domingo, 31 de janeiro de 2016

{clube-do-e-livro} Livro: A História de Deus


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JOSÉ IDEAL

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sábado, 30 de janeiro de 2016

{clube-do-e-livro} LIVRO A ARTE DE PENSAR CLARAMENTE EM PDF



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{clube-do-e-livro} Dias Gomes - A Invasão & A Revolução dos Beatos (txt)(rev), Dias Gomes - As Primícias (txt)(rev), Dias Gomes - O Pagador de Promessas (txt)(rev), Dias Gomes - O Santo InquÃ(c)rito (txt)(rev)



COLEÇÃO VERA CRUZ
Volume 40





ALFREDO DIAS GOMES


A INVASÃO

*

A REVOLUÇÃO
DOS BEATOS

teatro


nota introdutória
de
FLÁVIO RANGEL








EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
RIO DE JANEIRO

DO AUTOR:
O Pagador de Promessas



desenho de capa:
EUGÊNIO HIRSCH








Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.
Rua 7 de Setembro, 97
RIO DE JANEIRO

1962

Impresso nos Estados Unidos do Brasil
Printed in the United States of Brazil




http://groups.google.com/group/digitalsource

ORELHAS DO LIVRO
Do Povo, para o Povo, sem Demagogia
Na realidade pré-revolucionária dos dias que vivemos, um setor da literatura brasileira, mais intensamente do que outros, vem desempenhando sua função histórica de cronista dos tempos e costumes e, não menos, de re-formulador da sociedade imperfeita e viciada que é a nossa.
Referimo-nos ao teatro, ao moderno teatro de Oduvaldo VIANA Filho, de Gianfrancesco GUARNIERI, de DIAS GOMES, para citar apenas três nomes de um grupo de autores que, numa linguagem simples e direta, colocam sua capacidade criadora a serviço de uma grande causa, que é a de preparar o povo para a sua verdadeira e tardia independência.
Enquanto a maioria de seus colegas permanece totalmente à margem dessa realidade e dessa luta fundamental, buscando apenas o aplauso fácil de uma burguesia cuja mentalidade não consegue alcançar senão as ironias e situações primárias das comédias boulevardières, eles vão ao fundo dos problemas e fazem um teatro do povo, para o povo, sem demagogia.
DIAS GOMES, entre eles, é autor dos mais conscientemente capacitados para essa atuação cultural e política. Suas peças mais recentes, O Pagador de Promessas e as duas que editamos neste volume, têm extraordinário conteúdo humano e, desprezando clichês partidários ou linguagem dirigida, conseguem produzir profundo e definitivo impacto emocional nas platéias, mostrando-lhes que há muito mais de podre neste reino da Dinamarca do que podiam imaginar.
Da saga patética de Zé do Burro ao drama intenso e amargo dos sem-casa ao flagrante sem retoques de um Nordeste em que o misticismo é irmão gêmeo da ignorância e gerado no ventre negro da miséria e da exploração do homem pelo homem, DIAS GOMES segue uma linha criadora da mais significativa importância social. Seu teatro vai à raiz dos problemas que nos afligem e, conseguindo equacioná-los de forma clara, coloca suas soluções ao alcance de todos aqueles que efetivamente busquem resolvê-los.
Já havíamos contratado com ele a edição deste livro quando o filme baseado em O Pagador de Promessas foi premiado em Cannes. Não se louvaram, com isso, apenas as excelências formais do filme dirigido por Anselmo DUARTE, mas basicamente a riqueza humana de sua história. O que demonstra, portanto, que a verdadeira obra de arte só pode ser aceita no plano internacional quando focalize, como ocorre com as peças de DIAS GOMES, O particular, o setor, o nacional.
Lançando A Invasão e A Revolução dos Beatos participamos modesta, mas decididamente do esforço criador de DIAS GOMES, certos de que os belos frutos do amanhã serão colhidos no tempo justo.
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A.
ÊNIO SILVEIRA
diretor

