Na adolesc��ncia, quando
despontou no autor a voca����o de
contador de hist��rias, foi este o
primeiro romance que imaginou,
com inspira����o direta na vida real.
Tem ele na lembran��a o grosso
caderno em que poria no papel o
drama de sua personagem central,
colega no Liceu Maranhense.
Entretanto, nessa primeira hora da
inclina����o liter��ria, muitos s��o os
projetos e poucas as realiza����es.
Essa a raz��o por que, delineado
na juventude, somente agora, meio
s��culo depois, deu o romancista a
esta pequena e dram��tica hist��ria
de prov��ncia o relevo narrativo
adequado, na urdidura de Perto da
meia-noite.
De in��cio fez do tema deste livro
um breve conto. Mais tarde,
ampliou-o em novela, divulgando-o
na colet��nea Duas vezes perdida,
lan��ada pela Editora Martins, de
S��o Paulo, e rapidamente esgotada.
Agora, ao coligir os romances e
novelas de sua autoria, para os tr��s
volumes, em papel-b��blia, da
Editora Nova Aguilar, n��o se
limitou a rever, e por vezes
reescrever totalmente, os textos ali
codificados. Decidiu retomar o
tema de seu primeiro romance,
dando-lhe a dimens��o da narrativa
da maturidade ��� sem preju��zo do
tom pr��prio, que parece conservar
Josu�� Montello
Perto da
Meia-Noite
ROMANCE
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
�� 1985, by J o s u �� M o n t e l l o
Direitos de edi����o da o b r a em l��ngua p o r t u g u e s a a d q u i r i d o s pela E D I T O R A NOVA F R O N T E I R A S.A.
Rua M a r i a Ang��lica, 168 ��� L a g o a ��� C E P 22.461 ��� Tel.: 286-7822
E n d e r e �� o telegr��fico: N E O F R O N T ��� Telex: 34695 E N F S BR
Rio de J a n e i r o , RJ
Revis��o tipogr��fica:
H E N R I Q U E T A R N A P O L S K Y
E D I L S O N C H A V E S C A N T A L I C E
U R A N G A
I
C I P - B r a s i l . C a t a l o g a �� �� o - n a - f o n t e
Sindicato N a c i o n a l d o s Editores de Livros, RJ
M o n t e l l o , J o s u �� , 1917-
M781p P e r t o da meia-noite / J o s u �� M o n t e l l o . ��� Rio de J a n e i r o : N o v a F r o n -
teira.
( R o m a n c e brasileiro)
1. R o m a n c e brasileiro I. T��tulo I I . S��rie
C D D ��� 869.935
85-0271
C D U ��� 869.0(81)-31
SUM��RIO
PRIMEIRA PARTE, 11
SEGUNDA PARTE, 49
TERCEIRA PARTE, 77
QUARTA PARTE, 99
QUINTA PARTE, 123
SEXTA PARTE, 755
S��TIMA PARTE, 203
OITAVA PARTE, 223
NONA PARTE, 249
A Glorinha deste romance, t��o estranha, t��o pat��ti-
ca e t��o bela na intensidade de seu drama, est�� associada
de tal modo ao meu esp��rito, desde o tempo do Liceu, em
S��o Lu��s, que por vezes confundo, no meu mundo de
lembran��as, a personagem real e a personagem ima-
gin��ria. Tinha de ser assim. �� ela, cronologicamente, a
minha mais antiga cria����o romanesca. A princ��pio, sob a
forma de conto, na gorda pasta juvenil dos textos in��di-
tos; depois, sob a forma de novela, em dois textos im-
pressos, que divulguei no come��o da maturidade.
Entretanto, assim como h�� pessoas de nosso
conv��vio, h�� tamb��m personagens que participam de
nosso mundo, com algo de familiar na sua freq����ncia e
na sua intimidade.
O Daniel, que contracena com a Glorinha ao longo
da mesma narrativa, tamb��m existiu. Ou estarei equivo-
cado? O que posso afirmar, sem receio de erro, �� que o
reencontro tamb��m nas minhas mais distantes reminis-
c��ncias. Com ele conversei, v��rias vezes, em S��o Lu��s, so-
bre a Glorinha. Dele recebi, para leitura sigilosa, em duas
pastas bem-cuidadas, a correspond��ncia que ambos tro-
caram, e que Daniel conservou em seu poder, intacta,
mesmo depois que o destino interveio a seu modo nesta
comovente hist��ria do cora����o humano.
Assim que a li, juntei o subs��dio epistolar com as re-
corda����es pessoais, e da�� surgiu, ainda imperfeito, o con-
7
to que o drama de Glorinha me inspirou. Mais adiante,
com outras fontes de informa����o, e o conhecimento dire-
to do cen��rio em que o drama aconteceu, dei-lhe a forma
de novela. Mas isso n��o me bastou.
Muitas e muitas vezes, nas horas em que Glorinha
voltou a materializar-se na minha consci��ncia, viva, ge-
nu��na e enigm��tica, senti que seu caso pedia moldura
mais larga, com seu retrato em tela maior. Retrato de
corpo inteiro, e n��o apenas parado, na imobilidade da
parede. Vivo, em movimento, como imagens sucessivas
que repentinamente se animam na proje����o luminosa da
pel��cula cinematogr��fica.
Ei-la agora aqui, na amplitude de um romance, a mi-
nha Glorinha do Liceu Maranhense. Estranha, calada,
grandes olhos negros. Para recomp��-la, sem nada omitir
ou esquecer, n��o me limitei �� flu��ncia da cria����o natural.
Misturei a primeira e a terceira pessoas no processo nar-
rativo. Desloquei o ponto de vista do narrador. Associei
lembran��as de amigos e companheiros ��s minhas
pr��prias lembran��as.
Por volta de 1955 (ou 56), numa de minhas idas a
S��o Lu��s, ao sair da Rua Formosa para entrar na Rua de
Santana, vi Glorinha perto de mim, caminhando em
minha dire����o, cheia de corpo, �� espera de um filho, e
com esta singularidade: ela, mo��a, morena, aparentando
menos de vinte anos, e eu, perto dos quarenta, j�� de cabe-
los grisalhos �� altura das t��mporas.
Ela parou defronte de mim, na cal��ada estreita:
��� N��o est�� me reconhecendo? N��o sabe quem sou
eu?
E ante a perplexidade de meu sil��ncio:
��� Sou a Maria Em��lia. A filha da Glorinha, que foi
sua colega, e do Daniel, que foi seu professor.
Depois desse encontro, como deixar de escrever este
romance?
J.M.
8
O amor se parece mais ao ��dio do que ��
amizade, se o julgamos pela maioria de
seus efeitos.
LA ROCHEFOUCAULD
PRIMEIRA PARTE
O pecado aumenta a experi��ncia humana.
O S C A R W I L D E
CAP��TULO I
A l t a , vistosa e calada, negros cabelos crespos des-
cendo para os ombros, Glorinha sempre se sentava na
primeira fila da sala de aula, dando-nos a impress��o de
n��o perder uma ��nica palavra do professor Daniel ���
mas a verdade �� que nunca o seu nome aparecera entre os
primeiros da classe.
Chamada ao quadro-negro, nos dias de argui����o
oral, deixava serenamente a carteira, elegante na simpli-
cidade do uniforme, bem-feita de corpo, o perfil moreno
destacado na claridade da janela. Segurava com desem-
bara��o o giz e a esponja, como se soubesse o ponto, e n��o
fazia boa figura.
Daniel, por seu lado, nada lhe dizia ao ouvir-lhe as
respostas hesitantes ou evasivas. Limitava-se a erguer a
sobrancelha esquerda, por vezes entrela��ava as m��os so-
bre a mesa, estalando os dedos, e esbo��ava um sorriso,
como de condescend��ncia e carinho. Depois, finda a ar-
gui����o, curvava-se para o livro de chamada, dava a Glo-
rinha a nota justa, e passava a arg��ir a mim, que vinha
logo a seguir, na lista dos alunos. Comigo, j�� famoso em
todo o Liceu por meus poemas e discursos, o mestre se
distraia �� vontade, como a descontrair-se da tens��o ante-
rior, sobretudo se coincidia ter aparecido no O Imparcial
ou na Folha do Povo o novo soneto que Glorinha me
inspirara. Verdadeira divers��o de gato e rato, em que o
gato era ele, com as suas unhas bem-tratadas, a sobrance-
lha erguida, e um jeito de rir que puxava o riso da classe.
1 3
Mas sempre me dava a nota alta, que eu realmente mere-
cia, ao me m a n d a r de volta ao meu lugar:
��� Muito bem, poeta.
Nas provas escritas, enquanto o professor ia e vinha,
no estreito espa��o entre as carteiras, Glorinha passava o
mais do tempo a morder a madeira do l��pis, os negros
olhos pestanudos esquecidos no ar, sem pedir ajuda a
ningu��m. Dir-se-ia que estava ali para ser vista, assim dis-
tante e bela.
C o m o sempre fora aplicada, com a fama de boa alu-
na no Col��gio Rosa Castro, isso intrigava.
E de repente, logo depois das f��rias de j u n h o , o
mist��rio de Glorinha se esclareceu, deixando-nos at��ni-
tos, q u a n d o viemos a saber, no p��tio de formatura, antes
do toque da sineta para o come��o das aulas, que a aluna
ia casar com o professor.
A Elcine esticou a figurinha magra na ponta dos p��s,
os olhos esgateados �� tona do rosto salpicado de sardas, e
protestou, quase n u m grito:
��� N �� o �� possivel!
E logo a Maria Jos��, a Heloisa, a Enedi, a S��nia, a
Vanda, a Regina e a Neide ��� a Neide de olhos rasgados e
sonhadores, que me inspirou t��o magoados versos ��� ex-
primiram o mesmo espanto agastado, como se o noivado
da colega as houvesse espoliado e traido, arrebatando-
Ules de surpresa um bem que a todas deveria pertencer.
Somente a Carla, que levara a m�� noticia, e era alta e
feia, continuou a limpar as unhas com as pr��prias unhas,
querendo rir gostosamente, com a cabe��a inclinada, a
olhar as outras pelo canto dos olhos, como se a vit��ria de
Glorinha a desforrasse de seu estrabismo e de seu busto
achatado:
��� Mais vale quem Deus ajuda ��� comentou.
As outras lhe deram as costas, caminharam para
perto do velho po��o de ��guas profundas, a um canto do
p��tio, e foi a Enedi que reabriu a queixa de todas, suspi-
r a n d o com raiva:
1 4
��� Que sonsa, a Glorinha! Ningu��m percebeu coisa
alguma. Com aquele ar distante. Sem querer se misturar
conosco, como se fosse diferente de n��s. E nos passou
para tr��s. A t o d a s .
A Heloisa foi mais rispida:
��� U m a criatura assim n��o pode ser amiga de nin-
gu��m. Eu n��o dizia n a d a , porque n��o me meto com a vi-
da dos outros, mas bem que desconfiava dela, e n��o era
de hoje.
A verdade �� que Glorinha, ao aparecer no Liceu,
no come��o do a n o , para cursar a ��ltima s��rie, tentara
aproximar-se das colegas. Chegara a convid��-las para
u m a festa de anivers��rio, a que s�� a Maria Jos�� compare-
ceu, assim mesmo para entrar e sair, como quem se deso-
briga de um recado. E foi ela que, na m a n h �� seguinte, ce-
d o , antes do in��cio das aulas, contou ��s outras, com ar de
riso:
��� Com toda aquela pose, sabem voc��s onde ela m o -
ra? Na Rua do Passeio, perto do Cemit��rio. U m a casa
baixa, de muito mau gosto, repleta de trastes velhos. Eu,
se morasse naquele b u r a c o , nunca ningu��m me via na ja-
nela.
Glorinha, refugiando-se na sua altivez e na sua bele-
za, isolou-se das colegas. E como o porte e os seios altos
davam-lhe mais idade, na harmonia de seu garbo natural,
ningu��m estranhou que ela se retra��sse na extremidade di-
reita da classe, na carteira ao p�� da janela sobre a rua. A
luz, que era ali mais intensa, dava-lhe realce. E todos n��s
reconhecemos que n��o devia ser outro o seu lugar.
No intervalo das aulas, enquanto toda a t u r m a des-
cia para o p��tio, Glorinha permanecia na sala. E, como
gostava de ler, trazia sempre uma revista, um romance ou
um livro de contos, com que ficava no seu canto esperan-
do o tempo passar.
N u m a dessas ocasi��es, n��o sei se por acaso ou de
prop��sito (creio que por acaso), entrei na sala q u a n d o
Glorinha estava lendo. Parei no batente da porta, sem
15
que ela houvesse dado por mim. E pude contempl��-la por
alguns minutos, como que imobilizada na claridade viva,
meio de lado, o dorso apoiado na costa da cadeira. C o m o
era alta, j u n t a r a os joelhos, inclinara as pernas, com os
p��s tamb��m unidos, e toda ela parecia tocada por u m a
luz pr��pria, nos olhos, na boca, na pele morena, na curva
dos seios, com a m �� o esquerda segurando o livro, a direi-
ta descansando o queixo. Jamais imaginei que fosse t��o
bela, com aqueles olhos pestanudos, aquelas m��os, aque-
la combina����o de forma e de cor. E favorecida por u m a
sensualidade sens��vel, extremamente feminina, sem nada
de premeditado ou provocante.
Foi ela, erguendo o olhar surpreendido, quem me ti-
rou do meu enlevo:
��� Voc�� chegou agora?
Confirmei com a cabe��a, e n��o sa�� do batente da
p o r t a , ainda p a r a d o , a olh��-la. E ali talvez ficasse, esque-
cido de mim mesmo, como hipnotizado pela beleza suave
da Glorinha, se n��o ouvisse por tr��s de mim o ru��do dos
passos dos companheiros, galgando apressadamente os
degraus da escada, no retorno �� sala de aula. Um deles
me empurrou, outro sussurrou-me u m a obscenidade, e
cada um de n��s, a um novo bater da sineta, ocupou o seu
lugar.
16
CAP��TULO II
N e s s e s dias distantes, o Liceu ainda era o Liceu.
T �� o importante, em S��o Luis, quanto o Col��gio Pedro
II, no Rio de Janeiro. C o m um primoroso elenco de pro-
fessores, recrutados em concursos renhidos que t o d a a ci-
dade acompanhava.
Perto de minha casa, na R u a dos Rem��dios, morava
Dr. Ara��jo Costa, que eu via passar defronte de minha
janela, t o d o de b r a n c o , chap��u de palhinha, bengala de
cast��o de o u r o , calad��o, distante. Era professor de fran-
c��s no Liceu. O desembargador Bona, que sabia alem��o e
grego, tamb��m pertencia ao Liceu. E assim o Dr. A n t �� -
nio Lopes, o professor Nascimento Morais, o Rubem Al-
meida, o M a t a R o m a , o Lu��s Viana, o poeta Correa de
Ara��jo, o desembargador Alfredo de Assis. Todos mes-
tres. Grandes mestres. Express��es superiores da cultura
maranhense. Com livros publicados. Na rua, ao passa-
rem, eram apontados com respeito:
��� �� professor do Liceu.
A Sala da Congrega����o, no Liceu Maranhense, era
adornada de retratos a ��leo em molduras douradas, com
a imensa mesa das reuni��es coberta de veludo vermelho,
severos cadeir��es de couro tauxiado, a floreira de prata
ao centro. Tinha a gravidade de um consist��rio.
A meio caminho entre o Desterro e a Praia Grande,
o Liceu ocupava a metade de um quarteir��o da Rua Di-
reita, entre a Rua da Estrela e a Rua do Giz. Beiral salien-
1 7
te, janelas de sacadas de ferro, portal de pedra, a escada
tamb��m de pedra, dois p��tios internos, a sala da secreta-
ria, a sala do diretor, e a vasta varanda circular abrindo
para um dos p��tios.
L�� dentro, a algazarra dos alunos. U m a sineta batia,
e todo esse ruido confuso subitamente cessava, enquanto
soavam os passos dos alunos nas escadas internas ou nas
lajes do corredor. Nas tr��s ruas, sob as sacadas, o preg��o
dos vendedores ambulantes, o rolar de u m a carro��a, o ti-
nir da ferradura dos cavalos, e o ��spero ranger das rodas
do bonde, na curva da Rua da Estrela para a Rua Direita,
a poucos passos do sobradinho da Ulem onde o bravo
Mendon��a matou o americano Kennedy, para ser unani-
memente absolvido.
No futebol, no v��lei, nos jogos atl��ticos, o Liceu era
tamb��m famoso, e a prova l�� estava, debaixo de chave,
nas ta��as e trof��us que enchiam um arm��rio envidra��ado,
na Sala da Congrega����o.
No dia em que vesti pela primeira vez o d��lm�� caqui
e a cal��a comprida da farda do Liceu, senti que deixara
de ser menino ��� o menino de cal��a curta da Escola Mo-
delo. Diante do espelho, j�� pronto para sair, lamentei
n��o ter ainda a penugem do bu��o sobre o l��bio superior,
para completar o rapazinho que ali estava, de cara redon-
da e brilhantina nos cabelos, muito compenetrado de sua
nova condi����o. N �� o era um homem completo, n��o ���
mas j�� estava perto. Simples quest��o de mais uns meses,
talvez um a n o , tudo dependendo apenas do dinheiro para
a aventura num dos bord��is de S��o Luis.
A vira����o da m a n h �� , ajudando-me na subida das la-
deiras e acompanhando-me nas suas descidas, poderia
contar a transforma����o que se operou no meu ser, entre a
casa de meus pais, na Rua dos Rem��dios, e o casar��o do
Liceu, ao fim da Praia Grande. A farda me ca��a bem. Eu
pr��prio lustrara os sapatos, dando-lhes um polimento
mais vivo nas biqueiras. O casquete de p a n o , da mesma
18
cor da farda, ia um pouco de lado, na cabe��a erguida, pa-
ra dar um toque a mais em minha eleg��ncia estudantil.
Minha voz, que passara a ter dois tons, ora fina, ora
grossa, acabou por se firmar no tom viril, e n q u a n t o os
bem-te-vis do caminho se esgoelavam a gritar que bem
me viam, equilibrados no beiral das casas ou nos fios da
ilumina����o p��blica. T a m b �� m as pessoas que se debru��a-
vam das janelas, ao longo de meu trajeto para o Liceu,
estavam ali para me ver passar. Algumas me sorriam.
Duas me acenaram. E at�� a D. Anica Falc��o, que nunca
me havia convidado para ver o seu c��lebre pres��pio, ao
tempo das festas do Natal, na porta-e-janela da Rua da
Passagem, se saiu com este cumprimento expansivo, que
me fez olh��-la com outros olhos:
��� J�� no Liceu? Ora viva! Estou gostando de ver.
Parab��ns.
Andei fardado por toda a cidade, e toda a cidade
certamente me admirou. Entretanto, tardei um pouco em
me sentir o homem completo que eu gostaria de ser nos
primeiros tempos do Liceu. E por minha culpa, reco-
nhe��o. Cedo, com o que ganhei nas aulas aos meus
pr��prios colegas, juntei o dinheiro necess��rio �� primeira
aventura. Muitas e muitas vezes, decidido a realiz��-la,
desci a ladeira que levava ao sobrado da Rua da Estrela,
cen��rio natural de minha inicia����o, mas as pernas me fal-
taram para lhe transpor resolutamente a porta entreaber-
ta. C o m o seria l�� dentro? As mulheres andariam nuas pe-
la casa? Ou s�� com o vestido em cima do corpo? E como
me receberiam? Ririam de mim? Perguntariam o que eu
fora fazer l��? A dona do sobrado n��o ralharia comigo?
Cheguei a admitir que uma das mulheres nuas me le-
varia para seu q u a r t o , contente de se entregar a um aluno
do Liceu. E eu, nesse m o m e n t o , como me comportaria?
Meu cora����o disparou, o suor frio correu-me pelas t��m-
poras. E o temor de um fiasco repentino, que talvez me
aniquilasse para o resto da vida, cresceu na minha imagi-
1 9
n a �� �� o , a t o r d o a n d o - m e . E esse m e d o , esse p �� n i c o ,
to r tu r an d o- m e, intimidando-me, me fez adiar por muitos
meses ��� ou melhor: por dois anos e tr��s meses ��� o suspi-
r a d o encontro com a minha virilidade.
Naqueles dias, o concurso do Daniel agitava o Li-
ceu. Andava ele pelos 32 anos, e era uma figura magra,
de p��mulos salientes, ombros altos, curtido de sol do ser-
t �� o , os cabelos tocados por um leve tom afogueado, sem-
pre com o cigarrinho entre o dedo indicador e o m��dio da
m �� o canhota. Disputava tamb��m a cadeira o professor
Quirino Benjamin, j�� velhusco, a calva imensa, o palet��
ca��do para os lados.
Quirino pertencia ao Liceu, como professor de outra
disciplina; Daniel, n �� o : vinha do Ateneu Teixeira Men-
des, e logo, por ser m o �� o , e competente, nos entusias-
m o u . Os partidos se formaram no correr da primeira pro-
va: n��s, os mo��os, em favor do Daniel; alguns professo-
res, sobretudo os mais velhos, em favor do Quirino.
E n q u a n t o um p��blico escasso acompanhava as pro-
vas p��blicas do Quirino, o u t r o , mais numeroso e aguerri-
d o , constitu��do de alunos, transbordava para o corredor
e a sala cont��gua, aplaudindo o Daniel, escrevendo-lhe o
nome no quadro-negro de todas as salas de aula, pregan-
do cartazes manuscritos nas paredes, d a n d o vivas ao nos-
so candidato com peda��os de carv��o nos muros pr��ximos
ao Liceu, e a c o m p a n h a n d o o professor em passeata, para
os discursos exaltados na escadaria da igreja do C a r m o ,
ao fim de cada argui����o.
A ��ltima prova ��� decisiva, com a confronta����o dos
candidatos no correr de uma aula ��� prometia p��r o Li-
ceu em p�� de guerra, caso a congrega����o se decidisse em
favor do Quirino. Eu estava entre os mais exaltados. De-
cidimos faltar a todas as aulas para assistir �� prova, mar-
cada para o meio da tarde.
Por volta de u m a hora, sa�� de casa. Entre a Rua dos
Rem��dios e a Rua Direita, gastava habitualmente meia
h o r a , quarenta minutos, sempre a p��, com largos mo-
20
mentos de conversa fiada �� sombra das figueiras do Lar-
go do C a r m o , depois de percorrer t o d a a Rua do Sol.
Dessa vez, entretanto, desci a Rua do Alecrim, atra��do
pela nesga de sombra do lado esquerdo da cal��ada estrei-
ta, rente ��s fachadas.
Rua longa e deserta, como que adormecida na pre-
gui��a da sesta. As janelas fechadas contra o m o r m a �� o da
hora. E um tinido met��lico de cincerros, mais adiante,
depois da Rua P e s p o n t �� o , no vasto terreno de u m a vaca-
ria.
Fui a n d a n d o devagar. E era t�� o grande o sil��ncio ��
minha volta que se ouvia com nitidez o ru��do de meus
passos na cantaria do ch��o. P a r a aliviar-me do calor, eu
tinha aberto o colarinho da farda, e ia com o casquete na
m �� o , protegido pela nesga de sombra.
Pela altura da Rua do P e s p o n t �� o , vi um rosto more-
n o , de olhos m o r t o s , na r��tula entreaberta de u m a porta-
e-janela. E logo ouvi esta pergunta, em tom suplicante:
��� P o d e me fazer um favor?
E abrindo-me a porta:
��� Entre.
Fechou depressa a porta, com a dupla volta da cha-
ve, e eu me vi n u m a saleta quase escura, enquanto u m a
mulher morena, cheia de corpo, me segurava as m��os
frias:
��� Tu sabes que eu trabalhei na tua casa e que te vi
menino? Depois me casei, n �� o deu certo, e aqui estou.
Sou a Dulce. N��o te lembras de mim? Eu te carreguei nos
meus bra��os.
E ado��ando mais a fala cantada:
��� Deixa eu te dar um abra��o bem apertado?
Senti-lhe os seios soltos, de mamilos duros, por bai-
xo do vestido caseiro, enquanto seu corpo se unia ao
meu, d e m o r a d a m e n t e , sensualmente. C o m rapidez, ela
abriu o colarinho, desabotoou-me o d��lm��, ao mesmo
tempo em que me ia levando para o aposento cont��guo,
mais escuro que a saleta.
21
N �� o tardei a ajustar meus olhos �� claridade escassa,
e pude ver a cama tosca, a rede, a c��moda, um S��o Bene-
dito na peanha da parede, a esteira no ch��o. Rapidamen-
te, apenas com o erguer dos bra��os acima da cabe��a, se-
gurando a barra do vestido, a nudez total de Dulce estava
agora �� minha frente, com os seios volumosos, as coxas
grossas, os quadris largos exibindo o sexo ostensivo, e j��
seus dedos acabavam por me despir, descendo-me a cal��a
da farda. Em sil��ncio, sentou-me na cama, tirou-me os
sapatos e as meias, e alongou-se ao comprido do colch��o,
puxando-me para si, tudo depressa, como no temor de
que eu lhe escapasse.
Devia andar pelos trinta e cinco, quarenta anos, e
trazia em si um cheiro b o m de b a n h o recente, debru��ada
sobre meus olhos, a me oferecer maternalmente um dos
seios:
��� T o m a , t o m a . Meu filhinho.
E toda ela se juntava a mim, tateando-me o sexo,
apertando-me o rosto, ajudando-me a possui-la:
��� Assim, a m o r . Assim.
Sai dali com a tarde querendo esmorecer. E m b o r a as
pernas me tremessem, o m u n d o agora era o u t r o , na luz
espl��ndida que vinha ao meu encontro e me banhava de
ouro e calor. Fui a n d a n d o para o Largo do C a r m o ,
a c o m p a n h a d o pelo grito dos bem-te-vis. L�� adiante, do-
brei a Rua do Ribeir��o. Contornei a velha fonte que Ne-
t u n o vigiava. Que me importavam as carrancas de pedra,
a ��gua a escorrer para os regos laterais, a vira����o da tar-
de? Eu pisava firme, sentindo que o ch��o era meu.
J�� no Largo do C a r m o , olhando na dire����o da Rua
Formosa, avistei os companheiros do Liceu, com o pro-
fessor Daniel �� frente. Eu devia correr para eles e juntar-
me �� passeata. N �� o . N �� o foi o que fiz. O bonde do Anil
vinha completando a curva para descer a Rua G r a n d e .
Saltei-lhe para o bala��stre, instalei-me num banco vazio,
deixei que o bonde me levasse.
22
E s�� as cigarras do J o �� o Paulo e da J o r d o a , nas ��rvo-
res que marginavam o Caminho Grande, descobriram o
meu segredo. Porque nunca eu as ouvi cantarem tanto
quanto naquele fim de tarde, nas duas vezes em que por
ali passei.
23
CAP��TULO III
G l o r i n h a entrou para a nossa classe no quinto ano
do gin��sio. Cursara o Liceu do Cear��, em Fortaleza, on-
de passara alguns anos, depois de u m a temporada na ser-
ra de Baturit��.
No primeiro dia de aula, deu-nos a impress��o de j��
ter feito 20 anos. Na verdade, tinha ainda 16, como quase
todos n��s. N u m relance, ofuscou as beldades da sala, in-
cluindo a Heloisa, a Enedi e a Cleide, que passaram ime-
diatamente a segundo plano.
Eu, que voltara a repetir minhas aventuras ,com a
Dulce, a ponto de celebr��-la nos 14 alexandrinos de uma
" O r g i a p a g �� " , na primeira p��gina da Folha do Povo,
olhei Glorinha com olhos de entendido em mulher, de-
pois olhei o Bandeira de Melo, o Barros da Silva, o Se-
basti��o Correia, o Juca Fernandes, o Tarcisio Gomes,
que esperavam pelo meu veredicto, e espichei o l��bio in-
ferior, e aumentei o brilho das pupilas, e balancei a ca-
be��a, para lhes dizer em sil��ncio que aquela, sim, era
realmente uma deusa.
E ao descermos para o p��tio, no intervalo das aulas:
��� A Glorinha precisa de u m a guarda de honra: para
traz��-la de casa e para lev��-la de volta.
A composi����o dessa guarda quase nos levou aos so-
papos no pr��prio p��tio do Liceu. Eu queria que fosse fi-
xa; os outros pendiam para que fosse vari��vel, de m o d o
que tocasse a vez, pelo rodizio, a cada um de n��s. C o m o
ningu��m abria m �� o de sua proposta, acabamos por tirar
24
da cabe��a a id��ia da guarda, limitando-nos a esperar a
Glorinha, na parada do bonde, quando vinha de casa, ou
lev��-la �� parada do bonde, q u a n d o voltava.
Entretanto, q u a n d o demos por n��s, j�� ningu��m ia
esper��-la ou lev��-la, acompanhando-a no pequeno es-
pa��o da travessia da rua para o poste de p a r a d a . A Glori-
n h a , discreta, em sil��ncio, imp��s-nos dist��ncia, e os gru-
pos se dissolveram, quase sem dar por isso.
Na sala de aula, a carteira por ela escolhida, na pri-
meira fila, n��o tinha ocupante fixo porque dava sol. Glo-
rinha n��o tardou a proteger-se com a folha da p o r t a d a ,
de m o d o que, no seu canto, b a n h a d a pela luz viva da tar-
de, era tamb��m favorecida pela vira����o que entrava pela
Rua da P a l m a , suave, constante, e merecida.
Sentando-se na frente, Glorinha estava sempre vol-
t a d a para o professor, a janela sobre a Rua Direita e o
quadro-negro, no correr das aulas. Seu cabelo negro,
ca��do para os o m b r o s , n��o nos deixava olhar-lhe a nuca e
a curva do pesco��o, mas permitia que lhe admir��ssemos
as esp��duas, a curva dos bra��os. E como segurava habi-
tualmente um l��pis, com o cotovelo apoiado na b o r d a da
carteira, acabei reproduzindo de mem��ria a sua m �� o es-
guia ��� as mais lindas m��os de que tenho lembran��a. Vez
por outra, obrigada a voltar-se para acompanhar a ar-
gui����o de um colega, oferecia-se de relance �� nossa con-
templa����o, n��o t a r d a n d o a virar-se para a mesa do pro-
fessor.
Foi por essa ��poca que S��o Lu��s m a n d o u , como miss
M a r a n h �� o , para o Rio de Janeiro, a Maria de Lourdes
Pantoja, aluna da Escola Normal, tamb��m ali no Liceu.
Houve quem se lembrasse de incluir no concurso a Glori-
nha; esta recusou com veem��ncia. N �� o , n��o queria ficar
na vitrina, como um manequim. Por favor. Preferia dei-
xar o Liceu, passando-se para o Ateneu Teixeira Mendes.
Ficamos assustados. Sair do Liceu? Deixar nossa
turma? Jamais. P o r outro lado, ir��amos exp��-la, no con-
curso de beleza, a u m a luz excessiva, t o r n a n d o p��blica a
25
beleza quase privativa de Glorinha. Isso n �� o . De m o d o
algum. A Maria de Lourdes P a n t o j a havia sido bem esco-
lhida. Morena, alta, os l��bios finos de quem sabia guar-
dar segredo, talvez suplantasse a Glorinha no busto, no
t o m da pele, mas n��o teria a mesma cintura, a mesma on-
dula����o escultural dos quadris para as coxas. Torcemos
por ela. C o m aplauso de Glorinha.
A Glorinha, por n��o ser de ningu��m, era de todos,
ali na classe. Freq��entemente, para admir��-la melhor, eu
me precipitava escada abaixo, ao fim das aulas, e ia
esper��-la na cal��ada da rua. Logo descobri que o Bandei-
ra, o Ulisses, o Ribamar, o Costa, o Tupinamb�� tamb��m
ali acorriam, pelo mesmo motivo, sem que um dissesse ao
outro a raz��o por que estava voltado para as alunas que
vinham descendo os degraus de pedra.
Conquanto parecesse ignorar-nos, Glorinha descia
devagar, no centro da escada, sem se misturar ��s levas de
alunas que se precipitavam para a sa��da ao bater da sineta.
Retardava-se um pouco, a pretexto de compor defronte
do espelhinho o leve toque de ruge que lhe avivava o rosto
ovalado. Fazia isso de prop��sito, para sentir-se admirada?
Ou evitava misturar-se ��s outras, com a consci��ncia de sua
singularidade? De uma forma ou de outra, j�� a escada es-
tava desafogada de saias e blusas quando a saia e a blusa
da Glorinha se destacavam na luz que entrava pelo portal
de pedra e ia ao seu encontro na volta dos degraus. De
tanto esper��-la, disfar��adamente, dissimuladamente, aca-
bei por v��-la em sonho, mais de uma vez.
U m a tarde, no p��tio do recreio, entre o latim do c��-
nego Chaves e o franc��s do professor Araujo Costa, o
Bandeira de Melo atirou �� nossa roda, que se reunira jun-
to do po��o, estas palavras inquietantes:
��� A Glorinha n��o pode deixar de ter um n a m o r a d o .
Tem de ter. E quem ser�� esse afortunado?
N��s nos entreolhamos, preocupados. Realmente,
nenhum de n��s admitira at�� ent��o essa hip��tese f��cil, que
subitamente nos desnorteava. O Bandeira tinha raz��o.
26
Um rancor vago, sem objetivo n��tido, cresceu em nossa
imagina����o, enquanto nos disp��nhamos a dar cabo desse
rival desconhecido, que a todos n��s amea��ava. Sim,
quem seria ele? E como far��amos para afast��-lo da Glori-
nha?
Em primeiro lugar, t��nhamos de identific��-lo. Co-
mo? Falar �� pr��pria Glorinha, para ver se nos confiava o
seu mist��rio? Imposs��vel. Ningu��m teria coragem de tra-
tar com ela semelhante assunto. Por outro lado, t��nha-
mos medo da verdade, se o n a m o r a d o realmente existis-
se. Existiria, certamente. Mais forte que o receio era a
nossa curiosidade. Noites seguidas, subi e desci a Rua do
Passeio, at�� a pra��a do Cemit��rio, passando pela meia-
m o r a d a da Glorinha, e dali s�� me veio, pela fresta das
r��tulas, nas janelas fechadas, o som de um piano, na exe-
cu����o de u m a das valsas do Ernesto Nazareth.
Na tarde seguinte, fui �� janela da sala do Liceu, no
intervalo das aulas. Na volta, perguntei �� Glorinha:
��� Na sua casa, quem �� que toca piano?
��� E u .
Os pianos de S��o Lu��s... A h , a saudade boa que te-
nho deles. De noite, entre as oito e as 11 horas, por vezes
entrando pela m a d r u g a d a , esses pianos se faziam ouvir
por toda a cidade, mesmo nos velhos sobrados da Praia
Grande e do Desterro. O sil��ncio das ruas como que abria
espa��o p a r a a sonoridade de seus teclados. Ouvia-se um
aqui, outro ali, outro mais adiante, e eram polcas, seres-
tas, marchas carnavalescas, e tamb��m a grande m��sica, a
m��sica eterna. F o r a m eles que me revelaram Chopin,
Mozart, Liszt.
J�� tarde, ao voltar para casa, eu parava de vez em
quando na esquina da Rua dos Craveiros com a Rua da
P a z, para ouvir o piano de Sinhazinha Carvalho tocando
as valsas da Chiquinha Gonzaga. E q u a n d o retomava mi-
nha caminhada a p��, l�� iam elas comigo, como se valsas-
sem por tr��s de meus passos.
27
Certa noite, ia eu pela Rua das H o r t a s , em compa-
nhia do Sebasti��o Correia, que sobra��ava o seu violino.
De repente o Sebasti��o p a r o u , com a m �� o direita �� altura
da orelha:
��� Est��s ouvindo?
E levando-me pelo bra��o, rua abaixo, enquanto ia
crescendo �� nossa frente a sonoridade m��gica de u m a so-
nata:
��� �� de Beethoven, na casa do Maestro In��cio Cu-
n h a .
L�� adiante, em frente �� m o r a d a inteira do maestro,
ficamos a ouvir a magistral execu����o da sonata. O mun-
d o , �� nossa volta, era quase irreal na sua beleza p u r a . Sob
o c��u estrelado, as casas adormecidas, raros transeuntes,
e um c��o felpudo e negro a nos olhar, de cabe��a meio in-
clinada, nas lajes da cal��ada fronteira.
Foi na companhia do Sebasti��o Correia que voltei ��
Rua do Passeio, n ou t r a noite de estio. Perto da casa da
Glorinha, travei-lhe do bra��o, ouvindo o piano tocar.
Eu parei, ele parou, de orelha atenta. E tirando o
violino do estojo:
��� Permites?
N��o esperou por minha concord��ncia. Ajustou o
violino ao queixo, tocou duas notas, ajustou as cordas ��
cravelha, e p��s-se a acompanhar o chorinho do piano,
b a n h a d o pela luz do lampi��o.
Logo a seguir o piano se calou. A janela da direita
entreabriu u m a frestazinha da r��tula, depois voltou a
fechar-se. Tive a impress��o de ver nesse relance u m a r��s-
tia do rosto da Glorinha, que de pronto se recolheu.
E Sebasti��o, g u a r d a n d o o violino no estojo:
��� Conheces a morena que m o r a ai? Linda. J�� to-
quei para ela a Serenata de Schubert, aqui mesmo. N �� o
me deu confian��a. O pai dela, que anda agora muito
doente, jogou-me u m a lata de ��gua. Sa�� daqui feliz e mo-
lhado, e fui tocar na porta do Cemit��rio, para o poeta
Quintanilha, que se tinha m u d a d o para aquele sil��ncio,
28
fazia u m a semana. Sabes quem estava comigo? O Daniel,
teu professor. Ele mesmo. P o r fora, um secarr��o, com as
suas matem��ticas na p o n t a da l��ngua. Por dentro, um
sentimental, como tu, como eu, e gostando tamb��m do
belo verso e da bela m��sica.
29
CAP��TULO IV
A n t e s da surpresa de seu noivado com o Daniel, a
Glorinha nos fez outra, quando apareceu na sala de aula,
toda de preto, no rigor do luto fechado.
Os jornais n��o tinham dado noticia de ��bito que
pud��ssemos associar �� sua fam��lia. T a m b �� m nada se co-
mentou no intervalo das aulas e nas conversas do p��tio,
entre dois toques de sineta.
Da�� o espanto com que vimos a Glorinha surgir �� en-
trada da sala, para a prova de portugu��s do semestre, tra-
j a n d o vestido preto, meias pretas, sapatos pretos, sem
pintura nem toque leve de p��-de-arroz, e os olhos pisa-
dos, com uma leve mancha quase roxa por cima dos p��-
mulos.
O professor M a t a Roma, que j�� havia come��ado a
chamada, ficou com a pena apontando o papel, no livro
aberto, enquanto esperava que a Glorinha ocupasse o seu
lugar.
E assim que ela sentou:
��� De luto por quem, Glorinha?
��� Meu pai.
N��o escondo aqui minha estranha rea����o imediata:
veio-me a vontade de excluir colegas, sala de aula, pro-
fessor, para que restassem ali a Glorinha e eu ��� ambos
deitados na cama da Dulce, na Rua do Alecrim, com a
cabe��a da Glorinha sobre o meu o m b r o . O amor e a mor-
te, t ��o associados na poesia rom��ntica, reuniam-se na
minha imagina����o e na minha sensibilidade, e eu tive de
30
lutar comigo, m o r d e n d o a madeira do l��pis, para que mi-
nha m �� o impaciente n��o continuasse a desabotoar o ves-
tido da Glorinha, tendo como inspira����o aqueles olhos
sofridos.
Despi-a, realmente, a despeito dessa luta obstinada,
assim que afrouxei a imagina����o, agora entregue a si
mesma. Meu primeiro romance, esbo��ado por esse tem-
p o , e nunca terminado, nasceu da��. E teve o m��rito de su-
perar a crise sentimental em que ent��o me debati, e de
que me ficaram seq��elas nas notas m��s das novas provas,
na semana seguinte.
De cabe��a, raptei Glorinha, levei-a para longe de
S��o Lu��s, fui seu amor e seu amante. Na verdade, nas
tardes seguintes, l�� estava ela no seu lugar, toda de preto,
com os olhos quebrantados, silenciosa, retra��da, mais fe-
chada em si mesma com o sentimento da perda do pai.
Volvidas duas semanas, t o r n o u Glorinha ao uniforme,
com uma fita preta no bra��o da blusa.
E nt r e ta nto , a Glorinha do vestido preto, que t ��o
bem lhe ca��a, perduraria em n��s, entrando na sala, atra-
vessando o corredor, descendo a escada, cruzando a
rua para tomar o seu b o n d e . Ainda hoje, cerro os olhos e
a vejo, com as pontas dos p��s separadas como no passo
das bailarinas, a pastazinha de couro com seus livros e
cadernos, os cabelos negros apanhados para tr��s. Benedi-
to Barros celebrou-a assim n u m a trova. Bandeira de Me-
lo comp��s sobre ela um poema em redondilha maior,
dando-lhe o nome de Miriam. Barros da Silva, que toca-
va viol��o, comp��s a Dama de preto, linda valsa que o
Ant��nio Pires apresentou num dos recitais das Horas de
Inverno, no Gr��mio L��tero Portugu��s.
Com a volta �� blusa e �� saia do uniforme, desfez-se
em mim a exalta����o sensual pela Glorinha. E o curioso ��
que, nas duas semanas em que a vi de preto, com os olhos
pisados, mais silenciosa e esquiva, n��o ousei aproximar-
me dela, nem mesmo p a r a lhe dar os p��sames.
3 1
A Cleide notou minha mudan��a:
��� Que �� que voc�� tem, que anda a��reo? A gente lhe
fala, voc�� n��o ouve. E, se ouve, n��o responde.
E eu, ap��s um sil��ncio:
��� A n d o pensando em sair de S��o Lu��s.
Cleide aumentou os olhos verdes, depois contraiu as
p��lpebras, com u m a express��o de revolta. E afastando-
se, contrariada:
��� J�� vai tarde.
E l�� adiante:
��� P o n h a tamb��m luto, como a Glorinha. Voc�� e
seus amigos.
32
CAP��TULO V
A not��cia do noivado da Glorinha, estourando no
p��tio do recreio logo depois das f��rias, fez que nos en-
treolh��ssemos, at��nitos, para depois reagirmos, exalta-
dos:
��� Noiva daquele velho?
Os trinta e dois anos do Daniel, a essa altura da vida,
pareciam-nos a pr��pria ancianidade. Podia ser pai da
Glorinha e n��o seu m a r i d o . Lev��-la p a r a casa? Deitar-se
com ela? Dar-lhe um filho? T u d o isso nos parecia t��o ab-
surdo q u a n t o transferir o Largo do C a r m o para o Largo
do Quartel.
Sem ser de nenhum de n��s, a Glorinha era de todos.
Ou melhor: de nossa t u r m a . P o r um acordo t��cito, nin-
gu��m se animara a cortej��-la. Eu pr��prio, nas vezes em
que passei �� noite pela cal��ada de sua casa, n��o fui al��m
dos momentos em que parei defronte de sua janela para
ouvir o Sebasti��o Correia acompanhar-lhe o piano.
No dia seguinte, na sala de aula, a Glorinha n a d a me
disse nem eu a ela, e o caso se desfez com o passar do
tempo.
A Glorinha fazia parte de nossa vida, de nossos
h��bitos, de nossa classe. Nem sequer admit��amos que um
dia a t u r m a teria de dissolver-se, para que cada um de n��s
seguisse o seu caminho. N �� o . De m o d o algum. Ser��amos
perenes naquele espa��o, com os mesmos mestres, os mes-
mos companheiros. C o m o imaginar o m u n d o sem Glori-
nha?
3 3
De um momento para o u t r o , exatamente quando o
fim das f��rias de j u n h o nos restitu��a ao conv��vio di��rio ���
aquela m�� not��cia absurda! Noiva, a Glorinha? E do pro-
fessor Daniel?
Q u a n d o entramos na sala de aula, j�� a Glorinha es-
tava no seu lugar, recortada na mansa luz da tarde, j u n t o
�� janela. E enquanto a Helo��sa, a Maria Jos��, a Enedi, a
Cleide, a N o r m a , a Sueli, reinstaladas nas respectivas
carteiras, fingiam n��o ter dado por ela, n��s, os rapazes,
era para a Glorinha que olh��vamos, com o nosso desa-
p o n t a m e n t o e a nossa revolta.
Falei baixo ao Tarc��sio, meu vizinho de fila:
��� Ela est�� contente.
Estava. C o n q u a n t o continuasse com a fita preta na
manga da blusa, parecia esquecida da morte do pai. Duas
vezes, a pretexto de compor os cabelos acima da orelha,
levou at�� eles a m �� o morena que trazia a alian��a do noi-
v a d o . Exibia-a com evidente e natural orgulho, sem repa-
rar que nos dilacerava e feria, traindo a todos n��s. E a luz
viva ajudava-a a nos torturar. Senti a garganta apertada e
os olhos ��midos.
Mas a rea����o maior foi a do Cl��udio Serra, quando
o Daniel, sobra��ando o livro de chamada, apareceu ��
p o r t a da sala: levantou-se de repel��o, fez cair com estron-
do a t a m p a da carteira, e deixou a classe ��s pressas. Ao
sair, quase deu um esbarr��o no professor, que j�� tinha
d a d o dois passos dentro da sala. Daniel parou, olhou-o
com ar de riso:
��� N �� o v�� errar de banheiro ��� observou-lhe.
Noutra oportunidade, todos n��s ter��amos rido. Na-
quela, n �� o : permanecemos calados, com as m��os sobre a
mesa, olhando para as duas janelas da Rua Direita.
Ao subir ao estrado, abrindo o livro de chamada,
Daniel nos cumprimentou. S�� a Glorinha respondeu.
Ele, com a cabe��a inclinada para o livro, olhou-nos por
cima dos ��culos, como se fosse sorrir. Depois, baixando
novamente o olhar, deu come��o �� chamada, deixando ver
34
a alian��a na m �� o severa que segurava a caneta. Nunca
houve tanto sil��ncio na sala quanto nessa aula. E assim
que a sineta bateu para o intervalo, somente a Glorinha
ali permaneceu, enquanto o resto da classe descia ao
p��tio, deixando ressoar seus passos nos degraus da esca-
da.
L�� embaixo, demos expans��o ao nosso rancor:
��� E u , se pudesse, ia embora daqui ��� rosnou o Ara-
g��o, cerrando os p u n h o s .
E eu:
��� Ai est�� em que deu o nosso entusiasmo pelo Da-
niel, durante o concurso dele. Mil vezes o velho Quirino.
Bandeira de Melo reagiu como poeta:
��� Voc��s v��o ver a s��tira que hei de escrever contra o
Daniel. A velhice do Padre Eterno, do Guerra Junqueiro,
vai virar ��gua de rosa diante da A velhice do professor
Daniel. Em alexandrinos. Dos meus. P o n d o - o no rid��cu-
lo. Para sempre. U m a surra de criar bicho.
E o Correia da Silva, com ar pachola, arredondando
os bei��os, saiu de seu sil��ncio profundo, para nos dizer
esta vulgaridade:
��� De onde n��o se espera, da�� �� que vem.
No p��tio, em vez da algazarra de todos os dias,
est��vamos calados, remoendo as nossas iras. A indig-
na����o tirara-nos a fala. Que t��nhamos a dizer? Este pe-
gou seu livro, aquele se p��s a escrever na terra do ch��o
com um graveto comprido, outro se p��s a olhar os recor-
tes de nuvens por cima dos telhados da Praia Grande.
E o Bandeira de Melo, nesse m o m e n t o , aproxi-
mando-se do banco em que eu me refugiara com um vo-
lume de contos de Machado de Assis:
��� J�� viste? Olha ali para cima, ao lado da escada.
Glorinha, sempre calada, havia descansado os ante-
bra��os no poial de u m a das janelas sobre o p��tio, e ali
conversava com o professor Daniel. Por vezes, riam. E
logo retomavam a conversa, os dois quase unidos.
35
Debalde tentei reatar a leitura interrompida. Fechei
o livro, preferi faltar �� outra aula, e sa�� �� rua, para cami-
nhar pela Praia Grande, sem saber ao certo o que faria de
minha ira.
Felizmente, naquela mesma tarde, entrei pela Rua
do Alecrim, e a boa Dulce me consolou.
36
CAP��TULO VI
As paix��es da adolesc��ncia t��m isto de b o m , quan-
do n��o levam ao desatino: n��o demoram a passar, desde
que encontrem a sua forma de expans��o como derivati-
vo.
No meu caso, a revolta assumiu u m a fei����o elegiaca,
na m a n h �� seguinte, q u a n d o escrevi o famoso soneto que
terminava assim:
Hoje, na curva dos dezesseis anos,
Olhando para tr��s, vejo mudadas
As mortas ilus��es em desenganos.
Nem ao menos me resta uma quimera:
Sou ��rvore de folhas estioladas,
No mais alto esplendor da primavera!
O Durval Para��so, a quem li o soneto no Caf�� Excel -
sior, por entre o tinido das x��caras e a indiferen��a dos
gar��ons, arrebatou-me a folha de papel:
��� Vai sair na Folha do Povo, hoje mesmo.
E saiu dali para o jornal, enquanto meus versos iam
comigo, cantando-me na mem��ria a sua t o a d a l��rica.
Ao entardecer, deixei-me ficar no Largo do C a r m o ,
entre a Rua do Sol e a Rua Grande, �� sombra das altas fi-
gueiras, �� espera de que os primeiros jornaleiros apre-
goassem a Folha do Povo.
Depois, no banco de ferro defronte do Convento do
C a r m o , �� altura do rel��gio p��blico, voltei a emocionar-
37
me com os meus versos, ao v��-los no alto da p��gina, em
destaque, com u m a bela cercadura. E essa emo����o su-
plantou facilmente o desapontamento do noivado da Glo-
rinha ��� que talvez s�� houvesse ocorrido (pensava eu ago-
ra, relendo-me) para que aquele soneto aflorasse �� minha
inspira����o juvenil. Momentos mais tarde, comecei a rece-
ber os primeiros cumprimentos, ali mesmo, no final da
tarde, q u a n d o se acenderam na pra��a os primeiros lam-
pi��es.
E quem veio a mim, nessa hora, saindo da Rua For-
mosa para atravessar o Largo do C a r m o , foi o pr��prio
Daniel. Trazia na m �� o direita o jornal. E inclinando a ca-
be��a, com ar de riso:
��� Esse soneto �� mesmo teu, poeta? Teu, sem a cola-
bora����o de ningu��m? Mata R o m a n��o passou a lima por
alto? Nem o Arimat��ia? N �� o mesmo? E n t �� o venha de l��
um abra��o. Vou levando o jornal para a Glorinha ler.
Parab��ns.
Abra��ou-me j u n t o ao peito. Depois, afastando-se,
p��s a m �� o no meu o m b r o , a olhar-me de frente:
��� S�� tens dezesseis anos?
Confirmei.
E ele:
��� Parab��ns ��� repetiu. ��� Est��s no b o m caminho.
Segue em frente. Sempre em frente.
E correu para apanhar o seu bonde na volta da rua,
enquanto eu concluia, de mim para mim, vendo-o saltar
para o bala��stre, que o aplauso alheio tem o dom de dis-
solver nossas revoltas ��ntimas. Simp��tico e competente o
professor Daniel. Um grande professor. C o m o o A n t �� -
nio Lopes. Como o M a t a R o m a .
Na tarde seguinte, ao chegar ao Liceu, outros aplau-
sos estavam �� minha espera. Cleide apertou-me as m��os
com tanta for��a e carinho que por pouco eu me curvava
sobre a sua boca para repetir o beijo escondido que ela
me tinha dado no dia de meus anos. Mestre Ant��nio Lo-
38
pes j�� me havia procurado na sala de aula. E ao dar comi-
go no alto da escada, na descida para o p��tio:
��� P o r que n �� o me deste o soneto de ontem para O
Imparcial?. Fiquei com ci��mes. O pr��ximo n��o ir�� mais
para a Folha do Povo. Se for, estamos rompidos. Um
grande soneto. Parab��ns.
Outros aplausos me vieram ao longo da vida. Uns,
formais; outros, sinceros e efusivos. Mas poucos tiveram
o sabor daquele, sobretudo q u a n d o vi a Glorinha vir ao
meu encontro:
��� Gostei muito de teus versos. Muito. Foi o Daniel
que os leu para mim, ontem �� noite. Lindos.
Olhei em redor, em meio �� aula do professor Gilber-
to Costa. Onde estava o Cl��udio Serra? S�� ele n��o me
abra��ara. Perguntei por ele ao Tarcisio e ao Bandeira de
Melo. E ambos me disseram:
��� Saiu daqui zangado, decidido a n��o voltar. �� ca-
paz de transferir-se para o Ateneu ou para o col��gio do
Arimat��ia.
E o Correia da Silva, ao fim da aula:
��� Ontem, fui �� casa do Cl��udio, ao fim da Rua de
Santiago, para saber se estava doente. Foi a m��e dele que
me recebeu. Me disse que o filho, fechado no q u a r t o , n��o
quer ver ningu��m. Nem ela. Sempre que se aborrece, fica
assim. Tr��s ou quatro dias depois, reabre a porta, como
se nada houvesse acontecido. N �� o adianta pedir-lhe que
saia. Irrita-se. Amea��a sair de casa. O melhor �� deix��-lo
em paz, curtindo a raiva, e esperar que o tempo a des-
manche. Depois de a m a n h �� , estar�� de volta.
Enganava-se.
No dia seguinte, q u a n d o cheguei ao Liceu, tonteei
com o que me disse o Correia da Silva, no batente da en-
trada, �� minha espera:
��� O Cl��udio Serra se m a t o u . Estou vindo da casa
dele. Enforcou-se na esc��pula da rede. Antes de matar-
se, entreabriu a porta. A m��e deu com ele p e n d u r a d o , as-
sim que amanheceu.
39
CAP��TULO VII
L o g o associamos o suic��dio do Cl��udio ao noivado
da Glorinha. Mas tamb��m reconhecemos, na mesma ho-
ra, que ela estava isenta de culpa, no desespero do colega.
N �� o fora sua n a m o r a d a . Nem ao menos tinha havido en-
tre eles qualquer aproxima����o, mesmo fortuita, que au-
torizasse o Cl��udio a se considerar prejudicado ou prete-
rido.
E ela me disse q u a n d o lhe contei que ele se havia ma-
t a d o :
��� Sabe que o Cl��udio nunca falou comigo? Nunca.
Sempre passou por mim baixando os olhos, esquivando-
se de me falar.
