sábado, 11 de maio de 2019

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO: PODRIDÃO - ADELAIDE CARRARO - FORMATOS :RTF E TEXTO

ADELAIDE CARRARO





P O D R I D �� O

Da mesma autora:

EU E O GOVERNADOR (12.a edi����o)

FAL��NCIAS DAS ELITES (4.a edi����o)

EU MATARIA O PRESIDENTE (5.a edi����o)

OS PADRES TAMB��M AMAM (5.a edi����o)

O COMIT�� (3.a edi����o)

ASCO (2.1 edi����o)

A MANS��O FEITA DE LAMA (2.a edi����o)

GENTE (2.a edi����o)

ESCURID��O (1.a edi����o)

CARNI��A ( 1 . a edi����o)





A D E L A I D E C A R R A R O


P O D R I D �� O

4�� Edi����o

L. OREN

EDITORA E DISTRIBUIDORA DE LIVROS LTDA.

S��O PAULO

Capa:

J. CORTEZ

DIREITOS ADQUIRIDOS POR:

L. OREN ��� Editora e Distribuidora de Livros Ltda.

Impresso no Brasil



ENTREVISTA COM UM PEQUENO BRASILEIRO

��� Seu nome?

��� Caudio.

��� Cl��udio de que?

��� Num sei.

��� Sabe o seu sobrenome?

��� Num t�� registado.

��� Onde voc�� mora

��� Na Bahia.

��� Em Salvador?

��� N��o; Jacobina.

��� O que voc�� veio jazer em S��o Paulo?

��� Foi Deus que mandou.

��� Deus! Porqu��?

��� Proque sen��o eu morria l��.

��� Morria por qu��?

��� Porque l�� num tem n a d a ! . . .

��� Mas, Jacobina, dizem ser uma boa cidade.

��� Mais eu moro bem pr�� l�� da cidade, no meio do

m a t o .

��� E seu pae?

��� T�� a�� tabaiando de predero.

��� E sua m��e?

��� A m��e ficou t a b a i a n d o na inxada.

��� O que �� isso nos seus p��s? Essas pontas inchadas

e pretas.

��� Se a senhora corta essa pontinha preta, sae um

m u n d o de bicho!. ..

��� Quantos quilos voc�� pesa?

��� Onze.

��� Como voc�� sabe?

��� A Bete pesou eu.

��� Claudinho, voc�� tem a barriga muito grande...

A gente fica at�� impressionada!

��� O doto que a senhora mandou eu i disse que t��

cheio de bicho a�� drento.

��� Por que seu pai n��o te lera no m��dico l�� na Bahia?

��� Ele n��o tem dinhero.

��� Por que voc��, quando sobe a escada, chora.

��� Proque eu nurn g��ento as perna; fico morto de

cansado.

��� 8 ���

��� Por que voc�� �� t��o branco assim, esverdeado?...

E anemia, n��o ��?

��� N��o, dona; �� farta de comida.

��� �� que �� que voc�� comia l�� na Bahia?

��� Feij��o e farinha, e as veiz carne seca.

��� E suas roupas, onde est��o?

��� Eu s�� tenho essa, que t�� no corpo.

��� Cad�� o sapato?

��� A m��e num comprou.

��� E as meias?

��� Que �� isso, eu num sei o que �� m e i a . . .

��� Por que voc�� gritou, quando te dei banho de chu��

veiro?

��� Eu nunca vi chuv��ro!

��� Por que voc�� n��o senta na bacia da privada pra

jazer xixi?

��� Proque eu num sabia, l�� na Bahia a gente vae no

mato.

��� Do que voc�� mais gosta em S��o Paulo?

��� Da televis��o e de sorvete. Eu gosto muito de sor��

vete! Eu nunca vi sorvete na minha v i d a ! . . .

��� Voc�� conhece Papae Noel?

��� N��o.

��� E Deus?

��� Tam��m n��o.

��� Mas voc�� disse que foi Deus quem o mandou para

S��o Paulo...

��� Foi a mui��, que falou: Se Deus n��o mandasse

esse minino p'ra casa da dona Adelaide ��le tinha morrido

de t��o doente.

��� Mas voc�� nunca ouviu falar do papae do c��u?

��� N��o senhora. Tia, proqu�� os minino daqui tem

bicicleta, e eu n��o?

9



��� Porque os paes deles trabalham, ganham dinhei��

ro, e compram.

��� Mas o pae tam��m trabaia como um danado, e n��o

tem dinheiro p'ra compra.

��� Sabe Claudinho, voc�� �� um menino muito inteli��

gente. Acho mesmo que, se algu��m o ajudasse, voc��

seria um menino prod��gio.

��� Que �� isso?

��� �� que voc�� aprende tudo o que lhe ensinam, rapi��

damente. A gente vae dizer qualquer coisa e voc�� j��

sabe o final.

��� Proqu�� a sinhora n��o ajuda eu?

��� Eu j�� tenho a Bete, e tamb��m ganho pouco. Voc��

merece um bom col��gio; e um bom col��gio custa muito

dinheiro.

��� Ent��o quem pode me ajuda? Eu n��o quero mais

vort�� p'ra Bahia. Trais minha m��e, t i a . . . Arranja ar-

gu��m pra cuida da g e n t e . . . A senhora arranja tia?

��� N��o sei meu bem. Eu acho que... Bem, agora

v�� brincar. Eu vou pensar o que farei com voc��.





x x x


��� Tia, t i a . . .

��� N��o corra desse jeito Cl��udio, voc�� pode cair.

��� Tia, assunta, a s s u n t a ! . . .

��� Eu j�� te disse que n��o �� assunta; �� escuta!

��� Escuta, tia. Os minino, dissero que o Presidente

da Rep��brica pode me ajuda e at�� me d�� um brinquedo

de entra dentro. O Presidente da Rep��brica �� bonzinho,

n�� tia? Eu quero um carro grande que anda de verdade!

��� ��ra, Cl��udio voc�� nem sabe o que �� Presidente da

Rep��blica.

��� O minino disse que ��le manda em tudo. At�� onde

vende brinquedo.

��� Mas voc�� quer brinquedo, ou quer estudar?

��� Quero estuda primeiro. A senhora fala p'ra ��le?

��� Mas ��le mora longe!

��� Telefona a��, da dona Sara.

��� ��le n��o atende qualquer telefonema.

��� Mas a senhora fala que sou eu, que ��le atende.

Num atende?

��� Atende sim, meu bem.

��� Ent��o tia, vamo telefona.

��� Meu bem, eu acho melhor escrever uma cartinha

pra ��le, voc�� n��o acha?

��� Acho sim, a senhora escreve?

��� Escrevo.

��� E a senhora, n��o esquece de pedir um brinquedo

de entra dentro?

��� N��o.

��� A senhora diz p'ra ��le n��o esquece de manda me

busca, l�� em Jacobina, p'ra mim estuda.

��� Digo si7n, Claudinho. Digo a cie para n��o se es��

quecer de voc�� e de todos cs Claudinhos do Brasil.

��� Ent��o eu vou busca papel e l��pis p'ra senhora





x x x


Claudinho onde voc�� estiver, aqui est�� a minha pro��

messa. Tenho certeza que o Presidente da Rep��blica

atender�� o seu pedido. ��le cuidar�� com mais carinho e

cuidado de todas as nossas crian��as.

Sei que voc��, meu bem, n��o ter�� o fim de Raul e de

Jo��ozinho.

Voc�� ser�� um doutor como deseja, se Deus quiser.

S��o Paulo, 25 de mar��o de 1969.

ADELAIDE CARRARO

11

I

��rf��o

Se existissem macieiras, hoje por certo todas elas

estariam em flor, em Vargem Graryie do Sul, espalhadas

atrav��s da relva, que cresce pelos campos dessa cidade.

�� primavera. At�� no ar se sente a primavera. Em

verdade �� a mais bela ��poca do ano, em todas as partes

do mundo. Tamb��m em Vargem Grande do Sul a na��

tureza inteira se reveste de tons coloridos. Na pracinha,

os grupinhos formados �� sombra das frondosas ��rvores,

riem e conversam. �� p r i m a v e r a . . . mas n��o para Jo��o��

zinho! O menino de c��r preta e com seis anos de idade,

bem que gostaria de estar sendo beijado pelo sol, ofus��

cando por entre as flores e a relva do prado, ca��ando

borboletas, em vez de ficar sentado na penumbra de

seu quarto. Sentado, em sua cadeirinha de palha, ao

lado da cama de sua m��e, ��le a observa contorcer-se

em dores. Magrinho e franzino, o menino de olhos esbu��

galhados segue um por um os movimentos da mulher

doente. Nem mesmo tem coragem de respirar. Recusa

o peda��o de p��o oferecido pelo pai, com um meneio de

cabe��a, sem despregar os olhinhos da querida m��e, que

se agita, em espasmos. Sua inocente aten����o est�� con��

centrada naquela preta, jovem ainda, �� morte, doente

e sem recursos.

De repente, os movimentos da m��e cessam. Jo��o��

zinho sente grande alegria, acreditando que as dores

passaram, estando ela agora a dormir calma e tranq��ila.

Vai saindo do quarto, p�� ante p��, quando v�� mulheres

13

da vizinhan��a entrar no quartinho. Fica ext��tico. Uma

delas, com os olhos cheios de l��grimas, lhe ordena;

��� V�� brincar l�� fora! ��� e depois de olhar bem de

perto o rosto da mulher na cama, diz-lhe com voz bran-

da e baixa ��� N��s vamos arrumar sua m��e. Agora ela

vai embora. Vai morar no c��u!

Jo��ozinho sai e senta-se na pedra que serve de

degrau na porta da cozinha. V�� quando o pai, com ar

desolado, entra para o quarto. Instantes depois, sente

um rumor de movimento no aposento, e quando decide

entrar para satisfazer a curiosidade, a mesma mulher

sai e lhe diz:

��� Seu pai tamb��m vai para o c��u, morar j u n t o

com sua m��e. ��le acaba de morrer!

O menino adivinha o significado daquelas palavras,

e antes que a mulher possa imped��-lo, corre para o quar��

to, e chorando, atira-se sobre o corpo do pai. Do pai

mo��o e forte que costumava carreg��-lo nos ombros, e

agora tamb��m ia embora.

Agarrado ao cad��ver do preto, que j�� n��o era mais

seu pai, chorou desesperadamente.

��� Vamos, pobre m e n i n o . . . Deus quer que voc��

seja um forte! ��� Sim, tamb��m o pai lhe dizia isso.

��� Seja honrado, filho! Passe por todo o mal do

mundo, mas se lembre sempre que s�� ser�� feliz se estiver

em paz com voc�� mesmo! ��� E agora o pai o deixava!

Jo��ozinho sentiu um aperto no cora����o e, desesperada��

mente, relanceou os olhos entre as pessoas presentes.

Todos conhecidos da cidade, menos aquela preta baixi��

nha que vinha se dirigindo a ��le. Sua voz era suave

e quente.

��� Eu sou sua tia, e vou lev��-lo comigo para a

cidade grande!

Sufocado pelas l��grimas, o garoto respondeu:

��� 14 ���

��� N��o, n��o vou! Quero ficar com meu pai e

minha m��e!

��� Filhinho, eles v��o para o c��u! Seja bonzinho!

Vamos. ��� E com energia o puxou bruscamente pelo

bra��o, levando-o aos arrast��es para a esta����o.

***

As janelas do trem, escancaradas, deixavam entrar

vento em abund��ncia, enquanto o sol banhava a negra e

suarenta face de Jo��ozinho que, com o olhar triste e

distra��do, absorvia a paisagem, sem ver as ��rvores pas-

sando em corrida louca e vertiginosa, qual fant��stica

fita do cinema mudo.

De repente, o futuro h o m e m levantou o queixinho

firme, e sua voz encheu o vag��o, dizendo:

��� Tia! Quero ir para um bom col��gio. Tia, quero

ser um homem honrado, como papai falou.

��� �� l��gico, ��� respondeu-lhe a bondosa tia ��� Voc��

ir�� para um bom col��gio! Um col��gio do Governo,

que se chama Servi��o Social de Menores, na Av. Celso

Garcia. De l�� voc�� sair�� um homem muito ��til �� socie-

dade. Sair�� um homem honrado!

��� Mas, como �� um h o m e m honrado, titia? ��� Esta

suspirou fundo e gaguejou.

��� Bem, um homem honrado �� . . . aquele q u e . . .

obedece todas as leis. Um homem trabalhador que

respeita ao pr��ximo, que trabalha direitinho, e n��o

tem v��cios, q u e . . .

��� Um homem que n��o estuda pode ser honrado?

��� Claro que n��o. Mas, voc�� vai ser, porque voc��

vai estudar n u m bom col��gio! Ter�� bons professores,

boa comida e boa educa����o, voc�� vai ver!

��� 15 ���

Durante toda a viagem, Jo��ozinho antegozou a sua

ida ao maravilhoso col��gio da cidade grande. Encostou

a cabe��a no tosco banco de terceira classe, fechou os

olhinhos e ficou pensando na inveja que teriam seus

amiguinhos de Vargem Grande do Sul, quando ��le vol��

tasse nas f��rias e contasse que estudava em um col��gio

do Governo. Com o ego��smo pr��prio das crian��as,

pensou:

��� Foi at�� bom que Papai do C��u levasse o meu

paizinho para morar com ��le! Se n��o fosse assim, eu

nunca iria estudar num bom col��gio! ��� ��le nem acredi-

tava que iria ter a mesma vida do Luizinho e do Heitor-

zinho, os meninos mais ricos da sua cidade. Uma vez en��

quanto engraxava os sapatos do Luizinho, este lhe con��

tou que, no col��gio onde estudava, o programa de estudos

e de jogos era o mais completo do Brasil. De l��, s��

sairia para a Universidade. Para a Universidade!...

O cora����o de Jo��ozinho pulsou mais r��pido. Imagina n-

do-se no lugar do amiguinho, o pretinho se viu no col����

gio, tirando boas notas, sendo cumprimentado pelos

professores e tendo ordem de brincar no p��tio, como

pr��mio.

Viu-se a correr pelo ar livre, na t��pida tarde prima��

veril, correndo pelo campo de futebol, subindo numa

pequena colina, arrancando um ramo do chor��o que se

debru��ava �� beira da piscina, atirando-se nas ��guas de

roupa e tudo.

Imerso em seus sonhos e pensamentos, esqueceu-se

da amargura e soltou uma gargalhada feliz. A tia

assustou-se com isso e olhou-o interrogativamente. Cain��

do em s��, Jo��ozinho sorriu sem jeito e disse euf����

ricamente :

��� Ah, titia! Eu vou me jogar na piscina de roupa

e tudo!

��� Que piscina?!

��� L�� no bom col��gio!

��� 16 ���

II.

O bom col��gio

J�� em S��o Paulo, Jo��ozinho n��o estava compreen��

dendo bem o lugar onde estava. Sentia apenas em seu

cora����ozinho uma dor estranha. Uma sensa����o de

aperto e agonia. Em seu c��rebro giravam nomes estra��

nhos: "Servi��o Social de Menores, Abrigo de Meneies,

Avenida Celso Garcia."

A tia largou de sua m��ozinha, e em passos r��pidoa

afastou-se, sumindo rapidamente de sua vista. ��le n��o

compreendia, agora estava interno, em um "bom col��gio

do Governo".

Em p��, no p��tio sujo e de terra da frente do col��gio,

o menino olhava o velho casar��o. Este �� o col��gio? ���

Indagava a si pr��prio, com grandes d��vidas. ��� O

col��gio do Luizinho tinha na frente um belo parque

com jardins floridos ��� pensou. Arvores bem grandes,

onde cantavam mil passarinhos. Onde est��o as alame��

das e suas luxuosas casas, abrigando os estudantes in��

ternos, entregues aos cuidados de pessoas bondosas e

polidas?

Deu novamente asas �� imagina����o, e viu-se entrando

no sonhado bom col��gio.

Andou com passos firmes, e ia subir os degraus de

m��rmore da escadaria, quando uma linda professora

veio ao seu encontro, sorrindo. Convidou-o, ent��o, a

entrar em uma sala e lhe indicou uma cadeira. O ga��

roto sentou-se e retirou o casaquinho, entregando-o ��

17

mo��a, que o colocou sobre uma maravilhosa poltrona

de veludo azul.

��� Qual a sua impress��o deste bom col��gio, meu

bem? ��� a professora perguntou sorrindo.

��� Eu sonhava ser assim mesmo. T��o bonito!

A mo��a escolheu um livro de uma estante, fo��

lheou-o, chegou at�� onde estava Jo��ozinho e, puxando

um banquinho, sentou-se, ficando no mesmo n��vel que

��le. Abriu o livro e mostrou-lhe as figuras, e logo

depois perguntou:

��� Voc�� gosta de livros?

��� Eu n��o s e i . . . Eu nunca tive livros!

��� Ent��o tome. Este agora �� seu!

��� Meu?! ��� seus olhinhos brilharam de alegria.

��� Este livro representa o elo de amizade, entre

professores e alunos deste col��gio.

��� N��o entendo!

��� Voc�� vai entender! Voc��, minha pobre crian��

��a, perdeu seus pais. Sua tia n��o vir�� mais v��-lo. Vo��

c�� agora �� nosso. Ent��o, para mostrar que todos aqui,

alunos e professores, gostamos muito de voc��, eu lhe

dei este livro, servindo, como prova de que voc�� nunca

estar�� s�� e que sempre ter�� nosso amor, carinho e

compreens��o!

��� A senhora fala de coisas que eu nunca pensei

existirem!

��� Eu terei sempre oportunidade de conversar com

voc��, porque serei sua professora e segunda m��e. Ago��

ra lhe farei algumas perguntas para sentir como vo��

c�� vivia em sua casa. Assim criaremos um ambiente

igual, para que se sinta como se estivesse l��, pois a

felicidade dos nossos alunos �� a nossa felicidade!

Jo��ozinho n��o entendeu perfeitamente aquelas pa��

lavras e replicou.

��� N��o, n��o! Eu n��o quero voltar para casa. Que��

ro ficar aqui e aprender. Quero estudar e ser um doutor.

18

A mo��a acalmou-o, f��z com que se sentasse nova-

mente e sorriu.

��� Voc�� gostaria mesmo de ser um doutor?

��� Eu sempre quis ser, e sei que aqui neste bom

col��gio serei mesmo um doutor. Um bom doutor.

��� Que esp��cie de doutor?

O menino ficou pensativo e falou, r��pido.

��� Quero ser um doutor cantor.

��� E voc�� sabe cantar? ��� perguntou sorrindo.

��� Sei.

��� Ent��o cante um pouco para mim.

A voz angelical e bonita do garoto purificou o am��

biente, que ��le ainda desconhecia, mas, de repente gri-

tou de d��r, quando recebeu um soco na cabe��a, e ouviu

uma voz raivosa e petulante, transformando a imagem

da suave professora em verdadeira filha de Sat��.

��� Pare com esses grasnidos, seu crioulo de merda.

Vamos logo raspar esse pichaim! ��� e brutalmente em��

purrou-o para uma sala, raspando-lhe o cabelo com uma

navalha, com tanta grosseria e viol��ncia que, l��grimas

saltaram dos olhos da crian��a. Depois lhe vestiram uma

roupa caqui. Com os olhos arregalados de pavor, o ga��

roto n��o compreendia o que estava acontecendo. Olha��

va angustiadamente para todos os lados, na esperan��a

de vislumbrar a linda mo��a imaginada. Mas, s�� o que

via era um mulato grandalh��o, arrastando-o pelos som��

brios e g��lidos corredores. O pequeno ��rf��o passava as

m��os pela roupa grosseira e pensava:

��� O que ser�� isto? O Luizinho tem roupa linda

e macia. A camisa �� branquinha e a cal��a azul.

Foi empurrado para o meio de uma centena de

crian��as, que se vestiam daquela mesma maneira. Seus

olhos se perderam no comprido p��tio, at�� encontrarem

altos muros. No meio do p��tio um barrac��o cimen-

tado, onde ficavam as privadas e os lavat��rios. Nesse

19

local os meninos pequenos passavam a maior parte do

dia. No Abrigo de Menores havia dois pavilh��es: o n��-

mero um e o n��mero dois. Jo��ozinho ficou no n��mero

dois, pois, o outro se destinava aos maiores, entre quinze

e vinte anos de idade. Os rapazes maiores cuidavam dos

menores do pavilh��o n��mero um, sendo conhecidos como

"Os Graduados"

Os graduados eram rapazes que tinham crescido

no Abrigo de Menores. Eram revoltados, maldosos e

perversos. Tratavam os menores como foram tratados.

Triste legado!

Jo��ozinho caiu nas m��os de um dos piores gra��

duados que, �� guisa de trote aos novatos, chamou-o.

��� Vem c��, negrinho! ��� cabisbaixo, Jo��ozinho

aproximou-se e recebeu a primeira ordem: ��� Vamos,

o que est�� esperando? Ser�� que n��o sabe marchar?

Bata com os p��s no ch��o!

O menino olhou para os p��s das outras crian��as,

que o rodeavam e viu todos descal��os iniciando a mar��

cha, na certa, com a inten����o de ensinar-lhe os primei��

ros passos da rude disciplina interna. Todavia, um

grito do graduado os f��z estacar!

��� �� s�� o negrinho! ��� berrou o ilustre graduado.

Jo��ozinho timidamente come��ou a bater, com os

p��s, no ch��o, enquanto o graduado gritava:

��� Mais forte! Mais forte! ��� Jo��ozinho batia e

batia com os p��s no ch��o, j�� chorando de dor. Os

meninos, em solidariedade, lhe disseram baixinho:

��� N��o obede��a, bobo! Mande ��le tomar no c��.

Mande!

O graduado gritou:

��� Ouviu o que disseram! Agora voc��s v��o ver!

��� Em seguida, com ar perverso, o monstro come��ou a

escolher, entre os menores, aqueles que tinham os p��s

mais machucados, e os f��z marchar at�� sangrarem.

��� Agora podem xingar, seus cachorros sem dono.

20



Aproveitando-se da distra����o moment��nea do gra-

duado, o calouro Jo��ozinho afastou-se e procurou ref��-

gio atr��s do barrac��o, onde sentou-se no ch��o e come��

��ou a chorar.

A noite chegou e o menino passou-a, com os olhos

grudados nas vigas do teto. S�� conseguiu dormir pela

madrugada.

De manh��, acordou com uma dor aguda de cabe��a.

Ergueu os olhos e deu com o graduado a sua frente,

parecendo-lhe nesse momento, mais alto do que na v��s��

pera. Assustado e tremendo, o menino n��o compre��

endia como tinha ca��do da cama com colch��o e tudo.

Seus olhos esbulhados interrogavam o graduado,

que o f��z levantar-se do ch��o sob pancadas a torto e a

direito, como se fosse uma fera raivosa.

��� Esse �� o castigo para os que n��o acordam com

a chamada. E isto �� para que n��o se esque��a ��� unin��

do gesto �� palavra, despejou sobre a crian��a, um balde

de ��gua gelada.

��� Quem sabe, se assim voc�� fica menos fedorento,

seu coisa-ru��m!

Jo��ozinho pensou explicar que estava muito s��, e

passando por agonias e incertezas, e que at�� aquele

momento n��o tinha ainda compreendido porque l�� es��

tava, juntamente com aquele amontoado de crian��as

de olhos arregalados e ar de dementes. Coitado, ��le

que pensava ir para um bom c o l �� g i o ! . . .

N��o chegou a emitir um som, pois quatro bra��o.;

o levantaram e o atiraram longe. Sua sorte foi cair

em cima de uma cama. Aterrorizado, viu que os ra��

pazes vinham novamente em sua dire����o. Teria sorte

na segunda vez? Levantou-se r��pido e correu pelo dor-

mit��rio, enveredando pelos banheiros. Sem f��lego, dei-

21

xou-se cair no canto de um box. Um menino que to��

mava banho no outro box, espiou por cima da divis��o

de madeira, e olhou-o calmo, j�� acostumado ��quelas

cenas.

��� Voc�� est�� fugindo dos graduados, n��o ��?

A garganta seca do pretinho n��o deixava sair a

voz, como se mil alfinetes a tivessem atravessado.

��� Pode ficar a��, que eu n��o denuncio voc��. N��o

precisa ficar com medo, porque eles n��o mais v��o se

preocupar com voc��. J�� devem ter apanhado um outro

infeliz, como n��s.

��� Quem �� v o c �� ? . . . ��� perguntou o pretinho?

��� Meu nome �� Raul.

��� V o . . . voc�� �� parecido, com o menino J e s u s . . .

��� gaguejou Jo��ozinho, j�� esquecido dos graduados. ���

Nosso Senhor, tamb��m tem esses cabelos louros encara��

colados e olhos azuis.

Raul riu, e, fechando a torneira do chuveiro, saiu

do box. Apanhando a toalha do ch��o, continuou com

sua voz l��mpida e cristalina.

��� Mas, segundo dizem, meus olhos s��o azuis es��

verdeados. O olhar de Jesus era meigo e suave, e o

meu, �� olhar de tarado. ��� Come��ou a enchugar-se e

prosseguiu ��� Sabe o que dizem os g r a d u a d o s ? . . . "Es��

se menino tem olhar de quem est�� pedindo que durmam

com ��le!" Um dia, um deles quis me agarrar �� for��a,

e sabe o que eu lhe fiz?

Durante a luta, ao defender-me, dei-lhe uma mor��

dida no saco, e quase lhe arranquei um peda��o. Mos��

trei-lhe ser macho, e nunca mais me amolaram. Por

que aqui, quando os meninos s��o bonitinhos, e t��m a

bunda gordinha, t��m que passar todo o tempo com o

cu ardendo.

Jo��ozinho n��o compreendia aquela disserta����o, mas

falou a Raul, com um fraco sorriso.

��� Meu pai n��o queria que eu dissesse esse nome a��.

22

Raul come��ou a vestir a roupa surrada. ��� Ent��o

como �� que se refere a isso?

��� N��o sei!

��� Ent��o �� cu mesmo! Agora vamos, pois h�� uma

surra para cada minuto de atraso.

Jo��ozinho foi puxado pelo outro, que continuou

dizendo: ��� Eu tenho um irm��o que �� graduado, file

tamb��m foi criado aqui e aprendeu a ser perverso e mau.

N��o tem alma, cora����o, religi��o, respeito para com os

mais fracos, n��o tem nada! Mas, �� por ��le que os ou��

tros graduados me respeitam. No dia em que meu ir��

m��o soube que aquele cara quis me comer, brigou com

��le, e lutaram at�� tirar sangue. Eu vou falar com meu

irm��o, e lhe pedir para ser tamb��m seu protetor.

As duas crian��as se afastaram de m��os dadas, e

ficaram na fila com as outras, esperando os graduados

revistarem as camas. Aquelas molhadas ou sujas indi��

cavam que seus donos seriam duramente castigados.

Como dormiam dois em cada cama, no caso da

cama estar molhada, os dois apanhavam. Nada leva��

vam em conta, nem a pouca idade, nem defici��ncia nas

vias urin��rias. Os graduados s�� eram especialistas em

distribuir socos e tapas a granel.

O primeiro dia da nova vida de Jo��ozinho no bom

col��gio foi passado ajudando os outros menores, com��

panheiros de infurt��nio, a fazer a limpeza, no abrigo,

e catar lixo no p��tio.

Esse servi��o tinha de ser feito em quinze minutos.

O pretinho n��o perdia Raul de vista, e assim que

ouviu o sinal de: "Formar fila!", saiu correndo, como

um louco, a fim de n��o perder lugar j u n t o ao amigui��

nho. Com essa correria toda deixou cair um pouco

de lixo que trazia nas m��os.

Os menores iam mostrando o lixo aos graduados e,

em seguida, o jogavam no lat��o. Quem trazia pouco

lixo era obrigado a ficar em outra fila.

��� Onde est�� o lixo, crioulo?

��� 23 ���

O menino baixou a cabe��a em tempo de ver a bota

do graduado lhe passando pelas pernas, recebendo uma

rasteira diab��lica. E s p a r r a m a d o no ch��o, Jo��ozinho re-

lanceou os olhos at�� encontrar os de Raul, onde se fixou

com u m a s��plica m u d a .

Os passos de Raul foram firmes e sua voz vibrou

em tom viril quando chegou em frente ao g r a d u a d o .

��� Voc�� n��o vai bater mais nesse menino. ��le ��

pequeno e m a g r i n h o . Al��m disso, ��le �� novo aqui, e

n��o conhece os costumes do abrigo.

O g r a d u a d o empalideceu de raiva e olhou para o

menino de dez anos que ousava desafi��-lo. Encontrou

dois olhos frios como a��o, que despediam fa��scas. A

for��a e m a n a d a daquele olhar o deixou confuso, e at��

sua voz saiu incerta.

��� Eu tamb��m, quando cheguei, n��o conhecia os

costumes.

��� Por isso mesmo. Se voc�� lembra o que sofreu,

deve sentir quanto �� terr��vel a h u m i l h a �� �� o .

��� Eu sou m a n d a d o . . . se n��o cuido direito desses

m e r d i n h a s , t a m b �� m sou c a s t i g a d o . . . voc�� um dia tam��

b��m ser�� um g r a d u a d o , a�� vai ver como ��! Ter�� tam-

b��m que dar o cu!

Raul ficou vermelho, e sua voz soou rouca.

��� Nunca! J a m a i s ! Sou m a c h o ! Sou dur��o! Nun-

ca me deixarei vencer. N��o vou permitir que abusam

de mim. N��o vou deixar que me toquem!

Mais refeito, o graduado voltou �� arrogancia an��

terior.

��� Voc�� a c a b a r �� desistindo de lutar, vai ver!

Sem poder mais conter-se, Raul avan��ou para o

g r a d u a d o , cego de f��ria, com a boca entreaberta, respi��

rando e n t r e c o r t a d a m e n t e . Mas recebeu um soco no

nariz e sua cabe��a girou. Sentiu que o cimento do ch��o

velozmente se aproximava do seu rosto. Estonteado,

sentia o agrad��vel frescor do cimento, e n q u a n t o procu-

24

rava reanimar as for��as para levantar-se, quando a voz

de seu irm��o se f��z presente, como se tivesse vindo de

longe. Com esfor��o, ergueu-se e viu o rapaz aproximar��

se do graduado, que estava com um canivete na m��o.

Seu irm��o chegava, devagar, com o ��dio estam��

pado no rosto.

��� Filho da puta! Covarde! Por que n��o bate em

homem?

Os menores afastaram-se, deixando um claro em

meio �� roda onde, qual dois galos de briga, as duas

figuras se enfrentavam. Sentado no ch��o, com os olhos

rasos d'��gua, Raul, tr��mulo, viu os dois se agrarrarem,

rolando pelo ch��o. A l��mina brilhou no ar e cravou-se

na carne de seu irm��o, que amoleceu o corpo e parou

de lutar. Raul cerrou os olhos com tristeza, calculando

o que acontecera.

Foi a ��ltima vez que viu seu irm��o.

25

III

O juiz come��a a amar o menino

A ampulheta filtrou a areia dos dias, meses e anos,

e a vida no abrigo continuava vil.

Jo��ozinho estava com dez anos, e sentado n u m

canto do p��tio, contemplava o c��u sem nuvens, e nem

sentia o sol queimando-lhe a face. Pensava em sua

Vargem Grande do Sul, t��o distante. Parecia ouvir

o mesmo vento de l��, soprando c��lido, vindo das encos��

tas da montanha, e que fazia navegar o barco velho e

feio por ��le achado uma vez, no meio dos espessos ma��

tagais.

��le seguira a trilha e a vereda, entre as matas, e

l�� encontrara o barquinho, que parecia n��o ser usado

h�� muito tempo. Pegou-o, e todas as vezes, depois de

navegar, novamente o escondia entre a folhagem, e com

as m��os desmanchava as pegadas, para que ningu��m

descobrisse o seu precioso tesouro.

Mas, um dia o barquinho escapou de suas m��os,

e deslizou para o meio do lago, at�� perder-se de vista.

Todos os dias o menino se quedava �� beira da ��gua,

esperando, esperando, sua escuna voltar.

E um dia, voltou! O bote veio aproximando-se at��

encostar na margem, onde ficou �� sua espera.

Nessas medita����es, a sua esperan��a de inocente

crian��a era poder voltar �� terra amada, assim como o

seu barco voltara.

27

��� Sentido!

A voz inesperada o f��z estremecer e afastou de sua

mente o quadro t��o querido e sonhado. Levantou-se

rapidamente, e se postou ereto. Era costume dos gra��

duados nunca deixarem os meninos em paz.

��� Sentido, todos! ��� Estivessem onde estivessem,

at�� mesmo sentados na bacia da privada, tinham de

interromper o que estivessem fazendo e ficar em posi����o

de sentido.

Nesse dia n��o se ouviu as palavras "�� vontade",

m a s . . .

��� Todos pendurados no muro! ��� Era um dos cas��

tigos do bom col��gio! Todos tinham de se pendura��

rem no muro, e os menores tinham de ser ajudados

pelos maiores, devido n��o conseguirem alcan��ar o topo

do pared��o. Enquanto sentiam os bra��os adormece��

rem pelo esfor��o, e as m��os ficarem em fogo pela aspe��

reza das pedras, os graduados pegavam seus cintur��es

e zurziam nos trazeiros de cada um, com toda a for��a,

sem se preocuparem, com o fato de que as fivelas la��

nhavam as carnes das pobres crian��as.

No entanto, era prefer��vel isso do que cair do muro,

pois, aqueles que n��o aguentassem e ca��ssem, recebiam,

como brindes, socos e pontap��s.

Nesse dia o castigo foi aplicado pelo fato de um

bando de garotos ter tentado a fuga. Eles dormiam no

primeiro andar, e amarraram len����is, uns aos outros,

formando uma corda comprida, a qual jogaram pela

janela, prendendo a outra ponta no p�� de uma cama.

Os mais corajosos desceram, atravessaram o p��tio,

encostaram bancos no muro, e ganharam a rua e a

liberdade.

Mas, por fatalidade, naquele momento passava um

carro da pol��cia e os evadidos foram recambiados ao

Abrigo.

Entre os graduados aplicando o castigo, estava Raul,

agora com dezessete anos.

��� 28 ���

O mo��o, alto e magro, era de uma beleza de im��

pressionar. Cabelos louros, maravilhosos olhos azuis

esverdeados, fazendo contraste com a pele quase marron,

dava-lhe um aspecto muito atraente e sensual. O f����

sico perfeito real��ava, como um raro esp��cime de beleza

masculina.

Bastava as mulheres o verem, e no mesmo instante

se apaixonavam. Mas, o pior de tudo, �� que o mesmo

acontecia com os homens.

Uma vez, depois que seu irm��o, tamb��m interno,

fora levado, n��o se sabia para onde, Raul fugiu do

Abrigo de Menores. Sujo e maltrapilho vagou pela ci��

dade, at�� que deparou com um senhor de meia idade,

elegante e luxuosamente trajado. Conversaram e este

ofereceu sua casa.

Disse-lhe o dito senhor: ��� Somos um casal sem

filhos, tanto eu como minha mulher adorar��amos ado��

tar um menino como voc��! Tem dez anos, n��o ��?

��� J�� fiz onze.

��� Ah, tem onze anos! Muito bem! Pois voc��

disse n��o ter ningu��m, e estar empregado em casa de

um comerciante, e que ��le o mandou embora?

��� Isso m e s m o . . .

��� Ent��o voc�� quer ir para a minha casa e ser

meu filho?

��� O senhor me a c e i t a r i a ? . . .

��� Claro! Voc�� ficar�� conosco por uns tempos, e

se se acostumar, n��s o adotaremos. Mas, n��o quero

que minha mulher o conhe��a neste estado. Venha

comigo!

O cavalheiro o levou para uma loja e encomendou

roupas finas para o menino.

��� ��le tem onze anos, mas parece ter quatorze!

Disse o comerciante.

O dono da loja fitou Raul, e sem despregar os

olhos do menino, disse:

��� 29 ���

��� Parab��ns, senhor! O seu filho �� lindo! Nunca

vi um rapaz t��o bonito.

O homern, que era advogado e se c h a m a v a Paulo,

estremeceu.

��� Oh, sim. "Meu filho" �� uma linda crian��a!

Raul sentiu-se gelado. Um ��dio gerado pela pa-

lavra "beleza" lhe subiu at�� a gargantaA. N��o ouvia

outra coisa.

��� Que lindo! Parece at�� o anjo Gabriel!

��� Qual n a d a ! Parece at�� Apolo!

Ali parado, era alvo de todos os olhares! Mas,

sentia-se m a c h o . Sabia perfeitamente o que queriam

dizer, quando o a d m i r a v a m e a c h a v a m bonito!

Quis fugir, mas o dr. Paulo aproximava-se, e quan��

do percebeu a palidez do menino, assustou-se.

��� O que foi? Est�� sentindo-se mal?

Raul olhou-o com seus maravilhosos olhos j�� ful��

g u r a n t e s .

��� Em todos os lugares as pessoas me olham, olham,

e sei q u e . . .

Mas, o advogado n��o ouvia, perdido em seus pen-.

s a m e n t o s , sentindo dentro de s�� u m a coisa e s t r a n h a .

Aquele menino! Aqueles olhos a b r a s a d o r e s ! Conse��

guiu balbuciar.

��� V a m o s . . . Vamos e m b o r a . . .

Dr. Paulo corria a cem quil��metros por hora, a

c a m i n h o do Horto Florestal, onde morava. Raul se

deliciava com a velocidade. A m a r c h a do ve��culo n��o

diminuiu, nem mesmo quando f��z a volta para entrar

na alameda, onde estava a m a n s �� o .

A boca do dr. Paulo entreabriu-se n u m sorriso.

N��o se lembrava de j a m a i s ter voltado para casa t��o

contente. Nem mesmo quando, a i n d a em lua de mel,

sua esposa o esperava ansiosa.

��� 30 ���

Os olhos de Raul iam entrevendo os ramos das

��rvores da alameda, que absorviam os ��ltimos raios

solares, j�� no crep��sculo. O majestoso edif��cio ia fican-

do maior �� medida que se aproximavam.

Seus sentidos comparavam aquela enorme casa a

um pal��cio que vira certa ocasi��o em uma revista.

��� Entre. ��� convidou o dr. Paulo.

A criada que abrira a porta fitou-o admirada.

��� Vamos, vamos, Carlota. O que foi? Est�� achan��

do meu amiguinho muito feio? ��� sorriu, ironicamente.

��� Feio, dr. Paulo? �� a criatura mais linda que eu

j�� vi! Parece at�� m��sica de violino.

��� Saiba, Carlota ��� disse orgulhoso ��� essa m����

sica de violino agora �� nossa! Raul vai morar conosco.

Agora, prepare-lhe um banho. Pensando melhor, eu

mesmo preparo, enquanto voc�� providencia que sejam

levados para o quarto os pacotes que est��o no carro.

Raul, vamos?

Pegou a m��o do menino e conduziu-o para a gran��

de escadaria de m��rmore, guarnecida de corrim��o dou��

rado.

��� A patroa j�� chegou, Carlota?

��� Ainda n��o, doutor. Dona Helena telefonou avi��

sando que jantar�� com os Marcondes.

Um brilho de satisfa����o perpassou fugaz pelos olhos

do homem. E pensou, enquanto subiam as escadas.

��� ��timo! Hoje ��le ser�� s�� meu. A m a n h �� . . .

Entrou no enorme quarto de banho, e foi logo abrin��

do as duas torneiras da banheira. Enquanto a ��gua

t��pida jorrava, foi buscar o menino que, im��vel e per��

plexo, se deslumbrava com tudo." Os maravilhosos m����

veis, os quadros, os tapetes do Oriente e os cortinados

embelezando o confort��vel quarto.

Dr. Paulo quedou-se a olhar o menino, iluminado

apenas pela luz do crep��sculo, e seu.cora����o palpitou

mais forte, enquanto um fr��mito diferente lhe percor-

��� 31 ���

ria o corpo. Quantos meninos j�� tivera em seus bra��os?

Dez? Vinte? Perdera a conta. Mas nenhum dos outros o

fizera sentir aquela sensa����o esquisita que experimen��

tava agora. Antegozava a hora em que correria as

m��os por aquela pele de seda.

Disfar��ou o que sentia, e disse meigo para Raul:

��� O banho j�� est�� pronto, rapaz. Venha. Vou

ajud��-lo a despir-se!

��� Pode deixar, eu sei tomar banho sozinho ��� disse

Raul espantado.

��� Eu sei, meu bem, mas s�� quero lhe esfregar

as costas!

��� N��o �� preciso!

O advogado, n��o querendo ser precipitado, virou

as costas e fingiu arrumar as cortinas pl��sticas que

guarneciam a banheira. Teve a sensa����o de que o

garoto come��ava a despir-se. Sorriu satisfeito.

Afinal, tratava-se de uma crian��a.

Raul sentiu a ��gua morna envolver seu corpo, sen��

sa����o bem diferente daquela do Abrigo, onde s�� havia

chuveiro frio.

Come��ou a rir, e a espadanar-se na ��gua, jogando-

a para todos os lados, esquecendo-6e da presen��a do

dr. Paulo.

Disso aproveitou-se o advogado que, r��pido, desem��

bara��ou-se das roupas atirando-se tamb��m na banheira.

A crian��a aceitou a companhia, para a batalha na

��gua. As gargalhadas e os risos dos dois encheram a

casa de ambiente sempre triste e silencioso.

Inconscientemente Raul oferecia ao homem viciado

uma escala de desejos novos. O desejo de possuir seu

corpo e sua alma.

Paulo jamais pensara em desejar a alma de algu��m.

Sempre, em suas loucuras de sexo, s�� pensou em

gozar, s�� em gozar! Mas agora, enquanto o menino

pulava de c�� para l��, em cima do seu corpo, fingindo

��� 32 ���

ser um tubar��o que ia devor��-lo, pensava: "Como po��

derei, de agora em diante, separar-me deste menino?

Que influ��ncia m��gica! S�� pode ser sua alma que luta

para que-eu n��o a separe da harmonia de seu lindo

corpo! Que influ��ncia curiosa. Pergunto a mim mes��

mo, como compreender o que se passa comigo! Com

a minha idade n��o posso mudar meu conceito e vi��

s��o das coisas!

"Mas, agora sinto ser meu esp��rito presa f��cil de

um amor que n��o separa a alma do corpo".

��� Estou cansado de brincar ��� disse de repente

Raul. Quero sair da ��gua. N��o estou acostumado com

��gua quente. Parece que este calor vai sufocar-me.

��� Perdoe-me, meu bem. Estava t��o imerso em

meus pensamentos e esqueci-me de tudo!

Envolvendo o menino num olhar langroso, pulou

da banheira, observando a maravilhosa express��o de

cansa��o que cobria as faces daquele invulgar menino.

Embrulhou-se numa toalha e atirou outra a Raul,

que apanhou-a no ar, rindo.

��� Puxa! Banho quente d�� uma fome! Estou

at�� com as pernas bambas de tanto brincar.

��� Ent��o sente-se a�� nessa poltrona. Vou man��

dar trazer um suco de laranja bem gostoso.

Junto com o suco vieram as roupas novas. Raul

sorveu a bebida, sem descerrar os olhos, sobre os quais

tremiam os longos c��lios dourados, sentindo a leve m��o

do doutor lhe afagando a cabe��a.

��� Muito bem, meu r a p a z . . . Agora vista-se para

o jantar. Venho busc��-lo em seguida! ��� e desceu a

branca escada de m��rmore.

Raul admirava os quadros e est��tuas dispostos com

bom gosto, no corredor atapetado, quando uma porta se

abriu, surgindo o advogado. Os olhares de ambos en-

trecruzaram-se, e o dr. Paulo sentiu outra vez aquela

estranha sensa����o que o queimava e fazia sua garganta

sufocar. Disfar��ou a emo����o, com um sorriso.

33

��� Ah, voc�� est�� um perfeito cavalheiro. Um ca-

valheiro londrino.

Face a face com Raul, o advogado estremeceu. Mas,

afinal, o que seria aquilo? N��o quis admitir estar sen-

do dominado pelo jovem que o emocionava. Preferiu

pensar ser tudo consequ��ncia do banho muito quente.

Procurou convencer-se de ser sua imagina����o pregando-

lhe pe��as.

A sequ��ncia de seus pensamentos foi quebrada-pela

voz clara do menino.

��� O senhor escutou o que eu falei?

��� N��o, n��o, meu bem. Perdoe-me. Eu estava dis-

tra��do. Por favor, enquanto descemos, repita o que

disse. Prometo-lhe n��o me distrair novamente!

��� Ora, n��o era nada de importante. O senhor dis��

se que eu parecia um cavalheiro londrino. O que ��

isso?

��� Muitas palavras s��o incompreensivas para um

menino de sua idade ��� disse sorrindo ��� cavalheiro

�� ser assim, como voc�� est�� agora. Com uma roupa bem

composta, ar s��rio, compenetrado, descendo as escadas

sobriamente, com as m��os para tr��s e pose real.

��� Quem bom, o senhor estar contente com o meu

jeito!

��� Seu j e i t o ! . . . Ah, pensou ��� se ��le imaginasse

que somente sua presen��a j�� lhe trazia convuls��o ��nti��

ma e f��sica! Se ��le soubesse! Se ��le s o u b e s s e ! . . .

Puxou a cadeira para o menino sentar. N��o sabia

por que, mas tinha imenso prazer at�� nas pequenas

coisas para aquela bela crian��a.

Sentou-se defronte ao pupilo, tocou a campainha,

como chamando a criada.

Naquela noite o menino dormiu r��pido, com o dr.

Paulo sentado �� beira de sua cama, louco para pos��

su��-lo, mas n��o com ��le adormecido. O menino teria

tamb��m que am��-lo, que desej��-lo.

��� 34 ���

No dia seguinte, Raul acordou com a impress��o

de que o graduado virara seu colch��o e ��le estatelara

no ch��o, por n��o ter ouvido a sineta.

Por��m, o calor do sol entrando atrav��s do cortina��

do, banhava-lhe a cama, fazendo-o tomar conciencia do

lugar onde estava.

Sentia-se feliz. Felic��ssimo. Os ramos da ��rvore

florida ro��avam sua janela, impregnando o ar, com sua��

ve perfume. Espregui��ou-se e relaxou os m��sculos.

Lembrou-se da diferen��a, entre, aquele ambiente e o

do Bom Col��gio.

Gra��as aos c��us tudo aquilo estava longe.

N��o tinha vontade de levantar-se da cama coberto

por len����is de linho e travesseiros macios.

Ficou pensando no pijama, a mans��o, escadarias,

o suco de laranja. Tudo era novidade. Principalmen��

te o ar. Aquele ar fresco e puro agitando levemente as

cortinas transparentes das janelas. As cortinas sepa-

rando-o de tudo l�� de fora!

Tudo o que ��le imaginava agora, era esquecer!

Nunca mais voltaria ao Bom -Col��gio. Era homem!

Homem macho, por isso tivera sorte, e l�� ficaria para

sempre, vivendo como um milion��rio! N��o queria pen��

sar no futuro. Pretendia agora levantar-se e sair cor��

rendo pelos gramados.

Olhou o rel��gio. Seis horas apenas. O pouco que

sabia era que os milion��rios levantam-se bem tarde. Se

fosse correr e brincar nos jardins da mans��o, ningu��m

iria incomodar-se, pois ningu��m o veria.

Ficou em p��, na cama, e come��ou a deSpir o pija��

ma, quando a porta abriu-se.

Olhou assustado para o roup��o de fin��ssima seda,

c��r de rosa, envolvendo o corpo jovem e moreno da bela

mulher, que entrava no quarto, indo sentar-se na cama.

Tagarelava, enquanto o ajudava a despir-se.

��� 35 ���

��� Bom dia, meu amor. Dormiu bem? Espero que

nada o tenha incomodado. ��� Ela dobrou o pijama, co��

locando-o em cima de uma cadeira.

��� Sou a sua m��e. Que tal? Gostou de mim? Es��

pero que sim, porque estou encantada com voc��! Paulo

me disse ser voc�� bonito, como um anjo! Mas enga��

nou-se. Voc�� �� bonito como um Deus!

Somente quando Helena o envolveu em seus bra-

��os, Raul percebeu que estava nu. Ela o apertava

como se quisesse amass��-lo. ��le sentiu a maciez do seu

lindo vestido de seda, em sua pele, encantando-se com a

sensa����o de ser abra��ado por uma mulher.

Encostando-se a ela, disse sorrindo:

��� Gostei muito da senhora, sim!

��� Da "senhora"?... ��� Helena f��z um muxoxo e

beijou-o nos l��bios.

��� Da s e n h o r a . . . mam��e! Repita: Da se-nho-ra

mam��e!

Em p�� sobre a cama, seu rosto estava no mesmo n��

vel do rosto de Helena. T��o pr��ximos um ao outro,

que sentiam o calor do h��lito.

��� Da senhora, mam��e! ��� repetiu olhando-a pro��

fundamente os olhos.

Helena estremeceu. Suas m��os percorreram lenta��

mente o corpo macio da crian��a, e pensou, ent��o, que

��le n��o parecia t��o crian��a. Ou se enganara, ou ��le

vibrara, com o contato de suas m��os de unhas longas

e ovaladas. N��o queria olhar agora para envergonh��-

lo. Teria muito tempo para isso.

Outros meninos trazidos pelo marido n��o lhe trans��

mitiram aquela sensa����o viva e aquele calor formigan-

do-lhe os sentidos. Talvez, porque os outros, o marido

esfriava antes. Quando vinham para ela j�� estavam

desgastados pelo marido.

Mas, naquele anjo o marido n��o poria as m��os.

Exatamente por isso levantara-se primeiro e ali estava.

36

N��o deixaria Paulo a s��s com o garoto. Pretendia

ficar sempre alerta e vigilante, a partir daquele instante.

Beijou levemente os l��bios vermelhos da crian��a, e

o largo sorriso espelhado naquele rosto angelical a f��z

repetir o gesto. Dessa v��z um pouquinho mais demo��

radamente e, sentindo uma leve rea����o do menino, disse:

Todas as mam��es beijam seus filhinhos assim, vo��

c�� n��o sabia?

��� Eu n��o tenho m��e!

��� Voc�� gostou?

��� De que?

��� Do beijo da mam��e?

��� Gostei!

��� Se voc�� f��r bonzinho para mim, a mam��e lhe

dar�� muitos beijos, e . . . outras coisas boas.

��� Uma bola tamb��m? ��� perguntou ingenuamente.

��� Tamb��m ��� disse Helena com um sorriso c��nico.

��� Agora posso ir brincar no jardim?

��� Claro que sim, meu bem. M a s . . . voc�� me pro��

mete uma coisa. Promete?

��� Tudo o que a senhora quiser.

��� ��timo. Se seu pai o chamar, venha contar-me

primeiro. N��o quero que ��le se preocupe com voc��.

Coitado! ��le tem tanto que fazer, e se voc�� lhe der

um t r a b a l h o . . . ��le ser�� capaz de n��o querer voc�� aqui.

Helena sentiu pena da express��o e palidez que se

formou no rosto de Raul, quando ouviu aquelas pa��

lavras.

Mas, se n��o o assustasse, poderia perd��-lo. N��o

queria isso por nada deste mundo. Ansiava sentir e

possuir aquelas tenras e macias carnes em luta amoro��

sa ardente naquele instante, queimando-a at�� as en��

tranhas sequiosas por amor.

37

Com habilidade f��z que o menino se sentasse sobre

o leito e procurou desculpar-se, quando viu a tristeza

estampada no belo rostinho.

��� P e r d �� o . . . N��o s�� zangue comigo! Se o papai

n��o o quiser, eu o levarei para longe, bem longe.

��� Mas eu n��o quero ir para longe! Quero ficar

com a senhora e o com o dr. Paulo!

��� Naturalmente, minha pobre crian��a. Ficar�� co��

nosco. S�� n��o poder�� ficar se aborrecer o papai. Se

��le o chamar para passearem juntos, ou ficarem a s��s,

voc�� vem correndo para os bra��os da mam��e. Isso dei��

xar�� o papai contente.

��� Nesse caso, eu prometo n��o ficar a s��s, com o

dr. Paulo. Agora posso ir brincar?

O menino vestiu-se e saiu correndo do quarto, en��

quanto Helena permanecia pensativa, com o olhar per��

dido ao longe, ap��s vencer a primeira batalha.

38

IV

A mulher do juiz tamb��m ama

o menino

Um m��s passou voando. O pequeno Raul apro��

veitou o tempo da melhor maneira poss��vel para uma

crian��a de sua idade. Comendo, dormindo e sendo aca��

riciado pelo casal, como se fosse um filho verdadeiro.

