ERICO VER��SSIMO
ISRAEL EM ABRIL
10�� Edi����o
Copyright �� 1987 by Herdeiros de Erico Ver��ssimo
Ilustra����o de capa: Carlos Scliar, Ceia LXX (detalhe)
Direitos de edi����o em l��ngua portuguesa, para o Brasil,
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CIP-Brasil - Cataloga����o-na-fonte - C��mara Brasileira do Livra, SP
Ver��ssimo, Erico, 1905-1975.
Israel em Abril / Erico Ver��ssimo - 10. ed. - S��o Paulo : Globo,
1996.
ISBN 85-250-0332-8
1. Israel - Descri����o e viagens 2. Israel - Usos e costumes I.
T��tulo.
CDD-915.694
87-1423 -390.095694
��ndices para cat��logo sistem��tico:
1. Israel : Descri����o e viagens 915-694
2. Israel : Usos e costumes 390.095694
�� mem��ria de Stella Budiansky
SUM��RIO
1 Tudo Vale a Pena 1
2 A Plan��cie de Sarom 9
3 Tel Aviv-Jafa 23
4 De Abra��o a Ben-Gurion 43
5 A Galileia 77
6 Os Judeus e o Juda��smo 135
7 Rumo do Deserto 157
8 Visita a um Profeta 207
9 Jerusal��m 219
10 Volta a Tel Aviv 261
11 Dois Kibbutzim 273
12 Numa Ilha Grega 309
1
TUDO VALE A PENA
SEXTA-FEIRA, 1.�� DE ABRIL DE 1966
Mundo velho sem porteira! Ainda hoje de manh��
minha companheira e eu contemplamos La Fornarina de
Rafael no Palazzo Barberini, em Roma; ao entardecer so-
brevoamos Atenas e tivemos um vislumbre da Acr��pole
�� luz do poente ��� e agora, noite nova ainda, desembar-
camos dum avi��o da Alit��lia no aeroporto de Tel Aviv.
Memor��vel momento: pela primeira vez em nossas
vidas pisamos a Terra Santa. Mas esperem, estamos ainda
sobre a pista de concreto do campo de pouso. O Caravelle
que acaba de nos retroexpelir, avej��o dum moderno
Apocalipse, parece ainda arquejar, fatigado da jornada.
O h��lito fresco da noite, que minha fantasia tempera de
redol��ncias b��blicas, chega-nos dessagrado por emana����es
de querosene.
"Chalom!" ��� exclama um funcion��rio do aeroporto,
indicando-nos o caminho com um sorriso e um gesto. A
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mem��ria inconsciente, cineasta desvairada, comp��e ��s
pressas e a esmo, com elementos de sua insond��vel fil-
moteca, uma esp��cie de cine-jornal vertiginoso: ��� . . .
Remota rua da inf��ncia judeus barbudos lojas de ferro-
velho faces de companheiros da escola prim��ria �� russi-
nhol �� turco! Ar��o Milititsky? presente! Luisa Russowsky?
ausente! internato protestante Escola Dominical B��blia
capa preta palavras com corpo e cor Cafarnaum (parda)
Galileia (verde) Bel��m (dourada) sinagoga (branca) circun-
cis��o (rubra) sin��drio (neutra). Di��spora era nome de
fruta? Abra��o, toma agora o teu filho a quem amas ��
l��bricas hebr��ias dos romances de Walter Scott �� Rosa
de Sarom! �� l��rio dos vales! 6 l��vidas m��mias ambulantes
de Dachau Belsen Auschkitz Treblinka! Que filme! E, ao
som dum Kol Nidre de rasgar o cora����o, misturado com
um jovial Hava Naguila, tudo isso me passa pela mente
numa fra����o de segundo.
Um pequeno grupo aproxima-se de n��s. Em breve
caio nos bra��os de Shaul e Myriam Levin. (Conheci Shaul
no Brasil ao tempo em que ele era ministro conselheiro
da embaixada de seu pa��s, tive-o em minha casa em
Porto Alegre num ser��o ao p�� da lareira acesa numa
noite de inverno, e descobrimos que ��ramos irm��os.) O
cavalheiro alto, de perfil sem��tico, que agora me aperta
cordialmente a m��o, deve ser funcion��rio do Minist��rio
do Exterior israelense. Ilus��o ��ptica. �� o Dr. Aloysio
Guedes R��gis de Bittencourt, embaixador do Brasil em
Israel. Algu��m me estreita contra o peito e ficamos a nos
dar reciprocamente fortes palmadas nas costas, numa
esp��cie de dan��a de ursos, antes mesmo de eu saber ao
certo quem me abra��a. Finalmente descubro: "Nahum
Sirotsky, homem de Deus, que �� que voc�� anda fazendo
por aqui?". Encontrei pela ��ltima vez este simp��tico judeu-
errante ga��cho em Washington, h�� uns quatro anos, e
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depois perdi-o de vista por completo. Conta-me que �� adido
de imprensa junto �� nossa embaixada em Tel Aviv. Apre-
senta-nos Beila, sua mulher, uma loura de face dram��tica.
O senhor cordial que agora nos sa��da �� o embaixador
do Uruguai, que aqui veio ��� explica ele ��� na qualidade
de amigo do Brasil e de meu leitor. A s��tima personagem
do grupo, um jovem de fisionomia risonha, Nassim Itzahk,
representa o Minist��rio das Rela����es Exteriores, e traz-
nos as boas-vindas do ministro Arieh Eskel, um de nossos
anfitri��es.
Dentro em pouco estamos no carro do embaixador
do Brasil, rodando sobre excelente estrada asfaltada que,
em menos de vinte minutos, nos leva ao centro de Tel
Aviv. Estranho que as ruas estejam j�� t��o desertas ��s
dez da noite. Sirotsky lembra-me de que o Sab�� come��a
sempre na sexta-feira, ao cair do sol.
ARTIMANHAS DA MEMORIA
Reservaram-nos um quarto no Hotel Dan, um dos
tr��s maiores e mais modernos da cidade. Encontramos
o amplo sagu��o da entrada pululante de turistas que
acabam de desembarcar dum ��nibus, e agora aqui se
agitam tratando de registrar-se e localizar suas bagagens.
Devem ter vindo para as festas do Pesach. (P��scoa, em
l��ngua de crist��o.) S��o em sua maioria judeus americanos,
gritam e gesticulam como latinos. Um deles, retaco, ruivo,
rubicundo e r��bido, ostentando uma gravata que parece
um del��rio psicod��lico, masca fren��tico o seu charuto.
Entreou��o que algo lhe saiu errado. Velhotas artificial-
mente coloridas, como certas frutas da Fl��rida e da Cali-
f��rnia, d��o ordens aos maridos, �� melhor maneira ianque.
Os empregados do hotel movem-se por entre turistas e
malas, num ritmo entre relutante e casual.
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Novas hordas de viajantes invadem ruidosamente
o sagu��o e dirigem-se s��fregas para o balc��o dos recep-
cionistas, onde um gerente aflito briga em hebraico com
seus auxiliares e trava exaltados di��logos em ingl��s ou
i��diche com os clientes.
M. e eu nos entreolhamos, trocando sorrisos. Minha
mulher sabe que me divirto observando gente em a����o,
e que coleciono tipos humanos con amore.
Gra��as aos bons of��cios de Shaul Levin conseguimos
registrar-nos. Despedimo-nos dos amigos e somos condu-
zidos ao nosso quarto: espa��oso, confort��vel, decorado
de maneira agrad��vel e muito limpo. Ao boy que carregou
at�� aqui a nossa bagagem, explico em ingl��s que n��o
tenho no bolso sequer um m��sero agora, pois ainda n��o
comprei dinheiro nacional. Ele sorri, murmura algo que
me soa como ��in davar, e se vai.
Duas portas-janelas abrem-se para uma sacada. O
Mediterr��neo ali est�� do outro lado da rua, encolhido e
apagado no ��mago da noite. Longe piscam as luzes de
Jafa.
��� Napole��o andou por aqui ��� murmuro.
��� Que Napole��o?
��� Ora, o Bonaparte. Seu ex��rcito tomou Jafa. Mas
n��o conseguiu conquistar o Acre. Viva S��o Jo��o de Acre!
Devemos �� gentileza do gerente do hotel a natureza-
morta que est�� sobre esta pequena mesa redonda, num
prato de cer��mica: frutos da terra, gordas bananas, co-
radas ma����s, douradas laranjas. Penso no solo semi-��rido
de Israel e murmuro: "Esta gente �� capaz de tirar leite
de pedra".
��� Onde estamos? ��� pergunto em voz alta. Estas
duas palavras, que costumamos pronunciar quando, via-
jando no estrangeiro, chegamos a algum lugar, s��o uma
esp��cie de f��rmula m��gica que tem o dom de nos acordar
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para a realidade, livrando-nos dessa perigosa dorm��ncia
ou agita����o tur��stica que nos embota os sentidos, levando-
nos a aceitar com demasiada naturalidade ou indiferen��a,
e sem verdadeiro proveito e encanto, o fato de estarmos
em ex��ticas geografias dantes t��o sonhadas e desejadas.
Muitas vezes s�� depois de voltar a nossa casa no Brasil
�� que, numa surpresa retrospectiva, nos maravilhamos
de ter estado no pal��cio do Rei Minos, na ilha de Creta,
no Grande Bazar de Istambul ou no Barrio G��tico de Bar-
celona. "Tel Aviv!" ��� respondo, mas sem muita convic����o.
Coisa curiosa. Nossa geografia interior �� em grande
parte feita de estampas de revistas, livros ou imagens de
filmes cinematogr��ficos vistos na inf��ncia e na adoles-
c��ncia. Menino de gin��sio, encontrei num n��mero de
Leitura para Todos a reprodu����o duma fotografia da Place
des Vosges. Quando, quarenta anos mais tarde, visitei
Paris, a primeira coisa em que pensei ao entrar na fa-
mosa pra��a foi a gravura do magazine, e tive ent��o a
oportunidade de confrontar a minha lembran��a de sua
fotografia com o original. No entanto, de volta ao Brasil,
toda vez em que pensava na Place des Vosges nem sempre
a imagem que me vinha �� mente era a da "coisa real",
mas freq��entemente a sua remota reprodu����o fotogr��fica.
Mais tarde, reencontrando por acaso o citado n��mero de
Leitura para Todos, fiquei surpreso ao verificar que o
seu clich�� da pra��a pouco tinha a ver com a lembran��a
que dele eu guardava na mem��ria. Entrei em pol��mica
com o menino e o adolescente que ainda me habitam clan-
destinamente, pois ambos insistiam diab��licamente em
me provar que a verdadeira Place des Vosges n��o era a
concreta, a real, a que est�� em Paris e que o meu eu
adulto viu, nem mesmo a sua reprodu����o no magazine,
mas sim a mem��ria dessa estampa ��� a imagem que me
ficou impressa na mente, com toda a sua carga de tempo
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e fantasia. (N��o ser�� este um bom ponto de partida para
discutir problemas de arte, principalmente de fic����o e pin-
tura? Mas n��o agora ��� pelo amor de Jeov��! ��� pois
mal acabamos de chegar a Israel e estamos cansados.)
Experimento as torneiras do quarto de banho: a
��gua jorra abundante. Minutos mais tarde, debaixo do
chuveiro, tenho uma sensa����o de culpa por estar gastando
tanta ��gua num pa��s em que ela �� t��o escassa. Se por
um lado esse sentimento aumenta minha auto-estima,
por outro me d�� a indulg��ncia plen��ria de que necessito
para prolongar o banho.
M. experimenta uma laranja israelense. Mordo com
mais rever��ncia do que gula uma das ma����s. Sentamo-nos
junto da mesa e ficamos por algum tempo examinando
o programa de nossa visita, que Levin nos entregou no
aeroporto. Nos pr��ximos dezenove dias viajaremos pra-
ticamente por todo o pa��s, desde a alta Galileia at�� ao
deserto de Neguev. Visitaremos aldeias, vilas, cidades,
kibbutzim e mochavim. Veremos pessoas, coisas e insti-
tui����es. M. est�� um pouco assustada ante este itiner��rio
geogr��fico-social. Teremos quase todos os dias ocupados
da manh�� �� noite. Folheando o gordo programa, escrito
em portugu��s e hebraico, ficamos a nos perguntar se
tal ou qual coisa "vale a pena".
Deitamo-nos. Abro o volume das poesias completas
de Fernando Pessoa, o ��nico livro que trouxe comigo.
O poeta responde �� nossa pergunta:
Tudo vale a pena,
Se a alma n��o �� pequena.
Apago a luz, fecho o livro e os olhos, e concluo
que s��bio �� o turista que viaja com bagagem pequena e
alma grande.
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P��O ��ZIMO
Oito da manh��. Um morno sol de primavera ilumina
o c��u de ��ndigo desbotado, a cidade de clara cinza e o
mar de n��o mui limpa turquesa. Descemos ao restaurante
para a primeira escaramu��a com a comida israelense.
Serve nossa mesa uma rapariga morena, esguia e perni-
longa. Puxo conversa com ela. O mais que consigo arran-
car de seu laconismo �� que nasceu na Arg��lia, trabalha
durante o dia e estuda �� noite, e que grapefruit em he-
braico �� escoliot.
Com uma curiosidade meio desconfiada fazemos uma
incurs��o ao bufete, onde est��o expostas as especialidades
da refei����o matinal: fatias de tomate, peda��os de arenque
lambuzados de nata azeda, cenoura ralada temperada
com suco de lim��o, fatias de queijo, sardinhas reluzentes
de azeite, rodelas de pepino em conserva... O ativo cheiro
de cebola que exalam estes pratos, nos p��e em fuga.
Tornamos �� nossa mesa, resignados a tomar um conser-
vador ch�� com p��o. P��o? A gazela morena lembra-nos
de que estamos na semana da P��scoa, per��odo em que os
judeus comem o matzot, isto ��, essas delgadas bolachas
de farinha n��o levedada que vejo num prato no centro
de nossa mesa. Parecem rijas folhas de papiro, e o tostado
irregular de sua superf��cie lembra caracteres hebraicos.
Evoco um vers��culo b��blico. Guardai pois a festa dos
p��es ��zimos, porque naquele mesmo dia tirei vossos ex��r-
citos da terra do Egito: pelo que guardareis este dia nas
vossas gera����es por estatuto perp��tuo. (��xodo. ��� 12:17.)
Minha mulher me pede que lhe explique a simbo-
logia do p��o ��zimo. Exprimo minha ignor��ncia num en-
colher de ombros.
Se ela me tivesse feito esse pedido dois anos mais
tarde eu poderia ter tentado satisfazer-lhe a curiosidade
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gra��as ao livro Symbolical Behavior, de Thasse-Thiene-
mann, que descobre fantasias genitais reprimidas at�� no
preparo de alimentos. Por que se proibia o uso de p��o
levedado nos sacrif��cios do Velho Testamento? (Por sete
dias n��o se ache nenhum fermento nas vossas casas; por-
que qualquer que comer p��o levedado aquela alma ser��
cortada da congrega����o de Israel, assim o estrangeiro
como o natural da terra. ��� ��xodo. 12:19). �� que o
conceito de levedo parece ter-se associado ao de corrup����o
e deteriora����o, visto que o levedo transforma o alimento
bom em excremento. Indo mais longe ainda, �� poss��vel
que o processo fisiol��gico impl��cito na fermenta����o n��o
seja apenas o da digest��o do alimento, mas tamb��m o
do ato da fecunda����o e o da gesta����o, pois o sovar da
massa na gamela e o seu crescimento evocavam fanta-
sias genitais, e tudo isso se tornou de tal forma suges-
tivo do processo corporal, que fermento passou a ser
s��mbolo de s��men.
Eu poderia ent��o concluir, gloriosamente erudito,
olhando para as fatias de matzot: "Em suma, madame,
o p��o n��o-levedado �� o p��o virgem, dessexualizado e por-
tanto apropriado para fins religiosos, assim como animal
que vai ser sacrificado se dessexualiza pela castra����o. ..
com o perd��o da m�� palavra".
Posso antever a express��o fision��mica de M. diante
de minha disserta����o, e imagino sua cr��tica: "Bobagem!
Voc��s complicam as coisas mais simples".
��� Provemos do p��o ��zimo ��� murmuro, partindo
um matzot e levando um peda��o �� boca. M. faz o mesmo
e opina: ��� "Tem gosto de papel��o"...
��� E sem s a l . . .
Tomamos o nosso ch�� e comemos resignadamente
os nossos p��es ��zimos contemplando atrav��s das janelas
o Mediterr��neo e os banhistas da manh��.
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A PLAN��CIE DE SAROM
O CANGURU
Cerca das nove horas entramos no pequeno auto-
m��vel ingl��s dos Levin, que nos v��o levar num passeio
pela costa, at�� Ein Hod, a aldeia dos artistas. Nosso pro-
grama oficial s�� come��ar�� amanh��.
Pela primeira vez vemos Tel Aviv �� luz do dia. Com
seus edif��cios cor de cimento, lembra vagamente a Copa-
cabana carioca. As ruas hoje est��o quase desertas, as
casas de com��rcio fechadas. Atravessamos Rama Gan,
nov��ssimo sub��rbio residencial, esp��cie de claro e con-
fort��vel gueto de diplomatas, e onde tamb��m e princi-
palmente habitam as fam��lias abastadas da cidade, em
belas "villas" cercadas de esquisitos jardins e parques,
em que buganv��lias e cactos coexistem pacificamente com
pinheiros e ciprestes.
Desdobro e examino um mapa de Israel. O pa��s
inteiro n��o �� maior que o nosso Estado de Sergipe. A
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It��lia ��� �� sabid��ssimo ��� tem a configura����o duma
bota que chuta a Sic��lia. O Brasil sempre me pareceu
um gordo pernil de carneiro. Pois Israel me lembra um
canguru sem cauda, que tem nas m��os a cidade de Jeru-
sal��m. Formados pela Galileia e por pequeno trecho do
Vale do Jord��o, a cabe��a e o focinho do "animal" (o Lago
de Tiber��ades �� um olho arregalado para o mundo e
a Hist��ria) tocam perigosamente terras do L��bano, da
S��ria e da Jord��nia. O pequeno canguru ��� com a faixa
de Gaza colada �� extremidade inferior do lombo, como um
inc��modo esparadrapo ��� mede apenas uns 420 quil��-
metros, da coroa da cabe��a at�� aos p��s, isto ��, o Porto
de Eilat, sobre o Mar Vermelho. Sua parte mais larga ��
o "abd��men" ��� pouco mais de 110 quil��metros ��� na
latitude de Sodoma, j�� no Deserto de Neguev.
Aqui vamos rodando para o norte, ao longo do dorso
do "canguru". Esta �� a Plan��cie de Sarom, na antiguidade
o caminho natural das caravanas de mercadores que de-
mandavam o Vale do Nilo e a Mesopot��mia. Por aqui
transitaram tamb��m h�� mil��nios os ex��rcitos dos grandes
imp��rios conquistadores.
�� nossa esquerda, entre a rodovia e o mar, vejo uma
estreita faixa de areia ondulada de dunas, que faz este
ga��cho extraviado pensar nas coxilhas de sua terra natal.
Sinto o desejo, absurdo mas sincero, de dar de presente a
Israel um pouco de nossas pastagens, para que com elas
seu governo mande forrar este esguio deserto onde s��
viceja ��� n��o, o verbo �� impr��prio, pois vi��o aqui n��o
h�� ��� uma vegeta����o rasteira, pardacenta e ��spera.
Olho para a direita e a paisagem muda de figura
e cor: vejo suaves outeiros em tons de erva-mate, pomares
com ��rvores floridas, hortas com festivos verdes e, mais
longe ��� horizonte dum terra de siena rosado, com leves
toques viol��ceos ��� as encostas dos montes de Samaria.
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Myriam dirige o carro. De onde estou posso ver-lhe
o n��tido perfil. A companheira de Shaul Levin tem um
semblante sofrido no qual surpreendo de vez em quando
a sombra duma apreens��o, a reminisc��ncia dum terror.
Mas um par de olhos muito vivos e afetuosos ilumina
intermitentemente, com uma luz de resoluta esperan��a,
o expressivo territ��rio humano que �� seu rosto.
Sentado ao lado da mulher, de quando em quando
Shaul volta a cabe��a para nos dizer alguma coisa. Quem
lhe v�� a fisionomia serena, com uma express��o quase
permanente de benignidade, nem sequer suspeita as re-
servas de energia e a capacidade de a����o deste homem.
Diretor da Instru����o P��blica de Tel Aviv, exerce suas
fun����es com um zelo e uma paix��o de ap��stolo, sem
jamais, entretanto, fazer alarde disso. (Irritam-me as pes-
soas que no exerc��cio duma profiss��o, duma voca����o ou
duma obriga����o procuram apresentar-se como "m��rtires
duma causa". Conhe��o o m��rtir do teatro, o da literatura,
o da pintura, o da escultura e at�� mesmo o do futebol.
E h�� sempre o Amigo do Peito que elogia o benem��rito,
narra seus feitos e "sacrif��cios", para no fim dizer-nos
em voz baixa e circunspecta, mas de maneira que o m��rtir
ou��a: "�� um abnegado!".)
��� Est��o vendo aqueles renques de salgueiros? ���
pergunta-nos, apontando para a zona arenosa. ��� N��s os
plantamos ali para conter as dunas.
��� Seria bom ��� digo ��� se plantando salgueiros
nas fronteiras voc��s pudessem conter os ��rabes.
��� Metaforicamente fazemos isso. Temos o maior
interesse em ajudar nossos vizinhos a vencer o deserto,
transformando-o em terras f��rteis. Nosso convite para
uma colabora����o nesse e em outros terrenos �� permanente
e sincero.
��� Quantos ��rabes vivem hoje em Israel?
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��� Temos aproximadamente um ��rabe para cada
grupo de dez israelenses ��� explica Levin. ��� Entre ��ra-
bes, drusos e outras minorias n��o-judias vivem em Israel
mais de 280 000 almas.
M. pergunta se militarmente os mu��ulmanos n��o
podem representar uma esp��cie de perigoso cavalo de
Tr��ia dentro dos muros do pa��s.
��� At�� hoje n��o tivemos com nossos cidad��os ��rabes
nenhum problema dessa natureza.
Como estranho o emprego da palavra "cidad��o",
Shaul Levin me esclarece que o governo de Israel poli-
ticamente n��o faz distin����o entre seus habitantes.
Os ��rabes t��m direito ao voto e no momento contam
com sete representantes no Knesset, isto ��, no Parlamen-
to, onde podem usar em seus discursos a l��ngua ��rabe,
a qual �� tamb��m aceita nos tribunais. Mais ainda: as
moedas, as c��dulas banc��rias e os selos postais deste
pa��s trazem inscri����es em ��rabe.
��� O que esses mu��ulmanos que permaneceram em
Israel querem ��� prossegue Levin ��� �� viver em paz, ter
o que comer, o que vestir e onde morar. N��s lhe damos
mais que isso: escolas, hospitais, assist��ncia t��cnica e
terras para cultivar.
��� Terras que continuam pertencendo ao governo
israelense? ��� indago.
��� N��o. Esses cidad��os de origem ��rabe s��o pro-
priet��rios de oitenta por cento da terra que cultivam.
Respeitamos a religi��o dessa gente. N��o procuramos con-
vert��-la a nossa f��. O que esperamos, isso sim, �� por meio
da educa����o ir aos poucos combatendo suas supersti����es,
que os levam em muitos casos a recusar os servi��os de
nossos m��dicos e hospitais. O ensino em Israel �� gratuito
no grau prim��rio. Temos j�� uns cem estudantes ��rabes
no Instituto Tecnol��gico de Haifa e na Universidade
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Hebraica de Jerusal��m, que voc��s visitar��o dentro de
poucos dias.
Durante alguns minutos ficamos a contemplar a pai-
sagem em sil��ncio.
Passamos por Herzlia, uma das muitas cidades sa-
t��lites de Tel Aviv. Aqui vivem em graciosas casas ajar-
dinadas muitas pessoas que diariamente v��o trabalhar
na metr��pole israelense.
��� Estamos agora atravessando a faixa mais estreita
de todo o territ��rio de Israel ��� informa Levin. ��� A dis-
t��ncia daqui �� fronteira da Jord��nia n��o chega nem a
vinte quil��metros.
Que engenhocas s��o essas que vemos nos telhados
de quase todas as casas campestres por onde passamos?
Aquecedores solares ��� informa Shaul. O solo de Israel
n��o tem carv��o, e como a madeira n��o pode ser queimada
��� as poucas florestas que existem s��o cuidadosamente
preservadas ��� �� grande a escassez de combust��vel. Nas
proximidades do Mar Morto descobriram-se j�� camadas de
g��s natural. O primeiro petr��leo jorrou da terra de Israel
h�� uns onze anos; mais tarde outros po��os foram des-
cobertos. Mesmo assim a produ����o de g��s natural e pe-
tr��leo hoje em dia satisfaz apenas uns dez por cento
das necessidades nacionais. Deste modo, a maior fonte de
energia do pa��s �� a eletricidade, e neste setor o progresso
at�� agora �� extraordin��rio. Hoje se produz em Israel dez
vezes mais energia el��trica do que em 1948.
�� muito conhecida a frase de Ben-Gurion segundo
a qual as duas tarefas mais importantes dos israelenses
s��o "cabrestear o sol e ado��ar a ��gua do mar". Cientistas
e t��cnicos nacionais h�� muito v��m trabalhando nesse sen-
tido. �� beira do Mar Vermelho uma grande usina fun-
ciona ativamente na dessaliniza����o da ��gua do mar, de
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acordo com processos cada vez mais econ��micos. Anima-
dos pela verifica����o de que nos climas muito ensolarados
a luz solar que cai num metro quadrado de ch��o durante
um ano produz tanto calor quanto o que se cont��m em
mais ou menos um quarto de tonelada de petr��leo ��� os
f��sicos de Israel procuraram descobrir meios de captar,
prender e utilizar a energia solar. O resultado disso foi
a produ����o em escala comercial de aquecedores solares
capazes de fornecer ��gua quente e luz el��trica para uso
dom��stico. Cada aparelho de um quilowatt pode fornecer
luz para uma aldeia de umas vinte e cinco ou trinta
fam��lias.
Passamos por uma aldeia ��rabe, cujas casas parecem
cabritos encarapitados na encosta dum cerro. Shaul me
pergunta se sei o motivo por que muitas delas foram pin-
tadas de azul e eu, usando minha cultura de almanaque,
respondo: "Porque os ��rabes acreditam que essa cor tem
o dom de afastar os maus esp��ritos".
O ar aos poucos se vai impregnando da fragr��ncia
de flores de laranjeira e eu me sinto instantaneamente
transportado a uma primavera da adolesc��ncia ��� estou
no pomar da casa de meu av�� materno, revejo fantasmas
familiares, reencontro meninas que amei em segredo,
ou��o poemas que recitei sofrendo sob as laranjeiras "ves-
tidas como noivas", vislumbro sonhos que sonhei pelas
ruas de Cruz Alta em noites de setembro e vento ��� soli-
t��rio, bisonho, incompreendido, Werther municipal, Ham-
leto guasca, um livro debaixo do bra��o, mil outros na
cabe��a, o peito rebentando de anseios mal definidos. (Na-
quele tempo eu n��o conhecia ainda a palavra Angst.) M.
me toca o bra��o, arrancando-me sem saber de meu deva-
neio, e mostra-me um pomar de ��rvores floridas, do lado
direito da estrada orlada de eucaliptos. Em meio do ar-
voredo branquejam casas. Falamos ent��o das famosas
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comunidades rurais de Israel, os kibbutzim e os m ocha-
vim. Shaul diz que, na sua opini��o, a verdadeira resposta
para o problema agr��rio do pa��s n��o s��o os kibbutzim
mas os mochavim, isto ��, os pequenos estabelecimentos
rurais que trabalham num regime cooperativista. E aduz:
"Voc��s passar��o alguns dias hospedados num kibbutz. . ."
��� Volta-se para mim sorrindo e diz: ��� "Escolhi um so-
cialista radical, como voc�� me pediu em carta".
O perfume dos laranjais �� t��o intenso que chega
a ter um corpo, um peso, quase uma forma vis��vel. N��o
�� dif��cil prever que daqui por diante, pelo resto da vida,
sempre que eu sentir este aroma hei de me lembrar desta
terra e desta gente.
NATANIA E HADERA
Sou um insaci��vel devorador ou, melhor, degustador
de cidades e paisagens. (Esse mesmo apetite no plano
humano ��s vezes chega a ser quase antropof��gico.) Muito
sens��vel a formas, cores e odores, creio que consigo captar
at�� a impress��o t��til de lugares e ambientes, um pouco
com a pele e muito com os olhos ajudados pela experi-
��ncia da mem��ria.
Esta parte de Israel me lembra muito a Gr��cia, prin-
cipalmente a ��tica e as ilhas do Egeu: a mesma limpidez
da atmosfera, a mesma refulg��ncia da luz solar, a mesma
secura do ar. L��, como aqui, at�� nos recantos mais verdes
se esconde uma leve suspeita de areia.
Cor de areia �� Natania, onde fazemos alto, descemos
do carro e sa��mos para um r��pido passeio pelas ruas
centrais. Eis uma cidade que poderia ser pintada numa
tela em apenas tr��s tons de pardo.
Para mim, Natania tem um parentesco muito pr��-
16
E R I C O V E R �� S S I M O
ximo com a nossa rosa.-de-pau; um tom encardido e ��rido
que �� primeira vista parece triste e feio mas que acaba
por impor-nos o seu escasso encanto.
Amsterdam sempre teve fama de ser a terra dos
melhores cortadores e polidores de diamantes. Quando os
nazis invadiram a Holanda, muitos desses especialistas
de origem hebraica fugiram para Israel e se estabelece-
ram nesta comunidade. Natania conta hoje com uma con-
sider��vel ind��stria de lapida����o de diamantes, a maior
do Oriente M��dio (a exporta����o de diamantes lapidados
sobe a 120 milh��es de d��lares, anualmente).
Voltamos para o carro e tornamos a ganhar a rodo-
via. Dentro de pouco tempo (este �� o pa��s onde tudo ��
irremediavelmente perto) passamos pela cidade de Ha-
dera.
��� Nos tempos b��blicos ��� diz Shaul Levin ��� a
Plan��cie de Sarom era um verde vale id��lico. Mas quan-
do os pioneiros judeus vieram para c��, em fins do s��-
culo passado, o que encontraram foi uma terra morta
em que dunas de areia se alternavam com p��ntanos in-
festados de mosquitos portadores da mal��ria.
Ao passarmos pelo cemit��rio de Hadera, Levin re-
toma o assunto:
��� Dos 540 habitantes desta cidade, ao tempo em
que os pioneiros lutavam contra o deserto e os charcos,
214 morreram de mal��ria. Est��o sepultados na terra
mesma que eles ajudaram a recuperar.
De certo modo ��� digo para mim mesmo em sil��n-
cio ��� estes pomares, bosques, prados, hortas, a��udes e
jardins s��o palavras duma mensagem p��stuma que nos
deixaram os mortos do pequeno cemit��rio. Se pud��sse-
mos escutar o mundo com o "terceiro ouvido" de que
fala Nietzsche, talvez consegu��ssemos ouvir a voz dos
imp��vidos pioneiros nesta fragr��ncia de flores de laran-
I S R A E L E M A B R I L
17
jeira que nos persegue por toda a parte, com a insist��n-
cia de quem nos quer transmitir uma mensagem impor-
tante.
Que ru��nas s��o aquelas que se empinam sobre o
promont��rio que vejo �� esquerda? Myriam explica que
s��o os restos do castelo fortificado de Atlit, constru��do
em fins do s��culo XII pela Ordem dos Templ��rios.
A ALDEIA DOS ARTISTAS
Durante alguns minutos mais rodamos ao longo da
"nuca do canguru". E eis que de repente avistamos, numa
esp��cie de fissura ampla e irregular do Monte Carmelo,
uma aldeia de festivas casas c��bicas de aspecto ��rabe.
�� Ein Hod. Myriam estaciona o carro �� sombra duma
��rvore. Apeamos.
Este �� um retiro de artistas pl��sticos. Muitos deles
t��m aqui suas resid��ncias permanentes, mas outros s��
aparecem durante as f��rias ou nos fins-de-semana. A
personalidade mais interessante desta comunidade de
pintores, escultores, tapeceiros, joalheiros e ceramistas
��, sem d��vida, Mareei Janco, o seu prefeito ou, melhor,
o seu cacique: figura de romance, homem corpulento,
com uma cabe��a leonina que lembra esfumadamente a
de Rembrandt, bigod��es grisalhos, ares falstaffianos. Traz
em geral na cabe��a um chap��u de palha parecido com o
de Van Gogh que seus auto-retratos tornaram conhe-
cido. Quando faz frio, o patriarca de Ein Hod costuma
vestir um poncho curto, dum azul vivo, que lhe cobre os
ombros e o torso, at�� pouco abaixo da cintura.
Nascido na Rom��nia, Janco tocou-se para Paris de-
pois da Primeira Guerra Mundial e l�� foi um dos co-fun-
18
E R I C O V E R �� S S I M O
dadores da escola dada��sta, amigo de Tristan Tzara, o
poeta que em mat��ria de est��tica e ��tica queria "cuspir
no olho do mundo". A Segunda Guerra impeliu Janco
para Israel, onde se estabeleceu. Inquieto e inventivo,
procurou e acabou descobrindo o lugar ideal para fundar
uma comunidade de artistas: uma aldeia ��rabe aban-
donada, cujas casas estavam em ru��nas. Juntou uns vin-
te colegas e com eles organizou uma esp��cie de "co-
mando", que se apossou de Ein Hod, restaurou as casas
restaur��veis, demoliu as irrecuper��veis, construiu novas
com pedra deste monte, tudo dentro do estilo ��rabe das
originais, e cada qual com seu est��dio, seu p��tio e seu
jardim.
Surgiram problemas. Quem ia fornecer ��gua e ele-
tricidade para a Ein Hod ressurrecta? Ora ��� refletiu
Marcel Janco ��� tinha de ser naturalmente a grande ci-
dade vizinha, que fica do outro lado do Monte Carmelo.
E assim o prefeito de Haifa, n��o resistindo ��s ofensivas
do maioral de Ein Hod, rendeu-se. Mas como conseguir
fundos para construir uma galeria de arte e um restau-
rante? Muito simples.
Todos os anos, no d��cimo quarto e d��cimo quinto
dias de Adar, que �� o sexto m��s do calend��rio judeu,
realiza-se em Israel a festa do Purim com que se come-
mora o salvamento dos judeus, nos tempos b��blicos, dum
massacre certo nas m��os dos soldados de Am��, o fa��a-
nhudo ministro do Rei Assuero. �� poss��vel que na Idade
M��dia essa festa se tenha confundido com o rito pag��o
com que se celebrava a entrada da primavera. Seja co-
mo for, o Purim n��o tem car��ter religioso: �� uma esp��-
cie de alegre carnaval em que os celebrantes se fanta-
siam, mascaram, dan��am, cantam, comem, bebem, tro-
cam-se presentes, pregam-se pe��as, d��o obrigatoriamente
esmolas aos pobres e fazem representa����es teatrais alu-
I S R A E L E M A B R I L
19
sivas �� festividade. Assim como os crist��os enforcam
Judas Iscariotes em ef��gie no S��bado de Aleluia, os ju-
deus durante o Purim espancam e queimam um boneco
que representa Am��. Pois Mareei Janco fez com que em Ein
Hod os donativos do Purim revertessem em benef��cio
das constru����es planejadas.
E hoje, passados pouco mais de dez anos, aqui es-
t��o, vis��veis e palp��veis, os resultados de todos esses es-
for��os. Tocada duma gra��a agreste, Ein Hod �� uma al-
deia cujos habitantes vivem t��o pacificamente quanto se
pode esperar duma comunidade de artistas. �� governada
por um conselho de cinco membros eleitos anualmente,
mas desconfio que nas pendengas que surgem, tanto as
art��sticas como as outras, quem tem a palavra final �� a
figura patriarcal de Marcel Janco.
Tenho observado que as grandes metr��poles do mun-
do est��o cheias de est��tuas feias, inexpressivas e ��s ve-
zes at�� grotescas. Encontro em Ein Hod um dos mais
belos monumentos que conhe��o: uma grande e aut��n-
tica m�� de lagar de azeite, colocada sobre uma base r��s-
tica ��� ro��da pela intemp��rie, com um ar sofrido e vivido
como o desta terra, e ao mesmo tempo com uma enor-
me, seren��ssima e intemporal dignidade. Contemplo-a
com afetuoso respeito, ao sol quase a pino da manh��
que finda.
Vamos ver a loja onde se exibem trabalhos dos ar-
tistas e artes��os de Ein Hod ��� objetos de cer��mica de
gosto esquisito, vistosos tapetes e j��ias feitas com talento
inventivo. Passamos rapidamente pelo restaurante co-
munal, cujas paredes est��o cobertas de murais da au-
toria de artistas locais. Visitamos depois a resid��ncia
dum casal de pintores cujos quadros, semi-abstratos os
do marido, figurativos os da mulher ��� vejo expostos no
est��dio. O homem est�� ausente, pois foi levado para um
20
E R I C O V E R �� S S I M O
hospital de Haifa, seriamente enfermo, talvez perdido.
Sou apresentado �� esposa, n��o chego a ouvir-lhe clara-
mente o nome, tento entabolar com ela um di��logo em
ingl��s, l��ngua que ela fala com flu��ncia, mas a pintora
n��o presta muita aten����o ao que lhe digo, mostra-se
mais interessada em M. ��� o que me parece justo ��� e
ficam ambas a conversar como velhas amigas, enquanto
examino as telas penduradas nas paredes e montadas
em cavaletes. Mais tarde sa��mos todos para ver a ga-
leria de arte, onde hoje se inaugurou a exposi����o dum
jovem pintor local. Os quadros n��o me impressionam
mas ��� que diabo! ��� que sei eu de pintura? Aperto a
m��o do artista. Sinto a meu lado o espectro dum cr��tico
de arte meu conhecido em quem descubro ��s vezes um
leve odor de anti-semitismo. Ele agora sussurra: "Ent��o,
meu caro, quantos pintores famosos de origem judaica
voc�� conhece? Vamos! Chagall, Soutine, Modigliani...
Quantos mais? �� simples. A religi��o dessa gente lhes
proibia fazer imagens. O tabu ficou no inconsciente co-
letivo do povo de Israel, desviando-o das artes pl��sticas.
De resto o judeu n��o me parece ter muito talento cria-
dor. Cite nomes de m��sicos j u d e u s . ; . Mendelssohn, Bi-
zet, Albeniz, Mahler, Ravel, sim, Bloch. Mais algum?
N��o se pode negar que h�� hebreus que s��o grandes in-
t��rpretes, not��veis pianistas, violinistas, violoncelistas,
condutores de orquestra, cantores, e t c . . . e t c . . . " Sinto
que vem vindo o veneno. ��� "Devemos reconhecer que
o g��nio da ra��a vai todo para a intermedia����o, o co-
m��rcio. N��o �� de admirar que sejam t��o bons homens
de neg��cio." Replico ao fantasma intruso que a habili-
dade para intermedia����o comercial �� um tra��o do ca-
r��ter oriental. Lembro-lhe os fen��cios, os chineses, os
��rabes em g e r a l . . .
�� entrada da galeria de arte, a m��e do pintor, uma
I S R A E L E M A B R I L
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senhora baixota, gordalhufa, simp��tica e sorridente ar-
mou a sua tendinha e distribui bolinhos e copos de li-
monada entre as pessoas que vieram ver os quadros. ��
uma t��pica "Jewish mama", essa figura t��o popular entre
humoristas americanos, principalmente os de origem ju-
daica. O sonho de cada uma delas �� ter um filho trans-
formado em celebridade mundial ��� e fazem todos os
sacrif��cios para conseguir a suprema ventura de poder
dizer um dia: "o meu filho doutor", "o meu filho violi-
nista", "o meu filho cientista". Aceitamos a hospitali-
dade desta "mam�� judia", comemos os seus bolinhos,
bebemos o seu refresco e elogiamos as pinturas do filho
em todas as l��nguas que conhecemos. E a boa senhora
sorri, parece n��o entender o que lhe dizemos, mas com
a sua intui����o materna, ajudada pela nossa gesticula����o,
finalmente compreende que aprovamos o trabalho do
menino e ent��o exclama: "Tod�� rab��! (Muito obrigado!)
Tod�� rab��!", enquanto um sorriso feliz ilumina sua larga
face rosada de camponesa.
Ao meio-dia o casal Sirotsky chega a Ein Hod e
vamos todos almo��ar no restaurante dum retiro de es-
critores que fica a pequena dist��ncia do feudo de mestre
Janco.
Temos o nosso segundo encontro com o matzot,
desta vez numa sopa aguada em que b��iam bolas feitas
com massa de p��o n��o-levedado. Paci��ncia.
M. faz men����o de acender um cigarro, mas como
Beila Sirotsky recusa o que ela lhe oferece, minha mu-
lher lembra-se de que algu��m lhe disse que preceitos re-
ligiosos judeus pro��bem que se fume durante o Sab��. A
obje����o n��o �� propriamente ao fumo, mas ao ato de
produzir fogo, que ��� pelo menos simbolicamente ��� n��o
deixa de ser um trabalho.
22
E R I C O V E R �� S S I M O
Terminado o almo��o, vamos os seis sentar-nos em
cadeiras pregui��osas �� sombra de altos pinheiros, e aqui
ficamos olhando para o mar, conversando, recordando
pessoas e coisas do Brasil. Com seu vozeir��o retum-
bante Nahum nos conta anedotas que nos fazem rir.
L�� pelas tantas surge dentre os arbustos (ou do fundo
das Escrituras?) um homem alto, descarnado, a face
tostada de sol. Ergue a m��o ao mesmo tempo que faz:
"Cht!". ��� E com voz cava, como um profeta antigo, or-
dena: ��� "Sil��ncio, senhores e senhoras! Este �� um lu-
gar de repouso".
Metemos nossa viola no saco.
3
TEL AVIV - JAFA
O H��SPEDE INDIGNADO
Voltamos �� tardinha para Tel Aviv. Com as novas
levas de turistas que chegam, o sagu��o do Hotel Dan
lembra um aqu��rio de peixes coloridos e aflitos, na hora
em que se lhes atira comida. Subimos ao nosso quarto,
abrimos a porta e verificamos que somos seguidos por
um h��spede que acaba de sair do apartamento fronteiro.
O homem invade nossos aposentos e vai direito �� janela
e l�� fica a olhar a paisagem por algum tempo. �� um
sujeito de meia-idade, retaco,. rosado, vestido de maneira
convencional, com ares de businessman. Volta para n��s
a face tr��gica e, num ingl��s nasalado, de consoantes
muito abertas, diz: "Estou pagando cinco d��lares extra
de di��ria para ter alojamentos com vista para o mar, e
no entanto me meteram num quarto de frente. Para ver
casas de cimento armado e ouvir barulho de autom��veis
e ��nibus eu n��o precisava ter sa��do de Nova Iorque !".
24
E R I C O V E R �� S S I M O
Escutamos o homem em sil��ncio, com um desmaia-
do sentimento de culpa, como se fossemos respons��veis
por todo esse engano. O desconhecido enfia o chap��u
na cabe��a, declara-nos que vai apresentar imediatamen-
te �� ger��ncia do hotel uma reclama����o en��rgica e se re-
tira, envolto na sua inilud��vel aura de Brooklyn.
M. e eu nos entreolhamos sorrindo. Cenas como
esta s��o o sal de nossas andan��as pelo m u n d o . . .
Uma hora mais tarde estamos de novo no refeit��rio
do hotel. O matzot nos espera em cima da mesa, com
sua misteriosa mensagem em hebraico. Mastigo, maso-
quista, pedacinhos da bolacha pascal. Pouco depois nos
trazem o peixe grelhado que encomendamos. Uma de-
liciai E �� hora da sobremesa me vem um desejo iogue
de comer iogurte, mas sou informado por um ma��tre,
obsequioso ma non troppo, de que por motivos religio-
sos n��o �� permitido servir leite ou qualquer de seus de-
rivados numa mesa onde se comeu carne. (Mais tarde
descubro o vers��culo b��blico onde esse tabu parece ter
tido origem: "N��o cozinhar��s o cabrito no leite de sua
m��e". )
M��SICA
De novo no carro dos Levin, desta vez a caminho
do Audit��rio Mann, onde assistiremos a um concerto da
Orquestra Sinf��nica de Israel.
A cidade de Tel Aviv, moderna e funcional, com seus
letreiros luminosos, alguns em ingl��s mas a maioria em
caracteres hebraicos, suas vitrinas atraentes, suas ruas
bem asfaltadas, seu intenso tr��fego de ve��culos ��� ��
uma cabe��a-de-ponte do s��culo xx plantada neste solo
I S R A E L E M A B R I L
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b��blico, e ao mesmo tempo uma nova-rica olhada com
reservas e uma ponta de desprezo pelos pioneiros dos
kibbutzim e dos mochavim, que n��o vieram para c��,
imagino, com a inten����o de macaquear, repetir a civili-
za����o ocidental.
A hist��ria desta metr��pole come��ou antes da Pri-
meira Guerra Mundial, ao tempo em que a Palestina
ainda pertencia �� Turquia, e a sua popula����o judaica
n��o atingira ainda a casa dos cem mil. Cerca de 25 000
judeus amontoavam-se ent��o na velha Yaffo (Jafa). Ora,
os hebreus s��o um povo ao qual nunca faltou espa��o his-
t��rico mas que tem sempre andado aos tombos com pro-
blemas de espa��o geogr��fico. Jafa tinha todos os incon-
venientes dum porto de mar ativo: era turbulenta, imun-
da e f��tida, e os judeus se sentiam mal, amontoados e
apertados nas pequenas casas ��rabes. Um dia alguns
membros da col��nia israelita reuniram-se para formar
uma companhia imobili��ria, que comprou uns cento e
trinta mil metros quadrados de terra des��rtica ondulada
de dunas de areia, e isso pareceu a princ��pio um dos
piores neg��cios imobili��rios jamais realizados por des-
cendentes do povo de Abra��o. Puro engano. Nessa gle-
ba ��rida fundou-se uma comunidade que se chamou Tel
Aviv, isto ��, Colina da Primavera, o que deixa claro o pro-
p��sito de seus fundadores e das primeiras sessenta fa-
m��lias que nela se estabeleceram: isto ��, o de que esse
novo sub��rbio fosse uma esp��cie de verde e florido pul-
m��o atrav��s do qual a popula����o judia de Jafa pudesse
respirar ar puro. Mas como sempre tem acontecido na
hist��ria desse povo que h�� mil��nios vem representando
o inc��modo papel de bode-expiat��rio na com��dia ��� e
muito freq��entemente trag��dia ��� humana, sobreveio a
Primeira Guerra Mundial.
Entre 1914 e 1918 a florescente Tel Aviv n��o s��
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E R I C O V E R �� S S I M O
ficou estagnada como, pior que isso, teve um dia a sua
popula����o expulsa pelo governador turco. Com a vit��-
ria dos aliados e o estabelecimento do mandato brit��nico
sobre toda a Palestina, a Colina da Primavera reviveu.
Em 1921 separou-se de Jafa e recebeu v��rias ondas
novas de imigrantes. Em 1939, ao principiar a Segun-
da Guerra Mundial, sua popula����o era j�� de mais de
100 000 almas. Depois de proclamado o Estado de Israel,
no quinto dia do m��s de Iyyar do ano de 5708 ou, para
simplificar, no dia 14 de maio de 1948, Tel Aviv tem
crescido sem cessar, e hoje o antigo sub��rbio de Jafa ��
uma mini-metr��pole cuja popula����o n��o apenas cami-
nha, mas corre, para a casa do meio milh��o.
�� medida em que o nosso auto avan��a por estas
ruas e avenidas, vou buscando e encontrando (velha ma-
nia!) semelhan��as com outras cidades que conhe��o.
Aquele trecho de quarteir��o com caf��s que t��m mesas e
cadeiras na cal��ada, poderia estar em Paris. E por que
esta avenida n��o se enquadraria �� maravilha no Rio de
Janeiro? Ou em Belo Horizonte, com este seu ar de
"coisa nova"? Ou mesmo em Lima, Peru? H�� um mo-
mento em que o cheiro de "noite no deserto" combinado
com luz fluorescente, me evoca uma das mais limpas
cidades do Estados Unidos: Phoenix, Arizona. Ao pas-
sarmos por uma pracinha, Porto Alegre me acena.
Nosso carro contorna o Teatro Habima e em se-
guida estaca numa ��rea onde est��o estacionados cente-
nas de outros autom��veis. Avisto ent��o o imponente
Audit��rio Mann, de Unhas modernas, resplandescente de
luzes, tendo �� sua frente um lago quadrangular de cujas
bordas sobem esguichos de ��gua luminosa. Saltamos
para a terra firme.
Em Roma, Veneza e Floren��a, onde passamos qua-
se um m��s antes de virmos para c��, fazia um frio
I S R A E L E M A B R I L
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de inverno, com temperaturas noturnas de apenas dois
graus cent��grados acima de zero, de sorte que na It��lia
and��vamos sempre protegidos por casac��es e mantas.
Como um bicho que se desfaz de v��rias camadas de
pele, atirei para um canto o sobretudo, o pul��ver, a
manta, o chap��u e agora me sinto mais leve e at�� com
menos idade. Sopra do mar um vento fresco, quase frio.
Caminhamos para o audit��rio. Entramos e somos en-
volvidos por essa atmosfera temperada de incont��veis
odores e aquecida pela presen��a de gente endomingada
(ou "ensabatada"?) ��� as mulheres perfumadas e bem
vestidas, os homens com ar pr��spero de boa burguesia.
Faltam dez minutos para come��ar o concerto. Diri-
gimo-nos para os nossos lugares. Antes de sentar-me, con-
templo longamente o audit��rio. �� dos mais belos que
conhe��o. Tem tr��s mil lugares. As paredes est��o cobertas
duma madeira alourada (este pa��s �� pobre em madeira,
importa-a principalmente da Finl��ndia e da Africa). Ergo
os olhos para o teto para ver como o arquiteto procurou
resolver o problema da ac��stica e vejo uma sucess��o de
pir��mides ocas, pintadas dum azul de c��u noturno.
Sento-me e entrego-me a essa sensa����o que sempre
me engolfa nos minutos que antecedem o in��cio dum
concerto ou duma pe��a teatral, e que deve ter sua origem
remota nos circos de cavalinhos, nos espet��culos de tea-
tro mambembe da inf��ncia: uma expectativa formigante,
misto de curiosidade e feliz antecipa����o de divertimento,
e n f i m . . . por que hei de estar a descrever essa sensa����o
como se eu fosse a ��nica pessoa do mundo capaz de t��-la
experimentado? Come��am a entrar no palco os m��sicos,
vestidos de escuro mas n��o de casaca. P��em-se a afinar
os instrumentos, numa esp��cie de bate-bola inicial. Por fim
se faz esse hiato de sil��ncio precedido de pigarros, tosses e
remexer de corpos, que precede a entrada do maestro.
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E R I C O V E R �� S S I M O
Serge Baudo aparece no prosc��nio, sob aplausos. Confesso
que jamais ouvi ou li esse nome, o que me deixa vaga-
mente humilhado. O programa informa que o jovem re-
gente vive em Paris e (lembram-se da hist��ria de Tos-
canini?) ficou famoso duma hora para outra, quando
no La Scala de Mil��o, numa certa noite em que Herbert
Karajan adoeceu repentinamente, Baudo, primeiro violi-
nista da orquestra, teve de substitu��-lo na reg��ncia de
Pelleas et Melissande, de Debussy. Esse foi o seu tram-
polim para a fama.
O primeiro n��mero �� M��sica para Cordas, Percuss��o
e Celesta, de Bela Bartok. Aos primeiros acordes da or-
questra verifico que as pir��mides do teto cumprem a sua
fun����o da maneira mais satisfat��ria.
Esta �� a primeira vez em que ou��o ao vivo a Filar-
m��nica de Tel Aviv e desde logo fica patente, pelo menos
para meu gosto, que ela pode rivalizar com as melhores
da Europa e dos Estados Unidos. Fundada em 1936 por
Bronislav Huberman, excelente violinista fugido �� f��ria
persecut��ria dos nazistas, foi aos poucos acolhendo ins-
trumentistas de outras orquestras sinf��nicas da Europa.
Mais tarde esse mago que foi Arturo Toscanini, deu estru-
tura e unidade ao conjunto. Shaul Levin me contou, antes
de virmos para c��, que cada concerto como o de hoje ��
repetido neste audit��rio de seis a oito vezes durante a
temporada. E que periodicamente esta mesma orquestra
percorre, completa, os kibbutzim, os mochavim e outras
comunidades pequenas e grandes do pa��s, dando concertos.
Este �� um povo que tem a paix��o da m��sica. Prati-
camente n��o existe vilarejo em Israel que n��o possua o
seu conjunto de c��mara. Haifa, que mant��m uma exce-
lente orquestra sinf��nica, realiza todos os anos um fes-
tival de m��sica.
Aproveito um momento em que os instrumentos de
I S R A E L E M A B R I L
29
percuss��o est��o com a palavra para puxar um pigarro,
sinal quase certo da aproxima����o dum resfriado com
complica����es de garganta, (�� Deus, serei mesmo um
hipocondr��aco? )
O segundo n��mero da noite �� o Concerto em R��
Menor para violino e orquestra, de Jean Sibelius. M. e eu
temos a oportunidade de ouvir pela primeira vez um dos
mais famosos violinistas russos, Valery Klimov, disc��pulo
de Piotr Stolarsky e de David Ostrakh. Sua interpreta����o
da obra do velho Sibelius me parece admir��vel. (J�� des-
cobri que quanto menos a gente entende tecnicamente
de m��sica mais pode gozar um concerto.) O p��blico
aplaude Valery Klimov da maneira mais calorosa.
No intervalo sa��mos a andar pelos amplos corre-
dores e sagu��es do audit��rio, e eu me distraio a olhar as
pessoas cujas caras, maneira de vestir e comportamento
me d��o a impress��o perfeita de estar em Nova Iorque, no
Carnegie Hall ou no Metropolitan Opera House. Bom, na
realidade eu n��o me devia admirar disso, pois existem
na Babil��nia americana mais de tr��s milh��es de judeus!
O terceiro e ��ltimo n��mero do concerto �� a Sinfonia
n.�� 2 em D�� Maior, de Schumann. Devo dizer que n��o
morro de amores pelos rom��nticos. Um amigo brasileiro
quase cortou as rela����es comigo quando descobriu que
sou indiferente a Schubert. Tenho um fraco particular
pela m��sica barroca. Quanto ao per��odo rom��ntico, fico
com os velhos Beethoven e Brahms e depois salto direito
para os modernos.
Durante a execu����o magistral da Sinfonia de Schu-
mann, o fantasma de meu amigo schuberteano repetida-
mente me toca o bra��o, murmurando: "Confessa, monstro,
que este movimento �� uma j��ia". N��o confesso nada.
Escuto sem me comprometer.
Quando termina o concerto, o p��blico aplaude a or-
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questra de p��, freneticamente ��� bravo! bravo! bravo! ���
e chama �� cena o maestro cinco ou seis vezes, e parece
relutante em abandonar o recinto.
Os Levin nos conduzem ao fundo do audit��rio, onde
h�� uma recep����o para um n��mero reduzido de pessoas
em homenagem ao solista e ao regente. Encontramos
tanta gente amontoada numa sala pequena, que desisti-
mos de nos aproximar das duas celebridades. Uma se-
nhora vestida de negro acerca-se de n��s com uma bandeja
com copos cheios dum l��quido amarelado e murmura,
sorridente: "B'vacach��r. Numa dessas palermices que podem acontecer nas melhores fam��lias, tenho a impress��o
de que b' vacach�� deve significar abacaxi. Apanho um
copo, digo toda rab��, uma das poucas express��es que
aprendi da l��ngua dos profetas, e come��o a bebericar.
Verifico em breve o meu engano.
Trata-se dum vinho, provavelmente nacional. Mais
tarde algu��m me ensina que b' vacach�� corresponde a
please, s'il vous plait, fa��a o favor.
VISITAS
O Dr. Shaul Levin leva-nos pela manh�� �� universi-
dade que tem o nome da cidade, e que �� a menina dos
olhos do senhor Diretor de Instru����o P��blica de Tel Aviv.
Vejo rabos-de-galo no c��u e sinto uma certa aspereza
no dia. A temperatura subiu consideravelmente. Acaricio
a ilus��o de que espantei o resfriado com um comprimido
de aspirina e v��rios cop��zios de limonada feita com o
bom e forte lim��o desta terra.
Situada na orla do Parque Nacional, a Universidade
de Tel Aviv �� freq��entada por mais de dois mil estu-
dantes de ambos os sexos. Conta j�� com cinco espl��ndidos
I S R A E L E M A B R I L
31
edif��cios de linhas modernas. Sua escola de Medicina ��
a melhor do pa��s, depois da de Jerusal��m, que tem fama
mundial.
Shaul nos entrega aos cuidados duma estudante para
o resto da visita, pois tem de voltar ao seu escrit��rio,
onde costuma passar diariamente mais de onze horas.
Somos levados ao pavilh��o de numism��tica que faz
parte do complexo do Museu de Ha-Aretz. Proust guasca,
ao ver as pe��as de cobre, ouro, prata e bronze aqui exibi-
das volto em pensamentos �� casa paterna, tenho cinco
anos, estou brincando ��s escondidas com as moedas da
cole����o de meu pai, sinto-lhes o estranho cheiro, apalpo-
lhes os relevos ��� uma delas me escapa por entre os de-
dos, rola sobre a mesa, salta para o ch��o, continua a rolar
e finalmente cai no por��o pelo interst��cio entre duas t��-
buas do soalho e ent��o sou tomado do temor de ser cas-
tigado. (N��o fui. O desleixado colecionador jamais deu
pela falta da moeda.)
Outro pavilh��o que nos desperta o maior interesse ��
o que exibe uma cole����o de objetos de vidro, alguns da
mais remota antiguidade. Li, n��o me lembro onde nem
quando, que a palavra cristal aparece uma ��nica vez na
B��blia, no livro de J��. Falando da sabedoria, o patriarca diz
que "com ela n��o se pode comprar o ouro ou o cristal.
Nosso programa para esta manh�� est�� t��o cheio de
visitas, que infelizmente temos de passar num marche-
marche insensato pelo museu de cer��mica, pelo de ci��n-
cias e pelo de etnografia e folclore, todos muito bem or-
ganizados e, levando em conta a idade deste pa��s, bastante
ricos. A arqueologia �� um dos passatempos deste povo
t��o ��vido de conhecimentos e certezas. Para alguns isra-
elenses, escavar o solo em busca de restos de civiliza����es
arcaicas constitui uma esp��cie de hobby de fim-de-semana.
32
E R I C O V E R �� S S I M O
Olhando para algumas ossadas humanas, digo a mi-
nha mulher que para mim o arque��logo �� uma esp��cie
de detetive, pois n��o procura ele desvendar mist��rios mi-
lenares e n��o ser�� a Hist��ria sob certos aspectos um
ros��rio de crimes? M. replica que tenho da Hist��ria uma
impress��o exageradamente negativa. E passamos em si-
l��ncio para a pr��xima ossada.
O curioso �� que as Escrituras est��o de tal modo liga-
das �� geografia f��sica e humana destas terras da Pales-
tina, da ��sia Menor, do Egito e da Mesopot��mia, que a
B��blia ainda �� o melhor roteiro para os arque��logos que
buscam cidades perdidas, mesmo aqueles que n��o acei-
tam o car��ter sagrado do Livro. Cidades e templos desa-
parecidos h�� mil��nios foram localizados e escavados gra-
��as a indica����es do Velho Testamento. Durante o tempo
do mandato ingl��s todo o trabalho arqueol��gico da Pa-
lestina era feito por expedi����es americanas, inglesas, ale-
m��s e francesas. Hoje o Estado de Israel tem o seu De-
partamento de Antiguidades que disciplina todas as ati-
vidades arqueol��gicas dentro do pa��s. A miss��o cient��fica
japonesa que andou por aqui h�� uns cinco anos, descobriu
numa caverna da Alta Galileia o esqueleto dum homem
de Neandertal, do Pleistoceno. Antigo leitor do famoso
romance de H. Rider Haggard, na saborosa par��frase de
E��a de Queiroz, fico alvoro��ado ao saber que as minas
do Rei Salom��o, no Deserto de Neguev, est��o hoje em
dia em plena atividade, produzindo cobre.
ALMO��O COM ESCRITORES
Almo��amos na Casa do Escritor com alguns poetas,
ensa��stas e ficcionistas israelenses. N��o consegui gravar
nem mesmo ouvir claro o nome de todas as pessoas que
I S R A E L E M A B R I L
33
me foram apresentadas. Algumas delas falam ingl��s,
franc��s ou alem��o, mas a maioria s�� fala hebraico.
Sei que ali est�� o Dr. Chaim Gamzu, diretor do museu
de artes pl��sticas de Tel Aviv. Quem se encontra sentado
ao lado de minha mulher �� Moche Chamir, romancista,
contista e autor teatral, de quem li h�� pouco um exce-
lente conto, At�� ao Nascer do Dia. Quando M. lhe diz
que ele se parece fisicamente com o nosso Jorge Amado,
Chamir sorri e exclama: "Quem me dera saber escrever
como ele!".
Alguns destes escritores vivem em kibbutzim, o que
se pode deduzir da tonalidade de suas peles tostadas e
da simp��tica informalidade de suas roupas.
Somos apresentados ao homem que vai ser nosso
companheiro e guia durante nossas excurs��es atrav��s de
Israel. �� o Dr. Alexandre Dothan, que serviu por algum
tempo como adido cultural �� embaixada de Israel no Rio
de Janeiro, e fala portugu��s com desenvoltura. �� um ho-
mem de altura acima da mediana, corpulento sem ser
gordo, a face larga e longa, a pele queimada quase a
ponto de lhe dar a apar��ncia dum bedu��no, num contraste
com os olhos dum verde-cinza com pontos dourados. (V��-
cio de romancista, este de prestar aten����o a pormenores
fision��micos.)
Tenho a agrad��vel surpresa de encontrar aqui um
velho conhecido meu do Brasil, Maur��cio Budiansky. Sen-
tamo-nos lado a lado �� mesa, e por alguns instantes re-
cordamos o nosso primeiro encontro em Cruz Alta ��� h��
quase quarenta anos! ��� ao tempo em que ele come��ava
a vida como caixeiro-viajante, e eu era um t��mido aspi-
rante a escritor, ainda in��dito, exercendo com pat��tica re-
lut��ncia e incompet��ncia o of��cio de botic��rio. Budiansky,
hoje um dos grandes industrialistas do Brasil (madeira)
�� muito dedicado ao Estado de Israel.
34
E R I C O V E R �� S S I M O
�� medida que o tempo passa, o calor dos pratos,
do vinho e da conversa����o faz derreter essa esp��cie de
geada que costuma esfriar o in��cio de reuni��es em que se
homenageiam estrangeiros desconhecidos. (Como ser��o
eles? Formais? Levam-se demasiadamente a s��rio? Ou
ser�� que podemos brincar com eles?) Aos poucos, por��m,
tudo aqui vai ficando parecido com o Brasil: as faces,
o tom das vozes, o ambiente enfim, e eu j�� me sinto em
casa.
Converso por largos minutos com um escritor isra-
elense de meia-idade, que est�� a meu lado e me pede
desculpas por nada conhecer de literatura brasileira. Per-
gunto-lhe qual, na sua opini��o, �� a figura liter��ria mais
importante de Israel. Responde: "Agnon. Chmuel Yosef
Agnon, uma esp��cie de decano de nossas letras. Vive em
Jerusal��m, tem 78 anos de idade e raramente �� visto em
p��blico".
Digo-lhe que ainda n��o conhe��o os livros desse es-
critor, mas que j�� li criticas a respeito desse romancista
que, atrav��s de s��mbolos e tradi����es judaicos ��� numa
mistura de realidade e fantasia ��� consegue dar univer-
salidade e perene atualidade a suas obras.
A RESSURREI����O DO HEBRAICO
Observo com olho avaliador as alm��ndegas que fu-
megam no meu prato:
��� Costumamos queixar-nos de que a l��ngua portu-
guesa �� um belo mausol��u em que n��s, escritores portu-
gueses e brasileiros, estamos sepultados. No entanto, so-
madas as popula����es do Brasil, de Portugal e "prov��ncias
d'al��m-mar" existem hoje no mundo uns cem milh��es
I S R A E L E M A B R I L
35
de pessoas que falam o portugu��s. Quantas haver�� ca-
pazes de entender o hebraico? Tr��s milh��es? Talvez nem
t a n t o . . .
Minha observa����o n��o parece tirar o apetite ao meu
colega, que mastiga e engole um peda��o de alm��ndega,
bebendo depois um trago de vinho.
��� Pois o hebraico, meu amigo ��� diz ele ��� �� uma
das l��nguas mais antigas que se conhecem. Foi usada
durante um per��odo de mais ou menos tr��s mil e trezentos
anos. �� mais velha que a pr��pria B��blia. Falava-se he-
braico em Cana�� antes mesmo de os judeus terem con-
quistado essa regi��o.
��� A verdade �� que a Hist��ria tem obrigado o povo
de Israel a ser poliglota ��� observo. ��� Se n��o me engano,
houve um tempo em que os judeus, n��o s�� os que haviam
abandonado a Palestina, mas tamb��m os que aqui per-
maneceram, falavam grego e a r a m a i c o . . . Depois da Di��s-
pora tiveram de aprender a l��ngua do pa��s que os acolhia,
se �� que se pode usar com propriedade este v e r b o . . .
��� No ex��lio os judeus escreveram em ��rabe nos
pa��ses em que predominava a cultura isl��mica. Chegaram
a engendrar duas l��nguas: o i��diche, que �� um filho es-
p��rio do alem��o medieval, e o ladino, filho natural do
castelhano.
(Muito mais tarde cai-me nas m��os um jornal de
Tel Aviv, La Verdad, redigido em ladino: A la seguita de
la operasion de merkida etcha antes mezes, nuevos em-
biyos de aviones "Mig" russos i de tankes russos de los
mas modernos i perfeksionados arvoaron en los ��ltimos
dias en la Syria. Tambien fueram resevidas en Syria par-
tidas de kanones i de otro material de artileria russo de
los mas modernos.)
Meu colega torna a falar:
��� Mas o hebraico cessou praticamente de existir
36
E R I C O V E R �� S S I M O
depois da destrui����o de Jerusal��m, no ano 70 da Era
Crist��.
Quando lhe manifesto minha estranheza pelo fato
de a velha l��ngua dos hebreus n��o se haver perdido
nestes mil e duzentos anos em que n��o foi usada como
instrumento de comunica����o na vida cotidiana, meu in-
terlocutor explica:
��� Ora, em que outro idioma iam entender-se os ju-
deus exilados em diferentes pa��ses sen��o em hebraico? De-
pois, havia os talmudistas, os rabinos, os patriarcas que
falavam o hebraico n��o s�� durante o Sab�� como tamb��m
nas cerim��nias religiosas. Dum modo geral o hebraico
foi a l��ngua das classes judias cultas, depois da Di��spora.
O escritor israelense faz um gesto de ombros, que
tanto pode ser de resigna����o como de indiferen��a, e acres-
centa:
��� E agora, depois dessa longa hiberna����o do he-
braico, tivemos n��o s�� de reaviv��-lo como tamb��m de
adapt��-lo ��s necessidades de nosso tempo. Foi E��ezer Ben-
Yehuda, um judeu de Vilna, que tornou poss��vel a "res-
surrei����o" da velha l��ngua. Mas Ben-Yehuda morreu em
1 9 2 2 . . . e desse ano para c�� quantos neologismos foram
criados pela ci��ncia, pela t��cnica, pela industrial Televi-
s��o, por exemplo, �� televisia. Para jornal inventou-se uma
palavra, iton, aparentada com et, tempo. F��sforo �� gafrur, derivado de gofait, enxofre. E por mais estranho que pa-re��a, a palavra que designa garagem, veio do Velho Tes-
tamento: musach.
Algu��m bate palmas. Come��am os discursos. Falas-
tr��es e cordiais, os judeus se parecem muito com os ita-
lianos e os latino-americanos.
Os que discursam em hebraico contam com a inter-
preta����o simult��nea ora de Levin ora de Dothan. O Dr.
Gamzu fala em espanhol fluente e correto e revela-se se-
I S R A E L E M A B R I L
37
guro conhecedor da arte brasileira antiga e moderna. Ou-
vem-se apartes jocosos.
Agrada-me pela espontaneidade o que diz A. Meskin,
que �� um dos mais famosos atores de Israel, um sujeito
moreno e calvo, de face longa e expressiva, que l�� est��
�� outra extremidade da mesa.
Quando, por fim, me levanto para o "discurso" de
agradecimento, minhas p��lpebras pesam toneladas, sinto
chumbo nos l��bios e meu corpo inteiro clama por cama
e sesta.
Voltamos ao hotel, apanho na portaria a chave do
quarto, sentindo o torpor da hora somado ao do resfriado,
que se acentua. Quando vou tomar o elevador, aproxima-
se de n��s um homem que se identifica como correspon-
dente do Jerusal��m Post. Quer uma entrevista comigo.
Vamos sentar-nos no vasto, vistoso sagu��o do hotel, ao
p�� duma gigantesca escultura de madeira representando
uma avestruz ou coisa parecida, e que se ergue no centro
duma piscina quadrangular e rasa. O meu entrevistador
tem cara de bom sujeito, voz monoc��rdia, olhar pl��cido,
e fala um ingl��s claro e correto. Pede-me primeiro dados
autobiogr��ficos. Parodiando imodestamente um escritor
que muito admiro, eu poderia dizer que sou "um pobre
homem da p��voa de Cruz Alta", e acrescentar que estou
morrendo de sono e canseira. Mas fa��o o que o jorna-
lista me pede. Conto-lhe que minha mulher e eu estamos
em Israel a convite de seu Minist��rio de Neg��cios Estran-
geiros, e que nossa visita terminar�� no dia vinte deste
m��s. Que livros escrevi? Que outros pa��ses estrangeiros
visitei? Quais s��o os meus autores prediletos?
Por fim o homem despede-se de mim e vai embora.
O fato de eu ter gostado dele n��o me impede de sentir
um certo al��vio quando o vejo pelas costas. Precipito-me
38
E R I C O V E R �� S S I M O
para o elevador. O boy me sorri: Chalom! Dou-lhe uma
lira. Entro no quarto, dispo o casaco, descal��o os sapatos
e me atiro na cama. Chaloml E caio num sono profundo
e conturbado.
A BARONESA E O BALE
�� noite vamos com o casal Sirotsky assistir a um
espet��culo de bal��. Entramos no teatro muito antes da
hora de abrir-se a cortina. Se me dissessem que aquela
senhora que ali est�� perto da porta da entrada �� uma m��e
de fam��lia da classe m��dia israelense, de meios modestos
ou uma professora p��blica de sal��rio baixo (neste pa��s
os servidores do governo ganham pouco) ou ainda uma
sabra de kibbutz que p��s o seu melhor vestido para vir
ao teatro ��� eu acreditaria em tudo isso sem hesitar.
Nahum Sirotsky me apresenta �� desconhecida: "Esta ��
a baronesa Bethsabee Rothschild" ��� e eu n��o tenho outra
alternativa sen��o aceitar a realidade. Trocamos algumas
palavras com esta representante do ramo franc��s da dou-
rada fam��lia, enquanto Sirotsky nos exp��ca que o teatro
�� propriedade da Funda����o Bathscheva Rothschild, que
tamb��m financia e dirige o corpo de baile que daqui a
pouco vamos ver. Bethsabee Rothschild n��o ostenta ne-
nhuma j��ia, e sua face est�� limpa de pintura.
A companhia interpreta tr��s bales expressionistas,
da mais alta qualidade art��stica. Coreografia ricamente
imaginativa, bailarinas e bailarinos de primeira ordem.
JAFA
Terminado o espet��culo, sa��mos com os Sirotsky para
uma r��pida visita a Jafa. Vai conosco o filho do casal,
I S R A E L E M A B R I L
39
Yosef, menino de intelig��ncia precoce, que nos seus doze
anos, n��o sei exatamente por que, me lembra fisicamente
uma das personagens adultas de Dostoievsky.
Dentro do carro em movimento elogio o espet��culo
mas n��o reconhe��o minha pr��pria voz. M. me diz ���
como se eu n��o soubesse! ��� que, para um turista, apa-
nhar um resfriado �� calamidade pior do que perder um
livro de cheques de viagem em d��lares.
Jafa �� t��o antiga que seu nome j�� era mencionado
em documentos eg��pcios da ��poca dos fara��s. Porto im-
portante nos tempos do Rei Salom��o, sofreu um eclipse
durante a conquista dos romanos. Na Idade M��dia ficou
deserta durante quase um s��culo. Foi no porto de Jafa
��� que aparece no Velho Testamento como Jopa ��� que
Jonas, fugindo �� ordem que Deus lhe dera de ir at��
N��nive e clamar contra a perf��dia de seus habitantes,
achou menos perigoso tomar um navio que zarpava para
Tarsis. O resto, suponho, �� do conhecimento geral: a tem-
pestade que Deus provocou, o p��nico a bordo e finalmente
a decis��o dos marujos de jogar ao mar a causa de toda
aquela f��ria divina, isto ��, Jonas, o qual, segundo seu
pr��prio depoimento, foi engolido por um grande peixe,
dentro de cujo bucho permaneceu durante tr��s dias e
tr��s noites, orando e meditando, at�� �� hora em que o
bicho o vomitou. (Desconfio que o nosso Jonas n��o passa
dum Malasarte ou dum Till Eulenspiegel b��blico.) Mas
a verdade �� que Jafa existia e existe.
�� primeira vista a cidade n��o parece confirmar o
seu nome, pois Jopa em hebraico significa belo. O burgo,
entretanto, tem o seu encanto, que n��o reside em suas
avenidas principais mas sim em seus becos tortuosos por
onde nosso carro agora embarafusta.
Tenho uma afei����o particular por essas arcadas com
arcos de lanceta que orlam as cal��adas transformando-as
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E R I C O V E R �� S S I M O
em galerias cobertas, como em Santiago de Compostela,
G��nova e Bolonha. Muitas das fachadas destas casas de
aspecto levantino parecem sofrer duma doen��a de pele
que as descasca e desfigura, dando-lhes uma fisionomia
a um tempo sinistra e pitoresca.
Descemos do carro nas imedia����es do velho porto e
sa��mos a andar. Vejo contra o c��u da noite o vulto do
minarete duma antiga mesquita, n��o muito longe da torre
duma igreja cat��lica. O ar fino e frio recende a maresia.
Agora estamos abrigados pelos nossos casac��es; trago na
cabe��a um odioso chap��u que me deve dar um ar de
diplomata centro-americano.
Aproximamo-nos da beira do cais e, �� luz das l��m-
padas que se alinham ao longo da amurada, no alto de
postes, vejo a ��gua serena e as velhas pedras do porto co-
bertas duma bela lepra multicor de liquens e mariscos.
Imagino ouvir as impreca����es dos soldados de Napole��o,
os gemidos dos escravos que descarregam dos barcos o
pesado material destinado �� constru����o do primeiro Tem-
plo de Jerusal��m. Um major ingl��s bigodudo, dos tempos
do Mandato, b��bedo mas aprumado, declama para a lua
um poema de Keats. E l�� vai o navio que conduz Jonas
para Tarsis e aqui estou eu ouvindo a m��sica plan-
gente de um instrumento de cordas. De onde vem? Da
Idade M��dia? Do Renascimento? Dos tempos b��blicos?