Ant��nio Oliveira, por ser o mais velho da turma, e
ter por isso mesmo mais experi��ncia, deu ao caso esta ex-
plica����o sum��ria:
��� A Glorinha ��� tomem nota do que vou dizer ��� ��
um caso t��pico de mulher fatal. De mulher por quem os
homens se m a t a m . H�� um romance portugu��s sobre isso.
De Camilo Castelo Branco.
E mais grave, num vatic��nio:
��� O Daniel que se cuide. Aquele noivado, se virar
mesmo casamento, vai ser a desgra��a dele.
O diretor do Liceu m a n d o u suspender as aulas de
nossa t u r m a para que f��ssemos ao enterro do Cl��udio,
naquela mesma tarde. Sa��mos dali a p��, em pequenos
grupos, e acabamos por nos encontrar �� p o r t a da meia-
m o r a d a de janelas baixas, na Rua da Cruz, perto do Lar-
40
go de Santo A n t �� n i o , em cuja sala estava exposto o cor-
p o , metido na farda caqui, com o casquete do lado.
A m��e do Cl��udio, toda de preto, conservava a m �� o
direita na testa do filho como a querer proteg��-lo. Na ou-
tra m �� o amarfanhava um len��o, e era essa m �� o que lhe
exprimia o sofrimento e o desespero na freq����ncia com
que a contraia, enquanto os olhos negros, muito vivos, se
fixavam no rosto l��vido que a morte imobilizara.
P a r a muitos de n��s, todos adolescentes, era aquele o
primeiro encontro com a morte, e isto se notava no sil��n-
cio e no espanto com que a Helo��sa, o Tarc��sio, o Bandei-
ra, a Enedi, a Maria Jos��, a um canto da sala, permane-
ciam olhando o Cl��udio.
Foi o Oliveira quem me alertou:
��� Olha quem est�� chegando. Ela n��o devia ter vin-
d o .
Glorinha, �� entrada da sala, pareceu intimidar-se
com os olhos que se tinham voltado em sua dire����o. Afi-
nal, resoluta, avan��ou alguns passos, acercando-se do
ata��de.
E a m��e do Cl��udio, ao v��-la aproximar-se:
��� Voc�� n��o �� a Glorinha?
��� Sim, sou eu.
E ia apertar-lhe a m �� o , no impulso da condol��ncia,
q u a n d o a senhora a abra��ou, apertando-a contra o peito:
��� Meu filho falava muito em voc��, minha filha.
Muito. Me disse como voc�� era. O seu lugar na sala de
aula. A cor de seus cabelos. O sinal que voc�� tem no quei-
xo. O seu m o d o de segurar o giz q u a n d o vai �� lousa. Bas-
tou eu olhar voc�� para saber que era a Glorinha. E sou
capaz de j u r a r que o Cl��udio nunca lhe falou. Nunca? Eu
sabia. Um t��mido este meu filho. Esquisito. Impulsivo.
Mas bom filho. Deus j�� o perdoou, com certeza. N �� o sei
como foi fazer esta loucura. C o m tanta vida pela frente.
Assim, de um m o m e n t o para o u t r o , sem pensar no meu
sofrimento.
E ao reparar nos olhos molhados que a fitavam:
4 1
��� Todos os colegas gostavam dele, mesmo com o
g��nio que tinha. Voc�� tamb��m gostava, Glorinha.
E p a r a o Cl��udio, que conservava na morte as p��l-
pebras descidas com que passava pela colega na sala de
aula e no corredor do Liceu:
��� Ela tamb��m gostava de voc��, meu filho.
E voltou a pousar a m �� o emocionada na testa do
Cl��udio, enquanto eu, que assistira a t o d a a cena, do ou-
t r o lado do ata��de, tratava de enxugar os olhos turvos,
sem conseguir reprimir a emo����o.
Afastei-me para um v��o de janela, com a garganta
apertada, e ali fiquei, apoiando os cotovelos no parapeito
de madeira, ao mesmo tempo em que a Glorinha se aco-
modava n u m a cadeira ao fundo da sala, j�� com o ter��o
nas m �� o s .
42
CAP��TULO VIII
Por esse tempo S��o Lu��s era u m a cidade tranq��ila,
com raros autom��veis, poucas moradias novas, e um ar
aconchegado de prov��ncia que hoje j�� n��o tem. Ainda
se viam, num ou noutro bairro, as cadeiras na cal��ada,
quando havia luar, e se faziam serestas nas horas mortas,
ao p�� das janelas dos sobrados.
Os graves senhores, que n��o tinham aderido ao brim
branco, muito bem engomado, pr��prio para o clima lo-
cal, suavam nas pesadas roupas de casemira, por vezes
apertados no colete e no colarinho duro. Bengala de cas-
t��o de ouro ou prata e chap��u de feltro. Ao desabotoa-
rem o palet��, via-se o corrent��o de ouro do rel��gio ao
meio do colete. P a r a consultarem as horas, calcavam um
fecho no alto do mostrador, e a tampa deste se abria, exi-
bindo os ponteiros de ouro ou prata, que jamais adianta-
vam ou atrasavam.
As mulheres, com os p��s apertados nas ��ltimas boti-
nas, j�� come��avam a reagir �� m o d a do primeiro quartel
do s��culo: trocando as botinas de pelica pelos sapatos de
salto alto, ao mesmo tempo em que erguiam aos poucos a
barra dos vestidos. U m a ou outra, para adelga��ar a cin-
tura, ainda recorria ao espartilho, que lhe levantava os
seios e aumentava os quadris. Os cabelos compridos, que
desciam para as costas, cobrindo as esp��duas, j�� iam sen-
do cortados, deixando ver o come��o da nuca, primeiro
nas mo��as, depois nas senhoras mais avan��adas, por en-
tre o protesto dos padres, nos serm��es dominicais, e dos
4 3
pastores protestantes, nos cultos da seita respectiva. Sa-
tan��s andaria solto, fomentando tais desatinos.
Ai das mo��as faladas. A m u r m u r a �� �� o local n��o se
contentava com os cochichos do Largo do C a r m o nem
com os mexericos no adro da S��, antes da missa das 10
horas: de noite, circulavam os jornais de esc��ndalo, de
pouco mais de um palmo, contando maldosamente os fu-
xicos locais. N �� o era de bom-tom escrever por inteiro o
nome das mo��as: recorria-se ao expediente das iniciais,
que tornavam mais estimulante a leitura de tais pasquins,
�� porta dos bares, nos bancos das pra��as, nas viagens de
b o n d e .
A 3 de novembro, todos os anos, ia-se em romaria,
ao Largo dos Rem��dios, para festejar Gon��alves Dias em
redor de seu m o n u m e n t o . �� noite, ��s quintas-feiras, ha-
via retreta na Pra��a Benedito Leite, defronte da S��, en-
quanto se acendiam as luzes no bordel da Chico, ali mes-
m o , no soberbo sobrad��o da Rua de Nazar��, esquina
com a Rua do Giz. Senhores graves, de muito bom con-
ceito na pra��a, esgueiravam-se para l��, fugindo aos com-
bustores da ilumina����o p��blica, e lhe transpunham a por-
ta entrefechada com a rapidez de ratos atravessando a via
p��blica.
C�� fora, nos intervalos da retreta, ouvia-se o piano
do famoso Chamin��, pianista do bordel.
De fevereiro a j u n h o , ou seja: entre o carnaval e as
festas de S��o J o �� o , o famoso Ant��nio Pires, funcion��rio
da Ulem e declamador muito aplaudido, promovia as suas
Horas de Inverno, com recitativos, palestras e n��meros de
canto ao viol��o, aos domingos, no Cassino Maranhense.
Essa paz de prov��ncia, entretanto, era quebrada de
vez em q u a n d o por um acontecimento imprevisto, como
o enterro do professor Cavaco, promovido pelos alunos
do Liceu, q u a n d o se soube que o mestre barulhento tinha
levado uma de suas alunas, em noite de luar, para a praia
do Olho d ' �� g u a . Do alto de um mirante, no Largo do
C a r m o , o professor p��de assistir ao pr��prio enterro ��� e
44
teve de fugir debaixo de um chap��u de abas imensas,
q u a n d o a estudantada quis tir��-lo dali para que se enter-
rasse a si mesmo.
Lembram-se do capitalista Matias? Sempre de bran-
co, e de colete, polainas, chap��u-do-chile, bengala de cas-
t��o de o u r o , j�� fazia onze anos que n��o falava com a mu-
lher, m o r a n d o os dois na mesma casa da Rua Grande, ca-
da um a ocupar a sua alcova e a sua sala de visitas, amua-
dos e m u d o s . E amuados e mudos iam �� missa da S��, to-
dos os domingos, de bra��o dado, com a filha ao lado da
m��e, solid��ria com a digna senhora.
Tenho saudades do Mister. Sobra��ava sempre u m a
velha Biblia, sabia umas tantas palavras em ingl��s, e
anunciava de vez em q u a n d o o fim do m u n d o , na escada-
ria do Convento do C a r m o . Vociferava, descrevia a
cat��strofe, depois caia na gargalhada:
��� Vai ser um pagode, minha gente. C o m o nunca se
viu.
Era no tempo das prociss��es de S��o Benedito e de
Santa Filomena. Das novenas no Largo de Santo Ant��-
nio. Das festas do Largo dos Rem��dios. Do velho Ory,
cabeleireiro e professor de desenho, escondendo a calva
envergonhada na peruca vinda de Paris.
Na praia do Caju, ali mesmo na cidade, adiante da
esta����o ferrovi��ria, empilhavam-se melancias, quase da
altura de uma casa, e eram comidas ali mesmo, enquanto
os velhos barcos fatigados, vindos de Alc��ntara, de Cu-
rurupu, de Guimar��es, de Turia��u, gemiam alto, balou-
��ados pelas vagas que se quebravam no pared��o do cais.
De m a n h �� , quando o sol se abria sobre a ba��a de S��o
Marcos, viam-se navios no p o r t o , entre velas coloridas,
pequenas como barquinhos de papel, na imensid��o azul
da barra. Na avenida do Cais da Sagra����o, erguia-se u m a
orla de sobradinhos de azulejos e de casas de beiral sa-
liente, que se estendiam at�� o baluarte do Pal��cio dos
Le��es, resistindo ��s r��spidas ventanias que sibilam por ci-
ma das ��guas nos dias de temporal.
45
E este Largo do C a r m o , t��o feio hoje com seus me-
donhos quiosques? N �� o , n��o era assim. Na pra��a rodea-
da de sobrados, com o casar��o do convento ali em frente,
a igreja ao lado, tinha mais espa��o e mais luz, com a
est��tua de J o �� o Lisboa mais adiante, bancos de ferro ��
sombra das ��rvores, uma fonte de bronze a transbordar
sob a chuvinha constante do repuxo.
Por que n��o confessar que esta pra��a me d�� sauda-
des? D��. No pr��dio de esquina, �� direita da entrada da
Rua do Egito, era o Caf�� Excelsior, de paredes internas
cobertas por grandes espelhos, sempre repleto de fregue-
ses ociosos, que se distribu��am pelas dezenas de mesas,
para tomar um chope, um caf��, um refresco, e ali fica-
vam horas e horas, conversando, rindo, comentando os
mexericos pol��ticos e a vida alheia.
A mesa da entrada, perto da porta, era a nossa ���
minha e de meus colegas do Liceu: Bandeira, Franklin,
Viegas, Correia da Silva, Benedito Barros. Ali, por entre
o ru��do do sal��o transbordante, l��amos a nossa prosa e o
nosso verso, isolados do m u n d o �� nossa volta, a que re-
pentinamente volv��amos q u a n d o come��avam a passar na
Rua do Egito as alunas do Col��gio Santa Teresa. A se-
n h o r a gorda, de bu��o forte, que vai atravessando o largo,
levando um menino pela m �� o ��� acreditem no que vou
dizer ���, foi linda. Linda mesmo. N��o posso compreender
como se transformou na matrona bochechuda de hoje,
b u n d u d a , barriguda, os bra��os afastados do corpo e que
ainda quer sorrir para mim, rom��ntica, amortecendo os
olhos papudos, como se tivesse 15 anos. Ah t e m p o ! Ah
vida!
De repente, como se fosse trazido pelo vento que
varria o largo, entrava no caf�� o mestre Ant��nio Lopes,
p a r a sentar-se �� nossa mesa, sempre indagando, ao fim
de sua conversa erudita:
��� N �� o �� verdade isso?
Foi dali que vi passar a Glorinha, levada pelo noivo,
entrando pela Rua do Sol. O noivado como que a amadu-
4 6
recera ainda mais, dando-lhe um p o r t e de s e n h o r a ,
alteando-lhe a cabe��a, adelga��ando-lhe a cintura, e im-
primindo ao seu andar, com o corpo levemente apoiado
no bra��o do noivo, um ritmo pausado e cheio, que a dis-
tanciava de n��s, seus companheiros de classe.
Amorim Parga, que estava �� nossa mesa, levantou-
se, a pretexto de ir a O Imparcial, precisamente na Rua
do Sol. E no domingo seguinte, na p��gina liter��ria do
jornal, surpreendeu a todos n��s com um belo soneto,
a c o m p a n h a d o por u m a fin��ssima ilustra����o do J. Figuei-
redo, e que come��ava:
Ao teu encontro venho em v��o seguindo,
Preso �� estranha atra����o de teu semblante...
Ainda hoje n��o sei se foi o Amorim que sugeriu ao
Figueiredo a imagem do desenho, ou se foi o pr��prio ilus-
trador que a recolheu nos versos do soneto. Ali estava a
Glorinha, tal como eu a vi, de costas, come��ando a subir
o aclive da Rua do Sol.
47
SEGUNDA PARTE
Que teria eu feito de uma vida que s��
fosse de rosas?
C O L E T T E
CAP��TULO I
O casamento da Glorinha, celebrado por nosso
professor de latim, c��nego J o �� o dos Santos Chaves, pou-
co antes do Natal, levou alunos e mestres do Liceu �� igre-
ja de Santo A n t �� n i o .
C o n q u a n t o j�� estiv��ssemos de f��rias, ajudamos a en-
cher o templo, e muita gente ficou de fora, apertando-se
no a d r o , por falta de lugar nas tr��s naves espa��osas.
No ��ltimo dia de aula, pelo fim da tarde, a Glorinha
pediu licen��a ao professor M a t a Roma para dar um aviso
aos colegas. E q u a n d o esper��vamos que ela se fosse vol-
tar para n��s, acercou-se do quadro-negro e ali escreveu,
segurando o giz com o dedo m��nimo levantado, o convite
para o seu casamento com o professor Daniel, no dia 19
de dezembro.
Ao ficar de frente para a turma, conseguiu dizer, um
pouco vermelha, n u m a voz quase tr��mula:
��� Ficaremos contentes, se todos comparecerem.
E como j�� nos t��nhamos habituado �� id��ia de seu
noivado, vendo-a chegar e sair na companhia do Daniel,
a t u r m a inteira bateu-lhe palmas, inclusive as colegas.
Mata Roma perguntou por n��s, assim que a Glori-
nha voltou �� sua carteira:
��� E vai estudar ano que vem, para continuar o cur-
so?
Ela tardou a resposta, enquanto se fazia sil��ncio em
seu redor. E por fim, emocionada:
��� N �� o , professor.
51
Um oh geral de desapontamento e espanto cresceu
na sala, n u m a rea����o imediata, a que tamb��m se associou
o M a t a R o m a . E este, falando por todos n��s:
��� Voc�� vai fazer falta, Glorinha. Vou sentir sua au-
s��ncia nesse lugar. E seus colegas t a m b �� m .
Sem misturar-se aos companheiros, sempre na sua
carteira, envolta pela claridade da janela, Glorinha esta-
va associada �� classe como o quadro-negro, o m a p a do
Brasil, os preg��es que subiam da rua, os professores ��
nossa frente, alteados pelo estrado ��� com algo de orna-
mental na sua figura quieta.
A certeza de que ela n��o voltaria a recortar o seu
perfil moreno na luz da janela sobre a Rua Direita, a um
canto da sala, e de que n��o iria mais ao quadro-negro,
nos dias de argui����o oral, alta, vistosa e tranq��ila, como
que nos retirava algo que estaria associado �� pr��pria clas-
se, e isso nos entristecia e desolava.
E ela, sem voltar de todo a cabe��a:
��� Eu virei aqui, sempre que puder.
A promessa vaga atenuou em parte a nossa m��goa
moment��nea. Entretanto, pensando bem, que viria fazer
ali a Glorinha, depois de casada? N �� o havia raz��o para
isso.
Na tarde do casamento, desci a Rua do Alecrim, ca-
minho natural para o Largo de Santo A n t �� n i o , saindo de
minha casa, na Rua dos Rem��dios. E como ainda era ce-
do para a cerim��nia, entrei na casa da Dulce, para espe-
rar ali que o sol declinasse. Resultado: j�� n��o pude entrar
na igreja, q u a n d o cheguei. Fiquei do lado de fora, na
derradeira luz da tarde, e pude ver de perto, �� borda da
cal��ada, defronte da porta sobre a nave central, q u a n d o a
Glorinha desceu do carro, a uns dez metros, na extremi-
dade da passadeira vermelha, trazida pelo padrinho, que
amparava o corpo alto na bengala.
A pr��pria Glorinha, ao descer, segurava a cauda do
vestido, mas n��o tardou a solt��-la, assim que deu o bra��o
ao p a d r i n h o . T o d a de branco, no contraste da passadeira
52
escarlate, com as luzes dos fot��grafos convergindo sobre
a figura esguia, parecia irreal, na sua beleza serena. A
multid��o se comprimiu para v��-la de perto. Com esfor��o,
ela e o padrinho abriram caminho para a p o r t a da igreja,
enquanto desciam do coro os primeiros acordes de Jesus,
alegria dos homens, executados pelo ��rg��o.
E logo se ouviram em redor as exclama����es de sur-
presa:
��� Ela �� linda. Muito mais do que eu tinha imagina-
d o .
��� Benza-te Deus, assim t��o bonita.
E u m a velha alta, que me afastou com o bra��o es-
q u e r d o , quase a me fazer cair da cal��ada:
��� Mais bonita que a miss M a r a n h �� o . Nem se com-
p a r a . Essa, sim, �� que devia ter ido para o Rio.
Nesse m o m e n t o , ao dar o passo para subir o batente
de pedra da porta da igreja, a Glorinha oscilou, c om o pu-
xada para tr��s, e a cauda de seu vestido de seda p u r a , to-
da b o r d a d a de mi��angas pequeninas, pareceu romper-se,
repentinamente presa ao ch��o por um p�� mau ou dis-
tra��do.
E u m a voz jubilosa, por entre risos:
��� A cauda rasgou.
E a Glorinha, contendo o p a d r i n h o , j�� de m �� o le-
vantada, vermelho, ao mesmo tempo em que tratava de
recolher por tr��s de seus p��s a cauda lacerada:
��� N �� o foi n a d a , n��o foi n a d a . Vamos embora.
E com a cauda do vestido no mesmo bra��o que er-
guia o b u q u �� , caminhou para a nave, calma, sorridente,
c o m o se nada houvesse acontecido. Ia caminhando e sor-
rindo, caminhando e sorrindo, enquanto o Daniel, no al-
tar, descia um degrau, orgulhoso e impaciente, j�� com a
m �� o sol��cita �� sua espera.
53
CAP��TULO II
E m b o r a houvesse marcado encontro com o Ant��-
nio Oliveira no come��o da noite, no Caf�� Excelsior, para
dele receber um romance p��stumo de E��a de Queiroz,
voltei para casa, depois do casamento da Glorinha, mo-
lhado como um pinto.
A chuva come��ou a cair assim que a Glorinha entrou
na igreja. De repente, com o c��u ainda claro, soprou uma
pancada de vento, que revolveu as ��rvores do Largo de
Santo A n t �� n i o , e o temporal desabou, sustando o vento,
ao mesmo tempo em que come��avam a escorrer os fios de
��gua dos beirais vizinhos.
Seguindo o exemplo das andorinhas e bem-te-vis,
que se haviam refugiado no v��o dos telhados e no abrigo
dos campan��rios, consegui meter-me no interior da igre-
ja, espremido, amassado, apertado, e fui dar comigo jun-
to �� pia do batist��rio, sem saber ao certo como tinha con-
seguido vencer aos empurr��es a dist��ncia que me separa-
va da cal��ada do a d r o .
Agora me lembro: foi a Maria Jos�� que me atraiu
para aquele canto vazio, e ali ficamos os dois, no meio de
gente estranha, que eu apenas conhecia de vista e de jane-
la.
No m o m e n t o da Marcha nupcial, q u a n d o a Glori-
nha e o Daniel, de costas para o altar, deviam percorrer
de volta a passadeira vermelha, que se estirava entre as
duas orlas de bancos, na nave principal, precisamente
nesse instante, um trov��o estalou por cima da igreja, de-
54
pois que um clar��o se abriu nas sombras do Largo de
Santo A n t �� n i o , e a luz el��trica se apagou de repente, tan-
to na rua q u a n t o no templo. E isso fez que a cerim��nia
adquirisse de improviso u m a fei����o estranha, com a ilu-
mina����o da igreja reduzida ao clar��o dos c��rios do altar.
E a Maria Jos��, cingindo-me o bra��o contra o seio,
no meio dos apert��es gerais:
��� A Glorinha est�� tendo um casamento diferente.
Ela e o noivo, de bra��os, ainda no degrau do altar,
eram apenas duas silhuetas, enquanto o ��rg��o, no alto do
coro, insistia em tocar a Marcha nupcial, sem conseguir
abafar o barulho das vozes, dentro da igreja, e o ru��do
��spero da chuva, l�� fora, na amplid��o da pra��a.
Afinal, parou o ��rg��o, e ali mesmo no altar os noi-
vos come��aram a receber os cumprimentos, j�� com ou-
tras velas acesas nos altares e nichos circundantes. Co-
me��ou ent��o um movimento novo da multid��o compacta
no sentido do altar-mor, e foi preciso o c��nego Chaves
aparecer novamente no altar, j�� sem paramentos, para
erguer a voz en��rgica:
��� P o r favor, fiquem o n d e e s t �� o . N �� o a d i a n t a
empurrarem-se uns aos outros. H�� hora para t u d o .
E levou os noivos, quase a correr, para o abrigo da
sacristia, e ele pr��prio fechou a porta, ainda com ar alar-
m a d o :
��� Estava vendo a hora em que nem Santo Ant��nio
se salvava.
C o n q u a n t o ainda chovesse forte, a multid��o deu as
costas ao altar, voltando-se no sentido da porta sobre o
adro, que foi aberta de par em par. E por ali come��aram
a sair os mais destemidos, a despeito das cordas da chuva
que o vento sacudia para dentro da igreja.
E eu, para a Maria Jos��, sentindo �� minha volta o ar
abafado:
��� Eu vou dar o fora.
E consegui alcan��ar o adro. no instante em que a chu-
va parecia ter a m a i n a d o . Atravessei o largo, consegui al-
55
can��ar a Rua do Alecrim, mas n��o tomei a direita, no
sentido do Largo do C a r m o , para o encontro com o Oli-
veira ��� segui em sentido contr��rio, na dire����o da Rua
dos Rem��dios, fustigado agora por nova carga de chuva,
que os rel��mpagos e trov��es pareciam soltar por cima dos
telhados escuros.
Na rua escura, ainda com os lampi��es apagados, os
rel��mpagos eram bem-vindos: gra��as a eles, fui seguindo
o meu caminho, vencendo o fragor das enxurradas, e al-
cancei por fim minha casa, mais encharcado do que se me
tivessem atirado ao m a r .
56
CAP��TULO III
Tr��s dias de gripe, depois da chuvarada do fim de
semana, se n��o me tiraram do pensamento a imagem da
Glorinha vestida de noiva, pelo menos ajudaram meu
espirito a distanci��-la de mim, �� maneira da mocinha da es-
ta����o, deixada para tr��s na curva do caminho. O trem se-
guia seu r u m o , rolando sobre as paralelas dos trilhos, e
me levava consigo para outros c��us, outros m u n d o s .
Acabei por ficar em casa, na pregui��a da convalescen-
��a, pelo resto da semana, distraindo-me com revistas ve-
lhas e tomos esparsos da Biblioteca internacional de
obras c��lebres, que o Tarc��sio Gomes, meu colega e meu
vizinho, generosamente me emprestou.
E foi n u m desses tomos e n u m a daquelas revistas
que reencontrei a Cleide ��� a Cleide de olhos verdes, es-
quiva e loura, que me inspirou t��o magoados versos.
A Cleide da revista, embora n��o fosse propriamente
a Cleide do Liceu, tinha o mesmo corpo e os olhos pareci-
dos, vestida de cigana, no corso do ��ltimo carnaval, no
Rio de Janeiro. N �� o seriam parentes nem sequer se co-
nheceriam, mas a verdade �� que a Cleide de S��o Lu��s
tamb��m se havia vestido de cigana, no baile de ter��a-feira
gorda, no Cassino Maranhense, e foi comigo que dan��ou
o mais do t e m p o , atordoando-me os sentidos nos mo-
mentos em que eu lhe sentia os seios contra meu peito, no
sal��o repleto.
Duas vezes, durante a convalescen��a vagarosa, tra-
tada a gotas de homeopatia pela medicina emp��rica de
57
meu pai, sonhei com a colega do Liceu: ��amos por um
caminho longo, de m��os dadas, rindo e correndo, como
somente se ri e corre na adolesc��ncia que est�� para termi-
nar. Nunca eu havia sonhado o mesmo sonho nem tenho
not��cia de que outra pessoa o tenha feito. Entretanto, is-
so ocorreu comigo, com um dia de intervalo, talvez por
sugest��o da cigana da Noite Ilustrada, que eu havia revis-
t o , meio sonolento, pouco antes de apagar a luz do quar-
t o , j�� noite alta.
Despertei pela madrugada, ainda sentindo na m��o
��mida a m �� o da Cleide ��� pequena, leve, macia, a m��o
que tantas vezes apertei, nas conversas ao p�� de sua jane-
la, na Rua de S��o J o �� o . Fiquei a rir comigo, no embalo
b o m da rede, ouvindo cantar o galo no fundo de meu
quintal. E como perdera o sono para o resto da madruga-
da, fiz o que havia de fazer por toda a vida: aproveitei o
fim da noite para distrair-me na leitura. Ao abrir o tomo
da Biblioteca internacional de obras c��lebres, que o
Tarc��sio deixara comigo na visita da ��ltima tarde, dei
com este pensamento, que minha mem��ria guardou para
sempre: " Q u a n d o n��o se tem o que se ama, �� preciso
a m a r o que se t e m . "
Tratava-se de um conselho misterioso, como os mui-
tos que meu pai recolhia freq��entemente na sua B��blia
protestante, aberta por acaso, sempre que pretendia en-
contrar na palavra de Deus a sugest��o adequada �� reso-
lu����o que iria tomar? O certo �� que, com o dedo interpos-
to no gordo livro, fiquei a reconhecer que, se n��o tinha
mais a Glorinha, tinha ainda a Cleide, com seus l��bios
dadivosos.
E decidi-me:
��� �� preciso voltar �� Cleide.
Passado o Natal, fui ao Liceu, para receber meu cer-
tificado de aprova����o. E quem foi que encontrei, ao
transpor a porta de vaiv��m do gabinete do velho Cunha?
A Cleide. Sim. Ela mesma, e alteando as sobrancelhas fe-
lizes, assim que deu por mim ao seu lado:
5 8
��� At�� parece que marcamos este encontro. Eu esta-
va querendo ver voc��. P a r a lhe contar u m a novidade.
E consertando as sobrancelhas, com a cabe��a meio
inclinada, repetindo a posi����o da cigana da revista:
��� Sabe que estou saindo do Liceu? Estou. Vou para
o col��gio do professor Arimat��ia. Fica perto de minha
casa, na Rua de S��o J o �� o , e com o pr��prio Arimat��ia en-
sinando portugu��s, latim, franc��s e matem��tica.
E quando me deu a m �� o :
��� V�� tamb��m para l��.
A p a n h a d o pela surpresa da proposta, fiquei a olh��-
la, sem nada lhe dizer. Ao sair, transp��s a porta de lado,
para continuar olhando em minha dire����o. Dali, j�� com a
m �� o direita abrindo a porta, confessou-me:
��� V��. Ser�� o meu presente de festas, que voc�� ainda
n��o me deu.
59
CAP��TULO IV
J�� o Cl��udio Serra estava definitivamente esqueci-
d o . U m a ou outra vez, q u a n d o de relance o record��va-
m o s , n��o nos concentr��vamos em sil��ncio, tocados pela
b r u t a l i d a d e d e s u a m o r t e . R i a m o - n o s d e l e , a r r e -
med��vamos o seu ar a m u a d o , mas sem que essa lembran-
��a epis��dica trouxesse em si qualquer consterna����o.
A vida em S��o Luis voltara �� sua monotonia pre-
gui��osa, com um ou outro artigo pol��tico a alvoro��ar a ci-
dade nos dois jornais da Oposi����o, a Folha do Povo e o
Combate.
De m a n h �� , nas ruas tranq��ilas, os mesmos preg��es
do jornaleiro, do peixeiro, do sorveteiro, do fruteiro,
sem faltar a batida de duas r��guas de madeira com que o
mascate antecedia o seu aviso de todos os dias, na mesma
voz cantada:
��� R o u p a velha, traste velho, o u r o , prata, cobre,
j��ias velhas, compro t u d o , pago na hora.
Mesmo o Carnaval, com seus bailes de improviso e
suas fantasias de luxo nas festas do Cassino Maranhense,
n �� o tinha alterado a sensa����o de rotina da cidade. �� ho-
ras certas, �� sombra das ��rvores do Largo do C a r m o ,
reuniam-se os mesmos amigos, para a conversa e os me-
xericos de todos os dias. Podia-se acertar o rel��gio pela
passagem do desembargador Barros e Vasconcelos a ca-
minho do Tribunal.
Entretanto, como era tempo das f��rias escolares,
n��o se viam as alunas do Col��gio Santa Teresa e os alu-
60
nos do Liceu, com seus inconfund��veis uniformes. Mas o
professor Rubem Almeida, de palet�� azul e calca de flane-
la, charuto, um livro j u n t o ao peito, sacudindo a perna
direita, continuava a postar-se �� entrada da Rua de Na-
zar��, defronte da Casa Krause, como �� espera de algu��m
que n��o aparecia. Passava o coronel Luzo Torres, �� pai-
sana, para a sua partida de bilhar no Gr��mio 1�� de Janei-
r o , no sobrado da esquina. Passava o professor Nasci-
m e n t o Morais, gordo, negro, alto, com um chap��u de fel-
tro surrado no t o p o da cabe��a. Passava o padre Serra, de
batina lustrosa, a cabeleira negra debaixo do chap��u, b o -
ca rasgada, sempre bem barbeado, mais a servi��o deste
m u n d o que do o u t r o , a caminho da Rua da P a l m a , sede
de seu jornal.
Foi por esse tempo que o poeta Assis Garrido ��� de
testa pulada rebelde ao chap��u de feltro, meio curvo,
malvestido ��� levou-me at�� o fundo do Caf�� Excelsior, e
ali me pediu, um t a n t o desajeitado com a dentadura no-
va:
��� Me conta meus dentes. Estou desconfiado de que
o Juv��ncio C u n h a p��s dente demais na minha boca.
Contei.
��� Trinta e dois, Garrido.
E ele, ajustando novamente os l��bios ao aparelho
duplo:
��� Trinta e dois? E n t �� o esta dentadura n��o �� minha
��� deve ser do padre Serra, que tem a boca maior. Parece
que me puseram aqui dentro um piano, com o teclado a
querer sair pelos bei��os. Voc�� contou bem? Trinta e dois?
Afastou as m �� o s , deixou cair os bra��os, tentando
conformar-se. Depois, segurando-me pelo d��lm��:
��� Quem �� essa aluna do Liceu, que apareceu de re-
pente na pens��o da Chico, e �� agora a mais disputada
borboleta do bordel?
Aluna do Liceu? No bordel da Chico? N �� o , n �� o po-
dia ser. Repassei de mem��ria as colegas, com t o d o o meu
ser a repelir a estranha associa����o de u m a aluna do Liceu
61
e do prost��bulo da Rua de Nazar��, e n��o achei u m a s��
que se ajustasse �� condi����o de rapariga. N �� o , n��o podia
ser. Aluna do Liceu? Que id��ia!
E o Garrido, perempt��rio:
��� Aluna do Liceu. Posso-lhe garantir. T a m b �� m du-
videi. E fui l��. Vi com estes olhos. Um moren��o vistoso,
de bonitas pernas, com o corpo de papel. Car��ssima. N �� o
�� para qualquer u m . �� a menina dos olhos da Chico. A
velha defende a novata como u m a leoa. S�� se aproxima
quem ela quer. N �� o adianta insistir. Primeiro tem de
mostrar a carteira, repleta de notas altas.
Fingi acreditar. Mudei de assunto. Garrido havia
posto a m �� o sobre a boca, gemendo. E despedindo-se:
��� Vou voltar ao C u n h a . Esta dentadura n��o �� mi-
n h a . N��o pode ser. O C u n h a se enganou.
Atravessou o Largo do C a r m o , sumiu-se pela Rua
da Paz, �� altura do pared��o do Convento, enquanto eu
buscava com os olhos o Bandeira de Melo ou o Correia
da Silva, para tirar a limpo a novidade da pens��o da
Chico.
N �� o encontrei nem um nem o u t r o . Os dias passados
em casa a debater-me com a minha gripe tinham-me de-
satualizado da vida na cidade. Fui at�� o Beco do Quebra-
Costa, voltei, entrei na Livraria Moderna, estive uns mo-
mentos p a r a d o no batente da porta, depois de olhar os li-
vros da vitrina, e nisto vejo descer do bonde o Benedito
Barros, alto, escuro, esguio, que veio para mim precedi-
do por esta pergunta:
��� E esse caso da P a n d o r a ? Que �� que voc�� me diz?
P a n d o r a ? Era ent��o a P a n d o r a ? T��nhamos sentado
na mesma carteira, lado a lado, no terceiro a n o , e ela fi-
cara para tr��s, duas vezes reprovada em ingl��s e m��sica,
a despeito de toda a b o a vontade do professor Lafayette
de Mendon��a e do professor Cordeiro. Nas provas orais,
limitara-se a olh��-los, sem n a d a responder, torcendo na
p o n t a dos dedos o papelucho do p o n t o sorteado. Depois,
muito calma, e rindo, t a n t o a um quanto a o u t r o :
62
��� N �� o adianta perguntar, professor. Eu n��o sei na-
da. N��o gosto de estudar.
N��o era bonita, mas simp��tica de fei����es, natural-
mente prejudicada por um leve estrabismo, e tinha um
belo corpo, talvez um pouco excessivo nos quadris p a r a
os seus 15 a n o s .
E eu disse ao Benedito Barros, ainda com ar de as-
sombro:
��� Mas a P a n d o r a tem 16 anos, n��o pode ficar n u m
bordel, sem o nosso protesto. Temos de falar ao Juiz de
Menores.
Benedito Barros p��s-se a rir:
��� Menor? Voc�� n �� o sabe da missa a metade. Vinte
e u m . E foi p a r a l�� no dia em que os completou. A Chico,
primeiro, quis ver-lhe a certid��o de idade. Depois, man-
dou abrir c h a m p a n h e .
63
CAP��TULO V
O gin��sio do professor Arimat��ia Cisne, n �� o obs-
tante o nome l��rico de Col��gio Cisne, deixou no meu olfa-
to a lembran��a do cheiro forte da bosta de boi de seu
est��bulo, ao fundo do quintal, na m o r a d a inteira asso-
b r a d a d a da Rua da Saavedra.
Havia ali duas vacas holandesas, com os respectivos
bezerros, e tanto as vacas quanto os bezerros pareciam
ensinados para responder com seus mugidos tristes ao to-
que da sineta, no come��o e no fim das aulas.
E o mestre, ouvindo esses mugidos:
��� Meus bois est��o lembrando aos alunos em atraso
que devem pagar o col��gio do professor Arimat��ia.
O outro pr��dio do Col��gio Cisne, na Rua de S��o
J o �� o , logo adiante, era um sobradinho ao p�� da ladeira,
a duas quadras do Cais da Sagra����o, nos arredores da ca-
sa mal-assombrada em que o desembargador Pontes Vis-
queiros m a t o u a sua am a n te , enterrando-a ali mesmo,
com a ajuda de um funileiro.
E m b o r a eu j�� houvesse estudado com o professor
Arimat��ia, na casa da Rua da Saavedra, ao t e m p o em
que urgia u m a base mais s��lida para o meu franc��s e o
meu latim, estranhei os primeiros dias das novas aulas,
com as saudades do Liceu dentro de mim.
A Cleide, com a sua arg��cia de mulher, deu pelo
meu ar ausente, logo no in��cio da primeira aula:
��� Desligue-se do Liceu. Fa��a como estou fazendo.
64
N �� o era f��cil. Eu olhava �� minha volta, instintiva-
mente procurando os antigos companheiros. Onde o
Bandeira de Melo? A Enedi? A Maria Jos��? A Helo��sa?
O Barros da Silva? O Tarc��sio? Buscava entretanto a
Glorinha, olhando na dire����o da janela sobre a rua, e a
luz da t a r d e , c o n q u a n t o viva e alta, se recusava a
restituir-me o seu perfil harmonioso, como a ensinar-me,
�� custa de sofrimento ��ntimo, que a vida �� u m a sucess��o
de ren��ncias, a que eu ainda n��o estava acostumado.
Tive de ir ao Liceu algumas vezes com preju��zo de
umas tantas aulas do Col��gio Cisne, s�� para entrar na mi-
nha velha sala. Precisava daquele ar, daquelas paredes,
daquelas carteiras. A vira����o da tarde, entrando pelas
duas janelas sobre a Rua Direita, veio ao meu encontro,
antes que o Tarc��sio desse por mim, ainda no batente da
porta.
Sobre o estrado, com o livro de chamada aberto ��
sua frente, o professor Nascimento Morais, forte, om-
bros largos, ia d a n d o presen��a a toda a t u r m a , sem er-
guer a vista nem chamar por ningu��m. E foi ele que, aler-
tado pelo Tarc��sio, me permitiu volver ao meu antigo lu-
gar, como que �� minha espera.
E m o c i o n a d o , pestanejei d u r a n t e uns m o m e n t o s ,
quase a fazer m�� figura, mas n��o tardei a dar por falta do
Correia da Silva, do Franklin, do Arag��o, do Viegas, que
tamb��m n �� o voltariam. Ali estava o lugar do Cl��udio
Serra. Do outro lado, b a n h a d a pelo sol da tarde, sem
prote����o da p o r t a entrefechada, a carteira da Glorinha,
tamb��m vazia. Eu pr��prio, abismado em minhas sauda-
des, j�� n �� o era o mesmo adolescente: trazia agora a som-
b r a do bu��o no l��bio superior, preferia �� farda de gina-
siano o palet�� e a gravata, deixara crescer o cabelo, que
escorregava para cima das orelhas, sob a aba do chap��u.
E o professor Nascimento Morais, que j�� me conhe-
cia:
��� N �� o vi seu nome no livro de chamada. �� tamb��m
desta turma?
65
E a Helo��sa, antes que eu respondesse:
��� N �� o �� n �� o , professor. Foi embora daqui, aban-
d o n a n d o os colegas. Trocou o Liceu pelo Col��gio Cisne.
Senti o sangue me subir ao rosto, entrelacei os dedos
sobre a t a m p a da carteira, e gaguejei esta desculpa:
��� Quem estudou no Liceu, sempre ser�� do Liceu. A
prova �� que estou aqui, para rever os companheiros.
Ao fim da aula, sa�� da sala com a turma, t o m a n d o a
dire����o do corredor, mas n �� o fui ao p��tio, nos dez minu-
tos de intervalo: tratei de alcan��ar a rua, descendo de-
pressa a escada de pedra que levava �� portaria, e j�� ia
p o n d o o p�� na cal��ada q u a n d o um bra��o forte me segu-
rou:
��� Que pressa �� essa? Fale com os amigos.
As m��os fortes do professor Daniel me fizeram vol-
tar, como no impulso de um rodopio, e eu dei com o ma-
rido feliz, queimado pelo sol da praia, u m a luz mais viva
nos olhos castanhos.
N��o esperou que eu lhe perguntasse pela mulher:
��� A Glorinha, por seu gosto, tinha voltado ao Li-
ceu para acabar o curso aqui. Mas j�� se ajustou �� nova vi-
d a , t o m a n d o conta da casa e do marido. O que n��o a im-
pede de suspirar de vez em q u a n d o , com saudades dos co-
legas. Antes que eu leia o que voc�� publica, j�� ela leu, e
faz que eu leia.
N �� o era o Daniel da sala de aula, reflexivo, um tanto
fechado, ocasionalmente expansivo e jovial, que eu tinha
diante de mim, com as m��os nos meus ombros, e sim o
Daniel realizado, a quem a vida conjugal completara e re-
juvenescera ��� com a b a r b a bem-feita, o cabelo cortado,
a gravata combinando com a roupa, u m a p��rola na gra-
vata, o vinco das cal��as descendo harmoniosamente so-
bre a biqueira dos sapatos engraxados.
N��o me contive:
��� O senhor est�� bem, professor. �� t i m o . Nunca o vi
t �� o bem-disposto. D�� parab��ns �� Glorinha.
66
Na R u a F o r m o s a , tomei o b o n d e circular que me
restituiria ao Col��gio Cisne. E iria de cora����o a p e r t a d o ,
sem me perdoar o a b a n d o n o do Liceu, se n��o insistisse
em pensar nos olhos verdes da Cleide, que estariam certa-
mente inquietos, sem atinar com a raz��o por que eu havia
faltado, naquela tarde, ��s aulas de latim e portugu��s do
professor Arimat��ia.
67
CAP��TULO VI
j u n h o , de um dia para o u t r o , aparentemente
sem raz��o nem prop��sito, a Cleide me restituiu meu re-
t r a t o , minhas cartas, os recortes de meus poemas, e o li-
vro de Guilherme de Almeida que eu lhe tinha oferecido
no dia de seu anivers��rio.
E de vista baixa, como no temor de fraquejar com os
olhos nos meus olhos:
��� �� melhor que essas coisas fiquem com voc��. O es-
pa��o de que disponho, no arm��rio do internato, �� muito
pequeno.
Compreendi o que a devolu����o significava, mas n��o
lhe dei o troco, no dia seguinte, com a devolu����o de seu
retrato. E q u a n d o ela me cobrou:
��� Na minha mesa h�� sempre espa��o para voc�� ���
respondi.
Cleide permaneceu de vista baixa, escrevendo no ca-
derno de franc��s. Depois de uns m o m e n t o s , perguntou-
me:
��� C o m o sua amiga?
��� C o m o minha amiga ��� concordei.
Na verdade, eu me precipitara em deixar o Liceu.
P o r vezes, na m o n o t o n i a do Col��gio Cisne, confrontava
o t��dio da sala de aula, impregnada pelo cheiro forte da
bosta de boi do est��bulo, com o bulicio do Liceu, �� mes-
ma hora, e me fechava na minha saudade, recordando o
que ali havia deixado, inclusive a mim pr��prio, entre as
emo����es mais intensas da adolesc��ncia.
68
Ao abandonar minha velha farda, transformada
agora em r o u p a caseira, com a qual n��o podia mais sair,
meus olhos se emudeceram. Na briga recente do Liceu
com o Col��gio Viveiros, n��o pudera tomar partido. Co-
mo defender o Liceu, se eu n��o era mais de l��? Vinha
agora a formatura do 7 de setembro, e eu n��o marcharia
com os antigos companheiros, levando comigo, no pelo-
t��o da frente, a bandeira nacional. Teria de marchar com
o Col��gio Cisne? Seria ridiculo vir �� cauda da p a r a d a
com t��o poucos alunos, ao som da corneta e do t a m b o r .
Dar-me-ia por doente para n��o desfilar.
No jornalzinho do Liceu, publicado pelo Augusto de
Almeida Filho e o Durval Para��so, tinha aparecido o meu
primeiro conto, no destaque da primeira p��gina. Dias an-
tes, ao encontrar-me com o Para��so no Largo do C a r m o ,
este me dera a boa nova de que a Folha do Liceu ia reapa-
recer, e logo acrescentara:
��� Eu ia te pedir um poema quando me lembrei que
tu, agora, est��s no Col��gio Cisne. Que pena.
Os olhos verdes da Cleide, que haviam sido o pretex-
to p a r a deixar o Liceu, j�� n��o me fitavam com a desejada
ternura. Culpa minha? Culpa da Cleide? Nenhum de n��s
era culpado. Na origem de tudo estaria mesmo a Glori-
n h a , que jamais voltaria ao seu lugar.
Pensei em voltar ao Liceu, aproveitando o intervalo
das f��rias do meio de a n o . N��o era f��cil. Precisava contar
com a boa vontade do Liceu e a concord��ncia do Col��gio
Cisne. Se a primeira me parecia poss��vel, a segunda tinha
seus trope��os. Mestre Arimat��ia, sujeito a crises de aze-
dume, vermelho, o cigarrinho no meio da boca, tinha
rompantes ��speros que nos desnorteavam:
��� Voc��s n��o lascam. Eu ensino em portugu��s, e ��
como se ensinasse em grego. A li����o entra por um ouvido
e sai pelo o u t r o . No fim das contas, perco meu tempo e
meu latim. Latim de Virg��lio, meus b o b o s . Latim da
Eneida, que eu aprendi no Semin��rio da Praia, em Forta-
leza.
69
Noutras ocasi��es, sabia rir a seu m o d o , por vezes so-
zinho, debru��ado na janela, como a olhar para o est��bu-
lo, enquanto sacudia no ar a cinza do cigarro.
Dei com ele assim, q u a n d o lhe fui falar sobre minha
volta ao Liceu. Antes que eu lhe falasse, olhou-me de
frente, ainda rindo:
��� Estou me lembrando da ��ltima do Salim, aqui no
Col��gio, esta m a n h �� . Conhece o Salim? Aquele carcama-
no g o r d �� o , pai do Davi? Veio aqui se queixar do profes-
sor Daniel. Imagine aquele gordalh��o, nessa cadeirinha
de palha, aqui �� mesa, n u m a voz de choro, a me dizer que
o Daniel tinha r o u b a d o a nota do filho dele, do Davi, pa-
ra dar para outro aluno do Liceu. Roubar nota. S�� na ca-
be��a do Jorge. E eu disse ao Salim que n �� o , que o Daniel,
meu afilhado, n��o era capaz de roubar a nota do menino.
Ele teimou: " J u r a pra Deus, professor Arimat��ia. U m a
n o t a pequenininha, que dava pra passar de a n o , e deu pra
o u t r o . " E chorou mesmo. Aqui. Aquele homenzarr��o. E
eu prometi ao Salim que ia falar ao Daniel. Chamar o
Daniel �� ordem. P a r a devolver a nota do Jorge. Do nosso
Jorge, que escreve quati com 1.
E recolhendo o riso, com a m �� o afetuosa no meu
bra��o:
��� Quero-lhe fazer um convite. Estou precisando de
algu��m para me ajudar, aqui no col��gio, como professor
de portugu��s no primeiro a n o . E pensei em voc��.
A p a n h a d o pela surpresa da proposta, fiquei a olhar
o mestre durante alguns momentos, sem nada lhe dizer.
C o m o falar-lhe de minha volta ao Liceu, depois de seu
convite? E como recusar o pequeno emprego que alivia-
ria as despesas de meu pai?
E o professor Arimat��ia, j�� instalado �� cabeceira da
mesa, no centro da varanda espa��osa, a abrir a mortalha
de papel para fazer novo cigarro:
��� N �� o tenha receio. Sei que dar�� conta do recado.
Eu, na sua idade, j�� ensinava latim aos colegas de se-
min��rio.
70
Professor do Col��gio Cisne? E a convite do profes-
sor Arimat��ia? H�� mudan��as na vida que s�� dependem
das palavras. O convite do mestre, se de in��cio me ator-
d o o u , logo me trouxe u m a nova consci��ncia de mim mes-
m o . Eu n��o era mais aluno, passara �� condi����o de pro-
fessor, e isso me transformava.
A sensa����o de m u d a n �� a repentina, que se operara
em mim ao sair pela primeira vez da casa da Dulce, agora
se repetia. Ergui mais a cabe��a, pisei mais firme. E ao
sair dali, ao fim da conversa com o Arimat��ia, n��o fui
para casa, apesar da noite come��ar a fechar-se, com os
primeiros lampi��es acesos.
No Largo do C a r m o , �� altura da Farm��cia Sa-
nit��ria, dei com o Sebasti��o Correia, j�� um pouco alto,
sobra��ando o seu violino. E prop��s-me:
��� Queres ir comigo �� pens��o da Chico? O Chamin��
tem umas valsas novas que lhe m a n d a r a m do Rio e eu fi-
quei de aparecer por l�� para acompanh��-lo ao piano.
Subi as escadas do sobrado, n��o mais como estudan-
te, e sim como professor. A P a n d o r a ainda estaria ali? E
qual seria a sua rea����o q u a n d o me visse?
Na varanda ampla, que servia de bar e p o n t o de en-
contro, j�� o Chamin��, sentado ao piano, ensaiava os
compassos das novas valsas, agil��ssimo. Ningu��m mais.
Pareceu n��o dar por n��s, q u a n d o assomamos ao patamar
da escada. O Correia, ali mesmo, sem ru��do, tirou do es-
tojo o violino. Esteve uns momentos �� escuta, com o ins-
trumento apoiado ao queixo. Depois, senhor dos acor-
des, caminhou na dire����o do piano ��� t o c a n d o .
N �� o tardariam a aparecer as primeiras raparigas,
pintadas para o trabalho da noite. Em seguida veio a
Chico. N �� o vi q u a n d o a P a n d o r a chegou. Ao dar com
ela, j�� estava sentada ao fundo da varanda, com o coto-
velo sobre o m �� r m o r e da mesa, a m �� o no queixo, a olhar
em minha dire����o. E toda ela se alvoro��ou q u a n d o fui ao
seu encontro:
71
��� At�� que enfim voc�� deu o ar de sua gra��a p a r a es-
tes lados.
A despeito do estrabismo, pareceu-me bonita e mais
mulher, sobretudo q u a n d o me fez sentar ao seu l a d o .
Perguntei-lhe se estava contente ali. Ondulou no ar a
m �� o esguia, que um anel de brilhantes enfeitava. E logo
rebateu:
��� Sinto muito, aqui, a falta do Liceu.
E olhando-me com ternura:
��� Voc�� tamb��m saiu de l�� para o Col��gio Cisne.
��� Sa�� ��� confirmei. ��� Mas sou t a m b �� m professor.
Sua m �� o segurou a minha para me dar parab��ns.
Depois, sem nada mais me dizer, puxou-me pelo b r a �� o ,
levou-me p a r a seu q u a r t o .
72
CAP��TULO VII
A primeira vista, a dist��ncia entre a primeira fila,
onde me havia sentado, e a mesa do professor, um pouco
mais �� frente, correspondia a tr��s passos, ou dois. Pode-
ria ser percorrida no impulso inicial do corpo. Entretan-
t o , para mim, que tinha de percorr��-la, p a r a assumir a re-
g��ncia da t u r m a , no meu primeiro dia de aula, aquele pe-
queno espa��o fazia suar, e eu tinha as m��os ��midas, o co-
ra����o acelerado, enquanto aguardava que o professor
Arimat��ia viesse apresentar-me aos meus alunos.
Mestre Arimat��ia n �� o tardou a aparecer, apertando
contra o peito o livro de chamada, e logo me chamou pa-
ra perto de si, p o n d o sobre meu o m b r o a sua m �� o prote-
t o r a :
��� Este mo��o �� t a m b �� m aluno do Col��gio Cisne,
mas j�� est�� no fim do curso e sabe mais que voc��s. Sem-
pre foi um aluno brilhante. J�� escreve nas folhas. Vai
longe. �� ele que vai me substituir como professor. N �� o
pensem que, por ser tamb��m aluno, vai passar a m �� o pela
cabe��a de voc��s. N �� o , n �� o vai. P o r t a n t o , tratem de ouvir
as li����es do novo professor e estudar.
Vi onde o mestre havia ficado, na ��ltima li����o, e
continuei daquele p o n t o minha aula sobre os verbos de-
fectivos. E r a m , ao t o d o , 18 pares de olhos voltados p a r a
m i m . De inicio, p e r t u r b a r a m - m e com um brilho de
d��vida e desafio nas pupilas atentas. Depois, ao se con-
vencerem de que eu sabia a mat��ria, descontrairam-se, e
a comunica����o entre o professor e os alunos se estabele-
73
ceu no mesmo instante, sobretudo depois que u m a boli-
nha de papel atravessou a sala em diagonal, saindo pela
janela.
E eu, j�� senhor de mim:
��� T a m b �� m sou a favor da bolinha de papel, mas no
intervalo das aulas. Durante as aulas, n �� o . Digo isto co-
mo um aviso, para n��o ter que pedir �� aluna que se retire
da sala.
A culpada juntou as m �� o s sobre a t a m p a da carteira,
com o a dizer-me que n��o repetiria o gracejo; em seguida,
baixou os olhos q u a n d o a fitei.
A sala de aula, aberta sobre o corredor, �� entrada da
m o r a d a inteira da Rua da Saavedra, permitia ver quem
chegava ou saia, e foi quase ao fim da minha primeira
li����o que me pareceu ter visto a Glorinha, gorda, desfigu-
r a d a pela gravidez, caminhando no sentido da varanda,
como se fosse ao encontro do professor Arimat��ia. Na
passagem, estendeu o olhar p a r a dentro da sala. Depois,
como em d��vida, voltou sobre seus passos, e toda a sua
figura alta e cheia, com os olhos levemente empapu��a-
dos, cresceu no v��o da porta, ao mesmo tempo em que a
sua m �� o gorducha acenava para mim.
Acenou, e retraiu-se, para tornar a desaparecer, en-
q u a n t o a voz do mestre Arimat��ia se alteava, em tom ju-
biloso, gritando para o fundo da casa:
��� Iai��, minha mulher, olha quem est�� chegando
aqui. �� a Glorinha, nossa afilhada. Bonitona, esperando
nen��m. Vem depressa, Iai��, para eu n��o ter esta alegria
sozinho. Vem me ajudar, Iai��.
Acabei a li����o no m o m e n t o em que a sineta batia,
a c o m p a n h a d a pelos mugidos das vacas e dos bezerros. A
classe me bateu palmas.
E foi a Glorinha que veio ter comigo, assim que apa-
reci �� entrada da varanda. Ao v��-la caminhar para mim,
caminhei tamb��m p a r a ela, de m o d o que nos encontra-
mos j u n t o �� mesa do professor Arimat��ia. E este, a espa-
lhar o fumo na mortalha do cigarro:
74
��� Seu colega do Liceu ��, hoje, meu colega e colega
do Daniel. Acaba de dar a sua primeira aula, com aplau-
sos dos alunos, o que n��o �� c o m u m .