NOTÍCIA SOBRE DIAS GOMES

A carreira de Dias Gomes não é exatamente aquilo que se possa chamar um suceder de alegrias; na verdade, a posição que ocupa hoje no teatro brasileiro foi conquistada duramente, com pertinácia e obstinação. No atual processo de desenvolvimento da dramaturgia brasileira têm surgido, da noite para o dia, autores de talento, todos eles voltados para a pesquisa do nosso homem e de nosso meio; Dias está ao lado deles, na vanguarda dessa dramaturgia — mas veio por caminhos diferentes.
Foi romancista — é preciso que se diga aqui, embora o autor faça todo o possível para que se esqueçam desse pecado. Ele pretende, na medida que seu possível dinheiro venha a permitir, retirar seus romances (três ou quatro) da circulação. Deve-se registrá-lo, fiel ao pensamento de Carlos Drummond de Andrade, que "a vida não pode ser passada a limpo". Os romances são maus, nada acrescentam à novelística do país — no teatro é que o autor iria encontrar-se.
E no teatro também teve duas fases. A primeira, Dias a iniciou, muito jovem ainda, com Pé de Cabra, e depois escreveu Amanhã será outro dia. Ninguém o duvida, mas o autor colocou certa ênfase no enredo: tinha vinte anos. Daí em diante, começou a se preocupar com alguns aspectos da realidade brasileira, e então escreveu Sulamita, Zeca Diabo e Um pobre gênio. A primeira foi montada com mudança do título e da cor do protagonista, que era preto no texto e virou branco no espetáculo. Um pobre diabo não chegou ao palco, já que a peça tratava das reações de um grupo de operários em greve, e a opinião geral dos empresários da época era a de que "negro tem que ser criado" (o que justifica o primeiro incidente) e de que a platéia "não aceita um herói operário". Dias Gomes, assim como tantos outros dramaturgos da época, teve que se colocar no velho dilema de conceder ou desistir. Desistiu, ficou torcendo para que a mentalidade mudasse, e foi ganhar a vida no rádio e depois na televisão. Ganhou-a assim, até que recebeu indícios de que a mentalidade estava mudando. Em 1955, Jorge Andrade fora saudado como uma grande esperança; sua peça A Moratória colocava no palco a verdade do comportamento humano do brasileiro, e analisava as conseqüências do "crack" da Bolsa em 1929. Pedro Mico tinha como herói um malandro de morro e Antônio Callado tratou o tema com tamanha naturalidade e fascínio, que concorreu fortemente para afastar o capachismo cultural que dominava nossos dramaturgos. E em 1958, Gianfrancesco Guarnieri propôs com êxito espetacular a temática nova — o estabelecimento no palco de uma legítima consciência social, a observação de contradições que a compõem, e uma humanidade, um lirismo, um tom brasileiro no diálogo até então desconhecidos. O surto de nacionalismo e a ânsia de desenvolvimento tomavam conta do Brasil; iniciavam-se as primeiras mudanças na estrutura política; o país tomava noção de suas limitações e de suas possibilidades. Tudo isto tinha que se refletir no teatro, e as platéias até então alienadas, respirando um drama importado, passaram a ter curiosidade por aquilo que, estando à sua volta, era demonstrado no palco. Dias Gomes podia recomeçar a escrever — e deu início à sua segunda fase.
Trancou-se em casa e começou uma peça que há muito tinha na cabeça: a história de um homem simples e ingênuo, mas leal e fiel a si mesmo, em conflito com a intransigência, o dogmatismo e a malícia de linguagem. Mesclou ao tema recordações de sua infância em Salvador, concentrou a ação no drama do protagonista mas suportou-a bem pelos coadjuvantes, e lhe deu, sobretudo, além da vivida observação humana, os elementos constitutivos de um drama social. Durante a preparação do texto, comportou-se como seu personagem "Zé do Burro", hoje mundialmente famoso: foi obstinado e perseverante, não assistiu a nenhuma peça por mais de oito meses, já que não queria receber influência alguma. Só saiu desse exílio voluntário quando a deixou inteiramente pronta: e lhe deu o título de O Pagador de Promessas.
Cinco meses mais tarde, a peça estreava no TBC. Desde os primeiros ensaios os atores se entusiasmaram com as qualidades do texto. >. Tive a honra de dirigi-la, e na ocasião escrevi que "... servido por uma história de admirável imaginação, o autor não se limitou a fixar caracteres e se esquivou habilmente de cair no simplesmente episódico ou típico; sua história ultrapassa a praça de Salvador onde se localiza a ação para transformar-se em termos universais de debate moral e de conflito ético. O choque Zé do Burro-Padre pode ser elevado às infinitas proporções dos choques entre a liberdade e a intolerância, entre a bondade inata e a malícia da ordem estabelecida, entre a pureza dos simples e o temor dos medrosos. O processo de desintegração que sofre o protagonista nada mais é do que conseqüência do pacto com a morte que ele assumiu no momento em que sua ingenuidade permitiu uma elasticidade maior. Entre a proposição de enquadrar-se no que já está elocucionado e a manter a fidelidade ao próprio mundo, ele opta pela própria dignidade. E antes que surja o tempo do homem, os que pretendem antecipá-lo pagam um preço alto: o preço que Zé do Burro paga no final da peça." O espetáculo teve um extraordinário êxito, e mereceu as seguintes palavras do crítico paulista Saboto Magaldi: "Aqueles que se comovem com a ternura de O Idiota, de Dostoievski; aqueles que sentem o desamparo de Woyzeck, de Buchner; aqueles que sabem como é difícil afirmar-se a pureza e a inocência num mundo dominado pelas maquinações da linguagem, — vão sofrer com o destino de Zé do Burro e aplaudir a profunda humanidade da peça de Dias Gomes."
Do TBC, a peça voou para Cannes — e auxiliada pelo belo tratamento cinematográfico que Anselmo Duarte lhe deu, trouxe para o Brasil a "Palma de Ouro".
A Editora Civilização Brasileira agora traz a público mais duas peças inéditas: A Revolução dos Beatos e A Invasão. Ambas têm em comum alguns elementos conteudísticos e diferem na forma. Tem em comum a observação social, os elementos contrastantes de um determinado grupo humano, a simpatia pelos humildes e a notícia dialética da transformação da sociedade. Quanto à forma, a última se pretende uma síntese quer do ponto de vista de cenário como de desenvolvimento dramático; e a primeira deseja um maior arrojo, uma multiplicidade de cenas, um desenrolar quase cinematográfico.
A Revolução dos Beatos analisa um de tantos casos semelhantes no estágio de subdesenvolvimento cultural do Brasil, um dos casos menores de que está repleta a legenda de histeria coletiva que tomou conta de Juazeiro do Ceará, através do Padre Cícero. A peça tem alguns elementos verídicos, mas novamente Dias soltou sua imaginação. O fio condutor da história é o processo de conscientização de um modesto camponês, do misticismo à tomada de consciência social, e a experiência humana que ele retira dos acontecimentos. Desfilam novamente nesta peça autênticos personagens brasileiros. Captando quase fotograficamente o ambiente, Dias domina o enredo e observa o que se passa, sem nunca se integrar em demasia no próprio conflito. Como em suas outras peças, a lucidez novamente aqui se faz presente. Com relação a O Pagador de Promessas, há também um passo à frente. Os personagens secundários são mais bem tratados, e o antagonista recebe melhores razões. Com a história prosseguindo no seu ritmo, o autor nos informa em detalhe sobre as condições humanas, geográficas, sociais e políticas nas quais vivem os personagem. A peça tem duas versões, e a que o público vai ler difere um pouco da que verá no palco.
A Invasão também se ampara num fato verdadeiro; a história de um grupo de favelados que, sem lugar de residência, se apossa de um edifício abandonado; na realidade, é aquilo a que se deu o nome de Favela do Esqueleto. É uma peça urbana, e se do ponto de vista exterior tem alguns pontos de contacto com Street Scene de Elmer Rice, é intensamente brasileira da primeira à última palavra. Tendo cenas de grande beleza e com uma dosagem de emoção de rara sobriedade (como na cena da morte do filhinho de "Santa"), A Invasão é uma peça plena de um sentido reivindicatório que analisa sardônicamente toda e qualquer espécie de paliativo que os atuais detentores do poder encontram para adiar uma solução que a cada dia é mais urgente.
As três últimas peças de Dias Gomes — O Pagador de Promessas, A Revolução dos Beatos e A Invasão — formam, portanto, assim como que uma trilogia. São significativas também dos novos caminhos que os dramaturgos brasileiros estão procurando: o abandono completo do drawing-room-play, em favor de urna pesquisa formal que lhes abra novos horizontes, com a sucessão ininterrupta de cenas, com a preocupação permanente de ritmo, tudo isso resultando numa síntese que se aproxima de um novo teatro épico; é um teatro ao ar livre.
As coisas estão entrelaçadas, e o moderno teatro brasileiro não nasceu ao acaso. Os novos dramaturgos brasileiros — e ao lado de Dias Gomes estão Gianfrancesco Guarnieri, Jorge Andrade, Antônio Callado, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, Francisco de Assis, Francisco Pereira da Silva, Ariano Suassuna — estão intensa e fervorosamente voltados para os problemas de nosso país. São representantes da nova mentalidade do Brasil; a mentalidade de não conformismo, a moção de que os reveses não nos devem abater, uma aspiração de desenvolvimento que chega a comover e sobretudo uma aguda consciência social e política. Os temas distantes das problemáticas com as quais estamos a braços estão definitivamente banidos do teatro. O novo teatro brasileiro, através de seus dramaturgos, intérpretes, encenadores e cenógrafos, tem sua parte de contribuição ao chamado "cinema novo". É o despertar de uma arte autêntica e séria, ao lado do despertar de nossa nação.
Estas coisas estão todas entrelaçadas à sociologia, aos nossos problemas políticos mais fundamentais, às ligas camponesas, à necessidade da reforma agrária, ao desenvolvimento industrial, à ascensão irreversível das classes proletárias, etc. Assim, o novo teatro do Brasil está olhando para dentro; não se trata mais de transcrições de Sardou ou Berstein. Hoje os protagonistas são operários, camponeses, líderes sindicais e agregados de fazenda. São brasileiros, e o que é melhor: falam nossa língua.
Há anos que Dias Gomes desejava esta possibilidade. Hoje finalmente pode escrever o seu teatro. É um teatro engajado, é a noção completada de que um artista decente não pode furtar-se à sua contribuição inalienável à história. É também um teatro combatido, sobretudo censurado. Mas é o melhor; e é o único de que temos necessidade.
FLÁVIO RANGEL

A Invasão

A INVASÃO
(3 atos — 5 quadros)


PERSONAGENS:
Bené
Isabel
Lula
Bola Sete
Lindalva
Malú
Justino
Santa
Tonho
Rita
Profeta
1.º Tira
2.º Tira
Mané Gorila
Comissário
Deodato Peralva
e mais um punhado de favelados
de todas as idades
negros, brancos e mulatos.

