sábado, 12 de outubro de 2019

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO: ARACELLI, MEU AMOR - JOSÉ LOUZEIRO - FORMATOS: PDF,TXT,

Jos�� Louzeiro

Aracelli, meu amor

Um anjo espera a justi��a dos homens

C��RCULO DO LIVRO

C��RCULO DO L I V R O S.A.

Caixa postal 7413

01051 S��o Paulo, Brasil

Edi����o integral

Copyright �� 1976 Jos�� Louzeiro

Capa: colagem de Tide Hellmeister

Licen��a editorial para o C��rculo do Livro

por cortesia da Distribuidora Record de Servi��os de Imprensa S.A

Venda permitida apenas aos s��cios do C��rculo

Composto pela Linoart Ltda.

Impresso e encadernado pelo C��rculo do Livro S.A.

4 6 8 10 9 7 5

88 90 91 89

Para Jos�� Luiz Alqu��res

e �� mem��ria de

Tuca

do sargento Homero Dias

do perito Carlos ��boli

Sum��rio

D E S A P A R E C I M E N T O

O instante inicial de um drama 9

O P R �� M I O E AS R O M A R I A S

Uma cidade clama por justi��a 27

E S T �� R I A S D O A B S U R D O

Os sete meses seguintes 59

O N D E E S T A O F I O D A M E A D A ?

O homem da m��scara de borracha 87

A C O N V E R S A G R A V A D A

Onde h�� fuma��a h�� fogo 113

D O I S A N O S D E P O I S

Um anjo dorme na geladeira 127

C A M I N H O S E M V O L T A

As previs��es que se confirmam 201

7

Desaparecimento

O instante inicial de um drama

Um

Vit��ria, sexta-feira, 18 de maio de 1973.

Aracelli Cabrera Crespo sai do Col��gio S��o Pedro, na

praia do Su��, vai para o ponto de ��nibus, na esquina do

Bar Resende, cadeiras de madeira pintadas de branco na cal-

��ada, uma banca de jornais em frente. �� uma garota de nove

anos, muito desenvolvida para a pouca idade, olhos negros

e vivos, bonita na sua farda de saia azul, blusa azul mais

claro, as iniciais SP bordadas no bolso esquerdo. Ainda n��o

s��o dezessete horas. Chegam outras pessoas, ficam olhando

jornais e revistas. Aracelli senta-se numa cadeira, p��e a pasta

sobre a mesa, brinca com o gato que sempre encontra por

ali, silencioso e ��gil.

O ��nibus aparece, coberto de poeira, naquela tarde de

sol quente, c��u azul, coqueiros acenando as palmas verdes,

bananeiras perfilando-se nas encostas, mostrando o avesso

claro e fresco das folhas. Os passageiros tomam seus lugares

no ��nibus, Aracelli continua na cadeira, alisando o p��lo do

gato.

��� Perdeu o ��nibus, Aracelli? ��� pergunta o garoto

que se aproxima na bicicleta sem p��ra-lamas, nu da cintu-

ra para cima, p��s descal��os.

O garoto prossegue pela avenida asfaltada, ningu��m

mais repara na menina de uniforme bem passado, sapatos

lustrosos, que brinca com o gato, oferece-lhe sorvete.

Se Aracelli tivesse tomado o ��nibus, agora estaria a

meio caminho de casa, no bairro de F��tima, onde as ruas

n��o t��m cal��amento, s��o largas, e os arbustos crescem nos

quintais, formando tufos de verdura por cima das cercas e

muros baixos.

11

Gabriel Sanches, um espanhol de estatura mediana e

gordo, bra��os roli��os, rosto largo, bigodes negros, ouve a

mulher falar dos fundos da casa no atraso da filha.

��� O que ser�� que t�� fazendo?

Gabriel Sanches argumenta que n��o era t��o tarde assim

e cala-se, estranhando a preocupa����o da mulher, pois geral-

mente Aracelli chegava atrasada, algumas vezes quando havia

anoitecido.

��� Vai ver que o ��nibus engui��ou. Essa linha da Via-

����o Penedo t�� cheia de ��nibus velhos.

��� Se demorar mais �� bom ir at�� a escola ��� acentua

Lola Cabrera Sanches, uma boliviana de cabelos alourados,

com quem a filha se parece muito.

O homem pesado e lento bota o blus��o, caminha para

o carro. Segue na dire����o da escola, imaginando que at��

chegar �� praia do Su�� j�� a menina estaria em casa.

Bate no port��o pintado de verde, passa por baixo da

amendoeira, fala com a diretora, Zolirma Letait. A profes-

sora de Aracelli, Marlene Stefanon, aparece, diz que a meni-

na saiu mais cedo, como dona Lola pediu no bilhete.

- Por volta das dezesseis e trinta mandei que fosse

embora.

��� Quando o senhor chegar em casa vai encontr��-la ���

diz dona Zolirma sorrindo, estendendo a m��o.

O carro avan��a pelo port��o, as casuarinas crescendo de

um lado, o terreno amplo na frente da casa. Entra e v��

Lola:

��� N��o encontrou com ela?

A mulher est�� nervosa, a noite vai se fechando na copa

das ��rvores, Gabriel olha as casuarinas junto ao muro, sa-

cudindo penachos, p��ssaros recolhendo v��os. Senta-se perto

da porta, fica imaginando que a qualquer momento Aracelli

apareceria.

��� Deve ter ido na casa de alguma colega, esqueceu

de avisar.

Lola Sanches mexe nas panelas, abre e fecha a torneira

da pia, corta legumes.

��� Acho imposs��vel que tenha feito isso.

��� Vai ver que hoje esqueceu. Sabe como �� crian��a

��� considera Gabriel, sentado na sala, contemplando o ter-

reno na frente da casa, agora tomado de noite, uma esp��cie

de lago se insinuando, avolumando, cobrindo com ��guas

negras as forma����es de arbustos e de relevos.

12

Misturando-se aos vagos rumores vindos da rua, o

chorro triste de Lola, que n��o consegue mais ocupar-se na

cozinha. Vem para a sala, enxugando os olhos.

��� Aconteceu alguma coisa com Aracelli.

��� Vou mandar Carlinhos na casa de uns conhecidos,

enquanto procuro por a�� ��� responde Gabriel, que tamb��m

come��a a se preocupar.

O ronco do motor vai se distanciando, Lola Sanches

fica na porta, olhando aquele quintal que virou lago com-

pletamente escuro, um vaga-lume ou outro acendendo estre-

las no ch��o.

Carlinhos volta primeiro que o pai. Fala das casas por

onde foi, das pessoas com as quais falou.

��� Ningu��m viu Aracelli, hoje.

Mais de uma hora depois Gabriel reaparece. N��o tem

coragem de dizer nada. Lola Sanches chora alto, solu��a.

��� Que foi feito da menina, Deus do c��u?

Gabriel ajuda-a a sentar-se, o choro se torna convulso,

ela tem dificuldade de respirar, em certos momentos fica

batendo-se, contorcendo-se, gritando e gemendo, olhos fecha-

dos, rosto arroxeando.

Alguns vizinhos aparecem, a senhora morena e magra

sugere que se ponha os p��s de Lola Sanches na bacia com

��gua fria, outra manda que tragam mechas de algod��o embe-

bidas em ��lcool para que possa cheirar e passar nas orelhas

e no pesco��o.

Gabriel desaparece mais uma vez, quando retorna a

casa est�� cheia de gente. Lola estendida na cama.

��� Minha filha! Que fizeram com ela!

A ambul��ncia que Gabriel chamou n��o aparece, o esta-

do de Lola torna-se pior, o marido se aflige, os vizinhos

temem que a crise se agrave, ela n��o resista.

Lola estendida, quase toda arroxeada, olhos fechados,

as m��os tremendo levemente. A�� Gabriel se enche de p��ni-

co, ergue a mulher, os vizinhos o ajudam a lev��-la para o

Volkswagen que est�� perto da casa. Uma vizinha entra no

carro, Carlinhos vai tamb��m.

Gabriel faz o fusca desenvolver o mais que pode naque-

le terreno irregular, passa pela igreja que n��o terminou de

ser constru��da, vai sempre em frente, procurando chegar

logo �� via de acesso, de l�� �� estrada asfaltada.

No Pronto-Socorro da Santa Casa de Miseric��rdia con-

firma-se a preocupa����o de Gabriel. O estado de Lola San-

ches �� delicado, tem de ficar internada.

13

A mulher �� levada para a enfermaria, a porta se fecha.

Gabriel est�� sem conseguir raciocinar direito, ele, que ��

lento nos gestos e nas atitudes. N��o sabe se vai logo �� pol��-

cia, apresentar queixa do desaparecimento da filha, n��o sabe

se permanece mais um pouco no hospital, n��o sabe se volta

e continua procurando Aracelli.

��� Vamos, pai, talvez ela tenha aparecido.

Olha o filho t��o triste quanto ele, tem vontade de

abra����-lo, dizer que est�� com medo de chegar em casa, abrir

a porta e n��o encontrar Aracelli.

Enquanto a vizinha que veio com ele para ajudar Lola

vai falando, falando, tudo que Gabriel recorda �� do dia em

que fora morar no bairro de F��tima; do terreno amplo que

comprara com sacrif��cio, das plantas que cuidaram, do muro

que fizeram, dos projetos.

��� Aqui vai virar um bosque, pai. Quando meu cajuei-

ro tiver grande, quero que voc�� coloque um balan��o nele.

Voc�� coloca?

Lembra a filha e aquele dia t��o longe, as l��grimas inun-

dam-lhe os olhos, ele mal pode dizer qualquer coisa, cada

vez que a vizinha relembra fatos antigos e �� necess��ria sua

opini��o. Carlinhos v�� que o pai est�� chorando, faz que n��o

repara.

Gabriel Sanches come��a a sentir o quanto se enganara,

o quanto tinha sido in��til sua luta at�� ali. Primeiro as espe-

ran��as do imigrante que vem, ra��zes aparecendo e sangran-

do; depois as dificuldades se sucedendo e, mais uma vez, os

sonhos um por um achatados.

" S e at�� minha filha desaparece, por mais que goste

desta cidade, que me resta esperar? E se n��o posso esperar,

pra onde poderei ir? Pra onde, se agora j�� nem sonhos

tenho m a i s ? "

��� Aquela ali n��o �� Aracelli, pai?

O carro parado, Gabriel Sanches movimenta-se ��gil

demais para seu peso, alguns passos e a indecis��o. A menina

vem junto com mais duas. Parece Aracelli, mas n��o ��.

A viagem reiniciada, o carro entrando pelo port��o que

ficara aberto, sil��ncio no descampado, grilos invis��veis cos-

turando de ru��dos finos os desv��os do escuro. A luz acesa

na varanda, a pia na cozinha, os pratos jogados, a mesa sem

toalha, as facas e os garfos sujos, a aus��ncia de Lola que

dava vida a todos aqueles objetos.

Gabriel senta-se, Carlinhos entra chorando no quarto.

Quando os vizinhos se retiram e o c��o Radar deita-se perto,

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Carlinhos fica acariciando-o e chorando por ele e pelo

cachorro que n��o sabia chorar. Radar fora trazido pequeno

para aquela casa. Aracelli cuidou dele, desde os primeiros

instantes. Foi ela quem lhe deu o nome, ela o ensinou a

correr, a saltar.

��� Por que o nome de Radar no cachorro?

��� Ora, radar �� um aparelho que v�� coisas que nin-

gu��m pode ver.

Carlinhos se lembra das brincadeiras da irm�� com o

cachorro, Gabriel recorda a satisfa����o que era ver a mulher

botar o jantar com os dois filhos na mesa. Aracelli contan-

do coisas da escola, as li����es que a professora Stefanon pas-

sara, da boa nota que tirara em hist��ria, dos planos que

tinha a turma de fazer uma excurs��o antes das f��rias. Repen-

tinamente, toda aquela sensa����o de bem-estar e seguran��a

desaparecia. Um bal��o que estourava no ar, eliminando for-

mas e cores.

Tarde da noite, ventos mornos, vindos do mar, gemiam

nas hastes das casuarinas, em frente �� casa. Gabriel Sanches

havia admitido que Lola tinha raz��o. Alguma coisa de grave

ocorrera com Aracelli. E pensando no sofrimento pelo qual

a filha podia estar passando ��quela hora, n��o se conteve e

foi ver como Carlinhos adormecera. Encontra o menino e

Radar, ambos na cama. Carlinhos tem um bra��o por cima

do c��o, que dorme com o focinho entre as patas.

Volta ao quarto mas n��o pode sequer cochilar. O dese-

jo �� sair de novo, percorrer todos os recantos da praia do

Su��, todas as casas de conhecidos, at�� localizar Aracelli. Ao

mesmo tempo sabe o quanto isso �� in��til. Ela estava detida

em algum lugar, do contr��rio teria aparecido. Admite ent��o

a id��ia de que a menina tenha sa��do do col��gio e se afasta-

do muito de casa, passando por lugares que n��o conhecia.

A�� sofreu um acidente, foi atropelada, est�� num pronto-

socorro particular.

"�� isso. N��o pode ser outra coisa."

Gabriel Sanches deixa o filho dormindo, liga mais uma

vez o motor do carro, vai pela cidade �� procura de uma

menina acidentada, da qual ningu��m sabe dar qualquer infor-

ma����o.

15

Dois

Sentado em frente ��quela mesa escura, com muitos pa-

p��is em cima, um homem escrevendo �� m��quina, outros

entrando e saindo, dois ou tr��s falando alto, de vez em

quando o telefone tocando, Gabriel Sanches est�� a��reo. Me-

canicamente, vai respondendo ��s perguntas que lhe fazem.

O delegado promete que as buscas come��ar��o imedia-

tamente. Gabriel Sanches sente-se sujo, olhos pesados, pele

gordurosa, barba por fazer. N��o tomou caf��, n��o tem fome.

Da delegacia vai �� reda����o de O Di��rio e depois de A Ga-

zeta. Leva fotografias da filha. Uma em que aparece com

os cabelos compridos, a outra com cabelos curtos, blusa de

listras transversais.

Retorna ao carro, segue para a Santa Casa, uma enfer-

meira informa que o estado de Lola inspira cuidados, n��o

pode visit��-la. Gabriel n��o sabe o que fazer do tempo, em

que ocup��-lo, j�� procurou a filha por todos os lugares ima-

gin��veis da cidade, diversos amigos o ajudando nas buscas.

��� �� sempre bom andar, seu Gabriel. O acaso nos

prega muitas pe��as. Quem sabe, numa rua, numa pra��a, na

porta de um cinema n��o encontra a menina?

Gabriel ficava olhando Rita Soares dizer aquelas coisas.

�� uma mulher de meia-idade, respeitada por todos, querida

por todos. Seu Henrique Rato, provavelmente um dos mais

velhos moradores do bairro, �� da mesma opini��o.

��� Nada de esmorecimentos. Deus h�� de ajudar.

Por sua vez Carlinhos conta o que ouvira, diz que um

menino assim, assim, que tinha uma bicicleta sem p��ra-

lamas, viu Aracelli quando saiu da escola e estava no ponto

do ��nibus.

��� O garoto ainda perguntou se havia perdido o

��nibus.

��� E voc�� viu esse menino?

��� N��o. Quem contou isso foi seu Zeca Pintor. Tam-

b��m viu Aracelli e o garoto da bicicleta.

Gabriel fica olhando a tarde que se esvai, o sol que

completa mais uma viagem. No bairro de F��tima, para quase

todos, a noite ser�� igual a muitas outras, menos para ele,

que ficar�� sentado naquela cadeira, esperando Aracelli vol-

tar. N��o h�� mais lugar por onde procur��-la. Nenhum otimis-

mo �� mais poss��vel manter, se todos os caminhos s��o percor-





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ridos inutilmente; se centenas de perguntas s��o feitas e as

cabe��as sacodem, negativamente.

Teria Aracelli, junto com colegas, ido para uma praia,

sumindo nas ondas? Era imposs��vel. Algu��m teria visto, os

pr��prios companheiros terminariam contando a verdade. E

Aracelli n��o faria uma coisa dessas. Teriam seq��estrado

Aracelli? N��o. Isso �� coisa de cidade grande. De lugares

onde n��o h�� mais solidariedade, onde as pessoas se torna-

ram virtualmente inimigas umas das outras, s��o feras com

apar��ncia de gente.

Os morcegos cruzam o c��u escuro, emitindo seus ru��-

dos enervantes, um p��ssaro noturno pia nos arbustos do

quintal. Carlinhos adormeceu junto ao pai, que agora ter��

de lev��-lo para a cama, Radar come��a a intranq��ilizar-se com

o desaparecimento da dona.

Gabriel volta �� cadeira, o cachorro chega perto, ladra

e olha a rua, como fazia sempre que Aracelli se demorava

ou sa��a por algum motivo e n��o o levava. Vai at�� o quintal,

volta, inquieto, deita-se finalmente do lado da cadeira, mas

ao menor ru��do levanta e come��a a latir.

O ar da noite vai ficando mais frio, Gabriel fecha a

janela, deixa a porta encostada. Se por acaso cochilar e Ara-

celli chegar, n��o ficar�� no sereno. E, n��o sabe a que horas,

vai sentindo o corpo profundamente mole, a cabe��a pesada,

os pensamentos dispersos. Radar ladra, ele se assusta, abre

a janela, olha o quintal florido de sil��ncio e de lua.

Quando os galos principiam a cantar, vai �� cozinha,

esquenta ��gua, prepara um caf��. Come��a a clarear. Mais um

pouco o sol tornaria a aparecer, seria um novo dia. Talvez

Aracelli viesse com ele. A farda azul, os cabelos castanhos,

o sorriso que tanto o encantava. Mete-se no carro, vai at��

a banca de jornais. L�� est�� o an��ncio: "Desaparecida". Por

baixo das fotos as linhas de composi����o, descrevendo a me-

nina, filia����o, endere��o, escola onde estudava. Na ��ltima

linha os telefones para quem soubesse do seu paradeiro.

Um comunicado sobre crian��a que some, igual a tantos

outros. Na tarde desse dia, que era domingo, Gabriel San-

ches volta �� delegacia de pol��cia. L�� s�� est�� o pessoal de

plant��o. Mostra os jornais.

��� �� tudo que pude fazer.

Os policiais o tranq��ilizam.

��� O superintendente Barros Faria botou uma p�� de

gente trabalhando no caso. Pode t�� certo que a menina apa-

rece. Deixe com a gente.

17

Sai da delegacia na dire����o do hospital, a enfermeira

de meia-idade permite que veja a mulher. Entra, Lola est��

p��lida, olhos fundos. Puxa uma cadeira.

��� Aracelli t�� em casa?

Mente:

��� Ainda n��o, mas a pol��cia j�� sabe onde localiz��-la.

Lola vira o rosto, sabe que n��o �� verdade, conhece

quando Gabriel est�� mentindo, chora baixinho, a enfermei-

ra reaparece, pede que Gabriel Sanches se retire.

O Volkswagen azul sobe e desce ladeiras, entra por

esquinas sujas, sem nenhum movimento, vai at�� perto do

cais, com os guindastes de bra��os estendidos. Ele salta, fica

apreciando os que pescam perto do morro Penedo, a lancha

que passa nas ��guas de um verde tranq��ilo, a gra��a que

inicia o v��o branco por tr��s da pedra de limo e ferrugem.

No amplo terreno em frente �� casa, transformado em

campo de futebol, Carlinhos brinca com outros garotos,

corre atr��s da bola, veste uma camisa de malhas vermelhas

e negras. Do carro Gabriel acompanha os movimentos do

filho, das pessoas que passam e evitam falar no desapareci-

mento de Aracelli.

��� N��o quis mais jogar?

��� N��o tou me sentindo legal, pai. S�� tava fazendo

palha��ada em campo.

Radar deita-se junto a ele, Gabriel vai preparar um

pouco de comida para o cachorro. A�� chegam uns meninos,

em seguida aparece Rita Soares. Est�� com os cabelos soltos,

tem express��o severa nos olhos esverdeados, que contrastam

com a pele de um moreno escuro. Senta na primeira cadeira

que encontra.

��� Alguma novidade, dona Rita?

��� Parece que sim.

Os pequenos querem falar ao mesmo tempo, ela manda

que Tiziu seja o primeiro:

��� Neguinho vinha de bicicleta e viu Aracelli no ponto

do ��nibus. O ��nibus passou e ela ficou l��.

��� Isso quer dizer, seu Gabriel, que Aracelli tava espe-

rando algu��m.

��� Ent��o o primeiro caminho �� ouvir todo mundo que

mora perto do ponto do ��nibus, a come��ar pelo pessoal do

Bar Resende.

��� �� uma id��ia ��� acentua Rita Soares.

��� Ser�� que ela foi seq��estrada, pai?

Carlinhos est�� inquieto.

18

��� Foi o que ouvi dizer, hoje de manh��. Muita gente

acha que um homem convidou Aracelli pra entrar no carro

dele. E n��o foi no Bar Resende.

��� N��o sei, filho. N��o fa��o id��ia.

Enquanto falam, v��o comendo os feij��es, as batatas,

Radar por perto, recusando as sobras que lhe d��o. Quando

ouve rumor de passos no port��o vai correndo ao quintal,

volta de olhar triste.

Tr��s

No mato alto, alguns frutos silvestres, os p��ssaros

ocupados em belisc��-los, o pequeno Ronaldo Monjardim

caminhando com suavidade de sombra por entre a galharia,

olhos perscrutando as copas, atiradeira pronta para o dis-

paro.

Junto da ��rvore maior e da pedra, descendo a encosta,

para os lados onde se estendiam ramadas de mel��o-de-s��o-

caetano, a concentra����o de coleiras. Os olhos de Monjardim

brilham de satisfa����o. �� a oportunidade que vem buscando

h�� horas. Desce vagarosamente a ribanceira, raspa-se na

pedra com tufos de parasitas, p��ssaros voam assustados,

olha ao redor, na fenda da rocha o corpo da menina, rosto

desfigurado, o ar se enchendo do mau cheiro que exalava.

Monjardim esquece a ca��ada de p��ssaros, assusta-se de

estar diante de um cad��ver, vence galharias intrincadas de

cip��s e unhas-de-gato, chega �� Avenida Nossa Senhora da

Penha, corre �� delegacia de pol��cia, volta ao local com os

investigadores, dois ou tr��s soldados. Um fot��grafo bate

chapas, os homens pegam o corpo com luvas, carregam-no

para a viatura, tomam o caminho do Instituto M��dico-Legal.

Monjardim corre para casa, fala no que viu. Rita Soa-

res sabe da not��cia, quer falar com seu Gabriel, mas n��o

deseja que dona Lola tome conhecimento. Retornara do hos-

pital na v��spera, est�� fraca, qualquer novo choque pode

agravar-lhe a sa��de. Por isso chama Tadeu, manda que v��

procurar Gabriel Sanches.

��� Surgiu uma novidade que a pol��cia vai lhe comu-

nicar.

��� Minha Nossa Senhora!

��� Pode n��o ser Aracelli. De qualquer forma, acho

bom o senhor ir na pol��cia tirar a d��vida.

19

Gabriel dirige o mais depressa que pode, entra no pr��-

dio da superintend��ncia, os investigadores que j�� conhecia

de vista o atendem e confirmam o achado.

��� �� uma menina. O m��dico-legista t�� cuidando do

caso.

Gabriel Sanches segue a viatura policial, passa por

ruas conhecidas, de movimento, e outras, completamente

desertas, por lugares a que costumava levar Aracelli: a praci-

nha com os balan��os, o jardim p��blico.

Entram finalmente numa rua estreita, saem numa esp��-

cie de largo, onde h�� um pr��dio antigo, as paredes descas-

cando, e outro mais recuado, arquitetura muito velha, po-

r��m conservado, caiado de branco. Na porta, alguns homens

e os que chegam v��o entrando. Um corredor, outro, o sal��o

cuja porta �� aberta. Depois a geladeira e o funcion��rio que

puxa a bandeja de metal com o corpo mutilado.

O m��dico de avental branco, luvas e ��culos se aproxi-

ma. Um policial baixo e gordo opina:

��� Parece que foi atingida por subst��ncia corrosiva.

O m��dico �� mais prudente:

��� Por enquanto �� prematuro qualquer racioc��nio nesse

sentido.

��� �� sua filha?

Gabriel Sanches, olhos vermelhos, n��o sabe o que

dizer. O rosto da menina est�� parcialmente desfigurado, os

cabelos amassados e sujos, a boca arrebentada. Alguns deta-

lhes levam-no a admitir que ��. Mas n��o fala. N��o consegue

falar. Sacode apenas a cabe��a, afirmativamente.

O m��dico explica que os exames estar��o conclu��dos

em dois dias.

Gabriel Sanches torna a sacudir a cabe��a, vai se reti-

rando. N��o tem d��vida de que �� Aracelli. Na porta do pr��-

dio j�� est��o muitos jornalistas. Souberam da localiza����o do

corpo, querem declara����es.

��� �� Aracelli?

��� Tou quase certo que sim.

Nos jornais o fato se transforma em manchetes. As

fotos do desaparecimento servem de ilustra����o para a mat��-

ria. O crime repercute, as emissoras de r��dio e televis��o

anunciam, os coment��rios nos pontos de encontro de Vit��-

ria multiplicam-se. H�� quem acredite em crime sexual, h��

quem fale em acidente.

Os grupos que mais discutem o notici��rio s��o os que

se re��nem no Sal��o Totinho, na Rua Nestor Gomes; no

20

Sal��o Garcia, no Bar Carlos Gomes, na Pra��a Costa Perei-

ra; na Mercearia Gianordoli, na Rua Gama Rosa.

A not��cia cresce e se espalha. Gabriel Sanches, humi-

lhado e at��nito, volta para casa, encontra Lola chorando, as

vizinhas procurando confort��-la, seu Henrique Rato e dona

Teresinha afirmando que talvez n��o fosse sua menina.

Gabriel Sanches se enche de coragem, de uma coragem

que vinha de seu pr��prio cansa��o, de tantas noites sem

dormir direito, da vis��o triste daquele corpo na bandeja

da geladeira, do peito descarnado, do rosto ro��do, da boca

arrebentada, vai dizendo a seu Henrique Rato que era ela

sim, n��o podia ser outra.

��� Identifiquei pelas m��os, pelo queixo, pelos cabelos.

Carlinhos se aflige no meio daquela gente toda, Radar

fica inquieto, come��a a ladrar e a uivar, como se tamb��m

entendesse que Aracelli tinha morrido, era seu o corpo que

estava no I M L , queimado e mutilado, jamais voltaria por

aquele port��o, jamais atiraria bola para que pegasse no meio

do quintal, no descampado em frente da casa. N��o cataria

suas pulgas, n��o o ensaboaria no banheiro, n��o iria com

ele �� quitanda, n��o lhe daria balas nem chocolate.

Enquanto o cachorro se movimenta e ouve-se o solu��ar

calmo de Carlinhos, seu Henrique Rato vai falando, repe-

tindo coisas que nunca ningu��m o ouvira dizer.

��� Juro por Deus que se algu��m fez isso com Aracelli

merece ser morto. �� um monstro.

Gabriel Sanches tem os olhos vermelhos, uma nova

onda de desespero se avoluma, vem de dentro dele, ergue-se

diante dos seus olhos perplexos e avan��a com f��ria, ele teme

perder-se, anular-se, sumir na trag��dia que gera contradi����es

e desencadeia ��dios.

��� Merece a morte o monstro que fez isso ��� repete

Henrique Rato.

Rita Soares entra com seu sai��o comprido, os tr��s pe-

quenos atr��s, senta num banco.

��� Tem de si fazer justi��a!

Gabriel Sanches olha aquela mulher de apar��ncia des-

vairada, cabelos negros e lisos, rosto magro e decidido, l��-

bios secos e gretados, as veias do pesco��o estufando cada

vez que fala com mais ��nfase.

��� N��o �� hora de amofinamentos.

Henrique Rato tamb��m est�� revoltado.

��� Acho que Rita Soares tem raz��o.

Os gritos de Lola chegam �� sala. Quando se acalma,

21

s��o os solu��os de Carlinhos que se ouvem. Rita Soares n��o

se deixa vencer pela dor. Quer os autores do trucidamento

da menor mortos em linchamento, arrastados em ch��o duro

de pedras, crivado de tocos.

No meio das pessoas que entram e saem da casa de

Gabriel Sanches, aparece Cl��rio Falc��o, mulato alto, entra-

das grandes na testa, gestos simples, rosto marcado de so-

frimento. Chega, fala com um, com outro, cumprimenta

Henrique Rato, dona Teresinha, abra��a Carlinhos. Rita

Soares chama-o de lado, pergunta se j�� sabe a respeito dos

rapazes de Nova Ven��cia.

��� Os tais que foram ontem de tarde na chefatura e

disseram que Aracelli t�� aprisionada por l��.

Os tais de Nova Ven��cia, um lugarzinho com o qual

Rita Soares n��o simpatizava, disseram tamb��m que a me-

nina fora levada para l�� por dois desconhecidos que a espan-

caram, arrancaram-lhe as roupas e a deixaram numa esp��cie

de chiqueiro.

Cl��rio Falc��o olha aquela mulher morena, parecendo

uma cigana e, acima de tudo, uma louca.

��� N��o se pode deixar uma crian��a indefesa nas garras

dessas feras que t��o destruindo tudo: desses que transam

com maconha e L S D .

Quatro

Cl��rio Falc��o, vereador por Vit��ria, est�� no final do

mandato. Mais um pouco e o per��odo legislativo se encerra.

Seu pensamento n��o �� tentar reeleger-se. Quer ir um pouco

al��m. Talvez deputado estadual. J�� consultou as bases, sabe

que sua candidatura ter�� apoio maci��o dos trabalhadores e

dos estudantes.

Mas, naquela tarde em que entra na C��mara, n��o est��

preocupado com o futuro pol��tico.

Em meio aos companheiros de partido, pede permiss��o

para relatar um fato que nada tem a ver com o regimento

interno, muito menos com as atividades rotineiras dos ve-

readores.

��� Trata-se no entanto ��� excelent��ssimos colegas ���

de um caso que t�� abalando a opini��o p��blica, mobilizando

a imprensa, repercutindo no notici��rio dos jornais em todo

o pa��s.

2 2

Cl��rio descreve detalhes do caso.

��� E o pior �� que nossa pol��cia t�� encarando o fato

como rotina. N��o montou o dispositivo necess��rio para evi-

tar o mist��rio que amea��a cercar a morte da colegial.

No final do discurso de Cl��rio Falc��o as coisas se com-

plicam no plen��rio. H�� vereador da Arena que afirma n��o

ser a C��mara o melhor lugar para se tratar de elucidar cri-

mes, enquanto os do M D B , partido de Cl��rio, acham justa

sua coloca����o, porque consideram a cidade despoliciada, su-

jeita n��o somente �� a����o dos criminosos da pr��pria regi��o,

como dos que entram livremente no Estado.

Terminada a sess��o, as considera����es pr�� e contra Cl��-

rio Falc��o estendem-se pelos corredores. Quando o vereador

se retira para um bate-papo com os amigos no Sal��o Totinho,

o mesmo tema continua sendo debatido. Ali, a coloca����o do

vereador �� aplaudida.

Tut��nio, um tipo branco e abrutalhado, popular pelas

verdades que gosta de dizer, doa a quem doer, bate palmas

a Cl��rio.

��� Precisa fustigar essa canalha. Ningu��m quer porra

nenhuma com a hora do Brasil. Se mete na pol��cia e se

amoita. Os rufi��es t��o por a�� dando pirocada em quem bem

entendem e fica por isso mesmo. Comem as filhas dos outros,

matam, e ningu��m se importa. Acho que, como vereador,

voc�� deve ir em frente. Descobrir o nome dos salafr��rios e

meter todo mundo na cadeia. Se for poss��vel, acabar com

eles. Criminoso que deflora e mata uma menina como Ara-

celli tem de morrer.

��� E quem disse que ela foi deflorada? ��� �� Arturz��o,

rebatendo as alega����es de Tut��nio.

��� Sei l��. �� o que t��o dizendo os jornais. N��o dizem

claramente, mas d�� pra entender. E j�� tem gente afirmando

que a menina foi morta num antro de viciados.

��� Por enquanto a verdade �� que se tem o corpo de

uma menina na geladeira do I M L ; que o pai acha que ��

sua filha; que a m��e n��o acha nada porque n��o tem coragem

de ir ver; que o superintendente da pol��cia afirma estar to-

mando medidas que esclare��am os fatos. Acontece que essas

medidas t��o se arrastando muito lentamente. N��o t�� havendo

o empenho necess��rio.

Cl��rio Falc��o come��a a falar, a gesticular, os curiosos

se aproximam, o pr��prio Tut��nio, sempre t��o barulhento,

cala-se, Arturz��o est�� atento.

2 3

��� �� assim que se tem de encarar a coisa. Com bom

senso. Nada de afirma����es levianas.

��� E por acaso tu quer dizer que tou afirmando bes-

teira? Deixa disso, rapaz. Sei muito bem o que digo. Co-

nhe��o essa cambada como a palma da m��o. Tenho um pa-

rente que t�� engordando na pol��cia. N��o quer porra nenhu-

ma ��� diz Tut��nio, reacendendo a discuss��o, que n��o vai

parar t��o cedo. Nem mesmo quando Cl��rio Falc��o se retira

e, com ele, muitas das pessoas que ali est��o. Mas o Sal��o

Totinho �� para isso mesmo. Ali ficam elementos sem muita

ocupa����o, ou que discutem pelos menores motivos. Falam

de futebol, de pol��tica e de vida alheia. Principalmente vida

alheia.

Cl��rio �� um dos freq��entadores, mas desta vez est�� com

pressa, tem de retornar �� casa de Gabriel Sanches, saber do

estado de dona Lola, procurar Rita Soares, perguntar o que

sabe mais a respeito dos tais mo��os de Nova Ven��cia, ir l��

se for o caso.

N��o encontra a mulher, fala com Tiziu, o pequeno in-

forma que ela est�� por perto, n��o custaria a aparecer. Cl��rio

procura Gabriel Sanches, come��a uma fala����o sem fim. Re-

lata o que dissera de tarde na C��mara, promete que as in-

vestiga����es de agora em diante ser��o realizadas com mais

rigor, enquanto anuncia que o superintendente Barros Faria

mandara colher cabelos da menina que estava no I M L , a fim

de enviar ao Instituto de Criminal��stica, em Bras��lia.

��� O mal disso tudo �� o tempo que leva ��� acentua

Gabriel, um tanto desiludido.

��� �� prefer��vel demorar e se ter seguran��a do que ficar

na d��vida, como estamos ��� responde o vereador.

��� Tou certo de que �� Aracelli que t�� naquela geladei-

ra. Amanh��, se Lola tiver melhor, vai falar com o governa-

dor Gerhardt Santos. N��o acredita no que digo. N��o aceita.

Tem d��vida, mas n��o quer ver o corpo. Vai pedir ao gover-

nador que fa��a nossa filha aparecer. Acho que isso de pouco

valer��. �� desejo dela, nada tenho a opor. E parece que o

governador t�� disposto a receb��-la.

A conversa de Cl��rio Falc��o com Gabriel Sanches se

alonga, aparece Henrique Rato, aparecem dona Teresinha,

Rita Soares e seus garotos, vem o Noca de Brito e dona

Eduvirges. Noca de Brito tem novidades, est�� suado, um

bolso do palet�� desbei��ando, a barba por fazer. Vive de

vender de porta em porta, anda por tudo que �� lugar em

Vit��ria, conhece mais da metade da popula����o.

24

��� Vim de Nova Ven��cia. L�� t�� uma confus��o dos

diabos. A pol��cia encontrou a casa onde tava a menina me-

tida num por��o como bicho, toda cheia de pancadas e com

marcas de inje����o pelos bra��os. N��o vi a menina mas me

disseram que tava at�� meio maluca. Dona Magno, uma pessoa

que conhe��o por l��, foi quem viu.

��� E a pol��cia daqui trouxe a menina? ��� quer saber

Cl��rio Falc��o.

��� N��o Terminaram apurando que a garota se chama

Marc��lia Diniz. �� filha de gente de l�� mesmo.

Noca de Brito passa as m��os grandes e sujas na testa,

afirma que o povo todo de Nova Ven��cia j�� sabe do desa-

parecimento de Aracelli, diz que os respons��veis pelo encar-

ceramento de Marc��lia podem ser os mesmos que liquidaram

a filha de Gabriel Sanches.

��� Tem tanta gente ruim nesta cidade ��� argumenta

Rita Soares ��� que n��o acredito seja necess��rio vir crimi-

noso de Nova Ven��cia pra atuar por estas bandas. Gente

safada �� o que n��o falta aqui. Surgem padres que fazem

igrejas e n��o terminam, vendedores de terras, banqueiros de

araque, falsos pastores protestantes, curandeiros e at�� santos.

Pegam o dinheiro dos trouxas e se mandam.

��� Teja certo, Gabriel Sanches, que Aracelli vai apa-

recer; se por infelicidade nossa o corpo que t�� no I M L �� o

dela, n��o se iluda: os respons��veis pelo crime ser��o desco-

bertos ou n��o me chamo mais Cl��rio Falc��o.

��� At�� o fim da semana que vem, se nada de novo

for apurado, vou contratar dois detetives particulares no Rio.

��� Sou de opini��o que a gente deve trabalhar de um

lado, enquanto a pol��cia cumpre o lado dela. �� claro que

n��o se disp��e dos meios que os policiais t��m, mas, como diz

o ditado, quem n��o tem c��o ca��a com gato.

Rita Soares �� ainda de opini��o que o trabalho deva ser

desenvolvido em sil��ncio.

��� Nada de palha��adas, declara����es em jornais, muito

falat��rio ��-toa. Quando os culpados pensarem que se esque-

ceu o fato, ent��o se ataca. Pega-se o sacana pelos cabelos,

arrasta pro ponto mais claro da pra��a, chama todo mundo

pra ver a cara c��nica que ele tem. E a�� se estra��alha o filho

da puta; se bota cachorro nele. Quando a justi��a descobrir,

j�� �� tarde, In��s �� morta.

Rita Soares est�� furiosa, as veias do pesco��o endureci-

das, bei��os gretados, uma falha de dente no maxilar inferior

avultando, por ser bem na frente.

25

��� Sei como �� essa gente. Sei bem como agem os fi-

lhinhos de papai.

��� Acontece que n��s tamos a�� pro que der e vier, Tia-

zinha ��� afirma Cl��rio Falc��o.

��� Mas �� preciso que se tenha uma pista ��� argumenta

Noca de Brito. ��� Por enquanto, todo mundo t�� ficando

nervoso, mas ningu��m sabe onde t�� o fio da meada.

��� Por isso �� que se deve trabalhar em surdina ���

acentua Rita Soares.

O grupo est�� formado na frente da casa, Radar entra

e sai inquieto, Carlinhos fala com os garotos do seu tama-

nho, dona Eduvirges conta um caso a dona Maria. Em meio

��quela fala����o toda, de vizinhas que ainda cuidam do deses-

pero de Lola, s�� h�� paz nas casuarinas, balan��ando suave-

mente nos olhos tristes e distanciados de Gabriel Sanches.

Est�� certo de que Cl��rio Falc��o levar�� �� frente o que

promete, como est�� certo de que Rita Soares n��o descansar��

de procurar os respons��veis pela morte de Aracelli. Rita

Soares, a m��e da rua, dos enjeitados. Para sustentar os pe-

quenos, vai de sacola em punho, pedindo donativos na zona

do com��rcio. Quando a semana est�� de todo ruim, n��o se

acanha: ronda as feiras, pegando restos, anda pelo cais do

porto juntando sobras. Os estivadores chamam tia Rita para

os lugares onde h�� mais arroz derramado, mais feij��o ou

gr��os de trigo.

Rita Soares, os olhos verdes, cabelos negros, rosto ma-

gro e nervoso. Uma mulher do povo que se incomoda com

ele; com as crian��as que geralmente terminam sendo as

mais sacrificadas, trilhando caminhos imposs��veis de vencer

sozinhas.

26

O pr��mio e as romarias

Uma cidade clama por justi��a

Um

Faz tempo que Lola Sanches sentou-se �� mesa de caf��.

Est�� distante, olhos fundos, perdidos num ponto que n��o

existe naquela casa, nem naquela manh��. Veste uma blusa

de estampados, passou a escova nos cabelos alourados. N��o

como nos dias em que tudo naquela casa fora alegria e

Aracelli vinha com os grampos para ajud��-la. Gabriel liga

o motor do carro, Lola ergue-se mecanicamente:

��� Fica a��, filho. Daqui a pouco a empregada deve apa-

recer. Ela vai tomar conta da casa ��� diz Gabriel Sanches.

Lola tem os olhos cheios d'��gua, o carro vai se movi-

mentando, subindo e descendo desv��os do terreno, at�� atin-

gir o asfalto da B R - 1 0 1 . Gabriel sente vontade de falar,

dizer alguma coisa, n��o sabe por onde come��ar.

O carro chega �� rua de pedras e depois �� avenida co-

berta com lajotas de cimento sextavadas. As casas passam,

as ��rvores passam, as pessoas, os outros carros, a igreja, e

Lola Sanches nada v��.

��� Vai poder falar com o governador? ��� pergunta fi-

nalmente Gabriel.

Olhando sempre em frente, sempre para mais longe,

como uma son��mbula, ela diz simplesmente:

��� Farei o poss��vel.

O carro chega perto dos jardins floridos, dos f��cus e

das palmeiras, do pr��dio de estilo antigo e imponente, das

colunatas e das janelas trabalhadas, das escadas e dos arcos,

dos guardas de luvas brancas, do pessoal elegante entrando

e saindo.

Lola Sanches salta e n��o sente estar subindo naqueles

degraus de m��rmore, pisando tapetes ornamentados de lagos

e p��ssaros no ch��o lustroso. Senta-se ao lado do marido, as

pessoas por perto olhando-a, um senhor gordo estendendo

29

a m��o para mostrar-se solid��rio, o oficial de gabinete de

Gerhardt Santos se aproximando, Sua Excel��ncia podia re-

ceb��-la. E l�� se vai Lola Sanches, carregando uma cruz invi-

s��vel naqueles sal��es dourados, de cortinas vaporosas. Quan-

do o governador ergue-se da cadeira para dar-lhe os p��sames

ela n��o suporta.

��� Minha filha! Minha pobre filha!

Um servente entra no gabinete, Lola toma um pouco

d'��gua, o governador n��o tem quase nada a dizer.

��� Todos n��s estamos empenhados em solucionar o

caso. Acalme-se. Os respons��veis ser��o entregues �� justi��a.

Depois de alguns minutos mais o governador fala de

coisas diversas, mostra que nem sempre o trabalho da pol��cia

�� simples. Gabriel Sanches escuta, atento, Lola est�� distante.

��� Vai continuar tudo como t��.

Gabriel leva Lola ao I M L , a fim de fazer logo a iden-

tifica����o do cad��ver, o carro sobe e desce ladeiras, chega

finalmente ao pr��dio antigo, de cimalha ornamentada.

Os policiais que est��o na porta encarregam-se de mos-

trar-lhes o compartimento em que est�� o corpo, aparece um

funcion��rio vestindo avental, um outro manda que aguardem

um pouco enquanto convoca peritos e detetives que tratam

do caso.

Lola e Gabriel, sentados na sala praticamente nua de

objetos de adorno, ouvem opini��es dispersas dos funcion��-

rios.

��� Sou o detetive Matos.

O m��dico-legista se aproxima, o pequeno grupo vai por

um corredor at�� o sal��o onde fica a geladeira. Abre-se uma

gaveta, o corpo �� exposto. Estranhamente Lola n��o se ener-

va tanto quanto Gabriel Sanches esperava. Olha aquele rosto

desfigurado, a boca quebrada, dentes faltando, examina os

cabelos, as orelhas, m��os e p��s, sinais particulares. Enche-se

de ��dio e repulsa, come��a a chorar, a dizer que aquela n��o

�� sua filha.

��� Nunca! N��o �� o corpo de Aracelli. Ela n��o tinha

unhas encravadas. Querem me enganar. N��o �� minha filha!

Gabriel Sanches fica perplexo diante da afirma����o da

mulher, o m��dico est�� espantado, principalmente agora que

o superintendente Barros Faria tinha voltado de Bras��lia e

os exames asseguravam que aquela menina era Aracelli Ca-

brera Crespo.

O detetive Matos pergunta a Gabriel se reconhecia o

corpo como sendo da filha, ele confirma o que dissera antes.

30

��� Pra mim, �� Aracelli.

O legista olha o detetive sem entender semelhante dis-

cord��ncia entre marido e mulher, um policial argumenta que

Lola est�� nervosa demais para o reconhecimento, ela conti-

nua afirmando que n��o �� nada disso, o que pretendiam era

iludi-la, apresentando os despojos de outra crian��a no lugar

da sua filha.

Gabriel Sanches pede �� mulher que tenha calma, pro-

cure raciocinar, pois sua afirma����o coloca todo o caso em

d��vida, derruba as investiga����es, anula os esfor��os feitos at��

ali para desvendar o mist��rio. Lola Sanches chora, novamen-

te, n��o pode sequer pronunciar as palavras.

��� Me leve pra casa. Vamos embora daqui. N��o quero

mais ver essa pobre crian��a.

Um funcion��rio fecha a geladeira, o grupo se afasta,

Lola, ladeada por Gabriel e o detetive Matos, entra primeiro

no carro, os policiais ficam intrigados.

��� Assim tudo volta �� estaca zero.

��� Se n��o �� Aracelli a garota que t�� a��, temos uma

por����o de gente mentindo, inventando est��rias, e os acusa-

dos t��o livres de suspeitas ��� pondera Matos.

��� Acontece que os exames feitos em Bras��lia com-

provam que os despojos s��o de Aracelli. Os cabelos recolhi-

dos em escovas que a menina usava conferem com os que

pertencem ao cad��ver.

��� Confesso que n��o tou entendendo nada ��� afirma o

detetive Matos ��� ou a pr��pria m��e da crian��a t�� procuran-

do confundir as investiga����es.

O sargento alto e magro chega e diz que o superinten-

dente j�� est�� reunido com os jornalistas.

��� Vai anunciar quem s��o os matadores de Aracelli.

Tem gente na superintend��ncia como nunca vi. E t�� che-

gando mais.

O superintendente Barros Faria tem o mesmo rosto

calmo e olhar sereno, por tr��s de uns ��culos de aros grossos.

Relata o trabalho feito pelos policiais, o empenho das auto-

ridades e do pr��prio governador Gerhardt Santos. Termina

afirmando que, gra��as ��s investiga����es procedidas desde o

dia imediato ao desaparecimento da menina, tinham chegado

a uma conclus��o.

��� O respons��vel pelo seq��estro e conseq��ente morte

de Aracelli Cabrera Crespo �� um preto velho, mal-encarado

e de aspecto repelente, que anda h�� tempos pela praia do

31

Su��, principalmente nas imedia����es do Col��gio S��o Pedro.

J�� est��o sendo tomadas medidas pra que seja capturado.

Dois rep��rteres fazem indaga����es que o superintendente

n��o gosta, um terceiro interroga em tom irritado:

��� Essa era a declara����o estarrecedora que o senhor

prometeu?

��� A pol��cia n��o faz milagres.

��� Mas o senhor voltou de Bras��lia dizendo j�� saber

quem eram os criminosos e afirmou no aeroporto que a

sociedade se alarmaria com os fatos.

O superintendente levanta-se, sai da sala, no dia se-

guinte os jornais divulgam as afirma����es de Barros Faria

com evidente cunho de ironia, Arturz��o cantando de galo

na porta do Sal��o Totinho, Tut��nio com o rabo entre as

pernas.

��� N��o te disse? Tu fica falando besteira porque quer.

Foi um preto velho repelente, que come crian��as, o respon-

s��vel pela morte de Aracelli. E n��o �� um investigadorzinho

quem diz isso. �� o grandalh��o da pol��cia. E agora? Devia

ter apostado contigo. Quero ver a cara dos detetives e peri-

tos que andam levantando est��rias. Eles �� que v��o acabar

em cana, por cal��nia, difama����o e uma quantidade de coisas

que os advogados sabem inventar.

��� N��o acredito que isso v�� parar a��. O dr. Barros

Faria deve t�� querendo ganhar tempo. N��o �� poss��vel. Nin-

gu��m engole essa est��ria. Pode anotar o que digo: a coisa

vai evoluir. N��o fica assim ��� declara Tut��nio, mais exal-

tado do que nunca.

A discuss��o dos dois est�� forte quando vem vindo

Rita Soares, vestid��o de cigana, pano vermelho amarrado

na cabe��a, Tiziu, Tadeu e Tuca seguindo atr��s, a mulher

com uma sacola cheia de donativos, chinelo de tiras, brincos

dourados nas orelhas. Passa perto de Arturz��o, critica-o por

s�� viver discutindo.

��� Tem de ser assim, tia Rita. Este cara �� mais tapado

do que uma porta. N��o entende porra nenhuma do que

se diz.

��� E tu �� mais entendido do que ele?

Arturz��o p��ra de rir. N��o contava que tia Rita lhe fa-

lasse daquele jeito.

��� O que a senhora quer dizer com isso?

��� Perguntei se sabe mais coisas do que ele. Coisas

ligadas ao caso Aracelli.

Arturz��o come��a a rir, tia Rita ent��o diz que, tanto

3 2

ele quanto Tut��nio, estavam convidados para as preces que

iam ser realizadas na casa de seu Gabriel Sanches, at�� Ara-

celli ser localizada.

��� N��o vi o corpo da menina no I M L . Mas se a pr��pria

m��e diz que n��o �� sua filha, quem pode afirmar o contr��rio?

��� T�� esquisito isso! ��� afirma Tut��nio.

��� S�� Deus pra nos ajudar! ��� diz Rita, e vai andando,

subindo a Rua Nestor Gomes. ��� Vit��ria t�� precisando de

uma limpeza em regra. O pecado vai tomando conta da ci-

dade e ningu��m v�� isso. As pessoas v��o se tornando indife-

rentes e meninas como Aracelli �� que pagam.

Quando come��a a escurecer Rita Soares vai ajudar seu

Henrique Rato a trazer a imagem de Nossa Senhora de F��ti-

ma para a casa de Lola Sanches, onde j�� havia bastante gente

se movimentando na pequena sala, Radar transando pelo

meio do povo. Em pouco tempo n��o cabia mais ningu��m

na sala e os grupos formavam-se no quintal, falavam baixo.

Lola Sanches continuava no quarto, algumas vizinhas cui-

dando dela.

As velas se acenderam na frente da imagem da santa,

na mesa coberta com um pano rendado, o cheiro de cera

queimada dominando o ambiente, Gabriel Sanches sem ter

onde ficar, um estranho na sua pr��pria casa, as mocinhas

trazendo flores e colocando no pedestal, Rita Soares ajoe-

lhada, ossos do rosto ressaltados na claridade tr��mula das

velas, puxando a reza e as vozes grossas e finas acompanhan-

do, repetindo "tende piedade de nos, �� Senhor!; tende pie-

dade de n��s, �� Virgem de F��tima!"

Quando o vozerio serenava e de repente o sil��ncio era

t��o forte que se podia ouvir as unhas de Radar raspando o

ch��o, cada vez que ia ao port��o e voltava ansioso, o que

avultava eram os gemidos dos ventos nas casuarinas. Pela

primeira vez Gabriel Sanches ficou pensando naquelas ��rvo-

res, e um arrepio percorreu-lhe o corpo.

"N��o devia ter deixado que crescessem tanto que emi-

tissem esses sons agourentos."

Gabriel Sanches olha as ��rvores que ��quela hora for-

mam uma mancha escura dentro da noite de ventos fortes

e surpreende-se ao verificar que Radar tamb��m encarava as

casuarinas como se de l��, das suas ramagens finas, viesse

todo o mal que h�� semanas se avolumava.

��� Livrai de n��s, Senhor, os maus pensamentos. Fazei

com que os justos tenham justi��a e que n��o seja em v��o o

sangue que os inocentes derramam.

3 3

Quando Rita Soares ergue as m��os postas e curva a

cabe��a de cabelos lisos at�� quase o ch��o, o coro de mulheres

nos cantos sombrios da casa repete alto:

��� Que a Virgem de F��tima nos proteja; que nos livre

do mal; que afaste o dem��nio pra longe desta casa e deste

lugar. Am��m!

Ap��s a ora����o de Rita Soares outras mulheres assumem

seu lugar diante da santa e �� tamb��m o tempo em que Carli-

nhos aparece com uma bandeja redonda, mal segura numa

das m��os, oferecendo cafezinho aos que conversam, parando

aqui e acol�� como se n��o estivesse sentindo seus movimentos.

Quase de madrugada, terminada a prece, um grupo de

homens e mulheres sai conduzindo a imagem, velas acesas,

vozes soturnas, rumor cavo dos p��s no ch��o de pedras. No

dia seguinte a santa estaria em outra casa, onde novamente

as preces seriam proferidas, as invoca����es feitas.

Do port��o Gabriel Sanches fica olhando a pequena

multid��o no descampado, j�� quase na altura da casa de dona

Teresinha, as vozes se perdendo, confundindo-se com os

ventos frios da madrugada e o choro agourento das ��rvores.

Enquanto o filho fala qualquer coisa relativa aos tr��s peque-

nos de tia Rita, o pensamento de Gabriel est�� voltado para

as casuarinas e o prop��sito de bot��-las abaixo.

Dois

��� Pai, tou metido a�� num caso s��rio. Tenho traba-

lhado dia e noite. Por isso, se passou a semana toda sem

poder vir aqui. O pessoal envolvido �� de influ��ncia. Gente

gra��da.

Homero Dias, do servi��o secreto da Pol��cia Militar,

est�� sentado com a mulher, em frente ao pai.

��� Que caso t��o dif��cil �� esse?

��� A morte de Aracelli. J�� ouviu falar?

��� Tenho ouvido. Ontem mesmo passou uma Kombi

por aqui anunciando seu desaparecimento, e parece que h��,

inclusive, um pr��mio em dinheiro pela descoberta dos as-

sassinos.

��� Pois ��. Os autores do crime podem entrar numa

boa. Se isso acontecer vai ser um esc��ndalo na sociedade.

��� Quantas pessoas t��o trabalhando com voc��? ��� quer

3 4

saber Jo��o Dias, o pai, homem magro, cabelos quase total-

mente brancos, ��culos de aros grossos.

��� Umas tr��s. N��o posso contar detalhes porque �� tra-

balho sigiloso.

Dona Elza Dias, que acompanha o marido na visita

ao sogro, acentua:

��� Tenho medo de Homero metido nesse tipo de coisa.

��� Tenha cuidado, filho.

��� N��o sei por que cargas-d'��gua foram dar essas in-

vestiga����es a ele ��� diz a mulher.

��� Ordens superiores ��� argumentou Homero Dias,

um tanto nervoso.

��� O neg��cio �� agir com prud��ncia. Toda cautela ��

pouca ��� acentua o pai.

��� Tenho sido prudente at�� demais. O material que

vou coletando passo ��s m��os do capit��o Manoel Ara��jo.

J�� h�� bastante coisa entregue. D�� pra implicar muita gente.

��� Como foi mesmo que mataram a menina? ��� per-

gunta o pai.

��� O senhor precisava ver. Uma monstruosidade!

��� Nossa Senhora! ��� exclama dona Elza Dias. ���

N��o gosto nem de ouvir falar nisso. Basta o que tenho

lido nos jornais e visto na televis��o.

��� O mundo t�� virado, minha filha.

��� �� inacredit��vel que uma coisa dessas aconte��a numa

cidade como Vit��ria, onde a maioria das pessoas se conhece

��� acentua Elza Dias.

��� N��o foi a cidade que ficou ruim ��� torna a dizer

Jo��o Dias. ��� Somos n��s que tamos retrocedendo na escala

social.

A noite est�� quente, Homero abre uma garrafa de cer-

veja que tirou da geladeira, oferece �� mulher, ao pai.

��� N��o entendo, o governador recebeu a m��e da me-

nina, o superintendente promete sempre elevar o n��mero de

agentes nas buscas, mas tudo continua como nos primeiros

dias ��� explica Homero. ��� Eu e uns tr��s trabalhando.

Apenas isso. N��o d�� pra entender.

��� Vai ver que t��o tomando outras provid��ncias ���

arrisca o pai.

��� N��o creio. A coisa t�� mal parada.

��� O que quer dizer com isso? ��� indaga a mulher.

��� Parece que h�� algu��m querendo que as investiga-

����es n��o se desenvolvam.

��� E por que fariam isso? ��� indaga o pai.

3 5

��� N��o sei, meu velho. N��o sei.

��� E que est��ria �� aquela da menina presa no por��o

de uma casa em Nova Ven��cia?

��� Apenas uma maneira de confundir as investiga����es.

T��m surgido muitas tentativas para tumultuar os trabalhos.

��� Quem estaria por tr��s disso? ��� indaga o pai.

��� �� o que tou querendo saber. Por enquanto temos

suspeitos. Faltam as provas concretas.

Est�� tarde, a lua clareando a entrada da casa, o sargento

e a mulher v��o embora, distanciam-se no caminho de volta.

Homero n��o est�� com sono, acende a luz da escrivaninha,

fica estudando seus apontamentos e. de repente, a mulher

j�� quase dormindo, diz secamente:

��� Acho que o capit��o Manoel Ara��jo j�� pode interro-

gar o filho de Constanteen Helal.

Dona Elza Dias tem um sobressalto, ergue-se nos tra-

vesseiros.

��� Filho de Helal?

��� Certo. O Paulinho Helal e provavelmente o Dante

Michelini. S��o os dois maiores suspeitos.

A mulher n��o diz mais nada, por��m o marido percebe

seu medo. Recolhe as notas, mete-as dentro de um caderno,

trata de deitar-se, embora saiba que vai ficar acordado

muito tempo, talvez nem consiga pegar no sono.

Pela manh�� Homero sai cedo e quando retorna para o

almo��o diz que exames feitos no Instituto de Criminal��stica

em Bras��lia confirmam ser Aracelli a menina que est�� no I M L .

Dona Elza Dias nada comenta. Est�� cada vez mais alar-

mada com o envolvimento do marido, com o curso das inves-

tiga����es, os suspeitos importantes.

Homero Dias chega �� delegacia, n��o encontra o capit��o

Manoel Ara��jo. Um policial chamado Z�� Severino se apro-

xima. N��o tem intimidade com Homero, mas o convida

para um caf��. Os dois chegam �� rua, Z�� Severino n��o sabe

por onde come��ar.

��� Vamos l��, desabafa ��� diz Homero.

��� �� dif��cil falar dessas coisas. Fico at�� sem jeito.

��� Algo com as investiga����es? ��� pergunta Homero,

curioso.

��� Mais ou menos isso. Tou no trabalho de detetive

h�� mais de dez anos. Tenho gostado de tua atua����o, os

companheiros tamb��m. Mas o pessoal de cima n��o t�� que-

rendo que continue na jogada. N��o esperavam que tu fosse





36


l�� no fundo do problema e agora te guenta que as pedras

v��o come��ar a rolar.

��� N��o acredito ��� diz Homero.

��� �� o que te aviso ��� acentua Z�� Severino. ��� Se

pensa que v��o chamar o Constanteen Helal ou o Dante

Michelini pra depor t�� enganado. Nem os pais, nem os

filhos.

��� E como sabe dessas coisas?

��� �� o que transpira por a��.

Na volta do caf��, Homero Dias encontra o capit��o

Manoel Ara��jo. Tem vontade de perguntar como est��o

sabendo de particularidades de suas investiga����es, mas n��o o

faz. Prefere esperar melhor oportunidade.

Homero recebe designa����o de trabalho que n��o tem

nada a ver com o caso Aracelli e s�� ent��o percebe que Z��

Severino tem raz��o. Daquele dia em diante a pol��cia n��o ia

mais insistir em apontar os suspeitos pelo assassinato da

colegial.

O sargento volta no final da tarde bastante abatido

para casa, quase no mesmo momento em que Rita Soares

vai procurar seu Henrique Rato, pergunta se o pr��mio de

cinq��enta mil cruzeiros pela captura dos criminosos ainda

est�� de p��; o velho confirma que sim, ela fala do motorista

Bertoldo Lima e um amigo que reside no morro do Itarar��.

��� Me disseram que esse homem tem uma est��ria a

contar.

Por sua vez Henrique Rato mostra-se meio triste, de-

salentado, diz que Lola Sanches viajou para Santa Cruz de

la Sierra e Gabriel fora transferido, pela Christian Nielsen,

para o munic��pio de Mangaratiba, no Estado do Rio.

��� E o Carlinhos?

��� T�� com a m��e ��� respondeu Henrique Rato, acen-

tuando: ��� �� at�� bom que Lola tenha viajado. Talvez,

quando voltar, o caso j�� esteja esclarecido. Na casa s�� est��o

o Radar e a empregada.

Rita Soares despede-se, caminha at�� o port��o dos San-

ches, passa pelas casuarinas gemendo no ar escuro da noite,

encontra Radar encolhido no p�� de uma parede. Estala

os dedos, o cachorro chega perto, ela v�� o prato de comida

que o bicho se recusa a aceitar. A empregada aparece, fala

na viagem de Lola, na transfer��ncia de Gabriel.

��� Tenho at�� medo de dormir sozinha nesta casa. T��

uma tristeza que s�� a senhora vendo. N��o sei se foram as





37


rezas que me deixaram impressionada, n��o sei se s��o essas

��rvores de cemit��rio, plantadas a��, ou se �� Radar uivando

horas a fio, como se tivesse chorando.

Rita Soares, que viera falar com Gabriel a respeito do

homem que conhecia o motorista Bertoldo Lima, sente as

pernas doendo de tanto andar, mas n��o se arrepende.

��� Na verdade n��o perdi tempo ��� diz ela alisando

o focinho de Radar. ��� S�� por te encontrar aqui sem vontade

de comer e te fazer engolir boa parte da b��ia j�� me sinto

recompensada.

