domingo, 13 de outubro de 2024

{clube-do-e-livro} Lançamento : Do Outro Lado - Mary del Priori - Formatos: Pdf e txt

Planeta


Copyright � Mary del Priore, 2014


CIP-BRASIL. CATALOGA��O NA PUBLICA��O
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

D375o

Del Priore, Mary, 1952Do
outro lado / Mary Del Priore. - 1 ed. - S�o Paulo: Planeta, 2014.
il.

ISBN 978-85-422-0405-6

1. Espiritismo. 2. Brasil - Hist�ria. I. T�tulo.
14-14346 CDD: 133.9
CDD: 133.9

Todos os direitos desta edi��o reservados �
EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA.
Rua Padre Jo�o Manuel, 100 -21 � andar - cj. 2101 e 2102
Ed. Horsa II - Conj. Nacional - Cerqueira C�sar
01411-901 - S�o Paulo-SP
www.editoraplaneta.com.br
Jicndimento@editoraplaneta.com.br


Agrade�o a Alex Resende, Eduardo Posidonio, Emerson Giumbelli,
Lizir Arcanjo, Paulo Rezzutti, Paulo Viola (in memoriam),
Pedro Vasquez, Vera Cabana, Vasco Mariz, Thais Martins Lepesteur
e sempre, sempre, Carlos Milhono.



SUM�RIO


Introdu��o
9

1.
Como tudo come�ou 13

2.
A nova moda: as mesas volantes e o espiritismo 37

3.
Outras manifesta��es do Al�m: curandeiros, cartomantes,
exorcistas... 101

4.
Os inimigos do al�m 131

5.
O eterno sobrenatural 159

Bibliografia 175
Fontes 183


INTRODU��O


O que h� do "outro lado"? Esta n�o � uma pergunta feita apenas por
historiadores. E, sim, pela sociedade. Religiosos, fil�sofos, antrop�logos,
m�dicos, pesquisadores de v�rias �reas, al�m de cidad�os comuns,
querem saber. Passa-se por um t�nel frio e escuro para mergulhar em
�guas quentes e iluminadas? Voa-se, de forma invis�vel, sobre o pr�prio
corpo? Seres de luz v�m nos buscar? Nada se sabe, embora se acumulem
depoimentos daqueles que voltaram do al�m. Mesmo com o c�rebro
aparentemente estacion�rio, eles foram capazes de ter vis�es. Os
cientistas chamam o fen�meno de EQM: experi�ncia de quase-morte
ou near-death experience, termo cunhado pelo psiquiatra norte-americano
Raymond Moody depois de ter estudado mais de cem casos.
Atualmente, sociedades cient�ficas com publica��es reconhecidas internacionalmente
se debru�am sobre o tema.

Desde sempre se tentou estabelecer um conhecimento sobre o sil�ncio
absoluto que separa o ser e o n�o ser, o conhecido e o desconhecido,
o aqui e o l�, a presen�a e a n�o presen�a, o saber e a ignor�ncia.
Nossos antepassados acreditavam na a��o dos mortos sobre vivos.
N�o se tratava de uma "cren�a" como anacr�nicamente estamos acostumados
a pensar, mas de uma verdade. Hoje, sabemos - mais ou menos
- que nossos mortos n�o v�o voltar, n�o ter�o nada a nos dizer e
que n�o podemos lhes pedir afei��o, prote��o ou conselho. Nosso luto
n�o � mais encantado. N�o era assim, outrora.


DO OUTRO LADO

Outrora, o morto continuava vivo no seu t�mulo. Recebia as homenagens
dos descendentes, im�vel, mas consciente. A sepultura seria
apenas outra resid�ncia, cela de dormit�rio, onde aguardaria o despertar
no Dia do Ju�zo e que, por vezes, deixaria para proteger ou informar os
vivos, comunicando-se com eles em sonho ou por algum sinal exterior.
Sim, o "outro lado" era logo ali. Desde sempre os mortos foram invocados
para cuidar dos vivos. S�o eles que nos acenam, vem soprar informa��es
e trazer recados do al�m. Muitos de n�s queremos ouvi-los, v�-los,
se deixar abra�ar e por que n�o, levar... Por�m, mais importante do que
respostas sobre o que haveria do "outro lado", era a vontade de acreditar.
Acreditar que exista outra vida, melhor, mais tranquila. Onde tudo ser�
paz e serenidade. E essa vontade, a de crer, persiste.

A morte e os mortos vem sendo objeto do maior interesse nas
sociedades contempor�neas. "Morrer, modo de usar", ser� em breve
uma discuss�o com v�rias pautas: eutan�sia, morte assistida, morte
digna, com liberdade de escolher. E ela vai levar, como num c�rculo
eterno, � mesma pergunta: onde vamos? Se � que vamos.

Al�m dos mortos, os informantes s�o aqueles que podem predizer.
Predizer � uma dimens�o fundamental da vida dos homens. Todos
temos um p� no presente e outro no futuro. Viver � antecipar sem
cessar, pois nossas a��es miram um objetivo l� na frente. Mas, apenas
uma parte desse futuro � conhecida. Aquela que nos informa que os
dias t�m 24 horas, que as esta��es v�o se suceder e a as fases da Lua,
tamb�m. Mas, e o resto? Do qu� ser� feito o amanh�?

Para sermos eficientes, estarmos a altura dos desafios e tomar as
boas decis�es precisamos, pois, antecipar. Recorremos a quem pode
nos anunciar o futuro: cartomantes, astr�logos, videntes. Para colocar
um fim �s incertezas, mas, tamb�m, para nos assegurar que n�o
somos um joguete nas m�os do acaso. E, sim, de um plano coerente.
Da Antiguidade aos nossos dias, desejamos antecipar para garantir o
m�ximo de seguran�a. E a previs�o tem em si um poder m�gico de
autorrealiza��o. Convencer-se de uma vit�ria ou de uma derrota, � a
melhor maneira de suscitar sua concretiza��o.

10


MARY DEL PRIORE

O importante ao receber uma mensagem vinda "do outro lado"
n�o � tanto a exatid�o da informa��o, mas seu papel de terapia social
ou individual. O que importa n�o � que a previs�o se realize, mas
alivie, cure ou convide a agir. Astr�logos, cartomantes, m�diuns e videntes
agem como m�dicos da alma. N�o � surpresa que, em �pocas
como a nossa, quando a vida � geradora de ang�stias, seus endere�os
se multipliquem.

Mas a mensagem "do outro lado" jamais � neutra. Ela corresponde
sempre a uma inten��o ou a um medo. Ela exprime um contexto
e um estado de esp�rito. Ela n�o nos ilumina sobre o futuro,
mas reflete o presente. Ela � reveladora das mentalidades de uma
�poca, de uma cultura e de uma sociedade. Excelente raz�o para
conhecer sua hist�ria.


COMO TUDO COME�OU


VOC� ACREDITA EM FANTASMAS?

Voc� acredita em fantasmas ou em almas do outro mundo? Cr� em
esp�ritos ou em mensagens do al�m? Ent�o ou�a esta hist�ria:

Foi no princ�pio do s�culo XX. Um adolescente assassinou
a namorada ao p� da escada de um velho sobrado [...]. Dizem
que a menina caiu morta cheia de sangue nos primeiros degraus.
Agarrou-se ao corrim�o, chamando pela m�e e pedindo �gua.

O sobrado continua o mesmo. A escada tamb�m. E toda noite
range como deve ter rangido na noite do crime. Pelo menos � o
que asseguram bons e honestos moradores da rua.

Ou esta:

Pelos fins do s�culo XIX e come�os do XX, s�lidos e conceituados
homens de neg�cios, membros da Irmandade do Sant�ssimo
Sacramento, se reuniam em sess�es de espiritismo que
chegaram a ser frequentadas pelos mais ilustres doutores da cidade
[do Recife]. Ali se comentavam as respostas de famoso m�dico,
ali�s, negro, atrav�s de um m�dium. Respostas de acordo com
as terap�uticas da �poca. Evocava-se com frequ�ncia esse doutor
negro. Reza a tradi��o que ele chegou a aparecer � cabeceira de


DO OUTRO LADO

mais de um doente pobre. Aparecia de cartola e de sobrecasaca
como nos seus dias de homem deste mundo. O m�dico chamava-
se Dornelas.

De Dornelas se conta que, ainda vivo, passava certa vez, de
sobrecasaca e de cartola, por uma rua fidalga da cidade quando,
da varanda de um sobrado opulento, certa Iai� resolveu zombar
do negro metido a s�bio e encartolado como qualquer doutor
branco. N�o encontrou meio mais elegante de manifestar seu
desd�m pela "petul�ncia do negro" que este: cuspir-lhe sobre a
cartola. Pois, naquele tempo, cartola era chap�u de branco e n�o
de negro.

Sentiu Dornelas a cusparada sobre o chap�u. E tirando a
cartola ilustre e examinando a cusparada, diz a lenda que concluiu
a olho nu: "Coitada da Iai�! Tuberculosa. N�o tem um ano
de vida". E antes de findar-se o ano, sa�a do sobrado fidalgo um
caix�o azul com o cad�ver da mo�a. Morrera tuberculosa.

Olho mau de negro? N�o, diz a lenda: olho cl�nico. Mas
olho cl�nico iluminado por alguma coisa de sobrenatural. O que
fez de Dornelas, no fim da vida, um m�dico chamado pelos doentes
mais graves como se fosse tamb�m um negro velho com
extraordin�rios dons africanos de curar males que os doutores
brancos e de ci�ncia apenas europeia desconheciam.

Depois de morto, tornou-se um dos esp�ritos mais invocados
nas sess�es de espiritismo da cidade.

A voz e as hist�rias citadas acima s�o do imortal Gilberto
Freyre. Mas todos n�s conhecemos in�meras outras. E isso porque
n�o h� sociedade ou cultura na qual esteja ausente a preocupa��o
dos vivos com os mortos, e da participa��o dos mortos na vida dos
vivos. Cren�as, individuais ou coletivas, s�o a chave para a compreens�
o do mundo e da exist�ncia. Compreens�o no sentido que tais
cren�a s exigem e investem "no al�m" - um al�m necessariamente
ligado � exist�ncia humana - assim como na sua soberana leitura do

14


MARY DEL PRIORE

universo. N�o importa quanto o esp�rito moderno tenha investido
em dicotomizar, ou melhor, em tentar separar a f� de outras formas
de exist�ncia racional. A necessidade de religi�o - capaz de, na medida
do poss�vel, harmonizar o racional e o irracional - continua,
de forma consciente ou subliminar, essencial ao equil�brio humano.

Cren�as s�o capazes de exprimir a humanidade na sua mais profunda
e intensa medida. Passados s�culos, muitos desses objetos de f�
e convic��o continuam a�, jovens, oxigenados, vivos. O que se convencionou
chamar de sobrenatural, maravilhoso ou fant�stico revela, na
realidade, atos de f�. Ningu�m procura explic�-los. Eles s�o recebidos
como uma mensagem na qual se l� toda a onipot�ncia e as marcas da
interven��o de Deus, ou de deuses, em nosso mundo.

No plano de sua fun��o no interior de uma dada sociedade, as
cren�as s�o insubstitu�veis. Servem para compensar as vicissitudes da
vida quotidiana, acolhendo favoravelmente os desejos mais secretos
dos homens, fazendo justi�a entre bons e maus e passando avisos e
mensagens. No cora��o do mist�rio e do sil�ncio, no seio do di�logo
entre o espiritual e o material, tradi��es espec�ficas fazem florescer
mortos e monstros, tornando-se absolutamente veross�meis. E, desde
sempre, o sobrenatural teima em voltar do passado para avivar as
cores do presente.

A VELA NA ESCURID�O

O ano era 1860 e pouco, e a cidade, o Rio de Janeiro, capital da corte
imperial. Ca�a a tarde. Os sinos chamavam para as ave-marias. Nas esquinas,
alguns transeuntes se recolhiam diante das imagens em nichos
nas paredes. Outros persignavam-se e seguiam em frente. Senhoras
sa�das da missa benziam-se, desejando a todos os ma�ons e espiritistas

o fogo do inferno. No mar, crescia a lua. Vazios, botes e canoas dan�avam
na frente do largo do Pa�o. Os escravos de ganho se reuniam
nos zungus para comentar a abertura de uma casa de santo ou um
egum visto nas imedia��es do caminho da Gamboa, onde peda�os de

DO OUTRO LADO

corpos repontavam da terra ou da lama. Tascas e baiucas alimentavam,
por quatro tost�es, quem voltava para casa. � volta de um prato
de angu, murmurava-se sobre "luzinhas misteriosas" e o retorno de
cativos mortos, injusti�ados por seus senhores. Estrelas se confundiam
com a luz dos lampi�es. O acendedor percorria as ruas cada vez mais
escuras e vazias com sua lata de �leo. Diante de cada combustor, parava
e enfiava um varapau na fenda da l�mpada. O vento vindo do
mar fazia a luz tremular. Vultos cresciam nas paredes. "Profeta! Olha

o Diabo! Olha a Cruz!" era o coro dos meninos que o seguiam, brincando.
Brincando?
No Hotel de France, o restaurante servia os �ltimos h�spedes. No
Arco do Teles, mendigos se dobravam debaixo de panos sujos, com
medo do zumbi. Nas docas da praia do Peixe, os animais � venda,
p�ssaros, perus e galinhas, silenciavam. Nas ruas Larga e do Ouvidor,
os comerciantes fechavam as portas, os caixeiros em mangas de
camisa trocavam boas-noites. Emudecia tamb�m o barulho da gente
pobre vinda do morro do Castelo e do morro de Santo Ant�nio, que
ia buscar �gua nas 29 bicas de bronze do chafariz.

Nos sobrados, via-se um movimento por tr�s das janelas. Eram as
mulheres que tinham tomado a fresca e, agora, iam rezar. Nos orat�rios
dom�sticos, era tempo de acender as velas e puxar um ter�o. Vez
por outra se ouviam acalantos. As crian�as da casa iam dormir com
medo de bichos infernais: o caipora ou o lobisomem. O choro mais
triste de um deles era sinal de que o papa-figo devorava um malcriado
ou respond�o. Nas cozinhas, nos fundos de quintal ou no �ltimo
andar dos sobrados, as escravas se atarefavam em preparar os pratos
da ceia. Comentavam que o negro Manuel caminhava sobre brasas
no dia de S�o Jo�o sem sentir dor. Ou que um espelho rachara: sinal
de morte na casa. As badaladas das torres das igrejas anunciavam as
horas. � meia-noite, ouviam-se nas pedras da rua ru�dos de patas de
cavalos, de rodas e at� a voz �spera do boieiro. Era o carro de alma
penada que passava. Quem cruzasse perto da Igreja de Santa Rita ouviria
gemidos, veria almas penadas.


MARY DEL PRIORE

Sobre a mesa, o queijo do reino. Em volta dela, a conversa. A
luz das velas e do luar se confundia. Um assunto de predile��o era a
vidente rec�m-chegada de Paris. Outro, as visagens, assombra��es e
hist�rias de gente que se "envultava" nas encruzilhadas dos caminhos
ou perto do cemit�rio. No sil�ncio do sono, ouviam-se vozes de crian�as
que tinham morrido sem batismo a pedir o sacramento. Um dos
assuntos preferidos? A religi�o.

A religi�o? Um misterioso sentimento misto de terror e de
esperan�a, a simboliza��o l�gubre ou alegre de um poder que n�o
temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o equ�voco, o
medo e a perversidade. O Rio, como todas as cidades nestes tempos
de irrever�ncia, tem em cada rua um templo e em cada homem
uma cren�a diversa. Ao ler os grandes di�rios, imagina a gente que
est� num pa�s essencialmente cat�lico, onde alguns matem�ticos
s�o positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religi�es. Basta parar
em qualquer esquina, interrogar. A diversidade de cultos espantar-
vos-�. S�o swedenborgianos, pag�os, f�si�latras, defensores
de dogmas ex�ticos, autores de reformas da vida, reveladores do
futuro, amantes do Diabo, descendentes da rainha de Sab�, judeus,
cism�ticos, esp�ritas, babala�s de Lagos, mulheres que respeitam o
oceano, todos os cultos, todas as cren�as, todos os sustos...

As palavras s�o de um jovem jornalista que, em 1905, revolucionou
a imprensa carioca: Jo�o do Rio. Nascia a reportagem e a entrevista
que recheariam a s�rie intitulada As religi�es no Rio. O sucesso
das publica��es foi tanto que a Editora Garnier as publicou em forma
de livro: dez mil exemplares esgotados em pouco tempo! Num texto
hist�rico-informativo, Jo�o do Rio descrevia esp�ritas, cartomantes e
at� um frei exorcista do morro do Castelo, al�m de pais de santo, son�mbulas,
endemoninhadas e quantos mais houvesse.

Nesses tempos, as noites eram feitas de sustos, medos, desconhecido.
E se enchiam de preces, batuques, cantos, ora��es murmuradas,

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DO OUTRO LADO

evoca��o de egunguns ou da alma dos mortos. Sair de casa para satisfazer
uma necessidade podia levar a um encontro perigoso. A esposa
respons�vel pela morte do detestado marido podia encontr�-lo
no leito. Um criminoso jamais estaria seguro de escapar � vingan�a
de sua v�tima. E ai de quem n�o respeitasse a �ltima vontade de um
moribundo! O castigo era certo.

Pelas ruas, fantasmas do outro mundo, apari��es, mortos-vivos,
Sat� em pessoa (em geral, vestido de fraque e cartola) representavam

o chamado "mist�rio das cren�as". Na praia de Santa Luzia, vozes
surdas ofereciam um "eb� a Iemanj�". Azul profundo de dia, o mar, �
noite, gemia como se fosse mal-assombrado. O uivo de um c�o? Mau
agouro. Coruja cantando estava chamando a morte. As borboletas escuras
que adejassem nos finais de tarde: bruxas! Encruzilhadas? Eram
lugar de apari��o do Diabo. Para prote��o, melhor seria defumar os
quartos com arruda e alecrim verde.
No conto "O espelho", Machado de Assis sintetizou o medo
do escuro:

E ent�o de noite! N�o que a noite fosse mais silenciosa. O
sil�ncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era
a solid�o ainda mais estreita ou larga. Tic-tac, tic-tac. Ningu�m
nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ningu�m, em
parte nenhuma [...] Tinha uma sensa��o inexplic�vel. Era como
um defunto andando...

E nossos tatarav�s acreditavam nessas hist�rias? Tudo indica que
sim. A palavra "crer" � um verdadeiro f�ssil morfol�gico, significando
confiar no que se diz, acreditar em algu�m ou alguma coisa. Crer significava
estabelecer um contrato, na certeza de que a fidelidade ou a
f� empregada em alguma coisa seria recuperada. � um entrela�amento
de doa��es e d�vidas. Sim, nossos antepassados confiavam. Tinham necessidade
de sonhar, para o bem ou para o mal. De adivinhar as linhas
do futuro. De curar seus males f�sicos por meios milagrosos.


MARY DEL PRIORE

Enquanto eles acreditavam, o Imp�rio brasileiro declinava, e seu
imobilismo alimentava o desejo de altera��es. Palavras novas estavam
nos ares: rep�blica, aboli��o, progresso, ci�ncia. Todas prometiam um
futuro radioso. A hist�ria se acelerava. Mudan�as, por�m, inspiravam
receios. Nesse quadro, o sobrenatural teria um papel fundamental.
Cada grupo da sociedade encontraria em suas cren�as a perspectiva
de um futuro sereno, digno de motivar as a��es do presente. Cada um
poderia imaginar um mundo melhor, e da� o sucesso de cartomantes,
videntes e adivinhos.

Por outro lado, na corte, a ascens�o das classes m�dias e sua laiciza��o
refor�avam o interesse em m�todos de previs�o que tivessem
um aspecto cient�fico. Os jornais multiplicavam not�cias de fen�menos
fant�sticos, e, enquanto as elites preferiam estudar para compreender
"racionalmente" o que acontecia, a cultura popular mantinha a magia
viva. Da� que, na corte do Rio de Janeiro, o al�m, os esp�ritos e o sobrenatural
agitaram o s�culo XIX, menos predizendo o futuro, e mais
oferecendo al�vio e conforto aos que neles acreditavam.

QUANDO OS MORTOS GOVERNAVAM OS VIVOS...
Paris, fim do imp�rio de Napole�o III. Entre a Pont-Neuf e o faubourg
Saint-Germain, a pol�cia perseguia cartomantes. Astr�logos distribu�am
debaixo do pano cart�es com o endere�o de seus consult�rios.
Livros ensinando a prever o futuro eram oferecidos pelos bouquinistes
nos cais do rio Sena. O prefeito proibira previs�es sobre grandes
personagens pol�ticos, que acabavam vazando para os jornais, criando
esc�ndalos. O enterro da vidente Madame Lenormand levou milhares
de pessoas �s ruas. Adorado pelos franceses, o escritor Chateaubriand,
idoso e pessimista, previa que a capacidade intelectual, empurrada pelas
m�quinas, reduziria os valores morais e enfraqueceria a religi�o.
Para ele, inquieta��o e futuro eram sin�nimos. Os bulevares mundanos
empurravam a mis�ria para baixo do tapete. A Cidade Luz tinha seu
avesso: o desequil�brio e a morte. A guerra e as rebeli�es permitiam a


DO OUTRO LADO

Anatole France afirmar: "O mal n�o � viver. � saber que se est� vivo".
Que Deus poderia salvar a humanidade?

Outras localidades: Hamburgo, Rio de Janeiro, Nova York, Salvador,
Paris. O que haveria em comum entre essas cidades, na d�cada
de 1860? Em algum lugar, numa sala escura de venezianas cerradas,
um grupo de pessoas tentava falar com os mortos. Na luz bruxuleante,
uma mesa redonda. Todos de m�os-dadas. Em sil�ncio, a batida
dos cora��es acelerava. O suor na testa revelava que uma dose de
ang�stia, medo e curiosidade era assim injetada nas veias. Depois
de uma ora��o em voz baixa, m�os se estendiam em dire��o �s letras
espalhadas em c�rculo. No centro, um copo ou um tri�ngulo
de madeira. Algu�m elevava a voz, perguntando: "H� algu�m a�?".
Sil�ncio. E de novo: "H� algu�m a�?". Figuras solenes cercadas de
luz p�lida eram aguardadas. Supostamente, elas abordariam e consolariam
os presentes, deixando-os, depois, em l�grimas. Trariam informa��es
do outro lado. Not�cias de entes queridos, parentes, at�
mesmo recados de desconhecidos.

Assistia-se, ent�o, � forma��o de um pequeno mundo. Seus habitantes
eram os membros de uma nebulosa que acreditava em pr�ticas
magn�tico-espiritualistas. Era composta de aristocratas, burgueses e
simples oper�rios. Sua unidade era de ordem psicol�gica e espiritual.
O grupo reunia, sobretudo, n�o conformistas, insatisfeitos com as verdades
oficiais, fossem elas religiosas ou filos�ficas. O catolicismo decadente
dava lugar ao misticismo. E, nesse pequeno mundo, pesquisas
sobre o sobrenatural levariam a novas descobertas.

Tempos estranhos esses, em que as ci�ncias tinham introduzido

tantas conquistas -a eletricidade, a qu�mica, a �tica -, mas em que

o desejo das pessoas era um s�: abordar um universo maravilhoso,
onde tempo e espa�o n�o existissem. Onde se pudesse ver os esp�ritos
e fantasmas e falar com eles. O prazer que se tinha nas "hist�rias de
esp�ritos", diziam os cientistas, vinha de um resto de d�vida sobre sua
exist�ncia. Mas, sobretudo, de um secreto desejo de que fossem verdadeiras.
E tanto mais o futuro parecia sombrio, maior o n�mero dos

MARY DEL PRIORE

cr�dulos ou crentes que buscavam esclarecer suas d�vidas e encontrar
coragem nas comunica��es com o outro lado.
A rela��o entre esse mundo e o outro era tamb�m aquela entre

o passado dos mortos e o futuro dos vivos. Os mortos podiam predizer
o que aconteceria. Assim como cabia aos vivos proporcionar-
lhes um lugar sobrenatural - cemit�rios, fotografias, tumbas -, onde
pudessem viver como seres do al�m; caberia, em contrapartida, aos
mortos tomar os vivos pela m�o e lev�-los � terra dos ancestrais. S�
eles conheciam os caminhos.
Mas por que tanto empenho em falar com os mortos e crer no
sobrenatural? O s�culo XIX era melanc�lico. E a melancolia era uma
rea��o de esp�ritos superiores, intelectuais e artistas, diante de uma �poca
caracterizada pelo progresso cient�fico e por descobrimentos. Mas
tamb�m marcada pela soberba produ��o art�stica, pela �nsia de lucro e
de prazer, pela especula��o financeira. A religi�o perdia sua supremacia.
Confiante em sua intelig�ncia superior, os indiv�duos pareciam acreditar
que a ci�ncia havia aniquilado o fant�stico.

Mas n�o. Apesar do burburinho e do crescimento da vida urbana,
a imagina��o de nossos antepassados parecia envolta por criaturas
de um mundo subterr�neo. Como diria Victor Hugo, um dos maiores
escritores da �poca, "alguma coisa horrenda rastejava confusamente".
Do fim do mundo, surgiam seres e criaturas que abafavam o espa�o
mental, a literatura e a pintura. A morte submergia o Ocidente, e
silhuetas t�o amea�adoras quanto familiares invadiam o cotidiano.
O que devia ser inanimado se animava. A cren�a na separa��o entre

o mundo dos vivos e o dos mortos, que o iluminismo tentou enterrar,
se fissurava. Os defuntos falavam. Sim, pois eles apenas dormiam, sonhando.
E, quando acordados, se comunicavam com os vivos. E a
revolu��o t�cnica e de ideias os despertou. O tempo da modernidade e
do rel�gio, em que tudo passava rapidamente, cruzava o tempo m�gico
do infinito, no qual tudo podia retornar. Eles inclusive.
Nossa l�ngua tem in�meros termos para designar essas presen�as
inquietantes, muitas vezes usados como sin�nimos, embora suas


DO OUTRO LADO

hist�rias sejam diferentes. Todo mundo conhece "fantasma", que evoca
ilus�o e fantasmagoria. J� a palavra "espectro" se liga a uma imagem
de medo e horror, pois ele � o cad�ver em decomposi��o. Sua
gargalhada se ouve ao longe. Depois h� "sombra", termo po�tico que
remete � dissolu��o do corpo no momento da morte. Existe "larva",
voc�bulo romano que remetia, na �poca, aos que tinham dificuldade
em dormir o sono eterno. Ou o "morto-vivo" e a "alma do outro mundo",
que explicam o retorno de um defunto. H� tamb�m "esp�rito",
palavra vaga que exprime as perplexidades humanas diante das manifesta��es
inexplicadas e interpretadas pela parapsicologia. Exemplo:
"Esp�rito, est�s presente?".

O regresso dos mortos foi ati�ado pela emerg�ncia de novas t�cnicas
de comunica��o. Acreditava-se, e o inventor Thomas Edison foi
um dos primeiros, que o r�dio e a telegrafia colocavam em contato o
mundo vis�vel e o invis�vel. O tel�grafo el�trico, cuja linha fora estabelecida
nos Estados Unidos por Samuel Morse, em 1844, incentivou que

o fen�meno fosse batizado de "tel�grafo espiritual". O escritor Coelho
Neto, por exemplo, criou telefones que permitiam a comunica��o entre
vivos e mortos. O conde d'Eu, marido da princesa Isabel, ao ouvir pela
primeira vez um gramofone, acreditou estar ouvindo vozes do outro
mundo. E, em seu Livro dos m�diuns, Allan Kardec confirmaria:
N�s (os esp�ritos) agimos sobre o m�dium como o empregado
do tel�grafo sobre seu aparelho; quer dizer que da mesma
forma que o tac-tac do tel�grafo desenha a milhares de l�guas,
sobre um peda�o de papel, os signos reprodutores da mensagem,
da mesma forma n�s comunicamos atrav�s de incomensur�veis
dist�ncias que separam o mundo vis�vel do invis�vel [...] o que
queremos vos ensinar por meio do aparelho median�mico.

O mundo subterr�neo habitado por m�mias, corpos mortos que um
dia portaram a vida, e que a arqueologia e a paleontologia come�avam
a arrancar das profundezas, invadia a literatura. Era sucesso de vendas


MARY DEL PRIORE

o livro As catacumbas de Roma. Uma cabe�a de guerreiro mumificada
em meio a rel�quias vindas de Herculano e Pompeia, m�mias ind�genas
encontradas em Minas Gerais e o sarc�fago doado pelo vice-rei do Egito
faziam parte do gabinete de raridades do imperador dom Pedro II. Ossos
de homens e animais revelavam o segredo de criaturas desaparecidas que
agora voltavam � superf�cie. Tudo parecia retornar � vida...
Ao chegar a Lagoa Santa, em Minas Gerais, o dinamarqu�s Peter
Lund, conhecido paleont�logo, assim a descreveu, entre maravilhado
e horrorizado:

Com um arrepio secreto, adentrei a primeira dessas grutas
m�sticas; tudo o que me cercava dirigia-se a mim em um idioma
estranho; por todo o lado eu via os tra�os de acontecimentos
horr�veis que fecharam o cap�tulo anterior da hist�ria da evolu��o
do globo terrestre e, n�o sem horror, contemplei as infelizes
v�timas da grande cena de sofrimento, cujos ossos jaziam aos milhares,
espalhados aos meus p�s. Uma voz secreta logo me disse
que esses monstros n�o pertenciam ao mundo pr�ximo; mal ousei,
com as m�os tr�mulas, tocar esses santu�rios da natureza e
levou um longo tempo antes que, finalmente, com a mais ansiosa
das expectativas, eu partisse para o penoso trabalho de tentar
decifrar esses vener�veis hier�glifos.

Ossos que contavam hist�rias como uma escritura feita de misticismo,
beleza e horror; tudo se banhava no caldo fascinante do
romantismo. Para Lund, as grutas eram "as casas das fadas subterr�neas",
"m�sticos cemit�rios de um mundo desaparecido". Ele se sentia
aprisionado ao lugar por "for�as m�gicas". A nostalgia do passado,
de um mundo perdido, acionava a m�quina do tempo. A literatura se
apropriava dessas representa��es: fadas, mortos-vivos, fantasmas de
toda a sorte emergiam em novelas e romances.

O imagin�rio do encantamento n�o se limitou � arqueologia.
Apropriou-se de epis�dios hist�ricos. O ingl�s John Gardner, de


DO OUTRO LADO

passagem pelo baixo S�o Francisco em 1838, deu not�cia de um lugar
cercado de mata chamado Pedra Bonita. Um morador reuniu o povo
para dar not�cia da exist�ncia, em meio aos rochedos, de um reino encantado.
Dele romperia o rei dom Sebasti�o com grande ex�rcito para
libertar o povo da mis�ria e da pobreza. Todos seriam iguais, ricos
e imortais. At� os pretos ficariam "brancos como a lua". Depois de
quatro dias de lutas entre os dois grupos, que terminou num banho
de sangue, a for�a policial desbaratou os fan�ticos. Fan�ticos ou apenas
gente que acreditava numa vida melhor e em outro mundo?

Essa era uma �poca sombria e cheia de ansiedades. Uma crise
atravessava o Ocidente. A tens�o se instalara nas doutrinas religiosas,
pois se aboliram os preconceitos e as persegui��es. A ci�ncia se tornou
uma aliada poderosa, investigando fen�menos e lan�ando novas bases
para pensar qualquer coisa. Muitos intelectuais viam nas "convuls�es
do tempo" as primeiras dores de um novo parto. Os fen�menos vividos
por "esp�ritos", estes, sim, trariam renova��o. Eles anunciavam
um movimento espiritual, cient�fico e filos�fico baseado na rela��o
com a morte, no contato sistem�tico com os mortos, nas manifesta��es
dos esp�ritos e nos ensinamentos por eles transmitidos. Surgia,
ent�o, o nervoso ou a nervosa, adjetivo que identificava aqueles cuja
excessiva sensibilidade se prestava a experi�ncias sobrenaturais. Os
velhos rem�dios para o t�dio, a tristeza e o peso dos acontecimentos
perdiam sua virtude terap�utica. E as obsess�es, aliena��es e crises de
melancolia seriam a raz�o para se prestar a novos tratamentos: magnetismo,
sonambulismo, espiritismo...

TREVAS E LUZES

Um pouco antes de mergulhar em melancolia, a Europa do in�cio do
s�culo XIX parecia consagrar o triunfo de uma burguesia marcadamente
racionalista. Fil�sofos iluministas como Voltaire ou Diderot
atacaram a Igreja, a Coroa e a ordem social tentando alterar formas
de pensar e mentalidades. S� a raz�o afastaria os homens de toda a


MARY DEL PRIORE

supersti��o e os curaria da atra��o que os mist�rios exerciam. Era preciso
deixar para tr�s o que consideravam "as trevas da Idade M�dia".
Apenas a ignor�ncia, o fanatismo, o medo ou o �dio justificariam a
"fraqueza" de crer no sobrenatural.

Mas, curiosamente, at� Paris, cidade c�tica e ber�o de todas as
conquistas do esp�rito e das revolu��es pol�ticas, continuava t�o adepta
de feiticeiros, apari��es e fen�menos sobrenaturais quanto os mais
long�nquos vilarejos rurais. A raz�o causava t�dio. Melhor era acreditar.
E acreditar que noites de lua cheia eram o palco para espectros,
vampiros, lobisomens e dem�nios variados. Enquanto Napole�o Bonaparte
conquistava a Europa e expulsava a fam�lia de Bragan�a do
trono em Portugal, Sat� dava as cartas. Ali�s, o pr�prio Napole�o e
sua esposa Josefina eram adeptos de cartomantes, videntes e acreditavam
no sobrenatural.

Nessa �poca, a literatura do mundo ocidental desenhava personagens
envolvidos com necromancia, esp�ritos infernais e sombras.
Tais imagens alimentavam tamb�m o movimento do romantismo nas
artes. A cara severa dos fil�sofos n�o intimidou os adoradores do
fant�stico. In�meras lojas ma��nicas praticavam rituais de magia enquanto
se espalhava pelo norte da Europa as bases para o imagin�rio
espiritualista que dominaria o s�culo XIX. Esse movimento teve por
inspirador o m�stico sueco Emanuel Swedenborg. Engenheiro, autor
de in�meras inven��es, homem piedoso e fascinado por fen�menos
ps�quicos, Swedenborg mergulhava em estados hipn�ticos dos quais
emergia contando vis�es. Ele afirmava ter viajado a outros planos e dimens�es
espirituais, conversando com esp�ritos, visitando os mundos
do al�m, conhecendo o que acontecia ap�s a morte. Depois dessas experi�ncias,
Swedenborg construiu uma nova doutrina sobre os mortos
e seu destino espiritual. Como explicou:

Pela divina miseric�rdia do Senhor, foi-me permitido, desde
h� muitos anos, estar constantemente em companhia de anjos
e esp�ritos, ouvi-los falar e falar com eles. Deste modo foi-me


DO OUTRO LADO

permitido ver e ouvir coisas maravilhosas na outra vida, as quais
nunca antes chegaram a conhecimento de homem algum, nem
nunca passaram pela mente humana. Fui informado a respeito de
diferentes classes de esp�ritos, os estados da alma ap�s a morte, o
inferno, ou seja, o estado lament�vel dos infi�is; o c�u, ou seja,

o estado bem-aventurado dos fi�is.
Em sua obra, Arcanos celestes, na qual transcreveu conversas
com moradores do al�m, Swedenborg preparou o terreno para o que
viria a ser chamado de espiritismo. Segundo ele, o mundo espiritual
era formado por esferas diferentes, para onde iam os esp�ritos de acordo
com sua luminosidade. O resultado de sua condi��o ap�s a morte
era decorr�ncia dos atos realizados durante a vida. De nada adiantava
arrepender-se de maldades na �ltima hora! Os anjos eram almas mais
evolu�das, e os dem�nios, seres humanos espiritualmente atrasados.

O c�u, l� no alto, s� podia ser atingido por estreita passagem. Em
meio a cavernas f�tidas e tenebrosas erguia-se o inferno, ele tamb�m
fechado. Suas fendas eram severamente vigiadas para que nada escapasse.
Havia uma terceira dimens�o: o mundo dos esp�ritos, habitado
pela maior parte das almas dos mortos, cujas caracter�sticas humanas
eram conservadas. O pensamento de Swedenborg influenciaria as
correntes que come�avam a engrossar com a chegada de movimentos
espiritualistas norte-americanos e, depois, o espiritismo.

Enquanto isso, a imprensa francesa se encarregava de contar as
m�ltiplas apari��es que tomavam conta das cidades. Escritores rom�nticos
como Chateaubriand, Victor Hugo e Alexandre Dumas,
muito conhecidos dos leitores brasileiros, introduziram na literatura
as n�voas prop�cias ao aparecimento de fantasmas, um universo de
sonhos e a melancolia favor�vel ao sobrenatural.

Nessa cena, tamb�m emergiram os magnetizadores. Em 1813 ,
a publica��o de Hist�ria do magnetismo animal, de Joseph Fran�ois
Deleuze, divulgou a exist�ncia de fluidos que podiam ser dirigidos
pela vontade do magnetizador ou por passes de m�os. Havia quem


MARY DEL PRIORE

justificasse o fen�meno pela exist�ncia de esp�ritos ou de almas dentro
dos fluidos. Os s�bios membros das academias de ci�ncias come�avam
a se interessar pelo assunto. Um famoso m�dico e professor da
Faculdade de Paris abriu ao p�blico cursos sobre magnetismo. O audit�rio
na rua do Orat�rio, 13, em Paris, ficava lotado. Os hospitais
se interessavam por experi�ncias que eram realizadas com doentes. Os
c�ticos se convertiam ou tinham suas convic��es abaladas. Os magnetizados
podiam ser operados sem dor, ca�am em sono profundo e, em
estado de sonambulismo, previam o futuro.

O sucesso foi t�o grande que magnetizadores passaram a se exibir
em teatros na Fran�a. Era de senso comum que, se usado com finalidade
�til, o dom era um presente de Deus. O abade Faria, magnetizador
portugu�s, realizava sess�es pagas em que adormecia as pessoas e as
fazia obedecer. Gabava-se de ter magnetizado cinco mil pessoas. Foi
apelidado de "o inimigo do repouso".

Mas o magnetismo passou a incomodar quando, adormecidos, os
indiv�duos se tornavam mediadores do mal. Acontecia, sim. O Dem�nio
acusava sua presen�a quando o possu�do falava em terceira pessoa,
quando os ignorantes empregavam termos t�cnicos ou falavam l�nguas
estrangeiras ou, ainda, quando a voz de fina passava a grossa. Alguns se
erguiam nos ares ou eram tomados por violentas convuls�es. Os m�dicos
anotavam a presen�a de uma pot�ncia invis�vel, distinta e separada
do "eu", podendo agir sobre o corpo dos magnetizados.

A Igreja reagiu. Para a maior parte dos autores cat�licos, o magnetismo
era obra do Diabo. Era uma forma de possess�o. Ela via
nos toques ou imposi��o de m�os um parentesco com os sinais de
reconhecimento da ma�onaria. E como os ma�ons eram considerados
afiliados a Sat�, por que n�o os magnetizadores? V�rios deles se desculpavam
pelo transe, justificando que os fluidos n�o agiam por suas
vontades, mas sim por encantamentos.

Muitos intelectuais, como Alexandre Dumas e Al�xis Didier, acreditavam
no chamado "magnetismo ang�lico". Segundo eles, tal magnetismo
provava a exist�ncia da alma e guiava o homem no caminho


DO OUTRO LADO

da f�. Ao suspender a a��o da carne sobre o esp�rito, gra�as ao sono
no qual os magnetizados mergulhavam, os olhos do ser interior enxergavam
aquilo que n�o se via normalmente. Esse magnetismo seduziu
os que se diziam capazes de magnetizar por meio de ora��es ou do
pensamento positivo.

Mas foi certo Louis-Alphonse Cahagnet, oper�rio pobre, magnetizador
espiritualista, impregnado da doutrina de Swedenborg, quem
abriu as portas para o outro lado. Ele confirmava: magnetizados falavam
com os mortos. Seu livro, Arcanos da vida futura desvendados
(1854), apresentava um al�m tranquilo e familiar como se encontrar�,
um pouco mais tarde, no espiritismo. Nele, pais e filhos se reencontravam,
amantes se abra�avam ternamente, fazia-se m�sica, os mortos
tinham acesso a livros que discutiam os mist�rios de Deus e das ci�ncias.

O pr�prio Cahagnet teria conversado sobre medicina com Hip�crates,
sobre astronomia com Galileu, Franklin lhe passara o prot�tipo
de uma m�quina el�trica e Swedenborg, ele mesmo, lhe falara das
atribula��es de sua alma e prometeu que seus livros seriam publicados
em breve. Acertou!

Esses primeiros contatos com o outro lado j� anunciavam o espiritismo.
Nos anos 1850, as mesas volantes invadiram a Europa ocidental.
Os son�mbulos magnetizados deram lugar aos m�diuns. Todas
as hip�teses que tinham sido formuladas pelo magnetismo se aplicaram
ao espiritismo: tratava-se de um fluido el�trico, universal? De
esp�ritos bons ou ruins? Do Diabo em pessoa? O que contavam os
mortos sobre o outro lado?

VIZINHOS PECULIARES...

Ouvir falar de esp�ritos n�o � nenhuma novidade, pois a coisa vem de
longe. H� s�culos conversamos com o outro lado. H� tempos queremos
ouvir nossos mortos. Extrair deles uma informa��o. E tudo come�ou
l� atr�s. Entre os judeus dos tempos b�blicos, prevalecia a ideia
de um destino indiferenciado dos mortos no mundo do Sheol: "tumba


MARY DEL PRIORI

comum da humanidade". Foi a partir do s�culo II de nossa era que
surgiu a cren�a na ressurrei��o e no julgamento no fim dos tempos. O
sombrio Sheol se tornava assim um lugar de espera provis�ria. Uma
parada antes do inferno ou do c�u. Depois da morte, os justos ganhariam
o reino dos c�us e os pecadores a Ge�na, ou vale dos Gemidos.
Retornos e apari��es? Sobre eles, apenas uma refer�ncia na B�blia: a
pitonisa de Endor fez aparecer diante de Saul o espectro de Samuel. O
juda�smo condenava a ideia de entrar em contato com os mortos ou de
interrog�-los e invoc�-los. Consequ�ncias? A ira de Deus.

No Novo Testamento, a proibi��o do contato com os mortos
� menos categ�rica. Embora haja certa retic�ncia em frases do tipo
"Deixai os mortos enterrarem os mortos", Jesus ressuscitou uma
menina e tamb�m L�zaro. Era o pren�ncio de sua pr�pria ressurrei��o
- cercada, ali�s, de medo e terror: os guardas do t�mulo fugiram
apavorados. No Evangelho de Nicodemos, tamb�m conhecido como
Atos de Pilatos, o mundo dos mortos � apresentado como uma cidade
subterr�nea e escura, com portas fortificadas e pesados gonzos. Quase
uma pris�o. Mas uma pris�o perme�vel, da qual Cristo, quando o deseja,
pode liberar o vaiv�m de alguns.

Alto e baixo se opunham: em cima, o c�u; embaixo, o inferno. Acima,
luz; abaixo, trevas. Diferentemente do Sheol judaico, o cristianismo
imaginou um inferno povoado de dem�nios e regido por um maestro.
Deus criou um personagem que, bem entendido, inventado e dominado
por Ele, era o Pr�ncipe do Mal e governador das profundezas.

O culto dos santos, que se propagou entre os s�culos III e IV,
firmou outra ideia: a de que era importante substituir o culto dos mortos,
vindo da Antiguidade, pelo dos santos. Antes, a intimidade entre
mortos e vivos era total: colocava-se comida e bebida sobre as tumbas;
festejava-se a passagem para o al�m com dan�as; uma pedra na laje
impedia o defunto de voltar e estar perto dos parentes. Mas o culto
aos santos se apropriou da cren�a na comunica��o entre o mundo real
e o outro mundo e substituiu a intimidade com o morto familiar pela
ora��o ao santo distante.

29


DO OUTRO LADO

A ideia era de que s� os santos ligassem os homens a um distante
e quase inacess�vel Deus. Apenas eles ofereceriam prote��o e conforto
contra o medo e a inseguran�a. Apenas eles poderiam interceder como
advogados das causas humanas. Nascia, portanto, uma media��o entre
os dois mundos, gra�as exclusivamente a esses amigos invis�veis. E
n�o mais aos mortos.

No entanto, as duas formas de encarar a rela��o entre vivos e
mortos subsistiram. Segundo um modelo herdado da Antiguidade, os
vivos deveriam cuidar dos seus mortos e vice-versa. Segundo um modelo
eclesi�stico, definido por santo Agostinho, o conjunto da comunidade
crist� deveria rezar por seus fi�is defuntos. No primeiro caso, o
culto consolidava tradi��es velh�ssimas. No segundo, ele modelava a
cren�a na qual apenas os santos podiam cuidar dos vivos.

No s�culo XIII, uma novidade: a inven��o da ideia de purgat�rio
permitiu aos mortos, at� ent�o tranquilos, achar um caminho para vir
pedir ora��es e sufr�gios aos vivos. Considerada a antec�mara do c�u, era
para l� que a maior parte dos fi�is queria ir. "Purgavam-se" os pecados
num caminho em que se via a luz celestial no final do t�nel. E isso gra�as
ao poeta Dante Alighieri, que pintou esse para�so intermedi�rio como
uma montanha que levava ao alto, � luz e ao ar puro. Antes, era um rio
de fogo que escapava da boca imensa de um drag�o, segundo S�o Paulo.
A passagem entre um mundo e outro ficou, ent�o, maior. Mais fr�gil tamb�m,
pois era nesse caminho que atuavam os dem�nios. Eles invadiam
corpos, possu�am cad�veres, transformavam as pessoas boas em m�s.

