Contos Exemplares
Sophia de Mello Breyner Andresen
O Jantar do Bispo
A casa era grande, branca e antiga. Em sua frente havia um p�tio quadrado.
� direita havia um laranjal onde noite e dia corria uma fonte. � esquerda era o jardim de buxo, h�'mido e sombrio, com suas cam�lias e seus bancos de azulejo.
A meio da fachada que dava para o p�tio havia uma escada de granito coberta de musgo. Em frente dessa escada, do outro lado do p�tio, ficava o grande port�o que dava para a estrada.
A parte de tr�s da casa era virada ao poente e das suas janelas debru�adas sobre pomares e campos via-se o rio que atravessa a v�rzea verde e viam-se ao longe os montes azulados cujos cimos em certas tardes ficavam roxos.
Nas vertentes cavadas em socalco crescia a vinha. Era ali a terra pobre donde nasce o bom vinho. Quanto mais pobre � a terra, mais rico � o vinho. O vinho onde, como num poema, ficam guardados o sabor das flores e da terra, o gelo do Inverno, a do�ura da Primavera e o fogo dos Estios. E dizia-se que o vinho daquelas encostas, como um bom poema, nunca envelhecia. � direita, entre a v�rzea e os montes, crescia a mata, a mata carregada de murm�rios e perfumes e que os Outonos tornavam doirada.
Mas agora era Inverno, um duro Inverno desolado e frio, e o vento desfazia o fumo azul que subia das pequenas casas pobres. Os caminhos estavam cobertos de lama. Um longo solu�o parecia correr pelas estradas.
O Dono da Casa estava de p�, encostado � lareira acesa na sala grande, rodeado de convidados, que eram primos, primas e alguns vizinhos. Estava calado, alheio � conversa: meditava. pesava as suas raz�es, defendia em frente de si pr�prio a sua causa e a sua justi�a. Faltava o �ltimo convidado, que era o Bispo.
O Dono da Casa tinha um pedido a fazer ao Bispo. Fora mesmo por isso que o convidara para jantar. E era por isso que, enquanto o esperava, ele meditava e preparava os argumentos da sua raz�o.
De facto, ali, naquelas terras de sossego, naqueles dom�nios submissos onde ele e seu pai e seus av�s tinham exercido uma autoridade indiscutida, ali onde antes sempre reinara a ordem, tinha surgido agora uma semente de guerra.
Esta semente de guerra era o padre novo. um jovem padre de sotaina rota e cabelo ao vento, P�roco de Varzim, pequena aldeia miser�vel onde moravam os cavadores da vinha. Havia muito tempo que Varzim era pobre e sempre cada vez mais pobre, e havia muito tempo que os p�rocos de Varzim aceitavam com paci�ncia, sempre com mais paci�ncia, a pobreza dos seus paroquianos. Mas este novo padre falava duma justi�a que n�o era a justi�a do Dono da Casa. E parecia ao Dono da Casa que, dia ap�s dia, semana ap�s semana, m�s ap�s m�s, a sua presen�a ia crescendo como uma acusa��o que o acusava, como um dedo que o apontava, como uma espada de fogo que o tocava. E ali na sua casa cujos donos tinham sido de gera��o em gera��o s�mbolo de honra, virtude, ordem e justi�a, parecia-lhe agora que cada gesto do Padre de Varzim o chamava a julgamento para responder pelos tuberculosos cuspindo sangue, pelos velhos sem sustento, pelas crian�as raqu�ticas, pelos loucos, os cegos e os coxos pedindo esmola nas estradas.
Finalmente surgira uma quest�o de contas com um caseiro e o Abade de Varzim tomara a defesa do caseiro.
- Padre - dissera o Dono da Casa - eu pensava que o seu of�cio era ocupar-se de rezas e n�o de contas. Os problemas morais pertencem-lhe. Os problemas pr�ticos s�o comigo. Pe�o-lhe que deixe C�sar ocupar-se do que � de C�sar. Eu na sua igreja n�o mando: s� assisto e apoio.
O problema que estamos a discutir � meu. � do mundo, � um problema material e pr�tico.
- Da nossa pr�pria fome - respondeu o Padre de Varzim - podemos dizer que � um problema material e pr�tico. A fome
dos outros � um problema moral.
E a quest�o continuou. Crescia de dia para dia. O Dono da Casa estava velho e habituado a mandar e a possuir. As suas conveni�ncias, as suas comodidades, as suas vantagens e os seus interesses pareciam-lhe direitos �ticos absolutos, princ�pios sagrados da paz e da ordem. Por isso convidara o Bispo para jantar. Para lhe expor as suas raz�es e a sua justi�a. Mas era-lhe dif�cil acusar o seu advers�rio. O Padre de Varzim vivia pobremente e castamente. Ningu�m podia dizer que ele n�o era um bom padre. A sua piedade era vis�vel e a fama da sua caridade corria de boca em boca pelos socalcos da serra. Ele sentava � sua mesa o tuberculoso com seus farrapos sujos de sangue e entrava no lar do leproso. Ele dava. dizia-se, tudo quanto tinha e recebia em sua casa os vagabundos. De dia para dia a sua cara esculpida pelo duro sacrif�cio quotidiano, o seu olhar atravessado pela vis�o do sofrimento, os seus ombros estreitos, a sua roupa desbotada por s�is e por chuvas, as suas botas rotas em todos os caminhos, como que se iam tornando a imagem da pobreza e da mis�ria de Varzim.
De certa forma, o Dono da Casa sentia-se vexado pela insignific�ncia daquele advers�rio. N�o estava habituado a lutar, estava s� habituado a mandar. Outros por ele tinham lutado e vencido. Mas, uma vez que tinha que lutar ele pr�prio, gostaria ao menos de lutar com um homem forte e poderoso como ele. Advers�rio t�o magro e desarmado fazia-lhe vergonha.
Primeiro interpretara a atitude do Abade de Varzim como sendo a express�o da revolta social dum filho de gente pobre.
- � um azedo - comentou em fam�lia. Mas depois apurou que o padre era parente afastado duns seus parentes afastados e que a fome escrita na sua cara n�o era heredit�ria, mas sim volunt�ria. Ele rejeitara o seu lugar entre os ricos e tomara o seu lugar entre os pobres. Estas not�cias n�o entusiasmavam o Dono da Casa.
Porque ele costumava citar: "Todo o poder vem de Deus". E pensava que um padre devia por isso respeitar todo o poder estabelecido e respeitar o dinheiro e a import�ncia social, express�es do poder. E considerava tamb�m inadmiss�vel que um homem rejeitasse a heran�a dos seus para alinhar ao lado dos miser�veis. Um homem de boas fam�lias se vai para padre deve ser Bispo, Nu' ncio ou at� Papa. Ou pelo menos Monsenhor. Nunca p�roco de aldeia numa serra.
A atitude do padre novo chocava-o como uma trai��o.
Acrescia a tudo isto que o Dono da Casa, bom gourmet, s�bio em vinhos e bom viveur, detestava os ascetas, que lhe pareciam gente louca, pretensiosa e perigosa, gente pouco humana e querendo sempre o que n�o � natural. Ora ele teve not�cia de que os frangos, as nozes, as uvas e as peras que era seu costume mandar aos sucessivos abades de Varzim em datas regulares, agora, em vez de seguirem o seu destino, que era a mesa do abade, eram distribu�dos pela negra fome de Varzim. Soube tamb�m que o padre dava as couves da sua horta e as uvas da sua parreira. Dava mesmo o leite da sua cabra. Dava tudo. Por isso andava tamb�m ele como um faminto, com a sotaina gasta e as botas vergonhosas.
Isto desafiava o uso, o costume. J� nem era virtude: era desordem, anormalidade, bolchevismo.
Mas o pior de tudo era a missa de domingo. Sempre o Dono da Casa ouvira distra�do em Varzim os serm�es de domingo. Eram serm�es que falavam de paci�ncia, resigna��o e esperan�a num mundo melhor. Serm�es que n�o lhe diziam respeito. De certa forma, para ele nenhum mundo podia ser melhor, e desejava por isso ir para o C�u o mais tarde poss�vel. De maneira que, enquanto os pregadores falavam, tudo o distra�a. Distra�a-o a pintura do tecto, distra�a-o a crian�a que chorava. Da� passava para a lembran�a do sulfato ou da vindima ou da venda do vinho. Pensava nos seus neg�cios.
Mas agora j� n�o se podia distrair. Agora o padre novo falava da caridade. E a caridade de que ele falava n�o era a conhecida e pac�fica praxe das comedidas esmolas regulamentares. Era um mandamento de Deus solene e rigoroso, uma palavra nua de Deus atravessando o esp�rito do homem.
Tudo isto perturbava e incomodava o Dono da Casa. � volta da missa almo�ava mal. A teologia n�o era a sua especialidade e este mandamento novo da caridade parecia-lhe o resultado das ideias novas e perigosas da nossa �poca. Ele tinha uma f� firme e sem d�vidas, baseada n�o nos Evangelhos, que nunca lera, mas sim na sua boa educa��o e no seu respeito pelas coisas estabelecidas. Dava esmola aos pobres ao s�bado e ia � missa ao domingo. Tinha um banco especial na
igreja e nunca chegava atrasado. E mantinha em sua casa o h�bito antigo de ter sempre na sua cozinha a mesa dos pobres. A qualquer h�ra do dia naquela mesa era servida uma refei��o a qualquer mendigo que batesse � porta. � claro que para usufruir desta benesse era preciso que o mendigo fosse doutras terras ou que, sendo do s�tio, fosse reconhecido como um verdadeiro pobre. Verdadeiros pobres, na terra, eram o L�cio, que n�o tinha pernas, o Manuel, que n�o tinha bra�os, o Quintino, que era cego, a Joana Surda, que era vi�va e centen�ria, e a Maria Louca. Estes eram verdadeiros pobres: de todo em todo n�o podiam trabalhar. Mas o Pedro da Serra que tinha nove filhos e ganhava quinze mil r�is por dia a cavar pedregulhos, esse n�o era um verdadeiro pobre, pois tinha um sal�rio e dois bra�os.
A mesa dos pobres era uma mesa especial. Por raz�es de hierarquia e por raz�es de higiene: n�o se podia impor aos criados o contacto com a lama, a poeira, a sujidade, o mau cheiro e as doen�as dos pobres. Assim, na ordena��o daquele pequeno mundo do qual o Dono da Casa era a cabe�a, os miser�veis tamb�m tinham o seu lugar, um lugar que ficava um pouco abaixo dos criados, um pouco acima dos c�es. Mas apesar de tudo era um bom lugar. Ao lado do p�o e do vinho, em frente do prato da sopa, a cozinheira tinha ordem de p�r sempre uma moeda.
Desta forma se mantinham as tradi��es daquela casa. Daquela casa t�o bela, com as suas linhas limpas, com os seus materiais nobres e pobres, com as paredes caiadas, os azulejos e a grande fachada clara e direita cuja beleza estava s� no equil�brio certo dos espa�os e dos volumes e na nudez da cal e da pedra.
Mas dentro j� qualquer coisa rompia a harmonia. M�veis pomposos, falsos e doirados, tinham sido acrescentados �s antigas mob�lias escuras. Um estranho novo-riquismo invadia devagar a antiga, simples e austera nobreza. Um excesso de tapetes escondia a doce madeira do ch�o. Cortinas complicadas injuriavam o brilho frio do azulejo e a casta cal das paredes.
E sobretudo - ai!, sobretudo os retratos do Dono e da Dona da Casa, rosados e estilizados, sentados num cadeir�o torcido, ao lado dum jarr�o da China, contrastavam amargamente com os retratos secos e sombrios dos antepassados. Mas o Dono da Casa n�o dava por este contraste e gostava de se ver, rosado como um fiambre e com as m�os afiladas at� a maravilha, ao lado dos seus av�s. Ali estavam quase todos: aquele que fora ferido em cinco batalhas, aquele que navegara at� ao fim do mundo e morrera de escorbuto, o que naufragara no �ndico, o que fora denunciado e torturado, o que morrera pr�so, o que morrera no ex�lio. Ali estavam quase todos:
aquele que perdera um olho em Ceuta, aquele que perdera um bra�o em Diu, aquele que perdera a cabe�a degolado pelos Filipes. Ali estavam quase todos em seus sombrios retratos, ao lado do Dono da Casa que nunca perdera nada.
E quando o Dono da Casa passava com as visitas em frente dos retratos explicava:
-� costume na minha fam�lia cada nova gera��o deixar aqui o seu retrato. Por isso j� aqui est� o meu. Gosto de continuar as tradi��es.
Estas exibi��es dos retratos divertiam profundamente um parente afastado do Dono da Casa que toda a gente na fam�lia tratava por primo Pedro.
Este primo Pedro era o mais legitimo representante da nobreza da prov�ncia e o mais arruinado. Seu av�, seu pai e ele pr�prio tinham vendido lentamente casas, campos e quintas ao av� e ao pai do Dono da Casa. E tamb�m os quadros ali expostos tinham mudado de propriet�rio juntamente com as casas e com as quintas. Os quadros, por�m, al�m de mudarem de propriet�rio, tinham mudado tamb�m de descend�ncia.
Mas o primo Pedro n�o precisava de retratos: ele pr�prio com seu ar austero e seco era igual a um retrato. Formava nisto grande contraste com o Dono da Casa, que era moreno, encorpado e corado, com grossas m�os e dedos �vidos e curtos.
A ru�na dos homens como o primo Pedro, seu pai e seu av� parece sempre um pouco inexplic�vel. Eles n�o desperdi�am s� os seus bens mas tamb�m os seus dons. As suas qualidades n�o encontram forma de realiza��o. � como se a rela��o entre eles e a vida estivesse quebrada. Em que tinham ocupado os seus dias, o seu esp�rito, a sua coragem? Que ren�ncia os conduzia? Que desencontro os dominava?
O primo Pedro tinha a sensibilidade certa como a sensibilidade dum artista, tinha a intelig�ncia dum inventor e o esp�rito de justi�a dum revolucion�rio. Mas em toda a sua vida nada fizera. Seria por culpa dele ou seria por culpa do c�rculo que o rodeava? Seria porque a imagem do Dono da Casa, as imagens dos numerosos donos das casas, o faziam recuar com n�usea em frente de todas as vit�rias? Ele parecia vi�vo da sua pr�pria vida, exilado, ausente, separado de tudo, constru�do o seu ser � margem do vivido.
Ser� poss�vel que um dia ele acorde e venha participar de novo na obra erguida em comum? Ou ser� que o passado corta todos os seus gestos com a pequena faca - t�o caseira! - da saudade? Ser� poss�vel que um dia ele regresse � hist�ria e reconhe�a a vida como cria��o e aventura, acto de esperan�a e de alegria?
O Dono da Casa n�o se preocupava com estes problemas, que ali�s n�o lhe diziam respeito: para ele, aqueles seus parentes eram apenas falhados decorativos, simp�ticos e bem educados. Tinha muito maior considera��o por si pr�prio e pelos seus, gente capaz de conservar e aumentar a sua fortuna e a sua posi��o.
De facto o av� do Dono da Casa casara com a filha de um negreiro, e o seu pai com a filha dum agiota. Da� viera um grande acr�scimo da riqueza da fam�lia, riqueza que agora permitia ao Dono da Casa manter estreitas rela��es com os financeiros dominantes e fazer parte de v�rios conselhos de administra��o. Enquanto isto se passava, o av� do primo Pedro tinha casado, escandalizando a prov�ncia, com uma actriz da �poca rom�ntica, e o seu pai casara com uma parenta t�o arruinada como ele. Quanto ao primo Pedro, nem tinha casado. Alto e magro, caminhava s�zinho entre paisagens e penumbras.
Mas apesar de tudo isto o Dono da Casa fazia grande gosto nesse parentesco que provava a sua boa genealogia. Ter o primo Pedro a jantar dava-lhe sempre a sensa��o de ter um dos personagens da galeria dos retratos sentado � sua mesa.
Por�m hoje n�o o convidara. Pois o primo Pedro tinha opini�es subversivas: defendia a democracia, a liberdade de imprensa, o direito � greve e costumava citar o catecismo dizendo que n�o pagar o justo sal�rio a quem trabalha � um pecado que brada aos c�us. Isto levava o Dono da Casa a suspeitar que ele fosse comunista. E tamb�m o levava a compreender que n�o convinha convid�-lo para
o jantar do Bispo: de facto era evidente que o primo Pedro tomaria a defesa do Padre de Varzim.
Ora o Dono da Casa, com o seu sentido pr�tico, t�o perfeito que era quase sinistro, combinara aquela reuni�o com toda a prud�ncia: s� tinha convidado gente discreta e segura, com cujo apoio, concord�ncia e sil�ncio podia contar inteiramente. Gente que era a sua base e cujo voto nunca lhe faltava.
Agora j� passava das oito horas: a chuva batia musical nos vidros, mas dentro da sala reinavam luz e calor.
E de p� entre os seus convidados in�cuos, alheio �s conversas, encostado � pedra da lareira, onde ardia devagar a cepa torcida da vinha, o Dono da Casa pensava na finalidade daquele jantar: pedir ao Bispo que mudasse o Padre de Varzim para outra freguesia. Calculava as palavras e media as raz�es. N�o queria que o seu pedido parecesse mesquinho ou vingativo. Queria explicar claramente que o padre novo era um perigo para a ordem social, aquela ordem que ele, dono dos campos, dos pomares, dos pinhais e das vinhas, no centro do jardim bem podado, bem plantado e bem varrido, no centro da casa antiga bem tratada, bem caiada e bem encerada, no centro das pratas herdadas e das pratas compradas, no centro dos m�veis velhos e dos tapetes novos, representava.