A empregada n��o entende como Rita Soares consegue

conversar com Radar, volta para a cozinha.

��� Se Gabriel demorar, vou te levar comigo.

A empregada fala de onde est��, o barulho da ��gua da

torneira caindo nos pratos e na pia.

��� Esse cachorro vai acabar morrendo.

��� H�� bichos assim. Mais fi��is do que as pessoas.

E vai se afastando, a rua larga com raras pessoas transi-

tando, ela pensando em Tiziu, que ficou tomando conta dos

dois irm��os menores. Quando chega na parte em que a rua

se confunde com a estrada, o mato baixo de um lado e

do outro, imagina fazer promessa ao santo de sua devo����o.

S��o Benedito, protetor dos pobres, dos fracos e dos pretos.

Um santo que j�� nem prociss��o tinha mais pelas ruas da

cidade, como nos velhos tempos.

Numa parte elevada do terreno, de onde podia ver

extensa regi��o �� frente, Rita Soares ajoelha-se. Os ventos

fortes, vindos da noite, a��oitam-lhe os cabelos, as m��os

postas acompanham o rosto voltado para as t��midas estrelas.

As palavras que pronuncia s��o inaud��veis, os pedidos que faz

s�� ela sabe.

Durante muito tempo Rita Soares ali permaneceu. Mes-

mo ao ouvir os passos do animal se aproximando n��o voltou

a vista para olh��-lo. Quando o c��o chega bem perto, a ponto

de sentir-lhe o calor do corpo e a morrinha do p��lo, n��o h��

mais d��vida de que tinha sido seguida por Radar. Como se

entendesse a invoca����o da mulher, o cachorro deita do lado,

fica aguardando.

Rita Soares benze-se, ergue-se, caminha atrav��s do des-

campado, o c��o seguindo-a de perto. Ao empurrar a porta

da sala estreita, dois bancos ao longo da mesa e um cande-

eiro enegrecendo a manga de vidro rente �� parede, v�� Tiziu

quase adormecido. Radar fica na soleira da porta, como se





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aguardasse permiss��o para entrar tamb��m. A mulher chama-

o, carinhosamente, ele sacode a cauda e se aproxima.

��� At�� seu Gabriel aparecer, Radar vai ficar com a

gente, filho.

Enquanto Rita Soares mexe nas panelas, preparando o

jantar, pergunta se Tadeu e Tuca tinham comido alguma

coisa antes de dormir. Em pouco tempo traz o bule de caf��

para a mesa, uns peda��os de bolo, aipins cozidos. Tiziu

senta-se num dos bancos, a mulher coloca o candeeiro sobre

a lata de farinha. A claridade mal d�� para iluminar o apo-

sento de paredes caiadas de branco, um quadro de S��o Bene-

dito e outro da Virgem de F��tima.

Mastigando os peda��os de bolo e aipim ao lado do

filho, Rita Soares pensa nas coisas que tem a fazer. E, acima

de tudo, pensa na ida �� cidade. Passaria pela escola de Ara-

celli, seguiria seu caminho at�� o ponto do ��nibus, o c��o

lhe ajudaria a encontrar um ind��cio de como fora seq��es-

trada.

Tarde, muito tarde, quando at�� Tiziu est�� dormindo,

Rita Soares ainda continuava sentada ao redor da mesa. Olha

o c��o sentado �� sua frente, nervoso.

"Tenho certeza de que se encontra uma pista que seja.

N��o �� pelo pr��mio que seu Henrique Rato oferece. N��o tou

empenhada nisso pra ganhar dinheiro. �� pelo castigo que

Deus, a Virgem de F��tima e S��o Benedito v��o dar aos crimi-

nosos. Se uma crian��a como Aracelli �� morta e fica por isso

mesmo, o castigo do c��u termina vindo pra todos n��s.

Vit��ria vai sofrer muito rev��s por causa desse crime. N��o

tenho sono, desde que a menina foi dada por morta. Tou

quase certa, Radar, que isso �� uma indica����o que S��o Bene-

dito e a Virgem de F��tima t��o me dando. N��o querem que

adorme��a. Se nada acontecer, se nenhuma pista for desco-

berta, ent��o �� que a gente n��o t�� aben��oada pelos santos e

�� t��o pecadora quanto os pr��prios criminosos. Se for assim,

pego os meninos, meto os bregue��os numa trouxa e desapa-

re��o. Vou viver l�� pras bandas de S��o Mateus. Mas n��o

adianta nada a gente ficar aqui pensando em asneiras, antes

do dia clarear e se iniciar a caminhada que vai ser longa.

Por isso, acho bom que procure dormir, como os pequenos

t��o fazendo, que ainda vou me demorar."

Rita Soares levanta-se, vai at�� o terreiro dos p��s de

margaridas e l��rios-do-vale, volta de dentro da noite com

um buqu�� de estrelas. P��e o quadro de S��o Benedito e





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da Virgem de F��tima sobre a mesa coberta com a toalha

rendada, acende uma vela, disp��e as flores com ordem e

respeito, faz o sinal-da-cruz in��meras vezes. Radar encolhe-

se num canto, adormece. Quando Rita Soares termina suas

preces os galos est��o amiudando, muitas estrelas desapare-

ceram e por cima da mata percebe-se a aproxima����o de

um novo dia. S�� ent��o vai para o quarto, estira-se ao lado

de Tiziu.

Tr��s

Tiziu volta da quitanda com dois p��es. Rita Soares

prepara um mingau com o resto de farinha que havia sobrado

do almo��o. Bota a farinha de molho, mistura um pouco de

coco ralado, bota a����car, prova, acha que os pequenos

v��o gostar. Mas, s�� ent��o, olha Radar, sabe que n��o pode

lhe oferecer grande coisa. Abre o arm��rio, mexe numas

latas, dentro da menor delas encontra dois ovos que vinha

reservando para fazer gemada.

"N��o h�� de ser nada. Tu tamb��m t�� precisando de

sust��ncia e uma gemada �� bem bom; principalmente, quando

leva cravo e laranja-da-terra."

Pensando nisso Rita Soares decide aumentar a quanti-

dade de mingau, misturando os dois ovos na massa. Torna

a levar a panela de alum��nio ao fogo, mexe bastante com

a colher de pau para n��o pegar, experimenta, acha bom,

chama Tiziu para provar.

��� T�� bom, m��e! Tuca vai gostar.

��� E Radar tamb��m. Deixa esfriar e bota pra ver se

vai querer.

Tiziu fica com a colher de pau, soprando. Coloca a

massa morna na m��o, leva para o cachorro. Em duas lambi-

das ele demonstra que aprova o mingau de tia Rita. Ela

fica contente, pois agora sabe que pode lev��-lo para a cidade,

sem lamentar que estivesse faminto.

Tiziu lava um prato de estanho, enche do mingau com

ovos, bota para Radar, que fica esperando esfriar. Tia Rita

lava outros pratos, enquanto Tiziu vai acordar os irm��os.

Primeiro aparece Tadeu, cara morena, sobrancelhas

grossas, o nariz mi��do. Depois vem Tuca, menor ainda que

Tadeu, barrigudo e ��gil. Tia Rita manda que sente, afastado

40

do outro para n��o haver briga, Tiziu toma seu lugar na

cabeceira. Os pratos cheios de mingau s��o dispostos, Tiziu

lembrando que nem Tadeu, nem Tuca, passaram sequer ��gua

no rosto.

Rita Soares est�� com pressa, n��o tem tempo para de-

talhes, mas aprova a reclama����o do filho mais velho, sabe

que tem raz��o, cansara de dizer que menino que levanta e

n��o lava o rosto e a boca n��o sentaria com ela para o caf��.

Mas aquele era um dia especial, precisava que os filhos

estivessem unidos, pois ficariam sozinhos um longo per��odo.

��� J�� deixei comida pronta. Quando tiverem fome ��

s�� pedir a Tiziu que ele serve. N��o quero bagun��a, nem

queixas quando chegar. Depois podem ir brincar, mas n��o

se afastem muito de casa. Vejam bem o que tou dizendo.

��� Radar vai com voc��, m��e? ��� pergunta Tiziu.

��� Radar vai morar com a gente? ��� quer saber Tadeu.

��� Vai ficar uns tempos, at�� seu Gabriel e dona Lola

voltarem de viagem. Enquanto estiver aqui, cada um de voc��s

cuida dele uma semana.

Rita Soares faz arzinho de riso, os olhos verdes brilham,

Tiziu acha gra��a, Tuca acrescenta:

��� Ele �� vivo �� be��a, m��e. Pegou um rato que entrou

na quitanda de seu Antonino e a gente nem tinha visto

o bicho.

Rita Soares abre um dos p��es que Tiziu trouxe, bota

a����car dentro, pega a banana mais madura que havia na

cesta, mete na pequena sacola de lona listrada, que se fecha

na boca com um cord��o tran��ado. N��o precisa nem chamar

Radar. Aperta as fivelas da alpercata, volta a recomendar

modos aos tr��s pequenos, sai pelo terreiro em frente �� casa,

passa perto das margaridas floridas e dos l��rios-do-vale, ganha

a estrada. N��o tem um n��quel para tomar ��nibus. Ainda

que tivesse n��o o faria, pois n��o deixaria Radar ir sozinho

atr��s.

"A gente vai andando por a��, sem pressa de chegar.

Onde se cansar, p��ra e toma f��lego."

Rita Soares caminha na frente, o c��o a uns dois metros

de dist��ncia. Em outros momentos emparelha com ela ou

adianta-se, volta correndo. A mulher gosta da anima����o do

cachorro. Perto da pista asfaltada encontra Jovelino Teles,

que toma conta de uma banca de jornais para os lados da

rodovi��ria. Rita Soares lhe diz estar a caminho da cidade.

��� Vamos ver por l�� o que aquela santa gente t��

41

fazendo em defesa de Aracelli. O senhor ouviu falar alguma

coisa de ontem pra hoje?

��� Nada, tia Rita. Pelo que sinto, t��o �� procurando

botar uma pedra em cima. Os pr��prios jornais quase j��

n��o trazem mais not��cias do crime.

��� E o senhor acha que foi crime?

��� Pelo que dizem, acho que sim. Como �� que a pobre

crian��a ia ficar daquele jeito, se uma cambada de assassinos

n��o tivesse feito com ela o que fez?

Seu Jovelino usa um casquete de pano, bot��o grande

no centro. �� moreno, os cabelos come��ando a ficar brancos.

Para n��o depender de ��nibus e manter a forma, comprou,

h�� anos, uma bicicleta. Vai e volta nela.

��� N��o lhe ofere��o carona porque o ve��culo �� pequeno,

tia Rita.

��� N��o se preocupe, seu Jovelino. N��o tenho pressa de

chegar.

Horas depois a mulher com roupa de cigana chega ��

Avenida Beira-Mar e de l�� �� travessa que sai no Instituto

M��dico-Legal. N��o h�� ningu��m na porta, nem no sal��o

principal. Rita Soares chama o funcion��rio de uma sala

afastada.

��� Queria merecer um favor, seu Nem��sio.

��� Se tiver ao meu alcance ��� responde o homem

magro, rosto vermelho.

��� Gostaria de olhar o corpo que dizem ser de Ara-

celli.

��� Tia, a senhora n��o t�� procurando complicar sua

vida?

��� Complicando, como? ��� indaga a mulher um tanto

irritada.

��� Sei l��. Dizem tantas coisas por a�� que sinceramente

j�� nem sei o que pensar.

��� Eu sei de algumas dessas coisas e n��o me amedronto.

��� Vou falar com o chefe pra pedir permiss��o.

Nem��sio, metido numa farda caqui desbotada, sapatos

pretos de saltos ro��dos, desaparece por tr��s de uma porta,

demora um pouco, volta em companhia do homem alto e

forte, um l��pis na m��o, olhar cansado. Nem��sio fala de

tia Rita, dos meninos que pegava na rua para criar. S�� tia

Rita n��o diz nada. N��o est�� gostando da forma como aquele

homem de olhar cansado a encara.

��� E pra que a senhora quer ver?

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��� Pretendo ajudar na localiza����o dos culpados.

��� Teria primeiro de ir �� pol��cia.

��� Quando sair daqui, �� o que vou fazer.

O chefe de Nem��sio percebe que tia Rita, embora de

ar desvairado e p��s pretos de poeira, n��o �� propriamente

uma louca. Sabe muito bem o que deseja e por que deseja.

��� Vou abrir uma exce����o ��� diz ele.

��� Eu lhe agrade��o por isso.

O homem alto e de olhar parado faz um ar de riso,

autoriza Nem��sio a pegar as chaves. Ambos avan��am na

dire����o do sal��o maior e de l�� at�� um corredor, Radar vai

atr��s. A�� o homem se volta, estranhando a presen��a do

animal.

��� Que �� isso? A senhora trouxe um cachorro pra c��?

��� Exatamente. Este cachorro �� Radar. Foi criado

por Aracelli. Desde pequeno.

��� E que tem isso a ver com os despojos?

��� �� poss��vel que ajude em alguma coisa. N��o sei

como, mas �� poss��vel.

Nem��sio compreende que a presen��a do c��o poderia

impedir que ela visse o corpo, por��m a mulher n��o abre m��o

da companhia de Radar e vai avan��ando pelo corredor.

Nem��sio volta a falar nas coisas que tem ouvido, nos boatos

que surgem, no notici��rio desencontrado dos jornais, nas

buscas infrut��feras dos policiais.

��� Conhe��o uns dois investigadores que j�� t��o dando

o caso por encerrado.

E, dizendo isso, puxa a gaveta de metal, que se abre

com um rangido fino. Radar senta nas patas traseiras, orelhas

em p��, olhos atentos na atividade do homem. No comparti-

mento que por si s�� j�� �� bem triste, diante do rosto vermelho

de seu Nem��sio, da sua farda caqui desbotada, das suas

m��os de veias grossas, tia Rita depara-se com a figura dete-

riorada de uma menina. A mulher �� sacudida por um estre-

me����o, o corpo inteiro arrepia. A menina, rosto desfigurado,

a boca apenas um buraco, os cabelos amassados, um lado

do peito deixando entrever os ossos, parece sorrir. Radar

p��e-se a rosnar, inquieto, erguendo-se nas patas traseiras,

tentando alcan��ar a gaveta com as patas dianteiras.

��� Ser�� que t�� conhecendo que �� sua dona? ��� per-

gunta o funcion��rio.

Tia Rita, olhos avermelhados, as veias do pesco��o endu-

recidas, responde como pode.

43

��� �� o q u e q u e r i a v e r . S e R a d a r e r a c a p a z d e r e -

c o n h e c e r A r a c e l l i . E t �� s a b e n d o q u e �� e l a . U m a p e n a q u e n �� o p o s s a c h e g a r m a i s p e r t o .

A �� a v o z d o d i r e t o r d o s e r v i �� o s u r p r e e n d e t a n t o a t i a R i t a q u a n t o a N e m �� s i o .

��� P o d e p u x a r a q u e l a m e s a ali e b o t a r o c a c h o r r o e m c i m a .

E c h e g a n d o - s e m a i s p e r t o :

��� A s e n h o r a t e m r a z �� o . E l e t �� i n q u i e t o e p a r e c e s a b e r d e q u e m s e t r a t a .

T i a R i t a n �� o p o d e d i z e r m a i s n a d a . O l h o s f e c h a d o s , a s l �� g r i m a s c o r r e n d o p e l o r o s t o m a g r o , o p e n s a m e n t o d i s t a n t e , n o s d i a s e m q u e v i r a a q u e l a m e n i n a u n i f o r m i z a d a p a s s a r p o r p e r t o d e s u a c a s a , c a b e l o s s o l t o s a o s v e n t o s , s o r r i s o b r o t a n d o c o m o f l o r , o l h o s i n o c e n t e s .

O s r o s n a d o s d e R a d a r a u m e n t a m e a g o r a e l e a r r a n h a a m e s a c o m a s p a t a s d i a n t e i r a s , a g a c h a - s e e e r g u e - s e , c o m o a f a z e r m e s u r a s p a r a a d o n a q u e j o g a v a b o l a p a r a q u e p e g a s s e n o m e i o d o q u i n t a l , p o r e n t r e o s a r b u s t o s , b e m a o l a d o d o c a j u e i r o q u e c r e s c i a m a i s d o q u e t o d a s a s o u t r a s p l a n t a s .

S e u N e m �� s i o f e c h a a g e l a d e i r a , R a d a r s a l t a d a m e s a , m a s a i n d a f i c a o l h a n d o a p o r t i n h o l a q u e e s c o n d e u o c o r p o m u t i l a d o , t i a R i t a t e n t a c o n t r o l a r - s e , e n x u g a o s o l h o s c o m a s c o s t a s d a m �� o , c h a m a R a d a r p a r a p e r t o d e s i , n �� o o u v e o q u e o d i r e t o r d o s e r v i �� o c o n t i n u a a d i z e r , o l h a a p e n a s s e u N e m �� s i o q u e p r o c u r o u a j u d �� - l a , q u e c o m p r e e n d e u d e s d e o p r i m e i r o m o m e n t o s e u p r o p �� s i t o , v a i - s e e n c a m i n h a n d o p a r a a p o r t a de s a �� d a e de l�� a t �� o p �� t i o e a r u a , o n d e os c a r r o s t r a n s i t a m r a p i d a m e n t e , a s p e s s o a s p a s s a m , i n d i f e r e n t e s �� q u e -

l a m e n i n a q u e v i r o u m o r t e n u m c o m p a r t i m e n t o m e t �� l i c o , q u e p a r e c e s o r r i r c o m o a m o r t e , q u e p a r e c e u m a c i c a t r i z q u e f i c a r �� p a r a s e m p r e n o c o r p o d a c i d a d e , n o r o s t o d e c a d a c i d a d �� o d e V i t �� r i a , n o s s o n h o s d o s j u s t o s , n o s p e s a d e -

l o s d o s c e l e r a d o s .

R a d a r v a i a t r �� s d a m u l h e r d e v e s t i d o a r r a s t a n d o n o c h �� o , m a s d e q u a n d o e m v e z v o l t a - s e p a r a t r �� s e p �� r a , e s p e -

r a n d o q u e A r a c e l l i s a i a d a q u e l a c a s a e s t r a n h a , q u e e l e j a m a i s v i r a , e o s a c o m p a n h e . T i a R i t a n �� o s e c a n s a d e c h a m a r o c a c h o r r o e n u m d e t e r m i n a d o m o m e n t o a t �� s e n t e p r o f u n d o a r r e p e n d i m e n t o d e t �� - l o t r a z i d o a l i , t e m e q u e d e a g o r a e m d i a n t e e l e s e t o r n e m a i s t r i s t e , d e i x e d e f i n i t i v a m e n t e d e c o m e r e m o r r a .

P e l o c a l �� a d �� o q u e s e r v e d e a l i n h a m e n t o a t a n t a s r e s i -

44

ci��ncias luxuosas, com flores aparecendo por entre as grades

de ferro, Rita Soares vai relembrando coisas que passaram,

at�� fixar-se no problema causado por Lola Sanches, que n��o

reconheceu os despojos como sendo de sua filha, da contra-

riedade de Gabriel, que ficou sem entender o que se passava

com a mulher, da insist��ncia dela em afirmar que estavam

tentando iludi-la, apresentando uma crian��a que n��o era

Aracelli.

"�� ela, sim, dona Lola. Radar sabe que ��. Tanto quanto

n��s, ele sabe."

Perto da ��rvore copuda tia Rita senta para descansar.

Olha a torre do rel��gio assinalando doze horas, abre a sacola,

tira um vidro d'��gua, bebe um pouco, oferece a Radar.

"Pobre cidade esta, Radar. O pecado �� uma doen��a

que mina o corpo e a alma. Aracelli t�� rindo dos que

mataram ela. T�� rindo, como nos dias que passava l�� por

casa. S�� que agora n��o mais um riso de menina que t��

entre n��s. �� de menina mandada por Deus e pela Virgem

de F��tima pra que seus carrascos sejam punidos. Tenho

pena deles, muita pena."

Os que passam por perto da ��rvore ficam olhando

aquela estranha figura de mulher e o c��o que se sentara

nas patas traseiras, mas n��o come as migalhas que ela lhe d��.

Quatro

Um pouco depois das tr��s da tarde, Rita Soares chega

ao morro do Itarar��, acompanhada pelo c��o. Sobe por uma

rua estreita e torta, onde se erguem casebres igualmente

estreitos e tortos, de pequenas portas e janelas de t��buas

de caix��o, pintadas de amarelo e azul.

Quando saiu do I M L pensou em ir logo �� superinten-

d��ncia de pol��cia. Depois achou mais prudente saber pri-

meiro das informa����es do amigo de Bertoldo Lima. Assim,

quando aparecesse na frente dos policiais, n��o estaria muito

ignorante a respeito do caso.

Parou na tendinha com o balc��o estreito, uma balan��a

de pratos de cobre no meio, os pesos alinhados de um lado,

as garrafas de aguardente nas prateleiras apertadas, uma

imagem de S��o Jorge e o Drag��o.

��� Metendo o santo no meio da cacha��a, seu Gen��sio?

45

O homem faz um ar de riso meio desconcertado.

��� �� o melhor lugar da casa, tia Rita. T�� l�� com todo o

respeito e a minha devo����o.

O homem d�� um copo d'��gua a tia Rita, ela oferece

ao cachorro. E aproveita para perguntar se Gen��sio sabia

onde morava Manoel Preto, que trabalhou como calafate

e depois adoeceu de uma perna, ficou mais de dois anos

encostado no seguro.

Gen��sio conhecia Manoel Preto, embora n��o tivesse

muita certeza da rua em que morava.

��� Mas n��o tem errada. A senhora sobe mais um

pouco, quebra pra esquerda, passa uns cinco barracos e

pergunta. �� por ali. Qualquer pessoa informa.

Rita Soares v�� as bananas maduras, pede algumas,

Gen��sio traz mais do que ela quer, coloca-as num prato

branco, de bei��os quebrados, oferece um pouco de morta-

dela ao cachorro. Radar se recusa a comer, Rita Soares

acocora-se, fala com o c��o, acaricia-lhe a cabe��a, o bicho

parece entender suas palavras, morde sem muita vontade

um peda��o de mortadela, morde outro, mastiga.

��� �� um bicho vivo. Mais inteligente do que qualquer

um de n��s.

��� Quem lhe deu esse cachorro, tia Rita?

��� N��o �� meu. �� de Aracelli. Ele tem uma est��ria.

��� Da menina que mataram?

��� Isso mesmo.

��� A senhora acha que v��o pegar os culpados?

��� O dever da pol��cia �� esse. O problema �� que at��

agora n��o h�� culpados. S�� conversa e aquela est��ria do

preto velho repelente, l�� da praia do Su��.

Gen��sio faz ar de riso, Rita Soares tamb��m acha gra��a:

��� Simples. Quem matou Aracelli foi um preto velho

que anda pela praia do Su��.

��� Acho que esse caso j�� t�� arquivado, tia Rita. Pode

t�� certa disso. Outro dia mesmo passou um forasteiro por

aqui. Me pareceu gente da pol��cia. Tava junto com mais

dois daqui do morro. A��, n��o sei por qu��, falaram na morte

da menina. E sabe o que o forasteiro disse?

Gen��sio �� um homem alto e de estrutura s��lida. Tra-

balhou quinze anos na estiva, antes de juntar uns trocados,

meter-se no morro do Itarar��, abrir a tendinha. Rita Soares

est�� curiosa, �� toda aten����o.

��� Disse que a cidade j�� t�� preocupada com outros

46

problema. Ladr��es de autom��veis, estelionat��rios e contra-

bandistas. Aracelli t�� morta. �� um caso isolado.

Rita Soares ergue-se, come��a a falar, olhos duros, rosto

nervoso, os cabelos negros caindo-lhe nos ombros.

��� Isolado uma ova! Quer dizer que os filhos da puta

pegam uma menina como aquela, fazem o que bem entendem

com ela e fica por isso mesmo? Nada disso. Algu��m ou

todos n��s vamos pagar. Eu tive l�� no I M L ainda h�� pouco,

seu Gen��sio. Se os culpados n��o forem punidos, teja certo,

S��o Benedito e a Virgem de F��tima v��o mandar a cobran��a.

E ent��o, at�� mesmo quem n��o tem nada com a est��ria

termina padecendo. �� como t�� escrito: por um pagam todos.

Deus t�� vendo essa maldade que se cometeu em Vit��ria.

T�� vendo o pecado que fica maior cada dia.

O birosqueiro debru��a-se no balc��o de t��buas finas, os

bra��os grossos, as veias saltadas nas costas das m��os, as

unhas rombudas, o olhar triste.

��� Que S��o Jorge lhe proteja, tia Rita. V�� at�� a casa

de Manoel Preto. Ele tem uma est��ria que vai gostar de

ouvir.

Rita Soares agradece as bananas e os peda��os de morta-

dela, arrebanha numa das m��os a barra do vestid��o largo,

Radar segue perto, os c��es que v��o aparecendo nas portas

latem, as galinhas que se criam nas ruas do morro correm

assustadas daquele cachorr��o, as crian��as barrigudas apare-

cem nuas, roupas estendidas nos cord��es e nas cercas, num

casebre ou no outro, t��nues fuma��as de lenha saindo pela

coberta de zinco e madeira, os cercados de bambu, os baldes

pl��sticos enfiados em mour��es, no barraco de alvenaria o

jardinzinho com algumas roseiras, a flor amarela crescendo

no meio daquele abandono, de crian��as tristes e regos des-

pejando esgotos do lado das casas, da barreira em frente do

casario baixo cobrindo-se de mel��o-de-s��o-caetano e malva-

branca, carrapateiros alargando as folhas nos pontos transfor-

mados em lixeiras.

��� Onde �� que mora Manoel Preto? ��� pergunta Rita

Soares �� mulherzinha magra e amarela, rodeada de pequenos,

o barrig��o por ali, esperando outro filho, as varizes estu-

fando nas canelas, os p��s descal��os, um leit��o fu��ando na

��gua suja.

Rita Soares continua subindo mais ainda, na dire����o

em que a mulherzinha gr��vida indicou, os p��s doendo nas

sand��lias, a vista ardendo de tanta luz, e finalmente o trecho

47

plano, amplo, desprovido de mato e de regos de esgoto.

A garotinha de bra��os roli��os e cabelos crespos leva-a at�� a

porta do barraco.

Manoel Preto aparece, a perna ainda doente, o verme-

lh��o da ferida aparecendo por baixo da gaze, uma pomada

amarelada que cheira forte.

��� Mora perto do c��u, seu Manoel.

��� Gra��as a Deus, tia Rita. Podia ser pior.

Rita Soares olha de novo a perna com a ferida.

��� O senhor t�� precisando de um benzimento nisso.

Mande pegar um olho de mamona e me arranje dois dentes

de alho. Vamos acabar com isso.

Manoel Preto sorri do otimismo e da f�� daquela mu-

lher, pergunta a respeito do cachorro que est�� atento aos

menores movimentos de ambos e das crian��as que chegam

junto do barraco para ver a cigana, colares no pesco��o,

argol��es nas orelhas.

��� Vamos primeiro cuidar dessa perna, homem de

Deus. Depois a gente fala dele e do seu amigo Bertoldo

Lima.

Rita Soares chama o garotinho que vem espiar na

porta, ele entra no barraco, assustado com a mulher e o

c��o mesti��o de policial.

��� Vai at�� os carrapateiros, traz umas folhas daquelas

bem novinhas e pede a tua m��e pra me conseguir um ramo

de arruda e dois dentes de alho.

O pequeno se atrapalha, a�� chega outro maiorzinho,

se oferece para fazer o mandado de Rita Soares, ela repete

o que j�� dissera, o garoto argumenta que arruda vai ser

dif��cil.

��� Se n��o tiver arruda, v�� se encontra um pezinho de

pega-pinto. Tamb��m serve. Sabe o que ��?

O garoto �� esperto, responde que sim.

��� Tou cansado de apanhar pra m��e, quando ela t��

com tonturas.

��� Isso mesmo.

O pequeno desaparece na carreira, dois ou tr��s que

estavam por perto o acompanham. Radar vai at�� a rua, ladra

para os c��es menores que se aproximam, entra de novo

no barraco. Manoel Preto senta-se na cama estreita, oferece

a ��nica cadeira dispon��vel a Rita Soares.

��� O que Bertoldo viu acontecer d�� pra estranhar.

Pode t�� certa. Acredito no que diz porque considero ele

48

um homem s��rio. Com Bertoldo n��o tem conversa fiada.

�� preto no branco.

��� E o que foi mesmo que ele viu?

��� Ora, ele era motorista particular do Jorge, irm��o

do Dante Michelini. A��, quando o superintendente Barros

Faria anunciou que tinha uma bomba sobre o caso Aracelli,

os magnata entraram em p��nico. Um dia de tarde, Bertoldo

saiu dirigindo o carro de Jorge, onde tava tamb��m Dante

Michelini. Perto da superintend��ncia de pol��cia, Dante bo-

tou uma m��scara de borracha na cara, dessas que os artistas

de cinema usam. Os dois irm��os sa��ram do carro e foram

pro pr��dio. Alguns minutos mais tarde Jorge voltou ao carro

e rumaram pro escrit��rio dele. Depois Bertoldo viu a mes-

ma m��scara na casa de Jorge. Com a est��ria da m��scara ��

que o superintendente partiu pra vers��o de que o suspeito

era um preto velho e agora me parece que a coisa j�� t��

quase arquivada. Que interesse teria Michelini de ir ��

pol��cia, usando uma m��scara?

Rita Soares levanta pra ver se o pequeno est�� vindo.

��� Desde o aparecimento das Kombis pelas ruas que

fiquei de p�� atr��s. Nenhum rico nesta cidade faz favor. Se

a filha de um pobre morre, que se dane. Por que os Miche-

lini iam se doer com isso?

��� No dia em que os jornais sa��ram dizendo que o

tal preto velho era o respons��vel pela morte da menina,

disse tamb��m Bertoldo que os Michelini compraram uns

duzentos jornais. Pegaram a not��cia, colaram em peda��os

de cartolina e mandaram botar nos pontos de movimento

da cidade.

��� Tanto interesse d�� pra desconfiar.

��� Eu conhe��o bem o Jorge. N��o �� m�� pessoa, mas

quando t�� doido se torna um desastrado. A quantidade

de casos que j�� criou por a�� n��o �� mole. Por que procurar

ajudar a fam��lia da menina que desapareceu, que morava

l�� longe, era filha de gente pobre?

��� �� a�� que t�� o n�� da quest��o ��� afirma Rita Soares.

��� De manh�� tive no I M L . Queria ver com estes olhos

que a terra h�� de comer se era de fato Aracelli que tava

na geladeira. Na hora em que seu Nem��sio puxou a ban-

deja e vi aquela menina desfigurada, n��o tive d��vida, e

o cachorro ficou t��o nervoso que s�� o senhor vendo.

��� Ent��o �� a menina que t�� naquele gelo esse tempo

todo?

49

��� Por Deus que ��. O diretor do servi��o at�� ficou

meio de p��-virada, mas terminou concordando comigo. No

come��o pensou que era maluquice ter levado um cachorro

pra l��. Depois viu que tinha raz��o.

��� E os pais da menina, como t��o?

��� A m��e foi pra Bol��via, o pai transferido pra traba-

lhar numa firma, no Estado do Rio. O menino t�� com a

m��e.

��� Ent��o j�� sabem que o caso vai dar em nada, pois

n��o?

��� �� o que t��o querendo, mas Deus �� grande. S��o

Benedito e a Virgem de F��tima s��o meus protetores. N��o

vou deixar que os criminosos fiquem impunes. Se isso acon-

tecer, tanto pior. Vir�� um tempo de desgra��a sobre os ricos

e os que trapaceiam com a sorte alheia.

��� Mas n��o s��o s�� os ricos que t��o metidos na est��ria,

tia Rita. Bertoldo Lima sabe de mais coisa que n��o quis

dizer. Um dia a senhora pode falar pessoalmente com ele

e talvez lhe conte a trama toda. Parece inclusive que a

menina chamava o Jorge de tio e que as liga����es eram mais

s��rias. N��o sei bem. N��o gosto de falar quando n��o tenho

certeza, ainda mais nesta hora. Seria horr��vel dizer uma

coisa sem fundamento.

��� Um dia desse quero falar com Bertoldo. Antes

vamos tratar dessa perna. J�� �� tempo de ficar bom.

O garoto chega com os olhos de mamona, o pega-

pinto, o ramo de arruda, os dentes de alho. Rita Soares

mete-se no compartimento que �� chamado cozinha e mal

d�� para uma pessoa entrar, acende o fogo e de l�� vai per-

guntando coisas a Manoel Preto, que continua sentado na

cama estreita, a perna doente estirada.

Rita Soares reaparece, o papeiro de ��gua morna, uns

peda��os de panos velhos.

��� Vamos tirar a porcariada toda de cima da ferida.

E, dizendo isso, vai desenrolando a gaze, o cheiro forte

da pomada invade o barraco, Radar e os garotos est��o do

lado de fora, brincando. Os meninos atiram objetos �� dis-

t��ncia, Radar vai apanh��-los nos dentes.

��� Deus do c��u, como t�� isso!

��� E agora t�� melhor ��� responde Manoel Preto. ���

Houve ��poca em que vinha bem mais embaixo. Nessa parte

toda onde ficou a marca.

��� Mas desta vez ela vai embora. Ferida �� como pre-

gui��a. Se n��o se despacha, ela enterra as unhas.

50

Mete os trapos na ��gua quente, manda que Manoel

ag��ente firme.

��� Vai doer pra chuchu, mas �� o jeito.

��� Pra se ter sa��de todo sacrif��cio �� pouco.

Rita Soares encosta o pano com a ��gua quente na

chaga, Manoel franze a testa, os bra��os tremem. Ela repete

a dose, as peles esbranqui��adas v��o sendo afastadas, os ama-

relos de pus s��o retirados, o sangue brota.

��� Agora t�� bem limpa.

Volta �� cozinha, vem de l�� com um papeiro, onde ma-

chucou os olhos de mamona e os dentes de alho. Pinga na

mistura um pouco de azeite doce. Procura saber onde Ma-

noel tem um pano limpo, ele mostra a gaveta.

Derrama no len��o a mistura, amarra-o sobre a ferida.

Ajoelha-se, faz o sinal-da-cruz e, com o ramo de arruda, o

benzimento. Convida Manoel a repetir algumas palavras, o

preto fecha os olhos, Rita Soares aproxima a boca do amar-

rado, vai na porta da rua e cospe longe, pronunciando mais

palavras que nem o pr��prio Manoel Preto entende.

Terminada a sess��o mergulha o galho de arruda num

copo de ��gua, p��e sobre a mesa.

��� A arruda vai murchar com a ferida. Quando o

galho tiver seco, as folhas se desprendendo, tu vai sentir

uma comich��o dos infernos. �� ela que foi embora.

Rita Soares afasta-se do barraco, Manoel Preto fica na

porta, olhando o jeito esquisito daquela mulher, de tantos

amigos por onde quer que passasse.

Cinco

�� um dia de s��bado, desses que levam muita gente ��s

ruas do centro de Vit��ria. O sol est�� quente, o n��mero de

carros parece aumentar, as lojas est��o movimentadas, as

que vendem discos tocam m��sicas populares a toda a altura.

O Sal��o Totinho tamb��m est�� lotado.

Na porta, entre muitas outras pessoas esperando a vez

de ser atendidas, Tut��nio e Arturz��o discutem. Arturz��o

chegou com o jornal, mostrando que os ju��zes �� que esta-

vam prejudicando a atua����o do Vit��ria, enquanto Tut��nio

afirmava que o time era ruim, tinha uma por����o de gente

que n��o se ag��entava nas pernas.

��� A maioria n��o quer porra nenhuma. Essa �� a ver-

5 1

dade. N��o tem nada de ju��zes prejudicando. �� um bando

de p��-duro em campo. Jogou com o S��o Silvano e terminou

empatando. N��o apanhou por sorte.

��� Tu n��o entende nada de futebol, cara. Tu s�� sabe

falar besteira ��� responde Arturz��o, que �� torcedor doente

do Vit��ria.

O homem que vende bilhetes de loteria se aproxima,

oferece a Tut��nio, ele n��o quer, o vendedor argumenta que

�� o seu dia de sorte, ao que Arturz��o responde:

��� Esse bicho n��o tem dia de sorte. A sina dele ��

aporrinhar os outros.

A�� Tut��nio come��a a rir, muito branco e muito gordo

no blus��o aberto no peito, as cal��as azuis, sapatos de pano.

O pequeno que vende jornais e revistas passa gritando,

dizendo ter sido preso mais um suspeito no caso Aracelli.

��� Te g��enta, bicho. Qualquer hora eles v��o te botar

a m��o. Se come��am a prender vagabundo, tu t�� no mato

sem cachorro.

Mais uma vez Tut��nio provoca Arturz��o.

��� Se tu fizesse metade do que fa��o, tinha diminu��do

essa barriga h�� muito tempo.

Tut��nio come��a a rir, chama o garoto, compra o jornal.

��� Olha a��, pessoal, surgiu um porra-louca que afirma

ter seq��estrado Aracelli. Um tal de Alexandre Stuart.

Outras pessoas compram o jornal, o t��tulo forte fala

que o seq��estrador �� engenheiro e advogado, que tamb��m

usava o nome de Lelis de Oliveira Regino.

��� Esse cara n��o �� o dono da imobili��ria que dava

trambique em todo mundo? ��� indaga Arturz��o, olhando

a foto de Stuart.

��� �� ele mesmo ��� responde Tut��nio.

A carta foi encaminhada a Pedro Guerreiro, amigo dos

Sanches. Exigia cem mil cruzeiros pela devolu����o da meni-

na. Um barbeiro pede que Arturz��o leia a carta, para que

todos ou��am.

��� �� um barato, pessoal. O cara ficou louco mesmo

��� repete Arturz��o, e a�� come��a a ler em voz alta: ��� "Sr.

Pedro Guerreiro, Aracelli (Celita) est�� viva. Na tarde de

18 de maio foi levada por uma loura, com quem foi vista,

para longe. Seu cabelo foi cortado como rapazinho e est��

com roupas de menino. Foram para outro lugar, est��o bem

longe. O resto c palha��ada. Celita est�� bem cuidada e com

saudades. N��s a raptamos para pedir resgate. E o resgate

�� de cem mil cruzeiros, se n��o quiserem que aconte��a com

52

Celita o que aconteceu com L��cia H e l e n a ' . O sr. Gabriel,

pai de Aracelli, dever�� ir, s�� com o senhor, no lugar indi-

cado, de t��xi, sem que o motorista seja trocado pela pol��cia.

Embrulhe o dinheiro em um jornal e siga a rua principal

do Novo M��xico. Depois da ��ltima casa do bairro, dobre

�� esquerda e coloque o dinheiro no p�� de um cruzeiro torto,

que existe no alto do morro. N��o estamos blefando. Celita

est�� conosco e s�� ser�� entregue viva se fizerem o que man-

damos".

��� No p�� do tal cruzeiro torto ��� diz Arturz��o ���

havia uma segunda carta: " S r . Gabriel Sanches, volte a Vi-

t��ria imediatamente, siga a Avenida Jer��nimo Monteiro,

entre na Cerqueira Lima e chegue �� Pra��a da Catedral.

Espere na porta principal da catedral, ��s vinte horas. Ara-

celli sair�� de uma daquelas ruas e vai direto ao senhor. Se

seguir nossas instru����es, n��o se arrepender��".

��� Nunca ouvi falar nesse tal Alexandre Stuart ��� diz

um dos barbeiros.

��� �� aquele que botou uma loja na Avenida Pedro

Nolasco. Comprava e vendia terreno. S�� que comprava os

terrenos e n��o pagava. Dizem que fez a mesma coisa em

Bras��lia e em Campinas, no Estado de S��o Paulo.

��� Como vem artista pra Vit��ria, meu Deus! ��� excla-

ma Tut��nio.

��� E ser�� que eles s��o mesmo os seq��estradores?

��� Sei l�� ��� diz Arturz��o, acentuando: ��� Pelo que

t�� dito aqui, a pol��cia j�� meteu no xadrez e vai apurar.

��� N��o acredito nisso ��� diz um dos cabeleireiros. ���

Outro dia j�� surgiu a est��ria daquele motorista da Kombi.

As professoras do Instituto de Educa����o acharam o homem

estranho e foram dar parte dele. Mas n��o tem nada com

nada. �� um best��o.

��� Acho que j�� botaram uma pedra em cima do caso

��� assegura Tut��nio. ��� Tem gente importante nisso. Tem

filhinho de papai. Negro velho n��o anda atr��s de comer

menina. Quer �� b��ia.

��� Ser�� que seu Gabriel vai atender ��s exig��ncias do

seq��estrador?

��� Seu Gabriel t�� longe daqui, cara ��� responde Tu-

' Ao chamar de L��cia Helena a menina encontrada morta pelo garoto

Monjardim, o suposto seq��estrador tentou confundir a fam��lia de

Aracelli e as autoridades policiais. Interrogado, terminou confessando esse prop��sito. L��cia Helena n��o existia.

53

t��nio. ��� J�� cansou de ser iludido. Deu o fora. A m��e tam-

b��m se mandou pra Bol��via com o filho. O caso t�� entregue

��s baratas. Os culpados n��o v��o aparecer nunca. N��o �� o

primeiro, nem ser�� o ��ltimo.

��� Acho que, mais cedo ou mais tarde, a situa����o se

esclarece. N��o pode ficar como t�� ��� adverte Arturz��o.

��� Eu n��o sei. O pr��prio detetive Matos me disse

outro dia que j�� t�� em outra. N��o tem podido trabalhar no

caso. E acha que a pol��cia vai ficar o tempo todo em cima

s�� de um crime? ��� pergunta Tut��nio.

��� Claro que h�� mais gente trabalhando. Sei que h��.

�� que a imprensa t�� por fora. Se tudo que a pol��cia fizer

os rep��rteres anunciarem, �� uma moleza pro criminoso. Tem

coisa sendo feita na moita ��� afirma Arturz��o.

��� Tamb��m acho ��� responde um dos barbeiros. ���

N��o podem deixar morrer um caso como esse. Todo mundo

t�� querendo uma solu����o. E quem tem filho menor n��o tem

sossego. J�� imaginou um filho da gente sair da escola e

ser agarrado pelos vagabundos que transam nas ruas de

motoca?

��� E como sabe que foi a turma de motoca?

��� N��o sei de nada ��� argumenta o barbeiro. ��� Tou

apenas repetindo o que tenho ouvido por a��.

��� N��o acredito que um sujeito normal tenha prati-

cado semelhante monstruosidade ��� afirma Arturz��o.

��� Tu n��o sabe nem de metade da missa, cara. Os

garot��es por a�� t��o puxando uma erva firme. Isso aqui t��

virando para��so dos malandros e dos viciados. Vou apos-

tando se n��o tiver viciado metido no caso Aracelli. Ela era

uma garotona bonita, eles resolveram arrast��-la pro antro

de v��cio. E l�� pintou a desgra��a ��� assegura Tut��nio.

��� Tu devia t�� na pol��cia. T�� perdendo tempo ��� res-

ponde Arturz��o.

��� E se tivesse l�� tinha resolvido mais coisas do que

muita gente boa. Quando nada ia ser dif��cil me corromper

��� considera Tut��nio.

��� �� o que tu diz. Todo mundo �� honesto quando

t�� de fora.

��� N��o quero saber dessas particularidades ��� afirma

Tut��nio, e acentua: ��� O que tenho certeza �� que h�� gente

grande metida na est��ria. Foi por isso que o caso esfriou,

surgiu a lenda do preto velho da praia do Su��, os jornais

agora lan��am as declara����es desse porra-louca e os verda-

deiros culpados v��o sumindo do mapa.

54

A discuss��o est�� animada, quando aparece Cl��rio Fal-

c��o. Vem com uns livros de direito debaixo do bra��o, uns

jornais e revistas.

��� Que acha, Cl��rio? ��� pergunta Tut��nio, referindo-

se ao caso Aracelli.

��� T�� esquisito. Se a fam��lia n��o bater o p�� �� capaz

de ficar mesmo no esquecimento ��� responde ele.

��� �� isso a��. J�� disse uma por����o de vez pro Arturz��o

e ele n��o quer aceitar. Acha que se a menina fosse rica os

suspeitos j�� n��o estariam todos na cadeia? Vou apostando

que se fizesse o contr��rio.

��� Mas o pai de Aracelli n��o �� um pobret��o. A prova

�� que vai mandar buscar detetives no Rio pra entrar no

caso ��� argumenta Arturz��o.

��� Buscar porra nenhuma. O que �� que dois deteti-

ves cariocas v��o arranjar aqui, cara? At�� entenderem pra

que lado a roda gira, j�� o tempo passou e o dinheiro do seu

Gabriel acabou. Pra enfrentar uma situa����o dessa �� preciso

muita grana, irm��o. Muita grana, mesmo.

Cl��rio explica que tem acompanhado o caso, mas sin-

ceramente n��o sabe os rumos tomados pelas investiga����es.

��� Quando tu botou a boca no mundo l�� na C��mara,

a gente pensava que a coisa fosse pegar fogo. Mas depois

veio o sil��ncio e �� isso a�� ��� diz Tut��nio.

��� E esse seq��estrador que t�� querendo cem mil cru-

zeiros ��� pergunta Cl��rio Falc��o.

��� Acho que �� mais uma est��ria. Parecida com a do

preto velho da praia do Su�� ��� acentua Tut��nio.

��� N��o creio que se deva levar as coisas pra esse lado.

Se o homem mandou a carta, se ele existe, �� investigar ���

afirma Arturz��o.

��� Mas n��o tenham d��vidas que isso j�� t�� acontecen-

do. A pol��cia t�� em cima do cara. N��o vai deixar ele livre,

enquanto n��o explicar ��� considera Cl��rio Falc��o.

��� Tu n��o te lembra desse tal Alexandre Stuart, Cl��-

rio? ��� perguntou um dos barbeiros.

Cl��rio fica indeciso, o homem prossegue:

��� �� aquele pinta dos terrenos. Enganou de uma vez

mais de cem pessoas. Comprava terrenos dos outros, lotea-

va, vendia e n��o pagava o propriet��rio. Agora afundou at��

os cabelos. Ficou lel�� da cuca.

Cl��rio declara estar preocupado com as provas de direi-

to que se aproximam, mostra o livro.

55

��� Tenho de aprender no m��nimo metade do que t��

aqui. E n��o vou deixar por menos. Tou dando duro no

estudo. Mesmo assim vou esperar seu Gabriel aparecer pra

perguntar a respeito do caso. N��o �� poss��vel que eles parem

as investiga����es.

��� Pra mim, se ainda n��o pararam, t��o quase ��� acen-

tua Tut��nio.

��� Esse cara �� engra��ado ��� diz Arturz��o. ��� Pra ele

todo mundo �� desonesto. Todo mundo t�� metido em fal-

catruas.

��� Todo mundo, n��o. Nunca disse isso. Disse que tem

gente gra��da metida na est��ria do desaparecimento da garo-

ta e, por isso, as coisas v��o de mal a pior. Tu pensa, por

acaso, que engoli aquela do sr. Barros Faria dizer que tinha

uma bomba pra lan��ar e no dia seguinte sair com a conver-

sa do preto velho como suspeito? Ora, n��o v�� mesmo que

n��o sou nenhum idiota? E, igual a mim, tem muita gente

pensando a mesma coisa.

Cl��rio tamb��m aguarda a vez de ser atendido, repete

o que j�� dissera tantas vezes.

��� O momento �� desfavor��vel. Mais um m��s, menos

um m��s, termina o meu mandato. Vou sair pra deputado

estadual. E minha meta principal �� levar o caso da menina

pra cabe��a. N��o vou deixar que as coisas esfriem. Seja quem

for o respons��vel pela morte da crian��a, ter�� de pagar.

��� �� se de fato ela tiver em poder do seq��estrador?

��� indaga Arturz��o.

��� Tanto melhor. �� um problema que se resolve ���

responde Cl��rio. ��� Tu precisa ver como ficou a casa dos

Sanches com o sumi��o de Aracelli. Uma empregada �� quem

toma conta, enquanto eles t��o fora. Outro dia fui at�� l�� e

me senti mal. Em tudo que se v�� h�� tristeza.

��� Mas, e a elei����o, como �� que fica? ��� insiste Ar-

turz��o, com ar de deboche.

A�� Cl��rio Falc��o se enfurece, o rosto torna-se duro.

��� N��o vou me eleger ��s custas da menina. Se ela

aparecer, que �� o que desejo, de todo o cora����o, tenho muito

em que me apoiar. Sou o vereador que mais tem trabalhado

pelo pessoal do morro. Ou tu t�� pensando que a imprensa

me d�� colher de ch�� �� �� toa. Tou na briga, cara. Tou catu-

cando os problemas que interessam ao povo. T�� do lado

dos pobres ou pensa o qu��?

A vez de Arturz��o chega, ele senta na cadeira, de l��

mesmo continua falando, mas os outros j�� n��o se interes-

56

sam pelo que diz, o barbeiro fala, o homem gordo que n��o

era conhecido por ali d�� palpite, ap��s ler o jornal, os meni-

nos v��m pedir esmola, um velho descal��o p��e o chap��u

diante de Cl��rio, ele tira umas moedas do bolso, Tut��nio

fica atento �� mulher que se aproxima, cal��a colada, coxas

grossas, num minuto todas as quest��es s��o esquecidas, ele

faz psiu para a morena, ela n��o d�� bola, segue em frente,

ele imita seu andar, repete alto:

��� Com uma mulher dessa eu emagrecia.

Arturz��o grita que era capaz de engordar mais, Tut��-

nio responde, sorrindo, que por ali s�� h�� mesmo uma bicha:

��� Arturz��o. Bicha e burro! Ou bicha burra ��� e ri

alto, divertindo-se com o que diz.

57

Est��rias do absurdo

Os sete meses seguintes

Um

Em sete meses as altera����es numa cidade como Vit��ria

s��o pequenas. A catedral continuou fazendo tocar sinos em

dia de sepultamentos importantes, Tut��nio e Arturz��o reu-

niam-se na porta do Sal��o Totinho e discutiam pelos meno-

res motivos, Cl��rio Falc��o freq��entava as aulas de direito,

Manoel Preto viu o ramo de arruda secar e quando retirou

a atadura a ferida estava quase fechada, Rita Soares andou

meses e meses reunindo est��rias em torno da morte de

Aracelli, duas casas novas foram conclu��das na Avenida

Beira-Mar, o parapsic��logo que prognosticou estar Aracelli

viva nunca mais disse nada, seu Gabriel Sanches reapareceu

diversas vezes, o juiz Waldir Vitral insistia no andamento

das investiga����es.

Se, exteriormente, a cidade continuava como sempre,

ruas limpas e ruas sujas, as placas de letreiros comerciais se

entrecruzando nas portas das lojas, interiormente verifica-

ram-se mudan��as que viriam a agravar o caso Aracelli. Os

jornais noticiaram que todos os filmes e demais levantamen-

tos feitos no local onde o corpo da menina fora encontrado

haviam sumido, o sargento Homero Dias, que cuidava das

investiga����es em car��ter sigiloso, morreu baleado.

Rita Soares soube da ocorr��ncia a tempo de ir ao cemi-

t��rio, procurar uma pessoa conhecida, saber direito daquela

est��ria. No cemit��rio, encontra o velho Jo��o Dias, pai de

Homero, arrasado, a vi��va Elza Dias inconsol��vel.

Rita Soares caminha por entre os t��mulos e as rosas,

procurando uns e outros, mas n��o fala com ningu��m, at��

que descobre o investigador Z�� Severino, seu conhecido de

muitos anos, chama-o de lado, o policial est�� revoltado.

��� Ele sabia de gente importante metida no assassina-

61

to da menina. Avisei que as pedras iam rolar. Procurasse se

cobrir. Homero acreditava na verdade.

��� E como morreu?

��� Foi designado pra ca��ar uns bandidos, por l�� se aca-

bou. Parece que a coisa foi na ilha do Pr��ncipe. O que �� que

Homero tinha de correr atr��s de bandido �� que n��o se sabe.

��� Como vai ficar isso?

��� Ora, como vai ficar. Ele perdeu a vida e o mundo

continua. �� como acontece sempre.

Z�� Severino diz isso, faz um ar de riso nervoso, vai

embora, a mulher fica no meio daquele povo que se mexe

com lentid��o e amargura, tem os olhos vermelhos, os gestos

perdidos. Toma o caminho da rua, resolve ir procurar Cl��rio

Falc��o. Tut��nio informa que j�� foi para casa, mas Arturz��o

tem opini��o contr��ria.

��� Deve t�� pela sede do partido.

Rita Soares vai at�� a sede do M D B , um pr��dio velho,

de paredes encardidas. L �� , junto com outros homens, encon-

tra Cl��rio. Ele sorri quando a v��, abre os bra��os em gestos

largos, abra��a-a, reclama por ter sumido, manda que sente,

enquanto conclui uns assuntos.

��� Fica um pouco a��, Tiazinha, que a gente conversa j��.

Rita Soares admira aquele sal��o amplo, os quadros de

homens importantes nas paredes, as pessoas que entram e

saem, o telefone que toca, os que est��o em outras salas e

falam alto. Uma movimenta����o como nunca vira dentro

de uma casa.

��� Tenho coisa importante a lhe dizer. S�� que prefiro

falar fora daqui.

��� Coisa boa, Tiazinha?

��� De arrepiar os cabelos. O policial que tava fazendo

a investiga����o do caso Aracelli foi morto pelas costas. Tou

vindo do cemit��rio agora. O Z�� Severino andou me contan-

do umas coisas, mas tem muito mais a dizer. Al��m disso h��

ainda outros detalhes. S�� a gente conversando com tempo.

Cl��rio e a mulher de saia arrastando no ch��o descem as

escadas, chegam �� rua, as luzes nos postes j�� est��o acesas,

muita gente passa por eles, Rita Soares fala de Manoel Pre-

to, amigo de Bertoldo Lima, da m��scara de borracha, do

reconhecimento que fez no I M L .

��� Levei Radar comigo. Precisava ver como o bicho

ficou. �� Aracelli que t�� na geladeira.

��� E Manoel Preto sabe o que Michelini foi fazer na

superintend��ncia?

6 2

��� N��o creio. Se soubesse tinha dito.

��� Ent��o o jeito, Tiazinha, �� a gente procurar o tal

Bertoldo Lima. Isso que a senhora t�� dizendo �� a ��nica coisa

concreta que j�� ouvi sobre o caso Aracelli at�� hoje.

��� E da morte do sargento Homero, j�� soube?

��� Sargento Homero? N��o sei quem ��.

��� �� quem tava fazendo as investiga����es sigilosas. On-

tem de manh��, mandaram ele procurar uns bandidos na ilha

do Pr��ncipe e por l�� morreu. Mas pelo que notei no cemi-

t��rio, a coisa �� grave. O pai de Homero n��o fez segredo

e disse pra todo mundo que tava por perto que seu filho

caiu numa cilada.

��� Que �� isso, Tiazinha? ��� exclamou Cl��rio. ��� Vou

botar a boca no mundo por a�� e repetir o que a senhora t��

me dizendo.

Cl��rio faz gestos largos, curva-se e ergue-se, numa ginga

que lhe �� caracter��stica.

��� Acho que finalmente se t�� chegando perto da ver-

dade. Agora �� s�� examinar mais a fundo. N��o tenho como

entrar na casa do Bertoldo Lima. Deve ser tarefa pra uma

autoridade.

��� �� isso mesmo, Tiazinha. Juro que vou descobrir um

jeito. J�� disse no meu com��cio da semana passada que se

descobre os matadores dessa menina ou eu deixo de me

chamar Cl��rio Falc��o.

��� �� assim que se fala. Tu �� que devia t�� l�� naquela

superintend��ncia de pol��cia. Agora quero ver como v��o ex-

plicar a morte do sargento Homero Dias.

Cl��rio chama um t��xi para Rita Soares, o carro desapa-

rece numa curva da rua estreita, ele vai pensando na estra-

nheza daquela mulher, na sua consci��ncia das coisas, na

perseveran��a das pesquisas, nos meses e meses perdidos em

andan��as de um lado para outro.

Enquanto o carro avan��a, Rita Soares n��o sente vonta-

de de falar, mas o motorista gosta de uma prosa e n��o

demora muito a conversa torna-se animada. O motorista re-

fere-se �� morte do sargento Homero, ao desaparecimento dos

documentos dos arquivos da pol��cia, �� suspens��o do fot��gra-

fo que �� suspeito.

��� Agora mesmo �� que o caso da pobre crian��a n��o vai

dar em nada ��� argumenta ele.

��� N��o creio ��� responde Rita Soares. ��� Acabei de

falar com Cl��rio Falc��o sobre isso. T�� em campanha e vai

ser eleito. Seu trabalho principal �� exigir puni����o pros assas-

6 3

sinos. A mesma coisa t�� fazendo o juiz Waldir Vitral. N��o t��

conformado com as investiga����es da pol��cia e vai convocar

um perito do Rio de Janeiro pra cuidar do assunto. Acho

que agora, mais do que nunca, �� que a coisa pode se resolver.

��� T�� confusa essa est��ria que os jornais t��o contando

��� diz o motorista. ��� A senhora leu o que disse o bandido

acusado de matar o sargento?

Rita Soares n��o sabe daquele detalhe, fica sem respon-

der, o homem vai falando.

��� Diz o assaltante, um tal de Paulinho Boca Negra,

que Homero Dias se atracou com ele. Come��aram a brigar

e quem disparou no sargento foi um policial que esqueci o

nome. Diz ainda, o Boca Negra, que o disparo foi feito

�� queima-roupa. A senhora j�� viu semelhante absurdo?

��� S�� em Vit��ria. S�� nesta santa terrinha, que est��

cada dia mais confusa e desalmada. J�� tenho at�� medo de

andar pela rua. Ningu��m mais se conhece. Se p��ra numa

esquina, olha os que passam e o que se v�� �� um bando de

gente enfezada.

��� E n��o �� pra menos, tia Rita. Do jeito que as coisas

v��o, com o custo de vida levando o dinheiro de todo mundo,

n��o h�� quem possa ter alegria.

��� Mas a�� �� que t��, filho. Dinheiro �� importante, mas

n��o pode chegar a ponto de nos transtornar.

Quando Rita Soares deixa o t��xi, na rua de casa, a

noite se fechara sobre o bairro de F��tima. Ela estava ansiosa

de falar com seu Henrique Rato a respeito das novidades,

mas primeiro vai ver os filhos. Tiziu havia colocado os pra-

tos na mesa e esperava que aparecesse, pois n��o ficara sobra

do almo��o.

��� Comeram tudo? �� assim que gosto de ver.

Tuca chega perto, diz ter um presente para lhe dar, vai

ao quarto, volta trazendo um pente de cabelo.

��� Onde conseguiu isso pra mam��e?

Tuca tenta explicar na sua linguagem enrolada, que os

pr��prios irm��os quase n��o entendem, Rita Soares o abra��a

e ri, tanto ele quanto os outros dois ficam por perto, espe-

rando o mexido de ovos com carne-seca que a m��e prepara.

��� Num instante a b��ia t�� pronta. V��o afiando os

dentes.

Eles riem, Tiziu diz que Radar foi embora.

��� Pode deixar que ele volta. Foi s�� ver se Aracelli

chegou.

Pouco depois que ela disse isso o cachorro aparece,

64

arranhou a porta, entra para a sala. Rita senta-se ao lado

dos filhos, bota um pouco de farinha na comida de Tadeu,

Tuca diz estar gostando do mexido de ovos, Tiziu n��o pre-

cisa de agrados para comer, sempre tivera bom apetite.

��� Onde tu foi, m��e? ��� pergunta ele.

��� Tou ouvindo est��rias de uns e outros, sobre a

morte de Aracelli.

��� J�� sabe quem foi, m��e?

��� Ainda n��o. Mas vai se descobrir.

Rita Soares recolhe os pratos, p��e os restos para Radar,

Tiziu ajuda na limpeza, junta os farelos de comida que ca��-

ram no ch��o, a m��e j�� est�� na cozinha, sempre muito dis-

posta, a ��gua caindo nos pratos e na panela, ela pedindo que

Tiziu v�� comprar velas na quitanda do seu Antonino.

Terminados os afazeres na cozinha, faz Tadeu e Tuca

passar ��gua na boca, bota-os na cama. Enquanto espera Tiziu

aparecer desce da parede os quadros de S��o Benedito e da

Virgem de F��tima, vai ao terreiro colher margaridas, l��rios-

do-vale, Radar acompanha-lhe os passos.

��� Como t��o as coisas por l��, hem? ��� pergunta ela

a Radar, o c��o mostra-se inquieto, retorna e deita-se na sala.

Tiziu chega com o pacote de velas, Rita Soares acende

duas, coloca na frente das imagens, disp��e as flores sobre a

toalha branca, ajoelha-se e pede que o filho reze tamb��m.

��� Pe��a a S��o Benedito e �� Virgem de F��tima que os

culpados sejam castigados. Que aben��oem Cl��rio Falc��o,

que d��em coragem a Bertoldo Lima, pra que possa confirmar

nos tribunais tudo que disse a Manoel Preto.

��� Mas eu n��o sei quem s��o essas pessoas, m��e!

��� N��o tem import��ncia.

Tarde da noite, quando mais nenhum rumor �� ouvido

na porta da casa, Rita Soares ainda est�� de m��os postas,

rosto de malares ressaltado na luz da vela. Tiziu j�� se

deitou sobre o banco comprido que fica junto �� parede e

adormeceu. Radar continua sentado no meio da sala, espe-

rando que a cigana termine suas impreca����es.

Dois

Tiziu sai cedinho e volta logo. Traz os p��es e o recado.

��� Seu Henrique mandou dizer que j�� vem, m��e.