Desperto para o aqui e o agora e continuo a ouvir a me-
lodia. Beila me diz que a m��sica vem dum cabar�� pr��-
ximo. Vamos at�� l�� dar uma olhadela? Boa id��ia. Os cinco
nos metemos por um estreito labirinto de pedra, descemos
e subimos pequenas escadas, e eis que chegamos a uma
casa de aspecto vetusto feita de pedras marcadas de mi-
n��sculas crateras como a cara de quem teve bexigas: a
porta central ladeada por duas colunas baixas com ca-
pit��is (cor��ntios?) e encimadas anacr��nicamente por um
I S R A E L E M A B R I L
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toldo de lona branca com listas vermelhas, por cima do
qual um suporte de ferro com arabescos sustenta um can-
deeiro que produz uma luz t��bia. O cabar�� se chama Omar
Khayyam. Entramos. Espiamos atrav��s da porta da sala
principal, atopetada de gente, e tenho a impress��o de
estar num estudio de Hollywood, num cen��rio que Hitch-
cock, preocupado com a "cor local", armou para um filme
de ambiente norte-africano. Aqui est��o todos os ingre-
dientes: o ar espesso de fuma��a azulada, luzes amorte-
cidas, casais abra��ados em cantos sombrios, um homem
com um fez vermelho na cabe��a, um velhote gordo que
tem �� sua mesa uma mocinha loura, v��rios cabeludos,
caras que sugerem v��cios secretos e, envolvendo tudo, a
m��sica do ala��de, uma melodia turca, plangente e obses-
siva. N��o falta aqui nem a dama misteriosa vestida de
negro, o cigarro fumegando na ponta duma piteira, diante
dum c��lice que cont��m uma bebida verde. Falso? A ver-
dade �� que estamos mesmo em Jafa, no Oriente M��dio.
E esta casa deve ser secular, talvez milenar.
Dois sujeitos com ares de le��es-de-ch��cara nos v��m
perguntar se queremos uma mesa. Respondemos negati-
vamente e voltamos para a noite, que de repente tamb��m
me parece falsa. E eu me sinto falso. Mais falsas ainda
me parecem umas ruas escuras por onde passamos mais
tarde de autom��vel, e cujas casas destru��das e desventra-
das por bombardeios, no tempo da guerra pela indepen-
d��ncia de Israel, aqui est��o apenas com as paredes de p��.
N��o se v�� viva alma nestas ruas. Um gato preto ��� decerto
posto aqui para um efeito especial de horror ��� esgueira-
se por entre os escombros. No c��u uma lua c��ptica parece
mirar tudo isso com a sua l��vida indiferen��a imemorial.
Mas tamb��m falsa.
4
DE ABRA��O A BEN-GURION
OS STEINBERG
S��o ainda os Levin que nos levam pela manh�� at��
ao kibbutz de Gan Chmuel, onde passaremos o resto deste
dia e toda a noite, a fim de tomar parte no Seder, a ceia
cerimonial da P��scoa. Come��ar�� amanh�� a nossa viagem
rumo da Galileia.
Somos entregues aos cuidados dum jovem casal, Ma-
risa e Henrique Steinberg, ele judeu brasileiro nascido em
S��o Paulo, ela, tamb��m paulista, mas de fam��lia cat��lica,
talvez remotamente hebraica pelo lado paterno. Seu sobre-
nome de solteira �� B��lsamo, e a mo��a me assegura que
�� descendente de Alessandro, Conde Cagliostro, figura len-
d��ria de aventureiro, m��gico e alquimista, que dizia ter
descoberto a pedra filosofal. Seu nome verdadeiro era
Jos�� B��lsamo. Alexandre Dumas f��-lo personagem de uma
de suas est��rias. Quanto ao "romance" de Marisa, n��o
me foi dif��cil adivinh��-lo. Tendo vindo para c�� como bol-
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E R I C O V E R �� S S I M O
sista, conheceu Henrique, apaixonaram-se um pelo outro
e se casaram.
Esta �� a primeira vez em que pomos o p�� num k��bbutz
e vemos sabras em carne e osso. O lugar nos d�� a im-
press��o dum o��sis, com seu arvoredo abundante e bem
cuidado, seus jardins floridos, seus gramados, suas casas
geminadas, claras e limpas, com pequenos alpendres. O
perfume das flores de laranjeira embalsama o ar. Sinto
uma impress��o de buc��lica tranq��ilidade. As crian��as
est��o no ber����rio. Os homens e as mulheres trabalham
nas planta����es ou na f��brica de sucos e conservas de
frutas. As pessoas idosas entregam-se a atividades do-
m��sticas, muitas delas decerto ajudando a preparar a ceia
da noite na cozinha comunal.
Examinando o nosso programa, verificamos que de-
pois de visitar a Galileia e a sua ant��tese geogr��fica, o De-
serto de Neguev, deveremos voltar ao Gan Chmuel para
uma estada mais longa. Terei ent��o a oportunidade de
observar melhor a vida deste kibbutz e de seus habitan-
tes. Estou curioso por saber como �� o sabra comparado
com o judeu da Di��spora.
MOSTRU��RIO
Estamos agora no audit��rio onde se vai realizar o
Seder. As mesas foram postas na plat��ia, que �� feita de
patamares, �� maneira de largos degraus que descem na
dire����o do palco. Henrique Steinberg me assegura que
esta noite cerca de mil e quinhentas pessoas tomam parte
nesta ceia pascal.
Sentamo-nos nos lugares que nos foram reservados
�� mesa de nossos jovens anfitri��es. Tenho �� minha direita
o pai de Henrique, um homem baixo, de cara marcada,
I S R A E L E M A B R I L
45
natural de S��o Paulo. Conta-me que veio com a esposa vi-
sitar os filhos, as noras e os netos, mas n��o est�� certo ainda
de que ficar�� aqui definitivamente. Confidencia: "Logo
que cheguei me botaram a lavar pratos na cozinha. Essa
n��o! Dei em grito e acabei indo trabalhar na bomba de
gasolina... Fui eu at�� que botei gasolina no carro dos
Levin, quando os senhores chegaram". A relut��ncia do
velho Steinberg em "fazer servi��o de mulher" me parece
muito brasileira.
Sobre a nossa mesa, em travessas de lou��a r��stica,
vejo peda��os de galinha e peru, postas de peixe, saladas
de verdura e batatas. Os sucos de laranja e toronja que
vamos beber foram produzidos neste kibbutz.
Olho em torno. Sinto-me feliz, apesar da sensa����o
de febre que me amolenta o corpo. E este contentamento
me vem do fato de eu estar tendo esta noite um grande
festival de faces humanas.
Uma algazarra festiva alaga o ar. M. me chama
a aten����o para uma linda rapariga que est�� �� mesa vizi-
nha, e pergunta: "Achas que ela tem tipo de judia?" ���
"Depois desta visita a Israel" ��� respondo ��� "pensarei
sempre sete vezes antes de afirmar que tal ou qual pessoa
tem ou n��o tem o tipo de judeu ou de judia".
Ricamente sortido �� o mostru��rio humano que temos
aqui neste sal��o. Imagino-me a passear por entre essas
mesas a minha curiosidade e o meu resfriado, parando
aqui e ali para p��r a m��o num ombro ou numa cabe��a,
perguntando coisas assim: "Como �� o seu nome, menina?
De que parte do mundo vieram os seus pais?" ��� "Como
�� que voc��, mo��o, com essa tez tostada e esse bigode de
tinta nanquim pode ser judeu, se tem uma cara que me
faz lembrar a do Miguelzinho Turco, que vendia bom-bo-
cados e quindins nas ruas de Cruz Alta?" ��� "Minha se-
nhora, tem certeza de que n��o �� italiana do sul? Eu ju-
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E R I C O V E R �� S S I M O
raria que a encontrei um dia num beco de N��poles esten-
dendo roupas rec��m-lavadas numa c o r d a . . . " ��� "Ah, meu
caro! Com esses seus cabelos e bigodes ruivos e esse apru-
mo o senhor n��o me vai negar que foi ou �� ainda capit��o do
ex��rcito b r i t �� n i c o . . . " ��� "Se me pedissem para adivi-
nhar o seu pa��s de origem, amigo, eu diria ��ndia." ���
"Deixe-me v e r . . . Aposto como voc�� �� s a b r a . . . Acertei?
��timo. Na Idade M��dia surgiu em Portugal e na Espanha
o crist��o-novo. Israel produziu o judeu-novo. Se sei por
que voc��s t��m esse nome? Claro! Sabra significa cacto
em ��rabe. Dizem que voc��s, como o fruto do cacto, s��o
��speros e ri��ados de espinhos por fora mas tenros por
dentro".
Hoje em dia a popula����o do Estado de Israel �� com-
posta, al��m dos sabras, de judeus vindos de mais de cem
terras diferentes.
UM POUCO DE HIST��RIA
Os quase quatro mil anos da hist��ria deste povo
constituem um dos cap��tulos mais apaixonantes, exas-
perantes e inveross��meis da cr��nica da esp��cie humana.
Segundo o Velho Testamento, tudo come��ou pelo ano
2000 a. C. com Abra��o, filho de Ter��, natural de Ur, na
Caldeia. Tendo deixado sua terra natal com a fam��lia em
demanda de Cana��, Ter�� acabou por estabelecer-se em
Har��, a meio caminho de seu destino final.
Um dia Abra��o teve uma vis��o em que Deus lhe
apareceu, mantendo com ele um di��logo que parece ter
determinado pelos s��culos vindouros a sorte do povo judeu.
Ordenou Jeov�� ao patriarca que abandonasse o lugar onde
estava e a casa de seu pai e fosse para a terra que Ele
lhe mostraria. Disse mais o Senhor: E far-te-ei uma
grande na����o, e aben��oar-te-ei, e engrandecerei o teu no-
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47
me e tu ser��s uma b��n����o. E aben��oarei os que te aben-
��oarem e amaldi��oarei os que te amaldi��oarem; e em ti
ser��o benditas todas as fam��lias da terra . E Abra��o fez
o que Jeov�� lhe ordenava. E saiu de casa com Sara, sua
mulher, e mais L��, filho de seu irm��o, e toda a sua fa-
zenda, que haviam adquirido, e as almas que lhe acres-
centaram em Har��; e sa��ram para irem �� terra de Cana��;
e vieram �� terra de Cana�� . Desse encontro e desse pacto
em que Deus escolheu o seu Povo, s�� temos um testemu-
nho, o primeiro livro da B��blia, o G��nesis, cuja autoria
�� atribu��da a Mois��s.
Quando Abra��o e seu cl�� chegaram a Cana��, ar-
mando ali suas tendas, o Senhor tornou a falar-lhe: Dou
esta terra a tua descend��ncia . Mais tarde, numa outra
apari����o, disse Jeov�� a seu profeta: Estende a vista de
onde est��s, para o Norte, o Sul, o Oriente e o Ocidente;
porque toda a terra que v��s, Eu a darei alie a tua descen-
d��ncia t��o numerosa quanto o p�� da terra; de modo que, se
o p�� da terra puder ser contado, tua descend��ncia poder��
ser contada. Vai e percorre a terra em seu comprimento e
cm sua largura; porque Eu ta darei . (N��o fosse o risco
de parecer irreverente, eu diria que essa foi a maior tran-
sa����o imobili��ria de todos os tempos.) Com Abra��o e seus
descendentes come��ou um novo tipo de rela����o entre
Deus e os homens, e esbo��ou-se uma nova religi��o que
seria mais tarde codificada no Dec��logo de Mois��s.
Neste ponto d��vidas me confundem o esp��rito. Os
membros da tribo de Abra��o e os hebreus que oitocentos
anos mais tarde Jos�� conduziu para o Egito, ser��o par-
tes do mesmo povo, os israelitas, que no s��culo XII a. C.
Mois��s levou para fora da terra dos fara��s, no epis��dio
��pico conhecido pelo nome de ��xodo? Historiadores, etn��-
logos e exegetas do Velho Testamento parece n��o terem
chegado ainda a um ac��rdo definitivo sobre esse ponto,
48
E R I C O V E R �� S S I M O
e n��o serei eu que, sentado aqui a esta mesa, curtindo
um resfriado infamante, v�� resolver o sutil problema.
Assim, para simplificar uma quest��o extremamente
complexa e controvertida, direi, com essa encantadora
mescla de inoc��ncia e desfa��atez do novelista, que a his-
t��ria antiga dos hebreus come��a com um grupo de agri-
cultores estabelecidos em Gochen, no nordeste do Egito,
onde sofreram terr��veis persegui����es sob o reinado de
Rams��s II. Mois��s livrou-os do cativeiro e, ap��s longas e
penosas marchas pelo Deserto do Sinai, e duma batalha
contra os amalecitas, inimigos de Israel, subiu ao Monte
Horeb onde, inspirado por uma revela����o divina, deu ao
seu povo nos Dez Mandamentos as bases da primeira re-
ligi��o monote��sta que o mundo conheceu, e que viria a
influenciar outras importantes religi��es n��o s�� no Oriente
como tamb��m no Ocidente.
Por muitos anos as tribos em que se haviam dividido
os hebreus vaguearam pelo deserto, antes de conquista-
rem Cana��, a Terra da Promiss��o, "onde mana o leite
e o mel". Para melhor enfrentar os inimigos comuns, de-
cidiram essas tribos unir-se. Saul, seu primeiro rei, foi
derrotado e morto pelos filisteus na batalha do Monte
Gilboa. No reinado de Davi, seu sucessor, aniquilado o
inimigo cr��nico, expandiram-se as fronteiras de Israel,
e seu povo entrou num per��odo de paz e prosperidade.
Foi no reino de Salom��o, filho de Davi, que se construiu
o primeiro Templo de Jerusal��m. Ap��s a morte de Sa-
lom��o as tribos do norte juntaram-se, sob a chefia de
Jerobo��o, para formar o Reino de Israel, ao passo que
as do sul permaneceram unidas, constituindo o Reino de
Jud��. Israel e Jud�� tiveram atritos e entraram em guerra
um contra o outro no ano 725 a. C.
Durante um per��odo de tr��s s��culos todos os imp��-
rios sem��ticos da antiguidade meteram sucessivamente
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49
as pesadas patas na Palestina. Sargon, rei da Mesopot��-
mia, apossou-se de Samaria, capital de Israel. Foi nessa
��poca que come��ou talvez a primeira dispers��o dos judeus.
Jud�� foi dominada primeiro pelos ass��rios e mais tarde
pelos eg��pcios. No ano 586 a. C. os babil��nios conquista-
ram Jerusal��m, destru��ram o primeiro Templo e manda-
ram os hebreus em cativeiro para a Babil��nia. Quando,
por��m, os persas submeteram os babil��nios a seu jugo,
Ciro II permitiu que os judeus voltassem para sua terra
e reconstru��ssem o Templo, o que foi feito.
Assim, durante cerca de mil e setecentos anos esses
relativamente pequenos grupos n��mades de hebreus ha-
viam andado dum lado para outro como formigas mi-
n��sculas sobre ��� ou, melhor, sob ��� os corpos dos gran-
des imp��rios sem��ticos. Agora, pelo ano 600 a. C, os
gigantes estavam j�� agonizantes ou mortos, mas as for-
migas continuavam vivas e ativas. Foi essa a primeira
das muitas provas de sobreviv��ncia a que a Hist��ria ha-
veria de submeter o povo de Israel. (Curioso: at�� um
sujeito como eu, que tanto tem Mo sobre sem��ntica geral,
fala na Hist��ria como se se tratasse duma pessoa, talvez
duma senhora gorda, tremendamente poderosa, impre-
vis��vel e n��o raro perversamente absurda.)
A segunda prova de sobreviv��ncia dos judeus e mais
especificamente do juda��smo ocorreu entre os anos 334
e 322 a. CL, quando os descendentes de Abra��o perma-
neceram sob a influ��ncia dos conquistadores gregos de
Alexandre o Grande. Foi esse o primeiro contato cultu-
ral que os hebreus tiveram com o Ocidente. Tudo indica
que para o Povo Escolhido foi mais f��cil manter sua etnia,
sua religi��o e seus h��bitos de vida sob o duro dom��nio
dos ass��rios, dos eg��pcios, dos babil��nios e dos persas do
que sob a influ��ncia mais sutilmente aliciante dos hele-
50
E R I C O V E R �� S S I M O
nos. Nem mesmo os poderosos conquistadores romanos
ficariam mais tarde imunes �� influ��ncia da cultura grega.
�� natural que os rabinos e escribas ficassem alar-
mados ante a invas��o da Palestina pelos numerosos, li-
cenciosos e sensual��ssimos deuses do Olimpo, e tratassem
de opor-lhes o Deus severo, tr��gico e ��nico do Velho Tes-
tamento. Os gregos, com sua apurada sensibilidade, acha-
vam os judeus uns b��rbaros. Os hebreus ortodoxos por
sua vez repeliam os gregos como imorais e imaturos. (��
bom n��o esquecer que os gregos das colonias orientais
n��o eram do mesmo calibre intelectual dos atenienses.)
�� sabido que imaturidade se casa bem com imaturidade.
A filosofia hedonista dos helenos, os seus h��bitos sexuais
livres e a sua alegria de viver tinham de fatalmente atrair
os jovens hebreus, que deviam achar supinamente ele-
gante e refinado, al��m de conveniente, vestirem-se �� ma-
neira hel��nica, adotar nomes gregos e conviver pacifi-
camente com os conquistadores. Ora, o colaboracionismo
n��o �� um fen��meno de nossa era. Durante o dom��nio da
Gr��cia existiam na Palestina grupos de judeus heleni-
zantes. Os "colaboracionistas" eram em geral gente das
camadas mais ricas da sociedade, ��vidas de seguran��a,
conforto e mais lucros. Come��ou nessa ��poca a primeira
di��spora na dire����o das terras ocidentais. Muitos judeus,
em busca de aventuras ou melhores oportunidades de
ganhar a vida, emigraram da Palestina para as comuni-
dades hel��nicas da costa do Mediterr��neo e para as ilhas
gregas, onde adotaram n��o s�� nomes como tamb��m cos-
tumes e id��ias gregos.
Embora n��o tivessem aceito o helenismo, os judeus
doutos trataram de aprender a l��ngua dos conquistadores
e de estudar a filosofia de Arist��teles e Plat��o, e a ci��ncia
de Euclides. Data desse tempo ��� presume-se ��� a tenta-
tiva de dar um aspecto l��gico ��s revela����es b��blicas. Creio
I S R A E L E M A B R I L
51
que se pode dizer que o resultado desse processo foi o Tal-
mude. Por outro lado os gregos tamb��m n��o foram mais
os mesmos depois de seu encontro com os hebreus. Desse
contato entre duas culturas produziu-se uma intera����o
da qual nenhuma delas saiu intacta.
Quando no ano de 168 a. C. Ant��oco IV, rei grego
da S��ria, no af�� de acelerar a heleniza����o dos judeus
antecipou, por assim dizer, alguns dos m��todos que dois
mil e cem anos mais tarde Hitler viria a usar contra os
judeus, com finalidade tragicamente mais radical ��� essa
viol��ncia provocou a revolta libertadora dos Macabeus,
um dos epis��dios mais extraordin��rios da Hist��ria, con-
siderado t��o importante para o povo hebreu quanto a
Revolu����o Francesa viria a ser para a Europa e as
Am��ricas.
No ano 63 a. C. as legi��es de Roma conquistaram
a Palestina. Era Herodes o rei dos judeus quando surgiu
a figura incompar��vel de Jesus Cristo, o revolucion��rio
cuja palavra de f�� e cuja mensagem em prol da digni-
dade do homem, da paz, do amor e da justi��a acabaria
por abalar o imp��rio romano. Alguns anos ap��s a cruci-
fix��o de Jesus sob P��ncio Pilatos, Tito destruiu Jerusal��m
e seu Templo e assim come��ou a Di��spora com D mai��s-
culo, e com ela uma outra prova muito s��ria para a so-
breviv��ncia da f�� judaica. Como resultado da dispers��o
e da fragmenta����o do povo israelita no tempo e no es-
pa��o, criaram-se duas esp��cies de juda��smo: o da Pales-
tina e o da Di��spora. Foi depois de perderem na Palestina
a sua p��tria no espa��o que os judeus, na sua p��tria no
tempo, fortificaram ainda mais o seu pensamento reli-
gioso.
A Di��spora produziu dois grupos importantes de ju-
deus, que se definiram com caracter��sticas pr��prias duran-
52
E R I C O V E R �� S S I M O
te a Idade M��dia ��� os sefarditas e os asquenazis. Os pri-
meiros eram descendentes n��o s�� dos israelitas que se
haviam estabelecido nos reinos e principados surgidos ap��s
a queda do Imp��rio Romano, como tamb��m dos que mais
tarde acompanharam as legi��es do Islame que invadiram
o norte da ��frica, a Espanha e Portugal. (O curioso ��
que a religi��o que inspirou e impeliu os maometanos em
sua marcha contra o mundo crist��o ocidental, era uma
esp��cie de flor ex��tica brotada do tronco milenar do ju-
da��smo.)
Tendo conseguido um modus vivendi satisfat��rio com
os mouros que ocupavam quase toda a Pen��nsula Ib��rica,
puderam os judeus letrados da Espanha trabalhar em
paz, destacando-se como fil��sofos, ling��istas, tradutores,
cientistas, m��dicos, poetas e prosadores, contribuindo as-
sim decisivamente para o esplendor da civiliza����o mou-
risca na Europa. Escreviam ensaios filos��ficos em ��rabe,
sob a influ��ncia tanto de Arist��teles como de Averr��is, e
usavam muitas vezes a l��ngua hebraica para a poesia.
H��beis financistas e diplomatas, ocuparam postos impor-
tantes de governo, n��o s�� durante a perman��ncia dos
mu��ulmanos na Ib��ria, como tamb��m mais tarde, na
corte de Afonso o S��bio. Foi essa a Idade de Ouro do
juda��smo representado ent��o pela tradi����o sefardita: ri-
tual e id��ias religiosos, maneira de pronunciar o hebraico,
h��bitos de vida, literatura e at�� indument��ria. Sens��vel
foi tamb��m a influ��ncia dos judeus sefarditas na Fran��a
e na It��lia.
Sorte diferente, por��m, tiveram os asquenazis, isto
��, os hebreus que ap��s a destrui����o do segundo Templo
buscaram ref��gio nas terras que mais tarde viriam a
formar a Alemanha. O meio ��� o hist��rico, n��o o geo-
gr��fico, �� claro ��� n��o lhes propiciou um florescimento
cultural como no caso dos sefarditas, que os haviam pre-
I S R A E L E M A B R I L
53
cedido na emigra����o para o continente europeu. Na es-
cura noite da Idade M��dia, o problema mais s��rio desses
asilados asquenazis foi o de lutar pela sobreviv��ncia n��o
apenas de sua etnia e da sua f�� religiosa como tamb��m
de suas pessoas f��sicas. Refugiaram-se no Tor��, no Tal-
mude e na l��ngua hebraica para escapar a uma cristiani-
za����o for��ada e em massa. E tanto esses judeus asque-
nazis como os sefarditas sofreram as persegui����es mais
cru��is promovidas pelos cruzados, no seu fervor agressi-
vamente cristianizante em que se misturavam singular-
mente misticismo e mercantilismo.
Depois da Peste Negra (1348-1349) acusados fal-
samente de envenenar a ��gua dos po��os, lagos e rios das
regi��es onde viviam, os judeus alem��es foram v��timas de
grandes massacres. Os sobreviventes fugiram em nume-
rosas levas para a Pol��nia e a R��ssia, onde de certo
modo, com o passar do tempo, acabaram por formar uma
esp��cie de classe intermedi��ria entre os poderosos senho-
res de terras e a plebe, exercendo certas atividades co-
merciais e profissionais que os ricos em geral considera-
vam abaixo de sua dignidade e os pobres acima de suas
possibilidades ou habilidades.
Finda a ocupa����o isl��mica, os sefarditas em sua
maioria permaneceram na Espanha. Uma campanha anti-
semita iniciada pela Ordem Dominicana determinou em
1391 uma s��rie de massacres de judeus que come��aram
em Sevilha e em breve se alastraram por toda a Pen��n-
sula Ib��rica. Para salvar a pele, muitos sefarditas foram
compelidos a batizar-se e adotar nomes crist��os. No ano
mesmo em que Crist��v��o Colombo ��� que possivelmente
era de origem judaica ��� descobriu a Am��rica, um edito
de Fernando e Isabel, inspirado por Torquemada, expul-
sou os judeus da Espanha. Numa esp��cie de subdi��spora
54
E R I C O V E R �� S S I M O
(e haveria ainda muitas outras!) cerca de 150 000 se-
farditas procuraram ref��gio no norte da Africa, princi-
palmente em Marrocos, e tamb��m na Holanda, na Ingla-
terra, na Fran��a, nas ��ndias Ocidentais e mais tarde na
Am��rica. Em 1497 Portugal mandou para o ex��lio os
seus judeus, permitindo que ficassem no pa��s apenas os
chamados marranos, isto ��, os israelitas conversos, cris-
t��os apenas no nome e na apar��ncia, pois continuavam
a seguir secretamente a f�� religiosa de seus ancestrais.
O Quarto Conc��lio de Latr��o (1215) n��o s�� esta-
beleceu as mais estritas restri����es econ��micas, civis e
legais aos judeus em geral como tamb��m aprovou leis
tendentes a afastar cada vez mais esses infi��is dos cris-
t��os ��� o que originou os "distintivos" para os filhos de
Israel e mais tarde a sua confina����o nos guetos.
Quando sobreveio a Reforma, a princ��pio Lutero es-
creveu e falou com simpatia sobre os judeus, condenando
a Igreja Cat��lica por seu intolerante e impiedoso trata-
mento desse povo. Mas por fim, desesperan��ado de atrair
os obstinados descendentes de Abra��o para a sua igreja
reformada, lan��ou ele pr��prio uma virulenta campanha
contra "os judeus e suas mentiras", recomendando que
fossem queimadas suas sinagogas e suas resid��ncias, con-
fiscados os seus livros de ora����o e os textos do Talmude,
e proibidos os rabinos de ensinar a religi��o judaica, sob
pena de condena����o �� morte.
A partir do s��culo XVI da Era Crist��, a cultura as-
quenazi se sobrep��s �� sefardita e da�� por diante passou
a representar o juda��smo, tal como o conhecemos hoje
em dia.
No s��culo XVII os judeus tiveram permiss��o de aban-
donar os guetos. A Revolu����o Francesa concedeu-lhes gra-
dualmente direitos civis, sociais, pol��ticos e econ��micos.
A persegui����o e os guetos, entretanto, dum modo ou de
I S R A E L E M A B R I L
55
outro prosseguiram em certos pa��ses como, por exemple,
a Pol��nia e a R��ssia. Sempre que uma na����o emergia
depauperada e desiludida duma guerra ou se debatia nu-
ma crise econ��mica ou politica, (ou em ambas, como era
mais freq��ente) tornava-se necess��rio apresentar ao povo
um bode expiat��rio, uma v��lvula de escape para a indig-
na����o ou a humilha����o nacional. E l�� estavam os judeus,
um alvo natural por muitos motivos ��� pela sua insis-
t��ncia em manter a "ra��a", pelo apego ao seu Deus e aos seus livros religiosos, pela sua tradi����o de mart��rio
e, principalmente, por causa de todos os defeitos e crimes
que lhes imputava uma triste e sinistra mitologia. De
certo modo pode-se dizer que maltratar, discriminar, isolar
o judeu era uma esp��cie de jogo folcl��rico crist��o. E em
fins do s��culo passado os russos inventaram o pogrom,
isto ��, o massacre institucionalizado, organizado contra
os judeus com o consentimento do governo e cuja finali-
dade era desviar a aten����o do povo dos problemas nacio-
nais do momento, esp��cie de tr��gico circo em tempo de
escassez ou car��ncia de p��o.
Apesar de todas essas persegui����es e empecilhos, a
contribui����o que os judeus t��m dado �� humanidade no
terreno da ci��ncia, da literatura, da arte, da ind��stria, do
com��rcio, da pol��tica e da diplomacia tem sido not��vel.
A velha cultura sefardita produzira, entre outras, as fi-
guras exponenciais de Maimonides e Spinoza. Entre os
anos de 1 9 0 7 e 1966 nada menos de cinq��enta pessoas
de origem judaica receberam o Pr��mio Nobel: dezessete
o de F��sica, vinte o de Medicina e Fisiologia, seis o de
Qu��mica, dois o da Paz e cinco o de Literatura. Judeus
eram Karl Marx, Sigmund Freud, Albert Einstein e Franz
Kafka.
Numa esp��cie de licen��a po��tica" podemos dizer
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E R I C O V E R �� S S I M O
que no ��mago da raiz do sionismo moderno encontra-se
a saudade do Templo, a Casa Paterna do juda��smo, duas
vezes destru��da. Durante a Idade M��dia o "retorno a
Sion", isto ��, a Jerusal��m, era por assim dizer um vago
perfume de esperan��a a pairar sobre a tristeza, a humi-
lha����o e freq��entemente o terror dos guetos judeus em
todo o mundo. Os velhos hebreus ��� e quanto mais reli-
giosos eram, mais forte se manifestava neles esse senti-
mento ��� sonhavam com a volta �� terra de origem de
seus ancestrais, pelo menos para l�� terminarem suas
vidas e serem sepultados no solo sagrado dos Profetas.
Esse "retornismo", de maneira latente ou manifesta, re-
velava-se na liturgia judaica medieval e na obra de seus
poetas.
Entre 1900 e 1913 os repetidos pogroms levados a
cabo pelos cossacos do czar for��aram a emigra����o de
um milh��o e meio de judeus russos, que buscaram ref��-
gio e um futuro melhor nos Estados Unidos. Em meados
do s��culo passado Moses Hess e outros escritores judeus
publicaram livros em que tomava forma cada vez mais
definida a id��ia do sionismo. (Esta palavra, que designa
uma aspira����o t��o antiga s�� foi criada em 1893, por
Nathan Birnhaum.) Em 1895 um intelectual judeu-h��n-
garo, Theodor Herzl, sensibilizado pelo processo Dreyfus,
que acompanhara na qualidade de correspondente dum
jornal de Viena, escreveu um livro, O Estado Judeu, que
publicado em 1896, deu enorme impulso �� id��ia do sio-
nismo a ponto de determinar no ano seguinte o Primeiro
Congresso Sionista, reunido na Basil��ia, e do qual nas-
ceu a Organiza����o Sionista Mundial.
Em 1901 o Quinto Congresso Sionista, por sugest��o
ainda de Herzl, criou o Kerem Kayemet Le-Israel ou seja
o Fundo Perp��tuo para Israel, destinado �� aquisi����o e ao
reflorestamento de terras na Palestina, onde, al��m duma
I S R A E L E M A B R I L
57
escola agr��cola, a Mikv��, existia j�� uma aldeia de agricul-
tores judeus fundada em 1878.
A primeira aliyah (onda de imigra����o) operou-se em
1882 e s�� foi poss��vel gra��as ao apoio moral e material
do bar��o Edmond de Rothschild. Antes de 1880 existiam
apenas uns doze mil hebreus em todo o territ��rio pales-
tinense, em sua maioria religiosos ortodoxos j�� "fartos
de dias", como diria J��. Entre 1904 e 1914 processou-se
a segunda aliyah, levando para a terra de Israel uma
grande quantidade de jovens imigrantes inclinados ao
trabalho manual e agr��cola, alguns deles movidos por
uma ideologia trabalhista. A terceira aliyah iniciou-se em
1920 e compunha-se de judeus que j�� possu��am meios
pr��prios de subsist��ncia, havendo entre eles alguns estu-
diosos do Talmude e numerosos artes��os.
O sionismo, pois, deixava de ser apenas uma expres-
s��o de saudosismo religioso para se traduzir em a����o.
Depois de 1918, tomou car��ter nitidamente pol��tico. O
objetivo principal dos seus l��deres era levar para a Pa-
lestina um n��mero suficiente de israelitas para justificar
futuramente a cria����o dum Estado judeu. A compra de
terras por parte dessas organiza����es sionistas incremen-
tara-se ap��s a morte de Herzl (1904). Propriet��rios turcos
e ��rabes exigiam somas fabulosas por glebas semi-��ridas
ou ��ridas.
A Primeira Guerra Mundial interrompeu e de certo
modo prejudicou a atividade dos sionistas, que tiveram de
manter-se num dif��cil compasso de espera, embora judeus
em grande n��mero tivessem lutado ao lado dos ingleses
contra os turcos, no famoso Zion Mule Corps e outros
batalh��es organizados por Vladimir Jabotinsky, judeu-
russo, figura fascinante de aventureiro.
Durante esse grande conflito tornou-se p��b��ca a De-
clara����o de Balfour, que anunciava o apoio do governo
58
E R I C O V E R �� S S I M O
da Inglaterra �� "cria����o dum lar para o povo judeu", sob
a condi����o de que nada se devesse fazer em preju��zo dos
direitos civis e religiosos das comunidades n��o-judaicas
existentes na Palestina ou em qualquer outro pa��s.
Terminada a Primeira Grande Guerra, o Imp��rio Oto-
mano foi desmembrado e o Oriente M��dio dividido em ter-
rit��rios que tomaram o nome de S��ria-L��bano, Transjord��-
nia, Iraque e Saudi-Ar��bia ��� tudo isso de acordo com os
interesses da Fran��a e da Inglaterra voltados principal-
mente para as jazidas de petr��leo daquela parte do mundo.
Entre 1918 e 1936 uns cento e cinq��enta mil judeus
imigrantes j�� se achavam estabelecidos na Palestina. Nas
suas terras, adquiridas a peso de ouro, haviam sido fun-
dados numerosos aldeamentos agr��colas e plantadas cen-
tenas de milhares de ��rvores.
Ao tomar o poder na Alemanha em 1933, Adolf
Hitler, seguindo por assim dizer uma "tradi����o" medieval
alem��, encontrou nos judeus ��� que com toda a certeza
j�� odiava por outros motivos, hist��ricos ou mitol��gicos
��� o bode-expiat��rio ideal para os desastres do Segundo
Reich: a derrota que os aliados lhe haviam infligido, as
condi����es humilhantes do Tratado de Versalhes, a ban-
carrota econ��mica e moral da Alemanha e todas as suas
desordens internas. Seguiu-se ent��o um dos per��odos mais
tr��gicos da j�� tr��gica hist��ria do povo judeu: as humi-
lha����es, as col��nias de trabalhos for��ados, os campos de
concentra����o em que os nazistas se empenharam em avil-
tar, torturar e por fim liquidar metodicamente os judeus,
n��o s�� alem��es como os dos outros pa��ses por eles con-
quistados. (Durante a Segunda Guerra Mundial, uma bri-
gada formada s�� de soldados judeus lutou ao lado dos
aliados contra as for��as do Eixo.)
O anti-semitismo nazi, como era de se esperar, fez
aumentar o fluxo de imigrantes judeus para a Palestina.
I S R A E L E M A B R I L
59
Mas como a Hist��ria nunca �� linear (e j�� nem quero falar
em l��gica) surgiram dificuldades no caminho do Retorno.
O Livro Branco brit��nico (1939) restringia com o maior
rigor a entrada de judeus na Palestina, e negava-lhes tam-
b��m o direito de adquirir mais terras naquela parte do
Oriente M��dio. Foi ent��o que come��ou um novo tipo de
atividade sionista: o contrabando de judeus para dentro
da Palestina. (E aqui, em benef��cio da brevidade, tenho
de me conter para n��o narrar essa odiss��ia nem a outra,
mais pungente ainda, dos "navios sem porto" carregados
de judeus ��� homens, mulheres e crian��as ��� que fugiam
�� f��ria dos nazistas, mas n��o encontravam pa��s que os
acolhesse.)
O movimento sionista, que em 1942 aceitara o pro-
grama de Davi Ben-Gurion para o estabelecimento dum
Estado judeu na Palestina, conseguiu que a Organiza����o
das Na����es Unidas estabelecesse um comit�� para os as-
suntos palestinenses. Esse grupo apresentou um plano
segundo o qual a Palestina seria dividida em dois Estados,
um ��rabe e o outro judeu, devendo Jerusal��m permanecer
dentro duma zona internacionalizada. As recomenda����es
desse comit�� foram aprovadas em 1947 pela Assembl��ia
Geral da O. N. U. por uma maioria de dois ter��os. A In-
glaterra absteve-se de votar. Os delegados dos Estados
��rabes retiraram-se do plen��rio, manifestando sua in-
ten����o de resistir pelas armas �� partilha da Palestina.
Com sua proverbial sabedoria a Gr��-Bretanha come-
��ou a retirar suas tropas da Terra Santa em 1948, consi-
derando terminado o seu mandato. ��rabes e judeus pre-
pararam-se ent��o para a guerra inevit��vel.
Havia j�� alguns anos que grupos armados hebreus
empenhavam-se em atividades guerreiras. Um deles, o
Irgun Zvai Leumi, (Organiza����o Militar Nacional) tinha
car��ter secreto, entregava-se a atos de viol��ncia e havia
60
E R I C O V E R �� S S I M O
sido posto fora da lei pelo governo brit��nico do Mandato.
O outro, o Haganah (palavra que em hebraico significa
defesa) formado de in��cio pelos remanescentes do legen-
d��rio Zion Mule Corps, tinha fun����es puramente defen-
sivas: uma esp��cie de "guarda nacional".
Esses grupos (existiam outros menores) ��s vezes
travavam combate uns contra os outros, como advers��-
rios. Seja como for, eles simbolizavam da maneira mais
concreta a nova disposi����o dos judeus de n��o mais bai-
xarem a cabe��a, submissos, entregando-se como cordeiros
ao sacrif��cio, nas m��os de seus inimigos.
O Haganah e as for��as ��rabes travaram duros com-
bates, principalmente ao longo da estrada que vai de Tel
Aviv a Jerusal��m, a desejada Sion, da qual os judeus
finalmente se apoderaram. Em maio de 1948 foi procla-
mado o Estado de Israel, logo reconhecido pelos Estados
Unidos da Am��rica como um governo de facto. A Liga
��rabe, cujos membros eram a S��ria, o L��bano, o Jord��o,
o Egito e o Iraque, contra-atacou, e duas semanas mais
tarde os judeus foram expulsos da parte antiga de Je-
rusal��m, conservando no entanto a cidade nova. Segui-
ram-se v��rias tr��guas impostas pela Organiza����o das
Na����es Unidas, que tentava solucionar pacificamente o
conflito. O Conde Folke Bernardotte, diplomata sueco,
nomeado por aquela sociedade de na����es mediador na
Palestina, foi assassinado em Jerusal��m por terroristas
judeus. Imediatamente o governo de Israel tratou de dis-
solver todas as organiza����es secretas do novo Estado.
Quando em 1949 ��rabes e judeus chegaram a um
acordo quanto a um armist��cio, o territ��rio inicialmente
ganho pela nova na����o judia n��o s�� continuava intacto
como tamb��m havia sido aumentado por conquistas ar-
madas de suas tropas na Galileia e no Neguev. A velha
Jerusal��m achava-se agora em poder da Jord��nia. Os isra-
I S R A E L E M A B R I L
61
elenses consolidaram a posse da sua parte nova, ligada
ao resto do territ��rio de Israel por um estreito e perigoso
corredor. Por outro lado trataram de organizar sua estru-
tura governamental. Chaim Weizmann foi eleito primeiro
Presidente do Estado de Israel, tendo como seu primeiro
ministro Davi Ben-Gurion.
O resto �� hist��ria recent��ssima.
UMA NA����O DE NA����ES?
Levanto-me da cadeira em que estou sentado �� mesa
do Seder, neste kibbutz de Gan Chmuel, espraio o olhar
pelo amplo sal��o e penso: Hoje em dia encontra-se em
Israel parte do "saldo", da "sobra" dos judeus do mundo
inteiro que resistiram a tantos s��culos de humilha����es,
persegui����es cr��nicas e massacres. Quantos sobreviven-
tes dos campos de concentra����o nazistas estar��o aqui
esta noite?
Torno a sentar-me e fico a conversar com Henrique
Steinberg sobre outras comunidades judias que, pelo me-
nos culturalmente, ficaram fora tanto do p��lio asquenazi
como do sefardita. Consider��veis grupos de judeus per-
maneceram nas regi��es ��rabes do Oriente M��dio, tendo
alguns deles chegado mais tarde at�� �� ��ndia e �� China.
(Lembro-me de que, conversando em 1941 com Pearl
Buck, a escritora americana, ouvi dela que na China os
judeus nunca foram realmente discriminados, e que a
cruza entre o chin��s e o hebreu produziu um belo esp��-
cime humano.) Existe em Jerusal��m um bairro habitado
exclusivamente por judeus ortodoxos, oriundos da Europa
Oriental, que n��o reconhecem o Estado de Israel, e cujo
modo de vida �� inspirado pelo Tor�� e pelo Talmude. Ao
sul de Berseba, j�� na f��mbria do Deserto de Neguev, vive
um grupo de judeus da ��ndia.
62
E R I C O V E R �� S S I M O
Tenho particular simpatia pelo grupo iemenita, do
qual j�� vi exemplares: homens e mulheres esbeltos, de
fei����es delicadas, pele cor de oliva e olhos negros e lus-
trosos ��� ex��mios dan��arinos, h��beis ourives, prateiros,
bordadores, cesteiros, tapeceiros, ceramistas e ferreiros.
Viveram durante s��culos separados de seus irm��os no
l��men, num reino independente situado a Sudoeste da
Ar��bia, sobre o Mar Vermelho. Sua origem, muito dis-
cutida, parece remontar �� destrui����o do primeiro Templo
ou, segundo querem os pr��prios iemenitas, aos tempos
da rainha de Sab��. Como em 1949 as vidas dos membros
desse grupo estivessem em perigo, o governo israelense
conseguiu evacu��-los do l��men, trazendo-os para Israel,
numa prodigiosa opera����o a��rea que durou cinco meses
e recebeu o nome de 'Tapete M��gico" porque ��� igno-
rantes e supersticiosos ��� os iemenitas s�� consentiram
em entrar nos avi��es depois que lhes garantiram que
se tratava de "tapetes voadores" como os da mitologia
��rabe, e que Ben-Gurion era uma nova encarna����o de
Mois��s.
Minha mulher franze a testa, incr��dula, quando
Steinberg lhe fala da exist��ncia de judeus negros. �� que
durante a Di��spora alguns israelitas emigraram na di-
re����o do Mar Vermelho, tendo ido dar com os costados
nas montanhas da Abiss��nia, onde se constitu��ram num
reino judaico independente. Fala-nos ainda Henrique du-
ma comunidade da P��rsia (hoje Ir��) mais antiga do que
a pr��pria B��blia, muitos de cujos membros descendem
dos escravos judeus da Babil��nia e falam dialetos persas.
E h�� ainda os judeus do Curdist��o ��� que falam ainda
o tipo de aramaico usado na antiga Palestina ��� e que
se distinguem mais pela for��a f��sica do que pela capa-
cidade mental.
Por ocasi��o dum recrudescimento do nacionalismo
I S R A E L E M A B R I L
63
��rabe no Iraque, os judeus dessa regi��o, para escaparem
�� extermina����o, tiveram de ser evacuados ��s pressas, e
tamb��m por via a��rea, na "Opera����o Ali Bab��".
Mastigando pedacinhos de matzot, Henrique Stein-
berg nos descreve outros dos retalhos que integram esta
variegada "colcha" israelense, como os judeus do norte
da ��frica, origin��rios de Marrocos, da Tun��sia e da
L��bia, que formam comunidades heterog��neas nas quais
se fala uma mescla de ��rabe e ladino.
Aos poucos vou percebendo que neste pa��s t��o novo,
mas de ra��zes hist��ricas t��o antigas, existem j�� "mino-
rias", compostas de "judeus de segunda classe", e at��
mesmo uma esp��cie de "endodiscrimina����o" (se �� que
tal palavra existe) n��o de natureza racial, mas social.
E me parece vis��vel a olho nu uma certa animosidade
entre os judeus asquenazis ��� estes hoje mais nume-
rosos e culturalmente mais importantes ��� e os sefarditas.
Integrar essas minorias e formar com elas uma
na����o homog��nea ��� parece-me ��� est�� sendo um dos
muitos problemas do Estado de Israel.
O SEDER
O Seder vai come��ar. Marisa Steinberg nos presen-
teou com um exemplar do Hagad��, o livro usado tradi-
cionalmente nesta cerim��nia pascal. �� um volume es-
belto de capa cartonada, com belas ilustra����es em cores
imitando iluminuras, e traz o texto em hebraico numa p��-
gina e a sua tradu����o para o ingl��s na p��gina fronteira.
O Hagad�� cont��m em forma narrativa trechos do livro
do ��xodo, do C��ntico dos C��nticos, discuss��es e interpreta����es do Talmude, ora����es, hinos e salmos.
Temos sobre a mesa, diante de cada um de n��s, um
64
E R I C O V E R �� S S I M O
pequeno c��lice cheio do vinho tinto que devemos beber
a espa��os, de acordo com as instru����es do livro. Segun-
do a tradi����o, �� mesa da ceia do Seder deve haver sem-
pre um osso de perna de carneiro assado, simbolizando
os carneiros que na antiguidade b��blica eram sacrificados
nas cerim��nias pascais; e certas outras comidas aleg��-
ricas como o Ovo cozido ��� alus��o ao povo judeu que,
quanto mais cozido, mais duro fica ���, um raminho de
salsa, um pouco de ��gua salgada, r��bano e outras ra��zes
ou ervas amargas, para evocar as agruras do Ex��lio,
especialmente as do cativeiro dos hebreus no Egito, ao
qual esta festa se acha t��o intimamente ��gada. Quanto
ao p��o ��zimo ��� explicavam os rabinos medievais ��� os
judeus devem com��-lo durante a P��scoa em mem��ria de
seus antepassados que, ao deixarem o Egito ��s pressas,
n��o tiveram tempo de esperar que a massa de seu p��o
fermentasse. Como, por��m, estamos num k��bbutz n��o-re-
ligioso, pois predomina aqui uma corrente pol��tica ra-
dical socialista, isto ��, o Partido Mapam, esses requisitos
simb��licos n��o foram, pelo que vejo, rigorosamente se-
guidos.
A uma das mesas no centro do sal��o ergue-se um
senhor de barbas apost��licas, com o Hagad�� nas m��os,
e come��a a ler dele o que julgo ser uma par��frase dum
trecho do ��xodo, em que Mois��s diz: Este m��s vos ser��
o principal dos meses, e ele vos ser�� dos meses do ano
o m��s da primavera. �� a ordem do Profeta para que seu
povo comemore para sempre a P��scoa no d��cimo quarto
dia do m��s da primavera, pois foi nesse dia que vossas
hostes deixaram o Egito .
Seguem-se vers��culos dos Cantares de Salom��o com
alus��es �� entrada da primavera: Porque eis que passou
o inverno: a chuva cessou e se foi. Apareceram as flores
na terra, o tempo de cantar chega e a voz da rola ouve-se
I S R A E L E M A B R I L
65
na nossa terra.. . �� agora um jovem, num outro ponto
do sal��o, quem continua a ler passagens do C��ntico dos
C��nticos. Levantemo-nos de manh�� para ir ��s vinhas,
vejamos se florescem as vides, se se abre a flor, se j��
brotam as romeiras... As mandragoras d��o cheiro e ��s
nossas portas h�� toda a sorte de excelentes frutos... A
p��gina seguinte �� dedicada �� chuva (Parte em paz, ��
chuva, as mandragoras perfumam o jardim dos aman-
tes. . . ) . Depois exalta-se o orvalho (Precioso orvalho, coroa dos anos bons, n��s esperamos que a terra em orgulho
e gl��ria possa produzir frutos.). Segue-se uma refer��ncia
ao p��o: (Este �� o p��o da afli����o que nossos pais come-
ram na terra do Egito. Que venham todos os que t��m
fome, e participem dele.).
Bebemos ent��o o nosso primeiro c��lice de vinho, uma
ta��a de liberta����o erguemos para comemorar o ��xodo
do Egito, da dispers��o para a reden����o, da subservi��ncia
em outros reinos para a independ��ncia em nossa pr��pria
terra. Brindamos a vida e a liberdade . A cerim��nia pros-
segue. Bebemos o segundo c��lice ap��s a leitura duma pas-
sagem do Hagad�� em que se fala nas pragas do Egito,
e de novo na odiss��ia dos judeus no ��xodo, e se nos
exorta a n��o deixarmos de fazer um juramento: en-
quanto respirarmos e vivermos, n��o haveremos de esque-
cer o que aconteceu at�� �� d��cima gera����o. .. Erguemos
todos o terceiro c��lice, e o vinho, doce e capitoso, parece
por um momento atenuar as mis��rias deste meu resfria-
do j�� meio b��blico. Que haja paz na nossa for��a, tran-
q��ilidade em nossos lares. E l�� vai um brinde �� vida
e �� paz! O quarto c��lice �� erguido aos nossos camaradas,
aos nossos filhos, ao fruto da terra e aos frutos de nosso
trabalho, �� criatividade do homem e ao nosso esfor��o co-
mum e �� vida e �� abund��ncia. L'haim! L'haim!
Confesso que o ritual me comove a ponto de eu me
66
E R I C O V E R �� S S I M O
sentir um pouco judeu. (Talvez algum antepassado mar-
rano, em Portugal, nunca se sabe.)
Surpreendem-nos agradavelmente as p��ginas do Ha-
gad�� destinadas especialmente �� inf��ncia, e que, segun-
do me explica Henrique Steinberg, foram postas no final
do livro para obrigar a gente mi��da da casa celebrante
a ficar acordada at�� ao final da cerim��nia pascal, �� es-
pera do jogo verbal:
O pai comprou por dois zuzim
um cabrito s��, um cabrito s��
Ent��o veio o gato e comeu o cabrito
... ent��o veio o c��o e mordeu o gato
... ent��o veio o pau e bateu no c��o
... ent��o veio o fogo e queimou o pau
.. .ent��o veio a ��gua e apagou o fogo
.. .ent��o veio o boi e bebeu a ��gua
.. .ent��o veio o a��ougueiro e matou o boi
.. .ent��o veio o anjo da morte e matou o a��ou-
gueiro ...
Ent��o veio o Senhor,
aben��oado seja
e destruiu o anjo da morte
que matou o a��ougueiro
que matou o boi
que bebeu a ��gua
que apagou o fogo
que queimou o pau
que bateu no c��o
que mordeu o gato
que comeu o cabrito
que o pai comprou
por dois zuzim,
um cabritinho
s�� um cabritinho.
I S R A E L E M A B R I L
6 7
Lembro-me dum brinquedo verbal da minha inf��n-
cia: Cad�� o toucinho que estava aqui? ��� O rato comeu.
Cad�� o rato? ��� O gato comeu. ��� Cad�� o gato? ��� Foi
pro mato. ��� Cad�� o mato? O fogo queimou. ��� Cad�� o
fogo? ��� A ��gua apagou. ��� Cad�� a ��gua? ��� O boi
bebeu. ��� Cad�� o boi? ��� Est�� moendo trigo. ��� Cad�� o
trigo? ��� O padre comeu. ��� Cad�� o padre? ��� Est�� di-
zendo missa. ��� Cad�� a missa? ��� A missa acabou.
N��o ter�� essa pequena est��ria vindo de Portugal
para o Brasil, reminisc��ncia dos Seders dos sefarditas?
E n��o ter��o os marranos inclu��do no brinquedo a parte do
padre e da missa para tirar-lhe o sabor judaico?
Terminaram as leituras e os brindes. �� servida uma
sopa quente. Atiram-se todos ��s comidas e eu vou direito
ao peda��o de galinha que estive marcando com o olho
durante a cerim��nia. Um zunzum de vozes enche o ar,
picado por um alegre tinir de talheres. Mais tarde, numa
plataforma erguida a um canto do sal��o, algumas mo��as,
possivelmente sabr��s, tocam piano, acorde��o e clarineta
e cantam can����es. S��o robustas, coradas como frutas ma-
duras, e parecem estar estourando de vitalidade.
As melodias do folclore judaico me parecem um co-
quetel preparado durante s��culos com ingredientes obti-
dos em todos os lugares do mundo por onde os judeus
viveram ou passaram no seu ex��lio. S��o evidentes nas
dan��as e can����es israelenses influ��ncias russas, polonesas,
h��ngaras, alem��s, romenas, isso para n��o falar nos seus
fortes elementos turcos e ��rabes.
A NOITE
Terminado o Seder sa��mos para o ar livre e somos
envolvidos pelo aroma das flores de laranjeira. Os Stein-
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E R I C O V E R �� S S I M O
berg nos conduzem para o apartamento onde vamos pas-
sar a noite. Seguimos ao longo dum sendeiro estreito, por
entre ��rvores, arbustos e casas. M. imagina que guerri-
lheiros jordanianos nos espreitam das sombras, de cara-
binas em punho.
Quando passamos pelo ber����rio onde dormem as
crian��as do kibbutz Marisa nos mostra, a poucos passos
dele, a entrada dum abrigo subterr��neo para onde os
pequenos s��o conduzidos ao primeiro sinal de alarma.
A fronteira da Jord��nia fica folgadamente a tiro de ca-
nh��o deste kibbutz.
O alojamento que nos toca est�� situado num pavi-
lh��o na orla dum laranjal. Encontramos sobre a mesinha
de cabeceira, entre duas camas r��sticas de ferro, um bi-
lhete de seus ocupantes permanentes. Dizem que lamen-
tam n��o estar aqui para nos dar as boas-vindas e desejam-
nos feliz estada em Israel. O apartamento n��o pode ser
mais simples, embora nele n��o falte o necess��rio para uma
vida decente. O quarto ter�� uns quatro metros por tr��s,
ch��o de cimento, paredes caiadas de branco, um guarda-
roupa de tipo antigo, uma estante com livros em hebraico
entre os quais vejo um exemplar do Manifesto Comunista,
em espanhol. Vou explorar o quarto de banho: um cub��-
culo que deve ter no m��ximo um metro quadrado. Olho
para o ralo do chuveiro e depois para o ch��o de cimento,
tomo uma ducha imagin��ria e apanho uma pneumo-
nia dupla. Para come��ar, j�� estou sentindo tremores
de frio: a garganta me arde, a cabe��a me d��i. Vida dura,
a de pioneiro 1 ��� penso. E vou ver a cozinha com sua
pia de pedra, uma torneira, um pequeno arm��rio de parede
e um fogareiro. Aqui os moradores do apartamento cos-
tumam fazer o seu caf�� matinal, antes de sa��rem, madru-
gada ainda, para o trabalho do campo ou da f��brica. As
refei����es grandes do dia s��o feitas no refeit��rio comum.
I S R A E L E M A B R I L
6 9
Meto-me na cama e come��o a tiritar, a bater queixo
sob as cobertas. Coloquei o vidro de trinitrina sobre a
mesinha, como algu��m que esconde o rev��lver debaixo
do travesseiro, desejando e esperando que o "malfeitor"
n��o entre na casa durante a madrugada e ele n��o se
veja obrigado a recorrer �� "arma".
Come��o a pigarrear e a tossir, lamentando que mi-
nha mulher tenha de ouvir este concerto atonal. Pela
janela entra a claridade azulada da noite e n��o sei por
que fresta entra o doce perfume que vem do laranjal. Tudo
isto �� muito estranho. Estamos na Terra Santa. Jesus
Cristo nasceu n��o muito longe daqui. Amanh�� visitare-
mos Nazar��. .. Depois subiremos para o Mar da Galileia.
Penso em Ben-Gurion, com quem tenho um encontro
marcado para dentro de poucos d i a s . . . e estou come-
��ando a ficar sem voz. Bom, afinal de contas quem deve
falar �� ele e n��o eu. Sinto calafrios. Talvez precise de
mais uma c o b e r t a . . . Qual! Isto tamb��m passar��, como
Abra��o Lincoln, parodiando um profeta b��blico, costumava
repetir nos maus e nos bons momentos de sua vida. O re-
m��dio mesmo �� dormir. Fa��o o poss��vel para n��o tossir,
mas �� in��til. Tusso. Sliha! Creio que �� assim que se pede
perd��o em hebraico. Sliha! Tusso de novo. Vai ser uma
noite de cachorro. Julgo ouvir o ressonar leve de minha
mulher. Mas M. me pergunta como me sinto, e com um
espectro de voz, respondo �� maneira ga��cha que vou "re-
gular pra campanha". Novo sil��ncio. Ela torna a falar.
��� Imagina se os ��rabes atacam o k��bbutz esta
noite.
��� Era s�� o que nos faltava!
��� Que ��amos fazer?
��� Ora, o que o chefe nos ordenasse.
- Que chefe?
��� Aquele senhor que conhecemos hoje no Seder,
70
E R I C O V E R �� S S I M O
e que acumula as fun����es de diretor da f��brica de con-
servas, deputado ao Parlamento e coronel do ex��rcito.
Fecho os olhos. Cristo deve ter passado por aqui a
p��, com sand��lias gastas. N��o �� imposs��vel que se tenha
detido por alguns instantes neste exato lugar onde est��o
as nossas camas. Mas isso faz tanto t e m p o . . . Tempo.
Uma i d �� i a . . . Pensar na natureza do tempo para chamar
o sono. Melhor do que contar carneiros imagin��rios. Ser��
poss��vel conceber espa��o sem tempo? Ou tempo sem es-
pa��o. Tempo: troco mi��do da Eternidade. Devo estar
delirando. Meu av�� toma chimarr��o sob as laranjeiras de
seu pomar. Em Capri na primavera este mesmo odor
anda no ar e no mar. Tento lembrar-me do que senti,
ginasiano, ao ler o vers��culo b��blico em que se descreve
Jesus caminhando sobre as ��guas. Comparo essa sensa-
����o com a que tive quando, muito mais tarde, vi na Ga-
leria Nacional de Washington o quadro de Tintoretto que
representa essa cena. Qual ser�� a minha nova visualiza-
����o do Cristo sobre as ��guas quando eu tiver diante de
meus olhos o Mar da Galileia... amanh��. Sim, amanh��
ser�� um grande dia. Estarei possivelmente af��nico. Vozes
de remotos padres cat��licos e pastores protestantes me
passam pela mente, recitando o Serm��o das Beatitudes...
Permane��o por alguns momentos ��� segundos? minutos?
��� numa esp��cie de modorra em que me sinto ao mesmo
tempo deitado na cama e andando por entre as ��rvores
do laranjal, estonteado de perfume, esquartejado como
T i r a d e n t e s . . . em Ouro Preto, numa certa noite na casa
dum amigo chamado Rodrigo, s�� que o aroma era de
junquilhos... Junqueira, Guerra Junqueiro precisamos
resolver os problemas de irriga����o de Israel meu caro
poeta com esse seu nariz e essa barba de rabino voc��
n��o me engana �� um marrano crist��o-novo que acabou
voltando-se contra o Padre Eterno e o melro recite o
I S R A E L E M A B R I L 7 1
melro menino madrugador jovial da Jord��nia Monsieur
J o u r d a i n . . .
O HAMSIN
Desperto para um mundo desconhecido que me des-
concerta e p��e em estado de alarma durante uma meia
d��zia de segundos. Duas palavras, por��m ��� Israel e Gan
Chmuel ��� me sobem �� superf��cie da consci��ncia com
toda a sua carga de imagens e conota����es e eu me situo
no tempo e no espa��o, retomando posse plena dum corpo
que a gripe passou a noite a torturar. Devo ter tido um
pouco de febre durante a madrugada: lembro-me opaca-
mente dum sonho obsedante em que eu era uma pintura
cubista de Picasso, minha anatomia toda cortada em
postas coloridas e escaldantes, armada e desarmada de
mil maneiras, seus peda��os sempre colocados no lugar
errado, trabalho dum incubo implac��vel que parecia com-
prazer-se em me atormentar com esse jogo.
Quando minha mulher, que dormiu bem a noite in-
teira e n��o sonhou com guerrilheiros jordanianos, me
pergunta como me sinto, n��o encontro muita voz com
que lhe responder que n��o estou l�� muito bem, mas que
a coisa poderia ser muito pior.
Sa��mos para ir �� casa dos Steinberg, onde faremos
a refei����o da manh��. Como algu��m que estivesse de em-
boscada a nossa espera, o ing��nuo perfume do laranjal
salta sobre n��s e nos cerca como uma ronda de crian-
��as que cantam, lembrando-nos de que �� abril e prima-
vera e que existem as flores, as abelhas, o mel, os sabras e
as terras da Galileia que h�� mil��nios esperam a nossa
visita.
72
E R I C O V E R �� S S I M O
Mal chegamos a dar cinco passos e j�� tomamos
consci��ncia duma presen��a hostil na manh��. Um vento
quente, seco e ��spero, toca-nos o rosto e arrepia os
nervos. Deve ser o famigerado hamsin, primo irm��o do
siroco, e que costuma soprar do oriente para o ocidente,
vindo do c��lido cora����o da Ar��bia. Ouvi contar que nos
pa��ses ��rabes, quando um sujeito comete homic��dio e
seu advogado consegue provar ao juiz e ao j��ri que o
crime ocorreu num dia em que soprava o hamsin, o fato
�� aceito como atenuante.
Um press��gio mau bafeja a terra. Com o meu ba-
r��metro interior sinto no peito que a press��o atmosf��-
rica est�� baixa.
Os Steinberg s��o os anfitri��es ideais. Atenciosos e
cordiais dum modo natural, como se fossem velhos co-
nhecidos. N��o nos fazem sentir o peso quase culposo
da nossa condi����o de h��spedes. Marisa �� uma bonita
moreninha brasileira. Henrique me d�� a impress��o dum
jovem judeu do per��odo romano da Palestina, decerto
por causa da maneira como penteia o cabelo crespo e
louro. Entusiastas ambos da vida no kibbutz, pretendem
ficar aqui para sempre.
Servem-nos ch�� com bolo. Engulo uma aspirina. Fa-
lamos no tempo. Henrique confirma: o vento de m��
morte que anda l�� fora �� mesmo o hamsin (charav em
hebraico) mas nosso amigo tranq��iliza-nos explicando que
provavelmente n��o durar�� mais que algumas horas, pois
o seu tempo certo de soprar �� o fim da primavera.
M. conversa com Marisa sobre os problemas duma
dona de casa no Gan Chmuel, mas a verdade �� que, numa
col��nia agr��cola radical-socialista como esta, ningu��m ��
dono de nada e todos s��o de certo modo donos de tudo.
I S R A E L E M A B R I L
73
CESAR��IA
S��o nove da manh�� e estamos a caminho da Cesa-
r��ia, dentro dum autom��vel do Minist��rio dos Neg��cios
Estrangeiros de Israel. M. est�� sentada no banco traseiro,
entre o Dr. Alexandre Dothan, nosso guia e int��rprete,
e Dona Raquel, sua senhora, uma dama morena de fei-
����es agrad��veis e pl��cidas, professora de biologia num
gin��sio de Jerusal��m.
Encontro-me ao lado do chofer, que se chama Chazim
Gigi, e que j�� me permitiu chamar-lhe Jaime. �� um qua-
rent��o de porte atarracado, duma gordura musculosa,
rosto redondo e rosado, de express��o bonachona. Tudo
indica que �� um bom sujeito. Entendemo-nos ora em
ingl��s ora em italiano: Jaime serviu no ex��rcito brit��-
nico durante a Segunda Guerra Mundial e esteve esta-
cionado por algum tempo na It��lia.
�� curta a primeira pernada da viagem deste dia,
durante a qual devemos ver boa parte da Galileia. Cor
de areia, vagas de contornos, as ru��nas de Cesar��ia so-
mem-se como um camale��o na paisagem de dunas. Quem
as denuncia, com azul inoc��ncia, �� o pano de fundo for-
mado pelo mar e o c��u, e contra o qual se delineiam aqui
uma coluna, ali um minarete e mais adiante os restos
dum aqueduto. �� medida que nos aproximamos da costa,
mais vis��vel se fazem as muralhas que cercam o lugar
ubi Ces��rea fuit.
Antes de cair nas m��os dos romanos, Cesar��ia foi
um florescente porto do per��odo helen��stico. Herodes trans-
formou-a numa grande cidade, que veio a ser a capital
da prov��ncia romana da Jud��ia. P��ncio Pilatos teve aqui
o seu quartel-general. O ap��stolo S��o Paulo curtiu dentro
de seus muros dois anos de encarceramento "por crime
de sedi����o".
74
E R I C O V E R �� S S I M O
Descemos do carro. Um sol claro e ardente faz cin-
tilar as areias, obriga-nos a olhar as coisas com os olhos
entrecerrados. Atravessamos uma ponte sobre o fosso
que cerca os restos das ru��nas das fortifica����es e do ou-
trora imponente F��rum. Vejo, postas frente a frente,
duas monumentais est��tuas que datam dos s��culos n ou
iv da Era Crist��, uma de m��rmore claro e a outra de
m��rmore roxo. Eu ia escrever que se miram duramente
mas isso seria um absurdo, pois na verdade est��o ambas
decapitadas. E por falar em cabe��a sinto a minha es-
caldar. Que id��ia, a de sair sem chap��u numa viagem
destas! M. me empresta um len��o de seda dum amarelo
chamejante e eu o amarro em torno da cabe��a e aqui
estou, figura rid��cula, estonteado e rouco, a andar por
estes restos de quatro civiliza����es ��� grega, bizantina,
romana e judaica ��� a trilhar o solo um dia pisado pelos
coturnos dos templ��rios e a bombardear com perguntas
o Dr. Dothan, cujo passo marcial n��o me �� f��cil acom-
panhar.
De vez em quando lemos um historiador que p��e em
d��vida a exist��ncia de determinada figura hist��rica.
Algu��m j�� afirmou que Napole��o, como Alexandre o
Grande, n��o passava dum mito solar. Temo que daqui a
mil anos algu��m venha a escrever que Adolfo Hitler n��o
passou duma figura m��tica da demonologia teut��nica.
Mas o que quero dizer �� que escava����es feitas no teatro
de Herodes, para onde agora nos dirigimos a p�� ��� en-
quanto Jaime decerto tira uma soneca dentro do carro
��� revelaram uma inscri����o fragment��ria onde se pode
ler o nome de P��ncio Pilatos, o ��nico testemunho em
pedra de sua exist��ncia.
As ru��nas do teatro nos d��o uma id��ia de seu ca-
r��ter grandioso. Calculo que tinha uma capacidade para
mais de duas mil pessoas sentadas. Eu n��o devia usar
I S R A E L E M A B R I L
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o verbo no passado, pois este teatro continua ainda a ser
usado todos os anos, quando aqui se apresentam grupos
teatrais, orquestras de c��mara e sinf��nicas, solistas de
fama internacional, atraindo para c�� os habitantes das
cidades, vilas e aldeias agr��colas das redondezas.
Sentamo-nos os quatro num dos degraus do anfi-
teatro de Herodes e por alguns instantes contemplamos
a arena, l�� em baixo, e mais al��m o Mediterr��neo, que
me parece indiferente ao hamsin. O Dr. Dothan desdobra
o seu mapa de bolso e diz: "Daqui seguiremos na dire����o
do nordeste. Almo��aremos em Tiber��ades, ��s margens do
Mar da Galileia".
Volta-me o pensamento que me tem perseguido toda
a manh��. Com a pouca voz que me resta, sussurro: "Vive
no Kefar Hesquel uma velha senhora chamada Sara Aloni,
dona dum mochave. Se minha mulher e eu n��o a visi-
tarmos, nem que seja por alguns minutos, haveremos de
nos sentir muito frustrados". O Dr. Dothan me mira, in-
trigado: "Alguma amiga de voc��s?" Sacudo afirmativa-
mente a cabe��a e explico: "Nunca a vi. �� m��e de Mau-
r��cio Rosenblatt, que vive no Brasil e �� um dos meus
mais antigos e queridos amigos. Doria Sara veio para c��
com uma leva de pioneiros judeus argentinos em 1921".
Minha voz neste ponto se some por completo. M. com-
pleta meu pensamento: "Dona Sara e Maur��cio n��o se
v��em h�� quase quarenta e cinco anos. O senhor compre-
ende a import��ncia dessa visita para n �� s . . . " O Dr.
Dothan co��a a cabe��a, consulta o mapa, localisa o Kefar
Hesquel. "Bom, telefonarei para o restaurante de Tibe-
r��ades avisando que vamos chegar tarde para o almo��o."
Olha para o seu rel��gio-pulseira e ergue-se: "O melhor ��
irmos a n d a n d o . . . "
Encaminhamo-nos para o carro. Jaime nos espera
sorrindo. Molto belo, no? Concordamos: Bel��ssimo!
5
A GALIL��IA
O VALE DE JEZREEL
Perdemos de vista o mar e as areias da costa. Tenho
a impress��o de que entramos num outro pa��s. "Estamos
j�� na Galileia" ��� diz Dona Raquel Dothan, saindo dum
desses sil��ncios que a gente sabe afetuoso e solid��rio. ���
"Este �� o Vale de Jezre��l."
Temos diante de n��s uma planura duma beleza t��o
buc��lica e tranq��ila, que s�� nos podia ser anunciada pela
voz dum anjo e, na falta deste, duma mulher. Conta-se
que, h�� quase mil e novecentos anos, quando um impe-
rador romano tratava de seduzir Flavius Josephus, dando-
lhe presentes extravagantes para comprar sua colabora-
����o, o historiador do povo judeu lhe replicou: "Por mais
ricos que sejam os vossos presentes, majestade, n��o me
podereis dar uma primavera como a da Galileia."
Os livros de geografia de Israel informam que a
plan��cie de Jezre��l se estende na dire����o noroeste-sudo-
este, entre Haifa e o Vale do Jord��o, e tem quarenta e
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E R I C O V E R �� S S I M O
seis quil��metros de comprimento e uma largura m��xima
que n��o chega a vinte. Os comp��ndios de Hist��ria expli-
cam que, caminho natural entre o Egito e a Transjor-
d��nia, este vale teve sempre grande import��ncia estra-
t��gica e foi por isso cen��rio de muitas batalhas campais
entre os grandes imp��rios da antiguidade. Para o diabo
os tratados!
O pintor clandestino que me habita est�� agora de-
vorando como um cavalo l��rico os tenros verdes desta
planura que, aqui e ali, apresenta uma suave eleva����o
que me evoca a paisagem do planalto m��dio do Rio
Grande. E aqui vai o nosso carro rodando sobre uma
excelente rodovia asfaltada. Passamos por planta����es, po-
mares e aldeamentos agr��colas. Tenho a impress��o de
que a brisa que agora sopra n��o �� mais o hamsin, pois
o ��spero h��lito do deserto n��o ousou cruzar as fronteiras
da Galileia.
Come��am a sublinhar a paisagem renques de cipres-
tes dum verde quase negro e de pequeno porte, alternando
com bosquetes de oliveiras e com vinhedos plantados nas
encostas dos outeiros.
Dothan (est�� na hora de omitir o doutor, n��o acha?)
nos conta que, depois da fertilidade do per��odo b��blico, as
terras deste vale degeneraram de tal modo, que a regi��o
passou a ser um inferno pantanoso e pestilencial. Em
1921, durante o mandato brit��nico, o Fundo Nacional
Judeu comprou terras em Jezre��l, ��� que os ��rabes, por
motivos ��bvios, chamavam de Port��o do Inferno ��� e
trouxe para c��, de v��rias partes do mundo, imigrantes
israelitas que se lan��aram a uma luta por assim dizer
corporal contra as calamidades que infelicitavam este
vale. (Numa dessas levas vieram Dona Sara Aloni e seu
segundo marido.) E o resultado desse corpo-a-corpo com
a terra, agravado pela interven����o ocasional mas sempre
I S R A E L E M A B R I L
79
hostil de bandoleiros ��rabes, aqui est�� nestas comuni-
dades rurais por onde passamos, nas suas casas de as-
pecto alegre e pr��spero, cujos telhados de zinco chispam
ao sol, nos seus pomares floridos, nos seus jardins, hortas
e planta����es: o Para��so recuperado!
Dothan informa que foi neste vale, um pouco ao
sul do Mar da Galileia, que no princ��pio deste s��culo se
estabeleceu Degania, uma esp��cie de kibbutz-piloto, que
hoje �� conhecida como "m��e dos kevutzot". Vou fazer uma
pergunta ao nosso companheiro, mas o ��nico som que
consigo emitir �� uma esp��cie de crepitar de palha seca.
Foi-se-me a voz num momento em que tanto vou precisar
dela. J�� imaginei de mil modos diferentes o meu di��logo
com Dona Sara.
Em Afula, encruzilhada do sul da Galileia, em vez
de tomar o caminho que leva a Tiber��ades, descemos
para o sudeste, e dentro de menos de meia hora che-
gamos ao Kefar Hesquel.
A PIONEIRA
Depois de rodar por alguns minutos pela pequena
comunidade, encontramos no caminho uma menininha
loura, de olhos azuis. Dothan pergunta-lhe se conhece
a Sra. Aloni. A pequena sorri. "Dona Sara? Mora a l i . . . "
E com o dedo nos aponta o rumo.
Com empatia de romancista ajudada pela simpatia
de amigo, procuro meter-me na pele de Mauricio e ima-
ginar o que ele sentiria se aqui estivesse agora para re-
encontrar sua m��e, depois duma t��o longa separa����o.
A casa de Dona Sara �� clara e de alvenaria. Sua
propriet��ria, que nos aguarda no seu pequeno jardim,
entre canteiros floridos, tamb��m �� clara, mas de a��o.
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E R I C O V E R �� S S I M O
Traja um vestido de algod��o em dois tons de azul, e tem
os p��s metidos em botinhas de cano alto. Baixinha, cheia
de carnes, os cabelos completamente brancos, a pele ro-
sada, os olhos da cor deste c��u da Galileia, e tesa apesar
dos oitenta anos ��� ela nos espera em companhia da
filha, do gemo e de um dos netos. M. abra��a-a. Eu n��o
tenho a coragem de beij��-la porque o instinto me grita
logo que Dona Sara est�� fora da faixa sentimental da
"mam�� judia" dram��tica e lamurienta. O mais que fa��o
�� segurar com ambas as m��os a m��o calosa da pioneira,
num sil��ncio comovido. Cumprimentamos os outros mem-
bros da fam��lia. Pe��o a minha mulher que diga �� velhinha
o quanto seu filho �� querido e admirado na cidade onde
vive. Ela escuta, sorrindo, e depois diz: Eso me hace
muy feliz . Leva-nos a visitar o seu mochave. Mostra-nos
as vacas leiteiras no est��bulo, os seus perus brancos, as
incubadoras... Fotografo-a em cores junto duma car-
ro��a de varais ca��dos e cheia de forragem. Sua filha nos
conta da dura luta em que sua m��e e seu pai se empe-
nharam quando h�� quarenta e cinco anos vieram para c��.
"Isto era um pantanal" ��� diz. ��� "Muita gente morreu de
mal��ria. De vez em quando ��ramos assaltados pelos ��ra-
bes. Um de meus sobrinhos foi morto e trucidado pelos
jordanianos, numa emboscada." Dona Sara sorri enquanto
a filha fala, mas n��o se queixa das suas agruras e trag��-
dias, continua a mostrar-nos com efici��ncia as coisas que
fez e tem. Quantos litros de leite produz anualmente cada
uma destas vacas? ��� pergunto. Dona Sara encolhe os
ombros, mas sua filha apressa-se a informar que em
Israel a produ����o m��dia de leite, por vaca, �� de quase
cinco mil litros anualmente, a maior do mundo, segundo
as estat��sticas da F. A. O.
Dona Sara convida-nos a entrar em sua casa. Apesar
da proximidade dos est��bulos, n��o vemos uma s�� mosca
1 S K A E L E M A B R I L
81
dentro destas salas impecavelmente limpas, sem luxo mas
confort��veis. Um cheiro agreste de lim��es anda no ar.
Continuo a conversar com a velha pioneira por interm��-
dio de minha dragomana. Dothan olha o rel��gio. Preci-
samos p��r-nos a caminho para n��o chegar tarde demais
a Tiber��ades. Dona Sara convida-nos para almo��ar com
ela. M. e eu nos entreolhamos. "Somos c i n c o . . . " ��� mur-
mura minha mulher que, como dona de casa, sabe o
que significa a presen��a de cinco bocas inesperadas ��
mesa do almo��o.