ÉPOCA: Atual
AÇÃO: Rio de Janeiro.

PRIMEIRO ATO

PRIMEIRO QUADRO

Cena quase inteiramente às escuras. É impossível ao espectador identificar o cenário. Ele divisa apenas alguns vultos, que se movimentam nas trevas e ouve as primeiras "falas" sem saber quem as pronuncia (1).

(1) O tom de representação durante todo este quadro deve ser, necessariamente, abafado, a meia-voz, num clima de "suspense".


BENÉ
(Num tom abafado) Por aqui. Podem vir.
ISABEL
Espera aí, homem. Tá tudo cheio de prego. Já me estrepei...
LULA
Fala baixo, mãe! O Guarda pode ouvir...
BENÉ
O Guarda tá longe. Aproveita, gente!

Os vultos de ISABEL, BENÉ e LULA se movimentam da direita para a esquerda. Ouvem-se outras vozes: — Depressa! — Vamos! — Cuidado aí!

ISABEL
Olha, aqui eu acho que tá bom. Vamos tomar conta desse pedaço antes que chegue gente.
LULA
Fiquem vocês aí, eu vou buscar o resto dos troços.

LULA sai correndo. Mais adaptado à semiobscuridade, que já não é tão intensa, o espectador identificará o esqueleto de cimento armado de um edifício em construção. Não há paredes, apenas as colunas e os pisos. Destes, vê-se, além do térreo, o primeiro andar. Adivinham-se outros acima. Cada um dos pisos é dividido ao meio por uma série de pilastras, de modo que a cena abrange, na realidade, os esqueletos de quatro apartamentos (1), dois no térreo e dois no primeiro andar, ligados, ao fundo, por uma escada, que continua para os andares superiores. Mas a aparência é de uma obra paralisada há bastante tempo. Uma pilha de tábuas. Um tabique cerca a construção, à E. à D. e ao F., havendo uma pequena área na frente. ISABEL e BENÉ procuram ajeitar-se no "apartamento" térreo da esquerda (2). Cada um deles trouxe um saco com utensílios de cozinha, uma enorme trouxa de roupas, etc. Há também uma cadeira velha e um colchão que foram trazidos por LULA. AS vozes de BOLA SETE e LINDALVA vêm do 1° andar, abafadas também, receosas.

(1) Convencionaremos chamar "apartamentos" a essas divisões.
(2) A critério da Direção, figurantes, homens, mulheres e crianças, sobem as escadas para os "andares superiores".

LINDALVA
(Assustada) Tu ouviu? Tem gente aí!
BOLA SETE
Será o guarda?...
LINDALVA
Não é um só, é muita gente!
BOLA SETE
Deve ter chamado a Rádio Patrulha... te manca aí que eu vou dar uma olhada...
LINDALVA
Espera, desgraçado! Deixa eu me vestir primeiro!

BOLA SETE surge no apartamento da esquerda do primeiro andar, levantando-se cautelosamente do piso, onde estivera deitado com LINDALVA. É um negro alto, musculoso e desempenado. Está de corpo nu, veste calças brancas de brim ordinário. Ele espia lá de cima o movimento no andar térreo e ergue também a vista para os andares superiores, cautelosamente. No andar térreo, surgem JUSTINO, SANTA, MALÚ, TONHO e RITA. Vêm também carregados de trouxas, sendo que SANTA traz ao colo uma criança de meses, adormecida e embrulhada em panos. Todos cinco têm a mesma expressão de atordoa-mento. Por alguns instantes ficam sem saber o que jazer, olhando para os lados, receosos e intimidados.

JUSTINO
Vamos arrumar um lugar pra nós. (Olha em volta. É um homem de mais de cinqüenta anos, magro, faces encovadas e olhar de fera acuada. A despeito de sua magreza, da tez moreno-amarelada, e do cansaço que marca suas feições, dá impressão de uma força interior difícil de explicar, pois tudo nele é a imagem da derrota. Desde a roupa empoeirada, à barba rala e crescida).
MALÚ
(Nota que há espaço no apartamento da direita). Aqui, pai...
SANTA
E a gente pode invadir assim...?
JUSTINO
Poder não pode, mas tá todo mundo invadindo...
TONHO
(Aponta para os andares superiores). Olha lá pra riba: é gente de meter medo.
JUSTINO
Tome o caixote. Bote o menino dentro dele.
SANTA
(Entregando a criança a. Rita) Segure o menino aqui.

SANTA trata de improvisar um berço no caixote que JUSTINO lhe deu, enquanto MALÚ e TONHO procuram acomodar a "bagagem" no espaço que lhes coube. LINDALVA aparece no andar superior, enfiando um vestido pela cabeça. É uma mulata de formas exuberantes e sensuais.
BOLA SETE
Polícia coisa nenhuma. É o pessoal lá do morro.
LINDALVA
Do morro?
BOLA SETE
Sim, gente que ficou sem barraco, como nós. Já ouvi a voz do Bené aí em baixo.

LULA entra carregando um tamborete, um par de chuteiras e algumas peças de roupa. Terá 20 anos, ou pouco mais. Sente-se nele um desejo de afirmação, de quebrar as cadeias que o prendem a condições e concepções de vida primárias. Uma consciência, ainda embrionária, de um papel mais importante na sociedade. Seu conflito com o meio é flagrante. Seu processo de libertação também parece evidente.

LULA
Tem mais nada lá não.
BENÉ
E a garrafa de pinga?
LULA
Procurei mas não achei. Acho que alguém afanou.
BENÉ
(Enfurece-se) Afanou?! Quero saber quem foi o filho da mãe!...
ISABEL
Chiiiu... não faça escândalo, homem! Quer que a Polícia venha logo botar a gente pra fora?
BENÉ
Sacanagem... a garrafa tava quase cheia. (Sai)
ISABEL
Tomara mesmo que tenham levado. Tomara.
LULA
Adianta não. Ele compra outra. (Vendo que ISABEL procura arrumar os utensílios) Você vai arrumar isso agora?
ISABEL
Vou nada. Vou mas é dormir. Amanhã a gente vê como faz. (Com pessimismo) Se amanhã a gente inda estiver aqui. (É uma mulher forte, decidida, afeita ao trabalho duro. Sua coragem — uma espécie de valentia animal e pouco consciente — é capaz de levá-la a rasgos heróicos. Seu companheiro, BENÉ, ao contrário, é um vencido, física e moralmente. Sua única esperança está no filho, LULA, para o qual transferiu toda a sua capacidade de luta e de quem espera uma espécie de vingança pelas injustiças sofridas, de desforra pelo ostracismo a que se viu relegado. No fundo, é o anseio de continuidade, inerente a todo indivíduo. ISABEL não tem consciência do drama do companheiro, evidentemente. E embora não lhe falte uma certa dose de compreensão humana, de solidariedade, principalmente, em suas relações com ele há sempre um travo de revolta e sarcasmo).
LULA
Amanhã nada. Logo mais. O sol não tarda a nascer.

ISABEL improvisa uma cama. LULA avança para o terreno à frente do prédio, onde há mais claridade, e aí põe-se a enfiar os cordões de uma chuteira.

