da cama, tirou a camisa, as calças .e a cueca,
voltando a deitar-se de sapatos. Tudo para provocar Celina.


— Tire os sapatos.
— Eu não tirei?
— Você sabe que não.
Na cama mesmo, Danilo jogou os sapatos para o alto.
— Nunca o vi assim.
— É o meu outro lado. O lado desconhecido. Todas as
pessoas sempre têm um lado desconhecido.
— Você está muito bêbado, Danilo.
— Não vá recomeçar a reclamar.
E Danilo começou a beijar a mulher, apertando-a com
força, até que ela sentisse dor. Celina não estava nada satisfeita
com a mudança que se operara no amante. Empurrou-
o, mas Danilo não a largou.

— Vá embora. Você não está em condições de...
73


Não conseguiu completar a frase. Danilo deu-lhe uma
bofetada. A face de Celina ficou vermelha. Ela não podia
conceber ser espancada por ninguém. Aquilo fez com que
sua ira viesse à tona:

— Saia de minha casa.
Ele tornou a esbofeteá-la. Travou-se então uma luta
corpo-a-corpo. Celina desprendeu-se dele e acertou-o com
um jarro n a testa. O sangue espirrou. Mas a pancada não
foi muito forte, para derrubá-lo.

Achava tudo muito desagradável. Nunca imaginara
que Danilo fosse se comportar daquele jeito. Nunca mais
queria vê-lo. Nem mesmo no escritório.

Pediria transferência para outra seção, até mesmo demissão,
se fosse preciso.

Enquanto pensava, Danilo voltou a bater-lhe, cada vez
mais enfurecido. Celina ameaçou:

— Vá embora de minha casa, senão chamo a polícia.
Ela parou de bater-lhe e gritou:
— Não precisa. Já vou embora. Quis apenas provar
que você não tem tanta classe quanto pensa. E que o homem
aqui sou eu. Foi só para você aprender. Garanto que
no fundo gostou de levar pancada.
.E Danilo saiu do apartamento da amante, deixando
a porta aberta.

74


Na rua, sentiu-se aliviado.

Celina fechou a porta e arrumou o apartamento. Depois
lavou-se, trocou de roupa e deitou-se. Apesar de toda
a raiva que sentia, readquiriu o autocontrole. Danilo não
a veria mais.

E de fato o romance acabou ali. Celina pediu realmente
transferência e foi trabalhar em outra seção. Deram
nova secretária para Danilo. Uma mulher feia, sem
graça.

Mas ele estava satisfeito. Dera a Celina a lição que
ela estava precisando. Pelo menos, no seu entender.

75



CAPITULO 9

O INTELECTUAL

Três anos depois, Danilo continuava no mesmo emprego.
Acostumara-se com o trabalho, galgava posições cada
vez mais altas, ganhava muito bem, estava plenamente
satisfeito.

Conheceu Selma, uma garota também de família rica.
Noivaram e casaram.
Selma era virgem, lógico. Senão Danilo não casaria

com ela. Não podia admitir casar com uma moça que já

76


tivesse pertencido a outro. Mulher dos outros não tinha
importância, mas a sua tinha que ser pura como nascera.

Ela tinha uma aparência doce, os olhos cinzentos, um
corpo frágil. Danilo compreendera logo que a conhecera,
que podia dominá-la facilmente e de maneira total. Justamente
como sempre desejara. Uma mulher submissa.

Formavam um belo casal.

Passaram uma deliciosa lua-de-mel em Paris.

Apesar de estarem em lua-de-mel, Danilo deixou-a uma
noite sozinha no hotel em que estavam hospedados e foi a
uma boate em busca de aventura. Não poderia deixar de.
andar com outra mulher, pelo simples fato de ser recémcasado.
Sempre estava a fim de provar a si mesmo sua
virilidade. O fato de que era um homem, pelo menos no
seu conceito.

Claro que Selma desconfiou desta saída noturna, sozinho.
Mas não se rebelou. Procurou pensar que, simplesmente,
Danilo quisera dar um passeio sem ela. Nada demais.
Um simples passeio inocente.

Voltaram para o Rio.

Um ano passou.

Selma não dava sinal de estar grávida.

— Gostaria de ter um filho.
— Eu também — respondeu Selma.
Passaram-se mais alguns meses. Nada.
— Talvez fosse bom você consultar um médico —
aconselhou Danilo.
— Você também.
— Por que eu? Se não temos filhos, a culpa certamente
não é minha.
Deve ser sua.
Nunca Danilo permitiria a si mesmo ou a quem quer

77


que fosse, pensar que ele era estéril. Aquilo feria seu amorpróprio.
Ser estéril, em sua concepção, talvez significasse
ser menos homem. Por isso, a culpa de não terem filhos
só podia ser de Selma.

E era.
O médico confirmou.
Selma ficou muito triste.
Aconchegou-se nos braços do marido:


— Eu queria tanto lhe dar filhos.
Ele estava também contrariado, mas procurou bancar
o forte, aquele que não era atingido por nada:
— Não faz mal.
Lógico que durante aquele ano e meio, Danilo tivera
suas aventuras com diversas mulheres. E com o passar do
tempo, arranjava uma quantidade cada vez maior de
amantes, enquanto a esposa permanecia dócil e fiel.

Era assim que devia ser, pensava.
A impossibilidade de Selma lhe dar um filho também
-o chateava. Mas terminou se acostumando à idéia.
Apesar de toda a sua doçura e submissão, aos poucos
Selma começou a se revoltar com o fato de Danilo ter
inúmeras amantes e ligar pouco para ela.
No entanto, aparentemente, formavam um casal feliz.
Freqüentavam a sociedade, iam a festas, boates, restau


rantes de luxo.
O que Selma podia querer mais? — pensava Danilo.
Mas uma transformação que nem mesmo ela sentia,

foise operando em seu íntimo. Casada com Danilo há dois
anos, ele continuava sendo o único homem com quem tinha
ido para a cama.

78


Porém de que adiantava essa fidelidade, se o mesmo

não acontecia com ele?
Seria apenas uma questão de oportunidade.
Selma não tinha temperamento de sair procurando

homem por aí.
Mas quando aparecesse algum, certamente que acei


taria.
E apareceu.
Chamava-se Euclides.
Um intelectual.
Absolutamente diferente de Danilo.
Magro, pálido, de barba.
Existencialista, adepto de Sartre.
Conhecera-o numa festa. Seu tipo chamou-lhe a

atenção.
Enquanto Danilo procurava conquistar uma mulher'
qualquer da festa, Selma recolheu-se a um canto.

Foi quando Euclides se aproximou com um copo de
bebida na mão. Demonstrava claramente que estava embriagado,
por causa de sua voz pastosa.

E viera a saber depois, que somente por estar bêbado,
Euclides tinha se aproximado dela, pois era um tímido
irremediável quando sóbrio. Talvez por isso que bebia.


— Está só?
— Mais ou menos.
— Não vejo ninguém ao seu lado.
— Meu marido está logo ali...
— Então é casada?
— Sou.
— Onde está seu marido?
79


— No terraço tentando conquistar uma de minhas
amigas.
Euclides sentou-se ao seu lado:

— Posso lhe fazer companhia?
Selma verificou que seus olhos eram miúdos, bem pretos,
e que apesar da aparência pálida e pouco saudável,
da barba e das pequenas rugas em volta dos olhos, parecia
uma criança:

— Pode.
— Seu marido é ciumento?
. — É.
— E você nãe?
— Também sou. .
— Como permite que ele esteja atrás de outra?
— Digamos que me acostumei.
— Será?
— Não me aprofundo muito neste assunto.
— Por quê?
— Procuro esquecer.
— A gente deve se aprofundar em tudo.
— Mesmo sofrendo mais?
— O sofrimento é bom.
— Você acha?
— Talvez eu seja masoquista. Mas todo mundo é, de
uma forma ou de outra. Ainda não lhe disse meu nome,
não foi?
— Não.
— Euclides.
— O meu é Selma.
Ele riu. Tinha os dentes meio amarelados, talvez devido
ao excesso de cigarro. Fumava um atrás do outro. Ela

80


o examinou melhor. Euclides não era o que se costumava
entender por um homem bonito.
Muito magro para o padrão de beleza masculina. E de
uma palidez quase doentia. No entanto, achava-o terrivelmente
atraente.

