Danielle Steel
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C�rculo de Leitores
Zoya
Danielle Steel
Tradu��o de
Maria Em�lia Ferros Moura
Copyright 1988
Querida Maxx
Nunca sejas velha de mais ou nova de mais,
mas procura sempre a for�a necess�ria
para viver, amar e questionar,
sempre generosa,
sempre bondosa.
Que a vida continuamente te aben�oe
e nunca com o seu peso te magoe.
Segue com o vento bem atr�s
o sol na alma,
e o nosso amor no cora��o,
agora e para sempre.
O meu cora��o,
o meu amor, a minha vida,
de ti e do teu pai
sempre ser�o.
D. S.
ZOYA
Vagueando pelo mundo
por lugares m�gicos
rostos queridos
sussurrando do passado,
nuvens de mem�rias
erguendo-se da sua vida
e do seu nome,
nada sendo no momento,
como era h� muito tempo,
os pal�cios,
as mem�rias,
os sonhos,
a estrutura de tudo o que foi,
de tudo o que devia e
podia ter sido
e do que outrora vira,
uma vida de magia,
de pal�cios e sal�es
tudo transformado em neve derretida
tudo se desfazendo em chuva esbatida,
o riso, a m�sica,
beleza, dor,
os amigos,
os sorrisos, no passado perdidos,
as mem�rias suaves qual orvalho
e cetim ro�ando a face, t�o macios...
uma vida para procurar de novo
o que desapareceu rapidamente,
uma suave can��o de Inverno
envolta na concha do amor,
uma vida qual labareda viva
t�o depressa consumada.
SAMPETERSBURGO
CAPITULO 1
Zoya fechou novamente os olhos, enquanto a tr�ica voava sobre
o solo gelado. A leve bruma da neve depositava-lhe pequenos beijos
molhados na face e rendilhava-lhe as pestanas, ao mesmo tempo que
o som dos guizos dos cavalos soava como m�sica aos seus ouvidos.
Eram os sons que amava desde a inf�ncia. Aos dezassete anos
considerava-se crescida, era na verdade quase uma mulher e,
contudo, ainda se sentia uma crian�a enquanto Feodor fazia avan�ar
os cavalos pretos e luzidios com o estalido do chicote... mais
depressa... mais depressa... atrav�s da neve.
Quando voltou a abrir os olhos, avistou a aldeia mesmo �
sa�da de Tsarskoie Selo. Sorriu intimamente e semicerrou os olhos
para divisar os pal�cios geminados para l� dela, descal�ando em
seguida uma grossa luva forrada de pele, a fim de verificar quanto
tempo demorara a viagem. Prometera � m�e que chegaria a casa a
horas do jantar... e assim seria... se n�o ficassem muito tempo
� conversa... Mas como poderia isso ser? Marie era a sua melhor
amiga, quase uma irm�.
O velho Feodor virou-se para tr�s e sorriu-lhe ao ouvi-la rir
de excita��o. Tinha sido um dia perfeito. Adorava as aulas de
ballet e, at� mesmo agora, conservava as sapatilhas enfiadas no
assento, ao seu lado.
Dan�ar era um prazer especial, sempre havia sido a sua paix�o
desde muito novinha e, por vezes, sussurrava em segredo a Marie
que o maior desejo da sua vida era fugir para o Marinski para
viver l� e praticar dia e noite com os outros bailarinos. S� a
ideia provocava-lhe agora um sorriso. Era um sonho que n�o podia
expressar em voz alta; as pessoas da sua classe n�o se tornavam
bailarinas profissionais.
Tinha, contudo, o talento, sabia-o desde os cinco anos, e as
li��es com Madame Nastova proporcionavam-lhe, pelo menos, o prazer
de estudar o que mais gostava. Trabalhava arduamente ao longo das
horas que l� passava, imaginando sem cessar que, um dia, Fokine,
o grande mestre da dan�a, a descobriria. O pensamento desviou-se,
todavia, rapidamente do ballet para a sua amiga de inf�ncia,
enquanto a tr�ica atravessava a aldeia, a toda a velocidade, rumo
a casa da sua prima Marie.
O pai de Zoya, Konstantin, e o czar eram primos afastados e,
tal como a de Marie, tamb�m a sua pr�pria m�e era alem�.
Possu�am tudo em comum, as paix�es, os segredos, o mundo. Haviam
partilhado os mesmos terrores e alegrias quando eram crian�as e
agora tinha de v�-Ia, embora tivesse prometido � m�e que n�o o
faria. Que coisa est�pida! Por que raz�o n�o havia de v�-Ia? N�o
visitaria os que estavam doentes nos quartos e Marie estava
�ptima. No dia anterior mandara um bilhete a Zoya, comunicando-lhe
o quanto estava desesperadamente aborrecida com os outros doentes,
� volta dela. E, afinal, n�o era nada de grave. Apenas sarampo.
Os camponeses apressavam-se a sair da estrada quando a tr�ica
passava a toda a velocidade e Feodor incitava os tr�s cavalos
pretos que os transportavam. Trabalhara desde mi�do para o av�
dela e j� o pai, antes dele, trabalhara para a fam�lia. S� por
Zoya teria arriscado enfrentar a ira do pai e o silencioso e
elegante desagrado da m�e, mas Zoya prometera-lhe que ningu�m
viria a saber e j� a levara l� n�l vezes. Zoya visitava as primas
quase diariamente - que mal poderia haver em faz�-lo? - embora o
pequeno e fr�gil filho do czar e as irm�s mais velhas tivessem
sarampo.
Alexis era apenas um mi�do e n�o um rapaz saud�vel, como
todos sabiam. Mademoiselle Zoya era jovem, saud�vel, forte, e
muito, muito bonita. Fora a crian�a mais bonita que Feodor alguma
vez tinha visto, e Ludmilla, a sua mulher, tomara conta dela em
beb�. A mulher morrera no ano anterior de febre tif�ide, uma
terr�vel perda para ele, sobretudo porque n�o tinham filhos. A sua
�nica fam�lia era aquela para quem trabalhava.
A Guarda Cossaca deteve-os junto ao port�o e Feodor puxou
bruscamente as r�deas dos cavalos arquejantes. A neve ca�a agora
com mais for�a e dois guardas a cavalo aproximaram-se, com grandes
gorros de pele e uniformes verdes, de express�o amea�adora at�
verem de quem se tratava.
Zoya era uma figura familiar em Tsarskoie Selo. Apressaram-se
a saudar delicadamente, Feodor incitou de novo os cavalos e
passaram a toda a velocidade junto � Capela Fedorovski, rumo ao
Pal�cio Alexandre. Das muitas moradas imperiais, era esta a
favorita da imperatriz. Raramente utilizavam o Pal�cio de Inverno
em Sampetersburgo, excepto para bailes e eventos oficiais. Todos
os anos, em Maio, se mudavam para a villa na propriedade de
Peterhof e, depois de Ver�es passados no seu iate, o Estrela
Polar, e em Spala, na Pol�nia, iam sempre para o Pal�cio Livadia,
em Setembro.
Zoya estava frequentemente com eles, at� regressar �s auIas
no Instituto Smolny. Contudo, o Pal�cio Alexandre era igualmente
o seu favorito. Tinha uma paix�o pelo famoso toucador cor de malva
da imperatriz e pedira que o seu quarto, em casa, tivesse os
mesmos esbatidos tons de opala do que o da tia Alix. A m�e sentia-
se divertida que assim fosse e, no ano anterior, decidira fazer-
lhe a vontade. Marie tro�ava dela sempre que a visitava, afirmando
que o quarto lhe recordava demasiado o da m�e.
Feodor desceu do assento e dois jovens pegaram nas r�deas dos
cavalos nervosos, ao mesmo tempo que a neve lhe ro�ava a cabe�a
e ele estendia uma m�o a Zoya. Os flocos agarravam-se ao pesado
casaco de peles da jovem que tinha as faces vermelhas do frio e
da viagem de duas horas de Sampetersburgo.
"Teria apenas o tempo suficiente para tomar ch� com a amiga",
pensou de si para si e desapareceu na imponente entrada do Pal�cio
Alexandre, enquanto Feodor se apressava a ir tratar dos cavalos.
Possu�a amigos nos est�bulos e gostava de trazer-lhes not�cias da
cidade, passando algum tempo com eles � espera da sua jovem ama.
Duas criadas pegaram-lhe no casaco, enquanto Zoya tirava
vagarosamente o gorro de marta da cabe�a, libertando uma farta e
revolta cabeleira que levava muitas vezes as pessoas a parar e a
olharem quando ela a usava solta, o que fazia frequentemente no
Livadia, no Ver�o.
Alexis, o jovem filho do czar, gostava de gracejar com ela
por causa do brilhante cabelo ruivo e acariciava-o com suavidade
entre as m�os delicadas, sempre que ela o abra�ava. Para Alexis,
Zoya era praticamente como se fosse uma das suas irm�s. Nascida
duas semanas antes de Marie, era da mesma idade, tinham
temperamentos iguais e ambas o mimavam a toda a hora, tal como o
resto das irm�s. Elas, a m�e e a fim�lia mais chegada tratavam-no
por Baby. Mesmo agora, que tinha doze anos, ainda o viam assim e
Zoya perguntou por ele com uma express�o s�ria. Uma das duas
criadas abanou a cabe�a.
- Pobrezinho! - comentou. - Est� coberto de manchas e com
uma tosse horr�vel. Monsieur Gilliard tem passado o dia junto
dele. Sua Alteza tem estado ocupada com as meninas.
Alexis pegara o sarampo a Olga, Tatiana e Anastasia e
tratava-se de uma verdadeira epidemia, motivo por que a m�e de
Zoya quisera que ela se mantivesse afastada. Contudo, Marie n�o
apresentara at� ao momento quaisquer sintomas da doen�a e no
bilhete que escrevera a Zoya no dia anterior suplicava-lhe que
aparecesse... Vem ver-me, minha querida Zoya, se a tua m�e te
deixar..
Os olhos verdes de Zoya brilhavam. Abanou a farta cabeleira
e alisou o grosso vestido de l�. Tinha despido o uniforme escolar
depois da aula de ballet e percorreu a passo r�pido o imenso
corredor at� � porta familiar que a levaria ao quarto espartano
de Marie e Anastasia. A caminho, passou silenciosamente junto ao
quarto onde o pr�ncipe Meshcherski, o ajudante-de-campo do czar,
estava sempre sentado a trabalhar. Contudo, ele nem se apercebeu
quando, cal�ada com as pesadas botas, ela subiu as escadas sem
fazer barulho, bateu � porta do quarto e ouviu a voz familiar:
- Sim?
Rodou a ma�aneta com a m�o esguia e graciosa e uma madeixa
de cabelo ruivo pareceu anteced�-la quando enfiou a cabe�a e
avistou a prima e amiga, tranquilamente de p� junto � janela. Os
grandes olhos azuis de Marie brilharam de imediato e correu ao
encontro dela, ao mesmo tempo que Zoya se lan�ava como uma flecha
nos seus bra�os para a beijar.
- Vim salvar-te, Mashka, minha querida!
- Gra�as a Deus! Julguei que ia morrer de t�dio. Todos aqui
est�o doentes. At� a pobre Anna ficou ontem de cama com sarampo.
Est� no quarto ao lado dos aposentos da minha m�e, que insiste em
tratar de todos. Passou o dia a levar-lhes sopa e, quando est�o
a dormir, vai � ala ao lado cuidar dos homens. At� parece que h�
dois hospitais em vez de um... - comentou, fingindo puxar os
cabelos castanhos e provocando o riso em Zoya. O Pal�cio Catarina,
ao lado da casa, fora transfonnado em hospital no in�cio da guerra
e a imperatriz trabalhava ali incansavelmente, com o uniforme da
Cruz Verrnelha, esperando que as filhas lhe seguissem o exemplo;
por�m, de todas, Marie era a que menos gostava de tais obriga��es.
- Mal consegui aguentar! - desabafou. - Receava que n�o viesses.
E a m�ezinha ficaria t�o zangada, se soubesse que te pedi.
As duas jovens atravessaram o quarto de bra�o dado e
sentaram-se junto � lareira. A divis�o que partilhava com
Anastasia era simples e austera. � semelhan�a das outras inn�s,
Marie e Anastasia dispunham de camas simples de ferro, len��is
brancos engomados, uma pequena secret�ria e sobre a cornija da
lareira havia uma fila de ovos da P�scoa de delicado fabrico.
Marie guardava-os de ano para ano, feitos por amigos e oferecidos
pelas inn�s. Eram de malaquite e madeira e alguns belamente
talhados ou incrustados de pedras. Prodigalizava-lhes os mesmos
cuidados que aos seus pequenos tesouros.
Os aposentos das crian�as nada exibiam da opul�ncia ou luxo
dos quartos dos pais ou do resto do pal�cio. E, atirado para cima
de uma das duas cadeiras do quarto, havia um bonito xaile bordado
que Anna Virubova, uma grande amiga da m�e, lhe fizera. Tratava-se
da mesma mulher a que Marie se referira quando Zoya entrara. E
agora a sua amizade havia sido compensada por um caso de sarampo.
A ideia fez com que as duas jovens exibissem um sorriso de
superioridade por terem escapado � doen�a.
- Mas sentes-te bem? - indagou Zoya com um olhar afectuoso
e parecendo ainda mais fr�gil dentro do pesado vestido de l�
cinzenta que pusera para se sentir mais quente na viagem de
Sampetersburgo.
Zoya era mais baixa do que Marie e ainda mais delicada,
embora Marie fosse considerada a beleza da fam�lia. Herdara os
fant�sticos olhos azuis do pai e o seu encanto. E gostava muito
mais de j�ias e roupas bonitas do que as irm�s. Era uma paix�o que
partilhava com Zoya. Passavam horas a falar dos belos vestidos que
tinham visto e a experimentar os chap�us e as j�ias da m�e de
Zoya, sempre que Marie aparecia de visita.
- Estou �ptima... S� que a mam� n�o me deixa ir � cidade com
a tia Olga no don�ngo. - Era um ritual que adorava. Todos os
domingos, a sua tia, a gr�-duquesa Olga Alexandrovna levava-os a
todos � cidade a almo�arem com a av� no Pal�cio Anitchkov e a
visitar uma ou duas amigas, mas, com a doen�a das irm�s, tudo
estava a ser cortado. O rosto de Zoya ensombrou-se ante as
not�cias.
- J� o receava. E gostava tanto de mostrar-te o meu vestido
novo. A av� comprou-mo em Paris. - A av� de Zoya, Eugenia
Peterovna Ossupov, era uma mulher extraordin�ria. Pequena e
elegante, possu�a uns olhos que ainda emitiam um brilho de
esmeralda aos oitenta e um anos. E todos insistiam que Zoya era
muito parecida com ela. A m�e de Zoya era alta, esguia e l�nguida,
uma beleza loura de olhos azuis, do g�nero que apetece proteger
do mundo, e o pai sempre o fizera. Tratava-a como a uma crian�a
delicada, muito diferente da exuberante filha. - A av� comprou-me
um bel�ssinio vestido de cetim rosa enfeitado de perolazinhas.
Gostava tanto que o visses! - insistiu. As duas jovens, id�nticas
a duas crian�as, falavam de vestidos como se falassem dos seus
ursos de peluche e Marie bateu palmas de satisfa��o.
- Mal posso esperar! - exclamou. - Na pr�xima semana, todos
estar�o bem. Ent�o, iremos, prometo. E nessa altura, vou fazer-te
um quadro para aquele teu horr�vel quarto cor de malva.
- N�o te atrevas a dizer mal do meu quarto! � quase t�o
elegante como o da tua m�e!
As duas jovens riram e Joy, a cocker spanie1 das crian�as,
entrou aos saltos no quarto e ro�ou, satisfeita, os p�s de Zoya,
que aquecia as m�os � lareira, enquanto contava tudo a Marie sobre
as outras raparigas do Smolny. Marie adorava ouvir-lhe as
hist�rias, dado estar enclausurada no meio do irm�o e das irm�s,
com Pierre Gilliard como tutor e Mr. Gibbes a ensinar-lhes ingl�s.
- Pelo menos, agora n�o temos aulas. Mons�eur Gilliard tem
andado muito ocupado com o Baby. E h� uma semana que n�o o vejo.
O paizinho diz que ele tem pavor de apanhar sarampo.
As duas jovens riram novamente e Marie p�s-se a apanhar o
cabelo ruivo de Zoya numa tran�a. Era um passatempo a que se
dedicavam desde muito mi�das, o de entran�ar mutuamente o cabelo
enquanto conversavam sobre Sampetersburgo e as pessoas que
conheciam, embora tudo estivesse muito mais calmo desde o come�o
da guerra.
Os pr�prios pais de Zoya n�o davam tantas festas como dantes,
com muita pena dela. Adorava falar com os homens de fardas
reluzentes e observar as mulheres de vestidos elegantes e belas
j�ias. Dava-lhe novidades para contar a Marie e irm�s sobre os
namoricas que observara, quem estava bonita e quem n�o estava e
quem ostentava o mais espectacular colar de diamantes.
Tratava-se de um mundo que n�o existia em nenhuma outra
parte, o mundo da R�ssia imperial. Zoya sempre vivera feliz nesse
meio, uma condessa como a m�e e a av� antes dela, parente distante
do czar por parte do pai, ela e a fam�lia sempre usufruindo de uma
posi��o de privil�gio e luxo, relacionadas com muitos nobres. At�
a sua casa constitu�a uma vers�o mais pequena do Pal�cio
Anitchkov, e as companheiras de folguedos eram as pessoas que
faziam Hist�ria, s� que aos seus olhos tudo parecia vulgar e
norinal.
- A Joy parece t�o feliz - comentou, observando a cadela que
brincava aos seus p�s. - Que tal os cachorrinhos?
- S�o um amor - retorquiu Marie esbo�ando um sorriso secreto
e encolhendo os ombros bem torneados. - Oh, espera... - Deixou
cair a longa tran�a que fizera do cabelo de Zoya e precipitou-se
para a secret�ria, a fim de ir buscar algo de que quase se
esquecera. Zoya sup�s de imediato que se tratava da carta de um
dos seus amigos, de uma fotografia de Alexis ou das inn�s. Marie
dava sempre a sensa��o de ter tesouros a partilhar quando se
encontravam, mas desta vez pegou num fresquinho e estendeu-o
orgulhosamente � amiga.
- O que � isso?
- Uma coisa maravilhosa... toda para ti! - Depositou um
beijo suave na face de Zoya que inclinou a cabe�a sobre o
fresquinho.
- Oh, Mashka! � mesmo?... �! - Confinnou, aspirando. Era
Lilas, o perfume favorito de Marie, que Zoya cobi�ava h� meses. -
Onde o arranjaste?
- A Lili trouxe-mo de Paris. Pensei que te agradaria. Ainda
tenho bastante do que a mam� me deu.
Zoya fechou os olhos e respirou fundo, com uma express�o
feliz e inocente. Os prazeres das duas jovens eram t�o inofensivos
e simples: os cachorrinhos, o perfume... e, no Ver�o, longos
passeios pelos campos perfumados de Livadia... ou brincadeiras no
iate real, enquanto deslizavam atrav�s dos flordes.
Era uma vida t�o perfeita, at� mesmo distante das realidades
da guerra, embora por vezes falassem do assunto. Marie ficava
sempre perturbada depois de passar um dia com os homens a que
davam assist�ncia no pal�cio ao lado da casa. Parecia-lhe t�o
cruel que fossem feridos e ficassem estropiados... que
morressem... mas n�o mais do que a pennanente e amea�adora doen�a
do irm�o. A hemofilia de que ele sofria era frequentemente o
t�pico das conversas mais secretas e s�rias de ambas. Quase
ningu�m, exceptuando a fam�lia, conhecia a verdadeira natureza da
doen�a.
- Ele est� bem, n�o est�? Quero dizer... o sarampo n�o... -
Os olhos de Zoya denotavam uma enorme preocupa��o quando pousou
o precioso frasco de perfume e voltaram a falar de Alexis. A
express�o de Marie era, contudo, tranquilizadora.
- N�o me parece que o sarampo o prejudique. A m�ezinha
garante que a Olga est� muito mais doente do que ele. - Olga era
quatro anos mais velha do que elas e muito mais s�ria. Era tamb�m
penosamente t�mida, ao inv�s de Zoya, Marie ou das suas outras
duas inn�s.
- Hoje, tive uma aula de ballet maravilhosa - suspirou Zoya,
no preciso momento em que Marie tocava a campainha para que lhe
trouxessem ch�. - Quem me dera poder fazer algo de extraordin�rio
com isto.
Marie riu. N�o era a primeira vez que escutava os sonhos da
sua querida amiga.
- Como o qu�? Ser descoberta pelo Diaghilev?
As duas jovens soltaram uma gargalhada, mas os olhos de Zoya
emitiam um intenso brilho, quando falou. Tudo nela era intenso,
os olhos, o cabelo, a forma como mexia as m�os ou corria pelo
quarto, ou rodeava a amiga com os bra�os. Era pequena, mas
transbordante de for�a, vida e entusiasmo. O pr�prio nome
significava vida e parecia a escolha perfeita para a rapariga que
fora e a mulher em que se transformava aos poucos.
- Falo a s�rio... e Madame Nastova garante que sou muito boa.
- Marie riu novamente e os olhos das jovens encontraram-se, ambas
com o mesmo pensamento... centrado em Mathilde Kschessinska, a
bailarina que tinha sido amante do czar, antes de ele casar com
Alexandra... um assunto totalmente proibido e apenas mencionado
em noites escuras de Ver�o e sempre �s escondidas dos adultos.
Um dia, Zoya mencionara algo a esse respeito � m�e, e a
condessa ficara furiosa, proibindo-a de o abordar novamente. Era,
sem d�vida, um tema nada adequado para jovens. Contudo, a av�
mostrara-se menos austera quando ela voltara a foc�-lo e confessou
num tom divertido que a mulher era uma talentosa bailarina.
- Continuas a sonhar fugir para o Marinski? - H� anos que n�o
falava no assunto, mas Marie conhecia-a bem, o bastante para saber
quando estava a brincar ou n�o, e at� que ponto falava a s�rio em
rela��o aos seus sonhos privados.
Sabia tamb�m que para Zoya era um sonho imposs�vel. Um dia,
a amiga casaria e teria filhos, seria t�o elegante como a m�e, e
n�o viveria na famosa escola de ballet. Era, contudo, divertido,
falar de coisas assim, e sonhar numa tarde de Fevereiro, bebendo
o ch� em pequenos goles e observando Joy a cabriolar pelo quarto.
A vida parecia bastante c�moda na altura, mau grado a
presente epidemia imperial de sarampo. Com Zoya, Marie podia
esquecer por um tempo os seus problemas, as suas
responsabilidades. Desejava poder vir a ser t�o livre quanto Zoya.
Sabia perfeitamente que, algum dia, os pais escolheriam o homem
com quem viria a casar. Todavia, tinham de pensar primeiro nas
suas duas irm�s mais velhas... De olhos fixos no fogo, interrogou-
se sobre se, na realidade, o amaria.
- Em que estavas a pensar? - inquiriu Zoya num tom suave,
enquanto o fogo crepitava e a neve ca�a l� fora. J� estava escuro
e Zoya esquecera a sua pressa de regressar a casa. - Mashka?...
Tinhas um ar t�o s�rio. - Acontecia frequentemente quando n�o
estava a rir. Os olhos eram t�o intensos, azuis e t�o quentes e
bondosos, contrariamente � m�e.
- N�o sei... Idiotices, suponho... - Esbo�ou um sorriso
afectuoso � amiga. Ambas tinham quase dezoito anos e o casamento
come�ava a aflorar-lhes � mente... talvez depois da guerra... -
Interrogava-me sobre com quem casaremos um dia. - Era sempre
honesta com Zoya.
- Tamb�m penso nisso de vez em quando. A av� diz que � quase
altura de pensar no assunto. Acha que o pr�ncipe Orlov seria um
homem bom para mim... - E depois soltou uma s�bita risada, abanou
a cabe�a e o cabelo soltou-se da tran�a que Mashka lhe fizera. -
J� alguma vez viste algu�m e pensaste que deveria ser ele?
- N�o muito. A Olga e a Tatiana devem casar primeiro. E a
Tatiana � t�o s�ria. Nem sequer a imagino desejando casar-se. -
De todas, era ela a mais chegada � m�e e Marie imaginava-a
facilmente a querer ficar eternamente no seio da fam�lia. - Mas
seria engra�ado ter filhos.
- Quantos? - espica�ou-a Zoya.
- Cinco, pelo menos. - Era o tamanho da sua pr�pria fam�lia
e sempre lhe parecera perfeita.
- Eu quero seis - retorquiu Zoya, com uma certeza absoluta. -
Tr�s rapazes e tr�s raparigas.
- Todos de cabelo ruivo! - Marie riu, tro�ando da amiga e
debru�ando-se sobre a mesa para lhe acariciar suavemente a face. -
�s de facto a minha maior amiga. - Os olhos cruzaram-se e Zoya
pegou-lhe na m�o, beijando-a com um arrebatamento de crian�a.
- Sempre desejei que fosses minha inn�. - Tinha, em vez
disso, um irm�o mais velho que a atormentava sem piedade,
sobretudo por causa do cabelo ruivo. O dele era escuro como o do
pai, embora tamb�m tivesse os olhos verdes. E possu�a a tranquila
for�a e dignidade do pai. Era um jovem de vinte e tr�s anos, cinco
anos e meio mais velho do que a irm�.
- Que tal est� o Nicolai?
- Um horror como sempre. Contudo, a mam� parece extremamente
satisfeita por ele estar com a Guarda Preobrajenski aqui, e n�o
algures, na frente. A av� diz que ele ficou para n�o perder
nenhuma festa.
Ambas riram e o momento s�rio passou. A porta abriu-se sem
ru�do para dar passagem a uma mulher alta que entrou no quarto e
as observou um instante, antes que dessem pela sua presen�a. Um
enorme gato cinzento seguira-a e tamb�m se mantinha a observar ao
seu lado. Era a imperatriz Alexandra, vinda do quarto das doentes,
onde estivera a tratar das outras tr�s filhas.
- Boa tarde, meninas. - Sorriu quando Zoya se virou, e as
duas jovens puseram-se de p�. Zoya apressou-se a ir heij�-Ia. A
czarina tivera sarampo h� muitos anos e sabia que n�o havia risco
de cont�gio.
- Tia! Como est�o todas?
- Bom, n�o est�o l� muito bem - suspirou com um sorriso
fatigado, abra�ando Zoya afectuosamente. - A pobre Anna parece ser
a que est� pior. - Referia-se � sua querida amiga Anna Virubova
que, juntamente com Lili Dehn, era a sua companheira mais chegada.
- E tu, mi�da? Est�s bem?
- Estou, muito obrigada. - Corou, como frequentemente lhe
acontecia. Era o que mais odiava na sua complei��o de ruiva, isso
e queimar-se sempre sob o so no iate real, ou quando iam a
Livadia.
- Surpreende-me que a tua m�e te deixasse visitar-nos, hoje.
- Sabia o enorme medo que a condessa tinha do cont�gio. No
entanto, as faces ruborizadas de Zoya indicaram-lhe o que a
rapariguinha fizera mesmo sem o admitir e a czarina riu e acenou-
lhe com um dedo. - � isso, portanto, o que fizeste? E o que vais
dizer-lhe? Onde estiveste hoje?
Zoya soltou uma risada culpada e depois admitiu diante da m�e
de Marie o que planeara dizer aos seus.
- Passei horas e horas na aula de ballet, a trabalhar imenso
com Madame Nastova.
- Percebo. � chocante que jovens da vossa idade inventem tais
mentiras, mas devia ter sabido que n�o conseguir�amos manter-vos
afastadas. - Virou-se depois para a filha. - J� deste o presente
� Zoya, meu amor? - A imperatriz sorriu-lhes. Era habitualmente
uma mulher reservada, mas o cansa�o parecia torn�-la mais
vulner�vel e calorosa.
- J�! - informou logo Zoya, deliciada e com um gesto na
direc��o do frasco de Lilas pousado em cima da mesa. - � o meu
favorito! - Os olhos da czarina fitaram interrogativamente Marie
e a filha soltou uma risada e saiu a correr do quarto, deixando
a amiga a conversar com a m�e. - O tio Nicolau est� bem?
- Est�, embora mal o veja. O pobre homem regressou a casa
vindo da frente de combate para descansar e, em vez disso, v�-se
aqui no meio de um cerco de sarampo.
As duas riam quando Marie voltou com algo embrulhado num
peda�o de cobertor. Ouviu-se um estranho pio, quase como se fosse
um p�ssaro e, um momento depois, apareceu um focinho castanho e
branco, com compridas orelhas e olhos brilhantes cor de �nix. Era
um dos cachorrinhos da sua cadela.
- Oh, � t�o querido! H� semanas que n�o via nenhum! - Zoya
estendeu a m�o e o animal emitiu uma s�rie de ganidos e lambeu-lhe
os dedos.
- � uma "ela" e chama-se Sava - indicou Marie num tom
orgulhoso e fitando Zoya com um olhar excitado. - A mam� e eu
queremos que fiques com ela. - Estendeu-lhe a cadelinha.
- Para mim? Oh, c�us... O que... - Estava prestes a replicar:
"O que dir� a minha m�e?", mas n�o queria que lhe retirassem o
presente e calou-se de imediato, s� que a imperatriz entendera
tudo.
- Oh, meu Deus... A tua m�e n�o gosta de c�es, pois n�o,
Zoya? Tinha-me esquecido. Ficar� muito zangada comigo?
- N�o!... n�o... de fonna alguma - contrap�s num tom feliz,
agarrando na cadelinha e apertando-a, enquanto Sava lhe lambia o
nariz, a cara e os olhos; tentou esconder a cabe�a, antes que a
pequena spaniel lhe puxasse o cabelo. - Oh, ela � t�o amorosa! �
mesmo minha?
- Fazias-me um grande favor se a levasses, minha querida -
retorquiu a imperatriz a sorrir, deixando-se cair numa das duas
cadeiras com um suspiro. Parecia extremamente cansada e Zoya
reparou que n�o despira o unifonue da Cruz Vermelha. Interrogou-se
sobre se o usara para cuidar das crian�as doentes e da amiga, ou
se tamb�m trabalhara no hospital nesse dia. Tomava muito a peito
a sua ocupa��o ali e insistia para que as filhas a imitassem.
- Apetece-lhe um ch�, mam�?
- Muito. Obrigada, Mashka.
Marie tocou a campainha para chamar a criada, que apareceu
logo, sabendo que a czarina estava com elas e uma ch�vena de ch�
quente e acabado de fazer surgiu como por encanto. Marie serviu
e as duas companheiras juntaram-se-lhe.
- Obrigada, querida - agradeceu a czarina, virando-se em
seguida para a prima afastada do marido. - A tua av� tem passado
bem, Zoya? H� meses que n�o a vejo. Tenho estado t�o ocupada. J�
nem consigo ir a Sampetersburgo.
- Est� muito bem, obrigada, tia Alix.
- E os teus pais?
- Optimos. A mam� sempre preocupada com a hip�tese de o
Nicolai ser mandado para a frente. O pap� diz que lhe causa um
enorme nervosismo.
De facto, tudo causava um enorme nervosismo a Natalya Ossupov
que era uma mulher muito fr�gil, e o marido acedia aos seus
m�nimos caprichos. A czarina dissera muitas vezes a Marie em
particular que achava que essa atitude era muito pouco saud�vel
para ele, mas Zoya, pelo menos, nunca adoptara aqueles ares
l�nguidos. Era uma jovem cheia de vida e entusiasmo. Alexandra
lembrava-se sempre da m�e de Zoya, reclinada numa cadeira, vestida
de seda branca da cabe�a aos p�s, p�lida e loura, enfeitada de
p�rolas e com um olhar aterrorizado, como se a vida fosse um fardo
excessivo. No come�o da guerra, pedira-lhe que a ajudasse no seu
trabalho com a Cruz Vermelha, e Natalya respondera simplesmente
que era incapaz de aguentar. N�o era um dos esp�cimes mais
corajosos perante a vida, mas a czarina absteve-se nesse momento
de coment�rios e limitou-se a um aceno de cabe�a.
- D�-lhe saudades minhas quando chegares a casa. - Ao ouvir
estas palavras, Zoya olhou l� para fora e tomou consci�ncia de
como se fizera escuro. P�s-se em p� de um salto e consultou o
rel�gio, horrorizada.
- Oh! Tenho de ir para casa! A mam� vai ficar furiosa!
- N�o duvides! - exclamou a czarina a rir e acenou-lhe com
um dedo, enquanto se levantava e a sua figura pairava sobre a
rapariguinha. - N�o deves mentir � tua m�e sobre onde est�s! E sei
que ela ficar� extremamente preocupada por te teres exposto ao
nosso sarampo. J� o tiveste?
- N�o, n�o tive - declarou Zoya, a rir -, mas n�o vou apanh�-
lo e se assim for... - Encolheu os ombros com outro ataque de riso
e Mashka imitou-a. Era uma das coisas que Marie apreciava nela,
a coragem e aquela despreocupa��o. Tinham-se metido juntas em
alguns sarilhos ao longo dos anos, mas nada de perigoso nem
verdadeiramente prejudicial.
- Vou mandar-te para casa. E tenho de regressar at� junto das
crian�as e da pobre Anna... - Beijou-as e saiu do quarto, enquanto
Marie ia buscar a cadelinha onde esta se escondera e a embrulhava
no cobertor, estendendo-a a Zoya.
- N�o te esque�as da Sava!
- Posso mesmo ficar com ela? - inquiriu Zoya ao mesmo tempo
que os olhares se cruzavam numa onda de afecto.
- � tua. Foi sempre essa a ideia, mas quis fazer-te uma
surpresa. Agasalha-a no casaco, no caminho para casa. Assim,
ficar� quente. - Sava tinha apenas sete semanas e nascera durante
o Natal russo. Zoya ficara excitad�ssima quando a vira pela
primeira vez no dia de Natal, na altura em que a sua fam�lia viera
jantar com a do czar. - A tua m�e vai ficar furiosa, n�o? -
inquiriu Marie � gargalhada e Zoya acompanhou-a naquela explos�o
de alegria.
- Sim, mas digo-lhe que a tua ficaria terrivelmente
desiludida, se a mand�ssemos de volta. A mam� ficar� com imenso
receio de ofend�-la. - As duas jovens ainda riam quando Marie a
acompanhou at� � porta no andar inferior e a ajudou a vestir o
casaco, enquanto agarrava na cadelinha. Tapou os cabelos ruivos
com o gorro e as duas amigas despediram-se. - Toma cuidado contigo
e n�o adoe�as!
- N�o fa�o ten��o! - Estendeu-lhe igualmente o frasco de
perfume e Zoya agarrou-o com a m�o enluvada. A criada indicou-lhe
que Feodor estava pronto.
- Voltarei dentro de um ou dois dias... prometo... e
obrigada! - Zoya abra�ou-a e dirigiu-se rapidamente � tr�ica, onde
Feodor a esperava. Este tinha as faces e o nariz vernielhos e ela
sabia que ele estivera a beber com os amigos nos est�bulos, mas
n�o interessava. Precisaria de se manter quente, enquanto
regressavam a toda a pressa a Sampetersburgo. Ajudou-a a sentar-se
e sentiu-se aliviada ao ver que deixara de nevar. - Temos de
apressar-nos, Feodor... a mam� vai ficar zangad�ssima comigo, se
chegar tarde.
Sabia, por�m, que n�o havia forma de chegar a tempo para o
jantar. J� estariam sentados quando ela aparecesse... e a
cadelinha!... Riu em voz alta enquanto o chicote estalava na noite
gelada e a tr�ica avan�ava, puxada pelos tr�s garbosos cavalos
pretos. Um instante depois, atravessaram os port�es e os cossacos
montados nos cavalos transformaram-se numa mancha, ao mesmo tempo
que atravessavam a aldeia de Tsarskoie Selo.
CAPITULO 2
Fecodor fustigava os cavalos da tr�ica rumo a Nevski e Zoya
apertava a cadelinha de encontro ao corpo, tentando recompor-se
e inventar desculpas que apaziguassem a m�e. Ela sabia que, sendo
Feodor a conduzi-la, estariam seguros, mas a m�e ficaria decerto
furiosa por chegarem t�o tarde e por ela ainda por cima levar a
cadelinha.
Em Fontanka, viraram subitamente � esquerda e os cavalos
apressaram o passo, sabendo muito bem que estavam quase em casa
e ansiosos por voltarem ao seu est�bulo. Conhecendo bem o terreno,
Feodor deu-lhes r�dea solta e momentos depois estendia-lhe a m�o
para que descesse. Tomada de uma s�bita inspira��o, retirou a
cadelinha do casaco e estendeu-lha com um olhar suplicante.
- Por favor, Feodor... a imperatriz deu-ma... Chama-se Sava.
Leva-a para a cozinha e entrega-a � Gallina. Des�o mais tarde para
ir busc�-la. - Os olhos de Zoya assemelhavam-se aos de uma crian�a
assustada e Fecodor riu e abanou a cabe�a. - A condessa vai exigir
a minha cabe�a por isto, mademoiselle! E talvez a sua tamb�m.
- Eu sei... Talvez o pap�... - O pap� que intercedia sempre
a seu favor, que era sempre t�o bom e generoso para a m�e.
Tratava-se de um homem maravilhoso e a sua filha �nica adorava-o.
- R�pido, Feodor. Tenho de me apressar.
Passava das sete e tinha de mudar de vestido, antes de se
apresentar na sala de jantar. Ele pegou no pequeno animal e Zoya
subiu apressadamente os degraus de m�rmore do pequeno mas belo
pal�cio. Parecia misturar os estilos russo e franc�s e fora
constru�do pelo av� em homenagem � noiva.
A av� vivia num pavilh�o do outro lado do jardim, com um
pequeno parque seu, mas Zoya n�o tinha tempo de pensar nela agora.
Estava com muita pressa. Deslizou rapidamente para o interior,
tirou o chap�u e entregou o casaco a uma criada que estava por
perto. Voou pelas escadas que levava ao quarto, mas nesse momento
ouviu uma voz atr�s das costas.
- Alto! Quem vai a�?
- Cala-te! - sussurrou furiosa ao irm�o, que se mantinha de
p� ao fundo das escadas. - O que est�s a fazer a�? - Ele exibia
uma figura alta e elegante fardada e Zoya sabia que fazia parar
o cora��o � maioria das suas amigas do Smolny. Ostentava as
ins�gnias da famosa Guarda Preobrajenski, mas n�o se sentia
impressionada nesse momento. - Onde est� a mam�? - Mas j� sabia,
contudo, a resposta sem necessitar de perguntar.
- Na sala de jantar, onde � que julgavas? Onde estiveste?
- Por a�. Tenho de me apressar. - Ainda tinha de se mudar e
o irm�o demorava-a. - Estou atrasada.
Ele riu, e os olhos verdes, t�o semelhantes aos seus, emitiam
um brilho divertido.
- Acho melhor ires assim. A mam� ficar� furiosa se te
atrasares mais.
Zoya hesitou uns segundos e fixou-o l� em baixo.
- Ela disse alguma coisa?... Viste-a?
- Ainda n�o. Cheguei mesmo agora. Queria falar com o pap�
depois do jantar. Vai mudar-te que eu distraio-os. - O irm�o
gostava mais dela do que julgava, a irm�zinha de que se
vangloriava ante os amigos, que h� anos estavam de olho nela.
Contudo, t�-los-ia morto antes que lhe tocassem. Era uma beleza
mas ainda n�o o sabia e era nova de mais para namoriscar. Um dia,
casaria com um pr�ncipe, ou pelo menos algu�m t�o importante como
o pai. Ele era um conde e um coronel, um homem que inspirava o
respeito e a admira��o dos que o conheciam. - Vai l�, ferazinha! -
gritou-lhe. - Despacha-te!
Zoya voou at� ao quarto e, passados dez minutos, desceu as
escadas com um vestido de seda azul-marinho, de gola rendada.
Detestava aquela vestimenta, mas sabia que agradava � m�e. Era um
vestido juvenil, muito condigno, e n�o queria irrit�-la ainda
mais.
Tomava-se imposs�vel aparecer na ombreira da porta da sala
de jantar sem atrair as aten��es e, quando entrou com um ar
submisso e casto, o imi�o brindou-a com um sorriso malicioso do
seu lugar entre a av� e a m�e. A condessa exibia um ar
invulgannente p�lido num vestido de cetim cinzento com um belo
colar de p�rolas negras e diamantes; os olhos eram quase da mesma
cor do vestido. Ergueu o rosto devagar e fitou a �nica filha com
uma express�o triste.
- Zoya! - Nunca erguia a voz, mas bastava fit�-la para se ver
o desagrado. A jovem aguentou com firmeza e apressou-se a beijar-
lhe a face fria, ap�s o que olhou nervosamente de relance para o
pai e a av�.
- Lamento muito, mam�... atrasei-me... na aula de hoje de
ballet... Tive de ir ver uma amiga... Lamento muito... Eu...
- Onde estiveste exactamente? - inquiriu a m�e num tom de voz
gelado. O resto da fam�lia observava a cena.
- Eu... eu tive de ir... Eu...
Natalya fixou-a bem nos olhos, enquanto Zoya tentava alisar
o cabelo. Ainda dava a sensa��o de o ter penteado � pressa, o que
era verdade.
- Quero saber a verdade. Foste a Tsarskoie Selo?
- Eu... - Era in�til mentir. A m�e era demasiado bonita,
demasiado assustadora e demasiado controlada. - Sim, mam� - anuiu,
sentindo-se de novo com sete anos, em vez de dezassete. - Lamento.
- �s uma tola! - Os olhos gelados de Natalya brilharam e
virou-se com uma express�o infeliz para o marido. - Dei-lhe ordens
espec�ficas para n�o ir, Konstantin. Todas as crian�as l� est�o
com sarampo e agora ficou exposta. Foi um acto de desobedi�ncia.
Zoya fixou nervosamente o pai, mas os olhos dele emitiam um
brilho de esmeralda id�ntico ao seu e mal conseguia reprimir um
sorriso. Embora amasse a mulher, adorava a filha. E desta vez
Nicolai intercedeu a favor da irm�, o que era invulgar, s� que ela
parecia t�o infeliz que sentiu pena.
- Talvez lhe tivessem pedido que fosse e a Zoya n�o tivesse
conseguido recusar.
Todavia entre as suas qualidades contava-se a franqueza, e
Zoya enfrentou a m�e, sentada agora no lugar, enquanto esperava
que as criadas lhe servissem o jantar.
- Fui eu que quis ir. A culpa foi apenas minha. A Marie tem
estado t�o sozinha.
- Foi uma idiotice, Zoya. Voltaremos a discutir o assunto
depois do jantar.
- Sim, mam�. - Baixou os olhos para o prato e os outros
prosseguiram a conversa sem a sua interven��o. Um momento depois,
ergueu o rosto e, ao descobrir que a av� estava � mesa, sorriu
alegremente. - Ol�, av�. A tia Alix manda-lhe saudades.
- Ela est� bem? - A pergunta partiu do pai. A m�e continuava
sentada, imersa numa beleza silenciosa e ainda obviamente
desagradada com a filha.
- Est� sempre bem quando cuida dos doentes - respondeu a av�
em seu lugar. - � algo de estranho na Alix. Parece sofrer de todos
os males poss�veis at� ser requisitada por algu�m mais doente e
depois mostra-se espantosamente � altura. - A idosa condessa
deitou um olhar intencional � nora e, em seguida, sorriu orgulhosa
a Zoya. - A pequena Marie deve ter ficado satisfeita por te ver.
- Ficou sim, av� - confirmou a jovem, agradecida. E
acrescentou para tranquilizar a m�e: - Nem sequer vi as outras.
Estavam isoladas, algures. At� mesmo Madame Virubova est� doente -
concluiu, arrependendo-se de imediato ao ver que a m�e a olhava,
horrorizada.
- Que estupidez, Zoya... N�o consigo perceber porque foste
at� l�. Queres apanhar sarampo?
- N�o, mam�. Lamento mesmo - desculpou-se, embora nada
houvesse de pena no seu rosto. S� as palavras ecoavam o
arrependimento esperado. - N�o era minha inten��o atrasar-me
tanto. Ia a sair quando apareceu a tia Alix para tomar ch�
connosco e n�o quis ser indelicada...
- Nem devias. Ela �, afinal, a nossa imperatriz, al�m de
nossa prima - interferiu a av�, que tinha uns olhos t�o verdes
como os de Zoya, e os do pai e os do irm�o.
s� os de Natalya eram de um p�lido azul-acinzentado,
semelhantes a um c�u de frio Inverno sem esperan�a de Ver�o. A
vida sempre lhe exigira demasiado, tivera um marido en�rgico e
robusto que a amava fogosamente e quisera mais filhos do que podia
comportar. Dois haviam sido nado-mortos, tivera v�rios abortos e
Zoya e Nicola� eram o resultado de partos dif�ceis. Passara um ano
na cama depois de dar � luz cada um deles e agora dormia nos seus
pr�prios aposentos.
Konstantin adorava os seus amigos e desejara dar in�meros
bailes e festas, mas ela achava-os demasiado cansativos e usava
a sa�de d�bil como desculpa para a falta da alegria de viver e da
sua enorme timidez. Dava-lhe um ar de gelado distanciamento, por
detr�s do qual escondia o facto de as pessoas a atemorizarem,
sentindo-se muito mais feliz reclinada numa cadeira junto �
lareira.
No entanto, a filha parecia-se muito mais com o pai e, depois
de Zoya dar a sua festa de debutante na Primavera, Konstantin
ansiava pela perspectiva de a ter como companhia nas festas.
Tinham falado durante muito tempo quanto a abandonarem a ideia de
um baile e Natalya insistira em que n�o deviam encar�-lo naquele
tempo de guerra.
Contudo, a av� de Zoya decidira o assunto por eles e
Konstantin ficara muito aliviado. Haveria um baile, mal ela se
formasse pelo Instituto Smolny em Junho, talvez n�o um baile t�o
faustoso como seria se n�o houvesse guerra, mas de qualquer
maneira uma festa encantadora.
- H� not�cias do Nicolau? - inquiriu Konstantin. - A Marie
disse alguma coisa?
- Nada de significativo. A tia Alix diz que ele regressou da
frente, mas acho que vai voltar em breve.
- Eu sei. Vi-o na semana passada. Mas est� bem, n�o est�? -
Konstantin parecia preocupado, o que n�o escapou ao olhar do seu
esbelto filho.
Este soube, ent�o, que o pai devia ter ouvido os mesmos
boatos do que ele no aquartelamento, que Nicolau estava exausto
e consumido pelo desgaste da guerra. Alguns sussurravam mesmo
quanto � possibilidade de um esgotamento nervoso. Por�m, com a
bondade do czar e a sua constante preocupa��o com todos, era algo
quase impens�vel. Era dificil imaginar que algu�m pudesse ter um
esgotamento ou desistir. Tratava-se de um homem profundamente
amado pelos seus companheiros e sobretudo pelo pai de Zoya.
Tal como Zoya e Marie, tinham sido amigos de inf�ncia e era
padrinho de Nicolai, que fora baptizado com este nome em sua
honra; o pr�prio pai de Nicolau fora muito chegado ao pai de
Konstantin. O afecto que tinham um pelo outro ultrapassava o
sentido familiar; sempre haviam sido muito chegados e espica�avam-
se por ambos terem casado com alem�s, embora Alix parecesse ser
um pouco mais resistente do que Natalya. Pelo menos, mostrava-se
� altura da situa��o quando necess�rio, como o fizera a n�vel do
seu trabalho na Cruz Vermelha, e agora na doen�a dos filhos.
Natalya teria sido, por constitui��o fisica, incapaz de algo no
g�nero. A velha condessa ficara muito desapontada por o filho n�o
ter desposado uma russa. O facto de uma alem� ter servido ao czar
era apenas um ligeiro conforto.
- E, a prop�sito, o que te traz aqui esta noite? - Konstantin
virou-se para Nicolai com um caloroso sorriso. Orgulhava- e do
filho e agradava-lhe que estivesse com a Preobrajenski e n�o na
frente, do que n�o fazia segredo. N�o tinha qualquer desejo de
perder o seu �nico filho. As baixas russas haviam sido elevadas
na batalha de Tannenberg, no Ver�o de 1914, devido aos terr�veis
reveses nos campos gelados da Gal�cia e queria que Nicolai
estivesse bem a salvo em Sampetersburgo. Este era, pelo menos, um
grande al�vio para ele e para Natalya.
- Queria falar consigo depois do jantar desta noite, pap�. -
Expressava-se num tom calmo e firme e Natalya lari�ou-lhe um olhar
nervoso. Esperava que n�o tivesse nada de inquietante a
participar, pois ouvira recentemente a uma amiga que o filho
andava envolvido com uma bailarina e teria muito que falar com o
pai se ele lhe comunicasse que ia casar. - Nada de importante.
A av� observou-o com um olhar perspicaz e soube que o neto
mentira sobre a import�ncia do que quer que tivesse a comunicar
ao pai. Estava preocupado com algo, suficientemente preocupado
para passar uma noite com todos, o que n�o se coadunava com ele.
- Na verdade - acrescentou Nicolai, sorrindo para a fam�lia
reunida -, vim assegurar-me de que este monstrinho andava a
portar-se devidamente. - Olhou para Zoya que lhe correspondeu com
uma express�o aborrecida.
- J� sou uma mulher, Nicolai. J� n�o me porto mal. - Comp�s
um ar arrogante e acabou a sobremesa, enquanto o irm�o ria �
gargalhada.
- Ah, sim? Imagina s�... Ainda h� momentos voavas pelas
escadas, atrasada como de costume para jantar, com as botas
molhadas e parecendo que te tinhas penteado com um ancinho... -
Estava preparad�ssimo para continuar, e Zoya atirou-lhe um
guardanapo, ao mesmo tempo que a m�e parecia � beira de desfalecer
e lan�ava um olhar suplicante ao pai.
- Manda-os parar, por favor, Konstantin! P�em-me t�o nervosa!
- � apenas uma can��o de amor, minha querida - interferiu
sabiamente a condessa Eugenia. - � a �nica forma de di�logo que
conhecem nesta altura das suas vidas. Os meus filhos estavam
sempre a puxar os cabelos e a atirar sapatos uns aos outros. N�o
� verdade, Konstantin? - Ele soltou uma gargalhada e deitou um
olhar c�mplice � m�e.
- Receio n�o ter sido muito bem-comportado quando era jovem,
minha querida. - Fitou afectuosamente a mulher, passeou o olhar
feliz pela mesa e seguiu o filho at� uma sala cont�gua onde podiam
falar em privado. � semelhan�a da mulher, tamb�m ele esperava que
o filho n�o fosse comunicar-lhes que ia casar.
Ao sentarem-se tranquilamente junto � lareira, reparou de
imediato na bonita cigarreira de ouro que Nicolai tirou do bolso
do uniforme. Era um dos modelos mais t�picos de Carl Faberg�, em
rosa e ouro com uma bonita safira. Konstantin tinha quase a
certeza de que provinha de Hollming ou Wigstrom.
- Uma bugiganga nova, Nicolai? - Tal como a mulher, tamb�m
lhe chegara aos ouvidos a hist�ria da alegadamente bonita
bailarina.
- Um presente de uma amiga, pap�.
Konstantin esbo�ou um sorriso indulgente.
- Mais ou menos o que eu temia - Os dois homens riram e
Nicolai franziu o sobrolho. Era jovem mas bastante vivido para a
sua idade e tinha um esp�rito perspicaz a somar � apar�ncia
elegante. Era um filho que dava motivos de orgulho.
- N�o tem com que se preocupar. Apesar do que possa ouvir,
estou apenas a divertir-me um pouco. Nada de s�rio, garanto-lhe.
- �ptimo. Ent�o, o que te trouxe aqui esta noite?
Nicolai parecia preocupado e desviou os olhos da lareira para
o pai.
- Algo bastante mais importante. Tenho ouvido coisas
desagrad�veis sobre o czar, que est� cansado, que est� doente e
que n�o devia liderar as tropas. Decerto tamb�m est� ao corrente,
pai.
- Estou - anuiu com um lento aceno de cabe�a e fitando o
filho. - Mas continuo a acreditar que n�o nos deixar� ficar mal.
- Na noite passada, estive numa festa com o embaixador
Pal�ologue, que esbo�ou um quadro muito triste. Pensa que os
cortes de comida e combust�vel s�o muito mais graves do que
admitimos, que o desgaste da guerra est� a provocar estragos.
Estamos a alimentar seis milh�es de homens na frente e poucas
condi��es temos de cuidar dos nossos aqui. Receia que possamos ir
abaixo... que os Russos possam ir abaixo... e o czar Nicolau
tamb�m... e... Ent�o, pai? Acha que ele tem raz�o?
Konstantin pensou demoradamente e, em seguida, abanou a
cabe�a.
- N�o, n�o acho. Acho que todos estamos esgotados e o Nicolau
tamb�m. Contudo, isto � a R�ssia, Nicolai, e n�o um pequeno e
fraco pa�s no meio de nenhures. Somos um povo pleno de vigor e
for�a e, por mais dif�ceis que sejam as condi��es, n�o
desfaleceremos. Nunca. - Era essa a sua cren�a, e Nicolai sentiu-
se tranquilizado.
- A Duma volta a reunir-se, amanh�. Ser� interessante ver o
que acontece.
- Nada acontecer�, meu filho. A R�ssia � e ser� eterna.
Certamente o sabes. - Deitou um olhar afectuoso ao filho, que se
sentiu melhor.
- Sei. Talvez apenas precisasse de o ouvir dizer isso.
- Todos precisamos. Tens de ser forte pelo Nicolau, por todos
n�s, pelo teu pa�s. Todos temos de ser fortes agora e os bons
tempos regressar�o. A guerra n�o pode durar eternaMente.
- � uma coisa horr�vel. - Ambos estavam conscientes da
gravidade das baixas. Contudo, nada disso implicava
necessariamente um fim ao que lhes era querido. Agora que pensava
no assunto, Nicolai sentia-se idiota pela preocupa��o que o
dominara. S� que o embaixador franc�s se mostrara t�o convincente
com as suas previs�es. Ainda bem que decidira falar com o pai. -
A m�e anda bem? - Nicolai achara-a mais nervosa do que o habitual,
ou talvez o facto se devesse a v�-Ia agora com menos frequ�ncia,
mas Konstantin limitou-se a sorrir.
- Tamb�m anda preocupada com a guerra... e contigo... e
comigo... e com a Zoya... Ela d� que pensar.
- Mas est� muito bonita, n�o est�? - Referia-se a Zoya com
um entusiasmo e uma admira��o que negaria com veem�ncia se algu�m
o dissesse � irm�. - Metade do meu regimento parece estar
apaixonado por ela. Passo a maior parte do tempo a amea�ar mat�-
los.
O pai sorriu e depois abanou a cabe�a com uma express�o
triste.
- � uma pena que ela tenha de fazer o seu d�but em tempo de
guerra. Talvez tudo esteja terminado em Junho. - Era uma esperan�a
que ambos partilhavam, mas que Nicolai receava n�o ser prov�vel.
- Tem algu�m em mente para ela? - inquiriu, curioso, Nicolai,
que achava que v�rios dos seus amigos poderiam dar �ptimos
pretendentes.
- N�o consigo s@portar a ideia de perd�-la. Suponho que � um
disparate. � demasiado viva para ficar entre n�s muito mais tempo.
A tua av� tem o principe Orlov em elevada considera��o.
- � velho de mais para ela. - Ultrapassara os trinta e cinco
anos e Nicolai franziu defensivamente o sobrolho ante a ideia.
De facto, n�o tinha a certeza de que algu�m fosse suficientemente
bom para a sua irm�zinha.
Konstantin levantou-se, sorriu ao filho e deu-lhe uma pequena
palmada no ombro.
- Acho melhor voltannos. Se n�o o fizerinos, a tua m�e ficar�
preocupada. - Sa�ram da sala, e Konstantin rodeou os ombros do
filho com o bra�o. Quando se juntaram �s senhoras numa das salas
de estar mais pequenas, Zoya implorava algo � m�e.
- Ent�o, o que fizeste agora, monstrinho? - Nicolai riu ante
a express�o no rosto da irm� e apercebeu-se de que a av� virara
costas para dissimular um sorriso. Natalya denotava uma palidez
de morte e o rosto de Zoya estava corado de raiva quando fitou o
irm�o.
- N�o te metas nisto!
- O que h�, mi�da? - Konstantin parecia divertido, at�
deparar com a express�o de censura no rosto da mulher. Ela achava-
o demasiado brando em rela��o � filha.
- Ao que parece - replicou a condessa num tom irritado -, a
Alix deu-lhe um presente rid�culo e n�o quero de forma alguma que
o conserve.
- Do que se trata, Deus do c�u? Das suas famosas p�rolas?
Aceita-as, querida, podes sempre us�-las. - Konstantin estava de
bom humor depois da conversa com Nicolai, e os dois homens
trocaram um olhar c�mplice por cima da cabe�a das mulheres.
- N�o � nada divertido, Konstantin, e espero que lhe digas
exactamente o que eu disse. Tem de livrar-se imediatamente do
presente.
- Do que se trata? De peste? Uma cobra treinada? - tro�ou
Nicolai.
- N�o. � um dos filhotes da Joy. - L�grimas brilhavam nos
olhos de Zoya, que fitou o pai, suplicante. - Por favor, pap�...
Se prometer ser eu a cuidar dela e nunca a perder de vista, nem
deixar que saia do meu quarto e a conservar afastada da mam�...
Por favor... - L�grimas tremulavam nos seus olhos e tocaram no
cora��o do pai, enquanto Natalya percorria a sala de um lado para
o outro, com os olhos semelhantes ao brilho de diamantes.
- N�o! Os c�es s�o portadores de doen�as! E todos sabem
perfeitamente como a minha sa�de � delicada! - Estava longe de
parecer fr�gil nesse momento, enquanto se mantinha no meio da
sala, a imagem perfeita da f�ria. Konstantin recordou-se de como
se sentira atra�do por ela da primeira vez que a vira, mas sabia
tamb�m que Natalya n�o era uma mulher f�cil.
- Talvez se viver na cozinha... talvez nesse caso... - Deitou
um olhar esperan�ado � mulher, quando ela avan�ou para a porta e
a abriu.
- Acabas sempre por lhe satisfazer os caprichos, n�o �,
Konstantin?
- Querida... n�o � um animal grande. � muito pequeno.
- E t�m mais dois e um gato, e o filho est� sempre �s portas
da morte. - Referia-se, obviamente, ao mau estado de sa�de cr�nico
de Alexis.
- N�o tem nada a ver com os c�es. Talvez a av� n�o se importe
de ficar com a cadelinha em casa... - Olhou, esperan�ado, para a
m�e e ela sorriu, intimamente satisfeita com aquela tempestade.
Era mesmo de Alix, oferecer um c�o a Zoya, sabendo como iria
enfurecer a m�e. Existira sempre uma secreta rivalidade entre as
duas mulheres, mas Alexandra era, afinal, a czarina.
- N�o me importo nada - ofereceu-se a condessa mais velha.
- Muito bem. - Konstantin sentia que encontrara a solu��o
perfeita, mas a porta bateu ruidosamente e sabia que s� voltaria
a ver a mulher na manh� seguinte.
- E � com este final feliz que vou voltar ao meu pac�fico
aquartelamento - replicou Nicolai, sorrindo e esbo�ando uma v�nia
formal � av�.
- V� l� se voltas mesmo - vincou a av� com um sorriso mal
dissimulado e soltando uma risada quando ele lhe desejou as boas-
noites. - Ouvi dizer que est�s a tornar-te um estr�ina, meu
querido.
- N�o acredite em tudo o que ouve. Boa noite, av�. -
Despediu-se, beijando-a nas duas faces e tocou ao de leve no ombro
do pai. - E, quanto a ti, ferazinha...- Abra�ou carinhosamente a
jovem ruiva quando a beijou e ela fitou-o com igual afecto. -
Porta-te bem. E tenta n�o apareceres em casa com mais animais de
estima��o. Vais enlouquecer a m�e.
- Ningu�m te encarregou do serm�o! - retorquiu e depois
voltou a beij�-lo. - Adeus, rapaz terr�vel.
- N�o sou um rapaz. Sou um homem, embora n�o saibas a
diferen�a.
- Saberia, se visse algum.
Acenou-lhes da porta com uma express�o divertida e em seguida
desapareceu, com toda a probabilidade para fazer uma visita � sua
pequena bailarina.
- Que jovem encantador, Konstantin. Recorda-me muito como tu
eras - declarou, orgulhosa, a velha condessa, enquanto o filho
sorria e Zoya se atirava para uma cadeira, com uma express�o
contrariada.
- Por mini, acho-o simplesmente um horror.
- Ele fala de ti de uma forma muito mais carinhosa, Zoya
Konstantinovna - replicou o pai sem erguer a voz. Orgulhava-se dos
filhos e amava-os profundamente. Inclinou-se para a beijar na face
e depois esbo�ou um sorriso calmo � m�e. - Vai mesmo ficar com a
cadelinha, mam�? - perguntou � condessa Eugenia. - Temo que a
Natalya nos corra a todos de casa, se insistir mais. - Abafou um
suspiro. Havia alturas em que gostaria que a mulher fosse de trato
um pouco mais f�cil, sobretudo quando a m�e estava a olhar e
julgando em sil�ncio. Contudo, h� muito que Eugenia Ossupov
formara a sua opini�o da nora e provavelmente nada que Natalya
fizesse agora a mudaria.
- Claro. Gostaria de ter uma amiguinha.
- Virou-se para Zoya
com um ar zombeteiro e inquiriu: - Qual dos c�es deles � o
progenitor? O Charles do jovem czar Alexis ou o buldogue franc�s
da Tatiana?
- Nenhum deles, av�. � filha da Joy, a cocker spaniel da
Marie. � t�o querida. E chama-se Sava. - Zoya parecia
content�ssima; assemelhava-se a uma crian�a quando se sentou junto
aos joelhos da av�, e a mulher idosa pousou uma m�o anquilosada
mas amiga nos seus ombros.
- Pede-lhe apenas que n�o baptize o meu tapete favorito, o
Aubusson, e seremos grandes amigas, garanto. - Acariciou o cabelo
ruivo e revolto que ca�a sobre os ombros de Zoya. Desde crian�a
que a jovem sempre adorara o toque das m�os da av�. Soergueu-se
e beijou-a.
- Obrigada, av�. Queria tanto ficar com ela.
- E ficar�s, pequenina... ficar�s. - Levantou-se e dirigiu-se
vagarosamente at� junto do fogo, sentindo-se cansada mas em paz,
enquanto Zoya ia buscar a cadelinha aos criados.
A condessa virou-se para Konstantin e teve a sensa��o de que
apenas haviam passado momentos desde que ele fora da idade de
Nicolai e muito, muito mais novo. Os anos pareciam voar t�o
rapidamente, mas haviam sido generosos. O marido levara uma vida
em pleno. Morrera tr�s anos antes com oitenta e nove e sempre se
sentira aben�oada por t�-lo amado. Agora, Konstantin parecia-se
com ele e recordava-lhe momentos felizes passados, sobretudo ao
v�-lo junto de Zoya.
- Ela � uma rapariguinha encantadora, Konstantin
Nicolaevich... uma bela rapariguinha.
- Parece-se muito consigo, mam�.
Eugenia abanou a cabe�a, mas o filho apercebeu-se pelo brilho
dos olhos de que estava de acordo. Havia alturaN em que se
identificava muito com a jovem e sentia-se sempre contente por
Zoya ter t�o pouco a ver com, a m�e. Mesmo quando desobedecia �
m�e, a condessa achava uma coisa fant�stica e h� muito sentira que
era um sinal do seu pr�prio sangue a correr nas veias de Zoya, o
que ainda mais aborrecia Natalya.
- Ela � algo de novo... � ela pr�pria. N�o devemos
sobrecarreg�-la com os nossos erros e falhas.
- Em que � que falhou? Sempre foi boa para mim, mam�... para
todos n�s... - Era uma mulher respeitada e de quem se gostava.
Uma mulher com objectivos e valores s�lidos. Conhecia-lhe a
sabedoria e apoiava-se nas suas in�meras e sensatas opini�es.
- Aqui est� ela, av�! - Zoya reaparecera com a cadelinha nos
bra�os, que era pouco maior do que as suas m�os, e a condessa
pegou-lhe. - N�o � um amor?
- � maravilhosa... e continuar� a ser at� roer o meu melhor
chap�u ou os meus sapatos favoritos... Mas n�o, por favor, meu
Deus, o meu tapete Aubusson favorito. E se o fizeres -
acrescentou, acariciando a cabe�a da cadelinha, como o fizera ao
cabelo de Zoya, momentos antes -, transformo-te em sopa. Lembra-te
disso. - A pequena Sava ladrou, como que a responder. - Alix foi
muito simp�tica em dar-ta, mi�da. Espero que lhe tenhas agradecido
devidamente.
- Ela estava com bastante receio que a mam� ficasse zangada -
confessou a neta com uma risada e tapando a boca num gesto
gracioso.
A av� soltou uma risada e Konstantin esfor�ou-se por conter
um sorriso, em defer�ncia para com a mulher.
- Ela conhece muito bem a tua m�e, verdade, Konstantin? -
Olhou-o bem no fundo, levando-o a entender cada palavra.
- A fragilidade f�sica da Natalya n�o lhe tem facilitado as
coisas nos �ltimos tempos. Talvez eventualmente... - Tentava
defend�-la.
- Deixa l�, Konstantin. - A condessa esbo�ou um gesto
impaciente, apertou mais a cadelinha de encontro ao peito e deu
um beijo de boas-noites � neta. - Vem ver-nos amanh�, Zoya. Ou
tencionas voltar a Tsarskoie Selo? Irei contigo um destes dias
fazer uma visita a Alix e �s crian�as.
- Enquanto estiverem doentes, n�o, mam�, por favor... e a
viagem ser� extenuante para si com este tempo.
- N�o sejas pateta, Konstantin - replicou a m�e com uma
sonora gargalhada. - Tive sarampo h� quase cem anos e nunca me
preocupei com o tempo. Sinto-me bastante bem, muito obrigada, e
tenciono manter-me assim pelo menos mais uma d�zia de anos, ou
talvez mais. E sou suficientemente m� para o conseguir.
- �ptimas not�cias - retorquiu o filho a sorrir. - Vou
acompanh�-la ao pavilh�o.
- N�o sejas pateta. - Recusou com um gesto e Zoya foi buscar-
lhe a capa e tapou-lhe os ombros. - Ainda sou capaz de atravessar
o jardim. Fa�o-o v�rias vezes por dia.
- Ent�o, n�o me retire o prazer de acompanh�-la, madame.
Eugenia sorriu-lhe, vendo-o de novo como crian�a, pelo menos
no seu cora��o, onde permaneceria um rapazinho para sempre,
enquanto ela vivesse.
- Sendo assim, muito bem, Konstantin. Boa noite, Zoya.
- Boa noite, av�. E obrigada por ficar com a Sava. - A idosa
senhora deu-lhe um beijo afectuoso e Zoya subiu as escadas at� ao
quarto cor de malva. Eles sairam para o ar frio.
Zoya bocejou e sorriu ao pensar na cadelinha que Marie e a
m�e dela lhe tinham oferecido. Fora um dia fant�stico. Fechou
suavemente a porta do quarto e prometeu a si pr�pria que voltaria
a Tsarskoie Selo dentro de um ou dois dias. Mas entretanto teria
de pensar em algo de maravilhoso para levar a Mashka.
CAPITULO 3
Dois dias mais tarde, Zoya estava a planear voltar a
Tsarskoie Selo para fazer uma visita a Marie, mas em vez disso
chegou uma carta nessa manh�, antes do pequeno-almo�o. Foi
entregue pelo pr�prio Dr. Fedorov, o m�dico de Alexis, que viera
� cidade buscar mais rem�dios e trouxera a desagrad�vel not�cia
de que tamb�m Marie tinha ca�do � cama com sarampo.
Zoya leu o bilhete com tristeza. N�o s� significava que n�o
podia visit�-la, como tamb�m que talvez deixassem de se ver
durante semanas, pois o Dr. Fedorov declarou que as visitas
estavam proibidas por uns tempos, at� se observar a evolu��o da
doen�a. Anastasia estava a sofrer de problemas de ouvidos como
resultado do sarampo e o jovem Alexis apanhara uma pneumonia.
- Oh, meu Deus... - gemeu Natalya. - E tu tamb�m estiveste
exposta. Tinha-te proibido que fosses e expuseste-te... Como foste
capaz de me fazer uma coisa destas? Como te atreveste!
Estava quase hist�rica com o pensamento da doen�a que Zoya
podia ter inadvertidamente trazido para casa, e Konstantin chegou
a tempo de ver a mulher desmaiar, mandando rapidamente a criada
ao andar de cima buscar os sais. Tinha-lhe encomendado, para os
colocar, uma embalagem especial Faberg�, em forma de um grande
morango vermelho incrustado de diamantes, que ela conservava
sempre por perto, na mesa-de-cabeceira.
O Dr. Fedorov teve a gentileza de ficar o tempo suficiente
para examinar Natalya no andar superior, enquanto Zoya escrevia
um breve bilhete � amiga. Desejava-lhe uma r�pida convalescen�a
para poderem voltar a estar juntas e assinou-o em seu nome e no
de Sava, que regara generosamente o tapete Aubusson na noite
anterior. Contudo, a av� ficara mesmo assim com a cadelinha,
embora amea�ando transform�-la em sopa, se n�o se portasse melhor.
"... Gosto muito de ti, minha querid�ssima amiga. Agora, p�e-
te boa depressa para que possa ir visitar-te." Mandou-lhe dois
livros, um deles, Os Beb�s de Helen, que lera com agrado h� umas
semanas e que de qualquer maneira tencionava oferecer-lhe.
Acrescentou um post scriptum, avisando Mashka de que n�o se
servisse disso como desculpa para fazer novamente batota no t�nis,
como ambas haviam feito no Ver�o passado, quando tinham jogado no
Livadia com duas das irm�s de Marie. Era o jogo favorito de ambas
e Marie superava as outras, embora Zoya amea�asse sempre venc�-la.
"... Irei ver-te, mal a tua m�e e o doutor me deixarem. De todo o
cora��o, a tua querida Zoya ..."
Nessa tarde, Zoya viu de novo o irm�o, o que, pelo menos, a
distraiu e, enquanto esperavam o regresso do pai a casa, ele
levou-a a dar uma volta na tr�ica da m�e. Esta n�o sa�ra do quarto
o dia inteiro, t�o transtornada se sentia com a not�cia de que
Marie apanhara sarampo e Zoya se expusera inadvertidamente. Zoya
sabia que era bem poss�vel que n�o aparecesse durante dias e ficou
contente ante o divertimento proporcionado pelo irm�o.
- Porque vieste ver outra vez o pap�? Passa-se alguma coisa,
Nicolai?
- N�o sejas tonta. Porque havia de passar-se? �s mesmo
Pateta.
"Contudo, esperta tamb�m." Ficou espantado ao ver como a irm�
sabia instintivamente que. ele viera falar com Konstantin, porque
estava preocupado. No dia anterior, quando a Duma se reunira,
Alexandre Kerenski fizera um discurso terr�vel que inclu�a um
incitamento a assassinar o czar e Nicolai come�ava a temer que
algo do que o embaixador Pal�ologue dissera fosse verdade.
Talvez a situa��o estivesse pior do que julgavam e o povo se
sentisse mais revoltado com as faltas do que suspeitavam. Sir
George Buchanan, o embaixador brit�nico, afirmara o mesmo antes
de partir para a Finl�ndia numa licen�a de dez dias. Nicolai
ouvira muitas coisas nesses �ltimos dias, sentia-se preocupado,
e estava ansioso por escutar a opini�o do pai.
- S� apareces de visita quando algo vai mal, Nicolai
pressionou Zoya. Seguiam a toda a velocidade pela bonita Avenida
Nevski. Havia neve ca�da de fresco no ch�o e nunca parecera mais
bonita, mas Nicolai continuava obstinadamente a insistir que
estava tudo bem e, embora a invadisse uma estranha sensa��o de
medo, resolveu acreditar no irm�o.
- Mas que coment�rio encantador, Zoya. E, al�m disso, n�o �
verdade. E indo directo ao assunto, � verdade que voltaste a
perturbar a mam�? Ouvi dizer que est� de cama por tua causa e teve
de ser vista duas vezes pelo m�dico.
- Foi s� porque o doutor Fedorov lhe disse que a Mashka est�
com sarampo - retorquiu Zoya, encolhendo os ombros e com um
sorriso travesso.
- E �s tu a seguir? - Nicolai sorriu-lhe e ela correspondeu.
- N�o sejas parvo. Nunca adoe�o.
- N�o tenhas tantas certezas. N�o tencionas voltar l�, n�o
� verdade? - Por um instante, pareceu preocupado, mas ela abanou
a cabe�a com uma express�o de desapontamento infantil.
- N�o me deixar�o. Ningu�m pode visit�-los, agora. E a pobre
Anastasia tem uma horr�vel dor de ouvidos.
- Em breve todos estar�o bons e poder�s voltar.
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a e depois sorriu.
- A prop�sito, Nicolai, como est� a tua bailarina?
O irm�o sobressaltou-se e puxou-lhe uma madeixa de cabelo
ruivo que se escapara para fora do gorro de pele.
- O que te leva a pensar que tenho uma "bailarina"?
- Toda a gente sabe, idiota... como sabiam da do tio Nicolau
antes de ele se casar com a tia Alix. - Podia falar abertamente
com ele; era, afinal, seu irm�o, mas Nicolai desviou os olhos,
chocado. Embora a irm� n�o tivesse papas na l�ngua, esperava um
pouco de decoro da sua parte.
- Zoya! Como podes falar dessas coisas!
- Posso dizer-te o que me apetecer. Como � ela? Bonita?
- N�o � nada! Simplesmente n�o existe. � isso que te ensinam
no Smolny?
- N�o me ensinam nada - replicou, jovial. "Salvo uma �ptima
educa��o como ele recebera antes no Corpo Imperial dos Pajens, o
col�gio militar para os filhos de nobres e oficiais superiores." -
Al�m disso, estou quase a acabar.
- Imagino que ficar�o content�ssimos por te ver pelas costas,
minha querida. - Zoya encolheu os ombros e ambos riram. Por
instantes, Nicolai julgou que a irm� desistira, mas ela era mais
persistente do que julgara e dirigiu-se-lhe com um sorriso
malicioso.
- Continuas sem me falar da tua amiga, Nicolai...
- �s uma rapariga horr�vel, Zoya Konstantinovna.
A jovem soltou uma risada e ele conduziu-a devagar a casa,
regressando ao pal�cio onde viviam em Fontanka, e nessa altura o
pai j� tinha chegado. Fecharam-se os dois � chave na biblioteca
de Konstantin, que dava para o jardim. Estava cheia de belos
livros encadernados a cabedal e objectos que o pai coleccionara
ao longo dos anos, sobretudo as pe�as de malaquite de que tanto
gostava.
Havia tamb�m uma colec��o de preciosos ovos da P�scoa Faberg�
que Natalya lhe oferecia todos os anos, id�nticos aos que o czar
e a czarina trocavam em ocasi�es importantes. De p�, encostado �
janela e ouvindo o filho, Konstantin observava Zoya saltitando
pela neve, a fim de ir visitar a av� e Sava.
- Ent�o o que acha, pai? - Quando Konstantin se virou
novamente de frente para o filho, compreendeu que Nicolai estava
preocupad�ssimo.
- N�o me parece que isso signifique seja o que for. E mesmo
que haja uma certa agita��o nas ruas, o general Khabalov estar�
� altura, Nicolai. N�o h� motivo para receios. - Sorriu,
satisfeito por o filho se preocupar tanto com o bem-estar da
cidade e do pa�s. - Est� tudo em ordem. Mas n�o prejudica estar
alerta. � o dever de um bom soldado. - E o filho era-o, tal como
ele nos seus tempos de juventude e o pai antes dele. Se pudesse,
o pr�prio Konstantin estaria na frente, mas era demasiado velho,
por mais que amasse o seu primo, o czar, e o pa�s.
- O discurso do Kerenski � Duma n�o o preocupa, pai? O que
ele est� a sugerir � trai��o!
- Mas ningu�m pode tomar isso a s�rio, Nicolai. Ningu�m vai
assassinar o czar. N�o se atreveriam. Al�m disso, o Nicolau �
experiente bastante para se manter bem protegido. Penso que corre
muito mais perigo em casa neste momento, com um bando de filhos
e criados carregados de sarampo... - Sorriu meigamente. - ... do
que nas m�os do seu povo. De qualquer maneira, vou telefonar ao
embaixador Buchanan quando ele voltar e falar-lhe pessoalmente,
se ele est� assim t�o preocupado. Gostaria de ouvir a sua opini�o
sobre o assunto e tamb�m a do Pal�ologue. Quando o Buchanan voltar
de f�rias, combino um almo�o com eles e ser�s obviamente bem-
vindo. - Pretendia acima de tudo incentivar a carreira do filho.
Nicolai era um rapaz inteligente e tinha um brilhante futuro pela
frente.
- Fiquei melhor depois de ter falado consigo, pai. - Todavia,
desta vez os seus medos n�o foram assim t�o facilmente apaziguados
e, quando saiu de casa, continuava com uma impress�o de perigo
iminente. Sentiu-se tentado a ir at� Tsarskoie Selo e reunir-se
em privado com o primo, mas, pelo que ouvira sobre o quanto o czar
estava cansado e preocupado com o filho, sabia que a altura n�o
era a mais apropriada.
Uma semana mais tarde, a 8 de Mar�o, o czar Nicolau partiu
de Sampetersburgo para regressar � frente, a oitocentos
quil�metros, em Mogilev. E, nesse mesmo dia, verificou-se o
primeiro sinal de revolta nas ruas, quando a fila para o p�o se
transformou em gente raivosa que abriu caminho at� �s padarias,
gritando: "D�em-nos p�o!" Ao p�r do Sol, um esquadr�o de cossacos
apareceu para impor a ordem. E, mesmo assim, ningu�m parecia
preocupado. O embaixador Pal�ologue foi mesmo a ponto de organizar
uma enorme festa. Estavam presentes o pr�ncipe e a princesa
Gorchakov, o conde Tolstoi, Alexandre Benois e o embaixador
espanhol, o marqu�s de Villasinda.
Natalya continuava a sentir-se indisposta, insistira que n�o
podia sair de casa e Konstantin n�o queria deix�-la. Ficou
satisfeito por n�o terem comparecido, quando no dia seguinte ouviu
dizer que os revoltosos haviam virado um el�ctrico na orla da
cidade. Na generalidade, ningu�m parecia, contudo, alarmado.
E, como que para tranquilizar todos, o dia seguinte
amanhecera luminoso e soalheiro. A Avenida Nevski abarrotava de
gente, mas as pessoas pareciam bastante felizes e as lojas estavam
abertas. Havia cossacos por perto, de olhar atento ao que se
passava, mas pareciam de boas rela��es com o povo. Por�m, no
s�bado, 10 de Mar�o, verificou-se um saque inesperado e v�rias
pessoas morreram em motins.
Nessa noite, os Radziwill preparavam-se, contudo, para dar
uma faustosa recep��o. Era como se todos desejassem fingir que n�o
estava a acontecer nada. Tornava-se, por�m, dif�cil ignorar os
relatos de tumulto e desordem.
Gibbes, o tutor ingl�s de Marie, trouxe a Zoya uma carta de
Mashka e ela quase se lhe atirou de bra�os abertos, mas ficou
desconsolada ao ler que Marie se sentia pessimamente e que Tatiana
tamb�m estava com problemas de ouvidos. Mas pelo menos Baby
sentia-se um pouco melhor.
- A pobre tia Alix deve andar t�o cansada - disse Zoya � av�
nessa tarde, sentada na sua sala de estar e com a pequena Sava ao
colo. - Sinto-me t�o ansiosa por voltar a ver a Marie, av�. - H�
dias que estava inactiva, pois a m�e tinha insistido em que n�o
fosse �s aulas de ballet por causa dos problemas na rua e, desta
vez, o pai apoiara a ordem.
- Tem um pouco de paci�ncia, minha querida - incitara a av�.
- Decerto n�o queres andar agora pelas ruas com toda essa gente
infeliz e cheia de fome.
- � assim t�o mau para elas, av�? - Era uma situa��o dif�cil
de imaginar no meio de todo o luxo de que usufru�am. Sentia um
peso no cora��o s� de pensar em pessoas t�o desesperadamente
esfomeadas. - Gostava que pud�ssemos dar-lhes algo do que temos. -
Levavam uma vida t�o confort�vel e f�cil que lhe parecia uma
crueldade todas aquelas pessoas com frio e fome � sua volta.
- Todos o desejamos por vezes, mi�da. - Os velhos olhos
brilhantes afundaram-se nos seus. - A vida nem sempre � justa.
H� muitas, muitas pessoas que nunca ter�o o que para n�s � uma
garantia di�ria: roupas quentes, camas macias, comida em
abund�ncia... para j� nem falar de frivolidades como f�rias,
festas e belos vestidos.
- Tudo isso est� mal? - Zoya parecia sobressaltada com a
ideia.
- Claro que n�o. Trata-se, contudo, de um privil�gio e nunca
devemos esquec�-lo.
- A mam� diz que eles s�o gente vulgar e n�o apreciariam o
que temos. � verdade?
Eugenia fitou-a com uma ironia irritada, surpreendida por a
nora ser ainda t�o cega e idiota.
- N�o sejas rid�cula, Zoya. Achas que algu�m se oporia a uma
cama quente, o est�mago cheio, um belo vestido ou uma bela tr�ica?
S� se fossem terrivelmente est�pidos. - A neta n�o acrescentou que
a m�e tamb�m o afirmara, pois compreendia que n�o era assim.
- Sabe, av�? � triste que n�o conhe�am o tio Nicolau, a tia
Alix, o Baby e as meninas. S�o pessoas t�o boas, que ningu�m se
irritaria com eles se os conhecesse. - Era uma afirma��o sensata
e, no entanto, incrivelmente simplista.
- O problema n�o est� neles, querida... mas apenas nas
coisas que defendem. � extremamente dif�cil para as pessoas,
que se encontram do outro lado das janelas do pal�cio,
lembrarem-se de que as pessoas l� dentro t�m desgostos e
dificuldades. Ningu�m saber� quanto o Nicolau se importa com
todos eles, quanto sofre com os seus males e como sentiu o
cora��o partido ante a doen�a do Alexis. Nunca saber�o, nem
ver�o... tamb�m me faz sentir triste. O pobre carrega fardos
t�o pesados. E agora est� de volta � frente. Deve ser dif�cil
para a Alix. Espero que as crian�as melhorem depressa para que
possa ir visit�-las.
- Tamb�m quero ir. Contudo, o pap� n�o me deixa p�r um p�
fora de casa. Vou levar meses a p�r-me em dia com Madame
Nastova.
- Claro que n�o levar�s. - Eugenia observava-a e tinha a
sensa��o de que ela ia ficando mais bonita � medida que se
aproximava o dia em que faria dezoito anos. Era uma jovem
graciosa com a cabeleira ruiva flamejante, os enormes olhos
verdes, as pernas encantadoras e uma cintura que podia apertar-
se com as duas m�os. Tratava-se de uma beleza de cortar a
respira��o.
- Isto � um t�dio, av�! - retorquiu, girando sobre um dos
p�s, e Eugenia riu-se.
- N�o est�s propriamente a elogiar-me, querida. Durante
muito tempo, houve muitas pessoas que me acharam aborrecida,
mas nunca ningu�m o disse de uma forma t�o directa.
- Desculpe. - Zoya riu. - N�o me referia a si. Referia-me
a estar presa aqui. E nem mesmo o est�pido do Nicolai veio
fazer uma visita hoje.
Contudo, nessa mesma tarde, vieram a saber porqu�. O
general Khabalov tinha pendurado cartazes enormes por toda a
cidade, avisando que as assembl�ias e encontros p�blicos
passavam a ser proibidos e os grevistas tinham de voltar aos
seus empregos no dia seguinte. Qualquer oposi��o implicaria o
imediato recrutamento e envio para a frente, mas ningu�m
prestara aten��o aos cartazes.
Grandes quantidades de manifestantes atravessaram as
pontes do Neva vindos de Vyborg at� � cidade e, �s quatro e
meia dessa tarde, surgiram os soldados e come�aram a disparar
na Avenida Nevski em frente do Pal�cio Anitchkov. Cinquenta
pessoas. foram abatidas e, horas depois, morreram mais duzentas
e gerou-se uma s�bita revolta entre os soldados. Uma companhia
da Guarda Pavlovski recusou disparar e matou em vez disso o
oficial no comando. Verificou-se o pandem�nio e houve que
chamar a Guarda Preobrajenski para os desarmar.
Konstantin foi informado nessa noite e desapareceu durante
horas, tentando inteirar-se do que estava a passar-se noutros
locais e desejando certificar-se de que Nicolai tinha raz�o.
Sentiu-se repentinamente envolto numa onda de p�nico por saber
que o filho corria perigo.
Todavia, s� conseguiu descobrir que os elementos da Guarda
PavIovski tinham sido desarmados com muito poucas baixas. "Muito
poucas" pareceu-lhe de repente demasiadas e voltou a casa �
espera de not�cias. No regresso, avistou luzes nos Padziwill e
questionou-se sobre a loucura de uma cidade que continuava a
dan�ar, enquanto pessoas eram assassinadas. Interrogou-se
tamb�m sobre se Nicolai tivera raz�o ao mostrar-se t�o
preocupado quanto ao futuro.
Konstantin estava agora ansioso por falar com Pal�ologue e
resolveu fazer-lhe uma visita na manh� seguinte. Foi s�, por�m,
quando virou para Fontanka e avistou os cavalos no exterior da
sua pr�pria casa que sentiu um peso no cora��o e o desejo de
fugir. Um terror repentino apoderou-se de todo o seu corpo e
incitou os cavalos.
Havia, pelo menos, uma d�zia de elementos da Guarda
Preobrajenski c� fora, gritos e correrias, e transportavam algo
ao mesmo tempo que ouviu um grito escapar-lhe dos pr�prios
l�bios e abandonou Feodor e a tr�ica quase antes de pararem.
"Oh, meu Deus... oh meu Deus ...", exclamava intimamente e
depois viu-o. Transportado por dois homens, o sangue espalhava-
se pela neve. Era Nicolai.
- Oh, meu Deus... - As l�grimas corriam pelas faces de
Konstantin, quando se precipitou para diante e perguntou: -
Est� vivo?
Um dos homens mirou Konstantin e esbo�ou um aceno de
cabe�a.
- Ainda - sussurrou. O jovem fora alvejado sete vezes por
um dos elementos da Guarda Pavlovski, por um dos dele... um dos
homens do czar... mas mostrara-se destemido e abatera o outro
homem.
- Tragam-no para dentro... depressa... - gritou a Feodor,
que apareceu ao seu lado. - Vai buscar j� o m�dico da minha
mulher - rugiu, enquanto os jovens guardas o observavam,
impotentes. Sabiam que n�o havia nada a fazer e fora por esse
motivo que o haviam trazido para casa.
Nicolai fitou o pai com olhos v�treos, mas reconheceu-o e
sorriu. Parecia novamente uma crian�a quando Konstantin o
agarrou nos bra�os robustos e o levou para dentro de casa.
Pousou-o no sof� forrado do �trio de entrada, e os criados
acorreram, pressurosos.
- Tragam ligaduras... len��is... depressa. Arranjem �gua
quente. - N�o tinha ideia do que faria com tudo aquilo, mas
tinha de se fazer algo. Algo... o que quer que fosse... tinham
de o salvar. Era o seu filho, haviam-no trazido para morrer em
casa e n�o permitiria que isso acontecesse. Tinha de agir antes
que fosse tarde de mais e sentiu repentinamente uma m�o firme a
afast�-lo e viu a sua pr�pria m�e tomando a cabe�a do rapaz e
inclinando-se para lhe beijar a testa.
- Tudo bem, Nicolai. A av� est� aqui contigo... e a tua
m�e e o teu pai...
As tr�s mulheres tinham come�ado a jantar sem esperarem
por Konstantin, e Eugenia pressentira logo o que acontecera ao
ouvir os homens entrarem. O resto dos guardas conservavam-se
pouco � vontade no �trio e soou um grito horr�vel quando
Natalya avistou o filho e desmaiou na ombreira da porta.
- Zoya! - chamou Eugenia e a jovem correu para o seu lado,
enquanto Konstantin se mantinha a ver o sangue do filho correr
pelo ch�o de m�rmore e ensopar lentamente o tapete. Viu como
Zoya tremia ao corresponder ao apelo da av�, ajoelhando junto
ao irm�o. Tinha o rosto da cor da cal e agarrou-lhe suavemente
na m�o.
- Nicolai... - sussurrou. - Amo-te... Sou eu, a Zoya...
- O que est�s a fazer aqui? - A voz dele mal se ouvia e
Eugenia apercebeu-se, ao olh�-lo, que ele j� n�o as via.
- Zoya - ordenou num tom de general que comanda os seus
homens -, rasga o meu saiote... depressa... - De come�o com
suavidade, a jovem puxou as saias da av�, mas, ante a voz de
comando, redobrou a for�a e, quando a av� se liberrou da roupa,
Zoya rasgou-a em tiras e ficou a observ�-la a ligar as feridas
do irm�o. A av� tentava deter a hemorragia, mas era tarde de
mais e Konstantin chorava e ajoelhou-se para o beijar.
- Pap�?... Est�s a�, pap�? - Parecia novamente t�o jovem.
- Pap�... amo-te... Zoya... s� boa rapariguinha...
Sorriu-lhes e morreu nos bra�os do pai. Konstantin beijou-
lhe os olhos e fechou-os com suavidade. Chorava
desabaladamente, abra�ando o filho que tanto amara, com o
colete ensopado pelo seu sangue. Zoya mantinha-se lavada em
l�grimas ao seu lado, e as m�os de Eugenia tremiam, sem,
contudo, o desprender. Depois, virou-se devagar e fez sinal aos
homens para que os deixassem a s�s com o seu desgosto.
Nesse momento chegou o m�dico e tentava reanimar Natalya,
que continuava inerte na ombreira da porta. Levaram-na at� aos
seus aposentos no andar superior e Feodor manteve-se ali, com
as l�grimas correndo livremente, enquanto um grito de lamento
percorreu o �trio. Todos os criados haviam acorrido... tarde de
mais para o socorrer.
- Anda, Konstantin. Tens de deixar que o levem para cima -
Eugenia afastou meigamente o filho e conduziu-o at� �
biblioteca, onde o sentou numa cadeira e lhe serviu um brande.
Nada podia dizer para minorar a dor e nem sequer tentou. Fez
sinal a Zoya para que se mantivesse por perto e, ao dar-se
conta da palidez da neta, for�ou-a a beber um gole do brande do
seu pr�prio copo.
- N�o, av�... n�o... por favor... - Engasgou-se com os
vapores, mas a av� for�ou-a a beber e depois virou-se novamente
para Konstantin.
- Ele era t�o jovem... Meu Deus... meu Deus... mataram-
no... - Abra�ou-o, enquanto ele se balou�ava na cadeira para
tr�s e para a frente, chorando o seu filho �nico.
Zoya lan�ou-se subitamente nos seus bra�os, agarrando-o
como se ele fosse o seu �nico apoio no mundo e s� conseguia
pensar naquela tarde em que chamara "idiota" a Nicolai... e
agora ele estava morto... o seu irm�o estava morto... Fitou o
pai, horrorizada.
- O que est� a acontecer, pap�?
- N�o sei, pequenina... Mataram o meu filho... - Agarrou-a
com for�a, enquanto ela chorava nos seus bra�os, e um pouco
depois levantou-se e deixou-a aos cuidados da av�. - Leve-a
para casa consigo, mam�. Tenho de ir ver como est� a Natalya.
- Est� bem - respondeu Eugenia, muito mais preocupada com
o filho do que com a idiota da mulher. Receava que a perda de
Nicolai o destru�sse. Estendeu a m�o, tocou-lhe novamente e ele
fitou-a bem nos olhos, uns olhos de grande sabedoria e que
exibiam um incomensur�vel desgosto.
- Oh, mam�! - exclamou e abra�ou-a longamente, ao mesmo
tempo que Eugenia estendia a m�o e inclu�a Zoya naquele abra�o.
Depois, Konstantin soltou-se devagar e subiu as escadas
que levavam aos aposentos da mulher. Zoya deixou-se ficar no
�trio, seguindo-o com o olhar. O sangue de Nicolai tinha sido
lavado do ch�o de m�rmore, o tapete fora retirado e ele jazia,
silencioso e frio, na sala onde vivera desde a juventude.
Nascera e morrera ali no breve espa�o de vinte e tr�s anos
e com ele desaparecia um mundo que todos conheciam e amavam.
Era como se nenhum deles pudesse voltar a encontrar a
tranquilidade. Eugenia sabia-o quando levou para o seu pavilh�o
Zoya, que tremia violentamente sob a capa, com os olhos cheios
de choque e horror.
- Tens de ser forte, mi�da - retorquiu a av� no momento em
que Sava avan�ou a correr ao encontro delas e Zoya recome�ou a
chorar. - O teu pai vai precisar ainda mais de ti. E talvez...
talvez nada volte a ser como dantes... para todos n�s. Mas seja
como for... - A voz tremeu-lhe ao pensar no neto moribundo nos
seus bra�os, mas, embora a m�o esguia lhe tremesse
violentamente, abra�ou Zoya e beijou-lhe a face macia - Lembra-
te, mi�da, quanto ele te amava...
CAATULO 4
O dia seguinte foi um pesadelo. Nicolai estava deitado,
lavado e limpo, no seu quarto da adolesc�ncia, vestido de uniforme
e rodeado de velas. O Regimento Volinski amotinara-se, bem como
o Semonovski, o Ismailovski, o Litovski, o Orarienbaum e, por fim,
o mais orgulhoso de todos, o regimento do pr�prio Nicolai, a
Guarda Preobrajenski. Todos eles se insurgiram. Viam-se por todo
o lado bandeiras vermelhas erguidas bem alto e soldados com
uniforines rasgados e bem longe dos homens que haviam sido
outrora...
Tamb�m Sampetersburgo n�o era a mesma cidade. Nada voltaria
a ser o mesmo, a partir do momento em que os revolucion�rios
tinham incendiado os tribunais ao princ�pio da manh�. O arsenal
no Liteiny n�o tardou a pegar fogo, e depois o Minist�rio do
Interior, o edif�cio do governo militar, o quartel-general de
Okhrana, a pol�cia secreta e v�rios postos de pol�cias foram
destru�dos. Todos os presos tinham sido libertos da pris�o e, ao
meio-dia, a Fortaleza de Pedro e Paulo estava tamb�m nas m�os dos
rebeldes.
Era �bvio que se impunha algo de desesperado, e o czar tinha
de voltar rapidamente para nomear um governo provis�rio que
assumisse de novo o controlo. Este parecia, contudo, um esquema
improv�vel e, quando o gr�o-duque Miguel falou com ele nessa tarde
no quartel-general de Mogilev, prometeu regressar de imediato.
N�o conseguia entender o que acontecera em Sampetersburgo durante
os dias em que se ausentara e insistiu em voltar e ver tudo com
os pr�prios olhos antes de nomear ministros que lidassem com a
crise. S� compreendeu o que se passava quando o presidente da Duma
lhe mandou uma mensagem nessa noite, informando-o de que as vidas
da sua fam�lia corriam perigo. A pr�pria imperatriz n�o
compreendia. Mas nessa altura era demasiado tarde. Muito, muito
tarde para todos.
Lili Dehn s� nessa tarde tinha ido visitar Alexandra a
Tsarskoie Selo e encontrou-a totalmente ocupada a cuidar das
crian�as doentes. Lili falou das desordens nas ruas e ela
continuava sem entender que se tratava realmente de uma revolu��o
e n�o de um mero motim.
Na manh� seguinte e no meio de uma tempestade de neve, o
general Khabalov enviou uma mensagem � czarina. Insistia em que
ela viajasse imediatamente com as crian�as. mantinha um cerco ao
Pal�cio de Inverno em Sampetersburgo com quinze mil homens fi�is,
mas ao meio-dia todos o andonaram. E, mesmo assim, a imperatriz
n�o compreendeu. Recusou sair de Tsarskoie Selo antes que Nicolau
voltasse. Sentia-se a salvo com os seus marinheiros mais leais,
a Garde Equipage por perto, al�m de que as crian�as estavam
demasiado doentes para viajar. Nessa altura, Marie tamb�m
desenvolvera uma pneumonia.
Nesse mesmo dia, as mans�es em redor da cidade foram
saqueados e incendiadas, e Konstantin mandou todo o pessoal
enterrar prata, ouro e �cones no jardim. Zoya foi fechada no
pavilh�o da av� com todas as criadas e puseram-se a coser
freneticamente j�ias nos forros da roupa de Inverno mais pesada.
Natalya percorria a casa aos gritos. Entrava e sa�a do quarto
de Nicolai, onde o corpo do filho permanecia. As tentativas para
o enterrar eram imposs�veis com o eclodir da revolu��o � volta
deles.
- Av� - sussurrou Zoya, enfiando um pequeno brinco de
diamantes num bot�o que ia coser num vestido. - Av�... O que vamos
fazer agora? - Enquanto tentava levar a tarefa a cabo embora os
dedos lhe tremessem, tinha os olhos arregalados de medo, ouvindo
os disparos ao longe.
- N�o podemos fazer nada at� acabarmos isto... Despacha-te,
Zoya... Assim... Cose as p�rolas no meu casaco azul. - A idosa
senhora trabalhava com frenesim, estranhamente calma, e Konstantin
estava no Pal�cio de Inverno com Khabalov e o resto dos homens
leais. Deixara-as de manh� cedo para ir at� l�.
- O que faremos com... - Era-lhe imposs�vel pronunciar o nome
do irm�o, mas parecia-lhe horr�vel deix�-lo ali, enquanto cosiam
p�rolas nas bainhas dos vestidos da av�.
- Cuidaremos de tudo a devido tempo. Agora, fica calma,
mi�da. Temos de esperar por not�cias do teu pai.
Sava conservava-se ganindo aos p�s de Zoya, como se soubesse
que a sua pr�pria vida estava em risco. No come�o dessa manh�, a
velha condessa tentara trazer Natalya at� ao pavilh�o para junto
dela, mas ela recusara abandonar a casa. Parecia meio louca e
tentava falar com o filho morto, garantindo-lhe que tudo estava
em ordem e o pai em breve regressaria a casa.
Eugenia deixara-a na casa e levara a criadagem para casa dela
a fim de fazerem o m�ximo, antes que os amotinados irrompessem e
levassem tudo. Eugenia j� tinha ouvido dizer que a mans�o de
Kschessinska fora saqueada e ia tentar salvar o que pudesse antes
que chegassem ali. Cosia e interroQava-se sobre se conseguiriam
chegar a Tsarskoie Selo.
Em Tsarskoie Selo, a imperatriz n�o tinha m�os a medir. As
crian�as continuavam febris, Mar�e era o caso mais grave e Anna
tamb�m estava doente. Os soldados rebeldes apareceram na aldeia
ao fim dessa tarde; por�m, receosos da guarda do pal�cio,
contentaram-se em saquear a aldeia e disparar contra tudo e todos
que lhes surgiam pela frente.
As crian�as ouviam os tiros dos seus quartos, e Alexandra
reafirmava que eram apenas soldados em manobras. Contudo, nessa
noite, mandou recado a Nicolau, implorando-lhe que regressasse a
casa. Continuando sem entender quanto todos estavam desesperados,
ele optou por voltar pelo caminho mais longo, sem querer
interferir com as estradas usadas pelos comboios de tropas.
Aos seus olhos, era inconceb�vel que j� n�o tivesse um
ex�rcito leal. Tanto a Garde Equipage como a guarda imperial, na
sua maioria constitu�da por amigos pessoais, cuja miss�o sempre
havia sido proteger o czar, a czarina e os seus filhos, tinham
abandonado os postos. Os pr�prios soldados da guarni��o de
Tsarskoie Selo haviam optado pela deser��o e trai��o. E
Sampetersburgo ca�ra. Era quarta-feira, 14 de Mar�o, e um mundo
inteiro mudara de uma noite para outra. Tomava-se quase imposs�vel
conceber as implica��es a n�vel geral.
Os ministros e generais incitavam Nicolau a que abdicasse a
favor do filho, mantendo o gr�o-duque Miguei como regente.
Contudo, os fren�ticos telegramas que eram mandados a Nicolau no
seu regresso da frente, explicando-lhe a situa��o, n�o obtinham
resposta.
E no meio do seu sil�ncio, Zoya e a av� tamb�ni n�o recebiam
not�cias. H� dois dias que Konstantin n�o aparecia eni casa e era
imposs�vel saber dele. S� quando, por fim. eodor se atreveu a
percorrer as ruas, � que lhes trouxe as terr�veis not�cias que
Eugenia temia h� dias. Konstantin estava morto. Morrera no Pal�cio
de Inverno juntamente com as �ltimas tropas leais, assassinado
pelos seus pr�prios homens. Nem sequer havia um cad�ver para
trazer. Fora levado como muitos outros.
Feodor regressou com as l�grimas a correrem-lhe pelo rosto
e solu�ava sem parar, contando a Eugenia o que acontecera a
Konstantin. Zoya fitava-o, horrorizada, ouvindo o relato, e a av�
girou sobre os calcanhares e ordenou �s criadas que cosessem mais
depressa.
Nessa altura, todas as suas j�ias e as de Natalya tinham sido
escondidas e o resto teria de ficar para tr�s, pois tomara uma
r�pida decis�o. Enterrariam Nicolai no jardim. Eugenia, Feodor e
tr�s dos homens mais novos, regressaram � casa e entraram
silenciosamente no quarto. H� tr�s dias que ele estava morto e n�o
podiam esperar mais. Eugenia mantinha-se com uma express�o solene
e de olhos secos, fitando-o e pensando no seu pr�prio filho. Era
demasiado tarde para l�grimas; queria chorar por todos eles, mas
agora tinha de pensar em Zoya e tamb�m em Natalya, em prol de
Konstantin.
Quando se preparavam para transportar o corpo, Natalya
apareceu como um fantasma, deslizando pelos corredores, vestida
com um comprido roup�o branco, despenteada e olhando-os com uma
express�o desvairada.
- Onde v�o com o meu menino?- Fitou a sogra com um olhar
imperioso e todos perceberam que enlouquecera. Nem sequer parecia
reconhecer Zoya. - O que est�o a fazer, idiotas? - Estendeu a m�o
semelhante a uma garra para impedir os homens de o levarem, mas
a velha condessa agarrou-a.
- Tens de vir connosco, Natalya.
- Mas para onde levam o meu menino?
Eugenia n�o lhe respondeu, pois apenas a confundiria ainda
mais ou provocaria um ataque de histeria. Sempre tivera um
esp�rito fraco e, sem Konstantin para a defender da verdade,
deixara de conseguir aguentar a situa��o. Estava completamente
louca e Zoya percebeu, ao olh�-la.
