quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

para veronica e kem mais kiser: Nora Roberts - Amor Maior Que Tudo.txt

Amor, Maior Que Tudo
Nora Roberts


Corpos febris, gemidos abafados. É o amor!

"Que lábios sensuais e tentadores, Devem ser macios." Laurel imagina ao deter o
olhar sobre eles. Macios e ao mesmo tempo violentos, apaixonados, másculos. Bastaria a
ela chegar mais perto, erguer o rosto.

Sexo com ela deve ser una experiência e tanto! Matt tem desejos de agarrá-la e roubar
aquele beijo que Laurel quase lhe deu espontaneamente.

O ontem e o amanhã estão bloqueados pelo presente. Laurel e Matt: loucos, loucos...
CAPÍTULO I

Tumulto. Vozerio. Telefones tocando sem parar. Pessoas correndo de um lado para
outro. Barulho de máquinas de escrever. Odores que se misturavam: café requentado,
suor, fumaça de cigarro. Um asilo de loucos talvez? Não, simplesmente a sala de
redação do New Orleans Herald, no horário do fechamento da edição.
Para a maioria daquelas pessoas, o caos passava despercebido, como se fosse o ato de
respirar. Havia vezes em que um e outro encontravam-se tão envolvidos na tarefa de
redigir as matérias que mal tinham consciência da presença dos colegas. Não porque
fossem exclusivistas ou pouco dados ao trabalho em equipe. Integrantes da seleta
comunidade dos jornalistas, todos eles amavam a profissão e respeitavam as suas
regras. Afinal, um bom repórter aprende a se concentrar na própria matéria e a desen-
volver um estilo peculiar em meio às pressões e à confusão de uma sala de redação. Um
bom assunto, por si só, não basta para fazer de um jornalista um profissional
competente e respeitado. Matthew Bates aprendera tudo isso desde cedo, começando
como boy em um jornal de Manhattan, passando mais tarde a escrever obituários e
chegando a cobrir exposições de flores.
A habilidade de farejar uma boa notícia e transformá-la numa matéria de destaque
fora desenvolvida fora do curso de jornalismo. Na verdade, a faculdade simplesmente
aprimorara certas técnicas e fizera desabrochar de forma mais estruturada todas as
potencialidades que ele trazia dentro de si.
Aos trinta anos, Matt encarava a vida com um humor cínico e debochado. Era um
cético. Gostava das pessoas, mas não tinha ilusões acerca delas. Compreendia e
aceitava o fato de que os humanos eram seres que beiravam o ridículo. Não poderia ser
de outro modo, já que, por força da profissão, era obrigado a expor constantemente a
raça humana, virando-a pelo avesso.
Terminada a matéria, entregou-a ao editor e, pela primeira vez em três horas, pôde
descansar a mente. Reclinou-se na cadeira e começou a divagar. Um ano atrás, saíra de
Nova York para trabalhar no Herald, desejando, talvez mais do que isso, necessitando
de uma mudança. Insatisfação, constatava agora. Insatisfação por algo que nem mesmo
ele sabia definir. New Orleans era uma cidade, sob certos aspectos, tão fria e opressiva
quanto Nova York.
Ele escrevia para a página policial e não tinha do que se queixar. Afinal, a violência e
o desespero faziam parte do mundo e não podiam ser escondidos ou ignorados. O
homicídio que acabara de cobrir fora brutal e com requintes de sadismo. Agora virará
notícia. Era preciso ser objetivo na narração dos fatos, caso contrário melhor seria
seguir outra profissão. Ainda assim, o quanto lhe custara não pensar na morte daquela
pobre menina de dezoito anos...
Matt não tinha ares de jornalista e sabia disso. Físico atlético, loiro e bronzeado, mais
se assemelhava a um surfista do que a um repórter que levava o trabalho a sério. Aos
vinte anos, isso o deixava exasperado. Agora, com a mesma aparência de dez anos
atrás, o fato pouco incomodava. Na verdade, aprendera a encarar com bom humor o
olhar de incredulidade das pessoas.
Quando queria, sabia se vestir com esmerada elegância. O seu charme o tornava
irresistível às mulheres. Mas aqueles olhos azuis, sempre alegres, podiam se

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transformar em duas pedras de gelo de uma hora para outra. Sob a fachada de homem
de fácil convívio escondiam-se uma determinação e uma frieza impressionantes.
Com um meio sorriso, voltou-se para a mulher que ocupava a mesa ao lado, Laurel
Armand. Um rosto tão romântico quanto o nome. Havia uma aura de delicadeza em
torno dela que o desconcertava. A pele muito alva nascera para ser tocada com toda a
gentileza. Os cabelos caíam fartos até os ombros, despertando em Matt o desejo de
mergulhar neles os dedos e o rosto. Os olhos, de um verde inigualável, causariam inveja
às esmeraldas.
Gestos calmos e comedidos, voz suave e feminina, Laurel se assemelhava a uma
donzela do século XIX. Mas aquela aparência mansa, ele sabia muito bem, ocultava
uma mulher forte e decidida, uma repórter ambiciosa.
O sorriso de Matt se alargou. Um de seus passatempos favoritos era tentar coadunar
características tão contrastantes com aquele rostinho de anjo.
Laurel terminou a matéria, tirou a folha da máquina e olhou para o homem que a
estudava com ar divertido. Endireitou o corpo instintivamente.
-- Algum problema, Matthew? -- perguntou, com voz calma e expressão entediada.
-- Nenhum, Laurellie. -- Referiu-se a ela desse modo só para ter o prazer de ver se
acender nos olhos verdes um brilho de desagrado.
Mas Laurel não perdeu a linha:
-- Você não tem algum outro crime com que se ocupar? Ele sorriu, curvando os
lábios de um modo irônico e irresistível.
-- No momento, não. E você? Já acabou de escrever o capítulo de hoje?
Ela mordeu o lábio, furiosa diante da provocação. Matthew não perdia o hábito de
caçoar do seu estilo vibrante, tão diferente do dele. Apertou as mãos embaixo da mesa e
sorriu docemente, sem dar a ele o gosto de vê-la contrariada.
-- Eu deixo o cinismo para você, meu caro. Ninguém é capaz de expor de um modo
tão asséptico a miséria humana.
-- Que tal apostarmos sobre qual das duas matérias ocupará a primeira página? --
Matthew desafiou.
Laurel ergueu uma das sobrancelhas de modo gracioso, um gesto que ele apreciava
particularmente.
-- Eu não gostaria de tomar o seu dinheiro, Matthew.
-- Também não me importo de tirar o seu. -- Sorrindo, levantou-se e foi até a mesa
dela. Inclinando-se ligeiramente, acrescentou: -- Cinco dólares, meu bem. Que tal?
Ainda que seu pai seja o dono do jornal, nossos editores sabem a diferença entre uma
reportagem e um romance.
Ele podia ver o sangue subindo às faces de Laurel, a respiração prendendo-se
abruptamente. Sentiu-se tentado a esmagar-lhe os lábios e provar toda aquela fúria
contida. Mas não, esse não seria o modo adequado de lidar com Laurel Armand, por
mais que se sentisse atraído por ela.
-- Já que você é tão valente, Matthew Bates, eu proponho que dobremos a aposta. --
Levantou-se e foi obrigada a encará-lo de frente. O que mais a deixava furiosa eram
aqueles olhos confiantes, lindos e com um brilho divertido. Droga! Por que ele não era
gordo, baixinho e careca? -- A menos que você considere dez dólares uma quantia
elevada demais para os seus padrões.


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-- Para provar que sou um cavalheiro -- disse ele, segurando-lhe uma mecha dos
cabelos -- eu a levarei para almoçar assim que você me pagar os dez dólares.
Laurel sorriu. Estavam tão próximos que seus corpos quase se roçavam. Matt sentiu
o sangue correr forte nas veias. Gostaria de tomá-la nos braços ali mesmo.
-- Claro, quando o inferno se transformar numa montanha de gelo -- revidou ela,
dando-lhe as costas.
Ele enfiou as mãos nos bolsos e riu, observando Laurel afastar-se rapidamente. Na
confusão daquela sala, ninguém notara o diálogo.
-- Sujeitinho intragável! -- Laurel praguejou, enquanto conduzia o carro pelo
tráfego congestionado.
Matthew Bates era o homem mais insuportável que ela conhecera. Amaldiçoou o
destino. Se seu irmão Curt não fosse amigo dele desde os tempos de faculdade, era bem
provável que agora Matthew não estivesse trabalhando no Herald. Ele ainda estaria em
Nova York, bem longe das vistas dela.
Contudo, embora lhe custasse muito, era honesta o bastante para admitir que ele era o
melhor repórter do jornal. Matthew tinha instinto e um faro de perdigueiro, qualidades
que nem todos os jornalistas possuem, por melhor que escrevam. Só que isso não o
tornava menos irritante.
Pisou nos freios, evitando uma batida. Matthew Bates conseguia até mesmo desviar-
lhe a atenção do trânsito.
A matéria que ele fizera sobre o homicídio estava excelente: concisa e limpa. Laurel
gostaria de ter-lhe enfiado aqueles dez dólares goela abaixo. Só isso o impediria de
arrotar tanta arrogância, pelo menos por algum tempo.
Nesses doze meses em que estiveram trabalhando juntos, Matthew nunca agira em
relação a ela como os demais homens. Não havia respeito nos olhos dele, nem mesmo
admiração. Era como se a desprezasse.
Nunca a convidara para sair. Não que ela fizesse questão disso, pelo amor de Deus!
Laurel apenas lamentava o fato de jamais ter tido o prazer de lhe dizer um não bem
redondo. Nem mesmo quando ele se mudara para o apartamento vizinho ao dela, jamais
usara uma desculpa qualquer para aparecer. Durante um ano ela desejou que Matthew
fizesse isso -- apenas para ter a chance de bater a porta na cara dele.
O que Matthew costumava fazer era tornar-se insuportável de uma série de outras
maneiras. Ah, os comentários idiotas que ele fazia a respeito dos homens com quem ela
saía! O pior de tudo, e o que a deixava ainda mais irritada, era que, invariavelmente, ele
tinha razão nos julgamentos. Nos últimos dias, a vítima vinha sendo Jerry Cartier, um
vereador ultraconservador com que Laurel começara a sair. Ela não tinha motivo para
gostar dele, mas, passara por cima da sua própria opinião apenas para dar o contra em
Matthew Bates.
A vida seria mais simples, se ele não existisse ou se, pelo menos, continuasse a
ganhar a vida em Manhattan. Por que cargas-d'água Matthew tivera que trabalhar no
Herald e, pior, morar no mesmo prédio que ela? Ela não merecia um destino desses. Se
ao menos ele não fosse tão atraente...
Munindo-se de toda a sua força de vontade, Laurel tirou Matt e os dez dólares da
cabeça e passou a se concentrar exclusivamente no trânsito.
Ao entrar na rua que levava à casa de sua família, experimentou uma sensação que
misturava orgulho e tranqüilidade. As copas largas das árvores formavam uma espécie

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de túnel fresco, que filtrava a luz do sol naquela tarde brilhante. Os cedros e o ciprestes,
o som musical dos pássaros davam um encanto especial ao lugar.
No fim da rua, Laurel parou para observar a construção de dois andares, toda branca
e com a fachada alegremente enfeitada por uma profusão de azaléias, magnólias e
camélias. As cores, vivas e delicadas, os odores, exóticos e suaves, combinavam
harmonicamente com as colunas dóricas, que davam um ar de dignidade à casa. O
trabalho nas grades que circundavam o terraço era tão delicado quanto o das portas e
janelas. Como Laurel amava aquele local de recordações tão felizes...
Subiu os degraus que levavam à varanda e entrou pela porta maciça e ricamente
trabalhada. O hall era perfumado por uma essência deliciosa e bastante familiar, que
misturava a fragrância das flores com o cheiro da cera que fazia brilhar o assoalho de
madeira. Olhou-se no espelho e ajeitou os cabelos antes de ir para a sala.
-- Oi, papai.
Foi até ele e colocou-se na ponta dos pés para beijá-lo. William Armand era um
homem bonito e conservado. Os cabelos negros apresentavam apenas um leve toque
cinza nas têmporas. Enquanto dirigia o jornal com firmeza e tenacidade, o ritmo da vida
em família era mais sereno e tranqüilo. Como de hábito, afagou os cabelos da filha,
desalinhando-os.
-- Oi, princesa. Bom trabalho, naquela reportagem sobre o prefeito. -- Ergueu as
sobrancelhas, intrigado, quando percebeu um flash de irritação nos olhos dela.
-- Obrigada -- Laurel retrucou rapidamente, com um sorriso. O brilho estranho não
estava mais lá, fazendo William acreditar que havia imaginado coisas.
Voltando-se para a mulher que estava sentada no sofá, Laurel parou um momento
para observá-la. Os cabelos totalmente brancos emolduravam um rosto levemente
enrugado e bem maquilado. Olívia Armand não poupava esforços com a aparência e os
cuidados pareciam dar resultados.
-- Vovó, você não envelhece nunca? -- Laurel perguntou, abaixando-se para beijá-
la.
-- Não, enquanto eu puder evitar -- retrucou a velha senhora, com a voz
enrouquecida pela idade. Beijou a neta e, sem desviar os olhos dela, foi logo
perguntando: -- Como anda a sua vida sentimental, Laurellie?
Sorrindo, Laurel sentou-se ao lado dela e, depois de aceitar o drinque que o pai lhe
oferecia, respondeu:
-- Não tão movimentada quanto a sua, vovó.
-- Ah, aí é que está o problema com a juventude de hoje: muito trabalho e pouco
romance. Você, por exemplo, minha querida, por que insiste em perder tempo com
aquele maçante do Cartier? Ele não tem sangue quente o bastante para aquecer uma
mulher na cama.
Ignorando a fisionomia de reprovação do pai, Laurel retrucou, olhando para o alto
com ar de agradecimento:
-- Graças a Deus! É o último lugar onde eu gostaria de estar com ele.
-- Já é tempo de você encontrar um homem de verdade.
-- Mamãe! -- William repreendeu-a, escandalizado. Laurel sorriu, incapaz de
resistir ao modo como a avó conduzia a conversa, ignorando totalmente a presença do
filho.
-- Curt está para chegar, não é? -- perguntou ao pai.

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-- A qualquer momento. -- Aliviado pela mudança de assunto, William instalou-se
na poltrona. -- Ele telefonou pouco antes de você chegar. Vai trazer alguém para jantar
conosco.
-- Uma mulher, eu espero -- Olívia retrucou, levando o copo de uísque aos lábios.
-- Esse menino vive com o nariz enfiado nos livros. Ah, que netos foram arranjar, meu
Deus! Um só quer saber de advocacia, a outra só sabe falar de jornal.
-- Eu ainda não estou pronta para me casar -- Laurel desculpou-se tranqüilamente,
erguendo o copo contra a luz.
-- E quem falou em casamento? -- Olívia replicou. Deu um suspiro e olhou para o
filho, desalentada. -- As crianças não hoje não sabem de nada.
Laurel estava rindo, quando ouviu a porta da frente se abrir.
-- Deve ser Curt. Vou até lá, avisá-lo do que você está tramando contra nós.
-- Essa menina está cada vez mais bonita -- Olívia comentou, quando a neta saiu.
-- Puxou você -- William retrucou casualmente, enquanto acendia um charuto.
-- E eu não sei disso? -- concordou ela, com um sorriso orgulhoso.
No instante em que chegou ao hall, Laurel sentiu o sorriso fugir-lhe repentinamente
dos lábios. Os olhos se fixaram na pessoa que vinha acompanhando Curt.
-- Ah, é você?
Matt tomou-lhe uma das mãos e beijou-a antes que ela pudesse afastá-la daquele
contato.
-- Puxa, como admiro a hospitalidade dos sulistas! -- "Bom Deus", ele pensou, "esta
mulher me deixa louco. Um dia, Laurel Armand, eu vou acabar com essa sua pose,
prometo".
Ignorando o comentário sarcástico, ela se voltou para o irmão. Ele possuía o rosto
aristocrático e os traços físicos do pai, embora os olhos fossem os de uma pessoa
sonhadora. Sorriu afetuosamente para ele.
-- Oi, Curt. -- Colocou as duas mãos sobre os ombros do irmão e ergueu-se para
dar-lhe um beijo. -- Tudo bem com você?
-- Tudo bem, apesar de muito ocupado com o trabalho -- respondeu distraidamente.
-- Nem toque no assunto, pelo amor de Deus! -- recomendou ela. -- Vovó não está
com espírito para conversar sobre negócios.
Ele lançou à irmã um olhar tão desanimado que ela não viu outro jeito senão sorrir e
beijá-lo novamente. Pobre Curt, pensou com simpatia. Tão tímido, tão indefeso... Ao
virar o rosto, seu olhar cruzou inadvertidamente com o de Matt. Ele a observava com ar
frio, embora ela detectasse um brilho indecifrável naquela expressão aparentemente
distante. Manteve-se firme, sentindo um arrepio na espinha. Quem seria ele realmente?,
pensou pela enésima vez, desde que o conhecera. Por que, depois de um ano de
convivência, ele ainda era um enigma para o seu cérebro? Sempre a intrigara o fato de
um homem tão cínico e com tamanha energia para a vida e para o trabalho ser amigo de
seu irmão, exatamente o oposto. Curt era um sonhador, uma pessoa gentil e sensível.
Como era possível que conseguisse suportar até mesmo a simples presença de Matt?
Mais ainda: como uma amizade dessas podia estar durando tanto?
Viu o sorriso irônico nos lábios dele e só então se deu conta de que o estivera
observando por mais tempo do que devia. Recriminou-se mentalmente e desviou o
olhar para o irmão.


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-- Acho melhor entrarmos -- disse Curt, obviamente insensível às correntes elétricas
que tornavam tenso o ar em volta deles. Sorriu para ambos e acrescentou: -- Vamos ter
que enfrentar a fera, mais cedo ou mais tarde. Talvez você consiga distraí-la, Matt.
Cativar as mulheres é o que você sabe fazer melhor do que ninguém.
Laurel não perdeu a deixa para a provocação, que veio ríspida e veloz como uma
bala:
-- Aposto que sim.
Matt apenas sorriu. Parecia estar se divertindo com aquilo, e Laurel ficou ainda mais
irritada consigo mesma. Ergueu o queixo e jogou os cabelos para trás, num gesto
insolente que sempre agradara a ele. Sem dar a ela tempo para reagir, Matthew pegou-
lhe o braço.
-- Faça o favor de tirar as mãos de mim! -- ordenou ela em voz baixa.
-- Por quê? Isso a embaraça?
-- "Ora, seu..." -- Não teve tempo de verbalizar o pensamento, pois já estavam
entrando na sala.
Matt sempre gostara daquela casa, principalmente da sala de estar. Ali se respirava
um ar saudável e familiar, em tudo distante da atmosfera lúgubre dos cubículos em que
vivera no passado. Mas aquela era uma etapa vencida, graças a Deus, embora algumas
sombras descessem vez por outra sobre a sua vida de repórter bem-sucedido. Era difícil
apagar completamente tantos anos de luta e sacrifício.
-- Ah, então era essa a surpresa! -- Olívia exclamou, satisfeita.
Curt fez um aceno para o pai, beijou obedientemente a avó e afastou-se para preparar
os drinques. Olívia estava novamente com aquele brilho no olhar e ele não queria dar a
ela a menor chance de usá-lo para exercitar as piadinhas de sempre.
-- Olívia, é um prazer vê-la novamente -- Matt cumprimentou-a, beijando-lhe a
mão. -- Está ainda mais bonita, desde a última vez que a vi.
-- Tratante -- acusou-o, embora recebesse com prazer o elogio. -- Você ficou muito
tempo sem aparecer. Na minha idade, um mês conta bastante.
Matt beijou-lhe a mão novamente e devolveu-lhe o sorriso.
-- Eu só não apareço mais porque você se recusa a aceitar o meu pedido de
casamento.
Laurel esforçou-se para conservar o ar sisudo. Ele tinha que ser tão charmoso e
encantador?
O riso de Olívia era de satisfação. Não conseguia ficar imune a comentários
lisonjeiros sobre sua pessoa.
-- Trinta anos atrás, seu patife, você teria uma chance, mesmo sendo um yankee.
Matt aceitou o copo que Curt lhe estendia e voltou a se concentrar no diálogo.
-- Que pena você colocar a idade como empecilho. -- Sentou-se no braço da
cadeira, enquanto Laurel observava, enciumada, o tratamento que a avó dirigia a ele.
-- Já que não há chance para nós, por que você não faz uma tentativa com aquela
mocinha ali? -- perguntou Olívia, esticando o olhar para a neta. -- Laurellie, este, sim,
é capaz de fazer o sangue de qualquer mulher correr forte nas veias.
Um rubor de embaraço e aborrecimento tingiu o rosto de Laurel. Matt havia se
voltado para ela e sorria com ar divertido. Sem ter o que dizer, ela se sentou,
praguejando contra a facilidade da avó em colocá-la nas situações mais
constrangedoras.

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-- Vê como ela fica vermelha? -- Olívia prosseguiu, sem o menor tato. -- Ah, as
artimanhas femininas... -- Deu um tapinha na coxa de Matt e piscou um olho. --
Depois de um marido e três casos de amor na minha vida, não sei se ainda conservo
essa capacidade para corar. -- Sorrindo diante do olhar escandalizado da neta, ela
prosseguiu: -- É muito bonita, você não acha, Matthew?
-- Adorável -- concordou ele, divertindo-se tanto quanto a velha senhora.
-- Pode lhe dar filhos lindos.
-- Tome mais uma dose de uísque, mamãe -- William sugeriu, atendendo ao pedido
de socorro no olhar da filha.
-- Boa idéia. -- Olívia estendeu-lhe o copo vazio. -- Você ainda não viu como o
jardim está florido, Matthew. Laurellie, leve este yankee para fora e mostre-lhe as
minhas flores.
Laurel presenteou a avó com um olhar dos mais gelados.
-- Tenho certeza de que Matthew...
-- Eu adoraria -- ele disse, completando a frase por ela e pondo-se de pé.
Laurel não saiu do lugar e sustentou-lhe o olhar com frieza.
-- Eu não...
-- O que é isso? -- interrompeu-a. -- Não está querendo me mostrar as flores que
são o orgulho de sua avó? -- E foi até ela para ajudá-la a se levantar.
"Você me paga, Matthew Bates!", disse para si mesma, odiando a idéia de ficar
sozinha com ele. Ah, se os outros não estivessem presentes, ela o trataria de acordo.
-- Você adora fazer isso, não? -- murmurou entre os dentes, quando a porta se
fechou atrás deles.
-- Isso o quê?
-- Me provocar.
Ele deu risada, mas, antes que tivesse a chance de retrucar, Laurel saiu na frente.
-- Aqui está o jardim -- anunciou, com um gesto largo e forçado. -- E você não vai
querer ver mais nada, porque não estou com a menor disposição para ser seu cicerone.
Matthew pegou-lhe uma das mãos.
-- Quer parar? -- ela ordenou, tentando se soltar. -- Você agora deu para fazer isso.
Está pondo as manguinhas de fora.
-- Eu sempre faço o que tenho vontade. -- Sem que ele a soltasse, entraram no
jardim. -- Além disso, você não está se empenhando muito para me mostrar as flores
de Olívia. Se voltarmos para a sala agora, ela poderá suspeitar que você sente por mim
algo mais do que gostaria de admitir.
-- Está brincando? -- disse ela, com voz sarcástica, mas por dentro sabia que ele
tinha razão. Era melhor tolerá-lo e agir com naturalidade, para não alimentar as
fantasias da avó.
O Sol morria no horizonte e o jardim parecia o próprio paraíso. Fazia muito tempo
que Laurel não visitava aquele recanto ao entardecer. Caminharam em silêncio por
entre as flores e as árvores. Os pássaros começavam a se aquietar e uma fragrância
suave perfumava o local. Matt encheu os pulmões, enquanto Laurel comentava, sem
pensar duas vezes:
-- Eu sempre adorei ficar aqui. Tanta paz, tanta beleza...
Acho que já havia me esquecido de como as tardes são lindas, neste jardim.


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Ele sabia que Laurel tinha uma veia para o romantismo, mas, mesmo assim, ficou
surpreso diante daquela demonstração inesperada. Naquele instante, ela trazia no
semblante o ar sonhador do irmão, algo que pela primeira vez deixava transparecer aos
olhos de Matt. O que mais essa mulher trazia escondido dentro de si?
-- Provavelmente as noites sejam ainda mais bonitas -- murmurou ele. -- Doces,
quentes e com uma certa magia.
-- Quando eu era menina, costumava vir até aqui ao pôr-do-sol, fingindo que havia
alguém à minha espera. -- A lembrança a fez sorrir, meio sonhadora, meio saudosa. --
Às vezes, ele era moreno, às vezes loiro, mas sempre alto, bonito e misterioso. O tipo
de homem que todo pai sonha para a filha. -- Riu, deixando os dedos pousarem sobre
uma camélia. -- Estranho, esse tipo de fantasia na mente de uma pessoa tão prática e
realista como todos julgam que eu seja. Ninguém ousaria pensar que eu poderia me
apai...
A frase ficou interrompida, quando, voltando a cabeça, Laurel se viu próxima a Matt,
tão próxima que podia sentir-lhe o odor másculo ressaltando sobre a fragrância que se
desprendia das flores. O hálito quente acariciava o rosto dela como se fosse a brisa
suave que vinha da tarde. O crepúsculo dava uma coloração dourada à luz e, envolto no
lusco-fusco, Matt se parecia muito com o homem que costumava vir ao encontro dela
nas fantasias da adolescência.
-- Você estava dizendo... -- disse ele, vendo-a hesitar. Falavam baixinho, como se
estivessem trocando segredos. O Sol desaparecera totalmente, deixando um rastro
vermelho no horizonte.
O rosto dele era muito bonito, Laurel pensou de repente. Os olhos eram os de alguém
que não costuma dar um passo adiante sem ter a certeza de que o caminho está livre.
Olhos espertos, astutos como os de uma raposa. Não era de admirar que ele conseguisse
tantas informações sem precisar cutucar as pessoas. E a boca? Como Laurel não
percebera até então o quanto aqueles lábios eram sensuais e tentadores? Talvez
houvesse notado isso desde o primeiro instante em que o vira, embora fingisse não estar
atenta a esse detalhe. Deviam ser macios, imaginou, ao deter o olhar sobre eles. Macios
e ao mesmo tempo violentos, apaixonados. Essencialmente másculos. Bastaria a ela
chegar mais perto, erguer o rosto e...
Arregalou os olhos, diante do rumo inesperado dos próprios pensamentos. Bom
Deus, o que acontecera com ela? Matthew faria caçoada durante um mês, se chegasse a
desconfiar do que se passara na mente de Laurel durante aqueles últimos segundos.
-- É melhor entrarmos -- disse ela friamente. -- Já está quase na hora do jantar.
Matt teve desejos de agarrá-la e roubar aquele beijo que ela quase lhe dera
espontaneamente. Mas, se fizesse isso, jogaria por terra todos os progressos
conseguidos até então. Há muito tempo desejava Laurel. Tempo demais. Sabia que ela
não era do tipo que aceita abordagens convencionais. Nada de galanteios, por enquanto.
Muito menos beijos.
"A paciência é a chave do sucesso, meu caro", advertiu a si mesmo mais uma vez.
Procurou compensar a frustração dizendo-se que aquilo estava ficando mais divertido
do que ele poderia esperar.
-- Já? -- O tom era estudadamente irônico. -- Se Olívia houvesse pedido a você que
mostrasse o jardim para Cartier, duvido que quisesse entrar tão cedo.


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-- Minha avó nunca sugeriu que eu viesse até aqui com Jerry -- ela explicou sem
pensar, mas logo em seguida teve vontade de morder a língua.
-- Ah... -- Um simples monossílabo pronunciado com tanto sarcasmo. Era evidente
que as provocações iriam recomeçar.
-- Não comece a falar de Jerry. Você sabe que não admito isso -- Laurel foi logo
dizendo.
Matt deu um sorriso inocente.
-- Mas eu nem falei nada...
-- Ele é um homem muito bom, educado e... e inofensivo.
Matt soltou uma risada e olhou para o alto.
-- Deus me livre de um dia ser rotulado de inofensivo.
Laurel apertou os olhos, como se quisesse fuzilá-lo.
-- Eu vou lhe dizer o que você é, Matthew Bates -- ameaçou em voz baixa e
vibrante. -- Intolerável e arrogante!
-- Muito melhor. -- Incapaz de resistir, ele deu um passo adiante e pegou-lhe uma
mecha dos cabelos. -- Não tenho a menor intenção de ser educado ou inofensivo.
Ah, por que ele tinha que roçar os dedos no pescoço dela? Só se ela fosse feita de
pano, para não sentir nada. Nem munida de todo o seu autocontrole, Laurel poderia
impedir que aquele arrepio percorresse todo o seu corpo. Só lhe restava rezar para que
ele não houvesse notado.
-- Pois, se isso lhe agrada, saiba que você é muito mais -- replicou com voz
alterada. -- Além de grosso, é rude e...
-- Perigoso? -- adivinhou ele, inclinando a cabeça até chegar a alguns milímetros
dos lábios dela.
-- Não se atreva a pôr palavras na minha boca, Matthew. -- Era só o que lhe faltava:
o coração disparar daquele jeito e a respiração se acelerar como se ela tivesse acabado
de participar de uma corrida. Deu um passo para trás, e teria saído dali imediatamente
se Matt não lhe tivesse barrado a passagem.
-- Vai fugir, Laurellie? -- Dessa vez, ele tinha certeza de que ela não estava apenas
com raiva. Havia algo mais por trás daquelas palavras mal-humoradas. Medo, talvez?
Laurel endireitou o corpo e ergueu o queixo.
-- Fugir de quê? De você? Não me faça rir, Bates. Já é insuportável ter que agüentá-
lo todos os dias no Herald, por isso você não vai me obrigar a ficar na sua companhia
durante as minhas preciosas horas de folga. Tenho coisas muito mais agradáveis para
fazer. Com licença, vou entrar. -- E chegou bem perto dele para frisar: -- Porque estou
com fome.
Dando-lhe as costas, saiu, com passos duros, na direção da casa. Matt ficou onde
estava, vendo-a se afastar. Aquilo, sim, é que era mulher, pensou, sentindo-se
estimulado. Sexo com ela devia ser uma experiência e tanto, e ele não pretendia perder
tempo.

CAPÍTULO II

Por sentir-se agitada desde a noite anterior, Laurel decidiu ir caminhando até o
jornal. Meia hora tomando ar fresco, percorrendo vitrines e ouvindo pedaços de
conversas seria o suficiente para trazer-lhe o bom humor de volta. A cidade também era

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um de seus amores. Do mesmo modo como se sentia bem ao entrar na Promesse
d'Amour, a casa de Olívia, onde passara os melhores anos da sua vida, também não
podia viver sem o burburinho do centro da cidade. Eram mundos diferentes, e ela se
sentia à vontade nos dois. Isso, na verdade, casava com a sua natureza: ao mesmo
tempo ambiciosa e romântica, prática e sonhadora, Laurel convivia bem com cada um
dos lados que compunham a sua personalidade. No momento, por exemplo, sentia-se
mais à vontade e segura na agitação do centro do que se estivesse no jardim da avó.
Aliás, só de lembrar-se do diálogo da véspera... Não, não pensaria naquilo. Afinal
pretendia distrair-se com aquela caminhada, e não continuar se atormentando com o
acontecido.
O que Matthew pretendia, afinal de contas?, perguntou-se, sem conseguir evitar o
pensamento. Sabia muito bem que ele não fazia as coisas à toa. Durante um ano, nem
ao menos encostara nela, e na noite passada, no entanto... Ah, a noite passada...
Qualquer coisa despertara em seu íntimo, ao vê-lo tão próximo, ao sentir-lhe os dedos
sobre sua pele, ao perceber que ele brincava com uma mecha dos seus cabelos. Era
como se Matt fizesse tudo aquilo despretensiosamente. Mas, julgando conhecê-lo um
pouco, Laurel juraria que Matthew Bates jamais fazia qualquer coisa ao acaso. Do
mesmo modo que não fora casual a resposta do seu próprio corpo diante daqueles
pequenos gestos.
Estava bastante claro que ele gostava de tirá-la do sério, de provocá-la
intencionalmente. E, mesmo sem querer, ela acabava entrando no jogo. Na véspera, por
exemplo, não ficara perturbada e nem mesmo o arrepio que sentira poderia ser descrito
como excitação. De qualquer modo, porém, havia ficado surpresa, e isso estava longe
da indiferença que gostaria de aparentar. Agora, todavia, estava plenamente recuperada.
O fato era que, naquele jardim, outrora palco de suas fantasias, era impossível não
ceder ao romantismo. Mas nada daquilo tornaria a acontecer, garantia agora a si
mesma.
Uma voz interior lembrou-lhe que estivera a ponto de beijar Matthew Bates.
Também, pudera! Que outra mulher não se sentiria estimulada pelo perfume das flores
e pelo pôr-do-sol? Até mesmo o diabo ficaria atraente, num cenário como aquele.
Mas a grande culpada fora a sua avó. Os comentários jocosos de Olívia jamais a
perturbaram. Contudo, dessa vez ela fora longe demais, ao insinuar a Matthew que ele
seria o homem ideal para a neta.
Ah, ele deve ter delirado de satisfação, ao ouvir aquilo, Laurel pensou, aborrecida, ao
recordar-se do brilho daqueles olhos azuis. Mas chega. Não iria deixar que aquele
incidente lhe arruinasse o dia. Determinada a afastar de vez Matthew Bates do
pensamento, preparou-se para atravessar a rua.
-- Bom-dia, Laurellie.
Ela ficou um instante paralisada pela surpresa, ao sentir que lhe seguravam o braço.
Santo Deus, não havia um só lugar em New Orleans onde ela não cruzasse com esse
homem? Voltando-se para ele, cumprimentou-o com o mais gelado dos olhares.
-- O seu carro quebrou? -- perguntou, com a voz carregada de ironia.
Matt reconheceu que o ar insolente lhe caía muito bem. Ah, que mulher!
-- Não -- respondeu ele calmamente, enquanto a levava para o outro lado da rua. --
O dia está lindo para uma caminhada. -- Não teria coragem de dizer a ela que a vira
sair do prédio e sentira o impulso de seguí-la.

11
Laurel fez com que ele a soltasse assim que pôs os pés na calçada. Por que cargas-
d'água tivera a idéia de vir a pé para o trabalho, em vez de usar o carro, conforme fazia
todas as manhãs? Não, ele não a faria perder o bom humor. Não dessa vez. Sorriu com
frieza.
-- Você se divertiu, ontem à noite, não?
-- De fato. Eu gosto muito da sua avó. Ela é linda -- acrescentou, mas, ao vê-la
juntar as sobrancelhas, sorriu e perguntou: -- Por acaso eu disse algo proibido?
Laurel deu de ombros e recomeçou a andar. Por que tinha tanta raiva da sinceridade
de Matthew? A verdade, ela precisava admitir, era que se esforçava ao máximo para
não prestar atenção a nada que se referisse a ele. Sentia-se mais segura assim.
A manhã inteira Laurel esteve envolvida na entrevista com o diretor do departamento
de estradas de rodagem. Uma matéria sobre os reparos que estavam sendo feitos numa
rodovia não era assunto dos mais interessantes, mas fazer o quê? Notícias são notícias.
Com um pouco de sorte, talvez a matéria conseguisse aparecer na página dois. Só
restava torcer para que a tarde fosse mais proveitosa.
Os corredores estavam desertos, como sempre acontecia àquela hora da manhã.
Alguns repórteres já haviam voltado ao jornal, mas a maioria ainda estava fora à cata de
notícias. Antes de entrar na redação, Laurel acenou para um dos colegas, que estava
fazendo um rápido lanche no bar, e, ao se voltar, deu de encontro com uma mulher. A
bolsa dela se abriu e vários objetos se espalharam pelo chão.
-- Oh, desculpe. -- Sem olhar para a mulher, abaixou-se para ajudá-la a recolher as
coisas. -- A culpa foi minha, que não estava olhando para onde ia.
-- Não faz mal -- respondeu a outra, enquanto alcançava um envelope. A mão
tremia tanto que chamou a atenção de Laurel. Preocupada, ergueu os olhos para a
mulher loira e de feições delicadas. Notou que os lábios estavam trêmulos, e os olhos,
vermelhos.
-- Eu machuquei você? -- perguntou, segurando-lhe uma das mãos instintivamente.
A mulher chegou a abrir a boca, mas não disse nada, limitando-se a sacudir a cabeça
com veemência. Os dedos que Laurel apertava não paravam de tremer. Quando as
primeiras lágrimas rolaram por aquele rosto pálido, Laurel esqueceu-se do trabalho que
a esperava e das anotações que estavam dentro da sua bolsa. Ajudou a mulher a se
levantar e conduziu-a para a sala de um dos editores, que costumava estar vazia àquela
hora.
-- Sente-se -- disse, gentilmente, conduzindo-a para uma poltrona estofada. -- Vou
lhe trazer um copo de água. -- A outra apenas fez um gesto afirmativo, e Laurel saiu
para voltar segundos depois. Notou que as lágrimas haviam secado, mas o semblante
não se desanuviara. -- Vamos, tome um gole -- disse com delicadeza, estendendo-lhe
um copo de papel. Sentou-se ao lado dela e esperou.
De dentro daquela sala de paredes envidraçadas, ela podia ver e ouvir a
movimentação das pessoas na redação. Ainda faltava muito tempo, porém, para a
balbúrdia dos momentos que antecediam o fechamento da edição. Tornou a se
concentrar na figura que tinha diante de si. Era visível o esforço que aquela criatura
estava fazendo para se controlar. Parecia desesperada. Uma dezena de perguntas
sobrevoaram a mente de Laurel, mas ela decidiu aguardar que a mulher se acalmasse.
-- Sinto muito -- desculpou-se a outra, instantes depois, enquanto esmagava o copo
de papel. -- Não costumo fazer cenas -- justificou-se, erguendo o olhar para Laurel.

12
-- Não se preocupe com isso. -- Notou que a mulher estava retalhando o copo. --
Meu nome é Laurel Armand -- apresentou-se.
-- Susan Fisher. -- Distraidamente, ficou observando as tiras de papel que deixara
cair no colo.
-- Será que eu posso ajudá-la, Susan?
Bastou ouvir isso para que as lágrimas brotassem novamente. Palavras tão simples,
Susan disse para si mesma, apertando os olhos. Por que então elas a faziam sentir-se
ainda mais desamparada?
-- Não sei por que vim até aqui -- começou, com voz entrecortada. -- Acho que não
tive outra escolha. A polícia....
Laurel sentiu o faro de repórter se aguçar na mesma intensidade que o seu instinto de
proteção. Descansou uma das mãos sobre o ombro de Susan e tentou acalmá-la.
-- Eu trabalho aqui -- informou. -- Você pode se abrir comigo. -- Fez uma pausa e,
vendo que a outra não tomava a iniciativa, tratou de encorajá-la: -- Por que não começa
do princípio?
Susan ergueu os olhos para ela. Não tinha mais ninguém em quem confiar. Por que
não aceitava o auxílio que essa mulher tão bondosa lhe oferecia?
Os olhos azuis fizeram com que Laurel se lembrasse de Matthew, embora os dele não
tivessem aquela vulnerabilidade que ela podia ler nos de Susan. Descansou uma das
mãos sobre a dela.
-- Por que não me deixa ajudá-la, Susan? -- insistiu. -- Farei tudo o que estiver ao
meu alcance, prometo.
A outra respirou fundo e começou:
-- Minha irmã... -- Interrompeu-se como a buscar coragem. -- Minha irmã, Anne,
conheceu um homem chamado Louis Trulane, um ano atrás.
Louis? Ao ouvir este nome, Laurel apertou, sem querer, a mão de Susan. Sua mente
foi assaltada por lembranças doces e ao mesmo tempo amargas. O que essa mulher teria
a ver com Louis?
-- Continue -- pediu, afrouxando os dedos sobre a mão da outra.
-- Eles se casaram um mês depois. Anne se mudou então do apartamento que nós
duas dividíamos para a fazenda dele, Heritage Oak. Você já ouviu falar?
Laurel fez que sim, enrijecendo o corpo instintivamente diante da recordação.
-- Ela costumava me enviar fotografias. A casa, muito antiga, era uma verdadeira
mansão, e eu mal conseguia imaginar minha irmã vivendo lá, sendo a dona de tudo. As
cartas dela eram bastante animadas, sempre falando maravilhas acerca de Louis. -- Fez
uma pausa e suspirou, desanimada. -- Anne estava tão feliz, tão apaixonada... Eu
estava prestes a tirar alguns dias de licença para ir visitá-los, quando a carta de Louis
chegou.
Nesse instante ela fechou os olhos e apertou a mão de Laurel.
-- Susan...
-- Anne havia morrido -- contou, com a voz embargada. -- Na carta, Louis dizia
que tinha sido por uma picada de cobra venenosa. Encontraram-na no pântano, na
manhã seguinte, quando já não havia mais nada a fazer. -- Susan apertou os lábios,
enquanto as lágrimas rolavam silenciosas pelo rosto. -- Meu Deus, eu ainda não posso
acreditar. Anne tinha apenas vinte e um anos...


13
-- Deve ter sido horrível, para você, receber a notícia desse modo -- Laurel falou
em voz baixa. -- Que coisa estúpida! Se ao menos a tivessem encontrado mais cedo...
-- Ela foi assassinada -- a outra interrompeu-a, num tom frio e cheio de convicção.
-- Assassinada!
Laurel arregalou os olhos, sem saber o que dizer. O primeiro impulso de confortar
aquela pobre mulher foi reprimido por uma sombra de dúvida, uma ponta de interesse.
-- Assassinada? Você pode provar o que está dizendo? Susan levantou-se e foi até a
janela. Laurel não havia feito comentários vazios e tampouco demonstrara
incredulidade. Pela primeira vez, Susan sentiu que se abria uma porta para ela. Talvez
ali estivesse a pessoa capaz de ajudá-la.
-- Eu vou lhe contar o que já disse à polícia. -- Cheia de esperanças, começou: --
Anne e eu éramos muito chegadas. Ela sempre foi uma pessoa gentil e sensível. Tinha a
doçura de uma criança sem ser infantil, não sei se me entende.
Laurel pensou em Curt e acenou com a cabeça.
-- Entendo perfeitamente.
Susan respondeu a esse sinal de aceitação com um suspiro de
alívio.
-- Eu conhecia minha irmã do mesmo modo que conheço a mim mesma. Desde
pequena, Anne tinha medo do escuro. Mesmo no nosso pequeno apartamento, as luzes
estavam constantemente acesas. Era uma fobia, uma obsessão que cresceu com ela.
Todos nós temos alguns temores irracionais, que muitas vezes continuam conosco
depois de adultos. Anne não era medrosa, mas tinha um pavor irracional de lugares
escuros. -- Susan saiu de perto da janela e fez uma pausa, como se precisasse de
fôlego. -- Por mais que ela adorasse aquela casa -- prosseguiu -- havia um senão: a
proximidade com o pântano. Certa vez, recebi uma carta em que ela descrevia o local
como sendo sombrio e sinistro. Dizia ainda que jamais pretendia pôr os pés lá dentro,
mesmo durante o dia. Como é possível que, de uma hora para outra, mudasse de idéia e
fosse até o pântano à noite, conforme acredita Louis?
Laurel esperou um momento, enquanto ponderava sobre aquilo que ouvira.
-- Mas ela foi encontrada lá.
-- Porque alguém a levou -- retrucou Susan.
Em silêncio, Laurel examinou a criatura que estava em pé à sua frente. Havia muita
determinação naqueles olhos avermelhados pelo choro. Na certa, aquela idéia fantástica
fora fruto do choque pela perda da irmã, Laurel deduziu, enquanto juntava aqueles
novos detalhes à história que chegara até ela pela imprensa. Na ocasião, todos os
jornais noticiaram a morte de Anne Trulane. Nunca ficara muito claro por que aquela
jovem esposa resolvera perambular sozinha e à noite por um local tão cheio de
armadilhas como um pântano.
Ela se lembrava ainda de como Louis Trulane evitara a imprensa, depois da tragédia:
nenhuma declaração. Tão logo o inquérito fora fechado, ele se retirara para Heritage
Oak e acabara esquecido pelos noticiários.
Laurel pensou em Louis e então olhou para Susan. O seu instinto de repórter muitas
vezes tornava-se mais forte do que a lealdade que devia a certas pessoas. Os porquês da
vida estavam à espera de uma resposta.
-- Por que você veio até o Herald, Susan?