Na concep��o crist�, o purgat�rio era, igualmente, a morada dos
mortos que n�o repousavam em paz. Eram tidos por almas penadas
ou danadas, o oposto das boas, sempre belas e resplandecentes. Criaram-
se categorias para os mortos-vivos: havia os recalcitrantes, que
eram levados ao t�mulo contra a vontade. E os que voltavam e o faziam
para ajudar os vivos. Ou ainda os invocados pela necromancia,
nome dado � arte de adivinhar o futuro por meio dos defuntos.

O "pai" dessas criaturas foi o j� citado santo Agostinho. Num
op�sculo denominado Cuidados com os mortos, redigido entre os


MARY DEL PRIORE

anos de 421 e 424, ele tratou das apari��es dessas criaturas, capazes
de brotar em sonhos, mandar mensagens e reclamar sepulturas adequadas.
Sua interpreta��o sobre eles era simples: se existiam, era por
obra divina. Quanto �s apari��es, tratava-se de anjos que transmitiam
mensagens por meio dos mortos. Ele n�o duvidava da exist�ncia de
almas do outro mundo e de seu poder de deslocamento. Somente que,
explicava, elas v�m e v�o com licen�a divina. E recomendava: o mais
importante n�o era querer fazer perguntas muito complicadas. Mas
meditar sobre os mandamentos do Senhor.

Na Idade M�dia, fantasmas e almas do outro mundo come�aram
a registrar sua exist�ncia. Cronistas da Igreja n�o hesitavam em comentar
que os cad�veres sa�am de sua sepultura, passeavam � vontade
e, depois, voltavam aos t�mulos que abriam com as pr�prias m�os.
Montavam a milhares os testemunhos de tais fatos. Ao competir com
os santos, defuntos ganhavam outra caracter�stica: a de fazer milagres,
sobretudo por quem rezasse por eles. Al�m do mais, manifestavam-se
aos vivos de diversas formas: por meio de sonhos e vis�es, na forma
de fantasmas ou de mortos-vivos.

A Igreja n�o gostou. Para muitos te�logos, isso n�o passava de
uma arma��o do Dem�nio. Belzebu era capaz de criar alucina��es.
Sempre com autoriza��o de Deus, � l�gico, e apenas para testar os homens.
A Igreja empurrava os fen�menos paranormais para o territ�rio
da ilus�o ou dos sonhos. Para as pessoas, por�m, fantasmas existiam.
Acreditava-se neles, sabia-se o que significavam. Eram silenciosos. S�
articulavam para pedir ora��es. Por vezes, mostravam-se t�o reais que
era preciso provar com quem se estava falando. Confirmava-se isso
por um teste: eles n�o aceitavam alimentos.

Os mortos-vivos e as almas do outro mundo tinham consist�ncia
e tr�s dimens�es, por isso era dif�cil tax�-los de sonho ou ilus�o.
Apareciam em carne e osso e, quando tocados - segundo alguns cl�rigos
-, tinha-se a impress�o de mergulhar os dedos em mat�ria fant�stica.
Apresentavam as caracter�sticas e a apar�ncia que tiveram no
momento do trespasse. Se vestidos com um sud�rio di�fano e branco,


DO OUTRO LADO

eram bons. Se negro, maus. Se voltavam para fazer o bem, a roupa ia
clareando na medida das boas a��es. Mas tamb�m podiam ser mortais
e perigosos. Quando chamavam as pessoas pelo nome, elas ca�am
doentes e depois morriam. Traziam a peste consigo. N�o gostavam de
viajar e apareciam sempre perto de suas casas.

Mas sua mais impressionante caracter�stica era o barulho. Provocavam
sons met�licos de martelos, correntes, sinos e armas. Imitavam
os animais relinchando, mugindo, ganindo. Seus ru�dos mais
humanos eram gritos e gargalhadas que geravam tumultos e pateadas.
Tais sons se reproduziam, sobretudo, em lugares habitados. Depois no
campo ou nas florestas. O hor�rio? Antes de o galo cantar. Os sons
substitu�am a palavra, eram uma forma de chamar a aten��o. Afinal, a
priva��o da linguagem era um castigo e, quanto maior o pecado, mais
fortes os gritos e as batidas nas paredes. Eles usavam tudo que indicasse
que estavam ali e continuavam a viver n�o muito longe de n�s.

Quando insistiam em suas maldades, os t�mulos eram abertos, os
corpos queimados, os cora��es arrancados ou trespassados com paus
de ponta. Nascia na �poca a cren�a naqueles que mais tarde chamar�amos
"vampiros". J� a Igreja insistia em m�todos menos violentos.
Incensar o t�mulo antes do enterro, aspergir �gua benta no corpo, enterrar
em terra consagrada, erigir uma cruz, exorcizar os mortos-vivos.

O oposto do mau morto era aquele que morria na boa hora e era
apreciado quando vivo. Ele se transformava no ancestral encarregado
de zelar por sua fam�lia. De volta a Deus, serviria de mediador entre
Ele e os homens. Se voltasse, era porque estava descontente com seus
descendentes, porque n�o respeitavam os antigos costumes. Ou para
lhes dar conselhos e extra�-los de m� situa��o. Ent�o, amea�ava, castigava
ou indicava o que deveriam fazer. Aparecia como guardi�o da
moral, da ordem e da prosperidade.

Em 1600, j� se publicavam ensaios sobre a quest�o. Por exemplo,
o Tratado da apari��o de esp�ritos, da autoria de certo Nicolas
Taillepied, ou Discurso de espectros, ou vis�es e apari��es, de
Pierre Le Loyer, de 1608. Em 1751 , dom Augustin Calmet, abade


MARY DEL PRIORE

beneditino, publicou a Disserta��o sobre mortos-vivos para provar
que, "em todos os tempos e na��es, a apari��o de mortos autentificava
a exist�ncia da vida eterna e da imortalidade da alma". Tudo isso
ajudou a construir uma cren�a: a de que os mortos nunca estavam
totalmente mortos. E, para muitos, assim seria por muito tempo e por
que n�o? - at� hoje...


SEXO E MORTE � MEIA-NOITE
Na �poca em que se publicaram os primeiros tratados sobre os esp�ritos,
sexualidade e morte se aproximaram. Na pintura, a morte arrebatava
donzelas com carinhos sensuais. Na escultura, bel�ssimos corpos
femininos convidavam os passantes a dormir com eles... para sempre.
O teatro multiplicou cenas em cemit�rios e t�mulos. Contavam-se hist�rias
sobre monges que copulavam com belas jovens mortas. A ent�o
chamada "galanteria" invadiu o al�m.


Outro tema era o da morbidez, definida como o gosto mais ou
menos sinistro pelo espet�culo f�sico da morte. O corpo morto e nu se
tornou objeto de curiosidade cient�fica e de prazer m�rbido. Ci�ncia e
arte se deram as m�os. O cad�ver virou personagem de li��es de anatomia
na vida real e na pintura. As cores de sua decomposi��o - verde
e cinza - iriam inspirar pintores famosos. Nos t�mulos, belas mulheres
nuas com vestes transparentes passaram a substituir a tradicional imagem
da caveira comida por vermes ou de anjos com os olhos virados
para o c�u. Agora, n�o se viam mais esqueletos, mas seios e n�degas
suavemente cobertos. Nos cemit�rios, lustres e enfeites eram compostos
com pequenos ossos.

E quem se interessou pelo assunto? Os intelectuais e estudantes.
A bo�mia liter�ria, que nasceu gra�as ao surgimento das faculdades
de Direito em S�o Paulo e Recife, animou os estudantes. Eles viviam
livremente em rep�blicas, longe da fam�lia e mergulhados em muita
literatura rom�ntica. O poeta e lorde Byron era a grande inspira��o.
A tradu��o de seu poema Lara veio na pena de Tib�rcio Ant�nio


DO OUTRO LADO

Craveiro, que viveu na corte entre 1825 e 1843. Por tr�s da apar�ncia
respeit�vel de um professor do Col�gio Pedro II, se dissimulava uma
vida de orgias e bizarrices. Sua casa era decorada com aparelhos de
tortura, m�mias e gravuras macabras. As paredes, borrifadas de sangue.
A ilumina��o era garantida por velas pretas e vermelhas, como
as que os condenados do Santo Of�cio empunhavam a caminho da
fogueira. Ele escrevia sobre uma lousa de m�rmore negro que, diziam,
fora retirada da sepultura de uma donzela.

Outro byroniano foi o conde Tierry von Hogendorp, ex-general
das tropas napole�nicas que se refugiou em Cosme Velho ao p� do
Corcovado, no Rio de Janeiro. Dormia num quarto de paredes negras,
com caveiras e t�bias cruzadas, esqueletos em branco representando a
dan�a macabra: aquela em que a morte puxava pela m�o um cord�o
de condenados. Sua cama era um ata�de.

Em 1845, em S�o Paulo, estudantes criaram a Sociedade Epicureia
enquanto, no Recife, nascia a Filopan�a. Ambas promoviam orgias de
inspira��o byroniana. Na primeira, pontificavam Bernardo Guimar�es
e �lvares de Azevedo. Nas farras realizadas no bairro paulistano
da Ch�cara dos Ingleses - n�o � toa, Byron era nascido em Londres -,
copiavam-se os personagens sat�nicos do poeta. Paredes cobertas de
tapetes negros e decoradas com emblemas f�nebres e camas colocadas
em catafalcos, entre c�rios, recebiam prostitutas conhecidas na pra�a,
como Ana Bela, Tudinha do Inferno ou Marocas Peido Roxo.

Certa elei��o de uma "Rainha dos Mortos", em plena epidemia de
febre amarela que grassava na cidade, terminou mal. Os estudantes resolveram
desafiar a dama de branco e percorreram os cemit�rios se divertindo
em saltar sobre tumbas ou viol�-las. Resolveram tamb�m ir buscar
uma prostituta para encarnar a morte. A escolhida foi enfiada aos gritos
de pavor num caix�o e levada ao som de cantoch�es para o cemit�rio.
L� chegando, um estudante, cujo apelido era Sat�, abriu o ata�de para
possu�-la conforme os rituais macabros. Um grito e um susto: "Morta.
Est� morta!". A mulher morrera de terror. Abriu-se um inqu�rito, nunca
solucionado, pois envolvia filhos de fam�lias influentes.


MARY DEL PRIORE

Mas sem assombros, por favor! Cemit�rios eram espa�os sociais
dignos de aten��o. Localizados ao lado das igrejas, ali as prostitutas
ofereciam seus servi�os e as escravas vendedoras de comida ofereciam
seus quitutes � sa�da da missa. Ao longo do s�culo XIX, por�m,
por raz�es de higiene, os campos santos iriam se afastar dos altares
e se transformar em jardins, em cidades, em florestas com ciprestes,
enfim, em dispositivos c�nicos onde atuavam sonhos e dramas. Para
evitar a corrup��o dos ares, a paisagem era dissimulada por plantas
e flores. As necr�poles se pintavam de verde. Percorriam-se suas
aleias para visitar t�mulos conhecidos. Louvava-se a calma serena
do lugar. Nelas se observava a lua nascer, escutava-se o sil�ncio. N�o
havia preocupa��o em dissimular a morte. Ela era cantada em prosa
e verso. A morte era rom�ntica e sensual. Louvava-se a passagem
do vis�vel ao invis�vel, o limite entre dois mundos. A lembran�a dos
desaparecidos era substitu�da pela sensa��o de sua presen�a. Pela
impress�o de sua perman�ncia. Os afetos se prolongavam gra�as
�queles que falavam com os mortos.

A moda? Apreciar a beleza do horror, considerado uma fonte
de sensa��es. O elo misterioso entre prazer e dor ganhou for�a no
romantismo. Beleza, morte e deleite se misturavam na pena de autores
lidos pelos brasileiros, como Byron. Em Don Juan, a personagem
Ant�nia sente que uma alma penada ronda a casa e a espia noite e
dia. No poema Giaour, de 1813, Byron menciona vampiros e outras
reencarna��es famintas de sangue. Imagens que foram apropriadas
por outros autores da �poca, como Polidori ou Prosper Merim�e, pois
a literatura de horror inglesa foi traduzida e teve grande influ�ncia na
Fran�a e, por ricochete, no Brasil. Machado de Assis n�o fez por menos.
Em seus Contos da meia-noite, plantou um poeta cujas estrofes
intituladas "� beira de um t�mulo" falavam de morte e vida, flores e
vermes, amores e �dios, tudo num caldo de "oito ciprestes, vinte l�grimas
e mais t�mulos do que um verdadeiro cemit�rio".

No entanto, ao se aproximar do erotismo, a morte deixava
de ser um evento familiar e aceito. Antes, o conv�vio era feito de


DO OUTRO LADO

serenidade e aceita��o. Mas, ao aproximar orgasmo e morte, indicando
uma ruptura, os homens passaram a ter medo de morrer. O
sexo criou um distanciamento: quanto mais prazeres em vida, maior

o medo da finitude.
Medo esse que era combatido por meio do espet�culo e da festa.
O campo santo virou local de piquenique, romaria c�vica ou passeios
domingueiros. A cada dia 2 de novembro, os jornais publicavam uma
coluna social contando em quais jazigos se rezariam as missas mais
concorridas, quais os t�mulos mais enfeitados, quem compareceria
�s capelas, tudo se refletindo, como diria mais tarde Lima Barreto, no
prest�gio e na grandeza dos t�mulos. A morte era um espet�culo!

Em sua Carta de um defunto rico, Lima Barreto ironizava:

O meu prop�sito era dizer a voc�s que o enterro esteve lindo.
Eu posso dizer isso sem vaidade, porque o prazer dele, de sua
magnific�ncia, de seu luxo, n�o � propriamente meu, mas de voc�s
[...] Enterro e demais cerim�nias f�nebres n�o interessam ao
defunto; elas s�o feitas por pessoas vivas para os vivos.



A NOVA MODA: AS MESAS
VOLANTES E O ESPIRITISMO

N�O ESTAMOS S�S
Enquanto isso, os mortos continuavam l�, a interpelar os vivos. E
agora o fariam por meio de "mesas falantes". Na Europa de meados
do s�culo XIX, a moda chegou por mar, vinda dos Estados Unidos.
O movimento americano, conhecido como "espiritualismo", reunia
centenas de milhares de adeptos: ju�zes da Suprema Corte, senadores,
membros do clero, m�dicos e f�sicos escreviam livros e faziam confer�ncias
sobre esses chamados "novos tesouros". N�o faltava quem
visse tudo com desconfian�a e medo - e, na tradi��o crist�, como manifesta��o
da obra do Diabo.

"O que eu diria a quem predissesse que o s�culo XIX, t�o orgulhoso
de suas luzes, terminaria com centenas de milhares de pessoas
neste pa�s acreditando poder se comunicar com seus av�s?" Quem
registrou isso em seu di�rio foi um famoso advogado de Nova York,
George Templeton Strong.

E como come�aram as comunica��es? Tudo aconteceu na primavera
de 1848, num pequeno condado do Wayne: Hydesville, a
oeste do estado de Nova York. Ningu�m imaginava que a hist�ria
fosse tomar tal amplitude. Maggie e Kate Fox, as duas filhas adolescentes
de um casal metodista, se comunicavam com um esp�rito
por meio de batidas na parede. Era a velha linguagem dos sons. Mas
quem era ele? Um ambulante assassinado pelos antigos moradores,


DO OUTRO LADO

cujo corpo fora enterrado no por�o da casa. Fantasmas de v�timas
de morte violenta n�o eram raros nos Estados Unidos. Para cada pergunta
das meninas, uma resposta na forma de pancadas: pam, pam,
pam... Um alfabeto foi criado para traduzir as batidas em palavras.
E a primeira mensagem da telegrafia espiritual n�o deixava d�vidas:
"Caros amigos, deveis proclamar ao mundo estas verdades. � a aurora
de uma nova era; e n�o deveis tentar ocult�-la por mais tempo.
Quando houverdes cumprido vosso dever, Deus vos proteger� e os
bons esp�ritos velar�o por v�s".

�s duas irm�s se juntou uma terceira, L�a, cujo temperamento
empreendedor serviu para que o trio Fox se tornasse famoso. Seus
sal�es, cada vez mais cheios, ajudaram a difundir a pr�tica em outras
regi�es do pa�s. Submetidas a sabatinas e investiga��es de comiss�es
encarregadas de examin�-las, Maggie e Kate resistiram. O resultado
foi a consagra��o do fen�meno.

Brochuras favor�veis �s "manifesta��es" se multiplicaram. Sess�es
no Hotel Barnum, em Nova York, e o apoio do jornal New York
Tribune expandiram o movimento pela costa leste americana, atingindo,
sobretudo, as popula��es brancas e protestantes do noroeste
do pa�s e do Middle West, o Meio Oeste. Na sua grande maioria, os
espiritualistas americanos eram abolicionistas convictos. Sua press�o
fez com que o estado do Alabama, com grande concentra��o de
escravos, at� pensasse em estabelecer leis antiespiritualistas. No Sul,
notadamente em Nova Orleans, a influ�ncia francesa e afro-crioula incentivou
um sucesso sem igual do movimento. Em 1852, foi fundado

o Spiritual Telegraph, �rg�o do movimento que contou, ao longo de
vinte anos, com at� oitenta jornais.
A profissionaliza��o das sess�es foi um importante fator de difus�o.
As irm�s Fox faziam espet�culos pagos. A partir de 1850, se
multiplicaram os "m�diuns profissionais" - a terminologia se tornou
corrente -, assim como palestras e confer�ncias de especialistas. Um
viajante franc�s, Eug�ne Chevreul, observou:


MARY DEL PRIORE

A aptid�o dos cidad�os dos Estados Unidos pelo com�rcio
e ind�stria � incontest�vel [...] eles n�o fazem exce��o quando se
trata de entrar em comunica��o com os esp�ritos. Hoje em dia,
se � 'm�dium' como se � comerciante, industrial, m�dico, advogado
e se garante que os m�diuns mais famosos t�m vantagens
pecuni�rias em colocar os homens em contato com os esp�ritos.

Nessa �poca, os esp�ritos se manifestavam n�o s� por meio de
batidas nas paredes, ch�o e teto. Apareciam, sobretudo, quando chamados
por gente reunida em torno de uma "mesa volante". Como
vimos, o deslocamento dos m�veis e objetos era bastante conhecido
na Europa. Em 1847, antes mesmo da experi�ncia das irm�s Fox, "son�mbulas"
e "magnetizadores" atribu�am a essa movimenta��o uma
origem extraterrestre. O j� citado Louis-Alphonse Cahagnet, fundador
da Sociedade dos Magnetizadores Espiritualistas, reproduziu em
seu Arcanos da vida futura o di�logo entre uma son�mbula e o esp�rito
de Swedenborg:

- Cr�s que os esp�ritos tenham for�a para movimentar m�veis
e mil outras coisas, como se diz?
- Saiba que os esp�ritos podem suportar os mais pesados
fardos [...] e fazer coisas que voc� n�o conceber� jamais.
J� estas palavras da poetisa Sarah Whitman, escritas em 1852,
sintetizavam o clima da �poca:

Fen�menos misteriosos dos tempos atuais chegaram a n�s
sem que os esper�ssemos ou procur�ssemos. Imersos no materialismo,
assim como na imprensa e no tumulto da vida atual,
eles nos obrigam a parar um momento e a olhar com rever�ncia
e aten��o as provas de exist�ncia espiritual e do destino imortal
que nos s�o oferecidas.


DO OUTRO LADO

A eletricidade ou as chamadas "divers�es el�tricas" justificavam
uma nova agenda, em que esp�ritos viriam tirar os homens de "um
s�culo caduco" e cheio de melancolia e spleen, cravava Lopes de Mendon�a,
membro da Academia das Ci�ncias de Lisboa.

Nas primeiras d�cadas do s�culo XIX, chegaram � Fran�a as
"mesas" vindas da Am�rica e exportadas para o restante da Europa a
partir dos anos 1850. Enquanto alguns argumentavam que as ci�ncias
tinham matado com golpe mortal o desejo de se deixar invadir pelo
sobrenatural, o fen�meno conhecia um movimento excepcional. N�o
faltaram os que acusavam os "espiritualistas americanos" de licenciosos,
revolucion�rios e at� criminosos. Temia-se "uma revolu��o religiosa
e social, �ndice de uma nova era cosmog�nica", advertia o jornal
O Correio dos Estados Unidos.

Na Fran�a, a ofensiva espiritualista entrou pelos sal�es e atingiu
a burguesia. Dentre os primeiros adeptos estava o grande escritor Victor
Hugo, ent�o exilado na ilha de Jersey, no canal da Mancha. Ele
n�o admitia brincadeiras com as mesas volantes e corrigia os goza-
dores lembrando que a ironia era c�moda, mas pouco cient�fica: "Os
que choramos n�o est�o ausentes". Gra�as �s mesas, "falava" com sua
filha morta. E essa convic��o de uma vida ap�s a morte impregnou
sua obra. S�o suas as palavras:

Eu digo que o t�mulo que sobre os mortos se fecha
abre o firmamento
e que aquilo que aqui embaixo tomamos por um fim
� apenas o come�o.

O sentimento de ultrapassar a morte e de alcan�ar a compreens�o
da eternidade, a certeza da imortalidade da alma e de reuni�o com
entes queridos no al�m orientava novas formas de pensar e sentir. A
Dama de Branco n�o ceifava mais vidas. Apenas afastava temporariamente
os entes queridos que poderiam se reencontrar em volta de
uma mesa.

40


MARY DEL PRIORE

Qual cr�dito dar a essas manifesta��es que alimentavam discuss�es
apaixonadas e um enorme interesse? A Igreja Cat�lica reagia.
Eram coisas do Dem�nio. Uma cesta fugira, rastejando qual serpente,
quando numa sess�o lhe apresentaram os Evangelhos. Os esp�ritos
calavam quando perguntados sobre Jesus Cristo. Outros anunciavam

o fim dos tempos. Mas havia quem, como o famoso pregador franc�s
Lacordaire, afirmasse que as vozes que ouvira numa mesa "dizem coisas
notabil�ssimas sobre o passado e o presente".
Mas aten��o ao vocabul�rio: na Fran�a, se tornou corrente o uso do
termo "espiritismo" para designar o conjunto de pr�ticas nascidas nos
Estados Unidos, em 1848, e exportadas para a Europa, em 1852. Tais
pr�ticas consistiam em se comunicar com os esp�ritos por meio de mesas
volantes. At� ent�o se falava em "espiritualismo americano", "espiritualismo
moderno", "fen�menos magn�ticos" ou "fen�menos de mesa". A
tradu��o de spiritualism, termo usado nos pa�ses anglo-sax�es, por "espiritualismo"
criava um problema. Na Fran�a, a palavra correspondia
� posi��o dos que, contra a filosofia "sensualista" e "materialista" do
s�culo XVIII, admitiam a imortalidade da alma e estudavam suas caracter�sticas.
Eis por que, no sentido corrente, passou-se a ver os esp�ritas
como espiritualistas que acreditavam na comunica��o com os esp�ritos.

E a comunica��o denominada "espiritismo" teria nascido nos Estados
Unidos, em 1848, ou na Fran�a, em 1857, com Allan Kardec?
Dever�amos creditar �s irm�s Fox e a Kardec seu nascimento? N�o.
A B�blia apresenta v�rias passagens contra a necromancia. E, na �poca
de Tertuliano, um dos primeiros grandes autores do cristianismo,
por volta do ano 200 d.C, j� havia registro de "mesas volantes". O
espiritismo sempre existiu. Mas o surgimento da palavra, da doutrina
e do movimento nos pa�ses ocidentais exige que se pense em dois
espiritismos: o antigo e o moderno, com media��es e elementos de
continuidade entre um e outro.

Quando e como o fen�meno cruzou o Atl�ntico? Como vimos,
a partir do outono de 1852, os primeiros m�diuns americanos come�aram
a chegar ao Velho Mundo. Eram mulheres, na maior parte. At�


DO OUTRO LADO

o termo "m�dium" era novo. Na Fran�a, usava-se "son�mbula" at�
ent�o. A primeira parece ter sido Maria Hayden, que desembarcou
na Inglaterra em outubro do mesmo ano. Embora apresentada como
uma aventureira, ela impressionou figuras importantes como Robert
Chambers, um dos primeiros te�ricos da evolu��o, e o socialista Robert
Owen. No ano seguinte, nascia o primeiro jornal esp�rita ingl�s,
The Spirit World, ou O mundo esp�rita.
O fen�meno se espalhou como �gua. Da Inglaterra, atravessou o
canal da Mancha, passou pela Pr�ssia, cruzou o Reno, chegou � �ustria
e � R�ssia, at� desembarcar na Fran�a. O impulso decisivo n�o
veio, por�m, da Inglaterra, mas da Alemanha, mais particularmente
de Hamburgo e Bremen, grandes portos de emigra��o europeia na
dire��o dos Estados Unidos. Em 30 de mar�o de 1853, um dos jornais
alem�es anunciava:

H� oito dias nossa boa cidade se encontra numa agita��o dif�cil
de descrever. Est� completamente absorvida por uma maravilha
que ningu�m jamais sonharia antes da chegada do vapor Washington.
As pessoas se preocupam bem menos com o pre�o do tabaco
ou o sucesso da m�quina Ericsson do que com a dan�a das mesas
[...] N�o se trata de uma brincadeira americana. Um misterioso
problema est� sendo colocado � ci�ncia; cabe a ela resolv�-lo.

Do outro lado da Mancha, o escoc�s Daniel Dunglas Home, que
crescera nos Estados Unidos, era o sucesso da corte de Napole�o III.
Considerado "o pr�ncipe dos esp�ritos", ele levitava, e, no Pal�cio das Tulherias,
de onde n�o sa�a a convite do casal de imperantes, fez aparecer
uma m�o sobre a mesa. A imperatriz Eug�nia quis toc�-la e, ao contato,
gritou: "Mas � a m�o de meu pai!". A seguir, teve uma crise nervosa.

Se a Am�rica descobriu, a Alemanha constatou, e, em algumas
semanas, Bruxelas, Londres e Paris seguiram-na. A Alemanha e a �ustria
foram as mais atingidas. Frederico Guilherme IV, rei da Pr�ssia,
se apaixonou pelas mesas volantes antes de ser arrancado do poder e


MARY DEL PRIORE

confinado num hosp�cio. E, pela vizinhan�a geogr�fica, M�xico e Canad�
foram os primeiros a reconhecer os extraordin�rios fatos.

Havia outras vantagens. A pr�tica da "mesa volante" era simples.
Sua objetividade e seu car�ter "divertido", pedag�gico, gratuito e
adaptado aos espa�os dom�sticos fizeram-na virar moda. At� o �rg�o
oficial do Vaticano, o peri�dico La Civilt� Cattolica, se curvou: "Fazer
moverem-se as mesas pela imposi��o das m�os � a �nica preocupa��o
do momento".

Ao lado do romance de Harriet Beecher Stowe, A cabana do pai
Tom�s, a moda dos "esp�ritos" ou a "fluidomania" foi dos primeiros
"americanismos" a invadir a cultura europeia. Grandes jornais, como

o Times e o Journal des Deux Mondes, entre outros, dedicavam ao
assunto p�ginas inteiras. Brochuras, teses de medicina e livros multiplicavam
as explica��es, que iam de charlatanismo e imagina��o a
eletricidade e magnetismo, fisiologia ou mec�nica.
C�ticos, como o f�sico e qu�mico ingl�s Michael Faraday, acreditavam
que se tratava simplesmente de press�o das m�os! Mas havia quem
acreditasse na a��o de um fluido misterioso ainda desconhecido da ci�ncia.
A irradia��o cultural da Fran�a refor�ou a mundializa��o do fen�meno,
em particular nos pa�ses de cultura latina e cat�lica, como o Brasil.

DE RIVAIL A KARDEC
Em 1854, Hippolyte Leon Denizard Rivail, que adotaria o nome Allan
Kardec, se interessou pelo assunto das mesas volantes. Homem dedicado
aos estudos, ele viveu inicialmente para o ensino e a reda��o de
manuais. A seguir, para o espiritismo. Nascido a 3 de outubro de 1804
numa fam�lia de juristas, em Lyon, na Fran�a, Hippolyte se educou na
Su��a, onde se tornou colaborador do educand�rio no qual era aluno
interno. Falava v�rias l�nguas, lecionava diferentes mat�rias e era tradutor
de ingl�s, alem�o e holand�s.

Formado na escola do pedagogo Henri Pestalozzi, ele afirmava
que a educa��o do povo, fundada na toler�ncia e na fraternidade, era


DO OUTRO LADO

indispens�vel ao avan�o da humanidade. O importante era "aprender
a aprender". Lutou contra o castigo f�sico, que ainda era aplicado em
crian�as, e convidava os alunos a desenvolver a intelig�ncia pela reflex�o
e o questionamento. Vision�rio, apostava no trabalho feminino,
n�o como signo de inferioridade econ�mica, e sim como express�o de
independ�ncia pessoal.

Entre 1854 e 1857, a curiosidade de Rivail pelo fen�meno das
mesas volantes aumentou - contam seus bi�grafos. Vinte anos antes,
ele se instalara em Paris, no n�mero 35 da rua de S�vres, onde fundou
um curso com os m�todos pedag�gicos pestalozzianos. Em 1850,
tornou-se contador de um teatro parisiense, onde se apresentava um
dos maiores m�gicos da �poca, um certo Lacaze. Iniciou-se ent�o seu
interesse pelo magnetismo e pelos fen�menos sobrenaturais. O que de
in�cio parecia uma futilidade se tornou assunto para pesquisa, pois
tudo Rivail estudava de forma racional e cient�fica.

Como se moviam as mesas? E por qu�? Como tantos, ele iria
explicar esses fen�menos, inicialmente, pela exist�ncia de um fluido
el�trico. Depois, pela atua��o do esp�rito dos mortos, assunto sobre

o qual se debru�ou. Na primavera de 1855, ele participou de sess�es
organizadas por son�mbulos e seus magnetizadores. Como muitas
das mesas eram pesadas e lentas, a experi�ncia se transformou.
Passou-se a usar cestas e chap�us at� chegar, mais tarde, � chamada
escrita autom�tica.
Son�mbulos pousavam a m�o na pena, esperando que o esp�rito
dispusesse dela. Dezenas de cadernos escritos dessa forma foram oferecidos
a Rivail. Pouco a pouco, ele se convenceu de que as mensagens
transcritas eram mesmo enviadas por esp�ritos extraterrestres. Ele
complementava as informa��es dos escritos com di�logos que mantinha
com os son�mbulos magn�ticos. Depois de preparar uma s�rie
de quest�es, ele as fazia �s pessoas em transe, anotando as respostas
que os esp�ritos transmitiam por sua boca ou pena. Rivail entreviu,
ent�o, a possibilidade de uma nova lei sobre a condi��o da alma ap�s
a morte e sua imortalidade.


MARY DEL PRIORE

Quanto �s cr�ticas dos s�bios que viam nisso uma divers�o, Rivail
os repreendia: n�o bastava a ci�ncia para entender tais feitos, pois ela
ignorava dimens�es espirituais. Por isso, espiritismo e ci�ncia eram
fen�menos complementares. Um n�o viveria sem o outro, e o seu inimigo
comum era o materialismo. O importante era criar m�todos pr�prios
e desenvolver pilares para a compreens�o da "ci�ncia esp�rita".

Em 1857, seus estudos conduziram � publica��o de O livro dos
esp�ritos, contendo os princ�pios de sua doutrina sobre a natureza dos
esp�ritos, sua manifesta��o e rela��o com os homens, as leis morais,
a vida presente, a vida futura e o futuro da humanidade, escrito sob
ditado e publicado por ordem dos esp�ritos superiores.

Rivail o publicou sob o nome de Allan Kardec depois de saber por
seu esp�rito familiar, o equivalente do anjo da guarda, que esse fora seu
nome druida celta numa vida anterior. O recurso a um pseud�nimo n�o
tinha nada de excepcional. Seria normal no meio esp�rita nos anos 1860
e ainda tinha a vantagem de n�o se expor numa �poca em que, embora
a heterodoxia religiosa fosse tolerada, sempre se corria riscos.

Era tamb�m uma forma de proteger sua carreira editorial, sem
dar chance de retalia��o por parte de institui��es de ensino religioso
que tivessem adotado seus manuais. A ado��o desse nome permitia
unir a cadeia de suas exist�ncias sucessivas, mas tamb�m revestir sua
nascente autoridade de profeta do espiritismo de uma aura celta. A
moda gaulesa estava no auge, com seus druidas, velhas �rvores, festas
de solst�cios e sacerdotes em roupas brancas. Como os celtas, Kardec
tinha um profundo desprezo pela morte, pois eles tamb�m acreditavam
que a alma reencarnava em outro corpo.

Ele n�o estava s�. O s�culo queria retomar o di�logo com os
mortos que o cristianismo interrompera. Em 1862, o jovem Camille
Flammarion, astr�nomo recentemente convertido ao espiritismo e
autor de A pluralidade dos mundos habitados, homenageou a "nova
filosofia" e dedicou seu primeiro livro "a nossos ancestrais, os bardos
gauleses, que cantavam o desprezo pela morte, e �s sacerdotisas coroadas
de azevinho que evocavam as almas". Estava extasiado com


DO OUTRO LADO

as levita��es, a psicografia, as percuss�es e apari��es luminosas de
objetos que presenciara. Considerava que vira fen�menos t�o extraordin�rios
e t�o opostos ao "enraizado credo cient�fico" que fizera
quest�o de publicar suas observa��es no Quarterly Journal of Science.

Ali�s, a astronomia, cujas descobertas recentes multiplicavam
por mil o n�mero de "mundos potenciais", se perguntava, nessa �poca,
onde seria o lugar da imortalidade. Onde moravam os mortos?
Num mundo long�nquo e longe de nossa vista? Ou em tais "mundos
habit�veis" e observados pelo telesc�pio? Flammarion argumentava
que n�o havia raz�o para habitantes de outros mundos terem a apar�ncia
humana. "S�o esp�ritos superficiais que se divertem em povoar
os astros como col�nias terrestres", explicava. Suas teses tiveram inequ�voco
sucesso. S� a Igreja torceu o nariz, pois a tese n�o preservava
a autoridade das Santas Escrituras.

Em O livro dos esp�ritos, Kardec conta que sua convers�o foi
gradual. Levou dois anos. N�o foi uma convers�o s�bita e emocional,
mas sim pensada, refletida, ponderada; uma conclus�o rigorosa a partir
de um conjunto de "princ�pios incontest�veis". Para ele, o mundo
espiritual era o prolongamento da vida concreta. E at� mais importante,
porque eterno. E pass�vel de ser estudado cientificamente. Com esse
processo progressivo e racional, houve outro. Mais subjetivo. Durante

o per�odo anterior � reda��o de seu livro, Kardec sentia-se habitado
pela lembran�a de sua m�e morta. Ela lhe aparecia em sonhos,
causando-lhe "emo��o indescrit�vel". Uma circunst�ncia, diga-se de
passagem, que aparece em outras biografias esp�ritas.
Duas eram as suas preocupa��es: distanciar ao m�ximo os la�os
entre mesas volantes e o espiritismo, ci�ncia que ele queria codificar, e
afastar de si qualquer imagem de "mago rom�ntico", muito na moda
por conta do romantismo. A essa ideia preferia opor a de fil�sofo religioso.
A lista de esp�ritos que lhe revelaram suas fontes? S�o Jo�o,

o mais filos�fico dos evangelistas; S�o Vicente de Paulo, personagem
consensual na sociedade francesa, que encarnava a bondade e o lado
social do catolicismo; F�nelon, te�logo e representante de uma religi�o

MARY DEL PRIORE

aberta, ao mesmo tempo liberal e m�stica; o j� conhecido Emanuel
Swedenborg; Benjamin Franklin, protetor dos esp�ritas americanos;
Samuel Hahnemann, fundador da homeopatia e rec�m-falecido em
Paris; Napole�o I, representante da hist�ria e da revela��o de uma
nova idade do mundo.

Na Fran�a, os que antes eram chamados de son�mbulos magn�ticos
passaram a "m�diuns": "uma pessoa acess�vel � influ�ncia dos esp�ritos,
mais ou menos dotada da faculdade de receber ou transmitir suas
comunica��es", segundo Kardec. Para ele, o son�mbulo agia sob influ�ncia
de seu pr�prio esp�rito, exprimindo seu pr�prio pensamento. J�

o m�dium seria instrumento de uma intelig�ncia externa. Eles encarnavam,
portanto, diferentes fen�menos, apesar das afinidades explicadas
pela Revue Spirite (Revista Esp�rita) numa edi��o de outubro de 1858:
O espiritismo liga-se ao magnetismo por la�os �ntimos (essas
duas ci�ncias s�o solid�rias uma com a outra; e, todavia, quem o
teria acreditado?) [...] Os esp�ritos sempre preconizaram o magnetismo,
seja como meio curativo seja como causa primeira de
uma multid�o de coisas; eles defendem sua causa e v�m prestar-
lhe apoio contra seus inimigos. Os fen�menos esp�ritas abriram
os olhos de muitas pessoas, que ao mesmo tempo se juntaram ao
magnetismo.

O espiritismo, essa loucura do s�culo XIX segundo os que querem
ficar nas praias terrestres, nos faz descobrir todo um mundo, mundo
bem mais importante do que a Am�rica, pois nem todos os homens
v�o � Am�rica, enquanto cada um de n�s, sem exce��o, ir� ao dos
esp�ritos, fazendo incessantes travessias de um a outro.

E, no Livro dos esp�ritos:

Deixando o corpo, a alma volta ao mundo dos esp�ritos, de
que havia sa�do para reiniciar uma nova exist�ncia material, ap�s


DO OUTRO LADO

um lapso de tempo mais ou menos longo, durante o qual permanecer�
no estado de esp�rito errante.

Devendo o esp�rito passar por muitas encarna��es, conclui-
se que todos n�s tivemos muitas exist�ncias e teremos outras,
mais ou menos aperfei�oadas, seja na Terra ou em outros mundos.

A encarna��o dos esp�ritos ocorre sempre na esp�cie humana.
Seria um erro acreditar que a alma ou o esp�rito pudesse encarnar
num corpo de animal.

As diferentes exist�ncias corporais do esp�rito s�o sempre
progressivas e jamais retr�gradas, mas a rapidez do progresso
depende dos esfor�os que fazemos para chegar � perfei��o.

Kardec foi um pedagogo de grande integridade intelectual. Nem
um monstro de erudi��o, como querem seus admiradores, nem um
ser prim�rio, como acusam seus detratores. Mas um trabalhador do
conhecimento, sem fantasias e pouco inclinado a voos da imagina��o.
Ele estudou e verificou que os princ�pios da doutrina que ent�o
elaborava estavam em todas as formas de cren�as e religi�es, em diferentes
�pocas e lugares. Para ele, o espiritismo seria o elo entre todas
as cren�as.

Seria tamb�m a alian�a entre religi�o e ci�ncia, o motor do progresso
moral e intelectual na busca de uma fraternidade universal.
Deus existia, sim. Mas estava longe. Precisava de mediadores - os esp�ritos
desencarnados - para ajudar a humanidade a expiar suas faltas
e progredir na busca de perfei��o.

O espiritismo foi um observat�rio do tempo porque as pessoas
se reconheciam nele. Mas tamb�m porque ele lidava com quest�es
fundamentais como a morte, a doen�a, a religi�o, o amor, a fam�lia, as
ci�ncias: todas elas sob o impacto de grandes mudan�as. Kardec permitiu
reconhecer o rosto noturno de uma sociedade que viu emergir os
seus medos mais ocultos atrav�s de esp�ritos e fantasmas.


MARY DEL PRIORE

"O SOBRENATURAL N�O EXISTE"
A frase � de Allan Kardec! Mas mesmo assim a rea��o da Igreja n�o
tardou, e suas ideias foram barradas pelos defensores da ortodoxia
cat�lica. Al�m do ate�smo e de diversas correntes espiritualistas que
pipocavam na �poca, a Igreja Cat�lica respondeu ao espiritismo com
a severa condena��o. E ela se fechou em copas. Roma seria representada
pelo movimento ultramontano, conjunto de ideias e doutrinas que
afirmavam a infalibilidade do papa. Ou por nada!

A hostilidade cat�lica foi vigorosa, pois a Igreja via no espiritismo
uma tentativa de modernizar a necromancia, condenada por tantos
conc�lios. Mas houve tamb�m um grupo que entendia tais ideias como
uma forma de ecletismo espiritualista, em moda na Europa, e que aqui
no Brasil funcionou por raz�o simples: a ado��o dessas teorias n�o
implicava um rompimento com o catolicismo. Seu prest�gio, ali�s,
era inquestion�vel. Como disse uma historiadora: "frequentavam-se
as missas e prociss�es assim como as lojas ma��nicas ou as reuni�es
positivistas; da mesma forma consultar-se-iam os m�diuns receitistas,
nos finais do s�culo, sem renunciar � cren�a oficial".

No Brasil, desde sempre, as cren�as populares misturaram o culto
dos santos cat�licos aos rituais de origem ind�gena ou africana.
Mas, nos meios intelectuais e burgueses, preferiam-se respostas buscadas
nas doutrinas constitu�das "cientificamente". A primeira que
mereceu ades�es foi o magnetismo, que teve jornal pr�prio, nascido
em 1860, o Jesus e Mesmer, t�tulo que confirmava a filia��o crist�.
O mesmo grupo fundou, em seguida, uma Sociedade de Propaganda
do Magnetismo, com a presen�a de muitos m�dicos da Escola de
Medicina do Rio de Janeiro.

Buscaram-se outras respostas nas expedi��es cient�ficas e nas discuss�es
sobre a origem dos homens. Em 1832, Charles Darwin passou
pelas praias brasileiras a bordo do navio ingl�s Beagle, viagem na qual
coletaria dados para detonar a ideia de que descend�amos de Ad�o e
Eva e para impor a no��o de sele��o natural. Outra r�plica chegou na
forma da doutrina que conciliou o racionalismo de fil�sofos e cientistas


DO OUTRO LADO

com a cren�a na sobreviv�ncia do esp�rito e seu progresso infinito: a
doutrina esp�rita. O ser humano evoluiria espiritualmente, tamb�m.

Mas qual Brasil tais ideias iriam encontrar? Um Imp�rio em transi��o.
Ainda nas d�cadas de 1870 e 1880, ningu�m sabia aonde as
mudan�as levariam. Mas havia um desejo de coisa nova. "Novo",
sin�nimo de outras palavras que encantavam: futuro, modernidade,
cientificidade, desenvolvimento! As mesmas reproduzidas pelo rec�m-
fundado centro Fam�lia Sp�rita, de S�o Paulo, que reconhecia a necessidade
de uma "rep�blica profana que marchasse correta pela senda
da justi�a, da ordem e do progresso". Fora daqui n�o se falava em "s�culo
caduco"? O regime patriarcal, que vigorava at� ent�o, declinava.
Consolidava-se o mercado capitalista e se pensava na passagem do
trabalho escravo para o livre. Havia uma preocupa��o com o futuro,

o da na��o e o do homem.
Essa preocupa��o importava em rep�dio ao passado e ao pr�prio
presente, como explicou Gilberto Freyre. Um passado e um presente
escravistas, mon�rquicos, "inferiores" em rela��o ao futuro liberal e
republicano j� vivido por na��es progressistas como a Fran�a, a Su��a,
os Estados Unidos - na��es nas quais o Brasil deveria se inspirar, afastando-
se das arcaicas como as ib�ricas. Os pa�ses tamb�m evolu�am...
A vontade de mudan�a se expressava na batalha entre o nacional
e o estrangeiro, entre o antigo e o moderno: cozinheiras baianas contra
chefs franceses; o candeeiro de folha de mamona contra o de querosene
belga, o tamanco contra a bota, o chap�u de sol contra a sombrinha, a
mula contra o bond, a roca de fiar contra a m�quina de costura, o penico
contra o water closet, a prociss�o contra o vaudeville.
Uma exposi��o organizada no Museu Nacional pelo pastor James
Fletcher exibia produtos norte-americanos provando que nas Am�ricas
havia uma cultura que competia com a europeia em refinamentos
t�cnicos. Por que n�o adot�-los? As m�quinas made in USA pareciam
m�gicas! E, pensando nesse novo mundo de tecnologia, J�lio Verne,
em tradu��o portuguesa, encantava leitores com hist�rias sobre viagens
fant�sticas ao centro da Terra ou ao fundo do mar.


MARY DEL PRIORE

Contra o sil�ncio das noites, foi o momento do gramofone, do
fon�grafo e da ilumina��o a g�s. Da constru��o de estradas de ferro,
que timidamente come�avam a rasgar as franjas dos centros urbanos
em dire��o ao interior. Da comunica��o do Brasil com a Europa pelo
cabo submarino. Contra a tosse, chegava o Bromil. Crescia a miscigena��o
com a chegada de imigrantes e o fim da importa��o irregular de
africanos. Houve a irradia��o do protestantismo e, ao mesmo tempo,
se assistiu ao revigoramento do catolicismo e do espiritismo.

Envelhecia dom Pedro II em "seu triste claustro de convento pobre",
defini��o que deu um escritor sobre o Pal�cio de S�o Crist�v�o.
Vivia como um burocrata inexpressivo, sem majestade; cheio de virtudes
dom�sticas, mas a nega��o do chefe de Estado reclamado pelas
circunst�ncias. Os oficiais do Ex�rcito se tornavam republicanos por
meio do positivismo. O Manifesto Republicano anunciou tempos novos,
e a Lei do Ventre Livre marcou o in�cio do fim do escravismo.
Emergiam grupos e jornais abolicionistas.

A cidade levava a melhor sobre as zonas rurais. Os antigos bar�es
e condes, grandes propriet�rios de terras, agora eram m�dicos ou advogados,
enfim, classe m�dia interessada em novidades. Os esportes,
notadamente os de origem inglesa, a cria��o de zebus e a valoriza��o da
borracha amaz�nica estavam na ordem do dia. Passou-se a usar fraque
e polainas. A tocar flauta e violino. As crian�as, a circular de veloc�pede.
Pequenos eram batizados com nomes americanos: Edison, Nelson, Milton,
Darwin, Elizabeth, Mary, Gladstone. O federalismo americano inspirava
os republicanos. O "esp�rito progressista" estava em toda a parte
e havia intelectuais para quem era preciso "destruir todo o passado j�
imprest�vel", encarnado na escravid�o, no clero e na nobreza.