- Veste-te, Natalya. Vamos embora.
- Para onde?
Zoya ficou pregada ao ch�o, ao ouvir a resposta.
- Para Tsarskoie Selo.
- Mas n�o podemos. � Ver�o, e est�o todos em Livadia.
- Tamb�m iremos at� l�. Contudo, primeiro temos de passar por
Tsarskoie Selo. Agora, vamos vestir-nos, n�o vamos? - Agarrou-lhe
num dos bra�os com firmeza e fez sinal a Zoya para que lhe
agarrasse no outro.
- Quem �s tu? - Soltou o bra�o da jovenzinha assustada e s�
os olhos severos da av� impediram Zoya de fugir, aterrorizada, da
mulher que fora sua m�e. - Quem s�o voc�s? - repetia sem cessar
para ambas, e a idosa mulher respondia-lhe com calma.
No espa�o de quatro dias perdera o filho e o neto em prol de
uma revolu��o que nenhum deles compreendia inteiramente. Contudo,
agora n�o havia tempo para questionar. Sabia que tinham de
abandonar Sampetersburgo, antes que fosse tarde de mais. E sabia
que, pelo menos em Tsarskoie Selo, estariam a salvo. Todavia,
Natalya recusava-se a colaborar. Insistia em querer ficar, em que
o marido chegaria a qualquer momento e dariam uma festa.
- O teu marido espera-te em Tsarskoie Selo - mentiu Eugenia
e um arrepio percorreu o corpo de Zoya, ante tudo o que acontecia
� volta dela. Com uma for�a que nunca julgara poss�vel na av�, ela
envolveu Natalya numa capa e for�ou-a a descer as escadas e a sair
pelas traseiras at� ao jardim, quando ouviram um som retumbante.
Os saqueadores tinham chegado e abriam caminho � for�a at� ao
Pal�cio Fontanka. - Depressa - sussurrou Eugenia � jovem, que
ainda no dia anterior era uma crian�a. - Procura o Feodor. Diz-lhe
que apronte os cavalos... a velha tr�ica do teu pai!
Em seguida, a idosa senhora avan�ou rapidamente at� ao
pavilh�o, ofegante e agarrando no bra�o de Natalya. Gritava �s
criadas, ordenando-lhes que reunissem todas as roupas onde estavam
cosidas as j�ias e as metessem em sacos. N�o tinham tempo para
fazer malas. Tudo o que podiam levar... teria de ir na tr�ica.
Enquanto dava ordens, vigiava o pal�cio do outro lado do jardim.
Sabia que era apenas uma quest�o de tempo at� abandonarem o
pal�cio e chegarem ao pavilh�o. Contudo, apercebeu-se subitamente
de que Natalya j� n�o estava ao seu lado e, ao dar meia volta,
avistou uma figura de branco atravessando o jardim. POs-se a
correr atr�s da nora, mas era tarde de mais. Natalya regressara
ao pal�cio. Quase em simult�neo, Eugenia avistou chamas saindo
pelas janelas do andar superior e ouviu a respira��o arquejante
de Zoya nas suas costas.
- Av�! - E, ent�o, ambas viram a figura de branco a correr
de janela em janela. Natalya movia-se por entre as chamas gritando
e rindo e falando como que para os amigos. Era uma vis�o horr�vel
e Zoya dispunha-se a correr para a porta, mas a avo agarrou-a.
- N�o! N�o podes ajud�-la, agora! H� homens l� com ela.
Matar-te-�o, Zoya!
- N�o posso deixar que a matem... N�o posso!... Av�! Por
favor! - Solu�ava e debatia-se com uma for�a que a av� mal
conseguia controlar, mas nesse preciso momento apareceu Feodor.
- A tr�ica est� pronta... por detr�s das sebes... - Optara
inteligentemente por fazer deslizar a tr�ica at� uma rua lateral,
de forma a que os saqueadores n�o os vissem do pal�cio.
- Av�! - Zoya continuava a lutar e, de s�bito, a av�
esbofeteou-a.
- P�ra! Ela j� est� morta!... Temos de partir agora! - N�o
havia tempo a perder. J� avistara v�rios rostos perscrutando o
jardim das janelas mais baixas do pal�cio.
- N�o posso deix�-la ali! - Implorava � av� que a largasse,
mas a idosa mulher n�o cedeu.
- Tens de faz�-lo! - Depois, a voz suavizou-se-lhe e apertou-
a fortemente por instantes. Nesse momento, ouviu-se um som
terr�vel, semelhante a uma explos�o. Todo o andar superior estava
agora em chamas e, quando se viraram, viram Natalya saltar, com
o roup�o branco em chamas, da janela de cima. Seria imposs�vel
sobreviver entre as chamas e a queda. A vida de Natalya chegara
obviamente ao fim e era uma b�n��o para ela. Jamais recuperaria
da dupla perda do marido e do filho e todo o mundo se desfizera
em peda�os � sua volta.
- Venham depressa! - pressionou Feodor e, com um r�pido
movimento, a velha condessa ergueu Sava do ch�o, colocou-a nos
bra�os de Zoya e empurrou-a pela porta at� � tr�ica que as
aguardava.
CAPITULO 5
Quando a tr�ica se p�s em movimento, Zoya virou-se e avistou
as chamas erguendo-se acima das �rvores, devorando o que outrora
fora a sua casa e era agora somente o inv�lucro da sua antiga
vida. Todavia, momentos depois, Feodor guiou-as com per�cia
atrav�s das ruelas; as duas mulheres conservavam-se abra�ados, com
os sacos aos p�s, cheios das roupas que tinham levado, as j�ias
ocultas nos forros e a pequena Sava tremendo de frio no colo de
Zoya.
Havia soldados nas ruas, mas nenhum tentou det�-los enquanto
prosseguiam na direc��o dos arredores da cidade. Era quinta-feira,
15 de Mar�o, e muito longe, em Pskov, o czar Nicolau lia os
telegramas enviados pelos seus generais, dizendo-lhe que devia
abdicar. O rosto denotava uma palidez de morte ao aperceber-se da
trai��o que o rodeava, mas n�o estava mais p�lido do que Zoya, que
observava Sampetersburgo perder-se � dist�ncia.
Passaram mais de duas horas antes de se verem nas estradas
que levavam a Tsarskoie Selo e muito mais tempo antes de l�
chegarem. N�o tiveram not�cias ao longo do percurso, nem um melhor
entendimento do que acontecera. Zoya apenas conseguia pensar na
imagem da m�e, com a roupa em chamas quando saltara para a morte
das janelas do andar superior... e do irm�o, como devia estar no
momento em que as chamas o envolveram, morto no quarto onde tantas
vezes o visitara em crian�a... Nicolai... "Idiota", chamara-lhe.
Interrogou-se sobre se alguma vez se perdoaria... Ainda no dia
anterior... quando tudo estava bem e a vida era normal.
Tinha a cabe�a enrolada num velho xaile, os ouvidos do�am-lhe
do frio, fazendo-a pensar em Olga e Tatiana e nas dores de ouvidos
provocadas pelo sarampo. Esses simples acidentes haviam sido a sua
vida h� poucos dias atr�s... Coisas insignificantes e est�pidas
como febres, dores de ouvidos e sarampo.
Mal conseguia raciocinar, enquanto a av� lhe agarrava
firmemente a m�o e ambas se interrogavam em sil�ncio sobre o que
encontrariam em Tsarskoie Selo. A aldeia recortou-se diante dos
seus olhos, � tarde, e Feodor deu algumas voltas em redor.
Soldados disperses mandaram-nos parar duas vezes e por um
momento Feodor pensou em dar mais velocidade � tr�ica. Contudo,
sabia intuitivamente que todos podiam ser abatidos se o fizesse;
portanto, abrandou e disse que transportava uma velha doente e a
sua neta idiota.
As duas mulheres fitaram os homens com um olhar vago, como
se nada tivessem a esconder, e a idosa condessa sentiu-se grata
por Feodor haver pensado em levar o tren� mais velho com a pintura
estragado, mas cavalos em bom estado. J� n�o o usavam h� anos e,
embora tivesse sido bonito, deixara de o ser. Apenas os cavalos
de extrema beleza sugeriam ind�cios de riqueza, e o segundo grupo
de soldados aliviaram-nos de dois dos melhores cavalos pretos de
Konstantin. Chegaram aos port�es de Tsarskoie Selo com um �nico
cavalo que se empinava, nervoso, puxando a velha tr�ica. A Guarda
Cossaca n�o se via em parte alguma, n�o havia guardas, apenas uns
soldados com ar de poucos amigos.
- Identifiquem-se - gritou-lhes rudemente um homem, e Zoya
ficou aterrorizada; por�m, quando Fecodor iniciou o costumado
relato, Eugenia p�s-se de p� na parte de tr�s da tr�ica. Estava
vestida com simplicidade, como Zoya, apenas com um velho xaile a
tapar-lhe o cabelo, mas emanava um ar imperial quando o fitou do
alto e puxou Zoya para tr�s de si.
- Eugenia Peterovna Ossupov. Sou uma velha mulher e prima do
czar. Querem alvejar-me?
Tinham-lhe morto o neto e o filho e, se quisessem mat�-la
agora, seriam bem-vindos. Estava, contudo, preparada para os matar
antes, se pusessem um dedo em Zoya. A jovem n�o sabia, mas a av�
tinha um pequeno rev�lver de cano de madrep�rola escondido na
manga e estava disposta e preparada para o usar.
- N�o h� czar - retorquiu irado o homem, com uma faixa
vermelha no bra�o, parecendo, de s�bito, mais amea�adora do que
dantes. O cora��o da velha condessa batia acelerado, e Zoya estava
aterrorizada. "O que pretendia dizer? Tinham-no morto?... Eram
quatro da tarde... quatro da tarde e todo o mundo ru�ra... mas
Nicolau... tamb�m o teriam morto?... Como a Konstantin e Nicolai?"
- Preciso de ver a minha prima Alexandra. - Eugenia
expressava-se num tom imperial da cabe�a aos p�s, sem desviar os
olhos do soldado. - E os filhos. - "Ou tamb�m os teriam morto?" O
cora��o de Zoya batia desenfreadamente e sentava-se, gelada, por
detr�s das saias da av�, assustad�ssima, enquanto Fecdor se
conservava de p�, tenso e observando em sil�ncio. Seguiu-se uma
enorme pausa correspondente � avalia��o do soldado, que recuou
subitamente, falando aos compatriotas por cima do ombro.
- Deixem-nas passar. Mas lembra-te, velha - acrescentou,
virando-se para ela com uma express�o dura -, que j� n�o existe
czar. Abdicou h� uma hora, em Pskov. Esta � uma nova R�ssia.
Com estas palavras, afastou-se para lhes dar passagem e,
esperando cortar-lhe os dedos dos p�s, Feodor fustigou o cavalo
da tr�ica. Uma nova R�ssia... um final a uma antiga vida... o
velho e o novo fundindo-se numa horr�vel confus�o, enquanto
Eugenia se sentava, muito p�lida, ao lado da neta. Zoya sussurrou-
lhe ao passarem junto � Igreja Fecdorovski, incapaz de acreditar
no que tinha ouvido. O tio Nicolau n�o o faria...
- Acha que � verdade, av�?
- Talvez. A Alix vai contar-nos o que aconteceu.
Contudo, reinava um estranho sil�ncio nas portas da frente
do Pal�cio Alexandre. N�o havia guardas, nenhuma protec��o, n�o
se via ningu�m e, quando Feodor bateu com for�a � enorme porta do
pal�cio, apareceram duas criadas nervosas e deixaram-nos entrar.
O �trio parecia terrivelmente vazio.
- Onde est� toda a gente? - perguntou a velha condessa, e uma
das criadas apontou para a ombreira da porta que Zoya conhecia t�o
bem e levava aos aposentos privados do andar superior. A mulher
limpou com a ponta do avental as l�grimas que lhe corriam pela
face e, por fim, respondeu:
- A imperatriz est� l� em cima com as crian�as.
- E o czar? - Os olhos verdes de Eugenia fixaram-se com
intensidade na mulher que chorava desesperada.
- N�o ouviram?
"Oh, meu Deus, n�o...", rezou Zoya.
- Consta que abdicou a favor do irm�o. Foi o que os soldados
nos disseram h� uma hora. Sua Alteza n�o acredita.
- Mas ent�o est� vivo? - replicou Eugenia, sentindo uma onda
de al�vio a percorrer-lhe o corpo.
- Pensamos que sim.
- Gra�as a Deus. - Enrolou as saias � sua volta e deitou um
olhar severo a Zoya. - Diz ao Feodor que traga tudo para dentro. -
N�o queria que os soldados tocassem nas roupas, que tinham as
j�ias cosidas nos forros.
Quando Zoya regressou, momentos depois, acompanhada por
Fecodor, a av� ordenou � criada que as conduzisse l� acima, at�
junto da czarina.
- Sei o caminho, av�. Eu levo-a. - E atravessou sem ru�do os
corredores que t�o bem conhecia, os corredores que ainda h� dias
percorrera com a amiga.
O Pal�cio Alexandre apresentava-se misteriosamente calmo
quando conduziu a av� ao andar superior e bateu ao de leve � porta
de Marie; por�m, n�o obteve resposta. Tinhan-na mudado para uma
das salas de estar da m�e, a fim de ser tratada com Anna Virubova
e as irm�s.
Foram avan�ando pelo corredor, batendo �s portas, at� que,
por fim, ouviram vozes. Zoya esperou at� as mandarem entrar e a
porta abriu-se devagar, revelando Alexandra de p�, alta e magra,
estendendo uma ch�vena de ch� a uma das filhas mais novas.
Anastasia tinha l�grimas nos olhos quando se virou para a porta
e Marie sentou-se na cama e p�s-se a chorar ao ver Zoya.
Zoya estava demasiado comovida para falar; atravessou a sala
a correr e lan�ou-se nos bra�os da ainiga, ao mesmo tempo que
Eugenia beijava a prima, morta de cansa�o.
- Meu Deus, prima Eugenia! Como chegaram aqui? Est�s bem?
At� mesmo a idosa condessa sentiu dificuldade em falar quando
beijou a alta e elegante mulher, que tinha um ar t�o
desesperadamente cansado. Os olhos cinzento-claros pareciam
transbordar de uma vida de tristeza.
- Viemos ajudar-te, Alix. E n�o pod�amos ficar mais tempo em
Sampetersburgo. Incendiaram a casa esta manh�, quando nos viemos
embora. Partimos muito � pressa.
- N�o consigo acreditar... - Alexandra deixou-se afundar numa
cadeira. - E o Konstantin?
O rosto da idosa mulher empalideceu e o cora��o bateu
acelerado sob o pesado vestido. Sentiu repentinamente o peso de
tudo o que perdera e receou desmaiar aos p�s da mulher mais jovem,
mas n�o se podia permiti-lo ante tudo o que Alix tinha de
suportar.
- Morreu, Alix... - A voz falhou-lhe, mas n�o chorou. - E o
Nicolai tamb�m... no dorningo... A Natalya morreu quando a casa
pegou fogo esta manh�. - N�o lhe disse que a nora enlouquecera
antes de saltar da janela, envolta em chamas. - � verdade o que
dizem... sobre o Nicolau? - Receava perguntar, mas era necess�rio.
Tinham de saber. Era t�o dif�cil perguntar o que acontecera.
- Quanto � abdica��o? � imposs�vel. Falam disso para nos
assustar... mas hoje ainda n�o tive not�cias dele. - Fitou as duas
filhas que abra�avam Zoya, e as tr�s jovens choravam. Zoya,
acabara de lhes contar o sucedido com Nicolai e solu�ava nos
bra�os de Marie. Mesmo doente como estava, Marie consolava a amiga
e nenhuma delas parecia reparar nas duas mulheres mais velhas. -
Todos os nossos soldados nos abandonaram... at� mesmo... - A
imperatriz quase parecia incapaz de pronunciar as palavras. - At�
mesmo o Derevenko abandonou o Baby. - Era um dos dois soldados que
estivera com o filho desde que ele nascera. Deixara-os ao romper
dessa manh� sem uma palavra, ou um olhar por cima do ombro. O
outro, Nagorny, tinha jurado ficar ao lado de Alexis at� que o
matassem e estava agora junto dele no quarto ao lado, com o Dr.
Fedorov. O Dr. Botkin sa�ra para tentar encontrar mais
medicamentos para as raparigas com Gibbes, um dos seus dois
tutores. - � imposs�vel compreender... os nossos marinheiros...
N�o consigo acreditar. Se, ao menos, o Nicolau estivesse aqui...
- Ele vir�, Alix. Temos de manter a calma. Como est�o as
crian�as?
- Est�o todas doentes... De in�cio, n�o consegui dizer-lhes.
Mas agora sabem... Era imposs�vel ocultar-lhes a verdade por mais
tempo. - Suspirou e em seguida acrescentou: - O conde Benckendorff
est� aqui, jurou proteger-nos, e a baronesa Buxhoeveden chegou
ontem, de manh�. Ficam, Eugenia Peterovna?
- Se poss�vel. N�o temos hip�tese de voltar a Sampetersburgo,
agora... - Omitiu "se � que teremos". O mundo decerto voltaria a
reerguer-se. Quando Nicolau voltasse... As not�cias da sua
abdica��o eram sem d�vida uma mentira espalhada por
revolucion�rios e traidores para os assustar e controlar.
- Podes ficar no quarto da Mashka, se quiseres. E a Zoya...
- Dormiremos juntas. O que posso fazer para te ajudar, Alix?
Onde est�o as outras? - A imperatriz esbo�ou um sorriso agradecido
quando a idosa prima do marido despiu a capa e enrolou com cuidado
as mangas do vestido simples que pusera.
- Vai descansar. A Zoya far� companhia �s raparigas, enquanto
me ocupo dos outros.
- Irei contigo. - E a velha senhora acompanhou-a firmemente
durante todo o dia, servindo ch�, refrescando testas febris e
ajudando mesmo Alix a mudar os len��is de Alexis, sem que Nagorny
sa�sse lealmente do lado dele. Tal como Alix, tamb�m Eugenia tinha
dificuldade em acreditar que Derevenko realmente o abandonara.
Era quase meia-noite quando Zoya e a av� se enfiaram na cama,
no quarto de Marie e Anastasia, e Zoya manteve-se acordada durante
horas, ouvindo a av� que ressonava um pouco. Parecia-lhe
imposs�vel que ainda h� menos de tr�s semanas tivesse visitado
Marie naquele mesmo quarto e Marie lhe oferecesse um frasco do seu
perfume favorito, agora desaparecido, quando tudo se despeda�ara
� volta delas.
Apercebera-se tamb�m de que nenhuma das raparigas tinha
perfeita consci�ncia do que acontecera. Nem ela pr�pria estava
muito segura de o compreender, mesmo depois de tudo o que vira em
Sampetersburgo. Contudo, haviam estado t�o doentes e encontravam-
se t�o afastadas da desordem das ruas, das revoltas, dos
assass�nios, dos saques. A vis�o da sua casa em chamas amea�ava
ficar... bem como a vis�o do irm�o a esvair-se em sangue no ch�o
de m�nnore do Pal�cio Fontanka, h� quatro dias. Era de manh�
quando Zoya adormeceu. Uma nova tempestade de neve rugia l� fora
e interrogou-se sobre quando o czar regressaria a casa e se a vida
alguma vez voltaria � normalidade.
Contudo, �s cinco dessa tarde, a hip�tese parecia invi�vel.
O gr�o-duque Paul, o tio de Nicolau, apareceu em Tsarskoie Selo
e trouxe not�cias a Alexandra. Nicolau abdicara no dia anterior,
transmitindo o poder ao seu irm�o, o gr�o-duque Miguel, que tinha
sido completamente apanhado de surpresa e n�o estava preparado
para ocupar o trono.
Apenas Alix e o Dr. Fedorov compreendiam de facto por que
raz�o Nicolau n�o abdicara a favor do filho, mas do irm�o. A
gravidade da doen�a de Alexis era um segredo bem guardado. Estava
a formar-se um governo provis�rio e Alexandra ouviu as not�cias
em sil�ncio e desejou de todo o cora��o poder falar com o marido.
Nicolau chegou ao quartel-general em Mogilev na manh�
seguinte para se despedir das suas tropas e foi da� que conseguiu,
por fim, telefonar � mulher. O telefonema chegou quando Alexandra
estava a ajudar o Dr. Botkin a cuidar de Anastasia e voou do
quarto para lhe falar, rezando para que ele lhe dissesse que nada
daquilo era verdade, mas o som da voz dele deitou-lhe todas as
esperan�as por terra.
A vida deles, todos os sonhos e a dinastia estavam
destru�dos. Prometeu voltar assim que poss�vel e, como sempre,
inteirou-se com afecto sobre os filhos. E na noite seguinte,
domingo, o general Kornilov deslocou-se de Sampetersburgo para saber se eram necess�rios medicamentos ou comida, e o primeiro
pensamento dela foi para os soldados. Implorou-lhe que ajudasse
a providenciar rem�dios e comida para os hospitais. Depois de os
tratar durante tanto tempo, n�o conseguia esquec�-los, mesmo
quando j� n�o eram os "seus" soldados. O general garantiu-lhe que
o faria e algo na visita lhe sugeriu que o pior estava para vir.
Nessa noite, avisou Nagorny que n�o abandonasse a cabeceira
de Baby e ficou sentada com as filhas at� altas horas. Passava da
meia-noite quando, por fim, recolheu ao quarto e a velha condessa
bateu-lhe ao de leve na porta e levou-lhe uma ch�vena de ch�. Ao
detectar as l�grimas nos olhos da mulher mais nova, p�s-lhe
suavemente as m�os nos ombros.
- H� algo que possa fazer por ti, Alix?
Ela abanou a cabe�a, ainda orgulhosa, ainda austera, e
agradeceu-lhe com os olhos.
- S� queria que ele voltasse para casa. Subitamente... temo
pelas crian�as aqui. - Tamb�m Eugenia partilhava esse sentimento,
mas n�o queria admiti-lo frente � sua jovem prima.
- Estamos todos junto de ti. - Mas "todos" eram t�o poucos,
um punhado de mulheres idosas e amigos leais que podiam contar-se
pelos dedos de uma m�o. Tinham sido abandonados por todos, e o
golpe tornava-se quase insuport�vel. Sabia, por�m, que n�o podia
ir abaixo agora. Tinha de manter-se forte pelo marido. - Agora,
precisas de dormir um pouco, Alix.
Alexandra passeou o olhar nervoso pelo famoso quarto em tons
de malva e depois fixou, tristemente, a idosa mulher.
- H� umas coisas que quero fazer... Tenho de... - As palavras
sa�am-lhe com dificuldade. - Quero queimar os meus di�rios esta
noite... e as minhas cartas... Quem sabe se encontrar�o qualquer
maneira de us�-los contra ele.
- � claro que n�o podem... - Mas, ao pensar na hip�tese,
Eugenia achou que concordava com Alexandra. - Queres que te fa�a
companhia? - N�o queria intrometer-se, mas a imperatriz parecia
t�o desesperada e s�.
- Gostaria de ficar s�, se n�o te importas.
- Compreendo - redarguiu e abandonou Alexandra � sua
desafortunada tarefa.
A imperatriz ficou sentada junto � lareira at� de manh�, a
ler cartas e di�rios, e queimando at� mesmo as cartas da sua av�,
a rainha Vit�ria. Queimou tudo � excep��o da correspond�ncia com
o seu querido Nicolau e, durante dois dias, O desgosto foi criando
ra�zes at� quarta-feira, quando o general Kornilov regressou e
pediu para lhe falar a s�s.
Encontraram-se, l� em baixo, numa das salas frequentemente
usadas por Nicolau. Tentou dissimular orgulhosamente a surpresa
e a dor ao ouvir as palavras. Colocavam-na sob deten��o
domicili�ria juntamente com a fam�lia, a criadagem e as crian�as.
N�o queria acreditar, mas agora era inevit�vel. O fim chegara e
todos tinham de enfrent�-lo. O general explicou que todos os que
quisessem poderiam ficar, mas que, se optassem por ir embora,
jamais regressariam a Tsarskoie Selo. Eram not�cias horr�veis e
fez apelo a todas as suas for�as para n�o desfalecer.
- E o meu marido, general?
- Pensamos que estar� aqui de manh�.
- E v�o prend�-lo? - Sentiu um mal-estar fisico ao formular
a pergunta, mas agora tinha de saber. Precisava de saber tudo, o
que poderiam esperar e o que enfrentavam. E depois de todos os
relatos que ouvira nos �ltimos dias, supunha que deveria estar
agradecida por n�o os terem morto a todos, mas, diante dos
acontecimentos, a gratid�o tornava-se dificil.
- O seu marido ficar� sob deten��o domicili�ria, aqui em
Tsarskoie Selo.
- E depois? - inquiriu com uma palidez de morte, mas a
resposta n�o foi t�o terr�vel quanto receara. Nesse momento apenas
conseguia pensar no marido e nos filhos, na seguran�a e na vida
deles. De bom grado se teria sacrificado por eles. Faria tudo, e
o general Kornilov observava-a com uma admira��o silenciosa.
- O Governo Provis�rio deseja acompanh�-la, ao seu marido e
� sua fam�lia a Murmansk. Poder� partir daqui. Envi�-la-emos de
barco para Inglaterra, para o rei Jorge.
- Percebo. E quando? - Denotava uma express�o gelada.
- Mal possam tomar-se disposi��es, madame.
- Muito bem. Esperarei a chegada do meu marido para comunicar
�s crian�as.
- E os outros?
- Direi hoje a todos que se quiserem t�m liberdade para ir
embora, mas n�o podem voltar. Est� bem assim, general?
- Certamente.
- E n�o far� mal a nenhum dos nossos familiares e fi�is
amigos quando partirem, os poucos que restam?
- Dou-lhe a minha palavra de honra, madame. - A palavra de
um traidor em que lhe apetecia cuspir, mas manteve-se calma e
senhoril, vendo-o afastar-se, e foi em seguida comunicar aos
outros. Disse-lhes que eram livres de partir e incitou-os a faz�-
lo, se o desejassem.
- N�o podemos esperar que fiquem, se n�o o desejarem.
Partiremos para Inglaterra dentro de semanas e talvez seja mais
seguro para voc�s deixarem-nos agora... - Talvez mesmo antes do
regresso de Nicolau. N�o acreditava na totalidade que estivessem
a coloc�-los sob pris�o domicili�ria para os proteger.
Contudo, os outros recusaram partir e, no dia seguinte,
Nicolau regressou finalmente, com um ar extenuado e p�lido,
naquela manh� gelada e horr�vel. Entrou silenciosamente no �trio
e por um longo momento limitou-se a ficar ali de p�. O pessoal
comunicou de imediato a sua presen�a a Alix que desceu ao seu
encontro e o fitou do outro lado da enorme entrada, os olhos
cheios das palavras imposs�veis de pronunciar, o cora��o pleno de
compaix�o pelo homem que amava. Nicolau avan�ou e tomou-a nos
bra�os com for�a. Nada havia que pudessem dizer quando subiram
devagar as escadas at� junto dos filhos.
CAP�TULO 6
Os dias seguintes ao regresso de Nicolau revelaram-se plenos
de receio e de uma tens�o silenciosa e ao mesmo tempo de al�vio
por ele estar em casa a salvo. Perdera tudo, mas, pelo menos, n�o
o tinham morto. Sentou-se calmamente durante horas com o filho e
Alexandra dedicou aten��o �s filhas. Era agora Marie quem estava
mais doente, com uma pneumonia causada pelo sarampo. Tinha uma
tosse horr�vel que lhe sacudia repetidamente todo o corpo e uma
febre que parecia n�o baixar. Zoya nunca sala do lado dela.
- Mashka... Bebe s� um bocadinho... por mim...
- N�o posso... D�i-me muito a garganta. - Mal conseguia
falar, e Zoya sentia-lhe a pele quente e seca ao tocar-lhe.
Banhava-lhe a testa com �gua de rosas e falava-lhe em voz baixa
sobre as partidas de t�nis no Ver�o anterior, em Livadia.
- Lembras-te daquela fotografia idiota que o teu pai tirou
a todas, de cabe�a para baixo? Trouxe-a comigo... Queres v�-Ia,
Mashka?
- Mais tarde... Doem-me muito os olhos, Zoya... Sinto-me
pessimamente.
- Chiu... Tenta dorrnir... Mostro-te a fotografia quando
acordares. - Chegou mesmo a trazer a pequena Sava para a alegrar,
mas Marie n�o se interessava por nada. Zoya s� esperava que ela
estivesse suficientemente bem para viajar at� Murmansk e seguir
de barco para Inglaterra.
Partiriam dentro de tr�s semanas e Nicolau disse que todos
teriam de estar bem nessa altura. Chamava-lhe a sua �ltima ordem
imperial, o que provocou l�grimas em todos. Esfor�ava-se imenso
por conseguir que todos se sentissem melhor e por manter as
crian�as felizes. Ele e Alix pareciam mais extenuados a cada dia
que passava. Tr�s dias mais tarde, Zoya avistou Nicolau de relance
no corredor, e o rosto denotava uma palidez de cal. Uma hora
depois soube o motivo. O seu primo ingl�s negara-se a receb�-lo
por raz�es ainda n�o esclarecidos. Assim, a fam�lia imperial n�o
partiria para Inglaterra. De in�cio, pedira a Zoya e � velha
condessa que os acompanhassem, mas agora ningu�m sabia o que ia
suceder.
- O que vai acontecer, av�? - perguntou-lhe Zoya nessa
noite, com um olhar aterrorizado. E se estivessem apenas a det�-
los ali em Tsarskoie Selo para por fim os matarem?
- Ignoro, mi�da. O Nicolau dir-nos-� quando estiver decidido.
Ir�o provavelmente para Livadia.
- Acha que nos matar�o?
- N�o sejas pateta. - Contudo, receava o mesmo. Deixara de
haver respostas f�ceis. At� os Ingleses lhe tinham retirado o
tapete. N�o havia outro lugar para onde irem, um lugar seguro.
Achava que a estrada para Livadia era perigosa. Estavam
encurralados em Tsarskoie Selo. E Nicolau parecia sempre t�o calmo
e incitava todos a que n�o se preocupassem, mas... como?
Na manh� seguinte, quando Zoya saiu do quarto nos bicos dos
p�s e olhou atrav�s da janela, avistou Nicolau e a av� percorrendo
devagar o jardim coberto de neve. Parecia n�o haver mais ningu�m
por perto e, ao observ�-los, ele de ombros direitos e orgulhosos
e a av� t�o pequena, uma figura envolta numa capa preta sob a
neve, julgou ver a av� a chorar. Em seguida, ele abra�ou-a
ternamente e desapareceram ambos atr�s de uma esquina do pal�cio.
Zoya dirigiu-se ao quarto que partilhavam e, pouco depois,
a av� regressou, deixou-se cair numa cadeira com uma express�o
triste e fitou a bonita neta. H� umas semanas atr�s parecia ainda
uma crian�a e agora, de s�bito, ficara t�o perspicaz e triste.
Estava mais magra e parecia mais fr�gil, mas a av� sabia que os
horrores das �ltimas semanas s� a ajudariam a tomar-se mais forte.
Precisaria da for�a dela. Todos precisariam.
- Zoya... - Ignorava como lhe dizer, mas sabia que Nicolau
estava certo. E tinha de pensar na seguran�a de Zoya. A jovem
possu�a uma longa vida pela frente e a av� de bom grado daria a
sua para a proteger.
- Passa-se alguma coisa, av�? - � luz do que acontecera nas
duas �ltimas semanas, parecia uma pergunta rid�cula, mas sentia
que mais desgra�as estavam iminentes.
- Acabei de falar com o Nicolau, Zoya Konstantinovna... Ele
quer que partamos j�... enquanto ainda podemos...
Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas e levantou-se de um
salto.
- Porqu�? - replicou. - Dissemos que ficar�amos com eles e
eles v�o partir em breve, n�o �, av�?... ��o v�o? - A idosa
senhora n�o lhe respondeu. Pesava os pratos da balan�a da verdade
e da mentira e a verdade ganhou como sempre.
- N�o sei. Dada a recusa dos Ingleses em receb�-los, o
Nicolau. teme que as coisas n�o corram bem para eles. Sente que
ficar�o aqui prisioneiros, talvez por muito tempo, ou que os
levar�o para qualquer outro lado. Podemos ser eventualmente
separados... e n�o pode oferecer-nos protec��o, n�o a tem. E �
imposs�vel manter-te a salvo desses selvagens. Ele tem raz�o...
Precisamos de ir... agora... enquanto ainda podemos. - Fitou
tristemente a jovem que ainda h� momentos fora uma crian�a; por�m,
n�o estava de forma alguma preparada para a dimens�o da raiva de
Zoya.
- N�o irei consigo! N�o ire�! N�o os deixarei!
- Tens de ir! Podes acabar na Sib�ria, pequena idiota... sem
eles! Temos de partir nos pr�ximos dois dias. O Nicolau receia que
a situa��o piore. Os revolucion�rios n�o o qgerem por aqui e, se
os Ingleses n�o o aceitam, quem aceitar�? � uma situa��o muito
grave!
- Ent�o, morrerei com eles! N�o pode obrigar-me a ir!
- Posso fazer o que quiser e tens de obedecer-me, Zoya! �
tamb�m essa a vontade do Nicolau! E n�o deves desobedecer �s suas
ordens! - Sentia-se quase demasiado cansada para enfrentar a
jovem, mas sabia que tinha de apelar �s suas �ltimas for�as para
a convencer.
- N�o deixarei a Marie aqui, av�. Ela est� t�o doente... e
� tudo o que me resta... - Zoya p�s-se a solu�ar e, qual
rapariguinha, pousou a cabe�a nos bra�os em cima da mesa. Era a
mesma mesa onde ainda h� um m�s se sentara com Marie, quando ela
lhe entran�ara o cabelo e as duas haviam rido e conversado. Para
onde fora esse mundo? O que acontecera a todos eles?... E
Nicolai... a sua m�e e o pai...
- Ainda me tens, pequenina... - A av� acariciou-lhe o cabelo,
como Marie dantes o fizera. - Precisas de ser forte. � o que
esperam de ti. Temos de fazer o que h� a ser feito, Zoya.
- Para onde iremos, ent�o?
- Ainda n�o sei. O Nicolau diz que toma as disposi��es
necess�rias. Talvez possamos ir para a Finl�ndia. E da� para
Fran�a ou Su��a.
- Mas l� n�o conhecemos ningu�m! - exclamou com um ar
aterrorizado e virando para Eugenia o rosto manchado de l�gr@nas.
- �s vezes a vida � assim, minha querida. Temos de confiar
em Deus e ir para onde o Nicolau nos manda.
- Av�, n�o posso... - retorquiu, mas a av� mostrou-se firme.
Era t�o forte quanto o a�o e duplamente resoluta. E Zoya n�o
conseguia fazer-lhe frente, pelo menos por enquanto, e as duas
sabiam-no.
- Podes e ir�s e n�o deves dizer nada �s crian�as. J� t�m
problemas que cheguem. N�o devemos sobrecarreg�-las, nem seria
justo.
- O que direi � Mashka?
Os olhos da velha senhora encheram-se de l�grimas ao fitar
a neta que tanto amava e ao responder-lhe num sussurro pleno da
sua pr�pria tristeza pelos que haviam perdido e os que agora
perderiam.
- Diz-lhe apenas quanto gostas dela.
CAP�TULO 7
Zoya entrou nos bicos dos p�s no quarto onde Marie dormia e
deteve-se um longo momento a observ�-la. Detestava acord�-la, mas
n�o conseguia ir-se embora sem se despedir. N�o suportava a ideia
de a deixar, mas agora era imposs�vel voltar atr�s. A av�
esperavas l� em baixo e Nicolau planeara tudo para elas.
Deveriam seguir pela longa estrada escandinava, atrav�s da
Finl�ndia e Su�cia, e em seguida Dinamarca. Dera a Eugenia os
nomes de amigos da sua tia dinamarquesa e Feodor aconipanh�-las-ia
para as proteger. Tudo fora decidido. Apenas restava um �ltimo
adeus � amiga. Observou-a a mexer-se, febril, sob os len��is e
depois Marie abriu os olhos e Zoya esfor�ou-se corajosamente por
conter as l�grimas.
- Como te sent& - sussurrou no quarto silencioso. Embora
Anastasia estivesse a dormir noutro quarto com as suas duas irm�s,
todas melhoravam lentamente. S� Marie continuava muito doente, mas
Zoya tentou n�o pensar nisso naquele momento. N�o podia pensar em
nada, n�o podia permitir-se olhar para tr�s nem para a frente, n�o
havia nada por que ansiar. Havia apenas... um curt�ssimo momento
com a sua mais querida amiga... e estendeu a m�o, tocando-lhe na
face. - Mashka... - Marie tentou sentar-se na cama e fitou a amiga
com um olhar estranho.
- Passa-se alguma coisa?
- N�o... Vou... vou regressar a Sampetersburgo com a minha
av�. - Prometera a Alix que n�o lhe diria a verdade, pois seria
demasiado duro para ela nessa altura. Contudo, Marie parecia
preocupada. Sempre tivera um sexto sentido em rela��o � amiga,
como era agora o caso. Estendeu o bra�o e agarrou na m�o de Zoya,
prendendo-a com for�a na sua m�o febril.
- � seguro?
- Claro - mentiu Zoya, atirando o cabelo ruivo para tr�s. -
O teu pai n�o nos deixaria ir se n�o fosse seguro... - "Por favor,
meu Deus, n�o permitas que chore agora, por favor..." Estendeu-lhe
o copo de �gua e Marie afastou-o, fixando a amiga bem no fundo dos
olhos.
- Passa-se alguma coisa, n�o � verdade? Vais para qualquer
lado?
- Apenas para casa durante uns dias... Voltarei em breve. -
Inclinou-se para diante e abra�ou Marie com for�a e os olhos
cheios de l�grimas. - Agora tens de melhorar. Estiveste doente
demasiado tempo. - Abra�aram-se com mais for�a e Zoya exibia um
sorriso radioso quando se afastou, sabendo que a esperavam.
- Escreves-me?
- Claro. - N�o conseguia ir-se embora e mantinha-se ali de
p�, fitando-a, desejando absorver tudo, fixar tudo, a sensa��o da
m�o da amiga, a suavidade dos len��is, o olhar dos seus belos
olhos azuis. - Amo-te, Mashka. - As palavras tornaram-se um
sussurro. - ... Amo-te tanto...
- Tamb�m eu. - Marie deixou-se cair na almofada com um
suspiro. Era fatigante sentar-se na cama e falar e depois teve
um horr�vel ataque de tosse e Zoya amparou-a
- Melhora, por favor.-. - lnclinou-se uma �ltima vez para
lhe beijar a face, sentiu os carac�is macios sob a m�o e depois
virou-se rapidamente e avan�ou at� � porta, voltando-se para
esbo�ar um derradeiro aceno. Contudo, Marie fechara novamente
os olhos e Zoya encerrou a porta devagar, com o cora��o despeda�ado e as l�grimas correndo, silenciosas. Despedira-se
das outras h� meia hora e parara agora do lado de fora do quarto do jovem Alexis. Nagorny mantinha-se ao seu lado e Pierre Gilliard tamb�m. O Dr. Fedorov ia a sair.
- Posso entrar? - perguntou, limpando as l�grimas e ele
tocou-lhe no bra�o num gesto de muda compreens�o.
- Est� a dormir. - Zoya limitou-se a acenar com a cabe�a e
desceu apressadamente as escadas ao encontro da av� e do czar e
da czarina que a aguardavam no �trio principal. Feodor j� estava
l� fora com dois dos melhores cavalos do czar atrelados � velha
tr�ica em que tinham vindo. Quando avan�ou na direc��o deles com
um andar de chumbo, sentia-se esgotada. Queria que tudo parasse,
queria fazer recuar O rel�gio... voltar a subir as escadas at�
junto da amiga... Sentia-se como se estivesse a abandon�-los a
todos, mas afastavam-na, na verdade, contra sua vontade.
- Ela est� bem? - Alexandra lan�ou um olhar preocupado a
Zoya, esperando que Marie n�o se tivesse apercebido de toda aquela
crua agonia.
- Disse-lhe que �amos voltar a Sampetersburgo. - Zoya chorava
agora copiosamente e a pr�pria av� teve de lutar contra as
l�grimas, quando Nicolau a beijou nas duas faces e lhe agarrou
fortemente as m�os, com uma enorme tristeza no olhar mas um
sorriso digno nos l�bios. Embora Eugenia o tivesse ouvido solu�ar
nos aposentos da mulher na noite em que voltara, nunca demonstrou
o seu desgosto aos outros. Encorajava todos com bravura e mostrou-
se sempre encantador e calmo, como agora ao beij�-la � despedida.
- Boa viagem, Eugenia Peterovna. Ansiamos por vos ver em
breve.
- Rezaremos por voc�s todas as horas, Nicolau. - A velha
senhora beijou-o na face. - Boa sorte para todos. - Virou-se
depois para Alix, enquanto Zoya se mantinha ao lado com as
l�grimas correndo-lhe pela face. - Toma conta de ti e n�o te
canses de mais, minha querida. Espero que as crian�as recuperem
depressa.
- Escreve-nos - pediu Alix num tom triste, como Marie dissera
a Zoya h� uns momentos. - Ficaremos ansiosamente � espera de
not�cias. - Depois virou-se para Zoya. Conhecera-a desde o
nascimento, pois a sua filha e a de Natalya haviam nascido com uns
meros dias de diferen�a e tinham sido amigas �ntimas durante
aqueles dezoito anos. - S� boa rapariguinha, escuta a tua av� e
toma conta de ti. - E sem uma palavra mais, abra�ou-a, sentindo
por instantes como se estivesse a perder a sua pr�pria filha.
- Amo-a, tia Alix... Amo-a tanto... N�o quero ir... - Mal
conseguia falar no meio dos solu�os e depois virou-se para
Nicolau, e ele abra�ou-a como o teria feito o seu pr�Prio pai, se
ainda estivesse vivo.
- Tamb�m te amamos e sempre te amaremos. Voltaremos a estar
juntos um dia, garanto-te. E Deus vos proteja a ambas at� ent�o,
minha pequenina. - Depois afastou-a suavemente com um pequeno
sorriso. - Agora, t�m de ir.
Conduziu-as solemente at� ao exterior. A mulher agarrou no
bra�o da av� e ajudaram-nas a subir para a tr�ica. Zoya chorava.
A criadagem que restava viera despedir-se e tamb�m chorava.
Conheciam Zoya desde crian�a e agora ela deixava-os e em breve os
outros lhes seguiriam o exemplo. E o pensamento de nunca mais
voltarem era aterrador. Era tudo em que Zoya conseguia pensar
quando Feodor ergueu devagar o chicote e tocou pela primeira vez
nos cavalos do czar.
A tr�ica ganhou vida e sob aquela luz cinzenta afastaram-se
subitamente de Alexandra e Nicolau que ficaram a acenar-lhes.
Zoya virou-se, apertando a pequena Sava de encontro ao corpo. A
cadelinha ganiu como se tamb�m soubesse que estava a deixar a casa
para nunca mais regressar, e a jovem enterrou o rosto nos bra�os
da av�. N�o conseguia continuar a olhar para aquelas duas figuras
que lhes acenavam, o Pal�cio Alexandre e, de s�bito, a pr�pria
Tsarskoie Selo desaparecendo numa nuvem distante de neve... Zoya
chorava de tristeza, pensando em Mashka... Mashka... a sua melhor
e a mais querida amiga... o irm�o... os pais... todos
desaparecidos...
Agarrou-se � av� e chorou. A velha senhora sentava-se
estoicamente no tren�, de olhos fechados, com as l�grimas, rolando
pelas faces, deixando para tr�s uma vida, tudo o quer alguma vez
conhecera, um mundo que todos haviam amado... desaparecido como
as neves, enquanto Fecodor continuava a gui�-las e os cavalos de
Nicolau as transportavam para longe de casa, de tudo e de todos
os que tinham conhecido e amado.
- Adieu, chers amis... - sussurrou Eugenia para a neve que
ca�a... Adeus, queridos amigos...
S� se tinham uma � outra agora, uma mulher muito ve1ha e uma
rapariga muito jovem, fugindo de um mundo perdido e das pessoas
que haviam amado. Nicolau e a sua fam�lia f�ziam agora parte da
Hist�ria. Nunca seriam esquecidos, sempre amados e jamais vistos
por qualquer delas.
PARIS
CAPITULO 8
A viagem de Tsarskoie Selo at� Beloostrov na fronteira
finlandesa demorou sete horas, embora n�o ficasse distante de
Sampetersburgo, mas Feodor tomou o cuidado de viajar por todas as
estradas secund�rias. Nicolau avisara-os de que era mais seguro,
mesmo que lhes levasse mais tempo.
E, para surpresa de Eugenia, atravessaram a fronteira sem
dificuldade. Verificaram-se algumas perguntas, mas Eugenia deu
repentinamente a sensa��o de se recolher mais sobre si pr�pria e
parecia uma velha, encolhida e fria, enquanto Zoya parecia mais
crian�a do que nunca.
Foi Sava que acabou por salv�-las. Os soldados da fronteira
ficaram encantados com ela e depois de um momento de ansiedade
fizeram-lhes sinal para que avan�assem, e os tr�s refugiados
soltaram um suspiro de al�vio quando a tr�ica avan�ou atr�s dos
cavalos de Nicolau. Feodor tivera o cuidado de usar os velhos
arreios que trouxera de Sampetersburgo, abstendo-se de se servir
de qualquer equipamento do est�bulo do czar com a facilmente
identific�vel �guia dupla.
A viagem de Beloostrov atrav�s da Finl�ndia em direc��o a
Turku levou dois dias inteiros e, quando chegaram a altas horas
da noite, Zoya sentia-se como se fosse ficar insens�vel para o
resto da vida. Todo o corpo parecia congelado na posi��o em que
viera, na tr�ica. A av� mal conseguia andar quando a ajudaram a
sair, e o pr�prio Feodor parecia exausto.
Descobriram uma pequena estalagem onde alugaram dois quartos
e, de manh�, Feodor vendeu os cavalos por uma quantia
ridiculamente baixa antes de os tr�s se meterem num navio quebra-
gelo, rumo a Estocolmo. Foi outro dia infind�vel no navio, que
avan�ava devagar pelo meio do gelo entre a Finl�ndia e a Su�cia,
e os tr�s companheiros mal falavam, imersos nos seus pr�prios
pensamentos.
Chegaram a Estocolmo ao fim da tarde e mesmo a tempo de
apanhar o comboio da noite para Malm�. Uma vez em Malm�, seguiram
de barco na manh� seguinte at� Copenhaga e ali se instalaram num
pequeno hotel. Eugenia tentou contactar os amigos da tia do czar,
mas estavam ausentes e na manh� seguinte deixaram Copenhaga rumo
a Fran�a num navio ingl�s.
Nessa altura, Zoya sentia-se aturdida e enjoou horrivelmente
no primeiro dia em que embarcaram. A av� achou-a febril, mas era
imposs�vel dizer se estava doente ou apenas exausta. Estavam todos
esgotados depois da viagem de seis dias. Fora um tormento viajarem
dia ap�s dia de barco, de comboio e de tr�ica. O pr�prio Feodor
dava a sensa��o de ter envelhecido dez anos numa semana, mas o
problema residia tamb�m na tristeza de abandonarem a p�tria.
Falavam pouco, raramente dormiam e nenhum deles parecia
ter fome. Era como se os corpos transbordassem de tristeza e
n�o conseguissem suportar mais. Haviam deixado tudc para tr�s,
um estilo de vida, mil anos de Hist�ria, as pessoas que tinham
amado e perdido. Tornava-se quase insuport�veis e Zoya viu-se a
desejar que o navio fosse afundado pelos submarinos alem�es a
caminho de Fran�a. Longe da R�ssia, era da grande guerra que as
pessoas tinham medo e n�o da revolu��o. A jovem foi ao ponto de
pensar que morrer �s m�os de outrem teria sido mais f�cil do
que enfrentar um novo mundo que n�o desejava conhecer.
Zoya recordava os milhares de vezes que ela e Marie nham
falado no sonho de viajar at� Paris. Nessa altura, tudo soava
t�o rom�ntico, t�o excitante com todas as mulheres elegantes e
os belos vestidos que comprariam. Agora, n�o haveria nada
disso. Tinham apenas o pouco dinheiro que a av� pedira
emprestado ao czar antes de partirem e as j�ias cosido na
roupa. Eugenia j� tinha decidido vender muitas delas, depois de
chegarem a Paris.
Tinham igualmente de pensar em Feodor. Ele prometera procurar
trabalho mal chegassem, jurara fazer tudo o que pudesse para as
ajudar, mas recusara deixar que enfrentassem a viagem sozinhas.
Nada tinha na R�ssia e n�o conseguia imaginar uma vida sem servir
os Ossupov. Morreria se o deixassem. Esteve t�o mal quanto Zoya
na viagem para Fran�a; nunca pusera os p�s num barco e sentia-se
cheio de medo, enquanto se agarrava, infelic�ssimo, ao varandim.
- O que vamos fazer, av�? - inquiriu Zoya, sentada e olhando
desgostosa para a av� no pequeno camarote.
Fora-se a grandeza dos iates imperiais, os pal�cios, os
pr�ncipes, as festas. Desaparecera o calor e o amor familiar, bem
como as pessoas que tinham conhecido, o seu estilo de vida, at�
mesmo a seguran�a de saberem que tinham o suficiente que comer no
dia seguinte. Restava-lhes apenas as suas vidas, e Zoya nem mesmo
estava segura de a desejar. S� quena regressar a casa, a Mashka,
� R�ssia, fazer recuar o tempo e voltar a um mundo perdido, cheio
de pessoas que j� n�o existiam. O pai, o irm�o, a m�e. E, � medida
que seguiam viagem, Zoya interrogava-se sobre se Marie estaria
melhor.
- Temos de encontrar um apartamento pequeno - respondeu-lhe
a av�. H� anos que n�o ia a Paris. Viajara muito pouco desde a
morte do marido. Contudo, agora tinha de pensar em Zoya.
Precisava de mostrar-se forte diante da jovem. Rezou para viver
o suficiente para cuidar dela, mas n�o era Eugenia quem agora
estava em perigo, mas a neta.
A rapariga parecia muito doente e os olhos maiores do que
nunca e encovados no rosto p�lido. Quando a velha condessa lhe
tocou, soube desde logo que ela estava a arder em febre. Nessa
noite, come�ou com uma tosse horr�vel e a condessa receava que
fosse pneumonia. Na manh� seguinte, a tosse piorou e, quando
apanharam o comboio para Paris, em Bolonha, tornou-se �bvio que
a doen�a a atacara. Come�aram a aparecer-lhe manchas no rosto e
nas m�os. A av� obrigou-a a levantar a saia de l� e verificaram
que Zoya tinha sarampo.
Eugenia estava preocupad�ssima e mais ansiosa do que nunca
para fazer chegar a neta a Paris. Era uma viagem de dez horas de
comboio e chegaram pouco antes da meia-noite. Havia meia d�zia de
t�xis � porta da Gare du Nord e Eugenia mandou Feodor buscar um
deles, enquanto ajudava Zoya a descer do comboio. Esta mal
conseguia andar e apoiava-se com for�a � av�, de rosto t�o
afogueado como a brilhante cabeleira ruiva. Tossia horrivelmente
e n�o dizia coisa com coisa devido � febre.
- Quero ir para casa - choramingou, agarrada � cadelinha.
Sava estava agora mais crescida e Zoya mal podia com ela quando
seguiu a av� at� fora da esta��o.
- Vamos para casa, meu amor. O Feodor anda � procura de um
t�xi.
Contudo, Zoya pOs-se a chorar, desfazendo a imagem da mulher
em que se tornara ao fitar a av� com uma express�o de crian�a
perdida.
- Quero voltar para Tsarskoie Selo.
- Sossega, Zoya... sossega...
Feodor acenava freneticamente e tratava da bagagem. Eugenia
guiou a neta com meiguice e ajudou-a a entrar no t�xi antigo.
Tudo o que ainda possu�am estava empilhado ao lado de Fecodor e
do motorista, e as duas entraram para o banco de tr�s com suspiros
cansados. N�o tinham reserva em parte alguma, n�o sabiam para onde
ir e o motorista ouvia mal e era velho. H� muito que todos os
homens novos tinham abandonado Paris, onde s� haviam ficado os
velhos e enfermos.
- Alors?... On y va, mesdames? - Sorriu para o banco de tr�s
e fez uma express�o surpreendida ao ver que Zoya chorava. - Elle
est malade? Ela est� doente? - Eugenia apressou-se a garantir-lhe
que estava apenas muito cansada, como todos eles. - De onde v�m? -
prosseguiu o homem num tom amistoso e Eugenia tentou recordar-se
do hotel onde ficara com o marido h� anos, mas subitamente
esqueceu tudo. Tinha oitenta e dois anos e estava esgotada. E
precisavam de levar Zoya para um hotel e chamar um m�dico.
- Pode recomendar-nos um hotel? Algo pequeno, limpo e n�o
muito caro. - Ele premiu os l�bios por momentos enquanto
pensava, e Eugenia apertou instintivamente a mala de encontro
ao corpo. L� dentro levava o �ltimo e o mais importante
presente da imperatriz. Alix dera-lhe um dos seus ovos de
P�scoa imperiais, fabricados especialmente para ela h� tr�s
anos por Carl Faberg�. Era uma pe�a maravilhosa de esmalte
malva com fitas de diamantes e Eugenia sabia que era o seu mais
importante tesouro. Quando tudo o mais falhasse, podiam vend�-
lo e viver do que ele rendesse.
- Importa-lhe onde fique, madame?... O hotel...
- Desde que seja num bairro decente. - Podiam procurar outra
coisa melhor depois e nessa noite s� precisavam de quartos onde
pudessem dormir. As comodidades, se ainda@, fossem poss�veis,
viriam mais tarde.
- H� um pequeno hotel � sa�da dos Campos El�sios, madame.
O porteiro da noite � meu primo.
- � caro? - inquiriu num tom r�spido, e ele encolheu os
ombros. Via que n�o eram gente abastada, vestidas com aquelas
roupas simples e o velho tinha ar de campon�s. Pelo menos a mulher
falava franc�s e achava que a rapariguinha tamb�m, embora chorasse
a maior parte do tempo e tivesse aquela tosse horr�vel. S�
esperava que n�o fosse tuberculose, que nessa altura varria Paris.
- N�o � mau. Pe�o ao meu primo que fale com o r�cepcionista.
- Muito bem. Servir� - decidiu num tom imperial e recostou-se
no t�xi antigo. Era uma mulher muito en�rgica, o que agradou ao
motorista.
O hotel ficava na Rue Marbeuf e era, de facto, muito pequeno,
mas pareceu-lhes decente e limpo quando entraram no �trio. Havia
apenas uma d�zia de quartos, mas o recepcionista garantiu que dois
deles estavam vazios.
Tinham de usar uma casa de banho comum no corredor o que era
um choque para Eugenia, mas nem isso interessava agora. Puxou para
tr�s os len��is da cama que ela e Zoya iriam partilhar e verificou
que estavam limpos. Despiu a neta depois de esconder a mala
debaixo do colch�o, e Feodor trouxe o resto das coisas.
Concordara em ser ele a ficar com Sava. A condessa desceu mal
deitou Zoya na cama e pediu ao recepcionista que mandasse chamar
o m�dico.
- Para si, madame? - inquiriu sem surpresa, pois estavam
todos com um ar p�lido e cansado e ela era, obviamente, muito
velha.
- Para a minha neta. - N�o lhe disse que Zoya estava com
sarampo, mas, duas horas mais tarde, quando o m�dico finalmente
chegou, confirmou de imediato.
- Ela est� muito doente, madame. Tem de trat�-la com muito
cuidado. Faz alguma ideia de como o apanhou?
Seria rid�culo responder que fora contagiada pelos filhos do
czar da R�ssia.
- Atrav�s de amigas, penso. Fizemos uma viagem muito longa. -
O m�dico examinou o olhar perspicaz e triste e pressentiu que
deviam ter sofrido muito. Contudo, nem mesmo ele podia sonhar a
mis�ria que elas haviam presenciado naquelas �ltimas tr�s semanas,
qu�o pouco tinham ou o medo que as invadia quanto ao futuro. -
Viemos da R�ssia... atrav�s da Finl�ndia, Su�cia e Dinamarca.
O m�dico fitou-a, surpreendido, e depois compreendeu
subitamente. Outros tinham feito viagens id�nticas nas �ltimas
semanas, fugindo da revolu��o. E era f�cil supor que mais viriam
nos meses seguintes, se conseguissem escapar. A aristocracia
russa, ou o que dela restava, fugia em bandos e muitos deles
tomavam o rumo de Paris.
- Lamento... lamento muito, madame.
- Tamb�m n�s. - Sorriu tristemente. - N�o tem pneumonia, pois
n�o?
- Ainda n�o.
- H� algumas semanas que a prima est� com uma e t�m
contactado muito.
- Farei o que puder, madame. Virei v�-Ia novamente de manh�.
- Por�m, quando ele voltou, Zoya piorara e, ao cair da noite,
delirava de febre. O m�dico receitou-lhe um medicamento e disse
que era a �nica esperan�a. E, na manh� seguinte, quando o
recepcionista informou Eugenia que os Estados Unidos tinham
acabado de entrar na guerra, quase lhe pareceu irrelevante. A
guerra assumia contornos de insignific�ncia agora, depois de tudo
o que acontecera.
Comeu as refei��es no quarto e Feodor saiu para comprar
rem�dios e fruta. Estavam a racionar o p�o e tornava-se dif�cil
obter algo, mas ele era engenhoso e conseguiu encontrar o que a
condessa desejava. Sentia-se especialmente satisfeito consigo
pr�prio por ter descoberto um motorista de t�xi que falava russo.
Tal como eles, h� apenas uns dias que estava em Paris, era um
pr�ncipe de Sampetersburgo e Feodor achava que ele fora amigo de
Konstantin, mas Eugenia n�o t�nha tempo para o ouvir. Estava
profundamente preocupada com Zoya.
Passaram v�rios dias antes de a jovem dar sinal de saber onde
se encontrava. Passeou os olhos pelo pequeno e simples quarto,
fitou a av� e depois recordou-se que estavam em Paris.
- Quanto tempo estive doente, av�? - Tentou sentar-se, mas
ainda estava demasiado fraca, embora a tosse tivesse finalmente
melhorado um pouco.
- Desde que cheg�mos, meu amor, h� cerca de uma semana.
Preocupaste-nos muito a todos. O Feodor tem percorrido Paris
inteira tentando encontrar fruta para ti. As faltas aqui s�o quase
t�o graves como na R�ssia.
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a e pareceu viajar em
pensamento para muito longe dali, enquanto olhava atrav�s da �nica
janela do quarto.
- Agora sei como a Mashka se sentia... e ela ainda estava
muito mais doente do que eu. Interrogo-me sobre como estar� agora.
- N�o conseguia reflectir no presente.
- N�o deves pensar nisso - censurou meigamente a av� ao
detectar-lhe o olhar de tristeza. - Tenho a certeza de que j� se
encontra bem. H� duas semanas que partimos.
- S� duas semanas? - suspirou, fitando a av�. - Parece-me uma
vida inteira. - Todos tinham essa sensa��o e a av� mal dormira
desde que haviam sa�do da R�ssia. H� dias que dormia sentada numa
cadeira, receosa de perturbar o sono de Zoya partilhando a cama
com ela e temendo n�o estar acordada se a neta precisasse dela,
mas agora podia relaxar um pouco a vig�lia. Nessa noite, dormiria
aos p�s da cama e precisava quase tanto de descansar como Zoya.
- Amanh�, tiramos-te da cama, mas primeiro tens de repousar,
comer e pores-te forte novamente. - Deu uma palmadinha na m�o de
Zoya, que lhe esbo�ou um ligeiro sorriso.
- Obrigada, av�. - Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas e
levou a m�o da velha senhora at� junto do rosto. At� esse gesto
lhe trazia dolorosas mem�rias de inf�ncia.
- Pelo qu�, mi�da tonta? O que tens a agradecer-me?
- Ter-me trazido para aqui... ser t�o corajosa... e fazer
tanto para nos salvar. - Acabara de tomar plena consci�ncia da
enorme dist�ncia que tinham percorrido e de como a av� fora
extraordin�ria. A m�e decerto jamais seria capaz. Zoya teria tido
de zelar pela m�e durante todo o caminho.
- Construiremos uma nova vida aqui, Zoya. Ver�s. Um dia,
seremos capazes de olhar para tr�s e tudo parecer� menos doloroso.
- N�o consigo imaginar... n�o consigo imaginar uma �poca em
que as mem�rias deixem de magoar. - Sentia-se como se estivesse
a morrer.
- O tempo � muito generoso, minha querida. E s�-lo-� para
n�s, garanto-te. Teremos uma boa vida aqui. - "Mas n�o a vida que
haviam tido na R�ssia." Zoya tentava n�o pensar nisso, mas muito
mais tarde nessa noite, quando a av� estava a dormir, saiu sem
ru�do da cama, pegou no seu pequeno saco e encontrou a fotografia
que Nicolau lhes tirara em Livadia, quando se divertiam no Ver�o
anterior. Ela, Anastasia, Marie, Olga e Tatiana inclinavam-se para
tr�s at� estarem quase de cabe�a para baixo, sorrindo depois das
brincadeiras. Agora parecia-lhe idiota... idiota... e t�o terno...
mesmo naquele �ngulo estranho, achava todas t�o bonitas, ainda
mais agora... as raparigas junto de quem crescera e tanto amava...
Tatiana, Anastasia... Olga... e, obviamente, Mashka.
CAPITULO 9
O sarampo deixou Zoya muito enfraquecido, mas, para grande
al�vio da av�, pareceu recuperar no meio da beleza de Paris em
Abril. Denotava agora uma seriedade que n�o possu�a antes e a
tosse n�o a abandonara por completo. Contudo, de vez em quanto
havia um brilho de alegria no olhar, quase como dantes, e Eugenia
sentia o cora��o mais leve.
O hotel na Rue Marbeuf estava a custar-lhes caro, embora
fosse simples, e Eugenia sabia que em breve teriam de encontrar
um apartamento. J� tinham gasto uma boa parte do dinheiro que
Nicolau lhes dera, e ela estava ansiosa por salvaguardar os seus
magros recursos. No in�cio de Maio verificou que seria obrigada
a vender algumas j�ias.
Numa tarde soalheira, deixou Zoya com Feodor e foi visitar
um ourives que o hotel lhe indicara na Rue Cambon, depois de
descoser cuidadosamente um colar de rubis da bainha de um dos seus
vestidos pretos. Meteu o colar na mala de m�o e retirou uns
brincos a condizer do seu esconderijo em dois bot�es forrados e
bastante grandes. Os esconderijos haviam sido realmente �teis.
Chamou um t�xi antes de sair do hotel e, quando indicou a morada
ao motorista, ele virou-se devagar e fitou-a. Era um homem alto,
de apar�ncia distinta e um bigode branco cuidadosamente aparado.
- N�o � poss�vel... Condessa, � a senhora? - Ela fitou-o com
mais aten��o e depois sentiu que o cora��o lhe batia mais
depressa. Era o pr�ncipe Vladimir Markovski. Reconheceu-o,
surpreendida; fora um dos amigos de Konstantin, e o filho mais
velho dele chegara mesmo a propor casamento � gr�-duquesa Tatiana
e havia sido recusado. Tatiana achava-o demasiado ffivolo.
Tratava-se, contudo, de um rapaz encantador, como o era o pai. -
Como chegou aqui?
Eugenia riu e abanou a cabe�a ante a estranheza da vida
naqueles tempos. Vira mesmo rostos familiares em Paris desde que
ali estavam e, em duas ocasi�es, chamara t�xis e descobrira que
conhecia os motoristas. Parecia que os nobres russos n�o tinham
outra forma de ganhar a vida, todos sem habilidade para nada,
elegantes, bem-nascidos e encantadores, pouco lhes restando fazer
excepto conduzir um autom�vel, como o pr�ncipe Viadimir que a
fitava cheio de contentamento. Ocorreram-lhe mem�rias agridoces
de melhores dias e suspirou ao come�ar a explicar-lhe como tinham
deixado a R�ssia. O relato dele era muito semelhante, embora muito
mais perigoso quando atravessara a fronteira.
- Est� alojada aqui? - Olhou para o hotel ao mesmo tempo que
punha o carro em andamento e se dirigia � morada que ela lhe dera
na Rue Cambon.
- Sim, de momento. Contudo, a Zoya e eu temos de procurar um
apartamento.
- Ela est�, ent�o, consigo. Deve ser ainda uma rapariguinha.
"E a Natalya? - Sempre tinha achado a mulher de Konstantin
extremamente bonita, embora muito nervosa, e n�o ouvira obviamente
falar da morte dela quando os revolucion�rios assaltaram o Pal�cio
Fontanka.
- Foi morta... apenas uns dias depois do Konstantin... e
do Nicolai. - Expressava-se quase num sussurro. Ainda lhe era
dif�cil pronunciar os nomes, sobretudo a ele, porque os
conhecera. O nobre esbo�ou um triste aceno de cabe�a no banco
da frente. Tamb�m ele perdera os dois filhos e viera para Paris
com a filha solteira.
- Lamento.
- Lamentamos todos, Vladimir. E mais ainda o Nicolau e a
Alexandra. Teve algumas not�cias deles?
- Nada. Apenas que ainda se encontram sob pris�o domicili�ria
em Tsarskoie Selo. S� Deus sabe quanto tempo os v�O manter l�.
Pelo menos est�o confort�veis, se n�o seguros. - J� ningu�m estava
seguro em nenhum lugar da R�ssia. Pelo menos, as pessoas que
conheciam. - Vai ficar em Paris? - Nenhum deles tinha qualquer
outro lugar para onde ir e outros russos infiltravam-se
diariamente, com surpreendentes relatos de fugas e perdas
terr�veis. Acorriam em quantidades crescemtes a uma cidade j�
sobrecarregada.
- Acho que sim. Pareceu-me melhor vir para aqui do que para
qualquer outro s�tio. Pelo menos, estamos seguras e � um lugar
decente para a Zoya.
Ele esbo�ou um aceno de concord�ncia e conduziu o t�xi
velozmente pelo meio do tr�nsito.
- Devo esperar, Eugenia Peterovna? - Do�a-lhe o cora��o s�
de falar novamente russo e com algu�m que sabia o seu nome. Ele
estacionara diante do ourives.
- Importava-se muito? - Seria confort�vel saber que ele
estava ali e regressar ao hotel com ele, sobretudo se o ourives
lhe desse uma elevada quantia em dinheiro.
- Claro que n�o. Esperarei aqui. - Ajudou-a cuidadosamente
a sair do carro e acompanhou-a at� � porta da loja. Era f�cil
imaginar o que a levava ali. Era o mesmo que todos eles faziam,
vendendo tudo o que podiam, os mesmos tesouros que haviam
contrabandeado e que h� semanas antes n�o passavam de bugigangas
a que n�o ligavam.
A condessa apareceu meia hora mais tarde com um ar digno e
o pr�ncipe Markovski n�o lhe fez perguntas, enquanto a
transportava de volta ao hotel. Ela parecia, contudo, mais abatida
quando a ajudou a sair do carro na Rue Marbeuf e esperou que
tivesse conseguido o que precisava. Era muito velha para ser
obrigada a sobreviver de expedientes e a vender as suas j�ias num
pa�s estranho, sem ningu�m que cuidasse dela e com uma jovem para
cuidar. N�o estava bem certo da idade de Zoya, mas sabia que era
muito mais nova do que a sua filha, que tinha quase trinta anos.
- Est� tudo bem? - inquiriu, preocupado, quando a acompanhou
at� � porta e ela o fitou com um olhar magoado.
- Acho que sim. N�o s�o tempos f�ceis. - Fixou o t�xi �
espera e depois o pr�ncipe. Este fora um homem interessante na
juventude e ainda era, mas, tal como nela, havia uma s�bita
diferen�a. Afectara a todos. A pr�pria face do mundo n�o era a
mesma desde a revolu��o. - N�o � facil para nenhum de n�s, pois
n�o, Vladimir?
"E quando n�o houver mais j�ias para vender, o que faremos?",
interrogava-se. Nem ela nem Zoya eram capazes de conduzir um t�xi
e Feodor n�o falava uma palavra de franc�s nem era prov�vel que
aprendesse. Era quase mais um fardo do que uma ajuda, mas
mostrara-se t�o fiel e leal ao ajud�-las a escapar, que n�o podia
abandon�-lo. Tinha de ser t�o respons�vel por ele, como por Zoya.
Todavia, dois quartos de hotel custavam o dobro de um e, com
a insignificante quantia em dinheiro que recebera pelo colar de
rubis e os brincos, pouca esperan�a tinha de que os fundos
aguentassem muito mais tempo. Precisavam de pensar em algo muito
criativo. "Talvez pudesse costurar", pensou, ao despedir-se de
Vladimir com um ar distra�do.
E, de s�bito, parecia mais velha do que h� uma hora atr�s,
quando se dirigira ao ourives. O pr�ncipe Markovsk beijou-lhe a
m�o e negou-se a receber qualquer pagamento. Eugenia interrogou-se
sobre se voltaria a v�-lo. Sentia agora o mesmo em rela��o a
todos, mas dois dias depois, ao descer as escadas com Zoya e
Feodor, encontrou-o � espera dela no �trio.
Ao avist�-la, esbo�ou uma ligeira v�nia e beijou-lhe a m�o,
fitando Zoya com um olhar bondoso e depois com evidente surpresa
ante a beleza da jovem e quanto se desenvolvera.
- Pe�o desculpa por me intrometer, Eugenia Peterovna, mas
acabei de saber de um apartamento... � bastante pequeno, mas
pr�ximo do Palais Royal. N�o �... a vizinhan�a ideal para uma
jovem rapariguinha, mas... talvez... talvez possa servir. Falou
no outro dia de como estava ansiosa por encontrar um s�tio onde
viver. Tem dois quartos. - Deitou um olhar de s�bita preocupa��o
para o velho Feodor, atr�s delas. - Talvez n�o seja
suficientemente grande para todos...
- Claro que �. - Sorriu-lhe como se ele sempre tivesse sido
o seu melhor amigo. Era repentinamente t�o importante ver um rosto
familiar, mesmo algu�m que dantes n�o vira com frequ�ncia. Era,
pelo menos, um rosto de um passado n�o muito distante, uma
rel�quia da p�tria e logo o apresentou a Zoya. - A Zoya e eu
podemos partilhar um quarto. Fazemo-lo aqui no hotel e ela n�o
parece importar-se.
- E n�o me importo, av�. - Sorriu-lhe, amistosa, e mirou com curiosidade o alto e distinto russo.
- Tomo, ent�o, disposi��es para irem v�-lo? - Parecia muito
interessado em Zoya, mas a av� n�o deu mostras de reparar.
- Podemos v�-lo agora? �amos sair para um passeio. - Estava
uma bela tarde de Maio e tornava-se dif�cil acreditar que havia
disc�rdias no mundo, e ainda mais dificil que toda a Europa estava
em guerra e os Estados Unidos haviam finalniente aderido.
- Vou mostrar-lhes onde fica e talvez vos deixem v�-lo agora.
- Levou-as o mais rapidamente poss�vel. Feodor ia sentado no banco
da frente ao seu lado e Vladimir p�s as duas senhoras ao corrente
dos �ltimos mexericos. Mais alguns conhecidos tinham chegado h�
uns dias, embora nenhum trouxesse aparentemente not�cias de
Tsarskoie Selo.
Zoya escutou interessada os nomes que ele enumerava.
Reconheceu a maioria, embora nenhum deles correspondesse a amigos
�ntimos. Mencionou tamb�m que Diaghilev estava em Paris e planeava
uma exibi��o dos Ballets Russes. Actuariam no Ch�telet e
come�ariam a ensaiar na semana seguinte. Zoya sentiu o cora��o
bater com mais for�a ante as palavras e mal reparou nas ruas que
atravessavam para chegar ao apartamento.
O apartamento em si era muito pequeno, mas dava para um
jardim muito agrad�vel de outra pessoa. Tinha dois quartos
pequenos, uma reduzida sala de estar e no corredor havia uma casa
de banho que teriam de partilhar com mais quatro apartamentos.
Os outros eram obrigados a descer de outros andares; portanto
tinham mais sorte do que a maioria. Situava-se, indubitavelmente,
a uma enorme dist�ncia do pal�cio em Fontanka ou mesmo do hotel
na Rue Marbeuf, mas n�o lhes restavam op��es. A av� de Zoya tinha-
a inteirado da escassa quantia recebida pelo colar de rubis.
Haviam trazido outras j�ias para vender, mas n�o lhes garantiam
o futuro.
- Talvez seja afinal pequeno de mais... - O principie
Vladimir parecia subitamente embara�ado, mas n�o era mais
embara�oso do que a sua condi��o de ter de guiar um t�xi.
- Acho que servir� muito bem - pronunciou-se a condessa num
tom despreocupado, mas j� detectara o olhar de tristeza em Zoya.
Do corredor emanava um cheiro horr�vel a urina � mistura com uma
comida ran�osa. Talvez um pouco de perfume... o cheiro a lilases
de que Zoya tanto gostava... e as janelas abertas para o bonito
jardim. Tudo podia ajudar, e a renda correspondia exactamente ao
que podiam dispor. A condessa virou-se para VIadimir com um
caloroso sorriso e agradeceu-lhe profusamente.
- Temos de nos ocupar dos nossos - redarguiu-lhe num tom
afectuoso, mas de olhos fixos em Zoya. - Vou lev�-los de volta ao
hotel. - Tinham decidido mudar na semana seguinte e, no caminho
de regresso, Eugenia come�ou a elaborar uma lista dos m�veis de
que precisariam. Ia comprar o m�nimo poss�vel e, juntamente com
Zoya, faria os reposteiros e as colchas. Planeava adquirir somente
o essencial.
- Um tapete pequeno no ch�o podia fazer com que a sala
parecesse um pouco maior. - Falava alegremente e esfor�ava-se por
n�o pensar nos preciosos Aubussons do pavilh�o atr�s do Pal�cio
Fontanka. - N�o achas, n-�nha querida?
- Uum?... Desculpe, av�. - Mantivera-se de cenho franzido
a olhar pela janela enquanto desciam os Campos El�sios no carro
de volta � Rue Marbeuf. Pensava em algo bem mais importante.
Algo de que precisavam desesperadamente. Algo que lhes
permitiria voltar a viver de forma decente, talvez n�o num
pal�cio, mas num apartamento maior e mais confort�vel do que uma malcheirosa caixinha de f�sforos. Agora, sentia-se ansiosa
por regressar ao hotel e deixar a av� com as suas listas,
planos e ordens de mandar Feodor � procur� de mobili�rio e de
um bonito tapete.
Agradeceram novamente ao pr�ncipe Markovski quando as
deixou no hotel, e Eugenia surpreendeu-se quando Zoya disse que
ia dar um passeio, mas recusou, determinada, a companhia de
Feodor.
- Estarei perfeitamente sozinha, av�. N�o me afasto. Vou
s� at� aos Campos El�sios e volto.
- Queres que te acompanhe, minha querida?
- N�o. - Sorriu � av� que tanto amava, pensando en quanto
lhe devia. - Descanse um pouco. Tomaremos um ch� quando eu
voltar.
- Tens a certeza de que ir�s bem sozinha?
- Absoluta.
A condessa deixou-a ir com relut�ncia e subiu as escadas
devagar, agarrada ao bra�o de Feodor. Era um bom exerc�cio para
come�ar a habituar-se �s compridas escadas do apartamento.
Mal saiu do hotel, Zoya dobrou a esquina e fez sinal a um
t�xi, rezando para que o motorista soubesse onde era e, quando
chegasse l�, algu�m percebesse do que iria falar. Era uma
louca, louca esperan�a, mas sabia que tinha de tentar.
- Para o Ch�telet, por favor - indicou num tom imperial
como se soubesse do que estava a falar e rezou em sil�ncio para
que o homem a levasse l�.
Depois de um instante de hesita��o, verificou que as suas
preces eram atendidas. Mal se atrevia a respirar enquanto o
t�xi seguia a toda a velocidade e deu uma choruda goijeta ao
motorista por ter descoberto o lugar e porque se sentia um
pouco aliviada pelo facto de ele n�o ser russo. Era um pouco
depressivo ver os membros de fam�lias que conhecera ao volante
de t�xis e falando tristemente sobre a fam�lia de Tsarskoie
Selo.
Entrou apressadamente e olhou em volta, voltando a pensar
nas suas amea�as passadas de fugir para o Teatro Marinski. Viu-
se a pensar em Marie e em como ela ficaria boquiaberta ante
tudo aquilo. Zoya sorriu e p�s-se a procurar algu�m, qualquer
pessoa capaz de responder �s suas perguntas. Descobriu, por fim, uma mulher, com fato de bailarina e praticando
tranquilamente na barra. Zoya pressup�s correctamente tratar-se
de uma professora.
- Ando � procura de Monsieur Diaghilev - anunciou e a
mulher sorriu.
- Ah, sim? Posso perguntar porqu�?
- Sou bailarina e gostaria de fazer uma audi��o. - P�s de
imediato todas as cartas na mesa e nunca parecera mais jovem, mais
bonita, nem mais assustada.
- Entendo. E ele j� ouviu falar de si? - Parecia uma pergunta
bastante cruel, e a mulher nem se deu ao trabalho de esperar
resposta. - Vi que n�o trouxe nada para dan�ar, mademoiselle.
Esse traje n�o � muito adequado para uma audi��o.
Zoya baixou os olhos para a estreita saia de sarja azul, a
camisa branca de marinheiro e os sapatos pretos de cabedal que
usara diariamente durante as suas �ltimas semanas em Tsars;koie
Selo. Corou at� � raiz do cabelo, e a mulher sorriu-lhe. Era uma
rapariga t�o bonita, jovem e inocente. Tornava-se dif�cil
acreditar que tivesse dotes de bailarina.
- Desculpe. Talvez pudesse vir v�-lo, amanh�. - E acrescentou
num sussurro: - Ele est� aqui?
- N�o - sorriu a mulher mais velha. - Mas n�o tardar�. Far�
o ensaio geral aqui no dia onze.
- Eu sei. Queria fazer uma audi��o para ele. Quero entrar no
espect�culo e juntar-me ao corpo de bailado. - As palavras sa�ram-
lhe de um jorro, e a mulher soltou uma galhada. - A s�rio? E onde tem praticado?
- Na escola de Madame Nastova, em Sampetersburgo.. at� h�
dois meses. - Desejou ter mentido e acrescentar "no Marinski", mas
ele certamente descobriria a verdade. E a escola de ballet de
Madame Nastova era tamb�m uma das mais prestigiadas da R�ssia.
- Se lhe arranjar um maillot e umas sapatilhas, dan�a para
mim, agora? - A mulher parecia divertida, e Zoya hesitou apenas
uma frac��o de segundo.
- Sim, se quiser. - O cora��o batia-lhe como uma orquestra
inteira, mas tinha de arranjar emprego e isso era tudo o que podia
fazer e tudo o que desejava realizar. Parecia o m�nimo que podia
fazer por Eugenia.
As sapatilhas que a mulher lhe deu magoavam-na
terrivelmente e, ao dirigir-se ao piano, Zoya sentiu-se
est�pida pela tentativa. Iria parecer idiota sozinha no palco e
talvez Madame Nastova estivesse apenas a ser generosa quando
afirmara que ela era muito boa.
Por�m, ante os primeiros acordes da m�sica, esqueceu
gradualmente o medo e come�ou a dan�ar e a fazer tudo o que
Madame Nastova lhe ensinara. Dan�ou, incansavel, durante quase
uma hora sob os olhos cr�ticos e semicerrados da mulher, mas
nenhum dos tra�os do rosto denotava desprezo ou divertimento.
Zoya estava esgotada quando a m�sica parou finalmente e
executou uma graciosa v�nia na direc��o do piano. E, no
sil�ncio da sala, os olhos das duas mulheres cruzaram-se e a
mulher que se encontrava ao piano esbo�ou um ligeiro aceno de
cabe�a.
- Pode voltar daqui a dois dias, mademoiselle? - Os olhos
verdes de Zoya arregalaram-se e correu at� junto piano.
- Consegui emprego?
A mulher mais velha abanou a cabe�a e riu.
- N�o, n�o... mas ele nessa altura estar� aqui. Veremos o que
diz e os outros professores tamb�m.
- De acordo. Arranjarei sapatilhas.
- N�o tem? - replicou a mulher, surpreendida, e Zoya fitou-a
com uma express�o grave.
- Deix�mos tudo o que t�nhamos na R�ssia. Os meus pais e o
meu irm�o foram mortos na revolu��o e fugi com a minha av�, h� um
m�s. Preciso de encontrar emprego. Ela � demasiado velha para
trabalhar e n�o temos dinheiro. - Era uma afirma��o simples mas
que emocionou profundamente a outra mulher, embora n�o o
demonstrasse.
- Que idade tens?
- Dezoito anos. E pratiquei doze.
- �s muito boa... Independentemente do que ele disser... ou
os outros... n�o deixes que ningu�m te assuste. �s muito boa. -
Zoya soltou uma risada, pois era exactamente o que dissera a Marie
naquela tarde em Tsarskoie Selo.
- Obrigada! Muito obrigada! - Apetecia-lhe abra��-la e beij�-
la, mas dominou-se. Tinha receio de perder a oportunidade que lhe
fora dada. Faria tudo para dan�ar para Diaghilev, e aquela mulher
permitiria que concretizasse o desejo. Situava-se para al�m de
tudo o que alguma vez sonhara. Talvez Paris n�o fosse afinal t�o
mau assim... n�o, se conseguisse tornar-se bailarina. - Melhorarei
depois de voltar a dan�ar. H� dois meses que n�o pratico. Estou
um pouco enferrujada.
- Ent�o, ainda �s melhor do que penso. - Sorriu � bonita e
jovem ruiva que se mantinha t�o graciosa e elegante ao lado do
piano e depois Zoya soltou um s�bito suspiro. Prometera � avo que
n�o demoraria e j� sa�ra h� quase duas horas.
- Tenho de ir! A minha av�... Oh... Desculpe... - Saiu
apressadamente para mudar de roupa e reapareceu com a saia azul
e a blusa de marinheiro, um cisne de volta ao patinho. Voltarei
daqui a dois dias... e obrigada pelas sapatilhas!... - Precipitou-
se para a sa�da, mas voltou-se subitamente e gritou � mulher, que
ficara a observ�-la: - Oh... A que horas?
- Duas! - respondeu a mulher e depois lembrou-se de mais uma
coisa: - Como te chamas?
- Zoya Ossupov! - replicou e desapareceu.
A mulher ao piano sentou-se com um sorriso, lembrando-se da
primeira vez que tinha dan�ado para Diaghilev h� vinte anos... a
jovem era indubitavelmente dotada... Zoya... pobre crian�a,
passara bastante segundo o que dissera nas suas simples
palavras... Era dificil imaginar-se novamente com dezoito anos e
a exuber�ncia de Zoya.
APITULO 10
�s duas horas de uma sexta-feira � tarde, Zoya chegou ao
Ch�telet com um pequeno saco, um maillot e um par de sapatilhas
novas em folha. Tinha vendido o rel�gio para as comprar e n�o
contara � av� onde ia. Nos �ltimos dois dias, Zoya s� conseguira
pensar na fant�stica oportunidade que teria e rezara a todos os
anjos-da-guarda e santos favoritos para n�o a estragar. E se fosse
desajeitada... se ca�sse... se ele odiasse o seu estilo... se
Madame Nastova lhe tivesse mentido durante todos aqueles anos? O
medo levara a melhor e, ao chegar mais uma vez ao Ch�elet, s� lhe
apetecia fugir, mas avistou a mulher para quem dan�ara h� dois
dias e subitamente era tarde de mais.
O pr�prio Diaghilev apareceu e Zoya foi-lhe apresentada. E,
num abrir e fechar de olhos, viu-se no palco, dan�ando para todos
os que se encontravam a assistir, e esqueceu-se da presen�a deles.
Verificou, surpreendida, que estava mais � vontade do que dois
dias antes e a m�sica parecia arrebat�-la e lev�-la para longe.
Quando acabou, pediram-lhe que voltasse a dan�ar, desta vez
com um homem, e ele era muito bom, fazendo com que Zoya tivesse
a sensa��o de voar pelos ares nas asas de anjos. Ao todo, dan�ou
durante uma hora e meia e mais uma vez estava esgotada ao parar
e as sapatilhas novas magoavam-na. Por�m, ao virar-se para a
audi�ncia, sentia-se como se tivesse voado at� � Lua. Todos
esbo�avam acenos de cabe�a e pronunciavam palavras
incompreens�veis. Pareceram conferenciar durante horas e, depois,
um dos professores virou-se na sua direc��o e pronunciou atrav�s
do palco, como se n�o fosse nada de importante:
- Na pr�xima sexta-feira, quatro horas, r�p�tition g�n�rale,
aqui mesmo. Muito obrigado.
Depois, viraram-lhe as costas e ela manteve-se pregada ao
ch�o, com as l�grimas correndo-lhe pelas faces. Madame Nastova n�o
tinha mentido e os deuses haviam sido generosos. Ignorava se
aquilo significava que conseguira emprego e n�o se atrevia a
perguntar-lhes. Apenas sabia que dan�aria no ensaio na pr�xima
sexta-feira � tarde.
E talvez... talvez... se fosse muito, muito boa... Nem se
atrevia a pensar enquanto mudava de roupa e voava atrav�s das
portas. Desejava contar � av�, mas sabia que n�o podia. A ideia
de Zoya vir a ser bailarina iria enlouquec�-la. Era prefer�vel
nada dizer, pelo menos de momento. Talvez que se, de facto, a
deixassem dan�ar com os Ballets Russes... talvez, nessa altura...
Contudo, na semana seguinte, vitoriosa, tendo arrarjado
emprego, pelo menos de momento, viu-se for�ada a partilhar as boas
novas.
- Fizeste o qu�? - A av� parecia chocada e extremamente
surpreendida.
- Uma audi��o para o Sergei Diaghilev e ele vai deixar-me
dan�ar com os Ballets Russes. O primeiro espect�culo � na pr�xima
semana. - Sentia o cora��o a bater acelerado, e a av� n�o parecia
satisfeita.
- Est�s doida? Uma vulgar bailarina em palco? Imaginas o que
diria o teu pai a uma coisa dessas? - Foi um golpe que lhe doeu
demasiado e voltou-se para a av� que amava com um olhar magoado.
- N�o fale nele assim. Morreu. N�o lhe agradaria nenhuma das
coisas que nos aconteceram, av�. Mas aconteceram e temos de fazer
alguma coisa. N�o podemos ficar de bra�os cruzados e morrer �
fome.
- � isso, ent�o? Tens medo que possamos morrer � fome? Vou
encomendar-te um jantar duplo para esta noite, mas podes estar
certa de que n�o subir�s ao palco.
- Subo, sim. - Fitou-a pela primeira vez com um olhar de
desafio. No passado, apenas se atrevera a lutar assim com a m�e,
mas n�o podia deixar que a av� a detivesse. Significava demasiado
para ela, e era a �nica sa�da que tinham, de qualquer forma a
�nica que conseguia divisar.
N�o queria trabalhar numa loja, nem esfregar soalhos, nem
coser bot�es em camisas de homens, nem trabalhar para uma
costureira ou pregar plumas num chap�u! E que mais havia para
fazer? Nada. E, mais tarde ou mais cedo, seria esse o rumo que a
vida tomaria. E a av� tamb�m o sabia.
- Seja razo�vel, av�. N�o recebeu praticamente nada pela
venda do colar de rubis. E quantas j�ias poderemos vender? Toda
a gente aqui est� a fazer o mesmo. Uma de n�s tem de acabar por
ir trabalhar e esta � a �nica coisa que sei fazer.
- � rid�culo. Antes do mais, o nosso dinheiro ainda n�o se
esgotou e, quando isso acontecer, ambas poderemos conseguir
empregos respeit�veis. As duas sabemos coser. Sei tricotar, e tu
podes ensinar russo, franc�s ou alem�o, ou mesmo ingl�s se te
esfor�ares um pouco. - Tinham-lhe ensinado tudo isto no Instituto
Smolny juntamente com outras coisas mais que, agora, de nada
serviam. - N�o existe motivo nenhum para te tornares uma bailarina
como... como... - Estava t�o furiosa que quase mencionou a mulher
com quem Nicolau se envolvera alguns anos atr�s. - Esquece. De
qualquer maneira, n�o vou permitir-to, Zoya.
- N�o tem escolha, av�. - Expressava-se com um calmo
desespero e foi a primeira vez que a av� a viu assim.
- Tens de obedecer-me, Zoya.
- N�o o farei. � a �nica coisa que quero. E quero ajud�-la. -
Os olhos da velha senhora encheram-se de l�grimas ao fitar a neta.
- As coisas chegaram a este ponto? - Aos seus olhos, era um
pouco melhor do que a prostitui��o, mas n�o muito.
- O que h� assim de t�o terr�vel em ser bailarina? N�o a
choca que o pr�ncipe Vladimir conduza um t�xi. � algo de t�o
respeit�vel? � muito melhor do que o que quero fazer?
- � pat�tico. - Eugenia fixou-a de cora��o destro�ado. -
Ainda h� tr�s meses ele era um homem importante e h� muito tempo
o pai tinha peso. Agora tornou-se quase um mendigo... mas nada
mais lhe resta, Zoya... � tudo o que pode fazer. Tudo acabou para
ele e, pelo menos, est� vivo. A tua vida ainda agora come�ou e n�o
posso permitir que comece dessa maneira. Ficar�s destro�ada... -
Ocultou o rosto entre as m�os e p�s-se a solu�ar. - E h� t�o pouco
que possa fazer para te ajudar.
Zoya ficou paralisada ao ver a av� chorar. Era a primeira vez que a via vacilar e tocou-lhe at� ao mais fundo do seu ser, mas
sabia que tinha de dan�ar com os Ballets Russes, independentemente
do que pudesse acontecer. N�o iria coser, tricotar, nem ensinar
russo.
Abra�ou a av� e apertou-a com for�a.
- Por favor, n�o chore, av�... Amo-a tanto...
- Ent�o, promete-me que n�o dan�ar�s com eles... Po favor,
Zova... Suplico-te... n�o deves faz�-lo.
Fixou a av� com um olhar triste e uma sapi�ncia superior �
sua idade. Crescera demasiado rapidamente naqueles �ltimos anos
e n�o havia retorno poss�vel. Ambas o sabiam, por mais que Eugenia
tentasse evit�-lo.
- A minha vida nunca mais voltar� a ser igual, nem a sua,
av�, nunca mais. Trata-se de algo que n�o podemos mudar, mas de
que devemos simplesmente tirar o m�ximo partido. N�o h� retorno.
Tal como o tio Nicolau e a tia Alix... T�m de fazer o que h� a ser
feito. Como eu... Por favor, n�o fique zangada...
A velha condessa sentou-se na cadeira com uma express�o de
derrota e fitou Zoya com um semblante infeliz.
- N�o estou zangada, estou triste. E sinto-me muito indefesa.
- Salvou-me a vida. Tirou-me de Sampetersburgo... e da
R�ssia. Se n�o fosse a av�, tinham-me morto quando incendiaram a
casa, ou talvez ainda pior... n�o pode mudar a Hist�ria, av�.
Apenas podemos dar o nosso melhor... e o meu melhor � dan�ar...
Deixe-me faz�-lo... por favor... Por favor, d�-me a sua b�n��o.
A idosa senhora fechou os olhos, pensou no filho �nico e
abanou a cabe�a devagar, fitando Zoya, mas Zoya tinha raz�o.
Konstantin morrera. Todos tinham desaparecido. O que interessava
isso agora? Mas, acontecesse o que acontecesse, Eugenia sabia que
a neta faria o que desejava e, pela primeira vez desde que se
lembrava, sentia-se demasiado cansada e velha para a enfrentar.
- Tens a minha b�n��o. Mas �s uma rapariguinha endiabrada,
mesmo endiabrada! - Apontou-lhe o dedo e tentou sorrir atrav�s das
l�grimas e depois interrogou-se sobre o modo como ela teria
conseguido a audi��o. - Onde foste arranjar as sapatilhas? - Desde
a chegada a Paris que Zoya n�o lhe pedira dinheiro.
- Comprei-as. - Esbo�ou um sorriso malicioso. Pelo menos, era
inventiva, algo que teria agradado ao pai.
- Com o qu�?
- Vendi o rel�gio. De qualquer maneira, era feio. Foi uma das
minhas colegas que mo deu. - E Eugenia apenas conseguiu rir. A
neta era uma jovem fant�stica, e a velha senhora amava-a muito por
mais furiosa que estivesse.
- Suponho que devo estar grata por n�o me teres veridido o
meu.
- Av�! Mas que ideia! Seria incapaz de faz�-lo! - Tentou
parecer ofendida, mas ambas sabiam que n�o o estava.
- S� Deus sabe do que �s capaz!... Tremo s� de pensar!
- Parece o Nicolai... - Zoya sorriu tristemente ao pronunciar
a frase, e os olhos cruzaram-se e n�o se desviaram. Era todo um
mundo novo o que tinham pela frente, cheio de novos principios,
novas ideias, nova gente... e uma nova vida para Zoya.
CAPITULO 11
O seu primeiro ensaio com os Ballets Russes, a 11 de Maio,
foi de arrasar. Acabou �s dez dessa noite e Zoya regressou ao
apartamento doida de alegria, mas t�o cansada que mal conseguia
mexer-se. Os p�s tinham-lhe sangrado quando executara os pas de
deux e os tours jet�s uma, duas, vezes sem conta. Fazia com que
os anos com Madame Nastova lhe parecessem uma brincadeira de
crian�a.
A av� esperavas na pequena sala de estar. Tinham-se mudado
para o apartamento dois dias antes e comprado um pequeno div� e
v�rias mesinhas. Havia candeeiros com horr�veis abat-jours de
franjas e um tapete verde enfeitado de tristes flores em tom
p�rpura. Muito longe dos Aubussons, das antiguidades e dos bonitos
objectos que tinham amado. Era, por�m, confort�vel, e Feodor
mantinha-o limpo. No dia anterior, fora at� ao campo com o
pr�ncipe Markovski e regressara a casa com o t�xi cheio de lenha.
Ardia um fogo acolhedor e a av� esperavas com uma chaleira de ch�
fumegante.
- Ent�o, pequenina? Que tal correu? - Continuava a esperar
que Zoya recuperasse o bom senso e abandonasse a ideia de dan�ar
com os Ballets Russes, mas detectou nos olhos da jovem que a
esperan�a estava perdida. N�o a via t�o feliz desde que todo o
pesadelo come�ara, exactamente h� dois meses, com os motins na rua
e a morte de Nicolai. Nada disso fora esquecido, mas a recorda��o
parecia menos vincada quando ela se deixou cair nas
desconfort�veis cadeiras e esbo�ou um sorriso de orelha a orelha.
- Foi maravilhoso, av�... simplesmente maravilhoso... mas
estou t�o cansada que mal consigo mexer-me. - As longas horas
de ensaio haviam sido terr�veis, mas eram estranhamente um
sonho tornado realidade e agora s� conseguia pensar no
espect�culo dali a duas semanas. A av� prometera ir e o
pr�ncipe Markovski apareceria na companhia da filha.
- N�o mudaste de ideias, pequenina?
Abanou a cabe�a com um sorriso cansado e serviu-se de uma
ch�vena da chaleira a escaldar. Tinham-lhe dito nessa noite que
dan�aria nas duas partes do espect�culo e sentia-se muito
orgulhosa do dinheiro que lhe haviam dado. F�-lo deslizar para a
m�o da av� com um t�mido ar de orgulho ante as l�grimas que
encheram os olhos de Eugenia. As coisas haviam chegado, ent�o,
�quele ponto. Iria ser sustentada pelo ballet da neta. Era quase
insuport�vel.
- Para que � isso?
- � para si, av�.
- Ainda n�o precisamos. - Todavia, as paredes nuas que as
rodeavam e o horroroso tapete verde contrariavam a afirma��o.
Tudo o que tinham estava no fio e usado e ambas sabiam que o
dinheiro do colar de rubis n�o tardaria a desaparecer. Havia,
obviamente, mais j�ias, mas n�o as bastantes para as sustentar
eternamente. - �, de facto, isto o que queres fazer? - perguntou
Eugenia num tom triste, e Zoya acariciou-lhe a face ao de leve e
depois beijou-a.
- Sim, av�... Hoje foi maravilhoso. - Assemelhava-se ao sonho
de dan�ar com os estudantes do Marinski e nessa noite escreveu a
Marie uma comprida e corajosa carta em que lhe contava tudo,
omitindo apenas o pequeno e horr�vel apartamento.
Manteve-se sentada na min�scula sala de estar muito depois
de a av� se ter ido deitar e escreveu-lhe sobre as pessoas que
tinham visto, como era Paris e a excita��o de dan�ar com os
Ballets Russes. Quase conseguia divisar o sorriso de Marie.
Endere�ou a carta ao Dr. Botkin em Tsarskoie Selo e esperava que
Marie a recebesse decorrido pouco tempo. Escrever-lhe fazia com
que se sentisse mais pr�ximo dela.
No dia seguinte voltou ao ensaio e nessa noite verificou-se
um ra�d a�reo. Os tr�s refugiaram-se na adega sob o edificio e
depois regressaram devagar ao andar superior quando tudo acabou.
Era um sinal da guerra que rugia nas proximidades, mas Zoya n�o
sentia medo. Apenas conseguia pensar na dan�a.
O pr�ncipe Markovski estava muitas vezes presente quando Zoya
regressava a casa. Tinha sempre hist�rias para contar e aparecia
frequentemente com bolinhos e fruta, quando conseguia arranj�-los.
Trouxe-lhes mesmo um dos poucos tesouros que ainda conservava, um
valioso �cone que a av� n�o queria aceitar, mas ele insistiu.
Eugenia estava consciente de como todos precisavam
desesperadamente das coisas que podiam vender, mas Markovski
limitou-se a acenar com a m�o elegante de dedos compridos e
afirmou que, de momento, tinha mais do que o necess�rio. A filha
arranjara um emprego a ensinar ingl�s.
E na noite do primeiro espect�culo, estavam todos l�, na
terceira fila. Zoya comprara-lhes os bilhetes com o seu sal�rio.
S� Feodor n�o apareceu. Sentia-se igualmente orgulhoso dela, mas
o ballet era algo fora do seu alcance, e Zoya trouxe-lhe um
programa com o nome dela escrito a letras pequenas pr�ximo do
final. At� mesmo a av� ficara orgulhosa, embora tivesse chorado
de tristeza ao assistir. Teria preferido o que quer que fosse a
v�-Ia no palco como uma vulgar bailarina.
- Foste maravilhosa, Zoya Konstantinovna! - O pr�ncipe fez-
lhe um brinde com champanhe, que comprara, quando regressaram ao
apartamento. - Estamos todos muito orgulhosos de ti! - Sorriu
feliz � jovem ruiva, mau grado um olhar austero e um fungar da
filha. Esta sentia-se chocada pelo facto de Zoya se ter tornado
bailarina. As duas nunca se tinham conhecido, e ela era uma
rapariga alta e magra com todos os sinais exteriores de uma
solteirona. A vida em Paris era-lhe insuport�vel. Detestava as
crian�as a quem ensinava ingl�s e custava-lhe ver o pai a conduzir
um t�xi.
Contudo, Zoya n�o partilhava nem uma das suas arrogantes
perspectivas. Os olhos pareciam brilhar-lhe de excita��o. Tinha
o rosto afogueado quando a farta cabeleira se soltou, depois de
a ter apanhado, como um mar de chamas sobre os ombros. Era uma
bonita rapariga e a excita��o da noite contribu�ra para lhe
ressaltar a beleza.
- Deves estar muito cansada, pequenina - disse o pr�nc�pe num
tom bondoso ao servir a �ltima ta�a de champanhe.
- Nada mesmo - protestou Zoya, come�ando a dan�ar pela
sala. Era muito mais f�cil do que tinha sido o ensaio. Fora
tudo o que sempre sonhara e mais. - N�o esto cansada. - Sorriu
e depois soltou uma pequena risada ao beber mais um gole do
champanhe, enquanto Yelena, a filha dele, a brindava com um
olhar de censura. Zoya queria ficar a p� toda a noite a contar-
lhes hist�rias dos bastidores. Precisava de conversar sobre o
assunto com pessoas que se interessavam.
- Foste fant�stica! - repetiu ele, e Zoya esbo�ou um
sorriso.
Era
t�o s�rio e t�o velho, mas parecia preocupar-se com
ela. De certa forma, desejava que o pai pudesse ter estado ali,
embora sabendo que v�-Ia em palco lhe partiria o cora��o. No
entanto, talvez, secretamente, se tivesse orgulhado dela... E
Nicolai... Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas ante o
pensamento. Pousou o copo, virou costas e dirigiu-se �janeIa,
detendo-se a fixar o jardim.
- Est�s encantadora esta noite! - sussurrou Vladimir ao
seu lado, e ela ergueu o rosto com um brilho de l�grimas no
olhar. O corpo elegante de Zoya era t�o jovem e apetec�vel.
Ardia de desejo, o que se tornava a tal ponto vis�vel que ela
recuou, com a s�bita consci�ncia do que n�o notara antes. O
pr�ncipe era ainda mais velho do que o pai e sentia-se chocada
ante o que lhe detectou no olhar.
- Obrigada, pr�ncipe Vladimir - agradeceu calmamente e com
uma repentina tristeza ante o desespero em que todos se
encontravam, sedentos de amor e presos a um passado que ainda
podiam partilhar. Em Sampetersburgo, ele nem a olharia duas
vezes, apenas seria uma bonita rapariga, mas agora... agora,
agarravam-se com todas as for�as a um mundo perdido e �s
pessoas que ali haviam deixado. Ela era apenas uma forma de
prolongar o passado. Gostaria de o ter dito a YeIena, quando
ela se despediu de forma r�spida.
Zoya voltou a pensar no pr�ncipe Vladimir enquanto se
despia e esperava que a av� regressasse da casa de banho do
corredor.
- Foi simp�tico em trazer-nos champanhe - comentou a av�,
escovando o cabelo, de rosto emoldurado pela camisa de noite
enfeitada que fazia com que parecesse mais nova sob a escassa
luz.
Outrora fora bonita, e os olhos das duas mulheres
cruzaram-se e n�o se desviaram. Zoya interrogou-se sobre se ela
saberia da atrac��o de Vladimir. A m�o dele tocara-lhe ao
despedirem-se e agarrara-a com demasiada for�a ao beij�-la na
face.
- A YeIena parece t�o triste, n�o acha? - perguntou Zoya, depois de um longo momento e sem responder ao coment�rio.
Eugenia esbo�ou um aceno de concord�ncia e pousou a escova com um ar solene.