Estava mais gordo e mais alto. Sua pele adquiriu

um tom bronzeado-dourado. Raul ria com simplicida��

de, feliz, devido o casal n��o se separar d��lc um instante

sequer. O dr. Paulo voltou a dormir com a esposa,

depois de seis anos de separa����o. Mas, era apenas para

vigiarem-se mutuamente. Dormiam sobressaltados,

cheios de medo. Raul teria que ser amante s�� de um

dos dois!

O dr. Paulo transferiu seu escrit��rio para a man��

s��o, e Helena n��o mais sa��a, nem mesmo para ir ao

cabeleireiro. Os dois viviam espreitando-se, numa ten��

tativa de terem uma chance de ser o primeiro a con��

quistar o garoto.

O advogado e a esposa estavam loucamente apai��

xonados pela crian��a. Ela vivia nervosa, emagrecia a

olhos vistos, e suas faces encovadas estavam at�� se tor��

nando amarelas. Passavam os dias tristes, e tremendo

de desejos.

E �� l e . . . ��le pensava at�� em mat��-la! O menino

tinha que ser seu! A sua pot��ncia, morta h�� tanto

tempo, renascia, crescia, vibrava, estourava, �� vista do

menino.

39

Como fazer para que aquela cadela o deixasse em

paz? J�� estava infernalmente aborrecido. Ah, se fos-

se poss��vel neste momento ter Raul em seus bra��os!

Daria tudj para isso acontecer! N��o haveria nada no

mundo que n��o sacrificasse para t��-lo, eternamente,

junto a si. Daria tudo, at�� a pr��pria alma.

Mas a c a d e l a . . . A cadela da mulher era um em��

pecilho que vivia sempre a vigi��-lo. Tinha de encon��

trar um meio para afast��-la! Paulo apertou a cabe��a

entre as m��os, e cerrou os olhos com for��a, para n��o

ver o menino saltitando pelo parque. Mas, mesmo sem

v��-lo, sentia sua presen��a. N��o precisava olhar para

saber quanto era cativante o sorriso que se espelhava

pelo semblante da crian��a, enquanto oferecia uma flor

a Helena. Ah, cadela!

��� R a u l . . . R a u l . . . ��� balbuciou o dr. Paulo.

Raul entregava uma rosa a Helena, perguntando:

��� Quer mais uma?

O menino parou de repente, e perscrutou as plantas

baixas que o circundavam.

Helena observou-o, surpresa.

��� O que foi, meu anjo? Parece haver ficado tris��

t e . . . Termine de falar. voc�� d i z i a . . .

��� N��o, n �� o ! . . . ��� voltou-se bruscamente ��� Papai

esta me chamando!

A express��o da jovem foi de profundo desagrado.

��� Chamando? N��o ouvi. voc�� deve ter-se en��

ganado!

��� Chamou, sim! Eu ouvi!

��� Mas meu bem, veja! Seu pai est�� longe. Com

a cabe��a entre as m��os! T��o longe! Se o tivesse cha��

mado, teria gritado, e eu tamb��m ouviria.

��� Mas eu ouvi! ��� Raul afastou-se correndo e afo��

gueado. Chegou perto do advogado e sua voz tirou o

homem do mundo das medita����es em que estava mer��

gulhado.

��� 40 ���

��� O senhor chamou?

Paulo estremeceu, como se uma corrente el��trica

o tivesse atingido. Levantou a cabe��a, e fitou perplexo

o menino.

��� Chamei?! ��� perguntou meio zonzo.

��� Sim. Eu ouvi o senhor chamar: Raul, Raul,

agora mesmo!

O advogado nao podia compreender. Balbuciara o

nome do menino, e ��le ouvira, l�� de t��o longe! Mas

como?

Pousou levemente a m��o no ombro de Raul.

��� voc�� ouviu! Ouviu sem mesmo que o chamassef

��� Ouvi perfeitamente! Sua voz soou bem den��

tro do meu c��rebro!'

Helena, que j�� se aproximara, disse:���

��� Imagine, querido. Raul garante que voc�� o cha��

mou! E eu n��o ouvi nada!

O olhar de ��dio lan��ado pelo marido f��z seu sangue

gelar nas veias.

��� Chamei-o, sim. Chamei-o. Sua voz era grave

e firme. ��le n��o permitiria a intromiss��o dela nesse

mundo novo que agora conhecia. O mundo da alma.

Helena franziu a testa.

��� Engra��ado! N��o ouvi nada. Ondulou o ar com

gestos leves, como fazia sempre, e pegando Raul pela

m��o, puxou-o para si, e enfrentando o marido com os

olhos brilhantes, perguntou:

��� O que voc�� quer dele?

Do alto de sua estatura, com a palidez espalhan��

do-se pelo rosto. Paulo arrancou o menino das m��os

da mulher e gritou:

��� ��le vai viajar comigo!

Ela riu, escarninha.

��� S�� se voc�� passar por cima do meu cad��ver.

��� 41 ���



Dentro d��le de repente- fervilhou uma raiva louca,

tal como animal selvagem. Detestava aquela mulher

nojenta, que j�� tinha cruzado suas carnes com as dele.

Apoderava-se de ��dio quando lembrava que, com ela,

j�� havia quase desmaiado de prazer! Que nojo! Seus

olhos esbugalhados, m��os crispadas. Aproximou-se com

andar lento, em dire����o �� mulher, assustando o meni��

no, que subitamente p��s-se a correr.

Coberto pelos arbustos, o advogado divisou um pe��

da��o de madeira. Apanhou-o sem tirar os olhos da mu��

lher que, apavorada permanecia ext��tica, sem conseguir

mover-se.

Apanhou o peda��o de pau, e seu bra��o girou no ar,

vibrando uma pancada seca.

��� As mulheres s��o t��o fr��geis ��� pensou ��� Des��

maiam apenas com uma pancadinha de leve. Sua rai��

va se desmanchava, vendo a mulher assim, ca��da no

ch��o.

Esfregou as m��os, limpando-as com a terra e, co��

mo se estivesse perseguido pelo dem��nio, saiu �� pro��

cura de Raul.

Os farrapos de nuvens eram esgar��ados pela brisa,

deixando o c��u pontilhado de estrelas. As altas ��rvo��

res gemiam, sacudidas pelas rajadas r��pidas de vento

que as despiam de suas folhas.

Com um gemido surdo, Helena esquadrinhou o ne��

gror da noite que a envolvia. Tremeu de frio, mas per��

maneceu im��vel, prostrada na terra ��mida onde havia

ca��do.

Pouco a pouco foi lembrando de tudo e, como ave

ferida, um grito estrangulado lhe passou pela garganta.

��� Raul! .

42

Sentou-se a custo e ficou a escutar. Tudo era si��

l��ncio. Olhou para a mans��o. Tudo ��s escuras. Es��

tava sem rel��gio e n��o tinha no����o do tempo. Que

horas seriam?

Levantou-se e, com passos cambaleantes, dirigiu-se

para a casa. Girou a ma��aneta. A porta estava tran��

cada. Tocou a campainha.

Ap��s alguns instantes de espera, Carlota, estremu��

nhada, abriu a porta, espantando-se ao ver a patroa

com a testa suja de sangue.

Helena apoiou-se na empregada, perguntando.

��� Que horas s��o?

��� Tr��s e meia!

��� Tr��s e meia?! Eu poderia ter apodrecido l�� no

parque e ningu��m se importaria!

��� Mas, mas ��� gaguejou a criada ��� O dr. Paulo

antes de sair em viagem com o menino, disse que a

senhora j�� tinha ido na frente, para preparar as aco��

moda����es!

��� Saia ��� gritou Helena.

A empregada afastou-se r��pida e assustada com a

express��o de ��dio estampada na fisionomia da patroa.

Helena dirigiu-se para a biblioteca, serviu-se de uma

generosa dose de whisky e, andando nervosa de um lado

para outro, procurou p��r seus pensamentos em ordem.

Sentou-se em uma poltrona. Levantou-se. Tornou a

caminhar. Que fazer! Que fazer?!

Compreendeu que, se demorasse a tomar uma reso��

lu����o, depois poderia ser tarde! S�� em pensar que a

essa hora o marido poderia ter iniciado o menino na��

quilo que ela temia, ah! O menino agora j�� poderia

ser um invertido. Ficaria doente e louca de ��dio!

Ouviu o carrilh��o da sala soar as seis horas.

Subitamente, veio-lhe a inspira����o! Apanhou um

casaco, no arm��rio do vest��bulo, e correu para o carro

desesperadamente, iniciando sem certeza, viagem para

o sem rumo.

43

V

O juiz quer o corpo e a alma

do menino

O hotel de Caraguatatuba estava lotado. No sal��o

e no bar, v��rias pessoas, em traje de banho, formavam

pequenos grupos coloridos, rindo e tagarelando. Em

volta das luzes giravam mariposas que, de quando em

quando ca��am ao ch��o e, num estalido seco, morriam

esmagadas por p��s que andavam de l�� para c��.

Raul, encantado, observava os insetos, enquanto o

advogado preenchia a ficha.

��� Tudo pronto, meu bem. A suave press��o da

m��o do advogado em seu ombro o f��z assustar. Virou-

se, r��pido. ��� Por que esses estremecimentos, Raul? Es-

t�� com frio? Ou com m e d o ? . . . Tem medo de mim?

��� N��o senhor.

��� Ent��o?

��� Nada. Estou com sono. E tamb��m pensando

em mam��e Helena.

Paulo sentiu uma pontada no cora����o.

��� Por favor! N��o me lembre d a q u e l a . . .

Sentiu que elevara demais a voz, e v��rias pessoas

os olharam. Pegou o menino pela m��o e seguiu es��

cadas acima.

O quarto era comum. Com cama de casal e um

banheiro. Raul sentou-se na beira da cama e, meio

45

triste, observava o dr. Paulo desfazer as malas. Ao lhe

dar o pijama, o advogado percebeu estar o garoto com

os olhos quase fechando. Sorriu e acercou-se dele.

��� Vamos, vista-se e meta-se na cama.

Raul esfor��ou-se por manter os olhos abertos, en��

quanto se vestia. Ao voltar do banheiro, Paulo notou

que ��le j�� estava dormindo, deitado meio de lado, com

as m��os debaixo do rosto, repousando serenamente.

O homem sentou-se em uma cadeira e f��z um es��

for��o para lembrar se imagem t��o encantadora j�� lhe

passara pelas retinas.

Lembrou-se sua inf��ncia de estudante rico. Os pais

morreram e lhe deixaram uma fortuna imensa, forti��

ficada com a uni��o �� fortuna da mulher. Fora feliz no

casamento, at�� que n��o conseguira mais satisfazer a

esposa. Fraqueza sexual disseram os melhores m��dicos

do mundo, com os quais se tratara. Mas, nenhum tra��

tamento dera resultado, at�� que um dia, sentado �� beira

da piscina de um clube, vira um garotinho espadanar-se

na ��gua. O menino come��ou a afogar-se, e ��le ent��o

atirou-se para salv��-lo. Quando apertou a crian��a nos

bra��os, sentiu toda a sua beleza de homem erguer-se,

firme e ereta.

Desde ent��o, s�� pensava em garotos. Apanhava-os

na rua e os levava para seu apartamento, na cidade.

L��, os penetrava devagar, bem devagarinho. Uns gri��

tavam, outros se recusavam a praticar aquilo. Mas um

saco de bom-bons ou um brinquedo lhes quebrava a re��

sist��ncia. Sorriu. Um dos maiores encantos das crian��

��as �� o fato de serem crian��as.

Algumas vezes passava dias inteiros com algum ga��

roto. Quando se fartava, dava-lhe alguma coisa para

faz��-lo dormir, e o carregava ent��o, escadas abaixo, at��

o carro que ficava guardado no por��o do pr��dio, e o lar��

gava na cal��ada de alguma rua deserta, mas sempre

com os bolsos de suas rotas vestes cheios de dinheiro.

Um dia, deixou um lindo garoto de doze anos s��

no apartamento, e desceu para comprar alguma coisa

��� 46 ���

para comerem. Ao voltar, encontrou Helena l��. O

menino, sentado em seu colo, lhe sugava os seios.

Ela sorrira, c��nica e, com um dedo nos l��bios, pe��

dindo sil��ncio, dissera-lhe com voz c��lida:

��� Estou dando de mamar para o nosso filhinho.

O garoto estava nu, e era perfeitamente vis��vel a

sua pot��ncia, que Helena acariciava com a m��o.

Sa��ra dali depressa, para n��o estrangul��-la!

Depois desse dia, tivera de dividir seus meninos com

ela. Ou ent��o, ela daria queixa �� pol��cia, conforme

amea��ara.

Mas este menino, que �� sua frente respirava rit��

madamente, ela n��o teria. Este seria somente seu, e se��

ria naquele instante.

O advogado despiu-se e nu, bem devagarinho para

evitar os estalidos do colch��o, deitou-se j u n t o ao garo��

to e, com os bra��os cruzados sob a cabe��a ficou medi��

tando, olhando fixamente o teto.

Engra��ado, pensava. Se fosse um outro garoto que

estivesse ali, t��o pertinho, ��le j�� teria feito o neg��cio.

N��o se importaria se o rasgasse ou arrebentasse. N��o

se importaria com gritos ou gemidos, ou sangue. Nada

o incomodava. Ficava vazio de outras sensa����es, como

uma fera no cio.

Levou as m��os at�� os test��culos, e sentiu-os du��

ros e ��speros. Sua m��o apertava, acariciava, alisava

aquela gl��ndula. Depois subia at�� o p��nis e descia no��

vamente, mas sua m��o n��o lhe trazia sensa����o algu��

ma. N��o sentia nada. Era uma m��o fria e meio suada

Existiam homens que experimentavam com a m��o

sensa����es e apagavam o desejo ardente. Mas as s u a s . . .

Relanceou um olhar ao encantador garoto que, au

seu lado, dormia inocentemente.

Sim, existiam m��os que substitu��am vaginas ou

��nus. Mas as suas, por mais qu�� voltasse ao passa��

��� 47 ���

do, nunca tinham lhe trazido nada. Suas m��os eram

como m��os mortas.

Continuou a pensar o que se passava com ��le.

Seu sexo estava intumescido de desejos, mas n��o se

atrevia a mexer-se. O menino, imerso ��m sono pro��

fundo, virara-se e pousara uma perna sobre seu corpo.

A carne dourada da crian��a misturava-se com a sua,

peluda e seca.

Estava mergulhado em lux��ria trazida pelo con��

tato da crian��a. O horr��vel desejo o torturava. Teria

de possuir aquele ��nus. Pretendeu virar o menino e

acabar com tudo. Parou.

��� N��o! Torceu convulsivamente as m��os e pulou

da cama. ��� N��o! Eu quero possuir tamb��m a sua al��

ma! Quero que ��le me ame! Quero possu��-lo com o

seu consentimento.

Mas o menino era inocente. Era uma pobre crian��

��a. N��o quis pensar de onde ��le poderia ter vindo, e

nem tinha interesse nisso. N��o lhe importava. Era

mais um dos quantos abandonados existiam na gran��

de cidade.

Andava pelo quarto nu, e a passos longos. Com

um chute, atirou longe um p�� de sapato que se atra��

vessou em seu caminho e, como animal enjaulado, sua��

va e resfolegava.

Por��m, bastava olhar para o leito, e as labaredas

-do desejo recrudesciam. Como um alucinado, vestiu

um short e correu para o mar. A ��gua gelada refres��

cou sua alma abrasada, e ainda sentindo fr��mitos es��

tranhos, o advogado saiu do mar e deitou-se na areia.

Adormeceu em meio �� t��nue n��voa da madrugada.

Raul comoveu-se diante do mar, assim como ficava

comovido com a m��sica. As montanhas ao longe, o

p��r-do-sol, a neblina envolvendo as matas, tudo isso o

comovia at�� ��s l��grimas.

Era isso que o advogado observava, olhando-o ago��

ra de soslaio, enquanto o menino quedava-se estranha��

mente ap��tico e silencioso, com o olhar perdido na vas��

tid��o do mar.

48

J�� estavam em Caraguatatuba h�� cinco dias, e a

atitude do garoto era sempre a mesma. Olhava o mar,

sempre com aquele sorriso de Gioconda a brincar-lhe

nos l��bios.

Mas depois que punha os p��s na ��gua, como por

encanto sua abstra����o desaparecia, e era um custo fa-

z��-lo voltar para terra. Nesses curtos dias, a fera que

o corpo do dr. Paulo abrigava, permanecia silenciosa e

quieta.

A brisa suave da noite quente sacudia as ��rvores e

entrava pela janela, espargindo a fragancia do mar

pelo quarto.

Deitado de bru��os na cama, olhando uma revista

em quadrinhos, Raul mascava chicletes, e marcava o

compasso da m��sica do r��dio port��til levantando e

abaixando as pernas. A porta do banheiro estava es-

cancarada, e o ru��do do chuveiro abafava o cantarolar

alegre do advogado.

Alguns minutos depois, enrolado numa toalha, ��le

entrou no quarto. Parou e a melodia trauteada mor��

reu-lhe nos l��bios. Tornou-se de uma palidez cadav����

rica, e uma zoeira tomou conta de seu c��rebro, qual

c��rculo de ferro, apertando-lhe as t��mporas. Seus olhos

se fixaram em um ponto. Aquela bunda sedosa que

enfeitava a cama, qual rosa esquecida.

L�� no fundo do seu ser a coisa come��ou a contor-

cer-se. O monstro crescia e rugia, feroz. A presa ino��

cente esticou as pernas, espregui��ando-se. O seu apeti��

te agora era de sangue e, como imensa aranha, come��ou

a rastejar, aproximando-se devagarinho do leito e ino��

pinadamente, como um louco, atirou-se sobre a crian��a.

Raul gritou e come��ou a debater-se, aterrorizado, pre��

tendendo livrar-se daquele peso que o esmagava.

Os seus movimentos mais inflamavam e intumes��

ciam seu sexo inchado de desejo, que procurava al��vio

em seu corpo dourado.

Mas nesse exato momento ouviram-se fortes bati��

das na porta. O advogado ficou estagnado por um ins��

��� 49 ���

tante, enquanto o monstro se evaporava no espa��o. Nu,

coberto de suor, o dr. Paulo correu para o banheiro.

Orlado pelos reflexos dourados dos cabelos, os l����

bios grossos entreabertos, onde despontavam os dentes

brancos, a confus��o no azul dos seus olhos emociona��

ram os policiais que, abrindo a porta, depararam com

aquela bela crian��a tr��mula, que se escudava num

canto do quarto.

Os policiais sabiam de quase tudo. Que o advo��

gado apanhara o menino na rua e que pretendia adot��-

lo. Mas, como andava muito nervoso e o garoto era

muito desobediente, resolvera lev��-lo para longe de He��

lena, que tinha muita pena da pobre crian��a e n��o

admitia que o advogado o castigasse.

Helena dera parte na pol��cia e pedira para que a

ajudassem a encontrar a linda crian��a.

Agora tudo estava bem, dizia Helena, entrando no

quarto e correndo a abra��ar o menino.

��� Agrade��o a ajuda de voc��s, e agora que encon��

trei Raul, tudo est�� bem. ��le nada mais precisa te��

mer, nada mais vai a c o n t e c e r . . . se �� que j�� n��o acon��

teceu!

Logicamente oa policiais nada entenderam do que ia

pela mente de Helena.

��� Muito obrigada, os senhores podem se retirar!

N��s levaremos o menino.

Helena se sentia como se uma bomba houvesse es��

tourado junto aos seus ouvidos. Seus t��mpanos ainda

assobiavam, e sua vista estava meio emba��ada.

��� Muito bem, senhora. N��s levaremos o menino.

Nesse momento o dr. Paulo saiu do banheiro, j��

vestido.

��� Ningu��m levar�� o menino! Viu Helena e den��

tro de seu c��rebro um vulc��o explodiu. ��� Sua filha

da puta! Rameira vagabunda!

Aquele casal, que um dia se unira pelos la��os do

matrim��nio, at�� que a morte os separasse, agora se de��

��� 50 ���

gladiava, soltando fa��scas pelos olhos. Os policiais in��

terrogaram Raul.

��� Onde voc�� mora?

Raul olhou-os com ar petulante e respondeu, em

desafio.

��� Em lugar nenhum!

��� O dr. Paulo achou voc�� na rua! N��o tinha

casa ent��o? Morava na rua?

��� No Abrigo de Menores!

��� Tinha fugido, hein?

��� Isso mesmo!

��� E por que?

��� Por que eles queriam comer o meu c��!

Uma cobrinha gelada percorreu a espinha do ad��

vogado que olhou para o menino, com o cora����o aos

pulos.

��� Ent��o ��le sabia dessas coisas?! ��� pensou ��� E

como o pequeno lutara! Qualquer coisa dentro dele

derreteu-se, enquanto permanecia de joelhos enfrente ��

crian��a, sussurrando.

��� Perd��o! Perd��o, meu querido Raul!

Um pux��o dos guardas e a querida crian��a saiu

cabisbaixa. Foi a ��ltima lembran��a que as l��grimas

n��o conseguiram cobrir!

51

VI

A Moedinha

Raul voltou para o Abrigo e com o passar dos anos,

se converteu em graduado. S�� assim preservaria a vir��

gindade do seu ��nus. Tornou-se mau, frio, calculista.

Em seu cora����o de dezessete anos, s�� n��o havia um pe-

cado: violar meninos!

Naquele domingo, ��le e tr��s outros graduados foram

escalados para tomar conta de menores que estavam

recebendo visita de parentes. O hor��rio de visitas era

das quinze ��s dezessete horas. Ao t��rmino desse hor����

rio, os menores perfilavam-se para serem revistados. Na��

da podiam levar para fora do sal��o de visitas, nem fru��

tas e guloseimas, e muito menos dinheiro.

Jo��ozinho, nesse dia, foi conhecer a m��e de um de

seus amiguinhos. Agora ��le esperava na fila a sua vez

de ser revistado, quando o amiguinho lhe falou:

��� Guarde a moedinha que minha m��e lhe deu, se��

n��o o graduado toma!

Jo��ozinho j�� sabia onde devia guard��-la, mas n��o

teve coragem.

��� Guarde no cu, Jo��o! Vamos, enfie logo, que

est�� chegando a sua vez.

��� E u . . . N��o posso! A moeda tremia na m��o do

pretinho. ��� N��o, n��o tenho coragem!

53

O graduado estava j�� bem perto. Decidindo-se,

Jo��ozinho enfiou depressa a moeda num buraquinho que

tinha feito na gola de sua camisa caqui.

O graduado era seu amigo Raul, que com um olhar

o interrogou.

��� Meu amigo R a u l . . . pensou o menino enquanto

era revistado. Como havia mudado! Qual larva trans��

formada em lib��lula, ele tamb��m havia se metamorfo��

seado. �� candura de menino ing��nuo j�� n��o mais exis��

tia. Agora era cruel e frio. Mas a culpa n��o era de��

le. E r a . . . De quem seria a culpa?

Sentiu o peso da m��o em seu ombro.

��� D��-me a moeda, Jo��o!

��� A moeda �� minha! respondeu o pretinho, len��

tamente tremendo de emo����o.

��� D��-me a moeda, repito! e tomando-se rubro,

agarrou o preto e o levantou, at�� �� altura de seu rosto,

fixando-o com olhar medonho.

��� Vi voc�� esconder a�� na gola! Entregue agora

mesmo, negro imundo.

��� Eu ganhei a moeda de presente! Ela me perten��

ce! respondeu o menino, com voz firme.

Com um safan��o, Raul atirou a crian��a longe. Ca����

do Jo��ozinho gritava.

��� Esse n��o �� voc��, Raul! N��o pode ser! Onde

est�� o meu amigo que sempre defendia os pequenos e

fracos? N��o �� poss��vel que agora voc�� me maltrate

por causa de uma m��sera moeda! Faz seis anos que

estou aqui neste asilo, e �� a primeira vez que ganho

alguma coisa. Agora voc�� quer roubar-me?

Em resposta, Raul aplicou-lhe um pontap��.

��� Eu n��o sou ladr��o! Recebo ordens!

O pequeno, ca��do, engoliu um solu��o e limpou com

a m��ozinha suja uma l��grima teimosa que rolava.

��� 54 ���

��� Ordens de quem? Quem �� o desalmado que

manda massacrar nosso corpo, nossa alma, nossas ilu-

s��es, nossa f��, nossa inf��ncia? Seus solu��os se perdiam

no sil��ncio ��� Quem �� que manda, Raul? Quem ��?

O adolescente olhava aquela figurinha ca��da aos

seus p��s, fazendo for��a para afogar o turbilh��o que lhe

ia n'alma. N��o sabendo o que dizer, escondeu o rosto

entre as m��os e saiu dali a passos largos.

Os outros graduados seguiram Raul, enquanto as

crian��as aproveitavam para ir devagar, bem devagari��

nho at�� a privada, para recuperar a moedinha que ti��

n h a m escondido no ��nus.

�� noite, Raul tamb��m estava entre os graduados

encarregados de acordar os menores para as necessida��

des fisiol��gicas. �� um verdadeiro supl��cio para os in��

ternos, acordar todas as noites, com o acender das lu��

zes e os gritos de "Vamos pulando depressa, que est��

na hora de ir �� privada. O filho da puta que cagar

na cama, j�� sabe"!

Aqueles que, por doen��a ou outro motivo qualquer

j�� haviam sujado na cama, podiam esperar as borra��

chadas.

Raul estava presente tamb��m, na hora da "Ordem

Unida", que era outro sofrimento para as crian��as.

Marchar, marchar sem desmanchar a fila e sem atraso.

Um passo errado e ganhava-se um bofet��o. Aqueles

que n��o conseguiam acertar o passo, ficavam em fila

separada e recebiam tapas e bofet��es, acertassem onde

acertassem.

A posi����o era de sentido, e com os olhos fechados

durante meia hora, uma hora, pernilongos, abelhas e

moscas que ficassem �� vontade, pois quem n��o obedecia

�� ordem de ficar parado e ereto, como est��tua, recebia

um soco no est��mago, que fazia vomitar at�� o que n��o

havia comido. Os meninos n��o tinham paz nem na

hora do recreio. Os graduados que estivessem aborre��

cidos com aquela vida, e n��o soubessem o que fazer pa��

ra se distrair, co��avam a cabe��a, �� cata de alguma id��ia

55



brilhante. E ent��o, sorrindo cinicamente, chegavam ao

meio do p��tio e gritavam:

��� "Sentido"!

Pobres crian��as, mal separadas da inf��ncia, a vida,

ao inv��s de lhes sorrir, era como uma estrada lodosa e

asfixiante, ond�� o ar pesado lhes deixava os ouvidos

surdos e as l��nguas secas na boca.

O eco dos gritos de mil dem��nios vibravam em seus

t��mpanos, e iriam persegu��-los sempre, sempre!

VII

Ser��, que tamb��m sou brasileiro ?

A paisagem agora era diferente, mas o esp��rito das

infelizes crian��as era o mesmo: negro e sombrio.

O abrigo onde chegava agora um grande magote

de meninos, vindo da Avenida Celso Garcia, era o "Edu-

cand��rio Dom Duarte". Entre eles estavam Jo��ozinho

e Raul.

O Educand��rio era pequena cidade onde existiam

mais ou menos dezesseis grandes casas e, em cada uma,

ficavam alojados trinta e seis menores. Essas casas

eram chamadas "lar", tendo cada um casal tomando

conta das crian��as.

Era obriga����o dos internos fazer a limpeza da casa,

quintal e tratar da horta.

Nos primeiros dias tudo foi alegria para a turminha

vinda da Celso Garcia. O educand��rio era sem muros,

com escola, cinema, comida e onde podiam at�� escovar

os dentes.

M a s . . . havia tamb��m pontap��s, tapas e socos, ago��

ra distribu��dos pelo casal. Qualquer falta, por menor

que fosse, os deixava sem comida.

Um dia, Jo��ozinho foi transferido do lar dez para o

catorze. Ficou content��ssimo, porque l�� reencontrou

seu amigo Raul, que vivia p��lido e triste, sempre pen��

sando num meio de fuga. Alegrou-se, tamb��m, com a

57

chegada do pretinho e, mal lhe deu as boas-vindas, sus��

surrou baixinho:

��� �� uma pena voc�� s�� agora ter vindo para c��!

��� Por que? Interrogou o pretinho.

��� Vou fugir esta noite!

Jo��ozinho, antes de haver sido transferido sofrera

uma sova t��o grande que at�� o tinha deixado doente,

motivando no mesmo instante, incisiva decis��o: "Eu

fujo com voc��, Raul! N��o adianta a gente ficar aqui.

N��o se aprende nada, mesmo!

Raul explicou rapidamente ao pretinho o plano de

fuga.

De madrugada, esperaram o vigilante da noite pi��

cotar o rel��gio, instalado no outro dormit��rio. Pegaram

a roupa dependurada no cabide do corredor e, p�� ante

p��, foram trocar-se no banheiro. Quando o vigilante

entrou no terceiro dormit��rio, as crian��as, descal��as,

atravessaram o sal��o e o refeit��rio e, como gatos, de��

pois de passarem pela cerca de arame farpado, atr��s

da horta, ganharam a estrada.

Os dois corriam como doidos pelo ch��o de terra

batida, deixando atr��s o lugar onde s�� conheceram a

descren��a, ignor��ncia, ��dio e falta de compreens��o.

J�� come��ava a amanhecer quando um caminh��o

lhes deu carona.

Da conversa travada com o motorista, ficaram sa��

bendo que o mesmo era dono de uma grande cria����o

de porcos, tendo concordado em abrig��-los em sua casa.

O velho casar��o da ch��cara comportava v��rias fa��

m��lias inclusive uma que tamb��m escondia um fugitivo

do Educand��rio D. Duarte. Os meninos gostaram logo

do lugar, fartamente arborizado.

Em troca da comida e de um monte de trapos para

dormir, os meninos tinham de limpar os chiqueiros,

que eram enormes, trocar a comida dos cochos, buscar

lenha no mato e, quando tinham uma folguinha, a mu��

lher do dono do chiqueiro mandava Jo��ozinho vender

mangas e bananas pelas ruas.

58

Todos os moradores do casar��o comentavam ser

pena um rapaz t��o lindo como Raul ter de limpar as

sujeiras dos porcos.

Quem mais se preocupava era a dona da casa. Ela,

era m��e de duas crian��as e essas serviam para aproxi��

m��-la do jovem.

��� Raul, v�� ao meu quarto e tome conta das crian��

��as, enquanto vou at�� a cidade. Meu marido viajou e,

enquanto ��le n��o est��, voc�� pode fazer servi��os mais

leves.

��� Vou j �� , senhora.

��� Ande logo. Mas, antes, tome um bom banho.

J�� deixei sabonete e toalha no banheiro e tamb��m rou��

pas limpas.

Raul, que puxava estrume dos animais com a en��

xada, olhou para Jo��ozinho, cambaleando com o peso

de uma lata de dezoito litros, cheia de ��gua para os

porcos, e encostou tristemente o queixo no cabo da en��

xada, lan��ando com pena os belos olhos nos olhinhos

empapu��ados do pretinho, magro e cansado. Em se��

guida Raul perguntou �� mulher.

��� E o meu companheiro? ��le pode parar de tra��

balhar hoje? O coitado nem pode parar em p�� de tanto

carregar ��gua l�� da bica, que �� t��o longe!

A mulher alta e gorda sorriu, mostrando os den��

tinhos de rato.

��� Depende s�� de voc��. Se q u i s e r . . . faremos um

trato?

��� Claro que quero!

��� Ent��o v�� logo para o b a n h o ! . . .

��� Vou primeiro avisar meu companheiro! Jogou

a enxada para um canto, e correu �� procura do pretinho.

��� Jo��o, voc�� n��o precisa mais trabalhar hoje, nem

amanh��, n e m . . .

��� Parar de trabalhar? Voc�� deve estar delirando,

Raul! J�� sabe o que acontece se a gente parar! Melan-

��� 59 ���

c��licamente sorriu, um sorriso triste de crian��a enve��

lhecida. ��� Ah, Raul! N��s fugimos do fogo e ca��mos na

fogueira. L�� ruim, aqui piora.

Raul sentou-se na beirada do cocho, tomou as m��o��

zinhas frias e calejadas do pequeno e disse meigamente:

��� Voc�� deve compreender. N��s, ��rf��os do gover��

no, s�� podemos esperar essa esp��cie de trabalho: catar

bosta, ou ser burro de carga pois o Brasil, nosso pa��s,

a nossa terra, tudo nega aos seus filhos, que por des��

gra��a s��o sozinhos no mundo. Voc�� tem de se con��

formar! N��o espere por um milagre como, por exemplo,

que uma fam��lia nos adote pr�� termos um lar! N��o

espere um milagre! Os olhos de Raul cintilavam, en��

quanto sacudia o negrinho. ��� Voc�� tem de se confor��

mar, Jo��o!

Jo��ozinho desvencilhou-se das m��os do outro e gri��

tou bem alto.

��� N��o me conformo! Algu��m tem de olhar para

mim! Deve existir, neste imenso Brasil, algu��m que ou��a

meu grito e me d�� a m��o! Algu��m deve curvar-se, para

n��o me afundar mais e mais nos sofrimentos desta vida!

Voltando-se para Raul, disse-lhe gravemente:

��� Eu fugi do asilo do governo, porque l�� poderia

morrer de tanto apanhar! Agora, meu corpo j�� n��o

aguenta tanto servi��o pesado. Estou fraco e doente,

mas vou em frente, vou em frente, at�� chegar aos p��s

do meu presidente e lhe pedir miseric��rdia para os

��rf��os do Brasil. Raul estava s��rio. Tudo lhe parecia

coisa de sonho, sonho mau, um pesadelo!

Duas crian��as esqu��lidas, discutindo, dentro de um

chiqueiro de porcos, o futuro dos ��rf��os brasileiros.

��� Chegar aos p��s do presidente, Jo��o? Presiden��

t e ? . . . Raul explodiu em uma risada estridente e ner��

vosa.

��� Pare de rir! Pare! Pare, pelo amor de Deus!

Mas Raul n��o podia controlar-se. Ria, ria ��s gar��

galhadas! Seus joelhos se dobraram, e ��le caiu no ch��o,

onde ficou, sobre o estrume, rindo a mais n��o poder.

60

��� Falar com o Presidente do Brasil! Essa �� m u i t o

boa! Como se ��le fosse preocupar-se com as crian��as

sem pai e m �� e .

��� Tenho o direito ��� disse Jo��ozinho g r i t a n d o ���

tenho o direito de contar ao Presidente o que se passa

no Abrigo e em outros asilos do governo. Vou at�� Bra-

s��lia e, q u a n d o chegar l��, at�� luto com os g u a r d a s , se

preciso, mas j u r o que entro e falo com o Presidente!

Com u m a risada feia e horripilante, Raul rolava

pelo ch��o, em meio �� sujeira, rolando, rolando sobre a

bosta. Presa de p��nico, a m e n t e de Jo��ozinho viu Raul

pouco a pouco t r a n s m u d a r - s e no Presidente da Rep����

blica do Brasil, rindo, rindo, naquele imenso chiqueiro

imundo.

Seus olhos se arregalavam mais e mais ao ver mui��

tas outras g a r g a l h a d a s se j u n t a r e m �� do Presidente.

Viu ministros, governadores, prefeitos, senadores, depu��

tados e vereadores. Todos g a r g a l h a n d o e se contorcen��

do em meio ao f��tido loda��al, que exalava um odor de

podrid��o, conspurcando o ar.

Como se fosse a vis��o do pr��prio S a t a n �� s e sua

corte, a figura de Raul apavorou a pobre crian��a, que

saiu correndo e se perdeu no cerrado m a t a g a l .

��� R a u l ! Raul! Chamou a m u l h e r dos porcos.

Raul olhou-a. Estava assustada e perplexa com

a cena.

��� Mas o que foi, menino? O que est�� fazendo? Le-

vante-se da��! Parecem loucos! O p r e t i n h o desembestou

para o mato, como se estivesse sendo perseguido pela

Mula-sem-cabe��a!

��� Eu n��o fiz nada, dona! Talvez ��le estivesse ape��

nas vendo em mim, o futuro das crian��as ��rf��s do Bra��

sil! Todas afundadas na bosta dos nossos governantes

e da nossa elite!

Como coment��rio, a mulher dos porcos a p e n a s emi��

tiu um g r u n h i d o inintelig��vel! Ou o g r u n h i d o seria

apenas de um dos p o r c o s ? . . .

A espuma do sabonete de boa qualidade era suave

e macia. T��o macia como a seda do pijama. Aquela

��� 61 ���

seda azul lhe trouxe �� lembran��a o dr. Paulo. Estre-

meceu. O que teria levado aquele homem t��o bom,

t��o fino, t��o inteligente, a querer fazer com ��le aquela

coisa horr��vel?

N��o querendo pensar naquilo, Raul procurou afas-

tar para longe esses pensamentos. Mas, tal como uma

ferida que volta a sangrar, a imagem do advogado no��

vamente insinuou-se em seu c��rebro.

Seria o dr. Paulo u m . . . u m . . . Como era mesmo

que .chamavam os homens que gostavam de homens?

��� Um pederasta? Sim, seria o advogado um pederasta?

Como ��le poderia ter sido feliz, se o dr. Paulo n��o ti��

vesse aquelas id��ias e fosse homem de verdade. Se n��o

tivesse pretendido penetr��-lo! Penetr��-lo! Raul por en��

tre os dedos e, rangendo os dentes, falou bem alto.

��� Juro, nem que tenha de matar, homem algum

h�� de comer meu cu! Eu juro! Eu juro!

��� Jura o qu��, meu bem?

Outro que n��o fosse Raul teria se apavorado ao

ouvir a voz da grotesca criatura �� porta. A figura da

mulher dos porcos tapava completamente a porta do

banheiro e, com olhar terno, percorria o corpo nu do

rapaz.

��� Quem diria! Voc�� �� mesmo um belo mocet��o!

Lentamente dirigiu-se para Raul e, levantando as enor��

mes m��os calosas acariciou-lhe os ombros, os bra��os, e

foi descendo, l��brica.

��� Voc�� j�� esteve com alguma mulher? J��, meu

bem?

Aquela m��o, em contato com sua pele, lembrava a

Raul uma aranha repulsiva que, descendo mais e mais,

procurava a regi��o mais sens��vel de seu corpo. Sob

as car��cias daqueles dedos gordos, o instinto de homem

macho falou mais alto do que a repulsa, o seu mem��

bro come��ou a crescer e latejar.

O cora����o pulsava-lhe fortemente, quando a mulher

o levantou nos bra��os fortes e o carregou para a cama.

Raul sentia seu esp��rito recusar tudo aquilo, mas

��� 62 ���

seu p��nis, duro como um ferro em brasa, toldava-lhe a

mente e, entrando e saindo daquele monte de carne,

fazia a mulher soltar grunhidos animalescos.

A ad��ltera o conservou preso a ela a tarde toda,

usando-o e abusando diversas vezes.

A noite ca��a, quando a megera lhe disse bem bai��

xinho ao ouvido, acariciadoramente.

��� Meu bem, v�� agora, e . . . traga o pretinho!

Quem sabe se ��le quer brincar um pouco, tamb��m!

Raul sentiu-se como se uma cobra de gelo o en��

volvesse em seus an��is. Asco e revolta lhe deram uma

sensa����o de n��usea. Pulou da cama e, apressado, pro��

curou suas roupas. Vestiu-se rapidamente, ouvindo a

mulher sussurrar.

��� N��o ponha toda a roupa, meu m o c e t �� o . . . Ain��

da quero mais! O pretinho �� s�� para beijar-me no meio

das coxas.

Raul sacudiu o pretinho, que dormia n u m monte

de trapos. Chamou-o diversas vezes, at�� qu�� Jo��ozinho,

estremunhado abriu os olhos.

��� Puxa, Raul! Onde voc�� se meteu? Ningu��m apa��

receu para me dar o jantar. Eu estava t��o cansado

e dormi assim mesmo, sujo e com fome.

��� Jo��ozinho, n��o h�� tempo a perder. N��s temos

de dar o fora j �� ! Voc�� deve voltar ao Educand��rio!

O corpo franzino do pretinho estremeceu.

��� Mas po�� que?

��� Depois explico. Vamos, levante!

��� Eu n��o quero voltar pro Educand��rio! Eles me

bateriam at�� matar. Eu fico aqui mesmo. A gente

trabalha como um escravo mas, pelo menos, tem um

pouco de liberdade. Aqui eu posso correr pelos cam��

pos e pela estrada.

��� Pare de falar e se apresse! A mulher dos porcos

�� louca. Prendeu-me a tarde toda e f��z o diabo comi��

go. Mas, eu sou homem e n��o me importo, e voc�� ain��

��� 63 ���

da �� uma crian��a. E ela o quer agora! Quer que eu

leve voc�� l��, e vai obrig��-lo a fazer coisas depravantes!

��� Raul, todo homem faz coisas com uma mulher.

L �� . n o col��gio todos os meninos sabem. Tamb��m que��

ro aprender!

��� Voc�� tem de aprender o certo! Ela quer ensi-

nar-lhe coisas que voc�� n��o deve aprender agora! Va��

mos, levante-se depressa!

Como o menino dormisse com as roupas de traba-

lho, tornou-se f��cil a Raul pux��-lo para fora da casa

e sua repugnante dona. Sorrateiramente dirigiram-se

para a estrada, tomando um ��nibus para a cidade. Quan��

do chegaram, Raul pediu ao pretinho que o esperasse

ali sentadinho num banco da Pra��a da S��, enquanto

tentaria conseguir algum lugar para comerem e dor��

mirem.

A noite ia alta e Raul n��o voltava. Um homem que

passava interessou-se pelo pequeno.

��� O que h��, meu rapaz? Algum problema?

Jo��ozinho, tremendo, contou-lhe que fugira do Edu��

c a n d �� r i o e para l�� n��o queria voltar. O homem se

prontificou a ajud��-lo. Levou-o at�� um bar pr��ximo,

pedindo, um sandu��che. Enquanto o garoto faminto

devorava o sandu��che, o homem telefonava.

O enorme carro do Juizado de Menores chegou e

levou Jo��ozinho diretamente para o Gabinete de Inves-

tiga����es, onde foi jogado na cela de menores. L�� ficou

dois dias. Depois foi levado novamente para o abrigo

da Avenida Celso Garcia.

Chegou apavorado, com a garganta seca e as m��os

geladas. Seu cora����o batia descompassadamente. Pa��

ra ��le, era como estar cruzando os port��es do Inferno.

J�� sentia na carne as pancadas dos graduados o

mimoseando. Mas ��le n��o sabia que o regime do Abri��

go havia mudado. Os graduados j�� n��o se encontra��

vam l��. Agora o chefe era um s��. Era o senhor Fer��

nando.

64

J o �� o z i n h o t i n h a ent��o treze anos. J u n t a m e n t e com

outros meninos, foi transferido para u m a esp��cie de

filial do Abrigo, situada na estrada principal do Guaruj��.

Aboletados em cima do c a m i n h �� o que os t r a n s p o r -

tava, os meninos c a n t a v a m alegremente, principalmen��

te quando a t r a v e s s a r a m , de balsa, o trecho separando

Santos-Guaruj��.

Ali o regime disciplinar era quase o mesmo, com a

diferen��a de que os meninos podiam frequentar a praia.

O mar, a praia, o b a n a n a l perdendo-se ao longe.

Reencontrou Raul e isto completou a felicidade do

garoto.

E n q u a n t o abra��ava o amigo, com o rosto b a n h a d o

de l��grimas, ouviu Raul p e r g u n t a r .

��� Vamos, m e n i n o . N��o chore! Diga a l g u m a

c o i s a . . .

��� N��o posso dizer nada! Nada importa agora. O

que poderia dizer depois de contemplar o mar, o c��u,

essa areia b r a n q u i n h a e ter novamente o meu melhor

a m i g o ! Jo��ozinho enxugou os olhos com as costas da

m��o.

Olhando fixamente Raul, agora mais alto e mais

belo, disse-lhe:

��� E n g r a �� a d o . . . se neste m o m e n t o algu��m me dis��

sesse que eu sofri t a n t o , nestes sete anos de asilos do

governo, eu daria uma boa risada.

��� Voc�� esquecer�� isso ��� afirmou Raul com voz

t e n r a . O tempo �� rem��dio para tudo. �� poss��vel es��

quecer esses tristes momentos que estamos passando,

porque n��o fomos corrompidos. Mas, os pobres meni��

nos violados e que tiveram sua honra atingida j a m a i s

esquecer��o!

Neste Abrigo a coisa �� bem grave, Jo��ozinho, pois

os que querem rasgar a gente s��o in��meros. �� preciso

at�� a n d a r a r m a d o para poder defender-se dos tarados.

��� Armado?! Os olhos do p r e t i n h o reviraram nas

��rbitas.

��� 65 ���

��� Sim, armado! Venha at�� aqui e lhe mostro a

faca que sou obrigado a carregar sempre. Os filhos da

puta dos grandalh��es acham que tenho cara de veado

e n��o me d��o sossego.,

Do meio das roupas amontoadas na areia, Raul ti��

rou uma faquinha meio enferrujada e mostrou ao amigo.

��� Mas v�� l��, hein! N��o conte a ningu��m, sen��o o

vigilante me tira a faca. Se os grandalh��es souberem

que estou desarmado, pobre do meu cu!

Jo��ozinho a tudo ouvia, tremendo.

��� Juro. N��o direi nada! Deus permita que nunca

fa��am nada a voc�� e nem seja preciso usar essa coisa.

��� Obrigado, Jo��o. Raul olhou-o com ar s��rio. O

tempo cura todas as feridas, menos e s s a . . . Defenderei

minha honra de macho nem que tenha de ser cha��

m a d o . . . assassino!

Nuvens cinzentas se enleavam umas entre as ou��

- tias, prenunciando tempestade. O ventinho frio e cor��

tante que dominava a praia f��z com que os meninos

Voltassem mais cedo ao Asilo.

Raul e Jo��ozinho resolveram cortar caminho pelo

bananal. Enquanto andavam, iam comentando a fuga

da casa da mulher dos porcos. Jo��o explicou sua parte

da hist��ria, e depois Raul lhe contou que consigo havia

acontecido quase a mesma coisa. Havia sido preso e

enviado ao Guaruj��.

Em dado instante, surge-lhe �� frente um dos in-

ternos, gritando:

��� Ei, voc��s! Ali atr��s tem uma turma comendo o

cu do Popota! Eu j�� comi! Voc��s tamb��m n��o querem

dar uma trepadinha?

Raul, branco como cera, segurou com for��a o bra��o

do pequeno, perguntando:

��� Onde eles est��o?

��� Ali no morro, no meio da moita cerrada!

66

O grande morro ficava bem atr��s do col��gio e, com

o pretinho em seu encal��o, Raul correu t a n t o que pare��

cia voar morro acima.

Atr��s de uma moita bem fechada, uma fila de me��

ninos esperava a vez de se deitar em cima de u m a crian��

��a, m o r e n a e gorda que, de bru��os, passivamente, acei��

tava t u d o .

O que estava em cima do menino, levantava-se

abotoando a cal��a, e dizia para o s e g u i n t e :

��� Eu j�� gozei! Agora �� a sua vez!

Os outros, sem qualquer express��o, sem ��nsia no

semblante, com o olhar inocente, aproximando-se, desa-

botoando-se e deitando-se em cima do menino, procura��

vam imitar o que t i n h a sa��do.

Jo��ozinho n��o teve for��as para impedir Raul de se

atirar, como um louco, para o meio da moita, e come��

��ar a esmurr��-lo, e n q u a n t o gritava.

��� Cachorro desgra��ado! Lazarento! Vou te moer

de pancada, filho da puta!

E seus p u n h o s fortes, na punjan��a de seus verdes

anos, desferiam a torto e direito t a p a s e bofet��es no

belo garoto de dez anos, que havia sido obrigado a ser��

vir de pasto aos desejos sexuais de quase todo o asilo!

O pequeno dobrou-se, protegendo a cabe��a com as

m��os, mas logo depois caiu ao ch��o desacordado e co��

berto de sangue!

Mesmo assim a f��ria de Raul n��o arrefeceu e, como

se quisesse esmigalhar a todos os pederastas do m u n d o ,

representados naquela crian��a, continuou a suplici��-lo.

Somente n��o o matou porque um vigilante interveio a

tempo.

Por ordem do diretor, Raul foi trancafiado na cela

e o Popota enviado �� enfermaria.

�� noite, quando a fila se formou para o banho, o

vigilante, com uma lista na m��o, foi dizendo.

��� Todos os meninos que eu chamar, devem ir for��

m a n d o u m a fila separada, naquele canto.

��� 67 ���

Foi c h a m a n d o os nomes e, cabisbaixos, os menores

formaram aMila, j�� pressentindo a l g u m a coisa.

��� Agora, gritou o vigilante, voc��s ser��o castigados,

pr�� aprender, pr�� resto da vida, que esse pinto que vo��

c��s t��m a�� pendurado, s�� �� pr�� enfiar em buceta de

mulher! Os cachorros que u s a r a m o Popota como mu��

lher v��o ver s�� u m a coisa! Agora, v a m o s ! Tirem a rou��

pa! Quero ver todo m u n d o nu!

Sem saber o que os esperava, os meninos vagarosa��

mente foram se desfazendo das r o u p i n h a s e, nus, fica��

ram de cabe��a baixa, a g u a r d a n d o o castigo.

��� Agora, todos de joelhos no ch��o, envergando o

corpo para a frente, assim!

Vasculhando o arm��rio, o vigilante encontrou vim

largo cintur��o de couro e, fazendo-o estalar no ar, falou:

��� Assim mesmo, cambada! B u n d a bem para o alto,

e cada um deve cheirar o cu de quem est�� na frente!

Isso mesmo! Desceu o cintur��o nas crian��as. ��� Agora

seus nojentos, mendigos do governo, voc��s v��o dar cinco

voltas de joelhos pelo dormit��rio!

Um dos pequenos chorava, sem se mexer. O cin��

tur��o cantou no ar e estalou na n��dega do menino, que

gritava n��o poder andar, pois seus joelhos j�� estavam

esfolados e s a n g r a n d o .

Mas o vigilante n��o parou de zurzir o cintur��o,

e n q u a n t o berrava:

��� Ent��o est�� s a n g r a n d o , hein, seu merda! E o cu

do Popota, n��o est�� s a n g r a n d o t a m b �� m , e todo arre��

bentado?

Tr��mulo, Jo��ozinho assistia a toda aquela mis��ria,

p e n s a n d o :

��� Ser�� que n��o h�� uma outra m a n e i r a de ensi��

n a r ? Outro modo de fazer para uma crian��a seguir o

caminho certo? Talvez se n��o dormissem dois j u n t o s

n a m e s m a c a m a ! . . .

68

VIII

Sou homem. Sou macho

Alguns meses j�� se haviam passado, desde que

Jo��ozinho chegara ao Guaruj��, e j�� ia ser transferido

para outra escola: a Col��nia Agr��cola de B a t a t a i s .

Fora avisado para a r r u m a r suas coisas, pois iria,

em c o m p a n h i a de outros menores, entre doze e quinze

anos. Deveria embarcar �� t a r d e . Era por isso que,

agora, corria para a praia, em busca de Raul.

Apesar da m a n h �� estar fria e garoenta, com pe��

sadas nuvens t a p a n d o o sol e um vento forte uivando

sombrio, os menores tiveram permiss��o para um passeio

pela praia.

Jo��ozinho apertava os olhos, a fim de conseguir

divisar Raul, em meio ao bloco de rapazes q��e rodeavam

a l g u m a coisa. L u t a n d o contra o vento, que erguia re��

demoinhos de areia, o pretinho aproximou-se do grupo.

Estacou petrificado.

Com os cabelos dourados revoltos, o rosto com u m a

palidez mortal, Raul afastava-se lentamente, deixando

entrever na m��o crispada, a l��mina da faca que empu��

n h a v a . Sem deixar os olhos da t u r m a que, qual harpias

esfaimadas, o rodeavam em semi-c��rculo, Raul procura��

va afastar-se, ouvindo as vozes roucas que diziam en��

tre d e n t e s :

��� Hoje voc�� n��o escapa, b a c a n �� o ! Vai ter que en-

trar na festa! Queremos seu cuzinho, meu bem! S�� isso!

- 6 9 ���

Qual pesadelo dantesco, Raul ouvia as gargalhadas

que se misturavam ao lamento do vento.