Diante de tantas mudan�as, a cidade do Rio de Janeiro permanecia
a mesma. Contou o engenheiro Luiz Rafael Vieira Souto que ela
se apresentava "com ruas tortuosas, mal arejadas e sem escoamento
para as �guas das chuvas", exibindo "casas apertadas al�m de todo
limite, sem luz, sem ventila��o e outras condi��es indispens�veis �
sa�de", "sem arquitetura, nem alinhamento", as praias pedindo cais,


DO OUTRO LADO

os p�ntanos clamando por aterros, os mercados de frutas e hortali�as
exigindo melhor situa��o, as pra�as, melhor arboriza��o e cal�amento.
Afinal, como ele mesmo sublinhava, "quem diz cidade, diz civiliza��o".
E, nessa, faltava "decoro, humanidade, amor-pr�prio nacional".
"O progresso do pa�s pedia que se melhorassem urgentemente as condi��es
de vida na capital", insistia Vieira Souto em 1875.

Enterros n�o eram mais admitidos dentro das igrejas, s� em cemit�rios.
Discutia-se a import�ncia do casamento civil, da liberdade
religiosa, a separa��o entre Igreja e Estado, e, sob press�o, a ortodoxia
cat�lica se enfraquecia. Nas se��es "A pedidos" dos jornais, multiplicavam-
se as vozes defendendo uma ou outra cren�a diferente.

A pr�pria Igreja Cat�lica, nos serm�es dominicais, queixava-se
da qualidade de seus fi�is. O padre Lopes Gama era um que fustigava
as mulheres que prometiam missas �s almas do purgat�rio, que prometiam
novenas a santo Onofre, responsos a santo Ant�nio para que
os santos e as benditas almas intercedessem junto a Deus para fazer
as pazes com os amantes, com quem brigavam. E dizia mais: "As mulheres
ordinariamente s� t�m por prodigiosos os santos que n�o est�o
nos seus orat�rios e que residem em igrejas bem distantes de suas casas;
e que tudo � por causa do passeio da romaria!".

E atacava os falsos fi�is, homens de p�ssimos costumes, que
raras vezes ou nunca se confessavam, que n�o davam esmolas por
amor de Deus, usur�rios, caloteiros e velhacos que passavam o tempo
a dizer que queriam proteger o trono amea�ado e o altar. Isto �, a
monarquia e a religi�o, ambas muito enfraquecidas. Esmagado por
tantas mudan�as, o Imp�rio se tornou sin�nimo de decl�nio, imobilismo,
atraso.

Na capital, novo e velho conviviam. Novidades e ci�ncia, contra
tradi��es. E, em resposta a essas tens�es do tempo, alguns cat�licos
se entrincheiravam na obedi�ncia cega ao papa enquanto cresciam
pr�ticas religiosas afinadas com a ci�ncia, caso do espiritismo e do
positivismo. Ou cresciam os adeptos da Sociedade Teos�fica, com
sede em Madras, na �ndia, que ensinava a fraternidade acima de tudo.


MARY DEL PRIORE

Mantinham-se as tradi��es africanas de invoca��o de deuses e curandeiros.
E crist�os deixavam a Igreja dos Barbadinhos e cruzavam a
travessa do Castelo, onde se encontrava a macumba do Pai-Gamb�.
Depois de perguntar o programa do culto jej�-nag�, voltavam � noite.
Na hora do sacrif�cio da galinha preta e do pombo branco, pediam
aos deuses da macumba o mesmo que pediam aos p�s da Virgem ou �
imagem do Salvador. O catolicismo n�o era abismo, mas ponte para
outras cren�as. Esbarrava-se em toda parte com a presen�a do sobrenatural.
E tudo valia a pena, se a alma n�o fosse pequena.

REVELA��ES
Como outras religi�es, o espiritismo que chegava ao Brasil se apresentava
como uma revela��o, tal como a que tiveram Mois�s ou Jesus
Cristo. Ela n�o emanaria de Deus, mas de esp�ritos fal�veis, por vezes
trapaceiros, que, embora mortos, estavam perto dos vivos. Donde,
para o destinat�rio da revela��o, a necessidade de verificar e discutir
tais mensagens.

Como Kardec mesmo dizia, o risco de erro e mistifica��o n�o
seria jamais eliminado. Ele n�o tomava tais mensagens por verdades.
Cada esp�rito poderia ensinar alguma coisa aos homens. Mas nenhum
ensinaria tudo. Cabia ao interessado formar um conjunto de informa��es
com a ajuda de documentos, ligando uns aos outros. Da� a
import�ncia da interpreta��o "cient�fica e moral", fundamental no
kardecismo.

Com pouco mais de cinquenta anos e a clareza de um professor,
ele trabalhou incansavelmente sobre O livro dos esp�ritos, a fim de
dar � parte filos�fica a maior consist�ncia, sem deixar de lado aspectos
pr�ticos sobre moral e religi�o. A rela��o com os mortos, a certeza de
que a morte n�o rompia la�os nem afetos, a cren�a de que ela significava
o momento mais importante da vida, foi fundamental para a
expans�o da doutrina:


DO OUTRO LADO

A doutrina esp�rita, pelas provas patentes que nos d� quanto
� vida futura, a presen�a ao nosso redor dos seres aos quais
amamos, a continuidade da sua afei��o e solicitude, pelas rela��es
que nos permite entreter com eles, nos oferece uma suprema
consola��o, numa das causas mais leg�timas de dor. Com o espiritismo
n�o h� mais abandono. O mais isolado dos homens tem
sempre amigos ao seu redor, com os quais pode comunicar-se.

A obra foi sucesso total. Reeditada quinze vezes enquanto Kardec
viveu, era presen�a obrigat�ria ao redor do mundo. Sua primeira
contribui��o foi introduzir um vocabul�rio novo, inventado pelo
pr�prio autor: palavras como espiritismo, esp�rito, median�mico,
periesp�rito, m�dium ou reencarna��o. "Para coisas novas, palavras
novas", dizia, e conclu�a: "Os adeptos do espiritismo ser�o esp�ritas
ou espir�tanos".

A doutrina esp�rita provava a possibilidade de se comunicar com
os seres do mundo espiritual, j� presente no passado atrav�s da magia.
Mas, agora, com caracter�sticas de uma idade cient�fica: "Ela deve �
ci�ncia no sentido que esse ensinamento n�o � privil�gio de nenhum
indiv�duo, mas que ele � oferecido a todos pela mesma via", registrava
em Caracteres da revela��o esp�rita. E convidava os que transmitiam
ou recebiam tais revela��es a deduzir, observar e comparar. Afinal,
nem uns nem outros eram "seres passivos".

Tal revela��o moderna, experimental e coletiva desdobrava-se
em outras explica��es. Primeira: os esp�ritos eram almas de mortos
e apenas deles. Nada de anjos ou dem�nios. Segunda: o homem era
constitu�do de corpo, alma e uma subst�ncia semimaterial batizada de
periesp�rito, que permitia aos defuntos aparecer e entrar em contato
com os vivos. No momento da morte, alma e corpo se separavam,
mas o periesp�rito continuava a agir no mundo, apesar de desencarnado.
O mundo dos esp�ritos era povoado de elementos bons e ruins,
sem que houvesse controle de identidade. Da� a prud�ncia exigida em
sua invoca��o e apari��es capazes de confundir os que as vissem. Na


MARY DEL PRIORE

mesma obra, ele avisava: "� preciso certo tempo para se desembara�ar
completamente da mat�ria e se reconhecer. Eis porque as primeiras
respostas muitas vezes expressam uma confus�o de ideias at� que ele
[o esp�rito] se sinta familiarizado com sua nova situa��o".

Quanto � pr�tica da doutrina, ela podia se fazer de v�rias maneiras.
Havia as pr�ticas "filos�ficas", cujos participantes se endere�avam
a esp�ritos c�lebres, como S�crates ou Napole�o, para obter
"revela��es" sobre os arcanos da vida e da morte; as l�dicas ou de
curiosidade, com gente disposta a conversar com parentes desaparecidos;
as terap�uticas ou "mediunidade de cura", que usavam as pr�ticas
magn�ticas para obter resultados contra doen�as; e, finalmente,
as "de consola��o", ligadas a um luto doloroso. Segundo Kardec, as
�ltimas representavam 60% do p�blico interessado na doutrina esp�rita.
O contato com "mortos queridos" ou os "queridos esp�ritos"
trazia consola��o, emo��o e, sobretudo, segundo La Revue Spirite,
iluminava as trevas que encobriam a vida ap�s o t�mulo.

Os dogmas principais do espiritismo eram a "reencarna��o" e a
"pluralidade de mundos". Nem as palavras nem as coisas eram novidades.
A metempsicose, ou a doutrina que cria que a mesma alma
pode animar sucessivamente v�rios corpos, j� era largamente discutida
no in�cio do s�culo XIX. E a cren�a era antiga e comum a v�rios
povos, desde a velha �ndia at� as culturas da �frica e das Am�ricas.
Mas foi o espiritismo que a popularizou para al�m de grupos esot�ricos
aos quais estava confinada.

Para Kardec, os mortos n�o eram diferentes dos vivos. Eram apenas
vivos "desencarnados", o inv�lucro corporal n�o sendo nada al�m
de uma forma passageira e transit�ria de nossa exist�ncia. Mais. Os
esp�ritos pareciam com os vivos: teriam as mesmas qualidades e os mesmos
defeitos. Sentiam o que os outros viviam: desgosto, alegrias e tristezas.
S� que o faziam no espa�o interplanet�rio, no al�m.

Na morte, o esp�rito se "desencarnava" e se tornava, por algum
tempo, "alma errante". Sua "reencarna��o" servia quer para expiar
faltas passadas quer para servir numa miss�o particular. Ao fim de


DO OUTRO LADO

v�rias reencarna��es, o esp�rito finalmente ascenderia purificado �
vida eterna, tornando-se, ao final da caminhada, um "esp�rito de luz".
Entre duas encarna��es, ele encontraria os seus, para compartilhar um
momento de alegria ou revigorar-se antes de seguir o ciclo indefinido
de exist�ncias sucessivas.

A defini��o kardecista de reencarna��o n�o teve qualquer liga��o
com o Oriente, muito na moda na Europa. Nem com o interesse que
grupos intelectuais demonstravam, nessa �poca, pelo budismo ou pelo
hindu�smo. Kardec retomou teses que a ligavam a cren�as dru�dicas
e, portanto, francesas, que nada tinham a ver com o estrangeiro. A
reencarna��o poderia acontecer na terra ou em outros mundos, mas
nunca fora do reino humano. Encarnar em animais era uma hip�tese
"orientalista" que ele achava rid�cula.

O espiritismo visava ao "progresso individual e social" e desejava
instaurar nas rela��es humanas um regime de transpar�ncia generalizada
que poria fim � hipocrisia e � mentira. Kardec acreditava
que a "telegrafia humana" ou telepatia se tornaria o modo normal
de comunica��o. Ela contribuiria para a emerg�ncia de um universo
totalmente l�mpido que evitaria qualquer duplicidade da vida social.
Esperando o dia aben�oado de transpar�ncia generalizada, os mortos
se beneficiavam do privil�gio da clarivid�ncia.

Os vivos se viam cercados de falecidos com a capacidade de tudo
ver e vigi�-los. O objetivo era manter a moral e os bons costumes.
Para se comunicar, por�m, uma exig�ncia: era preciso identidade de
natureza, explicavam os textos kardecistas. Afinidades, sentimentos e
aspira��es deviam ser os mesmos entre vivos e mortos.

Por outro lado, Kardec se colocou numa posi��o moderada em
rela��o � quest�o social: nada de revolu��es, viol�ncia, tomada do
poder pelas armas. As desigualdades sociais, presentes no mundo real,
eram aceitas porque necess�rias ao progresso dos indiv�duos. Hierarquias
existiam e deviam ser respeitadas. O direito � propriedade privada
era sagrado, assim como ao trabalho. Os que tinham bens, por
obriga��o moral deviam compartilh�-los. A redistribui��o de riqueza


MARY DEL PRIORE

ficava por conta da caridade. S� ao final da "grande jornada" os indiv�duos
se encontrariam iguais em luz.

Mas, e isso era importante, o espiritismo se articulava com a ideia
de progresso e trabalho - t�picas da burguesia ascendente na segunda
metade do s�culo XIX. Morrer n�o exclu�a os homens de trabalhar
pelo seu aprimoramento espiritual, de cooperar para a transforma��o
e o melhoramento dos indiv�duos e da sociedade.

Ele mesmo um trabalhador incans�vel, Kardec foi autor de v�rios
livros e 260 artigos publicados na Revue Spirite -Journal d'�tudes
Psychologiques. Fundada em 1857, a publica��o devia funcionar
como um canal de comunica��o com o p�blico. No mesmo ano, fundou
a Sociedade Parisiense de Estudos Esp�ritas, primeira sociedade
com esse car�ter regulamentada na Fran�a. Nos anos 1860, ele se esfor�ou
para aperfei�oar as pr�ticas morais e religiosas registradas no
Livro dos esp�ritos, sobretudo em sua segunda edi��o, que ele considerava
"obra nova embora os princ�pios fossem os mesmos". O livro
dos m�diuns saiu em janeiro de 1861 , seguido de A imita��o do Evangelho
segundo o espiritismo, em abril de 1864, O c�u e o inferno ou
A justi�a divina segundo o espiritismo, de 1865, e A G�nese, milagres
e predi��es segundo o espiritismo, de 1868. As obras tiveram edi��es
sucessivas, notadamente os dois primeiros livros, que, por v�rias vezes,
trouxeram ajustes novos, propostos pelos pr�prios esp�ritos.

De in�cio, Kardec evitou se chocar com a Igreja. N�o queria atrair
a f�ria de uma institui��o que era um pilar pol�tico. Al�m disso, num
pa�s de cultura cat�lica, seria suic�dio exigir que os cat�licos escolhessem
entre suas cren�as e o espiritismo. Mas, a partir de 1864, quando
suas obras foram colocadas no Index de leituras proibidas pelo Santo
Of�cio da Inquisi��o, tornou-se quase imposs�vel conciliar catolicismo e
espiritismo. Atacavam-no dos p�lpitos, por meio de serm�es e pastorais.

E atacavam-no por atos, tamb�m. A 8 de outubro de 1861, um auto
de f� confiscou livros de Kardec que tinham sido enviados a um livreiro
em Barcelona. A explica��o? Sendo a Igreja Cat�lica universal e sendo
esses livros contr�rios � f� cat�lica, o governo espanhol n�o podia


DO OUTRO LADO

consentir que eles passassem a perverter a moral e a religi�o. Segundo um
observador, uma multid�o incalcul�vel se espremia na esplanada em que
ardia a fogueira alimentada por serventes que iluminavam a figura de um
padre com uma grande cruz nas m�os. Trezentos volumes e brochuras
esp�ritas foram consumidos, ao som de gritos que protestavam: "Abaixo
a Inquisi��o!".

Um dos pontos favoritos das teses de Kardec era a nega��o do
inferno e de seus castigos eternos. Segundo ele, ningu�m poderia acreditar
numa tal ideia, incompat�vel com a da exist�ncia de um Deus,
sin�nimo de amor. O �nico crit�rio de salva��o n�o devia ser o medo,
mas a retid�o de princ�pios e a caridade. Fora dessa �ltima n�o haveria
salva��o.

Para Kardec, os iniciados se dividiam em tr�s grupos: o dos que
se interessavam apenas pelos fen�menos f�sicos; o dos que compreendiam
o alcance filos�fico das manifesta��es de esp�ritos, mas n�o
mudavam interiormente; e o dos que compreendiam a doutrina e a
praticavam, se empenhando em fazer o bem. Estes seriam os verdadeiros
esp�ritas ou "esp�ritas crist�os".

Impregnado das ideias de progresso e evolu��o, caracter�sticas do
per�odo em que viveu, Kardec afirmava que Deus criara o mundo com
dois elementos: esp�rito e mat�ria, ambos regidos por uma lei natural
que os empurrava em dire��o ao progresso. Originalmente simples e
ignorantes, os esp�ritos evolu�am, atrav�s de seu esfor�o e trabalho, no
sentido de um aperfei�oamento.

Sele��o natural e competitividade na evolu��o dos esp�ritos?
N�o. Mas eles eram, sim, diferentes. Podiam ser "imperfeitos, bons
e, no alto da escala, puros". Os planetas tamb�m evolu�am, passando
de mundos imperfeitos a regenerados e bons. E sua evolu��o se integrava
� dos esp�ritos. N�o por acaso, espiritismo, evolucionismo e
socialismo ut�pico eram ideias que se hidratavam mutuamente. Pierre
Leroux, socialista franc�s, afirmava, por exemplo, que as diversidades
sociais eram explicadas pelo desenvolvimento humano realizado atrav�s
da exist�ncia. No fundo, a caminhada para um mundo mais justo


MARY DEL PRIORE

e fraterno estava na ordem do dia aqui ou no al�m. E os ve�culos para
chegar l� seriam a evolu��o moral, a educa��o e a caridade.
Em seu �ltimo livro, A G�nese, milagres e predi��es segundo

o espiritismo, Kardec analisou as rela��es entre religi�o e ci�ncia
se esfor�ando para incorporar v�rios elementos novos do debate
em torno da evolu��o das esp�cies, chamada ent�o de "transformismo".
Os avan�os da astronomia, da geologia e as recentes teorias
sobre a evolu��o das esp�cies pareciam ter tornado caduca a ideia
secular de uma G�nese. Contudo, a ci�ncia seguia sem dar respostas
�s quest�es fundamentais sobre o destino da alma. E o materialismo,
ao contr�rio, cobria seus contempor�neos de ang�stias. Vivia-
se uma �poca de transi��o: nem o edif�cio do passado ru�ra nem o
do futuro estava pronto.
Kardec morreu em 31 de mar�o de 1869, de crise card�aca, em
sua casa na rua Santa Ana, em Paris. Sem crucifixo ou padre, seu comboio
f�nebre foi acompanhado por milhares de pessoas. Teve o corpo
incinerado, ganhou um discurso de seu amigo Flammarion e, um ano
depois, um d�lmen foi colocado no lugar onde suas cinzas repousaram:
"Nascer, morrer, renascer e progredir sempre, essa � a lei".

Na Fran�a de Napole�o III, durante dez anos, o codificador do
espiritismo converteu cerca de quinhentas mil pessoas. Cento e vinte
anos depois que Kardec desencarnou, todos os dias, franceses e estrangeiros
ainda visitam o cemit�rio onde est�o suas cinzas para depositar
uma profus�o de flores sobre sua tumba. Suas obras est�o traduzidas
em mais de cinquenta l�nguas. Seus disc�pulos se contam em dezenas
de milhares no mundo inteiro.

Como vimos, n�o foi essa a primeira vez na hist�ria em que os vivos
dialogaram com os mortos. Mas, gra�as a Kardec, esse di�logo se
tornou, pioneiramente, o fundamento de uma moral, de uma religi�o
e de uma filosofia social. Ele atingiu o cora��o das preocupa��es da
�poca, captou sensibilidades, disse alto o que se murmurava e abriu as
portas para o outro lado. Ele queria libertar a humanidade do obscurantismo
e dar esperan�a aos desfavorecidos.


DO OUTRO LADO

A VIAGEM DOS ESP�RITOS...

Uma pergunta: como tais ideias e pr�ticas chegaram aqui? Desde a
abertura dos portos �s na��es amigas, em 1808, desembarcaram entre
n�s muitos novos h�bitos e viajantes vindos da Fran�a. Uma primeira
consequ�ncia dessa gentil invas�o se deu no campo da comunica��o:
multiplicaram-se cursos e aulas particulares na l�ngua de Kardec. Os
jornais anunciavam: "Professor de franc�s, no caminho do Catete".
Um col�gio na rua do Sab�o oferecia aulas de franc�s a meninas de
"nove anos para cima".

No campo da leitura, a oferta era imensa. Na rua "d'Ouvidor"
alugavam-se livros chez P. Plancher Seignot. O livreiro Cr�mi�res, por
exemplo, tinha cerca de 400 volumes que arrendava por "um m�s
ou por dias", reproduzindo um h�bito instalado em Paris, desde os
fins do s�culo XVIII. Do porto do Havre chegavam cargas de livros
vendidas ao soar do martelo: Livres d'ocasion � vendre pour cause de
d�part era o t�tulo do an�ncio publicado regularmente. Seguia-se a
lista de livros, de variados g�neros, da pena de Balzac, Dickens, Walter
Scott, Oscar Wilde e Alexandre Dumas. Ou os best-sellers Corinne e
Delphine, recheados de adult�rio e amores frustrados, os dicion�rios
de "Franc�s de algibeira" e os primeiros livros de bolso. Ofereciam-se
desde manuais de eloqu�ncia jur�dica, t�o ao gosto de nossos advogados,
�s curiosidades, como certo almanaque para conhecer a idade
das mulheres e saber se um indiv�duo tinha dinheiro no bolso. N�o
faltavam tradu��es de "modern�ssimas novelas", como anunciava a
Gazeta do Rio de Janeiro, entre elas "Sinclair das ilhas", folhetim que
teria despertado em Jos� de Alencar sua voca��o de romancista e encantado
Machado de Assis.

Desde 1831, tamb�m em franc�s, jornais encontravam leitores entre
os 250 mil habitantes da cidade: A Gazeta Francesa, o Journal Politique
et Litt�raire e Le Messager; este �ltimo atendendo ao modismo das dan�as
de sal�o, oferecia por 640 r�is uma cole��o de contradan�as. Livreiros
e tipografias dirigidas por franceses se instalavam na rua da Cadeia:
a Ogier era uma delas. Certo P. Gueffier preferiu a rua da Quitanda.


MARY DEL PRIORE

Radicados ou n�o entre n�s, e principalmente entre o Primeiro e

o Segundo Reinados, os franceses n�o se dedicaram apenas ao com�rcio
de produtos de consumo de luxo, mas tiveram grande participa��o
no desenvolvimento das letras. A eles ficamos devendo n�o apenas a
circula��o de livros e jornais em franc�s, mas as primeiras livrarias e
bons encadernadores. Os livros eram alugados ou comprados, encadernados
e, depois, longamente discutidos.
E as discuss�es se faziam nos caf�s. Tais casas comerciais reuniam
os conversadores e os boateiros, substituindo a "botica" ou "a casa
do barbeiro", que fora, at� fins do s�culo XVIII, o ponto de reuni�o
masculina. O Caf� de l'Univers, logo ao lado do Teatro S�o Pedro, por
exemplo, tinha serventes franceses, respons�veis tamb�m por marcar

o bilhar, passatempo franc�s rapidamente incorporado pelos cariocas.
No Caf� Neuville, situado no largo do Pa�o, se encontravam os homens
de letras e livros. O Caf� du Nord se situava na rua do Carmo.
Ali, jogavam-se cartas lindamente decoradas a dinheiro e, como os
livros, vindas da Fran�a.
H�bitos e leituras abriam caminho para o romantismo franc�s,
que atingiria sua express�o mais forte por volta de 1840, na voz de
poetas, escritores e dramaturgos. Se, na mesma �poca, a literatura deixava
de ser um reflexo das letras portuguesas, dando lugar para os
assuntos nacionais, continuava-se a 1er e a admirar Victor Hugo, Chateaubriand
e Th�ophile Gauthier, autores imbu�dos da cren�a numa
vida espiritual e no outro mundo.

Em 1844, eram dez as livrarias e doze as tipografias encarregadas
de atualizar o gosto liter�rio. Dez anos mais tarde, o casal imperial
dava exemplo aos membros da corte, lendo em franc�s. A imperatriz
Teresa Cristina recebia de Paris caixotes de livros enviados pela duquesa
de Berry. E para o imperador, dom Pedro II, vinham os exemplares
da Revue des Deux Mondes e os livros de Victor Hugo, um dos
precursores das mesas volantes.

Mas n�o era s� atrav�s da literatura que a Fran�a se fazia presente.
O teatro e a confeitaria foram outras duas modas que "pegaram".


DO OUTRO LADO

O diretor da Sociedade Dram�tica Francesa, que se apresentava ativamente
no palco do Th��tre Fran�ais, avisava aos leitores dos jornais
que os ingressos para a soir�e qui aura lieu demain Dimanche 10 mai,
1835, seront distribu�s aujourd'hui [a soir�e que ocorrer� amanh�,
domingo, 10 de maio de 1835, ser�o distribu�dos hoje]. Ao final da
pe�a, os espectadores corriam � D�roche para tomar sorvete, cognacs
ou uma coupe de champagne. Na d�cada de 1840, o vaudeville, g�nero
de com�dias ligeiras, desembarcou entre n�s, e o p�blico teve a
oportunidade de aplaudir as pe�as de Octave Feuillet, uma delas com
um t�tulo muito atual: La crise!

Al�m dos caf�s, as livrarias eram outro espa�o de sociabilidade
masculina. A mais importante, a Garnier, fora apelidada de "A Sublime
Porta", em alus�o a Istambul, na Turquia, via de entrada para a �sia de
m�ltiplas riquezas. Adentr�-la causava frisson. Amontoados, erguiam-
se os volumes que venaient de para�tre [haviam acabado de aparecer].
Entre as estantes "flanava-se" - do franc�s fl�ner, ou deambulava-se,
palavra de origem normanda que entrou no nosso vocabul�rio a partir
do in�cio do s�culo XIX, momento em que se multiplicavam os rentistas
e indiv�duos que viviam de sinecuras, sobrando-lhes tempo para passear.
Trocavam-se blagues. Frissons, blagues e fl�neries incorporavam-se ao
cotidiano. Ali se posava para a eternidade, segundo um contempor�neo,
pois a livraria funcionava como uma extens�o da Academia Brasileira
de Letras. A livraria reunia Machado de Assis, Jos� Ver�ssimo, Coelho
Neto, Taunay, entre outros, e, fazendo jus aos princ�pios de fraternit� et
�galit�, grupos de simbolistas, anarquistas e socialistas.

A Garnier, tamb�m casa editora, foi a primeira a publicar a tradu��o
de O livro dos esp�ritos, feita por Joaquim Carlos Travassos, que
se assinava Fort�nio. Em 1875, o primeiro n�mero da Revista Esp�rita

-Publica��o Mensal de Estudos Psicol�gicos esclarecia que O livro dos
esp�ritos, "aparecido no mundo das letras h� apenas 18 anos, j� conta
25 edi��es. Se a esse fato juntarmos que ele se acha traduzido at� em
grego, teremos a ideia de que ele encerra uma doutrina que conseguiu
despertar desde logo uma grande parte do g�nero humano".

MARY DEL PRIORE

O fato mereceu carta do pr�prio Kardec, sobre a tradu��o:

Verificamos, com satisfa��o, que a ideia esp�rita faz progressos
sens�veis no Rio de Janeiro, onde ela conta com numerosos
representantes, fervorosos e devotados. A pequena brochura Le
spiritisme � sa plus simple expression, publicada em l�ngua portuguesa,
contribuiu, n�o pouco, para ali espalhar os verdadeiros
princ�pios da Doutrina.

Ao sab�-lo comercializado por quem era considerado o maior
editor do pa�s, a imprensa atacou o livro sem d� nem piedade. Por
tr�s da campanha, a for�a da Igreja Cat�lica. E a hostilidade foi quase
total. O jornal cat�lico O Ap�stolo publicava regularmente uma lista
de autores e obras proibidas. Di�logos com o al�m, teoria dos fluidos,
mensagens de s�bios e santos falecidos eram, para seu editorialista,
motivo de riso.

O jornal Novo Mundo tamb�m n�o escondeu seu desagrado: a
Garnier, que sempre oferecia bons livros, publicara um "mau livro"! Os
"devaneios de Allan Kardec, famigerado ap�stolo do espiritismo e respons�vel
por tantos e t�o lament�veis desarranjos mentais", ao prometer
descortinar novos horizontes, s� alimentava a "propens�o ao maravilhoso".
Era preciso barrar os livros desses "funestos videntes".

O ataque n�o ficou sem resposta. Um jornal esp�rita acusou o editorialista
de "intelig�ncia t�o curta" que n�o teria compreendido o que
leu. Enquanto os c�ticos se fechavam em copas, o povo lia. E lia muito.
A edi��o se esgotou, e a Garnier publicou a seguir Como e por que me
tornei esp�rita, O livro dos m�diuns e O c�u e o inferno. O �ltimo foi a
quatro edi��es!

Entre os franceses, havia o grupo de leitores e adeptos de Kardec.
Um dos grandes entusiastas foi Casimir Lieutaud, amigo pessoal
do dono da editora Garnier. Homem de cultura, pedagogo e dono do
renomado Col�gio Franc�s, ele logo se interessou pelas experi�ncias
efetuadas por Kardec. Em 1860, arriscando seu prest�gio de educador,


DO OUTRO LADO

Lieutaud publicou o primeiro livro de divulga��o esp�rita impresso no
Brasil: Os tempos s�o chegados - Les temps sont arriv�s. Foi correspondente
de um pioneiro do espiritismo, o baiano Teles de Menezes, a quem
incentivava contra as for�as conservadoras da Igreja.

No Brasil, o jornal Courrier logo se tornou a correia de transmiss�o
de ideias esp�ritas. E, em 1861 , Adolphe Hubert, seu editor, admitia
sua condi��o de esp�rita. A eles se juntou a m�dium-psic�grafa
madame Perret Collard. Sua ades�o seguiu-se � de outros comerciantes,
todos intoc�veis por sua posi��o social. Jornalistas e professores
franceses revestiam o espiritismo de um halo de progresso. Eles se
integraram aos primeiros centros esp�ritas formados na corte, a partir
dos anos 1870. Afinal, o que era bom - livros, roupas e at� prostitutas

- n�o vinha da Fran�a? Bem-educados, burgueses, em boa situa��o
financeira, muitos franceses tinham contato com o pal�cio imperial e
com a fina flor da sociedade. A propaganda esp�rita atingia o creme de
la creme da sociedade.
Discretos, eles se reuniam em casa, participando das sess�es apenas
os iniciados. Durante a Guerra do Paraguai, enquanto um clima
de ang�stia invadia o pa�s e a instabilidade econ�mica aumentava,
Machado de Assis, amigo de Hubert e Lieutaud, publicou uma cr�nica
em que dava not�cia de uma dessas reuni�es.

Machado noticiava, era amigo dos franceses, frequentava a Livraria
Garnier, mas n�o era adepto. Por v�rias vezes, cutucou o espiritismo
em seus artigos e contos. Para ele, "predizer coisas futuras,
descobrir coisas perdidas e farejar as coisas vedadas" era uma boa
raz�o para ir para a pris�o ou para o hosp�cio. E n�o hesitava em misturar
a doutrina de Kardec com o mais reles curandeirismo:

o simples fato de engolir rabos de raia, p�s de galinha, raiz
de mil-homens e outras drogas vira o ju�zo, embora a pessoa continue
a andar na rua, a cumprimentar os conhecidos, a pagar as
contas, e at� a n�o pag�-las, o que � meio de parecer ajuizado.
Substancialmente, � homem perdido. Quando eles me v�m contar

MARY DEL PRIORE

uns ditos de Samuel e de Jesus Cristo, sublinhando de filosofia de
armarinho para dar na sucessiva das almas, segundo essas mesmas
relatam a quem as quer ouvir, palavra que me d� vontade de
chamar a pol�cia.

Apesar de Machado, a viagem dos esp�ritos prosseguiu e comprovou
uma fant�stica imigra��o religiosa: um movimento de vaiv�m
entre os Estados Unidos, a Europa e o Brasil. Historiadores sublinham
que foi em sociedades de imigrantes, em busca de suas ra�zes, marcadas
pela saudade dos mortos que ficaram na terra natal, que o movimento
esp�rita conheceu seu maior desenvolvimento. Seria bom lembrar que,
ao longo do s�culo XIX, o imp�rio brasileiro recebeu su��os, ingleses,
franceses, portugueses, italianos e espanh�is e, at� 1850, momento
da lei que interditou oficialmente o tr�fico de escravos, africanos de
na��es diversas.

AS MESAS VOLANTES CHEGAM AO BRASIL
Conta um especialista que o primeiro jornal a dar not�cia das mesas
volantes entre n�s foi o Jornal do Com�rcio, do Rio de Janeiro.
A 14 de junho de 1853, na coluna "Exterior", dava conta dos fatos
que empolgavam os Estados Unidos, enquanto, de Berlim, o m�dico
Jos� da Gama e Castro informava: "N�o h� neste momento uma reuni�o
na Alemanha na qual n�o se fale na nova importa��o americana

-the moving table - e n�o se experimente mais de uma vez o fen�meno",
o qual Castro descrevia em seguida.
Informa��o confirmada pelo Di�rio de Pernambuco, cujo correspondente
em Paris afirmava que era imposs�vel entrar num sal�o
sem que se visse uma mesa redonda, e os presentes, dedos m�nimos
entrela�ados, esperando em sil�ncio a mesa voltear. A febre bateu nos
tr�picos, e o articulista de O Folhetim relatava que nada mais importava:
nem a alta dos juros, nem a oposi��o parlamentar ou a passagem
de novos cantores estrangeiros. A mesa que antes servia de suporte


DO OUTRO LADO

para pratos e jarros de flores agora recebia car�cias de "m�ozinhas"
que despertariam inveja. Numa �poca em que m�os femininas eram
objeto de desejo, quem dera ser mesa!

A not�cia correu e, em agosto de 1853, o jornal O Cearense contava
como na casa de certo Jos� Schmit de Vasconcelos, comerciante
da pra�a de Fortaleza, o fen�meno se repetiu com oito convidados,
entre eles um vig�rio. Embasbacados, todos viram mesas com p� de
galo e bancos de piano se moverem com "rota��o vigorosa". N�o, n�o
era certo duvidar da exist�ncia do maravilhoso!

�s v�speras da festa de S�o Pedro, mo�am-se os roletes da cana
rec�m-colhida, lia-se a sorte no copo d'�gua ou nas brasas da fogueira
e fam�lias e convidados silenciosos interrogavam mesas, chap�us,
todos "com as m�os estendidas formando cadeias digitais", segundo
contou certo dr. Jos� de Gama e Castro.

Os jornais se enchiam de tradu��es de artigos estrangeiros sobre
mesas que voltejavam em Paris, Londres ou Hamburgo. Entre cinismo
e ironia, alguns descreviam a "Seita dos Esp�ritos". Outros confirmavam
essa abertura para "infinitos horizontes", pois as mesas n�o eram
mais movidas apenas por fluidos, mas, tendo "ascendido ao ponto
culminante da ci�ncia [...] se punham em rela��o com os mortos, coligindo-
lhes os pensamentos e transcrevendo as palavras", explicava
O Cearense. Tais afirma��es ou sinais de simpatia pelo fen�meno ganhavam
o apoio de autoridades. Nas melhores casas, reunida a boa
sociedade, as mesas giravam.

Para desqualificar o fen�meno, tampouco faltaram "causos",
como o do matuto que apontava no atlas anat�mico as partes doentes
de um corpo, ou como uma mesa de tr�s p�s que, por meio de
batidas no ch�o, fazia as quatro opera��es aritm�ticas, ou ainda o
piano que se punha a dan�ar polca, acompanhando o ritmo da m�sica
com movimentos. As palavras que mais se liam nesses relatos
eram: segredos, controv�rsia, pasmo! E o correspondente do jornal
O Cearense a admoestar: "Porque n�o podemos compreender, explicar,
devemos duvidar? Rid�cula vaidade � esta do orgulho humano


MARY DEL PRIORE

que, para acreditar nas obras da Cria��o, quer ser participante de
todos os segredos da divindade!".

O jornalista participou ele mesmo de uma dessas experi�ncias e
confirmava: era espantoso! Tudo verdade! Fi�is da Igreja tamb�m aderiam,
como o autor de O mist�rio da dan�a das mesas desenvolvido e
publicado por um cat�lico.

O pa�s mudava. Orientadores em assuntos sobrenaturais, magnetizadores
e depois m�diuns tomariam o lugar dos feiticeiros. O t�rmino
do tr�fico negreiro tinha injetado dinheiro nas capitais, que se
modernizavam. Com o fim da Guerra do Paraguai, o Partido Republicano,
assim como o movimento abolicionista, ganhou m�sculos.
Tentava-se copiar Paris nas modas, nos gostos est�ticos e nas ideias.
Acreditava-se que apenas a ci�ncia e a educa��o poderiam melhorar
os homens. Com algum atraso, granjeavam repercuss�o entre n�s os
movimentos que j� tinham ganhado a Europa: o positivismo, o materialismo,
o darwinismo. Grupos se reuniam em torno da necessidade
de reformas pol�ticas e da emancipa��o dos escravos. Muitos deles
eram integrados por esp�ritas.

E, tal como no exterior, a ci�ncia n�o calava o sobrenatural. O catolicismo,
religi�o de Estado que escondia outras pr�ticas condenadas
pela ortodoxia, ao se deparar com a onda de materialismo, buscou refor�os.
E o povo, tal como fizera Kardec, n�o afrontava a institui��o,
mas seguia acendendo uma vela ao papa e outra aos esp�ritos.

Apoiada na enc�clica Mirari Vos, que condenava a liberdade de
consci�ncia, e a partir da Quanta Cura, de 1864, a Igreja repudiou

o liberalismo e o progresso. O importante, diziam os bispos, eram
os sacramentos e a r�gida moral. Qualquer outra forma de culto era
descartada, quando se devia obedecer � infalibilidade do papa. Depois
da queima dos livros de Kardec, n�o faltou padre que dissesse que:
sim, os esp�ritos podiam se comunicar com os vivos. Mas os bons s� o
faziam dentro das igrejas. Fora, era o lugar dos maus.
Vale lembrar que, segundo os Anu�rios Estat�sticos, os censos de
1872 e 1890 apontavam para uma popula��o quase 100% cat�lica.


DO OUTRO LADO

Toda a escravaria, por exemplo, se declarou cat�lica. Compreens�vel.
O catolicismo conferia prest�gio aos seus fi�is e sinalizava: eles estariam
ajustados ao sistema. Fora da Igreja, os indiv�duos se tornavam
ineleg�veis e, para colar grau acad�mico, era preciso jurar ser cat�lico.
Por essas e outras imposi��es, brasileiros praticavam as mais diversas
doutrinas sem rejeitar sua condi��o de membro da Igreja Cat�lica.
Quando as mesas volantes e o espiritismo chegaram por aqui, n�o foi
diferente. O desejo de ser "moderno" ou "possuidor de esp�rito cient�fico"
empurrou muitos para a pr�tica dupla: cat�lico e... mais o que se
quisesse. Afinal, a necessidade de acreditar n�o tem regras.

Todos os tipos de fen�meno interessavam. Nas livrarias n�o faltavam
livros que eram anunciados nos jornais: A mesa que dan�a e a
mesa que responde - experi�ncia do magnetismo ao alcance de todos,

de Mr. Guillard, era vendido a 1 conto de r�is na Livraria Laemmert.
Magnetismo e sonambulismo se transformaram em ganha-p�o. O
Correio Mercantil, em 31 de mar�o de 1868, oferecia os servi�os da
"son�mbula e cartomante madame Pettie", que continuava a tirar cartas
e "sonambulizava". Como j� se viu, a doutrina de origem europeia
encontrou respaldo entre a comunidade francesa e fez de imigrantes e
expatriados sua correia de transmiss�o.

E o Di�rio de Not�cias de 13 de agosto de 1870, por exemplo,
trazia a seguinte not�cia:

Tem sido muito procuradas nas livrarias do sr. Dupont, �
rua Gon�alves Dias, as diversas obras de espiritismo. Deferentes
sect�rios desta ci�ncia, presididos pelo sr. Carlos Torres Homem,
pretendem divulgar t�o curiosas mat�rias, entretendo o esp�rito
e alargando as cogita��es sobre as ci�ncias sobrenaturais. S�o
curios�ssimos os volumes que aquela creditada livraria tem sobre
este assunto.

A comunica��o com os esp�ritos n�o era novidade entre n�s. O culto
dos orix�s e dos ancestrais, protegido por um processo de sincretismo


MARY DEL PRIORE

com o catolicismo, fizera proliferar curandeiros e adivinhos. A ideia de
que as almas dos falecidos reuniam-se � grande fam�lia espiritual do
outro lado do Atl�ntico era, nesses rituais, de grande import�ncia. Famosos
eram os feiticeiros capazes de reconstruir tradi��es africanas que,
no cotidiano, ofereciam conforto para escravos, forros e livres.

As encarna��es sucessivas tiveram em Mariano Jos� Pereira da Fonseca,
marques de Maric�, senador e ministro da Fazenda, um entusiasmado
defensor. Mas ele n�o foi apenas um interessado em entrever o que
sucedia do outro lado ou fazer girar mesas. Ele militava contra a perman�ncia
de uma religi�o de Estado e, na condi��o de socialista ut�pico,
queria suprimir regalias e privil�gios. Vale sublinhar que as tend�ncias
m�sticas vinham ent�o envoltas nas mais modernas tend�ncias liberais.
Precoce cr�tico da vis�o materialista do mundo, Maric� costumava dizer:
"Tudo na natureza desmente o ateu, at� sua pr�pria exist�ncia e argumenta��o".
E Maric� acreditava no evolucionismo social e na reencarna��o
como forma de aprimoramento da alma humana: "[...] a nossa vida
n�o se limita � curta exist�ncia neste mundo, mas ter� de prolongar-se
pela eternidade com variados corpos em inumer�veis mundos".

Falecido em 1848, Maric� n�o teve tempo de ver as discuss�es
sobre reencarna��o e socialismo que o s�culo preparava. Mas os adeptos
do magnetismo e do sonambulismo foram legi�o, sobretudo entre
as classes mais elevadas. Por curiosidade ou passatempo, aderiam padres,
escritores, doutores e bachar�is. Especialistas listaram: marqu�s
de Olinda, visconde de Uberaba e de Monte Alegre, bar�o de Cairu,
monsenhor Pinto de Campos, o poeta e histori�grafo Melo Moraes,

o general Jos� Ignacio de Abreu e Lima, entre outros. O sucesso das
"cadeias digitais" enchia os jornais.
At� dom Romualdo de Seixas, arcebispo da Bahia, recebera certa
noite a vizinha de uma irm�. Ela o olhou fixamente, balbuciou seu nome
e desapareceu. Soube no dia seguinte que ela morrera. A hist�ria entrou
para os anais. J� certo padre Bernardino de Souza era um dos homens
de batina que se perguntava sobre os efeitos do magnetismo e repudiava
a ideia de condenar aquilo que a ci�ncia ainda n�o explicava.


DO OUTRO LADO

Apesar da condena��o do Santo Of�cio, as pessoas prosseguiam
suas sess�es, com novas adapta��es: uma das variantes consistia em
colocar cart�es com letras na mesa, e ent�o um copo emborcado, dedos
suavemente apoiados nele, deslizava em dire��o �s respostas. O
magnetismo abria suavemente as portas para o espiritismo.

"A MAGIA NO S�CULO XIX"

A manchete da Revista Popular de abril de 1859 chamava para um
artigo no qual se discorria sobre o "amor do maravilhoso", a "curiosidade
sempre �vida de mist�rios, apaixonada pelo desconhecido".
Segundo o articulista, os anos n�o modificariam esse gosto. "T�o poderoso
e vivaz � o instinto de credulidade que, se n�o apelamos para

o racioc�nio, admitimos os contos mais rid�culos e extravagantes",
sublinhava.
Sim, as pessoas acreditavam em fatos aparentemente fant�sticos.
Mas n�o deviam. Afinal, eles eram constru�dos pela imagina��o humana.
O bom senso devia prevalecer, sempre. Por�m... Por�m, fatos recentes
tinham prendido a aten��o dos homens mais esclarecidos: "Passava
a feiti�aria por morta, bem morta; longe disso est� viva como nunca",
admirava-se o articulista. E conclu�a: "crentes ou incr�dulos, todos nos
vemos obrigados a contar com esta pot�ncia misteriosa e a prestar-lhe
alguma aten��o [...] �, pois, hoje um fato consumado: a magia renasce
vigorosa no s�culo XIX".

Os feiticeiros modernos n�o frequentavam mais missas negras
ou dan�avam sobre o t�mulo dos bispos. Eles faziam as mesas falar,
evocavam os defuntos e conversavam com almas boas ou m�s. Reabilitava-
se a magia que nos s�culos anteriores n�o tinha outro fim sen�o

o Mal. Agora, s� obrava o Bem. O assunto interessava os estudiosos
de hist�ria, filosofia, teologia e ci�ncias. Os c�ticos que ousassem discordar
se viam esmagados pelo n�mero de crentes. N�o havia meio
de negar. Os fatos se evidenciavam: as mesas volantes s� n�o voavam
pelas janelas. As "corpora��es cient�ficas" tinham medo de confessar:

MARY DEL PRIORE

tratava-se de "fen�menos sobrenaturais". Explica��o? A "for�a motriz",
uma faculdade da alma que obrava espontaneamente de acordo
com o pensamento ou o desejo.

"Poder estranho" ou "sugest�o" s�o palavras que tentavam definir
a experi�ncia do magnetismo. Como vimos, ele fora largamente
usado na Fran�a em fins do s�culo XVIII. Seu fundador, o austr�aco
Franz Anton Mesmer, afirmava que existia um fluido que cercava e penetrava
os corpos. Denominou-o "magnetismo animal" e, a partir de
seus experimentos, desenvolveu tratamentos de cura para doen�as as
mais variadas. Mesmer acreditava que as mol�stias advinham da a��o
descontrolada do fluxo vital. Para direcion�-lo, usavam-se as m�os,
toques e massagens em certas partes do corpo. Ser tocado por ele era a
ambi��o de tr�s quartos dos parisienses, observou Alexandre Dumas.
At� Maria Antonieta, a rainha, o foi. A morte de Mesmer, em 1815,
n�o significou o fim dos experimentos. Curas por meio magn�tico seguiram
sendo usadas por leigos ou m�dicos.