Mas, apesar de t�o poderosas raz�eso pedido era dif�cil de fazer.
Entretanto, no seu carro, o Bispo vinha a caminho. Os far�is iluminavam serras, bermas, matas, casebres e, de longe a longe, port�es de quintas.
No c�u encoberto por grossas nuvens de chuva n�o se via uma �nica estrela. Era uma noite totalmente escura. Na lama da estrada o carro �s vezes derrapava.
O vento desordenado sacudia os ramos das �rvores e os pensamentos cruzavam-se na cabe�a do Bispo.
Pedir � uma coisa dif�cil. E tanto mais dif�cil quanto mais aquele a quem se pede � rico e poderoso. Mas a quem havia ele de pedir sen�o aos ricos e poderosos?
De facto, o Bispo tinha um pedido a fazer ao Dono da Casa. Fora mesmo por isso que aceitara aquele convite.
O' tecto da mais bela igreja da sua diocese tombava em ru�nas. Era uma igreja do s�culo XVII, c�lebre em toda a prov�ncia, e que fora mandada construir justamente por um antepassado do Dono da Casa. Pois nos tempos antigos, quando um homem poderoso se achava doente ou tinha a consci�ncia pesada, fazia a promessa de mandar construir uma igreja para dar paz ao corpo e � alma. Mas agora h� rem�dios para todas as doen�as e argumentos para todas as consci�ncias. Agora os "ricos homens" j� n�o mandam erguer igrejas em honra de Nossa Senhora da Esperan�a. Agora a doen�a j� n�o � igual para pobres e ricos. Agora com regimes, an�lises, radiografias, cl�nicas, curas de sono e vitaminas, um homem rico tem a sa�de quase assegurada. E agora as certezas burguesas varreram a inquieta��o e tornaram in�til a esperan�a.
Por isso o Bispo organizara em v�o uma lista entre as personalidades eminentes da cidade. A piedade dos fi�is n�o chegava ao tecto. O produto do pedit�rio mal dera para restaurar o altar-mor. E a igreja da Esperan�a continuava em ru�nas.
Fora assim que o Bispo se resolvera dirigir-se ao Dono da Casa para lhe pedir os cem contos que faltavam para arranjar o tecto. Mas era duro para ele ter de pedir tanto dinheiro. � verdade que o Dono da Casa era um homem virtuoso. Mas quem pode confiar na generosidade dum homem virtuoso? Os homens virtuosos s�o sensatos e prudentes, e a generosidade, sendo a virtude daqueles que d�o aquilo que lhes faz falta, � em si mesma uma coisa insensata, contr�ria aos h�bitos dos homens prudentes. Generosos s�o s� os loucos ou os santos. Por isso o Bispo, enquanto a noite corria a seu lado, abanou lentamente a cabe�a duvidando da efic�cia do seu pedido.
Lembrou-se por�m que o Dono da Casa, sendo, como os antigos fariseus, um homem oficialmente virtuoso, deveria tamb�m ser um homem vaidoso. Pois a sua longa experi�ncia lhe ensinara que os homens virtuosos s�o geralmente vaidosos em extremo. Cultivam com cuidado a sua boa fama, que querem espl�ndida e conhecida. E sem d�vida o Dono da Casa, t�o cioso das tradi��es da sua fam�lia, n�o seria indiferente ao facto de a Igreja da Esperan�a - agora em ru�nas - ter sido tr�s s�culos atr�s constru�da por um antepassado seu. Talvez a vaidade do Dono da Casa valesse ao tecto da igreja.
O Bispo estava velho e cansado do mundo. E enquanto os far�is iluminavam ao longe as curvas da serra pensou:
- � triste estar a confiar na vaidade dos homens.
E apeteceu-lhe de repente n�o fazer o pedido.
Mas o Diabo que espreita a ocasi�o resolveu intervir.
Da� a instantes o autom�vel do Bispo atravessou o port�o e os far�is iluminaram de frente a bela escada de granito. O carro deu meia volta e a luz dos far�is correu ao longo da fachada branca, esculpindo o desenho das janelas.
E mais uma vez o cora��o do Bispo se comoveu em frente da beleza pura e antiga das paredes e das pedras.
Chovia. Um criado desceu com um guarda-chuva. O Bispo apeou-se e, lentamente, pesadamente, apoiadas as m�os no corrim�o de granito coberto de musgo, subiu a escada e penetrou no interior quente e iluminado.
O Dono e a Dona da Casa j� o esperavam na grande entrada vazia, onde os azulejos azuis contavam, com muitos detalhes realistas, hist�rias de id�licas ca�adas irreais, com ca�adores e veados, arvoredos e aves. Depois da sauda��o da praxe, dirigiram-se os tr�s para a sala. Interromperam-se as conversas e levantaram-se os convidados para virem falar ao Bispo.
Mas mal terminaram os cumprimentos, ouviu-se um grande estrondo l� fora.
Houve ent�o um pequeno momento de confus�o. Correram pessoas para as janelas e viram no p�tio iluminado um grande autom�vel preto e sumptuoso esbarrado contra o pilar esquerdo do port�o.
Isto causou grande sensa��o. Houve exclama��es e perguntas. Todos eram de opini�o de que o carro devia ter derrapado na lama e todos diziam:
- � preciso ver se h� algu�m ferido.
Mas abriu-se a porta da frente do carro e por ela saiu um chauffeur que abriu a porta de tr�s.
E pela porta de tr�s saiu um homem alto e direito, com um sobretudo escuro, chap�u de abas reviradas e cara de pessoa importante.
Chovia cada vez mais, mas o homem, sem pressa e sem demora, olhou em sua frente e atravessou o p�tio pausadamente, como se a chuva n�o o molhasse.
Mas j� o criado do guarda-chuva descia a escada a correr e j� o Dono da Casa se precipitava para a entrada.
E o seu bra�o, mal o vulto do desconhecido se desenhou no limiar da porta, fez um largo gesto de acolhimento.
O desconhecido disse o seu nome. Um nome que foi ouvido com prazer. Era o nome dum homem important�ssimo.
- O meu carro derrapou na estrada - disse o Homem Important�ssimo - e esbarou contra o seu port�o.
O Dono da Casa deu imediatamente ordens para remediar o desastre. Mandou entrar o carro para dentro do p�tio e mandou que telefonassem para uma garagem da cidade pr�xima para que viesse de l� um mec�nico para reparar a avaria. Mas a cidade ficava a mais de meia hora de dist�ncia. E por isso o Homem Important�ssimo foi convidado para jantar.
O novo convidado agradou logo a toda a gente. Era um homem moreno, alto, mais depressa magro do que gordo. Tinha
a idade indefin�vel dos homens de neg�cios que est�o no auge da sua carreira. N�o era velho, mas parecia nunca ter sido novo.
- � muito simp�tico - murmurou a prima Ana � prima Mariana.
- Muito - respondeu a prima Mariana. S� o filho do Dono da Casa n�o gostava do novo convidado. Ele reparara que a sombra daquele homem era enorme e enchia os tectos, gesticulando como um grande polvo. Mas isso era uma coisa que s� a crian�a vira.
E, quando o Homem Important�ssimo lhe perguntou como se chamava, ele respondeu s�rio:
- Chamo-me Jo�o.
- E depois perguntou:
- Porque � que a sua sombra � t�o grande?
O convidado n�o respondeu � pergunta da crian�a. Riu e perguntou:
- Quantos anos tens?
- Nove.
- Ainda �s muito novo.
Jo�o tornou a olhar no tecto a sombra desmedida. Depois encarou de novo o homem e disse:
- N�o gosto de si.
O convidado riu mais uma vez e tornou:
- Ainda �s muito novo. Quando cresceres talvez sejas meu amigo.
A presen�a do Homem Important�ssimo deu ao jantar uma grande anima��o. Ele era o centro das aten��es e da conversa e as suas opini�es sensatas produziam o melhor efeito. E quando, j� no fim do jantar, a conversa se concentrou nos problemas deste tempo, todos o ouviram suspensos.
- Este tempo - disse o Homem Importante - � um tempo de crise: estamos dominados pelo materialismo. At� nos campos, onde s� devia reinar a espiritualidade, ouvimos constantemente falar de problemas materiais. Shakespeare, Cam�es, Dante falaram dos problemas da alma humana. Hoje os poetas discutem os sal�rios dos oper�rios e o n�vel de vida dos pa�ses. Ora o homem n�o � s� mat�ria: � esp�rito tamb�m. Mas o nosso tempo s� v� os problemas materiais. � um tempo de revolta. Os homens n�o querem aceitar. Paci�ncia e resigna��o s�o palavras que perderam o sentido. O homem deste tempo quer que o reino de Deus seja deste mundo. � o pecado da revolta. Ora � grave que este esp�rito esteja presente na arte, na literatura, na ci�ncia, na filosofia e nos jornais. Mas o mais grave de tudo, aquilo que verdadeiramente � motivo de esc�ndalo, � vermos que o esp�rito de materialismo e de revolta se infiltra n�o s� entre os cat�licos, mas at� entre os pr�prios padres.
- A Igreja - atalhou o Bispo - n�o pode desinteressar-se do problema social.
- De acordo, de acordo - continuou o Homem Importante. - Eu conhe�o bem a doutrina da Igreja. A Igreja est� no mundo e n�o pode desinteressar-se do mundo. Mas a miss�o da Igreja � transcendente: compete-lhe guiar o homem para o seu destino eterno; "Dai a C�sar o que � de C�sar e dai a Deus o que � de Deus" - estas foram as palavras de Cristo num pa�s ocupado. N�o compete � Igreja empenhar-se na solu��o dos problemas materiais, solu��o ali�s sempre imperfeita, transit�ria e duvidosa.
- O mandamento da caridade � muito claro - disse o Bispo.
- Mas pode ser interpretado de muitas maneiras - continuou o Homem Importante. - E creio que muitos hoje em dia o interpretam mal: a caridade que conhecem � s� material. Dir-se-ia que o homem vive s� de p�o. Veja o que se passou com os padres oper�rios. Mas, mesmo sem irmos t�o longe, j� vemos entre n�s crist�os e at� padres que falam como comunistas.
- Isso � verdade! - atalhou o Dono da Casa, que se lembrava do Abade de Varzim e exultava com o rumo que a conversa ia seguindo.
Mas j� o Homem Importante continuava o seu discurso:
- Este tempo s� p�e a sua esperan�a na solu��o dos problemas materiais. Triste esperan�a. Vi hoje um espect�culo que me encheu de melancolia. Um espect�culo simb�lico. Passei perto duma igreja, que se chama Igreja de Nossa Senhora da Esperan�a. � uma bela obra do s�culo xvii. Mas est� em ru�nas. Os cat�licos de agora discutem os problemas da habita��o mas deixam cair em ru�nas a casa de Deus. Isto, senhor Bispo, vi eu hoje na sua diocese.
O Bispo corou como um culpado e respondeu:
- � verdade, � verdade. A Igreja da Esperan�a est� em ru�nas. Acredite que � uma das minhas grandes preocupa��es. Preciso de arranjar um rem�dio. Mas para isso terei de contar com a ajuda daqueles que realmente me podem ajudar.
- De facto, de facto - disse o Homem Importante. - Devemos a todo o custo conservar a heran�a do passado. A desordem reina no Mundo. Mas aqui, no nosso pa�s, a ordem consegue ainda vencer a desordem.
- Isso � verdade! - disse a prima Concei��o.
A prima Concei��o estava sentada ao lado do Homem Importante.
Estava maravilhada. O seu cora��o acolhia com entusiasmo cada palavra que ele dizia. Ela tinha sessenta anos, era vi�va e a maior propriet�ria da regi�o. A sua piedade tinha um car�cter combativo e o seu verdadeiro Evangelho era o Di�rio de Not�cias. N�o tinha filhos e era a organizadora oficial das festas de caridade. O seu nome vinha � cabe�a das listas de todas as comiss�es de benefic�ncia. E era a presidente da obra dos tricots. Uma vez por semana as benfeitoras dessa obra reuniam-se em casa da prima Concei��o, e, enquanto falavam do pr�ximo e faziam tricots para os pobres, a tarde corria-lhes leve, apenas interrompida por um ch� t�o abundante que teria chegado para alimentar durante uma semana os nove filhos esfaimados do Pedro da Serra.
A prima Concei��o come�ou a explicar ao Homem Importante o que era a obra transcendente dos tricots. O Homem Importante aprovava. A conversa era amena.
O Dono da Casa sentia-se feliz. O discurso do novo convidado viera ao seu encontro.
As palavras que ele dissera eram exactamente as palavras que ele precisava de ouvir naquele momento; agora j� n�o sentia hesita��es, nem d�'vidas, nem escr�pulos. Agora a sua decis�o estava tomada: pediria ao Bispo no fim do jantar que mudasse para outra freguesia o Abade de Varzim.
E, contente, com a alma em paz, com a mente liberta de incertezas, ele olhou feliz em sua roda.
A cepa da vinha ardia no fog�o, a luz el�ctrica presa �s molduras iluminava as perdizes, as uvas e os lim�es das naturezas mortas, as velas brilhavam na mesa e a penumbra enrolava-se nos cantos altos do tecto. O Dono da Casa gostava de estar � mesa com visitas. Nada lhe agradava mais
do que dar de comer a quem n�o tem fome. Sentia-se reinar sobre as loi�as e sobre os convidados. E nunca se sentira t�o feliz como naquele dia. S�lido era o peso dos talheres de prata. S�lido era o seu reino. O Abade de Varzim era uma pobre sombra, um fantasma perdido entre pedintes e fragas, irreal e abstracto como uma ideia que n�o � deste mundo.
O jantar estava a chegar ao fim. A conversa agora era geral e subira meio tom. Os criados davam muitas voltas � mesa.
Um pouco entontecido com a rapidez das palavras, o Bispo olhou a penumbra do tecto. Depois, baixou o olhar e viu em sua frente o p�o e o vinho pousados sobre a mesa.
A seguir ao jantar, o Dono da Casa conduziu o Bispo e o Homem Importante para uma pequena sala, onde se sentaram os tr�s e tomaram caf�.
O Homem Importante falou novamente na Igreja de Nossa Senhora da Esperan�a.
O Bispo contou que a igreja tinha sido constru�da por um antepassado do Dono da Casa e exp�s o problema do tecto.
O Homem Importante ofereceu imediatamente cinquenta contos, e o Dono da Casa ofereceu os outros cinquenta contos. Depois o Dono da Casa exp�s ao Bispo o problema do Padre de Varzim. O Homem Importante apoiou as raz�es do Dono da Casa. O Bispo concordou que a atitude do padre novo na quest�o do caseiro fora uma atitude imprudente. O Dono da Casa continuou a acusa��o e o Homem Importante continuou a argumenta��o. O Bispo prometeu que mudaria o p�roco da aldeia para outro lugar.
O Dono da Casa entregou um cheque e o Homem Importante entregou outro cheque.
O Abade de Varzim tinha sido vendido por um tecto.
Ningu�m falou em troca nem em venda. Ningu�m disse palavras chocantes. Mas quando se levantaram os tr�s e se dirigiram para junto dos outros convidados para a sala grande, o esp�rito do Bispo estava pesado de confus�o. Ele era como um homem que, envolvido num neg�cio que n�o entende bem e convencido por um h�bil advogado, compra o que n�o quer comprar e vende o que n�o quer vender.
E Deus no C�u teve d� daquele Bispo porque ele estava s� e perdido e n�o sabia lutar contra os h�beis discursos dos donos do Mundo.
UM rel�gio na parede bateu dez horas e um pobre bateu duas pancadas na porta da cozinha.
Foi a cozinheira Gertrudes quem abriu. Olhou o homem sem entusiasmo. N�o o conhecia, mas nem era preciso perguntar-lhe quem era: era mais um pobre.
A cozinheira teve vontade de lhe dizer que ele vinha tarde de mais. O jantar dera-lhe muito trabalho e ainda lhe faltava lavar a l�i�a e arrumar a cozinha. Mas ela tinha ordem de dar de comer a qualquer pobre que batesse � porta enquanto houvesse luz acesa na casa.
Por isso disse:
- Entre.
E acrescentou:
- N�o suje o ch�o.
Pedido imposs�vel de satisfazer. Os trapos encharcados do mendigo escorriam �gua. Poisados no ch�o de tijoleira, os seus p�s descal�os estavam molhados e cobertos de lama.
- Boa noite - disse o homem.
-Boa noite - respondeu Joana, a criada velha.
Joana estava sentada junto ao lume. Tinha um xaile preto pelas costas e os seus olhos eram dum azul sem cor, como se o tempo os tivesse desbotado.
Gertrudes n�o respondeu �s boas-noites. Olhava ostensivamente a �gua que escorria dos farrapos do mendigo.
- Venha secar-se aqui ao p� do lume - disse Joana.
Irada, Gertrudes virou-se para a criada velha.
- Voce� n�o v� que ele me vai sujar a cozinha toda, que me vai encher o ch�o todo com pegadas de lama?
Depois voltou-se para o homem, apontou com o dedo o banco que estava em frente da mesa de pedra dos pobres e disse:
- O seu lugar � ali.
O homem dirigiu-se para o lugar que a cozinheira indicara. Cada um dos seus passos ia ficando desenhado no tijolo do ch�o.
Gertrudes poisou um olhar cauteloso nos talheres e nas travessas de prata que estavam amontoados na banca de pedra rosada. Depois, vendo que entre o mendigo e as pratas havia uma dist�ncia suficiente, disse:
- Sente-se.