��� ��le deve ser bem apertadinho! Deve ser uma

foda e tanto! �� bonito e gostoso!

Mordendo os l��bios, Raul n��o perdia um s�� movi-

mento do grupo, que lentamente o cercava. Com agili��

dade, pulava de um lado para outro, tentando um meio

de fuga.

��� N��o queira bancar o valente, benzinho! Vamos

lhe tirar essa faca, e depois voc�� vai ver o que �� gos��

toso! Vamos lhe passar a vara como manda o figurino,

veadinho lindo!

��� Por que fugir, nego? Mais dia menos dia voc��

vai ter mesmo que dar esse cu gostoso pr�� algu��m!

��� Ent��o venha! Quem f��r macho que venha me

enfrentar! Eu sou muito homem, seus putos! Sou bas��

tante homem pr�� sangrar qualquer um de voc��s!

Jo��ozinho sentia como se um torniquete lhe aper��

tasse a garganta, quase ao ponto de lhe tirar a res��

pira����o.

Reviu Popota todo ensanguentado, e a fila de garo��

tos a lhe subirem em cima, onde ficavam em movimen��

tos ritmados e a respira����o entrecortada, at�� advir o

orgasmo!

Num esfor��o supremo, sacudiu o torpor que o in��

vadira e, correndo desesperadamente, p��s-se �� frente do

amigo, gritando:

��� .N��o se atrevam a tocar em Raul! Eu mato o

primeiro que se atrever a por-lhe as m��os!

��� N��o �� com as m��os que queremos tocar nele

negrinho imundo! �� com o cacete! �� o cacete que

queremos enfiar no cuzinho dele, que talvez at�� j�� es-

teja furado pelo pinto sujo de um negro!

Como uma onda subindo-lhe pela garganta, Raul

sentiu uma n��usea que quase o f��z cambalear. Com

o cora����o aos pulos e os olhos cegos, jogou-se no meio

do grupo e brandiu a faca desesperadamente, em golpes

a torto e a direito.

S�� ouvia gritos e sentia a l��mina da faca entrando

e rasgando coisas moles, enquanto um l��quido quente

e pegajoso lhe escorria pela m��o.

De repente, seus olhos se abriram e encontraram os

do pretinho, esbugalhados. Seguindo a dire����o do olhar

de Jo��ozinho, viu que a faca estava agora cravada no

cora����o de um dos seus algozes.

Limpou, com as costas das m��os, um fil��te de

sangue que lhe escorria da boca, enquanto abafava um

gemido surdo, subindo-lhe das entranhas.

O negrinho, estupidificado, viu os rapazes fugirem

em desabalada carreira, entremecendo ao ouvir a voz

arquejante de Raul dizer:���

��� Justamente hoje, em que completo dezoito anos!

71

IX

Saa excel��ncia

No velho pr��dio do Pal��cio da Justi��a, magotes de

gente apressada entravam e sa��am e, empurrando-se e

espremendo-se, tentavam entrar no pequeno elevador.

No meio desse aglomerado, um homem impeca��

velmente vestido, aparentando trinta e sete anos, pele

trigueira e rosto bem tratado, sobressa��a. Era, de fato,

um belo esp��cime masculino, que desceu do elevador

num dos andares e, apressado, entrou era uma das

salas de audi��ncia, onde cerca de oito funcion��rios sor��

ridentes levantaram a cabe��a para cumpriment��-lo.

��� Boa tarde, Excel��ncia!

Um leve movimento de cabe��a foi a resposta aos

cumprimentos. O elegante senhor sentou-se �� escura

mesa, onde uma plaqueta com letras bem vis��veis, dizia:

Dr. Paulo de Albuquerque ��� Juiz.

O juiz recebeu de uma funcion��ria a rela����o dos

casos que iriam ser julgados, e folheou-os com o cenho

carregado. Depositou os pap��is num canto da escriva��

ninha, cruzou as m��os de unhas polidas e, com voz

pausada, falou �� secret��ria:

Mande entrar o primeiro r��u.

A porta abriu-se, entrando um jovem ladeado por

dois policiais. Os cabelos caindo pela testa inclinada,

ocultavam parcialmente seu semblante. Entrou com

passos incertos, como se n��o conseguisse levantar os

7 3

p��s, cal��ados com grossos sapatos, ou como debilitado

pela vergonha das algemas, que cintilavam em seus

pulsos.

��� Aproxime-se.

Como o mo��o permanecesse im��vel, um dos mili��

cianos o empurrou levemente, obrigando-o a chegar-se

�� mesa.

O juiz, branco como cal ao fitar o rosto do rapaz,

levou as m��os ao peito, como se quisesse fazer parar o

cora����o, que batia descontroladamente. De sua gar��

ganta repentinamente seca, saiu um gemido estran��

gulado.

��� Raul!!

Todos fixaram boquiabertos Sua Excel��ncia que,

tr��mulo, repetia:

��� Raul! R a u l ! . . .

Os sentidos e faculdades do jovem presidi��rio esta��

vam totalmente paralizados pela dor e sofrimentos. Dava

a impress��o de que nada, nem um s�� pedacinho de sua

mente, iriam jamais vibrar.

Mas, como se mil campainhas tivessem soado em

seu c��rebro, e tivessem fendido o v��u negro que enco��

bria sua vontade, ��le foi levantando devagarinho a

cabe��a, ao ouvir seu nome. Com a mente ainda entor��

pecida, n��o lhe foi poss��vel reconhecer, naquele sussurro

louco, o dono da voz. A voz da autoridade, que tinha

nas m��os o seu destino. A voz do homem que t��o

loucamente o amava.

O triste olhar de Raul encontrou-se com o olhar

ardente do juiz, que parecia estar sofrendo horrivel��

mente, pois limpava com um len��o perfumado, o suor

escorrendo abundante pela testa abaixo, indo cair em

seus l��bios brancos e tr��mulos.

Um funcion��rio sol��cito pressurosamente lhe per-

guntou :

��� Posso ajud��-lo, dr. Paulo? Precisa de alguma

coisa? Est�� se sentindo bem? Dr. Paulo, posso

ajud��-lo?

74

Em meio ao nevoeiro em que estava agora seu c��re-

bro turbilhonando, aquelas palavras trouxeram �� lem-

bran��a de Raul uma outra tarde j�� distante, aquela

da fuga do Abrigo, quando apareceu sorridente o

famigerado dr. Paulo, perguntando:

��� Posso ajud��-lo, menino?

Em breve momento o jovem Raul reviveu todas

aquelas cenas, desde o Abrigo at�� Caraguatatuba,

quando sua lembran��a se fixou no ponto em que sentiu

aquele corpo ardente de desejos em cima do seu, lutando

pela virgindade.

Come��ou a contorcer as m��os algemadas e, como

se toda a dor do universo se abatesse sobre ��le, gritou

como um alucinado:

��� Tirem me daqui! Tirem-me daqui!

Os soldados o seguraram fortemente, enquanto Raul

lutava, desesperado para escapar da sala. Tentou

arrancar as algemas que mais e mais lhe apertavam os

pulsos, fazendo suas m��os come��arem a arroxear.

Como impulsionado por uma mola invis��vel, o juiz

pulou da cadeira e ordenou aos soldados que abrissem

as algemas e, aos gritos, mandou que todos sa��ssem da

sala, deixando-o sozinho com o r��u.

Raul dirigiu-se �� porta, querendo sair tamb��m,

mas o juiz a trancou rapidamente e, nela encostando,

pediu com voz tr��mula:

��� Pelo amor de Deus, R a u l . . . ou��a-me! Eu ainda

n��o sei o que o fez chegar at�� este ponto. Mas, seja

j�� o que f��r, vou ajud��-lo! Juro mover c��us e terras

para voc�� n��o ficar na cadeia! Juro!

Quando o juiz veio em sua dire����o, com os bra��os

estendidos, Raul teve um sobressalto.

��� N��o me toque!

Sua Excel��ncia deixou pender os bra��os e um

rictus de dor espalhou-se pelo seu rosto.

��� N��o fique agressivo, meu pobre rapaz. Sente-

se, pois quero falar-lhe seriamente.

��� 75 ���

Um riso amargo e sarc��stico desenhou-se na boca

rubra do rapaz que, deixando-se cair na cadeira dura,

exclamou, olhando fixamente para o dr. Paulo:

��� De que quer falar? Espero n��o ser para pedir-

me o rabo, em troca da liberdade!

��� Raul, abstenha-se dessas palavras terr��veis ���

gemeu o juiz ��� voc�� acaso n��o imagina que eu j�� te��

nha sido duramente castigado por ter tentado aquilo?

��� Aproximou-se mais da cadeira do jovem ��� Por aque-

le meu gesto? A voz do jovem, em resposta, saiu fria.

��� Ah, j�� se castigou? Aposto que rezou bastan��

t e . . . "Pai Nosso, n��o me deixe cair na tenta����o de

comer cu de g a r o t o . . . "

Num repente, o juiz prostrou-se ajoelhado aos p��s

de Raul, implorando:

��� N��o me fala assim! Cometi um erro, mas juro

estar arrependido! Acredite, por favor, que estou sendo

sincero!

Quando os grandes e gelados olhos azuis encon��

traram os seus, o juiz estremeceu, sentindo que o sangue

abrasava em suas veias, e que toda a sua pujan��a de ho��

mem estremecia e se levantava endurecida, desejando

derreter-se dentro daquele corpo jovem. F��z um es��

for��o sobre-humano para o jovem n��o perceber o que

lhe ia n'alma, e come��ou a falar, falar, falar.

P��lido e tr��mulo, o juiz parecia febril. Raul ob��

servava-o, analisando se ��le estava sendo sincero!

Poderia confiar n e l e ? . . . Mas, que diabo! J�� se

passaram sete anos! Raul lembrou-se da D e t e n �� �� o . . .

Aqueles presos t o d o s . . . aqueles presos malditos n��o

fazem outra coisa, s e n �� o . . .

Meu Deus ��� pensou ��� onde estariam os homens?

Sua voz soou estridente e estranha naquele am��

biente austero da sala de audi��ncias.

��� Est�� bem, dr. P a u l o . . . Eu n��o quero voltar

para a cadeia!

76

O j u i z levantou-se sorrindo, apertou as m��os ge-

ladas do rapaz, e depois correu para a mesa, p r o c u r a n d o

entre os processos, o de Raul. R a p i d a m e n t e escreveu

a s e n t e n �� a : ABSOLVIDO!

Os g u a r d a s e n t r a r a m e, a pedido do j u i z , levaram

Raul para as provid��ncias de praxe. O jovem despe-

diu-se e o s��brio dr. Paulo prometeu ir busc��-lo logo

que se livrasse dos outros processos.

C h a m a n d o os funcion��rios, esfregando as m��os de

alegria, comunicou que t i n h a absolvido o rapaz!

��� Absolvido? Mas, Excel��ncia, ele �� um assassino!

A palavra assassino ecoou nos seus ouvidos, como se

estivesse sendo perfurado por mil ferros em brasa!

��� Assassino!? Mas, por que?

Jogando-se na cadeira de espaldar alto, a p a n h o u o

processo de Raul e p��s-se a l��-lo, ignorando tudo o mais.

T e r m i n a n d o a leitura, p o n d e r o u :

��� Sim, s�� podia ser i s s o . . . o belo e orgulhoso jo��

vem tornou-se assassino em defesa daquilo que eu tam��

b��m me t o r n a r i a assassino para possuir!

77

X

Rani acredita que o juiz

n��o �� mais pederasta

O dr. Paulo mostrava sua nova resid��ncia a Raul,

pois a antiga tinha ficado com a esposa, ou melhor, com

a ex-esp��sa, j�� que eles tinham se desquitado.

Raul n��o continha sua admira����o ��o atravessar as

amplas salas, pisando nos fofos tapetes.

Os objetos nem pareciam reais! E os m��veis, ent��o!

Sem p��s? Toda a mob��lia da casa �� assim? Pendu��

rada no teto? N��o me lembro jamais de ter visto

mans��o t��o linda, nem mesmo no cinema! S��o lindos

os seus m��veis!

��� Os n o s s o s . . . querido Raul! Esta casa, e tudo

o que ela cont��m, desde j�� voc�� pode considerar seu!

Raul fingiu n��o ouvir a observa����o, olhando bo��

quiaberto as pesadas correntes e os cabos q��e, em ara��

bescos, sustinham o mobili��rio, elegante e luxuoso.

Prosseguindo, disse:

��� Esta casa faria inveja a qualquer milion��rio do

mundo, at�� mesmo ao Onassis! N��o acha meu gosto

apurado em mat��ria de est��tica? Assim como em de��

cora����o e . . . mulher!

��� Mulher?!

��� Sim, minha garota �� encantadora. Digo mais,

ela se enquadra direitinho neste ambiente!

79

Num gesto largo, Raul estendeu a m��o, em v��rias

dire����es. O j u i z teve um sobressalto e precisou apoiar-

se em um dos m��veis para n��o cair.

��� Voc�� tem n a m o r a d a ? N��o! Isso n��o �� poss��vel!

Fingindo-se distra��do, Raul olhou de soslaio, ana-

lisando o efeito das suas palavras. Paulo oscilou, como

sacudido por um vendaval e, com passos incertos, acer��

cou-se do sof��, onde se deixou cair p e s a d a m e n t e .

O jovem levantou a bela cabe��a e fixou o olhar no

vai-e-vem produzido pelo corpo, nas correntes que sus-

t i n h a m o sof��. Ao baixar o olhar, observou Sua Exce��

l��ncia, que parecia m e r g u l h a d a em profundas medita��

����es, com as p��lpebras fechando-se, como em transe hip��

n��tico.

Tentou falar-lhe mais sobre a n a m o r a d a , mas,

vendo que o j u i z , absorto, n��o lhe dava aten����o, saiu

por u m a das portas que levavam ao j a r d i m e, em passos

lentos, desceu a escadaria de granito, pensativo. O

cilrear dos p��ssaros do viveiro rodeado de arbustos flo��

ridos distraiu sua aten����o, esquecendo-se momentanea��

m e n t e de suas preocupa����es. Encostou a testa na tela

de a r a m e e sorriu ao ver os p��ssaros s a l t i t a n t e s .

Logo, o sorriso fugaz morreu-lhe nos l��bios, trazen-'

do-lhe uma sensa����o de medo, que n u n c a i m a g i n a r a

sentir, tendo-lhe esfriado o cora����o. Por que sentia

medo daquela variedade de avezinhas multicolores? Que

mal lhe poderiam fazer? T��o pequeninas indefesas e

presas naquela gaiola?

Como eram belas! Belas!

Qualquer coisa estalou em seu c��rebro. As aves

eram de uma beleza emocionante. Beleza rara e su��

blime! Onde j�� ouvira aquela frase! Apertou com

for��a os dedos no a r a m e f r i o . . .

S i m . . . fora dos l��bios do juiz que ouvira a m e s m a

frase h�� sete anos! Lembrava-se agora com t a n t a ni��

tidez, parecendo estar acontecendo neste mesmo instan��

te, o que era passado d i s t a n t e .

Sentia-se com dez anos e ouvia n i t i d a m e n t e os pas��

sos do dr. Paulo ao seu lado. Sentia o mesmo mor��

- 80 -

ma��o quente daquela tarde. Procurou, com os olhos, a

abelha que zunia estridentemente, escolhendo com dili-

g��ncia, as margaridas mais bonitas para sugar com de��

l��cia! Ouviu tamb��m como o ��co a sua cascata de

risos e as p a l a v r a s . . .

��� Venha tamb��m, papai! Corra! Vamos pegar

aquela abelha!

��le apertou mais a testa entre as m��os. Lem-

brou-se de que, naqueles poucos meses em que ficara

com o casal, fora intimado a cham��-los de papai e

m a m �� e ! ,

��le se viu precipitando-se para o canteiro das mar��

garidas, no encal��o da abelha que, em r��pidas voltas,

perdeu-se no espa��o. A inf��ncia gritava em seu ��nti��

mo, enquanto corria atr��s do inseto, afastando-se cada

vez mais do juiz, que corria com o olhar c��pido, fixado,

nas suas n��degas firmes e bem feitas. O menino perdeu

o interesse na abelha, quando deparou com o viveiro,

onde dezenas de p��ssaros raros pipilavam, em bandos

coloridos.

Quando o juiz se aproximou, viu que as m��ozinhas

de unhas sujas seguravam fortemente o arame do vi��

veiro, e que os olhos luminosos do garoto corriam de

um para outro p��ssaro, num encantamento que lhe fazia

tremular os longos c��lios.

Sorria, ingenuamente, quando um p��ssaro mais

afoito passava, esvoa��ando, bem perto do seu rosto.

O juiz, fascinado, olhava o menino, sem um piscar

de olhos, e sua voz era macia, aveludada, quando se mis��

turou ao cantar dos passarinhos.

��� Raul, voc�� �� belo. Sua beleza emociona. ��

uma beleza que devia estar assim, presa em uma gaiola

de ouro, revestida de cristal. Delicadamente despreen-

deu as m��os do menino, que seguravam o arame e, le��

vianamente, envolveu-as em suas grandes quentes m��os

��� continuando com a mesma voz morna.

��� Viajei o mundo todo para poder prender neste

viveiro a beleza rara dos p��ssaros. Por serem os belos

entre os belos, �� que est��o presos e admirados. Raul o

��� 81 ���

ouvia, como que hipnotizado. N��o despregou um ins��

tante, sequer, os seus olhos daquele fundo olhar, onde

dan��ava uma gravidade irreal, e em seus l��bios sucediam

em tons ternos as palavras.

��� Voc�� �� belo, Raul. Voc�� �� belo, como as aves.

Belo, belo. Voc�� devia estar preso a��, nessa gaiola, para

ser admirado" por todos.

Raul desprendeu suas m��os das do juiz, e voltou a

apertar a tela fria. Apertava, apertava, reintegrando

ao parque floriso a realidade.

O arame penetrava nas carnes de suas m��os, mas

��le n��o a sentia, e cada vez apertava mais e mais. Relan��

ceou o olhar pela imensid��o do jardim e encontrou a

esfera azul da grande piscina, circundada de cer��mica

branca, que morria na relva verde. O grande guarda��

sol aberto, que jogava sombras nas almofadas de espuma

rosa atrapalhava-lhe a vis��o, por isso ��le desprendeu

as m��os doridas e se afastou um pouco para continuar

analisando tudo no luxuoso parque. Quando seus olhos

buscavam as altas grades douradas que circundavam a

mans��o e o grande port��o fechado, sentiu um aperto

no cora����o.

Estaria trancado o port��o? Estaria fechado, como

na cadeia, com aquela enorme chave? Quantas portas

gradeadas havia mesmo, na cadeia, separando-o da

liberdade? Que liberdade? Apertou os olhos. Tirou a

m��o e continuou a pensar.

Grades do Abrigo de Menores. Grades do Educan-

d��rio Dom Duarte. Grades do Asilo de Guaruj��. Gra��

des e mais grades na Deten����o. Agora Raul olhava,

olhava, e as grades da mans��o pareciam crescer, cres��

cer. Repentinamente apoderou-se dele um ��dio irrefre����

vel contra tudo. Fervilhou nele uma raiva louca contra

as grades e saiu correndo como um animal perseguido,

jogando-se contra a grade do port��o, gritando:

��� Chega de grades! Chega de grades!

Com o impacto do corpo, o port��o se escancarou,

jogando-o para o meio da cal��ada. Estatelado no ch��o,

Raul n��o conseguia tirar os olhos daquele grande aberto

82

nas grades douradas. Levantou-se, sentindo uma calma

estranha. Entrou. Deu alguns passos. Voltou-se, sor��

riu para o port��o aberto e saiu para a rua. Entrou.

Voltou para o port��o e lentamente o fechou. Quando

o port��o se abriu novamente, ��le pensou que precisava

de ��leo. Ia fech��-lo novamente. N��o, pensou. O port��o

ficar�� aberto. Ficar�� aberto hoje, amanh�� e sempre.

Resolveu ficar com o juiz. Correndo, com o esp��rito

leve, entrou no sal��o.

Paulo continuava prostrado na poltrona.

��� Ora, que �� isso? Murmurou Raul. Papai ainda

dormindo.

O juiz abriu os olhos, levantou-se bruscamente e,

com os cenhos franzidos, olhou assustado para o jovem.

��� Santo Deus! Exclamou. Se o que ouvi �� ver��

dadeiro e u . . . Mas n��o completou o pensamento, pois

n��o poderia falar ao jovem sorridente que j�� n��o lhe

interessava mais ser chamado papai. N��o queria que

o rapaz "sentisse por ��le amor filial. Q u e r i a . . . que��

r i a . . . Apertou a fronte. Oh! Deus! Como ficava

perturbado, sentindo-o t��o perto, t��o jovem, refletindo

naquele sorriso a umidade ardente. Oh! Queria sugar

aqueles l��bios.

Disfar��ou tudo. F��z o imposs��vel para n��o estre��

mecer quando o mo��o apertou-lhe as m��os e lhe disse,

com simplicidade:

��� Papai! �� como sempre o chamarei, se atender

uma pretens��o minha!

N��o podendo mais disfar��ar o desejo que lhe revo��

lucionava as entranhas, o juiz arrancou suas m��os das

do jovem.

��� J�� est�� concedida.

Oh! Obrigado, obrigado. Quer dizer que j�� posso

mandar tirar todas as grades que circundam a casa?

��� Grades?

O j o v e m refletiu alguns instantes e respondeu.

��� 83 ���

��� Sim, as grades. Sinto-me mal, vendo-as. Essas

grades s��o como um c��rculo que a p e r t a m , a p e r t a m meu

c��rebro, fazendo-me relembrar o passado, que acabei de

m a t a r hoje. Agora quero a ajuda do senhor. Quero

t r a b a l h a r . Quero ser algu��m. Algu��m ��til. Quero ser

um cidad��o ��til. Raul falava, falava, falava, e o ma-

gistrado n��o o interrompia, pois n��o queria que aca-

basse aquela influ��ncia doce que e m a n a v a dele. En��

q u a n t o o fitava, lembrava-se como t i n h a sofrido, q u a n d o

a pol��cia o levara naquela tarde quente h�� sete a n o s .

T i n h a passado todo esse tempo sem esquec��-lo. Conti��

nuou a usar os garotos a b a n d o n a d o s e t a m b �� m os da

elite. Reviu os mocinhos dos col��gios de luxo. Esses

eram t��o exigentes! Sempre queriam m u i t o dinheiro.

Mas agora, agora n��o precisava mais a n d a r �� cata de

v a g a b u n d i n h o s , nem passar horas e horas nas portas

dos col��gios. Agora t i n h a ao alcance de suas m��os

quem sempre desejara. Era s�� lhe p r e p a r a r u m a da��

quelas beberagens que fizera outros jovens beberem.

Um m i n u t o e o belo jovem estaria dormindo profunda��

m e n t e , e nem sentiria quando sua carne p e n e t r a r i a nele

devagar, bem devagar.

O juiz levantou-se e come��ou a a n d a r pelo sal��o,

deixando o suor escorrer-lhe levemente pelo rosto. O

sil��ncio foi o que lhe f��z lembrar de que n��o devia trair-

se, sen��o perderia o jovem para sempre. Por isso,

voltou para a m e s m a poltrona e, desculpando se, pediu

a Raul que continuasse.

��� Desculpe-me, dr. Paulo. Ignorava estar abor-

recendo-o.

��� Meu q u e r . . . quero dizer, meu caro Raul, voc��

trouxe vida para esta casa. Espero que compreenda o

que isto significa. Significa que voc�� j a m a i s ter�� de

desculpar-se por qualquer coisa. Eu s�� terei prazer em

ajud��-lo, aconselh��-lo e prestigi��-lo em tudo. Com��

p r e e n d a t a m b �� m , se eu ��s vezes t o r n a r - m e um pouco

e s t r a n h o , deve ignorar, pois ser m a g i s t r a d o �� bem dif��cil.

Mas isso n��o deve interess��-lo. Quero dizer, m e u s pro��

blemas. Sei que voc�� sofreu m u i t o . Da�� a raz��o de lhe

oferecer esta casa, que ser�� nossa p a r a voc�� poder ter

u m a nova vida, como acaba de desejar. Voc�� pode man��

dar tirar as grades e fazer q u a n t a s reformas quiser.

84

Nem precisa falar comigo. Voc�� tamb��m �� dono de

tudo isso. Quero o que f��r bom para voc��.

Raul virou-se para ele emocionado. Pretendeu fa-

lar algo, mas a voz n��o lhe saiu. O dr. Paulo, experien��

te, aproveitou e continuou sua conquista.

��� Por isso, meu caro amigo, acho que voc�� n��o

deve preocupar-se t��o cedo com mulheres, namoradas.

Sua voz saiu tr��mula. A sua namorada. Quero dizer,

voc�� poderia deixar o namoro para mais tarde. Primeiro

deve pensar em estudar, trabalhar. Enfim, fazer o

que deseja. Digo mais. O que voc�� sabe fazer? Se

eu o ajudasse, poderia ser bem sucedido at�� a obtei

um emprego.

��� Nada.

O dr. n��o se admirou em ouvir esse "nada", "pois

estava cansado de saber que noventa por cento dos cri��

minosos julgados em sua sala, eram ex-internos dos

abrigos do Governo. Todos os curr��culos eram assim.

Sem profiss��o. Pais desconhecidos. Criado no abri��

go do Estado. Recorda����es tristes e pavorosas da in-

f��ncia. Sem religi��o.

��� Ent��o, continuou o juiz, voc�� n��o tem profiss��o,

n��o �� alfabetizado. D i g a m o s . . . n��o aprendeu nada.

O juiz interrompeu a frase, pois percebeu que o

rosto de Raul purpurejava-se.

Raul, num salto, p��s-se de p�� e, em passos largos,

dirigiu-se �� janela. Alguns momentos depois, voltou-se

bruscamente e, p��lido, gritou:

��� Eu aprendi. Aprendi muita coisa. Sei matar;

sei roubar. Num assalto sei andar leve, levemente como

um gato. Arrombar? Oh! Como �� f��cil arrombar!

O sr. j�� viu abrir uma fechadura com um grampo?

N��o? Mas, l�� no Juizado de Menores se aprende tudo

isso. Com os punhos cerrados e os olhos cheios de

l��grimas, Raul gesticulava.

��� �� por isso que eu os detesto, que eu os odeio.

Gostaria de e s t r a n g u l a r . . .

��� 85 ���

��� Estrangular quem, minha pobre crian��a?

Raul parou e quedou por longos minutos de p��, no

mesmo lugar. Depois sua voz saiu triste e embargada.

��� Sim, estrangular quem? Quer, dr. Paulo, quem?

Seu corpo tremeu. Deixou-se cair numa cadeira,

escondeu o rosto nas m��os. Quem �� o culpado de eu ser

um assassino, um analfabeto, um ignorante? Quem ��

o culpado de eu estar com o cora����o vazio de religi��o,

de amor e de Deus? Quem, diga-me, dr. Paulo.

��� N��o sei, Raul.

��� N��o sei. Ningu��m sabe. L�� no abrigo �� a per��

gunta que fazem todos os dias as crian��as que mal aca��

bam de deixar o bico do seio materno, ou sei l�� de quem.

Em vez de pronunciarem mam��e e papai, dizem:

��� Por que estou aqui? Por que me batem? Por

que?

E a resposta �� sempre a mesma:

��� N��o sei.

��� Vamos, meu rapaz. Agora voc�� n��o est�� mais l��.

A voz de Raul saiu fria e sarc��stica.

��� Eu n��o estou l��. Mas, e os outros? Gostaria

que o senhor ou quem quer que fosse, visse os outros.

S��o milhares e milhares de rostos miser��veis, estam��

pando a pr��pria mis��ria, ��rf��os abandonados, verda��

deiros malambos subnutridos, pedindo somente pelo

amor de Deus para n��o o deixarem ser mais tarde mar��

ginais.

O juiz come��ou a sentir-se nervoso, pois n��o gostava

de ouvir falar de crian��as infelizes. Crian��as pobres,

gente miser��vel, que era vista a qualquer hora do dia

ou da noite perambulando pelas ruas da cidade, implo��

rando asilos, escolas. Isto eram coisas que n��o lhe

interessavam muito. S�� mesmo se o pobre fosse um

garoto bonitinho. Por isso aproximou-se de Raul que

estava com a cabe��a apoiada de encontro ao vidro frio

da janela e disse, sorrindo:

86

��� Vamos, vamos, Raul. Pensemos em voc��, agora.

Os outros do Governo, os outros das ruas, ou sejam essas

crian��as de ningu��m, poder��o amanh�� encontrar algu��m

que as ajude.

Raul virou-se, com l��grimas escorrendo-lhe pelo

rosto.

��� Quando j�� foram criminosos?

��� Bem, Raul, nem todos podem ser pr��ncipes, ho��

mens de sociedade. Algu��m tem de ser criminoso.

��� Mas n��o fabricado. Aqui no Brasil os abrigos

do governo s��o verdadeiras f��bricas de marginais.

��� Cale-se, Raul! Voc�� fala de coisas que ignora.

�� dif��cil cuidar e educar a inf��ncia. O g o v e r n o . . .

Raul mordeu os l��bios e o interrompeu, falando em

tom de supremo desprezo*

��� Eu ignoro? Ora, dr., eu posso falar com con��

vic����o porque conhe��o todos os v��cios, toda a podrid��o,

toda a tara em que est��o envolvidas todas as crian��as,

sob a capa e prote����o do governo. Com o sangue todo

concentrado no rosto, Raul gritou:

��� Eu posso calar, dr., mas dentro de mim a revolta

gritar�� sempre contra o tratamento que os mandat��rios

do Pa��s dispensam �� crian��a ��rf��. Raul suspirou, foi

at�� �� mesinha, apanhou um cigarro. De um pulo, o

j u i z tirou o isqueiro do bolso, aproximou-se do j o v e m e

f��z men����o de acend��-lo, mas Raul esmagou o cigarro

entre os dedos e foi falando, como se consigo mesmo,

sem olhar para o advogado.

��� Eu s�� gostaria que o Presidente da Rep��blica

contemplasse por um minuto, os ��rf��os l�� do abrigo

de menores. Tenho certeza de que ��le ficaria branco

de terror. Sim, repetiu gravemente, com grande tris��

teza na voz ��� ficaria branco de terror. Raul apertou,

ainda os restos do cigarro. Dava longos passos, com

seus velhos e rotos sapatos, sobre o aveludado prateado

aa luxuosa sala.

O dr. Paulo n��o o perdia de vista. Estendido num

sof��, que oscilava levemente, ��le pensava:

��� 87 ���

��� Nunca poderia assustar-me com a grande admi��

ra����o que todos sentem por Raul pois, nesse momento,

��le encarna a pr��pria beleza, assim, com o rosto afo��

gueado, os l��bios t��o vermelhos e os olhos rebrilhando,

como j��ias azuladas.

Aquela beleza imaculada fazia crescer em seu ��ntimo

a paix��o que nutria pelo jovem. Era por demais en��

cantador e inteligente, como mo��o que se dizia anal��

fabeto. Como defender com tanto ardor os seus infe-

lizes colegas de infort��nio? Que chajnas cruzaram

aquela alma? Assassino. Filantr��pico? ��le falava. Que

voz bela! O dr. Paulo n��o o ouvia, pois procurava

n��o perder por um momento aqueles l��bios grossos,

��midos, sentindo uma vontade gritante de mord��-los.

Passou a m��o pela testa gelada de suor. Abaixou a

vista para seu corpo, onde a carne tremulava cheia de

desejos. 'Desejos que tentava abafar, mas que dormiam

em seu c��rebro e lhe envenenavam o cora����o.

O ��nico meio de livrar-se daquele tormento seria

ceder ao tormento, m a s . . .

N��o queria guardar daquele corpo recorda����o de

um prazer fugaz ou a saudade da vol��pia. Se matasse

agora seu desejo, seus ardores, s�� iriam restar lhe as

lembran��as, pois Raul desapareceria para sempre, e

disto tinha certeza o s��dico juiz.

N��o deveria for��ar o jovem a am��-lo. Preferiu

observar com um fino sorriso, pois Raul continuava

falando. Agora ��le ouvia, notando a mesma conversa,

os mesmos protestos. Todavia, preferia ouvir, ouvir

hoje, com a esperan��a do amanh��.

��� Quando algum jornal lembra de que o abandono

�� inf��ncia pode resultar na . . . perante o governo, as

metralhadoras do esquadr��o da morte, responde:

��� Foi de mim que aprendeu v��cios? Esse a�� tinha

tara no sangue. Seu esp��rito j�� era devasso, ainda na

barriga materna. Se o filho da puta escolhe estupida��

mente o esgoto, que �� que eu tenho com isso?

Raul soltou um riso amargo e levantou os punhos

cerrados.

88

��� Hip��crita! Hip��crita! Eles nos levam at�� ��

loucura, faz-nos descer at�� os abismos e depois, quando

nos v�� l�� embaixo mortos ou crivados de balas pela

pr��pria lei, ainda sorriem. P��lido e sarc��stico confir��

ma. E ainda sorriem.

��� Sim, Raul, creio que esteja com a raz��o, disse

sem interesse o juiz. Agora vamos beber algo. Estou

com a garganta seca.

Aos pequenos goles, Raul sorvia a bebida da ta��a

que tremia em suas m��os.

��� Meu jovem, hoje basta de protestos. Amanh��

ser�� outro dia. Voc�� n��o precisa envergonhar-se d e . . .

Raul o interrompeu:

��� Sempre me envergonharei em dizer que n��o sei

fazer nada. N��o saber nada me traz uma dor profunda

na alma.

��� Por isso mesmo, meu rapaz. Amanh�� vir��o os

professores que voc�� quiser. Nunca �� tarde para apren��

der. Desejo-lhe uma vida feliz e o esquecimento de

haver sido crian��a do governo.

89

XI

Raul, o bom amigo

Em que estaria pensando Raul, assim t��o triste,

estirado �� beira da piscina? Com a maleta de viagem

na m��o, o j u i z aproximou-se, assustando-se com o estra��

nho e inexplic��vel semblante do jovem. J�� bem perto,

sua voz o f��z estremecer.

��� Raul! Que aconteceu?

Raul levantou-se de um salto.

��� Que aconteceu?

��� Sim, n��o entendo, no meio dessa neblina toda e

com esse frio voc�� a �� . . . parecia t��o t r i s t e . . . em que

estava pensando?

��� Obede��a as leis, case-se e seja bom.

O j u i z bateu-lhe no bra��o.

��� Raul!!

Sacudindo a cabe��a e sorrindo, Raul encarou-o.

��� O pai de Jo��ozinho sempre lhe falava, queria

que o filho fosse um homem honrado e, para ser hon��

rado, tinha de obedecer ��s leis, casar-se e ser bom.

��� Quem �� Jo��ozinho?

��� �� o meu melhor amigo l�� d o . . . as m��os de

Raul crisparam-se.

91

��� Aonde ��le est�� agora? Continua l��?

Vestindo o roup��o que apanhara da cadeira, Raul

voltou-se.

��� N��o sei. Quando tudo aquilo aconteceu, pare-

ceu haver-me dito que ia para o Instituto Agr��cola de

Menores de Batatais. Mas n��o sei bem. N��o me lem��

bro bem. Est�� tudo t��o envolto em denso nevoeiro!

Jo��ozinho pulando na minha frente. O mo��o gritando,

a minha m��o de l�� para c��. A faca entrando na coisa

mole. O sangue. Os olhos arregalados de Jo��ozinho

e a cidade de Batatais.

Raul apertou a fronte com a m��o, e repetiu baixi��

nho, Batatais, sim, Batatais.

Raul levantou a cabe��a deixando todo o seu rosto

descoberto, recebendo gotinhas prateadas da garoa fini��

nha que come��ara a cair. Ent��o o j u i z p��de notar

quanto ��le se tornara mais belo, nesses seis meses sob

sua prote����o. Engordara e se tornara mais alto. Sob

a pele do rosto c��r de barro, sobressa��a um rosado de

sa��de, dando-lhe ao semblante um ardente ar de moci��

dade, respirando pureza. Observando-o agora, via-se

que seus olhos ganhavam centelhas azuladas e sobres��

sa��a nos l��bios vermelhos um sorriso perfeito e puro.

O juiz n��o queria perder de vista um ��nico movimento

de sua maravilhosa face. N��o sabia como poderia

passar os horrorosos dias de viagem longe do mo��o.

Tinha de representar o governo num congresso a ser

realizado na Argentina. Seriam, pensou, os mais tor��

tuosos dias de sua vida, pois nesses cento e oitenta dias

em que estiveram juntos, n��o deixara um minuto sequer

a sua companhia, at�� assistira as aulas do j o v e m e se

encantara com sua intelig��ncia. Aprendia tudo rapi��

damente, j�� lia e escrevia muito bem. Guiava como se

j�� nascera em um autom��vel. Jogava t��nis, nadava,

cavalgava, como se tivesse feito aquilo a vida inteira.

Raul, o seu Raul, era a j��ia mais preciosa do mundo.

Como ouvi-lo falar de um amigo, sem que seu cora����o

sofresse, como que apunhalado. O cora����o! ��le sentia

um ponta��o no cora����o, mas o que fervilhava era o

c��rebro. Era no c��rebro que sentia aquela coisa doer

e repetir-se.

92

��� ��le est�� pensando no amigo. Quem seria esse

amigo? Apesar do ci��me sufocar-lhe a garganta, a voz

saiu compreens��vel.

��� E s s e . . . esse seu melhor amigo �� simp��tico?

Uma palidez estranha matou o sorriso nos' l��bios

do mo��o, que secamente disse:

��� N��o sei o que possa interessar ao Senhor a

apar��ncia de meu amigo.

��� Meus Deus! Ser�� que deixei transparecer algu-

ma coisa? Por nada neste mundo quero que isso acon-

te��a. N��o viveria sem ��le. Juro que n��o viveria, pensou

o magistrado.

Ficou calado em frente a Raul por uns minutos,

sem saber o que responder, at�� que falou gesticulando:

��� Vamos, vamos, Raul, n��o se zangue. Vou ficar

uns dias fora do Brasil e gostaria que voc�� encontrasse

seu amiguinho. A voz saiu falsa, pois estava gelado

de ci��mes.

��� ��le para mim �� mais do que um a m i g o . . .

O juiz sentiu o corpo oscilar e uma nuvem cin��

zenta quase o cegou. Aguardou, com a boca, o final da

frase.

��� Jo��ozinho, continuou Raul, limpando a garoa do

rosto, �� uma esp��cie de irm��o.

O juiz riu, como um bobo.

��� Claro, claro. V�� at�� Batatais, use o melhor

carro. Compre o que quiser para presentear seu ami��

guinho. Quando voltar, quero-o completamente feliz.

��� Agrade��o por compreender-me, s e n h o r . . .

��� Que palavras cerimoniosas, meu caro, observou o

j u i z segurando o bra��o de Raul. Vamos, d��-me um

abra��o de despedida ou me acompanhe at�� o carro.

��� Prefiro acompanh��-lo, mas antes quero dar um

��ltimo mergulho.

��� 93 ���

O jovem arrancou o roup��o, subiu no murinho da

piscina, j u n t o u as pernas, esticou os bra��os e envergou-

se para a frente.

Os olhos do juiz a custo se despregaram daquelas

n��degas morenas e, com um grito surdo e apertado,

sufocado na garganta, afastou-se rapidamente, at�� cam-

baleando. Raul o viu entrar no autom��vel, que partiu

c��lere. Ficara sem compreender a fuga do juiz.

* *

Visivelmente admirado, Raul olhava em derredor,

sentindo uma suave e perfumada brisa sacudir leve��

mente os seus cabelos c��r de ouro.. Acendeu um cigarro

e, dando largas passadas, iniciou uma caminhada pelo

jardim da cidade de Batatais. Santo Deus! Nunca

pensara encontrar-se fora da Capital. Tanta beleza!

talvez nem mesmo a Capital possu��sse um jardim t��o

belo. Atirou-se em um banco e tranq��ilamente enxu��

gou o suor que lhe corria da fronte.

Estava em uma cidade do interior de S��o Paulo.

Pensou que sempre cultivara o desejo de conhecer uma

cidade do interior. Assim, envolvida em azul claro,

vindo dos c��us e resplandescendo do dourado ardente

do sol. Olhou para as flores. Seguiu os p��ssaros no

infinito e seus olhos encontraram a torre da Matriz.

O padre. Sim, o padre poderia lhe informar. Es��

magou com a ponta do car��ssimo sapato o toco do

cigarro. Levantou-se e alisou b luxuoso terno de tropi��

cal ingl��s. Apertou o n�� da gravata e, com passos

firmes, entrou na igreja. Vislumbrou na penumbra,

em todos os cantos das paredes, grandes e maravi��

lhosos quadros.

Aproximou-se. Ia de quadro a quadro e sempre

um oh! de admira����o. C��ndido Portinari! C��ndido

Portinari!

��� Est�� procurando alguma coisa, jovem?

94

A fisionomia bondosa do p��roco o acalmou e Raul

sorriu.

��� Oh! Nessa quietude o mais leve ru��do nos

assusta. O senhor tem uma bela igreja, hein padre?

��� N��o a conhecia, meu filho?

��� N��o, n��o. �� a primeira vez que venho a Bata-

tais. Venho para encontrar um amigo. Talvez o senhor

possa me ajudar.

Com todo prazer, meu filho. Sabe o nome da

fam��lia? Raul franziu a testa e disse: ��� O senhor n��o

entende.

��� Qual �� o seu sobrenome? Eu conhe��o todas as

fam��lias da cidade. Ser�� f��cil.

��� ��le n��o tem fam��lia.

��� N��o tem?!

Raul olhou para um Portinari. Portinari, pensou

Raul, retratou com impressionantes matizes os cad��ve��

res ambulantes que s��o os pobres nordestinos. N��o

teve oportunidade de retratar os pobres ��rg��os, as pobres

crian��as do Abrigo de Menores. Estremeceu, s�� em

pensar o que os brasileiros poderiam admirar. Os bra��

sileiros. Se importariam os brasileiros com o infor��

t��nio de seus irm��ozinhos?

A voz do padre foi crescendo.

��� P e r g u n t e i - l h e . . .

��� Ouvi, ouvi, padre, ��le n��o tem ningu��m. Est��

no Instituto Agr��cola de Menores, desta cidade.

��� Oh! O padre o analisava e Raul ficou com

medo. Sempre tinha medo que o descobrissem. ��le

n��o era nada. Todos os menores criados pelo governo

eram considerados "nada".

O sorriso nos l��bios do padre animou o seu cora����o.

��� Bons meninos os da Col��nia. Bons meninos.

Voc�� foi criado l��, meu filho?

��� 95 ���

Raul n��o respondeu. O padre c o n t i n u o u :

��� Alguns meninos de l�� se afastam de Deus, por-

que pensam que Deus os esqueceu. Mas, quando eles

virem voc�� a s s i m . . . como d i r e m o s . . . um perfeito cava-

lheiro, ir��o encontrar mais alegria e voltar��o a a m a r

o nosso Pai e ter��o mais alento e f�� no futuro. Voc��,

assim com esta boa a p a r �� n c i a e t��o bem vestido, levan-

t a r �� a m o r a l ' d e l e s . Est�� bem empregado, n��o ��, filho?

Tem boa profiss��o?

Raul sentiu as m��os frias de suor.

��� Sim, sim. Por favor, diga-me agora como devo

ir l��. Raul foi a n d a n d o apressado. Ali��s, n��o precisa.

Eu mesmo encontro o caminho. Quase correndo, Raul

desceu o ��ltimo degrau da escadaria e, como um a u t �� -

m a t o , entrou no luxuoso carro, fazendo os pneus guin-

charem nos paralelep��pedos. Guiou vestiginosamente

para fora da cidade.

Um caboclo indicou a estrada que o levaria at��

Jo��ozinho.

Um imenso canavial, um g r a n d e cafezal e o verde

m i l h a r a ! m a r c a v a m a Col��nia. Raul encostou o carro

na g r a n d e estrada poeirenta. Com suas m��os bem tra��

tadas de u n h a s polidas, apertou as grades do port��o

principal e seus olhos se p e r d e r a m pelos onze pavilh��es

circundados de estradas cal��adas com p e d r i n h a s mi��-

das, enfeitadas de belos e bem t r a t a d o s j a r d i n s .

��� ��, sem d��vida, pensou o jovem, tudo digno de

admira����o, mas vejamos o t r a t a m e n t o dispensado ao

menor.

O Cadilaque, suas roupas e seus modos cavalhei��

rescos foram seu cart��o de visitas at�� a g r a n d e casa do

diretor, sr. H e r n �� n i Albuquerque P a r e n t e .

��� Ah! O menor Jo��p de Souza. Veremos, .ve��

remos em que lar ��le se encontra. Chamou um fun��

cion��rio e deu-lhe algumas ordens.

O diretor, am��vel e sol��cito, t r a t a v a o jovem cor-

tezmente.

��� 96 ���



��� Imagine, se ��le soubesse quem eu sou, pensava

Raul. Bem, se ��le soubesse quem sou, nem me teria

recebido.

Agora o diretor lhe explicava o sistema de moradia

na Col��nia.

��� Cada pavilh��o era c h a m a d o lar, objetivando os

��rf��os crescerem com a id��ia do que seja um lar. Havia

u m a certa q u a n t i a de abrigados que recebia ordens de

um casal. Esse casal era c u i d a d o s a m e n t e escolhido.

Tinha de ser compreensivo, culto e formado. O menor

procurado por Raul era Jo��o de Souza, tendo, at�� data

bem recente morado no lar cinco, do qual o encarregado

um homem de todo o respeito e moral elevad��ssima. ��

um ��timo dentista e chama-se Eurico Pereira de Al��

meida. Os menores gostam muit��ssimo da senhora Pe��

reira de Almeida, pois �� uma verdadeira m��e para essas

pobres crian��as. O diretor sorriu, ela t a m b �� m �� dire��

tora do nosso Grupo Escolar. O diretor foi at�� �� ja��

nela e, voltando-se, continuou. Aqui na Col��nia os me��

nores s��o t r a t a d o s com todo o respeito e dignidade. Es��

t u d a m o prim��rio, t r a b a l h a m na lavoura, j o g a m fute��

bol, v��o ao cinema. Temos o nosso pr��prio cinema.

Seguem a religi��o cat��lica. Oh! Mas o que �� isso, por

favor, sente-se, senhor, perdoe-me, perdoe-me. Estava

t��o distra��do que nem lembrei-me da cadeira. Sente-se,

sente-se, vamos. Nem bem Raul t i n h a acabado de sen��

tar levantou-se p a r a um c u m p r i m e n t o .

��� Minha esposa. Chama-se Jamile, disse o diretor.

Esse jovem �� amigo do menor Jo��o de Souza.

��� Senhor H e r n �� n i ! Um funcion��rio chamou o di��

retor e, em um canto da sala, ficaram falando baixinho.

Raul f��z o poss��vel para prestar aten����o no que do��

na J a m i l e lhe falava.

��� Meus filhos querem muito bem a Jo��ozinho, pois

��le �� um m e n i n o m u i t o meigo e bondoso. Trabalhou

na limpeza de m i n h a casa m u i t o tempo. O E d u a r d o

e o Roberto a c h a m m u i t a falta na c o m p a n h i a do preti��

nho. At�� a S��nia, que ainda �� beb��, gosta dele.

��� I m a g i n e que, apesar de toda nossa amizade, ten��

tou fugir.

��� ��le tentou fugir e agora est�� de castigo. O se-

nhor ter�� de voltar outro dia. A voz da esposa do di-

retor ainda estava martelando em seu c��rebro, quando

��le parou o carro para atender o pedido de um menino,

que fazia sinais na estrada.

��� Tenho.de lhe falar.- Posso subir?

��� Falar o que?

��� Sobre o Jo��o de Souza.

Raul refletiu por segundos.

��� Pode, v��.

��� Voc�� n��o vai guiar?

��� N��o, o que voc�� tem de me falar �� pr�� ser logo,

e depois volte para a Col��nia. Acredito que voc�� n��o

tem ordem de ir muito longe.

��� Temos permiss��o de ir at�� a cidade. Pode dei��

xar-me l��.

��� Est�� bem. Como �� o seu nome?

��� Carlos.

��� Voc�� mora h�� muito tempo aqui?

��� Faz dois anos. Os outros treze anos passei no

Abrigo de Menores da Celso Garcia. Aqui �� melhor.

Tratam a gente bem. Mas, l�� no Abrigo, era um in��

ferno. O senhor tinha de ver. A gente sofria pra

caralho.

Raul estremeceu. O nome feio o chocou. H�� seis

meses n��o ouvia um. O menor continuou:

��� Jo��ozinho est�� na cela.

O carro parou num solavanco.

As flores, os pavilh��es bem cuidados, as estradas de

pedrinhas, a bondade do diretor, o verde do canavial,

os rubis dos cafeeiros, o ouro do milho e a cela. Tinha

de ser assim, Deus!

Em todos os lugares, em todos os cantos, em todas

��� 98 ���

as a����es, em todos os pensamentos, ficava sempre es��

condido algo ruim, algo pobre. Por que? Por que?

Carlos n��o compreendeu de que falava Raul. Sua

preocupa����o era de que o carro andasse. Olhava para

tr��s de minuto a minuto.

��� Vamos, mo��o, guie logo. Preciso chegar �� ci��

dade. O diretor mandou eu l�� para c o m p r a r . . .

��� Primeiro conte porque Jo��ozinho est�� na cela.

��� V�� guiando. V�� guiando que eu vou contando.

Olhe, ��le e outro menino do lar onze tramaram uma

fuga. Mas os bobos confiaram em outros menores e o

fim foi uma tremenda surra, dada por cinco vigilantes.

A surra foi tremenda, as borrachadas, os murros e os

pontap��s cantaram pr�� cima doa dois. Um ficou desa��

cordado, e o Jo��ozinho est�� l�� de cara inchada e nariz

sangrando. Est�� mo��do o coitado, e com a roupa toda

suja de sangue.

O carro parou outra vez. Raul pensou em voltar

e falar com o diretor. Mas olhou para Carlos. Teria de

envolver o menor. O outro apanharia e iria para a cela.

O que devia fazer?

��� N��o adianta o sr. voltar (Carlos parecia ler-lhe

os pensamentos), pois o diretor n��o o receberia. Ali��s,

nem poder�� transpor o port��o principal. �� melhor o

senhor voltar outro dia, como o diretor falou.

��� Eu estava ajudando a limpar a casa do diretor e

ouvi tudo o que disseram ao senhor. Como tamb��m sou

do lar onze, sei tudo o que aconteceu ao Jo��o. Por isso

resolvi contar-lhe a verdade.

��� Bem ��� Raul pensou alto ��� falarei com o dr.

Paulo para ajudar Jo��o.

Quando chegaram �� cidade, Raul perguntou ao

menino onde queria descer.

O menor olhou, olhou em todas as dire����es, apon��

tando para um lugar arborizado e deserto.

��� Olhe, fico ali. Carlos desceu, despediu-se de

Raul e, j�� um pouco afastado do carro, gritou:

��� �� melhor o sr. dar uma olhada nos pneus da

frente, parece que est��o com alguma coisa grudada.

Enquanto Raul, ajoelhado no ch��o preocupava-se

com os pneus, Carlos aproveitou e, furtivamente, escon��

deu-se no banco de tr��s do carro.

*

Raul acabara de guardar o carro e, assobiando qual��

quer coisa desafinada, sem som, ia abaixar a porta da

garagem quando, sobressaltado, ouviu algu��m falar:

��� Tudo isso aqui �� bem diferente do que l�� na Co��

l��nia, hein?

��� Carlos. Como veio parar aqui?

��� No seu carro!

��� Como!?

��� Escondi-me, quando menti haver uma coisa gru��

dada nos pneus.

��� O que voc�� pretende?

��� Ora, fugir. Fugir de l�� e s��.

��� E agora, para onde voc�� vai?

��� Vou ficar aqui.

��� Ficar aqui? Ora, voc�� est�� louco, menino. Esta

casa �� de um juiz.

Por um instante, Raul chegou a pensar que o me��

nino fosse ficar amedrontado, pois, vislumbrou um ar

de medo e ang��stia em seu rosto, mas ��le logo se recu��

perou e abriu os bra��os, esticando bem os dedos da m��o.

��� Eu n��o estou ligando a m��nima para este juiz.

��le que v�� para a puta que o pariu.

Raul fechou o carro.

100 ���

��� Olhe, �� bom voc�� ir embora daqui! Ou, ent��o

eu telefono para o juiz de menores.