Em 1835, um grupo de pesquisadores ligados � Faculdade de Medicina
de Paris retomou o assunto, dedicando-se ao chamado "sonambulismo".
Em meados do s�culo XIX, "mesmeristas" cediam lugar
aos "son�mbulos" tanto nos diagn�sticos quanto nos tratamentos de
cura. Acreditava-se que, quando em sono profundo, chamado tamb�m
de "sono l�cido", os son�mbulos se libertavam das limita��es do corpo
f�sico, passando para o outro lado. Com a vis�o ampliada, eram
capazes de ver atrav�s dos corpos. Podiam, assim, detectar doen�as,
apontar �rg�os fragilizados e fazer previs�es. Podiam ver, no al�m,
esp�ritos e habitantes de mundos extraterrestres. E, por fim, tinham
informa��es sobre o passado e o futuro. Os contempor�neos achavam
tudo isso natural e real, pois o sonambulismo se inscrevia no quadro
de uma ci�ncia: o magnetismo. A son�mbula (quase sempre uma mulher,
como se ver� na pr�xima se��o) rapidamente encontraria seu
lugar ao lado de m�dicos e f�sicos.

M�dicos alienistas acreditavam que, gra�as �s emana��es desse
"maravilhoso instrumento da Cria��o", dois c�rebros distintos podiam


DO OUTRO LADO

se comunicar. O estado sonamb�lico aumentava as capacidades sensoriais.
A audi��o se tornava extremamente sens�vel, assim como a vis�o
interior, capaz de detectar doen�as. Hist�ricas e epil�ticos, possuidores
de "c�rebros irrit�veis", eram os melhores agentes para o sucesso da
pr�tica sonamb�lica. Esse mesmo sucesso a tornou bem recebida nos
hospitais franceses, onde vis�es de son�mbulas foram usadas na redu��o
de dores cr�nicas ou com fun��o analg�sica e anest�sica.

A ideia do magnetismo e do son�mbulo que mergulhava no chamado
"sono magn�tico" se propagou gra�as �s descobertas da eletricidade.
Essa estranha sensa��o imprecisa, incerta e problem�tica, o
sonambulismo, anunciava um estado alterado de consci�ncia. E tal
disfun��o ora parecia ligada � hipnose ora a um estado mais profundo
e mais dif�cil de definir. A indetermina��o era a sua riqueza, tornando

o sonambulismo e, depois, a mediunidade verdadeiros ritos de transe,
ao mesmo tempo que uma forma de comunica��o com o al�m ou de
terap�utica de si e dos outros.
Alexandre Dumas, muito lido no Brasil, adorava magnetizar e
difundiu a ideia do magnetismo em seus romances. Balzac e George
Sand participavam de espet�culos de ilusionismo e magnetiza��o.
Magnetismo e sonambulismo se mantiveram como pr�ticas eficientes
no terreno da cura e da ci�ncia. J� o espiritismo e a cartomancia eram
jogados na mesma cesta, como se v� neste editorial do Di�rio de Not�cias
de dezembro de 1870:

O espiritismo consiste no poder de fazer comparecer esp�ritos,
isto �, de fazer sair do p� das catacumbas aqueles que nela
foram depositados h� longo tempo, isto a fim de virem responder
as quest�es que se lhes prop�em. Se no magnetismo, e no sonambulismo,
achamos alguma cousa realmente existente, aqui nada
se encontra que n�o seja pura fantasmagoria; nada, absolutamente
nada, existe de admiss�vel em t�o grosseiro charlatanismo e
faz pasmar que homens que campam de inteligentes se deixem
levar pelos espet�culos grosseiros de uma nigromancia digna de


MARY DEL PRIORE

s�culos mais afastados; ser� porque � testa dos espiritistas se acha

algu�m que possa merecer-lhe import�ncia e cr�dito? Talvez.

Os esp�ritas tiveram trabalho em explicar que a doutrina que seguiam
nada tinha de fant�stico. Multiplicavam-se as cartas nos jornais
explicando os limites entre o que se considerava necromancia e os
textos de Kardec.

- Lemos l� em casa o seu artigo. Ficamos admirados; pois tu acreditas
em mesas girat�rias e outras coisas assim?
- N�o se trata de nada disso, homem. Allan Kardec, espiritismo e
filosofia s�o coisas diferentes da mesa de girar. � uma teoria filos�fica,
e como tal � que eu recomendava o sistema [...]; reconhe�o
que s�o obras transcendentais que n�o t�m f�cil extra��o como o
romance e a novela tanto em moda entre n�s. Recomendo Allan
Kardec como autor apreci�vel em filosofia, e vem logo um que
n�o leu, dar-me entrada na confraria das mesas girat�rias, e coisas
semelhantes.
Com a divulga��o crescente do magnetismo e do espiritismo,
aumentou o n�mero de pessoas que trocavam pr�ticas ancestrais de
feiti�aria afro-brasileira pela cartomante, o magnetizador ou a son�mbula.
Moda francesa! Abandonava-se a cultura tradicional pela
nova. As brechas abertas pelo magnetismo deixavam entrar a doutrina
de Kardec.

ENQUANTO ISSO, NA BAHIA DE TODOS

os ORIX�S...

Na prov�ncia da Bahia, assombra��es e esp�ritos atazanavam os escravos
nas senzalas e os senhores nos sobrados. O temor de despachos
e mandingas ou dos tambores de candombl� integrava o cotidiano.
Solu��es m�gicas e o mundo invis�vel andavam de m�os-dadas. N�o �


DO OUTRO LADO

toa, os baianos foram pioneiros em abra�ar o espiritismo. A "marcha
ascendente do esp�rito humano" teve in�cio nas suas praias.

Em setembro de 1865, Luiz Ol�mpio Teles de Menezes, professor
e jornalista, foi o articulador do primeiro Grupo Familiar do Espiritismo,
fundador do primeiro jornal, O Eco do Al�m-T�mulo, e tradutor
do primeiro livro esp�rita no pa�s, Filosofia espiritualista, que vendeu
mil exemplares em um m�s. Cercado da nata da sociedade baiana, o
grupo rapidamente passou a uma campanha de conquista de novos
adeptos. As obras de Kardec eram discutidas com paix�o. E Teles de
Menezes enfrentou sem temor as "iras e persegui��es" que, desde o
in�cio, atingiram a nova doutrina.

O primeiro n�mero do peri�dico, de julho de 1869, abriu com
entusiasmo: "Maravilhoso � o fen�meno da manifesta��o dos esp�ritos
e, por toda a parte, ei-lo que surge e vulgariza-se". As ideias
emanadas de "milhares de comunica��es obtidas das revela��es dos
esp�ritos" se manifestavam por evoca��o. Bastava cham�-los. Essa
"grande verdade" n�o era privil�gio de ningu�m. Qualquer pessoa,
na intimidade de sua fam�lia, poderia encontrar um m�dium entre
seus parentes. No entanto, ter a faculdade especial de se comunicar
com os mortos, al�m de configurar um gesto de bondade do "Deus-
Trino", exigia estudos. Estudos que provavam que "o maravilhoso
fen�meno da comunica��o com os esp�ritos" n�o era nenhuma
novidade. Ele existia desde o aparecimento do homem sobre a Terra
e demonstrava ser "consequ�ncia de leis imut�veis que regem o
mundo". As benesses? Defini��es claras para os fen�menos "sobrenaturais",
al�m de combater o materialismo e o ego�smo, "chaga
cancerosa da humanidade".

Mas o contato com o espiritismo era anterior � funda��o do jornal.
O n�mero 2 de O Eco, de setembro de 1869, registrava o nascimento
da "ideia espir�tica" na terra dos orix�s h� algum tempo: "no
curto espa�o de tr�s anos e meio que h� decorrido de sua manifesta��o
entre n�s tem-se difundido com rapidez verdadeiramente pro


videncial". Nesses anos, perseguiu-se a "perfectibilidade do esp�rito


MARY DEL PRIORE

humano" e a maneira de lev�-la "ao cora��o dos homens e � Imprensa",
escrevia Teles de Menezes.

Para propagar a "salutar cren�a", o articulista pedia doa��es
para a compra de papel-imprensa - os pre�os estavam sempre subindo
-, no que foi atendido por dois professores, dois farmac�uticos, um
advogado e fundador do Instituto Hist�rico da Bahia e dois m�dicos.
O Eco seria impresso na Fran�a, para impulsionar a divulga��o do espiritismo
c� no Brasil. Portanto, havia muita movimenta��o e contato
com a Europa em torno do assunto. O pr�prio Kardec soube da iniciativa,
que louvou em sua Revue Spirite, lan�ada em 1857. E, como
ele mesmo dizia, "chegara o tempo" e "o espiritismo estava no ar".

Qualquer um podia falar com os esp�ritos? N�o. Eles n�o eram uma
resposta �s fantasias. E sim "seres do mundo invis�vel" diante dos quais
se obedeciam a certas regras: usar de linguagem adequada, ser compassivo
e respeitoso com os superiores, firme com os maus e obstinados. E,
mais importante, era preciso saber fazer perguntas. A conversa com os
mortos era uma arte que exigia "tino e conhecimento do terreno".

Dois anos depois, a Igreja reagiu atrav�s de uma pastoral do arcebispo
da Bahia, dom Manuel Joaquim da Silveira. Reencarna��o nem
pensar, pois era contr�ria � ideia de Ju�zo Final. E se as almas existissem
antes do corpo, por que n�o se lembravam das vidas passadas?
E como acreditar que a de santo Agostinho, um s�bio, teria encarnado
num "menino de escola"? Dem�nios como esp�ritos imperfeitos
e eternidade sem inferno? Nunca. Macacos em lugar de Ad�o e Eva,
como queria O livro dos esp�ritos, favor�vel � teoria da evolu��o?!
Cruzes. Pior eram as "supersti��es perigosas" e a pr�tica da comunica��o
entre vivos e mortos, que remetia � invoca��o dos eguns pelos
negros, considerada altamente reprov�vel. Tudo isso eram "f�bulas"
ou "manifesta��es do Esp�rito das Trevas"! N�o � toa, a Bahia Ilustrada
resumiu numa s�tira: "o espiritismo era dos brancos desta terra
memor�vel, candombl�"!

E a troca de tiros prosseguiu. Teles de Menezes voltou a escrever
ao bispo uma carta de 82 p�ginas defendendo as "doutrinas do


DO OUTRO LADO

espiritismo" e dando �s suas palavras um tom conciliador: "[...] o espiritismo
e o catolicismo s�o a mesma Igreja de Nosso Senhor Jesus
Cristo, somente est�o mudados os tempos e as palavras...". Mais, o
espiritismo era uma ci�ncia, e n�o uma religi�o. Era "uma renova��o
dos tempos b�blicos". Por isso mesmo, ele, Teles de Menezes, se assumia
cat�lico. Diverg�ncias sobre o lugar do inferno e do purgat�rio
seriam apenas de localiza��o. N�o ficavam no mapa do al�m, mas
aqui, na Terra. Eram ou o estado do esp�rito em pecado mortal ou
do esp�rito que pecara e agora fazia penit�ncias. Valia a mobilidade
entre "moradas" at� atingir a conduta ideal. Quanto � invoca��o dos
mortos, ela fora proibida num contexto espec�fico. E dirigida exclusivamente
aos hebreus em fuga do Egito. N�o se aplicava aos cat�licos
do s�culo XIX.

Ainda houve segunda resposta da pena do jovem padre Juliano
Jos� de Miranda. Ele advertia que "o p�blico evidentemente anseia a
morte do espiritismo". Enganou-se. No mesmo ano de 1867, o livreto
do dr. Teles de Menezes ganhou reedi��o e conquistou mais cora��es
e mentes. O que mais irritava a Igreja era o fato de os esp�ritas serem
�timos cat�licos, frequentadores das missas dominicais. Por�m, essa
mescla estava longe de ajudar o catolicismo.

Tal como na Fran�a de Kardec, faziam parte do Grupo baiano
aristocratas da estatura de Francisco da Rocha Pita e Argolo, visconde
de Passe, e tamb�m o bar�o de Sau�pe. Tamb�m m�dicos como o dr.
Joaquim Carneiro de Campos, filho do marqu�s de Caravelas, e o
dr. Guilherme Pereira Rebelo, e at� o delegado de pol�cia Jos� �lvares
do Amaral e o comendador da Ordem da Rosa �lvaro Tib�rio de
Moncorvo, ex-presidente da prov�ncia, entre outros.

E, entre esses outros, o progressista e abolicionista Durval Vieira
de Aguiar, "m�dium" conhecido por receber o esp�rito de Lamartine,
que lhe teria dito: "O caminho da liberdade era o caminho do futuro".
N�o por acaso, no Di�rio da Bahia, v�rios artigos assinados por "Voltaire",
"Diderot" e "d'Alembert" e escritos "sob a influ�ncia desses
grandes g�nios na sabedoria, her�is da liberdade", por�m em perfeita


MARY DEL PRIORE

comunh�o com as opini�es esp�ritas, exibiam o desejo de p�r um fim
� escravid�o.

A repress�o da Igreja, por�m, s� chamou aten��o para o Grupo e
multiplicou as sess�es na cidade. Mais e mais pessoas estudavam a doutrina
e tinham na caridade e na assist�ncia aos necessitados sua preocupa��o.
Mas tamb�m mais e mais pessoas buscavam a comprova��o
da exist�ncia de esp�ritos e a consola��o de conversar com os mortos.

O poeta J�lio C�sar Leal foi o primeiro soteropolitano a fazer
uma profiss�o de f� po�tica. Ma�om, como tantos outros futuros esp�ritas,
Leal frequentava certa loja na qual, um dia, fizeram uma experi�ncia.
Fecharam a porta de um quarto e pediram aos esp�ritos que lhes
dessem uma prova da vida ap�s a morte. Batidas na porta pelo lado de
dentro anunciaram o resultado: uma mensagem escrita e assinada foi
encontrada sobre a mesa. Depois, num folheto de dezesseis p�ginas,
Leal fez, ent�o, uma defesa apaixonada: em O espiritismo: medita��o
po�tica sobre o mundo invis�vel, ele mostrava a pureza da doutrina.
Nada de contamina��o com pr�ticas africanas, explicava. Mas, num
ambiente rom�ntico, a descri��o dos princ�pios da reencarna��o:

Ao deixar a mat�ria, sem demora
Entra de novo na mans�o et�rea
Conhece-se habitando em subst�ncia
No lugar donde outrora partira
Para o corpo animar, que ent�o deixara [...].

N�o foi o �nico. Castro Alves, coroado pelo sucesso, estabeleceu-
se na capital, em 1868, por oito meses. N�o escapou ao assunto que
submergia a cidade e seus meios intelectuais. De volta a S�o Paulo, em
carta ao amigo Augusto Guimar�es, abolicionista e pol�tico, mencionava
"o enigma de minha cren�a". H� quem diga que seu c�lebre "Os
escravos" � de evidente cunho esp�rita.

� imposs�vel que, sendo admirador de Victor Hugo, o poeta desconhecesse
a aventura metaps�quica do grande escritor franc�s. De


DO OUTRO LADO

volta a Curralinho para morrer, tornou-se m�stico e pediu ao amigo
que lhe conseguisse um exemplar de Po�tica do espiritismo, de Kardec.
Planejava, ent�o, escrever um poema hist�rico dram�tico, apoiado na
doutrina. Segundo um especialista, ele chegou a esbo�ar aquele que se
chamaria A Rep�blica de Palmares, texto que come�aria com a morte
da hero�na Ema e contaria suas sucessivas encarna��es. Entusiasmo
ou convers�o? N�o se sabe.

Dois meses ap�s a morte de Castro Alves, a 24 de agosto de 1871 ,
um requerimento dirigido ao vice-presidente da prov�ncia da Bahia
solicitava aprova��o para o funcionamento da Sociedade Esp�rita Brasileira.
O reconhecimento oficial esbarrou, contudo, em in�meros obst�culos,
entre os quais a aprova��o do bispo que havia brigado com
Teles de Menezes.

A solu��o foi se apresentar como uma sociedade liter�ria e beneficente.
A Constitui��o do Imp�rio permitia a exist�ncia de outras
religi�es? No seu artigo 5, sim. Mas s� para ingl�s ver... Tanto que

o bispado venceu: "Uma sociedade cuja doutrina tem por finalidade
contrariar a religi�o de Estado � contra o mesmo Estado". A Igreja
esmagava o que pensou ser a cabe�a da serpente.
Errou, pois a serpente tinha duas cabe�as. E a outra delas foi a
Quest�o Religiosa, que ajudou a fragilizar a rela��o entre Igreja e Estado.
O impasse teve origem em 1872, quando bispos resolveram implicar
com a ma�onaria. Ela estava entranhada na sociedade e contava
at� com padres nas suas fileiras. Por�m, uma atitude radical ordenada
por Roma levou as autoridades religiosas a tomar atitudes extremas
em rela��o aos ma�ons. Eles deveriam ser expulsos das irmandades
religiosas �s quais pertenciam e n�o poderiam mais ser enterrados em
campo consagrado. O governo reagiu: as irmandades tinham amparo
na lei secular.

Houve troca de artigos inflamados na imprensa, um lado acusando
o outro. O resultado foi uma tens�o que culminou com a pris�o de dom
Vital, bispo de Olinda, e de dom Macedo Costa. As ordena��es papais
n�o eram reconhecidas pelo governo do Imp�rio, e os bispos incorreram


MARY DEL PRIORE

em culpa de desobedi�ncia civil, sendo presos e condenados a trabalhos
for�ados. Pouco tempo depois, foram anistiados. Mas isso n�o aplacou

o azedo debate a respeito da uni�o entre Igreja e Estado.
O enfraquecimento da Igreja abriu brechas para outras doutrinas.
E, depois de sete anos de batalha, a vaga do espiritismo come�ou
a fluir para o Sudeste, contagiando a corte.

OS ESP�RITOS NA CORTE BRASILEIRA
A vida do bar�o de Santo �ngelo era dura. O t�tulo que recebeu tardiamente
n�o lhe dava nenhuma regalia. Nasceu e morreu pobre. Dos
maiores artistas do pa�s, ele n�o tinha d�vidas: no Brasil, a arte era
um "elemento de luxo individual e n�o um elemento de civiliza��o".
O baronato veio em 1874, quando sua situa��o financeira e sa�de se
deterioravam. Manuel Jos� de Ara�jo Porto-Alegre, o futuro bar�o,
nascido a 29 de novembro de 1806, foi para a corte aos 21 anos estudar
desenho com o artista franc�s Jean-Baptiste Debret na Academia
Imperial de Belas Artes. Era conhecido entre seus pares como "o homem-
tudo": poeta, escritor, jornalista, arquiteto, orador, cr�tico e historiador
da arte e diplomata.

Protegido do mordomo do imperador, Paulo Barbosa da Silva, se
aproximou de dom Pedro II, de quem se tornou amigo. Depositava no
governante todas as suas esperan�as de melhoria do pa�s. E entusiasmava-
se: "Senhor, mo�o como sois, podeis abarcar esse imp�rio de um
extremo ao outro e levant�-lo ao n�vel das na��es mais nobres".

Viveu em Paris de 1831 a 1837 e, quando voltou ao Brasil, casou-
se e se tornou diretor da mesma academia onde estudara. No discurso
de posse, mostrou que estava atento �s conquistas do tempo:

O brasileiro j� desenha com luz, escreve com o raio e navega
com o fogo; j� se apoderou das tr�s almas do grande s�culo em
que vivemos [...] O fio el�trico, o que leva a palavra pelos ares,
pelas profundezas do mar e da terra, foi seguido pela nova luz do


DO OUTRO LADO

g�s, e pela velocidade da locomotiva. As trevas desapareceram e o
tempo e o espa�o se encurtaram, a nossa vida duplicou-se porque
vamos doravante contar os dias do passado por horas e as horas
por minutos. Em um ano t�o fecundo como o de 1854, n�o devemos
ficar estacion�rios.

Sua proximidade com a homeopatia e o espiritismo vinha de longa
data. Em carta do Rio de Janeiro ao sogro, em abril de 1844, a liga��o
com o assunto se esclarecia. Ele agradecia a aproxima��o com o
dr. Benoit Mure, de quem dava not�cias. O dr. Mure n�o era qualquer
um. Chegara � corte em 1840, a bordo do navio Eole, vindo da Fran�a.
Desenvolvera a pr�tica da "Lei das Similitudes de Hahnemann" e
fazia prepara��es medicinais numa m�quina que inventara. Sua preocupa��o
era mais social do que m�dica, pois se acreditava divulgador
de uma "miss�o" para melhorar a vida das pessoas. De acordo com
Mure, a homeopatia era mais uma das revolu��es na ordem dos tempos.
Dessa vez na medicina. O c�rculo homeop�tico estaria ligado,
segundo seus adeptos, � "dire��o do mundo invis�vel".

Adepto das teses do utopista Louis Fourier, ele tamb�m um te�rico
da reencarna��o, o dr. Mure queria criar no Brasil um falanst�rio:
propriedade coletiva regida por princ�pios socialistas e baseada na fraternidade.
Dom Pedro II, simp�tico ao assunto, lhe ofereceu 60 contos
de r�is e uma �rea de quatro l�guas em Santa Catarina, para onde foi
encaminhado, entre 1842 e 1843, um grupo de 21 7 franceses.

O experimento n�o deu certo, e Mure se instalou no Rio de Janeiro,
fundando em companhia do cirurgi�o portugu�s Jo�o Vicente
Martins e dois m�dicos brasileiros, dr. Gama de Castro e dr. Lisboa,
um dispens�rio "destinado a propagar a homeopatia entre as classes
pobres". E depois a Botica Homeop�tica Central, primeira farm�cia
do g�nero no Brasil. O povo via no receitu�rio algo do tipo "feiti�o em
vidrinhos". Mas usava-os, e muito.

No in�cio do s�culo XIX, a homeopatia tomava impulso e se
apresentava como uma revolu��o no conhecimento que se tinha at�


MARY DEL PRIORE

ent�o em medicina. Seu m�todo era o inverso do sistema difundido
pela alopatia, considerada por Mure "medicina antiga, tradicional".
Ora, para ele, a homeopatia n�o devia ser concebida como um sistema
isolado nem das outras ci�ncias nem de uma pr�tica econ�mica e
pol�tica. Ela seria parte de um todo, representando uma abordagem
hol�stica dos seres e do mundo.

Para satisfa��o de Mure, o imperador reconheceu a homeopatia
por decreto a 6 de abril de 1846. N�o demorou a rea��o dos alopatas
contra o que consideravam uma impostura. Por v�rias raz�es, o
homeopata retornou � Fran�a, em 1848. Mas deixou aqui um clima
favor�vel aos feitos e fatos "espiritualistas". Por�m, nem tudo foram
flores na introdu��o da homeopatia.

O pr�prio Porto-Alegre registrou em carta: "O dr. Mure � um
homem de conhecimentos, nele confio eu, mas aos outros, exceto o dr.
Lisboa que tamb�m estudou, n�o me entregarei facilmente". O franc�s
estaria rodeado de "charlat�es que por sua mudan�a s�bita a um sistema
novo t�m ca�do num exclusivismo que arrepia as carnes".

Nos tempos em que a homeopatia se instalava entre n�s, vivia-se,
segundo Porto-Alegre, uma "�poca org�nica" e esperava-se o "futuro
de grandes coisas". Na Europa, "tudo se prepara para alguma coisa".
E, em carta ao sogro, arrematava suas impress�es, cheias de cr�ticas ao
materialismo e com esperan�as num novo tempo:

Grandes combates haver�o; os homens positivos e exclusivos
ainda sustentam o cetro da mais alta posi��o e a cal�nia e o
barulho dos fardos da alf�ndega ainda � mais alta que as vozes
modestas dos homens que invocam o futuro. Esta rea��o que come�a
agora em ponto pequen�ssimo tem de lutar muito e por
alguns anos ainda antes de chegarmos ao desejado.

Em 1857, Porto-Alegre partiu para seu primeiro posto diplom�tico
na Pr�ssia. Foi designado c�nsul. Certamente, ali avivou os
conhecimentos e contatos que conseguira em sua primeira viagem �


DO OUTRO LADO

Europa, quando estudante. Nas idas que fazia a Paris, recebeu do pr�prio
Allan Kardec um exemplar da Revue Spirite. Por essa �poca, ele
praticava a doutrina e realizava sess�es esp�ritas em casa, como se v�
em correspond�ncia com o amigo Domingos de Magalh�es:

Eu tive uma consulta de um esp�rito que � como se fosse
ditada por Deus, t�o exata foi! Foi dada em Berlim estando eu
aqui doente. Que maravilha! Todos os sintomas, toda a marcha
do mal, as causas f�sicas e morais foram descritas com a mais
perfeita e segura verdade.

Adiante, na mesma carta, seguiam explica��es:

O espiritismo liga os dois mundos, o material e o espiritual
de uma forma clara, assim como a vida presente com a futura
[...] Lineu disse: a natureza n�o d� saltos. O espiritismo diz, o
esp�rito n�o morre, deixa a mat�ria e continua. N�o se deixa a
Terra logo, n�o h� saltos [...] N�o � bom exceder as prescri��es
dos esp�ritos, nem zombar no momento das evoca��es. Os esp�ritos
s�o discretos, poupam afli��es e aconselham o bem [...] A
Terra � um planeta inferior, o que n�o acontece a J�piter, que j�
� superior e onde se vive de 300 a 400 anos, conforme o decreto
de Deus [...] As pessoas do outro mundo s�o admir�veis pela sua
ordem e perfei��o.

Ainda na mesma carta, comentou que a princesa Isabel teria lhe
perguntado sobre quem seria "seu esp�rito protetor". Resposta: "Escrevi-
lhe com toda a lisura de minha alma, mas n�o sei se recebeu
a carta... Havia de receber, ora diga-me?", perguntava, visivelmente
irritado por nunca ter recebido retorno dela.

Receoso da "ca�a �s bruxas", Porto-Alegre preferia falar em
manifesta��es de sonambulismo ou magnetismo. Fugia, assim, aos
preconceitos. Em carta ao amigo Joaquim Manuel de Macedo, pedia


MARY DEL PRIORE

"reserva", pois "tinha medo de passar por louco". Mas n�o deixava
de falar do assunto. Sua pe�a teatral Os volunt�rios da p�tria colocou
em cena uma son�mbula, dona Alexandrina, que via � dist�ncia. A
personagem era inspirada em uma vidente brasileira que ele conhecera
na cidade de Dresden. Incendi�rio, o texto assumia publicamente e
contra a Igreja sua posi��o de kardecista. E isso quando o espiritismo
ainda era visto como coisa de Satan�s. A personagem n�o escondia:
embora se apresentasse como vidente, "escrevia pedindo conselhos ao
anjo da guarda"! Para bom entendedor...

Porto-Alegre se sentia um soldado em meio ao combate do s�culo:
o espiritualismo contra o materialismo. Esse �ltimo representado
nos "excessos do luxo", nos casamentos por dinheiro e em "outros
v�cios" da burguesia.

Pouco depois, em 1867, movido pelos debates humanit�rios que
alimentavam o espiritismo, Porto-Alegre enviou a dom Pedro um memorial
de sua autoria sobre a extin��o gradual da escravid�o no Brasil:
"obra gigantesca e salvadora que lhe dar� gl�ria" e o "Imp�rio
debaixo de t�o altos guias". A proposta abolicionista de Bezerra de
Meneses, como veremos adiante, s� viria dois anos depois.

Na mesma �poca, escreveu de Paris, onde se encontrava em miss�o
diplom�tica preparando a participa��o do Imp�rio na Exposi��o
Universal de 1867. Depois de louvar Napole�o III, amigo e admirador
de Kardec por seu "g�nio, grandeza e simplicidade", comentou sobre a
col�nia brasileira: era constitu�da de "gente de todos os calibres, principalmente
da esp�cie asinina - de asnos". Mostrando-se pessimista
em rela��o ao fim da escravid�o e aos governantes, martelava: "n�o
vejo sen�o cegos e da pior qualidade que � a dos que n�o querem ver".

E para concluir: "o dec�nio era fatal". "Se os nossos governantes
e legisladores fossem espiritistas, tudo andaria melhor, porque haveriam
de crer em Deus, na vida futura, e olhar para seus grandes e
sublimes deveres".

O pessimismo t�pico do romantismo invadia seus pensamentos.
Dizia ter "terr�veis pressentimentos" sobre o pa�s. Ele previa que,


DO OUTRO LADO

depois da Guerra do Paraguai, nossos males seriam maiores: "O governo
planta a descren�a no cora��o da mocidade e coloca nos velhos
a desesperan�a". Acusava: "Microsc�picos estadistas arruinavam
tudo". E ele via em toda a parte urna "orgia moral". Cerrando fileiras
com os esp�ritas, declarava-se "inimigo do materialismo oficial": "hei
de comparecer diante de Deus sem o crime de lesa moral e sem ter culpa
de corruptor". E, sobre uma comunica��o que recebera, registrava:
"as almas n�o s�o crian�as como pensa muita gente".

Em carta a dom Pedro II, rabiscou um enunciado dram�tico: "o
Brasil �s v�speras de um triunfo ou de uma cat�strofe". E, nas linhas
a seguir, assumiu, sem disfarces, o discurso esp�rita, ditando ao soberano
o que fazer:

As minhas apreens�es s�o grandes, maiores s�o minhas esperan�as
porque confio em Deus. Nada ser�, Senhor, se Vossa
Majestade Imperial come�ar j� o remonte de sua Grande Miss�o,
a que o colocar� no c�u, ao lado de Deus, e na Terra, a par dos
maiores homens da humanidade.

Os soberanos de sua natureza s�o mandados; e Vossa Majestade
Imperial tem de ser o ap�stolo da verdadeira liberdade
da regenera��o do Brasil e o imortal criador da segunda via do
Imp�rio Americano sem a qual ele deixar� de existir.

H� princ�pios nos quais est� Deus e os homens. O primeiro
vive eternamente e os segundos morrem como coisas transit�rias
[...] A medicina social � mais dif�cil do que a corporal porque
deve curar e impedir as mol�stias. Prevenir as coisas a tempo e
impedir desastres � a sabedoria [...] Vossa Majestade Imperial,
al�m de outros pactos, j� teve dons bem extraordin�rios, que bel
lhe mostraram que � protegido por Deus e de que este o guarda
para cumprir uma santa e grande miss�o na Terra!

Mas o grande inimigo, segundo os esp�ritos, martelava Porto-
Alegre, era a escravid�o, "p�stula gangrenosa que procede de v�cios


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internos" e que fazia dos "d�spotas em casa" maus cidad�os na rua. E
a dom Pedro, "Imortal benfeitor", pedia:

Acabai com a escravid�o, Senhor. Porque Deus assim determina
e porque vos falo em Seu Nome. Aos p�s da est�tua de Vossa
Majestade se colocar�o emblemas marciais, trof�us de vit�ria,
as recorda��es e todos os flor�es do mais belo simbolismo. Mas
nenhuma dessas coisas falar� tanto ao cora��o humano como as
imagens desses escravos livres, sorrindo em grata adora��o por
seu Imortal Redentor.

Dom Pedro levou a s�rio as recomenda��es? Certamente, n�o, mas
talvez ainda se lembrasse da premonit�ria correspond�ncia no dia em
que foi tra�do pelo golpe republicano... E como Porto-Alegre sabia de
tudo isso? Resposta: "Estou vendo porque minha alma est� no futuro".

A seu amigo Joaquim Manuel de Macedo, escreveu outra carta,
dessa vez de doze p�ginas, instruindo sobre como descobrir um m�dium
e lidar com esp�ritos. Quem protegia o escritor? S�o Jer�nimo.
Aproveitou para contar-lhe tamb�m seus di�logos com o al�m e as
constantes evoca��es do esp�rito de Gon�alves Dias.

Porto-Alegre se considerava m�dium, al�m de grande leitor dos
textos kardecistas: "Hoje pretendo ler um di�logo entre um vivo e um
morto, obra conciliadora, mas en�rgica...". E levava a s�rio sua cren�a,
costumando dizer: "Para o outro mundo basta o cora��o, porque nele
penetra o olho de Deus...".

O ESP�RITO DE ESP�RTACO E O ABOLICIONISMO
"A revolu��o � o sagrado direito de um povo oprimido; num pa�s
de escravos ela se traduz pela insurrei��o [...] a escravid�o mata o
direito e se baseia na for�a; para repelir a for�a, todos os meios s�o
bons." Com essas palavras, o abolicionismo ganhava um adepto: o
esp�rito de Esp�rtaco, o l�der da maior revolta de escravos na Roma


DO OUTRO LADO

Antiga, cuja presen�a foi solicitada por um membro do movimento
durante uma sess�o. Ali�s, a presen�a de esp�ritas empenhados no fim
da escravid�o foi importante. Eles acreditavam que n�o haveria moralidade
num pa�s onde perdurava a escravid�o. Pela boca da mesma
m�dium que recebeu Esp�rtaco, outro aviso: "Mas o sangue e a hora
fatal est�o iminentes. As crateras v�o vomitar suas lavas; e, ap�s o cataclismo,
quem poder� dizer: onde foi o Brasil?". E, entre os esp�ritas
abolicionistas, os baianos foram pioneiros.

O jovem Ant�nio da Silva Neto foi um deles. Nascido em Vi�osa,
filho de fazendeiro, bacharel em Matem�tica e Ci�ncias F�sicas, liberal,
foi o autor, em 1866, de Estudos sobre a emancipa��o dos escravos no
Brasil. H� tempos, panfletos e op�sculos sugeriam o fim da escravid�o
a um governo que tergiversava sobre o assunto. E que apostava no
"curso natural" das consequ�ncias da Lei do Ventre Livre para extinguir
a "chaga cr�nica". Sem filhos de escravas, em tr�s quartos de
s�culo, seria o fim do regime.

Para Silva Neto, isso era pouco. Seria preciso impedir uma guerra
civil - as crateras que vomitariam lavas - como a ocorrida nos Estados
Unidos. Para atuar em prol da aboli��o, bastava que os jornalistas
orientassem, ou melhor, conscientizassem os senhores de escravos: que
eles tivessem uma conduta humanit�ria para com seus cativos. Em vez
de castigos f�sicos, os morais. Nada de chicote, mas gratifica��es. Para
ele, a propriedade justificada por leis injustas transformava a posse de
escravos num crime.

Ao direito romano, que determinava que a condi��o do filho seguisse
a do ventre materno, ele respondia com uma recomenda��o:
liberdade para os cativos rec�m-nascidos e que os agricultores se preparassem
para o fim da escravid�o. E n�o confiassem no governo que
prestava "pouca aten��o �s graves quest�es que afetam os interesses
da lavoura".

Ah! Que os senhores moralizassem seus costumes. Nada mais de
concubinatos com escravas, mas escolas agr�colas para seus filhos. E
apelava: "Meu Deus, absolvei do pecado aqueles que querem prolongar


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a escravid�o". Silva Neto alforriou seus escravos, apostava no progresso
e representou as ideias liberais que grassavam nos meios universit�rios.
Por isso mesmo, foi um dos fundadores do Clube Radical, mais
tarde Clube Republicano. Juntou-se a 57 intelectuais que assinaram o
Manifesto e o jornal A Rep�blica, em cujas p�ginas colaborou.

E o lado esp�rita, quando nele despertou? A influ�ncia de outro
grande republicano, o pol�tico e poeta Bittencourt Sampaio, o atraiu
para o grupo de estudos que se formava na corte. O papel do magnetismo
lhe interessava. Ele queria ter certeza da manifesta��o post-
mortem da alma, de que duvidava: "Nada - movimento de objetos,
pancadas fortes - me havia convencido de minha imortal individualidade".
Mas s� foi persuadido depois de ver a fotografia de um esp�rito.
Para ele, a imagem era um dado irrefut�vel, uma comprova��o
cient�fica da exist�ncia de outras vidas e de outros mundos. Engenheiro
de forma��o, Silva Neto era considerado portador de conhecimentos
cient�ficos por excel�ncia. Logo, ningu�m mais abalizado para dar
legitimidade �s fotografias de ectoplasmas.

As reuni�es cont�nuas convidaram a formar um n�cleo, com estatutos
impressos e uma diretoria. A 2 de agosto de 1873, nascia a
Sociedade de Estudos Espir�ticos, cujo lema era: "Sem caridade n�o
h� salva��o. Sem caridade n�o h� verdadeiro esp�rita". No dia de sua
abertura, um s�bado, manifestaram-se respectivamente os esp�ritos de
Conf�cio, fil�sofo chin�s, e Kardec. E o recado encorajador deste �ltimo:
"Trabalhai, trabalhai, pois, incessantemente, sem interrup��o,
sereis assistidos, esclarecidos e aben�oados".

Outro grande abolicionista envolvido com o espiritismo foi
Adolpho Bezerra de Meneses: cearense, nascido em 1831, filho de um
tenente-coronel da Guarda Nacional e propriet�rio de terras onde
criava gado. No Rio de Janeiro, fez os estudos de medicina, tornou-
se cirurgi�o e deu in�cio � carreira pol�tica ingressando no Partido
Liberal. Abra�ou a causa abolicionista desde ent�o. A Fala do Trono
do Imperador em 1867 havia prometido reforma no sistema? Mentira.
O governo "estudava, mas n�o resolvia". "Estudar� eternamente


DO OUTRO LADO

e nunca resolver� nada", e a Guerra do Paraguai era desculpa para o

imobilismo. O novo gabinete conservador era composto s� de minis


tros contr�rios � emancipa��o dos escravos.

Em 1870, ocupou a reda��o do jornal Sentinela da Liberdade, e

por meio dos editoriais fustigava o governo. Segundo ele, o imperador,

coagido, n�o respeitava a opini�o do pa�s, dissolvia gabinetes para

atender a caprichos e facilitar persegui��es. "Cancro" e "lepra" foram

palavras usadas pelo m�dico para definir a escravid�o. E o escravo

se vingaria com �dio dos seus senhores, tamanho o sofrimento pelo

qual passava. Quando muitos temiam o fim da m�o de obra, Bezerra

de Menezes citava o caso do Cear� como exemplo de situa��o bem


-sucedida: depois da grande seca de 1845, as senzalas se esvaziaram e

os senhores foram obrigados a contratar m�o de obra livre. E a eco


nomia ia muito bem, obrigado.

Para n�o criar maiores problemas, Bezerra de Menezes apostava
na liberta��o gradual dos cativos. N�o estava s�. A maioria dos
emancipacionistas queria evitar uma ruptura dentro do sistema. Para
evitar a "corrup��o dos pretos", era obrigat�rio ministrar educa��o
desde cedo: instru��o prim�ria, al�m de religiosa e moral. As crian�as
iriam para casas de cria��o, onde sua forma��o seria garantida pelo
Estado. O governo gastava tanto dinheiro com o "funcionalismo estragado",
por que n�o investir em educa��o? Em 1869, publicou A
escravid�o no Brasil e as medidas que conv�m tomar para extingui-la
sem danos � na��o. O texto n�o economiza em afirma��es eletrizantes
para a �poca:

O escravo entre n�s - e onde quer que exista - � considerado
n�o como pessoa, mas como coisa [...] t�o desumano modo de
criar, educar e de tratar o escravo n�o produz somente o mal horrendo
do embrutecimento e da degrada��o moral de uma ra�a
humana; acarreta tamb�m os maiores e mais invenc�veis perigos
que podem amea�ar a paz e a felicidade das fam�lias [...] Pode
haver esperan�a de futuro para uma na��o onde a fam�lia est�


MARY DEL PRIORE

irremediavelmente condenada a t�o desgra�ada condi��o? Por�m
esse meio - a Lei do Ventre Livre - n�o nos d� sen�o a solu��o de
uma parte do problema; n�o nos d� sen�o a extin��o da escravid�o,
e n�s queremos a transforma��o do escravo em cidad�o �til,
sem o que todo o resultado � nulo e prejudicial.

Bezerra n�o tinha d�vidas: n�o bastava a liberdade. Era preciso
trabalho, inser��o e dignidade. Nove anos depois, rec�m-vi�vo, ele
recebeu de presente O livro dos esp�ritos, que devorou numa viagem
de bonde. Reagiu:

Lia; mas n�o encontrava nada que fosse novo para meu esp�rito,
entretanto aquilo tudo era novo para mim! Eu j� tinha
lido ou ouvido tudo o que se achava no Livro dos esp�ritos. Preocupei-
me seriamente com esse fato maravilhoso e a mim mesmo
dizia: parece que eu era esp�rita inconsciente, ou, como se diz
vulgarmente, de nascen�a.

Suas visitas a um m�dium receitista seguidas de curas o levaram
a adotar a doutrina. Na d�cada de 1880, o movimento contra o espiritismo
recrudesceu. Ele juntou-se aos articulistas de O Reformador,
jornal do movimento. Em agosto de 1886, numa confer�ncia p�blica
na Federa��o Esp�rita Brasileira e diante de um sal�o lotado com

1.500 pessoas, afirmou de viva voz sua ades�o. No dia seguinte, O
Pa�s publicava a not�cia:
O orador, discorrendo sobre os motivos que o levaram a
abra�ar a nova doutrina, fez uma brilhante compara��o entre as
teogonias romana e esp�rita, concluindo que esta e n�o aquela era

o coroamento da teodiceia e da moral crist�. O orador teve por
mais de uma hora presa a aten��o dos seus ouvintes que o aclamaram
com uma salva de palmas ao deixar a tribuna.

DO OUTRO LADO

Seguiram-se o romance esp�rita A casa assombrada, em que relata
fatos de sua vida, e os livros Casamento e mortalha, Historia de um
sonho, Evangelho do futuro, entre outros. Dedicou sua vida � caridade,
era "o m�dico dos pobres". Sua morte, a 11 de abril de 1900, levou
� porta de sua casa incessante romaria de pobres, humildes e necessitados,
assim como uma multid�o �s ruas, registrou O Pa�s.

O QUE CONTAVA A REVISTA ESP�RITA

Na corte, a primeira institui��o esp�rita a ser fundada foi a Sociedade
de Estudos Espir�ticos - Grupo Conf�cio. O ano era 1873. Conforme
previsto em seus estatutos, a sociedade devia seguir os princ�pios e as
formalidades expostos em O livro dos esp�ritos e em O livro dos m�diuns,
de Allan Kardec. Suas atividades inclu�am ainda o receitu�rio
gratuito de homeopatia e a aplica��o de passes aos necessitados. Sua
maior virtude, entretanto, foi, como j� visto, a de promover a tradu��o
das obras b�sicas de Kardec para a l�ngua portuguesa. Se, na Fran�a, o
kardecismo ser� definido como uma doutrina, mas tamb�m uma ci�ncia,
no Brasil ir� predominar a fei��o m�stico-religiosa. A t�o desejada
intimidade com almas, mortos, santos, eguns e orix�s e a dissemina��o
entre os segmentos mais populares ajudou na expans�o do espiritismo.

Em 1875, o Grupo Conf�cio lan�ou o segundo peri�dico esp�rita
do pa�s e o primeiro no Rio de Janeiro, a Revista Esp�rita, dirigida
pelo j� conhecido Silva Neto. O primeiro n�mero foi impresso na
rua Nova do Ouvidor, n�mero 18, na imprensa de Lu�s dos Santos, e
lan�ado a 1� de janeiro de 1875. Esse n�mero pioneiro n�o deixava
d�vidas quanto � inser��o que a doutrina desejava.

Associando o espiritismo, "ci�ncia f�sico-psicol�gica", a inven��es
como o telesc�pio, a m�quina a vapor e a telegrafia, o editorialista
anunciava sua contribui��o ao soerguimento da montanha de onde a
"humanidade iria contemplar os infinitos atributos de Deus". Ci�ncia
de observa��o, o espiritismo se inscreveria no quadro das ci�ncias positivas,
pois ele "explicava fatos �s na��es do mundo". Sem nada de um


MARY DEL PRIORE

"folguedo curioso", a doutrina reunia homens s�bios que procuravam
entender o impacto que tais manifesta��es teriam nas rela��es humanas.

Assim como os avan�os cient�ficos encontravam resist�ncia, tamb�m
os inimigos do espiritismo tentavam desacredit�-lo. Em v�o. Para
os esp�ritas, a comunica��o entre esp�ritos encarnados e desencarnados
seria um elo na cadeia da Cria��o. Elo que poderia ser encoberto,
mas nunca desapareceria. Tratava-se de um fen�meno sobrenatural,
que existia desde a mais remota Antiguidade, quando a Terra recebeu
esp�ritos deca�dos.

Tal cren�a, ali�s, existia em todos os pontos do globo, muitas
vezes cercada de supersti��es entre os povos mais diversos. Misto de
"ci�ncia" e filosofia, a doutrina esp�rita tinha que ser estudada. Al�m
disso, batia nas teclas de que era preciso romper com "velhos h�bitos"
adquiridos numa sociedade viciosa, banir �dios, desprender-se "de la�os
flu�dicos que atam aos maus companheiros invis�veis" e, finalmente,
se desviar dos "maus encarnados". Enfim, mirar a boa vontade e a
caridade e falar aos cora��es.

Os seis n�meros publicados da revista traziam informa��es importantes
para os que aderiam � doutrina. Perguntas ganhavam respostas.
Artigos estrangeiros eram traduzidos. As quest�es que mais
d�vidas suscitavam recebiam esclarecimentos, como a descri��o minuciosa
das "diferentes naturezas de manifesta��es". Elas podiam ser
ocultas, patentes, f�sicas e materiais, vis�es ou apari��es, inteligentes,
fr�volas, grosseiras, s�rias ou instrutivas.

Outros artigos continham as respostas dos esp�ritos �s quest�es
mais frequentes e um gloss�rio das palavras mais usadas. Outros tantos
conte�dos percorridos pelo leitor eram: os diferentes modos de comunica��o
e identifica��o de esp�ritos; advert�ncias contra o embuste,

o materialismo, a mentira e os exageros; discuss�es sobre as dificuldades
em interpretar os fen�menos esp�ritas como causas naturais;
prescri��es sobre a import�ncia da ora��o.
Quanto �s manifesta��es de esp�ritos, se era absurdo repeli-las
cegamente, tamb�m n�o se devia aceit�-las cegamente. Era preciso

91


DO OUTRO LADO

um exame minucioso e severo de suas mensagens. Esp�ritos superiores
n�o iam a reuni�es f�teis nem respondiam �s perguntas de ociosos.
Portanto, um m�dium tinha que estar � altura de s�-lo. Para isso, era
preciso ensaiar constantemente. Tomar do l�pis, concentrar-se e esperar
que um esp�rito estabelecesse "rela��es flu�dicas". Aconselhava-se
evitar "esp�ritos levianos e obsessores" e ter o m�ximo de decoro com
seres que n�o existem sobre a Terra. Sess�es sem bons m�diuns eram
como um laborat�rio de f�sica sem aparelhos.