O homem sentou-se e ela acrescentou:
- Vou aquecer-lhe a sopa.
Pegou num grosso panel�o que estava posto de lado e colocou-o em cima do lume do fog�o.
Em seguida cortou um peda�o de p�o, encheu um copo com vinho e poisou o p�o e o vinho defronte do homem.
Ent�o ele disse:
- Preciso de falar com o Dono da Casa.
- A esmola � ao s�bado - respondeu Gertrudes.
- Mas eu preciso de falar hoje com o Dono da Casa - tornou o homem.
- Hoje n�o � s�bado. E al�m de n�o ser s�bado � tarde. E al�m de ser tarde temos visitas. Hoje temos c� o Bispo e al�m do Bispo temos um senhor ainda mais importante do que o Bispo.
- Mas eu preciso de falar esta noite com o Dono da Casa. � importante.
- As coisas importantes s�o para as pessoas importantes - respondeu Gertrudes. - Tenha juizo, homem. Voc� quer que o Dono da Casa venha aqui falar consigo? Nem pense nisso!
L� fora a tempestade parecia aumentar.
A porta que dava para o corredor abriu-se e entraram o criado e a criada de sala. O criado trazia uma bandeja com x�caras de caf�, a criada uma bandeja com copos.
- Boa noite - disse o homem.
- Boa noite - responderam eles.
Poisaram as bandejas e a cozinheira come�ou logo a lavar os copos.
- Bem - disse o criado, olhando o pobre -, temos muitas visitas hoje. Visitas na sala e visitas na cozinha.
O homem p�s-se em p�, avan�ou um passo para o criado e disse:
-Oi�a...
- N�o saia de onde est� - atalhou a cozinheira. - Olhe que me suja a cozinha toda.
O homem ficou onde estava. Mas, voltado para o criado, continuou:
- Oi�a, se faz favor, oi�a! Preciso de falar com o Dono da Casa. V� � sala e pe�a-lhe que venha aqui.
- Eu j� lhe disse - explicou Gertrudes ao criado - que hoje n�o � s�bado e que temos visitas. Mas ele n�o compreende uma coisa t�o simples.
- Homem - disse o criado, aproximando-se do pobre -, voc� j� viu um senhor deixar as visitas na sala para vir � cozinha falar com um mendigo? Tenha paci�ncia, n�o pode ser. O mundo � como �. Temos de ter paci�ncia.
O homem voltou-se para a criada de sala e pediu:
- Oi�a, pe�o-lhe a si: v� l� acima e diga ao Dono da Casa que preciso de falar com ele hoje mesmo.
- Tenho ordem de nunca ir dar recados � sala quando h� visitas. Cada coisa tem o seu lugar.
Ao longe come�ava a trovejar.
Gertrudes tirou um prato do arm�rio, mergulhou a concha no panel�o, deitou a sopa no prato.
Depois aproximou-se da mesa dos pobres, poisou o prato e disse ao homem:
- Sente-se e coma.
O homem sentou-se com ar de cansa�o, mas n�o come�ou a comer.
A porta do corredor tornou a abrir-se e entrou uma das criadas de quartos.
Vinha mal-humorada.
O homem disse:
-Boa noite.
Ela respondeu por cima dos ombros e perguntou � criada de mesa:
- Onde p�s voc� as chaves do arm�rio da roupa?
- Ficaram no quarto de engomar - respondeu a outra criada.
A criada de quarto suspirou, sentou-se num banco e resmungou:
- A esta hora ainda me aparecem trabalhos.
- Ent�o que h�? - perguntou a cozinheira.
- H� que convidaram o h�spede novo, o Senhor Important�ssimo, para dormir c�.
E a esta hora da noite ainda tenho de ir arranjar o quarto e fazer a cama.
- Deve realmente ser uma pessoa importante - comentou Gertrudes.
- Isso v�-se que � - disse a criada de mesa. - Quando fala parece dono de tudo.
- Oi�a, se faz favor - disse o pobre, levantando-se e avan�ando um passo em direc��o � criada de quarto.
Mas a cozinheira interrompeu-o outra vez.
- Fique onde est�, n�o me suje mais a cozinha.
Depois voltou-se para a criada de quartos e tornou a explicar:
- Quer falar, hoje, agora, com o Dono da Casa. J� lhe expliquei que � imposs�vel, mas n�o entende.
- Oi�a! - disse o homem, virado para a criada de quarto. - Oi�a o favor que lhe pe�o: v� voc� chamar o Dono da Casa.
- Sou criada dos quartos, n�o tenho ordem de ir � sala dar recados. Isso n�o � comigo.
A trovoada agora parecia estar perto. Um rel�mpago azulou os vidros e o trov�o ouviu-se para o lado da serra. Todos se benzeram.
- Ai dos pobres! - disse no seu lugar a velha criada Joana. - H� sempre uma raz�o para lhes dizerem que n�o. Os pobres t�m fome e frio mas sobretudo est�o s�s. Se eu fosse nova ia l� acima pedir por ti. Mas estou velha e j� n�o posso subir a escada.
- Se voc� l� fosse ningu�m fazia caso - disse duramente Gertrudes.
E voltada para o homem continuou:
- Escusa de pedir mais. J� viu que ningu�m o atende.
Um novo rel�mpago mostrou l� fora o jardim l�vido e transfigurado e logo um trov�o se ouviu, estremecendo a casa desde os seus fundamentos.
A luz el�ctrica apagou-se. Os criados benzeram-se na escurid�o onde apenas brilhavam as brasas do lume.
R�pidamente Gertrudes riscou um f�sforo e acendeu duas velas.
- D�-me uma - disse o criado -, tenho de ir l� acima depressa acender os casti�ais.
A cozinheira deu-lhe uma das velas e o criado saiu seguido pela criada de sala e pela criada de quartos.
Gertrudes tirou dum arm�rio um casti�al pequeno onde espetou a vela. Depois colocou o casti�al em cima da grande mesa que estava no meio da cozinha.
A chuva batia desesperadamente nas vidra�as. A trovoada era cada vez mais forte. A paisagem azul e fulminada surgia nas janelas e logo desaparecia bebida pela treva. O rolar dos trov�es acordava a imensid�o.
- Valha-nos Santa B�rbara! - disse a velha Joana. - Temos a trovoada em cima de n�s.
Gertrudes abriu uma gaveta.
- Que quer voc�? - perguntou a velha.
- Vou queimar alecrim. Dizem que � bom - respondeu a cozinheira.
E tirou da gaveta um ramo seco que atirou para o lume.
Mas de novo o clar�o do rel�mpago atravessou os vidros e de novo o trov�o fez estremecer a casa.
- Vamos rezar a Magn�fica - disse Joana.
- Reze voc�, que eu n�o sei: ja n�o s�o coisas do meu tempo - respondeu Gertrudes.
Ent�o atrav�s do bater da chuva e do rolar da tempestade ergueu-se do fundo da cozinha, velha, cansada e tr�mula a voz de Joana:
A minha alma engrandece ao Senhor.
O meu esp�rito alegra-se em extremo em Deus meu Salvador.
Pois Ele p�s os olhos na baixeza da sua escrava e de hoje em diante todas as gera��es me chamar�o bem-aventurada.
Porque me fez grandes coisas o que � poderoso; e santo � o Seu Nome;
E a sua miseric�rdia se estende de gera��o em gera��o sobre os que O temem.
De s�bito Joana calou-se.
- Acabou? - perguntou Gertrudes.,
- N�o, n�o acabou; mas estou velha, esqueci o resto.
Por�m, do outro canto da cozinha, a voz do homem sentado � mesa dos pobres ergueu-se e continuou:
Ele manifestou o poder do seu bra�o e dissipou os que no fundo do seu cora��o formavam altivos pensamentos.
Dep�s do trono os poderosos e elevou os humildes.
Encheu de bens os que tinham fome e despediu vazios os que eram ricos.
Jo�o, o filho do Dono da Casa, estava no corredor quando a luz se apagou. Tinha acabado de dar as boas-noites a todos na sala e ia para o seu quarto.
Ficou sozinho na escurid�o cortada de rel�mpagos. Encostado � parede via l� fora surgir da treva um jardim azulado, desconhecido e fant�stico. A beleza, o abismo e o clamor da tempestade tinham-no suspenso. Escutou im�vel durante algum tempo. Depois come�ou a ter medo. Sentiu-se s� no meio da tempestade. Quis correr para a sala mas lembrou-se da sombra enorme do h�spede. Ent�o o seu medo cresceu. N�o ousava ir, em plena escurid�o, ao encontro do convidado desconhecido. Encostou-se mais � parede e gritou. No fundo do corredor apareceu uma luz.
Era o criado Ant�nio com a vela e as duas criadas. Jo�o correu para eles e seguiu-os.
Os criados entraram para a copa que ficava ao lado da casa de jantar.
Ant�nio acendeu dois grandes casti�ais e disse:
- N�o me lembro de uma trovoada como esta.
-E eu n�o me lembro de um pobre pedinte a querer que o Dono da Casa o venha ver � cozinha - disse a criada de sala.
- O que � que foi? - perguntou Jo�o.
- � um pobre que est� na cozinha e quer que chamem o seu pai para falar com ele.
- E porque � que n�o chamaram?
- Porque tudo tem o seu lugar e a sua ocasi�o.
- Como � que ele �?
- � como os outros pobres, � como a gente de Varzim.
- D�-me uma vela - disse Jo�o -, eu quero ir v�-lo.
A criada deu-lhe um casti�al pequeno com uma vela e Jo�o saiu.
Quando abriu a porta da cozinha, viu, sentado � mesa dos pobres, um homem de rosto jovem e cansado. Era igual � gente de Varzim, tal como dissera Joana, a criada de sala. Pareceu a Jo�o que o conhecia h� muito tempo.
Erguendo a vela, caminhou para o homem e, quando chegou junto dele, disse baixo e devagar:
- Boa noite.
- Boa noite - respondeu o homem.
Houve um momento de sil�ncio. A trovoada parecia ter-se afastado e acabara de chover.
- Acabou a trovoada - disse a crian�a.
- Acabou.
- �s tu o homem que mandou chamar o meu pai?
-Sou eu.
- Queres ver o meu pai?
- Quero que o teu pai me veja.
- ComO � que te chamas?
- Diz ao teu pai que venho da parte do Padre de Varzim.
De novo Jo�o olhou o homem em sil�ncio. Ergueu um pouco a vela para o ver melhor. Disse:
- Vou chamar o meu pai.
Quando Jo�o chegou ao alto da escada, a luz el�ctrica acendeu-se de repente.
O rapazinho Soprou a vela, pousou o
casti�al numa mesa e dirigiu-se para a
sala.
Entrou e ergueu os olhos: a sombra do Senhor Importante continuava a trepar pelas paredes e a ocupar todo o tecto. Dir-se-ia que ela dominava inteiramente aquela reuni�o de pessoas.
E ao canto do fog�o, gozando o doce calor da cepa da vinha, o dono da sombra desmedida conversava com o Bispo e com o Dono da Casa.
- Pai - disse Jo�o -, na cozinha est� um pobre que quer falar consigo.
- Agora, n�o. Diz-lhe que venha no s�bado.
- Mas tem que ser hoje. � muito importante.
- Porque � que � importante?
Jo�o n�o sabia responder.
- Porque n�o o vai ver? - perguntou o Bispo ao Dono da Casa. - Um pobre vem sempre da parte de Deus.
-O homem que est� l� em baixo-explicou Jo�o - diz que vem da parte do Padre de Varzim.
O Dono da Casa ficou rubro. Fitou o filho e disse, pronunciando claramente e secamente as palavras:
- Diz-lhe que o Padre de Varzim j� sabe que s� recebo os pobres ao s�bado. O homem que venha no s�bado.
- Pai - tornou a pedir Jo�o -, venha v�-lo agora.
- N�o - respondeu o Dono da Casa. Jo�o saiu da sala e voltou � cozinha.
Durante um momento fitou o pobre em sil�ncio. A chuva tinha cessado. S� se ouvia o barulho de Gertrudes a lavar panelas. Joana no seu canto fitava o lume com o olhar ausente e desbotado.
Por fim Jo�o disse:
- O meu pai n�o quis vir. Eu pedi, mas ele n�o quis vir.
- Obrigado - disse o homem.
- Quando te torno a ver? - perguntou Jo�o.
- Vem ver-me a Varzim - respondeu o homem.
Depois levantou-se, deu as boas-noites e saiu. Jo�o viu-o desaparecer na escurid�o, enquanto pela porta aberta entrava um perfume verde de jardim molhado.
Gertrudes aproximou-se da mesa dos pobres para levantar o copo, o talher e o prato.
- Olhem - exclamou ela-, o homem n�o tocou na comida!
- Ah! - disse a velha Joana, levantando a cabe�a como se acordasse de repente -, tamb�m Deus n�o recebeu as ofertas de Caim.
- Que hist�ria � essa? - perguntou a cozinheira.
- � uma hist�ria do princ�pio do Mundo - disse a velha. - � a hist�ria dos filhos de Ad�o e Eva. Chamavam-se Caim e Abel. E Caim matou Abel, seu irm�o.
MEIA hora depois, o Bispo, dentro do
seu autom�vel, rolava na estrada. Ia triste e com a alma pesada. Pensava no Abade de Varzim.
O Dono da Casa e o Homem Importante tinham-no entontecido com as suas boas maneiras e os seus argumentos l�gicos. Ele estava velho. J� n�o tinha intelig�ncia nem for�a para lutar. Estava cansado do mundo. Os seus amigos eram os seus inimigos; e os seus inimigos eram mais fortes do que ele. A sua mente estava obscurecida. Sentia-se s� entre os homens e Deus parecia-lhe infinitamente oculto e velado. E a estrada que os far�is arrancavam das trevas, desolada entre fileiras de �rvores despidas, coberta de lama, despojada pelo Inverno, escurecida pela noite, pareceu-lhe a pr�pria imagem da sua alma.
O carro saiu das curvas da serra e entrou numa recta.
Ao longe os far�is iluminaram um vulto que seguia pela beira da estrada. O vulto dum homem que caminhava s�zinho.
Quando o carro passou junto dele, o Bispo distinguiu a figura dum mendigo.
- Pare - disse ele ao chauffeur. - Vamos levar este homem.
O Bispo abriu o vidro e chamou o mendigo:
- Para onde vais?
O homem aproximou-se e respondeu:
- Vou para casa do Padre de Varzim.
- Ah! Vens da Casa Grande?
- Venho.
- �s o homem que pediu para falar ao Dono da Casa?
- Sou.
O Bispo olhou-o. Era um homem igual a muitos outros. Lembrava a gente de Varzim. Tinha lama nos trapos e a escrita da fome na cara. Nas m�os havia um gesto de paci�ncia. Um gesto muito antigo de paci�ncia. E de repente pareceu ao velho Bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento, toda a solid�o, o olhavam de frente no rosto daquele homem. Coisa dif�cil de olhar de frente.
Por isso o Bispo baixou a cabe�a enquanto dizia:
- Varzim � longe e o caminho para l�
� dif�cil. O ch�o est� transformado em
lama e a enxurrada encheu de pedregulhos
os carreiros estreitos da serra. Vem comigo
e fica esta noite em minha casa.
O mendigo n�o respondeu.
O Bispo levantou a cabe�a, mas na sua frente viu s� a noite.
- Homem, onde est�s? - chamou ele.
Mas ningu�m respondeu.
Ent�o o velho prelado saiu do seu carro. Olhou e escutou: na estrada e nos campos n�o avistou nenhum vulto. Nem ouviu o menor barulho de passos. Mandou ao chauffeur que procurasse o mendigo. Mas o chauffeur tamb�m n�o o encontrou. Os p�s do Bispo estavam agora enterrados na lama. A Lua surgiu entre as nuvens. Mas o luar mostrava apenas um descampado vazio, onde ningu�m se afastava. O sil�ncio estava atento e suspenso.
O Bispo tapou a cara com as m�os. Agora tentava reconhecer dentro de si mesmo o homem que encontrara. Assim esteve algum tempo. Depois destapou a cara e murmurou:
- Aquilo que eu fiz tem de ser desfeito.
Subiu outra vez para dentro do carro e disse ao chauffeur:
- Temos de voltar para tr�s.
Quando chegaram � Casa Grande as luzes ainda estavam acesas. Mas o barulho do "claxon" ao port�o, �quela hora, causou grande alvoro�o.
Um criado desceu a correr a escada e veio abrir. A chave deu penosamente a volta na fechadura e as portas de ferro gemeram nos seus gonzos. O autom�vel do Bispo entrou, atravessou o p�tio e veio parar em frente das escadas de pedra.
Curiosa de saber quem seria aquela visita do meio da noite, a Dona da Casa espreitou entre as cortinas atrav�s do vidro.
- � outra vez o Bispo! - exclamou ela, espantada.
E foi prevenir o marido.
Tr�pego, tr�pego, o velho Bispo subia a escada. Subia com pesados passos, costas curvadas e a m�o tr�mula apoiada ao corrim�o de pedra e musgo. Trazia os sapatos sujos de lama.
Quando chegou ao cimo, o marido e a mulher j� o esperavam na entrada.
O brilho da noite fazia luzir os azulejos azuis.
- Preciso de lhe falar - disse o Bispo ao Dono da Casa.
- Est� frio aqui. � melhor entrar para a sala.
Na sala as cadeiras pareciam tesas e espantadas e o brilho da hora tardia boiava nos espelhos s�bitamente acordados pela luz. O Bispo n�o se quis sentar e ficou de p� junto duma mesa.
- N�o vale a pena sentar-me, n�o me demoro, o que tenho a dizer diz-se depressa.