��� Por que voc�� n��o quer que eu fique aqui?

��� Sua fuga poder�� trazer-me complica����es.

��� Que esp��cie de complica����es? Eu fugi: no que

isso poder�� complic��-lo?

��� Voc�� veio em meu carro. Quero, no carro do

juiz.

��� Ah! Carlos riu e esfregou uma m��o contra a

outra. Ent��o voc�� j�� est�� complicado, pois se n��o me

ajudar, falarei que voc�� me induziu a fugir.

Uma palidez de morte envolveu Raul. O menino

observava-lhe o rosto e alegrou-se.

��� Quer dizer que eu posso ficar, n��?

��� At��. o juiz chegar, sorriu Raul. Mas, no ��n��

timo tinha medo. S�� desejava, neste momento, a volta

imediata do juiz.

Raul, entrando na mans��o, pensou no juiz. Como

tinha necessidade dele, agora! Relembrou de todas as

vezes que se sentira s��, com medo, e sem uma m��o

amiga. Estufou o peito e respirou fundo.

Gra��as a Deus, agora tinha algu��m. Sentiu uma

for��a estranha anim��-lo, por isso chamou um dos cria��

dos e mandou arrumar acomoda����es para o fugitivo nas

depend��ncias dos empregados e, sem preocupar-se mais

com o mesmo, subiu para o banho. Quando desceu, ��

jovem viu que o menino percorria lentamente a sala,

balan��ando, nas passagens, os m��veis que eram presos

por correntes. Alto magro, at�� parecia um homem,

considerando-se seu corpo musculoso e rijo, todavia, seu

rosto demonstrava um ar infantil, duramente pronun��

ciado���: a boca, s�� a boca era de adulto, aquele tipo de

boca rija, com um rictus cruel.

Impinou a cabe��a para tr��s, aproximou-se e falou

alto, quando viu Raul.

��� Que m��veis mais engra��ados. Todos fincados no

teto. Este. balan��a. Este �� firme e duro. Os que s��o

101 ���

duros t��m cabo de a��o e os que balan��am s��o prega��

dos nas correntes. Riu. Esse homem. Quero dizer,

esse juiz, acho que �� biruta. Mas, sinceramente, �� uma

birutice de bom gosto, pois nunca vi nada igual, nem

em filmes ou revistas. O menino voltou a andar como

um gato na ronda de um rato.

Raul bebericando o u��sque que o criado acabara de

servir, virou-se para Carlos, sorrindo.

��� Bem, menino, sei que voc�� s�� tem andado no

meio de coisas e gente horr��vel. Por esse motivo, digo-

lhe com franqueza, n��o �� de espantar que seja assim,

quase um selvagem. Raul logo se arrependeu de haver

falado, pois a express��o de sofrimento naquele rosto

terrivelmente infantil o desconsertou.

��� N��o quero lembrar-me de coisas cru��is. Todos

foram positivamente c��es, uns filhos da puta, mas ago��

ra n��o vou mais para o meio deles. Silenciou. Ali��s,

um sil��ncio profundo cobriu a sala. Depois ��le veio at��

Raul, endireitou o corpo, apanhou a bebida, engolindo-a

num s�� gole, tossiu e mostrou os dentes.

��� Como �� simples e r��pido! Pensei ser mais dif��cil.

L�� sempre bebia uns goles de pinga, mas u��sque �� a

primeira vez. Logo depois come��ou a puxar o l��bio in��

ferior com os dedos, fixando Raul com os olhos semi-

fechados.

��� Toda vez que bebia a tal pinga, sentia uma coisa

gostosa dentro de mim. A gente sabia que era desejo de

mulher. Mas, como n��o tinha mulher, a gente pro��

curava o cu de algum viadinho. Piscou. Sabe, l�� tem

muitos que gostam de dar o cu a qualquer um. N��o se

topa todos os dias com coisas assim, n��o ��?

Raul levantou-se de um salto e gritou para o em��

pregado :

��� Leve, leve esse menino daqui. Ponham-no para

dormir e, a. partir de amanh��, est�� proibido de aparecer

na minha frente. Est�� ouvindo?

O empregado f��z men����o de pegar o menino, mas

este come��ou a lhe dar pontap��s.

102

Raul saltou da cadeira e vibrou uma violenta bofe��

tada em Carlos e explodiu:

��� Saia daqui, saia daqui.

Cambaleando e amparado no empregado, Carlos gri��

tava sem cessar:

��� Que �� que eu fiz? Que �� que eu fiz?

��� Que �� que eu fiz? Pensou Raul mordendo os l����

bios e apertando o copo entre os dedos. Voc�� f��z aquilo

que mais odeio entre homens. Voc�� f��z aquilo que me

tornou assassino.

Voltou a sentar-se. Largou o copo na bandeja e,

com a cabe��a entre as m��os, recordou aquele dia n��o

t��o distante, pois o crime estava ainda ardente em seu

��ntimo, revolvendo-lhe o esp��rito com algo inexplic��vel.

Sentiu que fora horr��vel e tr��gico o ato praticado, mas

sentia tamb��m que o faria de novo. Faria uma, dez, cem

vezes, ��em que por isso perdesse a pr��pria alma.

Perder a alma! A alma! Existiria alma? Mas os

homens, aqueles que ficavam furando a bunda de outros

homens, existiriam como homens ou seriam animais?

��le um dia tinha sentido as carnes quentes de um

desses homens contra as suas. As carnes do juiz. Gelou.

N��o podia mais suportar essas lembran��as. Levan��

tou-se e p��s-se a caminhar pela sala, com um sentimen��

to inexplic��vel rigindo em seu ��ntimo.

��� Malditos, malditos pederastas, gritou. Seus pas��

sos eram largos e silenciosos. Depois parou e lembrou-

se com uma calma estranha, como um sol iluminando-

lhe tudo por dentro e fazendo-o at�� sorrir. Lembrou a

faca amolecer dentro do cora����o daquele pederasta.

Com alegria, com muita alegria mesmo, relembrou

aquele dia.

Aquele dia ��� aquele d i a . . . Se Raul soubesse que

aquele dia marcara seu d e s t i n o . . .

- 103 ���

XII

Malditos Pederastas

No dia seguinte Raul acordou com as sacudidelas

do empregado:

��� Senhor, senhor, telefone.

��� Telefone! Espremendo os olhos, olhou num pis-

ca-pisca para o mo��o. Que aconteceu com o telefone?

��� �� um chamado interurbano da Argentina. Acho

que �� S. Excia.

��� S. Excia! Quem �� essa S. Excia.?

��� O juiz. �� o dr. Paulo.

��� Ah! Nunca ouvira ningu��m referir-se assim ao

Juiz e tamb��m nunca atendera um chamado in��

terurbano.

A voz vinha t��o clara!

��� Al��.

��� Raul?

��� Sim.

��� Sou eu.

��� Ah!

��� Como vai?

��� E u . . . b e m . . . quero d i z e r . . .

105

��� O que h��?

��� �� o Carlos.

��� Carlos?! Quem �� o Carlos? Vamos, diga quem

�� o C a r l o s . . . Raul, Raul.

Agora a voz do j u i z vinha aos ferros, ferindo-lhe

os t��mpanos ��� Raul! Raul!

��� C a l m a . . . calma, dr. Paulo.

��� Diga quem �� o Carlos. Chame o empregado.

Raul gritou para o empregado atender o telefone

l�� embaixo mesmo, e ficou sentado na cama, pensando

no que estaria acontecendo. Falara algo de errado para

o advogado ficar assim furioso?

O empregado voltou, entrando sem bater.

��� O dr. Paulo voltar�� hoje para o Brasil.

��� Por que?

��� ��le estava muito nervoso.

��� Mas, por que?

��� N��o sei, senhor. T a l v e z . . . t a l v e z . . .

��� T a l v e z . . . fale, h o m e m . . . o que voc�� acha que

aconteceu?

��� �� por causa do Carlos.

��� Ah! Fico contente. �� bom que ��le veja e d��

um jeito nesse pilantrinha.

��� Mas parece que ��le vir�� por outra coisa.

��� Outra coisa?

��� Sim.

��� Que coisa?

��� C i �� m e s . . .

Encararam-se.

Raul, p��lido, ouvia naquele zunido incessante rios

ouvidos, a voz horripilante do empregado:

��� 106 ���

��� Ora, ningu��m leva a s��rio as rela����es entre ho-

mens, o senhor deve saber. Jamais o senhor encontrar��

nesta ��poca, gente que os despreze por causa disso.

Ningu��m cr�� que possa ser s��rio o amor entre homens,

mesmo o dr. Paulo. Durante a viagem chegar�� �� con��

clus��o de que a estadia do menino Carlos aqui n��o ��

uma brincadeira para encium��-lo.

O est��mago de Raul foi-se comprimindo e sua testa

come��ou a umidecer. Olhou rapidamente para os lados

e alcan��ou a estatueta em cima do criado-mudo.

Com os olhos arregalados de ��dio foi andando deva-

gar, devagar, at�� o criado. Esse s�� teve tempo de abai-

xar a cabe��a; pois os peda��os de porcelana invadiram

o quarto.

��le n��o entendia o que gritava Raul e teve s�� um

pensamento: correr dali.

Logo depois Raul jogou-se dentro do carro e partiu.

A noite ainda n��o havia retornado e o juiz j�� o esperava.

O empregado, numa curva demorada, explicou que

Raul tinha sa��do pela manh�� e o mocinho Carlos tinha

permanecido o dia todo no quarto dos criados.

O j u i z mandou imediatamente chamar o rapazinho.

Um rapazelho r��seo e meigo. Estava coberto de

uma frescura inexperiente, pensou o juiz quando o en��

carou. Jamais poder�� conquistar Raul!

��� Ent��o, mocinho, voc�� �� quem me f��z abandonar

uma importante confer��ncia.

O menino, de cabe��a baixa, n��o respondeu.

��� Vamos, fale, garoto. Voc�� surgiu de onde?

O garoto continuou quieto.

��� A id��ia de vir para c�� foi sua? Vamos, diga!

��� Sim. Carlos levantou a cabe��a e encarou o ad��

vogado.

��� Se o senhor prometer n��o me mandar de volta

para l��, conto-lhe tudo.

��� 107 ���

��� Ent��o conta, disse o juiz com voz branda.

��� Eu fugi de l�� porque eles me judiavam muito.

Durante aqueles minutos em que o menino descre��

via a sombra negra, envolvendo as crian��as asiladas, fa��

zendo-as lutar desesperadas para enxergar um pouco de

sol, o juiz sentiu, at��, uma pontinha de remorsos por

ter aproveitado tanto de crian��as iguais ��quela, olhan-

do-o assustado e passando a l��ngua nervosamente pelo

l��bio inferior.

��� Al��m disso, continuou d��bilmente o menino,

tenho medo de aprender a ser um marginal. L�� na

Col��nia todos pensam, quando estiverem em liberdade,

em praticar crimes para ^se vingarem do tratamento

recebido nos asilos do governo. Fui tamb��m muito

infeliz l��, mas tenho um ideal e por isso n��o quero

mais voltar. Eu sou bom. Correu para o juiz e este

sentiu o contato daquelas m��os ��speras. Pegou as

m��os do garoto e as olhou. Grossas e cheias de bolhas.

O menino olhou das m��os para o rosto do juiz.

��� Eu capino a ro��a da Col��nia, mas do que gosto

mesmo �� de tocar piano. Sonho estar tocando, tocando

e foi tirando as m��os devagar das do juiz, com toda

brutal calosidade, o rosto triste e a voz embargada por

soluces entristecendo o alegre ambiente.

��� Esse �� o meu ideal. Quero ser pianista.

Aquela express��o de piedade que assentara no rosto

do juiz foi variando e recebeu, em seguida, uma palidez

profunda, quando seus olhos encontraram tonalidades

azuladas e cintilantes entre as grossas cortinas da

grande porta que levava ��s escadarias do belo jardim.

Com o cora����o palpitando, o juiz viu o azul vir

para pie, passar por ��le e subir lentamente ao andar

superior. Ia correr em sua dire����o, quando seus ouvi��

dos se encheram de gritos angustiosos e doridos.

��� O senhor me ajuda? O senhor me ajuda? Eu

n��o quero ser marginal. O menino, ajoelhado, agar��

rava-se ��s suas pernas.

��� 108 ���

Mas o juiz n��o o ouvia. Eram gritos mudos. O

juiz s�� pensava em uma coisa. Raul, o seu Raul. Olhou,

como se n��o visse a crian��a ajoelhada no meio da

luxuosa sala e, com passos firmes, come��ou a subir a

escadaria de m��rmore.

Bateu no quarto de Raul. Uma, duas, tr��s vezes.

Nada. J�� ia esmurrar a porta, quando esta se abriu,

e dois olhos nadando em profundas olheiras n u m rosto

abatido, o fitaram.

��� Saia. A voz do juiz era dura e fria.

O j u i z n��o despregou os olhos dos seus. Sentia-se

como se houvesse sa��do de uma ressaca. Pernas moles,

tonteiras e aquele amargor na boca.

Depois de vinte e quatro horas, somente vinte e

quatro horas longe dele, e agora a sua presen��a lhe

trazia tudo aquilo. Como era fant��stica sua alta figu-

ra! A luz vinda do quarto cobria-lhe as costas, dei��

xando, na penumbra, o longo peito coberto de p��los,

cheirando a suor, cheirando a macho, dar vertigens na

voz umidecida do magistrado.

��� Mas, por que?

Por��m, no mesmo instante recuperou-se e, com voz

nova, autorit��ria, gritou:

��� Que diabo! Nem saio e tudo vira b a l b �� r d i a . . .

o que aconteceu? O que h�� com voc��?

��� Que �� que h��? Raul abriu os bra��os e se firmou

nas laterais do arco da porta. Apertava-a tanto que, no

moreno de sua pele, as j u n t a s dos dedos tornaram-se

n��veas.

��� O senhor deve saber agora o que pensa o criado

a nosso respeito.

Um iongo sil��ncio.

��� E o que pensa o criado?

��� Pergunte a ��le.

��� N��o. Quero que voc�� me diga.

��� 109 ���

��� Nunca.

��� Por que?

��� Porque n��o quero matar pela segunda vez.

��� Matar?!

��� Matar ..

��� Voc�� est�� louco?

��� Se f��r verdade, eu fico.

��� Verdade o que?

��� V��. Pergunte ao criado.

��� Diga voc��. Voc�� n��o �� homem?

��� Sou homem, e homem macho.

��� Ent��o diga.

��� Voc�� �� covarde.

��� Saia daqui.

��� Covarde?

��� Sim, covarde e medroso.

��� Medo.

��� Vive cheio de medo. Tem medo at�� de falar.

Por pior que seja a coisa, um homem macho fala sem

hesitar.

��� O senhor �� homem?

��� Sou.

��� Homem macho?

Tinha que fingir.

��� Homem macho.

��� Tem palavra?

��� Claro!

��� Jura?

��� Juro.

��� Responda-me sinceramente.

��� Respondo.

��� Responde?

��� 110 ���

��� Respondo.

��� O senhor tem ci��mes de mim?

O peito, a barriga, a cara, pernas e tudo daquele

homem se envolveram em densa neblina. Sentiu um

tremor sacudir suas entranhas. Sentia-se cair, uma

coisa o puxava. Cair, cair. Agarrava-se a Raul. Ti��

nha de falar a verdade. Que largara a importante con��

fer��ncia porque morria de ci��mes dele. S�� pensar que

��le podia estar com outro homem aniquilara seu esp����

rito. Devia falar que o amava e morria por ��le. Mas,

m a s . . .

��� Voc�� est�� louco, Raul. Que besteira �� essa?

Eu com ci��mes? Ci��mes de voc��?

��� O criado pensa sermos amantes.

��� Amantes. Milh��es de sinos penetraram-lhe no

c��rebro e o fogo do desejo fervendo-lhe nas veias. To��

davia, ainda com vil habilidade, disse:

��� Isso �� uma inf��mia.

Seu sexo levantando, esticando, endurecendo, gri��

tava Raul, Raul. Mas sua habilidade dizia: isso �� uma

inf��mia.

Do��a-lhe a cabe��a pelo nervosismo sexual, mas

dizia: isso �� uma inf��mia. O que aconteceu no pas��

sado, digo-lhe mais uma vez, foi uma loucura. Nunca

tinha praticado antes um ato t��o animalesco. Jamais

me passou pela cabe��a que o mesmo sexo pudesse satis��

fazer qualquer ambi����o de meu corpo e alma. Tenho

nojo de homens que assim procedem. O j u i z tornou-se

eloq��ente. Tinha de encenar direitinho, sen��o poderia

perd��-lo para sempre.

��� Esses pederastas. Esses miser��veis. Como voc��

pode pensar que. um magistrado seja um deles? Mal��

dito criado, ir�� para tr��s das grades. Eu juro.

Abria os bra��os e gesticulava para todos os lados.

Parecia um ator. Parou em frente a Raul.

��� Se voc�� n��o confia em mim, pode ir para outro

lugar.

111



Raul tremeu.

��� Outro lugar?

��� Sim. O juiz morria de medo que ��le aceitasse.

��� Pode ir para uma pens��o, para um hotel, eu

me responsabilizo at�� voc�� arranjar um emprego. Mas,

se voc�� confia em mim, se voc�� n��o me considera isso a��,

ent��o d��-me a m��o e fique.

O mal de .Raul era acreditar muito r��pido.

Do contato de sua m��o, o juiz sentiu que, nem que

fosse para desenterr��-lo da pr��pria sepultura, Raul

teria de ser seu, houvesse o que nouvesse, morresse

quem morresse, e podia a imprensa publicar. Nada

mais importava: dinheiro, posi����o, social ou religi��o.

Queria Raul ou a morte. Esse seu veredito era a sen��

ten��a de sua pr��pria vida. Era j�� uma paix��o, n��o

mais uma simples tara.

��� Por que essa casa t��o grande e rica, com jardins

e parques tem a cerc��-la um muro t��o baixinho? Se

eu fosse o dr. Paulo, mandaria colocar, em volta, grades

bem altas, disse Carlinhos. Passeava com Raul pelo

parque, esperando algu��m do juizado que viesse busc��-lo

a pedido do juiz, pois h�� quinze dias fugira do Abrigo,

refugiando-se na mans��o.

Carlinhos ignorava que, ia voltar para a Col��nia.

Confiava em morar com o dr. Paulo. Nos dias que l��

passara, s�� tinha um pensamento: aprender a tocar

piano. Seria algu��m, algu��m.

Raul viu o carro do juizado chegar. Os homens

desceram e vieram at�� eles. N��o teve coragem de aler��

tar Carlinhos que, inclinado, colhia na relva uma flor.

��� Tenho absoluta certeza de que uma grande alta,

bem alta, impediria a entrada de malandros.

112



Soprava um vento forte, desprendendo folhas e flores

das ��rvores; impedindo Carlinhos de ouvir os passos dos

homens, j�� bem perto.

��� Como �� bonito tudo isso aqui, hein, Raul? To-

m a r a que o j u i z pe��a ao diretor da Col��nia para eu

ficar aqui. Puxa, como seria legal! Mas, a n t e s , ��le

tem de falar com o j u i z de menores. Voc�� n��o a c h a ?

Depois, viria um comiss��rio de m e n o r e s . . .

��� Comiss��rio de menores, uma voz elevou-se no

g r a n d e p a r q u e .

Carlinhos virou-se e encarou os dois h o m e n s . Na

expectativa daquilo que eles iam dizer, Raul j u l g o u

ouvir as batidas do cora����o do m e n i n o . Carlinhos,

como u m a lebre assustada, olhava para todos os lados,

vigiado pelos olhos astutos dos comiss��rios.

��� Viemos busc��-lo, menino. Vamos, vamos.

Foi a g a r r a d o . Um comiss��rio de cada lado o segu��

rava firme pelos bra��os. Carlinhos umideceu os l��bios

com a l��ngua e olhou triste para Raul.

��� Voc�� sabia que eles viriam, n��o ��, seu covarde?

Voc�� e aquele velho veado.

Arrastado pelos comiss��rios, j�� ia bem longe. O

cora����o de Raul gelava mais e mais, ouvindo o menor

repetir sem p a r a r :

��� Velho veado, velho veado.

��� Meus Deus! Pensou Raul a p e r t a n d o a fronte

com a m��o. Primeiro o empregado e agora o Carlinhos.

Mas o dr. Paulo lhe dissera que n��o era, que n��o era

a q u i l o . . .

Eles estavam e n g a n a d o s , t i n h a m que estar.

XIII

Presidente da Rep��blica, olhai

por n��s. Am��m...

No m��s seguinte, Raul voltou a Batatais para visi-

tar Jo��ozinho e o encontrou ajoelhado, munido de um

ferro ponteagudo, tirando os matinhos que cresciam

entre os paralelep��pedos da rua.

Magro e abatido, o negrinho solu��ava nos bra��os

do amigo.

Parados um diante do outro, n��o sabiam o que

falar, at�� que Jo��ozinho disse:

��� Puxa, esse servi��o �� cacete. �� ruim pr�� xuxu,

sabe? A m��o da gente fica toda esfolada, o joelho

doendo e, quando vou lavar-me a ��gua cai nas feridas

da m��o e arde como se estivesse queimando com ferro

e fogo. �� um servicinho muito cansativo, ainda mais

pr�� quem se levanta ��s cinco horas e fica trabalhando

na lavoura at�� as dezesseis horas. Passou as m��os

calejadas pelos cabelos empoeirados.

��� Por que voc�� n��o passa uma pomadinha na

m��o? Tem um sabonete muito bom. Deixe ver se me

lembro o nome.

Jo��ozinho riu.

��� Nem se esforce. Sabonete aqui nunca se viu.

Aqui �� no sab��o de lavar roupa.

Ficaram calados novamente.

115

Jo��ozinho se ajoelhou.

��� Vou terminar o servi��o e depois falo com voc��,

viu?

Raul pegou-o por um bra��o e o levantou.

��� J�� falei com o diretor e ��le permitiu que eu o

levasse at�� a cidade.

Um brilho feliz iluminou os olhos de J o �� o .

��� Mas assim, sujo. . .

��� Vamos l��.

De m��es dadas, percorreram a rua, sob os olhares

curiosos dos outros meninos sofredores que p a r a v a m

de t r a b a l h a r na limpeza das pedrinhas, afastando-se

para eles passarem. E n t r a r a m no luxuoso carro do juiz

e voaram para a cidade. Jo��o n��o escondia a alegria

de rever o amigo, mas Raul notou que, l�� bem no fundo

de seu olhar, t i n h a alto de e s t r a n h o . Por a l g u m a s

vezes reparou que o pretinho o olhava como se o re��

provasse .

��� E esse carro. Voc�� n��o devia vir at�� aqui cem

esse carro.

��� Por que?

��� Por que voc�� �� pobre.

��� O carro �� de um amigo.

��� O j u i z ?

Raul ficou branco e espantado e olhou para o

p r e t i n h o .

��� Como voc�� sabe?

��� Oh! Todos sabem.

��� Todos!!

��� O Carlinhos. Jo��ozinho abaixou a cabe��a e foi

sacudido por um tremor.

��� Raul, vamos sentar ali na confeitaria.

��� 116 ���

Eu quero lhe contar como vivemos aqui. Raul

sentiu que ��le queria mudar de assunto. Encostou o

carro e sentaram-se em uma mesinha da confeitaria.

O pretinho n��o lhe deu tempo de abrir a boca e, engo��

lindo uma colherada de sorvete, foi falando:

��� Aqui �� melhor, em rela����o aos outros abrigos do

Estado. O diretor, o dr. Hern��ni Albuquerque Parente,

�� justo e compreensivo. Mas falta muita coisa. Prin��

cipalmente aprender uma profiss��o. O que temos

aprendido at�� agora �� capinar. Falta tamb��m o di��logo.

O di��logo �� muito importante, principalmente nos

abrigos. Digo isso porque a revolta cresce nos menores,

quando s��o castigados injustamente e quando sentem

serem tratados como seres inferiores. Aqui, como nos

outros Abrigos, a quem estiver internado, ningu��m per��

gunta o porqu�� de se estar errando, apenas acham que

�� erro, e v��m logo cobrindo a gente de borrachada, socos

e pontap��s.

Depois �� lavar banheiros, corredores, regar jardins.

��s sete horas, uns v��o para o grupo escolar, instalado

na Col��nia e outros, inclusive eu, vamos para a ro��a.

Como voc�� deve ter visto, a lavoura �� enorme, o

cafezal se perde de vista. O milharal, o arrozal, man-

diocal, a planta����o de batata, mandioquinha, salsa, cana,

tudo �� cuidado pelos menores.

A gente gosta da lavoura mas, se quando a gente

fosse homem, ganhasse um peda��o de terra para culti��

var e viver disso, a�� sim, a gente teria ��nimo. Mas

pelo que sabem os meus quatorze anos, s�� quem tem

terra nesse Brasil �� gente rica. P o b r e . . . bem como

ia lhe contando, o ch�� de erva cidreira me d�� um

bruto enj��o. N��o quis queixar-me e por isso fui para a

ro��a assim mesmo. Quando comecei a capinar em volta

de caf��, senti que piorava. Uma fraqueza pelo corpo,

dor de cabe��a e tontura, fizeram com que eu me debru��

��asse no cabo da enxada. Fazia um esfor��o enorme

para n��o vomitar, sentindo aquele suor frio correr pelas

costas e empapar as palmas de minhas m��os.

De repente, senti algu��m dar varadas, com toda

for��a, em minhas costas e cabe��a. Gritando de dor,

��� 117 ���



virei o rosto para ver o que acontecia e varadas t a m b �� m

no rosto t a p a r a m - m e os olhos.

�� o funcion��rio (��le se c h a m a M��rio), sempre

b a t e n d o .

��� T r a b a l h a , negro filho da puta. Voc��s est��o

t r a b a l h a n d o para comer. N��o pensem que v��o comer

�� custa do governo. Trabalhe, vamos. Louco de dor,

sa�� em desabalada carreira, deixando golfadas de v��mito

pelo meio do cafezal.

Isso acontecia todos os dias com os i n t e r n a d o s .

Agora diga. Se o governo pusesse funcion��rios bem

pagos e habilitados em t r a t a r com crian��as, a coisa n��o

seria diferente? Jo��ozinho raspou o fundo da ta��a.

Como n��o sa��a mais nem um p o u q u i n h o de sorvete,

encostou-se na cadeira e olhou para o alto.

��� O que vou falar �� um sonho, mas digamos que,

futuramente, aconte��a. Eu estava ali na enxada, pas-

sando mal e o funcion��rio chegaria preocupado e per-

g u n t a r i a , com voz meiga:

��� Algum problema?

��� Eu levantaria a cabe��a e o olharia bem nos

olhos.

��� Sim, sr. M��rio. Estou me sentindo muito mal.

��� Mas o que est�� sentindo?

��� Dores, enj��o de est��mago e fraqueza nas p e r n a s .

��� Vamos, vamos, n��o fique assustado, vou ajud��-lo.

Sente-se ai, na sombra. Vou c h a m a r outro menor para

a c o m p a n h �� - l o at��' o lar. Mas, antes, tome um golinho

de ��gua de m i n h a garrafinha. Assim. Agora, pare a

m��o, eu vou ench��-la de ��gua e voc�� passa no rosto.

Assim, assim, sente-se melhor agora? Daria para voc��

ir a n d a n d o at�� o lar?

��� Sim, senhor. Ali��s, j�� est�� passando, senhor.

Acho que era esse sol m u i t o forte na cabe��a e o ch��

de cidreira.

��� Ch�� de cidreira?

��� Sim, senhor. N��o suporto o ch��, mas como

n��o tem outra c o i s a . . . e depois, eu n��o queria vir para'

a ro��a de est��mago vazio.

��� Vou conversar com o dr. Eurico Pereira de Al-

meida ou com a dna. Antonieta; eles c o m p r e e n d e r �� o .

Voc�� n��o vai mais tomar ch�� de cidreira. Bem, vou

providenciar a sua volta. Hoje vai descansar.

��� N��o, n��o, senhor M��rio, j�� estou m e l h o r a n d o .

Penso que, se ficar um pouco mais aqui na sombra, o

mal-estar vai passar.

��� Voc�� a c h a ?

��� Sim, por favor. N��o quero a t r a s a r meu servi��o.

Sei que passaria, s�� ern ficar sentado �� sombra porque,

q u a n d o tinha me visto bem longe do funcion��rio, sentei-

me debaixo de um p�� de caf�� e o mal-estar passou.

J o �� o z i n h o parou e encarou Raul.

��� Voc�� n��o a c h a r i a legal, se houvesse di��logo?

Raul n��o respondeu. Pois era sonho. O que valia

responder? O p r e t i n h o sorriu. Um sorriso a m a r g o e

triste.

��� Sonho, sonho e dos grandes. Mas, vamos voltar

�� realidade.

��� Como �� horr��vel t r a b a l h a r na ro��a. Voc�� nem

imagina. Com o sol causticante, com fome, descal��o,

pisando em cada puta espinho, que entra t��o dolorido,

a r r e p i a n d o at�� os cabelos. Quando se pisa em caco de

vidro, pode-se tingir toda a Col��nia de sangue, mas n��o

se pode parar de capinar. E quando se afunda n u m

formigueiro! P u t a merda, a gente sai p u l a n d o feito

bode e por mais que cata com as m��os nos p��s, as

formigas c o n t i n u a m g r u d a d a s .

��� Voc�� j�� se imaginou sentado no cabo da enxada,

t i r a n d o espinho do p��, e logo um pesco����o e cair de

cara no ch��o? �� de encher o saco, n��o? Agora, o pior

era q u a n d o t i n h a de se t r a b a l h a r dentro do brejo.

Aquela �� g u a b a r r e n t a , super-gelada, quase encobrindo

os pequenos de 9 ou 10 anos, que b a t i a m e batiam com a

enxada e sempre arranjavam cortes enormes no ded��o

��� 1 1 9 ���

do p�� e gritavam de dor. Queriam sair da ��gua porque

aquilo ai'dia como pimenta. Mas n��o sa��am, n��o. E

cada bicho que d�� no brejo! Cada aranha! As cobras

d agua, ent��o! Passam pelas caras dos pequenos, que

��icam petrificadas de medo.

��� E as cobras venenosas que ficam debaixo do

p�� de caf��?! Voc�� precisa ver. �� s�� a gente enfiar

a enxada para limpar as folhas perto do tronco e sa��a

cada cobra! Se a gente n��o soubesse mat��-las, o ��nico

rem��dio era sair correndo (ali��s, era o que sempre

acontecia), sen��o estava-se perdido. Para isso o fun��

cion��rio era bom, porque s��dicamente matava os r��pteis.

Cada um ter por tarefa capinar quarenta p��s de

caf��. Quem acabar primeiro pode descansar. Mas isso

nunca acontecia, pois, por mais r��pida que a crian��a

seja, na hora de ir embora o medo das cobras fazia

a gente lerdear.

��� Outra coisa chata na lavoura �� tamb��m quando

termina a ��poca do milho. O milharal fica sequinho

e n��s temos de arrancar p�� por p��, depois de tirar as

espigas. E dif��cil qualquer dos meninos ir de boa von��

tade trabalhar no milharal, apesar de ser um dos

servi��os mais leves da lavoura, mas existem muitas

caixas de marimbondos; bastando a gente ter a infeli��

cidade de esbarrar nas mesmas, as vespas atacam am

bandos, n��o adiantando a gente correr mais e mais,

pois sempre se chega ao lar com a cara ou os olhos

inchados das doloridas picadas.

��� O que mais cansa a crian��a �� cortar cana, fa��

zer feixes e lev��-los nas costas at�� a carreta, pic��-la e

dar ao gado. Jo��ozinho pediu mais um sorvete.

��� Quando voltamos da ro��a, ainda temos de tra��

balhar no lar, arrancar o matinho que cresce entre as

pedrinhas, como voc�� me viu hoje. Veja como ficam

as m��os da gente. Feridas e mais feridas. Algumas

vezes, quando voltamos da ro��a jogamos bola.

��� Antes de irmos para a. escola, fazemos o servi��

��o da horta. As professoras da escola s��o todas donas

dos lares. At�� dna. Joaninha, a mulher do diretor,

�� professora.

��� Estudamos a li����o �� noite, e coitado daquele

que n��o estuda, fica sem ir ao cinema no s��bado. Quan-

do passa filme de mulher de pernas de fora, a turma

fica doida. Quase todos v��o para o banheiro bater

p ou. ent��o, pegam um pequeno e o obrigam

a dar o cu.

As m��os de Raul se crisparam. Foi o ��nico mo��

vimento feito, durante todo o tempo em que o pequeno

ficou falando. Jo��ozinho viu o rosto de Raul cobrir-

se de uma palidez mortal.

��� Quer que eu pare de contar, hein, Raul?

��� Continue.

��� Parece que voc�� est�� doente.

��� Continue.

��� Bem, na Col��nia tamb��m tem uma fanfarra,

tr��s tambores, seis cornetas, dois bumbos e um contra��

baixo. Marchar �� tamb��m um supl��cio, pois marcha-

mos cinco horas sem parar. Os que tocam bumbo fi-

cam com as m��os calejadas.

��� Um dia resolvi fugir com os outros meninos.

Foi depois de levar uma tremenda surra. S�� porque

o funcion��rio cismou que est��vamos conversando na

sala de aula. Gritou:

��� Ah! Negrinho, espera s��, quando voc�� passar

por essa porta para sair da sala, a�� voc�� vai ver. Quan��

do passei, ��le me puxou para um lado e foi me dando

socos e pontap��s. Com o nariz sangrando e o corpo

dolorido, consegui livrar-me do brutamontes e correr

em dire����o �� administra����o.

��� Os outros apanharam com a sineta de ferro, na

cabe��a e por todo o corpo. A�� nasceu a id��ia de fugir.

��� De manh�� ainda escuro, corremos para a por��

teira que dava para o est��bulo. Como estava dif��cil

abri-la, tive de passar por baixo. Os est��bulos esta��

vam cheios de buracos e eu ca��a a todo instante. Foi

dif��cil alcan��ar a estrada, e depois o mato. Ja longe,

ouvimos a sirene tocar tr��s vezes. A Col��nia j�� sabia

da fuga. Corr��amos mais e mais. Ca��amos, levan-

- 121 -

t��vamos. Como tinha espinho naquele mato! Puxa vi��

da! Parecia que todos os espinhos da terra tinham se

reunido naquele mato. Era cada grito de dor! Nossas

camisas j�� estavam em farrapos e as costas todas ar��

ranhadas devido ��s cercas de arame farpado. Passa��

mos quase todo o dia correndo. Uma vez ou outra to��

m��vamos f��lego e continu��vamos a correr. Eu s�� ti��

n h a um pensamento: n��o ser encontrado, porque sabia

do ��dio desumano dos funcion��rios quando �� procura

de fugitivos. Tinham de andar no meio do mato, horas

e horas, sem comer e ultrapassando o hor��rio de tra��

balho. Ficavam nesta vida at�� nos encontrarem. Quan��

do a noite come��ava cobrir tudo de negro e os pios das

corujas cortavam aquele mato sem fim, um dos me��

nores de nove anos come��ou a chorar e a gritar de

desespero:

��� Ai, m��e! Ai, m��e! Ajude! Ajude seu filhinho

doente e com fome.

��� O diabo era que o menino nem tinha m��e.

Ali��s, nenhum dos cinco fugitivos tinham m��e ou pa��

rentes. Numa certa altura, j�� n��o enxerg��vamos mais

nada e deitamos no mato. Na escurid��o de breu, a

voz de um menor se elevou:

��� Olhe, o nosso neg��cio �� chegar a S��o Paulo pe��

lo mato. N��o podemos pensar em ir pela estrada.

��� E quando chegarmos a S��o Paulo? Perguntei.

Um longo sil��ncio se misturou com a escura noite

sem lua.

��� Bem, a gente chegando na capital, vai procurar

um jornal e conta a hist��ria pr�� rep��rter. A gente pe��

de pr�� ��le arranjar uma fam��lia pr�� cuidar de n��s.

Voc��s j�� pensaram como vai ser legal a gente ter fa��

m��lia? Nesta hora estar dormindo em cama, com co��

berta e tudo, e quando acordar ter m��e e pai e talvez

irm��os. Bem, irm��os n��o faz muita falta, porque j��

estou com o saco cheio de ver tantos meninos. Gos��

taria de uma irm��.

No dia seguinte, nosso almo��o foram mangas apa��

nhadas em uma mangueira distante de algumas casi��

nhas. Esse segundo dia tamb��m passou com a gente

122

a n d a n d o , a n d a n d o sem parar, e j�� ia caindo a n o i t i n h a

quando vimos um c a m i n h �� o e pedimos carona. Os dois

homens disseram que iam a Ribeir��o Preto. Pulamos

p a r a cima das lonas e, mortos de cansa��o, dormimos.

��� Acordei com algu��m me p u x a n d o de cima do

c a m i n h �� o e largando o bra��o, eram tapas e pontap��s

para todos os lados. Gritando de dor, olhei para quem

me batia e o reconheci. Era um dos funcion��rios da

Col��nia. Devassei o olhar para mais longe e encontrei

o pr��dio da a d m i n i s t r a �� �� o , onde ficamos at�� a chegada

do diretor, que t a m b �� m nos deu uns tapas e chamou

o senhor J o a q u i m Camilo, chefe do lar onze, onde t i n h a

as celas, e n��s fomos presos. Neste dia recebemos a

visita do nosso chefe do lar cinco, que t a m b �� m nos

cobriu de socos.

Os meninos presos dormiam no ch��o. Se quises-

sem ir �� privada, t i n h a m de bater na porta at�� al��

gu��m abrir.

��� Quando fomos libertados, tive a desagrad��vel

supr��sa de saber que seria h��spede do lar onze e t i n h a

de t r a b a l h a r na ro��a e, desta vez, com m a c h a d o . Cor��

tar grossos troncos de ��rvores. Nesse lar onze impera

o diabo, pois para o senhor J o a q u i m Camilo s�� existe

uma lei: a lei do tapa. Qualquer coisa que a gente

faz, por mais insignificante, ��le desce o bra��o, sem d��

nem piedade. Como no lar onze estavam os meninos

maiores, ��s vezes ��le pedia para o funcion��rio da ro��a,

ajudar a bater. A m u l h e r dele �� outra filha da puta,

s�� fala com os menores aos gritos.

��� Desse modo o tempo foi passando, at�� que um

dia, depois de levar u m a t r e m e n d a surra, tendo ficado

desacordado, resolvi pensar em u m a nova "fuga. N��o

sei quem contou ao chefe do lar. S�� sei que q u a n d o

voc�� foi me visitar, eles ficaram com medo e me dei��

x a r a m sair da cela, pois eu estava todo ferido.

Raul relanceou o olhar pela confeitaria e depois

os pousou no pretinho, q u e ' o olhaya um t a n t o inti��

midado, talvez j�� a d i v i n h a n d o o que o jovem iria per��

g u n t a r . Por isso, ensaiando um sorriso, levantou-se

e disse:

123

��� Devo voltar. O diretor vai dar a bronca s e . . .

Raul o puxou pelo bra��o e o fez sentar-se nova��

mente. Estava p��lido.

��� O que o Carlinhos disse?

��� O Carlinhos?!

��� Sim, Jo��o, n��o se fa��a de esquerdo. Voc�� foi

toda a vida meu amigo. Quero saber o que lhe contou.

��� Mas eu preciso ir.

��� Voc�� tem de me contar.

��� �� prefer��vel voc�� n��o saber.

��� Eu preciso saber.

��� Raul, pelo amor de Deus!

��� Eu �� quem digo, Jo��ozinho, pelo amor de Deus!

��� Eu n��o acredito no que Carlinhos falou.

Raul fazia um esfor��o enorme para controlar-se,

j�� um tanto desesperado.

��� Mas o que voc�� n��o acredita?

��� Que voc�� troca todo o luxo p e l o . . . p e l o . . .

��� Pelo?!

��� Cu.

Raul esperava a resposta, mas, mesmo assim, sen��

tiu uns estranhos sinos nos t �� m p a n o s e um n�� a p e r t a n -

do-lhe a g a r g a n t a . Uma neblina cinzenta f��z Jo��ozinho

dan��ar ante seus olhos. F��z um esfor��o herc��leo para

n��o perder a consci��ncia. Quando se recuperou, a voz

lhe saiu entre os dentes.

��� Isso �� r e p u g n a n t e . Como pede inventar t a n t a

inf��mia?

��� ��le �� pequeno, mas sabe inventar cada est����

ria! . . . O pior �� que os outros meninos a c r e d i t a m .

Quando eu voltar para l��, v��o fazer a maior goza����o.

��� Oh! Deus meu! Raul escondeu o rosto nas m��os.

Ser�� que n u n c a vou livrar-me d e s s a conversa? �� nos

abrigos de menores, �� na cadeia, �� em liberdade, e s��

se encontra veado e filho da puta. S�� se houve essa

��� 124 ���

conversa. O juiz n��o �� veado. ��le, uma vez, quando

eu era pequeno, se atirou sobre mim, mas jurou que

a q u i l o . . . bem aquilo n��o era um desejo de comer o

meu cu. ��le nunca f��z isso com mais ningu��m. O

j u i z n��o �� um veado, eu juro, juro que n��o ��!

Jo��ozinho abaixou a cabe��a.

Raul esfriou

��� O que e, Jo��o?

��� Bem, eu acho que uma coisa o Carlinhos n��o

mentiu.

��� Que coisa?

��� ��le disse que o juiz, todas as noites, antes de

dormir, fica beijando um retrato seu, e o guarda debaixo

do travesseiro. ��le esfrega o retrato pelo corpo todo,

beija, beija, e depois geme e cai, como se estivesse com

ataque.

��� Mentira! Raul levantou-se de um salto. Aper��

tava tanto as bordas da mesa com a m��o, que as jun��

tas estavam brancas, como seu rosto ��� �� mentira,

juro que �� mentira.

O pretinho timidamente olhou para os lados.

��� Todos est��o olhando, Raul. �� melhor a gente

parar com essa conversa.

��� Que olhem.

��� Mas e u . . . se eles contarem ao diretor que a

gente estava d i s c u t i n d o . . .

��� Desculpe-me. Desculpe-me. Ccnte-me tudo di��

reitinho. Juro que ouvirei calado.

��� Raul, n��o tenho muito a contar. ��le disse que

voc�� vivia com um homem podre de rico, em troca d e . . .

��� Sei n��o precisa repetir.

��� Que o homem (��le vigiava o juiz sempre) quan��

do est�� s��, vive falando: eu te amo, Raul, eu te amo,

Raul. Disse tamb��m que o Juiz fica escondido atr��s

das cortinas, esperando voc��, quando voc�� est�� com os

��� 125 -

professores. Que qualquer sorriso seu para um pro-

fessor, ��le fica branco e esfrega as m��os, tremendo, co-

mo se estivesse doente. Disse tamb��m que existe um

lugar, onde ��le espia voc�� no banho. O Carlinhos pro��

curou o buraco, mas n��o encontrou. Deve ser algum

segredo.

Raul n��o dizia nada. Tinha os cotovelos fincados

na mesa e as m��os cruzadas, segurando o copo. Seus

olhos, seus belos olhos vagavam no infinito, com um

lampejo de ��dio.

��� Carlinhos est�� louco, Jo��ozinho, louco.

Levantou-se, foi por tr��s da cadeira e passou as

m��os no ombro do menino. Elas pesavam como ferro.

Era" um peso capaz de esmagar a humanidade.

��� Preciso voltar para S��o Paulo. O timbre da voz

de Raul f��z o. pretinho estremecer. Levantaram-se ner��

vosamente e, em seguida, calados, voltaram para a

Col��nia.

O pretinho saltou do carro. Fechou a porta, e de-

bru��ado na portinha, falou com voz riste.

��� Raul, tenho de continuar aqui. N��o sei quanto

tempo ainda. Talvez por mais quatro anos. O pre��

tinho n��o sabia o que falar, pois via pelo semblante,

quanto Raul estava sofrendo.

��� Olhe, Raul, eu sei que muitos homens s��o calu��

niados, como voc��. Voc�� n��o v�� como falam de muitos

cantores? Falam que eles s�� conseguiram a fama por��

que deram o cu aos seus empres��rios. Eles nem ligam.

��� Mas eu ligo, Jo��ozinho. Eu sou homem. Sou

macho. Ningu��m, ningu��m vai comer meu cu. Agora,

adeus, Jo��ozinho.

��� Adeus.

��� Sim, adeus. Sua voz era dura, fria, selvagem,

Talvez voc�� me visite na cadeia.

��� Por que, Raul? Olha o que vai fazer. R a u l . . .

R a u l . , .

��� 126 ���

Mas o carro j�� desaparecia, encoberto pela poeira

da estrada l o n g �� n q u a e a b a n d o n a d a , como as c r i a n �� a s

da Col��nia.

Raul entrou na m a n s �� o como u m a rajada de vento

e correu ao q u a r t o do j u i z . Nunca t i n h a e n t r a d o na��

quele quarto, mas isso n��o t i n h a i m p o r t �� n c i a . Foi di��

r e t a m e n t e p a r a a cama e levantou o travesseiro.

Raul sentou-se p e s a d a m e n t e na cama, p a r a n��o

cair. De seus l��bios b r o t a r a m uns gemidos m u d o s e

seu corpo come��ou a tremer. Seus olhos estavam arre��

galados e pregados no m e n i n o louro e risonho que, de

short, o encarava.

Ficou assim sentado por q u a n t o tempo? Nem sabia.

S�� sabia que de longos a longos tempos era sacudido

por fortes estremecimentos.

Quando a p a n h o u o r e t r a t o suas m��os t r e m i a m . O

r e t r a t o . O r e t r a t o . E n t �� o era verdade. O j u i z o es��

preitava. O j u i z . . .

O j u i z entrou no q u a r t o .

E n c a r a r a m - s e . O j u i z leu ��dio e desprezo nas man��

chas azuis e b r i l h a n t e s que o p r e s c r u t a v a m .

��� J�� sei de tudo. Algu��m l�� de B a t a t a i s telefo��

nou para o meu escrit��rio. Estava nervoso e chorava.

Era a voz de u m a crian��a. Disse que voc�� iria matar��

me. O ju��-z deu alguns passos para ��le. Aqui estou.

Raul levantou-se l e n t a m e n t e , olhou para o j u i z e

p e r g u n t o u , cheio de s a r c a s m o :

��� Est�� aqui para que? Comer o meu cu? Chegou

mais perto. Vamos, diga! Diga agora, gritava, com o

bra��o levantado e o p u n h o cerrado. Quer meu cu?

E n t �� o venha. Venha, miser��vel. Mentiroso. Venha,

me toque com a p o n t a dos dedos sequer, para ver o

que acontece. Agarrou o j u i z pelo colarinho, mas sol��

tou-o logo, g r i t a n d o :

��� Seu contato r e p u g n a - m e . N��o vou m a t �� - l o , n��o,

j u i z . N��o vou mat��-lo porque voc�� n��o me tocou. An��

dou em dire����o �� porta.

��� 127 ���

��� Mas vou embora, e para bem longe, para n��o ter

de enfrentar uma cadeia por causa de um sub-homem

que enoja a sociedade.

O juiz correu para a porta, fechou-a encostando-se

nela.

��� Raul, -Raul. Ou��a-me. Voc�� n��o vai sair en��

quanto n��o me ouvir. Sua voz estridente encheu o

quarto.

��� Saia da��, juiz. Eu n��o quero encostar as mi��

nhas m��os em voc��. N��o quero sentir mais n��useas

como as que senti hoje. Saia! saia!

��� Por piedade, ou��a-me.

��� M��o tenho nada para ouvir.

��� Raul, o Carlinhos tem raz��o.

Os gritos sa��ram tr��mulos.

��� Saia! saia!

��� Eu o amo, Raul. Eu o adoro, Raul.

��� Cale-se! Pelo amor de Deus, cale-se! Raul tam��

pou os ouvidos com as m��os e, voltando-se, correu at�� a

janela. As janelas tinham grades. Grades! A voz

transpassava em seus ouvidos e suas m��os continuavam

nos ouvidos.

��� Mas �� um amor sem corrup����o. Sem vest��gios

de ignom��nia. �� um amor puro, um amor paternal.

Raul parou com um gesto de desprezo feroz.

��� �� um amor de esfregar o retrato neste corpo

imundo. �� um amor de tarado. Agora chega de men��

tiras e me deixe sair.

O juiz caiu de joelhos e, abra��ando as pernas de

Raul. implorava, com os olhos cheios de l��grimas.

��� Raul, n��o me olhe dessa maneira. Eu n��o te��

nho culpa de trazer na alma esse grande amor que ��

somente seu. N��o me deixe, por Deus. N��o sei como

viverei sem voc��.

��� 1 2 8 ���

��� N��o invoque Deus nessa s��rdida conversa, dou-

tor.

Raul sentia as pernas estarem cada vez mais aper-

t a d a s . L u t a v a a g a r r a n d o os cabelos grisalhos e sacudin��

do a cabe��a do j u i z com u m a for��a que o diabo lhe em��

prestava. Mas de n a d a a d i a n t a v a .

��� Deus f��z nascer em meu cora����o esse amor irre-

prim��vel, por isso Deus deve estar em n��s, Raul.

��� Largue-me, seu desprez��vel. Seu velho nojento.

��� S�� depois de me prometer n��o me deixar. Agora

seus solu��os enchiam tudo. Meu Deus! Que terr��vel ��

esse amor!

Raul deu-lhe u m a j o e l h a d a que o f��z perder o equi��

l��brio e estender-se no ch��o. Com um gemido surdo,

��le f��z men����o de lan��ar-se n o v a m e n t e aos seus p��s, m a s

Raul j�� havia aberto a porta e descia as escadas, cor��

rendo e com a voz do j u i z a persegu��-lo.

��� Oh! N��o me a b a n d o n e ! N��o me a b a n d o n e !

��� 129 ���

XIV

Compre uma rosa, doto

Raul desceu do ��nibus da Pra��a do Correio. Ainda

n��o conhecia a pra��a. Andou pelas ruas, chegando at��

a Pra��a da Rep��blica, ao pequeno lago. D e b r u �� a n d o -

se na cerquinha de ferro que ladeia a pequena ponte,

ficou olhando os peixes vermelhos indo e vindo na �� g u a

esverdeada. Minutos depois recome��ou a andar. Sen��

tou-se em um banco, sob u m a das frondosas ��rvores e,

atrav��s de seus galhos, ficou olhando os altos edif��cios

que c i r c u n d a v a m a pra��a, abra��ando-se em seu seio

u m a mescla de seres pobremente vestidos que, cheios de

a d m i r a �� �� o , olhavam para Raul, bem vestido e lindo co��

mo Apolo.

Olhou o rel��gio. Vinte e duas horas.

��� Puxa, n��o pensei ser t��o tarde, pensou. Le��

vantou-se, deu mais alguns passos. Agora estava de��

fronte ao magn��fico Edif��cio It��lia.

��� L�� de cima se avista toda a cidade de S��o

Paulo. �� uma m a r a v i l h a ! Vamos, benzinho, j a n t a r l��

em cima. Voc�� me m a n d o u escolher o lugar que mais

me agradasse, n��o foi, meu bem? Raul ficou olhando

o casal que se perdia naquele m o n t e de carros, atraves��

sando a Avenida Ipiranga. Aonde ir?

Olhou para o alto e os an��ncios luminosos piscando

e a p r e s e n t a n d o esse ou aquele produto. Atravessou a

Avenida Ipiranga e foi a n d a n d o pela rua S��o Lu��s. O

neon indicou-lhe o Cine Metr��pole.

��� 131 ���

O vagalume indicou-lhe uma poltrona em uma das

�� l t i m a s fileiras. Estava cansado! Sem olhar para o

filme, ficou r e l e m b r a n d o tudo o que lhe acontecera

naquele dia. N��o pensara estar com o esp��rito t��o

a l q u e b r a d o e com o corpo t��o sem energia.

Acordou com um a m a r g o r na boca e com o est����

mago doendo de fome. Saiu para a galeria, j�� quase

deserta ��quela hora. Duas horas. Apalpou os bolsos.

Nem um cruzeiro. Relanceou o olhar pela galeria e

levou um susto, q u a n d o foi rodeado por um bando

de meninos sujos e m a l t r a p i l h o s que lhe estendiam as

pequenas m��os oferecendo um bot��o de rosas.

��� Mo��o, compre uma rosa. ��le j�� vendeu pr��

mo��a bonita. Compra a m i n h a , v��, mo��o.