Glorinha deu mais vida ao rosto opaco:
��� Eu o vi d a n d o aula, assim que entrei. N �� o sabia
que era a primeira.
E apertando-me a m �� o :
��� Parab��ns. Vou dar a b o a not��cia ao Daniel. Ele
vai ficar contente.
Olhando-a de frente, ainda com a m �� o fria e ��mida
na minha m �� o , senti-lhe o rosto inchado, as m��os incha-
das. N��o parecia preparada para o p a r t o , que talvez fosse
a sua perdi����o. E ao notar-lhe a respira����o mi��da e repe-
tida:
��� Sente-se, Glorinha. Descanse um p o u c o . A cami-
n h a d a a fatigou. Evite as ladeiras.
Sentou-se �� mesa, �� direita do professor Arimat��ia:
��� O m��dico me recomendou que caminhasse. An-
dar me faz bem. Hoje, dia de sua primeira aula, ��
tamb��m o dia de minha primeira caminhada longa.
N��o obstante o rosto cheio e p��lido, com as boche-
chas querendo apertar os olhos, ainda estava bonita. J�� a
gravidez lhe real��ava a beleza com as emo����es da mater-
nidade. Em vez de deixar as m��os sobre a borda da mesa,
acomodou-as por cima do ventre alto, naturalmente para
sentir os movimentos da crian��a. E a cada fisgada do
nen��m, seus olhos brilhavam com uma nova intensidade,
acompanhados pelo sorriso feliz.
Suspirou:
��� Todas os dias, na hora das aulas, tenho saudade
do nosso Liceu. Chego a chorar. Mas enxugo os olhos e
vou tratar de completar o enxoval de minha filha. Filha,
sim senhor. Vai ser mulher. Quero uma menina.
Mestre Arimat��ia, j�� de cigarrinho no meio da boca,
entrefechava o olho direito, protegendo-o da fuma��a,
sem deixar de observar Glorinha. Novamente gritou para
a mulher:
75
��� Iai��, minha mulher. A Glorinha est�� aqui espe-
rando voc��. Venha depressa. Nossa afilhada est�� mais
linda, com seu ar de m a m �� e . Venha.
E para a Glorinha:
��� N �� o fique no primeiro filho. Encha a casa de me-
ninos. A melhor m��sica do m u n d o �� um chorinho de
crian��a pedindo para m a m a r . Gosto de ver menino novo
em casa.
Glorinha p��s-se a dobrar com a u n h a bem-tratada a
p o n t a da toalha de linho, com a cabe��a baixa. E sem er-
guer o olhar:
��� Bem que eu queria ter muitos filhos. Mas o Dr.
Guterres n��o concorda. Devo ficar neste. Eu tenho sa��de
por fora. Por dentro, n �� o . Conv��m ter cuidado.
E o tom de sua voz, suave, compassado, trouxera
consigo um toque de tristeza t��o sens��vel que eu fiquei ca-
lado, a olh��-la, e vi que o professor Arimat��ia tamb��m a
olhava com o mesmo sil��ncio, segurando o cigarrinho na
p o n t a dos dedos.
Felizmente o rel��gio da parede se p��s a bater. E logo
a D. Iai�� entrou na varanda, de bra��os abertos, recla-
m a n d o o abra��o e o beijo da afilhada.
76
TERCEIRA PARTE
Os seres que nos rodeiam est��o t��o mal
pintados!
S A L V A D O R D A L I
CAPITULO I
No come��o de setembro, li n u m jornal da tarde,
creio que a Folha do Povo, que havia nascido a filha do
Daniel.
Detive o olhar nas tr��s linhas do Registro Social, pa-
rado na esquina do sobrado do Cassino Maranhense, e
n �� o vi apenas ali o ponto de partida de u m a crian��a nova,
na sua caminhada por este m u n d o , e sim algo a mais, que
dizia respeito �� minha gera����o ��� �� gera����o que se havia
reunido no mesmo dia no p��tio do Liceu, entrando j u n t a
na sala de aula.
C o n q u a n t o a Glorinha houvesse entrado depois, j��
no pen��ltimo ano do curso, rapidamente se associou a to-
dos n��s,' �� revelia de seu sil��ncio e de seu ar distante, co-
mo se houvesse recebido o trote destinado aos calouros,
tr��s anos antes.
O susto dos dias de prova escrita e de argui����o oral,
a c o m u n h �� o das carteiras, o conv��vio di��rio, a identidade
de sentimentos e rea����es, tudo isso havia amalgamado
em nossa personalidade u m a concord��ncia misteriosa,
que nos irmanava p a r a o resto da vida.
De repente, antes mesmo da conclus��o do curso, co-
me��ara a dispers��o imprevista ��� com a morte do Cl��u-
dio Serra, as transfer��ncias para o Col��gio Cisne e o Ate-
neu Teixeira Mendes, o noivado e o casamento da Glori-
n h a , a m u d a n �� a do Viegas para S��o P a u l o . O pobre do
Correia da Silva, sem recursos para estudar, repetia o co-
me��o de vida de Artur Azevedo ��� a trabalhar na Praia
79
Grande, n u m a casa de com��rcio, enquanto o Amorim
Parga, levado pelo Ant��nio Lopes, figurava entre os re-
datores de O Imparcial, sem tempo para o Liceu.
Agora, com o nascimento da filha da Glorinha, era
uma gera����o nova que despontava, origin��ria da nossa, e
que, com o rolar do t e m p o , nos passaria para tr��s, como
seres superados. E m b o r a mo��os, buscando os nossos ru-
mos na vida, j�� est��vamos a nos inserir no contexto so-
cial, cedendo aos impulsos de nossas voca����es. Em bre-
ve, deixado para tr��s o gin��sio, seriamos m��dicos, advo-
gados, comerciantes, professores, industriais. N �� o fazia
u m a semana que um de meus colegas de t u r m a , Olivar
Leite, me consultara sobre minhas id��ias pol��ticas. S��rio,
grave, havia sentado �� minha mesa, no Caf�� Excelsior, e
perguntara-me:
��� Voc�� n��o acha que somos n��s que temos de con-
sertar o Brasil? Que o que est�� ocorrendo agora, com o
Get��lio no governo, �� u m a calamidade pior que a do tem-
po do Washington Lu��s?
Amorim Parga, n ou t r a tarde, q u a n d o lhe fui levar
um novo poema p a r a a p��gina liter��ria, na reda����o do O
Imparcial, abriu a gaveta central de sua mesa, para me
abastecer de livros comunistas:
��� Voc�� precisa ler isto com a maior urg��ncia.
O Olivar queria levar-me para o campo oposto:
��� Veja a It��lia, veja a Alemanha. J�� est��o fazendo
o m u n d o tremer com suas mil��cias. Hitler veio do nada,
era um pintor de paredes: hoje, quando ergue a voz em
Berlim, estremece o m u n d o . Voc�� precisa ouvir um dis-
curso de Mussolini. Aquilo, sim. Nosso Pl��nio Salgado
vai pelo mesmo caminho. �� a nossa esperan��a. Voc�� pre-
cisa vir para o integralismo, com a maior urg��ncia.
Eu tinha visto, no Largo do C a r m o , n u m domingo,
a prepara����o dos integralistas para a sua primeira mar-
cha em S��o Lu��s, de camisas verdes, sigmas no bra��o, o
ratapl�� dos tambores.
E o Olivar:
80
��� Podemos contar com voc��?
E eu, com firmeza:
��� Sou individualista demais, no meu apego �� liber-
dade, para me filiar a um partido que restringe essa li-
berdade.
S e g u r o u - m e p e l o p a l e t �� , q u a s e a e x a l t a r - s e ,
olhando;me de frente, com os olhos crescidos:
��� �� pena. �� assim que, sem querer, se vira comu-
nista. P o r q u e , hoje, fique voc�� sabendo, s�� h�� comunis-
tas e integralistas. Os neutros n��o t��m espa��o para ocu-
par. Pense bem no que estou lhe dizendo. E eu s�� lhe digo
isto para seu bem.
Amorim Parga, ali mesmo no Caf�� Excelsior, quis
saber, dias depois, se eu tinha lido os livros que me em-
prestara. Sim, sim, havia lido. Gostara do romance p r o -
let��rio, mas n �� o a p o n t o de entusiasmar-me. Q u a n t o ao
Manifesto comunista, tinha minhas restri����es.
Ainda hoje ou��o a risada do Amorim:
��� Voc�� tem restri����es a Marx e Engels?
��� Tenho ��� confirmei, com ar de riso.
E ele, arrependido de ter gasto cera com m a u defun-
t o :
��� C o m o anedota, a resposta �� b o a .
Depois, s��rio:
��� Voc�� n��o passa de um pequeno-burgu��s. Vai aca-
bar na mil��cia integralista, levantando o bra��o p a r a gritar
anau��. Hoje, quem n��o for comunista �� fascista. Fascis-
ta como Plinio Salgado. C o m o Gustavo Barroso. De ca-
misa verde, marchante, sob as ordens de Hitler e Musso-
lini.
Nesse diss��dio radicalizante, eu s�� pensava em defen-
der a mim mesmo, sem voca����o p a r a entrar n u m reba-
n h o . P��ssaro solit��rio, voava ao sabor de meu gosto p a r a
onde queria. A amplid��o era minha. Meu horizonte n �� o
tinha limite.
O nascimento da filha da Glorinha, transformado
em not��cia de jornal, como que me chamava �� ordem,
81
advertindo-me de que o tempo da vida gratuita estava
terminando. A P a n d o r a , por u m a via errada, tinha feito
a sua op����o. Cada um de n��s, nos pr��ximos anos, seria
obrigado a definir-se. No plano pol��tico, eu n��o queria
ser comunista nem integralista. Queria ser eu mesmo.
Fiel ��s minhas verdades. P r o c u r a n d o honrar minha pena
de escritor.
Benedito Barros, com quem o A m o r i m Parga tinha
conversado a meu respeito, depois do encontro no Caf��
Excelsior, n��o teve d��vida em vaticinar:
��� Voc�� vai acabar no hosp��cio. Metido na camisa-
de-for��a.
82
CAP��TULO II
A i n d a estavam em m o d a , na cidade pequena e cal-
ma, os recitais de poesia. Uns, de iniciativa local, obra de
Ant��nio Pires, famoso criador das Horas de Inverno, no
sal��o principal do Cassino Maranhense; outros, vindos
de fora, com declamadores de renome internacional, ca-
pazes de comover grandes audit��rios recitando poemas
de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Oleg��rio M a r i a n o .
Foi o Ant��nio Pires quem me preveniu:
��� A Maria Cristina vem ai.
J�� a grande declamadora ��� imensa no f��sico e na
voz ��� tinha estado em S��o Luis algumas vezes. Ali dei-
xara a fama de algumas de suas interpreta����es eloq��en-
tes. A do p o e m a onomatopaico sobre o bailado do vento,
em que, recitando e soprando, era o pr��prio vendaval em
rodopio, nunca deixava de ser bisada com calor, at�� que
a artista, enxugando o suor da testa e do pesco��o, anuia
em repris��-la, por entre aclama����es fren��ticas.
Assim que ela chegou, e antes mesmo que os jornais
lhe noticiassem a presen��a na cidade, para dois ou tr��s
programas no Teatro Artur Azevedo, o Ant��nio Pires
veio avisar-me, com u m a boa not��cia na ponta da l��ngua
saltitante:
��� Ela me assegurou que vai recitar um poema teu.
Fazia parte da boa t��tica, com repercuss��o simp��tica
imediata, o expediente de incluir no programa do recital,
em cada cidade, os poemas de dois ou tr��s poetas locais.
83
Eu entraria no programa por obra e gra��a do velho expe-
diente.
Um companheiro de gera����o, Argeu Ramos, tinha
acabado de publicar, na p��gina liter��ria de O Imparcial,
um poema moderno sobre seios, com esta novidade: alu-
dia ele, quase ao fim do poema, aos seios clarinantes de
sua a m a d a . Seios clarinantes? A associa����o do substanti-
vo e do adjetivo era nova. C o m o seriam os seios clarinan-
tes da musa do Argeu?
J�� eu conhecia, por esse t e m p o , u m a boa variedade
de seios, mas n��o me lembrava de qualquer deles que pu-
desse associar a um clarim. E n��o fui eu apenas que estra-
nhei. O Bandeira de Melo estranhou. Estranhou o Frank-
lin, estranhou o Correia da Silva. E at�� o Benedito Bar-
ros, sempre aberto ��s imagens arrojadas, desta vez aper-
tou a ponta do queixo, pensativo, sem atinar tamb��m
com os tais seios em forma de clarim. Seios clarinantes?
C o m o seriam?
Afinal, um dia vem sobre outro dia, e o tempo dilui
tamb��m nossos espantos, como dilui nossas alegrias e
amarguras. Entretanto, no caso dos seios clarinantes, a
mem��ria de cada um de n��s se fez tenaz, lembrando-os
sempre, com prop��sito ou sem prop��sito, e o certo �� que
o Argeu acabou conhecido como o poeta dos seios clari-
nantes, assim como Bilac ficara famoso por ouvir estrelas
e Raimundo Correia por tirar a m��scara da face.
Antes que o pano de boca do teatro levantasse, com
a casa repleta, incluindo as torrinhas reservadas a tr��s ou
q u a t r o col��gios municipais, vi meu nome no programa
do recital da noite ��� na abertura do recital da Maria
Cristina. C o m o j�� havia tr��s anos que ela n��o fazia as
pra��as do Norte, eu s�� a conhecia de nome e ae fotogra-
fia. Dos meus companheiros de literatura, s�� o Benedito
a conhecia, por ter assistido ao seu ��ltimo recital.
��� �� impressionante ��� dizia-nos ele, para fazer am-
biente, no fundo da frisa em que o Ant��nio Pires nos ti-
84
n h a alojado, por u m a cortesia especial da pr��pria decla-
m a d o r a .
E descrevia:
��� Muito alta, lindas m��os, e u m a voz de trov��o ou
de violino, de acordo com a poesia que est�� recitando.
Soberba. H�� quem diga: divina.
Nesse m o m e n t o , ouviram-se as tr��s pancadas firmes
que precediam a subida do p a n o de boca. Redobramos de
aten����o. Sil��ncio. O cen��rio, sob a forma de a b �� b a d a ce-
leste em t o m azul-claro pontilhado de estrelas, resplande-
cia sob as gambiarras, e eis que do ch��o se eleva, devaga-
r i n h o , ao som de um N o t u r n o de Chopin executado pelo
violino de Pedro Comwell e o piano de Chamin��, a figura
majestosa da Maria Cristina, tamb��m de azul, imensa,
alteada ainda mais pelo penteado. Primeiro apareceu-lhe
o penteado, depois a testa, o resto do rosto, o mulher��o foi
crescendo, como se Aladim houvesse esfregado a l��mpa-
da e logo surgisse �� sua frente um g��nio de colossal esta-
tura.
E o que de p r o n t o me chamou a aten����o, al��m do ta-
m a n h o colossal da figura, grande como u m a est��tua, fo-
r a m os seios pontudos e altos, avan��ando para a frente
do vestido. Parecia que, sob a seda cintilante, dois
chap��us de clown comporiam o corpinho que seguravam
as vastas m a m a s .
Q u a n d o dei por mim, j�� estava a sussurrar p a r a os
companheiros de frisa, com os olhos arregalados:
��� Afinal, achamos. S��o esses os seios clarinantes.
E por mais que a Maria Cristina se esmerasse em dar
vida ao meu poema, exibindo sob a luz propicia as m��os
femininas que eu havia celebrado, n��o se desfez em n��s o
frouxo de riso. E q u a n t o mais o riso se nos derramasse
pela boca ��mida, nos impulsos da galhofa irreprimivel,
mais quer��amos rir, com o len��o contra a boca, j�� de p��,
no corredor que perlongava a plat��ia. Nem mesmo o bai-
lado do vento, que veio logo a seguir, teve o d o m de nos
conter. Pelo contr��rio, quanto mais os bra��os gesticula-
85
vam e os l��bios sopravam, no esfor��o da declama����o
exaltada, mais os seios clarinantes clarinavam, com o no
verso do Argeu.
O Benedito Barros nos prop��s:
��� �� melhor sairmos.
C�� fora, na paz do Largo do C a r m o , continuamos a
rir, sob o sil��ncio do c��u estrelado, caminhando na di-
re����o da Rua Grande. �� altura da igreja do C a r m o , es-
t r a n h a m o s que esta estivesse aberta, ��quela hora da noi-
te. E logo o Oliveira, entendido em igreja, nos esclareceu:
��� �� a novena. Come��ou ontem. Vai at�� a semana
que vem.
E ainda olh��vamos para a porta iluminada, ouvindo
a cantilena das ora����es, q u a n d o vimos sair dali o profes-
sor Daniel. De cabe��a baixa, desceu os degraus da esca-
daria, movendo as m �� o s , como se falasse sozinho, en-
quanto recolh��amos o resto de riso que nos aflorava �� bo-
ca, impressionados com a figura devastada que se desta-
cava na claridade do lampi��o.
��� �� ele, sim, �� o Daniel ��� concluiu o Oliveira.
E ele passou perto de n��s, sempre de cabe��a baixa,
sem reparar no nosso espanto, para contornar adiante o
pared��o do Convento do C a r m o , seguindo pela Rua da
P a z .
A n d a m o s atr��s, m a n t e n d o dist��ncia, como se f��sse-
mos acompanh��-lo, at�� que ele desapareceu na volta da
Travessa do Teatro, sempre de cabe��a baixa, gesticulan-
d o .
E o Benedito Barros, assim que nos detivemos �� al-
t u r a do pr��dio da Biblioteca P��blica:
��� Alguma coisa grave deve estar acontecendo na vi-
da do Daniel. Ontem, quase de madrugada, q u a n d o pas-
sei pela casa dele, as luzes ainda estavam acesas, com o
carro do Dr. Neto Guterres p a r a d o j u n t o �� cal��ada em
frente �� porta.
86
CAP��TULO III
No dia seguinte, pelo meio da tarde, descendo a p��
a Rua de S��o J o �� o , a caminho do Col��gio Cisne, para
u m a prova de latim, a imagem do Daniel cabisbaixo, de
m��os aflitas, persistia na minha lembran��a, de mistura
com os textos de Virgilio, Ovidio e Hor��cio que tivera de
repassar pela madrugada.
Est��vamos em setembro, q u a n d o S��o Luis nos exibe
os seus mais belos dias. Dias de amplo c��u sem nuvens e
vira����o cont��nua, pontilhado de papagaios de papel nas
horas suaves do entardecer. A luz vespertina mostra u m a
infinidade de matizes que nunca se repetem, refletindo-se
nos azulejos das fachadas e dos mirantes, enquanto a am-
plid��o associa tons r��seos e azuis, arqueada sobre os te-
lhados escuros, como a esmerar-se em sucessivos cart��es-
postais.
Terminada a prova, que fiz com relativa rapidez,
n��o deixei a sala de aula. De uma janela sobre o quintal,
descortinava-se o cair da tarde por cima do m a r , alcan��an-
do um trecho da barra, a P o n t a da Areia e a P o n t a do
Bonfim, com o recorte das palmeiras fechando o hori-
zonte. Em contraste com o brilho prateado da luz na cris-
ta das ondas, o c��u sangrava sobre o leque das palmeiras,
com o sol em chamas resvalando para a linha do poente.
Perguntei ao professor Cardoso se podia ficar ali, a
olhar o esplendor da tarde. E ele, afastando as m �� o s ,
n u m gesto afetuoso:
87
��� N �� o se esque��a de que tamb��m somos colegas,
professor. Fique �� vontade. Terminada a prova, n��o h��
mais o aluno.
H�� momentos na vida em que, supondo obedecer ��
nossa vontade, n a d a mais fazemos do que ceder a impul-
sou inexplic��veis que repentinamente nos orientam acima
de nossa vontade consciente. Foi o que se deu comigo ao
acercar-me da janela. Em vez de alongar a vista por cima
dos telhados, para admirar a luz que se desfazia sobre o
m a r , olhei para um dos aposentos da parte residencial do
col��gio, e dei com o Daniel, curvado, com as m��os no ros-
t o , sentado n u m a cadeira, de pernas afastadas, voltado
p a r a o espaldar de madeira em que apoiava os cotovelos.
Diante dele, com u m a das m��os no seu o m b r o e a outra
gesticulando, a figura gorda de D. Iai��.
Esqueci o poente, a luz sobre as ��guas, a cintila����o
dos leques das palmeiras, as velas dos pescadores recorta-
das contra a claridade viva, e concentrei minha aten����o
nas duas figuras, ap��s retrair o corpo para dentro da sa-
la, como a esquivar-me do sol que me doeria nos olhos.
Queria olhar sem ser visto. Da dist��ncia em que me acha-
va, debalde apurei o ouvido: dali n��o podia escutar o que
a mulher do Arimat��ia estava a dizer ao Daniel. Percebi
que lhe falava com energia, enquanto ele, sempre com as
m��os no rosto e curvado para a frente, se limitava a ouvi-
la.
Terminei por debru��ar-me na janela, com a cabe��a
para fora do caixilho, empurrado pela curiosidade. D.
Iai�� falava por tr��s do vidro, sem que viesse at�� mim o
som de sua voz. Mas houve um m o m e n t o em que tive a
percep����o mais viva do d r a m a que estava ocorrendo ���
q u a n d o Daniel, descobrindo o rosto, mostrou o semblan-
te devastado, com as l��grimas a lhe descerem para os can-
tos da boca. Apertou as t��mporas, de cabe��a curvada, e
t o d o ele estremeceu na convuls��o dos solu��os.
Sem me voltar, chamei pelo professor Alves C a r d o -
so:
88
��� Venha c��, professor.
Mas o Alves Cardoso j�� tinha ido embora, s�� eu fi-
cara na sala. Retra��-me para dentro, n��o querendo que o
Daniel me visse. E enquanto apanhava meu floril��gio la-
tino e o caderno de notas e estudos, conclu�� que todo o
desespero dele estaria ligado ao nascimento da filha. N��o
seria normal a menina? O parto teria comprometido a
Glorinha?
Sentindo-me tamb��m destro��ado, com uma profun-
da pena do Daniel, segui pelo corredor, na dire����o da va-
randa, sem saber o que pensar. Deveria falar-lhe? Ou fa-
laria ao professor Arimat��ia? Optei por falar ao Ari-
mat��ia.
L�� estava o mestre, �� cabeceira da mesa, fumando e
escrevendo. De perfil, reproduzia o E��a de Queiroz em
relevo, nas capas da edi����o da Livraria Chardron, de
Portugal. Talvez um pouco mais cheio de rosto. No mais,
repetia com exatid��o o romancista portugu��s, na testa,
no queixo, na curva do nariz, na boca, no cabelo ralo e li-
so, com uma risca do lado.
Escrevia em compridas tiras de papel alma��o, com
uma letra correntia que ia enchendo o espa��o entre as
pautas, enquanto a m��o esquerda segurava o cigarro ace-
so, entre o indicador e o m��dio. Fumava e escrevia, fu-
mava e escrevia, como se houvesse uma rela����o de movi-
mento entre o cigarro e a pena, na flu��ncia da escrita.
De p�� �� entrada da varanda, esperei alguns minutos,
com a esperan��a de que o mestre, dando por mim, me fi-
zesse sentar ao seu lado, para abrir-se comigo.
Mas n��o foi isso que aconteceu. O mestre n��o
olhou para mim, concentrado no seu trabalho, a despeito
da tosse repetida com que o adverti de minha presen��a.
Por fim, dei alguns passos na varanda, aproximando-me
da mesa, no momento em que o rel��gio da parede, por ci-
ma de uma estante envidra��ada, batia pelas cinco horas.
O professor Arimat��ia ainda n��o dera por mim.
89
Defronte da estante, fiquei a ler a lombada dos li-
vros, como interessado nas edi����es Garnier que ali se per-
filavam, encadernadas em percalina verde, com as obras
de Jos�� de Alencar.
E o mestre, nesse m o m e n t o , em tom agastado:
��� Est�� pretendendo interromper-me para algum as-
sunto urgente, professor? Se n��o tem esse prop��sito nem
�� urgente o seu assunto, venha falar comigo n out ra hora.
Preferi n��o responder. Na ponta dos p��s, voltei pelo
corredor, com os olhos na claridade da rua, L�� adiante,
fechei a cancela de ferro. Devagarinho, para que n��o ba-
tesse.
90
CAP��TULO IV
Vim a saber, ainda no mesmo dia, que j�� fazia u m a
semana que o Daniel, sempre t��o assiduo em sua classe,
n �� o aparecia no Liceu. O pr��prio diretor tomara a inicia-
tiva de substitui-lo, para n��o interromper o programa, j��
na fase das primeiras provas do segundo semestre. E pre-
venira os alunos:
��� O professor Daniel poder�� voltar de um momen-
to para o u t r o , mas n��o posso dizer q u a n d o .
Noutra tarde, no Largo do C a r m o , estava eu em
companhia do Ant��nio Oliveira, discutindo sobre o Me-
nino de engenho, de Jos�� Lins do Rego, que ambos
t��nhamos lido por aqueles dias, quando apareceu diante
de n��s, com ar de novidade, o Correia da Silva, que logo
exclamou, aborrecido:
��� J�� rodei este Largo do Carmo inteiro, �� procura
de voc��s. Afinal, no bar do Chico, encontrei u m a alma
caridosa que me informou onde voc��s estavam. Estou
com u m a novidade na ponta da l��ngua. Sobre o Daniel. O
caso �� grave.
Aquele recanto da pra��a, com tr��s bancos de ferro
em redor do chafariz, ouvindo o ru��do cantante do repu-
xo, era o nosso melhor ref��gio, nas horas altas da tarde,
sempre que o dinheiro escasseava para t o m a r m o s um re-
fresco ou um caf�� no Excelsior.
Interpus o dedo no meio do romance, para retomar
a discuss��o mais adiante, e tanto eu quanto o Oliveira er-
guemos para o Correia da Silva nosso olhar curioso.
91
E ele:
��� A Glorinha, logo depois do p a r t o , teve duas he-
moptises s��rias. A primeira, tarde da noite. O Dr. Guter-
res, chamado ��s pressas, veio acudi-la de chinelos. A ou-
tra foi semana passada, �� tarde. Ambas violentas, como
se o sangue n��o fosse passar. O Dr. Guterres chamou o
Dr. M u r t a para u m a confer��ncia m��dica, e os dois acha-
ram que o caso dela �� muito grave. Foram francos com o
Daniel, e ele, coitado, n��o sabe agora o que fa��a. Tem de
atender �� filha, que est�� no ber��o, e �� mulher, que est�� de
cama, em repouso absoluto, com ordem de n��o se levan-
tar.
Eu sabia o que aquilo significava. Na minha familia,
tinha perdido um tio e u m a tia, vitimados pelo mesmo
mal. Depois, u m a irm��, precisamente a mais velha e a
mais brilhante. E fazia um ano que o Dr. M u r t a me obri-
gara a sair da cidade largando aula, largando amigos, pa-
ra ficar de repouso, no s��tio de meu pai, tr��s meses a fio,
�� espera do milagre de uma rea����o org��nica. E esta, feliz-
m e n t e , a i n d a veio a t e m p o , e s p a �� a n d o a f e b r e ,
diminuindo-me os acessos de tosse, aumentando-me o
peso, sem que eu tivesse de perder o ano no curso do Li-
ceu.
Por isso mesmo fui otimista:
��� A Glorinha �� mo��a, vai reagir depressa. C o m o
eu reagi.
E o Correia, irredut��vel:
��� N �� o �� essa a opini��o dos m��dicos. Tanto o M u r t a
quanto o Guterres t��m progn��sticos sombrios. Acham
que ela deve tentar a cura n u m sanat��rio, talvez fora do
Brasil.
E eu, lembrado de que a hip��tese da viagem tinha si-
do alvitrada para o caso de minha irm��, ainda no come��o
da doen��a:
��� E o Daniel tem recursos para isso? Acho que n �� o .
A viagem para a Su����a custa os olhos da cara. E o trata-
mento t a m b �� m . Em clima de m o n t a n h a , com rem��dios
92
car��ssimos. A Glorinha vai ter de ficar por aqui, como fi-
caram meus tios, como ficou minha irm��. Como eu
pr��prio fiquei. Coitada da Glorinha.
O Oliveira, que at�� ent��o se mantivera calado, a con-
trair os maxilares, suspirou tamb��m, com um semblante
desolado:
��� Coitado do Daniel. �� ele que vai ter de se virar
para dar solu����o ao tratamento da mulher. N��o h�� di-
nheiro que chegue. Vai ter a sensa����o do jogador caipo-
ra, que joga e perde, joga e perde, perseguido pela m��
sorte.
N��s que, um ano antes, o t��nhamos invejado, ao v��-
lo de bra��o com a Glorinha, descendo a Rua Grande,
agora nos compadec��amos dos dois, sem saber ao certo
qual deles seria o mais desnorteado, com a morte e o in-
fort��nio a lhes rondarem a casa.
93
CAP��TULO V
Pela altura da Rua do Sol, na esquina com a Rua de
S��o Jo��o, j�� no trecho em que a ladeira nos acelera o pas-
so na dire����o do Largo do Carmo, a chuva recrudesceu.
A boa chuva maranhense, que cai verticalmente sobre as
cal��adas e os paralelep��pedos, forte, escachoante, for-
mando enxurradas nas sarjetas, impedindo o recurso ao
guarda-chuva, uma chuva sem ru��do de vento ��� o vento
esfuziante que inclina as cordas-de-��gua para fustigar as
vidra��as, fazendo estremecer as r��tulas nos caixilhos de
madeira.
Meti-me num portal, adiante do pr��dio da Ma��ona-
ria, e ali esperei que amainasse, restituindo �� cidade o c��u
aberto e lavado e o canto estridente dos bem-te-vis.
Come��ara a chover pela manh��, voltara a chover
por volta do meio-dia, e agora, j�� com a luz do entarde-
cer querendo quebrar, volvia a desabar novo toro.
Aproveitando o intervalo das estiadas moment��-
neas, segui meu caminho at�� quase a altura do Largo do
Carmo, quando dei com o Ant��nio Oliveira, �� minha di-
reita, no Sebo do Polari. Logo ali entrei, acossado por
nova pancada de chuva.
Oliveira, que sempre andava no topo da escada, vas-
culhando raridades nas prateleiras mais altas, desta vez
estava no ch��o, com o joelho direito em terra, o esquerdo
levantado, o dorso inclinado para os livros que jaziam
enfileirados nos ladrilhos do piso, com a lombada para
cima.
94
E o Polari, chamando-me:
��� E n t r e , entre. H o j e , temos coisas m u i t �� s s i m o
b o a s . Algumas que nunca apareceram aqui na loja.
Este Polari era um senhor magro e narigudo, bem-
servido de pernas, ombros altos, sempre em mangas de
camisa, menos parecido com seus retratos do que com
suas caricaturas, u m a das quais pendia de u m a das pare-
des da loja, convenientemente emoldurada. O exagero do
tra��o (obra do Tel��sforo Rego, que depois se fez excelen-
te fot��grafo) condizia perfeitamente com a figura f��sica
do livreiro. T a n t o no desenho quanto na vida real, podia
ele ser visto, de m a n h �� �� noite, com um l��pis atr��s da ore-
lha direita, em meio �� sua babel disciplinada de papel im-
presso.
De p��, por entre as fileiras de livros, pude reconhe-
cer, a um relance do olhar, que tudo ali era rigorosamen-
te escolhido, quer no plano das letras, quer no campo das
ci��ncias sociais, quer no m u n d o fechado das ci��ncias pu-
ras. Uns dez mil volumes de obras preciosas, muitas das
quais eu apenas conhecia de n o m e .
E o Oliveira, mais atarantado do que menino em lo-
ja de brinquedo, nas aproxima����es do Natal:
��� Foi a melhor biblioteca particular que j�� apare-
ceu aqui. T u d o �� ��timo. E muito bem conservado.
C o n q u a n t o soubesse que o Polari, por n o r m a de
of��cio, sempre se negava a dizer a proced��ncia dos livros
que lhe iam ter �� loja, aventurei u m a suspeita:
��� �� a biblioteca do Ant��nio Bona?
Polari n��o hesitou na resposta:
��� N �� o . Nem tamb��m do Rubem Almeida ou de An-
t��nio Lopes. �� do Daniel. Do professor Daniel.
Oliveira endireitou a cabe��a, eu me voltei para o P o -
lari, com u m a express��o de curiosidade mais viva:
��� Est�� aqui t o d a a biblioteca dele?
��� T o d a . S�� n��o vendeu os livros de sua disciplina
no Liceu. O mais est�� aqui. T u d o de primeira ordem.
E chamando-nos mais para perto, com um aceno:
95
��� A mulher dele foi desenganada pelo M u r t a e pelo
Neto Guterres. P u l m �� o . E bem adiantada a mol��stia. Os
dois pulm��es. O M u r t a admitiu que, se ela for para o Sul,
talvez consiga salvar-se em clima de m o n t a n h a . Lembrou
Friburgo. E �� para Friburgo que ela vai. P a r a ir, precisa
de dinheiro. O Daniel n��o teve d��vidas: chamou o Jac��
e vendeu-lhe as j��ias, inclusive a alian��a de casamento;
chamou o Garibaldi e vendeu-lhe os velhos m��veis de que
tanto se orgulhavam, alguns do tempo da Col��nia. A
mim vendeu os livros. Fiz um pre��o alto. O maior que
podia. Assim mesmo foi b a r a t o . Sei que o Daniel fez
empr��stimos em b a n c o , que hipotecou a casa. Est�� deci-
dido a salvar a mulher. Ela, coitada, recusava-se a deixar
o marido e a filha. Mas ontem, depois da intercess��o dos
dois m��dicos, concordou em se tratar. Vai para o Rio, na
semana que vem. De l�� segue para Friburgo. Neto Guter-
res tem as suas d��vidas q u a n t o �� cura. O Murta, n �� o . O
Daniel me assegurou que, se fosse preciso mand��-la para
a Su����a, ele m a n d a v a , nem que tivesse de vender a si mes-
m o . Depois de uns dias de desespero, em que pensou
mesmo em matar-se, acabou reagindo. N a d a de suic��dio.
Vai salvar a mulher. Obstinadamente. Porfiadamente.
Cada livro daqueles era bem mais que um livro ���
era um conjunto de momentos memor��veis na vida do
Daniel. Desde o instante de sua aquisi����o. Depois a esco-
lha do lugar na biblioteca. A primeira leitura. O cuidado
da encaderna����o. P a r a cada volume. E com u m a sensibi-
lidade espec��fica p a r a toc��-los, tir��-los da prateleira,
manuse��-los, at�� restitu��-los ao lugar na estante, perfila-
dos como sentinelas. Agora era a dispers��o de todos eles,
como na precipita����o de u m a di��spora, ao sabor da cu-
riosidade ou do interesse dos compradores. Dentro de um
a n o , dois, quase nada restaria do conjunto harmonioso.
Talvez um volume solto aqui, outro mais adiante, en-
q u a n t o , na casa do Daniel, as estantes vazias teriam um
ar atarantado de a b a n d o n o e rep��dio, como se n �� o sou-
bessem o que fazer de si mesmas.
96
Oliveira voltou a erguer a cabe��a, e sussurrou-me:
��� Sabe o que �� isto? A primeira edi����o do S��, de
Ant��nio Nobre. S�� foram tirados duzentos exemplares.
Este �� o n��mero 15.
Segurei o livro, tateei-o, abri-o ao acaso, tornei a
fech��-lo, e fiquei a imaginar q u �� o forte era a paix��o do
Daniel pela Glorinha, a p o n t o de desprender-se de todos
aqueles companheiros.
E o Oliveira, recebendo o livro:
��� Estamos assistindo ao romance do Daniel. Ro-
mance em estado p u r o . Sangrento como a pr��pria vida.
Qual ser�� o seu desfecho? Vencer�� a Glorinha, voltando
boa a S��o Lu��s? Ou vencer�� a doen��a, recolhendo ao si-
l��ncio o corpo da mulher do Daniel? De u m a forma ou de
outra, este �� um dos lances capitais do d r a m a . D r a m a es-
crito por Deus. Diante dos nossos olhos.
E vindo mais p a r a perto, com a m �� o no meu o m b r o :
��� E por que n��o o aproveitas?
97
QUARTA PARTE
Somos de tal natureza que nada nos leva
t��o longe e t��o alto quanto os nossos er-
ros.
M A E T E R L I N C K
CAP��TULO I
F u i eu que apressei o passo, ao fim do Largo do
Quartel, quase a entrar na Rua da Paz, e o segurei pelo
bra��o:
��� Professor.
O Daniel p a r o u , olhou-me de frente, com u m a ex-
press��o de alegria no rosto pensativo:
��� Ol��! ��� exclamou.
E foi ele que enfiou o seu bra��o no meu, no come��o
da Rua da Paz. Andava pelos trinta e poucos anos, e de
repente parecia ter mais, muito mais, com a face sulcada,
o cabelo mais ralo, o dorso levemente curvo, os om-
bros levantados. Emagrecera sensivelmente. Seu rosto
chupado acentuava os p��mulos altos, enquanto os olhos
castanhos, como que escondidos ao fundo das ��rbitas,
pareciam temer a luz intensa que cintilava no azulejo das
fachadas.
E eu, para entreter a conversa:
��� Noticias da Glorinha.
��� Saiu daqui anteontem. N��o deixei que ela se des-
pedisse de ningu��m, para evitar a emo����o da partida.
Uns amigos diriam aos outros, muitos iriam ao Cais do
P o r t o para v��-la embarcar, e isso n��o era bom para ela.
Segui fielmente a orienta����o do Dr. Guterres. Ningu��m
da fam��lia dela foi. P a r a n��o dar na vista. J�� o navio ia
recolher a escada do portal�� quando a lancha da Capita-
nia dos P o r t o s , com a Glorinha, o Dr. Guterres e eu,
al��m de dois tripulantes, encostou ao p�� da escada. Subi-
mos os tr��s, ainda com a mar�� mansa, sem atropelo para
101
saltar da lancha no degrau. J�� eu tinha estado com o co-
mandante e o imediato, ali mesmo a b o r d o , q u a n d o fui
levar a bagagem da Glorinha. Eu pr��prio arrumei-lhe o
camarote, e fiz-lhe esta surpresa, de que ela deve ter gos-
t a d o : na mesinha-de-cabeceira, deixei o retrato de nossa
filha, ainda no colo da av��, e uma imagem de S��o Jos�� de
Ribamar. O Dr. Guterres entendeu-se com o m��dico, j��
seu conhecido. O camarote n��o podia ser melhor. Perto
do Servi��o M��dico, para qualquer emerg��ncia.
E consultando o mostrador do rel��gio de pulso:
��� A esta hora, j�� o navio saiu de Fortaleza.
E enchendo devagar o peito, sem erguer de t o d o a
cabe��a:
��� Estes tr��s meses foram os mais terr��veis de t o d a a
minha vida. N �� o os desejo para ningu��m. Ningu��m. Dias
antes do parto da Glorinha o Dr. Guterres me alertou pa-
ra a eventualidade de um contratempo. A Glorinha n��o
lhe parecia bem. Queixava-se de muito cansa��o, quase
n��o se alimentava. Seu estado se agravou com duas gri-
pes seguidas. U m a noite, depois de um breve acesso de
tosse, sobreveio-lhe a primeira hemoptise. Fiquei t o n t o .
Eu tinha sido, at�� conhecer Glorinha, um homem de pe-
quenos amores passageiros. Estava certo de que, por isso
mesmo, nunca me casaria. Em parte, sem querer, sou res-
pons��vel pela loucura da P a n d o r a , que fez o que fez
q u a n d o viu que n��o se casaria comigo. Que �� que eu ia
fazer, se a Glorinha me aparecera na sala de aula, pouco
depois do meu concurso? Fiquei desnorteado. Tinha de
me casar com ela. Tinha. E compreendo perfeitamente o
gesto do Cl��udio Serra. Que se matou por ela. Eu sei, e
compreendo. Sem ela, a vida n��o me servia. �� o que es-
tou lhe dizendo. Casei-me. A Glorinha n��o podia ser
mais perfeita, como amiga, como companheira, como
mulher.
P a r o u ao meio da cal��ada, ainda a segurar-me o
bra��o:
��� Tomas um caf�� comigo?
102
S�� ent��o reparei que est��vamos na Rua de Santana,
adiante da esquina com a Rua da Mangueira, �� p o r t a da
meia-morada de janelas altas em que morava o Daniel.
E ele, abrindo o port��o de ferro para que eu passas-
se:
��� Entra. N��o repares a desordem.
Na sala ampla, as estantes vazias, subindo at�� quase
o forro, tinham um ar at��nito, com as prateleiras escan-
caradas, apenas exibindo u m a dezena de volumes c�� em-
baixo, na altura da sali��ncia dos bibel��s. Os dois consolos
t a m b �� m vazios. Na parede, a marca dos quadros recente-
mente retirados, s�� restando a pequena marinha pintada
em Roma pelo irm��o do Daniel, j�� falecido.
Fiquei uns momentos s��, de costas para a escrivani-
nha atulhada de pap��is, enquanto o Daniel desaparecia,
tragado por um v��o de porta sobre a alcova. Dali vinha
um cheiro forte de rem��dio e de alfazema, de mistura
com ��gua-de-col��nia, que a vira����o da rua, entrando pe-
lo alto das janelas e pelas frestas das r��tulas, n��o conse-
guia desfazer ou atenuar.
E o Daniel, da�� a pouco, com uma x��cara de caf�� em
cada m �� o :
��� N �� o repare a falta da bandeja. At�� a bandeja teve
de ser vendida. Foram-se os an��is, ficaram os dedos. An-
tes assim.
E antes contente que pesaroso, abrangendo a sala
vazia no gesto circular do bra��o livre:
��� T u d o isso pela sa��de de Glorinha. E daria mais, e
darei a mim mesmo, se for preciso. A vida da Glorinha,
p a r a mim, �� t u d o . Um ano ou dois de sacrif��cio di��rio,
com a aus��ncia dela, e irei de joelhos �� Igreja de S��o
Jos��, para agradecer a sua sa��de e o seu regresso. A nada
mais aspiro.
E enquanto ia sorvendo o caf��, eu quis dizer ao Da-
niel que, tendo comprado alguns de seus livros, no Sebo
do Polari, me considerava apenas como d o n o transit��rio
desses volumes, que lhe seriam restitu��dos por ocasi��o da
103
volta da Glorinha. Entretanto, nada lhe disse. Era me-
lhor fazer-lhe a surpresa.
E o Daniel, com o mesmo ar convicto:
��� Glorinha �� mo��a, vai reagir muito bem ao clima
de m o n t a n h a , seguindo �� risca a disciplina do sanat��rio.
Hoje, estou seguro, segur��ssimo, de que ela ficar�� com-
pletamente b o a . No come��o me desorientei. Pensei mes-
mo em me matar, no auge da crise. Mas me lembrei da
Maria Em��lia, a tempo de sustar meu gesto de desespero.
Tenho de cri��-la e educ��-la. Deus me entregara essa nova
miss��o. Atordoei-me ainda mais. C o m o viver para a fi-
lha, sem a Glorinha ao meu lado? Em meio de minha afli-
����o, o Dr. Guterres teve de me sacudir pelos o m b r o s ,
chegando a gritar comigo. Conversei depois com o Dr.
M u r t a . Com o Dr. Matos Carvalho. Com o Dr. Clarindo
Santiago. Com o Dr. An��bal. E todos me disseram a mes-
ma coisa: que a Glorinha se salvaria. T o d o s . O Dr. Mur-
ta foi categ��rico: rasgaria o seu diploma se a Glorinha
n �� o voltasse curada. Sabe voc�� como sa�� do consult��rio
dele, na tarde em que l�� voltei, para lhe dar a opini��o dos
outros m��dicos? Rindo �� toa. Sim senhor: rindo. Rindo
para as ��rvores, as casas, as pessoas desconhecidas. Co-
mo o pobre sem dinheiro para dar de comer aos filhos, e
que, de repente, acerta na milhar do jogo do bicho. Foi
nesse dia que decidi m a n d a r Glorinha para Friburgo.
Vendendo t u d o . Desfazendo-me de t u d o .
E exibindo a m �� o comprida:
��� Nem a alian��a ficou. Foi tudo para a m��o do
J a c �� . Lembra-se do meu rel��gio de algibeira, com u m a li-
b r a esterlina na corrente de ouro? Vendi-o tamb��m. Co-
mo vendi o alfinete de gravata. T u d o . At�� aquela escriva-
ninha. A m a n h �� o novo d o n o vem busc��-la. Nunca pensei
que eu pudesse me desprender das coisas que me cerca-
vam. Algumas vinham de meus av��s. Dos pais dos meus
av��s. C o m o a mesa e as cadeiras da sala de j a n t a r . Hoje,
s�� tenho um pensamento: nada faltar�� �� Glorinha. N a d a .
104
Posso lhe garantir. E ela vai passar de novo por aquela
porta, curada. De bra��o comigo.
Q u a n d o lhe devolvi a xicara, olhou-me de frente:
��� Sei que ias p a r a a Biblioteca P��blica. Vai. Agora,
que n��o tenho mais meus livros, seremos companheiros,
na mesa grande de leitura. Hoje n �� o . Tenho de ir ver a
Maria Emilia na casa da av��. Nos outros dias.
E na porta, q u a n d o lhe apertei a m �� o :
��� A Glorinha ficou de me escrever todas as sema-
nas u m a longa carta. Talvez um di��rio. E como sei que te
interessas por ela, deixarei que as leias. Tenho confian��a
em ti. Absoluta.
105
CAP��TULO II
C �� u e m a r . C��u e m a r . Longe, �� sua direita, a linha
de litoral, com a nesga das praias, a ondula����o dos mor-
ros e das dunas, o verde espesso da vegeta����o cont��nua, e
aquele bater cavo e constante das ondas no costado do
navio.
A longa viagem por mar, sem sair do camarote, ape-
nas olhando a costa pela janela redonda da vigia, deu ��
Glorinha, durante dias e dias sucessivos, a sensa����o
opressiva de que se achava terrivelmente s��. A imagem de
S��o Jos��, que a acompanhava, na mesinha-de-cabeceira
j u n t o ao beliche, era seu ��nico a m p a r o . Por vezes, nas
horas mais aflitas, q u a n d o lhe parecia que n��o alcan��aria
com vida o fim do caminho, ela trazia a imagem para
perto de si, e ficava torcendo as contas do ter��o, alonga-
da na cama dura e estreita, entregue �� prote����o de S��o
Jos��.
O m��dico de b o r d o vinha v��-la todas as manh��s e to-
das as tardes, ��s mesmas horas, a alisar o bigode branco,
cheirando a hospital: tomava-lhe a temperatura, conver-
sava um pouco sobre a viagem, e repetia-lhe a recomen-
d a �� �� o :
��� Repouso. Quietinha no seu canto. Se precisar de
mim, mesmo de noite, n��o se constranja: aperte a cam-
painha, a�� ao seu lado, e eu estarei aqui, logo depois.
Felizmente, at�� aquele m o m e n t o , n��o tivera necessi-
dade de chamar o m��dico. Mesmo q u a n d o , u m a tarde, ��
altura de Fortaleza, tivera a sensa����o de que as hemopti-
106
ses iam voltar. Conseguira dominar-se, a m p a r a d a por
S��o Jos��, e o certo �� que, ao umedecer a p o n t a do len��ol
na saliva, n �� o encontrara vestigio de sangue.
E n tr et an to , prisioneira do camarote, u m a ou o u t r a
vez acontecia-lhe rebelar-se, querendo sair ao conv��s,
com a sensa����o de que o ar ali lhe faltava, a despeito da
vigia escancarada. Mas vinha a camareira, para ajud��-la
a banhar-se, e vinha a seguir o camareiro, trazendo-lhe as
refei����es, e a solid��o se atenuava, quebrada pela rotina
de b o r d o . Nas ocasi��es mais opressivas, sentava-se no be-
liche, olhava pela vigia a linha do litoral, que por vezes
parecia a mesma, repetindo-se ao longo da viagem. Tor-
nava a deitar-se, e voltava ao bloco de papel em que es-
crevia ao Daniel, quase sufocada pela saudade do marido
e da filha. Voltaria a S��o Luis, para criar Maria Em��lia,
ou ficaria por l��, no cemit��rio do sanat��rio?
Reunia todas as suas for��as para dizer, a m e d r o n t a d a
e convicta, pedindo sempre a ajuda de S��o Jos��:
��� Eu volto. Hei de voltar para criar minha filha.
A enfermeira de b o r d o vinha quase sempre pelo fim
da tarde. Dava-lhe a inje����o de todos os dias, p u n h a na
mesinha-de-cabeceira o comprimido para a hora de dor-
mir, e ia embora, depois de lhe ter olhado a temperatura
no term��metro, a repetir o mesmo fecho tranq��ilizador:
��� Assim, vamos bem.
Era gorda, espa��osa, escura, metida num vestido
branco folgado, que ainda mais a engordava. E sempre a
animava:
��� N �� o dou um ano para a senhora estar de volta.
Nessa sua doen��a, o principal rem��dio �� a paci��ncia. N �� o
adianta ficar nervosa e perder a calma. Desligue-se do
m u n d o .
Ao mesmo t e m p o , dava-lhe not��cias da vida de bor-
d o . Os bailes no sal��o de dan��as. O concerto da pianista
que embarcara em Fortaleza. A fam��lia animad��ssima
que vinha do P a r �� e era agora como se fosse dona do na-
vio.
107
Mas nada disso alterava o pensamento obstinado de
Glorinha: o de encurtar o t e m p o , para voltar mais de-
pressa a S��o Lu��s. Havia de voltar. E por que n��o?
��� Maria Em��lia precisa de mim. E Daniel t a m b �� m .
Em cada p o r t o , o marido vinha ao seu encontro, nos
telegramas que lhe passava para b o r d o . Sempre o mesmo
amigo. Sempre o mesmo companheiro confiante. E a ver-
dade �� que essas mensagens lhe chegavam na h o r a
pr��pria ��� q u a n d o a consci��ncia da dist��ncia crescente
come��ava a desorient��-la.
��� T u d o vai dar certo ��� dizia, repetindo os telegra-
m a s .
A n��o ser nos dois primeiros dias de viagem, �� altura
do litoral cearense, q u a n d o se a t o r d o a r a com os enj��os,
continuava passando razoavelmente bem, apenas com
uma leve dor de cabe��a, que por vezes lhe tirava o gosto
p a r a alimentar-se. Ela pr��pria reagia. C o n q u a n t o a sali-
va lhe crescesse na boca, conseguia mastigar o peda��o de
carne, misturada �� colher de arroz, e acabava por chegar
�� metade do prato que lhe serviam.
Jamais esqueceria a dedica����o do Dr. Neto Guter-
res, ao vir traz��-la a b o r d o , em companhia do Daniel, pa-
ra recomend��-la de m o d o especial ao m��dico de b o r d o .
Ao despedir-se dela, ap��s v��-la acomodada no ca-
m a r o t e , tinha-lhe repetido:
��� V�� sem receio. No Rio, o Dr. Augusto Pires, meu
colega de t u r m a e meu grande amigo, estar�� no Cais do
P o r t o �� sua espera. Da�� em diante ele t o m a r �� conta de vo-
c��. C o m o um amigo. C o m o um pai.
Durante o dia, consultava o rel��gio, atenta ��s horas
da mamadeira da Maria Em��lia. �� noite, alongava por
vezes o bra��o, como a querer tatear o ber��o da filha. Ja-
mais esqueceria a tarde em que o Dr. Guterres, c h a m a d o
��s pressas durante a sua ��ltima hemoptise, lhe tinha dito,
com os olhos molhados, que iria separ��-la da Maria
Em��lia. E o Daniel, tamb��m com os olhos ��midos:
108
��� �� preciso, Glorinha.
Todas as vezes que se voltava para si mesma, no es-
for��o v��o para entender a crueldade de seu sofrimento,
volvia �� mesma indaga����o desesperada, que reacendia a
sua revolta:
��� P o r que isto comigo, meu Deus?
E era debalde que buscava no seu passado u m a falta,
um erro, um pecado grave, que justificasse a puni����o
brutal, longe de sua terra, de sua filha, de seu marido.
Dia e noite, aquele bater cavo das ondas no costado
do navio, n��o raro t�� o altas que banhavam o vidro da vi-
gia, acima do beliche. Felizmente a viagem fluia sem tro-
pe��os, com a linha do litoral a c o m p a n h a n d o a passagem
do Almirante Jaceguay. De repente, entretanto, em meio
�� m a d r u g a d a , j�� perto do Rio de Janeiro, na altura do
C a b o Frio, os ventos se soltaram por cima do conv��s, en-
q u a n t o o t e m p o r a l d e s a b a v a , s i b i l a n d o , s i l v a n d o ,
amea��ando, por entre o clar��o dos rel��mpagos e o es-
t r o n d o dos trov��es.
Assustada, Glorinha acendeu as luzes do camarote,
sentou-se no beliche, envolta no cobertor de l�� contra o
frio que se esgueirava por baixo da porta e pela frincha
da vigia. Pareceu-lhe, nesse instante, com o navio a subir
e a descer, fustigado pelas cordas da chuva grossa, que se
abria um cavado �� altura de seu est��mago, ao mesmo
tempo em que, em redor, tudo oscilava e escorregava, co-
me��ando pela imagem de S��o Jos��. A pesada mala de
couro tauxiada, que o camaroteiro acomodara por baixo
do beliche, tinha resvalado para o v��o entre as camas, e
subia e descia, sempre escorregando, �� medida que o na-
vio empinava a proa, para deix��-la cair logo depois na
goela das vagas repetidas.
Em breve, no espa��o ex��guo, havia ali uma confus��o
instant��nea de objetos fora do lugar, jogados para a
frente e para tr��s, p a r a um lado e para o o u t r o , desde os
chinelos ��s pe��as de r o u p a ��ntima, de mistura com fras-
cos e vidros de rem��dio, o retratinho da Maria Em��lia na
109
moldurinha de prata, a bolsa de m �� o , um volume solto
dos Sonhos de ouro, de Jos�� de Alencar, ao mesmo tem-
po em que Glorinha tratava de agarrar-se ao beliche, sen-
tindo que seria atirada para a porta ou para o banheiro,
se n��o se segurasse com for��a nas traves de ferro.
Pensou em deixar o camarote, correr para o conv��s
superior, mas a certeza de que seu corpo fr��gil, esva��do
pela doen��a, n��o teria condi����es de suportar a noite gela-
da e as tribula����es do temporal, f��-la manter-se ali, com
um ter��o na m �� o , vendo a luz empalidecer e avivar-se,
sempre agarrada ao beliche. C o m esfor��o, quase a bater
com a cabe��a na parede de ferro, conseguira trazer para
si a imagem de S��o Jos��, que apertava agora contra o pei-
t o , repetindo atropeladamente as ora����es.