O segundo n�mero da Revista Esp�rita foi totalmente dedicado �
loucura e suas manifesta��es: dem�ncia, idiotia, melancolia e mania. A
rela��o entre a doutrina esp�rita e a perturba��o mental era acusa��o
frequente entre os detratores de Kardec. Por isso, as p�ginas estampavam
estat�sticas para provar que a loucura existia desde sempre e fora
estudada desde Hip�crates. N�o houve aumento de loucos em fun��o
do espiritismo.

A revista ainda analisava as causas f�sicas e morais dessas doen�as
e que nada tinham a ver com o espiritismo: orgulho, isolamento
e solid�o, passagem da vida ativa para a inativa, amor, excesso de
trabalho intelectual, desgostos dom�sticos, acontecimentos pol�ticos,
remorsos, entre outros. Os artigos avaliavam as diferen�as entre sexos
e garantiam: existia cura para a loucura!

Outros textos explicavam que os esp�ritos eram classificados em ordens.
Na terceira e �ltima estavam os imperfeitos, com propens�o para
cometer o mal, e com prazer. E, com eles, os impuros, semeadores de disc�rdia
e de mentiras, os fr�volos, que se metiam em tudo e eram ignorantes,
os falsos s�bios e os batedores e perturbadores. Na segunda ordem,
os bons, desejosos do bem: os benevolentes, prestadores de servi�os, os
doutos, preocupados com quest�es cient�ficas, os s�bios, cujas qualidades
morais eram elevad�ssimas, e os superiores, que uniam bondade e sabedoria.
E, na primeira ordem, os puros, possuidores de felicidade inalter�vel
colocada a servi�o da manuten��o da harmonia universal.

Quanto ao fluido c�smico universal, ele conhecia dois estados: o
de eteriza��o e o de materializa��o. As propriedades e a natureza dos


MARY DEL PRIORE

inv�lucros flu�dicos relacionados com o desenvolvimento dos esp�ritos,
o papel dos periesp�ritos, a encarna��o, o que pensam os esp�ritos,
tudo era tratado em detalhes nos artigos da publica��o. Ela continha
ainda textos extra�dos de dois grandes jornais esp�ritas americanos,
Spiritual Scientist, da Nova Inglaterra, e Banner of Ligbt, de Boston.

"Obsedado" foi palavra que surgiu ent�o para designar a a��o
de um mau esp�rito sobre uma pessoa. V�rios artigos traduzidos mostravam
fen�menos ocorridos na Fran�a e na It�lia, sobretudo vis�es
e apari��es. Foi transcrita tamb�m uma prele��o feita pelo esp�rito
de S�o Lu�s. Explica��es sobre o sonambulismo e a vis�o em sonhos
encadeavam-se em um longo cap�tulo sobre os diferentes m�diuns:
sensitivos e impression�veis, falantes, auditivos, videntes, son�mbulos
e curadores, pneumat�grafos, escreventes e psic�grafos. Havia ainda
os involunt�rios e os facultativos, entre outros. Tamb�m intuitivos e
inspirados, mec�nicos e os "sem o saber". E tamb�m sobre a qualidade
das comunica��es, que podiam ser grosseiras, s�rias, s�rio-falsas,
s�rio-verdadeiras e instrutivas.

Os temas eram variados e miravam a compreens�o do leitor
sobre: os poderes da presci�ncia, os irm�os Davenport e os irm�os
Eddy. Ou sobre os m�diuns Fay e Keller, que se apresentaram na corte.
Inelut�veis perguntas do tipo "por que os esp�ritas n�o temem a
morte?" ou "como tratar a perda de pessoas amadas?" eram pacientemente
respondidas.

A import�ncia da "pluralidade dos mundos" na doutrina; a
transcri��o de uma conversa com um esp�rito que descreveu J�piter


o planeta teria �gua e mares e seria iluminado por um sol espiritual e
povoado por corpos di�fanos e transl�cidos al�m de ter flores bel�ssimas
- e respostas fundamentadas aos bispos que atacavam a doutrina
foram temas que mereceram grande aten��o. Enfim, a revista era uma
grande enciclop�dia que reunia pesquisas, ensaios, pr�ticas e conclus�es
sobre o kardecismo.
Not�cias de outros pa�ses onde o espiritismo ganhava for�a n�o
faltavam. E n�o eram somente os franceses que teriam influenciado

93


DO OUTRO LADO

os esp�ritas brasileiros. No mundo anglo-sax�o, muita coisa acontecia
com reflexos ao sul do continente. Tal como no Brasil, onde a doutrina
floresceu entre cat�licos, l� ela crescia entre protestantes. A Guerra
Civil americana funcionou como um rastilho de p�lvora: fam�lias que
viam seus filhos partir e que, atrav�s de fotos da imprensa, constatavam
que eles haviam morrido de forma atroz, queriam se comunicar
com seus entes queridos.

Na pr�pria Casa Branca, a mulher do ent�o presidente Abraham
Lincoln, Mary Abbot, chorava o filho falecido no campo de batalha
em sess�es assistidas pelo marido. Juntou-se a isso a luta de socialistas
e cooperativistas ingleses, como o l�der Robert Owen, recentemente
convertido. Nos prim�rdios do socialismo, confiava-se num
novo princ�pio de organiza��o social que inclu�a a regenera��o de tipo
religioso. Todos acreditavam na evolu��o dos seres humanos e dos
sistemas econ�micos e pol�ticos rumo a um mundo mais justo e melhor.
Foi essa a �poca das grandes rebeli�es oper�rias sobre as quais

o espiritismo tinha um efeito moralizante e era apresentado como um
ant�doto �s paix�es revolucion�rias.
Kardec socialista? N�o exatamente. A leitura de Fourier, o grande
defensor do cooperativismo, n�o faria dele um homem de esquerda.
Mas sim algu�m profundamente interessado em reformas de educa��o
ou que sugeria, em lugar de tribunais de justi�a, inst�ncias que "encorajassem
o bem". Em ambos os lados do Atl�ntico Norte, o espiritismo
se associou � luta pelo div�rcio, pelo fim da escravid�o e da pena
de morte e pelos direitos da mulher - "a intelig�ncia n�o tem sexo",
dizia Kardec.

Na Inglaterra, v�rios cientistas que investigaram o fen�meno
aderiram a ele: o qu�mico William Crookes, o bi�logo evolucionista
Alfred Russel Wallace, o pr�mio Nobel Charles Richet, o pacifista
William Stead, bem como Pierre Curie, que estudara o trabalho da
m�dium Eus�pia Palladino. O psic�logo William James, que andou
pela Amaz�nia, e o f�sico e ficcionista Arthur Conan Doyle, que tamb�m
perdera um filho na guerra, juntaram-se ao movimento. O �ltimo


MARY DEL PRIORE

colocou em cena, em v�rios de seus romances, a telepatia, as comunica��es
medi�nicas ou os fen�menos de materializa��o.

Em 1862, foi fundado em Londres The Ghost Club, o Clube
do Fantasma, com o objetivo de estudar fen�menos paranormais
endossando-os ou recusando-os. Um dos seus mais destacados membros
foi o escritor Charles Dickens. Vinte anos depois, foi constitu�da
uma Sociedade para Pesquisas Ps�quicas, e os estudos sobre casas
mal-assombradas na mesma cidade ganharam for�a.

Arqui-inimiga desses fen�menos era a imprensa portuguesa,
cujos articulistas tinham seus artigos igualmente transcritos nos
jornais brasileiros. O correspondente Pinheiro Chagas, por exemplo,
n�o poupava os esp�ritas. A doutrina de Kardec n�o passava de
"misticismo artificial, produ��o enfezada e insalubre da �poca em
que vivemos. Sente-se em tudo o pastiche! Era feiti�aria de papel�o"
e da� por diante.

O impacto das cr�ticas era menor do que o das ades�es. Nessas
d�cadas, publica��es que tinham inspirado a Revista Esp�rita eram distribu�das
da Austr�lia � It�lia, da Espanha � B�lgica, al�m de nas principais
cidades da Fran�a, dos Estados Unidos e da Inglaterra. Gra�as �
imprensa, as informa��es circulavam. O que se noticiava � que grandes
pesquisadores validavam cientificamente a doutrina. A ades�o das classes
m�dias em toda a parte demonstrava que havia uma necessidade
espiritual n�o completada pelas grandes igrejas ou uma curiosidade que
a ci�ncia n�o preenchia.

Os esp�ritas brasileiros, portanto, n�o estavam s�s. Mas estavam
desunidos. As m�ltiplas influ�ncias e leituras e as diverg�ncias entre a
interpreta��o da doutrina e a pr�tica social acabaram por gerar cis�o
entre grupos. Inicialmente havia tr�s: o chamado "cient�fico", que privilegiava
a parte experimental da doutrina; o segundo, de "espiritismo
puro", composto daqueles que apenas aceitavam a parte filos�fica da
doutrina; e o terceiro, o "m�stico", interessado no aspecto religioso.
Em 1876, os m�sticos se retiraram do Grupo Conf�cio e fundaram
a Sociedade de Estudos Esp�ritas Deus, Cristo e Caridade. Em 1877,


DO OUTRO LADO

nascia a Congrega��o Esp�rita Anjo Ismael. E, em 1878, o Grupo Esp�rita
Caridade.

Na d�cada de 1880, os desafetos do espiritismo n�o se satisfaziam
com den�ncias na imprensa. Passaram ao ato: foi o que houve
numa sess�o realizada � noite e que foi invadida por um grupo armado
de cacetes. Das pancadas, n�o escaparam nem mulheres nem
crian�as. O Cors�rio, pasquim abolicionista e pr�-republicano, reagiu
com toler�ncia: "Deixe-se cada um com sua f� ou com seu modo de
exercer a religi�o que quiser. Condenamos o fato!".

O envolvimento dos diferentes grupos esp�ritas com a homeopatia,
a ma�onaria, o ideal republicano e abolicionista e as For�as Armadas
provocavam tens�es que chacoalharam o nascente movimento
esp�rita. Anticlerical de in�cio e associado ao pensamento progressista,
aos ma�ons, livre-pensadores e liberais com passagens pelo movimento
oper�rio anarquista, o espiritismo surgiu nas cidades brasileiras em
pequenos grupos. Uma tentativa de centralizar e conciliar diferen�as
veio com a funda��o da Federa��o Esp�rita Brasileira, a FEB, em 2 de
janeiro de 1884. Por�m, demasiadamente humanos, os esp�ritas n�o
conseguiram conter as variadas interpreta��es da doutrina, prosseguindo
com lutas internas.

ESP�RITO, SORRIA! VOC� EST� SENDO
FOTOGRAFADO

O grande escritor Jos� de Alencar foi um dos intelectuais que se interessaram
pelo fen�meno do espiritismo. Longe de consider�-lo apenas um
fato curioso, ele acompanhou atentamente as experi�ncias dos c�rculos
iniciados, inclusive as de seu amigo bar�o de Porto-Alegre. E agregou a
um de seus romances um dos aspectos da pr�tica em voga. Em Guerra
dos Mascates, publicado em 1873, alude � sua �poca como "s�culo dos
espiritistas em que se tiram fotografias �s almas do outro mundo".

Sim, o s�culo que descobriu os esp�ritos descobriu tamb�m
a fotografia. Em grandes centros como Londres, Boston e Paris,

96


Propagandas de
v�rios "livros de
sortes" para as noites
de S�o Jo�o e S�o
Pedro - Entre eles se
encontram: Livro do
destino, A pythonissa
de Paris, Cartas da
c�lebre cartomante
Mlle. Lenormand,
Revela��es do cigano
e A mesa que dan�a e
a mesa que responde.
[Correio Mercantil,

23-06-1860, ano
XVII, n2 173, p. 3.]


Fotografia de Madame Zizina, autora de Almanaque para 1915 de Mme.
Zizina, prefaciado por Jo�o do Rio. [A �poca, 07-12-1912, ano I, na 130.]



Primeira p�gina da Revista Esp�rita, segundo peri�dico esp�rita no pa�s e o
primeiro na ent�o capital.


Primeira p�gina do jornal O Rio-Nu, em 1914, com uma imagem mostrando
uma cartomante em a��o. [O Rio-Nu, 22-08-1914, ano XVII, n2 1.609.]


Fotografia de Jos� Sebasti�o Rosa
(vulgo Juca Rosa). [Galeria dos
condenados: Jos� Sebasti�o Rosa
(Manuscrito): Livro de registros
contendo hist�rico de condenados
e suas penas, vol. 1. Biblioteca
Nacional - Se��o de manuscritos.
Dispon�vel em: <http://objdigital.
bn.br/objdigital2/acervo_digital/
div_manuscritos/mss8 7793 0/
mss877930.jpg>.]

Retrato feito por Debret [Debret, Jean
Baptiste. Negro feiticeiro. (SA.: s.n.). 1
des. Aquarelado. Dispon�vel em:
<http://objdigital.bn.br/acervo_
digital/div_iconografia/icon325 9 6 91
icon325969.jpg>.]



Retrato de Allan Kardec (busto).
Imagem cl�ssica do Kardec. [Biblioteca
Nacional - Se��o de Iconografia,
localiza��o: Kardec. Allan, Ret. 1 (1).]

Mesas volantes: a melhor
introdu��o ao espiritismo
entre a burguesia da Europa
ilustrada. [Lange, Daniel. "Tables
tournantes". L'Illustration, 1853.]



MAR Y DEL PRIORE

multiplicavam-se fot�grafos e esp�ritos fotografados. A fotografia incitava
a questionar o invis�vel. E isso numa �poca em que os indiv�duos
se afastavam de explica��es metaf�sicas ou religiosas e queriam
provas concretas. A imagem em preto e branco era uma! E sua explica��o
tinha que ser buscada no mundo f�sico. Nada de esoterismos,
mas um realismo total. O invis�vel tomava forma e podia ser apalpado
e mesmo fotografado. Tal realidade confirmava que o di�logo entre
vivos e mortos era poss�vel. O espa�o formigava de esp�ritos que circulavam
e buscavam contato.

S� fotografia? N�o. O espiritismo acompanhava a revolu��o t�cnica
dos meios de comunica��o - telegrafia, descobertas da �tica e
da ac�stica -, pois era preciso utilizar tais meios para alimentar a
conversa entre vivos e mortos. A f�sica fizera progressos consider�veis
no dom�nio da termodin�mica e dos fen�menos vibrat�rios. Ela
descobrira os raios cat�dicos. Fotografavam-se raios infravermelhos e
ultravioletas. Em 1864, foi formulada a teoria eletromagn�tica da luz.
Em 1876, Graham Bell inventou o telefone. Em 1877, Edison criou o
fon�grafo e a l�mpada incandescente. As grandes transforma��es da
�poca se conectavam a um conjunto de t�cnicas que tinham por objetivo
captar e transmitir o universo invis�vel de ondas e raios, capazes
de atravessar paredes e dist�ncias cada vez maiores. E por que n�o
transportar os esp�ritos?

Um dos pioneiros da fotografia no Brasil foi Antoine Hercule
Florence, pintor e naturalista franc�s radicado no Brasil. Ele chegou
aqui em 1824 e se estabeleceu em Campinas, onde realizou uma s�rie
de inven��es e experimentos. Em 1833, usava uma c�mara escura
com uma chapa de vidro e papel sensibilizado para a impress�o por
contato. O imperador dom Pedro II foi outro fot�grafo apaixonado,
tendo adquirido em 1840 um daguerre�tipo em Paris. Em seguida,
imigrantes vindos para c� trouxeram novas tecnologias, e retratistas
se espalharam pelas principais capitais.

Desde 1838, as condi��es t�cnicas da apari��o da imagem sobre
daguerre�tipo, sobre papel, foram espantosas. A novidade e a


DO OUTRO LADO

originalidade do fen�meno impressionavam a todos. Desaparecia a interven��o
do gesto e da m�o, que estavam na base da pintura. Gra�as
� fotografia, o olhar era direcionado para coisas nunca antes vistas.
E a c�mara escura se tornava o espa�o em que a imagem emergia - e,
com ela, ectoplasmas e fantasmas...

A chamada "fotografia espectral" foi inventada nos anos 1860,
nos Estados Unidos. Um certo William H. Mumler come�ou a comercializ�-
las, sendo rapidamente imitado na Europa. Primeiro, na
Inglaterra e, em seguida, na Fran�a. Se os m�diuns viam os esp�ritos,
por que n�o o "olho" do aparelho fotogr�fico? L�gico que pipocaram
imagens trucadas, mas as fotos flous ou em movimento, assim como
as que tinham pouca ou muita exposi��o de luz, convidavam a fazer
surgir estranhas realidades sobre o papel.

Quando, em 1873, depois da morte de Kardec, o diretor da Revue
Spirite, Pierre Leymarie, perguntou ao fot�grafo Edouard Buguet
se ele conseguia fotografar esp�ritos, ele respondeu que sim... E o fazia
em seu ateli� no bairro de Montmartre. Os primeiros clientes se
davam por satisfeitos quando reconheciam um defunto querido em
segundo plano. As imagens foram reproduzidas durante um ano na
Revue Spirite.

Mesmo madame Allan Kardec se deixou fotografar com o marido
falecido havia cinco anos. Na primeira prova, seu esp�rito segurava
uma coroa sobre a cabe�a da esposa. Na segunda, um quadro
negro exibia em letras diminutas a mensagem: "Obrigado, querida
esposa; obrigado, Leymarie; coragem, Buguet". Madame Kardec
queixou-se que nessa imagem a figura do marido n�o sa�ra t�o clara
quanto desejaria.

Depois, alguns clientes come�aram a se queixar. As fotos custavam
caro e, ent�o... uma fraude foi descoberta. Um comerciante que
solicitou a imagem do filho, morto aos dez anos, recebeu uma foto
de um senhor com cinquenta! Preso em flagrante delito em 1875, o
fot�grafo confessou: antes da sess�o de fotos, ele preparava os clich�s
com a ajuda de cabe�as cortadas de outras imagens e coladas sobre


MARY DEL PRIORE

papel�o. Colocadas sobre um manequim e cobertas de gazes di�fanas,
eram destinadas a se posicionar ao lado da imagem do cliente. Buguet
e Leymarie foram julgados e condenados a um ano de pris�o. A imprensa
batizou o caso como O processo dos esp�ritas.

Na mesma d�cada da fotografia ps�quica, outra pr�tica surgiu
entre esp�ritas: a do gabinete negro. Fechava-se uma grande caixa com
cortinas pretas, criando um espa�o isolado de olhares externos, onde
se colocava o m�dium. Acreditava-se que, da mesma forma que a c�mara
escura e a luz vermelha eram necess�rias para a revela��o do negativo,
esse lugar permitia a apari��o de esp�ritos. Pela boca, o nariz, o
umbigo e, no caso de mulheres, o sexo, m�diuns produziam ectoplasmas
ou peda�os de corpos que, fotografados, se tornavam a prova de
sua exist�ncia. A Revue Spirite assim descreveu uma dessas imagens:
"Sobre a cabe�a do m�dium aparece uma m�o, pequena como a de
uma menina de quinze anos, palma virada para fora, dedos juntos e o
polegar separado. A cor dessa m�o � l�vida; a forma n�o � r�gida nem
fluida. Dir-se-ia a m�o de uma grande boneca".

M�o, diga-se, percebida como aquela de um esp�rito momentaneamente
encarnado gra�as ao m�dium. Ectoplasmas eram fotografados
�s centenas: provas da exist�ncia de seres vivos no al�m.

Antes presentes s� nos sonhos ou pesadelos, tais seres vindos de
longe eram ainda capazes de deixar pegadas em argila fresca disposta
par a esse fim nas sess�es esp�ritas. Ilus�o? Um dos mais importantes
qu�micos e f�sicos do s�culo diria que n�o. O j� citado Sir William
Crookes, especialista em espectroscopia, estudioso de eletrodos e raios
cat�dicos, descobridor do t�lio e do h�lio, se deixou fotografar com
uma jovem fantasma conhecida como Katie King. Tudo em seu laborat�rio
de qu�mica!

Isso em Londres, pois em Lisboa a pol�cia prendia fot�grafos que
pretendessem "tirar retratos espiritistas de pessoas que haviam partido
desta para melhor vida", dizia um jornal.

No in�cio de 1890, Rochas d'Aiglun, um coronel franc�s sa�do
da renomada Escola Polit�cnica, clicou emana��es flu�dicas, esp�cie


DO OUTRO LADO

de efl�vios energ�ticos produzidos pelo corpo humano, que poderiam,
segundo ele, explicar os fen�menos de levita��o ou ocultismo. In�meras
experi�ncias desse tipo foram realizadas por s�bios convencidos
de que a fotografia poderia revelar aquilo que o olho n�o enxergava.
Em 1908, um pr�mio foi ofertado pelo jornal Lumi�re "em favor do
inventor de um aparelho fotogr�fico t�o potente que permitisse �s intelig�ncias
ou �s coisas invis�veis do espa�o se fixar sobre uma placa".

Nada disso barrou a persegui��o fotogr�fica aos ectoplasmas. A
inven��o de c�maras menores justificou a multiplica��o de fotos, reproduzidas
inclusive em jornais brasileiros. Mais do que uma simples
experi�ncia ou espet�culo, o que se desejava era um encontro com o
outro lado. Encontro que alimentava a convic��o de que o contato
com esp�ritos ou a conversa com mortos era poss�vel.


3.
OUTRAS MANIFESTA��ES
DO AL�M: CURANDEIROS,
CARTOMANTES, EXORCISTAS...

CURANDEIROS, ESP�RITAS E M�DICOS:
FRONTEIRAS INVIS�VEIS

No final dos anos 1880, com os grupos kardecistas mais organizados,
a preocupa��o era n�o confundir esp�ritas e curandeiros. Havia discrimina��o.
Afinal, os esp�ritos de �ndios e negros eram considerados
pelos kardecistas "involu�dos" e "carentes". Kardec, na verdade, nada
escreveu a esse respeito. Por�m, ao se referir a "povos b�rbaros e antrop�fagos",
diferenciando-os dos civilizados, e ao considerar a escravid�o
um fator c�rmico, ele os convidava a evoluir espiritualmente.

A filosofia esp�rita via na escravid�o um agente purificador: um
carma. Mas, por acreditar na evolu��o das almas, quatro anos antes
da aboli��o, a Federa��o Esp�rita Brasileira patrocinou uma subscri��o
popular para libertar cativos. Um grande especialista informa que,
nessa fase de liberalismo e de congra�amento entre os diferentes grupos
sociais, m�diuns come�aram a emprestar a voz de esp�ritos caboclos
e pretos-velhos, s�mbolo do sofrimento escravo.

De fato, o espiritismo sofreu interfer�ncias do catolicismo popular
e das religi�es afro-brasileiras, resultando no que muitos especialistas


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chamam de "espiritismo � brasileira". Exemplos n�o faltam para corroborar
essa tese.

Um caso acompanhado, dia a dia, pelos jornais foi o de um famoso
"Curandeiro de Nictheroy". A multid�o se reunia na porta da casa
simples, na qual se misturavam gente do povo e "personagens que t�m
prestado bons servi�os ao pa�s": inteligentes, educados e preparados,
descrevia o articulista do Di�rio de Not�cias, em mar�o de 1888. A
raz�o era o "sistema de telefonia humana" capaz de transmitir "adivinha��es
milagrosas". Antes, a adivinha��o era dom�stica: cliente e
curandeiro se isolavam atr�s de um simples tabique. Mas, na casa de
Marius, nome do c�lebre "m�dico", havia at� recepcionista. Ele passara
de oper�rio relojoeiro a doutor, o que muito incomodava. Afinal,
e os anos de estudos e imposi��es legais? Seriam eles simplesmente
substitu�dos por "vontades sobrenaturais"?

"Ele nada sabe, nada estudou. Mas a for�a superior que o inspira,
os esp�ritos que guiam as suas prescri��es n�o deixam errar o instrumento
que escolheram", segundo o Di�rio.

Mas Marius era esp�rita? Definitivamente n�o! Ele n�o usava os
meios com que se ouviam as "manifesta��es dos finados". Em seu
consult�rio, n�o ecoavam as tradicionais "pancadas secas", ele n�o
"escrevia em l�ngua latina" ao receitar, nem assinava em nome de m�dicos
famosos. Os verdadeiros esp�ritas n�o podiam acolher em seu
seio um homem considerado perigoso, pois usava artimanhas e ardis
grosseiros para ficar conhecendo o motivo da visita de seus clientes.
Contava-se a boca pequena que, apoiado no relato de vinte servidores,
ou melhor, espi�es que seguiam as pessoas nos bondes e observavam-
nas nos restaurantes, era f�cil "adivinhar" suas vidas. As informa��es
eram levadas ao curandeiro por gente montada em "r�pidos corc�is".

Contudo, na descri��o de seus seguidores, Marius, ou Eduardo
Davi Rey, era mesmo milagreiro: tinha habilidades extraordin�rias.
Fazia maravilhas, revelava o futuro, calculava datas de nascimento,
desfazia feiti�os, examinava as linhas da m�o, fazia perguntas antecipando
no rosto dos clientes a resposta. Atendia autoridades, pol�ticos,


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ricos e pobres no bairro do Fonseca, em Niter�i, onde tinha um s�tio,
no qual cultivava plantas medicinais e onde nascia, de fonte natural, a
milagrosa "Agua Azul".

Os servi�os de barcas ligando a capital a Niter�i tinham sido
recentemente inaugurados, facilitando o ir e vir de clientes. Cat�lico
praticante, Marius era conhecido como um homem generoso, a quem
muitos deviam favores. Mas, na opini�o do articulista do jornal, as
"pe�as da m�quina de adivinha��o" n�o estavam t�o azeitadas quanto
os antigos rel�gios que Marius consertava. Corriam boatos sobre
fraudes. O conserto de rel�gios n�o era t�o rent�vel, por isso o feiticeiro
de Niter�i insistia em sua atividade.

Por meio de cartas, os esp�ritas reagiram atrav�s de seus jornais.
Aten��o: n�o seria sob a capa da respeit�vel doutrina que Marius
poderia pedir prote��o para sua "vergonhosa profiss�o". Uma coisa
era uma coisa. Outra coisa era outra coisa. E o papel da imprensa?
Denunciar embustes. Por isso mesmo se multiplicava a publica��o de
"causos" que diferenciassem curandeiros e m�diuns.

Ah! O Di�rio do Rio de Janeiro gostava de reproduzir esses "causos".
Os vindos dos Estados Unidos eram in�meros. Pois l� os "reclamos",
ou propaganda, "como � sabido de grande pot�ncia", enchiam
os jornais sobre eventos sobrenaturais. Por tr�s ou cinco d�lares, num
ambiente de calma, semiescurid�o e aparato severo, era poss�vel "saber
alguma coisa de verdade". Mas isso porque um "olho cl�nico" ou
"um olhar penetrante esquadrinhava o cliente". O resultado? Um "artif�cio
inventado pela m�-f�" para esvaziar a bolsa do incauto. O tom
do jornal era sempre de cr�tica contra poss�veis fraudes.

Os curandeiros seguiram anunciando livremente nas p�ginas de
jornal at� a d�cada de 1870, mas, nos fins de 1880, a guerra foi declarada.
As autoridades passaram a persegui-los Por tr�s das trincheiras
e com as armas mais afiadas se concentravam os m�dicos. Aumentava
a press�o dos antes raros doutores contra benzedeiros concorrentes.
Um membro da Academia Imperial de Medicina escreveu ao imperador
denunciando: charlat�es estavam em toda a parte, apesar de


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uma lei que os proibia. E tinham os gabinetes cheios! Recomendavam
subst�ncias perigosas aos pacientes, agiam como m�dicos sem nenhuma
compet�ncia e iludiam as pessoas com panaceias milagrosas para
curar todos os problemas do mundo! Tais den�ncias n�o escondiam
uma preocupa��o: charlat�es, fossem curandeiros ou m�diuns, eram
um obst�culo que se colocava entre a medicina oficial e a popula��o.

O prest�gio da Junta Central de Higiene P�blica, �rg�o criado
pelo governo para ser o consultor das quest�es de sa�de p�blica, crescia
ao mesmo tempo em que se intensificava a pris�o dos que praticavam
o "exerc�cio ilegal da medicina". Multiplicavam-se as acusa��es
de "embustes".

Foi o caso de certo Laurentino Inoc�ncio dos Santos, que tinha
"casa de praticar fortuna" num lugar chamado "Pendura Saia", no
Cosme Velho, e que curava males diversos. A imprensa denunciava
pessoas como ele, "curandeiros esp�ritas e n�o esp�ritas, caboclos e
n�o caboclos" que pululavam na capital vivendo � custa de milhares
de tolos que os procuravam para extrair "os bichos do corpo", enxotar
o dem�nio, endireitar a espinhela ca�da e "para que lhes curem
mol�stias muitas vezes de car�ter grave".

Havia muita gente interessada em curar as mazelas de uma popula��o
destitu�da de cuidados m�dicos. Um certo J. B. Poli sanava enfermidades
incur�veis e aliviava a humanidade de todos os sofrimentos

- e de todo o dinheiro que tivesse. O famoso Caboclo da Praia Grande
fazia curas mir�ficas. Mulheres s�bias recuperavam espinhela ca�da
gra�as a uma mistura de p� de caf� e clara de ovo. E havia quem, atrav�s
de bruxarias, conseguisse matar mo�os bem-intencionados. Foi o
caso de certa Olympia, moradora da rua de S�o Leopoldo, acusada de
matar o amante com po��es m�gicas.
A verdade era que os m�dicos eram poucos, raros e caros. Gilberto
Freyre bem diz que a monarquia nunca aceitou o desafio de cuidar
da sa�de da popula��o nos tr�picos. Enfrentando as in�meras epidemias
que varreram a corte, ou quando atacada de mazelas prosaicas,
a popula��o corria para homens como Marius ou Laurentino. Eles


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retiravam a mol�stia do corpo por meio de sopro, suc��o, ora��es e
cantos. Davam continuidade � miss�o sagrada de combater, enfrentar
e vencer a morte. Aqueles que exerciam o dom de curar seus semelhantes
eram possuidores de conviv�ncia secreta com seres do outro
mundo. A terap�utica se confundia com liturgia. Assistia-se ao doente
com ora��es e rem�dios, sugerindo tr�guas, envio de ofertas, compensa��es.
O curandeiro ou o m�dium era o ve�culo e curador dos ritos de
uma medicina imprecisa. Ele seria capaz de atenuar as manifesta��es
divinas presentes na doen�a, considerada castigo, ou de anular for�as
adversas na enfermidade resultante de inveja.

Por�m, na d�cada de 1880, as autoridades tentavam associar a
cidade a no��es como "progresso" e "civiliza��o". E a ci�ncia, assim
como a higiene, tinha que ser aliada nessa caminhada. Era preciso enterrar
o famoso clister com caldo de galinha, as sangrias, os purgantes
contra vermes e lombrigas, o medo do "sereno da noite", a infus�o de
jaborandi, o xarope de flores de laranjeira, o cataplasma de alho e as
defuma��es de alecrim.

Pouco a pouco, o farmac�utico que passou a preparar com mist�rio
os rem�dios tomou o lugar de seus concorrentes curandeiros,
afastando-os das pessoas comuns, t�o dependentes de seus m�todos.
Era o in�cio do fim de uma medicina atenta �s correspond�ncias entre

o corpo e a natureza, de um saber milenar sobre o uso das plantas. E
da rela��o baseada na palavra entre doente e m�dico-feiticeiro. Ouvir
o paciente falar de seus males j� era uma forma de cura: sua solid�o
e ang�stia diminu�am diante de homens e mulheres que conseguiam
preservar a esperan�a de quem os consultava.
O FUTURO E O PASSADO NAS CARTAS
Em novembro de 1860, madame Potier, ou Magdalena Victoria
Puisseaux Potier, a "mais antiga cartomante do Rio de Janeiro", acabara
de regressar de Paris, anunciava o Di�rio do Rio de Janeiro. Sim,
pois sua instala��o na corte se dera em 1859. E avisava: colocava


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cartas como "fazia antigamente". Desde ent�o, sucessivamente, tivera
salas na rua do Cotovelo, na rua da Miseric�rdia e na rua S�o
Jos�. E a clientela n�o parava de crescer. At� 1874, sua propaganda
era publicada em meio a an�ncios de rem�dios para "cura radical
de calos", venda de ceroulas, pianos ou charutos. Para impressionar,
por vezes se apresentava como "chiromante" ou vidente capaz de ler
nas linhas da m�o.

Outras cartomantes tamb�m colocavam avisos nas p�ginas dos
jornais, ao lado de informa��es sobre as atividades da fam�lia imperial,
concertos populares, reuni�es de sociedades beneficentes e an�ncios
de crimes. "Madame Mery, perita nesta arte" oferecia servi�os na
rua Sete de Setembro, 45, primeiro andar. "Ros�lia" o fazia na rua do
Hosp�cio. Cartomantes estavam em toda a parte e eram abismos de
sil�ncio e discri��o.

Teriam as cartomantes sido introduzidas pelos ciganos cujos servi�os
eram oferecidos no Campo de Aclama��o? Em grupos de tr�s ou
quatro, as ciganas coloridas percorriam as ruas lendo o passado e o
futuro nas cartas ou nas linhas da m�o: "D� para mim um moeda de
dois tost�es. P�e sorte para voc�. Dinheiro bendito. Santo do c�u. Diz
sorte de vida. Diz presente, passado, diz futuro. Boa sorte para voc�.
Sua fam�lia. Bota primeiro sua dinheiro na minha m�o".

Dos sobrados, as meninas casadoiras desciam fazendo barulho
com seus tamancos para ouvir que seus amados gostavam delas, que
elas gostavam deles, mas que havia outros que gostavam delas... E
outras que gostavam deles, e ainda que, para casar, "p�e outros dois
tost�es na minha m�o"! As clientes vinham por dor ou por amor.

Tra�os da cattomancia se encontram desde o s�culo XV, na Espanha,
e XVI, na It�lia. Num famoso manual de confessores - livro que
ensinava os padres a fazer perguntas aos pecadores -, de autoria de
Martin de Azpicuelta Navarro, muito usado no Brasil desde 1540, h�
condena��es � adivinha��o com o jogo de cartas.

Ou a moda teria vindo da Fran�a? Ao final do s�culo XVIII,
cartomantes famosos publicavam seus livros na Fran�a. Magos


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misturavam a ci�ncia das cartas com aquela dos n�meros, da alta
astrologia, dos g�nios - esp�cie de dem�nios familiares protetores -,
dos sonhos e dos talism�s.

Em 1790, enquanto a guilhotina da Revolu��o Francesa cortava
cabe�as e os fil�sofos do iluminismo anunciavam o tempo da
raz�o, um c�lebre cartomante abria uma escola de magia em Paris.
O educand�rio de adivinha��es oferecia cursos gratuitos das ll h �s
13h30 nos dias 1, 10 e 20 de cada m�s. Nos muros de Paris, an�ncios
com o programa: "Aprofundar a arte, a ci�ncia, a sabedoria
para compreender os or�culos do livro de Thot". O sucesso do curso
foi total, embora seu fundador se queixasse de alunos que, constrangidos
de aparecer publicamente, preferissem aulas particulares.
Essa atitude lhe parecia tanto mais intoler�vel quanto a cartomancia
era o m�ximo da educa��o. Um instrumento a conduzir os indiv�duos
em busca de melhor vida. A mulher, mais vulner�vel do que

o homem �s tribula��es do destino, merecia ter melhor guia. Da�
ele ter concebido o Pequeno or�culo das damas, capaz de responder
"aos pequenos aborrecimentos e grandes esperan�as"! Traduzido,
seria vendido nas livrarias do Rio de Janeiro.
O livro de Thot fora elaborado por dezessete magos eg�pcios com
caracteres, ou melhor, hier�glifos que encerravam religi�o, adivinha��o
e medicina. Tomou o nome de Tharoth ou jogo real da vida humana,
abreviado para Taro.

Na Fran�a, as futuras v�timas da Revolu��o foram as primeiras
a procurar as artes divinat�rias. Ent�o, dava as cartas certa madame
Lenormand: famos�ssima e conhecida como "a sibila do faubourg
Saint-Germain". At� Maria Antonieta recebeu sua visita na pris�o.
H�bert, chefe dos jacobinos, tamb�m a consultou at� sua morte ser
decretada, em 1794, por Robespierre. Viagens de bal�o, mudan�as na
pol�tica e o destino de Marat, Saint-Just e Robespierre tamb�m foram
anunciados pela cartomante.

Ela noticiou a Josefina, ent�o desconhecida madame Bonaparte,
que esta se tornaria imperatriz e, ap�s a Revolu��o, acompanhou a


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ascens�o de Napole�o, predizendo suas vit�rias e seu destino brilhante.
O gabinete de madame Lenormand � rua de Tournon, n� 5, em Paris,
recheado de est�tuas antigas e candelabros, era frequentado por todos.

Em 1800, Napole�o quis conhecer o estado de "supersti��o" na
Fran�a, e em cada localidade representantes foram encarregados de
anotar comportamentos "irracionais". A enquete revelou que, em todas
as classes sociais, nas cidades ou no campo, crendices estavam
bem vivas: magia, feiti�aria, lobisomens, curandeiros, possess�o, evoca��o
de esp�ritos... A Fran�a parecia tomada pelo sobrenatural. A
cren�a em press�gios e na adivinha��o parecia mais forte do que o
sentimento religioso.

Nas cidades, por�m, proliferavam as cartomantes. Entre elas,
nada de parentesco com o Diabo ou a feiti�aria. Diziam-se apenas
especialistas em adivinha��o e capazes de ler o futuro num baralho
ou na borra de caf�. N�o adiantava a pol�cia persegui-las. Fechava-se
um gabinete aqui, abria-se outro ali. Apesar das multas aplicadas, das
acusa��es de "enganar o p�blico" ou de "semear ciz�nia nas fam�lias",
dos artigos em jornais associando-as a adeptos de Sat� ou a embusteiros,
as cartomantes estavam em toda a parte. Mas discri��o e segredo
envolviam os neg�cios de adivinha��o. Divertimento ou verdadeira
preocupa��o em conhecer o futuro, operada por amadores ou "profissionais",
a adivinha��o n�o deixou de exercer enorme fasc�nio, e a
sociedade participou desse entusiasmo.

Tudo indica que a cartomancia tenha chegado com os franceses �
corte brasileira, ao mesmo tempo que as livrarias e editores franceses,
restaurantes e cocottes. Em junho de 1874, entre v�rias informa��es,
como o concerto da artista l�rica Adelaide Ristori ou o recolhimento
de frangos e galinhas por infra��o de posturas municipais - era proibido
deixar animais dom�sticos pela rua -, um an�ncio discreto de uma
j� conhecida "madame Potier, cartomante que tratava de espiritismo",
� rua S�o Jos�.

Na rua do Carmo, era a vez de uma concorrente que atendia das
9h �s 18h. O importante era possuir os poderes de vis�o, premoni��o


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e proje��o. A insist�ncia em associar cartomancia e espiritismo indicava
a origem francesa da pr�tica e a capacidade de desvendar o futuro.
As cartas seriam o meio e o elemento de liga��o com o al�m. "Correr
cartomantes", ou seja, frequent�-las, sa�a barato (em torno de dois
contos de r�is) e servia de distra��o a mulheres como Rita, esposa
ad�ltera do conto "A cartomante", de Machado de Assis:

Os homens s�o assim; n�o acreditam em nada. Pois saiba que
fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu
lhe dissesse o que era. Apenas come�ou a botar as cartas, disse-me:
"A senhora gosta de uma pessoa...". Confessei que sim, e ent�o ela
continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me
que eu tinha medo de que voc� me esquecesse, mas que n�o era
verdade...

Como concluiu o autor, havia mais coisas entre o c�u e a terra
do que podia sonhar nossa v� filosofia. E as cartomantes saltavam
das ruas para as p�ginas dos livros. Desde 1845, as livrarias vendiam
livros e brochuras que ensinavam a "p�r cartas". Era o caso de certo
O fado: nov�ssimo livro ou jogo de sortes engra�adas, em nova edi��o
aumentada, por apenas 1 conto e 280 r�is. A partir de 1860, a Livraria
Laemmert oferecia A pitonisa de Paris ou Cartas da c�lebre cartomante
Madame Lenormand. Vinha com 36 cartas coloridas e era excelente
presente para senhoras. No Di�rio de Not�cias, anunciavam-se Revela��es
do cigano, com "vinhetas burlescas e recomendado para curiosos
ao pre�o de 1 conto de r�is". O Programa-Avisador, folheto com
toda a sorte de informa��es, distribu�do gratuitamente nos teatros e
salas de espet�culo, tamb�m anunciava quem "jogasse cartas" - inclusive
"Madame Anna, disc�pula da c�lebre Madame Lenormand". A
cartomancia cruzava os mares!

Em 1888, dois meses antes da assinatura da Aboli��o, o Di�rio de
Not�cias denunciava: diariamente se viam jornais da corte com pomposos
an�ncios de "peritas cartomantes". Elas tudo adivinhavam:


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passado, presente e futuro. Respondiam pelos nomes de a Corcundinha
da rua Marechal C�mara, a Ceguinha da rua da Miseric�rdia
ou a Rosa. A cr�tica maior, por�m, ia aos frequentadores: "gente de
esp�rito fraco", "c�rebros m�rbidos" que acreditavam em qualquer
tolice. Profecias e adivinha��es sempre "malignas e mentirosas" geravam
problemas dentro das fam�lias. E o editorialista cravava: "As
cartomantes s�o mais perigosas do que os curandeiros". Os primeiros
estragavam a sa�de, e elas corrompiam o esp�rito, deixando seus
clientes medrosos e inseguros. O ant�doto era o "aperfei�oamento
intelectual" da popula��o. S� ignorantes - e no Brasil havia muitos,
segundo o editorial - ca�am em tais crendices.

Os jornais O Ap�stolo e Carbon�rio tamb�m empreenderam
verdadeira campanha contra a cartomancia na d�cada de 1880. O
segundo pedia aos leitores que evitassem "tais consultas", "pois,
al�m de exploradoras", as profissionais eram "perigosas"! E o primeiro
criticava a pol�cia, mais indulgente com cartomantes do que
com os cultos africanos. "Ser� porque eram bonitas?", perguntava-
se o articulista. A compara��o com o espiritismo tamb�m chegou.
Nas p�ginas do jornal A Estrella, estranhava-se que a pol�cia perseguisse
mais as cartomantes do que o espiritismo. Ora, as primeiras
provocavam muito menos males que o �ltimo. Este, sim, multiplicava
o n�mero de loucos.

Apesar da persegui��o, no centro, nos arrabaldes ou nos sub�rbios,
as sacerdotisas do futuro transbordavam, capazes, dizia-se, de
modificar as fatalidades do destino. Contrariavam a morte, as desgra�as
e os males. No largo da Batalha, a mulata Estef�nia, com seu
rosto largo e cabeleira farta, lia o futuro de todas as formas. Quando
passava um cup� apressado ou um landau de cortinas arriadas, j� se
sabia o destino: "Casa da feiticeira"!

Na rua Santo Amaro, era a "princesa Matilde" que recebia. Usando
perfumes ex�ticos, um anel onde se desenhavam as fases da lua e
os signos do Zod�aco, dizendo-se amiga e correspondente da famosa
francesa madame Thebes, sua agenda fervilhava �s sextas-feiras. O


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ambiente era sofisticado. Suas cartas eram cuidadosamente guardadas
num sarc�fago de prata de onde extra�a, com m�os delicadas de feiticeira,
a miragem do futuro. L� se reuniam os adeptos do ocultismo indiano,
do cabalismo hebraico, do esoterismo eg�pcio, de Swedenborg,
de Kardec, de Comte.

Uma esp�cie de homenagem ir�nica foi feita pela revista Fon-Fon
a uma famosa cartomante, madame Zizina, quando morreu. Corcunda,
ela n�o atra�a pelo f�sico nem pelo brilho intelectual e mundano da
princesa Matilde, mas era sacerdotisa de s�lida reputa��o e popularidade.
Dizia o articulista:

Eu fui dos que se entristeceram com a morte de Mme. Zizina.
Sempre acreditei em tudo o que ela predizia, principalmente
porque nada se realizava. Acreditar com certeza � a mais dolorosa
das manias. Mme. Zizina foi uma vendedora de ilus�es. Homens
e mulheres que iam ao consult�rio dela sa�am de l� trazendo a
verdade:

- Seja encantadora e cala-te...
Mas Mme. Zizina n�o p�de seguir esse aviso de prud�ncia.
Ainda pequena caiu da escada e ficou na impossibilidade de ser
encantadora. Cresceu com a espinha deformada e o rosto sulcado
de l�grimas - feia!

[...] Mme. Zizina levou para o sil�ncio a voz do engano. E
levou a esperan�a... Que h� de ser de n�s, agora?
As cartomantes cujos an�ncios enchem os jornais n�o inspiram
confian�a; al�m de estrangeiras, s�o bonitas.

Pano r�pido!

Para se consultar com madame Zizina ou outras, as damas elegantes
vinham de Botafogo e �guas-F�rreas, �s escondidas. Rosto coberto
por v�us ou � sombra de leques emplumados. Eram esposas
enganadas, mulheres que sofriam com o desprezo ou a indiferen�a dos
maridos. Certa Estef�nia conhecia mandingas para desfazer paix�es

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il�citas e reacender fogueiras nos corpos frios. As mocinhas queriam
saber se iriam "mesmo" se casar. As idosas buscavam rem�dios que a
medicina n�o oferecia para males do f�gado ou asma. Os homens, banqueiros,
pol�ticos, administradores e at� membros do C�rculo Cat�lico,
tamb�m se esgueiravam no corredor escuro da casa da cartomante.
A hora mais comum para consultas era � tarde. O lusco-fusco e a falta
de ilumina��o ajudavam o anonimato.