��� Compra a minha, doto, �� mais b a r a t a , �� s�� mir

cruzero.

Era u m a m e n i n i n h a que falava.

��� Eles j�� t��m dinheiro. Est��o m e n t i n d o . Com��

pra a m i n h a pr�� ajuda a m��e, v��, dot��.

Raul sentiu u m a dor no cora����o e correr um frio

pela espinha. Mas seria assim em todos os lugares?

Deus! At�� na cidade que mais cresce no m u n d o ? !

Apertou a cabe��a. Estaria mesmo em S��o Paulo? N��o

estaria enganado?

Afagou a cabe��a de um dos meninos.

��� N��is todo ajuda a m��e e a famia, dot��.

��� E n t �� o voc�� vende flores p a r a ajudar sua m �� e .

Os meninos falavam a um s�� tempo.

��� Eu vendo fr�� desde os seis anos, agora tenho

nove. Sabe, dot��, tenho um outro irm��o de q u a t r o anos

que vende dropes l�� na Avenida Paulista. �� duro vende

dropes, mas a m��e t�� doente.

Raul estava gelado mas n��o sabia o que fazer.

Nos seus belos l��bios perpassou um leve sorriso.

��� E se eu lhes disser que estou na m e s m a situa����o

que voc��s e n��o tenho nem uma flor para vender?

��� 132 ���

Naqueles rostinhos tristes, encovados pela fome,

nasceu um ar de surpresa. Mas logo sa��ram correndo

para cercar um casal.

��� Compra uma rosa pr�� mo��a bonita. V��, seu

dot��. Ela gosta de fr��, n��o ��, mo��a?

O casal passou indiferente. Raul apertou a correia

do rel��gio. O rel��gio! Sim, poderia vender o rel��gio.

Tirou o rel��gio, e com a manga do palet��, come��ou a

lhe dar uma lustradinha.

��� Quanto o senhor quer pelo rel��gio?

Raul olhou assustado para o homem que estava

�� sua frente.

��� Como o senhor sabe que eu quero vender o . . .

��� Ora. O homem ficou pensativo alguns minutos

e depois, olhando para Raul, perguntou:

��� Voc�� n��o �� de S��o Paulo?

��� Sim. Quero dizer, eu nunca tinha vindo para

esse lado da cidade. Conhe��o o lado de l�� do Viaduto

do Ch��, a Pra��a da S��, a . . .

O homem n��o o deixou terminar.

��� N��o entendo. Voc�� �� de S��o Paulo e n��o

conhece a cidade? Onde diabo estava voc��?

��� Eu fui criado no Abrigo de Menores desde peque-

nino. Fui solto hoje.

��� Cuidado com mentiras, mo��o, eu n��o sou tira,

n��o. Fale a verdade. Ent��o voc�� quer fazer-me acre��

ditar que os asilados andam com essas roupas finas e

com r e l �� g i o s . . . �� de ouro, n��o ��?

��� Sim.

��� Bem, quem voc�� �� n��o interessa. Quanto quer

pelo rel��gio?

��� Bem, n��o sei. E u . . .

��� Roubou?

133

��� Como o senhor se a t r e v e . . .

��� Bem, meu rapaz, n��o vamos prolongar a conver��

sa. Daqui h�� pouco os tiras passam, a�� �� cana mesmo.

Vamos l��, deixe ver. AH��s, eu quero examinar o rel��gio,

poique aqui nesta galeria s�� d�� vigarista. Se voc�� n��o

sabe, deve ficar sabendo que a Galeria Metr��pole �� o

local que mais* d�� e.icrenca. Aqui se trafica entorpe��

centes, vende-se artigos roubados e c o n t r a b a n d e a d o s .

Est�� cheia de p r o s t i t u t a s e pederastas.

��� �� de ouro, mesmo. Olhe, leve l�� cem cruzeiros

novos e d�� o fora.

O homem j�� ia longe quando Raul divisou nova��

mente os meninos das rosas, agora sentados na cal��ada,

uns bem j u n t o dos outros, t i r i t a n d o de frio.

Foi at�� l��.

��� Por que voc��s ficam sentados a��, assim, t��o

j u n t i n h o s ?

��� A gente tem frio.

��� Por que voc��s n��o v��o para casa?

Raul viu naqueles rostinhos erguidos, onde a can��

dura da inf��ncia tinha morrido e onde, em seu lugar,

havia sulcos de cansa��o.

��� N��is num tem casa.

��� Eu moro com a m��e, na favela l�� da Avenida

Pacaembu O senhor sabe onde ��? �� longe pr�� burro.

Das veiz eu chego l�� e j�� �� de m a n h �� clarinho.

��� Eu durmo ali, mo��o, debaixo daquela ��rvore.

Ali perto da parede da Biblioteca Municipal.

��� Por que voc�� dorme ali? N��o tem fam��lia?

��� Pruqu�� qu�� sabe? S�� a pol��cia que fais per��

g u n t a .

Raul sorriu.

��� N��o, n��o. �� que eu os acho t��o pequenos, t��o

crian��as para a n d a r e m assim t��o a b a n d o n a d o s .

��� Das ve:s o j u �� s de menor pega n��is. Mas eu

j�� fugi. L�� �� ruim pr�� cachorro. Quando eu fazer

doze anos vou n u m a televis��o pedir pr�� algu��m pega

eu, pr�� eu estudar. Eu ainda n u m sei l�� purqu�� n��o

tenho pai nem m��e. D u r m o na Esta����o da Luz.

��� E quem d�� essas rosas para voc��s venderem?

��� O senhor n��o �� j u i z de menor, ��?

��� N��o, j�� disse. Eu t a m b �� m sou jovem abando��

n a d o . T a m b �� m n��o tenho ningu��m. Sou igual a voc��s,

s�� que mais velho. Tenho dezenove anos.

��� Ah! Assim t�� bem.

��� Olha, nois compra as fr�� de uma mui��, por

q u i n h e n t a s p r a t a s e vendi por mir.

Um g r u p i n h o de pessoas aparece na esquina e os

menores saem n u m a carreira desenfreada.

��� Mo��o, compra rosa pr�� mo��a bonita. Compra,

v��, ela t�� q u e r e n o . . .

��� N��o.

Os garotos olham para os lados com um sorrisinho

d e s a n i m a d o .

L�� vem outro casal.

L a r g a n d o aquele e, como se houvesse surgido um

salvador, correm todos para o outro poss��vel comprador.

N��o conseguindo vender, v��o seguindo devagar o

casal. At�� que o mo��o j o g a fora qualquer coisa e os

meninos caem em cima e um sai vitorioso com o toco

do cigarro.

��� Puxa! Desta vez eu peguei a bituca.

Vai fumando com as rosas na m��o, at�� e n c o n t r a r

outro comprador. Vendo a pra��a vazia, voltam a sen��

tar-se na cal��ada.

��� Eu compro as rosas, disse alto Raul.

Os meninos p u l a r a m .

- 1 3 5 -

��� Compra a m i n h a .

��� N��o, a m i n h a .

��� Ah! mo��o, preciso vende tudo, sen��o, quando

chego em casa vai t��.

��� Compro todas as rosas.

Num m i n u t o os garotos desapareceram c o n t a n d o o

dinheiro todo a m a s s a d o que t i r a r a m do bolso, j u n t a n d o

o de Raul.

Numa pra��a tranq��ila, com a maioria das luzes

a p a g a d a s , um ou outro t r a n s e u n t e , Raul reuniu as

rosas e apertou-as de encontro ao peito, p e n s a n d o :

��� E existem crian��as fugindo dos abrigos de me-

nores. F u g i n d o ! Fugindo para onde, Deus m e u ? ! Se

todo S��o Paulo, todo Brasil era um vasto abrigo de

menores. Aquelas miser��veis crian��as -talvez j a m a i s

conheceram um brinquedo. Pobres garotos perambu��

lando pelas avenidas asfaltadas, t e n t a n d o algum di��

nheiro para ajudar a fam��lia ou conseguir algo para si.

O olhar de tristezr- e o semblante envelhecido pela

fome, frio c os m a u s t r a t o s daqueles pequeninos seres

s��o os mesmos que me cercaram no abrigo de menores.

��� Comprou todas as flores, heim, mo��o?

Esfuma��ando no ar aqueles rostinhos sujos, Raul

encontrou um rosto simp��tico e sorridente de um

homem bem vestido e de m a n e i r a s finas.

��� A h . . . foi sim. Comprei todas as flores. Essas

crian��as me fazem lembrar de outras centenas que

deixei h�� alguns meses.

��� O senhor �� professor de algum asilo?

��� Oh, n��o. E u . . . bem, isso n��o vem ao caso.

O homem ficou em frente a Raul, falando sem

parar.

��� �� para o senhor ver. A cidade de S��o Paulo se

h u m a n i z a . Isso ouvimos todos os dias. Mas se huma��

niza sob o ritmo dos tratores e concreto, bate-estacas

e escavadeiras. Veja l�� na Pra��a Roosevelt, ou mais

- 136 ���

certo, veja a cidade inteira vestida de monte de terra,

removida por milhares de homens. Respira-se a poeira

.de cimento e ouve-se vinte e quatro horas o titilar de

ferro. �� a cidade que cresce e se humaniza.

Luxuosos carros passam por viadutos rec��m-cons-

tru��dos. Ruas ganham roupagem nova de asfalto cin��

zento. O senhor est�� aqui hoje olhando aquela cons��

tru����o velha. Olhe ali, naquele lado. Daqui h�� um

m��s o senhor se assusta pois, naquele lugar, estar�� a

constru����o de um edif��cio de dezenas de andares. As

pra��as s��o modeladas vertiginosamente. Muitas ��rvo��

res replantadas, descansam resplandescentes pela luz de

merc��rio. A cidade se humaniza, mo��o. Mas, a cada

passo nessa constante e iluminada cidade, o senhor

trope��a em uma crian��a esqu��lida e de olhos sem o

brilho da inf��ncia, sem a inoc��ncia da idade.

��� Compra uma rosa, mo��o. T�� barato pr��

burro! Compra um dropes! Olhe o mentex. Compra,

mo��o, �� pr�� ajuda!

O vento da madrugada j�� come��a a despontar.

Vai levando longe dos olhos de Raul, o homem bem

vestido e simp��tico. Sozinho, ��le aperta mais e mais

as rosas, e com os olhos cheios de l��grimas vai andando

devagar. Vagou pelas ruas silenciosas e indiferentes,

at�� que chegou �� rua dos Protestantes.

Olhou assustado para as mo��as paradas nas cal��a��

das, chamando os homens. Uma aproximou-se dele.

��� Al��, lindo! Quer fazer nen��? Olhos lindos,

dentes brilhantes, rosto ainda infantil. Quantos anos

teria, pensou Raul. Quinze? Dezesseis? Olhe, como ��

madrugada, eu deixo por cinco pratas. V��, vamos,

mo��o. Est�� barato pr�� burro.

Raul sentiu uma tonteira. Aquela voz parecia a

da menininha l�� da Galeria Metr��pole.

��� Compra uma rosa, dot��. Compra, t�� barato pr��

burro.

Quando se recuperou, viu as mo��as correndo e gri��

tando: olha a pol��cia!

- 137 ���



Olhou para procurar a mocinha, quando sentiu

uma m��o pesada como c h u m b o em seu ombro.

��� Documentos.

Virou-se. Sentiu o sangue gelando nas veias.

��� Pol��cia. Vamos, ande, palerma. Se n��o tiver

documentos, cana.

Os l��bios secos e descorados iam se despregando,

quando foi e m p u r r a d o p a r a d e n t r o do carro de m��sos,

j�� superlotado. Ap��s alguns m i n u t o s , chega v.. ao

Recolhimento Tiradentes.

O corredor estava cheio de homens que, num _m-

p u r r a - e m p u r r a , esperavam a vez de dar o nome para o

recolha .

Cansado e emocionado com todo o acontecido nas

�� l t i m a s horas, Raul p e r m a n e c i a num canto, quando o

g u a r d a o apontou para o delegado.

��� Olhe ali. N��o t i n h a documento. Deve ser

rufi��o ou veado.

Raul sentiu qualquer coisa bulir, a p e r t a r dentro de

seu c��rebro. Sentiu um tremor esquisito no est��mago

vazio e come��ou a apertar mais e mais as rosas entre

as m��os, at�� sentir os espinhos lhe r a s g a r e m a pele.

Seus olhos azuis se revestiram de ��dio e se fixaram

na g a r g a n t a a r r o c h e a d a e e n r u g a d a do policial. Jogou

as flores e come��ou a e m p u r r a r , at�� chegar bem perto

daquela suja g a r g a n t a . Levantou as m��os ensanguen��

tadas e sua voz cobriu o alarido dos detidos.

��� Quem �� veado? Fale, filho da puta.

Quatro bra��os o s e g u r a r a m .

O delegado, com as m a n g a s da camisa arrega��

��adas, encarou o jovem e p e r g u n t o u :

��� Seu nome.

A voz do delegado era calma.

��� Quero aju��ar, mo��o. Sou o delegado Wilson Ri-

chetti. J�� ouviu falar a meu respeito?

A fisionomia de Raul clareou e, meio e s p a n t a d o ,

p e r g u n t o u :

��� O que foi diretor l�� na Deten����o?

��� Sim, largue-o. Raul esfregou o est��mago. En��

t��o j�� esteve preso?

��� J��.

��� Qual crime?

��� Assassinato.

O delegado baixou os olhos.

��� Por que?

��� Queriam fazer-me veado. Olhou t a m b �� m para

o guarda, que t a m b �� m parecia penalizado com a decla��

ra����o do belo jovem.

��� Quantos anos pegou?

��� Absolvido.

��� Como �� seu nome?

��� Raul.

��� Raul?

��� Da Silva.

��� Quantos anos?

��� Dezenove.

��� Tem documentos?

��� Meu registro est�� l�� no Abrigo de Menores. O

delegado tremeu. Passando as m��os pela fronte, per��

guntou :

��� Qual j u i z o absolveu?

��� O dr. Paulo de Albuquerque, que pretendeu aju��

dar-me, mas sempre com inten����es ocultas.

��� O que tem o dr. Paulo com isso?

��� ��le quer ajudar.

139

O jovem, belo e din��mico delegado paulista obser-

vava-o em longo sil��ncio, quebrado pela voz de um

policial.

��� Desce, dr. Richetti? Desce para a carceragem?

��� N��o, ��le j�� explicou e eu sei ser verdade. Muitos

meninos do Juizado de Menores levam algum tempo

para ter os documentos em ordem. Leve-o para a

minha sala e telefone para o juiz.

Raul ficou branco. Rever o juiz? N��o. Preferia

a carceragem.

F��z men����o de descer com os outros detidos, mas

o guarda puxou-o pelo bra��o.

��� Por aqui, rapaz.

Foi um advogado amigo do juiz, chamado dr. Ant����

nio, a quem Raul j�� conhecia, que apareceu depois de

algum tempo e apresentou o "habeas corpus".

Agora andavam os dois, ombro a ombro, pela Ave��

nida Tiradentes.

��� Raul, voc�� me �� mais do que um conhecido. Di��

gamos, um amigo. Por isso gostaria de lhe dar alguns

conselhos.

��� Dr., e u . . .

��� Calma, meu r a p a z . . . deixe explicar-lhe o que

desejo. Depois voc�� fala. Vamos para o meu aparta-

mento. �� ali na Avenida S��o Jo��o. Voc�� comer�� algo

e conversaremos. S�� lhe pe��o deixar-me mostrar-lhe

que, realmente, sou seu amigo. Voc��, sem amigos, n��o

faz id��ia do que possa ser a vida numa cidade grande

como S��o Paulo. Voc�� acabou de conhecer a cidade e

foi detido. Muita gente n��o compreende direito o que

sucede na vida de rapazes na plena flor da idade, que

descambam para o crime, roubando ou matando. Voc��

precisa saber do que se livrou. Sei que teve uma inf��n��

cia terr��vel. O desabrochar de sua mocidade foi envol��

vido em sangue. Mas tudo isso �� passado. Agora voc��

precisa de algu��m que o proteja. Mas esta �� outra

conversa. Aqui �� o pr��dio. Subamos.

140

A grande sala do apartamento terminava em portas

envidradas, ricamente acortinadas de rosa p��lido, caindo

no aveludado tapete rosa mais escuro. M��veis rosa e

outros azuis, todos encrustados de dourado, em bela

decora����o. Sentado no sof��, enquanto o dr. Antonio

preparava um lanche, Raul perguntou:

��� Voc�� �� casado?

��� N��o.

��� Um homem respeit��vel deve ser casado, n��o,

perguntou Raul.

��� Eu sou um homem respeit��vel, respondeu o

advogado, pondo �� mostra os dentes perfeitos e brancos

num sorriso que real��ava seus belos e faiscantes olhos

castanhos. O dr. Ant��nio, em seguida, depositou o

lanche sobre a mesa e sentou-se em frente a Raul.

��� Sou um homem respeitado em todo o Brasil,

qui���� no Exterior. Sou tamb��m muito rico. Riqu��s��

simo. E u . . .

Raul sorriu.

��� �� para falar sobre isso que o senhor convidou-me

para vir aqui?

��� Isso que estou lhe contando tem rela����o com o

assunto a ser abordado, meu jovem e ing��nuo rapaz.

Mas, vamos pelo come��o. Voc�� sabe que foi o juiz quem

pediu para solt��-lo, n��o?

Raul, que ia colocando um peda��o de p��o na boca,

colocou-o de volta no prato e, apoiando as m��os na

beirada da mesa, encarou o dr. Antonio com o rosto

branco, cheio de ira.

��� Ouvi o delegado mandar um funcion��rio tele��

fonar para ��le. Nova express��o de raiva marcou o

rosto do jovem, quando resolveu perguntar:

��� Foi o juiz quem pediu para o senhor trazer-me

aqui?

��� Sim, Raul. ��le pediu-me para conversar com

voc�� e mostrar-lhe os perigos em que voc�� poderia cair.

��le o q u e r . . .

141

��� Se for para falar nele, eu me retiro.

��� Voc�� prometeu ouvir-me.

��� Mas n��o a respeito dele.

��� ��le quer ser seu protetor.

��� Eu n��o quero protetor que quer comer o meu cu!

A cadeira arrastou-se e o mo��o viu o dr. Antonio

crescer �� sua frente e, ent��o, reparou o advogado a

olh��-lo com uma express��o de piedade.

��� Pobre m e n i n o ! Se voc�� soubesse de onde eu o

tirei hoje!

��� Ora, tirou-me do Recolhimento Tiradentes.

��� N��o. Eu o tirei do primeiro passo para voc��

n��o cair com qualquer um. Dentro da cadeia qualquer

um o possuiria.

Leu uma interroga����o a s s u s t a d a no olhar do mo��o.

��� Vamos, termine o seu lance. Prometo n��o lhe

falar do juiz. Os ru��dos das cadeiras e o titilar de

lou��as voltou a encher o a p a r t a m e n t o .

��� Voc��, meu rapaz, n��o sei se compreendeu, mas

s�� lhe digo uma coisa. Se voc�� f��r preso mais algu-

ma vez, n��o poder�� salvar-se da desonra. Jovens lin��

dos, como voc��, s��o o prato predileto de todos os presos.

Ouvi mesmo dizer que, e n q u a n t o voc�� ficou na deten����o,

precisou ficar em cela separada, pois os criminosos fi��

caram loucos para agarr��-lo e comerem o que voc�� faz

t a n t a quest��o de. . .

Raul tremeu e sentiu as faces arderem. Pousou

seus olhos firmes nos do advogado.

��� Eles me puseram em cela separada porque qui��

seram. Pois duvido que qualquer preso, por mais va��

lent��o que fosse, conseguiria subjugar-me. Eu fa��o e

farei quest��o de n��o ser pederasta. Ningu��m vai obri��

gar-me a dar o meu rabo. Se o senhor me trouxe aqui

para aconselhar-me a e n t r e g a r - m e ao juiz, est�� redon��

d a m e n t e e n g a n a d o . ��le n��o me ver�� mais. Tenho

nojo, asco, de velhos que s�� se satisfazem com o cu

142

de outros h o m e n s . Hoje o senhor tirou-me de l�� por-

que eu estava sem documentos. Isso n��o �� crime a l g u m .

��� Mas voc�� j�� teve um crime.

��� E o que �� que tem?

��� A pol��cia, n��o o deixar�� mais em paz.

��� Por que? Ora essa! Constatou-se que eu era

menor. Estou vivo e limpo para com a sociedade. Ago��

ra s�� quero t r a b a l h a r e ser um homem h o n r a d o . N��o

posso ser honrado com o cu aberto por outro h o m e m .

��� Mas n��o precisa outros h o m e n s abrirem, meu

pobre rapaz ��� o meu foi aberto no p a u - d e - a r a r a .

Raul sentiu o cora����o p a r a n d o . Ia falar, mas sua

voz n��o saiu.

��� N��o a d i a n t a ficar assim Raul. Eu sou um pe��

derasta mas n��o quero nada com voc��. N��o t-;nha

medo. Somente quero ser seu amigo. A gciM iem

de ter um amigo, veado ou n��o. A amizade n��o tem

sexo. Eu, naquele dia, se tivesse um amigo, tudo aqui��

lo n��o teria acontecido e, talvez, hoje eu seria um pobre

diabo t r a b a l h a n d o em qualquer servi��o bra��al. Talvez

fosse um criminoso caindo mais e mais nessa podrid��o,

que �� ser fora da lei. Voc�� n��o sabe o que �� pau-de-

arara, n��o?

��� Eu t a m b �� m n��o sabia. Naquele tarde voltava

de entregar a l g u m a s m a r m i t a s da pens��o onde traba��

lhava. T i n h a quinze anos, era alto e forte.

��� Como ia dizendo, eu era entregador de m a r m i t a .

Naquele dia vinha trazendo duas m a r m i t a s vazias, quan��

do um mo��o pediu-me para ir at�� o Banco, que estava

bem pr��ximo de n��s, p a r a entregar um bilhetinho ao

caixa.

��� S�� tive tempo de p��r as m a r m i t a s no ch��o e

dar o bilhete ao caixa, quando ouvi:

��� N��o se mexam ou m o r r e m . . .

��� Virei-me e vi tr��s homens e m p u n h a n d o a r m a s .

Reconheci num deles o do bilhetinho. M a n d a r a m to��

dos os funcion��rios e cu para urna sala dos fundos e

��� 143 ���

nos trancaram. Quando fomos libertados, vi que as

marmitas estavam em cima do balc��o. Apanhei-as e

fiquei do lado de fora do Banco, j u n t o a um amontoado

de gente, vendo o trabalho policial. Ouvi o barulho da

tampa da marmita que ca��ra, e algu��m gritando:

��� Pol��cia, pol��cia, um dos ladr��es est�� aqui!

Fui preso.

��� Vamos, "entrega", garoto,��� dizia-me um investi-

gador, numa sala do DI. Ah! �� teimoso? N��s temos

um m��todo eficaz para fazer ladr��o falar. Agarrou-me

pelo bra��o e gritou, com toda a for��a em meu ouvido:

��� O pau-de-arara.

Olhei para um peda��o de ferro colocado entre duas

cadeiras. Era para mim um simples peda��o de ferro,

m a s . . .

��� Vamos, vamos, tire a roupa.

��� Fiquei nu, e eles me puseram pendurado, com

as dobras dos joelhos no cano e as m��os atadas no tor��

nozelo. Depois levantaram o cano e o puseram entre

duas mesas. Eu fiquei, pendurado como um frango que

estivesse sendo assado. Mas ainda n��o sabia o que iam

fazer-me, quando um dos tiras pegou um peda��o de

borracha tipo cacet��te e virou-me.

��� Assim, cachorro. Agora que voc�� est�� com essa

bunda virada bem pra cima, vamos faz��-lo confessar.

Com toda a for��a ��le enfiou aquela borracha no meu

��nus. Gritei. Gritei. Gritei! Lembro-me que acordei

numa cela e os presos todos rindo �� minha volta, co-

mentando :

��� O cu est�� todo ensanguentado. Olhe, garoto.

Agora n��s tamb��m vamos lhe furar. Voc�� tem uma

bunda bem legal, hein? �� gordinha pr�� xux��. Senti

bra��os me levantando e me levando para algum lugar.

��� Coloque-o naquela cama, vamos. �� uma hemor��

ragia. Precisamos andar logo, sen��o o mo��o morre.

Fiquei na enfermaria por uns dias, at�� que recebi

a visita de um tira.

- 1 4 4 ���

��� Olhe, voc�� est�� livre. Sabemos que �� inocente,

porque pegamos os ladr��es. Eles confessaram que es��

conderam algum dinheiro na m a r m i t a , mas quando

viram que n��o ia dar certo, l a r g a r a m - n a em cima do

balc��o.

Um sil��ncio profundo encheu a sala. O advogado

olhou com surpresa para Raul, pois o seu rosto parecia

c o m p l e t a m e n t e modificado. Dir-se-ia que todo o ��dio

do m u n d o tinha ali se concentrado, mas isso foi s�� por

um m o m e n t o . Logo verificou que um sorriso foi assi��

nalando os cantos da boca e se espalhou por todo o

rosto e foi crescendo, transformando-se em uma garga��

lhada nervosa, cortada b r u s c a m e n t e por uma argu��

m e n t a �� �� o .

��� Pau-de-arara! Ora, doutor. Eu sou homem, sou

macho, n i n g u �� m vai me p��r no pau-de-arara. Ali��s,

por podem, mas me enfiar uma b o r r a c h a no meu cu!

Ora, ora, isso j a m a i s . Deu um m u r r o . n a mesa, fazendo

a lou��a pular e repetiu:

��� J a m a i s , j a m a i s . O advogado esperou que se

acalmasse e continuou.

��� O investigador a c o m p a n h o u - m e at�� o elevador.

Quando estava a n d a n d o pela av. Ipiranga, senti uma

moleza pelo corpo e uma dor aguda nas pernas. J�� me

sentia no ch��o, quando bra��os me a m p a r a r a m .

Era uma mo��a m o r e n a e simp��tica que levou-me

para sua casa.

Quando soube ser um s�� no m u n d o e haver sido

injustamente preso, telefonou para algu��m, voltando

logo em seguida p a r a j u n t o de mim e dizendo-me:

��� Voc�� vai ter um rico protetor!

O protetor era um homem que t i n h a uns t r i n t a

anos, m��dico, riqu��ssimo. Levou-me para sua fazenda.

Eu n��o sabia naquele tempo haver homens que gosta��

vam de h o m e n s .

��� Por isso, quando meu protetor me abra��ava e

alisava meus cabelos, ou ficava com m i n h a s m��os en��

tre as suas, eu achava n a t u r a l e at�� me sentia orgu-

��� 1 4 5 ���

lhoso de ter um amigo. Voc�� sabe, com quinze anos,

n��o se tem no����o de que, q u a n d o se �� sozinho no mun��

do, tem-se de construir a pr��pria vida. Eu s�� sentia,

dia a dia, a cidade parecer mais solit��ria. Sem u m a

distra����o a oferecer a meninos pobres ou gente pobre,

como eu. T r a b a l h a v a de sol a sol e �� noite ficava na

esquina, encostado num poste, com outros mocinhos,

olhando as pessoas passarem. Aos domingos e feriados,

depois de um cineminha, ficava a n d a n d o , sem r u m o ,

at�� que ca��a a noite, indo ficar n o v a m e n t e encostado

no poste. Pensei que todos tivessem aquela vida. Mas

n��o sei quem me disse que existiam para meninos ricos,

clubes, piscinas, carros, praias, festas, col��gios, viagens,

pr��tica de esportes etc. E n t �� o , e n q u a n t o ficava encos��

tado no poste, passei a pensar em ser rico, m u i t o rico,

mas n u n c a pensei que seria daquela forma.

��� N��o me arrependo, pois fiz o que toda a alta

sociedade a d m i r a . Vesti-me de ouro. Hoje a sociedade

n��o quer saber como. Quer-me somente presente em

seu meio, como advogado i n t e r n a c i o n a l m e n t e famoso.

O advogado alto, m o r e n o e bonito, que tem como hobby

a cole����o de carros e, como distra����o, fazer cruzeiros

no seu iate ou pilotar seu avi��o pelos q u a t r o cantos do

m u n d o . T a m b �� m n��o interessa �� nossa sociedade estar

o meu traseiro ardendo, quando fico elegant��ssimo, num

esmoque enfeitado, em suas festas. Tenho moral? N��o

tenho moral? Naquela tarde quente de ver��o, depois de

estar uns meses na fazenda n��o pensava em moral,

quando me retorcia debaixo de um homem, sem saber

que isso era profundamente conden��vel. Nunca apren��

di que devia afastar-me dos m a r c a d o s pelo destino. Na��

quele tempo s�� u m a coisa interessava. N��o estar mais

s��. N��o precisava mais ficar p e r a m b u l a n d o pelas ruas

da g r a n d e cidade sentindo crescer mais e mais o meu

isolamento.

��� Agora tinha um amigo que pensava em mim e

me fazia viver com o m��ximo conforto.

��� T a m b �� m n��o pensava o q u a n t o de horr��vel t i n h a

aquela posi����o; quando sentia o peso do amigo a me

furar no meio das n��degas, e com a m��o a acariciar��

me o p��nis. N��o raciocinava com essas coisas gostosas

que meu amigo me fazia sentir eram escandalosas.

146

��� Quando comecei a frequentar um dos melhores

col��gios de S��o Paulo, compreendi que, at�� ent��o, tinha

vivido uma vida secreta, mas n��o para as outras pes��

soas. No come��o senti-me desprezado, sendo tamb��m

motivo de chacota dos alunos. Mas, quando comecei

a aparecer guiando um luxuoso carro e gastando muito

com festinhas nas mans��es de meu protetor, com muitas

bebidas e garotas, todos tornaram-se meus amigos.

N��o sei se me fizeram ou se nasci pederasta, s�� sei que

naquelas festinhas de col��gio eu apenas reparava nas

garotas, no modo delas se trajarem e sentia uma inveja

tremenda de n��o poder ter cabelos ca��dos nas costas,

usar vestidos coloridos e de n��o ter uma vagina polpuda

e bem cabeluda para poder oferecer ao meu protetor.

Mas depois compreendi que se fosse igual ��s mocinhas,

��le jamais me amaria.

��� Foi meu protetor que me explicou sermos dife��

rentes. Ainda me lembro daquela tarde, quando voltei

do col��gio com um vazio no est��mago e um tremor pelo

corpo. Sentei-me na sala �� espera do meu protetor e,

mal ��le abriu a porta, atirei-me em seus bra��cs, solu��

��ando. ��le apertou-me com for��a e senti que seu co��

ra����o batia assustadoramente.

��� Que foi, meu amor? Aconteceu alguma coisa

grave? Est�� doente? Eu s�� fazia balan��ar a cabe��a e

apertar-me mais e mais a ��le. Beijava-me os cabelos,

os olhos, depois sugou minha boca com loucura. Tal��

vez, at�� ent��o, nunca me parecera como eu me sentia

feliz, sob aqueles l��bios quentes j u n t o ao meu, aquele

peito arfando e aquele sexo tremendo, endurecido, gri��

tando por mim. Quando ��le afrouxou os bra��os, eu

me encolhi todo e implorei que ��le me levasse para a

cama.

��� Ent��o n��o �� nada de grave, ca��oou.

��� N��o sei.

��� N��o sabe?

��� Eu n��o entendo nada. Quero lhe explicar de��

pois. A g o r a . . .

��� A g o r a ? . . .

��� Agora quero voc��.

��� 147 ���

��� Oh, meu m a l a n d r i n h o ! . . .

��� Aquela tarde tive certeza de que pertencia com��

pletamente aos homens, pois eu ardia, solu��ava e gri��

tava, enquanto ��le lutava furiosamente com aquele fer-

ro grosso, machucando-me as entranhas. Ficamos assim

furiosos por longo tempo, sem querermos que termi��

nasse. Quando de sua garganta escaparam alguns ru-

gidos animalescos e sua m��o se abria e fechava sobre

meu p��nis, olhei mais e mais meu trazeiro contra seu

corpo molhado. ��le tremeu e gritou longamente o meu

nome.

��� Depois virei-me para ��le e, apertado naqueles

bra��os protetores, ficamos silenciosos, arfando devagar,

bem devagarinho. O som de sua respira����o j�� era bem

calma, quando me falou.

��� Ent��o, meu bem, conte agora porque estava

chorando.

��� �� que eu n��o topo essas chupadas pelos cantos.

��� Chupadas?

��� Sim, quase todos os dias, algum aluno se es-

conde e, quando eu passo, me puxa por um bra��o, tira

o neg��cio, querendo obrigar-me a chup��-lo.

Meu protetor pulou da cama.

��� E voc��- chupa?

��� N��o, mas eles me chamam de veadinho. Afas��

tam-se sempre quando chego perto. Eu n��o compreen��

do, nunca os maltratei, nunca fiz o que quer que fosse

para mago��-los e para me desprezarem.

��� Voc�� faz tudo para ser desprezado, meu amor.

��� Eu?!!!

��� Sim, querido. Seus gestos, sua voz e seu olhar

de desejo. Tudo isso, por mais indecifr��veis que sejam

para voc��. Est�� escrito em tudo e por isso �� condena��

do aos olhos de todo o mundo.

��� Mas, afinal, por que sou diferente?

��� Porque tudo l�� no seu ��ntimo �� feminino. Voc��

tinha um medo de se revelar. Mas me encontrou e

agora nada mais �� segredo. Voc�� �� minha mulherzinha.

148

Levantei-me e olhei para o meu corpo. A ��nica

coisa que eu t i n h a de homem estava l�� p e n d u r a d a , mur-

cha e cinzenta. S�� pulsava, esticava e latejava com o

refor��o de um homem.

M i n h a m u l h e r z i n h a ! Aquela frase ficou clara no

meu c��rebro. Penso mesmo ser isso o que eu esperava

com ansiedade. Que algum homem me chamasse dessa

forma. Naqueles m i n u t o s em que fiquei de p��, diante

do meu protetor, me vi pequeno, com nove ou dez anos.

Sempre diante dos espelhos, com algum vestido que

encontrava, e u s a n d o m a q u i l a g e m . Meu maior prazer

era passar batom nos l��bios e falar em sussurros para

a m i n h a pr��pria imagem, imitando m u l h e r e s .

��� Mulher. Como era confort��vel ser c h a m a d o mu-

lher! Fui para j u n t o de meu amigo e encostei a cabe��a

em seu peito. Ele rodeou-me cs ombros com o bra��o e

apertou-me contra si. Levantei a cabe��a e meus l��bios

tr��mulos c h e g a r a m aos seus, quentes e macios. Foi um

beijo longo, onde nossas l��nguas se cruzaram. Deba��

tiam-se num desejo diab��lico. O que havia de ins��lito

naquele beijo? Havia qualquer coisa, at�� ent��o colada

dentro de mim. Algo inexplim��vel, irrealizado. Era esse

algo que ainda n��o t i n h a atingido os u m b r a i s de

m i n h a i m a g i n a �� �� o . Era como um sol caindo dentro de

m i n h a alma, a r r e b e n t a n d o , j o g a n d o fagulhas douradas

por todo meu ser.

��� Eu beijava me sentindo mulher. Eu, por dentro,

era m u l h e r . Mulher. Mulher!

��� Desde esse dia, senti que n��o poderia mais viver

longe do cheiro e do contato terr��vel do corpo dos

h o m e n s .

Raul, com a cabe��a baixa, batia a colherinha no

p r a t o . Era o ��nico ru��do que se ouvia, at�� que a voz

do dr. Antonio se levantou n o v a m e n t e .

��� Estudei, me formei, adquiri fama, debaixo do

corpo do meu protetor. Morreu h�� cinco anos, legando��

me sua incalcul��vel fortuna.

��� Sou pederasta, Raul, mas pederasta milion��rio.

Querido e bajulado por todos. Curvo-me s�� para ser

p e n e t r a d o , porque, de resto, ando de cabe��a alta, ereto

e sorridente.

149

Dos l��bios brancos de Raul sa��ram sons rouque-

nhos mas o advogado entendeu perfeitamente.

��� Asqueroso. Asqueroso. Continuou batendo com

a colherinha no prato. Ele queria levantar-se, andar,

descer pelo elevador e sair correndo pelas ruas. Sim,

correr pela av. S��o Jo��o. Correr. Correr. Mas, por

mais que corresse, sempre estaria com o c��rebro marca��

do por aquela s��rdida est��ria que acabava de sabei, em

um luxuoso a p a r t a m e n t o da av. S��o Jo��o. Pobre Raul!

Se ��le soubesse q u a n t a s avenidas, pra��as, viadutos, ruas,

teria de correr para n��o ser despeda��ado!

��� N��o sou asqueroso, meu amigo. Voc�� mesmo

agora vai entrar nessa cidade de cora����o de ferro e, em

cada passo, ir�� encontrar um anormal, ou seja, um pe��

derasta t e n t a n d o convenc��-lo a fazer o neg��cio com

ele. E n c o n t r a r �� pederastas de todos os tipos. H�� os

que voc�� e n c o n t r a r �� em cinemas. Eles v��m com a m��o

de leve, bem de leve, passando pelas suas coxas, at�� en��

contrarem o que buscam. ��s vezes o homem macho,

assim como voc��, diz estar t��o distra��do e t��o "atrasa-

do" que, i n v o l u n t a r i a m e n t e , deixa o p��nis crescer e en��

durecer ao contato da m��o profissional. Quando sen��

tem o ocorrido, revoltam-se e d��o um safan��o no suave

sujeitinho. H�� os que voc�� vai encontrar na pra��a da

Rep��blica e tamb��m o vigarista. Nessa pra��a os vea��

dos proliferam. T a n t o , que a pol��cia at�� desistiu de os

prender. Tamb��m, prender para que? Muitos s��o doen��

tes. Quando presos, se recebessem t r a t a m e n t o s ade��

quado, ainda v�� l��. Dirigem-se �� gente assim:

��� Ol��, benzinho! Est�� triste! Vem comigo e o fa��

rei feliz. Alguns v��o e, depois de ficarem felizes, s��o

roubados por outros, que est��o escondidos em algum

canto do a p a r t a m e n t o . H�� tamb��m os que voc�� en��

c o n t r a r �� em festes da alta sociedade. Um desses eu

encontrei na G u a n a b a r a , em recep����o que o embaixador

ingl��s oferecia �� sua soberana. Esses est��o empertiga��

dos no traje a rigor, e dizem assim:

��� "Gentleman", gosta de arte? Logicamente todos

dizem sim. N��o �� polido deixar de gostar de arte, co��

mo t a m b �� m de m��sica, literatura, p i n t u r a etc.

��� 150 ���

��� Gosta? Ah! Ent��o precisa vir ao meu aparta-

mento um dia desses. Tenho um Eug��ne Delacroix, que

�� uma das mais belas pinturas modernas do mundo. O

meu Dante Gabriel Rossetti �� fabuloso. O senhor admi��

rar�� os dois Paul Cezzanne, ou ent��o, escolher�� entre

Vicent Van Gogh, Paul Gaugrin e muitos outros. Vou

deixar meu cart��o. Pode telefonar-me antes que man��

darei meu chofer busc��-lo enquanto esfrio uma cham��

panha.

��� Tome cuidado, meu caro, pois, se voc�� conseguir

sobreviver sem ter se entregado ou usado outro homem,

ent��o direi que voc�� �� um homem macho. Duvido mui��

to, pois um jovem bonito, pobre, sem profiss��o, anal��

fabeto e sem amigos, tem dificuldade, muita dificuldade

de ser um homem macho. Tem de cair para a pederas��

tia ou ser gigol��.

Raul esfor��ou-se para sorrir.

��� Pois eu sobreviverei. N��o sou t��o pessimista.

Mas, no fundo estava terrivelmente assustado. Se n��o

se considerasse homem, exteriorizaria naquele instante

todas as l��grimas amargas, magoando seu esp��rito.

Mostrou os dentes sem rir, e disse, levantando-se:

��� Lamento n��o me tornar pederasta, como �� seu

desejo, doutor. Agora posso ir?

��� Pense mais um pouco, Raul. O juiz est�� lou��

camente apaixonado por voc��. ��le �� muito rico e mui��

to importante. Voc�� poderia ter tudo com que os jovens

de sua idade sonham.

��� Eu s�� tenho um sonho. Caminhar com a ca��

be��a erguida. Por isso, doutor, uma vez j�� matei um

homem. Juro que n��o serei um fracassado. Sei que a

cidade desaba sobre os desamparados, esmagando-os

pela mis��ria e solid��o. Mas fa��o parte de uma multi��

d��o que tem os erguidos e os tombados. O senhor,

doutor, apesar de vestido de ouro, �� um dos tombados.

Todos os grandes que o adulam e o respeitam tamb��m

est��o, est��o no rol dos tombados, porque s��o sem moral.

Como pode um homem ser considerado, honrado, quan��

do faz o cu de buceta? Voc�� �� um aleijado sexual. Um

aleijado. Um aleijado! N��o, doutor, eu n��o o respeito

e cuspo no seu dinheiro e no daquele velho que me

quer ver ca��do.

O advogado sorria, e disse, c��nico:

��� Guarde-se, amigo e, se o seu dia chegar, tele��

fone para o juiz. ��le ficar�� felic��ssimo.

��� Prefiro mendigar, doutor e at�� roubar, r o u b a r . . .

g a l i n h a s . . .

Com as m��os nos bolsos, cabe��a levantada e sor��

rindo para todos, Raul saiu do pr��dio do advogado e

ficou passeando pela grande cidade, perdido naquele

vai-e-vem de milhares de pessoas agitadas, colorindo e

enfeitando as avenidas, ruas e pra��as. Cobertas aqui

de um sol e mais ali, envolvidas nas sombras dos gran��

des edif��cios que, como lan��as, apontavam o azul bri��

lhante do infinito. Relanceava seus belos olhos pelos

transeuntes, normalmente bem trajados, demonstrando

com coragem e decis��o que n��o se tomba �� t��a, pois a

metr��pole sempre oferece grandes oportunidades. Vi-

rava-se para as in��meras mo��as bonitas e sorria para

as crian��as. Admirava tudo da bonita e amada S��o

Paulo, bancas de jornais, cheias de revistas coloridas,

portas de bares, com grupinhos de jovens alegres e

falantes.

Em seus ouvidos penetravam os assobios de gente

chamando taxi. Esbarrava com pessoas apressadas, le��

vando pastas debaixo dos bra��os. Guardas paravam o

tr��nsito e uma leva de gente cruzava as ruas. Parava

em quase todas as vitrines, luxuosamente decoradas, com

mil e uma novidades: j��ias, pratarias, cristais, rendas,

veludos. Como era bela a cidade, com aquele aroma

de caf��, e aquela m��sica que ouvia agora. Parou em

frente a uma casa de discos e ficou rindo �� t��a, ouvin��

do os sons estrepitosos, arremessados para longe, de en��

contro ao ru��do das buzinas de milhares de carros, con��

gestionando o tr��nsito de ve��culos e pedestres.

Ficou pensando nas mentiras que o dr. Antonio que��

ria lhe incutir.

��� A cada passo voc�� dar�� de encontro com um

"fresco". Girou sobre os calcanhares, rindo.

Onde estavam os frescos, os veados, os pederastas?

��� 152 ���

Quando as luzes come��aram a se acender �� que

Raul teve consci��ncia de ser t��o tarde. Enfeiti��ado

com a maravilhosa S��o Paulo, n��o sentiu nem as dores

fundas da fome a roncar em seu est��mago.

Sentindo ainda todo o deslumbramento que lhe ia

na alma, entrou num bar, sentou-se j u n t o ao balc��o e

pediu um sandu��che.

��� Cad�� a ficha?

��� Ficha?

��� Sim, mo��o, sem ficha, n��ca.

��� Onde tem ficha?

��� Ora, quer nos gozar, hein? N��o sabe o que ��

ficha, n��? Tenho cara de bobo, tenho?

��� �� aqui, mo��o.

Foi at�� o homem da caixa registradora e, apalpando

os bolsos, ficou escarlate. Nem um tost��o! Mas como?

E o dinheiro do rel��gio? Olhou sem gra��a para o caixa.

��� N��o entendo. Ainda ontem vendi meu rel��gio.

��� Algu��m o roubou.

��� Como?!

��� Ora, algum batedor de carteira.

��� N��o, n��o �� poss��vel, hoje s�� encontrei gente

alegre.

O homem j�� n��o o ouvia, apressado, batendo o

dinheiro de outro fregu��s.

Sentiu que todos o olhavam e seu rosto mais e

mais se abrasava mas quando se virou para sair, j��

ningu��m o olhava, pois ningu��m se interessava por

problemas t��o comuns.

Saiu e parou na porta do bar, olhando para todos

os lados. Que rumo tomar? Saiu e ficou andando no

meio da multid��o apressada,- que naquele vai-e-vem

febricitante procurava o melhor caminho para chegar

a seu lar. Continuou a andar j u n t o ao povo. Parou

no Viaduto do Ch�� e debru��ou-se para olhar l�� em baixo

o movimento enervante de carros e pedestres apressados.



O Vale do Anhangaba�� coberto de autom��veis que,

em filas contr��rias, iam se movimentando lentamente.

Ali debru��ado por um instante, teve a impress��o de que

ia desmaiar. Seria a altura, ou a fome que, como uma

garra de ferro, apertava mais e mais?

Um suor gelado come��ou a aparecer em sua testa.

Estava t��o frio, por que suava? Sacudiu a cabe��a e

continuou ali parado olhando, sem vontade de se me��

xer Mexer pr�� que? Seus belos olhos passavam por

todos os lados. Edif��cios e mais edif��cios. Estava cer��

cado pela mort��fera cidade.

Agora os carros l�� emba.'xo come��avam a rarear,

e as pessoas no V i a d u t o . . . onde estaria toda aquela

gente que, alguns minutos antes, passavam atr��s dele?

Aqui e ali avistou algu��m a caminhar. Voltou-se e

recome��ou a andar sem rumo. Entrou na Bar��o de

Itapetininga, tamb��m agora tranq��ila. Havia apenas

alguns grupinhos espalhados pelas portas das galerias.

Perguntou as horas. Vinte e tr��s. Nessa hora a

pra��a da Rep��blica tamb��m estava quase vazia. Sen��

tou-se num banco. Cruzou os bra��os e se encolheu to��

do para se aquecer um pouco. Olhou para cima. Nas

grandes folhas das frondosas ��rvores sa��am fracas pia��

das de passarinhos. Buscou mais longe o alto coqueiro

que, quieto, parecia adormecido. Lembrou-se de quando

por ali passara, no cair da tarde. O velho coqueiro es��

tava invadido por alegres p��ssaros que chilreavam sem

cessar. Aonde estavam? Seriam esses que estavam en-

roscadinhos na folhagem que os cobria? N��o aguentou

ficar por muito tempo sentado, porque o frio cortava.

Levantou-se e continuou a andar, batendo com for��a os

p��s no ch��o, pois pareciam que iam endurecer. Entrou

no mit��rio p��blico e o cheio forte de urina misturado

com desinfetante f��z com que seu est��mago rodasse,

em n��useas. Por um segundo sentiu tudo vacilar em

sua frente e encostou-se firmemente �� parede. Com

muito esfor��o foi at�� a pia e, cabisbaixo, segurou o

p��nis. Enquanto olhava o jorro de urina amarelar

tudo, ouviu uma voz bem perto do seu ouvido:

��� Essa coisa t��o grande e maravilhosa que voc��

tem, benzinho, me inspira a lhe dar o dinheiro que trago.

Virou-se e deparou com um homem simplesmente

vestido, sorrindo para ��le.

Enfiou rapidamente tudo para dentro e, abotoando

as cal��as, saiu tr��pego, sentiu aumentar-lhe o mal-estar.

Jogou-se novamente num dos bancos da pra��a. O

ar frio f��-lo sentir-se melhor do est��mago, mas o frio

aumentava, cobrindo a din��mica cidade de um vapor

di��fano. Fechou os olhos e uma sonol��ncia ia de man��

sinho lhes vestindo o c��rebro. Sentiu uma m��o em

seu joelho, mas nem teve for��as para se mover. A m��o

foi subindo e agasalhou seu p��nis carinhosamente. Dei��

xou-se acariciar, enquanto fazia esfor��o para afugentar

o sono, o cansa��o e a fome. Queria abrir os olhos, mas

eles estavam dan��ando em suas ��rbitas. Quando con��

seguiu, viu a m��o fina e morena, depois o bra��o envolto

em l�� azul e depois o rosto. Era um rosto magro de

olheiras fundas. Rosto de homem. Levantou-se de um

pulo e reuniu todas as suas for��as para vibrar aquele

soco. O homem estava mais fraco do que ��le, pensou,

enquanto se afastava, deixando o pederasta ca��do.

O medo de o ter machucado levou-o a olhar para

tr��s. O jovem estava sentado no ch��o. Esfregava o

rosto e gritava:

��� Puxa, que homem! Que macho! �� desses que

eu gosto, e como �� lindo! L i n d o ! . . .

Raul apressou o passo. Pensou no que faria. Es��

tava como na noite anterior, j�� na Galeria Metr��pole,

ornamentada, com algumas pessoas. Tiritava, esfre��

gando as m��os e sentindo mais fortes as pontadas

da fome.

As mesmas crian��as sentadinhas umas contra as

outras e as rosas nas m��os.

Ficou morrendo de vergonha dos pequenos e infe��

lizes seres. Tentou esconder-se na escada rolante. Mas

j�� tinha sido visto e, como rel��mpago, chegaram �� sua

frente. Enrubescendo, Raul explicou a sua situa����o.

��� Olha, meu bem, disse a uma das menininhas.

Eu troco essa gravata de seda italiana por uma rosa.

Essa gravata vale mais de vinte cruzeiros novos. Se

vend��-la. dar�� para comprar muitas e muitas rosas.

��� 1 5 5 ���

A menina concordou e, com a flor na m��o, ficou

na porta de uma boate. Depois de algum tempo, um

casal hai abra��ado e rindo alto. Raul, gaguejando,

implorou:

O casal riu mais alto. Tentou mais um tempo na

boate. Depois saiu correndo atr��s de outros casais

que passavam ou que sa��am do cinema. Ningu��m lhe

comprava a rosa. Encostou-se j u n t a �� parede para

n��o cair de exaust��o, com zonzeira na cabe��a. Ent��o

uma vozinha o f��z virar-se.

��� Eu compro a sua rosa, mo��o. Era um dos

meninos maltrapilhos e sujos. Eu fiquei olhando o

senhor todo esse temp��o. Sei que o senhor n��o vai

vender, porque �� gente grande e todos pensam ser brin��

cadeira. Pr�� mim �� mais f��cil. Deu os cinquenta cen��

tavos da flor e emprestou mais, pois a m��dia com p��o

e manteiga custava oitenta centavos, cedendo-lhe ainda

para dormir o lugar escondido perto da parede da Bi��

blioteca P��blica Municipal.

Raul ajoelhou-se para ficar ao mesmo n��vel da ca��

becinha de cabelos desgrenhados e fixou aqueles olhos

tristes. Pretendeu falar qualquer coisa, mas um n�� na

garganta n��o deixou sair nem um som. Levantou-se,

engolindo as l��grimas e se afastou pensando:

��� Se Deus quiser, eu n��o tombarei. Fui erguido

pela m��ozinha de uma crian��a faminta. Isso quer dizer

que Deus me ajudar��.

Levantou-se sentindo um gosto amargo na boca.

Havia gravetos em seu fino terno, agora sujo e amas��

sado. Procurou ver o sol, mas n��o o conseguiu, pois o

que ��le conseguia ver ali perto da Biblioteca, foi um

mont��o de c��u azul, que parecia ser a tampa da pra��a

D. Jos�� Gaspar. Olhou para o lado da Galeria Metr����

pole, agora cheia de gente, para ver o garotinho.

��� Coitadinho, onde teria dormido? Andou pelos

caminhos acidentados do jardim e sentou-se na mureta

que existe perto da escadaria da entrada principal da

Biblioteca. Queria pensar qual seria a chance que a

grande e mort��fera cidade lhe poderia oferecer. Rezou

para conseguir qualquer coisa, qualquer trabalhinho.

��� Mo��o, �� mo��o!

Raul olhou para o Galaxie e encontrou o sorriso

de uma senhora.

��� Eu?

��� Sim.

��� Pois n��o.

��� Quer guardar um lugar para o meu carro, en��

quanto dou uma volta? Olha, corra l��, vai desocupar

aquele.

Raul guardou o lugar.