Por fim, o navio se foi aquietando, enquanto o ven-
to e a chuva amainavam. E logo ali apareceu o m��dico de
b o r d o , despenteado, enrolado n u m a capa de chuva, em
chinelos:
��� N �� o sentiu nada? Passou bem? N �� o quer que eu
lhe d�� um calmante? O pior j�� passou. Agora, o tempo
melhora, at�� o Rio.
E j�� na m a n h �� seguinte, com o sol novo a entrar pela
vigia, Glorinha sentiu que o Almirante Jaceguay dimi-
nu��a a marcha, como se fosse parar. Tratou de vestir-se
depressa; depois, de joelhos no beliche, olhou para fora,
e foi vendo os primeiros arranha-c��us, o bondinho da Ur-
ca, o P �� o de A����car, o Cristo do Corcovado.
110
CAP��TULO III
A m a n h �� cinzenta, com u m a garoa transparente
cobrindo as casas, esbatendo as ��rvores, escondendo o
recorte das m o n t a n h a s , parecia desfazer-se na chuvinha
mi��da que apressava o passo dos transeuntes, pontilhava
de guarda-chuvas a orla do cais e reduzia a claridade do
sol a u m a luz fosca e leitosa, como se as sombras da noite
fossem voltar.
Depois, tudo desapareceu. E Glorinha, ainda ajoe-
lhada no beliche, s�� viu os cascos de outros navios, um
j u n t o ao o u t r o , sucessivamente, a c o m p a n h a n d o a orla do
p o r t o , enquanto o Almirante Jaceguay ia deslizando sem
ru��do, com o rebojo das ondas mansas a acompanh��-lo,
como a lhe mostrar o armaz��m onde iria atracar.
P o n d o os p��s p a r a fora do beliche, Glorinha co-
me��ou a preparar-se para descer. C o m o seria o Dr. Pires,
que viria busc��-la a bordo? J�� estaria ele �� sua espera,
vendo o navio chegar?
��� C o m certeza ��� reconheceu, apressando-se.
Felizmente, ao fim da m a d r u g a d a , tinha posto no
outro beliche, ao alcance da m �� o , o vestido e o chap��u
com que ia desembarcar, e mais as meias, a an��gua, a
combina����o, o suti��, a calcinha de seda com seu m o n o -
g r a m a .
E n q u a n t o se cal��ava, ouviu a orquestra de bordo to-
cando a " C i d a d e m a r a v i l h o s a " , por entre o alarido dos
passageiros, no conv��s superior. Defronte do espelho, j��
de chap��u, retocou com a pluma o ruge desmaiado com
111
que atenuara a sua palidez e as suas olheiras, sentindo
que seu cora����o se acelerava. N �� o quis p��r S��o Jos�� e o
retrato da Maria Em��lia na mala de viagem, preferindo
traz��-los consigo, na sua bolsa de m �� o .
Nesse m o m e n t o , o navio estremecia, ajustando-se ��
muralha do cais, e logo se aquietou, a m a r r a d o aos argo-
l��es de ferro pelos cabos da proa e da popa.
E Glorinha ainda olhava �� sua volta, p a r a ver se na-
da havia esquecido, q u a n d o bateram �� p o r t a do camaro-
t e . Ao descerr��-la, deu com um senhor de branco, prote-
gido pelo colete contra o frio ��mido da m a n h �� , e que lhe
sorria, com u m a rosa na m �� o :
��� D. Glorinha? Sou o Dr. Pires.
Ela tirou a luva da m �� o direita, quase a atrapalhar-
se com o b o t �� o que a fechava �� altura do p u n h o , e conse-
guiu dizer ao m��dico, com o rosto levemente afogueado,
no m o m e n t o em que lhe estendeu o bra��o:
��� O senhor vai me perdoar o trabalho que estou lhe
d a n d o desde agora. N �� o sei como lhe agradecer.
E o Dr. Pires, mais envolvente e afetuoso, ap��s abrir
o sorriso acolhedor, que lhe ampliava o bigode branco:
��� N �� o sabe, mas j�� vai saber. Vai ser u m a doente
d��cil, cumprindo todas as minhas prescri����es, p a r a po-
der voltar, o mais depressa poss��vel, �� companhia de seu
marido e de sua filha.
E ao segurar-lhe a m �� o , reteve-a por um m o m e n t o :
��� Tem tido essa febrinha? �� assim mesmo. Hoje,
ela vai subir um pouco mais, com as emo����es da chega-
d a . Depois, voltar�� a normalizar-se, at�� desaparecer de
todo esta temperatura teimosa. O importante, agora, ��
ter confian��a no t r a t a m e n t o . E no m��dico.
Glorinha respondeu com rapidez:
��� Eu t e n h o .
Foi s�� no carro que ele lhe adiantou:
��� N��o vou lev��-la para o hotel. Vou lev��-la para a
minha cl��nica, em Botafogo. Tenho l�� um apartamento-
zinho de emerg��ncia, p a r a os casos como o seu. N �� o se
112
preocupe. Temos de fazer aqui os seus exames. S�� depois
de completado o diagn��stico �� que ir�� p a r a Friburgo. E
ir�� daqui a c o m p a n h a d a .
E para mudar de conversa, indagou-lhe de repente:
��� Agora, diga-me u m a coisa, para meu governo: to-
das as maranhenses s��o bonitas como a senhora?
Glorinha baixou as p��lpebras, com as m��os sobre o
fecho de metal da bolsa, encabulada:
��� Eu n��o sou bonita, doutor. Mas minhas conterr��-
neas s��o. E muito. Viu a miss M a r a n h �� o , no concurso de
beleza? Tire as outras por aquela. Eu �� que fa��o exce����o.
Felizmente a chuvinha havia passado. Havia mesmo
u m a nesga de azul por cima do P �� o de A����car, no mo-
m e n t o em que o carro seguiu pela Praia do Flamengo.
Mas ainda soprava o vento �� m i d o , que sacudia as ��rvo-
res, entrava pelas frinchas da vidra��a fechada, crispava
no asfalto da rua as sucessivas po��as de ��gua.
E Glorinha, suspendendo para a nuca a gola do
m a n t o , querendo proteger-se do frio que a arrepiava:
��� Tenho de ficar b o a depressa, Dr. Pires. Minha fi-
lha e meu marido precisam muito de mim.
E o Dr. Pires, p o n d o a sua m �� o de veias encordoa-
das sobre a m �� o de Glorinha:
��� O mais dif��cil era a sua vinda at�� aqui. Agora,
deixe o seu caso comigo. Vou examin��-la segunda-feira,
com um de meus assistentes, para orientar seu tratamen-
t o . T u d o vai dar certo. Agora, trate de olhar a vida �� sua
volta. J�� conhecia o Rio? Olhe t u d o por alto. Depois de
curada, h�� de ver t u d o isto com outros olhos. Na minha
idade, o louvor �� apenas o louvor ��� n��o �� mais galan-
teio. N �� o se importa se eu disser que os seus olhos s��o lin-
dos? Fique sabendo que s��o. Uns olhos ��rabes, bem
abertos, e com muita luz, como eu s�� vi no Oriente. Pa-
rab��ns.
E repetiu-lhe, q u a n d o a deixou no apartamentozi-
n h o da cl��nica, depois de apertar-lhe a m �� o j u n t o ao pei-
t o :
113
��� Tudo vai dar certo.
��� Vai ��� concordou Glorinha, com esfor��o, sentin-
do os olhos ��midos e a garganta contra��da.
114
CAP��TULO IV
E m b o r a a m p l o , com u m a janela aberta sobre duas
velhas ��rvores e um peda��o de m u r o , o quarto lhe lem-
brou o camarote do navio, com a sua cama de metal, a
sua mesa-de-cabeceira, o seu arm��rio tamb��m de metal, a
porta que fechava o banheirinho muito limpo, e t u d o al-
v o , de u m a brancura excessiva, somente quebrada pelo
quadro que pendia da parede, �� direita da cama, com
dois meninos rosados, �� b o r d a de um tanque, brincando
com um barquinho de papel.
A enfermeira, que viera traz��-la at�� ali, tinha-lhe
sussurrado, com u m a express��o contente:
��� Dr. Pires recomendou muito a senhora. Que nada
lhe faltasse. At�� um radiozinho a senhora vai ter aqui, na
mesa-de-cabeceira. Mas s�� pode ouvir baixinho. Bem
baixinho. E olhe que o Dr. Pires �� muito severo. Doente,
p a r a ele, �� doente m e s m o . N a d a de concess��es. Com a se-
n h o r a , ele est�� sendo diferente. Parab��ns.
Glorinha esperou que a enfermeira a deixasse s�� pa-
ra trocar de r o u p a . S�� havia tirado o chap��u e as luvas,
que acomodara sobre a colcha do leito. E assim que a ou-
tra lhe mostrou o banheirinho, com o espelho grande so-
bre a pia, a prateleira com a garrafa de ��gua filtrada, os
dois copos, os frascos para a toalete, o boxe p a r a o ba-
n h o , as duas toalhas de felpo, tornou a passar ao q u a r t o ,
e preveniu:
��� Volto mais tarde, para tomar a sua temperatura e
ver se a senhora precisa de mais alguma coisa. Trago
tamb��m o r��dio.
115
Glorinha atalhou:
��� N �� o �� preciso. S�� vou passar aqui dois dias: hoje
e a m a n h �� . Na segunda-feira, depois dos exames, devo ir
p a r a Friburgo. Foi o que me disse o Dr. Pires. Eu gosto
mais de ler do que de ouvir m��sica de r��dio. Obrigada.
N �� o se incomode.
Entre a cama e a porta, a enfermeira parou, tornan-
do a voltar-se para Glorinha:
��� Meu nome �� Cam��lia. Mas s�� me chamam pelo
apelido: Mem��. Se precisar de mim, a qualquer hora do
dia ou da noite, aperte essa campainha, a�� j u n t o da cama,
�� sua direita, duas vezes. Eu venho logo.
E a imagem que Glorinha guardou da Mem��, assim
que esta se foi, se resumia nos seus olhos pulados, nos
seus grossos bra��os nus, e nas suas n��degas soltas por
baixo da saia, grandes, moles, como se houvessem dis-
pensado a calcinha ��ntima. Muito simp��tica na sua sim-
plicidade tosca. E querendo por for��a abrir-lhe a mala, a
pretexto de que a Glorinha, como doente, n��o devia fazer
grandes esfor��os. P a r a isso, ela, Mem��, estava ali. �� ho-
ra em que precisasse de u m a ajuda, era s�� chamar.
Por alguns minutos, Glorinha se deixou ficar senta-
da na cama, com os p��s sobre o tapete, a pensar nas vol-
tas que d�� o m u n d o . Q u a n d o poderia imaginar que viria
sozinha para o Rio? E para ficar num quartinho como
aquele, no meio de gente estranha? Sem querer, deu por
si a chorar. Depois, reagindo, enxugou os olhos com as
m �� o s , p��s a imagem de S��o Jos�� e o retrato da Maria
Em��lia na mesa-de-cabeceira. E s�� ent��o reconheceu que
fora indelicada para com o Daniel.
��� N �� o trouxe o seu retrato. Mas vou pedir que ele
me mande u m , na pr��xima carta. Ele vai ficar contente
por ver que lhe senti falta. Terei mesmo esquecido?
Com esfor��o, curvada sobre a mala de viagem,
ergueu-lhe a tampa, examinou por alto o v��o destinado
aos pequenos objetos, e tratou de tirar fora o bloco de
116
papel a��reo e os envelopes. Logo foi ver se estava na bol-
sa a caneta-tinteiro.
��� Est�� aqui ��� respirou, aliviada.
Assim que acabou de trocar o vestido de sair pelo
vestido caseiro, ouviu baterem na porta. E q u a n d o j�� ia
torcer a ma��aneta, Mem�� entrou, trazendo nas m��os
prestimosas a bandeja com seu almo��o. E recomendou-
lhe, assim que acomodou a bandeja na mesinha de metal,
a um canto do q u a r t o , sob a claridade da janela:
��� Trate de se alimentar bem. Al��m de comer a car-
ne, o arroz e os legumes, tome o copo de leite. N��s, aqui,
sentimos logo q u a n d o o doente quer mesmo ficar b o m :
q u a n d o deixa comida no p r a t o , n��o �� b o m sinal. A se-
n h o r a , pelo jeito, vai comer t u d o . C o m a . Se n �� o tiver
vontade, ajude a colherada com um pouco de leite, pen-
sando na sua filha, pensando no seu m a r i d o . Bom apeti-
te.
E apenas por perguntar, j�� do lado de fora, falando
pela fresta da porta:
��� N �� o quer mesmo que eu lhe traga o r��dio? Pelo
sim, pelo n �� o , vou trazer. �� ordem do Dr. Pires.
Com esfor��o, chegou ao fim do prato, mas ainda so-
brou um pouco da carne e dos legumes. Chegou �� metade
da ma����. Mas t o m o u t o d o o leite, e outra vez se deixou
ficar na b o r d a da cama, a olhar para o galho de ��rvore
que balou��ava defronte do vidro da janela. Em seguida,
levando a costa da m �� o �� testa e ao pesco��o, reconheceu
que a febr��cula de todas as tardes estava voltando, ap��s
um breve acesso de tosse, que por pouco a impelia a cha-
mar pela enfermeira.
Deitou-se ao comprido do leito, de cabe��a baixa. A
febre ia crescer depressa, para baixar aos poucos, deva-
garinho, ao fim de duas ou tr��s horas de repouso. Baixou
as p��lpebras, no come��o da sonol��ncia, ouvindo o ru��do
de carros na rua, mais adiante. A luz fosca, com a garoa
da tarde de inverno, tinha perdido a alegria do sol repen-
117
tino com que atravessara a cidade, entre o Cais do P o r t o
e a ruazinha quieta do fim de Botafogo.
E decidiu-se, em meio ao torpor que a imobilizava:
��� Assim que a febre diminuir, vou escrever para o
Daniel.
As cartas longas, que m a n d a r a p��r no Correio
A��reo, em cada porto da escala, no correr dos nove dias
de viagem infinita, tinham sido o seu melhor ref��gio,
sempre que o desalento a oprimia, com o medo da soli-
d �� o , da morte, da dist��ncia, do sil��ncio em seu redor.
Mas n��o transferia para o papel o seu desespero. Sabia
que era preciso dar ��nimo ao marido. E sempre que a pe-
na lhe recolhia u m a d��vida ou uma queixa, logo encon-
trava, ela pr��pria, a palavra de esperan��a de que necessi-
tava. Registrava epis��dios fortuitos, conversas, tipos, e
isso fazia com que o papel da escrita fosse para ela u m a
forma de vida movimentada e confiante.
Por volta do meio da tarde, despertou com o Dr. Pi-
res ao seu lado, tomando-lhe o pulso:
��� Eu n��o costumo vir aqui aos s��bados. Vim, hoje,
por sua causa. Vejo que j�� est�� instalada. H�� sempre aqui
um m��dico de plant��o. Nos casos mais urgentes, esse
m��dico se comunica comigo. No caso da senhora, dispen-
sei o plant��o do m��dico, que tem um pequeno assunto
pessoal a resolver. Mas a enfermeira continuar�� aqui, pa-
ra me chamar imediatamente, se houver necessidade.
N��o vai haver, estou certo. Mas n��o foi por isso que vol-
tei aqui. Voltei aqui para ter o prazer de rever esses lindos
olhos. J�� os revi. Agora, pode tornar a fech��-los, e conti-
nuar o seu descanso.
Pela fresta das p��lpebras, ela o viu afastar-se sem
ruido e sem ru��do abrir e fechar a porta. Depois, j�� quase
imersa no sono, ouviu-lhe os passos no ladrilho do corre-
dor.
118
CAPITULO V
A dor constante por tr��s do joelho direito, conse-
q��ente ao passo distra��do ao descer o batente de minha
p o r t a , e que me fez andar de bengala, por v��rios dias,
sem melhoras sens��veis, acabou por me levar, na semana
seguinte, ao consult��rio do Dr. Neto Guterres, pelo cair
da tarde.
Ele me tinha dito, q u a n d o lhe telefonei:
��� Vem no fim da consulta.
E ao fim da consulta, q u a n d o me anunciei, foi o Dr.
Neto Guterres que veio ter comigo, na saleta de espera:
��� Aguarda um m o m e n t o , que j�� te atendo. Tens
pressa? �� t i m o . Ao menos descanso um pouco na conver-
sa contigo. Estou acabando de atender o ��ltimo cliente.
Nesse m o m e n t o , o caixeiro da Farm��cia S��o Vicente
de P a u l o , ali ao l a d o , no mesmo edif��cio do consult��rio,
entregou-lhe u m a carta a��rea:
��� Chegou de tarde, no meio da consulta.
E o Dr. Guterres, olhando-a contra a luz:
��� �� do Rio ��� concluiu, dirigindo-se a mim. ��� �� do
m��dico a quem recomendei a mulher do Daniel.
Novamente a p o r t a do consult��rio abriu e fechou, e
eu fiquei n u m a das poltronas da saleta, com u m a revista,
esperando a vez de dar jeito no meu joelho.
E m b o r a houvesse aberto a revista, com a inten����o
de distrair-me na sua leitura, esqueci-me dela, assim
aberta, enquanto lembrava a cena da m a n h �� , na Bibliote-
ca P��blica, q u a n d o o Daniel ali apareceu, �� minha pro-
119
cura. Foi dar comigo ao fundo do sal��o, quase �� cabecei-
ra da mesa, ��s voltas com um livro de Nina Rodrigues.
��� Noticias frescas da Glorinha, chegadas h�� pouco
pelo C o r r e i o A �� r e o . N �� o p o d i a m ser m e l h o r e s ���
sussurrou-me o Daniel, j�� com a carta na m �� o .
De t ��o feliz, parecia resplandecente. E ele pr��prio,
no mesmo tom de sussurro, com a carta aberta em cima
da mesa, foi resumindo o seu conte��do, ao mesmo tempo
em que corria o dedo radiante pelas linhas manuscritas:
��� O m��dico do Rio, depois de examinar a Glorinha
meticulosamente, concluiu que ela, em seis meses, no
m��ximo oito, estar�� curada. S�� precisa ir p a r a o sa-
nat��rio, em Friburgo. Mas n��o a m a n d o u logo p a r a l��.
Preferiu que ela ficasse no Rio mais uns dias, para refa-
zer todos os exames. Simples provid��ncia de rotina. Isso
quer dizer que, muito antes do Natal, a Glorinha estar��
de volta.
E pestanejando, sem conseguir reprimir a e m o �� �� o :
��� Deus est�� sendo b o m para mim. Muito b o m .
Muito b o m m e s m o .
A p o r t a do consult��rio voltou a abrir, e uma senho-
ra gorda, de passo vagaroso, trazendo na m �� o u m a recei-
ta, dali saiu cautelosamente, amparando-se no o m b r o de
u m a menina.
O Dr. Neto Guterres, por tr��s das d u a s , fez-me sinal
p a r a entrar. Assim que entrei, pediu-me que esperasse
um m o m e n t o enquanto passava a vista pela carta do cole-
ga.
Sentado n u m a cadeira de bra��os, defronte de sua me-
sa, acompanhei as transforma����es da fisionomia do
m��dico, a princ��pio com um ar neutro, depois contraindo
as sobrancelhas. Logo a seguir, apoiou ele os antebra��os
no t a m p o da escrivaninha, como em busca de a m p a r o , e
foi correndo os olhos pela letrinha apertada que enchia a
pequena folha de papel de seda.
120
E com um suspiro, a b a n a n d o desoladamente a ca-
be��a consternada, enquanto repunha a carta no envelo-
pe:
��� M��s not��cias. N �� o podiam ser piores. A Glorinha
tem os dois pulm��es afetados. O Pires acha que ela tem
vida para q u a t r o a cinco meses. Coitado do Daniel. P o -
bre Glorinha. Fiquei t�� o desnorteado, que nem pude me
calar. Isto �� segredo. Segredo mesmo. N �� o dir��s nada
disto a ningu��m. Palavra de honra?
��� Palavra de h o n r a .
O contraste entre a carta da Glorinha, dirigida ao
Daniel, e a carta do Dr. Pires, dirigida ao Neto Guterres,
n �� o apenas me fez perplexo ��� umedeceu-me os olhos,
com as ilus��es de u m a e a conclus��o da outra, e o po-
bre do Daniel de permeio, sem que o Dr. Guterres e eu
nos anim��ssemos a dizer-lhe a verdade.
E o Dr. Guterres, passado um sil��ncio:
��� Um m��dico da cl��nica, assistente de Pires, o Dr.
Teixeira, resolveu t o m a r a Glorinha sob seus cuidados.
Esse Dr. Teixeira disse ao Pires que n��o sabe como ela re-
sistiu ��s tribula����es da longa viagem de navio. Ficou t��o
alarmado que faz quest��o de lev��-la pessoalmente a Fri-
burgo, no trem que sai do Rio semana que vem.
Voltou a suspirar, recolhendo a carta �� gaveta lateral
da secret��ria, ainda a b a n a n d o a cabe��a. E levando-me
pelo bra��o �� sala cont��gua, p a r a examinar-me o joelho:
��� Se emo����o matasse, t o d o m��dico, como eu, mor-
ria do cora����o. S�� eu sei o que sofro q u a n d o n �� o posso
dar jeito na doen��a alheia. H�� dias em que perco o sono.
Sei que, hoje, vou custar a dormir, pensando neste caso
da Glorinha. E o pior �� que, a m a n h �� , q u a n d o o Daniel
tornar a me aparecer, para saber se o Pires j�� me escre-
veu, vou lhe dizer que sim. Que as not��cias s��o ��timas.
Mas que n �� o sei, nesta minha vida atrapalhada, onde dei-
xei o diabo da carta com essas boas not��cias.
E n q u a n t o me ajudava a deitar-me na estreita cama
de metal, voltou a contrair as sobrancelhas:
121
��� Eu n��o devia ter dito n a d a do que te disse. Mas h��
momentos em que as emo����es s��o fortes demais para que
fiquem trancadas em n��s, sem que aliviemos as nossas
ang��stias no o m b r o de um amigo como tu. ��s m o �� o , bem
mais mo��o do que eu. Mas tenho confian��a em ti. T e n h o .
E puxando-me a perna, no come��o do exame:
��� D��i? E assim? E assim? Andaste pulando algum
m u r o ?
E �� medida que me examinava, t o d o entregue ao seu
dever de m��dico, descontraiu as sobrancelhas. V��rias ve-
zes flexionou-me a perna, levantou-a, desceu-a, apertou-
me a r��tula. E por fim, puxando-me os p��s para fora da
cama:
��� U m a coisinha �� toa, que j�� passou. Encosta aque-
la bengala. N �� o precisas dela. E vai t r at an d o de exercitar
as pernas, que o Carnaval j�� est�� chegando.
E ao despedir-se de mim, �� porta da farm��cia:
��� Continuo a pensar na Glorinha. De cora����o aper-
t a d o . Pensando naquele rosto lindo, naqueles olhos in-
compar��veis. Pobre Daniel. P o b r e Glorinha.
122
QUINTA PARTE
Todo caminho que trilhamos pela pri-
meira vez �� muito mais longo do que o
mesmo caminho quando j�� o conhece-
mos.
THOMAS MANN,
A montanha m��gica
CAP��TULO I
A q u e l e homenzarr��o de cabelos de fogo, alto, es-
p a d a �� d o , sempre a fumar o seu cachimbo, ali ao seu la-
d o , ora lendo u m a revista, ora ��s voltas com um livro de
medicina, como indiferente �� corrida do trem nos trilhos
m o l h a d o s , na m a n h �� infinita e fosca, c o n t i n u a v a a
intimid��-la com o seu sil��ncio, dando-lhe a impress��o de
que estaria ali por dever de oficio.
At�� aquele m o m e n t o , s�� duas vezes ele lhe havia di-
rigido a palavra: u m a , no come��o da viagem, q u a n d o a
a c o m o d a r a do lado da janela, tendo o cuidado de descer
a vidra��a; outra, passados alguns momentos, q u a n d o le-
vara o cachimbo �� boca, j�� a seu lado, de pernas cruza-
das, com u m a revista sobre o joelho.
Na primeira ocasi��o, limitara-se a perguntar se ela
estava bem; na segunda, se o fumo do cachimbo n��o in-
comodava.
E Glorinha, com rapidez;
��� N �� o , de m o d o algum. Pode fumar �� vontade.
Meu marido tamb��m fuma cachimbo.
E ele, m o r d e n d o o cachimbo a um canto da boca:
��� Obrigado.
E m b o r a o Dr. Teixeira a intimidasse, assim fechado,
assim silencioso, Glorinha experimentava, com ele ao seu
lado, uma sensa����o calma de seguran��a, como se o seu
t a m a n h o e a sua for��a, ao longo de todo um dia de via-
gem, lhe transmitissem a tranq��ilidade de que necessitava
p a r a chegar ao sanat��rio sem qualquer contratempo.
125
Parecia-lhe mesmo que, ap��s os sucessivos exames a
que havia sido submetida no correr da semana, era o Dr.
Teixeira, mais que o Dr. Pires, quem acreditava na sua
cura.
F o r a ele que lhe dissera, ao fim do ��ltimo exame:
��� Vou precisar muito da colabora����o da senhora.
Com a sua colabora����o, tudo vai dar certo. Confie em
mim.
Mais tarde, j�� no apartamentinho da clinica, o Dr.
Pires viera v��-la, menos risonho que nos outros dias:
��� O Dr. Teixeira resolveu tomar conta de seu caso.
Parece um t a n t o brusco, mas �� um grande m��dico e um
grande cora����o. Vou entregar a senhora a ele, para que
fique em boas m �� o s . �� ele que vai lev��-la a Friburgo. Pa-
ra isso, resolveu antecipar de duas semanas a ida dele pa-
ra l��. O Dr. Teixeira �� meu genro, e �� quem dirige o sa-
nat��rio, com a minha filha, que tamb��m �� m��dica.
O tempo cerrado, de chuvinha constante, sem u m a
nesga de sol, bastaria, s�� por si, para deprimir Glorinha;
por��m ela, de luvas, muito bem agasalhada, com as pon-
tas do cachecol a lhe cairem para os seios, sentia-se bem
no seu canto, a despeito do ventinho ��mido que se insi-
nuava pela frincha das janelas, ao longo do carro fecha-
d o . T o d a a sua distra����o, ouvindo o chepe-chepe da loco-
motiva, dois carros adiante, era olhar o penacho de
fa��scas, em cada curva para a direita: o penacho subia,
no impulso da m��quina, e a chuvinha prontamente o des-
manchava, apagando as fa��scas.
Na v��spera, fizera a Mem�� p��r no Correio u m a nova
carta a��rea para o Daniel; agora, ali no comboio, tratava
de guardar na mem��ria os acidentes da viagem, para
cont��-los ao m a r i d o , na primeira carta que lhe mandaria
de Friburgo.
P o r volta das onze horas, j�� cansada de olhar a
n��voa que se esgar��ava na cabe��a e na encosta dos mon-
tes, escondendo casas, ��rvores, caminhos, quase cedia ��
sonol��ncia crescente, que lhe entrefechava as p��lpebras,
126
reduzindo ainda mais o m u n d o opaco que se fechava em
seu redor.
Nesse instante, o Dr. Teixeira voltou a lhe falar:
��� Acho b o m almo��armos agora. Neste m o m e n t o , o
restaurante est�� vazio, almo��a-se sem atropelo.
E Glorinha, concordando:
��� Estou ��s suas ordens.
Ele guardou o cachimbo no bolso da gabardina, re-
colheu a revista �� sua pasta de couro, e levantou-se,
abrindo espa��o para que ela lhe passasse �� frente:
��� Fa��a favor.
N �� o foi f��cil, na sucess��o de curvas do caminho, al-
can��ar o carro restaurante, ao fim do comboio: a cada
nova curva, a composi����o oscilava, atirando os dois para
um lado e para o u t r o , no corredor dos vag��es sucessivos.
Sol��cito, o Dr. Teixeira tratava de amparar a companhei-
ra; mas ele pr��prio, sujeito ��s mesmas oscila����es, tinha
tamb��m de amparar-se, n��o raro correndo o risco de
desequilibrar-se. E ntr e ta nt o, ao fim do terceiro vag��o, o
Dr. Teixeira a segurou pelo bra��o, evitando que ela ba-
tesse contra o vidro da janela, e da�� em diante a foi levan-
d o , at�� que a fez sentar-se �� primeira mesa do restauran-
te, querendo rir.
��� N �� o me diga que no M a r a n h �� o tamb��m �� assim.
E ela, querendo descontrair-se:
��� ��, doutor. Fiz uma viagem na S��o Lu��s���Teresina,
h�� dois anos, e posso-lhe dizer que o sacolejo �� o mesmo.
Ou pior.
Riram os dois, um em frente ao o u t r o , e n q u a n t o o
gar��om acorria, de card��pio em p u n h o , encarecendo o
p r a t o do dia.
Ele almo��ou com apetite, b a r r a n d o o p��o de muita
manteiga, sorvendo devagar o copo de chope, enquanto
ela se limitava ��s garfadas t��midas do talharim, beberi-
cando o guaran�� que ele lhe servira, depois de aquecer a
garrafinha na palma das m �� o s .
E como se o chope lhe destravasse a l��ngua:
127
��� Daqui a pouco vamos come��ar a subir pela cre-
malheira ��� preveniu o Dr. Teixeira, mais corado, a ras-
par o p r a t o com um peda��o de p �� o . ��� Antes que a noite
caia, estamos em Friburgo. N �� o se impressione com o sa-
nat��rio. N a d a mais �� do que u m a pens��o de pessoas que
tossem. Q u a n d o deixam de tossir, v��o embora.
Ela tossiu, protegendo a boca com o len��o, depois
recorreu ao g u a r d a n a p o , e justificou-se, assim que o
acesso lhe passou:
��� O senhor falou em tosse, e eu me lembrei da mi-
nha ��� reconheceu Glorinha, ainda com os olhos cheios
de ��gua. ��� Desculpe.
A subida lenta pela cremalheira, d a n d o por vezes a
impress��o de que a locomotiva ia parar, resfolegando
cansadamente no aclive ��ngreme, teria sido distra��da,
com os galhos da estrada batendo nos vidros das janelas,
a primeira nesga de c��u azul sobre as m o n t a n h a s e a fais-
ca����o do sol dentro do carro, se outro acesso de tosse n��o
houvesse atemorizado Glorinha, longo, quase invenc��vel,
dando-lhe a sensa����o de que n �� o era apenas a garganta
rebelde que a obrigava �� convuls��o repetida, com o len��o
diante da boca, os olhos molhados, a m �� o crispada, mas
u m a imposi����o de t o d o o seu corpo, que se debatia com a
crise irreprim��vel, e n q u a n t o o Dr. Teixeira, com o bra��o
esquerdo sobre as suas esp��duas, tentava dar-lhe o cal-
m a n t e , ap��s revolver a bolsa de rem��dios.
Depois que a crise passou, ele retraiu o bra��o, p��s-se
a enxugar-lhe o suor da testa e das t��mporas, calmo,
dando-lhe confian��a:
��� �� assim m e s m o . C o m o tempo e o t r a t a m e n t o , as
crises tender��o a espa��ar-se, at�� deixarem a senhora em
paz.
E foi no sorriso dele que ela se refugiou, com a ca-
be��a apoiada no recosto da poltrona, para tentar tirar da
lembran��a a sensa����o de pavor com que ficara a esperar
o gosto de sal na boca e a golfada de sangue.
128
Adiante, o sol abriu ainda mais, cintilando nas fo-
lhas molhadas. A m �� q u i n a aumentou a velocidade. E as
primeiras casas de Friburgo, agarradas ao flanco das
m o n t a n h a s , come��aram a aparecer, muito brancas, cer-
cadas pelo verde da m a t a .
129
CAP��TULO II
A g o r a , estava ali, n o pequeno quarto d o ��ltimo
pavimento, no anexo do sanat��rio.
A enfermeira morena, de rosto salpicado de sardas,
que viera inspecionar-lhe a r o u p a de cama, tinha-lhe di-
t o , depois de ver que t u d o estava em ordem:
��� Foi o pr��prio Dr. Teixeira quem determinou este
quarto p a r a a senhora. N �� o quis deix��-la no meio das ou-
tras doentes, n u m quarto a m p l o , de quatro lugares. Pre-
feriu este. N �� o podia ser melhor. A m a n h �� , q u a n d o o dia
come��ar, a senhora vai ver a beleza de paisagem que se
descortina daqui, com as m o n t a n h a s , a m a t a , u m a ca-
choeira, e o sil��ncio em redor.
Mostrou-lhe o banheiro, quase escondido por u m a
cortina, depois o guarda-roupa, a mesinha-de-cabeceira,
a estantezinha de metal, a escrivaninha, as duas campai-
nhas sobre o espelho superior da cama: u m a , p a r a cha-
mar o m��dico; outra, para chamar a enfermeira de plan-
t �� o .
E acentuou:
��� O importante �� a senhora saber que, isolada no
seu q u a r t o , com este sil��ncio p a r a o seu repouso, tem o
m��dico e a enfermeira ao alcance da sua m �� o .
C o m o havia chegado j�� noite entrada, quase que se
limitara a tomar contacto com o m u n d o limitado pelas
paredes de seus aposentos, al��m do caminho que a trou-
xera at�� ali, ao saltar da charrete, j�� dentro do sanat��rio:
a ruazinha de pedras salteadas, entre canteiros floridos,
130
depois o pavilh��o de brique, a escada de q u a t r o lances,
por fim o q u a r t o , ali no alto ��� a que n��o faltava a gravu-
ra na parede, com o alpinista a escalar a m o n t a n h a quase
��ngreme, �� beira de um lago muito azul.
E a enfermeira, j�� perto da sa��da:
��� Aqui, a senhora tem de se desligar do m u n d o l��
de fora. Deixe o m u n d o onde est�� e trate de si ��� leia,
descanse, passeie, tome sol, alimente-se bem.
Glorinha j�� estava impaciente p a r a que a outra fosse
embora. Queria sentar-se na borda da cama, curvando o
rosto sobre as m��os espalmadas, para ceder ao seu repen-
tino impulso de chorar sozinha, sabendo que, se morresse
ali, n��o teria sequer a m �� o segura e carinhosa do Daniel
p a r a ampar��-la.
Cedeu ao p r a n t o , e o choro a aliviou. P o r alguns
momentos, de p�� contra a vidra��a do janel��o, ajustou a
vista ��s trevas circundantes, e p��de distinguir pequenas
luzes espa��adas, aqui, al��m, mais longe; ao mesmo tem-
p o , o u v i a o r u �� d o q u a s e a p a g a d o d a c a c h o e i r a
misturando-se ao sibilo do vento nos renques de eucalip-
tos.
Do pequeno j a n t a r , que lhe tinha sido servido ali
mesmo, somente aceitara a sopa, e assim mesmo para
atenuar o frio que lhe endurecia a ponta dos dedos,
obrigando-a a encolher os ombros e a bater os dentes.
Fora a criada que t o m a r a a iniciativa de deixar sobre a
c �� m o d a , debaixo do g u a r d a n a p o , a ma���� e a p��ra da so-
bremesa, p a r a a eventualidade de sentir fome durante a
noite:
��� �� o que fazem quase todos os doentes.
Ainda no trem, j�� chegando a Friburgo, o Dr. Tei-
xeira a havia alertado p a r a a rea����o natural da emo����o
da viagem:
��� A febre aumenta, aumentam as crises de tosse.
Mas isso tudo �� normal e passa. Simples quest��o de adap-
t a �� �� o . N��o se impressione. �� assim mesmo.
131
Na verdade, o que estava sentindo, juntamente com
a fadiga de todo um dia na mesma cadeira, ouvindo o
chepe-chepe da locomotiva subindo a serra, era aquela
impress��o f��sica de abandono, que lhe advinha do isola-
mento em que se via, sem ningu��m com quem compartis-
se a sua ang��stia e a sua perplexidade.
A imagem de S��o Jos�� de Ribamar, ao centro da
mesinha-de-cabeceira, com o missal e o ter��ozinho de
prata, n��o supria a falta de uma pessoa amiga que lhe da-
ria a m��o nas horas aflitas. Aliviada pelo choro, conti-
nuou a olhar a noite atrav��s da vidra��a, e nisto se p��s a
acompanhar com a vista curiosa o pirilampo que acendia
e apagava a sua luzinha azul, do outro lado do vidro, at��
desaparecer por tr��s da latada de uma trepadeira.
Deitada, come��ou a rezar o seu ter��o, quando lhe
aflorou �� garganta o primeiro acesso de tosse. Com .es-
for��o, conseguiu reprimir a crise, mas ficou alguns minu-
tos arquejante, esperando que a sua respira����o se regula-
rizasse, enquanto dizia a si mesma, com a cabe��a alteada
no travesseiro:
��� N��o vai voltar, n��o vai voltar.
No sil��ncio, seu fino ouvido distinguiu outros aces-
sos, longe, perto, e isso a sobressaltou. Alguns, demora-
dos, pareciam tirar do leito o doente, obrigando-o a sa-
patear no ch��o do quarto, tossindo sempre, como se esti-
vessem a castig��-lo. E foi nesse instante que ela pr��pria
ergueu mais a cabe��a, sacudida por uma nova crise. Deu
por si sentada na beira da cama, com os p��s no tapete, a
m��o crispada diante da boca. Levantou-se, sempre tos-
sindo, meio curva, como a dobrar-se para o ch��o, en-
quanto a golfada de sangue lhe enchia a boca,
atordoando-a. Com a m��o direita, apoderou-se de uma
das campainhas, premiu-lhe o bot��o continuamente, ao
mesmo tempo em que a outra m��o amarfanhava o len��o
sobre a boca, no esfor��o para conter o sangue que salpi-
cava tudo �� sua volta. E aflita, debatendo-se:
132
��� P o r favor, um m��dico! ��� pedia, nos haustos da
convuls��o, sem ter quem lhe acudisse.
Mas j�� algu��m vinha subindo os lan��os da escada, de
dois em dois degraus, e logo a porta se escancarou, a um
repel��o en��rgico, d a n d o passagem ao Dr. Teixeira, em
chinelos, metido n u m r o u p �� o de b a n h o , e que passou o
bra��o sobre seus o m b r o s , como a proteg��-la:
��� Vai passar, vai passar ��� repetia.
Depois, deixando-a por um m o m e n t o , tirou da bolsa
de rem��dios um comprimido, e deu-lho na boca, aprovei-
tando o intervalo da crise, sem se importar com os salpi-
cos de sangue que lhe avermelhavam a m �� o e os punhos
do pijama.
��� Agora, t u d o vai passar. Tenha confian��a em
m i m .
E voltou a envolv��-la pelos o m b r o s , firmemente, do-
cemente, at�� que a tosse espa��ou, afrouxando o supl��cio,
e Glorinha apoiou as coxas na b o r d a do leito, com a m �� o
sobre os seios.
��� D e i t e , d e i t e ��� o r d e n o u ele, a j u d a n d o - a a
estender-se ao comprido do colch��o. ��� E fique quieta,
sem falar.
Puxou u m a cadeira para perto da cama, e prendeu a
m �� o de Glorinha na sua, d a n d o a impress��o de que iria
passar o resto da noite ao seu lado, para que nada mais
lhe acontecesse.
133
CAP��TULO III
Em meio �� m a d r u g a d a , quando Glorinha desper-
tou, o Dr. Teixeira ainda estava ali, na mesma cadeira de
vime. N �� o lhe segurava mais a m �� o nervosa, mas per-
manecia desperto, agora curvado sobre um jornal, com os
cotovelos apoiados nos bra��os da cadeira de vime. Entre-
cerrando rapidamente os olhos, p��de observ��-lo pela
fresta das p��lpebras, e viu que, espa��adamente, ele erguia
a vista em sua dire����o, vigiando-lhe o sono.
Foi s�� nesse instante que Glorinha se deu conta de
que, a despeito do casaquinho de malha com que se pro-
tegia contra o frio, estava praticamente nua, com a cami-
sola leve sobre a calcinha de seda. Na certa, durante a cri-
se, ele teria notado esse seu a b a n d o n o , no m o m e n t o em
que ela sapateava ao meio do q u a r t o , d om i n a da pelas
convuls��es do acesso. Por outro lado, tinha sido ele que a
ajudara a deitar-se ao comprido do colch��o. Ter-lhe-ia
visto os seios, no cavado e na folga da camisola?
E ela, sentindo-se corar:
��� Que vergonha, meu Deus!
E logo tratou de puxar mais para o pesco��o o cober-
tor de l��, ao mesmo tempo em que descia para baixo dos
joelhos a b a r r a da camisola, depois de constatar que esta
havia subido para o meio das coxas, impudicamente.
E alarmada:
��� Meu Deus, que ju��zo ele vai fazer de mim?
Nesse m o m e n t o , o Dr. Teixeira, ainda agasalhado
pelo r o u p �� o , consultava o rel��gio de pulso, depois de um
134
bocejo na costa da m �� o esquerda. De p��, olhou para fora
uns m o m e n t o s , sondando a noite estrelada e fria, quase
sem n��voas, por cima dos pr��dios do sanat��rio. J�� n��o se
viam vaga-lumes. Mas distinguiam-se as estrelas sobre as
m o n t a n h a s , com a nesga de lua tardia refletindo-se no
v��u de espumas da cachoeira.
Ap��s esticar os bra��os, ele se voltou para a cama, ta-
teou o cobertor �� procura do bra��o esquerdo de Glori-
n h a , p��s-se a tomar-lhe o pulso, olhando o ponteirinho
do rel��gio. Ao fim, com ar mais tranq��ilo, consertou o
len��ol, olhou a doente adormecida, apagou a luz da l��m-
pada que descia do teto, s�� deixando acesa a do abajur,
na mesinha-de-cabeceira, e foi saindo na ponta dos p��s,
sempre seguido por Glorinha, que ainda o olhava pela
frincha das p��lpebras, im��vel, pedindo a Deus que n��o a
deixasse tossir naquele instante.
Ao sair, ele se deteve um m o m e n t o no v��o da porta
entreaberta, olhando na dire����o da cama, para ver se
n a d a havia esquecido; por fim, cerrou mansamente a fo-
lha, sem ruido, e bateu de leve o trinco.
Nesse instante, Glorinha come��ou a ouvir-lhe os
passos na descida da escada, at�� que estes se perderam,
na dire����o distante do edificio central. Deixou-se ficar
im��vel, com as m��os cruzadas, tentanto pensar na Maria
Emilia e no Daniel, mas aos poucos voltou a inquietar-se
com a m�� figura que devia ter feito, no a b a n d o n o da ca-
misola de dormir, sozinha, com o Dr. Teixeira ali no
q u a r t o .
E suspirando, quase a rir:
��� N �� o sei como vou ter coragem de olhar para ele.
Ao mesmo t e m p o , crescia na sua consci��ncia o senti-
mento de gratid��o pelo cuidado dele, ali a seu lado, at��
aquele m o m e n t o , no desconforto de uma cadeira de vi-
me, atento �� eventualidade de u m a nova crise, a que
prontamente acudiria com o seu desvelo e a sua compe-
t��ncia. E a certeza de que ficaria realmente b o a , entregue
�� solicitude daquele homem de cabelos de fogo, calad��o,
135
meio brusco, f��-la olhar em volta, �� procura das manchas
de sangue que espalhara em seu redor, na hora do acesso.
Levantou um pouco a cabe��a, n��o querendo acredi-
tar: todos os salpicos vermelhos haviam desaparecido,
mesmo os do len��ol. O Dr. Teixeira teria c h a m a d o al-
gu��m p a r a ajud��-lo? Ou fora ele mesmo que procedera ��
limpeza? N��o tardou a reconhecer que tinha sido ele: l��
estava, na sali��ncia da janela, sobre o peitoril, a toalha
��mida de que se tinha servido. Limpara as manchas do
ch��o, do tapete, da cadeira, do len��ol, do cobertor, certa-
mente umedecendo a toalha, passando-a cautelosamente
em cada m a n c h a , para que ela, Glorinha, ao despertar,
n �� o encontrasse vest��gio da crise em que se debatera. A
toalha embolada, com o balde esquecido ao p�� da janela,
fez que Glorinha se comovesse, sabendo que t u d o aquilo
a ajudava a conhecer melhor o m��dico excepcional a que
havia sido entregue.
E reconheceu, j�� de p��, convicta:
��� Com ele, sei que fico b o a .
Passou ao banheiro, despiu-se, olhou por um mo-
mento a devasta����o da doen��a no seu corpo esguio, com
as clav��culas afundadas, os olhos encovados, os bra��os
mais delgados, e t o d a ela se emocionou, correndo as
m��os sobre os seios e os quadris, ante a carne rija que
ainda lhe restava, com um pouco de seu busto e de sua
cintura.
E sob a ��gua m o r n a do chuveiro:
��� Vou voltar a ter meu corpo. Vou. Daniel vai ficar
contente. E hei de ter for��as p a r a carregar minha filha.
Talvez ainda lhe possa dar o meu leite. Se o Dr. Teixeira
concordar.
Q u a n d o a criada, de touca branca e luvas, lhe trouxe
a bandeja do caf��, muito farta, com o cop��zio de leite
mungido, o pote de mel de abelha, j�� Glorinha tinha pos-
to o seu melhor vestido caseiro, com os cabelos p a r a tr��s,
um leve toque de ruge e b a t o m , os sapatos baixos, as
meias grossas.
136
Com esfor��o, t o m o u o caf�� e o leite, mastigou deva-
gar as torradas, vendo a luz crescer em volta do pavilh��o
do sanat��rio, com um c��u muito azul, a mancha verde
das m o n t a n h a s , e um brilho de metal nos cabelos soltos
da cachoeira. De vez em q u a n d o , o grito de um bem-te-
vi. L�� adiante, o canto de um sabi��-laranjeira. E o b a n d o
de andorinhas em revoada, por cima das ��rvores.
E foi ela que se levantou, para abrir a porta, q u a n d o
sentiu na escada os passos do Dr. Teixeira.
137
CAP��TULO IV
Debalde esperou por ele toda a manh��, ainda na
cama, reclinada sobre tr��s travesseiros superpostos, na
posi����o de repouso que a enfermeira lhe recomendara.
Ao seu lado, um livro e uma revista. E a paisagem da ja-
nela, com a cortina repuxada, para que o sol se alongasse
at�� a cama, alcan��ando-lhe o rosto e o busto.
Ouvia ainda a voz da enfermeira:
��� Se a luz a incomodar um pouco, mude de po-
si����o, mas n��o deixe de receb��-la. Faz parte de seu trata-
mento. Sobretudo nesta fase de adapta����o. Sol �� vida.
Por volta das dez horas, j�� o sol se alteara o bastante
para deixar de alcan��ar-lhe o leito. E como havia l�� fora
um resto de neblina, que se esgar��ava sobre o topo das
montanhas, encobrindo uma das quedas da cachoeira,
essa n��voa atenuava o fulgor da claridade, sem lhe doer
nas retinas.
Antes que a enfermeira sa��sse, perguntou-lhe:
��� O Dr. Teixeira vai voltar aqui, agora de manh��?
��� Penso que n��o. Como ele passou a madrugada
aqui, assistindo a senhora, p��s um aviso na porta do
quarto dele, prevenindo que s�� �� tarde atenderia os doen-
tes, a menos que houvesse algum caso de urg��ncia, como
foi o seu.
E conferindo as anota����es que acabara de tomar:
��� Seu pulso est�� bem, a temperatura j�� desceu, as
crises de tosse se espa��aram, n��o �� necess��ria a vinda
138
dele aqui, esta manh��. Se houver alguma necessidade ur-
gente, chame a mim, n��o a ele.
Novamente s��, Glorinha tentou iniciar ali a sua pri-
meira leitura, voltando ao meio do terceiro capitulo de
Maria Bonita, que come��ara a ler ainda a bordo. Mas,
como das outras vezes, n��o tardou a desviar a aten����o de
seu esp��rito, enquanto seus olhos iam percorrendo dis-
traidamente as linhas sucessivas, sem captar o sentido e a
concatena����o do texto impresso.
Logo que abriu o romance, fixou a aten����o na bor-
boleta azul que pousara do lado de fora da janela, desta-
cando o seu contorno escuro na claridade do vidro, e isso
lhe pareceu, por alguns instantes, um pequeno aviso, um
signo benfazejo. A despeito da crise durante a viagem e
da nova crise da madrugada, voltava a confiar na sua cu-
ra, ali no sanat��rio. Em seis meses, como pensava o Dr.
Pires? Talvez mais. Dez meses. Um ano. Um ano, sim.
Para consolidar a cura.
Com certeza, depois que melhorasse, sairia do quar-
to, andaria pelos arredores do sanat��rio, passearia at�� a
cidade, para desfazer a monotonia da reclus��o naquelas
quatro paredes, com um livro ou uma revista. Embora o
Daniel houvesse insistido com ela, para que trouxesse pe-
lo menos uma meia d��zia de romances, trouxera apenas
um, convencida de que n��o saberia concentrar-se em lei-
turas prolongadas. Bastar-lhe-iam as revistas da semana,
que faria comprar em Friburgo. Agora, dava raz��o ao
marido: devia ter trazido outros romances, para entreter
as longas horas vazias, ali na cama ou na cadeira pre-
gui��osa, olhando as mesmas montanhas, a mesma ca-
choeira, a mesma nesga de caminho, o mesmo renque de
eucaliptos perfilados �� entrada da mata.
Na antemanh��, de surpresa, sonhara com a filha,
como se estivesse a amament��-la. Chegara a sentir-lhe a
press��o dos l��bios no mamilo esquerdo, e despertara sor-
rindo, a tatear o colch��o e o bra��o, �� procura da Maria
Em��lia. Depois, ao ver que a sensa����o lhe viera da renda
139
da camisola ro��ando o bico do seio, passara uns minutos
desapontada, com o sentimento da vida desfeita, sentin-
do a falta da filha e do marido, longe de sua casa, longe
de sua terra.
Esse sentimento ainda mais se avivou, por volta das
dez e meia, q u a n d o um senhor de cabe��a grisalha, o rosto
retangular cortado de rugas, metido num d��lm�� caqui,
a p a r e c e u - l h e n a p o r t a d o q u a r t o , c o m a r t �� m i d o ,
dizendo-lhe:
��� Sou eu que entrego a correspond��ncia e recolho
as cartas para p��r no Correio. Se a senhora tiver algum
outro m a n d a d o , na cidade, n��o fa��a cerim��nia. Meu no-
me �� Augusto. Hoje, trago-lhe esta carta. Veio de longe.
De S��o Lu��s.
Ainda com o Augusto no q u a r t o , como a querer
alongar a conversa, Glorinha rompeu o lado do envelope
a��reo, para tirar fora a carta do Daniel, a c o m p a n h a d a de
pequenos recortes de jornal. E por mais de hora, interva-
lando as emo����es da leitura com o len��o a enxugar os
olhos turvos, leu, releu, voltou a ler, tanto a carta quanto
os recortes, quase a p o n t o de poder repetir, palavra por
palavra, t u d o quanto lhe contava o marido, neste trecho:
"A Maria Em��lia, q u a n d o me v��, j�� bate as pernas e as
m��ozinhas, come��ando a sorrir. E �� linda mesmo, j�� co-
me��ando a mostrar que saiu �� m��e, com a covinha que
tens no queixo e com as outras duas nas bochechas, que s��
aparecem q u a n d o ris. Agora, a novidade maior: a Maria
Em��lia j�� est�� novamente comigo. Arranjei u m a boa
a m a , muito fina, muito jeitosa, e que toma conta da crian-
��a, como se fosse m��e. Melhor n��o podia ser. T u a m��e,
a princ��pio, quis opor-se. Mas, como pouco p��ra em ca-
sa, quase n��o d�� assist��ncia �� neta. Com a Maria Em��lia
aqui, venho a casa de vez em q u a n d o , e posso olhar por
nossa filha."
C o m o seria a a m a da Maria Em��lia? Criaria a meni-
na como se fosse mesmo sua filha, caso ela, Glorinha, a
140
m��e verdadeira, tivesse de continuar por muito t e m p o ali
no sanat��rio?
E q u a n d o a c r i a d a lhe veio t r a z e r o a l m o �� o ,
perguntou-lhe:
��� Voc�� est�� aqui h�� muito tempo?
E com espanto:
��� Vinte e dois anos? Veio para c�� mocinha? Quer
dizer que conhece bem todos os doentes? E s��o muitos?
Cento e doze? E h�� doentes que est��o aqui h�� muito tem-
po?
E a outra, acabando de estender a toalha sobre a me-
sa redonda, ao p�� da janela:
��� Um deles eu j�� encontrei aqui q u a n d o cheguei: o
padre Melo. Mas h�� doentes com quinze anos de sa-
nat��rio. Dez. A maioria tem cinco. Mas h�� muitos que j��
v��m muito mal, e n��o resistem muito t e m p o . Outros se
a d a p t a m , e n��o querem sair. J�� conhece miss Kate? ��
u m a inglesa alta, ossuda. Teve alta, mas n��o quis sair.
Chegou aqui no mesmo ano em que cheguei. H�� tamb��m
os que n��o se a d a p t a m �� disciplina do sanat��rio. Prefe-
rem morrer l�� fora, j u n t o da fam��lia. Ningu��m contraria
a pr��pria natureza. Deus nos fez de um jeito, e �� desse
jeito que a gente tem de ser. N��o adianta querer m u d a r .
Cinco anos? Dez anos? Vinte e dois anos? E Glori-
nha, depois do almo��o, ficou largo tempo a olhar o cami-
n h o no sop�� da m o n t a n h a , vendo correr ali uma charrete,
enquanto dizia a si mesma, decididamente, convirtamen-
te, que n��o ficaria ali mais de um a n o . Um a n o , concor-
dava. Mais que isso, n �� o . Ainda que fosse para morrer
em S��o Lu��s. Diria isso mesmo ao Dr. Teixeira, na pri-
meira oportunidade.
Mas, pelo fim da tarde, q u a n d o ele ali apareceu, so-
bra��ando u m a pilha de romances, que p��s ao lado dela,
na mesinha-de-cabeceira, limitou-se a p e r g u n t a r - l h e ,
querendo rir:
��� E o senhor acha que eu vou ter tempo de ler tudo
isso, Dr. Teixeira?
141
E ele, sem hesitar:
��� Vai. E ainda vai ler os outros, que est��o na minha
estante, no escrit��rio. Leia sem pressa. S��o meus.
Em seguida, foi sentar-se na cadeira de vime, com os
p��s estirados para a frente, o cachimbo a um canto da bo-
ca. Leu u m a revista m��dica, depois um jornal do Rio.