Rita Soares prepara o caf��, os garotos tomam. Al��m do

6 5

caf��, Tadeu quer mingau de araruta. Ela prepara o mingau,

todos terminam tomando. Depois, saem para brincar e �� o

tempo em que seu Henrique Rato vem chegando, chap��u

de feltro, abas curtas, na m��o.

��� Mandou me chamar, tia Rita?

��� Mandei, seu Henrique. Tem umas coisas que pre-

ciso lhe dizer.

O velho de cabe��a branca senta ao redor da mesa, Rita

puxa um banco.

��� De uns tempos pra c��, descobri umas novidades

que s�� o senhor vendo. Os Michelini s��o suspeitos.

��� Os negociantes Dante e Jorge Michelini?

��� Eles mesmos. Quando nada �� o que afirma Bertol-

do Lima, motorista do Jorge.

��� Minha Nossa Senhora!

��� Soube por um conhecido que Bertoldo tinha uma

est��ria a contar. A�� andei uma por����o de dias, at�� descobrir

um amigo dele. E terminei sabendo que Manoel Preto, aque-

le ex-calafate, tinha sido seu companheiro de trabalho. Fui

ent��o procurar Manoel, no morro do Itarar��. Ele disse o

que ouviu de Bertoldo. E Manoel Preto o senhor conhece,

n��o �� de inventar nada. Um dia de tarde o Bertoldo Lima

levou Jorge e Dante Michelini pros lados da pol��cia. Quando

tavam se aproximando da superintend��ncia, Dante pegou

uma m��scara de borracha e meteu na cabe��a. Uma m��scara,

dessas que os artistas usam pra disfar��ar a fisionomia. Os

dois foram at�� o pr��dio da superintend��ncia. Uns cinco

minutos mais tarde, o Jorge voltou e mandou que Bertoldo

rumasse pro escrit��rio.

��� E o que foi feito do Dante Michelini? ��� indaga

Henrique Rato, interessado.

��� Ningu��m sabe. Ficou pela pol��cia. Num dia Bertol-

do foi �� casa dos Michelini e viu de novo a tal m��scara.

��� E o que foram fazer na pol��cia?

��� �� isso que Manoel Preto n��o disse. Pelo que obser-

vei, ou ele n��o pode contar ou o Bertoldo achou melhor n��o

lhe dizer. Pra desvendar esse mist��rio, falei com o Cl��rio.

Ele t�� fazendo a campanha pra deputado e �� a hora de botar

uma por����o de coisas pra fora. Cl��rio ficou entusiasmado

com a informa����o e me disse que ia convocar Bertoldo pra

uma conversa.

��� Ser�� que os filhos de Michelini o meteram numa

enrascada?

6 6

��� Daquela patota n��o h�� o que duvidar.

Rita Soares faz uma pausa, Henrique Rato olha a ima-

gem da Virgem de F��tima na parede.

��� Acho bom a gente voltar ��s preces, tia Rita. Rezar

e rezar muito. Tamos indo de mal a pior ��� acentua o velho.

��� Tenho rezado todos os dias por Aracelli e por seus

perseguidores. N��o desejo vingan��a. Quero apenas que Deus

e os santos mandem justi��a. Com uma crian��a n��o se faz

isso. Fui ver o corpo. Notei uma coisa que n��o sei se os

policiais chegaram a perceber.

��� O que foi, tia Rita?

��� Me pareceu que Aracelli t�� rindo com sua boca des-

figurada. �� um riso mortal, que chegou a me arrepiar. ��

bom pros criminosos que eles sejam punidos. Do contr��rio,

o castigo que vir�� do alto ser�� muito maior. Pra eles e pra

cidade.

��� Cl��rio vai ter tempo de se ocupar com o caso, du-

rante a campanha? ��� perguntou Henrique Rato.

��� Claro que sim. A solu����o do caso ser�� seu primeiro

compromisso depois de eleito.

��� Cl��rio �� um homem sens��vel. Tenho f�� no que diz

��� afirma Henrique Rato.

��� Ele �� nossa esperan��a. Vai dar for��a pra que se

descubra os bandidos que se escondem nas sombras dos cas-

telos. Cada vez mais acredito no que diz Tut��nio. Onde tem

um grande crime, h�� um rico metido nele. Parece uma mal-

di����o. E pelo que vejo o castigo vai se repetir. Quanto ��s

preces ��� diz Rita Soares ���, tenho uma id��ia. Gostaria que

fossem divididas em duas partes. Primeiro rezariam s�� as

crian��as. Depois os adultos. O pedido de uma crian��a vale

mais do que cinq��enta nossos.

��� Isso �� verdade.

��� Hoje mesmo a gente come��a a avisar o pessoal.

Cada dia as preces podem ser realizadas numa casa.

Rita Soares fica na porta, observando o velho que se vai

por entre as estreleiras; olha a manh��, o sol nas folhas, sente

uma alegria ��ntima e com a alegria a certeza de que Aracelli

n��o se tornar�� uma almazinha penada.

"Deixe estar, filha. C�� na terra tem quem cuide de ti."

Rita Soares remexe nas latas, v�� que n��o h�� comida, as

reservas tinham ido embora. O que dispunha era de um

pouco de a����car, outro de caf��, uns ovos. N��o havia mais

arroz e a farinha fora a conta do jantar.

67

��� N��o h�� de ser nada ��� diz ela. ��� N��o h�� de ser

nada.

Tiziu v�� quando a m��e passa do outro lado da rua, as

sand��lias cheias de terra, os cabelos esvoa��antes. Tudo o que

diz �� que n��o vai demorar.

Tiziu atira a bola de borracha para o meio do descam-

pado e com dois ou tr��s saltos Radar a alcan��a. Prende a

bola nos dentes, traz de volta.

O homem da bicicleta vai se aproximando dos garotos,

pergunta se algum deles �� filho de tia Rita. Tiziu, o mais

esperto do grupo, responde.

��� Eu e mais estes dois. Por qu��?

��� Sou amigo dela e queria lhe fazer uma surpresa. Fui

na casa, mas n��o tem ningu��m l��.

��� A gente t�� esperando que chegue.

��� Vou rodar por a�� e daqui a pouco torno a aparecer.

O homem equilibra-se na bicicleta, Tiziu e Tadeu ficam

com vontade de dar uma volta.

��� Tu n��o alcan��a o pedal ��� explica Tiziu.

��� E tu, alcan��a por acaso? ��� respondeu Tadeu, zan-

gado.

Tuca �� que n��o se preocupa. Fica apenas olhando o

preto distante, desenho dos pneus finos impresso na areia.

��� Quando tiver grande vou comprar uma bicicleta pra

mim ��� diz Tadeu.

��� Com que dinheiro, engra��adinho? ��� argumenta

Tiziu, para irrit��-lo.

��� Ora, a m��e compra pra mim. Se n��o comprar eu

trabalho e compro.

Radar aparece com um chinelo velho nos dentes.

��� Vai botar isso fora. Deixa de ser saliente ��� grita

Tiziu.

O c��o solta o chinelo, sai correndo atr��s do carro que

vai avan��ando vagarosamente pela rua sem cal��amento.

��� Radar. Vai pegar a bola!

Rita Soares reaparece, sacola listrada no ombro, Tiziu e

os outros dois correm ao seu encontro. J�� passa bastante do

meio-dia, o sol se tornara quente e os pequenos n��o tinham

mais como brincar ��quela hora. Em casa Tiziu trata de botar

��gua na tina, enquanto Tadeu e Tuca tiram a roupa suja.

��� Todo mundo no banho. S�� senta na mesa quem

tiver limpo ��� diz Rita Soares.

��� M��e, veio um homem te procurar.

6 8

��� N��o disse quem era?

��� Um crioulo numa bicicleta. Disse que daqui a pou-

co volta.

Rita Soares acende o fogo, tira a casca dos peda��os de

ab��bora, cata o arroz, corta as batatas.

��� O que �� a comida, m��e? ��� quer saber Tadeu.

��� Refogado com verduras. T��o precisando disso.

Tiziu leva a toalha para Tuca se enxugar, Tadeu ajuda

a p��r a mesa, a casa toda se enche do cheiro agrad��vel do

refogado.

��� Onde anda Radar?

��� T�� por a�� ��� responde Tadeu.

��� Lava tamb��m o prato dele.

A comida est�� sendo posta na mesa, quando batem na

porta. Rita Soares abre, depara com Manoel Preto, sorri-

dente.

��� Olha s��, tia Rita, como a bandida sarou.

Diz isso e continua sorrindo, lembra o presente que

trouxe para as crian��as. Sai para o terreiro novamente, onde

deixou a bicicleta, volta com um saco de mantimentos, onde

tem carne-seca, a����car, azeite, caf�� mo��do e farinha. Depo-

sita o saco num canto, meio acanhado.

��� Taqui, tia Rita. �� uma pequena ajuda. N��o repare.

��� Deus do c��u, n��o precisava se incomodar com isso,

seu Manoel. O senhor tamb��m n��o �� rico ��� acrescenta Rita

Soares.

��� Agora sou, tia Rita. Com essa perna sarada e com

a vontade de Deus vou em frente.

Tadeu levanta da mesa para olhar a bicicleta, a m��e

ralha, ele volta. Manoel Preto promete dar uma volta com

ele se comer tudo que est�� no prato, o garoto sorri, os dentes

mi��dos aparecendo, as covinhas no rosto moreno e gordo.

��� E com a perna curada, tia Rita, pude dar uns bor-

dejos por uns lugares a�� e fiquei sabendo de umas coisas que

v��o lhe interessar. N��o cheguei a falar propriamente com o

Bertoldo, mas outras pessoas bem-informadas me contaram.

Nem queira saber quanta trabalheira t�� ocorrendo, tudo pra

encobrir o caso da pobre menina.

�� propor����o em que os pequenos v��o terminando a

comida a m��e manda que levem os pratos para a cozinha.

Por sua vez Manoel Preto deixa que Tiziu e os dois menores

empurrem a bicicleta para o terreiro.

��� Cuidado pra ningu��m se machucar.

69

��� N��o abaixem a cabe��a. Voc��s terminaram de comer

��� lembra a m��e.

Sentam-se de novo ao redor da mesa, a mulher tira a

toalha suja de farelos, vai sacudi-la por cima da janela. Ma-

noel Preto fica olhando aquelas paredes irregulares, caiadas

de branco, pequenos quadros pendurados em pregos, a cor-

tina de chita estampada, os enfeites de papel crepom, as

imagens de S��o Benedito e da Virgem de F��tima, os santos

da devo����o de Rita Soares.

��� A senhora sabe o que Dante Michelini foi fazer na

superintend��ncia de pol��cia? No dia que usou a m��scara de

borracha?

Rita Soares n��o responde nada. Est�� atenta aos meno-

res movimentos do preto de rosto tranq��ilo, dentes muito

brancos aparecendo.

��� Foi levar uns peda��os de pano que disse ter encon-

trado nos fundos da casa de um cara chamado Fortunato

Piccin. Esse Piccin era da patota do filho de Michelini, do

Paulo Helal, filho do Constanteen Helal, do Baducha, do

Jo��o Doido, do Tranca-Rua, Carlos Ritz e outros. O pessoal

da motoca.

��� Tentou incriminar um amigo dos pr��prios filhos?

��� Espere que tem mais ��� responde Manoel Preto.

��� Acontece que, sem querer, fiquei sabendo que o Fortu-

nato Piccin era envolvido com drogas e exatamente no dia

em que a menina desapareceu ele tava drogado. A��, ningu��m

sabe ainda com precis��o, ele foi baixar num hospital e por l��

morreu. E, como a senhora sabe, morto n��o fala.

��� O que �� que o senhor t�� me dizendo, seu Manoel?

��� �� como a senhora afirma: a santa cidade de Vit��ria

t�� indo de mal a pior. Nunca vi uma trama dessa em toda

minha vida.

��� E o senhor n��o ouviu falar na morte do sargento

Homero Dias? O policial que come��ou a cuidar das inves-

tiga����es?

Manoel demonstra n��o estar a par do caso.

��� Morreu, perseguindo bandido na ilha do Pr��ncipe.

Tiro pelas costas. O homem era do servi��o secreto, e nin-

gu��m sabe por que foi pegar bandido na rua. D�� pra enten-

der uma coisa dessas?

��� N��o d��, n��o.

��� Eu tive no enterro do sargento e ouvi o pai dele

dizendo que o filho foi v��tima de uma cilada. N��o fez segre-

do pra ningu��m. Tava dizendo alto e bom som.

70

��� Quem t�� por tr��s de tanta sujeira, tia Rita?

��� O dinheiro, meu senhor. Mas o castigo de cima n��o

vem s�� pros pobres.

Rita Soares est�� na porta, ao lado de Manoel Preto, os

pequenos distanciados, forcejando com a bicicleta. Tiziu sen-

tou-se no selim, tenta tocar os pedais, Tadeu e Tuca ag��en-

tando a carga. Rita Soares d�� um berro pro filho maior.

��� Bonito. Muito bonito. Fazendo os menores de

bobos.

Tiziu desce, entrega a bicicleta a Manoel Preto. Tadeu

pede que ela arranje uma bicicleta. Rita ouve o filho, mas o

pensamento est�� voltado para o que lhe dissera Manoel.

"Ser�� que o Cl��rio j�� sabe d i s s o ? "

��� Compra a bicicleta, m��e?

��� No Natal ��� responde Rita Soares, sem pensar mui-

to no que est�� dizendo.

Olha a imagem de S��o Benedito e da Virgem de F��ti-

ma, manda os filhos brincar, a pequena sala fica silenciosa,

ela se ajoelha e reza. Quando termina, est�� certa de que seu

Henrique Rato tem raz��o.

" S e precisa de muita reza. Muita mesmo."

O sol est�� quente, bananeiras e coqueiros agitam as

folhas, rouxin��is fazem ninhos no p�� da estreleira. Olhando

as plantas de folhas faiscando naquela tarde de tanta luz,

Rita Soares tem uma outra id��ia, que n��o contar�� a ningu��m.

Debru��a-se na janela que d�� para o terreiro, fica olhando as

flores e os p��ssaros. Conscientiza-se de que o passo inicial

seria procurar Cl��rio Falc��o, perguntar-lhe a respeito de

Fortunato Piccin e do relacionamento dele com os Michelini

e os Helal.

Arruma os cabelos diante do pequeno espelho, enfia

de um lado o pente que Tadeu lhe dera de presente, pega a

sacola e sai. Da porta grita por Tiziu, o pequeno aparece

todo suado, pergunta pelos outros, diz que n��o demoraria.

Tr��s

Rita Soares est�� sentada �� mesa, do lado da parede,

Cl��rio Falc��o fala e gesticula, em determinados momentos

aproxima muito o rosto, olhos arregalados.

��� N��o tenha d��vida de que a coisa pro lado deles t��

7 1

ficando preta. O dr. Waldir Vitral j�� pediu duas vezes um

relat��rio sobre o andamento das investiga����es. E Tiazinha

sabe o que aconteceu?

Cl��rio n��o espera que a mulher raciocine.

��� O Barros Faria mandou dizer que n��o tinham con-

seguido nada. Da ��ltima vez mandou o pr��prio inqu��rito

incompleto. O juiz ficou muito chateado e devolveu o pape-

l��rio, afirmando que desejava um roteiro do trabalho, n��o

o inqu��rito sem nenhuma conclus��o. E a coisa t�� por a��. Se

acham que v��o brincar com o Waldir Vitral t��o enganados.

��� Dr. Waldir �� o da Terceira Vara Criminal? ���

pergunta Rita Soares.

��� Esse mesmo. Homem seguro t�� ali. N��o tem moleza

��� ressalta Cl��rio.

O gar��om se aproxima, as pessoas em torno das outras

mesas falam alto, um velho entra, conversa com Cl��rio,

abra��a-o.

��� �� o mandachuva em Gurigica de Dentro ��� diz

Cl��rio.

��� Por l�� a garantia �� total.

O velho se vai por entre as mesas barulhentas, Cl��rio

explica a Rita Soares que a campanha para deputado est��

dura, em Gurigica o velho tem ag��entado as pontas, se sair

tudo certo receber�� pelo menos trezentos votos.

��� Trezentos aqui, duzentos ali, a gente vai em frente.

�� de gr��o em gr��o que a galinha enche o papo.

Rita Soares olha aquele homem inquieto, as grandes

entradas na testa, o rosto marcado de antigos sofrimentos e,

n��o sabe por qu��, sente vontade de dizer que sua campa-

nha j�� estava vitoriosa.

��� Tu vai ser eleito e com mais votos do que todos os

outros. S��o Benedito e a Virgem de F��tima t��o do teu lado.

��� Que assim aconte��a, Tiazinha. Tou me pegando at��

com os cabocos e batendo cabe��a pelo futuro que vir��.

O gar��om traz mais p��o com manteiga e mais caf�� com

leite.

��� Fa��a um lanche refor��ado, Tiazinha, que hoje ainda

se tem muita coisa pela frente.

��� Gostaria de saber mais sobre o sargento Homero

Dias ��� afirma ela, de repente.

��� Tamos sintonizados, pode acreditar. Hoje de ma-

nh��, encontrei com um comiss��rio que �� meu chapa e ele

prometeu nos dar o servi��o completo.

7 2

��� Gostaria de fazer duas coisas e pra isso quero con-

tar com teu apoio -��� diz Rita Soares.

��� Pode falar, Tiazinha. Se tiver no meu alcance, nem

duvide.

Enquanto diz isso, outros homens aparecem, abra��am

Cl��rio, falam da contenda com o diretor do Tr��nsito, falam

da mudan��a de m��o em diversas ruas, Rita Soares n��o est��

a par de nada daquilo. Cl��rio gesticula, senta e levanta, d��

risadas, bota o bra��o no ombro dos conhecidos.

��� Mas, como Tiazinha ia contando ��� diz ele.

��� Gostaria de saber o nome do policial acusado de

atirar em Homero Dias e dar uma chegada na Casa de De-

ten����o, pra falar com o tal Paulinho Boca Negra.

��� A primeira coisa n��o �� dif��cil. Posso at�� lhe dar

agora o nome do policial.

Dizendo isso Cl��rio Falc��o come��a a remexer nos bolsos

do palet��, a tirar pap��is dobrados, notas de compras, recibos

e botar sobre a mesa. Finalmente, ap��s uma longa procura,

eis que aparece nas costas de um recibo o nome que tanto

queria.

��� T�� aqui. PM Jair de Oliveira Garcia.

Rita Soares pede que o papel fique com ela, Cl��rio

Falc��o faz nova anota����o do nome.

��� E esse policial n��o vai ser ouvido? ��� indaga Rita

Soares.

��� Ningu��m sabe. Quem acusa �� um traficante da pior

esp��cie. Dificilmente v��o dar cr��dito ao que diz.

��� Mesmo assim gostaria de ver esse Paulinho Boca

Negra. Quero olhar pra ele, saber se t�� mentindo ou n��o.

��� Vou procurar me entender com o pessoal da Casa

de Deten����o, em Pedra d'��gua, ver o que a gente consegue.

��� Te esfor��a nisso, Cl��rio, e n��o liga pra quem anda

dizendo por a�� que tua campanha t�� sendo feita na base do

cad��ver da menina. Tamos cumprindo um dever.

��� S�� lastimo nisso tudo, Tiazinha, �� que os pais de

Aracelli n��o estejam decididamente do nosso lado ��� recla-

ma Cl��rio. ��� Isso enfraquece a luta. Por mais que se dis-

farce, parece de fato que tamos com inten����o de explorar o

acontecimento.

��� N��o te aflija. Vai dar tudo certo ��� afirma Rita

Soares e se levanta, o gar��om reaparece, Cl��rio coloca algu-

mas notas na mesa, o pessoal fica olhando aquela cigana, uns

riem, outros acham que Cl��rio partiu para a mandinga dire-

73

ta, a fim de eleger-se. Sai acompanhando Rita Soares, n��o

tem tempo para conversas fiadas.

Rita Soares desce a rua de ladeira na Cidade Alta,

resolve entrar na catedral, prostrar-se diante de Cristo, re-

cordar a Aracelli, que via de uniforme azul, e a menina

sinistra em que se transformou, rosto ro��do, a boca um

buraco negro, mas, ainda assim, um ar de riso dominando

aquelas fei����es destro��adas, de p��los arrancados, cabelos

amassados. E quando vai chegando ao p��tio da catedral e

de suas torres trabalhadas, do sil��ncio que envolve a igreja

e as c��pulas elevadas, o que v�� �� um altar gigante no meio

do p��tio e sobre ele o corpo da menina que estava no I M L ,

s�� que havia crescido muito, ficara do tamanho do altar,

com seus paramentos roxos e brancos, bordados em fios de

ouro, sedas e cetins arrastando no ch��o.

Rita Soares ajoelha-se ali mesmo naquele princ��pio de

noite que cobre as c��pulas mais elevadas, abre os olhos e v��

que, de fato, est�� diante de Aracelli e que ela ri, e que seu

riso inunda de uma frieza mortal aquele p��tio. Concentrada

como est�� nas suas ora����es, o desejo de Rita Soares �� que

aquela vis��o fant��stica se afaste da pra��a, a fim de que

possa entrar na igreja, e a�� o que ouve �� a voz da menina

dizendo que a matriz fechava ��quela hora, mas que estava

ali para acompanh��-la, que viesse com ela, porque n��o que-

ria ficar sozinha no escuro, tinha saudade de Radar e medo

das casuarinas.

Rita Soares p��e-se a chorar, a mulher que vem passando

pergunta o que tem, n��o responde, e diante do altar com

Aracelli estirada fica um temp��o, at�� que os sinos come��am

a bater e tudo ao redor vai se diluindo e se apagando. Rita

ergue-se, a noite �� profunda, ventos frios sopram do leste

e ela tem uma longa caminhada pela frente. Enquanto desce

o arrampado as aragens do mar batem-lhe no rosto, e na

cantilena dos ventos ainda ouve, n��tida, a vozinha de Ara-

celli queixando-se do escuro e das casuarinas. Os p��los do

corpo de tia Rita se arrepiam e ela faz novamente o sinal-

da-cruz.

Quatro

Desde cedo o pessoal come��ou a juntar-se na pequena

pra��a que, na verdade, n��o �� nada mais que um entronca-

7 4

mento de duas ruas, no morro do Taboazeiro. H�� mulheres

novas e velhas, homens que retornam do servi��o e crian��as

que gostam de Cl��rio Falc��o. O palanque onde ficariam os

candidatos �� modesto: umas t��buas atravessadas, dois alto-

falantes, alguns cartazes com a sigla M D B , dizeres outros,

alusivos �� carestia, aos pequenos sal��rios, �� falta de oportu-

nidade aos pobres. Os candidatos s��o numerosos. Um por

um falam nas coisas que fizeram e das que far��o como

deputados. A multid��o torna-se consideravelmente maior e

a ilumina����o �� prec��ria.

A velhota que usa muletas pede licen��a para passar no

meio do povar��u e ficar bem perto do palanque. Chega final-

mente a vez de Cl��rio Falc��o falar, as palmas repercutem

pelas quebradas mais long��nquas daquele morro triste.

��� Tou querendo subir mais um degrau na escada po-

l��tica ��� diz Cl��rio Falc��o. ��� N��o �� pra me promover. ��

pra poder alcan��ar melhor os poderosos. Como vereador

procurei atingir o inimigo de atiradeira. Como deputado j��

posso usar espingarda. A diferen��a �� grande, pessoal. �� por

isso que a gente t�� aqui.

As palmas interrompem o discurso. Cl��rio ergue os

bra��os, sorriso largo mostrando-lhe os dentes brancos.

��� E quero usar espingarda pra acertar na testa dos

matadores de Aracelli.

As palmas dessa vez s��o mais prolongadas. Al��m das

palmas h�� gritos e hurras de satisfa����o. Cl��rio entusiasma-se.

��� N��o se admite que a justi��a s�� exista para os po-

bres. N��o se admite que este Estado assista ao sacrif��cio de

uma menina, de bra��os cruzados, quandotodos n��s j�� sabe-

mos praticamente quem s��o os criminosos.

As palmas, os gritos e assovios agora enchem aquela

escurid��o sem fim e os alto-falantes s��o impotentes para

transmitir tanto entusiasmo.

��� Todos aqui sabem que Cl��rio n��o promete em v��o.

Vou fazer um juramento.

A multid��o silencia. N��o se ouve sequer um pigarro.

Ventos brandos sopram no casario baixo, c��es ladram dis-

tante.

��� Que me matem em pra��a p��blica, que meus bra��os

sejam arrancados e meus olhos furados, que minha l��ngua

seja atirada aos c��es se, eleito deputado, n��o me transformar

no maior acusador que os matadores de Aracelli j�� tiveram.

Jamais esses criminosos ricos, que pensam poder fazer o que

bem entendem, ter��o um advers��rio t��o fiel aos seus princ��-

7 5

pios. N��o quero vingan��a para os que liquidaram aquela

crian��a. Exijo justi��a.

As palmas e os gritos interrompem os discursos. A

velhota da muleta fica t��o euf��rica que tenta dar um pulo e

cai, dois homens tratam de ergu��-la, ela se levanta sorrindo,

rosto macerado, olhos cansados, os dentes faltando na parte

de cima do maxilar.

��� N��s tamos de baixo. Tamos do lado em que os

ricos cospem. Nossa desgra��a �� sua alegria. Mas por este

crime os magnatas de Vit��ria v��o se arrepender. E se, por

acaso, a justi��a se abrandar contra eles, invoco aqui os nos-

sos santos protetores pra que eles sofram os horrores do

inferno nesta vida mesmo. Que seu sofrimento seja resposta

ao nosso pedido. Se a justi��a dos homens falha, Deus ��

grande e tudo v��. Iemanj�� nos protege e nenhum mal ser��

suficientemente grande que n��o se possa vencer. N��s n��o

tamos com as m��os sujas de sangue, n��s n��o procuramos

riquezas. Queremos o riso das crian��as e a tranq��ilidade

de um lugar como este. Mas a tranq��ilidade s�� se alcan��a

com luta e a luta tem sido nossa m��e de leite.

As palmas enchem o espa��o outra vez. Cl��rio ergue os

bra��os, os alto-falantes tocam marchas patri��ticas, a multi-

d��o come��a a dispersar-se, a velhota da muleta est�� perto

do palanque, esperando Cl��rio descer. Quer falar-lhe, cha-

ma-o de lado, a confus��o ainda �� grande, os grupos se for-

mando, os garotos correndo de um lado para outro.

��� Quero lhe dar um presente, filho ��� diz a mulher.

Cl��rio, muito alto, curva-se para saber que presente ��.

A velha de rosto macerado e dentes faltando na frente toca

o polegar direito na l��ngua e com a saliva faz o sinal-da-cruz

na testa de Cl��rio, depois repete o mesmo gesto na parte de

tr��s da cabe��a.

��� Tu t�� livre do mal. Daqui em diante vai ter muita

gente contigo. Tua cren��a �� nossa esperan��a.

Cl��rio fica emocionado com os cuidados da velhota que

n��o conhece, pergunta-lhe o nome, ela come��a a rir, ele a

abra��a e beija.

��� Minha m��e, minha m��e!

A velhota se afasta, outras pessoas cercam o candidato,

as luzes, que j�� eram escassas, come��am a apagar-se. Uma ho-

ra depois o morro do Taboazeiro est�� novamente em paz,

entre os ventos do mar e a luz das estrelas.

A tarefa, no entanto, n��o terminou para a velhota da

76

muleta, que teve paralisia infantil e a perna esquerda secou

completamente. Veio capengando de longe, certa de que j��

conhecia o Cl��rio Falc��o de que tanto falavam. E, de fato,

ao retornar ao barraco, dizia consigo que era exatamente

como imaginara.

Empurra a porta, os c��es acordam, ela vai �� cozinha,

remexe nas panelas, bota um caldeir��o de ferro sobre a

trempe de pedras, deixa o fogo das achas de lenha ficar alto,

baixa para o ch��o um quadro de S��o Jorge e na frente do

santo guerreiro come��a a preparar o que chama "o futuro do

filho bem-amado".

A mistura no caldeir��o ferve e exala cheiro adocicado,

ela se move primeiro com o aux��lio da muleta, mas depois,

�� propor����o que entra em transe, equilibra-se na ��nica perna

boa e os movimentos s��o ��geis, de bailado, som cavernoso

saindo-lhe da garganta, mais um gemido do que uma canto-

ria. De vez em quando agacha-se e bate levemente com a

cabe��a no ch��o, ergue-se de novo e junta as m��os para o

alto. O c��o preto que n��o sai de perto p��e-se a uivar e a

mulher a voltear o caldeir��o cercado de labaredas. Pela

madrugada o fogo se apaga completamente, ela senta a um

canto. Est�� suada, os olhos mais cansados ainda, os m��sculos

dilatados do esfor��o feito.

O c��o negro deita-se do lado. A velhota segura-se outra

vez na muleta, mete a m��o no caldeir��o, enche com a mis-

tura que passou um temp��o fervendo, lan��a-a pela janela,

pronunciando algumas palavras. Depois estira-se na cama de

palha e adormece.

��s onze da manh��, enquanto a velhota ainda ressona,

Cl��rio j�� est�� falando com o pessoal da Casa de Deten����o, a

fim de que Rita Soares v�� at�� l��. Todavia, a permiss��o para

isso n��o �� t��o f��cil quanto imaginara a princ��pio.

��� O que se consegue com facilidade n��o �� de boa

qualidade ��� diz para si mesmo.

Ap��s esse racioc��nio, estranhamente, come��a a recor-

dar a velhota que chamara m��e, no com��cio, que tinha o

rosto cansado e os olhos ausentes.

��� Dai-me for��a, m��e preta ��� �� tudo que diz e fecha-

se na sala, onde h�� muita gente.

Pouco depois o telefone toca, o cont��nuo vem chamar

Cl��rio. �� Tut��nio dizendo que tem uma informa����o a dar.

��� Vim da Terceira Vara Criminal. T�� um rebuli��o da-

nado na superintend��ncia. O dr. Waldir Vitral convidou o pe-

7 7

rito Carlos ��boli pra trabalhar no caso Aracelli. Sabe quem ��?

Cl��rio fica -no ar. J�� ouvira falar em ��boli, mas n��o

tinha maiores refer��ncias dele.

��� O Dudu conhece bem quem ��. Parece que j�� traba-

lhou com ele ��� acentua Tut��nio.

Cl��rio volta ao lugar onde estava, a vontade �� comuni-

car logo o fato aos companheiros, mas primeiro resolve con-

firmar a informa����o. Faz algumas liga����es, descobre o comis-

s��rio Rangel. Era verdade o que Tut��nio dissera.

Os jornais saem no dia seguinte, anunciando a vinda

do perito carioca e afirmando que o juiz Waldir Vitral est��

empenhado em que as investiga����es sejam completamente

revistas. Junto ao notici��rio, a ficha funcional do policial do

Rio de Janeiro.

��� Tu acredita que v�� resolver alguma coisa? ��� per-

gunta Arturz��o a Tut��nio.

��� �� uma tentativa diferente, cara. O que n��o pode ��

continuar como t��. Uma por����o de pobres-diabos sendo pre-

sos como suspeitos, quando os acusados s��o outros e com

eles ningu��m mexe.

��� Outros, como?

��� Ora, deixa de ser bobo, rapaz. A cidade toda t��

falando que os Michelini e os Helal t��o na est��ria. Comis-

s��rio Rangel passou a bola pro Cl��rio. E tem mais coisa

circulando por a�� que n��o se faz nem id��ia. Os suspeitos,

p��s-de-chinelo, s��o ouvidos s�� pra disfar��ar e ganhar tempo.

��� N��o acredito nisso ��� responde Arturz��o.

��� Problema teu. Que a verdade �� essa, ��. Quando tia

Rita aparecer por a��, pergunta s�� pra ela. Tu vai cair duro

com o mundo de est��rias que j�� levantou. E te digo mais:

h�� quem pense que a m��e da menina tem interesse em n��o

reconhecer a filha. Que jogada �� essa? N��o sei. J�� ouvi isso

por a��. E a voz do povo �� a voz de Deus.

��� Olha o Cl��rio, l�� ��� diz Arturz��o.

Tut��nio mete os dedos indicadores na boca, incha as

bochechas, fica vermelho, produz um assovio alt��ssimo, como

s�� ele sabe fazer. Cl��rio olha, Arturz��o acena, chamando.

��� O ��boli j�� confirmou o convite do juiz? ��� pergun-

ta Tut��nio.

��� Acho que ainda n��o. S�� amanh�� ou depois. Encon-

trei o Dudu, na Pra��a dos Correios, agora mesmo, e ele disse

que o homem �� da pesada. N��o tem papo-furado.

Cl��rio esfrega as m��os, sacode os bra��os, sorri.

7 8

��� Fico t��o satisfeito com isso que tenho vontade de

sair cantando por a��. Eu sempre disse que o caso dessa me-

nina vai longe.

��� Eu tamb��m tou cansado de afirmar isso ��� diz

Tut��nio. ��� O Arturz��o �� que acha que n��o. Quem tem di-

nheiro pode botar na bunda de quem quiser e ficar por isso

mesmo.

Arturz��o se rebela contra a afirma����o.

��� N��o disse porra nenhuma disso, cara. Tu deturpa

o que se fala. O que tenho repetido �� que por enquanto n��o

h�� ningu��m realmente suspeito. Ou n��o h�� ou a pol��cia n��o

descobriu.

��� N��o descobriu porque n��o quis. Tempo de sobra

pra isso teve ��� torna a dizer Tut��nio.

��� O comiss��rio Rangel me disse que tanto o filho do

Michelini quanto um do Helal t��o metidos na est��ria.

��� E o Fortunato Piccin? ��� indaga Tut��nio. ��� Foi

dopado pro hospital, morreu, estourou de tanto t��xico ou

foi estourado?

��� �� dif��cil dizer. T�� tudo muito nebuloso. O que sei

�� que �� mais um morto. Pode ser apenas coincid��ncia, pode

ser que n��o.

��� Cad�� seu Constantino Piccin que n��o se manifesta?

��� quer saber Tut��nio.

��� Ora, ora, meu caro. N��o h�� pai que ag��ente tanta

decep����o. Sabe l�� o que aquele homem j�� n��o sofreu com

esse filho? ��� considera Arturz��o.

��� Vit��ria �� fogo. O pessoal das patotas t�� ficando

louco e o caminho �� o crime ��� acentua Cl��rio Falc��o.

��� Tia Rita j�� sabe da morte de Piccin? ��� pergunta

Arturz��o.

��� Foi ela quem me contou, cara ��� diz Cl��rio, baten-

do as m��os, rindo de n��o se ag��entar.

��� Tia Rita �� uma parada indigesta ��� comenta Tu-

t��nio.

��� E sabem o que ela t�� querendo? Ir na Casa de

Deten����o, tentar ouvir o Paulinho Boca Negra. O bandido

que �� acusado de ter morto Homero Dias, mas ao mesmo

tempo aponta o PM Jair de Oliveira Garcia, como autor do

crime.

��� E quem �� que vai acreditar em bandido? ��� indaga

Arturz��o.

��� Depende das evid��ncias. Um delegado interessado

79

no caso n��o pode desprezar nenhum ��ngulo da quest��o ���

argumenta Tut��nio.

��� O que n��o entendo �� a aus��ncia dos pais dessa po-

bre menina. J�� se viu um neg��cio desse? ��� comenta Ar-

turz��o.

O Sal��o Totinho est�� cheio, um barbeiro que vem

entrando pergunta a Cl��rio pelo pr��ximo com��cio, d�� um

cigarro a Arturz��o, o motorista Sinval Ramos chega com

novidades.

��� J�� souberam do porteiro do Apolo?

A expectativa �� geral. Tut��nio fica nervoso porque as

coisas lhe parecem t��o confusas que agora �� sempre o ��ltimo

a saber dos boatos.

��� Eu n��o sei porra nenhuma. Esses jornais n��o infor-

mam mais nada ��� diz Tut��nio.

��� Mas tu t�� esperando ler essas coisas nos jornais? ���

pergunta Sinval Ramos. ��� Isso a gente sabe por a��, �� boca

pequena.

O motorista chega o rosto bem perto dos amigos e,

como se transmitisse um terr��vel segredo, vai relatando o

que ouvira contar a respeito do vigia Etelvino Rodrigues.

��� Logo depois da morte da menina apareceu um ho-

mem l�� pelo Edif��cio Apolo, na Desembargador Santos Ne-

ves, na praia do Canto, por sinal, perto da casa dos Michelini.

O cara era desconhecido e disse que tinha ordem para exa-

minar a caixa-d'��gua. Etelvino estranhou que viesse realizar

aquela tarefa j�� de noite. Acompanhou o desconhecido. O

cara usava chap��u de abas e tinha costeletas. Quando chega-

ram nos fundos do pr��dio, o sujeito o agrediu. Surgiu um

segundo tipo, de rev��lver em punho, e o dominou. Botaram

venda nos olhos dele e esparadrapo na boca. Ajudado por

mais dois, Etelvino foi arrastado para um carro que n��o p��de

identificar. Rodaram um temp��o com ele e o levaram a uma

praia. A�� encheram o pobre de porrada. Como isso n��o

tivesse dando resultado, mandaram ele tirar a roupa, deram

mais porrada, enquanto perguntavam por que havia assassi-

nado Aracelli. Pelo que soube, o vigia apanhou mais de

meia hora. O cara que mais batia dizia sempre que ele era

o matador da colegial. Ap��s o espancamento atiraram ele

de volta no carro e o deixaram perto do edif��cio, com um

aviso: se abrisse a boca ia levar chumbo no lombo. Mas

o homem tava apavorado e foi apresentar queixa �� pol��cia.

��� Essa, n��o! Onde n��s estamos? ��� diz Tut��nio.

8 0

��� E o que foi que aconteceu com o cara? ��� quer

saber Arturz��o.

��� Foi levado a corpo de delito, examinado e amoitado

��� responde Sinval Ramos.

��� T�� acontecendo coisa por a�� que a gente nem ima-

gina ��� diz Cl��rio Falc��o. ��� T��o querendo de qualquer

jeito encontrar um bode expiat��rio, mas parece que a coisa

n��o �� f��cil.

��� Amanh�� os jornais v��o badalar em cima do seq��es-

tro de Etelvino. O homem n��o tem nada com nada. Vive

do empreguinho pra sustentar mulher e nove filhos.

��� Foi no edif��cio que a pol��cia encontrou aquela japo-

na manchada de sangue, n��o foi? ��� recorda Arturz��o.

��� Foi l�� mesmo. E a japona era do vigia. S�� que ele

n��o usava mais. Tava pendurada um temp��o ��� explica

Cl��rio Falc��o.

��� Se havia d��vida, por que n��o fizeram exame de

laborat��rio? ��� considera Tut��nio.

��� Ningu��m t�� interessado nisso, cara. A japona andou

de m��o em m��o e terminou em nada. E quem sabe se at��

n��o trocaram por outra? Quem �� que pode garantir? ���

argumenta Cl��rio.

��� Isso t�� ficando uma enlinhada dos infernos. Nunca

vi tanta confus��o ��� diz Sinval Ramos.

��� Tia Rita me disse que amanh�� vai reiniciar as pre-

ces por Aracelli, l�� no bairro de F��tima ��� informa Cl��rio

mudando de assunto.

��� Se for depois das oito. vou bater por l��. Acho corre-

to que se reze pela menina ��� opina Tut��nio. ��� Deus que

me perdoe, mas os criminosos envolvidos nesse caso deviam

tudo morrer com c��ncer no cu. Pra ver o que �� bom.

��� Te guenta, irm��o. Deus sabe o que faz ��� afirma

Cl��rio Falc��o.

Sinval Ramos anuncia estar indo na dire����o da Vila

Rubim, Cl��rio decide ir com ele.

��� �� o tipo da carona que chega na hora certa.

Tut��nio diz que �� um crioulo de sorte. Arturz��o mora

no mesmo bairro, mas ainda vai demorar.

��� Tou esperando pra ver se o "material" passa de

novo por aqui. Se passar, hoje n��o escapa. Dou em cima.

Cl��rio ri, Tut��nio n��o perde a oportunidade para novas

cr��ticas, Arturz��o responde irritado, a porta do t��xi se fecha,

da�� em diante s��o as ruas movimentadas, os sinais e os

81

��nibus muito cheios, cortando os autom��veis, as l��mpadas

nos postes e as vitrines iluminadas.

Cinco

Duas vizinhas e seu Henrique Rato chegam �� casa de

Rita Soares, conduzindo a imagem da Virgem de F��tima. A

santa vem num pequeno andor, �� depositada sobre a mesa,

coberta com a toalha rendada. Mas tanto as vizinhas quanto

seu Henrique Rato ficam surpresos ao encontrar Rita Soares

sentada junto �� parede, os olhos vermelhos de chorar.

��� Aconteceu alguma coisa? ��� pergunta seu Hen-

rique.

Ela olha um ponto qualquer que parece distante, as

vizinhas est��o curiosas para saber o que se passava. Ent��o,

com uma calma que tamb��m n��o �� seu natural, Rita vai

falando, contando o que lhe acontecera no p��tio da matriz,

quando a noite ca��a e a igreja estava fechada.

��� Juro por Deus que vi Aracelli estendida num altar

imenso e ela muito grande tamb��m. Por isso, amanheci

pensando que n��o t�� no c��u. T�� vagando por a��, querendo

pedir alguma coisa pra gente. Dona Lola n��o devia ter via-

jado, seu Gabriel n��o devia ter ido pro Estado do Rio.

Aracelli me disse que t�� com saudade de Radar e medo das

casuarinas.

Dona Teresinha p��e-se a chorar, a outra mulher, que

Rita Soares n��o conhece, mostra-se assustada com aquele

relato.

��� Isso �� imagina����o sua ��� diz ela.

Rita Soares olha-a com raiva.

��� Imagina����o? Vi a menina com estes olhos que a

terra h�� de comer. Vi e cheguei bem perto.

O choro de Rita Soares recome��a, dona Teresinha agora

chora alto, seu Henrique Rato diz algumas palavras sem

sentido, nunca vira tia Rita naquele estado. E tanto ele

quanto as duas vizinhas se retiram, deixando a Virgem de

F��tima sobre a mesa e Rita Soares, que n��o consegue con-

trolar as l��grimas.

No sil��ncio da casa vazia, os pequenos brincando longe,

a mulher vai ao terreiro e volta com as margaridas, ajoelha-

se e come��a a rezar. Mas a prece �� interrompida por Tiziu,

que vem chegando dizer que Aracelli chegou.

8 2

Rita Soares leva um susto. N��o sente ficar de p��, n��o

sente os passos, pede que o filho repita, o garoto torna a

dizer que viu Aracelli passar de farda azul e bolsa de couro,

como ia todos os dias para a escola.

��� Tava debaixo da amendoeira, fazendo uma gaiola,

quando ela passou e falou comigo.

Rita Soares sai correndo, Tiziu fica na d��vida, se acom-

panha ou n��o, duas ou tr��s pessoas que est��o pela rua ��quela

hora da tarde v��em tia Rita correndo, o vestido esvoa��ante,

os cabelos, entra pelo port��o da casa dos Sanches, que nunca

mais se fechara, encontra Radar nervoso, chama pela empre-

gada, ningu��m responde. Vai caminhando pelos comparti-

mentos da casa e encontra os brinquedos de Aracelli sobre

a cama, a boneca de que mais gostava coberta com um

len��ol de linho branco. Lembra-se perfeitamente de que

antes da viagem Lola reuniu todos os brinquedos, guardou-

os numa caixa, em cima do guarda-roupa. Agora os brinque-

dos est��o ali e isso deixa-a perturbada.

Entra novamente em casa, Tiziu pergunta se Aracelli

est�� bem.

��� N��o era ela, filho. N��o era Aracelli que tu viu.

��� Ent��o quem era, m��e?

A mulher manda que v�� chamar Tadeu e Tuca, pra

tomar banho, j�� est�� ficando tarde. Tiziu desaparece, corren-

do, Rita Soares acende uma vela pelo descanso da menina

que est�� s��, precisando de amor e de justi��a. Um galo que

n��o era do seu quintal p��e-se a cantar tristemente, a tarde

anuvia-se de repente e um vento forte sopra nos arbustos

do terreiro, fazendo as margaridas cair. Os pardais levantam

v��o e as flores brancas da estreleira, que nunca vingavam,

come��am a abrir e a encher a tarde de um perfume suave.

Rita Soares p��e a ��gua do caf�� no fogo, fica esperando que

os filhos apare��am para o lanche, j�� que naquela noite n��o

lhes podia oferecer jantar.

Tiziu vem na frente dos irm��os e quando chega perto

da m��e parece mais assustado do que nunca.

��� Aracelli t�� l��, m��e. Olha o que ela mandou pra

senhora!

O menino abre a m��ozinha morena, dentro est�� uma

conta de vidro grande.

��� Ela disse que se voc�� olhar bem, vai ver o c��u todo

estrelado. Ela falou com Tadeu e Tuca. Convidou Tuca pra

viajar com ela.

8 3

Rita Soares tenta interromper aquela conversa com o

garoto, ele pergunta intrigado:

��� Aracelli n��o t�� morta, m��e?

��� Ainda n��o se sabe, filho. N��o se tem certeza.

Quando terminam o lanche manda Tiziu chamar mais

crian��as para a prece. Em pouco tempo aparecem os filhos

de dona Teresinha, de dona Eduvirges, de seu Jovelino Te-

les, de Maria Pureza, de seu Antonino da quitanda e de

dona Leontina. S��o aproximadamente umas quinze crian��as,

na maioria meninas. Rita Soares trouxe a imagem da Virgem

de F��tima para o terreiro. Ali mesmo acendeu as velas.

Havia escurecido e s�� a lua e as flores na estreleira clarea-

vam aqueles rostos infantis. Tia Rita perfila-se perante a

imagem, a cujos p��s queimam velas de cera. As meninas

p��em-se a cantar e as vozes ecoam longe, naquele descam-

pado.

Seu Henrique Rato reaparece, chegam Tut��nio, Cl��rio

Falc��o e diversas mulheres da vizinhan��a. Rita Soares est��

t��o embevecida na sua devo����o que n��o percebe ao certo

o tempo escoando. E, assim, cada adulto vai se ajoelhando

ao lado de cada uma das crian��as e a ladainha se prolonga

at�� ��s dez horas. A imagem da Virgem de F��tima �� nova-

mente levada para dentro e Cl��rio Falc��o procura animar o

ambiente, com seus ditos engra��ados e bastante otimismo.

��� N��o fique assim, Tiazinha. Os graud��es v��o termi-

nar no grampo. Agora �� o doutor juiz quem t�� exigindo

mudan��a nas coisas.

��� Fiquei assustada, hoje, com o meu menino mais

velho ��� diz ela a Cl��rio. ��� Chegou aqui, afirmando ter

visto Aracelli entrar em casa. Fui at�� l�� e encontrei uma

quantidade de brinquedos sobre a cama. Depois vim pra

casa e o pequeno chegou com a mesma est��ria. E me deu

esta conta, dizendo que Aracelli tinha mandado. ��� Mostra

a conta. �� azul-clara, imitando ��gua-marinha. ��� A menina

t�� sem paradeiro, sofrendo pelas esferas.

��� N��o somos muitos, tia Rita, mas somos firmes no

que queremos: justi��a pros criminosos de Aracelli. Deixe

que, quando a coisa engrossar, muitas outras pessoas vir��o

formar com a gente ��� isso �� Tut��nio, procurando reani-

m��-la.

Seu Henrique Rato tamb��m fala, diz que a cidade t��

traumatizada, Tut��nio afirma que a situa����o piorou depois

da morte do sargento Homero Dias. Cl��rio cita o caso de

84

Fortunato Piccin e da sua morte, repentina, no mesmo dia

ou pouco depois do desaparecimento da menina.

��� Mas n��o �� isso. A maldade humana vai longe. O

Jovelino Teles me disse, ontem, que aconteceu uma coisa

dif��cil de acreditar l�� pros lados do Bar Resende, na esquina

onde a menina costumava tomar o ��nibus. O pr��prio Ga-

briel Sanches uma vez me disse que ela ficava ali a brincar

com um gato, enquanto o ��nibus aparecia. Pois, ontem, o

gato foi estrangulado e jogado num barraco abandonado.

Sinceramente que n��o compreendo semelhante coisa ��� afir-

ma seu Henrique Rato.

��� Verdade? ��� indaga Cl��rio.

��� N��o sei o que t��o querendo dizer. Matar um bicho

s�� porque foi da estima da menina, isso foge �� compreens��o

��� repete Henrique Rato.

��� Essa corja precisa ter os olhos furados ��� argu-

menta Tut��nio.

��� Tomara que n��o fa��am a mesma coisa com Radar

��� acentua Rita Soares.

��� Amanh��, Tiazinha, logo cedo, vou saber com o

pessoal da Casa de Deten����o o dia que a senhora pode visi-

tar o Boca Negra.

Tiziu e outros meninos trazem os bancos para a sala,

o pessoal se vai, Rita Soares chega at�� o port��o, mas um

desalento geral a domina. N��o sorri das brincadeiras de Cl��-

rio, das grosserias de Tut��nio. Manda Tiziu lavar os p��s an-

tes de deitar, senta-se ao redor da mesa e na luz da vela que

continua a queimar, p��e-se a olhar a conta azul que Aracelli

mandou. Coloca a conta em frente �� luz e ent��o v��, em

tamanho min��sculo, o rosto de duas mulheres e dois homens.

Quando afasta a conta as imagens se apagam.

Rita Soares bota as m��os na cabe��a e por um instante

imagina ter ficado louca. Para certificar-se de que est�� em

estado normal, procura rememorar fatos ocorridos durante o

dia. Certifica-se de que n��o esqueceu de coisa alguma, nem

adulterou nenhuma verdade. Aproxima a conta novamente

da vela, l�� est��o os mesmos rostos. O da mulher que parece

loura �� o menos distinto.

Rita Soares enfia a conta num cord��o, pendura no pes-

co��o. Estica-se na cama ao lado dos filhos, custa muito a

dormir. Os mist��rios do dia foram por demais surpreenden-

tes, para deixar-se levar nas vagas do sono.

85

Onde est�� o fio da meada?

O homem da m��scara de borracha

Um

A chegada do perito Carlos ��boli a Vit��ria �� not��cia

para os jornais, emissoras de r��dio e de televis��o. Os co-

ment��rios na porta do Sal��o Totinho e do Sal��o Garcia, na

porta do Bar Carlos Gomes e em frente aos Correios, au-

mentam; Tut��nio mostra-se entusiasmado com a iniciativa

do juiz Waldir Vitral e agora est�� certo de que o caso ter��

solu����o.

��� N��o te disse que a coisa ia virar? ��� diz, referindo-

se a Arturz��o.

��� Vamos ver. N��o solto foguete antes da festa co-

me��ar.

��� Pois ent��o espera.

Carlos ��boli �� um homem de idade, cabelos brancos,

calv��cie aparecendo, ��culos de aros grossos, acentuando-lhe

o ar sombrio e um tanto preocupado. A superintend��ncia

de pol��cia e os demais setores da seguran��a do Estado rece-

bem ordens para que facilitem as pesquisas e informa����es.

��� Ele vai ter de saber de tudo. Desde o come��o. Ou

faz isso ou t�� perdido ��� acentua Arturz��o.

��� Claro que o homem vai se basear em fatos, cara.

T�� pensando que, se fosse um bob��o, tava aqui?

Arturz��o faz algumas considera����es sem import��ncia,

Tut��nio n��o presta aten����o.

��� Vai se hospedar no Hotel S��o J o s �� . Ser�� que v��o

botar uma guarda especial pra ele? Ele que se cubra direi-

tinho ��� torna a falar Tut��nio.

��boli j�� conhecia Vit��ria. In��meras vezes fora ��quela

cidade dar cursos na Academia de Pol��cia e rever amigos.

Por isso, as ruas, os pontos tur��sticos, os locais de encontro

lhe eram familiares.

Os primeiros dias do perito na cidade s��o de contato

89

com autoridades e funcion��rios encarregados de investigar

o assassinato. Ouve est��rias, fragmentos do caso, estuda

pap��is apontados como importantes. Mas nada daquilo lhe

parece concreto e, assim pensando, decide fazer uma revis��o

total das circunst��ncias em que Aracelli foi seq��estrada e

morta.

Come��a pelo local onde acharam o corpo. Mete-se no

matagal, salpicado de flores e cantos de p��ssaros, no pequeno

caderno as notas em letras, irregulares, avan��ando no espa��o

branco.

A par da complexidade do caso em si, do misterioso

desaparecimento da menina e dos despojos que est��o no

I M L , come��a a tomar conhecimento de ocorr��ncias paralelas

que tornaram o crime mais confuso. Falam-lhe da morte de

Fortunato Piccin, do acidente com o sargento Homero Dias,

do estrangulamento do gato que divertia Aracelli, enquanto

esperava o ��nibus, da revolta do pai de Piccin e do sr. Jo��o

Dias, pai de Homero. Falam-lhe no motorista Bertoldo Lima,

que viu Dante Michelini colocar uma m��scara, disfarcando-

se de velho, e entrar no pr��dio da pol��cia, a fim de entregar

ao delegado que cuidava das investiga����es fragmentos de

roupas encontradas na casa de Piccin. E sabe tamb��m que

isso aconteceu ap��s a morte de Piccin.

No primeiro dia em que trabalha firme no caso, ��boli

retorna ao hotel com a cabe��a estourando de dor. Est��

exausto e confuso. As est��rias n��o se ajustam e tem certeza

de que alguma pe��a de muita import��ncia falta em todo

aquele elenco de aberra����es. Uma noite quase toda, fica dei-

tado, olhando o teto do apartamento, pensando na atitude

de Dante Michelini.

N��o concebe que um homem inteligente possa, ��s duas

da tarde, descer de um carro com uma m��scara de borracha

no rosto e entrar numa reparti����o oficial, para falar com uma

autoridade. A menos que a autoridade soubesse com quem,

na verdade, estava tratando. Mesmo assim era dif��cil en-

tender tal situa����o. O estrangulamento do gato era outra

coisa extravagante, sem falar na morte do sargento Homero

Dias, um policial do servi��o secreto, correndo atr��s de ban-

dido por dentro do mato. E mais intrigado ficava quando

revia os apontamentos feitos durante o dia e l�� estava dito

que o delegado Manoel Ara��jo n��o chegou a ouvir o sr.

Constanteen Helal, porque uma ordem do Pal��cio Anchieta

o impediu disso. De quem partira semelhante orienta����o?

9 0

A ordem existia, ou era apenas uma intriga para envolver

o governador Gerhardt Santos?

��boli sente a cabe��a rodar. H�� muito tempo n��o topa-

va com um caso t��o contradit��rio e t��o diab��licamente ar-

mado. Mesmo assim continua intrigado. Todas as pe��as do

jogo encaixavam-se bem, menos uma. E que pe��a seria essa?

Que detalhe t��o importante estava por ser descoberto?

Pela manh��, ��boli retorna �� superintend��ncia de pol��-

cia, fica sabendo de novos fatos: que o primeiro delegado

encarregado do caso foi o capit��o Manoel Ara��jo. Por causa

de press��es e incompreens��es de pol��ticos locais, especial-

mente da oposi����o, terminou pedindo transfer��ncia do car-

go, sendo substitu��do por Celso Piantavinha e este, mais

tarde, por Sebasti��o Ildefonso; que o superintendente Barros

Faria determinou a abertura de inqu��rito para apurar o

desaparecimento de filmes dos arquivos da pol��cia e que o

fot��grafo Elson J o s �� dos Santos terminou sendo suspenso

de suas atividades por trinta dias.

Esse fato deixa ��boli bastante preocupado.

��� Sumiram os filmes feitos no local em que o corpo

foi encontrado?

��� Os filmes, os levantamentos gr��ficos e at�� um par

de luvas.

Carlos ��boli rabisca a folha do bloco, enquanto o poli-

cial vai relatando detalhes.

��� Quer dizer que, a esta altura, o que temos �� um

corpo na geladeira?

��� �� a verdade ��� acrescenta o funcion��rio.

Quando o novo delegado respons��vel pelo caso chega,

��boli �� levado �� sua presen��a. Trata-se de Sebasti��o Ilde-

fonso.

��� Estamos praticamente na estaca zero, mestre.

��� �� o que j�� senti ��� responde ��boli. ��� E as est��rias

fant��sticas que contam por a��?

Ildefonso �� prudente. N��o sabe por onde come��ar.

��� Muita gente acha que pode provar o que diz. J��

soube do motorista Bertoldo Lima?

��� �� uma verdadeira novela! ��� acentua ��boli.

��� Sinceramente como tamb��m ainda n��o estou enten-

dendo. Por mais que se trabalhe, n��o se chega a uma con-

clus��o.

Os dois homens saem da sala, ��boli pede que uma

viatura o leve at�� o col��gio onde a menina estudou, no lugar

onde tomava o ��nibus, as ruas por onde costumava passar.

9 1

Sebasti��o Ildefonso facilita ao m��ximo o trabalho de ��boli

e em poucos minutos o perito est�� diante do Col��gio S��o

Pedro, na praia do Su��. Examina a rua larga, de pouco movi-

mento, segue a p�� at�� a sa��da na Avenida Nossa Senhora da

Penha, de tr��fego intenso, em ambas as m��os de dire����o.

Depois vai ao Bar Resende, mant��m-se um temp��o no Bar

Esquina, ao lado do Bar Resende, onde Aracelli costumava

entrar para tomar sorvete. Olha cada funcion��rio, faz per-

guntas. Uma semana depois, havia feito levantamento com-

pleto na casa de Fortunato Piccin e tamb��m nada encontrou

que pudesse refor��ar a est��ria do velho que levara os frag-

mentos de tecido ao delegado. L�� e rel�� os depoimentos de

cada um dos suspeitos. O gari que perdeu dois dedos da m��o

e terminou sendo arrolado como suspeito, o motorista da

Kombi, v��rios pretos velhos. A carta de Alexandre Stuart,

querendo extorquir cem mil cruzeiros da fam��lia da menina,

tamb��m �� cuidadosamente examinada. No final do d��cimo

dia, Carlos ��boli tem total compreens��o do problema, mas

argumenta que, por falta de provas e dos filmes, seu parecer

ser�� muito dif��cil. Fica em d��vida, igualmente, quanto ao

material entregue �� pol��cia pelo sargento Homero Dias. Seria

s�� aquilo ou pe��as importantes haviam sumido tamb��m?

O pai e a mulher do sargento falam no amplo levantamento

que fizera e, na verdade, o que estava em poder das autori-

dades n��o era nada assim t��o relevante. O sargento estaria

blefando? Por que agiria assim? As provas foram proposi-

talmente destru��das, a fim de beneficiar novos suspeitos?

Enfrentando todas essas d��vidas, Carlos ��boli v�� che-

gar seu ��ltimo dia de pesquisas em Vit��ria. A��, faz um rela-

t��rio das atividades e entrega-o ao juiz Waldir Vitral.

" U m p��ria que apenas objetivava brutalizar a menor",

diz ele, "n��o teria recurso pessoal e de amizade para fazer

desaparecer de uma reparti����o da pol��cia todos os filmes que

retratavam a v��tima em detalhes e o local onde ela foi en-

contrada, v��rios dias depois do desaparecimento. Foram-me

negadas as pe��as mais importantes, que depois de bem ana-

lisadas poderiam autorizar o rein��cio das investiga����es sobre

a morte da menina Aracelli.

"N��o escondi do senhor superintendente a minha surpre-

sa ante o fato t��o grave, que parece fora objeto de investi-

ga����o interna e que estava at�� ��quele momento sem qualquer

solu����o. Por outro lado, tive conhecimento de que peritos

oficiais n��o lavraram o laudo, nem a entrega das provas foto-

gr��ficas, pe��as que aguardavam h�� mais de ano.

9 2

"Fiz ver ao sr. Gilberto Faria", prossegue ��boli, "que,

em casos de tal natureza, o desaparecimento das fotografias

objetiva o impacto que podem causar, notadamente nas

autoridades judiciais, que s��o levadas a agir sob justificada

revolta, impondo medidas rigorosas sem qualquer transi-

g��ncia.

"Lamento n��o ter sido poss��vel prestar a colabora����o na

medida do interesse de Vossa Excel��ncia, mas estou inteira-

mente �� vontade de justificar a inocuidade de minha intro-

miss��o no caso, por isso, me foram negadas as pe��as repu-

diadas mais importantes na esp��cie, as ��nicas que poderiam,

depois de bem analisadas, autorizar o rein��cio das investi-

ga����es sobre a suspeita da desventurada menina.

"O fato em si n��o lamento apenas como perito conscien-

te e sempre preocupado com os assuntos da especialidade,

mas tamb��m como cidad��o que tem diante dos olhos a tr��-

gica cena de um acontecimento que traz todas as caracter��sti-

cas de um b��rbaro e asqueroso crime, do mesmo estando

impunes os respons��veis.

"Hoje estou convencido de que ser��o necess��rias medi-

das n��o apenas severas, mas que traduzam o peso do inte-

resse da Uni��o no assunto para que se chegue a um resultado

palp��vel no caso Aracelli.

" N a impossibilidade de fazer mais do que fiz, aqui dou

apenas um testemunho e continuo sempre �� inteira disposi-

����o de Vossa Excel��ncia e da magistratura do Estado, que

tem dado provas de seu apre��o pelo meu modesto e discreto

trabalho."

Carlos ��boli afasta-se do caso preocupado com a trama

que se avolumava por tr��s das irregularidades. Num dia de

setembro de 74, ao tratar de outro processo envolvendo pes-

soas de Vit��ria, convoca o perito Asdr��bal Cabral a ir ao

Rio. Nessa oportunidade coloca-o a par do que chama um

emaranhado de situa����es desencontradas, de intrigas e cor-

rup����o.

Asdr��bal Cabral, tranq��ilo e meticuloso, ouve porme-

nores que o colega mais graduado no of��cio relata. E h��

pontos em que ��boli demonstra surpresa total.