14
-- Eu estive com Louis a noite passada, tão logo cheguei à cidade. Ele não quis me
ouvir. Nem ele, nem a polícia, de onde estou acabando de voltar. O caso está encerrado
para todos. -- Mas, com a mesma determinação que Laurel lera há pouco naquele
olhar, ela acrescentou: -- Menos para mim. Antes que tivesse a chance de pensar duas
vezes, me vi entrando neste jornal. Talvez eu devesse ter procurado os serviços de um
detetive particular, só que... -- balançou a cabeça -- não tenho dinheiro. Sei que os
Trulane são uma família respeitada e poderosa, mas deve haver um meio de eu
conseguir chegar à verdade. Minha irmã foi assassinada, eu sei disso. Só me resta des-
cobrir o motivo -- concluiu com a voz trêmula, prestes a chorar novamente.
Não era tão forte quanto queria demonstrar, Laurel percebeu logo. Levantou-se e foi
até ela.
-- Susan, você confiaria em mim para investigar esse caso? Susan passou a mão
pelos cabelos.
-- Eu tenho que confiar em alguém -- respondeu.
-- Nesse caso, há algumas coisas que eu preciso fazer. -- De súbito, Laurel tornara-
se enérgica. Diante de uma reportagem e tanto, não havia espaço para velhas
lembranças. -- Há uma máquina de café lá fora. Por que não toma uma xícara enquanto
espera por mim? Quando eu terminar, nós poderemos sair e comer alguma coisa. Você
precisa me contar tudo em detalhes.
Sem fazer perguntas, Susan apanhou a bolsa e agradeceu. -- Não me agradeça --
Laurel retrucou. -- Não fiz nada ainda.
A outra parou na porta e olhou por sobre os ombros.
-- Você já fez muito.
Laurel mordeu o lábio inferior, pensativa, enquanto via Susan passar por entre as
mesas da redação. Deixou escapar um suspiro. Anne Trulane e Louis. Bom Deus, em
que vespeiro ela estava prestes a enfiar a mão?
Antes que pudesse pensar na resposta, o editor entrou na sala, o rosto magro
carrancudo e os olhos com um brilho de contrariedade.
-- Tenha paciência, Laurel! Isto aqui é um jornal, e não um consultório sentimental.
Quando alguma das suas amigas brigar com o namorado, arranje outro lugar para
consolá-la. Vamos, não fique aí parada. Você tem uma matéria para redigir.
Em lugar de acatar a ordem, Laurel sentou-se no canto da mesa. Don Ballinger era
seu padrinho, mas trabalho era trabalho, e lá ele a tratava como os outros repórteres. Ela
não esperava que fosse diferente.
-- Aquela era a irmã de Anne Trulane -- contou calmamente, antes que Don abrisse
a boca para enxotá-la de uma vez de sua sala.
-- Trulane? -- repetiu ele, enquanto as sobrancelhas grossas se juntavam. -- O que
ela queria?
Laurel pegou o peso para papéis que estava sobre a mesa e passou-o de uma mão à
outra.
-- Provar que a irmã foi assassinada.
Don Ballinger deu um risinho de escárnio. Tirou um cigarro do maço que ficava na
gaveta e ficou alisando-o por alguns segundos. Não acendia um há dezesseis dias, dez
horas... vinte e dois minutos.
-- Picada de cobra -- disse, então. -- O fato de não ter sido encontrada a tempo não
significa necessariamente um assassinato.

15
Mas existe um detalhe que não saiu nos jornais, e, ao que parece, ninguém levou a
sério. Susan Fisher diz que a irmã tinha verdadeiro pavor de lugares escuros. Nada
neste mundo a faria entrar naquele pântano à noite.
-- Obviamente ela mudou de idéia.
-- Será? -- Laurel indagou com ar de dúvida. -- Alguém poderia tê-la levado para
lá à força.
-- Laurel...
-- Don, deixe-me,investigar esse caso discretamente. As coisas nem sempre são
aquilo que parecem.
Don olhou para o cigarro e correu o dedo do filtro até a ponta.
-- Trulane não vai gostar disso.
-- Deixe Louis por minha conta -- insistiu ela, mais confiante. -- Há alguma coisa
nisso tudo, Don. Por que Anne Trulane resolveria andar pelo pântano àquela hora da
noite? E, sobretudo, de camisola?
Os dois tinham conhecimento dos boatos que correram na época: Anne saíra para se
encontrar com alguém, um amante, talvez, e acabara se perdendo na escuridão. Don
colocou o cigarro na boca e passou-o de um canto a outro. Notícias sobre os Trulane
sempre ajudavam a vender os jornais.
-- Está bem -- concordou, afinal. -- Veja se consegue uma boa matéria. A morte de
Anne Trulane ainda é um fato recente.
-- Antes que Laurel pudesse demonstrar o seu entusiasmo, o editor soltou a bomba:
-- Matthew Bates cobriu o caso antes, por isso ele vai trabalhar com você.
-- O quê?! -- Ela pulou da mesa e encarou-o, contrariada.
-- Não, senhor, essa matéria é minha. Não preciso de Matthew ao meu lado.
-- Precisa, sim. Ele tem todos os contatos. Não se esqueça que o furo foi dele.
-- Pelo amor de Deus, Don. Eu não tolero esse homem. Além do mais, não sou uma
novata, não necessito de um inspetor nem...
-- Está resolvido. Vocês vão trabalhar juntos. -- Levantou-se e foi até a porta. --
Matt! -- chamou.
Por, por favor -- Laurel tentou uma vez mais. -- Eu conheço bem Louis Trulane.
Posso fazer tudo sem a ajuda de Matthew. Ele só vai me atrapalhar.
-- Qual é o seu problema, Laurel? Ciúme. -- E voltou para a mesa. -- Você devia se
controlar.
-- Eu não tenho ciúme de ninguém! -- protestou. -- Confio no meu trabalho, sei
que posso fazer isso sozinha.
-- Problemas? -- Matt perguntou, ao entrar na sala e deparar com a expressão
furiosa de Laurel.
Ela engoliu um palavrão e caiu sentada sobre a cadeira, à espera das instruções do
editor.
-- Anime-se -- Matt dizia a ela minutos mais tarde. -- Quando tudo isso acabar,
você terá aprendido uma porção de
coisas.
-- Eu não preciso aprender nada com você. -- E entrou no elevador.
-- Isso é o que vamos ver -- murmurou ele, apreciando, satisfeito, o modo como os
lábios de Laurel se curvavam. Sempre que a via fazer beicinho, amuada, ele tinha que
controlar a vontade de beijá-la.

16
-- Você não está falando com uma aprendiz, Matthew Bates, mas com uma colega.
Estamos em pé de igualdade, meu caro. -- Enfiou as mãos nos bolsos. -- Don insistiu
para que trabalhássemos juntos apenas porque você cobriu o inquérito antes. Aliás,
você poderia tornar as coisas mais fáceis, se simplesmente me passasse as suas
anotações.
-- Está brincando? -- retrucou ele, afetando um ar de espanto. -- A última coisa que
eu faria seria passar as minhas anotações para alguém.
-- E a última coisa de que eu preciso é de alguém nos meus calcanhares. Essa
matéria é minha, lembre-se!
-- Puxa, eu pisei no seu calo, hein? -- Apertou o botão para o térreo e voltou-se para
ela. -- Seu pai nunca lhe ensinou que dividir faz bem ao espírito?
-- Vá para o inferno!
Antes que Laurel tivesse tempo de perceber o que estava se passando, Matt apertou
um dos botões com raiva e o elevador ficou parado entre dois andares. Boquiaberta, ela
se viu pressionada a um canto.
-- Cuidado -- Matt advertiu-a, com voz macia. -- Você está dando murro em ponta
de faca.
A garganta de Laurel ficou subitamente seca. Nunca vira os olhos dele brilharem
daquela maneira. Eram assustadores. Fascinantes. Ainda tomada pela surpresa, ela
constatou que estivera enganada a respeito dele. Matt tinha um temperamento forte,
camuflado pela fachada de homem frio e impassível.
Matthew podia ver claramente que ela estava assustada. Percebeu que os olhos
verdes de Laurel se arregalaram, quando ele aproximou os lábios dos dela.
-- Surpresa, Laurellie? -- perguntou, com uma ponta de ironia.
Por que ela não conseguia se mover? O corpo simplesmente se recusava a receber o
comando do cérebro. Bastaria colocar as mãos no peito de Matt e empurrá-lo. Por que
os seus braços não lhe obedeciam? Santo Deus, que olhos mais lindos! Incrivelmente
bonitos. A respiração dele entrava pelos lábios que ela entreabrira instintivamente. E
como era suave a colônia que Matt estava usando.
Num esforço tremendo para clarear os sentidos, Laurel endireitou o corpo.
-- Não ouse...
As palavras terminaram estranguladas por um murmúrio de prazer, quando os lábios
de Matt encontraram os dela. Não era um beijo. Ninguém chamaria de beijo aquele
toque suave, sem a menor pressão. Parecia mais uma advertência, ou, quem sabe, uma
ameaça.
Laurel não moveu um músculo sequer. Os olhos estavam bem abertos, a mente muito
clara, quando ele se achegou, encostando o corpo ao dela. Ainda que vibrasse por
dentro, Laurel procurou manter-se firme. Matt murmurava coisas de encontro aos seus
lábios, coisas que ela não entendia, mas era capaz de imaginar. Quando sentiu a ponta
da língua tocar de leve, bem de leve, a sua, deixou escapar um gemido.
Aquele som abafado e involuntário, que chegou aos ouvidos de Matt como um sinal
de rendição, quase o fez perder o controle. Se Laurel lutasse ou esbravejasse, ele
saberia como agir. Não esperava vê-la submissa e desorientada. Não Laurel Armand.
Uma estranha sensação apoderou-se dele, a raiva dissolvendo-se numa impetuosa onda
de desejo. Por um instante, perguntou-se se alguma outra vez teria a chance de senti-la
em franca desvantagem, como naquele momento.

17
Deus, ele queria tocá-la, arrancar-lhe a blusa e acariciar devagar, bem devagar, cada
milímetro daquele corpo que há meses o deixava louco. Só que Matt tinha outros planos
para seduzir Laurel Armand e, para falar a verdade, um elevador não era bem o lugar
que ele tinha em mente. Pena que justamente agora ela se apresentasse tão
tentadoramente submissa, como jamais haveria de estar em outra oportunidade.
Laurel, sem saber da luta que ele travava intimamente, viu-o afastar-se e apertar o
botão para o térreo. O elevador reiniciou a viagem para baixo.
-- Pena não termos tempo -- Matt comentou tranqüilamente, olhando para a porta.
-- Nem espaço -- acrescentou.
Pouco a pouco, a nuvem que cobrira o cérebro de Laurel dissipou-se completamente,
permitindo-lhe pensar com clareza. Com um brilho de ódio no olhar, o rosto vermelho
de indignação, ela deixou fluir toda a fúria numa torrente de insultos, que o deixou
admirado.
-- Não imaginava que você pudesse ser tão eloqüente -- Matt comentou, em tom
jocoso. -- Vamos fazer uma trégua, Laurel. Pelo menos até terminarmos esse trabalho.
Depois poderemos reiniciar a nossa guerrinha particular.
Ela reprimiu um palavrão e, quando o elevador parou no térreo, tratou de suavizar o
semblante. Afinal, nenhum dos dois inspiraria muita confiança a Susan Fisher, se
continuassem a alfinetar-se daquele modo.
-- Uma trégua armada, Matthew -- disse-lhe, antes de sair do elevador. -- Tente
aproximar-se de mim outra vez e estará correndo o risco de perder os dentes. Matt
pareceu refletir um instante.
-- Parece razoável -- concluiu. -- Bem, ao que tudo indica, eu vou ser obrigado a
cumprir a minha promessa.
-- Que promessa? -- perguntou, com ar de enfado.
-- Pagar-lhe o almoço com os dez dólares que ganhei naquela aposta.
Ela ajeitou a alça da bolsa no ombro.
-- Dez dólares não chegam para o aperitivo, meu caro. Sorrindo, Matt passou o
braço em volta da cintura dela.
-- Não seja rabugenta, Laurellie. Que coisa, nem parece que está feliz por sair
comigo!
Laurel jogou os cabelos para trás e continuou andando, mas não tirou o braço dele da
sua cintura.


CAPÍTULO III

Matt escolheu um restaurante movimentado no bairro francês, por acreditar que as
pessoas se abrem com mais facilidade quando protegidas pelo barulho que vem das
outras mesas. Sentira desde o início que, enquanto Susan Fisher depositava toda a sua
confiança em Laurel, encarava com um certo receio a presença dele num assunto tão
delicado. Ele decidiu então deixar que Laurel tomasse as rédeas naqueles primeiros
momentos.
Procurou, todavia, ser amigo e simpático, ouvindo atentamente cada palavra e
analisando cada gesto, sempre com um sorriso de compreensão nos lábios. Afinal,


18
aquilo não estava sendo fácil para a pobre moça e, ao que tudo indicava, a ferida não se
cicatrizaria tão cedo.
Matt olhou para Laurel e sorriu. Ela já havia falado bastante, ele a deixara à vontade
para interrogar Susan Fisher. Agora, no entanto, era a vez dele.
Sua irmã morreu há um mês, Susan -- observou, quando as duas fizeram uma pausa.
-- Por que esperou tanto tempo para trazer à tona a sua versão sobre os fatos?
Ela não respondeu, limitando-se a baixar os olhos para o prato, que, naqueles vinte
minutos, mal fora tocado. Laurel encontrou o olhar de Matt e então, voltando-se para
Susan, tocou-lhe o braço.
-- Nós só estamos querendo ajudá-la.
-- Eu sei, Laurel, mas tudo isso é tão difícil para mim... -- Respirou fundo e ergueu
a cabeça. -- Eu detesto admitir, mas a verdade é que, até agora, me mantive à parte.
Desde que Anne... desde que Anne morreu, eu deixei de atender o telefone e fiquei
fechada no meu apartamento, completamente isolada do mundo. Perdi o meu emprego.
-- Mordeu o lábio, fez cara de choro, mas foi adiante, com voz embargada: -- O pior
de tudo é que nem ao menos tive coragem de comparecer ao enterro. Hoje eu vejo que
estava fugindo da realidade. Queria fingir que nada daquilo havia acontecido, que Anne
estava bem, feliz com o casamento e cheia de planos para o futuro. -- Fez uma pausa,
enxugou os olhos e prosseguiu: -- Há uma semana resolvi tomar uma atitude. O
choque inicial havia passado e comecei a reler as cartas. Não fazia sentido, nada
daquilo fazia sentido, vocês me entendem? Anne mencionou várias vezes que o pântano
era o único senão daquele paraíso em que ela vivia. Deus, se vocês a conhecessem,
concordariam em que ela jamais pisaria lá, principalmente à noite. O pavor que Anne
sentia da escuridão chegava a ser uma fobia. -- Olhou para Matt como quem pede
compreensão. -- Alguém a levou até o pântano, Sr. Bates. Ela foi assassinada.
-- Mas por quê? -- Ele se inclinou para a frente, franzindo a testa. -- Por que
alguém mataria sua irmã?
-- Não sei. -- Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. -- Simplesmente
não sei -- repetiu com voz entrecortada.
-- Eu cobri o inquérito. -- Matthew tirou um cigarro do maço e acendeu-o. Não
pretendia ser duro com Susan, mas era preciso pôr às claras cada detalhe, se quisessem
levar adiante a hipótese do assassinato. -- Durante o período em que esteve casada com
Louis Trulane, sua irmã praticamente não teve vida social. Segundo os empregados da
casa, ambos viviam muito bem, sem brigas ou discussões, nem mesmo palavras
ásperas. Os motivos básicos para um assassinato, ciúme, ganância, parecem estar
descartados. Que outras informações você poderia nos fornecer, Susan?
-- Você ainda tem as cartas que ela lhe escreveu? -- Laurel antecipou-se.
-- Tenho. Deixei-as no hotel. Matt apagou o cigarro.
-- Então vamos para lá e dar uma olhada nelas.
Quando Susan pediu licença e ausentou-se por alguns instantes, Laurel chegou mais
perto de Matt.
-- O choque pode ter passado -- murmurou --, mas ela ainda não está com os pés
no chão. Matthew, eu estou com uma suspeita.
-- Você vive com suspeitas, Laurel. Ela se afastou e franziu a testa.
-- Que diabos você está querendo dizer com isso?
-- Que nós devemos nos ater aos fatos. Precisamos ser objetivos.

19
-- Eu sei -- murmurou, pensativa. -- Mas por um momento... Ah, esqueça.
O hotel ficava numa rua escura e sinistra, daquelas que se costumava evitar à noite,
ou por onde se passa rapidamente, tendo o cuidado de olhar para trás de momento a
momento. O quarto era minúsculo e bastante modesto. Susan sorriu como quem pede
desculpas.
Foi o mais barato que consegui arranjar. Matt sorriu também e procurou deixá-la à
vontade.
Você deveria ter visto o apartamento onde eu cresci. Ela lhe lançou um olhar de
agradecimento e relaxou visivelmente.
Sentem-se, por favor -- disse, estendendo o braço na direção da cama. -- Eu vou
pegar as cartas.
De que parte de Nova York você veio, Matthew? -- Laurel perguntou, depois de
sentar-se na beirada da cama.
-- De uma de que você nunca ouviu falar, aposto a minha cabeça nisso --
respondeu, sentando-se ao lado dela.
-- Eu já estive em Nova York diversas vezes. -- E, usando de mais exatidão,
admitiu: -- Duas vezes.
Matt escancarou um sorriso. Com expressão divertida, foi logo adivinhando.
-- Claro, você deve ter conhecido tudo: o Empire State Building, o Central Park, a
Broadway.. .
Ela achou graça.
-- Você é um presunçoso, não? Quando é que vai perder esse ar de superioridade?
Entretidos naquele diálogo bem-humorado, não repararam que Susan abria e fechava
as gavetas, cada vez mais nervosa.
-- Elas não estão aqui! -- Jogou todas as roupas no chão e olhou para as gavetas
vazias. -- Meu Deus, e agora?
-- O que você está dizendo? -- Matt levantou-se e foi até ela
-- As cartas desapareceram!
Imediatamente, Laurel começou a revirar as roupas caída no chão.
-- Não é possível. Você deve tê-las guardado em outro lugar
-- Não. Eu as deixei bem aqui. Onde mais poderia guardá-las? -- Já estava à beira
da histeria. -- Eram doze cartas, e eu tenho certeza de que as deixei nesta primeira
gaveta.
-- Susan -- a voz de Matt era fria --, você trouxe mesmo essas cartas?
-- Pelo amor de Deus, não estou louca! -- gritou. -- Ela estavam aqui, quando
deixei o hotel hoje de manhã.
-- Está bem. Fique calma. Vou ver se descubro alguma coisa na portaria.
Quando Matt fechou a porta, Susan começou a juntar as peças de roupa.
-- Alguém esteve aqui -- concluiu, esforçando-se para manter a cabeça fria. --
Alguém interessado nas cartas de Anne.
-- Você não está dando por falta de mais nada? -- Laurel perguntou, enquanto
dobrava uma blusa e a recolocava na gaveta.
-- Não. -- Com um suspiro desanimado, deixou cair a camiseta que segurava. --
Não tenho nada de valor. Mas por que alguém estaria interessado naquelas cartas? Isso
não faz o menor sentido.


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-- Calma, tudo a seu tempo. Não tire conclusões precipitadas. Espere até que eu e
Matthew iniciemos as investigações.
-- De súbito, como que caindo em si, percebeu que havia ligado naturalmente o seu
nome ao dele e não gostou nada disso. -- Enquanto isso... -- Recolheu apressadamente
as roupas do chão. -- Você sabe datilografar?
Sem entender o porquê de uma pergunta aparentemente tão fora de propósito, Susan
franziu a testa e respondeu:
-- Não tenho nenhum curso, mas me dou muito bem com uma máquina de escrever.
Eu trabalho... trabalhava -- corrigiu -- como recepcionista num consultório médico.
-- Ótimo. Onde está a sua mala? -- Laurel perguntou, colocando as peças de roupa
sobre a cama.
-- No armário. Mas. ..
-- Eu tenho um lugar para você ficar, e um emprego. Você vai gostar, tenho certeza.
-- Um emprego? Não estou entendendo.
-- Minha avó mora numa casa afastada da cidade. Desde que eu e meu irmão nos
mudamos de lá, ela tem se sentido muito só. -- A mentira veio tão facilmente que ela
própria se espantou.
-- Eu não posso me instalar na casa da sua avó sem mais nem menos -- Susan
protestou.
-- Mas é lá que você vai trabalhar -- Laurel retrucou com um sorriso. -- Há algum
tempo, vovó vem falando em escrever suas memórias e já me convocou para
datilografá-las. Desde então eu tenho fugido com mil e uma desculpas, porque ando
atarefada demais. Posso garantir que você não vai se aborrecer, ela é uma mulher
fantástica. Se eu tivesse tempo, adoraria fazer esse serviço. Como vê, Susan, você
estará nos prestando um imenso favor.
-- Por que você está fazendo isso por mim? -- perguntou a outra, um tanto
desconfiada. -- Nem nos conhecemos direito...
-- Eu gostei de você -- Laurel explicou, com a maior simplicidade. -- E sei que
posso ajudá-la. Você precisa de trabalho e minha avó precisa de alguém que saiba
datilografia. Por que complicar as coisas? Vamos, pegue a mala -- ordenou, antes que
Susan abrisse a boca para retrucar. -- Enquanto você arruma as coisas, eu vou até a
recepção para ver o que Matthew conseguiu.
Saindo do quarto, Laurel viu que ele dobrava o corredor. Fechou a porta
cuidadosamente e foi ao seu encontro com ar de interrogação.
-- E então? -- perguntou, ansiosa.
-- Nada. -- Encostando-se na parede, Matt acendeu um cigarro. -- Não viram
ninguém passar pela portaria. Também, pudera... Eu esperei mais de cinco minutos até
que aparecesse o encarregado da recepção. Qualquer um poderia ter subido, nesse meio
tempo. -- Deu uma longa tragada e ficou olhando para o cigarro.
-- Susan ainda não relacionou uma coisa à outra -- Laurel disse, encostando-se na
parede oposta. -- Ela não está entendendo por que alguém teria interesse pelas cartas.
Antes assim, coitada.
-- Cuidado, Laurel -- advertiu-a. -- Você está bancando a superprotetora.
-- Eu? -- Olhou escandalizada para Matt. -- Superprotetora? Estou usando o bom
senso, isso sim. É melhor que Susan nem desconfie de que estão tentando impedi-la de


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desenterrar um caso aparentemente já solucionado. Só ficaria mais nervosa, e isso não
nos ajudaria em nada.
-- Onde está ela?
-- No quarto, fazendo as malas.
-- É bom que saia daqui o quanto antes -- concordou ele. -- Mas para onde ela vai?
Antevendo a reprovação, Laurel respondeu casualmente:
-- Para a casa da minha avó.
-- Já vi tudo -- retrucou Matt, com um sorriso de superioridade.
-- Quer parar com essas insinuações? Não sou nenhuma idiota para não perceber o
que você está pensando. Em primeiro lugar, isso não significa que eu seja
superprotetora ou que esteja começando a me envolver emocionalmente com o caso.
Em segundo lugar, minha avó precisa de uma datilógrafa e Susan está sem emprego.
-- Calma, não precisa ficar nervosa. -- Jogou o cigarro no chão encardido e
amassou-o com a ponta do sapato. -- Prometo não fazer nenhum outro comentário.
Nem mesmo sobre você ficar terrivelmente atraente quando zangada. -- Antes que
Laurel tivesse tempo de se refazer da surpresa, ele avisou: -- Vou chamar um táxi. --
E desceu a escada, deixando-a desnorteada.
"Se eu não tomar cuidado", pensou ela, ouvindo os degraus de madeira estalarem, "se
eu não tomar muito, muito cuidado, vou acabar me apaixonando por esse presunçoso".
Depois daquela conclusão pouco animadora, entrou no quarto, decidida a tirar Susan de
lá o mais rápido possível.
Dez minutos depois, Susan seguia num táxi para a casa de Olívia Armand. Num
outro táxi, Matt dizia a Laurel que não se preocupasse.
-- Olívia vai distraí-la por um bom tempo -- concluiu.
-- Eu sei -- Laurel concordou. -- Estou pensando em outra coisa.
-- Em quê?
-- Na possibilidade de Anne Trulane não ter ido àquele pântano por iniciativa
própria.
-- Prossiga -- pediu ele, mostrando-se interessado.
-- Deve ter havido alguma razão -- continuou. -- A hipótese de um encontro com
um amante me parece improvável, pelo testemunho dos empregados da casa e da
própria Susan. Anne vivia bem com o marido.
-- Voltamos à estaca zero, o que automaticamente nos remete à hipótese que Susan
levantou. Mas, supondo-se que ela tenha sido assassinada... -- Matt fez uma pausa e
refletiu por alguns instantes. -- Quais seriam os suspeitos? Quem estaria interessado na
morte de Anne?
-- Na minha opinião, duas pessoas estão descartadas, pelo menos a princípio: Louis
Trulane e Marion Trulane, a irmã dele. E, já que estamos aventando hipóteses, eu diria
que alguém poderia muito bem desejar ocupar o lugar de Anne. Afinal de contas, Louis,
além de muito rico, é um homem bastante atraente.
Matt olhou bem para ela. Captara qualquer coisa no modo como Laurel dissera
aquelas últimas palavras. E não gostara nem um pouco.
-- Você o conhece? -- perguntou, tentando afetar descaso.
-- Louis? -- Sorriu com ar sonhador, Matt constatou, enciumado, que ela nunca,
nem por uma vez sequer, olhara para ele daquela maneira. -- Acho que o conheço
melhor do que ninguém -- Laurel continuou, sem suspeitar o que se passava dentro

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dele. -- Louis me ensinou a andar a cavalo, quando eu ainda era uma menina. Sempre
teve paciência comigo. Apesar de ser onze ou doze anos mais velho do que eu, era o
meu príncipe encantado, um dos homens mais bonitos que já conheci.
Ao perceber que estava com os músculos tensos, Matt procurou relaxar e dizer
qualquer coisa.
-- Mas agora você já está bem crescidinha para acreditar no príncipe encantado. --
Sair com ironias era o único meio com o qual ele sabia se defender.
Notando o cinismo na voz dele, Laurel se voltou com um meio sorriso nos lábios.
-- Você nunca se apaixonou, Matthew?
A pergunta pegou-o de surpresa. Ficou olhando para ela, estudando aqueles olhos
bonitos, querendo sentir o calor daquele corpo tão próximo ao seu. Se estivessem
sozinhos, ele não responderia, mas arrancaria dos lábios de Laurel o beijo que andava
desejando há muito tempo.
-- Não -- respondeu, afinal. Ela meneou a cabeça.
-- Uma pena. Você não imagina como o amor suaviza o coração das pessoas. --
Reclinou-se no encosto e suspirou diante das lembranças que retornavam à sua mente.
Ela era apenas uma criança, na época, e, embora tivesse sonhos de contos de fadas,
chegara a acreditar que um dia eles se realizariam. -- Louis era muito importante para
mim, o homem que preenchia todas as minhas fantasias de adolescente. Mesmo
percebendo tudo, ele nunca zombou dos meus sentimentos e teve sensibilidade o
bastante para não me tratar como uma criança. -- Nesse ponto, Laurel ergueu as mãos e
as deixou cair novamente no colo.
-- Quando ele se casou, o meu coração ficou aos pedaços. -- E virando-se para
Matt: -- Você sabia que Louis já foi casado antes?
-- Mais tarde você me conta, meu anjo -- Matt interrompeu, quando o táxi
estacionou defronte ao distrito policial.
Laurel engoliu em seco e saiu do carro sem dizer nada. Como ele ousava ser tão
grosso com ela? Saiu andando na frente enquanto Matthew pagava a corrida. Ele
alcançou-a em seguida e segurou-lhe o braço de leve, um gesto que ela repeliu pronta-
mente. Matt não insistiu, mas ficou sem entender o porquê daquela raiva repentina. Deu
de ombros. Quem consegue entender as mulheres?
Transitando com desenvoltura por aquele local que, como repórter policial, ele
conhecia tão bem, Matt conduziu Laurel para uma das salas. Olhou rapidamente em
volta, sem prestar muita atenção aos que lá estavam: policiais, pessoas apresentando
queixas, outras prestando declarações, enfim, o mesmo de todos os dias.
Uma mulher uniformizada acenou para ele, enquanto falava ao telefone. Matt sentou-
se no canto da mesa e Laurel manteve-se em pé, ao lado dele.
-- Matthew Bates! -- exclamou a mulher, assim que desligou o telefone. -- O que o
trás de volta a este paraíso? -- perguntou, com um sorriso alegre.
-- Como vai, sargento?
O número do meu telefone ainda é o mesmo, você sabia? Foi a resposta que ela lhe
deu, acompanhada de um olhar dos mais significativos.
-- Pois é -- comentou ele, sorrindo meio sem jeito. -- O diabo do trabalho me toma
muito tempo. Mas assim que houver oportunidade... -- E, em tom mais sério, entrou no
assunto: -- Estou precisando da sua ajuda, sargento.
-- Pode dizer. Se estiver ao meu alcance...

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-- Nós gostaríamos de dar uma olhada nos autos de um processo. Um caso que foi
arquivado -- acrescentou. -- Eu, inclusive, já fiz uma reportagem a respeito.
Os olhos da mulher se estreitaram.
-- Qual caso?
-- Anne Trulane.
-- Acho que não vai ser possível, Matt. -- E dirigiu o olhar para Laurel.
-- Ah, perdão, esqueci de fazer as apresentações. Laurel Armand, sargento Carolyn
Baker. Laurel e eu estamos trabalhando juntos -- explicou. -- Ela é uma velha amiga
dos Trulane. Por favor, sargento, o que vai lhe custar? Afinal, eu cobri esse caso desde
o início...
-- Por isso mesmo. Você já teve acesso aos autos.
-- Nesse caso, não há mal algum em dar uma outra olhada, certo? -- argumentou,
abrindo um sorriso charmoso. -- Você sabe que eu sou um profissional sério, Carolyn.
Nunca divulguei informações que pudessem atrapalhar uma investigação.
-- Eu sei, você sempre jogou limpo. -- Ficou um instante refletindo e ergueu os
ombros. -- Pensando bem, acho que não haverá inconveniente, já que tudo o que
consta nos autos desse processo chegou ao conhecimento público. -- Levantou-se e
saiu da sala.
-- Você sempre trabalha desse modo, Matthew? -- Laurel perguntou, com ar
malicioso. -- Não levou muito tempo para convencer o sargento.
Ele se voltou para ela e encarou-a com um sorriso divertido.
-- Ciúme, querida? Não se preocupe, você sabe que o meu coração está nas suas
mãos.
-- Preferia que estivesse sob os meus pés.
-- Malvada -- murmurou, e o diálogo parou ali, pois o sargento acabava de voltar.
-- Vocês podem usar a primeira sala à direita. Está vazia, por ora. -- Abriu um livro
e estendeu a Matt uma caneta. -- Assine aqui, por favor.
-- Fico lhe devendo essa gentileza, sargento.
Ela esperou que ele rabiscasse a assinatura.
-- Pois esteja certo de que vou cobrar, ouviu?
Uma mulher interessante, o sargento Carolyn Baker, Matt pensou, enquanto ele e
Laurel se dirigiam para a sala que lhes fora indicada. Uma morena bonita, simpática e
atraente. Estranho que nunca pensasse nela. Nem em qualquer outra mulher, para ser
mais exato. Somente uma lhe interessava. Alguém que há um ano se tornara o centro de
seus pensamentos. Alguém muito especial.
-- Sente-se. -- Indicou a Laurel uma cadeira e fechou a porta, para que o barulho de
fora não os perturbasse.
-- Lugar acolhedor -- comentou ela, ironicamente, enquanto corria o olhar pelas
paredes brancas, um tanto encardidas e sem um único quadro a enfeitá-las. A mesa que
ocupavam era grande e já bastante gasta pelo uso.
-- O que você esperava? Um escritório acarpetado? Isto aqui é um distrito policial,
minha cara. -- Abrindo os autos, Matt correu os olhos apressadamente pelos diversos
relatórios.
Ele até que se ajustava àquele ambiente, Laurel constatou, tomada por um certo
respeito. Sob a superfície de homem espirituoso e de fácil convívio, existia uma certa
rudeza, que ela tivera oportunidade de vislumbrar momentos antes no elevador.

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Tentou esquivar-se daquele pensamento. Sentia-se mais segura ignorando as facetas
que compunham a personalidade de Matt. Preferia continuar a vê-lo como um homem
vazio e inconseqüente, insuportável sob todos os pontos de vista.
-- Nada de novo por aqui -- Matt murmurou, folheando os papéis. -- O laudo
médico atribui a causa mortis a envenenamento por picada de cobra, agravado pela
ausência de socorro imediato. Não foram constatadas lesões no corpo nem evidências
de abuso sexual. Hora provável da morte: entre duas e quatro. -- Estendeu a folha de
papel a Laurel, antes de passar para o relatório policial.
-- Trulane trabalhou até tarde no escritório -- Matt prosseguiu, resumindo os dados
que tinha diante dos olhos. -- Segundo ele, a esposa deveria estar dormindo no quarto
do casal que ficava no segundo andar da casa. Por volta das duas horas da manhã, ao se
recolher, descobriu que a cama estava vazia. Depois de procurar em vão por toda a
casa, acordou a irmã e os empregados e todos se espalharam numa busca pelas
imediações. -- Distraidamente, Matt procurou por um cigarro e encontrou o invólucro
vazio. Contrariado, amassou-o e deixou-o no cinzeiro.
-- Não deram por falta de nenhuma peça de roupa nos armários -- continuou. -- Os
carros estavam todos na garagem O telefonema ao distrito policial foi dado às duas e
cinqüenta e sete. -- Olhou para Laurel. -- Quase uma hora depois de ele ter dado pela
falta da mulher.
Ela ainda segurava o relatório da perícia médica e sentia as mãos ligeiramente
úmidas.
-- A casa é muito grande -- explicou a Matt. -- Eles só chamaram a polícia depois
de terem revirado tudo. Ê um procedimento normal, concorda?
Ele pensou um pouco e afinal cedeu.
-- É, acho que você tem razão. As pessoas só chamam a polícia quando têm certeza
de que precisam dela. -- Voltou a atenção para a folha e prosseguiu na leitura. -- A
polícia chegou às três e quinze. Depois de uma busca completa na casa, e tendo
interrogado os empregados... -- passou os olhos rapidamente por aquele pedaço e foi
direto ao último parágrafo:
-- ... o corpo de Anne Trulane foi encontrado, por volta das seis horas, no lado sul do
pântano. -- Matt havia estado lá e lembrava-se perfeitamente do cenário escuro e
sombrio e da sensação desagradável que experimentara ao andar pelo local
-- Ninguém poderia supor que ela estivesse no pântano. De acordo com Marion
Trulane, a cunhada tinha verdadeiro pavor daquele lugar. Isso bate com o que Susan
nos disse -- murmurou ele. -- Louis Trulane insistiu na história de ter trabalhada até
tarde e recusou-se a dar mais explicações.
Você alguma vez já encontrou a sua mulher morta? -- Laurel reagiu, tirando-lhe a
folha das mãos. -- Louis não quis restar declarações porque ficou arrasado. Não vejo
nada de anormal nesse procedimento.
Matt não deu atenção àquelas palavras e prosseguiu normalmente, meditando nas
próprias palavras.
-- A conclusão é a de que Anne se sentiu compelida a ir até o pântano, talvez para
enfrentar o próprio medo, e acabou se perdendo. Foi picada por uma cobra venenosa,
continuou andando, sem encontrar o caminho de volta, e desmaiou, morrendo em
conseqüência da falta de socorro imediato. -- Olhou para Laurel, que, com a testa
franzida, lia o relatório policial.

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--Você acha que tem suficiente intimidade com a família para que possamos ir até lá
e fazer algumas perguntas?
-- Hein? Ah, sim, tenho certeza de que não haverá problemas. Eles me receberão. E
a você também -- acrescentou --, se espalhar um pouco do seu charme. O que, aliás,
você parece ter prazer em fazer.
Ele curvou os lábios num sorriso malicioso.
-- Não pensei que você fosse tão observadora.
-- Como não posso notar algo tão acintoso?
-- Por favor, Laurel, elogios me deixam embaraçado. Com ar de pouco-caso, ela
deixou o relatório de lado.
-- Louis deve ter passado por maus bocados. Ele nunca foi de muitas palavras e se
tornou ainda mais fechado depois do fracasso do primeiro casamento. Entretanto, acho
que comigo ele vai se abrir. Sempre tivemos um bom relacionamento.
-- Ouvi dizer que a primeira mulher fugiu com o irmão dele -- Matt comentou
vagamente.
-- Pobre Louis. Ele sofreu muito. -- Continuou a folhear os autos, enquanto Matt
olhava para o teto, imerso em pensamentos.
De súbito, Laurel perdeu a cor. Deus, o que era aquilo?, perguntou-se, sem poder
desviar os olhos da foto, anexada aos autos do processo. Anne Trulane... A imagem
apavorante da morte.
-- Há quanto tempo você... -- Matt parou de falar, quando viu a fisionomia de
Laurel. Estava lívida, os olhos cheios de horror. Compreendendo o que se passava,
tirou-lhe rapidamente a foto das mãos. -- Laurel, você está bem?
-- A... acho que sim. -- Mas não estava tão certa disso. Respirou fundo, esforçando-
se para fazer a vertigem passar. Quando os braços de Matt a envolveram, ela deixou a
cabeça descansar nos ombros dele. -- Sinto muito. Acho que estou sendo ridícula.
-- Claro que não. -- Com movimentos lentos e suaves, ele começou a afagar-lhe os
cabelos. -- Está melhor agora?
Ela fez que sim. Sentia-se segura ali. Aos poucos, os músculos tensos foram se
relaxando. Matt continuava a acariciá-la suavemente, procurando oferecer-lhe conforto.
Como era bom... Laurel fechou os olhos e murmurou, aninhada nos braços dele:
-- Matthew.
-- Hum?
-- Não seja tão bonzinho comigo.
-- Por que não? -- perguntou, sorrindo.
-- Porque eu não quero. -- Afastou-se um pouco e ergueu os olhos para ele.
-- Você é linda, Laurel -- Matt confessou, num sussurro, segurando-lhe o rosto com
ambas as mãos. -- Já lhe disse isso antes?
Delicadamente, ela fugiu daquele contato e se pôs de pé.
-- Não -- respondeu. -- Eu geralmente tomo nota dessas coisas -- acrescentou, em
tom de brincadeira.
-- Linda -- repetiu ele --, ainda que o queixo seja um pouco pronunciado.
-- Não é, não. -- Automaticamente virou o rosto de lado.
-- Especialmente desse ângulo.
-- Eu tenho traços muito delicados -- afirmou, enquanto apanhava a bolsa. Droga,
por que os dedos tremiam? Era melhor sair de lá o quanto antes. Precisava de ar puro.

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Matt se levantou também.
-- Você é linda, com exceção do queixo -- continuou, ainda a provocá-la. E,
sorrindo, passou-lhe o braço pela cintura.
Estavam a um passo da porta quando Laurel parou e olhou fixamente para ele, uma
nuvem obscurecendo-lhe o semblante.
-- Matthew... Ninguém merece uma morte como aquela.
Ele não disse nada, apenas aumentou a pressão dos dedos sobre a cintura dela.


CAPÍTULO IV

Fim de tarde. No bar vazio e pouco iluminado, Matt dirigia os passos de Laurel para
uma mesa de canto. Não, ninguém merecia uma morte como aquela, mas a morte, tanto
quanto a vida, joga de acordo com as suas próprias regras. E quem as conhece? Há
muito tempo ele aprendera a aceitar isso.
Como Laurel, Matt havia estado em silêncio desde o momento em que saíram do
distrito policial, pensando, analisando, recordando...
O telefone tocara de madrugada, dando a notícia do desaparecimento de Anne
Trulane. Matthew chegara a Heritage Oak pouco depois dos policiais. Uma forte
neblina, um ar de silêncio. De algum modo, ele sentira que Louis Trulane não aprovara
o fato de terem chamado a polícia. Suas respostas haviam sido vagas; a expressão,
distante. Não, ele não era a imagem do marido preocupado com o desaparecimento da
esposa, mas de alguém que se aborrece diante do inesperado e que vê adiadas as suas
horas de sono.
A irmã, Marion Trulane, e os empregados estavam todos reunidos alguns passos atrás
dele, quando veio a ordem para a busca no pântano. Era um lugar úmido e escuro,
povoado por sons estranhos e indecifráveis. Matt experimentava uma sensação
esquisita, ao percorrer aqueles caminhos sombrios.
E então ela foi encontrada, tarde demais, caída no chão. A aurora despontava. Era
sinistro o amanhecer, naquele local envolto em sombras.
A reação de Louis Trulane fora fria e contida. Matt ainda era capaz de vê-lo
claramente diante dos seus olhos: pálido como uma máscara de cera e
inexplicavelmente mudo. Revolta, dor e desespero, se é que os sentia, ficaram
guardados dentro dele. Marion perdeu os sentidos, os empregados se alvoroçaram,
muitos choraram, mas Louis permanecia imóvel como uma estátua.
-- Eu vou telefonar para Louis.
-- Como? -- Matt virou o rosto na direção de Laurel e viu que ela o observava.
-- Vou telefonar para Louis -- repetiu. -- Pedirei a ele que nos receba.
Ele começou a abrir o maço de cigarros.
-- Está bem. -- Acompanhou-a com os olhos até vê-la deter-se ao telefone que
ficava a um canto do balcão. Não estava sendo fácil para Laurel, ele pensou, enquanto
riscava um fósforo, usando mais força do que o necessário. Quaisquer que fossem os
sentimentos dela em relação a Louis Trulane, era evidente que ele ainda ocupava um
lugar especial dentro do seu coração, impedindo-a de ser objetiva e de enxergar as
coisas de modo racional.