Sem pressa. Meticulosamente. E foi ele que acendeu a
l��mpada de cabeceira, enquanto Glorinha permanecia
quieta, a olh��-lo de perfil, calma, segura de si, a admirar
a noite fria que se enfeitava de estrelas no ret��ngulo da
janela.
142
CAP��TULO V
Os tr��s dias que passou reclusa, quase sem falar,
deitada na cama, por expressa determina����o do m��dico,
tinham-lhe sido menos penosos do que a princ��pio imagi-
nara. Calada de natureza, n��o lhe foi dif��cil a mudez pre-
ventiva, com o intervalo dos breves di��logos indis-
pens��veis, �� hora em que lhe apareciam o Dr. Teixeira, a
enfermeira de plant��o, o velhote do Correio, ou a serven-
te gorda e pl��cida que limpava o quarto e lhe servia as re-
fei����es. Tamb��m acabou por se resignar �� imobilidade do
leito, ap��s tantos dias no beliche de b o r d o , sem qualquer
no����o exata da vida nova que aguardava por ela ao fim
da viagem.
Com o passar das horas, integrou-se no seu novo
m u n d o , ora �� espera do m��dico, ora �� espera da tarde ou
da noite, sens��vel ao canto dos p��ssaros, ao sibilo do ven-
t o , ou ao ru��do da tosse dos outros enfermos, e acabou
por comprazer-se na sua reclus��o de enferma, sobretudo
nas ocasi��es em que distinguia os passos firmes do Dr.
Teixeira nos degraus da escada.
No terceiro dia, j�� cansada de ler, apoiou no livro
u m a folha de papel de carta, e p��de escrever ao Daniel.
Carta breve, e conformada, em que lhe dizia: " N �� o te
preocupes comigo. A disciplina do sanat��rio �� como a
disciplina da escola: desde que nos ajustemos a ela, dei-
xamos de senti-la. Estou sendo tratada com muita aten-
����o e desvelo. Por minha parte, fa��o o que posso, obede-
cendo �� risca ao que me prescrevem, tal como te disse que
143
faria. Sinto saudades de ti e de nossa Maria Emilia. Mas
sei que terei mais adiante o resto da vida para estar ao teu
lado, dando-lhe a m �� o . N �� o te aflijas por minha causa.
Depois dos primeiros sustos, perfeitamente naturais na
fase de adapta����o, j�� vou seguindo o ritmo da vida nova,
sob a prote����o de S��o Jos��, aqui ao meu l a d o . "
E o Dr. Teixeira, ao fim da tarde, ao entrar no quar-
t o :
��� Ol��! J�� escrevendo a sua carta para o marido?
Muito bem. N��o vim atrapalhar?
Ela p��s de lado o papel e o l��pis:
��� J�� terminei.
De p�� j u n t o ao leito, ele lhe tateou o pulso, p��s-se a
cont��-lo com a ajuda do rel��gio, s��rio, de sobrancelhas
travadas, e sorrindo, ao dar com os olhos dela fixados no
seu rosto:
��� Normal.
P��s-lhe o term��metro sob a axila, ap��s descer o len-
��ol, at�� o seio direito e ficou a dividir a aten����o entre o
mostrador do rel��gio e a luz que se desfazia em tonalida-
des r��seas por tr��s do cabe��o da m o n t a n h a , sentindo que
ela o observava pela fresta das p��lpebras.
E olhando a coluna de merc��rio na claridade da ja-
nela:
��� Quase normal. A m a n h �� , pela m a n h �� , vamos dar
o seu primeiro passeio no sanat��rio. Isto �� a prova de que
tenho confian��a na sua melhora. Em geral, depois de
u m a crise como a senhora teve, os doentes ficam de re-
pouso por u m a semana. ��s vezes duas. No seu caso, bas-
t a r a m estes tr��s dias.
Voltou a sentar-se na cadeira de vime, p��s fumo no
cachimbo, acendeu-o, e deixou-se ficar a dois passos da
cama, de costas para a janela, como entretido na leitura
de seu jornal.
E de repente, sem m u d a r a dire����o dos olhos:
��� Novas noticias do marido e da filha? P o n h a sem-
pre na cabe��a que os dois v��o bem. N �� o se preocupe com
144
eles. Fa��a de conta que se desprendeu de t u d o . Tem lido?
Tive o cuidado de escolher os livros que lhe fazem bem.
Que a animam. Que a ajudam a viver.
Pela m a n h �� , q u a n d o a criada gorda veio arrumar-
lhe o q u a r t o , j�� encontrou Glorinha preparada para o
passeio, no vestido de l�� a b o t o a d o no pesco��o, mangas
compridas, saia abaixo dos joelhos, sapato raso, meias
de l��, um gorro tamb��m de l��, e o cachecol no pesco��o,
com uma das pontas a cair para o seio direito.
E p a r a n d o ao meio do q u a r t o , antes de ligar o aspi-
rador:
��� Muita gente j�� me perguntou se a senhora �� mes-
mo bonita como est��o dizendo. Eu confirmei. Igual �� se-
n h o r a , aqui no sanat��rio, nunca vi. Miss Kate, a inglesa
do 13, chegou a duvidar: " S �� eu vendo, C o r a . " Ai eu fiz
o Dr. Teixeira confirmar.
Cora era gorda, espa��osa, muito corada, sempre de
branco, a manga do uniforme �� altura dos cotovelos, in-
sens��vel ao frio que obrigava t o d a gente a encolher-se,
uns sapat��es de homem nos p��s espalhados, nariz grosso,
cabelos louros aparados ao p�� da orelha, e dois olhinhos
meigos, como que postos de prop��sito no rosto abruta-
lhado para atenuar-lhe a rudeza dos tra��os.
��� O que eu digo, sinto ��� acentuou.
Na noite da chegada ao sanat��rio, Glorinha tivera-
lhe m e d o , ao v��-la passar �� frente, levando-lhe a mala,
com o toque-toque dos sapat��es na escada. L�� no alto,
depois de torcer a chave na fechadura da porta, abrira-a
com o impulso da n��dega esquerda, j�� com a m �� o prepa-
rada p a r a acender a l��mpada no comutador da parede.
No entanto, ao sair, fixara os olhinhos no rosto de Glori-
n h a , e s b o �� a n d o o s o r r i s o , p a r a ao fim lhe d i z e r ,
animando-a:
��� Vai ficar boa. Eu, q u a n d o olho um doente, assim
que chega, sei quem vai ficar bom e quem n��o vai. Nunca
me engano. O Dr. Teixeira acha gra��a. E acaba d a n d o a
m �� o �� palmat��ria. A mocinha daqui da direita, coitadi-
145
n h a , est�� com os dias contados. Q u a n d o chegou no sa-
nat��rio, ainda estava cheia de corpo. Dei o meu palpite.
N �� o ia durar muito. Hoje �� pele e osso, em cima da ca-
ma, quase sem for��as para tossir. Com a senhora, o caso
m u d a de figura.
Agora, arrumando-lhe o q u a r t o , com o aspirador a
recolher a poeira dos m��veis e do ch��o, soltava a lingua,
como se acompanhasse com as palavras altas o ruido do
aparelho.
��� Isto aqui, pensando bem, �� um hotel de luxo.
N��o sei se j�� lhe disse que sou da ro��a. Sou. Criada perto
da lagoa, ouvindo de noite as r��s cantando. Q u a n d o che-
guei aqui, fiquei assustada. Eu ouvia os doentes tossindo,
no meio da noite, e me lembrava das r��s de minha terra.
Aqui. Ali. Mais adiante. E de repente o doente daqui a
emendar com o doente dali. At�� que eu me divertia. De-
pois, tive pena. Hoje, q u a n d o ou��o algu��m tossir, fico
logo de. cora����o apertado.
E desligando o aspirador:
��� A senhora caiu na m �� o do melhor m��dico daqui.
Melhor do que o sogro dele, o Dr. Pires, que tem fama
at�� na E u r o p a . �� o que estou lhe dizendo. Compe-
tent��ssimo. E modesto. Falou no santo, olhe ele a��.
E p��s-se �� escuta, enquanto os sapatos do Dr. Tei-
xeira galgavam os degraus, de dois em dois, escada aci-
m a .
A Cora foi abrir-lhe a porta:
��� J�� a mo��a est�� p r o n t a .
Glorinha, de p�� ao fundo do q u a r t o , tinha o ar dis-
pon��vel de quem aguarda a companhia. E ele, no batente
da entrada:
��� Podemos ir.
Ajudou-a a descer, com a m �� o leve tocando-lhe o
bra��o, devagar. L�� embaixo, hesitou um m o m e n t o , co-
mo a refletir se deveria dar-lhe o bra��o ou n �� o . Por fim,
decidindo-se, levou as m��os ��s costas, com a cabe��a um
146
pouco inclinada para a frente, e foi a n d a n d o pela alame-
da comprida que ia dar ao p��tio central.
Ela n��o guardaria a lembran��a exata dos doentes no
amplo p��tio ensolarado. Lembrava-se do pr��prio p��tio,
com as cadeiras de lona, uns doentes dormitando, outros
lagarteando ao sol, outros mais com os olhos protegidos
por uma pala verde, e uma pancada de vento repentina,
que arrastou as folhas ca��das e a obrigou a segurar a saia,
�� altura dos joelhos, antes que a rajada maluca a tufasse.
E n q u a n t o atravessava o p��tio em diagonal, sentiu o
sil��ncio �� sua volta, depois o ru��do dos coment��rios co-
chichados, e foi sair na outra alameda, que ia ter no ca-
minho da mata.
E o Dr. Teixeira, mostrando-lhe o banco de ferro
sob a renda de sol, enquanto tirava um livro do bolso da
bata:
��� Sente-se agora um pouco, para descansar o esfor-
��o da caminhada. Se quiser ler, aqui tem um bom livro de
piadas americanas. Serve para passar o t e m p o . Eu mes-
mo virei busc��-la daqui a uma hora.
Debalde Glorinha tentou fixar-se na leitura. De
olhos baixos, ainda via as fisionomias estranhas que dei-
xara no p��tio, umas de olhos encovados, outras reduzi-
das �� pele sobre osso, quase todas protegidas por chap��us
de palha ou de p a n o , as pernas espichadas, as m��os no
rega��o, no esfor��o para reter a vida que certamente lhes
fugia com o passar do t e m p o . N �� o saberia distinguir os
v��rios rostos, na primeira vis��o atabalhoada. Sabia que
alguns doentes lhe tinham acenado, outros lhe tinham
sorrido, outros mais tinham t o m a d o a iniciativa de
saud��-la, saudando tamb��m o Dr. Teixeira. Mas tudo
permanecia confuso na sua mem��ria. Via os rostos enco-
vados e as cadeiras de lona, u m a ao lado da outra, na
imensa faixa de sol.
Tentou interessar-se pelas coisas em seu redor, se-
guindo com a vista a lagartixa nervosa que rabeou sobre
as folhas ca��das do ch��o, �� sua frente, e ficou a bater a
147
cabecinha chata, mais adiante, na raiz nua de u m a amen-
doeira, como se tamb��m a observasse. Logo deixou de
v��-la, sem saber como havia desaparecido, enquanto sen-
tia crescer no seu espirito u m a sensa����o opressiva de me-
d o , que a levou a levantar-se, como �� procura do cami-
n h o de volta.
Nesse m o m e n t o , viu a Cora aproximar-se, cami-
n h a n d o em sua dire����o, com as bochechas aumentadas
pelo esfor��o em defender-se do sol, a m �� o em pala acima
dos olhos.
J�� perto, a outra subiu a voz para lhe dizer:
��� Dr. Teixeira me m a n d o u buscar a senhora.
E a dois passos, d a n d o �� fala um tom pesaroso:
��� Ele foi ver a sua vizinha, que est�� se a c a b a n d o .
A n d a n d o ao lado da Cora, na nesga de sombra da
alameda, Glorinha t o r n o u a dar por si atravessando o
p��tio, agora sem ningu��m, apenas com as cadeiras de lo-
na nos seus lugares. Do outro lado, apressou mais o pas-
so, em breve alcan��ou a outra alameda.
Ao p�� da escada, dispensou a companhia da Cora:
��� Eu subo s��. P o d e deixar.
No q u a r t o , estendeu-se ao comprido da cama, domi-
nada pelo terror, sabendo que, do outro lado da parede,
a morte estava a fazer o seu oficio. Com as m��os sob as
axilas, tentando aquec��-las, apertou os maxilares, antes
que come��assem a bater, e assim permaneceu alguns mi-
nutos, com os olhos aumentados, at�� que ouviu o rangi-
do da ma��aneta da porta. A fresta se alargou devagar, e
por ela passou o Dr. Teixeira, enxugando o suor da testa.
Compreendeu que estava t u d o a c a b a d o . Ap��s um sil��n-
cio, perguntou-lhe:
��� Que idade tinha ela?
��� Dezenove anos.
Glorinha deixou passar outro sil��ncio, enquanto o
Dr. Teixeira, ainda a torturar o len��o, sentou pesada-
mente na cadeira de vime, com o semblante devastado.
E ela, sem conseguir conter-se:
148
��� �� tamb��m a minha idade ��� suspirou.
Ele ergueu a cabe��a, m u d o u de fisionomia:
��� Seu caso �� diferente. Voc�� vai ficar b o a .
E como era a primeira vez que ele a tratava assim,
sem cham��-la de senhora, Glorinha imobilizou o olhar
por alguns instantes, voltada p a r a ele. Depois, conseguiu
dizer-lhe, sem desfit��-lo, como se fosse outro o motivo de
seu reconhecimento:
��� Obrigada, d o u t o r .
149
CAPITULO VI
O Dr. Teixeira lhe havia dito, �� noite, que, no dia
seguinte, pela m a n h �� , iniciaria o seu novo t r a t a m e n t o . E
ela, a principio ansiosa, acabara por tranq��ilizar-se,
q u a n d o ele lhe afirmou, ao despedir-se:
��� N �� o precisa preocupar-se. �� tudo muito simples,
na sala de cirurgia. Se eu n��o vier busc��-la, vir�� a enfer-
meira.
Felizmente, com o sedativo que o pr��prio Dr. Tei-
xeira lhe tinha d a d o , tivera u m a noite de sono profundo,
de que despertara ao fim da m a d r u g a d a com o acesso da
tosse.
Ainda na antemanh��, sem esperar pelo aviso da en-
fermeira da noite, que todos os dias vinha acord��-la, tra-
tou de preparar-se p a r a deixar o q u a r t o , assim que o Dr.
Teixeira ali chegasse.
A Cora, pouco antes das sete horas, ao trazer-lhe o
caf�� da m a n h �� , j�� a encontrou pronta, s�� faltando p��r o
sapato raso, que esperava por ela sobre o tapete, ao p�� da
cama.
E a p r o v a n d o , e n q u a n t o c o m p u n h a a mesa do desje-
j u m :
��� Muito bem. Estou gostando de ver a boa dispo-
si����o. H�� doentes que, para sair da cama, nos dias de
pneumot��rax, �� u m a verdadeira luta. Ficam com medo
da agulha, e retardam o mais que podem a ida p a r a a sala
de cirurgia. C o m a senhora, o caso �� diferente. Muito
bem. Assim �� que deve ser. N��o se assuste. �� apenas u m a
150
picada de agulha, com anestesia local. Mais nada. O res-
to �� com o Dr. Teixeira, que tem m �� o de seda.
Entretanto, ao ver-se s��, com a refei����o m o d e r a d a
sobre a toalha branca, �� sua frente, voltou-lhe de repente
a ansiedade da v��spera. Logo sentiu as m��os frias, como
se a febre da tarde estivesse a antecipar-se. Tratou de rea-
gir. De que adiantava angustiar-se? O novo tratamento
iria acelerar-lhe a cura, e era isso que devia levar em con-
ta, naquele m o m e n t o .
E ao ver aparecer �� porta do quarto a enfermeira rui-
va que viera busc��-la, levantou-se da cadeira de vime com
rapidez, fechando o livro que tentava ler:
��� ��s suas ordens. Podemos ir.
Com um gesto da m �� o direita, que fez reluzir na luz
fosca a esmeralda de seu anel de m��dica, a outra a convi-
dou a sair, mostrando-lhe o v��o da porta, ao mesmo tem-
po em que lhe sorria:
��� Vai ser a primeira.
E Glorinha, antes de come��arem a descer a escada:
��� T a m b �� m �� m��dica?
E como lhe vira tamb��m a alian��a na m �� o esquerda,
no m o m e n t o em que atravessou a porta, pareceu-lhe de
repente que era ela a mulher do Dr. Teixeira. O doutor
n a d a lhe dissera nem t a m p o u c o a Cora, que sempre lhe
transmitia as novidades do sanat��rio. M a s , pelo jeito, de-
via ser. E enquanto desciam, observou-a de soslaio, com-
pletando a imagem que havia recolhido ainda no q u a r t o .
Pareceu-lhe bem-feita de corpo, a despeito dos seios altos
e volumosos, mas sem tra��os especiais de beleza no rosto
pintalgado de manchas pequeninas por baixo dos olhos,
�� altura dos p��mulos.
No come��o da alameda, n��o conseguiu conter-se.
Retardou de repente o passo, olhando na dire����o da com-
panheira:
��� Desculpe a pergunta. �� a Dra. J��lia?
��� Sou a Dra. Neli, assistente do Dr. Teixeira. A
Dra. J��lia est�� na Alemanha, h�� quase um a n o . Eu esta-
151
va de f��rias. Voltei ontem. O Dr. Teixeira me falou da se-
n h o r a . Diz ele que vai cur��-la.
E Glorinha, ouvindo o ruido dos passos na alameda:
��� Vai. Tenho confian��a nele.
Ao ver-se s��, na saleta cont��gua �� Sala de Cirurgia,
Glorinha t o r n o u a sentir as m��os geladas. E m b o r a a Dra.
Neli a convidasse a sentar-se, preferiu permanecer de p��,
voltada para a nesga de caminho que se abria em frente ��
janela fechada. O vidro embaciado pelo orvalho da ma-
drugada ia limpando com a luz do sol. S�� por um mo-
mento Glorinha reparou no ch��o ensaibrado, nas borbo-
letas que sa��am da m a t a , na claridade do m u r o baixo que
subia o m o r r o , delimitando a ��rea do sanat��rio: voltou a
imaginar a agulha comprida que lhe perfuraria as costas
p a r a alcan��ar o p u l m �� o , e contraiu os bra��os, como a
querer defender-se, enquanto ouvia um ru��do de passos
dentro da sala.
E a Dra. Neli, cerrando a porta:
��� A senhora vai p��r esta b a t a para facilitar a inter-
ven����o. P o d e deixar aqui mesmo o seu vestido, a sua
combina����o e o suti��. Quer que a ajude?
��� N �� o , n �� o . Obrigada.
E Glorinha, com rapidez, voltada para a parede,
desfez-se do vestido e das pe��as ��ntimas, p��s a b a t a bran-
ca, aberta nas costas. Depois, de frente p a r a a doutora:
��� P o r mim, ��s ordens.
E q u a n d o se viu ao comprido da cama de ferro, vol-
tada para baixo, com as m��os unidas por baixo da testa,
cerrou as p��lpebras enquanto se lembrava dos olhos do
Dr. Teixeira, entre o gorro que lhe descia para a testa e a
m��scara que lhe protegia o nariz, j�� de luvas, �� sua espe-
ra. Logo a doutora acudiu, alongou-lhe os bra��os ao
comprido do corpo, sentiu-lhe o tremor das m �� o s .
��� Fique calma. U m a dorzinha �� t o a .
O contacto do ��ter na epiderme, ao meio da costa, j��
com o Dr. Teixeira ao seu lado, f��-la cerrar mais os
olhos, concentrando o pensamento na filha e no Daniel.
152
Precisava ficar b o a . E t u d o aquilo era necess��rio para a
sua cura. De m��os crispadas, sentiu a agulha buscar-lhe a
carne, prendeu a respira����o. O suor lhe descia pelo rosto,
tinha as axilas molhadas, e s�� encheu devagar os pul-
m��es q u a n d o o Dr. Teixeira lhe disse, aliviado, j�� en-
xugando a agulha que a perfurara:
��� T u d o bem. Acabou.
De volta ao q u a r t o , assim que se viu s�� ao comprido
da cama, com a claridade do sol vivo espregui��ando-se
no espaldar da cadeira de balan��o, reconheceu que Deus
a havia ajudado. A despeito do que havia sentido, tinha-
se conservado quieta durante toda a interven����o. Fora
mais o susto que a picada. Antes assim.
Em seguida, entregue �� distra����o de seu pensamen-
t o , perguntou a si mesma por que raz��o a Dra. J��lia n��o
estava ao lado do m a r i d o , no lugar da Dra. Neli. A bolsa
de estudos na Alemanha justificaria u m a aus��ncia t ��o
prolongada? E conclu��a:
��� Eu, no lugar dela, j�� tinha voltado.
A Cora, que n a d a lhe escondia, j�� lhe teria falado
sobre a Dra. Neli, caso houvesse alguma coisa entre esta e
o Dr. Teixeira. N �� o , n��o havia. Se houvesse, ela n��o teria
sa��do de f��rias, preferindo permanecer no sanat��rio.
E q u a n d o a C o r a voltou ao q u a r t o , por volta do
meio-dia, trazendo-lhe o almo��o, esperou o m o m e n t o
adequado p a r a lhe perguntar se fazia muito tempo que a
d o u t o r a trabalhava no sanat��rio.
��� N �� o , n��o ��� respondeu a outra, acabando de
compor a mesa j u n t o �� claridade da janela.
E depois que ajudou Glorinha a descer da cama:
��� A Dra. Neli veio para c�� ao tempo do Dr. Pires.
Q u a n d o era o pr��prio Dr. Pires que dirigia o sanat��rio.
Foi colega da Dra. J��lia. Q u a n d o vim para c��, j�� ela esta-
va aqui. No come��o, eu n��o gostava dela. Quase n��o lhe
falava. Achava a Dra. Neli muito antip��tica. P o s u d a . Fa-
zendo tudo para mostrar o anel verde do dedo. Muitas
vezes, ao passar por ela, fingia n��o ter visto. At�� o dia em
153
que me contaram a hist��ria dela. U m a hist��ria muito bo-
nita. Dessas que a gente s�� v�� no cinema ou nos roman-
ces.
Fez u m a pausa, sacudiu no ar o guardanapo para en-
xotar u m a abelha. E defronte da mesa, com a m �� o es-
querda no quadril:
��� Imagine a senhora que a Dra. Neli j�� estava de
mala p r o n t a para ir trabalhar n u m a clinica dos Estados
Unidos, ganhando um dinheir��o, q u a n d o soube que o
seu primeiro n a m o r a d o tinha vindo para este sanat��rio,
s�� pele e osso, desenganado. Largou t u d o e veio para c��.
Aqui, t o m o u conta do doente. E tanto fez que o mo��o foi
melhorando, melhorando, e ficou b o m . C u r a d o , o mo��o
resolveu casar com ela, na capelinha do sanat��rio. Ca-
sou, e foram morar em Friburgo, n u m a bonita casa da-
quela pra��a onde passa o trem. Todas as m a n h �� s , �� ele
quem vem trazer a Dra. Neli, n u m a charrete. De tarde,
vem busc��-la. Parecem dois n a m o r a d o s . Sim, senhora.
Felic��ssimos. �� o que estou lhe dizendo. Dois pombinhos
a r r u l h a n d o .
154
SEXTA PARTE
A vida, em si mesma, �� curta,
mas o infort��nio a prolonga.
P U B L I U S C Y R U S
CAP��TULO I
luz macia de maio, as quaresmeiras pareciam
mais roxas sobre o verde do vale. E como j�� fazia quase
um m��s que n��o chovia, sem preju��zo do orvalho que
sempre molhava as ��rvores e o p��tio, �� primeira hora da
m a n h �� , o frio seco da esta����o, assim que o sol resplande-
cia, convidava ��s longas caminhadas a p��, m a t a adentro,
pelos muitos caminhos que por ela se entrela��avam.
Estendida desde cedo na sua cadeira de lona ao fun-
do do p��tio, Glorinha tinha preferido permanecer no sa-
nat��rio, no calor do sol suave, enquanto um grupo de
companheiros, animados por miss Kate, sa��a na dire����o
da m a t a , t o m a n d o o caminho ensaibrado, seguidos por
u m a charrete de capota armada, puxada por uma parelha
experiente, de guizo ao pesco��o, e que se destinava a re-
colher os excursionistas fatigados, no correr do passeio.
A Cora, sempre inclinada a dar raz��o aos doentes do
sanat��rio, aprovou-lhe a desist��ncia da excurs��o:
��� Eu faria o m e s m o . P a r a que se cansar? Cada coi-
sa tem seu t e m p o . N��o deixo de aprovar um bom passeio.
Pelo contr��rio. M a s , no seu caso, agora que est�� melho-
r a n d o , conv��m n��o desafiar a natureza. Devagar se vai
ao longe.
Na verdade, Glorinha ainda n��o se animava a sair
do ��mbito do sanat��rio. No espa��o compreendido pelo
p o r t �� o de entrada, o m u r o divis��rio do terreno e o co-
me��o da m a t a , na encosta de um dos morros circundan-
tes, sentia-se mais segura. No quarto ou no p��tio, na bi-
157
blioteca ou na sala de refei����es, teria quem de pronto lhe
acudisse, na eventualidade de uma crise.
Passada a excita����o dos primeiros dias, as aplica����es
do pneumot��rax deixavam-na sonolenta, ou por efeito
do calmante que lhe dava a Dra. Neli, ou por conseq����n-
cia da pr��pria interven����o, com o aparato da anestesia
local, na Sala de Cirurgia. A simples vista da agulha que
lhe perfuraria a parede tor��cica, para alcan��ar a cavidade
pleural afetada, tinha o dom de assust��-la. O certo �� que,
de volta ao q u a r t o , ficava entre a vig��lia e o sono, somen-
te aos poucos reapossando-se de si mesma. No dia se-
guinte, ainda sentia um pouco de moleza, que at�� o gosto
da leitura lhe tirava.
Nessas ocasi��es, a cadeira de lona, no p��tio alastra-
do de sol, era o seu ref��gio preferido. Ali sentia a vida do
sanat��rio em seu redor, sem precisar sair de seu canto.
Quando muito, bastava-lhe erguer as p��lpebras e levantar
um pouco a cabe��a, para ver atravessar o port��o a char-
rete que ia todas as manh��s a Friburgo, para recolher a
correspond��ncia no Correio ou trazer alguma encomenda
dos doentes no com��rcio local.
Por vezes, intrigava-se com as cadeiras que de repen-
te ficavam vazias, sem que o respectivo ocupante, enrola-
do no seu cachecol ou protegido por sua boina de l��, vol-
tasse a estender-se ali, com um livro, um jornal, uma re-
vista, um trabalho de agulha. E era a Cora quem lhe es-
clarecia, falando baixo, a olhar para os lados:
��� Deus chamou, D. Glorinha.
Entretanto, desde que ali chegara, nunca vira um
vel��rio na capela nem a sa��da de um enterro. Os mortos
desapareciam sem que ningu��m lhes deitasse os olhos.
Aos poucos, na sucess��o dos dias longos, p��de ver a
variedade de rea����es humanas em face da morte: se uns
criam nela, a ponto de recorrerem diariamente ao cape-
l��o do sanat��rio, para terem atualizado o perd��o de seus
pecados, outros a encaravam com sobranceria, como o
desembargador alto e narigudo, muito p��lido, olhos fun-
158
dos, e que n��o perdia ocasi��o para repetir a sua frase pre-
dileta:
��� Eu, no lugar de Deus, j�� teria condenado a Morte
�� pena m��xima. A mim ela n��o leva. N �� o , n��o leva.
Por isso mesmo recusava sempre os rem��dios para
dormir. E quase n��o dormia ��� passava apenas pelo so-
n o , e erguia a cabe��a assim que voltava a si, para conti-
nuar a vig��lia estranha que lhe assegurava a perman��ncia
neste m u n d o , �� revelia das golfadas de sangue, dos olhos
fundos, da palidez constante, e da magreza progressiva,
que lhe sugava a carne, j�� a mostrar-lhe a caveira espa��o-
sa por baixo das ma����s do rosto.
Parece que se distraiu, u m a m a n h �� , ali no p��tio,
duas cadeiras adiante da cadeira de Glorinha, q u a n d o
mergulhou no sono profundo, deixando cair o livro de
Direito que andava lendo: o vizinho assustado, que apa-
n h o u o livro do ch��o, gritou por socorro, assim que le-
vantou a cabe��a amedrontada e deu com o desembarga-
dor a fit��-lo com os olhos vidrados, a boca entreaberta, o
bra��o mole para fora da cadeira. Acudiu a Dra. Neli e
mais uma enfermeira, que se apressaram em retirar dali o
c o r p o , com a doutora a dizer, por tr��s da maca:
��� N �� o foi nada. Um simples desmaio.
Todos os doentes tinham ficado de p��, dominados
pelo mesmo p��nico. C a d a um deles tinha consigo a vaga
certeza de que, ali no p��tio, estariam preservados. Tanto
que ningu��m, at�� aquele m o m e n t o , havia morrido ali.
Agora, at�� ali a morte chegara, de p��blico, com t a n t o
sol, como se j�� n��o lhe bastasse exercer o seu of��cio na re-
clus��o dos quartos, de portas fechadas.
De noite, a Cora contou �� Glorinha, sem rodeios:
��� Morreu mesmo. Mortinho da silva. Na casa do
seu jeito. E j�� foi enterrado, agora �� noite, depois que os
doentes se recolheram.
P��s-se a rir, com a m �� o na boca:
159
��� Foi enterrado de beca, como ele pr��prio deixou
determinado no dia em que se internou. At�� parecia que
ia sair do caix��o p a r a o Tribunal.
Essa mesma C o r a , ouvindo tinirem os guizos do ca-
v a l i n h o d a c h a r r e t e , antes d o m e i o - d i a , a n u n c i o u ,
t a m b �� m com ar de riso divertido:
��� �� o pessoal do passeio que est�� voltando. Vamos
ver agora quantos ag��entaram a caminhada.
E p��s-se a rir mais a gosto, assim que a charrete des-
p o n t o u , na volta da estradinha ensaibrada, repleta de
doentes, quase sem lugar para o charreteiro, que vinha
sentado no varal, segurando o chicote e as r��deas, a
acompanhar o sacolejo do carro, como se dan��asse ao
som dos guizos.
Alguns minutos depois, s�� tr��s doentes apareceram
na estrada, caminhando devagar: miss Kate, o padre Me-
lo, e a bela Cotinha, que ainda n��o fizera onze anos e j��
era doente como os outros.
160
CAP��TULO II
C o n f i a n t e , ela subiu �� balan��a. Quarenta e nove
quilos, cinq��enta. Chegara quase a cinq��enta quilos e
meio. Parecia outra, mais disposta, b o m apetite, com o
gosto do b a n h o de sol no p��tio e dos pequenos passeios
nos arredores do sanat��rio. E era com ansiedade que es-
perava a m a n h �� do pneumot��rax, sabendo que, �� tarde,
o Dr. Teixeira voltaria ao seu q u a r t o , para sentar-se na
mesma cadeira de vime, sempre com um novo livro e o
mesmo cachimbo.
Ele vinha noutras tardes, todas as vezes que podia.
No dia do pneumot��rax, vinha sempre. Tomava-lhe o
pulso, media-lhe a temperatura, auscultava-a, depois sor-
ria, tamb��m confiante:
��� Vamos no b o m caminho.
��� Vamos ��� concordava Glorinha, d a n d o mais luz
aos olhos reconhecidos, enquanto voltava a compor-se,
sob o len��ol ou o cobertor.
Curioso: sentia-se mais disposta, com um pouco de
calor no rosto, q u a n d o as m��os dele a tocavam. M��os de
h o m e m . Mas leves, macias, quase femininas no t a t o , em
desacordo com a figura alta, um tanto desengon��ada,
que oprimia o vime da cadeira com seu peso, estalando-
lhe os bra��os.
Vez por o u t r a ele lhe perguntava, enquanto folheava
a revista, �� procura de um texto de seu interesse:
��� Noticias da filha? E do marido?
161
Ela lhe mostrava a nova carta, mas n��o lha entrega-
va p a r a ler, um tanto encabulada com o carinho derra-
m a d o do marido. E dizia, quase sempre:
��� T u d o bem. J�� n �� o estou fazendo muita falta.
Noutras ocasi��es, pormenorizava as not��cias da Ma-
ria Em��lia. J�� batia as m��ozinhas cor-de-rosa. Estava
gordinha e corada. Ficava em p�� na caminha, repetindo:
pa-p��, ma-m��. Gostava mais do pai que da av��. E Glori-
n h a acrescentou, uma tarde, j�� quase ao fim da visita:
��� Sabe a ��ltima de meu marido? Diz ele que j�� fez a
filha andar. Colocou-a a um canto, de p��, e foi para o
meio da sala; bateu palmas, chamando por ela, e ela veio,
n u m s�� impulso, risonha, at�� cair nos bra��os dele.
Um sil��ncio. E a seguir, entristecendo a voz:
��� Fiquei com inveja dele. Fiquei. Por que ia escon-
der? Mas n��o pense que estou querendo ir embora daqui.
S�� quero sair curada. Bem curada.
E como ele nada dissesse, voltando devagar a folha
do livro, depois de cruzar e descruzar as pernas:
��� J�� lhe disse que minha filha tem meus olhos?
Tem. E a mesma covinha aqui no meio do queixo. Estou
ansiosa para receber um retrato dela. S�� tenho, at�� hoje,
aquele do batizado, meio escuro, com o b a b a d o da touca
a esconder-lhe o rosto, s�� deixando ver o narizinho. Da-
niel me prometeu m a n d a r um retrato b o m , tirado no me-
lhor fot��grafo de S��o Lu��s.
Ele, passado um sil��ncio:
��� Tem seus olhos? Assim negros?
��� Acho que sim.
Outro sil��ncio, com o r a m o do p�� de ac��cia a ro��ar o
vidro da janela na vira����o da tarde. E o Dr. Teixeira,
levantando-se p a r a ir embora:
��� Minha mulher tamb��m tem olhos negros. Mas
n��o s��o como os seus. N �� o , n��o s��o. Os seus s��o mais
bonitos.
162
E como se esse ju��zo o perturbasse, apressou o cami-
nho entre a cadeira e a porta, desceu com rapidez os de-
graus da escada.
Nos dias subseq��entes, foi debalde que Glorinha o
esperou, sentada na cadeira de vime defronte da janela,
p a r a dar a ele, q u a n d o chegasse, a cadeira de balan��o,
que ela preferia. S�� o via de longe, atravessando o p��tio
p a r a entrar no gabinete m��dico, quase sempre acompa-
n h a d o pela Dra. Neli. E mais de u m a vez, �� noite,
sentindo-lhe a falta, chegou a desejar que as hemoptises
lhe voltassem, para ficar apertando a campainha, at�� que
ele entrasse assustado, galgando de dois em dois degraus
os quatro lances da escada. Por fim, caiu em si. N �� o , n��o
podia fazer isso. E por que pensara semelhante tolice? E
�� noite, sozinha, depois de tomar o copo de leite que a
C o r a lhe trazia, v o l t o u a escrever ao D a n i e l , con-
fessando-lhe a vontade de regressar a S��o Lu��s.
U m a t a r d e , e n t r e t a n t o , m u d o u d e p e n s a m e n t o .
Duas cadeiras de lona, na mesma orla da sua, tinham si-
do retiradas do p��tio, sem que ali voltassem os seus anti-
gos ocupantes: u m a senhora m u d a , que passava o mais
das horas a fazer um tapete, e um senhor alto, de grandes
olheiras, cabelos negros, sempre triste. E logo Glorinha
concluiu que ambos tinham seguido o destino de tantos
outros, de que n��o voltariam a ter not��cias. T a m b �� m pa-
ra ela, Glorinha, a morte seria uma solu����o. Provavel-
mente, n��o ficaria completamente boa. Q u a n d o muito,
um pouquinho melhor, at�� sobrevir o desfecho irre-
corr��vel. Se havia de ser assim, por que n��o morrer ago-
ra?
Mas n��o foi de prop��sito que deixou a janela entrea-
berta, �� noite, q u a n d o se recolheu. De tarde, com o ar
abafado, fizera um pouco de calor no sanat��rio, a ponto
de miss Kate vir p a r a o p��tio n u m vestido sem manga,
muito decotado e curto, trazendo consigo um belo leque
espanhol. E ao despertar, pela m a d r u g a d a , apenas agasa-
lhada sob o len��ol, deu com a janela totalmente aberta,
163
com a chuva e o frio dentro do q u a r t o . Saltou da cama,
fechou a vidra��a, recebendo no rosto e no peito u m a pan-
cada do temporal, al��m de ter pisado no ch��o molhado
ao p�� da janela.
Ao tornar a deitar-se, tiritava t a n t o , batendo os ma-
xilares, sob o cobertor de l��, que teve a impress��o de es-
tar com febre alta. Chamaria o m��dico? Chamaria a en-
fermeira? Pareceu-lhe que deveria esperar que amanhe-
cesse. E, q u a n d o o dia raiou, n��o teve ��nimo para
levantar-se. Com muito esfor��o, foi ao banheiro, b a n h o u
o rosto, ainda a tremer, sentindo agora o h��lito da febre.
E assim que Cora lhe trouxe o caf�� da m a n h �� , pediu-lhe,
ainda a tremer:
��� V�� dizer ao Dr. Teixeira que n��o estou me sentin-
d o bem.
Mas quem lhe apareceu, pouco depois, foi a Dra.
Neli. Entregou-lhe o pulso, arrependida de ter chamado
o doutor. Por que m a n d a r a a doutora em seu lugar? Fora
a ele que chamara! E quis mesmo retrair o corpo, q u a n d o
a Dra. Neli se p��s a baixar a coluna de merc��rio do ter-
m �� m e t r o :
��� J�� estou me sentindo melhor, Dra. Neli. N��o pre-
cisa p��r o term��metro.
��� Seu pulso est�� muito alterado. Preciso ver a tem-
peratura.
Contrafeita, Glorinha ergueu o bra��o. E se a douto-
ra n��o lhe comprimisse a axila, �� altura do o m b r o , t��-la-
ia mantido frouxa, para dificultar o calor do corpo no
t erm ��m et r o .
Um minuto, dois, tr��s, e Glorinha, sob o cobertor,
n��o conseguia conter o tremor que a sacudia, enquanto a
d o u t o r a , de p�� j u n t o �� cama, continuava a comprimir o
br a��o .
E olhando a coluna de merc��rio na luz da janela:
��� Tenho de prevenir o Dr. Teixeira. Ele est�� ocupa-
do com u m a doente, mas vir�� aqui, logo depois. A sua
164
temperatura subiu muito. Agora, vou lhe dar um compri-
m i d o , para baixar a febre.
A sonol��ncia em que mergulhou, ap��s tomar o com-
primido, n��o lhe deixou ver o Dr. Teixeira dentro do
q u a r t o , j�� m a n h �� alta, a tomar-lhe de novo o pulso. Nem
t a m p o u c o despertou q u a n d o ele voltou a p��r-lhe o ter-
m �� m e t r o , apreensivo.
Ao voltar a si, de p��lpebras pesadas, cedeu ao acesso
de tosse, erguendo as p��lpebras com esfor��o, e s�� ent��o
percebeu que o Dr. Teixeira se levantava da cadeira de vi-
m e , ao p�� da janela, p a r a aproximar-se da cama:
��� Melhor? ��� perguntou-lhe.
Ela quis responder que sim, mas a sonol��ncia de no-
vo a venceu, sem que lhe permitisse manter as p��lpebras
levantadas. Quase a cerr��-las de t o d o , sentiu o vulto do
d o u t o r ao seu lado, tateando-lhe o pulso. E q u a n d o p��de
ergu��-las, j�� o m��dico n �� o estava ali. Em seu lugar estava
u m a enfermeira da Sala de Cirurgia, alta, magra, de gor-
ro b r a n c o , olhos azuis, e que lhe sorria, caminhando ao
seu encontro. Custou um m o m e n t o a lembrar-lhe o no-
m e . Afinal, disse consigo, enquanto a olhava:
��� Irm�� Catarina. J�� voltou da viagem ao Rio.
E a irm�� Catarina, com a m �� o sobre a testa da Glori-
n h a :
��� Precisamos baixar esta febre.
Cinco dias d u r o u a nova luta, sempre com a tempe-
ratura alta e o torpor. Q u a n d o voltava a si, dava com o
Dr. Teixeira na cadeira de vime, lendo. Ou ent��o com a
irm�� Catarina, que preferia ficar de p��, a um canto da ja-
nela, olhando a luz esvair-se l�� fora, pelo fim da tarde.
N o s e x t o d i a , s e n t i u o d o u t o r a o seu l a d o ,
segurando-lhe a m �� o fria. E como ergueu as p��lpebras,
para olh��-lo no rosto, viu que ele tamb��m a olhava, con-
fiante, dizendo-lhe:
��� Est�� quase sem febre. Cheguei a me assustar.
E todas as tardes, com seu cachimbo, suas revistas e
seu livro, ela t o r n o u a v��-lo aparecer no v��o da porta, as-
165
sim que a tarde come��ava a declinar. E um j��bilo estra-
nho, e suave, que a ajudava a ganhar alento e for��as,
levava-a a sorrir para ele, mesmo nas ocasi��es em que o
doutor, j�� instalado na cadeira de vime, com o cachimbo
a um canto da boca, se entretinha na leitura do livro ou
da revista, como esquecido dela.
166
CAP��TULO III
Glorinha permaneceu no q u a r t o , em repouso, por
mais de um m��s corrido, sem ordem de descer ao p��tio
p a r a o b a n h o de sol. Tomava-o ali mesmo, ao redor das
nove horas, na cadeira de balan��o, com os p��s apoiados
n u m pufe, os olhos cerrados.
Essa hora quieta e longa, com o sol a lhe descer do
rosto para o busto, levava-a a retrair-se em si mesma, em
meio ��s imagens que lhe afloravam �� consci��ncia, at�� que
a luz crua, retraindo-se para perto da janela, descia de
seu rosto, e ela podia distrair-se com a vista da paisagem,
no recorte da larga vidra��a �� sua frente. E m b o r a t u d o
aquilo j�� lhe fosse familiar, descobrira grada����es novas
no roxo das quaresmeiras, na encosta da m o n t a n h a , na
luz irisada que se decompunha no v��u da cachoeira, na
branca flora����o dos ramos sobre o verde do p�� de laran-
j a . Parecia-lhe mesmo que j�� conhecia as borboletas, os
besouros e os colibris que por ali passavam, e tamb��m a
n��voa que por vezes se esgar��ava �� altura da laranjeira.
Foi durante esse b a n h o de sol matinal que leu a carta
em que o Daniel, na sua letra muito aberta por cima da
pauta, insistia em tranq��iliz��-la: ' ' M i n h a filha, n��o te
aflijas para voltar a S��o Luis. J�� me adaptei �� vida nova,
com minha rotina di��ria. Eu, que mal sabia fazer ��gua
quente, agora j�� sei preparar a mamadeira da Maria
Em��lia. E como a mamadeira j�� n��o lhe basta, estou a
aprender a fazer-lhe a comidinha de carne e legumes, a
come��ar na pr��xima semana. T u a m��e vaticinou que eu
167
s�� faria bem b a n a n a amassada. Enganou-se. E j�� deu a
m �� o �� palmat��ria. P o r t a n t o , n��o te inquietes por teu re-
gresso. Antes a��, te restabelecendo, do que aqui, sujeita a
uma reca��da. Aos s��bados e domingos, q u a n d o tenho mi-
nhas folgas, levo a Maria Em��lia no carrinho para o Lar-
go de Santo A n t �� n i o , e ali, sentado n u m banco, me dis-
traio com as minhas leituras enquanto ela d o r m e . "
A m��e, que nunca lhe escrevia, acabou por lhe man-
dar uma carta carinhosa, que chegou ao sanat��rio no dia
do anivers��rio de Glorinha, juntamente com o telegrama
do Daniel. D. Escol��stica n��o desmentia o genro: " C o m
surpresa para mim, saiu-nos u m a boa m��e. N��o rias n �� o .
�� verdade. Tem mais jeito para cuidar da filha do que eu
ou tu. E a Maria Em��lia �� doida pelo pai. Trata de ti, sem
pensares em precipitar teu regresso."
Na m a n h �� seguinte, outra carta do Daniel, com esta
surpresa: uns versos dele, para festejar-lhe os vinte anos.
Emocionara-se. Seriam mesmo do Daniel aqueles versos
rom��nticos? Sim, com toda certeza. Ele seria incapaz de
copiar versos alheios, dando-os como seus. E �� tarde,
q u a n d o o Dr. Teixeira lhe perguntou se tinha recebido
outras not��cias de S��o Lu��s, disse-lhe que sim, e que tudo
ia bem, mas n��o aludiu aos versos do m a r i d o , com receio
de que o doutor quisesse l��-los.
Ele, sem querer, deu-lhe a oportunidade da confi-
d��ncia:
��� E o professor? ��� perguntou-lhe.
Glorinha respondeu depressa, e passou a outro as-
sunto:
��� D a n d o aulas e cuidando da filha. Agora, me diga
u m a coisa: minha radiografia ficou pronta?
��� Acabo de v��-la. As manchas est��o diminuindo.
Parab��ns. Fiquei muito contente. E c o m o , depois de
a m a n h �� , sou eu que fa��o anos, foi o meu presente anteci-
p a d o . Melhor n��o podia ser.
Depois, vendo que ela o olhava, comovida, susten-
tou o olhar viril por alguns segundos, como se lhe fosse
168
dizer alguma coisa mais. E logo o desviou, muito verme-
lho, enquanto acrescentava, segurando os bra��os da ca-
deira:
��� Tive o u t r a alegria com a Cotinha. Est�� b o a . E a
cura foi r��pida. Q u a n d o chegou aqui, dava pena. Pensei
que n��o escapasse. Em menos de um a n o , desapareceram
as manchas de seus pulm��es. Hoje, q u a n d o lhe olhei a
chapa, pensei que me tinha enganado de radiografia. Era
mesmo a dela. Cheguei a sentir os olhos ��midos, depois
comecei a rir. E a Dra. Neli t a m b �� m . A Cotinha estuda
bal�� desde os seis anos. Aos dez come��ou a sentir as per-
nas inseguras. Magrinha. Os olhos crescidos, tossindo
muito. H�� dois meses que a tosse desapareceu. N �� o t��m a
conta as noites que passei �� sua cabeceira, revezando-me
com a irm�� Catarina. Telefonei para a m��e dela, em S��o
P a u l o , dando-lhe a b o a not��cia. A m a n h �� , j�� estar�� aqui
p a r a levar a filha. Vamos sentir falta dela.
E Glorinha, aproveitando o sil��ncio, enquanto seu
cora����o se acelerava:
��� Eu, q u a n d o tiver de ir embora daqui, vou sair
com muitas saudades ��� confessou, baixando as p��lpe-
bras. ��� Sobretudo do senhor, Dr. Teixeira. Se ficar mes-
mo b o a , sei que lhe devo a vida.
Nisto a p o r t a do q u a r t o abriu de repel��o, dando pas-
sagem �� Cotinha, que saltou para dentro e p a r o u , com o
rosto desfigurado, a respira����o ofegante. P a r a d a , olhou
para Glorinha, em seguida para o doutor, e um brilho de
��dio reluziu no seu olhar, t��o vivo, t��o agressivo, que
ambos se intimidaram.
E para Glorinha, aos gritos, n u m a voz de choro, de
dedo em riste, a p o n t a n d o para o Dr. Teixeira:
��� Foi voc�� que fez ele me m a n d a r embora! Voc��!
Voc�� �� m �� ! Voc��! Ele agora s�� fica no seu q u a r t o ! Ele ia
no meu, agora n��o vai mais! P o r q u e voc�� n��o deixa. Vo-
c�� n��o gosta de mim. E fez que ele me desse alta. P a r a eu
sair daqui. Odeio voc��! Odeio! Voc�� n��o vai ficar boa!
N �� o vai!
169
E o Dr. Teixeira, levantando-se, ao ver que ela se
desfazia em p r a n t o , sempre voltada para Glorinha:
��� Que tolice �� essa, Cotinha? Eu n��o mandei voc��
e m b o r a . Voc�� ficou b o a . Aqui s�� fica quem est�� doente.
Cotinha bateu com o p��, sempre exaltada:
��� Eu quero continuar doente. Eu q u e r o . Mas voc��
me curou para me m a n d a r embora. Foi.
E a p o n t a n d o Glorinha:
��� �� s�� dela que voc�� gosta. S��. De mais ningu��m.
T o d o m u n d o sabe disso, aqui no sanat��rio!
Antes que ele a segurasse, p a r a sacudi-la pelos om-
b r o s , mandando-lhe que se calasse, ela lhe deu as costas,
ainda c h o r a n d o , e bateu por tr��s de si a porta do q u a r t o ,
s�� se ouvindo c�� em cima o ruido de seus p��s descendo
depressa os degraus da escada, como se fosse atravessar a
alameda e o p��tio no mesmo impulso da fuga.
E n q u a n t o ela ainda corria, j�� o Dr. Teixeira tinha
j u n t a d o seu livro e sua revista, meio curvo, e vermelho,
sem olhar para Glorinha, que parecia querer sorrir do
embara��o em que a cena o deixara.
E ele, saindo, ainda sem olhar para ela:
��� Desculpe o que se passou.
E na m a n h �� seguinte m a n d o u dizer �� Glorinha, pela
irm�� Catarina, que ela j�� podia descer ao p��tio, para o
b a n h o de sol, e almo��ar e jantar no refeit��rio.
170
CAP��TULO IV
As quintas-feiras, q u a n d o a noite fechava, havia
retreta em S��o Lu��s, na Pra��a Benedito Leite. O antigo
largo do J o �� o do Vale ficava repleto de gente nova. Dava
gosto ver passar os grupos de mo��as e rapazes, que iam e
vinham pelo passeio, entre altas ��rvores esgalhadas, en-
q u a n t o a b a n d a de m��sica da Pol��cia Militar ou do 24?
Batalh��o de Ca��adores executava as m��sicas em m o d a ,
de mistura com hinos e can����es militares.
Nessas noites, em companhia do A m o r i m Parga ou
do Benedito Barros, ou ent��o s��, eu costumava ocupar
u m a das mesas do bar do Hotel Central, prolongamento
natural da pra��a, e por ali ficava, na fresca da noite, at��
que a b a n d a de m��sica se retirava, p o n d o fim �� retreta.
Se o poeta Sebasti��o Correia n��o aparecia, sobra��ando o
seu violino, j�� inspirado, ia a p�� p a r a casa, seguindo pela
Rua do Sol.
Ia s��, recitando p a r a mim velhos poemas que trazia
na mem��ria. E era t ��o grande a caminhada, vencendo a
l o m b a d a das ladeiras, que cheguei a repetir, n u m a dessas
noites, do princ��pio ao fim, sem pular um ��nico verso, A
morte de D. Jo��o, de Guerra Junqueiro, paix��o sonora
de minha adolesc��ncia.
Na primeira quinta-feira de agosto, estava eu �� mi-
nha mesa, na cal��ada do bar, retra��do para um v��o de
sombra, q u a n d o o Daniel me apareceu, com u m a fisiono-
mia exaltada:
171
��� Estava �� tua procura ��� disse-me ele. ��� Passei
pelo Largo do C a r m o , entrei no Caf�� do Chico, depois
no Excelsior, e ent��o me lembrei que devias estar aqui,
apreciando a retreta.
Eu me tinha cruzado com ele, na v��spera, na esquina
da Rua Formosa com a Rua Direita, perto do Liceu, e
perguntara-lhe pela Glorinha. E Daniel, preocupado:
��� H�� duas semanas que n �� o tenho not��cias dela.
A m a n h �� , se n��o receber u m a carta, vou passar um tele-
g r a m a p a r a o sanat��rio.
Agora, sorrindo, ele me dizia, com a carta na m �� o :
��� Not��cias da Glorinha. Chegadas hoje.
E depois de olhar em volta, �� procura de u m a cadei-
ra:
��� Aqui h�� muito barulho, com a b a n d a de m��sica,
o falat��rio de toda essa gente, e o ru��do dos copos e das
x��caras. N �� o preferes ir para o Excelsior? Quero te ler
uns trechos da carta de hoje. Muito bons. Vais gostar.
E q u a n d o me levantei, ele me perguntou, aproxi-
m a n d o o rosto e travando-me o bra��o:
��� J�� soubeste o que aconteceu com a P a n d o r a ?
Casou-se. A�� mesmo no bordel da Chico.
E, de bei��o inferior espichado, mostrava-me o so-
b r a d �� o da esquina, a cavaleiro da Rua do Giz.
E enquanto atravess��vamos a pra��a, acompanhados
pelo bater dos pratos, nos compassos de um novo dobra-
do militar:
��� Casou-se com um caixeiro viajante de S��o P a u l o .
Um homem fino. A l t o . E que se apaixonou por ela, da
noite para o dia. O melhor voc�� vai saber agora. A pedi-
do da P a n d o r a , a Chico foi �� minha casa convidar-me
p a r a padrinho do casamento. E eu fui. C o m muito gosto.
Fui professor da P a n d o r a . E ela estava linda. T o d a de
b r a n c o . Muito senhora. E o noivo todo de azul-marinho,
com u m a cam��lia na botoeira. Voc�� n��o soube de n a d a ?
Fizeram t u d o debaixo de muito segredo, a pedido do
172
juiz. Q u a n d o cheguei em casa, de volta do casamento,
encontrei esta carta da Glorinha.
T��nhamos chegado ao Largo do C a r m o . J�� o luar de
agosto derramava-se por cima das ��rvores, com a lua so-
bre os sobrados da Rua do Sol. Lembram-se daquele cha-
fariz, no p o n t o em que a pra��a se encontra com a Rua da
P a z , defronte do Convento? Foi ali que nos refugiamos,
protegidos pelas ��rvores que cercavam a fonte e ouvindo
o ru��do do repuxo que se desfazia sobre as ��guas do tan-
que. O lampi��o da esquina, por tr��s do banco de ferro,
dava luz bastante para a leitura da carta da Glorinha.
E o Daniel, j�� sentado, tirando-a do envelope:
��� Ouve este trecho, sobre o estado da Glorinha:
" T u d o vai bem, gra��as a Deus. Mas levamos um susto,
de que n��o quis dar not��cias a voc��, para n��o lhe assus-
tar. Tive uns dias de febre alta, n��o sei se da doen��a, se
de outra coisa, mas j�� me refiz. Ontem, o Dr. Teixeira
veio me dizer que minha ��ltima radiografia est�� ��tima.