��� Na imprensa, na ��poca, nada disso foi divulgado ���

afirma Asdr��bal, que os amigos chamam Dudu. ��� Por isso

fiquei sem saber de muita coisa. Concordo com voc��, quando

diz que um p��ria n��o teria influ��ncia para fazer sumir do-

cumentos da pr��pria pol��cia.

E o relato de Carlos ��boli se alonga, principalmente





9 3


no que diz respeito �� m�� vontade com que fora recebido

pelo superintendente Barros Faria.

��� Isso �� mais grave do que parece, Dudu.

��� E Homero Dias chegou a suspeitar desse pessoal

importante?

��� Creio que sim ��� afirma ��boli. ��� Me disse o sr.

Jo��o Dias que o filho vinha trabalhando no caso h�� meses.

Por sua vez, dona Elza Dias afirmou ter ouvido o marido

citar nomes importantes, envolvidos no crime.

��� Ent��o o caminho �� come��ar tudo de novo.

��� E a partir de quando? ��� indaga ��boli.

��� Amanh�� mesmo ou depois.

��� Pode contar com a ajuda de Sebasti��o Ildefonso.

Vou pedir ao dr. Waldir Vitral que fa��a as apresenta����es.

�� um bom delegado. Jovem, consciente e interessado. Se,

desde o come��o, o caso estivesse com ele, a situa����o agora

seria outra.

��� Onde estaria o fio da meada? ��� quer saber Dudu.

��� Servindo o ex��rcito, no Rio. Chama-se Jos�� Eduar-

do. �� o filho mais novo de Dante Michelini. Teria conheci-

mento do caso. Quem sabe se, partindo dele, n��o se chega a

novas conclus��es?

��� �� uma id��ia.

Carlos ��boli ainda tem uma indaga����o a fazer. Dudu

sente seu embara��o.

��� Alguma novidade al��m das que j�� conhece?

��� Quem �� aquele candidato a deputado, muito fala-

dor? ��� pergunta, finalmente, ��boli.

��� �� o Cl��rio Falc��o. Barulhento, mas sensato.

��� Isso �� bom. Tava preocupado com ele.

��boli faz uma pausa, anda de um lado para outro do

laborat��rio, ainda tem uma d��vida que o inquieta, mas

Dudu nota que n��o deseja se abrir. Despedem-se, o perito

capixaba vai caminhando pelas ruas, passos lentos, o pensa-

mento trabalhando no caso. Os carros passam por Dudu, as

pessoas desconhecidas o esbarram, olha aqueles rostos ner-

vosos, duros, misturados a muitos outros, ��s cores fortes das

vitrines, ao neon dos an��ncios luminosos.

94

Dois

��� J�� sei, j�� sei. N��o precisa nem falar.

Dudu fica meio encabulado. H�� uma semana, na junta

eleitoral, fora apresentado pelo juiz Waldir Vitral a Sebas-

ti��o Ildefonso Primo. Agora o delegado mandava cham��-lo

e dizia aquelas coisas.

��� ��boli me telefonou, ontem �� noite. Falou do teu

encontro com ele, acha que pode nos dar uma m��o.

��� Expliquei a ele minhas limita����es ��� argumenta

Dudu, de p�� na frente do delegado.

��� Deixa de est��rias. N��o �� hora de mod��stia. Temos

de arrega��ar as mangas. O caso da menina t�� a��, desafiando

todos n��s. Por mais que procurem encar��-lo como rotina ��

imposs��vel.

��� E qual �� o plano?

��� Muito simples ��� afirma Ildefonso Primo: ��� Co-

me��ar tudo de novo. O trabalho feito t�� praticamente com-

prometido.

��� Tem alguma id��ia?

��� Acho que sim.

��� Qual seria?

��� J o s �� Eduardo, filho mais novo de Michelini. T��

servindo o ex��rcito, no Rio. A segunda op����o �� o motorista

Bertoldo Lima. Viu Dante entrar na superintend��ncia de

pol��cia, usando uma m��scara.

��� �� capaz de confirmar isso, diante de uma autori-

dade?

��� Acho que sim. Por isso, precisamos lev��-lo ao labo-

rat��rio de ��boli, no Rio, a fim de fazer uma grava����o. Um

papo informal e a grava����o estar�� sendo feita, sem que per-

ceba, morou?

��� Ent��o, que tamos esperando?

O delegado prepara-se para deixar a sala, Dudu o con-

vida para um trago, ele est�� indisposto, manda que guarde o

convite para outro dia. Andam um pouco pelas ruas, depois

Dudu segue sozinho na dire����o da Mercearia Giarnordoli,

na Rua Gama Rosa. Chega fora de hora, Tilim o atende com

a mesma calma e paci��ncia de sempre. Dudu pede uma dose

de conhaque, toma a bebida em pequenos goles, fica olhando

o espa��o amplo na frente da mercearia, uma esp��cie de pra-

cinha sem caracter��sticas definidas, olha a casa na esquina,

com o letreiro de padaria, onde a garotada que puxa maco-

nha se re��ne, ouve-lhe os risos, os ditos engra��ados, as

9 5

brincadeiras grosseiras, os carros que arrancam cantando

pneus no asfalto. Olha, mas o pensamento est�� distante,

naquele dia em que ��boli foi lhe falando de fatos surpreen-

dentes, ocorridos ali mesmo, e dos quais pouco ou nada

sabia.

Os conhecidos aparecem, Tilim bota mais uma dose no

copo de Dudu, ele ouve o que dizem ao redor, mexe-se de

um lado para outro, naquela mercearia atravancada de caixas

de batatas e cebolas, engradados de cerveja e refrigerantes,

latas de biscoito empilhadas, e em tudo um cheiro de coisa

muito antiga se levantando, encompridando-se como o bal-

c��o de madeira escura com uma pedra de m��rmore por cima,

cantos de paredes recobertos por prateleiras de garrafas com

r��tulos apagados, teias de aranha bordando-se nas letras,

objetos sem uso pendurados no teto encardido.

��� T�� de carro a��? Tava querendo dar uma chegada

na casa de Bertoldo Lima.

��� Ent��o vamos tomar a saideira.

��� N��o vai atrapalhar tua vida?

��� Coisa nenhuma.

Atravessam a pra��a, entram no Volkswagen. Enquanto

o carro dobra esquinas, sobe e desce ladeiras, Dudu vai ex-

plicando. Chegam, finalmente, na rua muito larga, sem cal-

��amento.

��� �� um pouco mais pra l��.

O carro estaciona, as luzes se apagam, por uns instan-

tes. Dudu sente a brisa do mar soprando-lhe o rosto, os cabe-

los lisos esvoa��am, uma mulher vem passando, pergunta por

quem procuram.

��� Bertoldo Lima.

��� Acho que n��o tem ningu��m a��.

Dudu bate na porta, na janela. Torna a bater, um ca-

chorro ladra na casa do lado, o homem aparece.

��� Bertoldo Lima?

��� Que desejam?

��� Sou o perito Asdr��bal Cabral, este �� um amigo.

Bertoldo abotoa a camisa, convida-os a entrar.

��� Quais s��o as novidades? ��� pergunta Bertoldo.

��� Viemos aqui pra que nos conte ��� respondeu Dudu.

Bertoldo parece imperturb��vel. Levanta-se, encosta um

pouco a janela para evitar o vento frio, retorna �� cadeira.

��� Praticamente n��o sei de nada ��� come��a ele. ��� Vi

um dia de tarde o Dante Michelini botar uma m��scara de

borracha na cabe��a e entrar, em companhia do irm��o Jorge,

96

na superintend��ncia de pol��cia. O que fizeram por l��, n��o

sei. Depois ouvi os coment��rios a respeito da menina, que,

por sinal, morava aqui perto, nesta mesma rua.

��� Calma! ��� diz Dudu, erguendo as m��os. ��� N��o

vim aqui pra isso.

Bertoldo mostra-se desconcertado. Cruza as pernas, os

olhos est��o atentos.

��� Eu e Ildefonso ��� afirma Dudu ��� tamos querendo

dar uma esticada at�� o Rio, qualquer hora dessa. Acontece

que n��o sei dirigir e n��o confio em Ildefonso Primo, numa

estrada como a B R - 1 0 1 .

��� Quando t��o querendo ir?

��� Depende a�� de uns neg��cios. L�� pela semana que

vem torno a te falar. �� coisa r��pida e tu pode embolsar uma

nota extra.

��� Que carro pretende levar?

��� Ora, ora, um fusca. Se enche o tanque aqui e vai

reabastecer quando chegar em Niter��i. O carrinho t�� bom,

papelada em dia.

Bertoldo oferece caf��, Dudu e o amigo agradecem.

��� Semana que vem apare��o de novo e se fala de tutu.

Na volta, pela mesma Rua S��o Paulo, ele n��o se ag��en-

ta calado.

��� Pensei que fosse mais dif��cil. N��o parece mau su-

jeito.

��� E tem peito. Afirmar o que t�� dizendo dos Miche-

lini n��o �� moleza.

��� Bertoldo �� duro na queda.

O carro passa novamente pela frente da casa onde mo-

rava Aracelli, entra na estrada estreita, cercada de mato em

ambos os lados, sai no descampado, onde estacionam os tra-

tores que durante o dia aplainam uma faixa do terreno.

Enquanto o amigo fala de aspectos do caso que n��o t��m

nada de verdadeiros, Dudu relembra fatos que poderiam

gerar bons resultados.

��� Tou quase certo de que essa menina n��o foi seq��es-

trada do ponto de ��nibus. Os seq��estradores esperaram por

ela na primeira esquina depois do col��gio. Ela chegou na

Avenida Nossa Senhora da Penha, eles deram em cima.

��� Em plena luz do dia?

��� O que tem isso?

Dudu salta do carro, some na rua sombria, sobe a ladei-

ra na dire����o da catedral e do Edif��cio A��ores. A porta do

9 7

apartamento abre, acende uma l��mpada, estira-se na poltro-

na, fica um temp��o naquele sil��ncio, cercado de paredes

familiares, de quadros e bibel��s, vagos rumores pr��ximos,

em tons cinza-long��nquos.

As palavras que dissera a Bertoldo Lima ainda ecoam-

lhe aos ouvidos. Tem certeza de que de nada desconfiara.

Dirigiria o carro at�� o Rio e depois se transformaria num

companheiro de andan��as. Visitariam diversos lugares, entre

outros, a casa de ��boli.

"�� o melhor, para rein��cio das investiga����es. De mais

a mais, se gravamos o que diz de Michelini, isso ser�� um

passo importante na elucida����o do caso."

Tira calmamente os sapatos, entra pelo corredor at��

o quarto onde a mulher est�� deitada, ap��s alguns dias de

enfermidade. Acomoda-se de um lado do colch��o com muita

cautela, adormece pensando na manobra que come��a bem

sucedida. No dia seguinte, bem cedo, procura entender-se

com Ildefonso Primo e ent��o tem uma surpresa.

��� Vamos, amanh�� mesmo, pro Rio. S�� que vamos de

��nibus. Eu e voc��. O ��boli acabou de dar a dica. N��o vai

ser muito dif��cil localizar o Z�� Eduardo. Se passa l�� uns

dois dias. Depois volta e pensa na viagem com o Bertoldo.

��� Com ele j�� t�� tudo arranjado. �� s�� marcar o dia.

��� Logo que se volte, pode marcar ��� afirma Ildefonso

Primo.

Dudu sai da sala, onde os telefones tocam com fre-

q����ncia, o policial entra com a velhota de bast��o e sacola.

��� Ela quer levar um pi�� com o delegado.

��� Senta aqui, vov��. Vamos j�� falar.

A velha tem ar distante, n��o parece intranquila de es-

tar naquele lugar com tantos telefones, discuss��es surgindo

pelos menores motivos, policiais subindo e descendo es-

cadas.

��� Vim aqui mandada pelo caboco Zimba��.

Ildefonso Primo faz ar de riso, mas logo fica s��rio.

��� O caboco me disse que voc��s t��m de providenciar

o sepultamento dessa menina, pra que sua alma descanse. Se

isso n��o for feito a cidade vai ver muita desgra��a acontecer.

��� E que tipo de desgra��a, vov��?

��� Quem viver, ver�� ��� acentua ela.

A velhota n��o gosta do policial que se aproxima, com

ar de deboche. Por isso, levanta-se, pega a sacola e o bast��o,

sai da sala.

9 8

��� Se for dar aten����o pra essas malucas que baixam

aqui, n��o se faz mais nada ��� argumenta o policial, cabo do

rev��lver aparecendo no coldre.

��� N��o sei se t�� certa ou errada ��� responde o dele-

gado.

O telefone toca, Ildefonso Primo atende, d�� explica-

����es, alonga-se, desliga, outro homem aparece, chama-o para

a sala do lado. Aquela era a rotina da reparti����o, sempre

muito movimentada.

A caminho da rodovi��ria, Dudu calcula a hora de sa��da

de Vit��ria, a fim de n��o chegar muito cedo ao Rio.

" L �� pelas dez e trinta �� uma boa hora. Toma-se um

caf�� refor��ado e vai procurar o ��boli. Tra��am-se os planos

pra localizar Z�� Eduardo."

Tr��s

O delegado Ildefonso chega �� rodovi��ria apenas com

uma maleta, pois a viagem n��o seria demorada. Decepciona-

se um pouco ao perguntar a Dudu se tinha conseguido

��nibus-leito, ao que este responde:

��� A grana mal deu pra poltrona comum. Foi a conta.

Faz ar de riso, diz que na volta talvez fosse poss��vel

maior conforto.

��� Deixa pra l��. O importante �� se fazer aquele mo��o

dizer alguma coisa ��� considera Ildefonso.

Metem-se no ��nibus, ficam alguns momentos sem ter

o que dizer, passageiros retardat��rios entrando e procurando

os lugares, o carro j�� com o motor ligado, o motorista pa-

ciente esperando.

Dudu ouve o companheiro dizer coisas vagas, que n��o

t��m nada a ver com o caso, ��s vezes estava distante, olhos

perdidos na noite de estrelas e sil��ncios.

Quando as perguntas de Ildefonso se referem a Ara-

celli, �� obrigado a relembrar pesquisas, fazer longas consi-

dera����es.

��� O ��boli t�� certo. Os respons��veis pelo assassinato

n��o s��o do bloco dos p��s-de-chinelo. �� gente de posse, que

pode incentivar a corrup����o. Lembra bem aquela conversa

do Barros Faria. Chegou euf��rico de Bras��lia, afirmando ter

uma bomba a respeito do caso. Gente boa envolvida na

99

trama. De repente o homem muda de papo e diz que um

preto velho era o principal suspeito. E a�� surge a est��ria do

Bertoldo Lima, surgem as Kombis de Michelini rodando

pelas ruas, convocando a popula����o a localizar a menina.

E quando os jornais saem com a declara����o do superinten-

dente de pol��cia, novamente Bertoldo Lima testemunha, o

Jorge e o Dante Michelini comprando uma por����o de jor-

nais pra distribuir pela cidade. Que desusado interesse ��

esse? O que essa gente pretende com tantos cuidados? De

que estaria se cobrindo, sen��o de uma suspeita?

��� A coisa t�� cada dia mais enrolada ��� afirma Ilde-

fonso Primo, reclinando a poltrona.

��� E ainda que se encontre a chave de tanto mist��rio,

pode estar certo de que vai ser dif��cil ��� considera Dudu.

��� Vamos ver se l�� pelo Rio a gente consegue um

jeito de fazer o Jos�� Eduardo falar.

��� Mesmo que se consiga localiz��-lo, n��o vai querer

se abrir. A n��o ser que fosse debaixo de pau.

Numa parada que o ��nibus faz, alta madrugada, Dudu

olha a poltrona do lado, Ildefonso Primo est�� no terceiro

sono. Desce para tomar um caf��, mas n��o chama o compa-

nheiro, mistura-se ao povar��u que faz fila diante de um

guich��. Olha as vitrines, as caixas de bombons para presen-

te, os chap��us e as bolsas ex��ticas, imagina comprar um

presente para a mulher, lembra que o dinheiro est�� mais

curto do que nunca, logo que chegassem ao Rio teriam de

virar-se para conseguir alguma grana, do contr��rio, at�� a via-

gem de volta seria imposs��vel.

Retorna ao seu lugar quando o motorista d�� o sinal de

partida. Ildefonso continua dormindo. Acende um cigarro,

fica acompanhando o ru��do do carro naquela estrada que

parece um rio escuro. E, n��o sabe por qu��, p��e-se a recordar

a Vit��ria antiga, que conheceu em crian��a, de ruas e pra��as

tranq��ilas, de pessoas que se respeitavam e eram solid��rias.

��� Me d�� uma ajuda, branco.

Ningu��m se recusava. Vit��ria mudou de cara e agora

tem olhos maus, m��os de garras prontas a exterminar os

mais fracos.

��� Me d�� uma esmola pelo amor de Deus!

A mulher exp��e a ferida na perna, varejeiras voando,

ela abanando com a m��o e aquele mundo de gente indife-

rente, uns chateados de ela estar ali, atrapalhando a passa-

gem, outros desejando que a pol��cia apare��a, fa��a a vagabun-

da sumir.

100

Lembrando de tudo que foi bom em Vit��ria, dos cole-

gas que teve e que, com o tempo, tamb��m se modificaram,

Dudu vai se enchendo de m��goa da cidade que tanto ama e

sente estar evoluindo no erro, como tantas outras. E naquele

��nibus de motor zunindo, naquela poltrona confort��vel ven-

cendo o negrume da rodovia a quase cem quil��metros por

hora, lamenta que nada de extraordin��rio possa fazer para

que a multid��o que invadiu a cidade pare e ou��a. E sempre

que imagina essas coisas tamb��m pensa na mulher da qual

tanto lhe falara ��boli.

��� �� uma esp��cie de vision��ria, alta e morena, com

vestido comprido e argolas nas orelhas. Sabe de muita coisa

e n��o se dobra a subornos.

Ildefonso Primo desperta, ergue-se na poltrona e per-

gunta onde est��o, Dudu n��o sabe ao certo.

��� Qual �� a figura popular que ainda conhece em Vit��-

ria? ��� pergunta de repente. Ildefonso Primo fica sem

entender.

��� Popular em que sentido?

��� Dessas como antigamente, que os moleques corriam

atr��s, gritando pelos apelidos.

Ildefonso Primo procura raciocinar, passa as m��os no

rosto cansado.

��� O ��nico que ��s vezes ainda encontro �� Otinho.

��� Otinho eu tamb��m conhe��o. Sempre fazendo poe-

mas. Qualquer coisa o inspira.

��� Que �� que h��, Dudu! T�� te sentindo bem?

��� Claro que tou. Como n��o pude dormir, fiquei pen-

sando nas coisas simples de nossa cidade. E fiquei com pena

dela. Como se tem pena de uma pessoa-. N��o sei se j�� te

ocorreu isso alguma vez.

Ildefonso n��o entende aquele papo, afunda-se outra

vez na poltrona.

��� Me acorda quando a gente tiver chegando em Ni-

ter��i.

Horas depois as estrelas que se distanciavam no hori-

zonte iam afundando, uma a uma, nas ��guas claras da aurora

e os morros de encostas escuras e dorsos reluzentes eram

como elefantes deitados �� margem de um caminho imagi-

n��rio.

Dudu encosta a cabe��a no vidro transparente e vai ven-

do, aqui e ali, perdidas no matagal, as casinhas de chamin��s

fuma��ando. Junto ��s casas, os animais que enfeitam aquela

paisagem ainda sonolenta: galos, carneiros, bois, cabras.

101

No trecho da estrada ladeado de eucaliptos, chama

Ildefonso.

��� Tamos chegando. Isto aqui j�� �� Tribob��.

��� A primeira coisa que se vai fazer �� procurar um

parente que tenho em Caxias ��� diz Ildefonso Primo. ���

Arranco uma grana dele pra se poder andar no Rio.

Dudu, que tamb��m est�� com o dinheiro contado, ouve

aquilo e deseja que tudo d�� certo.

Ap��s quase sete horas de viagem num ��nibus que apre-

sentava relativo conforto, enfrentavam outro que n��o tinha

nada de limpo, as molas apontavam no estofamento e o

motorista entrava aos trancos e barrancos pelas quebradas,

procurando atingir a pista de asfalto. O ��nibus segue com

destino a Caxias, onde est��o as esperan��as dos dois policiais

capixabas. A vontade de chegar logo �� casa do parente de

Ildefonso �� tanta que n��o se importa com o desconforto

da condu����o, nem com as maluquices do motorista, um tipo

avermelhado, de barba por fazer, olhos maus no rosto vin-

cado.

Andam pela rua que Ildefonso Primo conhece, batem

numa porta, ouvem o ladrar de um c��o e a mulher que apa-

rece sorri, manda que entrem. Mas a pessoa que o delegado

procura n��o est��.

��� Viajou ontem mesmo. Volta semana que vem.

A mulher �� agrad��vel, oferece caf��, eles aceitam, mas

o pensamento de ambos est�� baratinado com aquele fora,

Dudu imagina f��rmulas novas de escapar ao cerco invis��vel,

Ildefonso julga-se um perseguido do destino, tivera um pres-

sentimento enquanto dormia, agora tinha d��vida quanto ao

desenvolvimento da miss��o.

��� Nada disso. Vai dar tudo certo. Pe��o dinheiro ao

��boli. �� uma emerg��ncia.

Decepcionados e um tanto tristes, chegam novamente

�� rua, a mulher simp��tica vem deix��-los no port��o, Ildefonso

est�� realmente chateado. �� tarde, o est��mago ronca de

fome e n��o h�� como entrar num restaurante, pedir um bife

acebolado, uma cerveja bem gelada.

Dudu mete as m��os nos bolsos, cata os trocados.

��� Calma. Ainda d�� pra gente comer umas esfihas.

O que sobra �� pra tomar o ��nibus at�� a casa do ��boli.

��� Onde ele mora?

��� No Rio Comprido. Se salta na Pra��a Mau�� e toma

outro que v�� at�� l��.

102

Embora a perspectiva n��o seja das melhores, entram

numa lanchonete, encostam-se no balc��o, a mocinha bota

caf�� com leite nos copos, entrega-lhes duas esfihas, envolvi-

das num papel grosseiro.

��� Vejam s�� como andam os policiais brasileiros!

Dudu fala enquanto morde a esfiha, bebe lentamente

o caf�� quente, olhando a rua por onde os carros passam, as

pessoas se aglomeram, um camel�� grita suas novidades numa

ponta de cal��ada, mostra aos curiosos o avi��o que ergue v��o,

d�� duas ou tr��s voltas por cima das cabe��as incr��dulas,

depois volta a pousar na sua m��o.

Ildefonso olha a malandragem do camel��, tem vontade

de dizer a Dudu que j�� est�� cansado de tudo aquilo, da falta

de conforto e seguran��a em que trabalha, mas termina n��o

se queixando.

��� Juntar-se aos corruptos �� f��cil. Dif��cil �� levantar-se

contra eles ��� argumenta Dudu, embora Ildefonso Primo

n��o saiba bem por que motivo, pois continua pensando

numa por����o de coisas de modo vago e, ao mesmo tempo,

olha o camel�� que opera prod��gios com o avi��ozinho en-

sinado.

Quatro

A roda dos que discutem, na porta do Sal��o Totinho,

�� animada. Os personagens principais s��o Tut��nio e Artur-

z��o. Contracena com eles, no mesmo grau de exalta����o, o

candidato a deputado estadual pelo M D B , Cl��rio Falc��o. Al-

guns outros freq��entadores ass��duos daquele ponto de en-

contro discutem, mas n��o de forma t��o apaixonada quanto

os tr��s.

��� Dou a bunda se o Dudu n��o t�� com o Ildefonso

Primo l�� pelo Rio, arrumando uma boa cama pros filhos da

puta daqui. Foram tentar ouvir o tal do Z�� Eduardo, que t��

servindo o ex��rcito.

��� E o que �� que ele tem com o caso? ��� indaga

Arturz��o, irritado.

��� O que tem? O homem t�� por dentro, cara!

��� Teu mal �� abrir a merda dessa boca e acusar todo

mundo.

��� S�� falo do que faz sentido. �� l��gico que o Paulinho

103

Helal t�� sendo acusado, o Dantinho tamb��m e o irm��ozinho

ca��ula deve saber alguma coisa. Ou tu t�� pensando que

Dudu e Primo dormem de touca?

��� Investigar o caso �� uma coisa; apontar os rapazes

como culpados �� outra, completamente diferente.

��� Acontece que as evid��ncias t��o indicando isso,

irm��o ��� acentua Cl��rio.

��� Evid��ncias nem sempre conduzem ao fato.

��� Ent��o a pol��cia n��o pode trabalhar. Os detetives

s�� podem efetuar pris��es em flagrante ��� considera Tut��nio.

��� O interesse do Dante Michelini no caso foi que deu

pra desconfiar. Al��m disso, j�� h�� quem afirme que uma

namoradinha do pr��prio Paulo Helal t�� disposta a ir �� pol��-

cia contar tudo. Essa mo��a teria presenciado encontros de

Paulo Helal com Aracelli.

��� Tai! O que Cl��rio t�� dizendo �� a pura verdade. Eu

tamb��m j�� ouvi falar nessa mulher. Se resolver mesmo abrir

o bico, o nosso play boy t�� perdido.

Tut��nio dirige-se, mais uma vez, a Arturz��o, que se

deixa tomar por verdadeira crise de nervos.

��� Por enquanto, tudo que t��o dizendo �� bosta. N��o

provam porra nenhuma. O Cl��rio t�� querendo se eleger. Tu

fala de gaiato, porque ainda n��o encontrou quem te quebre

essa boca nojenta.

��� E por que tu n��o quebra, se �� macho?

Arturz��o faz men����o de avan��ar contra Tut��nio, Cl��rio

se mete no meio, outros tipos que discutem tomam a mesma

iniciativa.

��� Se estranhando? Os caras que s��o acusados, voc��s

que se desconhecem?

��� Tou pra deixar de falar com esse imbecil ��� afirma

Tut��nio.

Arturz��o faz que n��o ouve, prossegue defendendo seu

ponto de vista.

��� N��o tou do lado deste ou daquele. Quero evitar

acusa����es gratuitas, porque at�� agora a verdade �� que a pol��-

cia t�� tonta. N��o sabe merda nenhuma ou se sabe t�� escon-

dendo o jogo.

��� Pois a mocinha de quem falei existe. N��o �� inven-

����o. E como existe, vai botar a boca no mundo ��� afirma

Cl��rio Falc��o, enquanto Arturz��o contra-argumenta.

��� Duvido muito. S�� vendo.

��� Esse tipo �� t��o nojento ��� volta Tut��nio a atacar

104

Arturz��o ��� que j�� nem gosto de falar porra nenhuma. N��o

h�� nada pior do que se conversar com ignorantes. Ele t��

bestando por aqui e nem sabe que a m��e da menina voltou

ontem de viagem, j�� foi, hoje, �� pol��cia, e ningu��m soube

lhe informar como vai o caso. A mulher passou v��rias sema-

nas fora, volta pra saber se j�� pegaram os matadores da filha

e a turma que ganha pra isso t�� ausente. Ningu��m sabe de

nada. Te coloca no lugar do pai da crian��a e v�� o que tu

ia fazer.

��� Tu tem a mania de torcer o que se diz. N��o tou

dizendo que n��o sinta a infelicidade da menina e da fam��lia.

O que sempre afirmei aqui �� que se deve procurar os culpa-

dos, confirmar se s��o culpados mesmo e depois pendurar de

um a um numa ��rvore. �� isso o que desejo pros criminosos

��� repete Arturz��o, o rosto vermelho, as veias do pesco��o

inchadas.

��� E �� o que de fato merecem. S�� que tenho certeza,

pelo que estou informado, que o Dante Michelini J��nior e

o Paulo Helal s��o os maiores suspeitos. A coisa se complicou

quando o sargento Homero Dias foi morto pelas costas e

quando se anunciou que um dos elementos da patota de

Michelini e Helal, o Fortunato Piccin, morreu drogado,

quase ao mesmo tempo em que a menina sumia no caminho

de casa.

��� Ta��! Como tu explica isso? ��� pergunta Tut��nio a

Arturz��o, aproveitando-se das afirma����es do candidato a

deputado.

��� Vamos ver. Vamos dar tempo ao tempo.

H�� um momento em que os debatedores como que se

sentem cansados. Tut��nio encosta-se na parede, Arturz��o

fala com a mocinha que passa carregando livros, os outros

j�� se preocupam com a sorte do Vit��ria no pr��ximo campeo-

nato, Cl��rio est�� cercado de trabalhadores, fala do pr��ximo

com��cio.

Os ru��dos das ruas s��o intensos ��quela hora. As janelas

dos pr��dios mostram as l��mpadas acesas e para os lados da

catedral h�� um clar��o do sol nos ��ltimos instantes do ocaso.

Longe dali, numa cama estreita, Rita Soares est�� deitada.

H�� dias n��o levanta. Tiziu fica encarregado de fazer as

compras, pedir donativos junto com os irm��os. Dona Teresi-

nha j�� veio visit��-la, dona Eduvirges receitou-lhe ch�� de

abranda e compressa de ��gua quente antes de dormir.

Rita Soares n��o est�� doente do corpo. Ficou numa esp��-

105

cie de transe, desde o dia em que Tuca tamb��m disse ter

visto Aracelli.

" S e eles n��o fizerem justi��a �� menina, muitos v��o pagar

pelo erro cometido."

Dona Eduvirges bota a m��o na testa de Rita Soares.

��� N��o t�� com febre, n��o, comadre. A senhora t�� ��

encasquetada com a menina.

Uma semana depois, Rita Soares est�� de novo andan-

do. Recolhe flores para a imagem da Virgem de F��tima e de

S��o Benedito, acende velas, olha a conta na chama. Os

rostos dos dois homens e das duas mulheres, que j�� se acos-

tumara a ver, continuam sem poder ser identificados.

Tiziu chega da rua, nesse dia, trazendo o jornal.

��� Olhe a��, m��e, t��o dizendo quem matou Aracelli.

Rita Soares v�� os t��tulos em letras grandes, v�� as foto-

grafias e, como se falasse consigo mesma, diz alto:

��� J�� vi essa mo��a. �� a tal Marislei.

Senta-se na sala, l�� a reportagem que fala da jovem

que j�� vira algumas vezes. Os tr��s pequenos reaparecem,

Tuca vem junto com Radar, Tiziu diz que o vereador est��

chegando.

A mulher levanta-se, Cl��rio Falc��o vem perto.

��� Tiazinha, soube que a senhora t�� doente! Que ��

que tem?

Cl��rio se aproxima sempre muito alegre.

��� Vamos ter coragem e combater o mal que t�� amea-

��ando a cidade. N��o se pode ficar doente.

Rita Soares faz ar de riso, Cl��rio abra��a-a, entram para

a sala estreita, com os quadros de santos nas paredes, a

toalha de estampados na mesa. Os pequenos ficam por per-

to, Cl��rio d�� uns trocados para que comprem balas.

Rita Soares olha o c��o, n��o sente alento de fazer qual-

quer coment��rio.

��� As coisas t��o piorando pro lado dos culpados, Tia-

zinha. Tou sabendo por a�� que dois policiais daqui de Vi-

t��ria foram pro Rio tentar ouvir um filho do Dante Miche-

lini. N��o t�� nada bom pro lado deles.

��� Acho que essa Marislei �� que pode contar a ver-

dade ��� acentua Rita Soares. ��� O resto s�� t�� ajudando a

complicar ainda mais a est��ria.

��� Acho que n��o, Tiazinha. O perito do Rio de Ja-

neiro, que teve aqui, n��o engoliu a est��ria do preto velho

que o Barros Faria inventou. Ele acha que o crime foi

praticado por gente influente.

106

Enquanto Cl��rio Falc��o vai falando e gesticulando, a

mulher olha-o de maneira distra��da, o pensamento nas fi-

guras que aparecem na conta de vidro. Tenta transmitir o

segredo a Cl��rio Falc��o, mas depois ag��enta-se. Teme que a

considere louca.

��� Se for eleito, Tiazinha, pode t�� certa que a primeira

coisa que farei �� cuidar do caso dessa menina. Vou me

comunicar com Deus e o mundo, at�� encontrar quem esteja

disposto a fazer justi��a. Deve haver algu��m neste pa��s inte-

ressado em acabar com a bandalheira que h�� por aqui.

��� Que Deus te proteja. Que tuas palavras sejam teu

compromisso.

Cl��rio Falc��o olha Rita Soares, os olhos verdes bri-

lhantes, o pensamento distante.

��� A senhora t�� se sentindo bem, Tiazinha?

��� Muito bem. H�� tempos n��o me sentia t��o bem.

Tiziu, Tadeu e Tuca retornam. Com a chegada deles,

Radar novamente se anima.

��� Esse cachorro t�� um temp��o sem comer direito.

Sente a aus��ncia de Aracelli e n��o se acostuma ��� diz Rita

Soares.

��� E a m��e da menina? A senhora tem visto?

��� N��o vi mais.

��� Ser�� que j�� reconheceu o corpo e a gente n��o sabe?

��� N��o acredito. Alguma coisa maior do que a infeli-

cidade da filha t�� apavorando dona Lola Sanches.

��� Ser�� que amea��aram ela de morte?

��� H�� coisa pior do que a morte.

Radar late, caminha at�� o terreiro, p��ra diante da

estreleira, Cl��rio j�� se levantou, brinca com os garotos, suas

risadas s��o altas, Rita Soares fica ouvindo aquele homem

barulhento que se afasta, que j�� vai para al��m da cerca e do

p�� de castanheira.

Debru��ada na pequena janela que d�� para o terreiro,

fica olhando a rua em frente, os arvoredos, as crian��as e,

calmamente, como uma canoa que vem na mar�� e se aproxi-

ma da praia, vai tendo uma vis��o clara do que representava

aquela conta que trazia no pesco��o.

"�� um sinal, Rita. Um caminho. Pode ser a pr��pria

den��ncia dos verdadeiros implicados."

Enquanto repete aquelas coisas, Rita Soares vai se lem-

brando do vidro de aumento que vira na quitanda do seu

Antonino e imagina ir at�� l��, pedir a lente emprestada. S��

107

assim poderia reconhecer aqueles rostos e, ent��o, tentar

encontrar uma resposta para semelhante enigma.

Deixa Tiziu uns instantes vigiando a casa, segue pela

rua, pano vermelho na cabe��a para evitar o sereno, agora

que a tarde chega ao fim, e, suavemente, as nuvens escuras

baixam sobre os galhos das ��rvores mais altas. Anoitece.

��� O que �� que vai fazer com a lente, tia Rita?

��� Ver uns pontos de cruz. Tou com a vista pra l��

de ruim.

Seu Antonino remexe nas gavetas, nas prateleiras onde

se amontoam peda��os de pap��is escritos. Desaparece no v��o

da porta, tapado com uma cortina de sementes-de-santa-

maria.

��� Teve sorte. Pensei que havia sumido.

A mulher pega a lupa pelo cabo polido, aponta-a na

dire����o dos gr��os de arroz e gergelim que est��o sobre o

balc��o, os gr��os ficam enormes.

Logo que entra em casa sua preocupa����o �� acender

uma vela, limpar bem a lente, tirar a conta do pesco��o,

coloc��-la contra a chama.

A vis��o que tem parece-lhe t��o surpreendente que

afasta a lupa. Mas n��o consegue evitar que a boca se abra

e diga palavras que n��o queria pronunciar.

Os dois homens, embora tenham ficado de rostos enor-

mes, um deles com fartos bigodes negros, n��o p��de reconhe-

cer. A mulher morena tamb��m nunca vira. Todavia, a outra

era dona Lola.

Numa segunda vez ajusta bem a lupa e torna a olhar

na dire����o da vela. Dessa vez os rostos est��o ainda mais

n��tidos. Dona Lola tem o semblante triste, mas n��o est��

chorando. Um dos homens, no entanto, o que parece mais

jovem, tem express��o de pavor.

Ap��s muito olhar aquelas figuras enigm��ticas, Rita

Soares guarda a lupa, pendura a conta no pesco��o, debru��a-se

na janela e, enquanto espera que os filhos apare��am para

lavar-se, fica pensando naquele mist��rio.

"O que significa dona Lola junto aos desconhecidos?"

108

Cinco

Enquanto Rita Soares procura um lugar na cama para

acomodar-se ao lado dos filhos, Sebasti��o Ildefonso e Dudu

entram no ��nibus, examinam a numera����o das poltronas.

Nenhum dos dois fala. Ildefonso segura a maleta, Dudu nem

isso trouxera. Sentam-se, ficam olhando o movimento na

Rodovi��ria Novo Rio e o homem da limpeza que se aproxi-

ma, sempre beirando o meio-fio, uma das m��os segurando a

vassoura, na outra o dep��sito de lixo. O homem some por

tr��s da Kombi que chega, dois rapazes saltam e come��am a

desembarcar pilhas de jornais amarrados com barbante.

��� Uma viagem perdida.

��� N��o acho. Se fez o que era poss��vel.

��� O bom policial n��o deixa problemas por resolver.

Mas a gente, sabe como ��. N��o tem nem dinheiro pra comer,

quanto mais ficar no Rio por conta pr��pria.

��� Calma. Quem n��o tem c��o, ca��a com gato. O im-

portante �� n��o desistir.

��� Isso �� muito rom��ntico, Dudu.

��� N��o acho. Queimou-se a etapa Z�� Eduardo. Vamos

trazer Bertoldo Lima �� casa de ��boli e ver o que acontece.

Ildefonso Primo olha o companheiro. Sabe que tem

raz��o, mas n��o sente ��nimo de falar. Andaram muito duran-

te o dia, o dinheiro n��o foi suficiente sequer para tomar

t��xi e tamb��m n��o deu para uma refei����o decente. Ouvindo

agora o que Dudu diz, o desejo do delegado �� fechar os

olhos e adormecer.

��� Mais cedo ou mais tarde se chega ao ponto dese-

jado. O que t�� perturbando �� que nem todas as pe��as do

jogo se casam. Alguma coisa importante t�� faltando.

��� N��o sei. S�� quando estiver mais descansado vol-

tarei a pensar no caso.

��� Tem raz��o. O melhor que se faz �� procurar tirar

um ronco.

Em poucos minutos Dudu percebe que Ildefonso Primo

adormeceu. Tem os olhos cansados, um peso tremendo com-

prime-lhe os ombros, mas n��o consegue pegar no sono.

Quase nunca dorme em viagem. �� propor����o que o ��nibus

movimenta-se na escurid��o das pistas, vai analisando o que

dissera Carlos ��boli, sentindo o quanto aquele homem viu

longe a trama arquitetada pelos criminosos.

��� Pra mim, as implica����es n��o podem ser t��o simples

quanto imaginamos. Houve o crime, motivado por viciados

109

em t��xicos, e imediatamente houve a interven����o de pessoas

de posse, que tudo est��o fazendo para que o fato n��o se

transforme num esc��ndalo declarado. Senti isso a partir do

momento em que tive meu trabalho dificultado l�� em Vi-

t��ria. Muitas pe��as importantes para elucida����o do caso n��o

chegaram ��s minhas m��os e outras os funcion��rios simples-

mente informavam ter desaparecido. Se se fosse levar o

inqu��rito do caso Aracelli com o rigor que merece, os

primeiros implicados seriam os pr��prios agentes da pol��cia,

a come��ar pelo superintendente Barros Faria.

Dudu recorda as palavras do amigo, imagina a bata-

lha que vai enfrentar, ao lado daquele jovem delegado

adormecido, enquanto o ��nibus investe furiosamente contra

a escurid��o. Recosta-se na poltrona, fecha os olhos, distingue

n��tida a figura de Bertoldo Lima, os olhos tranq��ilos, o rosto

magro e s��rio.

"Jorge e Dante saltaram juntos do carro. Antes, o

Dante Michelini pegou uma m��scara de borracha que tava

no banco traseiro e enfiou na cabe��a. Achei estranho aquilo,

mas nada disse. Afinal, era o motorista do Jorge, n��o tinha

nada que me meter em assuntos que n��o me diziam

respeito."

"E o que foram fazer na superintend��ncia de pol��cia?"

"Sinceramente n��o sei", acentuava Bertoldo Lima. "O

que sei �� que pouco depois o Jorge retornou s�� e mandou

tocar na dire����o do escrit��rio."

" N o caminho ele falou alguma coisa do irm��o?"

"N��o disse nada de importante. Apenas uns papos

malucos, que o Jorge �� um cara legal. Gosta de contar umas

piadas e vive rindo �� toa."

"E quanto ao jovem Fortunato Piccin?"

"N��o tive intimidade com esse rapaz. ��s vezes o via,

sempre l�� com o grupo dele. Nada mais que isso."

Junto ao rosto de Bertoldo Lima acende-se o de Gabriel

Sanches; testa larga, cabelos lisos, bigodes negros.

"N��o quero mais ver a menina. Que esteja em paz.

Deus se encarregar�� de punir os criminosos."

"Dona Lola voltou ao I M L ? "

"N��o sei."

Dudu abre os olhos, s�� alguns bicos de luz acesos

dentro do ��nibus, a maioria dos passageiros est�� adormecida

como o delegado Ildefonso Primo.

"Seria dona Lola a chave que falta nesse j o g o ? "

110

Os pensamentos s��o confusos, Ildefonso Primo mexe-se

na poltrona desconfort��vel, Dudu continua olhando pelo

vidro da janela, mas o que v�� �� o pr��prio reflexo das pessoas

adormecidas. Apaga o bico de luz, que incomoda o delegado,

tenta alcan��ar o apoio met��lico para os p��s, n��o consegue,

sente certo aborrecimento com tanto desconforto. O homem

que vem caminhando por entre as fileiras de poltronas bate-

lhe no bra��o, vai em frente, na dire����o do to��lette. Dudu

acende mais um cigarro, as luzes de uma cidade aparecem,

o ��nibus diminui a marcha. Surgem as placas assinalando

per��metro urbano, surgem os trilhos, a avenida, o mercado,

os pr��dios que agora s��o apenas sombras escuras.

��� Onde a gente t��? ��� pergunta Ildefonso, que acor-

da de repente.

��� Campos.

Ildefonso olha pelo vidro escuro e novamente ador-

mece. Com o sol quente chegam a Vit��ria, os passageiros

inquietos para descer, as mulheres passando escovas nos

cabelos, olhos inchados da noite maldormida.

��� Vou direto pra delegacia.

��� Primeiro desejo tomar um banho. Depois apare��o

por l�� ��� responde Dudu.

O t��xi se afasta, vence as po��as de lama junto ��s cal��a-

das, some na esquina onde est��o os meninos vendendo li-

m��es e balas ordin��rias.

1 1 1

A conversa gravada

Onde h�� fuma��a h�� fogo

Um

No meio dos ru��dos mais fortes que v��m das ruas,

Dudu acorda. As cortinas est��o fechadas sobre a janela, ele

n��o tem no����o do tempo. Estica o bra��o, pega o rel��gio,

alarma-se ao verificar que passa das quatorze horas. Levan-

ta-se, vai ao banheiro, chama a mulher, entra na cozinha, na

sala, n��o h�� ningu��m. Senta-se um momento, n��o tem d��vi-

da de que seus atrasos na hora das refei����es, as vindas muito

tarde para casa, est��o pesando no relacionamento dom��stico.

Certo de que deveria dar mais aten����o �� esposa, a

partir daquele dia, ainda que o caso Aracelli s�� estivesse no

come��o das investiga����es, Dudu repuxa a pele do rosto para

escanhoar-se melhor. E, imaginando a revolta silenciosa da

mulher, as horas que passava sozinha, aguardando que apa-

recesse, rem��i tamb��m a possibilidade de ir at�� a Casa de

Deten����o, ouvir o traficante J o s �� Paulo de Sousa, o Boca

Negra. Depois se avistaria com o sr. Jo��o Dias, pai de

Homero, e com a vi��va Elza Dias. Falaria com o vigia,

Etelvino Rodrigues, agredido pelos desconhecidos que inva-

diram o Edif��cio Apolo, faria sindic��ncias em torno da vida

de Marislei Fernandes Muniz, freq��entaria a boate Francis-

cano, ouviria da professora Marlene Stefanon tudo que pu-

desse dizer de sua ex-aluna. E a que horas voltaria para casa?

Veste-se, vai para a rua, encontra alguns amigos nas

imedia����es do Bar Carlos Gomes, de l�� caminha na dire����o

da delegacia. Atravessa a sala sempre movimentada, Sebas-

ti��o Ildefonso est�� com cara de quem n��o havia descansado

um s�� instante.

��� Tive de tirar uma soneca. N��o ia ag��entar emendar.

��� Isto aqui, hoje, t�� um inferno ��� responde Ilde-

fonso.

��� Alguma coisa sobre a menina?

115

��� �� de que menos se fala.

��� Tive algumas id��ias que talvez nos levem a alguma

conclus��o.

��� Vamos l��.

��� Acho que o melhor �� se fazer um levantamento

completo das prov��veis testemunhas. Botar uma por����o de

gente pra falar.

��� Acredita que d�� certo?

��� Se n��o der, nada se perde.

��� J�� soube o que t��o arrumando pra cima de ti? ���

comenta o delegado. ��� Tanto Helal quanto Michelini v��o

te processar. Querem pegar tamb��m o Cl��rio Falc��o.

��� Quando souberem que temos prova do que afirma-

mos, garanto que mudar��o de id��ia ��� responde Dudu.

��� J�� conseguiu falar com o motorista?

��� Hoje n��o. Amanh�� ou depois, passo por l��. �� bom

que s�� se volte ao Rio na semana que vem. A mulher anda

meio chateada comigo.

��� Quem �� que vai contratar como advogado?

��� O Jeov�� de Barros e o Ewerton Guimar��es. D��o

conta do recado.

��� Ser�� que Cl��rio j�� sabe disso?

��� Ainda n��o estive com ele.

Dois policiais chegam trazendo o homem com muito

esparadrapo no rosto e nos bra��os, aparecem outras pessoas

relacionadas ao mesmo caso, Dudu se levanta, aproveita

para sair, Ildefonso Primo p��e-se a ouvir a conversa do

ferido, Dudu chega �� rua, toma um t��xi, manda seguir para

o Sal��o Totinho. Diverte-se com o papo sempre animado

de Tut��nio, as afirma����es prudentes de Arturz��o, os palpites

do barbeiro Jo��o In��cio.

��� Se o Cl��rio for mesmo eleito vai foder essa canalha.

Aquele preto n��o �� de fazer arrego. Vai quebrar o pau na

Assembl��ia como fez na C��mara dos Vereadores.

��� Pra esse cara, tudo �� muito f��cil ��� considera

Arturz��o.

��� E qual �� a bronca? Se o careta t�� sendo acusado e

n��o consegue se defender, ferro nele. Bota no pau-de-arara

que a est��ria sai.

��� Prova pra botar uns tr��s em cana j�� se tem ��� diz

Dudu.

��� Ta��. �� o pr��prio perito quem t�� dizendo.

Arturz��o n��o responde. Respeita Dudu, n��o quer in-

compatibilizar-se. Na pausa da discuss��o chega Cl��rio. Palet��

116

no bra��o, os gestos largos, o riso franco. Tut��nio mal espera

que se aproxime, vai logo afirmando:

��� Voc�� j�� tem ou n��o tem elementos pra mandar

uma meia d��zia pra cadeia?

Cl��rio �� tomado de surpresa, mas est�� acostumado com

Tut��nio.

��� No m��nimo uns tr��s.

��� E quais seriam? ��� quer saber Arturz��o.

��� Paulinho Helal, Dante Michelini Jr., o delegado

que se incumbiu do caso, no in��cio das investiga����es, e os

fot��grafos da pr��pria pol��cia.

��� E voc��s podem provar isso?

��� Se n��o pudesse tu pensa que a gente tava com esse

g��s todo?

��� Acho gra��a desse sujeito. N��o sabe de porra nenhu-

ma, �� um cag��o e pensa que todo mundo t�� na dele. Tu

tem de entender, velho, que os dois aqui s��o da pesada

(Dudu e Cl��rio acham gra��a). N��o entraram nessa est��ria de

brincadeira.

��� O Cl��rio pelo menos t�� dando cor pol��tica ao fato

��� afirma Arturz��o, de modo polido.

��� N��o me incomodo que digam estar explorando o

cad��ver da menina. Deus e a Virgem de F��tima sabem dos

meus prop��sitos. �� o quanto basta.

��� N��o quis dizer isso.

��� Pode estar tranq��ilo, amizade, que as provas est��o

conosco. No momento exato v��o ser lan��adas na mesa.

��� Tem de dar uma li����o nessa cambada ��� afirma o

barbeiro Jo��o In��cio. ��� Do contr��rio esta cidade estar��

sempre de moral baixa, apontada como ref��gio de marginais.

Arturz��o volta a exaltar-se contra nova afirma����o de

Tut��nio. Dudu chama Cl��rio Falc��o de lado, falam a respei-

to dos advogados que colocariam na sua defesa, do motorista

que iria ao Rio, gravar den��ncia no laborat��rio particular de

Carlos ��boli. Cl��rio aproveita para p��r Dudu a par das

descobertas de Rita Soares.

��� Tiazinha �� fogo, cara. Andou l�� pelo bairro do

Soteco, em Vila Velha, e sabe o que disseram a ela?

Cl��rio faz uma careta, arregala os olhos.

��� Que a Marislei foi namorada do Paulinho Helal e

conhecida de Aracelli. A mo��a tem muito o que contar. ��

figura nova no caso, homem de Deus!

Dudu fica animado, quer saber onde poderia encontrar

Rita Soares. Cl��rio d�� as indica����es. O perito pede que o

117

vereador mantenha o nome de Marislei em sigilo, mas se

decepciona ao descobrir, no dia seguinte, que o segredo era

do dom��nio p��blico. Chama o companheiro, reclama.

��� A jornada �� dif��cil, irm��o. Se tem de agir com a

cabe��a. Em boca fechada n��o entra mosca.

Cl��rio Falc��o sorri do modo cauteloso de Dudu, prome-

te controlar-se, fala dos com��cios em Colatina, das possibili-

dades eleitorais, que considera boas.

��� Juro que ven��o por maioria e essa cambada vai

roer um osso duro.

��� Pelos levantamentos que j�� fiz do caso, baseado em

parte nos estudos de Carlos ��boli ��� acentua Dudu ���,

cheguei a uma conclus��o.

Cl��rio p��ra de falar, �� todo aten����o.

��� Aracelli morreu numa bacanal de t��xicos. Aplicaram

uma dose muito violenta nela. Quando perceberam seu

estado, foram com ela para o Hospital Jesus Menino, mas

j�� tava morta. Os m��dicos se recusaram a fazer o encami-

nhamento do corpo, o que seria mais tranq��ilo para os

assassinos. Diante dessa dificuldade levaram o cad��ver para

a boate Franciscano, colocaram num freezer de sorvete, en-

quanto pensavam numa maneira de sumir com ele. Depois

disso veio a id��ia do ��cido ��� quem sabe obtido no pr��prio

Hospital Jesus Menino? ��� e o abandono da menina no

matagal. Ali, n��o fosse o garoto que ca��ava passarinhos,

jamais seria achada. Ao mesmo tempo estaria num local

que os pr��prios matadores poderiam controlar com relativa

facilidade.

��� E aquela menina caberia num freezer de sorvete?

��� �� a ��nica coisa que intriga Cl��rio.

��� Comprimida por um homem forte, claro que sim.

Passam por uma banca, Cl��rio pede um jornal, vai

olhando as not��cias enquanto o perito faz novas conside-

ra����es sobre o crime. Em dado instante, mudando comple-

tamente de assunto, indaga:

��� Sabia que at�� hoje a conta do hotel onde ��boli se

hospedou n��o foi paga?

Dudu limita-se a rir.

��� N��o h�� novidade nisso. Recusaram at�� material pro

homem trabalhar, quanto mais pagar as contas que fez!

��� O dr. Barros t�� abusando da sorte ��� argumenta

Cl��rio. ��� T�� indo longe demais.

Chegam em frente ao caf��, onde Cl��rio Falc��o encontra

outros amigos, Dudu aproveita para despistar, atravessa a

118

rua. A teoria que criou a respeito da morte de Aracelli

ganha corpo e est�� cada vez mais convencido de que repre-

senta a verdade.

Dois

Cedo ainda Dudu desce do t��xi, caminha na rua sem

asfalto, passa pelos grupos de meninos seminus que brin-

cam, fala com as pessoas que conhece de vista, avan��a pela

travessa estreita, ladeada de arbustos floridos, chega ao por-

t��o de t��buas enegrecidas, bate palmas. Tiziu aparece, vai

chamar a m��e.

��� Sou Asdr��bal Cabral, amigo do Cl��rio Falc��o.

Senta-se, apoia os bra��os na mesa.

��� Cl��rio fala muito na senhora.

Rita Soares ouve o que vai dizendo, n��o faz comen-

t��rios.

��� Tamb��m tou trabalhando pra ver se consigo escla-

recer a morte da menina. Cl��rio disse que a senhora sabe

da mo��a que poderia ser uma boa testemunha.

��� Dizem que foi namorada do filho de Helal ��� acen-

tua Rita Soares.

��� E o que mais dizem?

��� Era bom o senhor mesmo descobrir. N��o quero

passar por linguaruda.

��� N��o me chame de senhor ��� diz Dudu, sorridente.

Rita Soares tamb��m faz ar de riso. Em dado momento

vai �� cozinha, retorna com um papeiro de mingau quente,

oferece, Tuca e Tadeu aparecem com as tigelas.

��� A crian��ada n��o perde tempo ��� diz a mulher.

��� Alguma coisa lhe faz acreditar que dona Lola esteja

metida no caso?

Rita Soares volta-se com certa surpresa, p��e o papeiro

na mesa.

��� N��o havia pensado nisso.

Dudu se levanta, Tiziu chega com o embrulho de p��es,

diz que o dinheiro n��o foi suficiente, ficou devendo vinte

centavos a seu Antonino, a m��e n��o est�� ouvindo, pensa na

ast��cia daquele homem de rosto magro, olhar calmo, pala-

vras mansas e, imaginando sua habilidade, recorda com abso-

luta nitidez as figuras que freq��entemente v�� no interior

119

da conta, sempre que a coloca de encontro �� luz de uma

vela. A mulher loura �� mesmo Lola Sanches.

Da casa de Rita Soares Dudu segue para falar com Ber-

toldo Lima. De l��, ent��o, procuraria investigar a atua����o de

Marislei Fernandes de mais perto. Iria ao bairro do Soteco,

onde morava. Se o tempo fosse suficiente, procuraria tam-

b��m uma entrevista com o Paulinho Boca Negra. �� um

dia cheio, principalmente para ele, que n��o tem carro, as

dist��ncias a cobrir s��o grandes.

Pensando nessas coisas bate na porta do motorista.

Rumores na pequena casa, flores balan��ando nos ramos fi-

nos. A mulher diz que Bertoldo Lima n��o est��, Dudu

disp��e-se a esperar. Entra na sala de piso cimentado, qua-

dros nas paredes com estampas, protegidas por vidros, a

mesinha de centro e o jarro de flores pl��sticas, cadeiras com

assento de palhinha. Bertoldo aparece, estica a m��o num

cumprimento.

��� Finalmente, chegou o dia da viagem.

Explica que deveriam sair de madrugada, no Volkswa-

gen de Ildefonso Primo.

��� O carrinho t�� em ordem e pra tr��s pessoas n��o

chega a ser inc��modo.

Na verdade, Dudu n��o tem muito o que dizer, Bertoldo

Lima apenas sorri. Dudu fala em dinheiro, o motorista diz

que isso n��o vem ao caso. Combinam o hor��rio da partida,

a mulher reaparece com duas x��caras de caf��.

Dudu j�� est�� se preparando para sair, quando ouve a

indaga����o que o deixa preocupado.

��� E o caso Aracelli? Acha que no Rio v��o conseguir

alguma coisa?

��� N��o se descobre nada por aqui, quanto mais

no Rio.

��� Tem sido dura a luta, pois n��o?

��� N��o t�� moleza. Anda-se o dia inteiro, pra baixo e

pra cima, e n��o se apura coisa alguma de valor.

A caminho da pista asfaltada Dudu ainda est�� em d��vi-

da: n��o consegue saber se, de fato, Bertoldo Lima acredita

no que diz ou, simplesmente, sabe tanto quanto ele o signi-

ficado daquela viagem. Arrepende-se de n��o ter sido franco.

Todavia, o depoimento daquele homem �� t��o importante,

que nem de longe pode arriscar a possibilidade que ter�� de

gravar uma fita com tudo o que costuma afirmar. Indispen-

s��vel alertar Ildefonso Primo para que, durante a viagem,

n��o toque no caso Aracelli.

120

��� S�� se diz alguma coisa se ele puxar.

Aquelas conclus��es e acertos como que tiravam um

peso das costas de Dudu. Enquanto espera o momento da

partida conversa com os amigos, anda por ruas desertas e

pouco iluminadas, det��m-se diante de casar��es que conheceu

nos bons tempos e agora est��o transformados em cabe��as-

de-porco: janelas de r��tulas despencando, arcos de madeira

trabalhada lascados, vidros partidos e parasitas crescendo

nos beirais de telhas esmaltadas. Olha aquela deteriora����o

do casario, cicatrizes se abrindo no rosto da cidade, pensa

nas personalidades ilustres que se foram e na decad��ncia

que, devagar, como as mar��s no porto, vai inundando tudo

aquilo, solapando, corroendo.

��� Tilim, bota mais uma dose. V�� tamb��m o tira-

gosto.

O homem de rosto gordo atende ao pedido de Dudu

e dos seus amigos. Dudu olha aquelas prateleiras enegreci-

das de tantas tardes que por ali passaram e de tantas noites

que ali aportaram. A aparente estagna����o representa tradi-

����o; uma coisa que a arquitetura moderna, as avenidas largas

e a multid��o feroz nas ruas est��o ajudando a destruir.

Ficava horas na mercearia de Tilim, encostado nas

pilhas de caixas ou sacos de batatas. Ali, tamb��m, o tempo

parecia ter feito um remanso na correnteza e muita coisa

ainda lembrava os melhores dias de Vit��ria.

Tilim nem sempre se mete na conversa dos fregueses.

Atende as senhoras que escolhem macarr��o, arroz e farinha,

corta queijo para o desembargador, p��e no papel gelatinado

as azeitonas que a professora quer levar, serve conhaque e

macieira aos freq��entadores de quase todos os dias. Vez por

outra n��o se ag��enta de curiosidade, arrisca um conselho.

��� Cuidado com essa gente, Dudu.

O perito acha gra��a, porque seus passos no trabalho

s��o sempre cautelosos. N��o se lembra, em tantos anos de

atividade, de uma imprud��ncia, uma acusa����o injusta. E as

que por acaso foram feitas, logo procurou retific��-las. Tem

vontade de dizer isso a Tilim, mas sabe que de nada adian-

taria. Limita-se a ficar parado naquele lugar atravancado,

ouvindo casos que os amigos contam, os boatos e as pilh��rias.

Tilim oferece mais uma dose, Dudu agradece. Agora,

ouve mais do que fala. Jeov��, que chegou por ��ltimo, p��e

a pasta sobre uns caixotes, conta como foi o encaminha-

mento da a����o de defesa.

121

��� Pelo que ouvi, o Michelini vai dar uma de bom

mo��o.

��� Como sempre faz ��� interrompe Dudu.

��� Vai pedir na justi��a que voc�� e o Cl��rio devolvam

materiais que s��o de import��ncia na elucida����o do caso.

��� Pretende �� tumultuar os trabalhos.

��� �� vivo ��� diz Orlando Broto, um homem alto e

louro, que tamb��m freq��enta a mercearia do Tilim.

��� Tou pronto pro que der e vier ��� afirma Dudu.

Horas mais tarde, quando Bertoldo Lima estiver diri-

gindo o Volkswagen de Ildefonso Primo, por ruas e traves-

sas escuras, at�� atingir a B R - 1 0 1 , Dudu ainda ouvir�� a adver-

t��ncia do advogado e ficar�� pensando no comportamento

das pessoas. N��o tem ��dio de Dante Michelini e muito

menos de Constanteen Helal.

��� Nenhum pai vai aceitar, sem rea����o, que seu filho

seja acusado de criminoso. Te coloca no lugar de Michelini e

v�� como ia reagir ��� afirma Arturz��o, nas discuss��es com

Tut��nio.

Dudu se lembra do embara��o de Tut��nio. Uma das

poucas vezes que o viu sem resposta imediata, ele que cos-

tuma falar pelos cotovelos e tem sempre algo muito engra-

��ado a dizer, quando Arturz��o discorda de suas afirma����es.

Era aquilo. Uma verdade mortal, encoberta de paix��es. N��o

podia ser diferente. Seu trabalho �� que remove coisas ocultas

no fundo dos cora����es. Suas m��os �� que se aventuram a

puxar para fora das sombras os animais disformes e repelen-

tes que somos, e que procuramos manter bem escondidos.

��� Meu neto envolvido num crime! ��� dona Julieta

diz isso e desmaia. �� o que conta Bertoldo Lima.

"Mas a verdade tem de ser arrastada pra fora das

��guas escuras do lago, esticada na areia pra que todos a

vejam, ainda que tenha a forma mais nojenta de todos os

moluscos. Ela �� a mancha que ajuda a nos curar ou nos

destruir�� de uma vez por todas."

Tr��s

Dudu toca a campainha do apartamento 1 0 1 . Do seu

lado est��o Ildefonso Primo e Bertoldo Lima. Aparece a

mulher, perguntando quem ��, aparece Carlos ��boli. Entram

122

para a sala com o tapete sobre os tacos lustrosos, m��veis

confort��veis.

��� Este �� Bertoldo Lima, que comandou a nave at��

aqui.

��� �� um bom peda��o ��� recorda ��boli.

��� Gosto de fazer essa viagem, mas, ultimamente,

ando estourado ��� afirma o delegado.

��� Vamos passar para o escrit��rio, que �� mais con-

fort��vel.