Talvez por ser mesmo o oposto de Danilo, que era extremamente
bonito, de traços perfeitos e viris, corpo apolíneo,
pele corada.

Vendendo saúde.

Estava cheia de pessoas saudáveis demais. Talvez por
influência da personalidade de Danilo, achava que todas
essas pessoas que pareciam vender saúde, não tinham, sentimentos.


E ela ansiava por alguma espécie de sentimento.

. Não tanto por sexo.

Mas por sentimento.

Não era o que se podia chamar de uma mulher sensual.


O que não significava que fosse fria.

Era uma mulher normal. (Apesar de não poder ter

filhos, pensou com desgosto.)

— Você parece triste.
— Sou assim mesmo.
— Sofre muito com as traições de seu marido?
— Já disse que me acostumei.
— Você é uma resignada — falou Euclides com ironia.
Até sua ironia achou agradável. Sorriu. O rapaz pediu
desculpas:

— Afinal, mal nos conhecemos, não tenho direito de
estar analisando-a nem me metendo em sua vida. Não
gosto de me meter na vida dos outros, mas não posso ne81



gar que gosto de analisar as pessoas. Principalmente por
quem sinto.interesse. Por favor, não me leve a mal...
.— Não se preocupe. Não levei a mal.

— Acho o ser humano uma coisa fascinante. Adoro
conhecer profundamente as pessoas. Cada uma carrega
um mundo diferente, pensa diferente. Por mais vulgar que
seja, sempre tem alguma coisa de diferente. E é isso que
me fascina.
— Só não posso entender uma coisa.
— O quê?
— O que você está fazendo nesta festa.
Ele riu de novo:
'• — Eu também não entendo. Um amigo me convidou.
Ele é da alta-sociedade, assim como você. Eu me chateio
com esse tipo de gente. Mas como disse há pouco, gente,
de qualquer espécie, sempre me interessa. Há sempre o
que explorar na mente humana.

O garçom passou servindo bebida. Euclides devolveu
seu copo vazio e pegou dois cheios, um para ele e outro
para Selma.

— Talvez eu tenha vindo para aproveitar a bebida de
primeiríssima qualidade, de graça, e não para analisar
às pessoas. Um motivo muito menos nobre, como vê.
Cada vez mais, Selma estava gostando de conversar
com Euclides. Com Danilo não tinham do que falar. Também
com outras pessoas de seu ambiente. Era todo mundo
muito vazio. Sentia-se deslocada. Com Euclides, pelo contrário,
sentia-se perfeitamente bem, apesar de tê-lo conhecido
há poucos minutos.

Pensou que Danilo poderia ver os dois juntos e não fi


82


car satisfeito. Euclides pareceu adivinhar-lhe os pensamentos
:

— Seu marido talvez não goste de nos ver conversando.
— Não se preocupe muito com isso. '
— Preocupo-me por sua causa.
— Danilo está muito ocupado lá no terraço.
E de fato estava. Selma ainda ficou -com Euclides por
mais uma hora. Até que ele mesmo resolveu bater em retirada:


— Já bebi demais. Acho que já aproveitei bastante da
festa. Vou sair por aí.
— Já?
— Vou andar um pouco. Estou me sentindo abafado.
E depois, se continuar bebendo desse jeito, começo a dar
vexame. Não quero que me veja dando vexame.
— Faz alguma diferença para você, que eu ou outra'
pessoa o veja dando vexame?
— Faz.
E ele olhou-a. Com seus olhos miudinhos. Selma teve
vontade de afagar-lhe a cabeça, beijar-lhe os olhos.

— Não tenho cartão. Também não estou com caneta.
Mas vou dizer o número do meu telefone. Espero que tenha
boa memória e não esqueça. Se esquecer... bem, se
esquecer, era porque tinha que ser assim.
E disse o número de seu telefone.
Despediu-se de Selma.
Desapareceu no meio dos outros convidados e foi em


bora.
Ela continuou no mesmo lugar.
O garçom passou outra vez.

83


Selma pegou mais um copo de uísque.

Estava com vontade de tomar um pileque, coisa que
nunca fizera em toda a sua vida. E tinha vontade também
de sair correndo porta afora atrás de Euclides. Andar com
ele pelas ruas.

Repetiu para si mesma o número do telefone.
Não, não esquecera.
Tinha boa memória.
E mesmo porque não queria esquecer.
A festa acabou.
Ela e Danilo voltaram para casa.


84



CAPÍTULO 10

CASO DE AMOR

Selma discou o número.
Ouviu o telefone tocando, tocando.
Uma vez, duas, três, dez.
Ninguém atendeu.
Euclides não estava em casa.
Esquecera de perguntar qual a melhor hora para lhe


telefonar.
Tentaria outras vezes, mais tarde.

85


Necessitava urgente tornar a ver Euclides.

Não que estivesse louca para fazer amor com ele. Nem
mesmo pensava nisso. Queria conversar. Ter alguém com
quem falar. Coisa que ela não tinha.

Com Danilo mal trocavam monossílabos.
Ela não dava muita importância a sexo.
Talvez porque entre ela e Danilo a coisa acontecia


mecanicamente.. .
O que precisava mesmo era preencher seus longos dias

vazios.
Suas tardes imensas, sem nada para fazer.
Como lhe faziam falta os filhos que não podia ter.
Telefonou para Euclides duas horas mais tarde.
Não esperava que tivesse ninguém em casa. Para sua

surpresa, desta vez, ele atendeu:

— Alô!
— Euclides?
— Ele mesmo.
— Aqui é Selma.
— Selma?
— Sim. Não -está lembrado de mim?
— Desculpe, mas...
— Não precisa se desculpar. Você esteve comigo naquela
festa...
— Ah, jã sei! A moça dos olhos cinzentos e tristes.
Mas claro que me lembro de você.
— Lembra mesmo?
. — Eu não ligo muito para esse negócio de nomes. O
que me interessa é a figura humana. E sua figura é inesquecível.
Como vai?

— Bem. E você?
86


— Vou levando. Seu marido conseguiu conquistar a
mulher do terraço? .' .
— Deve ter conseguido. Ele consegue tudo que quer.
Mas não posso ter certeza absoluta porque não perguntei.
Ouviu o riso de Euclides:

— Você, apesar dos olhos cinzentos e tristes, tem uma
qualidade que aprecio muito: senso de-humor.
— Que jeito! É preciso ter bom-humor.
— Também acho.
— Eu liguei mais cedo.
— A que horas?
— Uma e pouco. Ninguém atendeu. .
— Eu estava dormindo.
— E o telefone não lhe acorda?
— Não. Você precisa ver. Eu o coloco na gaveta quando
vou dormir, envolto num cobertor. Ouço apenas a cam-painha
tocando longe, longe... Se soubesse que era você
tinha ido correndo atender.
— Sei que não tenho esse direito, mas de qualquer
jeito, vou fazer a pergunta: Você não trabalha?
— Trabalho sim.
— E dorme até mais de uma hora da tarde dia de;
semana?
— Sou jornalista. Trabalho à noite. Naquela noite dafesta
estava de folga. Explicado?
— Explicado.
— Não quer vir até aqui?
Ela demorou a responder. Claro que queria, mas sentiu-
se estranhamente tímida. Do outro lado da linha, Euclides
desculpou-se mais uma vez:

87


— Perdoe-me por fazer este convite. Mas creia que
não foi com segundas nem terceiras Intenções.
— Não sei-seu endereço.
Ele deu o endereço e Selma foi até seu apartamento.
Era perto. Meia hora depois estava lá.
Euclides abriu a porta.
— Olá!
— Olá!
Ele a fez entrar:
— Desculpe a desarrumação. Vivo sozinho. Não tenho
nem empregada. Por isso você está vendo essa sujeira
toda. Nesta meia hora procurei arrumar o que pude, mas
o resultado
deixa muito a desejar.
Era um apartamento pequeno, de quarto e sala separados.
Os móveis, velhos. Livros por todas as partes. Estantes
e mais estantes. Exatamente como imaginara que
seria o apartamento em que Euclides morava. Não se decepcionou
nem um pouco.