Poderosas as cartomantes? E muito. No morro de Santo Ant�nio,
atribu�a-se a introdu��o da peste bub�nica, o fim da cria��o de
galinhas de Maria Caolho e a morte por estupor de Chico de Marocas
a certa negra Marcolina. Amiga do Tinhoso, a quem recebia �s
sextas-feiras, a "bruxa" de muita idade gostava de pitar cachimbo
de barro e saudar as pessoas com um "Louvado seja Nosso Senhor
Jesus Cristo". Ali, num casebre que dava para a rua dos Arcos, atr�s
de algumas moitas onde brincavam moleques seminus, ela deitava
cartas, conhecia ora��es para aprumar a vida, as normas de S�o Cipriano,
fazia feiti�os de sapo para "amarrar amantes" e dava consultas
"para desmanchar coisa feita". Seu cliente mais ass�duo: o poeta
ga�cho M�cio Teixeira.

Mas quem botava as cartas? Resposta: os esp�ritos. As cartomantes
eram apenas um instrumento, simples int�rpretes da sabedoria dos
mortos. A curiosidade e os momentos de crise ou de indecis�o levavam
cat�licos e n�o cat�licos ao seu baralho. A credulidade n�o tinha classe,
religi�o, nem cor.

CRER NO INACREDIT�VEL

Divididos entre condenar e noticiar, os jornais da corte informavam
regularmente "fatos estranhos": o aparecimento de um fantasma a um
comerciante em Paris; a exibi��o dos irm�os Davenport, americanos
"iniciados em todos os tipos de bruxarias" ou espet�culos extraordin�rios
cujas "pasmosas cenas" n�o tinham explica��o e que seriam
"fa�anhas do mais extraordin�rio espiritismo"; as apresenta��es, no


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Teatro de S�o Pedro, da Grande Companhia Americana de Mist�rios
e Novidades, com seus atores flutuando sobre a plateia, andando de
ponta-cabe�a no teto ou caminhando horizontalmente sobre uma parede
vertical; o espet�culo dos m�diuns Fay e Keller, em que instrumentos
voavam sobre a cabe�a dos espectadores e na sala escura se
ouviam os sons vindos de diversas partes. Esse era mesmo um mundo
misterioso, maravilhoso, surpreendente!

O j� conhecido jornalista baiano Silva Neto foi dos que assistiu
a Fay e Keller, mistura de prestidigitadores com m�diuns, no Teatro
Dom Pedro II, e era tamb�m dos que se maravilharam com o espet�culo.
Relatou ele: "O cen�rio do Teatro achava-se iluminado, e nele
cadeiras dispostas em semic�rculo para assento dos espectadores. Sentamo-
nos � linha da frente [...] para dominar a mesa onde estavam
dispostos os instrumentos", que tocavam sozinhos.

Os instrumentos eram tr�s violinos, dois pandeiros e duas campainhas.
Fay foi amarrado a uma cadeira a pouca dist�ncia da mesa.
Silva Neto ajeitou-se de forma a n�o deixar ningu�m passar entre a
assist�ncia e a mesa. Apesar desse cuidado, "os instrumentos puseram-
se em movimento e o som deles, dentro em pouco, partia de v�rios
pontos no espa�o".

Ap�s alguns minutos nesta dan�a bizarra, Keller, que se achava
sentado e seguro por um espectador, riscou um f�sforo. Imediatamente,
os instrumentos ca�ram, em v�rios pontos da sala, pr�ximos aos
espectadores. As velas do palco foram acesas e constatou-se que Fay
continuava amarrado.

A seguir, Keller derramou um l�quido fosforescente nos tr�s violinos.
Apagaram-se as luzes. E logo "os viol�es foram vistos e ouvidos
no espa�o a uma dist�ncia de cinco a seis metros, bem como passaram
nas cabe�as de alguns espectadores. Mal se iluminava a sala, os instrumentos
ca�am ao ch�o".

E Silva Neto a ponderar: "n�o t�nhamos certeza de ser o fen�meno
que se passava diante de nossos olhos median�mico ou se um fen�meno
eletromec�nico: conseguintemente, se o senhor Fay era um m�dium


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noturno de efeitos f�sicos ou se em parceria com o senhor Keller desempenhavam
com habilidade folguedos de prestidigita��o".

O espet�culo prosseguiu. Amarrado de novo, os n�s selados com

o sinete de um espectador, em menos de dois segundos de obscuridade
Fay despiu sua casaca.
"Depois foi pedido o palet� de um dos espectadores e colocado
sob a mesa, e nas mesmas condi��es vimo-lo passar para o corpo do
senhor Fay."

Convic��o do que viu? Ingenuidade? A conclus�o de Silva Neto
n�o deixava d�vidas: com algum tempo, Fay poderia produzir os
"mesmos fen�menos sem necessidade de instantes de obscuridade,
caso sua faculdade median�mica se amplie".

N�o faltavam caricaturas sobre fen�menos inexplic�veis traduzidos
pela imprensa da corte. Havia o caso, por exemplo, do m�dium
que recebia o esp�rito do c�lebre bandido Cartouche enquanto seu
ajudante, no escuro da sala, roubava os presentes. Ou a exist�ncia
de viagens de certo sr. Faure Nicolay, "meio humano, meio diab�lico",
assunto nas ruas, nos caf�s, nos passeios, nas missas e "n�o sei
em quantos lugares mais". "Artista de reputa��o europeia, de nome
feito em Paris, o seu teatro atrai a multid�o diariamente. Ele conhece
os segredos dos Davenport, discute o espiritismo e fala com o Diabo
quando quer como qualquer de n�s fala a seu alfaiate".

Mas n�o fic�vamos atr�s. Em mar�o de 1864, a Revista Ilustrada
anunciava:

NOVIDADE! NOVIDADE!

A �poca � dos espectros e por isso arregalem os olhos [...] Tr�s
franceses, amigos de Satan�s, chegaram ultimamente do Inferno e
trar�o um carregamento de espectros, fantasmas e apari��es para
embasbacar os entusiastas do maravilhoso! O espiritismo j� n�o
� uma mentira. Diabos azuis, anjos amarelos, bruxas encarnadas,
duendes verdes, espectros roxos, fantasmas negros e almas do
outro mundo sem cor.

114


MARY DEL PRIORE

Era o tempo das "M�gicas", que lotavam os teatros e entusiasmavam
as plateias, que aplaudiam com chuva de palmas. Em 27 de
mar�o de 1895, comentando a pe�a O cavalheiro da rocha vermelha, o
Jornal do Brasil afirmava: "o p�blico amador de bons espet�culos n�o
se cansa de aplaudir a bela m�gica"! Nos primeiros meses desse ano, a
corte assistiu pelo menos a oitenta espet�culos do g�nero. A presen�a
de aspectos fant�sticos, gra�as a profissionais especializados vindos do
exterior, como maquinistas e pintores italianos, tornava os espet�culos
monumentais. Cen�rios e guarda-roupa, t�cnicas de bel-canto ou
sil�ncios dram�ticos mantinham o olhar colado ao palco. N�meros
de ilusionismo e prestidigita��o maravilhavam, transportavam para
outros mundos. Em cena, sombras eram transpassadas por varas e
facas e desapareciam instantaneamente ao ouvir a ordem do maestro.
Fantasmas se desfaziam em vapor. Cabe�as de cera passeavam pelo
palco. Nos espelhos, surgiam vivos ausentes e mortos presentes.

Os investimentos de produtores de teatro nesses espet�culos tinham
retorno garantido. No contexto da fantasia, at� aspectos de cr�tica
social e pol�tica eram denunciados. Elementos l�ricos, caros ao
romantismo, como a presen�a de fadas, favoreciam a identifica��o
com os temas abordados. E as m�sicas que faziam o pano de fundo
das m�gicas invadiam as ruas e eram cantadas ou assobiadas.

O Cearense, para deleite de seus leitores, publicava um "Boletim
das Ci�ncias Ocultas". Rea��es? Variadas: havia admira��o, repuls�o
ou "fervente f�". E n�o faltavam transcri��es de jornais estrangeiros
que mais colocavam d�vidas do que davam respostas. Caso do Journal
de L'Ouest, que se perguntava, por exemplo:

Mas, se em tudo isso n�o h� nada de sobrenatural, ent�o o
que h�? Qual o agente maravilhoso que produz tais prod�gios? [...]
Agente insujeit�vel, imponder�vel... N�o � nem corpo, nem fluido,
nem g�s, nem esp�rito, nem mat�ria e, todavia, � tudo isso ao
mesmo tempo. Chamem-lhe o que quiserem: anima, spiritus, �ter,
fluido magn�tico. Pouco importa o nome, basta ver os resultados.


DO OUTRO LADO

"VADE RETRO": EXORCISMOS E OUTRAS DIABRURAS
E, de fato, fluido, m�gica, fadas ou diabos, cada um que acreditasse no
que bem quisesse. Os exorcistas que o dissessem. Sim, pois nas ruas do
Rio de Janeiro se cruzavam possessas ou endemoninhadas. Criaturas
gentis e d�ceis ca�am em ataques que as faziam babar, arquejar, cuspir
uma espessa saliva. Os m�dicos as qualificavam como hist�ricas. Jo�o
do Rio assistiu a uma dessas cenas: uma mulher que ficava suspensa a
dois palmos acima do ch�o com os bra�os em cruz, mastigando insultos
ao Criador. E outra que passava horas, enrodilhada com solu�os
secos, amea�ando com socos os crucifixos que lhe eram apresentados.

O rem�dio? Um exorcismo feito por um homem "velho, puro e
forte", al�m de destitu�do das vaidades do mundo. Contra os falsos
exorcistas, havia os jesu�tas, alguns lazaristas e o superior da Ordem
dos Capuchos. Frei Piazza era o mais conhecido: "o grande combatente
dos diabos". Ele oficiava no singelo convento no alto do Castelo,
entre a roupa que as lavadeiras punham a secar e o chamado cristalino
dos sinos. Diferentemente do renomado frei Lu�s de Salvador, que
s� lidava com dem�nios europeus e mandava um sacerdote angolano
para lidar com dem�nios africanos, frei Piazza oficiava sem limites
culturais.

A quest�o era: em pleno amanhecer do s�culo XX, os diabos existiam?
Resposta: sim. Na tenda de feiticeiros que se tornou a capital da
corte, n�o faltavam missas negras, satanistas, espectros que caminhavam
ao lado das pessoas e magos amigos de Belzebu.

A prova � que fatos estranhos deram de acontecer: sereias, faunos
e trit�es apareciam, aqui e ali. O Jo�o catraieiro, no cais dos Mineiros,
vira emergir do mar uma dama de vermelho e homens de barba
verde que riam e assobiavam. Hist�ricas, n�o curadas pelos m�todos
do neurologista franc�s dr. Charcot, subiam o morro, debaixo de mantilhas
para esconder o rosto. Iam buscar tratamento com frei Piazza,
que exorcizava das quatro da manh� �s quatro da tarde, uma vez por
semana. S� em 1903, foram mais de trezentas demon�acas que Sat�
arrastara para as profundezas do inferno. O jornalista Jo�o do Rio


MARY DEL PRIORE

perguntou: "O exorcismo � p�blico?". E obteve como resposta: "Nem
sempre. O Diabo pela boca dos possessos conta a vida de todos, injuria
os presentes. N�o � conveniente".

O exorcismo se fazia de acordo com regras estabelecidas num
livro de marroquim vermelho: o Rituale. Lia-se em voz alta o of�cio
de expuls�o do "ministro indigno de Deus", seguido de passagens
dos evangelhos segundo S�o Jo�o, S�o Marcos, S�o Lucas. Nesse
�nterim, se fazia v�rias vezes o sinal da cruz no possesso envolto na
estola clerical.

- Eu te exorcizo, imundo esp�rito, fantasma legi�o em nome
de Nosso Senhor Jesus Cristo, ordeno-te que abandones esta
criatura feita por Deus com terra [...] Adjuro-te, serpente antiga,
em nome dos julgamentos dos vivos e em nome dos mortos, em
nome do teu Criador e do Criador dos mundos, daquele que tem
o poder de te enviar ao inferno [...] Obedece a Deus diante do
qual se ajoelham os homens [...] Sai agora, sai sedutor. O deserto
� tua morada e a serpente a tua habita��o etc.
Porque o Diabo amava a imund�cie, encontrava suas v�timas nas
"classes baixas, sem limpeza". Gra�as � sua presen�a, as pessoas se
tornavam s�bias, de repente. Falavam l�nguas estrangeiras. Era f�cil
para o exorcista identific�-las. Enquanto isso, a endemoninhada praguejava,
batia a cabe�a, coleava como cobra, cuspia at� cair exausta
e livre do Pr�ncipe das Trevas. A ordem era de que fosse para casa
anunciar as boas coisas que Deus fizera por ela.

Frei Piazza trabalhava demais, pois havia muitos satanistas na
cidade. Um dos pontos de encontro dessa gente era o herban�rio do
Sai�o, na rua Larga de S�o Jo�o. Ali, segundo o jornalista, reuniam-
se as cartomantes, os magos, os negros dos eb�s, as parteiras, praticantes
de "todo o crime religioso". E que crimes! Um comprava
carneiros para lhes chupar o sangue, pois era "vampirista". Outro satisfazia
apetites inconfess�veis - detalhe: era prosaico funcion�rio dos


DO OUTRO LADO

Correios, esclarecia Jo�o do Rio. Outros ainda praticavam a missa
negra e encantamentos com bonecos de cera representando quem se
queria prejudicar.

Havia quem xingasse a Virgem Maria com sonoros palavr�es e
quem desfiasse um ros�rio de nomes ocultistas e simb�licos. Os escritores
transformavam Belzebu em personagem de novelas. Homens e
mulheres chamavam seu nome para obter amor, riqueza e poder. "Satan�s
faz milagres a troca de almas", admoestava Jo�o do Rio. E ainda
animava sab�s, festas noturnas com "f�rias desnudas e sob a ventania
do cio", no pacato Engenho Novo. Seus ajudantes eram esp�ritos de
mortos, ou fantasmas dos que tiveram morte violenta.

O problema, segundo Sai�o, eram os "malef�cios sat�nicos estarem
inundados de azeite de dend� e de ervas de caboclos". A magia
"estava deca�da eivada de costumes africanos e misturadas de paj�s"!
N�o se aplicavam corretamente as receitas do livro de magia Clav�cula
de Salom�o: ratos brancos, morcegos, sangue mensal das mulheres,
fluidos v�rios e sangue. Muito sangue. Na missa negra presidida por
Justino, o Bode, se misturavam, segundo Jo�o do Rio, velhos viciados,
ninfoman�acas e prostitutas que comungavam h�stias roubadas
� igreja mais pr�xima. O cen�rio tinha um altar-mor, ladeado de um
pav�o de cauda aberta, s�mbolo do V�cio Triunfal. No teto, morcegos
em cora��es de papel vermelho e panos pretos com cruzes de prata.
A sala, iluminada por casti�ais altos, era sufocante com os cheiros
do braseiro. Sacrist�os seminus, depois de ora��es conclamando Sat�,
davam in�cio ao bacanal.

Na sa�da, assustado, Jo�o do Rio ainda ouviu do porteiro:
"N�o quer �gua maldita?". Saiu correndo como doido na noite
enluarada, contou.

Pr�ximo aos satanistas, estavam os leitores do Livro de S�o Cipriano:
livro de feiti�aria com sua carga de maldi��o, vendido nas
boas casas do ramo, como a livraria Garnier, em meio a autores como
Alencar e Kardec. Ao trazer ao leitor uma s�rie de informa��es sobre
alquimia, astrologia, ritos pag�os e cabala, o texto formava um


MARY DEL PRIORE

ciclo de narrativas em que o Dem�nio era logrado pelo santo bruxo.
Mas n�o sem antes ensinar uma s�rie de artif�cios para compensar
as agruras e impot�ncias da vida. Ali se encontravam instru��es para
tratar mol�stias, al�m de cartomancia, esconjura��es e exorcismos. A
Ora��o da Cabra Preta, a Ora��o do Anjo Cust�dio e outras da cren�a
popular tamb�m eram inclusas: Magnificat, Cruz de S�o Bento,
Ora��o para Assistir aos Enfermos na Hora da Morte etc. Al�m dos
rituais de como obter um pacto com o Dem�nio, como desmanchar
um casamento e o da caveira iluminada com velas de sebo.

Cipriano, o feiticeiro, sempre foi celebrado no dia 2 de outubro.
Foi um homem que dedicou boa parte da vida ao estudo das ci�ncias
ocultas. Dizia-se dele que tinha a gra�a de curar com preces e o toque
das m�os. Era capaz de criar diabinhos familiares, chamados de fam�lias
ou fradinhos da m�o furada, com menos de um palmo de altura,
mas capazes de coisas maravilhosas. Definia quem eram os fantasmas,
assim como os meios para combat�-los. Sua invisibilidade, por�m, era
um dos pontos altos do mist�rio que o envolvia. Reza a lenda que,
ap�s se deparar com a jovem santa Justina, converteu-se ao cristianismo.
Martirizado e canonizado, sua popularidade cresceu devido ao
famoso Livro negro, um compilado de rituais de magia escrito antes
da convers�o. Como se v�, na corte imperial, por baixo do cristianismo,
batia forte o cora��o do paganismo.

Paganismo e tradi��o popular que faziam - surpresa! - do Diabo
um bom amigo. Contrariamente � imagem pintada pela Igreja de um
chifrudo vermelho, de olhar de fogo e longas garras capaz de afundar
o pecador nos horrores do inferno, a tradi��o popular o levou para o
palco por meio da imagem ir�nica, amig�vel, irreverente e esperta do
"bom diabo".

Encontrado nos espet�culos de m�gica como um dos atores principais,
ele era sucesso de bilheteria. A loteria do Diabo, encenado no
Teatro de Variedades em 1877, A pera de Satan�s, encenado para comemorar
o anivers�rio da imperatriz Teresa Cristina, no Teatro S�o
Luiz, tamb�m em 1877, Frei Satan�s, no Teatro de Variedades, em


DO OUTRO LADO

1891, A chave do inferno, no Teatro Recreio, em 1899, e a Bota do
Diabo, no Teatro Avenida, em 1908, mantinham as casas cheias e
revolucionavam pelo riso. Nos palcos, personagens como Satanisa,
Sataniel ou Diavolina, encarnados por atores renomados, levavam
rem�dios para os doentes, serviam de alcoviteiros entre namorados,
eram c�micos e matreiros. A fronteira entre o Bem e o Mal, Deus e o
Diabo j� n�o era mais a mesma.

"AS ENDEMONINHADAS"

Dem�nios andavam na boca de m�dicos, tamb�m. � bem prov�vel que
eles achassem que a express�o "endemoninhada" ainda servisse para designar
algo de ruim ou errado. Pois, em 1880, esse era o adjetivo que
eles atribu�am �s "hist�ricas". Uma hist�rica era a "endemoninhada" de
ent�o. Na �poca, os m�dicos n�o acreditavam mais em possess�o por
Sat�, mas outros males, tais como "ilus�es esvaecidas, esperan�as quim�ricas
e sonhos malogrados", serviam para explicar as causas de dist�rbios
mentais. A inveja, por exemplo, podia criar hist�ricas. Ao cham�-las de
"endemoninhadas", os m�dicos retomavam a cren�a de que mulheres
eram mais fr�geis, sujeitas a errar e v�timas de seus pr�prios sentimentos
descontrolados. Afinal, elas eram descendentes de Eva. E Eva era a respons�vel
pela conversa com Sat� e expuls�o do Para�so, n�o?

Segundo alguns doutores, em Paris, a histeria era muito comum,
pois, diziam eles, tendo recebido quase a mesma educa��o, ao se casarem,
as pobres invejavam os maridos das ricas. O casamento curava
a doen�a? N�o: "porque as dificuldades cotidianas e os pequenos cuidados
do lar ser�o pasto insuficiente �s vastas aspira��es de uma imagina��o
desregrada". A mis�ria, o pesar e o mal-estar podiam agravar

o estado. E, sendo apenas "histeria ligeira", n�o se tratava de uma
verdadeira doen�a, mas de um dos aspectos da personalidade feminina:
"Pode-se mesmo dizer que as hist�ricas s�o mais mulheres do que
as outras; t�m sentimentos passageiros e en�rgicos, fantasias m�veis e
brilhantes e, entre tudo isso, dificuldades de dominar a raz�o".

MARY DEL PRIORE

As "endemoninhadas" encheram as p�ginas da Gazeta de Not�cias
no in�cio da d�cada de 1880. Casos eram transcritos. O primeiro
sintoma? O �dio ao marido. Afundar-se na leitura de poetas e romancistas
menos recomend�veis era outro sinal da doen�a. "Gestos de
mocinha e tom chulo nas discuss�es", outros ainda. S� comer salada e
p�o com sal, l�grimas seguidas de gargalhadas, invejar as "exist�ncias
tumultuadas" e, resumindo, "sentir, pensar, n�o ter vontade, eis as tr�s
mis�rias nas quais se debatem as pobres hist�ricas".

Elas enchiam os hosp�cios, e sua doen�a tinha grada��es: podia
ser leve como a de madame Bovary, personagem de Flaubert,
ou grave, com ataques convulsivos e del�rios tratados a choque e
�gua gelada nos melhores hospitais. O novo recurso era trat�-las
espetando-as com longas agulhas sob anest�sicos rec�m-inventados.
Da mesma forma que os inquisidores e exorcistas aplicavam tenazes
no corpo das possu�das para encontrar a marca do Diabo, aqui
tamb�m se buscava a fonte da "les�o org�nica material" por interm�dio
de instrumentos pontiagudos. Como n�o se encontrava nada,
a conclus�o era de que endemoninhadas e hist�ricas sofriam de uma
"pervers�o din�mica"!

Os m�dicos caprichavam na "descri��o dos sintomas que podiam
ser chamados demon�acos", mas que n�o passavam de um grande ataque
de "histero-epilepsia". Como registrou um observador:

N�o h� espet�culo mais assombroso talvez do que o dos
acessos demon�acos. Agitam o corpo do doente tremores e abalos
violentos. Contraem-se-lhe os m�sculos ou distendem-se tanto
que parecem arrebentar. Saltos prodigiosos, gritos, ululos espantosos,
vocifera��es confusas e contor��es inesperadas numa criatura
humana, tal � o medonho quadro de uma hist�rica durante

o ataque.
O problema n�o era o Diabo, mas o aparelho reprodutor feminino.
Caretas, roupas e len��is rasgados, saltos prodigiosos, corpos


DO OUTRO LADO

vergados sobre a cama � volta da qual se reuniam para observar a
endemoninhada o c�lebre dr. Charcot, fundador da neurologia, e sua
equipe. E o jornal a concluir: n�o admira que em �pocas remotas se
acreditasse que s� o Diabo podia desencadear tais rea��es no corpo
humano. O ponto de partida do acesso demon�aco era o ov�rio. Para
cessar o ataque, bastava apertar a barriga da paciente.

Cada hist�rica tinha uma forma peculiar de del�rio. Nele, a mulher
recordava epis�dios de sua vida, com sustos e emo��es violentas
entre gritos. Ratos, sapos e outros animais imundos faziam parte das
alucina��es. Mas, apesar da aparente desordem dos ataques, "tudo
estava previsto, regulado e determinado; toda aquela desordem marcha
com a precis�o matem�tica de um rel�gio bem certo". Era a
ditadura da ci�ncia!

Mas o que queriam as endemoninhadas? Que algu�m se interessasse
por suas pequenas paix�es e c�leras. Que sua intelig�ncia e
vestu�rio fossem admirados. Que aceitassem suas mentiras e palavras
desabusadas. Que se adotassem suas "antipatias e simpatias absurdas".
Umas simulavam uma gravidez inexistente. Outras se cortavam
com tesouras. Outras ainda roubavam. Em resumo: queriam aten��o,
segundo os doutores. Eram carentes. O famoso Charcot passou a tratar
a histeria com hipnose.

E na corte n�o ficamos atr�s: a moda da hipnose pegou. O Instituto
El�trico e Magn�tico Federal, situado � rua Sete de Setembro,
n� 14, vendia o livro de certo dr. J. Laurence, que ensinava "a �ltima
palavra sobre hipnotismo ao alcance de todas as intelig�ncias". Instru�a
sobre como recrear com o magnetismo e o hipnotismo, adivinhar a sorte,
descobrir criminosos, veios de minerais e coisas ocultas, transmitir
a dist�ncia qualquer recado pela a��o do pensamento, corrigir maus
h�bitos, desamor e infidelidade, extinguir gordura, surdez e fraqueza
de vista, entre outras tantas facilidades. Nos Estados Unidos, tivera 84
edi��es e era vendido por 10 contos de r�is.

Em sete aulas, o mesmo Instituto El�trico e Magn�tico oferecia
li��es sobre "o governo magn�tico dos outros" e sobre como ter poder


MARY DEL PRIORE

nas rela��es sociais, profissionais ou com o sexo oposto. N�o esclarecia,
por�m, como combater a histeria ou as endemoninhadas. Isso
continuava tarefa de doutores.

O MISTERIOSO SONO

"Prende-se ao aspecto demon�aco o misterioso sono do sonambulismo",
decretavam os doutores. Tudo come�ou com as sess�es de
magnetismo introduzidas na Fran�a por Antoine Mesmer, as quais
ganharam aficionados nos prim�rdios do espiritismo. Os primeiros
sintomas eram langor e sonol�ncia agravados pelo sil�ncio e pela escurid�o
da sala onde se realizava a opera��o. A seguir, gemidos do
paciente em ataque de sonambulismo. Esse era um fato evidente, diziam
os m�dicos. Era poss�vel provocar sonambulismo em indiv�duos
portadores de certa "neurose de natureza especial".

Para provoc�-lo, bastava, muitas vezes, um pequeno abalo do
sistema nervoso. Em meio minuto, podia se adormecer quem j� tinha
sido magnetizado. Passes com as duas m�os eram realizados na frente
do rosto do paciente. Sua fisionomia perdia, ent�o, a mobilidade e ficava
sem express�o. Os membros entorpecidos impediam qualquer tipo
de movimento, enquanto sensa��es vagas de calor e frio atacavam-lhe

o corpo. Os olhos n�o mais se abriam e as p�lpebras pendiam pesadas.
A respira��o era calma e lenta, enquanto o corpo parecia congelado.
Proximidade com as endemoninhadas? Sim, pois podia-se espetar
um son�mbulo que ele n�o reagiria. Se antes tivesse dores, elas cessavam.
Se ouvisse falar de assuntos tristes, chorava. Era capaz de relatar

o que via em sonho, a linguagem se aprimorava e exprimia todos os
sentimentos que lhe iam � alma. Os sintomas da "esquisita mol�stia"
n�o atacavam apenas mulheres e hist�ricas. Mas tamb�m homens.
Era poss�vel que os son�mbulos rasgassem a cortina do futuro
e desvendassem mist�rios gra�as � lucidez que adquiriam no sono?
Para alguns m�dicos, tudo n�o passava de f�bula. A simples palavra
"sonambulismo" os fazia sorrir diante do que consideravam uma


DO OUTRO LADO

"velhacaria". Os son�mbulos que se exibiam em feiras e teatros n�o
eram "l�cidos", mas doentes. Seu lugar: o "hosp�cio de doidos". Para
eles, o sonambulismo era uma mol�stia que, sem produzir aliena��o
mental propriamente dita, perturbava profundamente as fun��es da
intelig�ncia. Mas essa era apenas mais uma opini�o dos que opunham
ci�ncia e sobrenatural.

Pois, num dos maiores hospitais de Paris, o La Salp�tri�re, o
neurologista dr. Charcot hipnotizava para "sonambulizar". Com as
m�os apoiadas na cabe�a das hist�ricas, massageando-as suavemente,
deixando-as mover os bra�os � vontade, Charcot as adormecia. Ele
reabilitou a hipnose como objeto de estudo cient�fico para tentar tratar
a histeria, descrevendo seus aspectos som�ticos. O sonambulismo
ganhava suas cartas de nobreza.

Por�m, bem antes de Charcot, desde o fim do s�culo XVIII, na
Europa, os doentes recorriam �s son�mbulas (posteriormente chamadas
de m�diuns) para diagnosticar seus males, medic�-los ou prescrever
rem�dios. Magnetizadores as punham em estado de "lucidez" para
suscitar sua clarivid�ncia. Pouco a pouco, muitas se auto-hipnotizavam
ou modificavam seus estados de consci�ncia para trabalhar sozinhas.
E usavam sua vid�ncia tanto para curar quanto para predizer o futuro.

O sonambulismo inseria-se, assim, na cultura popular ao lado de
outras tradi��es de cura, mas com um plus: tinha um car�ter cient�fico.
E, mais do que benzedeiras ou curandeiras, as son�mbulas faziam
sombra a muitos m�dicos. As son�mbulas se queriam filhas da novidade,
da vida urbana, do progresso. Sua inser��o popular lhes garantia
sucesso. Elas cuidavam dos doentes com um vocabul�rio simples de
compreender. Usavam rem�dios f�ceis de aplicar. Algumas buscavam
uma dimens�o moral ou espiritual para seu trabalho, apostando na
cria��o de novos la�os sociais neste e no outro mundo.

A profiss�o de "son�mbula l�cida" surgiu na segunda metade do
s�culo XIX, confundindo-se com outras fun��es exercidas pelos m�diuns
ou curandeiros. O nome custou a se firmar, pois sua atividade
se queria racional, um s�mbolo dos avan�os da ci�ncia por meio do


MARY DEL PRIORE

magnetismo, m�todo ungido pelo dr. Charcot. Na maioria dos an�ncios
de jornal, por�m, seu of�cio aparecia ligado n�o ao tratamento da
histeria, mas � vid�ncia.

O fil�sofo alem�o Hegel, em seu Filosofia do esp�rito, volume III
da Enciclop�dia de ci�ncias filos�ficas, foi mais longe e aceitou a hip�tese
de uma capacidade de clarivid�ncia em certas pessoas. E considerava

o sonambulismo uma doen�a da alma que permitia escapar do poder
da consci�ncia. Intelectuais inseridos nas correntes espiritualistas sa�das
de movimentos teos�ficos tamb�m se interessaram pelo sonambulismo.
Em suas m�os, as son�mbulas mais sens�veis se tornavam instrumentos
para responder �s perguntas feitas a Deus ou aos mortos.
Na pr�tica do sonambulismo, cresceu a import�ncia das mulheres.
Kardec tinha grande simpatia por elas e por sua educa��o. Elas
foram uma legi�o muito respeitada nos Estados Unidos, onde nomes
como Cora Scott e Achsa Sprague, pioneiras do feminismo e do espiritismo,
se impuseram. As vis�es, muitas vezes, vinham da inf�ncia,
como descrevia miss Cook, jovem inglesa:

Tenho dezesseis anos de idade. Desde a minha inf�ncia vejo
esp�ritos e ou�o-os falar. Tinha o costume de sentar-me a s�s e conversar
com eles. Eles me cercavam e eu os tomava por pessoas vivas.
Como ningu�m os via nem ouvia, meus pais procuravam inculcar
em mim a ideia de que tudo era produto de minha imagina��o.

A vis�o das son�mbulas explorava os mundos extraterrestres e
se comunicava com esp�ritos. Elas eram capazes de descrever suas vidas,
organiza��o social e comunidades. Elas falavam e escreviam sobre
assuntos diversos, buscavam transformar a vida f�sica e moral dos
homens sobre a Terra, prometendo-lhes um mundo melhor na eternidade.
Tudo isso lhes dava um papel diferenciado numa sociedade em
que as regras morais lhes interditavam um papel p�blico.

E o Jornal do Com�rcio anunciava: "Son�mbula d� consultas todos
os dias pelo pre�o de 15 contos de r�is; informar-se na rua Sete


DO OUTRO LADO

de Setembro n� 33, das 11 horas �s 3 da tarde". Muitas vezes, era o
marido quem oferecia os servi�os da mulher.

Consultas com son�mbulas, diferentemente de cartomantes e
curandeiras, eram coisa para gente rica: elas cobravam caro e recebiam
em ambiente luxuoso. Os 15 contos de r�is de consulta representavam
parte consider�vel do or�amento de uma fam�lia modesta que
comprava cal�a e palet�s a 7 contos de r�is e uma d�zia de cervejas a
2 contos de r�is.

As consultas eram longas e havia prest�gio em ser son�mbula.
Dores reum�ticas, amenorreias e males de est�mago eram com elas
mesmas. Diagn�sticos sobre a espessura do sangue, "muito fino, grosso,
granuloso, em bola, congestionado", tamb�m eram sua especialidade.
O truque para dormir, sem as massagens do dr. Charcot? Olhar
para um copo d'�gua, uma bola de cristal, um espelho ou um cristal de
quartzo. Algumas son�mbulas eram convidadas a animar soir�es - festas
- na casa de gente rica, onde todos lhes faziam a mesma pergunta:
"o que vir�?".

ALGUNS SOBRADOS... ASSOMBRADOS

Ci�ncia ou sobrenatural? Ambos. N�o houve aqui a funda��o de
um Clube dos Fantasmas, como em Londres, mas muita gente acreditava
em sua exist�ncia. Coisa de contos de terror, passados nas
n�voas e penhascos ingleses? N�o. T�nhamos as nossas casas assombradas.
Ficavam fechadas, com janelas cerradas e quintais abandonados
onde residiam ecos de mon�logos perturbadores, na escura
madrugada. Havia quem afirmasse ver ali "visagens" nas varandas
ou luzes nos telhados, dos quais emergiam vultos que se perdiam na
noite. Havia quem ouvisse barulho de gente invis�vel e o arrastar
de correntes de escravos maltratados. Acreditava-se haver tesouros
enterrados ou gente emparedada. Corriam boatos de aterrorizar crist�os:
assombra��es vagavam pelos corredores sujos. Corujas piavam
� noite. A vizinhan�a evitava passar na frente de tais sobrados sem
se benzer v�rias vezes.


MARY DEL PRIORE

As not�cias costumavam come�ar assim: "esse relato � verdadeiro
e cercado por circunst�ncias que podem induzir qualquer homem sensato
a acreditar nele"! Os proveitos que se tiravam delas consistiam
em pensar na vida que estava por vir. Qualquer um podia virar alma
do outro mundo... ou encontrar-se com uma!

Em agosto de 1886, a Gazeta de Not�cias dava aviso de uma
casa amarela, "na florescente vila de Santo Amaro, celeiro da capital
paulistana, onde o vulgo afirmava haver bailes desenfreados �s sextas-
feiras nos quais dan�ava uma mulher muito magra e muito p�lida de
longos e desgrenhados cabelos at� a meia-noite".

A partir do m�s de junho de 1889, quase diariamente, o mesmo
jornal noticiou os eventos ocorridos na casa de n�mero 4 na rua Bar�o
de Mesquita, na Tijuca, no Rio de Janeiro. O que era boato passava a
fato. � noite, trilavam apitos sem que se identificasse de onde vinham.
Um oper�rio que atravessou os port�es viu surgir o fantasma de uma
mulher que passou por ele voando. A quem reagisse � sua apari��o,
ela tapava o rosto do transeunte com uma m�o fria como gelo e o
cobria de bofet�es antes de sumir. Pela rua onde ficava a casa, cruzava
um cavalo preto com seu cavaleiro igualmente vestido de preto e se
esvaeciam na terra. Sinistro. Do forro do sobrado, escapavam chamas
azuis e amarelas que se moviam, acendiam e apagavam sozinhas. As
madeiras rangiam. O cheiro de enxofre invadia o ar e certa voz lacrimosa
perguntava: "C�ticos, que vindes fazer aqui?!". Um gato preto,
grande como um c�o, fazia "artes do demo". As coisas extraordin�rias
que emanavam da casa reuniram tal tumulto de gente que os pra�as
do Col�gio Militar foram obrigados a interferir. No dia seguinte, comentava
o jornal:

O estranho caso tem sido ultracomentado. Esp�ritas, hipnotistas,
videntes, sect�rios de Mesmer, medrosos de almas do outro
mundo, gaiatos e cr�dulos t�m concorrido com seu contingente
para, cada vez mais, obscuro e incr�dulo tornar o assunto.


DO OUTRO LADO

Ao passar na frente da casa, gente do povo rezava uma quadrinha
que dizia:

A bruxa da m�o furada
das unhas escarrapachadas
cada casa tem quatro cantos
cada canto tem seu santo
Pai, Filho e Esp�rito Santo.


Quem teria morado ali? Um chapeleiro bizarro que pedia a quem
passasse que tirasse o chap�u. O aspecto sombrio e misterioso da casa
a tinha transformado numa "esfinge para os cr�dulos". Pediu-se at� ao
jornal cat�lico O Ap�stolo para que elucidasse o caso que poderia se
prestar a um exorcismo. "Casos mais ou menos t�tricos t�m vindo �
luz da publicidade", martelava a Gazeta. O n�mero de casos sobrenaturais
era t�o grande que "raro � aquele que se possa gabar de n�o ter
esbarrado nestes �ltimos dias com uma meia d�zia de almas do outro
mundo". E almas t�o insistentes quanto irasc�veis credores.

Entusiastas do fen�meno da casa mal-assombrada inundavam a
reda��o com cartas. Certo Jos� da Cunha Braga contava que, ainda
estudante de filosofia, depois de ter lido o livro Tratado de hipnotismo,
do dr. Fajardo, dissera a um colega: "Eu n�o acredito nisso!...".
E adormeceu. Acordou com um fantasma que dizia: "Acredite!",
mas que desapareceu depois, numa grande gargalhada. Outro leitor,
An�bal C�sar de Lima, acordou com o beijo da m�e que, vestida de
preto, trazia um ramalhete �s m�os. Com um olhar bondoso, ela
avisou: "Vim despedir-me". Dois dias depois, ele recebeu a not�cia
de sua morte e achou aos p�s da cama o ramalhete com que sonhara.
"N�o profanaria o nome de minha m�e para fantasiar uma
narrativa", argumentava. Era tudo verdade! O esp�rita Jorge Braga
de Souza acrescentou mais; sim, aquilo era "verdade sem rebu�o".
Certo dr. Magnus Sondahl resolveu explicar tudo como resultante
de "alucina��o" e, citando v�rios autores estrangeiros, explicou: "A


MARY DEL PRIORE

comunh�o prolongada do pensamento sobre um objeto acaba por
determinar um estado ext�tico do c�rebro, no qual a imagem do
objeto n�o tarda a produzir-se e a afetar o esp�rito como se fosse
realmente percebida pelos olhos"!

Em v�rios n�meros do jornal, prosseguiam as investiga��es sobre
o sobrado n� 4, sem que explica��es racionais fossem dadas. E,
para alimentar as hist�rias, outro leitor contou que, em ca�ada na Floresta
da Tijuca, tentou abater uma pomba pousada sobre uma cruz.
Sua m�o se enrijeceu, enquanto uma voz rouca o admoestou: "Nem
respeitais a cruz que indica a morada de um infeliz". A pomba se
transformou em sombra. Outro ainda lembrava que "em redor de n�s
existe um mundo de esp�ritos mais povoado do que o nosso".

Na rua Benjamim Constant, n� 26, novos fen�menos, segundo o
Jornal do Brasil. A casa era apedrejada de todos os lados, durante a
noite. M�os invis�veis de estranhos visitantes faziam voar decididos
pedregulhos sobre o telhado e as janelas. O guarda-noturno vira um
vulto branco bailar na frente da casa. Vira tamb�m outros fantasmas;
seus cabelos se arrepiaram e ele correu para a delegacia mais pr�xima.
Entre os vizinhos, murmurava-se que almas do outro mundo perseguiam
o dono da casa e sua criada.

Mesmo fen�meno de pedras voadoras em 1890, sobre as casas
de n�meros 16 e 22 da rua Dona Mariana. O terror virou queixa
na delegacia da Lagoa. Em 1905, dentro de uma casa da rua Goi�s,
no Encantado, pratos se moveram dentro do arm�rio, chinelos se arrastaram
s�s pelo quarto e feij�es bailaram no ar, fora da panela! E
tudo isso foi estampado na primeira p�gina do Jornal do Brasil, que
informava tamb�m que uma romaria de curiosos se fez para observar
as estripulias de almas penadas. "Quadros t�tricos" se multiplicavam
na regi�o suburbana, avisava o peri�dico. Um "vulto branco" cercado
de luz fosforescente distribu�a cascudos a quem dele se aproximasse,
e tais fatos levavam "enorme concorr�ncia de gente ao lugar misterioso".
O caso tomava "propor��es assustadoras". Seria a causa o
enterro de um cachorro com tr�s cabe�as? Foi solicitada a ajuda de um


DO OUTRO LADO

m�dico, um rep�rter e um sacerdote para a "completa investiga��o de
fatos misteriosos". Eles nunca foram elucidados.

Mesmo depois das reformas urbanas feitas pelo prefeito Pereira
Passos, casas mal-assombradas persistiram, e os indiv�duos pareciam
n�o ter perdido a capacidade de se maravilhar. Embora a cidade tenha
ganhado avenidas e torres altas enquanto restos coloniais eram
postos abaixo, em 1907, na rua Costas Bastos, n� 33, almas do outro
mundo organizavam regularmente "sabbats infernais": gargalhadas
estrondosas, assobios, arrastos de correntes. Propriet�rio do im�vel,

o comerciante Miguel Arthur Lopes teve que chamar o Corpo de
Bombeiros. Foi tudo considerado "uma brincadeira de mau gosto".
Mas o povo acreditava.
At� 1911, a Gazeta de Not�cias publicava, com fotos, hist�rias de
sobrados assombrados. A �ltima foi sobre a casa da rua Senador Pompeu,
n� 129. Ela guardava "a triste heran�a de uma hist�ria de crime
no seio de uma fam�lia". P�ginas de sensa��o, sem d�vida. Mas, com
elas, a Livraria do Povo continuava a vender tudo quanto se pudesse
desejar em rela��o �s almas do outro mundo: como falar com esp�ritos
de dia ou de noite, or�culos sobre o futuro, formas de magnetizar
esp�ritos, fotografias de fantasmas, al�m de todas as obras de Kardec.
E tudo ao som da polca "As almas do outro mundo", publicada pela
editora dos senhores Narciso e Arthur Napole�o. Era a dan�a dos
esp�ritos!


4.
OS INIMIGOS DO AL�M


INIMIGOS NO HORIZONTE...

Enquanto o sobrenatural parecia dar as cartas na corte, a campanha
contra o espiritismo n�o arrefecia. Antes "coisa de negro", agora "coisa
de branco", pouco importava: o que importava era diaboliz�-lo.
Identific�-lo ao Mal.

Desde o aparecimento das irm�s Fox, nos Estados Unidos, os
advers�rios do magnetismo ou do espiritualismo tendiam a associados
aos poderes de Sat� ou � loucura. Alguns m�diuns escaparam por
pouco do linchamento. Quanto mais crescia a vaga espiritualista, mais
fortemente a Igreja Cat�lica reagia. E nos pr�prios Estados Unidos.
Em Boston, por exemplo, o jornal cat�lico The Boston Pilot, de enorme
tiragem, registrava, em 1852:

A maioria dos m�diuns se torna perdidos, idiotas, loucos e
est�pidos e acontece o mesmo com seus clientes. N�o se passa
uma semana sem que saibamos que um destes infelizes se destruiu
pelo suic�dio ou entrou para o hosp�cio. Os m�diuns d�o
sinais n�o equivocados de um estado anormal em suas faculdades
mentais e, em alguns deles, encontramos um signo de possess�o
verdadeira do Dem�nio.


DO OUTRO LADO

Morador de Paris, o escritor portugu�s E�a de Queiroz tamb�m
n�o poupava a doutrina e seus adeptos. E era sempre mais f�cil misturar
acusa��es e reduzir o espiritismo a "nada", ainda que ficasse claro
que os centros medi�nicos estavam em expans�o na Fran�a. Dizia E�a
em suas Notas contempor�neas:

Um amigo meu que se ocupa do espiritismo, de teosofia, de
magias e de ci�ncias ocultas, por diletantismo intelectual, desejou
que eu o acompanhasse em um centro esp�rita em Paris, aonde
ele ia para contatar m�diuns e magos para uma experimenta��o
solene de fen�menos ps�quicos.

E fuzilava:

S�o tratados, gurus, confiss�es, comp�ndios, monografias,
hist�rias, sistemas, vulgariza��es, seletas, di�logos, poemas e
tudo versando sobre nada. Sobre nada? N�o, sobre uma possibilidade,
sobre uma nuvem que talvez esconda Juno ou Psich�, a
Psich� real e viva...

O Dicion�rio Larousse, publicado em 1876, trazia um verbete
sobre "espiritismo", tratando-o como uma doen�a mental, e outro sobre
Kardec, definido como algu�m que teria contribu�do para divulgar
na Europa "a funesta epidemia do supranaturalismo" e que fundara
"sobre quim�ricas manifesta��es de esp�ritos um conjunto de doutrinas
religiosas e morais". Quem assim determinava eram membros da
Academia de Ci�ncias da Fran�a. O Standard, de Londres, registrava:
mais de mil internos nos hosp�cios dos Estados Unidos em decorr�ncia
do espiritismo em 1881.

A Igreja, como j� vimos, tamb�m movia sua guerra contra a
doutrina. Desde 1864, ela colocou no Index de livros proibidos as
obras esp�ritas e perseguia a necromancia, ou seja, a comunica��o com
os mortos, a qual considerava maldita. A ordem era: que os padres


MARY DEL PRIORE

respondessem �s manifesta��es de esp�ritos com a arma tradicional,
os exorcismos. Do ponto de vista do Santo Of�cio, os esp�ritos eram
assimilados a dem�nios, e os que os invocavam, a adeptos de Sat�.

No Imp�rio brasileiro n�o foi diferente, e os argumentos tampouco
variaram. O Ap�stolo, que denominava o espiritismo de "nefanda doutrina",
"n�doa oleosa", admoestava os cat�licos: quem frequentasse
c�rculos esp�ritas para aderir � doutrina seria punido com excomunh�o.
A propaganda esp�rita "lavrava com intensidade", advertia. Mas o que
era discutido como ci�ncia, acusavam, n�o passava de falsa religi�o! Era
pante�smo misturado � ignor�ncia. Queriam destruir o catolicismo para
deificar o Dem�nio. �s vezes, os esp�ritos at� diziam verdades. Mas era
artif�cio de Sat�: "m�gica", acusavam os pregadores.