Chamamos Dothan �� parte para uma consulta. ��
ele nos diz: "Quando esta gente de Israel faz algum
convite, podem ficar certos de que isso n��o �� num gesto
formal de cortesia. Acho que devem aceitar".
E por que n��o? Aceitamos com alegria e dentro de
menos de meia hora estamos sentados os cinco �� mesa,
com Dona Sara. Os outros familiares se somem, com
exce����o de uma nora, que nos serve: peru, peixe, salada
de batatas, verduras e legumes, tudo muito saboroso. Eu
me sinto t��o bem que esque��o as dores do corpo. Fa��o
tentativas desesperadas para dizer alguma coisa. In��til.
O rem��dio �� escutar e comer. Fala-se nas aldeias agr��-
colas de Israel. Aprendo que h�� mais de um tipo de
mochave. No mochave ovedim, que em hebraico quer
dizer "col��nia de trabalhadores", cada habitante tem uma
resid��ncia pr��pria e cultiva um pequeno lote de terra.
Os mochavim funcionam segundo o princ��pio da igual-
dade e da ajuda m��tua. Os tratores e demais m��quinas
e ferramentas agr��colas pertencem �� comunidade. A ven-
da dos produtos de cada granja �� feita tamb��m numa
base cooperativista. A terra, na maioria dos casos ��� mas
n��o em todos ��� pertence ao governo ou ao Fundo Na-
cional Judaico, e �� cedida a cada fam��lia por um per��odo
de 49 anos. Numa col��nia agr��cola desse tipo, cada pe-
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E R I C O V E R �� S S I M O
da��o de terra tem de ser cultivado pelos membros da
mesma fam��lia, sendo proibido o emprego de m��o-de-obra
assalariada. Existem hoje em todo o pa��s mais de 350
mochavim ovedim. "Mas quem governa essas aldeias?"
��� pergunto pela boca de minha "int��rprete". Dothan res-
ponde: "Um conselho cujos membros s��o eleitos demo-
craticamente por uma Assembl��ia Geral".
Jaime, de cabe��a baixa, luta com as espinhas de
sua posta de peixe. Bebo largo sorvo de limonada. A aula
continua. O mochave puro e simples ��� como este de
Dona Sara ��� se distingue dos ovedim por funcionar
livre de qualquer ideologia pol��tica ou econ��mica r��gida.
Algu��m j�� chamou aos estabelecimentos desta esp��cie
"aldeias da classe m��dia". A filha de Dona Sara interv��m
para dizer-nos que sua m��e �� demasiadamente individua-
lista para se adaptar �� vida dos kibbutzim, onde predo-
mina o sistema socialista, moderado ou extremado, de
acordo com a pol��tica partid��ria que neles predomina.
Observo Dona Sara disfar��adamente e concluo que
ela pertence a uma estirpe de mulheres que procurei des-
crever num romance c��clico de meu Estado natal: �� da
tor��a de Ana Terra, Bibiana e Maria Val��ria.
Desde que chegamos n��o lhe ouvi nenhuma queixa
ou bravata. E aqui �� mesa ela torna a falar-nos em seus
perus, em suas vacas, e em seu jardim. "Esta semana
inaugurou-se em Haifa uma exposi����o internacional de
flores" ��� diz. ��� "N��o percam."
Trazem-nos p��ssegos em compota, que comemos com
fatias de queijo feito em casa. Terminado o almo��o Dona
Sara pergunta-nos se n��o queremos descansar numa pe-
quena sesta. Aceitamos a id��ia. Levam-nos para um quar-
to onde h�� duas camas duma dureza espartana, o que
muito me agrada. Cerramos as janelas e deitamo-nos.
Fecho os olhos. Ou��o sussurros que v��m do refeit��rio.
I S R A E L E M A B R I L
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Percebo que agora os demais membros da fam��lia est��o
almo��ando: n��o falam, n��o produzem o menor ru��do para
n��o nos perturbarem. Isso me comove. Durmo durante
uns vinte minutos um sono breve e leve em que entreou��o
o canto dos passarinhos l�� fora, no pomar.
Ergo-me, vou ao quarto de banho e vejo, enquadrado
por uma pequena janela, alguns galhos dum limoeiro
carregados de frutos amarelos e gra��dos. Fico por algum
tempo a olhar para estes lim��es batidos de sol. Quando
torno ao quarto de dormir, digo a minha mulher: "Dona
Sara tem em casa um original de C��zanne. Dos mais
lindos que conhe��o".
Despedimo-nos da velha pioneira e de seus familia-
res no jardim. Ela nos agradece pela visita e nos convida
a voltar. Desta vez beijo-lhe a m��o ��� um beijo murcho,
r��pido e encabulado. Entramos todos no autom��vel e se-
guimos na dire����o de Nazar��.
NAZAR��
Numa certa manh�� do ano de 1913, na cidade n��o
b��blica de Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brasil ��� um
menino de oito anos incompletos ergue-se de seu banco,
a uma ordem da professora do curso prim��rio, e come��a
a ler em voz alta o Hino de Amor, da Cartilha Maternal
de Jo��o de Deus.
Andava um dia,
Em pequenino,
Nos arredores
De Nazar��
Em companhia
De S��o Jos��,
O Deus Menino,
O bom Jesus.
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E R I C O V E R �� S S I M O
Como teria o estudante visualizado essa cena com
o auxilio de suas lembran��as do filme colorido, A Paix��o
de N. S. Jesus Cristo, que o cinema local passava anual-
mente por ocasi��o da Semana Santa, e ajudado tamb��m
por gravuras de revistas e ilustra����es da Hist��ria Sagrada?
Seriam essas imagens muito diferentes das que, cinq��en-
ta e tr��s anos mais tarde, tem na retina esse mesmo su-
jeito que se acha agora diante da Nazar�� "de verdade"?
Encontramo-nos no cume dum outeiro, de onde se
pode ter uma vis��o panor��mica da pequena cidade onde
Jesus passou sua inf��ncia. Dizem que, n��o fossem os
templos e edif��cios p��s-b��blicos, e principalmente o mo-
derno bairro residencial que o governo de Israel mandou
construir para receber os imigrantes judeus que para
c�� vieram depois de 1948 ��� a Nazar�� de hoje n��o seria
muito diferente da dos tempos da Sagrada Fam��lia.
Vemos uma sucess��o de macias colinas, numa das
quais se amontoam as casas cubiformes, brancas ou cor
de areia, do centro da cidade velha. Nessas encostas ata-
petadas duma grama salpicada de flores ��� an��monas?
margaridas? papoulas? ��� os ciprestes parecem dedos
dum verde grave apontando para o alto, como a nos mos-
trarem em sil��ncio a beleza do c��u. A intervalos a brisa,
que recende a flores de laranjeira, revela discreta o aves-
so prateado das oliveiras.
Visitamos rapidamente, sem deixar o autom��vel, o
Kiryat Natsrat, isto ��, a Nazar�� Superior, a parte nova
da cidade, onde se erguem excelentes edif��cios de apar-
tamentos. (O cimento vem de Haifa, que dista apenas
trinta e oito quil��metros daqui, e as p e d r a s . . . ora, pedra
�� o que n��o falta em Israel.) ��s ruas s��o asfaltadas, as
lojas modernas. Ao passarmos pelo cinema vejo de re-
lance um cartaz que anuncia um Western: l�� est�� a cara
de pau de John Wayne. Penso na popularidade desse ca-
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85
nastr��o e, fatalmente, nas id��ias que ele representa, s��m-
bolo que �� da coragem, do desprendimento, da genero-
sidade e da onipot��ncia do homem americano. Vi o sem-
blante desse deus da moderna mitologia da era de Mac-
Luhan em varios outros cartazes ��� na ilha de Creta, na
de Cura��ao, em Caracas, no M��xico, em Paris, Amster-
d��, G r a n a d a . . . que sei eu!
Em Kiryat Natsrat existe um centro cultural servido
por apreci��vel biblioteca. Passamos por v��rias f��bricas ���
chocolate, biscoitos, tecidos ��� e pergunto a Dothan se
essas companhias empregam oper��rios ��rabes. Nosso com-
panheiro responde: "E por que n��o?".
Conta-nos que, ap��s a funda����o do Estado de Israel,
o primeiro-ministro Ben-Gurion ofereceu �� popula����o mu-
��ulmana da Palestina um plano de coexist��ncia pac��fica
que permitisse aos ��rabes participarem do progresso n��o
s�� material como tamb��m cultural da nova na����o. Isso
n��o impediu que milhares de mu��ulmanos abandonassem
Nazar��, deixando para tr��s suas casas e terras. Dothan
apressa-se a esclarecer que o governo nacional n��o per-
mitiu que nenhum judeu enriquecesse explorando as pro-
priedades dos ��rabes. "Um de nossos minist��rios encar-
regou-se da administra����o desses bens, que um dia de-
ver��o voltar a seus donos."
Nazar��, a velha, abriga a maior comunidade mu��ul-
mana de Israel. ��rabe �� o seu prefeito, e a cidade tem
representantes ��rabes no Parlamento nacional, em Jeru-
sal��m. Mas a verdade �� que este antigo burgo da Palestina
foi judeu at�� aos tempos do Imp��rio Bizantino. Os cru-
zados mais tarde o transformaram num importante cen-
tro eclesi��stico crist��o. Destru��da pelos mamelucos em
1620, Nazar�� foi restaurada gra��as ao esfor��o dos monges
franciscanos. S�� depois do estabelecimento do Estado de
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E R I C O V E R �� S S I M O
Israel �� que foi dotada de ��gua corrente e instala����es
sanit��rias.
Nosso carro estaca ao p�� da colina principal da ci-
dade e n��s subimos a p�� uma ruela que nos levar�� at��
aos lugares santos. Eis uma t��pica via ��rabe, com seus
bazares cobertos por toldos de pano que lan��am sobre o
pavimento uma sombra agrad��vel. �� porta das pequenas
lojas mercadores ��rabes apregoam aos passantes as suas
mercancias ��� l��mpadas de azeite, jarros, baldes, tachos,
vasos e outros objetos de lat��o ou cobre, tapetes, panos,
roupas, nozes, t��maras e tamb��m esses inevit��veis sou-
venirs de sabor oriental destinados a satisfazer o apetite
aquisitivo dos turistas estrangeiros que querem levar para
casa alguma coisa "t��pica" de cada pa��s visitado para,
juntamente com fotografias coloridas, provarem aos outros
e principalmente a si mesmos que estiveram de fato em
tal ou qual parte do mundo.
�� frente da Igreja da Anuncia����o (sobre a qual se
est�� construindo uma imponente basilica) contratamos
um guia que nos vai mostrar a igreja subterr��nea primi-
tiva e a cripta onde Maria e Jos�� viveram com o menino
Jesus. O guia �� um ��rabe de meia-idade, cara melanc��-
lica, vestido �� maneira chamada europ��ia mas com um
Kheffiya na cabe��a. Num ingl��s monoc��rdio rompe a
recitar como um fon��grafo antigo um texto decorado, e
no qual nenhum de n��s est�� realmente interessado. Sa-
bemos de antem��o que o homem nos vai falar dum Jesus
convencional, de cabelos louros e frisados, vestes bran-
qu��ssimas, olhos azuis, quando o Jesus verdadeiro bem
podia ser ��� e estou desconfiado de que era ��� moreno, de
cabelos escuros, tez queimada pelo sol da Galileia, ves-
tido pobremente, os p��s e as m��os possivelmente encar-
didos, em suma, um ser humano muito mais interessante
e amor��vel do que as figurinhas amaneiradas que nos
I S R A E L E M A B R I L
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habituamos a ver em oleogravuras, calend��rios e "santi-
nhos".
Descemos �� cripta, por uma escada de pedra em
espiral. Faz frio aqui em baixo. O guia nos mostra
o lugar onde S��o Jos�� tinha a sua oficina de carpinteiro.
Estamos numa caverna em que pouco falta para se pa-
recer com a do homem pr��-hist��rico. L��mpadas el��tricas
luzem anacr��nicamente em esp��cies de nichos cavados
nas r��sticas paredes de basalto. "Foi aqui que o anjo Ga-
briel anunciou �� Virgem Maria o nascimento de Jesus"
��� diz o ��rabe. Penso nas fantasias que pintores medievais
e renascentistas fizeram em torno do tema da Anuncia-
����o. No quadro de Fra Ang��lico que se encontra no Museu
do Prado, em Madri, Maria, ricamente vestida de cor-de-
rosa e com um fino manto azul, est�� sentada num alpen-
dre com arcadas sustentadas por colunas de capit��is com-
p��sitos. Um raio de sol rompe por entre as nuvens e in-
cide sobre a figura da Virgem, diante da qual se curva
o anjo, que mais parece do sexo feminino, ��� se �� que
anjo tem sexo ��� para lhe transmitir o maravilhoso re-
cado de Deus.
Rica e contradit��ria �� a mitologia que atrav��s dos
s��culos se tem formado com rela����o aos lugares santos
da Palestina. N��o h�� nenhuma certeza ��� afirmam os
entendidos em assuntos b��blicos ��� quanto ao lugar exato
em que Jos�� tinha sua oficina ou ao recanto em que a
M��e de Jesus se encontrava no momento da Anuncia����o.
Os evangelistas do Novo Testamento n��o eram nada ex-
pl��citos em mat��ria de topografia. Mas como consciente
ou inconscientemente o homem vive de s��mbolos que di-
tam o seu comportamento, disponho-me a aceitar essas
"verdades" que o guia ��rabe enuncia no seu cantoch��o
oriental, e chego mesmo a fazer um esfor��o para me co-
mover com tudo isso.
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E R I C O V E R �� S S I M O
Quando voltamos �� superf��cie de terra e �� luz do
dia, somos apresentados, na frente do mosteiro dos fran-
ciscanos, a um jovem frade espanhol, com quem ficamos
a conversar por breves instantes.
Tornamos a caminhar ao longo da rua principal de
Nazar��, desta vez na dire����o de nosso carro. Comento
com minha mulher o que acabamos de ver, e conto-lhe
que no ano 570 da Era Crist��, Antonino o M��rtir andou
pela Palestina, visitou Nazar�� e voltou para a Europa afir-
mando que vira na sinagoga local n��o s�� o livro em que
o menino Jesus aprendera o ABC, como tamb��m o banco
em que Ele costumava sentar-se com seus colegas. Acres-
centava o M��rtir que esse banco s�� podia ser erguido
ou arrastado de seu lugar por m��os de crist��o, mas que
recusava mover-se quando algum judeu tentava tir��-lo
da sinagoga. ..
De novo no carro em movimento, passamos por entre
cedros e oliveiras, rumo do nordeste da Galileia. E, enri-
quecendo minha mitologia particular, vejo um Jesus de
doze anos sentado �� sombra duma figueira, a comer figos,
descal��o, os cabelos revoltos, as vestes enodoadas, o ar
feliz. E o menino nos acena amigavelmente, como a
velhos conhecidos.
LENDAS
Quando estivemos na Gr��cia, faz quatro anos, ouvi-
mos dum guia ateniense a lenda da forma����o do arqui-
p��lago grego. Deus fez o mundo com tudo quanto nele
h�� e, ao terminar Seu trabalho, verificando que Lhe ha-
viam sobrado muitas pedras de tamanhos v��rios, atirou-
as ao acaso no Mar Egeu, formando assim as Esporades,
as Cidades, o Dodecaneso e as demais ilhas gregas.
I S R A E L E M A B R I L
89
Agora nosso amigo Jaime, de ordin��rio pouco pal-
rador, nos conta como foi feita a Alta Galileia, segundo
uma lenda ��rabe. Deus criou o C��u e a Terra, os rios e
os mares, mas ao cabo do colossal trabalho percebeu que
se havia esquecido de espalhar pedras pela superf��cie do
globo. Juntou penhascos e rochas das dimens��es mais
variadas, meteu-os em dois sacos, que pendurou ao pes-
co��o duma ��guia, �� qual ordenou: "Vai e despeja estas
pedras equitativamente atrav��s do mundo". A ��guia al��ou
o v��o, mas dentro de pouco tempo os sacos se romperam
e as pedras tombaram todas na parte superior da Galileia,
o que explica a natureza acidentada desta regi��o da velha
Palestina.
O que a lenda n��o conta �� que o Criador, para com-
pensar talvez esse desastre, dotou a Galileia dum clima
ameno e dum solo f��rtil. Enumerando as maravilhas desta
regi��o, o historiador Flavius Josephus escreveu que aqui
a natureza for��a plantas que s��o inimigas umas das outras
a viverem juntas numa competi����o que no fundo tem
certa harmonia: durante dez meses de cada ano os ho-
mens desta terra podem contar com figos saborosos en-
quanto as outras frutas amadurecem, cada qual a seu
tempo.
A parte montanhosa da Galileia �� menos populosa
e desenvolvida que os seus vales, e �� nela que ficam as
reservas florestais do pa��s. Viajamos neste momento ainda
atrav��s da Baixa Galileia, cruzando trigais e planta����es
de tabaco e beterraba. E nestes pomares dos mochavim
e kibbutzim pelos quais passamos de largo, vemos em
plena flora����o as ��rvores que produzem frutos de impor-
t��ncia capital para a economia de Israel: laranjas, li-
m��es, toronjas, p��ssegos, abric��s, peras e ameixas. Custa-
me acreditar que a poucos quil��metros ao sul deste verde
para��so existe um pardo deserto de pedra.
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E R I C O V E R �� S S I M O
O MAR DA GALILEIA
E eis que, descendo do carro junto dum templo, ou-
vimos uma voz que nos anuncia que este �� o monte em
que Jesus pregou o Serm��o das Beatitudes. E isso nos
alegra e comove, embora a voz n��o venha de nenhum
anjo do Senhor, mas do Dr. Alexandre Dothan, nosso
companheiro de jornada. Minha mulher me aperta a m��o.
Vejo em sua face que est�� comovida como eu, s�� que seu
sentimento deve ser de car��ter religioso, ao passo que o
meu ��, digamos, de natureza po��tica. Ou estarei apenas
jogando com palavras? N��o ser�� a religi��o uma forma de
poesia e a poesia, bem no fundo, uma esp��cie de religi��o?
Desta eleva����o de terra (�� uma impropriedade cha-
mar de "montanha" �� doce colina onde o Senhor pregou
o seu celebrado Serm��o) avistamos em derredor um dos
territ��rios mais citados pelos evangelistas do Novo Tes-
tamento. Talvez s�� em Jerusal��m e arredores possamos
encontrar outra regi��o t��o ou mais saturada de hist��ria
crist�� do que esta.
O templo a que me referi �� uma igreja com mosteiro
e convento pertencente �� Ordem de S��o Francisco, e n��o
me parece que tenha maior import��ncia arquitet��nica.
Enquanto Dothan nos deixa para ir buscar ��� como
acontece quase sempre nos lugares hist��ricos da nossa
Minas Gerais ��� "o padre que tem a chave da igreja",
minha mulher e eu ficamos a contemplar a paisagem.
L�� em baixo est�� o Mar da Galileia, tamb��m conhecido
como Lago de Tiber��ades, ou Mar de Kinneret, assim cha-
mado na antiguidade por causa de sua forma de harpa,
que em hebraico �� kinnet. �� dum violeta opaco como o
de certos c��us noturnos. Para al��m de suas margens ori-
entais ��� massas dum pardo claro, com improv��veis to-
I S R A E L E M A B R I L
9 1
ques de sutis azuis dados pela dist��ncia e possivelmente
pelo reflexo das ��guas ��� perfilam-se as montanhas da
S��ria e as colinas da Jord��nia. Avistamos, no lado de c��,
tabuleiros verdes, bosquetes, o casario e o arvoredo de
aldeamentos agr��colas e, mais longe, para o sul, os te-
lhados de Tiber��ades.
Quando deixamos Nazar�� o fruto da tarde estava
ainda verde, mas eis que agora ele come��a a amadurecer,
assumindo tonalidades de ouro velho. Uma grande paz
desce do firmamento sobre a paisagem. Raros barcos,
decerto de pescadores israelenses, singram as ��guas do
lago, e t��m a cautela de n��o se aproximarem demais das
perigosas margens da Jord��nia ou da S��ria.
Acho que seria quebrar o cristal deste momento de
beleza informar compendiosamente a minha mulher que
o Mar da Galileia n��o �� realmente um mar, mas um lago,
com pouco mais de vinte quil��metros de comprimento
para uma largura m��xima de treze. Prefiro dizer-lhe:
��� Usa a fantasia, imagina que ontem Jesus saiu
de Nazar�� sozinho e a p�� na dire����o deste lago. Dormiu
�� noite debaixo duma oliveira, cujos frutos comeu ao
raiar do dia. Mas pensa num Jesus trigueiro, queimado
por este sol, um Jesus p o b r e . . . Esquece todas as ima-
gens do Nazareno a que te habituaste desde os tempos
do teu col��gio de f r e i r a s . . . O Jesus de que te falo ��
um homem que transpira, que suja os p��s na poeira dos
caminhos e que os lacera nas pedras do ch��o. Est��s vendo
agora o Filho do Homem aproximar-se l�� em baixo da-
queles dois pescadores que lan��am suas redes ��s ��guas?
S��o dois irm��os: Sim��o, chamado Pedro, e Andr��. Jesus
dirige-se a ambos e diz: "Vinde ap��s mim, e eu vos
farei pescadores de homens". E os dois irm��os fazem o
que Ele lhes ordena. Agora Jesus se encaminha para
outra parte do lago, onde encontra Tiago e Jo��o, que
92
E R I C O V E R �� S S I M O
tamb��m abandonam as suas redes e seguem o estranho
profeta. E o Filho do Homem vai pregar o Evangelho
nas sinagogas da Galileia, e pelo caminho ir�� fazendo
curas milagrosas... Numas bodas em Can�� transforma-
r�� ��gua em vinho. E a sua voz, rica de corajosa f��, um
dia derrotar�� o poderoso Imp��rio Romano.
Minha mulher me olha sorrindo e murmura:
��� Como �� que um herege pode ter tanta familia-
ridade com a B��blia?
��� Esqueces que fiz meu curso ginasial num co-
l��gio protestante, onde a B��blia era mat��ria obrigat��ria
do curr��culo. Mas voltemos a Jesus. Apaga da paisagem
aquela lancha com motor de popa que l�� vai, possivel-
mente dirigida por algum playboy de Tiber��ades. Faz de
conta tamb��m que n��o v��s o nosso autom��vel que ficou
ao p�� da colina. Pensa s�� nisto. Jesus um dia veio para
c��, postou-se talvez neste mesmo lugar em que estamos,
e pregou o Serm��o das Bem-aventuran��as. Bem-aventura-
dos os mansos porque eles herdar��o a terra. Bom, eu
acho que os mansos herdar��o o C��u. Os sabras j�� des-
cobriram que a terra pertence aos bravos. Bem-aventu-
rados os que sofrem persegui����o por causa da justi��a,
porque deles �� o reino do c��u. Com todo o respeito, neste
ponto discordo do Mestre. �� esse esp��rito de resigna����o
que leva os marxistas a dizer que a religi��o �� o ��pio
do povo.
��� Est�� bem. Guarda teus coment��rios para depois.
��� Espera. Talvez eu herde o inferno por pensar
assim, mas �� assim que penso. Ou, antes, que sinto. Pre-
cisamos de justi��a sobre a terra, aqui e agora. O novo
esp��rito que anima a Igreja de nossos dias j�� compre-
endeu isso. O pr��prio Jesus Cristo mesmo agiu muitas
vezes em desacordo com suas palavras de cordura.
I S R A E L E M A B R I L
93
��� J�� sei. Vais falar na expuls��o dos vendilh��es
do templo.
��� Nisso e em outras coisas. Mas s��o essas contra-
di����es que tornam Jesus a meu ver infinitamente mais
humano e admir��vel. Quando chicoteou os vendilh��es
que profanavam o Templo, Ele de certo modo pregou
um serm��o em gestos. E mostrou que era suficientemente
homem para ter a capacidade de indignar-se. Um dos
tra��os mais horripilantes de nossa ��poca �� que estamos
aos poucos perdendo a capacidade de indigna����o. Aceita-
mos pragmaticamente a destrui����o de Hiroxima e Naga-
s��qui pela bomba at��mica. Dentro de alguns anos mais
teremos esquecido por completo o que os nazistas fize-
ram com milh��es de judeus e n��o-judeus nos campos de
concentra����o e exterm��nio. Hoje em dia come��amos a
aceitar com uma indiferen��a criminosa o massacre, a
injusti��a, o genoc��dio. Qualquer desculpa nos serve para
apaziguar a consci��ncia e coonestar nosso conformismo.
Mas em verdade te digo que, enquanto existirem no mun-
do homens com capacidade de indigna����o, os tiranos n��o
poder��o dormir em paz!
Neste ponto Dothan nos interrompe, anunciando-nos
que descobriu n��o o padre, mas a freira que tem a chave.
E vamos todos visitar o templo.
AI DE TI, CAFARNAUMI
Descemos para Cafarnaum. Em 1894 a Ordem de
S��o Francisco adquiriu este local e fez construir um mos-
teiro perto da praia. Deve-se aos monges franciscanos a
restaura����o e a conserva����o da sinagoga onde vemos es-
culpidos no m��rmore e patinados pelos s��culos alguns sim-
94
E R I C O V E R �� S S I M O
bolos judaicos como o candelabro de sete bra��os, o es-
cudo de Davi e a buzina de chifre de carneiro.
Depois da pris��o de Jo��o Batista, Jesus mudou-se de
Nazar�� ��� onde suas id��ias o haviam incompatibilizado
com seus concidad��os ��� e veio para Cafarnaum, que
naquele tempo, segundo o Evangelho de Mateus, era
"uma cidade mar��tima nos confins de Zabulom e Naftali".
E aqui obrou muitos milagres. Mais tarde, por��m, num
momento de ira incluiu Cafarnaum entre as tr��s cidades
impenitentes, dizendo: "E tu, Cafarnaum, que te ergues
at�� aos c��us ser��s abatida at�� aos infernos; porque se
em Sodoma tivessem sido feitos os prod��gios que em ti
se operaram, teria ela permanecido at�� hoje. Por��m eu
vos digo que haver�� menor rigor para os de Sodoma, no
dia do Ju��zo, do que para ti".
Cafarnaum parece ter tido j�� o seu Ju��zo Final. Ha-
ver�� pior castigo para uma cidade outrora digna que trans-
formar-se em ponto de curiosidade tur��stica? Nada mais
resta dela sen��o as ru��nas desta sinagoga constru��da pro-
vavelmente no terceiro ano da Era Crist��.
Caminhamos em sil��ncio pelo largo vest��bulo do
templo, pelo seu p��tio, e num impulso que vem do me-
nino que fui, toco suas colunas derrocadas, esculpidas em
estilo romano, apalpo-as como quem quer certificar-se da
exist��ncia concreta de algo que em sua cabe��a sempre
foi apenas um grupo de imagens conjuradas por pala-
vras. E de repente, numa alegria de quem no estrangeiro
encontra inesperadamente um compatriota, minha mulher
exclama: "Um cinamomo!". Acariciamos o tronco e os
galhos deste raqu��tico esp��cime duma ��rvore muito co-
mum nas est��ncias do Rio Grande do Sul. Est�� coberta
de flores roxas, cujo perfume adocicado (�� barbearias
d'antanho!) lembra um pouco o do lil��s. Dona Raquel
aproxima-se, e n��s lhe contamos do nosso achado.
I S R A E L E M A B R I L
95
B��BLIA E FUTEBOL
Dothan, lider eficient��ssimo, leva-nos a um lugar a
pequena dist��ncia ao sul de Cafarnaum ��� Tabga, onde
nos espera uma bela surpresa: um admiravelmente res-
taurado e bem conservado ch��o de mosaicos do s��culo
IV A. D., na igreja bizantina da Multiplica����o. Informa-
nos Dona Raquel que o templo original desapareceu e o
novo que agora nos abriga, foi constru��do de forma a co-
brir o ch��o de mosaico, onde vemos simbolizado o milagre
da multiplica����o dos p��es. Em cores fanadas, mas nem
por isso menos expressivas no conjunto, vemos um cesto
de p��o ladeado por dois peixes.
Passamos depois por Magdala, o lugar onde nasceu
Maria Madalena que, segundo o evangelista Lucas, era
uma das mulheres que haviam sido curadas de esp��ritos
malignos e de enfermidades. "Maria, chamada Madalena,
da qual sa��ram sete d e m �� n i o s . . . "
Nosso carro costeia agora a margem ocidental do
Mar da Galileia, a caminho de Tiberiades. Antes de em-
barcar para Israel estive lendo monografias sobre o relevo
do solo desta regi��o e fiquei surpreendido por n��o saber
ou por haver esquecido, se sabia, que o Lago de Tiber��ades
se encontra a duzentos e vinte metros abaixo do n��vel
do mar.
Estamos curiosos, minha mulher e eu, por ver Tibe-
r��ades. Passamos pelo kibbutz de Ginosar, que tem ar
pr��spero, e onde existe um hotel moderno, com ar con-
dicionado, �� beira do lago.
Nova surpresa nos espera pouco antes de entrarmos
na cidade de Tib��rio. Do autom��vel que rola pela rodovia
aberta na encosta dum morro, avistamos l�� em baixo, no
n��vel das ��guas, um quadro familiar: uma "pelada" de
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E R I C O V E R �� S S I M O
futebol �� melhor maneira brasileira. Uma das esquadras
ostenta camisetas vermelhas e a outra, amarelas. Correm
os seus jogadores em disputa da bola. �� coisa toda parece
uma pintura de Duffy, mas animada.
Se de repente os ��rabes atacassem Tiber��ades, estou
certo de que esses vinte e dois rapazes e mais os reservas
e os ju��zes correriam a apanhar suas armas para, assim
como est��o ��� cal����es curtos, camisetas esportivas, chu-
teiras ��� repelir o ataque. E quando o inimigo voltasse
para seu territ��rio, os dois times tornariam ao campo
para continuar a partida. E se alguns deles tivessem
tombado mortos ou feridos no combate, os capit��es das
equipes convocariam reservas para preencher os claros.
E assim �� a vida dessa brava gente.
Estou recuperando aos poucos a voz, e a sensa����o
de mal-estar se atenua. S�� me resta agora uma coceira
de garganta que me faz tossir com uma freq����ncia que
me irrita e que n��o deve ser nada agrad��vel a meus com-
panheiros de viagem.
Minha mulher faz refer��ncia ao epis��dio b��blico em
que Jesus caminha sobre as ��guas. Dothan conta-nos a
est��ria dum turista ingl��s, h��spede dum dos hot��is de
Tiber��ades, e que um dia, desejando dar um passeio pelo
lago, contratou um barco-motor. O barqueiro lhe pediu
pela corrida um pre��o t��o exorbitante que o ingl��s sorriu
e resmungou: "Agora eu compreendo por que Jesus pre-
feriu passear a p�� sobre as �� g u a s . . . "
Entramos em Tiber��ades. O chefe de nossa caravana
nos comunica que infelizmente n��o poderemos descer do
carro, pois temos de chegar a Safed antes da noite.
TIBER��ADES
Aceita-se a probabilidade de que tenha sido Herodes
I S R A E L E M A B R I L
97
Antipas o fundador desta cidade, cujo nome �� uma ho-
menagem do tetrarca ao imperador Tib��rio. O lugar tem
cerca de dois mil anos de idade. Tornou-se cedo uma das
principais comunidades judaicas da Galileia, centro de
estudos talm��dicos e sede do Patriarcado judeu desde o
s��culo II da nossa era crist��. Foi aqui que doutos rabinos
resolveram problemas de vocaliza����o e pontua����o da l��n-
gua hebraica.
Em 1099 os cruzados conquistaram Tiber��ades que,
depois do s��culo XIII, passou a ser uma aldeia de pes-
cadores.
O lago �� ricamente piscoso. Inveterado freq��entador
de aqu��rios, gosto de olhar peixes, pois tudo neles me
atrai ��� as formas, as cores, os movimentos e at�� as
"caras", nas quais costumo descobrir parecen��as com co-
nhecidos meus ou com personalidades famosas. Gostaria
de ver um esp��cime dum certo tipo de peixe (seu nome
me escapa agora) que usa a boca como chocadeira e que
protege os filhotes de qualquer perigo escondendo-os na
queixada em forma de bolsa.
Foi em Tiber��ades que Herodes Antipas deu a Salom��
a cabe��a de Jo��o Batista numa salva de prata. (Vejo-me
aos vinte e dois anos atr��s dum balc��o de farm��cia tra-
duzindo para o portugu��s, a l��pis, num papel de embrulho
cor-de-rosa, trechos de Salom��, o poema dram��tico de
Oscar Wilde.)
Ao norte da cidade existem fontes quentes de ��guas
minerais sulfurosas. Nos tempos do Imp��rio Romano ve-
lhos senadores, c��nsules, proc��nsules, generais e ricos
comerciantes vinham para c�� curar sua gota, seu artri-
tismo e outras mazelas do corpo causadas por uma vida
indulgente de grandes comilan��as, bebedeiras e excessos
sexuais. Essas fontes termais continuam ainda ativas, e
Tiber��ades �� uma cidade balne��ria. Os turistas que para
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E R I C O V E R �� S S I M O
c�� v��m todos os anos hospedam-se nesses belos hot��is
modernos �� beira do lago, em meio de parques e jardins,
e aqui fazem esqui aqu��tico, pesca submarina e lagar-
teiam ao sol.
Entardece. Nosso carro passeia lento ao longo de
graciosas avenidas orladas de palmeiras, oleandros, ce-
dros e ciprestes. Alguns israelenses ricos t��m aqui suas
resid��ncias de inverno ou permanentes. N��o parece im-
portar-lhes que o inimigo mortal os espie da outra mar-
gem do rio, a pouco mais de dez quil��metros. Essa gente
est�� habituada a viver perigosamente.
Emurchece o fruto do dia. A brisa que nos bate
no rosto traz um pren��ncio do frio da noite. O c��u co-
me��a a colorir-se para as bandas do poente. Rumo a
Sefad, amigo Jaime!
O resto da viagem �� um subir e descer de colinas
e montes ��� mais subir que descer ��� pois dirigimo-nos
para a cidade mais alta de Israel. Estamos todos tomados
dessa esp��cie de torpor de fim de viagem. O sil��ncio ��
para n��s uma fofa almofada na qual reclinamos a nossa
canseira. A pelada de futebol terminou. Brilham luzes
escassas do outro lado do lago, contra os outeiros da
Jord��nia. Parece que as tintas do lago inundaram o c��u,
onde apontam as primeiras estr��ias. Continuamos a subir
e s u b i r . . . Dentro de mais ou menos uma hora, avista-
mos as luzes de Sefad, pica-piscando em meio da n��voa.
E de s��bito �� inverno.
SEFAD
Quando acordamos no dia seguinte no quarto dum
hotel que, de t��o cansados, n��o pudemos examinar di-
reito na v��spera, pois mal aqui chegamos ca��mos na
I S R A E L E M A B R I L
99
cama com todo o chumbo de nossa fadiga, vemos que do
vale em derredor da cidade sobe densa n��voa ru��a, que
esconde por completo a paisagem. Sinto com os olhos que
faz frio l�� fora. A pasta dentifr��cia sabe a Estados Uni-
dos: lembran��a dos nossos netos americanos: suas faces,
seus gestos, suas vozes. A ducha �� vigorosa e, como acon-
tece quase sempre, antes de conseguir a temperatura con-
veniente, sofro primeiro um esguicho gelado e depois
outro escaldante.
Enquanto o barbeador el��trico zumbe e desliza por
uma cara para mim demasiadamente conhecida ��� e
cada vez mais gasta ��� fa��o um exame n��o de consci-
��ncia, mas de corpo. Ficou-me nos m��sculos e nos ossos
uma esp��cie de "sarro" do resfriado. Sinto a cabe��a ainda
um tanto pesada. A voz me vai reaparecendo, mas sujeita
ainda a falsetes c��micos. A tosse continua. Na minha
opini��o adoecer n��o �� s�� inc��modo como tamb��m um
pouco rid��culo e ��s vezes at�� indecente.
Descemos para o refeit��rio, onde os Dothan nos es-
peram. Boquer tov! Sentado a uma mesa, a pequena dis-
t��ncia da nossa, um velho judeu todo vestido de negro,
com um solid��u na coroa da cabe��a, faz suas ora����es
antes de come��ar a refei����o, e movimenta o busto dum
lado para outro, mexendo os l��bios. Parece conversar com
uma personagem invis��vel ��� e na verdade �� isso mesmo
que est�� fazendo.
Quedamo-nos por breve instante numa atitude quase
hamleteana diante das saladas picantes e dos peixes de-
fumados que nos provocam, em cima duma mesa. Mas
acabamos tomando o nosso ch�� com matzot, louvado seja
Jeov��!
Sa��mos a p�� pelas ruas. A luz do sol e o azul do c��u
lutam com a n��voa pela posse da cidade e arredores.
H�� v��rias maneiras de grafar o nome deste lugar:
100
E R I C O V E R �� S S I M O
Sefad, Safad, Safed e ainda Zefat. Para resolver logo o
problema escolho Sefad. Ou ser�� melhor Safed? Bom,
seja qual for a grafia escolhida, a cidade ser�� sempre
a mesma: continuar�� a ter a mesma altitude, pouco mais
de oitocentos metros acima do n��vel do mar, e a mesma
hist��ria. Dizem que j�� era conhecida no ano de 1400
a. C. Durante a Idade M��dia foi um centro de humanismo
judaico. Ganhou particular import��ncia no tempo das
Cruzadas. Os templ��rios apossaram-se dela em 1140, e
em 1266 os mamelucos a destru��ram. Violentos terremo-
tos por mais duma vez a sacudiram. Muitas guerras a
ensang��entaram.
Gosto destes becos pavimentados de pedra morena,
com casas c��bicas caiadas ou pintadas de azul, e com suas
escadinhas inesperadas, os seus p��tios e muros que me
lembram os de C��rdoba, com toda a sua heran��a arqui-
tet��nica mourisca. N��o creio que eu possa ser tachado
de m��rbido se disser que gosto de ver velhos cemit��rios.
Eles t��m para mim um valor pl��stico, al��m do hist��rico.
Encontro em Sefad um cemit��rio feito sob medida para
minha fantasia. Est�� situado a "cinq��enta varas dos mu-
ros da cidade", como recomendava a lei judaica, e nesse
Bet Kevarot (casa dos t��mulos) est��o enterrados rabinos
famosos. Visto de longe, cercado de flores silvestres, o
velho cemit��rio parece uma pequena aldeia ��rabe aban-
donada.
Em muitas partes desta cidade encontramos a marca
nada simp��tica dos turcos, e tamb��m vest��gios duma triste
��poca em que Sefad era a presa cobi��ada de intermin��veis
lutas entre tribos de bedu��nos.
No s��culo XVI da Era Crist��, Isaque Luria, um ra-
bino m��stico, estabeleceu aqui o centro mundial da cabala,
tornando assim Sefad uma das quatro cidades Santas da
Palestina. (As outras? Jerusal��m, Hebrom e Tiber��ades.)
I S R A E L E M A B R I L
101
Para quem quer que se interesse pelas ci��ncias ocultas
ou ent��o pelo sentido m��gico e simb��lico das palavras,
Sefad �� uma fonte riqu��ssima de lembran��as e suges-
t��es. O juda��smo da Idade M��dia tinha esp��rito cabal��s-
tico, sendo uma "revela����o" acess��vel aos poucos ilumi-
nados que a transmitiam a um pequeno grupo de disc��-
pulos. A cabala inventou n��o s�� uma linguagem como
tamb��m um sistema de s��mbolos segundo o qual os vo-
c��bulos perdiam o seu sentido ordin��rio e as letras pas-
savam a ter valores num��ricos, revestindo-se ��� tanto
letras como palavras ��� de propriedades m��sticas. Ocor-
re-me agora perguntar a mim mesmo se Gongora n��o
teria sido influenciado em sua poesia pela cabala. E s��-
culos mais tarde, o nosso Guimar��es Rosa, talvez sem o
saber nem querer? Bom, mas voltemos a Sefad, Safad,
Zefat ou Safed, como quiserem.
Leio que aqui se imprimiu em 1563 o primeiro livro
em hebraico, logo ap��s a inven����o de Guttemberg. Visi-
tamos o estabelecimento onde essa impress��o foi feita, e
que hoje est�� transformado num museu de artes gr��ficas.
Continuamos o nosso passeio pela cidade m��gica.
Estamos no bairro ��rabe, onde h�� alguns anos se esta-
beleceu uma col��nia de artistas. Vejo um senhor de
meia-idade �� frente de seu cavalete, junto a um para-
peito de pedra, reproduzindo numa tela a paisagem do
vale, agora completamente liberta da n��voa. Ser�� amador
ou profissional? N��o importa. Pinta, e isso �� muito.
Espiamos para dentro de pequenas casas transfor-
madas em est��dios e num relance (o romancista habitua-
se a ser uma c��mara fotogr��fica capaz de apanhar ins-
tant��neos: uns ficam fora de foco, outros mais n��tidos,
mas algo sempre se grava na "pel��cula") e vejo escul-
turas, em sua maioria modernas, telas pintadas a ��leo,
tapetes nas paredes e vultos humanos em movimento.
102
E R I C O V E R �� S S I M O
Num p��tio uma mulherzinha metida num macac��o de
zuarte trabalha com martelo e cinzel uma pedra morena
como sua pele. De alguma parte vem a m��sica dum r��-
dio: algu��m canta uma can����o plangente, dessas aparen-
tadas com o grito vespertino do muezim no minarete da
mesquita.
Dothan leva-nos a visitar um pintor, Moche Raviv,
que encontramos no seu amplo est��dio de paredes de
vidro com vista para o vale. O artista e sua esposa nos
recebem com a maior cordialidade. Raviv nasceu em Vilna
em 1905. Seus desenhos, excelentes, me lembram os da
artista brasileira No��mia. Suas pinturas, por��m, revelam
um homem que ainda busca uma forma. Raviv confessa
que sofreu a influ��ncia de Klee e Kandinsky. Descubro
que tamb��m se interessa por arquitetura e que, depois
de cursar o famoso Bauhaus, em Dessau ��� quatro anos
antes de o hitlerismo tornar imposs��vel para os judeus
a vida na Alemanha ��� mudou-se para Paris, onde se
dedicou �� arte fotogr��fica, publicando sobre o assunto
um livro prefaciado por Fernand L��ger, seu amigo. Es-
tabelecemos um breve di��logo:
��� Quando veio para a Palestina? ��� pergunto.
��� Em 1932, como enviado da revista francesa VU.
Tornei a Paris, dei conta do meu recado e dois anos mais
tarde voltei para c�� e aqui me estabeleci definitivamente.
��� E esta col��nia de artistas. . . como nasceu?
��� Ora, fui eu um de seus fundadores. Achei que
esta era a cidade ideal para isso. Est�� perto do c��u, tem
hist��ria, sortil��gio e a incompar��vel luz da Galileia.
Estamos junto de uma das janelas. Raviv olha para
as ruas, casas e telhados na encosta do monte e murmura:
��� Para lhe falar a verdade, encontrei aqui a atmos-
fera judaica de Vilna, minha terra natal. Esses becos
com suas arcadas, seu cal��amento de pedras irregulares,
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103
as suas sinagogas s o m b r i a s . . . Depois, as lendas! Porque
a cabala continua. Cada pedra dessas, cada canto de
rua, cada telhado, minarete, cemit��rio pode incendiar-nos
a imagina����o. Quando sinto saudade de meu falecido pai,
vou espiar a velha sinagoga de The Ari, entro e l�� res-
piro o esp��rito dos tempos antigos. E �� esse esp��rito que
procuro exprimir em minhas pinturas por meio de asso-
cia����es e de cores, embora eles pare��am na superf��cie
supermodernos... Mas talvez n��o seja f��cil para um
crist��o compreender isso.
Fico em sil��ncio. O olhar de Moche Raviv perde-se
nos verdes das encostas do Monte Meron, sobre o qual se
assenta a antiga cidade da Cabala.
O PASSADO DUM VALE
Em meio da manh�� deixamos Sefad rumo dum lugar
ao nordeste da Galileia, junto da fronteira com a S��ria.
Minha mulher n��o est�� muito feliz com essa aproxima-
����o, pois sabe que os s��rios s��o os mais implac��veis e
agressivos inimigos de Israel.
Aqui vamos com o pachorrento Jaime ao volante,
subindo, descendo e contornando montes e montanhas,
cruzando pequenos mas virentes vales, avistando a es-
pa��os col��nias agr��colas onde homens e tratores traba-
lham a terra, e passando de largo por aldeias e vilas
ativas como colmeias. Por fim chegamos ao nosso des-
tino, que �� o alto da colina de Matzudat Koah, onde se
ergue um monumento em mem��ria dos vinte e oito sol-
dados israelenses do Hagan��, que tombaram mortos no
combate que em 1948 lhes valeu a captura deste outeiro
ent��o ocupado pelos ��rabes. Dum belvedere ao lado do mo-
numento avistamos, a menos de quinhentos metros, terras
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E R I C O V E R �� S S I M O
da S��ria: os contrafortes da cordilheira de Hermon, cujo
pico culminante se desenha longe contra o c��u, com sua
perene coroa de neve. S��o encostas nuas, dum pardo rosa-
do, duma acobreada beleza tocada de susto. Antes de nos
voltarmos para o lado de Israel, para ter uma vista pano-
r��mica do Vale do Hule (H aspirado, por favor) creio
que seria interessante contar rapidamente algo do n��o
mui limpo passado desta plan��cie.
Minha vis��o do mundo �� freq��entemente pl��stica:
o ��ngulo do pintor. Olho as pessoas, a paisagem e as
coisas como elementos dum quadro cujo sentido mais
profundo e ��ltimo tende a escapar-me. Sei que isso muitas
vezes �� perigoso para o romancista, que assim corre o
risco de borboletear na superf��cie das criaturas e da vida.
Pierre Loti, oficial da marinha de guerra da Fran��a
e que, como se sabe, fazia tamb��m a sua literatura, era,
como seu colega Claude Farr��re, um fascinado pelos as-
pectos ex��ticos do mundo oriental. Visitando a Palestina
em princ��pios deste s��culo, e escrevendo sobre este vale,
s�� viu aqui grandes rios coalhados de l��rios aqu��ticos e
gar��as brancas, campinas pintalgadas de flores amarelas,
e terras f��rteis por entre cujos verdes o Jord��o deslizava
pregui��oso. Ora, isso era apenas parte da realidade ou,
antes, o que o olho art��stico de Loti escolheu ver. Feliz-
mente o escritor n��o foi picado por nenhum dos milh��es
de mosquitos transmissores da mal��ria e da febre negra
que enxameiavam sobre o vale ent��o desolado, quase de-
serto de humanidade, e absolutamente improdutivo.
�� verdade que esta planura, que a B��blia j�� men-
cionava, sempre foi rica duma fauna e duma flora tro-
picais, e dotada duma certa beleza selvagem. Dos cin-
q��enta quil��metros quadrados de sua superf��cie, mais da
metade era formada de pantanos e atoladouros. Durante
a guerra entre cruzados e mu��ulmanos o vale foi cen��rio
I S R A E L E M A B R I L
105
de muitas batalhas. Muito sangue mouro e crist��o tingiu
as j�� impuras ��guas de seus lagos e o barro de seus char-
cos. A situa����o n��o melhorou durante o dom��nio do Im-
p��rio Turco, que deixou a regi��o no mais completo aban-
dono. Quem primeiro se estabeleceu no Hule no s��culo
passado foram alguns judeus oriundos de Sefad. A pri-
meira coloniza����o foi ensaiada em 1879. A pouca gente
que aqui tentou viver ganhava o seu magro sustento ser-
vindo-se dos b��falos aqu��ticos e tecendo esteiras de vime.
Mas a m��dia de vida desses colonos era baixa, pois as
febres palustres dizimavam essa escassa popula����o que,
para c��mulo de males, sofria ataques espor��dicos de ban-
doleiros ��rabes. Animava-os possivelmente, entre outras
coisas, a id��ia de que nos tempos b��blicos aqui se havia
plantado arroz com ��xito.
Em 1934 algumas institui����es judaicas compraram
a Concess��o do Hule com a finalidade de drenar parte
do lago e os banhados. Estabeleceram-se alguns aldea-
mentos agr��colas, com pobres resultados, na periferia do
lago, mas s�� depois que o Estado de Israel foi reconhe-
cido pela Organiza����o das Na����es Unidas �� que se tornou
poss��vel iniciar um trabalho sistem��tico de recupera����o
das terras desta regi��o.
Para c�� vieram centenas de trabalhadores, engenhei-
ros hidr��ulicos e especialistas no cultivo do solo semi-
��rido, e com eles grandes dragas perfuradoras do tipo
mais moderno, e come��ou ent��o uma luta met��dica e
tenaz contra os p��ntanos, as rochas e o deserto. Quatro
milh��es de metros c��bicos de terra foram escavados,
abriram-se canais numa extens��o total de mais de qua-
renta quil��metros. Quando se encontrava resist��ncia no
duro solo bas��ltico, os engenheiros abriam nele fendas
nas quais metiam cargas de dinamite, fazendo ir pelos
ares os obst��culos. O Hule encheu-se de sons de guerra.
106
E R I C O V E R �� S S I M O
O ratat�� das perfuradoras, t��o evocativos de rajadas de
metralhadoras, e o estrondo das explos��es deviam ter
posto em fuga os animais que habitavam o vale. A faina
prosseguiu sem outra tr��gua que a da noite. De vez em
quando tombava um trabalhador. Insola����o? Fadiga? Tal-
vez. Mas bem podia ser tamb��m que ele tivesse sido atin-
gido pelo bala��o dum atirador ��rabe atocaiado nos ma-
tagais de juncos e papiros.
O trabalho de recupera����o do Vale do Hule durou
tantos anos quantos s��o os bra��os do menor��, o casti��al
simb��lico judaico. A zona alagada foi drenada. Sessenta
mil hectares de terra f��rtil foram entregues �� agricultura.
Outros sessenta mil haviam sido consideravelmente me-
lhorados. A mal��ria estava liquidada. O vale povoou-se.
Nasceram col��nias agr��colas. (Hoje existem mais de trinta
delas.) Criaram-se tarefas para milhares de trabalhado-
res. Plantaram-se lavouras de algod��o, milho, amendoim.
Produziram-se mel��es. Fizeram-se lagos artificiais para
o cultivo de carpas. Um neg��cio que tem sido lucrativo
para pa��ses como a Holanda apareceu aqui: a produ����o
de bulbos de flores.
A Autoridade do Vale do Hule ��� de cujas a����es o
governo de Israel possui 5 0 % , a Ag��ncia Judaica 30%
e o Fundo Nacional Judaico 20% ��� decidiu deixar uma
��rea do vale destinada a uma reserva natural.
O PRESENTE
E agora o leitor pode voltar-se e olhar comigo a pla-
n��cie que se estende para o norte, o sul e o oeste, como
uma vasta colcha de retalhos de cores variegadas. N��o
resisto �� tenta����o de dizer que este �� um espl��ndido exem-
plo de "pintura coletiva", pois outra coisa n��o fizeram
I S R A E L E M A B R I L
107
esses milhares de t��cnicos, oper��rios e agricultores judeus,
durante estes ��ltimos anos, sen��o pintar a "tela" do vale
com todas essas tintas que agora temos diante de nosso
alegre espanto, a perder de vista: os quadril��teros das la-
vouras em diversas tonalidades de verde, desde o acinzen-
tado at�� ao gaio, passando pelo esmeralda e pelo jade; os
espelhos dum azul-celeste dos viveiros de carpas e mais as
terras rec��m-viradas, �� espera da semeadura, como reta-
lhos cor de caf��, de cobre, e dum pardo-avermelhado ou
quase n e g r o . . . Os telhados de zinco e os silos de alu-
m��nio dos kibbutzim cintilam ao sol, a intervalos, na am-
plitude da planura. Diante desse quadro eu gostaria de
dizer alguma coisa sublime ou pelo menos sensata, no
entanto o mais que consigo, apesar de todo o meu como-
vido entusiasmo, �� romper num acesso convulsivo de tosse.
ARVORES
O chefe de nossa caravana nos d�� ordem de marcha.
�� preciso n��o perder tempo. O sol subiu para o z��nite,
come��a a inclinar-se para o Mediterr��neo, e Josu�� n��o
aparece para faz��-lo parar. Temos de andar ainda muitas
l��guas e ver outras geografias. Avante, pois!
Almo��amos muito bem no restaurante duma casa
de repouso pertencente a um dos kibbutzim da zona. Ap��s
a refei����o os Dothan nos sugerem uma breve sesta e nos
deixam sozinhos: creio que v��o procurar os amigos que
t��m nesta comunidade. Minha mulher e eu nos sentamos
em pregui��osas de vime, �� sombra do pavilh��o do res-
taurante, e ficamos a conversar sobre este extraordin��rio
pa��s, que n��o se parece com nenhum dos muitos que j��
visitamos nas tr��s Am��ricas e na Europa. Israel, o mais
novo Estado do mundo, situado numa das regi��es mais
108
E R I C O V E R �� S S I M O
antigas da Terra, �� habitado por um povo cuja hist��ria
tem cerca de quatro mil anos. Tratores de fabrica����o in-
glesa sulcam o solo onde h�� menos de cem anos s�� se
conhecia o arado b��blico. Jovens israelenses jogam fute-
bol nos campos que Jesus e seus ap��stolos pisaram, h��
quase dois mil anos. Um reator at��mico funciona no co-
ra����o de pedra do Deserto de Neguev. Uma nova ra��a,
os sabras, aqui est�� em pleno processo de forma����o. Mi-
nha mulher confessa que ainda n��o est�� enxergando claro
em tudo isso, mas pode desde j�� afirmar que o que viu dei-
xou-a sensibilizada e cheia de admira����o por este povo.
O mesmo se passa comigo.
O canto dos passarinhos picota o leve e luminoso
tecido do sil��ncio que nos envolve. Ficamos ambos con-
templando calados as ��rvores do parque.
Julgo que s�� os escritores germ��nicos e anglo-sax��es
�� que sabem a nomenclatura exata das plantas e das
flores. Tenho aprendido alguns nomes de flores, ��rvores
e frutas, menos por esp��rito de exatid��o cient��fica do
que pelo prazer de ouvir-lhes o som e apreciar-lhes a
forma gr��fica. Pensem na beleza de palavras como ��lamo,
n��spera, murta, rom��, rosa, nardo, t��mara, nelumbo. P��s-
sego sugere penugem. Mandr��gora tem feiti��o. Casuarina,
uma conota����o de solitude �� tardinha. M��stica �� a mirra.
Macia a avel��. ��spero o cardo. Redonda a laranja. Bal-
s��mico o benjoim. Limpa a alfazema. M��gico o gergelim.
Alegra-me a id��ia de que desde o princ��pio do Es-
tado de Israel seu governo j�� fez plantar mais de setenta
milh��es de ��rvores no territ��rio nacional. Vejo neste par-
que alfarrobeiras que me lembram o sul de Portugal. Ali
est��o enfileirados alguns pinheiros de Jerusal��m, com
suas finas agulhas. Em meio deles, como intrusos, identi-
fico algumas tamareiras, plantas que costumamos associar
ao pardo arenoso dos desertos. E aquela ��rvore ao p�� do
I S R A E L E M A B R I L
109
chafariz? Creio que �� um terebinto. Mais adiante, solit��rio,
um loureiro. N��o �� preciso muita arg��cia para reconhe-
cer os carvalhos. Gosto do nome e do desenho daquele
tamariz em um de cujos ramos agora pousa uma borbo-
leta. Mas a ��rvore de minha particular afei����o �� a oli-
veira. Ali est�� u m a . . . Deve ter mais de um s��culo, a
julgar pelo aspecto vetusto do tronco retorcido e cheio
de nodulos. �� uma planta de aspecto sofrido. Se em
ingl��s a palavra ��rvore �� substantivo neutro, em portugu��s
ela ��, mais acertadamente, do sexo feminino. Com sua
face e suas m��os enrugadas, a sua serena dignidade, a
sua coragem e a sua capacidade de durar, de sobreviver
�� intemp��rie e ��s guerras sem cessar de produzir flores
e frutos, Dona Sara Aloni me lembra uma oliveira.
Um poema de Garcia Lorca me perpassa como uma
brisa pela mente:
La ni��a de bello rostro
est�� cojendo aceituna.
El viento gal��n de torres,
la prende por la cintura.
��� antes de o sono fechar-me os olhos e levar-me para
uma misteriosa terra sem mapa nem limites.
O JORD��O E OS JUDEUS
De novo no autom��vel, na nossa habitual "forma����o
de combate". M. e eu nos afei��oamos mais e mais a nossos
companheiros de viagem, mas a cada um de maneira di-
ferente. Apreciamos a discre����o e o espirito de fiel escu-
deiro de Jaime. Gostamos dos sil��ncios, que n��o creio
sejam aus��ncias, de Raquel, e das suas interven����es raras
110
E R I C O V E R �� S S I M O
mas oportunas e temperadas dum discreto humor. Quan-
to a Dothan, o d��namo, sol��cito e pr��tico, esse n��o me
parece muito interessado em que gostemos ou n��o dele.
O que lhe importa �� servir-nos, proteger-nos, e interferir,
sempre que necess��rio, com a informa����o exata e a in-
terpreta����o correta.
Tornamos a deixar o carro em Horchat Tal, o par-
que onde se encontram alguns dos pequenos rios que
formam o Jord��o, e que nascem em territ��rio s��rio. Sa��mos
num passeio que nos conduzir�� a um ponto em que fica-
remos praticamente a um tiro de bacamarte da fronteira
��rabe. Raquel n��o vai conosco: conhece de sobra a regi��o.
M. decide ficar para fazer-lhe companhia. Sentam-se am-
bas �� sombra duma frondosa figueira brava, onde uma
grande fam��lia israelense ��� pai, m��e, av�� e quatro filhos,
presumo ��� fazem o seu piquenique. Outros visitantes
movimentam-se no parque, sobre o tapete da relva. Cri-
an��as jogam bola. Dois soldados passeiam de m��os dadas,
como namorados. (Devo explicar que um deles �� do sexo
feminino, pois em Israel as mulheres tamb��m fazem ser-
vi��o militar obrigat��rio.)
Dothan me leva por entre ��rvores e arbustos at�� aos
tribut��rios do hist��rico rio em cujas ��guas S��o Jo��o ba-
tizou Jesus Cristo. S��o riachos t��o estreitos, que em alguns
trechos podem ser atravessados com o aux��lio de tr��s al-
pondras e tr��s passadas n��o mui largas. Digo ao meu
companheiro que no meu Estado natal temos pelo menos
mil sangas mais belas e caudalosas que estas, embora sem
hist��ria. Chegamos a um ponto em que avistamos as en-
costas da cordilheira do Hebrom. Estamos a poucas cen-
tenas de metros da fronteira da S��ria.
Relembro leituras antigas, do tempo em que eu fazia
a minha primeira e ��nica tentativa de fic����o cient��fica
(Viagem �� Aurora do Mundo, 1939). Durante os per��o-
I S R A E L E M A B R I L
111
dos jur��ssico e cret��ceo o Mediterr��neo cobria por com-
pleto o territ��rio em que hoje se encontram a S��ria e a
Palestina. No per��odo terci��rio, por��m, operou-se um
vasto levantamento do leito desse mar, mas dum modo
t��o violentamente desigual, que se produziram fraturas,
pregas e fossas nessa terra que emergia das ��guas. Foi
assim que surgiram as colinas, montes, montanhas e va-
les do L��bano e da Palestina ocidental. Esse cataclismo
foi tamb��m respons��vel por um dos mais impressionan-
tes "talhos cicatrizados" de toda a crosta terrestre: a de-
press��o do Gor, que forma o Vale do Jord��o e que se
estende at�� ao Mar Morto, seu ponto mais profundo, con-
tinuando at�� ao Mar Vermelho e �� Africa Oriental, para
terminar no Lago Vit��ria, na Africa Equatorial.
Tocou ao Jord��o a sina de correr numa esp��cie de
gincana c��smica atrav��s de boa parte dessa par��clase
de lava vulc��nica, hoje em muitos trechos transformada
em solo bas��ltico.
De s��bito ocorre-me a possibilidade de um paralelo
entre o curso do Jord��o e a hist��ria do povo judeu. De-
senvolvo a minha improvisada teoria a Dothan, enquanto
ambos aqui estamos �� sombra duma ��rvore a contemplar
os contrafortes do Hermon.
��� Para principiar ��� digo ��� as fontes do Jord��o
s��o v��rias e um tanto vagas como a do povo h e b r e u . . .
E este rio dram��tico e rico de hist��ria, tanto b��blica como
profana, teve de correr, de "viver" quase sempre em solo
hostil, como aconteceu com o povo de Israel, n��o s�� ao
tempo em que habitava a Palestina como tamb��m quando
mais tarde se dispersou pelo mundo. Esses extravasamen-
tos de lava que no passado de vez em quando barravam
o curso do Jord��o podem ser comparados ��s persegui����es,
��s restri����es e aos pogroms sofridos pelos judeus atrav��s
dos s �� c u l o s . . .
112
E R I C O V E R �� S S I M O
Dothan escuta. N��o parece sensibilizado nem sequer
interessado pela minha tese: seu rosto moreno tem neste
instante algo de p��treo, como as montanhas da S��ria. Mas
prossigo:
��� Segundo minhas leituras, o Jord��o �� dos rios
mais sinuosos da Terra. Para percorrer uma dist��ncia de
cem quil��metros em Unha reta ele se retorce em curvas
numa extens��o de mais de trezentos... Quando se ima-
gina que o rio ficou estrangulado por uma dessas muitas
gargantas ou se sumiu num dos incont��veis despenhadei-
ros desta depress��o, eis que ele reaparece mais adiante
e retoma o seu curso. Sinuosos a Hist��ria obrigou os
judeus a serem, a fim de tornar-lhes poss��vel a sobrevi-
v��ncia como povo e como religi��o atrav��s das idades e
das "depress��es" do solo tantas vezes vulc��nico do mundo
mu��ulmano e crist��o.
Calo-me. Voltamos as costas para a S��ria e sa��mos
a andar, de volta ao resto da caravana.
��� E o Mar da Galileia? ��� indaga meu companheiro.
��� Bom, pode-se comparar esse belo lago azul e
piscoso ao per��odo de florescimento filos��fico, cient��fico,
art��stico e liter��rio dos sefarditas na Espanha e mais
tarde no resto da E u r o p a . . . O Jord��o alimenta o Mar
da Galileia e depois continua o seu curso na dire����o da
parte mais profunda desta fossa terr��quea, para enfren-
tar novos obst��culos, quedas, estrangulamentos... di-
gamos, "injusti��as c��smicas", se tal express��o tem algum
sentido.
��� Mas por fim o Jord��o cai no Mar Morto e ah
termina. Qual �� o s��mbolo?
Sinto-m�� perdido. Uma lagartixa verde-cinza, parada
no tronco duma ��rvore, parece dizer-me num hebraico
que entendo: "Sai dessa agoraI".
��� B e m . . . podemos comparar o Mar Morto ao pe-
I S R A E L E M A B R I L
113
r��odo das persegui����es e dos campos de exterm��nio dos
nazistas. . .
��� Mas nosso povo continuou, apesar disso tudo.
��� Pois �� . . . Minha tese n��o presta. Mas n��o! Es-
pere um momento. Pense bem. Veio o Estado de Israel,
que �� um "outro rio", embora feito da mesma ��gua mi-
lenar. Voc��s israelenses est��o fazendo o Jord��o correr
num outro leito, isto ��, em canos de concreto, ou a��o,
e levando-o para onde querem, da mesma maneira que
est��o mudando o destino do povo judeu. Os sabras, em
suma, dominam agora o rio, e os sabras h��o de tra��ar
o novo curso hist��rico do povo de Israel!
Olho orgulhoso para a lagartixa, mas ela desapa-
receu. Dothan caminha em sil��ncio a meu lado.
A RESERVA NATURAL DO HULE
Entardece quando chegamos �� Reserva Natural do
Hule. Dentro de cada ser humano, por mais aut��ntico
que ele seja (e afinal de contas que �� precisamente um
"homem aut��ntico"?) esconde-se um esnobe de tamanho
grande, pequeno ou m��dio, conforme a pessoa. Em alguns
ele �� t��o grande que chega a ser todo o homem. No ingl��s
esse esnobe �� o "bem nascido". No franc��s, o dono da
cultura. No brasileiro o esnobe �� o patrioteiro da paisa-
gem: para ele, n��o h�� no mundo nenhuma terra com
belezas naturais compar��veis ��s do Brasil. Pois esse de-
m��nio interior me cochicha que estamos perdendo tempo
na visita a este mini-lago, n��s que temos o Rio Amazonas,
o fen��meno das pororocas, as Cataratas do Igua��u, a Ba��a
da Guanabara, e t c . . . Mando-o calar a boca. O que temos
��� replico ��� foi Deus quem nos deu, ao passo que os
israelenses est��o aos poucos reformando, remendando, me-
114
E R I C O V E R �� S S I M O
lhorando e embelecendo sua terra. O miser��vel esconde-
se, encabulado.
Entramos todos ��� menos Jaime, que j�� deve ter
visto este parque mil e uma vezes ��� numa barca��a de
fundo chato, que em breve se p��e em movimento, com o
seu motor de gasolina a bater forte e acelerado como
um cora����o em susto, e l�� nos vamos por esses meandros
de estreitos e sinuosos corredores d��gua, por entre ma-
tagais de juncos e papiros, que formam o que me parece
eri��adas ilhas.
Est��o conosco a bordo alguns turistas e um jovem
soldado israelense que se compraz em tirar fotografias
de tudo quanto v��: pequenas tartarugas e cobras d��gua
que fogem �� aproxima����o do barco, uma que outra lib��-
lula pousada nos pend��es dos papiros ou nos cani��os que
balan��am �� brisa. �� medida que o sol se aproxima da
linha do horizonte, as montanhas da S��ria se v��o cobrindo
das mais delicadas tonalidades de azul e violeta. Vejo
samambaias dum lado e outro dos canais. Um prospecto
distribu��do pela Autoridade do Vale do Hule informa que
o papiro �� uma planta anual que murcha no outono e
se renova na primavera. No ver��o suas flores delicadas
se empinam nas finas hastes.
Depois de alguns minutos a excurs��o se torna mo-
n��tona, mas aqui e ah somos surpreendidos por uma co-
l��nia de nen��fares e ninf��ias, as primeiras brancas e as
��ltimas duma cor alaranjada.
Ouvi dizer que em certa ��poca do ano passam por
aqui em revoada alguns pelicanos, rumo do Mediterr��neo
e que duma feita seis dessas aves deixaram-se ficar como
"residentes" da reserva. N��o as encontramos, por��m.
Penso que seria de grande efeito pict��rico se alguns desses
pelicanos rosados decidissem agora, em homenagem aos
senhores turistas, al��ar o v��o sobre estes cani��os e l��rios
I S R A E L E M A B R I L
115
aqu��ticos, contra o c��u carmesim do poente. Avisto uma
nutria arisca por entre folhas e galhos. (Nos aldeamen-
tos agr��colas das vizinhan��as criam-se nutrias que um
dia ser��o partes de casac��es de pele.) Procuro em v��o
os linces que aqui vivem: deles s�� conhe��o o olho, que
�� um lugar-comum liter��rio. Os gatos do mato, as lontras,
as fuinhas escondem-se nos matagais, recusando aparecer.
Avisto uma gar��a, que me evoca a figura de Pierre Loti,
e quando mais tarde passa sobre nossas cabe��as um pe-
queno bando de patos selvagens, penso em Papa Heming-
way.
Conta-se que �� noite os grandes cormor��es, as ��guias
pescadoras, empoleiram-se nos galhos de algumas plantas
e ah ficam com as asas estendidas, a secar, depois dos
mergulhos que d��o no lago com o fim de apanhar alguma
carpa ou um certo peixe de m�� catadura que habita estas
��guas e �� capaz de sobreviver muitas horas em terra
seca, gra��as a um aparelho respirat��rio auxiliar.
Depois de muitas voltas pelos labirintos l��quidos da
reserva, o barco regressa a seu trapiche. Voltamos para
o carro, que se p��e em movimento rumo do sul.
ALMAGOR
Estamos a dois passos da noite. Sumiu-se o sol. Des-
cemos em Almagor, pequeno kibbutz do tipo nahal, isto
��, pertencente �� organiza����o da Juventude Pioneira Com-
batente, que destina seus membros em idade militar a
estes postos perigosos de fronteira, onde lhes cabe tra-
balhar a terra como agricultores e ao mesmo tempo de-
fend��-la como soldados contra poss��veis invas��es dos ini-
migos de Israel.
Vivem aqui apenas umas trinta pessoas, todas ainda
116
E R I C O V E R �� S S I M O
na casa dos vinte anos. Recebe-nos um jovem sabra mo-
reno, magro e n��o muito alto, com um vago ar de carioca.
Faz frio e ele est�� em mangas de camisa, as m��os me-
tidas nos bolsos das cal��as. Leva-nos a ver a terra que
lhes compete cultivar com o risco di��rio de suas pr��prias
vidas. Fazemos alto no ponto em que se ergue uma cerca
de arame farpado, e onde uma inscri����o em hebraico e
outra em ingl��s, pintadas numa tabuleta, declaram lac��-
nicamente que corre perigo de vida o visitante que se
aventurar para al��m desse limite. Diante de n��s, na en-
costa dum outeiro em cujo topo se encontram as casas
do kibbutz, estende-se uma lavoura de um quil��metro
escasso de largura, que desce at�� ��s margens do Jord��o.
A esta hora crepuscular o solo, de origem vulc��nica, me
parece ainda mais negro. Voltando a cabe��a para a di-
reita, avisto o Mar da Galileia, j�� meio sumido no lusco-
fusco e na dist��ncia.
��� De acordo com os tratados ��� explica-nos Dothan
��� dez metros de terra do outro lado do rio pertencem a
Israel, mas os s��rios n��o nos permitem sequer atravessar
o rio, quanto mais trabalhar em paz do lado de l��.
Percebo agora, a poucos passos de onde estamos,
um carro blindado munido duma metralhadora pesada.
Seguindo a dire����o de meu olhar, o sabra sorri e diz:
"Isso �� para n��s o complemento dos tratores. Nossos vi-
zinhos de vez em quando fazem tiro ao alvo em nossos
companheiros".
Conta-nos que s��o obrigados a arar a terra, semear
e colher sempre protegidos pelo carro blindado, com um
homem atento ao p�� da metralhadora. H�� dois dias, sem
a menor provoca����o, atiradores s��rios alvejaram e feri-
ram um dos habitantes de Almagor que trabalhava na
lavoura.
Quero saber o que aconteceu depois, e o rapaz, sem
I S R A E L E M A B R I L
117
��dio nem bas��fia, conta: "Respondemos imediatamente
ao fogo, trouxemos o ferido para o nosso ambulat��rio,
levamos outro companheiro para substitu��-lo e, quando
o tiroteio cessou, continuamos a trabalhar".
Faz-se um sil��ncio. A emo����o me aperta a garganta.
Olho este ch��o tr��gico, vejo nele umas flores roxas que
despedem um cheiro que lembra o do a��afr��o. Ou��o vozes
joviais que v��m do refeit��rio comum do kibbutz. O me-
nino que tenho na minha frente parece estar agora des-
preocupado a uma esquina de qualquer vila ou cidade
do mundo, esperando a namorada com quem marcou um
encontro. N��o se d�� ares de her��i nem de m��rtir.
Sinto por este sabra um profundo e afetuoso respeito.
E considero um privil��gio, uma honra mesmo, apertar-
lhe a m��o.
ACRE
Chegamos a Sefad surrados pelo cansa��o. Aqui nes-
tas alturas a temperatura agora deve estar entre sete e
dez graus cent��grados acima de zero. Antes de dormir,
abro ao acaso o volume de poesias de Fernando Pessoa:
Brincava a crian��a
Com um carro de bois
Sentiu-se brincando
E disse, eu sou dois.
H�� um a brincar
E h�� outro a saber
Um v��-me a brincar
E o outro v��-me a ver.
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E R I C O V E R �� S S I M O
Penso: Brinco de viajar, e viajando ��s vezes me
digo que sou dois: um que viaja e outro que se v�� viajar.
No meu caso haver�� um terceiro, o que vai escrever
sobre o que viajou e o que se viu a viajar. Depois vir��
um quarto eu: o que ler o que o terceiro escreveu sobre
o que viajava e o que se via viajar.
Minha mulher quer saber por que estou falando so-
zinho. "Nada" ��� respondo. ��� "Estou pensando umas
coisas." Mas concluo que o melhor �� n��o pensar. O bom
mesmo �� brincar. Chalom! Largo o livro e fecho os olhos.
Pela tela de cinema das p��lpebras me passa, louco, um
filme natural com faces humanas, rios, lagos, cormor��es,
linces, pelicanos, velhas ��rvores, Jesus nas Bodas de
Can��, o vig��rio alem��o da igreja de Cruz Alta, minha
av�� materna salpicando de noz-moscada um prato de
arroz-de-leite, um ch��o vulc��nico, Fernando Pessoa, e o
gigante Almagor em luta com o Adamastor...
Na manh�� seguinte passeamos ainda a p�� pelas ruas
de Sefad, visitamos duas sinagogas antiqu��ssimas. E por
volta das nove e meia nos pomos em movimento na di-
re����o do mar.
Os homens de minha gera����o, como eu fascinados
pela civiliza����o ��rabe, alimentaram sua fantasia na in-
f��ncia com hist��rias de As Mil e Uma Noites e as f��-
bulas e par��bolas em torno da figura do s��bio e equ��nime
Harum-al-Rachid, Califa de Bagd��. Pois agora estamos
entrando numa das cidades mais importantes da minha
mitologia particular, Acre, em hebraico Akko, situada na
extremidade setentrional da ba��a de Haifa.
Consulto o menino e ele me lembra que costumava
associar a palavra Acre a lacre, escarlate e crista de galo.
Acre s�� podia ser uma cidade vermelha. Engano! �� dum
I S R A E L E M A B R I L
119
pardo claro, ora chocolate com leite ora areia. Visto de
longe o seu casario apresenta um perfil que corresponde
a minha expectativa: rotundas de tamanho v��rio, mina-
retes, enfim, a cl��ssica cidade mu��ulmana. N��o avisto
o vulto de nenhum arranha-c��u, e isso me conforta.
Os navios que ainda hoje se aproximam do porto
de Acre t��m de cuidar-se dos recifes que aqui ficaram
do tempo dos Ass��rios, quando esta cidade se chamava
Tiro. Durante a guerra entre os persas de Xerxes e os
eg��pcios, Acre tornou-se um porto cuja posse era de alto
valor estrat��gico. Por aqui andaram tamb��m, �� claro, os
romanos. Seguiram-se os ��rabes. Acre foi a capital dos
cruzados depois da queda de Jerusal��m. Por suas ruas ���
dizem ��� andou Ricardo Cora����o de Le��o. G��nova e Ve-
neza tamb��m disputaram o direito exclusivo de usar este
porto t��o importante para o com��rcio entre os pa��ses do
Mediterr��neo. Os ex��rcitos de Napole��o tentaram, mas em
v��o, conquistar Acre. Aqui permaneceram durante s��culos
os turcos e, muito mais tarde, os ingleses. Acre teve sem-
pre uma boa quantidade de habitantes judeus, os quais,
ao que parece, sempre viveram em boa paz com a popu-
la����o mu��ulmana. E agora, depois de estabelecido o Es-
tado de Israel, dos trinta e poucos mil habitantes desta
cidade, apenas uns oito mil s��o ��rabes.
Nas suas praias, bem como nas areias da ba��a de
Haifa, abundam os moluscos dos quais se extrai a p��r-
pura, corante de apreci��vel valor industrial.