BOLA SETE
(No andar superior, para LINDALVA) É O filho do Bené, o Lula.
LULA
(Volta-se, olha para cima e vê BOLA SETE e LINDALVA) Olá, Bola Sete. Você tá aí?
BOLA SETE
(Um pouco constrangido) Tou... que foi que aconteceu?
LULA
(Sem entender a pergunta) Por enquanto, nada.
BOLA SETE
Vocês invadiram o esqueleto?
LULA
Então. Íamos continuar dormindo na rua? (Estranha a pergunta). Você não veio com a gente, nego?
BOLA SETE
Não, eu já tava aqui... com a Lindalva...
LULA
(Compreende) Ah... viemos estragar a lua de mel...
ISABEL
Lula, você não vem se deitar?
LULA
Vou esperar o pai. Ele pode arrumar encrenca...
LINDALVA
(Para BOLA SETE) EU acho melhor você fazer o mesmo: ir buscar os nossos trens.
BOLA SETE
É mesmo. (Vê-se ele descer a escada e sair)
PROFETA
(Aparece, de súbito, no primeiro piso, no compartimento da direita. É um mulato de pequena estatura, longa barba negra, cabeleira hirsuta. Veste calças escuras e surradas. A camisa também escura por fora das calças, sandálias, porta-se com a dignidade e a serenidade de um verdadeiro profeta. É um neurótico, não há dúvida, mas entre a gente humilde que o cerca, infunde, senão algum respeito, pelo menos um certo temor.) Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra. De todos os lados vêm "psius".
TONHO
O Profeta também veio.
SANTA
(Com temor supersticioso) Mexa com ele não. Beato anda sempre metade com Deus, metade com o Cão.
RITA
Eu quero dormir. Estou com sono. (Tem 14 anos, mas aparenta muito menos em seu raquitismo, sua desidratação)
JUSTINO
(Anda de um lado para outro com uma rede na mão) Se a gente pudesse armar essa rede...
SANTA
Rede coisa nenhuma. Trate de deitar no chão mesmo. Inda estamos com sorte de ter um telhado. Rita, veja se se ajeita aí. (RITA deita-se no chão. SANTA ajeita-se ao lado do filho) Há cinco noites que isso não acontece. (Repara que MALÚ está debruçada sobre o caixote, olhando a criança) Que foi?
MALÚ
Nada não. Ele tá tão quieto... que parece morto.
SANTA
Deus me perdoe, mas era uma sorte pra ele.
TONHO
Se ele danar a chorar?
SANTA
Que tem?
TONHO
O Guarda... íamos ser descobertos.
MALÚ
Chora não. Ele tá tão quieto. (Sob o seu linfatismo, percebem-se alguns traços de uma beleza irregular, uma beleza triste, doentia, sem cor e sem vida, que não chegou a se afirmar por falta de proteínas.)
PROFETA
(No andar superior, de pé, de olhos cerrados.) É preciso rezar. Rezar. Elevar o pensamento até Deus, pra que Ele nos defenda, porque nós somos o Seu povo. Deus sabe escolher. Deus sabe quem tá de Seu lado. Deus conhece a Sua gente. É gente perseguida, humilhada, gente sem teto e sem pão. Por isso Jesus disse: bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos.

Curiosa por ver o PROFETA, MALÚ avança para a área onde se encontra LULA.

LULA
Se esse cara continua a pregar sermão, vai acabar todo mundo em cana.
MALÚ
Ele tá rezando.
LULA
Besteira. Não acredito nisso. Com toda a reza dele, com todo o apadrinhamento com Deus, o barraco dele foi o primeiro a rolar pelo morro abaixo, na noite de enchente. Que adiantou? Ele diz que é profeta, que têm visões e recebe avisos. Mas da enchente se esqueceram de avisar...
MALÚ
Diz que morreu todo mundo.
LULA
A mulher, só. As duas crianças se salvaram.
MALÚ
Mulher dele?
LULA
Não, irmã. Vocês também perderam o barraco?
MALÚ
Não. Nem chegamos a construir. Pai tinha arrumado um lugar, uns pedaços de madeira, quando veio a chuva.
LULA
Chuva do diabo.
MALÚ
Engraçado...
LULA
O quê?
MALÚ
Vocês aqui xingam a chuva. Lá no Norte, a gente reza pra ela vir. E a peste não vem. Acaba a gente tendo que vender os teréns, comprar uma passagem num pau-de-arara e vir pra cá. Pra não morrer de sede... pra vir morrer aqui de fome, de desabamento ou outra coisa qualquer.
LULA
(Depois de uma pausa, sem saber o que dizer.) É, a vida é dura... E o pior é que não estão querendo deixar refazer os barracos. Botaram polícia lá pra não deixar.
MALÚ
Por quê?
LULA
Diz que o lugar é perigoso. Que pode rolar outra pedra e fazer mais mortes. Conversa. Como se eles estivessem muito preocupados com a vida da gente. Aquela pedra tava pra rolar há mais de um ano. Tudo quanto foi jornal falou. Eles ligaram? Nem bola.
MALÚ
Por que, então?...
LULA
Eles querem é que a gente saia de lá. Grileiro combinado com a Polícia. Aproveitaram. E quem quiser que se arrume.

BOLA SETE sobe a escada, carregado com os utensílios que conseguiu salvar do seu barraco. Leva-os para o "apartamento" onde está LINDALVA.

LINDALVA
Como você demorou!
BOLA SETE
Tive que esperar o guarda fazer de novo a volta no quarteirão pra entrar. (Descarrega os objetos, roupas, um colchão, panelas, um violão, etc.). Veja, nega, que Lua! Uma vontade de castigar o violão...
LINDALVA
Você tá maluco.
MALÚ
(Na área) Lá ou cá, é tudo a mesma coisa: a gente vive sempre escorraçada.
LULA
Se a gente pudesse ficar morando aqui...
MALÚ
E vão deixar?
LULA
Podiam deixar. Há três anos que essa porcaria tava aí abandonada. Nem vigia tinha. Um prédio de dez andares, sem serventia nenhuma. E nós jogados fora, dormindo no Hotel das Estrelas. Que custava?...
MALÚ
Acredito não. E tenho medo que vá ser pior. Quando o dia clarear e descobrirem nós aqui...
LULA
É mas aqui tem gente que tá pro que der e vier.
MALÚ
Se vier a Polícia?
LULA
Na hora é que vai se ver. Você tá aí do lado?
MALÚ
Tou.
LULA
Agora a gente vai se ver todo dia... se não tirarem a gente daqui.
MALÚ
É...
LULA
Vai ser bom.
MALÚ
Capaz.
LULA
Você trabalha?
MALÚ
Inda não. Tou procurando emprego.
LULA
Quem sabe lá na fábrica onde eu trabalho...? Tem muita moça empregada na fiação. Quer que eu veja se tem vaga?
MALÚ
Se quero.
LULA
Você veio do Norte?
MALÚ
Da Paraíba.
LULA
Longe à beça, não?
LULA
Você precisava viajar 15 dias espremido num pau-de-arara pra ver... Quinze dias sentado num banco duro, sem poder nem espichar as pernas. Tem que espichar uma de cada vez, pras duas não dá espaço.
LULA
(Ri) Deve ser uma dureza. Já ouvi falar de sua terra... que foi mesmo que eu ouvi falar? Ah! foi uma música de carnaval... besteira. (Ri) Engraçado...
MALÚ
O quê?
LULA
Você vir de tão longe... e a gente se encontrar aqui, invadindo um prédio. Não é engraçado?
LULA
Acho não. Cada vez acho menos graça no que a vida faz com a gente.
BENÉ
(Entrando) Cambada!
LULA
Não achou?
BENÉ
Nada. Roubaram. Depois a gente mata um cara desses...