"N�o h� beco que n�o tenha uma lojinha espiritista." E as consequ�ncias?
"Grande n�mero de v�timas que desesperadas procuram
consolo no suic�dio ou enlouquecem." A pastoral do arcebispo da
Bahia j� n�o alertara contra o "diabolismo" que levava � loucura e
ao suic�dio?

E a imprensa usava suas p�ginas para contar hist�rias exemplares
contra o espiritismo, como a do ingl�s John Macarthy. Seu relato
dava conta de um vapor que seguia da Austr�lia para Liverpool, com
22 tripulantes. O ano era 1876. Entre eles, um m�dium que, depois de
seguidas sess�es no tombadilho, converteu tripulantes e passageiros.
O m�dium, "quanto mais li��es dava, mais ia perdendo o ju�zo". At�
que resolveu convidar a todos para "se converter em esp�ritos". Para
isso, bastava lan�ar-se ao mal na noite do dia 20 de maio.

"Aquela noite foi terr�vel. O vento balan�ava as vergas e ca�a
uma chuva espessa. �s dez horas da noite o m�dium atirou-se ao mar
primeiro e se seguiram seis passageiros." Outros iam imit�-los quando
o capit�o chegou, amea�ando "estourar os miolos" de quem desse
mais um passo. "O resto da viagem passou-se tranquilamente", conclui
o jornal.

O Jornal da Bahia noticiava o caso de uma m�e que, por "obra
dos esp�ritos", arrancara os pr�prios olhos e os de seus filhos. O


DO OUTRO LADO

espiritismo, denunciava O Ap�stolo, crescia sem parar e, com ele, o
n�mero de "dementes, possessos e alucinados" que prestavam "culto
aos dem�nios inimigos de Deus". No catolicismo, eternidade n�o rimava
com "imbecilidade"! E os seus devotos n�o eram condenados a
"graves males" ou tratamentos equivocados que exigiam "en�rgicas
provid�ncias". "O governo estaria cego?", indignava-se o editorialista
de O Ap�stolo.

Na vida materialista em que a sociedade estava mergulhada, o
espiritismo n�o era um simples jogo de m�gicas, e sim um desmentido
lan�ado por Belzebu que lembrava: a vida espiritual existia! Pois tudo
que vive s� procedia de inspira��o divina ou sat�nica. E eles, os esp�ritas,
emergiam direto do inferno! E tome serm�es do bispo na matriz
da Candel�ria, sobretudo durante a Quaresma, contra o "grave pecado
de entrar em sociedades condenadas pela Igreja".

O Jornal do Com�rcio, em sua edi��o de 13 de dezembro de
1874, acusava o espiritismo de fabricar "loucos" e pedia a interfer�ncia
da pol�cia, concluindo: "� uma epidemia mais perigosa que a febre
amarela...". Enquanto o Di�rio do Com�rcio cravava: era uma "nova
loucura. Uma nova manifesta��o dos extravios do entendimento humano".
N�o faltava quem achasse que alcoolismo e espiritismo eram
sin�nimos e que, somados, era caso de pol�cia e da Junta de Higiene.
O lugar dos adeptos seria o Hosp�cio Nacional dos Alienados.

Nos anos 1870, at� mesmo Machado de Assis jogava lenha na
fogueira antiesp�rita. Segundo ele, al�m de enriquecer a l�ngua portuguesa
com a palavra "mediunidade", o espiritismo seria uma f�brica
de idiotas e alienados. O escritor dividia a vida �til do crente esp�rita
em duas fases: na primeira, ele conversava com os esp�ritos ainda em
seu ju�zo perfeito. Na segunda, que come�ava quatro ou cinco anos
depois, se tornava v�tima de dem�ncia pura. Doen�a, ali�s, observ�vel
somente por alienistas, depois de cuidadoso exame. E ent�o era o caso
de chamar a "pol�cia e o carro" que transportava loucos.

O conto "Uma visita de Alcib�ades" foi uma s�tira mordaz ao
espiritismo. Nele, o personagem �lvares, um desembargador, � o


MARY DEL PRIORE

protagonista de um encontro com o esp�rito do "grego aut�ntico, trajado
� moda antiga". E assim �lvares relatou essa visita numa "carta
ao chefe de pol�cia da corte":

- Sou esp�rita desde alguns meses. Convencido de que todos
os sistemas s�o puras nulidades, resolvi adotar o mais recreativo
deles. Tempo vir� em que este n�o seja s� recreativo, mas tamb�m
�til � solu��o dos problemas hist�ricos. � mais sum�rio evocar o
esp�rito dos mortos do que gastar as for�as cr�ticas, porque n�o
h� racioc�nio nem documento que nos explique melhor a inten��o
de um ato do que o pr�prio autor do ato.
E Machado sempre usava sua fina ironia:

Determinei, portanto, evocar o ateniense; pedi-lhe que comparecesse
� minha casa, logo sem demora.

E aqui come�a o extraordin�rio da aventura. N�o se demorou
Alcib�ades em acudir o chamado; dois minutos depois, estava ali na
minha sala, perto da parede; mas n�o era a sombra impalp�vel que
eu cuidara ter evocado pelos m�todos na nossa escola; era o pr�prio
Alcib�ades, carne e osso, vero homem, grego aut�ntico... [...]

- Que me queres? perguntou ele.
Ao ouvir isso, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e
falava grego, o mais puro �tico.

O conto se desenrola em torno de uma quest�o: que impress�o
teria um grego aut�ntico do vestu�rio moderno? O di�logo prosseguia
com o esp�rito pedindo not�cias de Zeus e Plutarco at� suas opini�es
sobre a roupa: gravata, cal�a comprida, o palet� escuro, frente ao qual
ele reage:

- Por Afrodite! - exclamou ele. - �s a coisa mais singular
que jamais vi na vida e na morte. Est�s todo cor de noite - uma

DO OUTRO LADO

noite com tr�s estrelas apenas - continuou apontando para os bot�es
do peito. - O mundo deve andar imensamente melanc�lico,
se escolheu para uso uma cor t�o morta e t�o triste. N�s �ramos
mais alegres...

A segunda morte de Alcib�ades sobreveio quando �lvares se cobriu
com um chap�u. O adere�o pareceu a Alcib�ades uma monstruosidade.
O susto foi fatal: ele "cambaleou e caiu". E �lvares escreveu,
ent�o, ao delegado pedindo que o cad�ver fosse transportado ao necrot�rio
e se procedesse ao exame de corpo de delito. A ironia em
torno da segunda morte do esp�rito era total.

Machado n�o zombou s� dessa vez e continuou a cutucar. No cap�tulo
"Torrente de loucos" do seu famoso O alienista, o personagem
doutor Sim�o Bacamarte diz ter constru�do o hosp�cio de Casa Verde
para estudar a loucura e seus diversos casos "por caridade". E citando
S�o Paulo: "Se eu conhecer quanto se pode conhecer e n�o tiver caridade
nada sou". N�o era a caridade a base do espiritismo? Sutil galhofa.

Em Quincas Borba, ele a repete. N�o h� men��o direta ao espiritismo,
mas, antes de enlouquecer, Rubi�o se lembra de uma ideia de
inf�ncia: a de metempsicose, na sua vers�o oriental, na qual homens
encarnavam em animais:

ocorreu-lhe que os dois Quincas Borba podiam ser a mesma
criatura, por efeito da entrada da alma do defunto no corpo do
cachorro, menos a purgar os seus pecados que a vigiar o dono.
Foi a preta de S�o Jo�o d'El Rei que lhe meteu, em crian�a, essa
ideia de transmigra��o. Dizia ela que a alma cheia de pecados
ia para o corpo de um bruto: chegou a jurar que conhecera um
escriv�o que acabou feito gamb�...

E por fim, no conto "Dona Benedita", sobre uma vi�va que tinha
d�vidas em recasar-se, descreveu uma apari��o muito semelhante �s
que se viam nas fotografias de ectoplasmas:


MARY DEL PRIORE

Uma noite, volvendo dona Benedita este problema � janela
da casa de Botafogo, para onde se mudara desde alguns meses,
viu um singular espet�culo. Primeiramente, uma claridade
opaca, esp�cie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espa�o
da enseada, fronteiro � janela. Nesse quadro apareceu-lhe
uma figura vaga e transparente, trajada de n�voas, toucada de
reflexos, sem contornos definidos porque morriam todos no
ar. A figura veio at� o peitoril da janela de dona Benedita e de
um gesto sonolento, com uma voz de crian�a, disse-lhe estas
palavras sem sentido:

- Casa... n�o casar�s... se casas... casar�s... n�o casar�s... e
casas... casando...
Dona Benedita ficou aterrada, sem poder mexer-se; mas ainda
teve a for�a de perguntar � figura quem era. A figura achou um
princ�pio de riso, mas perdeu-o logo; depois respondeu que era a
fada que presidira ao nascimento de dona Benedita.

Segundo um estudioso, a viol�ncia de Machado em rela��o ao
espiritismo crescia na medida direta do sincretismo da doutrina de
Kardec com pr�ticas m�gicas de origem negra. O consumo de ch�s,
po��es � base de ervas e produtos de origem animal nos rituais comprometia
a sa�de mental da popula��o e, no seu entender, s� podia
terminar com uma solu��o: a for�a: "Eu, legislador, mandaria fechar
todas as igrejas dessa religi�o, pegava dos correligion�rios e fazia-os
purgar espiritualmente de todas as suas doutrinas; depois dava-lhes
uma aposentadoria razo�vel".

Fadas, esp�ritos, dem�nios, o sobrenatural seria verdade ou n�o?
A quest�o � que, nos anos em que Machado publicava seus contos, os
esp�ritas tinham se fortalecido. E se antes demonstravam considera��o
pela Igreja Cat�lica, agora respondiam com rispidez aos ataques
de padres, jornalistas e intelectuais. Pela voz do esp�rita Joaquim Rebelo
Maia, em sua carta Roma e o espiritismo, os advers�rios tiveram
que engolir: "A senda do absurdo encorajou finalmente a Igreja


DO OUTRO LADO

a proclamar o dogma da infalibilidade papal, sempre cuidadosamente
desmentido por tantos papas".

A hist�ria lhe daria raz�o.

ESP�RITOS NO CONSULT�RIO M�DICO
Apesar das tens�es dentro do movimento, crescia a ades�o � doutrina,
e o espiritismo acabou como r�u nos bancos da Academia Imperial
de Medicina. A primeira batalha foi contra a homeopatia do m�dico
franc�s Benoit Mure, que, como vimos, encontrava enorme receptividade
nas classes populares.


As acusa��es se sucediam: o exerc�cio da homeopatia era conden�vel,
pois era tido pelos m�dicos como ilegal. Era uma terapia nula
ou seus rem�dios at� envenenavam. Os homeopatas eram estrangeiros
de h�bitos duvidosos e, como se n�o bastasse, perigosos por conta de
suas ideias socialistas, amea�adoras da Igreja e da sociedade.

Outra batalha, como j� foi visto, foi contra o curandeirismo.

Mas a guerra mesmo foi contra o espiritismo. Pois a "mediunidade
receitista" ajudou em muito a divulga��o da doutrina, al�m de
atrair simpatizantes. Em 1884, declarava O Reformador:

Ningu�m j� ignora que existem indiv�duos que, sem nunca
ter aberto um livro de medicina, espantam-nos com a precis�o e

o acerto com que descrevem os sofrimentos daqueles que lhes s�o
apresentados e, muitas vezes mesmo, sem que se d� tal apresenta��o,
somente � vista do nome e idade do enfermo; indicando
juntamente com os meios de cura que, seguidos, t�m sempre produzido
ben�ficos resultados, mesmo nos casos mais desesperados.
Isso era demais! Afinal, m�dicos se consideravam o s�mbolo da
ci�ncia contra o charlatanismo. Mas tamb�m da religi�o contra a supersti��o.
Do adiantado contra o primitivo, da postura desinteressada
contra a interesseira, da observa��o contra o irracional. Enfim, do


MARY DEL PRIORE

saber oficial contra um saber privado e dom�stico. O espiritismo n�o
podia ser uma boa medicina porque era baseada em uma doutrina
contr�ria � boa l�gica e � boa religi�o. A reencarna��o, a nega��o do
pecado original, a nega��o do princ�pio da esp�cie humana em Ad�o,
tudo isso colaborava para seu descr�dito entre os m�dicos reunidos na
Academia. E o que dizer do m�dium? Um charlat�o.

Explica um antrop�logo que, nas �ltimas d�cadas do s�culo, o
espiritismo entrava na pauta dos doutores a partir de dois temas: a
hipnose e a sugest�o. Desde 1888, muitas teses versando o assunto
passaram a fazer parte dos congressos de medicina. Em 1896, Tratado
de hipnotismo, obra de Francisco Fajardo, descrevia em detalhes os
chamados processos de "sugest�o" que poderiam ser usados em v�rios
tipos de enfermidades.

Fajardo dedicou aten��o aos fen�menos do espiritismo, como telepatia,
clarivid�ncia e especialmente mediunidade, que considerava
resultantes do "automatismo cerebral": "A quase totalidade dos fen�menos
esp�ritas se tornam explic�veis pela doutrina das varia��es e
altera��es de consci�ncia". E tais fen�menos n�o seriam fraudes, mas

o resultado de for�as com propriedades terap�uticas. Exatamente por
serem eficientes, tais propriedades podiam ser perigosas se ca�ssem em
m�os erradas. Por isso mereciam acompanhamento e estudos.
Raimundo Nina Rodrigues, famoso m�dico baiano, com base na
observa��o dos candombl�s, discutiu em seu O animismo fetichista
os feiti�os, entre os quais inclu�a as pr�ticas de cura africanas. Estas
seriam condenadas, pois era preciso proteger a sa�de das popula��es:
todo e qualquer saber m�dico estaria acima de concep��es m�gicas.
E, se o doente acabasse curado, era por processos totalmente ignorados
pelo feiticeiro. Da� a import�ncia de defender o exerc�cio da
medicina exclusivamente por diplomados. Mas persegui��o �s "pr�ticas
primitivas"? De nada adiantaria, ele argumentava. Pois estavam
profundamente enraizadas no "sentimento religioso" e no cotidiano
das pessoas. N�o seria a pol�cia que conseguiria extra�-las de l�. Mais.
Nina Rodrigues acreditava que o "sonambulismo provocado" durante


DO OUTRO LADO

a possess�o do santo levava � histeria ou a um "erro patol�gico" na
psicologia dos indiv�duos, aproximando pr�ticas kardecistas dos problemas
decorrentes da "aliena��o mental".

Nas primeiras d�cadas do s�culo XX, o pensamento m�dico contra
o espiritismo radicalizou-se. Antes tratado de passagem aqui ou
ali, o tema se tornou objeto de artigos, teses e livros inteiros. Em 1927,
a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro promoveu um
"inqu�rito" sobre o tema com a opini�o de onze m�dicos, a maioria ligada
� especialidade da medicina legal ou da psiquiatria. Segundo eles,

o espiritismo n�o somente comprometia a sa�de das pessoas como se
associava a anomalias ps�quicas. Ele era um "fator de doen�a mental",
passando a fazer parte do senso comum de m�dicos e psiquiatras.
A essa altura, tanto a psiquiatria quanto a medicina legal j� estavam
bastante consolidadas. O Hospital Nacional recebia "alienados
mentais", ambas as disciplinas eram discutidas em cursos na Faculdade
de Medicina e v�rias associa��es cuidavam do assunto, como a
Liga Brasileira de Higiene Mental e a Sociedade Brasileira de Psiquiatria,
entre outras. Os doutores Henrique Roxo e Xavier de Oliveira,
psiquiatras ligados ao Hospital Nacional de Alienados, apresentavam
estat�sticas que colocavam o "espiritismo" como o terceiro fator entre
as causas de aliena��o mental, logo atr�s da s�filis e do alcoolismo.

Mas foi um livro de Leon�dio Ribeiro e Murilo Campos, Espiritismo
no Brasil, que transformou as concep��es m�dicas sobre a
doutrina. Apresentado como um estudo "cl�nico e m�dico-legal" para
explicar um conjunto de fen�menos, o livro se debru�a sobre tr�s
quest�es: a explica��o dos fen�menos ditos esp�ritas, o espiritismo
como fator de aliena��o mental e os danos que acarretaria � sa�de da
popula��o. Ao ampliar a discuss�o sobre mediunidade, clarivid�ncia,
telepatia ou levita��o, lendo-os � luz da psican�lise, os autores conclu�am
que fatores como sugest�o, dissocia��o ps�quica e mediunidade
podiam ser buscados na din�mica ps�quica dos indiv�duos. As diversas
modalidades de espiritismo n�o passavam de magia, modalidades da
"velha feiti�aria" ou um "apelo ao sobrenatural".


MARY DEL PRIORE

Quanto � segunda quest�o, os doutores examinaram as condi��es
nas quais se realizavam as sess�es esp�ritas. Ali, encontravam-se
muitos "indiv�duos cujo equil�brio mental n�o se acomodava a tal ambiente
de mist�rio [...] predispostos mentalmente �s afec��es mentais".
Segundo os doutores, eram "psic�ticos" que passavam a incorporar

motivos esp�ritas em seu quadro de sintomas; eram "d�beis
ps�quicos" que procuravam as sess�es esp�ritas para fugir aos
problemas do cotidiano. Ou "esquizoides" para quem o espiritismo
era um pretexto para fugir ao conv�vio social. E, finalmente,
eram hist�ricas que espontaneamente se revelavam m�diuns, e se
prestavam a exibi��es an�logas �s sonamb�licas.

Tudo isso resultava numa "mediunopatia" ou "mediunomania",
manifesta��es de car�ter alucinat�rio ou uma "loucura de colorido
esp�rita". Segundo eles, o indiv�duo com doen�a mental encontrava
nas sess�es esp�ritas um palco para desenvolv�-la. O espiritismo era

o fator "desencadeador da aliena��o mental"! Aquilo que come�ava
como uma sugest�o descambava para alucina��o. E quem encarnava
o modelo? O "m�dium", algu�m dominado por "del�rios e alucina��es".
J� a assist�ncia era constitu�da por "ignorantes, analfabetos,
pessoas de intelig�ncia inferior", sujeitas �s influ�ncias ps�quicas e empreendidas
pelo diretor do centro esp�rita, um charlat�o e explorador.
Nesse ambiente, se passava da loucura � possess�o:
Os indiv�duos ficam abalados com os movimentos da mesa
[...] a emo��o levando �s conclus�es mais levianas, �s interpreta��es
mais apressadas [...] lembran�as afloram como no sonho [...]
e como nesses indiv�duos a capacidade cr�tica est� diminu�da por
motivo da emo��o, o sonho toma as propor��es de um del�rio
alucinat�rio, no qual a personalidade, o eu se encontra em desagrega��o.
Os exerc�cios de mediunidade acabam por torn�-los
loucos que cr�em pensar, falar, gesticular, escrever, andar contra


DO OUTRO LADO

a pr�pria vontade e em obedi�ncia � vontade do "esp�rito" que
passou a residir neles.

Outra pergunta que n�o queria calar: haveria rela��o entre
pr�ticas esp�ritas e criminalidade? Do ponto de vista dos m�dicos,
certamente. Pois n�o faltavam casos em que, inspirados por "esp�ritos",
indiv�duos cometiam crimes at� hediondos. Resultado: nove
entre onze doutores acreditavam que, sim, o espiritismo fabricava
loucos. Como responder a esse mal? Criando uma campanha de higiene
mental endossada por v�rios m�dicos, para impedir reclamos
e an�ncios de centros esp�ritas nos jornais, e fazendo uma rigorosa
mobiliza��o das autoridades policiais e sanit�rias tendo em vista todos
os lugares de culto, com o fechamento dos "mais perigosos",
com a pris�o dos respons�veis e o encaminhamento dos "m�diuns"
aos psiquiatras.

Ao associar o espiritismo a um "fator de aliena��o mental" e a
uma "ind�stria organizada para explorar a credulidade p�blica", os
m�dicos e psiquiatras conseguiam enquadr�-lo como doen�a e tamb�m
como crime. Nos anos 1920 e 1930, o espiritismo preocupava as
autoridades policiais e sanit�rias, e n�o havia como separar os diagn�sticos
m�dicos dos esfor�os de combate � doutrina e suas pr�ticas.

O discurso sobre a necessidade de "higiene p�blica", t�o na moda
no in�cio do s�culo XX, n�o se reduziu �s mudan�as urbanas com a
finalidade de combater epidemias. Nem ao esfor�o de isolar os pobres
em bairros longe dos ricos. O chamado "embelezamento da cidade",
com a proibi��o da mendicidade, das serenatas ou da ordenha de vacas
pelas ruas, tamb�m fazia parte de plano. Plano no qual as quest�es
de higiene p�blica se somaram �quelas de higiene mental.

Da� v�rias interven��es inspiradas na psiquiatria da Alemanha
pr�-nazista, como a realiza��o de exames pr�-nupciais para evitar o
casamento entre "degenerados" e a persegui��o aos h�bitos considerados
involu�dos, atrasados ou primitivos das sess�es esp�ritas por m�dicos
e psiquiatras, que representavam o saber evolu�do e "civilizado".


MAR Y DEL PRIORE

Uma voz isolada se levantou contra essa onda repressiva. No
in�cio dos anos 1920, Bras�lio Marcondes Machado apresentou
uma tese � Faculdade de Medicina na qual defendia a possibilidade
de di�logo entre ci�ncia m�dica e espiritismo. Este �ltimo deveria
ser estudado n�o em oposi��o, mas buscando seus fundamentos na
medicina. Mais al�m, a tese propunha � psiquiatria que reconhecesse
a sobreviv�ncia da alma e a possibilidade do contato com os
esp�ritos, pois certos casos de dem�ncia poderiam ser creditados a
esp�ritos obcecados por um doente. O rem�dio seria a desobsess�o,
como proposto por Adolpho Bezerra de Menezes, nessa �poca
j� conhecido como o "Kardec brasileiro" - ou seja, o tratamento
de pessoas que sofressem da interfer�ncia de esp�ritos maus com
passes. Gra�as � desobsess�o, ambos, v�tima e obsessor, ficariam
curados. Segundo Machado, em se tratando de uma doutrina baseada
na experimenta��o, nada mais eficiente, moderno e racional.
Logicamente, a tese foi reprovada!

O saber m�dico condenou o espiritismo de alto a baixo, diferentemente
do saber jur�dico, que criminalizava o chamado "baixo
espiritismo" e tolerava o "alto espiritismo".

A "CASA DE PRETOS"

Era assim que Lu�s Edmundo, o cronista do velho Rio de Janeiro, chamava
o terreiro existente na travessa do Castelo, onde, segundo ele, se
praticava a liturgia jeje-nag�, "cheia de complica��es e de mist�rios,
onde se evocavam almas do outro mundo e eram manipulados despachos,
feiti�os que, quando postos nas encruzilhadas dos caminhos,
tinham a propriedade de curar malef�cios, modificar vontades e corrigir
o destino dos homens". Segundo ele, "o nome que se dava a esses
locais era canjer�s, candombl�s ou macumbas".

Desde a d�cada de 1830, v�rias posturas municipais proibiam
ajuntamentos de negros com ocorr�ncia de dan�as e batuques,
em casas ou ch�caras particulares. Considerava-se que tais


DO OUTRO LADO

"ajuntamentos" n�o eram inocentes, pois v�rias revoltas de escravos
tinham nascido assim. Seus "feiticeiros" costumavam ser os cabe�as
de motins. Na segunda metade do s�culo XIX, o motivo para persegui-
los era a vadiagem e o charlatanismo. Pouco, por�m, adiantou a
hostilidade das autoridades ou a neglig�ncia dos que achavam que
tudo n�o passava de brincadeiras para tirar africanos da tristeza em
que viviam. Com o crescimento das cidades e o aumento da popula��o
de livres e ex-escravos, multiplicaram-se as "casas de pretos",
com grande presen�a de lideran�as religiosas negras, comandando
tanto a elite quanto o povo.

Lu�s Edmundo se limitou a reproduzir os preconceitos que, no
final do s�culo XIX, historiadores e cronistas tinham sobre o assunto.
Mas identificou uma primeira distin��o, feita, segundo ele, pelos
esp�ritas, entre "baixo espiritismo ou espiritismo de terreiro" e o kardecismo,
branco e de classe m�dia. Segundo ele, o panach� religioso
misturava o fetichismo africano aqui introduzido na �poca da Col�nia
"com muito dos processos kardecistas de confabular com o astral
al�m de bailados em que os nossos av�s �ndios invocavam os fantasmas
de seus ancestrais".

E ele assim contou:

Em casa de Jo�o Gamb� de Luanda, na travessa do Castelo,
a macumba estadeia. Os �dolos que se evocam chamam-se
Ogum, Xang�, Oxal�, S�o Jorge, S�o Cosme, S�o Dami�o e
Santo Onofre. Como nas igrejas cat�licas, a entrada � franca,
mas logo � porta h� uma caixa de esmolas que se n�o reclama
�bolos para a cera do santo, pede para o espermacete da
ilumina��o do templo, que se resume em dois ou tr�s aposentos
dando para uma �rea suja onde, em balaios de vime, arrulham
pombos, cacarejam galinhas [...] Quando penetramos a
sala principal j� a encontramos a transbordar de gente, mo�os
e mo�as, velhos e velhas sentados, uns sobre bancos de pau, outros
em p� ou pelo ch�o, de c�coras e at� deitados. Lembrando


MARY DEL PRIORE

o altar da liturgia cat�lica, junto � parede uma tosca mesa de
pinho, mostrando dois alguidares de barro vidrado com os animais
do sacrif�cio postos num molho feito de farinha e azeite de
dend�. Ligando-os uma espada longa e nua.
O cronista descreveu as peanhas com santos, copinhos cheios de
�gua, velas e quadros emoldurados. Jo�o Gamb�, septuagen�rio magro
e de carapinha grisalha, era amigo de outro poderoso "feiticeiro",

o Apotij�, da rua do Hosp�cio. Ao som de c�nticos, v�rios instrumentistas
preparavam suas cu�cas, agog�s, berimbaus e atabaques. Eis que
na sala irrompia "a jovem mesti�a", cuja dan�a sobrenatural, al�m
dos peitos, ancas e olhos, impressionou o memorialista.
Regado a preconceito, o texto do memorialista refere-se a "bodes
pretos que agem como homens no cio", "bailados bestiais onde todos
dan�am nus", "vertigem de l�bricos anseios" e a "ventanias de lux�ria".
� prov�vel que, numa �poca de intensa repress�o sexual, Lu�s
Edmundo fantasiasse muito sobre o que conhecia pouco ou nada.

E imagina��o n�o lhe faltava para concluir que

na macumba s� se manifestam esp�ritos grosseiros que ainda
se prendem aos instintos terrenos da vida e ainda n�o se libertaram
da crosta vil do atrasado planeta Terra: almas rastejadoras,
indom�veis, violentas. Todo um mundo de sofredores, ral� curtida
pela dor, � espera da grande luz de Deus, que tarda a vir mais
um dia chegar�.

Apesar da localiza��o central do terreiro de Jo�o Gamb�, a pol�cia
fechava os olhos para as cerim�nias. "Xang� era respeitador do
C�digo Civil promulgado pela Rep�blica", dizia Jo�o do Rio. C�digo
que punia o uso comercial das supersti��es e a explora��o da credulidade
p�blica. Mas, no terreiro de Jo�o Gamb�, n�o se matavam
bodes! Uma boa raz�o para deixar tudo acontecer na santa paz do
Senhor ou de Xang�...


DO OUTRO LADO

O aspecto m�gico da religiosidade africana foi combatido desde
sempre. Sacrif�cios de animais, o contato com deuses e orix�s, as
previs�es do futuro, a cura das doen�as e o papel do sacerdote eram
vistos como pr�ticas diab�licas, sobretudo pela Igreja Cat�lica. Anteriormente,
muitos foram perseguidos pela Inquisi��o, que confundia
batuques e dan�as fren�ticas com invoca��es ao Dem�nio. Mas a mistura
com o catolicismo veio obrigatoriamente. A cria��o de irmandades
de negros, pardos, livres e forros, bem como a participa��o em
festas do calend�rio eclesi�stico, promoveu uma intera��o. Viajantes
estrangeiros registraram em muitas ocasi�es o que consideravam "divertimentos
extravagantes", ou seja, folguedos e batuques africanos
que participavam das comemora��es crist�s.

A partir do s�culo XIX, a organiza��o dos terreiros com forte
presen�a iorub� foi crescente. E deles Jo�o do Rio foi observador
ao percorrer as ruas de S�o Diogo, Bar�o de S�o F�lix, Hosp�cio e
N�ncio, onde viviam poderosos pais de santo. Muitos chefes religiosos
mandavam seus filhos � �frica, para estudar a religi�o. Animistas,
adoradores de folhas e pedras, eles possu�am um arsenal de
divindades que, segundo o cronista, se "confundiam" com santos
cat�licos. Ele listou os cargos religiosos: os babala�s (sacerdotes),
os a�ob�s, que preparavam as caba�as para os ritos, os abor�s, mais
velhos sacerdotes do candombl�, as m�es-pequenas, encarregadas
de fiscalizar a inicia��o das ia�s ou filhas de santo, os benfeitores
og�s. Listou tamb�m o nome dos babala�s: Oluou, Eruosaim, Alamij�,
Em�dio, Ed�-oi�, muitos deles protegidos de pol�ticos e membros
da ma�onaria.

Segundo ele explicava, os aluf�s, chefes religiosos mu�ulmanos,
estudavam a religi�o e, logo depois da circuncis�o, mergulhavam na
leitura do Alcor�o. Sua obriga��o era a prece: "rezam ao tomar banho,
lavando a ponta dos dedos, os p�s e o nariz, rezam de manh�,
rezam ao p�r do sol". Sentados sobre peles de carneiro ou tigre, n�o
comiam porco, rezavam o ros�rio ou tessub� e escreviam suas ora��es
em t�buas com tinta feita de arroz queimado.


MARY DEL PRIORI

Seus nomes: Alicali, Xico Mina, Alufap�o, Man� e muitos outros.
Alguns eram t�o poderosos que faziam chover. "Salamaleco" era a
sauda��o, corruptela de Al selam aleikum. Jo�o do Rio conheceu Jo�o
Alab�, segundo ele um "negro rico e sabich�o", em suas peregrina��es
no "mundo dos feiti�os", quando tudo anotou sobre a inicia��o das
ia�s, sobre a festa de egungum, sobre o nome dos orix�s e dos 36 pais
de santo que conheceu num s� dia.

Quanto aos feiti�os, havia de todos os matizes: l�gubres, po�ticos,
risonhos ou sinistros. O feiticeiro jogava com o amor, a vida, a
morte, o dinheiro. Para matar um cavalheiro, ainda segundo Jo�o do
Rio, bastava torrar-lhe o nome, d�-lo com algum milho aos pombos
e solt�-los na encruzilhada. Os pombos carregavam a morte. Para ulcerar
as pernas de um inimigo, um punhado de terra era suficiente.
Tudo era resolvido depois de uma conversa entre o babalorix� e os
if�s, uma cole��o de doze pedras. Quando estas se negavam a responder,
matava-se um bode, colocavam-se as ditas pedras em sua boca
com folhas de jaborandi. Para separar casais, enrolava-se o nome da
pessoa, escrito num papel, com pimenta-da-costa, malagueta e linha
preta. Deitava-se isso no sangue do casal e estava pronta a desuni�o.

Por suas mandingas, feiticeiros eram temidos desde sempre. Nos
anos 20 do s�culo XIX, em viagem pelo Brasil, o b�varo Johann Moritz
Rugendas observou que a mandinga podia "fazer morrer de morte
lenta". E que nela acreditavam "todas as classes do povo". Observava
ainda o sincretismo da poderosa mandinga ou "talism�", que, apesar
do nome africano, tinha grande analogia com ideias muito espalhadas
na Europa, desde as �pocas mais remotas. "Entretanto", sublinhou,
"os mandingueiros s�o quase sempre negros."

Mas a grande preocupa��o dos africanos e de seus descendentes
era garantir um ritual f�nebre para si e seus familiares. O medo de "sobrar"
como assombra��o era combatido com as "missas para as almas".
Muitos voltavam para arrastar suas correntes em sobrados e senzalas
decadentes. O cuidado com os mortos e em lhes render cultos assegurava
que n�o voltassem para perturbar as crian�as com doen�as ou


DO OUTRO LADO

pesadelos. As v�rias confrarias do ros�rio dos homens pretos permitiam
a uni�o entre a religiosidade africana e a religi�o dos colonizadores.

Um renomado historiador baiano demonstrou que "papais",
nome que se dava ao "principal da ordem de sortil�gios e feiti�os",
atuavam n�o s� como lideran�as religiosas, mas tamb�m como chefes
de juntas que buscavam alforriar seus semelhantes. As pr�ticas rituais
serviram, a pretos africanos e nacionais, para combater as viol�ncias
de seus senhores e de seu cotidiano. A religi�o foi, sim, um instrumento
de resist�ncia escrava. At� mesmo porque n�o faltou clientela
branca nos grandes terreiros de candombl�, macumba e umbanda,
onde a rela��o de submiss�o do preto passava a ser de domina��o; de
escravo passava a senhor. Ele mandava, conjurava esp�ritos e resolvia
a vida dos outros. Apenas o "pai de santo" se conectava com o mundo
invis�vel, habitado por entidades espirituais respons�veis pela vida.
Seus rituais viabilizavam essa intera��o. Ali, os brancos obedeciam e
se curvavam.

O poder dos negros era capaz de curar o quebranto e tratar do
mau-olhado que se abatesse sobre ioi�s e iai�s. Ao circular entre a medicina
africana e a ocidental, entre a escravid�o e a liberdade, muitas
"casas de pretos", como tamb�m as chamou Jo�o do Rio, se tornaram
lugares de poder e de contradi��o do sistema escravista no Imp�rio.

JUCA ROSA: O PODEROSO SENHOR DOS
TERREIROS E DOS CORA��ES

Houve pais e m�es de santo t�o renomados que sua popularidade
ultrapassou a fronteira das prov�ncias. Foi o caso de Juca Rosa, que
passou alguns meses na Bahia se instruindo nos mist�rios da religi�o
africana. Ao voltar � capital, fundou um terreiro bem-sucedido em
bairro conhecido como Pequena �frica, onde os negros descidos das
prov�ncias do Norte e Nordeste se concentravam.

O fato de haver mais homens nas lideran�as religiosas n�o significava
que eles tivessem mais oportunidade do que as mulheres para se


MARY DEL PRIORE

estabelecer como adivinhos e curandeiros. Mostrava apenas que havia
sido quebrado o costume africano segundo o qual a adivinha��o - ou
a chamada arte do F� - era prerrogativa de babala�s.

Mas vamos conhecer Jo�o Sebasti�o da Rosa, ou Juca Rosa, "senhor
de for�as sobrenaturais" e uma das maiores lideran�as religiosas
na d�cada de 1870. Ex-pra�a do Ex�rcito, descreviam-no como um
"crioulo entre 36 e 40 anos", "de olhos vivos e penetrantes", alfaiate
de profiss�o, sempre elegante no trajar, alfabetizado, cuja m�e africana
lhe legou "um arcano de dar fortuna". Aborreceu-se no trabalho e
abra�ou a "nefanda prociss�o" de feiticeiro.

Mas foi deflagrado um processo contra ele, depois de uma den�ncia
an�nima enviada � Justi�a e publicada no jornal Di�rio de Not�cias,
que a� viu a possibilidade de monopolizar o tema e multiplicar vendas.
Seguiram-se not�cias sobre sua pris�o, sempre sob o t�tulo de "Importante
dilig�ncia policial". A seguir, em letras mai�sculas, vinha a lista
de "crimes" por ele cometidos: "sortil�gios, evoca��es, estelionatos, roubos,
defloramentos, rem�dios para que ad�lteras encobrissem suas faltas,
mortes, propina��es de veneno, abusos de confian�a, ataques � religi�o,
seitas proibidas, reuni�es secretas, feiti�aria". E, durante meses, a venda
de jornais incentivou uma sucess�o de artigos escandalizados.

Segundo o mesmo jornal, quem o acusava era um jovem de
24 anos que conhecera Juca, l�der de uma "irmandade conhecida at�
na Europa", quando buscou tratamento para um bra�o doente, mas
n�o obteve um bom resultado. Adiantou-lhe 30 contos de r�is para
compra de rem�dios e participou de uma cerim�nia. Ajudou Juca a
realizar uma "amarra��o": cercado de "bugigangas", descal�o e sem
palet�. Dando saltos, mudando de voz e em meio a cantorias, segundo
seu acusador, ele convertia inimizade em afei��o, aconselhando tamb�m
"os meios de se vencer quaisquer dificuldades na vida". Segundo
a mat�ria do jornal, "era nesse momento que todos os assistentes lhe
beijavam a m�o direita e batiam com a cabe�a no ch�o".

Na rua da Carioca, 36, novo ritual de amarra��o entre uma jovem
portuguesa e um opulento negociante que a frequentava. Ali, Juca


DO OUTRO LADO

estendeu um peda�o de pano, e sobre este, em forma de cruz, outro
encarnado e preto, pondo-se sobre tudo um urubu, um anu, pimenta
de Angola, farinha, azeite de dend�, milho e aca��. Feito isso, comparecia
a consultante e Rosa fazia-lhe passar um galo pelo corpo em
todas as dire��es, pronunciando algumas palavras inintelig�veis. Ap�s,
cortava-se o pesco�o da ave e a consultante esquartejava-a enchendo-
a dos ingredientes e mandando-a colocar � porta da Igreja de S�o
Francisco de Paula.

A mo�a n�o s� lhe entregara um anel de brilhantes em pagamento
dos servi�os, como lhe dera dinheiro, vendera sua mob�lia para
arcar com despesas e, diziam, prestara-se a servi�os sexuais.

A irmandade tinha cerca de trinta pessoas e Juca se autoproclamava
"Pai Quibombo". Segundo o jornal, ele extra�a ferros e agulhas
de ferimentos, preparava medicamentos que levavam � sepultura, casava-
se com v�rias mulheres no "gong�", batizava seus filhos segundo
rituais pag�os diante de um �dolo, o Manipan�o, promovia dan�as
er�ticas em frente a imagens santas, e as "filhas que n�o cumprissem
obriga��es" pagavam-lhe multas em dinheiro. Elas trabalhavam e participavam
das cerim�nias descal�as e algumas "nuas", escandalizava-
se o jornal! A maioria das mulheres era fanaticamente dedicada a
Juca. Ele era conhecido por "inspirar paix�es, tirar o vigor dos indiv�duos,
faz�-los adoecer e sucumbir a mol�stias". E tudo por dinheiro,
rugiam os articulistas.

O "nigromante" recebia numa vila situada � rua do N�ncio, depois
de um "banho de ervas cheirosas", diante de um altar com imagens,
casti�ais e salva de prata para receber dinheiro. Nesse ambiente
de luz morti�a e sepulcral, tocavam-se as "macumbas". Distribu�am-se
bentinhos para usar junto ao pesco�o, cantava-se em l�ngua africana
e, com "o esp�rito na cabe�a", Juca ca�a como morto. Era a� que dava
consultas como "Pai Quibombo". A regi�o era infestada de corti�os,
casas de fortuna (onde atendiam cartomantes e videntes) e prost�bulos.
Mas em seu candombl� eram recebidas muitas senhoras elegantes

150


MARY DEL PRIORE

com quem Juca teve liga��es mais do que espirituais. Sedutor e carism�tico,
acabava por enfeiti�ar as clientes, a quem fazia, segundo
algumas, "propostas indecorosas". Era adorado pelas belas e jovens
que lhe prestavam servi�os sexuais.

As not�cias sobre seu julgamento fizeram vender muitos jornais;
afinal, consideravam-no "capaz de enganar o pr�prio Deus" e "salteador
da honra, do pudor e da fortuna"! As diversas testemunhas que
se apresentaram ao j�ri relataram uma "cole��o de cenas dignas de
pena do mais extravagante romancista". O que impressionava era o
n�mero de amantes e de ac�litas ad�lteras capazes de tudo pelo Juca,
inclusive dar-lhe dinheiro. E muito.

A curiosidade p�blica transformou Juca num "her�i de horrores",
segundo uma dessas folhas. N�o faltava quem acusasse: curandeiros
como ele infestavam a cidade, e "tudo isso vive � sombra de
inqualific�vel prote��o" e nas barbas das autoridades. Era fanatismo.
Pois nenhuma queixa para "p�r cobro nos atos de selvageria"
jamais chegara aos ouvidos da pol�cia. Juca era protegido por "pol�ticos
e capitalistas".

Nas f�rmulas m�gicas que vendia, n�o faltava a presen�a do catolicismo.
Sincretismo, acultura��o, mesti�agem? Pouco importava. O
respeit�vel era funcionar como se v� nessa "Receita para os homens se
verem obrigados a casar com suas amantes":

Tomem-se 26 folhas de erva-de-santa-luzia e, depois de cozidas
em seis decilitros de �gua, meta-se numa garrafinha branca
bem arrolhada, at� que tenha no fundo alguns farrapos, e sobre o
gargalo dessa garrafa reza-se a seguinte ora��o: "O santa Luzia,
que sarais os olhos, livra-nos de escolhos, de noite e de dia; �
santa Luzia, bendita sejais por serdes bendita, no c�u descansais".

Aqui tira-se um 7 de um baralho de carta e p�e-se-lhe em
cima a garrafa, dizendo: "Em nome do Padre, do Filho e do Esp�rito
Santo, te imploro, Senhora, que assim como esta carta est�
segura, assim eu tenha seguro por toda a vida o (fulano) a quem


DO OUTRO LADO

amo de todo o cora��o e pe�o-vos, Senhora, que fa�ais com que
me leve � Igreja, nossa m�e em Cristo Senhor Nosso". Rezar, em
seguida uma coroa � Nossa Senhora. � preciso manter a carta
debaixo da garrafa at� o dia do casamento.

O julgamento de Juca Rosa teve in�cio no dia 5 de janeiro de
1871. A sala, lotada de autoridades, gente elegante, "madamas" e seguidores,
mais parecia uma festa. Um "h�bil advogado", certo dr. Felipe
Jansen de Castro Albuquerque, foi escolhido para defender Juca.
Segundo o Di�rio de Not�cias, os advogados de acusa��o tiveram que
conduzir uma "luta heroica para arrancar a verdade" de testemunhas
aterrorizadas pelo olhar que o bruxo lhes lan�ava. O Di�rio prosseguiu
sua campanha enumerando feiti�os e mortes promovidos por
Juca Rosa e alertando as autoridades para prosseguir seu julgamento
com "louv�vel energia". Que a lei e a ordem n�o se deixassem embara�ar
com "solicita��es de potentados ou amea�as insolentes em nome
da religi�o e da moral".

Seis meses depois, ao final do julgamento, 45 edi��es de 50 mil
exemplares de uma brochura sobre o processo do "famigerado Juca
Rosa" eram vendidas nas boas casas do ramo, informam os jornais
da �poca. O feiticeiro foi, ent�o, condenado. N�o por bruxaria, pois

o C�digo Criminal do Imp�rio n�o considerava tal crime, mas sim
por estelionato. Embora fosse mais um personagem no mundo do sobrenatural
e das mandingas, Rosa chocou por avan�ar num territ�rio
proibido na sociedade escravista: o do sexo. Ele era o negro que
possu�a sexualmente brancas, mulatas e negras. Despertava paix�es e
alisava canelas, pernas e bra�os femininos, ambicionados lugares de
desejo masculino, para "cur�-los".
Em plena campanha abolicionista, Juca Rosa era o ex-escravo
que enfeiti�ava iai�s com car�cias. Sua magia, mas sobretudo seu poder
sexual, n�o podia ficar sem castigo exemplar. Foi libertado ap�s
seis anos de pris�o a 26 de julho de 1877. O poder do Pai Quibombo
voltaria a atuar?!


MARY DEL PRIORE

O ESPIRITISMO CONTRA A LEI
Com o golpe republicano, em novembro de 1889, os adeptos de Kardec
ganharam novos inimigos. N�o apenas a Igreja Cat�lica continuaria
a persegui-los, mas o novo governo provis�rio decidira inscrever no
C�digo Penal da jovem Rep�blica a condena��o das pr�ticas esp�ritas.

Os positivistas, promotores do movimento que levou � queda do
Imp�rio, n�o acreditavam na conversa com os mortos. E menos ainda
na pluralidade de vidas do esp�rito. Ambas as teses fundavam o que
eles denominavam de "seita m�gica". Sem clem�ncia, ela foi condenada.
Ao longo de mais de cinco anos, figuras importantes do movimento
esp�rita, como Bezerra de Menezes ou o senador Pinheiro Guedes,
encaminharam ao presidente Deodoro da Fonseca uma enxurrada de
cartas solicitando que se retirasse do C�digo a passagem que penalizava
a doutrina.

Essa virul�ncia tinha por fundamento a vontade dos positivistas
de se desgarrar da pecha de esp�ritas. Ambas as doutrinas - positivismo
e espiritismo - tinham pontos comuns: foram fundadas por franceses,
e o que Comte chamava de Terceiro Estado, no qual a busca de
causas transcendentes era abandonada em benef�cio da observa��o
dos fen�menos, tinha muito a ver com o que Bezerra de Menezes
denominou Terceira Revela��o: o espiritismo. Augusto Comte dizia
tamb�m que a humanidade era composta por mais mortos do que vivos
e que os �ltimos eram cada vez mais "governados pelos mortos".
Dif�cil n�o associar isso � doutrina de Kardec... Mais, quando falava
em "Humanidade", Comte estaria se referindo aos "Ancestrais". E
ele fundou um novo culto no qual se valorizavam poetas e s�bios,
enfim, homens ilustres. Comte e Kardec diziam quase a mesma coisa,
com palavras diferentes. Al�m dos pontos de contato na doutrina,
a separa��o pr�tica era dif�cil, pois havia muitos m�dicos militares,
membros do Clube Militar e oficiais graduados, que praticavam a
doutrina de Kardec.