Mas n�o sabia como come�ar.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou o Dono da Casa.
- Aconteceu.
Houve um novo sil�ncio. Depois, devagar, o Bispo disse:
- N�o sei contar o que vi. Hoje, esta noite, foi acusado um homem justo. Mas o pr�prio Deus veio ser sua testemunha.
- N�o compreendo - disse o Dono da Casa.
- Hoje, aqui, o padre foi acusado.
- E Deus decidiu testemunhar por ele?
-� verdade.
- Desculpe, senhor Bispo, desculpe que eu n�o possa acreditar.
O Bispo olhou o Dono da Casa, o dono dos quadros, das pratas, dos campos, das vinhas, dos pinhais e da serra. E viu que era como se todas as coisas que aquele homem possu�a tivessem formado � roda dele um espesso muro que o separava da realidade. Ele estava fechado na certeza de si mesmo.
E, com tristeza, o Bispo respondeu:
- Eu sei que n�o pode acreditar.
Depois, devagar, continuou:
- O padre de Varzim n�o foi s� acusado. Foi tamb�m vendido. Vendido pelo telhado novo de Varzim de uma igreja. Da Igreja de Senhora da Esperan�a.
O Dono da Casa quase n�o acreditou nas palavras que ouvia. Pois ele n�o tinha nenhuma inten��o de se confessar. Era mesmo como se ele tivesse perdido ou rejeitado h� muito tempo a possibilidade de se reconhecer a si mesmo. Por isso, respondeu seco, dominando a sua c�lera:
- N�o compreendo porque � que disse vendido. N�o houve nenhuma venda. Dei uma esmola e fiz, de acordo com a minha consci�ncia, um pedido.
- Mas eu - respondeu o Bispo confessando-se amargamente - prometi mudar para outro lugar o padre novo. Fiz uma promessa e recebi dinheiro. N�o posso cumprir a promessa e quero entregar a quem mo deu este dinheiro.
E a m�o tr�mula e enrugada poisou os dois cheques em cima da mesa.
O Dono da Casa olhou o gesto com um misto de furor, espanto e indigna��o.
O Bispo, aquele prelado t�o polido, estava a trair as regras do jogo. �s regras da boa educa��o respondia com problemas de consci�ncia. Acusava-o a ele, Dono da Casa, de fazer neg�cios inconfess�veis e confusos. Acusava-o em palavras claras, inconfund�veis. Nem ao menos se exprimia indirectamente e por meio de alus�es. E, no fundo da sua alma, o Dono da Casa teve grande vontade de receber o dinheiro e de dar ao Bispo uma resposta crua. Mas lembrou-se de que n�o convinha ter quest�es com o Bispo, lembrou-se da sua fama, da sua reputa��o e da boa educa��o que tinha recebido em pequeno. Por isso conteve-se e disse com alguma pompa:
- N�o compreendo. O dinheiro que dei n�o tem nada a ver com o Padre de Varzim. S�o duas quest�es completamente diferentes. Vossa Excel�ncia Reverend�ssima est� a fazer uma confus�o lament�vel. Dei uma esmola e nunca torno a receber o que dou. Mas este assunto n�o pode ser resolvido s� por n�s os dois. � preciso sabermos qual � a opini�o do meu h�spede.
O Dono da Casa tocou pelo criado e mandou-o chamar o Homem Importante.
Mas o criado Ant�nio percorreu em v�o a casa. O Homem Importante, o h�spede imprevisto da noite, tinha desaparecido. N�o estava nem no quarto nem nas salas, nem nas escadas, nem nos corredores.
O seu carro e o seu chauffeur tinham-se volatilizado, e at� o sulco das rodas do seu carro se tinham apagado no saibro molhado do p�tio.
Estas not�cias perturbaram o Dono da Casa. Deixou a mulher na sala a fazer companhia ao Bispo e foi ele pr�prio, � frente dos criados, passar uma revista � casa e aos jardins. Subiram ao s�t�o, desceram � cave, espreitaram no po�o. Ant�nio espreitou atr�s das cortinas; Mariana, a criada de quartos, espreitou debaixo da cama. O Dono da Casa espreitou atr�s dos arbustos. Mas o desaparecido n�o apareceu.
Finalmente, o Bispo, o Dono e a Dona da Casa, o criado Ant�nio, J�lia, a criada da sala, e Mariana, a criada dos quartos, reunidos pelo espanto, comentavam na sala
o sucedido. O Dono da Casa pediu ao Bispo que lhe desculpasse a estranheza da situa��o. N�o havia explica��o poss�vel. Instalara-se no ar um pesado mal-estar. A Dona da Casa estremecia quando as madeiras estalavam e l� fora as sombras do jardim tinham tomado um ar suspeito.
Finalmente, falou o Bispo:
- � tarde. Amanh� pensaremos melhor. O seu h�spede vai com certeza aparecer ou dar alguma not�cia. Vou-me retirar. Deixo-lhe aqui os dois cheques.
Mas quando olharam para a mesa s� viram um cheque. Era o do Dono da Casa.
O outro, o cheque do Homem Importante, tinha desaparecido.
Os presentes olharam-se transtornados. M�os e olhares percorreram nervosamente a sala � procura do pequeno papel.
- V� debaixo da mesa - disse a dona da Casa ao criado.
Ant�nio p�s-se de gatas e mergulhou de baixo da colcha de seda vermelha que cobria a mesa. Passado um instante, no gesto dum fot�grafo antigo retirando a cabe�a dos panos da sua m�quina, reapareceu e disse:
- N�o est�.
- Era nominal ou ao portador? - perguntou o Dono da Casa ao Bispo.
- N�o sei, n�o olhei - confessou o Bispo, atrapalhado.
A confus�o aumentava.
- Tenho de prevenir o banco - disse o' Dono da Casa.-Vossa Excel�ncia ReVerend�ssima viu que banco era?
- N�o, n�o vi.
A complica��o crescia.
Mas o Bispo estava agora muito cansado dos neg�cios do mundo.
- Vou deixar o assunto nas suas m�os - disse ele ao Dono da Casa. - A noite h�-de trazer conselho. E o dia de amanh� deve trazer algum esclarecimento. Vou-me' retirar.
Tornou a despedir-se e saiu.
Depois da sa�da do Bispo, o Dono da Casa p�s os criados � procura do cheque. Levantaram-se os tapetes, as almofadas dos sof�s, as revistas que estavam em cima da mesa. Mas, ao fim de meia hora, o cheque ainda n�o tinha aparecido.
Finalmente, o patr�o disse aos criados:
- Vou-me deitar. Continuem a procurar; o cheque n�o pode ter desaparecido. Boa noite.
Saiu, e Ant�nio, J�lia e Mariana olharam-se com des�nimo.
- Fiquem voc�s � procura aqui, eu vou procurar nos corredores. Talvez o cheque tenha voado com as correntes de ar - disse o criado Ant�nio.
- Ou talvez o Diabo o tenha levado! - disse a criada J�lia.
Ant�nio deitou um olhar sem esperan�a ao ch�o dos corredores e dirigiu-se � cozinha para desabafar com Gertrudes.
- Mas, afinal - perguntou a cozinheira-, quem era este senhor, t�o importante?
- N�o sei-respondeu o criado-, s� sei que parece que entrou o Diabo nesta casa.
- Quem sabe! - disse a velha Joana, pondo no lume o seu olhar cansado. - Quem sabe! Talvez ele fosse realmente
o Diabo! Nos tempos que correm pode bem ser.
- Nos tempos que correm - disse a cozinheira - j� n�o h� Deus nem Diabo. H� s� pobres e ricos. E salve-se quem puder.
E, pegando num pano, Gertrudes limpou no ch�o de tijolo as pegadas do mendigo.
A Viagem
A estrada ia entre campos e ao longe, �s vezes, viam-se serras. Era o princ�pio de Setembro e a manh� estendia-se atrav�s da terra, vasta de luz e plenitude. Todas as coisas pareciam acesas.
E, dentro do carro que os levava, a mulher disse ao homem:
- � o meio da vida.
Atrav�s dos vidros as coisas fugiam para tr�s. As casas, as pontes, as serras, as aldeias, as �rvores e os rios fugiam e pareciam dev'orados sucessivamente. Era como se a pr�pria estrada os engolisse.
Surgiu uma encruzilhada. A� viraram � direita. E seguiram.
- Devemos estar a chegar - disse o homem.
E continuaram.
�rvores, campos, casas, pontes, serras, rios, fugiam para tr�s, escorregavam para longe.
A mulher olhou inquieta em sua volta e disse:
- Devemos estar enganados, Devemos ter vindo por um caminho errado.
- Deve ter sido na encruzilhada - disse o homem, parando o carro. - Vir�mos para o Poente, dev�amos ter virado para o Nascente. Agora temos de voltar at� � encruzilhada.
A mulher inclinou a cabe�a para tr�s e viu quanto o Sol j� subira no c�u e como as coisas estavam a perder devagar a sua sombra. Viu tamb�m que o orvalho j� secara nas ervas da beira da estrada.
- Vamos - disse ela.
O homem virou o volante, o carro deu meia volta na estrada e voltaram para tr�s.
A mulher, cansada, fechou um pouco os olhos, encostou a cabe�a nas costas do banco e p�s-se a imaginar o lugar para onde iam. Era um lugar onde nunca tinham ido. Nem conheciam ningu�m que l� tivesse estado. S� o conheciam do mapa e de nome. Dizia-se que era um lugar maravilhoso.
Ela pensou que a casa devia ser silenciosa, cheia de paz e branca, rodeada de roseiras; e pensou que o jardim devia ser grande e verde, percorrido de murm�rios. E algu�m lhe tinha dito que no jardim passava um rio claro, brilhante, transparente. No fundo do rio via-se a areia e viam-se as pequenas pedras limpas e polidas. Nas margens crescia erva fina, misturada com trevo. E �rvores de copa redonda, carregadas de frutos, cresciam nesse prado.
- Logo que chegarmos - disse ela -, vamos tomar banho no rio.
- Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva-disse o homem sempre com os olhos fitos na estrada.
E ela imaginou com sede a �gua clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois lado a lado, � sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presen�a. Ali haveria sil�ncio para escutar o murm�rio claro do rio. Sil�ncio para dizer graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Atrav�s dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para tr�s.
-Devemos estar a chegar � encruzilhada - disse o homem.
E seguiram.
Rios, campos, pinhais e pontes. E meia hora passou.
- J� dev�amos ter chegado � encruzilhada - disse o homem.
- Com certeza nos engan�mos no caminho - disse a mulher.
- N�o nos podemos ter enganado -disse o homem - n�o havia outro caminho.
E seguiram.
- A encruzilhada j� devia ter aparecido - disse o homem.
- O que � que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Seguir em frente.
- Mas estamos a perder-nos.
- N�o vejo outro caminho - disse o homem.
E seguiram.
Encontraram rios, campos, montes; atravessaram rios, campos, montes; perderam rios, campos, montes; as paisagens fugiam. puxadas para tr�s.
- Estamos a perder-nos cada vez mais - disse a mulher.
- Mas onde h� outro caminho? - perguntou o homem.
E parou o carro.
� esquerda havia uma grande plan�cie vazia; � direita uma colina coberta de �rvores.
- Vamos subir ao alto da colina - disse o homem. - De l� devem avistar-se todos os caminhos em redor.
Subiram ao alto da colina e n�o avistaram estradas; mas avistaram um cavador a cavar numa horta.
Caminharam para ele e perguntaram-lhe se sabia o caminho para a encruzilhada.
- Sei - disse o cavador -, � para al�m.
- Podes guiar-nos at� l�?
- Posso, mas primeiro tenho de acabar este rego para a �gua passar; demoro pouco.
- N�s esperamos - disse o homem.
- Tenho sede - disse a mulher.
- Al�m, atr�s dos penedos - disse o cavador, apontando - H� l� uma fonte. Ide l� beber enquanto eu acabo o rego.
Caminharam na direc��o que o cavador apontara, e atr�s dos penedos encontraram a fonte.
A fonte ca�a do alto e espetava-se na terra, direita, limpa e brilhante como uma espada.
Ali beberam e ficaram com a cara e os cabelos todos salpicados de gotas, riram de alegria na frescura da �gua, esqueceram o cansa�o, o caminho perdido, a viagem. A mulher sentou-se numa pedra coberta de musgo, o homem sentou-se ao seu lado e os dois permaneceram alguns momentos de m�os dadas, im�veis e calados.
Depois, um p�ssaro poisou perto da fonte e o homem disse:
- Temos de ir.
Levantaram-se e tomaram o caminho da horta, � procura do cavador.
Mas quando chegaram � horta o cavador n�o estava l�. Viram a �gua a correr nos regos; viram a salsa e a hortel� crescendo lado a lado; mas n�o viram o cavador.
- N�o quis esperar - disse o homem.
- Porque � que nos mentiu?
- Talvez n�o quissesse mentir. Talvez n�o pudesse esperar. Ou talvez se esquecesse de n�s.
- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar para o carro e vamos seguir na direc��o que ele h� pouco apontou.
Subiram e desceram a colina em direc��o ao carro. mas quando chegaram � estrada o carro tinha desaparecido.
- Devemos estar enganados; devemos ter vindo noutra direc��o.
- Ou algu�m nos roubou o carro.
- Onde estar� o cavador?
-Talvez tenha ido � fonte � nossa procura.
- Temos de encontrar algu�m - disse a mulher.
- Vamos outra vez � fonte; com certeza o cavador foi l� ter.
E puseram-se de novo a caminho. Subiram e desceram a colina; atravessaram a horta. Cheirava a hortel� e a terra regada. Mas do outro lado dos penedos n�o encontraram a fonte.
- N�o era aqui - disse o homem.
- Era aqui - disse a mulher. - Era aqui. Tenho medo. Vamos voltar depressa para a estrada.
E foram pela estrada � procura do carro.
- Que vamos fazer? - perguntou a mulher.
- Algu�m h�-de passar - respondeu o homem.
Seguiram pela estrada. O Sol continuava a subir no c�u.
- Estou cansada - disse a mulher.
- Quando chegarmos � terra para onde vamos, descansar�s, estendida na relva, � sombra das �rvores e dos frutos.
- Temos de encontrar depressa o caminho - disse a mulher.
Ao longe, entre pinhais, surgiu uma casa.
- Vamos at� l� - disse o homem. - Talvez l� esteja algu�m que nos saiba ensinar o caminho.
Havia uma ligeira brisa e os pinheiros ondulavam.
Bateram � porta da casa. Ningu�m respondeu. Escutaram e pareceu-lhes ouvir vozes. Tornaram a bater. Ningu�m respondeu. Esperaram. Bateram de novo, com for�a, espa�adamente, repetidamente, devagar. As pancadas ressoaram. Ningu�m respondeu.
Ent�o o homem avan�ou o ombro direito e arrombou a porta. Mas a casa estava vazia.
Era uma pequena casa de camponeses. Uma casa nua, onde s� estavam escritos os gestos da vida. Havia uma cozinha e dois quartos. Num rebordo da parede de cal estava colocada uma imagem; em frente da imagem ardia uma lamparina de azeite; ao lado, algu�m poisara um ramo de flores bentas na P�scoa.
N�o havia ningu�m na cozinha. N�o havia ningu�m nos quartos. N�o havia ningu�m nas traseiras, onde as roupas secavam, dependuradas no arame, gesticulando na brisa.
No forno a cinza ainda estava quente e em cima de uma mesa havia vinho e p�o.
- Tenho fome - disse a mulher.
Sentaram-se e comeram.
- E agora? - perguntou a mulher.
- Vamos voltar outra vez para a estrada e continuar - disse o homem.
Sa�ram e atravessaram o pinhal: Mas a estrada tinha desaparecido.
- Tenho medo - disse a mulher. - Agora tenho sempre cada vez mais medo. Tudo desaparece.
- Estamos juntos - disse o homem.
- Mas o que � que vamos fazer sem estrada?
- Vamos voltar para a casa - disse o homem - e l� esperaremos at� que os donos cheguem e nos ensinem o caminho e nos ajudem.
E de novo atravessaram os pinhais. Mas no lugar onde tinha sido a casa agora havia s� uma pequena clareira e pedras espalhadas.
Ambos ficaram mudos. Depois a mulher deixou-se cair no ch�o, e, estendida entre as pedras, chorou com a cara encostada � terra.
- Vamos - disse o homem.
- Para onde? - perguntou ela.
- Havemos de encontrar qualquer caminho.
- Para qu�? Perdemos tudo quanto encontramos.
O homem ajoelhou ao lado da mulher e limpou na cara dela as l�grimas e a terra.
Depois levantou-a e ambos seguiram para a frente.
Atravessaram o pinhal e encontraram um campo.
Mas n�o se via nenhum caminho.
No meio do campo havia uma macieira carregada de ma��s vermelhas, polidas e redondas.
- S�o lindas! - disse a mulher. Colheu uma para si e outra para o homem. Sentaram-se os dois nas ervas finas sob a sombra sossegada da �rvore, e a carne firme, fresca e limpa da ma�� estalou entre os seus dentes.
Era j� o princ�pio da tarde, e no dia cheio de luz, encostados ao duro tronco escuro e rugoso, descansaram em sil�ncio, ouvindo s� o lev�ssimo rumor da terra sob o sol.
Depois o homem disse:
- Vamos.
Levantaram-se e seguiram.
J� no extremo daquele campo, junto � sebe que o separava de outro campo, a mulher exclamou:
- Dev�amos ter colhido algumas ma��s para trazer. N�o sabemos onde estamos, nem quanto teremos de andar at� encontrarmos outra vez alguma coisa de comer.