�� um sal��o amplo, com estantes, mesas e livros espe-

cializados, estatuetas de m��rmore e bronze, m��quinas de

fotografia, cassete, alguns long-plays empilhados e sobre eles

o cinzeiro estilizado, al��m de um pote com balas e outro

sem tampa, cheio de l��pis e canetas.

��� N��o reparem na desarruma����o. �� meu mundo.

Quando me livro dos chatos, l�� fora, corro pra c��. Princi-

palmente agora que a cidade t�� ficando uma total alucina����o.

��� Vit��ria n��o �� diferente.

��� Da ��ltima vez que estive l�� fiquei impressionado

com o movimento nas ruas.

��� Que papelada �� esta, mestre? ��� quer saber Ilde-

fonso Primo.

��� O inqu��rito sobre o seq��estro de um menino. O

Carlinhos, como a imprensa chama. J�� li isso umas dez vezes

e cada vez entendo menos.

��� Algo parecido com o caso da garota de Vit��ria? ���

indaga Dudu.

��� Mais ou menos. S�� que a menina se sabe que foi

morta. Carlinhos ��� abre o volumoso inqu��rito ��� sumiu,

evaporou.

Dudu finge olhar um livro sobre per��cia, Ildefonso

fala, uma ou duas vezes, Bertoldo Lima faz apartes. A mo��a

de avental aparece, diz que o caf�� est�� para sair.

��� O pior �� que se v�� uma coisa acontecer, procura

contar pra ajudar e acaba quase como mentiroso ��� diz

Bertoldo Lima.

Dudu ainda manuseia o tratado, mas na verdade est��

atento ao que diz o motorista. ��boli d�� aten����o ao homem

que v��, pela primeira vez, Ildefonso Primo sabe que toda

aquela conversa est�� sendo gravada. O que Carlos ��boli

chama escrit��rio �� um laborat��rio bem montado, com micro-

fones embutidos nas paredes, no piso e nos m��veis. E n��o

apenas um gravador, mas diversos, deveriam estar ��quela

123

hora girando lentamente as fitas magn��ticas com tudo o que

Bertoldo Lima narrava.

��� Em tudo isso, o que acho estranho �� o comporta-

mento de algumas pessoas. N��o pude entrar em detalhes

porque j�� peguei o caso pelo meio, quando o dr. Waldir

Vitral pediu que desse uma m��o ��� diz ��boli, procurando

tornar o ambiente bem descontra��do para Bertoldo Lima.

��� Houve muita est��ria desencontrada, muita den��n-

cia manhosa, com o fim de prejudicar as investiga����es. A

partir da morte do sargento Homero Dias a coisa come��ou

a degringolar ��� afirma Ildefonso Primo.

��� Surgiu at�� um mascarado, n��o �� isso? ��� indaga

��boli, sorridente.

��� E houve mesmo. Bertoldo presenciou isso ��� diz

Dudu, fechando o livro.

��� Vi, com estes olhos que a terra h�� de comer. Nessa

��poca era motorista do Jorge, irm��o do Dante Michelini.

Uma tarde apanhei os dois. Jorge mandou seguir para o

escrit��rio, que ficava no centro. Perto da superintend��ncia

de pol��cia ele mandou diminuir a marcha. Olhei pelo retro-

visor e o Dante tava enfiando uma m��scara de borracha

na cabe��a. Ficou parecendo um velho. Saltaram e seguiram

na dire����o do pr��dio. Uns cinco minutos depois Jorge retor-

nou. Perguntei se o irm��o n��o vinha, mandou tocar pra

frente. Dias depois, na casa do Jorge, voltei a ver a m��scara

de borracha, sobre o barzinho que ficava na varanda.

��� Teria id��ia do que o Dante foi fazer l��, assim fanta-

siado? ��� pergunta Carlos ��boli.

��� N��o soube de nada. Esse pessoal n��o se abre com

ningu��m. Mas s�� a partir da�� comecei a ligar a encena����o

de Dante Michelini ao caso da menina, que, por sinal, mora-

va na mesma rua que eu, no bairro de F��tima.

A empregada chega com a bandeja de caf��. ��boli pega

as x��caras, vai distribuindo, oferece mais a����car.

��� Como �� esse irm��o do Dante Michelini? ��� quer

saber ��boli.

��� Um bom sujeito. Meio doido quando bebe, mulhe-

rengo e dado a farras. Para os parentes ricos �� uma esp��cie

de ovelha negra, embora os sobrinhos tenham adora����o

por ele.

��� Puxa, Bertoldo. Devia ter te encontrado quando

estive em Vit��ria. Isso que t�� dizendo, agora, poderia ter

sido de grande utilidade na ��poca ��� acentua ��boli. ��� E o

124

que n��o entendo �� como ningu��m desconfiou do disfarce do

velho na pr��pria pol��cia.

��� A id��ia que fa��o �� que tudo isso n��o passou de

uma farsa perfeitamente organizada ��� afirma Dudu.

��� Mas uma farsa perigosa. Quem era o delegado nessa

��poca? ��� pergunta ��boli.

��� O capit��o Manoel Ara��jo ��� diz Dudu.

��� O mesmo que recebia as informa����es de Homero

Dias a respeito do seq��estro? ��� torna a indagar ��boli.

��� Aquilo �� muito enrolado. Se n��o partirem pra in-

terrogat��rios s��rios, n��o v��o chegar nunca a qualquer con-

clus��o ��� acentua Bertoldo Lima, meio impaciente.

��� Se o Cl��rio Falc��o conseguir, de fato, ser eleito

deputado, ent��o podem ag��entar as pontas que vai haver

uma confus��o dos diabos.

��� Mas ele me pareceu meio tumultuado ��� diz ��boli.

��� Tem a vantagem de ser honesto. N��o leva dinheiro

de ningu��m ��� afirma Bertoldo Lima.

��� O pai da menina chegou a contratar os detetives

aqui no Rio? ��� pergunta ��boli.

��� Coisa nenhuma. A m��e da garota insiste em afirmar

que o corpo que t�� no I M L n��o �� de Aracelli. Isso tem en-

fraquecido o caso ��� diz Dudu.

��� �� estranho, isso ��� considera ��boli.

��� Olha, pessoal, pra ser sincero, tenho at�� ouvido

falar numa liga����o de dona Lola com o Jorge Michelini.

Por a�� podem ver como o neg��cio t�� complicado ��� declara

Bertoldo Lima.

��� E o que mais t��m sabido por l��?

Dudu conta o que levantou, Ildefonso queixa-se do de-

sinteresse nas investiga����es, Bertoldo Lima volta a falar.

��� H�� quem admita que dona Lola cedeu a menina

pra alegrar uma festinha com os filhos de Michelini e Helal.

L�� pelas tantas um deles violentaria a garota, pra que Jorge

encontrasse o caminho aberto.

��� Isso �� da maior gravidade, Bertoldo ��� considera

Carlos ��boli.

��� �� o ,que comentam. Onde h�� fuma��a h�� fogo ���

afirma o motorista.

��� Voc�� admitiria uma coisa dessas, Dudu, ou s��o ape-

nas boatos, espalhados por pessoas que detestam dona Lola?

��� N��o sei, mestre. Como Bertoldo lembrou, onde h��

fuma��a h�� fogo. Dona Lola n��o era uma estranha para Jorge.

Descobri uma s��rie de desenhos feitos por Aracelli, todos

125

representando aspectos da casa dos Michelini, na praia do

Canto. Isso prova que ela esteve por l�� e n��o uma vez s��.

Se assim fosse, dificilmente teria conseguido memorizar se-

tores t��o particulares da resid��ncia. Os desenhos coincidem

com uma composi����o que fez na escola, onde lembra os seus

tempos de menina. ��� Dudu faz esfor��o de mem��ria, olha

fixo num ponto e logo recorda.

��� Uma parte dessa composi����o �� assim: "....sou uma

mo��a, mas tamb��m sei como �� ser crian��a porque um dia

tamb��m fui crian��a e fui uma crian��a alegre".

��� Quando vai novamente a Vit��ria? ��� indaga Ilde-

fonso, para que a conversa n��o se torne ma��ante.

��� Freq��entemente terei de estar indo l�� por causa

das aulas na academia. Quanto ao caso, j�� apresentei meu

relat��rio ao dr. Waldir Vitral.

Ildefonso Primo olha o rel��gio, Dudu diz ser hora de

bater em retirada, ��boli pergunta pela sindic��ncia em torno

do J o s �� Eduardo.

��� N��o deu em nada. Se fez o que foi poss��vel, mas

sempre diziam no regimento que ele n��o estava.

��� O pessoal que botei pra mant��-lo sob fiscaliza����o

tamb��m n��o conseguiu nada.

Dudu levanta-se, ��boli aperta a m��o de Bertoldo, abra-

��a Ildefonso, a porta se abre, a Rua Paula Ramos est�� pon-

tilhada de cantos de pardais e de crian��as que fazem suas

brincadeiras.

No bar, onde os tr��s sentam para tomar uma cerveja,

naquele fim de tarde quente, Bertoldo Lima est�� impressio-

nado com a camaradagem dos amigos e com a aten����o que

lhe dispensara o maior perito do pa��s.

1 2 6

Dois anos depois

Um anjo dorme na geladeira

Um

Ap��s v��rios dias sombrios ou chuvosos, a manh�� de

sol faz Vit��ria reacender de belezas. As ��rvores nas pra��as

sacodem os ramos finos e lavados, a grama tem um verde

revigorado e as pessoas que transitam pelas ruas parecem

reconfortadas com o calor.

Em frente ao Sal��o Totinho, desde cedo, h�� bastante

anima����o. Tut��nio ergue o jornal na m��o, fala alto. Os que

est��o parados, perto dele, assistem a mais uma de suas

discuss��es com Arturz��o.

��� Te cuida, maninho, que o velho Deus t�� botando

pra quebrar. O castigo j�� come��ou a baixar. N��o me vanglo-

rio com a morte de ningu��m, mas quem faz o mal, aqui mes-

mo paga. Olha s�� o que tia Rita vem dizendo esse tempo

todo. Vit��ria t�� ro��da pelo pecado.

��� Deixa de ser bobo, rapaz ��� argumenta Arturz��o,

encostado num poste. ��� O Jorge Michelini acabou porque

abusava da bebida.

O cidad��o de barbicha, que ouve mais do que fala,

indaga:

��� Jorge Michelini morreu?

��� Tu t�� por fora, hem, maninho! O homem empaco-

tou, ontem de madrugada. Um ��nibus da Via����o Penedo

passou por cima dele com carro e tudo e saiu arrastando o

infeliz nas rodas traseiras. Pelo que o jornal diz, foi horr��-

vel. Sinceramente como fico com pena dele.

��� E onde foi isso? ��� torna a perguntar o homem

de barbicha.

Tut��nio n��o tem muita paci��ncia para explica����es e o

melhor que faz �� entregar o jornal ao homem.

��� Nossa Senhora! Esmagado por um ��nibus na pr��-

pria Avenida Dante Michelini?

129

��� Isso mesmo ��� acentua Tut��nio. ��� O castigo foi

geral. E o que n��o entendo �� que estando o irm��o dele no

carro, n��o tenha morrido tamb��m.

��� Deixa de ser trouxa, cara. Um acidente �� um aci-

dente.

Tut��nio n��o escuta o que o outro diz, grita alto:

��� Dudu! Dudu!

O perito est�� barbeado, camisa de listra bem passada,

cal��a vincada, sapatos engraxados.

��� Vai pra festa essa hora, homem de Deus? ��� quer

saber Tut��nio.

Dudu n��o responde. Tira um cigarro e, enquanto bate

o fumo na caixa de f��sforo, ri dos gestos expansivos do

amigo.

��� Que acha que houve com o Jorge, pra morrer da-

quela maneira?

��� Talvez cara cheia, talvez um momento de impru-

d��ncia. �� imposs��vel saber. O certo �� que teve um fim que

n��o desejo ao pior inimigo.

��� Era isso que tava dizendo pra essa zebra ��� e apon-

ta na dire����o de Arturz��o. ��� Acho que Rita Soares previu

tudo e, como ela mesma diz, coisa pior ainda t�� a caminho.

Mas agora, por aqui, n��o posso mais dizer nada. T��o me

acusando at�� de fanatismo. Que sou gente dos mandin-

gueiros.

��� Vai te foder, cara. Tu t�� �� querendo conversa. Se

come��a a falar coisa s��ria e termina em molecagem ��� acen-

tua Arturz��o, irritado.

Dudu limita-se a rir, o homem de barbicha quer saber

detalhes, al��m dos que est��o no jornal.

��� Fui de madrugada ao local. O Volkswagen do Jorge

ficou bastante arruinado. Parece que chegou a capotar di-

versas vezes, antes de abrir as portas.

��� O ��nibus devia vir mandando brasa! ��� diz o bar-

bicha.

��� Na certa. De madrugada a avenida t�� sempre livre

��� pondera Dudu, tirando uma baforada do cigarro.

��� Algum de voc��s vai ao enterro?

��� Se n��o estiver ocupado logo mais, vou dar um pulo

at�� l�� ��� responde Arturz��o.

��� Eu posso fazer o mesmo. Jorge era gente conhecida.

N��o tinha nada contra ele. De mais a mais, j�� pagou os pe-

cados que cometeu.

Dudu se distancia do agrupamento, exatamente quan-

130

do chegam mais curiosos, toma o t��xi, manda seguir na

dire����o do bairro de F��tima. Durante o trajeto as conside-

ra����es do motorista s��o tamb��m relativas �� morte de Jorge

Michelini.

��� N��o sei n��o, mas parece que isso �� castigo do c��u.

��� O senhor acredita nisso? ��� indaga Dudu.

��� N��o tenha d��vida, meu senhor. O mal por si se

destr��i.

Dudu chega �� cancela de t��buas estreitas, ventos bran-

dos sacodem ramos floridos. N��o v�� os meninos, n��o v��

Radar. Abre a cancela, vai entrando pelo caminho ladeado

de roseiras. Bate na porta, que est�� apenas encostada. Da

penumbra de sil��ncios sai Rita Soares. Parece envelhecida,

s�� os olhos s��o t��o verdes como no primeiro dia em que a

viu. Ela n��o fala. Est�� distante, a��rea. Dudu tenta ser am��vel.

��� Como vamos? Como t��o os garotos?

Rita oferece-lhe uma cadeira.

��� Tive andando por longe, pra ver se descobria algu-

ma coisa que ajude a desvendar o caso Aracelli.

Rita passa as m��os nos cabelos, torce-os num coque,

prende com o pente enfeitado de vidrilhos. Agora, parece

mais pr��xima, mais natural.

��� A senhora t�� se sentindo bem?

Sacode a cabe��a e tamb��m sorri. Dudu compreende que

n��o �� importuno.

��� Soube o que aconteceu esta madrugada?

Rita convida-o a entrar para o c��modo seguinte. Dudu

larga a folha de jornal que tirou do bolso sobre a mesa,

acompanha a mulher.

��� S�� voc�� pode ver isso. Evite coment��rios, pra que

nada de mal lhe aconte��a.

O quarto �� pequeno e bastante escuro. Rita parece n��o

se incomodar com isso, mexe com facilidade por entre os

objetos, em busca de alguma coisa que n��o est�� encontran-

do. Logo depois aparece com o copo de cristal. Dudu mo-

vimenta-se atr��s da cigana, sem pronunciar qualquer palavra.

O copo �� posto sobre a mesa. Rita coloca ��gua dentro dele,

at�� ficar quase cheio. Faz o sinal-da-cruz, acende duas velas.

A primeira fica equilibrada sobre uma lata de leite em p��,

vazia, a segunda ela segura.

��� Veja bem como andam as coisas.

Dudu est�� surpreso com tanto mist��rio e v�� o primeiro

pingo de cera cair, afundar e voltar �� superf��cie. Depois,

outros pingos v��o se sucedendo e s�� a�� percebe que se est��

131

formando o rosto de uma pessoa e essa pessoa n��o �� outra

sen��o Jorge Michelini. Quando a miniatura est�� perfeita-

mente n��tida, vai descendo para o fundo do copo.

��� O que significa isso, tia Rita?

��� Acabou. N��o �� mais deste mundo. Deixou de sofrer

e fazer sofrer.

Outros pingos de cera quente caem na ��gua do copo,

diante dos olhos incr��dulos do perito. Vagarosamente, vai se

formando a ponta de um queixo, depois o nariz, a testa e

os cabelos.

��� Conhece quem ��? ��� pergunta Rita Soares.

��� �� Elizabeth, filha do Constanteen Helal.

Um novo pingo de cera cai dentro d'��gua e a miniatura

vai afundando.

��� O fim dessa senhora t�� pr��ximo. Nada mais vai

poder adiar a grande viagem.

Rita Soares coloca a vela na lata de leite em p��, ao lado

da outra que se extingue, em plena claridade da manh�� que

penetra a casa. A miniatura do rosto de Jorge Michelini j��

est�� quase sumida e a de Elizabeth Helal tamb��m vai su-

mindo, como se fosse naftalina.

Os pingos de cera caem de novo na ��gua, dissolvem-se,

juntam-se numa pasta espessa, onde pouco a pouco forma-se

o rosto moreno e magro, de grossas sobrancelhas e cabelos

negros.

��� �� o Paulinho Helal, sem tirar nem p��r ��� acentua

o perito. ��� �� o irm��o de Elizabeth.

��� Por causa dele o destino da irm�� t�� selado ��� afirma

Rita Soares.

A cigana ainda est�� com a vela sobre o copo. Desta vez

caem muitos pingos, t��nues fios brancos afloram, afundam,

formam ramifica����es intrincadas. Os pingos subseq��entes

v��o adensando aquele verdadeiro labirinto e sobre a nervura

de complexidades desce uma pel��cula de sorvete que derrete

ao calor e o rosto toma forma. Primeiro os cabelos e a testa,

depois parte do queixo e do nariz.

��� �� dona Lola!

��� Ela mesma ��� responde Rita Soares.

O rosto �� nervoso, os olhos assustados.

Dudu recosta-se na cadeira, pergunta se pode fumar.

��� Confesso que tou confuso. Sabia que Jorge Miche-

lini morreu esta madrugada?

��� H�� muito tempo j�� sabia.

Enquanto olha a mulher, seus olhos verdes, as unhas

132

crescidas e sujas da m��o que segura a vela, Dudu v�� formar-

se no copo o terceiro rosto. �� o de Dante Michelini J��nior.

Rita Soares n��o parece surpresa com as miniaturas que est��o

na superf��cie.

��� Quando as figuras n��o afundam, o que significa?

��� Que v��o ter muita coisa pela frente.

��� Acha que, de alguma forma, Lola Sanches seria uma

das culpadas?

��� Pelo fato de aqui aparecer, acho que sim.

��� E, se de fato estiver implicada na morte da filha,

qual ser�� seu castigo?

��� Uma longa vida de sofrimentos. Por isso, sua ima-

gem se formou sobre aquela ramifica����o t��o complicada.

��� E que diz do irm��o de Elizabeth?

��� Uma vida sem alegria. O constante enfado de tudo.

Seus olhos v��o morrer pro verde das ��rvores e o vermelho

das rosas. Os risos das crian��as v��o lhe abrir feridas no

peito. J�� este outro ��� toca com o dedo na cabe��a de Dante

J��nior ��� ver�� os caminhos do desespero e da dana����o. A

id��ia do suic��dio lhe ocorrer�� muitas vezes, mas nem pra isso

vai ter coragem.

��� A senhora pode ver a imagem de Aracelli? ��� per-

gunta o perito.

��� Minha destina����o �� apenas com os culpados.

��� Acredita que se possa punir os culpados?

��� A grava����o que fizeram com o motorista �� boa pro-

va. Mas o depoimento que Marislei vai fazer na C P I pode

ser ainda mais importante.

��� Como soube da grava����o?

Rita Soares sorri, os olhos tornam-se brilhantes, Dudu

v�� que apenas os rostos de Paulinho e Dante Michelini con-

tinuam nos copos.

��� Acha que o Cl��rio vai mesmo levar o caso pra

frente?

��� Com toda certeza. Ele t�� querendo formar uma

comiss��o pra ouvir os implicados. Por enquanto t�� enfren-

tando dificuldades, mas a tal comiss��o vai sair.

��� Acredita que o Cl��rio possa ser morto a qualquer

momento?

��� Enquanto tiver do lado da verdade viver��.

O port��o se abre com um rangido de dobradi��as en-

ferrujadas, entram Tiziu e Tuca, seguidos de Radar.

��� Esse �� o c��o que a menina criou?

133

��� Esse mesmo. T�� um molambo. Tenho feito tudo

pra ele comer direito, mas �� besteira.

��� A senhora conseguiu falar com o Paulinho Boca

Negra?

��� N��o deixaram. Fui l�� v��rias vezes e em todas elas

os policiais inventaram uma est��ria. A�� desisti.

Rita Soares olha bem nos olhos do perito, pede sua

opini��o sobre uma hip��tese levantada por Bertoldo Lima.

��� Acha que dona Lola seria capaz de ceder a filha a

um grupo de viciados?

��� N��o digo que sim, nem que n��o. Tou procurando

reunir provas em torno disso. S�� os fatos podem formar um

quadro real da situa����o.

Tiziu explica qualquer coisa �� m��e, Dudu espera os

meninos sa��rem da sala.

��� E como a senhora soube, tia Rita, a respeito das

hip��teses de Bertoldo Lima, mencionando Lola Sanches?

��� Deus v�� pelos pobres e injusti��ados ��� dizendo isso

a mulher sorri, Dudu tamb��m acha gra��a, Tadeu entra na

sala, Radar torna a aparecer, festejando, embora com certo

des��nimo, a chegada do menino.

Dois

Dia 23 de abril de 1975. Os jornais pendurados nas

bancas anunciam o in��cio dos trabalhos da Comiss��o Parla-

mentar de Inqu��rito, criada para apurar responsabilidades

no assassinato da menina Aracelli. O primeiro a depor �� o

deputado Cl��rio Falc��o, que foi, tamb��m, seu idealizador.

Em todos os pontos de encontro da cidade o assunto �� um

s��: o depoimento que o parlamentar emedebista prestou na

v��spera. Muita gente reunida em frente ao Bar Carlos Go-

mes, na porta do edif��cio dos Correios e Tel��grafos e, em

especial, diante do Sal��o Totinho. Muitas pessoas falam,

mas a voz que mais se ouve �� de Tut��nio.

��� O crioulo t�� l�� fustigando a canalha. N��o enganou

o eleitorado, como faz a maioria. O governador n��o ag��en-

tou o repuxo, teve de mandar a Arena votar na aprova����o

da CPI.

��� N��o foi o governador que n��o ag��entou, cara. ��

que todo mundo nesta cidade t�� interessado na solu����o do

caso ��� diz Arturz��o.

134

��� Que gracinha dele. Como �� ing��nuo o pobrezinho

��� diz Tut��nio, de forma gaiata, para irritar Arturz��o. ���

Ent��o tu quer me contar que Sua Excel��ncia t�� preocupada

com o destino da menina? Sai dessa, ot��rio. Aqui, nesta ilha,

todo mundo t�� na sua e o resto que se foda. N��o vem com

essa conversa sacana!

��� E tu pensa que Cl��rio Falc��o embarcou nessa ca-

noa s�� porque t�� morrendo de pena dos pais de Aracelli?

��� N��o interessa. Ele disse que, se eleito, ia botar no

rabo dessa cambada e j�� t�� botando. O esquema t�� armado.

A C P I come��ou a funcionar. Muita gente tem de dar com a

l��ngua nos dentes, queira ou n��o. Ainda que n��o aconte��a

nada, os envolvidos v��o ficar na boca do povo. Vai ser a

suprema desmoraliza����o.

��� Tu e o Cl��rio parece que t��m despeito dos Miche-

lini e dos Helal.

��� Corta essa, bicho. N��o invejo ningu��m. Tenho dois

bra��os, duas pernas e muita sa��de que Deus me d��. N��o

invejo ningu��m. O que n��o admito �� que se encoberte um

crime desses, porque os principais acusados s��o filhinhos de

papai. Fosse um pobre e estaria sendo cortado de relho na

cadeia.

O senhor de barbicha e cara risonha faz uma pergunta

a Tut��nio, ele ignora o que Arturz��o continua a dizer, res-

ponde:

��� O primeiro depoimento da C P I foi tomado ontem.

O pr��prio Cl��rio falou mais de uma hora. O jornal d�� ape-

nas alguma coisa do que disse. A porra desse jornal tamb��m

t�� do lado dos poderosos. �� o jornal que Arturz��o assina.

Mesmo assim, ouve s�� o papo do crioulo.

Tut��nio olha a mulher que se aproxima, metida numa

cal��a muito justa, faz cara de espanto, todos acham gra��a,

ele prossegue:

��� Dante Michelini procurou botar a culpa do crime

no Fortunato Piccin, que j�� tava morto a essa altura. Quan-

do deu a tarefa por conclu��da, foi para a boate do irm��o

Jorge Michelini, l�� na praia do Camburi, e deu in��cio �� co-

memora����o. Pelo que o Cl��rio t�� dizendo, houve at�� dan��a

de i��-i��-i��, pois, como o Dante afirmava, o sepultamento da

menina seria no dia seguinte e isso encerrava uma s��rie de

problemas.

��� Se a coisa foi de fato assim, esse Dante Michelini

�� um selvagem ��� diz o barbicha.

135

��� Isso �� inven����o do porra-louca daquele deputado

��� acentua Arturz��o.

��� Cl��rio n��o �� de inventar est��rias. Pode ser abilo-

lado, mas n��o inventa nada ��� assegura Tut��nio.

��� Ele t�� se baseando em conversa fiada. N��o apresen-

tou prova material alguma. Como �� que tu acha que essa

argumenta����o vai ficar de p��, cara? Fala menos e procura

raciocinar um pouco mais ��� afirma Arturz��o.

��� Pra teu governo, quem vai depor, amanh��, �� o

Dudu. E tenho quase certeza de que confirma o que Cl��rio

j�� disse ��� assegura Tut��nio.

Otinho vem se aproximando, dois garotos gritando

atr��s, Arturz��o manda os pequenos darem o fora. Tut��nio

chama por ele.

��� Vem c��. D�� tua opini��o, Otinho. Cl��rio mentiu ou

n��o mentiu, ontem, na C P I ?

Tut��nio n��o tem d��vida de que ele deveria estar en-

grossando a plat��ia que superlotou a sala da Assessoria

T��cnica da Assembl��ia. Otinho, que mistura as esta����es com

muita freq����ncia, olha assustado pros lados, sorri de forma

abestada.

��� Vamos, cara, te abre ��� diz Arturz��o.

Ele se encoraja, torna a rir:

��� Acho que n��o. O Cl��rio �� meio doido.

Arturz��o d�� uma risada, Tut��nio fica desconcertado,

explode:

��� Doido �� tu, cara! Cl��rio sabe muito bem pra que

lado o vento sopra. Tu ouviu direito o que ele disse ou te

contaram?

Otinho torna a procurar com os olhos inquietos um

ponto distante, sorri e vai dizendo coisas que n��o fazem

sentido:

��� Ontem n��o tava l��, n��o. Adoeci com uma dor no

peito que respondia na altura da p��.

Otinho diz isso e procura mostrar o lugar exato onde

a dor do peito aflorava, Tut��nio se desinteressa por ele, Ar-

turz��o ainda diz algumas palavras, depois sente que n��o d��.

��� Ele hoje t�� atacado mesmo. �� bom nem t�� pertur-

bando o homem.

Otinho vai embora, falando com uns e outros e at��

mesmo com os que nem sequer reparavam nele. Perto de

um canteiro, onde h�� um busto, p��ra e p��e-se a recitar tre-

chos de um poema. Os garotos chegam perto, novamente,

mas agora n��o o provocam mais.

136

O mo��o de cal��a clara e camisa esporte vem descendo

a rua, seguido de um outro, bem mais alto, que traz uma

bolsa de couro a tiracolo e uma m��quina fotogr��fica segura

pelas al��as. Ningu��m os conhece por ali. Quem repara pri-

meiro nos estranhos �� Arturz��o. O mo��o se aproxima:

��� Sou rep��rter da ��ltima Hora, do Rio. Como �� que

fa��o para localizar o deputado Cl��rio Falc��o? Fui na Assem-

bl��ia, mas j�� se mandou.

Arturz��o faz um esfor��o de mem��ria para dar uma po-

si����o certa, Tut��nio olha os desconhecidos com displic��ncia.

��� Que desejam com Cl��rio?

��� Tamos tentando levantar o caso da menina. O jor-

nal quer fazer uma s��rie de mat��rias.

��� Isso �� j��ia.

O rep��rter se anima, Tut��nio �� todo entusiasmo.

��� Como �� teu nome?

��� Jorge Elias.

��� Isso aqui t�� uma zona lascada. Eles matam, roubam,

trapaceiam, comem as filhas dos outros e fica tudo por isso

mesmo. Passa uns dois dias nesta ilha maravilhosa que tu

volta pra casa com o prato cheio. Em nenhum outro lugar

pode haver mais esculhamba����o.

Arturz��o conversa com o fot��grafo Reis, que j�� prepa-

rou a m��quina para uma tomada de cena. A tarde est�� clara,

as ruas s��o pacatas e as pessoas que por ela andam parecem

completamente alheias aos fatos que se desenrolam.

��� Como �� o Cl��rio Falc��o? ��� quer saber Jorge Elias.

��� Um crioulo decidido. Veio de baixo, l�� do fundo da

lama, e nem por isso se corrompeu. �� o que se pode cha-

mar um preto de alma branca. Tem l�� os defeitos dele,

como todos n��s temos, mas n��o perdeu a vergonha.

��� Al��m de Cl��rio, diz pra ele ouvir tamb��m o Dudu

��� acentua Arturz��o.

��� Isso mesmo. Dudu �� o perito daqui, amigo do Car-

los ��boli. Sabe de tudo sobre o crime. Pode te dar boa

ajuda.

��� O melhor lugar pra encontrar o Dudu �� l�� pelo

fim da tarde, na mercearia do Tilim. O Cl��rio talvez ainda

ande pela sede do M D B .

Jorge Elias anota endere��os, Reis bate algumas fotos.

Tomam o rumo indicado, entram num t��xi para economizar

tempo.

��� T�� vendo? �� mais um jornal de respeito que se

interessa pelo caso. E outros t��o vindo por a��. Tu vai ver

137

s�� o rolo que isso vai dar ��� diz Tut��nio, desta vez sem

pretender irritar o companheiro. Encostado como est�� no

poste, Arturz��o n��o mostra qualquer rea����o. Limita-se a

olhar a revista, onde l�� reportagem sobre o jogo do Vasco

com o Botafogo.

Tr��s

Poucas vezes os corredores da Assembl��ia Legislativa

estiveram t��o cheios. No bar, deputados e funcion��rios dis-

cutem a respeito da C P I , rep��rteres colhem informa����es, fo-

t��grafos estouram flashes, gar��ons movimentam-se nervosos.

Onde Cl��rio p��ra, forma-se logo uma roda de curiosos e as

conversas altas se alongam. Numa sala perto a campainha

toca. O crioulo fardado vem chamar Cl��rio. As aten����es

convergem na dire����o da sala, muitos s��o os que entram.

Cl��rio toma lugar, ao lado do deputado Cl��vis de Barros,

que preside a C P I , de Aldo Alves Prud��ncio, Edson Machado

e Juarez Martins Leite. O perito Asdr��bal Cabral est�� do

lado onde ficam as pessoas convocadas a prestar depoimento.

A pergunta inicial �� relativa �� japona, apreendida pela

pol��cia, em poder do vigia do Edif��cio Apolo. Dudu afirma

que at�� a data em que o inqu��rito policial chegou ��s m��os

do delegado Ildefonso Primo, essa pe��a n��o constava dele,

bem como outros documentos de import��ncia.

��� Quando o inqu��rito chegou ��s m��os do delegado

Ildefonso Primo ��� diz Dudu ��� veio acompanhado de um

of��cio do delegado Manoel Nunes de Ara��jo, no qual aquela

autoridade dizia ser possuidora de um dossi�� relacionado

com os fatos, objeto do inqu��rito. Em vista desse of��cio,

Ildefonso Primo solicitou ao ex-delegado Manoel Ara��jo

que lhe remetesse os elementos de que era possuidor para

a respectiva inclus��o no inqu��rito. Em resposta o ex-delega-

do disse que o que possu��a n��o tinha maior significa����o.

A uma pergunta do deputado Edson Machado, diz

Dudu que o inqu��rito presidido pelo capit��o Manoel Ara��jo

n��o passou de uma farsa; que Dante Michelini, sendo amigo

do capit��o Ara��jo, por certo, n��o poderia ser ouvido por

este; que a boate e bar Franciscano, de propriedade do sr.

Dante Michelini, era o local onde se reuniam o capit��o Ara��-

jo, o coronel D��cio, chefe da Polinter, o major Jorge Devens,

que era diretor da Pol��cia Civil, e o superintendente Gilber-

138

to Barros de Faria; que desconhece a raz��o pela qual a

pol��cia deixou de ouvir o sr. Paulo Helal; que existe uma

fita gravada nos est��dios do perito Carlos de Melo ��boli,

onde um ex-empregado da fam��lia Michelini faz diversas

den��ncias; que a grava����o alude a fatos ligados ��s declara-

����es do ex-superintendente de pol��cia, Gilberto Barros de

Faria, quando afirmou que a sociedade capixaba ficaria es-

tarrecida com a revela����o dos nomes dos criminosos de

Aracelli; que o motorista que faz as den��ncias se chama

Bertoldo Lima e os que ouviram a grava����o foram un��nimes

em afirmar: " E s s e cara pode se considerar fora do mapa".

O deputado Cl��vis de Barros faz nova pergunta, Dudu ra-

bisca um papel �� sua frente:

��� Por ocasi��o da morte do jovem Piccin, ningu��m de

sua fam��lia foi ouvido pela autoridade policial. Piccin per-

tencia �� patota dos viciados e morreu por excesso de uso

de t��xicos.

�� indaga����o do deputado Juarez Leite, afirma:

��� A m��e de Piccin ��� o Nato ��� assistiu quando lhe

foi aplicada uma inje����o na veia, o que causou ao paciente

dores horr��veis, levando-o praticamente ao desespero. No

dia seguinte, quando nova inje����o lhe seria aplicada, recusou

veementemente, apelando �� pr��pria m��e, a fim de que o

levasse pra casa. O dr. Jefferson Nunes de Aguiar, que re-

ceitara as inje����es, disse que se fosse pra casa n��o se respon-

sabilizaria pelo seu tratamento. Por isso, a m��e consentiu

em que a segunda inje����o lhe fosse aplicada. A partir da��

o paciente entrou em coma. Um novo m��dico ��� Rog��rio

Nonato ��� passou a lhe dar assist��ncia, mas de pouco adian-

tou, pois, no dia seguinte, Nato morria. �� de presumir-se

que Piccin seria o "criminoso" mais indicado para o caso

Aracelli. H�� muita coincid��ncia na sua morte e de ser Cons-

tanteen Helal, pai de Paulo Helal, provedor da Santa Casa

de Miseric��rdia, onde Nato estava internado. O perito apon-

tou tamb��m como fato estranho ao caso o aparecimento do

"papa-defunto" Arnaldo Neres, que explora servi��os fune-

r��rios na Santa Casa e no Hospital Infantil.

Ao deputado Edson Machado, responde:

��� A aus��ncia da declara����o de familiares de Fortuna-

to Piccin, no inqu��rito, deve ter ocorrido por coniv��ncia

dos policiais com os leg��timos criminosos. A sucess��o de

coincid��ncias sobre o fato n��o deixa margem a d��vidas.

Basta citar o exemplo da professora Marlene Stefanon, que

de dez vezes chamada �� pol��cia, nove delas foi ouvida no bar

139



e boate Franciscano, na presen��a de autoridades e de pro-

priet��rios daquela casa'.

A uma nova pergunta do presidente da C P I , declara:

��� A entrega de fragmentos de vestes �� pol��cia, presu-

mivelmente do uniforme da menor Aracelli, dois anos ap��s

o crime, constitui apenas mais uma coincid��ncia que comp��e

o elenco do crime. Na ocasi��o, eu servia na junta apuradora,

ap��s as elei����es de 15 de novembro, quando fui procurado

por Ildefonso Primo, que disse haver um fato urgente e

estranho, relacionado com o inqu��rito da menor Aracelli.

�� noite, por volta das vinte e duas horas, no Hotel Tabaja-

ra, o delegado Ildefonso Primo me disse ter sido procurado

na parte da tarde pelo sr. Dante Michelini, em companhia

do capit��o Manoel Ara��jo. Na ocasi��o lhe entregaram peda-

��os de vestes, que diziam ser do uniforme da menor Ara-

celli. Explicaram o achado da seguinte forma: Dante e o

capit��o Ara��jo resolveram escavar nos fundos da casa onde

Piccin havia residido e n��o deu outra coisa. O delegado

Ildefonso Primo ficou t��o surpreso com o "achado" que

decidiu n��o lavrar o competente auto de entrega, o que

ocorreu posteriormente, raz��o pela qual n��o constam do

documento as assinaturas de Dante Michelini ou do ex-dele-

gado Manoel Ara��jo. O delegado Ildefonso Primo confiden-

ciou a mim que, ao receber os fragmentos de veste, sentiu

receio de ser assassinado, dadas as circunst��ncias em que foi

procurado. Posteriormente eu e Ildefonso fomos �� resid��ncia

da menina Clarisse, ex-colega de Aracelli, na esperan��a de

estabelecer dados comparativos entre os restos de vestes en-

tregues por Michelini e o capit��o Manoel Ara��jo. A m��e de

Clarisse nos mostrou um short, do mesmo tecido do unifor-

me de Aracelli. Este n��o tinha a menor semelhan��a com os

fragmentos "achados" perto da casa de Nato. O short de Clarisse e os peda��os de pano descobertos por Dante Michelini e pelo capit��o Ara��jo foram encaminhados �� Pol��cia

T��cnica, para per��cia comparativa. At�� fevereiro do corrente

ano 1 o resultado dessa per��cia ainda n��o constava do inqu��-

rito. Entre junho e julho de 1974 ��� prossegue Dudu ���,

quando o perito Carlos ��boli esteve em Vit��ria, foram feitas

novas investiga����es na casa onde morou Fortunato Piccin.

O pr��prio delegado Ildefonso Primo esteve l�� com ele.

Todo o terreno foi exaustivamente examinado na esperan��a

' 1975.

140

de encontrar-se outros vest��gios relacionados ao crime, mas

tudo foi em v��o.

Ao deputado Juarez Leite, responde:

��� A presen��a de Dante Michelini e do capit��o Manoel

Ara��jo, conduzindo fragmentos de vestes para entregar ��

pol��cia, foi um artif��cio a mais, no sentido de confundir a

opini��o p��blica, a imprensa e at�� os pr��prios familiares da

v��tima, objetivando incriminar Piccin, que j�� estava morto.

Dudu toma um pouco de ��gua, olha o pessoal que se

avoluma na sala, tira o len��o, passa no rosto. Os deputados

est��o surpresos com as afirma����es daquele homem de olhar

tranq��ilo.

��� Gostaria aqui, senhor presidente ��� continua o pe-

rito ���, de rememorar fatos ocorridos h�� vinte e cinco anos,

quando era governador do Esp��rito Santo o sr. Carlos Linden-

berg e delegado de Costumes e Divers��es meu irm��o Arnaud

de Lima Cabral. O governador determinou ao delegado que

extinguisse o jogo no Estado. O delegado muniu-se dos ele-

mentos necess��rios �� a����o repressiva, incluindo fot��grafo.

Come��ou pelo Clube Vit��ria, ent��o, o mais gr��-fino da

cidade. Para autenticidade do flagrante foram fotografadas

todas as pessoas que estavam no clube, envolvidas na joga-

tina. Para surpresa do delegado n��o saiu uma s�� fotografia.

O filme estava queimado. Agora, tantos anos depois, o fot��-

grafo Elson Jos�� dos Santos, respons��vel pelos negativos do

local onde foi encontrado o corpo de Aracelli, deixou-os

com seu chefe, Am��rico Alexandrino Alves, e eles desapa-

receram. Por coincid��ncia, senhores, o fot��grafo Alexandrino

Alves �� o mesmo que fotografou os jogadores no Clube

Vit��ria. E o mais estranho tamb��m ��� afirma Dudu ��� ��

que embora os filmes tenham desaparecido, h�� bastante tem-

po, somente meses depois �� que veio ao conhecimento das

autoridades. Instaurou-se um inqu��rito, como de praxe, e

este est�� paralisado.

Ao deputado Edson Machado, diz:

��� Dos quatro filmes operados pelo fot��grafo Elson

Jos�� dos Santos, no local em que foi encontrado o corpo

da menor, somente um (exatamente o que sumiu) seria de

muita valia para a elucida����o do caso. E �� bom que se acres-

cente que o desaparecimento do filme s�� se tornou do conhe-

cimento p��blico ap��s desentendimento entre Elson e um seu

colega de profiss��o, chamado Hermes.

��� O depoente confirma ou nega a entrevista divulgada

141

pelo jornal A Tribuna, de 20 de abril de 1974? ��� indaga o

presidente da C P I , deputado Cl��vis de Barros.

��� Confirmo. A enfermeira que assistiu Aracelli, mo-

mentos antes de sua morte, �� Elza Alves, residente em Pedra

do B��zio, Vila Velha. Outra enfermeira, cujo nome pe��o

para n��o ser revelado neste momento, tem conhecimento

tamb��m do crime e dos criminosos. Embora pe��a sigilo aqui

sobre o nome dessa enfermeira, j�� prestei os necess��rios es-

clarecimentos ��s autoridades policiais.

��� Que poderia nos dizer a respeito do sargento Ho-

mero Dias? ��� pergunta o deputado Aldo Prud��ncio.

��� Tinha grande conhecimento do crime e estava certo

de que fora praticado durante uma orgia de t��xicos. No meu

entender o assassinato desse militar tem ��ntima rela����o com

a morte da menor.

A sala est�� em sil��ncio. S�� os telefones de quando em

vez tocam, um ou outro espectador tosse. Dudu engole mais

um pouco de ��gua, passa o len��o no rosto. Os deputados

est��o surpresos. Cl��rio Falc��o �� o ��nico que tem express��o

alegre. Todavia, furta-se de interrogar Dudu. Mas o deputa-

do Carlos Alberto Cunha ainda tem uma indaga����o a fazer.

��� Tenho conhecimento ��� afirma o perito ��� de que

Dante Michelini usa uma carteira de pol��cia, expedida pelo

ex-superintendente Gilberto Barros de Faria. Soube disso

atrav��s do notici��rio da imprensa. O dono do jornal que

noticiou o fato deve ter mais base pra provar o que di-

vulgou.

O deputado Cl��vis de Barros d�� a sess��o por termina-

da. As pessoas movimentam-se r��pidas. Num instante a sala

t��o silenciosa enche-se de ru��dos, risos, palavras altas. Dudu

est�� cercado de curiosos e diversos jornalistas, Cl��rio Falc��o

discute com um deputado que v�� no depoimento o prop��sito

do perito em ferir inocentes. Cl��rio se exalta, outros deputa-

dos metem-se na discuss��o para evitar briga, Dudu agora

est�� no corredor do pr��dio, os jornalistas praticamente per-

guntando as mesmas coisas sobre as quais falou durante ho-

ras. Olha a mulher de costas, o vestido comprido, as sand��-

lias, aproxima-se. A mulher volta-se, sorridente, n��o �� tia

Rita. Continua a ouvir as conversas em torno, responde me-

canicamente ��s perguntas que lhe s��o feitas, mas, na verdade,

o pensamento est�� longe, na sala pequena, de paredes encar-

didas, uma janela estreita por onde entrava luz e os pingos

de cera quente caindo na ��gua do copo e virando milagre.

142

Quatro

O rapaz magro, rosto nervoso, espera Dudu chegar na

porta da rua. O perito ainda est�� acompanhado de nume-

rosas pessoas. O mo��o se aproxima.

��� �� verdade que Piccin disse que iam acabar com ele,

antes mesmo de tomar a inje����o?

A pergunta surpreende Dudu.

��� De que jornal �� voc��?

��� De S��o Paulo. Jornal da Tarde.

��� �� o que sei, e creio que �� isso que o pai do rapaz

ter�� de dizer ��� responde o perito.

Na rua a confus��o n��o �� menor do que nos corredores

da Assembl��ia Legislativa. Dudu s�� consegue tranq��ilidade

quando o t��xi se aproxima e ele vai embora. O carro sobe

e desce ruas estreitas, passa na pracinha enfeitada de rosei-

ras, p��ra em frente �� mercearia do Tilim. Quando o v��,

Tilim fica animado.

��� Pelo que diz o notici��rio do r��dio o depoimento foi

uma bomba.

Dudu se encosta no balc��o, indiferente aos dois rapazes

que est��o perto.

��� Foi um massacre, mas n��o me dobrei. Disse o que

tinha de dizer.

Um dos mo��os apresenta-se como rep��rter da ��ltima

Hora, do Rio de Janeiro. O outro coloca a bolsa de couro

sobre os caixotes de garrafas, bate fotos. Tilim est�� acostu-

mado com aquela movimenta����o. O rapaz de fala mansa vai

anotando num bloco o que Dudu afirma. Tilim bota os copos

no balc��o, abre as garrafas. Agora, na mercearia, h�� diversas

pessoas, algumas que Dudu nunca viu. E quando Cl��rio

aparece, ent��o a casa fica repleta. Tilim mostra certo nervo-

sismo para atender a tanta gente ao mesmo tempo. Dudu

faz que n��o repara no nervosismo de Tilim, vai responden-

do ao rep��rter carioca. Cl��rio chega perto, fala alto, ges-

ticula.

��� Depois de amanh��, ent��o, �� que vai haver mais

lenha na fogueira. T�� tudo certo pro depoimento do pai de

Fortunato Piccin. Seu Constantino �� homem de cabelo na

venta. Vai botar pra fora tudo que sabe.

A noite come��a a se insinuar, as luzes acendem nos

postes, o rep��rter do Rio se retira, dois ou tr��s advogados

tamb��m v��o embora, a paz volta a reinar na mercearia de

paredes cobertas de prateleiras enegrecidas. Dudu manda

143

sair mais uma cerveja gelada, depois mais outra, olha um

ponto distante e o que v�� s��o- os rostos se formando num

copo igual ��quele em que tomava cerveja, os rostos que

afundavam, que ficavam boiando e os olhos da cigana acom-

panhando o mist��rio e a destina����o. E, pensando na validade

ou n��o daquelas coisas, nas palavras daquela mulher esqui-

sita, entra em casa, procura pela esposa e n��o encontra, tira

um pouco de comida da geladeira, mete a cabe��a debaixo da

torneira da pia, senta-se �� mesa da cozinha. N��o sabe se as

profecias de tia Rita t��m ou n��o raz��o de ser, mas sente no

��ntimo que j�� n��o �� o mesmo. Alguma coisa est�� acontecen-

do, uma for��a irresist��vel o puxa de outras atividades para

fazer com que se ocupe exclusivamente do caso Aracelli.

Abre a janela porque a noite est�� quente, liga o r��dio, deita-

se no sof��. Ali mesmo adormece. Antes que possa acordar,

Tut��nio j�� est�� cercado de amigos e curiosos na porta do

Sal��o Totinho.

��� Quero ver agora quem �� que vai argumentar contra

Dudu.

Arturz��o n��o se incomoda com as indiretas. Metido na

sua camisa de listras r��seas, bem barbeado como sempre,

preocupa-se com o pre��o do aluguel de um apartamento pe-

queno. Se n��o encontrasse um, que fosse bom e barato, ter-

minaria alugando uma casa em Vila Velha. Mas s�� servia se

fosse perto da praia. Por causa disso, muitas tinham sido as

discuss��es com Tut��nio. Por isso, nem comentava mais o

assunto e perdia horas lendo os pequenos an��ncios, na espe-

ran��a de encontrar um que fosse a t��bua de salva����o.

��� Pelo que disse Dudu, s�� resta um caminho �� justi-

��a: a pris��o preventiva de uma por����o de gente, inclusive

dos m��dicos envolvidos. Isso, sem falar nos policiais que

interrogaram a professora na pr��pria boate Franciscano. Al-

gu��m j�� viu esculhamba����o maior ��� afirma Tut��nio.

Arturz��o diz duas palavras, Tut��nio volta-se contra ele.

��� Fica lendo teus an��ncios, cara. Aqui se t�� num papo

de gente s��ria. N��o quero mais assunto com maria-vai-copi-

as-outras. Teu caso �� cheirar rabo dos poderosos. V�� se eles

te ajudam a encontrar um apartamento.

��� Deixa de ser bobo, barrigudo de uma figa. O que

o Dudu disse na C P I pode ser apenas um jogo de habilidade.

Depois, com os outros depoimentos, �� que se pode fazer uma

id��ia a respeito dos culpados. Repara que a coisa foi t��o bem

arranjada que o Cl��rio nem se atreveu a fazer pergunta.

��� N��o perguntou nada pra n��o tumultuar o depoimen-

144

to, chapa. De mais a mais o Cl��rio deu uma de cavalheiro,

permitindo que os outros deputados fizessem as perguntas

que bem entendessem. N��o houve conchavo. Cada um en-

trou no assunto como quis e o Dudu mostrou que �� macho,

n��o tem medo desses filhos da puta. E a hora que o velho

Constantino botar a boca no mundo, tu vai ver s��. Um pro-

fissional como Dudu n��o mete a m��o em cumbuca, o meu!

Arturz��o volta os olhos para a lista de classificados,

Tut��nio continua a falar. Est�� suado, o rosto vermelho, os

cabelos brancos e lisos caindo de um lado. Grita para o

homem que vai subindo a rua de bicicleta.

��� T�� sumido, cara!

��� �� o trabalho, seu Tut��nio. Com a perna sarada, tou

me desdobrando ��� responde Manoel Preto.

��� E tia Rita?

��� Cuidando dos meninos.

��� Qualquer hora dessas vou baixar por l��. Mulher de

alcance t�� ali.

��� Eu tou at�� recolhendo uns donativos pra comprar

uma bicicleta pro garoto mais novo ��� diz Manoel Preto,

tirando uma folha de papel alma��o do bolso.

��� Qual deles? ��� quer saber Tut��nio.

��� O bem pequeno, moreno de cara gorda ��� explica

Manoel Preto.

��� Passa depois, que vou ajudar. E se tiver outras pes-

soas por aqui que possam ajudar, vou tirar dinheiro delas.

O crioulo se equilibra na bicicleta, Tut��nio fica olhando.

��� Outro dia era um homem aleijado. Tia Rita puxou

ele do abismo. N��o fosse ela ia embora. Quero t�� com ela.

Os ateus que se danem!

Arturz��o n��o aceita a provoca����o. Est�� de fato ocupado

em descobrir um apartamento ou uma casa, nem que seja l��

pros lados de Vila Velha. Mas, quando a confus��o se torna

maior, Tut��nio dando risadas e mandando palavr��es, ele

percebe que �� imposs��vel prosseguir. Cl��rio Falc��o apareceu,

trouxe com ele uma por����o de curiosos. O assunto, ligado ao

depoimento de Dudu volta ao come��o. As palavras de Tut��-

nio s��o para elogiar Cl��rio.

��� N��o quis fazer perguntas pra deixar o pessoal da

Arena �� vontade.

��� E a�� Dudu botou pra quebrar ��� acentua Tut��nio,

rindo alto e batendo as m��os.

��� Disse o que tinha de dizer. O que �� verdade, fato

provado ��� afirma o deputado.

145

��� Provado, como, se os depoimentos ainda prosse-

guem? ��� interfere Arturz��o.

��� S�� existe uma verdade, meu caro. Pelo fato de ou-

tras pessoas serem chamadas a depor, n��o significa que a

coisa certa de hoje seja alterada amanh�� ��� responde Cl��rio.

��� Negativo. Nem parece que tu t�� estudando direito.

Cada um tem sua verdade. A prova disso �� que o acusado

n��o vai concordar com o que afirmou.

Cl��rio sente a profundidade da argumenta����o. Tut��nio

tamb��m percebe que Arturz��o n��o pode ser contestado, mas

n��o admite que leve a melhor.

��� Muda de assunto. A conversa ficou chata. T�� se

falando aqui h�� mais de uma hora e s�� agora tu resolve te

meter. Vai procurar teu apartamento e n��o aporrinha.

Arturz��o faz ar de riso, Cl��rio conversa baixo com dois

caras que s��o de Colatina, o menino oferece revistas a uns

e outros, o sol est�� quente, numa manh�� de ver��o, com o

mar l�� longe azulando na linha do horizonte, ondas de

vento ultrapassando a praia para agitar as folhas verdes dos

coqueiros.

Tut��nio se aproxima de Cl��rio, entra na conversa.

��� T�� tudo armado pra se localizar dona Lola em Santa

Cruz de la Sierra. Aquela mulher t�� come��ando a preocupar.

Sumiu de vez e n��o manda nem not��cia pro filho, s�� em

casa com uma empregada.

��� E seu Gabriel? ��� perguntou Tut��nio.

��� Tamb��m terminou sendo transferido de um lugar

pro outro e agora, pelo que dizem, t�� na Bahia.

��� Nunca vi uma coisa dessas! ��� considera Tut��nio.

��� O mal disso �� que enfraquece o caso ��� comenta

um dos homens de Colatina.

��� Enfraquecer n��o enfraquece, porque agora se vai

at�� o fim ��� afirma Cl��rio. ��� Depois do que j�� disse e do

que Dudu acaba de afirmar, s�� h�� um caminho: ir em frente.

��� Tu acha que o pessoal indicado por Dudu vai roer

a corda? ��� quer saber Tut��nio.

��� Talvez sim, talvez n��o.

��� O que Dudu disse, ontem, �� da maior gravidade

��� argumenta um outro homem de Colatina.

��� Coisa grave vem a��. V��o ouvir o depoimento do

velho Constantino Piccin! Tive com ele e me disse que n��o

esconder�� a verdade de ningu��m ��� explica Cl��rio Falc��o.

Tut��nio d�� a volta sobre os calcanhares, esfrega as m��os

grandes, diz alto:

1 4 6

��� Hoje n��o vou nem em casa comer. O dia t�� cheio.

Vamos l�� ver seu Constantino puxar os culpados pro meio

da pra��a.

Arturz��o n��o se sente atingido pela provoca����o. Con-

tinua encostado na parede, olhando os classificados. O garo-

to que vende revistas atravessa a rua, o velhinho de chap��u

de feltro pede informa����o, os homens de Colatina v��o em-

bora com Cl��rio.

Cinco

��� Sil��ncio, senhores! Aqui estamos, hoje, 28 de abril

de 1975, para ouvir um depoimento que pode ser de grande

valia no caso Aracelli ��� diz o presidente da C P I , deputado

Cl��vis de Barros.

Nesse momento entra na sala um cidad��o j�� de idade,

forte e de cabelos grisalhos. �� o comerciante Constantino

Fortunato Piccin. O deputado Cl��vis de Barros faz a primei-

ra pergunta.

��� Nunca ningu��m me procurou para prestar declara-

����es sobre a morte de meu filho ��� diz o sr. Constantino

Piccin. ��� Somente dezesseis meses ap��s seu sepultamento

�� que soube estar ele sendo acusado do assassinato da meni-

na Aracelli.

O depoente �� convidado a relatar antecedentes:

��� No dia 16 de maio de 1973 estava em Colatina. Era

uma quarta-feira. Retornei no dia seguinte e encontrei o

rapaz acamado. Tinha febre alta e freq��entemente vomitava.

Chamei o dr. Eli Broto Pires e este, ap��s diversos exames,

tranq��ilizou-me dizendo a mim e a minha mulher que ap��s

uns quatro dias de repouso ele estaria curado. Mas no dia

18, uma sexta-feira, ele piorou. Voltei ao dr. Eli Broto.

Receitou comprimidos e que se desse banhos quentes em

Piccin. Em estado grave, ficou at�� segunda-feira, quando o

dr. Eli Broto resolveu convidar o dr. Jos�� Lu��s Loureiro

Martins para colaborar no diagn��stico. Este determinou a

imediata remo����o do rapaz para a Santa Casa de Miseric��r-

dia. Naquele hospital Piccin foi medicado, a primeira vez,

por volta das dezesseis horas, ap��s uma chapa dos pulm��es.

De segunda para ter��a-feira, ficou no soro. O dr. J o s �� Lu��s

Loureiro, entendendo n��o ser de sua especialidade o trata-

mento do paciente, foi substitu��do pelo dr. Jefferson Nunes

147

de Aguiar. Na manh�� de ter��a-feira Piccin estava melhor.

Foi sozinho ao banheiro, comeu uma ma����, tomou um copo

de suco de laranja. Deixou o leito e passou a sentar-se numa

poltrona que havia no apartamento. Estava conversando

normalmente e em determinado momento surpreendeu-me

com o pedido para que o tirasse daquele hospital. Tentei

saber por que n��o gostaria de ali permanecer, mas n��o quis

entrar em detalhes. No dia seguinte, os pedidos para tir��-lo

do hospital eram mais insistentes. Coitado, chegou a prome-

ter que, se o levasse pra casa, comeria tudo que eu ou a

m��e dele quis��ssemos. Em certa ocasi��o, quando fazia esses

pedidos �� m��e, apareceu um m��dico que disse: "Fortunato,

voc�� vai tomar uma inje����o, agora".

O deputado Cl��vis de Barros interrompe o depoente

para um esclarecimento.

��� Quem era o m��dico?

��� Jefferson de Aguiar.

��� Prossiga.

��� Tudo que o rapaz dizia �� que n��o tomaria inje����o

alguma, pois ia embora pra casa. O m��dico ent��o disse:

" I s s o �� com voc��, com seu pai. Na sua casa n��o vou poder

trat��-lo. Aqui farei o que for poss��vel. Acho que deve tomar

a inje����o".

"O m��dico saiu do apartamento, mas recomendou ��

enfermeira que preparasse a inje����o. Ela saiu tamb��m e

quando retornou trazia a inje����o pronta para ser aplicada.

Piccin manteve-se firme na recusa e eu, sinceramente, fiquei

sem saber o que fazer. A enfermeira foi embora e apareceu

uma outra. Era bem mais persuasiva. Tanto assim que Piccin

terminou estendendo o bra��o, mas disse estas palavras, que

jamais poderei esquecer:

" ' S e querem me matar, podem matar!'

"Quase no mesmo momento em que a agulha entrou na

veia ele deu um grito e desmaiou. Perguntei �� enfermeira

se aquilo era normal e ela respondeu que sim. Havia na

seringa uns dez cent��metros de l��quido e toda a dose foi apli-

cada, embora Piccin estivesse desacordado. N��o me confor-

mei com a calma da enfermeira, tratei de examinar o pulso

de Fortunato. Constatei que estava fraco, quase sumido.

Chamei o dr. Jefferson de Aguiar, respondeu que n��o era

nada', pois logo depois Piccin recobraria os sentidos. N��o

me conformei e apelei novamente para o dr. Eli Broto. Este

organizou uma junta m��dica, da qual fazia parte o dr. Rog��-

rio Nonato. Ap��s as dezesseis horas do dia seguinte, Piccin

148

tinha as unhas das m��os e dos p��s completamente pretas e

n��o conseguia dizer uma s�� palavra. Chamei o dr. Rog��rio

em particular, implorei para que, a bem da verdade, dissesse

o que estava acontecendo ao meu filho. Ele foi sincero.

Disse que Piccin jamais teria salva����o. Confidencialmente,

afirmou: 'O m��dico tem o direito de errar. E com seu rapaz

houve um erro'. A junta m��dica organizada pelo dr. Eli

Broto tentou uma transfus��o de sangue. Os trabalhos chega-

ram a ser iniciados. Tr��s minutos ap��s, Piccin deixava de

existir. Morreu ��s tr��s horas e quarenta minutos do dia 24

de maio de 1 9 7 3 . "

Ao deputado Aldo Prud��ncio, diz Constantino Piccin:

��� N��o sei por que Fortunato insistia tanto em ir logo

pra casa e recusava a inje����o. Tamb��m n��o consegui saber

o nome da enfermeira que aplicou nele o medicamento. Sin-

ceramente como, a partir desse dia, fiquei meio a��reo e a

perturba����o tornou-se maior em setembro de 1974, data

em que a Pol��cia Federal de Vit��ria passou a me procurar

para esclarecimentos. Na ��poca estava em Colatina e, por

isso, custei a receber as intima����es, que eram encaminhadas

ao Edif��cio Kennedy, na Avenida Beira-Mar, 289, onde te-

nho um apartamento. De Colatina mesmo telefonei, identi-

fiquei-me e marquei encontro com o sr. Lincoln Gomes de

Almeida, diretor da Pol��cia Federal. Eram mais ou menos

dezesseis horas quando cheguei, e fui logo levado ao seu

gabinete. Ap��s uma longa conversa sobre minhas atividades

e at�� mesmo sobre meu comportamento, passou a referir-se

a Fortunato Piccin. Fiquei sabendo que meu filho era sus-

peito de participa����o num crime. O diretor da pol��cia pediu

permiss��o para exumar o corpo e explicou que o "papa-

defunto", Arnaldo Neres, funcionando na Santa Casa, escre-

vera um bilhete �� m��e de Aracelli, dona Lola Sanches,

dizendo que ficasse tranq��ila, porque o assassino de sua

filha ia ser apontado. O sr. Lincoln n��o me mostrou o bilhe-

te, mas disse que era datado do dia 24 de maio de 1973,

dia em que meu filho morreu. Diante dessas revela����es,

permiti que o corpo fosse exumado. O policial afirmou que,

face ao pouco tempo que fazia da morte do rapaz, toda a

verdade seria restabelecida pelos legistas. A seguir, o dr.