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"E você, Matthew Bates?", perguntou-se, soltando uma baforada. "Odeia Louis
Trulane pelo que ele pode significar para Laurel. Também não está sendo objetivo, meu
caro."
Meneou a cabeça e deu uma outra tragada. Era preciso que tanto ele quanto Laurel
deixassem de lado os próprios sentimentos e se concentrassem nas prioridades. A
reportagem sobre o caso devia estar em primeiro lugar. O resto ficaria para depois. Se
ela se dava bem com os Trulane, tanto melhor. Isso abriria as portas para eles. Pessoas
como Louis geralmente colocam empecilhos ao trabalho da imprensa.
Laurel estava voltando para a mesa. Trazia um brilho de tristeza no olhar.
-- E então? -- perguntou, assim que ela se sentou.
-- Ele vai nos receber amanhã, às dez horas. Matt apagou o cigarro.
-- E por que você está com essa cara? Não era isso o que queríamos?
-- Eu fui obrigada a apelar para a nossa amizade. -- Olhou para ele, desanimada. --
Odeio pressionar as pessoas. Não é esse o meu estilo.
-- Você tem um trabalho a fazer -- murmurou Matt, como se quisesse consolá-la, e,
antes que pudesse dar-se conta, sua mão pousava na dela.
-- Eu sei. Não pense que me esqueci disso. -- Instintivamente, Laurel apertou a mão
que segurava a sua. -- Mas, ainda assim, não gosto de agir contra os meus princípios.
-- Sabia que não podia voltar atrás, não depois de ter visto aquela fotografia.
Quando a garçonete se aproximou da mesa, ela ergueu os olhos. Não estava
acostumada a beber, mas faria uma exceção. Talvez aquilo a reanimasse.
-- Um Martini seco, por favor -- pediu, decidida.
-- Dois -- acrescentou Matt, e sorriu para ela, compreensivo. -- Isso só ajuda no
início, Laurellie.
-- Já é o bastante. -- Descansando os cotovelos sobre a mesa, inclinou o corpo para
a frente. -- Matthew, hoje eu vou beber muito. Sei que isso não resolve e que amanhã,
com certeza, estarei arrependida, mas... Amanhã é outro dia.
Ele fez um aceno afirmativo e sorriu.
-- Eu sempre esperei por uma oportunidade como essa. Embebedar você, levá-la
para casa e...
Laurel sorriu pela primeira vez em muitas horas.
-- Não existe bebida suficiente neste lugar para me fazer perder a cabeça, Matthew.
-- Veremos. -- Reclinou-se na cadeira e acendeu outro cigarro. -- Por que você não
me fala sobre os Trulane?
-- O que você quer saber?
-- Tudo.
Laurel suspirou e tomou um gole do Martini que a garçonete havia acabado de deixar
sobre a mesa. Fez uma careta, mas empurrou o líquido garganta abaixo.
-- Vamos, Laurellie -- insistiu ele. -- Estou esperando.
-- Calma. E não me chame desse modo. Você sabe que eu não gosto. Bem, vamos
começar pelo princípio. Heritage Oak foi construída no início do século XIX. A
fazenda era enorme e muito rica. Ainda hoje, os Trulane têm mais terra do que qualquer
outro, nesta parte da Luisiana. Além do algodão e do gado, eles possuíam uma empresa
de construção naval. Graças aos lucros provenientes desse negócio, a fazenda manteve-
se em pé, depois da guerra. Até onde as pessoas se lembram, os Trulane têm


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desempenhado um papel importante em New Orleans, social, financeira e politicamente
falando. Minha avó tem um vasto repertório de histórias a esse respeito.
-- Aposto que sim -- Matt concordou. -- Mas vamos pular essa parte. Conte-me
algo mais recente, acerca deste século.
Laurel tomou outro gole e ficou brincando com o copo.
-- Então vamos para o pai de Louis: Beauregrad Trulane. Ele herdou Heritage Oak
logo após o casamento. Teve três filhos: Marion, Louis e Charles. -- Sorriu para si
mesma. -- Minha avó gostava muito dele. Para falar a verdade, às vezes eu me
pergunto se... Bem, isso não interessa. A mulher do Sr. Trulane era muito bonita, traços
suaves, expressão serena. Marion se parece muito com ela. Tia Ellen, era assim que eu
a chamava, morreu seis meses depois que minha mãe. Eu estava com seis anos.
Esvaziou o copo e, entretida no relato, não percebeu que Matt fazia sinal à garçonete
para mais uma rodada.
-- Quando tia Ellen morreu, o velho Beau perdeu todo o estímulo de viver. Não se
importava com mais nada. Louis viu-se então obrigado a tomar conta dos negócios. Na
verdade, ele era muito jovem, dezoito ou dezenove anos, não sei ao certo, mas não lhe
foi dada outra escolha. Para mim, Louis sempre foi um misto de príncipe encantado e
Robin Hood. Muito bom, gentil e atencioso, um homem alegre e de riso fácil. É assim
que gosto de me lembrar dele -- murmurou, e baixou os olhos para o copo vazio,
enquanto a garçonete o trocava por outro.
-- As coisas mudam -- Matt ponderou, com uma certa impaciência. Como competir
com uma recordação de infância?, perguntou a si mesmo, frustrado pelo olhar distante e
sonhador que tinha à sua frente. -- Você não é mais uma criança, Laurel.
Ela ergueu o rosto e encarou-o com firmeza.
-- Eu sei disso, mas, ainda assim, é dentro dessa perspectiva que eu o vejo.
Matt abaixou a cabeça e ordenou aos seus músculos que relaxassem.
-- E quanto a Marion? -- perguntou logo em seguida.
-- Ela é dois anos mais velha que Louis e, como já disse, se parece muito com a
mãe. Linda, elegante, atraente...
-- Concordo. -- Matt interrompeu o discurso, trazendo à mente a visão de Marion
Trulane.
-- Ela é muito velha para você -- Laurel retrucou, com uma certa vivacidade, e caiu
em si quando percebeu um sorriso divertido nos lábios dele. -- Como é, posso
continuar? -- perguntou, disfarçando a contrariedade.
-- Claro, sinto muito pela interrupção.
-- Marion gostava muito de mim, e eu dela. Sabendo que eu adorava Louis,
incentivava as minhas fantasias, dizendo-me que crescesse depressa para poder me
casar com ele.
-- Ela nunca se casou?
-- Não. Vovó dizia que Marion era muito exigente, mas eu acho que ela teve um
caso de amor que não deu certo. Uma vez eu me recordo bem, ela definiu o amor como
a coisa mais importante na vida de uma mulher. Na época, supus que estivesse se
referindo a Louis e a mim, mas hoje, lembrando-me do olhar dela... -- Suspirou e
alcançou o copo. -- Marion Trulane era muito sensível, capaz de se magoar com
facilidade.


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Matt continuou olhando para ela, a pele macia, os lábios bem-feitos, os olhos
bonitos.
-- Charles era diferente -- Laurel prosseguiu. -- Eu o considerava como um irmão.
De fato, ele me lembrava Curt. Distraído e sonhador. Queria ser pintor. Os quadros dele
enfeitavam as paredes da sala, mas foram removidos quando...
-- Quando ele fugiu com a primeira mulher de Louis -- Matt deduziu.
Ela concordou, acenando com a cabeça.
-- Doze anos atrás. Foi um escândalo que rendeu muitas manchetes nos jornais. --
Baixou a cabeça, levemente atordoada. O vermute começava a fazer efeito. -- Vovó
poderia dar-lhe á história completa, mas, pelo que lembro, Louis voltou de uma viagem
de negócios e descobriu que Elise havia ido embora com Charles.
O bar começava a ganhar movimento. Várias mesas já estavam ocupadas pela
clientela habitual, normalmente homens de negócios. A música de fundo, vinda do
piano, dava um toque acolhedor ao ambiente, mergulhado na penumbra. Mas Laurel
parecia não notar nada.
-- A partir daí, Louis tornou-se outro homem: calado, sério e, acima de tudo,
impenetrável. Nas poucas vezes em que estive com ele, não presenciei o mais leve
sorriso. Aquele Louis em nada se assemelhava ao homem que tinha sido a paixão da
minha adolescência. Até onde eu sei, ele nunca obteve notícias de Charles ou de Elise.
Cerca de quatro anos atrás, divorciou-se legalmente e, segundo Marion, tornou-se mais
amargo depois disso. Ela vivia preocupada com o irmão, sem saber o que fazer para
ajudá-lo. Por isso, o casamento com Anne Fisher pegou a todos de surpresa.
Preguiçosamente, o olhar de Laurel acompanhou a trajetória que a fumaça do cigarro
de Matt fazia em direção ao alto, dispersando-se antes de chegar ao teto.
-- Quando soube do segundo casamento, telefonei a ele. Em primeiro lugar, porque
queria desejar-lhe felicidades. Era bom saber que Louis punha um ponto final no
passado. Eu me sentia sinceramente feliz por ele. Em segundo lugar, tudo o que dizia
respeito aos Trulane era notícia, e eu pretendia conseguir uma entrevista. Ao telefone, a
voz dele parecia normal, nada da alegria de antes, mas... Era como se eu estivesse
falando novamente com um velho amigo depois de tanto tempo, não sei se estou sendo
clara.
-- Claríssima -- Matt confirmou, e aguardou o prosseguimento.
-- Bem, ele não quis me conceder a entrevista nem prestar declarações. Queria
distância da imprensa, que eu o desculpasse.
-- Franziu a testa, como se procurasse as palavras, e sorriu com amargura. -- Louis
casou-se com uma mulher bem mais jovem que ele.
Deus, será que Laurel suspeitava do que fazia com Matt, quando se mostrava tão
vulnerável e indefesa? Em momentos como esse, ele sentia vontade de levá-la para
longe de tudo, onde nada pudesse atingi-la ou magoá-la. Mas não podia fazer nada,
demonstrar nada. Apagou o cigarro com um cuidado deliberado.
-- O que você sabe sobre a primeira mulher dele? -- perguntou, então.
-- Praticamente nada. -- Sorriu, ao erguer os olhos para Matt. -- A não ser que eu
morria de ciúme dela. Elise parecia uma boneca de porcelana: frágil e delicada. -- Nem
bem disse isso, arregalou os olhos. -- Exatamente como... Do mesmo tipo que -- Tal e
qual a segunda, Sra. Trulane -- Matt concluiu por ela -- Não era isso o que você queria


30
dizer? -- Chamou a garçonete novamente. -- Estranho, não? -- comentou, deixando a
insinuação no ar.
-- Não vejo nada de estranho nisso. -- Laurel tratou de defender o amigo. -- Isso
apenas significa que ele se sentia atraído por um determinado tipo de mulher. Ao que
me consta, semelhança física não é motivo para um assassinato.
-- Quem pode jurar? Às vezes uma mente doentia...
-- Pare com isso! Você não conhece Louis.
-- Não, mas este foi o único dado concreto que conseguimos até agora. Isto é,
supondo-se que Anne tenha sido assassinada.
-- Ergueu uma sobrancelha e estudou o semblante de Laurel.
-- Você toma rápido a defesa dele, Laurellie. Desse jeito, vai ser incapaz de analisar
os fatos com clareza. Deixe de lado as lembranças da infância, se quiser levar essa
investigação adiante.
-- Não preciso dos seus conselhos, Matthew. Os meus sentimentos em relação a
Louis não interferirão no meu trabalho.
-- Olhou para o copo vazio. -- Acabei o Martini.
-- Estou vendo. -- Não havia como não achar graça. Laurel ficava encantadora,
quando compunha aquela expressão indignada. -- Chega de Trulane por hoje -- Matt
decidiu. -- Quando a garçonete se aproximou para repor os copos, ele fez um gesto de
recusa. -- Estes ficam para amanhã. -- Pediu a conta e voltou a se concentrar em
Laurel. -- Por que você não aproveita e me conta algo sobre o seu vereador favorito?
Eu trouxe o meu bloco de anotações.
-- E por que você não deixa Jerry em paz? -- retrucou, irritada. -- Eu considero
esses seus comentários sobre ele irritantes.
-- Por que estou com a razão?
-- Exatamente. Odeio quando sou obrigada a concordar com você.
Ele se surpreendeu com a resposta e acabou dando risada. Pagou a conta e ajudou-a a
se levantar.
-- Vamos. Uma caminhada lhe fará bem. Só espero que o ar fresco não clareie
demais o seu cérebro. Você está ótima assim. Ah, que milagre três vermutes podem
fazer!
-- Olhe, não fique pensando coisas. -- O chão parecia se mover, sob os pés dela. --
Eu só estou me apoiando em você porque a bebida me deixou um pouco tonta. --
Saíram do bar e Laurel respirou fundo. -- Depois de andar um quarteirão, estarei ótima.
-- Então me avise quando puder andar sozinha.
-- Quantos copos você tomou?
-- O mesmo que você. Laurel ergueu a cabeça para observá-lo e descobriu que
bebera mais do que devia. Sensação desagradável.
-- Bem, você é mais alto e mais pesado; -- Reprimiu um soluço. -- Eu tenho uma
estrutura mais delicada.
-- Isso eu já notei. Ela ergueu uma das sobrancelhas.
-- É mesmo?
-- Eu diria mais do que isso: fiz um estudo detalhado acerca das suas... estruturas.
De um ponto de vista jornalístico, é claro.
-- E a que conclusão você chegou?


31
-- Não me provoque... -- advertiu-a, mas era evidente que estava apreciando o
diálogo. Aproximou os lábios dos dela, mas Laurel fugiu, descansando a cabeça nos
ombros fortes e largos.
Continuaram andando.
-- Você beija de um modo tão esquisito... -- revelou, num tom de quem faz
confidencias. -- Não sei se gosto.
-- É mesmo? "Essa mulher está mexendo com fogo." Por que não debatemos o
assunto no meu apartamento?
-- Na verdade, eu sempre pensei que a sua técnica fosse diferente -- ela continuou,
como se não tivesse ouvido a pergunta. -- Você sabe o que quero dizer; mais ardente,
mais impetuosa, mais agressiva.
-- Quer dizer que andou analisando a minha técnica?
-- Apenas por alguns instantes. De um ponto de vista jornalístico, é claro.
-- Proponho que adiemos a conversa para logo mais. Olhe -- apontou para o prédio
onde moravam --, estamos quase chegando.
Em frente à porta do apartamento, Laurel começou a revirar a bolsa.
-- Não encontro a chave -- resmungou. -- Tome, vá segurando estas coisas para
mim. -- E foi passando para ele o estojo de pó-de-arroz, o batom, a escova, a carteira...
-- Alguma coisa mais? -- Matt perguntou, admirado, ao ver as mãos cheias.
-- Ah, aqui está ela. -- E ergueu a chave diante dele com ar de triunfo.
Sem a menor cerimônia, Matt recolocou todos os objetos na bolsa de Laurel e tirou-
lhe a chave da mão.
-- Você não vai me convidar para entrar? "Está precisando de um bule de café sem
açúcar", disse para si mesmo, ao vê-la apoiar-se na parede. "Duas aspirinas e cama." Só
não estava certo de que ela conseguiria fazer tudo aquilo sozinha. -- Somos vizinhos há
quase um ano e ainda não conheço o seu apartamento.
-- Que falta de educação a minha... Entre e fique à vontade -- convidou-o, com um
sorriso frouxo e as pálpebras pesadas.
A sala de estar tinha o toque de Laurel nos mínimos detalhes, ele constatou, ao correr
o olhar pelo ambiente elegante e decorado em tons suaves: cortinas de renda, sofá e
poltronas de veludo, um aroma de lavanda pelo ar.
-- Combina com você -- concluiu, com ar de apreciação.
-- Sério? Ainda bem que gostou... -- Passou a mão pelos cabelos enquanto tentava
firmar a vista. Matt parecia estar dançando diante de seus olhos. -- Sabe, Matthew --
confessou, com um sorriso --, você às vezes é um homem fascinante.
Estavam a poucos passos de distância um do outro. Indeciso, ele não sabia se ela
estava sendo deliberadamente provocante ou se aquele comportamento fora do comum
era ditado pela bebida. De qualquer modo, Matt não sabia como agir. Não que gostasse
de seguir regras, mas estava fora de cogitação levar para a cama uma mulher que, no
dia seguinte, poria a culpa no álcool para justificar o acontecimento.
-- Que tal um café? -- ele sugeriu então, pegando-a pelo braço.
-- Você quer?
-- Você quer -- corrigiu. -- E bem forte. Fique aqui, quietinha. Deixe tudo por
minha conta.


32
-- Matthew Bates, você é um homem completo. -- Perdeu o equilíbrio, mas foi
amparada a tempo. Sorrindo, passou os braços em volta do pescoço dele. -- Olhos
lindos -- murmurou. -- Aposto que todas dizem isso.
-- Constantemente. -- Pôs as mãos na cintura dela para afastá-la. Mas Laurel estava
colada a ele, como se quisesse fazê-lo sentir cada curva do seu corpo. Àquilo já era
demais para um homem suportar. -- Laurel...
-- Por que não me beija outra vez? Quem sabe assim eu descubra por que vivo
dizendo a mim mesma que não quero você.
-- Amanhã -- murmurou ele, enquanto suas bocas se aproximavam -- você vai se
arrepender por tudo o que está me dizendo agora.
-- Eu sei -- sussurrou, lânguida, de encontro aos lábios dele -- mas não quero me
preocupar com o amanhã; só quero que me beije agora.
Ao diabo com tudo, Matt pensou, deixando de lado o auto-controle e beijando-a com
violência. Não era assim que ela gostava? Pois ele ainda tinha muito que mostrar. Ela
haveria de testemunhar o quanto Matthew Bates podia ser agressivo e impetuoso.
Afogada por aquele beijo, Laurel se perguntava vagamente como seu corpo podia
vibrar tanto. Já não saberia dizer se aquela vertigem era puramente efeito do álcool. A
mente estava entorpecida. A cabeça rodava. O que estava acontecendo com ele, meu
Deus?
-- Matthew... -- sussurrou, quando suas bocas se separaram. Ele tinha que parar
justo agora?
-- A porta.
-- Hein? -- Que diabo ele queria dizer com aquilo?
-- Alguém está batendo à porta.
-- Que porta? -- Olhou para ele, confusa, custando a se concentrar naquele diálogo
que lhe parecia tão absurdo.
-- Sua porta -- insistiu, segurando o riso.
-- Ah. -- Virou o rosto para um lado, depois para o outro. Parecia ser a primeira vez
que via aquela sala. -- Devo ver quem é?
Matt a soltou com cuidado.
-- Acho que sim -- respondeu sorrindo.
Desnorteada, Laurel caminhou em direção à porta. Matt, por sua vez, entrou na
cozinha. Por Deus, mais um pouco e ele a deitaria ali mesmo, sobre o carpete da sala,
e... Respirou fundo. Não sabia se era o caso de agradecer ou de matar a pessoa que
chegara na hora H. Melhor ainda seria fazer logo o café, decidiu, abrindo o armário
embaixo da pia.
Laurel experimentava a sensação de quem deu um mergulho e luta para chegar
rapidamente à tona. Pressionou os dedos na testa e procurou andar em linha reta. O que
quer que o Martini houvesse desencadeado, o beijo de Matt completara. Sentia-se
totalmente fora de órbita. Endireitou o corpo e abriu a porta.
-- Laurel, eu estava a ponto de ir embora. -- Jerry Cartier, impecável no terno cinza,
olhava para ela com uma expressão de contrariedade.
-- Oi, Jerry -- cumprimentou-o, esforçando-se para aparentar naturalidade, ao
mesmo tempo que sentia o sangue congelar.
-- O que você estava fazendo? -- Ele entrou sem esperar o convite.
Laurel fechou a porta, o cérebro lutando para encontrar uma resposta satisfatória.

33
-- Eu? "Pense em alguma coisa. Rápido." Fazendo café. É, eu estava fazendo café.
-- Você devia parar com essa mania de tomar café o dia inteiro, querida. Não é bom
para os nervos.
-- Tem razão. -- Pensou em Matt lá na cozinha e concluiu que seus nervos estavam
em ótimo estado. Que situação embaraçosa! Além de tudo, era preciso disfarçar o seu
estado. Não estava com a menor disposição para ouvir um sermão sobre os malefícios
do álcool. -- Sente-se, Jerry. -- Indicou o sofá, desejando nesse momento poder estar
na penumbra do seu quarto, dormindo profundamente. Se tivesse sorte, talvez
conseguisse chegar até a poltrona sem cambalear. Deu um passo um tanto incerto.
"Vamos, Laurel, concentre-se, pelo amor de Deus!"
-- Você não está pronta -- observou Jerry.
-- Pronta para quê? -- Estacou no lugar.
-- Laurel, não me diga que se esqueceu. Não combinamos que eu a levaria para
jantar?
-- Olá, Jerry. -- Era Matt quem entrava, segurando uma bandeja.
-- Matthew? Refeito do espanto, cumprimentou-o friamente.
-- Como vai?
Depois de colocar a bandeja sobre a mesa de centro, Matt andou casualmente até
Laurel e ajudou-a a se sentar, agindo da forma mais natural possível. Sentando-se em
segurança na poltrona, ela lhe lançou um olhar de agradecimento.
-- E então? Como foi o seu dia, Jerry? -- ele perguntou, sentando-se também.
-- Trabalho, muito trabalho -- respondeu o outro, entrelaçando os dedos. -- Mas o
que posso fazer? A política é a minha vida. --Parecia estar esperando os aplausos.
Matt não se fez de rogado:
-- É de homens como você que a cidade precisa. E por que não dizer o país? --
retrucou, com voz carregada de sarcasmo.
-- Café? -- Laurel interrompeu-o. Embriagada ou não, ela não poderia ficar de
braços cruzados, enquanto Matt massacrava calmamente um homem desarmado. Além
disso, se não tomasse um gole do café imediatamente, não teria forças para ouvir nem
mais uma palavra. As pálpebras estavam cada vez mais pesadas.
-- Meia xícara apenas -- Jerry disse, enquanto ela se inclinava para alcançar o bule.
Apesar de seus esforços, acabou derramando café no pires. -- Laurel, você andou
bebendo? -- ele perguntou, desconfiado, ao notar os gestos lentos e pesados.
Matt fechou os olhos. Pronto, o caldo estava prestes a entornar.
-- Bebendo? Eu? -- Afetou um ar escandalizado, enquanto endireitava o corpo. --
Só porque derramei um pouco de café? -- Riu e balançou a cabeça, fingindo achar
graça. Jerry sorriu também, certo de que havia dito um absurdo. Para se livrar da
incômoda situação de quem se sente observado, ela procurou algo para dizer: -- Mas
que bela surpresa, você ter aparecido!
Jerry franziu a testa.
-- Surpresa? E o jantar que havíamos combinado? Laurel, o que está acontecendo
com você?
Ela teve vontade de morder a língua. Felizmente, Matt veio em seu socorro:
-- Laurel e eu temos que trabalhar numa reportagem muito importante. Estávamos
tão entretidos em selecionar as informações que não vimos o tempo passar. Não é,
Laurel? -- Aquilo estava ficando mais divertido do que ele poderia supor.

34
-- Pois é -- ela confirmou, pegando a deixa. -- Desculpe, Jerry, mas a verdade é
que me esqueci completamente do nosso programa.
-- Sabe como é, o trabalho de um repórter às vezes o obriga a sacrificar a vida social
-- continuou Matt, com o ar mais inocente deste mundo.
Jerry tentou protestar, mas não teve chance de abrir a boca.
-- Nós vamos comer um sanduíche aqui mesmo e prosseguir com o trabalho, não é,
Laurel?
Ela fez que sim. Estava ficando nervosa. Matt precisava esticar tanto o assunto?
-- Aliás, isso vai durar algumas semanas -- continuou ele. -- Tenha um pouco de
paciência, Jerry. A reportagem que estamos preparando exige uma longa pesquisa.
Jerry desviou os olhos para Laurel e, afinal, acabou concordando.
-- É uma pena, querida -- lamentou. -- Mas eu entendo. O meu lema sempre foi: o
trabalho antes do prazer. -- Matt segurou a risada. -- Quando você estiver livre --
continuou o outro, já em pé --, telefone para o meu escritório. E siga o meu conselho:
não tome café o dia inteiro, porque...
-- Faz mal para os nervos -- Laurel disse junto com ele. -- Vou me lembrar disso,
Jerry.
-- Ótimo. -- Inclinou-se para dar-lhe um beijo no rosto e, depois de apertar a mão de
Matt, saiu, fechando a porta com cuidado.
-- Oh, Deus! -- Laurel suspirou, exausta, sem saber se devia rir ou chorar.
-- Vamos, Laurel, tome o café -- disse ele, estendendo-lhe uma xícara. -- E não
precisa me agradecer por tê-la livrado de jantar com aquele chato.
-- Em primeiro lugar, depois de tudo o que aconteceu hoje.. -- Viu-o alargar o
sorriso. -- Estou me referindo ao caso de Anne Trulane -- frisou, irritada. -- Eu
simplesmente me esqueci do jantar. Em segundo lugar, não preciso de você para me
salvar de Jerry ou de quem quer que seja. E, por último, ele não é um chato. Ao
contrário, é o homem mais...
--Por favor, não venha outra vez com aquela história de inofensivo, porque o rapaz
não merece isso -- caçoou ele.
Ela terminou o café e, com a intenção de despachado, comunicou com firmeza:
-- Vou para a cama.
Matt sorriu maliciosamente.
-- Eu adoro mulheres agressivas, principalmente na cama.
Ela meneou a cabeça e acabou rindo também. Era impossível ficar séria perto dele
por mais de dois segundos.
-- Só que eu vou dormir sozinha -- avisou.
-- Quanto desperdício, meu Deus! -- Ajudou-a a se levantar e abraçou-a.
Ao sentir os lábios dele em seu pescoço, Laurel implorou num sussurro:
-- Não, Matthew, por favor...
Ele parou imediatamente e baixou os olhos para ela. Seria tão fácil... Bastaria não dar
ouvidos a Laurel e abraçá-la com força, depois beijá-la. Era o que ela queria, o que ele
queria, embora nenhum dos dois soubesse ao certo como chegar a isso.
-- Tome uma aspirina, Laurel -- disse, afinal, soltando-a. -- Você vai precisar de
toda a ajuda possível para enfrentar a ressaca de amanhã.
Irritado consigo mesmo, deu-lhe as costas e foi embora.


35
CAPÍTULO V

"Maldito Matthew Bates!"
Laurel olhou para o seu reflexo no espelho do banheiro. Que cara horrível! Por que
ele tinha que estar sempre certo? Ai, que dor de cabeça...
Engoliu uma aspirina. Bem que ela merecia isso. Não estava acostumada a beber e
fizera o papel ridículo de se embriagar com três vermutes, enquanto Matt havia se
comportado o tempo todo como quem bebera três copos de água.
Pior do que a ressaca era lembrar-se de tudo o que acontecera na noite anterior. Ela
praticamente se atirara nos braços dele. Que vergonha! Matt não a deixaria esquecer-se
disso nem por um momento. Haveria de atormentá-la meses seguidos, droga, bem-
feito para ela.
No entanto, por mais que se recriminasse, Laurel sabia que, no fundo, gostara de tudo
aquilo. E isso era o mais insuportável. Matt precisava ser tão maravilhoso, tão sexy,
tão... Será que haveria outra oportunidade para eles?
Não, não haveria. Nunca mais, afirmou para si mesma com decisão. Não nascera
para fazer papel de idiota com homem nenhum, muito menos com Matthew Bates.
Ainda que fosse obrigada a vê-lo com freqüência, agora que estavam trabalhando juntos
no mesmo caso, ela não permitiria a menor aproximação. E justificaria o que acontecera
na véspera, pondo a culpa nos malditos três vermutes, mesmo sabendo que isso estava
bem longe da verdade.
Com um suspiro, Laurel entrou no chuveiro. Antes de alcançar a torneira, porem, a
campainha tocou, fazendo um eco terrível na sua cabeça dolorida. Puxa vida, logo
agora?, lamentou-se, sabendo que não havia outro remédio senão atender.
-- Bom-dia, Laurellie. -- Matt estava diante dela, sorrindo. O olhar desceu para o
robe acetinado e bem curto. -- Gosto desse seu vestido.
Ele estava usando roupa esporte, como de hábito, e parecia bem-disposto, com a
aparência de quem havia acabado de sair do banho. O contraste não poderia ser maior:
Laurel sentia-se como se tivesse percorrido quilômetros e quilômetros num deserto.
-- Eu perdi a hora -- ela se desculpou, e ficou de lado para que ele pudesse entrar.
Fechou a porta e, de braços cruzados, esperou pela gozação. Matt não perderia a chance
de tripudiar sobre a desgraça alheia.
-- Já tomou café? -- perguntou ele.
Ela o encarou, desconfiada. Talvez estivesse apenas aguardando o momento exato
para começar a vangloriar-se sobre a noite passada.
-- Ainda não -- respondeu, afinal.
-- Ótimo, pode deixar que eu preparo tudo -- anunciou ele, muito a vontade, e
dirigiu-se para a cozinha.
Laurel seguiu-o com o olhar. Nenhuma piadinha, nenhuma observação maliciosa? O
que ele estaria planejando agora? Dane-se, Matthew Bates, pensou, irritada consigo
mesma, ao constatar que, mais uma vez, ele a deixara sem reação. Bem, o melhor que
tinha a fazer era entrar no chuveiro e preparar-se para outro dia de trabalho na
companhia desse homem imprevisível, insuportável, irritante... Lançou um olhar para a
cozinha e rumou para o banheiro, decidida a expulsá-lo do pensamento.

36
Ela estava pronta para a batalha, Matt pensou, enquanto alcançava o pó de café. Na
certa, esperava que ele fizesse algum comentário sobre a noite anterior. Mas não, ele
não lhe daria a chance de dizer que o álcool fora o culpado pelo fato de ela ter se
soltado tanto.
Seus pensamentos viajaram em direção à noite passada. Depois de deixá-la sozinha, e
sabendo que não conseguiria dormir tão cedo, Matt pegara o carro e saíra com destino à
casa de Olívia Armand. Ela seria uma boa fonte de informações, mais precisa e mais
objetiva do que a neta.
Olívia cumprimentara-o com alegria e, ao mesmo tempo, com um olhar de
interrogação.
-- Ora, ora, a noite sempre traz surpresas.
-- Olívia... -- Inclinou-se e beijou-lhe a mão. -- Senti saudades.
-- Nesse caso, fez muito bem em vir até aqui -- disse ela, com um sorriso de
satisfação. -- Sente-se e tome um drinque comigo. Mas antes diga-me uma coisa: já
conseguiu amolecer o coração da minha neta?
Matt pensou na mulher que tivera nos braços recentemente.
-- Mais ou menos -- murmurou.
-- Você vai muito devagar, menino.
-- É que eu costumo estudar bem o terreno em que vou pisar. -- Preparou um uísque
on the rocks e o estendeu a ela.
-- Não me acompanha? -- Olívia perguntou, ao vê-lo sentar-se com as mãos vazias.
-- Já é bastante difícil manter a lucidez quando estou ao seu lado. -- Enquanto ela
ria, Matt reclinou-se no sofá e acendeu um cigarro. -- Onde está Susan?
-- Lá em cima, escandalizando-se com a leitura do meu diário.
-- O que achou dela? Olívia tomou um gole.
-- Uma menina inteligente. Um pouco triste para o meu gosto.
-- Ela diz que a irmã foi assassinada. Mais do que uma suspeita, é uma certeza.
As sobrancelhas dela se ergueram, num sinal que denotava reflexão em vez de
surpresa, como Matt pôde observar.
-- Interessante... -- foi o primeiro comentário, seguido de outro gole de uísque. --
Por que ela acredita nisso, quando ficou provado que a irmã morreu envenenada por
uma picada de cobra?
Em poucas palavras, Matt reproduziu o que Susan havia contado. Olívia ouviu
atentamente e ele finalizou, dizendo:
-- Como você vê, isso pode causar uma reviravolta no caso.
-- E que reviravolta! Se essa menina estiver certa... Meu Deus, não quero nem
pensar.
-- Olívia, eu estou lhe contando tudo isso porque preciso da sua ajuda. Laurel já me
forneceu alguns detalhes sobre a vida dos Trulane. Agora eu gostaria que você me
dissesse tudo o que sabe a respeito deles. Quanto mais completas forem as informações,
mais chances teremos de compor o quebra-cabeça.
-- Está certo, mas vamos caminhar no jardim enquanto conversamos. Já fiquei muito
tempo sentada.
Matt segurou-lhe a mão e ajudou-a a se levantar. Ela era muito ágil para uma mulher
da sua idade, e isso sempre o surpreendia. Ele não mentira, ao dizer que sentira
saudades. Cinco minutos depois de havê-la conhecido, sentira-se como se fosse um

37
membro da família, tamanha a capacidade daquela mulher, de personalidade forte e
cativante, em colocar as pessoas à vontade. Não era por acaso que todos gostavam tanto
dela.
-- Marion aperfeiçoou os estudos na França -- Olívia começou. -- Surgiram boatos
de que lá ela teve um caso de amor que não deu certo. Eu digo boatos porque ela nunca
abriu a boca para fazer quaisquer comentários a respeito. Sempre foi una mulher
reservada, mas muito esperta e inteligente. Como todos nós, no entanto, tem um lado
negativo: é muito esnobe. Eu gosto muito de Marion, mas sou obrigada a reconhecer
que ela não tem as qualidades da mãe, como alguns querem acreditar.
Matt sorriu e deu um tapinha amigo na mão que segurava o seu braço.
-- Eu sabia que poderia contar com você para uma análise impessoal, Olívia. Laurel
vê os Trulane através de um prisma multicolorido.
-- Quando eu tinha a idade dela também enxergava as coisas de um modo diferente
-- confessou com um sorriso, antes de prosseguir: -- Agora, Charles era exatamente
como a mãe. Um rapaz muito bonito e com a cabeça nas nuvens. Mas tinha talento. Um
pouco tímido em expor a sua arte, mas definitivamente era um pintor de talento. Eu
tenho uma aquarela dele pendurada na sala.
"Sinal de que Charles Trulane devia ser muito bom de fato", Matt deduziu em
pensamento. Olívia poderia ajudar um artista iniciante, mas jamais deixaria entrar em
sua casa um quadro que não fosse uma verdadeira obra de arte.
-- Fiquei muito desapontada ao saber que ele havia fugido com a mulher do irmão.
-- Surpreendendo uma nota irônica no olhar de Matt, ela sacudiu o indicador diante
dele. -- Eu tenho as minhas normas, yankee. Se os dois se amavam, então deveriam ser
honestos e encarar as conseqüências, em vez de fugir na calada da noite, como se
fossem dois ladrões. Louis saberia lidar melhor com a perda.
-- Fale-me sobre ele.
-- Foi o primeiro amor de Laurel. -- E, notando a expressão subitamente contrariada
de Matt: -- Calma, meu rapaz. Toda mulher tem ou teve um amor platônico na sua
vida. Principalmente durante a adolescência, quando ainda traz na memória as
lembranças dos contos de fadas que ouvia na infância. Mas vamos ao que interessa.
Louis, quando jovem, era um homem vibrante e cheio de vida, devotado à família e aos
negócios, sem ser, no entanto, enfadonho ou excessivamente sério. Acredito que ele
tenha amado muito a primeira esposa, e que a traição foi um golpe terrível do qual ele
jamais se recuperou. Entre os boatos que correram na época, um deles era que Elise
carregava o filho de Charles.
-- Você chegou a conhecer Anne Trulane?
-- Não. Louis a conservava numa redoma. Coitado, não posso culpá-lo. --
Suspirou e arrancou um botão de azaléia.
-- Mas eles estavam programando uma festa para setembro, quando então, segundo
Marion, Anne seria apresentada à sociedade de New Orleans. Ela ainda me contou que
a pobrezinha estava dividida entre a excitação e o terror, diante da idéia. Eu admito que
andava curiosa de conhecer a segunda mulher de Louis. Eles diziam que ela lembrava
Elise.
-- Eles quem? -- Matt quis saber.
-- Os empregados. -- Deu meia-volta, tomando a direção da casa. Bons tempos
aqueles, em que podia andar horas no jardim sem se cansar. -- Sempre que desejo

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saber o que está acontecendo em Heritage Oak, pergunto à minha cozinheira. Ela é
amiga da cozinheira dos Trulane. -- Olhou para Matt como quem acaba de expor uma
fraqueza. -- Adoro espionagem -- confessou.
-- Você se lembra bem de como era Elise Trulane?
-- Meu caro, a memória desta velha tem o dobro da sua idade -- comentou com um
sorriso. -- Mais até.
Apesar das rugas que o tempo imprimira naquele rosto, ninguém poderia olhar para
Olívia sem se surpreender com a sua beleza.
-- Ah, Olívia, onde é que eu posso encontrar uma mulher igual a você?
-- Você tem uma bem embaixo do nariz, seu yankee obtuso. -- Sentou-se numa das
cadeiras do terraço, com um suspiro de prazer. -- Ah, Susan, venha até aqui, minha
filha. -- Olívia fez um gesto, chamando a mulher que havia parado, um tanto hesitante,
junto à porta. -- Olhe só para ela -- disse satisfeita, a Matt. -- Ainda está vermelha.
Como é, gostou do que leu no meu diário?
-- Oh, sim, senhora. Ele é muito... -- Santo Deus, como se lida com uma situação
dessas? -- A senhora teve uma vida bastante movimentada.
Olívia soltou uma gargalhada.
-- Não precisa usar de eufemismos, minha menina. Uma vida cheia de pecados, isso
sim.
-- Quer beber alguma coisa, Susan? -- Matt perguntou, oferecendo uma cadeira para
ela.
-- Não, obrigada. Laurel não veio com você?
-- Eu não costumo trazê-la, quando estou cortejando Olívia -- brincou, para deixá-la
à vontade. Satisfeito ao ver um sorriso iluminar o rosto da moça, prosseguiu: -- Mas, já
que estamos aqui, gostaria de lhe perguntar algumas coisas. Por exemplo: você se
lembra se Anne mencionou algum nome nas cartas que lhe enviou? Ou se comentou
qualquer coisa fora do comum? Faça um esforço, Susan. Qualquer detalhe, ainda que
aparentemente insignificante, poderá ser de grande valia.
Susan ficou um instante em silêncio, concentrada, puxando pela memória. Ergueu
um pouco as mãos e as deixou cair novamente sobre o colo.
-- Anne falava muito de Louis, da casa... E de Marion, naturalmente. Ela havia se
afeiçoado muito à cunhada. Deixe-me ver... Os empregados... Ah, havia uma tal de
Françoise que cuidava da casa. -- Tornou a se concentrar, procurando os detalhes que
Matt pedia. -- Eu tenho a impressão de que ela ainda não se havia acostumado aos
empregados. Na verdade, acho que eles a intimidavam um pouco.
-- Quem mais? -- insistiu ele. -- Alguma pessoa fora da família?
-- Anne não conhecia quase ninguém... Espere um pouco, estou me lembrando de
um tal de Nathan Brewster, contador de Louis, se não me engano. Ela o mencionou
uma ou duas vezes. Ficava nervosa com a presença dele. -- Nesse ponto, Susan
permitiu-se um leve sorriso cheio de tristeza. -- Anne era muito tímida em relação aos
homens.
-- Nathan Brewster -- Olívia murmurou. -- Eu ouvi falar dele. Tem a sua idade,
Matthew. Parece-me que há uns dois anos se envolveu numa briga e quase matou um
homem. Gênio forte.
-- Lembra-se de mais alguma coisa, Olívia?


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-- Nada de relevante. -- Sorriu e estendeu o copo para ele, pedindo-lhe outra dose
de uísque.
-- Susan, você tem uma fotografia de Anne? -- Matt perguntou, depois de servir
Olívia.
-- Tenho, sim.
-- Pois eu gostaria de dar uma olhada nela, se não se importa.
A moça logo desapareceu dentro da casa.
-- Escute, Olívia, alguma vez você ouviu comentários acerca do pântano? Quero
dizer: lendas, superstições?
-- Claro, todos os pântanos são mal-assombrados, você não sabia disso?
-- Estou ansioso para saber.
-- Então ouça: uma das mulheres da família Trulane costumava se encontrar com o
amante lá. Cá para nós, que lugar mais desconfortável para se praticar o adultério, não
acha? -- Matt sorriu e ela foi adiante: -- Quando o marido descobriu, matou os dois a
tiros. Por falar nisso, dizem que o revólver está até hoje guardado, dentro de um estojo,
na biblioteca. Tétrico demais para o meu gosto. Dizem também que os corpos foram
jogados na areia movediça. Desde então, o choro de uma mulher pode ser ouvido, vez
por outra. Houve quem jurasse ter visto uma luz esmaecida no mesmo local onde o
casal foi assassinado. Muito romântico...
-- E aterrador para alguém tão suscetível quanto Anne Trulane -- acrescentou ele,
pensativo.
-- É uma fotografia 3x4 -- informou Susan, voltando ao terraço. -- Mas é a mais
recente que tenho.
-- Obrigado -- Matt agradeceu, enquanto ela lhe passava a foto.
Jovem, delicada, tímida. Foram as palavras que lhe vieram a mente para definir a
fisionomia de Anne Trulane. E cheia de vida. Ele ainda lembrava do aspecto daquela
moça, na manhã em que o corpo fora encontrado. Estendeu a fotografia a Olívia.
-- Santo Cristo! -- ela exclamou, com a respiração suspensa. "Esta jovem poderia
ser a irmã gêmea de Elise Trulane!"
O ruído que Laurel fazia no quarto trouxe Matt de volta ao presente e deu outro rumo
aos seus pensamentos. Nesse dia, os dois deveriam entrevistar Louis Trulane. Coou o
café e esperou que ela aparecesse na cozinha.
Laurel gostava de begônias, constatou, ao olhar para a planta que enfeitava a mesa.
Begônias, cortinas de renda, mobília de veludo... Onde é que se encaixaria esse homem,
que crescera usando sapatos com a sola furada? Estranho, mas ele evocava o passado
com freqüência, desde que se envolvera com Laurel... Antes de conhecê-la, julgara
enterradas as lembranças tristes da época mais difícil de sua vida.
Matt trazia o semblante vago, quando ela entrou na cozinha. Embora ele estivesse
olhando para a planta, era evidente que a mente estava longe. Laurel já vira aquela
expressão diversas vezes, sempre que Matt se concentrava na máquina de escrever, para
colocar no papel a matéria que já trazia pronta na cabeça.
-- Matthew? -- Ela gostaria de saber o que estava se passando com ele, se estava
com algum problema ou apenas pensando, recordando. Mas perdeu a iniciativa ao vê-lo
voltar-se com um sorriso, descaracterizando-se instantaneamente a expressão taciturna
de segundos atrás.
-- O café está pronto -- anunciou ele.