- Nunca foi uma crian�a feliz, tanto quanto me recordo. Os
irm�os eram muito mais interessantes, mais parecidos com o
Vladimir - redarguiu. Recordava o elegante filho do pr�ncipe
que pedira a m�o de Tatiana. - � um homem atraente, n�o achas?
Zoya virou costas por um momento e depois rodou sobre os
calcanhares e declarou com franqueza:
- Acho que ele gosta de mim, av�... Demasiado... - Hesitou
e Eugenia franziu o sobrolho.
- O que pretendes dizer?
- Que ele... - Corou violentamente sob a luz fraca,
exibindo de novo o ar de uma crian�a - Que ele... tocou-me na
m�o esta noite... - Parecia est�pido estar com aqueIas
explica��es... Talvez o gesto nada significasse.
- �s uma rapariga bonita e talvez lhe despertes mem�rias.
Acho que ele era muito amigo da tua m�e e sei que se dava muito
com o Konstantin na juventude de ambos. Ca�aram mais do que uma
vez na companhia do Nicolau... N�o sejas t�o sens�vel, Zoya. �
um homem bem-intencionado. E foi simp�tico em vir ver-te esta
noite. Est� apenas a ser bondoso, mi�da.
- Talvez - anuiu Zoya, despreocupada. Em seguida, apagaram
a luz e meteram-se na estreita cama que partilhavam. No escuro,
a jovem ouvia Feodor a ressonar no quarto ao lado e mergulhou
no sono, pensando na magia do espect�culo.
Contudo, na manh� seguinte, teve a certeza de que Vladimir
n�o estava somente a ser bondoso. Esperava-a l� em baixo,
quando saiu para o ensaio.
- Queres uma bol�ia? - Ficou surpreendida ao v�-lo ali e
ele trazia-lhe flores.
- N�o quero dar-lhe trabalho... Tudo bem. - Teria
preferido percorrer a p� a dist�ncia que a separava do
Ch�telet. Ele fazia com que se sentisse subitamente
desconfort�vel ante a forma como a olhava. - Gosto de andar a
p�.
Estava um dia bonito e sentia-se excitada por ir ensaiar
novamente. Os Baliets Russes, eram o seu maior prazer daquele
dias e n�o queria partilh�-lo com ningu�m, nem mesmo com o
elegante pr�ncipe de cabelos brancos que lhe estendia rosas
brancas com um gesto galante.
As flores apenas contribu�am para que ficasse triste.
Marie sempre lhe dera rosas brancas na Primavera, mas ele n�o
poderia saber. Nada sabia sobre ela, era amigo dos seus pais,
n�o dela, e sentiu-se repentinamente deprimida ao v�-lo ali de
p�, de casaco gasto e colarinho enrugado. Como todos os
restantes, deixara tudo para tr�s � excep��o da vida, algumas
j�ias e o �cone que lhe oferecera h� uns dias.
- Talvez a av� gostasse que lhe fizesse uma visita -
sugeriu com um sorriso delicado, e ele pareceu magoado.
- � assim que me v�s? Como um amigo da tua av�? - N�o
queria responder-lhe afirmativamente, mas era essa a verdade.
Parecia-lhe mil anos mais velho, ali de p�, olhando-a. -
Consideras-me assim t�o velho?
- De forma alguma... Lamento... Tenho de ir... Vou chegar
atrasada e zangam-se comigo.
- Nesse caso, deixa-me levar-te. Podemos falar no caminho.
Hesitou, mas iria chegar atrasada. Permitiu, relutante,
que ele lhe abrisse a porta do t�xi e entrou, deixando que as
rosas brancas os se arassem, no assento. Era simp�tico da parte
dele trazer-lhe presentes, mas sabia que dificilmente podia
dar-se a esse luxo. N�o era de admirar que Yelena se mostrasse
aborrecida.
- Como est� a Yelena? - perguntou para passar o tempo e
evitou-lhe os olhos, fixando os outros carros e s� depois
voltando a encar�-lo. - Pareceu-me muito quieta na noite
passada.
- N�o se sente feliz aqui - suspirou. - N�o acho que muitos
de n�s se sintam. � uma mudan�a t�o repentina e ningu�m estava
preparado... - Pronunciou as palavras e depois estendeu o bra�o
e tocou-lhe na m�o, sobressaltando-a com o seguimento da conversa:
- Achas que sou velho de mais para ti, minha querida Zoya?
A voz prendeu-se-lhe na garganta e soltou delicadamente a
m�o.
- � o amigo do meu pai - respondeu com uma express�o triste.
- Torna-se dif�cil para todos n�s, todos nos agarramos ao que j�
n�o temos. Talvez eu represente isso para si.
- � o que pensas? - Sorriu. - Sabes que �s muito bonita?
Zoya sentiu-se corar e amaldi�oou no �ntimo a suave tez que
condizia com a farta cabeleira.
- Muito obrigada. Mas sou mais nova do que a Yelena... Tenho
a certeza de que ela ficaria muito perturbada... - Foi tudo o que
conseguiu proferir, ansiando por que chegassem ao Ch�telet e
pudesse esquivar-se.
- Ela tem a vida dela, Zoya. E eu tenho a minha. Gostaria de
levar-te a jantar. Talvez ao Maxim's. - Era uma loucura: o
champanhe... as rosas... a ideia de jantar no Maxim's. Estavam
todos a morrer de fome, ele conduzia um t�xi, ela dan�ava nos
Ballets Russes e n�o fazia sentido que gastasse o pouco que tinha
com ela. O pr�ncipe era velho de mais, mas n�o queria ser
indelicada.
- N�o me parece que a av�... - Virou uns olhos tristes na sua
direc��o e ele pareceu descontente.
- Ficarias melhor com um de n�s, Zoya Konstantinovna, algu�m
que conhe�a o teu mundo, do que um jovem idiota.
- N�o tenho tempo para nada disso, Vladimir. Se me mantiverem
nos Ballets, terei de trabalhar noite e dia para n�o perder o
lugar.
- Podemos descobrir tempo. Irei buscar-te � noite... - A voz
tornou-se um sussurro e fitou-a com expectativa, mas ela abanou
a cabe�a com uma express�o infeliz.
- N�o posso... a s�rio que n�o. - Verificou, aliviada, que
tinham chegado e virou-se para o fitar uma �ltima vez. - Por
favor, n�o espere por mim. Apenas quero esquecer... O que foi...
� imposs�vel recuperar. N�o estaria certo para n�s... por favor...
Vladmiir n�o pronunciou uma s� palavra quando ela deslizou
para fora do carro e se afastou a toda a pressa, deixando as rosas
brancas no assento ao lado dele.
APITULO 12
- O Vladimir trouxe-te a casa? - A av� sorriu ao v�-la entrar
e Zoya reparou com um aperto no cora��o que as rosas brancas se
encontravam numa jarra ao seu lado.
- N�o. Um dos outros deu-me boleia. - Sentou-se com um
sorriso e esfregou as pernas. - Hoje, foi dif�cil. - Contudo, n�o
se importava, pois dan�ar com os Ballets Russes fazia com que se
sentisse outra vez viva.
- Ele disse que te trazia a casa - replicou Eugenia,
franzindo o sobrolho. Trouxera-lhe p�o fresco e um frasco de
compota. Era um homem t�o generoso e tratava-as t�o bem. E,
estranhamente, Eugenia sentia-se confortada ao pensar nele a tomar
conta de Zoya.
- Av�... - Zoya fitou-a, tentando encontrar as palavras. -
N�o quero.
- Porque n�o? Est�s muito mais segura com ele do que com
algu�m que n�o conhe�as. - Ele pr�prio lho dissera nessa tarde
quando fora ao apartamento deixar as rosas de Zoya, e o desgosto
por ver a neta a dan�ar com os Ballets Russes atingiu-a, de novo,
como uma faca no cora��o, mas sabia que nada poderia det�-la
agora. E tinha de admitir que uma delas precisava de trabalhar,
e Zoya era a �nica em condi��es de o fazer. Apenas desejava que
tivesse encontrado outra ocupa��o, como as aulas de YeIena. E se
Vladimir a tomasse sob a sua protec��o, talvez a neta deixasse de
dan�ar. O pr�ncipe apenas o sugerira nessa tarde, o que fizera com
que o visse sob uma perspectiva diferente. A de her�i e salvador.
- Av�... Acho que o pr�ncipe Vladimir... Acho que tem algo
mais em mente.
- � um homem decente. Com boas maneiras e bem-nascido. Era
um amigo do Konstantin. - Eugenia n�o queria abrir o jogo cedo de
mais, embora Vladimir a tivesse convencido.
- Mas era a isso mesmo que me referia. Era amigo do paP�.
E n�o meu. Deve ter sessenta anos.
- � um pr�ncipe russo e primo do czar.
- O que justifica tudo? - retorquiu Zoya, irritada e
levantando-se de um salto. - N�o se importa que tenha idade
bastante para ser meu av�?
- Ele n�o quer o teu mal, Zoya... Algu�m tem de tomar conta
de ti. Estou com oitenta e dois anos... N�o estarei eternamente
ao teu lado... Tens de pensar nisso. - E, no �ntimo, ficaria
aliviada por saber que deixava Zoya nas m�os de Vladimir. Pelo
menos, era algu�m que conhecia, algu�m que compreendia a vida que
haviam levado antes. Ningu�m em Paris o compreenderia � excep��o
dos seus e deitou um olhar implorativo a Zoya, suplicando-lhe em
sil�ncio que pensasse no assunto, mas a jovem estava horrorizada.
- Queria que casasse com ele? � esse o seu desejo? - Os olhos
encheram-se-lhe de l�grimas ante a ideia. - � um velho.
- Tomaria conta de ti. Pensa em como tem sido bom para n�s,
desde que cheg�mos.
- N�o quero ouvir falar mais disto! - Correu para o quarto,
bateu a porta e atirou-se para cima da cama, chorando
desesperadamente. Era o que lhe restava? A perspectiva de
casamento com um homem do triplo da sua idade, s� porque era um
pr�ncipe russo? A ideia repugnava-a e fazia com que tivesse ainda
mais saudades da vida e dos amigos perdidos.
- Zoya... N�o... querida, por favor... - A av� veio sentar-se
na beira da cama e acariciou-lhe suavemente o cabelo. - N�o estou
a for�ar-te a fazer algo que n�o queiras. Contudo, preocupo-me
demasiado contigo. O Feodor e eu somos t�o velhos... Tens de
encontrar algu�m que possa tomar conta de ti.
- Tenho dezoito anos - solu�ou. - N�o quero casar com
ningu�m... E muito menos ele... - O pr�ncipe em nada a atra�a e
odiava Yelena. A ideia de se ver condenada a viver com eles,
punha-a hist�rica. Apenas desejava dan�ar, ganharia dinheiro
bastante para se sustentar, a Feodor e � av�. Jurou para si
pr�pria que faria tudo de prefer�ncia a casar com um homem que n�o
amava. Trabalharia noite e dia... Faria qualquer coisa...
- Est� bem... est� bem... Por favor, n�o chores assim... por
favor... - Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas ao pensar na
crueldade do seu destino. Talvez a neta tivesse raz�o. Fora apenas
uma ideia. Vladimir era obviamente velho de mais, mas era um
deles, o que se tornava muito importante aos seus olhos.
Contudo, havia outros que tinham sobrevivido, havia
igualmente homens mais novos. Talvez Zoya viesse a conhecer um
deles e se apaixonasse. Era a sua maior esperan�a agora. Era a
�nica esperan�a que lhe restava... essa e as poucas j�ias
escondidas na cama onde dormiam. Nada mais restava... � excep��o
de alguns diamantes e esmeraldas, uma fieira de p�rolas
requintadas e o ovo Faberg� que Nicolau lhe dera... e uma vida de
sonhos quebrados.
- V� l�, Zoya... Seca as l�grimas. Vamos dar um passeio.
- N�o - recusou a neta num tom de voz infeliz, enterrando
novamente o rosto na cama. - Ele estar� � nossa espera, l� em
baixo.
- N�o sejas rid�cula - contrap�s Eugenia a sorrir, pensando
como ela era ainda uma crian�a, embora tivesse crescido
rapidamente nos �ltimos dois meses. - Tem uns modos impec�veis.
N�o � um desordeiro � solta pelas ruas. Deixa de ser idiota.
Zoya rolou devagar e ficou de costas, parecendo de uma beleza
incr�vel.
- Desculpe, av�. N�o quero torn�-la infeliz. Prometo que
tomarei conta de n�s.
- N�o � o que quero para ti, pequenina. Quero que algu�m tome
conta de ti. � assim que deveria ter sido.
- Todavia, tudo � diferente agora. Nada � como era. - Sentou-
se, esbo�ando um sorriso t�mido. - Talvez um dia venha a ser uma
bailarina famosa. - Parecia entusiasmada com a ideia, e Eugenia
soltou uma gargalhada.
- Deus me ajude, mas quase acho que est�s a gostar de tudo
isto.
- Adoro os Baflets Russes, av� - replicou Zoya com um sorriso franco.
- Eu sei. E �s muito boa. Contudo, n�o deves pensar nisso
como algo que far�s para toda a vida. F�-lo agora, se tem de ser.
Mas,um dia, as coisas voltar�o a mudar. - N�o era uma promessa,
e sim uma ora��o.
No entanto, quando Zoya p�s as pernas fora da cama e foi
buscar o casaco, apercebeu-se de que n�o estava certa de querer
a mudan�a. Adorava dan�ar com os Ballets Russes... muito mais do
que a av� conseguia entender.
Ao caminharem devagar rumo ao Palais Royal, observando as
arcadas e os objectos expostos, Zoya sentiu um estremecimento de
alegria que lhe invadia a alma. Paris era bonita e gostava das
pessoas dali. A vida n�o era assim t�o m�. Sentiu-se
repentinamente feliz e jovem. Demasiado jovem para desperdi�ar a
vida com o pr�ncipe Vladimir.
CAPITULO 13
Zoya dan�ou com os Ballets Russes durante todo o m�s de Junho
e estava t�o absorta no seu trabalho que mal se apercebia do que
se passava no mundo. Ficou extraordinarianiente surpreendida com
a chegada do general Pershing e das suas tropas a 13 de junho.
A cidade fervilhou, quando marcharam at� � Pra�a da Conc�rdia e
desfilaram junto ao Hotel Crillon. O povo gritava e acenava e as
mulheres atiravam flores aos homens, gritando: "V�ve l'Am�rique!"
Zoya mal conseguiu regressar ao Palais Royal, a fim de contar �
av� o que tinha visto.
- S�o aos milhares, av�!
- Nesse caso, talvez a guerra acabe em breve para n�s.
Sentia-se exausta com os raids a�reos nocturnos e uma parte
secreta dela pensava que, se a guerra terminasse, talvez a
situa��o mudasse novamente na R�ssia e pudessem voltar. Contudo,
a maioria das pessoas sabia que n�o havia esperan�a.
- Quer ir dar um passeio e ver? - Os olhos de Zoya brilhavam.
Havia algo de maravilhoso nos rostos esperan�ados dos franceses
e nos homens vigorosos com uniformes de caqui, t�o fortes e cheios
de vida. Por todo o lado, parecia renascer a esperan�a, mas a av�
limitou-se a abanar a cabe�a.
- N�o tenho qualquer desejo de ver soldados nas ruas, mi�da.
- Nutria terr�veis recorda��es, sentia-se a salvo em casa e
incitou Zoya a que ficasse tamb�m. - Afasta-te deles. As multid�es
podem tornar-se rapidamente perigosas.
N�o havia, por�m, qualquer ind�cio de que assim fosse. Era
um dia feliz para todos, e os ensaios haviam sido suspensos
durante o resto da semana. Pela primeira vez num m�s, Zoya
dispunha de algum tempo para si, para ficar na cama, ir passear,
sentar-se junto � lareira e ler. Sentia-se despreocupada e jovem
e usufru�a daquele momento.
Nessa noite, sentou-se na sala de estar e escreveu uma longa
carta a Marie, falando-lhe da marcha de Pershing e do seu trabalho
no ballet. Parecia haver mais para lhe relatar agora, embora n�o
mencionasse o pr�ncipe Vladimir. Sabia que a amiga ficaria chocada
se soubesse que a av� encorajava a conquista, mas tornara-se uma
quest�o insignificante. Ele compreendera e, embora continuasse a
trazer p�o fresco � condessa enquanto Zoya trabalhava, h� semanas
que n�o se cruzavam.
Enquanto escrevia a Marie nessa noite, a pequena Sava
aninhava-se confortavelmente no seu colo, ressonando, feliz. "...
Parece-se tanto com a Joy que me faz pensar em ti, mal entra aos
saltos no quarto. Embora n�o precise deste tipo de coisas para te
recordar. Parece-me incr�vel que estejamos em Paris e tu a�... e
que n�o nos encontremos em Livadia neste Ver�o. Aquela fotografia
idiota de todas n�s est� junto � rninha cama..."
Zoya olhava-a todas as noites, antes de adormecer. Trouxera
igualmente uma fotografia de Olga com Alexis ao colo quando ele
tinha tr�s ou quatro anos... e uma muito bonita de Nicolau e
Alexandra. Meras recorda��es agora, mas o facto de escrever �
amiga conservava-as vivas no seu cora��o.
H� uma semana, o Dr. Botkin enviara-lhe uma carta de Marie
em que ela comunicava a Zoya que estava tudo bem, embora se
mantivessem sob pris�o domicili�ria. Contudo, haviam-nos informado
que iriam at� Livadia, em Setembro. E estava recuperada.
Desculpava-se por ter pegado o sarampo a Zoya e dizia que gostava
de a ter visto coberta de manchas. A leitura das cartas provocava-
lhe um sorriso por entre as l�grimas.
Estava a reler a carta, quando chegou uma mensagem. Iria
dan�ar Petruchka na Op�ra para o general Pershing e as suas
tropas. Como sempre, a av� n�o ficou nada feliz com as not�cias.
Dan�ar para os soldados ainda parecia pior do que o espect�culo
no Ch�telet, mas desta vez nem sequer tentou dissuadir Zoya,
sabendo perfeitamente que n�o tinha qualquer hip�tese de ser bem
sucedida.
Nessa altura, Pershing e os soldados estavam instalados no
quartel-general da Rue Constantine, do outro lado dos Invalides,
e ele vivia na margem esquerda, pr�ximo da Rue de Varennes, num
belo h�tel particulier que lhe fora cedido por Ogden Mills, um
colega americano que estava em servi�o algures na infantaria.
- Esta noite, quero que o Feodor te acompanhe - decidiu a av�
num tom sombrio, quando a neta se dispunha a sair para a Op�ra.
- Deixe-se disso, av�. N�o podem ser diferentes dos generais
russos. Tenho a certeza de que se comportar�o devidaMente. N�o v�o
tomar o palco de assalto para nos levarem com eles. - Nessa noite,
Nijinski dan�ava com eles, e Zoya estava hilariante. Pisar o mesmo
palco era algo que a ultrapassava. - Tudo correr� bem, garanto.
- N�o ir�s s�. Ou com o Fecodor ou com o pr�ncipe Vladimir.
Escolhe. - Sabia perfeitamente qual seria a op��o, embora
intimamente o lamentasse, mas n�o voltara a pressionar Zoya quanto
ao pr�ncipe. De certa forma, a neta tinha raz�o. Havia uma grande
diferen�a de idades.
- Muito bem - retorquiu Zoya a rir. - Levo o Feodor. Mas ele
vai ficar infelic�ssimo � espera nos bastidores.
- N�o, se estiver � tua espera, minha querida. - O velho
criado servia-as com uma devo��o que ro�ava o fanatismo, e Eugenia
sabia que Zoya estaria a salvo com ele ao seu lado. E Zoya apenas
concordou para sossegar a av�.
- Diz-lhe pelo menos que n�o deve p�r-se no meio do caminho.
- Nunca o faria.
Meteram-se juntos num t�xi para a Op�ra e, momentos depois,
Zoya desapareceu no meio dos preparativos do espect�culo para
Pershing e os seus homens. Sabia que havia outros festejos
planeados para eles na Op�ra Comique, na Com�die-Fran�aise e
noutros teatros espalhados pela cidade. Paris recebia-os de bra�os
abertos.
E nessa noite, quando a cortina subiu, dan�ou como nunca. O
facto de saber que Nijinski estava ali incitou-a, e Diaghilev
falou-lhe pessoalmente no final do primeiro acto. Sentia-se como
se fosse capaz de voar depois das suas generosas palavras,
entregou-se de alma e cora��o e, quando a cortina desceu, ficou
surpreendida por o espect�culo ter passado num �pice. Queria que
aquela noite nunca mais acabasse.
Esbo�ou as v�nias com o resto do corpo de bailado e retirou-
se com eles para o camarim comum. As primeiras bailarinas tinham
obviamente os seus pr�prios camarins, mas decorreriam anos antes
que pudesse formular esse desejo, s� que n�o lhe importava.
Apenas queria dan�ar e era o que acontecia. Dan�ara bem e sentia-
se orgulhosa quando descal�ou as sapatilhas. Do�am-lhe os dedos
dos p�s dos tacos de madeira, mas nem isso tinha qualquer
significado. Era um pequeno pre�o a pagar por tamanha alegria.
At� esquecera o general e os seus acompanhantes. Nessa noite, s�
conseguia pensar no ballet enquanto dan�ava, dan�ava, dan�ava...
e ergueu os olhos, surpreendida, quando uma das professoras
entrou.
- Est�o todos convidados para uma recep��o na casa do general
- anunciou. - Dois cami�es militares ir�o lev�-los l�. - Deitou-
lhes um olhar orgulhoso. Todos haviam feito boa figura a n�vel
individual e generalizado. - Champanhe para todos! - acrescentou
com um sorriso e todos se puseram a rir e a falar.
Paris parecia ter recuperado vida com os americanos por
perto. Havia festas e espect�culos por todo o lado e, de s�bito,
Zoya pensou em Feodor, que a esperava l� fora. Queria
absolutamente ir com eles, ser como o resto das pessoas, mau grado
os receios da av�.
Deslizou sem ru�do at� ao exterior, foi � procura de Feodor
e descobriu-o de p� junto � porta do palco, com um ar t�o triste
como ela dissera � av� que seria o caso. Sentia-se rid�culo,
rodeado por mulheres envoltas em tule e homens que passavam por
ele seminus. A �bvia imoralidade do ambiente horrorizava-o.
- Sim, mademoiselle?
- Tenho de ir a uma recep��o com o resto do corpo de bailado
e n�o posso levar-te, Feodor - explicou. - Vai para casa ter com
a av� e diz-lhe que irei assim que puder.
- N�o - recusou, abanando solenemente a cabe�a. - Prometi �
condessa Eugenia Peterovna que a levaria a casa.
- Mas n�o podes acompanhar-nos. Garanto-te que estarei a
salvo.
- Ela ficar� muito zangada comigo.
- N�o, n�o ficar�. Eu pr�pria lhe explicarei quando chegar
a casa.
- Esperarei. - Fitou-a sem se deixar demover, e Zoya sentiu
vontade de gritar. N�o queria uma dama de companhia. Queria ser
como todos os outros. Afinal, j� n�o era um beb�. Era uma jovem
adulta, de dezoito anos. E talvez, se tivesse muita, muita sorte,
Nijinski lhe dirigisse a palavra... ou novamente Mr. Diaghilev.
Estava muito mais interessada neles do que em qualquer dos homens
de Pershing. Contudo, primeiro tinha de convencer Feodor a ir para
casa e, por fim, depois do que lhe pareceu uma discuss�o
infind�vel, ele acedeu, embora sem deixar de vincar que a condessa
decerto ficaria furiosa com ele.
- Prometo-te que lhe explico tudo.
- Muito bem, mademoiselle. - Levou a m�o � testa, esbo�ou uma
v�nia e saiu pela porta do palco. Zoya soltou um suspiro de
al�vio.
- O que era? - inquiriu uma das outras bailarinas, quando
passou junto dela.
- Apenas um amigo de fam�lia. - Sorriu.
Ningu�m conhecia a sua vida e ninguem queria saber. Apenas
lhes interessava o ballet e n�o os relatos piegas de como
conseguira juntar-se ao corpo de bailado e a presen�a do velho
criado, qual guarda cossaco, embara�ava-a. Ficou aliviada ao v�-lo
afastar-se e p�de voltar ao camarim e mudar-se para a recep��o na
casa do general Pershing. Estava toda a gente muito animada e
algu�m j� lhes come�ara a servir champanhe.
Amontoaram-se alegremente nos cami�es militares e
atravessaram a Ponte Alexandre III entoando velhas can��es russas
e tiveram de lhes recordar mais do que uma vez que se portassem
bem durante o percurso at� � casa do general Pershing. Contudo,
ele tinha um ar bondoso e recebeu-os agradavelmente, um homem alto
e magro de uniforme, que circulava pelo elegante �trio de m�rmore.
Por momentos, Zoya sentiu um baque no cora��o ao olhar em
volta. O ambiente recordava-lhe os pal�cios de Sampetersburgo,
embora obviamente em ponto pequeno. Todavia, o ch�o de m�rmore e
a escadaria em caracol eram-lhe demasiado familiares e uma
recorda��o demasiado viva do mundo que ainda h� t�o pouco tempo
abandonara.
Foram encaminhados at� um enorme sal�o de baile com paredes
forradas de espelhos e lareiras de m�rmore, tudo em aut�ntico
estilo Lu�s XV. De s�bito, Zoya voltou a sentir-se muito jovem
enquanto os pares rodopiavam e riam e uma banda militar p�s-se a
tocar uma valsa lenta. Outros bebiam champanhe. Invadiu-a um
desejo imperioso de chorar ao ouvir a m�sica e, ao faltar-lhe o
ar, saiu para o jardim.
Ficou silenciosamente de p� a observar uma est�tua de Rodin,
desejando n�o ter vindo, e nesse momento uma voz mesmo nas suas
costas expressou-se suavemente na noite quente.
- Posso ir buscar-lhe alguma coisa, mademoise11e? - A voz
masculina era nitidamente americana, mas falava um franc�s
impec�vel. Virou-se e deparou com um homem alto e atraente, de
cabelo grisalho e uns olhos azul-claros. A primeira coisa que lhe
prendeu a aten��o foi que ele parecia bondoso. Dava a sensa��o de
saber que algo estava mal e observou-a delicadamente, mas ela
abanou a cabe�a com as l�grimas ainda vis�veis nas faces. - Est�
bem?
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a silencioso e depois virou-se,
embara�ada, para limpar as l�grimas. Pusera um simples vestido
branco que Alix lhe tinha dado no ano anterior. Era um dos poucos
bonitos que conseguira trazer de Sampetersburgo, e estava
encantadora.
- Desculpe... eu... - Como podia expressar-lhe o que sentia?
S� desejava que ele a deixasse entregue �s suas recorda��es, mas
o americano n�o fez men��o de se afastar. - Tudo isto � t�o
bonito. - Foi tudo o que conseguiu dizer, mas logo lhe ocorreu o
miser�vel apartamento perto do Palais Royal e voltou a lembrar-se
de quanto as suas vidas haviam mudado num marcante contraste com
o elegante jardim onde agora se encontrava.
- Est� com os Ballets Russes?
- Sim. - Sorriu, esperando que ele esquecesse as l�grimas e
ouvisse os acordes distantes de uma outra valsa. Pronunciou as
palavras num tom orgulhoso, pensando novamente em como tinha
sorte: - O Nijinski n�o esteve maravilhoso esta noite?
O homem riu, embara�ado, aproximou-se um pouco mais e Zoya
voltou a reparar em como era alto e atraente.
- Receio n�o ser um grande apreciador de ballet. Foi um
espect�culo oferecido a alguns de n�s esta noite.
- Ah! - exclamou, sorrindo. - E sofreu muito?
- Sim - anuiu com uma gargalhada no olhar. - At� este
momento. Quer uma ta�a de champanhe?
- Talvez dentro de minutos. Isto � t�o bonito. - O jardim
irradiava uma paz imensa naquele momento em que todos dan�avam,
riam e rodopiavam no interior da casa. - Tamb�m vive aqui?
- Alojaram-nos numa casa na Rue du Bac - respondeu com um
sorriso. - N�o � t�o imponente como esta, mas � muito agrad�vel
e bastante pr�xima.
Observava-lhe os movimentos. Era uma jovem calma e elegante
e transmitia algo mais do que a graciosidade de uma bailarina ao
aproximar-se dele. Notava-se uma aura de um porte quase real
quando movia a cabe�a e um olhar de uma incomensur�vel tristeza
que lhe ensombrava o sorriso.
- Faz parte do pessoal do general?
- Sim. - Era um dos ajudantes-de-campo, mas poupou-a a
pormenores. - H� muito que est� com os Ballets Kusses? - Era
imposs�vel que assim fosse, pois suspeitava tratar-se de uma
rapariguinha, embora denotasse um porte vincado quando finalmente
mudaram do franc�s para o ingl�s. Falava muito bem, depois de
todos os seus estudos no Instituto Smolny.
- Estou com eles h� um m�s - Sorriu. - Com grande desgosto
da minha av�. - Riu e pareceu subitamente muito mais nova.
- Os seus pais devem orgulhar-se muito de si. - Contudo,
lamentou de imediato o coment�rio ao detectar-lhe a tristeza no
olhar.
- Os meus pais foram mortos em Sampetersburgo... em Mar�o...
- Quase sussurrou as palavras, e subitamente ele compreendeu. -
Vivo com a minha av�.
- Lamento... pelos seus pais, quero dizer... - O brilho dos
olhos azuis quase a fez chorar novamente. Era a primeira vez que
falava assim com algu�m. Os companheiros do ballet pouco sabiam
a seu respeito, mas por qualquer motivo achava que podia contar-
lhe tudo. Ele recordava-lhe estranhamente KOnstantin, com a mesma
eleg�ncia, a graciosidade com que se movia, o cabelo de madeixas
grisalhas e os olhos brilhantes. - Veio para c� com a sua av�? -
Ignorava porqu�, mas ela fascinava-o. Era t�o jovem e bonita, com
aqueles enormes e tristes olhos verdes.
- Sim, viemos h� dois meses... de... depois... - Todavia, foi
incapaz de completar a frase, e ele aproximou-se, colocando-lhe
suavemente a m�o no bra�o.
- Vamos dar um passeio, mademoiselle? - Zoya sentia-se segura
com a m�o no bra�o dele. - E depois talvez uma ta�a de champanhe.
- Caminharam at� � est�tua de Rodin e voltaram, falando de Paris,
da guerra, de temas que lhe eram menos dolorosos, e a jovem ergueu
o rosto na sua direc��o, sorrindo.
- E de onde �?
- Nova Iorque. - Nunca pensara muito nos Estados Unidos.
Parecia-lhe a uma enorme dist�ncia.
- Como �?
- Grande e agitada - respondeu com uma gargalhada e fitando-
a. - N�o t�o bonito como aqui, receio, mas agrada-me. - Queria
interrog�-la sobre Sampetersburgo, mas pressentiu que n�o era a
altura nem o lugar. - Dan�a todos os dias?
- Quase. At� ao espect�culo desta noite, tive uma semana de
terias - replicou.
- E o que faz... nos tempos livres?
- Vou passear com a minha av�, escrevo aos amigos, leio...
durmo... brinco com a minha cadela.
- Parece uma vida agrad�vel. De que ra�a � a cadela? - Eram
perguntas disparatadas, mas queria conserv�-la perto dele e
ignorava porqu�. A jovem tinha visivelmente metade da sua idade,
mas era de uma beleza que lhe dilacerava o cora��o.
- Uma cocker spaniel. - Sorriu. - Foi um presente de uma
amizade muito grande.
- Um cavalheiro? - Parecia intrigado e ela riu.
- N�o, n�o! Uma amiga! Na verdade, a minha prima.
- Trouxe a cadela da R�ssia consigo? - Sentiu se fascinado
por ela, quando inclinou a cabe�a e a cascata de cabelo J ruivo
lhe encobriu os olhos.
- Sim, trouxe. E acho que para ela a viagem foi muito mais
facil. Cheguei a Paris com sarampo. - Voltou a erguer o rosto
na sua direc��o e esbo�ou um sorriso, parecendo novaniente uma
mi�da. - Uma estupidez, n�o foi? - Contudo, ele em nada a
achava est�pida e tomou a s�bita consci�ncia de que nem sabia
como ela se chamava.
- De forma alguma. Acha que devemos apresentar-nos?
- Zoya Ossupov. - Esbo�ou uma ligeira v�nia e fitou-o.
- Clayton Andrews. Capit�o Clayton Andrews, suponho que devia
ter dito.
- O meu irm�o tamb�m era capit�o... na Guarda Preobrajenski.
julgo que nunca tenha ouvido falar. - Observou-o na expectativa
e ele apercebeu-se novamente da tristeza espalhada no olhar.
Aparentemente, mudava de humor � velocidade de um raio e, ao
examin�-la pela primeira vez, compreendeu o que levava as pessoas
a afirmar que os olhos s�o o espelho da alma. Os dela pareciam dar
para um mundo m�gico de diamantes, esmeraldas, l�grimas contidas,
e desejou torn�-la de novo feliz, faz�-la dan�ar, rir e sorrir.
- Receio n�o saber muita coisa sobre a R�ssia, Miss Ossupov.
- Nesse caso estamos quites - retorquiu, sorrindo. - Nada sei
sobre Nova lorque.
Ele acompanhou-a at� ao sal�o de baile e trouxe-lhe uma ta�a
de champanhe, enquanto os outros dan�avam a valsa.
- Apetece-lhe dan�ar?
Zoya pareceu hesitar e, em seguida, esbo�ou um aceno de
concord�ncia. Ele pousou a ta�a dela numa mesa pr�xima e guiou-a
pelo ch�o numa lenta e digna valsa, fazendo-a uma vez mais sentir-
se como se dan�asse nos bra�os do pai. Se fechasse os olhos,
estaria de volta a Sampetersburgo... mas a voz dele interrompeu-
lhe os pensamentos.
- Dan�a sempre com os olhos fechados, mademoiselle? -
Tro�ava dela, e Zoya sorriu. Era bom estar nos seus bra�os, era
bom dan�ar com um homem alto e robusto... numa noite m�gica...
numa bela casa...
- Tudo isto � t�o encantador... n�o �?
- Agora, �. - Contudo, gostara de ter estado no jardim com
ela. Era mais facil falar-lhe ali do que no meio da m�sica e
daquela multid�o. E, no final da dan�a, o general Pershing fez-lhe
sinal; ele deixou-a e, quando voltou a procur�-la, a jovem
desaparecera.
Procurou-a por todo o lado e saiu novamente para o jardim,
mas ela n�o se via em parte alguma e, quando se inteirou,
responderam-lhe que o grupo do primeiro cami�o dos Ballets Russes
deixara a festa. Regressou pensativamente ao seu alojamento,
vagueando pela Rue du Bac, recordando o nome dela e os enormes
olhos verdes e interrogando-se sobre quem seria. Havia algo de
profundamente intrigante naquela jovem.
CAPITULO 14
- Da pr�xima vez que mandar o Feodor acompanhar-te a qualquer
lado, Zoya Konstantinovna, queres, por favor, ter a bondade de n�o
o mandares para casa?
A velha condessa mostrava-se furiosa quando tomaram o
pequeno-almo�o juntas no dia seguinte. Feodor regressara com ar
t�mido e explicara que os soldados tinham convidado o corpo de
bailado a ir algures e ele n�o estava inclu�do. A av� esperava-a
quando ela voltou, quase demasiado furiosa para lhe dirigir a
palavra, e, de manh�, a f�ria n�o se apagara ao fitar Zoya.
- Desculpe, av�. N�o podia levar o Feodor comigo. Era uma
bela recep��o na casa do general Pershing. - Lembrou-se
imediatamente dos jardins e do capit�o que havia conhecido, mas
n�o divulgou pormenores � av�.
- Ah! J� cheg�mos a esse ponto, ent�o? Entreter as tropas?
E o que se segue? � precisamente esse o motivo por que as jovens
n�o fogem para fazer parte do ballet. N�o � digno. E n�o vou
toler�-lo. Quero que saias imediatamente do ballet!
- Av�... por favor... sabe que n�o posso!
- Podes, se te ordenar.
- Av�... por favor, n�o fa�a isso... - N�o lhe apetecia
discutir. Passara uns momentos t�o agrad�veis na noite anterior...
e o atraente capit�o tinha sido t�o simp�tico ou assim lhe
parecera. Mesmo assim, n�o o referiu � av�. N�o achou apropriado
e, de qualquer maneira, sabia que os caminhos de ambos jamais se
cruzariam de novo. - Desculpe. N�o voltarei a faz�-lo. - N�o que
tivesse oportunidade. Era pouco prov�vel que o general Pershing
oferecesse festas aos Ballets kusses depois de todos os
espect�culos.
Levantou-se e a av� fixou-a.
- Onde vais, agora?
- Hoje, tenho um ensaio.
- Estou t�o cansada disto!- P�s-se de p� e come�ou a andar
� roda do quarto num passo ainda muito �gil. - Ballet, ballet,
ballet! Chega!
- Sim, av�.
Eugenia ia vender outro colar, desta vez um de esmeraldas.
Talvez, ent�o, Zoya desistisse desses disparates por uns tempos.
Tinha a sua conta. A jovem n�o era uma bailarina. Era uma crian�a.
- A que horas chegar�s a casa esta noite?
- Devo estar de volta �s quatro da tarde. O ensaio come�a �s
nove da manh� e n�o tenho espect�culo.
- Quero que penses em deix�-los. - Contudo, ambas sabiam
que Zoya gostava demasiado do que fazia e o dinheiro ajudava,
por mais que a ideia desagradasse � condessa. Na semana
anterior, a neta comprara-lhe um belo vestido e um xaile
quente. E o sal�rio tamb�m ajudava a pagar a comida, embora n�o
houvesse extras, salvo os que Vladimir ainda trazia com a
esperan�a de conseguir ver Zoya de relance.
- Iremos dar um passeio esta tarde, quando eu regressa a
casa.
- O que te leva a pensar que me apetece passear contigo? -
resmungou a av� e Zoya riu.
- Porque me ama muito. E eu a si. - Beijou-lhe a face e
correu para a porta, como uma rapariguinha atrasada para as
aulas.
A velha senhora suspirou e levantou da mesa os pratos do
pequeno-almo�o. Era t�o dif�cil t�-la ali. As coisas eram muito
diferentes e a parte pior residia em que a idosa senhora
detestava admitir para si pr�pria que Zoya j� n�o era uma
crian�a e n�o era f�cil control�-la.
Nesse dia, o ensaio de Zoya voltou a ser na Op�ra como
prepara��o de outro espect�culo no dia seguinte e ela dan�ou e
praticou na barra durante horas seguidas. Quando acabou, antes das
quatro, sentia-se cansada depois da recep��o at� tarde na casa do
general Pershing. Era uma tarde soalheira da �ltima semana de
Junho e pOs-se a caminhar com um suspiro de satisfa��o.
- Parece cansada, Miss Ossupov. - Virou-se, surpreendida, ao
ouvir o seu nome e deparou com Clayton Andrews, de p� junto a um
dos carros da comitiva do general Pershing.
- Ol�... Assustou-me.
- Estou aqui � espera h� duas horas - Riu e ela fitou-o de
olhos muito abertos.
- Esperou-me todo este tempo?
- N�o tive oportunidade de me despedir de si na noite
passada.
- Julgo que estava ocupado quando sa�.
- Eu sei. Deve ter regressado no primeiro cami�o. - Zoya
esbo�ou um aceno de concord�ncia, surpreendida por ele se ter dado
ao trabalho de investigar. N�o pensara que voltaria a v�-lo, mas
sentia-se feliz que assim fosse. Clayton era t�o atraente como o
achara na noite anterior, t�o alto, elegante e gracioso como
parecera, quando haviam dan�ado a valsa. - Julguei que pudesse
almo�ar comigo. Mas � um tanto tarde, agora.
- De qualquer maneira, tenho de ir para casa. - Sorriu-lhe
com um ar de rapariguinha que acaba de sair das aulas. - A minha
av� ficou terrivelmente zangada comigo.
- Voltou a casa muito tarde? - perguntou, admirado ante o
coment�rio. - N�o reparei na hora a que saiu. - Ela era, ent�o,
t�o jovem quanto julgara. Tinha um aspecto de rapariguinha, a
inoc�ncia... e, contudo, uma express�o s�bia no olhar.
Contudo, Zoya riu ao recordar-se de ter afastado Feodor.
- A minha av� mandou algu�m para me acompanhar e mandei-o
embora. Embora desconfie que ele tenha ficado t�o satisfeito
quanto eu. - Corou um pouco e ele riu.
- Nesse caso, mademoiselle, posso oferecer-me para a
escoltar? Lev�-la-ei a casa. - Zoya hesitou, mas ele era t�o
obviamente um cavalheiro que n�o haveria mal nenhum. E quem iria
saber? Podia deix�-lo um ou dois quarteir�es antes do Palais
Royal.
- Muito obrigada. - Abriu-lhe a porta e ela deslizou para o
interior do carro. Indicou-lhe onde vivia e o capit�o pareceu
totalmente � vontade durante todo o percurso at� � casa. Mandou-o
parar a um quarteir�o de dist�ncia e ele olhou em volta.
- � aqui que vive?
- N�o propriamente. - Sorriu e voltou a corar. - Achei por
bem poupar � minha av� o desgosto de se irritar t�o depressa
comigo depois da noite passada.
Clayton riu e o rosto tinha um ar muito jovem, apesar do
cabelo grisalho.
- Mas que rapariguinha sem vergonha! E posso pedir-lhe que
jante comigo esta noite, mademoiselle?
Zoya franziu o sobrolho e depois fitou-o.
- N�o sei bem. A minha av� sabe que esta noite n�o h�
espect�culo. - Seria a primeira vez que se comportaria de forma
desleal para com ela e n�o estava muito segura do motivo que a
levava a sentir que tinha de ser assim. Conhecia, por�m, a
opini�o de Eugenia sobre os soldados.
- A sua av� n�o a deixa sair acompanhada? - inquiriu,
divertido e surpreendido.
- N�o sei bem - confessou Zoya. - Nunca o fi,
- Oh, c�us... Posso perguntar-lhe que idade tem? - Talvez
ela fosse ainda mais jovem do que pensava, mas esperava que
n�o.
- Dezoito - respondeu quase num tom de desafio, e ele riu
uma vez mais.
- Parece-lhe muito?
- O suficiente. - Ele n�o se atreveu a perguntar para qu�.
- Ainda h� bem pouco tempo, incitou-me a corresponder a um
amigo da fam�lia. - E, no pr�prio momento em que pronunciou as
palavras, corou. Achava uma estupidez falar-lhe de Vladimir,
mas aparentemente ele n�o se importava.
- E que idade tem esse? Vinte e um?
- Oh, n�o! - Era Zoya quem ria agora. - � muito, muito
mais velho do que isso. Tem, pelo menos, sessenta! - Desta vez,
Clayton pareceu em simult�neo divertido e admirado.
- Ah, sim? E o que acha a sua av�?
- � complicado de mais para explicar. Al�m de que n�o
gosto dele... � um velho.
O capit�o fitou-a com uma express�o grave por um momento,
enquanto se conservavam sentados no carro.
- Tamb�m eu. Tenho quarenta e cinco anos. - Desejava ser
honesto para com ela logo de in�cio.
- E n�o � casado? - Parecia surpreendida e depois tomou
consci�ncia de que talvez fosse esse o caso.
- Sou divorciado. - Fora casado com uma das Vanderbilt,
mas tudo acabara h� dez anos. Em Nova lorque, era considerado
um bom partido, mas, nos dez anos seguintes ao div�rcio e por
entre todas as mulheres com quem sa�ra, nenhuma o conquistara.
- Est� chocada?
- N�o. - Pensou no assunto e voltou a encar�-lo, mais do
que nunca convencida de que ele era um homem decente. - Por que
raz�o se divorciou?
- Julgo que a paix�o morreu... Fomos sempre muito
diferentes. Contudo, ela voltou a casar e somos bons amigos,
embora n�o a veja frequentemente. Est� a viver em Washington.
- Onde � isso? - Parecia-lhe um lugar muito distante e
misterioso.
- � pr�ximo de Nova Iorque, mas n�o muito. Um pouco como
Paris e Bord�us. Ou talvez Paris e Londres. - A jovem esbo�ou
um aceno de cabe�a. Fazia sentido. Ele consultou o rel�gio.
Passara horas � espera dela e agora tinha de regressar. - E
quanto ao jantar esta noite?
- N�o me parece que seja poss�vel. - Deitou-lhe um olhar
triste e ele sorriu.
- Amanh�, ent�o?
- Tenho de dan�ar, amanh� � noite.
- E que tal depois? - Mostrava-se persistente e, agora que
a encontrara de novo, n�o tencionava deix�-la escapar.
- Tentarei.
- Chega. At� amanh� � noite, nesse caso. - Saltou do carro
e ajudou-a a descer.
Zoya agradeceu delicadamente a boleia e ele acenou-lhe e
seguiu rumo � Rue Constantine com uma can��o no cora��o.
CAPITULO 15
Pela primeira vez na vida, mentiu � av�. Foi no dia seguinte,
quando saiu de novo para a Op�ra. Sentiu-se culpada, mas, quando
saiu de casa, j� se perdoara a si pr�pria pelo que parecia uma
mentira inofensiva. "Perderia tempo a preocupar-se com uma
ninharia", pensou. "No fundo, que mal tem jantar com um homem
simp�tico?" Dissera-lhe que Diaghilev lhes oferecia uma ceia e
todo o corpo de bailado tinha de ir.
- N�o espere a p� por mim! - gritara por cima do ombro, a fim
de que Eugenia n�o lhe visse os olhos.
- Tens mesmo de ir?
- Tenho, av�! - Em seguida, sa�ra precipitadamente e
dirigira-se ao ensaio.
Depois do espect�culo, Clayton esperava-a com outro dos
carros do general Pershing.
- Tudo em ordem? - Sorriu-lhe e deslizou para tr�s do
volante, fitando-a bem nos olhos. Estes diziam muito mais do que
as palavras e eram da cor de esmeraldas em fogo. - Que tal esta
noite?
- Correu bem. Contudo, o Nijinski n�o dan�ou. Ele �
fant�stico, n�o acha? - Soltou uma gargalhada, ao lembrar-se de
que ele n�o gostava de ballet. - Deixe l�. Esqueci-me que n�o
gosta de ballet.
- Talvez possa ser ensinado.
Dirigiram-se ao Maxim's e Zoya arregalou os olhos quando
transpuseram a porta. A luxuosa decora��o de veludos, a gente
elegante e os homens fardados presentes que ali jantavam,
cortaram-lhe o f�lego. Parecia-lhe tudo t�o adulto; pensou de
imediato em como descreveria o que a rodeava na sua pr�xima carta
a Marie.
Todavia, Clayton Andrews seria algo dif�cil de explicar, at�
mesmo � sua maior amiga. N�o sabia muito bem porque � que estava
a jantar com ele, salvo que se mostrara muito bondoso e parecia
muito feliz e � vontade. Viu-se a desejar abrir o cora��o apenas
desta vez... ou talvez mais outra depois. Nada havia de mal. Era
um homem respeit�vel e sentia uma certa excita��o. Tentou n�o se
portar como uma crian�a deslumbrada, quando se sentaram � mesa.
- Com fome? - inquiriu feliz, fitando-a e mandando vir
champanhe, mas ela apenas queria olhar em volta. - J� aqui tinha
estado?
Zoya abanou a cabe�a, pensando no apartamento onde viviam e
no hotel onde se haviam alojado antes. Ainda n�o tinham ido a
restaurantes, desde a chegada. Ela e a av� cozinhavam refei��es
simples em casa e Feodor sentava-se � mesa com ambas todas as
noites.
- N�o - respondeu, sem mais explica��es. Teria sido dif�cil
explicar-lho.
- � bonito, n�o �? Costumava vir aqui, antes da guerra.
- Viaja muito? Por regra, quero dizer.
- Bastante. J� tinha vindo a Paris... antes de chegar aqui
h� tr�s meses? - Lembrara-se e ela sentiu-se tocada.
- N�o. Mas os meus pais vinham muito aqui. Na verdade, a
minha m�e era alem�, mas viveu quase sempre em Sampetersburgo.
Clayton sentiu um desejo s�bito de indagar como fora a
revolu��o, mas pressentia o quanto lhe seria doloroso e conteve-
se. E depois, apenas para fazer conversa, fez-lhe uma pergunta que
lhe provocou uma gargalhada.
- Alguma vez viu o czar, Zoya? - E, ante o olhar divertido
que lhe detectou no rosto, riu tamb�m. - Disse algunia gra�a?
- Talvez. - Sentia-se t�o � vontade com ele que decidiu
abrir-se um pouco. - Somos primos. - No entanto, ficou muito
s�ria, ao recordar-se da sua �ltima manh� em Tsarskoie Selo.
Clayton deu-lhe uma pancadinha na m�o e serviu mais champanhe.
- Deixe l�... Podemos falar de qualquer outra coisa. -
Todavia, a jovem fitou-o no mais fundo da alma.
- N�o, n�o tem import�ncia... S� que... - Engoliu as
l�grimas, sem deixar de o olhar. - Sinto tantas saudades deles.
Por vezes, interrogo-me sobre se voltarei a v�-los. Ainda est�o
sob pris�o domicili�ria, em Tsarskoie Selo.
- Tem tido not�cias? - inquiriu, surpreendido.
- Recebo por vezes cartas da gr�-duquesa Marie... Ela � a
minha maior amiga. Estava muito doente quando nos viemos embora.
Pegou-me o sarampo. Tinham todos sarampo quando partimos. - O
capit�o sentia-se no s�tinio c�u ao ouvi-Ia. O czar da R�ssia era
uma figura hist�rica e n�o apenas um primo daquela bonita jovem.
- E cresceu junto deles?
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a e ele sorriu. Estivera certo,
afinal. Havia muito mais naquela jovem do que pensara � primeira
vista. N�o era somente uma pequena bailarina. Era uma rapariga de
fam�lia, com um passado not�vel. E ela come�ou a falar-lhe na casa
onde crescera, sobre Nicolai... e a noite em que fora abatido a
tiro e ela ficara em Tsarskoie Selo, antes de deixarem a R�ssia.
- Tenho fotografias maravilhosas de todos eles. Um dia
mostro-lhas. �amos juntos todos os anos para Livadia, em Agosto.
Tamb�m v�o este ano, pelo menos foi o que a Marie me escreveu na
�ltima carta. Festej�mos sempre l� os anos do Alexis, ou no iate.
Clayton Andrews observava-a, fascinado, enquanto falavam.
Ela referia um mundo m�gico, uma �poca invulgar da Hist�ria, aos
seus olhos um lugar-comum, primos e amigos, crian�as, t�nis e
divers�es. E agora dan�ava com o Ballets Russes. N�o era de
admirar que a av� a mandasse acompanhar. A jovem foi mesmo ao
ponto de lhe falar de Feodor. E, no fim da noite, Clayton sentia-
se como se os conhecesse a todos e tinha um peso no cora��o pela
vida que ela perdera na R�ssia.
- O que vai fazer, agora?
- N�o sei - respondeu, com honestidade. - Quando n�o houver
mais j�ias para vender, acho que continuarei a dan�ar e viveremos
disso. A av� est� velha de mais para trabalhar e o Feodor n�o fala
franc�s que chegue para arranjar um emprego, al�m de que tamb�m
� velho. - "E quando eles morrerem?" Nem se atrevia a pensar. Ela
era t�o franca, inocente e jovem e contudo tinha visto tanta
coisa.
- Fiquei com a impress�o de que o seu pai devia ter sido
muito bom, Zoya.
- E era.
- Torna-se dif�cil imaginar perder tudo isso. E mais dif�cil
ainda o pensamento de nunca mais voltar.
- A av� acha que as coisas podem mudar depois da guerra. O
tio Nicolau disse isso mesmo, antes de nos virmos embora. - "O tio
Nicolau... o czar Nicolau..." A surpresa n�o desaparecera,
enquanto continuava a ouvi-la. - Pelo nienos, de momento, posso
dan�ar. Dantes, desejava fugir para o Marinski, quando era uma
mi�da... - Riu ante a recorda��o. - N�o � t�o mau assim. Prefiro
dan�ar a ensinar ingl�s, a coser ou a fazer chap�us. - Clayton
sorriu � medida que ela enumerava as alternativas.
- Tenho de confessar que n�o consigo imagin�-la a fazer
chap�us.
- Preferia morrer de fome. Mas n�o ser� esse o caso. A
companhia dos Ballets Russes tem sido muito boa para mim. -
Contou-lhe a primeira audi��o e ele ficou intimamente maravilhado
perante a sua coragem e ingenuidade. O pr�prio facto de jantar com
ele era um acto de coragem. E ele n�o tinha inten��o de se
aproveitar. Gostava da jovem, embora ela pouco mais fosse do que
uma crian�a. Via-a, por�m, de uma forma diferente da da outra
noite. N�o se tratava apenas de um rosto bonito ou de um elemento
do corpo de bailado. Era uma jovem de uma fam�lia ainda mais
ilustre do que a sua e, embora nada lhe tivesse restado, mantinha
a ra�a e a dignidade, algo que ele n�o queria violar. - Gostava
que pudesse conhecer a av� - rematou, como se lhe lesse o
pensamento.
- Talvez um dia.
- Ficar� chocada por n�o termos sido devidamente
apresentados. Ignoro se conseguirei explicar-lhe.
- Podemos dizer que sou um amigo de Diaghilev - sugeriu, e
Zoya soltou uma gargalhada.
- Seria ainda pior. A av� odeia o meio! Preferia que me
casasse com o pr�ncipe Markovski, que agora conduz o t�xi, do que
fizesse parte do ballet. - Contudo, ao observ�-la, percebeu
porqu�. Era assustador imagin�-la solta no mundo, desprotegida,
desconhecida, uma presa f�cil para todos, at� mesmo para ele.
Pagou a ceia e parecia triste quando a levou a casa.
- Gostava de voltar a v�-la, Zoya. - Dava a sensa��o de que
estava a dizer-lhe uma coisa banal, mas sentiu um repentino
desconforto ante a clandestinidade das sa�das. Ela era t�o jovem
e n�o queria de forma alguma mago�-la. - E se um dia aparecer para
tomar ch� com a sua av�?
Zoya ficou horrorizada com a ideia.
- O que lhe direi?
- Pensarei em alguma coisa. Que tal no domingo � tarde?
- Costumamos ir passear pelo Bosque de Bolonha.
- Talvez pud�ssemos ir de carro. Digamos �s quatro?
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a, interrogando-se sobre o que
diria � av�, mas a sugest�o dele era mais simples do que todos os
esquemas que pudesse engendrar.
- Pode dizer-lhe muito simplesmente que sou ajudante-de-campo
do general Pershing e nos conhecemos na recep��o da noite
anterior. Por regra, � mais facil contar a verdade do que mentir.
- Pareceu-lhe de novo Konstantin, como acontecera por v�rias vezes
nessa noite e sorriu-lhe com uma express�o feliz.
- O meu pai diria algo do g�nero. - E, quando pararam em
frente da morada dela, Zoya fitou-o, achando que ele estava muito
elegante e digno na sua farda. Era um homem muito bem-parecido. -
Passei uma noite encantadora.
- Tamb�m eu, Zoya... tamb�m eu. - Tocou-lhe ao de leve nos
cabelos ruivos e desejou atra�-la de encontro ao corpo, mas n�o
se atreveu.
Acompanhou-a at� � porta e ficou a v�-la desaparecer em
seguran�a no interior. A jovem acenou uma �ltima vez e subiu
velozmente as escadas at� ao apartamento.
CAP�TULO 16
A apresenta��o de Clayton � av� correu muito mais facilrnente
do que qualquer deles ousara esperar. Zoya explicou,
despreocupada, que o conhecera na recep��o oferecida aos Ballets
Russes pelo general Pershing e o convidara para tomar ch�.
De in�cio, Eugenia mostrou-se hesitante, pois uma coisa era
receber o pr�ncipe Vladin�r, que se encontrava numa situa��o
id�ntica, e outra algu�m que mal conheciam.
Zoya comprou meia d�zia de bolos, uma qualidade de p�o muito
procurada e a av� preparou uma chaleira de ch� fumegante. Nada
mais tinham que lhe oferecer, nem servi�o de prata, guardanapos
ou toalha bordados, ou bule, mas Eugenia estava muito mais
preocupada com o motivo que o levava a visit�-las do que com os
atavios do que podiam proporcionar-lhe.
Todavia, quando Feodor lhe abriu a porta pontualmente �s
quatro da tarde, Clayton Andrews dissipou-lhe quase todos os
receios. Trouxe flores para as duas e uma bela tarte de ma�� e
mostrou-se um cavalheiro da cabe�a aos p�s ao cumprimentar Zoya
de uma fonna bastante formal e a av� com um entusiasmo respeitoso.
Nesse dia, mal pareceu notar a presen�a de Zoya, enquanto
falava das suas viagens, do pouco conhecimento da Hist�ria da
R�ssia e da sua juventude passada em Nova Iorque. Eugenia viu-se
a recordar frequentemente Konstantin, todo o seu calor, encanto
e perspic�cia. E quando, por fim, mandou Zoya para fora da sala
a fim de preparar mais ch�, deteve-se a observ�-lo, sabendo
perfeitamente porque � que ele viera visit�-la. Era demasiado
velho para namoriscar a jovem, mas, de facto, n�o conseguia
antipatizar com ele. Era um homem delicado e interessante.
- O que quer dela? - perguntou a velha senhora
inesperadamente num tom suave enquanto Zoya ainda estava ausente
da sala, e ele fitou-a com bondade e franqueza.
- N�o sei bem. Nunca tinha falado com uma rapariga da idade
dela, mas acho-a fant�stica em muitos aspectos. Talvez possa ser
um amigo... de ambas?
- N�o brinque com ela, capit�o Andrews. A minha neta tem toda
uma vida pela frente e que pode ser mudada pelo que fizer agora.
Ela parece gostar muito de si. Talvez seja suficiente. - Eugenia
sabia melhor do que ele que a intimidade entre ambos faria com que
a vida de Zoya n�o voltasse a ser a mesma. - Ela � ainda muito,
muito jovem. - O capit�o esbo�ou um aceno de cabe�a, pensando na
sabedoria daquelas palavras. Na semana anterior, pensara mais do
que uma vez em como era idiota andar atr�s de uma rapariga t�o
jovem. E quando deixasse Paris? N�o seria digno aproveitar-se
dela e depois seguir o seu caminho. - Num outro mundo, numa outra vida, isto nunca pareceria poss�vel.
- Tenho perfeita consci�ncia de que assim �, condessa. Mas
por outro lado... os tempos mudaram, n�o � verdade?
- De facto, mudaram.
Zoya voltou a entrar na sala e serviu uma ch�vena de ch� a
cada um. Mostrou em seguida a Clayton as suas fotografias do Ver�o
anterior em Livadia, com Joy a brincar-lhe aos p�s, o filho do
czar sentado ao lado dela no iate e outras mais com Olga, Marie,
Tatiana, Anastasia, a tia Alix e o pr�prio czar.
Era quase uma li��o de hist�ria moderna e Zoya ergueu os
olhos mais do que uma vez na sua direc��o com um sorriso feliz,
recordando e explicando, e ele soube, nesse momento, a resposta
�s perguntas de Eugenia. Sentia mais do que amizade por aquela
jovem. Embora ela fosse quase uma crian-�a, tinha algo de
espantoso na alma, irradiava algo que lhe tocava no mais �ntimo
de si, algo que nunca sentira por ningu�m.
No entanto, como poderia oferecer-lhe o que quer que fosse?
Tinha quarenta e cinco anos, era divorciado e viera combater em
Fran�a. Nada podia oferecer-lhe nesse momento, se � que alguma vez
poderia. Zoya merecia um homem mais novo, algu�m que crescesse e
risse com ela, algu�m com quem partilhasse as recorda��es.
Todavia, desejava abra��-la e prometer-lhe que nada voltaria a
mago�-la.
Levou-as a passear de carro quando a jovem p�s as fotografias
de lado e, ao pararem no parque, deteve-se a v�-Ia brincar com
Sava na relva. A cadelinha saltava e ladrava, e Zoya corria de um
lado para o outro, rindo � gargalhada, quase chocando com ela.
Sem pensar, envolveu-a e abra�ou-a e ela ergueu o rosto para ele
com um riso semelhante ao que vira nas fotografias. Eugenia ficou
a observ�-los e temeu pelo futuro.
Ao lev�-las de regresso a casa, Eugenia agradeceu-lhe e
fitou-o com uma express�o tranquila, enquanto Zoya se afastava
para entregar Sava a Feodor.
- Pense bem, capit�o. O que para si pode n�o passar de um
interl�dio, � suscept�vel de mudar a vida da minha neta. Pense
bem, suplico-lhe... e sobretudo... seja bom.
- O que lhe disse, av�? - quis saber Zoya depois de Clayton
se ter ido embora.
- Agradeci-lhe a tarte de ma�� e convidei-o a que nos
visitasse outra vez - respondeu Eugenia, levando as ch�venas.
- Nada mais? Ele parecia t�o s�rio, como se lhe tivesse dito
algo de importante. E nem mesmo sorriu, ao despedir-se.
- Talvez estivesse a reflectir em tudo isto, mi�da -
retorquiu e logo acrescentou: - Ele �, de facto, velho de mais
para ti.
- Isso pouco me interessa. � um homem t�o bom.
- � mesmo. - Eugenia esbo�ou um aceno de concord�ncia,
esperando, no �ntimo, que ele fosse suficientemente bom para n�o
repetir a visita. Zoya corria um risco excessivo ao lado dele e
o que aconteceria se se apaixonasse? Podia revelar-se desastroso.
CAPITULO 17
As preces de Eugenia para que Clayton Andrews n�o voltasse
estavam votadas ao fracasso. Depois de tentar manter-se afastado
durante uma semana, viu-se a pensar constantemente nela, obcecado
pelos seus olhos... o cabelo... a forma como ria... a forma como
a vira brincar com Sava... as pr�prias fotografias que lhe
mostrara da fan�lia do czar pareciam persegui-lo. Zoya tomara-as
reais e, em vez de uma tr�gica figura hist�rica, o czar
transformara-se num homem com uma mulher, uma fam�lia, tr�s c�es,
e o pr�prio Clayton viu-se a Iamentar a imensidade das perdas que
ele sofrera enquanto se mantinha sob pris�o domicili�ria em
Tsarskoie Selo.
Ao mesmo tempo que ele pensava na jovem toda a semana, tamb�m
esta n�o desviou o pensamento de Clayton por um �nico momento.
Desta vez, apresentou-se novamente na casa de Zoya e n�o no
ballet e, com a permiss�o da av�, levou-a a ver A V��va Alegre.
Na volta, a jovem contou tudo numa grande excita��o, mal
parando para tomar f�lego. Clayton riu e serviu champanhe.
Trouxera-lhes uma garrafa de Cristal que serviu em ta�as de
cristal. Sem pretender ofend�-las, desejava constantemente
facilitar-lhes a situa��o e trazia-lhes os pequenos confortos que
sabia faltarem-lhes: cobertores que insistia terem-lhe sido
"dados", um conjunto de copos, uma toalha de mesa bordada e mesmo
uma caminha para Sava.
Eugenia apercebeu-se de que Clayton estava enamorado, tal
como Zoya. Davam longos passeios no parque, almo�avam em pequenos
caf�s enquanto Clayton lhe explicava os uniformes que desfilavam
junto deles, os zuavos, os ingleses e os americanos de caqui, os
poilus (1) de casacos azuis e mesmo os Chasseurs d'Afrique.
Abordavam todos os temas, desde o ballet a beb�s. Zoya insistia
em que um dia queria ter seis filhos e ele ria ante a ideia.
(1) Designa��o atribu�da aos soldados franceses na Primeira Guerra Mundial. (N. da T.)
- Porqu� seis?
- N�o sei - respondeu com um encolher de ombros e um sorriso
feliz. - Prefiro n�meros pares.
Partilhou com ele a �ltima carta de Marie. Contava que
Tatiana adoecera novamente, embora desta vez sem gravidade e
falava da fidelidade e bondade com que Nagorny tratava Alexis, sem
nunca sair do seu lado. "... E o pap� � t�o bom para todos n�s.
Faz com que todos se sintam fortes, felizes e alegres..." Era
dif�cil de imaginar e Clayton sentia um peso no cora��o ao escutar
as palavras. Mas, quando se encontravam, falavam de muito mais
coisas al�m da fam�lia do czar, falavam de todas as suas paix�es,
interesses e sonhos.
Foi um Ver�o m�gico e encantador para Zoya. Sempre que ela
n�o estava a dan�ar, Clayton aparecia, levava-a a sair, trazia a
ambas pequenos presentes e preciosos tesouros. E depois, em
Setembro, todos os inocentes prazeres tiveram um final abrupto.
O general Pershing anunciou aos ajudantes-de-campo que ia mudar
o quartel-general para Chaumont, no Marne, e, dali a uns dias,
Clayton teria de abandonar Paris. Nessa mesma altura, Diaghilev
fazia planos para levar os Ballets Russes a Portugal e Espanha e
Zoya viu-se confrontada com uma dif�cil decis�o. N�o podia deixar
a av� sozinha e tinha de abandonar o corpo de bailado, o que quase
a matou.
- Podes dan�ar com um dos outros ballets, aqui. N�o � o fim
do mundo - encorajou Clayton, sem conseguir convenc�-la. Nenhuma
outra companhia era os Ballets Russes e partia-lhe o cora��o ver-
se obrigada a deix�-los. As piores not�cias chegaram, contudo,
duas semanas depois do anivers�rio de Alexis. Zoya recebeu uma
carta de Marie, enviada como sempre pelo Dr. Botkin. A 14 de
Agosto, toda a fam�lia Ronianov fora transferida da pris�o
domicili�ria no Pal�cio Alexandre em Tsarskoie Selo para Tobolsk,
na Sib�ria.
A carta fora escrita no dia anterior � partida, e Zoya n�o
fazia ideia de onde estavam. Apenas sabia que tinham partido. O
pensamento era quase insuport�vel. Sempre imaginara que a qualquer
momento iriam para Livadia, onde estariam a salvo. Contudo, agora
tudo mudara e uma garra de pavor apertou-lhe o cora��o ao ler a
carta. Mostrou-a a Clayton antes de ele se ir embora e o capit�o
tentou inutilmente acalm�-la.
- Voltar�s a ter not�cias dela em breve. Tenho a certeza,
Zoya. N�o deves estar assim t�o assustada.
"Mas como n�o estar?", interrogava-se. Ainda h� poucos meses
perdera tudo, assistira com demasiada clareza aos terrores da
revolu��o, e os amigos e parentes encontravam-se, realmente, em
perigo. Assustava-o pensar nisso agora, mas ningu�m podia fazer
nada para os ajudar. H� muito que o Governo americano reconhecera
o Governo Provis�rio e todos receavam oferecer guarida ao czar e
� fam�lia. N�o havia hip�tese de o salvar dos revolucion�rios.
Apenas se podia rezar e acreditar que um dia ficariam livres. Era
a �nica esperan�a que podia oferecer a Zoya. E, pior ainda, ele
pr�prio era obrigado a partir.
- N�o � muito longe. Virei a Paris, sempre que puder,
prometo.
Zoya fitou-o com uma express�o tr�gica... A amiga... os
Ballets Russes... e agora ele tinha de deix�-la. H� quase tr�s
meses que a cortejava e ela proporcionava-lhe um constante prazer
e uma inocente divers�o. Eugenia achava, aliviada e justamente,
que ele n�o fizera nenhuma idiotice. Apenas gostava da companhia
dela e via-a sempre que podia para passearem, irem ao teatro,
jantar no Maxim's ou em qualquer bar. E ela parecia desabrochar
com todo aquele interesse afectuoso e protec��o. Assemelhava-se
a ter de novo uma fam�lia e agora tamb�m ia perd�-lo e tinha de
encontrar um emprego com um corpo de bailado menos importante.
Por mais que a ideia lhe desagradasse, Eugenia sabia que dependiam
do sal�rio de Zoya.
A 10 de Setembro, tinha encontrado outro emprego, mas com uma
companhia de ballet que detestava, pois n�o tinham precis�o, nem
estilo, nem a r�gida disciplina dos Ballets Russes a que Zoya
estava habituada, al�m de que lhe pagavam muito menos.
No entanto, pelo menos, ela, Feodor e a av� continuavam a ter
de comer. As not�cias da guerra n�o eram boas, os raids a�reos
continuavam e, por fim, recebeu uma carta de Marie. Estavam a
viver na casa do governador, em Tobolsk, e Gibbes, o tutor,
continuava a dar-lhes li��es.
"... O pap� l�-nos hist�rias quase todos os dias e coastruiu-
nos um estrado na estufa para apanharmos um pouco de sol, mas em
breve far� frio de mais. Dizem que os Invernos aqui parecem
intermin�veis..." Olga fizera vinte e dois anos, e Pierre Gilliard
tamb�m estava com eles. "... Ele e o pap� cortam lenha quase todos
os dias, mas, pelo menos, enquanto est�o ocupados, podemos escapar
a algumas das li��es. A mam� parece muito cansada, mas o Baby
preocupa-a tanto. Sentia-se muito doente depois da viagem, mas
informo-te com satisfa��o que est� muito melhor.
Dormimos as quatro num quarto e a casa � muito pequena, mas
ao mesmo tempo confort�vel. Talvez um pouco como o teu apartamento
com a tia Eugenia. D�-lhe saudades n�nhas, querida, minha querida,
e escreve-me quando puderes. O facto de dan�ares parece
fascinante. A mam� ficou chocada quando lhe contei e depois riu
e disse que era mesmo teu ires at� Paris para fugires e dan�ares!
Todos te mandamos saudades e eu em especial..."
E, desta vez, assinou a carta como h� muito n�o o fazia:
"OTN&A". Era um c�digo que tinham inventado em crian�as para as
cartas enviadas por todas e significando Olga, Tatiana, Marie,
Anastasia. O cora��o de Zoya sentia a falta de todas elas.
Agora que Clayton se fora embora, estava ainda mais sozinha.
S� lhe restava o trabalho e regressar at� junto da av� depois de
cada espect�culo. Compreendia at� que ponto Clayton a estragara
com mimos. Quando ele estava por perto, havia sempre sa�das,
presentes, surpresas e planos. E agora, subitamente, n�o havia
nada. Escrevia-lhe ainda mais frequentemente do que escrevia a
Marie para Tobolsk, mas as respostas dele eram breves e
apressadas. Tinha muito que fazer em Chaumont, ao servi�o do
general Pershing.
Outubro foi ainda pior. Feodor apanhou a gripe espanhola e
a av� tratou-o durante semanas a fio; por fim, incapaz de comer
ou beber, ou mesmo de ver, sucumbiu � doen�a, e as duas mulheres
choraram em sil�ncio � sua cabeceira. Tinha-lhes sido leal e
bondoso, mas, tal como um animal levado para muito longe de casa,
n�o conseguira sobreviver num mundo diferente. Sorriu-lhes com
ternura antes de morrer e sussurrou:
- ... Agora, posso regressar � R�ssia...
Enterraram-no num pequeno cemit�rio nos arredores de Neuilly.
Vladimir levou-as at� l� no carro, e Zoya chorou durante todo o
caminho de volta a casa, sentindo-se como se tivesse perdido o
�nico amigo que lhe restava. Tudo lhe parecia subitamente sombrio,
at� o pr�prio tempo. Sem Feodor, nunca havia lenha suficiente e
nem Eugenia nem Zoya conseguiram arranjar coragem para utilizar
o quarto dele.
Era como se a dor das perdas se revelasse intermin�vel. H�
quase dois meses que Clayton n�o vinha a Paris e, um dia, quando
Zoya regressou tarde a casa do trabalho, teve um choque horr�vel
ao abrir a porta e deparar com um homem na sala em mangas de
camisa. E a jovem sentiu um baque no cora��o, pois ele pareceu-lhe
um m�dico.
- Aconteceu alguma coisa?
Ele olhou-a, tamb�m surpreendido, fitando-a e
momentaneamente silenciado pela sua inesperada beleza.
- Desculpe, mademoiselle... eu... a sua av�...
- Ela est� bem?
- Sim, claro. Penso que se encontra no quarto.
- E quem � o senhor? - Zoya n�o entendia o que ele estava a
fazer ali em mangas de camisa e quase desfaleceu ao ouvir a
resposta.
- N�o lhe contou?... Vivo aqui. Mudei-me esta manh�. - Era
um homem magro, p�lido e ainda novo, na casa dos trinta, de cabelo
ralo e uma perna aleijada. Coxeava nitidamente quando voltou ao
quarto de Feodor e fechou a porta, ao mesmo tempo que Zoya se
precipitava, furiosa, para o da av�.
- O que foi fazer? N�o acredito! - Zoya fitava-a, irritada,
sentada na �nica cadeira do quarto; depois, notou que Eugenia
mudara umas coisas para o quarto de ambas para que ficassem mais
confort�veis. - Quem � aquele homem? - Expressou-se sem pre�mbulos
e incapaz de acreditar no que a av� fizera.
- Aceitei um h�spede - respondeu Eugenia, erguendo
tranquilamente os olhos do tric�. - N�o t�nhamos alternativa. O
ourives n�o me ofereceu absolutamente nada pelas p�rolas e havia
muito pouco que vender. Precis�vamos de faz�-1o mais cedo ou mais
tarde. - No rosto pairava-lhe uma calma resigna��o.
- N�o podia, pelo menos, ter perguntado, ou mesmo avisado?
N�o sou uma crian�a e tamb�m vivo aqui. Aquele homem � um
estranho! E se nos mata durante o sono, ou nos rouba as �ltimas
j�ias? E se se embebeda... ou traz para c� mulheres horr�veis?
- Nesse caso, pedimos-lhe calmamente que saia, mas n�o te
preocupes, Zoya. Parece-me um homem muito s�rio e timido. Foi
ferido em Verdun, no ano passado, e � professor.
- N�o me interessa o que ele �. Este apartamento � pequeno
de mais para termos aceite um estranho e ganhamos dinheiro
suficiente com o ballet. Porqu� isto? - Sentia-se como se tivesse
perdido a casa a favor do desconhecido e s� lhe apetecia sentar-se
e chorar ante tamanha indignidade. Aos seus olhos, significava o
derradeiro golpe. Contudo, para Eugenia, parecera a �nica sa�da.
E n�o contara a Zoya, porque suspeitara qual seria a sua reac��o.
E a raiva da neta s� vinha confirm�-la. - N�o consigo acreditar
que tenha feito uma coisa destas!
- N�o tinhamos escolha, mi�da. Talvez, mais tarde, possamos
fazer algo diferente. Mas n�o agora.
- Nem sequer poderei preparar uma ch�vena de ch�, vestida com
a camisa de noite - lamentou, com os olhos cheios de raiva e de
tristeza.
- Pensa nas tuas primas e como deve ser a vida em Tobolsk.
N�o consegues ter a mesma coragem? - As palavras fizeram com que
Zoya se sentisse de imediato culpada e afundou-se na cadeira que
a av� desocupara para ir at� � janela.
- Desculpe, av�... S� que... fiquei t�o chocada... - Depois
sorriu quase maliciosamente. - Acho que lhe preguei um susto de
morte. - Correu para o quarto e trancou a porta depois de lhe
gritar.
- � um indiv�duo novo e simp�tico. Deves pedir-lhe desculpa
de manh�.
Contudo, Zoya n�o lhe respondeu, pensando no extremo a que
tinham chegado. Tudo parecia piorar de momento a momento. At�
Clayton dava a sensa��o de a haver abandonado. Tinha prometido vir
a Paris assim que pudesse, mas tudo indicava que de momento tal
esperan�a n�o existia.
Escreveu-lhe no dia seguinte, mas sentia uma tal vergonha que
n�o conseguiu mencionar o h�spede. Ele chamava-se Antoine Vallet
e pareceu aterrorizado ao v�-la de manh�. Desdobrou-se em
desculpas, trope�ou num candeeiro, quase partiu uma jarra e
abalroou-a ao fazer todos os esfor�os para lhe sair do caminho na
cozinha. Zoya reparou que tinha uns olhos tristes e quase sentiu
pena dele, mas ficou-se pelo "quase". Na realidade, ele invadira
o �ltimo basti�o que lhes restava e n�o estava ansiosa por
partilh�-lo.
- Bom dia, mademoiselle. Quer caf�? - ofereceu e, embora
pairasse um aroma agrad�vel na cozinha, a jovem abanou a cabe�a.
- Muito obrigada. Bebo ch� - murmurou entre dentes.
- Lamento. - Fitou-a com um misto de terror e idmira��o e
abandonou a cozinha o mais rapidamente que p�de. Pouco depois saiu
para dar aulas.
Por�m, nessa tarde, quando ela voltou do ensaio, l� estava
ele, sentado na sala, � secret�ria, a corrigir exerc�cios. Zova
entrou no quarto, bateu com a porta, p�s-se a passear nervosamente
de um lado para o outro e fitou a av�.
- Presumo que isto significa que n�o posso usar novamente a
secret�ria - retorquiu. Queria escrever uma carta ao Clayton.
- Tenho a certeza de que ele n�o vai l� estar a noite teira,
Zoya.
Todavia, at� mesmo a av� parecia confinada ao quarto. N�o
tinha s�tio onde estar sozinha, nenhuma forma de reunir ideias.
A situa��o pareceu-lhe subitamente insuport�vel e lamentou n�o
ter ido para Portugal com os Ballets Russes por�m, ao dar meia
volta, deparou com os olhos cheios � l�grimas de Eugenia,
sentiu uma alfinetada no cora��o e ajoelhou-se aos p�s dela,
abra�ando-a.
- Lamento tanto... N�o sei o que me deu. Estou apenas cansada
e nervosa.
No entanto, Eugenia sabia perfeitamente o que a preocupava.
Era Clayton. Tal como o previsto, fora combater e Zova tinha de
regressar a uma vida sem ele. Era bom que nada mais tivesse
acontecido e ele fosse um homem respeit�vel, caso contr�rio, seria
muito mais dificil para a neta. N�o perguntou � neta se tivera
not�cias dele. Quase esperava que ele n�o lhe escrevesse.
Zova dirigiu-se � cozinha, preparou o jantar para a av� e
para ela e, ao ver que o jovem professor mantinha a cabe�a
levantada na direc��o dos agrad�veis aromas, cedeu e convidou-o
para jantar.
- O que ensina? - perguntou delicadamente, sem, de facto, se
preocupar. Reparou que as m�os lhe tremiam muito, parecia estar
sempre assustado e nervoso e achou que os ferimentos de guerra
haviam ido mais longe do que deix�-lo coxo. Parecia incuravelmente
abalado.
- Ensino Hist�ria, mademoiselle. E suponho que dan�a no
ballet.
- Sim - anuiu num fio de voz. N�o se sentia orgulhosa do
corpo de bailado em que dan�ava presentemente, como se sentira
quando estava nos Ballets Russes, embora por pouco tempo.
- Sou um grande apreciador de ballet. Talvez pudesse v�-la
dan�ar um dia destes. - Sabia que ele esperava ouvi-la responder
que gostaria, mas foi incapaz de pronunciar as palavras. N�o era
verdade. - Gosto muito do quarto - anunciou, sem se dirigir a
ningu�m em particular e Eugenia esbo�ou um sorriso am�vel.
- Estamos muito satisfeitas com a sua companhia.
- O jantar est� muito bom.
- Obrigada - agradeceu Zoya, sem erguer os olhos. Ele
continuou a falar, cingido a uma s�rie de chav�es irrelevantes e
a jovem detestou-o mais do que nunca. Andava a coxear pela cozinha
tentando ajud�-la a arrumar e depois acendeu a lareira da sala,
o que a aborreceu, pois desperdi�ava a pouca lenha que tinham,
mas, j� que a acendera, aproximou-se para aquecer as m�os. O
pequeno apartamento estava gelado.
- Fui uma vez a Sampetersburgo. - Dirigia-se-lhe num tom
baixo, da secret�ria, mal se atrevendo a olhar aquela rapariga t�o
bonita e impetuosa. - � muito bonito.
Zoya esbo�ou um aceno, virou-lhe as costas e fixou as chamas
com l�grimas nos olhos, enquanto ele observava aquelas saudades
silenciosas. Casara antes da guerra, mas a mulher tinha-o trocado
pelo melhor amigo e o �nico filho de ambos morrera de pneumonia.
Tamb�m tinha os seus desgostos, mas Zoya n�o pediu para os ouvir.
Encarava-o como um homem que passara por uma situa��o de grande
perigo e mal lhe sobrevivera. Al�m disso, longe de lhe refor�ar
o esp�rito, destru�ra-o. Virou-se devagar e fitou-o, interrogando-
se sobre o que levara a av� a aceit�-lo. Era-lhe insuport�vel
pensar que haviam chegado ao desespero, mas tinha essa
consci�ncia, caso contr�rio, Eugenia nunca tomaria esta atitude.
- Est� tanto frio aqui. - Era apenas uma afirma��o, mas ele
levantou-se rapidamente e deitou mais uma acha no fogo.
- Arranjarei mais lenha amanh�, mademoiselle. Vai ajudar.
Quer mais uma ch�vena de ch�? Posso preparar-lha.
- N�o, obrigada. - Interrogou-se sobre que idade teria. Dava
a sensa��o de andar na casa dos trinta e tal. Tinha, de facto,
trinta e um, mas a sua vida n�o fora nada f�cil.
E acrescentou, depois, num tom t�mido:
- Ocupei o seu quarto? - Tal explicaria o �bvio desagrado que
ela sentia com a sua presen�a, mas Zoya limitou-se a abanar a
cabe�a e, depois, suspirou.
- Um dos nossos criados veio connosco da R�ssia. Morreu em
Outubro. - Ele esbo�ou um aceno de concord�ncia.
- Lamento. Foram tempos dif�ceis para todos n�s. H� quanto
tempo est� em Paris?
- Desde Abril. Partimos logo ap�s a revolu��o.
- Tenho conhecido v�rios russos aqui - replicou, depois de
esbo�ar um novo aceno de cabe�a. - S�o pessoas boas e
corajosas. - Gostaria de ter acrescentado "como voc�", mas n�o
se atreveu. Ela tinha uns olhos t�o brilhantes e fogosos e,
quando sacudia a cabe�a, o cabelo revoluteava como se fosse um
fogo sagrado. - H� algo que gostaria que fizesse, j� que estou
aqui? Gostava muito de dar qualquer ajuda. Posso encarregar-me
de recados para a sua av�. Tamb�m gosto de cozinhar. Talvez
pud�ssemos fazer o jantar po turnos.
A jovem esbo�ou um aceno de cabe�a. Talvez ele n�o fosse
assim t�o m� pessoa. Mas estava ali. E ela n�o o queria. Em
seguida, o homem reuniu os pap�is e voltou para o quarto,
fechando a porta atr�s de si.
Zoya ficou sozinha, de olhos fixos nas chamas e pensando
em Clayton.
CAPITULO 18
� medida que o Inverno passava, as pessoas pareciam mais
esfomeadas e mais pobres. O tempo piorou e, com a chegada de um
n�mero cada vez maior de emigrados a Paris, os ourives baixaram
os pre�os.
Eugenia vendeu o �ltimo par de brincos a 1 de Dezembro e
ficou horrorizada com o pouco que recebeu em troca. Agora,
viviam somente do sal�rio de Zoya, que mal chegava para comerem
e pagarem o apartamento. O pr�ncipe Markovski tamb�m tinha os
seus problemas para resolver. O carro avariava-se
constantemente e parecia mais magro e com mais fome de cada vez
que o viam. Continuava a falar corajosamente de melhores tempos
e fazia refer�ncia a todos os rec�m-chegados.
Face a tamanha pobreza, ao frio cruel e � falta de comida,
Eugenia sentia-se ainda mais grata com a presen�a do h�spede. O
seu magro sal�rio mal lhe chegava para pagar o custo do quarto,
mas mesmo assim conseguia trazer uns extras para casa, metade
de um p�o, lenha para o fogo ou mesmo uns livros para Eugenia.
Conseguiu at� arranjar-lhe alguns em russo, pois os emigrados
pobres deviam ter vendido os livros por uma fatia de p�o.
Contudo, parecia nunca esquecer Zoya e Eugenia, e trazia quase
sempre uma pequena oferta � jovem.
Uma vez, ouvira-a dizer
quanto gostava de chocolate e, por um qualquer milagre,
conseguira arranjar uma pequena barra de chocolate.
Com o correr das semanas, ela mostrou-se mais acess�vel,
grata pelos presentes, mas mais grata ainda pela bondade com
que ele tratava a condessa. Esta come�ara a sofrer de
reumatismo nos joelhos, e subir e descer as escadas tornara-se-
lhe doloroso.
Um dia, Zoya chegou a casa de um ensaio � tarde e
verificou que ele transportava a av� pelas escadas, o que, dada
a sua perna deficiente, constitu�a uma penosa tarefa, mas nunca
se queixou. Mostrava-se sempre desejoso de fazer mais, e Eugenia tornara-se-lhe muito chegada.Tamb�m percebia a enorme
atrac��o que ele tinha por Zoya. Mencionara o assunto mais do
que uma vez � neta, mas ela insistia em que nunca reparara.
- � incr�vel como n�o te d�s conta do quanto ele gosta de
ti, mi�da. - Contudo, Zoya estava mais preocupada com a tosse
horr�vel que abalava o corpo da av� ao pronunciar as palavras.
H� semanas que apanhara uma constipa��o, e Zoya receava a gripe
espanhola que matara Feodor ou a temida tuberculose que parecia
devorar Paris. At� a sua propria sa�de n�o era a mesma de
outrora. Com uma alimenta��o t�o prec�ria e tanto trabalho,
emagrecera imenso e a face juvenil parecia, de s�bito, muito
mais velha.
- Como est� hoje a sua av�? - perguntou Antoine calmamente
uma noite, quando estavam a preparar o jantar na cozinha.
Agora, tratava-se de um ritual nocturno entre ambos. J� n�o
trabalhavam por turnos nas noites em que ela estava ausente,
mas em vez disso cozinhavam juntos e, quando Zoya tinha de ir
dan�ar, ele pr�prio cozinhava para Eugenia, arranjando muitas
vezes comida que comprava no regresso a casa com o parco
dinheiro que ganhava com as aulas. � seinelhan�a de todos os
demais em Paris nessa altura, tamb�m os seus escassos fundos
pareciam desaparecer. - Estava t�o p�lida esta tarde -
prosseguiu, fixando Zoya com um olhar preocupado, enquanto ela
cortava duas cenouras velhas para repartir entre os tr�s.
Estava farta de guisado, mas era o que comiam praticamente
todas as noites e era a maneira mais f�cil de dissimular a
qualidade inferior da carne e a falta quase total de legumes.
- Ando preocupada com aquela tosse, Antoine - respondeu
Zoya, fitando-c, do outro lado da cozinha. - Acho que piorou,
n�o foi? - Ele concordou com um triste aceno de cabe�a e
acrescentou dois pequenos quadrados de carne � panela onde Zoya
fervia as cenouras num caldo aguado. Nessa noite n�o havia p�o.
Era uma sorte que nenhum deles estivesse com muita fome. -
Amanh�, tenciono lev�-la ao m�dico. - Contudo, tratava-se de
uma despesa superior �s suas posses e nada restava para vender,
excepto a cigarreira do pai e tr�s caixinhas de prata que
haviam pertencido ao irm�o, mas Eugenia obrigara-a a prometer
que n�o as venderia.
- Conhe�o um m�dico na Rue Godot-de-Mauroy. Se quiser,
dou-lhe o nome. Leva barato. - Fazia abortos para as
prostitutas, mas era melhor do que a maioria dos do seu meio.
Antoine fora consult�-lo v�rias vezes por causa da perna e
achara-o h�bil e bondoso. Agora tinha dores terr�veis com
aquele frio e humidade do Inverno.
Zoya reparara que ele parecia coxear mais, mas aparentava
mais felicidade do que quando viera viver com elas. Devia
fazer-lhe bem regressar do trabalho a casa de pessoas decentes
e ter de se preocupar com a av� dela. Nunca lhe ocorreu que os
sentimentos que lhe dedicava o mantinham vivo e que, � noite,
deitado na cama, sonhava com ela no quarto ao lado, a dormir
enrascada em Eugenia.
- Que tal a escola hoje? - perguntou, enquanto esperava
que a �gua levantasse fervura. Fitava-o agora com um olhar mais
bondoso. Antoine atrevia-se mesmo a gracejar com ela de vez em
quando, e as trocas de palavras recordavam-lhe um pouco o
irm�o. N�o era um homem bonito mas era inteligente, culto e
possu�a um bom sentido de humor. Ajudava durante os raids
a�reos e as noites frias. Era o que as aguentava em lugar da
comida, do calor e dos pequenos prazeres da vida.
- Correu bem. Contudo, anseio pelas f�rias. Terei
oportunidade de p�r a leitura em dia. Quer ir ao teatro um dia?
Conhe�o algu�m que nos deixar� entrar na Op�ra Cornique, se
estiver disposta a tentar.
A frase transportou-a de volta a Clayton e aos dias mais
amenos de Ver�o. H� uns tempos que n�o recebia not�cias dele e
pressup�s que andasse ocupado com o general Pershing. Este
planeava toda a campanha francesa, e a jovem estava a par de
que era tudo muito secreto. S� Deus sabia quando o veria de
novo. Contudo, habituara-se � situa��o. Vira pela �ltima vez
tantas pessoas que amava. Era dificil imaginar algu�m sem a
sensa��o de perda. Obrigou-se a deixar de pensar em Clayton e a
regressar a Antoine e � sua oferta de irem ao teatro.
- Gostaria de ir ao museu um dia destes. - Ele era de
facto uma boa companhia e muito culto, embora n�o no sentido
das suas desaparecidas amizades russas. Mas era um homem muito
calmo � sua maneira, o que lhe agradava.
- Iremos sair, mal acabem as aulas. Que tal o guisado?
indagou, fazendo-a rir.
- Um horror, como sempre.
- Gostava que pud�ssemos ter alguns condimentos decentes.
- E eu que pud�ssemos arranjar alguns aut�nticos legunies e
fruta. Se vir mais alguma cenoura velha, acho que grito. Quando
penso no que costum�vamos comer em Sampetersburgo, sinto vontade
de chorar. Nessa altura, nem sequer pensava nisso. Na noite
passada, fui mesmo ao ponto de sonhar com comida. - Na noite
anterior, Antoine sonhara com a pr�pria mulher, mas n�o lho
confessou, limitando-se a esbo�ar um aceno de cabe�a e a ajud�-la
a p�r a mesa. - A prop�sito, que tal est� a sua perna? - Sabia que
Antoine n�o gostava de falar no assunto, mas embrulhara-lhe uma
botija quente mais do que uma vez e ele levara-a para a cama e
dissera que o ajudara.
- O frio n�o � nada bom. D�-se por satisfeita por ser jovem.
A sua av� e eu n�o temos essa sorte. - Sorriu-lhe e ficou a v�-la
deitar o magro guisado em tr�s tigelas feias e rachadas.
Zoya acabaria por chorar se pensasse na bonita lou�a de
porcelana em que jantavam todas as noites no Pal�cio Fontanka.
Havia tanta coisa que tinham tomado por garantido e nunca mais
veriam. Era horr�vel pensar nisso agora e Antoine bateu � porta
do quarto a fim de trazer Eugenia para jantar. Parecia, contudo,
preocupado, quando voltou s� e fitou Zoya sobre a pequena mesa de
cozinha.
- Ela diz que n�o tem fome - declarou. - Acha que devo ir
buscar o m�dico para que a veja esta noite? - Zoya hesitou um
longo momento, ponderando na decis�o a tomar. Uma visita nocturna
a casa seria ainda mais cara do que se as atendesse no
consult�rio.
- Vejamos como ela est� depois do jantar. Pode sentir-se
apenas cansada. Vou levar-lhe ch� daqui a pouco. Est� deitada?
Antoine abanou a cabe�a com uma express�o preocupada.
- Est� a dormitar na cadeira, com o tric� no colo. - H�
meses que Eugema andava �s voltas com um pequeno peda�o
rectangular de l�, garantindo que um dia seria uma camisola para
Zoya.
Sentaram-se os dois a jantar e, mediante um silencioso
acordo, n�o tocaram na terceira tigela, embora estivessem com
fome. Havia ainda uma hip�tese de que Eugenia resolvesse jantar.
- Que tal correu o ensaio? - Antoine mostrava-se sempre
interessado no que ela fazia e, embora n�o fosse um homem bonito,
havia uma express�o am�vel de rapazinho nos seus olhos. Tinha
cabelo louro e ralo que apartava cuidadosamente com uma risca ao
meio e m�os bonitas em que h� muito reparara. Haviam deixado de
tremer e, embora sentisse dores permanentes na perna, j� n�o
andava t�o nervoso.
- Tudo em ordem. Gostava que os Ballets Russes voltassem.
Sinto a falta de dan�ar com eles. Esta gente n�o sabe o que anda
a fazer. - Contudo, havia, pelo menos, dinheiro para comida. Um
emprego era demasiado precioso para se perder no Inverno de 1917,
em Paris.
- Hoje num caf�, encontrei umas pessoas que estavam a falar
do golpe de Estado na R�ssia no m�s passado. Foi uma discuss�o
infind�vel. sobre o Trotski, o Lenine e os bolcheviques com dois
pacifistas que se irritaram tanto que amea�aram socar os outros
dois. - Esbo�ou um sorriso malicioso. - Foi o pacifismo no seu
melhor. Na realidade, gostei da discuss�o. - Na altura, reinava
um sentimento de hostilidade contra os bolcheviques e Antoine
partilhava a perspectiva pacif�sta, como muitos outros.
- Interrogo-me sobre o efeito que ter� nos Romanov -
retorquiu Zoya quase num sussurro. - H� muito tempo que n�o recebo
uma carta da Sib�ria.
Preocupava-a, mas talvez o Dr. Botkin n�o tivesse conseguido
fazer chegar as suas cartas a Mashka. Havia que ter este facto em
considera��o e esperar pacientemente por uma resposta. Nestes dias
tudo parecia exigir paci�ncia. Todos aguardavam melhores tempos.
Somente esperava que sobrevivessem para ver. Falava-se mesmo na
possibilidade de Paris ser atacada, o que parecia dif�cil de
acreditar com todas aquelas tropas inglesas e americanas
espalhadas por toda a Fran�a. Contudo, depois daquilo a que
assistira na R�ssia h� uns meros nove meses, sabia que tudo era
poss�vel.
Levantou-se e levou a tigela com o resto do caldo para o
quarto da av�, mas regressou minutos depois e dirigiu-se em voz
baixa a Antoine, que estava na cozinha.
- Adormeceu. Talvez seja melhor deix�-la dormir. Tapei-a com
um cobertor para que n�o arrefe�a. - Era um dos cobertores que
Clayton lhe dera no Ver�o anterior. - N�o se esque�a de me dar o
nome desse m�dico, amanh�, antes de ir dar aulas.
Antoine esbo�ou um aceno de cabe�a e fitou-a com uma
express�o interrogativa:
- Quer que v� consigo? - No entanto, ela limitou-se a abanar
a cabe�a, pois mantinha o seu forte sentido de independ�ncia. N�o
chegara at� ali quase pelos seus pr�prios meios para agora
depender de algu�m, mesmo de algu�m t�o modesto como o h�spede.
Acabou de lavar a lou�a e sentou-se na sala de estar, o mais
proximo poss�vel do fogo, aquecendo as m�os, enquanto ele a
observava. As chamas desenhavam reflexos dourados no cabelo de
Zoya e os olhos verdes pareciam dan�ar. Incapaz de resistir ao
apelo, Antoine viu-se junto dela, em parte para se aquecer, em
parte para lhe sentir a presen�a.
- Tem um cabelo t�o bonito... - declarou sem pensar e depois
corou quando ela o fitou, surpreendida.
- Tamb�m voc� - tro�ou, pensando nas trocas de palavras
insultuosas com Nicolai, de que tanto gostavam. - Desculpe... N�o
pretendi ser indelicada... Estava a pensar no meu irm�o. -
Contemplou o fogo e Antoine prosseguiu a observa��o.
- Como era ele? - indagou num tom suave e julgou que o
cora��o iria quebrar-se, tal era a ansiedade de estender a m�o e
tocar-lhe.
- Era maravilhoso... atento, divertido, corajoso e audaz e
muito, muito atraente. Tinha cabelos pretos como o meu pai c olhos
verdes. - Depois, soltou uma s�bita risada, ao lembrar-se. -
Adorava bailarinas. - A maior parte da fam�lia imperial nutria
essa mesma simpatia. - Mas ficaria t�o zangado comigo, agora. -
Fitou Antoine com um sorriso triste. - Ficaria furioso por eu
dan�ar... - O pensamento vagueou uma vez mais, e Antoine n�o
conseguia desviar o olhar.
- Tenho a certeza de que compreenderia. Todos temos de fazer
o que devemos para sobreviver. N�o h� muitas op��es. Devem ter
estado muito pr�ximo do fim.
- Estivemos. - E logo em seguida: - A minha m�e enlouqueceu
quando o mataram. - Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas ao pensar
nele sangrando de morte no �trio e na av� a atar inutilmente os
saiotes � volta das feridas para tentar salv�-lo. Era um
pensamento quase insuport�vel e, nesse momento, Sava aproximou-se
sem fazer ru�do da cadeira dela e lambeu-lhe a m�o, trazendo-a ao
presente.
Permaneceram sentados durante muito tempo. Ele puxara a �nica
outra cadeira do quarto e sentaram-se junto ao fogo, imersos nos
seus pr�prios pensamentos, at� que Antoine ganhou um pouco de
coragem.
- O que deseja fazer com a sua vida? Alguma vez ponderou
isso?
- Dan�ar, suponho - retorquiu, surpreendida com a pergunta.
- E depois? - Antoine sentia-se curioso a respeito da jovem
e raramente tinha oportunidade de a apanhar a s�s sem Eugenia.
- Dantes, queria casar e ter filhos.
- E agora? Deixou de pensar nisso?
- Praticamente. A maior parte das bailarinas nunca casam.
Dan�am at� ca�rem, ou ensinam, o que quer que aconte�a primeiro. -
A maioria das bailarinas que conhecia nunca se casara e n�o estava
muito certa de se importar. N�o havia ningu�m com quem pudesse
imaginar-se casada. Clayton era s� um amigo, o pr�ncipe Markovski
era velho de mais, os homens do ballet estavam para l� das suas
esperan�as e era obviamente incapaz de se ver casada com Antoine.
E n�o havia mais ningu�m. Al�m disso, tinha de tomar conta de
Eugenia.
- Daria uma mulher fant�stica. - Pronunciou a frase com um
ar t�o solene que ela riu.
- O meu irm�o t�-lo-ia achado louco. Sou uma p�ssima
cozinheira e detesto coser. N�o sei pintar aguarelas, nem
tricotar. Nem estou muito certa de saber governar uma casa,
embora isso pouco interesse agora... - Sorriu ante a ideia,
enquanto ele a observava.
- O casamento � algo mais do que cozinhar e coser.
- Bom. Tamb�m n�o sei se sou boa nisso! - Corou e soltou uma
gargalhada e ele corou tamb�m. Chocava-se com facilidade e ela
chocara-o.
- Zoyai
- Desculpe. - Contudo, parecia mais divertida do que
constrangido, ao acariciar a pequena Sava. At� a cadela
emagrecera, pois s� era alimentada com os magros restos da mesa.
- Talvez um dia haja algu�m que a leve a desejar abandonar
a dan�a. - Antoine compreendera mal. N�o tinha assim uma paix�o
t�o grande pelo ballet, s� que a alternativa era nula. Precisava
de trabalhar para o seu sustento e de Eugenia, e a dan�a era a
�nica coisa que sabia fazer. Pelo menos, era alguma @ coisa.
- � melhor meter a av� na cama, ou amanh� os joelhos matam-
na. - Levantou-se, espregui�ou-se e Sava seguiu-a at� ao quarto.
Eugenia j� tinha acordado e estava a vestir a camisa de noite. -
Quer o caldo, av�? - Continuava � esPera dela na cozinha, mas ela
abanou a cabe�a com um sorriso cansado.
- N�o, querida. Estou cansada de mais para comer. Porque n�o
o guardas para amanh�? - Com a cidade de Paris � fome, teria sido
um crime desperdi��-lo. - O que estiveste a fazer na sala?
- A conversar com o Antoine.
- � um bom homem - declarou, fitando intencionalmente Zoya,
que pareceu n�o reparar.
- Deu-me o nome de um m�dico na Rue Godot-de-Mauroy. Quero
lev�-la l� amanh�, antes de ir para o ensaio.
- N�o preciso de um m�dico. - Estava a apanhar o cabelo e,
um momento depois, subiu com esfor�o para a cama. O quarto estava
frio e sentia dores horr�veis nos joelhos.
- Essa tosse n�o me agrada.
- Na minha idade, at� ter tosse � uma b�n��o. Pelo menos
ainda estou viva.
- N�o fale assim. - S� come�ara a dizer coisas daquelas
depois da morte de Feodor. O desaparecimento dele deprimira-a
muito, juntamente com o facto de saber que o dinheieiro estava
quase a chegar ao fim.
Zoya vestiu tamb�m a sua can�sa de noite, apagou a luz e
abra�ou com for�a a av� para a aquecer naquela noite de Dezembro.
CAP�TULO 19
O m�dico a quem Zoya levou a av� afirmou tratar-se apenas de
tosse e n�o de tuberculose. Valia a pena pagar o pre�o pelas boas
not�cias, mas Zoya tivera de dar-lhe praticamente o dinheiro que
lhe restava. At� mesmo os baixos honor�rios eram demasiados para
os seus bolsos vazios.
Contudo, nada disse a Eugenia quando o pr�ncipe Markovski as
levou de volta ao apartamento no carro. Este lan�ou alguns olhares
intencionais a Zoya, que ela ignorou, e deixou-o a falar com a av�
no apartamento quando foi ensaiar. E, ao regressar nessa noite,
achou que a av� parecia um pouco melhor. O m�dico dera-lhe um
xarope para a tosse que estava a surtir efeito.
Antoine, j� estava na cozinha a preparar o jantar. Nessa
noite trouxera frango, o que era uma invulgar regalia. Significava
que n�o s� teriam jantar, como canja para o dia seguinte. E ao p�r
a mesa para os tr�s, interrogou-se sobre se Mashka teria os mesmos
problemas. Talvez um frango lhe parecesse um luxo, agora. Se
estivessem juntas, ririam sobre o assunto. Mas agora n�o tinha com
quem se rir.
- Ol�, Antoine. - Sorriu e agradeceu-lhe pelo nome do m�dico.
- N�o devias ter gasto o dinheiro - censurou Eugenia de uma
cadeira perto do fogo. Vladimir trouxera-lhes lenha. Tomara-se
subitamente um dia de riquezas inesperadas.
- Deixe-se de parvo�ces, av�.