Lincoln pediu-me uma rela����o dos amigos de Piccin, e eu

lhe respondi n��o conhecer nenhum. Mas indiquei minha

filha Elizabeth, muito ligada a Piccin, como sendo de poss��-

vel utilidade pra isso. Nessa ��poca, ela j�� residia em Belo

Horizonte. Do pr��prio gabinete liguei pra ela, solicitando

149

sua vinda urgente a Vit��ria. Ela manteve entrevista com o

diretor de pol��cia, mas pouco p��de dizer. Nesse mesmo dia

cheguei em casa e contei a minha mulher o que estava ocor-

rendo. Disse tamb��m do pensamento do sr. Lincoln, de que

o crime fora praticado com a parceria de Paulo Helal. Nesse

particular a convic����o do policial prendia-se a dois fatos:

primeiro, de que o bilhete dirigido a dona Lola Sanches

partira do agente funer��rio da Santa Casa; segundo, porque

o provedor da mesma Santa Casa era o pr��prio pai de Paulo

Helal. Na longa palestra que tivemos, o sr. Lincoln tamb��m

disse saber que Paulo Helal era viciado em t��xicos.

A uma pergunta do deputado Juarez Leite, responde o

depoente:

��� Durante o tempo em que residi na casa 1161, da

Avenida Desembargador Santos Neves, de propriedade de

Guilherme Aires, nenhuma autoridade policial ou do poder

judici��rio ali foi pra qualquer exame ou per��cia. N��o sei, a

n��o ser por not��cia de jornal, que o quintal daquela casa

foi posteriormente examinado por policiais.

Ao deputado Edson Machado, responde:

��� Pessoa da fam��lia, que n��o pude determinar direito,

terminou descobrindo que a inje����o fatal, aplicada no meu

filho, era Valium, de dez mil��metros. Mas a seringa de apli-

ca����o era grande e o l��quido que continha n��o era inferior

a dez cent��metros. Disso tenho absoluta certeza. Das enfer-

meiras me recordo apenas que eram de idade presum��vel

entre vinte e tr��s e vinte e sete anos, ambas simp��ticas. A

causa morte atribu��da a Piccin foi mal��ria hepatite t��xica.

Os funerais foram feitos tamb��m pela Santa Casa.

O deputado Cl��rio Falc��o pergunta a respeito de novos

encontros do sr. Constantino com o diretor da Pol��cia Fe-

deral:

��� Ap��s o primeiro contato o sr. Lincoln disse que

tornar��amos a nos ver, todavia, n��o mais me procurou. Um

belo dia soube que tinha sido transferido pra Bel��m do Par��,

sem maiores explica����es a respeito do caso.

Respondendo mais uma vez ao deputado Edson Macha-

do, diz o sr. Constantino:

��� O ��nico implicado que o sr. Lincoln citou pra mim

foi Paulo Helal. Mas deixou fazer crer que outros estivessem

envolvidos na mesma quadrilha. Pediu-me absoluto sigilo

sobre tudo que conversamos, at�� que o caso estivesse con-

clu��do.

150

Novamente, respondendo ao deputado Cl��rio Falc��o,

explica:

��� Vi meu filho drogado, a primeira vez em 1969, e

a segunda em 1972. Jamais soube ou procurei saber quem

eram seus companheiros de v��cio. Meu filho tinha tudo que

um rapaz de sua idade almeja ter, mesmo assim deixou-se

perverter. Sempre tivemos v��rios carros e ele dirigia o mais

novo. Tratei-o a vida toda com carinho e aten����o. Por sua

vez, era um mo��o educado e querido pelos amigos. N��o sei

como isso p��de acontecer.

No meio da assist��ncia que ouvia em sil��ncio as decla-

ra����es daquele homem de cabelos grisalhos, Dudu estava

certo que n��o omitira nada do que j�� lhe dissera. S�� n��o

falou muito da mulher doente, que teve de levar in��meras

vezes para procurar tratamento com m��dicos europeus. Por

isso, em certas ocasi��es, o jovem Piccin ficara solto, com

muito mais tempo para dedicar-se ��s farras com a patota.

De todo o resto o sr. Constantino Fortunato falou. Citou at��

um detalhe que o perito desconhecia e agora poderia ser da

maior import��ncia. No s��bado, 19 de maio de 73, quando

o filho melhorou um pouco da febre, foi at�� o quintal, de

chinelos e pijama. Ficou por l�� algum tempo. Eram mais ou

menos sete horas e trinta minutos, quando procurou o pai

e pediu o carro emprestado. Por que uma pessoa doente

sente de repente vontade de passear de carro? A indaga����o

n��o sa��a da cabe��a de Dudu e ele ouvia todas as outras

palavras do sr. Constantino Piccin, explicando os fatos:

" E u lhe dei a chave e marquei no rel��gio. Rodou pela

praia uns dezenove pra vinte minutos. Quando chegou foi

novamente queimando de febre". Teria Piccin passado todo

o tempo dirigindo o carro, pra cima, pra baixo, ou parou

em algum lugar, encontrou com algu��m?

" A o meio-dia de domingo", �� o sr. Constantino fa-

lando, outra vez, "Piccin teve fome. Pediu um pouco de

macarr��o �� m��e. Notei que tava bem melhor. Por volta das

quatorze horas, foi �� ilha dos Guimar��es, em companhia da

m��e, de dois sobrinhos e de Antenorzinho Guimar��es, filho

do propriet��rio da ilha. Quase dezesseis horas, apareceu

conduzindo o carro. Saltou, mal podendo ag��entar-se nas

pernas. Tinha febre alt��ssima. Tomou um banho quente,

mas a febre n��o diminuiu. A noite de domingo pra ele foi

desesperadora."

Piccin ficou na ilha dos Guimar��es com a m��e, os

151

sobrinhos ou deixou-os l�� e tomou outro rumo? Antes da

sess��o terminar Dudu tratou de sair. Tem vontade de pro-

curar tia Rita. Nunca antes sentira tanta vontade de chegar

diante daquela mulher de longos cabelos negros e rosto

nervoso e pedir que o ajudasse a esclarecer aquelas d��vidas.

Quando Cl��rio Falc��o o v�� saindo, manda que espere, mas

ele se fez de desentendido. Em poucos instantes est�� num

t��xi, rodando na dire����o do bairro de F��tima. A tarde ��

clara, como se a natureza n��o envolvesse qualquer mist��rio.

As folhas nos ramos parecem bem definidas e as bananeiras

nas encostas dos morros acenam pend��es da alegria. H��

muitos pescadores na ponte sobre o canal e a ��gua est��

azulada, imitando o c��u. O motorista, um homem forte de

rosto enfezado, n��o disse uma s�� palavra desde que entrara

no t��xi. Tamb��m n��o est�� com vontade de falar e, por isso,

v��o avan��ando pela tarde da estrada poeirenta e em sil��ncio

chegam ao bairro das ruas de terra e de muitas plantas

espiando por cima das cercas e dos quintais.

Seis

Tiziu diz que a m��e n��o est��.

��� Foi na casa de seu Henrique Rato.

��� Vai l�� chamar. Diz que tou aqui.

O pequeno saiu correndo, Dudu v�� os outros dois no

descampado, brincando com Radar. Sente certa alegria em

saber que o c��o est�� vencendo a crise e possivelmente esca-

par�� vivo. Acende um cigarro, tira algumas baforadas, ��

sombra dos arbustos floridos, Tiziu reaparece, manda que

entre, a m��e est�� a caminho.

Dudu senta ao redor da mesa, o pequeno torna a sumir.

Fica olhando as paredes encardidas e irregulares, os quadros

de santos, as flores de papel crepom muito sujas de bosta

de mosca.

��� Tava t��o distra��do que n��o vi a senhora chegar.

Faz ar de riso, pergunta se quer caf��. Enquanto Dudu

explica o motivo da visita, a mulher acende o fogo, coloca

��gua num papeiro. Volta �� sala, diz simplesmente:

��� Ele falou quase toda a verdade. O que um pai

pode dizer do filho na presen��a de estranhos ele disse. E

que seja perdoado pelo resto.

152

��� Mas h�� umas passagens que n��o ficaram muito cla-

ras ��� afirma Dudu.

��� Eu sei. Piccin foi proibido de sair de casa. Proibido

de adquirir t��xicos. A crise quase o levou �� loucura. Nas

duas vezes em que, mesmo doente, conseguiu escapar, foi

tratar de reunir-se aos que podiam lhe fornecer entorpecen-

tes. O rapaz j�� era um dependente, coisa que seu Constan-

tino n��o aceitava. Um policial calvo, que foi transferido pra

Bel��m, vem prestar depoimento na C P I . V��o perguntar a

ele sobre o encontro com Constantino Piccin. Vai confirmar

quase tudo, menos que citou o nome de Paulo Helal como

um dos implicados no crime. Na verdade seu Constantino

n��o mentiu. O policial acha que Paulo Helal �� um dos

culpados, mas n��o pode afirmar nada sem ter as provas na

m��o.

��� Cada vez mais a situa����o se complica. N��o vejo

como se desvendar esse caso ��� queixa-se Dudu, num dos

raros momentos de des��nimo.

��� Tamb��m j�� n��o vejo sa��da ��� diz Rita Soares. ���

Por isso �� que acho que o caso t�� entregue a Deus. S�� dele

vem o castigo. Mas, como muita gente j�� n��o acredita em

Deus, todo mundo por aqui continua se mexendo pra en-

contrar uma solu����o. O sargento terminou esmagado. Outros

acidentes t��o pra vir. Alguns v��o atingir a pr��pria cidade,

com todos os seus pecados. Mas ningu��m tem condi����o de

mostrar o que vir�� como castigo do c��u. Tamb��m, de que

adianta nossa sabedoria, diante do mist��rio que nos cerca?

Era at�� engra��ado se Deus tivesse se preocupado de dar

satisfa����o pra gente.

Rita Soares coloca caf�� na x��cara, p��e a����car, Dudu

espera esfriar enquanto ouve a mulher falar, falar.

��� Todos n��s temos nossa parcela de culpa e vamos

ser castigados. Essa �� a diferen��a da justi��a divina. A culpa

de um crime n��o come��a e termina no criminoso. Vai mais

longe: envolve justos e indiferentes. Veja s�� isto.

A mulher fecha a janela que d�� para o canteiro dos

l��rios e dos copos-de-leite, acende uma vela, coloca-a sobre

a lata de leite em p��.

��� Veja s�� o que nos espera.

A chama da vela est�� firme, at�� que breves lufadas

come��am a a��oit��-la e v��o sempre aumentando de intensi-

dade. Dudu est�� de olhos fitos na chama, que luta para n��o

ser dominada, enquanto os ventos agora s��o t��o fortes que

parecem sacudir a pr��pria mesa, a pr��pria sala, a ponto de

153

a janela abrir e fechar diversas vezes, com fortes ru��dos.

E quando a chama finalmente se apaga os trov��es estalam

por cima da coberta daquela casa de aspecto t��o fr��gil

quanto a mulher que est�� �� sua frente. Rita Soares levanta-se

para prender a janela com o trinco, Dudu percebe que a

tarde escureceu, os primeiros pingos de chuva come��am a

cair, a fazer barulho nas telhas e nas folhas de zinco do teto.

A galinha com os pintos entra para a casa, Rita Soares

levanta-se para fechar a porta da cozinha, Dudu fica olhando

os arbustos no canteiro que oscilam no vendaval.

"Que poderes tem essa mulher, capaz de desencadear

tempestades? Estaria realmente chovendo ou �� apenas minha

imagina����o?"

Aproxima-se da janela, estica o bra��o, a m��o est�� toda

molhada. Rita Soares reaparece, os olhos terrivelmente ver-

des, e pela primeira vez o perito sente um arrepio percorrer-

lhe o corpo. Nunca sentiu medo de ningu��m, mas est�� receo-

so daquela cigana e de suas possibilidades.

Volta ao seu lugar e fica t��o tenso que tem vontade

de falar, de dizer alguma coisa. Quando Rita Soares se

aproxima e retira da mesa a lata de leite em p��, formula

uma pergunta meio sem sentido.

��� Por que n��o faz com que os criminosos de Aracelli

se apresentem?

A cigana o encara de forma meio enlouquecida, faz um

riso que mostra o dente estragado.

��� Porque tamb��m devo ser punida. Minhas artes n��o

me defendem.

O vendaval aumentou, a trovoada sopra com for��a, os

respingos caem na mesa, a janela torna a desprender-se do

ferrolho, Rita Soares vai at�� a porta da rua preocupada com

os garotos.

��� Devem estar abrigados ��� diz Dudu, mais para

content��-la.

��� Tenho medo de Tuca. Aquele pequeno n��o �� gente.

A porta da rua se abre com for��a, entra Tiziu todo

molhado, entram Tadeu e o c��o Radar.

��� Onde ficou Tuca?

Tiziu est�� cansado demais para responder. Senta-se

num caixote, perto de Dudu, o c��o deita-se dois palmos

adiante, a cigana espera que o filho explique o que aconte-

ceu. Mas, antes de Tiziu, quem fala �� Tadeu, muito assus-

tado, olhos arregalados.

154

��� A gente tava no campinho, sabe, perto do riacho.

A�� Aracelli chegou, ficou olhando o jogo. Come��ou a chover,

Radar saiu correndo pro capinzal, Tuca foi atr��s com Ara-

celli. Depois Radar voltou sozinho. Tiziu ainda saiu pro-

curando pelo mato mas n��o achou. Foi o tempo que a chuva

engrossou mesmo e a gente veio embora.

��� Aracelli j�� foi pra muito longe, faz tempo ��� diz

Dudu, imaginando que o garoto estivesse inventando.

��� Ela vem sempre brincar com a gente. Gosta mais

do Tuca ��� responde Tadeu.

Rita Soares ajoelha-se num canto da casa, as m��os

postas, chora em sil��ncio. Dudu est�� surpreso com o irrea-

lismo daquelas pessoas, sente vontade de sair porta afora,

procurando o menino que faltava. Ao mesmo tempo n��o

sabe sequer para que lado ficava o tal campinho, nem qual

era o desejo da cigana.

��� Tia Rita, se acalme, vamos pensar numa solu����o.

A mulher como que n��o escuta, ergue bem as m��os e

desta vez chora alto. A chuva continua aumentando de inten-

sidade e de vez em quando a casa �� bruscamente iluminada

pela luz esverdeada dos raios. Tiziu acende o candeeiro,

suspende-o na parede, durante alguns minutos todos ficam

em sil��ncio, ouvindo os solu��os da mulher.

Num instante em que a tempestade se abranda, Dudu

convida Tiziu para ir mostrar onde �� o campinho. O menino

cobre-se com um peda��o de oleado, d�� outro ao perito e l��

se v��o pelos caminhos encharcados, seguidos de Radar. Dudu

arrega��a as cal��as, mas em poucos minutos os sapatos est��o

enlameados. Chegam ao campinho, transformado num lago,

atravessam com a ��gua batendo quase no joelho, v��o para

os lados do riacho, que cresceu muito de volume.

��� Tem certeza de que foi pra c�� que o menino veio?

��� Pra c��, mesmo.

No trecho em que a areia n��o foi atingida pela corren-

teza do riacho v�� marcas de p��s, Tiziu se apressa em dizer

que �� o rastro de Tuca. Dudu ouve a explica����o do menino

sem apresentar qualquer argumenta����o, sente desejo de pros-

seguir na caminhada para ver aonde aquelas pegadas v��o

levar, a chuva faz a roupa colar-lhe ao corpo, dos cabelos

ensopados descem gotas que escorrem pelo rosto. E no

trecho em que o riacho se encontra com outro, tornando-se

mais largo, l�� as pegadas desaparecem.

��� Ser�� que atravessou o riacho? ��� pergunta Dudu.

155

��� Se tentou isso �� capaz de ter se afogado, vai aparecer

boiando a�� pelas margens.

��� Tuca tinha medo d'��gua. N��o gostava nem de tomar

banho ��� explica Tiziu.

Dudu experimenta atravessar o riacho, a correnteza

est�� forte, os ventos sopram nas copas das castanheiras, o

oleado de Tiziu �� insuficiente para proteg��-lo, Dudu com-

preende estar sendo imprudente, de nada adianta a busca

com aquele temporal. O melhor �� retornar, esperar a chuva

passar, come��ar tudo de novo. Como a tarde est�� no final

diz a Rita Soares que no dia seguinte viria cedo para ajud��-la

a encontrar o menino.

��� Nenhum de n��s pode topar mais com ele.

Dudu est�� enregelado, sente vontade de tomar um bom

trago, n��o quer alongar a conversa com a mulher, que consi-

dera fora de si. Esfrega a cabe��a na toalha que Tiziu lhe

oferece, toma um pouco mais de caf��, fica olhando a impas-

sividade da cigana e, pela primeira vez, considera que est��

diante de uma louca. " M a s , se assim ��, como poderei ir

embora hoje daqui, deixando ela com estes dois meninos?"

Um raio mais intenso que os outros inunda a casa de luz,

a figura de tia Rita como que se ilumina aos olhos de Dudu.

E naquela fra����o de tempo p��de perceber que ela sorria,

com a mesma naturalidade com que chorava. Dudu ent��o

fica imaginando que nenhum pensamento a respeito da mu-

lher era exatamente certo. Em determinados momentos pare-

cia uma louca; em outros, era m��stica; v��rias vezes mostrara

seu poder sobre o imponder��vel. E tamb��m a�� Dudu come��a

a sentir que a raz��o lhe foge e por muito tempo permanece

num estado de torpor, como se estivesse doente ou profun-

damente exausto. �� com extraordin��rio esfor��o que se cobre

novamente com o oleado e caminha pela rua de charcos, at��

o ponto de ��nibus. Mete-se no quarto, toma uma dose dupla

de conhaque e, enquanto se enxuga ap��s tomar um banho

quente, tudo o que viveu nas ��ltimas horas parece um pesa-

delo, pontilhado de raios, trov��es e os olhos verdes da

cigana que tudo viam, com absoluta impassividade.

"Tamb��m devo ser punida. Minhas artes n��o me de-

fendem."

Deita-se no sof��, acende a luz, fica olhando o teto e

recordando a declara����o de culpa.

"Quem ser�� realmente tia Rita? Como apareceu em

Vit��ria? Qual sua hist��ria? Por que anteriormente era uma

156

mulher alegre, como todos diziam na cidade, e, depois, foi

se tornando fechada, at�� chegar a ser sinistra? Como sabe

o que se passa com as p e s s o a s ? "

Sem resposta para nenhuma das indaga����es adormece.

N��o sabe se a mulher bateu na porta do quarto, chaman-

do-o para o jantar. A luz no teto permanece acesa at�� o dia

seguinte, quando abre os olhos e se assusta, pois n��o tem

id��ia de onde est��. E, no entanto, j�� �� manh�� clara, o sol

das nove abrindo caminho num c��u limpo de nuvens e de

pressentimentos.

Sete

Ao colocar pasta na escova, olhar o rosto no espelho,

Dudu vai se dando conta da tempestade da v��spera, do me-

nino e do cachorro, aflitos, do campinho transformado em

lagoa. Teria de retornar, como prometeu, para ajudar na

busca, encarar novamente os olhos verdes de tia Rita, o

rosto nervoso, o riso nervoso. D�� dois telefonemas, certifi-

ca-se de que o depoimento do policial Lincoln Gomes de

Almeida seria na parte da tarde, engole um pouco de caf��,

bota o blus��o e sai, entra no bar defronte ao ponto de t��xi,

compra dois ma��os de cigarros, avan��a para o carro que

est�� na ponta da fila, Vov�� Gelli abre a porta, cumpri-

mentando-o.

��� Quanto tempo a gente n��o se via.

Dudu responde ao cumprimento do motorista, Vov��

Gelli liga o motor, o velho Chevrolet come��a a movimen-

tar-se. Mais adiante, ainda nas ruas de tr��nsito intenso,

Dudu faz considera����o sobre a tempestade da v��spera.

��� Tempestade, ontem, por aqui?

N��o entende a d��vida de Vov�� Gelli, pergunta onde

esteve depois das dezesseis horas.

��� Rodando por a��. Se n��o me engano, pros lados do

Camburi.

��� E n��o caiu um tor�� dos diabos por l��?

��� Me desculpe, mas ontem n��o choveu em toda esta

aben��oada terra.

Vov�� Gelli faz uma careta de quem n��o est�� enten-

dendo nada, Dudu desconversa para n��o parecer que andou

de cara cheia, enquanto o carro avan��a pela avenida de para-

157

lelep��pedos, vai tentando aclarar os pensamentos. Tem cer-

teza de que ficou no ponto de ��nibus pelo menos vinte mi-

nutos, que saltou na Capixaba e esgueirou-se pelas marqui-

ses, at�� em casa. Quando se levantou e foi ao banheiro

encontrou as roupas molhadas, jogadas num canto, os sapa-

tos enlameados. Se tudo isso �� um fato, como ent��o Vov��

Gelli p��e em d��vida sua afirma����o e insiste em dizer que

em toda Vit��ria n��o caiu um s�� pingo d'��gua?

O carro p��ra no trecho em que a rua �� mais larga, a

grama cresce rasteira e as ��rvores nos quintais brincam de

esconder com os ventos. Vov�� Gelli torna a arrancar, ace-

nando com a m��o, Dudu segue pelo caminho estreito, que

d�� uma volta, passa por baixo de uns arvoredos copudos,

chega �� cancela da casa de Rita Soares. Examina com o bico

do sapato a terra do ch��o, v�� que est�� bastante ��mida.

"Vov�� Gelli t�� ficando maluco."

Tiziu aparece, vem Tadeu em companhia de Radar.

��� Cad�� a m��e de voc��s?

��� Foi procurar Tuca ��� respondeu Tiziu.

��� Pra que lado?

��� Pro mesmo que se foi ontem.

Dudu ainda encontra muita ��gua empo��ada, matinhos

rasteiros sujam-lhe as pernas das cal��as. Passa pela touceira

de bambu, chega ao capinzal, depois ao campinho. Acom-

panha as pegadas que deixara na v��spera, encontra o riacho,

agora de ��guas barrentas, v�� tia Rita acocorada na margem.

��� Alguma novidade? ��� indaga, aproximando-se.

A mulher n��o responde. Est�� atenta �� cuia que oscila

de um lado para o outro com a vela acesa, dentro. Ora ��

levada pela correnteza at�� uma margem, ora volta no sentido

oposto, em algumas ocasi��es cai no remanso contaminado de

galharia seca, vem retornando para o ponto onde a cigana

est�� acocorada.

��� Foi aqui que eles sumiram ��� diz a mulher. ��� Veja

como a cuia sempre volta.

��� Isto �� muito raso. N��o tem nem dois palmos.

��� Mas n��o h�� d��vida de que foi aqui. N��o precisa

haver muita ��gua pra gente sumir nela. Nem precisa chover

pra haver tempestade.

Rita Soares levanta, Dudu fica olhando a cuia que se

distancia.

��� Sou obrigado a fazer um registro na delegacia.

��� N��o creio que adiante. Quem vai acreditar que

Tuca foi embora com Aracelli?

158

Dudu recorda o que lhe dissera Vov�� Gelli, as pala-

vras de Rita Soares se repetem insistentemente. Embora seja

cedo j�� se sente cansado, caminha calmamente ao lado dela,

ambos em sil��ncio, s�� o marulhar do rio confundindo-se com

o canto dos p��ssaros. Passam pelo port��o de t��buas de cai-

xote, Dudu apoia o bra��o na mesa.

��� Nada do que t�� sendo dito na C P I vai adiantar. O

esfor��o agora �� no sentido de sumir o corpo da menina ���

diz Rita Soares. ��� V��o encontrar um jeito de fazer isso.

��� E o depoimento de hoje, ser�� mesmo como prev��?

��� O federal deve confirmar quase tudo que o pai de

Piccin declarou. Vai negar que apontou Paulo Helal ��� diz

a mulher.

��� Como quer resolver o caso do menino?

��� T�� resolvido. Foi pra longe da gente. Quando che-

gar o dia, talvez algum de n��s se encontre com ele.

Rita Soares ocupa-se em colocar defumadores nos can-

tos da casa, Dudu vai embora sem se despedir. Volta ao

apartamento, examina a roupa molhada, os sapatos sujos

de barro, entra no bar, pede uma dose dupla de conhaque,

re��ne-se aos espectadores de Tut��nio e Arturz��o, v�� muita

gente subindo e descendo a rua ladeirenta.

��� Tu precisava ver como ficou isto aqui, ontem ��

tarde ��� diz Tut��nio, passando-lhe o bra��o no ombro. ��� Tu

foi mocinho de cinema pro pessoal, cara. Se surgir uma

elei����o por a�� te candidata que vai ser eleito f��cil. O que tu

disse l�� nas barbas dos concordinos ainda t�� estourando

aqui fora. Veio o pai de Piccin e confirmou tudo. Era o

que faltava. Agora quero ver quem tem coragem de negar.

��� Mesmo debaixo daquela chuva toda ficaram aqui?

��� quer saber Dudu.

��� Que chuva, cara? Aqui fez um sol de ver��o at�� de

noite ��� responde Tut��nio.

Dudu desconversa, n��o entende bem o que se passa

com ele, talvez esteja trabalhando demais, mesmo assim isso

n��o explica as roupas e os sapatos sujos de barro no banhei-

ro. Tut��nio continua falando alto, gesticulando, assoviando

para os conhecidos que passam por longe. No meio daquele

tumulto que �� normal na porta do Sal��o Totinho, o perito

vai sendo tomado por inexplic��vel sensa����o de tristeza e

tem vontade de ausentar-se de tudo e de todos, isolar-se

num quarto de hotel barato, ficar dois dias inteiros bebendo

conhaque, at�� que se sinta novamente como era. Decide

159

tamb��m n��o procurar mais Rita Soares, pois agora sabe que

ela o influencia, �� capaz de arrast��-lo a viver irrealidades,

num mundo que n��o existe para os olhos de Vov�� Gelli e

de Tut��nio.

Passa o resto da manh�� andando de um lado para ou-

tro, revendo amigos, almo��a no Cavalo de A��o e na hora

do depoimento de Lincoln Gomes de Almeida est�� na

Assembl��ia. Senta-se um pouco no bar, ouve a conversa alta

e muito otimista de Cl��rio, ouve outros deputados do M D B

que pensam como ele. Dudu acompanha toda aquela movi-

menta����o, mas, na verdade, o pensamento est�� longe, na

beira do riacho, onde foi com o menino e o cachorro, de-

baixo do temporal, procurar Tuca, que evaporou. Acocorada

na beira do riacho a cigana olha a cuia com a vela a rodar

no remanso de ��gua barrenta e quando se ergue n��o est��

triste com o sumi��o da crian��a. Limita-se a considerar que

tinha de ser, era assim mesmo, sem tirar nem p��r. E qual-

quer iniciativa sua, como o registro do desaparecimento na

delegacia, poderia ser tomada como coisa de louco, pois n��o

tinha como provar nada, a n��o ser que de fato o garoto

existia, os irm��os poderiam confirmar, a vizinhan��a tamb��m.

A sineta toca na sala do lado, metade do pessoal que

est�� no bar desaparece, Dudu movimenta-se para encontrar

lugar, Cl��rio Falc��o vai para a mesa, ao lado dos colegas

que integram a comiss��o. O depoente j�� est�� presente, �� um

homem calvo, de rosto magro. A uma pergunta do presi-

dente Cl��vis de Barros, responde:

��� Fui convidado a participar dos trabalhos de inves-

tiga����o do caso Aracelli pelo delegado Ildefonso Primo e

o juiz Waldir Vitral. Assim sendo, estive no local onde o

corpo da menor foi localizado e ouvi alguns depoimentos

tomados pelo delegado.

A uma outra pergunta do mesmo deputado, diz o

depoente:

��� Em diversas ocasi��es o delegado Ildefonso Primo

queixou-se da falta de recursos materiais para prosseguir

nas investiga����es de maior profundidade. Por essa ��poca,

tamb��m, tomei conhecimento detalhado do inqu��rito e ent��o

pude observar que nada de concreto ali havia; faltavam

pe��as fundamentais, desde a prova material do crime, at��

per��cias t��cnicas e outros elementos que pudessem conduzir

a autoridade policial a uma solu����o. Tive conhecimento,

tamb��m, de que na data em que o cad��ver foi encontrado,

1 6 0

morreu na Santa Casa de Miseric��rdia um rapaz chamado

Fortunato Piccin. A morte ocorreu de forma misteriosa,

pois nem aut��psia do cad��ver foi feita. Por isso, e de comum

acordo com o delegado Ildefonso Primo, convidei o pai a

prestar esclarecimentos, ocasi��o em que disse do nosso de-

sejo de exumar o corpo.

Ao deputado Aldo Prud��ncio, afirma:

��� Ap��s pedir permiss��o ao sr. Constantino Piccin

para que se exumasse o cad��ver do seu filho, fiz conside-

ra����es diversas sobre o assassinato da menor, mas em

nenhum momento citei este ou aquele como suspeitos pelo

crime. Certa vez, folheando os autos do inqu��rito, �� que

deparei com um depoimento acusat��rio, sobrescrito por uma

mulher de nome Marislei. O delegado Ildefonso Primo tam-

b��m mostrou desejo de ouvir Marislei e, por isso, ela foi

convocada �� pol��cia. Compareceu acompanhada de uma outra

mo��a que se dizia ex-empregada de uma senhora, em cuja

casa dona Lola Sanches, m��e de Aracelli, estivera hospedada,

tempos atr��s. Mas, por ser esta profundamente fantasiosa,

n��o foi levada a termo. Ela afirmou ter ido em companhia

de Paulo Helal ao local onde estava o corpo da menor.

��� O que o levou a julgar o depoimento de Marislei

fora da realidade? ��� indaga o deputado Cl��rio Falc��o.

��� N��o tenho conhecimento pessoal, nem encontro re-

gistro hist��rico, de que um criminoso retorne ao local do

crime, levando uma pessoa estranha, apenas para comprovar

o que de fato fez. E tal foi minha estranheza que solicitei

ao delegado Ildefonso Primo fosse dona Marislei encami-

nhada a um psiquiatra. O delegado ent��o sugeriu que ouvisse

sua companheira, pois esta afirmava ter levado um bilhete

do papa-defunto, Arnaldo Neres, da Santa Casa, para dona

Lola Sanches. Esse bilhete n��o encontrei nos autos do inqu��-

rito. Ouvi a mo��a na presen��a do delegado, e ela confirmou

a vers��o do bilhete e disse mais: o papa-defunto pedia que

dona Lola lhe telefonasse para que narrasse maiores detalhes

da morte de sua filha. Essa ��ltima parte n��o constaria do

bilhete. Chamamos o marido de dona Lola, sr. Gabriel

Sanches, para saber a respeito da exist��ncia ou n��o do bilhe-

te. Ele esteve aqui conosco e afirmou que sua mulher rece-

bera o bilhete e este fora entregue a um promotor. Ainda

segundo a amiga de Marislei, no papel do bilhete enviado

a dona Lola havia o telefone do papa-defunto. Que dona

Lola chegou a telefonar para ele. Mas Arnaldo Neres per-

1 6 1

guntou de onde ela estava falando e quando dona Lola

disse, ele desligou.

��� E de onde dona Lola tava de fato falando? ���

indaga, mais uma vez, Cl��rio Falc��o.

��� De uma delegacia de pol��cia.

O deputado Juarez Leite faz considera����es a respeito

do papa-defunto.

��� Face �� confirma����o do sr. Gabriel Sanches de que

o bilhete de fato existia, sugeri ao delegado Ildefonso Primo

que convocasse Arnaldo Neres para esclarecimentos. E que

fosse acareado com a amiga de Marislei. Dois dias depois,

o papa-defunto foi levado ao meu gabinete. Mas n��o p��de

ser ouvido e muito menos acareado. Dizia ter tido um en-

farte e pedia ��gua. Foi levado ao bebedouro. Como este

estivesse seco, o homem sofreu um desmaio. Chamei uma

ambul��ncia e foi encaminhado �� Santa Casa de Miseric��rdia.

Mas, para surpresa minha, umas duas horas depois passava

em frente �� delegacia de pol��cia, dirigindo um carro da

funer��ria.

��� Foi por isso que pediu transfer��ncia pra outra ci-

dade? ��� quer saber Cl��rio Falc��o.

��� Absolutamente. Minha transfer��ncia n��o tem qual-

quer conota����o com o crime da menina.

��� Se o sr. Constantino Piccin teve de chamar a filha,

em Belo Horizonte, pra tentar saber quais eram os amigos

de seu filho, como pode ter ele lhe dito que o Nato

andava na patota de Paulinho Helal, Dante Michelini J��nior

e Farich? ��� indaga Cl��rio.

��� A mim ele declarou que seu filho tinha rela����es de

amizade com Paulo Helal, Dante Michelini e Farich. N��o

disse que eram da sua "patota".

O deputado Edson Machado faz uma pergunta, Lincoln

de Almeida toma um pouco d'��gua, passa o len��o no rosto.

��� Conheci o ex-motorista da fam��lia Michelini atrav��s

do delegado Ildefonso Primo. Um dia sa��mos com esse

motorista, percorremos a regi��o do Camburi e fomos ao bar

Franciscano. Era de tarde e pude observar a sa��da de moci-

nhos na faixa dos dezesseis/vinte anos, o que me fez comen-

tar a respeito com o delegado.

O depoente diz n��o se recordar de ter ouvido qualquer

not��cia a respeito de Dante Michelini usando disfarce para

prestar depoimento na superintend��ncia de pol��cia.

A uma pergunta do deputado Aldo Prud��ncio, diz ter

recebido das m��os do ex-motorista uma fita gravada, mas

162

n��o teve tempo de ouvi-la. Viu nas m��os do delegado Ilde-

fonso Primo um caderno com desenhos de Aracelli, mas

n��o sabe a que se referiam. Conclui o depoimento afirmando

que o delegado Ildefonso Primo tem capacidade de sobra

para solucionar "o mist��rio Aracelli", bastando que para

isso lhe d��em as condi����es necess��rias de trabalho.

Os rep��rteres n��o est��o satisfeitos com o depoimento

do policial. Tentam intercept��-lo na sa��da, mas ele se recusa

a novos pronunciamentos. Um dos jornalistas fica nervoso:

��� Como �� que o papa-defunto d�� uma de doente,

desmaia, se manda, depois aparece dirigindo um carro da

funer��ria e fica tudo por isso?

��� Nada mais tenho a acrescentar ��� �� tudo que diz

Lincoln Gomes de Almeida.

Dudu continua mais um pouco na cadeira, olhando os

que se retiram da sala. Acha que em parte Rita Soares

acertou, mas as contradi����es deixadas no depoimento n��o

o permitem considerar o policial isento de suspeitas.

��� Esse pessoal t�� brincando com a gente. Onde j�� se

viu um cara dizer, publicamente, que o papa-defunto veio

depor mas teve um enfarte, desmaiou e foi mandado pra

Santa Casa? Depois esse mesmo cara �� visto dirigindo um

carro e a pol��cia n��o chama pra novo depoimento. Onde n��s

estamos? ��� as indaga����es s��o de Tut��nio. Exalta-se com as

afirma����es de Lincoln de Almeida.

��� O homem foi prudente. Disse o que podia dizer ���

afirma Arturz��o.

��� Disse porra nenhuma, seu merda! Ou ele levou bola

da gra��da ou foi amea��ado de morte e se mandou. Se seu

Constantino Piccin n��o mentiu em todo o depoimento que

deu, a respeito do filho, n��o faz sentido que s�� tenha men-

tido na hora de dizer que o federal j�� relacionava Paulo

Helal como um dos implicados ��� afirma Tut��nio.

��� S�� n��o entendo que n��o tenha levado a termo o

depoimento da Marislei. Se ele mesmo diz que n��o tinha

autoridade pra examin��-la como psiquiatra, como teve pra

consider��-la desequilibrada? ��� a argumenta����o �� de Dudu.

��� E a mulher n��o �� maluca coisa nenhuma ��� diz

Tut��nio. ��� Pode ter dito uma porrada de besteira pra

tumultuar. Assim como o papa-defunto desmaiou e duas

horas depois tava passeando na frente da delegacia, como o

pr��prio Lincoln afirmou.

��� E por que n��o chamam a Marislei pra contar sua

163

est��ria perante os honestinos da C P I ? ��� diz Arturz��o, dis-

posto a provocar Tut��nio.

��� �� o que vai acontecer. Pode n��o dar em nada, mas

que vai depor, vai ��� afirma Dudu, que tamb��m n��o engole

muitas das declara����es de Lincoln Gomes de Almeida.

Quando a discuss��o diminui de intensidade, Dudu entra

no bar, pede um conhaque, fica olhando a roda de curiosos

na cal��ada, Cl��rio Falc��o que se aproxima e discute com

Arturz��o. O gar��om destampa a garrafa para outra dose e

a�� Dudu faz a pergunta que o vem preocupando h�� horas.

��� Tava trabalhando, ontem?

O gar��om responde que sim, sem entender aonde que-

ria chegar, Dudu faz um rodeio e finalmente vai ao ponto

que interessa.

��� Choveu muito, ontem de tarde, por aqui, l�� pelas

dezesseis horas, dezesseis e trinta?

��� Choveu n��o. Foi dos dias que mais se vendeu cer-

veja. Precisava ver como tava. Pior do que hoje.

Dudu toma mais um gole de conhaque, o pensamento

disperso, a vontade de voltar ao riacho, onde Tuca sumiu,

mas sem que Rita Soares soubesse, sem que atra��sse a aten-

����o de Tiziu e Tadeu. E, imaginando isso, vai sentindo a

mesma tristeza que o dominara de manh��, ao ver a cuia e a

vela oscilando no remanso barrento do c��rrego. O gar��om

p��e mais uma dose, o perito sabe que est�� exagerando, ainda

pretendia encontrar-se com o delegado Ildefonso Primo,

contar-lhe o desastre que foi o depoimento do ex-diretor da

Pol��cia Federal de Vit��ria.

��� O que disse �� besteira pura. Pode enganar outro,

a mim n��o ��� grita Tut��nio, e as palavras chegam at�� o bar.

Dudu sabe que est�� se referindo ainda a Lincoln de

Almeida. Cl��rio �� da mesma opini��o, s�� Arturz��o pondera.

��� Vai ver que o homem n��o podia dizer tudo que

sabia. Afinal, que s��o os deputados pra transformar a Assem-

bl��ia em delegacia de pol��cia?

��� E tu acha que se n��o se arrastasse essas feras pra

l�� algu��m ia conseguir algum depoimento? ��� argumenta

Cl��rio, indignado.

Dudu sai do bar, caminha sem destino, ainda �� cedo

para encontrar Ildefonso, a id��ia de procurar o menino n��o

o deixa. Nunca estivera t��o confuso, nunca enfrentara um

caso t��o complexo, em que as poucas verdades existentes

v��o se diluindo, escorrem por entre os dedos como areia.

164

"Como que o sr. Lincoln nunca ouviu falar do disfarce

de Michelini, se tinha a fita gravada de Bertoldo na m��o e

nessa fita tava toda a est��ria? Como um policial que t��

tratando de um caso, t�� metido nele at�� os cabelos, n��o tem

curiosidade de ouvir uma fita, com a den��ncia maior do

crime?"

Ildefonso balan��a-se na cadeira, n��o diz uma s�� palavra.

��� Que fez a maior defesa tua, fez. Mas que n��o me

convenceu, isso n��o convenceu ��� torna a afirmar Dudu.

��� Vamos ver o que a Marislei conta pros deputados

��� diz Ildefonso Primo, finalmente. ��� Tomara que caia

em mais contradi����es.

��� O que disse o psiquiatra a respeito dela? ��� per-

gunta Dudu.

��� Tamos aguardando o laudo. N��o acredito que seja

louca. Pode mentir, como qualquer um por a��.

Agora �� o delegado quem se alonga em considera����es.

��� O pr��prio ��boli n��o tem mais esperan��as nas inves-

tiga����es. Com o desaparecimento das provas materiais b��si-

cas, perdeu-se a chance. Ele acredita que somente o tempo

pode contribuir pra solu����o do caso. Uma prov��vel diver-

g��ncia entre os culpados e ent��o podemos ter fatos reais

em que nos basear. Fora disso, s�� um lance de sorte. E eu,

particularmente, n��o acredito em sorte.

Dudu nada comenta. A pergunta que deseja fazer ao

colega pode ser considerada disparate, n��o contribuiria para

tir��-lo das d��vidas que o angustiam.

��� E se n��o se chegar a nenhuma conclus��o ainda fica-

mos desmoralizados pro resto da vida. �� uma profiss��o

ingrata ��� acentua Ildefonso Primo.

��� Desmoralizado e louco. Acho que tou perdendo a

cabe��a ��� diz Dudu, pegando a garrafa para mais um trago.

��� De ontem pra hoje vi cada coisa que n��o consigo

entender.

��� Todos n��s tamos ficando malucos. J�� n��o sei onde

come��a a verdade e termina a mentira ��� afirma Ildefonso

Primo, balan��ando-se novamente na cadeira.

A noite est�� silenciosa ao redor da delegacia. S�� o ru-

mor dos carros perturba aquela paz. Dudu passa o len��o no

rosto, Ildefonso atende o telefone.

��� �� outra maluca, dizendo que viu duas crian��as pas-

sar voando por cima do seu quintal. Esta cidade tem cada

uma de arrepiar.

165

Dudu n��o acha gra��a. Levanta-se para sair.

��� E como p��de ver as crian��as no escuro?

��� Disse que eram luminosas como dois anjos ��� acen-

tua o delegado.

Oito

Dia 6 de maio de 1975. A sala da Assessoria T��cnica

da Assembl��ia Legislativa est�� lotada. Faltam cinco minutos

para o depoimento de Marislei Fernandes Muniz come��ar, a

expectativa �� grande. Quando aparece, h�� murm��rios por

todos os lados. �� de estatura mediana, morena e simp��tica.

O presidente da C P I , deputado Cl��vis de Barros, abre

a sess��o com uma pergunta, Marislei come��a a falar:

��� Encontrei Paulo Helal no centro da cidade. Conheci

o carro dele pelo toque da buzina. Ele me convidou a entrar

e ent��o rodamos na dire����o do Col��gio S��o Pedro, na praia

do Su��. J�� era quase no final da tarde. Parou perto de um

bar, me disse para descer e comprar um sorvete que a me-

nininha ��quela hora j�� estava pra aparecer. Perguntei que

menininha e ele insistiu: "A minha menininha". Eu comprei

o sorvete e encontrei uma garotinha fardada. Do carro mes-

mo ele acenou com a cabe��a que era essa e eu lhe entreguei

o sorvete, dizendo que era o "tio Patinhas" quem tava man-

dando. Voltei pro carro e vi tamb��m que havia no banco

de tr��s uma boneca. Perguntei de quem era a boneca e

ele disse que era pra menininha, quando ela merecesse. No

carro insisti para que me dissesse o nome da menininha e ele

terminou dizendo que era Aracelli. Voltamos pro centro e a��

quando j�� ia embora me chamou e mandou que levasse a

boneca. Alguns dias depois tornei a encontrar Paulo Helal,

quando ia fazer uma consulta no Hospital S��o Lucas. Me

convidou pra dar uma volta e eu aceitei. Quando o carro

tava em movimento, tirou um saco pl��stico do porta-luvas

e colocou nas minhas pernas. No saco havia algod��o, um

outro saco menor com uma subst��ncia amarelada e um par

de luvas. Perguntei o que era aquilo e ele simplesmente

respondeu: "Espera s�� que tu vai ver". Subimos na dire����o

do Hospital Infantil. Estacionou �� direita da via de acesso,

saltamos e come��amos a andar a p��, entrando pelo matagal.

Na fenda de uma pedra tava a menininha Aracelli, da qual

ele falava. Tava nua e pude observar que tinha marcas de

1 6 6

dentes nos seios e na vagina, enquanto o rosto tava reco-

berto de uma subst��ncia amarelada, igual �� que vira no saco

pl��stico. Perguntei por que se tinha ido ali e ele respondeu

que era pra se certificar de que estava tudo certo. Voltamos,

ele mandou que n��o falasse do que acabava de ver. Fiquei

me sentindo mal e n��o tive mais coragem de ir procurar o

m��dico no S��o Lucas.

A uma outra pergunta do presidente da C P I , responde

Marislei:

��� N��o tenho a menor id��ia de como a pol��cia conse-

guiu me localizar. Tava na casa de meu pai, em S��o Torqua-

to, na Rua Ant��nio Dutra, quando apareceu o detetive

Ling��inha. Disse que o dr. Alinaldo Faria queria conver-

sar comigo. Junto com o detetive havia um soldado conheci-

do por Baiano. Sa�� com eles e fui pra Delegacia de Vila

Velha, onde permaneci incomunic��vel tr��s dias. Findo esse

prazo me levaram para o 38.�� B I , sendo entregue ao capit��o

Guilherme e ao sargento Mota. Fui acareada com Paulo

Helal e tudo que disse t�� gravado. A grava����o foi feita pelo

capit��o Guilherme, estando presente tamb��m o tenente Ge-

raldo e o sargento Mota.

A uma pergunta do deputado Cl��rio Falc��o, responde

a depoente:

��� Anteriormente fui detida na Delegacia de S��o Tor-

quato, por uso de t��xico. Sou dependente das drogas e da��

minha aproxima����o com muita gente da pesada. Saibam tam-

b��m que este depoimento n��o tem nenhum valor. Tudo que

acabo de dizer �� mentira. A mesma coisa que j�� disse no

38.�� B I .

��� Ent��o a senhora �� de fato uma louca? ��� argumen-

ta um dos parlamentares.

��� Creio que n��o. Sei bem o que fa��o. S�� que tenho

pena de Paulo Helal e n��o ser�� por minhas acusa����es que

ele vai pra cadeia.

Ap��s o depoimento na Assembl��ia Legislativa, os pon-

tos de encontro da cidade t��m grande movimenta����o. Peque-

nos grupos discutem em frente ao pr��dio dos Correios e no

Bar Carlos Gomes, mas a anima����o �� maior diante do Sal��o

Totinho. E, estranhamente, ali quem est�� inflamado �� Artur-

z��o. Por diversas vezes Cl��rio tentou interceder, n��o deu.

��� Voc��s t��m de aprender uma coisa: n��o se solta fo-

guete antes da festa come��ar ��� afirma ele. ��� Ontem mes-

mo este mo��o aqui (aponta pra Tut��nio) chamava o dr.

Lincoln de desonesto e medroso, porque chegara �� con-

167

clus��o de que Marislei era maluca. Agora, t�� a��. Ela mesma

prova isso. S�� uma mulher completamente aluada pode

fazer o papel��o que acaba de fazer e sair da sala de cara

limpa como se n��o tivesse acontecido nada.

��� Fez isso porque t�� comprada. �� uma sacana puxa-

dora de maconha ��� diz Tut��nio.

��� N��o �� o que tu tava dizendo ontem. �� por isso

que n��o dou o passo maior do que a perna. S�� se fala uma

coisa quando se tem certeza, quando se t�� com o documento

na m��o. J�� vi muita coisa acontecer nesta cidade e n��o ��

agora que vai ser diferente.

��� E o que tu sabe a respeito das condi����es em que

foi obrigada a depor no 38.�� B I ? ��� indagou Cl��rio Falc��o.

��� N��o sei e tu tamb��m n��o. A mulher disse, inclusi-

ve, que foi bem tratada pelos militares. O que �� que se vai

contra-argumentar? Inventar? Dizer que foi torturada at��

criar a est��ria maluca pra defender Paulo Helal? Bota a

cabe��a no lugar, deputado. Se perder a calma, a�� mesmo ��

que n��o se descobre porra nenhuma.

Tut��nio est�� arrasado. Nunca antes sofrera semelhante

rev��s. N��o sabe por onde come��ar a discuss��o com Arturz��o.

Encosta-se no poste, de quando em vez cospe �� dist��ncia,

mais pra disfar��ar e n��o ouvir o discurso que o outro faz.

Dudu se aproxima, vem o homem da barbicha, a mu-

lher com a sacola de compras, a outra que tem uma corcova.

Os grupos se dividem, mas a voz de Arturz��o parece dominar

a todos.

��� O grande problema das investiga����es �� que todo

mundo falou demais. Cl��rio ficava o tempo todo cantando

de galo por a��.

��� Cantava de galo e canto porque sei bem o que

digo ��� afirma o deputado, exaltando-se.

Arturz��o parece n��o tomar conhecimento da indigna����o

de Cl��rio.

��� Este mo��o ent��o (refere-se a Tut��nio) vomitava

besteira pra todo lado. Agora, na hora da on��a beber ��gua,

o que se v�� �� que s��o um bando de bostas, n��o t��m prova

de porra nenhuma e querem de qualquer jeito incriminar os

outros.

��� Deixa de ser imbecil, cara. Tu quer que o Cl��rio e

o Dudu resolvam o caso sozinhos, se a maioria dos envolvi-

dos t�� do lado da corrup����o? O pai de Aracelli disse na

C P I que o bilhete que o papa-defunto mandou pra dona Lola

foi entregue a um promotor. Quantos promotores tem a ci-

168

dade? Por que n��o se convoca uma reuni��o com seu Ga-

briel e n��o se esclarece, pelo menos, esse ponto?

��� J�� se tem elemento de sobra pra decretar algumas

pris��es preventivas, se n��o v��em isso, n��o �� culpa nossa ���

afirma Cl��rio Falc��o. ��� Tenho certeza de estar cumprindo

o que prometi ao eleitorado. Lutei pra criar a C P I . T�� a��,

boa ou m��, funcionando, botando os podres pra fora. O

resto, sinceramente, n��o �� comigo. Pra isso existe pol��cia,

existe justi��a. N��o posso dar conta de tudo. Afinal, n��o sou

a palmat��ria do mundo. Dou minha contribui����o, como

Dudu t�� dando a dele., com grande sacrif��cio, como uns dois

ou tr��s policiais t��o fazendo. Os pr��prios pais da menina

se mandaram. A m��e desapareceu, vem a Vit��ria aos pulos,

o pai achou um jeito de ser transferido pra fora da cidade.

Isso �� que enfraquece mais a quest��o. Se estivessem �� frente

da situa����o a coisa seria outra ��� reclama Cl��rio.

Arturz��o cansa de tanto falar, a mulher da corcova re-

lembra fatos ligados a Marislei.

��� �� uma vagabunda, sim senhor! Conheci aquela

mocinha quando morei em S��o Torquato. N��o foi uma vez

s�� que ela teve presa na delegacia de l��. E tudo porque anda-

va metida com o pessoal dos entorpecentes.

A mulher da sacola de compras tamb��m fala, o homem

da barbicha d�� opini��o. Dudu bate o cigarro na caixa de

f��sforos.

��� N��o acho que haja motivo pra tanta lamenta����o.

Voc��s s��o realmente uns imbecis, por que ficam aqui per-

dendo tempo, falando besteira? Se querem colaborar com a

justi��a, por que n��o procuram o que fazer? Por que n��o v��o

por a��, ajudar nas investiga����es? Apareceu uma mulher por-

ra-louca, na C P I , que disse uma por����o de coisas e depois

desmentiu. E da��? O mundo vai desabar por isso? O traba-

lho que se t�� fazendo deve ser anulado?

��� Claro que n��o. O que tou combatendo, aqui, �� a

precipita����o, tanto do deputado quanto deste merda, que

vive o tempo todo iludindo os outros com mentiras ��� torna

a dizer Arturz��o.

O homem da barbicha abre o jornal, a foto de Marislei

aparece com destaque na primeira p��gina. A mulher da cor-

cova olha e estica os bei��os, cospe em sinal de desprezo.

��� Isso �� uma boa bisca. Tenho pena do marido dela.

Como �� que um homem vai se meter com uma sujeitinha

dessas!

��� E acima de tudo �� c��nica ��� diz a mulher da sacola

1 6 9

de compras. ��� Nunca vi ningu��m mentir com tanto desca-

ramento.

��� Deve ser maluca, como disse o policial ��� acentua

o homem da barbicha.

��� Sabe muito bem o que t�� fazendo. Foi, ali��s, o que

disse ��� afirma Tut��nio, tomando ares novos.

Dudu est�� impaciente para ir embora, Cl��rio quer ir

tamb��m, mas sente-se no dever de ficar, at�� que Arturz��o

esteja definitivamente convencido de que o trabalho que

vem desenvolvendo n��o �� em v��o. Arturz��o �� que parece

j�� n��o estar muito interessado em nada. O sol esquentou

bastante, a mulher da corcova foi embora, sempre indigna-

da com Marislei, a da sacola de compras se distancia.

��� Bem, pessoal, vou jogar um pir��o no bucho, porque

hoje o mar n��o t�� pra peixe. E quando �� assim, �� melhor

repousar. S�� os peixinhos podem ficar por a��, pensando que

o oceano �� seu. Deixa que eles pensem ��� diz Tut��nio, de-

bochando de Arturz��o.

��� Tu vai de tarde ouvir a lengalenga do Manoel Ara��-

jo? ��� pergunta o homem da barbicha a Tut��nio.

��� Claro. Tenho de saber o que �� que os amigos de

Arturz��o dizem, pra se poder entender de que lado anda

a verdade.

Arturz��o est�� falando baixo com Cl��rio, n��o liga ��s pro-

voca����es de Tut��nio. Este caminha pela rua em companhia

do homem da barbicha e de Dudu. O perito n��o consegue

esquecer Rita Soares, nem o sumi��o de Tuca. E, em dado

momento, lembra-se do telefonema que Ildefonso recebeu,

da mulher que viu as crian��as voando por cima do quintal.

"Por que n��o investigar, saber pra que lado foram?"

Nove

Nos corredores do pr��dio da Assembl��ia a confus��o est��

formada. Cl��rio �� procurado ora por um grupo, ora por

outro, jornalistas metem-se na conversa, fot��grafos estouram

flashes. Tut��nio est�� numa mesa do bar, n��o entende o por-

qu�� de tanta confus��o, disse-me-disse. No momento em que

o deputado chega perto �� que fica sabendo.

��� O capit��o Manoel Ara��jo n��o me quer na C P I . N��o

presta depoimento se eu for pra mesa.

Dudu opina:

170

��� Acho melhor te guentar por aqui. O que importa ��

a presen��a dele. Vai ter que falar. O resto �� quest��o pessoal.

Um funcion��rio pede sil��ncio, a campainha toca, o pre-

sidente da C P I , deputado Cl��vis de Barros, anuncia:

��� Estamos aqui reunidos, para ouvir mais um depoi-

mento do rumoroso caso Aracelli. Quem nos fala, desta vez,

�� o encarregado pela formula����o do inqu��rito, capit��o PM

Manoel Nunes de Ara��jo.

��� Na oportunidade em que se tentava desvendar o

crime ��� diz Manoel Ara��jo ��� foram levantadas tr��s hi-

p��teses pela equipe policial que dirigia: a) o crime teria sido

praticado por elemento humilde, que iludiu a menina at��

o local em que o corpo foi encontrado; b) o criminoso teria

utilizado um carro para desaparecer com a menor; c) Ara-

celli teria sido atra��da para uma casa, onde tamb��m foi des-

pojada do material escolar.

"Abandonou-se a primeira hip��tese porque, na hora em

que ela teria sido arrastada para o local do crime, costuma

haver movimenta����o de pessoas por perto. A segunda tam-

b��m foi posta de lado, porque onde o corpo foi abandonado,

n��o d�� acesso a ve��culos. Considerou-se bastante a terceira

hip��tese e nela come��amos a trabalhar. Investigamos exaus-

tivamente todas as casas abandonadas de Vit��ria e as buscas

se processaram em outras, onde residiam elementos com ante-

cedentes criminais. Como na ��poca o Edif��cio Apolo, locali-

zado na Avenida Desembargador Santos Neves, ainda estava

desabitado, passou a me preocupar. Numa dilig��ncia ali rea-

lizada, encontramos dois vigias e uma japona com manchas

de sangue. Como a pol��cia n��o tem laborat��rio especializado

solicitei a colabora����o dos m��dicos Henrique Tomazzi Netto

e Deomar Bitencourt Pereira J��nior. Queria certificar-me

a respeito das manchas. E, caso fosse sangue, se o tipo coin-

cidia com o da menina. O dr. Henrique Tomazzi pediu-me

permiss��o para convocar outros m��dicos e ir ao Instituto M��-

dico-Legal, retirar sangue do cad��ver. Dias depois a pes-

quisa tava conclu��da: era sangue, mas os m��dicos n��o podiam

determinar se humano e de que tipo. Por essa mesma ��poca

recolheram-se, numa Kombi, fragmentos de tecidos que pa-

reciam manchados de sangue. O material foi encaminhado

ao Rio de Janeiro. Infelizmente o m��dico-legista tava de

f��rias e o diretor do Instituto M��dico-Legal do Rio informou

ao policial encarregado do material que os exames poderiam

ser feitos aqui mesmo em Vit��ria. Aproveitando a boa von-

tade da equipe do dr. Tomazzi, pedi que fizesse exame id��n-

171

tico nos tecidos encontrados. Posteriormente, soube que n��o

se tratava de sangue e, sim, de tinta. Desinteressei-me de

lavrar laudo, convencido de que nada havia a investigar. A

respeito da japona, soube que fora adquirida por um vigia

do Edificio Apolo, ao seu colega da Telest. Quando isso

ocorreu, j�� estava com as manchas de sangue. O vigia da

Telest, por sua vez, fora dispensado do emprego, muito

antes de Aracelli ser morta. Explica o depoente que os edi-

f��cios da Telest e Apolo s��o ligados, da�� o relacionamento

dos vigias.

A uma pergunta do deputado Juarez Leite, responde:

��� Sou amigo do sr. Dante Michelini. Ele ��, de fato,

portador de uma carteira de pol��cia. Isto o credencia a ter

participa����o nas dilig��ncias de apura����o do crime. N��o sei

como, elementos inescrupulosos tentam envolv��-lo no caso

Aracelli, quando foi ele pr��prio quem procurou os dentistas

El��i Borgo e Lu��s Edmundo de Carvalho, para os exames

de arcada dent��ria da menor e assim determinar sua verda-

deira identifica����o.

Ao deputado Cl��vis de Barros, afirma:

��� O ex-corregedor Alinaldo Faria de Souza, hoje pro-

motor substituto, �� quem descobriu Marislei, a mo��a que

conta est��rias fant��sticas a respeito do crime. Por n��o ter

condi����es de perman��ncia na Pol��cia Civil foi transportada

para o 38.�� B I , cujo Servi��o de Informa����es ajudava nas di-

lig��ncias. Ap��s ser ouvida por minha equipe e componentes

do 38.�� B I , chegou-se a uma conclus��o: fazia-se necess��ria

a declara����o de Paulo Helal. Marislei afirmava que ele era o

criminoso e descia a min��cias. Por isso, procedeu-se a uma

acarea����o. Ao mesmo tempo precis��vamos levar Paulo Helal

ao 38.�� B I . E, na impossibilidade de intim��-lo, resolvemos

agir com a cobertura do policiamento do Tr��nsito. Um guar-

da foi �� sua casa, enquanto outros ficavam de sobreaviso.

Acontece que, em vez de aparecer de carro, como os poli-

ciais esperavam, o mo��o surgiu numa moto, sendo alcan��ado

em movimento. Um policial pediu-lhe os documentos. Ele

exibiu. Estavam corretos. A�� o policial disse que havia atro-

pelado uma crian��a na praia do Costa. Paulo Helal ent��o

come��ou a rir e disse que era imposs��vel, pois estava saindo

pela primeira vez com a moto. Jamais havia rodado com ela

pela cidade. Mesmo assim terminaram levando-o ao 38.�� B I .

Naquela unidade ficou �� disposi����o do capit��o Guilherme,

que fez a acarea����o. De imediato provou-se que a mo��a n��o

o conhecia sequer. Diante disso, Marislei foi reconduzida ��

1 7 2

superintend��ncia de pol��cia. Prestou depoimento perante o

promotor de justi��a, Wolmar Bermudes. Durante as decla-

ra����es perdeu-se em contradi����es. De uma parte afirmava ter

sido amante de Paulo Helal e com ele estivera no local do

crime; de outra, dizia n��o o conhecer. Diante disso, n��o en-

contrei raz��o suficiente para interrogar Paulo Helal.

A uma outra indaga����o do presidente da C P I , acentua:

��� N��o ouvi Dante Michelini J��nior, porque n��o apa-

receu no bojo dos autos nada que o incriminasse. Se isso ti-

vesse ocorrido, imediatamente deixaria a presid��ncia do in-

qu��rito, por ser amigo do sr. Dante Michelini, como j��

afirmei.

Ao deputado Juarez Leite, explica:

��� Como respons��vel pelo inqu��rito, limitei-me a ouvir

pessoas que, de uma forma ou de outra, estivessem aponta-

das como poss��veis participantes do crime. H�� ainda que

considerar o seguinte: durante quase dois meses eu e minha

equipe nos desdobramos. Primeiramente a menor estava de-

saparecida, depois se identificava o cad��ver, mas a fam��lia

n��o o reconhecia. Desta forma, nossa tarefa era procurar a

menina viva, perdida por a��; procurar a menina morta e lo-

calizar o criminoso. O cl��max do nosso drama surgiu quando

sa�� daqui, em companhia de v��rios policiais, para localizar

uma casa branca, com a pedra nos fundos e uma palmeira

na frente, l�� pros lados da Baixada Fluminense. Isto porque

o ilustre professor parapsic��logo Wilson Arag��o dizia ver a

menina que se procurava nessa casa. Levei at�� um veterin��-

rio comigo, por ser conhecedor da regi��o e cheio de boa

vontade. Meu estado emocional, na ��poca, era de tal ordem

que, podem estar certos, cheguei a acreditar no parapsic��lo-

go. E isso tudo tamb��m aconteceu porque os pais de Ara-

celli nem de longe admitiam a hip��tese de ela estar morta.

Tamb��m ainda n��o dispunha de provas concretas que asse-

gurassem ser de Aracelli o corpo encontrado pelo garoto

Monjardim.