As manchas v��o desaparecendo. Voltei a engordar. Es-
tou queimada de sol. Tenho lido muito. �� a minha dis-
tra����o, nas horas em que permane��o de repouso no quar-
t o , e �� noite, sempre que o sono demora vir. Mas isso n��o
quer dizer que v�� ter alta t��o cedo. Mesmo depois de cu-
rada, devo permanecer aqui por mais algum t e m p o , para
consolidar o tratamento, sem risco de u m a r e c a �� d a . "
Daniel ergueu os olhos para mim, deixando cair as
m��os para os joelhos, de sobrancelhas travadas:
��� Sabe voc�� que passei uns diasaflitos, �� noite, sem
poder dormir direito, precisamente na fase dessa febre al-
ta? �� verdade. Tive de recorrer ao Dr. Guterres, para que
me passasse um calmante, porque, mesmo durante o dia,
no correr das horas de aula, continuava a me sentir an-
gustiado. Estou vendo agora que s�� melhorei depois que
a Glorinha melhorou. Nem cheguei a tomar o calmante.
E t o r n a n d o a aproximar a carta:
��� A gente pensa que o sanat��rio �� u m a coisa, mas ��
outra, bem diferente. Ou��a l��: " E u , q u a n d o vim para c��,
1 7 3
s�� imaginava que isto aqui fosse uma esp��cie de pris��o,
onde muitos presos morriam aqui mesmo, enquanto ou-
tros conseguiam sair, depois de cumprida a pena. N �� o ,
n��o �� assim. Tem ar de internato para gente doente. Mas
h�� tamb��m gente curada que se acostuma de tal m o d o
com a vida calma e rotineira que termina n��o querendo
sair daqui. H�� u m a inglesa nessas condi����es. E tamb��m
um padre. O padre resolveu seu problema passando a ca-
pel��o do sanat��rio. A inglesa, como �� rica, passa uns
tempos aqui, outros l�� fora. L�� fora, a sua distra����o �� jo-
gar. Joga no Rio, em S��o P a u l o , na Argentina. A n o pas-
sado, foi mesmo �� Europa para jogar em Monte Carlo.
Perde sempre. Q u a n d o volta, traz os olhos fundos e pisa-
dos, e est�� mais magra, s�� pele e osso. Com u m a semana,
volta ao que era: queimada de sol, rosto cheio, e u m a dis-
posi����o p a r a excurs��es e festas c o m o n u n c a vi. Eu
tamb��m pensava que o doente, uma vez curado, sa��sse
daqui feliz. Nem sempre. Ontem vimos um caso que nos
cortou o cora����o. O de u m a menina. Tem onze anos,
quase doze. Muito viva. Veio para c�� em p��ssimo estado.
C o m o se j�� fosse morrer. Mal chegou, come��ou a melho-
rar, apesar de ter cavernas nos dois pulm��es. Esta sema-
na teve alta. Ficou desesperada. Ontem, quando a m��e
veio busc��-la, a menina se escondeu. S�� foi achada pelo
fim da tarde, metida n u m a cisterna, e chorando, a dizer
que n��o queria ir embora. Teve de ir quase �� for��a. Preci-
sou a m��e ralhar com ela. Acabou que todo m u n d o , aqui
no sanat��rio, tamb��m chorou. T o m a r a que comigo n��o
aconte��a a mesma c o i s a . "
E o Daniel, d o b r a n d o a carta, ap��s um sil��ncio:
��� Eu iria busc��-la. Iria. E levando comigo a Maria
Em��lia, para ajudar-me a trazer Glorinha de volta.
174
CAP��TULO V
Acarta lhe foi entregue no p��tio, �� hora do banho
de sol. Antes de abri-la, sentiu na polpa dos dedos a car-
tolina de uma fotografia e teve a intui����o de que era um
retrato da filha. Rasgou depressa o canto do envelope,
quase a confirmar o seu pressentimento, e deu com a Ma-
ria Emilia, na sua primeira fantasia de carnaval ��� com
as duas orelhinhas de gato de cada lado da testa e a cauda
de papel��o virada para cima, engra��adissima.
E emocionada, pestanejando:
��� Linda a minha filha!
Para ler a carta do Daniel, depois de olhar demora-
damente a fotografia, teve de enxugar as p��lpebras com a
costa das m��os, mais de uma vez. E conseguindo firmar a
vista, pareceu-lhe que o marido estava �� sua frente,
falando-lhe devagar, no cursivo regular das linhas do pa-
pel: "A�� tens a nossa Maria Em��lia. Sa�� com ela, no carro
de um colega do Liceu, �� hora do corso, no domingo de
Carnaval, e foi um sucesso. Nunca a vi t��o feliz, encanta-
da com as m��sicas, os confetes e as serpentinas. Batia
palmas, dan��ava, queria cantar. Pensei que ficasse com
medo dos mascarados. N��o, n��o ficou. Pelo contr��rio:
ria, sentada no meu colo, a mostrar-me o foli��o com o
bracinho estendido: ��� Ali, ali. O mascarado. ��� E todo
mundo a achar que nossa filha �� mesmo um amor. ��,
querida. Linda mesmo. Mais bonita em pessoa que em
fotografia. Tua m��e, por via das d��vidas, n��o a deixa
sair sem a figa de ouro que lhe deu no primeiro ani-
175
vers��rio. Tem medo de que lhe p o n h a m quebranto na ne-
ta, sem essa p r o t e �� �� o . "
Ao fim da carta, voltava a repetir-se: " R e z o sempre
por teu regresso, n��o esquecendo de dizer que s�� te quero
aqui q u a n d o o m��dico achar que est��s em condi����es de
voltar p a r a a tua vida normal. A pior fase j�� passou.
Consolida a tua cura. N �� o te preocupes comigo nem com
a Maria E m �� l i a . "
Com os olhos, alongando-os at�� o pavilh��o do Ser-
vi��o M��dico, depois rodando-os em seu redor, para alcan-
��ar t o d o o p��tio, Glorinha procurou mais u m a vez o Dr.
Teixeira. Tinha agora um pretexto para procur��-lo: iria
mostrar-lhe o retrato da filha.
J�� come��ava a impacientar-se com a dificuldade em
lhe falar. De in��cio, tinha sido o caso de frei Tom��sio,
que ali chegara de maca, trazido por u m a ambul��ncia,
com u m a r e c o m e n d a �� �� o especial d o P r e s i d e n t e d a
Rep��blica ao Dr. Pires; agora, a presen��a de um novo
m��dico, o Dr. Guedes, que parecia ter vindo para auxiliar
t a m b �� m o Dr. Teixeira. Este, durante t o d a a semana,
passara ��s voltas com o colega, ora atravessando o p��tio,
o r a visitando os doentes mais graves, ora entrando com
ele na Sala de Cirurgia ou no Gabinete M��dico. Nem se-
quer �� h o r a das refei����es se separavam. Comiam �� mes-
ma mesa, depois sa��am p a r a caminhar um pouco ao lon-
go de u m a das alamedas, por vezes em companhia da
Dra. Neli e da irm�� Catarina. E era um senhor gordo, bo-
chechudo e vermelho, de calva escondida pelos cabelos
das t��mporas, alongados por cima do cr��nio, sempre de
piteira e cigarro.
Dias seguidos, ao ver entrar a Cora com a bandeja
do caf��, por volta das sete e meia, Glorinha tivera vonta-
de de perguntar-lhe o que viera fazer ali um novo m��dico,
se havia decrescido, nos ��ltimos tr��s meses, o n��mero de
doentes, com as q u a t r o ��ltimas altas e mais a retirada de
tr��s cadeiras de lona, deixadas no p��tio por dois dias,
sem os respectivos ocupantes. Mas sofreara a curiosida-
176
de, mantendo a linha de discri����o que impusera a si mes-
ma desde a cena da Cotinha em seu q u a r t o .
Depois do caso, n��o lhe fora f��cil enfrentar o b a n h o
de sol no p��tio e o almo��o e jantar no refeit��rio, com tan-
ta gente em seu redor. Sentia-se vigiada e espionada. E
n �� o t a r d a r a em revoltar-se, ao ver que, pelo fim da tar-
de, o Dr. Teixeira n �� o mais lhe aparecera, com a sua re-
vista e o seu livro.
P a r a falar-lhe, fora v��-lo no Gabinete M��dico, dias
depois, queixando-se de que as costas lhe do��am, �� altura
dos quadris. E antes que lhe perguntasse por que deixara
de visit��-la, ele lhe disse, um t a n t o esquivo e grave, aper-
t a n d o u m a campanhia de chamada:
��� Deve ser coluna. A Dra. Neli vai tirar isso a lim-
p o .
E logo a Dra. Neli a levara para o consult��rio, na sa-
la ao lado, confirmando a suspeita do Dr. Teixeira:
��� �� coluna. Mas bastar�� mudar a sua posi����o na
cama. Mude de posi����o, deitando-se com a barriga para
cima, sem travesseiros, que a dor desaparece. T a m b �� m j��
tive isso.
Voltara desapontada para o q u a r t o . E s�� n��o odiara
a Cotinha, no impulso da rea����o vagarosa, porque tinha
testemunhado, dias antes, o seu desespero, q u a n d o a m��e
viera busc��-la. T a m b �� m chorara, como os outros doen-
tes. E como u m a rolinha cantava no beiral do pavilh��o,
na fresca do cair da tarde, seu canto chorado associara-se
�� tristeza do sanat��rio no m o m e n t o em que a charrete le-
vou a m��e e a filha, ao trote do cavalinho, ao longo da
alameda que ia dar na estrada de Friburgo.
No regresso do Gabinete M��dico, a mesma rolinha
desferia o seu canto triste, de mistura com o grito zombe-
teiro dos bem-te-vis. E foi debalde que Glorinha, de bor-
co na cama, tapou as orelhas, fugindo ao choro teimoso
da rolinha e j�� pensando em ir embora dali, mesmo sem
ter alta. Que ficava fazendo no sanat��rio, isolada, sem
falar com ningu��m? E por que o Dr. Teixeira lhe fugia?
177
S�� porque a estupidez alheia maliciava de suas visitas?
Ou porque uma menina hist��rica disparatara ali no quar-
to?
Levando consigo a fotografia da Maria Emilia, tor-
nou a encaminhar-se para o Gabinete M��dico, decidida a
lhe falar, a pretexto de mostrar-lhe o retrato da filha.
E a irm�� Catarina, abrindo-lhe a porta:
��� O Dr. Teixeira est�� na Sala de Cirurgia, com o
Dr. Guedes, fazendo um pneumot��rax.
Em vez de voltar ao p��tio, para a cadeira de lona,
encaminhou-se para o q u a r t o . E s�� a crise de choro, com
a chave passada na p o r t a , conseguiu dar-lhe algum
al��vio, sem de todo tirar-lhe do esp��rito a certeza de que o
doutor se recusava a receb��-la. E decidiu-se, q u a n d o con-
seguiu reagir:
��� Vou embora daqui. Vou. Mesmo sem ter alta.
E a Cora, por volta de meio-dia, q u a n d o lhe veio
trazer o almo��o, depois de estranhar-lhe a aus��ncia no re-
feit��rio:
��� O Dr. Teixeira lhe m a n d o u um recado. Que ele
vem aqui, no fim da tarde.
Deixou passar um sil��ncio, enquanto dispunha a
toalha na mesa redonda, ao p�� da janela, com o prato e o
talher. E depois, no m o m e n t o de acomodar a bandeja:
��� A senhora j�� sabe que o Dr. Teixeira vai nos dei-
xar? Vai. No lugar dele, fica o doutor gordo, que chegou
semana passada.
178
CAPITULO VI
D ois dias depois, sem que o Dr. Teixeira houvesse
aparecido no quarto da Glorinha pelo fim da tarde, a Co-
ra a preveniu, pouco antes de recolher a bandeja do caf��:
��� Infelizmente a senhora n��o vai gostar da not��cia
que eu vou lhe dar. Eu mesma fiquei chocada. Sem se
despedir de ningu��m, o doutor, hoje, cedinho, t o m o u o
trem para o Rio. Neste m o m e n t o , j�� deve estar longe.
Glorinha, que c o m p u n h a os cabelos defronte do es-
pelho, ficou com o bra��o p a r a d o , segurando o pente, a
olhar p a r a a C o r a , que tamb��m se imobilizara, j�� com a
bandeja nas m �� o s .
E foi ela, ao sair, quem voltou a falar:
��� Todos n��s vamos sentir a falta dele. Principal-
mente a senhora, que era a doente preferida.
Adiante, apoiando a p o r t a aberta com a n��dega, pa-
ra que n��o fechasse sob a press��o da mola, ainda acres-
centou:
��� E o pior �� que a gente n �� o sabe se ele volta. �� o
que estou dizendo. E s�� lhe digo isto porque a senhora,
mais dia, menos dia, ia saber.
Voltou, sempre segurando a bandeja. E defronte de
Glorinha, que mantinha a boca levemente entreaberta,
com os olhos suspensos, a estupefa����o a lhe tomar o ros-
to p��lido:
��� A mulher do Dr. Teixeira, acabado o est��gio nos
Estados Unidos e na E u r o p a , voltou ao Rio h�� dois me-
ses. Ela n �� o �� filha do Dr. Pires. Mas foi criada por ele.
179
Criada como filha. Querid��ssima. A Dra. J��lia, assim
que casou, veio para c��. Mas detesta Friburgo. E n��o
quer vir para c��. Prefere ficar no Rio, �� frente da cl��nica
do pai, que a m a n d o u para os Estados Unidos e a E u r o p a
com esse plano. E n q u a n t o a Dra. J��lia detesta Friburgo,
o Dr. Teixeira adora isto aqui. H�� dois meses que ela o
chama para o Rio, e ele se recusa a ir. Agora, parece que
o velho p��s o genro contra a parede: tem de voltar para
j u n t o da mulher. E ele foi. Foi batendo com as portas.
Furioso. Danado da vida. N �� o disse adeus nem �� irm��
Catarina e ao Dr. Guedes. Esse Dr. Guedes, com a con-
versa de vir para c�� como auxiliar do Dr. Teixeira, veio
mesmo foi para o lugar dele. Tanto que j�� est�� m a n d a n -
do no sanat��rio como se fosse o diretor. O rebuli��o est��
formado. P o r q u e a Dra. Neli, mais antiga, e tamb��m
competente, acha que o lugar tinha de ser dela.
Depois que a Cora saiu, Glorinha tentou acabar de
compor os cabelos, mas terminou por amarr��-los para
tr��s com u m a fita, deixando o pente de lado, como se
houvesse perdido, de repente, o gosto de se arrumar.
Deixou-se ficar uns momentos na borda da cama, pensa-
tiva, com as m��os entrela��adas sobre o joelho cruzado,
tentando encontrar o caminho a seguir na desorienta����o
que a perturbava.
Levantou-se, foi at�� a janela e deixou-se ficar ali,
olhando a m a n h �� de sol, sem reparar na luz ��mida que
b a n h a v a a m o n t a n h a e a m a t a e vinha ao seu encontro,
cobrindo-a dos p��s �� cabe��a. N��o via a laranjeira florida
nem o tom irisado da cachoeira, toda ela abismada no
seu desapontamento e na sua revolta. Que teria custado
ao Dr. Teixeira vir at�� ali para lhe dar u m a palavra? Mes-
mo �� noite, mesmo �� h o r a de sair? Talvez n��o voltasse a
v��-lo, e ele se fora em sil��ncio, como se fugisse dela.
E resoluta, pondo-se a bater com o p u n h o fechado
na palma da outra m �� o :
��� Aqui eu tamb��m n��o fico. N �� o , n��o fico. O sa-
nat��rio, para mim, passou a ser insuport��vel. J�� estou
180
quase b o a . O resto vir�� por si, com os cuidados que devo
ter.
E decidiu-se a passar um telegrama ao Daniel, para
lhe pedir que providenciasse, com urg��ncia, a sua passa-
gem de volta. Assim que o homem do Correio chegasse,
entregar-lhe-ia o telegrama p a r a S��o Luis. Deu as costas
�� janela, e p��s-se a arrumar sobre a cama ainda revolta as
pe��as de roupa que ia tirando do gavet��o do arm��rio,
u m a a u m a metodicamente.
J�� a gaveta estava vazia quando ouviu baterem na
porta. Ao abri-la, deu com o Dr. Guedes, metido na bata
branca que mais o engordava, um bonezinho de pala ver-
de na cabe��a, um sorriso b o m aumentando-lhe as boche-
chas. E ele, ainda no batente da entrada:
��� Permite-me que lhe fa��a u m a visita? Tenho um
recado a lhe dar, da parte do Dr. Teixeira. Ele esteve aqui
�� noite, mas a senhora dormia. Preferiu n��o acord��-la.
Pediu-me que viesse aqui, em nome dele, para lhe dizer
que ficar�� no Rio durante alguns dias, n��o sabendo ainda
se voltar�� a Friburgo. Talvez volte p a r a despedir-se de
amigos como a senhora. O Dr. Pires sente-se cansado, e
quer que ele e a Dra. J��lia assumam a dire����o da cl��nica
de l��, que tem crescido muito nos ��ltimos dois anos.
Um sil��ncio. E inclinando a cabe��a, mais af��vel:
��� O Dr. Teixeira me recomendou a senhora com o
maior empenho. Pediu-me que redobrasse de cuidados.
Que seu caso �� um dos mais belos da carreira dele como
m��dico. Mas que a senhora, embora melhor, ainda tem
de passar aqui pelo menos mais seis meses, ou um a n o .
Estou aqui, p o r t a n t o , n��o s�� p a r a transmitir o recado do
Dr. Teixeira, como p a r a lhe dizer, de minha parte, que
tem em mim um m��dico e um amigo. N a d a lhe vai faltar.
E assim que ele se foi, quase a encher o v��o da porta
com seus quadris espalhados, ela ainda continuou a dis-
por sobre a cama as roupas que ia tirando do gavet��o do
arm��rio, firme no seu prop��sito de voltar a S��o Lu��s na
semana seguinte.
181
CAP��TULO VII
Ao vir cham��-la para o b a n h o de sol, a m a n d o do
Dr. Guedes, a Cora ainda encontrou as roupas sobre a
cama, no m o m e n t o em que Glorinha retirava a mala de
couro de cima do arm��rio.
E atinando com o que se passava:
��� A senhora vai deixar o sanat��rio, logo depois do
Dr. Teixeira, como se fosse atr��s dele? N �� o fa��a isso, D.
Glorinha.
E Glorinha, embara��ada, ao ver que a outra acertara
em cheio:
��� Estou quase boa, Cora. H�� mais de dois anos que
estou aqui. J�� �� tempo de ir embora. Minha filha e meu
marido precisam de mim.
A Cora p��s-se a estalar as articula����es, com os de-
dos entrela��ados, olhando-a de frente:
��� Sei disso. Compreendo perfeitamente. Mas, se j��
passou mais de dois anos, que lhe custa esperar cinco ou
seis meses, para sair daqui com a alta do m��dico? Assim
de atropelo, depois da sa��da do Dr. Teixeira, at�� parece
que a senhora vai se encontrar com ele. Sei que n��o �� is-
so. Mas muita gente pode desconfiar. Desculpe eu me
meter onde n �� o fui chamada. A senhora tem idade de ser
minha filha.
E da�� a m o m e n t o s , enquanto a Glorinha lhe confes-
sava que dormira mal e acordara muito nervosa, p��s-se a
repor-lhe as pe��as de r o u p a no gavet��o do arm��rio, sem
que a outra protestasse.
182
Depois, fechando a gaveta:
��� N �� o quero que pensem mal da senhora. Vamos
descer. Venha comigo. O Dr. Teixeira tratava bem t o d o
m u n d o , aqui no sanat��rio, mas n��o escondia a prefe-
r��ncia pela senhora. Sei que n��o havia maldade na pre-
fer��ncia dele. E se os outros n��o pensarem assim?
No p��tio, ao sol, estirada na cadeira de lona, com os
��culos escuros protegendo-lhe os olhos, nunca as horas
da m a n h �� lhe pareceram t��o lentas quanto nesse dia. De-
balde tentava fixar-se na lembran��a da Maria Em��lia, na
sua fantasia de Carnaval: q u a n d o dava por si, sentia-se
entregue �� revolta pela partida brusca do m��dico. Que lhe
custava ter-lhe d a d o uma palavra? Ao menos para que
lhe agradecesse o desvelo por ela! Mas n �� o : fora embora
na ponta dos p��s, talvez para sempre, certamente para
n��o voltar ao sanat��rio, retido no Rio pela mulher e pelo
sogro.
E como se o interpelasse de repente:
��� E eu n��o significo nada? Se n��o significo, por
que vinha ao meu quarto todas as tardes? Eu n��o o cha-
mava. Vinha porque queria. Sem eu lhe pedir, m a n d o u
vir livros para mim das livrarias do Rio. E me deu uma
esp��tula, e um marcador. Todas as semanas, deixava co-
migo as revistas, antes que as pusesse na biblioteca do sa-
nat��rio, para os outros doentes. Chegou a me trazer uma
rosa, meio sem jeito, de olhos baixos, muito vermelho. E
de repente vai embora, sem me dizer at�� logo, passe bem?
�� direito? N �� o , n��o ��.
Mas a lembran��a de que ele estivera no seu q u a r t o , ��
n o i t e , p a r a d e s p e d i r - s e , e n �� o q u i s e r a a c o r d �� - l a ,
umedeceu-lhe os olhos, quase a sacudi-la n u m a crise de
p r a n t o , e ela reagiu, caindo em si:
��� Ele tem a mulher dele, eu tenho o meu marido,
n��o posso ter destes melindres. Foi embora, acabou: es-
tou aqui para me tratar.
E a consci��ncia de que, no ��ntimo de seu ser, um sen-
timento vivo, que a dominava e aturdia, protestava con-
183
tra a aus��ncia do m��dico, renovando-lhe os olhos ��mi-
dos, levou-a a contrair os maxilares, no esfor��o para ati-
rar de si a lembran��a obsessiva. V��rias vezes encheu o
peito, reprimindo a emo����o. E �� hora do almo��o, quan-
do os demais doentes j�� tinham deixado o p��tio para irem
ao quarto ou ��s enfermarias, obedeceu ao chamado da si-
neta e foi diretamente ao refeit��rio, sem o toque do pente
nos cabelos.
Durante a tarde, sozinha, aproveitando o tempo
b o m , de c��u esplendidamente azul, caminhara at�� a ma-
ta, no esfor��o para distrair-se. Sentara-se num dos ban-
cos do caminho, ouvindo a estralada das cigarras, e aca-
bou reconhecendo que teria de lutar muito, no intimo de
seu ser, para aceitar os dias infinitos que ainda teria dian-
te de si, longe da filha, longe do marido.
Na semana seguinte, ainda sofria. Debalde forcejava
para resignar-se, repetindo a rotina de todos os dias: in-
sistia em fixar a aten����o na leitura do romance que n��o
havia devolvido ao Dr. Teixeira, e ao cabo de alguns mi-
nutos tinha de tornar atr��s, para reler o que havia lido,
sem atinar direito com o fio da narrativa. Muitas e mui-
tas vezes, deixou-se ficar diante da janela, por tr��s da vi-
dra��a, tentando distrair-se com o v��o de u m a borboleta
ou com a n��voa que se desfazia defronte da cachoeira.
Afinal, q u a n d o voltou ao Servi��o M��dico, para que o Dr.
Guedes lhe fizesse os exames de rotina, aproveitou o fim
da consulta para perguntar ao doutor se tinha not��cias do
Dr. Teixeira.
E o m��dico, confrontando-lhe as chapas:
��� T e n h o . Vai bem.
E Glorinha, impaciente:
��� Ele n��o volta mesmo, doutor?
O Dr. Guedes alteou os o m b r o s , num gesto vago,
sem se voltar. E q u a n d o tornou a ficar de frente, trazen-
do as chapas:
��� As manchas continuam diminuindo. Bom sinal.
Sua natureza continua reagindo muito bem. Duas coisas
184
s��o a favor da senhora: a juventude e a disciplina. O res-
to vem por si, com a ajuda do t e m p o .
Ultimamente, nas cartas para o Daniel, insistia em
queixar-se da monotonia do sanat��rio. Dias antes, tinha-
lhe escrito: " N �� o imaginas como isto me entedia. De ma-
nh��, q u a n d o abro os olhos, j�� sei o que me espera, se
chove, se faz sol. Vou suportando tudo por amor de ti e
da Maria Emilia. E tr a ta nd o de consolar-me com os dra-
mas alheios. H�� aqui u m a mo��a alta, magra, quase trans-
parente, nem bonita nem feia, mas simp��tica, de olhos
felizes. Adoeceu um m��s antes de casar. Adiou o casa-
mento e veio para o sanat��rio, com a esperan��a de ficar
b o a dentro de dois ou tr��s meses. Est�� aqui h�� tr��s anos.
Est�� sempre a aumentar seu enxoval. A irm�� Catarina,
muito em segredo, contou-me o que se passa com ela. O
noivo j�� casou com outra, e a coitada n��o sabe. Nos ��l-
timos meses, s�� estranha que o noivo n��o lhe escreva. E
ela pr��pria o justifica: ��� Sempre foi de pouco escrever.
Basta que minha m��e, todas as semanas, me d�� noticias
dele. ��� N��o te esque��as de viver a tua vida. Sabes bem o
que isto quer dizer. Daqui a pouco a Maria Emilia est��
indo para o col��gio, sem saber ao certo como �� a m��e de-
la. A fotografia minha, que tanto me pedes, vou tir��-la
na primeira vez que for a Friburgo. Ainda n��o me animei
a ir por l �� . "
Sobreveio u m a longa semana de muita chuva e mui-
to frio, com o vento a zinir nas alamedas e a torcer os ga-
lhos das ��rvores. A cerra����o cont��nua escondia a monta-
n h a , a serra, a cachoeira, a m a t a , a estrada. Ouvia-se o
guizo do cavalinho da charrete, mas n��o se distinguia a
pr��pria charrete nem o cavalinho. E sempre a chuva e o
vento, com a cantoria dos sapos e das r��s para os lados
da cachoeira.
Nessas horas, j�� deitada, Glorinha ficava sem saber
o que faria de si mesma. Lia, cansava de ler. Alongava o
olhar para a vidra��a da janela, na abertura da cortina, e
assustava-se com os rel��mpagos, vendo a chuva escorrer
185
na luz repentina. Voltava �� revistinha das palavras cruza-
das, tentando decifrar as linhas mais dif��ceis, e logo tos-
sia, como se a tosse estivesse �� espreita do m o m e n t o em
que as p��lpebras lhe pesavam.
A Cora, mais de uma vez, veio fazer-lhe companhia.
Na v��spera, tinha estado ali. Nunca sentava. Q u a n d o
muito apoiava o corpo no caixilho da janela ou no arco
sobre a porta. Ao chegar, prevenia:
��� Hoje, estou de folga. Posso ficar um pouco com
a senhora. Visita de m��dico. S�� por uns minutos.
Era ela, nessas visitas, quem lhe avivava as lembran-
��as do Dr. Teixeira. Na ��ltima vez, abaixara um pouco a
voz, misteriosa:
��� T o d o m u n d o tem sentido a falta dele. O Dr. Gue-
des �� boa pessoa, trata a gente com muita considera����o,
mas n��o chega aos p��s do Dr. Teixeira. N �� o , n��o chega.
E suspirando, a espionar Glorinha, que se protegia
do frio nas dobras do cobertor espesso enquanto rodava
as contas do ter��o com as m��os agasalhadas:
��� Pelo jeito, a Dra. J��lia conseguiu segurar o mari-
d o . T o m a r a que d�� certo. Antes, n��o tinha d a d o . Era um
p a r a um lado, outro para o o u t r o , com o Dr. Pires a que-
rer juntar os dois, como se fosse Santo A n t �� n i o . Sabe
quantos dias j�� faz que o Dr. Teixeira foi para o Rio? Se
a senhora n��o contou, eu contei.
��� Dezenove.
��� Dezenove ��� confirmou a Cora, sorrindo. ��� Eu
pensava que s�� eu tinha contado. �� porque a senhora
gosta dele. Eu tamb��m gosto. Mas deve ser um gosto di-
ferente. Gosto de quem sabe que, com ele aqui, estou se-
gura. Com a senhora �� tamb��m assim? �� assim, e mais al-
guma coisa. N��o conhe��o o marido da senhora, que deve
ser uma ��tima pessoa. Mas a senhora �� que faria um bom
par com o Dr. Teixeira. N��o ria n �� o . Sei o que estou di-
zendo.
E Glorinha, entrecerrando as p��lpebras:
186
��� Fecha bem a cortina e vai te deitar. Meu sono est��
chegando. Obrigada pela visita. Boa noite.
��� Boa noite.
187
CAP��TULO VIII
D u r a n t e todo o tempo que j�� permanecera no sa-
nat��rio, vendo chegarem e sa��rem as esta����es, s�� aos do-
mingos tinha ido �� capela, para assistir �� missa que o pa-
dre Melo fazia quest��o de rezar, meio t o r t o , j�� deforma-
do pelo reumatismo, a m p a r a d o numa bengala.
O marido tinha-lhe dito, n u m a das ��ltimas cartas:
" Q u a n d o sentires abatimento e solid��o, procura a igreji-
n h a do sanat��rio. Nunca est�� s�� quem se volta para
D e u s . "
E era pelo caminho da capela que Glorinha ia agora,
vencendo a rampa ��mida de orvalho, depois de uma lon-
ga noite maldormida, em que repetira consigo, in��meras
vezes, de si para si, estas palavras do Daniel, na carta
chegada pelo meio da tarde: "A Maria Em��lia me assus-
tou. Apareceu com u m a tosse muito forte, com moleza e
febre, na volta do jardim da inf��ncia. Muito sonolenta,
s�� despertava para as crises de tosse. De noite, fui �� pro-
cura do Dr. Guterres. Tinha ido fazer um parto no Anil.
Corri para a casa do Dr. Murta, e o trouxe comigo. Che-
gamos na hora de u m a convuls��o, que foi debelada a
t e m p o . Tive de passar o resto da noite p o n d o compressas
de gelo na cabe��a de nossa filha, e com uma prova para
dar �� t u r m a do Liceu, na primeira hora da m a n h �� . Ao
fim da m a d r u g a d a , a febre estava mais baixa, mas a mo-
leza e a tosse persistiam. Felizmente, no quarto dia, pas-
sou a febre, a moleza diminuiu, s�� ficou mesmo a tosse,
que vou combatendo com as colheradas de xarope. N��o
188
chamei D. Escol��stica, p a r a me ajudar, porque n��o tem
saido de casa, com as suas costumeiras dores na coluna.
Ainda bem que a nova criada, a Juv��ncia, tem b o a vonta-
de para t u d o , e foi ela que me ajudou nas noites em claro.
Neste m o m e n t o , daqui de onde te escrevo, estou vendo a
Maria Emilia sentada na cama a brincar com a boneca
que lhe comprei na loja do Emilio Lisboa. J�� est�� quase
b o a . Se n��o fosse pela tosse, teria ido hoje �� escola."
Maria Emilia com tosse, sem querer parar? E Glori-
nha, com os olhos suspensos, sentiu um aperto no co-
ra����o, as m��os frias, a garganta fechada. Seria apenas
um resfriado forte? Ou coisa pior? E logo se p��s a rezar,
diante da imagem de S��o Jos��, pedindo-lhe que n��o dei-
xasse a filha ter a doen��a da m��e. De m a n h �� , vendo ao
espelho a mancha forte das olheiras no rosto tresnoitado,
lembrou-se de ir �� capela, para pedir a intercess��o de
Nossa Senhora do Perp��tuo Socorro, t��o suave e acolhe-
dora na simplicidade branca de seu altar, ao fundo da na-
ve. Falaria tamb��m ao Dr. Guedes? Ou �� Dra. Neli?
N �� o . E um e outro n��o compreenderiam a sua afli����o de
m��e. A h , a falta que lhe fazia, mais u m a vez, naquele
desterro, o Dr. Teixeira!
Ao fim da r a m p a , torceu a ma��aneta da p o r t a da ca-
pela, mas a porta n��o cedeu. Contornou a igrejinha,
lembrando-se de u m a outra porta, aos fundos, sobre a
sacristia. E logo a outra p o r t a se descerrou, dando-lhe
passagem. Antes de entrar, deu com um esquife de cedro,
entre as duas alas de bancos vazios, e toda ela estreme-
ceu, t o m a d a de m e d o . Quem seria o morto? Ou a morta?
Na certa, tinham posto o corpo ali, pela m a d r u g a d a , �� es-
pera do m o m e n t o em que os doentes estivessem recolhi-
dos aos quartos, na hora do repouso obrigat��rio, para
leva-lo a enterrar, discretamente, dissimuladamente, no
pequeno cemit��rio �� esquerda da m a t a , entre renques de
altos pinheiros. Pensou em retroceder, mas reagiu ��
emo����o, e foi ajoelhar-se no primeiro banco, �� sua direi-
189
ta. Rezou primeiro pelo m o r t o , depois pediu pela filha, e
j�� ao fim, antes de levantar-se:
��� Eu me sinto muito s��, minha Nossa Senhora.
Muito. Me ajude. H�� dois dias, tive vontade de fugir da-
qui, saindo sem me despedir de ningu��m. Me d�� for��as.
T o r n o u a rezar pelo m o r t o , e novamente encostou a
porta estreita, ao fundo da capela, saindo ao sol da ma-
n h �� alta, caminho do p��tio, sempre a perguntar a si mes-
ma quem seria o m o r t o . Ou a morta. Fechada em si, foi
estender-se na sua cadeira de lona, a refletir que, se mor-
resse ali, tamb��m ficaria s�� na capelinha, sem ter quem
rezasse por sua alma. Talvez a Cora. E a irm�� Catarina.
Na certa, ao saber de sua morte, o Dr. Teixeira se emo-
cionaria. Talvez seus olhos se umedecessem. E por que
n��o? E logo sentiu que ia chorar. Cerrou as p��lpebras, no
esfor��o p a r a reprimir o p r a n t o , e ficou a prend��-las por
alguns momentos, com a m �� o sobre os olhos, at�� sentir
que lhe batiam no o m b r o .
E a Cora, curvando-se sobre ela:
��� H�� um grupo que vai �� cidade. M a n d a r a m eu
perguntar se a senhora quer ir.
Glorinha limitou-se a responder com a cabe��a,
esquivando-se ao passeio. E prometeu: de outra vez iria,
com muito gosto; naquele dia, n �� o .
J�� havia ido a Friburgo algumas vezes, e de l�� trou-
xera u m a impress��o de cidade quieta, com a sua bela
Rra��a central por onde passava o trem; os chal��s pontu-
dos, que vinham do s��culo X I X ; as velhas casas aris-
tocr��ticas, assentadas sobre os alicerces de pedra e cal da
s��lida economia cafeeira dos bar��es fluminenses. E so-
n h a r a viver ali, na paz daquele frio seco, n u m a das casas
que alvejavam sobre o verde das encostas. Chegara a es-
crever ao Daniel, na volta de seu primeiro passeio: " A h ,
se pudesses vir para c��, como professor. Eu teria o clima
de que preciso para a minha sa��de e tu, a paz necess��ria
para teus estudos. N��o tenho d��vida de que a Maria
Emilia adoraria viver a q u i . "
190
E assim que ouviu tinirem os guizos dos cavalinhos
das tr��s charretes que iam �� cidade, repletas de doentes
do sanat��rio, em companhia da Dra. Neli, ergueu mais a
cabe��a, sentou-se, e deu por si �� porta do Gabinete M��di-
co, perguntando �� irm�� Catarina:
��� O Dr. Guedes pode me atender?
Teve de esperar, na poltroninha de canto, na saleta
forrada de papel pintado, que o doutor acabasse o seu
quinto pneumot��rax daquela m a n h �� . Ainda n��o sabia o
que iria dizer-lhe q u a n d o fosse atendida. Falar-lhe-ia da
noite agitada? Contar-lhe-ia o caso da filha? E como iria
ligar a noite maldormida ou a tosse da Maria Emilia ��
pergunta sobre o Dr. Teixeira?
O pr��prio Dr. Guedes veio busc��-la:
��� Fa��a favor, fa��a favor. E ent��o? Est�� precisando
de mim? J�� vi que est��. Entre, entre.
Mostrava-se jovial e efusivo, mas parecia abatido,
como se alguma coisa o preocupasse. E q u a n d o lhe per-
guntou o que sentia, ela hesitou um m o m e n t o , depois res-
pondeu com rapidez:
��� Umas dores nas costas, como se fossem ponta-
das. Quase n��o dormi. Angustiada. Deprimida.
Ele auscultou-a, tomou-lhe o pulso e a press��o. E
olhando-a nos olhos, ap��s um sil��ncio:
��� Q u a n t o ��s dores nas costas, n��o vejo n a d a de-
mais. Talvez um problema de coluna, que certamente se
resolver�� com um colch��o mais duro para a sua cama.
Hoje mesmo vou dar essa provid��ncia. Q u a n t o �� noite
maldormida, console-se comigo, que t a m b �� m a passei em
claro: primeiro, com a nossa miss Kate, que teve u m a cri-
se de angina, e n��o resistiu; depois, com a novata da Ba-
hia, que cortou os pulsos, revoltada com a familia, que a
m a n d o u p a r a c��.
Glorinha sombreou o olhar:
��� Miss Kate morreu, Dr. Guedes? E n t �� o foi ela que
eu vi na capela, antes de vir para o b a n h o de sol. Ela?
Miss Kate?
191
E o Dr. Guedes, recolhendo ao estojo o aparelho de
press��o:
��� Preciso de mais algu��m para me ajudar. O Teixei-
ra, forte e m o �� o , dava conta do recado; eu, nesta idade,
tenho de me p o u p a r .
E Glorinha, antes que a oportunidade lhe escapasse:
��� E o Dr. Teixeira n��o vai mesmo voltar?
O Dr. Guedes, afastando as m �� o s , espichou o l��bio
inferior, para dizer que n �� o sabia. E depois:
��� T u d o leva a crer que n �� o . Sobretudo agora,
q u a n d o se desquitou da Dra. J��lia. Ela queria lev��-lo pa-
ra u m a cl��nica de Boston, ele afirmou que n��o sai do Bra-
sil. Cada um foi p a r a o seu lado, com o Dr. Pires entre os
dois. C o m o era natural, terminou t o m a n d o o partido da
filha. Mas sem brigar com o Teixeira, que considera co-
mo se fosse tamb��m um filho. S�� ontem vim a saber de
t u d o isso, e estou aqui na situa����o de quem n��o sabe on-
de v��o parar as m o d a s . P a r a mim, que conhe��o o Teixei-
ra desde estudante, ele n��o volta p a r a c��. Preferir�� en-
contrar, por si mesmo, o seu caminho.
Ao fim da tarde, como o tempo come��asse a m u d a r ,
Glorinha veio postar-se em frente �� janela, olhando as
folhas ca��das e a poeira vermelha que o vento levantava
do ch��o, no come��o do temporal. U m a charrete descia a
r a m p a , com o cocheiro segurando as r��deas e o chap��u,
no caminho do sanat��rio. �� porta do pavilh��o central,
p a r o u . E dali saltou uma figura alta, que se precipitou
p a r a o batente de pedra, fustigada pelas cordas da chuva.
��� �� ele, sim, �� ele! ��� exclamou Glorinha, reconhe-
cendo de relance o Dr. Teixeira.
E p��s-se a rir alto, como n u m a crise convulsiva, sen-
tindo que a alegria repentina era grande demais para a
sua imobilidade e o seu sil��ncio.
192
CAP��TULO IX
Em breve chegou o fim do a n o , ainda com os ip��s
floridos. Depois o o u t o n o voltou a desfraldar na m a t a ,
sobre o verde das folhas estriadas pela n��voa, o roxo vivo
das q u a r e s m e i r a s . O frio, m a i s i n t e n s o , e �� m i d o ,
insinuou-se pelas casas, pelos caminhos, pelos abrigos. E
mesmo o sol, q u a n d o repentinamente se abria, parecia ti-
ritar com o vento da m a n h �� ou do cair da tarde.
A irm�� Catarina disse �� Glorinha, olhando o term��me-
t r o :
��� Antigamente, era esta a hora da febre. Agora, a
temperatura est�� normal. Dentro de mais um m��s ou
dois, voc�� vai nos deixar. Vamos sentir sua falta.
E Glorinha, sob o cobertor, com as m��os nas axilas:
��� Obrigada, irm�� Catarina. Eu, por mim, ficaria
aqui p o r mais um a n o , dois, o resto da vida. No
princ��pio, s�� pensava em voltar. Agora, n��o sei como me
desprenda daqui.
A irm�� Catarina, com a perna encostada na b o r d a
de metal da cama, continuava a segurar o term��metro fo-
ra do estojo, a olhar para Glorinha, como se lhe quisesse
dizer alguma coisa. E por fim, decidindo-se:
��� Ontem, o Dr. Teixeira falou muito a seu respeito.
Voltou a examinar todas as suas chapas. E me confessou
que o seu caso era o caso de que ele mais se orgulhava.
Tem certeza de que tirou voc�� das m��os da morte. S�� ele
acreditava na sua cura.
193
��� E �� verdade, irm�� Catarina. Sei que lhe devo a vi-
d a .
A freira acrescentou:
��� Abaixo de Deus.
��� Abaixo de Deus ��� concordou Glorinha.
E viu a irm�� Catarina afastar-se, cerrar de manso a
porta, em seguida ouviu-lhe os primeiros passos na esca-
da, logo apagados por uma lufada das primeiras vira����es
da noite. O dia, j�� escuro, como que ficou quieto, n u m a
sincope. Mas n��o tardou a chegar at�� ali, pelas frinchas
da janela, o aroma suave da laranjeira florida, de mistura
com o perfume das flores tardias, que s�� abrem nas som-
bras, sob o frio da serra.
De prop��sito, Glorinha se deixou ficar na penum-
bra, de olhos abertos, a pensar no seu novo d r a m a . Co-
mo iria desprender-se daquele q u a r t o , daquela cama, da-
quele resto de luz embaciada no ret��ngulo da janela, de
t u d o quanto ali a cercava, para tomar o navio de volta no
Rio de Janeiro? A carta do Daniel, recebida dois dias an-
tes, ainda estava dentro do novo livro de Jos�� Lins do Re-
go, que o Teixeira lhe emprestara, em cima da mesa em
que ela escrevia ao marido e �� m��e. E dizia-lhe, no mes-
mo cursivo inconfund��vel: " Q u e r o que tudo esteja novo
p a r a teu regresso. Mandei pintar a casa, reformei a
mob��lia, troquei as cortinas, n��o h�� mais prateleiras va-
zias nas estantes. Muitas das pessoas que c o m p r a r a m
meus livros, na loja do Polari, vieram deix��-los aqui,
guiadas pelo carimbo da folha de rosto com meu nome.
O Lu��s Rego, sempre gentil, m a n d o u trazer-me dois ro-
mances de Machado de Assis com estas palavras no seu
cart��o de visita: 'O bom filho �� casa t o r n a . ' Tudo isso me
comove. N��o pensei que houvesse tanta gente boa �� mi-
n h a volta, em nossa terra. E �� com emo����o que vou di-
zendo, q u a n d o me perguntam q u a n d o voltas: ��� J�� est��
a r r u m a n d o as m a l a s . "
N �� o , n��o a r r u m a r a a mala. A sua ��nica mala. E ti-
nha de comprar outra, para levar tudo quanto havia
194
c o m p r a d o e g a n h o , durante t o d o o tempo do sanat��rio.
Iria mesmo dali? E p a r a sempre? Ou faria t u d o para vol-
tar? Parecia mentira: come��ara por ter m e do do q u a r t o ,
do sanat��rio, da morte que rondava a Enfermaria, o Ga-
binete M��dico, as alamedas, a Sala de Cirurgia, o sal��o
do refeit��rio, o p��tio dos banhos de sol, e acabara por
apegar-se a tudo aquilo, sem medo dos doentes que repe-
tiam as crises de tosse, ou surgiam de m a n h �� com os
olhos pisados.
O Dr. Teixeira, pelo meio da tarde, viera rapidamen-
te a seu q u a r t o , s�� para lhe dizer que ia repetir, no dia se-
guinte, todos os seus exames. E ela, assustada:
��� P a r a me dar alta, doutor?
Ele respondera de m o d o vago, sem sair do batente
da porta:
��� Vamos ver, vamos ver.
E se lhe pedisse que a retivesse ali? Ele n �� o concor-
daria. Era s��rio demais para incorrer n u m a fraude. Dar-
lhe-ia a alta, mand��-la-ia de volta ao M a r a n h �� o . E ela te-
ria de suportar a longa viagem de navio, sozinha, isolada
no seu camarote, com saudade do sanat��rio. Parecia
mentira, e era verdade. Saudade profunda, para o resto
da vida. C o m o iria viver sem a assist��ncia do Dr. Teixei-
ra? Sabia que gostava dele. Muito. Mais que do marido?
Era diferente. Ou seria o mesmo amor invenc��vel, de que
participava t o d o o seu ser? O certo �� que a id��ia de
afastar-se dele para sempre a pungia e dilacerava. No en-
t a n t o , ele nunca lhe dissera u m a palavra mais audaz,
mais galante e ousada, mesmo depois que se separara da
Dra. J��lia. Sentava-se na cadeira de vime, com seu ca-
chimbo, sua revista e seu livro, com as mesmas cal��as mal
passadas, os mesmos borzeguins por engraxar, os mes-
mos cabelos caindo p a r a as orelhas, o pul��ver frouxo por
cima da camisa arremangada nos p u n h o s , e sempre a
esquivar-se dos olhos dela, mesmo q u a n d o lhe tomava a
temperatura e lhe contava as pulsa����es. Assim que a
campainha do refeit��rio batia longe, chamando p a r a o
195
jantar, pedia licen��a, e ia na frente, sem esperar por ela,
preferindo atravessar sozinho a alameda no largo passo
das pernas compridas.
E ela, como a participar de seus escr��pulos:
��� V��, v��. Eu vou depois.
Se Glorinha, no correr da visita, insistia em alongar
a conversa, ele recorria quase sempre aos monoss��labos,
q u a n d o n��o se limitava a um resmungo breve, para o sim
e para o n �� o . A p o r t a do quarto permanecia entreaberta,
a pretexto de que, mantendo-a assim, estaria atento a
qualquer chamado de urg��ncia.
A Cora, desde a volta do Teixeira, n��o perdia ensejo
para os reparos insinuativos:
��� Com o doutor aqui, a senhora ficou outra. Rosa-
da, queimadinha de sol, bem-vestida e bem-pintada. As-
sim �� que deve ser. Doente desleixado fica mais doente. E
a senhora, pelo visto, n��o tem mais n a d a .
N o u t r a m a n h �� , firmara os olhos nos olhos de Glori-
nha:
��� Posso-lhe falar u m a coisa? A senhora n��o vai
zangar comigo? N �� o zanga mesmo? Olhe l��. O Dr. Tei-
xeira est�� caidinho pela senhora. Est��. A gente sente. A
senhora n��o percebe? Ent��o repare. Eu pensava que ele
ia sentir muito q u a n d o desmanchou o casamento com a
Dra. J��lia. Qual o qu��. At�� assobiar ele assobia, quando
est�� sozinho. �� o que estou lhe dizendo. Mas o Dr. Gue-
des me disse, muito em segredo, que o Dr. Teixeira vai
voltar para o Rio. Vai. Sim, senhora. Ele n��o lhe falou?
E n t �� o vai falar. Espere.
E nesse mesmo dia, pelo cair da tarde, foi a Glori-
nha quem tocou no assunto. Ele, um t a n t o sem jeito, de-
m o r o u a resposta, refletindo, escolhendo as palavras. E
de vista baixa, ainda com o livro aberto sobre a perna
cruzada:
��� Quero ter a minha pr��pria cl��nica. Feita por mim.
A meu jeito. Aqui, n��o seria correto, mesmo do outro la-
do da m o n t a n h a . Era como se estivesse a fazer concor-
196
r��ncia ao meu ex-sogro, de quem continuo b o m amigo. E
muito reconhecido.
E para desfazer a ansiedade de Glorinha, que imobi-
lizara o olhar, calada, sempre a fit��-lo:
��� Mas est�� tudo no vago. Nada de concreto e posi-
tivo. Sei apenas que pretendo instalar-me no Rio, talvez
em Botafogo, talvez em Jacarepagu��, ou mesmo no Alto
da Tijuca.
Ela deixou passar um sil��ncio longo, t��o denso, t��o
amplo, que deu para ouvir o voltar da folha do livro. E
antes que ele chegasse ao fim da p��gina:
��� Eu tamb��m estou para ir embora. Com muita pe-
na. Mas a vida �� a vida, cada um de n��s tem seu r u m o . S��
estou �� espera da alta de meu m��dico.
E inclinou a cabe��a para a frente, sem deixar de
olh��-lo. Viu-o voltar ao come��o da p��gina, como quem
perdeu o fio da leitura. Depois, ainda perturbado, co-
me��ou a encher de fumo a cabe��a do cachimbo, sempre a
olhar o texto. E q u a n d o riscou o f��sforo, para acender o
cachimbo, ficou com o palito na ponta dos dedos, como
distra��do, at�� que a chama apagou.
197
CAP��TULO X
S e m p r e que se via na saleta de espera da Sala de Ra-
diografia, apenas com a bata sobre o corpo, agasalhada
no penhoar, Glorinha lutava consigo mesma para vencer
o sentimento de pudor que a atordoava, sabendo que, l��
dentro, diante do aparelho, teria que tirar o penhoar, pa-
ra ficar apenas com a bata leve, quase transparente, que
mais a desnudava que vestia.
Ainda bem que, na sala fechada, antes que ela des-
pisse o penhoar, o Dr. Teixeira apagava a luz, s�� deixan-
do no ambiente escuro a discreta claridade de urna lam-
padazinha vermelha, que dava apenas para distinguir na
penumbra o conforto das coisas.
Desta vez, com o frio que repentinamente fizera des-
cer o term��metro a dois graus cent��grados, em meio ��
madrugada, a m a n h �� de sol fosco, riscada por uma chu-
vinha persistente, prolongava, ali na saleta, a noite gela-
da sob os cobertores. O penhoar, a rigor, mal dava para
aquec��-la, e ela apertava as m��os sob as axilas, contrain-
do os maxilares, tiritante, q u a n d o o m��dico a fez entrar
na sala, j�� metido no avental espesso que o protegia con-
tra as irradia����es do aparelho.
E ele, fechada a porta, t ra ta n do de orientar Glori-
nha pela claridade da l��mpada vermelha:
��� Vamos bater as chapas de hoje, como rotina de
trabalho, para eu poder escrever, por fora da pasta onde
guardamos todos os seus exames: completamente curada.
198
Ajudou-a a tirar o penhoar, f��-la sentar-se n u m a ca-
deira. E afastando-se, j�� com as pupilas acomodadas ��
luz escassa:
��� Em dois minutos ajusto as chapas.
E ela, sentindo que a temperatura ambiente a regela-
va:
��� Que frio, Dr. Teixeira!
E como j�� havia a d a p t a d o os olhos �� penumbra cir-
cundante, viu q u a n d o o doutor se acercou do cabide, an-
tes de aproximar-se do aparelho de raios X, e trouxe dali
seu pr��prio palet�� de casemira.
��� N �� o se importa de vestir este palet��? �� por pouco
t e m p o . A irm�� Catarina, nestes dias de f��rias, est�� a me
fazer muita falta. Ela, em dias assim, sempre tem u m a
pe��a de l�� para agasalhar os pacientes. Na falta do agasa-
lho da irm�� Catarina, vai ter de se aquecer no meu pa-
let��.
A primeira impress��o de Glorinha, assim que o pale-
toz��o do doutor lhe agasalhou o busto e os bra��os na ca-
simira grossa, com um leve bafio de suor e perfumes, foi
que o pr��prio Dr. Teixeira a envolvia, aproximando-a de
si. Deixou-se estar quieta, fruindo essa sensa����o nova,
que subitamente a deliciava. Deixou de tiritar e bater os
dentes, enquanto o calor suave a aquecia, subindo-lhe
para o rosto.
J�� agora podia ver o vulto do m��dico por tr��s do
aparelho enorme, ajustando-lhe os controles, examinan-
do a posi����o da chapa, deslocando-se entre o aparelho e a
mesinha ao fundo da sala. S�� ent��o refletiu, um tanto as-
sustada e risonha, que se achava quase n u a , na sala fe-
chada a chave, na companhia de um homem que n��o era
seu marido. Pilheriou consigo mesma, sem falar:
��� E agora, Glorinha?
Foi nesse m o m e n t o que ele veio busc��-la. Despiu-lhe
o palet��, segurou-a pelo bra��o:
��� J�� sabe que n��o demora.
E ela, caminhando:
199
��� Agora, o frio j�� passou. N��o se preocupe.
Subiu com desembara��o experiente o degrau da es-
cadinha, alongou-se na prancha met��lica, que novamente
a regelou, e n��o tardou a ouvir o clique repetido do apa-
relho em opera����o, depois da ordem do m��dico:
��� P a r e de respirar.
Em seguida, mudou de posi����o, ouviu outro clique
do aparelho. Mais o u t r a posi����o, outro clique ap��s a or-
dem. Sucessivas vezes, com intervalos regulares, at�� que
o Dr. Teixeira a preveniu:
��� Espere aqui mesmo enquanto examino as chapas.
Instintivamente, ela p��s as m��os sobre os seios, no
m o m e n t o em que a luz branca incidiu sobre o ret��ngulo
vertical a que as chapas eram sucessivamente ajustadas.
E ele, de costas para ela, sem conter seu entusiasmo:
��� �� t i m o . T u d o limpo. Definitivamente c u r a d a .
Voc�� n��o imagina a alegria e a felicidade com que lhe dou
esta noticia. Pude salvar voc��, Glorinha. Eu disse ao Dr.
Pires que haveria de cur��-la, e curei. Aqui est��o as pro-
vas. S�� eu sei a emo����o com que lhe digo estas palavras.
Em dezoito anos de cl��nica, nunca tive u m a vit��ria igual.
E de p��, aproximando-se, j�� sem o avental met��lico
com que se protegera para bater as chapas:
��� Vou lhe dar alta.
E dando-lhe a m �� o no momento de descer o degrau
da escadinha:
��� Deixe eu aproveitar esta meia luz para lhe dizer
uma coisa muito s��ria. Posso dizer? O sanat��rio, para
mim, vai ficar terrivelmente vazio q u a n d o voc�� for em-
bora. Vai. Das saudades que o destino me tem d a d o , ao
longo da vida, sei que a sua ser�� a mais bonita. E a mais
profunda. Dar�� para me embelezar o resto da vida.