Os tr�s regalaram-se com o frango que ele serviu na pr�pria
canja e, depois, Zoya bebeu ch� com eles junto ao fogo. E quando
a av� se foi deitar, Antoine ficou a conversar com ela. Era algo
que nos �ltimos tempos faziam frequentes vezes, e pelo menos tinha
algu�m com quem trocar impress�es. Ele relembrava os Natais em
crian�a e os olhos brilhavam-lhe. Adorava estar pr�ximo dela.
- O nosso Natal � mais tarde do que o vosso. � a 6 de
Janeiro.
- O Dia de Reis.
- H� festejos maravilhosos por toda a R�ssia. Ou havia.
Suponho que aqui iremos � igreja russa. - De certa maneira ansiava
por isso e, por outro lado, sabia que seria deprimente. Todas
aquelas almas perdidas, de p� � luz das velas, lembrando um mundo
perdido. Ignorava se conseguiria aguentar, mas a av� insistiria
em que fossem. Esse ano, n�o haveria, obviamente, presentes. N�o
havia dinheiro com que os comprar.
Todavia, quando chegou o Natal, Antoine surpreendeu-a.
Trouxe-lhe um cachecol quente e um confort�vel par de luvas e um
frasco min�sculo do perfume que ela uma vez mencionara. Foi o
perfume que lhe tocou o cora��o e lhe fez subir l�grimas aos
olhos. Era Lilas, de que Mashka tanto gostava e lhe dera meses
atr�s. Tirou a tampa do fresquinho e o aroma suave trouxe-lhe de
volta o toque e o cheiro de tudo o que amava e da sua adorada
Mashka. As l�grimas rolavam-lhe lentamente pelas faces quando o
olhou e, sem pensar, num gracioso gesto de crian�a, p�s-lhe os
bra�os � volta do pesco�o e beijou-o. Foi um beijo fraterno, mas
todo o corpo dele tremeu ao senti-la perto de si.
Eugenia observava a cena, igualmente de l�grimas nos olhos.
Ele n�o era o par que teria desejado para Zoya, mas era um homem
decente e trabalhador e tomaria conta da neta. Antoine falara-lhe
no assunto no dia anterior e ela dera a sua b�n��o. Sentia-se mais
fraca de dia para dia e invadia-a o pavor de que, se morresse, n�o
haveria ningu�m para tomar conta de Zoya. Tinha de casar com ele
agora para que o seu esp�rito ficasse em paz.
Contudo, Zoya n�o fazia a m�nima ideia do que haviam planeado
quando lhe agradeceu. entusiasmada, o perfume. Antoine oferecera
� av� um xaile bordado e um livro de poemas russos. E Zoya sentiu-
se envergonhada por apenas lhe terem comprado um bloco de
apontamentos e um livro sobre a R�ssia.
Descobrira-o num vendedor de livros no Quai d'Orsay, num
pequeno e feio quiosque, mas era em franc�s e achou que poderia
agradar-lhe. Mas n�o tanto quanto ela gostara do perfume.
A av� saiu discretamente com os presentes e fechou a porta
do quarto sem ru�do, desejando-lhe sucesso intimamente e rezando
para que Zoya fosse sensata e o aceitasse.
- Deve ter gasto todo o seu dinheiro - retorquiu, ao mesmo
tempo que remexia o fogo com uma longa tenaz de metal e Sava
agitava a cauda. - Foi idiota mas tamb�m um gesto generoso,
Antoine. Muito obrigada, Antoine. Usarei o perfume em ocasi�es
especiais. - J� decidira p�-lo dali a duas semanas no Natal russo.
N�o queria desperdi��-lo antes.
Antoine sentou-se na cadeira diante dela e respirou fundo,
tentando ganhar coragem. Era treze anos mais velho do que ela, mas
nunca se sentira t�o aterrorizado em toda a vida. At� mesmo Verdun
lhe causara menos medo do que enfrentar Zoya.
- Queria falar-lhe de uma ocasi�o especial, Zoya, j� que a
menciona. - Sentiu um suor frio nas palmas das m�os quando ela lhe
deitou um olhar estranho.
- O que significa isso?
- Significa... - O cora��o batia-lhe com for�a no peito. -
Significa... Amo-a. - Ela mal ouviu as palavras e fitou-o,
surpreendida.
- O qu�?
- Amo-a. Amo-a desde o dia em, que cheguei aqui. Julguei que
suspeitasse.
- Como havia de suspeitar? - Parecia admirada e irritada. Ele
estragara tudo. Como podiam ser amigos agora frente a uma tal
estupidez? - Mas nem sequer me conhece!
- H� dois meses que vivemos na mesma casa. Chega. Nem sequer
teria de ser muito diferente. Poder�amos continuar aqui, �
excep��o de que dormiria no meu quarto.
- Que maravilha! - exclamou, levantando-se e come�ando a
percorrer a sala de um lado para o outro. - Uma mera mudan�a de
quartos e poder�amos continuar como at� agora. Como � capaz sequer
de o sugerir? Estamos todos a morrer de fome, n�o temos dinheiro
e quer casar-se. Porqu�? Porqu�? N�o o amo. Nem sequer o conhe�o,
nem voc� a mim... Somos dois estranhos, Antoine!
- N�o somos estranhos, somos amigos. E alguns dos melhores
casamentos come�am precisamente assim.
- N�o penso dessa maneira. Quero estar apaixonada pelo homem
com quem casar, louca e totalmente apaixonada. Quero que seja algo
de maravilhoso e rom�ntico.
Antoime parecia trist�ssimo ante aquela explos�o, mas ela
gritava mais com o destino que os juntara do que com o homem que
lhe trouxera o seu perfume favorito.
- A sua av� acha que pod�amos ser muito felizes. - No
entanto, era o pior que podia ter dito e ela p�s-se a percorrer
a sala em grandes passadas.
- Ent�o, case-se com a minha av�! N�o quero casar-me! Agora,
n�o! Tudo � nossa volta est� doente, frio e moribundo. Tudo est�
morto de fome, pobre e miser�vel. Que maneira de come�ar uma vida!
- O que est�, de facto, a dizer � que n�o me ama. - Sentou-se
calmamente, disposto a aceitar at� mesmo isso. E foi aquela
atitude passiva que a acalmou. Sentou-se diante dele e tomou-lhe
as m�os entre as suas, quentes.
- N�o, n�o amo. Mas gosto de si. Julguei que fosse meu amigo.
Nunca pensei que houvesse algo mais por tr�s. Nada de s�rio, pelo
menos. Nunca me disse... - Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas.
- Tive medo. Promete pensar no assunto, Zoya?
Contudo, a jovem abanou tristemente a cabe�a.
- Era incapaz, Antoine. Seria injusto para ambos. Merecemos
os dois mais do que isso. - Olhou � volta deles e depois fitou-o
novamente. - E, se nos am�ssemos, nada disto teria import�ncia.
Mas tem. Simplesmente n�o o amo.
- Podia tentar. - Parecia t�o novo, apesar dos danos e das
perdas.
- N�o, n�o podia. Lamento... - Em seguida, abandonou a sala
e fechou a porta do quarto sem ru�do, deixando o perfume, o
cachecol e as luvas em cima da mesa.
Antoine olhou em redor, apagou as luzes e regressou ao seu
quarto. Talvez ela mudasse de opini�o. Talvez a av� conseguisse
convenc�-la. Achara aquele plano t�o sensato. Sabia, por�m, que
a opini�o dela provinha do desespero.
- Zoya?
A av� observava-a da cama de ambas, enquanto a neta se
despia, de frente para o jardim. Eugenia n�o lhe via o rosto, mas
suspeitava, instintivamente, que ela chorava. E, quando Zoya se
virou j� de camisa de noite, os olhos verdes lan�avam chispas.
- Porque o fez, av�? Porque o encorajou? Foi cruel para os
dois. - Pensou na dor reflectida na express�o de Antoine e sentiu-
se mal. Mas n�o o suficiente para o desposar por piedade. Tinha
de pensar em si tamb�m. E sabia que n�o o amava.
- N�o � cruel. � sensato. Tens de casar com algu�m e ele
tomar� conta de ti. � professor, um homem respeit�vel e ama-te.
- N�o o amo.
- �s uma crian�a. N�o sabes o que queres. - Suspeitava tamb�m
que Zoya ainda sonhava com Clayton, um homem com o dobro da idade
dela, de quem n�o tinha not�cias desde Novembro.
- Quero amar o homem com quem me casar, av�. � pedir assim
tanto? - L�grimas rolavam-lhe pelas faces ao afundar-se na �nica
cadeira do quarto, apertando Sava de encontro ao corpo.
- Normalmente, n�o, n�o �. Mas, na presente situa��o, �. Tens
de ser sensata. Estou velha e doente. O que vais fazer quando eu
morrer? Ficar aqui sozinha e continuar a dan�ar? Tornar-te-�s
velha, azeda e amarga. Deixa-te desses disparates. Aceita-o e
obriga-te a aprenderes a arn�-lo.
- Av�! Como pode dizer uma coisa dessas?
- Porque vivi muito. O suficiente para saber quando lutar e
quando desistir e quando assumir compromissos de cora��o. N�o
achas que gostaria de te ver casada com um pr�ncipe elegante, em
Sampetersburgo, numa casa como Fontanka? Contudo, j� n�o h�
pr�ncipes, andam todos ao volante de t�xis. Fontanka desapareceu,
a R�ssia desapareceu. Isto � tudo o que existe, Zoya, talvez para
sempre. Tens de te adaptar. N�o te deixarei s�. Quero saber que
algu�m tomar� conta de ti.
- N�o lhe interessa que n�o o ame?
Eugenia abanou tristemente a cabe�a.
- N�o � importante, Zoya. N�o, agora. Casa com ele. Acho que
n�o te arrepender�s.
"Mas ele � feio", apetecia-lhe gritar. "... � aleijado... "
Todavia, no fundo do cora��o sabia que nada disto importaria, se
o amasse. A vida com Antoine seria sempre triste, seria sempre
menos do que desejara. E a ideia de ter filhos dele levava-a a
desejar chorar mais ainda. N�o queria filhos dele, n�o o amava.
Era simplesmente incapaz.
- N�o consigo - retorquiu com a sensa��o de que asfixiava.
- Consegues, sim. E deves. Por mim, Zoya... f�-lo por num,
antes que morra. Deixa-me saber que est�s segura com um homem que
te proteger�.
- Proteger� do qu�? Da fome? Estamos todos a morrer de fome.
Ele n�o pode mudar a situa��o. E nem me interessa. Preferia morrer
de fome aqui sozinha do que estar casada com um homem que n�o amo.
- N�o decidas j�, pequenina. Pensa no assunto. D�-lhe um
tempo. Por favor... por mim... - Os olhos suplicavam, e Zoya
chorava como se tivesse o cora��o partido. Contudo, na manh�
seguinte, as l�grimas haviam desaparecido. Falou de imediato com
Antoine.
- Quero que saiba, sem que lhe reste sombra de d�vida, que
n�o casarei consigo, Antoine. Quero esquecer que isto aconteceu.
- N�o posso. Sou incapaz de viver aqui, sabendo como a
desejo.
- J� me desejava antes - replicou, subitamente aterrorizada
com a perspectiva de ficarem sem o h�spede.
- Era diferente. N�o o sabia e agora sabe.
- Fingirei que nunca o disse. - Parecia novamente assustada
como uma crian�a e ele esbo�ou um sorriso triste.
- N�o ser� poss�vel. Tem a certeza, Zoya? N�o pode pensar
algum tempo?
- N�o. E n�o quero dar-lhe falsas esperan�as. N�o posso casar
consigo. Nunca.
- H� mais algu�m? - Sabia que ela tinha um amigo americano,
mas nunca pensara que havia algo de s�rio entre eles.
- N�o, n�o dessa maneira. H� apenas um sonho. Contudo, se
desistir dos meus sonhos agora, n�o terei nada. S�o tudo o que me
resta.
- Talvez as coisas melhorem depois da guerra. Talvez
consigamos um apartamento s� para n�s. - Os sonhos dele eram t�o
pequenos e os dela ainda t�o grandes. Abanou a cabe�a e, desta
vez, ele acreditou.
- N�o posso, Antoine. Tem de acreditar em mira.
- Ent�o, terei de me mudar.
- N�o... por favor... juro que me manterei afastada. A av�
ficar� com o cora��o desfeito, se se for embora.
- E voc�, Zoya? - A jovem observava-o, silenciosa. - Ter�
saudades minhas?
- Julguei que era meu amigo - redarguiu tristemente.
- Sou. Sempre o serei. Contudo, n�o posso ficar aqui. - Ele
tinha um resto de orgulho, e, quando fez as malas nessa tarde,
Zoya entrou em p�nico. Implorou-lhe que n�o se fosse embora,
prometendo-lhe quase tudo, excepto o casamento. Sem o contributo
dele para renda e a comida, ficariam numa situa��o ainda mais
desesperada. - Imposs�vel - teimou Antoine. Eugenia falou com ele,
prometeu-lhe que convenceria Zoya a ser sensata, mas nada o
demoveu. Vira os olhos da jovem e ouvira as suas palavras. E ela
tinha raz�o. N�o podia casar com um homem que n�o amava. N�o era
esse g�ne-ro de mulher. - � melhor ir-me embora. Amanh�,
procurarei outro quarto.
- Ela � uma jovenzinha idiota. - E foi isso mesmo o que
Eugenia disse � neta nessa noite. Estava a desperdi�ar a �nica
oportunidade que tinha de se casar.
- Pouco me interessa se nunca me casar - replicou Zoya, mais
uma vez debulhada em l�grimas.
E, na manh� seguinte, quando se levantou, Antoine tinha-lhe
escrito uma carta e ido embora com as suas coisas. Havia tr�s
notas amarrotadas em cima da mesa e na carta desejava-lhe
felicidades. Sobre as notas, deixara o frasco de perfume que lhe
tinha oferecido no Natal.
Eugenia rompeu em solu�os ao v�-lo, e Zoya meteu calniamente
as tr�s notas amarrotadas no bolso.
CAP�TULO 20
Nas duas semanas seguintes pairou a tristeza no apartamento
junto ao Palais Royal. O ballet encerrara durante tr�s semanas e,
embora tivessem passado palavra por interm�dio de Vladimir, n�o
apareceu nenhum h�spede.
Desgostosa com a atitude de Zoya, Eugenia parecia haver
envelhecido quase de uma noite para outra e, embora a tosse
tivesse melhorado, estava debilitada. Censurava a neta quase
diariamente por causa de Antoine e a situa��o financeira tornou-se
t�o desesperada que, pouco depois do Ano Novo, Eugenia desceu
dificilmente as escadas e pediu a Vladimir que a levasse at� ao
ourives da Rue Cambon.
A desloca��o era praticamente in�til, mas sentia que n�o lhe
restava alternativa. Abriu com cuidado o embrulho que trouxera e
mostrou a cigarreira em ouro de Konstantin e tr�s das caixinhas
em prata de Nicolai. As tampas eram r�plicas em esmalte das suas
ins�gnias militares e estavam gravadas com frases divertidas e os
nomes dos amigos; uma delas tinha uma pequena r� e outra uma
fieira de elefantes brancos em esmalte. Representavam todas as
coisas de que gostava ou que significavam algo para ele e haviam
sido oferecidas por amigos. H� muito que prometera a si pr�pria
e a Zoya que nunca as venderia.
O ourives reconheceu-as de imediato como pe�as de Faberg�,
mas j� vira mais de uma d�zia de objectos semelhantes.
- N�o posso oferecer muito - desculpou-se, e a soma que
escreveu fez subir l�grimas aos olhos de Eugenia, mas tinham de
comer. - Lamento, madame. - Ela inclinou a cabe�a com uma
silenciosa dignidade, falha de palavras, e aceitou a pequena
quantia mencionada. Serviria para as manter pelo menos uma semana,
se n�o comprassem algo demasiado extravagante.
O pr�ncipe Vladimir reparou que a velha senhora parecia
p�lida, mas n�o fez, como habitualmente, perguntas vulgares.
Limitou-se a lev�-la a casa, depois de pararem para comprar um p�o
e um frango magr�ssimo. Zoya esperava-os com um ar abatido mas
extremamente bonita.
- Onde esteve? - perguntou ao acomodar a av� numa cadeira e
enquanto Vladimir descia as escadas para trazer mais lenha.
- O Vladimir levou-me a dar uma volta. - Contudo, Zoya
desconfiava que se tratava de algo mais.
- � tudo? - Ia a responder afirmativamente, mas os olhos
encheram-se-lhe de l�grimas e come�ou a chorar, sentindo-se
cansada e velha, e como se a vida tivesse cometido a sua trai��o
final. Nem sequer podia permitir-se morrer. Ainda tinha de pensar
em Zoya. - O que fez av�? - Zoya sentiu-se subitamente assustada,
mas a velha senhora assoou-se ao lencinho de renda que ainda
trazia.
- Nada, minha querida. O Vladimir tinha-se oferecido para nos
levar esta noite � Igreja de Santo Alexandre Nevski. - Era v�spera
de Natal para eles e Zoya sabia que todos os Russos em Paris
compareceriam, mas n�o tinha a certeza se seria indicado para a
av� ir assistir � missa da meia-noite na igreja. Talvez fosse
melhor ficarem em casa. De qualquer maneira n�o lhe apetecia, mas
a av� endireitou-se com uma express�o inamom�vel e sorriu a
Vladimir, quando ele regressou com a lenha.
- Tem a certeza de que quer ir, av�?
- Claro. - E o que interessava, agora? - Nunca faltei � missa
de Natal uma �nica vez na minha vida.
Contudo, ambas sabiam que as esperava um ano dif�cil. Com
tantas perdas, o servi�o religioso apenas lhes lembraria o ano
anterior em que tinham celebrado o Natal rodeadas pelos entes amados. E Zoya andara a pensar o dia inteiro em Mashka e nos
outros, que passariam o Natal em Tobolsk.
- Voltarei �s onze - prometeu Vladimir, ao sair. Zoya estava
a planear usar o seu melhor vestido, e a av� lavara e passara a
ferro a sua �nica gola decente de renda para p�r no vestido preto
que Zoya lhe comprara.
Foi uma v�spera de Natal solit�ria no silencioso apartamento,
com o quarto de Antoine vazio e como que lan�ando-lhes uma
censura. Eugenia oferecera-o a Zoya h� uns dias, mas ela n�o
conseguia decidir-se a mudar. Depois de Feodor e de Antoine, n�o
queria o quarto e preferia continuar a dormir com a av� at�
encontrarem um novo h�spede.
Nessa noite cozinhou o frango para a av�, assando-o com
cuidado no pequeno fog�o. Era um luxo n�o fazer canja, mas
tratava-se do �nico presente que partilhavam e ambas se
concentravam desesperadamente em esquecer anos anteriores, nos
seus dias de riqueza. Na v�spera de Natal ficavam sepre em casa,
depois iam � igreja com a fam�lia � meia-noite e no dia seguinte
a Tsarskoie Selo, para celebrar em conjunto com Nicolau e os
outros.
Agora e em vez disso, trocaram coment�rios sobre o frango,
falaram da guerra, mencionaram Vladimir, tudo para evitar os seus
pr�prios pensamentos. Quando Zoya ouviu uma ligeira pancada na
porta, levantou-se para ir ver quem era, ro�ando por Sava que
esperava um pouco dos restos do frango.
- Sim? - Zoya interrogou-se sobre se seria a resposta �s suas
preces e um novo h�spede estava prestes a surgir, indicado por
Vladimir ou um dos seus amigos. Era, contudo, uma hora estranha
para aparecer e a jovem ficou pregada ao ch�o ao ouvir uma voz
familiar... N�o podia ser... mas era. Escancarou a porta e deteve-
se a olh�-lo, completamente fardado, as ombreiras e o bon�
reluzindo com as ins�gnias, o rosto s�rio, mas os olhos azuis
cheios de calor.
- Feliz Natal, Zoya. - Era Clayton que estava ali, de p�. H�
quatro meses que n�o o via, mas ele sabia a importancia daquela
data para elas e movera c�us e terra para sair de Chaumont a tempo
de a partilharem juntos. Tinha uma licen�a de quatro dias e queria
pass�-la com Zoya. - Poss� entrar? - A jovem conservava-se,
im�vel, incapaz de pronunciar uma palavra e fitando-o numa
silenciosa admira��o.
- Eu... Meu Deus... �s mesmo tu?
- Acho que sim. - Sorriu e baixou-se meigamente para a beijar
na face. O namoro do Ver�o anterior n�o fora mais longe do que
isso, mas agora ansiava por tom�-la nos bra�os. Quase se esquecera
de como ela era bonita, pensou ao observar a figura esguia e
graciosa que tinha na frente.
Zoya seguiu-o at� ao interior, fitando, cheia de felicidade,
os ombros largos e direitos. Os olhos inundaram-se-lhe de alegria
quando ele cumprimentou a av� e reparou que trazia um saco de onde
retirou tesouros fant�sticos para elas.
Havia p�ezinhos acabados de sair do forno do quartel,
chocolates, tr�s enormes e grossas salsichas, uma alface fresca,
algumas ma��s e uma garrafa de vinho das caves do general
Pershing. Tratava-se de riquezas indescrit�veis, muito longe do
que haviam visto nos �ltimos meses. Zoya perscrutava-o com olhos
redondos, felizes e uma express�o de adora��o.
- Feliz Natal, condessa - desejou Clayton num tom calmo. -
Tive saudades de ambas. - Mas nem metade das que Zoya sentira
dele. Ainda se apercebia melhor de que era assim, agora na sua
presen�a.
- Obrigada, capit�o. Como vai a guerra? - indagou Eugenia sem
erguer a voz e observando a neta. O que viu aqueceu-lhe o cora��o
e alegrou-a de imediato. Era aquele o homem que Zoya desejava,
quer o soubesse ou n�o. Era bem vis�vel.
Clayton era elegante e tinha um porte orgulhoso, viril e alto
na salinha de estar, dominando tudo � sua volta.
- Infelizmente ainda n�o acabou, mas estamos a trabalhar
nesse sentido. Devemos ter tudo sob controlo daqui a uns meses. -
Os restos do jantar permaneciam na mesa, agora j� sem gra�a, e
Zoya fitou os apetitosos chocolates. Riu ao oferecer um � av� e
depois comeu dois como uma crian�a esfaimada, e Clayton soltou uma
gargalhada. Estava t�o feliz por a ver. - N�o posso esquecer-me
de quanto gostas desses chocolates - tro�ou, agarrando-lhe
ternamente na m�o.
- Uumm!... maravilhosos!... muito obrigada!... - Eugenia ria
ao observ�-la. Parecia de novo t�o jovem e feliz quando o capit�o
olhou por cima da cabe�a dela e fitou a velha senhora. Esta tinha
envelhecido nos �ltimos meses e ambas lhe pareciam mais magras,
mais magras e mais cansadas, mas Zoya n�o perdera a beleza.
Clayton ansiava por a envolver nos bra�os e apert�-la de encontro
ao corpo.
- Sente-se, por favor, capit�o - convidou Eugenia, irradiando
eleg�ncia e um porte orgulhoso, apesar da idade, da tristeza e dos
constantes sacrif�cios por Zoya.
- Obrigado. E tencionam ir � igreja esta noite, minhas
senhoras? - Sabia que para elas se tratava de um ritual. Zoya
contara-lhe tudo sobre as prociss�es de velas na v�spera de Natal
e queria acompanh�-las. Fizera o imposs�vel para passar aquela
noite com elas, e Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a vincado,
questionando a av� com os olhos.
- Quer juntar-se a n�s, s�r? - convidou Eugenia.
- Gostaria muito. - Abriu a garrafa e Zoya foi buscar os
copos que ele lhes dera no Ver�o anterior e deteve-se a olh�-lo
em sil�ncio enquanto ele servia o vinho.
Assemelhava-se a um sonho v�-lo ali de uniforme, qual
vis�o, e recordou-se subitamente do que dissera a Antoine. N�o
podia casar com um homem que n�o amasse. E soube que amava
aquele homem. Podia casar-se com ele, independentemente da
idade, de onde ele estivera ou do que lhes acontecesse...
Tratava-se, por�m, de pensamentos idiotas. H� dois meses
que n�o tinha not�cias. N�o fazia ideia dos sentimentos dele
nem de at� que ponto lhe interessava. Apenas sabia que ele era
generoso e bom e regressara � sua vida na v�spera de Natal.
Nada mais sabia. Contudo, ao observ�-los, Eugenia sabia mais do
que isso, mesmo mais do que o pr�prio Clayton naquele momento.
Vladimir chegou pouco depois das onze. Prometera lev�-las
no carro � igreja e pareceu surpreendido ao deparar com
Clayton. A condessa apresentou os dois homens, e Vladimir
perscrutou a face do capit�o, interrogando-se sobre quem ere e
o que fazia ali, mas os olhos de Zoya mostraram-se
elucidativos. Era como se tivesse sobrevivido aos �ltimos meses
apenas para usufruir daquele momento.
Clayton seguiu-a at� � cozinha, enquanto Eugenia servia um
pouco de vinho ao pr�ncipe, tocou-lhe suavemente no bra�o e
atraiu-a devagar a si. Os l�bios afloraram ao de leve o cabelo
sedoso e fechou os olhos, quando a agarrou.
- Senti terrivelmente a tua falta... pequenina... Queria
escrever-te, mas n�o podia. Agora, � tudo top secret. � um
milagre que me tenham deixado vir. - Estava intimamente
envolvido em todos os planos de Pershing para a For�a
Expedicion�ria Americana. Afastou-se dela e baixou a cabe�a,
perscrutando-a com os brilhantes olhos azuis. - Tiveste
saudades minhas?
Zoya n�o conseguia falar e os olhos inundaram-se-lhe de
l�grimas como resposta. Tudo tinha sido t�o dif�cil para elas,
a pobreza, a falta de comida, o frio Inverno, a guerra. Era
tudo um pesadelo e, subitamente, ali estava ele, com os bolos,
o vinho, e os fortes bra�os a envolver-lhe o corpo.
- Muitas mesmo - murmurou com voz rouca e desviando os
olhos. Receava fit�-lo, pois ele perceberia muita coisa.
Contudo, sentia-se segura na presen�a dele, como se o tivesse
esperado a vida inteira. Nessa altura, ouviu uma tosse delicada
na ombreira da porta da cozinha e viraram-se os dois. Era o
pr�ncipe Vladimir que os observava com uma muda inveja.
- Ternos de sair dentro em pouco para a igreja, Zoya
Konstantinovna. - Dirigiu-se-lhe em russo e os olhos encontraram-
se por momentos com os de Clayton. - Acompanha-nos, s�r? As
senhoras v�o a um servi�o religioso da meia-noite.
- Gostaria muito - respondeu, baixando os olhos para Zoya. -
Achas que a tua av� se importava?
- Claro que n�o. - Zoya falou pelas duas, sobretudo por si
pr�pria, ao mesmo tempo que se interrogava sobre onde ele estaria
alojado. Pensou em oferecer-lhe o quarto de Antoine, mas suspeitou
correctamente que a av� n�o acharia conveniente. N�o que
interessasse realmente. Que significado possu�a o decoro, se n�o
havia comida, dinheiro, calor, e o mundo em que se vivera tinha
desaparecido? Quem se importaria mesmo com o decoro? Tudo lhe
parecia t�o idiota, no momento em que Clayton lhe agarrou
meigamente a m�o e a levou at� � cozinha.
Sava seguia-os de perto, de focinho levantado, esperando por
uns restos de comida. Zoya baixou-se calmamente e deu-lhe um dos
seus preciosos bolinhos.
A av� foi buscar o chap�u e o casaco e a jovem tirou o seu
pr�prio casaco usado de um cabide perto da porta, enquanto os dois
homens aguardavam, conversando delicadamente sobre a guerra, o
tempo e as perspectivas de paz nos meses vindouros.
Vladimir parecia observ�-lo criticamente, mas n�o conseguia
antipatizar com ele. O americano era, sem d�vida, velho de mais
para Zoya, e Eugenia seria insensata se permitisse que algo
acontecesse entre ambos. Quando a guerra acabasse, ele regressaria
a Nova Iorque e esqueceria a bonita rapariga com quem se divertira
em Paris.
Contudo, Vladimir n�o podia, obviamente, censur�-lo por a
desejar. Tamb�m ele a desejava, embora h� mis de um m�s andasse
a cortejar uma das amigas da filha. Tratava-s de uma robusta
rapariga russa de boas fam�lias que chegara a Paris na Primavera
anterior, como o resto, e ganhava a vida a costurar. Ela e a filha
estariam � sua espera na igreja.
Clayton ajudou a velha condessa a descer as escaldas, sob o
olhar de Zoya, e Vladimir liderou o caminho at� ao t�xi. Seguiram
devagar atrav�s das ruas tranquilas, e Clayton olhava em volta,
sobretudo para Zoya. Teve a sensa��o de que a jovem precisava de
se divertir e de umas boas refei��es. Precisava tamb�m de um
casaco novo, pois o velho parecia quase fio, quando o vento
assobiou junto deles diante da Igreja de Santo Alexandre Nevski.
Era uma bonita e antiga igreja e j� havia muita gelite no
interior quando entraram. Ouviram a m�sica do �rg�o dos degraus
da frente e em redor soava o ameno murm�rio de vozes. O incenso
emanava um cheiro suave e estava calor l� dentro. Os olhos de Zoya
encheram-se repentinamente de l�grimas ao observar os rostos
familiares e ao ouvir falar russo por todo o lado.
Quase se assemelhava a voltar a casa, estando ali no meio de
toda aquela gente, cada um deles com uma enorme vela na m�o.
Vladirnir estendeu uma a Eugenia e outra a Clayton e Zoya recebeu
uma de um mi�do. Ele ergueu o rosto com um sorriso t�mido e
desejou-lhe um bom Natal.
E a jovem apenas conseguia pensar noutros Natais, noutros
tempos... Mashka e Olga e Tatiana e Anastasia... a tia Alix e o
tio Nicolau... e o d�bil Alexis... iam todos os anos juntos aos
oficios divinos da P�scoa que muito se pareciam com este... e,
enquanto se debatia com as recorda��es, Clayton pegou-lhe
ternamente na m�o e manteve-a agarrada, como se pudesse ler-lhe
a mente e descobrir o que ela sentia. Rodeou-lhe o ombro com o
bra�o quando entoaram o primeiro hino e ficou extasiado ante a
beleza das vozes russas.
L�grimas rolavam devagar pelas faces dos homens e muitas das
mulheres choravam ao recordar-se da vida que haviam partilhado num
lugar que jamais esqueceriam. Zoya pensou que tudo aquilo era
quase superior �s suas for�as, a familiaridade dos cheiros, dos
sons, das emo��es. De olhos fechados, imaginou que Nicolai, a m�e
e o pai se encontravam ali. Era um pouco como se tivesse voltado
� inf�ncia, ali t�o pr�xima de Clayton, e tentou fingir que ainda
estavam na R�ssia.
Depois do servi�o religioso, muitas pessoas conhecidas vieram
falar-lhes. Os homens esbo�avam uma v�nia e beijavam a m�o de
Eugenia, os que haviam sido criados ajoelhavam-se brevemente aos
seus p�s e as pessoas choravam copiosamente e abra�avam-se.
Clayton observava a cena, e Zoya apresentou-o a todos os que
conhecia. Havia tantos rostos que achava familiares, embora n�o
os conhecesse todos. No entanto, eles pareciam conhec�-la e a
Eugenia. O gr�o-duque Cyril estava presente, bem como outros
primos dos Rornanov, todos com roupa velha, sapatos gastos e
rostos que mal dissimulavam as preocupa��es. Era doloroso estar
ali e ao mesmo tempo uma consola��o, como se fosse uma breve
viagem a um passado que todos desejavam recuperar e passariam uma
vida inteira a relembrar.
Eugenia parecia extenuada, mas conservava-se ao lado de
Vladimir. Alta e orgulhosa, cumprimentava toda a gente e
verificou-se um terr�vel momento quando o gr�o-duque Cyril se
aproximou dela e se p�s a solu�ar como uma crian�a. Nenhum deles
conseguiu articular uma palavra, e Eugenia tocou-lhe numa b�n��o
silenciosa.
Nesse instante, Zoya agarrou-lhe ternamente no bra�o e, com
um olhar para Vladimir, levou-a l� para fora at� ao t�xi. Fora uma
noite dif�cil para todos, mas era muito importante tamb�m estarem
ali. E ela recostou-se no assento com um suspiro cansado e um
olhar que dizia tudo.
- Foi um belo servi�o. - Clayton expressou-se num tom calmo
e muito comovido. Sentia-se-lhes o amor, o orgulho, a f� e a
tristeza. E era como se, numa muda concord�ncia, tivessem estado
a rezar pelo czar, a mulher e os filhos. Clayton interrogou-se
sobre se Zoya voltara a ter not�cias de Marie, mas n�o queria
perguntar-lhe diante de Eugenia. Era doloroso de mais. - Obrigado
por me ter deixado vir.
Clayton acompanhou-as at� l� acima quando regressaram ao
apartamento e Vladimir serviu o resto do vinho. Ao ver o olhar
triste e o rosto cansado de Eugenia, Clayton lamentou n�o lhes ter
trazido brande. Ateou novamente o fogo e acariciou, distra�do,
Sava, enquanto Zoya comia mais um bolinho.
- Devia ir deitar-se, av�.
- � o que farei daqui a um minuto. - Queria sentar-se um
pouco a recordar e depois brindou todos com um olhar terno. -
Feliz Natal, crian�as. Deus nos aben�oe a todos. - Bebeu um gole de vinho e depois levantou-se devaagar. - Agora, vou deix�-los.
Sinto-me muito cansada.
Clayton apercebeu-se de que ela mal podia andar. Zoya ajudou-
a a ir at� ao quarto e regressou uns minutos depois. Vladimir saiu
pouco depois com um derradeiro olhar de iiiveja para Clayton. No
entanto, ele sorriu-lhe. Era um homem de sorte por Zoya o fitar
daquela maneira. Era t�o jovem, t�o alegre e t�o bonita.
- Feliz Natal, Zoya. - A tristeza ensombrava-lhe o olhar e
ainda se sentia comovido com o servi�o religioso da meia-noite.
- Feliz Natal para si, pr�ncipe Vladimir. - Beijou-a nas
faces e desceu apressadamente as escadas de volta ao t�: A filha
e a amiga esperavam-no em casa.
E, quando a porta se fechou, Zoya virou-se tranquilamente
para Clayton. Era tudo t�o agridoce, o passado e o presente, a
felicidade e a tristeza. As lembran�as e realidade... Konstantin,
Nicolai... Vladimir... Feodor... Antoine... e agora, Clayton...
Ao fit�-lo, lembrou-se de todos e o cabelo brilhava-lhe como ouro
� luz do fogo. Ele aproximou-se sem ru�do, agarrou-lhe nas m�os,
abra�ou-a sem uma palavra e beijou-a.
- Feliz Natal. - Disse-o em russo, como ouvira uma e outra
e outra vez em Santo Alexandre Nevski. Zoya repetiu para ele e
durante um longo momento n�o se separariam. Clayton acariciava-lhe
o cabelo e ouviam o crepitar do fogo. Sava dormia ao lado deles. -
Amo-te... Zoya... - Ainda n�o quisera confessar-lho, quisera ter
a certeza e, contudo, estava certo. Soubera-o desde Setembro,
quando a deixara.
- Tamb�m te amo. - Ela sussurrou as palavras que eram t�o
f�ceis de lhe dirigir. - Oh, Clayton... Amo-te... - Contudo, havia
a guerra e ele teria eventualmente de deixar Par�s e regressar a
Nova lorque. N�o podia permitir-se pensar nisso agora. N�o podia.
Clayton conduziu-a suavemente at� ao sof� e sentaram-se de
m�os dadas, como duas crian�as felizes.
- Preocupei-me tanto contigo. Quem me dera ter ficado aqui
todos estes meses. - E agora restavam-lhes apenas quatro dias, uma
ilhota de momentos num mar agitado que podia afog�-los a qualquer
momento.
- Sabia que irias voltar - sorriu Zoya. - Pelo menos, assim
o esperava. - E estava mais do que nunca agradecida por n�o ter
permitido que a av� a for�asse a casar com Antoine. Se lhe tivesse
dado ouvidos, podia estar casada com ele, ou mesmo com Vladimir,
quando Clayton regressasse.
- Tentei lutar contra este sentimento, sabes? - Suspirou e
estendeu as compridas pernas na feia carpete, que ainda ficara
mais no fio durante os �ltimos meses. Tudo no apartainento parecia
velho, sujo e miser�vel, � excep��o da bonita rapariga ao seu
lado, de olhos verdes e cabelo ruivo, o rosto de tra�os perfeitos,
o rosto com que sonhara durante meses, mau grado todos os motivos
que dera a si pr�prio para tentar esquec�-la. - Sou demasiado
velho para ti, Zoya - prosseguiu. - Precisas de algu�m novo, que
descubra a vida contigo e te torne feliz. - "Mas quem? O filho de
algum pr�ncipe russo, um rapaz t�o pobre quanto ela?" Na verdade,
precisava de algu�m que cuidasse dela e queria ser ele a
desempenhar esse papel.
- Tornas-me feliz, Clayton. Mais feliz do que o fui alguina
vez... - Sorriu com franqueza. - ... De h� muito, muito tempo para
c�. - Virou-se para ele com uma express�o grave. - N�o quero
ningu�m mais novo. N�o me interessa se �s velho ou novo. S� me
interessa o que sentimos. Queria l� saber que fosses rico ou
pobre, que tivesses cem ou dez anos. Quando se ama algu�m, essas
coisas n�o s�o importantes.
- Algumas vezes s�o, mi�da. - Ele era mais velho e mais
sensato. - � uma �poca estranha, perdeste tudo e est�s armadilhada
aqui numa guerra e num pa�s desconhecido. Somos ambos estranhos
aqui... mas, mais tarde, quando acalmar, podes olhar para mim e
perguntar o que estou a fazer junto de ti? - Sorriu-lhe, receoso
de que a sua previs�o pudesse transformar-se em realidade. - A
guerra tem consequ�ncias bizarras. - J� vira acontecer a outros.
- Para mim, esta guerra � eterna. N�o posso regressar a casa.
Oh... alguns deles pensam que um dia voltaremos... mas agora houve
outra revolu��o. Tudo ser� sempre diferente. E agora estamos aqui.
� esta a nossa vida, � esta a realidade... - Fitou-o com uma
express�o s�ria, j� longe de ser crian�a, por mais jovem que
parecesse em idade verdadeira. - S� sei quanto te amo.
- Fazes com que me sinta t�o novo, pequena Zoya. - Voltou a
apert�-la de encontro ao corpo e ela bebeu-lhe o calor e a for�a,
todas as boas coisas que possu�ra h� muito, quando o pai a
abra�ava. - Fazes com que me sinta t�o feliz.
Desta vez, beijou-o e, de s�bito, ele apertou-a mais e teve
de lutar contra a paix�o que o avassalava. Sonhara demasiado tempo
com ela, ansiara e precisava dela e agora mal conseguiu dominar
as emo��es e o desejo.
Levantou-se e aproximou-se da janela, pondo-se a olhar, o
jardim. Depois, virou-se devagar, interrogando-se sobre o rumo
que as suas vidas tomariam. Regressara a Paris para a ver e,
contudo, sentia um s�bito receio do que pudesse acontecer.
Apenas Zoya parecia segura e calma, certa de que tomava a
atitude indicada ao estar ao lado dele. Fitou-o com um olhar
tranquilo.
- N�o quero fazer nada que venhas a lamentar, mi�da. - E
depois: - Dan�as esta semana? - Ela abanou a ele sorriu: -
�ptimo. Assim, teremos algum tempo antes do meu regresso a
Chaumont. Suponho que agora tenho de te deixar. - Eram tr�s da
manh�, mas n�o estava cansada quando o acompanhou � porta, com
Sava atr�s.
- Onde est�s alojado?
- Desta vez o general teve a bondade de me p�r �
disposi��o a casa do Ogden Mill. - Era onde se tinham conhecido, o bonito h�tel particulier na Rue de Varennes, na
margein esquerda, onda haviam passeado pelo jardim, na noite da
recep��o aos Ballets Russes. - Posso vir buscar-te, amanh� de
manh�?
- Gostava muito - respondeu com um aceno de cabe�a feliz.
- Virei �s dez. - Voltou a beij�-la junto � ombreira da
porta, sem saber para onde iriam, mas seguro at� ao mais �ntimo
de si que agora n�o havia retorno.
- Boa noite, capit�o - tro�ou Zoya, com um brilho imenso
no olhar.
- Boa noite, meu amor - pronunciou ele meigamente e desceu
apressadamente as escadas nuns p�s com vontade de dan�ar. Era-
lhe imposs�vel deixar de sorrir, pensando que nunca tinha sido
t�o feliz na vida.
CAPITULO 21
- Na noite passada, deves ter-te deitado muito tarde -
comentou a av� num tom calmo, � mesa do pequeno-almo�o. Zoya
cortara-lhe algumas das ma��s �s fatias e fizera uma preciosa
torrada do p�o que Clayton lhes trouxera.
- N�o muito. - Desviou os olhos e bebeu o ch� em pequenos
goles, comendo depois um chocolate.
- Ainda �s uma crian�a - replicou a av� quase tristemente,
observando-a. Sabia o que ia seguir-se e temia pela neta. Ele era
bom homem, mas a situa��o n�o se afigurava desej�vel. Fora o que
Vladimir lhe dissera na noite anterior e tinha de concordar, mas
sabia que n�o conseguiria deter Zoya. Talvez o capit�o fosse mais
sensato do que a neta, mas, dado ele ter percorrido todo o caminho
desde Chaumont para a ver, achava pouco prov�vel. E era �bvio para
todos que ele estava desesperadamente apaixonado por Zoya.
- Tenho dezoito anos, av�.
- E da�? - redarguiu a velha senhora com um sorriso triste.
- N�o sou t�o pateta como pensa.
- �s o suficiente para te apaixonares por um homem com idade suficiente para ser teu pai. Um homem que est� num pa�s estranho,
com um ex�rcito em guerra, um homem que um dia regressar� a casa,
deixando-te aqui. Tens de pensar em tudo isso antes de fazeres uma
parvo�ce.
- N�o vou fazer nenhuma parvo�ce.
- Pensa bem. - Contudo, ela estava apaixonada, o que era
bastante para j� se sentir desgostosa com a sua partida. E ele
partiria quando a guerra acabasse, se n�o mais cedo. - N�o casar�
contigo. Tens de o saber.
- De qualquer maneira, n�o quero casar com ele. - s� que era
uma mentira e ambas o sabiam.
Quando Clayton chegou ao apartamento pouco depois do pequeno-
almo�o, detectou a reserva no olhar da velha senhora. Desta vez,
trazia-lhe flores, tr�s ovos frescos e outro p�o.
- Vou engordar com estas suas visitas, capit�o - retorquiu
com um sorriso gracioso. Ele era um homem encantador, mas
continuava a temer por Zoya.
- N�o h� esse risco, madame. Gostaria de nos acompanhar num
passeio �s Tulherias?
- Gostaria. - Sorriu e quase tamb�m ela se sentiu jovem.
Parecia trazer a luz do Sol e felicidade a todo o lado com os seus
presentes e modos graciosos, t�o semelhantes aos do seu filho, com
os olhos afectuosos e o riso pronto. - Receio, por�m, que os meus
joelhos n�o concordem. Neste Inverno, tenho aparentemente um
"pouco" de reumatismo. - O "pouco" a que se referia teria
incapacitado uma mulher menos corajosa. S� Zoya suspeitava do
quanto devia sofrer.
- Permite-me, ent�o, que leve a Zoya a dar um passeio? - Era
um perfeito cavalheiro e ela gostava imenso dele.
- � muito generoso em pedir-me. N�o acho que conseguisse
impedir Zoya. - Ambos riram e a jovem foi buscar as suas coisas.
Do rosto emanava um brilho de felicidade que fazia esquecer as
roupas usadas. Pela primeira vez desde h� meses, desejou poder
usar algo bonito. Tinha tantos vestidos encantadores em
Sampetersburgo, todos queimados e desaparecidos agora, mas n�o
esquecidos.
Zoya despediu-se da av� com um beijo e a velha senhora ficou
a v�-los sair, com uma sensa��o de felicidade, enquanto Clayton
pegava na m�o de Zoya. Pareciam iluminar a sala com toda aquela
alegria. A jovem ia a conversar, entusiasmada, e ouviu-os a descer
rapidamente a escada. Ele tinha � espera um dos carros do pessoal
e que fora cedido pelo ex�rcito.
- Onde gostarias de ir? - Sorriu-lhe, atr�s do volante. -
Estou inteiramente ao teu servi�o. - E tamb�m ela estava livre.
N�o tinha ensaios nem espect�culos com que se preocupar. Podia
passar todos os minutos com Clayton.
- Vamos ao Faubourg Saint Honor�. Quero ver as lojas. Nunca
tenho tempo para fazer coisas desse g�nero, al�m de que tamb�m n�o
vale a pena. - Enquanto seguiam no carro, contou-lhe quanto ela
e Mashka gostavam de roupas e que bonitos eram os vestidos da tia
Alix. - A minha m�e andava sempre muito bem vestida - prosseguiu.
- Mas nunca foi uma pessoa muito feliz. - Era uma confiss�o estranha, mas parecia t�o natural contar-lhe tudo. Queria
partilhar com ele todos os pensamentos, desejos, todos os sonhos
e recorda��es para que a conhecesse melhor. - A mam� era muito
nervosa. A av� diz que o pap� a estragou com mimos. - Zoya soltou
uma garagalhada, sentindo-se de novo jovem.
- Tamb�m devias ser estragado com mimos. Talvez o sejas um
dia, como a tua m�e.
A jovem soltou uma risada alegre. Estacionaram o carro e
sa�ram.
- N�o me parece que ficasse nervosa.
Clayton riu tamb�m e pousou-lhe a m�o no bra�o dele, enquanto
iniciavam o passeio. As horas pareceram voar como se fossem apenas
momentos.
Almo�aram no Caf� de Flore e ele achou que a jovem parecia
mais feliz do que no Ver�o anterior. Nessa altura, ainda se
encontrava sob o efeito do choque, mas agora a dor diminu�ra um
pouco. Tinham passado nove meses desde que chegara a Paris. Ainda
lhe custava acreditar que um ano antes estivera em Sampetersburgo,
levando uma vida normal.
- Tens tido not�cias da Marie nos �ltimos tempos?
- Finalmente, tive. Parece gostar de Tobolsk, mas tem t�o bom
feitio que � normal. Diz que vive numa casa pequena, que ela e as
inn�s partilham um s� quarto e o tio Nicolau passa o tempo a ler-
lhes hist�rias. Diz tamb�m que, inesnio na Sib�ria, continuam com
aulas. Acham que dentro em breve poder�o sair da R�ssia. O tio
Nicolau afirma que os revolucion�rios n�o lhes far�o mal, que s�
querem mant�-los l� de momento. Contudo, parece uma atitude t�o
cruel e est�pida. - Zoya continuava furiosa com os Ingleses por
n�o lhes terem dado asilo no anterior m�s de Mar�o. Se o tivessem
feito, j� poderiam estar todos juntos agora em Londres, ou Paris.
- Tenho a certeza que a av� teria ido para Londres, se os soubesse
l�.
- Nesse caso, n�o te teria conhecido, pois n�o? E seria
horr�vel. Talvez seja bom que tivesses vindo para Paris, enquanto
esperas que deixem a R�ssia. - N�o queria alann�-la, mas n�o
sentia a confian�a de alguns relativamente a que o czar e a
fam�lia estariam a salvo na R�ssia. Era, contudo, apenas uma
impress�o sua e n�o queria preocup�-la.
Acabaram de almo�ar e desceram o Boulevard St. Germain sob
o sol de Inverno. O almo�o no Cafle de Flore tinha sido agrad�vel
e ela sentia-se com todo o tempo do mundo nas suas m�os, liberta
de espect�culos e de ensaios.
Vaguearam algum tempo sem rumo e o acaso levou-os at� � Rue
de Varennes, perto da casa onde ele estava alojado.
- Queres entrar um pouco na casa?
Zoya conservava recorda��es felizes da noite em que se haviam
conhecido e esbo�ou um feliz aceno de cabe�a. Enquanto se
aproximavam, ele falou-lhe de Nova lorque, da sua inf�ncia e dos
anos em Princeton. Contou que vivia numa casa na Quinta Avenida
e ela achou todo o relato muito bonito.
- Porque � que nunca tiveste filhos quando foste casado? N�o
querias? - Zoya tinha a inoc�ncia da juventude, a coragem de pisar
terreno delicado, algo impens�vel quando se era mais velho. Nunca
lhe ocorreu que talvez ele n�o pudesse t�-los.
- Gostaria de ter tido filhos, mas n�o era esse o desejo da
minha mulher. Ela era uma jovem muito bonita e ego�sta e
interessava-se muito mais pelos seus cavalos. Agora, tem uma bela
herdade na Virg�nia. Andavas muito a cavalo quando estavas na
R�ssia?
- Sim - sorriu. - No Ver�o, em Livadia, e algumas vezes em
Tsarskoie Selo. O meu inn�o ensinou-me a montar aos quatro anos.
Era muito mau e, sempre que eu ca�a, chamava-me est�pida. - Mas,
pela forma como ela falava, Clayton percebeu quanto gostara dele.
Nessa altura tinham chegado � casa dos Mill e Clayton serviu-
se da chave para entrarem. N�o havia mais ningu�m l� nessa altura.
Todo o pessoal do general estava em Chaumont.
- Apetece-te uma ch�vena de ch�? - perguntou, e os passos de
ambos ecoavam no ch�o de m�rmore.
- Sim. - Estava frio l� fora e esquecera-se das luvas no
apartamento. E, de s�bito, sem qualquer motivo, lembrou-se do
gorro de marta que deixara na R�ssia. Tinham posto pesados xailes
sobre as cabe�as na altura da fuga. A av� achara com raz�o que
chap�us de pele chamariam demasiado as aten��es.
Seguiu-o at� � cozinha, e um momento depois a chaleira estava
a fumegar. Ele serviu duas ch�venas de ch� e sentaram-se a falar
at� que o Sol se p�s devagar no jardim. Zoya sentia-se como se
pudesse ficar ali sentada a conversar horas a fio, mas
repentinamente as vozes emudeceram e apercebeu-se de que Clayton
a olhava de uma forma estranha.
- Devia levar-te a casa. A tua av� ficar� preocupada. -
Passava das quatro horas e haviam estado ausentes o dia inteiro,
mas Zoya avisara a av� de que talvez n�o fosse jantar a casa. Com
os meros quatro dias da licen�a dele para partilharem, queriam
estar o m�ximo de tempo juntos.
- Disse-lhe que talvez regress�ssemos mais tarde. - E depois
teve uma ideia. - Queres que fa�a o jantar aqui? - Parecia
agrad�vel n�o terem de sair e poderem ficar a conversar durante
mais algumas horas, como haviam feito todo o dia. - H� cornida?
- N�o sei - respondeu Clayton com um sorriso. Ela parecia-lhe
t�o jovem e bonita ali sentada. - Devia levar-te a algum lado.
Talvez ao Maxim's. N�o gostarias?
- � pouco importante - redarguiu com franqueza. Apenas
desejava estar com ele.
- Oh, Zoya... - Deu a volta � mesa da cozinha e abra�ou-a com
for�a. Queria lev�-la para fora da casa, antes que acontecesse
algo que ela viria a lamentar. Sentia uma atrac��o quase dolorosa
pela jovem. - N�o me parece que seja sensato ficarmos aqui - disse
num tom calmo, com muito maior sensatez que ela.
- O general ficar� zangado por eu estar aqui? - Aquela
inoc�ncia emocionou-o e baixou o rosto na sua direc��o, soltando
uma gargalhada.
- N�o, amor, o general n�o ficar� zangado. Mas n�o tenho a
certeza de conseguir controlar-me por muito mais tempo. Acho-te
demasiado bonita para estar contigo a s�s. Nem sabes a sorte que
tens por n�o ter saltado por cima da mesa para te agarrar. - Ela
riu ante a imagem dada e encostou a cabe�a, feliz, ao corpo dele.
- � isso o que tem estado a planear fazer, capit�o?
- N�o, mas gostaria. - Ambos estavam perfeitamente
descontra�dos quando ele lhe acariciou a longa cabeleira ruiva. -
Gostaria de fazer muitas coisas contigo... ir at� ao Sul de Fran�a
depois da guerra... e a It�lia... Alguma vez estiveste l�? - Zoya
abanou a cabe�a e fechou os olhos. Era simplesinente um sonho
estar ali com ele. - Acho que dev�amos ir enibora - repetiu
Clayton num sussurro e a sala pareceu muite, silenciosa. - Vou
mudar-me. N�o demoro um minuto. - Mas pareceu demorar uma
eternidade e ela percorreu tranquilamente as salas elegantes do
andar principal e depois, movida por um s�bito impulso malicioso,
resolveu subir a escada de m�rmore a ver se conseguia encontr�-lo.
Havia v�rias outras salas de estar no segundo andar, uma
elegante biblioteca cheia de livros em franc�s e ingl�s, algumas portas fechadas e, depois, ouviu-o � dist�ncia. Cantava enquanto
se mudava e ela sorriu, incapaz de se manter longe dele, ainda que
por uns minutos.
- Ei... - chamou, mas ele n�o a ouviu. A �gua corria na casa de banho e, quando voltou ao quarto, ela esperava-o, como um fauno
muito quieto, na floresta. Clayton tinha apenas as cal�as vestidas
e estava de tronco nu. Decidira barbear-se de novo rapidamente
antes de a levar a jantar fora. Tinha uma toalha nas m�os e o
rosto ainda escorria �gua quando a fitou com um olhar
surpreendido.
- O que fazes aqui? - Parecia quase receoso de si pr�prio,
mas n�o da encantadora Zoya.
- Estava solit�ria l� em baixo, sem ti. - Avan�ou devagar at�
junto dele, sentindo uma for�a magn�tica como nunca at� ent�o.
Era como se fosse irresistivelmente atra�da para ele,
independentemente da sua vontade. Clayton deixou cair a toalha e
abra�ou-a de encontro ao corpo, beijando-lhe o rosto, os olhos e
os l�bios, saboreando a pele macia at� ficar estonteado.
- Vai l� para baixo, Zoya - pronunciou num tom rouco,
desejando afast�-la, mas sem conseguir. - Por favor... - Ela
fitou-o t�o triste, quase magoada, mas sem medo.
- N�o quero...
- Zoya, por favor... - Contudo, beijou-a uma e outra vez,
sentindo o cora��o dela a bater aceleradamente de encontro ao seu
peito.
- Clayton, amo-te...
- Tamb�m te amo. - E, por fim, afastou-se dela con, um enorme
esfor�o. - N�o devias ter subido aqui, pateta. - Tentou aligeirar
o momento, afastou-se e virou-se para tirar uma camisa do arm�rio.
Todavia, ao voltar-se, ela continuava no mesmo s�tio, e deixou
cair a camisa, avan�ando na sua direc��o. - N�o consigo aguentar
muito mais, pequenina, - Ela estava a enlouquec�-lo com a sua
juventude e sensualidade. - Zoya, jamais me perdoaria, se...
- Se... o qu�? - A rapariga desaparecera e dera lugar a uma
mulher que se conservava na sua frente. - Se me amasses? Que
import�ncia tem, Clayton? J� n�o h� futuro... apenas o presente.
O amanh� n�o existe. - Era a dura li��o que aprendera no ano
anterior. E sabia quanto o amava. - Amo-te. - Zoya era t�o garota
e em simult�neo orgulhosa e forte que lhe despeda�ava o cora��o
detectar nos olhos a aus�ncia de medo e apenas o amor.
- Ignoras o que est�s a fazer. - Voltara a abra��-la e
embalava-a como se ela fosse uma crian�a. - N�o quero mggoar-te.
- N�o conseguirias... Amo-te demasiado... Nunca me magoar�s.
Clayton deixou de conseguir encontrar palavras para a mandar
embora. Desejava-a demasiado, ansiara demasiado por ela. Premiu
os l�bios sobre os dela e, sem pensar, despiu-a, levou-a
meigamente at� � cama, acariciou-a e beijou-a. Ela correspondia
num choro suave. As suas pr�prias roupas pareceram voar do corpo
e perderam-se na enorme cama com o dossel a cobri-los como uma
b�n��o. Reinou a escurid�o, enquanto fizeram amor, mas com a luz
que chegava da casa de banho via-lhe o rosto ao fazer amor,
beijando-a, abra�ando-a e amando-a como nunca amara nenhuma mulher
at� ent�o.
Pareciam ter decorrido horas antes de ficarem silenciosos,
lado a lado, e ela suspirou, feliz, aninhando-se como uma cria em
busca da m�e. Os olhos de Clayton estavam s�rios e perisava no que
tinham feito, rezando para que ela n�o ficasse gr�vida. Rolou para
um dos lados e apoiou-se num dos cotovelos, detendo-se a observ�-la.
- N�o sei se hei-de ficar furioso comigo ou deixar-me
arrastar pela felicidade que sinto neste momento. Zoya... querida,
est�s feliz? - Sentia-se aterrorizado, mas ela esbo�ou um sorriso
de mulher e estendeu-lhe os bra�os, ao mesmo tempo que o desejo
o invadia uma vez mais. Mantiveram-se deitados, conversaram e
fizeram amor at� quase � meia-noite, hora a que ele olhou para o
rel�gio da cama, horrorizado.
- Oh, meu Deus, Zoya! A tua av� vai matar-me! - A jovem riu
quando ele saltou para fora da cama e a arrastou. - Veste-te...
E nem sequer te dei de comer!
- Nem notei - retorquiu com uma gargalhada, qual
rapariguinha, e ele virou-se e abra�ou-a novamente.
- Amo-te, minha louca. Sabias? Sou velho e adoro-te.
- Ainda bem, porque tamb�m te amo e n�o �s velho, �s meu! -
Afastou o cabelo grisalho com um gesto meigo e aproximou-lhe o
rosto do dela. - Lembra-te do quanto te amo, aconte�a o que
acontecer a qualquer um de n�s. - Era uma li��o que aprendera cedo
na vida, esse desconhecimento do amanh�. O pensamento emocionou-o
profundamente e abra�ou-a com for�a.
- N�o vai acontecer nada, pequenina. Agora, est�s a salvo.
P�s-lhe a correr um banho na enorme banheira, e aquele luxo
era demasiado para ela. Durante uns minutos foi como se estivesse
de volta ao Pal�cio Fontanka; por�m quando p�s novamente o feio
vestido de l� cinzento e enfiou os sapatos pretos usados, soube
que n�o era assim. Usava meias de l� pretas para aquecer as pernas
e, ao ver-se no espelho, teve a sensa��o de contemplar uma �rf�.
- Deus do c�u. Estou um horror, Clayton. Como podes amar-me?
- �s bonita, pateta. Cada cent�metro, o teu cabelo ruivo...
tudo em ti - sussurrou, muito pr�ximo, e assemelhava-se a respirar
flores de Ver�o. - Adoro-te.
Era-lhes dificil separarem-se, mas ele sabia que tinha de a
levar a casa, ao apartamento no Palais Royal. N�o havia forma dela
poder passar a noite fora e, depois de a acompanhar pelas escadas
at� ao quarto andar, beijou-a uma �ltima vez nos corredores sujos
e miser�veis, e ela abriu a porta com a sua chave. Depararam com
Eugenia adormecida numa cadeira, esperando-os. Os olhos cruzaram-
se por um momento e depois Zoya inclinou-se e beijou-lhe
meigamente a face.
- Av�?... Desculpe ter-me atrasado, n�o devia ficar �
espera...
A velha senhora mexeu-se e sorriu-lhes, pois at� mesmo
naquele estado de torpor apercebia-se de como estavam felizes.
Era como um sopro de Primavera naquela sala miser�vel, e soube que
n�o conseguiria irritar-se.
- Quis ter a certeza de que estavam bem. Divertiram-se? -
Fitou-os e perscrutou os olhos de Clayton, lendo somente a bondade
e o amor que ele devotava a Zoya.
- Imenso - respondeu a neta, sem qualquer culpabilidade.
Agora, pertencia-lhe e nada poderia mudar a situa��o. - Jantou?
- Comi um pouco do frango de ontem e um dos ovos que o
capit�o trouxe. Obrigada - agradeceu, virando-se para ele e
tentando p�r-se em p�. - Foi uma maravilha, c apit�o.
Clayton sentiu-se embara�ado por n�o lhe ter trazido mais
coisas, mas estivera muito apressado naquela manh�. E voltou a
tomar consci�ncia de que n�o dera nada de comer a Zoya,
interrogando-se sobre se ela estaria t�o esfaimada quanto ele.
Tinham estado distra�dos durante longas e felizes horas, mas agora
sentia-se a morrer de fome. A jovem leu-lhe o pensamento, fitou-o
com um sorriso mal dissimulado e estendeu-lhe o saco com os
bolinhos de chocolate. Ele engoliu um com uma express�o culpada
e meteu-lhe outro na boca, ap�s o que ajudaram Eugenia a ir at�
ao quarto.
Zoya regressou um momento depois e beijaram-se novamente.
Clayton detestava a ideia de ter de sair e voltar a casa, mas
sabia que tal se impunha.
- Amo-te - sussurrou, feliz, antes de ele se ir embora.
- Apenas metade do que te amo - retorquiu ele nun, sussurro.
- Como podes dizer isso?
- Sou mais velho e mais sabido - tro�ou e depois fechou a
porta devagar; Zoya manteve-se de p�, de novo jovem, feliz e
liberta. Em seguida, apagou tranquilamente as luzes do
apartamento.
CAP�TULO 22
Clayton regressou na manh� seguinte, impecavelmente vestido
e transportando um enorme cesto de comida. Desta vez, arranjara
tempo para ir �s compras.
- Bom dia, minhas semhoras! - Eugenia reparou, com um olhar
preocupado, que ele parecia excepcionalmente bem-humorado, mas
nada podia fazer para os deter. Clayton trouxera carne e fruta e
duas qualidades de queijo, bolinhos e mais chocolate para Zoya.
Beijou-a ao de leve na face e insisriu para que a condessa os
acompanhasse num passeio de carro. Seguiram, satisfeitos, pelo
Bosque de Bolonha, conversando e rindo, e a pr�pria Eugenia voltou
a sentir-se mais jovem s� de estar com eles.
Desta vez foram almo�ar � Closerie des Lilas e depois
levaram-na a casa. Ela estava t�o cansada que quase n�o conseguia
subir as escadas, e Clayton transportou-a praticamente ao colo,
recebendo em troca um sorriso de agradecimento. Divertira-se
imenso e esquecera durante algum tempo a pobreza, a guerra e as
preocupa��es.
Sentaram-se a beber ch� na sala e depois Zoya saiu novamente
com Clayton. Voltaram � casa na Rue de Varennes e fizeram amor
apaixonadamente horas a fio. Contudo, desta vez, ele insistiu em
lev�-la a jantar fora. Levou-a ao Maxim's e depois com muita pena
a casa. Quando chegaram, Eugenia estava a dormir.
Os dois amantes movimentaram-se silenciosamente na sala,
comendo chocolates e sussurrando, beijaram-se � luz da lareira e
partilharam sonhos. Zoya desejava poder ficar toda a noite com
ele, mas era impens�vel e, quando ele saiu, sentindo-se novamente
um rapazinho, prometeu voltar de manh�.
No dia seguinte, atrasou-se mais do que no dia anterior e,
�s onze horas, Zoya come�ou a ficar preocupada. N�o tinham
telefone, o que lhes impedia qualquer contacto, mas �s onze e
meia ele apareceu, lutando com um pacote enorme envolto em papel
castanho. Pousou-o em cima da mesa da cozinha com um olhar
satisfeito e misterioso e disse a Zoya que era uma coisa para a
av�.
Nessa altura, a velha condessa juntou-se-lhes e ele recuou,
ficando a v�-la arrancar o papel para deparar com um samovar de
prata muito bonito, gravado com o bras�o da famflia russa que o
trouxera para Paris e fora obrigada a vend�-lo. Nem sequer
conseguia imaginar como o haviam feito chegar ali, mas ao v�-lo
naquela manh� numa loja da margem esquerda, soubera desde logo que
tinha de o comprar para Eugenia.
A velha senhora susteve a respira��o e deu um passo atras,
admirando-o, sentindo uma moment�nea picada de tristeza, pois
sabia como adorava os seus tesouros e quanto lhe custara vend�-
los. Ainda chorava as cigarreiras de que tinha sido for�ada a
desfazer-se pouco antes do Natal. Contudo, era incapaz de desviar
os olhos do samovar e do generoso benfeitor que o trouxera.
- Capit�o... � bom de mais para n�s... - Os olhos encheram-
se-lhe de l�grimas e beijou-o com ternura, aflorando com a face
acetinada a carne viril que lhe recordava a do pr�prio filho e a
do marido. - � t�o generoso.
- S� desejaria poder fazer mais. - Trouxera um vestido de
seda branca a Zoya e ela arregalou os olhos, deliciada, quando o
desembrulhou. Fora desenhado por uma costureira que ele encontrara
na margem esquerda, uma mulher chamada Gabrielle Chanel. Tinha uma
pequena loja e parecera-lhe surpreendentemente dotada. Ela pr�pria
lhe mostrara o vestido e parecia jovial e animada, o que era
invulgar naqueles dias para os Parisienses, desgostados pela
guerra. - Gostas? - Zoya correu para o quarto, a fim de o
experimentar e apareceu irradiando uma imensa beleza. O vestido
era puro e simples e o branco-p�rola acentuava maravilhosamente
o cabelo ruivo. S� desejava ter uns bonitos sapatos a condizer e
o colar de p�rolas que o pap� lhe oferecera e que ardera com
Fontanka.
- Adoro-o, Clayton! - Nesse dia, levou-o para almo�ar com ele
e, mais tarde, ficou estendido no ch�o do quarto dele.
O dia seguinte era o �ltimo da licen�a e ele partia �s quatro
dessa tarde. Ela n�o conseguia suportar a ideia quando fizeram
amor pela �ltima vez e agarrou-se-lhe como uma crian�a a afogar-
se, enquanto ele a beijava. Quando Clayton a levou de volta ao
apartamento, a pr�pria Eugenia parecia triste por v�-lo partir.
As despedidas na vida delas haviam sido demasiado dolorosas.
- Tenha cuidado, capit�o... Rezaremos todos os dias por si. -
Como faziam agora por tantos outros! Agradeceu-lhe a imensa
bondade com que as tratara, e ele parecia deter-se, sem desejar
ir embora, incapaz de deixar Zoya por um moInento, quanto mais por
meses. N�o fazia ideia de quando poderia voltar a Paris.
Eugenia deixou-os discretamente a s�s. As l�grimas encheram
os olhos de Zoya, que o fitava na pequena sala de estar, com o
samovar de prata dominando tudo o resto. No entanto, a jovem s�
o via a ele e lan�ou-se-lhe nos bra�os que estavam �vidos de a
receber.
- Amo-te tanto, pequenina... Por favor, por favor, tem
cuidado! - Sabia como a vida era potencialmente perigosa para ela
em Paris. Ainda havia a eventualidade de que Paris pudesse ser
atacada e ele rezava pela seguran�a da amada, sem a largar. -
Voltarei assim que puder.
- Jura-me que ter�s cuidado. jura! - ordenou-lhe ela por
entre l�grimas, pois n�o conseguia suportar a ideia de perder mais
algu�m que amava, e muito menos algu�m que lhe era t�o querido.
- Promete-me que n�o lamentar�s o que fizemos. - Continuava
preocupado e tinha um receio enonne de que ela pudesse ter
engravidado na primeira vez em que haviam feito amor. Depois disso
tivera cuidado, mas n�o da primeira vez. Ela apanhara-o de
surpresa e o desejo que sentira havia sido superior ao resto.
- Nunca lamentarei nada. Amo-te demasiado.
Seguiu-o pelas escadas at� ao carro e ficou a acenar at� ele
desaparecer, com as l�grimas a correrem-lhe pelas faces, enquanto
ele se afastava, talvez para sempre.
CAPITULO 23
Contrariamente ao que ele prometera, n�o voltou a ter
not�cias. As estrat�gias e manobras eram agora top secret e eles
encontravam-se desligados de todos, no Marne, a tentar proteger
Paris.
Em Mar�o, desencadeou-se a �ltima grande ofensiva alem� e
eles ficaram � espera do melhor momento para atacar, mesmo �s
portas da cidade. Havia bombardeamentos nas ruas e Eugenia tinha
medo de sair.
A est�tua de S�o Lucas foi decapitada por bombas na
Madeleine. E por todo o lado havia pessoas com fome, frio e medo.
Diaghilev deu uma oportunidade a Zoya de se escapar. A 3 de Mar�o
partia para mais uma tourn�e em Espanha com o ballet, mas a jovem
insistiu que n�o poderia deixar Eugenia sozinha, em Paris.
Ficou, assim, em Paris, mas a maioria dos espect�culos foi
suspensa. Agora era perigoso andar pelas ruas. E s� por milagre
conseguiu sobreviver � destrui��o da Igreja de St.-Gervais-St.
Protais junto ao H�tel de Ville na Sexta-Feira Santa. Optara por
se deslocar at� l� em vez de ir a Santo Alexandre Nevski e saiu
momentos antes de as bombas atingirem os telhados e as paredes
ru�rem, matando setenta e cinco pessoas e ferindo perto de cem.
Os comboios para Li�o e para o Sul iam cheios de gente em
p�nico que fugia de Paris. Mas, quando Zoya sugeriu � av� que
partissem, a velha senhora mostrou-se furiosa.
- E quantas vezes achas que o farei? N�o! N�o, Zoya! Deixa-os
matarem-me aqui! Deixa que se atrevam! Fugi da R�ssia e n�o
voltarei a fugir! - Era a primeira vez que Zoya a via chorar
naquela raiva desesperada. Passara exactamente um ano desde que
tinham deixado tudo para tr�s e fugido da R�ssia. E, desta vez,
n�o havia Feodor, n�o lhes restava nada para vender, nem s�tio
para onde irem. Era absolutamente in�til.
O pr�prio Governo franc�s estava a preparar-se para fugir,
se necess�rio. Tinham feito planos para se mudarem para Bord�us,
mas Foch jurara defender Paris at� ao fim, nas ruas e em cima dos
telhados. Todos os espect�culos e ensaios de Zoya foram cancelados
em Maio. E, nessa altura, os Aliados conheciam o sabor da derrota
no Mame. Com Pershing ali, Zoya s� conseguia pensar em Clayton.
Sentia-se horrorizada com a eventualidade de ele ser morto e n�o
tivera not�cias desde que o capit�o deixara Paris.
As �nicas not�cias que recebera chegaram numa carta de Marie
que o Dr. Botkin conseguira enviar-lhe e ficou surpreendida por
saber que se tinham mudado para lekaterimburgo, nos Urales, no m�s
anterior. E as palavras de Marie davam-lhe a entender que tudo
piorara. J� n�o podiam trancar as portas dos quartos e os soldados
seguiam-nas mesmo quando iam � casa de banho. Zoya estremeceu ao
ler tudo aquilo, cheia de saudades da amiga de inf�ncia e temendo
sobretudo por Tatiana que era t�o cerimoniosa e t�mida. A ideia
das circunst�ncias em que eles viviam era-lhe quase insuport�vel.
"... Nada nos resta, sen�o aguentar. A mam� obriga-nos a
cantar hinos, sempre que os soldados come�am com as suas horr�veis
can��es, l� em baixo. Tratam-nos com muita dureza, agora. O pap�
diz que n�o devemos fazer nada que os irrite. Deixani-nos sair um
pouco at� l� fora, � tarde, e passamos o resto do tempo a ler ou
a coser ..."
Os olhos de Zoya encherarn-se de l�grimas ante as palavras
seguintes:
"... e sabes bem como odeio coser, querida Zoya. Tenho
escrito poesia para passar o tempo. Mostro-te tudo quando
voltarmcs a estar finalmente juntas. Parece dif�cil imaginar que
ambas temos dezanove anos. Costumava achar que dezanove era tanta
idade, mas agora parece-me cedo de mais para morrer. S� a ti posso
dizer estas coisas, minha adorada prima e amiga. Rezo para que
estejas feliz em Paris. Agora tenho de sair para o nosso
exerc�cio. Todos te mandamos saudades que pe�o tornes extensivas
� tia Eugenia." Desta vez n�o assinara com OTMA, o c�digo
habitual, mas simplesmente "a tua querida Mashka".
Zoya ficou muito tempo sentada no quarto, lendo repetidamente
as palavras, encostando a carta � face como se o contacto com o
papel lhe trouxesse de volta o contacto da amiga. Sentiu
repentinamente um medo horr�vel por eles. Tudo parecia piorar em
todo o lado, mas, pelo menos, o corpo de bailado em que ela
dan�ava recome�ou a trabalhar em Junho. Ela e Eugenia ansiavam
desesperadamente por aquele dinheiro e nem sequer haviam
conseguido encontrar outro h�spede.
As pessoas deixavam Paris para n�o mais voltarem. Ata mesmo
alguns dos emigrados russos tinham ido para sul, mas Eugenia
continuava a recusar partir. Fora at� onde as for�as lho
permitiam.
A meio de Julho fazia calor, mas ainda reinava a fome na
cidade. Zoya ficou horrorizada ao ouvir de Vladimir que ele e
Yelena tinham andado a ca�ar pombos no parque para os comer.
Garantiu que eram surpreendentemente gostosos e ofereceu-se
para lhe levar um, mas Zoya recusou, enojada com a ideia.
Dois dias depois, quando come�ava a desesperar que a
guerra viesse a acabar, Clayton reapareceu como uma vis�o num
sonho. Zoya quase desmaiou ao v�-lo. Foi na v�spera do Dia da
Bastilha e observaram juntos as paradas desde o Arco do Triunfo
� Pra�a da Conc�rdia. Os uniformes eram extremamente bonitos
sob o sol luminoso, com os Chasseurs Alpins de bon�s e fardas
pretas, os Life Guards ingleses, o Bersaglieri italianos de
chap�u em bico e mesmo uma brigada de cossacos antibolcheviques
com gorros de pele; por�m nesse dia, ela s� tinha olhos para
Clayton.
Quando regressaram � casa na Rue de Varennes, t�o
profundamente apaixonados como sempre, bateram com toda a for�a
� porta, � meia-noite. A pol�cia militar andava a convocar toda
a gente, as licen�as haviam sido canceladas e a ofensiva alem�
come�ara em for�a. O Ex�rcito alem�o encontrava-se apenas a
oitenta quil�metros e os Aliados tinham de os deter.
- Mas n�o podes ir agora... - exclamou Zoya com os olhos
cheios de l�grimas, apesar das suas tentativas de se mostrar
corajosa. - Acabaste de chegar! - Clayton chegara apenas nessa
manh� e, depois de seis meses sem ele, era-lhe insuport�vel v�-lo
partir.
Contudo, n�o havia alternativa. O capit�o tinha meia hora
para se apresentar no quartel-general da pol�cia militar na Rue
St. Anne. Mal teve tempo de a levar a casa antes de o escoltarem
de volta at� junto do general Pershing. Aos olhos de Zoya parecia
uma terr�vel crueldade disporem de t�o pouco tempo juntos antes
de ele regressar � frente e arriscar de novo a vida. E, qual
crian�a abandonada, ficou sentada na sala de estar, e chorou pela
noite fora, at� que a av� lhe trouxe uma ch�vena de ch� para a
consolar.
No entanto, as l�grimas que verteu por Clayton nada foram
comparativamente �s que derramou uns dias mais tarde. A 20 de
Julho, Vladimir apareceu no apartamento com uma express�o solene
e um exemplar do Izvestia, o jornal russo. Quando abriu a porta,
Zoya pressentiu imediatamente que algo terr�vel acontecera ao
conduzi-lo at� ao interior, indo em seguida buscar a av� ao
quarto.
Vladimir come�ou a chorar quando lhe estendeu o jornal.
Parecia uma crian�a de cora��o partido, o cabelo branco era quase
da mesma cor do rosto e repetia incessantemente:
- Mataram-no... Oh, meu Deus... mataram-no...
Viera logo ter com elas, tinham o direito de saber, pois
todas eram afinal primas Romanov.
- O que quer dizer? - inquiriu Eugenia, fitando-o horrorizada
e soerguendo-se na cadeira, quando ele lhe mostrou a not�cia no
jornal. Informava que o czar Nicolau fora executado a 16 de Julho.
E tamb�m que a fam�lia tinha sido mudada em seguran�a. Mudada para
onde?
Zoya sentiu desejo de gritar: onde est� a minha querida
Mashka?... Onde est�o eles?... Como se percebesse o que estava a
passar-se, Sava come�ou a ganir baixinho enquanto os tr�s russos
se sentavam e choravam pelo homem que tinha sido o seu pai, o seu
czar... e era o muito amado primo das duas mulheres.
Os sons da tristeza pairaram na sala durante muito tempo.
Por fim, Vladinir levantou-se e dirigiu-se at� � janela, de cabe�a
baixa e um peso indiz�vel no cora��o. Por todo o mundo, os russos
que o haviam amado estariam a chorar, at� mesmo os camponeses em
nome de quem a temida revolu��o fora engendrada.
- Que dia terr�vel! - exclamou num sussurro. - Que a sua alma
descanse em paz - desejou, voltando-se para as mulheres.
Eugenia parecia ter cem anos e Zoya denotava uma palidez
mortal. A �nica cor do seu rosto residia nos fogosos olhos verdes,
congestionados de l�grimas que continuavam a cair-lhe
silenciosamente pelas faces. Apenas conseguia pensar naquela manh�
em Tsarskoie Selo, quando ele se despedira cena um beijo e lhe
dissera que se portasse bem... "Amo-ol tio Nicolau..." Ressoavam
ainda as suas pr�prias palavras no c�rebro... e depois ele dissera
que tamb�m a amava. E agora estava morto. Desaparecido para
sempre. E os outros?
Voltou a ler as palavras do Izvestia... "A fam�lia foi mudada
em seguran�a."
CAPITULO 24
Julho pareceu arrastar-se como um pesadelo. O facto de
Nicolau ter sido morto parecia pesar-lhes aos ombros como um fardo
insuport�vel. A tristeza marcava uma posi��o. Os russos choravam-
no por toda a cidade de Paris, enquanto a guerra se desenrolava
� sua volta.
Zoya foi convidada para a festa de casamento de uma das
bailarinas que conhecia. Chamava-se Olga Khoklova e desposara
Pablo Picasso h� umas semanas em Santo Alexandre Nevski, mas Zoya
n�o tinha desejo de ir onde quer que fosse. Usava as poucas roupas
pretas que tinha em sinal de luto pelo primo.
Em Agosto, Diaghilev voltou a mandar-lhe um telegrama, desta
vez com uma oferta de que se juntasse ao corpo de ballet para uma
tourn�e em Londres, mas n�o podia deixar a av� nem lhe apetecia
ver ningu�m. Mal conseguia ir trabalhar e apenas o fazia
diariamente para terem comida na mesa.
Em Setembro, os Aliados avan�aram de novo e, decorridas umas
semanas, os Alem�es tentavam negociar a paz com eles. Zoya
continuava, por�m, sem receber not�cias de Clayton. A jovem. mal
se atrevia a pensar nele. Se algo lhe acontecesse, sabia que n�o
conseguiria continuar a viver. Era demasiado a suportar, demasiado
para pensar, imposs�vel de entender.
O tio Nicolau estava morto. As palavras martelavam-lhe
incessantemente na cabe�a. Escrevera tr�s cartas a Marie desde que
soubera as not�cias, mas ainda n�o obtivera resposta. J� n�o sabia
do paradeiro do Dr. Botkin e, se a fam�lia mudara, como se dizia
no jornal, era imposs�vel saber quanto tempo as cartas demorariam
a chegar at� ela.
Depois de um infind�vel m�s de Outubro de sil�ncio dos que
amava, chegou Novembro e com ele a paz.
Estavam sentadas na sala quando ouviram a not�cia, e
escutaram os gritos nas ruas, o j�bilo, os sinos da igreja, os
canh�es. Tinha finalmente acabado. Todo o mundo estremecera mas
agora acabara finalmente. A grande guerra chegara ao fim.
Serviu calmamente uma ch�vena de ch� � av� e ficou � janela,
observando os festejos na rua, sem uma palavra. Tropas dos Aliados
por toda a parte, americanas, inglesas, francesas, mas ela nem
sequer sabia se Clayton estava vivo, mal se atrevendo a acalentar
esperan�as. Virou-se e fitou Eugemia, t�o velha agora, t�o fr�gil,
atormentada pela mesma tosse do Inverno anterior e com os joelhos
t�o fracos que lhe era imposs�vel sair do apartamento.
- Agora tudo vai melhorar, pequena Zoya - disse num tom
suave, entrecortado pela tosse. Sabia o que se passava na mente
da neta. Desde que Clayton deixara Paris, � meia-noite do Dia da
Bastilha, que n�o tinha not�cias dele. - Ele voltar� para ti,
pequenina. Confia um pouco. Precisas de ter f�. - Sorriu-lhe
ternamente, mas a alegria desaparecera dos olhe de Zoya. Perdera
em demasia. E preocupava-se em demasia.
- Como pode dizer isso? Com tanta gente desaparecida... Como
pode acreditar que algu�m voltar�?
- O mundo continua. Pessoas nascem e morrem e outras nascem
depois delas. s� a nossa tristeza � t�o dolorosa. O Nicolau j� n�o
sofre. Est� em paz.
- E os outros? - Escrevera cinco cartas a Marie, sem haver
obtido resposta a qualquer delas.
- Apenas podemos rezar pela sua seguran�a. - Zoya esbo�ou um
aceno de cabe�a. J� ouvira tudo aquilo antes. Sentia-se irritada
com o destino que lhes tirara tanta coisa.
Nos primeiros dias depois do armist�cio era imposs�vel andar
pelas ruas e s� sa�a para ir buscar comida. Mais uma vez as
reservas eram quase nulas. N�o havia espect�culos e tinham de
sobreviver com a escassa quantia que poupara. Tudo lhe parecia
subitamente t�o cansativo!
- Posso ajud�-la a levar isso, mademoiselle? - Sentiu que
algu�m lhe puxava a baguette de baixo do bra�o e virou-se com
palavras iradas na ponta da l�ngua, disposta a matar pelo p�o, ou
a defender-se de um soldado atrevido. "Nem todas em Paris querem
ser beijadas por um jovem arrebatado de uniforme", pensou ao dar
meia volta, de punhos cerrados, e soltou uma exclama��o abafada,
deixando cair a preciosa baguette quando ele a atraiu de encontro
ao corpo.
- Oh... oh... - L�grimas jorraram-lhe imediatamente dos seus
olhos ao refugiar-se, aliviada, nos seus bra�os. Ele estava
vivo... Oh, c�us... ele estava v�vo... Era como se fossem os dois
�nicos sobreviventes ao cimo da terra... os �nicos sobreviventes
de um mundo perdido, ao entregar-se, apaixonada, a Clayton.
- Assim � melhor! - Fitou-a bem do alto, com o uniforme sujo
e amachucado, o rosto �spero da barba que n�o fazia h� dias.
Acabara de chegar a Paris e fora logo procur�-la. J� falara com
Eugenia, ela dissera-lhe que Zoya sa�ra para comprar comida e ele
descera precipitadamente as escadas para a encontrar na rua.
- Est�s bem? - perguntou Zoya rindo e chorando ao mesmo
tempo, e ele beijava-a sem cessar, t�o aliviado quanto ela por
ambos terem conseguido sobreviver.
Face a tudo, parecia um milagre, e ele nem sequer lhe disse
como conhecera a morte de perto tantas vezes, no Marne. N�o
interessava agora. Ele estava vivo, ela estava a salvo, e
agradeceu silenciosamente aos anjos-da-guarda, enquanto se
dirigiam de volta ao apartamento pelo meio da multid�o.
Desta vez, Clayton estava alojado num pequeno hotel da margem
esquerda, juntamente com d�zias de oficiais. Pershing regressara
� casa dos Mill e tornava-se dif�cil estarem a s�s, mas roubavam
os momentos de privacidade que podiam e uma vez atreveram-se at�
a fazer amor silenciosamente no quarto de Antoine, muito depois
de Eugenia ter ido dormir. Ela estava muito cansada e passava a
maior parte do tempo a dormir. H� meses que Zoya andava preocupada
com a sa�de da av�, mas at� mesmo esses receios pareceram apagar
-se � luz do seu encontro com Clayton.
Uma noite, a altas horas, falaram de Nicolau, e ele
confessou-lhe que sempre havia temido que tal acontecesse. E Zoya
deu-lhe conta do seu receio quanto aos outros.
- O jornal russo dizia que se tinham mudado em seguran�a...
Mas para onde? Escrevi cinco vezes � Mashka e n�o recebi resposta.
- � poss�vel que o Botkin j� n�o consiga fazer sair as
cartas. Pode n�o querer dizer nada, mi�da. Tens de ter f� -
replicou num tom calmo, ocultando-lhe os seus pr�prios temores.
- Pareces a av� a falar - sussurrou-lhe no quarto �s escuras,
onde se mantinham aninhados.
- Algumas vezes, sinto-me velho. - Reparara como a velha
senhora parecia fr�gil desde Julho. N�o estava bem e pressentia
que Zoya tamb�m o sabia. Eugenia tinha agor quase oitenta e quatro
anos e os �ltimos dois anos haviam sido duros para todos. Era
espantoso que tivesse sobrevivido. Contudo, ambos esqueceram essas
preocupa��es quando os corpos se fundiram e fizeram amor at� ele
descer as escadas nos bicos dos p�s, antes do amanhecer.
Nas semanas seguintes, passaram o m�ximo de tempo juntos, mas
a 10 de Dezembro, praticamente um m�s depois do fim da guerra, ele
era a imagem da tristeza quando lhe apareceu. Iam mand�-lo de
volta aos Estados Unidos no fim da semana; por�m, mais importante
do que isso, tomara uma decis�o dolorosa a respeito dela.
Zoya ouviu-o dizer que se ia embora, como se vivesse um
sonho. Parecia-lhe imposs�vel acreditar. O momento que nunca
enfrentara, o dia que julgara nunca acontecer... tudo desabava
finalmente sobre os dois.
- Quando? - perguntou com um peso no cora��o.
- Dentro de dois dias. - N�o despregou os olhos dos dela,
pois havia mais a dizer. E interrogava-se sobre se teria coragem
de o fazer.
- N�o nos d�o muito tempo para despedidas, pois n�o?
retorquiu Zoya, tristemente. Estavam sentados na sua pequena e
miser�vel sala, e o dia apresentava-se cinzento. Eugerna dormia
tranquilamente no quarto, como agora era seu h�bito. Zoya
regressara ao trabalho, mas a av� parecia n�o ter dado por isso. -
Voltar�s a Paris? - perguntou Zoya, como se ele fosse um estranho,
sentindo-se distanciada e preparando-se para o que se seguiria.
J� houvera tantas despedidas na sua vida e n�o tinha a certeza de
conseguir sobreviver �quela.
- N�o sei.
- Est�s a esconder-me alguma coisa. - Talvez fosse casado
e tivesse dez filhos em Nova lorque. Tudo era poss�vel agora. A
vida j� a atrai�oara demasiado... N�o que tivesse sido o caso
de Clayton. Contudo, agora at� contra ele estava irritada.
- Zoya... Sei que para ti n�o far� sentido, mas tenho pensado muito... a nosso respeito. - A jovem esperou, cega pela
dor. Era surpreendente como, no momento em que se pensava que
j� n�o podia haver mais dor, ela parecia n�o ter fim. - Quero
libertar-te, que leves a tua pr�pria vida aqui. Pensei em
levar-te para Nova lorque... Queria muito. Contudo, n�o me
parece que a condessa aguentasse a viagem e... Zoya... -
Parecia sufocado com as palavras em que andava a pensar h�
dias. - Zoya... - sou velho de mais para ti. J� te disse antes.
N�o � justo, Quando tiveres trinta, terei quase sessenta.
- Que diferen�a faz? - Nunca partilhara o medo dele quanto
� diferen�a de idades e fitava-o, irritada, magoada pelo seu
afastamento, sobretudo agora. - O que est�s a dizer � que n�o
me amas.
- Estou a dizer que te amo demasiado para te impor o fardo
de um velho. Tenho quarenta e seis anos e tu dezanove. N�o �
justo. Mereces algu�m jovem e fogoso e, depois de tudo acalmar
aqui, encontrar�s outra pessoa a quem amares. Nunca tiveste essa
oportunidade. Eras uma crian�a quando sa�ste da R�ssia h� dois
anos. L� foste sempre protegida e chegaste aqui, durante a guerra,
com pouco mais do que a roupa que trazias no corpo. Um dia, a vida
voltar� ao normal e conhecer�s algu�m mais pr�ximo da tua idade. -
Parecia subitamente firme... quase como Konstantin. - Seria um
erro levar-te para Nova lorque. Seria ego�sta da minha parte.
Estou a pensar em ti e n�o em mim. - Todavia, ela n�o entendia
nada disso, quando o fitou, raivosa, e as l�grimas lhe saltaram
dos olhos.
- Foi tudo um jogo para ti, n�o foi? - Estava a ser cruel,
mas era o que desejava. Queria mago�-lo tanto quanto ele a
magoara. - N�o passou disso. Um romance de guerra. Uma pequena
bailarina para te divertires enquanto estiveste em Paris.
Apetecia-lhe esbofete�-la, mas conteve-se.
- Ouve-me. N�o foi nada disso. N�o sejas idiota, Zoya. Tenho
mais do dobro da tua idade. Mereces melhor do que isso.
- Ah... percebo - redarguiu com um brilho de f�ria nos olhos
verdes. - Como a vida feliz que levo aqui. Esperei metade desta
guerra por ti, mal respirando com medo que fosses morto e agora
apanhas um barco e regressas a Nova Iorque. F�cil para ti, n�o �
verdade?
- N�o, n�o �. - Virou-se para que ela n�o lhe visse as
l�grimas nos olhos. Talvez fosse melhor assim. Talvez fosse melhor
que ela ficasse furiosa com ele. N�o lhe sentiria tanto a falta
como seria o seu caso. - Amo-te muito. - Voltou-se e enfrentou-a
com uma express�o tranquila enquanto ela se dirigia � porta e a
abria de par em par.
- Sai. - Clayton parecia surpreendido. - Para qu� esperar
mais dois dias? Porque n�o acabar tudo agora?
- Gostaria de me despedir da tua av�.
- Est� a dormir e duvido que desejasse despedir-se de ti.
De qualquer maneira, nunca lhe agradaste. - Apenas queria que ele
se fosse embora para poder chorar em paz.
- Zoya, por favor... - Queria tom�-la novamente nos bra�os,
mas sabia que n�o era justo. Era melhor deix�-la sentir que fora
ela a terminar, deix�-la com algum orgulho. Era melhor que fosse
ele a ficar com o cora��o despeda�ado.
Odiou-se quando desceu as escadas devagar e o som da porta
a bater com for�a lhe ecoou nos ouvidos. Odiou-se por se envolver
com ela. Sempre soubera que ela sairia magoada, s� n�o se
apercebera de que tamb�m ele o ficaria.
Contudo, estava certo que agira da melhor forma. N�o havia
retorno. Era velho de mais para ela e, mesmo que agora a magoasse,
ela ficava melhor sem ele e poderia encontrar um homem da sua
idade, come�ar uma vida nova.
Sentiu o cora��o destro�ado nos dois dias seguintes e, no dia
antes da partida, recebeu um cheque de cinco mil d�lares.
Meteu-o numa carta dirigida � av� de Zoya, pedindo-lhe que
o guardasse e o informasse se pudesse fazer algo por elas mais
tarde. Acrescentou que seria sempre um amigo e ansiaria a neta
enquanto vivesse.
"Fiz isto para bem dela, posso garantir-lhe. E porque tamb�m
suspeito ser essa a sua vontade. Ela � mais nova do que eu.
Voltar� a apaixonar-se. Tenho a certeza. E agora, despe�o-me com
o cora��o cheio de tristeza e afecto."
Assinara a carta e, na manh� em que partiu, mandara-a
entregar por um cabo do pessoal do general Pershing.
Partiu na manh� da chegada do Presidente e de Mrs. Wilson.
Houve um desfile em honra deles nos Campos El�sios � hora em que
ele se afastava lentamente pelo Havre, pensando em Zoya.
CAPITULO 25
Depois de Clayton a ter deixado, Zoya passou semanas a chorar no
antigo quarto de Antoine e julgou que morreria de desgosto. Nada parecia
importar-lhe. Pouco se lhe dava morrer de fome. Fazia sopa para a av�,
e ficou surpreendida que tivessem dinheiro bastante para a comprar.
Pouco depois da partida de Clayton, Eugenia mandara o pr�ncipe
Markovsk uma vez ao banco e depois metera algumas notas na m�o de
Zoya.
- Consegui poupar este dinheiro. Serve-te dele para comprares o que
quiseres. - Contudo, nada havia que ela precisasse ou quisesse. Ele fora-se
embora. Parecia-lhe o fim da vida. Todavia, o dinheiro que a av�
aparentemente poupara e lhe dera para comprar comida permitiu-lhe ficar
em casa sem trabalhar. Disse-lhes que estava doente e que n�o se
importava que a despedissem.
Os Ballets Russes estavam de volta e podia ter dan�ado com eles se
quisesse. Contudo, nem isso queria, agora. N�o queria nada, nem comida,
nem amigos ou emprego e sobre tudo nenhum homem. Ele fora um idiota
em dizer-lhe que precisava de uma pessoa mais nova. N�o precisava de
ningu�m. Excepto de um m�dico para Eugenia. Esta apanharj uma gripe
terr�vel na noite de Natal. Insistira em que querera ir � igreja. Contudo,
estava fraca de mais mesmo para se sentar, e Zoya pediu-lhe que se
deitasse sossegada e, quando o pr�ncipe VIadimir chegou, incitou-o a que
trouxesse imediatamente um m�dico, mas passaram-se horas antes de ele
voltar com um.
O m�dico era um homem velho, de ar bondoso, que aprendera russo
em crian�a e dirigiu-se a Eugenia na sua l�ngua natal. A idosa senhora
parecia ter esquecido o seu impec�vel franc�s.
- Ela est� muito doente, mademo�selle - sussurrou a Zoya, na sala de
estar. - Pode n�o resistir a esta noite.
- Mas isso � rid�culo. Estava boa esta tarde. - T�o boa quanto era
poss�vel, naquelas circunst�ncias. O m�dico tinha de estar enganado.
Zoya sabia que n�o conseguiria sobreviver mais uma perda. N�o
conseguiria simplesmente enfrent�-la.
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance. Chame-me logo se ela
piorar. O senhor pode encontrar-me em casa. - Ele pr�prio tinha voltado recentemente da frente e praticava medicina ao domic�lio. Fitou o
pr�ncipe VIadimir, que esbo�ou um aceno de cabe�a triste e olhou em
seguida para Zoya.
- Ficarei consigo. - A jovem anuiu. Sabia que nada tinha a recear dele.
H� quase um ano que vivia com uma mulher, e a filha ficara t�o furiosa
que se mudara e estava a viver num convento, na margem esquerda.
- Obrigada, VIadimir. - Foi preparar uma ch�vena de ch� para a av�
e, quando entrou sem fazer ru�do no quarto, encontrou-a quase a delirar.
Tinha o rosto a arder em febre e o corpo parecia ter encolhido numa
quest�o de horas.
Zoya apercebeu-se subitamente de quanto peso ela havia perdido nos
�ltimos tempos. N�o era t�o vis�vel quando estava vestida, mas agora
parecia desesperadamente fr�gil e, ao abrir os olhos, precisou de
esfor�ar-se para ver quem era Zoya.
- Sou eu, av�... Chiu... n�o fale. - Tentou ajud�-la a beber o ch�, mas
Eugenia afastou a ch�vena, murmurando incoer�ncias e voltou a
adormecer.
S� ao amanhecer � que se mexeu e falou. A neta passara a noite na
cadeira a vigi�-la e acorreu de imediato ao seu lado para ouvir as
palavras. A av� acenara com a m�o, e Zoya aproximou-se devagar, deu-
lhe a beber um gole de �gua pelos l�bios gretados e tamb�m um pouco
do rem�dio que o m�dico deixara, mas via que Eugenia tinha piorado
muito.
- ... Tens de...
- Av�... n�o fale... Vai cansar-se.
A velha senhora abanou a cabe�a. Sabia que isso era pouco
importante nesse momento.
- ... Tens de agradecer por mim ao americano... Diz-lhe que me sinto
muito grata... Tencionava pagar-lhe...
- O qu�? - inquiriu Zoya, admirada. Por que raz�o estava ela grata a
Clayton? Por as deixar? Por a abandonar e regressar a Nova lorque?
Contudo, Eugenia esbo�ou um fraco aceno com a m�o na direc��o da
pequena secret�ria ao canto do quarto.
- ... Procura... no meu cachecol vermelho...
Zoya abriu a gaveta e encontrou-o. Tirou-o para fora, p�-lo em cima
da secret�ria, abriu-o e soltou uma exclama��o abafada. Havia ali uma
fortuna. Quase cinco mil d�lares, quando os contou.
- Meu Deus, av�!... Quando � que ele lhe deu isto? - Estava
boquiaberta e n�o compreendia. Porque teria feito tal coisa?
- ... Mandou-o quando se foi embora... Ia devolv�-lo... mas tive medo...
Se precisasses dele... sabia que ele tinha boas inten��es. Devolvemo-lo
quando pudermos... - Contudo, procurava algo atr�s dela enquanto falava,
qualquer coisa que julgava estar escondido naquele s�tio, e Zoya viu que
a av� come�ava a ficar agitada e receou que lhe fizesse ainda pior.
- Av�, deite-se... por favor... - Ainda n�o recuperara da surpresa
causada pela verdadeira fortuna que Clayton enviara. Era um gesto
generoso, mas que a levou a sentir-se de novo irritada contra ele. N�o
precisavam de caridade. Era demasiado f�cil compr�-las... mas a que
pre�o; depois, franziu subitamente o sobrolho ante o velho cachecol de l�
que a av� segurava nas m�os tr�mulas e aparentemente tirara de tr�s da
almofada.
Era o cachecol que usava no dia em que tinham deixado
Sampetersburgo. Lembrava-se muito bem e agora a av� estendia-lho com
um pequeno sorriso nos l�bios descorados.
- Nicolau... - Mal conseguia falar e os olhos encheram-se-lhe de
l�grimas. - ... Tens de manter isso a salvo, Zoya... com muito cuidado...
Quando n�o restar mais nada, vende... mas s� quando estiveres
desesperada... N�o antes... Nada mais resta.
- A cigarreira do pap� e a do Nicolai?... - inquiriu, mas a velha
senhora abanou a cabe�a.
- ... Vendi-as h� um ano... N�o t�nhamos escolha. - Contudo, Zoya
escutou as palavras, como se lhe cravass um punhal no cora��o. N�o lhes
restava nada agora, nenhum objecto, nenhuma recorda��o, apenas
mem�rias e o que quer que a av� segurava nas m�os.
Zoya agarrou cuidadosamente no cachecol, desembrulhou-o em cima
da cama e soltou uma exclama��o abafada... Era o ovo da P�scoa que
Nicolan dera a Alix quando Zoya tinha sete anos... Maravilhoso, fabricado
por Faberg�, uma verdadeira obra de arte.
O ovo da P�scoa em si era de um esmalte malva-p�lido com fitas de
diamantes � volta e uma pequena mola abria-o, revelando um cisne de
ouro em miniatura num lago de �gua-marinha. Chorando baixinho, tocou
na alavanca que se lembrava existir debaixo da asa do cisne. O cisne abriu
as pequenas asas douradas e avan�ou devagar na sua palma da m�o.
- Conserva-o a salvo, pequenina... - sussurrou a avo e fechou os olhos.
Zoya voltou a embrulhar o ovo no cachecol e agarrou ternamente na m�o
de Eugenia.
- Av�... - A condessa abriu novamente os olhos com um sorriso calmo.
- Fique comigo... n�o parta, por favor... - Pareceu-lhe que a velha senhora
estava mais confort�vel e respirava com mais facilidade.
- S� uma boa rapariguinha, mi�da... Sempre me orgulhei tanto de ti...
- Sorriu de novo, e Zoya come�ou a solu�ar.
- N�o, av�... - As palavras soavam a despedida e ela n�o a deixaria
morrer. - N�o me deixe s�, av�... por favor... - Contudo, a velha senhora
limitou-se a sorrir e fechou os olhos uma �ltima vez. Dera o seu �ltimo
presente � jovem que tanto amara, garantira-lhe seguran�a para uma nova
vida, mas agora tudo havia terminado. - Av�... - sussurrou Zoya no quarto
silencioso, mas os olhos de Eugenia mantinham-se fechados. Descansava
em paz. Desaparecida com os restantes. Eugenia Peterovna Ossupov
regressara a casa.
CAPITULO 26
Enterraram-na no cemit�rio russo � sa�da de Paris, e Zoya manteve-se
silenciosamente de p� ao lado do pr�ncipe VIadimir e de um punhado de
gente que conhecera Eugenia. N�o era �ntima de nenhum deles. Os seus
anos em Paris haviam sido principalmente passados com Zoya e n�o tinha paci�ncia para as queixas e mem�rias depressivas dos outros
emigrados. Estava ocupada com o presente e n�o obcecada com o
passado.
Morreu a 6 de Janeiro de 1919 no pequeno apartamento, no mesmo
dia em que Theodore RooseveIt morreu a dormir, e ZOya sentou-se a
olhar pela janela, acariciando Sava.
Era imposs�vel absorver os acontecimentos dos �ltimos dias e mais
inconceb�vel pensar numa vida sem a av�. Ainda estava sob a influ�ncia
do choque provocado pelo ovo imperial que a av� escondera durante
quase dois anos e o dinheiro que Clayton lhe dera ao partir. Chegaria
para viver at� ao ano seguinte se n�o se excedesse nas despesas e, pela
primeira vez durante todo aquele tempo, n�o sentia desejo de dan�ar.
N�o desejava ver o ballet, nem fazer o que quer que fosse novamente.
S� desejava ficar ali sentada com a cadela e morrer em paz. Depois
reflectiu, culpabilizada, em como a av� ficaria zangada com ela ante esses
pensamentos. A av� estivera sempre comprometida com a vida e n�o com
a morte.
Viveu calmamente durante uma semana sem ver ningu�rn e parecia
mais magra e muito p�lida, quando VIadimir lhe bateu � porta. O
pr�ncipe tinha um ar tenso e estava obviamente preocupado com ela, e
Zoya sobressaltou-se ao ver que havia algu�m por detr�s dele no corredor
escuro, quando abriu a porta. Talvez tivesse trazido o m�dico para a
observar, mas ela n�o queria ver ningu�m e muito menos o m�dico.
Tinha meias de l� e um vestido preto e apanhara o cabelo ruivo que
formava um marcado contraste com o rosto cor de marfim.
- Sim? - VIadimir hesitou. Quase sentira medo de o trazer ali, medo
que o choque fosse demasiado violento, mas sabia que assim tinha de ser.