��� Olhe, enquanto fa��o compras, pegue esse pano

de l�� e de uma lustradinha no carro, sim?

Quando a mo��a voltou, deu-lhe dois cruzeiros no��

vos, o pano de flanela e um cart��ozinho.

��� Quando precisar, me procure. Meu nome �� esse

que est�� a�� no cart��o, L��dia.

O Galaxie ia saindo.

��� Mo��o, guarde esse lugar.

��� Quer que eu limpe?

��� Sim.

A noite apalpou os quatro cruzeiros novos que lhe

tinham rendido o trabalhinho de guardar e limpar

carros.

Deu para o garotinho das rosas dois cruzeiros novos

e acertaram que Raul dormiria durante a noite perto

da parede e o moleque durante o dia.

J�� fazia dias que trabalhava naquele ponto, sempre

prestativo, educado e alegre, quando:

��� Pol��cia.

Olhou como bobo a lapela levantada do palet��

do investigador. De seus l��bios brancos o som saiu

rouquenho.

��� Por que? Que foi que eu fiz?

��� Por enquanto nada. Mostre os documentos.

��� Oh! Eu, e u . . .

��� 157 -

��� Seu Alexandre, ele �� nosso chapa. T�� com tudo

em ordem. Mas hoje ele deixou os documentos l�� no

quarto, onde mora com a gente.

O tira fixou Raul.

��� Dessa vez passa. Olhe, rapaz, andar sem do-

cumentos �� perigoso. Virou-se para os dois pretos ���

olhe, passarei mais tarde.

Os dois pretos eram altos e fortes. L a n �� a r a m - l h e

um olhar estranho, m o s t r a n d o os dentes brancos e bri��

lhantes, sem sorrirem.

��� Obrigado, amigos. Voc��s me salvaram de u m a . . .

��� ��, n��o o deixamos mofar um dia na cadeia, por-

que, afinal de contas, n��o somos t��o ruins assim. N��s

conhecemos o tira e cooperamos com a sua caixinha.

��� Caixinha?

��� ��. A gente faz u m a s e outras e o tira quebra

o galho. Damos-lhe uma certa quantia por m��s. Mas

isso n��o vem ao caso, o que nos interessa �� voc�� deixar

o nosso ponto.

��� N��o entendo.

��� Quem toma conta dos carros aqui na pra��a so��

mos n��s, e n��o queremos intrusos. T�� avisado. Se vo��

c�� voltar a m a n h �� , n��s lhe arranjaremos uma bela cana.

Agora vai embora, n��?

��� Mas eu quero t r a b a l h a r . N��o tenho profiss��o.

Se deixar de tomar conta dos lugares para carros, o

que irei fazer?

O preto riu.

��� Ora, para branco h�� muito emprego. Al��m do

mais, um branco, como voc��, pode ser at�� bibel�� das

b a c a n a s .

Raul sentiu como se um sopro forte de vento o

fizesse oscilar. Cerrou os punhos e ia levantando-os,

quando se lembrou de que se fosse preso sem documen��

tos, seria bem pior. Devido a isso, virou-se bruscamen��

te e deixou a pra��a com um p e n s a m e n t o : tirar os

documentos.

158

XV

Policia Federal

L��dia morava sozinha em bel��ssima casa no Ibira-

puera. Em sua rica resid��ncia, sobressa��a, no muro de

pedras brancas, um grande port��o de madeira, com

desenhos em alto-rel��vo. Estaria em casa ��s tr��s horas.

Raul tocou a campainha. Com o cora����o batendo ace��

leradamente, disse �� empregada de vestido azul e aven��

tal branco que queria falar com dona L��dia. Bem, pen��

sou, o melhor �� contar tim-tim por tim-tim a ela e

enfrentar o neg��cio.

Uma grande sala, artisticamente decorada com

mob��lia de jacarand��, estilo colonial, quadros famosos,

prataria, cristais e porcelanas, enfim, tudo que des��

lumbrava os olhos de Raul. Logo mais encontrou os

belos olhos castanhos de L��dia que descia as escadas

envolta em um palazzo pijama branco, com z��per na

frente. Raul imaginava os duros e pequenos seios e

as coxas grossas, que se escondiam por baixo daquela

renda macia da roupa da linda mulher, parada em sua

frente, olhando-o sem parar, desde a cabe��a at�� os p��s.

Virou-lhe as costas e fingiu examinar qualquer coi��

sa para fugir ao exame, pois s�� agora sentia-se feder

e dava-se conta de qu��o sujo estava. S�� agora percebia

que, h�� um m��s, estava sem tomar banho. Reclinou-se

e sentiu seu rosto pegando fogo, pois via-se como um

monte de lixo afundando no aveludado tapete. Estava

envergonhado perante t��o bela jovem, sadia e limpa.

��� Ent��o?

��� A senhora se lembra de mim?

��� Claro. Gosto de falar com pessoas, olhando-as

nos olhos. L��dia sentiu uma pontada no cora����o quan��

do aquele azul pousou em seu rosto.

��� Sabe, voc�� �� o homem mais bonito quef tive a

oportunidade de admirar. Raul correu os olhos pela

sala e os pousou novamente em L��dia. Ela reparou que

eles estavam cobertos de um estranho brilho.

��� Falei algo que o tivesse aborrecido?

��� Sim.

��� O qu��?

��� N��o gosto quanao falam que sou bonito.

��� Por que?

��� Acho que o homem sendo bonito, tem de acei��

t a r . . . quero dizer, tem de livrar-se de muitas coisas

estranhas em rela����o a outros homens.

��� Voc�� j�� se deitou com um homem?

Um sil��ncio pesado encheu a sala. L��dia reparou

que o rosto de Raul se cobria de uma palidez mortal.

Quando ��le se virou, dirigindo-se a passos longos

para a porta, ela correu e segurou-o por um bra��o, fa��

zendo-o parar.

Passou para a sua frente, sem larg��-lo, falando

alto.

��� N��o posso adivinhar o seu ��ntimo, mocinho.

Mas se �� alguma coisa muito desagrad��vel, �� bem me��

lhor a gente atacar a situa����o de frente. Voc�� veio at��

minha casa porque tem algum problema e, pela sua

condi����o f��sica, vejo que �� um problema igual a milha��

res de brasileiros: dinheiro. Gostaria que, desde j��, me

considerasse sua amiga.

Raul a olhava im��vel.

��� Vamos, n��o seja crian��a. Se com qualquer coi��

sa desagrad��vel que ouve voc�� se esquenta e vai

saindo assim, sem mais nem menos, acho que nunca

��� 160 ���

arranjar�� um amigo, n��o ��? O castanho e o azul se

encontraram.

Raul riu.

��� A senhora tem raz��o. Eu tenho ��dio, ali��s, eu

sinto no fundo do meu ser assomar um ��dio tremendo

a tudo e todos relacionados a pederastia. Tudo porque

levei meus dezenove anos defendendo-me de homens.

Prometi a mim mesmo que nenhum homem encostaria

em mim com essa inten����o. Sinto n��useas quando ou��o

perguntas bobas a meu respeito, c o m o . . . c o m o . . .

��� Como eu fiz agora. Vou lhe dizer uma coisa.

Pela parte que me toca, jamais falarei sobre isso, t��?

��� N��o �� isso, dona L��dia. Eu n��o gosto de ouvir,

mas acho que a gente .deve ser sincero a respeito do

que pensa. A senhora pensou que eu fosse pederasta,

porque me acha bonito.

��� Pois ent��o! J�� existe uma possibilidade de voc��

me perdoar por eu ter sido sincera e ter dito o que pen��

sava. Levantou o indicador em riste e encostou-o no

nariz de Raul. O que eu pensava, veja bem.

��� Isso faz sentido, porque realmente �� o que a

senhora pensava pois, ha realidade, sou um homem e

u m h o m e m . . .

��� Um homem?

��� Um homem macho. Fitaram-se com intensida��

de profunda.

��� Bem, disse L��dia, puxando-o pelo bra��o, eu pen��

so, sem a menor d��vida, que o melhor, o mais gostoso,

mesmo, �� entre o homem e a mulher. �� bem mais

f��cil. Voc�� j�� pensou um homem estrupando o outro?

A gargalhada de L��dia como uma lufada, varreu

a sala, mas Raul sorriu engolindo l��grimas, pois as ce��

nas macabras dos abrigos de menores tomaram sua

mente.

��� Bem, bem, disse L��dia alegremente, acendendo

um cigarro e oferecendo outro a Raul. Voc�� queria

falar comigo. Pois fale, mas, antes, sente-se aqui perto

de mim.

161

Raul tirou uma profunda tragada.

��� Ah! Eu estou muito sujo. Lavei muitos car��

ros . . . e, depois, n��o tinha onde tomar banho. Virou-se,

procurando um cinzeiro. Esmagou o cigarro. Eu vim

para que a senhora me ajude a encontrar um emprego.

��� B e m . . . qual �� a sua profiss��o?

As m��os crispando no encosto da cadeira de veludo,

e aquele ardor a lhe tomar todo o rosto.

��� N��o tenho profiss��o.

��� O que sabe fazer?

��� Nada.

��� Sabe pelo menos ler e escrever.

��� Um pouco.

��� Que diabo, de onde veio voc��, rapaz?

��� Fui criado pelo governo.

��� Chiii ��� e n��o aprendeu a fazer qualquer coisa.

Meu Deus, rapaz, num tempo desses, ser analfabeto!

Voc�� veio de onde, afinal?

��� Sa�� do Abrigo de Menores para a Deten����o.

��� Por que?

��� O r a . . . Raul apertava mais a cadeira, e disse

de um s�� f��lego ��� matei um dos meninos que queriam

fazer-me pederasta. Mas fui absolvido porque era me��

nor, ou sei l�� porque. Ali��s, eu sei. O juiz l�� do F����

rum e s t �� . . . est�� apaixonado por mim e arrumou a

coisa. Desconhe��o a forma. Depois ��le me levou para

a sua mans��o, dizendo-se curado da mania de deitar-se

com jovens. Mas come��aram a falar e eu o deixei.

Logo que vim para o centro da cidade vendi meu rel����

gio para comer ou arranjar um quarto. Fui preso por��

que n��o tinha documentos. O juiz me soltou. Fui

tomar conta de carros, mas dois crioulos me expulsa��

ram, e aqui estou.

��� Creio que terei algo para voc�� fazer. Por en��

quanto voc�� precisa de um banho e comida. Est��

com fome?

162

��� N��o, agora n��o. Mas diga-me o que farei.

��� Calma, n��o ser�� um trabalho dif��cil. Mas va��

mos ao banho.

Depois de banhar-se, Raul vestiu o roup��o de L��dia

e ficou tocando discos, at�� que ela voltasse da compra

de algumas roupas para ��le, as quais seriam desconta��

das do seu futuro ordenado.

L��dia jogou os pacotes sobre o sof�� e estacou encan��

tada. De p��, �� sua frente, alto, com o rop��o azul aber��

to, mostrando o peito forte e cabeludo e os olhos cinti��

lantes, l��bios vermelhos os dentes brancos e mais, so��

bressaindo sua pele bronzeada. Raul era todo um amor,

indiscutivelmente maravilhoso.

As m��os de L��dia apertaram os bra��os de Raul.

Fixando seus olhos, disse:

��� Meu Deus, Raul, seus olhos s��o os mais lindos

do mundo. Francamente, n��o se sabe a sua c��r real.

Olhando-se, assim de repente, s��o azuis e, prestando-se

mais aten����o, percebe-se tamb��m nuances esverdeadas

e douradas. Afastou-se alguns passos e disse:

��� Juro, Raul que, nem se todas as mulheres do

mundo se ajoelhassem aos seus p��s, nada seria suficien��

te para homenagear sua beleza. Seria p r e c i s o . . . seria

preciso que a pr��pria m��e de Deus ca��sse em sua frente

p a r a . . .

A risada l��mpida e franca do jovem apagou-lhe

a voz.

��� Ora, dona L��dia, nem tanto. Isso �� pecado, hein?

Olhos nos olhos. Observaram-se por longos minutos.

��� Voc�� acha pecado uma mulher achar um ho��

mem lindo?

��� Sem envolver a m��e de Deus, n��o acho.

��� E se eu tirar a m��e de Deus e ficar assim em

sua frente, rode��-lo assim, com meus bra��os, e beij��-lo

assim? O que voc�� acha?

Raul sentiu-se apertado e beijado.

��� 1 6 3 ���

Os cora����es pulavam loucamente e n��o consegui��

ram esconder o tremor percorrendo-lhes os corpos.

Raul sentia que o homem crescia nele, endurecia

e fazia uma for��a enorme para sair do roup��o, que��

rendo encostar-se nas coxas bonitas e grossas de L��dia,

s�� um pouco-coberta pela m��ni-saia.

A agulha do hi-fi arranhava suavemente o disco.

Raul desvencilhou-se delicadamente dos bra��os da mo��a

e desligou-a, ficando onde estava. L��dia olhou-o inter��

rogativamente.

��� Como ��, vai responder minha pergunta?

��� Pergunta?

��� Se �� p e c a d o . . .

��� Ah! Claro que n��o ��.

��� Ent��o por que voc�� est�� t��o longe?

Raul abaixou os olhos, desviando-os dos da mo��a,

buscando uma resposta, l�� no fundo do seu ��ntimo.

Olhou-a novamente.

��� Bem, no meu caso a gente n��o sabe quando se

deve ficar perto ou longe. Eu sou quase u m . . . diga��

mos, um mendigo, e a s e n h o r a . . .

��� Ora, menin��o, n��o se subestime tanto. Nunca

ouvi falar que a diferen��a de dinheiro impedisse o desejo

entre o homem e a mulher.

��� Mas, no meu caso, �� mais dif��cil. Nem saberia

por onde come��ar.

��� Todas as portas est��o abertas para o amor, ra��

paz, n��o h�� caminho dif��cil.

��� Talvez seja verdade. Todavia, meu sexo s�� en��

tra em porta em que eu desejar.

��� Ora, quando o homem se julga macho, tem de

entrar em todas as portas que se lhe oferecem.

��� ��s vezes o homem n��o quer tornar-se bibel��

de madame e tem de refrear seu mach��o.

L��dia apanhou os pacotes e, antes de subir, virou-se

para Raul.

��� 164 ���

��� Bem, examine o caso sob outro ponto de vista

enquanto me banho, e depois suba para experimentar as

roupas. A h ! . . . espere um pouco. Jogou os pacotes

outra vez no sof��, abriu a bolsa e apanhou um papel,

atirando-o a Raul. T��, �� a notinha das roupas que

vou descontar.

Sobressaltado, o mo��o gritou:

��� Mas �� uma soma exorbitante! Acho prefer��vel

ficar com as roupas velhas.

��� Ora, Raul. S��o mil cruzeiros novos, e voc�� ga��

nhar�� mensalmente a metade dessa quantia.

Raul ficou ext��tico, enquanto ela retomava os em��

brulhos e subia correndo as escadas. O barulho do

chuveiro, o aroma delicioso do caro perfume e sua voz

suave e meiga. Oh! Tenta����o!

��� Suba, Raul.

��le ficou emoldurado pela porta, im��vel, olhando

o corpo nu de L��dia diante do espelho. Era como ��le

imaginara. Carnes brancas acetinadas. Ela deu mais

umas escovadelas nos cabelos negros e brilhantes e,

jogando a escova em uma gaveta, veio at�� Raul e este

sorriu.

��� Ent��o?

��� O que?

��� Examinou o nosso caso?

��� Vendo-a assim, s�� tenho um pensamento. As-

sumir toda a responsabilidade de macho. Fazer tudo.

��� Quando come��a?

��� Agora. Levantou-a em seus bra��os fortes es-

magando-a de encontro ��os p��los do seu peito, sugou-lhe

a boca ferozmente. Colocou-a na cama e, sem largar

seus l��bios, ajoelhou-se e tirou o roup��o. Sua m��o ��gil

e nervosa aprofundou-se no meio das pernas de L��dia

que, gemendo e retorcendo-se no mesmo lugar, sentia

seus dedos lhe queimarem as entranhas. Sugadas va��

garosas em seus seios a fizeram movimentar furiosa��

mente os quadris, enquanto a boca no rosto transfigu��

rado se abria para lhe implorar que viesse para ela.

165



Raul deitou-se suavemente em cima dela e, recome��an��

do a chupar-lhe o bico do seio esquerdo, penetrou-a

sem viol��ncia. Acelerou as estocadas, sentindo aquelas

carnes macias tremerem debaixo das suas. Naquela

posi����o inc��moda, mas que sabia agradar muit��ssimo

��s mulheres, ��le ouvia L��dia gemer, grunhir e gritar,

debatendo-se, como se estivesse sufocada. A coisa cres��

ceu dentro dele, fazendo-o forcejar, sem parar e, quan��

do ela arrebentou, Raul sentiu uma moleza e zonzeira

t��o fortes que pensou que fosse ser engolido do mundo

dos vivos.

Exausto e suado, caiu para um lado, respirando

forte.

Ela virou-se e, apoiando-se num cotovelo, debru��

��ou-se sobre ��le. Escondeu o rosto em seu peito e

disse-lhe:

��� Puxa, senti-me ligada a uma tomada el��trica.

Voc�� foi maravilhoso. Que experi��ncia, hein? Aonde

aprendeu?

��� A senhora n��o disse que o amor sabe sempre

encontrar o caminho?

��� N��o me chame de senhora. Agora somos aman��

tes, n��o ��?

Raul sentou-se rapidamente na cama e L��dia viu

aquele rosto, muito branco, cobrir-se de uma expres��

s��o assustada.

��� Mas vou trabalhar. Quero trabalhar e tra��

balhar muito.

��� Claro, meu bem. Por enquanto trabalhe em

mim novamente. Venha. Estendeu o bra��o e puxou

carinhosamente.

O juiz estava sentado de costas para a porta, exa��

minando alguns pap��is. Virou-se bruscamente, quando

ouviu a voz do dr. Antonio e gritou nervoso.

166

��� Ent��o, encontrou-o? Levantou-se e andou at�� o

advogado. N��o vai dizer-me outra vez que n��o tem

uma pista. Isso me deixa louco.

��� Grandes not��cias, meu caro, grandes not��cias.

O seu menino est�� forte e robusto.

��� Em que lugar? Vamos, diga.

��� Numa casa, no Ibirapuera. H�� mais ou menos

um ano que mora l�� com uma mulher.

O j u i z mordeu os l��bios, sentindo que as pernas

amoleciam.

��� Com uma mulher! Quedou-se pensativo por uns

segundos. Bom, antes com uma mulher. Quem �� ela?

��� Uma contrabandista.

Do fundo do cora����o" sentiu subir-lhe uma golfada

quente de felicidade.

��� ��timo. Conte-me a hist��ria direitinho.

��� A mulher �� muito bonita. Tem quarenta anos,

mas aparenta trinta. Veste-se com etiqueta dos maio��

res costureiros do mundo. Possui uma butique no cen��

tro da cidade. Em sua luxuosa casa no Ibirapuera,

existem salas com grande quantidade de coisas con��

trabandeadas, que s��o negociadas com atacadistas.

��� Que faz meu querido Raul?

��� Entrega a mercadoria. ��s vezes fica na casa,

atendendo os clientes mais ��ntimos.

��� Como voc�� soube tudo isso?

��� Encontrei uma mo��a que mora na rua R��go

Freitas, que j�� foi s��cia de L��dia na butique. Briga��

ram. A mo��a viu-se lesada em alguns milh��es. Para

vingar-se, vive espalhando aos quatro cantos que a tal

L��dia �� uma fora da lei.

��� ��timo, ��timo. Pagarei a essa mo��a qualquer

quantia para denunciar L��dia.

��� N��o ser�� f��cil prend��-la, meu caro Paulo, pois

est�� bem encoberta. Divide seu amor com muita gente

de influ��ncia. Para voc�� ter uma id��ia da for��a dessa

��� 167 ���

dona, �� s�� saber que tem passagem garantida de ida

e volta para toda parte do globo, �� hora que quiser.

��� Como a mercadoria entra no pa��s?

��� Com o s��cio de um avi��o de um delegado de

pol��cia. Ali��s, esse mesmo delegado �� o piloto. Essa

mo��a j�� denunciou L��dia �� pol��cia v��rias vezes, mas

nada adiantou.

��� Caro caus��dico, agora o regime vai ser outro.

Mande-a denunciar L��dia outra vez.

��� Est�� bem, quer que eu v�� agora?

��� O juiz olhou-o com ast��cia e suspirou.

��le �� feliz?

��� Como se pode saber? Vive a sua vida. Trabalha

muito, m��o n��o tem sorte, pois �� um trabalho que o

levar�� �� cadeia.

O j u i z sorriu.

��� Isso �� formid��vel. Quanto mais cadeia, mais

depressa chegar�� at�� mim, seu querido papai.

Ambos riram.

��� Se a pol��cia os prender, que fa��o? Perguntou

o dr. Antonio.

��� Distribua quanto dinheiro desejar, mas solte-o e

fa��a-lhe a mesma proposta.

A express��o de interroga����o nascida no rosto do dr.

Antonio, o juiz respondeu:

��� Que seja meu e eu o cobrirei de ouro.

��� E se ��le n��o aceitar?

O juiz contemplou o advogado longamente, e em

seus olhos foram se formando tra��os de ��dio. Fechou

uma das m��os e bateu fortemente na mesa. Seus gritos

fizeram eco longe.

��� Se ��le n��o me aceitar, jogue-o na rua, pise-o,

massacre-o, mas de um jeito que ��le venha at�� mim.

As l��grimas cobriam o ��dio de seus olhos e, aper��

tando uma m��o na outra, encostou-as no cora����o e

disse suavemente:

168



��� Deus! Deus! Como ele est�� encravado aqui den��

tro! Que ang��stia terr��vel me sufoca o peito s�� em

pensar nele. Oh! Se ele me amasse!

Com as m��os tr��mulas, segurou o amigo por um

bra��o e deixou escapar do peito um solu��o.

��� Se voc�� soubesse como eu o adoro, como o amo!

Aqui dentro, e apontou o peito, fervilha um desejo ani��

malesco de enterrar-me em suas carnes, beij��-lo, mor��

d��-lo inteirinho. Quero apert��-lo, esmag��-lo! Sacudiu

fortemente o amigo. Se voc�� soubesse o que �� sentir��

se longe do ente amado! Oh, Ant��nio, sinto que o amor

vai roendo mais e mais meu cora����o. Como d��i! Em

cada pensamento, cada recorda����o, sente-se aqueles den��

tes pontiagudos a nos roer! Roer!

��� Mas se voc�� n��o o conseguir, procure destruir

esse animal feroz que o devora, meu amigo. H�� tantos

Raul colorindo S��o Paulo, o Brasil, o mundo.

O j u i z deixou-se cair p e s a d a m e n t e em uma cadei��

ra e suas palavras sa��ram entrecortadas de solu��os:

��� Ah! Se eu pudesse amar o u t r o ! . . . Se n��o tivesse

todas as entranhas, todo meu sangue, todos os meus

m��sculos, todos os meus poros envenenados por ��le,

pelo meu Raul! Raul!

��� N��o se deixe abater assim, Paulo. Estamos tra��

balhando para que voc�� o tenha inteirinho. N��o resta

a menor d��vida de que ele tombar�� nos seus bra��os.

Vamos, meu amigo. O dinheiro sempre vence. Co��

me��aremos dando uns milhares �� mo��a da R��go Freitas.

A porta de madeira com desenhos em alto-rel��vo

abriu-se lentamente. A empregada respondeu �� voz de

Raul, que vinha l�� de dentro.

��� S��o dois homens.

169

Raul veio at�� eles.

��� Em que posso servi-los?

Os homens eram simp��ticos, e at�� mesmo se lia um

t��nue sorriso nos l��bios de um deles, quando falou mos��

trando a carteirinha.

��� Pol��cia" Federal.

Raul sentiu um mal-estar. Batidas fortes no cora��

����o e a voz saindo-lhe fraca da garganta seca.

��� Por que?

��� Contrabando.

��� M a s . . .

��� Explique na pol��cia. Agora acompanhe-nos pa��

ra uma visita �� casa.

Era exatamente como a ex-s��cia da butique de

L��dia falara. Havia por todos os cantos dos quartos,

montes de mercadoria contrabandeada.

Encostado ��s grades pretas e desbotadas da velha

casa que servia como Departamento da Pol��cia Federal,

Raul avistou o dr. Antonio. Seu primeiro pensamento

foi de alegria. ' Mas, sentindo um n�� forte na garganta,

desviou a vista e passou por ��le ereto e de cabe��a esguida.

��� Depois de alguns passos, teve de parar, junta��

mente com os agentes, que foram cumprimentados pelo

advogado. Este ��ltimo disse:

��� Esse j o v e m �� meu constituinte.

Subindo as escadas que os levariam ao andar su��

perior, onde ficava a sala do delegado, Raul prestou

aten����o ao cochicho do advogado, j u n t o ao seu ouvido!

��� Eu trouxe a procura����o dentro deste jornal.

Vamos, pegue isso. D�� um jeito de assinar e deixe so��

mente eu falar. Voc�� fica de bico calado. T��?

Mas Raul n��o p��de permanecer calado, porque ago��

ra, na Pol��cia Federal, n��o existem mais apadrinhados.

Teve de responder a um severo interrogat��rio, e depois

��� 170 ���

desceu para o por��o, a fim de deixar as impress��es

digitais.

Depois entrou no carro do advogado, que estava

estacionado no jardim do D.P.F. Encostou-se no assen��

to e, jogando a cabe��a para tr��s, soltou um suspiro.

��� Puxa, como �� bom a gente livrar-se dos tiras!

��� Voc�� n��o est�� livre ainda, Raul. A pol��cia vai

fazer um levantamento completo sobre as suas ativida��

des j u n t o aos contrabandistas. S�� que voc�� vai esperar

o resultado em liberdade.

��� Mas nada tenho a temer, pois n��o sabia que

ela agia ilegalmente.

��� Precisamos provar. Essa sindic��ncia vai longe,

pois ela n��o est�� no Brasil.

Raul voltou-se, encarando-o.

��� N��o est�� no Brasil? Como, se ainda hoje pela

manh�� estivemos juntos?!

��� Um dc seus amantes levou-a para Recife em um

de seus avi��es, embarcando-a para a Europa.

��� Amantes?!

��� Ora, voc�� �� bobinho, Raul. Aquela matrona

enganou-o em tudo: idade, atividades, a m o r . . . A sem-

vergonha abria as pernas para todos os compridinhos

que aparecessem, e voc�� n��o desconfiava de nada, quan��

do enfiava o seu. Empurrava, rindo, com a m��o aberta,

a cabe��a de Raul para o lado. Como voc�� �� inocente

rapaz! �� bom que veja o quanto as mulheres s��o fin��

gidas, falsas e simuladas. S�� assim dar�� um pouco de

valor aos homens que o . . .

��� Cale-se, por Deus! Falou Raul com ferocidade.

Seja l�� o que as mulheres s��o, mas elas t��m uma bu��

ceta. Para mim buceta �� buceta. Prefiro mil vezes

uma buceta velha, criminosa e falsa, a um cu de ho��

mem, de h o m e m . . . Raul escondeu o rosto com as m��os

abertas, e o advogado ficou assustado, ouvindo-o solu��ar,

sem encontrar palavras para o consolo. Depois de al-

g u m tempo o jovem limpou os olhos com as costas da

m��o, for��ando um sorriso.

��� Desculpe, hein? A gente tem de enfrentar tan��

tas coisas diferentes que v��o aparecendo! Ainda ontem

pensei que tivesse um futuro. E, no entanto, aqui es��

tou, deixando marcada em uma delegacia, mais uma

passagem. Sem mesmo saber que estava fazendo coi��

sas erradas. Parou um pouco e tornou a limpar os

olhos. Depois pensei que L��dia fosse amiga. Eu vivia

chateado e sozinho e e l a . . . ��la me f��z tudo isso. �� . . .

o pre��o de um ano de paz �� bem elevado.

��� Voc�� precisa desconfiar mais das pessoas, me��

nino. Aqui em S��o Paulo tem muita gente vigarista.

N��o v�� se metendo com qualquer vagabunda que apa��

rece, s�� porque lhe d�� um emprego ou algumas coi��

sas mais.

Raul falou, ir��nico:

��� Todo aquele dinheiro n��o deu para ver que

esp��cie de podrid��o a encobria, meu caro advogado.

O dr. Antonio ficou escarlate, e disse, sem gra��a:

��� Bem, bem, voc�� n��o poder�� sair da cidade en-

quanto o seu caso n��o ficar esclarecido na pol��cia. Gos��

taria que aceitasse um de meus apartamentos para es��

perar o resultado do inqu��rito.

��� N��o, n��o, obrigado.

��� Aonde vai ficar?

��� Tenho um amigo que mora no centro.

��� Qual �� o endere��o? Voc�� sabe, sou seu advo��

gado, e qualquer deslize de sua parte vai prejudic��-lo.

��� Ah! N��o existe segredo de endere��o. Meu ami��

go mora no Pr��dio Copan.

��� Telefone-me se voc�� precisar de alguma coisa.

O advogado refletiu. Quer dizer que voc�� n��o quer

ver o juiz?

��� Mude de assunto.

��� �� ��le que est�� me jogando para tratar de seus

casos!

��� 172 ���



��� Casos? Que casos? S�� existe este.

��� Mesmo assim �� um caso dif��cil.

��� Eu n��o pedi.

��� Mas voc�� �� s��. Se o juiz n��o se interessar por

voc��, ficar�� esquecido na cadeia.

��� N��o haver�� mais cadeia, eu lhe garanto. Estou

com os documentos em ordem. Estudei um pouco ��

noite, durante este ano. O meu amigo tem f��brica de

bijuterias. Trabalharei com ele e pagarei ao juiz o que

est�� gastando comigo.

O dr. Antonio riu.

��� Olha, sou um advogado muito caro. S�� trato de

casos da alta sociedade, e assim mesmo dos mais ricos.

��� Eu desconfio. Mas eu pago, nem se f��r para

trabalhar s�� para isso, e mando aquele velho asqueroso

para o inferno.

Num dos trinta andares do Edif��cio Copan, Raul

olhava a cidade mort��fera, que parecia ca��da a seus

p��s. Observava daquela altura vertiginosa que os edi��

f��cios n��o tinham aquela impon��ncia esmagadora. Eram,

agora, simplesmente umas casinhas de pombos que, com

apenas um ponta p��, se ele quisesse, destruiria tudo.

Debru��ou-se na marquise das amplas janelas, re��

lanceando os olhos por tudo que conseguia alcan��ar.

Sorriu, pensando que se a empregada n��o estivesse

no apartamento gritaria bem alto:

��� Cidade de S��o Paulo, olhe para cima. Estou

aqui, est�� vendo? Claro, voc�� est�� me observando com

os milhares de olhos que s��o as janelas dos seus ma��

jestosos edif��cios. Voc�� �� uma floresta de cimento ar��

mado. Quando estou a�� cm baixo, andando pelas ruas

cheias de vida, sinto um medo louco de voc��, pois sei

que devora, com essa intrusa boca esfuma��ante e t����

trica, dezenas de seres, todos os dias. Mas agora estou

por cima. Voc�� me parece t��o insignificante! T��o in��

significante que ��.s�� eu estender o bra��o e poderei es��

mag��-la com minhas m��os. Esmag��-la, esmag��-la, essa

�� a minha vontade.

��� Esmagar quem, hein Raul?

Raul virou de um golpe e falou, fixando Heitor, que

o olhava sem parar.

��� Esmagava, matava a cidade, essa cidade injusta

que agasalha em seu seio alguns de seus filhos cobertos

de seda e veludo. Joga outros pelas ruas mortas, com

fome ou frio. Faz com que eles comam lixo das feiras,

morem embaixo de pontes e n��o frequentem escolas.

Faz com que eles sejam escravos dos que voc��, cidade

maldita, cobre de ouro.

��� Engra��ado, todas as pessoas que me visitam fi��

cam a�� na janela, conversando com a grande cidade.

Parece que todo paulistano tem o mesmo pensamento,

quando est�� bem alto. Mas �� um fato. A gente, daqui

de cima, parece esquecer todos os problemas, parece

que �� inating��vel ��s punhaladas desses pr��dios pontia��

gudos. Mas vamos l��! Que prazer voc�� me d�� com a

sua visita! At�� que enfim lembrou de mim. Puxa, pen��

sei que aquela dona n��o o largasse nem por um ins��

tante. Mas sente-se e conte-me como v��o as coisas.

��� Mal, Heitor, muito mal, disse Raul, caindo num

sof�� estofado de curvim branco, correndo os olhos pelo

amigo.

��� Brigou?

��� B e m . . . n��o �� isso. �� caso com a pol��cia.

��� A pol��cia est�� �� sua procura?

��� Vim de l�� agora. N��o precisa ficar com essa

cara preocupada. Est�� tudo bem por enquanto. A L����

dia �� contrabandista.

��� Eu j�� sabia.

��� Sabia?!!!

��� Sim.

174

��� E por que n��o me avisou?

��� Ora, Raul, a gente n��o pode ir se metendo com

essa gente assim, sem mais nem menos. Heitor dirigiu-

se para a pequena cozinha e trouxe dois drinques. Be��

ba. Isto lhe far�� bem, pois voc�� est�� com uma ca��ra!...

��� Qual a cara que voc�� queria? Agora estou na

estaca zero outra vez. Tenho de come��ar tudo de novo.

Raul reclinou-se, fincou os cotovelos no joelhos e

escondeu o rosto nas m��os.

��� O que pretende fazer? Voltar para l��?

��� N��o, ela fugiu para a Europa e, depois, a casa

est�� interditada. Ningu��m pode entrar. Assim eu ouvi

l�� na pol��cia.

��� Ent��o voc�� ficar�� aqui, at�� lhe aparecer coisa

melhor.

Raul levantou-se e foi �� janela. Olhou longa��

mente para o Cine Metr��pole e sorriu. Voltou-se e

disse, meio embara��ado:

��� Mas n��o trouxe nenhum dinheiro. Nem mes��

mo para o cigarro.

Heitor abriu uma caixa, em cima da mesinha de

m��rmore branco e, entre os v��rios ma��os de cigarro,

apanhou um e ofereceu ao mo��o.

��� Quando acabar pode pegar mais.

��� N��o sei como agradecer-lhe.

��� A nossa amizade n��o significa nada? Heitor

sorriu. Tenho um lugar de vendedor l�� na minha

fabriquinha. Trata-se de um produto muito em mo��

da ��� "maria-chiquinha" ��� voc�� conhece? Ah! �� l����

gico! Estava acostumado a vender s�� coisas finas e

estrangeiras, n��? Agora, meu caro, voc�� vai ficar rico

vendendo as "marias". O riso de Heitor tomou o apar��

tamento. Garanto-lhe que n��o d�� cana porque est��

tudo em ordem. Heitor explicou o servi��o a Raul. De��

pois tomou-lhe o copo e o encheu novamente.

��� Voc�� come��ar�� amanh��, t��? Agora vou trocar de

roupa e vamos dar um giro pela bela cidade que tanto

o assusta.

Andando lado a lado com Heitor, jovem e alegre,

Raul ria, brincava e jogava piadas ��s mo��as. Sentia

que a cidade n��o era assim t��o antip��tica. N��o havia

pensado at�� .ent��o, que valia no meio de toda aquela

resplandente balb��rdia, estar-se bem com o esp��rito.

Nesse momento, seu esp��rito enfrentava o barulho en��

surdecedor da cidade que se humanizava sem aquela

preocupa����o de n��o ter futuro ou ser destru��do. Esta��

va alegre e sabia que essa alegria estava sendo exte��

riorizada, pois os passantes o olhavam com admira����o

e simpatia. Sentiu que Heitor o observava com uma

express��o c��nica.

��� Que �� que h��?

��� Puxa, voc�� �� um sucesso, rapaz. S�� vejo den��

tes arreganhados para o seu lado e gente que o olha e

vai andando e olhando para tr��s. Deixe-me ver o que

h�� com voc��. Fique a�� parado, assim. Heitor afastou-

se alguns passos, fixando o jovem de alto a baixo, gri��

tando depois.

��� Oh! Isso �� evidente. Voc�� sobressai a todos.

N��o tinha reparado at�� ent��o. Mas um homem assim

atl��tico, c��r de cobre, com os olhos azuis e cabelos de

ouro, n��o existe em S��o Paulo.

��� Como n��o existe? Raul ria, andando para Heitor

N��o estou aqui?

Riram.

��� N��o �� �� t��a que a balzaqueana estava gamada.

Voc�� �� mesmo um p��o.

Raul n��o sabia com exatid��o, mas sentiu alguma

coisa desagrad��vel esbarrar-lhe o c��rebro por alguns

segundos. Olhou de soslaio para o amigo e n��o gostou

de ser admirado por ��le. Mas logo voltou a ser feliz.

��� Vamos, Heitor, vamos. Voc�� ficou a�� parado,

em plena Bar��o de Itapetininga com os bra��os abertos.

A turma vai cham��-lo de louco. Raul enfiou o bra��o

no do amigo e cochichou:

��� 1 7 6 ���

��� O neg��cio �� a gente arranjar umas garotas.

Dois frangos assados, duas garotas. Raul e Heitor

entraram no apartamento.

��� Voc�� trate de ser o dono da casa, hein? Disse

Heitor. Vou fingir que sou visita.

Raul colocou discos na vitrola, abriu a mesinha

da sala com a ajuda das mo��as. Cantarolando e pu��

lando de c�� para l�� os jovens se divertiam. Jantaram.

Dan��aram e bebericaram algo.

Depois de algum tempo Raul piscou para Heitor.

��� Bem, disse Heitor, voc�� prefere o quarto ou

a sala?

Raul abriu o sof�� branco da sulinha e Heitor lhe

jogou algumas cobertas.

��� Se voc��s quiserem ocupar o banheiro, v��o l��

agora, n��, porque depois vou armar a cortina que ��s

vezes faz de porta. �� sempre nessa hora que lembro

de mandar colocar uma porta aqui. Mas juro, amanh��

vou providenciar.

Raul deitou-se com a mo��a e n��o esperou nada para

come��ar. Afagou-lhe o corpo, olhando-a nos olhos.

Beijou-a na boca, apertando-a de encontro a si. Al��

guns momentos depois os corpos suados se desgruda��

ram e Raul, de costas, ficou ouvindo. N��o queria ouvir,

mas era como se os outros dois estivessem deitados

em sua cama.

��� Ah, ah! Tro��ava a mo��a. Voc�� n��o faz nada!

��� N��o estou com pressa, dizia Heitor, com a voz

um pouco irritada.

��� Ora, os outros dois j�� gozaram, e n��s aqui fei��

tos bobos.

��� Cale-se!

��� Hei, Heitor, que �� que h��? Voc�� est�� atrasado.

J�� vou pr�� segunda. E melhor voc��s fr.larem mais

baixo porque se ouve tudo.

��� Heitor riu e disse:

��� Amanh�� vou mandar p��r a porta, voc�� vai ver.

��� 1 7 7 ���

XVI

Dois homens em ��xtase

��� Hoje faz dois anos que trabalho com Heitor,

pensava Raul, enquanto se dirigia para o apartamento

do amigo. Puxa, como o tempo passa! Estou com vinte

e dois anos e tudo est�� como antes: trabalho, trabalha

Quando recebo um aumento e penso em ajuntar um

pouco de dinheiro, tudo aumenta. Sorte que n��o pago

moradia. Imagine, se pagasse, n��o poderia nem vestir��

me decentemente. A vida �� muito dif��cil, mas a gente

tem vinte e dois anos e muita esperan��a. Esperan��a!

��� O juiz tem esperan��a, Raul. ��le sempre diz que

a esparan��a �� a ��ltima que morre e, mais dia menos-

dia, voc�� ser�� dele. A voz do dr. Antonio veio de longe.

Relembrou quantas cartas do j u i z rasgara nesses

dois anos. O dr. Antonio o esperava, na porta da ��a-

briquinha, e lhe estendia a carta.

Raul nem queria pegar no envelope. Olhava o

advogado, branco de ��dio, e gritava: rasgue! Era quase

todos os dias a mesma coisa. Ontem o advogado disse��

ra, rasgando a carta:

��� Voc�� vai matar o velho de paix��o, rapaz!

��� Pois que morra! Se fosse por mim, j�� n��o exis��

tiria sobre a terra esse velho canalha e imoral.

��� Ent��o, no mundo dos homens, abrir-se-ia um

v��cuo, hein, Raul?

179

��� Nem tanto. H�� muito n��o encontro sujeitos

da esp��cie de voc��s.

��� Fa��o votos para que j.ssim seja. Pois, mais um

que se curvasse para receber, menos um para me fazer

curvar.

Entrou no elevador e apertou o bot��o. Encostado

no fundo do elevador, lembrou de Jo��ozinho. A ��ltima

vez que fora a Batatais, soubera que o jovem pretinho,

agora com dezesseis anos, havia fugido com Carlinhos.

Recebera o endere��o das m��os de um dos menores in��

ternos e fora visitar o amigo. L�� chegando, fora in��

formado de que o mesmo n��o aparecia h�� muitos dias.

Saiu do elevador, desceu a rampa que levava ao cor-

T e d o r dos apartamentos. Estranhou encontrar a porta

do apartamento entreaberta mas, ao entrar, ouviu vo��

zes cochichando no quarto e sossegou, pois reconhecera

que uma das vozes era do amigo. Mas a o u t r a . . . a

outra tamb��m era de homem.

��� Bem, Heitor deve estar com um amigo e garotas.

Olhou o peda��o de cortina grossa fazendo de porta e

sorriu. Heitor n��o tinha jeito, mesmo. Dois anos e

neca de porta.

��� Ah! vou mandar colocar a porta amanh�� logo

cedo, dizia, mas a porta n��o aparecia.

Silenciosamente, pois n��o queria revelar sua pre��

sen��a, Raul esticou-se no sof�� e, pondo uma almofada

debaixo da cabe��a, ficou olhando para o nada.

Logo que descansasse um pouco, sairia para deixar

o amigo �� vontade com suas visitas. Mas por que Hei-

tor n��o o avisara? Haviam combinado que, quem fosse

ocupar o apartamento para encontros amorosos, avisaria

o outro. Ficou cismando no escuro, com os olhos fixos

no teto.

Agora a voz de Heitor passeava pelo quarto.

��� Eu o amo, eu o amo. Eu o amo tanto!

Raul sentiu um tremor horr��vel percorrer-lhe o

corpo, arrepiando-se todo. Quis levantar-se, mas sentia

uma ang��stia terrificante agindo como garras de ferro

a apertar-lhe o cora����o, impedindo-lhe os movimentos.

��� 180 ���

Limpou o abundante suor da testa. Sacudiu a ca��

be��a, esperando que tudo n��o passasse de um sonho.

Heitor! Teria ouvido direito? N��o, n��o! Talvez sonhasse.

Ou fosse muito malicioso. Heitor com um homem?

N��o, n��o. Oh! Deus, fa��a com que tudo seja engano.

Sacudia a cabe��a, sem for��as para levantar-se.

A voz de Heitor vinha cheia de l��grimas.

��� N��o me fa��a chorar, S��lvio, pois tudo o que

amo no mundo �� voc��.

��� Sim, meu amor, eu sei, eu sei. Mas os ci��mes

me matam. S�� de pensar que voc�� possa voltar a ser

totalmente homem me deixa louco.

��� Voc�� precisa compreender, dizia Heitor, que

pensei haver chegado a minha oportunidade, quando

fiquei apaixonado por Helena. Lembra-se, querido, que

me sentia feliz em mudar. Mas foi somente um sonho.

Tamb��m pensei em voc��, S��lvio. Se eu o deixasse na��

quela ocasi��o, provavelmente voc�� se faria homem.

Mas voc�� n��o quis renunciar. Voc�� se agarrou a mim

e me f��z prometer que n��o amaria outra pessoa na vida.

��� Agora n��o sou livre. N��o posso iludir e pro��

meter amor a quem quer que seja. Tenho a seguran��a

de o amar e ser amado. Por isso, meu queridinho, n��o

deixe que as l��grimas sejam a recorda����o desse nosso

encontro.

��� �� que voc�� me parece t��o distante!

Raul os ouvia, petrificado. Viu a cortina afastar-

se e a figura alta e magra ae Heitor, completamente

nu, atravessar a sala banhado com a luz p��lida, vinda

da porta. Pensou em levantar-se, agarrar os dois pelo

pesco��o e apertar, apertar at�� que ca��ssem arroxeados

e com a l��ngua de fora. L��nguas nojentas daqueles se-

mihomens. Sentiu-se sufocado, sem poder respirar,

quando viu S��lvio tamb��m nu. Vinha ao encontro de

Heitor, que estava no meio da sala. Raul fazia um es��

for��o enorme para fechar os olhos. N��o queria ver,

n��o suportaria ver aqueles dois homens nus na sua

frente, agarrados, boca na boca, e as m��os afagando

ou apertando os p��nis.

Aquela vis��o queimava-lhe os olhos, que permane-

��� 181 ���

ciam esbugalhados. Sentia uma dor aguda a trans-

passar-lhe o cora����o, enchendo-o de ang��stia. Mental-

mente pedia a Deus que o amigo o visse ou que

acontecesse qualquer coisa, at�� mesmo o matasse, mas

n��o o deixasse presenciar aquilo. Queria tapar os olhos,

mas os bra��os permaneciam hirtos e pareciam pesar

toneladas.

Procurou pensar em outra coisa, quando sentiu

que eles, do jeito que estavam, jamais notariam a sua

presen��a. Por que fora ficar naquele cantinho t��o

escuro? Por que eles ficavam assim, naquele foco de

luz? Por que n��o iam para a cama? Por que? Deus,

Deus, Deus! Viu-os largarem os sexos e apertarem-se

as n��degas. Com m��os ��geis, que subiam e desciam,

��s vezes parando por minutos no meio das carnes sa-

lientes. Olhavam-se fixamente, com os olhos em fogo,

bocas semi-abertas. Heitor ajoelhou-se e levou a boca

ao p��nis do outro, sugando freneticamente. O corpo

de S��lvio tremia, balan��ava como um coqueiro vergas��

tado pelo vento, jogando pelo infinito seus uivos laci-

nantes. Aquele m��sculo que se esticava, que latejava

na boca de um outro homem. Era um m��sculo de

homem. Oh! Santo Deus! Que seria aquilo? Raul sen-

tia escoar-se sua consci��ncia. Fazia um esfor��o sobre��

humano para quebrar aquela t��trica muralha e perder��

se no sono ou na morte. Mas os dois homens, como

dois guerreiros, lutavam na busca da lux��ria que cres��

cia ins��litamente, arrogante, cruel e, contudo, mes-

clada de beleza. Dois homens. Talvez l�� no fundo,

bem no fundo do seu ��ntimo fossem machos. Dois ma��

chos que n��o se sentiam contrafeitos ou humilhados

por aquela terr��vel luta. S�� tinham um pensamento:

satisfazer as necessidades que sabiam ser importantes

para qualquer um dos dois. Nenhum dos dois queria

fracassar. Eram dois machos arriscando tudo na vida.

Jogados no ch��o, sexo contra sexo, em estocadas r��pi��

das, em gemidos surdos. Eles n��o pensavam em asco

ou desprezo. Sentiam-se unidos, sem mesmo saber como

acabariam a luta. Heitor deitou-se sobre aquele corpo

masculino que esperneava e se mexia debaixo do seu, se��

quioso de desejo. Agarravam-se, apertavam-se beijavam-

se, gritavam e gemiam. Debateram-se, estremeceram.

182

Heitor jogou a cabe��a para tr��s, e rangendo os dentes,

caiu exauto para o lado, respirando assustadoramente.

Animais, c��es. Uiavam, rangiam. Eram uns per��

feitos animais.

��� C��es, c��es, c��es! A voz rouca e t��trica de Raul,

como uma f��ria, saiu em vulc��es atrav��s de sua gar��

ganta seca, caindo como ducha fria nos dois amantes

enrodilhados no ch��o.

Heitor pulou, acendeu a luz e aproximou-se do

sof��. Viu que Raul estava com os cabelos empapados

em suor, olhos fixos, parados. O rosto abrasado e as

m��os crispadas.

Os dois mo��os vestiram-se rapidamente e procura��

ram prestar ajuda ao j o v e m que se debatia, como em

pesadelo. Aos poucos Raul voltou da inconsci��ncia. A

voz de Heitor parecia vir de longe, muito longe. Ouvia

a pr��pria respira����o arquejante, num esfor��o enorme

para os pulm��es receberem ar. Sentia-se fatigado mas,

mesmo assim, quando viu o rosto de Heitor debru��ado

sobre o seu, sentiu-se vestido de uma for��a herc��lea,

que f��z seu punho fechado ir de encontro ao nariz sua��

do do amigo. Depois, cambaleante, saiu do apartamen��

to e, ante o olhar assustado do pessoal do elevador, deu

vaz��o ��s l��grimas, que jorravam dos seus olhos. Pen��

sou em sair correndo. Correndo para fugir. Mas fugir

para onde?

Estava outra vez completamente s��, fazendo parte

daquela imensa multid��o de paulistanos.

Novamente, os altos pr��dios eram admirados por

aquele olhar de um azul profundo, trazendo-lhe a recor��

da����o de que a seus p��s caminhava algu��m espiando

para dentro do seu ser. Via tudo ser assassinado aos

poucos. A ��ltima punhalada ainda sangrava abundan��

temente, e fora desferida por seu ��nico amigo.

��� ��nico a m i g o . . . mas, e o Jo��ozinho? Limpou

os olhos, levantou a cabe��a e com um p��lido sorriso

f��z sinal a um taxi.

Na Rua Volunt��rios da P��tria deram-lhe o novo

endere��o do pretinho.

Na Vila Guilherme. Raul dispensou o carro e bateu

��� 1 8 3 ���

�� porta de uma casa. Um homem mal-encarado o

atendeu.

��� Aqui n��o mora n e n h u m Jo��ozinho de S a n t o . . .

��� Mas, l�� no outro e n d e r e �� o . . .

��� O que o senhor quer dele?

��� B e m . . . fui criado no abrigo de menores j u n t o

com �� l e . . .

��� Deixe-o entrar, Portuga. ��le �� chapa. De bra-

��os abertos, com todos os dentes b r a n q u i n h o s aparecen-

do, Jo��ozinho veio para ��le. Que diabo o trouxe aqui.

amigo?

��� Ora, que p e r g u n t a ! Respondeu Raul, a p e r t a n d o

com a m��o aberta o pesco��o do pretinho, fazendo-o do��

brar-se sobre a barriga.

��� A nossa amizade n��o vale nada?

��� Claro. Mas n��o gostaria que voc�� me encon��

trasse assim.

O rosto do menino demonstrava uma tristeza

imensa.

J�� estavam no q u a r t o do rapaz. Raul sentia a tes��

ta m o l h a d a de suor e secura na g a r g a n t a , e n q u a n t o ia

olhando o que Deus reservara ao a m i g u i n h o , depois

do abrigo do governo. Um q u a r t i n h o com as paredes

sujas e m a n c h a d a s , de onde exalava um cheiro acre

de urina.

Uma cama com colch��o quase sem palha, coberto

parcialmente por um len��ol encardido, endurecido de

esperma, e sangue de pulgas. Sobre uma velha mesi��

nha, alguns cigarros, estojo, seringa, agulhas de inje��

����o. Na parede, uma blusa verde desbotada, p e n d u r a d a

em um prego. Raul voltou-se para encarar o amigo,

mas seus olhos ficaram colados a t r �� s da porta, onde

u m a figura mostrava Jesus, com doze anos, p e r a n t e

os doutores do templo. Como Jesus era belo! Os rolos

de cabelos dourados brilhando e os meigos olhos azuis.

Jesus sorria suavemente para ��le. Jo��ozinho seguiu

o olhar de Raul.

��� Est�� ali porque ��le se parece com v o c �� . . . e

t a m b �� m porque parece lavar toda a sujeira com que o

��� 184 ���

governo me cobriu. Essa lama que me cobre parece

feder menos quando olho para ��le.

Raul emocionado, n��o p��de responder.

Sentou-se na imunda cama, envergando-se com as

m��os, escorando a testa, e fitou demoradamente o ch��o

sujo de madeira apodrecida. Depois levantou o rosto

e encarou o amigo, que procurava fazer desaparecer as

coisas que estavam em cima da mesinha. Com voz

triste o chamou.

��� Jo��ozinho?

��� Sim.

��� Por que?

��� Por que o qu��?

��� Toda essa imund��cie.

��� O Brasil me ofereceu.