Glorinha estava agora �� sua frente, emocionada,
sem poder falar. Sentia os olhos ��midos. J�� as l��grimas
lhe molhavam os c��lios. E foi ela que, de repente, num
200
impulso, o apertou contra si, erguendo para ele os l��bios
ardentes, esquecida de que s�� a bata de linho branco lhe
protegia a nudez oferecida, pronta a se entregar.
201
S��TIMA PARTE
O cora����o do homem disp��e o seu cami-
nho, mas �� o Senhor quem dirige seus
passos.
Prov��rbios, 17, vers. 3
CAP��TULO I
H o u v e uma noite, no meado de maio, em que o
term��metro, pela m a d r u g a d a , parecia ter descido abaixo
de zero, com o vento a gemer de frio nas ��rvores que cir-
cundavam o sanat��rio. Pelo fim da tarde, n u m a luz fos-
ca, principiara a cair u m a chuva mi��da, que por fim en-
grossara sob o c��u escuro, a c o m p a n h a d a de rel��mpagos.
�� medida que as sombras vieram baixando, com a cer-
ra����o escondendo o viso da serra, a m o n t a n h a , a cascata,
e reduzindo as ��rvores pr��ximas a silhuetas esbatidas,
generalizou-se a impress��o de que seria aquela a noite
mais fria dos ��ltimos anos.
Logo foi acesa a lareira do refeit��rio. Em cada quar-
t o , e em alguns pontos da enfermaria, abriu-se a clarida-
de vermelha dos aquecedores el��tricos, ao mesmo tempo
em que cada doente tratava de encolher-se sob os grossos
agasalhos tiritando ou tossindo, a esfregar as m��os entor-
pecidas.
Entretanto, �� primeira luz da m a n h �� seguinte, a Co-
ra veio dizer �� Glorinha, ainda com a neblina embacian-
do o v��o da janela, que o frio n��o havia passado dos qua-
tro graus.
��� E agora est�� a nove, com este sol gelado.
E como Glorinha, ocupada em dispor as suas roupas
nas duas malas de couro, se limitara a mover a cabe��a,
com o l��bio inferior espichado, e ar de surpresa, a Cora
continuou a dispor sobre a mesa de centro, j u n t o �� jane-
la, a bandeja do caf��.
205
Q u a n d o terminou, ficou a olhar para Glorinha. E
logo depois, como quem tem pressa de se informar:
��� Eu vim dizendo comigo, quando vinha para c��,
que o Dr. Teixeira podia ter esperado para viajar com a
senhora.
Glorinha se fez de desentendida:
��� Por que viajar comigo? Ele tem a vida dele, eu a
minha.
E Cora, com vivacidade:
��� A senhora, q u a n d o veio para c��, veio com ele.
Pela mesma raz��o podia voltar, j�� que ele tamb��m ia em-
b o r a .
Glorinha tornou a curvar-se sobre o gavet��o do
arm��rio, tirou dali outras pe��as de roupa. Antes de
curvar-se sobre a mala que ia a r r u m a n d o , deu a resposta
adequada:
��� N��o �� a mesma coisa. Q u a n d o eu vim para c��, es-
tava muito doente, precisava de algu��m que me assistisse
durante a viagem. C o m o de fato precisei. Agora, n �� o .
Agora estou boa, posso fazer companhia a mim mesma.
A Cora, solicita, segurou a cadeira pelo espaldar,
para ajud��-la a acomodar-se defronte da bandeja. Espe-
rou que Glorinha sentasse. Deixou passar outro sil��ncio.
P��s-lhe o caf�� e o leite na xicara alta.
��� A senhora n��o leve a mal o que vou dizer. Deus ��
testemunha de que estou falando com o cora����o na boca.
A senhora e o Dr. Teixeira s��o amigos demais para um ir
na frente e outro atr��s.
E Glorinha, ap��s mover a colherinha para misturar
o a����car:
��� Desde que me deu alta, h�� vinte e dois dias, o Dr.
Teixeira deixou de vir aqui me visitar. Voc�� sabe disso.
��� Sei, sei. Mas tamb��m sei que a senhora, nesses
vinte e dois dias, foi duas vezes ao Gabinete M��dico falar
com ele. E levou l�� mais de hora. N��o fui eu que vi. Foi a
irm�� Catarina que me falou, achando que a senhora de-
via estar sentindo alguma coisa.
206
Glorinha agarrou a justificativa:
��� E estava, realmente. Na primeira vez, u m a dor fi-
na, aqui nas costas, no lugar do ��ltimo pneumot��rax; na
segunda, u m a nova crise de coluna, com a dor a se irra-
diar pela perna direita. Fiquei preocupada. Felizmente
n �� o era nada demais.
No sil��ncio, ouvia-se agora Glorinha mastigar as
torradas devagar, voltada para a m a n h �� que ia abrindo
aos poucos, sob a mesma luz leitosa. O vento continuava
a soprar, sacudindo a r��tula no caixilho de madeira, en-
q u a n t o o aquecedor el��trico, ainda esbraseado, lutava
contra o frio persistente, renovando as ondas de calor.
C o m o esquecida da Cora, que se pusera a olhar em
dire����o da cascata, esperando que esta voltasse a apare-
cer nas aberturas da n��voa, Glorinha reconhecia, de si
para si, que n��o havia sido inteiramente veraz na respos-
ta: s�� na segunda vez procurara o Dr. Teixeira por u m a
raz��o m��dica, com as dores da coluna. Quanto �� primei-
ra, n �� o . Tinha ido procur��-lo quase desesperada, ao ter a
impress��o de que ele lhe fugia, depois que ela se entrega-
ra ali mesmo, no div�� de forro pu��do, ao lado da sala de
raios X.
Jamais esqueceria a sua volta ao quarto, depois des-
sa entrega, j�� com a tarde declinando. Atravessara o
p��tio vazio, depois a alameda alastrada de folhas ca��das,
como alheada do vento cortante que parecia querer do-
brar os eucaliptos esguios. De cabe��a baixa, galgou os
quatro lances da escada. Fechou a porta do q u a r t o ,
deitou-se ao comprido da cama, com as m��os sob a nuca,
e ali ficou olhando o teto, �� ��ltima luz do ocaso, o globo
azul da l��mpada apagada, imersa na consci��ncia de sua
culpa. Agora, como voltaria para o Daniel? N �� o , n��o po-
dia voltar. E que faria de si mesma, depois do que havia
acontecido? E alteando a cabe��a nos travesseiros, com o
cora����o acelerado:
��� N �� o estava mais em mim, meu Deus.
207
Tinha certeza de que n��o estaria curada sem o desve-
lo do Dr. Teixeira. Fora ele que a salvara. Assim como a
D r a . Neli salvara o doente com que casara. Se devia a vi-
da ao Dr. Teixeira, tamb��m lhe pertencia. Do contr��rio,
j�� estaria por tr��s da orla de pinheiros, no seu t��mulo
caiado, como tanta gente.
E levantando-se, a tatear a parede em busca do co-
m u t a d o r da luz, �� sua direita:
��� T a m b �� m tenho de reconhecer que eu n �� o teria
vindo p a r a c�� sem o desvelo e o sacrificio do Daniel, que
se desfez de tudo de valor quanto possuia para que eu me
tratasse.
A luz repentina doeu-lhe nos olhos, e ela ficou a ver
os pirilampos a p o n t a n d o na escurid��o circundante, por
tr��s do vidro da janela fechada. Um pirilampo, dois,
tr��s; dois mais adiante. E de novo a consci��ncia de seu er-
r o , para voltar a dizer, a meia voz:
��� N �� o estava mais em mim.
Que estaria pensando o Dr. Teixeira? Quereria viver
com ela, como marido e mulher? Ou tudo continuaria co-
mo antes de sua entrega? N �� o , n��o podia ser. Ela era ou-
tra Glorinha. Ela pr��pria o ajudara a despi-la. Sem se
render ao frio, aninhando-se nos bra��os dele. No div�� da
saleta, ao entregar-se, n��o se limitara a quer��-lo u m a vez,
para saciar-se. Dera-se outra vez, depois outra, at�� sentir
que ele se derramara dentro dela, apaziguando-lhe a von-
tade. Nunca tivera u m a sensa����o igual. Nunca. Sensa����o
de plenitude. De quem encontrou o sentido de toda a an-
siedade que por vezes a perseguia e dilacerava. E reco-
nhecia, suspirando:
��� Sou dele, meu Deus. N �� o posso ser de mais nin-
gu��m.
Agora, como ia fazer? Largar tudo? Fugir dali? Ou
esperar que ele voltasse? Achou melhor esperar. Ele viria
ao seu encontro. Um e outro n��o eram os mesmos. Ti-
nham m u d a d o . E m u d a d o para sempre. N �� o quisera des-
cer ao refeit��rio, ao ouvir o chamado da sineta. Parecia-
208
lhe que ela pr��pria se denunciaria, com a luz de seus
olhos, com o riso de sua boca, com seus seios altos por
baixo do casaco de l��. A Cora, com certeza, traria o seu
j a n t a r .
E q u a n d o a Cora apareceu com a bandeja:
��� Deixa t u d o a�� enquanto vou ao banheiro.
E trancou-se na privada, com receio dos olhos da
Cora, at�� sentir que esta acabava de compor a mesa. Lo-
go a ouviu dizer-lhe depois de bater na porta:
��� P o n h a a bandeja no batente da entrada, do lado
de fora, q u a n d o acabar. Bom apetite. Boa noite.
Debalde esperara pelo Teixeira durante toda a noite.
Devia ter vindo. P a r a orient��-la. P a r a dizer-lhe o que iam
fazer. Esperou durante t o d o o dia, e mais a noite seguin-
te. E ele esquivo, ora fechado no Gabinete M��dico, o r a
atravessando o p��tio em largas passadas, de cabe��a bai-
xa, para acudir a algum doente. Nem sequer aparecera no
refeit��rio. Estaria a esquivar-se? E por qu��?
No quinto dia, bateu �� porta do Gabinete M��dico. E
a irm�� Catarina, que lhe abriu a porta:
��� O Dr. Teixeira quer lhe falar. Eu j�� ia m a n d a r
cham��-la. Entre. P o r aqui, Glorinha.
Ela, ao entrar na sala, notou o semblante devastado
do Dr. Teixeira, com os tra��os bem vincados nos cantos
da boca, a testa contra��da, u m a leve mancha por baixo
dos olhos fatigados.
E ele, fazendo-a sentar-se �� frente de sua mesa, na
cadeira das consultas:
��� H�� tr��s dias estou para lhe falar. Mas s�� agora te-
nho a not��cia que eu lhe queria dar. Vou chefiar u m a
cl��nica no Rio, e voc�� vai comigo. Passei estes tr��s dias
em debate comigo mesmo. Depois do que houve entre
n��s, n��o posso viver sem voc��. N �� o , n��o posso. Acon-
te��a o que acontecer. Voc�� tamb��m �� minha. Tenho o
meu direito. Sei que voc��, por seu lado, precisa de mim.
Precisa. N �� o como m��dico. C o m o h o m e m . C o m o com-
panheiro. Posso estar errado, mas tenho a ��ntima certeza
209
de que voc�� nasceu para mim e eu para voc��. Sempre pen-
sei assim. Desde q u e a t r o u x e p a r a c��. A q u i n �� o
pod��amos ficar. De m o d o algum. Seria u m a afronta. Sin-
to que t o d a gente me olha, como se soubesse de t u d o . A
come��ar pela irm�� Catarina. A Cora n��o me olha ��� me
espiona. Sinto isso. E ando sem jeito. Foi por essa raz��o
que n��o fui ver voc�� no seu q u a r t o . Nem falei com voc��
no p��tio e no refeit��rio. Falei para o Rio. Abri-me com o
Dr. Pires. S�� lhe pedi que me compreendesse. N �� o me
disse u m a s�� palavra. S�� falou q u a n d o lhe comuniquei
minha determina����o de sair daqui. E n t �� o me disse que
era isso mesmo que eu devia fazer. Consegui a cl��nica em
Botafogo. Vem outro m��dico para c��, ainda m o �� o , mas
competente. Especializou-se na Su����a. Ajudar�� o Dr.
Guedes. S�� espero que ele chegue para enfronh��-lo no
servi��o do sanat��rio, e ir embora. Voc�� ir�� no dia seguin-
te. Ou um dia antes de mim. �� melhor depois.
Por cima da mesa, ela lhe segurou as m �� o s , olhando-
o nos olhos. E ele viu q u a n d o as l��grimas lhe desceram
pelo rosto confiante:
��� N a d a te faltar��, Glorinha. Eu tamb��m preciso de
ti. E muito. Sem ti, n��o sei o que seria de minha vida.
Agora, no quarto friorento, ela torna a p��r mais
u m a pe��a de roupa na mala escancarada sobre a cama,
enquanto a Cora a observa, com um vinco vertical no
meio da testa. E j�� na porta, para descer a escada:
��� E seu marido? E sua filha?
��� Vou voltar para eles, depois de uns dias no Rio ���
mentiu Glorinha, sem se voltar.
E a outra, de costas, parada no batente da porta:
��� N��o se zangue comigo se eu lhe disser que duvi-
d o . Duvido, e muito. Conhe��o a senhora. Conhe��o o Dr.
Teixeira.
210
CAP��TULO II
O convite havia sido da irm�� Catarina, no momen-
to em que Glorinha descia ao p��tio para o ��ltimo banho
de sol:
��� Vou �� cidade. Quer ir comigo?
Na charrete, a caminho de Friburgo, Glorinha pro-
curava interessar-se pela paisagem �� sua volta, vendo
aparecerem casas, ��rvores, um riozinho a pular sobre pe-
dras, um renque de arauc��rias bordejando a curva da es-
trada, e um sol novo e vivo, que repentinamente se abria
sobre os telhados e as ramagens, sem conseguir atenuar o
vento gelado que continuava a descer das montanhas.
E a freira, antes de entrarem na estrada ensaibrada
que levava �� cidade, com a m��o de Glorinha nas suas
m��os:
��� Vai mesmo nos deixar ��� comentou, suspirando.
��� J�� agradeceu a Deus?
��� Muito cedo, estive na capela.
��� E abriu seu cora����o? Para dizer tudo o que est�� no
seu peito e na sua cabe��a? Tudo mesmo? E rezou? Mui-
to? E incluiu nas ora����es o seu marido e a sua filha?
E Glorinha, levantando levemente as sobrancelhas:
��� Claro que inclu��, irm�� Catarina. E por qu��?
��� Porque era preciso. Em cada passo que voc�� der,
n��o se esque��a de pensar neles. E pedir que Deus a ajude
e proteja. Somos fr��geis, como todos os seres humanos.
Uns mais, outros menos. Precisamos do amparo divino.
211
A cada instante. Sobretudo nas horas decisivas, que po-
dem modificar nossa vida.
No sil��ncio que se alongou, ouviu-se o estalar do chi-
cote a n i m a n d o o trote dos cavalinhos, e estes aligeiraram
a corrida, tinindo os guizos que traziam no pesco��o, en-
q u a n t o as casas se j u n t a v a m , dos dois lados da rua longa,
muitas de teto p o n t u d o , dentro de jardins gradeados, ou-
tras rente �� cal��ada, exibindo a caia����o recente sob o bei-
ral de telha corrida.
E a irm�� Catarina, como esquecida de seu assunto:
��� Eu pretendo ficar aqui o resto de meus dias. Me
sinto outra em Friburgo. C o m o se j�� tivesse, aqui na ter-
ra, uma pequena amostra da paz que Deus h�� de me dar
no C��u. Depois da noite de chuva, com a m a n h �� nevoen-
ta, esta luz tem ar de festa.
E com o iam entrando na pra��a longa, de altas ��rvo-
res esgalhadas, riscada pelas paralelas dos velhos trilhos,
e por onde passava o trem ao fim da tarde, a irm�� Catari-
na m a n d o u a charrete parar j u n t o �� cal��ada da igreja, se-
gurou Glorinha pelo bra��o, �� altura do cotovelo, e a foi
levando para a p o r t a central, depois desta pergunta
r��pida:
��� Entramos um pouquinho?
Ajoelharam-se no come��o da nave, defronte do
altar-mor, envoltas pelo cheiro dos c��rios ardendo nos al-
tares laterais. A luz da tarde, batendo nos vitrais, dava
p a r a envolver Glorinha, na extremidade do banco, como
a atenuar-lhe o semblante tenso. Depois, enquanto a ir-
m�� Catarina desaparecia pela porta da sacristia, ao lado
do altar-mor, Glorinha continuou de joelhos, inclinada
p a r a a frente, com as m��os no rosto:
��� Me mostre o melhor caminho ��� suplicou.
Aceitara o passeio querendo ver se espairecia a deso-
rienta����o que a atordoava. Depois do almo��o, no descan-
so da sesta, tinha sonhado de tal m o d o com o marido e a
filha, vendo-os caminharem em sua dire����o, na alameda
do sanat��rio, que abrira de repente os olhos assustados,
212
com a sensa����o de que o Daniel e a Maria Em��lia estavam
realmente ali.
Sentou-se na cama, ainda com o cora����o acelerado,
e mais uma vez se compadeceu do Daniel. O que ia fazer
com ele, ao decidir-se por outro homem, com quem pas-
saria a viver no Rio de Janeiro, era cruel demais. Em bre-
ve, S��o Lu��s inteira saberia de t u d o . E como ficaria ele,
na cidade pequena? Qual seria a sua atitude na sala de
aula? E que diria aos colegas do Liceu? Via-o de cabe��a
baixa, pensativo, com o o m b r o direito mais ca��do que o
o u t r o , sempre com um livro contra o peito, �� altura do
cora����o, e compadecia-se dele, quase decidida a adiar a
viagem, para desencontrar-se do Teixeira. No Rio, trata-
ria de tomar o primeiro navio para S��o Lu��s. E p��s-se a
imaginar a viagem de volta, longa, infinita, nas quatro
paredes do camarote, sabendo que, ao chegar �� sua terra,
n��o seria a mesma para o Daniel. N �� o , n��o seria. Quan-
do tivesse de entregar-se ao marido, mais obsessiva teria
de ser a lembran��a do Teixeira, no ��ntimo de seu ser, sem
que o Daniel lhe proporcionasse, ao possu��-la, a sensa����o
de plenitude do c o r p o a p a z i g u a d o . P o d e r i a m e s m o
repeli-lo, nessas ocasi��es. E justificava-se, na consci��ncia
de sua transforma����o:
��� Eu n��o sou a mesma, meu Deus. N �� o , n��o sou.
E de volta ao sanat��rio, na tarde alta e fria, com a ir-
m�� Catarina novamente ao seu lado, descansava as m��os
sobre o embrulho das pe��as de malha que havia compra-
do para o Daniel e a Maria Em��lia, n u m dep��sito de
f��brica ao lado da igreja, por sugest��o da freira.
J�� perto do sanat��rio, a irm�� Catarina voltou a lhe
falar:
��� Sinto voc�� melhor. Sinal de que Deus a est��
orientando para o b o m caminho. Voc�� n��o imagina co-
mo fiquei emocionada q u a n d o a vi comprar o casaco
para seu marido e o gorro e o vestidinho para a sua filha.
Quase chorei. No princ��pio, voc�� vai sofrer; depois de tu-
do passado, sentir�� um grande al��vio, reconhecendo que
213
Deus nunca nos falta, q u a n d o chamamos por ele na hora
de nossas afli����es.
E q u a n d o lhe deu a m �� o , �� porta do sanat��rio, para
ajud��-la a descer na cal��ada:
��� Adiou mesmo a viagem, Glorinha?
��� Estou pensando, irm�� Catarina.
E ainda com a cerra����o fechando a estrada, na pri-
meira hora da m a n h �� seguinte, a Cora entrou-lhe no
q u a r t o , sem ru��do, cautelosamente, para levar-lhe as ma-
las, depois de dizer-lhe que a charrete j�� estava l�� embai-
x o , �� sua espera-
214
CAP��TULO III
N �� o podia crer que fosse ela. E era. Era, sim. A
pr��pria. Vinha avan��ando pela plataforma da esta����o,
no seu passo esgalgado, como se estivesse por perto, p a r a
s�� aparecer no m o m e n t o em que ia soar o apito da parti-
da do trem.
A primeira rea����o de Glorinha, sentada j u n t o �� ja-
nela, em meio do carro repleto, foi cerrar imediatamente
os olhos, como a esconder-se por tr��s das p��lpebras. Mas
j�� a irm�� Catarina estava �� sua frente, batendo-lhe no
o m b r o :
��� Pensava que eu n �� o vinha, mas vim. Vim lhe dar
meu abra��o e desejar que Deus a acompanhe. Eu sabia,
desde ontem, por seus sil��ncios, que voc�� acabaria vindo.
P o r isso, hoje, cedo, q u a n d o bati no seu q u a r t o , encon-
trei o que esperava: n �� o havia ningu��m. E vim para c��.
Segurou a m �� o de Glorinha no m o m e n t o em que o
apito sibilou, logo seguido pelo silvo da locomotiva. Um
j a t o de fuma��a saiu por entre as rodas, que prontamente
rolaram sobre os trilhos, e t o d o o comboio se p��s em
marcha, chepe-chepe, chepe-chepe, enquanto a irm�� Ca-
tarina, emocionada, caminhava ao longo da plataforma,
ainda com a m �� o de Glorinha na sua m �� o . E q u a n d o o
trem aumentou a marcha, nou tr a arrancada, susteve o
passo, no limite do terra��o de cimento, e ficou a acenar-
lhe, repetindo:
��� V�� com Deus! V�� com Deus!
E Glorinha, correspondendo-lhe ao aceno, com a ca-
be��a para fora da janela:
215
��� Obrigada por t u d o , irm�� Catarina!
E q u a n d o voltou a sentar-se, com o comboio a ran-
ger na curva dos trilhos, levou o len��o aos olhos, force-
j a n d o p a r a reprimir o pranto convulsivo. Afinal, inspi-
rou profundamente, enchendo devagar o peito, e apoiou
o cotovelo na sali��ncia da janela, com a m �� o no queixo,
no esfor��o para aceitar o mist��rio da vida, que de longe a
chamava, com o Dr. Teixeira �� sua espera.
Chegaria ao Rio pelo fim da tarde. Ele estaria na
plataforma da Central do Brasil, agasalhado na velha ga-
bardina americana, com o chap��u de feltro caido para os
olhos, o cachimbo a um canto da boca, sobra��ando a re-
vista e o jornal. E s�� a imagem dele, senhor de si, a
esper��-la, restitu��a-lhe a confian��a plena no passo que es-
tava d a n d o . Seria o que Deus quisesse.
E Glorinha, de si para si:
��� Ia ser pior, se eu n��o tivesse vindo.
Ia. De volta de Friburgo, ao fechar-se no seu q u a r t o ,
sentara-se �� mesa, diante do bloco de papel a��reo, para
escrever ao Daniel. Tinha de abrir-se com ele, contando-
lhe t u d o : as suas noites em claro, o sentimento de grati-
d��o pelo Teixeira, depois o medo de ir para longe dele,
tendo a certeza de que a tosse, a febre e os escarros volta-
riam, por fim a atra����o que sentia por ele, e que n��o era
apenas f��sica, mas sobretudo afetiva e confiante. E houve
um m o m e n t o , ainda com a caneta a p o n t a n d o para o pa-
pel em branco, em que exclamou, num impulso de deses-
pero:
��� J u n t o dele me sinto outra, Daniel!
Ele lhe transmitia, apenas com a Sua presen��a silen-
ciosa, u m a confian��a repentina em si mesma, na vida, no
futuro, na sa��de. C o m ele ao seu lado, nada de m a u lhe
aconteceria. Pelo contr��rio: experimentava u m a viva sen-
sa����o de paz, mesmo nos dias sombrios, com a n��voa a
fechar o vidro da janela. Se estava aflita, bastava-lhe ou-
vir seus passos na escada, para reconhecer que a serenida-
de lhe voltava. Q u a n d o o via no v��o da porta, tinha de
216
conter-se para n �� o saltar ao seu pesco��o como uma
crian��a.
�� ainda olhando o papel:
��� Se n��o estou m o r t a , �� a ele que devo, Daniel! A
ele, a mais ningu��m. Ele me trazia os rem��dios que man-
dava buscar dos Estados Unidos e da Alemanha, e era ele
mesmo que me aplicava as inje����es. Se eu tinha alguma
piora, n��o precisava que ele me dissesse: olhando-o daqui
da janela, via-o atravessar a alameda de cabe��a baixa, co-
mo a falar com as m��os impacientes. N �� o �� que eu tenha
deixado de gostar de voc��, que �� meu marido. N �� o . �� di-
ferente. Nunca senti por ningu��m o que sinto hoje por
ele. E vou-lhe dizer mais: sem ele perto de mim, sei que
t u d o vai voltar. T u d o . Absolutamente t u d o . E vou conti-
nuar por aqui. M o r t a . Por tr��s daqueles pinheiros. Sem
voc��. Sem nossa filha.
Mas foi debalde que tentou achar as palavras para
dizer o que sentia. Escrevia, riscava; escrevia, riscava.
Sabia que ia destruir o marido. C o m o se o esmagasse
com aquela folha de papel a��reo. E terminara por curvar-
se sobre as m��os aflitas, cedendo ao pranto convulsivo. E
como as l��grimas a iam aliviando, concentrou-se nesta
s��plica repetida:
��� P o n h a uma luz diante de mim, meu Deus. Me
mostre o que devo fazer. Estou a t o r d o a d a . N �� o sei o que
fa��a.
Acabou p o r guardar o bloco de papel e a caneta, re-
conhecendo que n��o tinha o direito de ferir o Daniel.
N �� o . De m o d o algum. E veio-lhe ent��o, forte, quase in-
venc��vel, o desejo de morrer. Pela primeira vez encarava
a morte como a solu����o de t u d o . E como ficariam o Da-
niel e o Teixeira, q u a n d o soubessem que ela se tinha ma-
tado? Matar-se, depois de lutar tanto tempo para viver?
Cansada, j�� no limite da exaust��o, acabara por
deitar-se um m o m e n t o na cama, e mergulhou no sono
profundo, como a pedra que afunda no lago, para des-
pertar, assustada, j�� com o dia querendo romper. Nervo-
217
sa, consultara o rel��gio de pulso: j�� passava das cinco ho-
ras. E logo ouvira a Cora bater na porta, com ar estremu-
n h a d o , para lhe recolher as malas:
��� Estamos na hora.
O comboio descia cautelosamente a serra, a m p a r a d o
pelos dentes da cremalheira, deixando ver as ��rvores da
estrada, os c��es que latiam para os carros, as flores que
explodiam nas encostas, e at�� mesmo a borboleta amare-
la que entrou por u m a janela do vag��o e saiu do outro la-
d o , antes que, ali dentro, num impulso contente, um me-
nino gordo a alcan��asse.
Glorinha cerrou os olhos, sem conseguir dispersar a
aten����o nos acidentes do caminho, mesmo quando o
comboio atravessou u m a ponte sobre o abismo. C o m o ia
fazer para dizer tudo ao Daniel? E fechada no seu sil��n-
cio, estalando os dedos entrela��ados:
��� O Teixeira me ajudar�� a escrever para ele.
Logo reagiu. N �� o , s�� ela devia escrever. Para dizer
sinceramente o que sentia. E esse sentimento era seu, de
mais ningu��m. Principalmente considerando que, no seu
gesto, confessando t u d o , estaria em jogo o destino da
Maria Em��lia. Perd��-la-ia para sempre? N �� o , n��o era
poss��vel. Alimentara-a com seu sangue, com a sua vida.
P o r ela, quase morrera. C o m o ia perd��-la?
Por volta do meio-dia, com o frio atenuado pelo sol
aberto, passou pelo sono, com a cabe��a apoiada na sa-
li��ncia da janela. E p��de ver que, nesse hiato da consci��n-
cia, a locomotiva hesitante e vagarosa, que descia caute-
losamente o declive da estrada, pusera-se repentinamente
a correr, livre, desimpedida, a todo vapor, desfraldando
no espa��o ensolarado o seu penacho de fagulhas, como a
querer apressar a chegada ao Rio ��� onde o Teixeira esta-
ria a aguard��-la, calmo, senhor de seu destino.
218
CAP��TULO IV
Q u a n d o o trem diminuiu a marcha para entrar na
esta����o da Central do Brasil, depois de passar por altos
edif��cios de cimento armado e por casas baixas, com bei-
ral saliente e platibanda, que lhe lembraram as de S��o
Luis, a primeira rea����o de Glorinha foi de medo. Estava
chegando ao fim de sua op����o. Para tr��s tinham ficado o
Daniel, a filha, a terra natal. Porque tamb��m sabia que
nunca mais voltaria ao Maranh��o.
E n��o vendo o Dr. Teixeira na plataforma, ao pri-
meiro relance do olhar, sentiu que o sangue lhe fugia.
N��o teria vindo? Ou estaria chegando? E nisto deu com
ele, parado exatamente no lugar em que parou o carro.
��� Boa viagem? ��� ele perguntou, sorrindo-lhe.
E come��ando a receber-lhe a bagagem, que o chefe
do carro ia passando pelo v��o da janela:
��� Cheguei cedo. Pela primeira vez na vida. Porque
sempre chego na hora, ou depois que o trem chegou.
Depois, com o mesmo ar tranq��ilo, foi esper��-la de-
fronte da porta do carro, com os bra��os livres para
apert��-la contra si. E disse-lhe, quando a cingiu contra o
peito, por entre os encontr��es dos passageiros e dos car-
regadores:
��� N��o tenhas receio. Hei de te fazer feliz. Sei o que
teu gesto significa. N��o ��s uma mulher como as outras.
��s diferente. E eu tenho de te dar mais, muito mais do
que daria a outra companheira. Tem confian��a em mim.
219
Ela quis lhe responder que sim, que tinha essa con-
fian��a, mas apenas soube apoiar a cabe��a no seu o m b r o ,
muito aconchegada, com a sensa����o de que tinha ali um
abrigo ��� o seu abrigo. P a r a a vida e para a morte. Ele
lhe deu o bra��o, e vieram os dois perlongando a platafor-
m a , com o carregador a segui-los, trazendo as duas ma-
las, a chapeleira, os embrulhos, a maleta de m �� o .
A tarde ia terminando, com uma luz r��sea por cima
do casar��o do Minist��rio da Guerra. Adiante, outros
edif��cios, mais altos, mais imponentes. E na luz leitosa
que gradativamente se desfazia, acenderam-se de repente
as l��mpadas da ilumina����o p��blica, ao mesmo tempo em
que as sombras se esbateram por tr��s das grades de ferro,
entre as ��rvores ramalhudas do C a m p o de Santana.
E como o t��xi se esgueirava por entre ruas estreitas,
que lembravam a Glorinha as ruelas da Praia Grande, em
S��o Lu��s, ela quis falar, para revelar-lhe essa concord��n-
cia, mas se limitou a apertar-lhe a m �� o , emocionada.
Adiante, j�� mais calma, p��de perguntar-lhe:
��� P a r a onde estamos indo?
E q u a n d o o carro entrou na pequena pra��a, rodeada
de casas baixas, no centro de Laranjeiras, Glorinha teve a
sensa����o ainda mais n��tida de que estava voltando a S��o
Lu��s:
��� Isto est�� parecendo minha terra, Alu��sio! ��� ex-
clamou, ouvindo o ru��do dos pardais que se recolhiam, j��
com o largo iluminado.
E ele, contente com a alegria dela:
��� Deus me ajudou a descobrir esta pra��a. Aqui, nas
noites de luar, as crian��as ainda brincam de roda.
E para o motorista, que diminu��ra a marcha do car-
r o :
��� Aqui, aqui. Pode parar.
A casa, com um jardim na frente, e mais o m u r o e a
gradezinha de ferro, tinha o ar das casas de prov��ncia,
com seu teto alto, sua escadinha de pedra, e uma data na
bandeira da porta: 1890. As duas janelas sobre o jardim,
220
esguias, retangulares, pareciam rir pelas frinchas das
r��tulas, sob o vidro fosco da guarni����o superior. Um
cheiro vivo de rosas molhadas desprendia-se dos cantei-
ros bem-tratados.
Glorinha, j�� na cal��ada, olhava tudo aquilo com o
cora����o apertado, quase a chorar. E chorou, realmente,
sentindo-se confiante e feliz, assim que galgou os degraus
da escadinha e transp��s a porta almofadada que abria so-
bre a sala de visitas. N �� o p��de conter a exclama����o ao
ver �� sua frente o piano (igual ao que o Daniel tivera de
vender em S��o Luis), o grupo de palhinha, o consolo, os
quadros nas paredes, o espelho, as cortinas leves que se
arredondavam na vira����o da noite.
E o Teixeira, ainda levando as malas para a alcova:
��� Eu disse �� criada que s�� viesse a m a n h �� . T o m a
conta da casa, querida. N �� o quero que te falte n a d a . E
que tudo esteja a teu gosto.
Ela entrou na alcova, olhou a cama larga, as mesas-de-
cabeceira sob os abajures iluminados, o guarda-roupa, a
c��moda, a estantezinha de livros; depois passou �� sala de
j a n t a r , ao escrit��rio, �� cozinha, ao quarto de empregada,
ao quarto que servia de sala de estar, com o r��dio, a vi-
trola, a estante dos discos, o jogo de poltronas orelhudas,
os quadros de motivos maranhenses. T u d o disposto na
melhor ordem, com sobriedade e b o m gosto. Ao fundo
da casa, ao centro do quintal pequenino, u m a amendoei-
ra abria as suas largas folhas por cima das bordas de um
po��o.
E Glorinha, radiante:
��� Isto �� um peda��o de S��o Lu��s, Alu��sio!
��� ��. Mas nada foi premeditado. Simples coincid��n-
cia, indicando que at�� o acaso est�� a nosso favor.
De volta �� alcova, esteve ali uns momentos, como in-
timidada e contente, depois tornou �� sala, correu os de-
dos pelas teclas do piano, e t u d o ali lhe restituiu de repen-
te a sua sala, em S��o Lu��s. Mas sacudiu a cabe��a, atiran-
221
do de si o m u n d o perdido, e sorriu para o Teixeira, que se
deixara ficar �� porta da alcova, a observ��-la, comovido.
E ele, como se lhe adivinhasse o pensamento:
��� Hei de fazer voc�� feliz pelo resto da vida, fique
certa disso. Nos primeiros tempos, �� natural que haja em
voc��, muito agudo e tenso, o sentimento de culpa por es-
tar deixando para tr��s o seu marido e a sua filha. H�� mo-
mentos em que a vida reclama de n��s u m a cirurgia. A ci-
rurgia foi feita. Agora, trate de convalescer e ser feliz.
Voc�� �� t u d o para mim, Glorinha. T u d o . Nunca pensei
que eu pudesse gostar de algu��m como gosto de voc��. Pa-
ra o resto da vida. Um ao lado do o u t r o , seguindo o mes-
m o caminho.
Ela concordou com a cabe��a, sem lhe esconder os
olhos molhados. E veio para ele, com as m��os estendi-
d a s , tentando desfazer no sorriso o semblante pensativo.
��� Sei disso, querido. E �� por isso que estou aqui.
E ela mesma apagou a luz da sala, passou �� alcova,
trazendo-o pelo bra��o. J�� tinha no rosto enxuto a sereni-
dade confiante. E mais tarde, depois do b a n h o m o r n o
com que tirou do corpo a poeira da viagem, estendeu-se
na cama de molas rangentes, j�� vestida na camisola leve
que quase a desnudava. Encolheu-se sob o cobertor, sen-
tindo a noite fria, enquanto o Teixeira experimentava as
portas e janelas, no cuidado de fechar a casa.
Na rua, sil��ncio. Ali dentro, o ru��do dos ferrolhos e
das chaves. No quintal, o rumor do vento nas folhas da
amendoeira.
E q u a n d o o Teixeira se deitou a seu lado, apagou a
luz do abajur. A claridade do lampi��o da rua entrava pe-
lo leque das janelas, vinha at�� a alcova, envolvendo os
m��veis escuros na claridade mitigada. E n t �� o Glorinha,
que esperava por aquele m o m e n t o , segurou a m �� o do
companheiro, trazendo-o para j u n t o de si.
222
OITAVA PARTE
Todo objeto amado �� o centro de
um para��so.
N O V A L I S
CAP��TULO I
Na Sala da Congrega����o do Liceu Maranhense, eu
admirava o retrato do professor Ory, antigo cabeleireiro
franc��s que acabou professor de desenho em S��o Luis,
q u a n d o a voz do Daniel encheu o recinto, por tr��s de
mim:
��� N��o adianta pensares que o Ory sou eu, nessa ga-
leria de medalh��es. Eu estou aqui.
Com alvoro��o, voltei-me para ele:
��� Mestre, salve!
Era o Daniel de outrora que eu tinha �� minha frente,
n u m a das altas cadeiras de couro da mesa de reuni��es,
muito bem vestido, os cabelos lisos escorregando para as
t��mporas, o alfinete de p��rola espetando a gravata por
baixo do la��o, as pernas cruzadas, de costas para a clari-
dade da rua, o dedo indicador interposto nas folhas de
um livro.
Eu andava a despedir-me de minha adolesc��ncia, j��
com a passagem no bolso para mudar de terra, a caminho
de Bel��m, num navio do L��ide. Tinha ido ao velho casa-
r��o para dizer adeus ��s salas de aula, aos p��tios e corre-
dores, aos mestres, aos bed��is e inspetores, inesquec��veis
comparsas de minhas pr��ximas saudades.
J�� percorrera quase t o d o o sobrado imenso, e agora
estava ali, avivando a mem��ria de antigos mestres.
E enquanto abra��ava o Daniel, carinhosamente, efu-
sivamente, voltei a lembrar-me da Glorinha ��� a Glorinha
que eu tinha acabado de rever, na nossa sala de aula, re-
225
cortada contra a claridade da janela, alta, vistosa e cala-
da, negros cabelos crespos caindo para os o m b r o s , no
uniforme azul do Liceu, juntamente com o Cl��udio Ser-
ra, o Viegas Neto, o Correia da Silva, a Enedi, a Maria
Jos��, a Helo��sa, a Neide, a Doralice, o Bandeira de Me-
l o , o Tarc��sio T u p i n a m b �� . De mim para mim, olhando a
sala vazia, girara para tr��s a roda do tempo, no rodopio
das recorda����es indel��veis, e eles e elas tinham ocupado
as mesmas carteiras, com o Daniel sobre o estrado, �� me-
sa dos professores, a fazer a chamada dos alunos, com o
mesmo sulco vertical no meio da testa riscada de rugas, o
o m b r o direito um pouco baixo, e aqueles mesmos olhos
castanhos, tocados de mal��cia e bondade, de saber e in-
dulg��ncia, com as mesmas estrias amarelas, e que, agora,
na Sala da Congrega����o, se fixavam nos meus, interpela-
tivos e risonhos:
��� �� mesmo verdade que vais nos deixar? Foi o Ma-
ta Roma quem me deu a not��cia, ontem, no col��gio do
Arimat��ia. E o Viveiros, hoje, aqui no Liceu, me confir-
mou. Que j�� estavas de malas a r r u m a d a s . E que vais num
time de futebol.
Riu alto, em tom de zombaria divertida; depois, veio
mais para perto, inclinando a cabe��a para a frente, sem
deixar a cadeira, esperando minha resposta.
Sim, era verdade ��� confirmei. Na outra semana,
deixaria S��o Lu��s, num time de futebol que ia jogar em
Bel��m. O poeta Ribamar Pinheiro, meu velho amigo,
n �� o p o d e n d o sair d e S��o Lu��s n a q u e l e m o m e n t o ,
lembrara-se de mim, para ir em seu lugar. E eu, que so-
nhava conhecer outras terras, outros c��us, agarrei com as
duas m��os a aportunidade da viagem. Onde fosse preciso
falar, em nome do time, falaria eu. Aos 18 anos, com o
m u n d o diante de mim, como escolher outra tribuna?
E o Daniel, recolhendo o riso:
��� H�� u m a semana que sou outro h o m e m . A Glori-
nha teve alta. Est�� completamente b o a . Gra��as a Deus.
Mas n��o pode vir agora. Tem de passar pelo menos um
226
ano no Rio, p a r a controle peri��dico da cura. Ao fim de
um a n o , pode vir de vez, sem correr o risco de voltar. Um
ano passa depressa, q u a n d o se trabalha, como eu traba-
lho. Ela, para n��o ficar ociosa, aceitou trabalhar na
clinica que se encarregar�� de seus exames, de dois em dois
meses. Agora, n��o preciso mandar-lhe mais a mesada.
C o m o que ela ganha, pode manter-se. Aos poucos, vou
acabando de recompor a casa. Dentro de uns dois ou tr��s
meses, j�� terei na sala o seu piano. Eu, por meu lado,
acabo de assinar o contrato para lecionar Direito Civil na
Faculdade de Direito. Isso quer dizer que o rio voltou a
correr para o mar. Depois de tanta rebordosa, j�� era tem-
po de receber alguma recompensa. Com o favor de Deus.
Abracei-o, comovido. Ele merecia, realmente, aque-
la virada da sorte. Sofrera muito. Cheguei a supor que
em breve seguiria o caminho da Glorinha, recolhendo-se
tamb��m ao sanat��rio. Mas conseguira resistir ao in-
fort��nio prolongado, e agora ali estava, corado pelo sol
da praia, merecidamente feliz.
E o Daniel, enfiando o bra��o no meu bra��o, a cami-
nho da varanda comprida que acompanhava as salas de
aula:
��� Vou sentir tua falta ��� confessou-me, n u m a voz
grave. ��� Mas n��o te aconselho que fiques aqui. Vai. Pre-
cisas ir. Est��s na idade da aventura. O Ant��nio Lemos
saiu daqui para o P a r �� , e reformou Bel��m; o E d u a r d o Ri-
beiro saiu daqui p a r a o Amazonas, e reformou M a n a u s .
N��o digo que fa��as o que fez o Ant��nio Lemos, em
Bel��m. N �� o . N �� o tens voca����o para prefeito ou chefe
politico. Teu horizonte �� o u t r o . Passa uns tempos no
Par��, depois segue para o Rio. Ou para S��o P a u l o . �� de
l�� que quero receber teus livros. Um atr��s do o u t r o . Foi
para isso que nasceste.
Na minha casa, meu pai se opusera �� viagem:
��� O m u n d o , l�� fora, �� uma escola de perdi����o. Bas-
ta ver as revistas do Rio, no tempo do Carnaval, para fi-
car de cabelo em p��. O mais-que-maligno anda solto por
227
l��, desviando as almas do caminho de Deus. Bel��m,
maior que S��o Lu��s, deve ter mais pecados que aqui. Na-
da como cidade pequena, onde t o d o m u n d o se conhece.
J�� que desejas ir p a r a Bel��m, vai. Mas por uns tempos.
De l��, volta para c��. Nada de ir para o Rio.
Minha m��e, mais imaginosa, n��o pensava do mesmo
m o d o :
��� Deus est�� a te mostrar o caminho. At�� a passa-
gem de navio caiu-te do C��u. Vai embora. N �� o fiques por
l��. D�� um jeito de ir para o Rio. No Rio �� que eu te quero
ver. Vencendo. Fazendo figura.
E ali mesmo, com a chave passada na porta, que-
brou o porquinho de barro onde guardava as suas econo-
mias, ganhas na m��quina de costura. As moedas se espa-
lharam sobre o m��rmore da c��moda. Juntou-as de n o v o ,
por ordem de valor e t a m a n h o :
��� S��o tuas. �� tudo q u a n t o eu tenho. N �� o �� muito,
mas sempre d�� para sair de um aperto. J�� arrumei tua
mala de r o u p a . �� separei a outra mala de couro para teus
livros e pap��is. S�� quero que tenhas ju��zo. Nada de te ex-
cederes com as filhas alheias. Na tua idade, toda hora ��
hora para o passo em falso. N��o escorregues. Primeiro,
cuida de ti. Trata de fazer teu nome.
Daniel veio comigo at�� a porta do Liceu. Desceu a
escada com a m �� o no meu o m b r o . Foi ao p��tio em minha
companhia, depois voltou para o batente da porta sobre
a Rua Direita. Ali, travou-me do b r a �� o , noutro impulso
de confid��ncia:
��� J�� te disse que as ��ltimas cartas da Glorinha pare-
cem mais telegramas que cartas? �� verdade. Limita-se a
dizer-me que est�� bem, que eu n��o me preocupe com ela.
Eu j�� esperava por isso. No sanat��rio, com t o d o o dia
dispon��vel, as cartas eram, para ela, u m a forma de ocu-
pa����o. No Rio, ocupada na cl��nica, quase n��o disp��e de
t e m p o p a r a escrever. P a r a mim, o que realmente importa
�� a sa��de dela. T u d o mais �� acess��rio. Em casa, divirto-
me com a Maria Em��lia, que est�� na fase das perguntas.
228
Quer saber t u d o . Q u a n d o saio com ela, fica t o d a vaidosa
q u a n d o lhe dizem que �� o retrato da m �� e . ��. Pare-
cid��ssima. Aqueles olhos negros. Aqueles cabelos ondula-
d o s . Um amor de menina.
229
CAP��TULO II
Ao contentamento dos primeiros dias, com a ima-
gina����o a se debru��ar na a m u r a d a do navio, fora da bar-
ra, senhor exclusivo de meu destino, n �� o tardou a suce-
der em mim o sentimento da nostalgia e do remorso, por
a b a n d o n a r minha cidade, deixando para tr��s minha m��e,
meu pai, meus irm��os, meus amigos, meus colegas, sem
falar nas serestas das noites de plenil��nio, nas conversas
do Largo do C a r m o , no meu n a m o r o recente com a Ma-
ria Teresa. Tive de lutar comigo mesmo, noites seguidas,
ao embalo da rede, para n��o dizer ao Ribamar Pinheiro
que desistira da viagem.
Que outra cidade suplantaria S��o Luis? U m a ternu-
ra nova por tudo q u a n t o me cercava aflorou em minha
consci��ncia, constante, obsessiva. A rede em que me em-
balava parecia gemer comigo, rangendo no ferro dos ar-
madores. A luz do candeeiro de opalina, por cima do
m��rmore da c��moda, no pequeno quarto ao fundo de
minha casa, tinha uns tons vermelhos de pintura flamen-
ga, resvalando sobre a lombada de meus livros, na estan-
tezinha de cedro ao lado da rede ��� os livros que n��o po-
dia levar comigo, e dos quais teria de me lembrar, vezes
sem conta, como quem recorda amigos velhos que talvez
n �� o torne a encontrar.
�� mesa da sala de j a n t a r , com as irm��s de um lado e
os irm��os do o u t r o , e meu pai e minha m��e nas cabecei-
ras respectivas, a ouvir o tinido dos talheres na porcelana
dos pratos, de mistura com a toada certa do rel��gio na
230
parede, eu sentia mais tensos os meus nervos, e isto me le-
vava a precipitar as garfadas, com ��nsias de sair �� rua pa-
ra n��o explodir em p r a n t o , ou mesmo confessar mi-
n h a fraqueza.
Ainda bem que, ao saber de minha pr��xima partida,
sem promessa de voltar, a Amelinha se fez dadivosa co-
mo nunca, e foi pensando nela que fiz o Sebasti��o Cor-
reia tocar no violino a Serenata de Toselli, mais tarde, j��
noite velha, no conhecido sobrad��o bo��mio da Rua de
Nazar��.
Era como se eu fosse para a guerra. Dir-se-ia que,
a n d a n d o pelas ruas tranq��ilas, eu tinia as chilenas de mi-
nhas esporas, j�� na farda com que partiria para o campo
de combate. Era o guerreiro a despedir-se. Tinha direito
�� ternura de amigos e companheiros. Olhos lindos que
me tinham sido indiferentes, anos seguidos, agora me fi-
tavam, afetuosos e prometedores. No Caf�� Excelsior e no
Caf�� do Chico, no Largo do C a r m o , n��o me deixavam
pagar as despesas. E at�� na Pens��o da Chico, aonde fui
com u m a roda de companheiros, houve protestos gerais,
q u a n d o fiz o gesto largo para puxar a carteira.
E o Ant��nio Oliveira, falando por todos, na sua
condi����o de mais velho:
��� Hoje, n �� o .
At�� a noite com a Diva, no mirante do sobrado, na
cama rangente e espa��osa, correu �� conta da cortesia da
Chico, que me abra��ou, comovida, quase a chorar, no
p a t a m a r da escada, com ternuras maternas:
��� Vai, meu filho. Que Deus te proteja.
Despedi-me do Bandeira de Melo, no sobrado da
Rua de S��o J o �� o , e do Ribamar C o s t a , no sobrado
da Rua das Barrocas. Fui ao Anil despedir-me do Olivei-
ra, que me recebeu no port��o do jardim, com a boca re-
pleta de conselhos:
��� Ju��zo, muito ju��zo. Est��s na idade perigosa. Na-
da de bebida. Nem vida bo��mia. Trata de escrever teus li-
vros.
231
E n u m a s��plica, que me comoveu:
��� N �� o deixes de me escrever. Eu, por mim, escreve-
rei sempre, com as noticias e os fuxicos do Largo do Car-
m o .
Deixei para a v��spera da viagem, a noite, como der-
radeira despedida, a visita ao Daniel, nos arredores do
Largo de Santo A n t �� n i o . E tive esta surpresa: tudo ali es-
tava agora como ao tempo do casamento da Glorinha. J��
o piano n o v o , protegido por u m a capa de pano grosso,
ocupava o lugar do o u t r o , sob a mesma marinha inglesa,
de que o Daniel tanto se envaidecia.
Eu, com espanto, a p o n t a n d o para o q u a d r o :
��� C o m o conseguiu reav��-lo?
Daniel p��s-se a rolar na palma da m �� o o cigarro que
terminara de fazer. E erguendo o olhar, sem disfar��ar a
emo����o:
��� No dia de meus anos, deixaram o q u a d r o aqui em
casa, sem um cart��o, sem um bilhete. Fui �� loja do Gari-
baldi, para saber quem o havia c o m p r a d o , na ��poca em
que vendi quase t u d o o que tinha. Ele n��o me quis dizer,
alegando segredo profissional. Eu desconfio que os cole-
gas do Liceu se cotizaram para me fazer uma surpresa.
Q u a n d o abri o embrulho do presente, e dei com o qua-
d r o , chorei como um menino. Deus tem sido bom para
m i m . Deu-me a Glorinha, deu-me a Maria Emilia, deu-
me amigos. Amigos como voc��.
E levantando-se da poltrona:
��� Queres ver a Maria Em��lia? Precisas v��-la. Ela j��
est�� d o r m i n d o . Mas podes v��-la assim mesmo.
Entramos na alcova na p o n t a dos p��s. O Daniel pas-
sou �� frente, puxou o cortinado da caminha ao lado da
cama de casal. E, �� claridade do abajur, vi realmente a
Glorinha em miniatura. Igual �� m��e, no tom da pele, na
sali��ncia dos olhos, nos cabelos negros e crespos, no cor-
te da boca, nas linhas do corpo. Entre filha e m��e, nunca
eu tinha visto uma concord��ncia igual.
E n u m sussurro, segurando o bra��o do Daniel:
232
��� �� mesmo a Glorinha, sem tirar nem p��r.
��� At�� nisso Deus foi b o m para mim ��� reconheceu
Daniel, deixando cair novamente o cortinado. ��� Olho
para a Maria Em��lia como se estivesse a olhar a Glorinha.
E voltando �� sala de visita, que lhe servia tamb��m de
escrit��rio, vi os livros nos seus lugares, perfilados nas
prateleiras sucessivas, reluzindo na luz forte o doirado
das lombadas.
E Daniel, ao sentir minha alegria:
��� Por mais que eu tenha escrito �� Glorinha, para
lhe dizer que a casa j�� �� a mesma, sem ter m u d a d o nada,
eu sei que ela vai ficar espantada, q u a n d o voltar aqui.
Deus me protegeu, mas os amigos me ajudaram. T o d o s .
N �� o tenho de quem me queixar.
Somente na porta da rua, q u a n d o eu ia sair na cal��a-
da, foi que deixou transparecer uma pontinha de queixa:
��� As cartas da Glorinha �� que est��o mais espa��adas
e mais curtas. Sempre que custam a chegar, vou ao Cor-
reio, fa��o examinar as malas postais, e eu pr��prio vascu-
lho t u d o , para ver se a carta da Glorinha, que espero to-
das as semanas, n��o estaria retida, por u m a raz��o qual-
quer. Desta vez, aflito, passei-lhe um telegrama. Glori-
nha me respondeu no mesmo dia, pelo cabo submarino,
com a promessa de que iria mandar-me, dentro de pou-
cos dias, u m a longa carta. A carta que tem prometido
me escrever, desde que chegou ao Rio. Agora, todos os
dias, assim que dou a ��ltima aula, venho voando para ca-
sa, para ver se a carta j�� chegou. Hoje, chegou u m a , re-
gistrada. Lac��nica como as outras. Ou mais.
233
CAP��TULO III
N �� o foram os cinco a zero da derrota que mais me
deprimiram, nos primeiros dias de Bel��m. O time era fra-
co, a partida n��o poderia deixar de ser o que foi, ora sus-
citando risos, ora um esbo��o de vaia. Decorridos tantos
a n o s , tenho ainda na mem��ria o ar de espanto do goleiro
procurando a bola �� sua frente, por entre gargalhadas e
assobios, j�� com a pelota ��s suas costas, nas malhas da
rede.
Sa�� do campo de cabe��a baixa, as m��os nos bolsos
da cal��a, levando comigo aqueles apupos merecidos. Mas
a verdade �� que o meu interesse pelo futebol, nesse tempo
de sonetos e serenatas, descontadas as peladas da juven-
tude, n��o ia aos extremos da paix��o. Perd��ramos o j o g o ,
agora era esperar pela desforra ��� se houvesse desforra
poss��vel, depois de t a m a n h a surra.
O que realmente me apertou o peito, umedecendo-
me os olhos, foi a solid��o do quarto do hotel, depois de
ter a n d a d o horas e horas pelas ruas centrais da cidade,
sem encontrar um amigo, um conhecido, nas levas de
gente que iam e vinham pelas cal��adas.
Pela primeira vez na vida, eu me via fora de casa,
longe de minha fam��lia, de meus amigos, de minha terra,
nas quatro paredes de um quarto estranho, que abria so-
bre u m a rua indiferente, numa cidade que n��o me conhe-
cia. Defronte de minha janela, �� minha esquerda, era o
pr��dio da Biblioteca P��blica, fechado no fim da semana.
No sobrado ao lado, o Estado do Par��, com a algazarra
234
de suas m��quinas ressoando dentro da noite e trazendo
at�� a minha cama de ferro a trepida����o das imensas lino-
tipos.