- Ol�, Vladimir. - Sem dizer uma palavra, ele afastou-se para o lado e
Zoya soltou uma exclama��o abafada ao deparar com Plerre Gilliard.
Os olhos de Pierre encheram-se de l�grimas ao v�-Ia. Parecia terem
decorrido mil anos desde que se haviam encontrado no dia em que ela
partira de Tsarskoie Selo. Avan�ou um passo na sua direc��o e Zoya caiu-
lhe nos bra�os. Em seguida ergueu o rosto numa s�plica, mal conseguindo
articular as palavras por entre os solu�os:
- Eles chegaram finalmente? - Gilhard era o tutor com quem as filhas
imperiais tinham estudado toda a vida, e Zoya sabia que ele as
acompanhara at� � Sib�ria, mas ele limitou-se a abanar a cabe�a, incapaz
de responder.
- N�o... - balbuciou por fim. - N�o... n�o chegaram - Ficou a aguardar
mais not�cias e, sentindo o corpo a transforrnar-se em pedra, avan�ou at�
� miser�vel sala de estar, seguida por ele. Pierre estava magro, extenuado
e muito p�lido. VIadimir deixou-os s�s. Fechou a porta devagar quando
saiu e desceu as escadas lentamente at� ao t�xi.
- Est�o bem? - O cora��o amea�ava saltar-lhe do peito enquanto
aguardava a resposta de Pierre Gilhard e, quando estavam sentados nas
cadeiras um em frente do outro, ele estendeu o bra�o e tomou-lhe as
m�os entre as suas. As dela estavam geladas quando Gilliard come�ou a
falar:
- Acabei de chegar da Sib�ria... Tinha de ter a certeza antes de vir...
Deix�mo-los em Iekaterimburgo, em Junho. Disseram-nos que t�nhamos
de partir. - Era como se pretendesse desculpar-se, mas Zoya apenas
queria ouvir que Mashka e os outros estavam bem. Mantinha-se sentada
num sil�ncio de pedra, com as m�os geladas e tr�mulas.
- N�o estava l� ent�o quando... quando o... Nicolau... - Era incapaz de
pronunciar as palavras, mas ele compreendeu o abanou tristemente a
cabe�a.
- O Gibbes e eu tivemos de partir... mas regress�mos em Agosto.
Deixaram-nos entrar na casa, s� que estava vazia, mademoisclle. - N�o
conseguiu dizer-lhe o que tinham descoberto, os buracos de balas e os
vest�gios de sangue lavado. - Disseram-nos que eles se tinham mudado
para outro lugar, mas o Gibbes e eu rece�mos o pior.
Aguardou o resto c om o cora��o a saltar-lhe no peito, certa de que
a hist�ria teria um final feliz. Depois de todo aquele tempo, s� podia ter.
A vida n�o podia ser t�o cruel que deixasse os bolcheviques matarem as
pessoas que tanto amava... um fr�gil rapazinho e quatro raparigas que
haviam sido suas primas e amigas e a m�e que as amava. J� bastava que
o pai tivesse morrido. Era imposs�vel pior do que isso. Observou-lhe o
rosto enquanto ele prosseguia a narrativa, de olhos fechados e lutando
contra as l�grimas. Ainda estava exausto da viagem e s� chegara a Paris
na noite anterior, decidido a v�-la.
- Cheg�mos a Iekaterimburgo no dia do anivers�rio do Alexis, mas
n�o estavam. - Suspirou. - Permanec desde ent�o. Tinha a certeza, mesmo
depois de ver os buracos de balas na casa, que ainda estavam vivos.
Zoya sentiu que lhe faltava a respira��o e fitou-o.
- Buracos de balas? Mataram o tio Nicolau em frente dos filhos?
- Mataram o Nagorny tr�s dias antes... Ele tentou impedir um soldado
de roubar as medalhas do Alexis. Este deve ter ficado com o cora��o
despeda�ado. Passara a vida inteiro com ele.
... O fiel Nagorny, que se recusara a abandon�-los. N�o haveria fim?
- A meio de Julho, os bolcheviques disseram-lhes que os parentes iam
tentar salv�-los e que tinham de mudar, antes que lhes descobrissem o
paradeiro.
Zoya pensou nas cartas de Mashka anteriores a isso, dizendo-lhe onde
estavam. "Mas quem ia tentar salv�-los?"
- A sangrenta revolu��o imperava desde Junho e era quase imposs�vel
chegar a qualquer lugar - prosseguiu. - Contudo, apareceram � mela-noite
e ordenaram-lhes que se vestissem...
A voz morreu-lhe na garganta, e Zoya agarrou-lhe as m�os com tanta
for�a que o magoou enquanto o fitava, duas pessoas abandonadas numa
ilha deserta, os outros desaparecidos... Mas para onde? Esperou pelo
resto, sem pronunciar uma palavra. Dali a pouco, ele iria dizer-lhe que
eles vinham a caminho de Paris...
- Desceram as escadas, a imperatriz, Nicolau e os filhos... A Anastasia
ainda tinha o Jimmy com ela. - "O pequeno cocker span�el do Alexis."
Pierre p�s-se novamente a chorar ante a ecorda��o de toda a cena. - ...
E a Joy... - Sava ganiu como se reconhecesse o nome da m�e e ele
continuou: - ... Nessa altura, o pequeno Alexis j� n�o podia andar, estivera
muito doente... Disseram-lhes que se vestissem e levaram-nos para o r�s-
do-ch�o, a fim de aguardarem transporte... O Nicolau mandou-os trazer
cadeiras para Alexandra e Alexis e estava... - Mal conseguia
prosseguir... - ... estava com ele no colo, quando eles chegaram...
Agarrava-o quando eles abriram fogo.
Zoya sentiu que o cora��o se transformava num peda�o de pedra.
Devia ter sido o momento em que haviam assassinado Nicolau... Gilhard,
por�m, continuou a relatar, solu�ando: - Mataram-nos a todos, Zoya
Konstantinovna... Abriram fogo sobre todos. S� o Alexis viveu um pouco
mais do que os outros e bateram-lhe na cabe�a com os canos das
espingardas, enquanto ele se agarrava ao pai... e depois mataram o
pequeno Jimmy. A Anastasia tinha desmaiado e, ao gritar, mataram-na
com as baionetas e depois...
Zoya chorava em sil�ncio, incapaz de acreditar no que ouvia.
- E depois... puseram-nos numa mina e cobriram-nos com �cido...
Morreram, pequena Zoya... todos eles... at� mesmo o pobre e meigo
Baby.
Nessa altura, a jovem abra�ou-o e apertou-o, enquanto ele chorava.
Mesmo agora, passados meses, nem ele conseguia acreditar.
- Descobrimos a Joy, um dos soldados deixara-a entrar, e estava quase
morta de fome quando a encontraram perto da mina... a ganir pelas
crian�as que amava. E, � Zoya, ningu�m alguma vez vir� a saber quanto
eram queridos ou quanto os am�vamos.
- ... Oh, meu Deus... Oh, meu Deus... A minha pobre e querida
Mashka... morta com espingardas e baionetas... como deve ter-se sentido
assustada...
O Nicolau tentou det�-los... mas n�o havia nada que os detivesse. Se
nos tivessem deixado ficar... mas n�o teria modificado nada. - N�o lhe
contou que o Ex�rcito Branco chegara para libertar Iekaterirriburgo oito
dias depois. Apenas oito dias.
Zoya fitou-o com um olhar vazio. Nada lhe importava agora. Nada
voltaria a importar-lhe... nem a ela... nem a eles... Ocultou o rosto entre
as m�os e chorou, abra�ada a Pierre.
- Tinha de lhe contar pessoalmente... Lamento tanto... tanto... - T�o
poucas palavras para a perda de pessoas fant�sticas. Nada haviam
compreendido naquele �ltimo dia em Tsarskoie Selo e ela j� sabia que
devia ter ficado com eles, os bolcheviques poderiam t�-la morto tamb�m...
deveriam t�-la, morto com baionetas e balas como tinham morto Mashka
e todos eles... e Baby...
Pierre deixou-a e prometeu voltar no dia seguinte depois de ter
dormido. Foi-lhe insuport�vel fit�-la ao partir, encarar o olhar
despeda�ado e o rosto inexpressivo. E, quando ficou novamente sozinha,
Zoya pegou em Sava e embalou-a para tr�s e para diante, chorando e
gritando no apartamento vazio:
- Oh, av�... Eles morreram... Mataram-nos a todos... - E, por fim,
apenas um sussurro permaneceu no sil�ncio, enquanto Zoya pronunciava
o nome dela pela �ltima vez... jamais suportaria voltar a diz�-lo... E
murmurou baixinho:
- Minha Mashka...
CAPITULO 27
Depois de ter ouvido as not�cias trazidas por Pierre Gilliard, Zoya
sentiu-se, durante v�rios dias, como se estivesse em estado de choque.
A juntar � dor da morte da av� havia a agonia de saber da execu��o. No
dia seguinte quando voltou, Pierre disse-lhe que o Dr. Botkin morrera
com os restantes, o que explicava o motivo de nenhuma das cartas ter
chegado ao destino, mas tamb�m n�o havia ningu�m para responder.
E soube igualmente que o gr�o-duque Miguel tamb�m fora morto a
tiro, uma semana antes da execu��o de Nicolau, Alexandra e dos filhos.
Quatro outros gr�o-duques tinham sido assassinados depois. A lista
parecia ser infind�vel. Era como se quisessem destruir toda uma ra�a, um
cap�tulo inteiro da Hist�ria. E os pormenores eram de uma brutalidade
para al�m das palavras.
Perante o que agora sabia, era compreens�vel que a Confer�ncia de
Paz de Versalhes nada quisesse dizer para ela. Aos seus olhos, a guerra
e at� mesmo o seu final deixaram de ter qualquer significado. Perdera os
pais, o irm�o, a av�, os primos, os amigos e a p�tria e at� mesmo o
homem que amava a deixara.
Sentada no pequeno apartamento dia ap�s dia, a olhar atrav�s da
janela, a vida parecia-lhe um deserto.
Pierre Gilliard veio visit�-la mais vezes antes de partir. Ia regressar �
p�tria, � Su��a, para descansar antes de voltar � Sib�ria e ajudar o
prosseguimento da investiga��o. Contudo, nem isso lhe parecia
importante. Nada o era. Para Zoya, tudo acabara.
No fim de Janeiro, Paris tinha recuperado a alegria e os soldados
americanos pareciam encher as ruas. Havia festas, espect�culos especiais
e paradas, tudo em honra dos dignit�rios que chegavam dos Estados
Unidos para conferenciar em Versalhes, celebrar o fim da "Grande
Aventura" e iniciarem a nova era de paz que despontava.
No entanto, para Zoya nada havia a celebrar. Vladimir foi visit�-la
algumas vezes depois de Plerre Gilliard partir rumo a Berna a fim de se
juntar � mulher, mas Zoya mal falava e Vladimir ficava a observ�-la,
temendo pela sua sanidade e seguran�a. As not�cias tinham-se espalhado
pelos emigrantes e houve l�grimas infind�veis e um luto silencioso. Os
Rornanov deixariam uma imensa saudade e jamais seriam esquecidos
pelos que os haviam conhecido.
- Deixe-me lev�-la a dar um passeio de carro, mi�da. S� lhe faria bem
ir a qualquer lado.
- Tenho tudo o que preciso aqui, Vladimir. - Fitou-o com tristeza,
acariciando suavemente a pequena Sava. Ele trazia-lhe comida como
fizera quando tinham chegado a Paris. Desesperado, at� lhe comprou
vodca. Talvez, se n�o houvesse outra solu��o, pudesse afogar as m�goas.
Mas a garrafa ficou por abrir e a vodca intocada, como a maior parte da
comida que trouxera. Dava a sensa��o de que ela se dispusera a morrer,
ansiosa por se juntar aos outros.
V�rias das mulheres que ele conhecia tamb�m passavam por casa
dela, mas na maior parte das vezes Zoya n�o respondia, quando elas
batiam � porta. Limitava-se a ficar sentada muito quieta, esperando que
se fossem embora, sentada sozinha no apartamento �s escuras.
No fim de Janeiro, Vladimir sentiu-se assustado e falara mesmo com
um m�dico. Aparentemente nada podiam fazer, excepto esperar a viragem
da mar�. Contudo, ele receava que ela fizesse algo dr�stico antes.
Continuava a pensar na jovem ao fim de uma das tardes, quando
conduziu o t�xi at� Crillon, esperando que um dos importantes
americanos o mandasse parar. E depois, como que em resposta a uma
prece, olhou para o outro lado da rua e avistou-o.
Buzinou freneticamente e acenou, mas o indiv�duo alto e fardado
desapareceu no hotel e, quando Vladimir saltou para fora do carro, rezou
para que n�o tivesse sido uma ilus�o. Atravessou a rua com a velocidade
de um raio e entrou no hotel, conseguindo apanh�-lo antes que ele
entrasse num elevador. Clayton Andrews virou-se com um olhar
surpreendido quando Vladimir o chamou. Saiu lentamente do elevador,
receando que algo terr�vel pudesse ter sucedido.
- Gra�as a Deus que � voc� - suspirou Vladimir, aliviado e esperando
que ele ainda estivesse disposto a ver a jovem. N�o estava certo do que
acontecera entre os dois, mas sabia que tinha havido qualquer
desentendimento antes de Clayton abandonar Paris.
- Aconteceu-lhe alguma coisa? - Foi tudo o que Clayton conseguiu
pensar ao detectar a express�o no rosto de Vladimir.
Chegara no dia anterior e tivera de se conter para n�o ir v�-Ia.
Contudo, sabia que era in�til torturar-se ou a Zoya. Estavam melhor
assim. Queria que ela tivesse uma nova vida e se se mantivesse por perto
n�o a ajudaria a encontr�-la, por mais que lhe sentisse a falta.
Mal pusera os p�s em Nova lorque, tinham-lhe pedido que regressasse
a Paris e desse uma ajuda nas muitas reuni�es associadas ao Tratado de
Versalhes, antes de abandonar definitivamente o ex�rcito. E regressara
bastante alvoro�ado. Ignorava se teria for�a suficiente para voltar a Paris
e n�o a ver.
- Trata-se da Zoya? - perguntou ao pr�ncipe, assustado pelo olhar
dele, que dizia mais do que todas as palavras.
- H� algum s�tio onde possamos conversar? - retorquiu Vladimir,
observando o �trio cheio de gente e fitando de novo Clayton. Tinha muita
coisa para lhe contar. Clayton consultou o rel�gio. Dispunha de duas
horas livres. Esbo�ou um aceno de cabe�a e seguiu Vladimir at� l� fora,
na direc��o do t�xi convenientemente � espera.
- Responda-me, homem. Ela est� bem? Aconteceu-lhe alguma coisa?
O pr�ncipe exibia um ar triste quando ligou o motor do carro. Tinha
os punhos da camisa ro�ados e o casaco gasto, mas conservava o bigode
impecavelmente aparado e o cabelo de um branco de neve. Tudo em si
emanava nobreza e distin��o. Havia agora tantos iguais a ele em Paris.
Condes, pr�ncipes, duques e homens de boas fam�lias ao volante de t�xis
e a servir �s mesas.
- N�o lhe aconteceu nada, capit�o - respondeu, e Clayton soltou um
suspiro de al�vio. - Pelo menos, n�o directamente. - Seguiram at� ao
Deux-Magots, escolheram uma mesa l� atr�s e Clayton mandou vir dois
caf�s. - A av� morreu h� tr�s semanas.
- J� o receava. - Ela parecia t�o doente e debilitada quando deixara
Paris h� mais de um m�s.
- Contudo, pior do que isso, recebeu a visita de Pierre Gilliard que
veio da Sib�ria para a ver. A not�cia foi terr�vel. N�o saiu do apartamento
desde essa altura. Receio que enlouque�a, para ali sentada, a chorar por
eles. � de mais. - Tinha l�grimas nos olhos e lamentou que Clayton n�o
tivesse encomendado uma bebida mais forte. De bom grado beberia uma
vodca simples. S� de pensar na jovem, do�a-lhe o cora��o. Coisas
demasiadas haviam acontecido a todos eles, sobretudo a Zoya.
- O Gilliard estava presente quando mataram o czar? - Ele pr�prio
sentia uma enorme tristeza s� de pensar nisso, embora nunca o tivesse
conhecido. Contudo, Zoya dera-lhe vida com os seus relatos de Livadia,
do iate e de Tsarskoie Selo e agora quase lhe parecia familiar.
- Parece que os soldados dos sovietes o mandaram embora e ao tutor
ingl�s pouco antes, mas regressaram dois meses depois e h� meses que
andam a falar com soldados, guardas e camponeses locais de
Iekaterimburgo, ajudando nas investiga��es do Ex�rcito Branco.
Conhecem a maioria e ele quer regressar e falar com mais alguns. S� que
deixou de ser importante - replicou com um olhar velho e triste dirigido
a Clayton Andrews. - Est�o todos mortos... todos eles... assassinados ao
mesmo tempo que o czar... at� mesmo as crian�as - acrescentou. N�o
sentia vergonha das l�grimas que lhe rolavam pelas faces. Chorava sempre
que pensava no assunto. Tinha perdido tantos e t�o bons amigos. Todos
tinham. Todavia, Clayton Andrews parecia chocado, horrorizado e ciente
do efeito que produziria em Zoya.
- A Marie tamb�m? - Era uma derradeira esperan�a... a bem de
Zoya... mas Vladimir limitou-se a abanar a cabe�a.
- Todos eles. Mortos. - Contou a Andrews porrnenores que Gilliard
n�o se atrevera a relatar a Zoya, sobre �cido, mutila��es e fogo. O que
ela sabia j� bastava. Haviam preterldido varr�-los da superficie da Terra,
sem deixarem vest�gios. �, contudo, imposs�vel apagar a beleza, dignidade
e graciosidade e pessoas t�o profundamente boas e encantadoras. Os
corpos haviam desaparecido, mas o esp�rito viveria para sempre.
- Como � que a Zoya recebeu a not�cia?
- N�o tenho a certeza que sobreviva. Anda a emagrecer de dia para
dia. N�o come, n�o fala, n�o sorri. Parte-se-me o cora��o s� de a ver.
Vai visit�-la? - Estava pronto a implorar-lhe. Ela tinha de continuar a
viver. A av� j� era de idade, mas Zoya era jovem e alegre e, aos dezanove
anos, a sua vida estava apenas no come�o. N�o suportaria v�-Ia chegar ao
fim agora. Tinha de continuar a viver e transportar a beleza que todos
haviam visto para uma nova vida e n�o enterr�-la como estava a fazer.
Clayton Andrews suspirou, enquanto mexia o cafe com um ar
pensativo. O que Vladimir lhe tinha contado era extremarnente chocante
e, mais do que isso, despeda�ava-lhe o cora��o... nem o rapazinho
escapara... fora o que o pr�prio Pierre Gilliard dissera ao ouvir as not�cias
"As crian�as!... As crian�as, n�o!" Contudo, fitou tristemente o principe,
pensando novamente em Zoya.
- N�o estou certo de que queira ver-me!
- Deve tentar. Por ela. - N�o se atreveu a perguntar ao homem se ele
ainda a amava. De qualquer maneira, sempre o achara velho de mais para
ela e dissera-o a Eugenia. No entanto, ele era a �nica esperan�a que
restava e vira o brilho nos olhos de Clayton, no ano em que fora assistir
aos servi�os religiosos de Natal com eles. Pelo menos nessa altura, n�o
duvidava que amasse profundamente a jovem. - Na maioria das vezes, n�o
atende quando batem � porta - prosseguiu. - �s vezes, Iimito-me a deixar-
lhe comida c� fora e ela recolhe-a, embora n�o tenha a certeza se a come.
- O pr�ncipe fazia-o em mem�ria da av�. Gostaria que algu�m fizesse o
mesmo por YeIena. E agora estava a suplicar a Clayton Andrews que
fosse v�-Ia. Teria feito qualquer coisa para a ajudar. Quase lamentava que
Gilliard tivesse aparecido, mas precisavam de saber, n�o podiam prolongar
eternamente a esperan�a.
- Farei o que puder - prometeu, Clayton, consultando o rel�gio. Tinha
de regressar ao hotel para uma daquelas infind�veis reuni�es. Levantou-
se, pagou o caf� e agradeceu a Vladimir no caminho de volta,
interrogando-se sobre se ela o receberia. Aos olhos de Zoya, abandonara-
a e sabia que a jovem n�o entendera os seus motivos. Achava que ela
agora o odiava e talvez fosse melhor para seu bem. Mas n�o podia deix�-
la para ali a morrer. O quadro pintado por Vladimir era um pesadelo.
Nessa noite, assistiu, impaciente, �s reuni�es e �s dez horas saiu, fez
sinal a um t�xi e indicou a morada ao motorista. Foi um al�vio descobrir
que o homem era um franc�s e n�o um dos aristocratas russos.
Ao chegar, o pr�dio pareceu-lhe dolorosamente familiar e hesitou um
momento antes de subir as escadas devagar. Ignorava o que dizer, talvez
nada houvesse a dizer. Talvez o que pudesse fazer se resumisse a estar ali.
A subida at� ao quarto andar pareceu-lhe intennin�vel e os corredores
eram ainda mais frios, escuros e f�tidos do que se recordava. Deixara-a
apenas h� seis samanas, mas, naquele breve espa�o de tempo, mudara
tanta coisa, acontecera tanta coisa. Conservou-se muito tempo do lado de
fora da porta, � escuta, interrogando-se sobre se ela estaria a dormir e
depois sobressaltou-se ao ouvir passos.
Bateu ao de leve uma vez e os passos pararam. Pararam durante
muito tempo e, quando ela julgou que ele se fora embora, ouviu-os de
novo, desta vez com os latidos de Sava. O cora��o amea�ava saltar-lhe do
peito ao pensar nela ali t�o perto, mas n�o podia ser ego�sta, pois era
a jovem quem agora interessava.
Viera at� ali para a ajudar a ela e n�o a si, e for�ou-se a pensar assim
quando bateu de novo e falou atrav�s da porta.
- T�l�gramme! - anunciou. - T�l�gramme! - Era um truque baixo, mas
sabia que, de outra forma, Zoya n�o abriria a porta. Os passos
aproximaram-se e a porta abriu-se um pouco; por�m, de onde ele estava,
ela n�o conseguia v�-lo. E, com um �nico passo e uma ligeira press�o,
abriu mais a porta e empurrou-a para o lado, falando meigamente. -
Devia ter mais cuidado, mademoiselle.
Zoya soltou uma exclama��o abafada e o rosto denotou uma palidez
de morte. Clayton ficou chocado ao ver quanto ela emagrecera. O
pr�ncipe tinha raz�o. Estava com uma apar�ncia terr�vel ao fit�-lo com os
enormes olhos assustados.
- O que fazes aqui?
- Dei um salto de Nova lorque para ver como estavas. - Tentou
parecer despreocupado, mas o aspecto dela falava por si. Situava-se para
l� do riso, para l� do amor e interesse.
- Porque vieste aqui? - inquiriu, zangada e fr�gil, quase lhe partindo
o cora��o. Desejava apert�-la de novo nos bra�os, mas n�o se atreveu.
Receou quebrar-lhe os ossos.
- Queria ver-te. Estou aqui por causa das negocia��es do Tratado de
Paz em Versalhes. - Ainda se conservavam na ombreira da porta e ele
olhou-a interrogativamente quando Sava veio lamber-lhe a m�o. A
cadelinha n�o se esquecera, mesmo que Zoya j� n�o se interessasse em
lembrar-se. - Posso entrar uns minutos?
- Porqu�? - Fitava-o com uns olhos grandes e tristes, mas mais bonita
que nunca.
E foi incapaz de continuar a mentir-lhe.
- Porque ainda te amo, Zoya, � por isso. - N�o era �ssa a resposta que
planeara, mas n�o conseguiu evitar as palavras.
- Deixou de ser importante.
- Para mim, �.
- N�o era h� seis semanas, quando te foste embora.
- Nessa altura tamb�m era muito importante. Achei que estava a
tomar a atitude certa. Achei que tinhas direito a mais do que podia
oferecer-te. - Materialmente, podia oferecer-lhe tudo, mas n�o podia dar-
lhe juventude nem os anos que desperdi�ara antes de a conhecer. Na
altura, parecera-lhe importante, mas agora j� n�o estava t�o seguro face
a tudo o que Vladimir lhe dissera. - Deixei-te porque te amava e n�o o
contr�rio. - Contudo, soube, tal como ent�o, que ela n�o compreendia. -
N�o era minha inten��o abandonar-te. N�o fazia ideia de que aconteceria
tanta coisa depois de partir.
- O que queres dizer? - inquiriu, olhando-o com uma express�o triste
e sentindo que ele sabia, mas sem uma certeza absoluta.
- Estive com o Vladimir esta tarde.
- E o que � que ele te contou? - Mantinha-se muito r�gida e afastada
dele, fitando-o no mais fundo e ele deixou que o cora��o voasse ao seu
encontro. Ela sofrera tanto. N�o era justo. Devia ter acontecido a outra
pessoa. N�o a ela, a Eugenia ou aos Romanov... ou a VIadimir. Sentia
pena de todos, mas acima de tudo amava-a.
- Ele contou-me tudo, pequenina. - Deu mais um passo na sua
direc��o e tornou-a nos bra�os, verificando admirado que ela n�o se
debatia. - Contou-me sobre a tua av�... - Hesitou, mas apenas um
momento. - ... E sobre os teus primos... e a pobre Mashka... - Zoya
engoliu um solu�o, virou a cara e depois, como se o dique se tivesse
rompido subitamente, desatou a solu�ar nos seus bra�os e ele fechou a
porta com o p� e levou-a como a uma crian�a at� ao sof�, sem a largar
um momento. A jovem chorou durante muito tempo, tremendo da cabe�a
aos p�s enquanto lhe contava tudo o que ouvira da boca de Gilliard, e
Clayton continuou a abra��-la. Por fim, a sala ficou de novo em sil�ncio
e ouvia-se apenas um fungar ocasional. Ela virou os olhos verdes na sua
direc��o e Clayton beijou-a ternamente, como tinha ansiado desde que a
deixara. - Gostaria de ter estado aqui quando ele veio.
- Tamb�m teria gostado - confessou, chorando novamente. - Tudo tem
sido t�o terr�vel desde que te foste embora... e a Mashka... oh, meu Deus,
a pobre Mashka... Pelo menos, o Pierre disse que as balas a mataram
rapidamente. Mas os outros...
- N�o penses mais nisso. Tens de deitar tudo para tr�s das costas.
- Como posso? - Continuava sentada ao colo dele e recordava-se das
suas conversas de h� muito tempo com o pai.
- Tem de ser, Zoya. Pensa na tua av�, pensa em como foi corajosa.
Levou-te para fora da R�ssia numa tr�ica, rumo � liberdade. N�o te
trouxe at� aqui para que desistisses da esperan�a, abandonasses tudo e
ficasses sentada neste apartaniento at� morreres de fome. Trouxe-te para
que tivesses uma vida melhor, para te salvar a vida. N�o deves de forma
alguma desperdi��-la. Seria uma afronta ante a sua mem�ria e tudo o que
tentou fazer por ti. Tens de honr�-la e fazer tudo que puderes para
levares uma boa vida.
- Suponho que tens raz�o, mas � t�o dificil agora - retorquiu, ap�s o
que ergueu os olhos e acrescentou: - Ela contou-me sobre o dinheiro
antes de morrer. Ia devolver-to, mas tenho-me servido dele. - Corou e
pareceu-se mais com ela pr�pria.
- Assim o esperei. - Mostrava-se satisfeito porque, pelo menos, fizera
algo por ela. - O Vladimir diz que n�o dan�as h� meses.
- Desde que a av� adoeceu e depois de ela ter morrido e o Pierre vir
aqui... N�o consegui voltar.
- Tudo bem. - Olhou por cima do ombro dela e fixou o samovar com
um sorriso nost�lgico.
- O que queres dizer? O Diaghilev pediu-me mais uma vez que
partisse em tourn�e com eles. E agora podia, se quisesse. - Fungou de
novo, mas desta vez ele riu-se.
- N�o, n�o podias.
- Porque n�o?
- Porque vais para Nova lorque.
- Vou? - redarguiu, surpreendida. - Porqu�? - Parecia mais do que
nunca uma crian�a, e ele sorriu-lhe.
- Para casares comigo, � esse o motivo. Tens exactamente duas
semanas para juntares as tuas coisas e depois partimos. O que te parece? -
Fitou-o de olhos arregalados.
- Est�s a falar a s�rio?
- Sim, estou. Se me quiseres. - Apercebeu-se, sobressaltado, que ela
agora era uma condessa, mas n�o por muito tempo. Casaria com ela antes
de deixarem Paris. E, ent�o, seria Mrs. Clayton Andrews para o resto da
vida. - Se for idiota bastante para aceitar o peso de um homem de idade,
o problema � seu, Miss Ossupov. N�o vou avis�-la mais.
- �ptimo. - Agarrou-se-lhe como uma crian�a perdida, chorando
novamente, mas desta vez eram l�grimas de alegria e n�o de tristeza.
- Na verdade, leva algumas coisas contigo agora - retorquiu, pousando-
a suavemente no ch�o. - Vou arranjar-te um quarto no hotel. Vou vigiar-
te antes de partirmos. N�o quero ter de desatar a bater nessa porta aos
gritos de "t�l�gramme" nas duas pr�ximas semanas. - Zoya riu e secou as
l�grimas.
- Foste muito indelicado!
- N�o tanto como tu a fingires que n�o estavas em casa. N�o interessa.
Vai buscar as tuas coisas. Podemos voltar aqui dentro de dias e levar o
que quiseres contigo.
- N�o tenho muita coisa. - Passeou o olhar pela sala. N�o havia
praticamente nada que quisesse levar, exceptuando talvez o samovar e
algumas das coisas da av�. Queria deixar o passado para tr�s e come�ar
uma vida nova ao lado dele. E depois, presa de um s�bito terror, inquiriu
erguendo o rosto: - Falas mesmo a s�rio? - E se ele mudasse de opini�o?
Se voltasse a deix�-la ou a abandonasse em Nova lorque? Clayton
detectou todo o medo e comoveu-se.
- Claro que sim, mi�da. Devia ter-te levado comigo quando me fui
embora. - Contudo, ambos sabiam que ela n�o podia ter deixado a av� e
esta tamb�m n�o estava em condi��es de viajar. - Ajudo-te a fazer as
malas.
Meteu tudo numa mala pateticamente pequena e depois lembrou-se
da cadela. N�o podia abandon�-la e era a �nica amizade que tinha, �
excep��o, obviamente, de Clayton.
- Posso levar a Sava para o hotel?
- Claro - Pegou na cadelinha que tentava freneticamente lamber-lhe
o queixo e agarrou na malinha de Zoya, enquanto ela apagava as luzes.
Era altura de ir para casa. Fechou a porta sem olhar para tr�s e seguiu
Clayton pelas escadas, rumo a uma nova vida.
CAPITULO 28
Levou-lhe menos de um dia a arrumar as suas coisas. Empacotou o
samovar, os livros, o tric� da av�, os xailes dela e a sua roupa, a toalha de
renda, mas pouco mais havia. Deu o resto a Vladmir, a alguns amigos e
ao padre de Santo Alexandre Nevski.
Despediram-se de Vladimir e ela prometeu escrever. E, dentro de
dias, viu-se ao lado de Clayton diante de um padre e tornou-se sua
mulher. Assemelhava-se a um sonho quando o olhou com as l�grimas
correndo-lhe pelas faces. Perdera tudo e agora at� o nome desaparecera.
Contudo, agarrava-se a ele como se Clayton fosse a pr�pria vida, quando
regressaram ao hotel. Era como se receasse que ele pudesse mudar de
opini�o.
Passaram mais dois dias em Paris e depois apanharam o comboio para
a Su��a. Haviam decidido passar ali a lua-de-mel e confessou a Clayton
que gostaria de voltar a ver Pierre Gilliard antes de partir.
Levaram dois dias a chegar a Berna, pois o comboio parava
infindavelmente em todas as esta��es, mas, quando acordou no �ltimo dia,
faltou-lhe a respira��o. As montanhas cobertas de neve saudaram-na e,
por um momento, teve a sensa��o de estar de volta � R�ssia.
Gilhard foi esper�-los ao comboio e foram almo�ar a casa dele com
a mulher, que fora ama das crian�as Romanov. Abra�ou Zoya que
chorava, e Clayton ouviu-lhes as recorda��es durante o almo�o. Era
doloroso mas em simult�neo partilhavam imensa ternura e mem�rias
felizes.
- Quando volta? - indagou Clayton sem erguer a voz, enquanto Zoya
foi ver umas fotografias na companhia da mulher de Gilliard.
- Mal recuperemos for�as. A vida na Sib�ria foi muito dura para a
minha mulher. N�o quero lev�-la comigo. O Gibbes e eu combin�mos
encontrar-nos para ver se conseguimos descobrir mais alguma coisa.
- E isso ainda interessa? - Clayton interpelava-o honestamente. Tudo
parecia haver terminado e n�o valia a pena manter um elo com o passado
doloroso. Dissera o mesmo a Zoya, mas Gilliard parecia obcecado com a
situa��o. Agora ainda lhe era mais real, mas tornava-se compreens�vel,
pois permanecera vinte anos com os filhos do czar e eles eram toda a sua
vida.
- Para mim, interessa. N�o descansarei at� saber tudo, at� descobrir
qualquer deles que tenha sobrevivido. - Era uma nova ideia.
- H� alguma hip�tese?
- N�o acredito que haja. Mas preciso de ter a certeza, ou nunca mais
descansarei.
- Amava-os muito...
- Todos n�s. Eram uma fam�lia extraordin�ria e at� mesmo v�rios
guardas da Sib�ria tornaram-se mais brandos depois de os conhecerem.
Tinham de os mudar constantemente para manter o ambiente de dureza.
Os bolcheviques sentiam-se frustrados. O Nicolau era bondoso para todos,
at� mesmo para os que lhe haviam destru�do o imp�rio. Acho que nunca
se perdoou por ter abdicado a favor deles. Estava sempre a ler livros de
Hist�ria e afirmou-me que um dia o mundo diria que ele falhara... que
desistira... Acho que lhe despeda�ou o cora��o.
Era uma an�lise do homem que os outros jamais conheceriam. Um
perscrutar de uma �poca que n�o voltaria para nenhum deles. A
magnitude do que todos eles haviam vivido superava at� mesmo o que
possu�a para oferecer a Zoya em Nova lorque. Sabia, por�m, que ela l�
seria feliz. Nunca mais sentiria frio nem fome. Pelo menos, tinha isso a
oferecer-lhe. J� pensara em comprar-lhe unia casa. A sua mans�o de
granito na Quinta Avenida parecia-lhe de s�bito pequena de mais.
Passaram tr�s dias em Berna e depois levou-a a G�nova e a Lausana.
Regressaram a Paris no final de Fevereiro e apanharam o Paris para
Nova lorque. Partiu um belo dia do Havre com as suas quatro chamin�s
bem erguidas. Tratava-se de um bonito navio, o orgulho da French Line
e mantivera-se parado durante tr�s anos, pois tinha sido lan�ado a meio
da guerra.
Zoya portou-se como uma crian�a excitada durante a maior parte da
viagem. Engordara um pouco e os olhos tinham voltado a brilhar.
Jantaram v�rias vezes no camarote do capit�o e dan�avam pela noite fora.
Quase se sentia culpada por se divertir assim. Deixara tanta gente para
tr�s no seu mundo perdido, mas Clayton n�o lhe perinitia que pensasse
nisso agora. Apenas queria que ela seguisse em frente, para a nova vida
que partilhariam. Falava na casa que construiriam, nas pessoas que iriam
conhecer e nos filhos que teriam. Esperava-a toda uma vida pela frente.
Ainda n�o fizera vinte anos e tudo estava apenas no come�o.
E na noite antes de chegarem a Nova Iorque, ela deu-lhe o presente
de casamento que andara a guardar. Continuava embrulhado no cachecol
da av�. Clayton soltou uma exclama��o ao deparar com o ovo e o seu
desenho elaborado. Ela pousou o pequeno cisne de ouro em cima da
mesa e mostrou-lhe como funcionava.
- � a coisa mais bonita que vi em toda a iiiinha vida... N�o, a segunda
mais bonita.
Zoya fitou-o, desapontada, pois desejara que ele gostasse tanto
daquele ovo quanto ela. Significava tanto aos seus olhos. Era a �nica
rel�quia que conservava do passado.
- Qual foi a primeira?
- Tu, meu amor. Tu �s a mais bela e a melhor.
- Pateta! - exclamou a rir.
Fizeram amor durante toda a noite e ainda estavam acordados quando
a Est�tua da Liberdade se recortou no horizonte, ao apartarem a Nova
Iorque na manh� seguinte.
NOVA IORQUE
CAP�TULO 29
Zoya ficou no conv�s a observar, admirada, enquanto o Paris aportava
no cais da French Line no Hudson. Vangloriavam-se de terem a maior
prancha de desembarque do mundo e ela vestia um fato Chanel preto que
Clayton lhe tinha comprado antes de deixarem Paris.
Nessa altura, Chanel mudara-se para a Rue Cambon e os seus
modelos pareciam muito mais interessantes do que os de Poiret, embora
n�o fosse t�o famosa. Zoya usava um chap�u a condizer, apanhara o
cabelo, e sentira-se muito chique quan-do o comprara, mas agora invadia-
a uma s�bita sensa��o de estar mal vestida.
As mulheres � sua volta ostentavam roupas e peles caras e n�o vira
tantas j�ias desde que deixara a R�ssia. Apenas tinha a fina alian�a de
casamento de ouro que Clayton lhe enfiara no dedo quando haviam
casado.
N�o se via vest�gios de champanhe em parte alguma, contrariamente
a quando haviam partido do Havre. Os navios franceses tinham de
respeitar uma nova proibi��o sobre o �lcool e era necess�rio fazer
desaparecer todas as bebidas alco�licas, mal ultrapassavam o limite de
cinco quil�metros. Apenas podiam servir �lcool em �guas internacionais,
contrariamente aos navios americanos que n�o serviam nenhum. Este
facto aumentava a popularidade dos navios franceses e ingleses.
A linha do horizonte de Nova lorque n�o se assemelhava a nada do
que alguma vez vira. Longe estavam as igrejas, catedrais, espiras e a
antiga eleg�ncia da R�ssia ou o gracioso esplendor de Paris. Tudo isto era
moderno, vivo e excitante, fazendo-a sentir-se muito jovem quando ele a
conduziu at� ao seu Hispano-Suiza e o motorista arrumou as malas no
porta-bagagens.
- O que achas, pequenina? - Observava-a com uma express�o radiosa,
enquanto seguiam pela Quinta Avenida e se dirigiram � mans�o que ele
outrora partilhara com a mulher. Era elegante, pequena e fora decorada
por Elsie de Wolfe. As duas mulheres tinham sido boas amigas e ela
decorara as casas dos Astor e dos Vanderbilt em Nova lorque, bem como
as de muitos dos seus amigos em B�ston.
- � uma maravilha, Claytonl - Sentia-se a anos-luz das estradas
cobertas de neve em que viajara de tr�ica, rumo a Tsarskoie Selo.
Havia cavalos e carros nas ruas, mulheres de casacos de cores vivas
orlados de pele e homens caminhando apressados ao seu lado. Todos
pareciam felizes e contentes, e os olhos de Zoya dan�avam quando desceu
do carro e contemplou a mans�o de tijolo. Indubitavelmente mais
pequena do que o Pal�cio Fontanka, era, segundo os padr�es americanos,
muito grande e, quando se viu de p� no vest�bulo de m�rmore, duas
criadas de uniforme cinzento, com avental e touca, pegaram-lhe no casaco
e ela esbo�ou-lhes um sorriso t�mido.
- Esta � Mistress Andrews - anunciou Clayton, apresentando-a a
ambas e � idosa cozinheira que entrou com mais duas criadas, vinda da
cozinha.
O mordomo era ingl�s e tinha um ar muito s�rio e a casa ostentava
todos os sinais que tanto agradavam a Mrs. Wolf�, antiguidades franceses
misturadas com "moderne", como gostava de lhe chamar. Clayton j�
dissera a Zoya que poderia mudar o que quisesse, que queria que ela se
sentisse em casa. Contudo, a jovem adorava o que via.
Amplas portas-janelas francesas davam para um jardim coberto de
neve e Zoya bateu palmas como uma crian�a. Clayton riu e conduziu-a ao
andar de cima, at� ao quarto de dormir. Havia colchas de cetim rosa na
cama, reposteiros e um lustre encantador e tamb�m um quarto de vestir
com paredes forradas de cetim rosa s� para ela e roupeiros que lhe
lembravam os da m�e. E riu ao ver os seus poucos vestidos pendurados
quando a criada lhe desfez as malas nessa tarde.
- Receio que as criadas fiquem muito desapontadas - declarou a rir,
nua no quarto de vestir, antes de jantar. Acabara de tomar um banho na
luxuosa banheira de m�rmore... longe da imagem terr�vel da pequena
banheira na divis�o ao fundo do corredor no apartamento pr�ximo do
Palais Royal. Nunca mais teria de partilhar a casa de banho com os
vizirihos. Tudo lhe parecia um sonho quando olhava � volta e para o homem que a salvara das tristezas da sua vida em Paris. N�o fazia ideia
da riqueza dele nem da import�ncia que ele tinha na sociedade de Nova
lorque. De uniforme e com os seus modos simples n�o havia qualquer
motivo para desconfiar. - Porque n�o me falaste disto tudo?
- N�o teria tido qualquer import�ncia. - Clayton sabia que n�o era
esse o motivo por que ela o amava, o que se tornava reconfortante. Era
um al�vio n�o ser perseguido por debutantes fora de prazo ou filhas das
amigas da falecida m�e, recentemente vi�vas, divorciadas ou � ca�a de um
marido pr�spero.
Mais importante para Zoya era o facto de ele ser afectuoso e bom e
de lhe ter salvo a vida.
- Ficava sempre t�o embara�ada quando te falava na vida em
Sampetersburgo,... Receava que te parecesse excessivo.
- E pareceu... - Riu. - Mas tamb�m encantador... como a minha bela
noiva. - Ficou a v�-Ia enfiar a roupa intenor nova de cetim e depois
decidiu tirar-lha com a mesma rapidez.
- Clayton! - Mas n�o protestou quando ele a levou para a cama.
Todas as noites apareciam atrasadis para o jantar, e Zoya sentia-se
embara�ado com a vis�vel desaprova��o do mordomo.
Os criados n�o se mostravam calorosos e a jovem tinha consci�ncia de
um murmurar sempre que andava pela casa. Serviam-na mas com
relut�ncia e, sempre que poss�vel, mencionavam a antiga mulher dele. A
ex-Mrs. Andrews fora aparenteniente o m�ximo da perfei��o. A
empregada conseguira mesmo deixar um exemplar da Vogue no seu quarto
de vestir e aberta nas p�ginas onde Cecil Beaton falava com entusiasmo
do �ltimo vestido dela e de uma festa que dera para as suas amigas em
Virg�nia.
- Ela era lind�ssima, n�o? - perguntou Zoya suavemente uma noite,
quando estavam sentados junto � lareira do quarto. Contudo, ali, a lareira
apenas real�ava a decora��o e n�o era uma necessidade para que
sobrevivessem. Pensou com tristeza mais do que uma vez em Vladimir no
seu apartaniento gelado e nos outros amigos, literalmente a morrerem de
fome em Paris. Sentia-se culpada por tudo o que Clayton lhe dava.
- Ela quem? - Fitou-a sem compreender.
- A tua mulher. - Ela chamava-se Margaret.
- Vestia-se muito bem quando queria. Mas tu tamb�m, pequena Zoya.
Ainda nem sequer come��mos a ir �s compras.
- Estragas-me com mimos. - Sorriu-lhe tirmidamente, corando de uma
forma que o emocionava. Atraiu-a de encontro ao corpo.
- Mereces muito mais do que alguma vez te darei. - Queria
recompens�-la por tudo o que ela perdera, por tudo o que tinha sofrido
em Paris depois de abandonar a R�ssia. O ovo imperial da R�ssia estava
orgulhosamente exposto por cima da lareira no quarto, juntamente com
as fotografias dos pais dele em elegantes molduras de prata e tr�s
pequenas estatuetas em ouro que tinham pertencido � m�e. - �s feliz,
mi�da?
- Como deixar de o ser? - retorquiu com um olhar lumirioso no
quarto tranquilo. Clayton apresentou-a aos amigos e levava-a a todo o
lado na sua companhia, mas ambos tinham consci�ncia do ressentimento
das outras mulheres. Era bonita, era jovem e parecia requintada nos
vestidos luxuosos que ele lhe comprava. - Porque me detestam tanto? -
Sentiu-se mais do que uma vez incomodada porque as mulheres deixavam
de falar � sua chegada e hostilizavam-na.
- N�o te detestam. Apenas t�m ci�mes.
Tinha raz�o; por�m, no final de Maio, Clayton sentiu-se furioso pelos
rumores que se haviam desencadeado. Algu�m pusera a circular que
Clayton Andrews casara com um, vulgar bailarina de Paris... Mencionava-
se vagamente o Folies-Berg�re e um b�bedo do seu clube chegara a
perguntar se ela dan�ara o can-can. Clayton esteve prestes a bater-lhe.
Numa festa, uma mulher perguntou a outra, ao verem Zoya dan�ar,
se era verdade que ela fora uma prostituta paga em Paris.
- Deve ter sido. V� s� como ela dan�a!
Zoya dominava os passos do novo fox-trot na perfei��o sob as
cuidadosas instru��es de Clayton. E ele, elegante e orgulhoso,
acompanhava-a naquele rodopio, t�o obviamente apaixonado pela sua
bela e jovem mulher que todos a odiavam. Tinha vinte anos, uma
cinturinha de vespa, pernas bonitas e o rosto de um anjo.
Quando soavam os acordes da valsa, sentia l�grimas a picareni-lhe os
olhos enquanto giravam e fitava-o com a mem�ria da noite em que se
haviam conhecido e outras dolorosas de muito antes. Se fechasse os olhos,
estava de novo em Sampetersburgo... dan�ando com Konstantin ou o
elegante e jovem Nicolai no uniforme da Guarda Preobrajenski... ou
mesmo Nicolau, no Pal�cio de Inverno. Lembrava-se do baile de
debutante que nunca tivera e agora n�o lhe parecia doloroso. Ele
compensara-a e era mesmo capaz de olhar para as fotografias de Mashka
com um sorriso triste, mas sem l�grimas. Transportaria eternamente os
amigos no cora��o.
- Amo-te tanto, Pequenina... - sussurrou quando dan�avam no baile
dos Astor em Junho e ela parou subitamente e fitou-o, como se tivesse
visto um fantasma. Os p�s haviam ficado pregados ao ch�o e empalideceu.
- Passa-se alguma coisa? - murmurou Clayton.
- � imposs�vel... - Parecia doente e ele sentiu-lhe a m�o fria na dele.
Um homem alto e extremamente elegante acabara de entrar na sala
acompanhado por uma bonita mulher com um chamativo vestido azul.
- Conhece-los?
Todavia, ela n�o conseguia falar. Era o Pr�ncipe Obolenski ou algu�m
muito semelhante, e a mulher que lhe dava o bra�o parecia ser a gr�-
duquesa Olga, a tia das jovens gr�-duquesas que as levara todos os
domingos � cidade a almo�ar com a av�, antes de parar para tomar ch�
no Pal�cio Fontanka com Zoya.
- Zoya!... - Clayton receou que ela desmaiasse quando a nuilher soltou
uma exclama��o surpreendida e se precipitou na direc��o deles. Zoya
lan�ou-se nos bra�os dela.
- Querida... �s mesmo tu?... Oh, minha querida Zoya... - A
encantadora Olga abra�ou-a e ambas choraram l�grimas de alegria,
transbordantes das ternas lembran�as dos entes amados que haviam
perdido, enquanto Clayton e o pr�ncipe Obolenski as observavam. - Mas
o que est�s a fazer aqui?
Zoya esbo�ou uma ligeira v�nia e virou-se a fim de apresentar o seu
elegante marido.
- Olga Alexandrovna, posso apresentar-lhe o meu marido, Clayton
Andrews? - Ele inclinou-se, beijou a m�o da gr�-duquesa e depois Zoya
explicou que Olga era a irm� mais nova do czar.
- Onde tens estado desde... - Tinha dificuldade em pronunciar as
palavras, quando os olhos se cruzaram. N�o a via desde que ambas
haviam sa�do de Tsarskoie Selo.
- Estive em Paris com a av�... Ela morreu a seguir a Natal.
A gr�-duquesa voltou a abra�ar a jovem e todos no sal�o de baile
testemunharam o acontecimento; nas horas seguintes, a not�cia espalhou-
se por todo o lado. A nova mulher de Clayton Andrews era uma condessa
russa. Os relatos sobre Folies-Berg�re dissiparam-se e o pr�ncipe
Obolenski referiu os fant�sticos e ex�ticos bailes do Pal�cio Fontanka.
- A m�e dela era a mulher mais bonita que conheci na vida.
Obviamente fria, como todas as alem�s, mas de uma beleza espantosa.
E o pai era um homem encantador. Foi uma perda terr�vel quando o
mataram. Tantos homens fant�sticos que desapareceram. - Pronunciou as
palavras com pena, bebendo uma ta�a de champanhe, mas com menos
emo��o do que as mulheres. Zoya nunca mais saiu de perto de Olga
durante a noite. Estava a viver em Londres, mas deslocara-se Nova lorque
para visitar uns amigos. Estava alojada com pr�ncipe Obolenski e a
mulher, Alice Astor.
A cidade de Nova lorque ficou rapidamente a par das origens de
Zoya, da sua fam�lia nobre e, pouco depois. tornara-se uma coqueluche
da sociedade. Cecil Beaton fazia a cr�nica de cada um dos seus
movimentos e eram convidados para todos os lados. As pessoas que a
haviam posto de lado passaram repentinamente a ador�-la.
Elsie de Wolfe queria redecorar a casa e depois fez uma not�vel
sugest�o. Ela e as amigas haviam comprado uma s�rie de antigas herdades
em East River e estavam a remodelar as velhas casas numa rua chamada
Sutton Place. Ainda n�o e moda, mas sabia que assim seria, quando
chegasse ao fin, trabalho.
- Porque n�o me deixa decorar uma delas para si e para o Clayton? -
Estava a fazer esse trabalho numa casa destinada a William May Wright,
o accionista, e Cobina, a mulher. Coritudo, Zoya achava que estavam
muito bem na confort�vel mans�o de tijolo.
Zoya deu o seu primeiro jantar em honra da gr�-duquesa Olga antes
de ela regressar a Londres, e o seu destino tomou um rumo a partir de
ent�o. Estava fadada a tornar-se a menina-bonita de Nova lorque, para
grande satisfa��o do marido. Clayton satisfazia-lhe todos os caprichos e
encarregou secretamente Elsie de Wolfe de remodelar uma das casas de
Sutton Place para eles. Era, de facto, o supra-sumo da eleg�ncia e,
quando Zoya a viu, arregalou os olhos de espanto.
N�o era t�o exuberante como a nova casa dos Wright, onde tinham
estado na noite anterior e onde conhecera Fred Astaire e TaHulah
Bankhead. O mais chocante de tudo havia sido a casa de banho forrada
a marta, mas n�o havia esses excessos na casa dos Andrews. Definia-se
por uma eleg�ncia suave, ch�o de m�rmore, quartos arejados e cheios de
tesouros que Eis�e de Woolfe se assegurara de poderem agradar � jovem
condessa russa. As pessoas tinham come�ado a trat�-la assim, mas ela
sempre insistia em que agora era Mrs. Andrews. A ideia de usar o t�tulo
parecia-lhe rid�cula, embora os americanos parecessem ador�-lo.
Nessa altura, havia muitos outros emigrantes em Nova lorque, rec�m-
chegados de Paris e Londres e alguns deles directamente da R�ssia,
trazendo relatos da sua fuga enquanto a guerra civil rugia entre as for�as
vermelhas e brancas, que tentavam assumir o poder sobre a angustiada
na��o.
Contudo, os russos brancos em Nova lorque divertiam-na
frequentemente. Havia, sem d�vida, os verdadeiros aristocratas, muitos
dos quais conhecia, mas d�zias de outros vangloriavam-se de t�tulos que
nunca haviam tido na R�ssia. Havia pr�ncipes, princesas e condessas por
todo o lado.
Uma noite, ficou boquiaberta ao ser apresentada a uma princesa
imperial que logo reconheceu como a mulher que fizera chap�us para a
m�e, mas n�o disse nada de embara�oso quando foram apresentadas. E,
mais tarde, a mulher pediu que n�o a denunciasse aos russos ainda de
luto.
Ela pr�pria recebia muitos dos nobres que haviam sido amigos dos
pais. Contudo, o passado morrera e n�o havia conversa, ilus�o ou
qualquer recorda��o dolorosa que o fizesse reviver. Queria olhar em
frente, tomar-se uma parte integral da vida que levava. E s� no Natal se
permitiu lembrar com l�grimas renovadas, enquanto se conservava ao lado
de Clayton, entoando os c�nticos familiares russos e segurando a vela que
ardia em mem�ria dos que tinha amado e perdido. O Natal foi uma �poca
dif�cil, mas, nessa altura, j� h� nove meses que estava em Nova Iorque e
tinha not�cias excitantes para Clayton.
Esperou at� regressarem a casa da igreja e, quando estavam deitados
na enorme cama de dossel em Sutton Place, aguardou para lhe dizer at�
terem feito amor.
- Est�s o qu�? - Parecia completamente apanhado de surpresa e ficou
logo receoso de poder t�-la magoado. - Porque n�o me disseste? - Os
olhos brilhavam-lhe e Zoya chorava de alegria.
- S� soube h� dois dias. - Riu como se fosse a guardi� do segredo
mais importante do mundo. Ainda n�o se via, mas ela sabia e, desde que
o m�dico lhe dera a not�cia, sentia-se como se conhecesse o verdadeiro
significado da vida. Desejara o filho de Clayton mais do que qualquer
outra coisa no mundo e beijou-o, feliz, deixando que ele a observasse em
adora��o. Ainda n�o tinha vinte e um anos e ia ter um filho.
- Quando nasce?
- Ainda falta muito, Clayton. N�o antes de Agosto. - Ele ofereceu -se
para mudar para outro quarto, a fim de n�o lhe perturbar o sono, e Zoya
riu-se com a preocupa��o. - N�o te atrevas! Se mudares para outro
quarto, vou contigo!
- Poderia ter a sua gra�a. - Parecia divertido. Elsie de Wolfe dera-lhes
quartos suficientes por onde escolher. E, na Primavera, Zoya mandara-a
preparar um ber��rio. Era todo decorado em azul-claro com murais
suaves e luxuosos cortinados.
Tratava-se de uma nova aposta para Mrs. Wolfe que se divertira com
os Rolls em miniatura de Cobina Wright Junior, mas se sentiu satisfeita
com as perspectivas mais r�gidas de Zoya quanto ao mais adequado para
as crian�as. Zoya sempre denotara a dignidade e bom gosto com que
nascera e acrescentara o seu toque pessoal � casa em Sutton Place. Tinha
uma aura de tranquilidade e requinte de que todos falavam. H� muito que
tinham vendido a mans�o de tijolo na Quinta Avenida e contratado
pessoal novo.
E no dia em que Alexis Romanov, o querido e meigo Baby,teria
completado dezassete anos, deu � luz o primeiro filho. O parto correu
facilmente e dele resultou um robusto rapazinho de quatro quilos que
soltou o primeiro vagido enquanto o pai passeava nervosamente de um
lado para o outro, fora do quarto.
Zoya estava quase a dormir com o pequeno querubim nos bra�os
quando Clayton a viu finalmente. O beb� tinha o cabelo ruivo da m�e e
um rosto redondo. Estava todo embrulhado em rendas, e l�grimas de
alegria correram lentamente pelas faces de Clayton ao v�-lo.
- Oh, � t�o bonito... parece-se mesmo contigo...
- S� no cabelo... - murmurou, sonolenta. O m�dico dera-lhe algo para
dormir e fitou o marido com um ar sonhador. - Tem o teu nariz. -
Assemelhava-se a um pequeno bot�o de rosa no rosto angelical, e Clayton
riu, acariciando o sedoso cabelo ruivo. Zoya fitou-o, ent�o, suplicante e
perguntou: - Podemos chamar-lhe... Nicolau? Nicholas?...
- Se quiseres. - Gostava do nome e sabia quanto significava para ela.
Era n�o s� o nome do czar como o do falecido irm�o.
- Nicholas Konstantin... - sussurrou, brindando-o com uma express�o
de felicidade, e depois adormeceu, ao mesmo tempo que o seu adorado
marido a velava; por fim, saiu do quarto nos bicos dos p�s, agradecido por
todas as d�divas da vida. Ao cabo de todos aqueles anos, tinha um filho...
um filho! Nicholas Konstantin Andrews.
"Soa bem", pensou a rir e desceu as escadas para festejar com uma
ta�a de champanhe.
- Ao Nicholas! - brindou, sozinho na sala e com um sorriso nos l�bios. - � Zoya!
CAP�TULO 30
Os anos seguinte voaram sobre asas de anjos, cheios de pessoas,
arrebatamento e festas. Zoya encaracolou o cabere que o horrorizou,
descobriu os cigarros e depois achou que eram uma idiotice. Ccil Beaton
escrevia constantemente sobre ela e as famosas festas na casa que
constru�ram para os Ver�es em Long Island.
Viram o �ltimo espect�culo de Nijinski em Londres, e Zoya ficou
muito triste ao saber que ele enlouquecera e fora internado numa
institui��o em Viena. Contudo, o ballet j� n�o fazia parte da sua vida, �
excep��o dos espect�culos a que compareciam ocasionalmente com os
Vanderbilt ou os Astor,
Assistiam a torneios de p�lo, recep��es, bailes e organizaram eles
pr�prios uma s�rie deles. A �nica vez que moderou o ritmo foi em 1924
quando descobriu que estava gr�vida novamente. O pr�ncipe de Gales
acabara de os visitar em Long Island, depois de assistir a um desafio de
p�lo. Desta vez, passou bastante mal e Clayton esperava que tal
significasse que teria uma menina. Aos cinquenta e dois anos, ansiava por
ter uma filha.
Ela nasceu na Primavera de 1925, o mesmo ano em que Josephine
Baker se tornou a coqueluche de Paris.
O cora��o de Clayton encheu-se de alegria quando viu a rec�m-
nascida pela primeira vez. Tinha o mesmo brilhante cabelo ruivo da m�e
e do irm�o Nicholas e soube de imediato impor a sua presen�a aos
adniradores. Chorava quando as suas ordens n�o eram satisfeitas e foi a
menina dos seus olhos, mal nasceu.
Alexandra Marie Andrews foi baptizada com o vestido de baptizado
que h� quatro gera��es se conservava na fam�lia Clayton. Fora feito em
Fran�a durante a guerra de 1812 e, quando o vestiu, parecia uma das
duquesas imperiais.
O cabelo era da cor do da m�e, mas os olhos eram os de Clayton e
tinha uma personalidade muito pr�pria. Aos dois anos, dominava at�
mesmo o irm�o. Nicky, como lhe chamavam, tinha a delicadeza do pai e
a alegria de viver que fora apan�gio do irm�o de Zoya. Era uma crian�a
que todos admiravam e de que todos gostavam, sobretudo a m�e.
Contudo, aos quatro anos, Sasha fazia andar todos numa roda-viva.
At� a velha Sava fugia, aterrorizada, quando a via zangada. A cadela tinha
doze anos e continuava com eles, sempre nos calcanhares de Zoya quando
ela estava em casa ou atr�s do pequeno Nicky, a quem adoptara.
- Sasha! - exclamou a m�e, desesperada, quando, ao regressar a casa,
a encontrou com as suas melhores p�rolas e tendo despejado um frasco
inteiro de Lilas, o perfume que ainda usava e Clayton lhe comprava
sempre. - N�o deves fazer coisas dessas!
A pr�pria ama sentia dificuldade em control�-la. Era uma jovem
francesa que tinham trazido de Paris, mas n�o havia censuras nem ralhos
que impressionassem a pequena condessa.
- Ela � mesmo assim, mam�! - desculpou-a Nicholas da porta. Tinha
nessa altura oito anos e era t�o elegante como o pai. - � uma rapariga.
As raparigas gostam de usar coisas bonitas.
Os olhos cruzaram-se com os de Zoya e ela sorriu. Era t�o bom, t�o
compreensivo, t�o parecido com Clayton. Gostava de todos, mas era
Alexandra, Sasha como lhe chamavam, a testar-lhe a paci�ncia.
� noite, iam ao Cotton Club e depois dan�ar em Harl�m. E meses
antes tinham assistido a uma fabulosa festa oferecida no fant�stico
apartamento de Cond� Nast, na Park Avenue. Cole Porter tamb�m
marcara obviamente presen�a e Elsie de Wolfe, que queria decorar uma
casa para Zoya, em Palm Beach. Todavia, dada a sua pele delicada, ela
n�o gostava de sol e contentava-se em ir at� l� de passagem todos os
anos, quando ficavam com os Whitney.
Nesse ano, Zoya comprou a roupa a Lelong e tornou-se muito amiga
da sua encantadora mulher, a princesa Natalie, que era filha do gr�o-
duque Paul e tamb�m russa como ZIva. E Tallulah Bankhead repreendera
a jovem mais do que uma vez por ela n�o usar bastante b�ton.
Os bailes com vestidos de fantasia estavam na moda e Clayton
adorava-os. Tinha cinquenta e sete anos e continuava loucamente
apaixonado pela mulher, embora a espica�asse sem cessar nesse ano,
dizendo-lhe que ela tinha finalmente idade para estar casada com ele,
agora que fizera trinta,
Hoover tinha sido eleito presidente, derrotando o governador AI
Smith de Nova lorque. Calvin Coolidge decidira n�o voltar a candidatar-
se. E o governador de Nova Iorque era Franklin Roosevelt, um homem
interessante e casado com uma mulher inteligente, embora n�o fosse
bonita. Contudo, Zoya apreciava a companhia dela e as conversas que
partilhavam, ficando sempre satisfeita quando os Roosevelt os convidavam
para jantar.
Assistiram � pe�a Capr�ce com eles e, embora Clayton se mostrasse
entediado, Zoya e Eleanor adoraram-na. Viram em seguida Street Scene,
que ganhou o Pr�mio Pulitzer. Todavia, Clayton confessou que se divertia
muito mais no cinema. Era doido por Colleen Moore e Clara Bow. E
Zoya gostava, igualmente de Greta Garbo.
- �s como os estrangeiros - tro�ava Clayton mas ela deixara de
parecer estrangeira aos olhos de quem quer que fosse. Decorridos dez
anos, Zoya integrara-se por completo na vida de Nova Iorque. Adorava
o teatro, o ballet e a �pera levara o pequeno Nicky a ver O Cavaleiro da
Rosa com eles em Janeiro, s� que ele ficou chocado ao ver uma mulher
a fazer o papel de homem.
- Mas � uma rapariga! - exclamara em voz alta, chocado, e as pessoas
do camarote ao lado sorriram. Zoya agarrou-lhe ternamente na pequenina
m�o e sussurrou-lhe uma explica��o aceit�vel relacionada com o primor
das vozes. - Que horror - declarou e enfiou-se no assento, enquanto
Clayton sorria, sem muita certeza de n�o concordar com o filho.
Nicholas interessou-se muito mais pelos voos de Lindbergh. E Clayton
e Zoya foram ao casamento de Lindbergh com Anne, a filha do
embaixador Morrow, em Janeiro, pouco antes de mudarem para Long
Island, onde passariam o Ver�o.
Os mi�dos sentiam-se felizes ali e a pr�pria Zoya gostava de dar
longos passeios pela praia, conversando com Clayton os amigos, ou
ficando sozinha, a meditar nos Ver�es da sua juventude, em Livadia, na
Crimeia.
Por vezes, ainda pensava neles, seria imposs�vel o contr�rio. As figuras
do passado continuavam presentes no seu cora��o, mas as recorda��es
eram agora mais t�nues e havia alturas em que tintia dificuldade em
definir os rostos.
Na comija da lareira do quarto, tinha fotografias de Marie e das
outras jovens em molduras Faberg�. Aquela em que estavam todas de
cabe�a para baixo continuava a ser a sua preferida e o pequeno Nicholas
tamb�m lhes conhecia os nomes e os rostos. Gostava de ouvir falar sobre
como eram, o que tinharn dito e feito, as maldades de crian�a e intrigava-
o que ele e Alexis, o filho do czar, partilhassem o mesmo dia de anos.
Tamb�m gostava de ouvir "as partes tristes", como lhes chamava...
sobre o tio Nicolai, em honra de quem recebera o nome. Zoya falava-lhe
das discuss�es, partidas e desapontamentos entre ambos e garantiu-lhe
que ela e Nicolai tinham lutado quase tanto como ele e Sasha. Aos
quatro, ele achava que ela era uma chata do pior. E havia outros em casa
da mesma opini�o. O pai mimava-a mais do que agradava a Zoya, mas
nem pensar em repreender a filha na presen�a dele.
- � uma crian�a, querida. N�o a perturbes.
- Mas se n�o a disciplinarmos agora, Clayton, ela ser� um monstro aos
doze anos.
- A disciplina � para os rapazes - replicava, mas tamb�m era incapaz
de ralhar a Nicholas. Era bondoso para todos e, nesse Ver�o, brincou com
eles um tempo infindo na praia.
Nessa altura, o rei Jorge voltara a ter for�a e poder na Gr�-Bretanha.
Zoya enervava-se sempre ao ver fotografias dele. Parecia-se tanto com o
seu primo direito, o czar, que era sempre um choque aquele rosto a fit�-la
de um retrato. A pr�pria neta, Isabel, tinha s� um ano menos do que
Sasha.
Nesse Ver�o, o que mais impressionou o pequeno Nicholas foi uma
exibi��o de Yehudi Menuhin em Nova lorque. O mi�do era um prod�gio
no violino e apenas tr�s anos mais velho do que Nicholas, o qual ficou
fascinado pela sua maneira de tocar. Falou no assunto durante algumas
semanas, e Zoya ficou satisfeit�ssima.
Clayton andava a ler na praia A Oeste Nada de Novo e, nesse Ver�o,
divertiu-se a jogar na bolsa. Desde Mar�o que as ac��es subiam e desciam
e as pessoas faziam enonnes fortunas. Nos �ltimos dois meses, Clayton
comprara dois colare de diamantes a Zoya com uma frac��o dos lucros
obtidos. Mas ela estava muito triste com a not�cia de que Diaghilev
morrera em Veneza, em Agosto. Teve a sensa��o de que se fechava mais
um cap�tulo da hist�ria para ela e falou no assunto a Clayton, enquanto
passeavam na praia, depois de ter sabido a not�cia.
- Se ele n�o me tivesse deixado dan�ar, ter�amos morrido de fome.
Eu n�o sabia fazer mais nada - replicou, olhando tristemente para
Clayton, e ele pegou-lhe na m�o, recordando como a vida havia sido dura
nessa altura, o horroroso apartamento pr�ximo do Palais Royal, a quase
inexist�ncia de comida durante a guerra. Tinham sido, na realidade,
tempos dif�ceis, mas pertencendo a um passado distante, e ela fitou-o com
um sorriso. - E depois apareceste tu, meu amor... - Nunca se esquecia de
que ele a salvara.
- Teria aparecido outra pessoa.
- N�o algu�m que pudesse amar como te amo - redarguiu
meigamente. Ele inclinou-se para a beijar e detiveram-se longamente a
olhar os �ltimos raios do p�r do Sol do Ver�o. Regressariam a Nova
Iorque no dia seguinte. Nicholas tinha de ir para a escola e Sasha ia
come�ar a frequentar o jardim-infantil. Zoya pensou que lhe faria bem
come�ar a contactar com outras crian�as, embora Clayton n�o tivesse
tantas certezas. No entanto, confiava sempre esse tipo de assuntos �
mulher.
Jantaram de novo com os Roosevelt, praticamente a seguir ao
regresso. Tamb�m eles tinham voltado da sua casa de Ver�o em
Campobello. E, uma semana mais tarde, os Andrews deram uma festa
para celebrar o come�o de uma nova �poca social. O pr�ncipe Obolenski
apareceu como era seu h�bito e com ele centenas de outros igualmente
famosos.
O m�s pareceu voar entre festas, teatro, bailes, e Outubro chegou
num abrir e fechar de olhos. Clayton andava preocupado pois o neg�cio
das ac��es n�o corria bem e telefonou a John Rockefeller a convid�-lo
para almo�ar, mas ele viajara at� Chicago por uns dias e teria de esperar
para o ver.
Contudo, duas semanas mais tarde, Clayton sentia-se demasiado
perturbado para almo�ar com quem quer que fosse. As suas ac��es
estavam a baixar, mas n�o queria dizer a Zoya para n�o a afligir. Na
verdade, apostara todos os seus bens na bolsa h� ums meses. Estava tudo
a correr t�o bem que tivera a certeza de conseguir triplicar a fortuna da
fam�lia.
Na quinta-feira, vinte e quatro, todos se desfaziam das ac��es, e os
conhecidos de Clayton pareciam em p�nico. Nessa tarde deslocou-se �
bolsa e voltou aterrorizado e no dia seguinte as coisas pioraram. Na
segunda-feira, verificou-se o desastre total e � noite Clayton soube que
estava arruinado. A bolsa fechou � uma hora num v�o esfor�o de deter
a fren�tica venda das ac��es, mas para Clayton era tarde de mais. A bolsa
ficaria fechada durante o resto da semana, mas ele j� perdera tudo o que
possu�am. Apenas lhes restava as casas e o conte�do. Tudo o mais
desaparecera. Clayton regressou a casa a p�, sentindo um enorme peso no
peito. Mal conseguiu encarar Zoya, ao entrar no quarto.
- Querido?... O que aconteceu?... - Ele tinha o rosto cor de cinza
quando se virou para a olhar. Zoya estivera a escovar o cabelo que
deixara crescer novamente, pois odiava os carac�is t�o em moda, mas ele
pareceu nem a ver ao atravessar o quarto, detendo-se junto � lareira com
um olhar vazio. - O que aconteceu? - Deixou cair a escova e correu para
junto dele. - Clayton... Clayton, o que se passa?
O marido fitou-a de uma forma que lhe recordou subitamente o pai,
quando Nicolai fora morto.
- Perdemos tudo, Zoya... tudo... Fui um idiota... - Tentava explicar-lhe
o que sucedera enquanto ela o fitava de olhos muito abertos, depois do
que o abra�ou e apertou de encontro ao corpo, deixando-o chorar. - Meu
Deus... Como pude ser t�o est�pido... O que faremos, agora?
O cora��o dela quase parou. Era como na revolu��o. Contudo, havia
sobrevivido e, desta vez, tinham-se um ao outro.
- Venderemos tudo... trabalharemos... sobreviveremos, Clayton. N�o
interessa. - Contudo, ele soltou-se dos bra�os dela, pondo-se a percorrer
o quarto de um lado para o outro, fren�tico ante a consciencializa��o de
que estavam arruinados e o mundo desabara � sua volta.
- Est�s doida? Tenho cinquenta e sete anos... O que achas que posso
fazer? Conduzir um t�xi como o pr�ncipe Vladimir? E tu? Regressares ao ballet? N�o sejas idiota, Zoya... Estamos arruinados! Arruinados! As
crian�as morrer�o � fome... - Chorava quando ela lhe pegou nas m�os,
que estavam geladas.
- N�o morrer�o � fome. Posso trabalhar e tu tamb�m. Se vendermos
o que temos, podemos viver durante anos desse dinheiro. - S� os colares
de diamantes chegariam para lhes dar casa e comida muito tempo; ele,
por�m, abanou a cabe�a com uma express�o triste, pois encarava a
situa��o de uma outra forma. J� vira um seu conhecido saltar da janela
do gabinete. E Zoya desconhecia as enormes d�vidas que ele contra�ra,
sabendo que possu�a dinheiro para as cobrir quando quisesse.
- E a quem vender�s? A todos os outros que tamb�m perderam a
camisa? � tudo in�til, Zoya...
- N�o, n�o � - replicou num tom suave. - Temo-nos um ao outro e as
crian�as. Quando sa� da R�ssia, partimos numa tr�ica sem nada, cobertas
de trapos, com dois dos cavalos do tio Nicolau e as j�ias que conseguimos
coser nas bainhas das roupas e sobrevivemos. - Ambos pensaram em
simult�neo na mis�ria do apartamento dela de Paris, mas haviam
sobrevivido e agora ela tinha-o e aos filhos. - Pensa no que os outros
perderam... Pensa no tio Nicolau. e na tia Alix... N�o chores, Clayton...
Se eles conseguiram ter coragem, n�o h� nada que seja imposs�vel
encarar, meu amor... - Mas ele Iimitava-se a chorar nos bra�os dela,
incapaz de fazer frente � situa��o.
Nessa noite, quando desceram para jantar, ele mal pronunciou
qualquer palavra. Zoya tentava pensar, fazer planos, decidir o que vender
e a quem vender. Possu�am duas casas, todas as antiguidades que Elsie de
Wolfe, agora Lady Mendl, os ajudara a descobrir, quadros, objectos... uma
infinidade.
Assemelhava-se a planear uma fuga, enquanto fazia sugest�es e
tentava acalm�-lo. Todavia, ele subiu ao andar de cima com passo pesado
e, ao falar-lhe do quarto de vestir, preparando-se para se deitar, n�o
conseguiu arrancar-lhe uma �nica resposta. Sentia-se preocupad�ssima
com ele. Fora um rude golpe, mas, depois de sobreviver a tudo o mais
que lhe acontecera na vida, recusava deixar-se abater agora.
Ajud�-lo-ia a lutar, ajud�-lo-ia a sobreviver, esfregaria soalhos, se fosse
necess�rio. N�o se importava e, ao p�r-se � escuta, interrogou-se sobre se
ele sa�ra do quarto ao lado. H� v�rios minutos que n�o dizia nada.
- Clayton? - Entrou no quarto vestida com uma camisa de noite que
ele lhe comprara h� um ano, em Paris. Soltou uma exclama��o abafada
ao avist�-lo, prostrado no ch�o, como se tivesse ca�do, correu para o seu
lado e virou-o de costas. Contudo, ele fitou-a com olhos vazios. - Clayton!
Clayton!... - P�s-se a solu�ar, gritando o nome dele, batendo-lhe na face,
tentando arrast�-lo pelo ch�o, como se tudo o que fizesse servisse para o
reanimar. No entanto, ele n�o se mexia, n�o via e j� n�o podia ouvi-la.
Clayton Andrews morrera de um ataque de cora��o, incapaz de
sobreviver � perspectiva de perder mais do que podia aguentar e, quando
caiu de joelhos ao lado dele e chorou, apoiando-lhe a cabe�a no rega�o,
Zoya fitou-o, incr�dula. O homem que amara estava morto. Abandonara-
a. Desesperada e s�, novamente pobre, o sonho em que se tornara a sua
vida voltou a transformar-se em pesadelo.
CAPITULO 31
- Mam�, porque � que o pap� morreu? - Sasha fitava Zoya com os
grandes olhos azuis, ao voltarem do cemit�rio, no Hispano-Suiza.
Toda a gente em Nova lorque comparecera, mas ela mal os vira.
Sentia-se como que envolta numa n�voa, ao olhar para a crian�a, com o
pesado v�u preto ocultando-lhe o rosto, as m�os enfiadas em luvas negras
e os filhos numa ang�stia muda, sentados ao seu lado.
Nicholas mantivera-se junto dela no funeral, um homenzinho
agarrando-lhe na m�o, de olhos cheios de l�grimas enquanto o coro
cantava a docemente triste Ave-Maria. Contudo, outros como ele haviam
morrido na semana anterior, alguns por vontade pr�pria, outros abatidos
pelo golpe que n�o haviam conseguido suportar. Fosse como fosse, tinha-o
perdido.
- N�o sei, querida... N�o sei porqu�... Teve um terr�vel, e... foi para
o c�u ter com Deus. - Mal conseguia articular as palavras e Nicholas
observava-a.
- Est� no c�u com o tio Nicolau e a tia Alix? - perguntou Nicholas e
ela fitou-o.
Conservara-os vivos para ele, mas para qu�? O que interessava agora?
Todos os que amava tinham desaparecido... � excep��o dos filhos.
Abra�ou-os com for�a ao sair do carro e conduziu-os precipitadamente
para casa. N�o convidara ningu�m, n�o queria ver ningu�m, n�o queria
dar explica��es, nem dizer-lhes nada. J� bastava ter de contar �s crian�as.
Decidira aguardar uns dias; j� dissera � maioria da criadagem que
podia ir embora. Ficava apenas com uma criada e a ama e poderia ser ela
pr�pria a cozinhar. E o motorista tamb�m partiria quando ela vendesse
os carros. Ele prometera fazer tudo o que pudesse para a ajudar.
Conhecia v�rias pessoas que tinham gostado do Alfa Romeo de Clayton
e do Mercedes de que se servia e o H�spano-Suiza fora desejado por todos.
Apenas se interrogava sobre se ainda haveria algu�m que os comprasse.
A velha cadelinha Sava aproximou-se e lainbeu-lhe a m�o, como se
percebesse, enquanto Zoya se mantinha sentada junto � lareira no quarto,
fixando o s�tio onde ele morrera h� uns dias. Parecia inacredit�vel que
tivesse desaparecido... que Clayton n�o estivesse ali... e agora tinha tanto
que fazer. No dia seguinte ao da morte dele, convocara os advogados e
eles tinham prometido explicar-lhe tudo.
Quando o fizeram, as not�cias nada tinham de bom. A situa��o era
ainda pior do que Clayton receara. Deixara d�vidas enormes e n�o restava
nenhum dinheiro. Os advogados aconselharam-na a vender a casa de Long
Island por qualquer pre�o e com todo o recheio. Seguiu o conselho e
foram eles a coloc�-la no mercado para venda. Nem sequer l� foi buscar
as suas coisas. Sabia que seria incapaz. Todos estavam a fazer o mesmo,
os que n�o se suicidavam ou fugiam das casas pela calada a meio da
noite, a fim de evitar as contas e o pagamento das hipotecas.
E s� no s�bado conseguiu decidir-se a enfrentar os filhos. Tomara as
refei��es com eles, mas movia-se como uma m�quina, de sala em sala,
apenas lhes falando quando tinha de o fazer. Contudo, mal conseguia
pensar. Havia tanto que fazer, tanto que embalar, tanto que vender e
nenhum lugar para onde irem, depois de o fazer.
Sabia que tinha de arranjar emprego, mas ainda nem sequer conseguia
pensar no assunto. N�o conseguia pensar em nada e fitava-os com um
olhar angustiado. Sabia que Sasha era demasiado nova para entender, mas
tinha de dizer a Nicholas e s� com muita dificuldade foi capaz de
aguentar a dor nos olhos do filho quando o tentou.
De facto, apenas conseguiu abra��-lo com muita for�a e ambos
choraram o marido e o pai que haviam amado. Sabia, por�m, que tinha
de ser forte, t�o forte quanto a av� o fora por ela e em circunst�ncias
ainda piores. Chegou a ponderar em regressar a Paris com os filhos, pois
a vida talvez fosse mais barata, mas tamb�m l� as pessoas tinham
problemas, e Sergei Obolenski confidenciara-lhe que havia agora quatro
mil russos ao volante de t�xis em Paris. E tudo seria demasiado estranho
para eles. Zoya decidiu que deviam permanecer em Nova lorque.
- Nicholas... meu amor... vamos ter de nos mudar - As palavras
pareciam duras e estranhas e ele fitou-a com um olhar confuso.
- Porque o pap� morreu?
- Sim... N�o... Bom, na verdade, porque... - "Porque agora somos
pobres... porque n�o podemos dar-nos ao luxo de continuar a viver aqui...
porque..." - ... Porque vamos passar uns tempos dificeis. N�o podemos
ficar aqui. - Nicholas olhou-a com curiosidade, tentando mostrar-se
corajoso, e Sasha brincava com a cadela, ao mesmo tempo que a ama sa�a
da sala, debulhada em l�grimas. Sabia que teria de os deixar e sentia o
cora��o despeda�ado por se separar das crian�as de quem cuidara desde
que tinham nascido. Contudo, Zoya dissera-lho no dia anterior. J� n�o
havia forma ocultar a verdade.
- Vamos ser pobres, mam�?
- Sim - respondeu, pois sempre fora honesta com o filho. - Da forma
a que penso que te referes. N�o vamos ter uma casa grande, nem uma
por��o de carros. Mas vamos ter ac coisas importantes... excepto o pap�...
- Sentiu um n� na garganta. - ... Temo-nos, por�m, uns aos outros,
querido. E ser� sempre assim. Lembras-te do que te contei sobre o tio
Nicolau, a tia Alix e as crian�as quando as levaram para a Sib�ria? Foram
muito corajosos e encararam tudo quase como um jogo. Sempre souberam
que o importante era estarem juntos, amarem-se uns aos outros e serem
fortes... e � o que nos cabe fazer agora.
As l�grimas corriam-lhe pelas faces enquanto falava, mas Nicholas
fitava-a com uma express�o solene e tentando desesperadamente
entender.
- Vamos para a Sib�nia? - Foi a primeira vez que pareceu intrigado,
e ela sorriu.
- N�o, querido, n�o vamos. Vamos ficar aqui em Nova lorque.
- Onde viveremos? - Como todas as crian�as, estava interessado nas
realidades mais simples.
- Num apartamento. Terei de encontrar um s�tio par vivermos.
- Ser� bonito?
Pensou imediatamente nas cartas que Mashka lhe escrevera de
Tobolsk e Iekaterinburgo.
- Torn�-lo-emos bonito, garanto.
- Podemos levar a cadela? - acrescentou, fitando-a de novo com um
olhar triste.
Os olhos de Zoya encheram-se de l�grimas ao observar Sava a brincar
com Sasha no ch�o e voltou a fix�-lo.
- Claro que sim - respondeu. - Ela acompanhou-me desde
Sampetersburgo. - Quase sufocou, mas fixou-o com um olhar tranquilo e
acrescentou: - N�o vamos deix�-la, agora.
- Posso levar os meus brinquedos?
- Alguns... os que conseguirmos meter no apartamento, prometo.
Sorriu, um pouco tranquilizado.
- Ainda bem. - E depois voltou a fazer uma express�o triste, pensando
no pai e no facto de nunca mais o ver. - Vamos dentro em pouco?
- Acho que sim, Nicholas. - O mi�do esbo�ou um aceno de cabe�a e,
com um �ltimo abra�o, levou Sasha e a cadela e abandonaram o quarto.
Zoya deixou-se ficar sentada no ch�o, rezando para ser t�o forte como
Eugema o tinha sido com ela e, nesse momento, Nicholas entrou nos
bicos dos p�s e fitou-a.
- Amo-te, mam� - pronunciou.
Ela envolveu-o nos bra�os e tentou suster as l�grimas.
- Tamb�m te amo, Nicholas... Amo-te muito, muito...
Nicholas aproximou-se ainda mais e meteu-lhe algo na m�o, sem uma
palavra.
- O que � isto?
Era uma moeda de ouro, e ela sabia quanto o filho se orgulhava dela.
Clayton dera-lhe apenas h� uns meses e ele mostrara-a a toda a gente,
durante semanas.
- Podes vend�-la, se quiseres. Ent�o, talvez n�o sejamos t�o pobres.
- N�o... n�o, meu amor... � tua. O pap� deu-ta.
Nicholas manteve-se muito direito, tentando reprimir as l�grimas.
- O pap� teria querido que eu tomasse conta de voc�s.
Zoya limitou-se a abanar a cabe�a, incapaz de falar, apertando a
moeda na m�o. Abra�ou-o com muita for�a e levou-o at� ao quarto dele.
CAPITULO 32
Os Wright tamb�m haviam perdido o seu dinheiro. Cobina e a filha
tinham organizado um n�mero musical de clube nocturno, vestindo roupa
de vaqueiro e engra�ados chap�us. Ela e Bill estavam a divorciar-se e a
casa de Sutton Place fora vendida por uma ninharia.
Outras mulheres vendiam os casacos de peles em �trios de hotel e
trocavam-se p�neis de p�lo por dinheiro a pronto. Zoya divisava por todo
o lado o mesmo tipo de p�nico que se verificara h� doze anos em
Sampetersburgo, mas sem a amea�a fisica da revolu��o.
A pr�pria casa deles em Long Island foi vendida por pouco mais do
que o pre�o dos carros ali guardados, e os advogados de Clayton
aconselharam-na a agarrar a oportunidade. "Cholly Knickerbocker" fazia
o relato de novas humilha��es quase diariamente. A coluna era, na
verdade, escrita por um indiv�duo chamado Maury Paul e o que ele
descrevia era quase inacredit�vel, referindo senhoras da sociedade que se
tornavam empregadas de mesa e lojistas.
Algumas n�o haviam sido afectadas pelo desastre financeiro, mas, ao
passear os olhos por Sutton Place, Zoya tinha a sensa��o de que estava
quase deserto. A sua criadagem fora embora, � excep��o da ama que
cuidava das crian�as.
Sasha parecia n�o entender o desaparecimento de Clayton, mas
Nicholas tornara-se uma crian�a pensativa e sossegada e fazia constantes
perguntas a Zoya sobre onde iam morar e quando venderiam a casa. Ela
teria enlouquecido se n�o sentisse tanta pena do mi�do. Recordava-se dos
seus pr�prios medos durante a revolu��o. Os olhos de Nicholas
assemelhavam-se a dois profundos lagos verdes de dor e preocupa��o.
Parecia um homem pequeno enquanto a observava a escolher roupa mais
pr�tica no quarto.
Seria in�til levar os requintados vestidos de noite, todos os Poiret,
Chanel, Lanvin e Schiaparelli. Embrulhou-os e entregou-os � ama para que
os vendesse no �trio de entrada do Plaza. Tamanha indignidade seria
demasiado humilhante, se ela n�o estivesse excessivamente preocupada.
Necessitavam de todo o dinheiro que conseguissem arranjar.
E, por fim, vendeu a casa com o mobili�rio que Elsie de Wolfe lhes
comprara, os quadros, os tapetes persas, at� mesmo a lou�a de porcelana
e os cristais. Mal chegou para as d�vidas de Clayton e apenas lhes rendeu
o suficiente para viverem uns meses.
- N�o ficaremos com nada, mam�? - perguntou Nicholas olhando em
volta com uma express�o triste.
- S� com o que precisaremos no novo apartamento. - Andou �
procura de casa durante dias a fio em bairros que nunca vira e, por fim,
descobriu uma de duas pequenas divis�es na Rua 17 da zona ocidental da
cidade.
Tratava-se de um pequeno apartamento com duas.janelas que davam
para as traseiras de um outro pr�dio. Era m�nimo, escuro e havia um
quase insuper�vel cheiro a lixo. Durante tr�s dias ela pr�pria fez a
mudan�a com a ajuda da ama e de um velho negro que contratou por um
d�lar.
Levaram duas camas, uma secret�ria, o maple do toucador, um
pequeno tapete e alguns candeeiros. E pendurou o quadro de Nattier que
Elsie de Wolfe lhes trouxera recentemente de Paris. Receava levar as
crian�as para aquele local, mas no fim de Novembro a casa em Sutton
Place vendeu-se e, dois dias mais tarde, despediram-se com l�grimas e um
beijo da ama e, de p�, no �trio de entrada de m�rmore, Zoya deteve-se
enquanto ela beijava Sasha e todos choravam.
- Voltaremos aqui, mam�? - perguntou Nicholas fitando-a e tentando
mostrar-se corajoso, mas o queixo tremia-lhe e tinha os olhos muito
abertos ao examinar o que o rodeava pela �ltima vez. Zoya de bom grado
lhe teria poupado esta dor, mas pegou-lhe na m�ozinha e ajeitou o casaco
� volta dos ombros antes de lhe responder.
- N�o, querido, n�o voltaremos. - Empacotara quase todos os
brinquedos dos mi�dos e um caixote de livros para ela, embora fosse
incapaz de se concentrar em alguma coisa agora. Algu�m lhe oferecera
O Adeus �s Armas de Hemingway, mas o livro permanecera por abrir na
sua rnesa-de-cabeceira. Mal conseguia pensar quanto mais ler e ia estar
ocupada � procura de emprego.
O dinheiro que recebera pela venda da casa apenas serviria para os
sustentar uns meses, se tivessem sorte. As coisas havian perdido o valor
e toda a gente estava a vender casas, peles, antiguidades e tesouros. Tudo
valia apenas o que as pessoas podiam pagar, e o mercado estava a
transbordar de objectos luxuosos que agora nada valiam.
Parecia inacredit�vel que alguns n�o tivessem sido afectados pela
crise, pois Cholly Knickerbocker continuava a referir-se a casamentos,
festas e bailes. Havia ainda gente que dan�ava no Embassy Club todas as
noites ou no Casino de Central Park, ao som da m�sica de Eddy Duchin.
Contudo, Zoya sentia-se como se nunca mais viesse a dan�ar e as
crian�as desceram os degraus da frente pela �ltima vez, de malas na m�o,
e Sasha com a melhor boneca enfiada debaixo do bra�o. E como se tudo
tivesse acontecido somente no dia anterior, apenas conseguia pensar no
inc�ndio do Pal�cio Fontanka... na camisa de noite da m�e em chamas
quando ela saltou da janela... e em Eugenia empurrando-a pela porta das
traseiras do pavilh�o at� Feodor e � tr�ica que as esperava.
- Mam�?... - Sasha falava com ela desde que tinham entrado no t�xi
e Nicholas acenava � ama que se mantinha a chorar no passeio. Ia ficar
em casa de amigos e j� tivera uma oferta de emprego dos Van Alen, em
Newport. - Mam�... responde-me... - Sasha puxava-lhe com insist�ncia pela
manga ao mesmo tempo que Zoya indicava a nova morada, de olhos
ba�os e o rosto sombrio.
Sentia-se como se estivesse novamente a deixar Clayton... a casa que
tinham partilhado... a vida que sempre fora t�o f�cil. Dez anos passados
num abrir e fechar de olhos, olhos cheios de l�grimas agora, tamanhas
eram as saudades que dele tinha. Recostou-se no assento e fechou os
olhos com tristeza, esfor�ando-se por se concentrar nos filhos.
- Desculpa, Sasha... O que disseste? - A voz era um sussurro quando
abandonaram Sutton Place pela �ltima vez. Desaparecera a beleza e a
vida f�cil a que haviam posto um abrupto ponto final naquele dia fat�dico
de Outubro.
- Perguntei quem � que ia tomar conta de n�s? - Era maior a
curiosidade de quem se encarregaria dela do que a tristeza de ter perdido
a ama. Era tudo muito estranho e confuso, at� mesmo para Nicholas, que
tinha mais quatro anos.
- Eu, minha querida.
Sasha mostrou-se surpreendida e Nicholas fitou a m�e com aquele
sorriso terno que sempre lhe recordava Clayton. Era quase doloroso olh�-
lo agora. Tudo lhe lembrava o que haviam perdido, como acontecera nos
dias em que tinhan abandonado a R�ssia.
- Eu ajudo-te, mam� - declarou Nicholas num tom orgulhoso e
esfor�ando-se por n�o chorar. - Tomarei conta de ti e da Sasha. - Sabia
que era esse o desejo do pai e n�o o deixaria ficar mal. Transformara-se
subitamente no homem da fam�lia. Num �nico m�s, todo o seu mundo
seguro e feliz ficara virado de pernas para o ar, mas estava decidido a
manter-se � altura da situa��o, tal como Zoya. Ela recusava um novo
sabor a derrota. Lutaria por eles... trabalharia... e um dia... uni dia...
estariam novamente seguros e a salvo.
- Cozinhar�s para n�s, mam�? - perguntou Sasha, tirando a boneca �
m�e e alisando-lhe o cabelo. A boneca chamava-se Annabelle e tinha o ar
de ser bem tratada.
As suas outras bonecas estavam � espera no novo apartamento. Zoya
fizera todo o poss�vel para que o lugar parecesse confort�vel e familiar,
mas nada havia de familiar nos feios arredores, quando o t�xi parou na
Rua 17 da zona ocidental. A jovem mulher estremeceu ao olhar em volta,
chocada por todo aquele aspecto sombrio, e o rosto de Nicholas denotava
o mesmo ao seguir a m�e pelas escadas e tentando afastar o enjoo
causado pelos cheiros horr�veis.
- Aqui cheira mesmo mal! - exclamou Sasha que subia atr�s de Zoya.
O motorista levou-lhes as malas e Zoya pagou-lhe dos escassos fundos.
Jurou que nunca mais andaria de t�xi. Pooiam apanhar um autocarro ou
andar a p�. N�o haveria mais t�xis, nem mais carros. Vendera o H�spano-
Su�za aos Astor.
Zoya conduziu-os at� ao �nico quarto do apartamento, onde havia
duas camas, dominando tudo o mais. Os brinquedos encontravam-se
arrumados ao lado e os quadros do ber��rio de Sasha tinham sido
cuidadosamente pendurados sobre a sua cama.
Ao lado da de Nicholas, colocara um retrato de Clayton, muito
elegante com o seu uniforme durante a guerra. Trouxerj uma mala cheia
de fotografias dela, de Clayton e dos filhos, e outras, j� a amarelecer e
emolduradas, de Nicolau e Alexandra e das crian�as em Livadia e
Tsarskoie Selo. Trouxera igualmente o precioso ovo imperial,
cuidadosamente enrolado num par de pe�gas de Clayton. Guardara
tamb�m numa caixa os seus bot�es de punho e alfinetes de gravata, mas
as j�ias dela seriam vendidas em leil�o.
Para os que ainda tinham dinheiro, deparavam-se oportunidades
fant�sticas por todo o lado, colares de diamantes, tiaras e belos colares de
esmeraldas, "apanhados" a troco de ninharias em leil�es ou vendas
privadas. O desespero de uma fam�lia transformava-se subitamente na boa
sorte de outra.
- Onde vais dormir, mam�? - Nicholas parecia novamente preocupado
quando percorreu o apartamento e verificou que havia um �nico quarto.
Nunca vira alojamentos t�o pequenos e at� mesmo os criados de Sutton
Place tinham tido melhores quartos do que aqueles. O s�tio era feio e
apertado.
- Vou dormir aqui no sof�, querido. � muito confort�vel. - Sorriu-lhe
e inclinou-se para o beijar na face ao ver que os olhos do filho se enchiam
de l�grimas.
Era injusto ter de fazer aquilo aos filhos e lutou contra uma sensa��o
de f�ria que come�ara recentemente a sentir por Clayton. Outros tinham
sido mais perspicazes do que ele, menos audazes, e menos idiotas ao
arriscar tudo o que tinha.
Se n�o tivesse morrido, poderiam ter sobrevivido de outra forma... os
dois... Podiam, pelo menos, ter enfrentado o destino lado a lado, mas
agora estava mais sozinha do que nunca. Todo o peso assentava nos seus
ombros, como achava que devia ter sido o caso de Eugenia. Aquela
coragem e for�a da av� serviam-lhe de exemplo ao olhar para o filho que lhe oferecia a cama no quarto que iria partilhar com a irm�.
- Podes dormir na minha cama, mam�. Dormirei a�.
- N�o, querido... Ficarei bem. - E depois com um sorriso corajoso: - Todos ficaremos. Agora, tens de tomar conta da Sasha, enquanto fa�o o jantar.
Pendurou os casacos de todos, contente por ter trazido roupas quentes
para eles. O apartamento era frio e n�o havia sequer uma lareira, como
no apartamento de Paris.
- Porque n�o levas a Sava � rua? - A velha cadelinha mantinha-se
sentada junto � porta, como se esperasse voltar novamente a casa, como
todos.
Nicholas p�s-lhe a trela e disse a Sasha que se portasse bem enquanto
ia l� abaixo e a m�e lhes cozinhava o frango que trouxera da casa em
Sutton Place. No entanto, ela sabia muito bem que as provis�es que
trouxera n�o durariam muito, nem t�o-pouco o dinheiro.
O Natal foi um dia como qualquer outro, � excep��o da boneca que
comprou a Sasha e do rel�gio de pulso que conservara das coisas de
Clayton para oferecer a Nicholas.
Abra�aram-se num esfor�o imenso para n�o chorar e pensando na
imensidade de todas as perdas.
O apartamento estava gelado, os arm�rios vazios e as j�ias de Zoya
tinham sido leiloadas. Estava decidida a conservar o ovo imperial, mas
al�m disso quase nada restava e sabia que tinha de encontrar um emprego
depressa; contudo, n�o sabia aonde, e isso atormentava-a dia e noite.
Pensou em trabalhar numa loja, mas n�o queria deixar as crian�as
sozinhas o dia inteiro. Sasha n�o andava na escola e n�o podia abandon�-
la enquanto Nicholas frequentava a escola p�blica juntamente com as
crian�as do bairro, a maioria vestida de farrapos e vivendo em barracas
espalhadas pelo rio Hudson.
Os bairros de lata surgiam por todo o lado, pululando de pessoas que
haviam sido accionistas, homens de neg�cios e advogados. Cozinhavam as
refei��es em caldeir�es ao ar livre e rebuscavam os arredores � noite �
procura de comida e de objectos que pudessem usar. Zoya sentia o
cora��o despeda�ado ao ver aquelas crian�as de grandes olhos esfonicados
e rostos magros, as faces vermelhas do frio, acolhendo-sc junto �s
fogueiras para se aquecerem fora das barracas.
Comparado com toda aquela mis�ria, o apartamento parecia um
para�so e lembrava os filhos, quase diariamente, de como deviam sentir-se
agradecidos. No entanto, at� para ela era dif�cil ao ver o dinheiro a
desaparecer e p�s-se desesperadamente � procura de emprego. Tinha de
ser algo que pudelse fazer � noite, quando as crian�as estivessem a dormir
ou, pelo menos, seguras em casa.
Sabia que podia confiar em Nicholas para tomar conta de Sasha
depois de ter regressado da escola. Era respons�vel e bom para a
irm�zinha, brincando com ela, ajudando-a a reparar os brinquedos e
falando sem cessar sobre o pai. O tema era-lhe por de mais doloroso ao
observ�-los e ia at� � sala onde chorava em sil�ncio, acariciando a velha
Sava. A cadelinha estava agora quase cega e Nicholas tinha de a
transportar ao colo pelas escadas, quando ia passe�-la � rua sob o frio
agreste.
Era Janeiro quando Zoya se dirigiu da Rua 17 da zona ocidental at�
� Sexta Avenida, junto � Rua 49, movida por um plano louco. Sabia que
era louco, mas n�o lhe ocorria mais nada. Apresentara-se em v�rios
restaurantes, s� que os propriet�rios tinham entrevistado outras tantas
mulheres como ela. "Qual a sua experi�ncia como empregada de mesa?",
perguntavam. Ela deixaria cair as bandejas, partiria a lou�a e seria
requintada de mais para trabalhar longas horas a troco de um parco
sal�rio. Insistia em que seria capaz, mas mandavam-na embora e n�o
havia mais nada que soubesse fazer, excepto dan�ar, mas n�o no ballet,
como em Paris.
Em desespero, chegara a pensar na prostitui��o, a que outras tamb�m
haviam recorrido, mas sabia que era incapaz. A mem�ria de Clayton era
demasiado forte e pura, ele era o �nico homem que amara e n�o
conseguia suportar a ideia de outro homem a toc�-la, nem mesmo para
dar de comer aos filhos.
Dan�ar era a �nica coisa que sabia, mas tamb�m estava consciente de
que aos trinta anos n�o podia regressar ao ballet, depois de ter passado
mais de onze anos sem praticar. Continuava a ser flex�vel e elegante, mas
estava demasiado velha e entia-se com mil anos quando entrou no teatro
de que ouvira falar. J� estivera no Ziegf�ld e tinham-lhe dito que lhe
faltava altura. Assim, restava-lhe tentar o chamado teatro burlesco.
Situava-se a cinco quarteir�es do Ziegfeld Theater. Quando entrou pela
porta do palco, o teatro estava naturalmente a abarrotar de mulheres
seminuas que tentou ignorar, enquanto procurava algu�m com quem
pudesse falar.
- Ah, sim? � bailarina? - retorquiu num tom de mofa a mulher que
tratava desses assuntos.
- Fui.
- Com quem?
Engoliu em seco, sabendo que parecia demasiado afectada com o seu
simples vestido preto Chanel. Devia ter posto qualquer coisa mais alegre
e ousada, mas h� muito que vendera todos os vestidos de noite e apena
tinha a roupa s�bria e quente que recolhera nos seus arm�rios de Sutton
Place, o que sabia ser-lhe �til no gelado apartamento.
- Dancei com os Ballets Russes em Paris. E pratiquei R�ssia antes
disso.
- Uma bailarina, hein? - A ideia parecia diverti-la imenso, e Zoya
conservava-se muito quieta, com o cabelo ruivo apanhado e o rosto sem
pintura. - Escute bem, senhora. N�o est� numa casa de repouso para
velhas bailarinas. Isto � o Fitzhugh's Dance Hall! - Pronunciou o nome
com orgulho, e Zoya sentiu-se invadir por uma repentina onda de f�ria.
- Tenho vinte e cinco anos - mentiu. - E era niuto boa.
- Sim? Em qu�? Aposto que nunca fez nada do g�nero antes. - Era
verdade, mas tamb�m o era que estava disposta a fazer o que quer que
fosse pelos filhos. Lembrou-se subitamente da sua audi��o para os Ballets
Russes, h� treze anos em Paris.
- Deixe-me tentar... s� uma vez... Posso aprender... Por favor... - Os
olhos encheram-se-lhe involuntariamente de l�grimas na altura em que
um indiv�duo baixo e de charuto passou por perto, a fitou de relance e
gritou para dois homens que transportavam pe�as do cen�rio:
- Seus idiotas! V�o partir isso! - E, em seguida, com uma express�o
aborrecida, agitou o charuto na direc��o da mulher que falava com Zoya.
- As malditas raparigas apanharam sarampo... Achas normal? Arranjei um
grupo de velhas peritas em sapateado e adoecem como se fossem
raparigas... tr�s delas a semana passada... mais sete agora... Merda, o que
vou dizer �s pessoas que pagaram uma data de massa para ver o
espect�culo? Que v�o ver um bando de gajas a acenar-lhes os traseiros
cheios de manchas? Era o que faria, se tivessem aparecido para trabalhar.
- Acenou o charuto na direc��o de Zoya e para l� dela, como se a sua
presen�a n�o contasse, o que era verdade.
Sem esperar que ele lhe falasse directamente, tomou a palavra.
- Gostaria de fazer uma audi��o para um emprego como bailarina.
Agora tinha apenas um leve sotaque mas ainda �bvio, s� que nenhum
deles a identificou como russa. A mulher julgara que ela era francesa, com
aquele luxuoso vestido preto e o porte elegante.
- Sabe sapatear? - perguntou, virando-se para a avaliar, mas sem
parecer impressionado.
- Sim. - Decidiu poupar-lhe explica��es.