— Isso aqui é uma bagunça total. Não tem mesmo
jeito.
— Você tem muitos livros.
— Precisa ver o quarto. Tem muito mais lá dentro.
Nem eu mesmo sei para que quero tanto livro. Apesar de
achar que ler é a melhor coisa que se possa fazer. Quer
beber alguma coisa? Meu uísque não é da mesma qualidade
a que você está acostumada.
— Não, obrigada. Não quero beber. Mas não é por
causa da qualidade do uísque. Simplesmente não sou de
beber muito. Só em festas, para conseguir suportar toda
aquela chateação.
88


Passaram a tarde inteira conversando. Euclides mostrou-
lhe o quarto, seus livros, aqueles que preferia;

— Preciso fazer uma seleção. Tem muita porcaria
aqui. Mas só de pensar que tenho que fazer isso, fico morto
de cansaço, deprimidíssimo. E vou adiando.
Era um mundo totalmente desconhecido para Selma.
Ela descobriu também que tinha um interesse muito grande
pelas pessoas, pelo ser humano. Que a vida não era
aquela coisa que ela levava: um marido rico, indiferente,
vestidos caros, festas, conversas fúteis.

Havia muito mais. Um mundo que Euclides estava lhe
revelando.

Não houve nenhuma tentativa de conquista por parte
do rapaz. Tratava-a com a maior naturalidade, como se
os dois não pertencessem a sexos diferentes.

Contou-lhe sua vida.

Não tinha pais.

Viera para o Rio tentar a vida. Formara-se na Faculdade
de Filosofia, falava várias línguas, fazia traduções
em casa, além de seu trabalho normal como jornalista.


Estava com trinta e dois anos. Não, não era casado.
Permanecia solteiro e continuaria assim provavelmente.

— Por quê?
— Sei lá... esse negócio de casamento, isso não é
para mim. A primeira coisa que uma mulher iria fazer
aqui era acabar com meus livros, dar a aparência de úm
lar, no sentido convencional. Isso não me agrada. Também
gosto de viver só. A solidão não é um bicho de sete
cabeças como muita gente, quase todo mundo aliás, pensa.
Vivem todos correndo da solidão, procurando companhia
89


desesperadamente, e sentindo-se cada vez mais solitários.
Eu não fujo dela. Pelo contrário. Aprendi a amá-la. Ela
me deixa ler os livros que quero, não me interrompe. Me
dá liberdade.

— E quando ficar velho? Não tem medo?
— São poucas as coisas que me metem medo. Não,
não tenho medo da velhice. Só de doenças. Mas doente eu
posso ficar mesmo jovem. A velhice é bonita. Dá tranqüilidade.
Nada melhor do que a experiência dos anos. —
E filhos? Também não quer?
— Não. Para que botar mais gente neste mundo já
tão habitado? Já tem muita gente se encarregando disso
por mim.
— Pois o meu grande problema é não poder ter filhos.
Euclides notou que os olhos cinzentos de Selma tinham
ficado mais tristes.

— Você queria ter filhos e não pode. Eu talvez possa,
nunca me dei ao trabalho de me certificar, e não quero.
Está vendo como são as coisas?
— Acho que meu' casamento com Danilo seria mais
feliz se a gente tivesse filhos.
— Isso é apenas uma desculpa. Garanto que seria a
mesma coisa.
— Pelo menos eu teria a quem me dedicar, com que
encher meu tempo.
. — Bem, neste sentido, é verdade. Não discuto.
Já escurecera. Os dois continuavam conversando sem
notar que era necessário acender a luz. Finalmente Euclides
percebeu o fato e foi até o interruptor, acendendo a
lâmpada.

90


Selma se deu conta de que estava na hora de ir embora:


— Eu já vou.
— Se soubesse não tinha acendido a luz — disse Euclides
rindo.
— Está na hora.
Levantou-se.
Euclides a acompanhou até a porta.
— Foi uma tarde agradável.
— Realmente. Só espero não ter atrapalhado seu trabalho.
Você talvez tivesse que traduzir alguma coisa.
— Amanhã eu compenso o que não' fiz hoje.
— E também já está na hora de ir para o jornal.
— É...
Olharam-se.
— Quando você aparece de novo?
— Eu telefono.
— Telefona mesmo?
— Claro.
Selma saiu.
Sentia-se feliz. Havia sido uma tarde realmente muito
agradável. E Euclides nem se aproximara dela, não tentara
seduzi-la. Não que estivesse decepcionada com isso. Era
justamente este fato que a agradara.

Não podia negar a si mesma que se continuasse encontrando-
se com Euclides, e estava disposta a continuar,
os dois terminariam tornando-se amantes. Mas tudo, ela
tinha certeza, aconteceria naturalmente, sem que houvesse
nenhuma precipitação de nenhuma das partes.

* * *

91


Naquela mesma semana, voltou ao apartamento do
jornalista. Em vez de ficarem em casa, ele a convidou para
ver um filme de arte que estava passando. Aceitou o convite
com entusiasmo.

Jamais Danilo a levaria para ver um filme daqueles.
Mesmo porque ele não entenderia nada. E ela não gostava
de ir ao cinema sozinha.

Não se preocupou com o fato de que pudesse ser vista
com outro homem que não o marido, ou que Danilo soubesse.
Talvez porque sabia que era uma possibilidade remota.
Seus conhecidos não assistiam àquele tipo de filme.

Os encontros se sucederam.
Duas ou três vezes por semana passava as tardes com
Euclides.

Não gostaria de trair o marido. Apesar de tudo. Mas
achava que, com Euclides, não o estava traindo. Simplesmente
porque amava o jornalista. E não amava mais Danilo.
Fazer amor com o marido parecia-lhe muito mais que
traição. Pois estava traindo a quem realmente amava. Por
enquanto platonicamente.

Até que uma tarde, depois de telefonar, foi até o apartamento
de Euclides. Começara a chover de repente e a
temperatura mudara. Mesmo assim, não desistiu de ir.

— Pensei que não viesse.
— Por quê?
— Por causa da chuva.
Ela quis ver o livro que ele estava traduzindo.
— É bom?
— Mais um "best-seller" americano. Uma bobagem.
Selma leu alguns trechos da parte traduzida.
92


Não entendia nada de literatura. Achou agradável o
que lera.

— Você é muito exigente. Gostei do que li.
— Ê.. . talvez não seja dos piores. Confesso que sou
exigente demais. Talvez em tudo.

E olhou-a.

Pegou na mão de Selma, naturalmente.

As janelas estavam fechadas. Via-se a chuva através
do vidro.
Ele a levou para o quarto e beijou-a.
O momento chegara.
Naturalmente, como Selma previra e queria.
Foi tudo muito suave.
Na semÍ7escuridão do quarto de cortinas fechadas, ela

deitou-se na cama. Euclides a beijava ternamente. Tiroulhe
a roupa sem pressa e depois também se despiu.
Selma sentiu o corpo magro do homem por cima do
seu.
Ele acariciava-lhe os cabelos, olhando-a nos olhos.

— Você é poeta? — perguntou Selma, ao mesmo tempo
que julgou ter feito uma pergunta idiota.
— Não. Nunca escrevi um verso em toda a minha vida.
Nem mesmo para a primeira namorada.
Mas se não sabia escrever, os gestos de Euclides na
cama eram pura poesia. Seu jeito suave de alisar a pele
de Selma, suas carícias...

O contato de sua mãg, percorrendo-lhe o corpo, sua
boca beijando cada parte dele, seu cuidado de não magoá-
la, de não feri-la nem física nem emocionalmente.
Tudo isso fez com que Selma entrasse numa espécie de
êxtase absoluto.