(Dirige-se ao seu apartamento, resmungando)

LULA
(Para MALÚ) Amanhã eu falo na fábrica. Não vou esquecer.
MALÚ
Obrigada.
BENÉ
Que faz você aí que não vem dormir? Lembre que amanhã é Domingo, tem jogo e um olheiro do Flamengo vai lá.

LULA vai a BENÉ, MALÚ afasta-se para a direita.

LULA
Não sei nem se vou jogar.
BENÉ
(Indignado) Não sabe?! Você não tá escalado?
LULA
Tou, mas... (Faz um gesto de fastio). Era melhor que botassem o Biriba no meu lugar.
BENÉ
Biriba coisa nenhuma. Biriba é um perna de pau.
LULA
Mas sou eu que não tou querendo...
BENÉ
E você vai perder uma oportunidade dessas? Já disse: um olheiro do Flamengo vai lá. Me garantiram.

LULA dá de ombros e deita-se no colchão.
LULA
(Vencido, para encerrar o assunto) Tá bem.
JUSTINO
(Na direita, para MALÚ) Estendi a rede no chão. Pode deitar. Tonho já ferrou no sono e Rita também.
MALÚ
E o senhor?
JUSTINO
Eu me arrumo. Tenho sono não.
BENÉ
(Para LULA) Já pensou? Um olheiro do Flamengo!

LULA tem um gesto de impaciência e revolve-se no colchão.

JUSTINO
(Na direita) Tem fome não?
MALÚ
Tava com muita inda agora. Passou.
JUSTINO
É isso de não saber o que tá pra acontecer que tira até a fome da gente.
MALÚ
O senhor acha que nós não devíamos ter tomado parte na invasão?
JUSTINO
Acho é que a gente nunca devia ter saído de nossa terra. Nunca.
MALÚ
E ficar lá pra quê?
JUSTINO
E aqui? Nós somos demais aqui, Malú. A cidade empurra a gente pra fora. Tudo empurra a gente pra fora. Até parece que nós cometemos algum crime. Invadimos terra alheia.
MALÚ
Quem sabe? Pode ser que as coisas melhorem. Tonho já vai trabalhar. Prometeram arranjar pra ele um lugar de pedreiro.
JUSTINO
(Pessimista) Prometeram...
MALÚ
Verdade. Ele não lhe disse?
JUSTINO
Há quinze dias que ando de um lado pra outro, me oferecendo pra qualquer emprego. Me olham como se eu fosse leproso. E tem uns que querem me dar dinheiro, roupa. Quero trabalho, não quero esmola.
MALÚ
É por causa da idade, pai. Mas Tonho é moço...
JUSTINO
E eu sou algum velho? Será que não presto mais pra nada? Nem dois Tonhos fazem o que eu faço no cabo duma enxada. (Numa transição). Mas talvez eles tenham razão. Fora da terra da gente, a gente perde a força, não é mais o mesmo. Estou sentindo que não sou mais o mesmo. Uma frouxidão...
MALÚ
Deixa disso, pai.
JUSTINO
Frouxidão, sim, Malú. Nunca tive medo de nada — e agora tudo me mete medo.
MALÚ
Isso é de não comer, de não dormir direito.
JUSTINO
Sei não. Só sei que me rói cá por dentro uma vontade danada de voltar. Até sonho com isso.
MALÚ
Voltar pra aquela terra seca, esturricada, de onde tivemos que sair pra não morrer?
JUSTINO
A culpa não é da terra, Malú. A culpa é dos homens. A terra também sofre. Também tem sede, como a gente. Mas em vez de dar de beber à terra, a gente o que faz é xingar, amaldiçoar, ou então fugir num pau-de-arara, como nós. A terra é boa, nós é que somos frouxos.
MALÚ
Pai, quando nós saímos já tinha secado tudo quanto era cacimba!
JUSTINO
(A indisfarçada hostilidade com que a cidade os recebe gera nele um sentimento de culpa. Culpa que ele não sabe bem precisar se advém do abandono da terra natal ou da invasão da terra estranha; não tem ele, na realidade, a menor noção dos seus direitos nesta comunidade que o trata como um intruso, um criminoso.) Sei não. (Balança a cabeça, desnorteado.) Sei mais nada não. Estou feito cavalo cego, me batendo pelos barrancos. (Inicia o movimento para a direita.)
PROFETA
(No andar superior) Porque Jesus disse: não adianta juntar tesouros na terra. A terra tá cheia de ladrões, eles roubam tudo. Nosso dinheiro, nossa casa, eles tomam conta de tudo e dizem que é deles, que nós não temos direito a nada. Por isso, disse Nosso Senhor — que adianta? Nós devemos juntar tesouros mas é no céu. Lá a gente deve ter a nossa casa, as nossas riquezas, porque lá não entra quem roubou na terra o que era de todos. Os donos da terra, os donos das casas, dos automóveis, eles não sabem que não são donos de nada. Nós sim, somos donos de tudo, porque temos a fé! Porque Jesus disse...

Ouve-se, um pouco afastado, o apito estridente do guarda-noturno, cortando a fala do PROFETA. BENÉ, LULA, TONHO, BOLA SETE e ISABEL ergueram metade do corpo, subitamente. JUSTINO e MALÚ ficam imóveis, todos apreensivos.

BENÉ
Esse filho da...
ISABEL
(Cortando) Não xinga o Profeta, Bené! Dá azar! Sete anos de atraso!
BENÉ
(Num gesto brusco) Ah!

Há um longo silêncio, cheio de apreensão. Por fim, ouve-se outro apito do GUARDA, bem mais distante. Todos se deitam, tranqüilizados.

MALÚ
Passou...
JUSTINO
É, mas quando o dia amanhecer, ele não vai passar... (Acomoda-se num canto, fazendo uma trouxa de travesseiro).

MALÚ pára junto ao berço e fica olhando a criança, tristemente. A luz vai-se apagando em resistência, enquanto...

LINDALVA
Que foi?
BOLA SETE
Nada, nega. O panela de pressão que tirou um fino em nós. Esses caras não respeitam nem o amor da gente...
LINDALVA
Olha, cuidado que o dia tá clareando...
BOLA SETE
Ah, nega, você nasceu pra fazer nego sofrer...

A luz se apagou de todo.


FIM DO PRIMEIRO QUADRO


SEGUNDO QUADRO

Cerca de dez horas da manhã do mesmo dia. Isabel entra com uma trouxa de roupas, que se põe a estender num varal armado na área, à esquerda. Simultaneamente, Justino procura armar a rede no apartamento da direita, enquanto Malú tenta uma arrumação primária em seus teréns. E no elevado Bola Sete canta, ao violão, para Lindalva, o seu samba:


BOLA SETE
E se um dia
minha nega me deixar...

Vou, vou,
Vou me acabar bis
de dor!

Que vale a vida
sem a nega pra amar?

Vou, vou,
Vou me acabar bis
de dor!