- Uma bailarina - replicou a outra mulher com evidente desprezo.
- J� teve sarampo? - perguntou-lhe. Era muito mais importante para
ele, com dez coristas doentes e sabe-se l� quantas expostas a apanh�-lo
nas pr�ximas semanas.
- J� tive - munnurou, rezando para que ainda soubesse dan�ar. Talvez
tivesse esquecido tudo. Talvez...
Encolheu os ombros e voltou a meter o charuto apagado entre os
l�bios.
- Deixa que ela mostre o que vale, Maggie. Se conseguir aguentar-se
e fizer alguma coisa, pode ficar at� as outras voltarem. - Depois, virou
costas e a mulher de nome Maggie pareceu aborrecida. A �ltima coisa
que precisavam era de uma gaja elegante e p�lida que se achava boa de
mais para um n�mero de revista. Mas ele tinha raz�o, pois, com as outras
doentes, estavam com problemas.
- Okay - acedeu, relutante, e depois gritou l� para tr�s: - Jimmy!
Levanta o cu e vem tocar! - Um homem negro com um sorriso enorme
apareceu e olhou para Zoya.
- Ei, querida. O que queres que toque? - perguntou, sentando-se ao
piano. E ela quase riu, presa de um terror nervoso. O que lhe
responderia? Chopin? Debussy? Stravinsky?
- O que � que costuma tocar para as audi��es? - replicou, e ele sorriu.
Era f�cil concluir que se tratava de uma aristocrata branca a passar um
mau bocado e teve pena dela, com aqueles grandes olhos verdes e um
sorriso implorativo. Parecia uma crian�a e intenogou-se sobre se ela
alguma vez dan�ara. Ouvira falar de outras que tinham ido trabalhar em
cabar�s, executando n�meros inventados por elas, como Cobina Wright
e Cobina Junior.
- De onde �? - Maggie estava a falar com outra pessoa, enquanto eles
conversavam. E Jimmy concluiu que gostava dela.
Zoya sorriu-lhe, orando intimamente para n�o fazer m� figura, mas
valia a pena correr o risco.
- Da R�ssia, h� muito tempo. Vim para c� depois da: guerra.
Jimmy baixou a voz e olhou-a nervosamente por cima do. ombro.
- J� dan�ou alguma vez? Diga-me a verdade enquanto a Maggie n�o
est� a ouvir. N�o posso ajud�-la se n�o souber a verdade.
- Estive no ballet quando era jovem. H� onze anos que n�o dan�o -
sussurrou, agradecida.
- Deus do c�u... - Abanou a cabe�a, desgostoso. - O Fitzhugh's Dance
Hall n�o tem ballet... - Era, sem d�vida, a declara��o do ano, pois nesse
preciso momento duas coristas seminuas passaram por eles. - Ou�a -
prosseguiu em tom de confid�ncia. - Vou tocar uma coisa lenta. Limite-se
a rolar os olhos e a sorrir, d� um pouco ao traseiro, mostre as pernas e
tudo correr� bem. Tem alguma roupa consigo? - Mas bastou olh�-la para
saber a resposta.
- Lamento, eu...
- N�o interessa. - E, nesse momento, Maggie voltou a prestar-lhes
aten��o.
-Vais ficar para a� sentado nesse cu negro todo o dia, Jimmy, ou
fazemos uma audi��o? Pessoalmente, que se dane, mas o Charlie quer
que eu a veja. - Deitou um olhar maldoso a Zoya e ela rezou para n�o se
sair mal. Contudo, seguiu as instru��es dele, e Charlie, o director, voltou
a passar, murmurando entre dentes ao observ�-la. Queria que se
apressasse, pois ainda tinha de fazer uma audi��o a dois novos c�micos
e a uma stripper.
- Merda. Exactamente o que n�o preciso aqui... uma senhora -
pronunciou, como se fosse um insulto. - ... Aban, o cu... Isso.. assim...
Vejamos as pernas... Mais.
Ela corou e levantou a saia, continuando a dan�ar ao som do ritmo
que Jimmy lhe marcava. Tinha umas belas pernas e a graciosidade de
treze anos a dan�ar nunca a abandonara.
- O que �s, c�us? - gritou-lhe o homenzinho, e ela corou mais. - Uma
virgem? As pessoas n�o v�m aqui rezar, mas ver boazonas a dan�ar.
Achas que podes faz�-lo sem parecer que acabaste de ser violada?
- Tentarei, sir... Darei o meu melhor...
- �ptimo. Ent�o, volta aqui esta noite, �s oito. - Maggie afastou-se
com evidente desd�m, e Jimmy levantou-se de um salto e veio abra��-la.
- Ei! Conseguimos!
- N�o tenho palavras para agradecer - retorquiu, apertando-lhe a m�o
e com um olhar grato. - Tenho dois filhos, Eu... n�s... - Lutava novamente
para suster as l�grimas enquanto o velho negro a observava. - Preciso
muito do emprego... - As l�grimas correram-lhe pelas faces e limpou-as
com um misto de al�vio e embara�o, incapaz de falar por momentos.
- N�o se preocupe. Vai sair-se bem. At� esta noite. - Sorriu e
regressou ao jogo de cartas em que estava a perder quando Maggie o
chamara.
Zoya percorreu a p� todo o caininho de regresso ao apartamento pensando no que acabara de fazer. Contrariamente � sua audi��o com os
Ballets Russes h� uns anos, n�o a invadia um sentimento de vit�ria e
realiza��o. Somente al�vio por ter um emprego e um sentimento de
embara�o e degrada��o; no entanto, tratava-se da �nica coisa que podia
fazer e era � noite, n�o tendo de deixar Sasha com pessoas conhecidas.
De momento, parecia-lhe o emprego ideal, s� que era terr�vel.
Nessa noite, explicou a Nicholas que tinha de sair. N�o disse porqu�
ou onde ia. N�o queria ter de lhe explicar que aceitara um emprego como
corista. O eco das palavras de Charlie soava-lhe aos ouvidos: "Abana o
cu... Deixa-me ver essas pernas... O que �s tu? Uma virgem?" Sob a
perspectiva deles, era. Com quase trinta e um anos e apesar das
dificuldades da vida, sempre fora protegida de pessoas como ele e da
gente para quem ia dan�ar.
- Onde vais, mam�?
- Sair um pouco. - J� deitara Sasha. - N�o fiques de p� at� muito
tarde - avisou e beijou-o, apertando-o um mento, como se fosse a caminho
da sua pr�pria execu��o. - Vai para a cama daqui a meia hora.
- Quando voltas? - quis saber, fitando-a, desconfiado da porta do
quarto.
- Mais tarde.
- Passa-se alguma coisa, mam�? - Era uma crian�a intuitiva e estava
a aprender muito cedo as cru�is reviravoltas do destino que podem mudar
o curso da vida num momento.
- N�o, nada, meu querido. - Sorriu-lhe. - Garanti -te. - Pelo menos,
teriam algum dinheiro.
Contudo, n�o estava de forma alguma preparada para as piadas
ordin�rias, as raparigas vulgares, a roupa espalhafatosas e os comediantes
que a beliscavam quando ela passava apressadamente junto deles.
Por�m, quando a m�sica come�ou e o pano subiu, deu o seu melhor
� multid�o risonha e excitada, e ningu�m se queixou quando ela perdeu
o compasso mais do que uma vez. Contrariamente aos Ballets Russes de
outrora, aqui ningu�m dava por nada. Apenas queriam ver um grupo de
raparigas bonitas praticamente despidas. Havia contas e lentejoulas, curtos
cal��es de cetim com sapatos a condizer e in�meras boas de plumas e
enormes toucados.
Tratava-se de uma pobre imita��o do que as raparigas do Ziegfeld
usavam e lamentou mais do que uma vez o destino por ser baixa de mais
para ser contratada pelo bondoso Florenz Ziegfeld. Zoya devolveu a
roupa � rapariga que lha tinha emprestado e regressou lentamente a casa
sem ter tirado a pintura. Ficou ainda mais chocada quando um homens
ao passar por ela lhe ofereceu um n�quel pelo "melhor que pudesse fazer
por ele" num v�o de escada pr�ximo. Correu darante todo o resto do
caminho at� casa, lavada em l�grimas c pensando na vida terr�vel que a
esperava no Fitzhugh's Dancc Hall.
Nicholas dorinia a sono solto quando ela voltou e beijou-o
ternamente, manchando-lhe a face de b�ton, pensando em como ele
parecia um anjo e igual ao pai. Era imposs�vel que Clayton tivesse
desaparecido... a tivesse abandonado a tudo aquilo... Se soubesse... mas
era tarde de mais para lamentos. Pegressou nos bicos dos p�s � sala de
estar onde dormia, tirou a pintura e vestiu a camisa de noite. Longe iam
as sedas, cetins e enfeites. Tinha de usar grossos vestidos de flanela para
se proteger do gelo do apartamento.
E, de manh�, preparou o pequeno-almo�o a Nicholas antes de ele ir
para a escola: um copo de leite, uma fatia de p�o e uma laranja que
comprara no dia anterior. Mas ele n�o se queixou. Sorriu-lhe, deu-lhe
uma palmadinha na m�o e saiu a correr, depois de beijar Sasha.
Nessa noite, ela voltou ao teatro, como nas semanas seguintes, at� as
bailarinas regressarem curadas do sarampo. Mas Charlie comunicou-lhe
entre dentes que podia ficar, que tinha umas pernas bonitas e n�o lhe
causava problemas. Jimmy festejou com uma cerveja roubada do seu bar
favorito, ao lado. Ela agradeceu e bebeu um gole para n�o o magoar.
Omitiu que fazia trinta e um anos nesse mesmo dia.
Jinmy era o seu �nico amigo. As outras haviam pressentido
imediatamente que ela era "diferente". Nunca partilhavam piadas e, de
facto, mal lhe dirigiam a palavra, quando falavam dos namorados e dos
homens que as perseguiam nos bastidores. Algumas chegavam a fugir com
homens que lhes ofereciam dinheiro.
Era o que Charlie apreciava nela. N�o era muito divertida, mas era
certinha. No primeiro ano, deram-lhe um aumento. Zoya nem conseguia
acreditar que ficara tanto tempo, mas n�o havia sa�da, nenhum lugar para
onde ir e ningu�m que lhe pagasse. Disse a Nicholas que dan�ava num
pequeno grupo de bailado e deixou-lhe o n�mero de telefone do teatro
para o caso de uma emerg�ncia. No entanto, agradeceu a Deus por ele
nunca lhe ter telefonado. E, pressentindo que ela se envergonhava do que
fazia, Nicholas nunca lhe pediu para assistir a um espect�culo. Uma noite,
Sasha acordara com tosse e febre e o filho esperara a p� que ela chegasse,
mas n�o quisera telefonar-lhe para o teatro e preocup�-la. Nicholas
revelou-se em todos os aspectos uma ajuda e um enorme conforto.
- Voltaremos a ver os nossos amigos? - perguntou-lhe calmamente
uma tarde, enquanto ela lhe cortava o cabelo e Sasha brincava com Sava.
- N�o sei, querido.
Recebera uma carta da ama h� uns meses. Sentia-se feliz na casa dos
Van Alen e tinha imensas hist�rias sobre o d�but, no in�cio do Ver�o, de
Barbara Hutton e do de Doris Duke, em Newport. Parecia uma ironia que
ela ainda fizesse parte desse mundo e Zoya n�o. Todavia, tal como eles
a haviam evitado quando ela aparecera, convencidos de que fora uma
bailarina do Folies-Berg�re, era ela quem os evitava agora, sabendo que
se tornara finalmente uma corista.
Sabia tamb�m que, tendo perdido tudo como muitas outras do seu
meio, deixara de lhes despertar qualquer interesse. A condessa que havia
sido e tanto os impressionara j� n�o o era. N�o era ningu�m. As �guas
tinham-se fechado sobre ela. Tal como sobre Clayton e muitos outros. O
�nico de quem sentia ocasionalmente saudades era Sergei Obolenski e a
sua corte de aristocratas russos. S� que eles n�o compreenderiam no que
se tornara a sua vida, nem porque fazia o que fazia. Ele continuava
casado com Alice Astor.
Nessa altura, Elsa Maxwell escrevia uma colun social e, de vez em
quando, ao ler o jornal, Zoya debru�ava-se sobre as hist�rias de Cholly
Knickerbocker relativas �s pessoas que ela conhecera quando estava
casada com Clayton. Tudo lhe parecia agora t�o irreal, como se nunca as
tivesse conhecido. Havia relatos de ru�nas financeiras, suic�dios,
casamentos, div�rcios. Sentia-se feliz por n�o fazer parte da lista.
Leu igualmente a not�cia da morte de PavIova em Haia, devido a
pleurisia. Em Maio, levou as crian�as � inaugura��o do Empire State
Building. Corria o ano de 1931 e estava uma bela tarde de Maio.
Nicholas contemplou, respeitoso, a imponente constru��o. Subiram no
elevador, pararam na plataforma de observa��o no cent�simo segundo
andar, e a pr�pria Zoya sentiu-se como se voasse. Foi a tarde mais feliz
que passavam de h� muito tempo a essa parte e regressaram ao
apartamento sob uma atmosfera primaveril, com Sasha na frente deles,
rindo e brincando. Tinha, ent�o, seis anos e era dona de uns belos
carac�is e um rosto muito semelhante ao de Clayton.
Quando passaram, havia pessoas a venderem ma��s na rua e mais do
que uma mulher admirou as duas bonitas crian�as. Nicholas ia fazer dez
anos em Agosto, mas muito antes j� a cidade se encontrava sob um calor
opressivo. E o 2 de julho foi o dia de maior calor que alguma vez se
registou.
Os dois mi�dos ainda estavam acordados quando ela saiu para
trabalhar de vestido branco de algod�o estampado com pequenas flores
azuis. Nicholas sabia que ela trabalhava, mas continuava sem saber onde
e tamb�m n�o lhe parecia importante.
Deixou-lhes um jarro com limonada e recordou a Nicholas que devia
vigiar Sasha. As janelas estavam escancaradas para que o ar entrasse no
apartamento, semelhante a uma fornalha.
- N�o a deixes sentar-se demasiado perto das janelas - avisou Zoya e
deteve-se a ver Nicholas, puxando a mi�da de cabelo louro para o quarto
deles. Sasha vestia somente cuecas e estava descal�a, parecendo angelical
ao dizer adeus � m�e. - Ficam bem? - perguntou como sempre que os
deixava, mas com um peso no cora��o ao percorrer a dist�ncia que a
separava do teatro. Mal conseguia andar sob aquele calor t�rrido. Mesmo
de noite, a rua parecia queimar sob os p�s e os buracos nas solas dos
sapatos ainda tornavam a desloca��o mais inc�moda. Por vezes
interrogava-se sobre como tudo acabaria, como iriam sobreviver e quanto
tempo conseguiria manter-se no palco com aquelas plumas e roupa
rid�cula.
Nessa noite pouca gente assistiu ao espect�culo, pois estava demasiado
calor para se ir a algum lugar. As pessoas que ainda tinham posses
retiraram-se para Newport e Long Island, e as outras mantiveram-se em
casa sem fazer nada ou sentadas nos degraus. Sentia-se exausta quando,
por fim, regressou a casa e n�o pensou em nada quando ouviu as
sirenes � dist�ncia.
Foi s� ao aproximar-se da sua rua que o fumo acre lhe entrou pelas
narinas e todo o corpo lhe tremeu ao avistar os carros de bombeiros e o
que lhe pareceu o bairro em chamas quando dobrou a esquina. Soltou
uma exclama��o horrorizada, come�ou a correr, e uma m�o gelada
parecia apertar-lhe a garganta ao ver os carros de bombeiros no exterior
do pr�dio onde moravam.
- N�o!... N�o!... - Gritava e tentava abrir caminho por entre a
multid�o que se mantinha de p� na rua, observando os tr�s pr�dios a arder. Havia fumo por todo o lado e sentiu-se sufocar quando avan�ou e
foi detida pelos bombeiros � porta do pr�dio.
- N�o pode entrar a�, minha senhora!... - Gritavam uns para os outros
no meio do inc�ndio, pontuado pelo som aterrador das derrocadas. Havia
explos�es de vidros, e um deles provocou-lhe um corte no bra�o, que
come�ou a sangrar e lhe manchou o vestido. Um dos homens puxou-a �
for�a para tr�s. - Disse-lhe que n�o podia entrar!
- Os meus filhos! - arquejou. - Os meus beb�s!... - Debatia-se com
uma for�a sobre-humana e, por um momento, escapou-lhe, mas ele voltou
a agarr�-la. - Largue-me! - Virou-se na sua direc��o e o homem prendeu-
lhe os bra�os com as m�os fortes, enquanto os vizinhos observavam a cena
num mudo terror. - Os meus filhos est�o ali... Oh, meu Deus... por favor...
- Solu�ava incontrolavelmente, quase sufocada pelo fumo que lhe
queimava os olhos e a garg�nta quando ele gritou para dois dos homens
que voltaram a correr ao interior do pr�dio. J� tinham trazido v�rias
idosas e um homem novo estava desmaiado na rua, enquanto dois
bombeiros tentavam reanim�-lo.
- Ei, Joe! - chamou o bombeiro e voltou-se rapidamente para Zoya. -
Onde est�o eles, minha senhora? Em que apartamento?
- No �ltimo andar... um menino e uma menina... - Sufocava naquele
ar cheio de fumo e j� vira que as escadas n�o passavam do terceiro andar.
- Deixe-me ir... por favor... por favor... - Ele passou a informa��o aos
colegas que voltaram. a correr ao edificio durante o que pareceu horas...
Zoya observava, sabendo que, se eles morressem, a sua vida terminaria.
Os filhos eram tudo o que lhe restava no mundo, a sua raz�o de continuar
a existir.
Contudo, os bombeiros n�o reapareceram e outros tr�s entraram no
pr�dio, munidos de machados e com express�es ansiosas. Ouviu-se um
som horr�vel e uma explos�o de fa�scas e chamas quando uma parte do
telhado desabou e Zoya quase perdeu os sentidos.
Tinha os olhos esbugalhados de terror e precipitou-se subitanente para
diante, resolvida a encontr�-los ou a morrer com eles. Passou a toda a
velocidade pelos bombeiros, continuou a correr mas, nessa altura, como
que em resposta �s suas preces, avistou os bombeiros avan�ando na sua
direc��o, dois deles com fardos nos bra�os, e ouviu uma crian�a a chorar
no meio do estrondo do inc�ndio.
Viu que era Nicholas a agitar os bra�os e a cham�-la. O terceiro
bombeiro pegou-lhe ao colo como se ela fosse uma crian�a, e os tr�s
homens precipitaram-se para fora do edificio, no preciso momento em
que o fogo ia devor�-los. Mal tinham chegado � rua, quando o estrondo
no interior do pr�dio aumentou. Um muro de chamas ergueu-se nas
costas dos fugitivos e Nicholas abra�ou-a, chorando e gritando pelo seu
nome, enquanto ela lhe cobria a face de beijos, apercebendo-se depois de
que Sasha estava inconsciente.
Ajoelhou-se no passeio ao lado da filha, gemendo e murmurando o
nome dela, enquanto os bombeiros lutavam desesperadamente por lhe
salvar a vida. Por fim, a crian�a soltou um grito abafado e mexeu-se.
Zoya deitou-se junto dela e chorou, acariciando-lhe os carac�is e
abra�ando-a.
- Meu beb�... minha querida... - Sentia que era o castigo por os ter
deixado s�s a noite inteira. S� conseguia pensar em como teria sido se ao
regressar a casa... Era quase imperis�vel. Manteve-se ali na rua, agarrando
os filhos e observando o desabar do pr�dio, que levava tudo o que
possu�am.
- S� interessa que estejam vivos - repetia, lembrando-se da noite em
que a m�e morrera no inc�ndio do Pal�cio Fontanka.
Os bombeiros permaneceram at� ao romper de mais um dia abrasador
de Julho e declararam que apenas dali a uns dias algu�m poderia entrar.
Teriam de encontrar outro s�tio onde ficarem, antes de tentarem procurar
nas cinzas o que quer que restasse dos seus pertences.
Zoya pensou nas fotografias de Clayton que se haviam perdido... nas
pequenas recorda��es que conservara... as fotogratas dos pais, dos av�s,
do czar... pensou no ovo imperial que guardara para a eventualidade de
precisar de vend�-lo, mas n�o podia preocupar-se com nada disso agora.
O importante era que Nicholas e Sasha estavam vivos. E depois, com uma
dolorosa picada no cora��o, lembrou-se de Sava. A cadela que trouxera
de Sampetersburgo h� tanto tempo tinha morrido no inc�ndio.
- N�o consegui traz�-la, mam�... Estava escondida debaixo do sof�
quando os homens entraram - solu�ou Nicholas. - Queria traz�-la, mam�...
mas eles n�o me deixaram...
- Chiu... querido, n�o chores... - O longo cabelo ruivo soltara-se
durante a luta que travara com os bombeiros para ir buscar os filhos e
espalhava-se sobre o vestido branco de flores azuis. Tinha vest�gios de
cinzas no rosto e a camisa de noite de Nicholas tresandava a fumo.
Estava entranhado, mas nunca lhe cheirara t�o bem, ou significara tanto
aos seus olhos como naquele momento. - Amo-te tanto... Ela era muito
velhinha, Nicky... Chiu... meu querido, n�o chores... - Sava tinha quase
quinze anos e chegara at� �quele momento com eles, mas Zoya apenas
conseguia pensar nos filhos.
Uma vizinha acolheu-os, e Zoya e as crian�as dormiram no ch�o da
sala em cima de cobertores. Por mais que tomassem banho e ela lavasse
o cabelo, continuavam a cheirar a fumo, mas, de cada vez que olhava l�
para fora e avistava o pr�dio em ru�nas do outro lado da rua, apercebia-se
da sorte que haviam tido. Estremecia s� de olhar.
No dia seguinte telefonou para o teatro e disse que n�o ia trabalhar.
Nessa noite, percorreu a p� a dist�ncia que a separava do teatro para ir
buscar o �ltimo pagamento. N�o lhe interessava que morressem de fome,
mas n�o voltaria a deix�-los sozinhos... nunca mais.
O pagamento chegaria para lhes comprar roupa e algurna comida,
mas n�o tinham onde ficar nem para onde ir e, totalmente exausta, foi �
procura de Jimmy para se despedir dele. - Vai deixar-nos? - Sentia-se
triste que ela se fosse embora, mas compreendeu ao ouvir a hist�ria.
- N�o posso continuar a fazer isto. Se alguma coisa tivesse
acontecido... - E podia voltar a acontecer. Era um pecado deix�-los s�s.
Teria de encontrar qualquer outra coisa, nas ele lirnituu-se a esbo�ar um
aceno de cabe�a. N�o estava surpreendido e achava bem.
- De qualquer maneira, n�o pertence aqui. Nunca pertenceu. - Sorriu.
Toda a sua ra�a emergia da forma como se movimentava, embora nunca
lhe tivesse falado do passado, mas do�a-lhe sempre o cora��o ao v�-Ia
levantar a perna com as outras. - Arranje outra coisa. Um bom emprego
com a sua gente. Este n�o � um lugar para si. - Contudo, h� um ano e
meio. que trabalhava ali e servira para lhe pagar a renda. - N�o tem
fam�lia nem amigos a quem recorrer? - Zoya abanou a cabe�a, pensando
uma vez mais na sua sorte por n�o ter perdido os filhos. - Tem algum s�tio
para onde voltar? A R�ssia ou algo assim? - Ela sorriu ante a ignor�ncia
dele sobre a devasta��o ocorrida.
- C� me arranjarei - retorquiu, sem na realidade ter a m�nima ideia
do que fazer.
- Onde est�o agora?
- Na casa de um vizinho. - Jimmy sentiu vontade de a convidar a ficar
em Harl�m, mas sabia que n�o lhe conviria. O tipo de pessoas como ela
iam dan�ar ao Cotton Club para se divertirem e n�o mudavam para
Harl�m com um velho pianista de um clube.
- Bom. D�-me not�cias, sim?
Inclinou-se, beijou-a na face e os olhos brilharam-lhe quando ela foi
buscar o dinheiro. Apertou-lhe calorosamente a m�o no momento em que
ela se foi embora, satisfeito com o que fizera. S� mais tarde nessa noite
� que ela descobriu o dinheiro na mala. Cinco notas de vinte d�lares que
Jimmy lhe metera na mala enquanto fora receber. Ganhara-os a jogar �s
cartas nessa tarde e sentira-se contente por poder dar-lhe aquele dinheiro.
Zoya sabia que s� podia ter sido ele. Pensou em voltar ao teatro e
devolver-lho, mas sabia quanto lhe era necess�rio. Eni vez disso, escreveu
um bilhete a agradecer e prometeu pagar-lhe, assim que pudesse.
Contudo, sabia que tinha de arranjar um emprego e um lugar onde
pudessem viver.
No final da semana, o pr�dio arrefecera o suficiente para permitir que
os residentes l� voltassem. Pouco havia que pudessem salvar e dois dos
apartamentos tinham ficado completamente destruidos; ao subir as
escadas pouco seguras, Zoya susteve a respira��o e interrogou-se sobre o
que iria encontrar. Abriu a porta com dificuldade e vasculhou o ch�o com
uma p�. O cheiro a fumo ainda pairava no ar e toda a sala ficara
destru�da.
Os brinquedos, a roupa das crian�as e a maioria da sua fora
consum�da, mas sabia que provavelmente nunca deixariam de cheirar a
fumo. Meteu os pratos numa caixa recuperada do fogo e verificou,
surpreendida, que a mala das fotografias ainda ali estava, intoc�vel.
Sustendo a respira��o, p�s-se a remexer no que fora uma arca e
subitamente avistou-o... O esmalte estava rachado, mas o resto mantinha-
se intacto. O ovo imperial resistira. Fitou-o com muda surpresa e p�s-se
a chorar... Era uma rel�quia de uma vida perdida. Nada mais havendo a
salvar, meteu os restos das coisas das crian�as numa �nica caixa, o seu
vestido Chanel, dois saia-casacos e um vestido de linho cor-de-rosa e o
�nico par de sapatos.
Demorou apenas dez minutos a levar tudo para baixo e, quando se
voltou para dar uma �ltima vista de olhos, deparou com Sava por baixo
do sof�... deitada e tranquila, como se estivesse a dormir. Zoya ficou uns
minutos em sil�ncio a observ�-Ia e depois fechou a porta devagar e
desceu as escadas apressadamente com as caixas, ao encontro dos filhos
que a esperavam do outro lado da rua.
CAPITULO 33
Depois de agradecer profusamente aos vizinhos pela sua generosidade,
Zoya alugou um pequeno quarto de hotel com algum do dinheiro que
Jinuny lhe tinha dado. J� lhe restava menos de metade ap�s comprar
roupa nova �s crian�as e um vestido decente para si que n�o cheirasse a
fumo
Tinham de comer num restaurante todas as noites. Falavam no que iriam fazer, e Nicholas fitava-a com expectativa; por�m, uma noite ao ler
o jornal � procura de emprego, ocorreu-lhe subitamente uma ideia. N�o
se tratava de algo que faria se pudesse escolher, mas n�o podia. Tinha de
deitar m�o � realidade, mesmo que a embara�asse.
No dia seguinte, p�s o vestido novo, escovou cuidadosa o cabelo e
desejou ter ainda algumas das suas j�ias, mas apenas lhe restava a alian�a
de casamento e um certo porte, quando se contemplou calmamente no
espelho.
- Onde vais, mam�? - perguntou Nicky, ao observar o vestido.
- Vou arranjar emprego. - Desta vez, n�o se sentia incomodada
quando os filhos a olharam.
- Sabes fazer alguma coisa? - retorquiu Sasha inocentemente e Zoya
riu.
- N�o muito.
Contudo, percebia de roupas, usara as melhores nos �ltimos dez anos
e, mesmo em crian�a, ela e Marie tinham estudado tudo o que as m�es
e outros familiares haviam usado. Sabia arranjar-se com estilo e talvez
pudesse ensinar outros a faz�-lo. Havia muitas mulheres com dinheiro
bastante para se darem a esse luxo.
Apanhou o autocarro depois de confiar Sasha aos cuidados do irm�o
e, nervosa por os deixar sozinhos, desceu pr�ximo da morada indicada no
an�ncio. Ficava na Rua 51, � sa�da da Quinta Avenida. Ao chegar � porta,
verificou que o estilo correspondia ao que esperara. Um porteiro fardado
ajudava as senhoras a sa�rem dos autom�veis e, uma vez l� dentro, avistou
senhoras elegantes e alguns homens observando os luxuosos artigos da
loja.
Havia vestidos e chap�us e uma linha extraordinariamente bonita de
sapatos de fabrico pr�prio. As empregadas estavam bem vestidas e muitas
tinham um porte aristocr�tico. "Era o que devia ter feito logo de in�cio",
censurou-se, tentando afastar a imagem do inc�ndio e rezando para que
as crian�as estivessem bem. Era a primeira vez que as deixava sozinhas
desde aquela noite e jamais teria a certeza de que estavarir bem fora da
sua vista, mas sabia que isto era algo que tinha de fazer. N�o lhe restava
qualquer alternativa.
- Posso ajud�-la, madame? - perguntou uma mulher de cabelo grisalho
com um vestido preto, quando Zoya olhou em volta. - Deseja ver alguma
coisa? - O sotaque era visivelmente franc�s e Zoya virou-se para ela com
um sorriso composto. Tremia por dentro, mas rezava para que n�o se
notasse quando lhe respondeu no impec�vel franc�s que f�lava desde
crian�a.
- Posso falar com o gerente, por favor?
- Ah... que bom ouvir algu�m falar franc�s! - exclamou a mulher de
idade, a sorrir. Parecia uma professora elegantemente vestida de um
col�gio para jovens. - Sou eu. Deseja alguma coisa?
- Sim - respondeu Zoya num tom baixo, de forma a que ningu�m
pudesse ouvi-la. - Sou a condessa Ossupov e ando � procura de emprego.
- Seguiu-se um momento de sil�ncio enquanto os olhares das duas
mulheres se cruzavam e, depois de uma intermin�vel espera, a francesa
esbo�ou um aceno de cabe�a.
- Percebo. - Interrogava-se sobre se a jovem mulher seria uma fraude,
mas o seu porte tranquilo sugeria quem dizia ser, e a francesa esbo�ou um
gesto discreto na direc��o de uma porta fechada nas suas costas. -
Importa-se de vir ao meu gabinete, madame? - O t�tulo n�o era
importante para ela, mas sabia que podia s�-lo para as suas clientes, como
Barbara Hutton, Eleanor Carson, Doris Duke e as amigas. Tinha uma
clientela de elite e os t�tulos significavam muito para a maioria delas.
Muitas casavam com pr�ncipes e condes, s� para poderem usufruir dos
t�tulos.
Zoya seguiu-a at� uma sala de estar elegantemente decorada em tons
de preto e branco. Era onde mostrava os seus vestidos mais caros e a
�nica rival era Chanel que trouxera recentemente os seus artigos para os
Estados Unidos, mas liavia lugar para ambas em Nova lorque.
A francesa chamava-se Axelle Dupuis e chegara de Paris h� uns anos,
tendo montado aquele elegante sal�o conhecido apenas por "Axelle". No
entanto, h� anos que era um must de Nova lorque. Zoya chegara a
comprar-lhe um vestido mas n�o usara obviamente o seu nome russo e,
por sorte, Madame Dupuis n�o se recordava dela.
- Tem alguma experi�ncia no ramo? - inquiriu, observando Zoya
atentamente. O vestido que ela usava era barato e os e os sapatos estavam
gastos, mas as m�os graciosas, a forma como se movimentava e o
penteado indicavam algu�m que conhecera melhores tempos. Falava al�m
disso franc�s, n�o que fosse muito importante ali. E parecia exibir um
estilo nato, mesmo vestida sem luxo. Axelle sentia-se intrigada. - J�
alguma vez trabalhou em moda?
- N�o - respondeu Zoya honestamente e abanando a cabe�a. - Mudei-
me de Sampetersburgo para Paris depois da revolu��o. - J� era capaz de
pronunciar as palavras, agora que coisas piores tinham acontecido e tinha
de pensar em Nicky e Sasha. Por eles, rastejaria por aquele emprego e
n�o conseguiu ler nada no rosto da mulher quando ela preparou um ch�
para ambas.
O servi�o de ch� em prata era muito bonito e a lou�a de porcelana,
francesa. Tinha um porte elegante e observou atentamente Zoya quando
ela bebeu um gole. Coisas deste g�nero eram importantes devido � sua
clientela, as mais elegantes e exigentes mulheres do mundo. N�o podia
permitir-se que fossem servidas por pessoas sem maneiras e rudes e ficou
satisfeita ao examinar Zoya com argutos olhos cinzentos.
- Quando foi para Paris, trabalhou em moda? - Axelle sentia-se
curiosa. Havia algo de inconfundivelmente aristocrata naquela jovem
mulher quando Zoya a fixou.
- Dancei com os Ballets Russes. Era a �nica coisa que sabia fazer e
�ramos muito pobres. - Decidira ser honesta com ela, pelo menos at�
certo ponto.
- E depois?
Zoya esbo�ou um sorriso triste, sentada muito direita na sua cadeira.
- Casei com um americano e vim para c� em mil novecentos e
dezanove. - "H� doze anos..." - O meu marido morreu h� dois anos. Era
mais velho do que eu... - N�o falou � francesa de tudo o que tinham
perdido. Deixara de ser importante e queria salvar a dignidade de
Clayton, mesmo depois da sua morte. - Tenho dois filhos para sustentar
e perdemos tudo o que possu�amos num inc�ndio... N�o que fosse muito...
- A voz morreu-lhe ao pensar no pequeno apartamento onde Sava
morrera e fixou Axelle. - Preciso de um emprego. Sou velha de mais para
voltar a dan�ar. - Varreu as imagens do clube e prosseguiu: - ... e sei
algumas coisas sobre roupa. Antes da guerra... - Hesitou, mas for�ou-se
a continuar, pois, se ia apoiar-se no t�tulo, teria de lhe fazer refer�ncia. -
Em Sampetersburgo, as mulheres eram elegantes e bonitas... - Sorriu, sem
que Axelle deixasse de a observar.
- � parente dos Romanov? - Muitas russas insignificantes haviam feito
esta reivindica��o, mas havia algo naquela jovem mulher que deixava
antever tal possibilidade. Estav, disposta a acreditar quando os olhos
verdes de Zoya a fixaram e se expressou na sua voz meiga, pegando na
ch�vena de ch� como uma aristocrata.
- Sou prima do falecido czar, madame.
N�o disse mais nada, e Axelle reflectiu demoradame. Valia a pena
tentar. Ela podia ser o que as clientes desejavam... e como adoravam
condessas! Axelle sabia que a ideia de terem uma condessa a atend�-las
seria um factor de suprema excita��o.
- Podia dar-lhe uma oportunidade, senhora... condessa, acho que
deveria trat�-la assim. Aqui, tem de usar o seu t�tulo.
- Claro. - Zoya tentava parecer calma, mas apetecia-lhe gritar de
alegria, como se fosse uma crian�a... Ia ter um emprego! No Axelle's! Era
perfeito! No Outono, os dois mi�dos estariam na escola e ela regressaria
a casa �s seis da tarde. Era respeit�vel... era perfeito... N�o conseguiu
reprimir um sorriso de al�vio e Axelle correspondeu. - Obrigada, madame.
Muito obrigada.
- Vejamos como se sai. - Levantou-se para indicar que a audi�ncia
tinha terminado, e Zoya apressou-se a imit�-la e pousou a ch�vena no
tabuleiro sob o olhar extremamente agradado de Axelle. - Quando
gostaria de come�ar?
- Na pr�xima semana conv�m-lhe?
- Perfeito. �s nove horas. Em ponto. E... Condessa - acrescentou
pronunciando a palavra com o �-vontade da pr�stica e olhando para o
vestido de Zoya -, talvez antes de ir, queira escolher um vestido para
usar... algo preto ou azul-escuro... - Pensou no seu adorado Chanel preto
que n�o conseguira recuperar do inc�ndio. Tresandava a fumo, por mais
que se esfor�asse por tirar o cheiro.
- Muito obrigada, madame.
- De nada. - Inclinou a cabe�a num gesto delicado e transp�s de novo
a porta que dava para a sala principal onde uma mulher com um enorme
chap�u branco soltava exclama��es ante os sapatos. Fez recordar a Zoya
que teria de comprar sapatos novos com o pouco dinheiro que possu�a e
apercebeu-se subitamente de que se esquecera de perguntar qual era o
sal�rio. Contudo, era irrelevante. Tinha um emprego, fosse l� por que
pre�o. Era muito melhor do que vender ma��s na rua.
Deu a not�cia �s crian�as mal regressou e foram dar um passeio no
parque, depois do que voltaram ao hotel para fugir ao calor. Nicholas
estava t�o excitado como ela, e Sasha perguntou com os olhos azuis muito
abertos se tamb�m tinham vestidos para menina.
- N�o, meu amor, n�o t�m. Mas compro-te um vestido novo assim que
puder. - Comprara-lhes o m�nimo depois do inc�ndio, tal como para ela,
mas agora um novo dia nascera. Tinha um emprego respeit�vel e esperava
ganhar um sal�rio decente. N�o teria de voltar a dan�ar.
Depois, interrogou-se com um sorriso sobre se veria algumas das suas
antigas amigas no Axelle's. Haviam-na posto de lado quando chegara de
Fran�a para depois a adorar. Tinham-na esquecido completamente
quando Clayton morrera e abandonado depois de perderem tudo. Como
as pessoas eram falsas; n�o que se importasse. S� os filhos tinham valor.
O resto chegara e partira, viera e fora-se novamente embora. N�o lhe
interessava. Haviam sobrevivido mesmo assim... A vida voltava a parecer-
lhe infinitamente preciosa.
CAPITULO 34
Os seus dias na loja eram longos e cansativos e as mulheres que
atendia muito exigentes. Eram impetuosas e mimadas, algumas incapazes
de se decidirem, mas mostrava-se sempre paciente e achava que sabia o
que lhes ficava bem.
Era capaz de pegar num vestido, puxar aqui, enfiar ali e. subitamente,
a mulher parecia desabrochar quando se olhave ao espelho... conseguia
escolher o chap�u perfeito para o vestido certo... um rarninho de flores...
uma pequena pele... os sapatos encantadores. Criava imagens que se
transformavam em poesia, e a patroa estava satisfeit�ssima com o seu
trabalho.
No Natal, Zoya conseguira uma posi��o de relevo no Axelle's,
superara todos em vendas e as clientes perguntavam sempre pela
condessa. Era condessa para aqui, condessa para ali... e n�o pense,
condessa... e, oh, condessa, por favor... Axelle observava-a em ac��o,
sempre discreta e com um porte digno, vestida com eleg�ncia, as luvas
brancas imaculadas quando vinha trabalhar, o cabelo impecavelmente
penteado e um leve sotaque que aumentava o mist�rio. E Axelle cedo
espalhara que ela era prima do czar. Exactamente aquilo de que precisava
para a loja e, quando Sergei Obolenski tamb�m veio conhecer aquela
"condessa" de que todos falavam, fitou-a, estupefacto, vendo as l�grimas
que lhe enchiam os olhos.
- Zoya! O que est�s a fazer aqui?
- A divertir-me. - N�o mencionou os dois anos brutalmente dificeis a
que sobrevivera.
- Que tontice! Mas, de facto, talvez seja divertido, sim! Tens de vir
jantar connosco.
Contudo, recusou sempre. J� n�o tinha roupa, tempo, ou mesmo
energia para andar com os conhecidos dele. Tudo isso acabara para ela.
Todas as noites regressava a casa at� junto dos filhos, que a esperavam no
apartamento da Rua 39, pr�ximo de East River, para onde conseguira
mudar-se a tempo do Natal. Os dois andavam em col�gios decentes e os
sal�rios regulares e comiss�es que Axelle lhe pagava n�o lhe perimitiam
luxos, mas chegavam para levarem uma vida confort�vel, o que era uma
grande melhoria por compara��o aos dois �ltimos anos quando dan�ava
no Fitzhugh's Dance Hall.
Estava a trabalhar para Axelle quando o beb� Lindbergh foi
encontrado morto em Maio de 1932 e leu, surpreendida, que Florenz
Ziegfeld morrera em Julho do mesmo ano. Interrogou-se sobre como teria
sido trabalhar para ele e n�o no Fitzhugh's Dance Hall. Interrogou-se
tamb�m sobre o que seria feito de Jimmy. H� muito que lhe devolvera os
cem d�lares que ele lhe metera furtivamente na mala quando estava t�o
desesperada, mas nunca mais tinha tido not�cias. Ele era parte de uma
outra vida, outro cap�tulo encerrado enquanto continuava a trabalhar
como condessa no Axelle's. E ficou muito emocionada quando Eleanor
Roosevelt veio v�-Ia e comprar alguma roupa � loja durante a campanha
eleitoral. Pecordava-se com entusiasmo dos velhos amigos de Clayton e
mandou-lhes um telegrama quando Frank1in ganhou e enviou a Eleanor
um bonito gorro de pele, que ela disse que usaria na inaugura��o em
Mar�o e Axelle ficou satisfeit�ssima.
- Sabe indubitavelmente lidar com elas, ma ch�re - elogiou a elegante
francesa.
Gostava de Zoya e sentia-se encantada com o pequeno Nicholas. O
mi�do tinha os modos de um jovem principe e as hist�rias que Obolenski
lhe contara uma tarde sobre Zoya e as filhas do czar tornavam-se agora
muito cred�veis. Ela era uma mulher invulgar nascida numa �poca de
infelicidade. Se as coisas tivessem acontecido de uma outra forma, poderia
casar-se com um pr�ncipe da sua estirpe e viver num dos pal�cios que
frequentara em crian�a. Parecia injusto, mas n�o mais do que a depress�o
que se notava por todo o lado. Nesse ano, toda a gente � excep��o da
clientela de Axelle parecia estar a morrer de fome.
Na quadra natal�cia, Zoya foi com Nicholas ao cinema ver o filme
Tarzan e ele ficou encantado. Depois, foram tomar ch�. Ele andava na
Trinity School e sa�a-se bem. Era um bom estudante e uma crian�a
inteligente e, aos onze anos, afirmava que um dia seria um homem de
neg�cios, como o pai o fora. Sasha queria ser estreia de cinema. Zoya
tinha-lhe 'comprado uma boneca Shirley Temple e ela nunca a abandolava,
juntamente com Annabelle, que sobrevivera ao inc�ndio. Eram crian�as
felizes, embora tivessem passado por tempos dif�ceis.
Na Primavera, Zoya tornou-se assistente de Axelle. Tal significava
mais dinheiro e mais prest�gio e deixava mais tempo livre � pr�pria
Axelle. Zoya convenceu Axelle a permitir que Elsie de Wolfe redecorasse
a loja, e o neg�cio pareceu disparar em flecha.
- Bendito seja o dia em que atravessou aquela porta - exclamou
Axelle, sorrindo, por sobre as cabe�as das entusiasmadas clientes no
primeiro dia em que voltaram a abrir depois da nova decora��o. O
pr�prio presidente da c�mara, Fiorello La Guardia, apareceu, e o neg�cio
ia de vento em popa.
Deu um casaco de marta a Zoya como presente e a jovem mulher
soltou uma exclama��o de espanto. Era de marta criada em fazenda e
ressaltava-lhe a eleg�ncia quando apainhava o autocarro diariamente para
ir ter com os filhos. No ano seguinte, conseguiu mudar-se para um novo
apartamento. Ficava somente a tr�s quarteir�es do Axelle's, e cada um
dos filhos tinha agora o seu quarto. Nicholas tinha doze anos, quase treze,
e sentia-se aliviado por se haver liberto um pouco de Sasha.
Dois anos mais tarde, no d�cimo primeiro anivers�rio de Sasha, Axelle
convidou Zoya a ir com ela a Paris, na primeira viagem de neg�cios.
Nicholas ficou na casa de um amigo e contratou uma baby-sitter para
tomar conta de Sasha dutante tr�s semanas.
Partiu com Axelle no Queen Mary no meio de uma grande excita��o
e de champanhe. Detendo-se a olhar a Est�tua da Liberdade quando o
navio arrancou lentamente de Nova lorque, Zoya pensava no que
conseguira durante aquele tenipo, desde a morte de Clayton. Haviam
passado sete anos. T�nha agora trinta e sete e sentia-se como se houvesse
vivido v�rias vidas.
- Em que est�s a pensar, Zoya? - Axelle estivera a observ�-la, muito
calma e direita junto ao varandim, � medida que avan�avam para mar
aberto. Estava elegantemente arranjada com um vestido verde-esmeralda
da cor dos olhos e um pequeno gorro de pele na cabe�a e, ao virar-se
para fixar a patroa, os olhos eram quase da mesma cor do mar.
- Pensava no passado.
- Acontece com frequ�ncia, julgo - replicou Axelle num tom calmo.
Respeitava-a muito e interrogava-se sobre a raz�o por que ela n�o sa�a
mais. Oportunidades n�o lhe faltavam. As clientes eram doidas por ela e
havia sempre um monte de convites em cima da sua secret�ria dirigidos
simplesmente � "condessa Zoya". Contudo, ela s� raramente sala e dizia
sempre que "j� fizera tudo isso antes". - Talvez Paris traga alguma
excita��o � tua vida. - Zoya limitou-se a rir e abanou a cabe�a.
- Tive excita��o bastante na minha vida, muito obrigada. - Revolu��es
e guerras e o casamento com um homem que adorara. Continuava
apaixonada por Clayton depois de todos aqueles anos e sabia que voltar
a ver Paris seria doloroso sem ele. Era o �nico homem que tinha amado
e sabia que nunca haveria outro como ele... excepto o filho, talvez... Sorriu
ante a ideia e respirou a brisa mar�tima. - Vou a Paris em trabalho -
anunciou bruscamente a Axelle e depois riu ante as palavras da mulher
mais velha.
- N�o estejas assim t�o segura, minha querida.
Regressaram depois ao camarote. Zoya desfez as malas e colocou as
fotografias dos filhos junto � cama. N�o precisava de mais nada, nem
nunca precisaria. Nessa noite deitou-se com um livro novo e elaborou uma
lista das roupas que iam encomendar em Paris.
CAP�TULO 35
Axelle reservara quartos no Ritz, convenientemente localizado na
Place Vend�me e resplandecente de todo o luxo que Zoya n�o esquecera.
Tinham passado anos desde que tomara banho numa funda banheira de
m�rimore, igual � que tinha na casa de Sutton Place. Fechou os olhos e
usufruiu de todo o prazer da funda banheira cheia de �gua quente.
Come�ariam as compras na manh� seguinte, mas naquela primeira
tarde Zoya saiu calmamente do hotel para dar um passeio e foi invadida
pelas recorda��es ao vaguear pelas ruas, avenidas e os parques que
outrora partilhara com Clayton.
Foi tomar uma bebida ao Caf� de Flore e depois, incapaz de se
controlar, apanhou um t�xi para o Palais Royal e deteve-se em sil�ncio
diante do pr�dio onde vivera com Eugema. Haviam passado dezassete
anos desde que ela morrera, dezassete anos de bons e maus momentos e
trabalho duro Junto dos seus amados filhos. As l�grimas correram-lhe
devagar pelas faces, perante as recorda��es da av� e do falecido marido.
Era quase como se esperasse que ele lhe batesse no ombro, como na noite
em que se haviam conhecido. Ainda conseguia ouvir-lhe a voz, como se
lhe tivesse falado horas antes.
Em seguida, virou costas lentamente, foi at� �s Tulherias e sentou-se
num banco, �mersa nos seus pensamentos, observando as crian�as a
brincar � dist�ncia. Interrogou-se sobre como seria trazer Nicholas e Sasha
at� ali, uma vida em certos aspectos mais f�cil do que em Nova lorque;
por�m, o seu trabalho no Axelle's conferira um novo rumo � sua
exist�ncia.
H� cinco anos que estava com Axelle e era excitante encontrar-se do
lado das compras, em vez de ter de esperar no meio de hordas de
mulheres mimadas e exigentes. Conhecia t�o bem as mulheres. Havia
algumas com quem lidava bem, mulheres que compreendia e conhecera
toda a sua vida. Lembrara-se mais do que uma vez da sua pr�pria m�e.
E os homens tamb�m gostavam de Zoya, pois ela era t�o capaz de
lhes vestir as mulheres como arranjar discretamente roupa para as
amantes que traziam � loja. Nunca lhe escapava uma alcoviteirice dos
l�bios, uma cr�tica maldosa, mas apenas bom gosto e sugest�es
interessantes. Axelle sabia que sem ela o sucesso da loja jamais teria
atingido aquele ponto. "A condessa", como todos lhe chamavam,
adicionava um chique incontest�vel �s vidas dos ricos nova-iorquinos.
Contudo sentiu-se repentinamente muito, muito longe dali. Sentiu-se de
novo urna jovem e ao mesmo tempo triste, pensando na nova vida que se
iniciara para ela desde a �ltima vez que estivera em Paris.
Ao apanhar um t�xi de volta ao hotel, o cora��o deu-lhe um salto no
peito, interrogando-se sobre se poderia encontrar VIadimir Markovski.
Nessa noite, no hotel, procurou o n�mero na lista telef�nica, mas o nome
n�o constava. Desconfiava que ele j� teria morrido nessa altura. Deveria
estar pr�ximo dos oitenta anos, se fosse vivo.
Nessa noite, Axelle convidou-a para jantar no Max�m's, mas, com um
olhar nost�lgico, recusou e disse que estava muito cansada e queria
descansar antes de iniciarem a volta � procura das novas colec��es. N�o
explicou a Axelle que a recorda��o de Clayton a lev�-la a jantar l� seria
por de mais dolorosa. Aqui, via-se obrigada a fechar constantemente as
portas ao passado.
Parecia-lhe apenas a um passo de Sarripetersburgo. Tudo estava t�o
pr�ximo. N�o se encontrava a meio mundo de dist�ncia. Encontrava-se
nos lugares que descobrira com Eugema e Vladimir, nos s�tios onde
Clayton a levara. Era quase doloroso estar ali e ansiava por deitar m�o ao
trabalho a fim de esquecer o passado e ocupar-se com o presente.
Nessa noite telefonou a Nicholas para casa do amigo e contou-lhe
tudo sobre Paris. Prometeu que um dia o traria com ela. Era uma cidade
t�o bonita e desempenhara um papel t�o importante na sua vida. O filho
disse-lhe que a amava e tivesse cuidado com ela. Mesmo aos catorze,
quase quinze anos agora, n�o receava mostrar emo��es.
- � o russo que existe em ti - espica�ava-o Zoya por vezes, pensando
em quanto se parecia com Nicolai, sobretudo quando o ouvia tro�ar de
Sasha. O telefonema para a filha foi igualmente t�pico. Sasha dera-lhe
uma lista de compras de tudo o que queria de Paris, que inclu�a um
vestido vermelho e v�rios pares de sapatos franceses. � sua maneira, era
t�o mada quanto Natalya o fora e quase t�o exigente. Interrogou-se sobre
o que Mashka teria pensado deles, ou de corno teriam sido os seus
pr�prios filhos, caso houvesse vivido e casado.
Nessa noite foi um al�vio adonnecer e fugir �s recorda��es. A viagem
a Paris revelou-se muito mais dif�cil do que pensara e sonhou com Alexis,
Marie e Tatiana, e as outia,tendo acordado �s quatro da manh� e sendo
incapaz de voltar a adormecer at� quase �s seis. Na manh� seguinte,
sentia-se cansada quando mandou vir cro�ssants e cafie.
- Alors, estamos prontas? - perguntou Axelle, apare-cendo � porta com
um belo conjunto Chanel vermelho, o cabelo branco impecavelmente
penteado e a bolsa Herm�s ao ombro. Parecia novamente muito francesa
e Zoya pusera um vestido de seda azul e um casaco a condizer de Lanvin.
Era da cor do c�u, e apanhara o cabelo ruivo num rolo elegante.
Ambas pareciam muito parisienses quando o porteiro lhes abriu a
porta de um t�xi, e Zoya reconheceu o sotaque do motorista. Era um dos
in�meros e idosos russos que continuavam a guiar t�xis em Paris; por�m,
quando lhe perguntou se conhecia Vladimir, limitou-se a abanar a cabe�a.
N�o se lembrava de lhe ouvir o nome nem de o ter conhecido. Era a
primeira vez em anos que Zoya falava russo. At� mesmo con, Sergei
Obolenski falava franc�s. E Axelle escutou a musicalidade das palavras,
at� pararem nos Est�dios Schiaparelli, na Rue de la Paix.
Tinham combinado come�ar por ali e foi uma loucura.
Encomendaram d�zias de camisolas diferentes para a loja, conversaram
longamente com a estilista, explicando as neccssidades e prefer�ncias da
clientela. Ela era uma mulher interessante e ficaram intrigadas ao
descobrir que tinha apcnas mais tr�s anos que Zoya. Usufru�a de um �xito
not�vel � �poca, quase t�o grande como o de Gabrielle Chanel, ainda
instalada na Rue Cambon. Foi l� que se dirigiram a seguir c, mais tarde
nesse mesmo dia, � Casa Balenciaga, onde Zoya escolheu v�rios vestidos
de noite e os experimentou para lhes sentir o cair e o toque, enquanto
Axelle a observava.
- Devias ter sido estilista tamb�m - disse-lhe Axelle a sorrir. - Tens
uma intui��o surpreendente para roupas.
- Sempre gostei de roupas bonitas - confessou, rodopiando nas
intrincadas cria��es do g�nio espanhol. - Mesmo em crian�as, Marie e eu
costum�vamos olhar para as roupas que as nossas m�es e as amigas delas
usavam. - Riu ante a lembran�a. - E �ramos horr�veis quanto �s que
ach�vamos que tinham mau gosto.
Axelle apercebera-se do olhar distante e perguntou num tom suave.
- Era tua irm�?
- N�o - apressou-se Zoya a responder. Era raro abrir as portas do
passado a algu�m e muito menos a Axelle, com quem mantinha quase
sempre uma rela��o de neg�cios, mas estava demasiado pr�ximo de casa
naquele momento. - Era minha prima.
- Uma das gr�-duquesas? - Axelle pareceu logo impressionada quando
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a afirmativo. - Que coisa terr�vel tudo
aquilo.
Regressaram depois ao neg�cio e, na manh� seguinte, foram ver os
esbo�os de Dior, tendo jantado no quarto nessa noite. Passaram em
revista as listas do que tinham encomendado, do que tinham gostado e do
que achavam que ainda precisavam. Axelle n�o ia comprar uma parte de
tudo aquilo, mas queria apenas ver, a fim de desenhar esbo�os para a
costureira que ocasionalmente lhe copiava os esbo�os de outros. Era
muito habilidosa e dava muito dinheiro a ganhar a Axelle.
Encontraram-se pessoalmente com Christian Dior, um homem
encantador, e Axelle apresentou Zoya com o seu t�tulo. Nesse dia estava
l� Lady Mendl, ex-Elsie de Wolfe, e, depois de elas sa�rem, forneceu a
Dior os pormenores da vida de Zoya com Clayton.
- Foi uma coisa horr�vel. Perderam tudo em mil novecentos e vinte e
nove - explicou no momento em que apareleu WaIly Simpson. Dior era
um grande f� dela, a qual entrou com os dois buldogues an�es.
Nessa tarde, Zoya e Axelle voltaram a visitar Elsa Schiaparelli, desta
vez no seu sal�o mais luxuoso, constru�do na Place Vend�me h� dois
anos, e Zoya riu com o divertido sof� que Salvador Dali desenhara para
ela com a forma de l�bios. Falaram novamente nas camisolas e nos v�rios
casacos que Axelle queria encomendar. Contudo, estavam a atingir
rapidamente os limites do seu or�amento. Axelle queixou-se que o
dinheiro desaparecia, pois era tudo encantador. Vivi uma altura excitante
no �mbito da moda em Paris.
Schiaparelli deixou-as, pois tinha uma entrevista com fabricante de
casacos americano. Tal como Axelle, tamb�m ele era um dos seus
melhores clientes estrangeiros, explicou quando uma das assistentes entrou
e lhe murmurou algo ao ouvido.
- Desculpam-me, minhas senhoras? A minha assistas vai mostrar-lhes
os tecidos em que o casaco pode ser encomendado. Mister Hirsch espera-
me no meu gabinete. - Despediu-se igualmente de Zoya, e as duas
mulheres conferenciaram muito tempo com a assistente e encomendaram
o casaco em vermelho, preto e num cinza que agradou particularmente a
Zoya. Parecia favorecer as cores mais discretas, como na sua pr�pria
roupa. Pusera um vestido de um nu malva-claro, desenhado por Madame
Gr�s, e que Axelle a deixara comprar com um enorme desconto.
Quando sa�ram da loja, uma hora mais tarde, foram seguidas por um
homem alto, com um tufo de cabelo preto e um rosto que parecia talhado
em m�rmore por um mestre. Voltaram a v�-lo no elevador do hotel.
- N�o estou a segui-Ias. Tamb�m vivo aqui - declarou, olhando para
Zoya com uma express�o juvenil. Depois estendeu a m�o a Axelle. - Acho
que compraram uns artigos, minha linha. Sou o Simon Hirsch.
- Claro - sorriu ela, parecendo de novo muito francesa, agora que
estava ali. O sotaque at� se acentuara mais. - Sou a Axelle Dupuis - disse
e lembrou-se rapidamente de Zoya. - Apresento-lhe a condessa Ossupov,
a minha assistente. - Foi a primeira vez desde h� muito tempo que Zoya
se sentiu embara�ada com o t�tulo. Ele parecia um homem t�o simples e
agrad�vel que se achou idiota ao dar-se ares quando lhe estendeu a m�o.
Tinha o aperto forte de um homem que dirigia um imp�rio seu e fitou os
olhos verdes de Zoya com os seus, meigos e castanhos.
- � russa? - inquiriu quando o elevador parou no andar delas, e Zoya
sorriu, corando um pouco, um defeito que achava que a atormentaria
durante a vida inteira.
- Sou - anuiu num tom suave e admirando a forma como ele se
movimentava. O quarto dele era aparentemente ao lado do delas e
percorria os amplos corredores, fazendo de s�bito com que parecessem
demasiado estreitos. Tinha os ombros de um jogador de futebol e a
energia de um rapazinho, enquanto caminhava.
- Tamb�m eu. Ou melhor, a minha fam�lia. Nasci em Nova lorque. -
Sorriu e as duas mulheres pararam junto ao quarto de Zoya. - Divirtam-se
com as vossas compras. Bonne chance! - desejou num franc�s com um
forte sotaque ao desaparecer no quarto.
- C�us, como me doem os p�s... - comentou Axelle quando entraram
no quarto de Zoya e tiraram os sapatos. - Ainda bem que o conhecemos.
Tem uma boa linha. Queria dar mais uma vista de olhos, antes de
voltarmos. Precisamos de mais casacos para o pr�ximo Outono e podemos
comprar-lhe alguns modelos, se nos fizer um pre�o aceit�vel.
Sorriu e Zoya mandou vir ch�, depois do que passaram uma vez mais
em revista as encomendas feitas. S� lhes restavam mais quatro dias na
cidade, antes de regressarem a Nova lorque no Queen Mary.
- Na verdade, dev�amos pensar mais em chap�us e sapatos - redarguiu
Zoya pensativamente, fechando os olhos. Ternos de lhes dar mais do que
apenas vestidos, fatos de noite e conjuntos... Foi sempre esse o nosso
ponto forte. O aspecto geral de que tanto gostam.
- � nisso que somos boas. - E depois fixou a bonita mulher de vestido
cor de malva, de cabelo solto, e caindo-lhe como uma cascata pelos
ombros. - Atraente, n�o?
- Quem? - retorquiu Zoya de olhos muito abertos e obviamente
confusa. Estava a tentar resolver se deviam encomendar a Chanel os
chap�us a condizer com os fatos e se tamb�m deviam pensar em algumas
das suas fabulosas j�ias. As clientes possu�am tantas j�ias pessoais, que
n�o estava bem certa de que compreendessem a eleg�ncia do que Chanel
estava a fazer.
- O homem dos casacos de Nova lorque, claro. Se tivesse vinte anos
menos, tinha-o agarrado. - Zoya riu ante a imagem de uma senhora como
Axelle a agarrar algu�m. Quase conseguia ver o homem a voar pelo
quarto, com a etiqueta de Axelle e riu face a ideia.
- Gostava de ver.
- Tem um rosto marcado, mas muito simp�tico. Gosto de homens
assim. - Era quase t�o alto como Clayton mas muito mais largo de
ombros, e Zoya n�o voltara a pensar nele, desde que se haviam separado.
- Vamos juntas quando eu for ao sal�o de exposi��o dele. Talvez te
convide para jantar, pois s�o ambos russos. - Estava a brincar, mas n�o
totalmente. Bem vira a forma como ele olhara para Zoya e o interesse
estampado no rosto ao ouvir o t�tulo.
- N�o sejas idiota, Axelle. O pobre homem estava apenas a ser
delicado.
- Mon oe�l! Esta minha vista n�o engana - redarguiu, acenando com
um dedo a Zoya.- �s nova de mais para te comportares como uma freira.
Nunca sais com ningu�m? - Era a primeira vez que se atrevia a fazer uma
pergunta do g�nero, mas estavam longe de casa e as perguntas pessoais
tornavam-se mais f�ceis ali, longe da loja e das clientes.
- Nunca - sorriu Zoya com um ar estranhamente calmo. - N�o desde
que o meu marido morreu.
- Mas isso � horr�vel! Que idade tens agora? - Esquecera-se.
- Trinta e sete, ou seja de mais para agir como une debutante. J�
vemos dessas que cheguem na loja. -- Soltou uma risada, e Axelle
sernicerrou os olhos numa censura amistosa enquanto Zoya servia mais
uma ch�vena de ch� do tabuleiro de prata. Os luxos do Ritz come�avam
a tomar-se um h�bito agrad�vel.
- N�o sejas rid�cula! - protestou. - Nessa idade, eu tinha dois amantes.
- Deitou um olhar malicioso � sua jovern amiga. - Infelizmente, eram
ambos casados. - Contudo, um deles ajudara-a a montar a loja. Era um
boato que Zo@ tinha ouvido antes, mas a que nunca dera muito cr�dito. Talvez, afinal, fosse verdade. - De facto - acrescentou -, encontro-me com
um homem muito simp�tico em Nova Iorque. N�o se pode passar o resto
da vida entre a loja e os filhos. Um dia crescer�o e depois?
Zoya riu, mas apreciou a preocupa��o de Axelle.
- Trabalharei ainda mais. Na minha vida n�o h� lugar para um
homem, Axelle. Estou na loja at� �s seis da tarde todos os dias e depois
ocupo-me da Sasha e do Nicky at� �s nove ou dez. Quando tomo banho,
leio o jornal e um ou outro livro, passou o tempo. Adormecia sobre o
prato, se algu�rn me levasse a sair. - Axelle sabia quanto ela trabalhava,
mas tinha pena. Havia um doloroso vazio na vida da amiga mais nova e
Axelle nem mesmo tinha a certeza de que ela se desse conta.
- Talvez devesse despedir-te para teu pr�prio bem - brincou a mulher
mais velha, mas ambas sabiam que n�o havia esse perigo. Zoya era agora
demasiado importante para ela. Encontrara, finalmente, um porto seguro.
Contudo, na manh� seguinte, quando regressaram � casa Dior, desta
vez para discutir sapatos, avistaram Simon Hirsch a sair de um t�xi.
- Vejo que nos encontr�mos novamente. Tenho de tomar cuidado, ou
acabam por vender os mesmos casacos que eu! - Todavia, n�o parecia
preocupado. Voltou a mirar Zoya, vestida com um conjunto de linho rosa
que quase lhe dava um ar de rapariguinha.
- N�o corre esse risco, Mister Hirsch - garantiu-lhe Axelle. - Viemos
discutir sapatos.
- Gra�as a Deus. - Seguiu-as at� ao interior, encontraram-se de novo
� sa�da e desta vez riram os tr�s. - Talvez dev�ssemos combinar os
hor�rios para poupar tempo e dinheiro em t�xis. - Sorriu a Zoya e
consultou o rel�gio. Estava bem vestido, com sapatos ingleses de
encomenda, um fato de bom corte e o rel�gio que tinha no pulso acabara
de ser comprado na Cartier. - T�m tempo para almo�ar ou est�o
demasiado ocupadas, minhas senhoras? - Zoya preparava-se para recusar,
mas Axelle surpreendeu-a ao aceitar. E, sem mais delongas, Simon Hirsch
fez sinal a um t�xi e indicou a morada do novo Hotel George V. - Servem
almo�os excelentes. Fiquei l� da �ltima vez que estive em Paris. - Exibia
uma express�o grave, quando se aproximaram do hotel, mesmo � sa�da
dos Campos El�sios. - Nessa altura, h� um no, fui � Alemanha, mas desta
vez n�o vou voltar. Foi extremamente desagrad�vel. - N�o se alargou
sobre o tema pois sa�ram e, ao chegarem � sala de jantar, o chefe de mesa
conduziu-os a uma mesa excelente. Mandaram vir o almo�o, e ele
perguntou a Axelle se iam a mais algum lado, mas ela respondeu que
apenas tinham tempo para Paris. - Coniprei uns tecidos fant�sticos em
Inglaterra e na Esc�cia antes de vir por causa da minha linha de homem.
Belos artigos - replicou, encomendando o vinho, e Zoya manteve-se muito
quieta na cadeira a observ�-lo. - Contudo, n�o voltaria a p�r os p�s na
Alemanha - garantiu novamente. - Sobretudo com toda esta situa��o do
Hitler.
- Acha que ele vai realmente fazer o que se diz por a�? - Zoya ouvira
falar na sua hostilidade para com os Judeus, mas n�o sabia bem se devia
acreditar.
- N�o me parece que haja qualquer d�vida. Os nazis criaram uma
atmosfera de anti-semitismo que se infiltrou por todo o pa�s. Quase t�m
medo de falar uns com os outros. Na minha opini�o, conduzir� a um
grave problema. - Os olhos mostravam-se calmos mas com um brilho de
raiva, e Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a.
- Parece dif�cil de acreditar. - No entanto, tamb�m a revolu��o o era.
- Esse tipo de loucura � sempre. A minha fam�lia deixou a R�ssia por
causa dos massacres dos judeus. E agora est�o a come�ar aqui,
obviamente de uma forma mais subtil, mas n�o muito. N�o h� nada de
muito subtil na ca�a aos Judeus. - Os olhos emitiam um fulgor de raiva e
as duas mulheres escutavam-no. Depois, e como que para mudar de
assunto, virou-se para Zoya com um sorriso interessado. - Quando deixou
a R�ssia, condessa?
- Por favor, trate-me por Zoya. - Corou, embara�ada. - Na "vida real",
o meu nome � Zoya Andrews. - Os olhos encontraram-se e mantiveram-se
fixos e, depois, ela desviou o rosto antes de responder � pergunta. - sa� da
R�ssia em mil novecentos e dezassete. Logo ap�s a revolu��o.
- Deve ter passado uma �poca dificil. A sua fam�lia acompanhou-a?
- S� a minha av�. - Agora j� era capaz de falar no asinito. Levara
quase vinte anos a consegui-lo. - Os outros foram mortos antes de virmos,
a maioria. E alguns, um ano mais tarde. - Hirsch n�o se apercebeu de que
ela se referia ao czar, nunca lhe ocorrendo que estivesse t�o bem
relacionada.
- E foi, ent�o, para Nova lorque?
- N�o. - Sorriu agradavelmente, enquanto o empregado servia o vinho.
Era um vinho �ptimo de 1926, encomendado por Sinion. - Viemos para
Paris. Vivi aqui dois anos antes de ir para Nova lorque com o meu
marido. - Os olhos dele procuraram a alian�a e verificaram com pena que
ainda continuava no dedo, mas Axelle tamb�m deu pelo olhar e conhecia
Zoya o suficiente para saber que ela n�o daria mais explica��es.
- A condessa � vi�va - interferiu providencialmente, e Zoya fitou-a,
aborrecida.
- Desculpe - pronunciou em tom grave, mas era vis�vel que a
informa��o lhe interessava. - Tem filhos?
- Dois. Um filho e uma filha. - Parecia orgulhosa quando respondeu
e ele sorriu. - E o senhor, Mister Hirsch? - Estava apenas a ser delicada
enquanto aguardavam o almo�o, mas Axelle parecia muito satisfeita com
a conversa. Gostava dele e era �bvio que estava muito interessado em
Zoya. - Tamb�m tem filhos?
- N�o. - Sorriu, abanando a cabe�a com uma express�o de pena. -
Nunca casei, nem tive filhos. N�o tive tempo. Passei os �ltimos vinte anos
a construir um neg�cio. A maior parte da minha fam�lia trabalha para
mim. O meu pai s� se reformou no ano passado e penso que a minha m�e
finalmente desistiu. Considera que, se n�o me casei at� aos quarenta, j�
n�o h� muita esperan�a que o fa�a. Costumava p�r-me doido. Sou filho
�nico e ela queria dez netos ou coisa assim.
Zoya sorriu maliciosamente, recordando as suas primeiras conversas
com Mashkca, de como falavam em quantos filhos desejavam. Ela queria
seis e Mashka quatro ou cinco, mas nenhuma das suas vidas correra como
esperavam.
- Possivelmente casar� daqui a uns anos e ir� surpreend�-la com cinco
pares de g�meos.
Simon. Hirsch fingiu engasgar-se com o vinho e depois pareceu
divertido.
- Terei de lhe dizer isso... ou talvez n�o, para que n�o me venha com
a mesma conversa. - Nessa altura trouxeram o almo�o, finos croquetes de
peixe para Axelle e codorniz para Zoya. Ele encomendara um bife e
desculpou-se pelo seu gosto t�pico americano. - Posso fazer-lhes perguntas
sobre a vossa viagem de compras, minhas senhoras, ou � tudo muito
secreto? - Zoya sorriu e trocou um olhar com Axelle, parecia muito
descontra�da e respondeu em lugar dela.
- N�o acho que tenhamos muitos segredos a esconder-lhe, Mister
Hirsch, excepto talvez o dos nossos casacos. - Todos riram e Zoya falou-
lhe em algumas das coisas que haviam comprado, sobretudo das camisolas
a Schiaparelli.
- Aquele pul�ver novo que ela est� a fazer � sensacional - replicou
Zoya com uma express�o satisfeita. - E os sapatos que encomend�mos
hoje na Dior s�o uma maravilha.
- Terei de ir � loja ver tudo quando chegar. Compraram algum do
novo rosa shock�ng da Elsa? - Gostava muito da cor, estava a planear
inseri-Ia na nova linha e interrogava-se sobre a opini�o de Zoya.
- Ainda n�o tenho muitas certezas a esse respeito. � um pouco viva
para algumas das nossas clientes.
- Acho-a fant�stica.
Zoya sorriu. Era t�o estranho ouvir aquele homem de aspecto rude,
que mais parecia um jogador de futebol, a discutir o rosa shocking de Elsa
Schiaparelli, mas n�o havia d�vida de que os casacos dele eram os de
melhor corte dos Estados Unidos e era �bvio que tinha olho para a moda
e as cores e sabia o que estava a fazer.
- O meu pai era alfaiate - explicou Hirsch -, e o pai dele tamb�m.
Abriu a Hirsch & Co. com os dois irm�os no Lower East Side. Faziam
roupas e casacos para as pessoas conhecidas e depois algu�m da S�tima
Avenida ouviu falar deles, come�ou a encomendar-lhes artigos e o meu
pai mandou tudo para o diabo... - Olhou com uma express�o de desculpa
para Zoya que estava por demais interessada na hist�ria para se
preocupar com a linguagem. ... Mudou-se para a S�tima Avenida, abriu
uma oficina e, quando entrei no neg�io, virei tudo de pernas para o ar
com uma coisa chamada... moda.
"Tivernos bastantes discuss�es - prosseguiu -, e, quando os meus tios
se reformaram, atirei-me de cabe�a, com l�s inglesas e algumas cores que
quase puseram o meu pai a chorar. Tamb�m come��mos a fazer casacos
de senhora e... bom, nos �ltimos dez anos cheg�mos onde eu tinha
previsto de in�io. � uma linha de qualidade, sobretudo agora que o meu
pai se reformou e levo novos modelos de Paris.
- � uma hist�ria interessante, Mister Hirsch - comentou Axelle. Era
o tipo de hist�ria que constru�ra o sucesso do seu pa�s adoptado. - Os seus
casacos s�o lind�ssimos. Vendemo-los muito bem.
- Fico satisfeito. - Sorriu e via-se que era um homem que estava �
vontade na sua pele. Fizera um enorme sucesso e quase sozinho. - O meu
pai disse que eu ia arruinar o neg�cio. Foi um verdadeiro voto de
confian�a quando se retirou no ano passado e agora finge que j� n�o est�
interessado. Mas, sempre que saio, os meus alfaiates e costureiras dizem-
me que ele aparece �s escondidas e controla os ateliers. - Zova riu e ele
virou-se de novo para ela. - E a senhora, condessa... desculpe, Zoya...
como foi parar � Axelle's?
- Oh! - Riu, sentindo-se estranhamente � vontade com ele e mais
pr�xima de Axelle do que alguma vez at� ent�o. - Por um longo e dif�cil
caminho. - Depois, fez uma express�o s�ria. - Perdemos tudo no crash de
vinte e nove - replicou com honestidade, e Axelle tamb�m sabia desse
pormenor. - De uma noite para a outra, tivemos de vender as nossas duas
casas, a mob�lia, as minhas roupas e peles, at� mesmo a lou�a de
porcelana.
Era a primeira vez que falava realmente do assunto a Axelle e com �-
vontade.
- Tinha dois filhos para sustentar e praticamente nenhuma
especialidade. Dan�ei com os Ballets Russes aqui em Paris durante a
guerra e tamb�m com outra companhia de bailado, nas em mil novecentos
e vinte e nove tinha trinta anos e um pouco de idade a mais para voltar
a dan�ar no ballet.
Fitou-os com um sorriso divertido, e Axelle n�o estava de forma
alguma preparada para o que ouviu a seguir.
- Candidatei-me �s Ziegfeld Follies, mas n�o tinha altura bastante e
por isso consegui um emprego a dan�ar num teatro de terceira categoria.
Axelle quedou-se boquiaberta, e Simon Hirsch fitou-a com um enorme
respeito. N�o eram muitas as mulheres capazes de passar da riqueza �
mis�ria t�o corajosamente nem de admitir terem dan�ado num clube.
- Deves sentir-te surpreendida, Axelle. Ningu�m sabe disto, nem
mesmo os meus filhos. Foi horr�vel. Trabalhei l� durante um ano e meio
e detestei cada minuto. Uma noite... - Os olhos encheram-se-lhe de
l�grimas ante a recorda��o. - Uma noite houve um inc�ndio horr�vel
quando eu estava a trabalhar e quase perdi os meus filhos. Eles s�o tudo
o que me interessa e n�o podia deix�-los mais vezes sozinhos � noite; por
isso, meti o que restava em dois caixotes, mudei-me para um hotel, um
amigo emprestou-me cem d�lares e bati � porta da Axelle.
"Acho que ela nunca soube como eu estava desesperada - rematou
com um olhar grato para a amiga, enquanto AxelIe tentava deglutir o que
acabara de ouvir, sentindo vontade de chorar. - E tive muita sorte por me
ter dado emprego. Nunca sa� de l� e espero n�o sair. - Sorriu aos seus
ouvintes, sem saber quanto os comovera, sobretudo Simon. - E todos
viveram muito felizes para sempre.
- Que hist�ria! - exclamou ele, surpreendido, e AxelIe levou um len�o
rendado aos olhos.
- Porque n�o me contaste tudo isso nessa altura?
- Receava que n�o me contratasses. Teria feito tudo para conseguir
esse emprego. Fui mesmo ao ponto de me vangloriar do t�tulo, algo que
nunca fizera antes. - Riu, bem-humorada. - Se o tivesse feito, tenho a
certeza de que me poriam a dan�ar enquanto algu�m gritava dos
bastidores: "E agora a nossa condessa!"
Riram os tr�s, mas Zoya mais � vontade do que os outros. Eles
continuavam impressionados com a hist�ria e s� Axeflc sabia como as
pessoas teriam sido maldosas, se soubessem que a condessa Ossupov
dan�ara numa esp�cie de cabar�.
- Na vida faz-se o que tem de se fazer - replicou. - Durante a guerra,
alguns dos nossos amigos chegaram a apanhar pombos no parque para
comer. - Simon interrogou-se sobre o que mais teria vivido. A revolu��o
fora certamente um golpe brutal, com a morte de toda a fam�lia antes de
ela ter fugido. Havia muito mais naquela figura vestida com o bonito fato
de linho cor-de-rosa. Muito mais. E ele queria saber tudo. Foi com pena
que viu o almo�o chegar ao fim e as deixou no Ritz a caminho de se
encontrar com o representante de uma f�brica francesa de onde queria
encomendar mais tecidos.
Apertou a m�o a Zoya, que se mantinha junto ao t�xi, e observou-a
demoradamente ao afastar-se, pensando em como ela era uma mulher
incr�vel. Queria saber tudo sobre ela, como escapara, como sobrevivera,
qual era a sua cor favorita, o nome do c�o, os piores medos enquanto
crian�a.
Parecia-lhe uma loucura, mas, no espa�o de uma mera tarde, sabia
que se apaixonara pela mulher dos seus sonhos. Levara quarenta anos,
mas encontrara-a numa tarde, em Paris, a cinco mil quil�metros de casa.
CAPITULO 36
Foi com pena que Zoya viu chegar ao fim a viagem. Tinham-se
divertido bastante e, na �ltima noite, haviam jantado no Cordon Bleu e
regressado devagar ao hotel. Axelle desejou-lhe uma boa noite de sono e
agradeceu-lhe a ajuda na escolha da linha de Outono para a loja. Ainda
estava surpreendida com a hist�ria que Zoya contara ao almo�o, h� uns
dias, quando haviam almo�ado no George V com Simon Hirsch. Conferiu-
lhe uma nova sensa��o de respeito pela coragem de Zoya.
N�o voltaram a encontr�-lo e Zoya interrogou-se sobre se ainda
estaria na cidade. Deixara-lhe um bilhete a agradecer-lhe o almo�o e a
desejar-lhe sorte para o resto da viagem e depois tinham andado ocupadas
com o neg�cio. Haviam comprado os chap�us e, por fim, algumas das
j�ias na Cas& Chanel.
No �ltimo dia, Zoya fora �s compras para os filhos. Descobrira, de
facto, o vestido vermelho que Sasha desejava e comprou para Nicholas um
bonito casaco, alguns livros em franc�s, l�ngua que ele falava muito bem,
e um pequeno rel�gio de ouro na Cartier que lhe lembrava o de Clayton.
Comprou ainda para Sasha uma boneca francesa e uma pulseirinha em
ouro.
Tinha as malas carregadas com o que lhes comprara e j� fechadas e
preparadas para a viagem de volta ao Havre na manh� seguinte.
Contudo, havia algo mais que estava a planear fazer essa noite e de que
n�o falara. a Axelle.
O dia seguinte era a P�scoa russa e decidira, depois de muita
hesita��o, ir � missa da meia-noite na catedral russa de Santo Alexandre
Nevski. Fora uma resolu��o dificil de tomar. Tinha ido l� no passado,
acompanhada por Clayton, Vladimir e Eugenia. Sabia, por�m, que era
incapaz de deixar Paris sem l� voltar uma vez mais. Era como se uma
parte dela continuasse ali e jamais ficaria livre enquanto n�o regressasse
l� c enfrentasse a situa��o. Nunca mais voltaria a casa. Sampetersburgo
ficava demasiado longe, mas esta �ltima pe�a do que fora a sua vida tinha
de ser tocada e agarrada e sentida uma �ltima vez, antes de regressar a
Nova Iorque e at� junto dos filhos.
Despediu-se de Axelle e, �s onze e meia, desceu as escadas e mandou
parar um t�xi. Indicou ao motorista o endere�o na Rue Daru e, quando
a viu, susteve a respira��o... Ainda era a inesnia... nada tinha mudado
desde a v�spera de Natal, h� muito tempo, quando l� fora com a av� e
Clayton.
O oficio religioso ofereceu a mesma beleza de que se recordava e
manteve-se solenemente de p� com os outros russos, cantando e
participando no servi�o, erguendo a vela e chorando em sil�ncio, sentindo
a falta de todos e ao mesmo tempo a proximidade deles.
Estava triste e ao mesmo tempo estranhamente em paz quando se
deteve depois na catedral, observando os outros a falar baixinho. E
subitamente avistou um rosto conhecido muito idoso e gasto, mas teve a
certeza de que se tratava de Yelena, a filha de Vladimir. N�o lhe falou,
limitando-se a descer lentamente os degraus e fitou o c�u nocturno com
um sorriso, desejando todo o bem �s almas que haviam feito parte da sua
vida...
Fez sinal a um t�xi e regressou ao hotel, sentindo-se mais velha do
que desde h� muito tempo e, quando se meteu na cama, chorou, mas
eram as l�grimas de um desgosto que o tempo sarara e que agora s�
algumas vezes era lembrado.
De manh�, n�o disse nada a Axelle. Apanharam o comboio para o
Havre e subiram a bordo do Queen Mary. Os camarotes eram os mesmos
onde tinham vindo e Zoya ficou a observar quando o navio largou,
lembrando-se de quando fora para os Estados Unidos no Par�s, com
Clayton.
- Parece t�o triste... - A voz mesmo ao lado dela sobressaltou-a e, ao
virar-se, deparou com Simon, olhando-a com ternura. Axelle ficara l� em
baixo a desfazer as malas e ela subira, sozinha com os seus pensamentos.
Fitou-o com um sorriso t�mido. O cabelo de Simon agitado pelo vento
dava-lhe um ar ainda mais rude.
-Triste, n�o. Apenas recordava.
- Teve uma vida interessante. Desconfio que ainda mais do que nos
contou ao almo�o.
- O resto j� n�o interessa. - Fixou o mar sem o olhar e ele ansiava por
lhe tocar na m�o, por faz�-la sorrir, por f�zer com que se sentisse feliz e
jovem. Era t�o s�ria e, naqule, momento quase solene. - O passado s�
vale por aquilo em que nos torna, Mister Hirsch. Foi dificil voltar aqui,
mas ainda bem que o fiz. Paris est� cheia de recorda��es para mim. - Ele
esbo�ou um aceno de cabe�a, desejando saber mais sobre a vida dela do
que o pouco que lhe contara.
- Deve ter sido duro aqui durante a guerra. Tamb�m quis ir, mas o
meu pai n�o me deixou. Acabei por me alistar, mas era tarde de mais.
Nunca sa� dos Estados Unidos. Acabei numa f�brica da J�rgia. Uma
f�brica t�xtil, claro. - Sorriu. - Pare�o destinado a n�o escapar ao neg�cio
dos trapos. - Voltou a fazer uma express�o s�ria. - Mas deve ter passado
um mau bocado.
- Passei. Mas o nosso destino foi mais f�cil do que o daqueles que
ficaram na R�ssia. - Pensava em Mashka e nos outros e Simon receou ser
intrometido. De qualquer maneira, n�o queria afugent�-la e ela era t�o
bonita, imersa nos pensamentos. - N�o que isso seja importante para si. -
Sorriu. - Fez uma boa viagem de compras?
- Sim. E a sua?
- �ptima. Acho que a Axelle est� satisfeita com tudo o que
encomend�mos. - Depois fez men��o de o deixar e ele desejou pux�-la
para si fisicamente, antes que pudesse voltar a fugir-lhe.
- Janta comigo esta noite?
- Terei de perguntar � Axelle o que ela quer fazer. Mas muito
obrigada. Tornarei o convite extensivo � minha amiga.
Queria vincar que n�o estava dispon�vel. Gostava multo dele, mas
sentia-se vagamente desconfort�vel na sua presen�a. Havia algo de t�o
intenso nos olhos dele, o aperto de m�o era t�o vigoroso; at� mesmo o
bra�o com que a conduziu no momento em que o navio come�ou a vogar
era forte de mais, e tinha toda a inten��o de lhe resistir. Quase lamentou
estarem no mesmo navio. Ignorava se desejava v�-lo coas muita
frequ�ncia. Por�m, ao mencionar o convite a Axelle, ela mostrou-se
encantada.
- Claro que aceito. Vou deixar-lhe um bilhete.
Juntou o gesto � palavra e depois horrorizou Zoya, ammciando �
�ltima hora que se sentia enjoada com o balan�ar do navio e deixou Zoya
sozinha com ele na sala de jantar, o que n�o correspondia ao seu desejo.
Contudo, minutos depois, esquecera a sua hesita��o e verificou que
apreciava o momento. Ele descreveu-lhe o ano que passara na J�rgia na
f�brica de t�xteis e disse que n�o conseguia entender uma palavra do que
diziam devido ao arrastado sotaque do Sul. Por fim, e como vingan�a,
pusera-se a filar-lhes em i�diche. Zoya riu e ficou a ouvi-lo a falar da
fam�lia. A m�e parecia quase t�o tir�nica como a dela, embora fossem de
ascend�ncias muito diversas.
- Talvez todas as russas sejam assim - tro�ou -, embora a minha m�e
fosse, na verdade, alem�. E gra�as a Deus que a minha av� n�o era como
ela. Era extraordinariamente boa, tolerante e forte. Em muitos aspectos
devo-lhe a vida. Penso que teria gostado muito dela - garantiu, �
sobremesa.
- Estou certo que sim. - E, em seguida, incapaz de se dominar: - �
uma mulher espantosa. Gostaria de a ter conhecido h� muito tempo.
Zoya riu perante a ideia.
- Talvez n�o tivesse gostado tanto de mim. A adversidade tem o
cond�o de nos humilhar e nessa altura era mimada. - Pensava nos dias de
luxo em Sutton Place. - Os �ltimos sete anos ensinaram-me muita coisa.
Sempre pensei durante a guerra que, se a minha vida voltasse a ser
confort�vel, nunca tomaria nada como garantido, mas tomei. Agora,
aprecio tudo... a loja... o meu emprego... as crian�as... tudo. - Ele sorriu,
cada vez mais apaixonado.
- Quero saber coisas sobre a sua vida antes disso, na R�ssia. - Nesse
momento, j� estavam a passear no conv�s. O suave balou�ar do navio n�o
a incomodava e a noite arrefecera um pouco, pelo que ajeitou a gola.
Usava um vestido de noite de cetim cinzento, copiado de um modelo de
Madame Gr�s pela costureirinha de Axelle, e um casaco de raposa
prateada que trouxera emprestado da loja, mas, com ou sem roupa
emprestada, estava lind�ssima quando ele baixou os olhos na sua direc��o.
- Porque quer saber? - perguntou Zoya, intrigada. O que podia
interessar-Ihe? Seria mera curiosidade ou algo mais? Ignorava o que ele
pretendia, mas sentia-se estranhamente segura ao lado dele.
- Quero saber tudo a seu respeito. � uma mulher t�o cheia de beleza,
for�a e mist�rio. - Expressava-se de uma forma s�ria quando a olhou e f�-
la sorrir. Nunca ningu�m lhe dissera algo assim, nem mesmo Clavton, mas
nessa altura era muito mais jovem, quase uma crian�a. E era muito mais
velha agora e mais experiente do que a rapariga que fora outrora.
- J� sabe bastante mais do que qualquer outra pessoa. - Sorriu. -
Nunca tinha confessado a ningu�m que fui corista, - E depois sorriu,
sentindo-se novamente jovem e maliciosa. - A pobre Axelle quase caiu da
cadeira, n�o foi? - Simon riu tamb�m.
- Tamb�m eu - confessou. - Nunca tinha conhecia uma bailarina desse
g�nero.
- Pense em como a sua m�e ficaria contente! - Riu outra vez. Ele
acompanhou-a e depois Zoya p�s-se outra vez s�ria. - De qualquer
maneira, n�o acho que gostasse de me conhecer. Os seus pais deixaram
a R�ssia para fugir aos massacres de judeus. Duvido que tenham muita
simpatia por russos.
- Conheceu a fam�lia imperial em crian�a? - N�o queria embara��-la
concordando com ela, mas Zoya tinha sem d�vida raz�o. A m�e referia-se
de vez em quando ao czar como uma figura odiada, respons�vel por todo
o seu infort�nio, e o pai era mais suave, mas n�o muito. Reparou,
contudo, que ela o fixava calmamente, pesando algo na mente, e depois
esbo�ou um aceno de cabe�a quase impercept�vel.
- Sim. Conheci. - Hesitou somente uma frac��o de segundo. - O czar
e o meu pai eram primos. Cresci praticamente com eles. - Em seguida,
falou-lhe de Mashka, dos Ver�es em Livadia e dos Invernos no Pal�cio
Alexandre na sua companhia. - Ela era como minha irm�. Quase morri
ao receber a not�cia, e em seguida... apareceu o Clayton... Cas�mos pouco
depois. - Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas e ele pegou-lhe na m�o,
maravilhado com a sua for�a e coragem. Assemelhava-se a conhecer
algu�m de um outro mundo, um mundo que sempre o fascinara. Tinha
lido livros sobrc o czar enquanto jovem, para grande tristeza da m�e,
mas sempre desejara saber mais sobre o homem que ele fora. E agora
Zoya contava-lhe, dando-lhe vida com toda a suavidade e encanto que o
haviam caracterizado. Fazia-o ver o outro lado do czar, aquele com que
n�o estava familiarizado. - Acha que haver� outra guerra? - Parecia
incr�vel que na sua vida ocorressem duas grandes guerras, mas algo lhe
dizia que n�o era imposs�vel e Simon concordava com ela.
- Penso que � poss�vel. Espero que n�o. - Parecia s�rio ao pronunciar
as palavras.
- Tamb�m eu. Foi t�o terr�vel e morreram tantos jovens. H� vinte
anos, Paris ficou devastada. Todos tinham partido para a guerra. N�o
consigo imaginar tudo novamente. - Sobretudo agora que tinha um filho,
e p�-lo a par dos seus receios.
- Um dia, gostava de conhecer os seus filhos.
Zoya sorriu.
- S�o engra�ados... O Nicholas � um rapazinho muito s�rio. E a Sasha
� um pouco mimada. Era a menina dos olhos do pai.
- Parece-se consigo? - Sentia-se intrigado com tudo, mas ela abanou
a cabe�a.
- N�o. Parece-se mais com ele. - N�o o convidou, por�m, para ir
visit�-los em Nova lorque. Continuava a desejar manter uma certa
dist�ncia. Ele era t�o agrad�vel e simp�tico, mas a forma como se sentia
� vontade na sua presen�a assustava-a e n�o queria come�ar nada com
ele.
Simon acompanhou-a at� ao camarote ao lado do de Axefle e deixou-
a � porta com uma express�o de desejo, que ela igriorou. E, no dia
seguinte, quando foi passear pelo conv�s com Axelle, ele parecia esper�-
las. Convidou Zoya para um jogo de marelas, convidou-as para almo�ar,
o que Axelle aceitou antes de Zoya conseguir pronunciar uma palavra, e
a tarde pareceu voar. Voltaram a jantar com ele e nessa noite Simon
levou-a a dan�ar, mas ele sentiu-a retra�da e perguntou-lhe porqu�,
enquanto passeavam no conv�s depois.
- Talvez porque tenha receio - respondeu, erguendo o rosto para o
dele, no escuro, e decidindo ser honesta.
- De qu�? - Sentia-se magoado. N�o lhe queria mal nenhum. Muito
pelo contr�rio.
- De si. - Sorriu. - Espero n�o parecer indelicada.
- Indelicada, n�o, mas sinto-me confuso. Assusto-a? - Ningu�m lhe
fizera uma acusa��o do g�nero at� ent�o.
- Um pouco. Talvez tenha mais medo de mim do que de si. Passou
muito tempo desde que um homem me levou a algum lado e muito menos
a jantar e a dan�ar num navio. - Lembrou-se novamente da sua viagem no
Paris com Clayton, mas isso fora durante a lua-de-mel. - N�o houve
ningu�ri, desde o meu marido. E n�o quero mudar a situa��o agora,
- Porque n�o? - Parecia surpreendido.
- Oh... - Deu a sensa��o de que reflectia, enquanto falavam. - Porque
sou velha de mais, porque tenho de pensar nos meus filhos... porque
amava muito o meu marido... Talvez por todos esses motivos, suponho.
- N�o posso discutir o amor que tinha ao seu marido, mas � rid�culo
que se imagine velha de mais. Em que � que isso me torna? Tenho mais
tr�s anos!
- Oh, c�us... - exclamou Zoya. - Bom, mas para si � diferente. Nunca
foi casado. Eu fui. Para mim, faz parte do passado. - Parecia segura e ele
mostrou-se aborrecido.
- Que coisa rid�cula! Como pode dizer isso na sua idade? As pessoas
apaixonam-se e casam todos os dias, pessoas que enviuvaram e se
divorciaram... Algumas delas s�o mesmo casadas... e algumas delas t�m o
dobro da sua idade!
- Talvez eu n�o seja t�o interessante como elas - Sorriu, e ele abanou
a cabe�a com uma express�o triste.
- Aviso-a de que n�o vou ficar sentado e aceitar a situa��o. Gosto
muito de si. - Baixou o rosto, fitou-a com os calorosos olhos castanhos e
ela sentiu despertar algo no seu �ntimo que se mantinha adormecido h�
anos.- N�o teiiciono desistir. Faz ideia do que � o mundo para mim?
Raparigas de vinte anos que soltam risadinhas quando falam, mulheres de
vinte e cinco hist�ricas por ainda n�o terem casado, divorciadas de trinta
anos que querem algu�m que lhes pague renda e mulheres de quarenta,
t�o desesperadas que me assustam de morte. N�o conheci ningu�m que
me pusesse assino t�o louco nos �ltimos vinte anos e n�o tenciono ficar
sentado a ouvir que � velha de mais. Entendido, condessa Ossupov? -
Zoya sorriu ante as palavras e riu involuntariamente quando ele
acrescentou: - E aviso-a que sou um homem muito teimoso. Tenciono
persegui-la, nem que tenha de montar uma tenda � porta da loja da
Axelle. Parece-lhe sensato?
- Nada mesmo, Mister Hirsch. Parece-me um absurdo total. -
Contudo, sorriu.
- �ptimo. Vou encomendar a tenda, assim que chegarmos a Nova
lorque. Excepto, claro, se aceder a jantar comigo na noite em que
voltarmos.
- H� tr�s semanas que n�o vejo os meus filhos - replicou, com nova
gargalhada. Contudo, tinha de confessar que gostava bastante dele.
Talvez ele acabasse por concordar em serem apenas amigos.
- Muito bem, ent�o - acedeu. - No dia seguinte. Pode trazer os seus
filhos. Talvez sejam mais sensatos do que a m�e. - Levantou-lhe o queixo
e fitou os olhos verdes que lhe haviam roubado o cora��o desde o
primeiro momento em que a vira na Loja Schiaparelli.
- N�o esteja assim t�o seguro - redarguiu, pensando nos filhos. - S�o
muito dedicados � mem�ria do pai.
- O que � bom - replicou tranquilamente. - Contudo, tem direito a
mais do que isso na sua vida e eles tamb�m. H� tanta coisa que pode
fazer por eles. O seu filho necessita de um homem por perto e a sua filha
possivelmente tamb�m.
- Talvez. - N�o recuara nem um passo quando ele a acompanhou ao
camarote, mas Simon apanhou-a de surpresa ao beij�-la suavemente nos
l�bios. - Por favor, n�o volte a fizer isso - sussurrou, sem a m�nima
convic��o.
- N�o o farei - anuiu e repetiu o beijo.
- Obrigada. - Ela esbo�ou um sorriso sonhador e um momento depois
fechou-lhe a porta na cara, enquanto ele suhia at� ao seu camarote, com
um sorriso de rapazinho.
CAP�TULO 37
O romance aconteceu, embora ela n�o quisesse, enquanto
prosseguiam viagem rumo a Nova lorque. Jantavam e dan�avam,
beijavam-se e falavam. E ela sentia-se como se o tive conhecido toda a sua
vida. Nutriam os mesmos interesses, os mesmos gostos e at� os mesmos
receios. Axelle deixou-os � vontade e ria intimamente ao observ�-los de
longe. Na �ltima noite, encontravam-se no conv�s quando Simon a fixou
com uma express�o triste.
- Vou sentir terrivelmente a tua falta, Zoya.
- Tamb�m eu sentirei a tua - confessou -, mas tem de ser assim. -
Estava a divertir-se demasiado na companhia dele e sabia que tinha de
parar, mas n�o se recordava exactamente porqu�. Tudo fizera sentido h�
uns dias, mas deixara de fazer. Queria tanto estar com ele quanto ele a
desejava, e agora regressavam a Nova lorque e voltariam �s suas vidas. -
Nunca dev�amos ter come�ado isto, Simon - disse, e ele olhou-a, sorrindo.
- Estou apaixonado por ti, Zoya Ossupov. - Adorava o som do nome
russo e de vez em quando continuava a espica��-la sobre o t�tulo que ela
odiava usar, mas fazendo-o em trabalho.
- N�o digas essas coisas, Simon. S� tomar� tudo mais dif�cil.
- Quero casar contigo. - Pronunciou a frase calmamente, sem uma
sombra de d�vida na voz, e ela fitou-o com uma express�o infeliz.
- � imposs�vel.
- N�o � nada. Vamos para casa dizer �s crian�as que estamos
apaixonados.
- Que loucura. Acab�mos de nos conhecer. - E nem sequer fizera
amor com ele. Continuava assustada e ligada pela lealdade ao falecido
marido.
- De acordo. Esperemos uma semana. - Zoya riu e ele beijou-a
novamente. - Casas comigo?
- N�o.
- Porqu�?
- Porque �s doido. - Riu por entre os beijos. - Podes mesmo ser
perigoso, tanto quanto sei.
- Serei muito perigoso se n�o casares comigo. J� viste algum judeu
russo apaixonado enlouquecer a bordo de um navio ingl�s? Causaria um
incidente diplom�tico internacional! Pensa nas pessoas que perturbarias...
Acho que � melhor dizeres que sim... - Voltou a beij�-la.
- Simon, por favor... s� sensato... Podes odiar-me quando me vires de
novo em Nova lorque.
- Digo-te amanh� � noite. Se assim n�o for, casas comigo?
- N�o! - Havia alturas em que era imposs�vel falar com ele e noutras
parecia capaz de lhe perscrutar a alma.
Agarrou-lhe com for�a nas m�os e fitou-a bem no fundo dos olhos.
- Nunca na minha vida pedi a uma mulher que casasse comigo. Estou
apaixonado por ti. Sou um homem respons�vel. Tenho um neg�cio. A
minha fam�lia acha-me muito inteligente. Suplico-te, Zoya... por favor,
querida... por favor, casa comigo.
- Oh, Simon! N�o posso - retorquiu, infeliz. - O que pensariam os
meus filhos? Dependem inteiramente de mim e n�o est�o preparados para
verem entrar uma pessoa na vida deles. Nem eu. H� demasiado tempo
que estou s�.
- Est�s, sim - anuiu calmamente. - Mas n�o tens de ficar para sempre.
Pensar�s no assunto?
Hesitou e depois cedeu e olhou-o.
- Sim... mas tal n�o significa que da� advenha algo. - Contudo, aquela
promessa bastava-lhe e ficaram sentados, horas a fio, no conv�s, e na
manh� seguinte ele foi bater-lhe � porta do camarote, �s sete horas.
- Anda ver a Est�tua da Liberdade comigo.
- A esta hora? - Quando lhe abriu a porta ainda estava le camisa de
noite e o cabelo pendia-lhe numa longa tran�a sobre as costas. - Que
horas s�o?
Sinion sorriu ao deparar com a camisa de noite e a tran�a.
- Horas de te levantares, pregui�osa. Podes vestir-te depois. P�e
apenas um casaco e cal�a-te. - Zoya enfiou o casaco de marta que Axelle
lhe dera h� uns anos e riu, cal�ando os sapatos de salto alto e seguindo-o
at� ao conv�s naquele estranho preparo.
- Se alguma das minhas clientes me vir, n�o voltar� a confiar na
minha opini�o.
- �ptimo. Nesse caso, talvez a Axelle te despe�a e eu possa salvar-te
de um terr�vel destino. - Contudo, ambos se calaram ao avistar a linha do
horizonte de Nova lorque e a Est�tua da Liberdade, para onde navegavam
devagar. - � lind�ssimo, n�o?
- � - concordou Zoya com um feliz aceno de cabe�a; agora olhava
novamente para o futuro.
Tudo aqui lhe parecia novo e com vida, e o mero facto de olhar fazia
com que se sentisse outra vez bem. Simon virou-se e abra�ou-a,
mantendo-a muito apertada de encontro ao corpo enquanto se
aproximavam do cais. Depois, ela desceu apressadamente as escadas para
se vestir e fechar as malas.
N�o voltou a v�-lo at� estarem prontas a deixar o navio. Ofereceu-lhes
boleia, mas recusaram, pois Axelle tinha um carro � espera. Contudo, ele
seguiu-as ao longo da plataforma de desembarque levando-lhes as inalas
pequenas e, de s�bito, Zoya soltou um gritinho e precipitou-se para
diante.
Nicholas esperava-a no cais, perscrutando a multid�o e parecendo t�o
bonito e jovem. Correu para ele, prominciando-lhe o nome e o filho voou
para os seus bra�os e apertou-a. Viera sozinho depois de levar Sasha ao
col�gio e era �bvio quanto ela amava o jovenzinho.
Simon observou-os, invejoso, enquanto ajudava Axelle e depois
dirigiu-se ao s�tio onde Zoya estava com o filho, apertou-lhe a m�o com
um ar solene e sorriu ao mi�do. Gostaria de ter tido um filho assim,
sobretudo ao ver quanto ele se parecia com Zoya.
- Ol�. Sou o Simon Hirsch - apresentou-se quando o jovem ergueu o
rosto na sua direc��o. - Deves ser o NichoIas. - Nicky esbo�ou um sorriso
t�mido e depois riu.
- Como � que sabe?
- A tua m�e passa o tempo a falar de ti.
Tamb�m falo muito dela. - Sorriu, rodeando-lhe os ombros com o
bra�o e Zoya observou como ele crescera. Tinha quase quinze anos e era
quase t�o alto como Clayton o fora. - Divertiste-te? - perguntou enquanto
esperavam peIas nelas dela para que o agente da alf�ndega as
inspeccionasse.
- Sim. Mas senti muito a tua falta. - Depois dirigiu-se-lhe em russo e
ele riu e Simon tamb�m e ela apercebeu-se de que ele entendera. - N�o
� justo! - Dissera-lhe que tinha o cabelo comprido de mais e parecia um
ador�vel c�o peludo. Contudo, Nicholas interessou-se subitamente por
Simon ao aguardarem juntos na doca.
- Fala portanto russo, sir?
- Um pouco. Os meus pais s�o de Vladivostoque. A minha m�e
costumava dizer-me esse tipo de coisas em russo e algumas vezes ainda o
faz.