40
Ela se sentou. Estava tão sexy, naquela blusa decotada, que Matt desejou que o tempo
quente que fazia na cidade se prolongasse.
-- Como está se sentindo? -- ele perguntou, sentando-se ao lado dela.
-- Melhor. -- Aguardou o "eu não disse?", mas, como Matt não fizesse qualquer
comentário, falou mais animada: -- Daqui a pouco, vou telefonar para minha avó e
saber como está Susan.
-- Ela está bem. -- O que uma mulher como Laurel usaria debaixo das roupas?
Lingerie rendada? Algo excitante como o negro, ou suave, como o branco? -- Eu estive
na casa de Olívia ontem à noite.
Laurel pousou a xícara no pires.
-- Ontem à noite?
-- Não consigo ficar longe da sua avó.
-- Matthew -- falou, em tom de ameaça -- essa matéria é minha, não se esqueça.
-- Nossa -- corrigiu ele.
-- De qualquer modo, você não tinha nada que ir até lá sozinho. Devia ter me
esperado.
Ele tomou um gole de café.
-- Se bem me recordo, a senhorita não estava em condições de sair, ontem à noite. E,
se estivesse, certamente não sairia. Nós tínhamos outros planos, lembra-se?
Laurel fuzilou-o com o olhar.
-- Só porque eu estava um pouco confusa, ontem, isso não quer dizer que... Ouça:
não sinto a menor atração por você, que isso fique bem esclarecido. -- Ele sorriu com
ar de dúvida, o que a deixou ainda mais irritada. -- Depois de três doses de Martini,
qualquer um poderia parecer atraente, meu caro. Até mesmo você.
Matt descansou a xícara com cuidado.
-- E agora? Sua mente está clara, Laurellie?
-- Claríssima, e... -- Parou no meio, quando ele a puxou de encontro ao peito.
-- E, eu diria que sim. -- Inclinou-se para fazer os lábios roçarem bem próximos aos
dela. -- Você é uma mulher que sabe exatamente o que quer.
-- Claro que sim. -- Tentou empurrá-lo, mas não empregou toda a sua força. -- Eu
não quero... -- Soltou um gemido, quando ele lhe beijou a orelha.
-- O que é que você não quer? -- Matt sussurrou, mordiscando o lóbulo e
umedecendo-o com a língua.
-- Que você... que você me... deixe confusa.
Laurel sentia os lábios de Matt tocarem seu rosto, enquanto ele iniciava uma jornada
torturante em direção à sua boca.
-- Eu confundo você?
-- Pare, por favor -- implorou, entreabrindo os lábios para ele. Mas despertou a
tempo e afastou-se. -- Você está fazendo isso de propósito, só para tirar a minha
atenção da reportagem.
-- Nós dois sabemos -- começou a brincar com os cabelos dela -- que isso não tem
nada a ver com a reportagem.
-- Como não? -- perguntou, irritada. Graças a Deus, encontrara um motivo para
discutir com ele. -- Você quer fazer tudo sozinho, eu já reparei. Se tivesse me
comunicado que pretendia ir até a casa de minha avó, eu tomaria mais uns goles de café
e, depois de um banho frio, estaria pronta para acompanhá-lo.

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-- Talvez. -- Cruzou os braços calmamente. -- Acontece que queria conversar sobre
os Trulane com alguém que tivesse um pouco mais de objetividade.
Laurel chegou a abrir a boca para retrucar, mas fechou-a em seguida. Será possível
que esse maldito Matthew Bates nunca perdia uma?
-- Vamos -- murmurou entre os dentes, pondo-se de pé. -- Não podemos nos
atrasar.

A brisa entrava suavemente pela janela, brincando com os cabelos de Laurel,
enquanto o carro se afastava cada vez mais da cidade. Com a cabeça apoiada no
encosto e de olhos fechados, ela ouvia Matt reproduzir a conversa que tivera com
Olívia na noite passada.
-- Posso perceber, pelo tom de escárnio na sua voz, que você não acredita na história
dos fantasmas do pântano.
-- Por quê? Você acredita? -- Com um sorriso no canto dos lábios, Matt olhou para
ela de relance. Como não obtivesse resposta, insistiu: -- Laurel?
Ela ergueu os ombros e ajeitou a saia.
-- Bem, vamos dizer que não desacredito. Matt não pôde deixar de sorrir.
-- Fantasmas, Laurel?
-- Atmosfera -- corrigiu, irritada por admitir algo que, até então, guardava dentro de
si. -- Eu já estive naquele pântano. As flores nascem nos locais onde você menos
espera, alguns trechos verdes antes surgem inesperadamente, as águas são silenciosas.
-- Virou o rosto para a janela e apanhou a brisa de frente. -- Areia movediça, insetos e
cobras. Sombras. -- Tornou a fixar os olhos no pára-brisa. -- Jamais gostei de lá. É
sinistro. Há locais em que o sol parece impedido de entrar...-- Laurel -- Matt freou o
carro na entrada de Heritage Oak
-- Você está se deixando levar mais uma vez por impressões da infância.
-- Eu estou dizendo a você o que sinto em relação àquele pântano. -- Virou o rosto
para ele e seus olhares se encontraram. -- Aparentemente, é a mesma coisa que Anne
Trulane sentia.
-- Certo, entenda como quiser. Mas, daqui para a frente, vamos nos ater aos fatos
concretos, está bem?
Os carvalhos se alinhavam nos dois lados da pequena estrada que conduzia à casa,
uma construção antiga e imponente que Laurel visitara diversas vezes quando criança.
Com um suspiro, ela constatou que, à primeira vista, nada mudara.
"Faz tanto tempo...", murmurou para si mesma, enquanto as lembranças afluíam à
sua mente.
Agora, no entanto, as emoções eram novas, diferentes. Seus olhos não eram mais os
de uma criança, nem Heritage Oak um lugar de sonhos e fantasias.
Olhou para Matt. -- A realidade estava ali, bem diante dela. Ele não era um príncipe
encantado e ela estava bem distante da menina de outrora, que via a vida como um
conto de fadas. Louis fora um sonho. Matt era real. Real demais. Tomada por uma
sensação de pânico, abriu a porta do carro e saiu.
O que estava havendo com ela? Respirou fundo, uma, duas, três vezes. Chegara a um
ponto em que não conseguia olhar para Matt sem ter vontade de fugir -- ou de correr
para ele. A atração física não era o problema. Há um ano, Laurel vinha ignorando os
sinais que o seu corpo emitia, sufocando as sensações que afloravam de dentro dela

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cada vez que se via perto de Matt. Nos últimos dias, porém, algo de novo acontecera,
um sentimento estranho e indefinível. Laurel teria que aprender a lidar com ele, como
também teria que deixar de lado os seus sentimentos em relação aos Trulane, se
quisesse concluir com êxito aquela tarefa para o jornal.
-- Matthew, deixe-me conduzir a entrevista. -- Mais calma, caminhou com ele em
direção à ampla varanda. -- Eu conheço muito bem Marion e Louis.
-- Conhecia -- ele corrigiu. Não lhe passara despercebido o modo como Laurel
olhara para a casa, nem o modo como olhara para ele. -- As pessoas costumam mudar,
com o passar dos anos. Vamos fazer o seguinte: eu só interferirei quando julgar
necessário, está bem?
-- Você é mesmo inflexível, não, Sr. Matthew Bates? Ele apenas sorriu e bateu duas
vezes a argola de ferro na porta de mogno.
Uma mulher alta e de rosto anguloso atendeu depois de alguns momentos de espera.
Um rápido e inexpressivo olhar para Matt e em seguida os olhos castanhos se
arregalaram, ao pousarem em Laurel.
-- Laurel! -- exclamou, juntando as duas mãos.
-- Como vai, Françoise? Há quanto tempo, não?
Françoise Binneford, caseira de Heritage Oak, era descendente de colonizadores
franceses. Pouco mudara, desde a última vez em que Laurel a vira, dez anos atrás. Os
cabelos estavam grisalhos, mas ela ainda mantinha o hábito de prendê-los à nuca.
-- Ah, menina Laurel... -- Françoise disse. -- Como está bonita!
Laurel sorriu com simpatia e abraçou-a afetuosamente.
-- Muito bonita mesmo -- confirmou a mulher, com um olhar de aprovação. -- Vou
dizer à Srta. Marion que você está aqui.
-- Conduziu-os até a sala de visitas e, antes de deixá-los, voltou-se mais uma vez
para Laurel: -- Revenez bientôt. Cette maison a besoin de jeunesse.
-- O que foi que ela disse? -- Matt perguntou, quando se viram a sós.
-- Para eu voltar outras vezes. -- Laurel cruzou os braços como se subitamente
sentisse frio. -- E que esta casa está precisando de gente jovem.
Olhou em volta e constatou que nada mudara naqueles anos. A sala poderia ser
transportada para o século passado. Provavelmente seria a mesma dali a cem anos.
O sol entrava pelas janelas altas, guarnecidas por cortinas de um azul vivo e
carregado. Brilhava nas mesas de mogno, cintilava no vaso de cristal lapidado,
descansava na pequena estátua de porcelana. Objetos tão antigos e que guardavam,
cada qual, um pedaço da história dos Trulane.
Matt observava em silêncio o reconhecimento que Laurel fazia da sala, da mobília,
dos objetos. Sentiu ciúme e uma certa frustração, diante daquele semblante
visivelmente emocionado. Como conseguiria fazê-la voltar-se para ele, quando as
lembranças do passado a rodeavam e pareciam fazer parte do presente? -- As
recordações são bens que carregamos pela vida afora, Laurel -- disse com frieza. --
Podem inclusive nos ajudar a suportar o presente. Mas são prejudiciais quando nos
fazem ignorá-lo.
Ele pretendia deixá-la zangada, por sentir-se mais seguro quando brigavam. Mas,
contrariando as suas expectativas, Laurel virou-se devagar e encarou-o com o olhar
sereno, um tanto surpreso.
-- Você também guarda recordações, Matthew? -- perguntou com brandura.

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A pergunta funcionou como uma senha e fez abrir automaticamente a porta que ele
deixara tão bem trancada. Diante dos olhos de Matt desfilaram o teto com goteiras, as
paredes frias, o prato vazio. Viu novamente uma mulher tossindo, sempre tossindo, a
noite, na cama, os pulmões cada vez mais fracos. E lembrou-se ainda de que prometera
à mulher sair de lá e levá-la consigo. Ele apenas fora capaz de cumprir a primeira parte
da promessa.
-- Eu também tenho recordações -- respondeu afinal, traindo uma certa amargura.
-- Mas prefiro o presente.
Laurel captou algo por entre as palavras: vulnerabilidade. Automaticamente pousou
a mão no ombro dele.
-- Matthew...
Não, dessa maneira não, disse ele para si mesmo. Por mais que desejasse conquistá-
la, não estava nos seus planos causar-lhe compaixão. Assim, foi com um certo alívio
que recebeu a chegada de Marion Trulane.
-- Laurel, querida! -- Marion veio na direção dela com um sorriso de boas-vindas.
Elegante como sempre, usava um vestido de tecido fino e de corte impecável. Laurel
segurou-lhe as mãos, pequenas e macias, pensando consigo mesma que aquela era uma
das mulheres mais lindas que já conhecera. De uma beleza glacial, entretanto. Marion
estava beirando os quarenta, mas aparentava bem menos. A pele muito lisa e a
maquilagem leve remoçavam-na consideravelmente. O perfume era suave, como as
mãos, como os cabelos, como os olhos.
-- Marion, você está ótima.
-- Obrigada, meu bem. -- Apertou as mãos de Laurel, antes de soltá-las. -- Não nos
vemos desde aquela festa beneficente, não é?
-- Exato, e isso foi há dois meses. -- E, olhando para Matt: -- Marion, quero que
conheça um colega meu. Matthew Bates, Marion Trulane.
-- Muito prazer, Sr. Bates. -- Estendeu a mão para cumprimentá-lo e, ao pousar os
olhos nele, teve um segundo de hesitação. -- Tenho a impressão de que já o vi antes.
-- Tem razão, Srta. Trulane. Mas não fomos apresentados formalmente. Eu estive
aqui quando a sua cunhada foi encontrada.
-- É verdade, agora me lembro. -- Fechou os olhos por um segundo, como quem
deseja afastar um mau pensamento. -- Peço que me desculpe, mas eu tenho uma certa
dificuldade em me lembrar das coisas que aconteceram naquele dia horrível. Sentem-se,
por favor. Françoise está preparando um refresco para nós. -- Sentou-se também. --
Meu irmão já vem, assim que terminar um assunto que está tratando por telefone com o
nosso advogado. Na verdade, fico contente de que tenhamos esses momentos a sós. --
Cruzou as mãos sobre o colo. -- Laurel, você não vê Louis há muito tempo.
-- Dez anos, para ser mais exata.
-- Pois é, dez anos. -- Marion olhou para a janela por alguns instantes e suspirou. --
O tempo passa devagar aqui. -- Voltou a fixar o olhar em Laurel. -- Eu fui obrigada a
impedir que você continuasse freqüentando a casa, depois que Charles e Elise... foram
embora. Você era uma garotinha impressionável e Louis não se encontrava no seu
melhor estado.
Dez anos, Laurel pensou. Como estaria ele?
-- Eu compreendo, Marion. Não sou mais uma menina.


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-- Não, claro que não. Laurel, você presenciou apenas o começo da mudança.
Meses, anos se passaram, e ele se tornou mais amargo, com crises de ausência e
depressão. Algumas vezes, Louis nem se lembrava de que... -- Interrompeu-se e
apertou as mãos. -- Não, ele nunca esqueceu -- corrigiu-se, com um sorriso triste. --
Apenas decidiu não se lembrar. Ele e Charles eram... Bem, o que está feito, está feito.
-- Eu imagino o quanto deve ter sido difícil para ele. -- Laurel estendeu o braço e
apertou a mão de Marion. -- Aliás, sempre tive certeza disso. Mantive-me afastada,
não porque você decidiu, mas porque sabia que Louis não me queria aqui.
-- Você sempre foi uma menina sensível, Laurel -- murmurou a outra. -- Quando
ele trouxe Anne para esta casa, ninguém ficou mais surpreso e mais feliz do que eu.
Imaginei que as coisas fossem melhorar, dali para a frente.
-- Eu também. -- Laurel sorriu, quando Marion a fitou com um olhar interrogativo.
-- Telefonei para ele poucas semanas depois do casamento -- explicou.
-- Talvez meu irmão tenha sido superprotetor e possessivo em relação a Anne, mas
ela era tão jovem e ele já havia sofrido tanto... Estou contando isso a você -- estendeu
o olhar a Matt -- a vocês -- corrigiu -- porque quero que saibam como ele se encontra
agora. O sofrimento tornou-o frio e distante. Essa foi a única maneira que encontrou
para conseguir lidar com a dor. -- Voltou a cabeça, quando Françoise entrou
empurrando Um carrinho. -- Ah, ótimo. Chá gelado. Você ainda gosta de chá com
bastante açúcar, Laurel?
Ela sorriu. 1
-- Agora estou tomando mais cuidado para manter a linha. -- Olhou para o bolo
cortado em quadrados. -- Você pensa em tudo, não é, Françoise?
-- Mas não coma mais do que três pedaços, hein? -- recomendou a Laurel, como se
ela ainda fosse a menina de dez anos atrás. -- Não quero que sua avó ralhe comigo.
Sem conter o riso, Laurel mordeu um pedaço do bolo, quando a caseira saiu da sala.
O sabor, tão conhecido e que há tanto tempo ela não experimentava, levou-a de volta ao
passado, quando, gulosa, era capaz de devorar uma travessa inteira, durante as
conversas com Marion. Aceitou o chá que lhe era oferecido e comentou, sorrindo:
-- Françoise não mudou nada. Nem esta casa. Fico contente com isso.
-- A casa não mudou -- Marion retrucou, passando um copo para Matt. -- Apenas
as pessoas que vivem nela.
Laurel não o viu chegar, mas sentiu a presença dele. Cuidadosamente, descansou o
copo na bandeja e, virando o rosto, encontrou o olhar de Louis Trulane.


CAPÍTULO VI

Dez anos eram tanto tempo assim?, ela se perguntou, chocada. Por mais que
houvesse se preparado, não imaginara encontrar Louis tão mudado. Os cabelos estavam
mais ralos e tinham um toque cinza nas têmporas. Isso Laurel até poderia aceitar. Rugas
no rosto e ao redor dos olhos. Poderia aceitá-las também. Mas o que acontecera com
aquele olhar que costumava ser quente e afetuoso?
Louis estava magro, muito magro. Parecia bem mais velho que os seus trinta e seis
anos. Laurel se levantou e, com um misto de dor e pena, foi ao encontro dele.
-- Louis. ..

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-- Você cresceu, Laurel. -- Tomou as mãos dela, um pálido sorriso dando um pouco
de vida àquele rosto sombrio. -- Não sei por que, mas estava esperando encontrar a
mesma menina de antes. -- Bem de leve, tocou-lhe o queixo com os dedos. Ela teve
vontade de chorar. -- Desde pequena você prometia se transformar nessa beleza.
Laurel sorriu, desejando que um pouco de calor voltasse aqueles olhos apagados e
tristes.
-- Senti saudades, Louis. -- Mas o calor não veio. Ele deixou caírem as mãos.
Tensa, Laurel procedeu às apresentações. -- Este é Matthew Bates, meu colega no
jornal.
Os olhos de Louis pousaram em Matt e ficaram ainda mais frios.
-- Acho que já nos conhecemos.
-- Chá, querido? -- Marion lhe perguntou, enquanto alcançava a jarra.
-- Não. -- A resposta seca não abateu a irmã. Há anos vinha exercitando a sua
paciência para com ele. -- Mas você não veio aqui para tomar chá, não é, Laurel? --
Caminhou até uma poltrona e se sentou. -- Então por que não vamos direto ao assunto?
Eu concordei em recebê-los para pôr um fim nos boatos que Susan anda espalhando. --
Fitou Laurel demoradamente. -- Faça as suas perguntas. Eu sempre tive respostas para
você, lembra-se?
-- Louis... --Ela teve vontade de ir para perto dele, abraçá-lo, confortá-lo, mas o
olhar de Matt a impediu. -- Sinto muito invadir a sua privacidade. Sinto muitíssimo.
-- Não se preocupe com isso. -- Acendeu um charuto e, descansando-o entre os
dedos, esperou. Matt e Laurel entreolharam-se, indecisos. -- Vamos -- apressou ele.
-- Vocês têm um trabalho a fazer. Pois eu estou esperando. O que querem saber?
Laurel sentiu o estômago contrair-se. O poder que ele sempre exercera sobre ela
estava lá, intacto. Ela costumava receber aquilo com admiração. Agora, no entanto, a
sensação era outra, atemorizante. Olhou de viés para Matt e viu quando ele inclinou
imperceptivelmente a cabeça, encorajando-a.
-- Susan está certa de que Anne jamais pisaria no pântano sozinha -- principiou,
percebendo em seguida que havia começado mal. -- Ela diz que a irmã tinha
verdadeiro pavor daquele local.
-- E ela acredita que Anne tenha sido forçada a ir até lá -- Louis completou. -- Eu
conheço toda a história, Laurel.
"Você é uma jornalista e tem uma tarefa a cumprir. Vá em frente", disse para si
mesma, procurando coragem.
-- Anne tinha medo do pântano, Louis?
Ele soltou uma baforada e ficou observando a fumaça subir em direção ao teto.
-- Tinha, mas entrou nele. Foi lá que ela morreu.
-- Que motivos Anne teria para fazer algo que a amedrontava?
-- Talvez quisesse me agradar. Ela sabia que aquelas histórias sobre luzes e
fantasmas me irritavam. -- Fez uma pausa e ficou olhando para o charuto. -- Anne
tinha necessidade da minha aprovação.
-- Você está querendo dizer que ela saiu no meio da noite e foi até lá apenas para
agradar a você?
-- Faz mais sentido do que acreditar que alguém tenha entrado na casa e subido até o
quarto, para arrancá-la da cama e arrastá-la até o pântano, sem chamar a atenção dos


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empregados...-- Olhou para Laurel com indiferença. -- Você leu o relatório da polícia,
suponho.
-- Claro. -- Molhou os lábios, nervosa, ao se lembrar da fotografia.
-- Então não há necessidade de estarmos repisando isso.
-- Sua mulher tinha dificuldade em pegar no sono? -- Matt interveio pela primeira
vez, sem se importar com o ar contrariado de Laurel.
-- Às vezes. Principalmente quando eu ficava trabalhando até tarde. Várias noites ela
me disse ter visto luzes no pântano.
-- Alguém mais as viu? Louis sorriu com ironia.
-- Muitas pessoas. Principalmente quando acompanhadas por uma garrafa de uísque.
-- Sr. Bates -- Marion entrou na conversa --, Anne tinha medo do pântano, mas, ao
mesmo tempo, sentia-se fascinada Por ele. Não raro nos sentimos atraídos por aquilo
que tanto tememos. Ela se tornou obcecada pelas lendas que envolvem o local. O
problema é que nenhum de nós a levou a sério. Anne era tão jovem... Quem sabe, se
nós tivéssemos insistido para levá-la ao pântano durante o dia, ela não teria se sentido
compelida a ir até lá à noite.
-- Então você acha que Anne se obrigou a fazer aquilo? -- perguntou Laurel.
-- Tenho certeza. Não existe outra explicação. Quem poderia fazer mal a uma
criatura tão doce? -- Olhou entristecida para o irmão, que trazia o semblante fechado.
-- Todos a amavam, Laurel. Anne era frágil e delicada como uma flor. Medrosa por
certo, mas uma criatura fácil de se conviver. Ultimamente andava nervosa por causa da
festa que pretendíamos dar.
-- De que adianta falarmos sobre isso agora? -- Louis interrompeu, irritado, e
apagou o charuto. -- Anne está morta e não há nada que possamos fazer para modificar
isso. Nem eu, nem você, nem Susan, nem aquelas cartas.
-- A propósito, as cartas foram roubadas -- Laurel informou. -- Alguém entrou no
quarto do hotel onde Susan estava hospedada.
-- Que absurdo! Quem se interessaria em roubá-las? Susan está ficando louca, isso
sim. Na certa, ela mesma as perdeu. -- Impaciente, Louis se levantou.
-- Vocês estiveram casados por quase um ano -- Matt continuou. -- Ainda assim,
nenhum dos vizinhos conheceu sua mulher. Por quê?
-- Isso não é da sua conta.
-- Louis, por favor... -- Laurel pôs-se de pé e deu um passo na direção dele. --
Estamos tentando compreender...
-- Compreender? -- repetiu ele. -- Compreender o quê? Se a mantive afastada de
todos, isso é problema meu. Ela era uma criança, havia quase uma geração de
diferença, entre nós.
-- Você não confiava nela -- Laurel constatou com um murmúrio.
-- Só os tolos confiam nas pessoas.
-- Não é estranho que Anne se pareça com a sua primeira mulher? -- Matt
perguntou à queima-roupa, atraindo para si a fúria de Louis.
Marion suspendeu a respiração e olhou assustada para o irmão, como que temendo a
reação dele. Louis estava visivelmente tenso e trazia os punhos cerrados. Alguns
segundos se passaram e, então, sem dizer nada, ele se precipitou para fora da sala.
-- Por favor, desculpem Louis -- Marion pediu, meio sem jeito. -- Ele não suporta
as comparações entre Anne e Elise.

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-- Não há como evitá-las -- Matt retrucou. -- A semelhança física é realmente
espantosa.
-- Não era apenas física -- Marion revelou distraidamente.
-- Mais uma vez, peço-lhes desculpas pelo comportamento de meu irmão. Conforme
já lhes disse, ele não é mais o mesmo. E se existe algo que o deixa muito irritado são as
referências a Elise. Bem, posso ajudá-los em mais alguma coisa?
-- Você conhece Nathan Brewster? -- Laurel perguntou subitamente.
Marion olhou para ela.
-- Claro que sim. Ele é um dos contadores de Louis. Mas por que essa pergunta?
-- Porque Anne o mencionou algumas vezes nas cartas que escreveu para Susan --
Matt explicou.
-- Bem, não vejo nada de anormal nisso, Sr. Bates. Anne não conheceu muitas
pessoas por aqui e Nathan costumava aparecer com uma certa freqüência. Natural que
ela o citasse nas cartas. Bem... -- Levantou-se e lançou aos dois um olhar de desculpa.
-- Sinto muito se não consegui ajudá-los, mas talvez esta visita tenha sido útil de
algum modo. Espero que consigam pôr um ponto final nas suspeitas de Susan. Eu
compreendo que ela esteja desnorteada, mas... -- Sorriu e estendeu as mãos para
Laurel. -- Volte outras vezes, querida, para conversarmos como nos velhos tempos.
-- Está bem, Marion. Diga a Louis que... -- Suspirou e apertou as mãos da amiga.
-- Não, não diga nada.
Marion acompanhou-os até a porta. Em silêncio, eles entraram no carro. Com uma
ponta de frustração, Matt jurou a si mesmo que não diria nada. O que quer que Laurel
estivesse sentindo, isso era problema dela.
Mas não haviam rodado nem dois quilômetros, quando ele parou o carro no
acostamento.
-- Droga, Laurel. Pare com isso.
Ela conservou as mãos sobre o colo e continuou a olhar para a frente.
-- Parar com o quê?
-- Com essa tristeza.
Ouvindo aquilo, ela virou o rosto para ele e, apesar de os olhos estarem secos, eram
um reflexo da angústia que a oprimia naquele momento.
-- Oh, Matthew -- murmurou --, ele parecia tão perdido...
-- Laurel...
-- Não, você não precisa dizer nada. Eu sei. Louis está mudado. -- Soltou um
suspiro trêmulo e dolorido. -- Eu é que não estava preparada para vê-lo assim, tão
ferido, tão torturado.
Amaldiçoando Louis Trulane e tudo quanto ele significava para Laurel, Matt
abraçou-a. Ela não protestou. Ao contrário, buscou conforto nos braços dele, sentindo
os raios de sol que entravam pelo carro, ouvindo os passarinhos que brincavam no alto
das árvores. Fechou os olhos, deixando que Matt afagasse os seus cabelos, entregando-
se àquela carícia suave, permitindo-se ser consolada por ele.
-- Eu estou muito triste, Matthew -- murmurou. -- Não sei se você consegue
entender o quanto Louis foi importante para mim. Ele fez parte da época mais feliz da
minha vida, quando não existiam preocupações ou tristezas. Hoje, ao encontrá-lo tão
diferente daquele homem que acalentou os meus sonhos de criança... -- Deixou a frase
no ar.

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-- Você o vê como uma vítima, Laurel. Mas não percebe que todos nós nos
tornamos vítimas, quando não sabemos lidar com as desgraças que a vida nos impõe? O
comportamento das pessoas em relação ao sofrimento é que é importante. Louis não é
uma vitima do destino, mas um fraco. Ele não soube lidar com a dor e acabou se
entregando sem lutar.
Laurel não tinha como protestar, pois sabia que Matt estava com a razão. Ainda
assim, isso não eliminava a tristeza, a pena que sentia de Louis. Não disse nada e
continuou com o rosto apoiado no ombro dele, sentindo a suavidade daquela carícia
sobre os seus cabelos...-- Matthew...
-- Hum?
-- Eu já lhe pedi uma vez para não ser bonzinho comigo -- sussurrou.
Matt segurou-lhe o queixo e forçou-a a encará-lo. Seus olhares se cruzaram por um
breve instante, antes que ele se inclinasse na direção daqueles lábios tentadores. Laurel
abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas ele a impediu de verbalizar o mais débil
protesto, apoderando-se dos seus lábios com violência e sofreguidão.
Nada da gentileza ou da suavidade de antes. Ela experimentava um gosto de
frustração, naquele beijo, sem entender por quê. Mas também experimentava desejo e
não podia resistir a isso. Por mais que houvesse lutado; por mais que ignorasse os
apelos do seu corpo, agora compreendia que estivera esperando por esse momento há
muito, muito tempo. Sentia-se derreter, desmanchar-se em ondas de paixão.
-- Matthew... -- Afastou-se ligeiramente, enquanto procurava recuperar o fôlego. --
Eu não... não estou preparada para isso.
Ardendo de desejo e impaciência, ele procurou novamente os lábios dela.
-- Vai estar -- sussurrou.
-- Não sei... -- Pressionou as mãos no peito dele, buscando palavras que o fizessem
entender. -- Eu já lhe disse que você me deixa confusa. Nunca desejei outro homem
antes, não desta maneira. E não esperava que pudesse ser você.
-- Pois sou eu. -- Atraiu-a novamente. -- Você apenas precisa se acostumar a isso.
-- De súbito, sua mente acusou algo destoante nas palavras de Laurel. Franziu a testa e
perguntou com ar de dúvida: -- Nenhum homem? Você quer dizer que... nunca esteve
com outro homem?
-- Eu disse que nunca desejei alguém antes -- confirmou. -- E não estou
acostumada a fazer as coisas sem vontade.
Virgem? Bom Deus, Matt pensou, atônito. Como não desconfiara disso? Lentamente,
seus dedos se afrouxaram e ele acabou soltando-a.
-- Isso muda um pouco as regras do jogo, certo? -- Tirou um cigarro do maço e
ficou olhando para ela. -- Você vai ser minha, Laurel -- afirmou. -- Apenas vou lhe
dar algum tempo para se acostumar à idéia.
-- Mas quanta arrogância!
-- Vamos deixar para discutir isso mais tarde, está bem? -- Deu uma tragada e,
enquanto soltava a fumaça, dizia para si mesmo que era melhor dar um tempo
realmente. Para os dois... -- Deixe-me lhe contar a minha teoria sobre o caso Anne
Trulane.
Colocou o carro em movimento, sem saber que Laurel se esforçava para manter a
calma e lembrar-se das prioridades. A reportagem em primeiro lugar, dizia uma voz
dentro dela. Mais tarde eles discutiriam esse... assunto particular. Mais tarde.

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-- Sou toda ouvidos -- retrucou, com o tom de voz mais firme que lhe foi possível
encontrar.
Matt dirigia devagar, o carro deslizando suavemente pelo asfalto da estrada.
-- Louis se casou com Anne Fisher porque ela se parecia com Elise -- começou ele.
-- Matthew, francamente... Ele a fez calar com um gesto.
-- Ouça primeiro e contra-ataque depois. Bem, não vem ao caso se Louis gostava
dela ou não. Depois do casamento, ele a levou para Heritage Oak e a manteve
praticamente isolada. Primeira conclusão: não confiava nela.
-- Ele já havia sido traído uma vez, da forma mais baixa possível.
-- Isso mesmo. -- Jogou o cigarro pela janela. -- Louis estava obcecado pela
possibilidade de a mulher conhecer um homem mais novo. Era possessivo, ciumento. O
que poderia acontecer, caso ele suspeitasse de que ela não lhe era fiel?
-- Você está insinuando que Louis mataria por ciúme? Isso é absurdo. Ele seria
incapaz de fazer mal a uma mosca -- afirmou com veemência. Mas por que sentia
aquele frio no estômago?
-- Como pode ter tanta certeza disso? Você mesma reconheceu que ele não é mais o
mesmo homem de antes.
Nesse ponto, Laurel era obrigada a dar o braço a torcer. Mas, ainda assim, seu
coração lhe dizia que Louis era inocente.
-- Você não está baseando a sua teoria em fatos concretos -- insistiu ela. -- Anne
morreu entre as duas e as quatro horas da manhã. Louis acordou os empregados entre as
duas e as três horas.
-- Ele poderia tê-la levado até o pântano antes das duas -- Matt retrucou secamente.
-- Não posso jurar que ele tenha tido intenção de matá-la. Talvez tivesse pretendido
apenas assustá-la, deixando-a sozinha por algum tempo.
-- Isso não faz o menor sentido. Se Louis quisesse lhe pregar um susto, não
acordaria a casa inteira nem tomaria parte na busca pelo pântano.
-- Bem... -- Olhou para ela por um instante e voltou a se concentrar na direção. --
Ele pode ter-se esquecido do que fez...
Laurel chegou a abrir a boca, mas fechou-a sem dizer nada. Vieram-lhe à mente as
palavras de Marion. Louis tinha crises de ausência, afirmara ela. Deus, será possível
que... Sacudiu a cabeça, tentando afastar as imagens horríveis que se desenhavam
diante dos seus olhos. Não estava gostando nada disso.
-- Aonde vai? -- perguntou a Matt, quando ele estacionou o carro no meio-fio.
-- Nós vamos dar uma palavrinha com Nathan Brewster.
Laurel olhou para fora e contemplou o enorme e antigo prédio de propriedade dos
Trulane. Talvez ali eles descobrissem alguma coisa que desviasse as suspeitas sobre
Louis.
-- Marion não quis falar a respeito de Nathan Brewster -- murmurou ela, pensativa.
-- Eu também notei. -- Matt saiu do carro. -- Vamos descobrir por quê.
-- Eu sei o que você está pensando -- disse ela, ao cruzarem a entrada do prédio.
-- Vamos ver se sabe mesmo -- ele a desafiou.
-- Anne se sentiu atraída por Natham Brewster, deve ter iniciado um romance com
ele e Louis acabou descobrindo tudo. Em vez de pedir o divórcio ou lidar com a
situação de um modo menos passional, ele a levou até o pântano e a deixou sozinha,
sabendo que, à noite, Anne não teria meios para voltar à casa. Certo?

50
-- Confesso que você acertou na mosca. -- Matt procurou, no quadro afixado sobre
os elevadores, em que andar ficava o departamento de contabilidade.
-- Acertei porque sei o que se passa nessa sua mente preconceituosa -- retrucou ela.
-- Você está tirando conclusões precipitadas só porque não gosta de Louis.
-- Mais uma vez, você acertou, minha cara. -- Conduziu-a para dentro do elevador.
-- Vamos esperar para ver. Essa conversa com Nathan Brewster pode trazer uma nova
luz ao caso.
A recepcionista perguntou-lhes se haviam marcado hora. Ao ser informada que não,
retirou-se para voltar alguns instantes mais tarde.
-- O Sr. Brewster vai recebê-los -- informou. -- Podem entrar.
-- Srta. Armand, Sr. Bates. -- Nathan Brewster levantou-se e indicou-lhes duas
cadeiras em frente à escrivaninha que ocupava. -- A recepcionista me informou que
são jornalistas. Em que posso ajudá-los?
-- É sobre Anne Trulane -- Laurel arriscou. -- Gostaríamos de falar com o senhor
sobre o caso.
-- A Sra. Trulane está morta -- disse ele, sentando-se em seguida: -- Não pensei
que a imprensa ainda estivesse interessada nisso. Ou, por outra, fico surpreso por terem
vindo procurar-me.
-- É que o senhor foi uma das poucas pessoas que a viram em Heritage Oak --
Laurel explicou, antes que Matt se adiantasse.
-- Como sabem, eu trabalho para os Trulane. Muitas vezes, sou obrigado a me
locomover até lá para tratar de negócios. --Pegou um lápis e ficou brincando
distraidamente com ele.
-- O senhor poderia nos dar suas impressões acerca da Sra. Trulane?
-- Bem, ela era muito jovem, tímida... Na verdade, mal trocamos algumas palavras.
Já lhes disse, eu ia até lá a trabalho e, portanto, passava a maior parte do tempo
conversando com Louis.
-- Estranho -- Matt comentou, olhando para o lápis que dançava entre os dedos do
outro. --O seu nome foi um dos poucos que ela citou nas cartas que enviou à irmã. --
O lápis se quebrou com um estalido seco.
-- Por favor, seja mais explícito -- ele solicitou, um tanto impaciente. -- Não estou
entendendo onde quer chegar.
-- Anne mencionou o seu nome nas cartas -- Matt repetiu, observando atentamente
a expressão de Nathan. -- A irmã dela acredita que a morte não tenha sido um acidente.
Nathan Brewster engoliu em seco, visivelmente nervoso.
-- Todos nós sabemos como ela morreu -- defendeu-se.
-- No pântano -- Laurel acrescentou, sem perder o jogo de emoções que
perpassavam pelo semblante dele. -- O senhor sabia que Anne tinha medo daquele
lugar, Sr. Brewster?
-- Como eu poderia saber? -- retrucou ele, contraindo os músculos da face.
-- Então tente imaginar. Por que Anne iria desacompanhada e à noite até um local
que a amedrontava?
-- Ora, porque talvez ela estivesse cansada de viver trancafiada naquela casa! --
explodiu. -- Talvez quisesse sair um pouco e não percebeu por onde estava andando.
-- Trancafiada? -- Laurel repetiu, sem prestar atenção ao arrepio que lhe percorria a
espinha. -- O senhor está querendo dizer que Louis a mantinha prisioneira?

51
-- Prisioneira, sim! -- reagiu ele, batendo com o punho cerrado na mesa. -- Dia
após dia, mês após mês, sem ver mais ninguém a não ser os criados da casa e um
homem que não lhe dava um minuto de sossego, observando-lhe todos os movimentos.
Ela nunca deu um passo sem que ele estivesse nos seus calcanhares.
-- Ela era infeliz? -- Laurel quis saber. -- Ela lhe disse que era infeliz?
-- Não precisaria ter dito -- Nathan respondeu, com a voz alterada. -- Qualquer um
perceberia isso. Trulane a tratava como uma filha, quando Anne precisava de alguém
que a tratasse como mulher.
-- Alguém como o senhor, por exemplo? -- Matt arriscou. Laurel engoliu em seco.
Nathan Brewster manteve-se alguns instantes em silêncio, enfrentando Matt com o
olhar. Laurel percebia a luta que estava se travando dentro dele è o esforço que fazia
para se controlar. De súbito, como se constatasse que seria impossível levar aquilo
adiante, ele deixou escapar um suspiro desanimado.
-- Eu gostava dela -- admitiu em voz baixa. -- Desde que a vi pela primeira vez nos
jardins da casa, eu a desejei para mim, de um modo que Trulane jamais teria capacidade
de entender. Eu a amava -- concluiu.
-- E ela também estava apaixonada pelo senhor? -- Matt perguntou.
-- Anne teria ido embora! -- foi a resposta que ele deu à pergunta. -- Ela não ficaria
para sempre trancada naquele casarão -- afirmou com voz alterada.
-- Teria ido embora... com o senhor? -- Laurel perguntou com cuidado, como se
pudesse suavizar o conteúdo de suas palavras.
-- Comigo, por que não? Mais cedo ou mais tarde, ela acabaria fazendo isso. -- O
olhar que dirigiu a Laurel era penetrante, cheio de paixão e sentimento. -- Eu disse a
ela que viesse comigo, que não ficasse nem mais um minuto naquele mausoléu, que era
melhor estar morta do que...
-- Que era melhor estar morta do que continuar casada com Louis -- Laurel
terminou por ele, ao vê-lo hesitar.
-- Não deve ter sido fácil para o senhor -- Matt disse, continuando a sondá-lo. --
Apaixonado pela esposa do patrão, sem ter oportunidade de estar com ela ou de
declarar o seu amor. Afinal, o senhor mesmo disse que ela não podia dar um passo sem
que Louis viesse logo atrás.
-- Anne sabia dos meus sentimentos -- declarou ele. -- Mas que diferença isso pode
fazer agora? Ela morreu. Aquele lugar a matou. Ele a matou. Podem colocar isso no
jornal.
-- O senhor acredita que Louis Trulane tenha matado a esposa? -- Matt perguntou,
sentindo que estavam se aproximando da verdade.
-- Ela conseguiu escapar afinal -- murmurou ele, sem ouvir a pergunta. Os olhos
fixavam o vazio. -- Mas não veio para mim. -- Cerrou os punhos, voltando à
realidade. -- Agora me deixem em paz.
-- Que homem estranho... -- Laurel murmurou, quando saíram para a rua. -- Triste,
amargo... -- Encostaram-se no carro. -- Agora entendo por que Anne se sentia nervosa
quando ele estava por perto.
Matt acendeu um cigarro.
-- O que você achou disso tudo? Ela sorriu.
-- Quer ouvir a minha teoria, Matthew Bates? Quanta honra!


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-- É só uma colher de chá, minha cara -- brincou. -- Vamos, comece, estou ansioso
para ouvi-la.
-- Bem, eu imagino o seguinte: Brewster está apaixonado por Anne. Ou pensa que
está, não se pode ter certeza do que se passa na cabeça de um homem tão esquisito.
Declara-se, pede que ela abandone Louis. O que ela sente ao ouvir isso? Espanto,
medo... Talvez tenha ficado lisonjeada.
-- Lisonjeada? -- repetiu ele, franzindo a testa.
-- Ela era uma mulher, meu caro -- disse simplesmente, como se isso explicasse
tudo. -- Brewster deve tê-la pressionado, deixando-a confusa. Anne nem ao menos teve
coragem de mencionar isso à irmã. Por aí você pode deduzir que ela não estava
conseguindo lidar com aquela situação.
Matt ouvia com interesse.
-- Continue -- pediu.
-- Suponha que Brewster tenha marcado um encontro com ela. Talvez tenha usado
de ameaças para forçá-la a ir. Anne ama o marido e tem medo de que o outro invente
coisas. Sentindo-se pressionada, acaba cedendo e, durante a noite, enquanto Louis
trabalha, ela sai de casa. Os dois discutem porque Anne se recusa a fugir com ele.
Brewster é um homem de temperamento forte.-- Nesse ponto, Laurel se lembrou de
como ele quebrara o lápis ao sentir-se encurralado. -- Anne não consegue convencê-lo
de que não está apaixonada por ele. Brewster não acredita; julga que ela diz isso por
não ter coragem de abandonar Louis. Depois de discutirem, ele a arrasta para longe de
casa, para longe das luzes. Anne está aterrorizada. Quer sair daquela escuridão. Solta-se
dele e sai correndo. Embrenha-se no pântano, antes que consiga dar-se conta do que
está fazendo. Quando percebe que está perdida, tenta desesperadamente encontrar o
caminho de volta. Brewster, por outro lado, não consegue encontrá-la. E então...
-- Interessante -- Matt murmurou, antes de jogar fora a ponta do cigarro. -- Isso faz
sentido, mas o que eu gostaria mesmo é de pôr as mãos naquelas cartas. Elas devem
conter algo importante, ou não teriam sido roubadas.
-- Agora não adianta lamentarmos. Temos que descobrir a verdade por outros meios.
Matt ficou balançando a cabeça, pensativo.
-- Eu quero dar uma olhada naquele pântano -- revelou então, com ar decidido. --
E é o que vou fazer.
-- Quando? Esta noite? -- Laurel perguntou, sentindo um tremor sacudir-lhe os
ossos.
-- Sim.
Resignada, ela prendeu uma mecha dos cabelos atrás da orelha.
-- Nesse caso, é bom levarmos um repelente de insetos - disse, tentando fazer graça.
Matt sorriu e retrucou:
-- Você não vai.
--Como não? Essa matéria é minha, Matthew.
-- Lá vem você de novo -- resmungou ele. -- Quantas vezes vou precisar repetir
que a matéria é nossa?
Entreolharam-se por alguns instantes com ar de desafio.
-- Vamos almoçar -- Laurel sugeriu, afinal, como quem propõe uma trégua. -- E
depois será melhor voltarmos ao jornal, antes que nos coloquem no olho da rua.