��� M a s . . . Jo��ozinho.. .

��� N��o h�� "mas", Raul. Voc�� vai dizer para eu

lutar, enfrentar tudo de cabe��a erguida, pois ainda

sou novo. Quando fugi da Col��nia Agr��cola de Ba��

tatais, tentei. Mas n��o existem portas abertas para

um semi-analfabeto, sem profiss��o, e ainda por cima

negro. Negro no Brasil �� jogador de futebol, cantor,

lixeiro ou marginal.

��� Mas voc�� n��o �� um marginal, Jo��o.

Jo��ozinho riu debochado, relanceando os olhos pelo

quarto.

��� E essa toca imunda pode guardar algo que n��o

seja um criminoso?

��� Jo��ozinho! Raul levantou-se e agarrou o preto

pelos bra��os. N��o fale assim. Voc�� ainda �� uma

crian��a e n��o sabe o que �� estar com uma mancha

rubra de sangue no c��rebro. Sangue que fizemos bor��

bulhar de um ferimento feito por nossas m��os, num

ser igual a n��s. Voc�� n��o sabe, meu amigo, o que ��

sentir em todos os minutos da vida, a sensa����o comi��

chando na m��o da gente, da faca entrando na carne

mole, e depois o cheiro de sangue. Isso n��o nos larga

mais. Eu n��o consegui esquecer, amigo. Penso que

'amais esquecerei.

185

Jo��o arrancou-se de suas m��os e encostou-se ��

porta, com as m��os para tr��s, olhando para Raul.

��� A possibilidade de ser um homem honrado, eu

a perdi nos abrigos do governo. O governo f��z gelar

as ra��zes do que se chama amor, afei����o, respeito. Eu

sei que tudo isso poder�� matar-me, mas meu cora����o

j�� n��o aceita * qualquer bom sentimento. L�� dentro

est�� tudo em sombras, tudo gelado, tudo e s c u r o . . .

Ah! Se algum diretor, algum vigilante, algum graduado

algu��m, uma alma qualquer, tivesse alimentado uma

luzinha, uma t��nue luz no meu esp��rito! Tenho certeza

de que a aumentaria pouco a pouco, at�� torn��-la lumi��

nosa, brilhante e jubilosa como o sol. Mas eles, os do

governo, jogaram-me neste po��o fundo, e f��tido. Sei

que n��o ficar�� s�� nisso. Eles ainda v��o encher o po��o

de estrume, lixo e lama e eu ficarei esmagado, sufo��

cado a t �� . . .

��� Jo��o, por Deus! Por esse Jesus que est�� acima

de sua cabe��a! N��o pense assim! Se voc�� praticou algo

errado, estou aqui para ajud��-lo a erguer-se. Agar��

re-se a mim. N��s dois n��o tombaremos. Vamos sair

dessa podrid��o. Vamos, v a m o s . . .

��� Para onde, Raul? Voc�� est�� na escurid��o, como

eu. N��o tente enganar-me, pois tamb��m a voc�� eles

fizeram sentir na escurid��o. O pior �� que vemos dia

a dia, reunir-se a n��s um parceiro. N��o tenho ainda

as m��os tintas de sangue. Ainda n��o matei. Meu

neg��cio �� no assalto. Estou metido numa quadrilha de

ladr��es assaltantes. Guardamos as mercadorias rouba��

das nesta casa e aqui temos nossas reuni��es.

Raul come��ou a andar pelo quartinho, com as duas

m��os apertando a cabe��a.

��� Por Deus, Jo��o! Voc�� n��o ter�� um jeito de sair

disso?

��� N��o, Raul! agora existe uma grande dist��ncia

entre eu e a sociedade. N��o posso mais incluir-me en��

tre os que esperam ter um futuro. Eu estou tombado.

Em dois anos tive mais de vinte passagens pela pol��cia.

Raul parou de andar e caiu pesadamente na cama.

��� Mas como voc�� entrou nessa? Olha que eu passei

��� 186 ���

o diabo. Dormi na rua, passei dias sem comer, mas

nunca pensei em me enchamerdear pelo crime.

��� ��, Raul, eu acho que o preto �� mais fraco. O

sangue do preto, penso eu, �� mais revoltado, grita mais

alto pela vingan��a. No come��o, eu tamb��m pensei em

me dominar, mas, Deus seja louvado, j�� era muito

tarde. No meu primeiro assalto, na hora em que esta��

va revistando os bolsos da v��tima abatida por mim

com uma coronhada, elevei uma prece ao Senhor, im��

plorando para que n��o o deixasse morrer. Lembro-me

que era uma noite escura e fria. Eu tinha vagado o dia

inteiro tiritando de frio e com pontadas doloridas no

est��mago vazio.

��� Sentia um suor gelado banhar minha testa.

Lembro-me que, por alguns instantes, tive a impress��o

de que ia desmaiar. Amparei-me no tronco de uma fron��

dosa ��rvore, assolada po*r um vento leve, jogando ao

ch��o in��meras flores em formato de orqu��dea. Olhei

meio estonteado aquela chuva dourada, quando um

carro freou bruscamente e, da portinhola, um j o v e m

perguntou:

��� Hei, est�� passando mal? Que �� que h��, chapa?

��� Estou com fome.

��� Fome? E voc�� vai cair de fome justo no bairro

mais elegante de S��o Paulo? E na rua Canad��? Burro,

hein, crioulo? Com fome a gente deve cair nos "moc��s"

dos companheiros. Venha, vamos dar uns giros por

a��, eu tamb��m estou duro e preciso levantar uma nota.

��� Entrei no carro e ��le logo me perguntou:

��� H�� quanto tempo voc�� est�� em perigo?

��� H�� dias eu fugi do Abrigo de Menores.

O mo��o deu uma cotovelada no que guiava.

��� Mais um daquele inferno. Quanto tempo voc��

ficou l��?

��� Entrei com seis anos e fugi com quinze.

��� Quer dizer que voc�� tem quinze anos? Juro que

lhe dava uns dez. Puxa, como voc�� �� franzino, deve

ter passado muita fome, hein chapa? Agora vamos ver

se voc�� �� linha de frente. Pegue essa "m��quina" e

��� 1 8 7 ���

v�� buscar a grana daquele trouxa que vem vindo. V��

logo, chapa e se n��o a s s a l t a r . . . bem, meu dedo est��

co��ando no gatilho, ent��o vamos ver de que c��r s��o

os miolos dos pretos. Foi dizendo isso e me empurran��

do para fora do carro.

��� Eu acho que nem precisava dar a coronhada,

pois o pobre velho, assim que viu a arma apontada

para o seu peito, ficou apavorado e pediu:

��� N��o me mate, garoto, por Deus. Vou indo para

o trabalho, tenho filhos pequenos que precisam de mim.

��� Meu dedo est�� co��ando, negrinho. Vamos, tra��

ga a grana do velho. A voz do bandido, l�� do carro,

e a voz tr��mula do velho ali t��o perto. Eu tremia

tanto! N��o sei porque o velho n��o dava um tapa no re��

v��lver e saia correndo. Que velho idiota! Mas logo ima��

ginei o motivo. Atr��s de mim, o mo��o do carro tam��

b��m apontava sua arma.

��� Raios o partam, negrinho filho da puta. Va��

mos, pegue a grana. D��-lhe uma coronhada na cabe��a,

vamos, e deu, ent��o, uns tirinhos.

��� N��o, n��o! Eu t e n h o . . . f i . . .

��� Nheque, nheque, nheque, o a��o no cr��nio do

velho, e eu pensando que uma maneira de sobreviver ��

matar. Levei um pesco����o.

��� Vamos, pegue a grana, negro mole. Acho que

n��o vai servir para o nosso bando. Como se aquele

velho estivesse a��, Raul, eu o estou vendo agora, com

as roupas velhas, desbotadas, e alguns trocados no

bolso. Uma terr��vel m��goa penetrou em meu cora����o,

enquanto eu olhava o sangue escorrer daquela feia fe��

rida em sua testa. Curvei-me para limpar-lhe o san-

gue, de repente, a cara do velho foi-se transformando

na cara do vigilante l�� da Col��nia, que quase me mas��

sacrou na ��ltima surra que me deu. A��, ent��o, fui

possu��do de uma for��a estranha, que me cegava, e me

levava a dar pontap��s naquela cabe��a envolvida pelo

sangue vermelho vivo. Quando a raiva passou, senti

que o mo��o do carro me contemplava com um sorriso

c��nico. Puxou-me pelo bra��o e empurrou-me para o

carro, dizendo ao que guiava:

188

��� Ele �� brasa, chapa. Poder�� ficar conosco. ��

um pivete que dar�� trabalho aos tiras. ,

Jo��ozinho calou-se. Depois virou-se para Raul, que

permanecia de cabe��a baixa, com os cotovelos apoiados

nos joelhos.

��� Vou ver se cavo alguma coisa pr�� gente c o m e r . . .

roce deve estar morto de fome.

��� N��o, agora n��o. Mas me conte o resto. Raul

levantou-se, apoiou a m��o na mesinha, ouvindo atenta��

mente o pretinho.

��� Desde ent��o, passamos a dar uma s��rie de as��

saltos. Como eu era magrinho, entrava pelo vitr�� das

casas, quando as pessoas estavam viajando, e abria a

porta para a turma. Depois comecei a dar ordens.

Agora aqui estou, comandando uma quadrilha de peri-

gosos delinq��entes. Esse a�� que lhe abriu a porta �� o

Portuga, chefe dos traficantes de entorpecentes. ��le

passa "fumo", "bolinhas", "garrafinhas". Com a gente

n��o tem problema, vai tudo. O engra��ado �� que a

gente, ��s vezes, tem medo. Sente um medo enorme

desse bruta burac��o que se cavou, e que vai ser a sepul��

tura da g e n t e . Mas n��o pode mais afastar-se, pois j��

se est�� praticamente enterrado. De um lado �� a pol��cia

que nos cal��a devagar, pois, se voc�� resolve regenerar��

se, arranjar um empreguinho e ir levando a vida, qual��

quer crime misterioso que acontece, a pol��cia vem �� sua

procura. De outro lado s��o os companheiros. Se a

gente pretende regenerar-se, nos chamam de covardes,

de sub-homens, e mais outras pedradas. A gente fica

com vergonha e cada vez se atola mais, s�� pr�� mostrar

que �� c o r a j o s o . . . Jo��o deu alguns passos de l�� para c��,

levantando-se, abaixando-se e levantando-se novamen��

te, batendo as m��os nas coxas.

��� Pois ��, chapa velho. Comecei a rolar com seis

anos e at�� agora n��o parei. Bem, agora vamos ouvir

voc��. Que est�� fazendo? Por onde tem andado? Acho

que n��o est�� muito feliz, hein? Sua apar��ncia n��o ��

das melhores. P��lido, nervoso, mal-arrumado.

Raul ficou pensando que, talvez, fosse um erro

ter vindo. Mas Jo��ozinho era o ��nico amigo que lhe

restava na vida.

189

��� Bem e u . . . quero d i z e r . . . trabalhava.

��� Trabalhava?

��� Sim, despedi-me hoje, p o r q u e . . . p o r q u e . . . Ora,

o porqu�� n��o interessa. Fiquei sabendo agora que n��o

�� t��o importante como os seus problemas.

��� Pioblem��s?! Que problemas? J�� os tive, quando

deixei a Col��nia. Comi at�� lixo. Mas agora, agora

pr�� frente, Raul.

��� Pr�� frente no crime n��o �� solu����o. Eu vou aju��

d��-lo a fechar o buraco.

��� De que maneira? Dentro do buraco existem vin��

te crimes, vinte advogados, que levam quase todo o di��

nheiro dos assaltos, e alguns pol��cias, que vivem abrin��

do a caixinha para a gente encher de grana alta. Se

n��o encher, cana alta. Cana. Cana.

��� Mas o mais importante n��o �� isso, chapa. O

mais importante �� como lhe d i s s e . . . dentro do peito,

dentro do esp��rito n��o h�� mais nada. Est�� vazio.

��� Podemos encher novamente. Tenha confian��a

no futuro. Eu tenho um conhecido que �� advogado, e

dos bons. Se eu pedir ��le o ajudar�� a tapar o buraco,

e gr��tis. Voc�� vai v e r . . .

��� Voc�� �� que vai ver, se eu sair daqui. H�� por

a��, escondidos, nas malocas, dezenas de policiais �� mi��

nha procura. Acho at�� bom dar o fora, pois se eles o pe��

garem aqui, voc�� ir�� para o belel��u. Voc�� sabe, n��? A

pol��cia, quando est�� �� procura de algu��m que tem mais

de vinte passagens, pode ter certeza, ��lej atiram mesmo ��

pr�� matar. Agora a pol��cia n��o est�� de brincar, n��o.

O pretinho pigarreou, observando Raul. Talvez fosse

uma boa id��ia eu mudar de ambiente, isso sim, pois na

pr��xima semana farei dezoito anos, e quero entrar na

maioridade como "mo��o" mais limpo, pois aqui tenho

a impress��o de que vou sufocar.

Enquanto o pretinho falava, Raul sentiu o esp��rito

perturbado, pois lembrou que n��o tinha para onde ir

e perguntou a si pr��prio se aquela apar��ncia jovial e

corajosa do amiguinho n��o estaria escondendo o horror

da solid��o de n��o ter um lar.

- 1 9 0 ���

��le sorria e estufava o peito, quando falava na

maioridade. Maioridade em um novo "moc��". Havia

qualquer coisa de estranho nos modos do menino Raul

percebia que ��le sentia-se mal com a sua presen��a.

Por isso levantou-se e despediu-se.

��� Bem, Jo��o, voc�� n��o quer mesmo tentar? Passar

uma esponja no negro passado, n��o ��? Pois bem, o que

importa agora �� que voc�� vai ser. Cuidado, amigo. O

senhor ser��, na pr��xima semana, o respons��vel pelos

seus atos. At�� aqui era o juizado. Mas daqui pr��

frente, cadeia. E voc�� sabe, cadeia faz da gente um

outro homem. Nos fomos feridos l�� no juizado por

uma por����o de coisas que n��o sabemos bem o porqu��,

mas cadeia fere a gente. Se voc�� j�� tiver uma ferida

aberta, eles j o g a m salmoura.

Jo��ozinho sorriu.

��� Eu n��o posso mais escolher, chapa. Tanto faz

o juizado como a cadeia. Jamais conseguirei esquecer

que o Brasil me feriu fundo e que transformou meu

mundo para sempre,' destruindo meu esp��rito. Agora

n��o adianta mais nada, nada, nada.

Raul chegou at�� �� porta e Jo��ozinho pulou �� sua

frente.

��� Calma, chapa, preciso manjar o caminho. Saiu

para o corredor e, pela fresta da porta da frente, relan��

ceou o olhar pelo bairro. Venha, Raul, a barra est��

limpa.

Eles se despediram, m��os nas m��os e, quando fixa��

ram-se nos olhos, Raul sentiu um arrepio percorrer-lhe

o corpo. Estava vendo aqueles olhos de doze anos atr��s,

quando o pretinho surgiu no banheiro em que ��le estava

se banhando, l�� no Abrigo de Menores da Celso Garcia e,

com os olhos cheios de desespero, implorou-lhe para es��

cond��-lo, pois o graduado queria espanc��-lo mais, devido

haver urinado na cama. Tamb��m agora seus olhos pa��

rariam pedir socorro.

Foi com essa vis��o que Raul comprou um jornal.

Apanhou um ��nibus para o centro e, lendo, chegou ��

cidade. Tinha recortado alguns an��ncios de emprego.

O que mais lhe interessou foi o de chofer particular.

��� 191 ���

XVII

O Sr. Ministro

A grande e- luxuosa mans��o enfeitava o Jardim

Europa. Seu dono, um milion��rio, ministro do governo,

homem de idoneidade indiscut��vel.

Raul fora contratado para ser o chofer da esposa

do ministro. Mulher bonita, alta, de trinta e seis anos,

cabelos negros e olhos aveludados, longos c��lios que

acariciavam Raul o tempo todo, atrav��s do espelho

retrovisor do luxuoso Mercedes.

Raul aprendeu a curvar-se ao abrir a porta e cha-

m��-la de 'madame". N��o era dif��cil lidar com uma

mulher milion��ria, fina, cheia de vontades.

Passava quase todas as tardes e parte da noite

encostado no carro, em frente ao fin��ssimo clube, en��

quanto a madame praticava esporte e fazia gin��stica,

sauna etc. Terminava a noite escostado no carro, en-

quanto a madame jantava, jogava ou participava de

festas. Dificilmente o sr. ministro a acompanhava.

Neg��cios de Estado o prendiam em companhia do pre-

sidente da Rep��blica.

Dormia num quartinho que dava fundos a um par��

que. Quando o dia come��ava a vestir-se de dourado,

levantava-se l�� pelas duas horas, quando come��ava a

vida da madame.

Almo��ava sempre correndo e jantava algum petisco

comprado em bares, enquanto a madame estava no clu��

be ou nas festas.

193

Tinha folga uma vez por m��s, e foi numa dessas

folgas que aproveitou para deixar o endere��o ao Jo��o��

zinho.

Com paci��ncia e respeito ele servia aos patr��es, at��

que madame sentou no carro e disse a Raul:

��� Eu vou guiar. Hoje n��o iremos ao clube. Va��

mos a Santos.

Vestida em mini-saia e uma blusa colante, fazendo

ressaltar os grandes seios, ela guiava com aten����o.

Uma vez ou outra, quando parava num sem��foro, olha��

va para Raul com um leve sorriso.

Embarcaram na balsa que os levaria ao Guaruj��.

Ela olhou para Raul, que havia encostado a cabe��a no

banco e fechado os olhos, tremendo, pois n��o queria

ver o lugar que lhe trazia t��o amargas recorda����es.

��� Pode acordar agora, j�� passamos o perigo.

Raul sobressaltou-se, 'levantou a cabe��a e fitou-a

assustado.

��� N��o fique assustado, o ministro est�� bem infor��

mado, e depois, tenho um amigo que o conhece, o qual

nos deu as melhores informa����es do mundo a seu res��

peito.

��� Um amigo?

��� Sim, S. Excia. o Juiz Paulo de Albuquerque.

��� Ei!?!

Um sol de fogo envolveu-lhe a cabe��a. Guaruj��

inteiro desapareceu. O rosto dela balan��ou num vai-e-

vem lento. Algu��m lhe batia no cr��neo com martela��

das doloridas.

O rosto dela estava bem pr��ximo do seu. Olhos

brilhantes, l��bios entre-abertos e ��midos. Sentiu-lhe o

perfume suave e o cheiro de f��mea.

��� Est�� sentindo alguma coisa?

��� J�� passou. Foram as recorda����es do crime.

194

��� Pensei que voc�� fosse desmaiar. S a b e . . . n��s

somos amigos do j u i z h�� anos e respeitamos muit��ssi��

mo as suas recomenda����es.

Se ��le nos disse que voc�� praticou um crime invo��

luntariamente, n��s n��o temos mais o que discutir.

Todos no mundo est��o sujeitos a se envolver em qual��

quer trag��dia sem querer. O ministro e eu o queremos

muito, por isso n��o se preocupe mais com o que pas��

sou, certo?

��� Certo. Raul respirou aliviado. Gra��as a Deus

eles n��o sabiam quem era S. Excia., o Juiz Doutor Pau��

lo de Albuquerque.

Passaram pela praia da enseada e se afundaram

em outras praias, todas solit��rias e tristes, naquela tarde

fria, chuvosa, negra e silenciosa.

A casa de madame era uma bela morada de praia,

como s�� pode ser a casa de um milion��rio.

Logo que entraram ela andou rebolante at�� o fundo

da grande sala. Ficando atr��s do bar, chamou o

mo��o.

��� Conv��m tomar algo, est�� muito frio.

��� N��o, obrigado. Raul permanecia de p��, com as

m��os cruzadas atr��s das costas, segurando o qu��pi. Ela

veio com dois copos de u��sque e deu um ao rapaz.

��� Beba, isto lhe far�� bem. Depjis pode tirar

essa farda horr��vel, vestir um biquini de banho. Olha,

ali naquele quarto h�� dezenas deles sem uso. �� s��

escolher.

Raul ficou olhando o biquini amarelo. Virava o

copo de c�� para l��, sem coragem de encar��-la. Sentiu

as orelhas arderem quando falou, fitando-a nos olhos.

��� Madame, permite que eu fique no carro?

Ela afundou-se na macia poltrona, esticou as per��

nas sobre um banquinho e, tomando o uisque aos go-

linhos, fixou Raul sem pestanejar.

Raul desviou a vista, pois a mini-saia tinha subido

��� 195 ���

tanro que toda a sua beleza de mulher aparecia envolta

em seda rosa transparente.

��� Sente-se, garoto. Se eu vim �� praia com voc��

�� porque me sentia muito s��. S��o Paulo, apesar de

oferecer-me tudo, est�� hoje para mim muito solit��ria.

Voc�� nunca se sentiu s��?

Raul n��o respondeu e continuou de p��.

��� Se voc�� quiser, poder�� passar um ��timo dia em

minha companhia.

Raul olhava os quadros na parede, os m��veis, os

bibel��s, os vasos. Foi at�� a janela, que estava com a

cortina descerrada, e fixou as ondas altas que se encon��

travam em um estrondo e depois deslizavam suavemen��

te, perdendo-se mar a dentro. Sem se virar, disse alto:

��� Tamb��m o mar, a praia, os coqueiros, as plantas,

as flores e a chuva s��o cheios de solid��o. Tudo o que

me cerca h�� vinte anos eu acho cheio de solid��o. Mas

a senhora do ministro, com seus amigos ricos! Sincera��

mente n��o acredito. Madame tem tudo na vida. N��o

compreendo.

Bebeu o uisque de um s�� gole. N��o compreendo,

repetiu. Ela veio at�� a janela com a garrafa de bebida

e encheu o copo do j o v e m outra vez.

��� N��o sou a mulher que todos pensam, meu bem.

Meu perene sorriso diante dos amigos, nas festas, nas

fotos das grandes revistas e jornais do Pa��s �� falso.

Eu coloco uma m��scara para essas ocasi��es, mas a ver��

dade �� que eu, l�� no fundo, sou infeliz. Falta-me o

principal: o amor. Entende o que quero dizer?

Raul abaixou a cabe��a. Ela apanhou o qu��pi de

sua m��o e o colocou no sof��, repetindo: entende o que

quero dizer?

��� E u . . . eu. Bem, eu n��o sou o homem que ma��

dame procura. Eu sou de classe inferior. N��o sirvo.

Esvaziou o copo novamente e, apanhando o qu��pi,

correu para a porta, mas parou bruscamente, quando

ouviu:

196

��� Ent��o �� fresco, como quase todos os que me

rodeiam.

Virou-se e andou com passos pesados at�� ela que,

rindo cinicamente, permanecia de p��, j u n t o �� janela.

Chegou o rosto bem j u n t o ao dela, estreitou os belos

olhos e, cerrando os dentes, ia falar, quando ela o

interrompeu.

��� Voc�� disse que n��o serve para mim. Como

sabe? O juiz a esse respeito sou eu.

Raul ia sacudi-la, mas mentalmente implorou a

Deus que lhe desse calma, pois precisava daquele em��

prego, como as plantas precisam de ��gua. Devido a

isso procurou alguma coisa para falar sem ofender uma

mulher daquelas.

��� Eu sou homem, homem macho. Tenho tudo

para dar a qualquer mulher. Tudo. Mas, por favor,

n��o me fa��a, n��o me obrigue a envolver-me com o que

mais detesto. Mulher velha com carnes fl��cidas, l��bios

brutais e cheiro, cheiro de suor.

Uma palidez de morte cobriu o rosto da madame.

Abaixou os olhos e Raul p��de ouvir as batidas do ��dio

que jorravam de seu cora����o. Por f i m . . . levantou os

olhos cheios de l��grimas.

��� Vamos para casa. Ela sentou-se no banco de

tr��s e n��o disse uma palavra at�� chegarem �� mans��o.

��� Pode guardar o carro.

Raul esticou-se na cama de seu quarto, e ficou o

resto do dia esperando, de minuto a minuto, que algu��m

batesse na porta, vindo dar-lhe a not��cia de que fora

despedido.

Ningu��m apareceu.

No dia seguinte como de costume, ��le estava encos��

tado no carro, estacionado na alameda da mans��o,

quando ela chegou de ��culos escuros.

��� Para o clube.

Raul sorria enquanto a observava pelo espelhinho.

Ela ficava olhando l�� para fora e Raul sabia que a

��� 197 ���

vaidade gritava em cada pedacinho da mulher. Na

carne, ossos, m��sculos, pele, nervos, tudo se retezava

quando ela se lembrava de que tinha sido ofendida no

mais fundo do seu ser. Velha e fl��cida. ��le tamb��m

estava consciente do que realmente ela representava.

Elegante, desej��vel, linda. Linda com aquelas coxas

acetinadas, um bronzeado brilhante. Aqueles olhos mei��

gos e luminosos. Aqueles s e i o s . . .

Como ��le a desejava!

Mas, seu emprego. O ministro t��o bom, t��o distinto!

Chegando ao clube, Raul saiu r��pido do carro, e

tirando o qu��pi, curvou-se, como sempre. Ela desceu

num repel��o e jogou no ar, com voz autorit��ria:

��� Siga-me.

A alta e elegante figura do j o v e m a seguiu com

um leve sorriso passeando em seus l��bios, mas levou

um choque quando o porteiro do clube o olhou com

desd��m.

��� Desculpe, madame, mas �� proibida a entrada

de choferes.

Madame virou-se afetada.

��� Hoje ��le n��o �� chofer, �� meu convidado. E de��

pois, sei que s�� �� proibida a entrada de choferes pretos.

Agora tamb��m os brancos? Isso para mim �� novidade.

��� �� proibida a entrada de empregados, minha se��

nhora. Mesmo as pagens que as patroas pagam uma

taxa especial para zelarem pelas crian��as, t��m entrada

por outro port��o.

Os olhos de Raul perderam-se l�� para o fundo do

aristocr��tico clube, onde brilhava no grande parque,

a encantadora piscina azul, coberta de coisas e pessoas

que andavam, deitavam, nadavam, numa balb��rdia en��

volta em risadas cristalinas. As alamedas floridas e

bem cuidadas, as frondosas ��rvores, jogando sombras

escuras nas pessoas esticadas nas longas cadeiras. Tu��

do isso o trouxe para a fria realidade. Existia um ne��

voeiro maci��o, cinzento e frio entre ��le e aquela so-

198

ciedade. O fator branco ou preto n��o ajudava muito

a cerrar aquela cortina nevoenta. O que valia mesmo

era o dinheiro. N��o sabia porque, mas lembrou-se do

dr. Antonio: "N��o interessa para a elite se a gente

arranjou o dinheiro vendendo o rabo'.

��. N��o era muito dif��cil romper o nevoeiro e

pular l�� para o outro lado, com montes e mais montes

de dinheiro para cobrir e mesmo afogar aqueles snobes

nojentos. ��le poderia desvanecer aquela extensa nebli��

na e renascer do outro lado, sentindo sempre aquele ar��

dor na sua dignidade de homem ou fortificando os cor��

nos do ministro.

Dos dois jeitos a cortina se abriria, mas s�� em pen��

sar nisso Raul sentiu-se t��o sujo, t��o enlameado que f��z

sua mente correr para buscar algo, em qualquer lugar

do infinito. O pensamento alcan��ou o o��sis na figura

do menino Deus, pendurada atr��s da velha porta do

quartinho imundo do Jo��ozinho.

Depois de receber uma polpuda gorjeta da madame,

o porteiro olhou para Raul e disse, guardando o dinhei��

ro no bolso:

��� Precisa entrar sem a farda.

Raul deixou no carro a t��nica, o qu��pi e a gravata

e com a camisa azul aberta ao peito, entrou no clube

olhando de soslaio para a bela mulher que seguia ao

seu lado, com um ar de aventureira h��bil, procurando

lev��-lo sob seus passos ou atra��-lo para uma cilada. ��le

n��o se recusara a segu��-la s�� por curiosidade.

O que pretendia mostrar-lhe a rica senhora?

Sentiu-se como um grande astro representando uma

com��dia, quando esticou-se nas almofadas de uma es��

pregui��adeira e, sorrindo, fixou as pontas lustrosas dos

seus sapatos. Adivinhariam os que o observavam ad��

mirados, que eram sapatos de um chofer? Da ponta dos

sapatos, seus olhos foram para madame que, rodeada

de rapazes, voltava num min��sculo biquini branco.

As m u l h e r e s . . . as mulheres s��o todas iguais, pen��

sava ��le. Tanto faz ser pobre ou rica. Quando se

��� 199 ���

v��m rodeadas de homens, ficam daquele jeito, como

cadelas no cio. Ela se jogou em uma cadeira em frente

a Raul e falava e falava, com cs belos dentes a mostra.

Os mo��os sentaram-se no ch��o, com as pernas cruza-

das fazendo parecer que seus sexos queriam voar bi��

quini afora.

Madame punha em execu����o seu plano. Queria

que Raul visse o quanto era querida e admirada por

rapazes jovens, bem mais jovens do que ��le. Queria

mostrar que mulheres de meia-idade ainda s��o jovens.

Que n��o precisava tentar ficar com os jovens, eles ��

que vinham a ela. Mostrava languidamente que o seu

corpo ficava t��o bem num biquini como uma mo��a de

quinze anos. Estava ali com os seus quase quarenta

anos, querendo ser disputada para o jogo de t��nis, o

banho na piscina, a corrida a cavalo, o jogo carteado

e t c , por jovenzinhos que poderiam ser seus filhos. N��o

queria imitar as mocinhas, que diziam nunca mudarem

porque eram jovens, e que mudava era quem queria

entrar no mundo delas, ou seja, essas donas j�� maduras.

Ela n��o, procurava ser aut��ntica no seu im�� de atrair

mo��os para o seu lado.

Foi quando ela o chamou para a beira da piscina,

depois de p��r a nocaute um j o v e m de dezoito anos, que

disputara com ela idas e vindas a nado. Chegou at��

Raul engolindo o ar aos solavandos, e disse:

��� Eu ganhei, e saiba que ��le �� mais jovem do

que voc��.

Raul compreendeu onde ela queria chegar e disse,

curvando-se:

��� J�� a entendi, madame. Agora pe��o permiss��o

para ir-me e recolocar a farda.

��le a observava jogar para tr��s, com as m��os, os

cabelos molhados, abrindo os olhos, com aquele brilho

de quem est�� ofendido.

��� Aposto que voc�� n��o entendeu. Segurou com

tanta for��a o bra��o do jovem, que este sentiu as unhas

cravarem em suas carnes.

200

��� Entendi, sim, madame. N��o sou assim t��o es-

t��pido e depois, n��o gostei do seu contato.

��� Que contato?!

Raul fitou a m��o morena e bem tratada.

��� Ah! Ela retirou a m��o rapidamente e finou es��

carlate. O que tem o meu contato?

��� Enoja-me.

��� Como se atreve? Os olhos dela fuzilaram.

��� Estou sendo sincero. Eu n��o sou como qualqusi

um desses jovens arrogantes, que freq��entam esse lu��

xuoso lugar, se portariam numa hora dessas, quando

tivessem diante de si, oferecendo-se escandalosamente

para ser penetrada, uma mulher que poderia ser sua

m��e. M��e muito necessitada. Penso e u . . . Raul sentiu

um zumbido forte no ouvido, quando levou a bofetada.

��� Palavra de honra, pensava Raul, enquanto pro��

curava o caminho da sa��da. N��o h�� nada que se possa

comparar com uma mulher sedenta de amor. Elas

s��o capazes de tudo. Essa agora cismou comigo. Puxa

vida! Que falta de sorte! Era a mulher de seu patr��o.

Se fosse lev��-la para a cama, s�� como distra����o, tinha

certeza de que nunca mais poderia libertar-se e teria

de ficar vivendo com aquela horr��vel sensa����o de que,

a qualquer hora, seria devorado por ela. A mulher,

pelo jeito, s�� pensava naquilo.

E tudo aconteceu exatamente como Raul deduzira.

Raul estava deitado em seu quartinho, quando o

chofer particular do ministro entrou e lhe disse:

��� Sabe que a cidade est�� limpinha de mendigos?

O governador mandou recolher todinhos.

��� ��timo. O jovem sorriu. Eles precisavam mes��

mo ter algu��m que olhasse por eles, coitadinhos. Espe��

ro que encontrem um tratamento humano e decente.

�� chocante ver tanta gente jogada daqui para ali, num

Estado t��o rico como �� S��o Paulo.

O chofer bateu o jornal dobrado que tinha nas

m��os, nos p��s de Raul.

��� 201 ���

��� Ora, bobo, n��o se iluda, �� s�� por um dia que eles

ter��o amparo. Depois da visita da Rainha Elizabeth

II da Inglaterra, eles ser��o jogados na rua novamente.

Raul n��o respondeu. Tamb��m, responder o que?

��� Tem mais, continuou o chofer. Hoje n��s vamos

ter a honra de conhecer essa tal de rainha Elizabeth.

Raul o olhou interrogativamente. Os sal��es da mans��o

ser��o aberto para render-lhe uma homenagem. Diz o

patr��o que ser�� uma festa informal. Voc�� vai ver

hoje o que �� festa. Por falar nisto, eu trouxe-lhe um

recado do mordomo. �� para voc�� vestir o uniforme de

gala e n��o esquecer de usar as luvas brancas. Haver��

muitos convidados que n��s teremos de levar para casa.

quando desejarem.

Da j a n e l a do seu quarto, Raul avistava, atrav��s das

in��meras ��rvores do grande parque multicolorido, pes��

soas que rodopiavam ao som de uma orquestra invis��vel.

J�� ia alta a noite, quando algumas pessoas come��aram a

retirar-se da bela recep����o que reuniu o mundo oficial

e militar e a sociedade brasileira.

Atendendo ordens, postou-se de m��os para tr��s,

para atender aos convidados.

Olhava distraidamente para o ch��o, quando o outro

chofer lhe disse:

��� Como o seu carro est�� na frente, voc�� leva aque��

le senhor que vem vindo em companhia de madame.

Raul levantou os olhos para o casal que vinha

chegando, e como um louco, saiu correndo. J�� quase

perto do quarto, encontrou um empregado, pedindo pelo

amor de Deus dizer �� madame, se ela o procurasse, que

estava passando mal e n��o podia trabalhar.

��� Ele deve estar muito mal mesmo, pois estava

branquinho como um len��ol e suava por todos os poros,

dizia o empregado para a mulher do ministro, enquanto

o outro chofer levava o dr. Paulo de Albuquerque atra��

v��s da imensa alameda, circundada por entre roseiras

que embalsamavam o ar com um aroma suave. Se��

guindo uma outra alameda igual, madame caminhou a

202

passos felinos e com a cabe��a levantada, aspirando apres��

sada o cheiro de macho que vinha do quarto de Raul.

Empurrou a porta, entrou e encontrou, surpresa

nas duas chamas azuladas que iluminavam o corpo nu,

alto, elegante e musculoso daquele j o v e m bronzeado de

cabelos de ouro.

Recuperando a sua presen��a de esp��rito, o j o v e m

enrolou rapidamente a toalha, colocando-a em volta de

seus quadris.

��� Desculpe, madame.

O olhar dela, cheio de risos se alongou para o sexo

do homem, agora encoberto, trazendo uma umidade ver��

melha e ardente para seus l��bios.

Sua beleza ampla de mulher fina e bem tratada ia

passo a passo se aproximando dele que, im��vel, aguar��

dava com o cora����o aos pulos. Sentiu a espuma rosa

de seu vestido de plumas brincar com os p��los do seu

t��rax, mas era nos p��los l�� de baixo que ��le sentia uma

ligeira comich��o, fazendo com que seu sexo tremesse,

como se tocado por um vento gelado de inverno. Raul

tragou o f��lego e se afastou alguns passos, encontrando

como ��ltimo ref��gio a parede. Estava encurralado.

De repente ��le se lembrou que tinha j�� passado por

muitas situa����es assim, l�� no juizado, quando era pe��

queno e ia ser castigado. O graduado, em sua frente,

com os olhos cobertos de ��dio, com a chibata na m��o,

e ��le pulando assustado de l�� para c��, at�� achar um

jeito de sair. Mas nunca conseguiu. Tamb��m n��o

haveria de escapar agora, quando sentiu, em vez de

lambadas em suas costas, as m��os macias e suaves de

madame que o alisavam, o apertavam e o amassavam.

Suas m��os estavam ca��das ao longo dos bra��os e fazia

um esfor��o enorme para que eles permanecessem assim

para sempre. Pensava em seu emprego. N��o podia

perd��-lo. Ai, Deus do c��u, n��o permita que minhas

m��os se mexam. Ela esmagava os l��bios grossos e sen��

suais contra os seus e, com uma das m��os arrancou a

toalha e foi ao encontro daquele nervo enorme e duro,

esticado e latejando freneticamente.

203

Uma raiva esquisita perpassou pelo seu esp��rito.

N��o queria estar daquele jeito. N��o queria, n��o devia.

Seus dedos abriam e fechavam e suas m��os iam subindo,

subindo, e seu c��rebro j�� n��o obedecia, pois o desejo

de f��mea urrava dentro do seu ser, e s�� tinha um pen-

samento : entrar na mulher, fosse ela patroa, empregada,

rica, pobre, casada, solteira. Ela, a mulher do ministro,

largou-se num abandono, oferecendo-se toda. Como um

louco, ��le beijou-lhe a boca, o pesco��o, os cabelos. ��s

vezes fazia sua l��ngua ��vida entrar na orelha, onde pen��

diam brilhantes que chocavam seu brilho com o p��lido

clar��o do luar infiltrando-se pela janela aberta. Pro��

curou seus seios, e ela, gemendo, os tirou de entre as

sedas de seu modelo parisiense, oferecendo-os ��queles

l��bios sequiosos, que os sugavam com tanta f��ria que

ela pensou que fosse at�� �� alma. Ela queria arrancar

o vestido e ser possu��da logo, pois o seu sexo la tejante

n��o podia esperar, mas ��le achou melhor s�� suspend��-

lo e, quando sentiu que ela n��o tinha nada por baixo,

viu redobrar o desejo. Respirando forte, for��ou, empur��

rou, empurrou para que tudo coubesse l�� dentro e, se��

gurando-a fortemente pelos quadris, levou-a �� loucura,

em estocadas profundas. Madame gemia e se retorcia,

gritava, chamava por ��le. Por um segundo, na mente

de Raul f��z-se um clarozinho de deboche, pois ��le era

a crian��a de ningu��m, o menino criado no asilo do

governo, assassino, analfabeto, estava deitado em cima,

misturando suas carnes nas carnes de uma das mulhe��

res mais vaidosas do Brasil. Uma mulher que s�� nesse

momento trazia sobre seu corpo j��ias que dariam para

matar a fome, durante anos, de crian��as asiladas. Mas

isso foi s�� pensamento de segundos, porque, sentindo

aquele corpo rebolar debaixo do seu, em gemidos acom��

panhados de breves gritos, n��o havia crian��a abando��

nada ou o diabo que o valha que o poderia deter. Ma��

lhava, malhava, com todas as for��as de seus vinte e

dois anos at�� sentir-se jorrar dentro dela. Depois, de��

pois, chegados um ao outro, e escutando a m��sica que

vinha l�� da festa, ela perguntou-lhe num sussurro.

��� Voc�� gostou dessa carne velha?

��le sorriu, pulou da cama, enrolou a toalha na cin��

tura e foi para o chuveiro.

- 204 ���

Ela levantou alizando o vestido.

��� Voc�� n��o respondeu.

��� Voc�� n��o se limpou.

��� N��o vou faz��-lo, pois quero sent��-lo comigo. Mas

voc�� n��o respondeu �� minha pergunta.

Nisso ouviram uma voz chamando o mo��o. ��le,

com a garganta a sufocar, foi at�� a janela, com a ��gua

a lhe escorrer pelo corpo.

Era um dos empregados, que o chamava para co��

mer algo.

Raul fechou a janela, pedindo ao empregado que o

esperasse. Vestiu-se rapidamente, e curvando-se ante

a madame, disse:

��� Vou com ��le para limpar o caminho. Ela o

agarrou, e beijando-lhe a boca, disse:

��� L�� fora gritarei toda a noite �� lua, ��s estrelas,

��s ��rvores, ��s flores, ao ar, que o amarei sempre. Mas,

responda por Deus minha pergunta, Raul.

��� Voc�� �� a velha que tem as carnes mais mo��as

do mundo.

Os dois jovens foram at�� a cozinha. Raul comeu

com apetite e depois saiu para um passeio e seus passos

o levaram para a frente da mans��o.

Fumando encostado numa ��rvore, ��le olhava l��

para dentro da mans��o os convidados dan��ando. Es��

treitou os olhos para ver se entre aquele amontoado de

smokings e elegantes modelos coloridos, divisava a sim-

p��tica e elegante rainha. Seus olhos encontraram ma��

dame, que rodopiava jovial e risonha nos bra��os do

marido. Bateu a cinza do cigarro e sorriu, quando

lembrou que a poucos momentos ��le estava dentro dela

e a g o r a . . . agora a cortina de neblina estava cerrada

diante de seus olhos. Do lado de l�� o dinheiro e do

lado de c �� . . . Mas s�� que dessa vez a cortina n��o estava

totalmente fechada. Tinha um rasg��o por onde ��le

via l��, no luxuoso sal��o, alguma coisa sua. Sim, pelas

belas e morenas coxas da linda mulher da sociedade,

corria o seu esperma.

205

No dia seguinte madame amanheceu alegre e can-

tando. No momento em que Raul passou sob as jane��

las de seu quarto para ir lavar o carro, olhou para

cima, quando a ouviu cantar e divisou, n u m amontoado

de rendas e fitas, o rosto cheio de risos, que lhe atirava

beijos. Admirou-se por ela estar acordada ��s sete ho��

ras da manh��. Ela tinha'horror de levantar-se antes

das quatorze. Pensou sorrindo: �� uma f��mea satis��

feita, uma f��mea feliz.

Apanhou o balde d'��gua e come��ou a ensaboar o

pano, quando aquela m��o morena e bem tratada, cober��

ta de j��ias, arrancou-lhe o sab��o.

��� Querido, disse baixinho. Vamos passar nossa

lua-de-mel no Guaruj��?

��� M a s . . .

��� N��o tem "mas" nem meio "mas". O ministro

vai para a Europa e eu n��o quis acompanh��-lo por sua

causa. Est�� ouvindo? Por sua causa.

��� Madame, eu n��o posso ficar muitos dias, prometi

a um amigo que iria visit��-lo esta semana.

��� Ora, meu bem, passaremos por l�� e voc�� far��

a visita antecipadamente.

Raul sobressaltou-se

��� L��?!

��� Sim. Est�� com ci��mes que conhe��a o seu

amigo?

Se ela soubesse! Raul divisou mentalmente o bairro

imundo, a casa caindo aos peda��os, e o sujo quartinho

do seu amigo. N��o, n��o. Preferia ir na volta. Entrou

no carro cheio de raiva, pois n��o era aquilo que buscava.

Queria trabalhar em paz mas nada contribu��a. Sempre

entrava em complica����es. Que chata! E agora aquela

m u l h e r . . . Bem, ficar em cima dela, em embalos ascen��

dentes e descendentes, com viol��ncia ou docemente, n��o

seria problema. Mas o ministro! ��le n��o merecia, era

t��o bonzinho!

206

XVIII

A Rainha da Inglaterra

��� Ele �� bonzinho, mas murcho. Ainda �� muito

mo��o, pois n��o tem quarenta e seis anos, mas vem sem��

pre esgotado. Voc�� sabe, pol��tica �� uma calamidade,

est�� quase sempre cansado para a cama.

Estavam sentados na areia, em frente ao mar. Ela

deitou-se com a cabe��a no colo dele.

��� Voc�� sabe, ainda sou j o v e m e preciso ao amor.

Vai ser triste, quando tiver de voltar. Sou t��o feliz aqui!

Ele afagou-lhe o rosto, em sil��ncio. J�� que esta��

vam juntos, tinhaqueser gentil. Ele n��o queria j u l g a r

nada, s�� que n��o ia dar certo. Nesses poucos dias, na

praia, madame mostrava uma fome sensual inesgot��vel.

Ele a sustentava, como o ar sustenta os p��ssaros livres:

oferecendo-se todo, com brisas leves e suaves ou com

rajadas violentas, na profundidade infinita. N��o que

isso importasse, ele tinha tanta pe��onha dentro de si

que daria para fazer inveja ao mar. Mas ele queria era

trabalhar. Trabalhar. E trabalhar como?

Como agora. Ela deitada de barriga, com o rosto

a fu��ar no meio de suas pernas, procurava o macho, e

n��o tinha passado meia hora que a tivera debaixo de

si, solu��ante e tr��mula. ��, ela n��o tinha jeito. Esti��

cou-se na areia, deitado de costas e arrancou o cal����o

de banho, mostrando ao sol ardente, ao c��u de um azul

puro e ao pl��cido mar, a sua juventude ereta. Gritan-

207

do virilmente, perdeu-se latejante dentro da boca fa��

minta da mulher.

Seus olhos se perdiam nas labaredas azuladas do

infinito, sentindo correr por suas veias o fogo que o

deixava embriagado.

Todo ��le se retorcia, estrebuchava dentro daquela

boca quente. Agarrou-a pelos cabelos, puxando-a para

cima de si. Focinhou nos seios morenos, mamou nos

bicos arroxeados e duros. Gritos, gemidos e choramin��

gos vinham daquele rosto suado, transfigurado sobre o

seu, onde os olhos se abriam assustadoramente. Bru��

talmente a jogou para o lado e, caindo-lhe por cima,

tentou tirar-lhe o biquini, mas ela j�� o tinha feito: ��le

mesmo n��o sabia como. Livre, rijo, entrou desvairado

na luta de carnes contra carnes.

Forcejou em movimentos lentos, naquele entra-e-sai.

Conforme a sentia mexer-se debaixo dele, ia acelerando

os movimentos, at�� atirar-se, em punhaladas profundas

e apressadas.

Resfolegando como um animal, ela o mordia, beija��

va-o, arrancava-lhe os cabelos e cravava as unhas em

suas costas, depois ficava mole, ca��da, sobressaltando-se

com qualquer toque em seu corpo.

Deitado de costas ao seu lado, Raul pensou que

aquela luta terminada haveria de deix��-la satisfeita por

uns dias.

��� Foi tudo t��o lindo, amor! Gostaria que, logo

mais, voc�� usasse esse mesmo m��todo de malhar, malhar

insistentemente com essa arma sem ponta, as minhas

entranhas. Oh! Deus, como �� maravilhoso!

Raul sentou-se r��pido e olhou-a assustado.

Ela estava de p��, vestindo o biquini.

��� Que olhos assustados! Disse algum inconve��

niente?

��� N��o. Raul riscou a areia com o dedo. S�� que

essa luta foi t��o grande para mim, tal como uma tor��

menta, e para voc�� f o i . . . f o i . . .

��� 208 ���



Sua gargalhada cortou o ar.

��� Uma chuvinha. Ora, bem, voc�� tem vinte e

dois anos. Eu j�� sou uma velha. N��o foi isso que

voc�� disse a primeira vez que aqui viemos? Lembra?

Foi l��, bem pertinho daquela janela.

E sua m��o apontou a luxuosa casa de praia.

Um m��s na praia e voltaram para a mans��o.

O chofer do ministro olhou perplexo para Raul.

��� Como a mulher o chupou, rapaz! Voc�� est��

com o rosto encovado. �� incr��vel como emagreceu!

Nossa Senhora!

Raul ficou escarlate.

��� Que mulher? Voc�� deve estar sonhando.

��� Ora, menino, essa mulher enlouquece qualquer

um. O outro n��o aguentou e deu o pira. Parou de

falar e foi at�� a janela, relanceando o olhar pelo par��

que. Bem, estou lhe falando isso porque tamb��m vou

dar o fora desta mans��o, pois o ministro est�� com os

bofes fora do lugar. Sabe que a mulher estava com

o neg��cio co��ando todos os instantes e pensa at�� que

ela voltou toda inchada, ou sei l�� como. Ela �� doente,

sabe? O ministro n��o pode fazer dessas extravag��ncias

de chegar ao osso. Ent��o d�� as suas escapadinhas

para o Exterior. Mas quando volta, fica nervoso e

amargurado. Sabe como ��, ��le a ama profundamente.

��� N��o sei do que voc�� est�� falando, disse Raul,

ligando o r��dio e fazendo o quarto encher-se de sons

musicais. O chofer praguejou e saiu.

Nos dias que se seguiram, o mo��o n��o teve um

momento de descanso. Madame, em vez de ir ao clube,

como fazia sempre, o levava para o apartamento no

centro da cidade e a�� passavam as tardes.

209

Ela comprava jornais e revistas, que ficavam lendo

depois das lutas sexuais. Uma tarde, ao ler o jornal,

Raul viu que fora formado um "Esquadr��o da Morte"

na policia, que estava limpando a cidade de criminosos

irrecuper��veis. Estremeceu ao pensar em Jo��ozinho, e

decidiu visit��-lo.

Olhou para madame, que preparava algumas be��

bidas.

��� Amanh�� n��o virei aqui.

Ela encolheu os ombros e n��o disse nada.

��� Escutou?

Ela limitou-se a olh��-lo e n��o disse nada.

��� Responda.

��� Ela chegou sorrindo, com os dois copos cheios de

bebida c��r de ��mbar.

��� Sei que voc�� vir��. Ela estava sufocada de ci����

mes, mas n��o queria que ��le percebesse. Queria que

alguma id��ia lhe assomasse a mente, pois n��o queria

ficar sem ��le nenhum dia.

��� N��o, n��o virei.

��� Querido, amanh�� pensei em ir ver o carro que

lhe prometi. Lembra, combinamos que ia emprestar

o dinheiro para voc�� colocar um carro na pra��a. Voc��

n��o ia ser s��cio de um tal Jo��ozinho?

��� �� esse amigo que quero visitar amanh��. ��le

Erecisa saber que h�� um jeito de recuperar-se pelo tra-

alho. Ela o beijou, mostrando a fome sensual nos

olhos.

��� Ent��o a visita ao amigo fica para depois de

amanh��, t��?

No dia seguinte ela o usou a tarde inteira na cama.

e quando se lembrou de comprar o carro j�� era noite.

Raul voltou para o seu quartinho amargurado, e

l�� encontrou o chofer que estava se despindo. Os olhos

do chofer eram maliciosos, quando Raul lhe contou

210

que tamb��m ia embora, pois a madame tinha lhe pro��

metido emprestar o dinheiro para um taxi e . . .

��� �� mentira, bobo. Ela �� uma vagabunda. Com

os outros ela f��z a mesma coisa. �� desculpa para ter

mais um dia um caralho para satisfaz��-la. N��o v��

nessa. Caia fora logo, sen��o voc�� se afunda. A co��

zinheira disse que ouviu a madame dizer a seu respei��

to a uma amiga:

��� N��o o largarei nunca, pois ��le tem um p��nis

maior que o de um cavalo. Disse que voc�� j�� a usou at��

por tr��s.

Raul pulou como um animal feroz.

��� �� mentira. Eu nunca faria isso. Por tr��s nun��

ca! Lembrou-se do juiz e seu ��dio aumentou. Nunca!

Aquela catraia mentirosa !

Raul n��o dormiu �� noite pensando, e de manh��,

tomou uma resolu����o: ia embora da mans��o. Foi falar

com o mordomo, e este arreganhou os dentes, dizen��

do-lhe :

��� Acho que a sua cabe��a est�� funcionando muito

bem, meu rapaz. Desejo-lhe toda a sorte do mundo.

Os port��es se fecharam em suas costas, e em seu

c��rebro encontrou a pergunta de sempre:

��� Para onde ir?

211

XIX

O Esquadr��o da Norte

Jo��ozinho j�� tinha mudado de "moc��" e foi uma

dificuldade tremenda para Raul encontr��-lo, l�� no Alto

da Vila Maria. Afinal abra��aram-se rindo,

��� Meu Deus! Exclamou Jo��ozinho. Quem n��o

est�� morto sempre aparece. Que diabo o trouxe ao

meu "moc��"?

Abra��ou o rapaz pelo ombro e o puxou para o

centro do quarto. Os dois fixaram-se e sentiram que

crescia dentro deles a onda de afei����o que nutriam

um pelo outro.

��� Tire o palet��, companheiro velho, e vamos beber

alguma coisa. Olhou �� sua volta, satisfeito por poder

receber o amigo no quarto luxuosamente mobiliado.