93


Apesar de dizerem que tudo no mundo era relativo,
Selma teve a impressão de que naquele momento encontrara,
o absoluto. Seu amor por Euclides era total, completo.


Seria dele naquele momento e para sempre.
Mesmo depois, se ele não a quisesse mais.


* * *

Ela era uma mulher de um homem só.
Não queria trair Euclides.
Não podia'ser infiel ao homem que amava.
Pensou que estava com sorte, porque Danilo há muito


não a procurava na cama, empolgado que devia estar com
sua última amante.

E continuou encontrando-se com Euclides. Cada vez
os dois se sentiam mais unidos, pertencendo mais ao outro.
Gostaria de ajudá-lo, bater à máquina, passar a limpo

-Suas traduções.

— Vou aprender datilografia.
Euclides começou a rir como se ela tivesse dito uma
piada:

— Você vai fazer o quê?
— Aprender datilografia. Hoje mesmo olhei no catálogo.
Tem um curso mais ou menos perto de minha casa.
Telefonei e perguntei os horários das aulas. Devo começar
no máximo na próxima semana.
— Não estou entendendo nada. Para que quer saber
datilografia? Se quer exercitar os dedos, aprenda piano.
Está mais de acordo com sua posição.
— Mas não tenho veia artística. Seria uma pianista
94


medíocre, na melhor das hipóteses. E posso no entanto
ser uma excelente datilografa. Para isso não preciso de
sensibilidade artística.

— Está querendo me convencer de que vai arranjar
um emprego?
— Já arranjei. Começo assim que souber datilografar
bem.
— Posso saber onde vai trabalhar?
— Com você. Passar a limpo suas traduções.
Euclides emocionou-se até as lágrimas. E a beijou.
Selma beijou seus olhos. Molhados.
Como os dela também haviam ficado.
* * *

Selma não podia mais reclamar do vazio de sua vida.
Euclides viera preencher todas as suas necessidades. E também
não tinha nenhuma hora vaga.

O curso intensivo de datilografia, com aulas diárias
(queria aprender o mais depressa possível), os encontros
com Euclides, os filmes que viam juntos sempre à tarde,
e à noite, enquanto Danilo farreava. Ou, mesmo quando
ele se deitava ao seu lado e adormecia logo a seguir, ela
ficava lendo os livros que Euclides lhe emprestava.

Comprou uma máquina de escrever. Treinaria em
casa, para aprender mais rápido.
Danilo pensou que a esposa ficara louca:

— O que deu em você?
— O que deu em mim? Por que pergunta?
— Ficou maluca?
— Não. PÁGINA 95

— Quer me dizer o que vai fazer com esta máquina
de escrever?
— Resolvi aprender datilografia.
Danilo soltou uma gargalhada:
— Mas logo datilografia?
— Sim, por que não? Tenho muito tempo vago, achei
que devia preencher com alguma coisa útil.
— Bem, entender as mulheres é uma coisa impossível.
Cada uma com sua mania. Você não acha que datilografia
não é um negócio para uma mulher como você?
— Não vejo nada demais. Não é crime nenhum.
— Só é datilografo quem não tem dinheiro.
— E daí? Digamos que resolvi ser excêntrica.
— Mas Selma, com tanto curso por aí. Se quer fazer
algum, não tenho nada contra. Mas logo datilografia?
Por que não aprende uma língua? Inglês, francês, sei lá...
— Assim que terminar o curso de datilografia, vou
aprender inglês.
— Pelo menos sobe um pouco de nível.
E não ligou mais para a "excentricidade" da esposa.
* * *

Depois de mais de um mês sem procurar Selma na
cama, Danilo sentiu-se na obrigação de satisfazer a mulher.
Continuavam dormindo juntos, uma vez que Selma
não podia de repente dizer que preferia dormir em outro
quarto sem despertar suspeitas.

Selma, cuidadosamente, o deteve.

— Não quer?
— Estou com dor nas costas. PAG 96/EXTRAVIADA PAGS 97.98

sua grande rival era a solidão que Euclides tanto amava.
Antes assim.

— Você nunca imaginou que eu tenha ciúmes? — perguntou
Euclides.
— De mim?
— Claro, de quem podia ser?
— Já sei. Mas Danilo... bem, é meio chato lhe dizer
isso, mas a verdade é que depois que estou com você, não
tive nenhuma relação com meu marido.
Euclides ficou realmente surpreso:

— Não?!
— Não. Ele quase não se dá conta da minha existência.
Tentou apenas uma noite, mas eu recusei dizendo não
estar me sentindo bem.
— Mas não pode recusar sempre.
— Sei disso.
Ele teve vontade de pedir que Selma largasse tudo e
viesse morar com ele. Mas achou que não tinha esse .direito.
Afinal, ela estava acostumada com'um apartamento
luxuoso, uma vida bem diferente da que podia lhe oferecer.


— Não vamos pensar nisso — disse Selma. — Tenho
uma ótima novidade para você.
— Qual é?
— Sou a melhor aluna do curso. Quando quiser, posso
começar a passar a limpo seus trabalhos.
— Veja em que você está se metendo, hem?! São mais
de trezentas páginas.
— Já pensei bastante no problema e quero começar
hoje mesmo.

* * *

99


Danilo chegou em casa zangado.

Selma pensou que tivesse se aborrecido no trabalha

Mas não era.

—; Preciso discutir um assunto muito sério contigo.

— Comigo?
— Sim.
— É inacreditável!
— O quê?
— Soube que você está tendo encontros com outro
homem. Não acreditei a princípio. Mas parece que muita
gente já sabe. E eu sou um dos últimos a tomar conhecimento.
Selma ficou amedrontada. Não estava arrependida do
seu caso com Euclides, nem tinha receio de que Danilo
se separasse dela. Temia por sua integridade física. Com

o gênio violento que tinha, Danilo era capaz de tudo.
— Quem lhe contou?
'— Isso não importa. Disseram-me que é um sujeito
metido a intelectual. Acho que já o vi numa destas festas
que a gente costuma ir. Você tem que me provar que é
mentira, senão...

A mulher achou melhor não provocá-lo. Mas não sabia
como agir. Ele aproximou-se e com a mão segurou-lhe

o queixo.
— Preciso saber a verdade, antes de lhe arrebentar
de pancada.
Em pânico, Selma desvencilhou-se e correu para o
quarto, trancando-se por dentro. Danilo começou a bater
na porta com violência, aos socos e pontapés, enquanto
-vociferava:

' — Então é verdade? O que você está pensando, sua

100


vagabunda? Saia já da minha casa e não volte nunca
mais.

Os criados vieram ver o que estava acontecendo. Para
que não ficassem sabendo que ele era um marido, enganado,
Danilo controlou-se, parou de gritar e saiu batendo
a porta atrás de si.

Selma arrumou suas malas, ajudada por uma das empregadas.
Colocou tudo dentro do carro e foi para a casa
dos pais.

Quando Danilo voltou não mais a encontrou.

Passou a noite bebendo.

Era só o que faltava, ser traído por sua esposa.

Não que a amasse. Era o amor-próprio ferido naquilo
que ele tinha de mais sagrado.
Telefonou para uma de suas amantes para fazer-lhe
companhia.
Alda surpreendeu-se com o convite, mas atendeu correndo.


— O que foi? Por que me chamou aqui para o seu
apartamento? E sua mulher?
— Tivemos uma briga. Estamos separados. Quero que
ela se dane.
— Mas por quê?
— Não interessa. Vamos nos desquitar.
Apesar de ter que agüentar a bebedeira de Danilo,
Alda sentiu-se dona da casa. Agora, ele estava livre da "
esposa e pensou que poderia ser a substituta e vir morar
naquele apartamento magnífico.