Sa��mos a andar pelas ruas da cidade, �� sombra de
suas belas arcadas multicenten��rias. Afirma-se que a
atmosfera medieval da velha Acre foi preservada. Eu n��o
me admiraria se agora parasse toda uma caravana com
seu chefe, criados e camelos �� frente deste edif��cio que
outrora foi um caravan��ar��, e cujas ab��badas g��ticas
parecem contar-nos est��rias, como se guardassem ainda
120
E R I C O V E R �� S S I M O
o eco das vozes de xeques, mercadores, bandidos e be-
du��nos.
Durante o per��odo turco da Palestina alguns caba-
listas estabeleceram-se nesta cidade, trazendo consigo os
seus segredos e magias.
Como em Nazar��, as ruas de Acre s��o estreitas, e
em muitos trechos cobertas de toldos, n��o t��o coloridos
e limpos como aparecem nos cart��es-postais e cartazes
de turismo.
Um menino ��rabe aproxima-se de n��s e nos diz em
sua l��ngua algo que Dothan imediatamente traduz. O mo-
leque nos quer mostrar a casa onde os americanos fil-
maram cenas para o filme Exodus. Verifico mais tarde,
decepcionado, que esta cidade, t��o empapada de hist��ria
antiga e leg��tima, parece orgulhar-se de ter fornecido
parte do cen��rio natural duma pel��cula de Hollywood.
�� uma del��cia ficar observando esses mercadores
��rabes que, �� frente de suas lojas, procuram atrair os
passantes, principalmente quando estes t��m ares de tu-
ristas, como n��s. Paramos para olhar objetos velhos de
cobre numa tenda, e o seu dono se dirige a n��s em ingl��s,
franc��s, i��diche, alem��o, ��rabe e finalmente, descobrindo
que minha mulher e eu somos do Brasil, diz-nos algu-
mas palavras perfeitamente intelig��veis em portugu��s,
essa Gata Borralheira das l��nguas neolatinas.
Compro numa loja um desses chap��us de pano usa-
dos pelos habitantes dos kibbutzim, de copa quase c��-
nica e abas ca��das. Hesito entre o azul e o caqui e acabo
preferindo o ��ltimo. Meto o chap��u na cabe��a para pro-
teg��-la da luz do sol, que a esta hora quase meridiana se
faz cada vez mais forte.
Dum r��dio, de dentro dum caf��, sai uma voz que
canta uma can����o cuja obstinada linha mel��dica (ou
amel��dica) parece um complicado arabesco. Um dos mer-
I S R A E L E M A B R I L
121
cadores prepara o seu almo��o ��� um chachlique que se
tosta sobre as brasas dum braseiro de ferro. De alguma
parte nos chega ��s narinas o cheiro de frituras de azeite.
Uma mo��a que ostenta um vestido de lam�� dourado, atra-
vessa a rua. "Uma drusa" ��� diz Dothan.
Pergunto ao nosso chefe que progresso trouxe para
Acre o governo de Israel, e ele responde: "Primeiro, a edu-
ca����o bicomunal, oportunidades para alfabetiza����o das
massas, que procuramos levar pelo menos at�� ao curso
m��dio. Nos arredores da cidade existem uma importante
fundi����o de ferro, uma f��brica de canos de a��o, e outras
de pl��sticos, tintas e vidro, isso sem contar as menores.
Melhoramos tamb��m consideravelmente a ind��stria da
pesca entre a popula����o ��rabe".
Continuamos a andar. Espio para dentro duma pa-
daria e vejo os padeiros tirando p��o do forno. Pouco de-
pois detenho-me para observar, fascinado, um ��rabe gordo
que est�� sentado �� frente duma tenda em que se ven-
dem nozes, t��maras, ervas e ra��zes medicinais. O homem
tem um ar limpo e repousado de propriet��rio pr��spero.
Traja uma curiosa roupa de pano verde-oliva, com d��lm��
de tipo militar, cal��as afuniladas, e tem na coroa da ca-
be��a um fez cor de vinho. Suas m��os cheias de an��is
repousam no cast��o da bengala, com algo de f��lico, que
tem entre as coxas. Sua sensualidade revela-se na bei-
��ola carnuda. Sua cara �� todo um tratado de anatomia
patol��gica. Com os olhos mi��dos mas luzidios, o homem
olha os passantes, principalmente as mulheres, exami-
nando-as da cabe��a aos p��s, tanto pela frente como por
tr��s. Alguns transeuntes comprimentam-no com ar res-
peitoso. Deve ser um potentado local. Minha mulher me
puxa pelo bra��o, dizendo que o figur��o pode desconfiar
da insist��ncia com que o observo.
Pela rua trafegam autom��veis de fabrica����o euro-
122
E R I C O V E R �� S S I M O
p��ia. O tr��nsito �� momentaneamente interrompido por
uma grande carro��a puxada por dois cavalos normandos.
Passa por n��s um ��rabe de cara triste montado num bur-
rico de olhar igualmente melanc��lico.
Dothan olha para o rel��gio e nos diz que estamos
j�� atrasados para a visita �� mesquita local, onde nos es-
peram personalidades representativas da comunidade mu-
��ulmana.
Penetramos no claustro do templo e seguimos ao longo
duma galeria com arcadas, na dire����o de um de seus ��n-
gulos. Avistamos, a uns vinte metros de n��s, um grupo de
aspecto solene, que nos aguarda nos degraus de pequena
escada. A figura central �� a dum homem de estatura me��,
que veste uma t��nica longa, dum azul de c��u noturno, e
tem na cabe��a um chap��u branco parecido na forma
com o dos popes ortodoxos, e nas m��os uma bengala. "��
o C��di" ��� informa Dothan ��� "o juiz religioso da comu-
nidade". Os outros s��o homens baixos, um deles com um
tarbuche negro na cabe��a, quase todos morenos, com bons
bigodes, e vestidos �� maneira ocidental. Quem vem a
nosso encontro �� o mais alto e robusto do grupo, um su-
jeito ainda jovem, de tez clara. Aperta-nos a m��o, pro-
nunciando o seu nome, que n��o consigo ouvir claro, e o
seu t��tulo: subprefeito de Acre. Diz que representa tam-
b��m o prefeito, que n��o p��de vir receber-nos porque neste
momento toma parte num almo��o do Rotary Club local.
(O prefeito �� judeu.) O subprefeito, que �� mu��ulmano,
sorri, revelando um r��tilo canino de ouro, e apresenta-
nos aos companheiros. Apertamos a m��o do c��di e dos
outros pr��ceres e em seguida somos conduzidos a um pe-
queno escrit��rio mobiliado de maneira nada ��rabe. Podia
ser uma sala da prefeitura municipal de Cachoeiro do
Itapernirim, de Caratinga ou Crato. Sentamo-nos. Vejo
I S R A E L E M A B R I L
123
pela express��o do rosto de minha mulher que ela est��
achando tudo isso muito interessante, como eu. Agora
posso observar melhor as fei����es do c��di. �� um homem
que se aproxima ��� e depressa ��� da casa dos cinq��enta.
Tem o rosto fino, moreno, e cobre-lhe as faces uma
barba grisalha de dois ou tr��s dias. Seus olhos negros
crescem por tr��s das lentes espessas de seus ��culos. A
julgar pelo tipo f��sico, podia ser brasileiro, grego, italiano
do sul e at�� mesmo ��rabe, como de fato ��. N��o encara
o interlocutor. Mant��m a cabe��a inclinada para a frente,
os olhos baixos. Tem um ar tristonho. Come��a a falar
em sua l��ngua, numa surdina monoc��rdia. Dothan, que
�� um arabista, vai traduzindo o discurso do c��di, que d��
as boas-vindas aos visitantes e depois dirige suas pala-
vras a mim, embora nem sequer uma vez volte a cabe��a
na minha dire����o. Sabe-me escritor ��� diz ��� e na sua
opini��o a miss��o primordial dos homens de letras no
mundo de hoje �� a de ajudar a preservar a paz e a pro-
mover um melhor entendimento entre as criaturas hu-
manas de todas as ra��as. (Parodiando o menino do poe-
ma de Fernando Pessoa, ou��o o c��di e me vejo a ouvir
o c��di e j�� estou no futuro descrevendo o c��di a falar
e a mim mesmo a ouvi-lo.. . Diabo de deforma����o pro-
fissional!)
Quando o juiz termina sua breve ora����o, faz-se um
sil��ncio arranhado de pigarros, os pr��ceres mexem-se nas
suas cadeiras, que rangem. Sinto que se espera a minha
resposta. Digo em portugu��s algumas palavras de agra-
decimento por esta cordial recep����o, com pausas para
que Dothan as v�� traduzindo para o ��rabe. Fa��o uma
profiss��o de f�� pacifista e louvo a harmonia em que ��ra-
bes e judeus vivem nesta cidade. Novo sil��ncio. O juiz
bate palmas duas vezes e eis que entra em cena um
homem de meia-idade que, pela corpul��ncia e pelo brusco
124
E R I C O V E R �� S S I M O
aparecimento, me lembra o g��nio da l��mpada de Aladim.
Ser�� ��rabe? Turco? Druso? Tem espessos bigodes grisa-
lhos e eri��ados, curiosas cal��as abombachadas e arran-
jadas �� maneira de cueiro de beb��, e um jaleco cor de
vinho com bordados dourados. De uma de suas orelhas
pende um pequeno aro de metal. Traz nas m��os uma
bandeja com x��caras de caf�� turco, isto ��, negr��ssimo,
com um dedo de borra e excessivamente doce. Servimo-
nos. Surpresa: o caf�� �� gostoso.
O c��di ergue-se, despede-se de n��s e entrega-nos aos
cuidados dos outros pr��ceres, que nos levam a visitar
a mesquita, que tem o nome do Pax�� Ahmed Jezzar, o
governador otomano do Acre que a mandou construir.
Imagino-o um santo, mas Dothan me cochicha que o ho-
mem era conhecido como Ahmed o Carniceiro. Um de
seus sonhos ��� dos menos perigosos, afinal de contas ���
era o de transformar a sua Akka numa esp��cie de pe-
quena Constantinopla. Para construir as arcadas desta
mesquita mandou trazer para c��, em fins do s��culo XVIII,
as colunas de m��rmore de Cesar��ia. O que antes chamei
de claustro, pedindo emprestada a palavra �� arquitetura
dos conventos crist��os, �� este amplo p��tio orlado de ar-
cadas em tr��s de seus lados, pavimentado de lajes, e onde
se v��em ��rvores, arbustos, flores, rel��gios de sol e uma
fonte.
A mesquita propriamente dita fecha o quarto lado
deste quadr��ngulo, que lembra um recolhido jardim, ago-
ra de repente cheio da algazarra de meninas e meninos
��rabes que saem da escola mu��ulmana ��� crian��as mo-
renas, de olhos gra��dos, negros e lustrosos.
No momento em que estamos tirando nossos sa-
patos �� porta da mesquita, somos apresentados a um
professor ��rabe, homem baixo, de pele alva, com um
bigode bem aparado, vestido �� maneira ocidental e exces-
I S R A E L E M A B R I L
125
sivamente perfumado. Gentil��ssimo. Oferece-se para nos
mostrar o santu��rio. Para principiar, afirma-nos que este
�� o maior templo isl��mico de Israel. Pergunto-lhe, meio
�� socapa, se a comunidade ��rabe nunca teve conflitos
religiosos com as autoridades israelenses. "Nunca!" ���
assegura-me o professor. ��� "O governo de Israel at�� nos
ajuda financeiramente a manter ��ste templo, meu caro
senhor."
Estamos no sal��o das ora����es, o m��ksura, maior em
largura do que em profundidade. Do teto abobadado, na
ponta de longos cabos, pendem candelabros com l��mpa-
das de azeite. Na parede oposta �� da entrada do templo
vemos uma esp��cie de nicho. "�� o mihrab" ��� informa
o nosso inesperado guia. ��� "Est�� colocado na dire����o
de Meca." Aprendemos que aquela esp��cie de p��lpito, ali
�� direita, com a coberta em forma de pir��mide, �� o
mimbar. �� esquerda do mimbar, apoiada em colunas e
arcos, ergue-se uma plataforma, o dikka, da qual se l��em
as ora����es e os servi��os. O soalho do maksura est�� co-
berto de grandes tapetes em tons de vermelho e p��rpura.
Algo de embara��oso come��a a acontecer. Temos
pressa, mas o professor n��o tem. Fala um ingl��s fluente,
repetindo interrogativamente no fim de cada senten��a a
palavra yes. Perde-se em minuciosas e intermin��veis des-
cri����es da arquitetura e do ritual mu��ulmanos, enquanto
Dothan de instante a instante lan��a um olhar mal-dis-
far��ado para seu rel��gio-pulseira, e os dedos frios da
fome come��am a tocar uma leve sonatina no piano do
meu est��mago. O erudito professor agora nos explica
algo sobre os candelabros e depois sobre o sentido sim-
b��lico das pinturas das paredes, yes? Por fim consegui-
mos sair da mesquita, yes?, meu rel��gio me diz que ��
meio-dia e o sol, alto no c��u, confirma: Yes! Yes!
Rompemos num marche-marche, sempre guiados
126
E R I C O V E R �� S S I M O
pelo professor, rumo dum museu onde outrora foi uma
casa de banhos (turcos, naturalmente) e onde encontra-
mos objetos de cer��mica da Idade M��dia intatos ou em
fragmentos, tudo de grande valor hist��rico, como nosso
obsequioso guia nos assegura, yes?, e n��s acreditamos,
yes, sem a menor d��vida. Mas venham ver estas figuras
que mostram ��rabes e drusos com seus trajes t��picos e
alguns de seus objetos de uso dom��stico! Dothan diz algo
em ��rabe ao professor, que nos quer mostrar agora a todo
o transe o que na sua opini��o �� o mais importante mo-
numento dos tempos dos cruzados: a cripta de S��o Jo��o
Batista. Quando, por ocasi��o da terceira cruzada, Acre
foi retomada por Felipe II da Fran��a e Ricardo I da In-
glaterra, a cidade ficou entregue aos cavaleiros Templ��-
rios de S��o Jo��o, yes?, motivo pelo qual passou a ser
conhecida no mundo crist��o como S��o Jo��o de Acre. Yes!
Metemo-nos em passagens subterr��neas, galerias de
pedra, abobadadas e frias, e finalmente surgimos de novo
�� quente luz do dia. Protejo a cabe��a com o meu chap��u
de kibbutznik ��� do qual me orgulho e minha mulher
muito se ri ��� despedimo-nos de nosso prestativo pro-
fessor e enveredamos por uma rua ao longo da qual, dum
lado e outro, gritam pela nossa aten����o tendas e oficinas
de artes��os que trabalham em metal, e nas quais se ali-
nham ou amontoam artefatos de ferro batido, cobre e
lat��o. Imagino v��rios desses sedutores objetos postos em
sossego em algum canto de nossa casa, no Brasil, mas
tenho de dizer-lhes um adeus quase nost��lgico, pois tempos
fugit como afirmava o meu velho professor de latim, e
temos de cumprir todo um programa de visitas antes que
o sol desapare��a.. .
Entramos no autom��vel, onde nos espera a paci��ncia
simp��tica de Jaime. "Vamos almo��ar em Haifa" ��� diz
Dothan. Viva!
I S R A E L E M A B R I L
127
HAIFA
A viagem, feita ao longo duma ba��a em forma de
ferradura, de ��guas dum vivo azul, leva menos de meia
hora. Mal deixamos Acre e j�� avistamos Haifa, a bela
cidade mediterr��nea, solidamente assentada nas encostas
do Monte Carmelo. Como j�� �� quase uma hora da tarde,
resolvemos procurar imediatamente um restaurante. En-
tramos no primeiro cujo nome acena para a nossa ima-
gina����o: A Gazela. Fica a duas quadras do cais.
Minha mulher e eu nos atiramos com insopit��vel
entusiasmo ao p��o ��rabe ��� levedado! ��� a pita, que tem
a forma duma boina tostada e nos sabe muito bem ao
paladar. O restaurante onde estamos se parece com de-
zenas de outros que temos encontrado pelo mundo. Podia
estar tanto em Toulouse, como em Buenos Aires, Patras,
��vora ou Bel��m do Par��. Refiro-me �� sua decora����o inca-
racter��stica, ��s mesas com tampo de f��rmica, ao a��uca-
reiro de pl��stico e aos guardanapos de papel. A comida
��� churrasquinhos ��rabes e verduras ��� �� bastante acei-
t��vel.
A um homem de "cora����o remendado" como eu os
m��dicos proibem o exerc��cio f��sico logo ap��s as refei����es.
Assim, resigno-me a ver a cidade de dentro do carro, que
nos leva por estas ruas ricamente arborizadas. �� primeira
vista, por causa do monte, da ba��a e de sua vaga con-
figura����o de anfiteatro, Haifa nos faz pensar numa
G��nova com sotaque ligeiramente levantino e acentuada-
mente brit��nico. H�� sessenta anos Theodor Herzl, o pai
do sionismo, previu um grande futuro para esta comu-
nidade portu��ria, e n��o se enganou.
Haifa deve aos ingleses o seu excelente, moderno
porto, dos mais ativos de todo o Mediterr��neo, e que
128
E R I C O V E R �� S S I M O
pode dar conta de mais de tr��s milh��es de toneladas de
mercadorias anualmente. �� por aqui que os israelenses
exportam para v��rios pa��ses do mundo o grosso de suas
safras de frutas c��tricas.
Haifa, repito, �� acentuadamente brit��nica. Para co-
me��ar, mant��m-se impecavelmente limpa, e o m��rito des-
sa limpeza cabe hoje em dia ao seu prefeito e �� popula����o
israelense. �� tamb��m uma cidade silenciosa, apesar de
sua atividade industrial, comercial e social, pois aos que
dirigem autom��veis as autoridades municipais pro��bem
o uso das buzinas.
Haifa n��o tem passado b��b��co. Com mais de duzen-
tos mil habitantes, �� a segunda cidade de Israel, em po-
pula����o. J�� estou inclinado a dizer que, topograficamente
pelo menos, �� a mais bela, e se me contenho �� porque
ainda n��o vi Jerusal��m. Existem nos seus arredores gran-
des refinarias de petr��leo, f��bricas de cimento, tecidos,
vidro, oficinas de montagem de autom��veis e ind��strias
de alimentos. N��o faz muito o governo de Israel terminou
a constru����o dum vasto bairro residencial, com confor-
t��veis edif��cios de apartamentos de cinco andares, e que
se estende ao longo da ba��a, a noroeste da cidade antiga.
Suas ruas s��o orladas de oleandros rosados e pinheiros-
de-jerusal��m. Nos seus jardins a relva �� regada com o
mesmo cuidado e abund��ncia d��gua que vemos nas me-
tr��poles da Europa.
Pode-se dizer que Haifa �� uma cidade de patamares.
No primeiro patamar (simplifiquemos, pois evidentemen-
te a coisa toda �� mais complicada) fica a cidade antiga,
que se parece com todas as cidades mar��timas do mundo
��� a floresta de guindastes, mastros, cascos, quilhas e
bandeiras ao longo do cais, as ruas movimentadas, com
bazares, caf��s, velhas fachadas batidas de vento, sol e
tempo e que parecem contar hist��rias de n��ufragos, pi-
I S R A E L E M A B R I L
129
ratas, her��is, bandidos, imigrantes, aventureiros. .. Cada
uma das tavernas desta zona do porto, com sua rica
variedade de tipos humanos vindos de todos os quadran-
tes da Terra, �� uma babel em miniatura, onde se fala
��rabe, hebraico, turco, i��diche, franc��s, ingl��s, ladino, ale-
m��o, italiano, g r e g o . . . sei l�� mais qu��!
Se subirmos ao segundo patamar, a meia encosta do
Monte Carmelo, encontraremos j�� ruas de com��rcio mais
fino, melhores edif��cios e as resid��ncias do que imagino
ser uma s����da classe m��dia. Tenho um amigo que cos-
tuma dizer que existem no mundo dois tipos de gente
que, melhor que ningu��m, sabe escolher o local para
edificar suas casas ou templos: padre e ingl��s. Os in-
gleses que aqui se estabeleceram durante o Mandato trou-
xeram consigo sua tradi����o de bem morar e bem viver,
e sua afei����o por parques e jardins.
Nosso carro percorre lentamente estas ruas, muitas
delas serpentinas, passando por belas e repousadas man-
s��es situadas em meio de bosques. Se l�� em baixo no pri-
meiro patamar h�� uma atividade fren��tica de pessoas,
guindastes, barcos, autom��veis e caminh��es, aqui em cima
prevalece um ar de domingo, de feriado ou, se preferirem,
de Sab��.
Subimos ao ��ltimo patamar, no topo do monte, onde
vemos os alicerces da nova universidade, para cujo pro-
jeto colaborou o nosso admir��vel Oscar Niemeyer. Desta
altura a vista �� soberba: abrangemos com o olhar toda
a ba��a com suas ��guas pl��cidas, vemos as encostas for-
radas de verdura, o vermelho pardacento dos telhados,
as pedras trigueiras de muros e fachadas. Longe, para
as bandas do norte, como uma esp��cie de miragem, as
casas cor de areia de Acre ��� e por sobre tudo isso a
luz do sol, a brisa de abril e uma bendita ilus��o de que
130
E R I C O V E R �� S S I M O
o mundo est�� em paz e de que nenhum perigo amea��a
este pequeno e industrioso pa��s.
E aquele edif��cio de grande c��pula dourada no meio
da floresta de ciprestes? �� o templo central da seita reli-
giosa de Bahai, cercado pelo seu jardim persa. Uma esca-
daria de centenas de degraus, que come��a na zona onde
ficava a antiga col��nia alem��, sobe numa sucess��o de pa-
tamares at�� �� porta do templo. Lembro-me de que, faz exa-
tamente vinte e cinco anos, quando visitei os Estados Uni-
dos pela primeira vez, vi em Chicago um santu��rio Bahai
parecido com este, apenas num cen��rio menos imponente.
Recordo as palavras de um dos membros dessa seita, que
me resumiu a sua f��: Deus se faz conhecer aos homens
de diversas maneiras, atrav��s de seres privilegiados, os
profetas, que aparecem em diversas etapas do progresso
humano. Os membros da f�� Bahai aceitam tanto Mois��s
como Cristo, Abra��o, Maom��, Davi... Cremos na uni-
dade de todas as religi��es da terra e na necessidade de
descobrir uma linguagem internacional para um melhor
entendimento entre os homens, principalmente no plano
espiritual. Acreditamos tamb��m na paz, na educa����o uni-
versal e na igualdade entre homens e mulheres. Os adep-
tos de nossa f�� devem levar uma vida simples e manter
o esp��rito do Bom Samaritano .
Visitamos rapidamente um mosteiro constru��do pela
Ordem dos Carmelitas, no lugar mesmo onde se sup��e
tenha sido a caverna onde viveu o profeta Elias. O padre
que nos recebe �� um homem ainda jovem, moreno e ro-
busto. Descubro em seu semblante tra��os sem��ticos. Per-
gunto qual �� o seu nome de fam��lia. Ele sorri e diz:
"Bialek. O senhor a c e r t o u . . . Sou filho de judeus. Meus
pais s��o da Africa do Sul". Sai a mostrar-nos as depen-
d��ncias do museu. Nosso frade recorda que Edith Stein,
a freira carmelita que tanto se distinguiu por seus escri-
I S R A E L E M A B R I L
131
tos teol��gicos e por sua piedade, foi arrebatada pelos na-
zistas a um convento da Holanda, onde se refugiara, e
exterminada em Auschwitz pelo "crime" de ser judia.
Vamos ver mais tarde a exposi����o internacional de
flores, a que concorrem v��rios pa��ses da Europa, da Am��-
rica, da ��frica e da ��sia. Encontramos esp��cimes de
quase todos os climas da terra, alguns duma beleza esqui-
sitamente delicada e ��s vezes at�� improv��vel. Alemanha
Ocidental mandou lindas rosas. Se eu fosse religioso, faria
agora mesmo uma ora����o, evocando o esp��rito de Edith
Stein e pedindo a Deus que daqui por diante, pelos s��culos
dos s��culos, Israel e a Alemanha n��o cessem de trocar
rosas entre si. (Uma pitada de otimismo ��� mesmo que
pare��a cretino ��� nunca fez mal a ningu��m.)
O auto nos leva por entre bosques de corticeiras e pi-
nheiros, monte abaixo e, depois de percorrer pouco mais
de dez quil��metros, chegamos ao Instituto Tecnol��gico de
Israel, conhecido como Technion. Os muitos edif��cios de
seu campus est��o rodeados de bosques de pinheiros. Este
�� um dos mais antigos estabelecimentos de ensino supe-
rior do pa��s. Com uma matr��cula de quase tr��s mil estu-
dantes, oferece cursos de engenharia civil, mec��nica, ele-
tricidade, matem��tica, arquitetura, qu��mica, aeron��utica,
organiza����o industrial, metalurgia, minas, agricultura e
estudos gerais. Em sua maioria os engenheiros que hoje
trabalham em Israel diplomaram-se no Technion de Haif a,
que nestes ��ltimos anos criou um departamento de ci-
��ncias nucleares. Aqui se encontram, gra��as a bolsas de
estudo, mais de trinta jovens, naturais de doze pa��ses
afro-asi��ticos.
Deixamos Haifa ��s cinco da tarde. Levo a frustra-
����o de n��o ter conhecido melhor esta cidade. Gostaria
de caminhar sem pressa por suas ruas e ��� j�� que tenho
uma fascina����o m��rbida por escadas ��� subir um dia,
132
E R I C O V E R �� S S I M O
�� hora do poente, os degraus de m��rmore que, por entre
solenes ciprestes, me levariam at�� �� porta do templo
B a b a i . . . e talvez �� salva����o espiritual.
Mas aqui estamos de novo no autom��vel, deixando
para tr��s, mal vista e cheia de secretas promessas, Haifa,
banhada ��� como diria um poeta parnasiano ��� na luz
de ouro e rosa do entardecer.
OS DRUSOS
Conheci em Tel Aviv, em r��pido encontro no Ins-
tituto Afro-asi��tico, um druso com suas vestes caracter��s-
ticas ��� na cabe��a um pano branco, uma variante do
Kheffiya ��rabe, no resto uma esp��cie de par��dia dum
trajo de ga��cho platino ��� um tipo musculoso, de pele
rubicunda, olhos dum azul desbotado, cabelos e bigodes
ruivos, parecid��ssimo com o Gen. Gamelin, que conheci
em mil e novecentos e vinte n��o me lembro quantos,
quando ele passou pela esta����o ferrovi��ria de minha ci-
dade natal, ao tempo em que chefiava no Brasil a miss��o
militar francesa.
Em nosso caminho rumo do sul passamos de largo
por algumas aldeias habitadas exclusivamente pelos dru-
sos, que formam uma esp��cie de arquip��lago ��tnico dentro
de Israel. (H�� em todo o pa��s uns trinta mil deles.) Ori-
gin��rios da S��ria e do L��bano, os drusos pertencem a
uma seita dissidente do Islamismo e cultivam uma reli-
gi��o um tanto obscura. Afirmam eles que Haki, o sexto
califa fatmita que no s��culo XI se apresentou ao seu povo
como uma divindade, era realmente Deus. Ao tempo em
que governavam a Palestina, os turcos encontraram forte
oposi����o da parte dos drusos, que n��o se deixavam go-
vernar. No s��culo passado voltaram esses drusos a sua
I S R A E L E M A B R I L
133
ira sobre os crist��os, principalmente os maronitas, orga-
nizando contra estes os seus pogromzinhos peri��dicos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, ajudaram como com-
batentes as for��as brit��nicas e as da Fran��a livre contra
os representantes de Vichy, que dominavam o L��bano.
Tudo parece indicar que os drusos de hoje s��o ho-
mens pacatos, ainda extremamente individualistas, mas
que na Palestina vivem na melhor harmonia com os israe-
lenses, ao lado dos quais lutaram contra os ��rabes em
1956. Dothan me assegura que s��o formid��veis soldados,
tidos como os mais fa��anhudos da ��sia. Nada disso, po-
r��m, leio nas caras de express��o pl��cida desses homens
que cultivam a sua terra e vivem em paz a sua vida.
Excelentes cidad��os, t��m um representante pr��prio no
Parlamento israelense.
6
OS JUDEUS E O JUDAISMO
UMA TOSSE E UM TEMA
Chegamos a Tel Aviv antes do anoitecer e tornamos
a hospedar-nos no Hotel Dan. Enquanto fazemos uma re-
fei����o leve no quarto, minha companheira e eu pomos
em confronto nossas impress��es de pessoas e lugares vistos
durante o dia.
Voltando do quarto de banho ela me torna a falar
maravilhada na abund��ncia e na limpidez da ��gua que
jorra das torneiras e do chuveiro. Conto-lhe uma piada
israelita: "Sabes quem foi o primeiro hidrologista do povo
judeu? Mois��s. Durante o ��xodo, vendo que seus segui-
dores morriam de sede no deserto, o Profeta bateu com
sua vara numa rocha e fez a ��gua jorrar.. .
M. deita-se na sua cama, p��e-se a anotar numa ca-
derneta as andan��as do dia, mas em breve cai no sono,
deixando-me acordado na m�� companhia da tosse e dum
tema. N��o preciso dizer o que �� uma tosse. Quanto ao
tema, �� este: Que �� um judeu!
136
E R I C O V E R �� S S I M O
Levo a pergunta para o quarto de banho, penso nela
enquanto me dispo e planto debaixo do chuveiro. Que ��
um judeu? Ensab��o o corpo com uma f��ria prof��tica.
Que �� um judeu? Quem souber levante a m��o. "Eu sei,
professoral" Havia na nossa classe no curso prim��rio
um "russinho" que sabia tudo. Hoje, sessent��o e talvez
obeso, ser�� que sabe o que �� ser um membro de sua ra��a?
Eu disse ra��a? A mem��ria me manda num rel��mpago
uma imagem de 1944: Miss Kinspel, judia-americana,
minha aluna no Mills College, na Calif��rnia. Ficava in-
dignada quando eu me referia �� sua "ra��a". "Mas n��s
somos uma seita religiosa e n��o uma ra��a!" ��� protes-
tava. Muito bem. S�� uma seita religiosa? Nada mais?
Outro estudante meu, tamb��m de origem hebraica, cos-
tumava dizer que os judeus s��o um folk, isto ��, uma
gente.
A ��gua do chuveiro cai-me no corpo, esp��cie de sub-
missa chuva individual. �� um dia de inverno em Porto
Alegre, h�� muito tempo. O poeta M��rio Quintana est�� a
meu lado, olhando vago a gelada garoa cair sobre os
telhados de nossa cidade. Estamos ambos deprimidos por-
que as tropas nazistas acabam de entrar em Paris. O
poeta tenta consolar-se e consolar-me, dizendo: "Nem os
alem��es nem ningu��m poder�� jamais conquistar Paris,
porque Paris n��o �� uma cidade, mas um estado de es-
p��rito". Pergunto-me agora se ser judeu n��o ser�� tamb��m
um estado de esp��rito...
Enxugo o corpo com uma toalha felpuda, com um
m��todo bem maior que o de meus pensamentos. Lembro-
me de ter lido um artigo em que Erich Kahler sugere que
os judeus s��o "uma tribo transnacional" nascida duma
religi��o, que constitui o seu cerne primordial. Bom, no
princ��pio o povo judeu era formado por um conjunto de
tribos. . . Kahler esclarece que aplica a essa "tribo" o
I S R A E L E M A B R I L
137
adjetivo "transnacional" por causa de seu envolvimento
hist��rico e de sua preocupa����o com os destinos da huma-
nidade em geral. Em suma, a subst��ncia da particulari-
dade dessa sociedade humana reside em sua universali-
dade.
Enfio o pijama, volto para o quarto de dormir e me
deito. A pergunta deita-se comigo. Apago a luz, cruzo os
bra��os, sinto que n��o me vai ser f��cil armar uma boa
arapuca para apanhar o arisco p��ssaro do sono. Sinto
que estou nesta cama com todo o povo hebreu e seus
problemas, e isso �� uma perturbadora e confusa respon-
sabilidade.
Tribo transnacional? Estou certo de que os antro-
p��logos e os soci��logos refutar��o a tese de Kahler, por
falta de base cient��fica. Seja. M a s . . . que �� um judeu?
Esta visita a Israel j�� contribuiu, entre muitas outras
coisas, para convencer-me de que n��o existe um tipo so-
m��tico uniforme de judeu. Durante a ceia pascal no
kibbutz de Gan Chmuel, tive uma prova viva disso.
Que ter��o os judeus em comum? Para principiar, a
religi��o. Depois, o destino hist��rico. Tudo isso �� ��bvio.
Vejamos o resto. Por que vivem nesse "espl��ndido iso-
lamento"?
De olhos fechados busco o sono, mas em v��o. Meus
companheiros de cama falam demais, n��o me deixam
dormir.
Que caracter��sticas ser��o mais encontradi��as no ho-
mem de origem hebraica? Penso em alguns dos lugares-
comuns que se dizem e escrevem sobre ele. Um amigo
meu, brasileiro e extremamente reacion��rio, est�� conven-
cido de que, com raras exce����es, os judeus s��o todos co-
munistas, empenhados numa sinistra conspira����o para
solapar e derribar o edif��cio do capitalismo. Para outros,
entretanto, o judeu �� o s��mbolo mesmo do capitalismo
138
E R I C O V E R �� S S I M O
explorador e desalmado. N��o temos ent��o raz��es de so-
bra para malquerer uma ra��a que produz por um lado Karl
Marx e Leon Trotsky e por outro a fam��lia Rothschild?
Em que ficamos, ent��o? N��o ficamos. Com os judeus
a gente nunca pode parar, est�� sempre a andar, em-
purrado de surpresa em surpresa, de perplexidade em per-
plexidade.
Examinemos o papel do povo hebreu no folclore
crist��o. "Assassinos de Cristo!" ��� brada num remoto
serm��o um padre de minha prov��ncia e inf��ncia. Os
judeus crucificaram o Nazareno, e esta nos seria uma
raz��o suficiente para odi��-los, mesmo que n��o existissem
outras. O que, por��m, entre n��s n��o parece levar-se em
conta �� o fato de que Jesus Cristo era tamb��m judeu,
escolheu seus primeiros ap��stolos entre os judeus e teve
disc��pulos e adeptos judeus. E n��o foi Ele julgado e con-
denado �� morte ao tempo em que romanos pag��os go-
vernavam a Palestina? E �� bom n��o esquecer que judeu
era tamb��m Paulo de Tarso, que levou as id��ias de Cristo
para o Ocidente, evitando assim que o cristianismo per-
manecesse como uma obscura seita dissidente do juda��s-
mo. Quando menino ouvi hist��rias terr��veis sobre os "he-
reges que repudiaram e sacrificaram o Messias". Um dos
casos passou-se na Idade M��dia. Numa cidade da Ingla-
terra desapareceu um dia um menino. Espalhou-se ent��o
a not��cia de que os judeus o haviam assassinado para
beber seu sangue num ritual religioso. ("Voc��s sabiam
que durante a ceia da P��scoa os judeus comem bolinhos
coloridos com sangue de crist��o?") Isso foi motivo para
violentas manifesta����es de anti-semitismo, n��o s�� naquela
cidade como no resto do pa��s. No entanto, quando mais
tarde foi encontrado o cad��ver do rapaz desaparecido,
verificou-se que ele tinha morrido de causas naturais. ��
muito conhecida a lenda, segundo a qual um judeu, com
I S R A E L E M A B R I L
139
a cumplicidade de uma crian��a crist�� que ele corrompeu,
conseguiu roubar duma igreja uma h��stia para fur��-la
com um instrumento cortante e fazer escorrer dela o san-
gue de Cristo, repetindo assim o ato da crucifix��o.
Parece-me que a sina de todas as sociedades e ins-
titui����es herm��ticas �� a de provocar suspeitas a seu res-
peito, fornecendo motivos para fantasias descabeladas e
sempre de car��ter sinistro. Tomemos, por exemplo, a Ma-
��onaria. Lembro-me de outro vig��rio, do interior de meu
Estado natal, que de seu p��lpito atacava os "pedreiros-
livres", afirmando que em suas sess��es secretas esses ini-
migos implac��veis da Igreja se entregavam ��s mais ne-
fastas orgias de sangue, e que para conseguir o cobi��ado
Grau 33, um ma��om tinha de primeiro matar um certo
n��mero de pessoas.
Esse anti-semitismo cat��lico tem ra��zes em escritos
de v��rios doutores da Igreja. Santo Agostinho escreveu
��� e nisso S��o Tom��s de Aquino estava de acordo com
ele ��� que Deus p��s a marca de Caim nos judeus e reco-
mendava a seus pais que n��o os assassinassem, pois que
deviam ser preservados "como testemunhas de sua culpa,
e de nossa verdade", servos para sempre dos povos cris-
t��os. (O Concilio Vaticano II reconheceu que se bem que
os principais dos judeus, com os seus seguidores, insisti-
ram na morte de Cristo, aquilo com tudo que se perpetrou
na sua Paix��o n��o pode indistintamente ser imputado a
todos os judeus que ent��o viviam, nem aos de hoje. Em-
bora a igreja seja o novo Povo de Deus, os judeus, no
entanto, n��o devem ser apresentados como condenados
por Deus, nem amaldi��oados como se isso decorresse das
Sagradas Escrituras .)
Continuo a ouvir vozes da minha inf��ncia e adoles-
c��ncia. O judeu merece nosso desprezo pela sua mesqui-
nhez, pelo seu amor ao dinheiro e pelas infernais arti-
140
E R I C O V E R �� S S I M O
manhas que usa para vender e ganhar mais e mais. Ora.
tudo isso que se diz do judeu no mundo ocidental se diz
do chin��s na ��rea asi��tica. Quanto �� esperteza para ne-
g��cios, ouvi na Gr��cia que �� preciso dois judeus para en-
ganar um grego e tr��s gregos para lograr um a r m �� n i o . . .
Deixando de lado o dom��nio do folclore e da mito-
logia ��� o que parece fora de d��vida �� que o povo hebreu
possui aquilo a que Miguel de Unamuno chamava " o sen-
timento tr��gico da vida". N��o ��, pois, de admirar que essa
gente tenha a voca����o e at�� mesmo o "h��bito" da tra-
g��dia. As durezas do ex��lio, o pavor dos massacres, dos
pogroms, das expuls��es ��� parecem estar no seu incons-
ciente coletivo. Nenhuma dor no mundo �� mais profunda,
dilaceradora e desesperada que a dos israelitas. N��o existe
vel��rio mais tr��gico do que o do judeu, com suas mulhe-
res a chorar, a balan��ar o busto para frente e para tr��s,
a soltar exclama����es de dor, de mistura com interpela-
����es ao seu Deus. (Nisso se parecem com os povos do
sul da It��lia, da Espanha e da Gr��cia ��� ah, aquelas mu-
lheres eternamente vestidas de preto! ��� e eu aqui j��
estou a me perguntar onde est�� ent��o a decantada alegria
pag�� do Mediterr��neo, e a me responder que as generali-
za����es, meu caro insone, s��o sempre perigosas.) ��s vezes
uma conversa entre judeus ��� refiro-me principalmente
�� gente simples ��� parece um torneio apocal��ptico de des-
gra��as em que leva a palma aquele ou aquela que provar
(dific��limo!) que tem em sua vida e em sua fam��lia o
maior n��mero de doen��as incur��veis e de dolorosos pro-
blemas insol��veis.
��s vezes somos levados a perguntar se n��o haver��
um certo sado-masoquismo nessa compuls��o para verba-
lizar desgra��as com tanta insist��ncia, veem��ncia e mi-
n��cias.
Mas o curioso �� que, apesar desse conv��vio t��o ��n-
I S R A E L E M A B R I L
141
timo com a trag��dia, n��o conhe��o povo com mais pronun-
ciada veia c��mica do que o judeu. Creio que foram eles
os criadores do humor negro. Chegam ao ponto de inven-
tar anedotas em torno das suas pr��prias desgra��as!
O que agora passa por humor tipicamente americano
��� e que para meu gosto �� o melhor do mundo ��� deve-se
em grande parte aos judeus. Observei isso desde a minha
primeira visita aos Estados Unidos, em 1941. �� que os
mais importantes caricaturistas e fazedores de gags (pia-
das) que naquele pa��s trabalham para o cinema, o r��dio,
o teatro e, mais recentemente, para a televis��o, s��o em
sua maioria de origem hebraica. O povo americano absor-
veu esse tipo de humor (tocado tantas vezes do nonsense,
isto ��, do contra-senso, do absurdo, o que em parte �� uma
heran��a brit��nica) ��� e hoje n��o s�� o aceita como tamb��m
o pratica como uma express��o nacional.
O POVO VERBAL
Alfred Kazin, um dos cr��ticos liter��rios mais l��cidos
dos Estados Unidos, falando num ensaio sobre os judeus,
dos quais descende, declarou que eles s��o o povo mais
verbal da Hist��ria.
Verbal? Claro. O judeu �� em geral livresco e tem a
paix��o da discuss��o, da pol��mica, sendo dotado duma veia
filos��fica ou, melhor, filosofante, que se revela at�� nos
homens de pouca ou nenhuma cultura. Muitas vezes te-
nho seguido, fascinado, no Brasil e nos Estados Unidos,
em caf��s ou pra��as p��blicas, discuss��es entre dois ou
mais judeus, freq��entemente pessoas de meia-idade ou
velhas. Grandes citadores do Talmude, do Tor�� e do
Velho Testamento, bem como de autores que de certo
modo encarnam a experi��ncia, a sabedoria e a filosofia
142
E R I C O V E R �� S S I M O
da vida adquiridas pelos israelitas nos ��speros caminhos
da Di��spora ��� esses velhotes engalfinham-se em inter-
min��veis e emaranhados duelos verbais. Descobrem pro-
fundezas oce��nicas nos mais rasos dos riachos. Seu prazer
nesse torneio �� duplo. Apaixonados da Verdade, cada qual
quer sempre ser o dono dela: voluptuosos do verbo, com-
prazem-se no puro jogo de palavras com que exp��em suas
id��ias. E ��� que diabo! ��� sempre �� bom a gente dar um
espet��culo de sabedoria, e uma das coisas mais dif��ceis do
mundo para um sabich��o �� pronunciar estas simples pala-
vras ��� "N��o sei". Corre entre os pr��prios judeus um ditado
segundo o qual quando dois "patr��cios" discutem, h�� sempre
tr��s pontos de vista diferentes. Conta-se que, divisando um
vulto solit��rio numa pequena ilha deserta em alto mar, o
capit��o dum transatl��ntico mandou um barco com dois
marinheiros para salvar o infeliz. Chegados �� ilha, os ma-
rujos verificaram logo que o n��ufrago era um judeu, e que
havia constru��do com folhas de palmeira e troncos de ��rvo-
res tr��s cabanas. Para que tr��s habita����es se o homem es-
tava sozinho? ��� quiseram saber. E o n��ufrago, j�� pronto
para uma pol��mica, explicou: "A casa do centro �� a minha
resid��ncia. A da esquerda, uma sinagoga ortodoxa. A da
direita, uma sinagoga reformada. Quando eu me desen-
tendo na primeira passo para a segunda, e vice-versa".
Conhe��o uma anedota que ilustra muito bem o
esp��rito n��o s�� desconfiado como tamb��m sinuoso do
judeu, para quem as coisas nunca s��o t��o simples como
parecem e as palavras n��o devem ser nunca tomadas ao
p�� da letra. Um dia Samuel encontra Nathan na esta����o
ferrovi��ria de Tel Aviv e lhe pergunta: "Para onde vais?"
O outro, j�� dentro do trem, responde: "Para Jerusal��m".
O comboio p��e-se em movimento e Samuel fica na pla-
taforma a refletir:
"Esse Nathan �� um mentiroso. Disse que vai para
I S R A E L E M A B R I L
143
Jerusal��m para eu pensar que ele vai para Sefad. Mas eu
n��o me deixo enganar assim t��o facilmente. Ele vai mes-
mo para Jerusal��m".
Deixando o mundo da anedota, mas continuando no
da palavra, poder��amos dizer que durante o per��odo da
Dispers��o o povo hebreu construiu no plano do espirito
uma esp��cie de p��tria verbal com bases em seus escritos
sagrados. Alguns juda��stas concordam em que nestes ��l-
timos quatro mil anos o povo hebreu se tem mantido por
assim dizer em comunica����o direta com Jeov��. Se lermos
com aten����o o Velho Testamento encontraremos trechos
em que o Povo Escolhido, o filho dileto, fala de igual
para igual com o Pai, queixando-se dele e reivindicando
direitos. Mais de uma vez a paix��o verbal dos judeus
levou alguns de seus fil��sofos e te��logos a afastar-se da
estrada real do tal mudismo. Uma dessas inst��ncias foi o
per��odo do dom��nio grego da Palestina em que muitos
rabinos se deixaram fascinar por id��ias helenistas. Na
era isl��mica alguns doutores hebreus mantiveram com
o Karaismo um namoro que os desviou do Talmude. Creio
entretanto que a crise mais s��ria ocorreu durante a Idade
M��dia, quando alguns letrados de Israel se dedicaram �� ca-
bala. Esse perigoso desvio durou s��culos, como observa
Max I. Dimont em seu interessante Os Judeus, Deus e a
Hist��ria, livro que os ortodoxos do juda��smo parecem de-
testar e os cr��ticos chamados s��rios menosprezam por
causa de seu tom muitas vezes jocoso e um tanto irre-
verente. A cabala foi por largo per��odo a express��o m��s-
tica do juda��smo, nascida do desejo dum contato e duma
comunh��o mais intensos com a Divindade. Na dimens��o
filos��fica os cabalistas n��o s�� tratavam de explicar, �� reve-
lia do Talmude, a rela����o entre Deus e a Cria����o, como
tamb��m o problema do Bem e do Mal. Buscavam, em
suma, um novo caminho para a perfei����o espiritual. Ao
144
E R I C O V E R �� S S I M O
que parece, Jeov�� permitiu que seus filhos transviados
falassem �� vontade e impunemente. Feita a catarse ver-
bal, voltaram os filhos pr��digos �� Casa do Pai, que os
esperava com a vitela gorda e o anel para celebrar o re-
torno e a reconcilia����o.
Martin Buber, o not��vel fil��sofo e te��logo israelita,
concebe a f�� religiosa como um di��logo entre o homem e
Deus. Na sua opini��o Israel �� um exemplo, no plano co-
letivo e nacional, dessa "rela����o dialogal". A B��blia �� a
arca que cont��m o tesouro dessa experi��ncia pela qual
Israel ouve o chamado de Deus e tenta responder a ele.
Afirma Martin Buber que o leitmotiv da hist��ria dos
judeus �� a rela����o entre eles e Jeov��. Deus deu ao homem
liberdade de a����o (e nisso Buber pensa exatamente como
o cat��lico Jacques Maritain e o protestante Paul Tillich)
de sorte que as criaturas humanas, de acordo com o pr��-
prio arb��trio, podem tanto voltar-se para Deus como afas-
tar-se dele. E o que acontece entre o homem e Deus
constitui a Hist��ria.
O que me parece importante nesse di��logo milenar
�� que os judeus jamais desesperaram de seu Deus, a des-
peito de todas as suas querelas com Ele e com os gentios.
Creio que foi o escritor cat��lico Georges Bernanos quem
falou no "pecado contra a esperan��a". Os judeus nunca
desesperaram de seu futuro e isso os ajudou a sobreviver
como povo (ou tribo ou ra��a) e como religi��o.
E dito isto, senhoras e senhores, vou dormir.
A FEIRA LIVRE
Mas n��o consigo. Sou sacudido por um novo acesso
de tosse. E continuo a pensar. Meu c��rebro agora �� uma
pra��a p��blica na qual desembocam as avenidas, ruas e
I S R A E L E M A B R I L
145
becos da mem��ria, com o seu rico e imprevis��vel tr��nsito
de imagens, lembran��as, vozes, impress��es, viv��ncias, es-
pectros de figuras humanas, vivas e mortas, da vida cha-
mada real ��� tudo isso de mistura com os deuses e du-
endes de minha mitologia particular. E dia de feira na
pra��a. Feira livre. Vejo aqui Karl Marx e os irm��os Marx.
Albert Einstein e Danny Kaye. Davi Ben-Gurion e o Dr.
Sigmund Freud. Mare Chagall e Golda Meir. Quantos
mais? Diviso, escondido �� sombra dum muro do gueto
de Praga, o vulto esquivo de Franz Kafka. L�� vem Martin
Buber com as barbas ao vento. Vislumbro tamb��m cris-
t��os no meio desses hebreus. Reconhe��o o Prof. Arnold
Toynbee, o famoso historiador ingl��s, autor do alentado
Estudo de Hist��ria. Em meio da turba circulam pessoas
cujas faces n��o posso distinguir com clareza, pois minha
pra��a n��o �� l�� muito bem iluminada: reina nela um lusco-
fusco que se parece com o que habitualmente envolve os
problemas que pretendo discutir com essa gente. N��o
seria m�� id��ia come��ar pelo Dr. Toynbee, que n��o morre
de amores pelos judeus. (�� preciso ouvir tamb��m a opo-
si����o. )
��� Meu caro professor, muito prazer em v��-lo aqui.
N��o esperava essa h o n r a . . .
Toynbee sacode brusco a cabe��a completamente bran-
ca e, com sua voz oval, levemente hesitante e muito bri-
t��nica, balbucia:
��� N��o creio que tenhamos sido apresentados...
��� Exato. O senhor n��o me conhece. Mas eu o co-
nhe��o, n��o tanto como devia, mas c o n h e �� o . . . Estou fa-
zendo um breve inqu��rito para meu uso particular. Per-
mita que lhe formule uma pergunta: "Que s��o os judeus?"
��� Os judeus s��o uma rel��quia f��ssil da antiga civi-
liza����o sir��aca, tal como esta se apresentava antes da in-
tromiss��o dos gregos.
146
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Mas n��o lhe parece, mestre, que para f��sseis os ju-
deus s��o vivos e ativos demais?
��� Caro senhor, espere um momento e escute. Jud��,
de onde vieram os judeus, era, como as comunidades
fen��cias, aramaicas e filist��ias, um Estado paroquial da
civiliza����o sir��aca. Ora, quando as suas coirm��s perde-
ram a identidade e a condi����o estatal, como resultado de
choques fatais com seus vizinhos babil��nicos e hel��nicos,
os judeus, estimulados por esses choques, por esse "de-
safio", conseguiram criar para si mesmos um novo modo
de exist��ncia corporativa no qual lograram sobreviver ��
perda de sua terra e da condi����o de Estado, preservando
sua identidade na Di��spora, e no meio de maiorias e go-
vernos estrangeiros.
��� Sempre desconfiei que a sobreviv��ncia dos judeus
se deva �� Di��spora.
��� "Desconfiou"?
��� Bom, sei que o verbo �� indigno dum historiador.
Mas acontece que sou um estoriador, um romancista, com-
preende? Mas fa��o-lhe outra pergunta. Como foi que os
judeus preservaram sua identidade?
��� Ora, gra��as �� improvisa����o de novas institui����es
e �� especializa����o em novas atividades. Na elabora����o de
suas leis religiosas encontraram um novo cimento social.
Sobreviveram ��s desastrosas conseq����ncias econ��micas
trazidas pelo seu desenraizamento do solo de seus ances-
trais, desenvolvendo no ex��lio uma habilidade especial
no com��rcio e em outros neg��cios urbanos, j�� que n��o
podiam continuar a sua atividade pastoril, por falta de
terra pr��pria.
��� Falemos agora nas penalidades que os judeus
sofreram na Di��spora.
��� A rea����o dos judeus a essas persegui����es s��o
bem conhecidas, quero dizer, esses exilados come��aram
I S R A E L E M A B R I L
147
a revelar certas qualidades que os distinguiam dos outros
povos. Agora resta-nos descobrir se essas qualidades se
devem, como geralmente se sup��e, ao "juda��smo" dos ju-
deus, olhados como ra��a ou seita religiosa, ou se elas
foram simplesmente produzidas pelo impacto da penali-
dade, como estou inclinado a crer.
��� O mestre acha ent��o que tais penalidades cons-
titu��ram um desafio ao qual os hebreus responderam de
maneira positiva?
��� Sim. Observamos que a exclus��o tir��nica dessa
minoria do gozo da plena cidadania estimulou seus mem-
bros a prosperar e a distinguir-se nas atividades que lhes
eram permitidas. E n��s nos maravilhamos ante todos
esses tours de force nos quais essas minorias se revela-
ram como a encarna����o mesma da invencibilidade da
natureza humana. Agora quero que me entenda bem. O
��mago da trag��dia do anti-semitismo est�� no fato de que,
se por um lado a puni����o estimulou essa minoria punida
a uma rea����o her��ica, por outro conseguiu deformar a
sua natureza h u m a n a . . .
��� O senhor acha, professor?
��� Os judeus t��m sido v��timas da ilus��o de que s��o
n��o um povo escolhido, mas o Povo Escolhido. O Velho
Testamento nos mostra o exemplo hist��rico mais not��rio
de auto-idolatria dum ego ef��mero. E esse foi o erro dos
judeus. Num per��odo de sua Hist��ria, que come��ou na
inf��ncia da civiliza����o sir��aca e culminou na Era dos
Profetas, o povo de Israel e Jud�� ergueu-se muito acima
do povo sir��aco, gra��as �� sua concep����o monote��sta da
religi��o. Conscientemente e com todo o direito orgulhosos
desse tesouro espiritual, eles se deixaram trair pela ido-
latria dessa fase not��vel mas transit��ria de seu desen-
volvimento espiritual, est�� me entendendo? Claro, n��o
nego que eles eram dotados duma lucidez espiritual sem
148
E R I C O V E R �� S S I M O
par, mas depois de terem adivinhado uma verdade que
era absoluta e eterna, deixaram-se cativar por uma meia-
verdade relativa e tempor��ria. Convenceram-se de que
sua descoberta do Deus ��nico e verdadeiro tinha feito de
Israel o Povo Escolhido. E essa meia-verdade engodou-os
a cometer o erro fatal de considerar uma emin��ncia es-
piritual moment��nea, que eles haviam atingido a duras
penas, como um privil��gio a eles conferido por Deus
numa alian��a eterna. E foi por isso que os judeus rejei-
taram o tesouro ainda maior que Deus lhes ofereceu na
vinda de Jesus de Nazar��.
��� Meu caro mestre, com sua licen��a direi que n��o
acho o seu racioc��nio completamente v��lido. Primeiro, por-
que n��o aceito a id��ia de que os judeus sejam o Povo
Eleito, mesmo porque n��o tenho nenhuma certeza quanto
�� exist��ncia do Eleitor. Segundo, porque podemos criticar
os crist��os por terem aceito o Messias quase com os mes-
mos argumentos com que o meu caro professor criticou os
judeus, por se imaginarem os escolhidos de Deus. Cren��a
por cren��a, veja b e m . . .
Na cabe��a dum homem tudo �� poss��vel acontecer:
todos os encontros, todos os debates, todas as aud��cias e
irrever��ncias.
ANTI-SEMITISMO
Ah! Esta tosse 1 Esta pra��a! Esta gente! Estas vozes!
Avisto uma figura monumental: o Dr. Oswald Spen-
gler, sentado a uma mesa, bebendo cerveja. Com sua gran-
de cabe��a raspada de huno, ele me inspira um certo temor
s�� compar��vel ao que me produziu o seu compacto volu-
me de A Decad��ncia do Ocidente. Enfim, como a "pra��a"
�� minha, ouso perguntar-lhe, n��o sei bem em que l��ngua:
I S R A E L E M A B R I L
149
Herr professor, que me diz do povo judeu? . O fil��sofo
nem se d�� o trabalho de me olhar. Golpeia o ar com a
palma da m��o e faz: "Ach!". Nada mais.
Est�� bem. Vou falar com o Dr. Sigmund Freud, com
quem me sinto mais �� vontade. O Velho est�� sentado a
uma mesinha, num caf�� vienense, fumando o seu cha-
ruto. Convida-me a sentar a seu lado. Pe��o-lhe que me
diga algo sobre os judeus, e o pai da psican��lise come��a
a expor a tese que desenvolveu em Mois��s e o Monote��smo.
Quando se cala para reacender o charuto, aproveito a
pausa para dizer: "O senhor me desculpe. Conhe��o a tese.
�� fascinante mas n��o vai me ajudar muito agora. Quero
que o meu estimado mestre des��a um pouco dessas
alturas metaf��sicas, se me permite o termo, e me fale
um pouco das raz��es do anti-semitismo no mundo oci-
dental".
O Velho me fita com seus claros olhos agudos e diz:
��� Um dos motivos mais falaciosos do anti-semitis-
mo �� a acusa����o de que os judeus s��o estrangeiros, invo-
cada na Alemanha de Adolf H i t l e r . . . lembra-se dessa
peste? Bom. Voc�� sabia que os judeus chegaram, por
exemplo, �� Col��nia, trazidos pela onda romana, muito
antes de l�� aparecerem as primeiras tribos germ��nicas?
Vamos a outro motivo. Os judeus vivem como uma mi-
noria no meio de outros povos e, como se sabe, o senti-
mento de solidariedade das massas para ser completo
necessita alimentar-se da animosidade contra uma mi-
noria forasteira.
��� Temos a�� a velha est��ria do bode expiat��rio.
Neste momento surge em nossa frente um homem
franzino, de gestos nervosos, metido num uniforme do
ex��rcito franc��s de fins do s��culo passado. Inclina-se de
leve, bate os calcanhares, faz uma contin��ncia e diz:
"Capit��o Alfred Dreyfus, ex-membro do Estado Maior do
150
E R I C O V E R �� S S I M O
ex��rcito franc��s. Acho que meu caso �� bastante conhecido
e dispensa explica����es. Sou um excelente exemplo de
bode expiat��rio. Quem, entre todos os outros oficiais do
Estado Maior, podia ter vendido documentos secretos ��
Alemanha? Quem sen��o eu, o judeu, o venal, o ap��trida?
Au revoir! .
Faz uma meia-volta militar e se vai por entre a mul-
tid��o. O Dr. Sigmund segue-o com o olhar, murmurando:
"Estava inocente da culpa que lhe imputavam, como ficou
sobejamente provado. Mas era um neur��tico. Precisava
dum bom tratamento psicanal��tico, coitado. Mas agora ��
tarde demais".
��� Bom, doutor, na sua opini��o quais s��o as causas
mais profundas do sentimento antijudeu?
��� As ra��zes do anti-semitismo ��� responde o Velho,
soltando uma baforada de fuma��a na minha cara ��� est��o
no inconsciente dos crist��os. Vem do ci��me que estes sen-
tem dum povo que se apresenta como o filho dileto de
Deus.
��� Mas ser�� que os crist��os acreditam nisso?
��� Eu falei em inconsciente. Veja bem. Entre os cos-
tumes judeus que marcaram o afastamento, a separa����o
desse povo dos gentios est�� o da circuncis��o, que causa
no goy uma impress��o desagrad��vel, talvez porque lhe
sugere a id��ia da castra����o e de coisas de seu passado
primevo que ele deseja esquecer.
��� Sutil, doutor, muito sutil. E que mais?
��� N��o esque��a tamb��m que os povos que agora se
distinguem na pr��tica do anti-semitismo tornaram-se cris-
t��os em tempos relativamente recentes, e n��o raro foram
for��ados a isso por press��es sangrentas. Em suma, po-
demos dizer que os crist��os continuaram a ser o que seus
antepassados eram, a saber, barbaramente polite��stas! N��o
conseguiram ainda dominar o seu ressentimento contra
I S R A E L E M A B R I L
151
as novas religi��es que lhes foram impostas e projetaram
esse ressentimento na fonte de onde lhes veio o cristia-
nismo, isto ��, o juda��smo. O fato de os Evangelhos con-
tarem uma est��ria que foi representada entre judeus e
que na verdade trata apenas de judeus, facilita muito tal
proje����o...
��� Devo concluir, caro mestre, que o ��dio dos cris-
t��os ao juda��smo no fundo n��o passa dum ��dio ao cris-
tianismo?
��� Exatamente. O senhor n��o �� t��o est��pido como
parecia.
��� Sempre achei que para o mundo crist��o os ju-
deus constitu��am uma esp��cie de consci��ncia viva. Eles
n��o s�� nos legaram o Deus severo e vingativo do Velho
Testamento, como tamb��m se tornaram, por assim dizer,
fiadores do compromisso que assumimos de obedecer aos
Dez Mandamentos. Bem no fundo, o que sentimos mesmo
�� uma nostalgia do paganismo, que tudo permitia ao nosso
corpo, nos seus impulsos na busca do prazer. Mais ainda:
n��o perdoamos ainda ao povo hebreu por ter Deus deci-
dido mandar-nos Seu Filho no corpo dum judeu da Gali-
leia. Devemos concordar em que isso �� demais, doutor.
Obrigad��ssimo!
Levanto-me e saio a andar pela pra��a. Vejo um Ford
modelo-T, acerco-me dele, curioso, e reconhe��o o homem
que est�� ao volante. �� o pr��prio Mr. Henry Ford: roupa
cinzenta como os olhos, palheta na cabe��a, colarinho
muito alto ��� moda da d��cada dos 20. Lembro-me de
que o grande industrialista americano publicou h�� muitos
anos sob seu nome um livro intitulado O Judeu Interna-
cional, no qual, revivendo documentos anti-semitas for-
jados pelo governo do Czar da R��ssia, em fins do s��culo
passado (O Protocolo dos Sabinos de Sion) procurava
provar que os doutores do juda��smo se haviam reunido
152
E R I C O V E R �� S S I M O
secretamente para engendrar uma imensa conspira����o
com o fim de alterar os rumos da Hist��ria e corromper e
destruir a civiliza����o crist��. Essa obra, que teve larga di-
vulga����o, contribuiu imensamente para aumentar em todo
o mundo o sentimento anti-judeu. "N��o �� verdade, Mr.
Ford" ��� pergunto-lhe ��� "que o senhor n��o s�� se arre-
pendeu de ter publicado esse livro como tamb��m foi
obrigado a retratar-se publicamente? Mais: n��o �� certo
que seu empenho em 'desmascarar o judeu internacional'
nada mais foi que o desejo de agredir seus rivais ju-
deus da General Motors, uma companhia que fazia forte
concorr��ncia �� sua?". Mr. Ford fita em mim seus olhos
de a��o e murmura: "Como cidad��o americano invoco o
artigo da nossa Constitui����o que me d�� o direito de calar-
me sempre que minhas pr��prias palavras possam ser
usadas para me incriminar. Good night!". Aperta na se-
ringa da buzina do seu carro (naquele tempo chamava-se
fon-fon) p��e o Ford-de-bigode em movimento e se vai,
passando rente ao Prof. Toynbee, que neste momento, no
centro da pra��a, discursa para um grupo de curiosos:
"Seja qual for o veredicto da Humanidade sobre a civili-
za����o ocidental no moderno cap��tulo de sua hist��ria, uma
coisa fica manifesta, a saber, que o Homem Ocidental
Moderno sujou as m��os cometendo dois crimes de inde-
l��vel inf��mia. Um deles foi o de ter trazido escravos ne-
gros da Africa para trabalhar nas planta����es do Novo
Mundo; o outro foi a extermina����o de uma di��spora judia
na sua p��tria europ��ia. Mas atentemos agora para as
sombrias ironias da Hist��ria. De todas elas nenhuma
lan��a uma luz mais sinistra sobre a natureza humana
do que o fato de os judeus nacionalistas de novo estilo,
no dia seguinte �� mais pavorosa das muitas persegui-
����es sofridas pela sua ra��a, empenharem-se sem perda
de tempo a demonstrar, �� custa dos ��rabes da Palestina,
I S R A E L E M A B R I L
153
que a li����o aprendida pelos sionistas nos sofrimentos que
os nazis infligiram aos hebreus foi, n��o a de evitar de
cometer o crime id��ntico ao de que haviam sido v��timas,
mas perseguir por sua vez um povo mais fraco do que
eles?".
Ouso perguntar: "Professor, como pode o senhor
comparar a ocupa����o da Palestina pelos judeus aos cam-
pos de concentra����o e exterm��nio de Hitler? Ao declarar
que a sociedade judaica �� um ramo da sir��aca, o senhor
lhes deu igual direito ��s terras da Palestina... ou estarei
raciocinando errado? E n��o esque��a de que o Estado de
Israel foi legalmente reconhecido pela Organiza����o das
Na����es Unidas".
Mr. Toynbee prossegue: "Os judeus israelenses n��o
seguiram as pegadas dos nazistas a ponto de exterminar
os ��rabes palestinenses em campos de concentra����o e
c��maras de g��s, mas despojaram a maioria desses ��rabes
(mais de meio milh��o) das terras que eles e seus pais
ocuparam e cultivaram por muitas gera����es, e das coisas
que eles n��o puderam carregar consigo na fuga, redu-
zindo assim esses homens �� mis��ria, como refugiados sem
terra".
Ben-Gurion surge do meio da turba para defender
o seu povo e eu me desinteresso de ouvir o que vai dizer
o fantasma desse grande homem na pra��a de meu c��-
rebro, pois depois de amanh�� terei o privil��gio de v��-lo em
carne e osso. (E nervo, devo acrescentar.)
Neste momento um desconhecido acerca-se de mim,
apresentando-se: "Meu nome �� Max I. Dimont. Sei que
voc�� leu o meu livro". N��o lhe posso distinguir as fei����es,
o que n��o �� de admirar, pois jamais lhe vi o retrato.
��� Ah, professor! Podemos agora conversar sobre
um fen��meno hist��rico que me intriga: a sobreviv��ncia
dos judeus como povo e religi��o atrav��s de quatro mil
154
E R I C O V E R �� S S I M O
anos e de v��rias civiliza����es poderosas para as quais eles
muito contribu��ram material e intelectualmente, e muitas
das quais hoje em dia est��o defuntas.
��� E que �� que voc�� sugere?
��� Ora, quem sou eu! Mas vou dar-lhe o meu "pal-
pite", �� boa fei����o brasileira. Sempre me pareceu que a
Di��spora, longe de ter sido um acontecimento mortal para
o povo de Israel foi, ao contr��rio, uma esp��cie de provi-
dencial "t��tica de sobreviv��ncia" que as circunst��ncias
hist��ricas impuseram a essa gente que, consciente ou in-
conscientemente, acabou por adot��-la, no seu permanente
"estado de guerra" no mundo dos gentios. Foi algo assim
como um regimento que se divide em bandos de guer-
rilheiros para melhor poder enfrentar ex��rcitos infinita-
mente mais numerosos e bem armados.
��� Est�� bem. S�� n��o me agrada a imagem b��lica.
��� Que quer, Mr. Dimont! S��o os sinais dos tempos.
Mas qual �� a sua opini��o sobre o "milagre" judeu, se me
permite a palavra?
O autor de Os Judeus, Deus e a Hist��ria faz um
sinal na dire����o do Dr. Spengler, que agora come apol��-
neamente uma salsicha e pergunta: "Conhece-o, n��o?
Pois esse cavalheiro nos oferece a sua teoria c��clica, fata-
lista e antilivre-arbitrista da Hist��ria. Uma vez que um
povo se impregna do esperma da civiliza����o, seu futuro
�� t��o previs��vel quanto o curso e os resultados da gra-
videz, de modo que podemos assim predizer o per��odo de
gesta����o, o nascimento e a inf��ncia da 'crian��a', sua
adolesc��ncia, sua maturidade e por fim sua velhice e sua
morte. Agora, o Prof. Toynbee, que acredita no livre-ar-
b��trio, prop��e-nos a sua teoria do 'desafio' e da 'resposta'.
Que aconteceu com os judeus? Tanto Toynbee como Spen-
gler consideram o juda��smo uma 'civiliza����o interrom-
pida' e a excluem da lista das civiliza����es. Mas eu acho
I S R A E L E M A B R I L
155
que foi gra��as a essa 'interrup����o' que os judeus sobre-
viveram, respondendo positivamente ao desafio da His-
t��ria".
��� Como? por qu��?
��� Parece-lhe um paradoxo? Bom, tudo ficar�� claro
se definirmos o juda��smo como uma cultura e n��o como
uma civiliza����o, percebe?
��� Uma cultura �� a meu ver um modo de vida
baseado em valores originais, numa estrutura psicol��gica,
espiritual, intelectual, capaz de produzir arte, ci��ncia, leis,
c��digos de m o r a l . . .
��� Essa �� a defini����o de Amaury de Riencourt. Diz
ele ainda que uma cultura preocupa-se mais com o indi-
v��duo do que com a sociedade. A cria����o original �� para
ela mais importante que sua preserva����o e duplica����o.
Uma cultura d�� mais valor aos prot��tipos do que �� pro-
du����o em massa, �� perspectiva est��tica da vida do que
�� ��tica. A cultura �� capaz de rasgar caminhos. Agora, a
civiliza����o representa a cristaliza����o numa escala gigan-
tesca (continuo a citar) dos pensamentos e estilos maio-
res e mais profundos da civiliza����o precedente. A civili-
za����o vive das formas ordin��rias petrificadas oriundas da
Cultura m��e, e �� basicamente n��o-criadora, culturalmente
est��ril, mas eficiente (note bem esta palavra: eficiente)
na sua organiza����o de massa, pr��tica e ��tica, espalhan-
do-se sobre vastas superf��cies do globo e terminando fi-
nalmente num estado universal.
��� Possivelmente imperialista.
��� Possivelmente.
��� E foi na Di��spora, ent��o, que os judeus encon-
traram as condi����es de sua sobreviv��ncia como cultura.. .
��� Exatamente. E assim sobreviveram ��s civiliza����es
nas quais se envolveram atrav��s de toda a sua hist��ria.
��� E agora que Israel �� um Estado independente, ���
156
E R I C O V E R �� S S I M O
pergunto, entre dois acessos de tosse ��� que ir�� acontecer?
Mas Dimont desapareceu.
A pra��a est�� cada vez mais escura.
Respondo �� minha pr��pria pergunta. Se aceitamos
a tese spengleriana, temos de considerar Israel uma "cria-
tura" excepcional pois, concebida no "��tero" da civiliza-
����o sir��aca e tendo passado sua inf��ncia e adolesc��ncia
(digamos, o per��odo dos Profetas e dos Reis) e a mocidade
(a era dos reinos de Jud�� e Israel) sempre numa condi-
����o "intra-uterina" ��� atingiu sua maturidade ainda no
corpo de outras civiliza����es, primeiro no da isl��mica, de-
pois no da europ��ia ocidental. Por tudo isso o Estado de
Israel j�� nasceu adulto. E se agora, com o passar do tem-
po, deixar de ser uma cultura para se transformar numa
civiliza����o, j�� perto portanto do per��odo do inverno, da
velhice e da morte, n��o seria impertinente perguntar se
com a "decad��ncia" da civiliza����o do novo Estado sionista
(estou pensando em termos de s��culos) vai terminar a
cultura judaica, principalmente se levarmos em conta
que a tend��ncia dos sabr��s parece ser a de se afasta-
rem cada vez mais do Talmude, do Tor�� e do Velho Tes-
tamento.
Inclino-me para uma resposta negativa, pois tenho
a impress��o de que a Di��spora continuar�� de qualquer
modo e, apesar de todas as tentativas dos assimilacio-
nistas, o juda��smo ser�� preservado como religi��o, como
etnia e mesmo como mitologia, gra��as, entre outras
coisas ao sentimento anti-semita, manifesto ou latente
dos crist��os.
Noite completa na pra��a. N��o sei bem quando nem
como, surgidos das intra����veis vias que nela desembocam,
agora se v��o esgueirando os misteriosos fantasmas do
sono e do sonho. E apossam-se da feira.
7
RUMO DO DESERTO
REHOVOT
Come��aremos esta manh�� nossa viagem na dire����o
Neguev, e nossa primeira visita ser�� a Rehovot, que est��
situada ao sul de Tel Aviv, na plan��cie costeira da Jud��ia.
��s nove horas, mal dormido mas muito bem tossido,
des��o com minha companheira e mais nossas armas e
bagagens para o sagu��o do hotel. Minutos depois estamos
com os Dothan, dentro do autom��vel pilotado sempre pelo
nosso bravo Jaime.
O dia est�� duma limpidez ensolarada, seca e corus-
cante. Deixamos para tr��s Tel Aviv e, ao cabo de uns qua-
renta minutos, inclu��das as paradas volunt��rias no cami-
nho, chegamos a Rehovot, cidade de mais de trinta mil
habitantes, e o mais importante centro meridional do pa��s
no que respeita �� produ����o de frutas c��tricas. Est�� claro
que n��o vimos ver laranjas, lim��es ou toronjas, mas o
Instituto Weizmann de Ci��ncias.
Como se sabe, Israel tem de enfrentar muitos e ur-
gentes problemas de cuja solu����o depende sua sobrevi-
158
E R I C O V E R �� S S I M O
vencia: o da produ����o de alimentos, o da capta����o e dis-
tribui����o de ��guas para irrigar as lavouras, o da energia
el��trica, o do fomento �� agricultura e �� incipiente in-
d��stria, e t c . . . Imaginar, por��m, que por todos esses mo-
tivos o pa��s se tivesse preocupado apenas com fazer ci-
��ncia aplicada, seria ignorar uma faceta importante do
car��ter deste povo. Se por um lado os judeus t��m um
profundo senso realista, os p��s firmemente plantados na
terra (e sempre "um p�� atr��s") ��� e isso, por exemplo,
os leva a amparar e estimular cientistas como Alexandre
Zarchin, inventor dum novo processo para baratear o pro-
cesso de dessaliniza����o da ��gua do mar ��� por outro o
seu amor �� cultura pela cultura, a sua sede permanente
de conhecimentos, a sua necessidade de saber, descobrir,
ir ao fundo das coisas, levou-os aqui em Israel a criar este
Instituto, que tem hoje o nome do qu��mico Chaim Weiz-
mann, o grande sionista que foi seu primeiro diretor e
tamb��m o primeiro presidente desta jovem na����o.
Dothan nos diz que em sua terra atualmente se fa-
zem com a mesma intensidade ci��ncia pura e ci��ncia apli-
cada, e que as fronteiras entre uma e outra se confundem
cada vez mais, numa harmonia ditada pela necessidade.
Visitamos no nosso galope habitual, mas nem por
isso com menos entusiasmo e interesse, as depend��ncias
deste centro de cultura.
Trabalham aqui em car��ter permanente nada menos
de trezentos cientistas israelenses, al��m dos pesquisadores
estrangeiros que s��o periodicamente trazidos para c�� sob
contrato ou com bolsas de estudos.
O Instituto oferece cursos da mais alta qualidade nas
seguintes mat��rias: Biof��sica, Matem��tica aplicada, Bio-
qu��mica, Biologia das c��lulas, Biodin��mica, Gen��tica hu-
mana e de plantas, Eletr��nica, Imunologia qu��mica, F��sica
nuclear, Is��topos, Qu��mica org��nica, Qu��mica F��sica te��-
I S R A E L E M A B R I L
159
rica, Fotoqu��mica e Espectroscopia, Cristalografia dos
raios X . . .
O jovem cientista que nos acompanha atrav��s de
alguns departamentos, depois de mostrar como funciona
um microsc��pio eletr��nico, conta-nos que pesquisas aqui
realizadas no campo da estrutura nuclear e da natureza
do c��ncer deram a este instituto grande reputa����o mun-
dial.
Pouco antes de nos levar ao "santu��rio'' onde se acha
entronizado um computador eletr��nico e de nos enume-
rar alguns dos v��rios projetos nos quais seus colegas tra-
balham no momento, o cientista acrescenta: "Mas tam-
b��m tratamos de coisas pr��ticas. Nossos ge��logos procu-
ram petr��leo no solo de Israel. J�� se encontraram alguns
po��os. Nossos matem��ticos concentram-se no problema
das mar��s oce��nicas e dos terremotos. E os geneticistas
procuram descobrir meios de melhorar cada vez mais a
produ����o de frutas c��tricas".