Ai, por que Deus
Fez a noite tão curta?
A noite não chega
Pra amar minha nega.
LINDALVA
Legal, nego.
BOLA SETE
Você inda vai ouvir este samba gravado e o nome do crioulo falado no Rádio.
LINDALVA
Você não vai vender esse praquele tal de compositor? (Prepara o café num fogão a carvão).
BOLA SETE
Vou não, nega. Vendi aquele outro porque tava mesmo numa disga miserável. Mas este eu hei-de ter o prazer de ouvir o espiquer castigar no micro: "Minhas senhoras e meus senhores, vamos ouvir agora o samba de Oriovaldo Santos..." Já pensou?
LINDALVA
Ia ser um abafa. Aquelas negrinhas fididas lá do morro iam morrer de inveja. Então a Doracy, pensando sempre que é maior do que os outros só porque o marido é fiscal da Light, queria ver...
BOLA SETE
Pois vai ver. Nem que eu tenha que ir no Joãozinho da Goméa fazer um despacho.
LINDALVA
Se você quiser, eu faço.
BOLA SETE
Fazemos os dois. É preciso cercar o bicho pelos sete lados.
LINDALVA
Você parece que não confia muito no samba...
BOLA SETE
Confio, sim. Mas a luta é dura. Bossa só não chega. Se não tiver um orixá pra ajudar...
LINDALVA
Será que Xangô é bom pra isso?
BOLA SETE
O Babalorixá é quem vai dizer. (Volta a dedilhar o violão e a cantar baixinho o estribilho).
JUSTINO
(Continua tentando prender a rede nas pilastras). Inda tem quem cante...
MALÚ
Que horas devem ser?
JUSTINO
Sei lá. Umas dez horas, ou mais.
MALÚ
Até agora nada... não apareceu um guarda, um polícia... ninguém veio reclamar. (Incrédula) Será que vão deixar a gente ficar aqui, pai?
JUSTINO
Vá esperando. (Faz uma pausa em sua ocupação) Essa demora é mau sinal.
MALÚ
(Vem à área, olha demoradamente para os andares superiores) E parece que ninguém tá ligando. Só nós.
JUSTINO
(Volta ao seu trabalho) Estão fingindo que não estão ligando. Já vi cabra subir aí pra riba armado de faca, de pau...
MALÚ
Acha que vão resistir, se a Polícia vier?
JUSTINO
Acredito não. Como eles botaram a gente pra fora do morro, botam pra fora daqui também.

MALÚ aproxima-se do caixote onde está a criança, ajoelha-se e põe-se a ajeitá-la entre os panos.

LINDALVA
Tome o café.
BOLA SETE
(Para de tocar, toma o café de um trago) Eles estão demorando.
LINDALVA
Quem?
BOLA SETE
Os tiras.
LINDALVA
Você acha que eles inda vêm?...
BOLA SETE
Você tem dúvida? Estão aí não demora muito. (Entrega a caneca a LINDALVA) VOU lá fora dar uma sapeada. (Encaminha-se para a escada, enquanto Lindalva se põe a arrumar os utensílios).
MALÚ
Vai ser ruim se a gente tiver que sair daqui antes da mãe, Tonho e Ritinha chegarem.
JUSTINO
Também, que era que eles tinham de sair tão cedo?
MALÚ
Tonho foi ver se vendia aquela parnaíba de bainha de couro bordada. (Exteriorizando uma revolta subconsciente) A gente precisa comer!
JUSTINO
Eu sei. Mas sua mãe mais sua irmã?
MALÚ
Foram procurar emprego. (De novo a revolta) Também não se pode ficar aqui esperando, esperando que a Polícia chegue e toque a gente daqui pra fora, como tocou do morro pro Maracanã. E depois de lá pro meio da rua. A gente tem que ter um rumo!
JUSTINO
(Dolorosamente, como se a palavra o ferisse mortalmente) Um rumo!

BOLA SETE, que desceu a escada, está agora diante deles.

MALÚ
Que foi?
BOLA SETE
Tonho?
MALÚ
Saiu.
BOLA SETE
Queria combinar com ele pra amanhã. Saio cedo pro batente, ele precisava ir comigo.
MALÚ
Foi o senhor quem prometeu arrumar emprego pra ele?
BOLA SETE
Foi. Lá na construção onde eu tou trabalhando pode ser que se arranje. Vai ter que começar de ajudante...
MALÚ
Qualquer coisa serve. Ele demora não.
BOLA SETE
Diga pra ele. (Aponta para o andar superior) Tou lá em cima.
MALÚ
Tá bem.

ISABEL armou uma tábua de passar roupa e aviva as brasas de um ferro de engomar, assoprando-as.

BOLA SETE
(Inicia a saída e ao passar por ISABEL, detem-se) Castiga o ferro, Zabé!
ISABEL
Vai pro diabo que te carregue!
BOLA SETE
(Solta uma gargalhada sonora. Observa a arrumação dos compartimentos) Vocês estão bem alojados por aqui... Até parece que vão ficar pra toda vida...
ISABEL
E não vamos? Daqui só saio se me deixarem voltar pro morro, pra refazer o meu barraco.
BOLA SETE
Mas vão deixar, hein? Grileiro botou a mão naquilo...
ISABEL
Porque vocês não são homens. Se fossem, não tinha saído ninguém de lá, tinham botado a Polícia pra correr.
BOLA SETE
Enganaram a gente. Que iam dar um apartamento pra cada um.
ISABEL
Bem feito pra vocês não irem em conversa de padre.
BOLA SETE
Eu sei que eles também estão nessa boca. Mas não há de ser nada. Lá no céu a gente acerta as contas... (Ameaça novamente a saída)
ISABEL
Se você encontrar aquele folgado do Bené, mande ele pra cá.
BOLA SETE
Onde ele foi?
ISABEL
No futebol, com o Lula. Fica a infeliz aqui dando duro pra eles se divertirem. Tou com toda essa roupa pra entregar inda hoje...
BOLA SETE
Bené não é de fazer força.
ISABEL
É, mas um dia ele vai se dar mal... Tou lhe dizendo.

BOLA SETE ri e sai. ISABEL põe-se a passar a roupa. JUSTINO conseguiu, enfim, armar a rede.

JUSTINO
Pronto. (Experimenta a firmeza da rede) Tá firme.
MALÚ
Que adianta? Quer ver que a gente vai ter que sair daqui hoje mesmo. (Apanha uma panela de alumínio).
JUSTINO
Que vai fazer?
MALÚ
Inda tem um resto de farinha. Vou fazer um mingau pra ele (Olha para dentro do caixote, tristemente) Ele tá tão feio, empalamado. Parece um macaco. (Abre uma lata, despeja a farinha na panela. A Isabel). Tem um bocadinho d'água?
ISABEL
(Aponta a garrafa) Tire ali.

MALÚ apanha a garrafa, derrama um pouco na panela.

ISABEL
Mingau de farinha?
MALÚ
É. Pro menino.
ISABEL
(Estranha) E ele toma isso?
MALÚ
Nunca tomou outra coisa.
ISABEL
E leite?
MALÚ
A mãe não tem.
ISABEL
Quantos meses?
MALÚ
Cinco.
ISABEL
Nasceu um bocado fora de tempo...?
MALÚ
Nasceu não. É que os outro não vingaram. Era pra ter mais seis.
ISABEL
Morreram de que?
MALÚ
A gente nunca sabe, né?
ISABEL
Também, divertimento de pobre é ter filho. Quer levar a garrafa pode levar.
MALÚ
Precisa não. A gente bebe na bica que tem lá fora.

Entra BENÉ. Traz uma garrafa de cachaça em baixo do braço.