* * *

101


— Danilo descobriu tudo.
— Como?
— Contaram a ele.
— Quem?
— Não me disse. Falou que todo mundo já sabia.
— Devíamos ter tido mais cuidado.
— Foi melhor assim. Antes que me forçasse a fazer
amor com ele.
Euclides beijou os olhos cinzentos de Selma:

— Não tenho coragem de convidá-la a viver comigo.
— Você quer isso?
— Claro que quero. Mas você sabe que não ganho lá
estas coisas.
— Não estou preocupada com dinheiro.
— Mas está acostumada.
Selma compreendeu e esclareceu:
— Eu nunca lhe disse que sou tão rica quanto Danilo?
— Não, nunca — respondeu Euclides surpreso.
— Dinheiro não é problema, Euclides. Mesmo separada
de meu marido, se quiser posso ter o mesmo nível
de vida. Minha família é riquíssima.
102


Euclides estava verdadeiramente surpreendido.

Ela acrescentou:

— Se quer mesmo que eu venha morar com você, eu
venho. Prometo que não vou querer jogar fora seus livros,
nem arrumar sua bagunça. Deixo tudo exatamente como
está. E também não vou aumentar suas despesas.
Ele a fez calar-se beij ando-a na boca.

* * *

Separado de Selma, Danilo decidiu retornar aos seus
tempos de juventude. Estava com vinte e sete anos. Dentro
em pouco estaria com trinta. Após o choque inicial, o ódio
de ter sido traído, procurou não pensar mais na ex-esposa,
nem sequer ver sua cara outra vez.

Precisava aproveitar a vida, recuperar o tempo perdido
em que estivera casado.

Talvez tornar a viver seus anos de juventude.

Voltou a freqüentar os bares de antigamente.

Mas todos os velhos amigos já estavam casados ou
tinham desaparecido de circulação.

Seus "bons tempos" haviam ficado irremediavelmente
para trás.

Teve dificuldades em fazer novas amizades. A geração
que sucedera à sua pensava de maneira diferente, tinha
novos hábitos. Sentiu-se completamente desambientado.

103


Havia uma diferença de séculos entre os jovens de
dezoito anos de agora e ele. Mesmo assim, procurou se
adaptar a essa nova geração.

Arranjar garotas nunca fora um problema.
Continuava tão ou mais bonito do que antes.
E tinha dinheiro.

De que mais precisava?

104



CAPÍTULO 12

UMA GAROTA INSOLENTE

Treze anos depois, Danilo completou quarenta anos.
O choque foi mais violento do que quando chegara à casa
dos trinta.

Permanecia bonito, esbelto.

Apenas algumas rugas a mais denunciavam o tempo
que passara.
Continuava rico.
Não casara outra vez, com receio de ser traído nova


mente.

105


Gostava de recordar o número de mulheres que faturara
ao longo de sua existência. Tinham sido tantas que
perdera a conta.

Isto o enchia de orgulho.
Preferia agora as amantes muito jovens, uma vez que
recusava-se a aceitar sua própria idade.
Berenice era estudante. Fazia um curso qualquer numa
Universidade.

Dera-lhe carona na cidade, uma vez. Convidou-a a ir
ao seu apartamento. Berenice aceitara o convite. E voltava
de vez em quando.

Acabaram de transar mais uma vez. A jovem pegou
uma maçã na geladeira e voltou para a cama.

— Eu devia ter feito um fichário — disse Danilo com
ar orgulhoso.
— Fichário de quê? Nunca me passou pela cabeça que
você tivesse
vocação para arquivista.
Ele riu:

— Um fichário de todas as mulheres que eu levei para
a cama.
Berenice mastigava a maçã e o olhava com ironia.
Danilo continuou:
-— Assim. Nome: Marisa. Idade: 19 anos. Profissão:
Secretária. Sinal particular: uma pequena mancha
avermelhada entre os dois seios.

O homem riu do que julgou ser uma piada, enquanto
Berenice, agora séria, o fitava:

— Você até que podia ser um cara legal.
— E não sou?
— Não.
— E por que já veio aqui tantas vezes?
106


— Por não ter coisa melhor para fazer.
A resposta ofendeu Danilo:
— A porta está aberta, minha querida. Pode sair no
momento que quiser e não voltar mais.
— E é justamente isso que vou fazer daqui a pouco.
Mas antes preciso lhe dizer uma coisa. Sabe qual é seu
defeito?
— Diga, se tem coragem.
— Ninguém nunca deve ter lhe esclarecido a respeito
da verdade. Uma triste verdade, diga-se de passagem.
— Que verdade?
Nua, com as pernas cruzadas, em cima da cama, Berenice
jogava as caapas da maçã no lençol:

— Você não desconfiou ainda que está fora de moda?
— Veja lá como fala, garota.
— Estou falando o que sinto. Ninguém me impede.
Você está fora de moda, parou no tempo, envelheceu, Danilo.
— Tenho trinta e seis anos. Desde quando um homem
com minha idade é velho?
— Pra que mentir? Você está com quarenta. Vi na
sua carteira de identidade. Fisicamente ainda está mais
ou menos legal, mas de cuca você já passou dos setenta.
Era demais. Danilo teve vontade de bater na garota
insolente, mas conteve-se com receio de que ela lhe dissesse
coisas piores. Berenice continuou desafiando-o:

— Você é o machão típico da década de 50. Ultrapassado.
Uma figura de museu. O tipo do cara que me dá
pena.
— Vamos acabar com esse papo?
107


— Não". Quero ser a pessoa que teve a coragem de
lhe dizer.a.verdade.
— Você não tem direito...
— Tenho os mesmos direitos que você.
— Não vá me dizer que é feminista. Vai ver é até lésbica
e eu comi gato por lebre.
— Não sou lésbica, se isso importa alguma coisa para
você. Mas se fosse, para mim, não tinha a menor importância.
Cada vez que você abre a boca se revela mais. Sabe
o verdadeiro motivo por que vim para a cama com você
tantas
vezes?
Ela não deixou que Danilo respondesse:

— Porque queria lhe estudar. O machão é uma espécie
em extinção. Não podia perder a oportunidade de
procurar conhecer você a fundo, estudar suas reações, ver
como seu cérebro funciona. Custei a acreditar que ainda
existisse alguém como você. Foi um verdadeiro trabalho
de pesquisa.
— Veio aqui para me ofender, sua prosti...
— Não, não sou prostituta. Nunca ganhei dinheiro
com isso — e ela apontou significativamente para si própria.
— Mas se fosse, também não era problema, nem fiquei
ofendida por me chamar disso.
— Quer saber de uma coisa? Você está mentindo. Veio
para minha cama porque sou melhor do que os garotos
"de sua idade. Nenhum deles consegue transar tantas vezes
seguidas como eu. São todos uns frouxos, esses jovens
de hoje.

Berenice olhou-o. Teve vontade de rir:

— Tenho pena de você.
— Pena?
108


— Sim. Você é ridículo demais.
A garota levantou-se e encarou-o. Danilo quis meter-
lhe a mão na cara. Pez o gesto, mas Berenice recuou
e o tapa atingiu o ar.

Ela vestiu-se rapidamente.
Danilo olhava-a com ódio, os punhos cerrados.
Berenice riu e disse:


— Tchau!
Plantado no meio do quarto, Danilo olhou os restos:
de maçã em cima do lençol.
Aquela garota era o próprio demônio em forma de
gente.
Sentiu que a cabeça doía.
Procurou um comprimido para tomar.

* * *

Viu Berenice outras vezes por acaso nos bares.

Não se cumprimentaram.

Certa vez notou que ela o apontava, mostrando-o aos
companheiros, como se ele fosse um animal raro.
Teve ímpetos de atirar-se por cima da mesa onde a
moça e seu grupo estavam.
Acabar com a festa.
Dirigiu-se para a tal mesa e falou diretamente para
a jovem:

— EstaVa apontando para mim por quê?
— Eu? Apontando para o senhor? — respondeu Berenice
com mordacidade.
Danilo não gostou do tom com que ela pronunciou
a palavra "senhor". Aliás, nunca gostava quando lhe cha


109


mavam de senhor, aquilo fazia-o sentir-se como se fosse
um velho.

— Estava apontando sim. Não gosto de brincadeiras
com vagabundas.
Um jovem alto que estava no grupo levantou-se:

— Você está ofendendo a garota, coroa.
Foi a conta.
Danilo atracou-se com o jovem. Os outros caíram em
cima dele.
Garrafadas, gritos, correria.
O bar transformou-se num pandemônio.
Dois guardas foram chamados pelo proprietário.
E foram parar todos no distrito.