Ao sairmos do "santu��rio" nosso guia sorri e diz: "O
primeiro computador que tivemos aqui chamava-se Wei-
zac. Este novo foi batizado com o nome de Golem". Ba-
tizado? Estranho o termo crist��o e o jovem israelense
encolhe os ombros: "Quem nos pode assegurar que esse
computador �� judeu?". E conta-nos que se chamava Golem
o famoso aut��mato com forma humana criado, segundo
a lenda, pelas artes m��gicas do rabino Elias de Chelm,
no s��culo XVI.
Pergunto se o Instituto tem um reator at��mico e sou
informado de que o grande reator de Israel se encontra
isolado no cora����o do Deserto de Neguev. E ��� para minha
surpresa ��� fico sabendo que noventa por cento da ��gua
pesada usada no mundo �� produzida neste pa��s.
Com suas estruturas met��licas e sua abund��ncia de
vidros, h��gidos e funcionais, os edif��cios do Instituto er-
160
E R I C O V E R �� S S I M O
guem-se em meio dum parque. Vem dos laranjais vizi-
nhos um intenso aroma de flores de laranjeira, que para
n��s j�� �� "o perfume de Israel".
Vamos ver a sepultura de Chaim Weizmann, que se
encontra no pr��prio jardim da casa onde viveu o grande
homem. �� simples: um sarc��fago sem adornos, de gra-
nito escuro, no centro dum canteiro de relva, cercado de
flores. Um bando de turistas aglomera-se agora a pequena
dist��ncia do t��mulo. De cima dum banco um guia profis-
sional descreve em ingl��s (pre��o, nome do arquiteto, n��-
mero de salas) a resid��ncia outrora ocupada por Weiz-
mann. Os passarinhos cantam. Uma brisa quase fria
bole nas folhas das ��rvores. Minha mulher e eu, distra��-
dos, falamos em voz alta, comentando a beleza deste lugar,
que h�� menos de trinta anos era um deserto de areia
Cabe��as voltam-se para n��s, chegamos quase a sentir fisi-
camente na pele os olhares de ��gnea indigna����o que os tu-
ristas nos lan��am. Um deles faz cht! ��� olhando na nossa
dire����o carrancudo como um mestre-escola antigo. Bai-
xamos a voz. Os passarinhos, no entanto, continuam a
chilrear com o maior entusiasmo, pois s��o os donos do
lugar por direito natural.
Matronas alvoro��adas e multicores destacam-se do
grupo tur��stico e v��m tirar fotografias da sepultura. Fa-
zem gestos fren��ticos, exigindo que nos afastemos do
sagrado campo de vis��o das suas objetivas. Obedecemos.
Mas um homem que empunha uma c��mara, pede
agora que nos aproximemos do t��mulo, pois quer foto-
grafar-nos junto dele. O desconhecido apresenta-se: �� Zvi
Glaser, fot��grafo profissional, designado por um dos de-
partamentos do governo para nos seguir nesta viagem e
documentar fotograficamente nossas visitas. �� um homem
de seus quarenta e tantos anos, que se nos afigura ��� altu-
ra, fei����es, formato da cabe��a ��� um Jean-Louis Barrault
I S R A E L E M A B R I L
161
mais fornido de carnes e de aspecto menos bo��mio, pois
o nosso fot��grafo est�� elegantemente vestido, embora com
leveza esportiva.
Depois de tirar mais alguns instant��neos nossos, des-
pede-se com um so long!, dizendo que nos vai seguir no
seu pr��prio carro.
ASCHDOD, ACHDOD OU ASDODE?
Vou acabar sofrendo duma "neurose ortogr��fica" por
causa dos nomes destes lugares antigos de Israel. A ci-
dade onde nos encontramos agora aparece em certos
mapas como Aschdod, em outros como Ashdod, mas
como me nego a usar o sh com som de ch, devia escrever
Achdod, o que no entanto n��o me satisfaz, por alguma
raz��o misteriosa. Sei que ao se estabelecerem nesta velha
cidade devastada por uma das muitas guerras da Hist��ria
da Palestina, os gregos a reconstru��ram, dando-lhe o nome
de Azotus. Muito mais tarde para c�� vieram os ��rabes,
que lhe chamaram Isdud. Para simplificar a coisa, vou
usar o nome com que aparece no Velho Testamento, na
tradu����o portuguesa de Jo��o Ferreira de Almeida. Feito!
Estamos, pois, em Asdode. E agora vejamos o lugar, que
me parece mais importante do que o nome com que ��
designado, seja qual for a ortografia.
Como uma flor que brota da areia, nasce aqui uma
cidade moderna n��o apenas no sentido cronol��gico de
nova mas tamb��m por surgir j�� dotada dum hospital,
dum jardim da inf��ncia, dum gin��sio, de escolas prim��-
rias, ruas asfaltadas e iluminadas com l��mpadas de mer-
c��rio, bom com��rcio e uma popula����o t��o ativa que s��
nos falta agora ler ou ouvir que, �� maneira da nossa
S��o Paulo, Asdode n��o pode parar.
162
E R I C O V E R �� S S I M O
O que de bom e mau fizeram gregos, ass��rios, roma-
nos, filisteus, turcos e outros povos que andaram por
aqui, h�� algumas dezenas de s��culos ��� hoje �� assunto
arqueol��gico e atra����o tur��stica. O que mais nos interessa
s��o as obras do novo porto que o governo israelense est��
fazendo construir aqui para dar escoamento �� crescente
produ����o agr��cola e industrial do Neguev e evitar as des-
pesas de transporte por via terrestre desta regi��o at�� Haifa,
e aliviar o porto desta ��ltima cidade, j�� sobrecarregado de
trabalho.
Duma pequena eleva����o de terreno os Dothan e n��s
ficamos a observar a atividade de engenheiros e oper��rios
sabr��s que movimentam seus guindastes, dragas, cami-
nh��es e jipes sob o olho de fogo deste sol do deserto, cujo
furor nesta manh�� de primavera uma brisa fresca atenua,
tornando a atmosfera duma tepidez que est�� mais para o
lado do frio que do quente.
Pela longa linha dos molhes, podemos ver as dimen-
s��es do novo porto que, quando pronto, poder�� abrigar na-
vios de grande calado e ter�� capacidade para dar conta de
quarenta milh��es de toneladas de carga, anualmente.
Quando voltamos para o carro, ofuscados pela luz
clar��ssima que reverbera nas areias e nas pedras de As-
dode, o nosso novo amigo Zvi Glaser corre �� nossa frente,
fotografando-nos repetidamente, e para isso ora fica de
p�� ��� clic! ��� ora se acocora ��� clic! ��� como a fazer em
nossa homenagem alguns passos do frevo pernambucano.
ASCALOM
Estamos agora em Ascalom, que fica a uns m��seros
oito quil��metros de Asdode, por uma excelente estrada
I S R A E L E M A B R I L
163
asfaltada. (N��o resisto �� tenta����o de fazer aqui uma
anota����o de almanaque. Deve seu nome a este lugar a
cebolinha verde sem bulbo que os romanos tanto apre-
ciavam, a caepa ascalonia. S�� agora compreendo por que
em ingl��s essa planta �� conhecida como scallion.)
Herodes, que aqui nasceu, parecia amar esta cidade,
onde mandou construir belos pal��cios cercados de jardins,
j�� antes do tempo desse famigerado rei, Ascalom havia
sido um centro de cultura hel��nica, bem como uma es-
p��cie de campo de batalha cr��nico entre hebreus e filis-
teus. Por aqui andaram tamb��m os ass��rios, (734 A. D.),
e l�� por volta de 1270 o sult��o Baibars liquidou o saldo
da popula����o judia que havia sobrado da f��ria cristia-
nizadora dos cruzados, nossos piedosos irm��os.
Ascalom �� uma das cidades mais antigas do mundo.
J�� existia alguns s��culos antes de Mois��s ter conduzido
seu povo para fora do Egito.
Caminhamos ao sol por entre vest��gios da cidade pri-
mitiva. Avistamos as ru��nas duma muralha mar��tima.
Conta-se que a velha Ascalom tinha quatro grandes por-
tas: uma delas voltada para Jerusal��m, outra para Jafa,
a terceira para a Gaza e a ��ltima para o mar. O governo
de Israel plantou ��rvores e organizou um parque para
emoldurar estas ru��nas. Zvi Glaser nos segue como um
misto de anjo da guarda e paparazzo e apanha um ins-
tant��neo dos visitantes brasileiros no momento em que
eles emergem duma cripta romana e pouco depois os
fotografa ao p�� dum alto relevo em que uma deusa de
face apagada (Nikes?) se encontra esplendidamente de
p�� em cima dum globo terrestre sustentado por um mini-
Atlas. Mais tarde o "conhecido romancista" �� surpreendido
pela objetiva de Zvi junto duma planta, a spina Christi,
da qual se cr�� foi feita a coroa de espinhos que cingiu a
cabe��a do Salvador. Apreciamos o que resta das cem co-
1 6 4
E R I C O V E R �� S S I M O
lunas que sustentavam o p��rtico monumental do pal��cio
de Herodes.
O nome de Josu�� (sim senhor, o mesmo que fez parar
o Sol e a Lua) est�� muito ligado a estas paragens da Pa-
lestina. Outra figura que por aqui andou foi Sans��o, pois
conforme narra o livro dos Ju��zes, em Gaza, a poucos qui-
l��metros de onde estamos, o atl��tico juiz derrubou as co-
lunas dum templo, matando todos os seus inimigos que
estavam no recinto e morrendo, ele pr��prio, esmagado
sob os escombros. (Depressa, uma interpreta����o simb��-
lica!)
Josu�� e Sans��o podem ter feito coisas mir��ficas, mas
como n��o tive o privil��gio de conhec��-los pessoalmente
nem de ser testemunha ocular de suas fa��anhas ��� con-
fesso que me interesso mais pelo que os sabras est��o
fazendo hoje neste lugar t��o importante pela sua posi����o
estrat��gica, entreposto que �� na rota do Egito.
Hoje a Grande Ascalom (Migdal Ascalom) �� forma-
da de duas partes: a cidade ��rabe abandonada, isto ��,
a Migdal propriamente dita, e onde se estabeleceram os
imigrantes judeus, e Afridar, a nova comunidade, mais
pr��xima do mar. Bem, podemos acrescentar uma terceira
parte ao conjunto: o bairro residencial que o governo de
Israel est�� fazendo construir a leste da rodovia principal.
Entre as minhas paix��es confess��veis, al��m da m��-
sica e da pintura, devo salientar a da arquitetura e a do
urbanismo. Cidades como Nova Iorque, Londres, Chicago,
S��o Paulo, Xangai fascinam em mim o romancista, em-
bora assustem um pouco o homem de prov��ncia que ain-
da sou. H�� quatrocentos anos Leonardo da Vinci prop��s
ao Duque de Mil��o a constru����o duma dezena de cidades
com popula����o n��o superior a trinta mil almas cada uma,
para "separar este grande conglomerado de gente que
vive como bodes uns por cima dos outros". O homem da
I S R A E L E M A B R I L
165
Mona Lisa j�� em sua ��poca compreendia que as grandes
metr��poles estavam condenadas �� extin����o por conges-
tionamento, esclerosamento de art��rias e superpopula-
����o. Hoje em dia a Inglaterra est�� j�� come��ando a levar
a cabo o plano de Leonardo, isto ��, construindo pequenas
comunidades que podem oferecer todo o conforto e ne-
nhuma das desvantagens dos grandes centros urbanos:
facilidades de tr��fego, casas funcionais, ar puro, ��reas
verdes, centros comerciais concentrados, escolas, biblio-
tecas, hospitais, playgrounds, e t c . . . (Aqui me vejo en-redado numa ambival��ncia, pois morro do mais l��rico
amor por pequenas cidades antigas ��� se muradas tanto
melhor ��� como ��bidos, ��vora, Salamanca, San Gimmi-
niano, Toledo, Santiago de Compostela, C��rdoba, Rotem-
burgo, Ouro Preto, Taxco, St. Paul de V e n c e . . . )
Israel felizmente nada tem a ver com minhas idios-
sincrasias. �� talvez no mundo inteiro o ��nico pa��s que,
em mat��ria de urbanismo, pode na maioria dos casos
come��ar da estaca zero.
No centro comercial de Afridar alteia-se uma torre
com rel��gio, e as cal��adas cobertas e com arcadas, ��
fei����o duma loggia, passam ao longo de supermercados,
padarias, livrarias, um teatro, um cinema de dimens��es
consider��veis e at�� um museu arqueol��gico. As ruas for-
mam c��rculos conc��ntricos, o que torna muito f��cil o
acesso ao centro, evitando o tema do labirinto, t��o co-
mum aos velhos burgos n��o planificados. Cercada de
pomares, onde crescem principalmente as laranjeiras e
os limoeiros, Afridar, como o sabra, d�� a impress��o de
que tem muitos compromissos com o futuro e pouqu��ssi-
mos com o passado. Seus habitantes parecem cultivar a jar-
dinagem como passatempo. Aqui praticamente n��o h�� casa
sem canteiros floridos. Dothan nos conta que todos os anos
o governo municipal confere um pr��mio ao mais belo
166 E R I C O V E R �� S S I M O
jardim da cidade. A praia fica a pequena dist��ncia, e as
brisas do Mediterr��neo s��o um b��lsamo para esta flo-
rescente comunidade situada na franja setentrional do
deserto.
Boas estradas asfaltadas ligam Ascalom a Berseba,
Tel Aviv e Jerusal��m. Outra vantagem desta municipa-
lidade �� a sua riqueza de ��gua pot��vel, oriunda de ver-
tentes e po��os subterr��neos.
Pouco depois do meio-dia vamos almo��ar num exce-
lente restaurante r��stico, numa das extremidades do par-
que das rel��quias arqueol��gicas. Minha mulher, boa ca-
t��lica, lembra-se de que hoje �� Sexta-feira da Paix��o e
pede peixe. Carpas comemos todos, com verduras e legu-
mes dum vi��o extraordin��rio, produtos deste solo. Pelas
janelas do restaurante entra a brisa que nos traz o aroma
dos laranjais. Zvi Glaser est�� sentado �� minha frente.
Puxo por ele, e o fot��grafo me conta a sua est��ria. Nas-
ceu numa pequena aldeia da Litu��nia, de pais judeus.
Muito jovem, alistou-se no ex��rcito russo para lutar con-
tra os invasores nazistas. Terminada a guerra, como n��o
conseguisse licen��a do governo sovi��tico para emigrar,
fugiu e, ao cabo de perip��cias novelescas, chegou a Paris
sem um centavo no bolso. Viveu l�� como p��de e final-
mente se mandou para Tel Aviv, onde agora reside e tra-
balha. "Feliz?" ��� pergunto com uma indiscre����o de dia-
bo-rengo. Ele sorri, sacode a cabe��a afirmativamente e
murmura: "N��o pretendo sair mais de Israel".
OS BEDU��NOS
A caminho de Berseba, rumando para suleste, co-
me��o a sentir o deserto mais com os olhos do que pro-
I S R A E L E M A B R I L
167
priamente com a pele, pois a brisa que entra pelas janelas
do autom��vel, envolvendo-nos, �� t��o fresca, que nem me
passa pela cabe��a a id��ia de despir o pul��ver de l��. ��
evidente, entretanto, que a paisagem come��a a mudar de
semblante. Ainda vemos verdes nos pomares e planta-
����es pelos quais passamos, mas as ��rvores que orlam a
rodovia v��o aos poucos diminuindo de estatura, e a gente
percebe que a areia e a pedra est��o como que atocaiadas
aqui e ali, mal escondidas, como sentinelas avan��adas do
Neguev. De quando em quando avistamos cactos, bos-
quetes de tamareiras e palmeiras. A terra das ombreiras
da estrada �� dum pardo de chocolate. Sinto nas narinas
a secura do ar.
Que vulto �� aquele que l�� vem na estrada, moven-
do-se em sentido contr��rio ao em que vamos? A figura
solit��ria �� um ��rabe com seu Kheffiya na cabe��a, uma
saia ru��a e um casaco de brim ��� estudo em cinza, pardo
e preto. Vem montado n��o num dromed��rio, mas numa
velha bicicleta que o homenzinho pedala valentemente.
Quando cruzamos por ele, num par de segundos vislum-
bro-lhe o pergaminho da face magra, trigueira e triste.
Minutos mais tarde, passamos por um pequeno acam-
pamento de bedu��nos, onde mulheres e crian��as encar-
didas, algumas destas ��ltimas seminuas, movimentam-
se �� frente de suas tendas negras de pele de cabra. A uma
centena de metros da estrada, um bedu��no metido numa
t��nica dum preto ru��o lavra a terra, segurando a rabi��a
dum arado b��blico puxado por um camelo de pequeno
porte. Longe, contra o horizonte, como uma pincelada de
lavanda num caquemono, os montes da Jud��ia. (Ou da
Jord��nia, pois nesta altura a minha geografia j�� come��a
a ficar confusa.)
Tiro do bolso uma caneta esferogr��fica e a cader-
neta na qual, desde que cheguei a Israel, venho tomando
168
E R I C O V E R �� S S I M O
r��pidas notas e fazendo esbo��os de caras, casas, trechos
de rua, objetos, embora sabendo que dentro de um m��s
ou dois, quando tentar decifrar estes garranchos, hei de
sentir-me quase como se sentiu Champollion ante os hie-
r��glifos eg��pcios, mod��stia �� parte.
Submeto o amigo Dothan a um interrogat��rio. Quan-
tos bedu��nos existem em todo o Estado de Israel? Uns
vinte mil. Quantos deste total vivem no Deserto de Ne-
guev? Pouco mais de setenta por cento.
Aprendo que os bedu��nos vivem em tribos ou grupos
de fam��lias, geralmente na periferia do deserto. Armam
suas tendas onde quer que encontrem aguada, pasto e
terra ar��vel, mas mudam-se logo que a ��gua e o pasto
se esgotam e a terra se nega a continuar produzindo.
Quero saber se h�� alguma esperan��a de que um dia
essas popula����es n��mades possam integrar-se na na����o
israelense. Dothan considera essa integra����o muito pro-
blem��tica, embora n��o imposs��vel a longo prazo. O que
dificulta a solu����o do problema �� o fato de ��� diferente
dos outros ��rabes que habitam, por exemplo, a Galileia
��� os bedu��nos do deserto n��o se fixarem em aldeias. Se-
guem a sua sina milenar de andar, andar sempre. Mas
n��o era assim que viviam as tribos primitivas de Israel,
muitas vezes impelidas pelo mesmo motivo dos bedu��nos,
isto ��, a fome? Dothan sacode a cabe��a, concordando.
Quero saber se esses ��rabes n��mades revelam al-
guma habilidade, algum talento. Raquel nos diz que s��o
em geral h��beis fazedores de j��ias, excelentes cavaleiros,
e que como dan��arinos rivalizam com os judeus ieme-
nitas. Passa-me num rel��mpago pela cabe��a a imagem
de meu av�� materno, velho tropeiro que no f��sico parecia
um chefe bedu��no, e ou��o-lhe a voz lenta e quadrada re-
petindo um ditado ga��cho: "Duas coisas nunca vi na
vida: peti��o parelheiro e ��rabe cantor". No entanto Do-
I S R A E L E M A B R I L
169
than nos assegura que os bedu��nos cantam muito bem,
acompanhados por seus instrumentos monoc��rdios.
Ainda existem xeques? "Claro" ��� responde Dothan.
��� "Cada qual tem a sua tribo, entre cujos membros go-
zam de grande prest��gio. Esses chefes colaboram com o
Estado na campanha em prol da alfabetiza����o e da me-
lhoria das condi����es de sa��de e trabalho das popula����es
bedu��nas."
Quais s��o as doen��as a que com mais freq����ncia es-
t��o sujeitos esses n��mades? Resposta: "Avitaminoses e
enfermidades dos olhos. Havia antigamente entre eles
muitos casos de tuberculose, que felizmente est��o desa-
parecendo, gra��as aos nossos m��dicos e aos muitos dis-
pens��rios que existem em v��rias cidades do deserto. S��
em Berseba funcionam cinco, exclusivamente para os be-
du��nos. Mas o curioso �� que essa gente s�� acredita em
tratamento que d��i, que queima. S��o loucos por inje����es
e cauteriza����es".
Aprendo tamb��m que os casos de arteriosclerose entre
os bedu��nos s��o rar��ssimos.
��� De que se alimentam? ��� pergunto.
��� De p��o, arroz e ra��zes, principalmente os que vi-
vem perto de lugares como Berseba, em cuja feira v��o
adquirir alimentos por compra ou troca.
��� Alguma carne?
��� Pouqu��ssima. Mas bebem muito leite de cabra e
camelo.
Numa r��pida opera����o mental concluo que �� muito
alto o pre��o que eu teria de pagar para evitar o colesterol.
Raquel conta-nos que os m��dicos t��m de usar de
muitos estratagemas para obrigar os bedu��nos a se alimen-
tarem de legumes e verduras. Costumam dizer-lhes que
os rem��dios que prescrevem s�� produzem o efeito dese-
jado quando "comidos" com um tomate, uma fruta ou
170
E R I C O V E R �� S S I M O
uma verdura ou legume. Outro problema dif��cil �� o de
convencer as gestantes bedu��nas a irem ter seus filhos
nos hospitais, em melhores condi����es higi��nicas e aten-
didas por obstetras e enfermeiras profissionais.
��� Este ano ��� informa-nos Dothan ��� um jovem be-
du��no forma-se em medicina na Universidade Hebraica
de Jerusal��m.
�� a Histadrut (Confedera����o Geral do Trabalho) a
entidade estatal que organiza os trabalhadores bedu��nos
do deserto, defende seus direitos sociais e profissionais,
mantendo dispens��rios e equipes de assistentes sociais.
Sob o p��lio da Histadrut, melhoraram consideravelmente
as condi����es de vida dessas popula����es n��mades e a mor-
talidade entre elas tem diminu��do de maneira extraor-
din��ria.
��� Mas n��o h�� conflitos entre os m��todos modernos
da Histadrut e as tradi����es e supersti����es dos bedu��nos?
��� indago.
��� Muitos! Por exemplo, a poligamia ainda continua
entre eles. Quando quisemos convencer os bedu��nos de
que as mulheres devem ter direitos iguais aos dos ho-
mens, eles protestaram com paix��o. Usamos ent��o com
paci��ncia a vagarosa t��cnica da persuas��o. Pode-se dizer
que hoje em dia a situa����o da mulher bedu��na �� muito
melhor do que nos mil��nios que ficaram para t r �� s . . .
O XEQUE SULIMO
Avistamos, a umas duas centenas de metros da ro-
dovia, um casar��o de pedra sobre cujo telhado se empina
uma antena de televis��o.
��� AU mora talvez o mais rico e prestigioso dos
xeques de Israel ��� conta-nos Dothan. ��� Sulim��o ben
I S R A E L E M A B R I L
171
Ali ibn Hussein el Husseyl. Tem no seu har��m trinta e
oito mulheres, segundo uns, cinq��enta segundo outros.
��� Que idade tem o her��i?
��� Est�� perto dos setenta a n o s . . . ou j�� passou
dessa marca.
Segundo Raquel, Sulim��o �� um belo homem de as-
pecto imponente, que n��o revela no f��sico a idade que
tem. Como �� uma das curiosidades do deserto, costuma
ser visitado pelas personalidades importantes que passam
por suas terras. Numa da salas de seu casar��o servido
(fantasia ou fato?) por escravos n��bios, �� maneira dos
pal��cios de As Mil e Uma Noites, existe um anacr��nico
sof�� vitoriano no qual um dia se sentou, entre outras ce-
lebridades, a Sra. Eleanor Roosevelt, �� qual o generoso
xeque deu de presente nada mais nada menos que um
camelo.
Conta-se tamb��m que os guardas do xeque usam
albornozes brancos como os dos rom��nticos bedu��nos do
cinema, e montam belos cavalos bem ajaezados e com
plumas coloridas nas cabe��as. �� voz corrente que este
lend��rio potentado bedu��no ��� cuja maneira de viver
lembra a de certos patriarcas dos tempos b��blicos ��� tem
posto no mundo dezenas de filhos, os quais acaba per-
dendo de vista. Seu apetite por mulheres jovens continua
ou, melhor, se agu��a com o passar dos anos. Um dia,
numa feira, Sulim��o avistou uma mo��a de fei����es e for-
mas de tal maneira atraentes para seu paladar de macho,
que n��o resistiu ao desejo de cham��-la, acariciar-lhe a
cabe��a e dizer-lhe o que costumava dizer a todas as ra-
parigas que lhe despertavam o apetite. "�� menina, diga
a seu pai que preciso muito falar com e l e . . A cria-
turinha sorriu com ar de espanto e exclamou: "Mas n��o
te lembras mais de mim, papai?".
Perto do kibbutz de Choval encontramos a tribo de
172
E R I C O V E R �� S S I M O
Sulim��o ��o redor de suas tendas: gente duma pobreza
de fel��s. Crian��as em profus��o brincam descal��as e mo-
lambentas em meio de vacas magras e cabras negras.
(Quantas delas ser��o filhas de Sulim��o?) O governo de
Israel construiu um reservat��rio d��gua para servir essa
pobre gente que �� noite decerto se contenta com olhar
para as estrelas dum c��u frio, enquanto o velho Sulim��o
se regabofeia em sua mans��o, olhando no seu televisor
os programas transmitidos por uma esta����o do Cairo e
em que n��o raro aparecem lindas raparigas que dan��am
seminuas a dan��a do ventre. Chego a ver o brilho safado
nos olhos do xeque.
O PO��O DO JURAMENTO
Narra o G��nesis que um dia Abra��o e Abimeleque,
o rei filisteu de Gerar, tiveram uma querela. Pedia este
��ltimo ao patriarca: "Agora pois jura-me aqui por Deus
que n��o mentir��s a mim nem ao meu filho nem ao meu
neto; segundo a benefic��ncia que te fiz, me far��s a mim
e �� terra onde peregrinaste". Abra��o respondeu: "Jurarei".
Mas antes repreendeu o monarca por causa dum po��o
que os servos deste lhe haviam tomado pela for��a. Abi-
mileque negou ter conhecimento do fato. Abra��o separou
sete cordeiras de seu rebanho e disse: "Tomar��s estas
sete cordeiras de minha m��o, para que sejam em teste-
munho de que cavei este po��o". Por esta raz��o o lugar
onde estavam recebeu o nome de Berseba, isto ��, "po��o
do juramento". Abimileque tornou ao seu reino e Abra��o
plantou um bosque junto ao po��o. Tr��s mil e quinhentos
anos depois, por volta das quatro horas duma tarde de
abril, nossa pequena caravana chega a Berseba neste
negro camelo mec��nico dirigido por Jaime Gigi. Muita
I S R A E L E M A B R I L
173
coisa, por��m, aconteceu depois que o patriarca, tendo
dado de beber a seus familiares, f��mulos e rebanhos, saiu
em peregrina����es pela terra dos filisteus.
Ap��s a morte de Abra��o, os filisteus entulharam o
hist��rico po��o. A raz��o pr��tica desse gesto me escapa,
pois uma vertente d��gua no deserto �� uma d��diva sem
pre��o. Passaram sobre Berseba os s��is, os ventos e as
areias dos dias, e duma feita, aperreado por uma seca
medonha, Isaque, filho de Abra��o, tornou a cavar o po��o
para salvar seus rebanhos da morte pela sede.
Quando a Terra da Promiss��o foi dividida entre as
Doze Tribos de Israel, coube esta zona meridional ao
povo de Sime��o. Berseba nada mais era ent��o que uma
esp��cie de entreposto entre o norte da Palestina e o
Neguev, parada obrigat��ria das caravanas de mercado-
res que desciam para o Egito ou de l�� vinham, aguada
providencial para as tribos n��mades do deserto.
Um dia chegaram os romanos, com seus deuses,
suas armas e sua gl��ria imperial, e a primeira coisa que
fizeram foi construir aqui um forte de propor����es mo-
destas. Mais tarde vieram os templ��rios com a Cruz de
Cristo. Seguiram-se os turcos ��� e esta ��ltima conquista
explica a exist��ncia hoje, no Museu de Berseba, dum
belo ch��o de mosaico em estilo bizantino.
Em 1 9 1 7 soldados da cavalaria australiana do ex��r-
cito brit��nico comandado pelo Gen. Allenby tomaram Ber-
seba aos turcos e enterraram seus mortos num pequeno e
very British cemit��rio militar. Quando em 1948 se pro-
cessou a divis��o da Palestina, esta regi��o coube aos eg��p-
cios, mas nesse mesmo ano as tropas israelitas atacaram
e tomaram Berseba, feito o que plantaram neste solo
��rido n��o s�� os cad��veres dos soldados tombados no com-
bate mas tamb��m centenas de ��rvores. Assim, com o
174
E R I C O V E R �� S S I M O
nascimento do Estado de Israel, come��ou uma nova era
na vida de Berseba.
Com seu talento para as coisas pr��ticas e sua obses-
s��o pelo tempo, os norte-americanos de nossos dias in-
ventaram ou pelo menos universalizaram o uso do instant
coffee, isto ��, do caf�� instant��neo, ao qual se seguiu uma
s��rie de outras maneiras sum��rias de preparar alimentos
e bebidas. Pois em 1948, ap��s seu reconhecimento como
Estado independente pela Organiza����o das Na����es Uni-
das, os sionistas se viram diante da tarefa tremenda de
criar uma instant nation.
Creio que Berseba em parte ilustra muito bem esse
problema e mostra algumas das solu����es de emerg��ncia
que os israelenses encontraram para ele.
Os primeiros colonos judeus que chegaram a esta
cidade ��� que �� uma esp��cie de port��o aberto para o
Deserto de Neguev ��� deram de cara com uma poeirenta,
��rida e semimorta aldeia de bedu��nos. Alguns dos re-
c��m-chegados ocuparam as pequenas e primitivas casas
de pedra que os ��rabes haviam abandonado. Outros ins-
talaram-se em tendas. O governo da na����o rec��m-nascida
mandou armar as primeiras duzentas e cinq��enta casas
pr��-fabricadas. N��o eram bonitas? Pouco importava: ser-
viam o seu prop��sito e isso por ora bastava. Era, por��m,
indispens��vel, urgente, povoar Berseba, dot��-la de condi-
����es de vida n��o s�� aceit��veis como tamb��m atraentes,
a fim de trazer para c�� mais e mais imigrantes.
Criou-se um centro de sa��de, que atendia tanto os
colonos judeus como os bedu��nos. Inaugurou-se uma
ag��ncia de correio e o servi��o postal come��ou a funcio-
nar. Abriram-se escolas. Construiu-se uma sinagoga.
Dois anos depois da Declara����o de Independ��ncia
de Israel, Berseba era elevada a municipalidade, com uma
popula����o de quinze mil habitantes. Seu aspecto e seu
I S R A E L E M A B R I L
175
ritmo de vida eram o de uma boom town muito parecida
com as do oeste americano de fins do s��culo passado.
Sempre que se fala em boom town n��s brasileiros
pensamos em Londrina, no norte do Paran�� ��� uma pro-
va concreta da capacidade de trabalho, da ousadia e
do talento empreendedor do brasileiro, um desmentido con-
creto da nossa apatia e da nossa "inferioridade racial" t��o
divulgada por uma mitologia negativa que s�� agora, nestes
��ltimos vinte anos, come��a a desmascarar-se.
Londrina tem, entre outras facilidades de natureza
geogr��fica, uma enorme vantagem sobre Berseba: a fer-
tilidade de sua terra roxa que propicia a planta����o de
caf��, fonte principal da riqueza da cidade paranaense.
Berseba vivia e vive amea��ada pela invas��o da areia, pela
eros��o. Era, pois, urgente deter a marcha das dunas, que
os ventos aceleravam. Plantaram-se ent��o ao redor da
cidade e de suas lavouras incipientes, vastos renques de
��rvores em filas de duas ou quatro, esp��cies de avenidas
que tinham a finalidade de quebrar os ventos, diminuir-
lhes a velocidade, reduzindo n��o s�� a eros��o como tam-
b��m a evapora����o da ��gua dum solo batido por ver��es
longos e ardentes. As plantas mais indicadas para formar
essas trincheiras contra �� carga das areias e dos ventos
s��o as tamargueiras, que com tanta bravura resistem ��
seca, os eucaliptos e principalmente um tipo de ac��cia
de folhas longas que deita ra��zes fundas no solo, faci-
litando n��o raro a busca de ��gua.
A CAPITAL DO DESERTO
Eis uma comunidade isenta de qualquer ortodoxia
urban��stica, o que lhe aumenta a personalidade e a de-
sajeitada gra��a. Tenho a impress��o de que ao redor do
176
E R I C O V E R �� S S I M O
velho n��cleo bedu��no e turco cresceram vilas e sub��rbios
residenciais e industriais, que ainda n��o decidiram jun-
tar-se a s��rio para formar uma cidade. H�� quem consi-
dere pouco est��ticos (detesto esta palavra) esses edif��-
cios de apartamentos de quatro andares, como que feitos
na mesma forma e pintados das mesmas cores, numa
uniformidade que pareceria militar n��o fosse o seu leve
e alegre aspecto antib��lico. Acho essas habita����es n��o
s�� aceit��veis como tamb��m muito simp��ticas.
Li em alguma parte que em Berseba as ruas, a rede
hidr��ulica e a el��trica t��m de correr continuamente "de
l��ngua de fora" para poderem acompanhar o ritmo do
crescimento urbano. Hoje em dia noventa por cento da
popula����o local possuem resid��ncias permanentes. De
quantas cidades no mundo se poder�� dizer o mesmo?
Estat��sticas publicadas por ag��ncias do governo nos
d��o uma id��ia do progresso desta capital econ��mica e cul-
tural do deserto. Dezessete mil de suas crian��as freq��en-
tam jardins da inf��ncia, escolas prim��rias e gin��sios. O
Hospital Central do Neguev, aqui localizado, e mantido
pela Histadrut, conta com uns quatrocentos leitos e exce-
lentes m��dicos. Est�� claro que Berseba possui tamb��m
um centro comunal com piscina, biblioteca, um audit��rio
para concertos e um cinema de propor����es avantajadas.
Quanto as suas ind��strias, as principais s��o as de
fia����o e tecelagem, materiais de constru����o, aparelhos
sanit��rios, objetos de vidro, al��m de centenas de outras
menores.
Duas vis��es auspiciosas tivemos ao entrar em Ber-
seba: um cintur��o verde ��� lavouras de trigo e beterraba
��� e um bando de raparigas e rapazes de cal����es curtos,
mochilas ��s costas, e que iam para um camping ou vol-
tavam dele ��� mostru��rio variado de faces queimadas de
sol, umas morenas como de bedu��nos ou iemenitas, outras
I S R A E L E M A B R I L
177
dum branco a que o sol dava esse tom rosado do cama-
r��o. E tanto os adolescentes como os talos de trigo ace-
naram para n��s.
Ao passar pelas ruas de Berseba tenho a oportuni-
dade de ver muitos de seus habitantes. Usando como ins-
trumento de aferi����o o olho, �� boa maneira de meu povo,
concluo que a m��dia de idade da popula����o desta cidade
n��o vai al��m de trinta anos. Pode ser que eu me engane,
mas a minha primeira impress��o �� essa. Diminuto ���
ou nulo? ��� �� o n��mero de pessoas idosas que encon-
tramos. Sinto a atmosfera e as criaturas como que to-
cadas desse entusiasmo e dessa alegria que parece andar
em part��culas el��tricas na atmosfera das cidades novas
em processo de crescimento. A figura de mestre Toynbee
me visita a mente. O deserto lan��ou o grande desafio aos
israelenses e estes levantaram corajosamente a luva de
pedra, aceitando o duelo.
Em Berseba, mais do que em qualquer das outras
comunidades de Israel que at�� agora visitamos, sentimos
a for��a da presen��a do sabra, que estou come��ando a
olhar como uma "ra��a" �� parte ou, melhor, um judeu novo
��� note-se que n��o digo melhor ou pior que o da Di��s-
pora, mas diferente. Fisicamente �� um tipo robusto, sem
passado, que caminha de cabe��a erguida para o futuro e
olha para os forasteiros (e aqui entra em cena a minha
imagina����o e meu absurdo e cr��nico sentimento de culpa)
dum jeito que nos faz ter vergonha de nosso conformis-
mo, de nosso comodismo e de nosso horror �� vida perigosa.
O "DESERT INN"
Temos acomoda����es reservadas no Desert Inn, hos-
pedaria moderna, a melhor da cidade, esp��cie de motel
178
E R I C O V E R �� S S I M O
de luxo, com ar condicionado, piscina e outras "facili-
dades", se quisermos traduzir ao p�� da letra o ingl��s de
seus prospectos de propaganda. No vasto sagu��o de en-
trada, as colunas quadradas s��o revestidas de p��lo de
camelo, o que deve saber muito bem ao paladar do turista
guloso de cor local.
Um dos mo��os que nos recebe na portaria lamenta
em voz alta que n��o tenhamos chegado antes, pois ontem
foi dia de feira, com bedu��nos do deserto, seus camelos
carregados de mercancias, e suas mulheres com os rostos
velados, very colorful, sir, very picturesquel. Com um
sorriso amarelo exprimo a minha decep����o por ter per-
dido o espet��culo e penso: "Bom, se tiv��ssemos chegado
n��o ontem, mas h�� trinta e cinco s��culos, ter��amos visto
talvez o velho Abra��o cavar o seu famoso po��o e plantar
ao p�� dele a sua tamareira".
A hospedaria, de dois andares, n��o tem elevador.
Subimos pela escada at�� nossos aposentos. Contra as pa-
redes dos corredores do andar superior alinha-se uma
s��rie de belas fotografias ampliadas, em preto e branco,
��� camelos, bedu��nos, cavalos, dunas de areia (motivo
muito ao gosto dos fot��grafos art��sticos), tendas, cabras,
montanhas de pedra, em suma, temas do Neguev.
Nosso quarto �� agrad��vel. De suas janelas avistamos
suaves colinas dum verde opaco. �� hora do poente o ho-
rizonte �� uma breve opala e o sol, enorme fruto vermelho,
produto talvez dos pomares de Berseba, com a colabora-
����o do Centro de Pesquisas das Zonas ��ridas que o go-
verno mant��m nos arredores da cidade ��� derrama o seu
sumo cor de ch�� sobre o casario e o arvoredo. A paisa-
gem de repente assume a meus olhos um aspecto outonal,
que me lembra os violinos de Verlaine, provocando em
mim um langueur monotone ��� ou ser�� apenas este diabo
de resfriado que ainda me amolenta o corpo? ��! Desato
I S R A E L E M A B R I L
179
a tossir sobre o crep��sculo. Observo em mim tr��s coisas
importantes. A primeira �� que estou metaf��rico. (O ar-
tista.) A segunda, que meu estado de sa��de piorou. (O
hipocondr��aco.) A terceira, que estou com fome. (O ho-
mem natural.) Descemos para o refeit��rio. Os Dothan
nos esperam a uma mesa, �� qual nos sentamos tamb��m.
O servi��o da hospedaria �� lento devido ao excesso de
turistas. Todos naturalmente t��m pressa. Os rapazes e
mo��as que nos servem parecem pouco interessados no
que fazem. A noite caiu. Amanh�� �� S��bado de Aleluia.
Lembro-me dos brinquedos da inf��ncia. Quantos judas
de trapos ajudei a enforcar? Bom, carrasco mesmo nunca
fui: era sempre o que pintava a cara do condenado, com
carv��o e carmim.
Comemos uma sopa cautelosa. M. v�� canseira no
meu rosto e interpela-me em voz baixa. N��o nego: estou
fatigado. Dothan nos informa que o Dr. Carlos Silberman,
m��dico judeu-argentino h�� pouco imigrado para Israel e
residente em Berseba, convidou-nos para uma reuni��o em
sua casa, onde encontraremos outros judeus sul-ameri-
canos.
Retornamos ao quarto. Experimento a ac��stica dos
corredores com um acesso de tosse. Atiro-me depois na
cama. Sil��ncio breve e rico de significa����o. Sei o que M.
vai dizer e ��� mais ainda! ��� estou certo de que suas
palavras, como sempre, estar��o carregadas de bom-senso.
Minha mulher tem os p��s na terra. Podia ser uma sabra.
Eu sou um pobre judeu da Di��spora que tem expiado sua
culpa em incont��veis guetos do esp��rito. (Onde se meteu
Zvi Glaser o fot��grafo? Deve ter voltado para Tel Aviv,
para passar o Sab�� em casa.) A voz da companheira de
viagem:
��� Acho que dev��amos cancelar o programa desta
noite.
180
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Tamb��m acho. Mas n��o podemos.
Por qu��?
��� O Dr. Silberman e seus amigos nos esperam.
��� Mas tu est��s cansado.
��� Estou mas vou.
��� A coisa �� assim t��o importante?
��� Eles me e s p e r a m . . .
��� Ser��s por acaso o Messias?
��� Qui��n sabei ��� exclamo, recordando outro pa��s,
outro povo, outra viagem.
A REUNI��O
Pouco antes das oito da noite, Alexandre Dothan me
telefona do sagu��o. "Estamos prontos." N��s tamb��m.
Vamos descer.
A noite est�� fria, e as estrelas parecem cristais de
geada no firmamento escuro. Nosso carro nos leva ao
longo de ruas, �� luz de l��mpadas de merc��rio.
��� Fica no andar t��rreo a casa do Dr. Silberman?
��� arrisca M.
��� Creio que no segundo ��� responde Dothan. ���
Mas n��o se preocupe: s��o poucos degraus.
Doce engano. A casa do Dr. Silberman fica num
terceiro andar. O nosso anfitri��o �� um homem alourado,
de seus trinta e poucos anos, robusto de porte, a face
corada. �� muito acolhedor. Simp��tica tamb��m �� a sua
senhora. Desde o primeiro momento noto neles uma pro-
nunciada saudade da Argentina.
O apartamento dos Silberman �� pequeno mas con-
fort��vel. Encontro na sala de estar v��rias pessoas senta-
das em cadeiras dispostas em fileiras, �� maneira dum
audit��rio. Desconfio que esperam de mim uma confer��n-
I S R A E L E M A B R I L
181
cia. N��o me engano. Depois das apresenta����es, d��o-me
a palavra. Ora, se h�� coisa que n��o quero neste momento
�� a palavra. A tosse continua. Minha voz soa como a dum
papagaio. Mas n��o h�� como escapar: falo. (No "audit��rio"
��� umas vinte pessoas ��� est��o dois judeus-brasileiros,
um m��dico do Rio e um qu��mico de Curitiba.) Conto o
que temos visto e sentido em Israel. Ao cabo duns vinte
minutos provoco um di��logo. Estou interessado em saber
a opini��o dos presentes sobre o futuro dos kibbutzim. Es-
tar��o condenados �� morte, como afirmam alguns obser-
vadores, por j�� haverem cumprido sua miss��o de pionei-
rismo? Ou ser��o ainda indispens��veis �� economia do
pa��s? As opini��es divergem.
Voltamos para o hotel pouco depois das dez horas.
A MORTE NO DESERTO
Se foi m�� a noite que passei no kibbutz de Gan
Chmuel, com tremores de frio e sonhos de febre, a que
passo hoje nesta hospedaria �� ainda pior, pois a tosse
recrudesce quando me deito sob as cobertas. M. medica-
me como pode: duas aspirinas, ch�� quente com suco de
lim��o, e palavras de conforto. Amanh��, por volta das
nove horas ��� reflito ��� desceremos para o deserto. Nosso
programa informa que visitaremos Massada, o rochedo
hist��rico, de cujo topo avistaremos o Mar Morto e o de-
serto em derredor. Depois desceremos para o famoso lago,
para conhec��-lo pessoalmente, isto ��, mais de perto. Ao
anoitecer seremos recebidos por Ben-Gurion em sua resi-
d��ncia no kibbutz de Sde Boker ��� o ponto mais meri-
dional de nossa penetra����o no Neguev. Tudo isso me
interessa, tudo isso vale a pena, minha alma n��o �� pe-
quena ��� pelo menos vivo nessa ilus��o ��� mas este res-
182
E R I C O V E R �� S S I M O
friado de m�� morte, esta tosse insistente, convulsiva como
uma coqueluche ser��dia, me tritura a carca��a. Pobre M.!
Consigo manter a boca fechada por alguns segundos, para
facilitar-lhe o sono, mas qual! ��� l�� vem a maldita co-
mich��o, que vai descendo cada vez mais para o fundo
da garganta. Rompo a tossir, sacudindo o corpo, a cama,
o hotel, a cidade, o deserto inteiro. Os sism��grafos de
Israel devem estar registrando um grande tremor de terra
com seu epicentro localizado em Berseba. Tenho j�� o
peito dolorido. Como se portar�� esta noite meu cora����o?
H�� instantes benditos em que tudo parece bem, respiro
aliviado e quase feliz, mas de repente l�� vem outra ��nsia
e a tosse me sai explosiva, rascante, com uma for��a ca-
paz de arrancar mucosas, rasgar o c��u da boca, enchendo
o quarto com peda��os sangrentos do meu pulm��o. Bom,
sei que estou exagerando. Mas exagerar ��� que diabo! ���
�� o ��nico consolo que me resta neste transe.
Refugio-me no quarto de banho ��� branco, fresco,
polido, h��gido, impessoal ��� para l�� dentro tossir sem per-
turbar o sono de minha desventurada companheira. Olho-
me no espelho oval, acima da pia. Essa cara! Os olhos
de minha m��e me contemplam do fundo de minhas pr��-
prias ��rbitas. Meto na boca uma das pastilhas contra
tosse que comprei ao entardecer, chupo-a desconsolada-
mente e de s��bito estou num cinema de Cruz Alta, me-
nino, um caramelo dan��ando na boca, Tom Mix matando
��ndios na tela, e dona Gabriela tocando uma valsinha no
seu piano. Volto para o quarto e torno a deitar-me, com
a tr��mula esperan��a de que tudo agora vai melhorar.
Penso nas ru��nas de Ascalom, imagino o encontro com
Ben-Gurion, recha��o a tiros um ataque de bedu��nos (Beau
Geste, da Paramount, com Gary Cooper.). C��f! C��f! C��f!
Outro acesso violento. Soergo-me na cama em agonia,
meio engasgado e fico a olhar para a janela. Vejo um
I S R A E L E M A B R I L
183
��nsuspeitado aneurisma rebentar no meu peito, o sangue
a jorrar. Minha mulher salta da cama e vem em meu so-
corro. Minto-lhe que estou bem. Ela n��o acredita. "Se
amanh�� continuares mal assim, temos de cancelar o nosso
programa" ��� diz, resoluta. Qu��? ��� reajo. ��� Deixar de
ver Massada, o Mar Morto, o deserto, o velho Ben-Gurion?
N��ncaras! M. volta para sua cama, tonta de sono. Torno
a estender-me na minha. A lividez da lua entra pelas vi-
dra��as. Ergo-me brusco, sentindo necessidade de mais
ar, e abro a janela. O bafo frio da noite me envolve. Pneu-
monia dupla! Encolho-me, torno a fechar a janela, e fico
contemplando as colinas ao luar. E se o aneurisma estou-
ra? Se o cora����o fraqueja? Imagino a not��cia nos jornais do
Brasil: Berseba, 8 de abril ��� Faleceu ontem subitamente
numa hospedaria desta cidade o escritor brasileiro... Sor-
rio para meus pensamentos. N��o consigo nunca ser abso-
lutamente dram��tico. Nas piores situa����es sempre posso
ver o seu lado humor��stico ou grotesco. E, no fundo, a
esperan��a jamais me abandona.
Volto para os len����is. Minha vi��va parece adorme-
cida. Naturalmente o cad��ver ser�� embalsamado. Talvez
o pr��prio Dr. Silberman possa encarregar-se do trabalho.
Pobre M.! Voltar para o Brasil com um defunto na ba-
gagem. .. Penso nos filhos, nos netos, nos amigos, na
minha casa. Passam-me pela cabe��a alguns projetos de
livros. E o corvo de Poe diz: "Nunca mais!". E l�� vem o
novo acesso da tosse, j�� agora rouca, como de cachorro.
Fico mirando longamente o teto. Se eu pudesse dormir
pelo menos umas quatro horas esta noite, teria amanh��
combust��vel suficiente para funcionar razoavelmente bem
durante o d i a . . .
Voc��s sabem quem morreu? (Vozes brasileiras co-
nhecidas.) N��o? Pois ��. Em pleno deserto, na estranja,
Turquia ou Ar��bia, sei l��! Eu sempre achei que um ho-
184
E R I C O V E R �� S S I M O
mem que j�� teve um enfarta��o como o dele devia sosse-
gar o pito, n��o se meter a fogueteiro e andar burleque-
ando pelo mundo como se tivesse coron��rias de vinte
anos. Uma velha tia suspira: "Coitado! Descansou". Pro-
testo. Esse tipo de descanso n��o quero. Dormir, isso sim.
O meu reino por uma soneca! Um bom sono sem tosse
nem sonhos.
E, n��o sei como, esse sono vem. Desapare��o do
mundo, mergulho numa esp��cie de Nada. Desperto com
o sol na cara e M. ao lado de minha cama. "Que horas
s��o?" ��� pergunto. "Oito e meia" ��� responde ela. "��
como te sentes?" Consulto-me e concluo: bem. Minha
mulher quer saber se vamos cumprir o programa do dia
Respondo que sim. E come��amos a nos preparar para a
jornada.
DI��LOGO COM UM CAMELO
Depois do caf�� sa��mos a andar no relvado que se
estende, ralo e pardacento, �� frente da hospedaria. Apro-
ximamo-nos do camelo que passa o dia �� disposi����o dos
turistas para fotografias, a uma lira por pose. �� um animal
grande, cuja idade se revela no p��lo falho e numa certa
magreza senil. Seus olhos me parecem duas jabuticabas
gra��das incrustadas em esferas de gelatina. O animal
fita-os em mim, enquanto move a boca no seu incessante
ruminar. Sempre acreditei em que os animais falam. Mas
�� indispens��vel a gente possuir o terceiro ouvido nietzs-
cheano capaz de ouvi-los e entend��-los. Este camelo agora
me diz:
��� Veja voc�� a que estou reduzido.
��� Compreendo e deploro a sua situa����o.
��� Compreenda mas n��o deplore. A sua, meu caro.
I S R A E L E M A B R I L
185
n��o �� l�� muito melhor que a minha. Presto-me a tudo.
Tenho sido fotografado de mil maneiras com homens e
mulheres e crian��as vindos de todos os quadrantes da
Terra. O sujeito que me explora paga-me com comida, e
tenho de ficar aqui o dia inteiro, sujeitando-me a todas
as ridicularias que voc�� possa imaginar.
Sacudo a cabe��a, penalizado, e o bicho prossegue:
��� Qualquer turista cretino, incapaz de dar um tiro
num rato, sobe para meu lombo e se imagina logo Law-
rence da Ar��bia no deserto, lutando contra os turcos. Est��
vendo aquela matrona gordota e enfeitada que est�� olhan-
do para c��, na frente da hospedaria? Pois ontem tirou
um retrato sentada no meu lombo e depois escreveu no
verso da fotografia: "A Rainha de Sab�� no seu camelo".
Antes que eu possa fazer qualquer observa����o, o ani-
mal continua:
��� Por que ser�� que ningu��m est�� contente com o
que ��, e vive a meter-se na pele de her��is? Voc��, por
exemplo, quantas vezes quis livrar-se do seu euzinho quo-
tidiano?
��� Muitas ��� confesso. ��� Quando crian��a identifi-
quei-me com Juca Rat��o que no dia de suas bodas caiu
na panela de feij��o. Depois fui o "Her��i de Quinze Anos",
de J��lio Verne, mais tarde Marco Polo, D'Artagnan...
Aos vinte anos virei Rodolfo Valentino, com toneladas de
brilhantina na cabeleira.
��� E a mocidade e a cabeleira se f o r a m . . .
��� Tu o disseste ��� replico biblicamente.
��� Pois eu me consolo com a id��ia de que n��o sou
um camelo qualquer. Um de meus ancestrais trouxe para
Berseba o profeta Abra��o. Outro, talvez o meu pai, foi
montado pelo Gen. Allenby. Havia antepassados meus nos
ex��rcitos de Cle��patra. J��lio C��sar um dia acariciou o
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E R I C O V E R �� S S I M O
p��lo de meu tetrav��.
Com os olhos viscosos ainda fitos em mim, o bicho
pergunta:
��� E agora, quem �� voc��?
��� Ah! Agora estou alimentando a minha maior fan-
tasia, tentando talvez o imposs��vel. Procuro ser eu mesmo.
Mas, como voc�� sabe, a vida �� uma dan��a com m��scaras.
Usamos tantas, que acabamos perdendo de vista a face
natural.
E, para minha surpresa, o camelo cita um verso de
Alberto Santiago:
Nos quitamos la m��scara
Y entonces descubrimos
que no existe la cara.
A CAMINHO DO NEGUEV
Barbeado de fresco, rosado e risonho, Jaime est�� ao
volante. Com nossos amigos, os Dothan, aboletamo-nos
no autom��vel, e a marcha rumo de Massada come��a. C��u
dum azul intenso, limpo e luminoso, como que mandado
pintar especialmente para esta viagem. No ar uma dis-
creta imita����o de frio.
O Neguev, grosso modo, tem a forma dum tri��ngulo
cujo v��rtice, formado pelos lados mais longos, toca o Mar
Vermelho. Em extens��o territorial corresponde a mais da
metade de todo o Estado de Israel e �� uma zona pouqu��s-
simo povoada. Creio que, contados judeus e beduinos,
sua popula����o n��o chega a cem mil habitantes.
Um poeta panflet��rio, olhando para o deserto, po-
deria exclamar, pat��tico, �� melhor maneira rom��ntica:
"Terra madrasta!". No entanto estaria redonda ou, me-
I S R A E L E M A B R I L
187
lhor, quadradamente enganado. A regi��o do Neguev, pode,
na pior das hip��teses, ser comparada com uma severa fi-
gura materna, sem as verdes e dadivosas do��uras da Ga-
lileia. N��o nega, entretanto, suas riquezas �� prole que a
habita. Esconde, isso sim, os seus tesouros, com aparente
avareza, talvez para exigir de seus filhos intelig��ncia e
esfor��o para descobri-los e merec��-los. Quantas mulheres
ga��chas conhe��o ��� e pintei tantas delas em meus ro-
mances! ��� que n��o sabem dar a seu amor materno ex-
press��o verbal, s��rias e impass��veis de face, parcas e ��s
vezes at�� r��spidas de gestos. A verdade �� que, met��fora
�� parte, o Neguev muito tem dado a Israel, e acham os
entendidos que tem ainda muito mais a dar em riquezas
minerais. Nem todo o seu ch��o �� est��ril. Nos arredores
de Berseba, por exemplo, encontramos no solo cor de
ocre queimado o loess, uma terra sediment��ria, ��s vezes
misturada com argila, e formada de elementos calc��rios
trazidos pelos ventos ��� em suma, uma terra f��rtil cujo
��nico defeito �� o de ser constitu��da duma poeira dema-
siadamente fina, dif��cil de fixar-se, presa f��cil dos ventos.
Protegidos, por��m, pelos renques de ��rvores que j�� men-
cionei, devidamente regados com ��gua trazida de v��rias
fontes, em grandes canos de concreto, e arados constan-
temente para que se lhes aumente o poder de absor����o ���
os solos de boa parte do norte do Neguev tornaram-se
ricamente produtivos. Os recursos minerais desta zona
des��rtica s��o consider��veis: cobre, s��lex, b��rio, areias sili-
cosas, caolim, rocha betuminosa, granito, m��rmore, gases
naturais, petr��leo, m a n g a n �� s . . .
Deixamos a regi��o suavemente ondulada de Berseba,
no chamado Plat�� do Neguev, e seguimos na dire����o de
nordeste para depois embicar para o sueste, pela Estrada
da Independ��ncia, que liga Berseba a Massada.
Estamos j�� em pleno deserto da Jud��ia ��� o reino
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E R I C O V E R �� S S I M O
do cacto e da pedra. Suas cores? Matizes de cinza e
pardo. Fico surpreso quando, apontando na dire����o do
norte, para Lahavat, Dothan me diz que nesse lugar se
produzem as mais deliciosas ma����s de Israel.
Os eucaliptos que orlam a estrada, agora minguaram
a ponto de parecerem pigmeus. Por fim desaparecem. A
primavera, por��m, nos acompanha no vento.
LI����ES DE PEDRA
Chegamos a Arad por volta do meio-dia. Esta �� uma
das comunidades mais novas de Israel e est�� nascendo
numa zona onde, nestes ��ltimos quatro mil anos, j�� sur-
giram e morreram dez outras cidades.
Segundo os planos de arquitetos israelenses esta ��rea
urbana no futuro poder�� abrigar confortavelmente cin-
q��enta mil pessoas. No momento Arad, com seus seis-
centos habitantes, �� uma esp��cie de dormit��rio para os
trabalhadores das usinas e minas do Mar Morto, que ao
fim dum dia de trabalho naquele buraco onde o calor
�� infernal, v��m dormir em paz na frescura das noites
desta cidade. Os economistas t��m grandes esperan��as
com rela����o a Arad, onde querem estabelecer um centro
de ind��stria petroqu��mica, utilizando para isso n��o ape-
nas os minerais do Mar Morto mas tamb��m o g��s natural
descoberto em Roch Zohar, perto daqui. Um mapa eco-
n��mico da regi��o me informa que estas montanhas do
nordeste do Neguev s��o riqu��ssimas em fosfatos.
O auto estaca. Desembarcamos. O ar continua pi-
cante. Seu teor de umidade n��o deve estar acima de
1 0 % . Cegonhas passam em revoada sobre as casas de
apartamentos de tr��s andares, que surgem da rocha gris,
uniformes como as de Berseba.
I S R A E L E M A B R I L
189
Algu��m nos pergunta se n��o vamos ver o famoso
vaso eg��pcio da Era do Bronze que se encontra no pe-
queno museu local. Infelizmente n��o temos tempo para
isso. Devemos seguir imediatamente para Massada ���
informa-nos Dothan, consultando seu implac��vel rel��gio.
N��o vemos tamb��m o centro c��vico de Arad, que neste
s��bado est�� fervilhante de turistas que, como n��s, v��o
visitar o hist��rico penhasco.
Dothan d�� instru����es a Jaime: ele deve seguir com
o carro por outra rota e ir esperar-nos junto dum restau-
rante que fica no sop�� de Massada, j�� no n��vel do Mar
Morto. Metemo-nos os quatro num jipe conduzido por
um sabra de vinte e poucos anos, corpulento, tostado de
sol, um chap��u de kibbutznik na cabe��a e uma express��o
p��cara no rosto. �� sa��mos aos solavancos por uma estrada
de pedra, onde �� intenso o movimento de ��nibus e outros
carros que conduzem turistas para destino id��ntico ao
nosso. O sabra parece rir-se de nosso desconforto, dos
gemidos que n��o podemos conter quando o jipe sacoleja.
E l�� nos vamos subindo e descendo, num intermin��vel
ziguezague, por entre colinas, gargantas, chapadas...
Penso no poema do nosso Jo��o Cabral de Melo Neto:
Uma educa����o pela pedra: por li����es;
para aprender da pedra, freq��ent��-la,
captar sua voz inenf��tica, impessoal
(pela dic����o ela come��a as aulas.)
A li����o de moral, sua resist��ncia fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de po��tica, sua carnadura concreta;
li����es de pedra (de fora para dentro,
cartilha muda) para quem soletr��-la.
190
E R I C O V E R �� S S I M O
Olho para os largos ombros do sabra, para seu pes-
co��o taurino e seus s��lidos bra��os, e penso: este rapaz
"freq��enta a pedra", aprende com ela a soletrar o de-
serto. Pertence a um mundo �� parte do nosso. Nesta
breve viagem n��o tenta comunicar-se conosco, limita-se a
responder em hebraico as perguntas que Dothan lhe faz
na mesma l��ngua. E eu sinto o idioma que usam como
uma barreira de pedra.
O sabra atira sua alegria para fora do carro, em
gritos e gestos, mas dirigidos apenas aos companheiros
que vai encontrando pela estrada, ao volante de outros
jipes, ��nibus ou caminh��es. Deve desprezar-nos um pouco
porque somos turistas, gente do asfalto e da sombra, ao
passo que ele �� da rocha e do sol aberto. Ou tudo isto
ser�� apenas imagina����o minha?
Assim, quase em sil��ncio, sacudidos dentro deste ve��-
culo de molejamento t��o duro como o solo do Neguev,
percorremos os vinte e seis quil��metros desta trilha si-
nuos��ssima, misto de serpente e porco-espinho. A posi����o
do sol confirma a hora que meu rel��gio-pulseira indica.
Ou vice-versa. Meio-dia em ponto.
O carro p��ra. Apeamos e vemos diante de n��s, con-
tra a porcelana do c��u um penhasco formid��vel eri��ado
de arestas, um gigantesco bolo de chocolate que a eros��o
vem mordiscando h�� mil��nios, com met��dica e lenta gula.
Massada! Lembro-me de que, quando pela primeira vez
vi a cordilheira dos Andes, senti no peito seu peso e sua
majestade. Cortou-se-me a respira����o. Massada, apesar
de seu tamanho, de sua estranha forma, de sua solid��o
e de suas dram��ticas conota����es hist��ricas, n��o me causa
temor ou ang��stia.
T��o limpo est�� o firmamento, t��o fresco e fino o ar,
t��o n��tidos os contornos das coisas, que tudo me parece
um pouco cen��rio pintado. Mas que cen��rio!
I S R A E L E M A B R I L
191
A EPOP��IA DE MASSADA
O drama de Massada come��ou no ano 66 da Era
Crist��, quando na Jud��ia a resist��ncia dos judeus ao jugo
romano tomava o car��ter de guerra revolucion��ria. Tendo
compreendido a import��ncia deste penhasco como for-
taleza natural de alto valor estrat��gico, um grupo de he-
breus comandado por Menachen Ben Yehuda assaltou-o
e conquistou-o, liquidando a guarni����o romana que aqui
se mantinha desde os tempos de Herodes, o Grande.
No ano de 67 Nero incumbiu Vespasiano de reprimir
a revolta dos judeus. Em 68 este comandante romano
havia j�� completado a conquista da Galileia, da Transjor-
d��nia e do litoral da Jud��ia. Os judeus, por��m, haviam
reconquistado Jerusal��m, instituindo um governo nacio-
nal, que proclamou os objetivos de sua guerra. Eram
contra o imperialismo e o colonialismo de Roma, contra
a idolatria e o tr��fico de escravos. Inspirados na justi��a
de Jeov��, o Deus ��nico, queriam estabelecer em sua terra
um regime em que se respeitasse a dignidade tanto moral
como f��sica do homem.
Morto Nero, Vespasiano tornou a Roma, onde foi
coroado imperador, deixando seu filho Tito no comando
das for��as romanas que ocupavam a Jud��ia. Como �� sabi-
do, no ano de 70, ap��s um cerco de cinco meses, as hostes
de Tito reconquistaram e saquearam Jerusal��m, ateando
fogo ao Segundo Templo. Para escaparem ao massacre
ou �� escravid��o, muitos judeus fugiram para o Deserto
da Jud��ia e alguns deles, em companhia de suas fam��-
lias, buscaram ref��gio na fortaleza de Massada, ent��o
sob o comando de Eli��zer Ben Jair.
Senhores agora de toda a Palestina, os romanos po-
deriam tranq��ilamente permitir que os defensores de Mas-
192
E R I C O V E R �� S S I M O
sada, imobilizados no alto de seu rochedo, se cozessem
no pr��prio caldo, sob o sol do deserto. Era-lhes por��m
inc��moda a id��ia de que novecentos e sessenta e sete
pessoas pertencentes ao partido religioso dos zelotes ���
homens mulheres e crian��as ��� continuassem livres, re-
cusando submeter-se �� autoridade do mais poderoso im-
p��rio do mundo. Ademais, consideravam um perigo deixar
vivo aquele foco de insurrei����o e esperan��a. Era preciso
conquistar Massadal
Com oito acampamentos fortificados, os soldados ro-
manos estabeleceram metodicamente o cerco da fortaleza
dos rebeldes. O s��tio durou v��rios anos. O ataque final
come��ou em fins de 72 e foi levado a cabo pela D��cima
Legi��o romana, forte de dez a quinze mil homens.
O que se sabe desse dram��tico epis��dio nos �� nar-
rado de maneira magnifica por Flavius Josephus no seu
livro A Guerra dos Judeus. Tendo perdido toda a espe-
ran��a de continuar a resist��ncia e vendo que os roma-
nos estavam prestes a derrubar e transpor as muralhas
de Massada, Eli��zer Ben Jair reuniu seus companheiros
e falou-lhes assim: N��s que nunca pudemos suportar
nem mesmo a menor das servid��es, n��o nos devemos de-
sonrar com uma escravid��o que significar�� sem d��vida
o mais terr��vel sofrimento, se cairmos nas m��os dos ro-
manos. Penso que Deus nos faz um favor particular co-
locando-nos numa posi����o de morrer como homens livres .
Segundo ainda Flavius Josephus, todos os homens
de Massada aceitaram e cumpriram o pacto de morte
que seu chefe lhes prop��s. Cada um deles liquidou com
as pr��prias m��os sua mulher e seus filhos. Depois amon-
toaram as coisas que possu��am e atearam-lhes fogo. Dez
deles foram sorteados para executar os demais compa-
nheiros. Cada homem deitou-se ao lado do cad��ver da
esposa e dos filhos, abra��ou-se com eles e ofereceu a
I S R A E L E M A B R I L
193
garganta aos executores. Os dez sobreviventes ent��o li-
quidaram-se entre si: o nono matou o d��cimo, o oitavo
matou o nono e assim por diante, at�� que restou um
��nico homem no topo de Massada. E essa personagem
de trag��dia grega se p��s a vaguear por entre os corpos,
para verificar se em algum deles restava ainda algum
vest��gio de vida, caso em que ela lhe daria o golpe de
miseric��rdia. Terminada a horrenda miss��o, o sobrevi-
vente incendiou o pal��cio da fortaleza e por fim suici-
dou-se, tombando ao lado dos membros de sua fam��lia.
Penso nessas nove centenas de cad��veres sobre a ro-
cha manchada de sangue, ao sol cru do deserto. E ima-
gino que o sil��ncio desses mortos deva ter pesado como
uma derrota no esp��rito de Flavius Silva, o procurador
romano na Jud��ia.
O NOSSO ASSALTO
Agora, neste princ��pio de tarde de Sab��, Massada est��
sendo de novo assaltada, desta vez por uma legi��o de
turistas de ambos os sexos e das mais variadas idades,
n��o s�� cidad��os israelenses como tamb��m, a julgar pelas
l��nguas que ou��o a meu redor, de v��rios outros pa��ses do
mundo. Faz apenas um ano e pouco que as ru��nas deste
penhasco foram franqueadas aos visitantes. Escalar Mas-
sada �� a um tempo um esporte, uma aventura hist��rica
e arqueol��gica e, para muitos judeus, tamb��m uma esp��-
cie de romaria religiosa. Como fileiras de coloridas e di-
ligentes formigas, os excursionistas sobem pelo espor��o
que, numa rampa, vai do ponto em que estamos at�� quase
ao topo do rochedo.
��� Vamos? ��� convida-nos Dothan.
Minha mulher franze a testa.
194
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Mas voc��s pretendem subir a p�� at�� l�� em cima?
��� E por que n��o? ��� sorri nosso amigo.
M. consulta-me com o olhar, talvez esperando de
mim uma recusa.
��� Vamos embora! ��� digo.
��� Est��s doido?
��� Tenho alma de alpinista.
��� Alma pode ser, mas c o r a �� �� o . . . n��o sei. Bom,
afinal de contas ��s tu quem sabe. Estou por t u d o . . .
��� Como sempre ��� terrnino-lhe a frase.
Minha mulher me faz uma recomenda����o sensata:
"D�� sete passos e faz uma paradinha para descansar".
Por que sete? Os sete dias da semana. Os sete s��bios da
Gr��cia. Os sete bra��os do casti��al simb��lico judaico. Os
sete an��es de Branca de Neve. As sete maravilhas do
mundo.
Come��amos a escalada. Sete passos e . . . alto! Pas-
sam por n��s bandos de mo��as e rapazes com mochilas
��s costas. Creio que esses dois sujeitos ruivos, de peies
brancas como queijo, que aqui v��o �� minha frente, de
cal����es curtos e m��quinas fotogr��ficas e cinematogr��ficas
a tiracolo, s��o alem��es, pois s�� alem��o ��� refuto folclo-
ricamente ��� �� que anda munido de tantos aparelhos
��pticos: bin��culos, lentes telesc��picas, filtros, c��maras de
v��rios tipos, fot��metros. .. Sim, e s�� esse tipo de turista
visita t��o estudiosamente os lugares hist��ricos, com o
nariz metido em livros, e nesse passo meio marcial de
quem caminha para uma conquista n��o s�� cultural como
tamb��m territorial.
Sinto-me leve, bem disposto, a cabe��a despejada. N��o
tenho nada a ver com o brasileiro que faleceu ontem nu-
ma hospedaria de Berseba. Este claro sol do deserto me
limpou os pulm��es e a alma. Tenho a impress��o de que
o ar fino n��o oferece a menor resist��ncia a meu corpo.
I S R A E L E M A B R I L
195
Caminho rampa acima com um entusiasmo de escoteiro.
E como sete, pelo menos no Brasil, �� conta de menti-
roso, come��o a "roubar": dou dez, doze, vinte passos
entre um descanso e outro. M., que me controla �� dis-
t��ncia, protesta: "Devagar, homem 1 N��o temos hora mar-
cada para chegar l�� em cima". Raquel e Alexandre, esses
sobem em passadas largas e r��pidas, est��o j�� bem dis-
tanciados de n��s e de vez em quando fazem alto, voltam-
se e acenam em nossa dire����o.
Penso: por aqui subiram os soldados da D��cima Le-
gi��o romana. Protegidos por suas flechas e por pedras
lan��adas por suas catapultas, constru��ram lenta e peri-
gosamente este caminho que agora trilhamos. Os rebeldes
de Massada defendiam-se atirando sobre os assaltantes
peda��os de rocha, as ��nicas armas que lhes restavam no
��ltimo ano de resist��ncia. Duma feita os romanos apro-
ximaram-se tanto da entrada ocidental da fortaleza, que
conseguiram atear fogo �� estacada de madeira que os
zelotes haviam erguido por tr��s da muralha de pedra.
O fogo, por��m, foi dominado e o inimigo mais uma vez
repelido. Mas o fim estava pr��ximo. Os golpes dos ar��etes
dos romanos que for��avam as entradas de Massada, de-
viam soar ao ouvido dos judeus como as batidas da Fa-
talidade.
Desta vez roubo trinta passos. M. j�� n��o protesta
mais. Um senhor com uma corpul��ncia e um perfil de
senador romano passa por mim bufando forte.
Flavius Josephus afirma em seu livro sobre a Guerra
dos Judeus que Herodes o Grande construiu neste pe-
nhasco uma fortaleza e um pal��cio de inverno porque
temia que o povo da Jud��ia se rebelasse e o depusesse,
caso em que ele viria refugiar-se aqui. Outro temor que
assombrava esse paran��ico era o de que um dia Cle��-
patra, rainha do Egito, voltasse seus olhos cobi��osos para
196
E R I C O V E R �� S S I M O
esta regi��o, e atirasse contra ela os seus ex��rcitos. Homem
de bom gosto, epicurista refinado, Herodes n��o se preocu-
pou apenas com o aspecto militar da fortaleza: deu a
seus pal��cios todo o conforto, dotou-os de banhos, pis-
cinas, soalhos de mosaicos, altas colunas e, levando mais
longe sua fantasia, fez construir, cortando a rocha da
encosta setentrional de Massada, um pal��cio de tr��s pa-
tamares semicirculares superpostos, cujo perfil avistei
antes de come��ar a subida.
Quantos minutos faz que come��amos a escalada?
Sinto que minha no����o de tempo dissolveu-se na atmosfera
do deserto. O c��u, como uma rotunda, parece cobrir um
espa��o vazio de tempo. Se a Terra n��o se movesse (He-
rodes teria dito "se o Sol n��o se movesse") creio que per-
der��amos por completo a id��ia de dura����o.
De onde estou agora avisto as ru��nas dos quadril��-
teros de muralhas de tr��s dos oito acampamentos roma-
nos que sitiaram Massada. Deste lado ocidental o pe-
nhasco deve ter quase cem metros de altura.
A "prociss��o" engrossa. M��es afogueadas e aflitas
puxam pela m��o os filhos, que relutam em continuar a
subida. Outras tratam de resolver os problemas hidr��u-
licos de seus pequeninos. Se Herodes pudesse ver todas
estas crian��as ��� reflito ��� que festa para seus olhos!
N��o sei de onde tira tanta energia f��sica este velho
magro, todo vestido de negro, que aqui vai a meu lado,
ofegante, os passos arrastados, os olhos postos no alto
do monte, como numa vis��o celeste. Continua a subir
com o zelo e a obstina����o de quem paga uma promessa
da qual depender�� o destino final de sua alma.
A rampa termina junto do flanco do rochedo, num
pequeno patamar onde come��a uma escada em zigue-
zague, cujos degraus galgamos lentamente para percorrer
os trinta e poucos metros que nos separam ainda do
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197
cume do penhasco. Sinto agora a for��a do sol. Dispo o
pul��ver, embora a brisa que vem das bandas do Mediter-
r��neo ainda me arrepie a pele com a pung��ncia duma
remota par��dia de inverno.
O DESERTO E O MAR MORTO
O topo de Massada �� uma chapada de rocha ��spera
onde se encontram os vest��gios de ��poca herodiana. Pas-
samos quase desatentos por entre essas rel��quias arqueo-
l��gicas, a passo acelerado, pois estamos curiosos por ver
o mundo que nos espera do outro lado do monte. Os
Dothan nos levam a um ponto de observa����o situado na
muralha oriental deste plat�� ��� que deve medir uns bons
oitocentos metros de ponta a ponta ��� e ent��o nossa
vis��o e nosso espanto se perdem num dos territ��rios mais
estranhos que tenho visto em toda a minha vida. Belo?
Sim, mas duma beleza ominosa, quase aterradora. N��o
ousamos abrir a boca nem para dizer ah!. O deserto nos
imp��e sil��ncio com o seu sil��ncio. O que temos diante
de n��s �� uma paisagem lunar. A face dum planeta morto.
O mundo antes do aparecimento da vida vegetal e animal.
A Terra depois de hecatombe at��mica. Sempre imaginei
que o ch��o do Neguev fosse de areia. �� de pedra ��� uma
sucess��o de colinas, montes, montanhas, penhascos, gar-
gantas, ravinas, mesetas, plan��cies, fissuras, grotas, vales,
nas mais ricas varia����es da gama do pardo, com sombras
esparsas dum azul viol��ceo, alternadas com manchas cor
de iodo.
O que nos primeiros segundos de contempla����o deste
espet��culo nos salva do p��nico �� o azul sereno do c��u,
que parece assegurar-nos que tudo est�� bem e que a vida
n��o desapareceu ainda da Terra. ��s vezes temos a im-
198
E R I C O V E R �� S S I M O
press��o de divisai na dist��ncia os contornos de cidades
fant��sticas (ass��rias? babil��nicas? eg��pcias?) com pal��-
cios, torres, terra��os, minaretes, muralhas, escadarias,
jardins suspensos... Pura ilus��o. �� ainda o deserto tra-
balhado pela eros��o, o mais lento, paciente e implac��vel
dos escultores.
Passados os primeiros minutos de contempla����o mu-
da e meio ofegante, come��amos a sentir-nos mais �� von-
tade diante da paisagem, tomamos at�� algumas intimi-
dades com ela. Aos poucos vamos descobrindo em sua
"carnadura concreta" cores semi-escondidas ��� uns tons
rosados, uns amarelos sulfurosos, uns lampejos de cobre.