- � verdade - respondeu o homem.
E, voltando para tr�s, caminharam para a macieira que no meio do campo se desenhava redonda.
Por�m, quando chegaram ao p� da �rvore, viram que nos ramos, entre as folhas, todos os frutos tinham desaparecido.
- Algu�m passou por aqui, passou sem o vermos e colheu as ma��s todas - disse o homem.
- Ah! - exclamou a mulher - t�o depressa! T�o depressa desaparece tudo! Encontramos as coisas. Est�o ali. Mas quando voltamos j� desapareceram. E nem sabemos quem as desfez e as levou.
Baixando a cabe�a retomaram em sil�ncio a caminhada.
Atravessaram sucessivos campos mas n�o encontraram ningu�m que os guiasse e lhes respondesse. Junto duma sebe viram no ch�o um tarro de corti�a e uma bilha de barro.
A mulher destapou o tarro e espreitou dentro da bilha.
- Est�o vazios - disse ela.
- Onde estar� o dono?
Olharam em redor mas n�o se avistava ningu�m. Chamaram, ningu�m respondeu.
- Talvez esteja do outro lado da sebe - disse a mulher.
Atravessaram a sebe mas do outro lado n�o viram nenhum homem. Viram s� um pequeno regato que corria quase escondido entre trevos e agri�es. Ajoelhados lavaram as m�os e a cara. Na concha das suas m�os a mulher bebeu e deu de beber ao homem.
- Se tiv�ssemos trazido a bilha - disse ela-, poder�amos levar �gua connosco.
- E tamb�m no tarro poder�amos levar frutos. Vamos buscar a bilha e o tarro.
Atravessaram a sebe.
Mas a bilha estava partida e o tarro estava todo ro�do.
- Quem a ter� partido?
- Talvez a brisa ou algum animal passando.
-Quem o ter� ro�do?
- Os ratos, as serpentes, os c�es selvagens.
- Quebrados e ro�dos j� a bilha e o tarro n�o servem.
- Vamos embora depressa - disse a mulher.
Era j� o meio da tarde quando viram uma grande floresta de cuja orla partia um carreiro.
- Vamos pelo carreiro. Indo por aqui temos de encontrar gente. Os carreiros s�o feitos para passarem pessoas. Os carreiros s�o feitos para levar at� aos lugares onde h� gente.
E entraram na floresta. Carvalhos, castanheiros, t�lias e b�tulas, cedros e pinheiros cruzavam os seus ramos. Grandes raios de luz obl�qua passavam entre os troncos. O ar era verde e doirado.
- Que bonita floresta! - exclamou a mulher.
- Que bonita floresta! - exclamou o homem.
Aqui e al�m estalava um ramo seco. �s vezes uma pinha ca�a do alto. Ouvia-se o murm�rio da brisa nas folhas altas. Ouvia-se o canto dos p�ssaros escondidos. Ouvia-se o sil�ncio dos musgos e da terra.
E embalados na beleza, na m�sica e no perfume da floresta, o homem e a mulher seguiram de m�o dada pelo carreiro.
At� que ouviram ao longe um som de machadadas.
Foram andando e foram-se aproximando do som.
- Vem dali - disse a mulher.
E saindo do carreiro meteram � direita. Encontraram um lenhador a rachar lenha.
-Estamos perdidos-disse o homem-, andamos � procura do caminho para a estrada.
- Ide sempre a direito pelo carreiro - disse o lenhador - e encontrareis a estrada.
- Obrigado - disse o homem.
E voltaram os dois para tr�s.
Mas n�o encontraram o carreiro.
- Como � que o perdemos? - disse a mulher.
- Vamos pedir ao lenhador que nos guie - disse o homem.
Voltaram ao lugar onde tinham falado ao lenhador. Mas s� encontraram lenha rachada. O lenhador tinha desaparecido.
- Foi-se embora - disse a mulher.
- N�o deve estar longe. Vamos chamar.
Repetidas vezes chamaram. Mas nenhuma voz, nenhum rumor humano lhes respondeu. S� ouviam cantos de p�ssaros, sons de ramos secos estalando, murm�rios de brisa nas folhas.
- Vamos escutar calados - disse o homem. - Ele n�o pode ainda estar longe, talvez se possa ainda ouvir o barulho dos seus passos.
E escutaram calados.
Mas s� se ouviam os barulhos da floresta.
- Sei uma maneira melhor de escutar - disse a mulher.
E p�s-se de joelhos e encostou, primeiro um, depois outro, os ouvidos � terra.
Mas s� ouviu o sil�ncio palpitante da terra.
- S� oi�o a terra - disse ela.
- Vamos para a frente - respondeu o homem.
E seguiram.
Encontraram uma sebe carregada de amoras.
- S�o maravilhosas! - disse a mulher.
O homem colheu um punhado de amoras e estendeu-as na palma da m�o � mulher. Ela provou e tornou a dizer:
- S�o maravilhosas!
Rindo, come�aram os dois a colher amoras e, tendo reunido uma grande quantidade, sentaram-se no ch�o a comer. A luz obl�qua da tarde passava entre os troncos escuros e acendia o verde das ervas. Quando acabaram de comer, o homem disse:
- Temos de ir. Temos de encontrar a estrada e a terra para onde vamos.
- Como havemos de encontrar essa terra, se nem sabemos onde estamos?
- Temos de procurar - respondeu o homem.
Levantaram-se para partir.
- Espera - disse a mulher. - Quero levar amoras.
E, desatando o n� do len�o que trazia ao pesco�o, abriu e estendeu o len�o no ch�o. Come�aram os dois a colher amoras e reuniram uma grande pir�mide dentro do len�o. Depois ataram duas a duas as quatro pontas.
Vamos - disse o homem passando o dedo entre os dois n�s.
E retomaram o seu caminho.
Iam de m�os dadas atrav�s do ar doirado e verde.
-Como tudo aqui � maravilhoso!
- disse a mulher.
- � - disse o homem -, mas n�o encontr�mos ainda a estrada.
A mulher por�m entornou a cabe�a para tr�s e respirou profundamente o cheiro das �rvores e da terra. Estendeu a m�o no ar e na ponta dos seus dedos poisou uma borboleta.
- Ah! - disse ela-, mesmo perdida, vejo como tudo � perfumado e maravilhoso. Mesmo sem saber se jamais chegarei, apetece-me rir e cantar em honra da beleza das coisas. Mesmo neste caminho que eu n�o sei onde leva, as �rvores s�o verdes e frescas como se as alimentasse uma certeza profunda. Mesmo aqui a luz poisa leve nos nossos rostos como se nos reconhecesse. Estou cheia de medo e estou alegre.
- O ar e a luz - disse o homem - s�o bons e belos. Se n�o estiv�ssemos perdidos, esta caminhada seria uma viagem maravilhosa. Mas o ar e a luz n�o nos sabem ensinar a estrada.
Ouviram um pequeno murm�rio cristalino e, dando mais alguns passos, encontraram um rio.
Era um pequeno rio estreito e claro em cujas margens cresciam flores selvagens cor-de-rosa e brancas.
O homem e a mulher deitaram-se de bru�os no ch�o, aproximaram a cara da �gua e come�aram a beber.
- Que �gua t�o limpa! - disse a mulher. - Vamos tomar um banho.
Despiram-se e entraram no rio. Ora rindo, ora em sil�ncio, nadaram muito tempo. Mergulhavam de olhos abertos, tocando as pequenas pedras polidas do fundo, atravessando um mundo suspenso, transparente e verde. Trutas azuis deslizavam rente aos seus gestos.
Depois estenderam-se � sombra doirada da floresta sobre as relvas das margens.
O perfil da mulher recortava-se entre as flores.
- Aqui � quase como na terra para onde vamos - disse ela.
- � - respondeu o homem -, mas aqui � um lugar de passagem.
E ambos se levantaram e se vestiram.
- Vamos? - perguntou ele.
- Espera um momento - respondeu a mulher. - Quero primeiro colher flores para levar.
Ajoelhou-se no ch�o e come�ou a fazer um ramo. Mas o homem reparou que ela colhia as flores arrancando-as com a raiz e perg�ntou:
- Porque � que colhes as flores com a raiz?
- Porque as quero plantar na terra para onde vamos. N�o sei se l� h� flores iguais a estas - respondeu a mulher.
E seguiram.
Agora o dia come�ava a cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Temos as amoras - disse o homem.
Pousou o len�o no ch�o e desatou os n�s.
Mas o len�o estava vazio.
Ficaram uns momentos calados. Depois o homem disse:
- As pontas do len�o estavam com certeza mal atadas e as amoras foram-se perdendo uma por uma � medida que �amos andando. Uma por uma. Nem as senti cair.
- Tenho fome - disse a mulher.
- Vamos para a frente - disse o homem.
Viram ao longe entre as �rvores um clar�o vermelho.
- � o p�r do Sol! - exclamou a mulher. -J� � o p�r do Sol!
- Vamos depressa - disse o homem. - Vem a� a noite e ainda n�o encontr�mos o caminho.
E foram quase correndo.
Entre as sombras do crep�sculo ouviram de repente vozes.
-Gente!-exclamou o homem.-Estamos salvos!
- Salvos? - perguntou a mulher. E de novo se ouviram vozes.
- Est�o para aquele lado - disse a mulher. apontando para a esquerda.
- N�o, est�o para al�m - disse o homem, apontando para a direita.
O homem agarrou a m�o da mulher e correram os dois para a direita.
Mas � medida que iam correndo as vozes iam-se tornando mais distantes.
- V�o mais depressa do que n�s! -queixou-se a mulher.
- Mas - respondeu o homem - se conseguirmos ao menos seguir a direc��o que levam estaremos salvos.
Assim foram, escutando e correndo, enquanto as sombras do crep�sculo cresciam. At� que as vozes deixaram de se ouvir e a noite caiu espessa e cerrada.
A Lua ainda n�o tinha nascido. Por todos os lados os rodeavam sombras, ru�dos, murm�rios que eles confundiam com vultos, pessoas, vozes. Mas eram apenas trevas, troncos de �rvores, galhos secos que estalavam, sussurrar de folhagens.
- Estamos perdidos? - perguntou a mulher.
- N�o sabemos - disse o homem. Seguiram devagar, de m�o dada, em sil�ncio, encostados um ao outro.
At� que de repente viram que tinham chegado ao fim da floresta.
Cheios de esperan�a, avan�aram para o espa�o descoberto, mas, saindo do arvoredo, encontraram � sua frente um abismo.
Debru�ados espreitaram. Por�m, � luz das estrelas nada vi�m diante de si sen�o um po�o de escurid�o, enquanto um frio de m�rmore lhes tocava a cara.
- � um precip�cio - disse o homem. - A terra est� separada em nossa frente. N�o podemos dar nem sequer mais um passo.
- Olha! - respondeu a mulher.
E apontou um estreito carreiro que seguia rente ao abismo. Tinha � esquerda uma alta arriba de pedra e � direita o vazio.
- Avancemos - disse o homem.
- Tenho medo - disse a mulher.
- Estamos juntos - respondeu o homem-, n�o tenhas medo.
E seguiram pelo carreiro.
O homem ia � frente e a mulher atr�s segurava-se com a m�o esquerda aos penedos e com a m�o direita ao ombro do homem.
Iam em sil�ncio sob o brilho escuro das estrelas, medindo cada gesto e cada passo.
Mas de repente o corpo do homem oscilou, rolaram pequenas pedras. Ele gritou � mulher:
- Segura-me!
Mas j� o ombro dele escorregara das m�os dela. E a mulher gritou:
- Agarra-te � terra!
Mas nenhuma voz lhe respondeu. pois no grande sil�ncio n�tido e sonoro s� se ouvia o rolar das pedras.
Ela estava s�zinha, vestida de terror, agarrada ao ch�o em frente do vazio.
- Responde! - gritou debru�ada sobre o abismo.
Longe o eco da sua voz repetiu:
- Responde.
Estava estendida na terra, com as m�os enterradas na terra, e come�ou a gritar como quem est� perdido no meio dum sonho. Depois parou de gritar e murmurou:
- Tenho de o ir procurar.
Seguiu de rastos pelo carreiro, tacteando o ch�o com as m�os � busca duma passagem por onde pudesse descer para procurar o homem. Mas n�o havia passagem.
Ent�o tentou descer pela pr�pria vertente do abismo. Agarrando-se a ervas e ra�zes deixou-se escorregar ao longo do precip�cio. Mas os seus p�s n�o encontravam nenhum apoio onde pudessem firmar-se. Pois a vertente descia a pique, era uma parede lisa de pedra nua.
- Tenho de voltar para o carreiro - pensou a mulher - e tenho de procurar mais adiante uma passagem.
E, agarrada a ervas e ra�zes, i�ou-se para o carreiro.
Mas o carreiro tinha desaparecido. Agora havia apenas um estreito rebordo onde ela n�o cabia, onde nem os seus p�s cabiam. Um rebordo sem sa�da. A� ficou, de lado, com os p�s um em frente do outro como as figuras dos desenhos do Egipto, com o lado direito do seu corpo colado � pedra da arriba e o lado esquerdo j� banhado pela respira��o fria e rouca do abismo. Sentia que as ervas e as ra�zes a que se segurava cediam lentamente com o peso do seu corpo. Compreendia que agora era ela que ia cair no abismo. Viu que, quando as ra�zes se rompessem, n�o se poderia agarrar a nada, nem mesmo a si pr�pria. Pois era ela pr�pria o que ela agora ia perder.
Compreendeu que lhe restavam s�mente alguns momentos.
Ent�o virou a cara para o outro lado do abismo. Tentou ver atrav�s da escurid�o. Mas s� se via escurid�o. Ela, por�m, pensou:
- Do outro lado do abismo est� com certeza algu�m.
E come�ou a chamar.
Retrato de M�nica
M�NicA � uma pessoa t�o extraordin�ria
que consegue simult�neamente: ser boa m�e de familia, ser chiqu�ssima, ser dirigente da "Liga Internacional das Mulheres In�teis", ajudar o marido nos neg�cios, fazer gin�stica todas as manh�s, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, n�o fumar, n�o envelhecer, gostar de toda a gente, toda a gente gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do s�culo xvii, jogar golfe, deitar-se tarde, leVantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser s�cia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito s�ria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a M�nica. Mas s�o s� a sua caricatura. Esquecem-se sempre do ioga ou da pintura abstracta.
Por tr�s de tudo isto h� um trabalho severo e sem tr�guas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que M�nica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, M�nica teve de renunciar a tr�s coisas: � poesia, ao amor e � santidade
A poesia � oferecida a cada pessoa s� uma vez e o efeito da nega��o � irrevers�vel. O amor � oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois n�o o encontra mais. Mas a santidade � oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam � santidade s�o obrigados a repetir a nega��o todos os dias.
Isto obriga M�nica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo: "qualquer distrac��o pode causar a morte do artista". M�nica nunca tem uma distrac��o. Todos OS seus vestidos s�o bem escolhidos e todos OS seus amigos s�o uteis. Como um instrumento de precis�o, ela mede o grau de utilidade de todas as situa��es e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os Obst�CUlos e limpa todos os percurrsos. Por isso tudo lhe corre bem, at� os desgostos.
Os jantares de M�nica tambem correm sempre muito bem. Cada lugar � um emprego de capital. A comida � �ptima e na conversa toda a gente est� sempre de acordo porque M�nica nunca convida pessoas que possam ter opini�es inoportunas. Ela p�e a sua intelig�ncia ao servi�o da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua intelig�ncia � feita da estupidez dos outros. Esta � a forma de intelig�ncia que garante o dom�nio. Por isso o reino de M�nica � s�lido e grande.
Ela � �ntima de mandarins e de banqueiros e � tamb�m �ntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de M�nica �, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela est� na praia, o pr�prio Sol se enerva.
O marido de M�nica � um pobre diabo que M�nica transformou num homem important�ssimo. Deste marido ma�ador M�nica tem tirado o m�ximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele � nomeado administrador de mais alguma coisa, � M�nica que � nomeada. Eles n�o s�o o homem e a mulher. N�o s�o o casamento. S�o, antes,
dois s�cios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une � indissol�vel, pois o div�rcio arruina as situa��es mundanas. O mundo dos neg�cios � bem-pensante.
� por isso que M�nica, tendo renunciado � santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crian�as que os seus amigos condenam � fome. �s vezes, quando os casacos est�o prontos, as crian�as j� morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de M�nica tamb�m. Ela todos os anos parece mais nova. A mis�ria, a humilha��o, a ru�na n�o ro�am sequer a f�mbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos n�o h� nada de comum.
E por isso M�nica est� nas melhores rela��es com o Pr�ncipe deste Mundo. Ela � sua partid�ria fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus sil�ncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que est� ao servi�o dela, admiradora do seu esp�rito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edif�cio constru�do neste tempo houve sempre uma pedra trazida por M�nIca.
H� v�rios meses que n�o vejo M�nica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Pr�ncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto n�o h� evidentemente nenhum mal. Toda a gente sabe que M�nica � ser�ssima e toda a gente sabe que o Pr�ncipe deste Mundo � um homem austero e casto.
N�o � o desejo do amor que os une. O que os une � justamente uma vontade sem amor.
E � natural que ele mostre publicamente a sua gratid�o por M�nica. Todos sabemos que ela � o seu maior apoio, o mais firme fundamento do seu poder.
A Praia
ERA uma esp�cie de clube de Ver�o. E Uma varanda dava para a avenida onde os pl�tanos maravilhosos povoavam a noite.