* * *

Em casa, diante do espelho, Danilo examinava os talhos
no nariz e um pouco acima da sobrancelha esquerda.
Por pouco a garraiada não lhe vasara um dos olhos.

E também por pouco não ficara deformado.
Depois de examinar os ferimentos, verificou as marcas
que o tempo fizera em seu rosto.
Estas eram piores.
Os ferimentos cicatrizariam, mas as rugas, os vincos
em torno da boca, se aprofundariam cada vez mais.
A não ser que fizesse uma operação plástica.
Mas afastou a idéia rapidamente.
Ele não era homem para fazer cirurgias plásticas.
Isso não estava de acordo com sua mentalidade de
macho,

110


E, para consolar-se, chegou à conclusão de que a mo


cidade não era tão importante assim.
O importante era ser homem.
Homem mesmo.
Como ele.
Faturar duas ou três mulheres numa mesma noite.
Chegaria aos oitenta anos sem perder a potência.
Disso tinha certeza.
Consolado com esses pensamentos, com o orgulho co


locado de qualquer jeito no lugar, afastou-se do espelho.

111



CAPITULO 13

O ENCONTRO CASUAL

Ela era gorda e tinha o rosto precocemente envelhe


cido.
No entanto, devia ter pouco mais de quarenta anos.
Quem a olhasse, porém, daria pelo menos cinqüenta.
Mas estava bem vestida, com uma elegância sóbria.

A maquilagem também era discreta. Nos cabelos, alguns
fios brancos.
Porém, não deixava de ser bonita.

112


O envelhecimento não lhe deformara os traços. '

Andava apressada pela Rua Bolívar em direção à Avenida
Copacabana. .

De repente, viu um carro parar logo adiante. Não
prestou muita atenção. Era apenas mais um, dentre as
centenas de carros que passavam, e que, encontrando uma
vaga, estacionava.

Continuou seu caminho e quando passava pelo automóvel,
seu dono estava acabando de fechá-lo.

Os olhos dos dois se cruzaram por acaso.

A mulher estremeceu.

Reconhecera Danilo.

Depois de tantos anos (vinte e poucos), ela ainda o
reconhecia. Ele pouco mudara. Mas, mesmo que só o tornasse
a encontrar quando estivessem ambos com oitenta,

o
reconheceria do mesmo jeito.
Danilo porém não a reconheceu.
Olhou-a por acaso e não prestou maior atenção.
No entanto, a mulher diminuiu os passos e virou-se.
Apesar de não gostar de coroas, Danilo reparou, o
gesto.

Sorriu divertido.

Quem sabe não seria uma boa levar uma coroa para
a cama?
Seria uma experiência inédita para ele.
Depois, era mulher.
E mulher, ele tinha por princípio nunca recusar.
Ela continuou andando até a esquina. Parou, unia vez

que o sinal estava fechado para os pedestres. Danilo ficara
observando-a.

113


O sinal abriu e ela poderia ter atravessado a rua tranqüilamente.
Mas não o fez.

Era a prova de que o esperava, pensou Danilo.

Claro que considerou uma audácia daquela mulher, naquela
idade, estar querendo conquistá-lo.

Mas achou divertido. Uma prova de que ela não se
entregava, resistia ao tempo.
Aproximou-se com um sorriso.
A mulher julgou que seu coração fosse saltar pela boca

ou, ao contrário, parar de bater de repente.

A aproximação daquele homem causava-lhe uma emoção
fortíssima. Mas era preciso controlar-se. Chegara sua
oportunidade. Que pensara inalcançável depois de todos
aqueles anos.

Ainda com o mesmo sorriso, Danilo puxou conversa:

— Passeando?
— Mais ou menos.
Ele não perdeu tempo:
— O que vai fazer logo mais à noite?
— Depende...
— Depende de quê? Ainda não tem nada programado?
— Não.
— Eu, por acaso, estou livre. Podemos nos encontrar
às oito horas.
Ela concordou. Danilo disse estar com um pouco de
pressa, deu-lhe seu endereço e antes de ir embora, falou:

— Ah, a propósito, meu nome é Danilo. E o seu?
Ela mentiu:
— Dalila.
Elisa atravessou então a rua.
114


Já fazia vinte e poucos anos que Danilo amarrara
Caio, com quem ela acabara de casar, e a violentara, destruindo
sua vida.

Tivera um filho de Danilo.

Seu casamento durara pouco.

Separada de Caio, começara a trabalhar numa agência
de publicidade. Seus pais, com quem voltara a viver,
tomaram conta da criança.
Jurara então que um dia se vingaria de Danilo, de
quem só ficara sabendo do nome agora.

Caio, o marido, esquecera qualquer desejo de vingança.
Separara-se dela, deixara de amá-la, arrumara outras mulheres.


Mas Elisa permanecera firme em seu propósito. O
mundo era pequeno. Um dia ainda cruzaria em qualquer
esquina, com o causador de sua desgraça.

A agência onde trabalhava transferiu-se para São
Paulo. E ela foi junto.

Gostou da mudança, apesar de adorar o Rio.

Mas viver em outra cidade, talvez fosse a única solução
para uma vida menos infeliz.
Deixou o filho com os pais.
Enquanto estava no Rio, mesmo separada do marido,

não teve nenhum amante.

Mas em São Paulo, com as noites livres, sem família
e com um bom salário, começou a compreender que não
poderia viver como uma velha.

Afinal, era bastante jovem, o sangue quente pulsando
nas veias.
Não tinha mais ilusões (desde aquele dia fatídico em
que fora violentada por um desconhecido).

115,


Não acreditava nos homens.

Além do desconhecido, Caio também a desiludira irre«

mediavelmente.

Não acreditava mais em amor. Mas precisava de sexo,

como qualquer mulher normal no auge da mocidade.

Foi assim que teve o primeiro amante.

Veio o segundo, o terceiro.

Pensou esquecer o episódio do dia de seu casamento,
mas chegou finalmente à conclusão de que estava irreversivelmente
traumatizada.
E nunca deixou de ter esperanças de que fatalmente
ainda iria ver-se frente a frente com Danilo.
Não teve sorte com os homens que haviam passado
.por seu caminho.

Com nenhum deles.

Talvez a culpa fosse dela mesma, com seu pessimismo,
sua amargura, sua falta de motivação para amar quem
quer que fosse.

Refugiou-se na bebida.

Não que fosse uma bêbada inveterada.

Não. Mas tomava seus drinques regularmente, todas
as noites, até conseguir uma alegria fictícia.
Por isso engordara tanto e envelhecera rápido.
A bebida a estava destruindo. Sabia disso, mas tam


bém sabia que não conseguiria suportar a vida a seco.
Estava trabalhando há vinte anos em São Paulo. Sempre
vinha passar as férias no Rio.
Agora o acaso resolvera lhe dar uma colher-de-chá.

E fora até bom que tivesse demorado todo aquele tempo,
pensava agora. Antes, Danilo poderia reconhecê-la e
.tornar sua vingança impossível.

116


Agora, não. Deformada pela gordura, as rugas, as marcas
do sofrimento e do tempo, sabia que ele jamais a reconheceria.


O que facilitaria seu trabalho.

Andou a Avenida Copacabana inteira. Até o Leme. .

E voltou. A pé.

Aquilo talvez lhe acalmasse um pouco os nervos.

Cansada, voltou ao apartamento dos pais.

O filho, agora com mais de vinte anos, era um belo
rapaz. Mas eram praticamente desconhecidos. Tratavam-se
como estranhos, cerimoniosamente.
Não o amava. Fora fruto de uma violência. Sabia que

o rapaz não tinha nenhuma culpa, mas ela também não
se culpava por ser incapaz de amá-lo.
Chegou na casa dos pais, suando por todos os poros.