��� �� um quarto para despistar a pol��cia. O neg��cio

agora est�� dando at�� para comprar uma casinha. Estou

com uma "caranguejeira", fazendo transplante em

"fuscas".

Raul aceitou a bebida, olhando interrogativa��

mente.

��� O neg��cio �� f��cil, chapa, a gente alugou este

armaz��m para guardar os Volks que alguns dos inte��

grantes da quadrilha roubam. Depois a gente se man��

da com os "carangos" l�� para um lugar de mato cer��

rado, perto de S��o Roque, e l�� trocamos o n��mero do

motor e do chassis.

Raul balan��ava a cabe��a com o semblante s��rio

213

��� Ningu��m vai pegar a gente n��o, chapa, pois

sabe como �� a nossa oficina l�� no mato? Entrasse por

uma rampa e vai-se para l�� num subterr��neo ilumi��

nado a pilhas.

A porta da oficina existe uma por����o de plantas,

colocadas em cima de uma chapa de a��o m��vel. Quan-

do voc�� chega "v�� s�� mato, mas depois a gente faz fun��

cionar uma alavanca que movimenta a chapa nos trilhos

e a afasta para o carro entrar.

��� Olha, eu n��o sei explicar muito bem, mas levo

voc�� l�� qualquer dia desses.

��� Quer dizer que voc�� n��o vai mesmo mudar de

vida?

Quando o pretinho ia responder, entraram dois

rapazes e cochicharam qualquer coisa em seu ouvido.

Jo��ozinho caminhou afobado para a porta do fun��

do e desapareceu, deixando no ar sua voz.

��� Fique �� vontade a��, hein, chapa. Daqui h��

pouco estamos de volta.

Voltou e entrou como um roj��o no quarto. Com

o rosto todo lambuzado de sangue, que lhe ca��a sobre

a camisa rasgada. Raul correu para ��le.

��� Que raio foi isso?

��� Pol��cia.A Fuja, Raul, fuja. Eu j�� estava no

"fusca" da Policia, mas lutei com os tiras para vir

lhe avisar.

Raul ficou branco, e batendo uma m��o contra a

outra, correu para a porta.

��� Onde pensa que vai, hein, cara?

Raul recuou uns passos, com os olhos fixos no

rev��lver do tira, ouvindo a voz do amigo.

��� Esse �� um amigo que veio me visitar. Com

��le n��o h�� sujeira.



O agente riu seco e curto, algemando Raul enquanto

o tira colocava as algemas no pretinho, que falava,

nervoso:

��� Assim n��o d�� p��! ��le n��o f��z nada. Pol��cia

�� pr�� prender criminosos, n��o i n o c e n t e . . . e u . . .

Levou um pesco����o do tira, que disse:

��� V�� andando, v��, ti����o. Se voc�� tiver algum

papo, esclare��a l�� na delegacia.

��� Mas a barra dele est�� limpa, juro.

O policial riu, empurrando os presos.

��� Jura pr�� quem?

��� Juro por Deus.

��� V��, v��, negrinho, quem acredita em bandido,

s�� mesmo se f��r "boca mole". Isso quer dizer, s�� se

voc�� f��r alcagueta, assim a gente acredita e perdoa

muita coisa.

Foram para o recolhimento Tiradentes, sendo jo��

gados numa cela com mais alguns presos, que logo co��

me��aram a dizer coisas que eles *n��o entenderam,

procurando, isso sim, ficar o mais longe poss��vel dos

mesmos, num canto da cela. Encostados na parede,

discutiam o que fazer, quando um dos encarcerados

chegou bem perto de Raul e disse, c��nico:

��� Hei, voc�� a�� com essa camisa azul, deve ser

veado, n��? N��s (e estendeu a m��o para a cela) resol��

vemos comer o seu cu.

O sangue do rosto de Raul desapareceu e, como

um possesso, pulou sobre o homem, derrubando-o e

enchendo-o de socos. Os outros procuravam arranc��-lo

de cima do colega, quando tiveram pelas costas pon��

tap��s, socos e mordidas do pretinho, que gritava louca��

mente pelos guardas, que entraram fazendo funcionar

o cassetete.

Jo��ozinho levou uma borrachada na cabe��a e cam��

baleou at�� j u n t o do amigo, que esfregava o punho

ensanguentado.

��� Como est�� se sentindo?

��� Bem.

��� Bem feito! Voc�� foi valente, hein?



��� Mas voc�� se machucou.

��� Ora, �� uma coisa �� t��a. Jo��ozinho via que

Raul estremecia e suava abundantemente, mordendo

os l��bios.

��� Voc�� tem certeza de que est�� bem, chapa?

��� Que diferen��a faz?

��� Chamo o guarda que est�� a��, em frente da cela,

e v o c �� . . .

Raul apertou a fronte.

��� N��o, n��o, Jo��o. Meu neg��cio �� que n��o posso

ver grade.

Os presos novamente come��aram a rodear, com

caras petulantes de debochadas, falando entre dentes.

��� Depois que os guardas mudarem, n��s vamos te

enfiar no cu de qualquer maneira.

Raul j�� tinha preparado os punhos, quando o pre-

tinho interveio:

��� Te aguenta a��, chapa. Quietinho, hein? Em-

purrando os presos, foi at�� o guarda e, chamou-o, co-

chichou algo que f��z com que ele, a passos largos, fosse

at�� o diretor.

O guarda voltou, abriu a cela, algemou Raul e

Jo��ozinho e os levou ao diretor.

O diretor e dois investigadores os receberam. Um

dos tiras perguntou:

��� Qual �� a nuvem?

��� Primeiro a promessa de soltarem meu amigo,

que n��o tem nada com os meus crimes. Ele estava

de visita.

��� Primeiro fala pr�� ver se interessa.

��� Interessa o esconderijo dos "Crioulos Doidos"?

��� Os agentes pularam da mesa em que estavam

sentados, enquanto Raul, com os olhos fuzilando, gri-

tava:

��� Voc�� est�� louco, Jo��ozinho. Se voc�� alcaguetar,

est�� morto.

��� Ora, disse o tira, ele diz que deu a dicha s��

no "canibau" (1)

(1) Nome que os presos d��o ao Pau de Arara

��� 216 ���

��� Nessa hora eu n��o tenho em mente o "c��digo

de honra"dos bandidos. Eu quero "bater uma caixa"

com os senhores, porque quero salvar meu amigo das

m��os sujas daqueles ratos que est��o l�� dentro.

��� T�� a�� uma pedida de bom tamanho, crioulo.

Chuta, vamos, falou o investigador tirando-lhe as al��

gemas.

��� Mas a gente n��o combinou nada, ainda.

��� Ora, prometemos que soltaremos o mo��o. Pa��

lavra de honra.

��� N��o acredito em honra da pol��cia; solta o Raul

que eu falo, ou melhor, os levo l��, bem dentro da toca

dos negros.

A atitude do negrinho azedou os tiras.

��� N��o tem "caixa" nada. Vamos l�� crioulo, fala

logo sen��o vai falar no pau-de-arara.

��� Calma, n��o temos d��vidas em soltar o jovem,

se ��le f��r inocente, mas primeiro devemos interrogar

os seus companheiros, Jo��ozinho. Eles �� que v��o resolver.

��� N��o tem mosquito. Sei o que estou falando.

Mas tamb��m est�� valendo o resto da minha quadrilha,

se o senhor colocar meu amigo em uma cela separada,

at�� que tudo fique esclarecido.

Os dois foram colocados em uma cela, em frente

��quela em que estavam antes. Quando os guardas de��

sapareceram os presos fizeram chacota dos dois.

��� Ol��, trouxa! Foram relaxar a pris��o dando o cu

pr��s tiras, hein? Como ��, est�� ardendo? Que moleza,

hein? Deram a bunda de algema e tudo. Nisso calaram

porque os guardas chegaram com outro preso.

Todos o conheciam. Era um jovem mulato de

vinte anos que, dias antes tinha esturpado e assassi��

nado uma menininha de cinco anos.

Mal as costas dos guardas se perderam ao longe,

os presos arrancaram as cal��as do mulato e ordenaram:

��� Curve-se para a frente, vamos. ��le relutou, mas

um pontap�� o f��z envergar-se. Agora, abre bem as

pernas. Assim. Agora firme as m��os nos joelhos e

encoste bem a cabe��a na parede. Tire as m��os dos joe��

lhos e com as mesmas abra bem as n��degas. M a i s ! . . .

217

B e m . . . Agora, quem �� o primeiro?

A fila de presos, com "os p��nis duros �� mostra, ia

um por um ao mulato que, calado, aceitava tudo. Uma

vez caiu, mas foi levantado a socos e recome��aram tudo.

Das n��degas do homem corria um sangue verme-

lho-vivo, escorrendo pelas pernas e pingando no ch��o

imundo da c��la. Raul, com as m��os apertando forte��

mente as -grades, e com os olhos arregalados, assistia

petrificado. Sua mente o levou para outra fila de me��

ninos de nove a dez anos, l�� no abrigo. Os pequenos

iam como aut��matos, para cima de outra crian��a dei��

tada de bru��os.

Os meninos giravam em sua cabe��a. Os presos

gargalhavam, usando o mulato. As crian��as, o homem,

o sangue. Raul come��ou a sacudir a grade, e a gritar

em uivos animalescos.

��� N��o fa��am isso, pelo amor de Deus. N��o fa��am

isso !Guardas! Guardas, tirem-me daqui! Tirem-me da-

qui! ��le sacudia, sacudia as grades e os presos gar��

galhavam.

O negrinho o sacudia, mas Raul parecia n��o sentir

e continuava a gritar. Desmaiado, foi levado para a

enfermaria, de onde saiu alguns dias depois, em compa��

nhia do dr. Antonio.

Outra vez no centro da cidade, cabe��a baixa, ia

vendo as pernas dos transeuntes, apressados, de um

lado para outro.

J�� tentara tantas vezes afastar-se para fugir ��que��

les perigos da grande cidade!

��� Quanto tempo estive l��?

��� Pouco mais de quinze dias.

��� E o Jo��ozinho?

��� Vamos tomar um taxi. Voc�� est�� muito abati��

do. L�� no apartamento saber�� de tudo.

��� Do Jo��ozinho gostaria de saber agora. Estou

p r e o c u p a d o . . .

��� Olha o taxi.

Abaixou a cabe��a para entrar no taxi e sentiu a

vista turvar-se. Sentou-se, sentindo as pernas moles e

um suor frio correu-lhe pela espinha.

��� 2 1 8 ���

XX

O advogado Pederasta

Deitado no sof�� ouro e branco, forrado de seda

rosa, com a nuca aparada ��m almofadas de veludo de

um rosa mais escuro, ele ouvia o advogado.

��� O ministro avisou o juiz que voc�� tinha deser-

tado. O juiz me telefonou e eu o procurei nas dele��

gacias. Raul come��ou a sentir um comich��o de raiva

e, olhando para o advogado, disse, r��spido.

��� Que �� que esse velho pretende? Me montar guar��

da a vida inteira? E por que o senhor foi logo procurar��

me na pol��cia? Sou por algum acaso malandro ou va��

gabundo?

��� Meu rapaz. A advogado acendeu um cigarro

naquele seu jeito de mocinha. Meu rapaz, as coisas

n��o andam boas para os que j�� tiveram passagens pela

pol��cia. Existe agora um "Esquadr��o da Morte".

��� Mas eu n��o tenho passagens pela pol��cia. Raul

ironizou. Eu tenho um crime: fui a b s o l v i d o . . .

��� O de contrabando j�� sabem que voc�� era ino-

cente, e neste ��ltimo voc�� tamb��m est�� inocente.

��� Jo��o falou?

��� Calma, Raul, vamos por etapas.

��� Mas onde est�� Jo��ozinho?

O advogado levantou-se espremeu o cigarro contra

o cinzeiro, foi at�� uma mesa no canto da sala, e voltou

desdobrando um jornal. Chegou bem �� sua frente e

disse:

2 1 9

��� Olhe.

As m��os de Raul tremiam tanto, impedindo-o de

ler o jornal, mas vira bem aquele rosto infantil de olhos

tristes era de seu amiguinho. Mais calmo, leu com o

cora����o aos pulos: esse bandido est�� no list��o do "Es��

quadr��o da morte". N��o escapar��. Cair�� fuzilado

igualmente, como os trinta "presuntos" executados

at�� hoje.

��� Presunto. Presunto. Raul falava algo. Que

diabo vem a ser isto?

��� "Presunto" �� o nome que o Esquadr��o d�� aos

que caem mortos por eles.

��� Ent��o o meu a m i g o . . .

��� ��le n��o escapar��.

��� Mas ��le n��o estava preso?

��� Chegarei l��. Como estava falando, quando re��

cebi recado do juiz, fui procur��-lo e soube onde voc��

estava. O diretor olhava o "habeas-corpus" a seu favor,

quando ouvimos os seus gritos. Corremos todos a tem��

po de providenciar o fim daquela macabra cena. Os

presos enfiavam uma colher no ��nus daquele assassino

que, com uma abundante hemorragia, foi parar no Hos��

pital das Cl��nicas. Dizem que j�� est�� fora de perigo.

E u . . . Parou de falar, quando viu que Raul tinha o

rosto mortalmente p��lido.

��� Bem, voc�� quer saber de Jo��o, n��o ��? Eu falei

com ��le. Raul o olhou interrogativamente.

��� ��le j�� tinha dado o servi��o da quadrilha dos

"Crioulos Doidos". Disse-me que estava valendo a sua

soltura. Coitado, caiu direitinho.

Os olhos de Raul se abriram.

��� Caiu como?

��� Os tiras sa��ram para a captura dos criminosos,

mas nem ligaram para o pedido do negrinho. Se n��o

fosse o nosso trabalho, do juiz e meu, voc�� n��o esca��

paria facilmente. Dias depois, soube que ��le tinha fu��

gido bem na cara da pol��cia. Estava sendo levado

para o Departamento de Investiga����es Criminais, l�� na

Brigadeiro Tobias. O carro parou na porta do DEIC

e os agentes o empurraram para fora. Vinham saltan-

220

do lentamente, quando seus olhos se perderam naque��

le menino negro, que corria como um louco, em zigue��

zagues, para n��o se encontrar com os transeuntes.

Raul sentou-se no sof�� para dar vas��o ao riso e,

meio engasgado, exclamou:

��� Esse ti����o �� mesmo uma lebre. Se Deus quiser,

��le vai se safar desse tal Esquadr��o.

O advogado abaixou a cabe��a, calado. Depois sen��

tou-se em frente ao mo��o e disse, respirando lenta��

mente:

��� Infelizmente do Esquadr��o ��le n��o se safar��.

Eles o procurar��o at�� o inferno. Voc�� n��o entende que

o Esquadr��o da Morte apareceu para vingar a morte

do agente Par��, assassinado por Carlos Eduardo da

Silva, o "Sappnga"?

Raul levantou-se.

��� Eu vou ajud��-lo, doutor. Eu n��o vou permitir

que matem o meu amigo.

��� De que forma?

��� N��o sei. S�� sei que ��le n��o morrer�� feito pe��

neira, furado por tantas balas. Eu o salvarei. Juro

que o salvarei.

��� ��le n��o ter�� chance, Raul.

��� Eu o salvarei. Eu o salvarei.

O passado veio at�� ��le e o envolveu com dois olhi��

nhos assustados num corpinho franzino, que caiu no

box onde ��le se banhava, a implorar pelo amor de Deus

que n��o deixasse o graduado aplicar-lhe outra surra,

porque tinha feito xixi na cama. Raul lembrava que

lhe afagara a cabe��a de carrapichinhos e lhe dissera:

��� Ningu��m vai judiar de voc��. Pode contar co��

migo, sou seu amigo e serei sempre.

Deu uns passos pela sala, e parando em frent�� ao

advogado, ficou escarlate ao dizer:

��� Por favor, arranje-me dinheiro. Era a primeira

vez que pedia.

��� Claro, Raul, quanto voc�� quiser.

221

��� Vou procurar o Jo��o. Para quem j�� passou

pela c a d e i a . . . quero dizer, para bandido �� mais f��cil.

Bandido acha bandido r��pido, �� s�� visitar os "moc��s".

��� Concordo, jovem, mas voc�� n��o vai sair agora,

assim agitado como esta. Descanse. Vamos!

��� N��o, n��o. D��-me o dinheiro. Eu sei mais ou

menos onde encontr��-lo. Depois volto e descanso.

Raul saiu e o advogado correu para o telefone,

alegre.

��� A l �� o o o o . . . Paulo? Sou eu, Antonio. ��le est��

se aproximando cada vez mais de voc��. N��o dou nem

trinta dias para ��le cair em seus b r a �� o s . . . Oh! Est��

desesperado porque o amigo est�� condenado �� morte.

Pediu dinheiro, j�� lhe dei. quinhentos cruzeiros novos.

Sim, sim, pelo Esquadr��o. Far�� de tudo para salv��-lo.

Tudo, tudo, tudo!

O taxi rodava de um esconderijo de criminosos a

outro. At�� que algu��m deu o servi��o.

��� Oh, o Jo��o. Est�� num "moc��" l�� no Parque

Independ��ncia, Jardim Santo Amaro.

O taxi ficou na estrada e Raul, em companhia de

um caipira que sabia muito, embrenhou-se pelo mato

e desceu barrancos. Pulava um riozinho, quando sen��

tiu um tiro passar bem perto de sua orelha. Gritou:

��� N��o atire, Jo��o. Sou eu, Raul.

A porta do casebre de pau-a-pique se abriu-e Jo��o,

ainda com aquela camisa imunda, cheia de sangue, o

olhava fixamente. Seu rosto contorceu-se, num esfor��o

para que as l��grimas n��o lhe saltassem dos olhos.

Raul correu para ��le e, com voz embargada, disse:

��� Jo��o!

O pretinho desabou sobre ��le e, rodeando-o com

os bra��os, come��ou a tremer.

��� Oh! Chapa! Oh, chapa!

Raul o conduziu para dentro do casebre e sentou-se

num caixote, fixando o olhar num jornal com a mesma

foto que, horas antes, tinha visto. Apertou a m��o do

pretinho.

��� 222 ���

��� Vim ajud��-lo, amig��o, ningu��m vai matar voc��.

Jo��o suspirou e apertou a cabe��a nos bra��os cru��

zados, que descansavam nos joelhos.

��� Deles ningu��m escapa. S��o como abutres, sen��

tem de longe a carni��a que exala da gente. Eu sei,

n��o escapo. Sei tamb��m que errei. Levantou-se e seus

sapatos velhos, rasgados, marcavam o ch��o de terra en��

lameada, com passos febris de l�� para c��.

Parou um momento, e olhando para o amigo, disse:

��� Como eles conseguiram apertar a corda atada

ao meu pesco��o, esses filhos da puta? Como odeio

esses miser��veis! Eles trazem os ��rf��os abandona��

dos atados �� corda e nos balan��am daqui para ali e,

quando querem, v��o apertando a corda at�� nos verem

com a l��ngua inchada, coxa, fora da boca e com os

olhos saltados das �� r b i t a s . . .

Raul levantou-se com ��mpeto.

��� N��o, Jo��o, n��o fale assim. Vim busc��-lo, vou

lev��-lo e algu��m, juro, algu��m vai afrouxar a corda. ��

um homem poderoso. Vamos, vamos.

��� �� besteira, chapa. Nenhum poderoso vai que��

rer "papo" com um p��-rapado, negro, sujo, ladr��o.

Eles v��o querer rir, isso sim, quando a gente aparecer

vazado de balas, no jornal. A�� todos dizem: Mais um filho

da' puta que se foi. Mas eles, o povo, sabem o caminho

porco os do governo nos fizeram trilhar? N��o, cha��

pa, ningu��m vai querer ajudar, n��o adianta implorar

para que algu��m nos acuda. N��o adianta gritar, gri��

tar, pois o grito da crian��a asilada �� gritos sem som,

um grito mudo. F��z uma pausa. Seus olhos brilha��

vam de ��dio, molhados de l��grimas. Eu n��o disse a

voc�� que eles nos jogariam num buraco e nos calcariam,

at�� nos verem gemer, sufocar, s a n g r a r . . . morrer?

Voltou para o amigo com o rosto em p��nico. Eles

v��o matar-me, e eu tenho medo. Sou um covarde, mas

tenho medo. As vezes fico deitado, a�� nessa palha do

ch��o, escutando, escutando, �� espera que minha m��e

entre por essa porta (eu fa��o de conta que tenho m��e)

pegue-me em seus bra��os e diga:

��� N��o tenha medo, filho. Voc�� sonhou. Voc�� n��o

��� 223 ���

�� um marginal. Voc�� n��o foi criado pelo governo. Vo��

c�� n��o apanhou centenas de vezes, at�� ficar desacor��

dado, voc�� aprendeu uma profiss��o, voc�� n��o comeu

lixo. N��o tenha medo, meu filho, sua m��e n��o morreu,

sua m��e est�� aqui. A q u i . . . Caiu sentado no ch��o, jo��

gou a cabe��a para tr��s e seus solu��os encheram o

casebre.

Raul esperou ��le se acalmar um pouco.

Acendeu um cigarro, fumou em sil��ncio, at�� que

os solu��os foram enfraquecendo, enfraquecendo.

��� Agora vamos, Jo��ozinho. J�� est�� escurecendo.

O chofer est�� esperando no t��xi, l�� na estrada.

Levantou-se enxugando os olhos. Bateu nas cos��

tas de Raul.

��� Desculpe, hein chapa, mas essas l��grimas esta��

vam guardadas h�� dezoito anos.

��� Todos n��s, fortes ou fracos, chegaremos ao dia

em que teremos de desabafar. Esse neg��cio de "homem

n��o chora" �� conversa. Agora, vamos.

��� Irei, sim, mas voc�� acha que dar�� certo? Ouvi��

ram o caipira chamar.

��� Hei, mo��os, o chofer est�� chamando.

Quando chegaram, o chofer disse que tinha visto

de longe dois carros parados, l�� na outra estrada.

Os dois sentiram o sangue abandonar-lhes as faces.

��� Eles o viram? Viram seu carro?

��� N��o, acho que n��o. Eu os vi, quando subi na��

quele morro.

Entraram r��pidos no t��xi, e Raul mandou o chofer

correr a toda brisa.

Depois de algum tempo sentiram que eram per��

seguidos.

Raul tirou depressa um monte de dinheiro do bolso

e, escrevendo em uma das notas o endere��o do advo��

gado, disse ao chofer:

��� Aqui tem quinhentos cruzeiros novos para levar

o meu amigo at�� este endere��o. Arranjarei mais um

��� 224 ���

milh��o amanh��. Voc�� pode procurar no mesmo en��

dere��o.

��� Que �� que h��, chapa, o que pensa fazer?

��� Vou saltar do carro e, enquanto eles se preocu��

pam comigo, voc�� estar�� salvo.

��� ��, voc�� pensa que vou deix��-lo nessa sozinho?

��� Eles n��o t��m nada contra mim, amig��o. Eu

n��o estou sendo procurado pelo Esquadr��o. Salto e

corro para o mato. Tamb��m precisa ver se eles me

pegam. Bateu no ombro do preto. Correr, e muito,

n��s aprendemos l�� no abrigo. Vai ver que pelo menos

isso ira salvar-me dos tiras.

��� N��o vou permitir i s s o . . . E u . . .

O soco que Raul lhe aplicou na cabe��a o f��z sen��

tir-se zonzo. Quando se recuperou. Raul j�� tinha sal��

tado e o chofer voava pela estrada.

Raul ouviu a freada brusca do carro. Homens sal��

taram e uma voz gritou para algu��m do outro carro,

que tamb��m tinha parado.

��� P�� na t��bua. O outro �� Jo��o. O que procura��

mos fugiu.

Raul levantou-se e, como um doido, correu para o

carro, que come��ava a sair e abriu a porta. De um

arranc��o, puxou o chofer que, desprevenido, caiu no

ch��o, indo o carro espatifar-se contra um barrac��o.

Nessa hora Raul levou a maior surra da sua vida.

Os tiras o esbofetearam, deram-lhe pontap��s, socos

por todos os lados, mas o sorriso n��o morria de seus

l��bios, e mesmo riu at�� as l��grimas, quando um dos

tiras, alto e forte, que usava uma bengala e mancava,

disse, irado:

��� Esse negro filho da puta escapou. Depois pu��

xou o mo��o pelo bra��o e jogando-o todo machucado

dentro do carro, disse:

��� Voc�� vai nos contar para onde foi o negrinho,

nem que para isso seja preciso execut��-lo.

Um dos agentes, chegando perto e encarando Raul,

exclamou:

225

��� Eu conhe��o essa pe��a. Foi preso por mim dias

atr��s, juntamente com o preto e s�� h�� um meio legal

para faz��-lo falar.

Chamou o manco, que parecia ser o chefe.

��� Olha, temos hoje quatro presuntos para serem

executados. Vamos levar esse a�� para assistir. Se ��le

se abrir e contar onde est�� o negro, n��s o perdoamos e

ser�� riscado do "list��o".

��� Ora, e se ��le nos denunciar na justi��a?

��� Que nada! Eu o conhe��o. �� sentimental ao

extremo, quase morreu quando assistiu alguns presos

comerem o rabo do tal que matou a menininha.

Raul, algemado, sentado no banco de tr��s de uma

Kombi, sentiu o corpo arepiar-se todo, quando viu o

emblema pregado na janela. Era um desenho horizon��

tal, mostrando duas Winchester cruzadas, encimadas

por uma caveira e rodeadas por cinco morcegos. Sob

as Winchester, um rel��gio com os ponteiros no n��mero

doze (significando meia-noite). A direita do rel��gio a

letra "D" e �� esquerda "I" (Departamento de Inves��

tiga����es). Abaixo do rel��gio as letras A.M. (agentes

motorizados) e acima da caveira escrito escuderia Rudi.

Desviou o olhar da t��trica figura e os fixou nos

jovens p��lidos, algemados, que entravam no Volks da

Pol��cia que estava ao lado da perua. Viu o chofer da

Kombi dar um sinal, e os carros come��aram a rodar,

perdendo-se na noite escura e fria.

Estremeceu, quando um dos agentes, sentado ao seu

lado, falou:

��� Olhe, mocinho. Aqueles quatro v��o ser execu��

tados. N��s somos do Esquadr��o. Temos o seu amigo

no "list��o", e s�� voc�� poder�� salv��-lo, contando onde

est��.

��� E para que voc��s querem encontr��-lo?

��� Para ��le nos ajudar a desbaratar algumas qua��

drilhas que est��o implantando o terror em S��o Paulo.

��� Mas ��le j�� denunciou uma e os senhores n��o

cumpriram o prometido.

��� 226 ���

��� Bem, amigo, com a gente n��o tem "papo".

Voc�� vai assistir uma bela festa.

��� Uma macabra festa.

��� Seja.

Chegaram num trecho da Rodovia Rondon, quil��-

metro 33, e enveredaram por um caminho tortuoso.

Pararam em uma clareira e desceram todos.

Raul se encolheu todo, ao descer do carro, quando

sentiu o vento cortante e gelado, que uivava longa e

tristemente, a��oitando seu corpo, coberto apenas pela

camisa. Esticou as pernas doloridas, pois faziam horas

que estava sentado naquela perua. Virou o rosto para

cima e sentiu a chuvinha fria que come��ava a cair.

Ao dar alguns passos, sentiu os sapatos pregarem-

se numa lama viscosa e vermelha, que as ��ltimas chuvas

tinham deixado.

Estremeceu quando, devassando a penumbra, depa��

rou com os quatro malandros encostados num barranco.

Seus olhos foram dos p��s enfiados em po��as de ��gua

suja, para os rostos macilentos, nos quais brilhavam

olhos arregalados, cobertos de terror. Viu que alguns

afrouxaram as pernas e as esticavam novamente. As

m��os torciam-se convulsamente, fazendo apertarem-se

mais e mais as algemas.

Um dos tiras o empurrou para mais perto, enquan��

to os outros se postavam em frente daquelas crian��as

criminosas (pois tinham dezoito a vinte anos) e apon��

taram as armas.

Com a garganta em fogo e com todas as fibras do

seu corpo vibrando, Raul pulou, levantando peda��os de

barro para a frente dos tiras e implorou, com voz tr����

mula, levantando os bra��os algemados:

��� D��-lhes mais uma chance, por Deus. Os senho-

res n��o t��m o direito de tirar a vida assim, ��de seres

humanos, sem julg��-los. Se eles erraram, os senhores

t��m de saber o porqu��. Devem compreender que eles

tamb��m s��o v��timas.

Um dos agentes piscou para os companheiros, di��

zendo:

��� 227 -

��� Vamos brincar um pouco com esse trouxa.

Agora a chuva era mais forte, trazendo rajadas de

vento, que j o g a v a para o ar as capas imperme��veis dos

agentes da lei, espalhando-as a g i t a d a m e n t e , bem como

os cabelos dourados daquele corajoso jovem que osten-

tava no rosto toda a r e v o l t a ' q u e lhe ia na alma.

- E n t �� o quer dizer que eles s��o v��timas? E as

pessoas que m a t a r a m , o que s��o? Por acaso esses ratos

tiveram piedade dos que m o r r e r r a m aos seus p��s, im-

plorando para n��o serem assassinados? Onde est�� o

amor ao pr��ximo? O respeito �� vida h u m a n a ? Diga, meu

rapaz, que piedade merecem esses frios criminosos?

Raul foi para mais perto dos tiras e, com dificul��

dade cruzou os dedos, levantando as m��os postas.

��� Eles n��o a p r e n d e r a m a amar, porque n u n c a fo��

ram amados. Ningu��m lhes ensinou a respeitar quem

quer que seja. Nasceram nas favelas, comeram lixo,

n��o tiveram escolas. Alguns foram criados como ani��

mais ferozes pelo governo. Sua silhueta era fant��sti��

ca, assim sob a chuva, fustigado pelo vento e seus belos

olhos rebrilhando, na noite t��trica e negra. Pelo amor

de Deus, dizia, n��o os m a t e m , os senhores precisam

c o m . . .

��� N��s s�� compreendemos que queremos acabar

com esses criminosos, queremos limpar a sociedade des��

ses p��rias.

��� Mas por Deus do c��u, ent��o os senhores n��o

compreendem que, e n q u a n t o m a t a m esses quatro, est��o

nascendo, nas espeluncas s��rdidas, nas favelas, nos cub����

culos das p r o s t i t u t a s , por todos os bairros miser��veis da

cidade que mais cresce no m u n d o , milhares e milhares

de criminosos? O 'que a d i a n t a os senhores m a t a r e m

alguns, quando as cadeias est��o lotadas de infelizes que

n��o tiveram quem lhes desse a m �� o 0

Um dos agentes gritou:

��� Ora, chega de lero-lero. Vamos, companheiros,

vamos m a t a r logo, que a noite est�� crescendo. Foi fa-

lando e fazendo sua Winchester cuspir fogo sobre um

dos jovens, que caiu p e s a d a m e n t e ao solo.

��� 228 ���

Raul olhou para tr��s e, horrorizado, viu que os ou��

tros tr��s se ajoelharam e vinham se arrastando peno��

samente na lama, implorando para lhes darem nova

oportunidade, jurando que agora que viram a morte de

perto, haveriam de se recuperar. Mas uma saraivada

de balas foi a resposta aos seus rogos. Um deles con��

seguiu dizer ainda, com a l��ngua enrolada, jogando

sangue pela boca:

��� Salvem-me! Eu j�� tinha conseguido um em-

p r e g u i n h o . . . Mas sua voz se perdeu, quando foi pisado

por um dos tiras, que lhe calcou o rosto na lama. Raul

foi se afastando, gelado de terror, enquanto assistia ��

agonia de. um outro, que estrebuchava em sua pr��pria

urina e fezes.

��� Meu Deus! Gritou, virando-se para os tiras.

Voc��s s��o uns monstros. Uns monstros que jamais

pegar��o Jo��ozinho. Jamais, nem que para isso eu tenha

de me t o r n a r . . .

N��o teve coragem de terminar a frase.

Entrou no carro e se atirou no banco, solu��ando.

J�� no centro da cidade, os agentes, depois de con��

fabularem, resolveram solt��-lo, pois ��le iria lev��-los ao

esconderijo do pretinho. Mas Raul dessa vez foi mais

esperto. Percebendo estar sendo seguido, entrou no

pr��dio da Copan, subiu pelo elevador at�� um dos an��

dares, pediu licen��a para uma das moradoras e desceu

pelas escadas que existem atr��s do pr��dio. Pegou um

t��xi, foi ao apartamento do advogado, com aquelas ce��

nas terr��veis agitando-se em seu intimo.

Tocara a campainha gritando pelo nome do amigo.

��� Jo��o, Jo��ozinho!

O advogado abriu a porta assustado.

��� Que foi? Jo��o est�� dormindo. Estava t��o ner��

voso por sua causa, que lhe dei um calmante.

��� Quero velo, onde ��le est��?

O rosto negro saindo das fronhas brancas, com

os l��bios secos entreabertos, engolindo o ar suavemente,

estava t��o tranq��ilo que Raul sentiu uma pontada no

229

cora����o, quando se lembrou de que ��le poderia estar l��,

fucinhado na lama, com dezenas de buracos de bala,

esguichando sangue vermelho e quente. Cobriu os olhos

com as m��os e o advogado o ouviu m u r m u r a r :

��� Oh! �� de e n l o u q u e c e r ! . . ,

��� Que foi, Raul?

Saiu do quarto e sentou-se na primeira poltrona.

��� Dr. Antonio, disse, o que os homens fazem?

Vi hqje como �� f��cil destruir q u a t r o vidas h u m a n a s .

�� s�� pegar a arma e atirar. O corpo cai, estrebucha

no ch��o, esvaindo-se em sangue, a cabe��a cai para o

lado e pronto. Tudo acabado. Nada. A Escurid��o

eterna.

��� O que aconteceu? Voc�� est�� t��o e s t r a n h o !

��� Eu assisti o "Esquadr��o da Morte" assassinar

quatro jovens.

O advogado arregalou os olhos.

��� Raul, isso �� grave. Pense bem no que vai falar.

Raul levantou-se e come��ou a a n d a r agutadamen-

te. Quatro coitados, sem a possibilidade de defender-se.

Seriam todos criminosos? N��o teriam outro meio de ex��

plorar o crime?

O advogado viu que o mo��o estava febril. Prepa��

rou-lhe um calmante, mas Raul n��o quis tomar. Que��

ria que o advogado o ajudasse a salvar o amigo.

��� V�� dormir, Raul, j�� �� quase madrugada. Ama��

nh�� conversaremos. Tenho uma id��ia que salvar��

Jo��ozinho.

Seus olhos brilharam alegres.

��� Jura?

��� Juro. Agora tome o calmante e deite-se.

No dia seguinte os tr��s, discutiam o melhor jeito

de Jo��ozinho livrar-se do Esquadr��o.

��� O ��nico jeito �� ��le ir para o Exterior.

O pretinho riu.

��� Isso �� imposs��vel. N��o tenho dinheiro, e depois,

como �� que me manterei l��?

��� 230 ���

O advogado olhou para Raul.

��� Raul sabe arranjar quanto dinheiro quiser.

O mo��o estremeceu e fixou o pretinho. O rosto

simp��tico e quase infantil sorriu candidamente. Raul

apertou a fronte, pois o mesmo girava, juntamente com

o outro rosto que, com a boca a jorrar sangue, tentava

dizer aos tiras que tinha arranjado um empreguinho.

Lembrou do outro cad��ver. Aquele jurava que nin��

gu��m seria capaz de identificar, pois tinha levado mui��

tos tiros. A cabe��a era uma por����o de massa misturada

com terra vermelha.

Lembrou-se tamb��m de que, quando o agente chegou

perto desse mesmo morto para lhe tirar as algemas, fe��

chara os olhos, pois os olhos do morto eram duas bolas

brancas saltadas para fora. Parte do maxilar havia

sido arrancedo a bala e os dentes restantes estavam

fora da boca, num sorriso macabro. Esse jovem era o

que mais chorava e tremera diante dos agentes, implo��

rando que n��o o matassem.

Raul levantou-se esfregando as m��os e foi at�� a

janela, para que o dr. Antonio e o pretinho n��o vissem

l��grimas em seus olhos. Encostou a cabe��a no vidro

frio da janela, como sempre fazia quando estava preo��

cupado e pediu a Deus para que esmagasse aquelas

tristes recorda����es odiosas, intoler��veis. Mas sabia que,

enquanto n��o ajudasse o amigo a sair das garras do

Esquadr��o, nada ficaria no esquecimento. Voltou para

j u n t o dos amigos, que o olhavam s��rio. Chamou �� par��

te o advogado, concordando em pedir um empr��stimo

a o . . .

��� J�� sei. Vou falar com ��le.

Raul sentou-se, passando as m��os pelos olhos cheios

de sofrimento, e desatou a chorar.

��� Sei que �� terr��vel, Raul, mas �� o ��nico jeito.

Talvez o juiz n��o queira nada em recompensa.

��� Que importa? Oh! Dr. Antonio, depois do que

vi hoje, nada mais importa. Por dentro estou vazio.

Penso que at�� minha alma est�� morta. V��, v�� logo

para que tudo isso acabe de uma vez.

Quando o advogado saiu, Jo��ozinho, esquecendo do

passado, e mesmo do E s q u a d r �� o da Morte, a n d a v a pelo

a p a r t a m e n t o , a d m i r a n d o t u d o . Foi at�� a sacada e

chamou o amigo, que o viu passar as m��os abertas pelo

peito estufado e gritar:

��� Sinto-me at�� um Pr��ncipe E n c a n t a d o . Voc�� n��o

acha, hein chapa? Agrada-lhe esse pr��ncipe preto? De-

satou a rir. Imagine. Eu, num a p a r t a m e n t o luxuoso

na av. S��o Jo��o, e aqueles caras me p r o c u r a n d o , l�� nas

malocas. Esses tais do Esquadr��o, se me vissem agora,

seriam capazes de cairem duros. Ficou a olhar cs

carros que corriam l�� em baixo. Voc�� j�� pensou, cha��

pa, que s�� pobre e criminoso? Voc�� j�� viu algu��m falar

que algum Esquadr��o matou um rico? T a m b �� m , n��o

tem rico ladr��o. Pr�� que �� que rico quer roubar, se n��o

sente fome? Ser�� que rico j�� pensou o que �� ter o es��

t��mago queimando, queimando de fome? Ah! J�� me

lembrei de alguns ricos que roubam. Uma vez, l�� no

abrigo de menores, ouvi um diretor dizer que os mais

i m p o r t a n t e s do governo, mesmo o Presidente da Rep��-

blica, roubava t a n t o , mas t a n t o dos cofres p��blicos, que

isso fazia falta para m a t a r a fome dos pobres ��rf��os

do Brasil. Puxa, e que fome a gente tinha l�� no Abr

go de Menores. Mas, aposto que com esses, o Esqua��

dr��o da Morte n��o se mete, n�� chapa? Jo��o deixeou-sc

cair sentado no ch��o, rindo, at�� que as l��grimas come��

��aram a lhe escorrer pelo canto dos olhos. Era um

riso cheio de revolta, fazendo com que Raul o sacudisse

sem parar.

��� O que voc�� viu de engra��ado em tudo isso eu

n��o entendo.

��� N��o entende? Voc�� j�� pensou, o Presidente da

Rep��blica diante do Esquadr��o da Morte? Sufocou e

p��s-se a rir de novo. Raul compreendeu a revolta do

amigo e disse:

��� Tudo isso �� infernal, amig��o, mas logo voc�� es��

tar�� livre.

O advogado chegou, com um tal��o de cheques as��

sinados, em branco, e o estendeu a Raul, encarando-o

sorridente.

232

P��lido, ele apanhou o tal��o e, como que picado por

uma v��bora, o atirou longe.

��� Ele sabe que voc�� o odeia.

��� N��o me fale nele por enquanto. Vamos tratar

do Jo��o.

O advogado tratou de tudo. Prontos os pap��is, com-

prou passagem para Portugal. L��, o pretinho ficaria

hospedado em um hotel, at�� que Raul fosse juntar-se

a ele. Raul foi quem escolheu um luxuoso enxoval para

Jo��o, sem esquecer do rel��gio e de um par de abotoa-

duras de ouro.

O advogado o acompanharia at�� o exterior e l�� fi-

caria para ver se o pretinho estaria bem acomodado.

Tudo pronto, o advogado telefonou para o juiz.

��� Ele j�� est�� indo para a��.

Um frio mal-estar invadiu o jovem, quando ele

tocou a campainha do apartamento do juiz. Era um

belo e grande apartamento na av. S��o Luiz, de onde se

avistava uma boa parte da cidade. Com o est��mago

dando voltas, olhou para o homem, elegantemente tra-

jado, de aspecto risonho, alisando com a m��o nervosa,

o cabelo preto entremeado de fios brancos. Sua voz era

quase sussurrante.

���Entre, Raul.

Raul n��o se mexeu. Seu pensamento o levou para

uma corrida louca dali. Dolorosamente, lembrou-se do

Dr��to. Ainda eram oito horas. Eles tomariam o avi��o

das dez.

��� Vamos, entre. Vamos tomar um drinque. Est��

um frio b��rbaro a�� fora.

Raul entrou e gaguejou:

��� Vim lhe trazer o resto do tal��o.

��� �� seu, fa��a o que quiser com ele.

��� 233 ���



��� N��o o quero. O que eu precisava para o meu

amigo, j�� gastei.

��� E ��le ficou bem servido?

��� Creio que sim, nesta hora est�� muito feliz, pois

escapar�� do E s q u a d r �� o . . . gra��as ao senhor.

O juiz trouxe as bebidas. Raul bebeu o uisque,

que o f��z sentir-se mais enjoado, mas depois sentiu seu

corpo aquecer-se e pediu mais, mais e mais, que virava

num trago.

Nesse momento, Jo��ozinho sa��a do luxuoso carro

do advogado.

��� Espera a��, que vou deixar o carro nequela bom��

ba de gasolina. Amanh�� um amigo vir�� busc��-lo.

O pretinho relanceou a vista pela ala internacional

do aeroporto e sentiu tudo arrebentar-se por dentro

dele, durante o terr��vel segundo que se passou antes

que sentisse as g��lidas algemas fechando-se em seus

pulsos.

��� Onde pensa que vai, hein ti����o, assim fantasiado

de gente?

Era o Esquadr��o da Morte.

XXI

A Lei Assassina

Raul deitou-se, sentindo tudo girar �� sua volta.

Sabia que estava embriagado, pela maneira como seus

dedos ficaram amolecidos, sem for��a sequer para segu��

rar o copo, que agora estava ca��do no ch��o aveludado

do quarto, e pela fixidez com que olhava a garganta do

juiz, que, como envolto em neblina, debru��ava-se sobre

��le. Tinha uma vontade louca de apertar ali suas

m��os, e fechar seus dedos apertando, apertando, at��

v��-lo morto. Virou a cabe��a, quando viu o rosto do

j u i z bem perto do seu e aqueles l��bios fl��cidos procuran��

do a sua boca. Olhou para a janela aberta, e seus olhos

encontraram as luzes dos grandes pr��dios que pareciam

dan��ar num requebro macabro, rindo ��s gargalhadas

dele que ali, �� merc�� de S. Excia., elevava com voz d��bil

uma prece aos c��us.

��� Oh! Deus! Meu Deus! N��o permita que isso

aconte��a. N��o sou nada, n��o sou ningu��m, mas ainda

resta-me o muito de saber-me macho. Para mim isso ��

tudo. Deus, Por isso lhe imploro, n��o deixe que eu sinta

o contato desse homem.

Sentiu, a tremer, a m��o macia e morna do j u i z

apertando-lhe o sexo.

O ruido da cidade rugia dentro de sua cabe��a, fa��

zendo com que as l��grimas saltassem daquele mar azul

dc seus belos olhos, quando olhou mais uma vez atrav��s

da janela, os altos pr��dios que agora pareciam cair

sobre �� l e . . .

2 3 5





O juiz aconchegava-se.

A cidade que mais cresce no mundo, a cidade que

se humaniza, desusando, desusando sobre ��le. J�� sen��

tia-se sufocar. Queria falar, falar alguma coisa para a

bela cidade, mas s�� conseguia fazer com que saissem

de sua boca grunhidos animalescos, envolvendo a frase.

��� Eu tombei, mas meu amigo, que a essa hora est��

l�� em cima, bem l�� em cima, voando para outro pa��s,

n��o tombar��.

Jo��ozinho, encostado num barranco, esperava, em

companhia de mais dois criminosos, a hora de ser as��

sassinado pela lei. Os carrascos estavam em sua fren��

te, altos, fortes e l��gubres, como as ��rvores negras que

os rodeavam, a��oitadas pelos ventos gementes, trazendo

para ��le a tristeza e a ang��stia sufocante do dobre de

finados onde parecia ouvir sua voz infantil.

��� Tia, por que os sinos tocam t��o tristes?

��� �� que Jesus est�� levando para os c��us os seus

pais, meu bem. Todas as pessoas que s��o boas aqui na

terra, Jesus as recebe com m��sica e sinos tocando.

��� Ah! Tia, mas �� t��o triste esse sino! Quando

Jesus levar-me eu quero que os sinos batam bem alegres.

��� Jo��ozinho voltou dos seus seis anos, com o cora��

����o aos pulos, quando ouviu a ordem para um seu

companheiro de infort��nio:

��� Corra, sen��o morre.

Os olhos do pretinho seguiram o jovem que tinha

o corpo desengon��ado de tuberculoso, com o peito cavado

para dentro coberto com roupas velhas e desbotadas.

Correu depressa, para em seguida, levantar os bra��os

magros, onde brilhavam as algemas e caiu ap��s alguns

metros, furado a bala.

Petrificado, Jo��ozinho viu um dos da lei vir at��

��le, levantar a arma, e uma dor aguda varou sua ca��

be��a e tudo escureceu. Coberto de terror, sentiu que

o tiro o havia cegado.



��� Jesus, Jesus, Jesus. Sua voz se encontrou com

a chuva que come��ava a cair, cortando a escurid��o da

noite com rel��mpagos de fogo e foi levada, sibilante e

a g o n i a n t e , at�� os ouvidos dos respons��veis por essa

m o r i b u n d a inf��ncia a b a n d o n a d a de um pa��s onde a lei

m a t a .

��� Jesus, Jesus, J e s u s ! Agora o clar��o vermelho dos

proj��teis, das "22", "32", "44" calaram para sempre sua

voz rouca, que queria gritar.

��� Eu queria ser um homem honrado, mas n i n g u �� m

me ensinou. Ningu��m ligou, ningu��m ouviu. Escor��

regou devagar do b a r r a n c o e tombou peneirado por

t r i n t a e dois tiros.

Tombou com a cabe��a n u m a po��a de ��gua, que

logo ficou rubra de sangue. Do sangue de um filho

do governo.

��� Ele n��o tombar��, repetia Raul debaixo do corpo

s��rdido e nojento de um homem que destribu��a a jus��

ti��a, tamb��m, nesse g r a n d e e belo Brasil Ele n��o tom��

bar��, n��o ��, Senhor? E eu tamb��m n��o pertencerei

a este homem nem se para isso o Senhor tiver de me

levar j��, agora, para j u n t o de V��s.

Os olhos azuis come��aram a revirar, o resto tornou-

se viol��ceo, a respira����o come��ou a falhar. Aquele belo

corpo de homem m a c h o , foi agitado por tremores e mo��

vimentos convulsivos que t r o u x e r a m p a r a sua l��ngua,

que se esticava p a r a fora da. boca, uma espuma b r a n c a

e viscosa, que m a n c h o u a seda macia da fronha per��

fumada.

O juiz, sentindo Raul gemer e tremer sob si, sentia

mais fortemente o esperma que come��ara a j o r r a r de

seu sexo. Gritava.

��� Raul, Raul, Raul!

S. Excia., em ��xtase, gemia, chorava e se contorcia

em cima de um cad��ver.

�� N D I C E

I ��� ��RF��O 13

II ��� O BOM COL��GIO 17

III ��� O JUIZ COME��A A AMAR O MENINO 27

IV ��� A MULHER DO JUIZ TAMB��M AMA O

MENINO 39

V ��� O JUIZ QUER O CORPO E A ALMA

DO MENINO 45

VI ��� A MOEDINHA 53

VII ��� SERA, QUE TAMB��M SOU BRASI-

LEIRO? 57

VIII ��� SOU HOMEM, SOU MACHO 69

IX ��� SUA EXCEL��NCIA 73

X ��� RAUL ACREDITA QUE O JU��Z N��O ��

MAIS PEDERASTA 79

XI ��� RAUL, O BOM AMIGO 91

XII -- MALDITOS PEDERASTAS 105

XIII ��� PRESIDENTE DA REP��BLICA, OLHAI

POR N��S. AM��M 115

XIV ��� COMPRE UMA ROSA, DOT�� 131

, XV ��� POLICIA FEDERAL 159

XVI ��� DOIS HOMENS EM ��XTASE 179

XVII ��� O SR. MINISTRO 193

XVIII ��� A RAINHA DA INGLATERRA 207

XIX ��� O ESQUADR��O DA MORTE 213

XX ��� O ADVOGADO PEDERASTA 219

XXI ��� A LEI ASSASSINA 235

Mas o leitor l��cido, pers-

picaz, sempre compreende o

realismo ae Adelaiae, pois ela

�� uma escritora que se ins-

pira naquilo que �� vis��vel,

concreto, nas cenas c��micas,

pat��ticas e dolorosas da pr��-

pria vida, da vida que n��o

pode ser comparada a um e s -

pet��culo sereno, harmonioso,

como o �� por exemplo, quase

sempre, a tela de um pintor

acad��mico.

Neste seu ��ltimo livro, inti-

tulado "Podrid��o", Adelaide

Carraro revela-se, uma pro-

funda e extraordin��ria psic��-

loga, uma admir��vel conhe-

cedora de todos os meandros

da alma humana, at�� mesmo

nos seus aspectos mais re-

c��nditos, estranhos e esca-

brosos.

Os personagens de "Podri-

d��o" vivem, sofrem, amam,

odeiam, lutam, s��o seres de

carne e osso, seres atormen-

tados, representativos de um

mundo ca��tico, turbulento,

de um mundo no qual os

valores morais se acham em

estado de desagrega����o, em

decomposi����o.

O drama de Raul. de Jo��o

e do Dr. Paulo pode ser o

seu drama, prezado leitor,

pois a vida muitas vezes imi-

ta a fic����o, ao contr��rio do

que se sup��e, e em v��rias

ocasi��es esta �� mais veridica

do que a realidade, porque ��

a reprodu����o exata, fidedig-

na, do que existe.

Assim sendo, o Leitor est��

de parab��ns, porquanto tem

em suas m��os um livro fasci-

nante, perturbador, um livro

que prende a aten����o do co-

me��o ao fim e que pode ser

considerado, sob todos os

pontos de vista, uma auten-

tica obra prima.





De Bons amigos lançamentos


O Grupo Bons Amigos em parceria  com o grupo  Solivros com sinopses  tem a satisfação de lançar hoje mais um livro digital para atender aos deficientes visuais

Adelaide Carraro - Podridão

 Livro doado por Leandro Medeiros e digitalizado por Fernando Santos


Sinopse: 

Neste livro Podridão ,Adelaide revela-se uma profunda e extraordinária psicóloga uma conhecedora de todos meandros da alma humana até mesmos nos seus aspectos mais recônditos, estranhos e escabrosos. Os personagens de Podridão  sofrem,  amam, odeiam lutam, são seres de carne e osso.

Sobre a autora:  

Nasceu em Vinhedo, interior de São Paulo, em 30 de julho de 1936. Ficou órfã com mais onze irmãos, e passou a viver em um orfanato. No decorrer de sua vida publicou cerca de quarenta livros e seus maiores sucessos foram as obras publicadas pela Global Editora: O Estudante, O Estudante II, O Estudante III e Meu Professor, Meu Herói, que ultrapassam mais de trinta edições, sendo possível afirmar que mais de 2 milhões de livros foram vendidos. Adelaide Carraro nunca se casou, mas foi mãe adotiva de duas crianças. Morreu em janeiro de 1992.

 

Lançamento  :

a)https://groups.google.com/forum/?hl=pt-BR#!forum/solivroscomsinopses

b)http://groups.google.com.br/group/bons_amigos?hl=pt-br

Este e-book representa uma contribuição do grupo Bons Amigos  e Solivros com sinopse para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos deficientes visuais e como forma de acesso e divulgação para todos. 

É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros. 
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras .











 
 




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