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CAPÍTULO VII

Há quase uma hora, Matt e Laurel estavam pesquisando no arquivo do jornal.
-- Encontrou alguma coisa? -- perguntou ela, com a voz cansada. Esticou o corpo e
massageou a nuca. -- O único dado interessante que consegui descobrir foi com
relação à briga em que Brewster se meteu em 1983. Mas isto nós já sabíamos. Vovó
tem uma memória e tanto. Nem sei por que estamos perdendo tempo neste arquivo.
-- De qualquer modo, isso serve para nos lembrar de que Nathan Brewster é um
homem violento -- retrucou Matt, fazendo algumas anotações. -- Nós poderíamos
procurar a irmã dele, o que você acha?
-- Ê uma boa idéia -- concordou Laurel. -- Ele pode ter falado a respeito de Anne
com ela. Ei, aonde é que você vai? -- perguntou, quando ele se levantou. -- Você nem
respondeu à minha pergunta. Conseguiu encontrar algo?
-- Nada de concreto. Pelo menos, não aparentemente. Preciso dar alguns
telefonemas antes.
-- Matthew... -- Ela saiu atrás dele corredor afora. -- Nós combinamos dividir todas
as informações, lembra-se?
--Depois que eu der os telefonemas -- respondeu ele, sorrindo e fazendo ar de
mistério.
-- Você é mesmo engraçado -- resmungou, enquanto entravam no elevador. --
Muda as regras de acordo com a sua conveniência. Não acho isso limpo, Matthew
Bates.
Sem deixar de sorrir, e não dando atenção aos resmungos de Laurel, ele a segurou
pelo braço e os dois saíram do elevador. Separaram-se na redação.
Um bom repórter não deve desanimar diante de respostas rudes ou mesmo diante da
ausência de respostas. Era isso o que Laurel dizia para si mesma depois de três
tentativas infrutíferas para localizar Kate Brewster, a irmã de Nathan. Quando afinal
conseguiu encontrá-la, esbarrou nas mesmas dificuldades. A mulher recusava-se
terminantemente a prestar declarações sobre a briga em que o irmão se envolvera dois
anos atrás. Ela que não insistisse. Aquilo já acontecera há tanto tempo... Para que
desenterrar o passado? Laurel então mudou de assunto e mencionou Anne Trulane.
Sentiu uma certa hesitação do outro lado da linha. Ou seria medo? Não, foi a resposta,
Kate nunca ouvira falar em ninguém com esse nome.
Desanimada, Laurel desligou e olhou na direção de Matt, que continuava ao telefone.
Pelo modo como ele rabiscava aquele caderno, era evidente que estava obtendo mais
sucesso do que ela. "Bem, ao menos um de nós está chegando a algum lugar", pensou,
um tanto descontente, e sentou-se à mesa dele. Embora tentasse, descobriu que seria
impossível entender aqueles rabiscos de cabeça para baixo. Distraidamente, pegou o
copo de café que ele trouxera e tomou um gole, enquanto esperava. Ao ouvi-lo
mencionar Elise Trulane, franziu a testa.
Que diabo Matthew estaria pretendendo com aquilo?, perguntou-se, enquanto ele
continuava a fazer anotações, ignorando a presença dela. O que a fuga da primeira
esposa teria a ver com a morte da segunda?
Ele desligou o telefone e bateu com o lápis na mesa.
-- O que você conseguiu, Laurel?

54
-- Nada, a não ser a impressão de que Kate Brewster ficou nervosa ao ouvir o nome
de Anne Trulane. E você? Pelo jeito teve mais sorte do que eu.
-- Pois acabo de descobrir que Elise e Anne têm em comum algo mais do que a
semelhança física. -- Deixou o lápis sobre a mesa e alcançou o maço de cigarros. --
As duas tinham apenas um parente. Anne, uma irmã; Elise, uma tia. Eu acabei de falar
com essa, senhora.
-- Com a tia de Elise? Por quê?
-- Curiosidade apenas. -- Acendeu o cigarro. -- Ela descreveu a sobrinha como
uma jovem tímida e delicada. Aparentemente, Elise adorava Heritage Oak e, ao
contrário de Anne, tinha-se adaptado rapidamente ao papel de dona-de-casa. A tia levou
um choque, quando ficou sabendo que ela havia fugido com o cunhado. Sempre teve
certeza de que Elise era devotada ao marido. Desde então, nunca mais a viu ou ouviu
falar dela.
-- Nem Elise nem Charles jamais foram vistos por qualquer outra pessoa -- Laurel
comentou. -- Coisas assim acontecem, Matthew, sem que as pessoas estejam
preparadas. Não posso imaginar Elise contando à tia ou a qualquer outra pessoa que
estava tendo um caso com Charles.
-- Pode ser. Há uma outra coisa interessante -- murmurou ele, olhando diretamente
para Laurel. -- Elise herdaria cinqüenta mil dólares quando atingisse a maioridade.
Bem, ela completou vinte e um anos um mês depois de ter saído de Heritage Oak, mas
nunca apareceu para reclamar o dinheiro.
Os olhos de Laurel se arregalaram, enquanto idéias e respostas rodavam na sua
mente.
-- Talvez... Elise tenha sentido medo de que Louis a seguisse, caso ela aparecesse
para receber o dinheiro.
-- Convenhamos que cinqüenta mil dólares é uma quantia bastante grande para
infundir coragem a qualquer pessoa.
-- Matthew, não consigo ver no que escavar a vida de Elise possa nos ajudar a
esclarecer a morte de Anne.
Os olhos azuis eram muito calmos, muito diretos.
-- Basta você pensar um pouco, Laurel. -- Amassou a ponta do cigarro no cinzeiro e
levantou-se. -- Mas agora temos que os concentrar no que vamos fazer esta noite. É
melhor descansarmos algumas horas, antes de nos enfiarmos naquele pântano mal-
assombrado.
-- Certo. -- Ela não queria discutir, nem pensar sobre o que Matt acabara de revelar.
Covardia, sim, e daí? Mas estava tão cansada que não tinha forças para mais nada,
muito menos para dar trabalho ao cérebro. Precisava de tempo, tempo para raciocinar
com clareza, tempo para deixar de lado seus sentimentos com relação a Louis.
Matt não a pressionou. No trajeto para casa, puxou conversa sobre coisas amenas e
sem importância. Ele era ótimo para dissimular o que lhe passava no íntimo através de
um estilo descontraído, que para ela soava como um recuo estratégico. Era o modo que
ele encontrava para fortalecer as próprias defesas. Se ficara furioso com a atitude
superprotetora de Laurel em relação a Louis, pelo menos não estava deixando
transparecer nada. A voz era calma, ainda que os músculos parecessem tensos e a
postura ao volante um tanto rígida.


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-- Estou louca para esticar o corpo e tirar um belo cochilo -- disse ela, enquanto
saíam do carro. -- Estes dois últimos dias me pareceram tão longos...
-- E a noite será longa também.
Ela sorriu pela primeira vez, desde que deixaram o Herald.
-- A que horas será o nosso safári?
-- Meia-noite seria o horário ideal, você não acha?
-- Ai, meu Deus, qual será o melhor meio para combater fantasmas? Alho, eu sei
que só funciona para vampiros; balas de prata, para lobisomens. E para fantasmas?
-- Bom senso, minha cara.
Chegaram até a porta do apartamento dela. -- O que é isso? -- Laurel perguntou,
abaixando-se para Pegar uma caixa. -- Não me lembro de ter encomendado nada.
-- Talvez seja um presente de Jerry, uma caixa de lápis número dois -- caçoou ele.
-- Pode parar por aí, Matthew Bates. -- Tentou ser enérgica, mas não conseguiu
camuflar o sorriso. -- Bem, nos encontramos à meia-noite, correto? -- E, tirando a
chave da bolsa destrancou a porta para fechá-la logo em seguida diante dele.
O sorriso de Matt desapareceu aos poucos, quando ele se encaminhou para a porta ao
lado. Essa mulher o deixava maluco. E só se ela fosse cega para não perceber isso, disse
para si mesmo, enquanto enfiava a chave na fechadura. Talvez ele estivesse pecando
por excesso de cautela. No caminho para a cozinha, Matt tirou a camisa e jogou-a de
lado. Lembrou-se da primeira vez que a vira e das semanas que levara pensando
naqueles olhos verdes. Laurel o pegara totalmente desprevenido. Ele mesmo se
surpreendia com o interesse imediato que sentira por ela.
A mente recuou mais, para o dia em que Curt viera com um porta-retratos e o
colocara sobre a escrivaninha do dormitório que os dois dividiam nos tempos de
faculdade.
-- Minha irmã -- dissera, distraído.
Ele se surpreendera com a beleza estampada naquela foto. E, no entanto, aquele era o
rosto de uma menina. Quantos anos ela poderia ter? Catorze? Quinze? Dezesseis, no
máximo.
A verdade é que, anos depois, quando William Armand entrara em contato com ele,
mencionando a amizade que o ligava a Curt e oferecendo-lhe um cargo no Herald, Matt
não pensara duas vezes. E não se questionara sobre o porquê de ter aceitado a proposta
tão rapidamente.
Abriu a geladeira e pegou uma jarra de suco. Teria sido diferente, continuou a
pensar, se houvesse encontrado um cérebro de galinha, naquela mulher de beleza
estonteante. Teria ajudado se ela fosse dona de uma personalidade dócil e domesticável.
Teria sido mais fácil se ele não ocupasse a mesa ao lado dela há um ano, sabendo que
ali, ao alcance dos seus olhos e das suas mãos, estava tudo o que ele sempre quisera.
Tomou um copo de suco e tornou a guardar a jarra na geladeira. Claro que tinha
intenção de dormir com ela. Não se passava um segundo sem que pensasse nisso. Mas
agora, ao saber que Laurel jamais fora tocada por outro homem, sentia-se obrigado a
agir de forma diferente. Jantares calmos à luz de velas, um toque de romantismo, enfim,
essas coisas que as mulheres adoram. Ele só esperava ter forças para poder resistir o
tempo necessário.
Preparava-se para entrar no banho quando ouviu um grito vindo do apartamento ao
lado.

56
Saiu correndo, e só se deu conta do que estava acontecendo quando já estava na sala
dela, abraçando-a com força, protegendo-a do que quer que tivesse aparecido para
ameaçá-la. Laurel estava petrificada, o corpo gelado, os olhos aterrorizados.
-- Laurel! -- Ela continuava em estado de choque, rígida como uma pedra. --
Laurel! Pelo amor de Deus, o que foi?
Ela não conseguiu dizer nada. Tentou, mas nenhum som escapou da sua garganta.
Sem olhar, apontou para a caixa que estava aberta sobre a mesa.
Com os braços em volta dela, Matt soltou uma exclamação de espanto, que veio na
forma de um palavrão.
-- Calma, querida. Está tudo bem agora. Olhe, ela está morta. -- Soltou-a para
demonstrar o que estava dizendo. O corpo tremia de fúria, quando ele ergueu uma
cobra de dentro da caixa. -- Veja, ela não pode lhe fazer mal. Está morta -- repetiu,
vendo-a transfigurada pelo horror. Gotas de suor umedeciam-lhe a testa, e ela desviou
os olhos, com uma expressão que ia do medo ao asco.
-- Matthew... por favor...
Sem dizer mais nada, ele tampou a caixa e levou-a para fora do apartamento. Voltou
logo depois para encontrar Laurel de cabeça baixa, cobrindo o rosto com as mãos,
chorando copiosamente. Matt não abriu a boca, apenas carregou-a para o sofá, como se
ela fosse um bebê.
Aguardou pacientemente que os tremores passassem, que o pranto convulsivo se
transformasse num choro abafado e menos desesperado. O tempo todo manteve-a entre
os braços, sentindo as lágrimas molharem seu ombro descoberto. Ela parecia tão frágil,
indefesa, vulnerável... Ah, Matt seria capaz de matar o responsável por tudo aquilo.
-- Sinto muito por tudo isso -- murmurou ela, entre soluços, sem desgrudar-se dele.
-- Eu estou aqui com você, Laurel. Nada de mal vai lhe acontecer, eu prometo. --
Beijou-lhe os cabelos e continuou a afagá-los.
Esperou mais um pouco, até ter certeza de que a crise havia passado, e então fez
menção de soltá-la.
-- Você está precisando de um gole. Vou lhe preparar um uísque, está bem?
Ela se agarrou a ele.
-- Não! -- implorou. -- Fique comigo. Me abrace forte -- murmurou, sem querer
desvencilhar-se daqueles braços protetores.
-- Está bem. Vou ficar aqui o tempo que você quiser. Agora relaxe e tente não
pensar mais nisso.
-- Matthew... -- O nome escapou-lhe dos lábios num suspiro.
-- Hum?
-- Não vá embora. Ele sorriu.
-- Prometo só sair daqui quando você me expulsar. Laurel segurou-lhe uma das
mãos e levou-a até os lábios. Era um gesto que encerrava algo mais que carinho ou
ternura. 0 desejo atravessou o corpo de Matt com a força de um raio.
-- Faça amor comigo -- sussurrou ela.
-- Laurel... -- Aquele pedido tímido deixou-o ainda mais aceso. Não, como ele
poderia amá-la justamente quando ela se encontrava tão fraca? Se fosse uma outra vez,
ah, se fosse uma outra vez... Quanto tempo esperara para ouvi-la dizer isso...
-- Você precisa descansar, Laurel -- tentou ponderar, mas percebeu que a voz saíra
pouco convincente.

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-- Matthew, eu preciso tanto de você -- insistiu, em tom de desabafo. -- Há muito
tempo venho esperando por isso. Por favor, vamos nos esquecer de tudo e fazer de
conta que não existe mais ninguém no mundo, apenas nós dois. -- Fechou os olhos e
ofereceu-lhe os lábios. -- Faça amor comigo, Matthew -- sussurrou. -- Por favor...
Talvez ele tivesse condições de resistir ao próprio desejo.
Talvez. Mas não àquele apelo ardente e apaixonado, vindo da mulher dos seus
sonhos. Sem pensar em mais nada, Matt a atraiu de encontro ao corpo, deixando que a
boca falasse tudo em silêncio. Por longos e vertiginosos minutos, Laurel teve a
sensação de estar pairando nas nuvens. As mãos de Matt desciam pelas suas costas,
apertavam-lhe a cintura e em seguida lhe percorriam as coxas, como se quisessem
memorizar pelo tato cada detalhe daquele corpo.
-- Laurel -- murmurou, sem deixar de beijá-la -- eu te quero tanto! Meu Deus,
estou louco por você! -- Afastou a camisola, deixando os ombros dela à mostra.
Inclinou-se para sentir o gosto daquela pele macia. -- Vamos para o quarto --
sussurrou, carregando-a nos braços.
Durante o curto trajeto até o quarto, Laurel tentou imaginar como seria aquele
momento pelo qual ela esperara a vida toda. Embora fosse inexperiente, não sentia
medo. Confiava em Matt. Bastaria deixar-se guiar por ele.
-- Eu não vou machucá-la -- Matt murmurou, como se estivesse lendo os
pensamentos dela.
Laurel sorriu, já sobre a cama, onde ele a deitara com toda a suavidade.
-- Eu sei. -- E lhe abriu os braços, envolvendo-o, enquanto suas bocas novamente se
encontravam.
Matt a atraíra desde o início, mas Laurel lutara contra as sensações maravilhosas e ao
mesmo tempo assustadoras que ele fazia brotar de dentro dela. Agora, no entanto, não
lutaria mais. Queria-o por inteiro, estava ansiosa para aprender com ele.
Matt a acariciava com os lábios. Acariciava... E ela se deixava perder naquele mar de
suavidade e erotismo. Quando as mãos dele alcançaram os seus seios, Laurel suspirou
de prazer.
Olhos brilhando de desejo, Matt viu os mamilos se enrijecerem, tornando-se visíveis
sob o tecido fino da camisola. Sempre devagar, ele a despiu até a cintura, deixando à
mostra os seios intumescidos. Por alguns instantes, deixou que as suas mãos sentissem
o volume daquela carne tão macia. Laurel gostaria de implorar que ele prosseguisse.
Matt, entretanto, parecia não ter pressa e continuava acariciando-lhe os mamilos como
se quisesse vê-la pegar fogo.
Quando a respiração quente de Matt pareceu queimar a delicada pele de seus seios,
Laurel se contorceu num arroubo de prazer, afundando os dedos pelos cabelos loiros,
desejosa de prolongar aquele contato. Nunca em sua vida ela se sentira tão vibrante, tão
feminina. As pequenas mordidas que ele lhe dava e a massagem que fazia em seguida
com a língua aguçavam os seus sentidos e a faziam delirar de excitação. Meu Deus,
como era bom! O que podia ser melhor do que isso? Ela era dele, agora tinha certeza.
Jamais pertencera a outro homem, porque estivera aguardando desde toda a eternidade
por esse momento: para estar com Matt.
A camisola foi definitivamente afastada e, por um instante, ele saboreou com os
olhos aquele corpo faminto de sensações, trêmulo de ansiedade. Laurel era linda, mais


58
linda do que ele ousaria supor. Nem mesmo em suas fantasias ela lhe parecera tão
deslumbrante, tão viva, tão incrivelmente mulher!
Murmurando palavras doces e carinhosas, Matt continuou a acariciar-lhe os seios, as
pernas, a parte interior das coxas, até chegar à delicada calcinha, que fez questão de
tirar bem devagar, num esforço supremo de autocontrole.
Não foi tão vagaroso no momento de se livrar de suas próprias roupas. Laurel estava
pronta e olhava para ele com os seios arfantes, a respiração acelerada, esperando
ansiosa pelo contato de seus corpos. Quando ele se deitou sobre ela, Laurel soltou um
gemido que foi abafado prontamente com um beijo. Pele contra pele, os dois eram
apenas sensações.
-- Laurel...
Ela não conseguia dizer nada, maravilhada com aquela descoberta, perdida em ondas
de paixão. Entreabriu novamente os lábios para ele e deixou a sua inocência ir embora,
facilmente, mansamente, como as águas de um rio rumando em direção a sua foz.
Laurel estava dormindo. Deitado ao lado dela, Matt observava a luz da Lua entrar
pelas frestas da janela. O corpo estava exausto, devido ao esforço que fizera para se
controlar além dos limites da resistência, mas a mente não conseguia descansar. Sempre
pensara que, uma vez saciado o desejo, sua obsessão em relação a Laurel desapareceria.
Agora, no entanto, descansando junto a ela, sentindo o calor daquele corpo aninhado
entre os seus braços, constatava o quanto se enganara. A necessidade de estar com ela
era tão básica e vital quanto o ar que respirava.
Matt sabia que Laurel era dele, fisicamente falando. Ele fora capaz de acender-lhe a
paixão, descobrir-lhe os pontos mais sensíveis, realizá-la na cama. Restava saber se
conseguiria fazer o mesmo com as suas emoções. Teria igual paciência para fazer
despertar o amor dentro dela?
Voltando a cabeça, ficou um instante contemplando aquela criatura de pele macia e
feições delicadas, que dormia enroscada nele. Acariciou-lhe o rosto suavemente. Laurel
era dona de uma tal delicadeza que, muitas vezes, fazia-o sentir-se desajeitado. Ainda
assim, ela possuía energia e ambição, e isso os aproximava.
Parceiros, ele pensou, e seus olhos brilharam, entre o encantamento e a determinação.
No trabalho e na cama. Inclinando-se, deu-lhe um beijo nos lábios.
Laurel despertou com um suspiro de satisfação. Olhou para ele, sorriu e rodeou-lhe o
corpo com os braços. Gemeu de encontro à boca que explorava a sua, sentindo renascer
o desejo, diante da lembrança do que acontecera momentos antes. A voracidade dos
lábios de Matt dava bem a idéia do quanto ele fora cuidadoso e terno na primeira vez.
"Eu te amo, Matthew Bates", pensou, enquanto se aconchegava a ele. Não era
incrível? Apaixonada por Matt! Com um sorriso sereno, brincou com os cabelos loiros,
charmosamente desalinhados. "Agora eu vou começar a jogar pra valer, Sr. Bates. E
vou vencer."
Deu um longo suspiro. Puxa, o amor dava tanta preguiça assim? Que sensação
deliciosa...
-- Você está tentando me dizer que já é hora de nos levantarmos? -- murmurou,
então.
Erguendo um pouco a cabeça, Matt abriu um sorriso para ela.
-- Muito pelo contrário. -- Beijou-lhe a ponta do nariz. -- Ainda temos um
tempinho de sobra.

59
Era difícil contrapor-se a um argumento tão lógico. Passou a mão pelo tórax dele,
como quem faz um estudo minucioso.
-- Eu gosto do seu corpo, Matt.
Ele não disfarçou uma ponta de orgulho.
-- É mesmo? Sinto-me lisonjeado.
-- Ora, não seja bobo -- repreendeu-o, suavemente. -- Você costuma praticar
ginástica?
-- De vez em quando -- respondeu, apoiando-se sobre os cotovelos.
-- Bem, você me parece estar em ótima forma para o que precisamos fazer esta
noite.
Ele lhe deu uma pequena mordida no lábio inferior.
-- E o que vamos fazer? -- murmurou, com um sorriso malicioso.
-- Nada do que você está pensando. -- Riu e explicou: -- Esqueceu-se de que
vamos dar umas voltas pelo pântano de Heritage Oak?
Não, Matt não se esquecera. Estava apenas pensando em distraí-la e esperar que ela
pegasse novamente no sono para então sair sozinho.
-- Pois eu estou com outra idéia em mente -- propôs, com um certo cuidado. -- Por
que não adiamos isso?
-- Não pense que me engana, Matthew Bates -- contra-atacou, cheia de perspicácia.
-- Nós vamos hoje, conforme o combinado. E eu vou com você. Não vai se livrar de
mim tão facilmente, meu caro.
Droga, ele devia ter adivinhado.
-- Laurel, escute, não há a menor necessidade de que você vá também. Eu só
pretendo dar uma olhada, não vou fazer nada de mais.
-- Nesse caso, por que você e não eu?
-- Laurel, pense um pouco...
-- Pensar em quê? -- Saltou da cama e abriu uma das gavetas da cômoda.
-- Ninguém deixou uma cobra venenosa na minha porta. Ela mordeu o lábio e então
se voltou para ele, com uma camiseta e uma calcinha nas mãos.
-- Tem razão, Matthew. Só que eles estão enganados, se pensam que podem me
fazer desistir.
Ele deu de ombros e não insistiu mais.
-- Está certo, durona. -- Pôs as pernas para fora da cama. -- Mas lembre-se de uma
coisa, quando chegarmos lá: aquele pântano está cheio de cobras, e elas não estão
mortas nem embrulhadas para presente.
-- Não vou me esquecer disso, fique tranqüilo. Agora é melhor você voltar ao seu
apartamento. Eu vou tomar um banho e nós nos encontraremos daqui a dez minutos,
está bem?
-- Mais alguma instrução? -- ironizou ele.
-- Não se esqueça de pegar uma lanterna.


CAPÍTULO VIII


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Matt estacionou o carro junto ao muro que circundava a propriedade dos Trulane. No
momento em que desligou o motor, o silêncio da noite os envolveu. Saíram do
automóvel e correram furtivamente na direção do muro.
Matt prendeu a lanterna no bolso de trás e entrelaçou os dedos das mãos, abaixando-
se um pouco.
-- Você primeiro -- sussurrou. -- Apóie-se em mim, vamos.
Laurel obedeceu e escalou o muro, saltando para o outro lado. Matt veio logo atrás.
-- Aposto que você já fez isso antes -- murmurou ela, batendo com as mãos
espalmadas no jeans.
Ele sorriu.
-- Vamos dizer que eu já escalei alguns degraus na minha carreira.
-- E não está falando metaforicamente, tenho certeza -- ela concluiu.
-- Você me obriga a dizer que também você se saiu muito bem. Parece uma
veterana.
Laurel olhou rapidamente à sua volta e avistou a casa, vários metros adiante, envolta
nas sombras da noite.
-- Acredito que você não tenha considerado as repercussões legais, caso sejamos
apanhados. Afinal, estamos invadindo propriedade alheia.
Ela devia estar se referindo a Louis, pensou ele. Talvez tivesse receio de que o outro
os pegasse em flagrante.
-- Não se preocupe -- retrucou simplesmente. -- Não seremos apanhados.
Caminharam sorrateiramente na direção norte, dispensando as lanternas. O luar era
suficiente para fazê-los enxergar por onde andavam. A sinfonia incessante dos grilos e,
vez por outra, o pio de uma coruja eram os únicos sons dentro do silêncio tenebroso.
Vaga-lumes cortavam a escuridão. Um cheiro forte de grama e terra espalhava-se pelo
ar.
Laurel já conseguia divisar a silhueta sombria da orla do pântano. A aversão foi tão
intensa que ela precisou reunir todas as suas forças para seguir adiante. Os dedos,
todavia, entrelaçaram-se fortemente nos de Matt.
Notou que a palma da mão dele estava fria, mas seca. "Será que ele não sente a
atmosfera deste lugar?", perguntou-se, percebendo um arrepio percorrendo-lhe todo o
corpo.
-- Laurel, lembre-se -- disse ele baixinho, antecipando os temores dela --, isto aqui
é um lugar como qualquer outro. Não há nada de sobrenatural à nossa volta.
-- Tomara que você tenha razão -- respondeu simplesmente, enquanto começavam a
se embrenhar no arvoredo.
Determinada a engolir o medo, Laurel manteve-se de mãos dadas com Matt,
desejando que aquele contato protetor lhe infundisse coragem.
-- É difícil de acreditar -- começou a dizer com voz mais firme -- que uma mulher
pertencente a uma geração antiga dos Trulane tenha tido coragem de se encontrar com
o amante neste local. Se não me engano, o nome dela era Druscilla. Minha avó conhece
a história.
Matt deu uma risadinha e tirou a lanterna do bolso.
Talvez essa tal de Druscilla gostasse de umidade e de mosquitos. Bem... -- Não
acendeu a lanterna, mas olhou para trás, na direção da casa, centenas de metros distante


61
de onde estavam. -- Eu diria que esta é a entrada para o pântano, considerando-se que a
pessoa venha diretamente da casa. Laurel seguiu a direção do olhar dele.
-- De acordo. Nesse caso, Anne deve ter passado por aqui,
-- Certo. Vamos dar uma andada para ver se descobrimos algo. Fique perto de mim.
-- Não precisa dizer duas vezes -- retrucou ela. -- Vou ficar literalmente nos seus
calcanhares.
Não haviam andado mais do que alguns metros, quando precisaram acender as
lanternas. As copas espessas das árvores raramente deixavam penetrar a luz da Lua. Era
um mundo de sombras, umidade e sons sussurrantes que chegava a provocar calafrios.
Matt começava a entender por que Anne Trulane sentia-se aterrorizada ante a simples
menção daquele local. Qualquer um poderia se perder ali, se não prestasse atenção ao
caminho. Por isso, era estranho que ela tivesse avançado tanto, em vez de retroceder em
direção à saída. O pânico a deixara cega, incapaz de raciocinar? Talvez.
-- Não, isso não faz o menor sentido -- ele murmurou.
-- O que não faz sentido? -- Laurel perguntou, atenta ao facho de luz que vinha da
sua lanterna.
-- Por que Anne não conseguiu sair daqui?
-- Porque devia estar apavorada e acabou perdendo o sentido da direção.
-- Você está assustada? -- Matt olhou para os dedos enterrados no seu pulso.
-- Eu? Claro que não. -- Afrouxou os dedos. -- Aterrorizada, isso sim.
-- Você conseguiria sair daqui?
-- Bem, eu... -- Apertou a mão dele novamente. Agora não era o momento
apropriado para exercitar o seu orgulho. -- Você não está pensando em me deixar
sozinha, não é, Matthew Bates?
-- O que aconteceria, se eu fizesse isso?
-- Eu o mataria assim que conseguisse sair.
Ele sorriu.
-- Vamos lá, use o cérebro -- insistiu ele. -- Imagine que está perdida. Como faria
para voltar do ponto em que estamos?
Laurel olhou à sua volta e pensou alguns instantes. Sombras, o farfalhar das
folhagens, o cheiro de umidade e de raízes... De leste a sudoeste, ela sabia muito bem,
encontraria areia movediça.
-- Eu iria naquela direção -- apontou. -- Andaria sempre em linha reta.
-- E em cinco minutos você estaria fora -- concluiu ele. -- Por que então Anne, em
lugar de fazer isso, continuou seguindo em frente?
-- Laurel passou a mão pelos cabelos.
-- Talvez já estivesse delirando, sob o efeito do veneno.
-- Será? -- duvidou. -- Tão rápido assim? Não conseguiria nem ao menos se
aproximar da saída?
-- Não se esqueça de que estamos lidando com uma pessoa que tinha fobia do
escuro. Ela deve ter entrado em pânico.
-- Pode ser. -- Olhou para ela. -- O estranho é que, naquela madrugada, quando
estávamos fazendo a busca, deparamos com algumas pegadas dela, aqui e ali, onde o
solo estava úmido. Tais pegadas não pareciam seguir uma trajetória coerente.
Pânico, desespero, Matt remoeu aquela idéia. Ainda assim, Anne não ficara
paralisada pelo medo, como acontecera com Laurel horas atrás. Ao contrário, saíra

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correndo na direção daquilo que ela tanto temia... ou, quem sabe, estivera fugindo de
algo ainda mais terrível que a escuridão.
Laurel deu um pulo, quando os arbustos ao lado deles se mexeram. Matt dirigiu o
foco das lanternas para as folhagens e um lagarto saiu para refugiar-se novamente nas
sombras.
-- Droga! -- resmungou ela, com o coração aos saltos. -- Odeio fazer papel de
boba. -- Vamos. -- Passou à frente dele, chateada por ter se apavorado sem razão.
Os dois moviam-se com cuidado e em silêncio, aprofundando-se cada vez mais no
pântano. Laurel iluminava o caminho com a sua lanterna, enquanto Matt, com a dele,
investigava as regiões laterais, procurando por algo que lhes pudesse servir de pista.
Laurel então parou abruptamente.
-- Não ria! -- ordenou.
-- Está bem -- Matt retrucou, em tom conciliatório. -- o que foi? Um outro lagarto?
-- Não, eu sinto que alguém está nos observando.
-- Relaxe, vamos. -- Ah, essas histórias de fantasmas, ironizou em pensamento.
Matt não deixaria que as impressões de Laurel o afetassem, ainda que houvesse um quê
de fantasmagórico naquele lugar. Mas ele não acreditava em espíritos, nem em
fantasmas. Tudo isso era produto do próprio homem.
-- Muitas pessoas morreram aqui -- ela contou, com voz ligeiramente trêmula.
Matt tocou-lhe o ombro.
-- Você quer voltar? -- perguntou, compreensivo. "Claro, agora. Não quero ficar
nem mais um minuto aqui."
-- Não, vamos em frente -- respondeu Laurel, fingindo coragem e determinação,
quando, na verdade, seu sangue estava gelado pelo medo. -- O rio deve estar próximo,
estou sentindo o cheiro dele.
Chegaram à pequena ribanceira, onde, mais abaixo, corriam águas silenciosas. O luar
escapava por entre as árvores e refletia-se palidamente no rio, mas apenas o tornava
mais escuro. Um sapo saltou e escondeu-se nas folhagens úmidas, quando eles se
aproximaram.
Havia jacarés por ali, Laurel pensou, engolindo em seco. E dos grandes.
-- Foi aqui. -- Matt iluminou o chão ao redor deles. -- Laurel, você ainda
conseguiria sair deste lugar?
Ela molhou os lábios.
-- Acho que sim. Imagino que qualquer direção que se tome deste ponto nos levará à
saída.
-- Isso mesmo. -- Continuou dirigindo o foco de luz pelas proximidades. --
Estranho que Anne tenha chegado ao coração do pântano para desistir. -- Praguejou
em voz baixa. Nada por aqui, nada por ali. -- Droga, gostaria de pôr as mãos naquelas
cartas.
-- Quem quer que as tenha roubado, deve tê-las destruído, a uma altura destas --
comentou Laurel.
-- Eu me pergunto se Susan... -- Matt interrompeu-se quando iluminou algo
diferente que brilhava ao receber a luz da lanterna. Inclinou-se e pegou um pedaço de
metal.
-- O que é isso? -- Laurel perguntou, acercando-se dele.
-- Parece uma jóia, ou o que restou dela. -- Examinou-a melhor. -- Seria de Anne?

63
Laurel segurou o objeto e removeu-lhe a terra.
-- Não sei, um mês neste lugar... -- Examinou o pedaço de metal, virando-o de um
lado para outro, enquanto sua memória parecia querer lhe dizer alguma coisa. -- Olhe
para este trabalho. -- Estendeu a jóia para Matt. -- Parece ser a frente de um medalhão.
E bastante valioso, por sinal. -- Sacudiu a cabeça, como que tentando se lembrar de
algo. -- Me parece bastante familiar. Talvez tenha pertencido a tia Ellen. Louis deve tê-
lo dado de presente a Anne, depois do casamento.
-- Vamos guardar isso para futuras pesquisas -- disse ele, enfiando a peça no bolso.
-- Espere um momento aqui. Quero descer um pouco mais para dar uma olhada nas
margens do rio.
-- Para quê?
-- Sei lá, talvez eu encontre mais alguma coisa.
-- Eu vou com você.
-- Não, senhora, vai me esperar aqui. Não pense que sapos e lagartos sejam os
únicos animais que habitam este pântano.
Não abuse demais da sorte, Laurel Armand. Ela cedeu com um gesto de indiferença.
-- Está bem. Mas tem apenas dois minutos, Matthew Bates. Se não aparecer, eu vou
atrás de você.
-- Dois minutos. -- Beijou-lhe de leve os lábios. -- Não saia daqui.
-- Pode deixar. Não darei um passo. Matt começou a descer a ribanceira e, segundos
depois, desaparecia na escuridão. Laurel franziu a testa, tentando puxar pela memória.
Onde fora que vira aquele medalhão? Num dos vestidos de tia Ellen? Lembrou-se das
festas que costumava freqüentar naquela casa. Talvez tia Ellen o usasse apenas nas
grandes ocasiões. Frustrada, Laurel desistiu de pensar.
"Mais um minuto, Matthew Bates", advertiu-o em silêncio. Por que os ruídos da
noite pareciam muito mais assustadores, agora que estava sozinha? Mudou de lugar, ao
ouvir o vento bulir com as folhagens.
"É apenas o vento, Laurel, não seja boba", disse para si mesma, recusando-se a sentir
medo. "Daqui a uma hora estaremos em casa e eu darei boas risadas deste pavor
infundado."
Outro ruído, só que, dessa vez, mais forte, mais próximo. Laurel enrijeceu o corpo.
"Malditos lagartos!", praguejou em pensamento. Abriu a boca para chamar por Matt,
quando um braço rodeou-lhe a garganta.
O susto veio em primeiro lugar, antes que o corpo reagisse, segundos mais tarde,
diante da falta de ar. Num movimento instintivo de autodefesa, ela deu uma cotovelada
para trás, mas só conseguiu golpear o vazio. Viu-se empurrada com violência para a
frente. A lanterna caiu das suas mãos e ela foi ao chão, batendo a cabeça na raiz de uma
árvore.
Lá embaixo, Matt viu o arco de luz e então a escuridão completa no lugar onde
Laurel devia estar. Subiu correndo a ribanceira, praguejando contra a vegetação
escorregadia e gritando o nome dela. Quando a viu, estatelada no chão, sentiu o coração
parar de bater. A imagem de Anne Trulane caída confundia-se com a que ele via agora,
fazendo-o estremecer de horror. Abaixou-se até Laurel e agarrou-a, desesperado, sem a
menor delicadeza, encostando a cabeça dela em seu peito. Ao ouvi-la gemer
debilmente, respirou aliviado.


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-- Que diabos pensa que está fazendo? -- interpelou-a, reagindo com fúria ao medo
que tomara conta dele.
-- Tendo uma concussão cerebral... Ui! -- Tentou levantar-se, mas a cabeça lhe doía
terrivelmente, deixando-a tonta -- Alguém apareceu do nada e me atacou. -- Levou a
mão ao local da batida e então agarrou a camisa de Matt. -- Ah, não, você não vai me
deixar sozinha outra vez!
Profundamente aliviado, mas ainda impotente diante do choque, Matt sentou-se ao
lado dela.
-- Não se levante, Laurel. Fique assim um momento. -- Correu os dedos pelos
cabelos dela e ergueu-lhe o rosto. -- Você está muito machucada?
Ela leu a preocupação nos olhos dele.
-- Não muito. -- A cabeça estava latejando, mas nada da dor horrível de instantes
atrás. -- Não fui a nocaute, apenas vi estrelas. -- E acrescentou com um sorriso: --
Não tantas quanto da primeira vez que você me beijou.
Era bom sentir os braços dele em volta do seu corpo. Aquele era o melhor remédio
para fazê-la relaxar. Mas não estava gostando nada do ar de culpa que entristecia aquele
semblante tão querido.
-- Matthew...
-- Eu não devia ter deixado você sozinha.
-- Matthew Bates, se vai começar a se sentir culpado, eu vou brigar com você. --
Beijou-lhe de leve o rosto. -- Agora vamos ver se consigo ficar em pé.
Ele se ergueu primeiro e, com cuidado, ajudou-a a se levantar. Nenhuma tontura,
pensou ela, esperando um instante. No lugar da batida, um rastro de dor, mas nada de
insuportável.
-- Estou ótima -- revelou a ele e, diante do ar de descaso: -- Juro! Já levei tombos
mais feios.
"Mas não vai levar outros enquanto eu estiver por perto", Matt prometeu a si mesmo,
e procurou sorrir. -- O que mais você viu, além de estrelas?
-- Nada. -- Deixou escapar um suspiro de frustração. -- Eu estava tão ocupada,
dizendo a mim mesma que não devia me assustar à toa, que não percebi quando alguém
veio por trás e me agarrou pelo pescoço. Acho que queriam me enforcar. -- passou a
mão pela garganta, ao lembrar-se daquela sensação de morte. -- Não tive tempo de
fazer nada, antes de ser jogada ao chão. Foi tudo muito rápido. Você logo apareceu e
não havia mais ninguém aqui.
Embora Matt ouvisse o relato com aparente calma, por dentro estava fervendo de
ódio, disposto a matar a pessoa que ousara colocar as mãos nela.
-- Tem certeza de que está bem? Acha que pode caminhar?
-- Eu sairia correndo daqui, ainda que tivessem me aleijado. -- Olhou em volta. --
Droga, perdi a lanterna. Ela deve ter caído no rio.
-- Isso é o de menos. Você pode comprar outra.
-- Ótimo! -- ela exclamou com ironia. -- Era novinha. Não faz um mês que a
comprei. -- Começaram a andar, Laurel apoiando-se em Matt. -- Bem, pelo menos
descobrimos alguma coisa.
-- É. Alguém sabia que estaríamos aqui e não gostou nada disso. Fantasmas não
atacam as pessoas, Laurel.


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-- É verdade. -- Como ele, Laurel refletia, considerando que a casa não estava longe
e que a tal pessoa conhecia muito bem aquele lugar.
Fizeram o caminho de volta em silêncio, com cautela redobrada, prestando atenção
aos menores ruídos, checando todos os movimentos que percebiam dentro da escuridão.
Matt manteve Laurel ao seu lado, sem soltar-lhe a mão, até que afinal saíram do
arvoredo para a clareira. Avistaram novamente a casa e por alguns segundos
permaneceram olhando para ela, como se com isso pudessem esclarecer todo aquele
mistério.
Laurel só abriu a boca quando já estavam bem distantes de Heritage Oak:
-- Precisamos falar novamente com Marion e Louis.
-- Eu sei. -- Acendeu um cigarro. -- Amanhã. Reclinando-se no encosto, Laurel
fechou os olhos. Deixaria para pensar em tudo no dia seguinte.
-- Estou morrendo de fome -- confessou. Matt tirou os olhos da estrada por um
segundo e olhou-a. Estava um pouco pálida, embora a voz fosse controlada e a res-
piração calma. Laurel parecia-se muito com a avó. Era tão forte, fascinante e indomável
quanto Olívia. Sorrindo, ele lhe pegou uma das mãos e a levou até os lábios.
-- Que tal encomendarmos uma pizza? -- propôs, e Laurel, cansada, apenas
murmurou sua aprovação.
A alta madrugada veio encontrar Laurel e Matt sentados a uma mesa de vidro fume,
na sala de jantar do apartamento dele. A decoração espelhava bem o modo de ser
daquele homem: era prática e, ainda assim, de muito bom gosto. Não havia objetos
caros, nem tampouco Picassos na parede. Os quadros pintados a óleo levavam a
assinatura de um pintor desconhecido e retratavam, com insistência, certas paisagens de
Nova York.
-- Acho que comi o suficiente para as próximas duas semanas -- comentou ela,
quando Matt se serviu de outro pedaço de pizza.
-- E era você quem estava com fome? -- brincou. -- Eu mal estou começando.
Sorrindo, Laurel pegou o copo de vinho e levantou-se para andar pela sala. Descalça,
sentia os pés afundarem-se no carpete macio.
-- Gosto daqui -- observou. -- Você aprecia o conforto, não?
-- E quem não aprecia? -- Ficou olhando para ela, vendo-a aproximar-se do
aparelho de som e, em seguida, começar a mexer nos discos.
-- Mas nem todas as pessoas costumam conviver com a arte -- comentou Laurel,
surpresa ao constatar a predileção dele por música clássica. Deixou os discos de lado e
foi admirar os quadros. -- São muito bons -- avaliou. -- Não conheço o artista, mas
aposto que ainda ouvirei falar muito dele.
-- Fico contente ao ouvir isso. -- Matt tomou um gole de vinho. -- Nós crescemos
na mesma rua.
-- Verdade? -- Voltou-se para ele, mostrando-se interessada. -- Você sente falta de
Nova York?
Os olhos de Matt fixaram-se por um instante num dos quadros e de lá desceram
novamente para o copo.
-- Não.
-- Mas esses quadros...
-- Bem, é costume levar toda a bagagem, quando nos mudamos, não é? -- E, sem
dizer mais nada, levantou-se para guardar o último pedaço de pizza na geladeira.

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Laurel estranhou a atitude dele. O que o estava incomodando tanto? Lançou o olhar
para as gravuras: ruas tristes e escuras, prédios decadentes...
-- Você cresceu nessas ruas -- murmurou para ele, quando o viu entrar na sala
novamente.
Matt não precisou olhar para as pinturas para entender o que ela queria dizer.
-- Cresci -- confirmou laconicamente, e mudou de assunto: -- Estou precisando de
um bom banho.
-- Matthew... -- Laurel saiu atrás e segurou-lhe o braço antes que ele entrasse no
banheiro. Fingiu não perceber o ar de impaciência que lhe cruzava o semblante. -- Foi
difícil, não foi?
-- Eu sobrevivi -- respondeu com indiferença. -- Nem todos conseguem.
Tocada por um misto de piedade e simpatia, ela pressionou de leve o braço dele.
-- Não quer me contar a respeito?
-- Vamos deixar como está, certo?
Ela o fitou por alguns segundos, profundamente magoada. Suspirou.
-- Está bem. Sinto muito, não pretendia ser intrometida. Obrigada pela pizza, Matt.
Vejo você pela manhã.
Ele segurou-a pelo braço, fazendo-a parar.
-- Laurel, você não pode ficar no seu apartamento. Eu tive que arrombar a porta para
poder entrar.
Ela sustentou o olhar dele calmamente.
-- Não se preocupe comigo.
-- Droga, você... -- Interrompeu-se, sem saber o que dizer e fazendo um esforço
enorme para não ceder ao nervosismo. Matt sentia-se ainda muito tenso pelo que
acontecera com ela no pântano e ainda um tanto nas nuvens pelo que acontecera entre
eles na cama. Emoções cruzavam-lhe a mente e ele não estava sabendo lidar com elas.
-- Escute, eu sei por que você está assim -- cedeu, afinal.
-- Está zangada porque me recuso a comentar a minha vida. Entenda de uma vez por
todas: eu cresci num bairro miserável de Nova York e não tenho a menor vontade de
relembrar aqueles tempos.
-- Muito bem -- disse ela, aparentando indiferença. -- Compreendi perfeitamente.
Encare a minha curiosidade como sendo apenas profissional e não pense mais nisso.
-- Laurel! -- Nervoso, apertou-lhe ainda mais o braço, quando ela fez menção de
sair. -- Você não vai passar a noite sozinha naquele apartamento!
-- Por favor, detesto que me dêem ordens!
-- Chame como quiser, mas, pela primeira vez na vida, deixe de ser teimosa.
Laurel presenteou-o com o mais gelado dos olhares.
-- Tire as mãos de cima de mim! Você está me machucando. Matt estava a ponto de
perder as estribeiras; mesmo assim, não tinha intenção de machucá-la. Relaxou os
dedos e acabou por soltá-la.
-- Desculpe -- murmurou.
-- Isso não é necessário -- disse ela com cuidado.
-- É, sim. Eu machuquei você e não pretendia fazer isso. -- Levantou a cabeça e
fitou-a com ar cansado.
-- Por favor, Matthew -- pediu ela, constrangida, a raiva desvanecendo-se por
completo. -- Esqueça. Eu estava exagerando -- confessou, pondo o orgulho de lado.