Cheirava a maresia e a fruta. Grandes m�sicas pareciam suspensas das �rvores e das estrelas. E entre as casas brancas, na noite escura e azul, passava o rolar do mar.
Tudo isso envolvia o clube e as suas paredes e janelas, e as suas mesas e cadeiras.
Entrava-se pelo hall por uma grande porta que estava sempre aberta.
O hall era enorme e tinha no meio uma palmeira nost�lgica. A decora��o era de 1920, num estilo especial que s� existia naquela terra.
Nos bancos verdes, encostados �s paredes brancas, cobertas at� ao meio por grades de madeira verde, estavam pequenos grupos de pessoas sentadas em frente das mesas verdes.
Havia tr�s grupos escuros de homens e dois grupos mais claros de senhoras duma certa idade.
� medida que eu ia atravessando o hall ia dizendo "Boa noite" aos v�rios grupos. Depois espreitei atrav�s da porta da sala de jogo, que era de vidro. Os jogadores pareciam condenados � morte que tentavam entreter com calma as suas �ltimas horas. Estavam abstractos e suspensos e n�o me viram. Tornei a atravessar o "hall" e entrei na sala de baile.
Era dia de orquestra. A orquestra vinha duas vezes por semana duma praia vizinha. Os m�sicos eram magros e novos e tinham smokings velhos, ligeiramente esverdeados pelo uso e pela humidade das invernias mar�timas. Eram m�sicos falhados:
sem grande arte, com pouco dinheiro e sem fama. Deviam ser ou resignados ou revoltados. Espero que fossem revoltados:
� menos triste. Um homem revoltado, mesmo ingl�riamente, nunca est� completamente vencido. Mas a resigna��o passiva, a resigna��o por ensurdecimento progressivo do ser, � o falhar completo e sem rem�dio. Mas os revoltados, mesmo aqueles a quem tudo - a luz do candeeiro e a luz da Primavera - d�i como uma faca, aqueles que se cortam no ar e nos seus pr�prios gestos, s�o a honra da condi��o humana. Eles s�o aqueles que n�o aceitaram a imperfei��o. E por isso a sua alma � como um grande deserto sem sombra e sem frescura onde o fogo arde sem se consumir.
E assim ali n�s r�amos, convers�vamos, dan��vamos, enquanto com os seus velhos smokings os m�sicos no palco tocavam.
�s vezes algu�m se queixava de que tocavam mal.
Pelas janelas abertas a m�sica sa�a e ia perder-se l� fora por entre as ramagens dos pl�tanos, misturada com o leve estremecer da brisa e o ressoar fundo do mar.
A sala de baile era grande e comprida. Tinha duas portas que davam para a varanda, duas portas que davam para o hall da entrada e uma quinta porta que dava para um hall mais pequeno que servia de passagem e liga��o entre a sala de baile e o bar.
No fundo da sala de baile havia um palco, onde os m�sicos tocavam, mas onde nunca se representava nada. Mas sabia-se que antigamente ali se tinha representado.
Na parede que ficava � esquerda do palco havia tr�s janelas que davam para uma pequena rua sossegada, onde raramente passava algu�m.
�s vezes nos intervalos das dan�as v�nhamos encostar-nos a essas janelas: em frente havia uma casa com grandes paredes brancas, onde o luar ficava azul, e onde se desenhavam, tr�mulas, inquietas e vivas, as sombras das folhas cheias de gestos.
E n�s estend�amos o bra�o e arranc�vamos dos ramos uma folha que trinc�vamos devagar entre os dentes.
Depois respir�vamos o perfume das t�lias e levant�vamos a cabe�a para o c�u cheio de estrelas e diz�amos:
- Est� uma noite maravilhosa!
Outras vezes, quando n�oo convers�vamos em pequenos grupos, sentados nos compridos sof�s forrados de verde encostados ao longo da parede.
Havia um leve rumor de amores adolescentes. Era como o rumor da brisa. Pois era o princ�pio da vida e nada ainda tinha acontecido. Ainda nada era grave, tr�gico, nu e sangrento.
E a noite l� fora, com os seus perfumes misturados, com os seus murm�rios e sil�ncios e as suas sombras e brilhos, parecia o rosto duma promessa.
Mas n�o creio que ningu�m, ali, nesse tempo, pensasse realmente no futuro. S� talvez dois ou tr�s, cuja vida, mais tarde, t�o eficiente e bem administrada, teve um ar de coisa previamente fabricada. Mas s� esses. Os outros todos n�o faziam nenhum c�lculo sobre o futuro. Para eles o presente era um prazo ilimitado de disponibilidade, suspens�o e escolha. N�o calculavam o futuro - apenas, vagamente, o esperavam.
E t�o vagamente que muitas vezes era como se esperassem n�o o futuro, mas sim o passado.
Pois ali se falava muito no passado. Constantemente nas conversas se contavam hist�rias das gera��es anteriores, hist�rias dum tempo em que o existir era
mais definido e mais vis�vel, um tempo em que os sentimentos se tornavam actos e os destinos se cumpriam inteiramente.
�s vezes, de repente, no fundo dos espelhos havia um brilho que era o brilho duma hora antiga. E ent�o era como se as antigas noites de Agosto e as abolidas tardes de Setembro pudessem, como D. Sebasti�o, voltar.
Nas avenidas, nas t�lias, nas varandas, no barulho dos passos sobre as ruas de saibro e areia, dos passos que faziam rolar as pequenas pedras soltas, no mar, igual a um b�zio repetindo o ressoar de passados temporais, e at� no ch�o, nas mesas, nas cadeiras, parecia estar suspensa a espera dum regresso.
E � medida que a noite ia avan�ando, � medida que quase toda a gente se ia indo embora, � medida que se ia fazendo tarde a espera ia-se tornando quase consciente, quase vis�vel. Dir-se-ia que o tempo perdido ia surgir e ser tocado.
E as pessoas iam-se embora e as salas iam ficando vazias, passavam no ar interroga��o e sil�ncio, como se qualquer coisa, qualquer coisa obscuramente desejada e prometida, n�o tivesse acontecido.
Os m�sicos guardavam os instrumentos e fechavam o piano. Escuros e magros, desciam as escadas do palco e depois desapareciam, suponho que por um al�ap�o, pois nunca os vi sair por nenhuma porta. Ou talvez se dilu�ssem no ar. Ou talvez fossem deuses da P�rsia e viessem de noite, num tapete m�gico, para contemplarem, disfar�ados de m�sicos, o fim da sensibilidade do Ocidente.
Porque a espera, a espera das coisas fant�sticas, vis�veis e reais, a espera das coisas destinadas, prometidas, pressentidas, ia-se tornando quase lucidamente alucinada.
Encostado � ombreira duma porta, um homem solit�rio, alto e magro como uma �rvore no Inverno, tirou o rel�gio do bolso
e viu as horas. Depois guardou o rel�gio depressa como se tivesse vergonha do tempo.
Est�vamos � espera.
E j� �ramos poucos e apagava-se a luz da sala de baile, o hall estava deserto, na sala de jogo s� j� quatro jogadores esperavam a morte e quando entr�vamos no bar um homem, sempre o mesmo, voltava-se no banco alto e, trazendo o seu copo, vinha sentar-se connosco numa mesa.
E era dif�cil dizer de que tempo ele vinha; pois dos personagens das hist�rias dum tempo antigo ele tinha a voz, o olhar e os gestos, mas n�o o destino, nem a vida vivida. Era mesmo como se ele tivesse rejeitado todo o destino, toda a vida vivida, como uma coisa alheia, exterior e falsa, e lhe bastasse aquele momento, aquele bar, aquela mesa, aquela conversa, aquele copo.
Era como se ele tivesse querido guardar o seu ser � margem do vivido, por n�o haver na vida acto nenhum onde o ser pudesse ser cumprido e a exist�ncia concreta fosse apenas deturpa��o, falsifica��o, profana��o.
E, assim ele tinha resolvido usar a sua pr�pria vida como n�o sendo dele, us�-la como os m�sicos da orquestra usavam os seus fatos alugados.
A hora tardia dilatava, multiplicava e isolava todas as coisas.
Quase toda a gente se tinha ido embora,
e o vazio pousava docemente nas mesas
e nas cadeiras, enquanto a noite, com a
grande sombra das suas �rvores atravessada pelo rumor do mar, entrava pela janela aberta.
E o homem que se tinha vindo sentar junto de n�s falava misturando as suas palavras com o tempo, com a noite, com o barulho do mar, com o respirar da brisa nas folhagens. E das suas palavras nascia uma grande imagem que se ia abrindo e desdobrando em inumer�veis espa�os.
1/2
A sua sensibilidade era t�o perfeita que at� na pr�pria madeira da mesa a sua m�o pousava com ternura. Enquanto falava, abria espantosamente os seus olhos, que eram azuis como o azul duma chama de �lcool. E o seu olhar era desmedido e impessoal como se para al�m de n�s ele olhasse outra coisa. Talvez: A mem�ria long�nqua duma p�tria
Eterna mas perdida e n�o sabemos Se � passado ou futuro onde a perdemos
E, � medida que ele ia falando, a imagem que nascia das suas palavras ia-se tornando interior � alma daqueles que o escutavam, como um mito. Ele era como um limite, como um marco que dissesse:
"Daqui em diante o mar n�o � mais naveg�vel."
No entanto ele n�o se confundia com um deus. Nos deuses ser e existir est�o unidos. Nele a vida vivida nem sequer era a serva do ser, nem sequer era o ch�o que o ser pisava, mas apenas acaso sem nexo, desencontro, acidente sem forma e sem verdade, acidente desprezado.
Eu estava sentada em frente dele, do outro lado da pequena mesa. Ele esteve um longo tempo calado. Depois debru�ou-se sobre a mesa e disse:
- Ouve:
There is a sea,
A far and di:tant sea
Beyond the farthest une,
Where ai! my ships that went astray,
Where a!! my dreams of yesterday
Are mine.
L� fora as l�mpadas das ruas j� se tinham apagado havia muito tempo.
Era tarde. E o brilho da hora tardia deslizava docemente em roda das m�os e dos copos sobre a mesa polida.
A Lua j� tinha desaparecido e o nevoeiro, a�reo e branco, come�ava a subir do mar e entrava pela janela aberta.
- Voltou o nevoeiro - disse algu�m.
Olh�mos a janela. Agora o perfume que vinha de fora era ainda mais mar�timo e mais fresco.
�s vezes ouvia-se ao longe o apitar dos comboios. Eram os intermin�veis comboios de mercadorias da madrugada, com seus vag�es de sal, de gado, de madeira e de pedras. E a mulher da linha, muito direita, mostrava no extremo do seu bra�o estendido a lanterna verde. E um longo rasto de melancolia parecia ficar a dissolver-se devagar nas terras por onde o comboio passava.
Era tarde.
Um criado son�mbulo deambulava entre as mesas.
- Olha - diria ao meu lado um dos meus amigos, mostrando-me as p�ginas duma ilustra��o aberta:
Cidades e cidades bombardeadas, navios, canh�es, avi�es, m�quinas de guerra, e o rid�culo F�hrer, capit�o da estupidez, da bestialidade e da desgra�a, conduzindo o seu povo.
E de repente levantou-se uma discuss�o r�pida e violenta. Mas, apesar da discuss�o e das fotografias, a guerra parecia irreal e abstracta como se estiv�ssemos falando das invas�es dos b�rbaros ou dos flagelos do ano 2000. A guerra estava longe.
Ent�o o homem do rel�gio levantou-se e disse:
- Vou ouvir as not�cias.
Atr�s dele a porta ficou a baloi�ar.
Da� a instantes ouviram-se na sala pegada barulhos de telefonia misturados com farrapos de m�sica e l�nguas estranhas.
Depois uma voz come�ou a falar claramente.
Levantei-me e fui ouvir.
Rommel no deserto recuava, diziam as not�cias.
E de repente, para mim, pelo poder dum nome, a guerra tornou-se real.
Voltei para o bar e sentei-me outra vez na mesma mesa, no meio das conversas.
Rommel no deserto recuava.
E tentei imaginar a noite azul do deserto onde os homens silenciosos recuavam. Tentei imaginar as sombras e a do�ura das areias, o brilho lucid�ssimo das estrelas, o mist�rio, a presen�a suspensa do inimigo invis�vel, a orla da morte, o terror, a paix�o e o denso, agudo e exacto peso de cada momento. E tentei imaginar os homens. Os homens: l�cidamente vencidos, recuando e combatendo, rodeados de morte, medindo os seus gestos, medindo a medida de efic�cia dos seus gestos, combatendo por cada passo, sabendo a causa injusta e o combate perdido. L�cidamente vencidos, combatendo sob o brilho lucid�ssimo dos astros.
E era tarde. T�o tarde que nos levant�mos todos e sa�mos, enquanto, son�mbulo, o criado tirava da mesa todos os copos, que, chocando uns contra os outros, tilintaram longamente na bandeja.
C� fora, mal pass�mos a porta que dava para a varanda, o grande sopro do mar cobriu-nos, rodeou-nos, invadiu-nos.
O nevoeiro tinha transfigurado tudo. Agora s� cheirava a mar. Um perfume apaixonado de algas escorria das �rvores. Lua e estrelas n�o se viam. Nem os pl�tanos se viam. s� se viam muros brancos no nevoeiro branco. Tudo estava im�vel e suspenso.
s� a voz do mar se ouvia, espantosamente real, recriando-se incessantemente.
E parecia que os grandes, verdes e violentos espa�os marinhos, como sendo o nosso pr�prio destino, nos chamavam.
Homero
QUANDO eu era pequena passava �s vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o B�zio.
O B�zio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas maritimas. A sua barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma. As grossas veias azuis das suas pernas eram iguais a cabos de navio. O seu corpo parecia um mastro e o seu andar era baloi�ado como o andar dum marinheiro ou dum barco. Os seus olhos, como o pr�prio mar, ora eram azuis, ora cinzentos, ora verdes, e �s vezes mesmo os vi roxos. E trazia sempre na m�o direita duas conchas.
Eram daquelas conchas brancas e grossas com c�rculos acastanhados, semi-redondas e semitriangulares,. que t�m no v�rtice da parte triangular um buraco.
O B�zio passava um fio atrav�s dos buracos e atava assim as duas conchas uma � outra, de maneira a formar com elas umas castanholas. E era com essas castanholas que ele marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solit�rios e misteriosos como poemas.
O B�zio aparecia ao longe. Via-se crescer dos confins dos areais e das estradas. Primeiro fulgava-se que fosse uma �rvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o B�zio.
Na m�o esquerda trazia um grande pau que lhe servia de bord�o e era seu apoio nas longas caminhadas e sua defesa contra os c�es raivosos das quintas. A este pau estava atado um saco de pano, dentro do qual ele guardava os bocados secos do p�o que lhe davam e os tost�es. O saco era de chita remendada e t�o desbotada pelo sol que quase se tornara branca.
O B�zio chegava de dia, rodeado de luz e de vento e, dois passos � sua frente, vinha o seu c�o, que era velho, esbranqui�ado e sujo, com o p�lo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto.
E pelas ruas fora vinha o B�zio com o sol na cara e as sombras tr�mulas das folhas dos pl�tanos nas m�os.
Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas.
Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um peda�o de p�o e lhe dizia:
- Vai-te embora, B�zio.
E o B�zio, demoradamente, desprendia o saco do seu bord�o, desatava os cord�es, abria o saco e guardava o p�o.
Depois de novo seguia. Parava debaixo duma varanda cantando, alto e direito, enquanto o c�o farejava o passeio.
E na varanda debru�ava-se algu�m rapidamente, t�o rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tost�o e dizia:
- Vai-te embora, B�zio.
E o B�zio demoradamente - t�o demoradamente que cada um dos seus gestos se via - desprendia o saco do pau, desatava os cord�es, abria o saco, guardava o tost�o, e de novo fechava o saco e o atava e o prendia.
E seguia com o seu c�o.
Havia na terra muitos pobres que apareciam aos s�bados em bandos acastanhados e tr�gicos. e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos seus trapos, eram m�es escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, bra�os torcidos, m�os cortadas, l�grimas e desgra�a. E sobre o bando pairava um murm�rio incans�vel de gemidos, queixas, rezas e lamenta��es.
Mas o B�zio aparecia s�zinho, n�o se sabia em que dia da semana, era alto e direito. lembrava o mar e os pinheiros, n�o tinha nenhuma ferida e n�o fazia pena. Ter pena dele seria como ter pena dum plat ano ou dum rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza.
O B�zio n�o possu�a nada, como uma �rvore n�o possui nada. Vivia com a terra toda que era ele pr�prio.
A terra era sua m�e e sua mulher, sua casa e sua companhia. sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida.
Os seus p�s descal�os pareciam escutar o ch�o que pisavam.
E foi assim que o vi aparecer naquela tarde em que eu brincava s�zinha no jardim.
A nossa casa ficava � beira da praia.
A parte da frente, virada para o mar, tinha um jardim de areia. Na parte de tr�s, voltada para leste, havia um pequeno jardim agreste e mal tratado, com o ch�o coberto de pequenas pedras soltas, que rolavam sob os passos, um po�o, duas �rvores e alguns arbustos desgrenhados pelo vento e queimados pelo sol.
O B�zio, que chegou pelo lado de tr�s, abriu a cancela de madeira, que ficou a baloi�ar, e atravessou o jardim passando sem me ver.
Parou em frente da porta de servi�o e ao som das suas castanholas de conchas p�s-se a cantar.
Assim esperou algum tempo. Depois a porta abriu-se e no seu �ngulo escuro apareceu um avental. Visto de fora, o interior da casa parecia misterioso, sombrio e
brilhante. E a criada estendeu um p�o e disse:
Vai-te embora, B�zio. Depois fechou a porta.