N �� o desfiz o ba�� de couro, onde minha m��e acomo-
dara minhas roupas cheirando a alfazema, nem abri a
mala de meus livros, onde tamb��m trazia o esbo��o deste
romance e o caderno dos poemas. Sentia-me n u m a cela
de condenado, com aquela l��mpada nua a descer do meio
do teto, aquele len��ol encardido e aquela colcha esfiapa-
da nas p o n t a s . C o m o se o cub��culo me sufocasse, escan-
carei a janela, j u r a n d o a mim mesmo voltar urgente-
mente a S��o Lu��s, de onde jamais sairia. Onde os compa-
nheiros da mesa do Excelsior, no Largo do Carmo? Onde
as namoradas do Liceu? Que outra morena suplantaria
ali os olhos da Maria Teresa? Do��a-me a saudade de mi-
n h a casa, com o meu pai a ler a B��blia na cadeira de balan-
��o, enquanto minha m��e pedalava a m��quina de costura.
Lembrei-me da Glorinha, muitas e muitas vezes, sem
parentes ao seu lado, sozinha num sanat��rio, ap��s onze
dias de navio e um de trem, sem saber se refaria o seu ca-
m i n h o , de torna-viagem, ou se ficaria por l��, no pequeno
cemit��rio por tr��s da m o n t a n h a . S�� agora eu podia ajui-
zar de seu sofrimento. E admirei-a tamb��m por isso, ao
mesmo tempo em que me inspirava na sua li����o para
abrir a mala dos livros, em seguida o ba�� das roupas.
J�� na outra semana, a velha cidade indiferente, que
parecia n��o me dar a mais vaga aten����o, envolveu-me
nos meigos olhos castanhos de u m a companheira de bon-
de, e por eles comecei a descobrir as ruas orladas de man-
gueiras, os bancos de jardim sob as p��rgulas verdes, os
barcos fatigados e repletos que arquejam dia e noite no
Cais do Ver-o-peso, o sil��ncio e a paz da Cidade Velha.
U m a reclama����o ao gerente do hotel, no m o m e n t o
de pagar-lhe minha primeira quinzena, proporcionou-me
quarto mais amplo, com papel pintado nas paredes,
t a m b �� m de frente, e pelo mesmo pre��o, dada a circuns-
t��ncia de que eu estava decidido a morar ali, perto do
235
Gin��sio Paes de Carvalho, onde ia iniciar o curso pr��-
juridico.
No dia seguinte ao da mudan��a de q u a r t o , fui sur-
preendido com u m a secret��ria de imbuia e uma estante,
no espa��o entre a cama e a janela, com toda a luz da rua,
e mais um lavat��rio esmaltado e um penico de lou��a in-
glesa, este debaixo da cama, aquele ao fundo do aposen-
t o , ao lado da porta, luxos apenas dispensados aos h��s-
pedes que pagavam em dia as suas contas.
Acomodei no vidro da secret��ria o esbo��o do ro-
mance. J�� ali estava a Glorinha, alta, vistosa e calada,
sem eu saber ainda o destino que lhe daria. Drama?
Trag��dia? Final feliz? Dei-lhe o nome da Maria Teresa,
mais pr��xima de minha saudade amorosa. O mesmo an-
dar da mulher do Daniel. Os mesmos olhos. A mesma
ternura. E o mesmo gosto pela vida, b a n h a d a pela clari-
dade alta que envolvia o casar��o do Liceu Maranhense.
No entanto, antes de puxar novamente o fio do ro-
mance, misturando verdade e fantasia, derramei-me em
cartas sucessivas para S��o Lu��s. A flu��ncia epistolar, nes-
ta letrinha mi��da, pr��pria para confid��ncias, atenuou-
me esplendidamente a solid��o do quarto de hotel, e eu lo-
go reatei as longas conversas com o Oliveira, o Ribamar,
o Bandeira de Melo, o Correia da Silva, o Daniel, sem es-
quecer as boas amigas e as n a m o r a d a s . Ah, folhas de pa-
pel de bloco, companheiras diletas de minhas ins��nias e
de meus sil��ncios! Confiei-vos minhas saudades e meus
amores, meus sonhos e minhas ilus��es, meus desaponta-
mentos e minhas c��leras (?), e estou a lembrar-me das
l��grimas que desciam de meu rosto q u a n d o escrevi estas
palavras, em carta �� minha m��e: " H o j e a senhora faz
a n o s , e eu n��o estou ao seu l a d o . "
Se as respostas n��o tinham a mesma flu��ncia, sem-
pre davam para me p��r em dia quanto ��s novidades e
murmura����es de S��o Lu��s. Quem n��o tardava a escrever-
me era o Daniel, no seu cursivo fino e uniforme, sempre a
me falar da mulher e da filha. Em min��cias, acompanhei
236
o sarampo e a coqueluche da Maria Em��lia. E de repente,
pelo meado de j u l h o , este imprevisto: "A Glorinha, coi-
tada, teve um contratempo, que escondeu de mim: dois
meses de gripe rebelde, com amea��os de pneumonia agu-
d a . Seu m��dico pensou em mand��-la de volta ao sa-
nat��rio, temendo o pior. Da�� seu sil��ncio, nestes dois me-
ses, s�� me d a n d o not��cia pelos dois telegramas em que me
disse que estava bem. Resultado do contratempo: Glori-
nha vai ter de passar mais um ano no Rio. Eu, que a espe-
rava p a r a o Natal, com a casa refeita, tive de adiar minha
alegria, um tanto desapontado. Paci��ncia. Deus �� que sa-
be, aqui na terra, os nossos c a m i n h o s . "
237
CAP��TULO IV
O Ant��nio Oliveira, a quem cham��vamos de pa-
triarca, por ser o mais velho do grupo, dava-me not��cias
dos companheiros: "O Bandeira de Melo me disse que
n �� o te escreve porque s�� tem tempo agora p a r a se dirigir
�� Posteridade: escreve o seu poema, digno de competir
com o Y-Juca-Pirama. Gon��alves Dias que se cuide.
Quem te m a n d a lembran��as, sempre que se encontra co-
migo, �� o M a t a R o m a : assim que entrar em f��rias no Li-
ceu, responder�� tuas cartas. O Ribamar voltou a usar
pincen��: cai melhor com a sua condi����o de ensa��sta, mer-
gulhado na literatura h��ngara. O Nascimento Morais, al-
t o , gordo, com o chapeuzinho de feltro no t o p o da ca-
be��a, continua a dar a impress��o de um barco em alto-
m a r , q u a n d o atravessa o Largo do C a r m o , a caminho do
Liceu: n��o anda ��� veleja. O Correia da Silva, de bra��o
d a d o com o Assis Garrido, presume que os olhamos, nas
noites de retreta, na P r a �� a Benedito Leite, co m o se um
fosse Schiller e o outro Goethe, em S��o Lu��s. Que Deus
os perdoe. Estive com o Daniel, s��bado passado: vinha
saindo da S��, ao fim da missa, em companhia da filha,
que n��o podia ser mais bonita. Tive a impress��o de que
ele anda preocupado, c om o se houvesse um mist��rio
qualquer em t o r n o da G l o r i n h a . "
E r a b e m a l��ngua afiada do L a r g o do C a r m o .
Mist��rio em t o r n o da Glorinha? Que mist��rio? A falta de
not��cia, em vez de dar ensejo ao esquecimento, servia de
pretexto �� m u r m u r a �� �� o um tanto vaga. Na volta do Cor-
238
reio, chamei o Oliveira �� ordem: "A Glorinha teve um
amea��o de recaida, na fronteira da pnemonia; j�� est��
b o a , mas ainda sob vigil��ncia m��dica, por mais algum
t e m p o . D�� um n�� na lingua, q u a n d o n��o estiver bem in-
f o r m a d o . "
Na s e m a n a seguinte, Oliveira d e u - m e o t r o c o :
" Q u a n t o �� Glorinha... Cala-te, b o c a ! "
As cartas de meu pai, sempre apoiadas nos vers��cu-
los da B��blia, seguiam-me os passos, como se os adivi-
nhassem, ou se o velho contasse com outro protestante,
em Bel��m, para me vigiar, servindo-lhe de informante.
Desta vez, acertou em cheio com o meu n a m o r o n o t u r n o ,
na Avenida S��o Jer��nimo, sob a cumplicidade do galho
de mangabeira que neutralizava a luz do lampi��o: " M u -
lher virtuosa, quem a a c h a r �� ? " E dava-me a fonte:
Prov��rbios, cap. 3 1 , vers. 10. L�� adiante, como remate,
outra bobagem de Salom��o, no mesmo livro: "A mulher
formosa e insensata �� como um anel de ouro na t r o m b a
de u m a p o r c a . "
Minha m��e preferia recorrer �� sua pr��pria lingua-
gem: " T e m cuidado com as mo��as da��, meu filho. Est��s
muito mo��o para ca��res no la��o de u m a delas. Quem v��
cara bonita n��o v�� o bote que ela est�� p r e p a r a n d o . T u d o
tem a sua hora. Teu pai, q u a n d o casou, tinha 31 anos;
eu, 25. Teu primo Mois��s, da tua idade, acaba de casar
na Pol��cia, com u m a doidinha do Anil. T u a tia anda com
a cara q u a d r a d a de vergonha. T o d a cautela �� pouca. N �� o
preferias estudar no Rio? L�� o meio �� maior, tens outro
campo p a r a te expandires. Gra��as a Deus, j�� consegui en-
cher outro porquinho de barro com as moedas de minhas
costuras. S��o tuas, q u a n d o quiseres mudar de terra. Te-
n h o orado muito p a r a que Deus te p r o t e j a . "
A Cleide, que ultimamente quase n��o falava comi-
go, depois de me ter levado a trocar o Liceu pelo Col��gio
Cisne, surpreendeu-me com u m a carta em t o m gaiato,
em que percebi a dor-de-cotovelo por baixo da goza����o:
"Tive not��cias tuas pela Tribuna de hoje. Estou gostando
239
de ver o brilhante colega: colaborador do Estado do
Par��, primeiro pr��mio de orat��ria no Centro dos Estu-
dantes, e um livro publicado! Sim senhor! Parab��ns. O
soneto da Tribuna de domingo foi escrito agora? Ou �� da
fase em que os olhos verdes eram os meus? C o m o n��o te-
n h o o monop��lio deles, pude ler a poesia com a necess��-
ria isen����o, aplaudindo-a unicamente como admiradora.
Salve, poeta! Ja te contaram que estou noiva? Quase. E
com o juiz de direito de Pedreiras. �� verdade. Gostou de
mim, e eu dele: em breve estaremos a m a r r a d o s , at�� que a
morte nos separe. Por falar em morte: j�� soube que mor-
reu u m a tia da Glorinha? Morava com a irm��, desde que
a Glorinha casou. E tinha um nome estranho, como a D.
Escol��stica. Chamava-se Firminiana. Meu pai foi n a m o -
rado dela. Era uma pimenta, quando mo��a. Do que eu
escapei. Meu irm��o cadete, que estuda no Rio, viu por l��
a Glorinha, saltando de um bonde no centro da cidade.
N �� o chegou a falar com ela. De longe, cumprimentou-a.
Mas a Glorinha, ou n��o viu o Quincas, ou fingiu que n��o
o viu. O certo �� que, na confus��o da cal��ada, ele a perdeu
de vista, como se ela se houvesse metido em alguma porta
ou algum buraco. Bonita, como no tempo do Liceu.
Aqui constou que ela j�� est�� boa. Se estivesse, j�� tinha
voltado. O Daniel, pelo que se sabe, anda meio de p o n t a
com a sogra. Esta, na aus��ncia da filha, quis ficar com a
neta, mas o genro n��o concordou: ele pr��prio cuida da
menina, assistido por uma criada portuguesa, que faz as
vezes de governante. N �� o �� crian��a. Deve ser mais velha
que a D. Escol��stica, e com um bu��o exagerado. �� o que
salva o Daniel: do contr��rio, j�� estariam a falar mal dele
com a criada, na longa aus��ncia da mulher. Nossa t u r m a
j�� se dispersou. A Enedi casou. A Helo��sa, noiva. A
Maria Jos��, funcion��ria p��blica. Tu, a��. Em resumo: ca-
da um a seguir seu caminho. No Col��gio Cisne, a novida-
de maior �� que o professor Arimat��ia se desfez da vaca e
do bezerro. Aquele cheirinho caracter��stico, que subia
para a sala de aula, trazido pela brisa da tarde, j�� perten-
240
ce ao passado. T u a m��e, com quem me encontrei h�� dias,
disse-me que est��s pensando em ir para o Rio. Se fores,
ter��s de passar por aqui. T o m a r a que seja antes de eu ir
para Pedreiras. A v i s a . "
N �� o dava para entender. Meses antes, na v��spera de
minha vinda para Bel��m, eu tentara despedir-me da Clei-
de, e ela fugira de mim, m u d a n d o de cal��ada, correndo o
risco de ser atropelada por um carro, defronte da Biblio-
teca P��blica. Agora, era novamente a Cleide do tempo
d o L i c e u , b r i n c a l h o n a , a f e t u o s a , c o m u n i c a t i v a ,
restituindo-me a saudade de seus olhos adolescentes, que
eu guardaria para sempre no meu m u n d o de lembran��as,
sem de longe supor que, no m��s seguinte, o Daniel iria
dizer-me, no p��s-escrito de u m a nova carta: "A not��cia
triste �� que morreu a Cleide. De repente, ap��s tomar uma
inje����o. J�� estava de casamento m a r c a d o . U m a pena. Fui
ao seu enterro. T o d a a t u r m a estava l��, menos voc�� e a
G l o r i n h a . "
Apoiei a costa das m��os nos joelhos, sentado na ca-
m a , com a carta diante de mim, aturdido, siderado. Co-
mo era poss��vel aquilo, meu Deus? Levei v��rios dias ator-
d o a d o , com a sensa����o de que a vida, t��o l��gica e precisa
no seu encadeamento natural, subitamente se desorienta-
va, perdendo o controle de si mesma.
No princ��pio de dezembro, de volta de uma viagem a
Soure, a que fora levado pelos mesmos olhos ternos do
b o n d e d a A v e n i d a S��o J e r �� n i m o , e n c o n t r e i o u t r o
vers��culo da B��blia, na letra de meu pai: " N �� o te deixes ir
atr��s dos artif��cios da m u l h e r . "
A lembran��a dos seios morenos da No��mia, banha-
dos pelo manso luar da ba��a de Guajar��, refluiu-me ��
consci��ncia, como se eu os tivesse novamente diante de
mim, rijos e oferecidos. Aos 18 anos, quem �� que pode
ter ju��zo, no vaiv��m de uma rede? Mas o exemplo de meu
primo, obrigado a casar em S��o Lu��s, levou-me a refletir,
insone, boa parte da noite.
241
Por esse t e m p o , j�� eu tinha em N��lio Reis o meu me-
lhor amigo. De parceria, hav��amos publicado o nosso
primeiro livro, cerca de vinte cr��nicas hist��ricas, apenas
com este m��rito: o de servir de pretexto a que emend��s-
semos a m �� o nos livros seguintes. Eu era o seu primeiro
aplauso; ele, o meu.
Pela m a n h �� , bem cedo, fui �� casa do N��lio:
��� M a n o , vou para o Rio no primeiro vapor.
E ele, sem me pedir explica����o da viagem:
��� Pois ent��o vamos juntos ��� respondeu-me.
Ele estava acabando de escrever Sub��rbio, seu pri-
meiro romance. Eu ia em meio do romance de Maria Te-
resa, deixado ainda sobre a mesa, no meu quarto de ho-
tel.
Na semana seguinte, q u a n d o nos recolhemos ao ca-
marote, ouvindo o mar bater nos costados do navio,
N��lio me disse, com ar alvissareiro:
��� Terminei o romance. E o teu, como vai?
Fiz um gesto vago p a r a lhe replicar que estava meio
p a r a d o . E a verdade �� que, naquela mesma viagem, na-
quele mesmo navio, o romance real da Glorinha ia repen-
tinamente caminhar para o seu desfecho.
242
CAP��TULO V
Quando revi S��o Lu��s, envolta pela luz sangu��nea
da primeira claridade do dia, vim para a proa do navio,
ainda fora da barra, para assistir, emocionado, �� sua gra-
dativa apari����o ��� as torres das igrejas, a fachada branca
da ermida dos Rem��dios, os telhados escuros, a muralha
sobre que se alteia o Pal��cio dos Le��es, o penacho verde
das palmeiras, a orla de sobradinhos da Praia Grande,
at�� que ouvi o rolar da ��ncora buscando a areia da ensea-
d a , exatamente no m o m e n t o em que surgia o bondinho
que faz a curva do Cais da Sagra����o, descendo na dire����o
da Rua do Trapiche.
Deixei o N��lio Reis entregue aos parentes maranhen-
ses que o vieram buscar a b o r d o , na lancha do pr��tico da
barra, e tratei de ir ao encontro de mim mesmo, na lan-
chinha nervosa que me deixou no Cais da Sagra����o. T o -
mei um carro de pra��a, ali mesmo, e galguei a ladeira que
me levaria �� Rua dos Rem��dios. Avistei de longe minha
casa. L�� estava ela, com as duas janelas sobre a cal��ada,
a porta alta guarnecida pela cancela de ferro.
Bati palmas no corredor, como se fosse um estra-
n h o , mas n��o tive paci��ncia de esperar que me viessem
atender, ouvindo as vozes da fam��lia reunida em redor da
mesa do caf�� matinal. Transposta a porta do meio, que
abri sem dificuldade, surgi na porta da varanda, e houve
um sil��ncio, depois um grito de j��bilo, enquanto minha
m��e, desconfiada, vinha vindo para mim, apreensiva:
243
��� Que houve com voc��? Alguma coisa que n��o deu
certo?
E q u a n d o a tranq��ilizei, apertou-me contra o peito,
com o rosto no meu rosto, ao mesmo tempo em que mi-
nhas irm��s e meus irm��os me disputavam. S�� meu pai se
conservou na sua cadeira de couro, �� cabeceira da mesa,
a olhar-me. E assim que fiquei perto, buscando-lhe a
m �� o com que me aben��oava, levantou-se tamb��m:
��� Que vieste fazer aqui, sem nos avisar? Devias ter
avisado. Eu teria orado para que Deus te acompanhasse.
Era o velho tom grave de quem se entendia direta-
mente com Deus, sempre que orava. Depois, sorrindo, ao
saber que eu estava seguindo para o Rio de Janeiro,
abra��ou-me tamb��m:
��� Afinal, vais mesmo? Deus h�� de ter te inspirado.
Estes poetas s��o uns eternos poetas.
Passado o alvoro��o dos primeiros momentos, minha
m��e me levou para o fundo da casa, trancou-se comigo
no meu antigo quarto:
��� Juras para mim que n��o houve' nada contigo?
Olha l��.
Por fim, novamente tranq��ilizada, foi buscar o por-
quinho de barro repleto de moedas. E ela pr��pria o
abriu, quebrando-lhe o focinho:
��� Deve ter mais que o o u t r o . Subi o pre��o das cos-
turas, pensando na tua nova viagem.
Separou as moedas, contou-as, e toda ela resplande-
cia no instante em que meteu no meu bolso toda a sua
fortuna:
��� Com o favor de Deus, nada te vai faltar. Se tive-
res algum problema, telegrafa. Eu ainda tenho os cor-
d��es de ouro e os brincos de brilhante que recebi de meu
pai q u a n d o casei. Est��o guardados para u m a hora de di-
ficuldade.
Na minha aus��ncia, alguma coisa havia m u d a d o em
S��o Luis. Morrera o Dr. Neto Guterres, o Dr. Justo se
atirara da janela de seu sobrado, o Polari se m u d a r a para
244
Fortaleza, levando os livros velhos de sua loja, j�� se fala-
va da constru����o de u m a ponte para o S��o Francisco, o
Ant��nio Pires deixara de apresentar os recitais de sua
H o r a de Inverno. T u d o o mais permanecia como eu dei-
xara: o Largo do C a r m o , o tinido da lou��a no caf�� da es-
quina, os mesmos grupos de ociosos ilustres em redor da
est��tua de J o �� o Lisboa, a mesma revoada de saias azuis e
blusas brancas, no m o m e n t o em que saiam da Rua do Egi-
to os grupos de alunas do Col��gio Santa Teresa. L�� esta-
va o desembargador Domingos Am��rico, �� porta da Casa
Dias, escorado no seu bengal��o agressivo. T u d o igual. Vi
logo o Oliveira, o Ribamar, o Bandeira de Melo, o Cor-
reia da Silva, o Ant��nio Lopes, o Mata R o m a , o padre
Chaves, o imenso nariz vermelho do padre Lemercier.
Debalde procurei pelo Sebasti��o Correia.
E o Oliveira, dando-me noticias dele:
��� �� ave noturna, s�� aparece de noite.
Mas de noite eu n��o estaria mais ali. ��s seis horas,
com a ��ltima luz da tarde, o navio zarparia do p o r t o , ras-
gando as ��guas da mar�� cheia, no r u m o da barra.
Vi passarem as raparigas da Pens��o da Chico, des-
cendo a ladeira da Rua de Nazar��, provocantes, vestido
colado ao corpo, flor nos cabelos, e quase as chamei pelo
n o m e :
��� Denise, Eul��lia, Jovina, Maria Clara.
E o Oliveira, em dia com as borboletas novas:
��� Temos agora a Silvina e a Lola, que esi��o fazen-
do furor. O Chamin�� �� ainda o pianista da pens��o. Em
dia com as m��sicas novas.
Recordei-as com saudade e gratid��o, �� porta da Li-
vraria Moderna, ainda sentindo o perfume que tinham
deixado ao passar. F o r a m elas, essas encabuladas rapari-
gas de prov��ncia, vindas do interior para a capital, muitas
sem saberem assinar o nome, que descobriram a muitos
de n��s, mo��os inexperientes, dando-nos a consci��ncia e a
plenitude de nossa virilidade. Ao sairmos do sobrad��o da
Chico, pis��vamos com for��a os degraus da escada,
245
sent��amos o afago do vento na cal��ada da rua, e ��ramos
outros, no desvanecimento de nossa condi����o, ao chegar-
mos ao Largo do C a r m o .
Mestre Ant��nio Lopes, sabendo de minha chegada,
deixara-me recados em todos os bares do largo, e ainda
na Casa Dias e na Livraria do Ramos de Almeida. E
q u a n d o deu comigo, ao p�� da escadaria da S��, pelo meio
da tarde:
��� C a r a m b a ! Que dificuldade para te achar! Estou
vindo de tua casa, na Rua dos Rem��dios! J�� sei de t u d o .
R u m o ao Rio. Muito bem. �� o teu caminho. J�� escrevi
para o Viriato Correia, pelo Correio A��reo, dizendo
quem tu ��s. N �� o deixes de procur��-lo.
E s�� me deixou pelo fim da tarde, �� hora em que to-
mei a lancha na R a m p a do Pal��cio, de volta ao navio. A
despedida da fam��lia, pouco antes, fizera-me chorar. A
consci��ncia da dist��ncia maior, que da�� adiante ia nos se-
p a r a r , aumentou-nos a emo����o. S�� meu pai, s��rio, com
um leve tremor no l��bio inferior, parecia senhor de si, na
confus��o das l��grimas e dos abra��os:
��� J�� me entendi com Deus a teu respeito. T u d o vai
dar certo. Far��s uma ��tima viagem.
Minha m��e, chorando muito, apertou-me contra o
magro peito. E q u a n d o p��de falar:
��� Ju��zo. Muito ju��zo. Olha o que aconteceu com teu
primo. J�� tem um filho. E anda por a�� de nariz comprido,
sem emprego.
Assim que alcancei o portal�� do navio, j�� com o ma-
rinheiro impaciente a puxar os cabos da escada, avistei o
N��lio Reis no tombadilho, carregando u m a crian��a:
��� Sabes quem �� esta menina?
Era a Glorinha em bot��o que ali estava, n��o apenas
no lume do olhar, no moreno da pele, nas linhas do ros-
t o , na ondula����o dos cabelos, mas tamb��m em certo mo-
do de rir e falar.
E eu, para o N��lio:
��� Conheci esses olhos negros antes que ela nascesse.
246
Depois, q u a n d o o navio se fez ao largo, Daniel
postou-se ao meu lado, com a cabe��a bonita da Maria
Em��lia aconchegada ao o m b r o , para ver S��o Lu��s desapa-
recer na volta da P o n t a da Areia. E enquanto as ondas se
alteavam, j�� em plena barra, acercou-se mais de mim, pa-
ra me confiar o seu segredo:
��� Vou fazer uma surpresa �� Glorinha. Ela n��o sabe
desta viagem. Preparei tudo em sil��ncio. N �� o deixei nin-
gu��m saber. Vim mesmo para b o r d o �� ��ltima hora. Pelos
meus c��lculos, vamos chegar ao Rio no derradeiro dia do
a n o . Do navio, sigo para um hotel, no Catete. E �� noite,
q u a n d o o Ano-Novo estiver chegando, levo comigo a
Maria Em��lia, e vou bater na casa onde a Glorinha est��
hospedada. J�� pensaste na alegria que ela vai ter?
Antevendo a cena, sorria feliz, com a luz do tomba-
dilho a escorregar-lhe pelo rosto. E p u n h a o dedo diante
dos l��bios, para que eu n��o contasse o seu segredo a nin-
gu��m.
247
N O N A PARTE
O amor f��sico, e unicamente f��sico, per-
doa toda infidelidade. Mas tu, amor da
alma, amor apaixonado, n��o podes per-
doar.
A L F R E D D E V I G N Y
CAPITULO I
Os contratempos da chegada n��o desanimaram
Daniel. Primeiro, a chuva que molhava a cidade desde a
madrugada; depois, a luta para conseguir um quarto de
hotel, ali no Catete, no endere��o que lhe tinha dado a
b o r d o um caixeiro viajante.
E o gerente, por tr��s do balc��o, co��ando a nuca,
com um l��pis preso �� orelha:
��� No fim do a n o , com a cidade repleta de turistas, ��
muito dificil encontrar alojamento. O senhor devia ter
passado um telegrama, para fazer a reserva, ou ent��o
procurado uma ag��ncia de viagem, que tomaria essa pro-
vid��ncia. Sem reserva, nem compromisso do hotel, u m a
vaga, hoje, a esta hora, n��o �� dif��cil, �� imposs��vel.
E o que Daniel n��o p��de conseguir, com a sua fala
mansa e o seu ar suplicante, p��de a voz da Maria Emilia,
que puxava o pai pelo bra��o, impaciente:
��� Estou cansada, pai. Quero me deitar.
Logo o gerente inflex��vel, que n��o tinha dado por
ela, olhou-a com espanto, curvando-se sobre o balc��o, a
perguntar-lhe:
��� Est��s muito cansada, boneca? E queres u m a ca-
ma para deitar? Muito bem.
E para Daniel, que protegia a filha com as m��os so-
bre seus ombros, atraindo-a para si:
��� Serve-lhe um quarto de fundos, com uma cama
de casal?
251
��� C o m o n �� o , meu caro amigo? E ainda levanto as
m��os p a r a o c��u, reconhecido �� bondade de Deus.
E o gerente, t e n t a n d o segurar a m �� o da Maria
Em��lia:
��� Vem comigo, boneca.
E como a menina se retra��sse, caminhou na dire����o
da escada, seguido pelo Daniel e a filha, enquanto um se-
n h o r de bon��, a b o t o a d o n u m d��lm�� azul, vinha mais
atr��s, carregando as duas malas dos novos h��spedes.
L�� no alto, ao fundo do corredor comprido, o geren-
te voltou a desculpar-se, olhando Daniel, assim que abriu
a porta do q u a r t o :
��� N �� o h�� o u t r o . Dentro de um dia ou dois, arranjo-
lhe coisa melhor.
E r a um quartinho estreito, quase todo ocupado pela
cama de casal, com u m a janela alta abrindo para um
p��tio interno, um peda��o de m u r o e uma nesga de c��u.
��� �� ��timo ��� aprovou Daniel.
Pensou em acrescentar que, no dia seguinte, ou no
o u t r o , n��o estaria mais ali, j�� transferido, juntamente
com a filha, p a r a a mesma casa em que estava hospedada
a m��e da menina; mas susteve a palavra, com receio de
melindrar o senhor sol��cito e rosado, que voltava a
curvar-se para falar �� Maria Em��lia:
��� C o m o te chamas? A h , n �� o tens l��ngua? Ser�� que
deixaste a tua l��ngua no navio? Ou foi no M a r a n h �� o ?
E a menina, com vivacidade:
��� Minha l��ngua est�� aqui, dentro de minha boca.
E o gerente, com ar risonho:
��� Est�� a��, dentro de tua boca? Queres dizer que sa-
bes falar, mas n �� o sabes teu nome? Ou ser�� que, no Ma-
r a n h �� o , as meninas bonitas n��o t��m nome?
Maria Em��lia, embora sonolenta, encostada ao pai,
ergueu com rapidez as p��lpebras semicerradas:
��� T��m n o m e , sim senhor. E o meu �� Maria Em��lia.
��� Lindo n o m e . Muito parecido com a dona.
252
Maria Em��lia desencostou-se do pai e foi estirar-se
na cama, extenuada, friorenta, enquanto o gerente sa��a
ao corredor, depois de dizer ao Daniel que desculpasse:
dentro de um dia ou dois, dar-lhes-ia um quarto de fren-
te, com duas janelas sobre o Pal��cio do Catete.
E Daniel, reconhecido:
��� Obrigado, meu bom amigo. E boas entradas.
Cerrou a porta, passou-lhe a chave, e ficou um mo-
mento indeciso, a olhar para o quartinho ex��guo, com o
guarda-roupa apertado entre a parede e a cama, quase
sem espa��o para lhe abrir a porta. E argumentou, vendo
a filha adormecida:
��� Com esta chuva pegajosa, todo abrigo me servia.
Esfregou as m��os frias, tentando aquecer-se, em se-
guida tratou de fechar mais a janela, sentindo que o ven-
to se insinuava pela fresta das r��tulas.
Felizmente, ao sobrevir a tarde, o tempo melhorou,
com a chuva passada e o sol a se abrir por cima das po��as
de ��gua e do casario molhado. Por volta das quatro ho-
ras, j�� as ruas estavam secas. E a Maria Em��lia, que des-
pertara antes do meio-dia, e andara por todo o hotel, de-
pois do almo��o no refeit��rio, agora lhe pedia, puxando-o
pelo bra��o:
��� Vamos sair, papai. Eu n��o estou mais cansada.
Este quarto me aperta. Parece o camarote do navio. Va-
mos. Vamos sair.
E n��o compreendia por que o pai lhe recusava o pas-
seio, e ainda lhe sorria, com o dedo indicador confirman-
do a recusa, sem sair da cama. Como as for��as lhe faltas-
sem para tir��-lo dali, argumentava com ele, muito s��ria,
quase a chorar. N��o estava mais chovendo. Havia muita
gente nas cal��adas. Era s�� uma voltinha, como ela e ele
faziam em S��o Lu��s, no Largo de Santo Ant��nio. Por
fim, com ar amuado, amea��ou sair sozinha e ir embora
para o Maranh��o:
��� Vou, vou embora. J�� te disse que vou, e vou mes-
mo.
253
Daniel sentou-se na cama, a b o t o a n d o o colarinho da
camisa:
��� Pois ent��o vamos sair. Vamos. Mas s�� para u m a
voltinha. Papai est�� cansado da viagem. E quer estar bem
disposto, �� noite, para ir com voc�� ver m a m �� e . Enxugue
esse rosto. Enxugue. Papai vai fazer sua vontade.
N �� o lhe quis dar a raz��o verdadeira. C o m o entender
que o receio dele era encontrar a Glorinha, numa das
ruas do Catete ou de Laranjeiras, transformando n u m a
banalidade a surpresa da noite, com que tanto havia so-
nhado? J�� sabia que a pra��a onde a Glorinha morava era
ali perto, adiante do Largo do M a c h a d o . E se ela estives-
se na rua, a fazer compras, ou saindo para a clinica? En-
tregava o caso a Deus.
E p a r a a filha, ap��s a b o t o a r o j a q u e t �� o azul,
estendendo-lhe a m��o carinhosa:
��� Vamos embora.
Antes de sa��rem �� cal��ada, olhou para um lado e pa-
ra o o u t r o , estendeu a vista ao longe, afinal decidiu-se
por u m a pequena rua transversal, de pouco movimento,
�� direita do hotel, e foi a n d a n d o devagar, pronto a
esgueirar-se por uma porta ou uma travessa, se visse de
longe algu��m que se parecesse com a Glorinha.
E viu realmente, antes de chegar �� outra esquina, an-
dando na dire����o oposta �� do Pal��cio do Catete, u m a
mo��a morena, de costas, e que lhe lembrou a mulher.
Uma loja de brinquedos, na volta da rua, repentinamente
o salvou:
��� Voc�� n��o quer que eu lhe compre u m a boneca,
minha filha? Pois ent��o vamos entrar nesta loja.
Sa��ram de l�� carregados, de volta ao hotel, com u m a
boneca portuguesa que dizia papai e m a m �� e , uma cami-
n h a de madeira do t a m a n h o da boneca, e mais um fog��o-
zinho, um ursinho de pel��cia e um pianinho, tudo esco-
lhido pela Maria Em��lia.
254
E Daniel, novamente na cal��ada:
��� Agora, vamos para o hotel. Voc�� brinca, papai
descansa, e �� noite vamos visitar m a m �� e .
255
CAP��TULO II
P e l o espelho de tr��s faces da penteadeira, que
abrangia quase toda a alcova, Glorinha viu o Teixeira
terminar de compor o la��o da gravata no espelho do
guarda-roupa, j�� com a cal��a do esm��quingue.
E ele, olhando-a tamb��m pelo espelho:
��� S��o quase onze horas. �� melhor que cheguemos
mais cedo, para evitar a confus��o das mesas.
E m b o r a s�� lhe faltasse p��r as luvas e o colar, Glori-
nha retardava os retoques do rosto com a pluma do ruge,
c o m o se preferisse esperar ali mesmo o Ano-Novo, na
companhia exclusiva do marido, em vez de ir ao reveiom.
Ele, no ret��ngulo da porta, esticando sobre os om-
bros altos o el��stico dos suspens��rios:
��� Vais gostar do reveiom na Urca. N �� o foi f��cil
conseguir a mesa. Tive de me valer de um amigo l�� de
dentro e que foi meu cliente. N �� o havia u m a s�� dis-
pon��vel. Foi preciso que ele mandasse acrescentar mais
u m a , s�� para n��s, bem defronte do palco. O lugar n��o
podia ser melhor para apreciar o show.
E ao ver Glorinha deixar a pluma, voltando a reto-
car os l��bios com a p o n t a do b a t o m , bem perto do espe-
lho:
��� J�� era tempo de irmos juntos a esses lugares. N �� o
podes passar a vida inteira dentro de casa.
Afeita �� reclus��o do sanat��rio, Glorinha se ajustara
facilmente ��quele seu novo espa��o, portas adentro, jane-
las cerradas, no aconchego da pra��a que lhe lembrava as
256
pra��as de S��o Lu��s, com seu sil��ncio, seu chafariz trans-
bordante, suas crian��as brincando de roda nas mansas
noites de luar. Al��m dos livros, do r��dio e da vitrola, ti-
n h a o piano para lhe fazer companhia, nas horas em que
o Teixeira trabalhava na cl��nica, ou sa��a ��s pressas p a r a
atender algum caso de urg��ncia. Nestas ocasi��es, se era
noite, ela o esperava �� mesa da sala de j a n t a r , c o m p o n d o
o seu jogo de paci��ncia, at�� ouvir o ranger do p o r t �� o de
ferro. Logo reconhecia os passos do companheiro nas pe-
dras do jardim. E antes que ele enfiasse a chave na fecha-
dura da porta, girava a ma��aneta, abrindo-lhe o trinco.
O Teixeira, preocupado, tentava dar �� voz um tom
de reprimenda necess��ria, antes de beij��-la:
��� Por que n��o foste deitar?
A resposta dela era a mesma das outras noites:
��� S�� sei dormir contigo ao meu lado.
Em seguida, apagadas as luzes de outras pe��as da ca-
sa, iam os dois para a alcova ampla, ele a envolv��-la pela
cintura do penhoar, ela a sentir-lhe o bra��o como um
ref��gio, tal como apareciam na fotografia que adornava
o p i an o, no realce da moldura de prata, ao lado da foto-
grafia da Maria Em��lia, vestida de cigana, na fantasia do
��ltimo Carnaval.
Agora, vestido o palet��, o Teixeira avan��ou um pas-
so, acercando-se da penteadeira, e perguntou se Glorinha
havia posto no Correio a carta para o Daniel.
E ela, mais perto do espelho:
��� N �� o . Cheguei a entrar no Correio para comprar o
selo, mas mudei de id��ia. S�� devo mand��-la depois deste
per��odo de festas. Seria u m a crueldade d o b r a d a , se a
mandasse agora.
O Teixeira aproximou as sobrancelhas:
��� E o teu medo de encontrar no reveiom algum co-
nhecido de S��o Lu��s?
��� Deus, no dia de hoje, n��o vai p��r nenhum mara-
nhense em nosso caminho. T u d o vai dar certo.
257
Tinha sido a sua luta, desde que vivia com o Teixei-
ra: escrever ao marido para lhe contar t u d o . Sentava-se ��
mesa, com o bloco de papel e o envelope. Escrevia no al-
to da p��gina o lugar e a data. E, excluindo a express��o de
ternura das outras cartas, punha-lhe somente o nome:
Daniel.
Nesse p o n t o , a pena emperrava, a p o n t a n d o a p��gina
em branco sem que as palavras lhe acudissem. Que ia es-
crever, para abrir caminho �� confiss��o dif��cil, que certa-
mente o destro��aria? C o m o dizer-lhe que o tra��ra, depois
de t u d o q u a n t o dele recebera?
Aflita, deixava de lado a caneta, entrela��ava as
m��os:
��� Que �� que fa��o, meu Deus?
E redigia a seguir a carta formal de todas as sema-
nas, tendo o cuidado de atenuar gradativamente as ex-
press��es de carinho, falando mais na filha que nele, ou
somente na filha, sem aludir mais ao regresso a S��o Lu��s,
a preparar-lhe o esp��rito para a carta dolorosa que devia
mandar-lhe.
Perto do Natal, q u a n d o a costureira veio trazer-lhe o
vestido do reveiom, decidiu escrever a carta de qualquer
maneira. E o certo �� que, desta vez, achou-lhe o t o m
apropriado: s��brio, objetivo e direto, com o pedido
pr��vio do perd��o para o que ia revelar-lhe. Em poucos
minutos fez o rascunho, e logo o passou a limpo, sentin-
do que, a despeito de todo o seu cuidado em aliviar o gol-
pe, tinha-o desferido sobre o pobre Daniel.
�� noite, mostrou-a ao companheiro, que pronta-
mente a aprovou:
��� Est�� ��tima. E acabas com a tua reclus��o.
��� Eu me sentiria mal, num lugar p��blico, contigo
ao meu lado, como mulher e marido, sem antes ter escri-
to essa carta. Deus me livre de ser vista por algum conhe-
cido, que faria mau ju��zo de mim, e iria dar com a l��ngua
nos dentes, como se fosses para mim, n��o o companheiro
258
do resto de minha vida, mas u m a simples aventura. N �� o .
De m o d o algum.
E voltou a fraquejar, depois que a costureira lhe
trouxe o vestido, q u a n d o recebeu o cart��o de Natal do
Daniel, muito terno, e em versos, com a assinatura dele e
com os primeiros garranchos da Maria Em��lia. Teve de
trancar-se no banheiro para que a criada n��o a visse cho-
rar. Mesmo assim, n��o alterou a sua determina����o: poria
a carta no Correio assim que terminassem as festas do
A n o - N o v o , e iria mesmo ao reveiom. Antes, foi pedir a
Nossa Senhora, na igreja da Gl��ria, para que tudo desse
certo.
J�� p r on ta para sair, toda de azul, com o vestido lon-
go a real��ar-lhe a beleza tranq��ila, perguntou ao Teixei-
ra:
��� Pediste o t��xi? E n t �� o deixa. Eu pe��o.
E e n q u a n t o o T e i x e i r a a o l h a v a a d i s t �� n c i a ,
admirando-lhe o corpo esguio, ela tirou o fone do gan-
cho, para fazer a chamada, sem precisar consultar o ca-
derninho dos telefones. Depois, passou ao fundo da casa,
para bater no quarto da criada e desejar-lhe um feliz
A n o - N o v o . T o r n a n d o �� alcova, apanhou a bolsa, olhou-
se novamente no espelho da penteadeira, enquanto reco-
mendava ao Teixeira que apagasse o abajur da sala de vi-
sitas.
259
CAP��TULO III
De tarde, sentado na cama, Daniel brincou com a
filha, ajudando-a a preparar a comida para a boneca,
j u n t a n d o os restos de p��o e gel��ia que tinham ficado do
lanche ali no q u a r t o . Depois, contou-lhe a hist��ria do ga-
to de botas, a a c o m p a n h a r as emo����es da filha nos olhos
da Glorinha ��� os olhos negros que afinal ia rever �� noite,
antes que findasse o A n o Velho.
Por volta das sete horas, desceu ao refeit��rio com a
Maria Em��lia; ��s oito e meia, estava de volta. E disse �� fi-
lha:
��� Agora, Maria Em��lia vai dormir um pouco, pa-
ra estar bem acordada na hora de ver m a m �� e .
E enquanto a Maria Em��lia, deitada ao comprido da
cama com a boneca ao seu lado, mergulhava em sono
profundo, ele ficou �� janela, fumando o seu cigarro, a
olhar o c��u estrelado e l��mpido que se arqueava sobre a
cidade.
Parecia-lhe mentira o que estava acontecendo. Sepa-
rado da Glorinha por umas tantas ruas, aguardava agora
o momento de encontrar-se com ela. Por vezes, repetindo
o cigarro, vinha-lhe a ��nsia de antecipar esse m o m e n t o ;
mas sua natureza coibida reprimia esses impulsos, e ele
riscava o f��sforo, chupava a fuma��a, ouvindo o calmo
ressonar da filha na p e n u m b r a do aposento.
C o m o a Glorinha gostava de doces maranhenses, so-
bretudo de caju seco e compota de bacuri, tinha-lhe trazi-
260
do u m a b o a provis��o deles, que levaria consigo, para que
fosse completa a alegria da noite feliz.
Por volta das dez horas, seu rel��gio de pulso deu-lhe
a impress��o de ter p a r a d o . Levou-o �� orelha, assustado.
N �� o , estava t r a b a l h a n d o . E n��o tardou a ouvir a confir-
ma����o das horas no vagaroso bater do rel��gio do hotel.
��� Daqui a pouco acordo a Maria Em��lia.
Deixou a janela, ouvindo o estourar distante de fo-
guetes espa��ados, e ficou sentado na b o r d a da cama, ao
lado da filha, d a n d o tempo ao t e m p o . Afinal, passados
uns quinze minutos, acendeu a l��mpada de cabeceira e
p��s-se a chamar a menina, sacudindo-a pelo bra��o:
��� J�� est�� na hora de ir ver m a m �� e .
Mas n �� o era f��cil despert��-la. Tornava a cham��-la,
tornava a sacudi-la pelo bra��o, e ela continuava adorme-
cida, bra��os moles, olhos fechados, como se lhe faltas-
sem as for��as para tornar a si. Afinal, cansado de chamar
por ela, Daniel decidiu vesti-la assim mesmo. Trocou-lhe
as meias, tirou-lhe o pijama. Depois, conseguindo sent��-
la, p��de descer-lhe o vestido pela cabe��a sonolenta.
Segurando-a pelos o m b r o s , com o bra��o passado por tr��s
de suas esp��duas, abriu mais a risca dos cabelos, apertou
o la��o da fita na ponta das tran��as.
Aos poucos, por entre sacolejos, Maria Em��lia le-
vantou as p��lpebras, ainda com a cabe��a pesada, mas
conseguiu ajudar o pai, no m o m e n t o em que este, com a
pluma do p��-de-arroz, lhe tirou o brilho do rosto. E con-
cluiu, jubiloso:
��� Agora, sim, j�� pode ver m a m �� e .
Maria Em��lia n��o tardou a deixar pender o corpo,
resvalando a cabe��a para o travesseiro, enquanto Daniel
trocava de roupa no banheiro. E q u a n d o ele dali saiu, j��
p r o n t o , no costume novo, na camisa nova, na gravata
nova, cabelos bem-penteados, cheirando a lo����o de bar-
ba, os sapatos bem-engraxados, estava certo de que n �� o
faria m�� figura no reencontro com a Glorinha.
261
Fora, os foguetes se repetiam. De vez em q u a n d o , no
v��o da janela, um clar��o colorido se abria, com o chuvei-
ro luminoso que estourava no espa��o, por cima dos
edif��cios.
E Daniel, sacudindo novamente a Maria Em��lia:
��� Agora, vamos descer.
Mas foi baldado t o d o o seu esfor��o para acord��-la.
Ela abria os olhos, mantinha o busto levantado, e logo as
p��lpebras desciam, enquanto os olhinhos se apagavam,
tontos de sono invenc��vel, e o corpo tombava para o lado
do travesseiro.
Afinal, j�� decidido a lev��-la carregada, conseguiu
equilibr��-la no ch��o, com os p��s sobre o tapete esfiapa-
d o . E com u m a lembran��a nova, que de repente lhe acu-
diu:
��� Primeiro, vamos fazer xixi.
Levou-a ao banheiro, desceu-lhe a calcinha, esperou
que terminasse de urinar, enxugou-a com zelo de m��e, e
afinal saiu do banheiro, segurando-a pela m �� o . �� altura
da cama, ela aproveitou o m o m e n t o em que o pai reco-
lhia os embrulhos que ia levar, e mais u m a vez se deixou
cair sobre a cama, vencida pelo sono.
Daniel suspirou, resignado. N �� o tinha outro jeito a
n��o ser levar a filha carregada. A c o m o d o u os embrulhos
n u m a sacola, ergueu c o m esfor��o a M a r i a Em��lia,
acomodando-lhe a cabe��a sobre seu o m b r o , e desceu de-
vagar a escada, depois de ter conseguido passar a chave
na porta do q u a r t o .
Vez por outra, ensaiava conversar com ela:
��� Voc�� vai ver co m o a m a m �� e �� linda. Igualzinho ��
Maria Em��lia. Com esses mesmos olhos.
Na cal��ada da rua, sentiu melhor a noite festiva,
com a profus��o de luzes, as l��mpadas coloridas nos dois
lados da rua, os fogos a abrirem penachos multicores por
cima dos telhados, e em redor o ru��do das buzinas, dos
r��dios e das batucadas.
262
Sempre carregando a filha, deteve-se na parada do
bonde, �� espera do carro que o levaria �� Pra��a Jos�� de
Alencar. Ali desceria, seguindo o itiner��rio que o gerente
do hotel lhe tinha tra��ado �� tarde, a seu pedido. E como
o bonde n��o tardou, repleto de passageiros, o cobrador
veio ajud��-lo, e ele subiu o bala��stre, enquanto um se-
nhor se levantava para lhe dar o lugar.
��� Obrigado, amigo. Avise-me, por favor, q u a n d o
chegarmos �� Pra��a Jos�� de Alencar. �� l�� que vou descer.
Apesar do ruido em seu redor, dentro e fora do bon-
de, a Maria Em��lia continuava a dormir, molemente, pe-
sadamente. Era em v��o que o Daniel, tocando-lhe nos
l��bios, insistia em dizer-lhe, ao p�� da orelha:
��� Sua dorminhoca, vamos acordar. Est�� perto da
meia-noite. Est�� quase na hora de descer.
Na descida, o condutor voltou a ajudar Daniel. E
q u a n d o o bonde partiu, com a gritaria festiva dos passa-
geiros, ele fez um gesto largo, com a m �� o que segurava a
sacola:
��� Boas entradas para todos.
T o m a n d o pela sua direita, Daniel se viu n u m a rua
tranq��ila, de casas fechadas, e foi a n d a n d o devagar. Do-
brou adiante o u t r a rua, no mesmo passo lento, e teve a
sensa����o de ter voltado a S��o Lu��s, ao dar com a pra��a
arborizada, entre sobrados e casas baixas, com um chafa-
riz ao meio.
��� A pra��a �� esta.
E d a n d o com a casa de duas janelas e u m a porta,
precedida de um jardim, reconheceu, com o cora����o ace-
lerado, que era aquela a casa da Glorinha. L�� estava o
p o r t �� o de ferro. E as grades pontudas. E os canteiros flo-
ridos.
��� �� ali.
Cortou a pra��a em diagonal, d a n d o a volta pelo cha-
fariz, e em pouco descansou a sacola na sali��ncia do mu-
r o , ao p�� das grades, sentindo a pulsa����o das t��mporas,
no duplo esfor��o da emo����o e da caminhada. Sempre a
263
carregar a Maria Em��lia, era-lhe imposs��vel bater palmas.
C o m o ia fazer para anunciar-se? Nisto descobriu u m a
campainha n u m dos umbrais da porta, dentro do j a r d i m .
E se o p o r t �� o de ferro estivesse fechado? Com a m �� o li-
vre, tateou-lhe a fechadura, em busca da ling��eta do trin-
co, e logo o descerrou, reconhecido:
��� Deus est�� me ajudando.
E novamente c h a m a n d o a Maria Em��lia:
��� Acorda, filhinha, para ver m a m �� e . �� agora.
Calcou a campainha, com for��a, prolongadamente,
em seguida retrocedeu um passo, ainda com a cabe��a da
filha descansando no seu o m b r o esquerdo.
Um penacho de luz imenso abriu-se por cima da
pra��a, como se o repuxo do chafariz se houvesse transfor-
m a d o n u m a corola de fogo de artif��cio, e desfez-se sobre
as ��guas, ao mesmo tempo em que novos foguetes estou-
ravam, na dire����o do centro da cidade.
Daniel n��o olhou o penacho imenso, t o d o ele con-
centrado na porta que ia abrir, por cima de tr��s degraus
de pedra. Distinguiu ru��do de passos. Ap��s o estalo de
um interruptor, a luz da sala clareou os vidros das jane-
las, alongando-se para o jardim. Logo u m a chave rodou
na fechadura, e u m a senhora escura, com um velho xale
sobre os o m b r o s , apareceu no ret��ngulo da porta.
E Daniel, antes que ela lhe falasse:
��� D. Glorinha, por favor.
��� D. Glorinha saiu com o marido, h�� uns dez minu-
t o s .
Ele n��o conteve o espanto, quase a deixar cair a fi-
lha, perplexo, estatelado. Mas ainda teve for��as para per-
guntar:
��� Como?
��� Saiu com o marido. F o r a m ao reveiom, na Urca.
Daniel ficou um m o m e n t o de boca aberta, a olhar
para dentro da sala, sempre agarrado �� filha. E viu, pri-
meiro, o retrato da Maria Em��lia; depois, a fotografia da
264
Glorinha e de um senhor, este a envolv��-la pelas costas,
ambos sorrindo.
E a senhora, no batente de pedra, ao centro da por-
ta:
��� D. Glorinha nunca sai de noite. Foi o Dr. Teixei-
ra que insistiu com ela para sair. Venha a m a n h �� de ma-
n h �� . C o m o �� o nome do senhor?
E n c h e n d o o peito o p r e s s o , que a viol��ncia da
emo����o apertava como se lhe fosse tomar o f��lego, Da-
niel voltou-se para o p o r t �� o , sem responder. Em sil��ncio,
ganhou a cal��ada, cortou de novo a pra��a, sem querer
trazer de volta a sacola com os doces, e foi a n d a n d o na
dire����o do hotel, a repetir para si mesmo, j�� com os olhos
molhados:
��� E �� com o m��dico que tratou dela ��� concluiu,
livido, destro��ado, sentindo que o ��dio lhe subia do peito
como uma labareda.
No quarto do hotel, acomodou a Maria Emilia na
cama, sem lhe tirar o vestido de lese, e veio para a janela,
quase sem conseguir acender o cigarro, com �� f��sforo a
lhe tremer na ponta dos dedos. E ali ficou por mais de
h o r a , fumando e c h o r a n d o , fumando e chorando, a
olhar aparvalhadamente a noite de festas, abismado na
crueldade da sorte, sem conseguir entender o sentido e a
implacabilidade do castigo que lhe arruinava a vida para
sempre.
Na m a n h �� seguinte, m u d o u de hotel. Dois dias mais
tarde, voltou a S��o Luis. E l�� se transformou na criatura
calada e esquiva, que raramente saia de casa pelo tempo
das f��rias. Anteontem, aposentou-se, depois de ter casa-
do a Maria Em��lia com um colega do Liceu ��� o mesmo
colega que o saudou, com um belo discurso escrito,
q u a n d o lhe colocaram o retrato a ��leo na Sala da Con-
grega����o.
L A U S D E O
S��o Lu��s, 1934
Rio de Janeiro, 1984
265
Outros romances de JOSU�� MONTELLO lan��ados pe-
la NOVA FRONTEIRA em edi����es sucessivas:
Janelas fechadas
Labirinto de espelhos
A luz da estrela morta
A d��cima noite
Cais da Sagra����o
Os degraus do para��so
Noite sobre Alc��ntara
Largo do Desterro
O sil��ncio da confiss��o
Aleluia
Pedra viva
Um varanda sobre o sil��ncio
A coroa de areia
Os tambores de S��o Lu��s
Perto da meia-noite
Pr��ximo lan��amento:
Uma sombra na parede
A Nova Fronteira est�� publicando tamb��m o di��rio de
Josu�� Montello, de que j�� saiu:
Di��rio da manh��
Pr��ximo lan��amento :
Di��rio da tarde
um pouco do adolescente de ontem.
Antes assim. De todos os seus
romances, poucos ter��o o tom
pat��tico desta hist��ria de prov��ncia.
O romancista deu-lhe a clareza
expositiva, que est�� na ess��ncia de
sua maneira de escrever, e procurou
insuflar-lhe a teatralidade, que est��
na ess��ncia de seu tema.
Muito do autor, na hora de seus
come��os, est�� neste livro, escrito,
em grande parte, com as saudades
da adolesc��ncia. Companheiros de
gera����o, namoradas de juventude,
professores dessa fase rom��ntica e
feliz, aqui est��o guardados, com
seus uniformes e suas interroga����es
diante da vida. De vez em quando
faz bem �� sensibilidade do homem
maduro o regresso ��s fontes que
ficaram para tr��s. A mem��ria,
quando a interpelamos com
ternura, devolve as emo����es de
outrora, com o retoque da saudade
viva, a mesma saudade que levava o
velho Renan a reconhecer que tudo
quanto conseguimos escrever,
inspirados nas recorda����es da
inf��ncia e juventude, �� sempre
poesia. No caso, poesia em prosa,
com a inten����o da obra de arte.
Capa: Victor Burton
De: Bons Amigos lançamentos
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