A uma pergunta do deputado Aldo Prud��ncio, res-

ponde :

��� Tal como acreditei nas sugest��es do parapsic��logo,

acreditei tamb��m numa por����o de boatos. Um deles mencio-

nava que a menina teria sa��do do Hospital Infantil. Procurei

o dr. D��lio Del Maestro, que me p��s inteiramente �� vontade

para fazer as pesquisas que julgasse necess��rias. Provid��ncia

id��ntica foi tomada com rela����o ao Hospital Jesus Menino.

1 7 3

Mas os boatos eram apenas boatos. Nada de proveitoso ti-

rou-se de todo esse trabalho.

Motivado por uma outra indaga����o, Manoel Ara��jo vol-

ta a falar de Marislei:

��� Trata-se de uma mentirosa, que inventa est��rias

com a maior facilidade. Por interm��dio do policial Barreto

pude certificar-me de que no dia 18 de maio de 1973, dia

em que Aracelli desapareceu, essa jovem estava hospitalizada

numa maternidade em Vila Velha, raz��o pela qual n��o podia

ter participado dos acontecimentos que idealizou.

Mais adiante o depoente declara:

��� Ouvi, na superintend��ncia de pol��cia, a ex-professo-

ra de Aracelli, Marlene Stefanon. Suas declara����es constam

do inqu��rito. Outra vez, no bar Franciscano, em Camburi,

ela sentou �� minha mesa, quando conversamos sobre assun-

tos diversos e possivelmente sobre o caso Aracelli. Em v��-

rias outras ocasi��es, no mesmo bar, tornamos a nos encon-

trar. Mas ela estava sempre acompanhada da senhorita de

nome Janete. Algumas vezes, quando falamos, fazia-me

acompanhar do major Jorge de Oliveira. Quem me conhece

sabe que tenho sido encontrado em muitos outros lugares

em companhia desse militar, que �� meu amigo particular.

Dirigindo-se ao deputado Juarez Leite, esclarece:

��� Conheci o comiss��rio Chagas atrav��s de Jorge Mi-

chelini. �� amigo da fam��lia Miche��ini. Jamais o vi nas de-

pend��ncias da superintend��ncia de pol��cia.

Ao deputado Aldo Prud��ncio, diz:

��� N��o conhe��o a enfermeira Elza Alves. Mas, pelas

declara����es do sr. Asdr��bal Cabral ao jornal A Tribuna, ��

quem melhor pode informar a pol��cia a respeito do crime.

Como �� de praxe, n��o cheguei a convocar ningu��m por edi-

tal, para prestar declara����es. Todavia, se a enfermeira sabe

de alguma coisa sobre a morte da menina e n��o compareceu

para comunicar isso ��s autoridades, praticou crime de omis-

s��o. N��o sei se essa enfermeira chegou a prestar declara����es

��s autoridades do 38.�� B I . N��o posso me lembrar se ouvi

dona Elza Alves. Mas, de uma coisa estou certo: ningu��m

que interroguei chegou a dizer nada de positivo a respeito

do seq��estro e morte de Aracelli.

Outra pergunta de um parlamentar e o capit��o Manoel

Ara��jo prossegue:

��� N��o conhe��o o filho do general Dion��sio Maciel e

raramente estive na Pol��cia Federal, durante a gest��o daque-

la autoridade. Quando Marislei foi ouvida na presen��a do

174

promotor Wolmar Bermudes, salvo engano, o general estava

na superintend��ncia de pol��cia. N��o tenho conhecimento de

que o general haja "tirado" Paulo Helal do 38.�� B I , na noite em que foi acareado com Marislei. Tamb��m n��o sei informar se o ex-corregedor Alinaldo Faria assistiu �� acarea����o

de Marislei com Paulo Helal no 38.�� B I . Soube, pelo capit��o

Guilherme, da improced��ncia das informa����es que prestou.

Posteriormente, quando a submeti a novo interrogat��rio,

constatei que nada sabia. N��o ouvi Paulo Helal por julgar

desnecess��rio. Tamb��m n��o houve qualquer recomenda����o

do comando do 38.�� BI nesse sentido.

Relativamente ao caso Piccin, morto misteriosamente

na Santa Casa de Miseric��rdia, diz:

��� N��o conheci Fortunato Piccin. Desconhe��o que te-

nha passado mal no dia em que Aracelli sumiu, sendo inter-

nado. Na ��poca de sua morte sei que correu o boato de

que havia se suicidado, fato que despertou curiosidade na

popula����o e na pr��pria pol��cia. Examinando o atestado de

��bito, vim a saber que a causa mortis era "impaludismo

cr��nico". N��o vi interesse em prosseguir nas averigua����es.

N��o sei se Piccin era ou n��o conhecido da menina Aracelli.

A expectativa na sala �� grande. Todos est��o de olhos

fixos no capit��o Manoel Ara��jo. Tut��nio r��i a unha e de

quando em vez passa o len��o no rosto. Os ventiladores giram

com barulho, um cont��nuo chega trazendo garrafas d'��gua e

copos. A uma pergunta do deputado Cl��vis de Barros, escla-

rece o depoente:

��� Jamais recebi de Dante Michel��ni fragmentos de

vestes que fossem, presumivelmente, do uniforme de Ara-

celli. Muito tempo depois de ter me afastado espontanea-

mente da presid��ncia do inqu��rito, frustrado por n��o ter

descoberto nada, recebi um telefonema do dr. Oswaldo Hor-

ta Aguirre, juiz federal. Falava ele de uma casa abandonada

na Avenida Desembargador Santos Neves. Afirmava que a

casa era um antro de marginais e que por isso os vizinhos

viviam em constante sobressalto. O juiz solicitou-me uma

incurs��o no local, para afastar os malfeitores. Compareci

��quela casa, uma noite, acompanhado de alguns policiais.

L�� chegando, pela quantidade de estragos existentes, con-

clu�� que j�� estaria abandonada �� ��poca do desaparecimento

de Aracelli. Surpreendi-me por n��o haver posto tal casa na

minha lista de pr��dios abandonados. Naquela noite encon-

trei um peda��o de pano que se assemelhava ao do uniforme

de Aracelli. O pano era de xadrez azul, com fundo claro.

175

Ap��s o plant��o e juntamente com o policial Moacir Batista,

fui �� resid��ncia da professora Zolirma, diretora do Col��gio

S��o Pedro, onde estudava a menina. Mostrei o tecido e ela

disse que n��o era o mesmo. N��o joguei o pano fora. Coloquei

num envelope e deixei no porta-luva do carro. Algum tempo

depois, fui procurado por Dante Michelini. Ele me punha

a par de um problema novo. Contou que seu filho, Jos��

Eduardo, servia o ex��rcito, numa unidade do Rio de Janeiro.

Um tenente daquela unidade esteve em Vit��ria e ao retornar

trancou o soldado numa sala e quis arrancar dele a confiss��o

de que era um dos respons��veis pela morte de Aracelli. O

rapaz, ap��s ser liberado pelo oficial, telefonou para casa,

narrando o fato e responsabilizando o pai pelos momentos

dif��ceis que passara. Dante Michelini estava realmente apre-

ensivo e me procurou pra saber que caminho tomar. Eu lhe

disse que s�� havia uma forma de esclarecer a situa����o: co-

municar o ocorrido ao capit��o Guilherme, que, na ��poca, ha-

via sido transferido para o Rio e tinha conhecimento do

caso Aracelli, desde o in��cio. Procurei o endere��o que ele me

dera antes de viajar, mas n��o encontrei. A�� me lembrei que

o sargento Jobson Mota Lima sabia. Fui com Dante Mi-

chelini �� casa do sargento, em Vila Velha. N��o estava. Dis-

semos a sua esposa que desej��vamos falar com ele, com

certa urg��ncia. Horas depois, j�� em casa, recebi a visita de

Jobson. Estava bastante nervoso. Disse que seu irm��o havia

dado baixa do ex��rcito, h�� dias, e sumira. Com minha jda

a sua casa, imaginou que tivesse algo desagrad��vel a parti-

cipar-lhe. Tranq��ilizei-o quanto a isso e pedi o endere��o do

capit��o Guilherme. Em seguida, liguei pra casa de Dante

Michelini e soube que estava no bar Franciscano. Fui pra

l��, junto com Jobson. Ficamos os tr��s conversando durante

algum tempo, quando, ent��o, falei pra Jobson sobre a casa

abandonada, na Avenida Desembargador Santos Neves. Res-

pondeu que gostaria de dar uma espiada, j�� que ficava no

caminho da superintend��ncia de pol��cia, local onde teria de

ir, atr��s de not��cias do irm��o. Terminamos indo os tr��s: eu,

ele e Dante Michelini. Vistoriamos os diversos c��modos da

resid��ncia, subimos e descemos escadas. Jobson, sempre mui-

to ativo, andou pelo quintal e quando apareceu estava de

posse de alguns fragmentos de roupa velha. Ao mesmo tem-

po lembrou-se de que Aracelli era aluna s�� dois meses do

Col��gio S��o Pedro e, por isso, sua farda devia ser nova.

Mesmo assim achamos prudente guardar os trapos. Colo-

quei-os no mesmo envelope onde estava o peda��o de pano

1 7 6

quadriculado. Da�� partimos para a superintend��ncia, onde

pediu permiss��o para dar uns telefonemas. O delegado de

dia era Ildefonso Primo. Permitiu que Jobson desse seus

telefonemas enquanto ficamos conversando. Entre outras coi-

sas falamos na tal casa abandonada e mostrei-lhe os trapos

ali encontrados. O delegado tava bastante satisfeito, a ponto

de dizer a Dante Michelini que havia desenvolvido inves-

tiga����es no pressuposto de que estivesse de alguma forma

envolvido com o caso Aracelli, mas podia afirmar j�� estar

"desgrilado". Na sa��da da superintend��ncia o delegado per-

guntou se podia ficar com os fragmentos de tecido e eu res-

pondi que estavam ��s suas ordens. Esta �� a real vers��o dos

fatos. Nunca me passou pela cabe��a a pretens��o de tumul-

tuar as investiga����es ou induzir o delegado Ildefonso Primo

em erro.

"N��o sabia de quem era a casa que foi objeto da nossa

investiga����o. S�� depois, pelos jornais, fiquei ciente de que

fora ocupada pela fam��lia Piccin."

Ao deputado Juarez Leite, explica:

��� Como estive pessoalmente no local em que o corpo

da menor foi encontrado, creio que as fotografias desapare-

cidas de pouco ou nada elucidariam o fato. Tive conheci-

mento do sumi��o das fotos, colhidas pelo fot��grafo Elson,

mas n��o creio que isso tenha causa dolosa.

Dez

��� O homem ia bem o tempo todo. Depois chegou a

ficar pat��tico. Um amor profundo por Michelini, pela causa

p��blica e a felicidade geral da na����o. Ouviu o interrogat��rio

de Marislei, participou da acarea����o no 38.�� B I , mas n��o

sabe como o Paulo Helal saiu de l��. Coitadinho do capit��o

Manoel Ara��jo! T��o bem-intencionado! E o que foi pior:

depois de ter vasculhado todas as casas abandonadas da ci-

dade, s�� esqueceu uma: a que ficava no caminho da pr��pria

superintend��ncia de pol��cia. Que pessoa estranha, o capit��o!

E tamb��m n��o interrogou a professora Stefanon, na boate

Franciscano. Apenas se encontrou com ela por l��, diversas

vezes.

Tut��nio vai dizendo essas coisas, com certo desencanto,

Arturz��o est�� perto, folheando um jornal do Rio.

177

��� O homem n��o vai com tua cara, hem, meu chapa!

��� diz Tut��nio a Dudu, que vem chegando.

��� �� preciso que ele saiba se a cidade o considera um

policial na acep����o do termo ��� responde Dudu. ��� Os ca-

pixabas t��o cansados de mentirosos e enrol��es. Pelo que

disse, nada tem import��ncia. Pra que foram tiradas as fotos,

ningu��m sabe.

��� Cl��rio �� que n��o teve nem vez de entrar na sala ���

argumenta Dudu, gozando o deputado.

��� Foi at�� bom. N��o quero nem ver esse cara. Me d��

nojo. Quem o v�� falando pensa que �� um santo. Tudo cer-

tinho. At�� a amea��a velada �� enfermeira, por crime de omis-

s��o. Ele tem tudo certinho, quando se trata da defesa dos

poderosos, principalmente dos Michelini. Tamb��m, as per-

guntas que lhe fizeram foram fracas. Nada sobre a morte do

pobre Homero Dias. Nenhuma palavra sobre o material que

o sargento deixou aos seus cuidados.

Algumas pessoas chegam, Cl��rio fala sem muita vonta-

de, Tut��nio n��o est�� com apetite para discuss��es.

��� Confesso que o papo do homem me deixou triste.

Pobre desta cidade e desta gente. �� como gado no curral.

Seu Gabriel �� que t�� certo. Quanto mais longe ficar daqui

melhor.

��� O que �� isso, cara? T�� desiludido da vida? ��� inda-

ga Arturz��o. ��� O depoimento do capit��o foi apenas mais

um. Outros vir��o. Talvez ainda apare��a algu��m que justifi-

que os esc��ndalos que o deputado anda fazendo.

��� N��o fa��o esc��ndalo nenhum. Apenas aciono os fa-

tos. Jogo merda no ventilador ��� afirma Cl��rio, um tanto

nervoso.

��� De que adianta? O homem n��o reconhece nem o

Dudu como policial, quanto mais ��� considera Tut��nio.

��� Mas o Dante Michelini �� policial. Tem carteirinha

e tudo. Anda armado e faz o que bem entende ��� acentua

Cl��rio.

��� Isso n��o vem ao caso ��� diz Arturz��o. ��� N��o va-

mos pro terreno pessoal que n��o interessa. �� claro que o

capit��o t�� puto com voc��s. Acontece que a est��ria dele t��

bem contada. N��o adianta o best��ide a�� querer esculhambar,

que se estrepa. Pode ter um ou outro ponto fraco. No mais,

faz sentido. Eu tamb��m tava l�� e ouvi a mesma coisa que

todos ouviram. N��o adianta vir pra c�� com especula����o. ��

por isso que o caso t�� dando pra tr��s e vai piorar se con-

tinuarem assim.

178

Cl��rio tira o palet��, afrouxa o la��o da gravata, Dudu

diz ter um encontro importante. Quando chega em casa vai

ao banheiro, acomoda-se no vaso, fica fumando um temp��o

e olhando a roupa suja, o sapato atolado.

"Naquele dia n��o choveu, n��o, seu Dudu ��� afirmou

Vov�� Gelli."

"Foi o dia que se vendeu mais cerveja. Isso aqui tava

assim de gente ��� diz o gar��om de cara gorda, servindo co-

nhaque."

"Tuca foi embora com Aracelli, m��e. Atravessou o

campinho e sumiu. Tava come��ando a chover ��� conta

Tadeu."

"Que mundo �� esse em que estou vivendo? Que foi

feito da minha cidade, com as pessoas tranq��ilas, passeando

pelas ruas, com as pra��as cheias de bal��es coloridos e de

crian��as? Onde est��o aqueles que tinham palavra e n��o eram

escravos do dinheiro? Quem �� tia Rita? Que poderes tem

ela pra me arrastar debaixo de uma tempestade, quando em

toda Vit��ria fez sol quente? Aracelli existe? A menina que

t�� na geladeira �� ela ou dona Lola t�� certa, n��o �� sua filha?

Quem �� seu Gabriel, como chegou a Vit��ria? E dona Lola?

Por que veio parar nestas bandas? E Michelini e o capit��o

Manoel Ara��jo? E o pai de Piccin? Como um homem ins-

tru��do suspeita que mataram seu filho e recebe o corpo pra

sepultamento sem submet��-lo a aut��psia?"

A cabe��a roda, a fuma��a do cigarro se esvai na dire����o

do basculante, o apartamento est�� em sil��ncio. Olha os obje-

tos familiares, olha as figuras nas paredes, olha o sol tra��an-

do um ret��ngulo no ch��o de ladrilhos lustrosos. A vontade

que tem �� de sumir para bem longe dali. Esquecer as inves-

tiga����es, as d��vidas, os compromissos assumidos, os insultos

e at�� as amizades.

"Vit��ria j�� n��o �� a mesma, seu Dudu. N��o a do meu

tempo ��� afirma Vov�� Gelli. ��� Rodo por a�� tudo h�� mais

de trinta anos, o senhor bem sabe, nunca pensei que se che-

gasse a esse ponto. A cidade t�� na m��o dos malfeitores. Ban-

dido de tudo quanto �� tipo vem pra c�� e engorda."

Dudu sacode a cabe��a. O rosto de Vov�� Gelli, de olhos

pequenos e azuis, est�� bem perto. Desde que se entende

conhece o imigrante italiano. O primeiro carro de luxo que

Vit��ria viu passar nas ruas era de Vov�� Gelli. Um Packard

preto, que enfeitava nos dias de casamento. Ficava quase

todo tempo estacionado debaixo da castanheira, esperando

179

cliente. Vov�� Gelli vestia um terno caqui e nas ocasi��es mais

importantes botava at�� o bon��, da mesma fazenda. Quando

passava pela rua onde a fam��lia de Dudu morava, fazia o

olhar mais s��rio do mundo. O carro reluzia nas rodas e na

lataria. Dudu o considerava t��o importante quanto o gover-

nador, ou at�� mais.

" O s tempos passaram, meu velho. Vit��ria mudou. N��s

mudamos. Veja s�� que policial sou eu que n��o descubro na-

da. Veja s�� como ficamos. Cad�� o Packard, cad�� o terno

caqui?

Antes de levantar-se do vaso Dudu ainda v�� os olhos

mi��dos e inquietos do italiano, o nariz que avermelha no

meio do rosto cansado, de barba por fazer.

"Nos tempos do Packard, aqui n��o corria dinheiro, mas

tamb��m n��o se precisava correr atr��s dele. Com qualquer

coisa se passava e ainda pude educar dois filhos."

Vov�� Gelli relembrava essas coisas, liga o motor, Dudu

aperta a descarga.

Quando chega ao pr��dio da Assembl��ia encontra Cl��rio

t��o animado, que tem vontade de perguntar onde comprou

otimismo. Mas o deputado est�� atarefado.

��� Vamos entrando, pessoal. Hoje, a coisa vai ser quen-

te. Vamos botar pra quebrar. Quem for podre n��o ag��enta

o tranco.

A sala da Assessoria T��cnica, como sempre, est�� repleta.

O deputado Cl��vis de Barros faz um relato sucinto das ati-

vidades da C P I �� mulher que est�� sentada �� sua frente. ��

a auxiliar de enfermagem do Hospital Infantil Nossa Se-

nhora da Gl��ria, de nome Ana Maria Migliorelli de Paiva,

brasileira, casada, quarenta anos. A mulher est�� p��lida e um

tanto nervosa. �� primeira pergunta do deputado, diz:

��� Fui admitida no Hospital Infantil no dia 22 de

maio de 1973. Por l�� o tema de quase todas as conversas

era o desaparecimento de Aracelli. Diziam que o corpo da

menor apareceu l�� perto e eram freq��entes as discuss��es en-

tre os funcion��rios. Dentre as hip��teses levantadas, havia

uma de que na noite de 18 de maio, Marislei, filha da aten-

dente Maria das Dores, daquele hospital, foi at�� l�� procurar

a m��e. Saltou de um carro onde, conforme os coment��rios,

havia outras pessoas. A m��e teria dito a Marislei que l�� n��o

era poss��vel ser atendida e que procurasse a Cl��nica Jesus

Menino, pois havia pronto-socorro. Pelo que sei, nessa noite

estavam de plant��o: Maria das Dores, Teresinha Jacinto e

180

Jo��o de Sousa. Maria das Dores depois nos explicou o se-

guinte: a filha era casada mas separada e tinha um menino

que ela, Maria das Dores, tomava conta. Posteriormente, os

jornais come��aram a noticiar o assassinato da garota, bem

como as hip��teses a respeito de sua morte. O nome de Paulo

Helal passou a ser citado e fiquei curiosa de conhec��-lo. De

certa feita estava com algumas amigas fazendo feira na praia

do Canto, a�� uma delas me cutucou e disse: olha o Paulinho

Helal. Ele tava num carro verde, tipo esporte. Em outra

ocasi��o tornei a v��-lo, num carro branco, na Rua J o s �� Tei-

xeira.

A uma pergunta do deputado Aldo Prud��ncio, pros-

segue:

��� Num dia de julho de 1974, tava de plant��o e reco-

nheci Paulo Helal, no p��tio do Hospital Infantil. Tava de

carro, em companhia de uma mulher. Isso aconteceu entre

vinte e duas e vinte e tr��s horas. No segundo dia de plant��o

a cena se repetiu e no terceiro vi quando do carro de Paulo

Helal saltou a mulher de estatura m��dia, cabelos longos, e

entrou no hospital. Paulo Helal' manobrou e desceu, vagaro-

samente, at�� o meio da ladeira. Curiosamente fui ver se

localizava a tal mulher. Estive no quarto de duas universi-

t��rias (acad��micas), mas n��o obtive nenhuma informa����o.

Encontrei, ent��o, com Izanir, supervisora, e perguntei a res-

peito da mo��a que acabava de entrar, ela n��o sabia de nada.

Procurei Maria das Dores, n��o estava. S�� reapareceu umas

duas horas mais tarde. Num outro plant��o vi um Opala ver-

melho, do qual saiu a mesma mulher, embora n��o estivesse

com os cabelos soltos. A�� fiquei sabendo que era, de fato,

Marislei, filha de Maria das Dores. Encontrava-se em com-

panhia do marido, como disseram algumas colegas, embora

soubesse que era separada.

Dudu volta ao apartamento vazio, de janelas fechadas,

fog��o apagado, bibel��s, na expectativa de alguma coisa que

n��o acontece, estira-se no sof��, aperta o bot��o do gravador.

A voz de Ana Maria Migliorelli recome��a a mesma est��ria.

Quando termina, o perito faz novamente voltar ao princ��pio.

Qualquer coisa naquele amontoado de palavras ��, de fato,

importante. Numa fra����o de segundo, no espa��o de uma pa-

lavra para a outra, est�� a verdade. Mas que verdade? Como

surpreend��-la? Fecha os olhos, os ru��dos dos carros descen-

do a ladeira chegam at�� o apartamento, o suave toque dos

sinos assinala as horas.

181

"Uma maluca viu duas crian��as passarem voando no

seu quintal."

Ildefonso Primo desliga o telefone.

"E como viu as crian��as se t�� de noite?"

"Disse que eram luminosas como anjos."

" A s crian��as s��o luminosas, tia Rita. N��o se assuste com

o que aconteceu a Tuca. Feliz dele que se foi como os anjos

v��o. N��o ficou pra crescer como n��s e depois se perder nesta

roda de supl��cios. A mentira e a corrup����o tirando o pouco

oxig��nio que resta �� cidade, inundando os esgotos, alastran-

do-se no mar."

Abre a geladeira, a lata de salsichas, joga um pouco de

manteiga na frigideira, acende o fogo. Depois quebra os

ovos, enche um copo de leite. Senta-se no sil��ncio da cozi-

nha de azulejos brancos, cadeiras recobertas de f��rmica, mas-

tiga sem vontade. Os pensamentos est��o povoados de anjos

denunciados e de criminosos que ningu��m denuncia.

"Dante Michelini pegou a m��scara que tava no banco

traseiro, enfiou na cabe��a, saiu com o irm��o Jorge, na dire����o

da superintend��ncia."

"E o que foram fazer l��, Bertoldo L i m a ? "

"N��o sei. Essa gente n��o se abre com motoristas."

"Recebi uma fita, mas n��o tive tempo de ouvir", afirma

Lincoln Gomes de Almeida.

" A s fotos que sumiram n��o eram importantes. Eu sei

disso", acentua o capit��o Manoel Ara��jo.

"Nada �� importante pra eles, tia Rita, muito menos a

vida de meninas como Aracelli. Seu Gabriel n��o tem dinhei-

ro pra que sua dor seja importante. Eu n��o tenho influ��ncia

bastante pra ser importante. Pra ser importante �� dif��cil e

n��o ��. Basta ter dinheiro pra dobrar opini��es, conter inves-

tiga����es, fazer sumir documentos, perverter m��dicos, tramar

a morte dos que s��o teimosos e n��o se submetem �� corrup-

����o."

O telefone toca. �� Ildefonso Primo.

��� Parece que o Elson tem coisa importante a dizer na





C P I .


Dudu ouve sem muito interesse o que o delegado vai

narrando, acrescenta uma ou duas opini��es, promete estar no

depoimento, levar o gravador. Estira-se novamente no sof��,

fica olhando o vazio e adormece.

1 8 2

Onze

Aos 30 dias de abril de 1975, nesta cidade de Vit��ria,

capital do Esp��rito Santo, na sala da Assessoria T��cnica da

Assembl��ia Legislativa, no Pal��cio Domingos Martins, sob a

presid��ncia do deputado Cl��vis de Barros, reuniu-se a Comis-

s��o Parlamentar de Inqu��rito, criada pela Resolu����o n.��

1330, de 15 de abril de 1975, para tomar as declara����es

do sr. Elson Jos�� dos Santos, brasileiro, casado, funcion��rio

p��blico estadual, residente na Rua Presidente Kennedy,

s/n.��, distrito de Campo Grande, munic��pio de Cariacica,

neste Estado.

��� Posso dizer ��� afirma Elson dos Santos ��� que tou

surpreso com o inqu��rito administrativo por causa do desa-

parecimento das fotografias. Isso por que o atelier fotogr��-

fico da reparti����o tem umas sete chaves e era l�� tamb��m que

se faziam refei����es. Todo mundo entrava e sa��a, como numa

casa suspeita. E al��m de entrar e sair, no atelier se revela-

vam fotos de atos indecorosos, praticados por servidores da

superintend��ncia de pol��cia. O chefe �� Alexandrino Alves.

Pra que tenham id��ia, basta dizer que nesse atelier foi foto-

grafado um rapaz se masturbando. Tinha o p��nis t��o grande

que as fotos serviam de curiosidade pra todo mundo. O pr��-

prio superintendente, Gilberto Barros de Faria, mandou re-

quisitar algumas dessas fotografias do mo��o bem-servido.

Al��m dessas coisas, h�� um outro fot��grafo, o Hermes, que

morava no pr��prio atelier. O Hermes tamb��m se masturbava

e uma vez foi fotografado nu. Junto com os funcion��rios que

entravam e sa��am do laborat��rio, constantemente, apareciam

tamb��m alguns presos, pra serem fotografados. Em raz��o

disso, espero que os senhores compreendam, n��o me sinto

responsabilizado pelo sumi��o das fotos.

A uma pergunta do deputado Aldo Prud��ncio, res-

ponde:

��� No local onde o corpo da menor foi encontrado bati

apenas um filme e n��o quatro. Esse filme era mais pra ilus-

trar o laudo. N��o tinha nada de importante. Sumiu antes de

ser revelado. Fiz o comunicado ao chefe do servi��o, Art��-

nico Ribeiro, a Milton Lira, chefe da Se����o de Levantamento

de Crimes, e a Alexandrino Alves, chefe do Servi��o de Per��-

cias Fotogr��ficas. Depois disso, peguei uma suspens��o de

trinta dias. O per��odo que levou da comunica����o at�� a sus-

pens��o foi de um ano e quatro meses. Em maio de 1973,

Alexandrino Alves, Milton Lira e Art��nico Ribeiro "legiti-

183

maram" uma Kombi, da qual tiraram cabelos e sangue pra

exame. N��o sei se houve, de fato, a per��cia. Sei que as fotos

tiradas da Kombi, em 1973, somente em 1975 �� que foram

reveladas. N��o vi luvas no local em que o corpo de Aracelli

foi encontrado. As que tavam l�� foram levadas por n��s. No

dia em que fotografei o local n��o vi outro fot��grafo por l��.

Posteriormente, no entanto, o jornal Di��rio cedeu negativos ��

pol��cia, que eu pr��prio revelei. Acredito tamb��m que, se o

perito Carlos ��boli tivesse em m��os as fotografias da Kombi

"legitimada", teria elucidado o crime.

Elson toma um pouco d'��gua, mexe nervosamente as

m��os.

��� Em setembro de 1974, tive uma reuni��o no Pal��cio

da Justi��a. Era presidida pelo juiz Waldir Vitral. Participa-

ram: Carlos ��boli, coronel L��zio, Gilberto Barros de Faria,

Alexandrino Alves, Milton Lira, Manoel Rodrigues, Hermes

Ferreira da Silva e Art��nico Ribeiro. A�� o superintendente

Barros de Faria prometeu ao perito ��boli que lhe entrega-

ria o laudo fotogr��fico do local onde foi encontrada a menor,

dentro de tr��s a cinco dias. Acontece que naquela data j��

sabia do desaparecimento do filme. Pelo que pude ver, joga-

ram algum corrosivo no corpo da menor. No meu entender

as autoridades policiais se desinteressaram pelo caso, pois

com o laudo fotogr��fico da Kombi poderiam chegar aos cri-

minosos.

Novamente, respondendo ao deputado Aldo Prudencio,

afirma:

��� Se amanh�� precisar de uma acarea����o minha com as

pessoas que cito aqui, pode t�� certo de que vou confirmar

tudo que acabo de dizer.

Os policiais na entrada da Assembl��ia evitam que se

formem grupos nos corredores, Tut��nio sai numa fala����o

animada, ao lado do homem de cabelos lisos como um ��ndio;

Arturz��o vem mais atr��s, conversando com Dudu; Cl��rio en-

tra para o bar, onde o tumulto �� grande.

��� Gostei de ver. O cara �� fodido. Parece n��o ter medo

de porra nenhuma. Meteram ele no fogo e acabou de se quei-

mar. �� assim que se faz. O resto �� conversa'. Tiravam fotos

pornogr��ficas no laborat��rio da pol��cia e o pr��prio superin-

tendente queria ver. Acho isso at�� humano. N��o tem muito

de errado. Sumir o filme �� que agrava a situa����o.

O homem de cabelo liso sorri, Tut��nio est�� coberto de

ru��dos e de palavras altas, sacode os bra��os, bate com os p��s

no ch��o. Mais tarde, na roda de amigos, onde a presen��a de

184

Arturz��o �� imprescind��vel, repetir�� a mesma dose de oti-

mismo.

��� Ontem foi o dia do ca��ador, velho. Hoje o dia da

ca��a. Viu que merda que t�� a situa����o? O fot��grafo da po-

l��cia tocando punheta e tirando fotos. E agora? Quem �� que

vai desmentir, se foi o coleguinha dele quem disse?

Tut��nio n��o deixa sequer Arturz��o abrir a boca. Esfre-

ga as m��os grandes, cospe longe, ri alto.

��� Vem c��, Sinval! Corre aqui! Tu n��o sabes da maior!

O motorista se aproxima limpando os bra��os num pe-

da��o de flanela. �� magro, tem o rosto s��rio. Quando chega

perto desanuvia a m��scara com um sorriso.

��� Hoje saiu merda na Assembl��ia! O Elson botou a

boca no mundo, contou a putaria toda que fazem no atelier

de fotografias de pol��cia.

��� Ficou doido. Vai ser comida de cobra ��� diz o mo-

torista.

��� O amiguinho deles ��� diz Tut��nio, apontando para

Arturz��o ��� �� que t�� arrependido de ter assistido �� sess��o.

Foi melhor do que cinema. E o bicho n��o �� maluco. Contou

tudo direitinho. O filme sumiu, n��o eram quatro e, sim, um;

ele deu o pl�� pros superiores, ningu��m se mancou. Quando

o perito do Rio chegou, o Barros Faria ainda prometeu que

ia lhe mostrar as fotos que haviam sumido. Quero ver agora

�� o que o Alexandrino Alves tem pra dizer. Aquilo �� uma

raposa, mas desta vez lhe cortaram a retirada. Vai ter de se

co��ar. E muito.

O motorista se retira, a mo��a alta e magra passa, Tu-

t��nio faz psiu, ela n��o olha, vai em frente, ele faz uma brin-

cadeira com o garoto que vende laranjas, grita por Dudu, que

est�� na porta do bar, termina indo ao encontro do perito.

��� Tu viu s�� que bomba?

��� N��o sei de onde o homem tirou tanta coragem ���

assegura Dudu. ��� Pra dizer aquilo tudo o cidad��o tem de

ter peito.

��� �� que o bicho cansou de ver sacanagem. Grilou e

estourou.

O gar��om traz o copo de chope, Tut��nio espera a es-

puma desmanchar.

��� Quem ser�� o pr��ximo?

��� Talvez o Alexandrino Alves ou ��lcio Teixeira de

Almeida. Com um ou outro vai haver muita contradi����o ���

acentua Dudu.

��� Puxa! Tou enojado dessa turma. Nunca pensei que

185

nesta cidade se fizesse tanta sacanagem. Imagina no resto.

Tenho vontade de me tocar pro meio do mato, esquecer o

que vi por aqui ��� diz Tut��nio, que n��o se ag��enta calado.

��� �� o que penso. S�� que n��o sinto nojo das pessoas.

Tenho pena ��� pondera Dudu.

��� N��o tenho pena dessa ra��a. Se puder me pegar, ��

pra tirar o couro. Acabou esse neg��cio de piedade, chapa.

Agora �� no avan��a ��� afirma Tut��nio.

Cl��rio vem chegando, o palet�� no bra��o, gravata aberta,

v��rias pessoas andando ao redor dele e falando, a mulher da

corcova exaltada, o homem da barbicha com jornais debaixo

do bra��o.

��� T�� de alma lavada, n��o? ��� diz Cl��rio batendo nas

costas de Dudu.

��� Valeu a pena. Nunca pensei que o Elson fosse dar

aquela crise de honestidade.

��� E de coragem. T�� l�� em cima comigo. Mostrou que

�� macho ��� afirma Tut��nio.

O gar��om traz mais chope, o homem da barbicha bota

os jornais no balc��o, a mulher da corcova conversa com ou-

tras duas, o assunto ainda �� o depoimento de Elson. Cl��rio

olha pra elas, sorri, Tut��nio afirma alto, no maior descara-

mento:

��� Pra mulherada que tava l�� foi um prato cheio.

Doze

A tarde est�� sombria, �� prov��vel que chova. Ventos

fortes, desde cedo, sopram nas palmeiras, nos arbustos flo-

ridos. H�� folhas verdes e h�� flores r��seas sobre as cal��adas

��midas. A movimenta����o de pessoas entrando e saindo do

pr��dio da Assembl��ia Legislativa �� consider��vel. Cl��rio ocupa

uma mesa, junto com Dudu. O gar��om traz o bife malpas-

sado que pediu, Dudu s�� aceita um pouco de caf��. Cl��rio

mastiga e vai falando. Est�� afobado, tem uma por����o de coi-

sas para fazer, al��m de participar do depoimento.

��� Se n��o enfrentar a prova de hoje, tou perdido, irm��o

��� assegura ele.

Dudu apoia os bra��os na beira da mesa toda suja.

��� Parece que desta vez a coisa vai no rumo certo. Por

isso �� que acho que daqui pra frente, quanto menos se falar,

melhor. Em boca fechada n��o entra mosca.

186

��� Certo. �� o que se tem de fazer.

Dudu acha gra��a porque o deputado n��o consegue se

conter, sempre que sabe de uma novidade.

��� Tu tem de entender que o segredo �� a alma do neg��-

cio. At�� aqui o que se tem feito �� entregar ouro pros bandi-

dos ��� torna a dizer Dudu. ��� V�� l�� se eles se abrem. T��o

todos na moita. Se t�� sabendo de muita coisa, agora, por

causa das contradi����es de um depoimento pro outro. Quando

�� que se ia saber desses podres que o Elson contou? Nunca!

��� Acha que tenho falado demais? ��� indaga de re-

pente Cl��rio, soltando o garfo e a faca no prato.

��� Se tem falado! �� s�� o que tu tem feito. Tou te

dizendo isso, como amigo. Manera que, de outra parte, tu

tem um mandato a zelar. Olho vivo que cavalo manco n��o

sobe escada.

��� E a gente t�� mancando?

��� E como t��. Agora que a coisa come��a a melhorar

um pouquinho. Mas do inqu��rito at�� o processo o caminho

�� grande. N��o te ilude. Tou acostumado com isso ��� explica

Dudu.

O gar��om retira a lou��a, Cl��rio palita os dentes, fica

com o palito nos bei��os, vai no rumo da sala da Assessoria

T��cnica. Os lugares est��o quase todos ocupados. Dudu se

afasta. Cl��rio senta perto do deputado Aldo Prud��ncio. O

deputado Cl��vis de Barros j�� procedeu �� leitura das notas

preliminares. �� primeira pergunta Alexandrino Alves, cin-

q��enta anos, chefe da Se����o de Per��cias Fotogr��ficas da Pol��-

cia, responde:

��� N��o tenho conhecimento de que o atelier fotogr��-

fico sirva pra pr��ticas de atos indecorosos, como afirmou,

aqui, o sr. Elson. �� bem verdade que o fot��grafo Hermes,

certa ocasi��o, deixou-se fotografar, ali, enquanto se mastur-

bava. Quem bateu a foto eu n��o sei.

Muitas pessoas que est��o na sala acham gra��a. A maior

gargalhada �� de Tut��nio, que procura localizar Arturz��o mas

n��o consegue. O presidente da C P I pigarreia, pede sil��ncio,

Alexandrino Alves mexe nervosamente as m��os, brinca com

a caneta. Nova indaga����o �� feita.

��� Ap��s a cobertura do local em que o corpo da me-

nina foi encontrado o fot��grafo Elson retirou o filme da m��-

quina, marcou com um X e diz ter posto, juntamente com

outros quatro, na minha gaveta, que tamb��m n��o tem chave.

Uns tr��s ou quatro dias depois, Elson me chamou a aten-

����o pro desaparecimento do filme. N��o tenho a quem atri-

187

buir responsabilidade pelo sumi��o do material. Estranho, no

entanto, que o Elson tenha marcado o filme, pois no labo-

rat��rio da pol��cia os filmes s��o revelados automaticamente,

sem discrimina����o.

Ao deputado Juarez Leite, responde:

��� Nenhuma provid��ncia foi tomada no sentido de des-

cobrir o filme ou punir o fot��grafo, porque o objetivo era

confeccionar o laudo e isto aconteceu, gra��as ��s fotografias

cedidas pelo jornal O Di��rio. O desaparecimento do filme

s�� se tornou do conhecimento do superintendente um ano

depois.

A uma outra indaga����o do deputado Juarez Leite, afir-

ma:

��� N��o periciei a Kombi. Fez-se apenas uma busca,

conforme determina����o superior. O material encontrado (fios

de cabelo, uma capa de assento com manchas de sangue) foi

encaminhado �� autoridade superior. N��o sei quem trouxe a

Kombi at�� o p��tio da pol��cia.

Respondendo �� acusa����o que lhe fizera o perito Asdr��-

bal Cabral, diz:

��� Em 1950 fotografei uma mesa de tavolagem, no

Clube Vit��ria, sendo delegado na ocasi��o o dr. Lima Cabral.

Operei com uma m��quina nova. N��o estava acostumado com

ela. Disso resultou que umas fotos n��o puderam ser apro-

veitadas. Mas isso n��o tem qualquer rela����o com o desapare-

cimento do filme operado pelo fot��grafo Elson.

O gar��om traz o chope. Tut��nio esfrega as m��os, diz

com voz de falsete:

��� O atelier �� decente, podes crer. S�� que uma vez o

Hermes tocou uma punheta t��o boa que foi fotografado.

Diz isso e ri, provocando riso nos demais.

��� Ta��, best��ide, como trabalham teus amiguinhos. Em

vez de ca��ar bandido, t��o nos ateliers, batendo punheta. ��

o pr��prio chefe do servi��o quem afirma. E agora, que �� que

tu vai dizer pro eleitorado? Acabou aquela encena����o do ca-

pit��o Manoel Ara��jo. N��o h�� d��vida de que ele representa

at�� bem, mas o pessoal de baixo estraga tudo.

Cl��rio mostra o jornal que divulga sua foto, no momen-

to de um escorreg��o. Dudu olha sem coment��rios, Tut��nio

n��o se conforma:

��� Isso �� marreta. Tu posou pro fot��grafo. Que queda

�� essa, cara?

188

��� Nada convence essa peste! ��� diz Cl��rio, tomando

o jornal e mudando de assunto.

��� Viu como o Alexandrino respondeu na bucha o ata-

que do Dudu? Tamb��m, de que ba�� �� que tu foi buscar

aquilo? O pobrezinho se atrapalhou com a m��quina e a�� o

filme velou. Foi s�� isso. Viu como ele disse que gosta de

servir �� causa p��blica? N��o �� um desonesto. �� que as coisas

nem sempre acontecem como se quer, n��o ��, Arturz��o?

Arturz��o toma o chope, sem pressa.

��� N��o quero aporrinha����o. T�� tou muito puto. Vai

baixar em outro terreiro.

��� O homem t�� perdendo a esportiva. Quando a turma

dele t�� por baixo, fica irritado. N��o ag��enta firme como a

gente. Naquele dia tu fez um puta discurso de mais de uma

hora e n��o reclamei ��� considera Tut��nio, que logo vira para

o outro lado, chama o gar��om aos berros, bate palmas, ca-

misa aberta no peito, um medalh��o afundado nos p��los.

��� N��o t�� sendo legal com a gente, bicho. Tamos aqui

numa boa e tu some. Traz mais chope e mais tira-gosto.

Hoje tou com a macaca.

O homem de palet�� e muleta entra no bar, anunciando

o bilhete do cachorro. Oferece a um, a outro, ningu��m quer,

torna a gritar:

��� Vai dar cachorro! ��ltima fra����o!

Tut��nio interrompe o que est�� dizendo, grita pelo ven-

dedor:

��� �� isso que quero. �� o dia dos cachorros. Vai ver

que tou montado na sorte grande e n��o sei. Se ganhar, Ar-

turz��o, vou resolver o caso do teu apartamento. N��o precisa

mais nem alugar porra nenhuma. Compro uma merda dessa

e te dou, de m��o beijada.

��� Vou me mandar, pessoal, por causa da prova. Tou

cruzinho na mat��ria. Tenho de chegar uns minutos antes pra

dar ao menos uma olhadela no livro ��� afirma Cl��rio, cha-

mando o gar��om.

��� Deixa isso comigo, cara. N��o v�� que tou comemo-

rando? ��� afirma Tut��nio.

Cl��rio desaparece. Arturz��o fala da coragem de Dudu,

da aud��cia do Elson:

��� Esse pobre s�� pode t�� em desespero de causa. De-

pois do que disse dos chefes dele vai se foder f��cil:

��� Se n��o acontecer o pior ��� acentua Tut��nio.

��� N��o acredito nisso. Pode �� perder o emprego, na

189

primeira malandragem que fizer. Daqui pra frente v��o ficar

de olho nele.

��� Sinceramente como fico at�� com pena do Alexan-

drino, mas a verdade tem de ser dita ��� afirma Dudu.

��� Tia Rita tem raz��o. A morte da menina t�� botando

os bofes da cidade pra fora.

Treze

Dudu n��o consegue dormir direito, levanta diversas ve-

zes, debru��a-se na janela, olha a rua deserta, a pra��a deserta,

os pr��dios mais altos confundindo-se com a escurid��o, as

torres da igreja sumidas. Fuma um cigarro, dois, cinco. Logo

que come��a a clarear, bota a roupa, desce pelo elevador de

servi��o. Os ventos frios da madrugada batem-lhe no rosto.

Vai andando, sem rumo definido, toma um caf�� no primeiro

bar que encontra, segue pela orla mar��tima at�� sentir-se can-

sado e chamar um t��xi.

O carro chega na Rua S��o Paulo. Dudu caminha no

terreno coberto de grama, atravessa a v��rzea, o campinho,

avan��a at�� o riacho. Procura as pegadas que deixara no dia da

tempestade, n��o encontra. O solo est�� liso, lavado, sem qual-

quer sali��ncia. Sua passagem por ali desapareceu, como desa-

pareceu Tuca. Acocora-se, fica admirando as ��guas que cor-

rem em sil��ncio. Um riozinho que tem mais pedras do que

��gua. Mas no dia da chuva forte foi testemunha de que su-

biu, as pedras sumiram, a correnteza fez com que se asseme-

lhasse a um rio de verdade. "E como pode um filete desse

ter levado o menino?" V�� a cara assustada de Tadeu, todo

molhado, junto com o cachorro e o irm��o, dizendo alto para

a m��e:

��� Venha correndo que Tuca foi embora com Aracelli.

"O garoto sumiu nesse dia ou tava sumido e Tadeu n��o

s a b i a ? "

Os olhos vagueiam pela imensid��o da campina, um ga-

vi��o rondando a certa altura, cantos de p��ssaros invis��veis

abrindo-se como flores silvestres.

"Quem �� de fato Rita S o a r e s ? "

��� A senhora conhece ela desde quando? ��� pergunta

o perito �� mulher morena e magra, de nome Teresinha, uma

das moradoras mais antigas da Rua S��o Paulo.

��� Pra dizer a verdade, n��o sei bem. Me lembro que

190

uma vez passou aqui para pedir ajuda. Depois apareceu ou-

tras vezes e foi ficando familiar.

As crian��as entram e saem da casa avarandada, uma

menina �� bem parecida com dona Teresinha.

��� �� sua filha?

A mulher sorri.

��� A mais velha. Vai fazer treze anos.

��� Pois �� isso. Tia Rita t�� nos preocupando.

��� Ela fez alguma coisa?

��� N��o. Apenas curiosidade ��� respondeu Dudu.

Faz uma pausa, torna a indagar:

��� Quem �� que mais se d�� com tia Rita, por aqui?

��� Dona Eduvirges. A que ajudou na prociss��o. O se-

nhor t�� lembrado?

��� Dona Maria Milagres tamb��m �� muito amiga dela

��� acentua a mulher branca, que chegou sem cumprimentos,

sentou-se meio de lado no peitoril, perto da trepadeira.

��� Maria Milagres?

��� Uma preta, j�� velha, que faz doce pra vender na

rodovi��ria. Parece at�� que conheceu Rita Soares quando era

mocinha.

Dona Teresinha vai para os fundos da casa, Dudu fica

ouvindo o que diz a mulher.

��� H�� alguma coisa errada com tia Rita? ��� indaga de

repente. E, sem esperar resposta, acrescenta:

��� Gente boa t�� ali, meu senhor. Pra mim aquela mu-

lher �� uma santa.

��� N��s da pol��cia temos dificuldades de encontrar com

santos, por isso �� que se faz tanta pergunta. Mas n��o h��

nada contra ela. Apenas tou recolhendo informa����es.

A menina reaparece, dona Teresinha, tamb��m, trazen-

do uma bandeja com x��caras de caf��. Dudu mexe o caf��, a

mulher branca pergunta pela evolu����o do caso Aracelli.

��� T��o sendo tomados os depoimentos na C P I da As-

sembl��ia Legislativa.

��� A fam��lia de dona Lola se acabou ��� diz dona Tere-

sinha. ��� Nunca vi uma coisa dessa. Parecia tudo t��o bem

e, de repente, seu Gabriel vai embora, dona Lola viaja des-

gostosa, o pobre do Carlinhos fica andando o dia inteiro por

a��, sem ter quem cuide dele. Esse menino me d�� uma pena

que voc��s nem imaginam.

��� N��o t�� morando com a empregada?

��� T��, mas n��o sai daqui. Outro dia escreveu uma carta

pra m��e e, quando terminou, chorou �� be��a. Aconselhei a

1 9 1

n��o ficar assim, que tudo ia melhorar. Mandou a carta e at��

hoje n��o veio resposta. N��o sei o que t�� acontecendo com

dona Lola.

��� Outra pessoa que pode lhe dar boas refer��ncias de

tia Rita �� seu Henrique Rato. O senhor conhece? ��� per-

gunta a mulher branca, mudando de assunto.

Dudu sacode a cabe��a, faz um ar de riso, a mulher n��o

sabe se de aprova����o.

��� Primeiro vou visitar Maria Milagres. Quem sabe

n��o diz o que tou querendo?

Dona Teresinha vem at�� a porta, Dudu est�� novamente

na rua de terra solta, ladeada de arbustos empoeirados: ca-

pim-gordura, mata-pasto, manjeric��o. Passa por baixo do p��

de mangueira, dobra na dire����o da oficina de ferreiro, apro-

xima-se do quintal cercado com hastes de mandacaru. A can-

cela quebrada de um lado n��o fecha. Chega ao alpendre,

onde h�� um jirau com panelas de barro emborcadas, uma

bacia de alum��nio. O c��o felpudo, de t��o velho, nem abre

os olhos.

��� O de casa!

N��o h�� qualquer movimento no interior do casebre.

Dudu avan��a um pouco mais, desta vez bate palmas. Escuta

alguns ru��dos, principalmente do cachorro, que ladra umas

tr��s vezes.

Da escurid��o dos c��modos sai a preta gorda, um olho

cego, sobrancelhas brancas, cabelos brancos. Ap��ia-se no

bast��o, tem os bei��os ca��dos, mas o rosto guarda express��o

de do��ura. P��ra diante de Dudu.

��� Bom dia. A senhora �� Maria Milagres?

A mulher n��o responde. Faz apenas um aceno de cabe��a.

��� Gostaria de um favor seu.

Convida-o a entrar, mostra-lhe o banco.

��� Soube que a senhora mora por aqui h�� bastante

tempo.

��� Quarenta e cinco anos ��� diz Maria Milagres, que

sentou num caixote, segurando o bast��o.

��� Conhece Rita Soares?

��� Aquela que faz canjica l�� pros lados da ponte?

��� N��o. A que chamam tia Rita.

A mulher faz um esfor��o de mem��ria.

��� J�� sei. A Rita dos Meninos. �� assim que o pessoal

do meu tempo chamava ela. O que aconteceu?

��� Nada. Apenas tou me informando pra saber se pode

pegar mais umas crian��as pra criar.

192

��� Ela chegou com uma tribo de ciganos. Nesse tempo

nada disso por aqui existia. A�� veio o ano da epidemia de

bexiga. T�� lembrado? Metade da popula����o morreu. Os ci-

ganos que tavam acampados morreram tamb��m. S�� ficou

Rita. Com um caco de enxada cavou uma sepultura e enter-

rou os pais. Depois ficou ajudando os que tinham doente

em casa. Todo mundo se admirava como n��o pegava a mo-

l��stia. Um dia o filho de seu Mizael Cantanhede foi atacado

pela doen��a. Tava morre n��o morre, a�� Ritinha apareceu.

Ficou na cabeceira do menino. Quando dona Mundi��a Can-

tanhede entrou no quarto, encontrou Ritinha ajoelhada e na

frente dela um anjo, puxando a reza. Dona Mundi��a se ajoe-

lhou tamb��m e desde esse dia Ritinha passou a ser consi-

derada como santa. Na minha opini��o �� santa. T�� de passa-

gem neste mundo mau.

��� A senhora acredita em anjos?

��� Acredito em tudo, filho. Pelo que j�� vi e deixei de

ver, n��o faz diferen��a. S�� lhe digo uma coisa: o garoto do

seu Mizael levantou da rede. Ritinha foi cuidar de outros

que tavam mal e nunca pegou constipa����o, quando mais. . .

��� A senhora acha que tia Rita devia ser chamada fei-

ticeira?

��� Cruz-credo! N��o diga isso, homem de Deus! Aque-

la mulher n��o faz mal nem pra uma formiga ��� responde

Maria Milagres, o rosto s��rio, bei��os tr��mulos, o olho bom

ressaltado.

Dudu ajeita-se no banco, o cachorro felpudo e lerdo

passa de um lado para outro.

��� Vou dizer uma coisa que s�� a senhora pode saber.

Um garoto que tia Rita criava, o Tuca, sumiu. O irm��o dele

disse que foi embora com Aracelli, a menina que os viciados

de t��xicos mataram. Ainda sa�� com o garoto pra procurar,

mas tava dando uma tempestade, o riacho tinha subido muito

e n��o se achou nada. Como p��de isso acontecer?

��� Se conhecesse Ritinha n��o se assustava. Ela tem po-

der. T�� cercada de santo. Se fosse vidente ia confirmar o

que digo. Vai ver que o menino era um deles. Como �� que

a gente vai saber?

��� Acontece que, quando algu��m desaparece, a pol��cia

tem de tomar conhecimento. H�� uma por����o de leis e regula-

mentos pela frente.

��� Esque��a as leis e os regulamento, filho. Isso �� que

atrapalha um crist��o. Cada dia t��o complicando mais a vida.

Ritinha t�� al��m disso tudo.

193

��� A senhora algum dia se tratou com ela?

��� Tratei de uns parentes. Eu nunca adoeci.

��� E sua vista?

��� Foi promessa. Meu velho tava desenganado. Fui pra

praia e invoquei os favor de Iemanj��. Mas ele n��o era de

receber favor. Teve de andan��a no canga��o, fez coisa feia

nesse mund��o da caatinga. A�� me desculpei com Iemanj�� e

implorei pra Exu. A dor dele passou, o corte dele sarou.

Ficou bom e voltou pro bando. Um dia de manh��, acordei

assim. A cobran��a tinha chegado. Nem por isso me entris-

te��o. Palavra �� palavra. Exu n��o esquece.

Dudu corre os olhos pelo casebre. Os m��veis s��o alguns

caixotes e o banco em que est�� sentado. N��o h�� mesa, n��o

h�� arm��rios. No quarto de onde a preta velha saiu h�� uma

esteira no ch��o, uns trapos sujos por cima.

��� A senhora mora sozinha aqui?

��� S��, com Deus e a Virgem.

��� Ent��o, �� melhor esquecer o caso do menino? ���

considera Dudu de modo vago.

��� �� certo. Ritinha mandou que procurasse?

��� N��o. Disse que o que tava feito n��o podia ser mu-

dado. De outra vez, quando voltei l��, encontrei ela acocora-

da na beira do riacho. Botou a cuia com uma vela acesa den-

tro, na inten����o de localizar o menino. A�� levantou e disse

que Tuca tinha ido mesmo embora. Voltamos pra casa e s��

agora tou falando de novo no assunto. Por isso, vim lhe

procurar.

��� T�� bem assim. Fez bem de n��o levar o caso pra

pol��cia. Mais na frente vai encontrar Tuca outra vez. A�� pode

saber se o que essa negra diz �� verdade ou n��o.

Quatorze

Vit��ria est�� num dia ensolarado. As encostas cobrem-se

de um verde saud��vel, o mar cerca as ilhas de azul, os navios

alteiam as torres coloridas por cima do edif��cio da alf��ndega.

O vento que chega ��s ruas centrais, com gosto de sal e de

algas, mexe na saia das mulheres, assanha-lhes os cabelos. As

��rvores do parque balan��am os galhos e as palmas vigorosas

acenam para uma dist��ncia em que ningu��m repara. Os poli-

ciais de luvas brancas e polainas disciplinam a entrada na

Assembl��ia. Tut��nio e Arturz��o est��o em frente ao pr��dio,

194

esperando que Dudu apare��a. Cl��rio chegou mais cedo e j��

entrou. Arturz��o tira amendoim de um saquinho de papel,

joga as cascas na cal��ada.

��� Tu n��o vai entrar l�� com isso. Trata de jogar essa

porcaria fora ��� afirma Tut��nio, Arturz��o n��o se preocupa.

O ex-vereador aparece, faz considera����es a respeito do pro-

curador, diz que �� homem de topar a parada.

��� Esse n��o recua no que diz. Quero ver se suas decla-

ra����es v��o coincidir com as do capit��o Ara��jo.

Dudu chega, ar de cansa��o.

��� Onde tu te meteu, cara? ��� indaga Tut��nio.

��� Doidejando por a��. Fu��ando.

Arturz��o atira mais cascas de amendoim no ch��o. Tu-

t��nio olha, torna a repetir:

��� Eta bicho porco!

Passam pelos policiais, chegam ao corredor, onde muita

gente se movimenta, Dudu decide tomar um caf��, Tut��nio

acha boa id��ia, Arturz��o recusa, vai procurar lugar na sala

da Assessoria T��cnica. O presidente da C P I pede sil��ncio,

Aldo Prud��ncio l�� algumas notas, os trabalhos s��o iniciados.

��� Estamos aqui, desta vez, para ouvir as declara����es

do sr. Alinaldo Faria de Souza, promotor da justi��a, substi-

tuto, lotado na comarca de Aracruz. Senhor promotor, como

explica a n��o inclus��o das declara����es de Paulo Helal no

inqu��rito policial?

��� Sinceramente n��o sei. Certa vez, conversando com o

capit��o Manoel Nunes de Ara��jo, um nome da fam��lia Helal

foi mencionado como poss��vel participante do crime. Ele

ent��o me disse ter convidado Constanteen Helal para escla-

recimentos no quartel da P M . Na mesma ocasi��o, Manoel

Ara��jo tamb��m me disse que Constanteen Helal terminou

n��o sendo ouvido, porque "tinha vindo ordem l�� de cima".

Mas n��o esclareceu quem seriam os "l�� de cima". Foi por

essa ��poca ainda que, examinando os autos do inqu��rito,

verifiquei nada constar com rela����o �� fam��lia Helal. Numa

falsa blitz mandei deter Paulo Helal. Dessa medida nem o

superintendente de pol��cia, nem o secret��rio de Seguran��a

tinham conhecimento. O rapaz foi levado ao 38.�� BI e ali

acareado com Marislei, que lhe fazia graves acusa����es.

A uma nova pergunta, acentua o promotor:

��� Tive conhecimento dessa mulher, atrav��s do dele-

gado ��lcio Teixeira de Almeida, a quem ela narrou, aciden-

talmente, fatos ligados ao crime da menor. Procurei me apro-

ximar dela, simulando uma conquista. Convidei-a para ir at��

1 9 5

a praia do Costa. Ela apareceu com uma colega. Apresentei-

lhe tamb��m um amigo (policial de minha equipe), disse que

estava de passagem pela cidade. A��, conversa vai, conversa

vem, falou-se do caso que estava apaixonando a opini��o p��-

blica. Expliquei que gostaria de saber detalhes, para poder

contar aos meus parentes, quando fosse embora de Vit��ria.

Ela passou a narrar detalhes, apontando sempre Paulo Helal

como prov��vel autor do crime. Nossa conversa durou mais

de duas horas. No dia seguinte comuniquei o fato ao dele-

gado Manoel Ara��jo e mandamos busc��-la em casa. Quando

entrou na delegacia e me encontrou, ficou surpresa. Volta-

mos ao assunto e confirmou o que havia dito. Chegou, in-

clusive, a desenhar um croquis do local onde o cad��ver foi

encontrado. Na delegacia ela se dizia sem garantias e per-

guntou a mim e ao capit��o Ara��jo que tipo de seguran��a

pod��amos lhe dar. Disse estar amea��ada por elementos da

fam��lia Helal. Em raz��o disso, foi transferida para o 38.�� B I .

Novo interrogat��rio foi feito e, mais uma vez, confirmou o

que j�� havia contado a mim e ao capit��o Manoel Ara��jo.

Quando levamos o Paulo Helal �� sua presen��a, para a acarea-

����o, afirmou n��o ser aquele o homem que conhecia e ent��o

come��ou a negar suas pr��prias declara����es. Chamei a mo��a

para uma conversa particular e ela afirmou ter pena de Paulo

Helal. S�� o incriminava porque ele a abandonara, pelo fato

de estar gr��vida.

��� E com rela����o ao desenho que fez? ��� indaga um

deputado.

��� Era a topografia exata do local onde esteve, depois,

com policiais da superintend��ncia.

Nova pergunta. O depoente n��o aparenta nervosismo:

��� O general Dion��sio Maciel do Nascimento n��o teve

participa����o, nem na pris��o, nem na soltura de Paulo Helal.

E, logo a seguir:

��� Por essa ocasi��o o perito Carlos ��boli estava em

Vit��ria, dando um curso no Pal��cio do Caf��. Em conversa

informal, comigo, disse estar com dificuldades para a eluci-

da����o do crime, face �� precariedade dos elementos contidos

no inqu��rito policial. No meu entender o perito quis dizer

que a per��cia produzida por nossa Pol��cia Civil deixava algu-

ma coisa a desejar, da�� a dificuldade para uma conclus��o

l��gica.

Sobre o sargento Homero Dias, declara:

��� N��o tenho conhecimento de que haja feito um re-

lat��rio do caso e encaminhado ao capit��o Manoel Ara��jo.

196

Desejo ainda esclarecer que a afirma����o do capit��o Ara��jo,

de que Constanteen Helal n��o prestou declara����es �� pol��cia

porque "tinha vindo ordem l�� de cima", pressup��e que a

express��o "l�� de cima" tenha refer��ncia com o Pal��cio An-

chieta, onde est��o a Secretaria de Seguran��a e o pr��prio

governo.

��� Ta��, foi o tipo de depoimento que gostei: sereno,

sem inven����es. Acho que o Alinaldo t�� dizendo a coisa como

�� ��� afirma Arturz��o.

��� Quando carregou a m��o no capit��o Manoel Ara��jo

�� que vi n��o ser de brincadeira ��� assegura o homem da

barbicha.

��� Pra mim, a parte mais importante foi do croquis

feito por Marislei. Os policiais foram com ela ao local e

conferiram ��� diz o ex-vereador.

Tut��nio atravessa a rua, caminha na dire����o do Sal��o

Totinho. Vem com o jornal na m��o, abre as p��ginas, at��

chegar na do editorial.

��� J�� viram o cacete que A Gazeta t�� dando no advo-

gado do dr. Helal?