E o B�zio, sem pressa, demoradamente, como que desenhando na luz cada um dos seus gestos, puxou os cord�es, tornou a atar o saco, prendeu-o no pau e seguiu com o seu c�o.
Vi-o dar a volta � casa, para sair pela frente, pelo lado do mar.
Ent�o eu resolvi ir atr�s dele.
Ele atravessou o jardim de areia coberto de chor�o e l�rios do mar e caminhou pelas dunas. Quando chegou ao lugar onde principia a curva da ba�a, parou. Ali era j� um lugar selvagem e deserto longe de casas e estradas.
Eu, que o tinha seguido de longe, aproximei-me escondida nas ondula��es da duna e ajoelhei-me atr�s dum pequeno monte entre as ervas altas, transparentes e secas.. N�o queria que o B�zio me visse porque o queria ver sem mim, s�zinho.
Era um pouco antes do p�r do Sol e de vez em quando passava uma pequena brisa.
Do alto da duna via-se a tarde toda como uma enorme flor transparente, aberta e estendida at� aos confins do horizonte.
A luz recortava uma por uma todas as covas da areia. Uma lev�ssima n�voa subia do mar. O cheiro nu da maresia, perfume limpo do mar sem putrefac��o e sem cad�veres, penetrava tudo.
E a todo o comprimento da praia, de norte a sul. a perder de vista. a mar� vazia mostrava os seus rochedos escuros cobertos de b�zios e algas verdes que recortavam as �guas. E atr�s deles quebravam incessantemente, brancas e enroladas e desenroladas, tr�s fileiras de ondas que, constantemente desfeitas, constantemente ressurgiam.
No alto da duna o B�zio estava com a tarde. O sol pousava nas suas m�os. o sol pousava na sua cara e nos seus ombros. Esteve algum tempo calado, depois devagar come�ou a falar. Eu entendi que ele falava com o mar, pois o olhava de frente e estendia para ele as suas m�os abertas, com as palmas em concha viradas para cima. Era um longo discurso claro, irracional e nebuloso que parecia, como a luz, recortar e desenhar todas as coisas.
N�o posso repetir as suas palavras: n�o as decorei e isto passou-se h� muitos anos. E tamb�m n�o entendi inteiramente o que ele dizia. E algumas palavras mesmo n�o as ouvi, porque o vento r�pido lhas arrancava da boca.
Mas lembro-me de que eram palavras moduladas como um canto, palavras quase vis�veis que ocupavam os espa�os do ar com a sua forma. a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas. que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas dum peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os rostos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das �guas, oiro do sol; sil�ncio e brilho das estrelas.
O Homem
ERA um a tarde do fim de Novembro. j� sem nenhum Outono.
A cidade erguia as suas paredes de pedras escuras. O c�u estava alto, desolado, cor de frio. Os homens caminhavam empurrando-se uns aos outros nos passeios. Os carros passavam depressa.
Deviam ser quatro horas da tarde dum dia sem sol nem chuva.
Havia muita gente na rua naquele dia. Eu caminhava no passeio, depressa. A certa altura encontrei-me atr�s dum homem muito pobremente vestido que levava ao colo uma crian�a loira, uma daquelas crian�as cuja beleza quase n�o se pode descrever. � a beleza de uma madrugada de Ver�o, a beleza duma rosa, a beleza do orvalho, unidas � incr�vel beleza duma inoc�ncia humana. Instintivamente o meu olhar ficou um momento preso na cara da crian�a. Mas o homem caminhava muito devagar, e eu, levada pelo movimento da cidade, passei � sua frente. Mas ao passar voltei a cabe�a para tr�s para ver mais uma vez a crian�a.
Foi ent�o que vi o homem. Imediatamente parei. Era um homem extraordin�riamente belo, que devia ter trinta anos e em cujo rosto estavam inscritos a mis�ria, o abandono, a solid�o. O seu fato, que, tendo perdido a cor, tinha ficado verde, deixava adivinhar um corpo comido pela fome. O cabelo era castanho-claro, apartado ao meio, ligeiramente comprido. A barba por cortar h� muitos dias crescia em ponta. Estreitamente esculpida pela pobreza, a cara mostrava o belo desenho dos ossos. Mas mais belos do que tudo eram os olhos, os olhos claros, luminosos de solid�o e de do�ura. No pr�prio instante em que eu o vi, o homem levantou a cabe�a para o c�u.
Como coratar o seu gesto?
Era um c�u alto, sem resposta, cor de frio. O homem levantou a cabe�a no gesto de algu�m que, tendo ultrapassado um limite, j� nada tem para dar e se volta para fora procurando uma resposta. A sua cara escorria sofrimento. A sua express�o era simult�neamente resigna��o, espanto e pergunta. Caminhava lentamente, muito lentamente, do lado de dentro do passeio, rente ao muro. Caminhava muito direito, como se todo o corpo estivesse erguido na pergunta. Com a cabe�a levantada, olhava o c�u. Mas o c�u eram plan�cies e plan�cies de sil�ncio.
Tudo isto se passou num momento e, por isso, eu, que me lembro nitidamente do fato do homem, da sua cara, do seu olhar e dos seus gestos, n�o consigo rever com clareza o que se passou dentro de mim.
Foi como se tivesse ficado vazia olhando o homem.
A multid�o n�o parava de passar. Era o centro do centro da cidade. O homem estava s�zinho, s�zinho. Rios de gente passavam sem o ver.
S� eu tinha parado, mas in�tilmente.
O homem n�o me olhava. Quis fazer alguma coisa, mas n�o sabia o qu�. Era como se a sua solid�o estivesse para al�m de todos os meus gestos, como se ela o envolvesse e o separasse de mim e fosse tarde de mais para qualquer palavra e j� nada tivesse rem�dio. Era como se eu tivesse as m�os atadas. Assim �s vezes nos sonhos queremos agir e n�o podemos.
O homem caminhava muito devagar. Eu estava parada no meio do passeio, contra o sentido da multid�o. Sentia a cidade empurrar-me e separar-me do homem. Ningu�m o via caminhando lentamente, t�o lentamente, com a cabe�a erguida e com uma crian�a nos bra�os rente ao muro de pedra fria.
Agora eu penso no que podia ter feito. Era preciso ter decidido depressa. Mas eu tinha a alma e as m�os pesadas de indecis�o. N�o via bem. S� sabia hesitar e duvidar. Por isso estava ali parada, impotente, no meio do passeio. A cidade empurrava-me e um rel�gio bateu horas.
Lembrei-me de que tinha algu�m � minha espera e que estava atrasada. As pessoas que n�o viam o homem come�avam a ver-me a mim. Era imposs�vel continuar assim parada.
Ent�o, como o nadador que � apanhado numa corrente e desiste de lutar e se deixa ir com a �gua, assim eu deixei de me opor ao movimento da multid�o e me deixei levar pela onda de gente para longe do homem.
Mas enquanto seguia no passeio rodeada de ombros e cabe�as, a imagem do homem continuava suspensa nos meus olhos. E nasceu em mim a sensa��o confusa de que nele havia alguma coisa ou algu�m que eu reconhecia.
R�pidamente evoquei todos os lugares onde eu tinha vivido. Desenrolei para tr�s o filme do tempo. As imagens passaram oscilantes, um pouco tr�mulas e r�pidas. Mas n�o encontrei nada. E tentei reunir e rever todas as mem�rias de quadros, de livros, de fotografias. Mas a imagem do homem continuava sozinha: a cabe�a levantada que olhava o c�u com uma express�o de infinita solid�o, de abandono e de pergunta.
E do fundo da mem�ria, trazidas pela imagem, muito devagar, uma por uma, inconfund�veis, apareceram as palavras:
- Pai, Pai, porque me abandonaste?
Ent�o compreendi porque � que o homem que eu deixara para tr�s n�o era um estranho. A sua imagem era exactamente igual � outra imagem que se formara no meu esp�rito quando eu li:
- Pai, Pai, porque me abandonaste?
Era aquela a posi��o da cabe�a, era aquele o olhar, era aquele o sofrimento, era aquele o abandono, aquela a solid�o.
Para al�m da dureza e das trai��es dos homens, para al�m da agonia da carne, come�a a prova do �ltimo supl�cio: o sil�ncio de Deus.
E os c�us parecem desertos e vazios sobre as cidades escuras.
Voltei para tr�s. Subi contra a corrente; o rio da multid�o. Temi t�-lo perdido. Havia gente, gente, ombros, cabe�as, ombros. Mas de repente vi-o.
Tinha parado, mas continuava a segurar a crian�a e a olhar o c�u.
Corri, empurrando quase as pessoas. Estava j� a dois passos dele. Mas nesse momento, exactamente, o homem caiu no ch�o. Da sua boca corria um rio de sangue e nos seus olhos havia ainda a mesma express�o de infinita paci�ncia.
A crian�a ca�ra com ele e chorava no meio do passeio, escondendo a cara na saia do seu vestido manchado de sangue.
Ent�o a multid�o parou e formou um c�rculo � volta do homem. Ombros mais fortes do que os meus empurraram-me para tr�s. Eu estava do lado de fora do c�rculo. Tentei atravess�-lo, mas n�o consegui. As pessoas apertadas umas contra as outras eram como um �nico corpo fechado. � minha frente estavam homens mais altos do que eu que me impediam de ver. Quis espreitar, pedi licen�a, tentei empurrar, mas ningu�m me deixou passar. Ouvi lamenta��es, ordens, apitos. Depois veio uma ambul�ncia. Quando o c�rculo se abriu, o homem e a crian�a tinham desaparecido.
A multid�o dispersou-se e eu fiquei no meio do passeio, caminhando para a frente, levada pelo movimento da cidade.
Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas.
Os Tr�s Reis do Oriente
NAQUELE tempo, na cidade de Kalash, o pr�ncipe Zukarta instaurou o culto do bezerro de oiro.
A est�tua poisava nas multid�es submissas os seus olhos espantados, muito abertos, pintados de branco e de preto. No fundo das suas pupilas aflorava quase uma interroga��o, como se a extens�o do seu poder o surpreendesse. Era um jovem bezerro de pequenos cornos torcidos e pernas musculosas, de testa obtusa curta e franzida. As suas quatro patas, firmemente poisadas na terra, davam uma grande impress�o de firmeza e estabilidade que tranquilizava o cora��o dos seus fi�is. E em todo o seu corpo brilhava o oiro, o oiro compacto, duro, pesado, faiscante. Em frente do �dolo as mulheres curvadas sacudiam sobre o m�rmore claro dos degraus os sombrios cabelos quase azuis. Dos confins do deserto, dos long�nquos o�sis, das aldeias perdidas, chegavam homens que depunham em frente do altar a sua oferta: vinham oferecer oiro ao oiro. E os homens bons de Kalash, juizes e chefes guerreiros, desfilavam reverentes em frente do bezerro. Atr�s deles vinham os comerciantes, os vendedores, os oleiros, os tecel�es. Beijavam os degraus do altar e depunham no ch�o a sua oferta: traziam oiro ao oiro. At� os sacerdotes da Lua e os seus fi�is e ac�litos se prostravam, de joelhos, com a cabe�a tocando o solo, em frente do �dolo novo de Kalash.
Zukarta olhava todas estas coisas com grande alegria, pois o culto do oiro era o fundamento do seu poder.
Raros eram aqueles que n�o acorriam ao templo, cada vez mais raros. Os muito pobres, os muito envergonhados, os muito humilhados, n�o ousavam apresentar-se. Eles eram como uma ra�a � parte, pois a pobreza era olhada como o estigma que marcava aqueles que o Bezerro n�o amava. No fundo das suas almas t�o humilhadas que mal ousavam pensar o seu pr�prio pensamento, os muito pobres, os muito envergonhados esperavam outro deus.
Eles e Gaspar.
Uma delega��o de homens importantes veio ao pal�cio de Gaspar. E disseram:
- Porque n�o te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ral� das docas? N�o est�s por acaso vestido de p�rpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Ser�s um traidor? No culto do Bezerro est� a prosperidade e a grandeza de Kalash. Estar�s vendido aos nossos inimigos?
Gaspar respondeu:
- N�o posso adorar o poder dos �dolos. O meu deus � outro e creio no seu advento que a Terra e o C�u me anunciam.
Ouvindo esta resposta, os chefes das tribos e os homens bons de Kalash disseram:
- Separamo-nos de ti porque te separaste de n�s e renegaste os nossos caminhos. N�o ter�s mais parte nas nossas assembleias. Nem ser�s mais ouvido nos nossos conselhos, nem partilhar�s dos nossos festejos e banquetes. E tamb�m n�o ter�s lugar na nossa for�a. Os soldados n�o proteger�o a tua casa nem as tuas caravanas. E ser�s presa f�cil dos bandidos. N�o receber�s a protec��o das nossas leis. e os nossos juizes julgar�o em senten�a contra ti, e a tua raz�o ser� como um punhado de cinza. Como a gente da ral� n�o ter�s nem protec��o nem defesa
enquanto n�o te curvares perante o altar do Bezerro para adorar os �dolos que n�s adoramos.
E Gaspar respondeu:
-O meu deus � em mim como uma fonte que n�o p�ra de correr e � em meu redor como o muro duma fortaleza.
Ent�o os not�veis de Kalash sacudiram a poeira dos seus sapatos e sa�ram do pal�cio.
Depois desse dia, muitas calamidades se abateram sobre Gaspar. Os bandidos assaltaram as suas caravanas e os ladr�es saquearam os seus pomares. M�os misteriosas apedrejavam de noite a sua casa e na �gua das suas cisternas apareciam frutos podres e aves mortas a boiar.
E come�ou o tempo da solid�o.
Nos frescos p�tios do pal�cio n�o penetraram mais os visitantes e a �gua correndo nos tanques deixou de acompanhar
o leve rumor das conversas. Os parentes e os amigos desapareceram como que devorados pela penumbra e todas as coisas pareciam envolvidas em esc�ndalo e terror.
Por�m o tempo crescia.
E Gaspar escutava o crescer do tempo. A solid�o criava em seu redor um transparente espa�o de limpidez onde os instantes avan�avam um por um e o universo inteiro parecia atento. O sil�ncio era como a mesma palavra inumer�velmente repetida.
E debru�ado sobre o tempo Gaspar pensava: ((Que pode crescer dentro do tempo sen�o a justi�a?))
Ajoelhado no terra�o Gaspar olhava o c�u da noite. Olhava a alta e vasta ab�bada nocturna, escura e luminosa, que simult�neamente mostrava e escondia.
E disse:
- Senhor, como est�s longe e oculto e presente! Oi�o apenas o ressoar do teu sil�ncio que avan�a para mim e a minha vida apenas toca a franja l�mpida da tua
aus�ncia. Fito em meu redor a solenidade das coisas como quem tenta decifrar uma escrita dif�cil. Mas �s tu que me l�s e me conheces. Faz que nada do meu ser se esconda. Chama � tua claridade a totalidade do meu ser para que o meu pensamento se torne transparente e possa escutar a palavra que desde sempre me dizes.
Primeiro pareceu a Gaspar que a estrela era uma palavra, uma palavra de repente dita na muda aten��o do c�u.
Mas depois o seu olhar habituou-se ao novo brilho e ele viu que era uma estrela, uma nova estrela, semelhante �s outras, mas um pouco mais pr�xima e mais clara e que muito devagar, deslizava para Ocidente.
E foi para seguir essa estrela que Gaspar abandonou o seu pal�cio. A placa de barro tinha passado de gera��o em gera��o, de idade em idade, de m�o em m�o. Nela estava escrito que ao mundo seria enviado um redentor e que uma estrela se ergueria no Oriente para guiar aqueles que buscavam o seu reino.
A placa era um pequeno rect�ngulo de argila, enegrecido pelo tempo, de aspecto fr�gil, pobre e vetusto. Era um prod�gio que tivesse atravessado, sem se perder, tantos s�culos de ru�nas e opul�ncias, saques, inc�ndios e guerras. Era um prod�gio que tivesse podido atravessar sem se perder a ambi��o, a viol�ncia, a agita��o e a indiferen�a dos homens.
Estava ali, no pal�cio. alinhada ao lado de milhares de placas que enumeravam vit�rias, batalhas, massacres e riquezas.
Os seus caracteres estavam semiapagados pelo tempo e a sua escrita era t�o antiga que se tornava dif�cil decifr�-la com exacto rigor. Muitas leituras eram possiveis.
Por isso o rei Melchior convocou tr�s assembleias de s�bios para que juntos averiguassem qual era a justa interpreta��o daquele texto antiqu�ssimo.
Primeiro vieram os historiadores, aqueles que tinham aprendido toda a ci�ncia das bibliotecas e que conheciam at� ao menor detalhe a escrita, a linguagem, oS usos, os costumes, os anais e os c�digos dos tempos idos.
A assembleia reuniu-se durante um mh�s no pal�cio do rei. Era o meio do Ver�o e o calor poisava pesadamente sobre os terra�os cegos de sol. Nos jardins as palmeiras ro�avam umas nas outras, com um rumor met�lico, as suas folhas afiadas e duras como serras.
Ao cair das tardes os s�bios sentavam-se em c�rculo no p�tio interior do pal�cio. Melchior presidia. Um fino murm�rio de �gua correndo nos tanques acompanhava os debates. Os escravos descal�os circulavam em sil�ncio servindo vinho de t�mara temperado com neve das montanhas.