— Você demorou — observou-lhe a mãe.
— Fiquei olhando as vitrinas.
— Esse tempo todo?
— Encontrei também um velho conhecido e ficamos
conversando.
Tomou um banho e deitou-se para descansar.
Antes de sair, logo depois do jantar, tomou uma dose

de uísque. Não achou suficiente e bebeu uma segunda
dose.

— Vai sair? — perguntou-lhe a mãe ao vê-la apron-
tando-se.
— Vou a um cinema.
— Sozinha?
— Sozinha.
E saiu de casa.
117


Tomou um táxi e indicou o endereço de Danilo ao
motorista.

* * *

Em casa, enquanto ouvia um disco, Danilo antevia o
que aconteceria naquela noite. Estava curioso em dormir
com uma mulher daquela idade. Certamente Dalila (fora
esse o nome que ela lhe dera), iria vibrar. Devia mesmo
jogar-se aos seus pés, agradecida.

O telefone tocou. Ele atendeu:

— Alô!
— Oi, Danilo, como vai?
— Quem está falando?
— Não reconhece mais minha voz?
— Marina?
— Não.
— Elizabeth?
— Também não.
— Quem é, então?
— Não se lembra de mim? Que é isso, cara? Está me
decepcionando.
— Diga logo quem é...
— Sheila.
Sheila era uma cocotinha que conhecera no Arpoador
e com quem dormira umas duas ou três vezes mais ou
menos.

— Tudo bem, Sheila?
— Tudo legal. Quando a gente se encontra outra vez?
Danilo sentia-se orgulhoso de ver uma jovem bonita,
118


que podia transar com os rapazes que quisesse, ligar para
ele.

— Amanhã. Está bom para você? Hoje não posso.
Tenho outro compromisso.
— Tudo bem. Amanhã eu pinto por aí lá pelas nove
da noite.
— Falou.
Ela despediu-se e desligou o telefone. Danilo pensou
que talvez tivesse sido melhor dizer a Sheila para vir naquela
mesma noite e quando a coroa aparecesse, não abriria
a porta.

Como poderia trocar uma garota saudável, de dezoito

anos, por uma mulher gorda e com quase cinqüenta?
Mas agora era tarde para arrependimentos.
De qualquer jeito, na noite seguinte, teria Sheila na

cama.
A campainha tocou.
Foi atender. Sabia que era "Dalila".
E de fato era.

— Oi, tudo legal? — perguntou com exagerada alegria.
Elisa notou o tom falso de sua voz e respondeu, também
fingindo-se muito alegre:

— Tudo bem.
Danilo foi preparar um drinque e ofereceu à mulher.
— Você disse que se chamava Dalila?
— É este o meu nome.
— Nunca conheci nenhuma Dalila.
— Está conhecendo agora.
Ele quis ser engraçado:
119


— Sou capaz até de pensar que eu sou Sansão.
A mulher fingiu achar engraçadíssimo. Animado, eis
acrescentou:

— Só não vá querer tirar minha força, cortando-me
os cabelos...
Enquanto ouviam músicas, beberam bastante. Elisa
mais do que Danilo.

— Conte-me alguma coisa de sua vida.
— Não tenho muito o que contar.
— Casada?
— Desquitada.
Ele apertou-lhe a mão:
_ . — Então, somos colegas. Também sou desquitado.
Agora estou tratando do divórcio.

— Meu ex-marido não se deu a esse trabalho, nem eu.
Danilo olhou bem para a mulher. Não sabia mesmo

porque marcara aquele encontro. Agora achava-a mais gor


da ainda.

E mais velha.

Será que conseguiria se excitar?

Aquela seria sua prova de fogo. Se conseguisse (e ti


nha certeza de que não falharia) fazer amor com "Da


lila", então poderia considerar-se o homem mais potente

sobre a face da terra.

Ele, que tinha à sua disposição as garotas qua qui


sesse, só mesmo por um capricho poderia perder tempo

cóm -aquela mulher.

Indo até perto da eletrola, Elisa escolheu um disco
como se fosse por acaso. Não o colocou para tocar, mas
deixou-o separado dos outros. Ele não deu muita atenção
ao fato.

120


— E você, o que me conta de sua vida? — perguntou
Elisa.
— Já disse o principal. Desquitado...
— E o que mais?
— Faturando o maior número de mulheres.
— Conte-me mais coisas.
— Trinta e cinco anos... (Danilo cada vez diminuía
mais
sua idade).
Elisa resolveu ser mais fingida ainda:

— Já trinta e cinco? Ninguém diz. Parece muito
menos.
Ele sorriu vitorioso:

— Todo mundo me acha bem conservado. Poderia negar
a idade, mas não faço isso. É uma grande bobagem.
— Qual o segredo de sua juventude?
— Sexo.
Ela deu uma gargalhada, que procurou parecer o mais
natural possível:

— É a sua fonte de juventude?
— Acredite que não existe outra. Falo por experiência
própria.
— Você tem filhos?
— Não. E você?
— Tenho um rapaz.
— Mora contigo?
— Não. Vivo sozinha. Acho melhor.
— Não quer perder a liberdade, hem?!
Elisa tornou a encher o copo:
— Nada melhor do que um bom uísque.
— Estou vendo que gosta de beber.
— Talvez para não me sentir muito tímida.
121


— Eu não preciso de estimulantes para me desinibir.
Já sou sem-vergonha por natureza.
E dizendo isso, aproximou-se de Elisa e começou a
alisar-lhe a nuca. (Ia ser difícil encontrar prazer na cama
com aquela mulher, pensou.)

Elisa sentiu um arrepio com o contato de sua mão.
Não se prazer. Mas de nojo. Aquela mesma mão que vinte
e tantos anos antes a obrigara...

— Em que está pensando?
— Em nada.
— A gente sempre está pensando em alguma coisa.
— Quer que lhe diga?
— Quero.
. — Não. Assim você vai ficar mais convencido ainda.
— Impossível! Já atingi o mais alto grau de convencimento.
— Pois bem: estou sem acreditar que esteja aqui ao
seu lado. Você, um homem tão bonito, tão jovem, perdendo
tempo com uma mulher velha como eu.
A falsidade dominava a sala em que se encontravam:

— Você está se menosprezando. Você não está velha.
É apenas uma mulher madura, vivida, experiente. Dizem
que nada melhor do que a experiência. E tem também
aquela história de que o vinho quanto mais velho melhor.
Você pode ser como o vinho.
— Bondade sua.
Ele começou a alisar-lhe o pescoço.
Elisa procurava dominar o nojo e o ódio.
Tinha que aplacar sua fúria.
Deixá-la para o momento exato.
122


E para isso, para fazer tudo como planejara, era pre


ciso deixar que Danilo a acariciasse, a beijasse...

Danilo colocou a mão por dentro do decote da mu


lher. Ela não tinha outro jeito senão deixar, uma vez que

queria levar seu plano até o fim.

Os sentimentos dos dois, naquele exato instante, não

podiam ser mais opostos.

Enquanto o homem sentia-se plenamente satisfeito

com o que lhe parecia a grande prova de sua virilidade,

conseguir ereção mesmo com uma coroa como aquela, Eli


sa não podia esquecer nem por um momento, que estava

sendo acariciada pela pessoa que destruíra toda a sua vida.

E no entanto, era preciso continuar...

Danilo começou a despir a camisa, enquanto a puxava

para o quarto:

— Não vai tirar a roupa?
Como a mulher não lhe respondesse e permanecesse
vestida, ele disse sorrindo:

— Já sei... ainda está encabulada, apesar do uísque.
— Você é um homem inteligente. Me compreende.
— Quer que apague a luz?
Julgou que ela sem dúvida não era tão inibida assim.
Provavelmente envergonhava-se de deixar suas banhas à
mostra.

— Não precisa.
— Você não costuma andar com muitos homens,
não é?
Claro — disse Danilo para si mesmo. — Quem iria
querer um bagulho daqueles? Só mesmo ele que não rejeitava
nada e tinha caprichos estranhos."

_ É verdade.