O ex-vereador fica curioso, o homem da barbicha espi-

cha o pesco��o, Tut��nio encosta-se no poste, come��a a ler:

��� "A pretexto de contestar as afirma����es do deputado

Cl��rio Falc��o, que lhe atribu��ra na v��spera, em contato com

a imprensa, o reconhecimento de que seu constituinte, Paulo

Helal, teria sido o respons��vel pela morte da menor Aracelli

Cabrera Crespo, o advogado Ant��nio Franklin Moreira da

Cunha, depois de acusar o parlamentar de mentiroso e de

cidad��o 'irrespons��vel, leviano e indigno da sociedade de que

ele diz representar', resvalou para o ataque �� imprensa:

'Tudo tenho feito no sentido de n��o me envolver no imenso

caudal das cal��nias levantadas atrav��s de uma imprensa ��vi-

da em ver o circo pegar fogo, mesmo que, para tanto, custe

a honra alheia'. E mais: n��o satisfeito, n��o perdeu tempo em

recomendar a interven����o de autoridades naquilo que classi-

ficou de 'propaganda dirigida', onde a preocupa����o de infor-

mar ao povo, no seu entender, '�� menor do que desmorali-

zar as pessoas mais representativas da sociedade, verdadeira

subvers��o de valores, com objetivo claro e insofism��vel de

desacreditar as elites dirigentes, instaurando-se o caos so-

cial'. A que estranhas elucubra����es t��o esdr��xulas e inconse-

q��entes? Quem ser�� esse irreverente senhor que, incapaz de

avaliar-se de maneira adequada e consciente no contexto de

uma sociedade metropolitana, ousa lan��ar-se qual Quixote

1 9 7

insano, tresloucado ��� contra uma das institui����es mais caras

do mundo democr��tico, a liberdade de informar com pleni-

tude que t��o bem caracteriza a imprensa evolu��da?"

��� Puxa, que espinafra����o! ��� diz o homem da barbi-

cha.

��� Cala a boca que tem mais ��� explica Tut��nio, e re-

come��a a leitura:

��� "Esqueceu-se muito cedo, decerto, que, quando con-

vocada pela fam��lia Helal para que seu constituinte se de-

clarasse inocente das acusa����es a ele imputada, a imprensa,

mesmo sabendo, antecipadamente, que o sr. Paulo Helal

assim se pronunciaria, todos os ��rg��os da imprensa vitorien-

se l�� se fizeram presentes. E o sr. Moreira da Cunha nem

sequer pode negar, porque em nenhum instante deixou de

assessorar seu cliente, que todos os jornais e emissoras de

r��dio e televis��o, mesmo considerada a diversifica����o do

comportamento editorial de cada ��rg��o, foram absolutamen-

te fi��is ao transmitir �� opini��o p��blica os fatos e informes

ali colhidos.

" '�� l��gico que n��o reconhecemos, sequer admitimos,

uma obl��qua possibilidade nesse sentido, a m��nima autori-

dade no sr. Moreira da Cunha, para que assim se comporte

em rela����o �� imprensa ��� nem ele nem em ningu��m mais.

Como n��o acreditamos possa a idiotice de seus parcos con-

ceitos sobre o papel da imprensa ser acolhida pelas autorida-

des que, como n��s e toda a comunidade, desejam ver re-

cuperados pela lei os criminosos at�� aqui encapuzados pela

ignom��nia de um anonimato que fere os brios da sociedade.' "

��� Puxa, isso �� pior do que xingar a m��e do cara!

��� comenta o ex-vereador.

��� "O rumoroso caso Aracelli" ��� prossegue Tut��nio

��� "continuar�� sendo assunto de primeira ordem para a im-

prensa capixaba ��� queiram ou n��o os quixotescos defenso-

res da morda��a, eles, sim, subvertidos e subvertores da or-

dem democr��tica ��� at�� que finalmente a verdade surja, nua,

crua e soberana. Porque a sociedade capixaba, merc�� de seu

direito inalien��vel, quer saber, em seus m��nimos detalhes,

como se processa a busca daqueles que, no anonimato e na

sombra, ainda s��o uma constante amea��a a milhares e mi-

lhares de outros inocentes, igualmente pass��veis, como a pe-

quenina Aracelli, de serem vitimados de crimes brutais e

monstruosos."

��� Fiiiuuu! ��� assovia Tut��nio, dando a leitura por

198

encerrada. ��� Se isso fosse comigo, pegava a trouxa e me

mandava.

��� �� briga de comadre. Daqui a pouco t�� tudo bem

��� diz Arturz��o.

��� N��o quero saber de daqui a pouco, cara. Tou fa-

lando do que t�� aqui no papel, quente como brasa ��� argu-

menta Tut��nio. ��� Amanh�� tem mais. Quando a mulher do

sargento botar a boca no mundo, quero ver o que vai acon-

tecer.

��� Dona Elza vai depor? ��� indaga o homem da barbi-

cha.

��� J�� t�� confirmado. Agora se sabe de uma vez se o

capit��o Manoel Ara��jo mentiu ou n��o ��� prossegue Tut��nio.

��� O neg��cio dela vai ser na base da emo����o. N��o viu

porra nenhuma, n��o sabe de nada, como �� que pode falar?

��� considera Arturz��o.

��� Pra ti o bom �� como t��. N��o foi tua filha que eles

estreparam, t�� bom. Tu �� um tipo sacana que s�� v�� as coisas

no interesse pr��prio ��� afirma Tut��nio, nervoso.

O homem da barbicha disfar��a, faz que rel�� o editorial,

o ex-vereador puxa outro assunto, a discuss��o se desfaz.

199

Caminho sem volta

As previs��es que se confirmam

Um

Dudu est�� sentado em frente ao delegado Ildefonso

Primo. Poucas pessoas movimentam-se na sala ��quela hora.

A noite �� escura, os telefones tocam, os casos denunciados

n��o t��m import��ncia.

��� Acho que, por maior esfor��o que se fa��a, as inves-

tiga����es n��o andam. Olha que se tem lutado, mas n��o adian-

ta. Volta-se fatalmente ao come��o e a�� se permanece, como

barata tonta. �� o que somos: umas baratas tontas.

Dudu ouve o desabafo do delegado.

��� E o que me deixa furioso �� que perante os outros

se fica como respons��vel pelo n��o andamento dos trabalhos.

��� Quanto a isso, creio que n��o deva se preocupar ���

afirma Dudu. ��� O pessoal que acompanha o caso Aracelli

sabe muito bem pra que lado o vento sopra. Pelo que j�� se

declarou �� imprensa, pelo que foi publicado, pelos depoimen-

tos que a C I P tomou, tudo indica que, no m��nimo, tr��s pes-

soas t��o envolvidas: Paulo Helal, Michelini J��nior e Maris-

lei. Isso, sem contar as mortes misteriosas de Homero Dias

�� Fortunato Piccin. Cad�� a tal exuma����o que o Lincoln de

Almeida ia mandar fazer? E o depoimento do Elson a res-

peito da Kombi que n��o foi periciada de prop��sito? Ora,

vamos devagar. A Secretaria de Seguran��a n��o se movimenta

porque n��o quer.

O delegado brinca com uma esp��tula, ouve mais um

telefonema, diz palavras baixas, Dudu se levanta, vai at�� a

janela, v�� os carros que passam de far��is acesos.

��� Tamb��m, o Cl��rio bagun��ou demais o coreto. Trans-

formou o crime numa esp��cie de circo.

��� Exato. Mas n��o esque��a que foi ele quem fez a

C P I vir �� tona. Se n��o fizesse a onda que fez, jamais a co-

203

miss��o seria criada. Bem ou mal, agora todos sabemos de

uma por����o de est��rias fant��sticas.

��� O certo �� que os respons��veis pela chacina da me-

nina t��o bem articulados. Sabem os fios que puxam ��� afir-

ma Ildefonso, bastante decepcionado. ��� ��s vezes, tenho

vontade de ir embora daqui. Largar tudo, esquecer tudo,

desaparecer.

��� E por acaso pensa que os outros lugares s��o melho-

res? Sai dessa. N��o adianta desanimar. O que importa �� tra-

balhar em sil��ncio, como sempre procurei fazer o Cl��rio en-

tender.

Caminham um bom peda��o da rua a p��, Ildefonso man-

t��m-se quase o tempo todo calado. Dudu convida-o para um

chope no barzinho com as cadeiras na cal��ada. O delegado

est�� com ar de cansa��o, apoia o bra��o na mesa.

��� Precisa tirar umas f��rias, dar um passeio por a��.

Sozinho ningu��m resolve essa parada.

As considera����es de Dudu ficam sem resposta. O gar-

��om chega com os chopes, um gato passa perto, o menino

aparece com a caixa de engraxate, a velhinha com o pano

preto amarrado na cabe��a pede esmolas.

��� Quanto tempo o pessoal da C P I vai levar pra apron-

tar os relat��rios?

��� Pelo que ouvi o Cl��rio falar, uns quinze dias. N��o

�� muito ��� considera Dudu.

��� Cada vez mais acredito no que o ��boli disse. S��

uma desaven��a entre os criminosos nos levar�� a saber algu-

ma coisa de concreto. Mas, quando essa diverg��ncia vai sur-

gir?

O des��nimo de Ildefonso n��o atinge Dudu, mas termina

por deix��-lo indiferente. O pensamento est�� longe, no ria-

cho bifurcado que se junta depois do campinho, na cara de

espanto de Tadeu, todo molhado e dizendo �� m��e que Tuca

fora embora com Aracelli, nos ventos fortes que sopravam,

na chuva que lhe batia com for��a no rosto. Quando retorna

�� mesa, motivado por uma reclama����o maior do companhei-

ro, n��o sabe bem o que ele diz, nem tem coragem de parti-

cipar-lhe o que vira naquele dia de vendaval, em que voltou

para casa enlameado, embora Vov�� Gelli e Tut��nio insis-

tissem em dizer que n��o havia ca��do uma ��nica gota d'��gua

em toda a cidade.

��� Por mim, faria o reexame do caso a partir do local

em que o corpo foi encontrado.

O carro desenvolve boa velocidade, Dudu n��o responde

204

logo ��s preocupa����es do delegado, por isso, ele divaga mais

um pouco.

��� Acontece que muitas pe��as do jogo j�� est��o elimi-

nadas. Isso altera qualquer novo levantamento que se fa��a.

Veja s��: Homero Dias t�� morto, Piccin t�� morto, Jorge Mi-

chelini tamb��m. E pra agravar a quest��o, dona Lola sumiu.

Pra mim, desde o come��o, essa mulher procurou se esquivar

da pol��cia.

��� Acha isso?

��� Claro. De in��cio a quest��o dela era quanto �� identi-

fica����o do corpo. Depois surgiram outros problemas relativos

a sa��de. Em seguida, n��o sei se voc�� sabe, o servi��o de cr��-

dito andou �� procura dela, pelos quatro cantos da cidade.

Pelo que sei, uma das firmas lesadas �� a Distribuidora Mer-

cantil. Que m��e �� essa que, na hora em que a cidade t�� toda

empenhada em resolver a morte da filha, se mete em fazer

compras que n��o pode pagar! N��o entendo isso, sinceramen-

te. E pode t�� certo, que o dia que encontrar seu Gabriel,

vou tentar esclarecer a d��vida com ele. N��o me conformo.

Ildefonso prepara-se para deixar o t��xi.

��� O que se tem de fazer �� descobrir um ��ngulo novo

de abordagem do caso. Acho perfeitamente v��lido que se

tente ouvir dona Lola.

Dudu faz ar de riso, o delegado acena com a m��o, o

carro segue em frente.

��� Onde se vai agora, comandante?

��� Pro bairro de F��tima.

As brisas que v��m como ondas na noite sacodem-lhe os

cabelos, de quando em vez responde a uma indaga����o do mo-

torista.

��� Quebra por aquele caminho. Fico na primeira curva.

O lugar �� deserto, o motorista faz recomenda����es a

Dudu, os far��is tocam o mato, longe, depois o barulho do

motor vai desaparecendo, �� propor����o tamb��m que deixa

de ver o vermelho das lanternas traseiras. Atravessa a picada

de arbustos, chega debaixo das estreleiras, v�� pela luz nas

frestas da janela que tia Rita est�� acordada.

Toca de leve na porta, como costuma fazer, Radar est��

deitado na pequena entrada, levanta-se mas n��o ladra. A sala

�� iluminada por muitas velas, mas al��m de Rita Soares h��

outras pessoas. O homem que ela chama Manoel Preto, Ma-

ria Milagres, dona Eduvirges, o Noca de Brito. Sentam-se

em bancos e caixotes, junto ��s paredes. Dudu deseja um

boa-noite meio sem gra��a, tia Rita est�� concentrada. Aco-

205

moda-se numa ponta de banco, do lado de Maria Milagres.

Logo depois a cigana come��a a falar e a primeira coisa que

diz deixa Dudu surpreso.

��� Mandei lhe chamar porque muita coisa t�� pra acon-

tecer.

A mulher silencia de repente, as outras duas come��am

uma cantoria baixa, muito semelhante a um lamento, tia

Rita se levanta, ergue os bra��os, caminha na dire����o de

Dudu.

��� Uma pessoa que tem ajudado a gente logo mais t��

de partida. Que os caminhos que tentou abrir se alarguem,

com boa vontade. N��o se perca a esperan��a nos que t��o do

nosso lado, nem se tema a f��ria de Satan��s.

Dizendo essas palavras, esfrega os p��s no ch��o, curva-se

um pouco e, assim curvada, faz uns rodopios no limitado

espa��o da sala, enquanto Maria Milagres e dona Eduvirges

batem palmas leves e cantarolam a can����o triste, da qual

Dudu n��o entende uma ��nica palavra. Manoel Preto e Noca

de Brito movimentam os bei��os, mas o perito est�� certo de

que n��o cantam coisa alguma.

Rita Soares, mais uma vez, senta-se no seu caixote, em

frente a duas velas.

��� Quem o mal aqui faz, aqui paga!

Dudu conversa baixo com Maria Milagres, a voz da

cigana se alteia. Noca de Brito imita o gesto que ela faz. ��

um homem j�� velho, o rosto gordo, cabelo branco, cortado

rente.

��� Se de nada adianta a conversa dos douto contra

quem faz a maldade, que o castigo venha do Alt��ssimo.

Dudu n��o entende quase nada do que Maria Milagres

lhe diz. S�� sabe que a sess��o come��ou por volta das oito da

noite e agora j�� s��o mais de tr��s da madrugada. Os partici-

pantes foram convocados da mesma forma que Dudu. Cada

um sentiu vontade de ir visitar tia Rita, embora j�� fosse

tarde.

O rosto da mulher, h�� pouco nervoso e sombrio, parece

rejuvenescer. H�� muito tempo Dudu n��o a via com expres-

s��o t��o alegre.

��� Tuca teve ontem comigo. Veio contar as coisas do

c��u e dizer que Aracelli chora de pena da gente e de Radar.

Tuca t�� t��o bonito, Maria Milagres, que s�� vendo!

�� o bastante para que a preta velha comece a chorar,

limpando os olhos na manga do vestido.

��� Pra voc��, Manoel, ele deixou um conselho, pela in-

206

ten����o da bicicleta. Seja mais amigo dos seus vizinhos e ajude

como vem fazendo os que precisam e os que t��m fome. Pra

Milagres deixou esta flor.

A rosa branca passa de m��o em m��o, at�� chegar �� preta

velha, que redobra o choro.

��� Dona Eduvirges, n��o deve se matar na constru����o

daquela casa. Depois a casa fica a�� e os que forem morar nela

ainda v��o achar que n��o t�� boa. Pra seu Noca um aviso: n��o

passe mais pelo riacho do Turvo.

Um galo come��a a cantar perto, a claridade da manh��

insinua-se pelas frestas da porta e da janela, a cigana prosse-

gue seu mon��logo, de forma imperturb��vel.

��� Pra seu Dudu, deixou dito que n��o esmore��a. Nin-

gu��m se desmoraliza na defesa da justi��a. H�� de vir o dia

em que a verdade vai aparecer e os que lutaram por ela v��o

se sentir felizes.

��� Tia Rita, a senhora permite uma pergunta? ��� inda-

ga Dudu. ��� Qual �� a pessoa que nos ajuda e t�� de partida?

��� Um homem de idade, gordo, tamb��m da pol��cia, que

teve recentemente em Vit��ria.

Outro galo canta, Dudu cruza as pernas, sente-se ner-

voso com a enormidade da informa����o. O ambiente de re-

pente parece abafado, necessita de ar. Pede licen��a, vai para

baixo do jasmineiro, olha no c��u as estrelas que se esquece-

ram da noite. N��o sente mais necessidade de estar ali, pros-

segue a caminhada por entre os arbustos e as flores do or-

valho.

N��o sabe quanto tempo fica estirado no sof��, beberi-

cando u��sque com soda. Liga para o Rio, procura por Carlos

��boli, dizem que viajou para Petr��polis. As palavras de Rita

Soares n��o lhe saem da cabe��a, os olhos pesam, tem vontade

de entrar no banheiro, meter-se no chuveiro frio, para ver

se os maus pressentimentos v��o embora.

" S e de nada adianta a conversa dos douto contra quem

faz a maldade, que o castigo venha do Alt��ssimo."

Fecha os olhos, abre, o rosto de Rita Soares est�� de

frente para as velas, malares ressaltados, os bra��os estendi-

dos. E al��m da vis��o da cigana, agora tamb��m recorda, com

extraordin��ria precis��o, do rosto gordo e sereno de Maria

Milagres, dos olhos escorrendo l��grimas na manga do ves-

tido.

"Como um anjo pode trazer flor pra algu��m na terra?

207

Estive de fato na casa de tia Rita ou apenas tou impressio-

n a d o ? "

Dudu j�� n��o tem muita certeza em mat��ria de tempo

e lugar, quando isso diz respeito ao seu relacionamento com

aquela cigana. A campainha da porta toca a primeira vez, a

segunda. Antes de abrir imagina tratar-se de algu��m pedindo

donativos, do porteiro para entregar cartas. Destrava o trin-

co, aparece Cl��rio, um riso amarelo no rosto amarelo.

��� Tu n��o foi l�� no Sal��o Totinho hoje, cara! T�� todo

mundo apavorado.

��� Apavorado por qu��?

��� H�� mais de uma hora as r��dios t��o dando que o ��bo-

li morreu. Foi fazer um trabalho em Petr��polis e caiu duro.

Ataque do cora����o. Quando levaram ele no pronto-socorro,

j�� era tarde.

Dudu est�� sem palavras, olhando o amigo, que se movi-

menta, falando alto e gesticulando. Os olhos fixam o depu-

tado, mas o que v��, mesmo, �� a express��o nervosa de Rita

Soares, as m��os alongadas, as velas iluminando-lhe as pa-

lavras:

"Uma pessoa que tem ajudado a gente logo mais t�� de

partida".

��� Ser�� que Ildefonso j�� sabe disso?

Enquanto faz a pergunta, liga para o delegado.

��� Agora mesmo �� que a coisa vai enrolar. Parece que

tudo d�� certo pro lado dos assassinos ��� afirma Ildefonso.

Dudu desliga, imagina o quanto o companheiro est�� se

sentindo desamparado. Cl��rio fica uns instantes em sil��ncio,

depois recome��a:

��� Se n��o tivesse at�� aqui de trabalho, pegava um

avi��o, agora mesmo, ia pro enterro.

Dudu n��o diz nada. Bota mais u��sque no copo, estira-

se de novo na poltrona. O r��dio �� ligado, toca m��sicas, o

locutor inicia o notici��rio das dezesseis horas. A primeira no-

t��cia fala da morte do perito carioca.

Dois

Durante mais de uma semana o pessoal quase n��o se

re��ne na porta do Sal��o Totinho, nem no Sal��o Garcia. S��

Tut��nio aparece, sempre de olho no jornal, procurando algu-

ma nota a respeito dos trabalhos da C P I .

2 0 8

O homem da barbicha passa horas falando, o ex-verea-

dor discute detalhes para a nova campanha que far�� como

candidato do M D B . Arturz��o tem estado ausente. N��o con-

seguiu o apartamento bom e barato pelo centro, resolveu ir

descobrir a casa em Vila Velha, perto da praia. Mas, nessa

manh��, Cl��rio Falc��o aparece, Tut��nio aproveita para pro-

voc��-lo.

��� Como ��, cara? O Arturz��o tava certo. Teus colegui-

nhas anotaram uma porrada de est��rias e, pelo visto, vai

tudo dar em nada.

��� Calma. N��o vamos botar o carro na frente dos bois.

O que �� bom t�� a caminho.

Cl��rio faz essas afirma����es sem muita convic����o, sorri,

convida Tut��nio para o caf��, fala do esc��ndalo num banco

que n��o chega a citar, dos terrenos que est��o sendo grila-

dos, "com a coniv��ncia de muita gente boa". Tut��nio toma

o caf��, quer saber da solu����o para o caso da menor.

��� Se tu n��o abrir o berreiro de novo, vai cair no es-

quecimento.

��� Pode deixar. Na hora certa aciono a m��quina.

Cl��rio ri alto, afasta-se com o palet�� no ombro, o ex-

vereador faz coment��rios, Tut��nio n��o ouve direito, acha

que o cara �� um chato, s�� vive preocupado com a tal cam-

panha que o eleger�� pelo M D B .

��� Quanto tempo faz que a C P I encerrou os trabalhos?

��� indaga o homem da barbicha.

Tut��nio olha distante, calcula.

��� Acho que mais de um m��s. Tempo de sobra pra se

fazer uma por����o de coisa, quanto mais dar rumo em as-

sunto desse tipo.

��� Ocorre que isso n��o �� s�� atribui����o dos deputados

��� afirma o homem da barbicha.

��� N��o �� o caralho! Quando querem, tudo anda direito

e depressa.

A mulher da corcova passa do outro lado da rua, Dudu

vem chegando em companhia de Jeov��, seu advogado.

��� Tu acha que aquele esporro do Cl��rio em cima do

Brandino vai dar em alguma coisa? ��� indaga Tut��nio.

��� Se se provar quem agrediu primeiro. N��o havendo

testemunha, d�� em nada.

��� Acho que foi aquele cara quem irritou o Cl��rio ���

considera Tut��nio.

��� N��o posso dizer nada. N��o tava l�� ��� afirma Dudu.

Novamente o sil��ncio volta a reinar, os carros passam

2 0 9

perto, as pessoas apressadas, um velho com uma por����o de

telas a ��leo, o menino das laranjas.

��� Tu acha, Dudu, que o caso vai pra frente, agora que

o ��boli se foi? ��� quer saber Tut��nio.

��� Claro que vai. Tem de ir.

��� N��o sei, n��o. Acho a coisa muito parada ��� comenta

o ex-vereador, alisando os cabelos.

��� De fato, t�� tudo parado. N��o �� s�� a solu����o do cri-

me da menina. H�� um des��nimo geral, em todo mundo. N��o

sei o que t�� acontecendo em Vit��ria ��� diz o homem da

barbicha.

��� �� muito trabalho e pouco dinheiro ��� comenta Jeo-

v��, sorridente.

O advogado vai embora, Dudu fica um pouco mais,

fumando e olhando os que passam. Tut��nio reclama da pen-

s��o onde resolveu morar.

��� A coisa t�� cada dia pior. Vou avisar pra dona Lin-

daura: melhora ou me mando. N��o tou aqui pra aturar saca-

nagem de ningu��m.

��� Se tu sai de l��, pra onde �� que vai? ��� diz o ho-

mem da barbicha.

��� N��o sou desvalido, cara. Tenho m��e, parentes bem

colocados. �� que n��o gosto de aporrinhar ningu��m.

Dudu aproveita o di��logo de Tut��nio, sem qualquer in-

teresse, entra no caf��, sai pelo outro lado, toma um t��xi,

manda seguir na dire����o da delegacia.

��� Te esperei �� be��a pra gente jantar. Onde �� que te

meteste? ��� indaga Ildefonso Primo.

��� Rodando por a��. Acho que Tut��nio �� quem t�� certo.

N��o h�� mais quase nada a fazer. Tamos pior do que pescador,

esperando a mar�� subir. Se subir ��� responde Dudu, sor-

rindo.

��� N��o t�� muito diferente do que era. S�� que agora

n��o se pode contar com ��boli. Fora disso, os problemas s��o

os mesmos ��� considera o delegado.

O policial fardado entra na sala, entrega uns pap��is,

chega a mulher com a filha menor, senta-se numa cadeira, a

mocinha fica de p��, o delegado esquece Dudu, p��e-se a ouvi-

la. A mulher n��o faz rodeio.

��� O safado do Camerino (o senhor sabe quem �� ? ) ,

fez mal pra ela e a besta ficou calada esse tempo todo. S��

foi me contar hoje. A�� vim aqui lhe procurar. N��o quero

minha filha na boca do povo.

210

O delegado recosta-se na cadeira, o telefone toca, aten-

de, passa para Dudu, volta a ouvir a mulher.

��� Ele vivia chamando ela meu benzinho, meu amo-

reco. Essas coisas, o senhor sabe. Depois que conseguiu o que

queria, se mandou. Nunca mais botei o olho no descarado.

O delegado pede nome completo do Camerino, ende-

re��o, para que possa expedir uma notifica����o. A velhota

n��o sabe, a mo��a tamb��m n��o.

��� Ent��o, como �� que sua filha se entregou a um su-

jeito cujo nome nem sabe?

A velhota engole em seco, faz um bico de raiva. Nunca

ningu��m lhe dissera tamanho desprop��sito.

��� Tu nem sabe o nome daquele vagabundo?

A mocinha sacode negativamente a cabe��a.

��� Vai se voltar l�� na casa dele pra perguntar.

Pede licen��a, ajeita o vestido, desaparece puxando a

mocinha.

��� T�� vendo o tipo de gente que baixa por aqui?

Dudu recoloca o fone no gancho, ouve o que o sargento

moreno e gordo anuncia.

��� O inspetor da Pol��cia Rodovi��ria t�� a�� de novo.

��� Manda subir.

Enquanto o homem n��o aparece, o delegado comenta

com Dudu:

��� T�� querendo um quebra-galho pro cunhado. �� boa

gente.

Entra na sala o inspetor, um tipo alto e alourado, co-

turnos pretos, quepe de biqueira dura.

��� Tava lhe esperando desde cedo. Quase n��o me en-

contra mais ��� vai dizendo Ildefonso.

��� Hoje, a barra pesou pro nosso lado. Houve um se-

nhor acidente na altura do quil��metro 5 da BR-262, j��

em Campo Grande. Coisa s��ria. Se trabalhou como bicho.

��� Que tipo de acidente?

��� Uma camioneta Chevrolet entrou disparada em cima

de um Pontiac. Quando se chegou no local, tinha uma mu-

lher degolada e mais outros tr��s feridos graves, sem contar

os carros, que ficaram destro��ados.

Ildefonso Primo pergunta a respeito da v��tima, o ins-

petor come��a a mexer nos bolsos, �� procura do papel com

as anota����es do caso.

��� Vou at�� passar no jornal e dar isso a um amigo nos-

so. Pode divulgar os dados certos.

Desdobra um papel pautado, vai lendo:

211

��� O Pontiac chapa EH-5551 era daqui de Vit��ria.

Elias Ferreira Bonadiman �� quem dirigia. A camioneta tinha

licen��a de Cachoeiro de Itapemirim. A morta �� Elizabeth

Helal Bonadiman.

��� A filha de Constanteen Helal?

Dudu se levanta, para melhor observar os dados que

est��o nas m��os do inspetor.

��� O que �� que o senhor t�� dizendo?

��� Foi degolada? ��� indaga o delegado.

��� Morte horr��vel! Ajudei a tirar o corpo das ferra-

gens. A cabe��a foi lan��ada fora do carro.

��� E quem s��o os feridos?

��� Wilson Lesqueves, que dirigia a camioneta, Elza

Barbosa Lesqueves e Luciano Costalonga. Esse cara, ali��s, ��

quem teria provocado o acidente. Ia atravessar a pista. O

motorista da camioneta tentou evitar mat��-lo, ainda o pegou

de rasp��o, e acabou batendo de frente com o Pontiac.

Dudu senta de novo, o telefone toca, n��o atende, o ins-

petor continua a falar.

��� Se ficou l�� mais de tr��s horas, trabalhando. Desde

as oito e meia. Foi preciso ma��arico pra cortar a ferragem.

��� E o Elias, n��o se feriu?

��� Coisa leve. Ningu��m entende. Levou mais o susto.

��� O corpo foi transferido pra c��?

��� T�� no necrot��rio ��� responde o inspetor, recolocan-

do o papel dobrado no bolso.

Dudu debru��a-se na janela, olha a noite pontilhada de

far��is de carros e l��mpadas nos postes, junto com as l��mpa-

das a luz das velas na sala estreita, tia Rita pedindo castigo

para os culpados e a cantoria de Maria Milagres e de dona

Eduvirges. Manoel Preto mexia s�� os bei��os, Noca de Brito

juntava as m��os e fingia estar cantando tamb��m. Mais uma

vez inquieta-se com a id��ia a respeito de sua ida ou n��o ��

sess��o na casa da cigana. Novamente se interroga naquela

janela a respeito dos poderes de tia Rita e o que ouve �� a

voz pastosa de Maria Milagres, afirmando sem qualquer d��-

vida:

"Ritinha tem for��a. H�� muito santo com ela".

212

Tr��s

A manh�� de novembro est�� cinzenta. Desde cedo o chu-

visco peneira sobre a coberta das casas, nas ruas enlamea-

das, nas pra��as onde os arbustos perfilam-se verde-taciturnos.

Dudu olha aquele dia e n��o se sente muito �� vontade. Meteu-

se numa capa escura, enfia as m��os nos bolsos. O ex-vereador

aparece e, como sempre, fala baixo, conta os planos que tem

para obter ��xito nas urnas. Dudu viaja longe, o pensamento

dividido, n��o ouve direito o que o homem diz, concorda para

que a conversa n��o se alongue. Na cal��ada da lanchonete

Kakus, na Rua da Alf��ndega, est�� toda a turma que costuma

reunir-se em frente ao Sal��o Totinho ou no Sal��o Garcia. A

chuva n��o tira a anima����o de Tut��nio, Arturz��o mastiga

um sandu��che, o homem da barbicha faz considera����es vagas

a respeito da meteorologia.

A discuss��o sobre o depoimento de Elza Dias, vi��va do

sargento Homero, ainda �� assunto, o acidente que vitimou

Elizabeth Helal, tamb��m.

��� Puxa, cara, esta cidade t�� mesmo azarada! Nunca

vi acontecer tanta merda em t��o pouco tempo ��� diz Tu-

t��nio.

��� E dizem que era boa pessoa. N��o conheci, mas ouvi

dizer ��� comenta o homem da barbicha.

��� Tamb��m, o que tem de gente pedindo que Constan-

teen Helal se lasque n��o t�� no gibi. Isso pesa, t��o pensando

que n��o? ��� considera Tut��nio.

O t��xi p��ra em frente �� lanchonete, salta Cl��rio, sempre

afobado, o la��o da gravata por fazer.

��� Cad�� Dudu?

Tut��nio grita pelo perito, ele vem chegando, ar de riso,

a capa escura quase arrastando nos sapatos.

��� Sabe que porra que aconteceu?

Dudu sacode a cinza do cigarro, o homem da barbicha

estira o pesco��o, o ex-vereador alisa os cabelos, Tut��nio fica

em sil��ncio, Arturz��o brinca com a caixa de f��sforos.

��� Tentaram matar o Boca Negra outra vez. Me disse-

ram que desta, quase conseguem.

Cl��rio toma o primeiro gole de caf��, Tut��nio mostra-se

revoltado, o ex-vereador torna a alisar os cabelos:

��� Filhos da puta! ��� diz Tut��nio.

��� Mais cedo ou mais tarde, �� o que v��o terminar fa-

zendo ��� afirma o homem da barbicha.

213

��� E ser�� que aquele bandido diz a verdade? ��� argu-

menta o ex-vereador.

��� N��o sei. Que tem peito, tem ��� diz Cl��rio, arrega-

lando os olhos. ��� N��o �� todo dia que se encontra um tipo

como ele, que acusa um policial de frente e depois vai dor-

mir numa cela.

As portas da lanchonete est��o apinhadas e continua vin-

do mais gente que foge da chuva. Agora, os ventos s��o for-

tes, o tempo fechou, as luzes das ruas acenderam. H�� um

sil��ncio geral sobre o grupo. At�� Tut��nio, que tem sempre o

que dizer, n��o encontra nada para falar.

��� Se querem apagar o homem �� porque sabe de algu-

ma coisa importante ��� afirma Dudu.

A trovoada atinge algumas portas da lanchonete, o frio

aumenta, o pessoal recua, as moscas sobrevoam o balc��o.

Dudu pede outro caf��.

��� Acho que vou at�� o bar, tomar uma cana ��� diz

Tut��nio.

��� Te acompanho ��� concorda Arturz��o.

Os dois atravessam a rua correndo, Cl��rio come��a a se

esfor��ar para tomar um t��xi.

��� Pelo visto, a chuva vai longe.

Dudu n��o se apressa. Enfia as m��os nos bolsos da capa,

fica ouvindo o que diz o ex-vereador. O homem da barbicha

tamb��m se apronta para deixar a lanchonete.

��� Molhado ou n��o, tenho de pagar a conta da luz,

sen��o cortam.

Dudu toma caf��, ouve o homem de m��os grandes fa-

lando no desabamento ocorrido no morro do Forte S��o Jo��o.

��� Nunca vi coisa igual. O que desceu de terra e pedra

l�� de cima n��o t�� escrito. Quase n��o posso passar com o ca-

minh��o. Se me atraso um minuto ficava l��.

��� E na Fonte Grande? ��� diz o companheiro do ho-

mem das m��os volumosas, um mo��o de rosto magro, sardas

no nariz. ��� Sabe aquela escadaria? Sumiu por completo. A

turma que mora no alto n��o t�� nem conseguindo descer.

O ex-vereador acrescenta detalhes sobre outros desaba-

mentos, chega a mulher da corcova e a outra com a sacola de

compras. A mulher da corcova tem o rosto congestionado,

os bei��os tr��mulos, os olhos raiados de sangue, muito aber-

tos. Fala e estende a m��o, apontando a praia onde aconteceu

a desgra��a.

��� A canoa saiu cheia de pescadores. Ainda n��o tava

chovendo. Quando se passou por l��, ainda h�� pouco, tava o

214

pov��o chorando, as mulheres querendo entrar naquele mun-

dar��u de ��gua que Deus manda.

��� Nunca vi ressaca igual ��� acentua a mulher da sa-

cola de compras, que �� mais calma.

��� Aquilo ali �� mar aberto ��� diz o ex-vereador.

��� Parece que at�� agora n��o encontraram nenhum cor-

po ��� torna a falar a mulher da sacola.

��� O que encontraram foi a canoa toda arrebentada ���

afirma a mulher da corcova.

��� Foi aparecer pros lados da rocha.

Dudu sai da lanchonete, a chuva umedecendo-lhe os

sapatos, molhando-lhe o rosto, recorda as profecias de tia

Rita, da tempestade igual, que sumiu Tuca, tem vontade de

voltar ao bairro de F��tima, ao mesmo tempo em que sente

uma profunda tristeza daquela manh�� sem sol, do povo de

rosto triste e nervoso como do motorista de caminh��o e da

mulher da corcova. Atravessa a primeira rua, chega na Ave-

nida Capixaba, onde o engarrafamento de ve��culos �� grande,

ouve pessoas que reclamam da inunda����o para os lados da

rodovi��ria, na entrada da cidade, nas avenidas Vit��ria e Re-

p��blica, na Rua Graciano Neves. Sabe ser imposs��vel tomar

um t��xi, vai caminhando pelas cal��adas at�� a pracinha com

os arbustos carregados de gotas transparentes. Entra na fila

de pessoas molhadas, que tomam o ��nibus, o carro desengon-

��ado move-se com lentid��o, ora rangendo numa po��a de lama,

ora derrapando onde o asfalto est�� coberto de barro. Olha

pelos vidros, os charcos ao longo da pista, a ��gua entrando

pelas janelas quebradas, os passageiros que sobem e descem

nos pontos de parada, o limpador de p��ra-brisa mal dando

conta do recado, o motorista se esfor��ando para manter-se

na pista, com toda a f��ria da trovoada. Na parte rebaixada

do terreno, depois da curva, a lagoa de ��gua barrenta, o ��ni-

bus geme e estala, o homem gordo lembra que basta uma

gota d'��gua no distribuidor para o ve��culo parar ali mesmo,

a mulher de rosto assustado manda que v�� azarar em outro

lugar, o tipo gordo faz um risinho sem gra��a, o motorista

procura manter-se nos pontos mais elevados, at�� atingir o

trecho da ladeira onde as enxurradas descem pelos grot��es,

abrindo cavernas na tabatinga das encostas. Ao longo da

praia o carro desenvolve um pouco mais, embora a chuva

tenha aumentado de intensidade. P��ra em frente ao grupo

de mulheres e velhos, abrigados sob guarda-chuvas, garotos

nus, aventurando-se nas ondas da ressaca, crinas eri��adas. O

homem gordo ergue-se, estira o bra��o, fala alto:

215

��� Foi aqui que os pescadores se acabaram.

Algumas pessoas e o pr��prio motorista descem, Dudu

acompanha.

��� Vamos ver se essa gente precisa de ajuda ��� diz o

motorista.

��� Acho que agora j�� n��o se pode fazer nada ��� res-

ponde o homem gordo, e mais uma vez a mulher de rosto

assustado o encara, irritada.

Dudu chega perto da mulher vestida de preto, que chora

e pronuncia palavras que n��o fazem sentido, o garoto de

bei��os arroxeados conta como foi:

��� Tava chovendo fino. O pai abriu a janela e viu, pelo

tempo, que devia ser quatro horas. A�� acordou Zeca, Pedro

e foi chamar seu Tib��rcio e seu Cirilo. Disse que, com esse

tempo, a pescaria de bagre era melhor. N��o fui com eles

porque tinha tido febre na v��spera e a m��e queria que fosse

vender uns bagulhos na feira.

��� De que tamanho era a canoa?

��� Um igarit�� de quatro bancos, muito forte pra qual-

quer tempo.

A mulher do rosto marcado de rugas aproxima-se.

��� O que restou da embarca����o t�� do outro lado da-

quela pedra.

Dudu olha na dire����o em que a mulher aponta, o que

v�� s��o as crinas das ondas cobrindo os lajedos. O motorista

do ��nibus, que tamb��m est�� perto, um crioul��o alto e en-

curvado, arrisca uma considera����o:

��� Ningu��m pode se meter num temporal desse, ho-

mem de Deus. O melhor �� esperar que os corpos venham dar

na praia. Quem se aventurar nessas ondas vai morrer f��cil.

Novos fragmentos de roupas e objetos chegam ��s areias,

as mulheres e os velhos movimentam-se, uma das velhotas, o

rosto por tr��s de um manto de rugas, chora alto, a boca

abrindo-se numa careta sem dentes.

Dudu passa as m��os no rosto molhado, o homem gordo

sorri e faz perguntas ao garoto de bei��os arroxeados. Cami-

nha na dire����o da pedra, os farelos de madeira batendo-se

com f��ria nos rochedos, o nome " G a i v o t a " aparecendo e desaparecendo num peda��o de madeirame pintado de branco.

Volta ao ��nibus, que ficou de motor ligado, o motorista bu-

zina avisando que est�� de partida, a viagem �� reiniciada, o

grupo de guarda-chuvas permanece diante das ondas bran-

cas, do c��u que se juntou ao mar.

216

��� �� capaz da correnteza j�� ter levado eles pros lados

de Tubar��o ��� diz o homem gordo, mas ningu��m parece

ouvir suas palavras.

Dudu salta no trecho lamacento, entra pelo caminho

estreito, ladeado de arbustos que a tempestade a��oita, chega

ao campinho, agora transformado num lago, passa por baixo

da estreleira, o ch��o coberto de folhas verdes, flores em bo-

t��o. Est�� com a roupa colada ao corpo, mas n��o se preocupa

com isso. Empurra a cancela, v�� tia Rita, pano branco amar-

rado na cabe��a, t��o molhada quanto ele, v�� Tiziu movimen-

tando uma enxada, Tadeu, que carrega peda��os de madeira,

todos envolvidos na trovoada.

��� Que foi isso?

��� A parede n��o ag��entou o temporal. T�� caindo por

baixo. Seu Noca de Brito j�� teve aqui. Foi buscar o caibro

pra fazer uma escora.

Dudu olha o rosto da mulher, molhado de chuva, os

olhos verdes, o sorriso de dente falhado, ajuda Tadeu com

os peda��os de madeira, examina a parte onde a parede come-

��ou a desmoronar.

��� Se n��o se cuidar depressa, vem toda embaixo.

��� Vamos rezar pra que isso n��o aconte��a ��� diz Rita

Soares.

Noca de Brito chega com o caibro, �� muito grande, a

mulher manda Tiziu pedir o serrote de Nestor de Afonsina

emprestado, Dudu descobre um lugar onde h�� diversas pe-

dras que servem para firmar a parede, Noca de Brito, em-

bora j�� velho, tem for��a bastante para empurr��-las at�� perto

da casa. Depois serra o caibro, Dudu abre uma orelha com

a machadinha, os dois forcejam para ajustar a escora na ponta

da cumeeira, cal��am com as pedras o p�� da escora. Tia Rita

olha pra cima, tem certeza de que o trabalho est�� bem feito.

��� Agora, vamos tomar um caf�� quente, pra n��o pegar

constipa����o.

Os garotos guardam as ferramentas, Dudu vai para o

c��modo mais recuado da casa, tira a camisa, esfrega-se na

toalha que Tiziu traz. De um ba�� tia Rita tira o blus��o que

ganhou na arrecada����o de donativos.

��� Tudo tem serventia neste mundo ��� diz ela. ���

Chegou a vez do blus��o.

Ri alto, Dudu acha gra��a, porque o blus��o cabe dois

dele. Noca de Brito diz estar bem, basta tomar um gole de

caf�� e cair de novo na chuva.

��� Tenho muita coisa pra reparar. At�� na casa de mi-

217

nha sobrinha, que nunca choveu, desta vez o vento abriu

umas tr��s goteiras no meio da varanda.

A cigana mexe no fog��o, nos gravetos de lenha, Tiziu e

Tadeu sentam-se no banco comprido, cada um com sua tigela,

esperando o caf��. Tia Rita volta com o caf�� fuma��ando,

bota no meio da mesa de t��buas, serve Noca de Brito numa

caneca de lata, serve Dudu. Depois de encher as tigelas dos

garotos, recomenda:

��� Cuidado que t�� fervendo!

Senta-se, ajeita os cabelos molhados, os olhos est��o ale-

gres, iguais aos que Dudu viu debaixo da chuva.

��� �� ��gua que Deus manda, tia Rita ��� fala de re-

pente Noca de Brito, botando a caneca vazia na mesa.

A mulher n��o responde, Dudu se ocupa com Tiziu e

Tadeu. Noca de Brito se despede, um trov��o forte estronda

para os lados da praia.

��� Hoje �� um dia de muito acontecimento ��� diz ela,

quando Noca de Brito j�� passou pela cancela, est�� quase

chegando �� estreleira.

��� Tem inunda����o por tudo que �� lugar ��� responde

Dudu.

��� Mas n��o �� s�� inunda����o. Quando voltar pra cidade,

procure seu Nem��sio, que ele deve saber de coisa impor-

tante.

��� Com respeito a Aracelli?

Os olhos da cigana tornam-se distantes, o rosto sem

nenhuma alegria.

��� T��o cedo n��o v��o dar sossego pra pobre crian��a!

Tadeu diz qualquer coisa, tia Rita n��o repara, Tiziu

tamb��m fala. Um vento forte sopra, a janela que se abre

para dentro da sala bate com for��a, Dudu sente o ar frio da

trovoada no rosto.

��� Que �� que pode t�� acontecendo? ��� pergunta Dudu.

��� N��o sei bem, s�� indo l��.

Dudu continua a tomar o caf��, a mulher levanta, acende

uma vela, bota na frente da Virgem de F��tima. Chama os

filhos para ajoelhar e rezar. Dudu acompanha a cerim��nia.

A mulher pede que seja dada paz aos pescadores que se per-

dem em alto-mar, num dia como hoje, pede pelos pobres

que ficar��o mais pobres, por Maria Milagres, que tem uma

casa t��o fr��gil no meio daquele vendaval, pede por dona

Eduvirges. Lembra as gra��as de Tuca e de Aracelli.

��� Que sejam os santos de Deus e da nossa companhia!

Dudu sabe que aquele ritual entrar�� pela noite, torna

218

a botar a camisa molhada, encosta a porta, nem Tiziu nem

Tadeu reparam quando sai. Envolve-se na capa, enfia as m��os

nos bolsos e assim chega ao bar na beira da estrada, com

uma l��mpada triste, acesa no meio daquela tarde molhada.

O homem fala do temporal, que espantou a freguesia, coloca

a dose dupla de conhaque, o perito prossegue a caminhada.

��� Por aqui n��o passa ��nibus desde manh��.

Foi o que o homem do bar dissera e Dudu sabia que

estava certo, os lugarejos por perto deveriam estar inunda-

dos, a mulher conduzindo alguns m��veis, tudo que sobrou

da sua casa, invadida pela correnteza do rio. Atr��s dela, os

garotos barrigudos, a menina de cabelos escorridos, os p��s

afundando na lama da rua sem cal��amento.

"Hoje �� um dia de muito acontecimento."

Olha o rosto de Rita Soares, seu Noca de Brito, force-

jando com a escora, a orelha aberta no pau, encaixado com

seguran��a por baixo da cumeeira.

��� A parede pode cair, mas o telhado n��o vem com

ela. T�� firme, pra outro tanto de chuva.

A camioneta avan��a nas po��as, Dudu acena, o moto-

rista p��ra, manda que suba.

��� Dei sorte de te encontrar por estas bandas.

��� Fui l�� na praia onde aquele pessoal se afogou ���

responde o motorista, ex-funcion��rio da Secretaria de Segu-

ran��a.

��� Apareceu algum corpo?

��� Com aquela ressaca? Fiquei at�� com medo de che-

gar perto ��� responde o motorista, um homem j�� velho, a

careca reluzente, tomando-lhe quase toda a cabe��a.

��� Na ida pra l��, conversei com o pessoal. S�� os des-

tro��os da canoa tinham chegado na praia.

O motorista se alonga em considera����es a respeito dos

pescadores que sumiram, dos desabamentos em S��o Torqua-

to, das casas inundadas na entrada de Vit��ria.

��� N��o se cuida das canaletas no ver��o. Quando vem

a ��poca da chuva �� isso. Se bem que desta vez t�� pior. Nunca

vi tanta ��gua.

Dudu faz ar de riso.

��� Guenta um pouco que fico por aqui.

A camioneta continua pela avenida, as ��rvores balan-

��ando furiosamente as copas, a rede el��trica oscilando, alguns

fios partidos. Entra pela rua estreita, coberta de folhas ver-

des e flores de ip��-roxo, chega ao p��tio dos pr��dios antigos,

portas e janelas fechadas. Atravessa a cortina de ��gua das

219

biqueiras, bate o p�� no capacho de arame. O sal��o �� amplo

e n��o h�� ningu��m. Caminha at�� o corredor, o homem magro,

rosto vermelho, faz um sorriso quando o v��.

��� Por aqui, com essa chuva toda? ��� indaga Nem��sio,

metido no seu uniforme caqui, sapatos pretos ro��dos nos

saltos.

��� O mar n��o t�� pra peixe. Tem cada uma acontecendo

por a�� que deixa a gente tonto.

Abre a carteira de cigarros, bastante ��mida, oferece ao

funcion��rio, puxam as primeiras tragadas, p��em-se a con-

versar.

��� O que aconteceu com o corpo de Aracelli?

Nem��sio tira o cigarro dos bei��os, o rosto fica s��rio de

repente, vago ar de preocupa����o.

��� Que saiba, nada!

Dudu acha gra��a, sopra mais uma vez a fuma��a do ci-

garro, olha a chuva que cai do telhado no p��tio de pedras.

��� �� f��cil verificar ��� diz Nem��sio, o molho de chaves

na m��o.

Andam pelo corredor, em sil��ncio. Perto da grande ge-

ladeira, torna a falar:

��� Ouviu algum coment��rio?

Escolhe a chave, a fechadura estala, a portinhola se

abre, Dudu se aproxima para olhar melhor, a gaveta est��

vazia, puxa nova tragada do cigarro.

��� Foi sigilo total.

��� Pra mim, significa falta de considera����o.

A portinhola se fecha, Nem��sio est�� de fato aborrecido,

o rosto mais vermelho que de costume.

��� Pode ser que desta vez queiram de fato dar rumo

certo no caso.

O funcion��rio nada comenta, chegam outra vez ao sa-

gu��o.

��� E o que mais sabe a respeito disso? ��� indaga Ne-

m��sio.

��� Por enquanto tou quase na mesma situa����o. Sei que

mandaram o cad��ver pra algum lugar. Talvez pro Rio. Vou

me comunicar com uns amigos de l��, procurar saber.

Nem��sio bate nervosamente com uma das chaves na

m��o, relembra coisas passadas, argumenta:

��� Foi por isso que na segunda-feira mandaram redo-

brar os cuidados com os despojos da menina. Devia ter des-

confiado.

220

Dudu n��o faz coment��rios. Abre a porta, olha o tem-

poral rugindo por cima das casas e ao longo das ruas.

��� Tudo nesta terra �� misterioso ��� queixa-se Nem��-

sio. ��� Pra eles, todo mundo �� irrespons��vel. Os graud��es,

que fazem as trapa��as, �� que s��o s��rios, merecem confian��a.

Dudu sente o quanto Nem��sio est�� ferido no seu orgu-

lho de servidor p��blico exemplar, com uma folha de quinze

anos de servi��os, sem uma falta, nem por motivos de doen��a.

O funcion��rio faz outras afirma����es, relata pormenores do

trabalho, o perito n��o d�� import��ncia, por saber que est��

revoltado.

Mete-se novamente na chuva, passa por baixo do ip��-

roxo, rodeado de flores e folhas que os ventos fortes agitam

no ch��o, avan��a protegendo-se nos beirais das casas, em cada

rel��mpago v�� o rosto descontra��do de tia Rita, os olhos

serenos, as palavras serenas.

"T��o cedo n��o v��o dar sossego pra pobre crian��a!"

Perto da rodovi��ria as mulheres segurando o vestido

de um lado, entrando descal��as na lagoa que se formou, os

homens com as cal��as arrega��adas, o vendedor de ervas afir-

mando que o raio pegou a mulher e o menino.

��� Tava bem perto deles, quando aconteceu.

Os curiosos fazendo roda em torno do homem de gran-

des m��os, rosto quadrado, fiapos brancos de barba por fa-

zer, a nuvem da catarata amea��ando-lhe o olho esquerdo.

��� Que Deus nos tenha na sua gra��a ��� diz o homem

e se benze. ��� A mulher caiu queimada, a crian��a foi atirada

longe.

Dudu se aproxima, a pobre est�� com os p��s dentro

d'��gua, algu��m pergunta se n��o �� bom puxar para a parte

que tem a coberta de telhas, o policial que espera o rabec��o

responde que agora tanto faz, como tanto fez.

��� N��o t�� mais sentindo nada.

O perito abre caminho atrav��s do povar��u, sobe a rua

de ladeira, lava os sapatos na enxurrada, chega �� lanchonete

Kakus, onde muitos tipos fazem lanche e conversam, espe-

rando que a chuva afine.

��� T�� chovendo h�� quase trinta horas ��� lembra o

ex-vereador.

��� E, pelo visto, o temporal ainda vai longe. �� como

tia Rita diz: ��gua nos pecadores, at�� que as almas tejam

lavadas ��� acentua Tut��nio.

��� Mas a infeliz que morreu na rodovi��ria n��o parecia

221

mais pecadora do que as que t��o dando trambique por a��

nos ot��rios ��� considera Arturz��o.

��� Como �� que pode saber? Quem te deu esse poder?

��� indaga Tut��nio.

��� Deus escreve certo por linhas tortas ��� arrisca o

homem da barbicha.

��� Voc��s s��o uns carolas de bosta ��� responde Artur-

z��o, sem ter muito o que argumentar.

Cl��rio discute com o homem calvo, de palet�� e gravata,

que segura uma pasta de couro lustroso. Agita os bra��os,

faz ginga, arregala os olhos, escancara a boca num riso enor-

me, de dentes grandes e brancos.

O ex-vereador oferece caf�� a Tut��nio, a Dudu, a Artur-

z��o.

��� Vou querer �� um esquenta-corpo. Daqui a pouco

escapulo pro barzinho.

Cl��rio deixa o homem da pasta de lado, toma o caf��,

Dudu p��e-se a relatar o que vira no Instituto M��dico-Legal,

fala de tia Rita, da tristeza de Nem��sio, Tut��nio est�� assus-

tado, Cl��rio faz careta, Arturz��o limpa as unhas, o homem

da barbicha apura o ouvido.

��� E tu acredita que o sumi��o do corpo seja boa coisa?

��� quer saber Tut��nio.

��� Talvez sim, talvez n��o. O melhor �� procurar mais

informa����o com o nosso pessoal no Rio.

��� E tem de ser j��, irm��ozinho ��� responde Cl��rio, bo-

tando as m��os na cabe��a.

��� Tia Rita foi quem descobriu? ��� indaga o ex-ve-

reador.

��� Deu a dica. Me disse que alguma coisa estranha tava

acontecendo e mandou procurar o Nem��sio ��� responde

Dudu.

��� Mulher forte t�� ali. Quero t�� sempre do lado dela

��� comenta Tut��nio.

A chuva dos telhados estala nas cal��adas, os rel��mpagos

cruzam o espa��o, trov��es fortes estrondam para os lados

de Vila Velha. A garotinha magra, de cabelos escorridos,

rosto amarelo, entra pedindo esmola, Tut��nio procura a

moeda que n��o encontra, a menina se intromete pelos gru-

pos, Cl��rio fala alto, gesticula.

��� Se tem de estourar isso nos jornais!

Dudu sacode a cinza do cigarro, imagina ir procurar

Ildefonso Primo, coloc��-lo a par do que estava acontecendo,

mas n��o sai do lugar. Os ventos frios daquele dia frio

222

invadem a lanchonete, ele fecha mais um bot��o da capa,

enfia as m��os nos bolsos.

O homem baixo e forte, com um bon�� de oleado mar-

rom, fala nos corpos que encontraram na praia do Costa.

��� Por enquanto apareceu um velhote e um garoto.

O homem da barbicha lembra que o prefeito pensa de-

cretar estado de calamidade, Arturz��o fala no desabamento

de duas casas na Avenida Fernando Ferrari, no acidente do

��nibus com uma carreta.

Dudu acompanha aquela agita����o toda, mas n��o se sen-

te disposto a coment��rios. Impressiona-se com as ��rvores

verde-silenciosas, perfiladas na pra��a, recobertas de pedra-

rias d'��gua, testemunhando o desastre que estava previsto.

223

O AUTOR E SUA OBRA

A inf��ncia de Jos�� de Jesus Louzeiro, maranhense de

Gamboa do Mato, distante sub��rbio de S��o Lu��s, onde nas-

ceu em 19 de setembro de 1932, certamente n��o favoreceu

o desenvolvimento intelectual do menino que viria a ser um

dos mais pr��digos escritores brasileiros da atualidade.

Filho de um pedreiro pobre, seguidor da seita mais

sect��ria do protestantismo, a presbiteriana, onde tudo era

pecado, o menino s�� tinha o est��mulo da av�� materna, que

lia para ele e recomendava-lhe que estudasse. Quando estava

no quarto ano prim��rio, um acidente interrompeu seus estu-

dos por dois anos, mas, em compensa����o, ligou-o para sem-

pre aos tipos mais marginalizados da sociedade.

O acidente provocou uma ferida cr��nica em seu ouvido,

e os m��dicos o desenganaram. Foi Umbelina, uma prostitu-

ta, inquilina de seus pais, quem sugeriu que o levassem ��

sua casa numa noite em que ela estaria com um m��dico

homeopata. Jos�� Louzeiro sarou e ficou eternamente grato

��s prostitutas e seus amantes.

Por influ��ncia da Igreja, o pai havia conseguido um

emprego p��blico de mestre-de-obras, e uma de suas fun����es

era supervisionar o cal��amento das ruas de S��o Lu��s, executa-

do por presidi��rios. Jos�� ia levar o almo��o do pai e, enquanto

ele comia, ficava ouvindo as hist��rias dos crimes contados

pelos pr��prios autores.

Aos vinte e um anos, depois de uma experi��ncia

como rep��rter no di��rio "O Imparcial', de S��o Lu��s, foi

para o Rio de Janeiro. Arrumou emprego em "O Jornal", e

j�� estava achando que vencer no Rio n��o era t��o dif��cil

assim, quando algu��m o alertou de que a empresa n��o cos-

tumava pagar seus empregados regularmente. Sem dinheiro,

inventou artimanhas para sobreviver. Bancos de rodovi��ria,

225

de aeroporto, albergues, e at�� pedir dinheiro na rua, tudo

isso o ligou ainda mais aos marginais. Mas foi uma dessas

experi��ncias ��� a de dormir clandestinamente na Casa do

Estudante do brasil ��� que o aproximou de um grupo de

intelectuais com quem mant��m amizade at�� hoje.

Com novos conhecimentos, conseguiu emprego, e che-

gou, em 1958, a copidesque do importante jornal "Correio

da Manh��". Nesse ano, publicou seu primeiro livro, "Depois da luta", e iniciou uma trajet��ria que dali para a frente o

faria passar v��rias vezes pelos principais jornais cariocas.

Em 1965, junto com outros jornalistas, editou "Assim

marcha a fam��lia", publicando mat��rias censuradas e sendo

obrigado a responder a inqu��rito policial-militar. Dez anos

depois, publicou outro livro, "L��cio Fl��vio, o passageiro da

agonia", e "Aracelli, meu amor", apreendido pela Censura Federal e liberado em 1981.

De 1976 em diante, passou a se dedicar exclusivamente

�� literatura. "Infancia dos mortos" (1977), que deu origem ao filme "Pixote, a lei do mais fraco", "O estranho h��bito de viver" (1978) ambos publicados pelo C��rculo, "Em carne viva" (1980), "20." axioma" (1980) e "M-20" (1980), s��o alguns dos romances de Jos�� Louzeiro, baseados em acontecimentos policiais ver��dicos. Neles sempre s��o denunciadas

as mis��rias da condi����o humana.

Sua tarimba de rep��rter e romancista levou-o a ser cons-

tantemente requisitado para escrever argumentos e roteiros

de filmes. Entre os mais famosos, figuram "Os amores da

pantera", "Amor bandido", "L��cio Fl��vio, o passageiro da agonia", "O caso Cl��udia" e "Pixote, a lei do mais fraco".

Com este ��ltimo conquistou dez pr��mios da cr��tica cinemato-

gr��fica estrangeira, como o grande pr��mio do Festival do

Cinema Ib��rico e Latino-Americano de Biarritz, Fran��a, e o

de melhor filme estrangeiro, da cr��tica de cinema de Los

Angeles.

2 2 6







---------- Forwarded message ---------
De: Bons Amigos lançamentos 





O Grupo Bons Amigos  tem a satisfação de lançar hoje mais um livro digital  no formato pdf, epub, txt e rtf para atender aos deficientes visuais.   

Aracelli, Meu Amor - José Louzeiro


 Livro doado por Bezerra e digitalizado por Fernando Santos

Sinopse:
Este livro  conta a história de Aracelli  uma menina então com oito anos de idade. Foi à escola como fazia todos os dias e certo dia não voltou mais.A partir daí seus pais  começaram as buscas para  encontrá-la.


Sobre o autor:  

José de Jesus Louzeiro (São Luís do Maranhão, 19 de setembro de 1932 - Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 2017) foi um escritor, roteirista e autor de telenovela brasileira


Iniciou sua carreira como estagiário em revisão gráfica no jornal O Imparcial em 1948 aos dezesseis anos de idade. Em 1953, aos 21 anos, se transfere para o Rio de Janeiro onde foi trabalhar no semanário: A Revista da Semana e no grupo dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, mais especificamente como "Foca" em O Jornal e daí foi deixando suas marcas através de suas redações nos jornais Diário Carioca, Última Hora, Correio da Manhã, Folha e Diário do Grande ABC e nas revistas Manchete e Diário Carioca.


Por mais de vinte anos atuou também como repórter policial. Na literatura, estreou com o conto Depois da Luta, em 1958, no cinema escreveu os diálogos do filme: Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia, baseado no romance de sua autoria lançado em 1976 pela editora Civilização Brasileira. Escreveu outros livros sobre casos policiais famosos como o Caso Araceli e o assassinato de Cláudia Lessin Rodrigues. O romance reportagem Aracelli, meu amor, foi censurado durante a ditadura militar a pedido dos advogados dos acusados.[1] Em Carne Viva (1988) traz personagens e situações que lembram as mortes de Zuzu Angel e seu filho, Stuart.[2] Seus livros são, na maioria, contos biográficos, narrados como romance-reportagem, chegando perto de quarenta publicações. A ele se atribui a introdução no Brasil do gênero literário romance-reportagem, que no exterior tivera como representante Truman Capote, que escreveu A Sangue Frio.


Assinou também o roteiro de dez filmes, sendo quatro deles já populares como Pixote, a Lei do Mais Fraco, Os Amores da Pantera de Jece Valadão, O Homem da Capa Preta e Amor Bandido, com Paulo Gracindo.


screveu telenovelas como Corpo Santo e Guerra sem Fim. Mas sua telenovela O Marajá, uma comédia baseada no governo de Fernando Collor de Melo, foi proibida de ir ao ar, numa época em que não havia mais censura no Brasil. Depois desse episódio, o autor conta que começou a enfrentar dificuldades para realizar novos projetos na televisão.


Louzeiro faleceu aos 85 anos de causas não reveladas, mas consequentes de doenças que se agravaram em função de diabetes[3].


Obras:

Depois da Luta (1958)

Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1975)

Aracelli, Meu Amor (1976)

Infância dos Mortos (1977)

Em Carne Viva (1988)

E vários títulos de bolso pela Cedibra

Fonte:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Louzeiro

Lançamento: Grupo Bons Amigos :  

http://groups.google.com.br/group/bons_amigos?hl=pt-br


Este e-book representa uma contribuição do grupo Bons Amigos  para aqueles que necessitam de obras digitais como é o caso dos deficientes visuais e como forma de acesso e divulgação para todos. 

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 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras .


 



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