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Ele não sabia o que fazer para convencê-la a ficar. Não podia forçá-la ou arrastá-la
para dentro.
-- Não vou discutir com você, Laurel. Olhe, está tarde e nós temos um bocado de
coisas para fazer logo pela manhã.
Laurel não disse nada, mas, ao dar-lhe as costas...
-- Laurel... -- Ouviu Matt chamá-la mais uma vez. Voltou-se para ele. -- Fique aqui
-- ele murmurou. -- Passe a noite comigo.
Ela sorriu e passou os braços pelo pescoço dele.
-- Pelo menos posso ter o privilégio de um banho quente? -- perguntou, beijando-
lhe rapidamente os lábios.
Ele achou graça.
-- Claro. Mas temos um problema.
-- Qual?
-- Você ouviu falar do racionamento de água que estão fazendo aqui no prédio?
-- Não, nem uma palavra.
-- Pois é, acho que vamos ter que tomar banho juntos. Ela caiu na risada, e dessa vez
não se importou, ao ser arrastada para dentro.
Depois do banho, Laurel sentiu-se revigorada. Enquanto se enxugava, disse, em tom
brincalhão, para Matt:
-- Estou realmente surpresa. -- Quando ele se voltou, sorrindo para ela, prosseguiu:
-- Não sabia que você se preocupava tanto com a conta da água.
Matt tirou á toalha das mãos dela e começou a enxugar-se. Aceitou a brincadeira,
levando-a adiante.
-- E com a conta da lavanderia também. -- Percorreu com o olhar o corpo dela e
então sugeriu: -- É melhor você ir para a cama, se não quiser pegar um resfriado.
Laurel deu-lhe as costas e saiu para o quarto, deixando que ele admirasse aquela
visão deliciosa. . -- Suponho que também não devemos acender a luz.
-- Claro, estou em fase de total economia -- concordou ele, alcançando-a e
pegando-a no colo. Os dois caíram gostosamente na cama.
-- Estive pensando numa coisa, Matthew Bates... -- Mas não conseguiu terminar.
Matt calou-a rápida, completa e eficazmente. Tinha a intenção de provocá-la, de
prosseguir naquele jogo bem-humorado que haviam iniciado momentos antes, debaixo
da ducha fria. Mas as pernas dela estavam entrelaçadas às suas, o corpo submisso e ao
mesmo tempo vibrante.
-- Meu Deus, Laurel, eu preciso de você! -- Tornou a invadir a boca de Laurel com
a selvageria que aquela noite parecia ter imprimido nele.
Esqueceu-se da paciência, e era isso mesmo o que ela queria. Esqueceu-se da
gentileza. Ah, como Laurel esperara por isso! A língua dele parecia decidida a
investigar todas as minúcias de sua boca, experimentar-lhe o sabor até fartar-se de tanto
mel. Ela correspondia àquele ardor, decidida a não negar nada, nem a ele, nem a si
própria. Sua língua se entrelaçava na dele, com o mesmo ímpeto, a mesma busca
desenfreada, a mesma insistência. Dessa vez, Laurel não se deixaria simplesmente
conduzir. Generosa, oferecia o seu corpo. Egoísta, queria para si todo o prazer que Matt
pudesse lhe dar.
Ela não sabia que a paixão podia fazê-la esquecer os vestígios de uma educação
reprimida, mas estava aprendendo a se livrar de todos os tabus. Seus sentidos estavam à

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flor da pele e ela os incitava ainda mais, tocando e deixando-se tocar, fazendo som que
as mãos, os lábios e a língua se movessem rapidamente, vertiginosamente, com a
mesma impaciência e sofreguidão de Matt. O aroma do sabonete desprendia-se de seus
corpos e, mesmo tão suave, a deixava atordoada. Os dois eram apenas duas sombras na
penumbra do quarto, mas a paixão que os unia tinha forma e substância. A ameaça das
horas passadas no pântano parecia compeli-los a arrancar, com o mesmo apetite
insaciável, tudo o que pudesse ser encontrado entre um homem e uma mulher. Peles
úmidas, pulsações aceleradas, gemidos abafados. Para ambos, este era o momento. O
ontem e o amanhã estavam bloqueados pelo presente.
Os lábios dele desciam famintos pelo corpo de Laurel. Os dedos dela se agarravam
aos cabelos de Matt. O desejo irrefreável de experimentar cada milímetro do corpo de
Laurel só podia ser comparado ao desejo insuportável que ela sentia de entregar-se
inteirinha a ele. Os dois queriam aprender um com o outro e entregavam-se a essa
tarefa com a loucura ditada pela busca do prazer.
Laurel gemia, arqueava o corpo e se contorcia, delirando com as sensações que
aquela língua era capaz de provocar dentro dela. Enterrou as unhas nos ombros de Matt,
numa reação que o estimulava a prosseguir. Meu Deus, não podia haver nada mais
incrível que aquilo, Laurel pensou. A paixão era tão intensa que transbordava e fazia o
seu coração bater desenfreado. -- Matthew -- gemeu, com a respiração entrecortada.
-- Eu quero você.
Quando suas bocas se encontraram novamente, ela pôde sentir o coração dele, num
ritmo tão descompassado quanto o do seu. Suas respirações se confundiam, seus corpos
tremiam, seus olhares estavam embaçados de tanto desejo.
-- Eu preciso de você -- os dois falaram ao mesmo tempo, e Laurel ergueu
ligeiramente os quadris para recebê-lo.


CAPÍTULO IX

O ar estava parado. Nuvens grossas e pesadas preparavam uma armadilha para o
calor insuportável. Até mesmo as folhas das árvores pareciam aguardar, ansiosas, a
chuva que se anunciava para breve.
Laurel recostou-se no banco e recebeu com alívio a brisa que entrava pela janela do
carro. Olhando para as árvores ao longo da rodovia, desejou estar descansando à
sombra de uma delas, sentada sob um gramado fresco e molhando os pés num regato de
águas geladas.
Era a terceira vez em dois dias que eles se dirigiam para Heritage Oak. Cada uma
delas superava a anterior, em termos de expectativa, que parecia crescer em progressão
geométrica.
Louis se zangaria, ela não tinha a menor dúvida quanto a isso. Na verdade, ele ficaria
furioso por ver-se perturbado novamente, isto é, caso se dignasse a atendê-los.
Marion... Marion ficaria magoada, Laurel pensou, com uma sensação de culpa.
Magoada pelo fato de continuarem a amolar o irmão, quando ela explicara tão bem o
estado em que ele se encontrava.
'Não posso pensar nisso", Laurel disse a si mesma, voltando a atenção para o cenário
lá fora. "Que outra escolha eu tenho?

69
Perguntas precisam ser feitas. Muitas coisas precisam ser explicadas. Já fomos muito
longe para pararmos agora. De qualquer modo, já que não há outro remédio, é melhor
que ele veja que sou eu quem está insistindo, e não uma pessoa desconhecida. Mas não
seria nada fácil, ela sabia disso tão bem quanto temia a reação de Louis.
Sabia ainda o porquê do silêncio de Matt. Ele estava dando a ela tempo para
reorganizar as emoções e os pensamentos antes de chegarem a Heritage Oak. Muita
consideração da parte dele. Estranho, mas, há uma semana, ela poderia jurar que
Matthew Bates não era homem de ter consideração pelos outros. Em poucos dias,
aprendera muito em relação a ele. Não tanto, corrigiu-se, ao lembrar-se da relutância
com que ele mencionara seu passado em Nova York. Havia muitas coisas que ela dese-
jaria saber. Mesmo assim, restava uma certeza: amava-o com todas as suas forças. O
que mais poderia ser tão importante quanto isso?
Os dois ainda precisavam ter uma conversa sobre tudo o que acontecera entre eles.
De certo modo, Laurel sentia que ambos relutavam em tocar no assunto, como se
quisessem compartilhar suas emoções. Era melhor deixar o barco correr, por enquanto.
Seria insensato pressionar Matt com perguntas a que ele não estava preparado para
responder.
Tudo acontecera tão rápido... Um ano... Tão rápido assim?, perguntou-se, com um
sorriso. Era incrível, mas ambos haviam praticamente se ignorado durante todo um ano
e agora a paixão explodira de modo inevitável, além de inesperado. E isso era o mais
excitante. Entretanto, seria o bastante para ele? Laurel gostaria de ter coragem para
perguntar.
Virou o rosto para Matt e estudou-lhe atentamente o perfil. Forte, bonito, sorriso
interessante e olhos realmente lindos, de chamar a atenção. Pelas matérias que ele
costumava redigir Laurel sabia que podia ser irônico e mordaz, mas tinha certeza de
que isso não passava de aparência. Matt era assim porque vivia se defendendo. E nada
melhor do que a ironia para camuflar o que lhe ia por dentro. Laurel, entretanto,
acabava de descobrir que gostava do estilo dele. O amor abrira-lhe os olhos.
Parceiros, ela pensou, alargando inconscientemente o sorriso. "É bom se acostumar
com isso, Matthew Bates, porque vamos ficar juntos por muito, muito tempo."
-- Está vendo algo que lhe agrada? -- perguntou ele, divertindo-se por ser objeto
daquele exame demorado.
Ela sorriu e não desviou o olhar.
-- Para falar a verdade, sim -- reconheceu. -- E isso me surpreende bastante.
Matt deu risada e, com os olhos na estrada, estendeu a mão até alcançar os cabelos
dela.
-- Adoro o seu modo de fazer elogios, Laurellie.
-- Isso é para você não ficar tentado a se vangloriar, como de hábito.
-- Seu discurso não me engana, querida. Você uma vez fez o mais genuíno dos
elogios acerca dos belos olhos deste rapaz.
Ela ergueu uma das sobrancelhas.
-- Eu?
-- Você mesma. Está certo que foi na noite dos três vermutes...
-- Ah, bom. Agora está explicado -- retrucou ela, dando risada. Já estavam entrando
na propriedade dos Trulane. -- A propósito, de que cor são eles?
Matt não respondeu. Apenas estreitou o olhar para ela.

70
-- Agora estou vendo -- Laurel prosseguiu. -- São azuis. Cabelos loiros, olhos
azuis... Uma combinação que se encontra às dúzias por aí.
-- Ah, é? -- provocou ele. -- Olhe que eu vou começar a falar do seu queixo.
Laurel ergueu o rosto automaticamente.
-- Meu queixo é muito delicado, fique sabendo. Matt estacionou em frente à casa.
-- Bem, dependendo do ângulo... -- Tirou a chave da ignição, enquanto Laurel abria
a porta. Pelo menos ele conseguira distraí-la um pouco, com aquelas brincadeiras. Pena
que agora ela estivesse novamente com aquele brilho no olhar, Matt constatou, ao vê-la
erguer os olhos para a mansão. Era visível a luta que travava intimamente. Quem
venceria? Os sentimentos dela ou o senso profissional? Em se tratando de alguém como
Laurel, ele apostaria na segunda opção, embora soubesse o quanto aquilo custaria a ela.
-- Matthew, Marion aceitará nos receber apenas por educação, mas... -- Hesitou,
enquanto subiam os degraus para a varanda. -- Duvido que Louis queira falar conosco.
-- Bem, tentaremos convencê-lo -- retrucou ele, batendo com a argola de ferro na
porta.
-- Eu não gostaria de encostá-lo na parede. Não agora. Se ao menos...
O modo como ele virou a cabeça bruscamente para ela fez com que Laurel engolisse
as palavras.
-- Quando, então? -- Matt perguntou com uma certa impaciência.
-- Está bem -- murmurou, abaixando os olhos, amargurada.
-- Laurel...
A porta se abriu, interrompendo o diálogo. Françoise olhou para os dois com ar de
espanto e... de alguma coisa mais que Laurel não conseguiu identificar.
-- Laurel! Não esperava vê-la de novo tão cedo!
-- Olá, Françoise. Espero que não estejamos sendo inoportunos. Louis está?
Gostaríamos de falar um pouco com ele.
Os olhos da mulher desviaram-se para Matt e logo se voltaram para ela.
-- Não creio que o Sr. Trulane os queira atender. Ele está com péssimo humor. Por
que não voltam outro dia?
Por favor, Françoise, é muito importante -- insistiu Laurel. -- Não demoraremos,
prometo. -- E, sem esperar convite, atravessou a porta.
-- Nesse caso... -- Havia um quê de acusação no tom de voz da caseira. -- Esperem
um instante. Vou avisar a Srta. Marion que vocês estão aqui.
-- Obrigada, Françoise. -- Antes que a mulher saísse, ela segurou-a pelo braço. --
Diga-me, Louis não está bem?
-- Ele fica assim de vez em quando. -- Suspirou. -- Pobre homem...
-- Ele... ele costumava ficar de mau humor, quando Anne estava viva?
Françoise apertou os lábios e olhou rapidamente à sua volta, um movimento quase
que imperceptível. Quando tornou a falar, o tom era mais baixo, como se estivesse
tomando precauções para que os donos da casa não a ouvissem:
-- Você o conheceu bem, Laurel, mas tantas coisas mudaram ... Nada mais parece o
mesmo de anos atrás.
-- Eu sei disso, Françoise, e gostaria de ajudá-lo.
A outra olhou novamente em direção ao hall, para certificar-se de que poderia
prosseguir.


71
-- Antes -- começou --, durante o tempo compreendido entre a fuga do Sr. Charles
e o novo casamento do Sr. Trulane, ele tinha... crises de mau humor. Costumava
perambular pela casa como um autômato, sem trocar uma palavra com ninguém, ou
então se trancava no escritório e lá ficava horas seguidas. Nós nos preocupávamos
tanto... -- Outra olhada para o hall. -- Mais tarde, ele retomou os negócios e as coisas
melhoraram um pouco. Os anos se passaram. Não foram uma maravilha, mas eu diria
que, pelo menos, transcorreram calmamente. Então ele trouxe a segunda esposa.
-- E as coisas mudaram outra vez -- deduziu Laurel.
-- Ficaram um pouco melhores -- consertou, e hesitou antes de prosseguir. Laurel
compreendeu que a caseira estava dividida entre a lealdade aos patrões e a esperança de
que Laurel de fato pudesse ajudar. -- Todos nós nos surpreendemos. Ela se parece
muito com a primeira Sra. Trulane, -- Baixou ainda mais o tom de voz. -- Era estranho
vê-la. Até mesmo a voz... Mas o Sr. Louis estava feliz, remoçou consideravelmente.
Algumas vezes, no entanto, ainda se trancava no escritório.
Ignorando o nó no estômago, Laurel encorajou-a a prosseguir.
-- Anne tinha medo dessas crises de humor?
-- Não sei, talvez ficasse intrigada.
-- Ela era feliz aqui?
Uma sombra obscureceu aqueles olhos castanhos.
-- Ela costumava dizer que esta casa era como um conto de fadas.
-- E o pântano?
-- Morria de medo só de vê-lo. Aliás, ela deveria ter ficado longe dele -- disse, em
tom de conspiração. -- O que quer que exista por lá deve ser deixado em paz.
-- E o que existe por lá?
-- Espíritos. -- Françoise respondeu com tamanha simplicidade que Laurel sentiu
um arrepio percorrer-lhe o corpo. Não era o momento para discutir velhas lendas e
superstições.
-- Anne costumava ver Nathan Brewster com freqüência? -- Ela era uma esposa
fiel. -- A afirmação foi tão enfática que Laurel compreendeu que a outra passara para o
lado de lá, tomando automaticamente a defesa das coisas que diziam respeito aos
Trulane. Durante algum tempo, Anne tomara parte de tudo aquilo. Sua memória,
portanto, agora era um dos bens dos Trulane e devia ser preservada.
-- Diga-me uma coisa: Louis sabia que Nathan estava apaixonado por Anne?
-- Não compete a mim responder a essa pergunta -- Françoise replicou, com ar de
desaprovação. "Nem a você, fazê-la. Laurel ouviu claramente as palavras que não
chegaram a ser pronunciadas. -- Vou dizer à Srta. Marion que vocês estão esperando.
-- Friamente, deu-lhe as costas e saiu da sala.
-- Droga! -- Laurel murmurou, entre os dentes. -- Perdemos Françoise também.
-- Sente-se -- disse Matt, que até então preferira não se intrometer. -- É estranho --
refletiu, em voz alta. -- Se a caseira sabia a respeito de Brewster, pois a reação dela
deixou isso bem claro, não é impossível que alguém mais esteja sabendo.
-- Ora, Matthew, não se consegue esconder as coisas dos empregados. Eles sempre
sabem de tudo.
-- Só que ninguém mencionou o nome dele à polícia. Laurel cruzou as mãos sobre o
colo.


72
-- Se tivessem feito isso, lançariam dúvidas sobre a reputação de Anne. Não ficaria
bem para Louis. Os empregados são muito leais a ele. Não fariam mexericos a
estranhos para não aumentar o sofrimento do patrão. Você teve um exemplo agora
mesmo. Françoise se fechou inteiramente, quando eu lhe fiz a pergunta.
-- Eu tenho alguns contatos na cidade -- Matt revelou. -- Poderia conseguir que
alguém viesse até aqui para fazer algumas perguntas em caráter oficial.
-- Ainda não, Matthew. Espere mais alguns dias, por favor. -- Apoiou a mão sobre a
dele. -- Que a polícia só incomode Louis em último caso, quando nada mais tivermos a
fazer. De qualquer modo, nós ainda não temos o suficiente que justifique a reabertura
do inquérito. Você sabe disso.
-- Talvez. Em todo caso, preste bem atenção. Vamos esperar apenas mais alguns
dias, certo?
-- Laurel, Sr. Bates... -- Marion entrou com as mãos já estendidas para ela. -- Por
favor, sente-se, Sr. Bates. Sinto muito se os fiz esperar, mas essa visita me pegou de
surpresa.
Era evidente, ainda que sutil, o tom de reprovação.
-- Nós é que pedimos desculpas, Marion. Espero que não estejamos atrapalhando.
-- Bem, eu estou um pouco atarefada, mas... -- Apertou as mãos de Laurel antes de
se sentar. -- Vocês gostariam de tomar um cafezinho?
-- Não, obrigada, Marion. Não vamos tomar muito do seu tempo. Gostaríamos de
falar com Louis novamente. É possível?
-- Oh, lamento muito. Ele não está em casa.
-- Será que ele vai demorar? -- Matt perguntou.
-- Para falar a verdade, não sei. -- Olhou para Laurel como quem pede
compreensão. -- Acho difícil que meu irmão concorde em falar com vocês.
Silêncio por alguns instantes. Laurel procurou deixar o constrangimento de lado e foi
direto ao assunto:
-- Marion, Matthew e eu estivemos com Nathan Brewster, ontem.
Os dois registraram as emoções que perpassaram rapidamente pelo semblante de
Marion: agitação, aborrecimento, incredulidade.
-- Ê mesmo? Por quê?
-- Ele estava apaixonado por Anne-- Laurel explicou. -- E não fez segredo disso.
O olhar de Marion, embora frio, trazia um brilho de contrariedade.
-- Laurel, Anne era uma criança adorável. Qualquer um poderia sentir-se atraído por
ela.
-- Eu não disse atraído -- corrigiu Laurel. -- Nathan estava apaixonado, segundo
suas próprias palavras. Ele queria que Anne abandonasse Louis.
Marion hesitou um momento, procurando o que dizer.
-- O que o Sr. Brewster sentia em relação à minha cunhada não é relevante. Anne
amava Louis.
-- Você sabia a respeito de Nathan Brewster, não é? -- Laurel fitava os olhos de
Marion, cinzentos como os do irmão.
-- É verdade -- reconheceu, com um suspiro. -- Eu sabia. Seria impossível não
notar o modo como ele olhava para ela. Anne estava confusa e se abriu comigo. Não
sabia o que fazer para que Nathan a deixasse em paz. Ela jamais abandonaria Louis,
tenham certeza disso.

73
-- E Louis? Sabia o que se passava com Nathan?
-- Não havia nada para ele saber -- Marion retrucou asperamente, e então esforçou-
se para manter a compostura. -- Anne apenas falou comigo porque o homem a estava
incomodando. Ela inclusive confidenciou à irmã que Nathan a deixava nervosa. Anne
amava Louis -- repetiu. -- Que diferença isso pode fazer agora? -- Olhou para os dois
com a fisionomia atormentada, os dedos crispando-se sobre a saia. -- A pobre criança
está morta e esses boatos maldosos acabarão por prejudicar ainda mais o estado de meu
irmão.
-- Se as coisas fossem simples assim... -- Matt murmurou, antes que Laurel tomasse
a iniciativa de dizer qualquer coisa. -- A senhorita soube que andaram ameaçando
Laurel?
-- Ameaçando? -- repetiu Marion, olhando espantada para ela. -- Quando? Como?
Por que alguém faria isso? -- As perguntas saíam uma atrás da outra, sem uma pausa
para as respostas.
-- Ontem à noite, quando chegamos ao apartamento de Laurel -- Matt explicou --,
encontramos uma caixa na porta. Dentro dela havia uma cobra venenosa. Felizmente
estava morta. É óbvio que a intenção da pessoa foi assustar Laurel.
-- Oh, minha querida... -- murmurou ela, refeita do choque. -- Deve ter sido
horrível. -- E concluiu, pensativa: -- Anne morreu por uma picada de cobra... Meu
Deus, esperem um pouco. Vocês não acreditam que Louis tenha feito isso! --
exclamou. -- Laurel, você não pode estar pensando uma coisa dessas. Não você!
-- Eu não posso... não quero acreditar que tenha sido ele.
-- Suspirou, desanimada. -- Mas quem pode ter sido? Eu e Matthew viemos até aqui
na esperança de que você ou Louis nos fornecessem alguma indicação.
-- Bem, eu não tenho a menor idéia, mas, de qualquer modo, falarei com meu irmão.
Tenho certeza de que ele ficará tão chocado quanto eu.
-- Srta. Marion?
Distraída com a conversa, Marion não notara a chegada de Françoise.
-- O que foi, Françoise?
-- Desculpe a intromissão, mas a Sra. Hollister está ao telefone, insistindo em falar
com a senhora. Ê sobre o chá beneficente.
-- Está bem, diga a ela que eu já vou. -- Voltou-se para os dois. -- Desculpem-me,
mas preciso atender a esse telefonema. Laurel querida, sinto muito sobre o que
aconteceu. Se vocês quiserem esperar por mim, estarei de volta dentro de alguns
minutos. Mas, sinceramente, não tenho como ajudá-los.
-- Tudo bem, Marion, pode ir e não se preocupe conosco. Já estamos de saída.
-- Gostei de você -- Matt comentou, quando se viram a sós. -- Levou o
interrogatório praticamente sozinha.
Ela se levantou e pegou a bolsa.
-- Mas não conseguimos ir muito adiante, não é?
-- Como não? -- Segurou-lhe o braço delicadamente enquanto se dirigiam para a
porta. -- Eu não gostei do modo como ela desviou a conversa, quando você tocou no
nome de Nathan Brewster.
-- É verdade -- concordou ela. -- Marion parece saber mais do que deseja
demonstrar.
Uma vez lá fora, viram Louis ao longe. Matt olhou para Laurel, hesitante.

74
-- Eu vou falar com ele, Matthew. É melhor você me esperar no carro.
Ele demorou alguns segundos para ceder. Não saberia dizer por que estava magoado.
Ciúme, talvez?
-- Está bem -- disse, afinal, soltando-lhe o braço. Laurel foi ao encontro de Louis,
que, ao deparar-se com ela, não disfarçou o ar de desagrado.
-- O que você está fazendo aqui?
-- Preciso conversar com você. -- Falava pausadamente, tentando manter-se calma.
Sem saber por que, sentia-se intimidada.
-- Não temos mais nada a nos dizer.
-- Louis... -- Tocou-lhe o braço, quando ele fez menção de seguir adiante. Ele parou
e olhou-a com um ar tão gelado que Laurel retirou a mão imediatamente.
-- Fique longe de mim, Laurel. Deixe-me em paz, por favor.
-- Eu detesto perturbar seu sossego, Louis, mas tenho um trabalho a fazer. -- Fez
uma pausa e fitou-o demoradamente, enquanto buscava coragem para prosseguir: -- Eu
não acredito que Anne tenha ido até o pântano por iniciativa própria.
-- E eu não estou nem um pouco interessado no que você acredita ou deixa de
acreditar. Anne está morta -- disse, fechando os olhos como se doesse tocar mais uma
vez na ferida. -- O que você pode fazer para trazê-la de volta? Nada. Ponto final.
-- Você acredita que seja realmente ponto final? -- insistiu Laurel firmando a voz e
elevando-a ligeiramente. -- Mesmo existindo a possibilidade de alguém tê-la obrigado
a ir até lá, você não se interessa?
-- Você está dizendo bobagens. Isso é um absurdo. Ninguém forçou Anne a se
perder no pântano. Não haveria razão para isso.
-- Não? Pois existe alguém interessado em que eu e Matthew acabemos com essa
investigação.
-- Pois bem: eu não estou gostando dessa intromissão de vocês, mas isto não
significa que eu tenha matado minha mulher! Pelo amor de Deus, Laurel! Pare com
isso! Está tudo acabado! Ninguém poderá trazê-la de volta!
-- Será que a minha intromissão nesse assunto o incomoda tanto a ponto de você
deixar uma cobra venenosa na minha Porta?
-- Como? -- Ele sacudiu ligeiramente a cabeça, procurando entender o que ela
estava dizendo. -- Uma cobra venenosa?
-- Exatamente. Dentro de uma linda caixa de presente.
-- Meu Deus, que estranha coincidência... -- refletiu em voz alta, e então olhou para
ela, penalizado. -- Sinto muito.
-- Tocou-lhe o rosto, num gesto que, pela primeira vez, demonstrava amizade. -- Eu
me lembro de como você se apavorava quando via uma. Aliás, nem gostava do pântano
por causa disso, não é?
-- Eu nunca gostei daquele lugar, Louis.
-- Anne o detestava. Eu costumava caçoar dela, como fazia com você. -- Fechou os
olhos, sentindo a dor da recordação.
-- Ela era tão doce, tão frágil...
-- Você nunca permitiu que eu a conhecesse -- Laurel aproveitou para dizer. -- Por
que a manteve praticamente escondida de todos?
-- Anne se parecia muito com Elise, mas a semelhança era apenas física. Eu mesmo
me espantei, quando a conheci. -- A mão continuava no rosto de Laurel, mas ele

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parecia ter-se esquecido dela. -- Não podia tolerar a idéia de que os outros começassem
a fazer comparações.
-- Você se casou com Anne porque ela lembrava Elise?
A fúria se estampou no rosto dele de modo tão súbito que Laurel deu um passo para
trás, atemorizada.
-- Eu me casei com ela porque a amava! -- falou, aos gritos.
-- Eu precisava dela. Anne era jovem, delicada e dependia de mim!
-- Louis, eu imagino como você deve estar se sentindo.
-- É mesmo? -- continuou ele, acentuando o sarcasmo. -- Você entende, por acaso,
de perda e traição? Não, minha cara. Ainda precisa viver muito.
-- Se houvesse... -- Procurou rapidamente as palavras, mas sabia que nada
amenizaria o que ela tinha a dizer. -- Se houvesse um outro homem na vida de Anne, o
que você faria?
Os olhos dele pareciam de aço, quando voltou a encará-la.
-- Eu o mataria! Um Judas já é o bastante na vida de um homem -- Deu-lhe as
costas e caminhou com passos firmes na direção da casa. Laurel ficou contemplando-o
por alguns instantes, sem saber definir os seus sentimentos. Pena, frustração, mágoa?
As lembranças que tinha dele pareciam cada vez mais remotas. Em silêncio, foi até
onde estava o carro de Matt.
-- E então? -- perguntou ele, dando a partida imediatamente.
-- Françoise estava certa acerca do humor dele. Deus, Louis está péssimo! Nervoso,
irritadiço... É um homem totalmente diferente. Mal o reconheço. -- Fez uma pausa e
Matt esperou em silêncio, sem perguntar-lhe nada. -- Ele ainda acha que a morte de
Anne foi um acidente -- Laurel prosseguiu. -- Matthew, sou capaz de jurar que Louis
a amava de fato. Talvez ele tivesse se envolvido, a princípio, por causa da semelhança
com Elise, mas depois acabou se apaixonando. Aposto a minha vida nisso.
-- Você então descarta a possibilidade de ele ter-se casado com Anne pensando em
Elise?
-- Bem, não sou psiquiatra. Estou lhe dizendo essas coisas baseada nas minhas
observações. Por isso eu insisto: Louis amava a esposa e ainda está sofrendo muito com
a morte dela. -- Parou um pouco para pensar e começou a fazer deduções em voz alta:
-- Talvez uma parte desse sofrimento seja por complexo de culpa.
-- Culpa de quê? -- Matt pôs um cigarro na boca e ligou o acendedor do carro.
-- Ele disse que costumava caçoar dela pelo medo que demonstrava em relação ao
pântano. Louis deve estar se mortificando por não tê-la levado a sério.
-- Você lhe contou a respeito da caixa?
-- Contei. A princípio ele hão relacionou uma coisa com a outra, mas, quando
compreendeu o que eu queria dizer, ficou surpreso. E então se lembrou de que sempre
tive medo de cobras. Por alguns minutos, voltou a ser o homem que eu admirava, o
Louis de antes, bom, gentil e afetuoso. -- A voz tremeu ligeiramente, e, emocionada,
Laurel voltou os olhos para a janela, enquanto Matt praguejava em silêncio.
-- O que mais você descobriu, além de que morre de pena dele?
Ela ignorou a provocação. Não tinha forças para discutir.
-- Ele disse que mataria o homem que, porventura, se envolvesse com Anne --
revelou com voz fria.


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-- Isso prova que o seu querido é um homem capaz de violências, e não o herói
romântico das suas fantasias. -- Dirigiu o carro para o estacionamento do Herald. -- A
primeira mulher escolheu o irmão mais novo dele. Você nunca se perguntou por quê?
Saíram do carro e, quando Matt fez uma tentativa para segurar-lhe o braço, Laurel o
repeliu.
-- Você não entende nada de amor ou lealdade, Matthew.
-- E você? -- reagiu ele. -- Se tivesse amadurecido um pouco, perceberia que não
ama Louis Trulane, apenas está obcecada por ele.
Laurel empalideceu, os olhos ficaram sombrios.
-- Eu o amo de fato, Matthew Bates -- falou, em voz baixa e vibrante. -- Pena que
você não tenha capacidade para entender isso. Está sempre querendo o preto no branco.
Ótimo, então guarde para você as suas idéias e me deixe em paz.
Saiu andando na frente dele. Matt, porém, alcançou-a logo.
-- Não me dispense dessa maneira -- ordenou com raiva, sentindo-se terrivelmente
frustrado por ouvi-la confessar seu amor por Trulane. -- Já estou farto de suas histórias
açucaradas. Não agüento mais ouvir você falando desse príncipe encantado cada vez
que eu a toco.
Laurel olhou para ele com a fisionomia neutra.
-- Você é mesmo um idiota, Matthew Bates. Não entendeu nada. -- Continuou a
andar. -- Agora, me deixe em paz. -- Antes que ele retrucasse, calou-o com um gesto:
-- Pelo menos por alguns instantes.
Desta vez ele não a seguiu. Esperou que ela desaparecesse dentro do prédio e puxou
um cigarro do maço que estava no bolso da camisa.
Que diabo estava havendo com ele? Por que tanta raiva? Talvez estivesse usando
Louis Trulane como um obstáculo para não precisar se abrir e confessar a Laurel o que
de fato sentia por ela. Sempre planejara tudo tão cuidadosamente... Mas as coisas
começaram a escapar do seu controle depois que tivera Laurel nos braços. Droga,
estava apaixonado por ela e não havia contado com isso. O pior de tudo era que, se
ousasse falar a ela sobre o seu amor, com certeza Laurel o julgaria louco. É, talvez
estivesse louco mesmo. Apaixonado por Laurel Armand...
Jogou o cigarro no chão e entrou no prédio, ainda desnorteado com aquela revelação
que brotara de dentro dele.


CAPÍTULO X

Laurel considerou-se uma felizarda, quando, ao entrar na redação, o editor mandou-a
novamente à rua para uma reportagem. Mais do que depressa, ela saiu na companhia de
um fotógrafo, antes de encontrar-se com Matt.
Não queria vê-lo, não até que a raiva e a mágoa houvessem passado. Matthew não
estava sendo razoável, disse para si mesma, enquanto James, o fotógrafo, fazia o carro
atravessar o sinal amarelo para se juntar ao fluxo de tráfego na outra quadra. Como
alguém podia ser tão frio?, continuou a pensar, mal prestando atenção ao trânsito. Será
que ele não tinha a menor simpatia pelos problemas dos outros ou aquilo era apenas

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aparência? Não via o sofrimento de Louis? Não reconhecia a dor naquele semblante
torturado? Deus, como Laurel podia amar alguém tão... Nesse momento, a ordem de
seus pensamentos se interrompeu, e ela reconheceu que, apesar de tudo, não im-
portavam as razões, pois amava Matt. E isso era tão simples que não exigia explicações.
Justamente por amá-lo é que Laurel não podia aceitar nele tamanha frieza para com
os sentimentos alheios. Ele a acusara de estar obcecada por Louis. Grande psicólogo!
Qualquer pessoa racional entenderia que Louis Trulane havia sido o seu herói de
infância. Ela o amara livremente, com o coração de uma criança. Com o passar do
tempo, o amor se transformara, não porque Louis houvesse mudado, mas porque ela
própria estava diferente. Era uma mulher adulta, não mais a menina de antes.
Ainda amava Louis, claro que sim, porém do modo como uma mulher ama a
recordação de um primeiro beijo. Era uma lembrança doce e suave, sem qualquer
vestígio de paixão. Incrível que Matt não conseguisse entender isso. Na certa julgara
que ela pensava em Louis sempre que estavam juntos. Droga! Como ele podia
acreditar...
Mais uma vez uma nova idéia interrompeu o fluxo de seus pensamentos. Uma idéia
tentadora. Matt se comportava desse modo simplesmente porque sentia ciúme.
-- Puxa, como não pensei nisso antes? -- disse, satisfeita, em voz alta.
-- O quê? James perguntou, sem entender.
-- Hã? Ah, não é nada, James. Estava apenas pensando alto. O outro não fez
perguntas e continuou atento ao volante. Ciúme... Bem, isso tornava as coisas mais
fáceis de serem entendidas. E bem mais interessantes também. Mas, nesse caso, por que
ele jamais deixava transparecer que gostava dela? Ou, por outra, isso seria sinal de que
estava apaixonado? Talvez sim, talvez não. Ela precisaria pensar no assunto.
O carro estava preso no trânsito, em meio a uma sinfonia estridente de buzinas.
-- Vou saltar aqui, James. Acho que a pé chegarei mais rápido. Nos encontramos
daqui a pouco, certo? -- E, saindo do automóvel, foi para o local da reportagem.
Matt estava na rua também. Como Laurel, ele enfrentava o trânsito, as buzinas e o
calor. Entretanto, na Vieux Carré, a atmosfera era mais agradável, já que se podia sentir
a combinação do aroma das flores com o do rio. Mas, no momento, ele estava ocupado
demais para prestar atenção às belezas naturais de New Orleans.
No distrito policial, depois de algumas perguntas, Matt obtivera a informação de que
nunca se especulara acerca de Elise ou Charles Trulane. Nem sequer havia um relatório
dando-os como desaparecidos. Aparentemente, o bilhete deixado por Elise, as roupas
que estavam faltando nos armários e os quadros tirados das paredes foram o suficiente
para satisfazer a todos, inclusive a polícia. Matt, porém, não estava satisfeito.
Ao tentar ir mais longe, foi barrado por um muro de indiferença. Que importância
poderia ter se os dois continuavam na cidade ou se alguém os havia visto? Eles haviam
desaparecido, e dez anos era muito tempo. Havia outros casos em New Orleans para
manter a polícia ocupada. Quem se importaria com um adultério cometido há uma
década? Claro, os rapazes do laboratório poderiam analisar o pedaço de metal quando
tivessem tempo. E ele? O que pretendia fazer? Aceitava um conselho? Melhor deixar
isso para lá.
Matt saiu do distrito com menos pistas do que quando entrara. Ao dobrar uma
esquina, deparou com o bar que Curt costumava freqüentar. Ambiente requintado, boa
música... Era bem capaz que ele estivesse por lá. Resolveu entrar.

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Avistou o amigo no primeiro instante, sentado a uma mesa de canto. Um copo de
cerveja pela metade e a atenção voltada para alguns papéis espalhados na frente dele.
Matt sorriu. Curt não mudava nunca. Parecia o mesmo dos tempos de faculdade. Pela
primeira vez naquele dia sorriu, sentindo-se bem.
-- Diga aí, bacharel. Tudo bem?
-- O quê? -- Distraído, Curt ergueu os olhos. -- Oi, Matt.
-- Juntou os papéis, enquanto o outro se sentava. -- O que anda fazendo?
-- O mesmo de sempre. -- Pediu uma cerveja à garçonete
-- Agora, no entanto, estou precisando dos seus conselhos jurídicos.
-- Ah... -- Sorrindo, Curt cocou o queixo, o único traço de semelhança com a irmã.
-- Eu disse conselhos, não representação -- Matt avisou.
-- Muito bem. Vamos lá.
Matt esperou que a garçonete colocasse o copo de cerveja diante dele e então
começou:
-- Se eu decidisse aplicar o meu dinheiro, você diria que as ações da Empresa de
Construção Naval Trulane seriam um bom investimento?
Curt olhou intrigado para o amigo.
-- Eu diria que esse é um assunto para você discutir com o seu corretor, e não com o
seu advogado.
-- Uma questão hipotética então: se eu estivesse interessado em investir numa
companhia sólida de New Orleans, poderia escolher a companhia dos Trulane?
-- Bem, eu diria que é uma das companhias mais sólidas do país.
-- Muito bem -- Matt murmurou. -- Por que você acha que ninguém tocou na
herança de Elise Trulane?
Curt estava cada vez mais intrigado. Tomou um gole de cerveja.
-- Como você chegou a isso?
-- Sinto muito, mas não posso revelar a fonte, Curt. Cinqüenta mil dólares... -- Fitou
o amigo com ar pensativo, correndo os dedos pelo copo de cerveja. -- Uma bela soma
para dar-se uma injeção nos negócios, principalmente em se tratando de dez anos atrás.
Acho que até mesmo um homem como Trulane encontraria um modo de fazer uso
desse dinheiro.
-- Ele não tem direito a nenhum centavo dessa quantia. Ela está no nome de Elise.
-- Sorriu diante da expressão interrogativa de Matt. -- A minha firma cuidou do caso
-- explicou.
-- E a mulher simplesmente desapareceu. -- Ergueu uma das sobrancelhas. --
Estranho. Vocês não tentaram encontrá-la?
-- Sinto muito, mas agora sou eu quem não pode falar. É contra a ética.
-- Certo, vamos falar hipoteticamente outra vez: quando alguém herda uma grande
quantia e não a reclama, o que faz o testamenteiro para encontrá-la?
-- Anúncios nos jornais, detetives particulares, enfim, os procedimentos normais.
-- Vamos supor que a pessoa beneficiada tenha um marido que não deseje avistar-se
com ele.
-- Nesse caso, a investigação seria confidencial.
-- Hum, hum. -- Matt brincava com o copo. -- Elise Trulane havia feito um
testamento?
-- Matt...

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-- Por favor, Curt. Isso é muito importante.
Se fosse qualquer outra pessoa que estivesse lhe pedindo tal coisa, Curt
simplesmente sairia com alguma frase em jargão legal. Mas conhecia Matt muito bem e
há muito tempo.
-- Não -- respondeu, afinal. -- Tanto Elise quanto Louis tinham testamentos em
fase de redação, mas ela desapareceu antes que fossem assinados.
-- E quem eram os beneficiados?
-- Eram testamentos normais, para marido e esposa sem filhos. Marion e Charles
possuíam seu próprio dinheiro.
-- Muito dinheiro?
-- Marion é uma mulher muito rica. Os investimentos de Charles e as suas
economias representam um patrimônio respeitável. Mas ele também não retirou um
centavo, esse tempo todo.
-- Interessante -- foi o único comentário de Matt.
-- Agora você quer me dizer a troco de que está fazendo tantas perguntas?
-- Estou apenas tentando cercar todos os lados.
-- É alguma coisa relacionada com o que você e Laurel estão investigando? Susan
me contou sobre Anne e as cartas.
-- Ah, você a conheceu?
Curt corou ligeiramente, fazendo Matt lembrar-se dos tempos de faculdade, quando o
outro se interessava por uma garota, sem muita coragem para se declarar.
-- Ela mora na casa da minha avó. Como eu poderia não conhecê-la? -- retrucou. --
Vocês vão conseguir ajudá-la?
-- Estamos fazendo o possível. E, já que vocês se tornaram amigos, é bom que a
mantenha calma e fora disso tudo. Pelo menos até que a coisa estoure.
Eu já havia pensado nisso -- Curt confessou. -- Você está cuidando de Laurel?
Matt sorriu com ironia, lembrando-se de como haviam passado aquelas últimas
horas.
-- Ninguém consegue tomar conta de Laurel -- murmurou.
-- Eu sei. -- Novamente distraído, Curt guardou os papéis na pasta. -- Eu tenho um
encontro com um cliente, mas, assim que tivermos um tempinho livre, gostaria de
voltar a conversar sobre isso com você.
-- Está bem. E obrigado.
Sozinho, Matt concentrou-se no copo de cerveja à sua frente. Muitas peças ainda
estavam soltas, refletiu, descontente. Outras não se encaixavam. Duas pessoas
poderiam dar as costas para os amigos e parentes, especialmente no primeiro ímpeto de
um caso de amor, mas deixar de lado uma quantia como aquela? E, principalmente,
quando dez anos já se haviam passado?
Ou o amor os enlouquecera de fato ou ambos estavam mortos há muito tempo. A
morte, nesse caso, fazia mais sentido para Matt.
Recostando-se na cadeira, acendeu um cigarro. Se Charles e Elise tivessem sofrido
um acidente na fuga, com certeza teriam sido identificados. Balançou a cabeça,
insatisfeito. Nada daquilo fazia sentido. De certo modo, intuía que tudo estava relacio-
nado com o caso de Anne Trulane. E, se uma de suas teorias estivesse certa, a pessoa
que estava por trás daqueles acontecimentos havia matado não apenas uma, mas três
vezes.

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Ficou contemplando a fumaça que se desprendia do cigarro e resmungou baixinho. Já
era muito tarde para continuar investigando o desaparecimento de Charles e Elise. O
dia seguinte era domingo, o que significava que ele teria que esperar até segunda-feira.
Segunda-feira, pensou, decidido. A próxima coisa a investigar seria o paradeiro de
Louis no dia em que Charles e Elise saíram para sempre de Heritage Oak. Ele e Laurel
escavariam a fundo os menores detalhes, ainda que ela relutasse em prosseguir para não
magoar aquele idiota.
Amassou o cigarro no cinzeiro e saiu, deixando uma nota sobre a mesa. Precisava
falar com Laurel imediatamente.