MALÚ
Obrigada. (Volta para seu apartamento e trata de acender o fogareiro a álcool, para fazer o mingau).
BENÉ
(Está indignado, a ponto de estourar) Cadê o Lula?
ISABEL
Sei lá. Não tava contigo?
BENÉ
Saiu antes de mim. Pensei que tivesse vindo pra cá.
ISABEL
Já acabou o jogo?
BENÉ
Acabou nada.
ISABEL
(Sem grande preocupação) Ele se machucou?
BENÉ
(Desabafando) Nem entrou em campo, o sacana! Deu parte de doente e botaram o Biriba. (Abre a garrafa fazendo pressão da tampa contra a guarda de uma cadeira).
ISABEL
Quem sabe se ele não tá mesmo...?
BENÉ
Tá nada. Fez isso pra não jogar.
ISABEL
Mas se ele não quer jogar...
BENÉ
Mas hoje! Hoje que o olheiro do Flamengo tava lá! Perder uma chance dessa! Nunca mais na vida ele vai ter outra igual!

LULA entra, com o par de chuteiras ao ombro, preso pelos cordões. Ao ver o pai, baixa os olhos, um tanto acabrunhado. BENÉ, ao vê-lo toma um gole de cachaça e volta-lhe as costas ostensivamente. Em meio a um grande silêncio, LULA avança, atira as chuteiras a um canto, bebe um copo d'água.

LULA
(Subitamente, irritado) Que foi? Morreu alguém aqui?!
ISABEL
(Depois de uma pausa) Você tá doente?
LULA
Tou indisposto. Acho que foi de não dormir esses dias.
ISABEL
Então por que não aproveita? Deite aí, vá dormir.
LULA
Acho que é o que eu vou fazer mesmo.
BENÉ
(Volta-se para ele, subitamente e grita como um insulto) Sabe o que o olheiro do Flamengo disse quando viu o Biriba fazer o primeiro gol? Eu estava junto dele e ouvi. Disse que vai levar ele pra treinar na Gávea!
LULA
E que tem isso?
BENÉ
Que tem? Você ainda pergunta? Se fosse você que tivesse jogado, era você quem ia!
LULA
Não sei por que. Ele gostou do Biriba, podia não gostar de mim.
BENÉ
Você joga mais que dez Biribas.
LULA
É só você quem diz. Quando cheguei no campo, estava todo o mundo falando. Que era injustiça não escalarem o Biriba.
BENÉ
Foi por isso então que você não quis jogar,
LULA
Foi. E eu sei que é verdade. Biriba joga muito mais que eu. Só me escalam purquê sou seu filho e você pede. É o que é. Tou cheio desse troço! E não quero mais jogar futebol.
BENÉ
(Pausa. Ele como que procura refazer-se do choque que lhe causaram as palavras do filho) Você não quer...
LULA
Não!
BENÉ
Que é que você quer, então?
LULA
Sou operário. Quero ser operário.
BENÉ
E viver sempre na merda! É isso que você quer? (Pausa) Não vê que ser operário não dá futuro? Você tá nessa fábrica há seis anos. Que adiantou até hoje? Nada!
ISABEL
(Tomando a defesa do filho) E você? Foi jogador. Teve fama. Jogou até no escrete. Pra que? Ninguém nem lembra de você! A chuva leva seu barraco, você é jogado na rua com os outros. (Com sarcasmo) Bené! Bené! O grande Bené! Não tem nem emprego...
BENÉ
(Ela tocou no ponto sensível) No meu tempo era diferente. A gente ganhava uma miséria, não dava pra juntar dinheiro. E eu também não pensava no futuro. Mas hoje é outra coisa. Tem jogador milionário, comprando apartamento pra alugar em Copacabana. Se eu tivesse a sua idade, tava feito na vida. Porque na minha posição inda não teve outro que nem eu. (Traindo o seu desejo de continuação) E você tem o meu jogo, meu estilo, garanto que todo mundo ia notar isso.
LULA, enfastiado, deita-se no colchão,
BENÉ
(Desespera) Mas ele quer ser operário! Operário a vida toda! (Saindo) Vá ser burro assim no inferno!
ISABEL
(Grita) Espera aí! Onde vai, homem? Fica aqui que é capaz da Polícia... (BENÉ sai sem lhe dar ouvidos) Com certeza vai encher a cara.

Entra TONHO.

LULA
Ele não quer entender... não quer entender!
ISABEL
Liga pra ele não. Se futebol desse pra ficar rico, ele não tava aí vivendo de biscate e bebendo pra esquecer que não é mais nada na vida.

No compartimento da direita, TONHO tira do cinto uma faca com bainha de couro, atira-a sobre um caixote.

LULA
Nada. Ninguém quis. Teve um que ofereceu cinco cruzeiros. Tive vontade de enfiar a faca na barriga dele. (Noutro tom) Depois me arrependi. Devia ter pegado os cinco cruzeiros. (Vê MALÚ fazendo o mingau) Comida?
MALÚ
Mingau de farinha pro menino.
TONHO
(Decepcionado) Ah... (Deita-se na rede) Vim logo também porque fiquei com receio... pensei que já tivesse tocado vocês daqui.
JUSTINO
Viu nenhum movimento aí fora, não?
TONHO
Polícia? Vi não. Mas vi muita gente aí por cima olhando, como se esperasse alguma coisa.
JUSTINO
Talvez fosse até melhor a gente arribar daqui agora, em vez de ter que fazer depois, debaixo de bala.
TONHO
Arribar por que?
JUSTINO
Porque mais cedo ou mais tarde tocam a gente daqui! Este prédio tem dono! E o dono não vai deixar...
TONHO
Bem, quando o dono aparecer, a gente sai.
LINDALVA
(Ocupada em seus afazeres domésticos. Canta)
Vou, vou,
vou me acabar — bis
de dor

Entram SANTA e RITA. MALÚ sopra o mingau para esfriar.

MALÚ
Arrumaram trabalho?
SANTA
Trouxe comida. (Deposita alguns embrulhos sobre o caixote) Feijão, farinha...
RITA
(Mostra o embrulho que traz) Carne seca!
TONHO
(Levanta-se da rede e vem olhar, incrédulo, como JUSTINO e MALÚ) Carne seca?!
SANTA
Vocês comeram hoje?
MALÚ
Um pedaço de pão dormido.
TONHO
Eu nem isso.
SANTA
O menino?
MALÚ
Fiz um mingau com o resto da farinha. Ia dar agora.
SANTA
Dê isso não. Trouxe leite pra ele.
RITA
Bota o feijão logo pra cozinhar, mãe. Tou com fome.
SANTA
Calma. Não é só você que tá com fome. (Abre os embrulhos, apanha uma panela)
JUSTINO
(Num princípio de desconfiança) Santa... como foi que você conseguiu tudo isso?
SANTA
Que importa saber?
RITA
E ainda sobrou dinheiro.
JUSTINO
(Compreendendo) Sobrou dinheiro? Que dinheiro? De onde veio esse dinheiro, Santa?
SANTA
Achei na rua.
JUSTINO
Mentira! Você foi pedir... você foi pedir esmola!

SANTA baixa a cabeça, sem coragem para defender-se.