A pouco mais de um quil��metro deste penhasco ���
dist��ncia medida a olho, com um brasileir��ssimo desprezo
pela exatid��o ��� estende-se para o norte o Mar Morto,
rumo do Vale do Jord��o, tendo �� esquerda as montanhas
da Judeia e �� direita as escarpas do Plat�� de Moab. Se
eu andasse ainda pela casa dos vinte, talvez tivesse a co-
ragem de dizer que esse lago, dum azul-esverdeado, pa-
rece uma turquesa engastada no duro peito do deserto.
Mas como j�� entrei na chamada idade provecta, �� evi-
dente que n��o me vou dar ao desfrute de usar a imagem.
Seja como for, eis o Mar Morto, conhecido tamb��m nos
tempos b��blicos como Mar do Sal, Mar do Oriente, Mar
da Plan��cie, e Mar da Morte, pois nele n��o existe nenhu-
ma vida animal ou vegetal. Os ��rabes chamavam-lhe Mar
de L��. Mar de Sodoma �� outro de seus nomes antigos,
n��o porque este corpo d��gua tenha cultivado qualquer
h��bito contra a natureza, mas sim porque, segundo os ar-
que��logos, Sodoma e Gomorra acham-se submersas em
suas ��guas, como resultado dum tremendo tremor de
terra ��� o que nos leva a pensar no fogo e no enxofre
com que, segundo o Velho Testamento, Deus destruiu
aquelas duas cidades do pecado com todos os seus habi-
I S R A E L E M A B R I L
199
tantes, menos o patriarca L�� e sua excelent��ssima fam��lia.
Flavius Josephus usou a express��o Lacus Asphaltitites
para designar este singular lago em cujo leito existe be-
tume em grande abund��ncia. Debrua suas praias uma
crosta irregular de sal, dum branco encardido, com man-
chas amareladas, enegrecidas aqui e ali pelo asfalto que
de seu fundo sobe �� superf��cie, flutuando at�� ��s margens.
O Mar Morto tem pouco mais de oitenta quil��metros
de comprimento para uma largura m��xima de dezessete.
Apenas um quarto de sua ��rea �� explorada pelo Estado
de Israel, que dessa parte extrai uma quantidade consi-
der��vel de bromos, sulfatos, carbonatos e v��rios cloretos,
como o de s��dio, o de potassa, o de magn��sio e o de c��lcio.
O Jord��o e o Arnon despejam diariamente neste lago
"introvertido" e fechado em si mesmo no fundo desta
impressionante fossa, mais de seis milh��es de metros c��-
bicos d��gua. Isso, entretanto, n��o contribui para aumen-
tar seu volume, porque, devido ao calor ardente dos dias,
a evapora����o �� t��o intensa que chega a anular a con-
tribui����o daqueles dois rios. Os peixes que estes trazem
na sua corrente morrem logo ao entrarem em contacto
com a ��gua salgada, e seus corpos ficam boiando �� su-
perf��cie, servindo de alimento aos cormor��es e outras aves
pesqueiras.
Pergunto: "Onde ficava a famosa Cidade do Sal, de
que fala Josu�� em seu livro?". Respondendo, Dothan apon-
ta para o norte, para Khirbat Qumran, invis��vel desta
dist��ncia. Foi nesse local tamb��m que em 1947 um jovem
bedu��no que se dedicava ao mercado negro ��� e na oca-
si��o contrabandeava para Bel��m um rebanho de cabras
��� encontrou por acaso numa caverna as jarras que con-
tinham os preciosos documentos hoje conhecidos como
Manuscritos do Mar Morto. "Os arque��logos" ��� diz Do-
200
E R I C O V E R �� S S I M O
than ��� "desenterraram em Khirbat Qumran o mosteiro
ess��nio onde os Manuscritos foram copiados."
Em Em Gedi, ainda �� margem ocidental do Mar
Morto, existiu cerca de 590 a. C. uma f��brica de perfumes,
no mesmo lugar em que Davi, tendo encontrado um dia
o seu inimigo Saul ferrado no sono, limitou-se a cortar-lhe
as vestes, poupando-lhe generosamente a vida. Ao sul de
Ein Gedi, em Nahal Hever, na fronteira com a Jord��nia,
descobriram-se entre 1960 e 1961 manuscritos que datam
do per��odo entre os anos 88 e 135 da Era Crist��, e que
lan��am luz sobre a ��ltima e malograda revolta dos judeus
contra os romanos, comandada por Bar Kochba.
Cansados da subida e da pedra (a primeira li����o
neste aprendizado �� sempre a mais dura) sentamo-nos
num banco, ainda de pedra. Os Dothan convidam-nos para
descer at�� ��s ru��nas da resid��ncia de Herodes, na encosta
setentrional do penhasco. Ergo-me para segui-los, mas
minha mulher me faz sentar, dizendo sensatamente: "Des-
cansa, homem. Est��s pior que essas velhotas turistas que
tanto ridicularizas por quererem ver tudo ��s carreiras,
custe o que custar". Tem raz��o. Fico.
Os Dothan j�� conhecem de muitas visitas o "ninho
da ��guia" e se agora l�� v��o de novo ��� explicam-nos ���
�� porque querem ver mais uma vez um lugar que para
eles tem um valor sentimental, pois costumavam visit��-lo
juntos quando noivos, ao tempo em que as escava����es
da vila particular de Herodes n��o estavam ainda termi-
nadas.
Depois de breve descanso n��o consigo conter meu
bicho-carpinteiro, e sa��mos a examinar os vest��gios hero-
dianos deste plat�� ��� os restos do grande pal��cio onde
o rei da Judeia vivia, dava audi��ncias e realizava ceri-
m��nias. Procuro sinais das trinta e sete torres que se
I S R A E L E M A B R I L
201
erguiam ao longo das muralhas de doze c��bitos de altura
que cercavam esta fortaleza. Continuo ainda analfabeto
em pedra. Um prospecto sobre Massada nos descreve
os magn��ficos banhos p��blicos que, �� melhor maneira
romana, Herodes mandou construir aqui para uso de
sua corte e de seus h��spedes. Olho para o buraco onde
foi a grande piscina, e fico a imaginar as orgias de que
este lugar foi teatro (ou circo) nas noites do deserto, ��
luz de tochas. (Quem mais imoral? Herodes, que promo-
veu essas farras romanas ou eu, que s��culos mais tarde
estou a reconstitu��-las mentalmente com os mais esca-
brosos pormenores? Seja como for, cada qual se diverte
como pode.)
Sentimos sede. Dois jovens sabras, Uma rapariga e
um rapaz, distribuem ��gua perto da muralha oriental,
postados ao p�� duma torneira atarrachada �� extremidade
dum cano. Aproximamo-nos. N��o somos bem sucedidos
no di��logo que tentamos estabelecer com eles. Parecem
entender apenas o hebraico. N��o reagem ��s nossas per-
guntas em ingl��s, mas sorriem com divertida benevol��n-
cia. Vestem ambos blue jeans, camisas de zuarte para
fora das cal��as, sand��lias, chap��us de pano. Ele �� magro,
usa bigode e barba, muito negros, e �� moreno como um
bedu��no. Ela parece uma fruta ou uma flor. (O leitor que
escolha.) Servem-nos. E aqui no lugar onde um dia He-
rodes e seus convivas libaram o vinho de suas bacanais
em ta��as lavradas, n��s bebemos ��gua do Mar da Galileia
numa caneca de lata. Enquanto bebo contemplo a mo��a,
radiosa �� dourada luz da tarde. Como j�� disse, meus
olhos possuem uma certa capacidade t��til: sinto que os
seios dela negam a dureza ��spera destas rochas, �� rosa
do deserto! Devolvo-lhe a caneca murmurando: Toda r��b��!
E nos vamos.
202
E R I C O V E R �� S S I M O
A DESCIDA
Os Dothan voltam de sua excurs��o. Come��amos os
quatro a descida. Deste lado oriental o topo de Massada
fica a uns seiscentos e vinte e poucos metros acima do
n��vel do Mar Morto. Devemos seguir pela Trilha da Ser-
pente, cortada r��sticamente na vertente do penhasco. A
senda n��o tem mais de um metro e meio de largura. ��
direita est�� a rocha, �� esquerda, o v��cuo sem nenhuma
amurada protetora, a n��o ser, de longe em longe, uma
grade de ferro em algum cotovelo extremamente perigoso.
Se Massada deste lado ca��sse a pique, n��o creio que eu
me arriscasse a descer. A trilha, justificando o nome,
serpenteia escarpada, ora no sentido longitudinal ora no
transversal da encosta, sobre uma sucess��o de pequenos
abismos n��o medonhamente vertiginosos, mas suficiente-
mente altos e cobertos de pedras pontiagudas para a gente
n��o desejar cair neles.
Quando come��o a descer, �� frente dos companheiros,
Dothan me aconselha: "Olhe sempre para o lado do monte
para evitar a vertigem". E aqui me v o u . . . Mas como ��
poss��vel olhar s�� para o lado do rochedo quando a paisa-
gem �� minha esquerda me chama em voz alta com a sua
dram��tica beleza ��� pedra, sal, sombra, lago e sol? O
computador da mem��ria me manda �� mente, n��tida, uma
lembran��a acompanhada de fantasmas de sensa����es olfa-
tivas e t��teis. Entardecer dum long��nquo dezembro na casa
paterna. Cheiro de frituras de azeite vindo da cozinha: aro-
ma de jasmins-do-cabo subindo do jardim. Estendido na
cama com um livro nas m��os, sou o mo��o ��xel, que acom-
panha seu tio, o s��bio Dr. Otto Lidenbrock, na sua viagem
ao centro da Terra. O professor conseguiu decifrar a men-
sagem de Arne Saknusemm, escrita em caracteres r��-
I S R A E L E M A B R I L
203
nicos I O texto m��gico tem para mim um sabor de poema.
Desce na cratera do Yocul de Sneffels que a sombra do
Scartar��s vem acariciar antes das calendas de julho, via-
jante audacioso, e chegar��s ao centro da Terra. Foi o
que fiz.
�� o que fa��o agora, quase cinq��enta anos mais tar-
de. Olho para o alto. Perdi de vista os companheiros. Con-
tinuo a d e s c e r . . . De vez em quando o declive �� t��o
acentuado que, n��o conseguindo que as pernas me obe-
de��am, rompo a correr e tenho de me agarrar �� primeira
anfratuosidade que a rocha me oferece, para poder esta-
car. Passam por mim outros excursionistas. N��o posso
admitir que aquele velhote que ah vai, des��a mais de-
pressa que eu. Estimulado pela competi����o, sigo apres-
sado em seu encal��o, ultrapasso-o, glorioso, desafio os
abismos, ergo os olhos para o sol, tenho a idade de
�� x e l . . . E quando come��o a orgulhar-me de minhas proe-
zas de "alpinista", eis que avisto pessoas que seguem a
Trilha da Serpente mas de baixo para cima. Sobem, os
miser��veis! Escalam Massada deste lado s�� para me des-
moralizar! Cruza por mim um homem de meia-idade, o
rosto afogueado, os olhos meio desvairados, a respira����o
forte mas met��dica, �� maneira dos iogues. E passa um
bando de rapazes e raparigas s��rios e silenciosos. E l��
vem uma senhora gorda, galgando alegremente a escarpa,
duplo-queixo, r��dio transistor colado �� orelha. E outros,
muitos o u t r o s . . . Fan��ticos!
Piso em seixos soltos, que rolam e me impelem con-
tra a minha vontade trilha abaixo, num galope desajei-
tado e aflito de cavalo velho, e assim vou at�� �� primeira
quina salvadora. Por fim chego ao sop�� do monte. Con-
sulto o rel��gio. Levei quarenta e cinco minutos na descida.
Doem-me os m��sculos das pernas e das coxas. Mas foi
divertido, palavra. Fico �� espera dos companheiros. Sento-
204
E R I C O V E R �� S S I M O
me numa pedra e de repente acordo para o fato de que
neste momento estou pisando o solo da mais funda de-
press��o do globo.
J�� reencontramos Jaime e o nosso autom��vel. Es-
tamos os cinco reunidos e famintos. No restaurante infor-
mam-nos que pouca coisa nos podem dar. �� tarde e os
turistas que por aqui passaram antes de n��s comeram o
que havia. Estou disposto a aceitar at�� sopa de pedra.
Pois d��o-nos coisa parecida: bolotas de matzot mergulha-
das num caldo turvo.
Depois do almo��o Raquel nos sugere uma sesta. Mi-
nha mulher e eu procuramos a sombra dum alpendre,
estendemo-nos em cadeiras pregui��osas. Fico de olhos en-
trecerrados, contemplando o Mar Morto na dist��ncia, mas
ainda n��o acreditando bem em que estamos aqui. Sopra
uma brisa que a princ��pio recuso aceitar como fria. Minha
epiderme, por��m, arrepia-se, contrariando minhas convic-
����es ou supersti����es geogr��ficas. Est�� frio de verdade.
M. j�� vestiu o pul��ver. Fa��o o mesmo. Dentro de poucos
minutos ambos arrastamos nossas cadeiras para fora do
alpendre, procurando o sol. �� incr��vel que, a quase qua-
trocentos metros abaixo do n��vel do mar, estejamos sen-
tindo frio ��s quatro da tarde. Est�� tudo errado.
SODOMA
De novo dentro do autom��vel, deixamos Massada
para tr��s e aqui vamos rodando na dire����o do sul, atra-
v��s duma paisagem singular: �� nossa direita o Mar
Morto debruado de sais e betume: �� esquerda uma su-
cess��o de penhascos que me custa acreditar sejam de sal
I S R A E L E M A B R I L
205
maci��o, pois est��o cobertos duma poeira negra, como vul-
c��nica, que lhes d�� a apar��ncia de basalto.
Passamos por um lugar chamado Sodoma, na extre-
midade meridional do lago. Acredita-se que nestas vizi-
nhan��as estavam localizadas Sodoma, Gomorra e as ou-
tras cidades da Plan��cie que Deus condenou �� morte. Se-
gundo lendas que por aqui correm, o pilar escuro do qual
agora nos aproximamos, e para o qual Dothan aponta,
�� a pr��pria esposa de L�� na express��o salina a que ficou
reduzida como castigo por sua curiosidade. Dothan faz
parar �� carro, apeia, arranca um peda��o do penhasco ���
n��o sei de que parte da anatomia da b��blica senhora ���
e entrega-o a minha mulher, que o guarda como lem-
bran��a.
Passamos de largo pelas grandes usinas de potassa
e bromo, que me parecem fant��sticas estruturas de a��o,
ferro e alum��nio, armadas por astronautas da Terra den-
tro da cratera dum planeta remoto e desabitado, para
explorar seus minerais preciosos. ��s margens do lago
erguem-se, atarracados, grandes cubos de sal. Diques de
terra dividem as ��guas em quadril��teros, �� fei����o de a��u-
des, onde se processa a sua evapora����o.
O quadro me fascina. Tenho a impress��o de que o
espectro de Van Gogh costuma assombrar este reino do
sal, aplicando-lhe a esmo insensatas pinceladas de ama-
relo. Por analogia, a imagem dum outro lugar me vem
�� mente: Antofagasta, que em 1941 vi da amurada dum
navio, com seu horizonte de pedra e guano ��� um es-
tudo em tons de mostarda.
Nas vizinhan��as de Neot Hakikar, nosso ve��culo toma
a dire����o do oeste. Estamos subindo para a superf��cie do
mundo e da vida. A noite come��a a cair sobre o deserto.
E mais tarde, sumido o sol, avistamos em Nahal Sorek,
206
E R I C O V E R �� S S I M O
contra a brasa do poente, o vulto do edif��cio onde se en-
contra o maior dos dois reatores at��micos de Israel.
Agora �� noite. Li ou apenas imaginei que existem
chacais no Deserto de Neguev? Mas o que eu n��o espe-
rava mesmo encontrar por aqui era o fantasma de Jo��o
Cabral de Melo Neto, conversando com as estrelas mine-
rais desta fria noite:
Outra educa����o pela pedra: no Sert��o
(de dentro para fora, e pr��-did��tica).
No Sert��o a pedra n��o sabe lecionar,
e se lecionasse, n��o ensinaria nada;
l�� n��o se aprende a pedra: l�� a pedra,
uma pedra de nascen��a, entranha a alma.
Agora na dist��ncia piscam as luzes dum kibbutz. ��
Sde Boker.
8
VISITA A UM PROFETA
A GUARDA
Deixamos o carro aos cuidados de Jaime, �� entrada
do kibbutz. Sa��mos a andar quase ��s escuras por entre
casas. Sinto grama sob a sola de meus sapatos. Vejo o
perfil de ��rvores a nosso redor. Fragrancia de flores e
ervas, no ar. N��o divisamos viv'alma. Luzes em raras ja-
nelas. Esta deve ser a hora em que os membros deste
aldeamento agr��cola-militar encontram-se reunidos no re-
feit��rio comum.
Dothan guia-nos na dire����o da resid��ncia do ex-pri-
meiro-ministro de Israel. Dum alpendre tibiamente ilu-
minado emergem dois homens ��� soldados armados de
metralhadoras port��teis. S��o ambos comovedoramente jo-
vens e de aspecto fr��gil. Alexandre p��e-se a confabular
com eles em hebraico. Ao cabo dum minuto faz-nos um
sinal para que nos aproximemos. Obedecemos. Nosso
companheiro bate �� porta da casa, que logo se abre. De-
208
E R I C O V E R �� S S I M O
para-se-nos, ent��o, a segunda linha de defesa ��� e a mais
dura ��� da "fortaleza" de Ben-Gurion: sua esposa Paula.
�� s��lida, morena, de aspecto en��rgico. Recebe-nos bem,
mas sem festa. Noto-lhe no rosto uma leve express��o de
contrariedade. Alexandre conversa animadamente com
ela, decerto lhe informa sobre quem somos e por que vie-
mos a esta hora. Faz depois as apresenta����es em ingl��s. O
car��ter franco e forte da matrona revela-se no seu aperto
de m��o. Ocorre-me uma frase que lhe atribuem: "Muitas
mulheres casam-se com primeiros-ministros. Eu fiz um
primeiro-ministro".
"Est��o certos de que Davi espera mesmo voc��s com
hora marcada?" ��� quer saber. Sacudo afirmativamente
a cabe��a. "Mas ele ainda est�� trabalhando!" Um remorso
antecipado me assalta. Dona Paula afasta-se de n��s, entra
no gabinete do companheiro, fecha a porta atr��s de si
e, ap��s alguns segundos, reaparece e diz: "Est�� bem".
Entramos.
O HOMEM
A sala �� de bom tamanho, mobiliada com gosto sim-
ples, as paredes completamente cobertas por estantes
cheias de livros. Muita luz. Davi Ben-Gurion vem a nossc
encontro, de m��o estendida. �� um homem de pequena
estatura (mais baixo que minha mulher) ��� robusto, pele
rosada, bochechas coradas, olhos cor de mel queimado,
cheios duma vivacidade juvenil, nega����o l��mpida de seus
oitenta anos. Est�� sem casaco ��� camisa e cal��as de brim
caqui ��� e tem o aspecto n��o de quem passou a tarde
trabalhando mas sim de quem acaba de sair, bem esfre-
gado e luzidio, dum bom banho. Pronuncia meu nome
clara e corretamente, o que me surpreende. "Acomodem-
I S R A E L E M A B R I L
209
se, por favor" ��� diz com afabilidade. Volta para a sua
cadeira, atr��s da ampla mesa de trabalho, sobre a qual
vejo a folha de papel em que est�� escrevendo, um tin-
teiro, v��rias canetas e l��pis dentro dum pote de cer��mica,
livros abertos.. . Sentamo-nos todos na frente de nosso
anfitri��o. Seu sorriso �� contagioso. A julgar pelo seu ex-
terior, este l��der pol��tico, este imp��vido guerreiro, este
incans��vel pensador e homem de a����o, n��o passa dum
av�� ben��volo e bonach��o. (Podia ser tamb��m, com essa
famosa cabeleira branca e esfalripada, um professor uni-
versit��rio, um regente de orquestra sinf��nica ou um m��-
gico . . . ) Quero dizer-lhe o quanto o admiro, mas sinto
que vou pronunciar frases convencionais. Continuo ca-
lado. O melhor �� deixar que ele comece a conversa. N��o
vim propriamente entrevist��-lo, n��o preparei perguntas.
Quero que o di��logo se processe naturalmente.
Ben-Gurion fica por alguns segundos a examinar
minha mulher com olho simp��tico, depois volta-se para
mim:
��� Fui informado de que o senhor �� romancista. . .
��� Pois �� . . . ��� respondo, constrangido como se ele
me tivesse perguntado se sou estelionat��rio ou traficante
de brancas. ��� Admito que seja uma profiss��o um pouco
r a r a . . .
Ele faz com a cabe��a um sinal na dire����o do papel
que tem �� sua frente.
��� Pois eu tamb��m escrevo livros, embora essa n��o
seja a minha profiss��o. No momento trabalho numa His-
t��ria de Israel, desde a funda����o da cidade pioneira de
Petach-Tikvah, em 1878, at�� nossos dias.
Seu ingl��s �� correto e fluente, mas tem a sombra
dum sotaque, embora menos carregado que o meu.
Dona Paula puxa uma conversa lateral e dom��stica
com minha mulher, que em dado momento lhe conta que
210
E R I C O V E R �� S S I M O
nossa ��nica filha se casou com um f��sico judeu-ameri-
cano e nos deu tr��s netos homens.
��� Pois nosso filho ��� interv��m Ben-Gurion ��� ca-
sou-se com uma mo��a inglesa crist��. Tamb��m temos
netos!
Segue-se um desses di��logos que s�� os av��s com-
preendem e estimam. Depois, Dothan conta aos donos
da casa de nossas andan��as durante o dia e acaba por
fazer uma refer��ncia elogiosa ao zelo dos soldadinhos que
montam guarda �� porta.
��� Ah! ��� exclama o Velho. ��� Coitados! Todas as
manhas costumo caminhar de seis a sete quil��metros nos
arredores do kibbutz, e esses meninos me seguem, apesar
de meus protestos.
��� S��o anjos da guarda sabras ��� digo. ��� Em vez
de asas t��m metralhadoras.
��� Hoje abstive-me de fazer o meu passeio para n��o
obrig��-los a trabalhar durante o Sab��.
Compreendo as precau����es que o kibbutz toma com
rela����o ao seu h��spede mais ilustre. Afinal de contas, as
fronteiras da Jord��nia e do Egito n��o ficam muito dis-
tantes daqui, e os ��rabes teriam um dia de festa se pu-
dessem agarrar ou liquidar este l��der israelense.
A FIGURA HIST��RICA
��� O senhor tem algum sangue judeu? ��� pergun-
ta-me Ben-Gurion.
��� N��o, que eu saiba.
��� At�� que ponto conhece sua ��rvore geneal��gica?
��� At�� um senhor chamado Manoel Ver��ssimo da
Fonseca, natural de Ervedal da Beira, em Portugal, e que
emigrou para o Brasil em 1810.
I S R A E L E M A B R I L
211
Que sei eu sobre Ben-Gurion? Nasceu em Plonsk,
na Pol��nia, em 1886. Muito mo��o, apaixonou-se pela
id��ia sionista. Veio para a Palestina, onde se fez agricul-
tor, fundou um jornal e um partido pol��tico.
Pergunto ao velho se esses dados est��o certos. Ele
sorri o belo sorriso que lhe acentua as zigomas e ilumina
o rosto.
��� Sim. Sou o que se pode chamar de "ativista".
��� �� verdade que estudou direito na Universidade
de Constantinopla em 1912? ��� Ele sacode afirmativa-
mente a cabe��a e eu prossigo ��� �� certo tamb��m que as
autoridades turcas o expulsaram da capital, como ele-
mento indesej��vel?
Desta vez Ben-Gurion solta uma sonora risada.
��� Sim, os turcos expulsaram-me de seu pa��s e mais
tarde, l�� pelo fim da Primeira Guerra Mundial de certo
modo eu ajudei os ingleses a expulsar os turcos da Pa-
lestina. N��o s�� recrutei soldados judeus para os regimen-
tos de Jabot��nsky (j�� ouviu falar neste nome?) como
tamb��m eu pr��prio me alistei como soldado.
Sei que depois da Primeira Guerra Mundial Davi Ben-
Gurion dedicou-se �� pol��tica, sempre orientado para o sio-
nismo.
��� �� verdade que foi o senhor um dos que mais
usaram da sua influ��ncia junto �� Liga das Na����es para
que esta criasse um mandato na Palestina?
��� Sim, isso significou um passo rumo da cria����o do
Estado de Israel. E nenhum outro pa��s poderia exercer
esse mandato melhor que a Gr��-Bretanha.
Dona Paula ergue-se e convida-nos para jantar em
sua companhia no refeit��rio do kibbutz. Como recusamos,
retira-se sem insistir no convite. (Gosto dela.) Depois dum
curto sil��ncio Ben-Gurion torna a olhar na minha dire-
����o e, com o ar de quem se diverte, repete:
212
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Ent��o o senhor �� romancista! Pois tenho de lhe
confessar que h�� trinta anos n��o leio romances.
��� Faz muito bem. �� tempo perdido.
��� N��o digo que seja. Mas prefiro ler os fil��sofos.
��� Eles ��s vezes tamb��m fazem fic����o.
O estadista sorri. Depois nos conta que um dia re-
cebeu de presente dum amigo a obra completa de Espi-
nosa no original, e julgou-se na obriga����o de aprender
o espanhol para l��-la, assim como aprendera o grego
para poder entender melhor Plat��o, que considera um
dos maiores pensadores que a humanidade j�� produziu.
��� Mas o meu escritor favorito de todos os tempos
e de todas as l��nguas �� a q u e l e . . . ��� Aponta afetuosa-
mente para uma pequena reprodu����o da conhecida es-
t��tua de Mois��s, de Miguel Angelo, que branqueja entre
livros, numa das estantes. Conta-nos tamb��m que apren-
deu hebraico com o av��, sentado em seus joelhos.
Quer saber quanto tempo vamos permanecer em Is-
rael. Que lugares visitamos? Que pessoas encontramos?
Pretendo escrever alguma coisa sobre este pa��s? Respon-
do a esta ��ltima pergunta de maneira vaga. E ele:
��� Tem tomado notas, muitas notas? Acho perigoso
confiar na mem��ria. Um historiador deve estudar e pes-
quisar durante tr��s dias e s�� escrever no quarto. E para
compreender Israel o senhor precisa ficar aqui muito,
muito tempo.
J�� me sinto culpado, pois sei que desta visita de
vinte dias me vai sair fatalmente um livro. Estou a pique
de invocar minhas imunidades de ficcionista, mas acho
melhor n��o dizer nada. Seria uma irrever��ncia confessai
diante deste homem que vou escrever sobre o Estado que
ele ajudou a construir e est�� contribuindo para manter.
O Velho faz uma pergunta que me surpreende:
��� Por que �� que as rep��blicas latino-americanas n��o
I S R A E L E M A B R I L
213
se unem todas para formar um ��nico pa��s? Falam a
mesma l��ngua (com exce����o do Brasil), t��m a mesma re-
ligi��o. . . Por qu��?
��� Essa uni��o ��� respondo ��� n��o me parece pos-
s��vel e talvez n��o seja desej��vel. J�� imaginou qual seria
a capital das Rep��blicas Unidas da Am��rica Latina?
(Penso, mas n��o digo, que essa capital acabaria por ser,
inescapavelmente, Washington D. C.) Creia, sr. Ben-Gu-
rion, que o fato de o Brasil ter permanecido unido desde
a proclama����o de sua Independ��ncia at�� hoje �� uma es-
p��cie de milagre que me surpreende e encanta. Veja bem:
apesar das dist��ncias, da precariedade dos meios de trans-
porte e comunica����o (que s�� agora melhoram) falamos
uma ��nica l��ngua, com pequenos matizes regionais, mas
n��o temos propriamente dialetos. A It��lia, muito menor
que o Brasil em extens��o territorial e culturalmente mais
importante e antiga, tem mais de setenta.
Ben-Gurion brinca com um corta-papel, murmu-
rando:
��� Conhe��o pouco o Brasil, infelizmente. Quando l��
estive encontrei-me com J��nio Quadros, de quem tive
muito boa impress��o. Sua ren��ncia deixou-me desnor-
teado.
��� Seis milh��es de brasileiros, meu caro ministro,
tamb��m se enganaram com o Dr. Quadros. Confesso que
fui um deles.
Dothan comenta as ��ltimas not��cias do mundo. Al-
gu��m menciona o nome do Presidente De Gaulle. Ben-
Gurion diz que o considera um grande estadista. E acres-
centa:
��� Acredito que �� o ��nico homem da Fran��a com
coragem suficiente para resolver definitivamente o pro-
blema da Arg��lia.
Quando se fala na Terceira Guerra Mundial, nosso
214
E R I C O V E R �� S S I M O
anfitri��o murmura que isso seria o fim da Humanidade.
Pergunto-lhe se acredita na inevitabilidade da hecatombe,
ele sacode a cabe��a negativamente.
��� N��o. Como todo o judeu, sou um otimista.
��� N��o considero os judeus propriamente otimistas
��� replico, tendo o cuidado de aduzir: ��� Talvez o novo
judeu que Israel est�� criando.. ..
Ben-Gurion abre os bra��os num gesto largo:
��� Meu amigo, n��o confunda realismo com pessi-
mismo. Se n��o fossemos otimistas, como poder��amos ter
sobrevivido atrav��s dos s��culos, a todas as persegui����es,
dispers��es, desastres, torturas, massacres? E n��o esque��a
que os "judeus antigos" tamb��m nos ajudaram a fazer
esta na����o. E continuam na barricada.
DA UTILIDADE DOS INIMIGOS
De s��bito o velho Davi me surpreende com uma per-
gunta gaiata:
��� Por que �� que voc��s na Am��rica Latina precisam
de tantos generais?
��� Sabe que esta simples pergunta feita no Brasil
hoje em dia seria considerada subversiva?
��� N��o acredito!
��� E, por falar em generais, o senhor concorda com
Paul Val��ry quando ele diz que "a exist��ncia dos vizinhos
�� a ��nica defesa das na����es contra uma perp��tua guerra
civil"?
Ben-Gurion fica um instante pensativo e depois, com
um sorriso malicioso, diz:
��� Sempre achei que se n��s nos mantemos unidos
dentro de Israel �� gra��as aos ��rabes, nossos vizinhos e
inimigos.
I S R A E L E M A B R I L
215
Lembro-me duma anedota que circulou no mundo
ao tempo em que Davi Ben-Gurion era o primeiro-ministro
deste pa��s. Anunciou-se um novo Dil��vio, que cobriria a
Terra com cinq��enta metros d��gua. Cat��licos, protestan-
tes e mu��ulmanos foram convocados por seus sacerdotes
para orar, fazer as pazes com Deus e preparar-se para o
Ju��zo Final. Ben-Gurion, por��m, chamou seus cientistas
e t��cnicos e disse-lhes: "Desenvolvam com a maior ur-
g��ncia um projeto que permita ao povo de Israel viver
debaixo de cinq��enta metros d��gua".
O PROFETA
N��o faz muito, li que quando Ben-Gurion visitou os
Estados Unidos, ainda na qualidade de primeiro-ministro,
teve a oportunidade de conversar com centenas de es-
tudantes universit��rios americanos de origem judaica, aos
quais, entre outras coisas, disse: "Que estais fazendo aqui?
Voltai para casa! Associai-vos �� ��nica aventura contem-
por��nea em que a fronteira est�� ainda aberta. A p��tria
de vossos ancestrais necessita desesperadamente de v��s
e de vossos talentos!".
Lembro estas palavras ao nosso anfitri��o, que sa-
code lentamente a cabe��a, confirmando-as.
��� Na minha opini��o o juda��smo e os judeus n��o
podem existir verdadeiramente fora de Israel. Suas ra��zes
encontram-se nesta terra. O judeu da Di��spora n��o pode
continuar na sua dicotomia. Judeu-frances, judeu-ingl��s,
judeu-italiano, e t c . . . s��o express��es sem sentido. Chegam
a ser patol��gicas, anormais, incompat��veis com a ess��ncia
do s��o juda��smo! O ��nico lugar do mundo onde os judeus
podem viver sem inibi����es �� aqui na Palestina hist��rica,
�� qual eles pertencem.
216
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Mas a Di��spora continua ��� observo. ��� Se n��o
me engano, o n��mero de judeus que vieram para Israel
�� diminuto, comparado com o dos que ficaram espalhados
pelo m u n d o . . .
��� E verdade. Mas se os judeus, atra��dos pelo con-
forto e pela prosperidade materiais, persistirem na dis-
pers��o, fatalmente h��o de convidar os outros povos a re-
petir as tr��gicas agress��es do passado. Pense na expul-
s��o dos hebreus da Espanha, depois de tudo quanto eles
fizeram pela grandeza desse pa��s e da cultura da ra��a
humana. Pense no genoc��dio de judeus levado a cabo
pelos nazistas!
Faz uma pausa. Olha, vago, em torno, e depois diz:
��� Precisamos elevar nossa popula����o a quatro mi-
lh��es de habitantes. Isso �� capital. Havemos de manter o
Estado de Israel. Esta nova na����o atrai o que h�� de
melhor na juventude judaica do mundo inteiro. Temos
sido uma esp��cie de "Estado piloto", de escola para os
pa��ses novos que apareceram na mesma ��poca que Israel.
Temos dado tamb��m li����es proveitosas a pa��ses antigos
da ��sia, da ��frica e da Am��rica do Sul. Muitos dos pro-
blemas com que h�� mil��nios essas na����es lutam est��o
sendo resolvidos em Israel, no campo da agricultura, da
educa����o, da medicina, da engenharia. . . Mandamos t��c-
nicos para todos esses pa��ses. Creio que h�� especialistas
nossos em solos ��ridos colaborando com seus colegas bra-
sileiros em alguma parte de vosso Nordeste.. .
ISRAEL E O MUNDO
Dona Paula volta e retoma a sua guarda. A conversa
resvala para assuntos dom��sticos. Quantas horas trabalha
Ben-Gurion por dia? Resposta: "Ele escreve durante qua-
I S R A E L E M A B R I L
217
se todo o dia". (Minha mulher me olha como quem insi-
nua: "Mira-te nesse espelho".) E a alimenta����o? E o sono?
Dona Paula nos d�� uma resposta sint��tica: "Ele sabe
cuidar bem de si mesmo".
Volto-me para Dothan e, fazendo com a cabe��a um
sinal na dire����o do dono da casa, digo:
��� J�� tomamos bastante tempo do nosso amigo. . .
Alexandre e Raquel erguem-se. M. e eu fazemos o
mesmo. Ben-Gurion det��m-nos com um gesto.
��� Fiquem um pouco mais. N��o beberam n a d a . . .
Desejam alguma coisa? Paula!
Respondemos que n��o queremos nada, agradecemos,
tornamos a sentar-nos. O novo profeta de Israel prossegue.
��� Detestamos a guerra, mas somos capazes de fa-
z��-la, se necess��rio. Israel compreende que seu destino
est�� integrado no destino de toda a Humanidade. Procu-
ramos a paz, a frutifica����o dos desertos, o progresso do
indiv��duo, da educa����o, da ci��ncia, dentro duma socie-
dade l i v r e . . . Acreditamos tamb��m na toler��ncia, na
ajuda m��tua e no amor ao pr��ximo. Queremos amizade
e paz com todos os povos, inclusive e principalmente com
os povos ��rabes, com os quais estamos prontos a parla-
mentar e cooperar. ��� Com um gesto mostra os pap��is
e os volumes que tem sobre a mesa. ��� Estou escrevendo
neste livro todas estas coisas que vos acabo de dizer.
Sinto que M., como eu, est�� fascinada por este gran-
de velho.
CHALOM!
Quando, alguns minutos depois, nos despedimos,
Davi Ben-Gurion j�� �� porta de seu gabinete, diz:
218
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Repito que sou um otimista. Acredito na profe-
cia de Isa��as que, referindo-se �� paz definitiva, escreveu
que "Deus um dia exercer�� o seu ju��zo sobre as gentes
e repreender�� a muitos povos; e estes converter��o suas
espadas em enxadas e as suas lan��as em foices: n��o
levantar�� espada, na����o contra na����o, nem aprender��o
mais a guerrear".
Sa��mos para a noite. Faz frio. Acenamos para os
guardas de Ben-Gurion. Entramos no carro. Segundo o
programa, devemos agora tocar para Bror Hayil, o kihbutz
dos brasileiros. Minha mulher, por��m, faz um protesto,
que eu apoio de todo o cora����o.
��� Acho ��� diz ela ��� que devemos mudar de itine-
r��rio. Amanh�� �� domingo da P��scoa e eu gostaria de ir
a uma missa em Jerusal��m.
Dothan concorda. Para Jerusal��m, pois, amigo Jai-
me! E de novo sa��mos a rodar pelo deserto, sob as
estrelas.
9
JERUSAL��M
O CORREDOR
Algu��m j�� ouviu falar em cora����o que pudesse pul-
sar separado do corpo a que pertence, continuando a ali-
ment��-lo do mais quente e rico sangue? Pedindo perd��o
pela met��fora que me ocorre na sonol��ncia deste fim de
viagem ��� direi que tal �� o caso de Jerusal��m, cora����o
do Estado de Israel, ao qual est�� ligado pelo estreito e
perigoso corredor que corta territ��rio jordaniano, e ao
longo do qual nosso carro agora rola, cerca das onze da
noite deste longu��ssimo s��bado de Aleluia.
Como se sabe, Tel Aviv foi constru��da por um grupo
de judeus da Palestina. Jerusal��m �� um misterioso pro-
duto da Hist��ria. (Outra vez a dama gorda e inescrut��-
vel.) Tel Aviv pode ser comparada a um escrit��rio de
grande empresa, a uma ag��ncia tur��stica, a uma sala
de visitas ou a um playground. �� a parte moderna e fun-
cional do lar judeu, ao passo que Jerusal��m �� o santu��-
220
E R I C O V E R �� S S I M O
rio, a alcova onde se guardam as rel��quias mais espiri-
tualmente caras ��s tradi����es e ��s cren��as religiosas ���
e j�� agora tamb��m pol��ticas ��� da fam��lia.
Calcula-se que os mais remotos ind��cios da exist��n-
cia da vida humana na ��rea que Jerusal��m hoje ocupa,
datam da Idade da Pedra. De pedra Jerusal��m foi feita.
De pedra tem sido seu destino. De pedra suas muitas ago-
nias, bem como suas mortes e repetidas ressurrei����es.
De pedra tamb��m o segredo de seu m��gico encanto. Je-
rusal��m nunca teve import��ncia mercantil digna de nota.
Rica n��o �� de ��gua nem de madeira. Existiram no tempo
hist��rico e nesta parte do mundo cidades maiores e mais
suntuosas, mas Jerusal��m foi sempre a desejada das gen-
tes e das religi��es, a cobi��ada dos grandes imp��rios pre-
dat��rios.
A origem de seu nome �� duvidosa. Vir�� de U(r)ucha-
mem, tal como aparece nos Textos da Execra����o, na d��-
cima segunda d��cada da dinastia eg��pcia? Ou de Urusalim,
segundo documentos do s��culo XV a. C? Muitos estu-
diosos hoje em dia acham mais aceit��vel a hip��tese de
que o nome Jerusal��m se tenha originado duma palavra
composta do verbo iara, que significa "lan��ar a pedra fundamental" e de Chalem, nome dum deus sem��tico. Na
B��blia a cidade sagrada da Palestina �� muitas vezes men-
cionada como Jebus, a terra dos jebusitas, uma gente
que l�� viveu antes da vinda do rei Davi.
O profeta Zacarias escreveu: Assim diz o Senhor:
Voltarei para Si��o e habitarei o meio de Jerusal��m; e Je-
rusal��m chamar-se-�� a cidade da verdade .
Muitos s��o os ep��tetos que se davam na antiguidade
a Jerusal��m, tendentes todos a criar em torno dela uma
atmosfera de retid��o, santidade, justi��a e promessa de
vida eterna. Acredita-se que sua funda����o propriamente
dita tenha ocorrido n��o na Idade da Pedra, mas na do
I S R A E L E M A B R I L
221
Bronze (c. 3500 - 2000 a. C.) ao tempo em que os ca-
na��itas come��aram a estabelecer-se nesta regi��o aciden-
tada e semi-��rida. Tendo sido Jerusal��m amea��ada de
invas��o pelos habiru, (talvez esta palavra tenha alguma
rela����o com ivriim, origem prov��vel do termo ingl��s
Hebrew e do nosso hebreu, isto ��, "povo do outro lado
do rio", "povo que cruzou o rio", neste caso o Eufrates)
seu rei pediu prote����o ao fara�� que nesse tempo reinava
no Egito, e provavelmente conseguiu que o soberano man-
dasse uma guarni����o eg��pcia para a cidade em perigo.
Mais tarde Jerusal��m foi dividida entre as tribos de Jud��
e Benjamim. Capturada no ano de 1010 a. C. por Davi,
que para ela trouxe a Arca da Alian��a, Jerusal��m tornou-
se n��o apenas a capital dum Israel unido como tamb��m
um centro religioso judeu. E Davi ent��o foi rei dum
territ��rio que se estendia das margens do Eufrates at��
ao Mar Vermelho.
Quando entre os anos de 970 e 930 a. C. Salom��o,
que sucedera seu pai no trono de Israel, construiu um
templo em Jerusal��m, esta cidade predestinada tornou-
se definitivamente o centro da religi��o judaica. Da�� por
diante a Yeruchalayim dos hebreus sofreu atrav��s dos
s��culos uma s��rie de agress��es militares e c��smicas, pois
foi sacudida e ferida n��o s�� pelos ataques de muitos
ex��rcitos estrangeiros como tamb��m por tremores de ter-
ra. Foi vinte vezes sitiada e bloqueada, umas dezoito vezes
reconstru��da.
Chichak do Egito saqueou-a em 950 a. C. Os ass��-
rios a cercaram em 701 a. C. Nabucodonosor, que a con-
quistou em 586 a. C, destruiu o Templo e o pal��cio real,
determinando a primeira Di��spora, que levou milhares
de judeus �� dispers��o pelo mundo ou ao cativeiro em
terras da Babil��nia. Mais tarde, restaurado o Templo ���
Jerusal��m tornou-se prov��ncia da P��rsia. Veio depois o
222
E R I C O V E R �� S S I M O
per��odo helen��stico, que significou paia a cidade que os
gregos chamavam de Hierosolima, prosperidade n��o s��
material como tamb��m cultural. E tudo esteve bem para
a popula����o judia at�� ao dia em que se fez sentir a pe-
sada m��o de Ant��oco IV, que profanou o Templo, pro-
vocando a revolta dos hasmoneus e a dos macabeus. Sob
o dom��nio dos hasmoneus Jerusal��m voltou a ser capital
de Israel. Essa independ��ncia, por��m, teve curta dura����o,
pois terminou em 631 a. C, quando a cidade foi ocupada
pelas legi��es romanas do Gen. Pompeu.
No ano 37 a. C. Jerusal��m caiu nas m��os de He-
rodes, que mandou construir no noroeste da cidade um
grande pal��cio protegido por tr��s torres. Depois da morte
deste pitoresco megaloman��aco e da deposi����o de Arque-
lau, seu filho e sucessor, Jerusal��m passou a ser gover-
nada por procuradores romanos. Sob um deles, P��ncio
Pilatos, Jesus Cristo (lembram-se do menino que h�� pou-
cos dias encontramos nos arredores de Nazar��? ) foi preso,
julgado, crucificado e morto no ano 39 de Sua Era.
Revoltaram-se um dia os judeus contra o insupor-
t��vel jugo dos romanos. Foram, por��m, vencidos ao cabo
de tr��s anos de prec��ria independ��ncia. O imperador
Adriano mandou reconstruir Jerusal��m como col��nia ro-
mana, sob o nome de A��lia Capitolina, proibindo os ju-
deus, sob amea��a de pena de morte, de se aproximarem
de sua Si��o.
Cristianizado o Imp��rio Romano, Jerusal��m passou
a ser a cidade santa da religi��o crist��. No ano de 614
d. C. foi ocupada de novo pelos persas. Passados quator-
ze anos, Her��clio restaurou o dom��nio do Imp��rio Bi-
zantino. Em 628 o Califa Omar reconquistou Jerusal��m
e permitiu que os judeus voltassem �� sua casa espiritual.
I S R A E L E M A B R I L
223
Em 1099 d. C, comandados por Godofredo de Bouillon,
os cruzados apoderaram-se da Cidade de Deus, instalando
nela a capital dum imp��rio latino e crist��o, depois de
ter liquidado o maior n��mero poss��vel de infi��is, isto ��,
de sarracenos e judeus.
Quando os mamelucos se revoltaram contra seus se-
nhores eg��pcios, e tomaram conta tanto do Egito como
da Palestina, vencendo tamb��m aos cruzados ��� quarenta
e sete sult��es mamelucos, b��rbaros e insensatos, reveza-
ram-se no poder, tocando mais ou menos seis anos de
reinado para cada um. Ao que parece, empenharam-se
todos, entre outras extravag��ncias, na liquida����o da po-
pula����o n��o-mameluca tanto do Egito como da Palestina.
No ano de 1187 d. C. Saladino reconquistou Jerusal��m
para o imp��rio e a f�� isl��micos, repelindo os subseq��en-
tes ataques dos cruzados contra a cidade do Santo Se-
pulcro. Depois que os turcos otomanos anexaram o Egito
e a Palestina ao seu nascente imp��rio, come��ou um pe-
r��odo ��� que duraria mais ou menos um s��culo ��� em
que se permitiu a volta dos hebreus a sua capital religiosa.
Milhares de judeus ortodoxos, cabalistas e marranos, ���
muitos dos quais haviam sido expulsos da Espanha ���
estabeleceram-se em Jerusal��m, onde edificaram sinago-
gas, criaram escolas, fizeram com��rcio e escreveram livros.
Com a deteriora����o moral e pol��tica do Imp��rio Oto-
mano, a situa����o dos judeus da Palestina piorou. Quando
as tropas de Napole��o I conquistaram Jerusal��m em 1798,
avivou-se nos hebreus a esperan��a duma vida melhor, pois
numa memor��vel proclama����o datada do "1.�� de Floreai,
20 de abril de 1799, do ano 7.�� da Rep��blica Francesa",
Bonaparte dirigiu-se aos Israelistas, na����o singular que,
em milhares de anos, a avidez da conquista e a tirania
puderam despojar apenas de suas terras antigas, mas n��o
do nome e da exist��ncia nacional! e disse-lhes: Erguei-
224
E R I C O V E R �� S S I M O
vos, pois, com alegria, exilados!... ofere��o-vos... o pa-
trim��nio de Israel .
Essa esperan��a, por��m, em breve se esvaeceu, pois
repelidas na sua tentativa de conquistar Acre, as for��as
de Napole��o foram obrigadas a retirar-se. Assim a Pa-
lestina ficou de novo inteira nas m��os dos turcos, que
s�� vieram a perd��-la em 1917 para as tropas inglesas,
entre as quais, como se sabe, havia volunt��rios judeus.
Quando em novembro de 1947 a Organiza����o das
Na����es Unidas resolveu levar a cabo a partilha da Pa-
lestina, prevendo a cria����o duma ��rea independente em
Jerusal��m, sob sua administra����o ��� os pa��ses ��rabes,
que n��o tinham aprovado essa resolu����o, abriram hosti-
lidades contra os israelenses, utilizando a princ��pio ban-
dos locais e formando mais tarde a Legi��o ��rabe da Trans-
jord��nia para enfrentar o Hagan�� numa guerra regular.
Tornou-se assim irrealiz��vel o plano da internacionaliza-
����o duma zona da Cidade Santa.
Em dezembro de 1947 a Legi��o ��rabe bloqueou a
parte nova de Jerusal��m em poder dos judeus, e seus
canh��es, postados no alto das muitas colinas que cercam
a cidade, romperam a bombarde��-la pesadamente. Para
socorrer sua capital religiosa e levar v��veres �� sua popu-
la����o amea��ada pela fome e pela falta d��gua, os legio-
n��rios do Hagan�� tentaram passar, lutando, por esta es-
treita garganta flanqueada por outeiros escarpados, atr��s
de cujas grandes pedras se atocaiavam os soldados da
Legi��o ��rabe, em n��meros muito superiores aos dos is-
raelitas.
Depois de v��rias tentativas frustradas em que, sob
o fogo da infantaria e da artilharia ��rabes, os soldados
judeus tiveram pesadas baixas e em que se incendia-
ram ou foram pelos ares dezenas de ve��culos carregados
I S R A E L E M A B R I L
225
de mantimentos ��� em princ��pios de abril de 1948 um
comboio do Hagan�� formado de trezentos caminh��es,
numa opera����o em que a ast��cia esteve a servi��o da co-
ragem e da tenacidade, conseguiu romper o bloqueio e
salvar a parte nova de Jerusal��m, restabelecendo sua li-
ga����o com o resto de Israel.
Agora Raquel chama a nossa aten����o para os vultos
escuros e im��veis que vamos encontrando a intervalos,
�� direita e �� esquerda da rodovia: as carca��as dos ca-
minh��es e carros blindados que, depois de aberta esta
sangrenta trilha para Jerusal��m, foram arrastados para
a margem da estrada perto do lugar onde haviam sido
destru��dos, e ah ficaram como monumentos sem inscri-
����es em mem��ria do grande feito dos soldados israelenses.
O JARDIM DE JUD��
Ganei Yehuda (Jardim de Jud��) �� o nome do hotel
onde nos hospedamos em Jerusal��m. A portaria, o refei-
t��rio principal, a sala de visitas e a de festas ficam num
edif��cio novo mas incaracter��stico, no alto dum outeiro,
ao p�� do qual se encontra o longo pavilh��o onde est��o
os quartos de h��spedes. Toca-nos o ��ltimo destes, no ter-
ceiro andar, com uma larga janela-porta envidra��ada.
Saio por ela para o pequeno balc��o e verifico que esta-
mos apenas a uns dez metros da linha que marca o co-
me��o da Terra de Ningu��m, atrav��s da qual, talvez uns
duzentos metros, avistamos as sinaleiras encarnadas de
ve��culos jordanianos que possivelmente demandam a al-
deia ��rabe cujas escassas luzes pontilham a encosta duma
colina vizinha. Minha mulher n��o parece muito feliz com
a proximidade da Jord��nia. Est�� sempre a imaginar ati-
radores com carabinas munidas de miras telesc��picas.
226
E R I C O V E R �� S S I M O
Asseguro-lhe que por enquanto reina a paz ��� uma paz
tensa e inst��vel, �� verdade ��� entre Israel e seus vizinhos
e inimigos. Para tranq��iliz��-la, mostro-lhe, mas sem
muita convic����o, o vulto dum edif��cio que se ergue no
meio desta min��scula Terra de Ningu��m: a sede da co-
miss��o supervisora da Organiza����o das Na����es Unidas.
A canseira nos atira na cama. Tenho a impress��o
de que este dia durou s��culos, n��o porque tivesse sido
desagrad��vel ��� ao contr��rio! ��� mas porque durante
suas vinte e quatro horas vimos tantas coisas, n��o s��
novas como milenares. Ontem eu estava em artigo de
morte numa hospedaria de Berseba. Ainda hoje vimos
Arab, escalamos Massada e descemos ��s profundas da
depress��o de Gor, onde felizmente deixei minha tosse
boiando defunta no Mar Morto. E aqui estamos. Em Je-
rusal��m! Pouco vimos de suas ruas quando por elas cru-
zou nosso carro, depois que sa��mos do corredor de Bab-
el-Wad.
Fecho os olhos. E esse prodigioso computador que
�� a mem��ria ��� alimentado, "programado" durante anos
com pinturas, fotografias de cart��es-postais, ilustra����es
de livros e revistas, descri����es liter��rias, can����es, ser-
m��es, supersti����es, etc��tera, etc��tera, como a Sem��ntica
Geral nos manda acrescentar sempre ��� essa m��gica en-
genhoca envia ao consciente imagens de Jerusal��m, ci-
dade important��ssima na geografia de minha imagina����o.
Estou ansioso por comparar essas "figurinhas" com o seu
original em carne e osso ou, antes, em terra, pedra, c��u,
ar, gente, vegeta����o, vida e mist��rio.
DOMINGO DE P��SCOA
Acordamos cedo. O sol tomou conta de nosso quarto.
Abro a porta-janela, saio para o balc��o e respiro longa-
I S R A E L E M A B R I L
227
mente a larga e luminosa manh��. Vejo uma torre creme
na dist��ncia, em meio dum bosquete de oliveiras. A
bandeira azul da ONU tremula �� morna brisa que vem
das bandas do Mediterr��neo ��� ou estar�� minha b��ssola
interior completamente desorientada? Um verso de Edu-
ardo Guimar��es, poeta simbolista brasileiro injustamente
esquecido, me passa pela cabe��a, na P��scoa azul da mo-
cidade . Creio que nesta primeira manh�� de Jerusal��m,
neste domingo santo, encontro por fim a "p��scoa azul"
e, pelo menos por alguns segundos, tenho a ilus��o de
que posso acrescentar "da mocidade".
Alexandre Dothan vem buscar-nos ap��s o caf��. Ra-
quel infelizmente despediu-se de n��s ontem pois, termi-
nado seu feriado pascal, tem de voltar a suas atividades
de professora num gin��sio local. Est�� claro que tornare-
mos a v��-la em recep����es e outras ocasi��es, mas n��o a
teremos mais como companheira de viagem. Sei que
vamos sentir falta de seus sil��ncios solid��rios e de sua
presen��a sedativa.
Alexandre leva-nos a um mosteiro dominicano, n��o
muito longe do hotel, e em cuja capela ��� pequena, sin-
gela, h��gida, com lugar para apenas umas trinta pes-
soas ��� assistimos a uma missa oficiada por dois sacer-
dotes franceses metidos em vestes que jamais vi: t��nicas
com largas mangas, como as dos monges do Tibete, com
listas finas negras e vermelhas sobre o branco do pano.
A mesa �� simples: em cima dela, dois casti��ais de bronze.
Paredes nuas e claras. A ��nica imagem que vejo aqui ��
um tosco crucifixo de madeira. Vem do pomar do claus-
tro, de mistura com o canto dos passarinhos, uma fra-
gr��ncia de flores de laranjeira. Um dos padres ��� figura
de filme franc��s ��� o rosto oblongo e anguloso, a testa
alta de intelectual semicoberta por uma franja castanha,
faz um serm��o sobre o sentido da morte de Cristo na cruz.
228
E R I C O V E R �� S S I M O
O MONTE SI��O
Depois da missa vamos ver o Monte Si��o. (Jaime,
nosso discreto piloto, continua no seu posto.) De acordo
com a tradi����o, no tempo dos macabeus o Monte Si��o
identificou-se com o Monte do Templo e com a Cidade
de Davi. De todos os lugares de Jerusal��m em poder
dos judeus este �� o que mais pr��ximo est�� das ru��nas do
Templo de Salom��o, hoje no lado ��rabe e uma de cujas
paredes se encontra ainda de p��: o Muro das Lamen-
ta����es.
Visitamos o T��mulo de Davi na sua localiza����o
mais lend��ria do que rigorosamente hist��rica: um sarc��-
fago de pedra coberto por um pano bordado. Bem como
nos santu��rios cat����cos (penso em nossa gruta de N. S.
de Lourdes) os judeus religiosos aqui acendem velas vo-
tivas, que ardem nas sali��ncias e bojos das paredes deste
recinto, cortados r��sticamente na rocha. Uma grade de
ferro mant��m o sarc��fago fora do alcance das m��os
tanto dos hebreus fi��is como dos turistas infi��is. Olho as
faces dos devotos que agora aqui est��o rezando ou con-
templando num ��xtase m��stico a tumba do grande Rei
de Israel. S��o quase todos homens de meia-idade ou
velhos: noto em seus olhos l��quidos uma tristeza ime-
morial, a nostalgia duma Si��o que �� mais da Eternidade
que do tempo e do espa��o.
Por cima do sepulcro fica o Cen��culo, o suposto
lugar onde Jesus teve com seus disc��pulos a Ultima Ceia,
na v��spera de sua morte. Surpreendo-me por entrar numa
sala de estilo g��tico ��� teto abobadado, arcadas, colunas
��� reminiscente do tempo das cruzadas. Passam-me pela
mente v��rias "��ltimas ceias" pintadas por artistas me-
dievais e renascentistas e ��� inevitavelmente ��� o mural
I S R A E L E M A B R I L
229
de Leonardo da Vinci. Sinto-me meio perdido. O anacro-
nismo me estonteia. Dothan me tira da perplexidade
explicando-me que este edif��cio foi reconstru��do pelos
monges franciscanos depois que os sarracenos destru��ram
o Coenaculum original. (Onde est�� o aposento em que hei
de comer a p��scoa com os meus disc��pulos? Ent��o ele
vos mostrar�� um grande cen��culo mobiliado; a�� fazei os
preparativos.)
Dirigimo-nos para o Mosteiro da "Dormi����o", obra
dos padres beneditinos: outro anacronismo situado neste
monte hist��rico. Uma igreja octogonal constru��da no prin-
c��pio deste s��culo, ergue-se no lugar onde, segundo a tra-
di����o cat��lica, a Virgem Maria entrou docemente no
sono da morte. (Dormitio Sanctae Mar��ae.) Descemos ��
cripta em cujo centro est�� a imagem que representa a
m��e de Jesus no seu leito de morte. Os mosaicos das
oito capelas que circundam a est��tua, foram doados por
diferentes pa��ses. A igreja, coroada por uma rotunda, ��
inegavelmente vistosa, mas de seu interior me fica uma
impress��o curiosa. Diante de seus mosaicos dourados,
numa esp��cie de bizantino ersatz mas capaz assim mes-
mo de encher-nos alegremente o olho, nosso dem��nio
interior nos cochicha ��� e n��o adianta mandar o capeta
calar a boca ��� que tudo isso parece um cen��rio de es-
t��dio cinematogr��fico para um filme religioso colorido,
para tela panor��mica.
Sa��mos para o ar livre. Avistamos, em territ��rio jor-
daniano, o maci��o, dum verde opaco, do Monte das Oli-
veiras, com o Jardim de Gets��mane a seus p��s, separados
ambos da eleva����o onde nos encontramos pelo profundo
Vale de Kidon. Vejo, a uns cem metros, um trecho das
muralhas da Cidade Velha. Informaram-nos na embai-
xada do Brasil em Tel Aviv que o governo da Jord��nia
nega visto de entrada a estrangeiros que transitaram pri-
230
E R I C O V E R �� S S I M O
meiro por Israel. Acresce ainda que somos convidados
oficiais do governo israelense... Vamos ent��o deixar
Jerusal��m sem antes ter pelo menos "espiado" sua parte
antiga?
A DOURADA
Dothan pergunta-nos se nos contentaremos em ver
apenas os telhados do burgo primitivo. E como respon-
demos que sim, nosso amigo nos leva ao Mosteiro de
Notre Dame de France, de cuja sot��ia se pode ter uma
vista panor��mica da parte velha de Jerusal��m. Compra-
mos bilhetes de entrada no primeiro andar, onde exigem
que deixemos nossa c��mara fotogr��fica. Dothan nos apre-
senta ao prior do mosteiro, um frade assuncionista fran-
c��s, cinq��ent��o e corpulento, com bastas barbas grisalhas
e voz de trov��o. Est�� sem h��bito, todo �� fresca na sua
camisa esportiva e suas cal��as de tergal. Da indument��-
ria de sua ordem s�� conserva as sand��lias.
Subimos �� sot��ia. Solidamente plantada num plat��,
em meio das montanhas da Judeia, flanqueada por vales,
"Jerusal��m, a dourada" lagarteia ao sol deste domingo
de P��scoa. Noto que o ouro de seu nome n��o �� apenas
lend��rio, pois se faz vis��vel n��o s�� nas fachadas de suas
casas, templos e muros, constru��dos duma pedra calc��rea
trigueira que, batida de sol, ganha tonalidades douradas
��� como tamb��m na terra e na rocha de seu ch��o e das
encostas de seus morros, montes e cerros.
Severa e magra �� a beleza de Jerusal��m. (Penso na
prosa do trasmontano Miguel Torga, na do nordestino
Graciliano Ramos e, mais uma vez, na poesia de Jo��o
Cabral de Melo Neto.) Muitas dessas vertentes estriadas
de estreitos patamares sinuosos e irregulares, �� fei����o de
I S R A E L E M A B R I L
231
degraus, lembram torsos humanos descarnados em que as
costelas se desenhassem em relevo. Nos corpos ulcerados
dessas eleva����es de terreno, em parte ro��dos pela eros��o,
apontam aqui e ali trechos de pedra nua, como ossos
expostos e cariados. Tudo isso, entretanto, longe de cau-
sar neste escritor oriundo de terras fartas de verdes uma
sensa����o de desolada aspereza des��rtica, ao contr��rio,
produz-lhe uma impress��o de extraordin��ria beleza, para
a qual contribuem os verdes escassos mas muito bem
situados na paisagem ��� bosquetes ou renques de pinhei-
ros, oliveiras e palmeiras, sim, e especialmente de ci-
prestes esguios e escuros, com suas conota����es de paz,
remanso r��stico e eternidade.
No lugar e hora em que me encontro, poucos homens
de minha gera����o, como eu leitores de E��a de Queiroz,
deixariam de pensar em Teodorico Raposo, o personagem
de A Rel��quia, o magan��o que veio �� Palestina com
os dinheiros de sua devota "titi" Patroc��nio, com o fim
de visitar em nome da piedosa senhora os lugares santos
e levar-lhe deles uma lembran��a sagrada. Tenho agora
na mente a cena em que o her��i se contempla no espelho,
admira as pr��prias barbas castanhas e exclama: "Pois
o belo Teodorico est�� em Jerusal��m!".
A desejada Si��o aqui est�� praticamente a nossos p��s,
cercada por suas muralhas creneladas, ocupando uma
��rea muito menor do que eu imaginava. Deste ��ngulo n��o
conseguimos captar nenhum sinal de vida humana den-
tro de seus muros, nem por imagem nem por som. (Como
em Veneza, em suas vias n��o circulam ve��culos.) A velha
Jerusal��m parece uma cidade abandonada ou um cemi-
t��rio. Ficamos a olhar para seus telhados ��� rasos uns,
outros encimados por pequenas c��pulas de apar��ncia ma-
ci��a, como casamatas ��� suas torres, um que outro mi-
narete. . . Procuro avistar um trecho de rua ou, melhor,
232
E R I C O V E R �� S S I M O
de b e c o . . . Em v��o! O bin��culo que alugamos l�� em
baixo na portaria do mosteiro, de muito pouco nos serve.
Dothan nos mostra a rotunda da Igreja do Santo Sepul-
cro, a uns trezentos metros de onde estamos. O zimb��rio
dourado que cintila ao sol, perto da muralha ocidental, ���
verifico, consultando uma planta da cidade ��� pertence ��
mesquita de Al Aksa: �� a c��pula que cobre a sala circular
onde est�� guardada a Rocha ��� venerada tanto por ju-
deus como por ��rabes ��� sobre a qual, segundo a tradi-
����o, o patriarca Abra��o esteve a pique de imolar seu
filho Isaque, a uma ordem de Deus.
Diante do sil��ncio do velho burgo, mando minha
fantasia escalar suas muralhas e, ajudado pela icono-
grafia da mem��ria, saio a andar pela Via Dolorosa, de-
tendo-me em cada Esta����o da Cruz, fazendo penit��ncia
pelos meus pecados, tanto os do corpo como os da ima-
gina����o, e principalmente pedindo perd��o �� vida pelas
transgress��es que n��o cometi. E como essa incurs��o n��o
se processa apenas no espa��o, mas tamb��m no tempo,
vejo-me, num remoto domingo b��blico, em meio da mul-
tid��o que recebe Jesus triunfalmente, com ramos de pal-
meiras, exclamando: "Hosana! Bendito o rei dlsrael, que
veio em nome do Senhor!". Sigo o Messias, que l�� vai sor-
rindo (ou triste?) sentado num burrico. (N��o temas, filha
de Si��o, que o teu Rei vem assentado sobre o filho duma
jumenta.)
Voltamos as costas para a cidade proibida e contem-
plamos a Jerusal��m nova que, com seu casario moreno,
e seus telhados avermelhados, estende-se para o norte,
o oeste e o sul, descendo e subindo colinas e derraman-
do-se pelas encostas na dire����o dos vales.
Depois, frustrados, descemos as escadas, sem ter po-
dido satisfazer a "titi" Patroc��nio que todos n��s ��� mes-
I S R A E L E M A B R I L 233
mo os hereges, ateus e agn��sticos ��� temos escondida
em algum rec��ndito rinc��o de nosso ser.
ESTA CURIOSA NA����O
Outro dia. O mesmo hotel. �� hora do caf�� da ma-
nh��. O refeit��rio �� um calidosc��pio de turistas que se
movem nas mais variegadas combina����es de desenhos
e cores. Gar��ons meio irritados servem os h��spedes que
hesitam, sempre tagarelando, diante do card��pio, reivin-
dicam direitos de prioridade, gritam, r e c l a m a m . . . Per-
tencem aos grupos que dentro de poucos minutos v��o sair
em excurs��o nos grandes ��nibus que os esperam �� frente
do hotel. (O giro na certa intitula-se Jerusal��m by day.)
De quando em quando, com uma nuvem de temor
no rosto, minha mulher fica a contemplar o trecho de
territ��rio jordaniano enquadrado pela janela, ao lado de
nossa mesa.
��� N��o sei por qu�� ��� diz ela de repente ��� tenho
c mau pressentimento de que Israel um dia vai ser ata-
cado e destru��do por seus inimigos. Isso me d��i.
A mim tamb��m me fere essa id��ia, mas sou um
incur��vel otimista que sempre espera o melhor. (Na mi-
nha mente surge s��bita a imagem de minha m��e, ga��-
cha realista: "O pior cego �� aquele que n��o quer ver" ���
diz ela, e se some.)
��� O admir��vel ��� desconverso ��� �� que um pa��s
pequeno como este e cercado de inimigos amea��adores
por todos os lados (sim, porque haver�� tamb��m perigo
das bandas do Mediterr��neo se os russos resolverem aju-
dar a RAU) funciona como uma das mais perfeitas de-
mocracias que conhe��o. O governo teria pretextos de
sobra para manter Israel em permanente estado de guerra.
234
E R I C O V E R �� S S I M O
No entanto aqui estamos numa rep��blica democr��tica
parlamentar, que garante a seus cidad��os, sem distin����o
de ra��a, sexo ou credo, completa igualdade de direitos
sociais e pol��ticos. E sabias que Israel, como a Inglaterra,
n��o tem uma Constitui����o escrita?
��� Como pode ent��o funcionar com coer��ncia?
��� Leis especiais determinam a natureza das fun-
����es do Presidente, do Parlamento (o Knesset) ��� com-
posto de 120 representantes numa ��nica c��mara ��� que
o elege por um per��odo de quatro anos, e que por sua
vez tem seus membros eleitos pelo povo, por meio do
voto proporcional. Existe um poder judici��rio: tr��s ca-
tegorias de cortes com jurisdi����o civil e criminal e, na-
turalmente, uma Corte Suprema.
Calo-me, sentindo que estou ficando compendioso
demais, e isso �� sacril��gio, nesta manh�� t��o luminosa-
mente apol��tica. Mas, que diabo!, nesta hora em que o
totalitarismo de novo projeta sua feia sombra sobre o
mundo, �� bom a gente saber e proclamar aos ventos que
em Israel os direitos fundamentais do homem s��o re-
conhecidos e respeitados, embora n��o estejam escritos
em nenhum texto constitucional. Por meio do habeas
corpus, do mandamus e outros recursos legais, o governo
garante a seus cidad��os a liberdade de culto, de palavra,
de associa����o, de reuni��o, de imprensa e tamb��m o di-
reito de exercer livremente qualquer esp��cie de com��rcio
e profiss��o l��citos.
��� Positivamente ��� concluo ��� uma na����o como
esta �� um mau exemplo para os outros povos: deve ser
varrida o quanto antes da face da Terra!
E, tendo dito isto, trato de chamar o gar��on para
pedir-lhe que nos traga mais p��o. Grito para os que pas-
sam, em todas as l��nguas que conhe��o bem ou apenas
de vista. Ober! Senta! Oiga! Hey! S'il vous pla��t! Boh
I S R A E L E M A B R I L
235
henna! Pst! In��til. N��o me ouvem nem me olham. Nas
suas cal��as pretas e jaquetas vermelhas, esgueiram-se
como bailarinos por entre as mesas, desaparecendo pela
porta da copa. E os turistas comem, tomam o seu Nes-
caf��, riem, fumam, carregam suas c��maras fotogr��ficas,
trocam gracinhas de mesa para mesa ou come��am j��
a sair na dire����o dos ��nibus.
Consigo finalmente fazer com que o olhar dum gar-
��on colida no ar com o meu, e o rapaz (parece um sefar-
dita) vem saber o que queremos. Minutos depois vemos na
mesa o milagre da multiplica����o dos p��es.
Tenho aqui comigo um folheto publicado pelo go-
verno e que nos informa como funciona a democracia
em Israel. Este pa��s, com seus escassos 2 500 000 ha-
bitantes, tem nada menos que onze partidos pol��ticos
em atividade. N��o �� de admirar, pois ��� como j�� tive
ocasi��o de sugerir noutra parte desta narrativa ��� os
judeus s��o o povo mais verbal, opini��tico e pol��mico do
mundo.
Como n��o consegui guardar na mem��ria o nome e
o resumo do programa de cada um desses grupos pol��-
ticos, abro agora o folheto e, sem perguntar a minha com-
panheira se ela est�� interessada no assunto, digo:
��� Presentemente o Mapai tem maioria no governo.
��� Que vem a ser o Mapai?
��� �� um partido trabalhista e sionista. Visa a inte-
gra����o do povo judeu, seu retorno a Israel e o estabele-
cimento duma sociedade socialista mas ao mesmo tempo
democr��tica. Depois vem. .. deixa v e r . . . ah! O Movi-
mento Herut, que �� de direita. Nasceu do antigo Irgun,
organiza����o militar judaica secreta e de finalidade agres-
siva. Bom, vamos ver que querem os herutistas. Reclamam
a integridade de Israel em suas fronteiras hist��ricas. S��o
236 E R I C O V E R �� S S I M O
a favor da iniciativa privada, raz��o pela qual se op��em
ao programa trabalhista do governo atual.
Minha mulher me escuta com a aten����o vaga, coisa
que percebo pelo seu olhar, que segue os movimentos dos
turistas em torno. Continuo a falar, mais para mim mes-
mo do que para ela, pois preciso come��ar a entender a
estrutura pol��tico-partidaria de Israel, j�� que daqui a
pouco vamos ver o que em Jerusal��m corresponde ao
Cap��tol Hill de Washington. Prossigo no meu resmungo:
��� Temos agora o Partido Liberal, que �� a favor
duma Constitui����o escrita, preto no branco. Deseja tam-
b��m que a administra����o civil se liberte o mais poss��vel
de influ��ncias pol��ticas. Preconiza um sistema nacional
de seguros contra a enfermidade, e a igualdade de di-
reitos e oportunidades para todos os setores da economia.
Ah! O Mapam, o partido que predomina no kibbutz Gan
Chmuel, onde vamos passar uns dias, �� laborista, sionista
e socialista de esquerda. Favorece os grupos de jovens
pioneiros judeus e procura congregar num bloco solid��rio
a classe oper��ria de Israel. Quer a paz permanente no
Oriente M��dio. Que te parece este programa?
Fa��o uma pausa para prestar um pouco de aten����o
ao breakfast.
��� Agora vamos entrar num setor delicado: o reli-
gioso. O Partido Nacional Religioso, cujo nome em he-
braico n��o consigo pronunciar (Mizrahi-Hapoel Hamiz-
rahi), defende um sionismo rigorosamente religioso. Para
esse grupo, os valores ��ticos e sociais do juda��smo devem
ser a base da vida do Estado, cuja legislatura deve inspi-
rar-se no T o r �� . . . Outro grupo de car��ter religioso �� o
Agudat-Israel, que tamb��m prega uma observ��ncia rigo-
rosa do Tor��, dentro da administra����o estatal, sob a auto-
ridade dos rabinos. Quer acelerar o retorno a Israel de
I S R A E L E M A B R I L
237
seus irm��os dispersos pelo mundo. Quanto �� economia,
�� a favor da entrada de capitais privados no pa��s.
Uma rapariga atraente, mas com os olhos escondi-
dos sob ��culos de lentes escuras, passa por n��s cantan-
do baixinho o Hava Naguila. Levo �� boca a ta��a, e
um pingo de ch�� cai no folheto, cobrindo o nome de outro
partido, o Poale Agudat-Israel, que tem um programa re-
ligioso e trabalhista, e visa reconstruir o Estado �� luz
tamb��m do Tor��, protegendo ao mesmo tempo o opera-
riado. E aqui est�� agora o Achdut Ha'Avod��-Poale Sion,
sionista, socialista e pioneirista. Pleiteia uma economia
planificada, o desenvolvimento rural em grande escala
e a coopera����o de todos partidos socialistas sionistas.
Quanto aos vizinhos ��rabes, recomenda uma pol��tica de
defesa ativista e n��o apenas passiva. No que diz respeito
�� pol��tica estrangeira, prega o "descompromisso" o non-
alignment. E a paz com todos os pa��ses pac��ficos, prin-
cipalmente os da ��sia.
��� Existe partido comunista em Israel?
��� �� pequeno mas existe. Fundado em 1942. Segue
a doutrina marxista-leninista... o que n��o �� de admirar.
Quer o estabelecimento do "verdadeiro socialismo" em
Israel. Deseja que o pa��s seja realmente soberano e neu-
tro. �� tamb��m' a favor da democracia. (Marxismo-leni-
nismo com democracia? Vai ser d i f �� c i l . . . ) Que mais
pleiteiam os comunistas de Israel? Igualdade de direitos
para a minoria ��rabe. Faz com os vizinhos mu��ulmanos.
Amizade entre Israel, a Uni��o Sovi��tica e os restantes
pa��ses socialistas do m u n d o . . . E por fim temos os par-
tidos ��rabes, sim senhora! O Coopera����o e Fraternidade
(parece nome de sociedade recreativa) representa os drusos
e os mu��ulmanos do Carmelo e da Galileia central e oci-
dental. O Progresso e Desenvolvimento �� o porta-voz prin-
238
E R I C O V E R �� S S I M O
cipalmente dos habitantes, tanto mu��ulmanos como cris-
t��os, de outras partes da Galileia.
A sala agora est�� quase vazia de turistas. Fecho o
folheto, mas n��o estou certo de que aprendi a minha li����o.
O KlRIA
Estamos com Dothan e Jaime no "nosso" carro, a
caminho do centro da Cidade Nova. Se n��o me falha a
mem��ria, um dos Salmos se refere a Jerusal��m como uma
"cidade s��lida". Na vers��o do Rei James o adjetivo usado
�� compact. Seja como for, podemos aplicar com proprie-
dade ambos esses qualificativos �� Jerusal��m israelense,
n��o tanto �� cidade ��� onde existem vastas ��reas ainda
sem constru����es ��� como ��s suas casas e edif��cios, de
fachadas singelas, com algo de castelo e fortaleza, mas
belas, isso �� ineg��vel, por causa principalmente de suas
pedras trigueiras, nas quais descubro ou para as quais
invento, uns cambiantes rosados em discreta harmonia
com o avermelhado opaco dos telhados.
Haifa, Tel Aviv, Jerusal��m: eis as tr��s cidades mais
importantes de Israel, mas diferentes uma das outras no
que respeita �� Arquitetura e ao Urbanismo: Haifa com
pouco passado, no seu anfiteatro de montanhas; Tel Aviv,
sem nenhuma tradi����o, no seu leito de areia; Jerusal��m
nestes montes rochosos, a parte velha patinada de hist��-
ria sagrada e profana, a nova a nascer no resplendor da
antiga, participando de seu prest��gio mas construindo edi-
f��cios funcionais, integrada, em suma, neste s��culo mas
sem querer cortar o cord��o umb��lico-espiritual que a
prende �� m��e milenar.