123


Cada vez mais falso, ele continuou:

— Vê-se logo que é uma mulher fina. Sabe que foi
isso que mais me atraiu em você? Estou cansado destas
mulheres muito libertas, que vão para a cama com qualquer
um. Você é de outra espécie. Não sei mesmo como
aceitou logo de cara o meu convite. Talvez porque.. .
Posso dizer?
— Pode.
— Não vai me julgar insuportavelmente convencido?
— Não.
— Você não resistiu ao meu charme, não é mesmo?
Homem como eu não anda dando sopa por aí. Não existe
mulher nenhuma no mundo que não queira ir para a cama
comigo.
— Talvez eu precise de mais um pouco de bebida.
Ele quis ir buscar, mas Elisa não deixou:
— Eu mesma vou.
Enquanto ela foi até a sala, Danilo acabou de se despir
e deitou-se na cama, ostentando sua virilidade. Certamente
a mulher não resistiria, quando o visse assim e se
atiraria por cima dele.

Mas Elisa, em vez da garrafa de uísque, pegou na
própria bolsa. Abriu-a e tirou um revólver. Colocou na eletrola
o LP de músicas de "rock" que deixara separado.

. E retornou ao quarto, escondendo nas costas a mão
que empunhava a arma.
Ao vê-la entrar de novo no quarto, Danilo deu seu sorriso
mais sedutor e falou com a voz melosa:

— Venha. Estou esperando.
Elisa retirou a mão das costas e apontou o revólver
para Danilo, que não entendeu absolutamente nada.

124


— O que é isso?
— Não conhece um revólver? Sei que você conhece
muito bem.
— Para que esta arma? Vire esse troço para outro
lado. Deixe de brincadeira de mau-gosto.
E ele pensou que estava diante de uma louca. Certamente
aquela mulher fugira de algum hospício. Não podia
ser outra coisa. E agora sua vida estava nas mãos de
uma maluca.

— Não descobriu ainda que somos velhos conhecidos?
— Velhos conhecidos?
Danilo quase gaguejava e quis mudar de posição na
cama, mas Elisa obrigou-o a não se mexer:

— Fique como está. Não quero nenhum movimento.
— O que está acontecendo? Eu lhe ofendi em alguma
coisa?
— Ofendeu, sim.
— Não me lembro. :
— Claro que não se lembra. Foi há muitos e muitos
anos. Vou lhe refrescar a memória.
Realmente Danilo não estava compreendendo nada e
cada vez mais tinha convicção de que estava diante de
uma louca.

Ela continuou:

— Olhe bem para o meu rosto. Ele lhe é completamente
estranho?
— Completamente. A primeira vez que o vi foi hoje
à tarde.
— Pois eu lhe afirmo que não foi.
— Nunca conheci nenhuma Dalila.
— Eu não me chamo Dalila. Meu nome é Elisa.
125


— Você deve estar me confundindo com outra pessoa.
— Não. Tenho certeza absoluta. Não vou me esquecer
nunca. Principalmente de seus olhos. E no aspecto geral
você mudou pouco, apesar do tempo. Eu me recordo perfeitamente.
Dos seus olhos, do seu rosto, da sua fúria,
quando me possuiu à força numa casa retirada em Petrópolis
no dia do meu casamento. Você estava com um companheiro
armado e me obrigou, na vista do meu marido.
E colocou um disco de "rock" parecido com este, a fim
de que não ouvissem o tiro...
Danilo não podia acreditar no que ouvia. Então aquela
mulher era a mesma que tinha violentado naquele dia
longínquo? Não pensara muito no episódio depois. Fora
apenas uma de suas muitas aventuras.

E agora ali estava ela, com o revólver voltado para o
seu rosto.

— Eu guardei na mente todos os detalhes. Seu amigo
disse que era muito fácil, era só um pequeno gesto, apertar
o gatilho e disparar. Eu e meu marido, humilhados, impotentes.
E vocês se divertindo. A situação agora é inversa.
Trocamos os papéis. Demorou bastante. Vinte e poucos
anos. Mas chegou a minha vez. Só que não estou me divertindo
tanto quanto vocês estavam. Olhe bem para a
minha mão, para os meus dedos. É só um pequeno movimento
e a bala pode estraçalhar seu rosto. Esse rosto de
que.tanto se orgulha.
— Isso já faz tanto tempo... — falou Danilo com a
voz suplicante.
— Mas aconteceu, não foi? Sabe que é seu, o filho que
eu tive? Sabe que você destruiu meu casamento, minha
vida, tudo?
126


Danilo encolheu-se na cama, cobriu o rosto com as
mãos. Tremia dos pés à cabeça. Toda sua valentia, sua
virilidade, seu machismo, desapareceram como por encanto.


— Não me mate, você não pode fazer isso...
— Como não posso? É isso que vou fazer.
Ele começou a soluçar. Pediu sucessivas vezes para
que não o matasse. Elisa já estava quase para disparar a
arma, quando de repente sentiu que não valia a pena. Já*
estragara mais da metade de sua vida por causa daquele
sujeito. Matando-o, estragaria os anos que lhe restavam.

Olhando-o agora na cama, todo encolhido, em prantos,
achou-o grotesco. Não tinha mais nada do machão
arrogante, do homem que se julgava com direito de fazer

o que bem entendesse. Parecia um verme.
Colocá-lo naquela situação, humilhá-lo daquele jeito,
já lhe parecia vingança suficiente. Danilo jamais esqueceria
aquela humilhação porque estava passando.

Vagarosamente, ela saiu do quarto, guardou a arma
na bolsa e saiu do apartamento. O som do "rock" continuava
no mais alto volume.

Danilo não a viu sair, pois estava de olhos fechados,

com o rosto coberto com as mãos. Como o tiro não vinha,

ousou abrir os olhos devagar alguns minutos depois, ame


drontado.

E não viu mais a mulher.
Esperou algum tempo.
Devia estar escondida em algum lugar, concluiu.
Para matá-lo de surpresa.
E não se atreveu a sair da cama.


127


A música continuava estridente.

Ele, encolhido, ainda tremendo de medo.

* * *

Na rua,. Elisa andou em direção da casa de seus pais.
Preferiu ir a pê. Sentia-se livre de um peso que a acompanhara
durante anos.

A eletrola repetia o LP de "rocks" indefinidamente,
tocando-ó, no mais alto volume.

Nu, ainda encolhido, ainda trêmulo, Danilo esperava

o tiro que não vinha.
FIM DIGIT POR LEANDRO DEZ 2017


As mil e urna aventuras de um
homem que tinha tudo e cuja
ambição máxima era conquistar
o maior número possivel de
mulheres. Rico, boa-pinta, Danilo,
o herói (ou anti-herói?) deste
novo livro de CARLOS AQUINO











O Grupo Bons Amigos lança mais uma obra nos formatos : Pdf,txt, epub e mobi
 

O MACHÃO DA ZONA SUL -  CARLOS AQUINO

Livro digitalizado por Leandro Medeiros e revisado pela Equipe Bons Amigos.​


Sinopse do livro:
Este livro apresenta as mil e uma aventuras de um
homem que tinha tudo e cuja
ambição máxima era conquistar
o maior número possivel de
mulheres. Rico, boa-pinta, Danilo,
o herói (ou anti-herói?) deste
novo livro de CARLOS AQUINO


Sobre o autor:
   ​​
                                                 

Escritor, jornalista e ator, Carlos Aquino nasceu em Sergipe, mas foi para o Rio de Janeiro ainda adolescente.Trabalhou em filmes e peças de teatro, mas finalmente descobriu que sua verdadeira vocação era escrever, passando a dedicar-se à literatura.Sua estréia foi com o romance«É Verão no Rio em 1973. Com seu.estilo vigoroso e moderno, colocando sempre uma dose de verdade em seus personagens,ele  foi no século passado na década de 70 e 80  um dos escritores de mais prestigio junto ao público. Faleceu de embolia pulmonar aos sessenta e quatro anos de idade. Detalhes sobre sua morte leia em : https://www.terra.com.br/istoegente/79/tributo/index.htm


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e como forma de acesso e divulgação para todos. 
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros. 
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras .


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Abraços fraternos!

 Bezerra

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