Ao contr�rio do que insinuavam os positivistas, Kardec, e por
extens�o Bezerra de Menezes - este tamb�m militar -, o espiritismo


DO OUTRO LADO

se apresentava deliberadamente cient�fico por seus m�todos: recolher,
observar e depois experimentar os "fatos esp�ritas".

Como resumia Gabriel Delanne, um dos principais escritores
esp�ritas da �poca, no pref�cio de seu livro Katie King, hist�ria de
suas apari��es:

Em toda a parte, as pesquisas est�o na ordem do dia, e, hoje
em dia, n�o � mais permitido a um homem inteligente recusar a
priori tais fatos outrora relegados �s supersti��es populares. N�o
� mais � meia-noite, em meio ao campo deserto ou num castelo
em ru�nas que aparecem fantasmas, mas � no laborat�rio do s�bio
que eles surgem para submeter-se a todas as condi��es dos
exames mais rigorosos.

Coincid�ncia! Era exatamente o que os positivistas defendiam, na
segunda metade do s�culo XIX. A moda era a ditadura da ci�ncia, e dela
ningu�m escapava. Tudo devia ser e era ci�ncia. O espiritismo, como
dizia Flammarion, "devia ser cient�fico ou n�o seria". Krop�tkin militava
em favor do "socialismo cient�fico". Os pintores Seurat e Pissarro
pintavam o "impressionismo cient�fico!". Ernest Renan, fil�sofo e historiador,
pregava "a felicidade pela ci�ncia". Organizar cientificamente a
sociedade era a �ltima palavra da ci�ncia moderna, conclu�a. Ora, falar
com os mortos, argumentavam os esp�ritas, tamb�m era ci�ncia.

Mas havia mais. A ru�na do velho edif�cio religioso n�o abria
apenas as portas para o saber cient�fico. Mais importante era o desenvolvimento
moral, social e pol�tico ilimitado. E somente a raz�o poderia
incentivar a regenera��o da humanidade, mostrando o caminho
a seguir para a harmonia de tudo e de todos. Era a f� positivista que,
paradoxalmente, teria em Kardec sua ponta de lan�a.

Se a sociedade da segunda metade do s�culo XIX se queria racional
e embalada pelo sonho do progresso em todos os dom�nios, o sentido
do maravilhoso e do sobrenatural continuava, por�m, a latejar.
No Brasil, mais ainda. O legado das religi�es afro e o universo m�tico


MARY DEL PRIORE

que j� envolvia o imagin�rio dos brasileiros representavam a uni�o
entre a modernidade europeia e cient�fica, e a seculariza��o. Os efeitos
da ci�ncia moderna estariam em uni�o com a experi�ncia religiosa.

A Primeira Rep�blica, paradoxalmente, impossibilitou parcela
consider�vel de sua popula��o de ter o direito em professar livremente
sua religiosidade sem estar infringindo as leis do Estado. Um dos paradoxos
pol�micos do C�digo Penal de 1890 foi a inser��o do espiritismo
como um crime contra a sa�de p�blica. Seus praticantes sofreram
persegui��es, repress�o e san��es penais. Mesmo tendo in�meros representantes
da intelectualidade ou da elite pol�tica como praticantes,
a lei era bem clara nos artigos 156,15 7 e 158, inseridos no t�tulo "Dos
crimes contra a tranquilidade p�blica" e, mais especificamente, no cap�tulo
"Dos crimes contra a sa�de p�blica":

Art. 156 - Exercer a medicina em qualquer de seus ramos, a
arte dent�ria ou a farm�cia; praticar a homeopatia, a dosimetria,

o hipnotismo ou magnetismo animal, sem estar habilitado segundo
as leis e regulamentos.
Penas - de pris�o celular por um a seis meses, e multa de
100$000 a 500$000.
Par�grafo �nico: Pelos abusos cometidos no exerc�cio ilegal
da medicina em geral, os seus atores sofrer�o, al�m das penas
estabelecidas, as que forem impostas aos crimes que derem casos.

[...]

Art. 157 - Praticar o espiritismo, a magia e seus sortil�gios,
usar de talism�s e cartomancias, para despertar sentimentos de
�dio ou amor, inculcar cura de mol�stias cur�veis ou incur�veis,
enfim, para fascinar e subjugar a credulidade p�blica:

Penas - de pris�o celular de um a seis meses, e multa de
100$000 a 500$000.

Par�grafo 1a. Se, por influ�ncia, ou por consequ�ncia de
qualquer destes meios, resultar ao paciente priva��o ou altera��o,
tempor�ria ou permanente, das faculdades ps�quicas.


DO OUTRO LADO

Penas - de pris�o celular por um ano a seis anos, e multa de
200$000 a 500$000.

Par�grafo 2a. Em igual pena, e mais na priva��o de exerc�cio
da profiss�o por tempo igual ao da condena��o, incorrer� o m�dico
que diretamente praticar qualquer dos atos acima referidos,
ou assumir a responsabilidades deles.

[���]

Art. 158 - Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio
curativo, para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada,
subst�ncia de qualquer dos reinos da natureza, fazendo
ou exercendo, assim, o of�cio do denominado curandeirismo.

Penas - de pris�o celular por um a seis meses, e multa de
100$000 a 500$000.

Par�grafo �nico. Se do emprego de qualquer subst�ncia resultar
� pessoa priva��o ou altera��o, tempor�ria ou permanente,
de suas faculdades ps�quicas ou fun��es fisiol�gicas, deformidades,
ou inabilita��o do exerc�cio de �rg�o ou aparelho org�nico,
ou, em suma, alguma enfermidade:

Penas - de pris�o celular por um a seis anos, e multa de

200$00 a 500$000.
Se resultar morte:
Pena - de pris�o celular por seis a vinte e quatro anos.

Por ser considerado um crime contra a "tranquilidade p�blica",

o espiritismo n�o se inseria num crime contra a pessoa, mas crime de
consequ�ncias p�blicas, como o s�o os estelionatos e afins. J� os esp�ritas
que trabalhavam nos centros esp�ritas como "m�dicos receitistas"
podiam ser enquadrados triplamente no C�digo Penal: indiv�duos
sem habilita��o profissional, que se propunham a curar atrav�s do
"espiritismo", prescrevendo medica��es homeop�ticas. Essas disposi��es
atingiam diretamente os grupos esp�ritas existentes.
A FEB reagiu com uma enxurrada de cartas na imprensa. E utilizou
a revista O Reformador como ponta de lan�a para insistir na


MARY DEL PRIORE

revis�o dos artigos que incriminavam o espiritismo, alegando que o
autor do C�digo Penal desconhecia o assunto. Folhetos com a reprodu��o
dos artigos da FEB foram enviados ao chefe do Governo
Provis�rio, a todos os ministros e aos membros do Congresso Constituinte
ent�o em curso. Bezerra de Menezes, ex-deputado e tamb�m
rec�m-empossado como novo gestor da FEB, redigiu uma representa��o
entregue formalmente ao governo em dezembro de 1890, solicitando
a reconsidera��o dos artigos 157 e 158 no que concernia
ao espiritismo.

Os esclarecimentos enviados ao governo ressaltavam que o espiritismo
congregava fen�menos muito antigos, ainda que a defini��o
desses fen�menos num corpo doutrin�rio fosse algo recente. Ressaltaram
que a difus�o do espiritismo estaria sendo r�pida, pois suas ideias
eram divulgadas em jornais e revistas em n�meros expressivos. E a criminaliza��o
do espiritismo colocaria � margem da lei muitos cidad�os
brasileiros que estavam presentes em diversificados segmentos sociais.

Al�m de apelos de ordem interna, os esp�ritas chegaram a argumentar
mostrando �s autoridades governamentais a internacionaliza��o
do espiritismo. Divulgaram a realiza��o de congressos esp�ritas
internacionais, como o que havia ocorrido na Fran�a em 1889, demonstrando
que o espiritismo era tacitamente reconhecido por todas
as na��es cultas do mundo.

Sinalizavam ainda aos membros do governo que as atitudes tomadas
se chocavam com as ideias de "civiliza��o". N�o era o espiritismo
uma ci�ncia? O espiritismo condenava a supersti��o, portanto n�o
podia ser equiparado �s pr�ticas de magia ou curandeirismo. Condenar
o espiritismo seria "marcar limites ao progresso humano". Os
protestos, no entanto, foram em v�o.

As autoridades policiais passaram a agir a partir de den�ncias
prestadas por pacientes ou conhecidos do acusado ou de averigua��es
de inspetores e agentes de seguran�a. Os policiais aplicavam a
lei de acordo com um sistema impl�cito no pr�prio texto do C�digo
Penal. As penalidades eram analisadas segundo dois crit�rios b�sicos:

157


DO OUTRO LADO

a exist�ncia de subst�ncias prescritas ou manejadas pelos acusados e a
invoca��o de "poderes sobrenaturais".

De 1891 a 1900, cerca de trinta pessoas foram processadas com
base nos artigos 156, 157 e 158 do C�digo Penal, sob acusa��es em
sua maioria de curandeirismo, cartomancia e espiritismo. As descri��es
das acusa��es foram muito diversificadas: distribui��o de l�quidos em
vidros, receitu�rio de ervas para banhos e beberagens, dar sa�de por
meio de ora��es, distribui��o de po��es de �gua benta de sete igrejas,
aplica��es homeop�ticas por meio da mediunidade, dentre outras.

Apesar de o espiritismo kardecista ter sofrido acusa��es de todos
os tipos, a vulnerabilidade maior ficou para os frequentadores das
"casas de pretos", vistas ent�o como locais de "baixo espiritismo".
Bem diz uma historiadora: esses � que seriam os alvos principais do regime
republicano, que primava pela ordem, progresso, moderniza��o
e higieniza��o da capital federal e dos centros urbanos. Essas pr�ticas
demonstravam "atraso" e remetiam � indesej�vel lembran�a de uma
escravid�o de outrora e �s heran�as culturais dos descendentes de escravos
a serem refutadas. Tal legado n�o estava nos planos de uma rep�blica
que defendia uma racionalidade cient�fica e a implementa��o
de projetos de cunho eug�nico, pretendendo escamotear um passado
recente da hist�ria do pa�s.

A Primeira Rep�blica no Brasil foi muito contradit�ria e autorit�ria
em v�rias situa��es. E, no tocante ao espiritismo, a situa��o
n�o foi nada diferente. O Governo Provis�rio tornou lei uma das promessas
da Rep�blica: a garantia da plena liberdade de culto e a total
separa��o entre o Estado e a Igreja. Por�m, o pr�prio C�digo Penal
possibilitou a persegui��o, a pris�o, as arbitrariedades e, sobretudo,
disseminou o medo entre os cidad�os esp�ritas em professar sua f�.


O ETERNO SOBRENATURAL

A BELLE �POQUE E O SOBRENATURAL

Os anos posteriores � proclama��o da Rep�blica foram marcados por
um turbilh�o de mudan�as. A europeiza��o, antes restrita ao ambiente
dom�stico, transformava-se agora em objetivo - o melhor seria dizer
"em obsess�o" - de pol�ticas p�blicas. Tal qual na maior parte do
mundo ocidental, cidades, pris�es, escolas e hospitais brasileiros passam
por um processo de mudan�a radical, em nome do controle e da
aplica��o de m�todos cient�ficos, cren�a que tamb�m se relacionava
com a certeza de que a humanidade teria entrado em uma nova etapa
de desenvolvimento material marcada pelo progresso ilimitado.

Por apresentar uma vis�o otimista do presente e do futuro, o final
do s�culo XIX e in�cio do XX foi caracterizado, seguindo a moda
europeia, como uma Belle �poque. Havia, contudo, uma face sombria
nesse per�odo. O in�cio da Rep�blica conviveu com crises econ�micas
marcadas por infla��o, desemprego e superprodu��o de caf�. Tal
situa��o, aliada � concentra��o de terras e � aus�ncia de um sistema
escolar abrangente, fez com que a maioria dos escravos rec�m-libertos
passasse a viver em estado de quase completo abandono.

A pobreza estava em toda a parte, e as grandes reformas urbanas
que tentavam transformar o Rio de Janeiro em Paris n�o abafavam
certo mal-estar de viver. As mudan�as pol�ticas n�o atingiram a sociedade
toda. S� as elites se beneficiaram. Mas n�o foram apenas as


DO OUTRO LADO

frustra��es de ordem pol�tica que modelaram a vida cotidiana. A modernidade
dos bondes, da luz el�trica e do telefone trazia tamb�m uma
resist�ncia �s mudan�as. Vivia-se o que um historiador denominou de
"a revolta contra a raz�o". Em revanche, recorria-se ao fant�stico e
ao imagin�rio popular, recheado de fadas, dem�nios e apari��es. A
literatura escapista transportava para outro mundo, onde o sobrenatural
dava as cartas. Nele, nada causava espanto ou surpresa. Tudo
era poss�vel!

Diante das mudan�as urbanas que enterravam o passado imperial,
nascia uma cidade desconhecida e monstruosa. Cidade habitada por
pervertidos, hist�ricos, loucos, com noites carregadas de v�cios, medos
e mist�rios. E onde se cruzavam criaturas medonhas como um beb� de
tarlatana rosa, personagem de um conto de Jo�o do Rio: "uma cabe�a
estranha, uma cabe�a sem nariz, com dois buracos sangrentos que era
alucinadamente - uma caveira com carne"! Verdadeiro beijo da morte!

O impacto dessas tens�es bateu na literatura. Antes mergulhados
na busca de uma identidade nacional, alguns autores se viram mais
focados no temor do progresso e da ci�ncia. Sim, os avan�os cient�ficos
tamb�m poderiam produzir aberra��es. Livros como O m�dico
e o monstro, de Robert Louis Stevenson, O retrato de Dorian Gray,
de Oscar Wilde, Dr�cula, de Bram Stocker, e Frankenstein, de Mary
Shelley, abriram caminho para a chamada literatura g�tica entre n�s.

E seu melhor representante brasileiro foi Coelho Neto. No conto
"A convers�o", um dos personagens revela sua ades�o ao espiritismo,
no qual via uma porta entre o mundo real e o sobrenatural: "Combati,
com todas as minhas for�as, o que sempre considerei a mais rid�cula
de todas as supersti��es. Essa doutrina, hoje triunfante em todo o
mundo, n�o teve, entre n�s, advers�rio mais intransigente nem mais
cruel do que eu". Por�m, sua situa��o mudou: vira a filha J�lia conversar
com a neta morta Esther atrav�s do telefone. "Ouvi toda a conversa
e compreendi que estamos nos aproximando da Grande Era, que os
Tempos se atraem - o finito defronta o infinito, e das fronteiras que os
separaram, as almas j� se comunicam."

160


MARY DEL PRIORE

Outro romance no qual o autor explora a viv�ncia do mundo dos
esp�ritos � O turbilh�o. Nele, duas personagens caracter�sticas do Rio
de Janeiro da Belle Epoque: uma ex-escrava que chega ao espiritismo
depois da morte do filho na Revolta da Armada e sua patroa, cuja
filha fugira de casa, levada � sess�o pela criada. A descri��o do centro
esp�rita revela como havia uma continuidade entre a cren�a nos santos
e o respeito pela Igreja Cat�lica e a invoca��o dos esp�ritos.

Ainda outro personagem criado pelo autor sob evidente inspira��o
dos tempos � Celuta, a esposa intoxicada pelo marido, o ciumento
Avelar, em A sombra. O elemento fant�stico � que, ao contr�rio de
morrer rapidamente, inoculada que fora com bacilos da tuberculose,
Celuta se tornava mais e mais vigorosa: "o que eu via, e todos apregoavam
em louvores, era o revi�amento da v�tima, mais robustez, aspecto
magn�fico, apetite, sono tranquilo, higidez absoluta". Sim, pois
a esposa inocente e envenenada se tornara a personifica��o da morte.
E, depois de sucumbir, Celuta voltou para atorment�-lo at� que confessasse
o crime.

Na mesma �poca, o professor Arthur Ramos p�de escrever: "O
Brasil vive impregnado de magia". E conclu�a o ilustre antrop�logo,
a quem tanto devem os estudos da cultura africana: "N�s, brasileiros,
ainda vivemos sob o dom�nio do mundo m�gico, imperme�vel em
muito ao influxo de uma verdadeira cultura". Sim, pois a mentalidade
m�gica e a cren�a no sobrenatural acompanhavam e envolviam as
ideias, as ci�ncias e as letras. N�o � toa, essa literatura de sensa��o
enchia as noites dos que acreditavam que, no contexto da f�, o sobrenatural
era coisa normal.

Por�m, ao lado do m�gico e do fant�stico, a Belle Epoque assistiu
ao surgimento de grupos com ideias liberais que propunham a transforma��o
radical da sociedade. Eram anticlericais, livres-pensadores,
abolicionistas, anarquistas, socialistas, positivistas, esp�ritas, ma�ons e
protestantes. Cada qual se movendo dentro de espa�os circunscritos,
mas em busca de uma transforma��o de toda a sociedade. Eles tinham
um objetivo comum: a luta em defesa do Estado laico e da Rep�blica.


DO OUTRO LADO

Com o fim do Imp�rio, ru�a tamb�m a hegemonia do catolicismo. Os
resultados desastrosos do ensino religioso, o contraste entre a moral
ensinada e a vivida pelo clero e a vis�o da Igreja como uma amea�a
� na��o e aos indiv�duos se impunham. Nas elites, buscava-se uma
espiritualidade reflexiva e interiorizada, que militares, profissionais liberais
e intelectuais encontravam no kardecismo. Um deles, Everton
Quadros, her�i condecorado da Guerra do Paraguai e escritor militar,
por exemplo, s� tomava bondes que n�o transportassem "esp�ritos
maus". Tinha de tudo!

Alguns se davam as m�os na defesa de uma agenda comum, caso
da ma�onaria e do espiritismo. Os membros de ambos os grupos acreditavam
no trabalho como fonte de progresso humano, na busca da
verdade e da harmonia c�smica. Homens como o pol�tico Alcindo
Guanabara, grande opositor do reacionarismo cat�lico, era ao mesmo
tempo ma�om, esp�rita e republicano. O mesmo se pode dizer de Saldanha
Marinho e Quintino Bocaiuva. O primeiro, por exemplo, sob o
pseud�nimo Gaganelli, escreveu v�rios artigos no Jornal do Com�rcio
em que citava o jornal esp�rita Reformador. E o segundo, sem renunciar
a seu esp�rito de livre-pensador, frequentava a Federa��o Esp�rita
Brasileira para tirar receitas medi�nicas.

O bar�o de Porto-Alegre, Saldanha da Gama e Quintino Bocaiuva
representaram a primeira fase do espiritismo entre n�s. Fase
que teve como mediadores homens sinceramente empenhados em
"curar um mundo doente". De acordo com as teses esp�ritas ent�o
disseminadas, a humanidade entraria numa nova fase de progresso
moral. O "progresso", lema dos positivistas, estendido a todos,
era a preocupa��o central. Afinal, o que se queria era a harmonia
perdida, dizia Comte. Para isso, era necess�ria uma nova sociedade,
fraterna, igualit�ria, comunit�ria e sem discrimina��o entre os
sexos. A possibilidade de os indiv�duos se tratarem por si mesmos
era outra preocupa��o da �poca, bem como o retorno da religi�o
natural e espont�nea, na qual os diversos mundos e os homens estivessem
integrados.


MAR Y DEL PRIORE

Depois de proclamada a Rep�blica, o espiritismo consolidou uma
doutrina de caridade e aux�lio aos pobres, substituindo a filantropia
das elites cat�licas. Em 1880, no Nordeste, j� circulavam folhas como
a Revista Mensal, de postura profundamente anticlerical, enquanto

o militar Manuel Vianna de Carvalho, ma�om e esp�rita, convocava
para debates sobre um socialismo harm�nico e pac�fico. No Sul,
em Curitiba, o ma�om Dario Vellozo fundou uma "Igreja Pitag�rica",
com mensagens �ticas e discursos cosmol�gicos pregando uma alian�a
entre Ocidente e Oriente e misturando teosofia, kardecismo e ocultismo.
E, no Rio Grande do Sul, nascia o evidentismo, doutrina institu�da
por um liban�s, Ab�lio de Nequete, que unia elementos crist�os, kardecistas,
bolcheviques e tecnocratas. Muitos militantes do movimento
oper�rio ga�cho eram esp�ritas. Em S�o Paulo, o anarquista Edgard
Leuenroth juntou-se ao ma�om Benjamim Mota para fundar a Folha
do Povo: "tribuna de livre discuss�o, para uma investiga��o sincera da
verdade [...] eco �s aspira��es de nosso tempo". J� O Livre Pensador,
jornal dirigido por Everardo Dias, ma�om, anarquista e espiritualista,
se concentrava em defender o espiritualismo e doutrinas afins. Com
o jornal A Lanterna, Mota foi mais fundo e atacava sem d� a Igreja
Cat�lica, por sua hipocrisia e explora��o da ignor�ncia.
A confiss�o? Absurda e perigosa. Os jesu�tas? Associados � Inquisi��o,
eram sin�nimo de atraso m�ximo. S� a educa��o salvaria,
somada � moralidade p�blica, ao trabalho e � �tica de igualdade. Tamb�m
na capital paulista, fundavam-se lojas esot�ricas e centros espiritualistas
que mantinham contato com correspondentes estrangeiros
para o estudo do magnetismo, ocultismo, psiquismo e espiritismo.
Butiques importavam livros, manuais e objetos m�gicos, bem como
divulgavam conhecimentos de astrologia e clarivid�ncia.

A medida que o s�culo XIX estertorava, as escolas de Direito e
Engenharia formavam profissionais que tinham para o pa�s projetos
sociais em que n�o mais cabia a influ�ncia da Igreja. Ao defender a
separa��o oficial entre Estado e Igreja, a Constitui��o de 1891 abriu
espa�o para ataques a Roma e � propalada "infalibilidade papal".


DO OUTRO LADO

Deu-se um caldo: tanto o fant�stico na literatura quanto as tend�ncias
baseadas no kardecismo, no espiritualismo, no socialismo,
no anarquismo, na ma�onaria, no racionalismo e no positivismo
buscavam redefinir o mundo. Procuravam ir em busca do novo. Ao
imagin�rio "cat�lico", rural e monarquista, opunham-se ideias que
remetiam ao urbano, � Rep�blica, ao futuro e ao progresso. Combina��o
de raz�o e de paix�o, de sonho e realidade, de ci�ncia e cren�as,
de esperan�as e medos, de maravilhas e t�cnicas, elas, as novas ideias,
hidrataram o novo s�culo junto com a Belle Epoque.

O BALAN�O DO MILAGRE
O ano era 1909. Ainda a Gazeta de Not�cias e ainda Jo�o do Rio, o
cronista das cren�as. Sua obra As religi�es no Rio j� tinha sido lan�ada
com imenso sucesso e, talvez por isso mesmo, ele prosseguia com
suas reportagens. Na mira: "O falso espiritismo". A manchete n�o
deixava d�vidas. Segundo ele, havia o falso e o verdadeiro. Os limites,
certamente, n�o eram t�o evidentes quanto queria o autor. Mas,
mesmo assim, ambos, "o falso e o verdadeiro", iam de vento em popa.


A Federa��o Esp�rita Brasileira havia adquirido um terreno para
erguimento de nova sede e continuava com suas atividades: sess�es
p�blicas �s sextas-feiras, quando se estudava O livro dos esp�ritos; sess�es
privadas �s ter�as-feiras, dedicadas ao estudo de Os quatro evangelhos;
e reuni�es comemorativas na Sexta-Feira da Paix�o, no Natal
e nas datas de anivers�rio e morte de Kardec. Paralelamente, prosseguiam
as pr�ticas religiosas: desobsess�o, passes, estudo do Evangelho,
al�m de assist�ncia aos necessitados e mediunidade receitista.

Desde 1905, funcionava na FEB um "curso de humanidades",
com aulas de portugu�s, franc�s, ingl�s, aritm�tica, filosofia e geografia,
e se mantinha, para quem precisasse, assist�ncia jur�dica, um gabinete
dent�rio e um fundo de benefic�ncia m�tua. Em 1910 , a FEB
contava com 36 grupos filiados, a metade deles em S�o Paulo. Muitos
de seus membros formavam uma elite social, pol�tica e intelectual.


MARY DEL PRIORE

O processo de sincretismo que se desenvolvera havia s�culos, integrando
o catolicismo popular e as religi�es negras, agora abocanhava
a doutrina europeia na sua vertente mais popular. Da� a presen�a
de centros com nomes de santos como a Sociedade Beneficente Santo
Ant�nio de Lisboa ou a Sociedade Uni�o Esp�rita S�o Sebasti�o. Ou
da m�dium Joana Francisca Soares da Costa, que incorporava uma
preta velha, a Vov� Joana.

Aquilo que descreveu na Gazeta era talvez o que Jo�o do Rio
considerasse a "cren�a da popula�a" e "a flora estranha do spiritismo".
Mas os dados confirmam que a doutrina havia ganhado v�rias
frentes e esposava, tamb�m, as �ltimas tend�ncias cient�ficas vindas do
exterior. Eis o relato do jornalista:

Era num sal�o modesto de S�o Crist�v�o. Estava ali reunida
uma esquisita harmonia, a cren�a no invis�vel com todas as
suas opini�es. Havia o dono da casa, hesitante entre a religi�o
esp�rita, a indaga��o cient�fica e o devaneio ocultista; havia uma
senhora gorda m�dium; havia um pr�ncipe russo que pretendia
tocar piano sob a influ�ncia de Chopin; havia homens que
contavam sonhos e curas, progn�sticos e maravilhas, casos de
imposi��o de m�os e de influ�ncias de medicina filosofal; havia
m�dicos psiquiatras, engenheiros, membros de altas sociedades
londrinas de psicologia. Toda essa gente estava aquecida pelo
�ltimo artigo de Lombroso sobre a velha e cansada Eus�pia
Palladino. Os jornais tinham falado. Lombroso mais uma vez
afirmara ao mundo a influ�ncia do invis�vel.

Jo�o do Rio referia-se a C�sare Lombroso, psiquiatra e criminologista,
mas grande defensor do espiritismo na It�lia. Nessa �poca,
a Europa se debru�ava sobre fen�menos mec�nicos ou psicol�gicos
atribu�dos a for�as aparentemente inteligentes ou pot�ncias desconhecidas
da intelig�ncia humana. O nome dessa ci�ncia? A metaps�quica.
Seu fundador? O franc�s Charles Richet, futuro pr�mio Nobel de


DO OUTRO LADO

Medicina. Ela se constitu�a de tr�s fen�menos fundamentais: a ecto


plasmia, a criptestesia ou lucidez e clarivid�ncia e a telequinesia, ou

seja, a a��o mec�nica, que se exerceria sem contato, � distancia, em

condi��es determinadas, sobre objetos ou pessoas.

As interpreta��es de um n�mero crescente de intelectuais sobre a

clarividencia confirmavam a exist�ncia de um sexto sentido, a criptes


tesia, mais desenvolvida em algumas pessoas do que em outras. O pen


samento, assim como a realidade material, se comunicaria por outras

vias al�m das sensoriais comuns. Para isso, supunha-se que as coisas

emitiam vibra��es que n�o seriam percept�veis a nossos sentidos. Tais

vibra��es seriam, por vezes, captadas por perceptivos, son�mbulos e

m�diuns. O pensamento humano era uma realidade que, mais do que

outras, poderia sensibilizar os sentidos criptest�sicos, o que explicava

a relativa frequ�ncia de casos de telepatia.

A mencionada Eus�pia Palladino, longe de "cansada", era uma
das grandes figuras da metaps�quica. Ela produzia fen�menos de levita��o
e movimento de objetos, de apari��o de objetos, de toques
e ru�dos e at� mesmo de sons musicais. Num albergue em N�poles,

o pr�prio Lombroso viu voar uma mesa de oito quilos e objetos
pesad�ssimos, que ela fazia girar a 30 ou 40 graus. Ao lado de Richet,
ambos assistiram surgir uma rosa fresqu�ssima no colo da m�dium.
Juntos, observaram vasos de quinze quilos transportarem-se
de uma mesa a outra. E tudo � luz do dia, com Eus�pia cercada de
fios el�tricos ligados a campainhas para evitar que qualquer pessoa
se aproximasse. "Sou capaz de muito mais! Sou capaz de fazer-te ver
tua m�e", lan�ou a vidente ao s�bio. E assim o fez. A figura et�rea
da m�e de Lombroso apareceu e beijou-lhe a testa, dizendo: "C�sare,
figlio mio!'". E tudo reproduzido com fotos na Gazeta, inclusive o
rosto gordo e severo de Eus�pia!
Na Fran�a, um dispositivo imenso foi instalado nos institutos
de Medicina e Psicologia para avaliar as capacidades extraordin�rias
dessa mulher. Quarenta e tr�s sess�es foram realizadas ao longo de
tr�s anos , diante dos mais qualificados membros do mundo cient�fico,


MARY DEL PRIORE

inclusive Pierre Curie. Apesar de algumas pequenas fraudes, n�o se

afastou a evid�ncia da a��o ps�quica sobre os objetos.
Eus�pia Palladino materializava esp�ritos atrav�s de ectoplasmas.
Partes de esp�ritos eram emitidas pelo corpo de m�diuns, normalmente
pela boca. Subst�ncias brancas, mais ou menos s�lidas, foram atestadas
por numerosas fotografias. Eus�pia, por exemplo, formava uma
terceira m�o e produzia "fios flu�dicos ectopl�smicos". Mas, c�tico,
Jo�o do Rio a julgava "cansada"! E prosseguia num di�logo com um
amigo, "rico e viajado", que diagnosticava:

Presentemente, meu caro, o espiritismo, r�tulo geral de todas
as preocupa��es com o al�m, � a for�a vital do pensamento
da cidade. Antigamente, fazia-se isso com um pouco de cuidado,
escondendo da pol�cia as reuni�es. Hoje, faz-se tudo �s claras.
Em cada canto de rua encontra-se um centro esp�rita, em cada
beco h� um m�dico espont�neo receitando, em cada travessa
uma multid�o �vida de milagres roja aos p�s de um irm�o com
qualidades especiais. N�o se trata de mais uma seita com mais
ou menos partid�rios; trata-se de uma cidade inteira. Aqui, neste
sal�o, voc� encontra os religiosos propriamente, os cientistas, os
que se divertem, os ocultistas. No fundo, eles se divertem com o
que Charles Richet chama cientificamente a metaps�quica. Mas
h� a multid�o, a base dos in�meros sal�es como este; h� o povo,
e o povo na sua enorme ignor�ncia � o gado pr�prio a toda sorte
de explora��es e de embuste. Para estudar o espiritismo, o estado
m�rbido da cidade pelo milagre seria preciso al�m de um interrogat�rio
a pessoas calmas e entendidas, al�m de uma demorada
visita aos centros de religi�o, uma peregrina��o por quanta tenda
de milagres escancara por a� as portas.

Tem voc� lido os jornais ultimamente? V�m contando quase
todo dia os esc�ndalos do baixo espiritismo, as trapa�as, as
baboseiras, as explora��es, os defloramentos, uma s�rie de casos
em que a pol�cia tem que intervir. Entretanto, apesar disso,


DO OUTRO LADO

os centros continuam cada vez mais concorridos. E por qu�?
Porque o esp�rito humano, como l� diz o Elifas, tem a vertigem
do mist�rio, porque n�s somos pela heran�a, pela ra�a, pelo
ambiente em que nos desenvolvemos os for�ados do invis�vel.
Os pr�prios jornais, ao passo que fazem tro�a dos m�diuns falsificadores
- e nada mais dif�cil do que encontrar um m�dium
verdadeiro -, d�o not�cia das casas mal-assombradas, das predi��es
realizadas e fazem um barulh�o a prop�sito das coisas mais
velhas como essa da Eus�pia Palladino que o velho Lombroso
acha mesmo capaz de uma s�rie de coisas. Tudo isso acontece,
aquece, anima, incendeia a alma popular, e se eu gosto de ouvir
falar esp�ritos, o povo n�o precisa nem que eles falem. Basta-lhe
a certeza de que um homem � capaz de cur�-los ou de consol�-
los a troco de uma pequena soma.

[...] Depois, n�o � s� o milagre do contato com o que n�o se
v�. H� tamb�m para aliciar o ex�rcito de fi�is masculinos, as mulheres,
o grande elemento das cren�as mais loucas. Na baixa classe
muitos homens n�o se ralam com isso, querem descansar e v�o
�s sociedades esp�ritas como quem vai � farm�cia, s� quando se
acham doentes. Mas as mulheres est�o l� e sempre l�. O marido
briga? O esp�rito resolver�. O amante espanca-a? O esp�rito falo-
� voltar �s boas. Os filhos est�o doentes? As almas, com �gua,
arranjam tudo. O espiritismo � o ideal, � a esperan�a, � a paz, �
a sa�de, principalmente um centro onde elas se elevam - elas, as
mulheres de homens rudes que as tratam como sacos de filhos e
criadas sujas - a esferas superiores.

Fict�cio ou n�o, o amigo de Jo�o do Rio n�o estava errado. A
participa��o feminina no movimento esp�rita ajudou a consolid�-lo
enquanto valorizava uma presen�a que n�o importava no mais da
vida social: a da mulher. O pa�s machista e patriarcal se curvou diante
das grandes sacerdotisas nos centros ou nos terreiros.


MARY DEL PRIORE

FRONTEIRAS DO AL�M
Se voc� acredita em fantasmas, almas do outro mundo ou esp�ritos,
percebeu ent�o que n�o est� traindo seus antepassados. Eles tamb�m
acreditavam. E seguimos acreditando por uma raz�o: h� infinitas
quest�es sem resposta. Durante o s�culo XIX, a ci�ncia tentou afogar

o maravilhoso: sem sucesso. O s�culo XIX foi, tamb�m, aquele em que
o poder sobrenatural se confrontou com o institucional. A ordem l�gica
n�o conseguiu se impor, apesar de todas as conquistas da ci�ncia. E
o que se viu foi a rea��o da Igreja, de pol�ticos, de m�dicos e de laicos
diante do avan�o quase inexor�vel do irracional. Empurrado para a
marginalidade ou a clandestinidade, o sobrenatural progrediu.
No universo sobrenatural, "mortos-vivos", esp�ritos ou fantasmas
fazem parte do cen�rio desde a Antiguidade e a Idade M�dia. Eles
atravessaram os s�culos invadindo a literatura rom�ntica, fant�stica e
g�tica. Emergiram de castelos assombrados por fantasmas e vampiros,
todos eles atores de uma cultura que acreditava em sua exist�ncia.
Hoje fazem parte do cinema e dos quadrinhos. E tamb�m das pesquisas
nas �reas de parapsicologia e metapsicologia. De espiritismo e
de sess�es de vid�ncia. O esfor�o recente de t�cnicas de comunica��o
tornou poss�vel abolir as fronteiras entre o aqui, o perto, e o longe.
Ou o 3 D aumentou a confus�o entre o vis�vel e o invis�vel, o real e o
imagin�rio. A palavra m�dia tem a mesma raiz de m�dium. Portanto,

o fen�meno n�o � marginal, e o aparente irracionalismo de pr�ticas
e teses parece apenas recobrir o interesse que sempre existiu sobre o
outro lado.
O s�culo XIX, que permitiu a volta do sobrenatural, tamb�m
consolidou a ideia de progresso. Inspirou a bandeira brasileira: "Ordem
e Progresso"! Segundo especialistas, todos os que, no s�culo
XIX, foram porta-vozes dos valores de progresso e evolu��o fizeram
refer�ncia aos mortos, ao invis�vel e ao oculto. Todos tomaram
dist�ncia em rela��o ao catolicismo, que n�o permitia que se ouvisse
o barulho, o ru�do ou a conversa vinda do outro lado. Todos
consideravam uma brincadeira a ideia de "ressurrei��o no final dos


DO OUTRO LADO

tempos". Todos estimavam que a emancipa��o da sociedade passava
por uma rela��o direta com o al�m.

Ao lado da ideia de progresso, portanto, o grande tema do Oitocentos
foi a morte e os mortos. Eles nunca estiveram t�o presentes.
Criaram-se cemit�rios - cidades dos mortos com ruas e avenidas, t�mulos
de ricos e de pobres. Ex�quias p�blicas, acompanhadas por multid�es
na rua, como as de Victor Hugo ou de dom Pedro II, entravam
na moda. Surgiram os especialistas em fabricar t�mulos e disseminar
novas pr�ticas funer�rias. Teve in�cio o combate �s epidemias e aos
altos �ndices de mortalidade. A morte entrou com pompa na vida. Ela
deixou de ser um de seus aspectos para ser o grande Outro. Ela passou
a deusa negra da noite, a Dama Branca, a Rainha Leto. Ela emergiu
na pintura alem� e n�rdica, no poema dos simbolistas, enfim, era vista
como uma esfinge a interrogar.

Sim, pois as descobertas no Egito - no vale dos Reis, em Luxor,
e em Karnak - colocavam a morte como parte integrante das culturas
desaparecidas. At� mesmo na m�sica, as marchas f�nebres de Chopin
ou Saint-Saens remetem � import�ncia do momento de passagem.
Acreditava-se que a morte podia dar respostas para a vida. A pr�pria
Hist�ria, ent�o considerada uma ci�ncia, tamb�m n�o queria mais
evocar os mortos. E sim ressuscit�-los.

Os grandes s�bios, profetas, vision�rios e intelectuais da �poca
batalhavam em favor da justi�a social e da igualdade, buscando uma
ruptura com o passado e se voltando deliberadamente para o futuro.
E, para constru�-lo, nada melhor do que consultar o passado na voz
dos que partiram. Apenas dando-lhes as m�os, apoiando-se neles, poder-
se-ia construir um futuro melhor. O espiritismo permitia articular
uma s�ntese in�dita entre morte, evolu��o e progresso. A doutrina foi
pioneira em falar abertamente da reencarna��o. E da reencarna��o
associada ao progresso. Do progresso pela encarna��o ou gra�as a ela.

O encontro com as religi�es do Oriente, gra�as �s in�meras sociedades
cient�ficas de explora��o das col�nias europeias na �sia, o
estudo comparado das l�nguas indo-europeias, o tratado de Frederic


MARY DEL PRIORE

Schlegel sobre a l�ngua e a filosofia indianas, a teosofia de madame
Blavatsky, o romantismo alem�o, enfim, todas essas correntes de pensamento
alimentaram uma nova quest�o: como a morte e o morrer
eram tratados em outras culturas?

Entre n�s, desde sempre, brancos, negros, mulatos, �ndios, africanos
e brasileiros pertenceram a um universo mental controlado por
for�as mentais que, segundo acreditava a maioria, podiam ser ativadas
por especialistas religiosos. O pensamento m�gico ou as solu��es milagrosas
para problemas do cotidiano n�o eram privil�gio de ningu�m.
Ainda que estivesse inserido numa cren�a dominante, todo mundo podia
circular de um sistema religioso para outro, sem lucros cessantes
nem danos emergentes.

O sobrenatural, a feiti�aria e a adivinha��o, tanto europeus
quanto ind�genas ou africanos, sempre existiram. A vis�o org�nica do
mundo e a cren�a em poderes intermedi�rios na figura de esp�ritos,
anjos, dem�nios e for�as ancestrais somaram-se a outras formas de
espiritualidade esot�rica conectadas com os tempos de ent�o. Tempos
em que o cientificismo, as utopias sociais e o espiritualismo se cruzavam
num ambiente de extrema porosidade. Tais formas de ver o
mundo tinham pontos comuns: elas tomavam como ponto de partida
a cren�a num mundo real em oposi��o ao sobrenatural. E, entre eles,
portas, caminhos, aberturas.

Aberturas que se escancararam no s�culo XIX. Pois foi esse o
s�culo do nascimento do espiritismo. Espiritismo que, no Brasil, na
virada para o s�culo XX, se transformou numa nebulosa, diversificando-
se em in�meros grupos com centenas de nuances. Firmou-se um
espiritismo de origem europeia, s�brio, sem sincretismo com cultos
populares. Mas tamb�m um espiritismo popular, que incorporou pr�ticas
de curandeiros, feiticeiros e son�mbulas, misturando-se com o
tradicional culto centrado nos santos.

A primeira fase do espiritismo teve como mediadores homens
sinceramente empenhados em "curar um mundo doente". Segundo
eles, a humanidade entraria numa nova fase de progresso moral. Tal


DO OUTRO LADO

como os positivistas, o "progresso", estendido a todos, era a preocupa��o
central.

Hippolyte Leon Denizard Rivail, ou Allan Kardec, anunciou o
espiritismo como uma nova Reforma religiosa esclarecida e adaptada
� era da efic�cia e da ci�ncia. Portanto, a essa nova sociedade. Prop�s
a solidariedade de todas as institui��es que j� trabalhavam para a
melhoria dos indiv�duos, contra os detritos do catolicismo do passado:
obscurantista e centralizado. Essa agenda em curso na Europa foi
esposada pelos nossos esp�ritas � mesma �poca.

Mas n�o foi a �nica religi�o a se disseminar. Entre o in�cio da Rep�blica
e o Estado Novo, um imenso espectro delas, como o candombl�,
a jurema, a macumba, o tambor de Mina, o xang� do Nordeste,
buscaram legitimar suas pr�ticas exaltando as tradi��es nag�s. Nascia
tamb�m a umbanda, cujos l�deres fizeram quest�o de apresent�-la como
uma religi�o brasileira. Resultado do encontro entre brancos, �ndios e
negros, ela promoveu um sincretismo pensado e consciente entre as diversas
religi�es que cresceram no Brasil em 400 anos.

Se a ideia de "progresso" marcou o s�culo XIX, a de "sagrado",
por�m, � permanente. J� em meados do s�culo XX, em plena Guerra
Fria, apostava-se no fim das religi�es. A racionaliza��o da vida social e

o "desencantamento do mundo" - como o chamava Max Weber - pareciam
acompanhar a expans�o das ci�ncias. O marxismo, reinante nas
institui��es de conhecimento, se encarregava de obscurecer a no��o de
f�, e alguns de seus porta-vozes caricaturizavam qualquer cren�a.
Mas se, ao longo do �ltimo s�culo, assistimos ao decl�nio de in�meras
institui��es religiosas, vimos tamb�m o "religioso" renascer sob
novas formas. No in�cio do Terceiro Mil�nio, a experi�ncia coletiva do
sagrado e a imagina��o religiosa emprestaram caminhos in�ditos. Redes
m�sticas se espalharam pelo mundo. Nas sociedades ditas modernas,
as cren�as proliferaram e o sentimento religioso se recomp�s. Sentimento
mais focado nas modalidades de f� do que no conte�do das mesmas.

Houve, tamb�m, um estilha�amento da esfera religiosa, com
cada um acreditando no que quer ou precisa. Existem formas novas,


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fragmentadas e sem enquadramento de cren�as, as mais variadas. N�o
se trata mais de inquirir se Deus existe ou n�o, mas de se concentrar
sobre os efeitos ben�ficos de "crer". Formou-se uma esp�cie de "supermercado"
do religioso, no qual os "produtos religiosos", de livros
a CDs, de imagens a programas de televis�o e filmes, est�o ao alcance
das m�os e do bolso.

Mas a busca do sagrado, do maravilhoso e do sobrenatural permaneceu.
O sobrenatural definido pela teologia como um conjunto
de causas e efeitos que n�o pertencem ao sistema de cria��o vis�vel.
Conjunto que escapou do funcionamento aparentemente regular da
natureza e em cuja cena se operam curas e milagres. Sobrenatural que
� magia e mist�rio. E, sobre o qual, j� dizia santo In�cio de Loyola:
"Para quem acredita, nenhuma palavra � necess�ria; para quem n�o
acredita, nenhuma palavra � poss�vel".


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02/12/1870
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No ARQUIVO DO MUSEU IMPERIAL

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M. 119-Doc. 5911
M. 120-Doc. 5966
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DO OUTRO LADO

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Cidade do Rio, 16-08-1889, ano III, n� 183, p. 2.
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Diario de Noticias, 21-10-1870, ano I, n� 69, p. 1.
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Diario de Noticias, 28-12-1870, ano I, n� 125, p. 1.


MARY DEL PRIORE

n� 101, p. 1.



DO OUTRO LADO


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MARY DEL PRIORE



DO OUTRO LADO


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MARY DEL PRIORE


DO OUTRO LADO



MARY DEL PRIORE



MARY DEL PRIORE, ex-professora
de hist�ria da USP e da PUC/RJ, p�s-
doutorada na �cole des Hautes �tudes en
Sciences Sociales, de Paris. Possui mais
de 40 livros publicados e � vencedora
de v�rios pr�mios liter�rios nacionais e
internacionais, como Jabuti. Casa Grande �
Senzala, APCA e Ars Latina, entre outros.
Foi colunista do jornal O Estado de S. Paulo
por dez anos. Colabora para jornais e
revistas, cient�ficos e n�o cient�ficos,
nacionais e estrangeiros. � s�cia titular
do Instituto Hist�rico e Geogr�fico
Brasileiro e membro do Instituto Hist�rico
e Geogr�fico do Rio de Janeiro, do P.E.N.
Club do Brasil, da Real Academia de
La Historia de Espanha e da Academia
Portuguesa da Hist�ria. Atualmente,
leciona na p�s-gradua��o de hist�ria
da Universidade Salgado de Oliveira, no
Rio de Janeiro.

Outros t�tulos da autora:

Uma Breve Hist�ria do Brasil
(escrito com Renato Ven�ncio)

Hist�rias �ntimas

Hist�rias e Conversas de Mulher




Olá, pessoal:
                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação de livros espíritas e não espíritas para atender aos deficientes visuais.
                   Agradecemos ao Irmão Fernando Santos  pela digitalização e ao irmão Adeilton pela doação.
                    Pedimos não divulguem em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.

O Grupo Allan Kardec  lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa   leitura !

Do Outro Lado - Mary del Priori 
Sinopse:
A autora trata de que forma nossos antepassados lidavam com esse mundo dos espíritos
Focando no desenvolvimento do espiritismo criado por Allan Kardec


De: Reginaldo Mendes -
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Abraços fraternos!

 

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