Chegamos ao Centro do Governo, detemo-nos por
alguns instantes diante do edif��cio do Knesset, plantado
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no alto desta colina, a Kiria, em meio dum jardim de
pedras e pinheiros. Este imponente edif��cio consegue ser
moderno sem perder seu sabor jerusal��mico (se �� que
tal palavra existe).
Em 1949, sem a aprova����o da Organiza����o das Na-
����es Unidas, o governo de Israel transferiu-se para Jeru-
sal��m em car��ter definitivo. ��s embaixadas, entretanto,
em sua quase totalidade permaneceram em Tel Aviv. O
primeiro minist��rio que veio para c�� ��� e os jornais
israelenses fizeram humor em torno d i s s o . . . ah! como
�� saud��vel a Uberdade de imprensa! ��� foi o das finan��as.
Os outros vieram mais tarde. O da Defesa permaneceu
em Tel Aviv por motivos operacionais.
A UNIVERSIDADE
Aqui do alto do Kiria avistamos os modernos edif��-
cios da Universidade Hebraica, assentados sobre uma su-
cess��o de colinas, entre relvados e jardins. Dominando a
cidade universit��ria, a estrutura do Edif��cio Administra-
tivo imp��e-se na extremidade duma plataforma que leva
at�� ��s portas do pr��dio da Biblioteca, tamb��m de avantaja-
do porte. Noto certa semelhan��a ��� guardadas as propor-
����es ��� entre este complexo urban��stico, formado pelo
Centro governamental mais a Universidade, e a nossa Bra-
s��lia. E apesar de a Jerusal��m nova estar separada da anti-
ga por mais de tr��s mil��nios, as constru����es modernas da-
quela e as casas e templos desta t��m todos um certo ar
de fam��lia, que se denuncia principalmente no predom��-
nio da forma c��bica e na identidade do material de que
foram feitos, isto ��, a pedra destes montes. �� singular o
efeito visual produzido por esses claros edif��cios univer-
sit��rios ��� aqui e ah uma parede ou painel em tons de
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pastel ��� em confronto com a ��spera paisagem em s��pia.
E apesar de suas dimens��es e da sua geometria, os pr��dios
do campus ��� pelo menos se pesados com o olhar ���
sugerem uma tal leveza, que parecem um bando de p��s-
saros pousados na colina e no vale fronteiro, prestes a
al��ar o v��o.
A pedra fundamental da Universidade Hebraica foi
lan��ada em 1918 pelo Dr. Chaim Weizmann, no Monte
Scopus, mas sua inaugura����o oficial s�� ocorreu em 1925,
com a presen��a de Lord Balfour. Quando, vinte e tr��s
anos mais tarde, aquele enclave caiu nas m��os dos jorda-
nianos, os israelenses trataram de construir outra univer-
sidade em car��ter definitivo aqui em Givat Ram. Os pri-
meiros edif��cios foram inaugurados em 1955, mas o
campus como um todo funciona apenas h�� oito anos.
Esta universidade, famosa em todo o mundo, conta
com not��veis professores n��o s�� judeus como tamb��m
estrangeiros. Al��m de estudos judaicos e afro-asi��ticos,
oferece cursos de Humanidades e de Ci��ncias f��sicas e
naturais, tanto te��ricas como aplicadas. Mant��m sete fa-
culdades: Medicina, Direito, Ci��ncias Sociais, Ci��ncias
Naturais, Medicina Dent��ria, Belas-Letras e Agricultura.
Conta tamb��m com cinco escolas: Servi��o Social, Edu-
ca����o, Farm��cia, Odontologia e Biblioteconomia. O n��-
mero de alunos presentemente vai al��m de doze mil, dos
quais dois mil s��o oriundos de quarenta pa��ses.
Estamos agora no cora����o do campus. Faz-nos bem
ver jovens sabr��s de ambos os sexos confraternizando
nestas salas de aula ou sociais, no audit��rio, no est��dio,
nos jardins ou nas depend��ncias da biblioteca, com es-
tudantes de pele preta, amarela, morena e branca, origi-
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n��rios da Europa, das Am��ricas, da ��sia e da ��frica, e
em sua maioria n��o-judeus.
A educa����o prim��ria em Israel �� obrigat��ria e gra-
tuita para todas as crian��as entre 5 e 14 anos: um ano
de jardim da inf��ncia e oito de escola prim��ria. A secun-
d��ria e a superior n��o s��o gratuitas nem compuls��rias.
Depois do curso prim��rio, meninos e meninas s��o man-
dados para escolas de tipo geral, vocacional ou agr��cola.
O objetivo da educa����o deste pa��s inspira-se nos valores
da cultura judaica e nas realiza����es da Ci��ncia; no amor
�� P��tria e na dedica����o ao Estado de Israel e ao povo
judeu; no adestramento no trabalho agr��cola e em of��cios
manuais; no cumprimento dos princ��pios do pioneirismo,
na aspira����o a uma sociedade baseada na liberdade, na
igualdade, na toler��ncia, na ajuda m��tua e no amor ao
pr��ximo .
LEA GOLDBERG
Dentro de alguns minutos teremos um breve encon-
tro com a poetisa (palavra horrenda, esta!) Lea Goldberg,
docente de Literatura Comparada nesta universidade. H��
pouco algu��m me disse dela: "Grande como poeta e pro-
fessora, mas t��o triste, t��o pessimista!".
Lea Goldberg nasceu em Kovno, na Litu��nia, veio
para a Palestina em 1935 e aqui se dedicou �� literatura,
escrevendo em hebraico n��o s�� poesia como ensaios cr��-
ticos e pe��as teatrais. Cec��lia Meireles traduziu para o
portugu��s alguns de seus poemas, entre os quais este
O rio canta para a pedra:
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Beijei a pedra em seu sonho gelado
porque eu sou o c��ntico e ela, o sil��ncio,
porque ela �� o enigma e eu quem o prop��e,
porque ambos fomos talhados da mesma eternidade.
Beijei a pedra, sua carne solit��ria,
ela �� jura de fidelidade e eu o infiel.
Eu sou o ef��mero e ela o permanente,
ela, o segredo da cria����o, ��� eu, sua revela����o.
Eu vi que tocava no cora����o do mist��rio:
eu sou o poeta e ela �� o universo.
Apertamos sua m��o numa das salas do Edif��cio Ad-
ministrativo. Como descrever fisicamente esta grande ar-
tista do verso? A primeira id��ia que me ocorre �� irreve-
rente. Vistam nosso M��rio Quintana de mulher, ponham-
lhe uma peruca feminina, de cabelos desordenados, d��em-
lhe ao rosto uma express��o de tristeza, uns olhos de p��l-
pebras pesadas e sonolentas ��� e teremos Lea Goldberg.
Ora, descrever uma criatura humana comparando a
com outra que o leitor possivelmente n��o conhece em
pessoa nem de retrato, �� um recurso barato e portanto
conden��vel. Mas a verdade �� que quanto mais olho para
Lea Goldberg mais penso em Quintana, outro grande
poeta.
Ficamos os quatro a conversar sobre problemas do
mundo e da literatura. Com sua voz arrastada, seus
gestos mal coordenados com as palavras, Lea d�� mesmo
uma impress��o de desalento, o que n��o acontece com
Quintana, que, sessent��o, conserva seu ar menineiro e
malicioso.
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Levo deste r��pido encontro a certeza de que Lea,
M��rio e eu nos parecemos pelo menos numa coisa. Os
tr��s amamos Cec��lia Meireles, a que um dia escreveu:
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida est�� completa.
N��o sou alegre nem sou triste:
Sou poeta.
MUSEUS
Dothan leva-nos a visitar o Museu Nacional ��� parte
da Universidade ��� situado numa colina fronteira ao cam-
pus. Trata-se dum conjunto composto de quatro partes:
o Museu de Arte, o Museu B��blico e Arqueol��gico, o Sa-
cr��rio do Livro e o Jardim das Esculturas de Billy Rose.
Algumas salas da Galeria de Arte est��o hoje ocupadas pela
maior exposi����o de quadros de Picasso jamais apresentada
em Israel: setenta pinturas e oitenta gravuras perten-
centes a museus, galerias de arte e cole����es particulares
de oito pa��ses.
Dothan quer conduzir-nos imediatamente ao museu
arqueol��gico. Protestamos contra a id��ia. Passar de largo
por uma exposi����o de Picasso? Nunca!
Sa��mos num marche-marche rid��culo por estas salas
do pavilh��o que Helena Rubinstein doou ao Museu. ��
absurda esta maneira de visitar galerias de arte. Sei que
cada quadro deve ser examinado individualmente, degus-
tado devagarinho. Mas como n��o h�� tempo para isso,
o rem��dio �� devor��-los ��s pressas, para mais tarde, em
tranq��ilidade, rumin��-los como um camelo amante das
artes pl��sticas. Noto aqui a falta de pinturas representa-
tivas da "fase azul" do artista.
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E R I C O V E R �� S S I M O
Uma senhora baixota e gordinha, muito enfeitada,
aproxima-se de mim com um sorriso festivo e pergunta,
tentativamente: "Mr. Picasso?". Respondo-lhe que n��o,
sorry. Ela se afasta, sem o aut��grafo. Se por um lado
fico gratificado por me terem achado fisicamente pare-
cido com o grande artista, por outro me desaponta o
ter sido tomado por um homem de mais de oitenta e
quatro anos.
Visitamos mais lentamente o museu arqueol��gico,
onde se encontram as melhores pe��as escavadas no ter-
rit��rio da antiga Palestina, sob os ausp��cios do Departa-
mento de Antiguidades do governo israelense, que esti-
mula n��o s�� arque��logos profissionais como tamb��m
amadores.
O SACR��RIO DO LIVRO
Passamos pelas esculturas doadas ao Estado de Is-
rael por Billy Rose. O japon��s Isamu Noguchi projetou
este esquisito jardim onde repousam (n��o, o verbo �� im-
pr��prio, visto como algumas est��tuas me parecem retor-
cidas em agonia) preciosos trabalhos de escultores fa-
mosos que pertenciam �� cole����o daquele empres��rio tea-
tral americano.
Os Rolos do Mar Morto est��o entesourados num edi-
f��cio conhecido como "Sacr��rio do Livro", constru����o mo-
derna inspirada num objeto antiqu��ssimo: monumental
rotunda branca na forma estilizada das tampas dos jarros
em que foram encontrados os manuscritos ess��nios.
Entramos na "tampa do jarro". Ilumina����o artificial
e indireta, num tom de p��lido ��mbar. No centro da sala
principal de forma circular, ergue-se um estrado em
cima do qual est�� assentada a vitrina que cont��m uma
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c��pia do Livro de Isa��as, num rolo de mais de sete metros
de comprimento. Descemos ao subsolo para conhecer
os Manuscritos do Mar Morto, tamb��m guardados em re-
domas. Podemos examin��-los de perto. H�� falhas, gretas
e manchas nos pergaminhos, mas o texto, escrito com
uma tinta que o tempo reduziu a um pardo de ferrugem,
�� duma nitidez surpreendente, se levarmos em conta que
estes documentos t��m mais de tr��s mil anos.
Quando tornamos �� sala da rotunda, Dothan aponta
para a vitrina central ��� encimada, percebo agora, por
um bloco de madeira na configura����o dum rolo de ma-
nuscrito antigo ��� e informa-nos que em caso de perigo
de bombardeio essa montra circular desce para o subsolo,
gra��as a um dispositivo mec��nico, ficando no n��vel dos
outros documentos, protegidos todos por espessas paredes
de concreto. �� que nesta terra n��o s�� os homens como
tamb��m as coisas vivem perigosamente.
CALEND��RIO SOCIAL
O Sr. Arieh Chekel, que ocupa o posto de diretor do
departamento de assuntos latino-americanos do Minist��-
rio dos Neg��cios Estrangeiros de Israel, oferece-nos um
almo��o numa das salas do Hotel Eden. Encontramos aqui
umas doze pessoas, entre as quais o Prof. Moch�� Lazar,
Diretor do Semin��rio de Estudos Rom��nicos da Univer-
sidade Hebraica, um homem ainda na casa dos trinta, (que
inveja!) extremamente simp��tico e interessado em coisas
do Brasil. Tem cara de russo e fala um espanhol fluente
e correto.
Arieh Chekel, nosso anfitri��o, �� uma dessas pessoas
que trazem o car��ter escrito nos tra��os fision��micos. Nos
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olhos uma grande bondade, na boca e no queixo a ener-
gia, a tenacidade. Sei que acaba de ser promovido a Di-
retor Geral de seu minist��rio. Viveu alguns anos no Rio,
fala bem o portugu��s e quando ele me diz que ama o
Brasil, �� dum jeito tal, que n��o me deixa d��vida quanto
a sua sinceridade. Quer saber que temos visto e feito
desde que chegamos a este pa��s. Dou-lhe minhas impres-
s��es e por fim manifesto-lhe nossa surpresa pelo milagre
que �� Israel. E quando lhe digo que a palavra milagre
talvez n��o seja apropriada, Arieh Chekel, sorrindo, me
repete um ditado israelense: "Quem n��o acredita em mi-
lagres n��o �� realista".
�� noite somos recebidos no Instituto Central de Re-
la����es Culturais Israel-Ibero-Am��rica, Espanha e Portugal
��� tradu����o desajeitada dum t��tulo que deve ficar muito
bem em hebraico. Em suas salas encontro, numa atmos-
fera da mais natural camaradagem, v��rios escritores, ar-
tistas, diplomatas, engenheiros civis, arquitetos, homens
de neg��cio e professores ��� entre os quais tenho o prazer
de rever o Dr. Ratkin, lente de Criminologia da Facul-
dade de Direito da Universidade Hebraica, conversador
fluente, presen��a intelectualmente estimulante.
Voltamos ao Jardim de Jud�� depois da uma hora da
madrugada. As luzes de fora do hotel est��o todas apa-
gadas. A lua, ausente. Avan��amos cautelosos na escuri-
d��o, descendo o outeiro, rumo do pavilh��o onde fica
nosso quarto. A imagina����o de minha mulher, acicatada
pelo medo, inventa soldados jordanianos esgueirando-se
nas trevas. Vamos de m��os dadas, sou um guia de cego,
mas cego tamb��m. Enxergo o terreno com a ponta dos
sapatos. "Calma, calma, n��o vai acontecer n a d a . . . " Ve-
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mos luzes m��veis no territ��rio da Jord��nia. No c��u bri-
lham as estrelas ��� neutras, gra��as a Deus. Ou a Jeov��.
Ou a Al��. Devagar, menina. Bom, agora vem a escada.
Um degrau de cada vez. A s s i m . . . ��timo! Se bem me
lembro, n��o h�� mais escadas daqui por diante.
Levamos um temp��o para percorrer trinta ou qua-
renta metros. Finalmente entramos no pavilh��o. Seria o
c��mulo se a porta estivesse fechada. Mas n��o est��. En-
tramos. O elevador funciona com um zumbido triste, que
parece aumentar a solid��o e o sil��ncio da noite. Chega-
mos ao nosso andar. Luzes amortecidas no longo corre-
dor. Diante da porta de cada quarto, um par de sapatos.
Aqueles que ali est��o, de n��mero quarenta e quatro, per-
tencem a um cavalheiro de um metro e noventa e dois
cent��metros de altura, perfil adunco, pele rosada, olhos
cinzentos, cabelos ralos cor de palha. Funga forte quando
respira. Fuma charuto. �� membro do Lions Club. Mora
num apartamento duplex em Kiew Gardens, no Bronx,
Nova Iorque. Comerciante pr��spero: roupas feitas. Gosta
de Frank Sinatra e de Gefilte fish. A m��e queria que ele
fosse concertista, mas o rapaz, que odiava o violino, pre-
feriu a profiss��o do pai. Como �� que sei tudo isto? Por
causa duma ci��ncia oculta ��� ao alcance dos homens de
imagina����o desvairada ��� uma ci��ncia neocabal��stica
chamada Sapatologia e que nos ensina a adivinhar o f��-
sico, a profiss��o, o car��ter e os h��bitos duma pessoa ao
simples exame dos sapatos que usa. E quem �� que n��o
sabe que aqueles sapatinhos de verniz com fivela dourada
pertencem �� velhota que hoje no Museu de Arte me per-
guntou se eu era Pablo Picasso?
Entramos no nosso quarto. E assim termina um
longo dia.
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CONFER��NCIAS
Tenho de fazer hoje duas confer��ncias. Confesso que
n��o gosto de falar em p��blico. N��o sou um homem oral.
Meu meio natural de express��o �� a escrita. Quando falo
n��o posso deixar de me ouvir e ver falar. E que um dia
��� na era pr��-at��mica, em S��o Francisco da Calif��rnia
��� ouvi pela primeira vez minha voz gravada em disco
e tive uma decep����o t��o grande, que da�� por diante, toda
a vez que tenho de fazer uma confer��ncia p��blica ou
falar diante dum microfone, entro em cena j�� meio der-
rotado. Achei minha voz fosca, fraca, f e i a . . . e poderia
acrescentar aqui um par de outros adjetivos que come��am
com f. (N��o sei o que �� pior, se amar ou detestar a pr��-
pria voz. Creio que ambas essas situa����es s��o neur��ticas
O normal deve ser a gente n��o se preocupar com a pr��pria
fala, usando-a como instrumento de comunica����o. Em
suma, cada homem deve aceitar a voz e a cara que Deus
lhe deu.) Seja como for, estou neste momento na sala
n.�� 5 dum edif��cio da Universidade Hebraica, diante de
alunos do Semin��rio de Estudos Rom��nicos. Aqui se
acham tamb��m v��rios professores, entre os quais Moch��
Lazar. Dothan ocupa estoicamente uma cadeira na se-
gunda fila.
Preciso dum mapa do Brasil. Como me pediram, vou
falar sobre a literatura brasileira do s��culo XX, pretendo
seguir at�� certo ponto o esquema de Vianna Moog, que
a apresenta como um arquip��lago. Toda a conversa tem
de caber dentro dum per��odo normal de aula, pois, como
costuma dizer Amoroso Lima, nem os anjos devem falar
mais de cinq��enta minutos duma s�� vez.
Como n��o conseguimos o mapa, desenho a giz no
quadro-negro a configura����o do Brasil, pondo em desta-
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que as diversas ilhas de seu arquip��lago liter��rio. A aula
deve ser em espanhol. Pe��o, antecipadamente, em pen-
samento, perd��o a Cervantes, Ortega y Gasset e Azorin
��� e come��o a disserta����o.
�� noite, ainda na Universidade, fa��o nova confer��n-
cia, numa das salas do Edif��cio Administrativo, diante
dumas cento e cinq��enta pessoas. Na primeira fila vejo
embaixadores de v��rios pa��ses latino-americanos. Algu��m
me sugeriu para esta palestra o tema ��� "A Influ��ncia
da B��blia no Brasil". Objetei que, afora os sacerdotes, os
pastores, os te��logos, alguns eruditos e os protestantes
dum modo geral ��� no Brasil muito pouca gente l�� a
B��blia, cuja influ��ncia, pelo menos direta, �� m��nima em
nosso povo. Por que, ent��o, n��o dizer esta noite alguma
coisa sobre o car��ter desse povo?
Devo usar ainda o espanhol mas �� ��ltima hora re-
solvo fazer uma experi��ncia: provar que todos estes pro-
fessores e estudantes do castelhano podem com pequeno
esfor��o entender a nossa l��ngua. Falo devagar, destacan-
do bem as s��labas, exagerando um pouco a pros��dia qua-
drada do ga��cho, empregando olvidar em vez de esquecer,
e quedar para substituir ficar, etc. ��� e tenho a impress��o de que estou sendo compreendido.
Diviso a um canto do sal��o Raquel Dothan e M.,
sentadas juntas. Em certo trecho da palestra, exatamente
quando estou discorrendo sobre a beleza e a gra��a da
mulher brasileira, numa dessas generaliza����es fantasiosas
e otimistas, produtos da dist��ncia e da saudade ��� irrom-
pem na sala, atrasadas como era de se esperar, v��rias es-
tudantes do Brasil que est��o em visita a Jerusal��m. Fa��o
uma pausa, enquanto elas se acomodam nas poucas ca-
deiras desocupadas.
Mais tarde, terminada a confer��ncia, minha mulher
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E R I C O V E R �� S S I M O
me conta que, quando entrou no sal��o o bando estudantil,
Raquel Dothan, depois de examinar suas componentes
com olho cr��tico, murmurou: "Acho que seu marido esco-
lheu a hora errada para falar na beleza da mulher bra-
sileira".
O CENTRO M��DICO
Sa��mos nesta outra manh�� para visitar o Centro
M��dico Hadassah-Universidade Hebraica, um maci��o con-
junto arquitet��nico situado no dorso dum espig��o, a uns
oito quil��metros de Jerusal��m. A Faculdade de Medicina
da Universidade Hebraica faz parte deste centro. Visita-
mos o seu hospital dotado de 520 leitos e 30 dispens��-
rios. Vemos pelos corredores, al��m dos m��dicos e estu-
dantes judeus, os seus colegas africanos, asi��ticos, eu-
ropeus e sul-americanos. Dothan nos diz que este hospital
universit��rio �� considerado um dos melhores do mundo.
Fazem-se tamb��m aqui cursos de enfermagem nos quais
se acham matriculados centenas de homens e mulheres
que, terminando o seu aprendizado, v��o trabalhar em
seus pa��ses de origem.
Li, n��o me lembro onde, uma est��ria que ilustra
bem o esp��rito dos profissionais e dos mestres que tra-
balham neste hospital. Quando um dia algu��m perguntou
a um professor de pediatria quantos de seus pacientes
infantis eram ��rabes e quantos judeus, ele encolheu -os
ombros e respondeu: "Como vou saber? Para n��s uma
crian��a �� uma crian��a".
OS VITRAIS DE CHAGALL
Terminada a visita ao hospital, entramos na sina-
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251
goga do Centro, onde se encontram os famosos vitrais
de Marc Chagall. Simbolizam as doze tribos de Israel. O
artista estilizou neles os animais, os emblemas e as
cores dessas tribos. (A serpente �� a figura principal no
vitral da tribo de Dan, o lobo na de Benjamim, o le��o na
de Jud��, a mandr��gora na de Rubem, um navio na de
Zebul��o, e t c . . . ) Devo confessar que estes t��o gabados
vitrais, com toda a sua riqueza de cores e elementos on��-
ricos, n��o me agradam tanto como as pinturas de cavalete
do not��vel artista.
Um fot��grafo do Minist��rio dos Neg��cios Estrangei-
ros que nos acompanha nesta excurs��o matinal, tem es-
tado marombando, desde que entrou nesta sinagoga, ��
procura ��� desconfio ��� dum ardil para nos fotografar
sem dar na vista de ningu��m, pois �� rigorosamente proi-
bido tirar fotos aqui dentro. L�� pelas tantas o homem
leva ao olho a objetiva e nos fotografa furtivamente, sen-
tados debaixo do vitral da tribo de Issacar, cujo s��mbolo
�� um asno. E ent��o se arma uma trag��dia n��o grega, mas
hebraica. Um judeu de aspecto tur��stico, com um solid��u
na coroa da cabe��a ��� sinal de sua religiosidade ��� e
que estava vigiando com olhos torvos o fot��grafo, investe
para ele de dedo em riste, os olhos chispando ��dio, e ex-
clama em ingl��s: "Isso n��o �� direito! Como �� que voc��
pode usar sua c��mara aqui dentro e eu n��o?". Nosso com-
panheiro baixa a cabe��a, finge que a coisa n��o �� com ele.
Mas o outro continua no seu apaixonado protesto. Tenho
a impress��o de que vai agredir o transgressor. Compre-
endo sua sagrada f��ria. Apesar de encontrar-se num
templo de Jeov��, o Deus ��nico, ele est�� agora sob a
influ��ncia de mitos e ritos duma civiliza����o de consumo
em que imperam outras deidades, pequenas e grandes,
e que, todas, de certo modo exigem nossa devo����o e nosso
culto. Agora o judeu religioso esquece o seu Jeov�� para
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E R I C O V E R �� S S I M O
queimar seu incenso no altar dessa divindade moderna
universal que �� a Kodak Co.
Saio da sinagoga fazendo reflex��es sobre a for��a dos
s��mbolos, as teses de McLuhan, principalmente a que
diz respeito ao crep��sculo da era de Guttemberg. Tudo
isto leva o escritor que sou a apreens��es quanto ao futuro
do livro. E de s��bito me sinto irremediavelmente obsoleto.
VISITA AO PRESIDENTE
Que sei do Dr. Zalman Chazar, o Presidente do Es-
tado de Israel, que nos vai receber esta tarde? �� poeta,
e isso j�� me predisp��e a simpatizar com ele. Nasceu na
R��ssia, o que n��o �� bom nem mau: um mero acaso.
Veio para a Palestina em 1911, voltou para a Europa, e
treze anos mais tarde n��o resistiu ao chamado da terra
de seus ancestrais e aqui se fixou definitivamente. Du-
rante o Mandato foi jornalista e depois pol��tico. Procla-
mado o Estado de Israel, foi eleito membro do Knesset
pelo partido Mapai. Publicou volumes de poesia e ensaios
hist��ricos, pol��ticos e biogr��ficos. Em suma, o Dr. Chazar
�� um scholar, um humanista, um esp��cime humano que
dificilmente ou nunca conseguiria ocupar um cargo dessa
import��ncia num pa��s comunista ou mesmo capitalista.
(Quando o Brasil era uma monarquia, nosso Pedro II
escrevia versos, orgulhava-se de sua amizade com Victor
Hugo e brincava de astr��nomo.)
O presidente espera-nos na sua resid��ncia, que bem
podia ser a dum banc��rio, dum m��dico ou dum comer-
ciante remediado. Classe m��dia, em suma. Nenhum luxo.
Nenhum formalismo. Pouqu��ssimos guardas, e todos de
aspecto pac��fico. E a palavra de senha parece ser apenas
'Chalom!".
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No seu gabinete de trabalho, as paredes cobertas por
estantes atestadas de livros, o Dr. Zalman Chazar rece-
be-nos com uma cordialidade meio distra��da. Tem o as-
pecto dum professor universit��rio, mas europeu, pois se
fosse americano trajaria um casaco de tweed, tipo esporte,
e n��o estaria assim corretamente vestido de escuro, com
colete, colarinho engomado, a gravata no devido lugar. ��
baixo, robusto, mais ou menos da estatura de Ben-Gurion,
o domo rosado e luzidio da cabe��a circundado por um
meio-halo de cabelos brancos, bigode curto, �� escovinha.
Por tr��s das lentes dos ��culos, seus olhos t��m a mesma
vivacidade e intelig��ncia dos de Ben-Gurion, embora sem
a mesma luz de mal��cia.
Faz-nos sentar �� frente de sua mesa, sobre a qual
vejo tr��s c��lices cheios dum l��quido meio dourado ���
elementos duma natureza morta em que aparecem tam-
b��m um par de ��culos, um tinteiro com canetas, um re-
l��gio e um corta-papel... O Presidente apanha seu c��-
lice, ergue-o num brinde discreto ��� Lehayiml . Fazemos
o mesmo: Lehayim! . Tomo um gole, com a l��ngua e a
boca preparadas para um Xerez e eis que este abst��mio
de m�� sorte sente uma lava vulc��nica escorrer-lhe pela
l��ngua e descer-lhe pela garganta, rumo dum est��mago
j�� todo transido de apreens��o. Mal contenho um acesso
de tosse. Disfar��o a surpresa, reponho o c��lice sobre a
mesa.
O Dr. Chazar quer saber se falamos ingl��s. No mo-
mento n��o consigo dizer sequer uma palavra, nem mes-
mo de portugu��s. Sacudo a cabe��a afirmativamente. O
Presidente nos examina com o que me parece a curiosi-
dade meio perplexa dum ornit��logo diante de dois p��s-
saros que ainda n��o conseguiu classificar. Examina pri-
meiro minha mulher, com uma express��o benevolente
no rosto. Depois se volta para mim:
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E R I C O V E R �� S S I M O
��� Como �� que um homem que se exprime em por-
tugu��s como o senhor, pode ser escritor profissional, se
t��o pouca gente no mundo entende essa l��ngua?
Devo repetir a pergunta que fiz a um escritor israe-
lense, num remoto almo��o, sobre quantas pessoas no
mundo moderno falam o hebraico? N��o. Limito-me a
dizer it is one of those things , frase que corresponde
exatamente ao nosso "s��o dessas coisas".
Vejo em cima do peitoril da janela um retrato emol-
durado do Papa Paulo VI, com uma dedicat��ria ao Dr.
Chazar. Relanceio os olhos pelas lombadas dos livros ���
em sua maioria em hebraico ��� e descubro aqui e ali o
t��tulo duma obra liter��ria em ingl��s ou franc��s.
O Presidente conta-nos que visitou n��o faz muito o
Nepal, e est�� traduzindo para o hebraico os poemas do
rei desse pa��s, com quem fez excelente amizade. Diz-nos
tamb��m que em breve visitar�� oficialmente o Brasil, e
me pede que lhe d�� os nomes de algumas figuras liter��-
rias que no meu entender ele deve conhecer pessoalmen-
te. Dou.
Um fot��grafo interrompe o di��logo. Somos retrata-
dos em v��rias poses com o Presidente. E depois que o
profissional se vai, faz-se um sil��ncio durante o qual
ou��o o crepitar met��lico do rel��gio, em cima da mesa,
e que parece dizer-nos na sua l��ngua universal que esta-
mos roubando o tempo a um homem que deve ter coisas
mais importantes a fazer.
�� porta do gabinete, quando nos despedimos do Dr.
Chazar, digo-lhe:
��� Presidente, no Brasil temos centenas de rios pe-
quenos e grandes, alguns dos quais n��o usamos. Como
prova de admira����o e apre��o por Israel, prometo man-
dar-lhe de presente um deles.
I S R A E L E M A B R I L
255
NOITE NA CASA DOS AVIDAR
O programa anuncia que esta noite teremos "ch�� na
casa da Sra. Yemina Avidar", ��� escritora israelense casa-
da com um general e ex-diplomata. Preparamo-nos para o
pior, mas temos a mais agrad��vel das surpresas. Desde
os primeiros minutos sentimos que este ser��o vai ser
muito interessante. Os anfitri��es s��o simpatic��ssimos,
sem o menor tra��o de esnobismo, e em sua casa encon-
tramos jornalistas, escritores, pintores, professores ��� re-
presentantes de v��rias correntes pol��ticas, art��sticas e fi-
los��ficas de Israel. A Sra. Avidar, cujo nome de solteira
�� Tschernovitz, estudou psicologia e pedagogia nas uni-
versidades de Berlim e Viena, e mais tarde em Jerusal��m.
Lembra-me no f��sico, na maneira de vestir, gesticular e
falar (seu ingl��s �� impec��vel) certas damas americanas
interessadas em arte e literatura, que tantas vezes encon-
trei nos Estados Unidos, nos colleges e nas salas de con-
fer��ncia. Quanto ao Gen. Avidar, recordo-me agora de que
fui apresentado a ele, numa recep����o, h�� um par de dias.
Como poderia esquecer esta figura? �� um homem alto,
creio que j�� na casa dos sessenta, enxuto de carnes, rosto
longo e fino, de fei����es aliciantes. Veste com uma ele-
g��ncia brit��nica, isto ��, casual. Her��i da Guerra da Inde-
pend��ncia de Israel, perdeu um bra��o quando, ensinando
seus soldados a lan��ar granadas, uma destas lhe explo-
diu na m��o. Serviu como Embaixador de Israel na Argen-
tina e hoje exerce as fun����es de diretor das empresas es-
tatais de seu pa��s.
Vou aos poucos fazendo a volta da sala, sentando-
me um pouco ao lado de cada uma das pessoas que aqui
est��o. Um jornalista me chama a aten����o para o fato de
que Israel tem, per capita, mais jornais, revistas, museus,
256
E R I C O V E R �� S S I M O
galerias de arte, escolas e orquestras sinf��nicas do que
qualquer outra na����o do mundo.
Com um escritor discuto os problemas do romance
no nosso tempo. Com um cr��tico, alguns ficcionistas ame-
ricanos de origem judaica. Pergunto se o pessimismo
desses autores ��� cito especificamente Saul Bellow, Ber-
nard Malamud e Philip Roth ��� tem exercido alguma in-
flu��ncia sobre os escritores novos de Israel.
Resposta: "Infelizmente, ��s v e z e s . . . mas um pouco,
s�� um pouco. Porque o judeu, principalmente o israelense,
�� um otimista". Lembro-lhe Kafka e outras personali-
dades noturnas do povo de Abra��o. O ensa��sta replica:
"Kafka em algumas p��ginas pelo menos nos faz rir. Com
Carnus, por exemplo, isso nunca acontece".
A Sra. Avidar d��-nos um de seus livros, na tradu����o
espanhola, intitulada A Casal. �� uma est��ria dirigida a
um p��blico juvenil e se passa parte em Israel e parte no
Brasil. Diz-nos a autora: "Escrevi esta novela num inver-
no, em Moscou, rodeada dum mundo envolto em neve.
Sentia saudade de Israel e pensava em algumas crian��as
israelenses que conheci no Brasil e que, como tantas ou-
tras afastadas de seu pa��s, ansiavam por voltar para casa".
Sento-me agora ao lado do Gen. Avidar ��� um homem
de quem sinto eu poderia ser amigo, depositando nele a
minha inteira confian��a. Pergunto-lhe se n��o pretende
escrever suas mem��rias. Responde: "Um dia, talvez. Ago-
ra estou muito ocupado com outras coisas". Quando lhe
digo que em breve minha mulher e eu visitaremos Bror
Hayil, o kibbutz dos brasileiros, ele me conta que ajudou
a fundar o n��cleo de onde essa comunidade nasceu. Faz
com a cabe��a um sinal na dire����o de seu cunhado, que
h�� minutos prende a aten����o dos presentes com uma de
suas est��rias cheias de pitoresco e humor, revelando o
I S R A E L E M A B R I L
257
ator nato que ��. "Esse epis��dio quase custou minha ami-
zade com aquele cidad��o que ali e s t �� . . . Foi no tempo do
Mandato. N��s quer��amos fundar o maior n��mero poss��-
vel de col��nias agr��colas, mas os ingleses eram contra a
id��ia e tratavam de opor-nos toda a sorte de obst��culos.
Um dia preparamos no maior sigilo v��rios caminh��es
cheios de material de que necessit��vamos: mour��es, rolos
de arame farpado, t��buas, folhas de zinco, e t c . . . e na ca-
lada da noite tocamos rumo dum lugar perto da Faixa
de Gaza e l�� nos pusemos a trabalhar, praticamente no
escuro, para n��o atrair a aten����o dos soldados brit��nicos.
Quando o dia raiou, l�� estava o kibbutz: um lote de terra
limitado por uma cerca de arame farpado, com um galp��o
e uma torre de vigia no centro. Quando os ingleses apa-
receram, o fato estava consumado. Um oficial aproximou-
se de n��s, �� frente de sua tropa e, muito vermelho, res-
mungou qualquer coisa, mas, diante de nosso sil��ncio,
retirou-se com os soldados, sem tocar na nossa 'aldeia'."
O general solta uma risada. Torna a fazer um gesto
na dire����o do cunhado, e acrescenta: "Quando ele tomou
conhecimento da aventura, ficou furioso comigo por eu
n��o t��-lo avisado na v��spera, pois queria tomar parte na
expedi����o. Repliquei que n��o lhe havia dito nada porque,
sabendo de sua tagarelice, temia que ele sa��sse a contar
a est��ria pelos caf��s, deitando a perder nosso plano. Meu
cunhado passou v��rios dias de rela����es cortadas comigo".
O BAIRRO ORTODOXO
Infelizmente nosso programa em Jerusal��m n��o nos
tem permitido fazer o que mais nos agrada: caminhar
ao acaso, sem mesmo saber o nome das ruas, olhando
pessoas, animais e coisas.
258
E R I C O V E R �� S S I M O
Hoje, entretanto, os andarilhos que somos se deliciam
na excurs��o que fazemos a p�� pelas ruas do bairro Mea
Chearim, um verdadeiro "gueto judeu" encravado em Je-
rusal��m, tal como os que se encontravam em fins do s��-
culo passado e princ��pios do atual em pa��ses como a Po-
l��nia e a R��ssia. Suas. casas, becos, lojas e p��tios me
lembram os guetos de Crac��via e Vars��via, que conhe��o
de fotografias ou descri����es liter��rias. Por estas estreitas
ruas cal��adas de pedras irregulares circula uma estranha
popula����o de judeus ortodoxos que vivem segregados dos
outros habitantes de Jerusal��m. Os homens em geral ves-
tem uma caftana negra, usam chap��us tamb��m pretos,
de copa redonda e abas largas. Nos dias de festa religiosa
deve ser um espet��culo ver sa��rem das sinagogas esses
senhores graves, trajando longos fraques, cal����es �� s��culo
XVIII, apertados acima do joelho, as pernas cobertas
por meias negras, as cabe��as enfiadas em grandes cha-
p��us com abas de p��lo, reminisc��ncia da indument��ria
dos nobres poloneses da Idade M��dia. Os homens adultos
usam todos barbas compridas, obedientes a um preceito
b��blico contr��rio ao ato de barbear-se. De cada lado de
suas cabe��as os cabelos crescem em cachos crespos, ��
maneira de su����as.
Ao cruzarem por n��s, essas curiosas criaturas lan-
��am olhares desconfiados para a minha c��mara. Detes-
tam ser fotografadas, pois o Segundo Mandamento os pre-
vine n��o s�� contra os deuses esculpidos como tamb��m
contra qualquer "semelhan��a do que h�� em cima nos
c��us, e em baixo na terra, ou nas ��guas debaixo da terra".
��� Que l��ngua falam? ��� pergunto.
��� I��diche na vida di��ria ��� responde Dothan ���
hebraico nos dias-santos e nas cerim��nias religiosas, bem
como os judeus dos tempos medievais.
I S R A E L E M A B R I L
259
Sei que entre os hebreus ortodoxos de Jerusal��m exis-
te um grupo fan��tico, o Neturei Kaita (Guarda da Cida-
de) que recusa aceitar a autoridade do Estado de Israel
e cujos membros se negam a prestar servi��o militar. Mais
de uma vez os representantes desse grupo tiveram cho-
ques com a policia. Os m��dicos do Hospital Hadassah en-
tram freq��entemente em conflito com os habitantes deste
bairro, que se op��em de maneira irredut��vel �� aut��psia.
Na opini��o destes religiosos ortodoxos, Jerusal��m ��
uma cidade santa onde nenhum hebreu digno desse nome
deve andar de cabe��a descoberta e rosto raspado, usar rou-
pas coloridas, dirigir carros particulares durante o Sab��
ou entrar em piscinas p��blicas. S��o, em suma, contra
toda a express��o de modernismo na vida de Israel, que
consideram um "pa��s corrupto".
Espio para dentro duma sinagoga, atrav��s de peque-
na janela, e vislumbro um quadro magn��fico: numa at-
mosfera misteriosamente crepuscular, protegidos da cla-
ridade pag�� da tarde, uns quatro ou cinco velhos de bar-
bas grisalhas, as cabe��as cobertas, o talit (chal�� de ora-
����es) sobre os ombros, est��o encurvados sobre livros,
talvez o Talmude, talvez o Tor��. Preparam-se para a
vinda do Messias.
Numa das ruelas centrais do Mea Chearim vemos
um cartaz com caracteres em i��diche e em ingl��s: um
aviso aos visitantes pedindo ��s mulheres que se apresen-
tem neste bairro decentemente vestidas, sob pena de ex-
puls��o. Sei que um "intruso" que se aventurou a passar
por estas ruas ao volante de seu carro num Sab��, foi
apedrejado.
Passam por n��s meninos entre oito e doze anos, qua-
se todos rechonchudos, corados, com l��bios grossos e ver-
melhos de pintura renascentista italiana, alguns com de-
260
E R I C O V E R �� S S I M O
cidida voca����o para anjo de Botticelli, Caravaggio ou Ru-
bens, e todos vestidos de preto, como seus pais, av��s,
bisav��s, trisav��s e tetrav��s, e com esses curiosos cachos
que lhes pendem dos lados das cabe��as, como glic��nias
negras, castanhas, louras ou ruivas. (" Na����o de gente
esquisita, esses estrangeiros!" ��� costumava dizer um tro-
peiro ga��cho da minha inf��ncia.)
1 0
VOLTA A TEL AVIV
O JUDEU E O ALEM��O
Voltamos a Tel Aviv e ao Hotel Dan. Sou procurado
pelo correspondente duma ag��ncia de not��cias interna-
cional que me quer entrevistar. Sentamo-nos num sof��,
no sagu��o, perto da escultura do p��ssaro absurdo. O jor-
nalista �� um homem corpulento, de cabe��a leonina, olhos
dum azul desbotado. Logo que nos acomodamos, digo-lhe:
"Aposto como o senhor nasceu e passou muito tempo de
sua vida na Alemanha, n��o?". Ele parece surpreendido.
"�� verdade. Como descobriu isso?". Explico: "Por seu pen-
teado, por suas roupas e principalmente por algo em sua
fisionomia que eu sinceramente n��o saberia descrever".
Terminada a entrevista, o jornalista se vai e eu fico
a fazer reflex��es sobre as estranhas rela����es entre judeus
e alem��es. Tenho observado que muitos judeus-alem��es,
antes da Segunda Guerra Mundial, eram talvez mais ale-
m��es que judeus. Refiro-me principalmente aos intelec-
262
E R I C O V E R �� S S I M O
tuais, aos membros das profiss��es liberais, e aos comerci-
antes e industrialistas mais ricos. Raramente ou nunca se
identificavam ou conviviam com o hebreu pobre do gueto,
tanto no seu pa��s de nascimento como no estrangeiro.
Quando o nacional-socialismo tomou o poder na Alema-
nha, esses judeus-alem��es sofreram duplamente as perse-
gui����es nazistas: como judeus e como "alem��es rejeita-
dos". Uns poucos deles ��� creio ��� voltaram a residir na
Alemanha. �� que sua psicologia, seus h��bitos e gostos es-
tavam profundamente arraigados na cultura germ��nica,
para cuja grandeza tantos judeus ilustres haviam contri-
bu��do, e �� qual eles se orgulhavam de pertencer tamb��m,
ainda que marginalmente.
Estudando certos aspectos da progressiva desumani-
za����o do mundo ocidental, que culminou nas atrocidades
do nazismo, Erich Kahler observa que n��o foi por aci-
dente que essa mania genocida encontrou sua mais brutal
express��o na Alemanha. H�� nas rela����es entre alem��es e
judeus uma profunda afinidade e ao mesmo tempo uma
profunda diferen��a. S��o ambos povos transnacionais, em-
bora de maneira dissimilar e mutuamente antag��nica.
Os judeus transcenderam a sua condi����o de na����o terre-
na por meio de sua transforma����o em "povo global", ao
passo que os alem��es nunca conseguiram mais que uma
unidade superficial e insegura, de modo que suas frus-
tradas aspira����es ao poder encontraram nos judeus um
alvo ideal ��� esp��cie de bode-expiat��rio pr��-fabricado.
Lendo recentemente um ensaio de George Steiner ���
judeu de fam��lia rica, nascido em Paris e educado na
Fran��a, nos Estados Unidos e na Inglaterra ��� encontro
este trecho que de certo modo ilustra tamb��m meu pen-
samento: "Quando um judeu se op��e �� ferocidade paro-
quial em que o nacionalismo t��o facilmente (e de ma-
neira inevit��vel) degenera, ele est�� pagando uma velha
I S R A E L E M A B R I L
263
divida. Por vima dessas cru��is e profundas ironias da
Hist��ria, o conceito de povo escolhido, duma na����o exal-
tada acima das outras por um destino particular, nasceu
em Israel. No vocabul��rio do nazismo havia elementos
duma par��dia vingativa dessa reivindica����o judaica. O
motivo teol��gico de um povo eleito no Sinai teve seu eco
na impostura da 'ra��a de senhores' e no seu dom��nio do
Mil��nio. Assim, havia na rela����o obsessiva entre o na-
zista e o judeu um min��sculo mas tem��vel gr��o de l��gica".
De certo modo essa id��ia est�� contida no tema cen-
tral, embora oculto, do romance de G��nter Grass, Hunde-
jahre, traduzido para o portugu��s com o t��tulo de O C��o
de Hitler.
Torno a pensar no judeu-alem��o com quem acabo de
conversar. Notei que se barbeou t��o mal esta manh��, que
seu rosto est�� cheio de arranh��es, alguns de tr��s cen-
t��metros de comprimento: riscos de sangue coagulado.
Brinco ent��o com a id��ia de que o alem��o que ainda
habita seu inconsciente ��s vezes se compraz em torturar
a carne do judeu que inescap��velmente ele �� e sempre
ser��.
A PODEROSA HISTADRUT
Um israelense de tend��ncias capitalistas me dizia,
n��o faz muito, que os Tr��s Grandes do Estado de Israel
s��o o Governo, a Ag��ncia Judaica e a Histadrut (Confe-
dera����o Geral do Trabalho), e que ele via com alarma a
possibilidade de esta organiza����o trabalhista tornar-se
um dia mais poderosa e influente que o pr��prio Governo.
Acrescentou com ar de conspirador: "Veja a sede da His-
tadrut aqui em Tel Aviv e compreender�� por que ela ��
conhecida como o Kremlin..."
264
E R I C O V E R �� S S I M O
Fundada em 1920, portanto vinte e oito anos antes
da institui����o do Estado de Israel, a Histadrut �� uma fe-
dera����o de sindicatos de trabalhadores que tem sua base
nos comit��s locais, nos sindicatos propriamente ditos e nas
associa����es profissionais de ��mbito nacional. Quase 15%
das empresas industriais de Israel tiveram origem em
cooperativas e outras organiza����es controladas pela Hista-
drut, que conta hoje em dia ��� inclu��das as esposas, que
t��m os mesmos direitos que os maridos ��� com quase um
milh��o de s��cios. Neste n��mero est��o compreendidos os
��rabes e membros de outros grupos n��o-judeus de Israel.
As finalidades da Histadrut s��o ��� defender os di-
reitos dos trabalhadores urbanos �� agr��colas, ajud��-los a
obter empregos, resolver problemas de sal��rio e rela����es
com os patr��es, facilitar-lhes a obten����o de moradias e
proporcionar-lhes assist��ncia m��dica, hospitalar, escolar,
em suma: prestar a seus membros ��� e aos novos imi-
grantes ��� todos os servi��os necess��rios a sua sobrevi-
v��ncia numa terra onde a vida �� ��spera e, sob muitos
aspectos, arriscada.
Diferente das outras organiza����es trabalhistas do
mundo, a Histadrut mant��m atividades no setor comercial
e industrial, fazendo "neg��cios por conta pr��pria". Suas
empresas econ��micas s��o dirigidas pela Hevrat Ovdim,
que congrega quase todas as cooperativas de Israel. Suas
companhias construtoras ��� que se encarregam tamb��m
de servi��os portu��rios ��� d��o trabalho para cerca de
30 000 oper��rios, e ultimamente t��m realizado obras p��-
blicas em diversos pa��ses do Oriente M��dio, da ��sia e da
Africa. A Histadrut mant��m um Banco Oper��rio e uma
Companhia de Seguros. �� co-propriet��ria, com o Governo
do Estado e a Ag��ncia Judaica, de tr��s grandes empresas:
a Mekerot, de ��guas, a El Al, de transportes a��reos e a
Zim, de navega����o. A grande maioria dos kibbutzim e dos
I S R A E L E M A B R I L
265
mochavim, bem como suas respectivas cooperativas, vi-
vem sob o p��lio da Histadrut que, atrav��s da Tnouwa,
encarrega-se da venda dos produtos agr��colas (cerca de
70% da produ����o total do pa��s) e trata de sua exporta-
����o. Atrav��s da Amachbir Hamerkazi centraliza as ope-
ra����es de compras das cooperativas de consumo dessas
aldeias coletivas.
Visitamos hoje a sede da Histadrut, um imponente
complexo de grandes edif��cios na rua Arlosoroff.
Vamos direito ao Departamento Cultural. Somos re-
cebidos pelo Sr. Bezalel Chahar, um homem af��vel e
businesslihe, que est�� sentado atr��s de sua mesa de tra-
balho, nesta sala ampla, bem mobiliada e clara de sol.
Depois das palavras iniciais de apresenta����o e da
inevit��vel observa����o sobre o tempo, o Sr. Chahar nos
conta das atividades culturais da C. G. T. israelense.
��� Mantemos ��� diz ele ��� um centro cultural para
a dissemina����o da l��ngua hebraica. Nossas atividades no
campo da arte s��o m��ltiplas e, estou certo, eficazes. Pro-
tegemos e estimulamos as voca����es art��sticas e liter��rias
de nossos associados, proporcionando-lhes bolsas de es-
tudo e outras facilidades. Temos um teatro, o OheF. Nosso
elenco teatral ambulante, o Telem, e o grupo de dan��as
folcl��ricas visitam periodicamente os kibbutzim e os mo-
chavim de todo o pa��s, desde a Galileia do norte at�� ao
sul do Neguev.
��� Sei que a Histadrut tem a sua Editora pr��pria ���
digo, apenas para dar uma deixa ao nosso interlocutor.
��� Sim, chama-se Am Ovd. Mant��m uma escola es-
pecializada para seus funcion��rios. E por falar em escola,
oferecemos classes noturnas para adultos. E a rede Amal
de escolas profissionais �� muito grande e abrange boa
parte do territ��rio nacional.
266
E R I C O V E R �� S S I M O
��� E em mat��ria de bibliotecas?
��� Al��m das grandes e fixas, temos as ambulantes,
que est��o obtendo sucesso crescente. Conhece o nosso
Instituto Afro-Asi��tico? Pois vale a pena visit��-lo. Temos
l�� bolsistas, creio que uns 600, naturais de 53 pa��ses da
Africa e da Asia em processo de desenvolvimento.
��� E quanto �� imprensa?
��� A Histadrut publica dois di��rios, o Davar e o
Omer. (�� pena que o senhor n��o possa ler h e b r a i c o . . . ) E mais uma revista infantil e um seman��rio ilustrado.
��� Nenhuma publica����o em ��rabe?
��� Sim, um peri��dico, o Chaqiqat alrAmr.
Pe��o ao Sr. Chahar que soletre o nome do jornal
para que eu o anote na minha caderneta. E enquanto
escrevo, penso na cara que faria mestre Aur��lio Buarque
de Hollanda se me visse a colocar um q antes dum i.
Pelo que tenho ouvido e lido, as cr��ticas que se fa-
zem hoje �� Histadrut n��o partem apenas do setor capi-
talista, que n��o aprova as tend��ncias socialistas dessa
C. G. T��� mas tamb��m dos sabr��s que ocupam postos
importantes no governo do pa��s. Alegam estes que a
Histadrut �� um empecilho �� nacionaliza����o de certos se-
tores da economia nacional. Esses representantes do go-
verno ��� naturalmente fascinados pelas perspectivas aber-
tas ao pa��s pela tecnologia ��� consideram o kibbutz, a
menina dos olhos da G. G. T., uma express��o de reaciona-
rismo econ��mico, que favorece a pequena empresa e tran-
ca ou pelo menos retarda a concentra����o industrial sem
a qual, na opini��o desses tecnocratas, Israel n��o poder��
atingir as suas metas econ��micas e financeiras mais
altas.
Ouvi h�� dias dum jovem empres��rio israelense que
a "Histadrut �� um polvo". Sim ��� penso ��� polvo ambiva-
I S R A E L E M A B R I L
267
lente, polvo amb��guo, que um dia talvez perca o controle
de seus m��ltiplos tent��culos, n��o podendo impedir que
uns entrem em conflito com os outros. Criada para de-
fender com esp��rito socialista os direitos dos trabalhado-
res, a Histadrut acabou tomando um rumo quase capi-
talista ao dirigir-se para atividades de produ����o, trans-
formando-se assim tamb��m numa organiza����o patronal.
Seja como for, parece-me que, num futuro n��o muito re-
moto, e que estar�� naturalmente condicionado a uma
paz est��vel com os vizinhos ��rabes ��� ser�� inevit��vel o
choque final, a batalha campal entre a Histadrut e os par-
tidos pol��ticos israelenses de centro, de direita e os re-
ligiosos.
O LONGO DIA
Visitamos a reda����o do Davar, que podia ser a dum
grande jornal europeu ou americano: as imagens, os sons
e os cheiros de costume. Poucas horas depois, dou uma
entrevista coletiva �� imprensa, em torno duma longa
mesa, �� maneira de semin��rio. Os jornalistas me fazem
perguntas sobre o Mar. Castelo Branco e o momento bra-
sileiro. Por mais que me esforce, n��o consigo faz��-los
compreender direito o atual regime pol��tico de meu pa��s.
Ao meio-dia a Associa����o de Imprensa local oferece-
nos na sua sede um almo��o muito cordial, com numerosos
discursos. Os israelenses parecem muito empenhados em
confirmar a tese do verbalismo do povo judeu.
No meio da tarde gravo em fita magn��tica, e em
ingl��s, uma r��pida palestra sobre a literatura brasileira
na sede da Kol Yisrael (A Voz de Israel). Neste pa��s n��o
existem esta����es de r��dio particulares. A televis��o, que
come��ar�� a funcionar dentro de pouco, pertencer�� tam-
268
E R I C O V E R �� S S I M O
b��m ao governo e ter�� finalidades principalmente edu-
cativas.
Ao anoitecer vamos �� casa do representante diplo-
m��tico do Brasil, no bairro de Ramat Gam. O Embaixador
Aloysio Guedes R��gis de Bittencourt e sua senhora d��o
uma recep����o em nossa honra.
Encontro reunidos nesta agrad��vel resid��ncia escri-
tores, artistas pl��sticos, professores, gente de teatro e
r �� d i o . . . Temos o prazer de reencontrar aqui Myriam e
Shaul Levin, e os Sirotsky. Beila, que fez teatro e cinema
no Brasil, est�� aperfei��oando o seu hebraico para tomar
parte em pe��as nos palcos de Israel.
Creio que o teatro �� uma das muitas paix��es deste
povo t��o rico de subst��ncia humana. Existem em Tel
Aviv muitas companhias profissionais, das quais tr��s pelo
menos t��m car��ter permanente. A mais antiga e impor-
tante delas �� a Habima, que se exibe no teatro do mesmo
nome, apresentando ao p��blico grande variedade de pe-
��as, desde a trag��dia grega, passando por Shakespeare,
Moli��re e Ibsen at�� Becket, Ionesco e Brecht ��� isso para
n��o mencionar o repert��rio de teatro i��diche e hebraico.
Existe tamb��m em Tel Aviv um Teatro de C��mara,
especializado em pe��as leves, freq��entemente importa����es
da Broadway. Outros grupos menores, entre os quais uma
companhia teatral de oper��rios ��� mant��m-se em grande
atividade n��o s�� nesta cidade como no resto do pa��s.
Sou apresentado nesta reuni��o a Kuperstein, conhe-
cido ensa��sta israelense, que me leva para um canto da
sala, diz que leu O Tempo e o Vento em tradu����o inglesa,
e me surpreende com uma interpreta����o que me parece
justa, desse romance c��clico ��� quero dizer: o cr��tico com-
preendeu a inten����o do autor. Combinamos um novo en-
contro para continuar o di��logo.
I S R A E L E M A B R I L
269
A embaixatriz do Brasil seria uma boa ilustra����o
para a confer��ncia que fiz a outra noite na Universidade
Hebraica, principalmente para o trecho em que descrevi
o encanto da mulher brasileira. O Embaixador R��gis de
Bittencourt tem o ph ysique du r��le, �� um homem af��vel,
inteligente e que possui um requisito essencial para exer-
cer com ��xito este posto: admira e ama Israel, como
era o caso do jornalista Jo��o Barreto Leite Filho, que
ocupou o cargo de embaixador antes dele, deixando aqui
numerosos e devotados amigos.
GOLDA MEIR
Tenho encontrado em minha vida algumas "perso-
nalidades c��smicas". Estamos aqui agora na presen��a de
algu��m que faz oscilar furiosamente a agulha de nosso
medidor Geiger. �� Golda Meir que, no momento sem posto
no governo, exerce as fun����es de secret��rio-geral de seu
partido, o Mapai. Estamos em seu gabinete de trabalho.
Quando procuro descrever uma pessoa ou uma pai-
sagem �� que percebo mais agudamente as limita����es e
mesmo a fatuidade da palavra escrita ou falada, e chego
a aceitar a tese da morte ou pelo menos da crise da lin-
guagem que at�� agora temos usado na comunica����o inter-
humana.
A face desta dama denota energia e coragem sem
negar bondade e humor. Posso imagin��-la tanto em fun-
����es maternais como guerreiras. O nariz longo e bulboso
lembra vagamente o do Presidente de Gaulle. Pelos pa-
dr��es comuns, Golda Meir pode ser considerada uma
mulher f e i a . . . Mas deixem-na falar, sorrir, acender um
cigarro, fazer qualquer outro gesto, e dentro de poucos
minutos a gente estar�� convencida da beleza desta extra-
270
E R I C O V E R �� S S I M O
ordin��ria criatura. D��-nos uma impress��o de firmeza, de
serena obstina����o, de profunda experi��ncia da vida e ���
por que n��o? ��� da morte. Sinto agora que est�� interes-
sada em n��s como pessoas. Quer saber de que parte do
Brasil somos. Temos filhos? Netos? Quantos? Como s��o?
N��o est�� num palco representando "a grande figura
p��blica". N��o me parece, interessada em polir a pr��pria
imagem. Diferente de tantos pol��ticos e estadistas que
conhe��o, n��o parece ter, como aquela personagem de Raul
Pompeia, a "obsess��o da pr��pria est��tua".
Nascida em Kiev, Ucr��nia, passou fome quando me-
nina. Um grande pogrom determinou o ��xodo de sua
numerosa fam��lia, que buscou ref��gio nos Estados Unidos.
Seu ingl��s �� perfeito: o sarro do Middle West que pudesse
haver nele desapareceu decerto no conv��vio com os in-
gleses, durante o Mandato.
Golda Meir chegou �� Palestina em 1921 e muito jo-
vem dedicou-se a atividades pol��ticas, como membro do
movimento que viria a transformar-se mais tarde no
Mapai. Tomou-se um l��der trabalhista. Conta-se que
quando v��rios chefes sionistas foram presos, num dia
conhecido como "o s��bado negro", Golda ficou em liber-
dade gra��as ao cavalheirismo brit��nico. Noutra ocasi��o,
disfar��ada de ��rabe, cruzou a' fronteira, dirigindo-se a
Aman para entabular negocia����es com Abdula, rei da
TransJord��nia. .. Foi o primeiro embaixador de Israel em
Moscou, cargo dif��cil em vista da atitude pouco simp��-
tica do governo sovi��tico para com suas minorias judaicas.
Ao tempo em que exerceu as fun����es de Ministro do Tra-
balho, Golda Meir instituiu o seguro nacional e estabele-
ceu um plano de vivendas populares. Num dos momentos
mais cr��ticos da vida de Israel, ��s v��speras da campanha
do Sinai, o governo lhe confiou o Minist��rio das Rela����es
Exteriores. Permaneceu nesse cargo durante dez anos e
I S R A E L E M A B R I L
271
mais de uma vez em reuni��es internacionais ��� em Nai-
robi, Caracas, Buenos Aires ��� defendeu a causa de seu
povo e de sua nova p��tria.
E aqui est�� ela agora, com um ar de professora p��-
blica, atr��s de sua pequena mesa de trabalho com tampo
de f��rmica (eu j�� disse que a madeira em Israel �� rara
e cara) sobre a qual vejo apenas um telefone negro, um
cinzeiro e um peda��o de quartzo de forma irregular.
Falamos sobre o destino do socialismo no mundo, e
Golda Meir encarece a necessidade de dar mais aten����o
aos aspectos espirituais do socialismo. Diante das esta-
t��sticas ��� confessa ��� est�� inclinada a admitir que nos
��ltimos tempos Israel se vai aproximando cada vez mais
de uma economia capitalista, e que se nota j�� um certo
esmorecimento, que ela deplora, no esp��rito que criou os
kibbutzim e os tem mantido at�� agora. "�� lament��vel" ���
acrescenta ��� "que os movimentos socialistas de todo o
mundo estejam sendo contaminados pela 'mentalidade de
consumo' dos pa��ses capitalistas."
Ao nos despedirmos, manifesto minha esperan��a de
v��-la de novo no governo. Golda Meir limita-se a sorrir
em sil��ncio.
1 1
DOIS KIBBUTZIM
O KIBBUTZ DOS BRASILEIROS
Fazemos uma breve visita a Bror Hayil, kibbutz
situado na plan��cie costeira, ao sul de Ascalom, e a mais
ou menos cinco quil��metros da Faixa de Gaza. Fundado
h�� dezoito anos, foi primeiro ocupado por imigrantes na-
turais do Egito, recebendo mais tarde grande n��mero de
judeus vindos do Brasil, e que hoje aqui s��o maioria
absoluta.
Chegamos por volta das cinco da tarde, e ningu��m
me venha agora negar que o Brasil tem muita for��a, e
que ser brasileiro �� um belo "v��cio" felizmente incur��vel.
Sentimo-nos logo �� vontade, gra��as ��s pessoas que nos
recebem ��� os l��deres da comunidade, homens na faixa
et��ria entre os trinta e os quarenta, todos falando o nosso
portugu��s, sem sombra de sotaque, e com um jeito e
uma cordialidade muito brasileiros. Benjamin Roismann,
274
E R I C O V E R �� S S I M O
secret��rio-geral do kibbutz, homem de complei����o atl��-
tica, tem o carioca estampado na face. Este outro �� Mar-
tim Tuder, louro de olhos claros, que Roismann nos
apresenta como "o dono das ��guas". Jaime Averbuch, alto,
corpulento, aqui est�� ao lado de Tuba, sua mulher, cuja
face me parece ter sido "desenhada" por Aubrey Beards-
ley. Ar��o Talenberg tem um aspecto de intelectual. (Mais
tarde, na sua casa cheia de livros vejo, pelas reprodu����es
de quadros que pendem nas paredes, que �� admirador de
Aldemir Martins e Portinari.) Amir Plut, com seus ��culos
professorais, �� o tesoureiro do Bror Hayil. Por fim aqui
temos um desses sujeitos que a gente tem a impress��o
de j�� haver encontrado antes, na vida ou num romance:
Don Tsamir, alto, robusto, com cara de napolitano. Quan-
do lhe pergunto sobre suas fun����es na comunidade, res-
ponde: "Sou o vagabundo do grupo. Trato de assuntos
pol��ticos".
Somos levados ao apartamento onde devemos passar
a noite, e que est�� situado numa esp��cie de pavilh��o em
que h�� duas ou tr��s outras resid��ncias. Temos a surpresa
de encontrar em cima duma mesa um bolo na forma dum
livro, sobre cuja "capa" de merengue leio o t��tulo de um
de meus romances, escrito em letras de marmelada: Olhai
os L��rios do Campo. Examinamos os volumes que se
alinham nas estantes: todos em hebraico. Desfazemos
as malas. Dirigimo-nos depois para o Centro Cultural
do kibbutz, que tem o nome de Oswaldo Aranha, em ho-
menagem ao brasileiro que presidiu a Assembl��ia Geral
da O. N. U. que reconheceu o Estado de Israel.
.O edif��cio do Centro �� de linhas modernas. A deco-
ra����o interior, de um bom-gosto discreto. Sentamo-nos
para o "papo" ritual brasileiro. Trato de satisfazer algumas
de minhas curiosidades. Quantos habitantes tem o kib-
butz? Resposta: cerca de 400 adultos. "Quanto ��s crian-
I S R A E L E M A B R I L
275
��as" ��� sorri Roismann ��� "nunca se sabe ao certo, por-
que est��o nascendo a toda hora."
Que �� que voc��s plantam? "Algod��o, trigo, beterraba
a��ucareira, alho-porro, lim��es, laranjas, toronjas, ceboli-
nhas-verdes... Produzimos tamb��m cenouras e batatas
que, depois de desidratadas pela nossa f��brica, s��o expor-
tadas." Pergunto ao tesoureiro: "E como v��o as finan-
��as?". E ele me conta que Bror Hayil fatura anualmente
cerca de um milh��o de d��lares de produtos agr��colas e
industriais.
Surpreendo-me de ver um televisor na sala, pois sei
que a primeira esta����o de tev�� de Israel ainda n��o est��
funcionando. Tsamir esclarece que eles costumam apa-
nhar as transmiss��es do Cairo. Como n��o podem seguir
as novelas seriadas, por n��o entenderem o ��rabe, limi-
tam-se a olhar as dan��as ��� e divertem-se particular-
mente com a do ventre ��� ouvir as can����es e, de vez em
quando, tremendas descomposturas contra os israelenses,
proferidas em hebraico pelos locutores ��rabes.
Pergunto a Tsamir ��� que �� paulista, como a maio-
ria dos brasileiros deste kibbutz ��� por que decidiu vir
para c��. Responde que, muito jovem, interessou-se por
pol��tica, no tempo do Estado Novo, alistando-se na opo-
si����o ativa. Mais tarde, sensibilizado pelas persegui����es
aos hebreus na Europa e principalmente pelo genoc��dio
praticado pelos nazistas, tomou consci��ncia de sua con-
di����o de judeu e decidiu vir para Israel. "Em suma" ���
digo-lhe ��� "voc�� achou mais f��cil ajudar a criar um
pa��s novo do que endireitar o Brasil, n��o?".
Jantamos no refeit��rio coletivo: galinha, verduras,
salsichas, peixe. Algu��m me informa que, por causa dos
brasileiros, este �� o kibbutz de todo Israel que mais con-
some arroz. Terminado o jantar, as cadeiras da sala s��o
276
E R I C O V E R �� S S I M O
arrumadas em filas, �� maneira de audit��rio, pois prometi
fazer uma confer��ncia esta noite. Por volta das oito horas
come��am a entrar minhas v��timas: homens, mulheres
adultos, e uma que outra crian��a ou adolescente. Observo
que os adultos em sua maioria falam o portugu��s. Creio
que esse e n��o o hebraico �� o idioma de uso corrente
aqui. Encontro um ga��cho de S��o Gabriel. Um conhe-
cido de Porto Alegre. Converso por alguns minutos com
o velho Tobias Krasner, antigo jornalista e sionista, que
me pergunta por amigos seus do Rio Grande do Sul. Estou
convencido de que, embora tenham muitas raz��es para
estar felizes no Bror Hayil, seus moradores da "velha
guarda" sentem ainda saudades do Brasil.
Tenho diante de mim umas duzentas pessoas sen-
tadas. Roismann faz a minha apresenta����o de maneira
breve e informal. Que posso contar a esta boa gente sen��o
est��rias da minha cidade, da minha inf��ncia e mocidade,
procurando usar pontos de refer��ncia que imagino comuns
�� maioria dos que me escutam? Conto-lhes anedotas bra-
sileiras sobre judeus, e alguns epis��dios de minha vida
de botic��rio em Cruz Alta, atr��s dum balc��o, vendendo
xaropes contra tosse ao mesmo tempo em que ha os dra-
mas de Ibsen e sonhava com viagens.
Noto que est��o todos atentos, em sil��ncio. Como
acontece quase sempre que falo em p��blico, concentro
a aten����o ��� n��o sei bem por qu�� ��� em um ou dois
ouvintes. Agora meu olhar se dirige repetidamente para
um senhor gordo e idoso, de bigodes espessos, e que tem
na cabe��a um desses bonezinhos de pano muito usados
pelos camponeses da Sic��lia e da Espanha. Quando acha
gra��a em alguma das minhas est��rias, rompe a rir um
riso convulsivo que lhe sacode o corpo inteiro, enquanto
d�� repetidas punhadas no tampo da mesa junto da qual
est�� sentado, produzindo um som de bombo. Num dado
I S R A E L E M A B R I L
277
momento percebo que estou fazendo esta confer��ncia es-
pecialmente para ele. Se esse velhote cessar de me
olhar, de rir e de tocar bombo, acho que me desconcerto
e p e r c o . . .
Terminada a confer��ncia vamos para a casa de Ar��o
Talenberg que, com sua senhora, nos oferece sua c��lida
hospitalidade, al��m de cacha��a com mel e suco de lim��o.
Est��o conosco os outros l��deres do kibbutz, e a conversa
que se segue, e em que se fala de tudo um pouco, me
d�� uma id��ia do excelente n��vel intelectual e ideol��gico
destes pr��ceres.
Quando voltamos para nosso apartamento, a noite,
est�� saturada do perfume de flores e ervas. Anda no ar
uma discreta mordida de inverno. As estrelas lucilam
sobre campos dobrados, que bem podiam ser os de Passo
Fundo ou Cruz Alta.
M. aproxima-se da mesa e verifica que algu��m na
nossa aus��ncia ��� com toda a certeza uma crian��a ���
comeu os "l��rios" do t��tulo do livro-bolo. E s�� agora encon-
tramos e lemos a carta, escrita em bom portugu��s, que
estava meio escondida debaixo do bolo, e na qual o dono
deste apartamento nos deseja boas-vindas e feliz perma-
n��ncia no Bror Hayil. Assina simplesmente Yacov.
Oito da manh��. Somos levados num jipe a ver os
campos do kibbutz. Visitamos sua f��brica, mordiscamos
cenouras desidratadas e conversamos com alguns oper��-
rios. Don Tsamir �� o nosso cicerone nesta excurs��o.
Explica-nos que sua comunidade faz parte dum conjunto
que abrange mais dez kibbutzim circunvizinhos, servidos
todos por um Centro, ao qual chegamos dentro de poucos
minutos. Apeamos do carro: Roismann nos mostra as di-
versas depend��ncias deste n��cleo central: a oficina me-
278
E R I C O V E R �� S S I M O
c��nica, onde se reparam autom��veis e tratores, al��m de
muitas outras m��quinas; a lavanderia ("�� aqui que se
lava a roupa suja de onze k��bbutzim"); a escola, ampla
e moderna, projetada pelo arquiteto brasileiro Vit��rio Ca-
r i n a l d i . . . "Todas as manh��s" ��� conta Roismann ��� "os
��nibus trazem para c�� as crian��as, que apanham num
ponto certo em cada um dos k��bbutzim" Vemos a seguir
o anfiteatro do Centro, onde faz pouco foi encerrada por
uma companhia profissional de Tel Aviv a pe��a de Brecht,
O C��rculo de Giz Caucasiano, e onde periodicamente or-
questras sinf��nicas d��o concertos.
Aprendo que os tratores usados nessas planta����es
em derredor s��o propriedade comum dos onze k��bbutzim,
que vivem numa esp��cie de simbiose, n��o s�� no que diz
respeito �� economia como tamb��m �� vida cultural e po-
l��tica.
Voltando para Bror Hayil passamos por trigais ma-
duros. Tsamir aponta na dire����o do norte, dizendo: "Per-
to daqui descobriram-se h�� pouco jazidas de petr��leo".
N��o sei por que a palavra petr��leo (ou teria sido a ima-
gem do trigal dourado?) me move a uma pergunta: "E
em mat��ria de religi��o, como est��o voc��s?". Tsamir en-
colhe os ombros de boxeador e responde: "No nosso kib-
butz os velhos costumam ir �� sinagoga. Os mo��os, rara-
mente ou nunca. Mas n��o temos nenhum 'problema'
religioso".
No Bror Hayil, uma hora antes do almo��o, encontro
Ar��o Plut, que se dirige para a cozinha comunal, sobra-
��ando um aparelho de r��dio. O fato de ser tesoureiro da
comunidade n��o o exime de fazer o seu turno como au-
xiliar de cozinha. Examino o r��dio de Plut e pergunto:
"Qual �� a corrente aqui no k��bbutz?" ��� e o homem do
dinheiro responde, presto: "Pertencemos ao partido Ma-
I S R A E L E M A B R I L 279
pai" ��� pensando que me refiro �� corrente ideol��gica e
n��o �� el��trica.
Mas nem todos os produtos do "kibbutz dos brasi-
leiros" s��o agr��colas, pastoris ou industriais. Tenho o pra-
zer de conhecer hoje Buchbinder, um artista pl��stico de
grande sensibilidade. Visitamos seu est��dio, bem como o
departamento de cer��mica onde, sob sua dire����o, muitos
homens e mulheres trabalham, produzindo objetos de
arte, que s��o vendidos no pa��s e no estrangeiro.
Buchbinder, um homem de seus trinta e poucos anos,
(calculados a Olho benevolente) brasileiro natural de Ni-
ter��i �� n��o s�� um excelente desenhista e pintor ��� de tra��o
muito pessoal e dum figurativismo da fam��lia de Porti-
nari, do qual entretanto n��o parece sofrer nenhuma in-
flu��ncia ��� como tamb��m escultor. Fazemos logo boa
camaradagem.
�� tarde, sob protestos dos amigos que aqui fizemos,
voltamos para Jerusal��m, de onde devemos seguir para
outro kibbutz. A esta altura tenho j�� a impress��o de que
estamos parodiando o Judeu Errante.
NO GAN CHMUEL
Sexta-feira. Chegamos pela manh�� ao kibbutz de
Gan Chmuel, onde passaremos um par de dias. Este Jar-
dim de Samuel fica a meio caminho entre Tel Aviv e
Haifa, e entre a Jord��nia e o mar. Antes de vir para c��,
li alguma coisa sobre a vida nos kibbutzim-. o resto quero
aprender aqui, ao vivo.
Todas essas comunidades rurais israelenses t��m um
denominador comum, a saber: s��o principalmente agr��-
colas e funcionam dentro dum esp��rito sionista, coletivista
280
E R I C O V E R �� S S I M O
e cooperativista. Diferem umas das outras na idade, no
tamanho, no grau de prosperidade, na orienta����o pol��tica
e religiosa, e um pouco na diversifica����o de seus produtos.
Nenhum k��bbutz �� propriet��rio da terra que ocupa.
Aluga-a da Ag��ncia Judaica por uma quantia m��nima e
por um prazo de 49 anos, e que pode ser constantemente
prorrogado. Noventa e dois por cento de toda a terra de
Israel pertence �� na����o. Existem hoje neste pa��s cerca
de 250 kibbutzim com uma popula����o que j�� se vai apro-
ximando dos cem mil. (Maior ainda �� o n��mero dos
mochauim, as vilas coletivas de pequenos propriet��rios,
como a de Dona Sara Aloni.) Calcula-se que atualmente
os kibbutzim fornecem 15% de toda a produ����o agr��cola
nacional.
Essas comunidades acham-se agrupadas, de acordo
com suas tend��ncias pol��ticas ou religiosas, em v��rias
federa����es, que lhes prestam assist��ncia n��o s�� t��cnica
e econ��mica (an��lises de suas atividades agr��colas, in-
dustriais e pastoris, empr��stimos financeiros, compra,
venda e distribui����o de produtos, cess��o de m��quinas
agr��rias, prepara����o de capatazes rurais e de nurses para
os ber����rios e jardins da inf��ncia) como tamb��m cultu-
ral, facilitando aos membros dos kibbutzim associados a
oportunidade de assistir a espet��culos de arte, organizar
orquestras e grupos teatrais de amadores, fazer cursos
universit��rios de Economia, Sociologia, Hist��ria, Litera-
tura, bem como tomar parte em semin��rios em que se
estudam os problemas espec��ficos de suas comunas.
Somos recebidos pelos nossos jovens amigos Marisa
e Henrique Steinberg, e levados ao apartamento em que
ficaremos hospedados. �� bem maior do que aquele em
que passamos uma noite, depois da ceia pascal. Tudo
claro, limpo, simples: camas turcas, guarda-roupa e pra-
I S R A E L E M A B R I L
281
teleiras feitos com t��buas pintadas, ch��o de ladrilho cre-
me, uma mesa, uma poltrona, algumas banquetas, e qua-
dros nas paredes ��� entre os quais a reprodu����o duma
pintura de Gauguin.