Laurel estava totalmente envolvida na matéria quando Matt apareceu na redação.
-- Você já terminou? Ela ergueu os olhos da máquina de escrever.
-- Quase. Por quê?
-- Preciso conversar com você. Quer jantar comigo?
Laurel ficou surpresa com aquele tom um tanto formal. Aquele não era o estilo dele e
ela ficou em dúvida sobre como responder à pergunta. O que estaria tramando agora?
-- Está bem, Matthew -- aceitou, afinal. -- Eu... -- Foi interrompida pelo telefone
que tocava sobre a sua mesa. Ainda pensando no que dizer a ele, atendeu: -- Redação,
Laurel Armand.
Matt viu a expressão dela mudar subitamente, a cor desaparecendo do seu rosto,
antes que os olhos se erguessem para ele com urgência.
-- Sinto muito -- disse Laurel, indicando o telefone na mesa dele. Num segundo,
Matt alcançou a extensão. Laurel procurava ganhar tempo: -- Fale mais alto, por favor.
Não estou ouvindo bem.
-- Você já foi advertida duas vezes -- uma voz sussurrante e assexuada disse do
outro lado da linha, fazendo-a tremer instintivamente, dos pés à cabeça. -- Pare de se
intrometer num assunto que não lhe diz respeito.
-- Quem está falando? Alô?
-- Estou avisando pela última vez: esqueça-se de Anne Trulane.
-- Foi você que deixou aquela caixa na minha porta? -- Laurel notou que Matt
pegava um outro telefone e discava apressadamente.
-- Aquilo foi apenas um lembrete. Da próxima vez, você receberá um outro
animalzinho de estimação. Vivo -- acrescentou.
Ela não podia controlar a sensação de pânico que lhe percorria a espinha, mas podia
dar um jeito para que a voz não saísse trêmula.
-- Foi você também que esteve no pântano, a noite passada, não é?
-- Você não tinha nada que fazer lá. Se entrar novamente naquele pântano, não sairá
viva!
Meu Deus, o que era aquilo? Um pesadelo? Até então só presenciara essas coisas nos
livros e filmes. Mal podia acreditar que estivesse sendo protagonista de uma cena de
mistério.
-- Você tem medo de que eu descubra o quê? -- conseguiu perguntar.
-- Anne não deveria ter entrado naquele pântano. Lembre-se disto.
Um clique seco do outro lado da linha deu a entender que a pessoa havia desligado.
Segundos mais tarde, Matt praguejou e desligou o outro telefone.


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-- Droga! Foi rápido demais para que conseguissem localizar a chamada. Você
reconheceu a voz?
-- Não tenho a menor idéia de quem seja.
-- Pelo visto, nós estamos deixando alguém muito nervoso -- murmurou, pensativo.
Alguém que, segundo a teoria dele, não se incomodaria de matar pela quarta vez.
-- Você está pensando em chamar a polícia -- deduziu ela.
-- Acertou em cheio.
Laurel passou a mão pelos cabelos e se levantou.
-- Matthew, escute, eu sei que você tem razão, mas vamos esperar mais um pouco.
-- Calou-o com um gesto. -- Essa pessoa quer nos amedrontar e nos fazer desistir.
Vamos fazer o seguinte então: neste fim de semana poderemos confrontar nossas
anotações, checar nossas idéias, fazer as possíveis relações. Assim vai ser melhor,
porque, quando formos à polícia, na segunda-feira -- acrescentou com ênfase --,
teremos tudo montado.
Ela estava certa, mas ele não gostou da idéia.
-- Está bem. Vamos fazer isso. Mas o nosso prazo será até segunda-feira, lembre-se.
Em vez do jantar à luz de velas, que Matt planejara, eles estavam sentados à mesa do
apartamento de Laurel, matando a fome com hambúrgueres e batatas fritas. Folhas de
papel espalhavam-se diante dos dois, arrancadas de blocos de anotações.
-- Eu diria que temos evidências suficientes para concluir que a morte de Anne não
foi um acidente. -- Laurel anotou o item no bloco, numa primeira tentativa de
organizar a discussão.
-- Brilhante -- Matt murmurou. -- Até parece Curt falando diante de um júri.
-- Não seja bobo, Bates, e me passe a soda. -- Ele atendeu e ela tomou um gole
diretamente da lata. Com a testa franzida, prosseguiu, concentrada no bloco: -- Temos
ainda o testemunho de Susan de que Anne tinha horror a lugares escuros, especialmente
àquele pântano, o que foi confirmado por Louis, Marion e Françoise. O que mais? Ah,
as cartas roubadas, não podemos nos esquecer desse detalhe, que é importantíssimo.
Depois temos aquela caixa que me enviaram, o ataque que sofri no pântano e o
telefonema anônimo.
Matt apagou o cigarro e deixou-a prosseguir.
-- A primeira entrevista com Louis e Marion... nada de muito significativo, a não ser
que se leve em conta o lado emocional da coisa, com o qual, decisivamente, você não
aprecia lidar.
-- Pois eu o considero muito útil -- Matt argumentou, sem alterar o tom de voz --,
desde que se olhe para ele com uma certa objetividade. O que você, decisivamente, não
tem.
Laurel chegou a abrir a boca para dar uma resposta atravessada, mas refreou-se a
tempo, lembrando-se de que ela o provocara primeiro. Baixou os olhos para as
anotações e continuou apressadamente:
-- Agora, com relação a Brewster, sabemos que ele estava apaixonado por Anne e
que queria que ela deixasse Louis. Não precisamos fazer conjeturas a respeito, já que
ele mesmo confessou isso. -- Sublinhou o nome de Brewster e prosseguiu: -- Marion
sabia de tudo, mas não podemos ter a mesma certeza com relação a Louis. Pela
conversa que tive com ele, não percebi nada. Podemos então deduzir duas coisas: ou ele


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não sabia dos sentimentos de Nathan ou não deu importância a eles, visto que o outro
ainda trabalha na firma.
Laurel esfregou a nuca e esticou o corpo, num primeiro sinal de cansaço.
-- O ponto principal, e onde estamos de pleno acordo, é que Anne não sairia para
aquele pântano no meio da noite se não estivesse sendo pressionada a fazer isso. E
mais: ela não teria continuado a andar, aprofundando-se cada vez mais, se tivesse outra
escolha. Na minha opinião, Brewster é o maior suspeito.
Matt também fez algumas anotações e em seguida comunicou:
-- Eu falei com Curt esta tarde.
-- É? -- Laurel olhou para ele, tentando fazer uma ligação entre aquela declaração e
o que ela acabara de dizer.
-- Eu queria que ele confirmasse uma hipótese que me veio à cabeça, depois que saí
do distrito policial.
-- O que Curt tem a ver com isso?
-- Ele é advogado. -- Com um sorriso, Matt acendeu um cigarro. -- E, para nossa
sorte, descobri que a firma onde ele trabalha cuidou do caso da herança que Elise
deveria receber.
Laurel descansou a lata de refrigerante sobre a mesa.
-- Ainda não estou entendendo. O que uma coisa tem a ver com a outra?
-- Minha cabeça está a mil. Ouça só isto. -- Vasculhou nas notas, procurando alguns
dados. -- Cinqüenta mil dólares, mais os juros de dez anos, nunca foram reclamados. O
dinheiro de Charles Trulane também não foi tocado, nesse tempo todo. O banco deve
ter feito uma investigação discreta sobre o paradeiro deles, sem sucesso. -- Encontrou
o olhar de Laurel. -- Por outro lado, não existe nos arquivos da polícia nenhum
relatório dando os dois como desaparecidos, o que significa que ninguém se incomodou
de comunicar o fato. Agora eu pergunto: como e que duas pessoas conseguem sumir,
sem deixar o menor vestígio?
-- Onde é que você está querendo chegar?
-- Você sabe muito bem.
Sentindo necessidade de se movimentar um pouco, Laurel ergueu-se da cadeira.
-- Você acredita que eles estejam mortos, não é? -- concluiu. -- Talvez estejam
mesmo. Podem ter sofrido um acidente e... -- Parou, e Matt percebeu que agora os
pensamentos dela seguiam o mesmo rumo que os seus. -- Você acha que eles foram
mortos antes de saírem de Heritage Oak?
-- É mais do que uma simples possibilidade, não é?
-- Não sei. -- Pressionando os dedos na testa, Laurel tentou raciocinar com lógica.
-- Eles poderiam ter tomado um avião para a Europa ou para o Oriente, sabe Deus para
onde, usando passaportes falsos.
-- Poderiam -- concordou ele. -- Mas seria um bocado difícil, não concorda?
Laurel respirou fundo.
-- Vamos supor que, de algum modo, tudo isso esteja relacionado com a morte de
Anne. Nesse caso, Brewster estaria fora de suspeitas. Mas então quem... -- Continuou a
buscar no cérebro uma explicação que a convencesse. -- Louis estava fora da cidade.
-- Quem disse? Será que estava mesmo? -- Matt interrompeu-a, sabendo que
precisava usar de todo o cuidado dali para a frente. -- Ele tinha um jatinho. Poderia


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inclusive estar pilotando o aparelho. Você sabe as possibilidades que se abrem a partir
daí.
Laurel não respondeu, a mente trabalhando furiosamente. Uma chegada repentina, os
amantes surpreendidos, um momento de loucura. Num avião particular, os corpos
poderiam ser levados para qualquer lugar, sem que isso levantasse suspeitas. Pálida,
voltou-se para Matt. Ele estava esperando que ela abrisse a boca para dizer que aquilo
era um absurdo. Mas Laurel não poderia. Havia muita coerência na hipótese levantada
por ele.
-- Não será fácil -- anunciou com um fio de voz, procurando, todavia, manter uma
frieza profissional --, mas poderemos checar todos os vôos feitos naquela noite, há dez
anos.
-- Pois eu começarei a investigar na segunda-feira.
Ela fez um aceno afirmativo.
-- E eu vou ver se consigo arrancar alguma coisa de Curt. Pretendo ir até a firma
onde ele trabalha para conseguir mais detalhes sobre essa história do dinheiro de Elise.
-- Não.
-- Não? -- repetiu ela, sem entender. -- Mas nós precisamos cercar todos os lados.
-- Daqui para a frente, você não vai perguntar mais nada a ninguém.
-- De que diabo você está falando? Não se consegue uma matéria sem perguntas ou
entrevistas.
-- Daqui para a frente, eu vou assumir as investigações. Laurel sacudiu a cabeça.
-- Você enlouqueceu, só pode ser isso.
-- Encare como quiser, mas não vou deixar você se expor novamente.
-- Quer ficar com as glórias para você, Matthew Bates? Ele foi engolido pela ira.
-- Isso não é um jogo! -- vociferou. -- Não estamos fazendo apostas para ver quem
consegue a primeira página!
-- Eu nunca considerei a minha profissão um jogo -- retrucou ela, sem se abalar
com os gritos.
-- Ouça bem, Laurel Armand, não quero você no meu caminho.
Ela fuzilou-o com o olhar.
-- Ótimo, eu saio. -- E acrescentou: -- Desde que você tampouco fique no meu.
-- Mas não percebe que está correndo perigo?! -- ele gritou. -- Use a cabeça pelo
menos uma vez na vida. Você foi ameaçada não uma, mas três vezes! Eles não estão
brincando, Laurel!
Ela arqueou uma das sobrancelhas.
-- Então eu preciso tomar um cuidado redobrado, certo?
-- Escute aqui, sua teimosa, ninguém me ameaçou, eu não estou arriscando a minha
vida. É você que eles querem! -- Havia pânico na voz dele, mas Laurel estava com
outras coisas na cabeça para poder notar o quanto Matt se importava com ela. |
-- Você quer saber por quê, Matthew Bates? -- continuou ela com voz firme. --
Porque eu sou uma mulher, e as mulheres se deixam intimidar com mais facilidade do
que os homens. Pelo menos é o que todos pensam.
-- Laurel, escute...
-- Mas eles se esqueceram de uma coisa -- prosseguiu, impedindo-o de falar. --
Você se esqueceu de uma coisa, Matthew Bates. Eu sou uma repórter, está no meu


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sangue, e, para chegar à verdade, sou capaz de fazer qualquer coisa. Não fosse assim,
seria melhor procurar outra profissão.
-- Só que eu não estou apaixonado pela maioria das repórteres -- reagiu ele, cada
vez mais nervoso. -- Ê você que eu amo, droga! E não posso suportar a idéia de vê-la
se arriscando desse jeito. -- Parou, ofegante, e tirou um cigarro do maço.
Laurel ficou imóvel, vendo-o procurar a caixa de fósforos no meio dos papéis.
Sentia-se rodopiando, como se tivesse sido apanhada por um redemoinho. Apenas
quando Matt parou de resmungar foi que ela se deu conta da onda de calor que a envol-
via. Nos seus ouvidos, o eco daquela frase tão ansiosamente aguardada: "É você que eu
amo". Ele dissera isso mesmo? Ela não estaria sonhando?
Matt parecia tão surpreso quanto Laurel. Diabos, o que ele fizera? Acabara por
mostrar as cartas antes mesmo da aposta. E agora? Como se comportar daí para a
frente?
-- Eu... eu acabei de dizer o que penso que disse? -- tentou brincar para aliviar o
embaraço.
Laurel não sorriu, apenas cruzou os braços.
-- Hum, hum. Eu tenho testemunhas.
Ele ergueu as sobrancelhas e olhou em volta.
-- Mas não há ninguém aqui.
-- Isso é o de menos. Eu posso subornar alguém.
Matt enfiou as mãos nos bolsos, quando, na verdade, estava louco para tocá-la. Ela o
fitou de modo enigmático e deu um passo para a frente.
-- Não sei como pude pensar que você fosse um homem observador, Matthew Bates.
-- Como assim? -- Olhou para ela, intrigado.
-- Será que não está entendendo mesmo? -- Sorriu de modo significativo. -- Será
que é tão difícil para você ler nos meus olhos?
O coração dele começou a bater num ritmo desenfreado. Não podia se lembrar de
uma sensação tão intensa de felicidade.
-- Prefiro que use as palavras -- murmurou, então. -- Não me faça implorar, Laurel.
-- Matthew... -- Chegou bem perto dele, os olhos brilhando, o rosto sorridente. --
Você é o único homem da minha vida. Eu te amo, como jamais amei alguém antes. E
isso não vai mudar nunca, dentro de mim.
-- Laurel... -- Mas não pôde dizer mais nada, porque, no segundo seguinte, suas
bocas estavam coladas, uma entrega ardente e apaixonada. Passou os braços em volta
dela e puxou-a para mais perto, enquanto um turbilhão de pensamentos lhe
alvoroçavam a mente. Há quanto tempo vinha esperando por isso... Tanto tempo...
Quando fora que ele se sentira assim?
-- Fale de novo -- ordenou, junto aos lábios dela. -- Diga mais uma vez que me
ama.
-- Eu te amo, Matthew. Tanto, que você nem é capaz de imaginar. -- Os beijos se
confundiram com as palavras. As mãos dele subiam e desciam pelas costas de Laurel.
-- Eu pensei que, se lhe dissesse isso antes, você daria risada, julgando-me louca.
-- Segurou o rosto dele com as duas mãos, embriagada de felicidade. -- Quando foi
que você se apaixonou por mim? Eu nunca percebi nada.
-- Você não acreditaria, se eu lhe dissesse. -- Antes que Laurel tivesse oportunidade
para insistir, os lábios dele se apossaram novamente dos dela.

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Os outros pensamentos foram varridos da mente de Matt. Ali só existia lugar para
Laurel, a mulher que ele amava mais do que a própria vida. Se antes julgava amá-la
com loucura, isso não era nada, comparado ao que sentia agora. Abraçou-a com força,
desejando perder-se nela, como se o corpo de Laurel fosse a extensão do seu próprio
corpo.
Laurel deixava-se arrastar por aquele beijo, de um sabor novo, todo especial, agora
que estava segura dos sentimentos de Matt. Saber que ele a desejava era excitante. Ter a
certeza de que ele a amava era glorioso. Palavras... Tantas palavras que gostaria de
dizer... Mas depois. Agora havia outra linguagem para ser usada, uma comunicação que
dispensava palavras. Ah, aquela química que existia entre eles era capaz de fazê-la der-
reter. Ardendo de desejo, ela o arrastou consigo para o chão.
Rápido. Muito rápido. Nenhum dos dois falava. Depressa. Sentir pele contra pele.
Roupas descartadas com urgência. Ah... que delícia o contato de seus corpos... Que
arrepio um simples toque era capaz de provocar!
Matt. murmurava coisas de encontro ao ouvido dela. Laurel sussurrava o nome dele
com doçura. E suas línguas se entrelaçavam novamente.
Um beijo demorado. Não havia pressa agora. A certeza de que se amavam fazia o
desejo misturar-se a uma sensação de deslumbramento.
Os lábios de Matt moviam-se sobre o ombro dela, devagar, preguiçosamente,
desciam para o braço, subiam outra vez, enquanto Laurel lhe acariciava os cabelos e a
nuca. Ele levantou a cabeça e seus olhares se encontraram, até que, sorrindo, eles
fizeram suas bocas se unirem mais uma vez.
A mudança aconteceu tão devagar que, muito provavelmente, nenhum dos dois se
deu conta dela. Ainda não havia pressa nem desespero, mas o desejo crescia, tornava-se
mais intenso. Gradualmente, os suspiros transformaram-se em gemidos. Com a boca
fechada sobre um dos seios de Laurel, Matt ouvia a respiração dela se acelerar. Ou seria
a dele? A excitação foi aumentando diante da expectativa. Seus corpos vibravam,
suplicantes. As carícias tornavam-se mais ardentes. Olhos fechados, respiração
arquejante, Laurel sentia as mãos de Matt percorrerem-lhe o corpo, e gemeu e tremeu
quando a língua dele começou a fazer as loucuras que as mãos apenas haviam iniciado.
Úmida de excitação, ela o conduziu para dentro de si. Nenhum dos dois podia esperar
mais. Seus corpos se movimentavam em perfeita sintonia, o ritmo aumentando...
aumentando... , Laurel, com o pouco de lucidez que lhe restava, rezava a todos os
deuses para que aquela sensação indescritível não cessasse nunca.
Matt estava de olhos bem abertos. Dentro dela e olhando para ela. Ele a queria toda,
penetrar-lhe o corpo e alcançar-lhe a alma. Como era linda, transfigurada pelo desejo, e
ao mesmo tempo serena diante da segurança que o amor lhe proporcionava! Ele
gostaria de guardar para sempre aquela imagem. Mas foi a última coisa em que
conseguiu pensar com clareza, antes que a escuridão e todos os seus prazeres selvagens
o dominassem completamente.


CAPÍTULO XI

Estava escuro. Matt não tinha idéia das horas, mas isso não o preocupava nem um
pouco. Deitados na cama de Laurel, abraçados, sentiam-se aquecidos pela proximidade

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de seus corpos. Como crianças desleixadas, haviam deixado as roupas caídas no chão
da sala. Que gostoso, imaginar que os dois poderiam ficar um dia inteiro no meio
daquela desordem, sem horário, podendo cochilar, fazer amor, cochilar outra vez,
preparar alguma coisa na cozinha, deixar as roupas esquecidas num canto, fazer amor
outra vez... Hum, que sensação de conforto e preguiça...
Ele conhecia tudo sobre ela: as coisas que podiam agradar-lhe, aborrecê-la ou fazê-la
rir. Sabia onde Laurel nascera e como crescera. Já ouvira algumas passagens da
infância dela, através de conversas com Olívia ou Curt. Sabia que ela quebrara a perna
aos nove anos, que trabalhara no jornalzinho do colégio e que, até os sete anos,
costumava dormir com um ursinho de pelúcia de uma orelha só.
Coisas que o faziam sorrir, quando imaginava as cenas, embora não estivesse certo
de que Laurel aprovaria que lhe houvessem contado.
Por outro lado, ele não lhe contara nada acerca da sua vida, podia lembrar-se da
mágoa que lera nos olhos dela, quando se recusara a entrar em detalhes sobre o seu
passado. Mesmo assim, sem saber nada a respeito dele, ela o amava e o aceitava.
Laurel se aconchegou mais, olhos abertos, ajustando-se ao corpo dele na escuridão.
-- Em que você está pensando?
Matt guardou silêncio um instante e então começou a brincar com uma mecha dos
cabelos dela.
-- Eu cresci naquele cenário que você viu num dos quadros lá de casa. -- Laurel não
disse nada. Segurou a mão dele e ficou esperando. -- Os velhos não saíam às ruas,
durante a noite, as pessoas só andavam em grupos. Muitos becos e ruas com os postes
de iluminação quebrados. Policiais fazendo a ronda aos pares, dentro dos carros. Não
posso me lembrar de uma só noite em que as sirenes não soassem.
O corpo de Laurel era tão macio, em contato com o dele... No silêncio daquele
quarto, Matt se perguntou por que resolvera se abrir com ela. A resposta veio rápida:
porque nada daquilo saíra da sua mente, ainda que agora a sua vida fosse outra. Ele
amava Laurel e gostaria que ela partilhasse até mesmo os momentos tristes do seu
passado.
-- Eu trabalhava para um homem que possuía uma banca de jornais. Num verão
fomos assaltados seis vezes. Da última vez, ele acabou se enfezando e se envolveu
numa.briga feia com os assaltantes. Ficou dois dias no hospital, mas só voltou a traba-
lhar dali a duas semanas. Tinha sessenta e quatro anos.
-- Matthew... -- Pressionou o rosto no ombro dele. -- Não precisa me contar, se não
quiser.
-- Eu quero que você saiba de onde eu vim. -- Mas ficou em silêncio por dois
longos minutos. -- No apartamento onde eu morava, as paredes eram úmidas, o cheiro
de mofo, permanente. No inverno, era muito frio, o vento entrava pelas janelas, o chão
era gelado. No verão, parecia uma fornalha. Um odor horrível, vindo dos becos
imundos, poluía o ambiente. -- Fez uma pausa e prosseguiu: -- À noite, os meninos
andavam com as prostitutas que faziam ponto nas esquinas, sempre de olho nos carros
da polícia que rondavam o local. Eu morava com uma tia. Ela cuidou de mim desde que
minha mãe morreu e meu pai foi embora. Não precisava ter feito isso, não era obri-
gação dela. Coitada, sempre tão doente... -- Apertou os dedos de Laurel. -- Minha tia
não sabia o que era o egoísmo. Acho que foi a pessoa mais altruísta que já conheci.


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-- Ela amava você -- Laurel murmurou, agradacendo em silêncio àquela mulher que
cuidara de Matt para ela.
-- Eu sei. Pena não ter tido oportunidade para tirá-la de lá. Ela morreu pouco antes
de nos mudarmos, quando eu já tinha condições de levá-la para um lugar decente.
-- Matthew...
-- Sempre que eu pensava em mim e você, me perguntava como as coisas poderiam
dar certo entre nós, algum dia. Temos berços diferentes. Algumas vezes, inclusive,
cheguei a pensar que te desejava só por isso.
Laurel levantou a cabeça e olhou para ele.
-- Espertinho -- murmurou, numa tentativa para descontraí-lo um pouco.
-- Você é tão linda, Laurel... -- sussurrou. -- Eu nunca me esqueci daquela
fotografia que um dia Curt levou para o nosso alojamento na universidade.
Surpresa, Laurel tentou falar, mas desistiu. Matt lhe dissera que ela não acreditaria.
Era inacreditável mesmo. Apaixonar-se por uma fotografia. E ela que pensava que
essas coisas só acontecessem nas novelas.
-- Sempre morri de ciúme do que você pudesse sentir por Trulane -- revelou ele.
-- Matthew, por favor...
-- Não -- interrompeu-a com delicadeza--, eu sei que você não está pensando nele
agora.
-- Matthew, ouça-me. O que eu sinto por Louis é uma coisa bem diferente daquilo
que sinto por você. Eu gosto muito dele, mas é você que eu amo. Ponha isso nessa
cabeça dura.
Ele riu.
-- Eu sei, amor. Agora estou certo disso. Não posso ter ciúme dos seus sonhos de
criança. Só o presente me importa. -- Fez uma pausa e olhou bem dentro dos olhos
dela. -- Você quer se casar comigo, Laurel?
Silêncio por um instante.
-- Por que demorou tanto para me perguntar? -- E abriu os braços para ele, julgando
que fosse morrer de tanta felicidade.
Laurel acordou com o sol batendo no rosto e Matt mordiscando o lóbulo da sua
orelha. Não precisou abrir os olhos para saber que o dia estava lindo. Em algum
momento durante a noite, a chuva caíra e fizera a manhã nascer limpa e fresquinha.
Sem abrir os olhos, ela suspirou e espreguiçou-se. Os lábios de Matt estavam agora no
seu queixo.
-- Eu adoro o modo como você acorda, sabia? -- murmurou ele, e escorregou as
mãos para os quadris de Laurel, atraindo-a mais para perto.
-- Mmmm... Que horas são?
-- Quase onze. -- Os lábios de Matt finalmente encontraram os dela.
Num movimento cheio de preguiça, Laurel passou os braços em volta do pescoço
dele.
-- Eu já lhe disse que adoro quando você me beija desse jeito?
-- Não. -- Inclinando a cabeça, beijou-a novamente. -- Por que não diz agora?
Sempre é tempo.
-- Se eu fizer isso... mmmm... você vai ficar insuportável. Rindo, Matt pressionou os
lábios na curva do ombro dela.
-- Estou louco por você, Laurellie. Quando vamos nos casar?

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-- Logo -- afirmou. -- Puxa, quando eu contar à minha avó, ela... -- Parou de falar
repentinamente e arregalou os olhos. -- Meu Deus, o almoço!
-- Para ser sincero, não era bem nisso que eu estava pensando. Estou faminto por
outra coisa. -- E deu-lhe uma mordidinha na orelha.
-- Não, você não entendeu. Precisamos correr ou estaremos em sérias dificuldades,
--- Tentou empurrá-lo para o lado. Matt, porém, agarrou-a pela cintura, forçando-a a
permanecer deitada.
-- Se você não ficar exatamente onde está -- murmurou de encontro aos lábios dela
--, quem vai ficar em dificuldade serei eu.
-- Matthew... -- Laurel desviou o rosto, mas ele não se incomodou e pôs-se a beijar-
lhe o pescoço. -- O almoço de domingo é sagrado para minha avó -- afirmou,
enquanto sentia o corpo acender-se.
-- Você sabe cozinhar?
-- Hein? Bem, acho que sim, isto é, se o seu estômago não for muito exigente.
Matthew, não. -- Perdendo o fôlego, ela segurou a mão que vagueava pelo seu corpo.
-- Por que não almoçamos por aqui mesmo? Não estou com a menor vontade de sair
da cama.
-- Matthew... -- Sacudiu a cabeça, como se quisesse pôr os pensamentos em ordem,
e segurou os ombros dele com firmeza. -- Já que você vai fazer parte da família, é bom
ir se habituando com certas regras. O almoço de domingo -- continuou em tom
didático, fazendo-o divertir-se com aquilo -- é uma tradição. Ai daquele que se atrever
a rompê-la, faltando ou simplesmente chegando atrasado.
-- Eu sou um iconoclasta.
-- Morda a língua, Matthew Bates -- disse ela, achando graça. -- Vovó poderá me
perdoar, um dia, por eu me casar com um yankee, mas nem por isso vai me deixar
escapar dos almoços de domingo, exceto por motivo de viagem. Ela nem ao menos
tolera que eu chegue atrasada.
Matt soltou um suspiro desanimado, mas acabou cedendo.
-- Está certo. Tudo por Olívia. -- E permitiu que Laurel se levantasse.
-- Eu vou tomar um banho bem rápido -- ela avisou, enquanto se dirigia ao
banheiro. -- Se nos apressarmos, poderemos evitar a hecatombe.
-- Se tomarmos banho juntos, ganharemos tempo -- disse ele, alcançando-a na
porta.
-- Matthew! -- Rindo, pousou as mãos no peito dele. -- Assim vamos ficar
realmente em apuros.
Ele a puxou de encontro ao corpo.
-- Não faz mal. Vale a pena arriscar.
-- Matthew...
-- Esqueça. -- Levou os lábios até os dela. -- Eu sei como acabar com os seus
argumentos.
-- Oh, Deus, estou perdida! -- murmurou, enroscando-se nele.
Estavam atrasados. Bem atrasados.
-- Vamos ouvir um sermão -- Laurel queixou-se, quando Matt entrou na rua que
levava à casa de Olívia.
-- Não valeu a pena nos atrasarmos um pouco? -- Ele sorriu com malícia.


89
-- Só um favor: tire do rosto esse sorriso de gato que acabou de devorar o canário.
Tente se mostrar despretensioso.
-- Nós podemos usar a desculpa do pneu furado -- sugeriu ele.
-- É uma desculpa mais do que esfarrapada. -- Tem razão. Acho melhor
procurarmos outra.
-- Bem, eu tenho um jeito. Talvez não funcione, mas não temos outra escolha.
Atrase o relógio, Matthew.
-- O quê?
-- Atrase o relógio, depressa -- ordenou ela, enquanto estacionavam ao lado do
carro de Curt. -- Meia hora.
-- Calma, o que ela poderá fazer conosco? Queimar-nos vivos numa fogueira?
-- Você não está tão longe assim -- Laurel retrucou. -- Quieto, ela vem vindo.
Escute, sei que isso é quase impossível para você, Matthew, mas tente parecer inocente.
-- Para falar a verdade, estou pensando em deixá-la aqui e aparecer para apanhá-la
mais tarde. Daqui a duas horas, combinado?
-- Faça isso e eu lhe quebro o braço! -- ameaçou-o, enquanto saía do carro. --
Vovó! -- Foi ao encontro dela de braços abertos, toda sorrisos. Beijou-lhe as duas faces
e fingiu não notar a frieza daqueles olhos verdes. -- Você está linda!
-- E você atrasada -- Olívia retrucou secamente.
-- O que é isso... Alguns minutinhos apenas. Olhe, trouxe Matthew comigo --
desconversou, na esperança de distraí-la.
-- Olá, Olívia. -- Matt pegou a mão que a mulher lhe oferecia e depositou um beijo
nela. -- Espero não ser um intruso.
-- Vocês estão atrasados -- repetiu ela, olhando para os dois com ar de censura.
-- Atrasados? Como pode ser isso? -- Ele olhou para o relógio. -- Ainda não é uma
hora.
-- Esse truque é mais velho do que eu. -- Olívia ergueu o queixo à maneira da neta.
-- Por que vocês estão atrasados?
Laurel umedeceu os lábios, sem saber o que dizer.
-- Sabe o que é, vovó...
-- Foi minha culpa, Olívia -- Matt interveio, ganhando um olhar agradecido de
Laurel. -- Eu a fiz perder a noção do tempo durante o banho.
-- Matthew! -- Laurel exclamou, horrorizada, desejando que o chão se abrisse sob
os seus pés.
-- Como? -- Olívia perguntou, com a expressão severa.
-- Vovó, eu...
-- Quieta, menina -- ordenou ela, sem desviar os olhos de Matt. E então,
inesperadamente, abriu o maior dos sorrisos. -- Agora que você me explicou, posso
dizer que o motivo foi mais do que justo. Afinal, um simples almoço pode esperar, não
é mesmo?
Matt sorriu também, ao passo que Laurel sentia a garganta completamente seca.
-- Vocês vão se casar, não é? -- Olívia continuou. Não era uma pergunta, mas uma
afirmação.
-- Mais depressa do que você imagina, Olívia. Não posso ficar um segundo longe da
sua neta. -- E sorriu, cúmplice, para Laurel, que ainda não se refizera da surpresa.


90
-- Nesse caso, bem-vindo à família, yankee. -- Piscando para Laurel, ela estendeu a
mão para Matt, permitindo que ele a conduzisse para o interior da casa.
"Minha avó é a criatura mais maravilhosa que eu conheço", Laurel disse consigo,
cheia de amor e orgulho, enquanto seguia os dois, subindo os degraus da varanda.
Com o bom humor e a vivacidade de sempre, Olívia dominou a mesa. O filho estava
sentado à outra extremidade e, entre eles, a geração mais jovem. De acordo com a
tradição dos domingos, o almoço foi servido em baixela de prata. A toalha de linho
branco e os copos de cristal eram presenças indispensáveis. A conversa girou em torno
de assuntos gerais, todos participando animadamente.
Laurel notou, satisfeita, que Susan parecia outra mulher, mais segura e muito mais
bonita. A tristeza não abandonara de todo aqueles olhos azuis, mas parecia estar
sumindo aos poucos. Ela captou, no olhar que a jovem lhe dirigiu, um misto de ternura
e confiança, e sentiu-se aquecida por dentro, certa de que uma forte amizade estava
nascendo entre elas. Perspicaz como era, Laurel também não poderia deixar de notar a
sutil troca de olhares entre Susan e Curt. Feliz pelo irmão, torceu intimamente para que
os dois acabassem engrenando um namoro.
Olhou, apaixonada, para Matt. Meu Deus, como era maravilhoso o que estava
acontecendo entre eles! Agora acreditava que a felicidade não era apenas um sonho.
-- Estive pensando... -- Olívia revelou, como quem não quer nada. -- O jardim
seria um lugar estupendo para uma festa de casamento. O que vocês acham?
-- Que tal realizarmos essa festa no próximo fim de semana? -- Matt sugeriu, antes
de tomar um gole de café.
-- Matthew, não dê corda -- William advertiu-o. -- Minha mãe será capaz de fazer
Curt processá-lo por não cumprir a palavra.
-- Positivamente certo! -- Olívia concordou, dando risada. E, pousando a mão sobre
o braço da neta: -- Nós o agarramos, Laurellie. William! Não vai fazer as perguntas de
praxe? -- William engasgou no meio da risada. -- Não precisa ficar nervoso, filho,
mais cedo ou mais tarde, você teria que assumir esse papel -- zombou ela. -- Um pai
tem que zelar pelo futuro da filha, especialmente quando esse futuro está nas mãos de
um yankee.
-- É bom que todos saibam da verdade -- Laurel sentenciou, antes que o pai tivesse
chance de dizer algo. -- Matthew quer se casar comigo para poder morar nesta casa e
ficar perto da vovó sem despertar suspeitas.
Risos gerais.
-- Estão rindo de quê? -- perguntou Olívia, fingindo espanto. -- Pois fiquem
sabendo que ainda posso dar um banho em muitas mulheres com a metade da minha
idade.
-- Laurel, Matthew... -- William começou, com ar solene, mas parou no meio, sem
saber o que dizer. O embaraço dele provocou novas risadas. --- Calma, pessoal, desse
jeito não posso me concentrar. Bem, não tenho muita prática em situações como esta --
prosseguiu --, mas o fato é que nada poderia me deixar tão contente quanto essa
notícia.
-- Está indo bem, filho, continue -- interrompeu-o Olívia. Ele olhou para a mãe e
meneou a cabeça, conformado. E, dirigindo-se novamente aos dois:
-- A verdade é que isso me pegou de surpresa. Nem desconfiava que vocês
gostavam um do outro.

91
Dessa vez, foi interrompido por Curt:
-- Há muitos anos, Matt ficou fascinado por uma fotografia -- disse, sorrindo,
lembrando-se de todas as perguntas a que fora obrigado a responder sobre a moça
daquela foto. -- Desde aquela época, Matthew?
-- Pois é, desde aquela época -- ele confirmou, voltando o olhar para Laurel.
-- Que segredo bem guardado, hein? -- admirou-se o pai...-- Mas, e quanto a você,
minha filha? Se me lembro bem, você tinha um adjetivo especial, quando queria se
referir a Matt.
-- Insuportável -- respondeu ela, sorrindo. -- Eu continuo a usá-lo, de vez em
quando -- brincou, piscando para o futuro marido.
-- São essas coisinhas que apimentam um relacionamento -- concluiu Olívia, com
ar malicioso, e arrastou a cadeira para trás, dando a refeição por encerrada. -- Susan,
querida, quer fazer um favor para mim?
-- Claro, Sra. Armand.
-- Então vá até o meu quarto e traga-me o medalhão que está nó porta-jóias sobre a
penteadeira. É um de ouro e pérolas, não há como se enganar.
Tão logo a moça saiu, Olívia voltou-se para Curt:
-- Você vai deixar esse yankee passar-lhe a perna, Curtis?
-- Como assim, vovó?
-- E você ainda pergunta? Ele levou um ano para se decidir. Espero que você aja em
menos tempo.
-- Mamãe, dê-se por satisfeita com uma vitória -- disse William.
-- Pois fique sabendo que, depois que eu resolver o caso de Curtis, vou me
concentrar no seu.
-- Ah, Matt -- William chamou-o, levantando-se da mesa. -- Há algumas coisas
que eu gostaria de discutir com você. -- E, pousando a mão no ombro do futuro genro,
conduziu-o para fora da sala.
-- Covarde -- Olívia murmurou, meneando a cabeça como quem se vê diante de um
caso perdido.
-- É este, Sra. Armand? -- perguntou Susan, estendendo-lhe um medalhão cravejado
de pequeninas pérolas.
-- Este mesmo, minha querida. Obrigada. Curtis, por que não leva Susan para dar
um passeio no jardim? Você gosta de lá, não é, Susan?
-- Gosto, sim. -- Susan baixou os olhos para as mãos e, em seguida, olhou
timidamente para Curt. -- Gosto muito -- repetiu.
-- Não ouviu o que ela disse, Curtis? O que está fazendo aí parado? -- E, sem fazer
pausa, voltou-se para Laurel: -- Agora nós duas precisamos ter uma conversinha.
Os outros dois já haviam escapulido para o jardim, quando Laurel abraçou a avó
afetuosamente.
-- Eu adoro você, sabia?
Olívia sorriu e estudou a neta com atenção.
-- Está feliz, Laurellie?
-- Não dá para notar? -- Sorriu e jogou os cabelos para trás. -- Se você me
perguntasse isso há um mês... Bom Deus, há uma semana -- consertou, maravilhada
--, eu teria dito que... -- Parou no meio da frase e sorriu outra vez. -- Ê melhor eu não
repetir o que teria dito.

92
-- Você esteve fugindo esse tempo todo, não é? Escondendo de si mesma que se
sentia atraída por Matthew.
-- Você deve reconhecer que eu disfarço muito bem.
-- Ah, mas nesse ponto você é igualzinha à sua avó -- Olívia disse, toda orgulhosa.
-- Esse é o maior elogio que eu poderia receber.
Olívia descansou o medalhão no colo e tomou as mãos de Laurel entre as suas.
-- Quando se ama, quando se ama de verdade, isso é tudo o que importa. O amor é o
bem maior de toda a humanidade, e, comparado a ele, todo o resto é insignificante. Seu
avô ... -- Suspirou diante da recordação, a expressão tornando-se subitamente mais
jovem. -- Deus, como amei aquele homem... Quinze anos na companhia dele foram
como uma fração de segundo.
Sofri muito quando ele morreu, muito. Mas a vida tinha que continuar, não é mesmo?
Os outros depois dele foram... -- Balançou a cabeça e sorriu. -- Ora, não foram nada, a
não ser divertimento. Eu tive todos os homens que quis, mas só um me teve, e é a ele
que devo os momentos mais felizes, mais intensos de toda a minha vida. É o amor,
Laurellie -- murmurou. -- Você agora compreende isso. E aquele yankee também.
-- É verdade -- Laurel sussurrou, emocionada, piscando por causa das lágrimas. --
Ah, vovó, como eu gosto de você!
-- E você é minha única neta, a minha neta muito querida. Por isso quero que fique
com este medalhão. Ele agora é seu. -- Permaneceu alguns instantes segurando a jóia
com as duas mãos, como se quisesse passar-lhe calor. -- Foi um presente do seu avô,
quando ficamos noivos. Significa muito para mim e você vai me fazer muito feliz se o
usar no dia do seu casamento.
-- Mas é lindo! -- Laurel recebeu a jóia e contemplou-a, embevecida. -- Por que
nunca vi você com ele?
-- Porque ele esteve guardado desde que seu avô morreu. Agora é o momento para
entrar em uso novamente, completando o seu traje de noiva.
Laurel deu-lhe um beijo e voltou a admirar aquele presente tão bonito e tão
significativo. Ele ficaria lindo num vestido de renda, bem romântico e.. .
Meu Deus! A lembrança surgiu repentinamente, como um raio, fazendo a sua testa
latejar.
-- Laurellie? O que foi, querida?
-- Hã? Não, não foi nada. -- Sorriu distraidamente. -- É que eu acabo de me
lembrar que preciso dar um telefonema -- desculpou-se, deixando a mesa.
Chegando ao telefone, discou para Heritage Oak. Estranho o modo como a memória
desperta de uma hora para outra, refletiu, com os olhos no medalhão da avó e a mente
no medalhão que Matt encontrara no pântano.
-- Alô? -- Atenderam do outro lado.
-- Françoise? Aqui é Laurel. -- Silêncio. -- Por favor, Françoise, eu sei que está
zangada comigo, depois de tantas perguntas. Sinto muito, muito mesmo, mas preciso de
você mais uma vez.
-- Não tenho o direito de ficar zangada com você, Laurel -- a caseira retrucou
secamente. -- Como também não tenho a obrigação de responder sobre coisas que não
me dizem respeito.
-- Por favor, é só uma coisinha! Prometo não tornar a aborrecê-la com perguntas. --
Nem esperou que a outra falasse e prosseguiu: -- É sobre um medalhão, o medalhão

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que Louis deu a Elise antes que eles se casassem. Ela o usou no dia do casamento e, se
me lembro bem, esteve sempre com ele desde então. Você se recorda? Era de ouro,
todo trabalhado...
-- Eu me lembro, sim.
Laurel sentiu as pernas fraquejarem.
-- Ela o usava sempre, não é? -- insistiu, arrasada. -- Tanto para sair quanto para
ficar em casa.
-- De fato, era hábito da Sra. Trulane estar sempre com ele. Laurel engoliu duas
vezes, antes de voltar a falar:
-- Elise tinha medo do pântano, Françoise? -- Ela sabia de antemão a resposta, mas
precisava da confirmação, não importava quão dolorosa fosse.
-- Já faz muito tempo, Laurel.
-- Por favor, Françoise, responda.
-- Ela não gostava de lá -- admitiu com relutância. -- Sabia das lendas que
cercavam o local.
-- Mas, algumas vezes, ela se arriscou a entrar, não é?
-- Poucas vezes, sempre acompanhada do Sr. Trulane.
-- Sim, eu sei. -- Laurel deixou escapar um longo suspiro.
-- Apenas na companhia dele. Está bem, obrigada, Françoise. Era só isso.
Desligou e olhou fixamente para o medalhão. Guardou-o no bolso do vestido e saiu à
procura de Matt.
Ele a avistou no momento em que ela atravessava o gramado. Trocou algumas
palavras rápidas com William e foi ao encontro dela. Mesmo a distância, reconheceu o
brilho diferente naqueles olhos que buscavam os seus.
-- O que foi, Laurel?
Ela o abraçou e recostou a cabeça no peito dele. Por um momento, era só daquilo que
necessitava, da força, do calor e da segurança daqueles braços. Sentia-se como se lhe
houvessem arrancado um pedaço do coração. Que fora feito do Louis que ela amara na
infância? Em que espécie de monstro ele se transformara?
-- Matthew, onde está aquele pedaço de metal que nós encontramos no pântano?
-- Eu o levei para o laboratório da polícia. Eles estão fazendo alguns testes. --
Separou-se alguns centímetros dela, apenas o suficiente para enxergar-lhe os olhos. --
Por quê?
Laurel deixou escapar um suspiro.
-- Então eles vão descobrir que a poeira que está envolvendo o ouro foi acumulada
durante dez longos anos.
-- Dez anos?! -- Um clarão atravessou-lhe a mente e num segundo ele compreendeu
tudo. -- Ele pertencia a Elise, não é?
-- Eu afinal me lembrei de onde o havia visto. Acabo de telefonar para Heritage Oak
e Françoise confirmou tudo o que eu já sabia. Claro que o medalhão ficou gravado na
minha mente, Elise não se separava dele.
Ela estava tão pálida, tão abatida, que Matt, por amá-la demais, acabou fazendo o
papel de advogado do diabo.
-- Calma, isso não prova nada. Ela pode simplesmente tê-lo deixado cair numa das
suas andanças pelo pântano.