Todos riram e um momento depois toda a bagagem havia sido
inspeccionada e Axelle e Zoya estavam libertas e podiam ir embora.
Simon ficou a v�-Ias afastarem-se, acenando durante muito tempo e, no
carro, Nicholas voltou a dirigir-se em russo � m�e.
- Quem era?
- Um amigo da Axelle. Viajou ocasionalmente no navio connosco.
- Parece simp�tico. - Nicholas parecia impressionado.
- E � - anuiu Zoya num tom despreocupado e perguntou-lhe como
estava Sasha.
- Imposs�vel como sempre. Agora quer um c�o. Um perdigueiro. Diz
que vai enlouquecer-te at� lhe dares um. Acho-os horr�veis. Se vamos ter
um, que seja um buldogue ou um boxer.
- Quem disse que �amos ter um c�o?
- A Sasha e o que a Sasha quer, ela tem - Axelle sorriu. Tinham
mudado de russo para franc�s, e Zoya disse-lhe que n�o fosse indelicado
para Axelle.
- � assim?
- N�o �? - acusou Nicholas com um esbo�o de sorriso.
- Nem sempre. - Corou, mas ele tinha raz�o, pois ela era uma jovem
muito persistente e, por vezes, tornava-se mais f�cil aceder, s� para n�o
levantar problemas. - E, al�m disso, portou-se bem? - Zoya sabia que o
filho passara para a ver todos os dias, embora ele tivesse ficado em casa
de um amigo, e ela em casa com uma baby-sitter.
- Ontem, fez uma cena quando lhe disse que n�o podia ir ao cinema
com uma amiga - resmungou Nicholas. - Contudo, ainda n�o fizera os
trabalhos de casa e, de qualquer maneira, j� era tarde de mais. Tenho a
certeza de que te vai contar assim que entrares.
- Bem-vinda a casa! - Axelle sorriu e Zoya riu-se. Sentira-lhes muito
a falta, mas sabia que agora tamb�m sentiria a falta de Simon e ele
mostrara-se muito meigo para com Nicholas quando se tinham conhecido.
- O teu amigo parecia simp�tico - comentou delicadamente a Axelle
no caminho para casa.
- Tamb�m acho. - Olhou intencionalmente para Zoya enquanto o
jovem continuava a tagarelar e esperava, no �ntimo, que Zoya voltasse a
ver Simon depois de estarem em casa.
Pouco depois de chegar, entregaram um enorme ramo de rosas. O
cart�o dizia apenas: "N�o te esque�as, amo-te, S.", e ela corou e meteu o
cart�o na secret�ria e centrou as aten��es na filha que, segundo o
previsto, se queixava furiosamente do irm�o.
- Cheguei agora mesmo a casa. D�em-me um minuto para me adaptar
- proferiu Zoya a rir.
- Podemos ter um c�o? - Nicholas acertara em cheio. Sasha n�o parou
de exigir nas duas horas seguintes e nen, mesmo o vestido novo vermelho
serviu para a dissuadir. Contudo, Nicholas estava encantado com o
rel�gio, as roupas e os livros novos. Deitou-lhe os bra�os � volta do
pesco�o e beijou-a afectuosamente na face.
- Bem-vinda a casa, main�.
- Amo-te, querido... e a ti tamb�m - acrescentou, envolvendo Sasha no
c�rculo dos seus bra�os.
- E o c�o? - insistiu Sasha, e a m�e riu.
- Veremos, Sasha... veremos... - Nessa altura, o telefone tocou e foi
atender. Era Sinion, e ela agradeceu-lhe as rosas, rindo da discuss�o entre
Nicholas e Sasha sobre o c�o.
- Ainda sentes a minha falta?
- Muito. Acho que estou a precisar de um �rbitro por estes lados.
- �ptimo. Candidato-me ao emprego. Que tal jantarmos amanh� �
noite?
- Que tal um c�o? - Riu e ele pareceu confuso ao ouvir toda a
excita��o do outro lado da linha.
- Queres comer um c�o?
- � uma ideia gira! - Riu de novo, sentindo mais saudades do que
julgara que teria.
- Vou buscar-te �s oito. - Contudo, ela entrou em p�nico ante a ideia.
O que diriam as crian�as? O que pensaria Nicholas? Apetecia-lhe
telefonar e dizer que mudara de ideias, mas, mesmo depois de eles se
terem ido deitar, n�o conseguiu faz�-lo.
Na noite seguinte, Simon apareceu �s oito em ponto e tocou �
campainha no preciso momento em que Zoya sa�a do quarto. O
apartamento era pequeno mas simples e elegante. Possu�am poucas coisas,
mas tudo de qualidade. Ele deteve-se na ombreira, parecendo maior do
que a vida e, quando Zoya o convidou a entrar, notou que Sasha o fitava.
- Quem � ele? - perguntou, enfurecendo a m�e ante a falta de
maneiras. Nicholas tinha raz�o a respeito da irm�.
- Mister Hirsch. Posso apresentar-lhe a minha filha Aleandra?
- Como est�? - Apertou-lhe a m�o com um ar solene e nesse instante
entrou Nicholas.
- Oh, ol�... Como est�? - Sorriu ingenuamente e estava a dizer a Sasha
como ela era uma peste quando sa�ram. Zoya sorriu ao fechar a porta e
aguardaram que o elevador os transportasse.
Sentia-se preocupada com a express�o que detectara nos olhos de
Sasha. Era como se soubesse por que raz�o ele estava ali, mas Simon
garantiu-lhe que j� estava � espera, que tinha muita resist�ncia e n�o se
preocupasse.
Levou-a a jantar no 21 e falaram durante horas, como no navio. E
depois ele acompanhou-a devagar e beijaram-se suavernente a pouca
dist�ncia da casa dela.
- N�o consigo suportar a tua aus�ncia. Hoje, portei-me todo o dia
como um mi�do � espera do Natal. Porque n�o levamos as crian�as a
qualquer lado amanh� � tarde? - Era domingo, ela n�o teria de trabalhar
e a ideia agradava-lhe, mas sentia-se nervosa com o que Sasha diria ou
mesmo o meigo Nicholas.
- O que pensar�o as crian�as?
- Que t�m um novo amigo. � assim t�o terr�vel?
- Podem voltar a ser malcriadas.
- Consigo dar a volta � situa��o, Zoya. N�o acho que estejas a
perceber. Isto � tudo o que quero. Falei-te verdade no navio. Anio-te.
- Como sabes? Como podes estar t�o seguro? - Continuava a ter
medo do que sentia por ele, mas tamb�m tivera saudades o dia inteiro e
detestava a ideia de o deixar agon, mesmo at� ao dia seguinte. Como era
poss�vel? Como lhe acontecera depois de todos aqueles anos? Sabia que
tamb�m ela estava apaixonada. S� n�o sabia ainda como lidar com a
realidade. Continuava a desejar fugir, mas j� n�o tinha certezas quanto a
ser capaz.
- Deixa correr as coisas, meu amor. - Voltou a beij�-la. - Virei buscar-
vos ao meio-dia.
- �s um homem muito corajoso.
- N�o tanto como tu, meu amor. - Sorriu-lhe, feliz. - At� amanh�.
Talvez vamos dar um passeio de carro a qualquer lado.
- As crian�as iam adorar.
E na manh� seguinte, quando ele chegou, apesar das queixas de Sasha
de que queria brincar com as bonecas, foram de carro at� Long Island e
gostaram imenso. Nicholas quase desmaiou ao ver o carro, um Cad�llac
novo em folha, num distinto tom verde-escuro, com pneus de jantes
cromadas e todos os extras poss�veis. Nunca vira nada t�o bonito, e Simon
convidou-o a sentar-se ao lado dele no banco da frente.
- Gostavas de conduzir, mi�do? - Esperou at� se encontrarem numa
estrada secund�ria e deixou que Nicholas tomasse o volante. O rapaz
sentiu-se como se tivesse morrido e ido para o c�u e Zoya observava-o do
banco traseiro, onde se sentara com Sasha.
Sinion tinha raz�o. O filho precisava da presen�a de um homem na
vida. Precisava de um amigo. A pr�pria Sasha parecia portar-se melhor,
como h� meses n�o o fazia, e namoriscou incrivelmente com Simon
quando as trouxe de novo a casa. Levara-as a almo�ar num pequeno
restaurante que conhecia. Comeram ostras e camar�es e gelado para
sobremesa.
- Bom, condessa Ossupov - tro�ou ele, depois de as crian�as se terem ido deitar e quando estava sentado na sala com ela. - Como me portei?
Passei ou chumbei?
- O que achas? O Nicholas nunca se sentiu t�o feliz na vida e penso
que a Sasha est� apaixonada por ti.
- E a m�e? - indagou com uma express�o s�ria, fitando-a bem nos
olhos, que ela evitou para depois se virar para ele. - O que dizes, Zoya?
Casas comigo?
Sentiu-se como se tivesse engolido o cora��o ao sussurrar, estendendo-
lhe a m�o:
- Sim... sim, Sinion. Caso. - Ele deu a sensa��o que ia desmaiar, e
Zoya interrogou-se sobre se teria endoidecido. Era um acto de loucura e
mal conhecia o indiv�duo, mas sabia que n�o podia viver sem ele.
- Falas a s�rio? - replicou baixinho, receoso de acreditar no que ouvia,
enquanto a atra�a a si e ela o fitava com um sorriso assustado.
- Falo, Sinion.
CAPITULO 38
Axelle ficou boquiaberta quando no dia seguinte Zoya a informou no
trabalho que ia casar. Esperara que a rela��o se desenvolvesse, mas nunca
imaginara que tudo acontecesse t�o rapidamente.
- O que acham as crian�as? - perguntou, enquanto Zoya a fitava,
ainda surpreendida com o que fizera, ou concordara fazer. Tinham
combinado esperar uns tempos para deixar que as crian�as se
familiarizassem com ele. E Zoya n�o estava preparada para casar de
imediato. Depois de todos aqueles anos sozinha, Simon sabia que ela
precisava de se habituar � ideia e estava disposto a dar-lhe todo o tempo
necess�rio numa base racional.
- Ainda n�o lhes dissemos. Contudo, parecem gostar dele. - Contou-
lhe o passeio a Long Island. Fora, na verdade, um romance tumultuoso.
Apenas se tinham conhecido h� semanas e, contudo, Zoya sabia que ele
era um homem bom e sabia tamb�m que o amava.
Nessa tarde, ele passou pela loja e comprou-lhe flores e a Axelle
tamb�m. A mulher mais velha sentiu-se comovida por ele n�o a ter
esquecido, e Hirsch agradeceu-lhe por aconipanhar o romance.
- S� n�o quero que ma roube depressa de mais, Mister Hirsch. -
Detestava a ideia, mas ambos lhe garantiram que avan�ariam devagar. E
ainda faltava apresent�-la aos pais. Havia, al�m disso, mais pormenores
de que se ocupar. Nesse fim-de-semana, ele sabia que as duas crian�as
ficariam em casa de amigos e apareceu sem avisar no apartamento de
Zoya, no s�bado de manh�. Levava um ramo enorme de lilases brancos
e exibia um sorriso misterioso em que ela fingiu n�o reparar.
- Parece muito contente, Mister Hirsch.
- Porque n�o havia de estar? Estou comprometido com uma mulher
lind�ssima e espantosa. - Beijou-a, e Zoya levou os lilases para a cozinha
a fim de os arranjar e foi l� que Simon a encontrou, escolhendo uma jarra
de pesado cristal. Comprara-a por lhe lembrar uma que a m�e usava
sempre para colocar as flores do jardim do Pal�cio Fontanka.
- S�o uma maravilha, n�o s�o? - Recuou um passo para as admirar e
viu-se nos bra�os de Simon, que a virou suavemente para ele, beijando-a.
- N�o tanto como tu. - Zoya aninhou-se silenciosamente nos seus
bra�os durante um momento, usufruindo de todo o seu carinho e calor.
Acariciando-lhe o cabelo, ele baixou o rosto e sussurrou, fitando-a: -
Vamos dar um passeio de carro por a�. Est� um belo dia. - Sabia que ela
n�o tinha de andar � pressa por causa dos filhos.
- Que ideia fant�stica! - aprovou Zoya com um sorriso feliz, e ele
voltou � sala de estar, enquanto ela se ia mudar para cal�as brancas e uma
camisola de caxemira branca.
Simon examinou as fotografias em molduras de prata espalhadas por
todo o lado e parou, surpreendido, diante de uma das crian�as Romanov,
que pareciam estar de cabe�a para baixo, fazendo caretas � pessoa que
tirara o retrato. E, ao observar com mais aten��o, verificou que uma das
jovens com roupa de t�nis era uma Zoya muito mais nova, adivinhando
correctamente que a rapariga ao lado dela era Marie e as outras as inn�s
dela.
Ainda lhe custava apreender a hist�ria que ela vivera. No entanto,
fazia parte agora de um passado distante. A pr�pria fotografia estava
apagada pelo tempo. E havia outras, de Sasha e Nicholas, e v�rias de
Clayton. Era um indiv�duo com porte distinto e Zoya parecia muito feliz
ao lado dele.
- O que est�s a fazer aqui t�o quieto? - Sorriu ao voltar � sala, muito
bonita com as cal�as e a camisola branca. Havia momentos em que ela lhe
fazia recordar Katherine Hepburn.
- Estava a observar algumas das tuas fotografias. O Nicholas parece-se
muito com o pai, n�o?
- Por vezes. - Sorriu. - E tamb�m um pouco com o meu pai. - Pegou
numa grande moldura em prata que tinha uma fotografia dos pais e
estendeu-a a Simon. - E ainda com o meu irm�o. - Apontou para outra
fotografia em cima da mesa, e Simon esbo�ou um aceno de cabe�a.
- Parecem um grupo muito distinto. - Mostrava-se, como sempre,
impressionado pelos seus antepassados aristocratas, mas Zoya esbo�ou um
sorriso triste.
- Isso foi h� muito tempo. - Era dificil acreditar que haviam passado
vinte anos, desde que vira os pais. - Por vezes, penso que s� se devia viver
no presente. O passado � apenas um pesado fardo que se transporta. E,
contudo... - Fitou-o, com um olhar perspicaz. - � t�o dif�cil larg�-los...
esquecer... seguir em frente...
Era esse o motivo por que decidira esperar um pouco at� se casarem.
Ainda precisava de afastar-se um pouco de tudo. Faltava-lhe dar um passo
gigantesco, o do passado para o presente. Contudo, ele entendia e n�o a
apressava. Sabia que ela precisava de tempo e estava disposto a mostrar-se
paciente. Sobretudo agora que ela concordara em casar-se com ele. Com
essa promessa, podia esperar e ajud�-la a fazer a transi��o.
- Acho que as coisas partem quando estamos prontos. E, a prop�sito,
est�s pronta para partir?
- Claro, s�r. - Trazia um blazer de flanela azul-escuro e, minutos
depois, estavam no carro dele, rumo ao que ele designava como um
"destino secreto". - Significa que estou a ser raptada, Mister Hirsch?
Riu e sentiu-se jovem, enquanto seguiam sob o brilho do sol. Era uma
sensa��o agrad�vel n�o ter de se preocupar com as crian�as. Tudo se
tornava diferente quando tinha de pensar nelas, o que a fazia sentir-se
mais s�ria e menos rom�ntica. Contudo, agora s� conseguia pensar na
companhia agrad�vel de Simon.
- Raptar-te � a melhor ideia que tive desde que nos conhecemos. -
Riu perante a sugest�o dela. - E, pensando bem, devia t�-lo feito em
Paris.
Estava, por�m, disposto a ficar-se por Connecticut, enquanto seguiam
ao longo da Merritt Parkway. Falou-lhe do neg�cio e de algumas ideias
relativas � colec��o de Outono. Adorava conversar com ela de tudo e de
nada e da sua esperan�a de um dia vir a coleccionar quadros famosos.
Gostava particularmente dos impressionistas, e Zoya referiu-lhe a colec��o
que os pais tinham na R�ssia.
- N�o estou certa de que as "coisas" continuem a ser assim t�o
importantes. � curioso, pois costumava ter como garantidas todas as belas
coisas que me rodeavam. Por�m, depois de ter perdido tudo uma vez e de
ter vendido tudo o que tinha com o Clayton, esse significado perdeu-se no
tempo. - Sorriu-lhe com uma express�o apaixonada. - As pessoas da
minha vida s�o mais importantes. - Ele estendeu a m�o e acanciou-lhe os
dedos do outro lado da mesa, enquanto almo�avam, e, um pouco mais
tarde, de m�os dadas, continuaram a conversar, prosseguindo o passeio
pelo campo. A tarde chegava ao fim e Zoya encostou-se-lhe,
descontra�da.
- Cansada?
Ela reprimiu um bocejo e depois riu e abanou a cabe�a.
- N�o. Apenas feliz.
- Voltaremos dentro em pouco. S� quero mostrar-te um s�tio.
- Onde? - Adorava estar com ele. Sentia-se segura, aniada e feliz.
- � segredo.
Zoya soltou uma risada e meia hora mais tarde ficou surpreendida ao
descobrir para onde ele a levara. Tratava-se de uma casinha de estilo
ingl�s numa estrada secund�ria conhecida de Simon, rodeada por uma
sebe, com grandes �rvores frondosas e uma profus�o de roseiras que
emanavam uma forte fragr�ncia quando eles sa�ram do autom�vel e
olharam em volta.
- De quem � esta casa, Simon?
- Gostaria de poder responder que � minha. Pertence a uma fant�stica
senhora inglesa que a transformou em estalagem para a manter.
Descobri-a h� uns anos e de vez em quando venho at� c� para me libertar
de toda a loucura de Nova lorque. Entra. Quero que a conhe�as.
N�o dissera a Zoya, mas, nessa manh�, telefonara a Mrs. Whitman e
avisara-a da sua chegada. Quando entraram na confort�vel sala de estar,
decorada de encantadores tecidos de algod�o estampado de flores, tinham
um ch� ingl�s � espera. O bule de prata brilhava, convidativo, e havia
bandejas cheias de sandu�ches e bolinhos a que Mrs. Whitman chamava
"biscoitos". Era uma mulher alta, magra, de cabelos brancos, com um
sotaque acentuado, olhos risonhos e umas m�os compridas e elegantes,
endurecidas pelo trabalho no jardim. Era �bvio que estava � espera de
Simon e Zoya.
- Que bom voltar a v�-lo, Mister Hirsch. - Tinha um aperto de m�o
fant�stico e deitou um olhar de aprova��o a Zoya quando Simon a
apresentou como sua noiva. - Que boa not�cia! Ficaram, ent�o, noivos h�
pouco tempo?
- Muito pouco - responderam em un�ssono e riram.
Mrs. Whitman serviu-lhes uma ch�vena de ch� e convidou-os a
sentarem-se na sua confort�vel salinha. Havia uma bonita lareira e
elegantes antiguidades inglesas que trouxera com ela, h� cinquenta anos.
Vivera em Londres, depois em Nova Iorque e, quando o marido morrera,
retirara-se para o campo.
Reconheceu de imediato o sotaque de Zoya, e algo no seu porte
indicou-lhe que havia algo mais sobre ela do que estava � vista. Achava
que Simon fizera uma escolha s�bia e interessante e assim o afirmou, o
que divertiu Zoya. Para festejar o noivado, abriu uma garrafa do seu
melhor xerez.
O Sol p�s-se sobre o jardim quando lhes fez um brinde e, pouco
depois, levou o copo e saiu da sala com um olhar discreto a Simon. Os
seus aposentos situavam-se nas traseiras da casa e, sempre que tinha
h�spedes importantes, deixava-os usar a sala, bem como os quartos do
andar superior. Havia dois com uma enorme casa de banho vitoriana a
lig�-los e bonitas camas de dossel que mandara vir de Inglaterra.
- Vem ver. - Simon contara tudo isto a Zoya e ela parecia hesitante.
- Achas que n�o se importa, Simon? - Tentava imaginar para onde
fora Mrs. Whitman. H� muito tempo que ela desaparecera, mas era t�o
confort�vel estar ali sentada na alegre sala a beber xerez na companhia
dele que Zoya se sentia lindamente. Todavia, n�o lhe agradava muito
subir ao andar de cima sem ser convidada.
- N�o sejas pateta. Conhe�o este lugar como se fosse a minha casa.
Pegou-lhe na m�o e levou-a at� l� acima, aos bonitos quartos, e Zoya
sorriu ao v�-los. As luzes estavam acesas e as camas abertas, como se ela
esperasse h�spedes a qualquer momento. Contudo, os quartos estavam
obviamente desocupados e, quando Zoya se virou para voltar l� abaixo,
Simon abra�ou-a com uma risada e beijou-a nos l�bios. Ela ficou ofegante
quando ele a largou, com o cabelo despenteado e um ar sensual. E
depois, com um olhar malicioso, Simon puxou-a para a cama, e Zoya
soltou uma exclama��o abafada, tentando escapar �s suas car�cias.
- Simon! O que vai pensar Mistress Whitman! P�ra com isso. Vamos
desfazer a cama toda! Simon!
Contudo, ele ria quando se recostou sob o enorme dossel.
- Espero bem que sim - desejou.
- Simon! Queres fazer o favor de te levantar? - Tamb�m ria, ao v�-lo
instalado t�o confortavelmente e todo vestido na cama de um dos dois
quartos de h�spedes de Mrs. Whitman.
- N�o.
- Est�s embriagado! - Todavia, ele mal bebera durante todo o dia, �
excep��o do pequeno c�lice de xerez e n�o fora o suficiente para o
embriagar. No entanto, era �bvio que estava a divertir-se imenso. Depois,
estendeu o bra�o e puxou Zoya de encontro ao seu corpo.
- N�o estou nada. Contudo, esta manh� tinhas raz�o quando disseste
que havias sido raptada. Julguei que poderia fazer-te bem afastares-te por
um dia ou dois, minha querida. Aqui estamos a salvo, no meu esconderijo
secreto. - Depositou-lhe um beijo nos l�bios abertos e depois sorriu-lhe
quando ela o fitou. - Considera-te raptada. - Parecia extremamente
satisfeito consigo pr�prio e Zoya examinou-o, surpresa.
- Falas a s�rio? Estamos alojados aqui?
- Estou e estamos. Na verdade - acrescentou, parecendo um pouco
embara�ado pela primeira vez -, tomei a liberdade de trazer algumas
coisas que achei que poderias precisar. - Tinha um ar malicioso e Zoya
esbo�ou um sorriso curioso.
- �s extraordin�rio, Simon! - Atirou-se para a cama, atirou-lhe os
bra�os ao pesco�o e beijou-o.
De facto, ele comprara-lhe uma bonita camisa de noite e um roup�o
de cetim, chinelos a condizer e comprara tamb�m todo o tipo de cremes,
lo��es e �leos de banho que achara poderem agradar-lhe, e ainda dois
b�tons, uma escova de dentes e a marca da pasta que vira antes na casa
de banho dela. Metera tudo numa mala pequena, que lhe trouxe uns
momentos depois e pousou no quarto ao lado, enquanto ela examinava as
coisas, deliciada, virando-se em seguida para ele.
- O que � que Mistress Whitman pensar� de ficarmos aqui, Simon?
Sabe que n�o somos casados. - E ela parecera t�o digna, embora Simon
soubesse que ela era muito menos pomposa do que parecia e tinha um
enonne sentido de humor. Al�m disso, era dificil resistir a duas pessoas
t�o obviamente apaixonadas como no caso deles.
- O que pode pensar, Zoya? Temos quartos separados.
Zoya esbo�ou um aceno de cabe�a e ocupou-se de novo a
desembrulhar os tesouros que Simon lhe trouxera,ficando emocionada ao
deparar com um frasco enorme do seu prefume favorito.
- Deus do c�u, Simon! Ser� que n�o esqueceste algo?
- Espero bem que n�o. - Voltou a tom�-la nos bra�os e depois foi l�
abaixo buscar o resto das sandu�ches e outro copo de xerez. Propusera-lhe
irem jantar fora, mas ela insistiu em que n�o tinha fome.
Simon acendeu a lareira no quarto dele e sentaram-se
confortavelmente em frente, a comer sandu�ches e os delicados biscoitos
ingleses de Mrs. Whitman, que ela dizia serem exactamente iguais aos que
a m�e costumava dar-lhe quando ela era crian�a, na R�ssia.
- Perfeito, n�o achas, querida? - Ela inclinou-se e voltou a beij�-lo, e
ele fitou-a alegremente. Zoya era tudo o que alguma vez desejara na vida.
Deixou-o por volta das nove e foi at� ao seu quarto preparar-se para
se deitar. Estavam ambos cansados e Sinion pressentiu-lhe o nervosismo.
Ouviu-a a deixar correr a �gua para o banho e passou muito tempo antes
de haver novamerte sons no quarto. Interrogou-se sobre o que estaria a
fazer e como ficaria na camisa de noite de um branco-marfirn. Era algo
para vestir numa noite de n�pcias e fora exactamente assim que imaginara
o fim-de-semana secreto.
Dirigiu-se lentamente � porta, bateu ao de leve e, quando a porta se
abriu, susteve a respira��o ao v�-Ia. O cetim noldava-lhe as forrnas e o
cabelo ruivo ca�a-lhe suavemente sobre os ombros.
- Deus do c�u... Est�s lind�ssima...
- � um presente maravilhoso, Simon... Obrigada... - Parecia t�mida ao
recuar, fitando-o. Ele nunca vira ningu�m niais bonito. Conseguia parecer
em simult�neo nobre e convidativa, e recorreu a todas as for�as para n�o
estender a m�o e tocar-lhe. Contudo, n�o se atreveu. Ela assemelhava-se
a uma pe�a de fina porcelana, como um dos delicados tesouros ingleses
que Mrs. Whitman tinha na sala.
- Zoya...
Ela esbo�ou um sorriso j� n�o de menina, mas de mulher, uma
mulher que acabara por am�-lo profundamente devido a toda a sua
ternura, gestos delicados e bondade. Quando o lhou, soube que havia sido
aben�oada no dia em que o conhecera.
- Porque n�o entras um pouco? - retorquiu num tom rouco e
desviando-se da porta.
Simon transp�s a ombreira, voltando a sentir-se um rapazinho e
depois, arrebatado pela for�a viril que o invadia, apertou-a, e a camisa
deslizou suavemente dos ombros de Zoya. Um leve toque f�-la descair at�
� cintura, depois pelas ancas esguias e ficou nua diante dele.
- Amo-te tanto.
Mal conseguia falar ao beijar-lhe os l�bios, o pesco�o, os seios e o
corpo todo. Com um gesto poderoso levou-a nos bra�os at� � cama e,
momentos depois, deitou-se junto dela. Fez amor como desejara desde o
dia em que se tinham conhecido e a calma reinou no quarto quando
finalmente ficaram ao lado um do outro, saciados, felizes e ligados para
toda a vida. Ela era tudo o que ele desejara que fosse. Era mais do que
sonhara.
- Amo-te, Simon.
E, ao pronunciar as palavras, soube que o amava como nunca amara
antes. Agora era uma mulher, era a mulher dele, como sempre seria. O
presente e o futuro pertenciam-lhes e o passado era apenas uma mem�ria
obscurecida quando regressaram ao quarto dele, apagaram a luz e ficaram
deitados a observar o fogo da lareira a transformar-se em cinzas.
Depois de voltarem a fazer amor, adonneceram nos bra�os um do
outro, sonhos e corpos num s�, as vidas unidas como se tivessem casado
naquela noite em casa de Mrs. Whitman. Foi a perfeita noite de n�pcias
e, na manh� seguinte, o pequeno-almo�o apareceu misteriosamente em
bandejas na sala de Mrs. Whitinan. quando Zoya colocou o roup�o de
cetim sobre a carne nua e seguiu Simon at� l� abaixo, com uma risada
feliz.
- Tem o sabor de pecado, n�o? - sussurrou, cometido os bolos de
frutos. Estendeu um a Simon e serviu o caf�. Era como se nunca tivesse
pertencido a outro homem. H� tanto tempo que fora mulher de Clayton
e agora era outra pessoa. No entanto, Simon sorriu-lhe e abanou a cabe�a.
- N�o me sinto de forma alguma em pecado. Sinto-me casado.
- Tamb�m eu - redarguiu num tom suave e fito-o com um olhar cheio
de tudo o que a invadia e, sem mais uma palavra, ele levou-a para cima,
esquecidos os bolos e o caf�.
CAFO�TULO 39
Nas duas semanas seguiintes, tudo entre eles pareceu mudar.
Pertenciam um ao outzro e sabiam-no. O �nico obst�culo a superar
residia no facto de Zoya n�o conhecer os pais dele. Sentia-se nervosa por
isso, mas ele acalmou-a o melhor que p�de depois de numa sextau-feira
� noite a surpreender, dizendo-lhe que informara a m�e que a levaria a
jantar l� em casa.
- E como � que ela reagiu? - inquiriu, preocupada, Zoya, que pusera
um vestido preto novo. Simon n�o a avisara para n�o a assustar.
Dissera-lhe apenas que iam sair. E agora, subitamente, apesar do que
acontecera entre eles h� duas semanas na casa de Mrs. Whitman, voltava
a sentir-se uma rapar�guinha, aterrorizada com a perspectiva de conhecer
a m�e dele.
- Queres mesmo saboer? - Riu. - Perguntou-me se eras judia.
- Oh, n�o... E espera at� ela ouvir o meu sotaque. Quando descobrir
que sou russa, vai ser horr�vel.
- N�o sejas pateta. - Contudo, ela tinha raz�o. Simon ainda mal as
apresentara quando a m�e fitou Zoya de olhos semicerrados.
- Zoya Andrews? Qune nome � esse? A sua fam�lia � russa? - Partia
do princ�pio de que ela recebera o nome de uma av� ou parente distante.
Era quase t�o alta como Simon e baixou os olhos na direc��o dela.
- N�o, Mistress Hirsch - respondeu, fitando-a com os grandes olhos
verdes e rezando para que n�o rebentasse a tempestade. - Eu sou.
- � russa? - Fez a pergunta na l�ngua materna dela e Z(ya quase
sorriu ante o sotaque. Era o sotaque dos campoleses que tinha conhecido
na juventude e, por momentos, recordou-se de Feodor e da sua simp�tica
mulher, Ludmila.
- Sou russa - repetuu, mas desta vez na sua l�ngua, que falava com a
pose e suave dic��o da aristocracia. Sabia que a mulher mais velha o
reconheceria de imediato e a odiaria mais do que nunca por esse facto.
- De onde? - O interrogat�rio prosseguiu, e Simon observava,
desesperado, o pai, que tamb�m fitava atentamente Zoya. Gostou do que
viu. Ela era uma mulher atraente e educada. Por ele estava tudo bem,
mas sabia que n�o havia forma de deter Sofia, a m�e de Simon.
- De Sampetersburgo - replicou Zoya com um sorriso calmo.
- Sampetersburgo? - Ficou impressionada, mas preferia morrer a
confess�-lo.- Qual era o seu nome de fam�lia?
Pela primeira vez na vida, sentiu-se grata por n�o ter o apelido
Romanov, mas o seu nome n�o era muito melhor. Quase riu ao enfrentar
a gigante vestida com uma bata estampada. Os bra�os assemelhavam-se
aos de um homem, o que fez com que Zoya ainda se sentisse mais fr�gil.
- Ossupov. Zoya Konstantinovna Ossupov.
- Porque n�o nos sentamos, enquanto falamos? - sugeriu Simon,
incomodado, sem que a m�e desse qualquer ind�-cio de desistir nem
esbo�asse um gesto na direc��o das cadeiras de espaldar direito no
pequeno apartamento de Houston Street.
- Quando veio para c�? - inquiriu sem delonga a Zoya e Simon soltou
um gemido inaud�vel ao suspeitar o que se seguiria.
- Depois da guerra, madame. Fui para Paris em mil novecentos e
dezassete, depois da revolu��o.
N�o valia a pena esconder-lhe o que era. Apenas sentia pena de
Simon, que estava com um ar trist�ssimo, escutando a troca de palavras
entre a m�e e a mulher com quem queria casar.
Contudo, depois de terem feito amor e dos la�os que haviam
consequentemente nascido, ambos sabiam que nada podia separ�-los.
- Expulsaram-na, portanto, depois da revolu��o.
- Suponho que se pode p�r o assunto nesses termos - disse Zoya a
sorrir. - Vim-me embora com a minha av�, depois de a minha fam�lia ser
morta - acrescentou com uma express�o s�ria.
- Tamb�m a minha o foi - redarguiu Sofia Hirsch de rompante. O
nome de fam�lia havia sido Hirschov, mas o oficial da imigra��o em Ellis
Island fora demasiado pregui�oso para escrever o nome todo e haviam,
portanto, ficado Hirsch em vez de Hirschov. - A minha fam�lia foi morta
nas persegui��es, pelos cossacos do czar. - Zoya ouvira relatos em crian�a,
mas nunca tomara consci�ncia de que um dia viria a assumir a posi��o em
que se encontrava.
- Lamento muito.
- Uummm....
A m�e de Simon franziu o sobrolho e dirigiu-se � cozinha para acabar
de fazer o jantar. Quando a refei��o ficou pronta, a m�e acendeu as velas
e entoou o Sabbath. A m�e seguia o kosher e preparara um jantar com o
tradicional challah, que serviram com um vinho especial. Tudo aquilo era
uma experi�ncia nova para Zoya.
- Sabe o que � kosher? - inquiriu a meio da refei��o.
- N�o... eu... n�o, de facto, n�o muito. - Continuavam a falar russo e
Zoya sentia-se pouco � vontade com a sua falta de conhecimento. - N�o
se bebe leite com carne. - Foi o melhor que conseguiu, e a m�e voltou a
franzir o sobrolho a Simon e tratava-o constantemente por "Shimon",
falando i�diche em vez de russo.
- Tem de se manter tudo separado. Os lactic�nios nunca podem tocar
na carne. - Tinham pratos separados e a prosperidade adquirida permitia-
lhe usar dois fog�es. Zoya achou as explica��es muito complicadas, mas
ela mostrava-se muito orgulhosa da sua dedica��o � lei talm�dica e fitou
orgulhosamente o filho. - Ele � t�o inteligente que bem podia ter sido um
rabino - redarguiu. - E o que fez? Foi para a S�tima Avenida e deixou a
fam�lia de parte.
- Isso n�o � verdade, mam� - retorquiu Simon a sorrir. - O pap�
reformou-se e o tio Joe e o tio Isaac tamb�m.
Zoya apercebeu-se, ao ouvi-lo, de que se tratava de um aspecto da
vida dele que n�o compreendera totalmente. Uma coisa era o que Simon
contara sobre a fam�lia, outra era conhec�-los. Sentiu um repentino pavor
de nunca estar � altura aos olhos deles. Nada sabia da religi�o deles nem
de qu�o importante era para Simon. Nem sequer sabia se ele era
religioso, embora suspeitasse que n�o. Ela pr�pria n�o atribu�a muito
significado � religi�o, embora acreditasse em Deus. Contudo, apenas ia �
igreja ortodoxa na P�scoa e no Natal.
- O que fazia o seu pai? - Sofia Hirsch disparou a pergunta, depois de Zoya a ter ajudado a levantar a mesa. J� sabia que Zoya trabalhava numa
loja e que Simon a conhece em Paris.
- O meu pai estava no ex�rcito - respondeu, e a mulher mais idosa
quase gritou.
- N�o era um cossaco?
- N�o, mam�. Claro que n�o - respondeu Simon em lugar dela,
obviamente ansioso por se ir embora, e Zoya achou subitamente tudo
aquilo muito divertido. As vidas ambos, de princ�pios t�o diferentes,
haviam-se cruzado a meio e, depois de passados anos a ostentar o t�tulo
a algura tinha agora de garantir �quela mulher que o pai n�o havia sido
um cossaco.
De repente, apercebeu-se pelo canto do olho de que Simon tamb�m
tinha a mesma opini�o. Era como se soubes exactamente o que ela estava
a pensar. E decidiu espica�ar a pouco a m�e. Sabia que ela ficaria
impressionada, mesmo que se fingisse horrorizada. Sentia que o pai dera
a aprova��o e, mesmo que a m�e tamb�m o fizesse, nunca o admitinia. - A Zoya � uma condessa, mam� - rematou. - S� que � demasiado
modesta para usar o t�tulo.
- Uma condessa de qu�? - indagou a m�e e, desta vez, Zoya riu-se
abertamente.
- De absolutamente nada, agora. Tem raz�o. Tudo isso acabou. - A
revolu��o fora h� dezanove anos e, embora n�o estivesse esquecida,
parecia parte de uma outra vida.
Fez-se um longo sil�ncio enquanto Simon pensava como se escapar
graciosamente com Zoya.
- � uma pena que n�o seja judia - pronunciou, por fim, a m�e, num
tom triste, como se quaisquer deuses pudessem estar a escut�-la. Simon
sorriu, consciente de que era o m�ximo que Sofia conseguiria
aproximar-se de demonstrar o seu agrado. - Ela vai converter-se?
Dirigiu-se ao filho, como se Zoya n�o estivesse presente, e Simon
respondeu uma vez mais por ela:
- Claro que n�o, mam�. Porque havia de o fazer?
O pai ofereceu-lhe mais um copo de vinho, enquanto Simon lhe dava
uma palmadinha na m�o e a m�e a fitava com permanente interesse.
- O Sinion disse-me que tem filhos. - Era mais uma acusa��o do que
uma pergunta, mas Zoya sorriu, sempre orgulhosa deles.
- Sim. Tenho dois.
- � divorciada.
Sinion emitiu um grunhido impercept�vel, e Zoya sorriu a Sofia.
- N�o. Sou vi�va. O meu marido morreu h� sete anos de um ataque
de cora��o. - Resolveu esclarecer para que ela n�o pensasse que o
matara.
- Que tristeza. Que idade t�m?
- O meu filho, o Nicholas, tem quase quinze, e a Alexandra tem onze.
Sofia esbo�ou um aceno de cabe�a, pareceu finalmente satisfeita e
Simon aproveitou a oportunidade para se levantar e dizer que tinham de
ir embora. Zoya imitou-o e agradeceu-lhe o jantar.
- Gostei de a conhecer - murmurou Sofia entre dentes e o marido
sorriu. Mal falara toda a noite, excepto ocasionalmente e em voz baixa a
Simon. Era um homem t�mido que passara meio s�culo � sombra da
muito mais faladora Sofia. - Apare�a novamente - convidou delicadamente
quando Zoya lhe apertou a m�o e agradeceu de novo no seu aristocr�tico
russo.
Simon teve a certeza de que ela lhe telefonaria no dia seguinte e n�o
pararia de falar.
Acompanhou Zoya at� ao Cad�llac que os aguardava estacionado l�
em baixo e suspirou de al�vio ao deslizar para tr�s do volante, fitando
tristemente a mulher que amava.
- Desculpa. N�o devia ter-te trazido aqui.
Zoya riu ante a express�o do rosto dele.
- N�o sejas pateta - retorquiu, inclinando-se e beijando-o. - A minha
m�e teria sido muito pior. Agradece n�o seres obrigado a enfrent�-la.
- N�o acredito nas perguntas que faz e depois admira-se porque � que
nunca trago ninguem c� a casa. S� se fosse doido! Meshuge! - acrescentou
em i�diche, com uma elucidativa palmada na cabe�a, e Zoya riu, enquanto
ele a levava a casa.
- Espera at� a Sasha come�ar a fazer-te passar um mau bocado. At�
agora tem sido um anjo.
- Ent�o estamos quites. Juro que nunca mais voltarei a fazer-te uma
coisa destas.
- Voltar�s, sim, e n�o me importo. S� tinha pavor que ela me
interrogasse sobre o czar. N�o queria mentir-lhe, mas tamb�m n�o morria
por lhe contar a verdade. - Sorriu. - Ainda bem que n�o somos Romanov.
Teria desmaiado.
Simon riu perante a ideia e levou-a um bocado ao Copacabana para
relaxarem e beberem champanhe. Aos olhos � Simon tinha sido uma noite
muito dura. Contudo, Zova estava surpreendida por haver corrido
facilmente. Na verdad, esperava que tivesse sido muito pior, o que
horrorizo Simon.
- Como � que podia ter sido pior?
- Podia ter-me mandado sair. Houve um momento que pensei que o
faria.
- N�o se atreveria. N�o � t�o m� como parece. - Esbo�ou um sorriso
malicioso. - E faz uma canja fant�stica.
- Vou pedir-lhe que me ensine - redarguiu Zoya, qu depois se lembrou
de algo que a fizera interrogar-se. - Temos de fazer comida kosher? -
Contudo, ele n�o conseguiu suster o riso ante a pergunta. - Ent�o?
Temos?
- A minha m�e ficaria encantada, mas deixa-me garantir-te, minha
querida, que recusaria comer em casa. N�o te preocupes com essas coisas,
de acordo? Prometes? - Inclinou-se e beijou-a no momento em que a
orquestra come�ava a tocar a sua can��o favorita, I've Got You Under My
Skin, de Cole Porter. - Dan�a, Mistress Andrews ou devo trat�-la por
condessa Ossupov?
- Que tal apenas Zoya? - Riu e seguiu-o at� � pista.
- Que tal Zoya Hirsch? Como soa?
Ela sorriu-lhe enquanto dan�avam e ambos riram, pensando no
mesmo. Era realmente um nome estranho para a prima do czar.
CAPITULO 40
Conseguiram manter a liga��o em segredo dos mi�dos at� Junho,
quando Sasha os apanhou a beijarem-se apaixonadamente na cozinha.
Fitou-os num horror silencioso e depois afastou-se a correr e fechou-se no
quarto, de onde s� saiu quando Nicholas amea�ou que deitava a porta
abaixo se ela n�o viesse c� para fora e se portasse como gente.
Nicholas sentia-se muito ofendido com a atitude da irm�. Gostava de
Simon e come�ava a esperar que ele tivesse inten��es s�rias para com a
m�e. Simon mostrara-se sempre bondoso para todos eles levando-os a
passear de carro aos domingos � tarde e a jantar sempre que poss�vel,
trazendo-lhes al�m disso belos presentes. Foi buscar Nicholas ao col�gio
mais do que uma vez no Cadillac e oferecera um r�dio aos dois
jovenzinhos, de que eles muito gostavam.
- V� se te comportas! - avisou-a Nicholas, irritado. - E vai pedir
desculpa � mam�!
- N�o vou! Ela estava a beij�-lo na cozinha.
- E da�? Gosta dele.
- Mas n�o assim... � repugnante!
- Tu � que �s repugnante. Agora vai pedir-lhes desculpa.
Sasha escapou-se sorrateiramente para a sala e recusou olhar para
Simon. Nessa noite, depois de ele se ir embora, Zoya finalmente contou-
lhe.
- Estou muito apaixonada por ele, Sasha. - A mi�da p�s-se a chorar
e Nicholas escutava da ombreira.
- E o pap�? N�o o amavas?
- Claro que sim... Mas, querida, ele agora desapareceu. H� muito
tempo que desapareceu. Podia ser agrad�vel termos connosco algu�m que
nos ame. O Sinion ama-te muito, a ti e ao Nicholas.
- E eu tamb�m gosto dele. - Nicholas defendia abertaciente Simon, o
que comoveu a m�e. - V�o casar? - perguntou meigamente, e Zoya,
fitando ora um ora outro, esbo�ou um aceno de cabe�a afirmativo que
provocou novo ataque de histeria em Sasha.
- Odeio-te! Est�s a destruir a minha vida!
- Porqu�, Sasha? - retorquiu, muito perturbada com a reac��o da filha.
- N�o gostas dele? � um homem t�o simp�tico e ser� t�o bom para n�s. -
Tentou abra��-la, mas a filha n�o deixou.
- Ocleio-vos aos dois! - bradou Sasha, sem saber muito bem porque
o dizia, excepto talvez para arreliar a m�e. Contudo, Nicholas ficou
furioso e lan�ou-se sobre a figura solu�ante em cima da cama.
- Pedes desculpa ou levas um bofet�o?
- Parem com isso! Os dois! Isto n�o � maneira de come�ar uma nova
vida.
- Quando � que v�o casar-se? - Sasha apenas deixou de chorar o
tempo que durou a pergunta.
- Ainda n�o sabemos. Quisemos esperar um pouco.
- Porque n�o casam este Ver�o e depois podemos viajat todos? -
sugeriu Nicholas, e Zoya sorriu. Parecia-lhe uma boa ideia e sabia que
Simon ficaria satisfeito, mas a perspectiva n�o agradava obviamente a
Sasha.
- N�o irei a lado nenhum com voc�s.
- Ir�s sim, porque te metemos numa mala e depois, pelo menos, n�o
teremos de te ouvir. - Sasha extravasou ent�o a f�ria no inn�o.
- Odeio-te! N�o irei a lado nenhum com eles! - Fungou ruidosamente,
com um olhar faiscante dirigido � m�e, mas Nicholas apanhou-a ao acus�-
la.
- Sabes uma coisa? Tens ci�mes! Tens ci�mes da mam� e do Simon!
- N�o tenho nada!
- Tens! - Continuaram a gritar, e Zoya desesperava quanto a ter
novamente paz, mas, no dia seguinte, quando contou a Simon, Sasha
acalmara-se, embora tivesse deixado de falar com o inn�o.
- Agrada-me muito a ideia do Nicholas - comentou. Sabia como Zoya
tinha, por vezes, dificuldade em lidar com Sasha. Dava-se bastante bem
com a mi�da, mas esta parecia fazer constantes exig�ncias sobre a m�e
para reclamar a aten��o e o tempo dela, vestidos novos, roupas novas e
pisava incessantemente o risco. - Porque n�o casamos em Julho e vamos
para Sun Valley com as crian�as?
- N�o te importas de as levares na nossa lua-de-mel? - Mostrava-se
surpreendida com a bondade dele, a sua disponibil�dade em aceitar os
mi�dos como se fossem seus, o que a tocava profundamente.
- Claro que n�o. Gostarias?
- Claro.
- Combinado, ent�o! - exclamou e beijou-a, antes de ir consultar um
calend�rio. - Que tal casarmos a doze de Julho? - Os olhos brilhavam-lhe
quando a enla�ou pela cintura. H� muito, muito tempo que ela n�o se
sentia t�o feliz. E fora realmente dif�cil aquela espera para se casar com
ele. Tudo o que queria agora era pertencer-lhe para toda a vida.
- O que dir� a tua m�e?
Simon pensou um momento antes de lhe responder com um sorriso.
- Vamos p�-la a falar com a Sasha. Foram feitas uma para a outra.
Zoya soltou uma gargalhada e ele beijou-a.
CAPITULO 41
A 12 de Julho de 1936, Simon Ishmael Hirsch e Zoya Alexandra
Eugema Ossupov Andrews casaram pelo civil no jardim da bonita casinha
de pedra de Axelle na Rua 49.
A noiva vestia um conjunto creme Norell e um chapelinho com um
fino v�u cor de marfim e sorriu ao erguer o rosto para o marido, que a
beijou. A m�e dele optara por n�o aparecer, s� para vincar que n�o
aprovava o facto de Zoya n�o ser judia. Contudo, o pai estava presente
bem como duas das raparigas da loja. Havia igualmente um punhado de
amigos comuns e obviamente os dois filhos de Zoya.
Nicholas foi o padrinho e Sasha manteve-se ao lado deles com um ar
amuado. Zoya poderia ter tido um casamento mais cerimonioso se
quisesse, e as suas clientes mais importantes, como Barbara Hutton e
Doris Duke, teriam adorado aparecer, mas, embora Zoya as conhecesse
bem, n�o man�nha uma liga��o de intimidade com elas. Eram parte de
uma outra vida e queria que o seu casamento fosse muito simples e
especial.
O mordomo de Axelle serviu o champanhe e, �s quatro horas, Simon
seguiu de regresso ao apartamento de Zoya no seu Cadillac. Tinham
decidido ficar l� at� depois da lua-de-mel, altura em que procurariam uma
casa maior.
No entanto, passariam primeiro tr�s semanas em Sun Valley. O lugar
fora inaugurado nesse ano e apanharam o comboio para Idaho na Esta��o
da Pensilv�nia. Simon comprou jogos para as crian�as e a pr�pria Sasha
estava excitada quando chegaram a Chicago.
Ficaram uma noite em Blackstone e prosseguiram viagem no dia
seguinte. Todos estavam satisfeit�ssimos quando chegaram a Ketchum, e
Zoya e Simon ainda mais, depois de uma noite de arrebatamento e
paix�o. A rela��o fisica que partilhavam era algo que nenhum deles
conhecera antes e ainda os aproximava mais.
S� haviam passado tr�s meses sobre o seu encontro, mas sentia-se
como se tivesse conhecido Simon desde sempre. Ensinou Nicholas a
pescar e iam nadar todos os dias. No final do m�s regressaram queimados
do sol e felizes ao apartamento de Zoya.
Foi ent�o que toda a realidade se abateu sobre Zoya. No primeiro dia
em que voltaram, sentou-se a ver Simon barbear-se e sentiu-se invadida
por uma vaga de felicidade ao observ�-lo a cobrir o rosto de espuma;
soltou uma s�bita risada ao tocar na pele macia por o amar tanto e
beijou-o.
- Alguma coisa engra�ada? - Virou-se para ela com um sorriso e Zoya
abanou a cabe�a.
- N�o, s� que tudo parece subitamente t�o real, n�o �?
- Verdade - anuiu. Inclinou-se para a beijar e encheu-a de espuma da
barba, fazendo-a rir. Beijou-a uma e outra vez e, momentos depois, ela
fechou a porta do quarto � chave e fizeram amor antes de ela sair para
o trabalho.
Prometera a Axelle que ficaria na loja at� ao fim de Setembro. E os
dias pareciam voar. Tr�s semanas depois de regressarem, descobriram um
apartamento que lhes agradou entre a Park Avenue e a Rua 68. Tinha
divis�es grandes e arejadas, e o quarto deles ficava em frente do das
crian�as. Nicholas tinha um quarto grande e confort�vel, e Sasha insistiu
para que as paredes do seu quarto fossem pintadas de p�rpura.
- Tamb�m tinha um quarto p�rpura quando era uma rapariguinha...
quando era mais ou menos da tua idade. - Falou-lhe, ent�o, do
encantador boudoir cor de malva de Alix. Trouxe-lhe ternas recorda��es
ao descrev�-lo e Sasha ouvia-a fascinada.
Havia uma fotografia de Clayton no quarto de Nicholas e ele colocou
ao lado um bonito retrato de Simon. Os dois homens da fam�lia iam dar
longos passeios ao fim da tarde, quando Sinion regressava a casa do
trabalho e, uma semana depois de se terem mudado, ele trouxe para casa
uma pequena cocker spaniel.
- Olha, mam�! - exclamou Nicholas, excitado. - Parece mesmo igual
� Sava. - Ela ficou surpreendida por o filho ainda se recordar dela, e
Sasha ficou amuada durante um dia por n�o ser um c�o russo como ela
queria. Contudo a cadela era muito meiga e chamaram-lhe Jamie.
A vida parecia id�lica quando se instalaram no novo apartamento.
Havia mesmo um quarto de h�spedes junto � blioteca e Simon espica�ou-
a, dizendo que seria para o primeiro beb�. No entanto, Zoya abanou a
cabe�a e sorriu.
- Tive filhos h� muito tempo, Simon. Sou velha de mais para ser m�e
agora. - Aos trinta e sete anos, estava longe de querer mais filhos. - Um
dia destes serei av�. - Riu e ele abanou a cabe�a.
- Tamb�m queres uma bengala, avozinha? - tro�ou, rodeando-lhe os
ombros com o bra�o, enquanto se mantinham sentados no quarto a
conversar pela noite fora, tal como fizera com Clayton, anos antes.
Contudo, a vida era diferente com Simon. Partilhavam interesses
comuns, amigos comuns, eram adultos que se tinham unido na for�a e n�o
na fraqueza. Ela pouco mais era que uma crian�a quando Clayton a
salvara dos horrores da sua vida em Paris de 1919 e a trouxera para Nova
Iorque, Agora tudo era diferente, pensava Zoya, ao dirigir-se ao trabalho,
gozando os seus �ltimos dias no Axelle's e olhou a amiga com tristeza.
- O que vou fazer agora? - inquiriu, sentada na sua secret�ria Lu�s XV
e erguendo os olhos da ch�vena de ch� para Axelle. - Com que vou
ocupar os dias?
- Porque n�o vais para casa e tens um filho? - retorquiu a mulher
mais velha com uma gargalhada.
Zoya abanou a cabe�a, desejando poder ficar. Contudo, Simon queria
que ela tivesse a liberdade de que h� anos n�o dispunha. H� sete anos
que trabalhava e agora n�o tinha necessidade de o fazer. Podia gozar a
companhia dos filhos, do marido, a casa, fazer o que lhe aprouvesse, mas
Zoya sabia que tudo lhe pareceria muito mon�tono sem a obriga��o de
ir diariamente para a loja.
- Pareces o meu marido a falar.
- Ele tem raz�o.
- Ficarei t�o aborrecida sem trabalho.
- Duvido muito, minha querida. - Contudo, as l�grimas brilhavam nos
olhos de Axelle quando Simon foi buscar Zoya nessa tarde e as duas
mulheres se abra�aram. Zoya Prometeu aparecer no dia seguinte e lev�-la
a almo�ar.
Simon riu e avisou a mulher que apadrinhara o romance deles desde
o primeiro momento:
- Vai ter de fechar a porta � chave para a manter afastada daqui. N�o
me canso de lhe dizer que h� um mundo l� fora � espera que ela o
descubra.
No entanto, em Outubro, Zoya descobriu que tinha mais tempo livre
entre m�os do que sabia fazer com ele. Via Axelle quase diariamente,
visitava museus e ia buscar Sasha ao col�gio. Chegava mesmo a passar
frequentemente pelo escrit�rio de Simon e escutava com avidez os seus
planos de neg�cio. Decidira acrescentar uma linha de casacos de crian�a
e mostrava-se ansioso pelos conselhos que ela lhe dava. A infal�vel
intui��o de Zoya ajudava-o a fazer escolhas em que, de outra forma, n�o
teria pensado.
- Sinto tanto a falta de tudo isto, Simon - confessou-lhe em Dezembro,
quando apanharam um t�xi de regresso do teatro. Ele levara-a � estreia
de You Can't Take It W�th You com Frank Conlan e Josephine Hull no
Teatro Booth. Fora uma noite agrad�vel, mas ela sentia-se nervosa e
aborrecida. Descobrira que trabalhara anos de mais para agora desistir e
ficar sentada em casa sem fazer nada. - E se voltar uns tempos para a loja
da Axelle?
Sinion pensou no assunto e fitou-a, quando chegaram ao apartamento.
- Por vezes, � dificil recuar no tempo. Porque � que n�o come�as algo
de novo?
"Como o qu�?", interrogou-se. Apenas tinha conhecimento de dan�a
e vestidos e dan�ar estava sem d�vida fora de quest�o. Riu de si para si
quando entraram no apartamento e ele se virou para a admirar. Estava
t�o bonita, de olhos brilhantes e a esplendorosa cabeleira ruiva.
Continuava a asseinelhar-se a uma rapariguinha e desejava-a em
perman�ncia. N�o lhe parecia com idade bastante para ter um filho de
quinze anos, reflectiu ele quando Zoya se sentou numa cadeira e o fitou
com um sorriso, detendo o olhar no smoking que ele vestia. Mandara-o
fazer por encomenda em Londres, para desgosto da m�e. "O teu pai podia
ter-te talhado um melhor", dissera ela.
- O que � assim t�o divertido?
- Ocorreu-me uma ideia louca... Estava a lembrar-me de quando
dancei no Fitzhugh's. Foi horr�vel, Simon... Detestei tanto tudo aquilo.
- N�o consigo imaginar-te a sacudires o traseiro e a rodares os colares.
- Riu ante o pensamento, mas sentiu-se em simult�neo emocionado. Ela
fora t�o corajosa ao ultrapassar tudo aquilo. Apenas lamentava n�o a ter
conhecido nessa altura. Teria casado com ela, poupando-a � situa��o.
Agora, ela j� n�o precisava de poupar; era eficiente e forte.
Simon quase se sentia tentado a met�-la no neg�cio, mas sabia que a
fam�lia ficaria horrorizada. Ela n�o pertencia � S�tima Avenida. Pertencia
a uma elite muito mais elevada, e subitamente ocorreu-lhe uma ideia.
Serviu-se de um c�lice de conhaque e abriu uma garrafa de champanhe
para ela, enquanto se sentavam a falar junto � lareira.
- Porque n�o abres a tua pr�pria loja?
- Como a Axelle? - Parecia intrigada, mas agradou-lhe a ideia e depois
pensou na amiga e abanou a cabe�a. - N�o seria justo para a Axelle. N�o
quero competir com ela. - Axelle fora boa de mais para que agora a
prejudicasse, mas Simon tinha outras ideias na cabe�a.
- Ent�o, faz algo diferente.
- Como, por exemplo?
- Faz tudo, roupa de mulher, de homem, talvez mesmo de crian�a.
Mas apenas da melhor qualidade, aquele tipo de neg�cio em que te sentes
t�o � vontade. Uma linha completa... sapatos, malas e chap�us... Ensina
as pessoas a vestissem-se, n�o s� as elegantes como as que frequentam a
loja da Axelle, mas as outras tamb�m, as que t�m dinheiro mas n�o sabem
us�-lo. - As mulheres que ela vestira no Axelle's eram sem d�vida as mais
elegantes de Nova lorque, mas a maioria tamb�m ia a Paris comprar
roupa, como Lady Mendl, Doris Duke e Wallis Simpson. - Podias come�ar
com uma coisa pequena e depois aumentar o neg�cio. At� podias vender
os meus casacos!
Simon riu, mas ela fitou-o com uma express�o pensativa, bebendo o
champanhe em pequenos goles. A ideia agradava-lhe e, em seguida,
dirigiu-lhe uma pergunta s�ria:
- Podemos dar-nos a esse luxo? - Sabia que ele tinha dinheiro, mas
n�o fazia ideia do capital em jogo. Era algo que nunca discutiam.
Possu�am mais do que o suficiente para a vida que levavam, mas os pais
dele continuavam a morar em Houston Street e sabia que ele os
sustentava, bem como a todos irm�os do pai. Ele contemplou-a com
meiguice e sentou-se ao lado dela.
- Talvez seja chegada a altura de termos uma conversa s�ria sobre
tudo isto.
Zoya corou e abanou a cabe�a. De facto, n�o desejava saber. Por�m,
se pretendia abrir uma loja pr�pria, talvez fosse necess�rio.
- N�o quero parecer bisbilhoteira, Simon. O teu neg�cio � da tua
conta.
- N�o, meu amor. Tamb�m � teu e vai muito bem. De vento em popa.
- Informou-a quanto fizera no ano anterior e ela olhou-o, surpreendida.
- Falas a s�rio?
- Bom - desculpou-se, sem compreender a surpresa nos olhos dela. -
Podia ser melhor, se tivesse encomendado todas as caxemiras que queria
em Inglaterra. N�o sei porque me contive. Para a pr�xima �poca, n�o o
farei - explicou e ela riu.
- �s doido. Acho que nem o Banco de Inglaterra transaccionou tanto
dinheiro no ano passado. � incr�vel, Simon! Mas eu pensei... quero dizer,
os teus pais...
Desta vez foi ele a tro�ar.
- A minha m�e s� sairia de Houston Street de arma apontada. Adora
o s�tio. - Todas as tentativas de Simon para que eles se mudassem para
um apartamento mais luxuoso haviam sido infrut�feras. A m�e gostava dos
amigos, das lojas onde fazia as compras e da vizinhan�a. Mudara-se para
a Lower East Side quando viera para Nova lorque h� uma gera��o e iria
morrer ali. - Acho que o meu pai gostaria de se mudar para a parte alta
da cidade, mas a minha m�e n�o o deixa. - A m�e continuava a usar batas
e orgulhava-se em ter apenas um casaco "bom". Mas podia comprar todos
os casacos de Axelle, se quisesse.
- O que vais fazer com tudo isso? Investir? - Pensou com um arrepio
no falecido marido e nas suas aventuras no mercado da bolsa, mas Simon
era bastante mais perspicaz do que Clayton. Tinha instinto para o que
dava dinheiro e, no seu caso, resultara em cheio.
- Investi uma parte, a maioria em ac��es, e apliquei bastante no
neg�cio. No ano passado, comprei tamb�m duas f�bricas de t�xteis.
Penso que, se come�armos a fabricar os nossos artigos, nos sairemos
melhor do que com algumas importa��es. Assim, consigo controlar melhor
a qualidade. As duas f�bricas s�o na J�rgia e a m�o-de-obra � muito
barata. Vai levar uns anos, mas penso que teremos muito mais lucros. -
Zoya nem conseguia imaginar, pois os lucros qu ele mencionara j� eram
imensos. Constru�ra o neg�cio do nada em vinte anos. Aos quarenta, j�
fizera uma imensa fortuna. - Portanto, meu amor, se queres abrir a tua
loja, vai em frente - incitou. - N�o vais tirar comida da boca de ningu�m. -
Ficou a meditar no assunto uns minutos, enquanto Zoya tentava assimilar
o que ouvira na �ltima meia hora. - Na verdade, acho que podia ser um
investimento fant�stico.
- Est�s disposto a ajudar-me, Simon? - indagou, pousando o copo e
fitando-o com uma express�o grave.
- N�o precisas da minha ajuda, querida, excepto talvez para assinar os
cheques - retorquiu, inclinando-se e beijando-a. - Sabes mais deste ramo
do que qualquer outra pessoa que conhe�o e tens um sentido nato do que
conv�m ou n�o. Devia ter-te dado ouvidos sobre o rosa shock�ng, quando
estivemos em Paris. - Riu bem-disposto, pois esgotara todos os tecidos
rosa e as encomendas para o restante ainda n�o tinham chegado.
- Por onde come�o? - indagou, subitamente excitadissima com a ideia.
- Podias procurar um s�tio nos pr�ximos meses. E na Primavera vamos
a Paris e encomendas artigos para uma linha de Outono. Se te mexeres -
acrescentou, semicerrando os olhos e fazendo c�lculos -, estar�s pronta
para abrir em Setembro.
- Mas isso � muito perto. - S� faltavam nove meses e havia muita
coisa a fazer. - Podia pedir � Elsie que se encarregasse da decora��o. Ela
tem uma intui��o fant�stica para o que as pessoas querem, mesmo sem
o saberem.
Contudo, ele esbo�ou um sorriso terno � mulher, incentivado por toda
aquela excita��o.
- Tu pr�pria podias faz�-lo.
- N�o, n�o seria capaz.
- Deixa l�. De qualquer maneira, ia faltar-te tempo. Entre a
descoberta do s�tio, o contrato de pessoal e compras para a loja, terias
demasiado que fazer para ainda por cima te preocupares com a
decora��o. Vou pensar... Falarei com algumas pessoas que conhe�o
quanto � localiza��o.
- Falas a s�rio? - indagou com um brilho intenso nos olhos verdes. -
Achas mesmo que posso faz�-lo?
- Claro que sim. Vamos experimentar. Se n�o resultar, fechamos e
aguentamos os preju�zos de um ano. - E ela agora sabia que podiam dar-
se a esse luxo.
Nas pr�ximas tr�s semanas n�o falou em mais nada e, quando o levou
a assistir � missa no Natal russo, passou a maior parte do tempo a
sussurrar-lhe ao ouvido. Um dos agentes imobili�rios descobrira o que
achara ser o lugar perfeito e ela mal conseguia esperar para ver.
- A tua m�e desmaiava se te visse a sa�res daqui - observou, fitando-o
com uma express�o de felicidade. Desta vez o servi�o religioso n�o a
entristecera, pois estava por de mais excitada com o que tentavam
construir.
Vira Sergei Obolenski pela primeira vez em meses e ele esbo�ou uma
v�nia delicada quando o apresentou a Simon, come�ando por falar ingl�s
por delicadeza para com Simon e depois conversando com ele no seu
elegante russo.
- Surpreende-me que n�o tenhas casado com ele - comentou Simon
tranquilamente, tentando esconder o facto de que tinha ci�mes, mas Zoya
fitou-o e riu, quando regressavam a casa no Cadillac verde.
- O Sergei nunca esteve interessado em mim, amor. � demasiado
esperto para se casar com pobres t�tulos russos. Prefere indubitavelmente
as altas esferas americanas.
Sinion inclinou-se e beijou-a, puxando-a mais de encontro ao corpo
no assento.
- N�o sabe o que perde.
No dia seguinte, Zoya convidou Axelle para almo�ar e falou-lhe,
excitada, nos seus planos. Pusera logo Axelle a par do assunto desde o
in�cio, deixando bem claro que n�o queria competir com ela directamente.
- Porque n�o? - retorquiu a amiga, olhando-a, surpreendida. - A
Chanel n�o compete com o Dior? E a Elsa com todos eles? N�o sejas
pateta! Ser� �ptimo para o neg�cio! - Zoya n�o tivera essa opini�o, mas
sentiu-se aliviada por ter a b�n��o de Axelle.
Quando viu o s�tio que o amigo de Simon descobrira apaixonou-se de
imediato por ele. Era perfeito. Fora anteriormente um restaurante entre
as ruas 54 e 55 e distava somente tr�s quarteir�es do Axelle's.
Encontrava-se em muito mau estado, mas, ao semicerrar os olhos, soube
que era mesmo o que pretendia e, melhor ainda, o andar de cima tamb�m
estava dispon�vel.
- Fica com os dois - aconselhou Simon.
- N�o achas grande de mais? - Era enorme, e esse o motivo por que
o restaurante falira. Revelara-se excessivamente grande para a pequena
clientela, mas Simon abanou a cabe�a, levado pelo seu instinto nato do
que funcionava a n�vel de neg�cio.
- Podes p�r roupa de mulher no r�s-do-ch�o e roupa de homem no
andar de cima, e, se resultar - disse com uma piscadela de olho ao amigo
-, podemos comprar o pr�dio. De facto, talvez devamos faz�-lo j�, antes
que eles se armem em espertos e aumentem excessivamente o aluguer. -
Fez alguns c�lculos num bloco de apontamentos e depois esbo�ou um
aceno de cabe�a. - Vai em frente, Zoya. Compra-o.
- Comprar? - repetiu, ofegante. - O que farei com os outros tr�s
andares?
- Alugas com contratos de um ano. Se a loja for um sucesso, podes
recuperar um andar por ano. Pode ser que um dia fiques content�ssima
por teres cinco andares.
- Isto � uma loucura, Simon! - Sentia-se, por�m, t�o excitada que mal
conseguia dominar-se. Nunca sonhara em ser dona de uma loja e, de
s�bito, ali estava, no meio de tudo aquilo.
Contrataram arquitectos e Elsie de Wolfe e, semanas depois, estava
rodeada de planos, documentos e desenhos, havia amostras de m�rmore
por toda a sua biblioteca, bem como tecidos, e acabamentos de madeira;
toda a casa era um turbilh�o e, por fim, Simon deu-lhe uma secret�ria no
seu escrit�rio e uma funcion�ria para lhe tratar dos pormenores.
Cholly Knickerbocker mencionou o facto na sua coluna e saiu um
artigo sobre o tema em The New York Times. "Aten��o, Nova Iorque!",
dizia o artigo. "Quando Zoya Ossupov, a famosa condessa do Axefle's, e
Simon Hirsch, com o seu imp�rio da S�tima Avenida, uniram for�as em
Julho passado, podem ter dado in�cio a algo de grandioso!" E as palavras
foram prof�ticas.
Em Mar�o, partiram com destino a Paris no Normandie a fim de
comprar artigos para as linhas de Simon e escolher alguns elementos da
primeira colec��o de Zoya. E desta vez escolheu todas as coisas de que
gostava, sem ter de se submeter � vontade de Axelle.
Nunca se divertira tanto na vida como quando foi �s compras com ele,
e Simon concedeu-lhe um or�amento ilimitado. Ficaram no George V e
usufru�ram de momentos a s�s que se assemelharam a uma lua-de-mel.
Regressaram a Nova lorque um m�s depois de terem partido, felizes,
refrescados e mais apaixonados do que nunca. A �nica mancha ao
voltarem a casa residiu na not�cia de que Sasha fora expulsa do col�gio.
Aos doze anos, estava a transformar-se num pequeno terror.
- Como � que isto aconteceu, Sasha? - Dirigiu-se num tom calmo �
filha na primeira noite em casa. Tal como, h� um ano, Nicholas tinha ido
esper�-los ao barco, mas desta vez na nova Duesenberg que Simon
encomendara, antes de terem deixado de as fabricar no ano anterior.
Nicholas ficara excitad�ssimo ao v�-los e contara a Zoya as not�cias da
irm�. Sasha levara b�ton e verniz de unhas para o col�gio e fora apanhada
a beijar um dos professores. Ele tinha sido temporariamente suspenso e
Sasha expulsa sem qualquer esperan�a de readmiss�o. - Porqu�? - insistiu
Zoya. - O que pode ter-te levado a fazer uma coisa dessas?
- Estava aborrecida - respondeu Sasha com um encolher de ombros
-, e frequentar um col�gio s� de raparigas � est�pido.
Sinion pagara-lhe os estudos em Marymount, e Zoya ficara
content�ssima por v�-Ia num col�gio melhor do que ela poderia perin�tir-
se. Nicholas prosseguira no Trinity como antes de eles se casarem e
adorava estar l�. Faltavam-lhe mais dois anos antes de ir para Princeton,
como o pai antes dele.
Sasha aguentara seis meses no Marymount e agora fora expulsa e nem
sequer tinha a delicadeza de se mostrar embara�ada. S� havia dois
professores no col�gio, o de m�sica e o de dan�a, o resto eram freiras e
mesmo assim Sasha arranjara sarilhos.
Zoya interrogou-se sobre se seria uma maneira de a castigar por se ter
afastado tanto tempo e se mostrar t�o entusiasmada com o novo neg�cio.
Era a primeira vez que reflectIa no assunto, mas agora n�o havia nada a
fazer. Encomendara todas as linhas americanas antes de partir e comprara
e pagara o restante em Paris. Tinha de abrir a loja fosse l� como fosse, E
era uma altura p�ssima para Sasha lhe causlr problemas. Contudo, Sasha
n�o era a �nica coisa que a preocupava.
- N�o te sentes embara�ado? - perguntou Zoya. - Antes do mais,
pensa em como o Simon foi bom em mandar-te para l�. - No entanto, a
filha limitou-se a encolher os ombros, e Zoya sentiu que n�o conseguira
convenc�-la quando voltou ao quarto e encontrou Simon a desfazer as
inalas. - Lamento muito, Simon. Parece-me t�o ingrato por parte dela ter
feito isto.
- O que � que ela disse? - inquiriu Simon, fitando a mulher com uma
express�o preocupada. Havia algo em Sasha que o perturbava nos �ltimos
meses. Apanhara-a mais do que uma vez a fit�-lo com olhos esfaimados,
de uma forma que teria inspirado um homem menos decente a trat�-la
como uma mulher e n�o como uma crian�a, mas nunca falara do assunto
a Zoya. Continuara a trat�-la como uma mi�da, o que s� servira para a
espica�ar. Todavia, ela s� tinha doze anos e era extremamente bonita.
Possu�a a beleza germ�nica distante da av� e o fogo russo da m�e.
Tratava-se de uma combina��o terr�vel. - Est� triste? - indagou, e Zoya
abanou a cabe�a.
- Se, ao menos, estivesse. - A filha n�o mostrara uma centelha de
arrependimento.
- O que vais fazer agora?
- Procurar o urro col�gio, acho. O ano j� vai um pouco avan�ado para
tal. - Era o meio de Abril. - Podia arranjar-lhe um tutor at� ao Outono,
mas n�o estou certa que fosse bom para ela.
Sinion gostou da ideia.
- Talvez devesses faz�-lo. Tirava-lhe um pouco da press�o. - "Desde
que seja uma mulher."
No entanto, Zoya apenas encontrou um homem jovem e nervoso que
lhe garantiu ser capaz de lidar com Sasha sem qualquer problema. Ficou
exactamente um m�s e depois fugiu, aterrorizado, sem explicar a Zoya
que, no dia anterior, ela o recebera com uma camisa de noite que
pertencia, obviamente, � m�e e lhe dissera que queria que a beijasse.
- �s uma fedelha - acusava-a Nicholas noite e dia. Aos dezasseis anos
era mais intuitivo em rela��o a ela do que a pr�pria m�e. E Sasha lutava
com Nicholas como uma gata, arranhando-lhe a cara quando se irritava.
O pr�prio Simon estava preocupado com a garota; por�m, quando
come�ava a perder a esperan�a, ela tornava-se submissa e encantadora.
As obras da loja corriam de vento em popa e, em Julho, dava a
sensa��o de que abririam em Setembro. Nesse ano, celebraram o
anivers�rio de casamento numa casa alugada em Long Island, dois dias
depois de Amelia Earhart desaparecer no Pac�fico. Nicholas sentia-se
fascinado por ela e confessou em segredo a Simon que um dia queria
aprender a voar. Charles Lindbergh era o seu her�i de inf�ncia. Tamb�m
se sentira fascinado pelo H�ndenburg, o dirig�vel que tinha explodido sobre
Nova J�rsia no princ�pio de Maio. Por sorte, quando tentara convencer
Zoya e Simon a viajarem nele at� � Europa, Zoya mostrara-se desconfiada
e, de qualquer maneira, queriam ir de barco, recordando a viagem de h�
um ano atr�s no Queen Mary.
- Ent�o, Mistress Hirsch, o que acha? - perguntou Simon, junto �
sec��o de sapatos do piso das mulheres na nova loja dela, no in�cio de
Setembro. - � tudo o que queria que fosse?
Os olhos encheram-se-lhe de l�grimas ao perscrutar o que a rodeava
numa muda admira��o. Elsie de Wolfe tinha criado uma atmosfera de
beleza e eleg�ncia dada por sedas cinzentas e um ch�o de m�rmore rosa.
Havia luzes suaves e arranjos de flores de seda em bonitas mesas Lu�s
XV.
- Parece um pal�cio!
- Nada menos do que mereces, amor. - Beijou-a nessa noite festejaram
com champanhe. A loja abriria na semana seguinte com uma festa
esplendorosa e a presen�a da elite de Nova lorque.
Zoya comprara o vestido para a inaugura��o no Axelle's.
- Isto ser� bom para o neg�cio! Posso ter de dizer no meu pr�ximo
an�ncio que a condessa Zoya faz compras aqui! - As duas mulheres
tinham-se tornado amigas �ntimas e ambas sabiam que nada mudaria a
situa��o.
Zoya e Simon tinham pensado horas a fio num nome para a loja e,
por fim, Simon soltara uma risada, com os olhos brilhantes.
- J� sei!
- Tamb�m eu - disse Zoya, a sorrir de orgulho. - Hirsch & Ca.
- N�o - ripostou ele ante o som do nome pouco rom�ntico. - Nem sei
porque n�o pensei nisso antes. Condessa Zoya!
Parecera-lhe demasiado exibicionista, mas acabara por convenc�-la.
Era o que as pessoas queriam, penetrar no mist�rio da aristocracia, ter um
t�tulo mesmo que implicasse comprar um, ou, neste caso, comprar as
roupas que uma condessa escolhera para elas.
As colunas dos jornais referiam sem cessar a "condessa Zoya" e, pela
primeira vez em anos, Zoya foi �s festas para que a convidavam. Era
apresentada como condessa Zoya e o seu marido, Mr. Hirsch, mas por
todo o lado as altas esferas e debutantes pululavam � sua volta. E ela
parecia sempre requintada nas suas roupas elegantes, de Chanel a
Madarne Gr�s ou Lanvin. As pessoas estavam ansiosas por conhecer as
lojas, e as mulheres convenciam-se de que sairiam de l� com a apar�ncia
de Zoya.
- Conseguiste, minha arniga - sussurrou Simon na noite da
inaugura��o, em que a loja transbordava com todos os nomes importantes
de Nova Iorque. A pr�pria Axelle enviara-lhe um ramo enorme de
orqu�deas brancas. "Bonne chance, Mon am�e, Affectueusement, Axelle",
dizia o cart�o que Zoya leu com l�grimas nos olhos e fitando Simon
apaixonadamente.
- A ideia foi tua.
- � o nosso sonho. - Sorriu, pois, em certa medida, era o beb� de
ambos. At� os filhos dela estavam presentes.
Sasha com um bonito vestido branco de renda que parecia pudico e
era algo que as filhas do czar poderiam ter usado, ou mesmo Zoya em
crian�a, e esse o motivo por que ela o comprara em Paris. E Nicholas
estava elegant�ssimo, aos dezasseis anos, com o primeiro smoking e os
bot�es de punho oferecidos por Simon, pequenas safiras incrustadas em
platina e rodeadas de diamantes. Eram uma fam�lia da alta sociedade,
quando os fot�grafos dispararam as m�quinas e Zoya posou repetidas
vezes com as mulheres da alta sociedade que se tornariam. suas clientes.
A partir desse dia, a loja nunca esteve vazia. Mulheres chegavam em
Cadillacs, P�erce-Arrows e Rolls. Um ocasional Packard ou Lincoln tamb�m
parava junto � porta, e o pr�prio Henry Ford apareceu a comprar um
casaco para a mulher. Zoya tinha planeado vender apenas alguns, pois
queria que a maioria dos casacos fosse de Simon. Contudo, Barbara
Hutton encomendou um com gola de arminho e Mrs. Astor um cor de
areia at� ao ch�o.
No fim do ano, o destino da Condessa Zoya estava tra�ado, e as
vendas da quadra natal�cia aumentavam. At� mesmo a sec��o de homem
no segundo andar elegantemente decorado estava a vender bem. Os
homens faziam as compras em divis�es forradas de pain�is de madeira
com bonitas lareiras, enquanto as mulheres gastavam as fortunas no andar
de baixo nos gabinetes forrados de seda cinzenta.
Era tudo o que Zoya sonhara e mais e, em Park Avenue, os Hirsch
brindaram, felizes, na v�spera de Ano Novo.
- A n�s! - disse Zoya, erguendo a ta�a, ostentando um vestido de noite
preto, feito para ela por Dior.
Todavia, Simon limitou-se a sorrir quando voltou a erguer a ta�a.
- � Condessa Zoya!
CAP�TULO 42
No final do ano seguinte, Zoya teve de abrir outro andar, e a compra
do pr�dio feita por Simon revelara-se prof�tica. A sec��o de homem
passou para o andar de cima e no segundo andar, vendia peles e modelos
exclusivos de vestidos e havia ainda uma pequena boutique para as filhas
das clientes,
Tamb�m come�avam a aparecer rapariguinhas para comprar vestidos
de festas e os primeiros vestidos de noite. Vendia mesmo fatos de
baptizado, a maioria franceses, e todos eles t�o bonitos como os que vira
em crian�a na R�ssia miperial.
A sua pr�pria filha gostava de ir � loja e escolher vestidos novos
sempre que queria, mas Zoya acabou por restringi-Ia. Sasha parecia
denotar um apetite insaci�vel por roupas caras e Zoya n�o queria que
exagerasse.
- Porque n�o? - redarguiu Sasha, amuada da primeira vez que Zoya
lhe disse que n�o podia ir fazer compras por capricho.
- Porque j� tens montes de coisas bonitas no teu arm�rio e algumas
deixam de te servir antes mesmo de teres oportunidade de as usares. -
Aos treze anos, ela era alta e esguia como Natalya e com uns palmos mais
do que a m�e. E Nicholas era ainda mais alto do que as duas, aos
dezassete. Estava no �ltimo ano do col�gio, antes de ir para Princeton.
- Gostaria de me meter j� no neg�cio como tu - declarara
admirativamente a Simon mais que uma vez. Sinion fora bom para os tr�s
e Nicholas adorava-o.
- � o que acontecer� um dia, filho. N�o tenhas muita pressa. Se
tivesse tido oportunidade de ir para a faculdade como tu, adoraria.
- �s vezes parece uma perda de tempo - confessou Nicholas, mas
sabia que a m�e esperava que ele fosse para Princeton. N�o estava, al�m
disso, demasiado longe de casa e tencionava vir � cidade sempre que
poss�vel. Tinha uma vida social intensa, mas tamb�m se sa�a bem nos
estudos, contrariamente � irm�. Esta, aos treze anos, era lind�ssima e
parecia facilmente cinco anos mais velha quando se pavoneava pela sala
nos vestidos que Zoya ainda lhe comprava.
- Estes s�o muito de crian�a! - lamuriava, contemplando os vestidos
de noite da loja. Mal conseguia esperar at� ter idade bastante para os
usar. E quando Simon se ofereceu para a levar ao filme de Disney Branca
de Neve e os Sete An�es sentiu-se insultad�ssima. - J� n�o sou uma crian�a!
- Ent�o n�o te portes como se o fosses - espica�ou Nicholas.
Contudo, em vez disso, Sasha queria dan�ar o samba e a conga como
Simon e Zoya faziam quando iam a El Morocco. Nicholas tamb�m queria
acompanh�-los, mas Zoya insistiu que ele era ainda muito novo. Simon
levou-os a todos ao 21 e falaram seriamente sobre o que estava a
acontecer aos judeus na Europa.
Simon sentia-se muito preocupado com o que Hitler fazia no final de
1938 e tinha a certeza de que haveria uma guerra. Contudo, ningu�m mais
em Nova lorque parecia preocupar-se com isso. Frequentavam festas,
recep��es e bailes e os vestidos voavam da loja de Zoya. Ela estava
mesmo a pensar em abrir outro andar, mas parecia cedo de mais.
Receava que o neg�cio pudesse diminuir, mas Simon limitava-se a tro�ar
das suas preocupa��es.
- Enfrenta a realidade, querida. �s um sucesso. O neg�cio nunca vai
diminuir. Depois de se construir algo como o fizeste, n�o desaparece
assim. Est�s a firmar o teu nome com qualidade e estilo. E, enquanto
tiveres coisas para vender, clientes n�o faltar�o.
Zoya temia dar-lhe raz�o e trabalhava mais do que nunca, tanto que
tiveram de lhe telefonar para a loja quando Sasha voltou a ser suspensa,
pouco antes das f�rias do Natal. Tinham-na matriculado no Liceu Franc�s,
uma institui��o dirigida por um distinto franc�s, s� que ele n�o tolerava
disparates e convocou Zoya para se lhe queixar pessoalmente de
mademoiselle. Apanhou um t�xi para a Rua 95, a fim de lhe suplicar que
n�o expulsasse a filha. Parecia que ela fizera gazeta �s aulas e fumara um
cigarro no bonito sal�o de baile da institui��o.
- Tem de castig�-la, madame. E aplicar uma r�gida disciplina, caso
contr�rio, madame, receio que todos o lamentemos um dia. - No entanto,
depois de uma longa conversa com Zoya, concordou em n�o a expulsar.
Coloc�-la-ia em vez disso sob vigil�ncia depois das f�rias do Natal. E
Simon prometeu ser ele a lev�-la de carro ao liceu para ter a certeza de
que n�o faltava.
- Achas que devia sair todos os dias da loja quando ela vem do liceu?
- perguntou Zoya a Sinion nessa noite. Sentia-se mais culpada do que
nunca por causa das muitas horas que trabalhava na loja.
- N�o me parece que devas faz�-lo - retorquiu Simon honestamente
e pela primeira vez irritado com Sasha. - Com praticamente catorze anos,
devia saber comportar-se at� �s seis horas, quando os dois chegamos a
casa.
Sabia perfeitamente que algumas vezes Zoya s� chegava a casa depois
das sete. Havia sempre tanto que fazer na loja, tantas altera��es que
desejava supervisionar pessoalmente e encomendas especiais que ela
pr�pria redigia para que n�o houvesse erros. E parte do seu sucesso
residia na sua disponibilidade para as clientes que exigiam a condessa
Zoya.
- N�o podes fazer tudo sozinha - dissera-lhe Simon mais do que uma
vez, mas, no �ntimo, ela achava que devia, tal como achava que tamb�m
devia estar em casa com as crian�as. Contudo, nessa altura, Nicholas tinha
quase dezoito anos e Sasha era apenas quatro anos mais nova, portanto
j� n�o eram crian�as. - Ela vai ter de se portar correctamente. - E quando
ele lhe disse o mesmo nessa noite, Sasha saiu a correr da biblioteca e
bateu com a porta do quarto e Zoya come�ou a chorar.
- H� momentos em que penso que ela est� a pagar o pre�o da vida
que levei antes - retorquiu, assoando-se ao len�o de Simon e fitando-o
com uma express�o triste. Sasha andava a causar preocupa��es terr�veis
a Zoya, e Simon sentia-se zangado com ela por isso. - Quando ela era
uma mi�da, eu estava sempre no trabalho e agora... quase me parece
tarde de mais para a compensar.
- N�o tens nada que a compensar, Zoya. Ela tem tudo o que pode
desejar, inclusive uma m�e que a adora. - O problema residia em que era
mimada e ele n�o queria cliz�-lo. O pai tinha-a estragado com mimos em
crian�a, e Nicholas e Zoya haviam continuado o processo nos anos
seguintes.
Zoya tamb�m mimara Nicholas, mas ele aparentemente tornara-se
mais bondoso e sensato, apreciando tudo o que Simon fazia por ele,
contrariamente a Sasha, que s� queria mais e tinha acessos de raiva quase
di�rios. Se n�o queria um vestido novo, era um novo par de sapatos ou
uma viagem algures ou queixava-se porque n�o queriam ir a St. Moritz ou
n�o possu�am uma casa no campo. Tendo, por�m, em considera��o a
fortuna que Simon tinha feito, nem ele nem Zoya gostavam de luxos
excessivos. Ela j� tivera tudo isso antes e o que partilhava agora com
Simon era mais importante.
As preocupa��es de Zoya com Sasha quase lhe estragaram as f�rias
de Natal e, depois do Natal russo, parecia realmente doente. Andava
p�lida e trabalhava demasiado na loja, quase como se afogasse l� as suas
m�goas. Para a alegrar, Simon anunciou que ia lev�-la a Sun Valley, sem
as crian�as, para esquiar.
Sasha ficou ainda mais furiosa. Queria acompanh�-los, e Simon disse-
lhe com firmeza que n�o era poss�vel. Tinha de ficar em Nova Iorque e
ir �s aulas e ela fez o poss�vel e o imposs�vel para lhes estragar a viagem.
Telefonou-lhes a dizer que a cadela estava doente e no dia seguinte
Nicholas desmentiu-a. Entornou tinta na alcatifa do quarto, e do liceu
telefonaram a informar que voltara a faltar �s aulas. Zoya s� desejava
regressar a casa e control�-la novamente. Contudo, enjoou durante toda
a viagem de comboio e, quando chegaram a Nova lorque, Simon insistiu
para que fosse ao m�dico.
- N�o sejas idiota, Simon. Estou apenas cansada - ripostou, o que n�o
era h�bito nela.
- N�o me interessa. Est�s com um aspecto horr�vel. A minha m�e
disse que estava preocupada contigo quando te viu ontem.
Zoya riu ante a observa��o. Sofia Hirsch costumava preocupar-se com
a religi�o dela e n�o com o seu estado de sa�de. Contudo, acabou por
concordar em ir ao m�dico na semana seguinte, embora achasse um
disparate. Sabia que andara a trabalhar demasiado e continuava
preocupada com Sasha, embora a filha parecesse mais subnuissa agora
que tinham regressado de Sun Valley.
Todavia, Zoya n�o estava, de forma alguma, preparada para o que o
m�dico lhe disse, depois de a ter observado.
- Est� gr�vida, Mistress Hirsch. - Sorriu-lhe bondosamente do outro
lado da secret�ria. - Ou devo chamar-lhe condessa Zoya?
- Estou o qu�? - redarguiu, fitando-o incr�dula. Tinha quarenta anos
e a �ltima coisa que desejava era um filho, mesmo sendo de Simon.
Quando tinham casado h� dois anos e meio, haviam concordado que era
algo fora de quest�o. Sabia que Simon o lamentava, mas, agora com a
loja, teria sido rid�culo. "� rid�culo", pensou, fitando o m�dico sem querer
acreditar no que ouvia. - Mas n�o posso estar!
- Bom. Na verdade, est�. - Fez-lhe mais algumas perguntas e calculou
que o beb� deveria nascer por volta de 1 de Setembro. - O seu marido
ficar� satisfeito?
- Eu... ele... - Zoya mal conseguia falar. Tinha os olhos cheios de
l�grimas e, prometendo voltar dali a um m�s, saiu apressadamente do
consult�rio.
Nessa noite ao jantar n�o falou, mais parecendo que algu�m tinha
morrido, e Simon fitou-a, preocupado, v�rias vezes. Contudo, esperou at�
estarem a s�s na biblioteca para lhe perguntar o que dissera o m�dico.
- Passa-se alguma coisa? - Sabia que n�o podia continuar a viver se
alguma coisa lhe acontecesse e detectava-lhe no olhar que ela estava
terrivelmente perturbada.
- Simon... - Ergueu o rosto, angustiada, na sua direc��o. - Estou
gr�vida.
Simon fitou-a e depois precipitou-se subitamente para ela e pegou-lhe
ao colo com um grito de alegria.
- Oh, querida... oh, querida!.. Oh, meu Deus... Corno te amo!...
Quando Zoya voltou a olh�-lo, apercebeu-se de que ele ria e chorava
ao mesmo tempo e nem teve coragem de lhe confessar que nessa tarde
chegara a pensar em fazer um aborto. Sabia que era perigoso, mas
tamb�m sabia que v�rias das suas clientes o haviam feito e sobrevivido e
era velha de mais para ter um filho. Ningu�m tinha um filho aos quarenta
anos! Pelo menos, ningu�m que ela conhecesse, ningu�m no seu ju�zo
perfeito, e fixou o marido com uma express�o irritada.
- Como podes estar t�o feliz? Tenho quarenta anos. Sou velha de mais
para ter outros filhos.
- Foi o que disse o m�dico? - indagou, preocupado, quando ela
recome�ou a chorar.
- N�o - respondeu, furiosa, e assoou-se. - Deu-me os parab�ns. -
Simon s� conseguia rir-se dela, ao v�-Ia percorrer a sala de um lado para
o outro. - E a loja? Pensa nisso, Simon. E as crian�as?
- Ser� bom para eles - redarguiu, sentando-se calmamente numa
cadeira com o ar de quem tinha conquistado o mundo. - O Nicholas ir�
para a faculdade no pr�ximo ano e, de qualquer maneira, acho que ficar�
feliz por n�s. E talvez fa�a bem � Sasha deixar de ser a beb� da casa.
Seja como for, ter� de se adaptar. Com a loja n�o haver� problema.
Podes ir l� umas horas todos os dias e depois contratar uma ama... - J�
tinha tudo planeado quando Zoya o olhou. Trabalhara tanto, os humores
de Sasha eram t�o inst�veis e do que menos precisava no mundo era um
beb� que perturbasse o equil�brio.
- Umas horas? Achas que consigo dirigir a loja numas horas? Est�s
doido, Simon!
- N�o, n�o estou - asseverou com um sorriso tranquilo. - Mas estou
doido pela minha mulher, isso sim... - Os olhos brilhavam-lhe e parecia
outra vez um rapazinho. Ia ser pai aos quarenta e tr�s anos. - Vou ser pai!
- Parecia t�o satisfeito que ela n�o teve coragem de continuar irritada e
sentou-se com uma express�o triste no sof�, chorando com mais for�a.
- Oh, Simon... como � que isto p�de acontecer?
- Vem c�. - Aproximou-se mais dela e rodeou-lhe o ombro com o
bra�o. - Eu explico-te...
- Deixa-te disso, Simon!
- Porqu�? Agora j� n�o podes engravidar.
Ainda se sentia mais divertido porque ela era sempre t�o cuidadosa,
mas por vezes o destino troca as voltas e n�o podia deixar que ela
mudasse o rumo. Zoyaj� dera a entender sombriamente que as coisas
podiam ser "mudadas" e ele sabia o que estava por detr�s das palavras,
mas nem era bom pensar nisso. N�o ia permitir que a mulher arriscasse
a vida com um aborto do filho que ele sempre desejara.
- Zoya... minha querida... acalma-te um minuto e pensa. Podes
trabalhar at� ao fim da gravidez. Podes provavelmente estar no teu
gabinete at� o beb� nascer, desde que n�o andes muito de um lado para
o outro. E depois voltar�s a trabalha e nada mudar�, excepto que teremos
um belo filho nosso para amar durante o resto da vida. � assim t�o
terr�vel, querida? - Com aquele racioc�nio n�o parecia realmente o fim do
mundo, e ele tratara t�o bem os filhos dela que sabia n�o poder negar-
lhe um seu. Suspirou e voltou a assoar-se.
- Rir� de mim quando crescer. Pensar� que sou a av� em vez da m�e!
- N�o, se tiveres o mesmo ar de agora. E por que raz�o havia isso de
mudar? - Zoya ainda era bonita e, aos quarenta anos, parecia muito
jovem. S� o facto de ter um filho de dezassete anos atrai�oava a sua idade
e ela orgulhava-se tanto dele que o referia sem cessar. Mas, � parte este
pormenor, ningu�m lhe daria mais que vinte e tais, quando muito trinta. -
Amo-te tanto - tranquilizou-a de novo Simon, e Zoya empalideceu ao
pensar em Sasha.
- O que lhe diremos?
- A boa not�cia - afirinou meigamente � mulher - de que vamos ter
um filho.
- Acho que ela ficar� muito perturbada.
E foi a declara��o do s�culo. S� que nenhum deles estava preparado
para o furac�o que varreu Park Avenue quando Zoya lhe falou do beb�.
- Est�s o qu�? � a coisa mais nojenta que alguma vez ouvi! O que
direi aos meus an-�gos., c�us? V�o rir-se de mim e ser� tudo por tua
culpa! - Mostrava toda a sua raiva, e Zoya fitava-a, infeliz.
- Nada mudar� e continuarei a amar-te. N�o sabes isso, querida? -
retorquiu, desesperada.
- N�o me interessa! N�o quero ficar a viver aqui, se tiveres um filho!
Batera com a porta e nessa tarde tinha desaparecido depois das aulas.
Levaram dois dias a descobrir que ela estava na casa de uma amiga.
Nessa altura, Zoya e Simon haviam chamado a Pol�cia, e ela encarou-os
na casa da amiga com uni olhar de desafio. Zoya pediu-lhe calmamente
que voltasse com eles para casa, Sasha recusou e Simon teve, pela
primeira vez, um verdadeiro ataque de f�ria.
- Vai buscar as tuas coisas imediatamente! Entendes? - Agarrou-lhe no
bra�o e abanou-a com for�a. Nunca fizera nada parecido e ela achara-o
dotado de uma infinita paci�ncia. Contudo, at� Simon tinha os seus
limites. - Vai buscar o chap�u, o casaco e o mais que trouxeste para aqui
e vir�s connosco, quer queiras ou n�o, caso contr�rio, Sasha, interno-te
num convento.
Por instantes, ela acreditou nele. Simon n�o queria que a mulher
abortasse por causa daquela sua filha mimada. Pouco depois, Sasha
regressou � sala com as suas coisas, parecendo mais submissa e um tanto
receosa de Simon. Zoya desfez-se em desculpas frente � m�e da amiga de
Sasha e levou-a para casa, onde Simon lhe leu a senten�a, mal puseram
p� no apartamento.
- Se alguma vez te atreveres a voltar a afligir a tua m�e, Sasha
Andrews, dou-te uma tareia de morte, entendes? - Rugia, mas Zoya sorria
intimamente. Sabia que ele seria incapaz de p�r a m�o na filha ou em
quem quer que fosse, mas estava p�lido de raiva. E, subitamente,
come�ou a temer que ele pudesse ter um ataque de cora��o como o que
vitimara Clayton;
- Vai para o teu quarto, Sasha - ordenou num tom frio, e a jovem
obedeceu em sil�ncio, surpreendida pela prinieira vez ante a reac��o de
ambos.
- H� muito que deviam ter feito isso - pronunciou-se Nicholas, que
entrara e observara a cena. - Acho que � mesmo o que ela precisa. Umas
boas palmadas no traseiro. - Depois, soltou uma risada maliciosa e Simon
voltou a descontrair-se. - Posso substituir-te quando quiseres. - Virou-se
em seguida para a m�e com o sorriso que tantas vezes lhe recordava o do
irm�o. - Quero que saibas que isso do beb� e maravilhoso.
- Obrigada, querido. - Aproximou-se e colocou os bra�os � volta do
pesco�o do filho, alto e elegante, fitando-o com uma express�o t�mida. -
N�o vais sentir-te embara�ado por a tua velha m�e ir ter um filho?
- Se tivesse uma velha m�e, talvez. - Sorriu-lhe e momentos depois o
seu olhar cruzou-se com o de Simon, detectando o amor que ele lhe
dedicava. Dirigiu-se-lhe e abra�ou-o tamb�m.
- Parab�ns, pap� - felicitou Nicholas calmamente beijou-o, enquanto
os olhos de Simon se enchiam de l�grimas. Era a primeira vez que o
jovem o tratava assim. Uma nova vida come�ara para todos eles e n�o s�
para Simon e Zoya.
CAP�TULO 43
Em Abril de 1939, foi inaugurada a Exposi��o Mundial em Flushing
Meadows e Zoya queria muito ir, mas Simon achava que ela n�o devia.
Haveria uma multid�o e ela estava com quatro meses de gravidez.
Continuava a trabalhar a tempo inteiro na loja, embora fosse um pouco
mais cuidadosa que anteriormente.
Em vez disso, Simon levou os mi�dos � exposi��o e ambos ficaram
maravilhados. A pr�pria Sasha portou-se bem, como andava a faz�-lo
desde a famosa explos�o de Simon. Continuava, por�m, a mostrar-se
dificil com Zoya sempre e podia, e isso acontecia com frequ�ncia.
Em Junho, iniciaram-se os primeiros voos de passageiros
transatl�nticos com a Pan American e Nicholas ansiava por ir � Europa
no D�xie Clipper, mas Simon n�o deixou. Achava demasiado perigoso, e
mais do que isso preocupava-o o que estava a passar-se na Europa.
Na Primavera, ele e Zoya tinham voltado a viajar no Normand�e a fim
de comprar roupa para a loja e tecidos para a sua linha de casacos.
Todavia, sentira um clima de tens�o por todo o lado e apercebera-se de
um anti-semitismo muito mais vincado do que da �ltima vez que l�
estivera. Agora, tinha a certeza de que haveria uma guerra e ofereceu em
vez disso a Nicholas uma viagem de fim de curso � Calif�rnia.
O jovem ficou deliciado. Fez a viagem de ida e volta de avi�o a S�o
Francisco e mostrou-se apaixonado por tudo o que vira e divertido com
o tamanho da barriga da m�e. Em Agosto ela deixou finalmente de ir �
loja, passando a telefonar de meia em meia hora. Ignorava o que fazer
quando n�o estava a trabalhar. Simon trazia-lhe doces, livros e as revistas
de que ela gostava, mas no fim de Agosto Zoya s� conseguia pensar no
ber��rio em que transformara o quarto de h�spedes junto � biblioteca e
ia encontr�-la ali diariamente a dobrar roupinha de beb�. Era um lado da
mulher que desconhecia. Zoya foi mesmo ao ponto de reorganizar os
arm�rios e mudou a mob�lia do quarto deles.
- Calma, Zoya! - dissera em tom de brincadeira. - At� tenho medo
de voltar para casa � noite. Posso sentar-me numa cadeira que j� n�o
existe.
Ela corou, consciente de que ele tinha raz�o.
- N�o sei o que se passa comigo - desculpou-se. - N�o consigo libertar-
me da permanente necessidade de ter a casa arrumada.
Mudara tamb�m a decora��o do quarto de Sasha, que estava num
acampamento para jovens, o que foi um al�vio para Simon por n�o ter de
se preocupar com ela. Tudo parecia correr bem por l�, pois s� fugira uma
vez aos vigilantes para ir dan�ar com as amigas na aldeia mais pr�xima.
Tinham-na descoberto � cabe�a de uma fila de conga, levando-a de volta
ao acampamento, mas, pelo menos, n�o haviam amea�ado recambi�-la
para casa. Simon queria que Zoya pudesse descontrair-se antes de dar �
luz.
No fim de Agosto, a Alemanha e a R�ssia surpreenderam o mundo
ao assinarem um pacto de n�o-agress�o, mas Zoya n�o parecia interessada
nas not�cias mundiais. Estava demasiado ocupada a telefonar para a loja
e a mudar o apartamento.
A 1 de Setembro, prop�s-lhe irem ao cinema quando voltou a casa.
Sasha devia regressar na noite seguinte e Nicholas partia na outra semana
para Princeton, mas sa�ra com uns amigos, para exibir o carro que Simon
acabara de lhe oferecer para levar para a faculdade. Era um Ford coup�
novo em folha e com todos os extras poss�veis.
- �s demasiado generoso para ele - advertiu Zoya, sorrindo como
sempre grata por tudo o que ele fazia pelos seus filhos. Nessa noite ele
passara pela loja e deu-lhe as not�cias, s� depois reparando que a mulher
parecia ainda mais desconfort�vel do que de manh�.
- Sentes-te bem, querida?
- Estou �ptima. - Contudo, respondeu que estava demasiado cansada
para ir ao cinema. Nessa noite foram deitar-se �s dez da noite e uma hora
mais tarde ele sentiu-a mexer-se, ouviu um ligeiro gemido e acendeu a luz.
Zova mantinha-se deitada, de olhos fechados e agarrada ao ventre.
- Zoya? - Ignorava o que fazer. Saltou da cama e p�s-se a andar pelo quarto � procura da roupa e sem se lembrar onde a deixara. - N�o te
mexas. Vou chamar o m�dico. - Nem sequer se lembrava onde estava o
telefone e ela riu-se da cama.
- Acho que � apenas uma indigest�o.
Mas a indigest�o piorou nas duas horas seguintes e �s tr�s da manh�
ele telefonou ao porteiro do pr�dio e pediu um t�xi. Quando a ajudou a
entrar no t�xi, ela j� mal conseguia falar e tinha dificuldade em andar.
Simon estava aterrorizado e subitamente deixou de se interessar pelo
beb�. S� queria que ela ficasse bem. Perdeu o controlo quando a levaram
na maca no hospital e p�s-se a andar nos corredores, enquanto o Sol
nascia. Uma hora mais tarde, p�s-se em p� de um salto quando uma
enfermeira lhe tocou no ombro.
- Ela est� bem?
- Est� - disse a enfermeira a sorrir. - � pai de um belo rapazinho,
Mister Hirsch.
Ele fitou-a e come�ou a chorar, enquanto a enfermeira se afastava
calmamente. E meia hora depois deixaram-no ver Zoya, que mergulhara
num sono pac�fico com o beb� nos bra�os. Simon entrou no quarto nos
bicos dos p�s e parou, maravilhado, ao ver o filho pela primeira vez.
Tinha um tufo de cabelo negro como o dele e conservava a m�ozinha
enroscada � volta dos dedos da m�e.
- Zoya? - sussurrou no quarto enonne e soalheiro do hospital. - � t�o
bonito - exclamou, quando ela abriu os olhos e lhe sorriu. Tinha sido um
parto dificil pois o beb� era grande, mas mesmo assim, logo a seguir,
soube que valera a pena.