Desfazemos as malas, sa��mos para o alpendre. Uma
roseira carregada de rosas vermelhas sobe pela parede
da casa fronteira. Um velho amigo vem a nosso encon-
tro, trazido pela brisa da manh��: o aroma dos laranjais
floridos. Estamos em casa.
PERIPAT��TICAMENTE
Sa��mos a andar pelos verdes meandros do Jardim
de Samuel, na companhia dos Steinberg, que resolvemos
adotar legalmente como sobrinhos.
Neste kibbutz, como de resto em v��rios outros que
temos cruzado em nossas muitas andan��as, n��o existem
propriamente "ruas", mas sendeiros sinuosos por entre
casas, tabuleiros de relva e pequenos jardins. A vila est��
praticamente escondida num bosque, onde se v��em as ��r-
vores mais diversas, naquela conviv��ncia harmoniosa a
que se referia Flavius Josephus.
��� Que ��rvore �� aquela ah. . . a de flores amarelas?
��� pergunto a Henrique, apontando.
O rapaz hesita.
��� Para falar a verdade, n��o sei.
��� Qual voc�� continua brasileiro. N��o sabe os no-
mes das plantas.
Mais adiante, vejo pousar no ch��o um p��ssaro do
tamanho duma perdiz, uma crista a coroar-lhe a cabe��a
inquieta, a delicada plumagem em tons de laranja e
pardo.
��� E aquele p��ssaro?
282
E R I C O V E R �� S S I M O
��� �� um duchifat.
Declaro que n��o acredito mas, pelas d��vidas, vou
anotar a palavra ("soletre, por favor") na minha cader-
neta. Marisa e M. ficaram para tr��s e conversam ani-
madamente. Aposto como minha mulher est�� aprendendo
coisas sobre a vida deste kibbutz melhor e mais depressa
que eu.
Encontramos poucas pessoas nestas trilhas de ci-
mento. �� natural. Os homens e as mulheres est��o traba-
lhando nas planta����es dos arredores ou exercendo outras
atividades na vila propriamente dita. As crian��as encon-
tram-se no jardim da inf��ncia ou na escola prim��ria; os
adolescentes, no gin��sio.
��� Quantos hectares voc��s cultivam aqui? ��� indago.
��� Pouco mais de quatrocentos. Produzimos algod��o,
alfafa, trevo para forragem, frutas c��tricas, azeitonas,
abacates, ma����s, p e r a s . . . Temos avi��rios onde criamos
galinhas, patos e perus. E currais com vacas leiteiras. E
lagos artificiais com carpas.
��� Alguma ind��stria?
��� Claro! Muitos kibbutzim ultimamente se est��o
industrializando. Creio que hoje em dia 10% dos produ-
tos manufaturados de Israel saem dos kibbutzim. O nosso
tem uma f��brica de sucos, conservas e gel��ias de frutas.
Tudo quanto se produz aqui �� exportado.
��� E como �� que voc��s vendem esses produtos?
��� Por interm��dio dum departamento da Histadrut.
��� Entendo que o Jardim de Samuel adota uma eco-
nomia socialista. ��� Henrique sacode a cabe��a afirmati-
vamente. ��� Como encaram voc��s o problema do lucro?
��� O lucro est�� fora das cogita����es de todos os
kibbutzim que seguem a ideologia do partido Mapai.
Quero dizer: lucro para benef��cio de alguns indiv��duos
ou grupos em detrimento de outros. Naturalmente ven-
I S R A E L E M A B R I L
283
demos nossos produtos com uma margem de lucro. O
total apurado �� gasto com a manuten����o da comunidade.
Nenhum de nossos membros ganha ordenado pelo seu
trabalho. Todos t��m os mesmos direitos, seja qual for a
natureza de suas fun����es.
��� E quando no balan��o anual se verifica que a
renda foi al��m das d e s p e s a s . . . que fazem com o dinhei-
ro que sobra?
��� �� guardado para os anos de vacas magras ���
sorri Henrique. ��� Um exemplo: no ano passado o pro-
duto das nossas vendas subiu a 6 500 000 libras isra-
elenses e as despesas apenas a 6 400 000.
��� Voc��s pagam imposto de renda?
��� Individualmente n��o. O kibbutz, como um todo,
paga.
��� Qual �� a popula����o do Jardim de Samuel?
��� Temos perto de 300 adultos e umas 220 crian-
��as. Trinta e dois de nossos companheiros de dezoito anos
est��o no momento fora, prestando servi��o militar.
��� Ouvi dizer que voc��s j�� lutam com a falta de
bra��os para a lavoura.. . �� verdade?
��� ��, e por essa raz��o tivemos de nos afastar de
um dos princ��pios que regem os kibbutz, isto ��, o de n��o
usar trabalho assalariado.
��� Voc��s v��o acabar capitalistas.
��� N��o mesmo!
Dentro de poucos minutos chegamos �� f��brica, onde
vemos as m��quinas em pleno funcionamento. Provamos
do excelente suco de toronja que aqui se faz. Somos
apresentados a um jovem sabra de origem iemenita. Fi-
sicamente parece um ��rabe: a cor azeitonada da pele, as
fei����es e principalmente os olhos. Veste macac��o de zu-
arte e tem as m��os protegidas por luvas de pl��stico. Co-
nheceu h�� algumas semanas uma brasileirinha de S��o
284
E R I C O V E R �� S S I M O
Paulo, morena como Marisa, apaixonou-se por ela e v��o
casar-se dentro de cinco dias. A comunica����o verbal entre
ambos �� prec��ria, pois o rapaz n��o fala sen��o o hebraico,
l��ngua que a mo��a s�� agora come��a a aprender no curso
intensivo que a Ulpan mant��m neste kibbutz.
Minutos mais tarde, no escrit��rio da f��brica, aper-
tamos a m��o de seu diretor, Efraim Reiner que ��� como
j�� contei em cap��tulo anterior ��� �� tamb��m coronel das
for��as armadas e membro do Knesset. Ainda neste escri-
t��rio somos apresentados a uma jovem judia-argentina,
que declara ter lido muitos de meus livros, dos quais diz
preferir Um Lugar ao Sol. Gasto uns bons tr��s minutos
para provar-lhe que esse romance n��o presta.
Voltamos depois para o ar livre e Henrique nos mos-
tra, empilhadas num terreno ao lado da f��brica, dezenas
de barris e caixas de madeira.
��� Os barris ��� informa ��� est��o cheios de azeito-
nas e v��o ser embarcados para o Canad��. As caixas,
carregadas de potes de gel��ia de laranja e destinam-se
�� Inglaterra.
Continuamos a andar. Visitamos rapidamente a la-
vanderia comunal. Toda a roupa do kibbutz �� aqui lavada,
passada e cerzida. O trabalho em geral �� feito por homens
e mulheres de meia-idade ou velhos. Cada membro da co-
munidade num dia certo deposita numa lata sua roupa
suja e no fim da semana vem busc��-la no compartimento
que tem o seu nome. "Uma vez" ��� conta Marisa ���
"mandei para c�� uma camisa do Henrique que estava nas
��ltimas, o colarinho e os punhos pu��dos. N��o a recebe-
mos de volta. O pessoal da lavanderia encarregou-se de
requisitar uma camisa nova para meu marido."
Agora um fot��grafo nos segue. Sou retratado junto
duma vaca leiteira holandesa ou, melhor, sabra, pois
deve ter nascido em Israel.
I S R A E L E M A B R I L
285
��� A que dist��ncia estamos da fronteira da Jord��-
nia? ��� pergunto.
��� Longe. A uns oito ou dez quil��metros.
��� E voc�� acha isso 'longe"?
Henrique encolhe os ombros e diz que uma das pri-
meiras coisas que teve de "reajustar" quando veio para
c�� foi a sua geografia interior, principalmente no que
diz respeito a dist��ncias.
Retomamos a nossa marcha. Passamos por um bos-
quete de oliveiras, a cujos p��s, por entre a relva, apon-
tam, sacudidas pela brisa, as corolas vermelhas das pa-
poulas, como crian��as que brincam �� sombra de velhas
senhoras tranq��ilas.
��� Como �� governado o Jardim de Samuel?
��� Como todos os outros kibbutzim: pela vontade su-
prema da Assembl��ia Geral, que �� a nossa autoridade
mais alta. Ela se re��ne semanalmente, quase sempre aos
s��bados, para tratar dos problemas da comunidade, tanto
os ordin��rios como os extraordin��rios. Ch��ga-se a uma
decis��o por maioria simples, a n��o ser quando se trata
da admiss��o de novos membros, caso em que se exige
uma maioria de dois ter��os do total dos votos. �� a Assem-
bl��ia que estuda e aprova o or��amento anual, vota ou
veta verbas extraordin��rias, elege membros do secreta-
riado, em suma, controla o trabalho do kibbutz como um
todo ou de seus diversos setores separadamente.
��� Mas quais s��o os "agentes" dessa Assembl��ia no
dia-a-dia?
��� O secretariado. Temos um secret��rio-geral, que
exerce fun����es compar��veis com as dos prefeitos de
vilas e cidades; um tesoureiro, um capataz rural, um coor-
denador do pessoal. E h�� outras comiss��es e subcomis-
s��es que se encarregam, por exemplo, de atividades cul-
turais, rela����es pessoais, divers��es, esportes, e t c . . .
286
E R I C O V E R �� S S I M O
��� N��o se criou ainda nos ktbbutzim uma burocra-
cia todo-poderosa, como na R��ssia Sovi��tica?
��� N��o. Tal coisa seria imposs��vel acontecer aqui.
Se algum pretendente a qualquer dos postos que mencio-
nei h�� pouco, andasse fazendo cabala entre os compa-
nheiros para ser eleito, isso seria o suficiente para que
ele fosse posto de quarentena e eliminado da lista de
candidatos. N��o encorajamos o carreirismo.
��� Existe aqui alguma forma de pol��cia?
��� Nenhuma. N��o �� necess��rio. Quem vem para um
kibbutz socialista como o nosso �� porque est�� preparado
para viver numa sociedade coletivista. Cada qual sabe
quais s��o seus deveres e seus direitos.
Ponho a m��o no ombro de Henrique:
��� N��o me leve a mal. Estou fazendo o advogado
do diabo porque preciso satisfazer certas curiosidades mi-
nhas. Voc��s ��s vezes n��o sentem como um peso, uma
canga, a autoridade da Histadrut?
��� Ao contr��rio! Que seria de n��s sem essa C.G.T.?
Est�� sempre nos ajudando. Seu departamento de assuntos
agr��colas colabora conosco na solu����o de problemas t��c-
nicos de produ����o. Seus bancos nos facilitam empr��stimos
a juro baixo. Quando precisamos de novas resid��ncias,
silos, f��bricas, escolas, recorremos �� divis��o de constru-
����es da Histadrut. Se queremos mais bra��os para a lavou-
ra, �� ainda para a Histadrut que apelamos.
Caminhamos agora os quatro numa fileira ��nica, ao
longo duma estrada de terra batida, por entre altos eu-
caliptos.
��� E quanto �� assist��ncia m��dica? ��� pergunto.
��� Cada membro do kibbutz �� segurado pela Hista-
drut, e esse seguro cobre despesas com m��dicos, hospi-
tais e medicamentos. O hospital mais pr��ximo �� o da
cidade de Heder��, a uns cinco quil��metros daqui.
I S R A E L E M . A B R I L
287
��� Suponhamos que um dos membros desta comu-
nidade fique inv��lido...
��� Continuar�� gozando de todos os seus direitos, sob
a inteira prote����o do kibbutz. Se houver necessidade de
lev��-lo a uma cidade grande, n��o s�� em Israel como no
estrangeiro, em busca de recursos m��dicos especializados,
o Gan Chmuel arcar�� com todas as despesas.
��� E voc��s t��m direito a f��rias?
��� Sim, de uma a duas semanas por ano, sem con-
tar os feriados.
Minha mulher me olha:
��� Est��s pensando em vir morar aqui?
��� Pues, qui��n sabe!
O CENTRO CULTURAL
Entramos no Centro Cultural, que tem o nome dum
jovem her��i sabra, tombado em combate com os s��rios.
Passo os olhos pelas lombadas dos livros da biblioteca,
a maioria em hebraico. Na discoteca encontro velhos
amigos: Vivaldi, Villa-Lobos, Beethoven, o velho Bach.. .
Em cima duma mesa vejo jornais e revistas estrangeiros,
entre as quais Le Monde, Paris Match e o magazine Time.
Ficamos aqui sentados por alguns minutos. A bi-
bliotec��ria (usa ��culos, naturalmente) est�� sentada �� sua
mesa, de cabe��a baixa, lidando com fichas. Um senhor
idoso, com o chap��u na cabe��a, l�� atentamente um jornal,
a pouca dist��ncia de onde estamos. Um passarinho pousa
no peitoril da janela e ali fica com o ar dum menino
que vem dar um recado.
Em voz muito baixa Marisa nos fala das atividades
culturais do Jardim de Samuel. Periodicamente exibem-
se aqui conjuntos profissionais de teatro e bal��, orquestras
288
E R I C O V E R �� S S I M O
sinf��nicas e de c��mara vindos de Tel Aviv, Jerusal��m
ou Haifa. Cada kibbutznik (�� assim que se chama o ha-
bitante dum kibbutz) tem direito a 180 libras israelenses
anuais para gastar com bilhetes para confer��ncias, con-
certos e teatros, em outras localidades. A federa����o a
que o Jardim de Samuel est�� afiliado publica revistas
liter��rias e um seman��rio popular.
�� bibliotec��ria agora est�� olhando fixamente para
o passarinho, que move o bico, como a transmitir-lhe inau-
divelmente a sua mensagem. E de repente acho muito
estranho estarmos aqui, neste lugar e nesta hora. E de
novo me vem �� mente a frase do velho Liroca: "Mundo
velho sem porteira!".
NO REFEIT��RIO
Meio-dia e meio. Estamos no refeit��rio coletivo. Este
�� o reino da f��rmica e do alum��nio. Tudo reluzente e
limpo. Alguns quadros nas paredes claras. Mesas para
quatro pessoas.
Comemos uma sopa magra de galinha, peixe, couve-
flor e pur�� de batatas. Bebemos suco de lim��o com ��gua
gasosa. (H�� quantos s��culos eu n��o via um sif��o!) O
refeit��rio est�� quase cheio, mas n��o vejo aqui os traba-
lhadores das planta����es. Marisa explica que eles comem
��s 3,30 da tarde e nem todos voltam �� vila para a refei-
����o do meio do dia.
Passa por n��s um kibbutznik com uma maleta na
m��o. Sorri para os Steinberg. Henrique nos diz: "Esse
companheiro vai agora a Tel Aviv tomar parte num pro-
testo p��blico contra a interven����o dos americanos no
Vietnam".
Entra no refeit��rio um velho senhor, de longas bar-
I S R A E L E M A B R I L
289
bas brancas, mas ainda empertigado, e senta-se a uma
das mesas. Henrique chama a nossa aten����o para ele:
"�� o Dr. Yitzchak Gr��nbaum, humanista, sionista, escri-
tor e homem de imprensa. Nasceu em Vars��via e veio
para a Palestina em 1933. Foi Ministro do Interior no
primeiro gabinete do Estado de Israel. Est�� hoje com
87 anos. Depois que se aposentou, escolheu o Gan Chmuel
como resid��ncia".
Marisa sorri quando diz: "E amanh�� o Dr. Gr��n-
baum vai trabalhar na cozinha como auxiliar de lavador
de pratos!". Henrique conta que nos kibbutzim religiosos o fato de esse respeit��vel anci��o, o h��spede mais ilustre
do Jardim de Samuel, trabalhar durante o Sab�� ��� e na
cozinhai ��� causa um certo esc��ndalo.
V��rias id��ias associadas me relampagueiam na men-
te. A cada passo encontramos provas vivas de que o
mundo ocidental crist��o herdou mesmo dos judeus n��o
s�� o monote��smo como tamb��m o sentimento de pecado
e culpa e a necessidade de penit��ncia. Para um bispo
cat��lico n��o �� vergonha, mas antes um belo ato de hu-
mildade, lavar os p��s de criaturas simples, assim como
n��o �� nenhum desdouro para um vener��vel ex-ministro
lavar os pratos em que comeram seus companheiros de
kibbutz. Quem ��� judeu ou gentio ��� n��o tem, dum modo
ou de outro, o seu Dia da Expia����o? Quantos p��s e pratos
alheios tenho eu lavado na vida, no sentido figurado?
Bom, mas �� melhor n��o dar voz a estas reflex��es diante
destes dois jovens amigos.
��� Henrique ��� digo, entre duas colheradas de sopa
��� perdoe a curiosidade deste contador de est��rias. N��o
sei pensar com elementos puramente abstratos. Este ��
um de meus muitos pontos fracos. Preciso de exemplos
concretos, v i v o s . . . Suponhamos que eu tenho vinte e
290
E R I C O V E R �� S S I M O
poucos anos, sou judeu e quero fazer parte deste kibbutz.
Que devo fazer?
��� Bom, o senhor se candidata, a Assembl��ia o aceita
a t��tulo prec��rio, isto ��, para uma experi��ncia de um ano.
Precisamos, antes de mais nada, saber se o senhor tem
condi����es psicol��gicas para adaptar-se a nosso tipo de
vida. Durante esse per��odo de prova seus deveres ser��o
os mesmos dos outros membros da comunidade e tam-
b��m os seus direitos, menos o de votar nas reuni��es da
Assembl��ia. Damos-lhe uma tarefa, de acordo com sua
habilita����o...
��� Bom, voc��s me botam a cuidar das vacas e ap��s
algum tempo eu descubro que n��o tenho jeito nem gosto
para isso. Que acontece?
��� O senhor apresenta seu caso ao secret��rio-geral
que, de acordo com o coordenador de pessoal, lhe arran-
jar�� outro t r a b a l h o . . . digamos, cuidar dos patos, dos
p e i x e s . . . trabalhar na l a v o u r a . . . ou na biblioteca.
��� E se eu ainda n��o ficar satisfeito?
��� Bom, a essa altura come��aremos a achar que
temos um candidato dif��cil.
��� Suponhamos que n��o encontre aqui nenhum tra-
balho que me agrade ou c o n v e n h a . . .
��� A porta do kibbutz est�� sempre aberta para os
insatisfeitos que queiram ir e m b o r a . . .
��� Imaginemos uma situa����o absurda mas n��o de
todo imposs��vel. N��o acho trabalho que me fa��a fe��z,
mas quero ficar: gosto dos companheiros, do clima, da
comida, de t u d o . . . Que aconteceria numa situa����o como
essa?
��� N��o creio que o senhor pudesse permanecer aqui
sem trabalhar, nem por uma semana. A press��o moral
da comunidade seria t��o forte que acabaria por obrig��-lo
a deixar o kibbutz.
I S R A E L E M A B R I L
291
��� Bom. Sejamos otimistas. Imaginemos ent��o que
ao cabo de um ano eu me revele um sujeito n��o s�� com-
petente no meu trabalho como capaz de viver numa co-
munidade socialista...
��� A Assembl��ia ent��o examinar�� a sua proposta e
tudo indica que aprovar�� a sua perman��ncia no Gan
Chmuel, como membro efetivo.
��� Est�� bem. Venho para c�� apenas com a roupa
do corpo. Que �� que o k��bbutz me d��?
��� Casa, comida, roupa, m��veis, utens��lios. Em su-
ma: a comunidade assume responsabilidade total pelas
suas necessidades materiais e culturais, bem como pela
educa����o de seus filhos.
��� Escovas de dentes e pastas dentifr��cias? L��minas
de barbear? Sabonete? Roupa de c a m a . . . Toalhas? Apa-
relhos eletrodom��sticos? Tudo?
��� Tudo. E o n��mero e a qualidade das coisas que
o kibbutz fornece a seus habitantes depende do seu pa-
dr��o de vida, decorrente, �� Claro, de sua situa����o eco-
n��mica.
��� E para essas despesas p e q u e n a s , . . . essas necessi-
dades menores que variam de pessoa para pessoa?
��� Para isso cada kibbutznik recebe anualmente uma
soma n��o grande mas razo��vel, em libras israelenses.
Volto �� carga:
��� Suponhamos que, terminado o gin��sio, feito o
servi��o militar, um kibbutznik queira fazer um curso uni-
versit��rio.
��� Muito simples. O caso �� apresentado �� Assem-
bl��ia pelo secret��rio-geral, que naturalmente j�� est�� de
posse de todas as informa����es necess��rias sobre a serie-
dade de prop��sito e a capacidade mental do candidato.
Aprovada a proposta, o rapaz ou a mo��a �� mandado para
um de nossos institutos de ensino superior, e o Jardim
292
E R I C O V E R �� S S I M O
de Samuel lhe pagar�� todas as despesas, at�� �� termina-
����o do curso.
Marisa interv��m:
��� Tomem o meu caso pessoal. Estou estudando na
Universidade Hebraica �� custa deste kibbutz.
��� E eu tenho direito de visitar Marisa ��� acres-
centa Henrique ��� duas vezes por m��s, em Jerusal��m,
com todas as minhas despesas pagas pelo Gan Chmuel.
Uma pausa na conversa����o. Fico a olhar para o meu
prato e de repente me vem �� mente uma das loucuras
de Salvador Dali, que um dia procurou provar que a re-
vela����o do mist��rio do cosmos est�� contida na couve-flor.
��� Voc��s t��m o direito de escolher o tipo de roupa
que recebem? ��� torno a perguntar.
��� Claro. Isso n��o oferece nenhum problema. Quem
optou por este sistema de vida em geral n��o se preocupa
muito com roupas.
��� Outra coisa ��� diz Marisa. ��� Aquele rapaz de
origem iemenita e a brasileira com que ele vai casar
ter��o sua lua-de-mel custeada pelo Gan Chmuel, que tam-
b��m lhes dar�� um aux��lio especial em dinheiro quando
ela estiver esperando beb��.
Torno a falar.
��� Voc��s parecem estar realizando aqui o welfare
state, o Estado paternal, enfim uma sociedade ideal, talvez
s�� vi��vel em pequenas comunidades como esta. Porque eu
vejo os kibbutzim (talvez me engane) como ilhas, algu-
mas formando arquip��lagos. N��o sei o que acontecer�� a
estas vilas agr��colas no dia em que Israel optar por uma
economia abertamente capitalista... Mas o que quero
saber agora �� se quando uma mulher vem para c�� ela
deixa de ser uma mulher como as outras. Refiro-me ��s
suas v a i d a d e s . . . N��o entram em competi����o umas com
as outras. . . para decidir quem �� a mais elegante, a
I S R A E L E M A B R I L
293
mais bonita, a que tem mais j��ias, etc. . . Que me diz do
comadrismo, do mexerico, dos choques de temperamento
sempre t��o mais s��rios entre as mulheres do que entre
os homens?
Henrique fica por um instante pensativo, antes de
responder.
��� Bom ��� diz, por fim. ��� N��o somos perfeitos.
N��o perdemos nossas caracter��sticas humanas s�� porque
vivemos no Jardim de Samuel. Mas repito que as pessoas"
mais individualistas, mais competitivas, mais vaidosas
(digamos assim) raramente ou nunca procuram os kib-
butzim socialistas ou mesmo qualquer outra comunidade
agr��cola. Ficam nas cidades grandes onde a competi����o
n��o s�� floresce como tem um sentido, uma raz��o de ser.
��� O que quero saber mais precisamente �� se o
"esp��rito de consumo" n��o se tem infiltrado ultimamen-
te nos kibbutzim, mesmo nos socialistas radicais como
este. Olhem, o outro dia em Tel Aviv avistei na Ave-
nida Dizengoff uma mo��a que conheci neste kibbutz.
Ela entrou numa casa de cosm��ticos, fui apertar-lhe a
m��o e encontrei-a experimentando uma sombra azul para
as p��lpebras, como qualquer debutante burguesa.. .
��� Bom, isso pode acontecer. Reconhe��o que temos
mudado um pouco quanto a essas futilidades. Admito
que j�� h�� entre nossas mulheres mais preocupa����es com
cosm��ticos, j��ias, roupas, etc. . . N��o acho, entretanto,
que essa tend��ncia possa constituir qualquer perigo para
o esp��rito coletivista do Gan Chmuel. Ela indica antes
de mais nada, que temos progredido economicamente e
que j�� vencemos a etapa da pobreza.
��� Outra curiosidade ��� digo, procurando com o
garfo o mist��rio da vida numa couve-flor. ��� Se surgir
alguma rivalidade s��ria entre dois membros deste kib-
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E R I C O V E R �� S S I M O
butz. .. conflitos de temperamentos, rivalidades, malque-
ren��as . .. que �� que acontece?
��� Temos uma comiss��o de rela����es sociais que se
encarregar�� do assunto, fazendo o papel do juiz de paz.
��� Neste ponto ��� digo ��� o advogado do diabo de-
clara-se satisfeito e prop��e aos presentes um breve per��odo
de repouso.
ABAIXO O COMPLEXO, DE ��DIPO!
Deitamo-nos em camas espartanas. Os passarinhos,
que n��o calam o bico, encarregam-se da can����o de ninar.
Dormimos uma sesta breve e leve ��� apenas uma fatia
fina de sono, o que nos livra do torpor do despertar.
No meio da tarde vamos ver os alojamentos das cri-
an��as, que s��o, sem a menor d��vida, os "cidad��os de pri-
meira classe" deste kibbutz, em vista dos privil��gios e
cuidados especiais que os mais velhos lhes dispensam.
Encontram-se todos na mesma ��rea, desde os lactentes
e os alunos do jardim da inf��ncia at�� aos da escola pri-
m��ria. Suas instala����es t��m as mesmas caracter��sticas
das do resto da comunidade: s��o confort��veis, limpas
mas sem luxo. N��o vejo nas salas destes pavilh��es o
sup��rfluo, t��o encontradi��o em institui����es do mesmo g��-
nero dos pa��ses em que a sociedade, esporeada constan-
temente por uma publicidade insidiosamente h��bil, acaba
caindo numa neurose aquisitiva.
O av�� que sou se compraz em passar a m��o pelas
cabe��as das crian��as que vamos encontrando nestas salas
de aula ou de recreio. Algumas se encolhem, ariscas,
outras nem sequer erguem os olhos para n��s, t��o entre-
tidas est��o com seus livros de figuras, seus l��pis coloridos,
seus jogos de armar.
I S R A E L E M A B R I L
295
Visitamos os dormit��rios mistos, divididos em quar-
tos para quatro ou cinco crian��as cada um: camas-div��s,
uma c��moda, uma mesa, um tapete pequeno. O lava-
t��rio, imaculado, encontra-se a dist��ncia conveniente dos
quartos de dormir.
Pergunto a uma das professoras se as crian��as cos-
tumam chorar �� noite e, no caso afirmativo, como s��o
atendidas. Resposta: "Algumas, ��s vezes. A maioria dorme
tranq��ila. Temos em cada quarto um microfone ao al-
cance da voz dos pequenos e ligados todos ao alto-falante
da sala onde est�� a nurse do plant��o da noite que, ao
ouvir qualquer choro ou queixa, vai verificar que se
passa".
Perto do playground fica a entrada do abrigo contra
bombardeios. Ao toque de alarma, as professoras e as
nurses conduzem em ordem todas as crian��as para o sub-
terr��neo, e l�� permanecem com elas at�� ouvirem o sinal
de que o perigo cessou.
�� noite, na casa dos Steinberg, conversamos com o
Prof. Avigdot, especialista em puericultura. �� um homem
moreno, magro e pl��cido, judeu-frances, nascido em Mar-
selha e com curso na Sorbonne. Onde foi que nos encon-
tramos? ��� pergunto, pois estou certo de que j�� vi esta
cara. Ele sorri: "Hoje ao meio-dia, no refeit��rio. Lembra-
se do homem de macac��o e avental que andava servindo
as mesas, empurrando um carrinho com panelas de sopa?
Pois era eu".
Pe��o ao Prof. Avigdot que me diga alguma coisa
sobre o sistema de educa����o da inf��ncia dos kibbutzim,
t��o elogiado por uns e t��o criticado por outros. E ele fala.
��� �� primeira vista pode parecer cruel, antinatural,
separar os filhos de suas m��es desde a hora em que nas-
cem. Na minha opini��o, entretanto, esse �� o processo mais
296
E R I C O V E R �� S S I M O
racional, capaz de produzir homens e mulheres livres
dessas neuroses que t��m suas ra��zes na primeira inf��n-
cia, em conflitos com os pais. Por um lado damos ��s
m��es toda a liberdade para trabalhar em v��rias ativida-
des comunais, em tempo integral, e por outro educamos
seus filhos de maneira a prepar��-los para viver num tipo
de sociedade coletivista como a do Gan Chmuel.
��� Mas com que freq����ncia os pais podem ver os
filhos? ��� quer saber minha mulher.
O Prof. Avigdot ��� que n��o sei se foi criado guaxo
tamb��m ��� esclarece:
��� Todos os dias, a qualquer hora, desde que isso
n��o interfira com a rotina das crian��as. De um modo
geral pais e filhos re��nem-se diariamente ap��s as horas
de trabalho dos grandes. Vejam bem. Essa reuni��o se
processa na mais favor��vel das circunst��ncias: tanto as
crian��as como os pais est��o por assim dizer num "per��odo
de recreio", descontra��dos, preparados para um conv��vio
ameno, para jogar, brincar. Desse modo, os pais e os
filhos podem dar uns aos outros o que possuem de melhor.
Livres da obriga����o de educar, de punir os filhos, as m��es
podem evitar aquelas descargas de s��bita c��lera que se
traduzem em gritos, belisc��es, t a p a s . . .
Passa-me pela cabe��a um ditado ga��cho: "Patada
de galinha nunca matou pinto".
��� Assim ��� prossegue o mestre ��� com esse tipo
de educa����o a imagem dos pais melhora consideravel-
mente no esp��rito dos filhos, que n��o os v��em como figu-
ras castradoras, autorit��rias e arbitr��rias. ��s tarefas dis-
ciplinadoras ficam ao cargo das amas, das nurses, das
professoras...
��� M��es coletivas ��� atalha M.
��� E por que n��o? ��� sorri o Prof. Avigdot. ���
I S R A E L E M A B R I L
297
Creio que o Dr. Sigmund Freud aprovaria o nosso m��-
todo.
��� Voc��s assim v��o eliminar o complexo de ��dipo
��� protesto. ��� Em outras palavras: estragar o "neg��cio"
dos ficcionistas!
Os Steinberg, que ainda n��o t��m filhos, aprovam
esse m��todo de educa����o e asseguram-nos que ele d�� re-
sultados satisfat��rios.
��� Tenho c�� as minhas d��vidas ��� murmura minha
mulher.
Recordo em sil��ncio uma cena que vi hoje �� tardi-
nha, quando, ao passar pelo pavilh��o do dormit��rio das
crian��as, espiei atrav��s duma janela. Um pai acocorado
ao lado do filho de dois anos presum��veis, arriando-lhe
as cal��as, tentando faz��-lo sentar num utens��lio dom��s-
tico que uma das minhas av��s costumava chamar de
bispote, sem nenhum desrespeito pelos bispos, pois se trata
duma corruptela brasileira do piss pot ingl��s. O desajei-
tado pai conseguiu por fim fazer o pequeno sentar-se no
objeto e ficou a murmurar-lhe algo que me soava como
iot��r... iot��r, alternando essa palavra com uma onoma-
top��ia universal: a imita����o do chiado duma chaleira.
Ante esse quadro tocante, senti a mesma emo����o que
sentiria se tivesse descoberto em alto mar, dentro duma
garrafa, uma mensagem com a assinatura de Robinson
Cruso��.
DI��LOGO
Estou sentado a uma mesa, no bar, na frente dum
homem que, �� pergunta que acabo de lhe fazer, exclama,
fazendo um gesto largo:
298
E R I C O V E R �� S S I M O
��� La vie dans un k��hbutz n'est pas un sacrifice,
mon cher monsieur.
O Dr. Benjamim Gr��nbaum, filho do ex-Ministro do
Interior que ontem vimos de longe, �� um outro membro
importante do Jardim de Samuel, onde, se bem entendi,
exerce as fun����es de professor.
�� um homem alto, descarnado, com uma grande ca-
be��a coberta por uma basta cabeleira negra, com alguns
fios brancos. Uma das muitas velhas de meu ��lbum de
fam��lia, sempre que encontrava um homem feio mas do-
tado de secreto encanto, costumava dizer que ele era um
"feio gostoso". Creio que o Prof. Gr��nbaum se enquadra
bem nessa classifica����o. Sua face �� tosca, como que fal-
quejada a machado em pau-marfim, larga �� altura das zi-
gomas salientes, os olhos vagamente orientais, a boca ras-
gada, a pele pregueada de rugas. N��o sei se, nos tempos
de menino, conheci algum carpinteiro com essa cara,
pois n��o me livro da impress��o de que meu interlocutor
�� carpinteiro ��� suspeita de certo modo confirmada por
suas m��os longas, ossudas e calosas, de unhas grossas,
e que me parecem afeitas ao digno trato da madeira.
Estamos, h�� j�� alguns minutos, conversando sobre o
esp��rito dos k��bbutzim e as imposi����es que eles fazem a
seus membros. O Dr. Gr��nbaum repete:
��� A vida num kibbutz n��o �� um sacrif��cio, meu caro
senhor ��� E acrescenta: ��� �� antes um privil��gio, um
prazer. Estamos tentando criar uma sociedade nova, fa-
zendo uma revolu����o baseada no valor ��tico do trabalho
e nos s��os princ��pios do socialismo democr��tico.
��� Algu��m j�� comparou os kibbutzim com os mos-
teiros. Acham que para um homem viver bem neste tipo
de sociedade �� preciso que tenha inclina����es mon��sticas,
principalmente esp��rito de ren��ncia.
��� Absurdo! N��o renunciamos a nada. Ao contr��rio.
I S R A E L E M A B R I L
299
Temos aqui mais oportunidades para uma vida criativa
do que ter��amos no mundo capitalista. N��o somos uma
sociedade fechada e escapista. N��o estamos aqui para
fugir ao mundo mas sim para tocar mais profundamente
o cora����o da terra e da vida. Participamos �� nossa ma-
neira do progresso nacional, e estamos interessados em
toda a esp��cie humana. Temos a forma de governo que
mais se aproxima do anarquismo puro.
H�� uma pausa em que o Dr. Gr��nbaum acende um
de seus cigarros israelenses, cuja fuma��a me evoca, com
seu cheiro adocicado, a Gr��cia e a Turquia.
��� Um kibbutz como o Jardim de Samuel ��� conti-
nua ��� satisfaz as necessidades mais profundas do ho-
mem. Eliminamos a competi����o. As pessoas v��m para
c�� voluntariamente, n��o fazem nenhum voto religioso,
v��o embora se e quando quiserem. Cada qual sabe o que
se espera dele, e o que ele pode esperar da comunidade.
��� Torna a calar-se, olha-me de frente e pergunta: ���
Pelo que observou at�� agora, que lhe parece a vida num
kibbutz como o nosso?
��� Teoricamente me parece a vida ideal. Mas insisto
em que s�� um tipo particular de pessoa pode adaptar-se
a este sistema social. Por exemplo, estou certo de que eu
dificilmente viveria feliz aqui. Creio que sou demasiado
individualista.
O Dr. Gr��nbaum sorri, a sua face parece alargar-se,
as rugas se multiplicam, os olhos ganham um brilho va-
gamente ir��nico, quando ele replica:
��� Mas n��o lhe parece que a melhor maneira de
assegurar os direitos e liberdades individuais �� criando
um esp��rito comunit��rio de colabora����o e respeito m��-
tuos, em que um �� respons��vel n��o s�� pela sua liberdade
como tamb��m pela Uberdade de seus companheiros? Mais
ainda: �� imposs��vel a qualquer governo assegurar a liber-
300
E R I C O V E R �� S S I M O
dade do indiv��duo dentro dum regime em que o trabalho
da maioria �� explorado por uma minoria, exclusivamente
em seu benef��cio.
��� O senhor acha poss��vel a "constru����o" duma so-
ciedade realmente equalit��ria?
��� Nada �� perfeito no reino humano, meu caro se-
nhor. Reconhecemos a exist��ncia de diferen��as qualitati-
vas entre os indiv��duos. Crian��as nossas h�� que, ao se fa-
zerem adultas, s�� mostram aptid��o para o trabalho bra��al.
Outras, entretanto, revelam capacidade intelectual supe-
rior. Mandamos estas ��ltimas fazer cursos universit��rios
por nossa conta. Damos tarefas decentes ��s primeiras.
N��o sei at�� que ponto a ci��ncia poder�� interferir no pro-
cesso natural, diminuindo ou eliminando o n��mero dos
incapazes ou menos capazes. Seja como for, as diferen-
��as que hoje existem entre n��s s��o biol��gicas e n��o pro-
dutos dum sistema social injusto baseado no poder eco-
n��mico arbitr��rio. Repito que ningu��m vive aqui cons-
trangido, contrariado, infeliz. De quantos membros de
outras sociedades, principalmente das capitalistas, se po-
de dizer o mesmo?
��� E em mat��ria de religi��o ��� pergunto ��� qual
�� a orienta����o do kibbutz?
��� Ora, n��o temos orienta����o oficial. Cada qual se-
gue a sua inclina����o espiritual. Evidentemente o senhor
n��o poderia esperar que um kibbutz do partido Mapai
fosse um reduto de religiosos ortodoxos. ��� Faz um sinal
na dire����o da janela. ��� Est�� vendo aquele velho que l��
vai? Deve ser ortodoxo. Digo deve porque nunca lhe per-
guntei. Mas estou certo de que seus filhos n��o s��o reli-
giosos. ��� Inclina-se sobre a mesa. �� uma cara malaia
que tenho na minha frente. ��� Mas tome nota duma
coisa. Seja qual for a orienta����o espiritual do israe-
lense. . . agn��stico, ateu, herege, o que quiserem, sempre
I S R A E L E M A B R I L
301
existir�� em cada um deles um certo respeito pelas tradi-
����es judaicas. As exce����es a essas regras s��o rar��ssimas.
Fa��o a ��ltima pergunta:
��� Aceita a id��ia de que o esp��rito dos kibbutzim
est�� morrendo?
Novo gesto largo em que as m��os de carpinteiro se
abrem:
��� Est�� claro que n��o aceito. Existem neste pa��s e
fora dele grupos pol��tico-econ��micos que gostariam de ver-
nos liquidados. Mas que seria de Israel sem os seus kibbut-
zim e o esp��rito que os anima? Como seria poss��vel povoar
este territ��rio e assegurar a sua posse sem essas col��nias
agr��colas? Fomos e continuamos a ser n��cleos de fixa����o
populacional. Em muitos casos somos tamb��m sentinelas
de nossas fronteiras. E, queiram ou n��o queiram, toda
a economia de Israel, inclusive a sua crescente ind��stria,
tem sua base nos kibbutziml No princ��pio, na era de ri-
goroso pioneirismo, n��s socializ��vamos a pobreza. Hoje
socializamos a abund��ncia. �� claro que estamos mudando,
pois somos um organismo vivo. Se o homem �� um cons-
tante devir, por que um organismo social n��o h�� de estar
tamb��m num cont��nuo processo transitivo?
Como para p��r um ponto final ao di��logo, o Dr.
Gr��nbaum exclama:
��� Pois pode assegurar aos seus leitores que os
kibbutzim cuja decad��ncia ou agonia seus inimigos pro-
clamam v��o passando muito bem!
A CLASSE
Nas primeiras horas da tarde encaminhamo-nos com
os Steinberg para o gin��sio do Jardim de Samuel. Passa-
mos antes, rapidamente, pelos alojamentos de seus alunos.
302
E R I C O V E R �� S S I M O
Aqui vivem, dormindo nos mesmos quartos, meninas e
rapazes entre treze e dezessete anos. Digo: "Este arranjo
n��o daria certo no Brasil. Como �� que funciona aqui?".
��� At�� agora tem dado bom resultado ��� responde
Henrique. ��� Esses adolescentes criam-se como irm��os.
�� raro sair casamento entre uma mo��a e um rapaz que
tenham crescido assim juntos.
��� Como �� que voc��s encaram o problema da vir-
gindade? ��� indago.
��� Bom, com rela����o �� vida sexual o k��bbutz se sente
respons��vel por seus membros do sexo feminino desde o
momento em que nascem at�� aos dezessete anos, ��poca
em que terminam o gin��sio e t��m de fazer servi��o militar
obrigat��rio. Da�� por diante essas mo��as estar��o prepa-
radas para tomar conta de si mesmas.
A caminho duma classe, Marisa nos explica que a
diferen��a entre os gin��sios israelenses das cidades e os
dos kibbutzim, �� que nestes ��ltimos se d�� import��ncia
maior aos assuntos e conhecimentos relacionados com a
agricultura.
Paramos junto da porta duma sala de aula. Henri-
que me diz que posso entrar e sentar-me em qualquer
dos bancos, pois a mestra j�� espera a minha visita: a
aula n��o ser�� perturbada. Entro na ponta dos p��s, numa
sala ampla, de paredes claras, e cheia de sol, com v��rias
mesas, para dois estudantes cada uma. Aqui est��o uns
vinte e poucos meninos e meninas. Sento-me ao lado du-
ma rapariga de seus dezesseis anos, que n��o me olha nem
sequer de soslaio. A professora me dirige um r��pido sor-
riso por meio do qual me transmite a sua aquiesc��ncia
�� minha presen��a. A aula prossegue. Um dos rapazes l��
um texto em hebraico. A mestra deve ter vinte e pou-
qu��ssimos anos e �� bonita. Penso nas professoras que tive
na inf��ncia e sou subitamente assaltado por um acesso
I S R A E L E M A B R I L
303
de autocomisera����o retrospectiva. Como podia eu gostar
da escola ou do gin��sio se nunca tive uma professora co-
mo esta?
Um menino louro e outro moreno (sefardita e asque-
nazi?) acham-se �� nossa direita, ambos muito s��rios e
atentos �� leitura. Agora �� a professora quem l�� um trecho
do livro que tem nas m��os. Como soa bem o hebraico
pronunciado por ela! (Blusa xadrez, eslaque preto, san-
d��lias.) Faz uma pausa para interpelar os alunos: ima-
gino que lhes pede a interpreta����o do texto lido. Vejo no
quadro negro, vest��gios duma aula anterior, as palavras
Irene... Soames... Bosinney... Jolyon. .. Identifico-
as como nomes de personagens do romance Forsyte Saga,
de John Galsworthy.
A aula prossegue. Discute-se, interpreta-se. Estou cu-
rioso por saber que livro l��em. Desconfio que �� algo de
Shakespeare. Escrevo este nome na minha caderneta de
notas e mostro-o �� menina que tenho a meu lado. Ela
sacode a cabe��a afirmativamente, e escreve Macbeth por
baixo do nome do bardo.
Sorrio para a professora, levanto-me e saio da sala.
Continuamos a caminhada pelo Jardim de Samuel, com
os Steinberg. Digo-lhes: "Se nestes gin��sios dos kibbutzim,
que devem dar uma aten����o maior aos problemas agr��-
colas, se estuda Shakespeare, como ser��o os urbanos? Eu
bem que notei um gosto erudito nas frutas que voc��s
produzem a q u i . . . "
SABR��S
Pergunto a minha mulher: "Quando ouves ou l��s a
palavra sabra, que imagem te vem �� cabe��a?". Resposta:
"A do kibbutznik, o agricultor-soldado". Lembro n��o s��
304
E R I C O V E R �� S S I M O
a ela, como de certo modo a mim mesmo, que apenas uma
pequena percentagem de sabras vive nestas comunidades
agr��colas, pois o n��mero total de habitantes dos kibbutzim
corresponde a 3% da popula����o global de Israel; e que
um ter��o desta, ou pouco mais, �� composto de judeus
nascidos na Palestina, e estes em sua maioria s��o pessoas
de menos de trinta anos, que residem principalmente
nas zonas urbanas.
Os jovens sabras, que desde o estabelecimento do
Estado de Israel se t��m revelado t��o bons soldados, apren-
dendo a usar o fuzil, a metralhadora e o canh��o para se
defenderem de seus inimigos, n��o compreendem que os
judeus da Europa se tenham deixado humilhar, torturar
e matar nos campos de concentra����o de Hitler, sem o
menor gesto de revolta, numa passividade de cordeiros.
Os sobreviventes desses massacres tentam explicar que
qualquer resist��ncia teria sido n��o s�� imposs��vel como
tamb��m in��til. Replicam os sabras: "Morrer por morrer,
�� sempre melhor morrer lutando e matando do que cho-
rando e rezando". Estas palavras at�� certo ponto carac-
terizam o esp��rito do judeu novo de Israel.
Parece-me que a cr��tica dos jovens israelenses ��s v��-
timas da brutalidade nazi revela, antes de mais nada,
uma certa ignor��ncia da hist��ria do juda��smo e das cir-
cunst��ncias da vida dos hebreus na Europa, nos guetos
ou fora deles. �� natural que os sabras recusem olhar
para o passado, donos que s��o do presente e do futuro.
Muitos deles chegam a afirmar que ser israelense n��o ��
necessariamente a mesma coisa que ser judeu.
Alguns soci��logos inclinam-se j�� a aceitar a exis-
t��ncia duma "subcultura" sabra neste pa��s novo que ainda
n��o teve tempo de criar uma cultura pr��pria de ��mbito
nacional. Georges Friedmann, que com tanta lucidez tem
escrito sobre os problemas do povo judeu em geral e os
I S R A E L E M A B R I L
305
de Israel em particular, diz ter encontrado sabras de ten-
d��ncias intelectuais que alegam pertencer ao grupo dos
"cana��nitas", que t��m suas origens mais remotas em Ca-
na��, uma Palestina anterior ��s vis��es de Abra��o e ao seu
contrato com Jeov��. Querem desse modo aliviar os om-
bros duma pesada carga de quatro mil��nios de perse-
gui����es, cativeiros e humilha����es. Por outro lado, esse
"redescobrimento" de suas ra��zes ��tnicas permitir�� uma
reaproxima����o, por parentesco, dos povos sem��ticos, o
que talvez um dia torne poss��vel a coexist��ncia pac��fica
entre judeus e ��rabes no Oriente M��dio. Creio, por��m,
que essa corrente �� t��o pouco expressiva em Israel quanto
a dos hippies. E n��o ser�� o "cana��nismo" uma esp��cie
de atitude hippie no plano hist��rico: uma revolta dos
filhos contra os pais, sua religi��o, seus tabus, sua t��bua
de valores espirituais, e seus compromissos com um certo
passado?
E os sabras do Jardim de Samuel? Vejo-os ��� tanto
os homens como as mulheres ��� durante suas atividades
di��rias, trabalhando nas lavouras, nos pomares, nos cur-
rais, nos avi��rios, nas piscinas, na f��brica e na oficina me-
c��nica. Observo-os tamb��m nas horas de folga, enquanto
comem e conversam no refeit��rio comum ou ficam a ler
na biblioteca do centro cultural. Como diria um tropeiro
ga��cho de minhas rela����es "esses mo��os e mo��as s��o
potros e potrancas de todos os p��los e com todas as mar-
cas". H��gidos e rijos, descontra��dos e seguros de si mes-
mos, parecem felizes nesse conv��vio com os companhei-
ros, os bichos, a terra e seus frutos. Passam por n��s e
nem sequer nos olham. Jamais tentam dirigir-nos a pa-
lavra. ��s vezes tenho a impress��o de que, t��midos e aris-
cos, portam-se como caipiras. Bom ��� reflito ��� talvez
n��o se comuniquem conosco porque n��o falam a nossa
306
E R I C O V E R �� S S I M O
l��ngua e n��s n��o falamos a deles. (Os sabr��s recusam-se
a aprender o i��diche, a l��ngua da Di��spora e portanto do
opr��brio.) Outras explica����es me ocorrem para a falta de
interesse ou curiosidade desses jovens para com nossas
pessoas. �� que somos outsiders, forasteiros que represen-
tam um mundo alheio ao deles e em processo de desa-
grega����o. Julgo sentir ��s vezes na atitude arredia desses
kibbutznikim uma certa auto-sufici��ncia arrogante, uma
esp��cie de hubris. Devem considerar-se ��� uns mais cons-
cientemente que outros ��� esp��cimes duma nova estirpe
que se est�� moldando a ferro e fogo em Israel, um tipo
de gente que cada vez tem menos a ver com os judeus
da Dispers��o, que eles n��o podem ou n��o querem com-
preender.
J�� se escreveu que esses jovens se entregam a uma
"a����o sem ideologia". N��o creio que essa seja a regra
geral. Acho que �� ainda muito cedo para dizer a ��ltima
palavra sobre os sabr��s. De qualquer modo eu os vejo
com grande simpatia e esperan��a.
Algu��m me disse, n��o faz muito, que essas novas
gera����es de judeus palestinenses est��o tentando demolir
simb��lica e psicologicamente o ��ltimo vest��gio do Templo
de Salom��o: o Muro das Lamenta����es. Se tal observa����o
�� exata, se �� contra o misticismo de seus antepassados
e de seus contempor��neos ortodoxos que os sabr��s se re-
belam, n��o deixa de ser pertinente perguntar-lhes se de
algum modo eles n��o estar��o criando j�� sua pr��pria m��s-
tica, que um dia poder�� redundar numa outra mitologia
e numa outra ortodoxia.
E AGORA, ADEUS!
Ter��a-feira, 19 de abril. Voltamos a Tel Aviv. �� noite,
na sede da Jewish-American Association, fa��o uma pa-
I S R A E L E M A B R I L
307
lestra em ingl��s, patrocinada pela Sociedade de Escritores
e pelo Departamento Municipal de Educa����o. Nahum
Sirotsky me apresenta ao pequeno p��blico com palavras
t��o generosa e exageradamente elogiosas, que lhe mur-
muro ao ouvido: "Voc�� ainda me vai obrigar a ler esse
escritor".
Na manh�� seguinte, no aeroporto de Lod, despedimo-
nos, comovidos e gratos, de nossos amigos, os Levin, os
Dothan e os Sirotsky e embarcamos, rumo de Roma, num
avi��o da Alit��lia. Dentro de poucos minutos estamos vo-
ando sobre o Mediterr��neo. Vamos interromper a viagem
em Atenas, onde passaremos quatro dias. Queremos ver
mais uma vez a Acr��pole �� luz do poente, e visitar um
lugar que me tem perseguido a mem��ria desde que o vi
num filme colorido: Hidra.
1 2
NUMA ILHA GREGA
EU E MEU FANTASMA
Numa ilha grega, numa tarde de quinta-feira, dois
brasileiros pensam em Israel. Estamos no cais de Hidra,
sentados a uma mesa, na frente duma taverna, diante
da pequena ba��a semicircular, com sua ��gua transparente
e seus barcos de quilhas pintadas de muitas cores. Dentro
da taverna homens jogam cartas, fumam e bebem ouzo.
A poucos passos de n��s um velho pescador, o cachimbo
entre os dentes, remenda sua rede dum amarelo de ��mbar.
Uma mulher toda de preto vestida sai duma casa caiada
com um pequeno polvo na m��o, aproxima-se da beira
do cais e come��a a bater com o animal na pedra, com
toda a for��a.
Olhamos para tudo isso com a aten����o vaga. Con-
tinuam vivas dentro de n��s as imagens de Israel. Tenho
at�� a impress��o de sentir agora no ar um t��nue aroma
de flores de laranjeira. Minha mulher diz que �� pura ima-
310
E R I C O V E R �� S S I M O
gina����o minha, pois n��o viu laranjais na ilha. Possivel-
mente tem raz��o. Deve existir no plano olfativo um fe-
n��meno an��logo ao da miragem.
M. levanta-se e diz que vai visitar as pequenas lojas
do cais que vendem ��cones bizantinos antigos (falsifica-
dos) tapetes, objetos de cer��mica e outras bugigangas de
sabor grego. Fico onde estou, n��o propriamente sozinho
porque uma entidade imagin��ria, que costuma acompa-
nhar-me nas viagens, sob os mais variados disfarces, aqui
est�� a meu lado. Descobri-a em 1941, quando de minha
primeira excurs��o ao estrangeiro. Dei-lhe o nome de
Malasarte em homenagem a um her��i fict��cio da minha
inf��ncia.
��� Ol��! ��� exclamo. ��� Voc�� n��o mudou nada nes-
tes ��ltimos vinte e cinco anos. Est�� com a mesma cara.
��� Sinto muito, companheiro, mas n��o posso dizer
o mesmo de voc��.
��� Est�� bem, n��o falemos em idade. Eu o invoquei
para conversar comigo sobre Israel. Digam o que disse-
rem os totalit��rios, o di��logo �� ainda a melhor maneira
de expor e discutir id��ias. Uma esp��cie de jogo civili-
zado: bola vai, bola v e m . . .
Malasarte entra direto no assunto:
��� Afinal, que pensa de Israel?
��� N��o tenho um pensamento sobre esse pa��s sin-
gular, mas v �� r i o s . . . Dum modo geral, gostei do que l��
vi e o u v i . . . Trago entusiasmos mas tamb��m d��vidas, e
principalmente perguntas, muitas perguntas.
��� Acha Israel vi��vel como na����o? Quero dizer:
capaz de sobreviver e prosperar?
��� Acho. Pelo menos desejo que isso aconte��a.
��� Voc�� �� o rei daquilo que em ingl��s se chama
wishful thinking. Pensa com desejos e afei����es e n��o
com a cabe��a fria. Inocente ou culpado?
I S R A E L E M A B R I L
311
��� Culpad��ssimo. De resto, quem �� que, tendo pas-
sado a vida em contacto, mesmo que leve e espor��dico,
com o pensamento e o comportamento judaicos n��o acaba
contagiado pelo sentimento de culpa que os pervaga?
��� Parab��ns pelo pervaga. lindo verbo! ��� Mala-
sarte aponta para a grega de negro. ��� Mas que ser�� que
aquele polvo fez para apanhar tanto?
��� A carne do bicho �� muito dura. Dizem os enten-
didos que �� preciso bat��-la quarenta vezes contra uma
pedra para amaci��-la antes de lev��-la para a panela. Mas
voltemos a Israel.
��� Bom. Robert Ardrey, um americano que alterna
as atividades de autor teatral com as de antrop��logo, tem
uma teoria segundo a qual a chave para a compreens��o
do homem e para a solu����o de seus problemas de com-
portamento �� o que ele chama de "princ��pio territorial".
O homem recorre �� guerra por in��meras raz��es, entre as
quais a mais poderosa �� o desejo de recuperar ou manter
um territ��rio que considera propriedade sua. (Ser�� que
o polvo j�� estava morto quando a mulher come��ou a ba-
t��-lo na pedra?) Afirma Ardrey que os judeus n��o s��o
uma r a �� a . . .
��� Ora, isso j�� foi dito muitas v e z e s . . .
��� Espere. Os hebreus, segundo Ardrey, t��m menos
caracter��sticas raciais do que, digamos, os suecos ou mes-
mo os italianos meridionais, pois descendem duma mis-
tura de tribos do Oriente M��dio. O que os judeus t��m
mesmo de diferente dos outros povos civilizados modernos
�� o fato de serem "desterritorializados", se voc�� me per-
mitir o termo.
��� Permito tudo. Estou ainda em f��rias.
��� Bom. O grande problema dos judeus foi o de
manter a sua integridade gen��tica sem uma p��tria ter-
ritorial. Nada possu��am al��m de mem��rias.. .
312
E R I C O V E R �� S S I M O
��� A�� est�� uma afirma����o discut��vel pelo que tem
de simplista. Mas prossiga.
��� Aceitaram o gueto. Evitaram o casamento e as
rela����es carnais com os gentios. Os rabinos e os escribas
encarregaram-se de manter a p��tria judaica no plano
espiritual.
��� Com a ajuda de nosso anti-semitismo.
��� Os hebreus empenharam-se em provar que eram
mesmo diferentes dos goyim, usando roupas e chap��us
estranhos, cultivando tabus alimentares e ritos e mitos
peculiares... e t c . . . Confirmaram assim a id��ia genera-
lizada de que eram mesmo uma ra��a �� parte, o que lhes
convinha �� maravilha. N��s escarnec��amos a "personali-
dade judaica" e os judeus tudo faziam para exager��-la.
Segundo ainda Ardrey, nenhum de n��s percebeu que essa
"personalidade judaica" nada mais era que um amontoa-
do de maneirismos que visavam preservar a identidade
de um povo sem territ��rio.
��� Conhe��o a teoria. �� interessante mas um tanto
rebuscada. Vamos adiantei Veio o Sionismo. Afirma o seu
amigo antrop��logo que, como um territ��rio �� necessaria-
mente uma "��rea que se defende", ent��o �� indispens��vel
ter vizinhos hostis para atac��-la. Foi a�� que entraram em
cena os ��rabes, para representar esse papel, como con-
vinha aos hebreus.
��� Isso! Defendendo-se dos ataques dos vizinhos
hostis, os judeus legitimavam seu territ��rio, no mais ri-
goroso sentido biol��gico. E agora chegamos ao ponto cru-
cial da tese de Ardrey. Se o judeu nunca existiu como
um povo sem territ��rio pr��prio, em teoria ele devia dei-
xar de ser judeu no momento em que se territorializasse.
��� Em t e o r i a . . . Bom, mesmo na pr��tica existem
j�� sinais de que a personalidade judaica, tal como se fez
conhecida atrav��s da Hist��ria, come��a em Israel a ser
I S R A E L E M A B R I L
313
substitu��da pela do israelense, ainda n��o completamente
definida. �� poss��vel que dentro de cinq��enta anos o juda-
��smo tradicional continue a existir apenas fora de Israel,
entre uma minoria exilada, e assim mesmo gra��as ao
racismo e �� intoler��ncia dos crist��os.
��� S�� compar��vel ao racismo e �� intoler��ncia dos
judeus. Se voc�� n��o tem a coragem de dizer isto, eu
tenho.
��� Est�� bem. Voc�� disse; Parab��ns! Ardrey afirma
que o estabelecimento do Estado de Israel criou proble-
mas que n��o haviam sido previstos pelos sionistas, o
maior dos quais, por mais absurdo que pare��a, �� o do
racismo entre os pr��prios judeus.
��� E que �� que voc�� diz a isso?
��� Note bem: tudo quanto tenho dito e escrito at��
agora foi temperado com um gr��o de sal. Na minha opi-
ni��o todos os livros, artigos e discursos deviam ser pre-
cedidos desta ep��grafe: cum grano salis. (Em latim a
coisa fica sempre mais solene.) Acho que no momento
o problema mais s��rio e urgente de Israel �� o de negociar
uma paz permanente com o mundo mu��ulmano. Ca��,
como v��, nas malhas de Ardrey: �� preciso assegurar a
posse definitiva do territ��rio.
��� Ben-Gurion n��o lhe disse que �� a hostilidade dos
��rabes que mant��m o povo israelense unido?
��� Sim, mas essa frase encerra apenas uma meia-
verdade jocosa. Seria desastroso, al��m de rid��culo e ab-
surdo, um pa��s alimentar uma guerra cr��nica com seus
vizinhos s�� para se eximir de enfrentar problemas inter-
nos. Israel n��o poder�� aguentar uma guerra longa; e
uma guerra de guerrilhas, de atrito, tamb��m n��o lhe
conv��m. At�� agora a assustadora superioridade num��rica
da R.A.U. tem sido compensada pela melhor qualidade
314
E R I C O V E R �� S S I M O
do soldado judeu. Mas at�� quando essa situa����o poder��
durar?
��� Acha essa paz poss��vel?
��� �� dif��cil mas n��o imposs��vel. E se viesse, n��o
s�� os israelenses lucrariam com ela: o mundo ��rabe tam-
b��m, pois as na����es que o comp��em poderiam fazer parte
dum vasto plano de co-prosperidade liderado por Israel.
Os desertos seriam transformados em pastagens verdes,
lavouras e pomares. Num futuro muito pr��ximo haveria
��gua pot��vel em abund��ncia para todos, gra��as aos pro-
cessos modernos de dessaliniza����o que v��m sendo aper-
fei��oados por cientistas e t��cnicos israelenses. Ningu��m
negar�� que a experi��ncia de Israel no cultivo de solos
semi-��ridos tem sido um estrondoso sucesso.
��� Sou menos otimista que voc�� com rela����o a essa
p a z . . .
��� Se os Dois Grandes quiserem ela se far��. Os
Estados Unidos parecem dispostos a garantir a integri-
dade territorial de Israel e a ajudar esse pa��s financeira
e economicamente, n��o porque os americanos sejam bons-
mo��os, mas principalmente por causa da grande influ-
��ncia pol��tica, econ��mica e cultural do grupo judeu den-
tro dos Estados Unidos. Os russos por sua vez namoram
o petr��leo dos pa��ses ��rabes e a possibilidade de contar
com portos amigos em mares quentes. Al��m disso o mun-
do ��rabe pode ser uma boa sementeira para as id��ias
comunistas. N��o podemos deixar de levar em conta tam-
b��m o anti-semitismo end��mico dos russos, que vem do
tempo dos czares e continua, mal disfar��ado, na R��ssia
de hoje.
��� Suponhamos que essa paz se f a �� a . . . Qual seria
ent��o o problema mais s��rio que Israel teria de enfrentar?
��� �� o que j�� est�� enfrentando, mas de forma de certo
modo atenuada, gra��as a seu estado de guerra cr��nico com
I S R A E L E M A B R I L
315
os vizinhos: a integra����o das diversas minorias (curioso
a gente usar no caso esta palavra) que formam a popu-
la����o de Israel.
��� Voc�� se refere mais especificamente aos judeus
orientais, que s��o considerados os "negros" de Israel, n��o?
��� Exatamente. H�� tr��s anos Levi Echel j�� dizia
que esse era o "problema n��mero um de nossa gera����o".
��� �� estranho. Os sefarditas, que na Idade M��dia
eram a flor da cultura judaica, s��o hoje em Israel "judeus
de segunda classe".
��� As primeiras cinco aliot, ou ondas de imigra����o
judaica para a Palestina, entre 1822 e 1948, compu-
nham-se principalmente de asquenazis vindos da R��ssia,
da Alemanha, da Pol��nia e da Rom��nia. Estabelecido o
Estado de Israel, novas vagas de imigrantes chegaram,
mas menos da metade destes eram judeus naturais da
Europa. Vinham agora principalmente da Africa (Tun��-
sia, Marrocos, L��bia) e da ��sia (Ir��, Iraque, I��men e
Turquia).
��� Esses imigrantes traziam no corpo, no esp��rito,
no comportamento a marca dos pa��ses subdesenvolvidos
onde viviam, e de cuja pobreza e ignor��ncia haviam par-
ticipado t��o profundamente.
��� Ouvi um sabra asquenazi dizer que esses judeus
do Oriente j�� deixaram de ser judeus, pois at�� na pr��tica
de ritos religiosos seu juda��smo est�� quase irreconhec��vel.
��� Os sefarditas constituem hoje 55% da popula-
����o total do pa��s. Temem alguns l��deres asquenazis que
um dia Israel venha a orientalizar-se, pois calcula-se que,
se o presente ritmo de natalidade continuar, dentro dos
pr��ximos vinte anos os judeus orientais representar��o
80% da popula����o total do pa��s.
��� N��o creio que �� orientaliza����o de Israel constitua
um perigo real.
316
E R I C O V E R �� S S I M O
��� �� verdade que esses "hebreus de segunda classe"
n��o t��m representantes na elite econ��mica, cient��fica e
militar de Israel?
��� Sim, e �� verdade tamb��m que menos de 5% de
mo��as judias ocidentais consentem em casar-se com ju-
deus orientais. E que o trabalhador sefardita ganha em
m��dia a metade do sal��rio do trabalhador asquenazi. E
que os postos-chave da administra����o israelense est��o ex-
clusivamente nas m��os dos judeus ocidentais.
��� Existe mesmo animosidade entre esses dois gru-
pos?
��� Sim. Pesquisas s��rias feitas por soci��logos revelam
que, entre os anos de 1950 e 1959, o preconceito dos oci-
dentais contra os orientais aumentou, concentrando-se
principalmente nos grupos norte-africanos.
��� E voc�� acha que Israel poder�� um dia resolver
esse conflito?
��� Pode. Com paz e com tempo. Veja bem, esse
choque entre sefarditas (ressentidos por causa da discri-
mina����o) e asquenazis (irritados por terem de carregar
nos ombros o peso quase morto de seus "compatriotas"
orientais) n��o chega a ser t��o saturado de ��dio como a
rivalidade entre brancos e negros nos Estados Unidos.
N��o creio que essas diferen��as entre o "judeu branco"
e o "judeu escuro" venham um dia a desaparecer por com-
pleto, mas estou certo de que poder��o ser atenuadas, tra-
zidas a um ponto suport��vel. Os principais instrumentos
de integra����o social com que Israel conta s��o principal-
mente seus jardins da inf��ncia, as escolas prim��rias e se-
cund��rias, e suas universidades. O pr��prio servi��o mi-
litar poder�� contribuir para um melhor entendimento
entre os dois grupos. Os m��dicos e os assistentes sociais
representar��o tamb��m um papel importante nessa cam-
panha de integra����o. Bom, mas eu desafio voc�� a apontar
I S R A E L E M A B R I L
317
cinco pa��ses do nosso mundo em que n��o existam mino-
rias (��scriminadas, marginalizadas e ressentidas.
��� Nem me vou dar o trabalho de procur��-los. Fi-
quemos com os problemas de Israel.
��� Outro deles �� o de popula����o. Ben-Gurion de-
clarou h�� pouco que seu pa��s precisa ter no m��nimo
4 000 000 de habitantes. Os economistas tamb��m desejam
esse aumento de popula����o para que se reforce o mer-
cado interno.
��� No entanto a imigra����o tem diminu��do nestes
��ltimos anos. Em 1952 o n��mero de imigrantes caiu de
170 000 para 25 000. Nos Estados Unidos vivem cerca
de 6 000 000 de judeus, dos quais apenas uns 15 000
chegaram a estabelecer-se em Israel. Deste n��mero uns
8 000 tornaram �� Am��rica, pois n��o conseguiram adap-
tar-se na nova p��tria. (Ou na "velha", como q u i s e r . . . )
��� Por outro lado, o ritmo de natalidade de Israel
n��o �� satisfat��rio. Existem ainda na R��ssia perto de
3 000 000 de judeus que, segundo parece, gostariam de
emigrar se para isso tivessem a permiss��o do governo
sovi��tico.
��� E se tivessem ningu��m poderia garantir que eles
fossem para Israel. Nos ��ltimos tempos os judeus que
abandonaram a Europa t��m preferido estabelecer-se no
Canad�� e nos Estados Unidos. As grandes sociedades de
consumo parecem exercer sobre eles uma grande atra����o,
f��cil de compreender. Tempo houve em que era muito
rom��ntica a id��ia de ir para Israel arrancar pedras do
solo para cultiv��-lo, era fascinante o sonho de fazer flo-
rescer os desertos, fundar cidades. Hoje em dia a vida
dur��ssima e perigosa do pioneiro israelense parece atrair
cada vez menos os jovens judeus do mundo. �� um fen��-
meno que lembra o das voca����es sacerdotais no catoli-
cismo.
318
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Voc�� se lembra da Terra da Cocanha onde, se-
gundo uma lenda medieval, a vida era farta e f��cil, os
rios de vinho, as casas comest��veis, a natureza uma gene-
rosa m��e que dava a seus filhos indolentes comida na
boca? Pois Israel �� exatamente o pa��s anticocanha,
��� Vamos ao pr��ximo problema!
��� �� a guerra ainda n��o abertamente declarada,
mas que existe de fato entre os partid��rios duma econo-
mia socialista e os que preferem um regime neocapita-
lista. Desde que come��ou o Estado de Israel, est�� no poder
um partido socialista democr��tico.
��� E �� bom n��o esquecer que j�� existem l��, ap��s
dezoito anos de vida independente, cerca de 2 000 milio-
n��rios.
��� Seja como for, em Israel a Confedera����o Geral
do Trabalho �� ainda muito mais poderosa que o setor
capitalista. Mas os banqueiros e industriais europeus e
americanos de origem judaica que est��o tratando de esta-
belecer em Israel ind��strias em escala capaz de habilit��-
las a competir no mercado internacional, pedem um pre��o
para isso: a cabe��a da Histadrut.
��� Conseguir��o?
��� Meu filho, n��o sou profeta. E, al��m disso, quando
invado, mesmo que timidamente, o territ��rio da Econo-
mia, sinto-me descal��o, sem chap��u e sem mapas numa
esp��cie de Deserto do Neguev, contando apenas com uma
b��ssola de fabrica����o dom��stica. N��o sei at�� quando essa
dicotomia socialismo-capitalismo poder�� persistir em Is-
rael. A paz e o tempo dir��o.
��� Li, n��o me lembro onde, que Mosh�� Dayan, o
her��i nacional, declarou que os velhos ideais socialistas
simplesmente nada t��m a ver com o tipo de homem que
atualmente vive em Israel. E note-se que disse isso num
congresso do partido Mapai, de tend��ncia socialista.
I S R A E L E M A B R I L
319
��� Dayan tem dito muitas coisas. Continua a pre-
ferir o que ele faz ao que ele diz. Mas a verdade �� que
Israel v�� aproximar-se uma crise econ��mica s��ria. As re-
para����es que lhe pagava a Rep��blica Federal da Alema-
nha foram j�� saldadas. Os judeus americanos que por
sentimento de culpa por n��o terem ido para Israel, ou
por simples solidariedade de cl��, fazem donativos ��m
dinheiro ao governo israelense, parecem, cada vez mais,
mandar seus d��lares envoltos num papel em que se l��
uma mensagem escrita com tinta invis��vel: "Preferimos
que Israel tome o caminho da livre empresa, abando-
nando o socialismo". Essa contribui����o de judeus que
vivem fora de Israel corresponde mais ou menos a cin-
q��enta d��lares por cabe��a e por ano. �� indispens��vel que
ela aumente daqui por diante.
��� O problema mais grave da economia israelense
�� que o pa��s consome quatro vezes o que produz, e o seu
deficit or��ament��rio anual �� de 500 milh��es de d��lares.
J�� se teme o recesso e o desemprego.
��� Desemprego? A guerra est�� a�� m e s m o . . .
��� N��o seja sarc��stico. Israel precisa de paz. Feliz-
mente ainda n��o tem um Pent��gono de bra��os dados com
a ind��stria pesada, formando esse hediondo animal de
a��o que se alimenta de carne humana. A guerra custa
muito caro n��o s�� em vidas humanas como tamb��m em
dinheiro e energia nervosa.
��� Bom, examinemos agora outro problema. Estado
secular ou estado religioso? �� sabido que as quest��es reli-
giosas em Israel tendem a misturar-se com as pol��ticas,
as sociais e at�� as econ��micas. Existem em todo o pa��s
mais de 4 000 sinagogas. Cerca de 4 0 0 de seus rabinos
s��o pagos pelo Estado mas obedecem ��s ordens do Grande
Rabinato.
320
E R I C O V E R �� S S I M O
��� Tudo indica que o sabra �� menos religioso que
o judeu da Di��spora.
��� Nas elei����es do ano passado os partidos religiosos
n��o conseguiram, juntos, mais que 14% do total dos
votos. A propor����o de elementos n��o religiosos nos kib-
butzim �� de 7 6 % . Pesquisas feitas recentemente por pes-
soas respons��veis indicam que 30% da popula����o total
de Israel consideram-se de algum modo religiosos, isto
��, observam todos os Mandamentos ou alguns deles. 46% ,
o grupo maior, declaram ter liga����es apenas ocasionais
com a religi��o. N��o v��o �� sinagoga sen��o uma ou duas
vezes por ano. Os restantes 24% manifestaram sua com-
pleta indiferen��a pela religi��o.
��� Deve ser decepcionante para um judeu ortodoxo
verificar que o Estado que o Povo do Livro criou na Terra
Prometida afasta-se cada vez mais da religi��o de seus
profetas.
��� A seculariza����o da vida de Israel parece incon-
t��vel.
��� Sim, porque a conclus��o final do mencionado in-
qu��rito �� a de que uma clara maioria de israelenses �� con-
tra a interfer��ncia da religi��o na vida p��blica de seu pa��s.
��� Ter�� ainda mais problemas seu querido Israel?
��� Haver�� outros, por��m menores. Afirma-se, por
exemplo, que apesar dos esfor��os das autoridades para
fazer do hebraico o idioma oficial da na����o, os judeus
que para l�� foram depois de 1948 continuam a falar a
l��ngua das terras onde nasceram. Para eles o hebraico ��
um segundo idioma. Mas seu predom��nio definitivo, acho,
ser�� apenas uma quest��o de tempo. A�� est�� o sistema de
educa����o modelar de Israel, os jornais, os escritores, o
r��dio e, dentro de pouco, a televis��o, elementos todos de
integra����o n��o s�� ling����stica como tamb��m social.
I S R A E L E M A B R I L
321
Por alguns instantes Malasarte fica contemplando o
mar. Depois volta-se para mim e diz:
��� Essa luta de Israel contra os ��rabes, que promete
acirrar-se nos pr��ximos dez anos, n��o poder�� provocar
no resto do mundo uma nova onda de anti-semitismo,
estimulada por uma propaganda insidiosamente dirigida?
��� Essa possibilidade est�� sempre aberta, reconhe��o.
Desgra��adamente as na����es da Terra n��o aprenderam ain-
da a assegurar sua sobreviv��ncia sem de vez em quando
valer-se de um bode expiat��rio. Ora, como a Hist��ria tem
sobejamente mostrado, os judeus a�� est��o sempre como
bodes expiat��rios feitos sob medida para todos os prop��-
sitos . . .
��� Especialmente agora que se tornaram mais vul-
ner��veis criando uma esp��cie de na����o-gueto...
��� S��o id��ias como essa sua, Malasarte, que me le-
vam a compreender e justificar a arrog��ncia e a agressi-
vidade dos sabras. Voc�� deve ter lido a B �� b l i a . . . Lem-
bra-se das palavras de Cristo a seus fi��is? "Eu n��o vos
trago a paz, mas uma espada." Pois os israelenses, em-
bora n��o aceitem o Messias dos crist��os, decidiram em-
punhar a sua espada.
��� E essa arma n��o ter�� dois gumes?
��� C��nico!
Malasarte sorri:
��� Diante de todas essas dificuldades e esses inimi-
gos, como pode voc�� ter esperan��a na sobreviv��ncia do
Estado de Israel?
��� Ora, esperan��a n��o se explica. Sente-se. Confio
na capacidade de intelig��ncia e de trabalho do israelense,
socialista ou capitalista, religioso ou leigo. Confio tam-
b��m na proverbial solidariedade tribal dos judeus. Seja
como for, apesar de todos os seus poss��veis defeitos, dos
enormes obst��culos que tem pela frente (ou talvez por
322
E R I C O V E R �� S S I M O
causa de tudo isso) Israel �� talvez a mais fascinante e
admir��vel experi��ncia humana de nosso tempo. Em suma,
na minha opini��o os israelenses merecem sobreviver e
prosperar na sua pequena p��tria. E n��s todos, membros
da comunidade humana, ficaremos moralmente engran-
decidos se tivermos contribu��do um pouco para isso.
��� Ent��o, amigo, nada mais me resta sen��o dizer-
lhe chalom.
��� Chalom!
Páginas em branco: 42-76-134-272-308, as que iniciam capítulos estão
s/números.
O roteiro da viagem, na companhia da esposa Mafalda, inclui visitas a diversas cidades e vilarejos, kibbutzim, personalidades, amigos, universidades e museus. Refletindo constantemente sobre o que vê, Verissimo antecipa uma das questões centrais do semitismo pós-Israel: será que agora o judaísmo deixará de ser uma cultura para virar uma civilização — destinada, como toda civilização, a um "período do inverno, da velhice e da morte"? Será que uma eventual "decadência da civilização do novo Estado sionista [...] vai matar a cultura judaica"? Erico aposta que não, convencido de que a diáspora judaica nunca deixará de existir.
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