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-- Talvez isso não seja uma prova concreta -- concordou Laurel --, mas eu não
creio que Elise tenha simplesmente perdido o medalhão. Em primeiro lugar, porque era
um objeto muito importante para ela. Em segundo lugar, porque ela não costumava ir
ao pântano com freqüência. Não era tão medrosa quanto Anne, mas tinha respeito pelas
lendas e superstições. Nas poucas vezes em que se atreveu a ir até lá, estava na
companhia de Louis. A caseira acabou de confirmar tudo isso.
Matt podia ler a emoção e a angústia naquele semblante tão querido. Dessa vez,
entretanto, não sentiu ciúme. Gentilmente, segurou o rosto dela entre as mãos.
-- Sinto muito, Laurel. De verdade. Ela lhe segurou os pulsos com força.
-- Eu também. Deus, como Louis teve coragem...
-- É melhor não contarmos nada a Susan, por enquanto.
-- Tem razão. Já temos indícios suficientes para pedirmos que retomem as
investigações sobre a morte de Anne. Vamos esperar pelo relatório da polícia antes de
colocarmos Susan a par dos fatos.
-- Podemos também exigir uma investigação acerca do paradeiro de Charles e Elise.
-- Matthew, se tudo isso for verdade... se Louis... -- Não conseguiu terminar. -- Ele
deve estar muito doente.
-- Eu sei. -- Traduziu em voz alta os pensamentos dela:
-- Ele matou Charles e Elise num acesso de fúria, ao surpreendê-los juntos. Durante
dez anos, ficou acumulando toda a carga de sentimentos negativos, consumindo-se em
ódio, rancor e amargura. Foi então que conheceu Anne, cuja semelhança física com a
primeira esposa era de fato espantosa. -- Deu de ombros.
-- Não adianta tentarmos uma explicação racional para esse último assassinato.
Quem pode saber o que se passa numa mente perturbada?
-- Matthew, Louis precisa de ajuda. Você pode imaginar o inferno em que ele está
vivendo?
-- Ele terá ajuda, Laurel. -- Segurou-a pelos ombros e olhou fixamente para ela. --
Isso vai ser doloroso para você, amor.
-- Eu sei -- concordou ela. -- Mas precisamos fazer o que é necessário. -- Olhando
bem para Matt, Laurel pôde perceber que uma idéia tomava forma na mente dele. --
Está pensando em quê, Matthew?
-- Qual seria a reação de Louis, se nos lhe mostrássemos o pedaço de medalhão que
encontramos?
-- Não sei... -- Acho que ele sofreria um impacto.
-- E, sentindo-se acuado, ele seria bem capaz de confessar tudo. É uma
possibilidade. -- Entreolharam-se em silêncio por alguns instantes e, quando Matt
voltou a falar, Laurel já sabia o que ele tinha a dizer. -- Vamos fazer outra viagem a
Heritage Oak, amanhã.


CAPÍTULO XII

Os papéis ainda estavam espalhados sobre a mesa, bem como as latas de refrigerantes
e as embalagens de isopor com restos de sanduíches. Peças de roupa continuavam pelo
chão, no mesmo lugar em que haviam sido deixadas na noite anterior. Laurel fechou a
porta e, ao ver aquilo tudo, comentou:

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-- Mas você é mesmo um bagunceiro, Matthew Bates.
-- Eu? Este apartamento é seu, lembra-se? -- E abaixou-se para pegar a camisa, que
ficara esquecida aos pés de uma cadeira.
Na verdade, eles tentavam se distrair daquilo que dominava o pensamento de ambos:
o que fazer em relação a Louis Trulane e como provar que ele havia assassinado três
pessoas.
-- Espero que, pelo menos, você me ajude a dar um jeito nisso tudo -- Laurel
observou, olhando ao redor com ar desanimado.
-- Tenho uma idéia melhor. -- Foi até ela e abraçou-a. -- Por que não nos juntamos
à desordem?
-- Matthew! -- Mas a boca dele esmagou a sua, enquanto os dedos procuravam o
zíper do vestido. -- Pare! -- Meio sorrindo, meio zangada, tentou se soltar. -- Você
não consegue pensar em outra coisa?
-- Não -- confessou, com os lábios no pescoço dela.
-- Matthew, isso é ridículo. -- O seu corpo já começava a se acender. -- Faz apenas
algumas horas que nós...
-- Estou faminto outra vez -- murmurou, devorando-lhe a boca.
Deus, ele fazia a cabeça dela rodar. Com o vestido abaixado até a cintura, Laurel
tentou desvencilhar-se das mãos insistentes de Matt.
-- Matthew, pare com isso! Temos muito que conversar...
-- Mas que mulher relutante! -- Atraiu-a novamente de encontro ao corpo. -- Isso
só consegue estimular as minhas células da luxúria.
-- As suas o quê? -- perguntou ela, dando risada.
-- Quer ver? -- E, antes que Laurel pudesse dar-se conta, colocou-a nos ombros e
levou-a para o quarto.
-- Matthew Bates! O que deu em você?
-- Espere só. -- Deixou o vestido dela no caminho e tirou-lhe os sapatos, que caíram
no chão. -- Tudo isto é culpa das células da luxúria. Você nunca ouviu falar?
-- Já lhe digo o que penso dessas suas células -- retrucou, enquanto ele a deitava
sobre a cama.
E, no minuto seguinte, via-se transportada para os mesmos lugares em que já estivera
das outras vezes com Matt. Perdeu o fôlego com os beijos e as carícias, incapaz de
pensar em outra coisa que não fosse aquele corpo sobre o seu. Laurel só era capaz de
sentir, sentir e sentir. Estava louca para ser tocada e experimentar todas as loucuras que
Matt parecia determinado a fazer com ela.
As emoções explodiam dentro de Laurel e rebentavam em ondas de prazer. Ela era
tão livre, tão maravilhosamente livre, pensou, sentindo-se como se estivesse
despencando de uma montanha-russa, arrastada por aquelas mãos, aqueles lábios,
aquela língua dentro da sua boca, pelo contato daquele corpo colado ao seu. Por que ele
não vinha logo? Estava pronta para recebê-lo, queria-o dentro dela depressa.
-- Matthew!...
Não precisou dizer mais nada. Ele não agüentaria mais tempo também. Penetrou-a
sem um segundo de hesitação e, no mesmo compasso vertiginoso, os dois foram
arremessados para um mundo onde imperavam as sensações mais intensas.
Quando Laurel conseguiu estabilizar novamente a respiração, quando afinal voltou a
pensar com clareza, deitou a cabeça no peito dele. Matt parecia tão exausto quanto ela.

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-- Você fez isso mais por mim do que por você mesmo -- murmurou ela, com um
sorriso de satisfação no canto dos lábios.
Ele não pôde deixar de rir, diante daquela observação.
-- É que eu sou um bom samaritano. Não meço esforços para ajudar os meus
semelhantes.
-- Matthew... -- Laurel ergueu a cabeça e olhou para ele. -- Não finja que não está
preocupado. Nós dois sabemos muito bem o que nos espera amanhã, portanto, vamos
enfrentar esse assunto de uma vez. O que você pretende fazer?
-- Antes de mais nada, ir até o laboratório e pegar o medalhão, mesmo que eles não
tenham concluído os testes.
Laurel concordou com um aceno.
-- E pela manhã nós o levaremos para que Louis o veja -- ela concluiu.
"Nós não, eu", ele corrigiu silenciosamente, mas apenas fez que sim. Quando
chegasse o momento, daria um jeito de sair sem que ela percebesse.
Matt sentou-se na cama, perguntando-se onde é que deixara as roupas.
-- Eu vou ao distrito agora, ver se consigo trazer de volta a nossa prova número um.
Você me acompanha?
-- Não. Vou ficar aqui preparando o nosso jantar.
-- Por favor, Laurel. -- Afetou um ar suplicante. -- Peço-lhe que reconsidere--
acrescentou, com uma dramaticidade exagerada.
-- Está pensando que vai passar mal, Matthew Bates? Fique sabendo que até hoje
ninguém reclamou da minha comida.
-- Ainda acho melhor jantarmos fora.
-- Não seja covarde -- disse ela distraidamente, enquanto pensava no que havia no
freezer. -- Você poderia aproveitar e trazer uma garrafa de vinho. -- Ajoelhou-se na
cama e ajudou-o a abotoar a camisa. -- Ah, e bicarbonato também.
-- Bicarbonato? Ai, ai, ai, esse jantar não está me inspirando confiança.
-- É só para garantir -- explicou ela, com a maior naturalidade. -- Nunca se sabe.
-- Bom, vou indo. -- Inclinou-se para beijá-la. -- Não me demoro.
-- Leve a minha chave. E, Matthew... -- Passou os braços pelo pescoço dele. --
Controle as tais células até voltar para casa, sim?
Ele lhe deu uma palmada no traseiro.
-- Volto em uma hora, está bem?
Uma hora, Laurel pensou, esticando os braços para o alto, ouvindo a porta da frente
se fechar com um ruído surdo. Tomara que fosse tempo suficiente para ela dar um jeito
na casa e adiantar o jantar.
Foi até a sala e, em poucos minutos, recolheu as roupas do chão, esvaziou os
cinzeiros e empilhou os papéis que estavam espalhados sobre a mesa. Entrou na
cozinha com as latas de refrigerantes e as caixas de sanduíches, e jogou tudo no cesto
de lixo. Abriu a geladeira. O que poderia preparar para uma noite especial? Talvez uma
salada e aquele macarrão ao forno, um dos poucos pratos que ela sabia fazer.
Quinze minutos mais tarde, enquanto mexia o molho branco no fogo, o telefone
tocou, na sala.
"Ai, meu Deus! Justo agora? Se eu parar de mexer, o molho vai ficar todo
empelotado." Mas não havia outro remédio. Quem quer que estivesse do outro lado da


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linha não desistia com facilidade. Desligou o fogo e correu para a sala. Na certa era
Matt, dizendo que não conseguira o medalhão.
-- Alô?
-- Oh, Laurel, graças a Deus, você está em casa.
-- Marion? O que aconteceu? -- perguntou, alarmada diante daquela voz tão
ansiosa.
-- É Louis. Eu não sei o que fazer, não sabia a quem apelar...
-- Ele está ferido? -- Laurel interrompeu-a, sentindo o coração bater acelerado.
-- Não, isto é, eu penso que não. Laurel... -- Começou a chorar desesperadamente.
-- Marion, por favor, acalme-se! Diga o que aconteceu! O que houve com Louis?
-- Eu... eu nunca o vi desse jeito -- disse, com a voz entrecortada pelos soluços. --
Não falou com ninguém durante todo o dia e... -- Caiu em pranto novamente. -- Oh,
Laurel, é a pior crise desde que Anne... Pelo amor de Deus, me ajude. .. Não sei o que
fazer...
-- Onde ele está agora?
-- Trancado no escritório. Deve ter quebrado tudo, lá dentro, num dos piores acessos
de fúria que já vi. -- Fez uma pausa, sufocou os soluços e prosseguiu: -- Eu tentei falar
com ele, mas não obtive resposta. Louis está completamente fora de si, dizendo coisas
incompreensíveis. Fala de Anne e Elise como se fossem a mesma pessoa. Ah, meu
Deus, o que vai ser de meu irmão?
-- Marion, ouça-me: você precisa chamar um médico, antes de mais nada.
-- Não! -- cortou bruscamente. -- Eles vão querer interná-lo. Louis não está louco,
e eu sei que todos vão pensar o contrário.
-- Marion, ele precisa de cuidados médicos -- tentou convencê-la, ao mesmo tempo
que sentia uma parte do seu mundo se desmoronar. Pobre Louis, pensou, cheia de
compaixão.
-- Você é a minha única esperança, Laurel. Venha até aqui, peço-lhe por tudo o que
lhe é mais sagrado. Em nome do que você já sentiu por meu irmão, eu imploro que me
ajude. -- E desatou no choro.
-- É claro que eu vou ajudar, Marion.
-- Você é como alguém da família. Não quero que pessoas estranhas o vejam nesse
estado.
-- Eu compreendo. Sairei daqui imediatamente e então veremos o que se pode fazer.
Mas, por favor -- insistiu --, tente se acalmar. Tudo há de se ajeitar, você vai ver.
-- Deus a ouça. Tenho medo de que seja tarde demais.
-- Não vai acontecer nada, Marion. Dentro em pouco, estarei aí.
-- Só mais uma coisa, Laurel -- a outra pediu, com a voz embargada. -- Venha
como amiga, e não como repórter.
-- Como amiga, Marion -- prometeu.
Depois que ela desligou, Laurel deixou-se cair no sofá e, cobrindo o rosto com as
mãos, chorou como se fosse uma criança.
Matt entrou, trazendo duas garrafas de vinho.
-- Eu resolvi comprar um tinto e um branco -- falou em voz alta, na direção da
cozinha. -- Você não disse o que vamos ter para o jantar, por isso achei melhor trazer
dois tipos de vinho. -- Uma rápida olhada pela sala arrumada. -- Ei, você trabalhou
direitinho -- comentou, sorrindo. -- Só que não estou sentindo cheiro de comida.

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Entrou na cozinha e ergueu uma das sobrancelhas, intrigado. Ela devia estar
planejando um jantar e tanto, a julgar por aquela bagunça de panelas e ingredientes.
Colocou as garrafas em cima da pia, no único espaço que estava sobrando, e deu uma
espiada no fogão. O macarrão semicozido boiava na água morna. Na outra panela... O
que era aquilo? Ergueu a colher de pau e deixou cair de volta um pouco do molho, ou o
que quer que fosse aquele mingau branco.
-- Ah, Laurel, eu estive pensando... -- recomeçou, elevando a voz. -- Há um
restaurante muito bom na Canal Street, cuja especialidade são frutos do mar. Por que
nós não... -- Parou na entrada do quarto. Vazio. Sentiu as primeiras alfinetadas da
inquietação. -- Laurel? -- chamou-a, abrindo a porta do banheiro. Nada. Afastou a
sensação de pânico, dizendo a si mesmo que ela deveria ter saído para comprar algum
ingrediente que estava faltando. Talvez tivesse deixado um bilhete.
Voltou depressa para a sala e encontrou uma folha perto do telefone. Mas, antes
mesmo de ler o recado, foi invadido por um mau pressentimento.
"Matthew, Marion telefonou, muito preocupada. Louis está fora de si, quebrando
coisas e falando sobre Elise e Anne. Ele se trancou no escritório e não há quem o faça
sair de lá. Ela precisa da minha ajuda. Eu não pude dizer que não. Laurel."
Matt soltou um palavrão, ao mesmo tempo que amassava a folha de papel. No
segundo seguinte, já estava na porta.
As sombras da noite se faziam anunciar, quando Laurel atravessou os portões de
Heritage Oak. Atrás dela, o Sol se despedia, deixando um rastro vermelho no horizonte.
Tudo muito quieto na pequena estrada arborizada. Um dos pássaros soltou um pio,
como se quisesse testar o silêncio. Assim que ela estacionou na frente da casa, Marion
desceu, esbaforida, os degraus do terraço.
Os cabelos desalinhados, o rosto pálido e as marcas de choro compunham uma
imagem que Laurel via pela primeira vez na pessoa daquela mulher, sempre tão
elegante e refinada.
-- Laurel! -- Marion segurou-a pelo braço, desesperada. -- Não pude impedi-lo!
-- Santo Deus, o que foi que ele fez? -- Laurel perguntou, mil hipóteses horríveis
atravessando-lhe o cérebro.
-- O pântano. Ele foi para o pântano. -- Cobriu o rosto com as mãos e começou a
soluçar. -- Meu irmão querido... Não o reconheço mais. As coisas que me disse, o
modo como me empurrou.
"Calma", disse Laurel para si mesma. "Eu preciso ficar calma."
-- O que foi que ele disse?
Marion tirou as mãos do rosto, os olhos congestionados pelo choro.
-- Ele disse que... ele disse que... ia... encontrar Elise. -- E rompeu em pranto
novamente.
-- Elise -- Laurel repetiu, controlando-se para não ceder ao horror que tomava conta
dela.
-- Nós precisamos fazer alguma coisa! -- Marion agarrou-lhe os braços. --
Precisamos encontrá-lo e trazê-lo de volta!
-- Marion, como podemos achá-lo, lá? Não é melhor chamarmos a polícia?
-- Não! A polícia não! Ele é meu irmão. -- Soltou os braços de Laurel. -- Eu vou
procurá-lo. -- Cega pelo desespero, saiu apressada na direção do pântano.
-- Marion, espere! -- Laurel chamou-a, fazendo-a parar. -- Eu vou com você.

99
As duas entraram no pântano, de mãos dadas, Laurel controlando a repulsa instintiva
por àquele local sombrio e sinistro. "É um lugar como qualquer outro", repetiu várias
vezes, tentando afastar o medo. "E Louis está aqui, precisando da minha ajuda." Aquilo
lhe dava forças para seguir adiante.
-- Ele deve ter ido para o rio, onde o corpo de Anne foi encontrado -- arriscou,
olhando para Marion. Será que ela desconfiava das coisas que o irmão havia feito?
Laurel teria que guardar essa dúvida, por enquanto. Aquele não era o momento para
perguntas. -- Você está bem, Marion? Tem certeza de que quer prosseguir?
-- Louis é meu irmão -- respondeu simplesmente, como se isso lhe bastasse.
As duas avançavam devagar, lado a lado, quando afinal ouviram o barulho do rio,
que estava próximo. A passagem se estreitou e Laurel seguiu na frente.
-- É melhor chamarmos por ele -- sugeriu a Marion, que vinha logo atrás. -- Nós
poderemos assustá-lo, se chegarmos de repente.
-- Ele não vai ouvir.
-- Não se estiver em outro lugar. Mas,se estiver próximo do rio... -- Suas palavras
se congelaram, quando olhou para trás.
De onde aparecera aquela arma que Marion trazia numa das mãos? O que significava
aquilo?, pensou, atordoada, erguendo o olhar para ela. Apesar dos olhos vermelhos e
dos cabelos desalinhados, a expressão de Marion era calma e fria. Do íntimo de Laurel,
uma advertência a chamava vagamente à razão. Por outro lado, ela se recusava a
acreditar no que o seu cérebro lhe dizia. Continuou olhando para Marion, atônita,
incapaz até mesmo de sentir medo.
-- Marion... -- O nome soou com firmeza nos seus lábios. -- O que você está
fazendo?
-- O que eu devia ter feito há muito tempo -- respondeu tranqüilamente.
Aquela arma era para ser usada contra Louis? Laurel se debatia em pensamentos
cada vez mais confusos. Mas, se era para Louis, por que estava apontada para ela? Não
ousou baixar novamente os olhos para o revólver, não ainda. Continuou a fitar o rosto
tranqüilo de Marion.
-- Onde está Louis? -- perguntou, com a voz ligeiramente trêmula. -- Você sabe?
-- Claro -- Marion respondeu prontamente. -- No escritório, como já lhe disse.
Esteve trabalhando lá a tarde inteira, como costuma fazer aos domingos.
-- Trabalhando... -- Laurel repetiu, o pânico começando a invadi-la. -- Por que
você me telefonou?
-- Você não me deu outra escolha. -- Marion sorriu com fingida gentileza. --
Depois que conversamos, no início da tarde, sobre o medalhão de Elise, cheguei à
conclusão de que você havia ido longe demais.
-- Nós conversamos? -- repetiu Laurel. -- Eu falei com Françoise e... -- Sua voz se
extinguiu. -- Era você?
-- Surpresa, querida? -- ironizou. -- Pois não deveria estar. Você sabe que os
nossos empregados têm folga aos domingos. Ou será que se esqueceu disso? -- O
sorriso desapareceu e ela juntou as sobrancelhas, como costumava fazer quando ficava
aborrecida. -- Estou muito desapontada com você, Laurel. Eu bem que a avisei para
ficar longe disso. Já pensou no problema que me causaria, se tivesse conseguido falar
com Françoise? Por sorte, eu atendi ao telefone. Você não reconheceu a minha voz e eu
deixei as coisas como estavam. Como vê, você tornou tudo mais fácil para mim. --

100
Meneou a cabeça com ar de censura, enquanto Laurel sentia as pernas amolecerem. --
Que menina mais feia! Falar sobre assuntos de família com os empregados. Sinto fazer
isso, mas você está precisando de um corretivo. Sua avó vai me dar razão. Ela sempre
apreciou crianças com bons modos.
Santo Deus, o que significava aquilo agora?, Laurel perguntou-se, atordoada. Marion
teria enlouquecido? O pânico se instalou dentro dela, diante daquela certeza. Claro, ela
estava completamente louca!
-- M-marion... Espere... Não... -- O que você vai fazer?
-- Você precisa ser punida -- foi a resposta calma, que a loucura fazia soar coerente.
-- Exatamente como os outros.
Matt freou o carro e saltou quase no mesmo instante. Não parará de xingar Louis
desde que amassara aquele bilhete. Isso o ajudava a não pensar no que poderia estar
acontecendo a Laurel. "Ah, se ele tiver tocado num fio de cabelo dela..." Escalou os
degraus aos pares. "Se ele tiver ousado machucá-la..." Começou a esmurrar a porta.
-- Trulane! -- Não parou de bater, cada vez mais nervoso, diante das possibilidades
tenebrosas que se desenhavam na sua mente. Quando a porta se abriu, ele agarrou Louis
pelos colarinhos. -- Onde está Laurel?
-- Que diabo você pensa que está fazendo? -- o outro perguntou, a princípio
espantado e, em seguida, furioso.
-- O que você fez com ela? -- Matt gritou, espumando de ódio.
-- Eu não fiz nada com Laurel. Nem sei onde ela está. -- Baixou os olhos para as
mãos que agarravam a sua camisa. -- Tire essas mãos de cima de mim, Bates. -- Ele
queria brigar, Matt compreendeu logo. Estivera esperando por um bom motivo para
extravasar toda a frustração que vinha sentindo desde a morte de Anne.
-- Eu terei prazer em lutar com você, Trulane -- prometeu, com os dentes cerrados.
-- Nada neste mundo me faria sentir tão bem. Mas só depois que eu souber o que você
fez com Laurel.
Louis sentia a fúria borbulhar dentro dele.
-- Eu já lhe disse que ela não está aqui -- falou, em tom de ameaça. Mais um pouco
e avançaria em Matt.
-- Tente outra, meu caro. -- E ficou de lado para que Louis visse o carro de Laurel,
estacionado bem na entrada.
Louis franziu a testa, uma parte do seu ódio transformando-se em perplexidade.
-- Ela deve ter vindo fazer uma visita a Marion -- declarou, carrancudo.
-- Que visita o quê! Marion a chamou para cá. -- Disse isso e empurrou Louis
contra a parede, fazendo-o perder o equilíbrio. -- Ela pediu a Laurel que viesse ajudá-
la porque você estava fora de controle e se tinha trancado no escritório.
-- Você está maluco?! -- Louis investiu contra ele, empurrando-o também, e os dois
ficaram se entreolhando, ameaçadores, como dois touros prontos para o duelo. --
Marion não pode ter dito uma coisa dessas. Eu fiquei trabalhando a tarde inteira no
escritório e ela entrou diversas vezes lá.
Matt estava ofegante, tentando se controlar para não partir para cima dele. Se lhe
desse um murro, conforme tinha vontade, muito provavelmente não pararia tão cedo.
Podia sentir que o outro estava pronto para fazer o mesmo. Mas não, aquele não era
momento para brigas, não até que ele soubesse o que fora feito de Laurel. Depois disso
então.. .

101
-- Laurel me deixou um bilhete dizendo que viria para cá porque não podia negar
ajuda à sua irmã. Marion estava muito nervosa por sua causa.
-- Eu não sei do que você está falando.
-- Como não? -- Matt perdeu a paciência de novo. -- O carro dela está bem diante
do seu nariz!
Louis lançou-lhe um olhar gelado.
-- Talvez você queira fazer uma busca pela casa.
-- É exatamente o que vou fazer! -- Matt explodiu. -- Enquanto isso -- continuou,
apalpando os bolsos --, por que você não dá uma olhada neste pedaço de metal e pensa
numa explicação decente para me dar?
Abriu uma das mãos e mostrou a ele o que restava do medalhão de Elise. Louis
agarrou-lhe o pulso, os dedos enterrando-se na pele de Matt.
-- O medalhão de Elise... Onde foi que você conseguiu isso? -- Encontrou
novamente o olhar de Matt. -- Onde? -- interpelou-o, com a expressão e os olhos de
um homem atormentado.
-- No pântano. -- Matt fechou a mão sobre a peça. -- Laurel o reconheceu como
sendo de Elise e obteve a confirmação da sua caseira ao telefonar hoje para cá.
-- Françoise? -- Desceu os olhos para a mão fechada de Matt. -- Não, Françoise
não está aqui. No pântano, você disse? -- Novamente ergueu o olhar para Matt. O rosto
estava pálido, branco como uma folha de papel. -- Elise nunca entrou sozinha no
pântano. Eu sempre estava com ela. E quanto a esse medalhão ... Nunca a vi sem ele,
desde que nos casamos. -- Balançou a cabeça. -- Que diabo você está tentando
provar?
Matt resolveu ir devagar, passo a passo. Uma outra suspeita estava crescendo dentro
dele.
-- Laurel telefonou hoje para cá, no início da tarde, e falou com a caseira.
-- Eu já lhe disse que Françoise não está aqui. Todo domingo ela vai para a casa da
irmã. Nossos empregados estão de folga. Eu e Marion somos os únicos habitantes desta
casa, aos domingos.
-- Só você e... Marion? -- O cérebro de Matt trabalhava freneticamente. Marion
telefonara a Laurel. Marion os fizera suspeitar de Nathan Brewster. Marion dissera a
eles que Anne confessara à irmã o quanto Brewster a deixava nervosa... Como ela
poderia saber de uma coisa que estava nas cartas endereçadas a Susan? A menos que
ela tivesse lido aquelas cartas. .. roubado aquelas cartas! Marion!
-- Onde está sua irmã? -- perguntou, rezando para que não fosse tarde demais para
Laurel.
-- Agora, escute aqui, Bates. -- Louis agarrou-lhe o braço.
-- O que você está pretendendo? Onde conseguiu o medalhão de Elise?
-- No pântano! -- Matt explodiu. -- Droga, você não está entendendo? Marion está
com Laurel! -- Ficou subitamente pálido, ao verbalizar os seus temores. -- No
pântano! -- repetiu.
-- Ela levou Laurel para lá, exatamente como fez com os outros.
-- Que outros? -- Dessa vez foi Louis quem o agarrou pelos colarinhos. -- Que
outros?
-- Sua irmã é uma assassina! -- Matt soltou-se dele. -- Ela já matou três vezes e não
hesitará em fazer o mesmo com Laurel!

102
-- Você está louco!
-- Louco coisa nenhuma! -- Abriu a mão novamente, mostrando-lhe o medalhão. --
Nós estivemos no pântano, uma noite dessas. Alguém a atacou. A mesma pessoa que
deixou uma cobra no apartamento dela e que depois a ameaçou por telefone. A mesma
pessoa -- frisou -- que telefonou hoje, pedindo a Laurel que viesse depressa. E ela
veio só por sua causa, porque se preocupa com você. Como é, vai me ajudar ou não?
Louis ficou olhando para o medalhão, mal ousando respirar.
-- Nós vamos para o pântano -- cedeu afinal. -- Espere aqui.
Entrou na casa e voltou segundos depois, trazendo uma pistola. Não tinha uma gota
de sangue no rosto. Em silêncio, estendeu a arma para Matt.
-- Ela levou o revólver -- explicou, então, com um fio de voz. -- Um antigo que
ficava guardado na biblioteca e que pertenceu a um dos nossos antepassados.
"Não entre em pânico, não tente fugir", Laurel repetia em silêncio, enquanto olhava
para Marion. Esta parecia calma, como se a qualquer momento fosse abrir um sorriso e
oferecer-lhe chá com bolinhos. Tempo, era preciso ganhar tempo.
-- Por que você precisou castigar os outros, Marion? -- Há quanto tempo ela se
acharia naquele estado? Como é que ninguém percebera nada?
-- Eu tive que fazer aquilo.
-- Por quê?
-- Você sempre foi uma menina esperta, Laurel, mas não o suficiente. -- Marion
sorriu novamente e olhou para ela como se olha para uma velha amiga. -- Veja só
como eu consegui desviar a sua atenção para Brewster. Na verdade, Anne jamais
poderia abandonar Louis. Ela tinha verdadeira adoração por ele.
-- Então por que você teve que castigá-la?
-- Ela não deveria ter voltado. -- Meneou a cabeça e soltou um suspiro. -- Não
podia ter feito isso.
-- Voltado? -- Laurel repetiu, permitindo-se uma rápida olhada por sobre a cabeça
de Marion. Se conseguisse distraí-la apenas por alguns segundos, teria chance de
enfiar-se no meio dos arbustos?
-- Ela não me enganou -- Marion explicou, sorrindo outra vez. -- Oh, ela conseguiu
enganar a todos, especialmente Louis, mas eu sempre soube da verdade. Claro que a
deixei pensar que não suspeitava de nada. -- Ficou olhando para o vazio. -- Elise tinha
medo do pântano. Eu sabia o porquê, naturalmente que sabia. Tinha sido aqui que ela
havia morrido. -- Ergueu as sobrancelhas. -- E aqui ela haveria de morrer outra vez.
Laurel arregalou os olhos, sentindo o horror atravessar-lhe o corpo. Marion estava
confundindo Anne com Elise. "Continue falando, continue falando", ordenou a si
mesma.
-- Por que você matou Elise na primeira vez?
-- Porque ela não tinha o direito! -- Marion explodiu, fazendo com que Laurel
instintivamente recuasse um passo. -- Ela não tinha o menor direito sobre a casa. A
casa é minha, sempre será. Louis estava fazendo um testamento, passando a minha casa
para o nome daquela intrusa! Ela nem ao menos tinha o sangue dos Trulane. Eu sou a
mais velha! -- vociferou.
-- Tenho todos os direitos sobre estas terras. Meu pai errou, ao deixá-las em herança
para Louis. -- Sorriu e baixou a voz. A arma continuava firme entre os seus dedos. --


103
Eu amo tudo isto aqui, Laurel. -- Correu os olhos à sua volta com expressão de
carinho. -- É a única coisa que eu amo nesta vida.
-- Mas por que Elise? -- Laurel interrompeu-a. Uma casa, pensou, cada vez mais
assustada diante da loucura de Marion. O que levaria uma pessoa a matar por uma casa
e um punhado de terra? Bem, não era a primeira nem seria a última vez. Desde os
tempos das cavernas, os homens brigam e matam por isso. Por que você não matou
Louis, Marion? Ele é o proprietário.
-- Laurel... -- A voz era suave, o tom de quem explica o óbvio a uma criança. --
Louis é meu irmão.
-- Mas.. . mas Charles... -- começou.
-- Eu nunca tive a intenção de feri-lo. -- As lágrimas brotaram dos seus olhos e
escorreram pelo rosto. -- Eu o amava. Mas ele nos viu, quis interferir. Não tinha outra
escolha. -- Parou de chorar e fitou novamente o vazio. -- Eu e Elise saímos para dar
uma caminhada. Ela se sentia muito sozinha, desde que Louis tinha viajado. Quando
estávamos bem longe de casa, eu puxei o revólver. Este que está aqui na minha mão. --
Mostrou-o, erguendo um pouco mais a arma. -- Você o reconhece, Laurel?
Claro que o reconhecia. Era uma antigüidade que ficava guardada num estojo de
vidro, na biblioteca. A mesma arma que, uma vez, um dos antepassados de Marion
usara para matar, punir alguém.
-- Eu sabia como manejá-lo -- prosseguiu Marion, olhando para o revólver e
encostando o dedo no gatilho. -- Era como se ele estivesse esperando por mim, ansioso
para ser usado outra vez. -- Ergueu os olhos para Laurel. -- Eu precisava punir Elise,
você entende?
-- Estou tentando.
-- Pobre Laurel... -- murmurou, cheia de ternura, o olhar de uma demente. --
Sempre tão compreensiva, tão boazinha... Por isso eu tinha certeza de que você viria, se
eu lhe pedisse.
Os joelhos de Laurel começaram a tremer.
-- Você estava me falando sobre Charles. -- Tentava desesperadamente prolongar a
conversa.
-- Ah, é verdade. Como eu estava lhe dizendo, ele nos viu. Viu quando eu obriguei
Elise a entrar no pântano. Viu a arma apontada para ela. Quer dizer, estou supondo tudo
isso, ele apareceu tão de repente... Não tive tempo de perguntar, foi tudo muito rápido.
Nós estávamos aqui, bem aqui, quando ele chegou.
Olhou em volta como se elas não estivessem sozinhas. Laurel aproveitou para dar um
passo à direita, na direção dos arbustos, que pareciam estar a quilômetros de distância.
-- Não, Laurel! -- Marion percebeu o movimento e apontou a arma. Laurel ficou
paralisada. -- Deixe-me lhe contar o resto, você não está interessada? -- Sem esperar
resposta, prosseguiu: -- Elise quis correr, eu a puxei pelo braço, lutamos alguns se-
gundos. Deve ter sido então que o medalhão caiu. Eu não percebi, senão teria o cuidado
de me desfazer dele também. -- Falava atropeladamente, sem dar ordem aos
pensamentos. -- Eu atirei nela. Tive que fazer isso. E então Charles me empurrou,
gritou comigo... Meu próprio irmão... A arma me pedia para ser usada outra vez, só
mais um tiro... No momento seguinte, Charles também estava no chão... morto. -- As
lágrimas haviam secado, os olhos tinham o brilho da loucura. -- Eu fiquei sem saber o
que fazer a seguir, mas logo tive uma idéia. Eles eram amantes, exatamente como os

104
outros dois que morreram aqui. Eu só precisava escrever um bilhete, como se fosse
Elise, explicando a Louis que os dois haviam fugido. Elise abandonando Louis por
causa de Charles, não era genial? -- Sorriu diante da própria esperteza. -- E, para que
tudo saísse perfeito, bastava jogar os corpos na areia movediça. Já havia dado certo
uma vez, não havia por que não dar certo então.
-- Oh, Deus... -- Laurel murmurou, fechando os olhos. Marion prosseguiu, sem
notar a expressão horrorizada da outra.
-- Eu me desfiz de algumas roupas deles. Todos os empregados estavam de folga.
Era domingo, exatamente como hoje. Tirei os quadros de Charles da parede. Quase me
esqueci deles. Meu irmão jamais iria embora sem levar as suas aquarelas. Roupas e
quadros foram fazer companhia aos dois, lá no fundo da areia movediça. Foi tudo tão
simples... Claro, Louis sofreu muito, pobrezinho... -- Os olhos se anuviaram por um
instante. -- Eu sabia que ele se culpava e se atormentava, mas eu não podia lhe dizer
que tudo aquilo tinha sido para o bem dele. A casa era minha outra vez. Louis, em
pouco tempo, voltou a se concentrar no trabalho. Enfim, tudo voltava a ser como antes.
Mas, algumas vezes -- abaixou a voz, como se temesse ser ouvida --, algumas vezes,
eu podia ouvi-los aqui. À noite.
Laurel engoliu em seco, um gosto metálico de horror descendo pela sua garganta.
-- Charles e Elise? -- perguntou.
-- Eles mesmos. Me chamam sempre à noite. Eu sempre venho aqui, mas não
consigo vê-los nunca. -- Olhou em volta como que aguardando pelos fantasmas
daquele lugar. -- Mas posso ouvi-los.
Deus, Laurel pensou, atordoada, como ninguém percebera o estado psíquico daquela
mulher? Podia vê-la nos chás de caridade, sempre gentil, modos suaves e delicados,
impecavelmente vestida... Olhou para o revólver outra vez.
-- E então Elise voltou -- Marion prosseguiu, já impaciente.
-- Ela disse que o seu nome era Anne e Louis acreditou. Mas eu não. Sempre soube
que era ela, fitando-me de trás daqueles olhos tímidos, rindo-se de mim intimamente
como uma vitoriosa.
-- Abriu um sorriso e fez um ar de confidencia. -- Eu fingi que não suspeitava de
nada -- cochichou. -- Deixei-a pensar que podia, me enganar.
-- E então você a trouxe novamente para o pântano -- Laurel deduziu, tentando
encontrar uma coerência dentro da loucura.
-- Mas eu tinha que tomar muito cuidado, desta vez. Louis não a deixava sozinha
nunca. Mas uma noite ele trabalhou até tarde. Eu ouvi quando ele disse a ela que fosse
se deitar, porque demoraria umas duas horas para acabar o que estava fazendo. Nisso eu
percebi que o momento havia chegado. Esperei que Elise dormisse, subi até o quarto e
apertei o travesseiro contra o rosto dela. Precisava tomar muito cuidado para que ela
não morresse, não naquela cama. Tudo deveria parecer um acidente. Ela era muito
frágil, não podia comigo. Depois de se debater inutilmente, perdeu a consciência. Eu a
carreguei para fora da casa. -- Marion sorriu diante da lembrança. -- Quando ela
voltou a si, olhou em volta aterrorizada. Elise sabia que ia morrer novamente e
implorou que eu a deixasse ir. Sabe o que fiz? Ameacei-a com esta arma e a obriguei a
se levantar. Tinha a intenção de afogá-la no rio. Mas quando ela começou a correr, não
me importei. Logo ficaria exausta e eu poderia alcançá-la facilmente. Elise não saberia
voltar sozinha, nunca soube. Poucos segundos depois, ouvi os gritos dela. Uma picada

105
de cobra. Ela havia caminhado diretamente para um ninho. Como vê, as coisas foram
saindo melhor do que a encomenda. Tudo o que eu tinha a fazer era ficar por perto e
deixar que o veneno começasse a fazer efeito. Só então, ao vê-la inconsciente, caída
perto do rio, eu resolvi voltar para casa. -- Olhou para Laurel triunfante. -- Desta vez,
ela não se atreverá mais a me desafiar.
-- Não -- Laurel concordou com um sussurro. -- Não se atreverá.
-- Eu sempre gostei muito de você, Laurel. Se tivesse me escutado, nada disso
estaria acontecendo.
Laurel umedeceu os lábios e rezou para que a voz saísse firme:
-- Se você atirar em mim, Marion, eles vão levá-la para longe de Heritage Oak.
-- Não! -- exclamou rispidamente, e logo suavizou a expressão, sorrindo como a
uma amiga. -- Eu não vou atirar em você, Laurel, a menos que seja forçada a isso. Se
eu for obrigada a usar esta arma, também serei obrigada a colocar a culpa em Louis.
Você não vai querer vê-lo na cadeia, não é?
Como era difícil respirar, Laurel constatou, com uma sensação de desconforto. Um
esforço tremendo para deixar o ar entrar e sair dos pulmões.
-- Eu não vou caminhar até o rio ou me atirar na areia movediça só para facilitar o
seu trabalho, Marion.
-- Não -- concordou ela. -- Você não é como as outras, não se amedronta
facilmente. Mas há uma coisa que... -- Apontando o revólver para ela, deu um passo
para o lado e, com a outra mão, pegou um bambu. -- Você veio aqui para xeretar como
das outras vezes e não conseguiu encontrar o caminho de volta. Exatamente como
Elise, na pele de Anne. -- Enfiou o bambu entre os arbustos, enganchou-o em alguma
coisa e Jogo uma cesta de vime apareceu diante dos olhos de Laurel. -- Estas aqui não
estão mortas -- murmurou, com um sorriso sarcástico.
Laurel pressentiu o que estava para acontecer, mas não conseguiu mover-se um
milímetro sequer, paralisada pelo terror. Com aquela taquara, que era bem longa,
Marion empurrou a cesta para perto dela, bem perto, e só então fez cair a tampa. Laurel
sentiu o estômago contrair-se, a cabeça latejar, o suor escorrer-lhe pela testa. Uma
cobra saiu de dentro do cesto. E mais outra.
Deixando pela primeira vez a arma de lado, Marion segurou o bambu com as duas
mãos. Olhou para Laurel e sorriu.
-- Você sempre teve medo delas, não é? Eu me lembro bem daquela vez em que
você desmaiou quando viu uma lá perto de casa. São criaturas malvadas, muito
malvadas. -- Começou a atiçar os répteis com a ponta do bambu, fazendo-os silvar,
incitando-os para o bote.
Laurel não conseguia dar um passo, petrificada diante da visão daqueles bichos que
se aproximavam na direção dela, mais e mais.
-- Olhe como elas estão furiosas! -- Marion exclamou, soltando uma gargalhada
histérica ao ver que Laurel não reagia, parecendo hipnotizada, com os olhos presos nas
cobras, apenas a alguns centímetros de distância dela.
Um tiro. Outro. A única coisa que Laurel conseguiu ver, antes de desmaiar, foram as
cobras estrebuchando-se no chão. Nem pôde perceber que fora Matt quem aparecera tão
oportunamente, depois de ouvir a gargalhada de Marion.
-- Não! -- Marion gritou, quando Louis a segurou pelos braços. -- Não! Vocês
mataram os meus bichinhos! -- E ficou chorando nos braços de Louis.

106
-- Vá cuidar de Laurel -- disse ele a Matt. -- Tire-a logo daqui. -- Eu vou levar
Marion para casa. Há muitas providências que preciso tomar, depois de chamar um
médico.
-- Médico? -- Ela ergueu os olhos para o irmão. -- Não, Louis, injeção não! Você
sabe que eu tenho medo de injeção!
-- Querida... -- Matt murmurou, abraçando Laurel e tentando fazê-la voltar a si.
Aos poucos, ela foi abrindo os olhos. . -- Matthew? Ele sorriu, aliviado.
-- Está tudo bem agora, querida. Você está salva.
-- Onde... onde está Louis?
-- Conduzindo Marion para casa.
-- Matthew, foi horrível! Ela ficou louca!
-- Não se preocupe com isso agora. Louis vai tratar de tudo. O importante é que
você está aqui, sã e salva.
Beijou-a com desespero, sentindo desmanchar-se a tensão das últimas horas.
Mais tarde, já no carro, Laurel respirava fundo. Como era bom o cheiro da noite!
-- Uma história e tanto, hein Matthew Bates? Com essa matéria, seremos sérios
candidatos ao prêmio Pulitzer de jornalismo. -- Chegou mais perto e passou o braço
em volta do pescoço dele. -- Sabe que eu te amo? -- Beijou-lhe o rosto. -- Você
salvou a minha vida.
Matt olhou para ela rapidamente, antes de se voltar para o volante.
-- Você pode fazer o mesmo por mim, amor. -- E, com o olhar zombeteiro,
acrescentou: -- Vamos jantar fora?

****


107--
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