- Parece-se contigo - proferiu numa voz ainda rouca da anastesia.
- Pobre crian�a. - Os olhos encheram-se-lhe novaniente de l�grimas
e inclinou-se para a beijar. Nunca se sentira t�o feliz na vida e Zoya
parecia igualmente feliz e orgulhosa quando passou suavemente a m�o
pelo cabelo preto e sedoso. - Como vamos chamar-lhe?
- Que tal Matthew? - sussurrou, enquanto Simon n�o se cansava de
olhar o filho.
- Matthew Hirsch.
- Matthew Simon Hirsch - rematou Zoya e depois voltou a adormecer
com o filho nos bra�os e o marido observando-a com as l�grimas
tombando na farta cabeleira ruiva ao beij�-la.
CAPITULO 44
Matthew Simon Hirsch ainda se encontrava no hospital e tinha apenas
um dia de vida quando a guerra estalou na Euroa. A Gr�-Bretanha e a
Fran�a tinham declarado guerra � Alemanha quando esta invadiu a
Pol�nia, aliada dos dois pa�ses.
Simon entrou no quarto de Zoya com uma express�o triste e deu a
not�cia mas, instantes depois, quase a esquecera ao pegar em Matthew,
observando-o a soltar um vagido lascivo pela m�e.
Quando Zoya regressou ao apartamento de Park Avenue, Sasha estava
l� para a receber. Nem ela conseguiu resistir ao bonito beb� que tanto se
parecia com Simon.
- Tem o nariz da mam� - declarou, satisfeita e divertida, fascinada por
tudo ser t�o perfeito e pequeno quando lhe pegou pela primeira vez. Aos
catorze anos ainda n�o tinha idade para visitar o hospital, mas Nicholas
conhecera o inn�o, antes de partir para Princeton. - E tem as minhas
orelhas! - Sasha riu. - Mas o resto � do Simon!
A 27 de Setembro, depois de brutalmente atacada, Vars�via rendeu-se
com baixas imensas. Simon ficou destro�ado com as not�cias, e ele e Zoya
conversaram pela noite fora, enquanto ela se lembrava da revolu��o. Foi
terr�vel e Simon lamentou o massacre dos Judeus por toda a Alemanha
e leste da Europa.
Fazia tudo o que lhe era poss�vel pelos que conseguiam fugir.
Estabelecera um fundo de aux�lio e estava a tentar arranjar documentos
para familiares de que nunca ouvira falar. As pessoas na Europa serviam-
se de listas telef�nicas e telefonavam a habitantes de Nova lorque com
apelidos parecidos, suplicando-lhes ajuda e ele nunca recusava. Mas foram
muito poucos os que conseguiu ajudar. Os restantes eram conduzidos para
a morte, fechados em campos de concentra��o ou abatidos nas ruas de
Vars�via.
Quando Matthew tinha tr�s meses, Zoya voltou ao trabalho no dia em
que a R�ssia invadiu a Finl�ndia. Simon seguiu avidamente as
informa��es sobre a Europa sobretudo os notici�rios de Edward R.
Murrow, de Londres.
Era 1 de Dezembro e Zoya ficou excitad�ssima por contrar a loja a
abarrotar de clientela. Foram todos ver O Feiticeiro de Oz quando Sasha
saiu das aulas. Nicholas chegara a casa de Princeton que estava a adorar,
embora falasse muito com Simon sobre a guerra, sempre que vinha de
f�rias.
Ainda gostou mais do segundo ano e, antes de voltar de novo a
Princeton, foi passar uma vez mais as f�rias de Ver�o � Calif�mia. Nesse
ano, Zoya n�o pudera viajar at� � Europa por causa da guerra e tiveram
de se servir dos estilistas dos Estados Unidos. Ela gostava sobretudo de
Norman Norell e Tony Traina.
Corria o m�s de Setembro de 1941 e Simon tinha a certeza de que o
pa�s entraria em guerra, mas Roosevelt continuava a insistir que n�o. E
a guerra em nada prejudicara a loja, pois foi o melhor ano para Zoya.
Quatro anos atr�s, abrira as portas e agora utilizava os cinco andares do
pr�dio que Simon inteligentemente comprara. Ele tinha adquirido mais
quatro f�bricas de t�xteis no Sul e o seu pr�prio neg�cio expandia-se a
olhos vistos. Zoya tinha uma sec��o s� com os casacos dele e chamava-lhe
o seu fornecedor preferido.
Nessa altura, o pequeno Matthew tinha dois anos e era a menina dos
olhos de todos, inclusive de Sasha. Ela era, na opini�o de todos, uma
lind�ssima adolescente de dezasseis anos. Alta e magra como a m�e de
Zoya o fora, mas, em vez do porte real de Natalya, irradiava uma
sensualidade que atra�a os homens como o mel as abelhas- Zoya sentia-se
satisfeita por ela estar ainda no liceu e n�o ter praticado nenhum acto de
revolta ao longo de quase um ano. Simon prometera levar todos a
esquiarem em Sun Valley nesse ano e Nicholas ansiava por se lhes juntar.
A 7 de Dezembro, estavam sentados na biblioteca a discutir os seus
planos, e Simon ligou a r�dio. Em casa, gostava de ouvir os notici�rios e
tinha Matthew nos joelhos quando o rosto se lhe contraiu subitamente.
P�-lo nos bra�os de Sasha e correu ao encontro de Zoya. Estava muito
p�lido quando a encontrou no quarto.
- Os Japoneses bombardearam Pearl Harbor, no Havai!
- Oh, meu Deus... - Levou-a para a outra divis�o com ele a fim de
ouvirem as not�cias, e o locutor relatava os acontecinientos num tom de
grande excita��o. Ficaram pregados ao ch�o. Matthew puxou pela saia de
Zoya e tentou chamar-lhe a aten��o, mas ela limitou-se a pegar-lhe ao
colo e a apert�-lo. S� conseguia pensar que Nicholas tinha vinte anos.
N�o queria que ele morresse como o irm�o morrera na Preobrajenski. -
Simon... o que acontecer� agora?
Todavia, soube instintivamente quando continuaram a ouvir. Iam
entrar em guerra. O presidente RooseveIt fez a comunica��o num tom de
voz cheio de pesar, mas n�o tanto quanto o de Zoya.
Na manh� seguinte, Simon alistou-se no ex�rcito. Tinha quarenta e
cinco anos e Zoya suplicou-lhe que n�o fosse, mas ele fitou-a tristemente
ao voltar a casa.
- Tenho de ir, Zoya. Seria incapaz de me enfrentar, se me deixasse
ficar aqui sentado sem fazer nada em defesa do meu pa�s. - E n�o o fazia
apenas pelo seu pa�s, mas pelos Judeus da Europa. A causa da liberdade
estava a ser destru�da por todo o mundo e n�o podia ficar de bra�os
cruzados, permitindo que isso acontecesse.
- Por favor... - implorou Zoya. - Por favor, Simon... - Transbordava de
tristeza. - N�o conseguiria viver sem ti. - J� passara por tudo aquilo antes,
perdera pessoas que amava e sabia que seria incapaz de sobreviver de
novo... sem Sinion, t�o meigo, temo e amoroso. - Amo-te demasiado.
N�o v�s. Por favor... - Estava morta de medo, mas ele n�o se deixou
dissuadir.
- Tenho de ir, Zoya. - Nessa noite ficaram deitados lado a lado na
cama, ele acariciou-a suavemente com as enormes m�os qua pegavam com
tanto carinho no filho, as mesmas m�os que agora lhe tocavam e a
apertavam de encontro a li. Ela chorava, aterrorizada com a perspectiva
de perder o homem que amava t�o profundamente. - N�o vai acontecer
nada.
- N�o sabes. Precisamos demasiado de ti para que v�s. Pensa no
Matthew. - Teria dito qualquer coisa para o convencer a ficar, mas nada
o persuadiu.
- � nele que estou a pensar. N�o valer� a pena viver neste mundo
quando ele crescer se n�s n�o fizennos frente agora, se n�o lutarmos pela
dignidade e pelo que � justo. - Ainda pensava com tristeza no que
acontecera na Pol�nia, h� dois anos. Contudo, agora que o seu pr�prio
pa�s fora atacado, n�o lhe restava alternativa. E nem mesmo a entrega
apaixonada de Zoya nessa noite nem as suas s�plicas renovadas o levaram
a mudar de opini�o. Por mais que a amasse, sabia que tinha de ir. O seu
amor por Zoya s� se comparava seu sentido de dever para com o pa�s,
independente do que pudesse custar-lhe.
Foi mandado para Fort Benning, na J�rgia, de comboio, e tr�s meses
depois veio passar dois dias a casa, antes de partir para S�o Francisco.
Zoya queria voltar � casinha, de Mrs- Whitman na Connecticut para ficar
a s�s com ele, mas Simon achou que devia passar esses �ltimos dias em
casa, com os filhos. Nicholas veio de Princeton para assistir � partida e os
dois homens apertaram solenemente a m�o na Grande Esta��o Central.
- Toma conta da tua m�e por mim - pronunciou Simon sem erguer a
voz no meio do barulho que o rodeava, sempre suave, sempre calmo. A
pr�pria Sasha chorava. Matthew tamb�m chorava, embora n�o percebesse
o que estava a acontecer. Sabia apenas que o pai ia para qualquer lado,
a m�e e a irm� choravam e o irm�o tamb�m parecia triste. Nicholas
abra�ou o homem que tinha sido um pai para ele naqueles cinco anos e
Simon tinha l�grimas nos olhos, quando se lhe dirigiu. - Tem cuidado, filho.
- Tamb�m quero ir. - Pronunciou a frase t�o baixo que nem a m�e o
ouviu.
- Ainda n�o - replicou Simon. - Tenta acabar o curso. De qualquer
maneira podem recrutar-te.
Contudo, ele n�o queria ser recrutado, queria ir para Inglaterra e
pilotar avi�es. H� meses que andava a pensar no assunto e em Mar�o n�o
conseguiu aguentar por mais tempo. Nessa altura, Simon estava no
Pac�fico e Nicholas disse-lhes no dia a seguir a Sasha fazer dezassete anos.
Zoya nem queria ouvir. Ficou furiosa e p�s-se a chorar.
- N�o te basta que o teu pai tenha ido, Nicholas? - Passara a referir-se
assim a Simon, e Nicholas n�o se opunha Gostava dele como de um pai.
- Tenho de ir, mam�. N�o compreendes?
- N�o, n�o compreendo. Porque n�o podes ficar onde est�s at� que te recrutem? O Simon quer que acabes a faculdade, ele pr�prio to disse. -
Tentou desesperadamente chani�-lo � raz�o, mas sentiu-o sempre
inamov�vel, quando se sentou com ele na sala e chorou. j� sentia
horrivelmente a falta de Simon, e a perspectiva do afastamento de
Nicholas era mais do que conseguia aguentar.
- Posso voltar a Princeton depois da guerra - redarguiu.
No entanto, h� anos que achava que estava a desperdi�ar tempo,
Gostava muito de Princeton, mas queria entrar no mundo real, trabalhar
como Simon o fazia e agora combater, tal como ele no Pac�fico. Escrevia-
lhes sempre que podia a contar o que lhe deixavam do que se passava �
sua volta. Mas agora Zoya desejava mais do que nunca que ele estivesse
em casa e convencesse Nicholas a n�o abandonar os estudos.
Passados dois dias de discuss�es, soube que tinha perdido. E, tr�s
semanas mais tarde, ele partiu para Inglaterra treinar. Zoya ficou sozinha
no apartamento, pensando com amargura em tudo o que havia perdido
e receando poder voltar a perder... um pai, um irm�o, por fim um pa�s,
e agora o marido e filho tamb�m tinham partido.
Sasha tinha sa�do, e deixou-se ficar de olhos perdidos no vazio. Nem
sequer ouviu o toque da campainha da porta. Soou repetidamente e
pensou em n�o responder, mas depois levantou-se devagar. N�o queria
ver ningu�m. Apenas queria que os dois voltassem para casa, antes que
alguma coisa lhes acontecesse. Sabia que se algo acontecesse n�o
aguentaria.
- Sim? - Regressara da loja h� uma hora e nem mesmo o trabalho
servia para lhe ocupar o esp�rito, com a mente constantemente obcecada
com Simon, tendo agora ainda de se preocupar com Nicholas, que
pilotava avi�es de combate sobre a Europa.
O rapaz de uniforme mostrava-se muito nervoso. Naqueles �ltimos
meses acabara por odiar o emprego. E agora fitava Zoya, desejando que
tivessem mandado outra pessoa que n�o ele. Parecia uma mulher
fant�stica, com o cabelo ruivo apanhado e um sorriso nos l�bios, sem
compreender o que se aproximava.
- Um telegrama, minha senhora - infonnou, acrescentando depois com
os olhos tristes de crian�a: - Lamento muito.
Entregou-lho e foi-se embora. N�o queria ver-lhe a express�o quando
o abrisse e lesse a not�cia. A tarja negra dizia tudo. Zoya susteve a
respira��o e as m�os tremiam-le incontrolavelmente quando o rasgou e,
nesse momento, o elevadfor veio salvar o mensageiro. j� desaparecera
quando ela leu as palavras...
"Lamentamos informar que o seu marido, Simon lshmaci Hirsch, foi
morto ontem..." ... Tudo o mais n�o passou de uma n�voa quando ela caiu
de joelhos na entrada, solu�ando o nome dele... e recordando-se
subitamente de Nicolai, sangrando de morte no ch�o de m�rmore do
Pal�cio Fontanka....
Ficou a solu�ar durante horas a fio, ansiando o seu toque meigo, v�-
lo, o cheiro da �gua-de-col�nia que ele usava... o cheiro � espuma da
barba... qualquer coisa... qualquer coisa... Ele nunca mais voltaria a casa.
Simon desaparecera, como os outros.
CAPITULO 45
Quando Sasha regressou a casa, encontrou a m�e sentada �s escuras.
Ao saber porqu�, teve uma atitude sensata uma vez na vida. Chamou
Axelle, que veio fazer-lhe companhia e organizar a cerim�nia f�nebre.
No dia seguinte, a Condessa Zoya fechou e as portas foram tapadas
com crepes pretos. Axelle ficou no apartamento com Zoya, que se
manteve sentada, incapaz de raciocinar ou fazer algo mais do que acenos
de cabe�a, enquanto Axelle se ocupava de tudo. Zoya n�o conseguia
tomar as decis�es necess�rias, o que em nada se lhe adequava.
O seu acto final de coragem residira em ir a casa dos pais de Simon,
em Houston Strect na noite anterior. A m�e gritara e lan�ara-se a chorar
nos bra�os do marido e, por fim, Zoya fora-se embora, trope�ando � sa�da
e agarrando-se ao bra�o de Sasha. Estava cega de tristeza e dor pela
perda do homem que amara mais do que qualquer outro.
A cerim�nia f�nebre foi uma verdadeira agonia com toda a litania e
os gritos da m�e. Zoya apertava o bra�o de Axelle e as m�os de Sasha e
depois tinham-na levado de volta ao apartamento onde chorara sem parar.
- Tens de regressar ao trabalho, assim que puderes - replicou Axelle,
olhando-a quase duramente.
Sabia como era f�cil deixar-se afundar, desistir, pois era o que quase
tinha feito quando o marido morrera. E agora Zoya n�o podia dar-se a
esse luxo. Tinha tr�s filhos em quem pensar, e nela tamb�m. E j� antes
sobrevivera � trag�dia. Tinha de voltar a faz�-lo agora, mas ela limitava-se
a abanar a cabe�a, as l�grimas corriam-lhe abundantemente pelas faces e
fitava Axelle com uma express�o vazia. Parecia n�o ter qualquer raz�o
para continuar a viver.
- Nem sequer consigo pensar nisso agora. N�o me interessa a loja.
N�o me interessa nada. Apenas o Simon.
- Bom, � preciso que o fa�as. Tens uma responsabilidade para com os
teus filhos, tu pr�pria, as tuas clientes... e para com o Sirrion. Tens de
continuar a obra que ele te ajudou a come�ar. N�o podes desistir. A loja
foi o presente que ele te deu, Zoya!
Era verdade, mas a loja parecia agora t�o trivial, t�o rid�culamente
insignificante. Sem Simon ao seu lado para partilhar, o que interessava
tudo aquilo?
- Precisas de ser forte. - Estendeu � bonita ruiva, um c�lice de brande
que fora buscar ao bar e insistiu para que bebesse um gole, sem deixar de
a observar. - Bebe tudo. Vai fazer-te bem. - Axelle parecia um militar e
Zoya sorriu � amiga por entre as l�grimas e em seguida p�s-se a chorar
com mais for�a ainda.
- N�o sobreviveste � revolu��o e a tudo o que aconteceu depois, para
desistires agora, Zoya Hirsch - prosseguiu Axelle. Contudo o apelido
apenas serviu para lhe provocar mais l�grimas e Axelle voltou todos os
dias at� convencer Zoya a regressar � loja.
Vestia de preto e cal�ava meias pretas, mas pelo menos estava de
volta ao seu gabinete. E, decorridos uns dias, os minutos transformaram-se
em horas. Acabou eventualmente por passar a maior parte do dia �
secret�ria, com uma express�o vaga, pensando em Simon.
Ia como um rob� todos os dias, e Sasha come�ara novamente a
causar-lhe problemas. Zoya sabia que estava a perder o controlo sobre a
filha, mas tamb�m n�o era capaz de lidar com o assunto. Apenas
conseguia sobreviver aos dias, hora a hora, escondida no gabinete, e
depois ir para casa � noite e sonhar com Simon. O pr�prio Matthew lhe
partia o cora��o, pois v�-lo lembrava-lhe constantemente o pai.
H� semanas que os advogados de Sinion lhe telefonavam; no entanto,
furtara-se a todas as tentativas de a verem. Simon deixara dois
funcion�rios leais a dirigir a f�brica onde faziam os casacos. Sabia que
tudo ali se encontrava sob controlo e j� tinha problemas que chegassem
a dirigir a sua pr�pria loja sem enfrentar isso tamb�m. E falar com os
advogados sobre os seus bens implicava aceitar a realidade de que ele
desaparecera e n�o conseguia. Estivera a pensar nele, recordando o firn-
de-semana no Connecticut quando uma das assistentes bateu ao de leve
na porta do gabinete.
- Condessa Zoya? - perguntou a mulher atrav�s da porta, e Zoya
secou os olhos. Sentara-se � secret�ria, de olhos fixos na fotografia de
Simon. Tivera mais uma discuss�o com Sasha na noite anterior, mas nem
mesmo isso a afectara.
- Vou j�. - Assoou-se novamente e olhou-se de relane no espelho para
compor a maquilhagem.
- H� uma pessoa que deseja falar consigo.
- N�o quero ver ningu�m - replicou calmamente, abrindo apenas uma
frincha da porta. - Informe que n�o estou. - E depois acrescentou como
que reflectindo: - Quem �?
- Um tal Mister Paul Kelly. Disse que era importante.
- N�o o conhe�o, Christine. Diga-lhe apenas que sa�.
A rapariga parecia nervosa. Custava-lhe tanto ver Zoya assim
destru�da desde que o marido fora morto, mas era compreens�vel.
Naquela �poca, todas se preocupavam com os maridos, irm�os, amigos e
os receados telegramas de tarja preta como o que havia sido entregue a
Zoya.
Zoya voltou a fechar a porta, rezando intimamente para que n�o
aparecesse ningu�m importante nesse dia. N�o conseguia suportar os
olhares piedosos e as palavras compreensivas. S� piorava a situa��o e
depois apercebeu-se de uma segunda pancada na porta. Era Christine,
nervosa e inquieta.
- Ele diz que espera. O que hei-de fazer?
Zoya suspirou. N�o conseguia imaginar de quem se tratava.Talvez
fosse o marido de uma cliente, algu�m que receava que ela discutisse uma
amante com uma mulher. Por vezes recebia visitas desse g�nero e
tranquilizava-os sempre com uma delicada firmeza. Contudo, desde a
morte de Sinion que n�o negociara com ningu�m.
Regressou � porta e abriu-a � assistente; continuava com um aspecto
muito elegante, de vestido preto e meias pretas. E os olhos reflectiam uma
infinda tristeza.
- De acordo. Mande-o entrar. - Tamb�m n�o tinha mais nada que
fazer. Era incapaz de se concentrar. Nem na loja, nem em casa, era in�til.
Conservou-se im�vel quando Christine introduziu no gabinete um
homem alto e distinto, vestido com um fato azul-escuro, de cabelo branco
e olhos azuis. Ele ficou impressionado com a beleza dela e por v�-Ia toda
vestida de preto com aquele olhar que parecia trespass�-lo.
- Mistress Hirsch? - As pessoas n�o costumavam trat�-la assim e
esbo�ou um aceno de cabe�a triste, interrogando-se sobre quem ele seria,
mas pouco interessada.
- Sim?
- Chamo-me Paul Kelly. A nossa firina est� a tratar dos... bens... do
seu marido. - Zoya apertou-lhe a m�o com uma express�o de imensa
tristeza e convidou-o a sentar-se numa das cadeiras pr�ximo da secret�ria.
- Temos tentado tudo para contactar consigo. - Fitou-a com uma certa
cenoura e ela reparou que era dono de uns olhos bonitos. Tinha fei��es
irlandesas e sup�s correctamente que outrora o cabelo fora negro cor de
azeviche e agora se tornara branco de neve. - N�o respondeu aos nossos
telefonemas. - Contudo, agora ao v�-la, entendia porqu�. A mulher estava
devastada pelo desgosto e sentiu uma enorme pena dela.
- Eu sei - redarguiu, desviando os olhos. Depois soltou um suspiro e
fitou-o. - Para falar verdade, n�o queria falar-vos. Tomava tudo
demasiado real. Tem... - A voz morreu-lhe num sussurro e voltou a
desviar o olhar. - ... Tem sido muito dif�cil para mim.
Seguiu-se um longo sil�ncio e ele esbo�ou um aceno cabe�a,
observando-a. Era �bvio o desgosto que a consunia e, no entanto, para l�
da dor, sentia uma enorme for�a, uma for�a que ela pr�pria esquecera.
- Compreendo. Mas precisamos de conhecer a sua vontade sobre
algumas quest�es. �amos sugerir uma leitura forinal do testamento, mas
talvez dadas as presentes circunst�ncias... - A voz perdeu-se e os olhos
voltaram a encontrar-se com os dela. - Talvez de momento apenas
necessite saber que ele deixou quase tudo o que tinha a si e ao filho dele.
Os pais e os dois tios tamb�m receberam generosos legados, bem como
os seus dois filhos, Mistress Hirsch.
"Muito generosos, diria - prosseguiu num tom oficial. - De um milh�o
de d�lares cada, obviamente sob cust�dia. Apenas poder�o tocar-lhe
quando atingirem a maioridade e h� ainda outras condi��es, mas muito
razo�veis. O nosso departamento de cust�dia ajudou-o. - No entanto,
deteve-se ao deparar com o olhar de Zoya. - Passa-se alguma coisa de
errado? - indagou ele. De s�bito, lamentou ter vindo. Ela n�o estava a
ouvi-lo.
- Um milh�o de d�lares cada? - Era muito mais do que alguma vez
sonhara, e eram filhos dela e n�o dele. Estava boquiaberta. Mas era t�o
t�pico de Simon. O amor que lhe dedicava voltou a trespass�-la como um
punhal.
- Sim. Al�m disso, queria oferecer um cargo ao seu filho na firma
quando ele tiver idade bastante, claro. Trata-se de uma empresa enorme
para dirigir, com o armaz�m, as seis f�bricas de t�xteis, sobretudo agora
com os contratos de guerra que chegaram depois de ele ter partido... -
Zoya tentava apreender tudo aquilo. Era mesmo de Simon ter
providenciado o futuro de todos e mesmo planear a entrada de Nicholas
no neg�cio. Era mesmo de Simon... Se, ao menos, ele tivesse vivido para
os acompanhar, em vez de lhes deixar uma fortuna.
- Que contratos? - Come�ava lentamente a raciocinar; havia tanto em
que pensar, em tanta coisa que Simon havia constru�do do nada. Devia-
lhe o tentar compreender tudo isso. - Ele n�o me falou em contratos de
guerra.
- Ainda n�o eram uma certeza quando ele partiu. As fabn'cas
fornecer�o todo o tecido para os nossos uniformes militares durante a
guerra. - Fitou-a, sem poder ignorar a beleza que ela emanava e toda a
eleg�ncia, ali sentada com uma calma dignidade, envolta no desgosto e
dor de perder o marido.
- Oh, c�us... O que � que isso significa em termos de vendas? - Por
um momento, foi como se Simon tivesse voltado. Sabia como ele teria
ficado excitado e, quando o advogado lhe deu uma ideia aproximada do
montante, fitou-o, incr�dula. - Mas n�o � poss�vel... Ou �? - Mostrou o
esbo�o de um sorriso e parecia muito mais nova, muito longe dos
quarenta e tr�s anos que ele sabia que ela tinha, segundo os documentos
que lera. S� que tal parecia dificil de acreditar agora.
- Temo bem que sim. Para lhe falar francamente, Mistress Hirsch, a
senhora e o seu filho v�o ficar muito ricos depois da guerra. E se o
Nicholas entrar para a firma, Mister Hirsch providenciou-lhe uma
consider�vel percentagem.
Simon pensara em tudo, mas era um pequeno consolo. O que fariam
com todo aquele dinheiro sem ele? Mas, ao escutar, sabia que Axelle
estivera certa. Devia a Simon continuar o que ele constru�ra. Fora a sua
�ltima d�diva. E tinh de continuar, por ele e pelos filhos.
- Os homens que ele deixou � frente do neg�cio s�o capazes de lidar
com a situa��o? - inquiriu, semicerrando os olhos como se o visse pela
primeira vez, e ele sorriu-lhe. Ela era bonita quando sorria, ainda mais
bonita do que pensara � primeira vista.
- Sim. Julgo que sim. T�m, obviamente, de nos prestar contas... -
Fitou-a intensamente - A n�s e a si. Mister Hirsch atribuiu-lhe a direc��o
de todas as suas companhias. Tinha um grande respeito pelo seu sentido
para o neg�cio. - Desviou o rosto quando os olhos de Zoya se encheram
de l�grimas e se esfor�ou por falar numa voz que era quase um sussurro.
Simon significara mais para ela do que todas as suas empresas, mas
aquele homem jamais o poderia entender.
- Amei-o muito. - Levantou-se e foi at� � janela, detendo-se a
observar a Quinta Avenida. Agora n�o podia desistir. Tinha de
continuar... pelas crian�as... e por ele. Virou-se devagar e voltou a encarar
Paul Kelly. - Obrigada por ter vindo - agradeceu por entre l�grimas e
quase lhe tirando a respira��o com tanta beleza. - Talvez nunca tivesse
respondido aos seus telefonemas. - N�o o desejara. N�o desejara enfrentar
a perda de Simon, mas agora sabia que tinha de o fazer.
- Receei que assim fosse e por isso vim - proferiu ele calmamente. -
Espero que me perdoe a intromiss�o. � unia bonita loja - acrescentou. -
A minha mulher vem fazer compras aqui, sempre que pode. - Zoya
esbo�ou um aceno de cabe�a, pensando em toda a clientela que havia
negligenciado, sem a esquecer.
- Pe�a-lhe, por favor, que venha ter comigo quando voltar aqui.
Podemos mostrar-lhe o que quiser aqui mesmos no meu gabinete.
- Talvez fosse mais generoso para mim, se trancasse as portas antes
de ela entrar. - Sorriu e Zoya correspondeu. Depois, ele fez-lhe algumas
perguntas sobre Nicholas. Zoya explicou que o filho se encontrava em
Londres, a pilotar avi�es de combate com as for�as americanas ligadas �
RAF. - Tem muito com que se preocupar, n�o � verdade, Mistress
Hirsch? - Ela esbo�ou um triste aceno de cabe�a, e ele sentiu-se comovido
pela sua vulnerabilidade. Constru�ra um imp�rio pr�prio com a ajuda do
marido e parecia, contudo, t�o delicada como asas de borboleta, ali
sentada do outro lado da secret�ria. - Informe-me, por favor, se houver
alguma coisa que possa fazer para a ajudar. - Mas o que poderia ele
fazer? Ningu�m era capaz de lhe trazer Simon de volta e era apenas isso
o que desejava.
- Quero passar algum tempo nos escrit�rios do meu marido - replicou
com um leve franzir de sobrolho. - Se vou dirigir as empresas dele, tenho
de me familiarizar com tudo. - Talvez no trabalho encontrasse o desejado
entorpecimento.
- Podia ser uma boa ideia - concordou Kelly, visivelmente
impressionado por ela em todos os aspectos. - Eu pr�prio queria fazer isso
e teria o maior prazer em partilhar todas as nossas informa��es consigo. -
Ele era s�cio de uma das mais importantes firmas de advogados de Wall
Street, e Zoya sup�s que deveria ter uns dez anos mais do que ela, mas
a forma como os olhos dan�avam quando se ria faziam com que parecesse
mais novo. Na verdade, tinha cinquenta e tr�s e aparentava a idade.
Falaram durante algum tempo e, por fim, ele levantou-se com pena
de a deixar.
- Encontramo-nos na pr�xima semana no escrit�rio do Simon na
S�tima Avenida ou quer que lhe traga o m�ximo que puder aqui ao seu
escrit�rio? - perguntou.
- Encontramo-nos l�. Quero que eles saibam que est�o a ser
observados... por n�s os dois. - Sorriu apertando-lhe a m�o. - Obrigada,
Mister Kelly - agradeceu, ainda num tom suave. - Obrigada por ter
vindo aqui.
Ele sorriu novamente e o olhar deixou transparecer todo o encanto
irland�s.
- Estou ansioso por trabalhar consigo.
Zoya voltou a agradecer-lhe e, quando ele saiu, deixou-se ficar sentada
na secret�ria a olhar em volta. Os n�meros que ele lhe citara referentes
aos contratos de guerra eram assombrosos. Para o filho de um alfaiate do
Lower East Side fizera um trabalho de gigante. Constru�ra um imp�rio.
Sorriu para a fotografia de Simon e saiu do gabinete, voltando a sentir-se
verdadeiramente ela pela primeira vez desde que ele morrera.
As vendedores tamb�m repararam, ao passarem ao lado dela para ir
atender as clientes e, nessa tarde, Zoya apanhou o elevador e parou em
todos os andares para se inteirar do que estavam a fazer. Chegara a altura
de voltarem a v�-la. A altura de a condessa Zoya continuar... com a
lembran�a dele muito junto ao cora��o, como sempre estaria... �
semelhan�a de todas as pessoas que amava. Contudo, agora n�o podia
pensar nelas. Havia tanto trabalho a realizar. Por Simon.
CAP�TULO 46
No final de 1942, Zoya passava um dia inteiro por semana nos
escrit�rios de Simon na S�tima Avenida e Paul Kelly costumava estar ao
seu lado. Haviam come�ado a tratar-se muito formalmente por Mr. Kelly
e Mrs. Hirsch. Ela usava simples vestidos pretos e ele fatos de riscas ou
azul-escuros.
Contudo, decorridos alguns meses, infiltrara-se um toque de humor.
Ele contava-lhe anedotas horr�veis e ela fazia-o rir com hist�rias da
Condessa Zoya. Passou, ent�o, a ir trabalhar com roupas mais c�modas
e ele tirava o casaco e enrolava as mangas da camisa. Sentia-se
profundamente impressionado com a acuidade de Zoya para o neg�cio e
achava que Simon tinha toda a raz�o em respeit�-la como o fizera.
De in�cio, Paul achara que ele era louco em dar-lhe a direc��o, mas
louco � que ele n�o era, e Zoya excedera todas as expectativas. E, ao
mesmo tempo, conseguia manter-se feminina, nunca erguia a voz, mas
ningu�m duvidava que n�o toleraria idiotices. E vigiava atentamente os
livros de contabilidade. Sempre.
- Como � que chegaste aqui? - perguntou-lhe Paul um dia quando
almo�avam na secret�ria de Simon. Tinham mandado vir sandu�ches e
usufru�am de uma merecida pausa no trabalho. No dia anterior, Atherton,
Kelly e Schwartz haviam substitu�do um dos dois gerentes de Sinion e
havia muita "limpeza" a fazer.
- Por engano. - Riu e falou-lhe dos seus dias no teatro de cabar�, do
emprego no Axelle's e da �poca muito antes disso em que dan�ara com
os Ballets Russes. Nessa altura, o sucesso da sua fant�stica loja j� era do
conhecimento geral.
Paul frequentara Yale e casara com uma debutante de B�ston
chamada Allison O'Keefe. Haviam tido tr�s filhos em quatro anos e ele
referia-se-lhe com respeito, mas os olhos n�o brilharam quando
pronunciou o nome e n�o havia aquele riso que Zoya tantas vezes
partilhara com ele. N�o ficou surpreendida quando um dia, ao fim da
tarde, ele lhe confessou que detestava ir para casa.
- H� anos que a Allison e eu vivemos como dois estranhos. - N�o o
invejou por isso. Ela e Simon haviam sido os melhores amigos,
independentemente da paix�o f�sica que partilhavam e de que ainda se
lembrava com desejo.
- Porque continuas casado com ela? - Div�rcios era o que mais havia
e, em seguida, recordou-se antes mesmo de ele lhe responder com uma
express�o triste:
- Somos ambos cat�licos, Zoya. Ela jamais concordaria com a
separa��o. Tentei h� cerca de dez anos. Teve uma depress�o ou assim o
disse e nunca mais foi a mesma. N�o posso deix�-la agora. E... - Hesitou
e resolveu ser honesto com ela. Zoya era uma mulher em quem podia
confiar e, no �ltimo ano, tinham-se tornado grandes amigos. - A verdade
� que ela bebe. N�o conseguiria viver com a minha consci�ncia se fosse
respons�vel por algo que lhe sucedesse.
- N�o parece l� muito divertido - redarguiu. "Uma fria debutante de
B�ston que bebia e n�o lhe concedia o div�rcio." Zoya quase estremeceu
ante o pensamento, mas havia muitas mulheres assim na loja, mulheres
que iam �s compras porque se sentiam entediadas e nunca vestiam o que
levavam porque a apar�ncia pessoal estava longe de lhes interessar. -
Deves sentir-te s� - prosseguiu, fitando-o com um olhar meigo, e ele
controlou-se para n�o falar de mais. Tinham de trabalhar juntos todas as
semanas e h� muito que ele aprendera a li��o. Haviam existido outras
mulheres na sua vida, mas nada de muito significativo. Apenas algu�m
com quem falar de vez em quando ou com quem fazer amor
ocasionalmente, mas nunca conhecera ningu�m como Zoya e nunca se
sentira assim junto de uma mulher, nem talvez voltasse a sentir-se.
- Tenho o trabalho para me aguentar. - Sorriu. - Tal como tu. - Sabia
quanto ela se dedicava ao trabalho. Era tudo para o que vivia agora, isso
e os filhos, que tanto amava.
Em 1943, passaram a jantar juntos �s segundas-feiras, quando sa�am
dos escrit�rios de Simon. Era a oportunidade de discutirem em mais
pormenor o que tinham feito nesse dia e costumavam comer nos
restaurantezinhos mesmo � sa�da da S�tima Avenida.
- Como est� o Matt? - perguntou-lhe com um sorriso, numa noite
dessa Primavera.
- O Matthew? Est� �ptimo. - Tinha tr�s anos e meio e era a luz da
sua vida. - Faz com que volte a sentir-me jovem.
Era ir�nico que se tivesse achado velha de mais para ter um filho
quando ele nascera e agora lhe desse tanta alegria. Sasha sa�a t�o
frequentemente, que era como se j� n�o vivesse em casa. Acabara de
fazer dezoito anos. Paul vira Sasha uma vez e ficara surpreendido com
tanta beleza. Mas suspeitava dos problemas que causava a Zoya. Ela
confessara mais de uma vez que s� dificilmente conseguia mant�-la no
liceu. Nicholas continuava em Londres e ela rezava noite e dia para que
ele regressasse s�o e salvo.
- Como est�o os teus filhos, Paul?
N�o era um assunto que ele focasse com frequ�ncia. As duas filhas
estavam casadas, uma em Chicago, outra na costa oeste e o filho algures
em Guam. E tinha d�is netos na Calif�rnia que raramente via. A mulher
n�o gostava de ir � Calif�mia e ele tinha medo de a deixar sozinha em
casa.
- Os meus filhos est�o �ptimos, suponho. - Sorriu. - Sa�ram h� tanto
tempo do ninho que n�o recebemos muitas not�cias deles. N�o tiveram
uma inf�ncia f�cil com a Aflison a beber daquela maneira. Uma coisa
assim muda tudo. - Depois sorriu-lhe, pois gostava sempre de saber dela: -
O que h� de novo na loja?
- Nada de especial. Desta vez abri uma nova sec��o para homem e
estamos a tentar algumas linhas novas. Vai ser bom viajar novamente �
Europa depois da guerra para podermos experimentar outras coisas. -
Contudo, o fim n�o estava � vista, pois a guerra prosseguia violentamente
do outro lado do Atl�ntico.
- Gostaria de voltar um dia � Europa. Sozinho - vincou com um
esbo�o de sorriso honesto. N�o era agrad�vel fazer de baby-sitter da
mulher enquanto ela andava de bar em bar ou se escondia no quarto,
fingindo estar cansada em vez de embriagada.
Zoya interrogou-se sobre o que o levava a aguentar a situa��o.
Parecia ser um fardo terr�vel e disse-lhe isso mesmo quando ele a levou
a casa e o convidou a subir para tomar uma bebida. Paul s� estivera uma
vez no apartamento dela e ficara-lhe uma recorda��o de calor e conforto,
semelhante ao seu olhar.
Acompanhou-a, feliz, no elevador e sentou-se num sof� da biblioteca
enquanto ela lhe servia uma bebida. Chamara Sasha quando tinham
chegado, mas a empregada sa�ra e Sasha ainda n�o aparecera. S� estava
Matthew a dormir no quarto, com a ama.
- Devias fazer umas f�rias, Paul. Ir � Calif�rnia ver os teus filhos,
sozinho. Porque � que a tua vida h�-de ficar estragada pela atitude da tua
mulher?
- Tens raz�o, mas n�o � muito divertido ir sozinho. - Falava-lhe
sempre com honestidade, como naquele momento em que sorvia a bebida
em pequenos goles e observava Zoya, quando ela se sentou. Usava um
vestido branco e tinha o cabelo apanhado atr�s como uma rapariguinha.
- N�o, n�o � nada divertido fazer as coisas sozinho. - Sorriu. - Mas
come�o a habituar-me. - Fora brutal habituar-se a uma vida sem Simon.
- N�o te habitues, Zoya. � horr�vel - replicou t�o veementemente que
ela pareceu sobressaltada. - Mereces mais do que isso. - Passara a vida
dele s� e n�o queria que lhe acontecesse o mesmo. Ela era uma mulher
entusiasta, bonita e cheia de vida e merecia mais do que a solid�o que ele
t�o bem conhecia.
Contudo, Zoya limitou-se a rir e a abanar a cabe�a.
- Tenho quarenta e quatro anos e sou velha de mais para recome�ar. -
E sabia que nunca ningu�m estaria � altura de Simon.
- Uma treta. Eu tenho quase cinquenta e cinco e se tivesse a
oportunidade de come�ar de novo, agarrava-a com unhas e dentes. - Era
a primeira vez que lhe falava assim, estendendo as compridas pernas na
frente, com o cabelo perfeitamente penteado e um brilho no olhar.
Adorava estar na companhia dela. Ansiava a semana inteira pelas
segundas-feiras de duro trabalho. Eram o que o mantinha vivo.
- Sou feliz assim. - Mentia mais para si pr�pria do que para ele. N�o
era feliz, mas era o que agora lhe restava.
- N�o, n�o �s. Porque havias de ser?
- Porque � tudo o que tenho - replicou tranquilamente, com
sagacidade bastante para aceitar a vida tal como era, em vez de ansiar por
um passado que se perdera na dist�ncia. J� o fizera antes e n�o voltaria
a faz�-lo. Tinha de se contentar com o que lhe restava, os filhos, o
trabalho e as suas conversas com Paul Kelly uma vez por semana.
Ele fitava-a intensamente e, sem uma palavra, pousou o copo e foi
sentar-se junto dela, perscrutando-a com os olhos azuis que pareciam
trespass�-la.
- Apenas quero saber uma coisa. Neste momento n�o posso fazer
nada, nem posso oferecer-te nada, mas Zoya... amo-te. Desde o dia em
que te conheci. �s a melhor coisa que me aconteceu. - Ela pareceu
surpreendida e depois, sem mais uma palavra, Paul tomou-a nos bra�os
e beijou-a apaixonadamente, sentindo fogo no cora��o e o corpo a arder
de desejo. - �s t�o bonita... e t�o forte...
- N�o digas isso, Paul... n�o. - Queria afast�-lo e n�o conseguiu.
Sentia-se t�o culpada por o desejar, era como se estivesse a negar a
mem�ria de Simon, e mesmo assim foi incapaz de se controlar, beijando-o
repetidamente e agarrando-se-lhe como se estivesse a afogar-se.
- Amo-te tanto - sussurrou ele, voltando a beij�-la; envolveu-a nos
bra�os fortes, sentindo o cora��o dela a bater de encontro ao seu, e
depois sorriu. - Vamos a qualquer lado... longe daqui... onde quer que
seja... Fazia-nos bem.
- N�o posso.
- Podes, sim... podemos. - Agarrou-lhe a m�o com for�a e sentiu-se
novamente vivo. Os anos pareceram desaparecer quando a fitou. Era
outra vez jovem e n�o a deixaria fugir. Mesmo que tivesse de viver com
Allison para o resto da vida, pelo menos e por um fulgurante momento,
podia ter Zoya.
- � uma loucura, Paul - replicou ela, afastando-se e pondo-se a
passear pela sala, vendo o rosto de Simon nas fotografias, observando os
trof�us, os tesouros, os livros de arte dele. - N�o temos o direito de o
fazer.
Mas Paul n�o estava disposto a renunciar. Se ela o tivesse
esbofeteado, teria pedido desculpas e partido, mas agora podia ver que ela
o desejava tanto quanto ele.
- Porque n�o? Quem dita essas regras? N�o �s casada. Eu sou, mas
n�o de uma forma que tenha qualquer significado para algu�m. H� anos
que n�o existe nada entre n�s Estou armadilhado num casamento em
forma de uma mulhe, que nem sequer sabe se estou vivo e h� anos que
n�o me ama, se � que me amou... N�o tenho direito a mais do que isso?
Estou apaixonado por ti - rematou com um brilho de luta no olhar pelo
que t�o desesperadamente ansiava.
- Porqu�? Porque � que me amas, Paul?
- Porque �s exactamente quem sempre desejei.
- N�o posso dar-te muito. - Era honesta com ele, como sempre havia
sido com Clayton e Simon.
- S� um pouco de ti, bastar�, eu compreendo. - E depois beijou-a mais
calmamente, e Zoya verificou, para seu pr�prio espanto, que n�o o
repelia.
Ficaram sentados horas a fio, beijando-se e de m�os dadas; passava
da meia-noite quando ele se foi embora, prometendo telefonar-lhe no dia
seguinte. Zoya ficou sentada no apartamento tranquilo, sentindo-se
culpada. "Era errado, tinha de ser... n�o era? O que pensaria Simon?"
Contudo, Simon j� n�o pensaria nada; morrera e ela estava viva e
Paul Kelly tamb�m significava algo. Apreciava a sua amizade e despertara
uma parte dela que esquecera. Continuava sentada a pensar nele, quando
ouviu Sasha entrar e foi ter com ela ao quarto.
A filha pusera um vestido vermelho-vivo, tinha a maquilhagem
arruinada e Zoya n�o gostou da forma como a olhava. Suspeitou que
estava embriagada, e j� n�o era a primeira vez que se confrontava com a
situa��o. Fitou-a com um olhar cansado. Era t�o fatigante aquela luta
permanente.
- Onde estiveste? - Expressava-se num tom calmo e ainda pensava em
Paul quando observou a filha.
- Sa�. - Virou as costas para que a m�e n�o lhe visse a cara. Zoya
tinha raz�o. Estava embriagada, mas, mesmo assim, era bonita.
- E fizeste o qu�?
- Jantei com um amigo.
- S� tens dezoito anos, Sasha, e n�o podes andar por a� com quem queres. E as aulas?
- Acabo o curso dentro de dois meses. Que diferen�a faz, agora?
- Muita, para mim. Tens de te portar bem. As pessoas come�ar�o a falar se pisares o risco, sabem quem �s, quem eu sou. Por favor, Sasha.
S� sensata.
N�o havia, por�m, esperan�a de que tal acontecesse e h� muito tempo
j�. Desde que Simon morrera e o irm�o partira, Sasha tornara-se ainda
mais rebelde. Zoya quase desistira de a ontrolar e receava perd�-la
totalmente. Sasha amea�ara mais do que uma vez sair de casa, o que
ainda seria pior. Pelo menos assim, Zoya tinha uma ideia do que se
passava e do que ela fazia.
- Essa conversa � do antigamente - replicou Sasha, atirando o vestido
para o ch�o e andando pelo quarto em cuecas. - Hoje em dia, j� ningu�m
acredita nessas tretas.
- As pessoas acreditam no que sempre acreditaram. Vais acabar os
estudos este ano e decerto n�o queres que falem mal de ti, querida. -
Sasha encolheu os ombros e Zoya suspirou, deu-lhe um beijo de boas-
noites, sentindo o cheiro a �lcool no h�lito e o fumo de cigarro no cabelo.
- N�o quero que bebas - avisou, fitando-a com uma express�o triste.
- Porque n�o? J� tenho idade.
- N�o � isso que est� em causa.
Sasha limitou-se a um novo encolher de ombros e virou as costas at�
a m�e se ir embora. Era in�til falar com ela. Zoya ansiava que Nicholas
voltasse para casa, talvez ele ainda tivesse qualquer influ�ncia sobre ela.
Ningu�m mais tinha. Zoya sentia-se preocupada com o que aconteceria
quando Sasha pudesse tocar no dinheiro que Simon lhe havia deixado.
Seria o fim, se algu�m n�o tivesse m�o nela antes.
Ainda estava a pensar no assunto quando o telefone tocou � uma
hora. Sentiu um baque moment�neo no cora��o, temendo m�s not�cias.
Contudo, era Paul. Estava em casa, mas decidira telefonar-lhe. Allison
dormia fechada � chave no quarto, e ele, depois de se afastar de todo o
calor de Zoya sentia-se duplamente s�.
- Apenas queria dizer-te quanto esta noite significou para mim.
Deste-me algo muito especial.
- N�o sei como, Paul - replicou num tom baixo e pensando
intimamente que lhe dera muito pouco. Alguns beijos e o arrebatamento
de um instante.
- Est�s a dar um novo colorido � minha vida. As nossas noites de
segunda-feira d�o-me vontade de continuar. - Apercebeu-se ent�o do
quanto tamb�m ansiava por elas, Paul era inteligente, bom e divertido. -
Esta semana vou sentir-te a falta - disse ele e acrescentou: - Achas que
haveria raios e trov�es, se nos encontr�ssemos numa ter�a?
- Achas que devemos tentar? - Sentiu-se muito arrojada ao pronunciar
as palavras e riram ambos como duas crian�as felizes.
-Vamos almo�ar amanh� e descobrir. - Sorria como n�o sorria h�
anos. Ela fazia com que se sentisse um rapazinho, e havia algo nele que
lhe dava, a ela, felicidade e calma.
- Pensas que dever�amos? - Queria sentir-se culpada, mas,
estranhamente, n�o era esse o caso. Tinha a bizarra intui��o de que
Simon compreenderia.
- Amanh� � uma?
- Ao meio-dia. - A m�o tremia-lhe, quando desligaram.
Era uma loucura e todavia... n�o queria parar. Recordou-se do toque
dos l�bios na biblioteca nessa noite e havia algo de inocente e suave neles.
Era seu amigo, independentemente do que pudesse acontecer. Era algu�m
com quem podia trabalhar e conversar, passar o tempo, discutir o neg�cio
e os filhos. Paul sabia escut�-la e importar-se com o que acontecia.
Interrogou-se sobre se seria errado, mas nessa noite, quando
adormeceu, sonhou com Simon e ele encontrava-se ao lado de Paul Kelly,
sorrindo.
CAPITULO 47
No dia seguinte, Paul chegou � loja antes do meio-dia e encontrou-a
no gabinete a trabalhar com uma express�o s�ria e uma caneta enfiada no
cabelo. Bateu ao de leve na porta e, quando a abriu, esbo�ou um sorriso
ao v�-Ia sentada � secrt�ria.
- Que imagem familiar - disse quando ela ergueu os olhos. - Muito
ocupada, Zoya? Queres que volte mais tarde?
- N�o. isto pode esperar - redarguiu, sorrindo tamb�m e usufruindo
do calor da amizade que os unia. Ansiara por a ver e quedou-se a
admirar-lhe a beleza quando ela foi buscar a mala.
- Um dia dificil? - inquiriu com o caloroso encanto irland�s.
- N�o tanto como poderia ter sido - replicou, satisfeita por ele ter
vindo v�-Ia. Era mais f�cil encontrar-se com Paul ali do que no escrit�rio
de Simon. Era o seu territ�rio, n�o o dele, e permitia a Paul que
partilhasse mais o seu presente do que o passado, o que de s�bito lhe
parecia mais importante.
Foram a p� at� ao 21 onde almo�aram e �s tr�s da tarde continuavam
a conversar e a rir. Spencer Tracy estava numa mesa ao lado com uma
mulher de chap�u de abas e �culos escuros,e Zoya interrogou-se sobre
quem seria, mas Paul n�o estava interessado nela. N�o conseguia tirar os
olhos de Zoya.
- Porque est�s a fazer isto? - perguntou-lhe por fim, fitando-o, mas
tranquilizada ante o que detectou. Havia somente bondade e for�a e todos
os bons sentimentos que nutria por ela.
- Porque te amo - respondeu Paul suavemente. - N�o tencionava
apaixonar-me por ti, mas aconteceu. � assim t�o errado? - Ela n�o podia
responder-lhe afirmativamente, conhecendo o vazio da vida dele com
Allison.
- N�o � errado. Mas, Paul.. - Hesitou e depois prosseguiu: - ... O que
teremos se formos em frente? Uns momentos roubados de vez em
quando. � isso o que queres?
- Se tiver de ser s� isso, sentir-me-ei grato. Para mim s�o horas
preciosas ao teu lado, Zova. O resto �... bom, o que quer que tenha de
ser. - E sabia por instinto que e n�o queria mais do que isso dele. Tinha
os filhos, a loja e as recorda��es de Sinion. - N�o pedirei mais. N�o te
mentirei. Nunca. Sabes que n�o posso deixar a Allison e, se o que posso
oferecer-te n�o chegar, compreenderei. - Pegou-lhe meigamente na m�o
por baixo da mesa. - Talvez esteja a ser muito ego�sta.
Zoya abanou a cabe�a, sem deixar de reparar em Spencer Tracy, que
ria na mesa ao lado. Voltou a interrogar-se sobre quem seria a mulher e
por que raz�o ele parecia t�o feliz.
- De qualquer maneira, ignoro se estarei preparada para mais do que
isso. Talvez nunca venha a estar. Amei muito Simon.
- Eu sei.
E depois Zoya declarou num fio de voz:
- Mas acho que tamb�m te amo... - Era t�o estranho. Nunca julgara
que viesse a acontecer, mas gostava de estar com ele. Acontecia todas as
segundas-feiras e acabara por confiar nele e respeit�-lo.
- N�o te pedirei mais do que o que quiseres dar. Compreendo a
situa��o. - Era imposs�vel pedir-lhe mais. Ele parecia entender cada um
dos seus sentimentos. Em seguida, ganhando coragem, sorriu-lhe
ternamente: - Um dia ir�s comigo, quando estiveres preparada?
Zoya fitou-o demoradamente e depois esbo�ou um lento aceno de
cabe�a.
- Ignoro quando ser�. Por enquanto ainda n�o estou preparada. -
Embora os beijos da noite anterior lhe tivessem tocado profundamente,
ainda n�o estava preparada para ser infiel � mem�ria do marido.
- N�o estou a pressionar-te. Posso esperar. Talvez mesmo uma vida
inteira. - Ambos riram. Ele era t�o diferente de Simon com a sua
arrebatada impaci�ncia e excita��o frente � vida, e tamb�m de Clayton,
com os seus modos suaves e aristocratas. Paul Kelly era ele mesmo, com
o seu estilo e situa��o pr�prios.
- Obrigada, Paul - agradeceu, erguendo o rosto e, sem dizer nem mais
uma palavra, ele inclinou-se e beijou-a.
- Podemos jantar sempre que for poss�vel. - Parecia feliz e
esperan�ado.
- A Allison n�o se importar�?
- Nem dar� por isso - respondeu com um ar momentanearnente triste.
Desta vez foi Zoya a dar-lhe um beijo, um beijo para sarar a ferida de
anos de solid�o. Eram ambos solit�rios e, contudo, os momentos que
passavam juntos transbordavam de alegria e felicidade. As decis�es que
tomaram sobre o neg�cio de Simon foram importantes, e ela adorava p�-
lo ao corrente dos acontecimentos da loja. Por vezes, fazia-o rir durante
horas a fio, falando-lhe das clientes mais extravagantes... ou do pequeno
Matthew.
Depois ele acompanhou-a de volta � loja e ambos ficaram
surpreendidos ao darem-se conta de que eram quatro da tarde e mais do
que nunca ele desejou ficar com ela.
- Podes jantar na sexta � noite, ou deixamos para segunda? - N�o
queria pression�-la e limitou-se a fit�-la com uma express�o feliz do lado
exterior da loja. Zoya sabia que Sasha passava fora o fim-de-semana e
subitamente desejou v�-lo antes de voltarem a encontrar-se no escrit�rio
de Simon.
- O jantar seria �ptimo. - Os olhos fitaram-no com um fogo verde que
o fez sorrir.
- Devo ter cometido uma boa ac��o na vida para merecer esta
felicidade.
- N�o sejas tonto! - exclamou Zoya a rir e beijou-lhe a face quando
ele prometeu telefonar-lhe. Sabia que o faria e ela tamb�m lhe
telefonaria, mesmo que fosse a pretexto do neg�cio.
Todavia, as rosas que chegaram para ela nessa tarde nada tinham que
as ligasse a neg�cio. Eram duas d�zias de rosas brancas, porque ela uma
vez lhe dissera que gostava. E h� muito sabia que era raro ele esquecer-se
de qualquer coisa. O cart�o dizia: "N�o s�o momentos roubados, querida
Zoya, apenas emprestados. Obrigado pelo teu empr�stimo, por cada
precioso momento. Amo-te, P."
Leu o cart�o, meteu-o na mala com um sorriso e saiu novamente do
gabinete para ir atender as clientes. Contudo, n�o podia negar que Paul
acrescentara algo � sua vida. Algo de muito precioso, algo que quase tinha
esquecido... o toque de uma m�o, o olhar de um homem que se
preocupava com ela e queria estar presente ao seu lado.
Era imposs�vel dizer onde a vida os conduziria um dia. Talvez a
nenhum s�tio. Mas entretanto sabia que precisav dele, tal como ele
precisava dela. E ao regressar ao trabalho caminhava com um passo mais
leve. Nem sequer se sentia culpada por isso.
- Com quem � que foi o almo�o hoje? - perguntou-lhe a assistente,
curiosa, quando se preparavam para fechar loja. Era raro Zoya sair da loja
para almo�ar. Mas riu e o olhar brilhou como n�o acontecia h� meses.
- O Spencer Tracy - respondeu num tom confidencial.
- Claro - replicou a jovem com um sorriso. E era verdade. Vira o
Spencer Tracy... e Paul Kelly.
CAPITULO 48
Paul e Zoya continuaram a encontrar-se todas as segundas-feiras nos
escrit�rios de Sinion. Trabalhavam muito, jantavam tarde e, sempre que
podiam, iam passar um fim-de-semana tranquilo. Passeavam na praia,
conversavam sobre as suas vidas e faziam amor, mas a amizade foi sempre
mais importante para eles do que a rela��o fisica. Depois regressavam a
Nova lorque, � realidade e �s pessoas a quem pertenciam.
Zoya n�o deixava que nada disso interferisse com a sua vida. Havia
muito mais coisas que ambos tinham de fazer. E nunca criou ilus�es
quanto a casar-se com ele. Estava fora de quest�o. Paul era o seu amigo,
um amigo muito especial; e, ao sentarem-se � mesa de reuni�es durante
anos e anos, orgulhavam-se do facto de ningu�m saber quanto
significavam um para o outro em privado, nem mesmo os filhos.
Matthew gostava muito dele e Sasha tolerava-o. Andava demasiado
ocupada com a sua pr�pria vida para se importar muito com o que a m�e
fazia e nunca pareceu ter muita consci�ncia do envolvimento deles. E
Nicholas continuava ausente, combatendo com a RAF na Europa.
O presidente Roosevelt morreu a 12 de Abril de 1945. E tr�s semanas
depois acabou a guerra na Europa e Zoya rejubilou, com as l�grimas
correndo-lhe pelas faces. O filho continuava vivo. Regressou a casa no dia
em que completou vinte e quatro anos e, dois dias mais tarde, a guerra
tamb�m acabou no Pac�fico. Houve imensas celebra��es e paradas pela
Quinta Avenida. Zoya fechou a loja e foi para casa ver Nicholas, que
estava na janela da sala, observando as pessoas a dan�ar nas ruas com as
l�grimas a correrem-lhe pelas faces.
- Se ao menos o pap� pudesse estar vivo para assistir a tudo isto -
sussurrou-lhe, de olhos postos no j�bilo das ruas; Zoya fitou meigamente
o seu elegante filho.
Parecia-se mais do que nunca com Nicolai, sobretudo agora de
uniforme. Tornara-se um homem e n�o se surpreendeu quando ele lhe
comunicou que n�o voltaria a Princeton. Queria come�ar a aprender o
que precisava do imp�rio que Simon deixara atr�s de si.
Paul ensinou-lhe tudo o que ele precisava de saber e Nicholas ficou
boquiaberto com o dinheiro que lhe fora legado. Sasha tamb�m sabia que
iria herdar uma enorme quantia em dinheiro no ano seguinte, embora
ainda desconhecesse o montante. Contudo, Nicholas ficou surpreendido
ao ver a forma como ela se comportava durante o pouco tempo que ficou
com Zoya. Sa�a todas as noites at� de manh�, na maioria das vezes
regressava a casa embriagada e era mal-educada com todos os que
tentavam falar-lhe no assunto, sobretudo Nicholas, mas tamb�m Zoya.
Nicholas estava furioso quando abordou o tema com m�e uma noite.
Sasha regressara a casa cedo, mas j� estava no quarto. Um rapaz fardado
viera traz�-la, mas em tal estado d embriaguez que mal conseguia andar,
e Nicholas quase o expulsou.
- N�o podes fazer nada por ela, mam�? Est� completamente
descontrolada.
- J� n�o tem idade para lhe bater, Nicholas, e n�o posso fech�-la �
chave no quarto.
- Gostaria de tentar. - Parecia falar a s�rio, mas no dia seguinte,
quando conversou com a irm�, de nada serviu. Ela voltou a sair nessa
noite e s� regressou �s quatro da manh�.
Sasha era ainda mais bonita do que dantes e a juventude ainda n�o
revelava as consequ�ncias dos excessos, mas Zoya sabia que isso
aconteceria se n�o parasse a tempo. E Zeop n�o ficou nada satisfeita
quando em Dezembro desse ano ela fugiu de casa. Casara com um rapaz
que conhecera h� menos de tr�s semanas, e o facto de ele ser o filho de
um jogador de p�lo de Palm Beach de pouco consolo lhe serviu. Tinha
um estilo de vida igual ao dela, bebiam, dan�avam e embriagavam-se
todas as noites. A situa��o piorou quando Sasha informou sem delongas
a m�e, quando ela regressou de Nova lorque em Mar�o, que esperava um
filho l� para Setembro.
- No anivers�rio de Matthew, penso - replicou num tom vago quando
ele entrou na sala. Tinha agora seis anos e meio, os grandes olhos
castanhos de Simon e modos ternos. Adorava Nicholas, mas aprendera a
afastar-se do caminho da irm�. Ela bebia de mais e mostrava-se
indiferente ou visivelmente desagrad�vel. Tinha agora vinte e um anos, e
� heran�a que Simon lhe deixara s� a impelia mais rapidamente para o
caminho, da sua autodestrui��o.
Em Junho, voltou a casa, anunciou que Freddy a enganava e vingou-se
de imediato. Comprou um carro novo, duas pulseiras de diamantes,
dormiu com um dos amigos dele, embora estando gr�vida, e regressou a
Palm Beach � procura de outro marido.
Zoya sabia que nada podia fazer. At� mesmo Nicholas se recusava a
falar do assunto. A irm� era o que era e ponto final. Conversava muitas
vezes com Paul a esse respeito, e a sua enorme sabedoria consolava-a um
pouco.
Aos fins-de-semana, Nicholas levava Matthew � pesca e, sempre que
podia, ao parque para jogar � bola. Estava sempre cheio de trabalho, mas
arranjava sempre tempo para o mi�do que, por seu turno, proporcionava
a Zoya alguns momentos tranquilos com Paul Kelly. Continuavam a ter
uma rela��o calma, e Nicholas nunca soube, o que era um tributo �
discri��o de Paul e de Zoya.
No fim de Agosto nasceu o beb� de Sasha, uma menina de cabelo
ruivo. Zoya viajou at� � Florida para a ver e ficou a olh�-la com
admira��o. Era t�o pequena e querida e a m�e parecia n�o lhe dedicar
o m�nimo interesse! Quase a seguir ao nascimento da crian�a, j� Sasha
andava a divertir-se por todo o lado nos seus luxuosos carros, com ou sem
o igualmente permissivo Freddy.
Zoya nunca sabia onde estavam, e a beb� ficava sempre com uma
ama, para desagrado de Zoya. Tentou falar a Sasha sobre o seu estilo de
vida durante as suas raras conversas telef�nicas, mas Sasha nem queria
ouvi-la, como era de esperar.
Nicholas tamb�m n�o tinha not�cias dela. Quase parecia ter
desaparecido das suas vidas, e o que causava maior tristeza a Zoya era
n�o ver com mais frequ�ncia Marina, a filha de Sasha. E quando o
telefone tocou na v�spera de Natal, Zoya esperou que fosse a filha.
Nicholas estava a jantar na sua companhia e Matthew acabara de ir
deitar-se, depois de ornamentar a �rvore. Tinha sete anos e quase
continuava a acreditar no Pai Natal, embora Zoya desconfiasse que fosse
apenas mais esse ano. Matthew continuava a ser a alegria da sua vida e
sorria, feliz, ao levantar o auscultador.
- Est�? - Era a Pol�cia Estatal de Nova lorque. O cora��o deu-lhe um
salto no peito, receando de imediato o motivo daquele telefonema.
Comunicaram-lhe que Sasha e Freddy tinham tido um acidente de
autom�vel no regresso a casa vindos de qualquer festa e, sustendo a
respira��o, soube que os seus piores receios haviam tido fundamento.
Pousou o auscultador, fixando Nicholas, incapaz de lhe contar. Um
momento depois, telefonou a ama da beb�, hist�rica por estar sozinha
com ela. Nicholas falou-lhe e prometeu apanhar o avi�o da manh� para
ir buscar a crian�a. A ama explicou-lhe tudo enquanto ele olhava para a
m�e num mudo terror. Nessa noite culpabilizou-se e desfez-se em
l�grimas.
Insistia em que fizera tudo errado e agora era tarde de mais. Falhara
como m�e e agora Sasha estava morta.
- Ela era uma beb� t�o amorosa... - chorava Zoya. Contudo, Nicholas
tinha outras recorda��es de Sasha. S� se lembrava de como ela fora
mimada, ego�sta e m� para a m�e. A Zoya, por�m, n�o lhe parecia justo.
Tinha apenas vinte e dois anos e desaparecera como o rasto brilhante de
uma estreIa-cadente numa escura noite de Ver�o. Num momento viva e
no momento seguinte desaparecida para sempre.
No dia seguinte, Nicholas apanhou o avi�o para a Florida e trouxe de
volta o corpo da irm� e a sua pequenina filha, Marina. Foi um Natal triste
para Zoya quando abriu os presentes com Matthew, esfor�ando-se por
conter as l�grimas e interrogando-se sobre se haveria algo que pudesse ter
feito e n�o fizera pela filha.
Talvez se nunca tivesse trabalhado, se as coisas se apresentassem mais
f�ceis, se Clayton n�o tivesse morrido... nem Simon... ou talvez... A dor
era infinda enquanto tentava concentrar-se em Matthew, que parecia n�o
compreender o que acontecera � irm�. O mi�do era demasiado calmo, o
que assustava Zoya. No entanto, tomou consci�ncia de que ele
compreendia perfeitamente quando levantou os olhos e perguntou a Zoya:
- Ela estava outra vez embriagada, mam�?
Ficou chocada ao ouvir as palavras de Matthew, mas ele tinha raz�o.
Estava mesmo. Zoya n�o o negou, enquanto pegava ao colo na filha de
Sasha. Nessa noite, Zoya deixou-sc ficar sentada a olh�-la. A mi�da abriu
os olhos e bocejou, sonolenta. Tinha quatro meses e apenas lhe restava
agora Zoya, e Matthew e Nicholas, os tios.
- Estou velha de mais para isto - suspirou Zoya nessa noite quando
Paul telefonou, como habitualmente.
- N�o, n�o � verdade. Ela estar� melhor contigo do que estaria com
eles. � uma crian�a com sorte. - E ele era um homem com sorte por
partilhar a vida com ela.
As b�n��os na vida de Zoya tocavam todos � volta dela... exceptuando
Sasha; voltou a sentir-se culpada nessa noite, sabendo que falhara. Mas
como poderia ter agido de outra forrna? Soube com uma dor aguilhoante
que nunca teria a resposta. Para compensar, apenas poderia amar Marina
como se fosse sua pr�pria filha. Colocou o ber�o da beb� ao lado da sua
cama e sentou-se durante horas a observ�-la a dormir, de olhos fechados,
o cabelo ruivo e sedoso, como o de Zoya. Prometeu proteg�-la e desta vez
dar o seu melhor.
Com um solu�o na garganta, lembrou-se da noite em que Sasha e
Nicholas quase haviam morrido no inc�ndio... a pequena Sasha prostrada
no passeio com os bombeiros tentando reanim�-la e, por fim, mexendo-se.
Zoya reprimira os solu�os como o fazia agora ao record�-la... Como � que
tudo correra t�o mal? Afinal e apesar de tudo, perdera-a tendo ela
somente vinte e um anos.
O funeral realizou-se dois dias depois e estiveram presentes amigas do
liceu e pessoas que ela conhecera em Nova Iorque. Os rostos denotavam
um sil�ncio chocado quando Zoya saiu da igreja pelo bra�o de Nicholas
e dando a m�o a Matthew. Avistou Paul, que se mantinha solenemente
na �ltima fila, o cabelo grisalho ressaltando acima da multid�o e os olhos
oferecendo-lhe tudo o que sentia por ela.
Fitou-o um momento e depois afastou-se com os dois filhos de cada
lado, enquanto a pequena Marina, cuja vida estava ainda no in�cio, os
esperava em casa, na cama ao lado da de Zoya.
CAPITULO 49
Mil novecentos e quarenta e sete foi o ano do new look de Dior, e
Zoya viajou at� Paris acompanhada por Matthew e Marina quando foi
encomendar as novas linhas. Matthew tinha ent�o quase oito anos e
Marina ainda era beb�. Contudo, ela levou Marthew � Torre Eiffel,
caminhou com ele junto ao Sena e foi �s Tulherias, onde estivera com
Eugenia h� tanto tempo atr�s.
- Fala-me outra vez da tua av�. - Zoya sorriu e contou-lhe tudo outra
vez, sobre as tr�icas russas de quando ela era crian�a, as brincadeiras que
tinham e as pessoas que haviam conhecido. Era uma forma de partilhar
a sua hist�ria com o filho e na verdade a dele tamb�m.
Depois foram at� ao Sul de Fran�a e, no ano seguinte, de novo com
os filhos, Zoya viajou at� Roma. Levava Marina por todo o lado, como se
de qualquer maneira pudesse compens�-la pela m�e que ela perdera.
Marina era agora como se fosse sua filha e parecia-se imenso com
Zoya, ao andar no seu passinho hesitante pelo navio no regresso a casa,
e as pessoas supuseram naturalmente que era filha dela. Aos quarenta e
nove anos conservava uma apar�ncia juvenil e n�o era assim t�o incr�vel
que ainda tivesse filhos jovens junto dela.
- Mant�m-me jovem, suponho - disse a Paul mais de uma vez.
E ele estava inteiramente de acordo. Parecia ainda mais bonita que
dantes. Nessa altura, Nicholas dirigia a firma e, na Primavera de 1951,
tinha o perfeito controlo das f�bricas de t�xteis. Estava agora quase com
trinta anos e, quando Zoya regressou da Europa com os mi�dos, apareceu
para ouvir tudo sobre a viagem.
Marthew tinha onze anos, Marina quatro e meio e um cabelo ruivo e
brilhante e grandes olhos verdes. Riu � gargalhada quando Nicholas lhe
fez c�cegas. Depois foi deit�-la e voltou � sala para contar os seus planos
a Zoya.
- Bom, mam�... - Hesitou com um sorriso, e ela pressentiu que algo
de importante acontecera.
- Sim, Nicholas? Devo compor uma express�o s�ria ou est�s apenas
a tentar assustar-me?
H� uns tempos que esperava as novidades. Ele andava a sair com uma
bela rapariga do Sul. Conhecera-a quando estava na Carolina do Sul, de
visita �s f�bricas. Era muito bonita e um pouco mimada. Por�m, Zoya
nunca fizera coment�rios. O filho era adulto e livre de tomar as op��es
que quisesse. Como afirmara a Paul, respeitava a sua opini�o. Era um
homem jovem e sens�vel, de bom cora��o e uma intelig�ncia que se
desenvolvera ao estar � frente dos neg�cios de Simon.
- Ficar�s muito surpreendida se te disser que vou casar-me no
Outono? - Os olhos denotavam um brilho divertido e ela riu.
- Devo ficar surpreendida, meu querido?
- A Elizabeth e eu vamos casar-nos - anunciou orgulhosamente.
- Sinto-me contente por ti, meu amor - replicou, fitando-o com um
sorriso. Ele era um homem bom, e os seus dois pais teriam tido orgulho
nele. - Espero que ela te fa�a feliz.
- J� faz.
Zoya n�o podia ter pedido mais e, na pr�xima vez que falaram,
ofereceu-se para a ajudar a encontrar um vestido de casamento,
recordando a inspec��o a que Sofia a submetera antes dela e Simon terem
casado. H� muito que os pais de Simon tinham morrido e os tios depois.
Nunca fora muito pr�xima deles, mas zelara para que Matthew os visitasse
frequentemente antes de morrerem, e eles mostraram-se gratos por esse
facto.
Controlou-se para n�o parecer dificil, quando Elizabeth entrou de
rompante pela loja e foi brusca para com todos. O vestido de casamento
era o menos. Esperava igualmente que Zoya lhes oferecesse todo o
enxoval dela e lhes comprasse um apartamento.
Zoya sentiu um leve arrepio na espinha quando assistiu ao casamento
e observou Matthew equilibrando as alian�as na almofada que segurava
e Marina balou�ando um cestinho de P�talas de rosa, quando acenou �
av� postada na fila de frente. Zova sorriu-lhes, orgulhosa.
Contudo Nicholas satisfez-lhe todos os desejos e exig�ncias e
submeteu-se a todos os seus caprichos at� ao dia em que n�o aguentou
mais. Quase quatro anos depois do dia em que Zoya observara Marina a
lan�ar-lhes p�talas de rosa, Nicholas mandou Elizabeth para casa dos pais.
Nessa altura, Marina tinha nove anos e Zoya levava-a todos os dias �s
aulas de ballet. Fora a sua �nica paix�o na vida desde os cinco.
E, desta vez, Zoya estava decidida a fazer tudo o que pudesse pela
mi�da, continuando a sentir que de certa maneira falhara com Sasha.
Sa�a todos os dias da loja �s tr�s horas, ia buscar Marina a Miss
Nightingale's e levava-a �s aulas de ballet, onde ela executava os mesmos
tours jet�s, os mesmos pol��s, os mesmos exerc�cios que Zoya executara h�
muito tempo em Sampetersburgo com Madame Nastova.
Era estranho como as coisas se repetiam. Falou-lhe doi Marinski, de
todas as suas maravilhas e alegrias e de como Madame Nastova se
mostrara exigente. E quando ela e Nicholas foram assistir ao seu recital,
observou tranquilamente e. chorou. Nicholas pegou-lhe na m�o, e Zoya
sorriu por entre as l�grimas, assistindo � exibi��o de Marina.
- E t�o meiga e inocente. - Para ela a vida estava agora a come�ar.
E trabalhava t�o empenhadamente em tudo, era uma crian�a t�o boa e
franca. Matthew era como se fosse seu irm�o, embora tivessem sete anos
de diferen�a, contrariamente a Nicolai, quando ela estava a crescer. Era
estranho como acontecia uma e outra vez, de gera��o em gera��o, a sua
pr�pria paix�o pelo ballet renascida em Marina.
Nessa noite, Paul ofereceu um pequeno bouquet � potencial bailarina
e, depois de Marina se ter ido deitar, falando excitada em como correra
o recital, fez-lhe a pergunta que Zoya receara ouvir da sua boca h� anos.
A mulher morrera finalmente de cirrose h� uns meses e ele fitou Zoya
com uma express�o tranquila no sil�ncio da biblioteca depois de Nicholas
ter sa�do, de volta ao seu apartamento.
- Zoya... depois de doze anos, agora posso perguntar-te. Casas
comigo? - Estendeu a m�o na sua direc��o e ela fitou-o com um sorriso
nascido de um amor h� muito partilhado, mas nunca totalmente
concretizado.
H� doze anos que estavam juntos e ela amava-o profundamente e
dava um imenso valor � amizade que os unia, mas esse tempo passara
para ela. Nunca quisera voltar a casar depois de Sinion. Sentia-se feliz,
observando Matthew a crescer e Marina a dan�ar.
Continuava a movinientar-se pela loja com a mesma energia de
outrora. Aos cinquenta e seis anos, pouco abrandara. No entanto, o
casamento n�o era o que desejava nesse momento e tocou-lhe suavemente
os dedos com os l�bios, abanando a cabe�a.
- N�o posso, Paul, meu querido.
Ele pareceu magoado ao ouvi-la, e Zoya tentou encontrar as palavras
correctas para explicar.
- J� passei essa altura. Sou velha de mais para casar com quem quer
que seja.
- N�o digas isso, Zoya! Olha bem para ti. N�o mudaste, desde a
primeira vez que te vi. - Ela mantinha a mesma beleza de sempre.
- Mudei, sim. - Sorriu com afecto. - Por dentro. Quero envelhecer
tranquilamente, observando o Matthew a seguir o seu caminho e a Marina
a transformar-se no que quer mesmo ser. Quero que ela tenha o prazer
de fazer exactamente o que quer, ser o que tem de ser... e � apenas o que
quero tamb�m.
Paul temera essa resposta, mesmo antes de lhe perguntar. H� anos
que queria casar com ela, mas n�o pudera. E, agora que estava livre, o
momento passara para ela. Interrogou-se sobre se tudo seria diferente, se
Allison tivesse morrido mais cedo.
Os seus fins-de-semana com Zoya eram agora menos frequentes, mas
continuavam a ir de vez em quando � casa dele em Connecticut, s� que
nos �ltimos anos tinham-se tornado menos importantes para ela. O que
realmente lhe interessava era a amizade que os unia, e preferia-a ao
casamento. Teria desejado paix�o, e a sua �nica paix�o agora residia nos
filhos. Nos filhos e tamb�m na loja. Sempre isso, em mem�ria de Simon.
- N�o posso voltar a ser a mulher de ningu�m. Se�-o agora. Dei tudo
o que tinha a dar ao Clayton e depois ao Simon, h� muito tempo atr�s.
Agora, existo eu. As crian�as, o meu trabalho e tu, quando os dois
estamos dispon�veis. N�o conseguiria, por�m, dar-te o bastante de mim
que justificasse o casamento. Seria injusto.
"Quero algum tempo para mim, Paul, por mais terr�vel que isso te
pare�a. Contudo, talvez tenha chegado a minha vez de ser ego�sta. Quero
viajar quando as crian�as tiverem idade suficiente, para me sentir de novo
livre. Talvez voltar um dia � R�ssia... visitar novamente Sampetersburgo...
ou Livadia.
Sabia que seria doloroso, mas era um sonho que acalentara nos
�ltimos anos e se tornava mais poss�vel, de ano para ano. Apenas
necessitava de tempo e coragem para regressar. Contudo, sabia tamb�m
que n�o podia fazer nada disso com ele, que tinha a sua vida, a sua casa,
os amigos, o trabalho, a jardinagem... A vida dele abrandara bastante nos
�ltimos anos.
- Acho que finalmente cresci - prosseguiu. Aos sessenta e seis anos,
ele parecia-lhe subitamente muito mais velho, mas Zoya n�o o disse. -
Estive t�o ocupada a sobreviver durante tantos anos. Acabei finalmente
por descobrir que h� muito mais do que isso. Talvez, se o tivesse sabido mais cedo... talvez tudo fosse diferente para a Sasha. - Continuava a
culpar-se pela morte da filha e era dificil olhar para tr�s e ver que poderia
ter agido de forma diferente, mas tamb�m j� n�o interessava. Para Sasha
era tarde de mais, mas n�o para Matthew, para Marina, nem mesmo para
ela. Ainda lhe restava un tempo de vida e resolvera gast�-lo � sua
maneira, independentemente de quanto amava Paul Kelly.
- Quer dizer que para n�s terminou? - replicou, fitando-a com um
olhar triste. Ela inclinou-se meigamente, beijou-o nos l�bios e ele sentiu-se
invadido pelo mesmo fogo de sempre desde o primeiro dia em que se
tinham conhecido.
- S� se quiseres. Se conseguires aceitar-me assim, estarei aqui para te
amar, muito, muito tempo. - Da mesma maneira que estivera durante os
anos em que ele era casado.
- Para sorte minha - gracejou Paul -, o mundo mudou finalmente e as
pessoas est�o a fazer coisas que terian, chocado o mundo h� vinte anos,
dormindo abertamente umas com as outras, vivendo em pecado... E o que
acontece. Ofere�o-te respeitabilidade doze anos tarde de mais. - Ambos
riram e sentaram-se confortavelmente na biblioteca... - �s muito jovem
para mim, Zoya.
- Obrigada, Paul.
Voltaram a beijar-se e, pouco depois, ele foi para casa. Ela prometera
passar o fim-de-semana em Connecticut na sua companhia e ele ficara um
pouco mais brando. Zoya foi nos bicos dos p�s at� ao quarto de Marina
para a observar durante o sono e sorriu novamente.Um dia, o mundo
seria dela. Os olos de Zoya encheram-se-lhe de l�grimas quando se
inclinou ternamente para a beijar no rosto e, sem acordar, Marina mexeu-
se um pouco sob a m�o afectuosa da av�.
- Dan�a, pequenina... pequena bailarina... dan�a...
CAP�TULO 50
Os anos dos Kennedy foram excitantes para Zoya na loja. A jovem
mulher do senador denotou tend�ncias inovadoras que todos seguiram.
Zoya admirava-a muito. Foi mesmo convidada para jantar na Casa
Branca, com grande satisfa��o do seu filho mais velho.
Zoya era ainda bonita e elegante como o fora em crian�a. Aos
sessenta e um anos era reconhecida por todos quando se movia
orgulhosamente pela loja, endireitando um chap�u, franzindo o sobrolho
ante algo que lhe desagradava, mudando as flores com m�o experiente.
Nessa altura, Axelle j� morrera e a sua loja era apenas uma lembran�a,
mas Zoya aprendera muito bem as li��es pela m�o dela.
Marina estava na Juilliard, dan�ava profissionalmente de vez em
quando e, sempre que Zoya a via dan�ar, quase sentia o cora��o saltar-lhe
no peito como na altura em que dan�ara para Diaghilev, h� mais de
quarenta anos.
Matthew formou-se por Harvard em Junho de 1961 e Zoya sentou-se
na primeira fila com Nicholas e aplaudiu-o. Era um belo jovem e
orgulhava-se dele. Ia continuar gest�o e depois trabalhar na loja com ela.
Nicholas queria que ele ficasse ao seu lado, mas Matthew confessou
sentir-se mais interessado pela venda a retalho. Zoya prometera manter
a loja aberta at� ele estar preparado, e os dois riram.
- N�o fechavas a porta, nem que tudo ardesse - tro�ou Matthew, e ela
riu.
Conhecia bem os filhos e amava-os profundamente. Conversava,
distra�da, com Nicholas num voo de regresso a Nova lorque e, por fim,
virou-se para ele. Era f�cil detectar que havia algo a preocup�-lo e decidiu
perguntar.
- Muito bem, o que se passa, Nicholas? N�o consigo aguentar mais o
suspense. - Os olhos emitiam um brilho trocista, e ele riu nervosamente.
- Conheces-me bem de mais. - Endireitou o n� da gravata e aclarou
a garganta.
- � natural, depois de todo este tempo. - Ele tinha agora trinta e nove
anos. - O que est�s a esconder-me? - E lembrou-se subitamente do irm�o
a levar a dar um passeio h� mil anos e de ela o espica�ar quanto �
bailarina. Soube sem que ele lhe dissesse que a causa da atrapalha��o do
filho era uma mulher.
- Vou casar-me novamente.
- Devo aplaudir ou chorar? - Riu. - Vou gostar mais desta do que da
�ltima?
Fitou-a tranquilamente, um homem elegante de olhos argutos.
- � advogada. Na verdade, vai colaborar com o Paul Kelly. Vive em
Washington e tem trabalhado para a administra��o dos Kennedy. �
divertida, inteligente e uma cozinheira fant�stica... - Riu. - E estou doido
por ela. - Na verdade - acrescentou, parecendo de novo pouco � vontade
-, esperava que viesses jantar connosco esta noite, se n�o estiveres muito
cansada. - H� mais de um ano que andavam naquela roda-viva entre Nova
lorque e Washington.
Zoya olhou-o com uma express�o s�ria, esperan�ada que desta vez ele
tivesse feito uma escolha mais acertada.
- Ia trabalhar at� tarde na loja, mas... poderia deixar-me convencer.
Ambos riam quando ele a deixou no apartamento a caminho do dele.
Julie j� o esperava e ele disse-lhe que convidara a m�e para jantar com
eles.
- Oh, n�o! E se ela me odeia? - retorquiu Julie com uma express�o
aterrorizada. - Olha para este vestido! N�o trouxe nada decente de
Washington.
- Est�s uma maravilha. Ela n�o dar� nenhuma import�ncia a isso.
- N�o dar�, uma ova! - Vira fotografias de Zoya, que parecia sempre
impec�vel e vestida segundo a �ltima moda.
Zoya examinou-a atentamente nessa noite quando foram jantar ao La
C�te Basque. Ficava pr�ximo da loja e era o seu restaurante favorito. E
ela correspondia � descri��o de NichoIas: divertida, inteligente, excitada
com a vida e atenta ao trabalho, mas n�o obcecada. Tinha dez anos
menos que NichoIas e Zoya estava certa de que daria uma boa esposa.
A tal ponto, que tomou uma decis�o importante quando os deixou nessa
noite. Iria dar-lhes o ovo imperial como presente de casamento. Chegara
a altura de o passar aos filhos.
Nessa noite, regressou calmamente a p� � loja depois do jantar e
entrou com a sua chave, percorrendo os corredores silenciosos. O
seguran�a n�o ficou surpreendido ao avistar luz por baixo da porta do seu
gabinete. Aparecia frequentemente � noite, para verificar coisas e levar
algum trabalho para casa.
E ao voltar ao apartamento, pensou de si para si como seria bom ter
um dia Matthew a trabalhar ao seu lado. Ele era a luz da sua vida, o filho
que se achara demasiado velha para dar � luz. Simon tivera raz�o. At�
mesmo agora, servia para a manter jovem, enquanto caminhava muito
direita, aos sessenta e dois anos, ao encontro de Marina, que esperava
ansiosamente a p� o regresso da sua querida av�.
Era meia-noite quando chegou a casa e ouviu a neta cham�-la do
quarto.
- Av�? �s tu?
- Espero bem que sim. - Entrou no quarto, tirou o chap�u que pusera
para ir jantar com Nicholas e Julie e sorriu � neta que tanto se parecia
com ela. Tinha o cabelo ruivo t�o comprido como o seu, que agora estava
branco, e tombava-lhe numa cascata sobre os ombros.
- Imagina s�. que fui convidada para dan�ar no Lincoln Center!
- Mas isso � �ptimo! Conta-me! - Sentou-se na beira da cama, ouvindo
a sua alegre tagarelice. Vivia apenas para a dan�a, mas agora tinha a
certeza de que a neta possu�a um enorme talento.e n�o se tratava de mero
orgulho de av�. - V� l�! Avan�a. - E ela desbobinara os nomes de todo
o elenco, o core�grafo, o director, pois aos seus olhos o "quando" n�o era
assim t�o significativo.
- Daqui a seis semanas! Acreditas? Acho que n�o vou estar
preparada!
- Claro que estar�s.
Os seus estudos tinham sido um pouco prejudicados pela dan�a nos
�ltimos anos, mas Marina n�o se importava, e Zoya interrogava-se
frequentemente sobre se, desta vez, as musas cantariam, se Marina viria
a ser uma famosa bailarina. H� muito que lhe falara de ter dan�ado para
os Ballets Russes em Paris na sua juventude, uma vez com Nijinski e,
muito depois, contara-lhe a sua experi�ncia no Fitzhugh's. Marina adorava
a hist�ria, pois fazia com que a av� parecesse muito mais ex�tica.
E, seis semanas depois, o espect�culo correu optimamente. Recebeu
a sua primeira cr�tica. Aos quinze anos estava lan�ada. Marina era uma
verdadeira bailarina.
CAPITULO 51
O primeiro rebento de Nicholas, uma filha, nasceu em 1963, no
mesmo ano em que John Kennedy foi abatido a tiro e em que Matthew
foi trabalhar para a loja de Zoya. E ela sentiu-se extremamente lisonjeada
quando Nicholas e Julie chamaram Zoe � filha. Tratava-se de uma
americaniza��o do seu nome e, na verdade, agradava-lhe muito mais.
Aos dezassete anos, Marina dan�ava agora a tempo inteiro. Adoptara
o nome russo de Zoya e era conhecida por Marina Ossupov. Trabalhava
arduamente e viajava por todo c pa�s. Nicholas achava que ela devia ser
obrigada a seguir a faculdade, depois de ter acabado o liceu, mas Zoya
n�o se mostrava de acordo.
- Nem todos s�o talhados para os estudos, Nicholas. Ela j� tem uma
vida. Agora que �s pai, n�o sejas t�o lin�tado.
Zoya estava sempre aberta a ideias novas, sempre excitada com a vida
e jamais entediada. E Paul continuava a am�-la profundamente. Retirara-
se h� v�rios anos e estava a viver em Connecticut a tempo inteiro. Zoya
ia v�-lo sempre que podia e Paul queixava-se sempre que ela estava
demasiado ocupada.
A loja parecera ganhar uma vida nova. Ela introduzira Cardin, Saint
Laurent, Courr�ges, e agora Matthew acompanhava-a sempre que ia a
Paris. Andava atr�s de todas as modelos que lhe era poss�vel e gostava de
ficar no Ritz. Aos vinte e quatro anos, era um jovem entusiasta e
malicioso, recordando a m�e. E, em vez de abrandar o ritmo, como
prometera fazer depois dele entrar em cena, Zoya dava a sensa��o de
trabalhar ainda mais.
- A tua m�e � fant�stica! - comentava Julie para Nicholas e,
contrariamente � maioria das noras, falava a s�rio.
As duas mulheres almo�avam ocasionalmente juntas e, quando Zoe
fez cinco anos, Zoya comprou-lhe o primeiro tutu e as sapatilhas. Nessa
altura, Marina tinha vinte e dois anos e era uma estrela. Dan�ara por todo
o mundo e obtivera as melhores cr�ticas. Era a menina querida dos f�s de
bailado por toda a parte e, no ano anterior, chegara a dan�ar na R�ssia.
Contara excitadamente a Zoya a sua viagem a Leninegrado, que fora
Sampetersburgo, estivera no Pal�cio de Inverno e visitara o Marinski.
Ao ouvi-la, os olhos de Zoya encheram-se de l�grimas. Era como que
um sonho tornado realidade... Todos aqueles lugares que abandonara h�
mais de cinquenta anos, onde deixara um bocado de si mesma e que
Marina visitara agora. Continuava a falar em ir � R�ssia, mas insistia em
que estava a reservar a viagem para a velhice.
- E quando ser� isso, mam�? - tro�ou Nicholas por altura do seu
septuag�simo anivers�rio. - Estou a envelhecer mais depressa do que tu.
Tenho quase cinquenta. O problema � que tu n�o aparentas a idade e eu
sim.
- N�o sejas pateta, Nicholas. Estou uma anci�. - Contudo e
surpreendentemente, a verdade n�o era essa. Continuava bonita, o cabelo
ruivo embranquecera, mas vestia-se de uma forma requintada e a roupa
que usava denotava a sua figura ainda elegante. Constitu�a um alvo de
inveja para todos os que a conheciam. As pessoas continuavam a ir � loja
e suplicavam para ver a condessa. Mattew estava sempre a contar hist�rias
engra�adas de pessoas que insistiam em que t�nham de a ver. - Um pouco
como o Lotivre - replicou Zoya, secamente. - S� que em ponto pequeno.
- N�o sejas modesta, m�e. Sem ti, a loja nada seria.
Contudo, j� n�o era verdade. Matthew tinha aplicado as t�cnicas de
venda que aprendera e, nos primeiros cinco anos, duplicara as vendas.
Adicionara um novo perfume chamado, obviamente, Condessa Zoya um
ano depois e, nos primeiros cinco anos, as vendas duplicaram novamente.
Em 1974, a condessa Zoya, a mulher e a loja, eram uma lenda.
Por�m, com a lenda chegaram propostas que interessavam Matthew
e assustavam a m�e. Associa��es queriam comprar a loja, bem como
outras cadeias, uma empresa de bebidas e uma companhia que vendia
comida enlatada mas que queria diversificar os seus investimentos.
Matthew foi ao gabinete de Nicholas discutir o assunto e os dois irm�os
conferenciaram durante dias. Nicholas apenas se mostrava surpreendido
por as ofertas n�o terem surgido mais cedo.
- � um tributo que te fazem - retorquiu Nicholas com uma express�o
tranquila e fitando afectuosamente o irm�o mais novo. Contudo, Matthew
limitava-se a abanar a cabe�a e a percorrer a sala em passos r�pidos. Era
um homem em permanente movimento. Pegou em livros, examinou os
objectos expostos nas prateleiras do irm�o e depois virou-se para o
enfrentar, voltando a sacudir a cabe�a.
- N�o, n�o �, Nick. � um tributo a ela. Apenas fiz o perfume.
- N�o � inteiramente verdade. Analisei os n�meros.
- Isso n�o � importante. Mas o que vamos dizer � mam�? Sei o que
ela pensar�. Tenho trinta e cinco anos e posso arranjar outro emprego.
A mam� tem setenta e cinco. Para ela, ser� o fim.
- N�o estou assim t�o certo.
Nicholas ponderou o assunto. De um ponto de vista comercial, as
ofertas eram demasiado boas para serem recusadas, sobretudo uma e que
agradava aos dois. Mantinha Matthew durante cinco anos como presidente
e consultor e dava a todos uma quantia fant�stica, incluindo Zoya.
Contudo, ambos sabiam que n�o era o dinheiro que interessava � m�e.
Era a loja, as pessoas e o movimento.
- Acho que ela vai compreender o valor de tudo isto. - Nicholas assim
o esperava, mas Matthew desatou a rir e deixou-se cair numa cadeira de
cabedal.
- Ent�o, n�o conheces a nossa m�e. Vai ter um ataque. O que temos
de pensar � no que ela far� depois. N�o quero que fique deprimida. Na
idade dela, poderia mat�-la.
- � algo a ponderar tamb�m - acrescentou Nicholas sabiamente. - Aos
setenta e cinco anos, n�o podemos esperar que viva eternamente. E �
natural que tudo mude quando ela desaparecer, mesmo contigo l�. Ela
confere um toque especial � loja. Sente-se vida quando ela entra.
Zoya continuava a ir trabalhar todos os dias, embora sa�sse
pontualmente �s cinco horas e fosse levada a casa por um motorista. H�
v�rios anos que Nicholas insistira nesse ponto e ela acedera. Contudo,
estava novamente na loja �s nove, quer chovesse ou fizesse sol.
- Vamos ter de falar com ela - decidiu finalmente Matthew.
Por�m, quando o fizeram, Zoya teve a reac��o que o filho t�o
sabiamente havia previsto.
- Por favor, mam� - suplicou. - V� s� o que nos ofereceni. - Zoya
virou-se na sua direc��o e fitou-o com um olhar de gelo que teria feito jus
� sua pr�pria m�e.
- H� algo que desconhe�o? Fic�mos subitamente pobres ou estamos
s� a ser ambiciosos?
Fixou intencionalmente o filho e ele soltou uma gargalhada. A m�e
era insuport�vel, mas ele amava-a. H� cinco anos que vivia com a mesma
mulher e estava convencido de que a �nica raz�o porque a amava se devia
� sua origem russa, ao cabelo ruivo e a uma vaga parecen�a com Zoya.
Sabia que era muito freudiano e admitira-o mais do que uma vez.
Contudo, ela era tamb�m muito esperta e sensual. Igualmente pr�xima da
m�e.
- Prometes, pelo menos, reflectir no assunto? - perguntou Nicholas.
- Sim, mas n�o esperes que aceite. N�o vou vender a loja a um
fabricante de comida para c�o s� porque voc�s os dois est�o entediados. -
Virou-se, em seguida, para o filho mais novo: - Porque n�o inventas um
novo perfume?
- Nunca conseguiremos uma oferta igual, mam�.
- Ser� que a queremos? - Ao olh�-los, compreendeu e sentiu-se
inegavelmente ferida. - Acham-me demasiado velha, n�o � verdade? -
Fixou ora Nicholas ora Matthew e emocionou-se ante o respeito e amor
que apreendeu. - E estou. N�o h� d�vida. Mas estou de boa sa�de. E em
meu perfeito juizo - acrescentou, semicerrando os olhos. - Estava a pensar
em retirar-me aos oitenta. - Riram os tr�s e ela levantou-se e prometeu
pensar no assunto.
Nos quatro meses seguintes, a batalha continuou � inedida que
chegavam novas ofertas, cada uma delas melhor que a anterior. Contudo,
o �mago da quest�o n�o era quanto, mas se iriam realmente vender. E,
na Primavera de 1975, quando Paul morreu tranquilamente durante o
sono aos oitenta e seis anos, Zoya come�ou a entender que n�o duraria
para sempre.
Era injusto manter os filhos agrilhoados e recusar-lhes o direito de
fazerem o que queriam. Tivera a sua vida, divertira-se e n�o lhe cabia o
direito de alterar o curso da deles. Com a mesma firmeza com que os
enfrentara, capitulou graciosamente uma tarde, no final de uma reuni�o
de quadros, surpreendendo toda a gente.
- Falas a s�rio? - retorquiu Nicholas, fitando-a, surpreso. Nessa altura,
j� se resignara a conservar a loja nem que fosse apenas pela m�e.
- Sim, Nicky. Falo. - Expressou-se calmamente, tratando-o pelo
diminutivo que n�o usava h� anos. - Acho que chegou a altura.
- Tens a certeza? - Sentia-se repentinamente nervoso ante aquela
ced�ncia t�o branda. Talvez n�o se sentisse bem, ou estivesse deprimida.
Mas, ao fitar os profundos olhos verdes, n�o teve essa sensa��o.
- Tenho a certeza, se � o que ambos desejam. Descobrirei outra coisa
para fazer. Quero viajar um pouco. - H� umas semanas atr�s prometera
a Zoe que a levaria a Paris no Ver�o. Levantou-se devagar e passeou o
olhar pelo conselho de ger�ncia. - Obrigada, meus senhores. Pela vossa
arg�cia, paci�ncia e pela alegria que me deram.
Abrira a loja h� quase quarenta anos, antes de alguns deles terem
mesmo nascido. Deu a volta � mesa e apertou a m�o a toda a gente e,
quando saiu, Matthew enxugou os olhos. Fora um momento
extraordin�rio.
- Acho que est� decidido - redarguiu Nicholas, fitando tristemente o
irm�o, depois de ela ter sa�do. - Quanto tempo pensas que demorar� a
concluir o neg�cio? - J� haviam optado pela proposta desejada.
- Uns meses. Devemos estar instalados no Ver�o. - Matthew parecia
em simult�neo comovido e excitado.
Nicholas esbo�ou um aceno de cabe�a, com uma express�o sombria.
- Ela quer levar a Zoe � Europa. Ia desencoraj�-la, mas agora acho
que n�o o farei.
- Vai fazer bem �s duas.
Nicholas anuiu com um novo movimento de cabe�a e regressou ao
gabinete.
CAP�TULO 52
O dia amanheceu claro e soalheiro, quando Zoya se sentou �
secret�ria pela �ltima vez. Tinha empacotado as suas coisas no dia
anterior, e Matthew organizara-lhe uma festa fant�stica. A loja enchera-se
de todos os nomes conhecidos, a elite da sociedade e dois membros da
realeza. Todos a tinham beijado e abra�ado e recordado.
E agora sentava-se e recordava-os, trinta e oito anos da presen�a de
todos, enquanto se preparava para abandonar o gabinete. Provavelmente,
o motorista esperava-a l� fora, mas n�a pressa de ir, mantendo-se junto
� janela observando a Quinta Avenida, observando o tr�nsito l� em baixo.
Tanta coisa mudara em quarenta anos, tantos sonhos realizados e
outros desfeitos. Lembrou-se de como Simon a ajudara a come�ar a loja,
de como se mostrara entusiasmado, de como se haviam sentido felizes na
primeira viagem de compras � Europa. Parecia toda uma vida,
desaparecida num momento.
- Condessa?... - Uma voz suave chamou-a da porta e, ao virar-se,
deparou com a sua �ltima assistente, uma rapariga mais nova do que a sua neeta mais velha.
- Sim?
- O carro aguarda l� em baixo. O motorista mandou avisar para o caso
de estar � espera.
- Obrigada. - Sorriu graciosamente, de costas direitas e um briIho
orgulhoso nos olhos. - Diga-lhe, por favor, que des�o j�. - As palavras e
o porte ainda emanavam nobreza, mais do que o proprio t�tulo. Ningu�m
que tivesse trabalhado para ela alguma vez a esqueceria.
A porta fechou-se sem ru�do depois de ela olhar uma vez mais em
redor. Sabia que voltaria para visitar Matthew, mas nunca mais seria o
mesmo. Agora, a loja era deles. Fora um presente que eles haviam optado
por vender. Contudo, suspeitava que Simon n�o teria discordado. Ele
tinha sido um arguto homem de neg�cios e Matthew n�o lhe ficava atr�s.
Deitou um �ltimo olhar por cima do ombro e fechou a porta, muito
direita, vestida com um novo conjunto Clianel azul-escuro e o cabelo
apanhado com esmero. E, ao sair do gabinete, quase chocou com Zoe.
- Av�! Estava com medo que te tivesses ido embora. Olha! Olha s�
o que tenho! - H� muito que Nicholas concordara com a viagem a Paris
e partiriam dali a duas semanas, mas desta vez n�o de navio. Iam de
avi�o. N�o havia navios em que lhe apetecesse viajar, e Zoe n�o se
importava. Pulava de alegria com toda a exuber�ncia dos seus doze anos
e as m�os cheias de brochuras.
- O que tens, ent�o? - indagou Zoya a rir.
A neta olhou por cima do ombro, como se tivesse sido seguida e
sussurrou num tom conspirat�rio:
- N�o digas ao pap�. Depois de l� chegarmos, ele nunca vir� a saber. -
As brochuras que Zoe tinha na m�o n�o eram de Paris, mas da R�ssia.
As espiras do Pal�cio de Inverno fitavam-na, orgulhosas, das fotografias.
O Pal�cio Alexandre... o Antitchkov... Zoya fitou-a com uma muda
admira��o.
- Vamos antes � R�ssia, av�! - H� anos que andava a fazer a
promessa a si pr�pria e agora, com a pequena Zoe, talvez se sentisse
preparada.
- N�o sei. Talvez o teu pai n�o queira que tu... - E depois sorriu.
Partira com a av� h� meio s�culo e agora podia voltar com a sua neta. -
Acho que me agrada a ideia, sabes? - retorquiu, pondo um bra�o � volta
dos ombros da neta. Entrou com ela no elevador, examinando as
brochuras e pensando nos planos de ambas.
Chegaram ao r�s-do-ch�o e ergueu o rosto, surpreendida, ao deparar
com as empregadas, de p� e muitas delas chorando sem vergonha. Beijou
uma ou duas e depois tudo acabou subitamente e viu-se com a neta na
Quinta Avenida, mandando embora o motorista. N�o queria ir de carro.
Iriam dar um longo passeio, enquanto Zoe tagarelava, excitada, sobre a viagem.
- E depois... pod�amos ir a Moscovo!... - Os olhos brilhavam-lhe como os de Zoya, enquanto escutava.
- N�o. Moscovo foi sempre muito mon�tono. Sampetersburgo... e
talvez... Sabes... Quando eu era mi�da, costum�vanios passar o Ver�o no pal�cio em Livadia... na Crimeia...
Desceram a rua de m�o dada, quando a limusina de Nicholas subia
a rua devagar. N�o conseguira suportar a ideia de que a m�e abandonasse a loja sozinha, viera busc�-la e depois avistou-as subitamente... as costas direitas no conjunto Chanel e a sua pr�pria filha com o cabelo negro esvoa�ando, falando animadamente sobre algo.
A velhice e a juventude. O passado e o futuro regressando a casa, de m�o dada. Resolveu deix�-las s�s e entrou lentamente na loja para falar com Matthew.
- Achas que podemos ir, av�?... A Livadia, quero dizer... - Fitava-a com uns olhos cheios de amor e Zoya sorriu.
- Claro que tentaremos, n�o �, minha querida?
**
Danielle Steel nasceu em Nova Iorque em 1949. Passou parte da sua inf�ncia em Fran�a e, regressada aos Estados Unidos, estudou Literatura Francesa e Italiana na Universidade de Nova Iorque. Autora de mais de 30 romances, 300 milh�es de livros vendidos, traduzida em 50 l�nguas e publicada em 80 pa�ses.
De: antónio veloso
Zoya - Danielle Steel
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