O c�rculo de homens sentados descrevia uma �rea vazia e no centro dessa �rea tinha sido colocada uma mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro. Parecia extremamente pequena e insignificante. no meio de tanto espa�o e opul�ncia, parecia um detrito das eras antigas que ali tinha sido abandonado pelo tempo.
Durante longos debates, durante trinta dias, os s�bios estudaram e examinaram meticulosamente cada linha dos caracteres antiqu�ssimos.
E ao trig�simo dia ergueu-se Negurat, arquivista-mor do templo da Lua, e disse:
- Creio que a leitura que tu, � rei, fizeste deste texto n�o � a verdadeira. Pois leste: "Ao mundo ser� enviado um redentor e uma estrela subir� no Oriente para guiar aqueles que buscam o seu reino." Mas verdadeiramente � outra a significa��o deste texto antigo: assim, os caracteres onde leste "redentor" significavam, na remota era em que foi gravada esta placa, n�o "redentor" mas sim "grande rei"; e os caracteres onde leste "ser�" e "subir�" n�o exprimem formas verbais do futuro, mas sim formas verbais do passado; e o verbo buscar n�o est� no presente mas sim no pret�rito perfeito; e onde leste "para guiar" dever� ser lido, de acordo com os m�todos de decifra��o dos textos antigos, "guiando". Portanto, � rei, ao contr�rio daquilo que julgaste ler, este texto n�o se refere ao futuro mas sim ao passado, e n�o anuncia o advento de nenhum Salvador, mas antes glorifica as obras dum grande personagem dos tempos idos. Pois a leitura correcta deste texto �, em minha opini�o, a seguinte: "Ao mundo foi enviado um grande rei que como uma estrela dominou o Oriente guiando aqueles que buscaram o seu reino." Quando Negurat acabou de falar, levantou-se Atmad, arquivista-mor do pal�cio e disse:
- Grande � a ci�ncia de Negurat. Mas a interpreta��o da escrita antiga tem terr�veis dificuldades. N�o h� d�vida que no texto apresentado devemos ler "grande rei" e n�o "redentor". No entanto, n�o concordo com aquilo que diz respeito �s formas verbais: creio que o verbo ser e o verbo subir se encontram realmente no futuro. E tamb�m discordo da forma como foram lidas as palavras "guiar", "buscam" e "reino". E penso ainda que o verbo "subir" tem aqui o sentido de "dominar". De forma que, na minha opini�o, a leitura correcta do texto � esta: "Ao mundo ser� enviado um grande rei que como uma estrela dominar� o Oriente para engrandecer aqueles povos que aceitarem o seu poder." Pois esta inscri��o � de facto uma profecia, mas uma profecia que j� foi cumprida. � evidente que o grande rei � o grande Alexandre que dominou todo o Oriente at� ao reino de P�rus e que morreu, como sabeis, em Babil�nia.
E quando Atmad acabou de falar, levantou-se o velho s�bio Akki, que disse:
- Admirei as sapientes palavras que ouvi. Mas na verdade a leitura deste antiqu�simo texto levanta tantas d�vidas e s�o tantas as interpreta��es que podemos propor, que verdadeiramente � rei, nada podemos concluir.
Ent�o levantou-se Melchior e disse:
-Ide em paz e continuai os vossos estudos. Eu continuarei a perguntar, a escutar e a esperar.
E no m�s seguinte reuniu-se no pal�cio
real a assembleia dos letrados.
Melchior prop�s-lhes as d�vidas e as interpreta��es dos historiadores e durante trinta dias os letrados estudaram o texto.
no trig�simo dia, ao cair da tarde, estando todos sentados em c�rculo e estando no meio do c�rculo a mesa de pedra sobre a qual estava poisada a placa de barro. levantou-se Ken-Hur e disse:
- A poesia n�o se exprime directamente. Ora o texto que temos em nossa frente � um poema e por isso mesmo deve ser tomado como uma met�fora que n�o se refere nem ao passado nem ao presente nem ao futuro do mundo em que vivemos. Mas s� ao mundo interior do poeta. que � o mundo da poesia sempre voltado para o devir e para a esperan�a. Este texto n�o fala de factos reais e apenas simboliza o esp�rIto criador do homem.
Falou em seguida Amer, que disse:
- Este texto � um poema e coloca-se por isso � margem do vivido. O poema n�o se refere �quilo que �. mas sim �quilo que n�o �. Pois a natureza � uma caixa cheia de coisas da qual o poeta extrai uma coisa que l� n�o est�.
E levantou-se depois o irm�o de Amer, que disse:
- Num poema n�o devemos buscar sentido, pois o poema � ele pr�prio o seu pr�prio sentido. Assim o sentido de uma rosa � apenas essa pr�pria rosa. Um poema � um justo acordo de palavras, um equil�brio de s�labas, um peso denso, o esplendor da linguagem, um tecido compacto e sem falha que apenas fala de si pr�prio e, como um c�rculo, define o seu pr�prio espa�o e nele nenhuma coisa mais pode habitar.
O poema n�o significa, o poema cria.
E tendo terminado o debate, levantou-se Melchior, que disse:
- Eu vos agrade�o as vossas palavras. Por mim continuarei a buscar, a escutar e a esperar.
Ent�o retiraram-se os letrados e o rei ficou s�zinho no p�tio em frente da placa
de barro, escutando o correr da �gua e o cair da noite.
E no m�s seguinte reuniram-se no pal�cio os homens sapientes. Melchior prop�s-lhes as d�vidas dos historiadores e dos letrados e a nova assembleia deliberou durante trinta dias.
E no trig�simo dia levantou-se Kish, que disse:
- As multid�es ignorantes curvam-se em frente dos �dolos, mas aqueles que meditam conhecem a solid�o do universo. Que redentor poderemos esperar? O universo � como uma m�quina bem regulada que sem princ�pio nem fim gira lentamente atravv�s das idades e dos ciclos. Nas constela��es e nas luas, nos tri�ngulos e nos c�rculos, encontrar�s as leis dos n�meros que se cumprem e se cumprir�o inexor�velmente. Que reden��o poderemos esperar?
E falou depois Maro, que disse:
- Os deuses que existiram extinguiram-se h� muito e aquilo que adoramos � apenas a cinza do divino. Qual �, na idade em que vivemos, o homem que viu um anjo? Onde est� aquele que ouviu, com os seus ouvidos de carne, a palavra de Isis ou de Assur? Vivemos um tempo de viuvez e todas as coisas se tornaram cegas e surdas. Num mundo de injusti�a e de desordem tentamos sobreviver como animais perseguidos. Quebrou-se o la�o que nos ligava ao universo atento. Podemos bater com os punhos na terra, podemos implorar com a cabe�a tocando na poeira. Ningu�m responder�. Cegou o olhar que nos via e o ouvido que nos escutava secou. Tudo nos � alheio como um lugar que n�o nos reconhece. E o brilho dos astros impass�veis cintila sobre a nossa tristeza. Quem pode esperar que uma estrela se mova?
Falou em seguida Tot, e disse:
- Nascemos para morrer. Toda a nossa esperan�a se resolver� em cinza. Onde est� o homem que n�o morreu? O pr�prio Alexandre, filho de �mon, que estabeleceu o seu imp�rio desde o Egipto at� ao reino de P�rus. morreu miser�velmente nos pal�cios de Babil�nia. E no entanto a sua radiosa juventude parecia mostrar a natureza dum deus. e era t�o grande a sua perfei��o que ningu�m a podia julgar mortal. Quem poderia acreditar que morresse o seu corpo equilibrado e liso como uma coluna, a sua intelig�ncia aguda e limpa como o sol, o seu olhar direito que simplificava todas as coisas, o seu rosto brilhante como um estandarte e a sua alegria invenc�vel? Alexandre, pr�ncipe da Maced�nia, filho de �mon, maravilhamento dos povos, conduziu o destino do homem a seus �ltimos limites, de tal forma que nele todos julgaram que a natureza humana tinha conquistado o divino. Mas Alexandre morreu no trig�simo terceiro ano da sua vida, no cimo da sua for�a e da sua gl�ria, em pleno esplendor da sua juventude. E assim os deuses nos disseram que o homem n�o pode ultrapassar o seu destino, e que o seu destino � um destino para a morte. Por isso, � rei, que poderemos esperar? Nada pode modificar a condi��o do homem e nesta condi��o n�o h� lugar para a esperan�a.
Quando os pensadores se retiraram, Melchior levantou-se do trono e avan�ou at� � mesa de pedra. Entre as grandes colunas que rodeavam o p�tio, a placa de argila parecia extraordin�riamente fr�gil e pequena. Mas o rei tocou com a sua fronte as letras quase apagadas, vindo das muralhas, o grito de ronda dos soldados.
E sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se perdiam tacteando, como num labirinto espesso, h�mido e movedi�o, a estrela acendia, jovem, tr�mula e deslumbrada, a sua alegria.
E Meichior deixou o seu pal�cio nessa noite.
Nessa noite, depois de a Lua ter desaparecido atr�s das montanhas, Meichior subiu ao terra�o e viu que havia no c�u, a Oriente, uma nova estrela.
A cidade dormia, escura e silenciosa,
enrolada em ruelas e confusas escadas. Na grande avenida dos templos j� ningu�m caminhava. S� de longe em longe se ouvia.
Rei Baltasar amava a frescura dos jardins e sorria ao ver na �gua clara dos tanques o reflexo da sua cara cor de �bano. E amava a alegria, o rumor e a abund�ncia dos banquetes, e muitas vezes as suas festas duravam at� ao romper do dia.
Por�m, certa madrugada, depois de se terem retirado todos os convivas, o rei ficou na grande sala, s�zinho com um jovem escravo que tocava flauta.
E pareceu-lhe que a melodia desenhava no ar o contorno dum espa�o vazio.
Ent�o o seu cora��o ficou pesado de tristeza, e Baltasar pensou: "Ser� poss�vel que um dia eu me retire da vida como um conviva saciado que se retira dum banquete? Ou terei sempre a mesma sede, a mesma fome, o mesmo desejo dos momentos e dos dias?"
E tendo pensado isto atravessou a porta da sala e saiu para o jardim.
C� fora, na luz indecisa da antemanh�, o jardim parecia suspenso. A bruma confundia o desenho claro dos tanques e dilu�a no ar o contorno das ramagens.
Baltasar caminhou longamente entre flores e palmeiras at� romper o sol. E quando j� era dia chegou a um pequeno terra�o que ficava no extremo do jardim. Debru�ou-se no parapeito e viu, do outro lado da rua estreita, um homem jovem, encostado a uma parede, que o olhava.
Baltasar ficou im�vel como se o rosto do outro lhe tivesse batido na cara. Ou como se o rosto do outro de repente fosse o seu rosto. Ou como se pela primeira vez
na sua vida tivesse visto a cara de outro homem.
O que naquele rosto mais o surpreendia era a nudez, a evid�ncia nua. Era como se naquele rosto o cerimonial da vida tivesse retirado a sua m�scara e a realidade mostrasse, sem nenhum v�u, o abandono, a dor consciente, a condi��o do homem.
Era um rosto de homem jovem e magro onde os ossos desenhavam, sem nenhum equ�voco, o ideograma da fome. A tristeza subia da mais profunda morada da mem�ria e aflorava inteira � tona das pupilas. A paci�ncia, como uma leve cinza, poisava na testa, sobre os bei�os, sobre os ombros. E havia nessa paci�ncia uma do�ura tal que Meichior sentiu de s�bito uma vontade aguda de chorar e de se prostrar com a sua pr�pria cara encostada � terra.
E perguntou:
-Tu, quem �s?
- Tenho fome - murmurou o homem.
- Entra - disse Baltasar. - Vou mandar que te sirvam os melhores frutos, as melhores carnes, os melhores vinhos. Vou mandar que lavem os teus p�s com �gua perfumada numa bacia de oiro. Vou mandar que te vistam de p�rpura. Vou mandar aos meus m�sicos que toquem para te aprazer as mais belas melodias. Vou mandar vir para ti a tocadora de citara. Eu pr�prio colocarei debaixo dos teus p�s o tapete mais precioso, e ficarei sentado ao teu lado para desfazer a tua solid�o, e escutarei as tuas palavras para que possas tomar parte na alegria e para que as fontes e os jardins do pal�cio apaguem a tua tristeza.
Por�m o homem, ouvindo estas palavras, assustou-se. No rosto negro, debru�ado na luz branca do terra�o, reconheceu com terror o rosto do rei. E pensou: ((Ai de mim! Para que me chama o rei? Vim espreitar o seu pal�cio e isto sem d�vida e um crime. � melhor que eu fuja antes que os guardas cheguem.))
Pois aquele homem, como todos os muito pobres, sabia que o mundo era governado por leis que o perseguiam e condenavam, e por isso temia a cada instante ser acusado e preso por uma raz�o desconhecida. Caminhava num pa�s que n�o era seu e onde tudo era para ele inseguran�a e temor.
E por isso fugiu, sumiu-se ofegante entre as curvas da ruela estreita, sem ver o gesto de Baltasar que o chamava.
E no pal�cio o rei disse aos seus guardas:
Ide e procurai nas ruas um homem jovem e magro vestido de farrapos e que tem os olhos cheios de tristeza e de paci�ncia.
Por�m ao cair da tarde, os guardas voltaram e disseram:
- Encontr�mos tantos homens esfarrapados, tristes e pacientes, que n�o soubemos distinguir aquele que tu procuras.
Por isso na manh� seguinte o rei Baltasar, tendo despido os seus vestidos de p�rpura, envolveu-se num manto de estamenha e saiu s�zinho do seu pal�cio para procurar o homem.
Desceu pelas ruelas estreitas da encosta e, longe das grandes avenidas triunfais onde a brisa faz sussurrar as folhas duras das palmeiras, percorreu longamente os bairros pobres da beira do rio. Os carregadores do cais ergueram para ele a face sombria, e o homem que vendia os sapatos de corda poisou no olhar do rei o seu olhar cansado. Viu homens dobrados sob os fardos, viu os que puxavam carro�as como bois, lentos e pacientes como bois, viu os que usavam grilhetas nos p�s, viu os que deslizavam rente �s paredes silenciosos como sombras, viu os que gritavam, os que choravam, os que gemiam. Viu os que estavam s�s, im�veis, encostados aos muros, at�nitos, interrogando, para al�m da voz rouca das ruas, o sil�ncio opaco, fitando em sua frente a estrada recta do sil�ncio. Viu os que pescavam pequenos peixes nas �guas sujas do rio. Viu os que tinham a cara cor de trapo e as m�os feitas de cinza. cinza leve que voava com o vento. Viu a sombra verde, o reino da paci�ncia, o pa�s da desola��o sem margens, o imp�rio dos humilhados, o lado esquerdo da vida, a p�tria deserdada, o fundo do mar da cidade.
E no dia seguinte o rei reuniu os seus ministros e disse-lhes:
- Mandai distribuir os meus tesoiros e mandai distribuir as reservas acumuladas nos armaz�ns e nos celeiros. E reparti tudo entre os esfomeados e os pedintes.
Tendo ouvido isto, os ministros retiraram-se para deliberar.
E voltaram passados tr�s dias, e responderam:
- Os teus tesoiros n�o chegam para resgatar os escravos, e as reservas dos teus armaz�ns n�o chegam para saciar os esfomeados. Nem o teu poder chega para alterar a ordem da cidade. Se cumpr�ssemos aquilo que mandaste, os fundamentos que nos sustentam e os muros que nos protegem ruiriam. O teu desejo � contr�rio ao bem do reino.
E o rei lhes respondeu:
- Procuro outra lei e procuro outro reino.
Ent�o os ministros retiraram-se, murmurando entre si:
-Vemos que ele nos trai.
Na manh� seguinte, dirigiu-se Baltasar ao templo de todos os deuses.
E leu estas palavras gravadas na pedra do primeiro altar:
"Eu sou o deus dos poderosos e �queles
que me imploram concedo a for�a e o dom�nio, eles nunca ser�o vencidos e ser�o temidos como deuses."
Seguiu o rei para o segundo altar e leu:
"Eu sou a deusa da terra f�rtil e �queles que me veneram concedo o vigor, a abund�ncia e a fecundidade e eles ser�o belos e felizes como deuses."
Encaminhou-se o rei para o terceiro altar e leu:
"Eu sou o deus da sabedoria e �queles que me veneram concedo o esp�rito �gil e subtil, a intelig�ncia clara e a ci�ncia dos n�meros. Eles dominar�o os of�cios e as artes, eles se orgulhar�o como deuses das obras que criaram."
E tendo passado pelos tr�s altares, Baltasar interrogou os sacerdotes:
- Dizei-me onde est� o altar do deus que protege os humilhados e os oprimidos para que eu o implore e adore.
Ao cabo dum longo sil�ncio os sacerdotes responderam:
- Desse deus nada sabemos.
Naquela noite, o rei Baltasar, depois de a Lua ter desaparecido atr�s das montanhas, subiu ao cimo dos seus terra�os e disse:
- Senhor, eu vi. Vi a carne do sofrimento, o rosto da humilha��o, o olhar da paci�ncia. E como pode aquele que viu estas coisas n�o te ver? E como poderei suportar o que vi se n�o te vir?
A estrela ergueu-se muito devagar sobre o c�u, a Oriente. O seu movimento era quase impercept�vel. Parecia estar muito perto da terra. Deslizava em sil�ncio, sem que nem uma folha se agitasse. Vinha desde sempre. Mostrava a alegria, a alegria una, sem falha, o vestido sem costura da alegria, a subst�ncia imortal da alegria.
E Baltasar reconheceu-a logo, porque ela n�o podia ser de outra maneira.
Fim
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Obra Poética - Vol's - I, II, III - Sophia de Mello Breyner.doc
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