TONHO
E ainda levou sua filha! As duas pedindo esmola na rua; como mendigo! Teve vergonha não, mulher?
MALÚ
(Salta, heroicamente, em defesa da mãe) E que era que o senhor queria que ela fizesse?! Que deixasse todo mundo morrer de fome?! Que ficasse aqui, de braços cruzados, esperando, esperando não sei o que?! Que tem pedir esmola? É crime?
JUSTINO
Não, mas é humilhante.
MALÚ
Humilhante é não fazer nada.
RITA
(Com voz de choro, sentindo-se responsável) Eu tava com fome, pai. Foi por minha causa que a mãe começou a pedir!
SANTA
(Muito baixo, como se desse explicações somente a si mesma) Era só pra comprar um copo de leite e um pão pra ela, juro... mas depois me lembrei de vocês... era fácil... bastava estender a mão, nem precisava falar... tão fácil...
JUSTINO
(Ele se sente profundamente acabrunhado, como se só naquele momento fizesse esta grande descoberta: que uma nova realidade determina forçosamente um novo comportamento e uma nova ética) É, muito fácil... Nunca pensei que a gente tivesse que chegar a esse ponto. Pedir... estender a mão... (Vem à frente, como se se sentisse deprimido só em contemplar o fruto da mendicância) Mas é capaz de vocês terem razão. (Como se procurasse convencer a si mesmo) Pedir não é crime.
TONHO
E que adianta a gente discutir? O que tá feito, tá feito. Bota o feijão no fogo, mãe.
SANTA
(Dá a panela a TONHO) Vá buscar uma panela d'água. Tem uma bica aqui perto.
TONHO
Eu sei onde é. (Sai pela direita)
RITA debruça-se sobre o caixote onde está a criança.
SANTA
Precisa água também pra dissolver o leite.
RITA
(Ingenuamente, impressionada) Mãe, por que é que ele tá roxinho?

MALÚ estremece. Vai ao caixote e toma a criança nos braços. Ausculta-lhe o coração.

SANTA
(Separando o feijão, sem dar conta dos movimentos de MALÚ) Isso é fome. Ele já vai comer. Trouxe leite em pó. Só que ele é capaz de estranhar. Lembro do filho da Geluca, a primeira vez que tomou leite teve uma caganeira... Ele é capaz de estranhar também. Nunca provou comida de filho de rico...
MALÚ
(Volta a colocar a criança no caixote, lenta e silenciosamente). E nunca vai provar...
SANTA
(Compreende o sentido das palavras de MALÚ, procura em seu rosto uma confirmação e a encontra. Corre ao caixote e vê que o filho está morto. Toma-o nos braços, silenciosamente, leva-o até JUSTINO) Veja. Tá morto.
JUSTINO
Morreu agora?
SANTA
Inda tá quente.
JUSTINO
Eu sabia. Sabia que ele não ia aturar.
RITA
(Impressionada) Ele tá morto mesmo, mãe?!
MALÚ
Ele já vinha morrendo, há muitos dias.

ISABEL ouviu a conversa, aproxima-se.

ISABEL
Que foi que houve com o garoto?
SANTA
Morreu.
ISABEL
(Aparenta maior emoção do que SANTA) Coitadinho. De que?
SANTA
(Com simplicidade) Fome.

LULA levanta-se do colchão e fica olhando, à distância.

ISABEL
(Sem saber o que dizer, num impulso de solidariedade) Se a gente soubesse...
SANTA
Adiantava não.
ISABEL
É aquele mingau. Aquilo não sustenta. Farinha com água...
SANTA
Foi melhor pra ele. (Vai recolocar a criança no caixote, em meio a um respeitoso silêncio)
LINDALVA
(Canta) Vou, vou,
vou me acabar
de dor...
ISABEL e LULA
Psiu...
ISABEL
Cala essa boca!
LINDALVA
(Vem à beira do piso e olha para baixo) Cala a boca por que?
LULA
O garotinho morreu.
SANTA
(Depois de longa pausa) Precisa ficar todo mundo com cara de palerma, não (Apanha a panela) Cadê o Tonho que não vem com essa água?

Ouve-se o grito de BOLA SETE, fora: "Pessoal, eles vêm aí!"

BOLA SETE
(Entra correndo, vem à frente, grita para cima) Estão aí! Os tiras estão aí!
MALÚ
(Com receio) A Polícia!

Entram BENÉ e TONHO, correndo também, de pontos diferentes enquanto BOLA SETE sobe para o pavimento superior.

TONHO
Parou um carro aí fora: diz que é da Polícia!
SANTA
Você fica quieto aqui!
BENÉ
(Percebe-se que bebeu um pouco, mas a situação o força a reagir) Estão aí! Vieram botar a gente pra fora!
LULA
São muitos?
BENÉ
Não sei. Vi só o carro chegar...
LINDALVA
(No pavimento superior, para BOLA SETE) E agora?
BOLA SETE
Te planta, nega. Espera o galo cantar.

Há um rumor surdo, que vem de todos os andares e que cessa de repente, com a entrada de dois TIRAS. Ante o silêncio e a imobilidade geral, eles avançam até o meio da área. Olham demoradamente para todos os lados e depois para os andares superiores, com uma arrogância que trai um receio mal disfarçado. Súbito, um pedaço de madeira, atirado de cima, vem cair junto a eles, que se assustam e dão um salto para trás, com a mão ao revólver.
PRIMEIRO TIRA
Qual foi o engraçadinho?

Um silêncio geral.
PRIMEIRO TIRA
Viemos aqui falar por bem. Se vão querer briga, vai ser pior pra vocês. (Fita um por um, pretendendo intimidá-los) Vai todo mundo sair daqui.
BENÉ
Sair pra onde?
PRIMEIRO TIRA
Isso é lá com vocês. Tenho ordem de botar todo mundo pra fora. E quero fazer isso sem precisar usar de violência. Vocês podem ir pro Albergue da Boa Vontade.
ISABEL
Estivemos lá. Depois de três dias, botaram a gente na rua.
PRIMEIRO TIRA
Bem, isso não é comigo. Eu tou aqui pra fazer respeitar a ordem. Isso é invasão de propriedade. E nós temos que defender a propriedade.
SEGUNDO TIRA
É isso mesmo. Vão pegando seus troços e tratando de fazer a pista.

Ninguém se move.

SEGUNDO TIRA
Não ouviram? Pensam que a gente tá aqui pra brincadeira?
ISABEL
(Avança para os tiras) Sinto muito, mas a gente não vai poder sair daqui agora.
SEGUNDO TIRA
E por que?
ISABEL
Porque morreu uma criança. É preciso chamar um médico pra passar o atestado e depois fazer o enterro.
PRIMEIRO TIRA
Onde tá a criança?

ISABEL aponta. TONHO lança à mãe um olhar interrogador. SANTA confirma com a cabeça. Os TIRAS vão até lá, olham, voltam.

PRIMEIRO TIRA
Bem, os outros vão saindo. Depois eu chamo o rabecão.
ISABEL
(Com decisão) Ninguém vai sair. Todo mundo vai ficar pra acompanhar o enterro.
LULA
Isso mesmo: todo mundo vai ao enterro.
BOLA SETE
Todo mundo. (Desce a escada)

Imediatamente, como um movimento combinado, vão descendo dos andares superiores homens e mulheres, alguns armados de paus, todos trazendo no rosto a decisão de expulsar os policiais.

PRIMEIRO TIRA
(Assustado) Que é isso?... Estão querendo barulho? (Recua, com a mão no revólver) Pensem bem... vão se dar mal...
SEGUNDO TIRA
(Recuando também) Que vão fazer?!
BOLA SETE
Nada, chefe. Tudo isso aí veio fazer quarto pro anjinho.
PRIMEIRO TIBA
(Intimidado, resolve optar por uma saída honrosa) Bem, nós vamos chamar o rabecão.

Os TIRAS batem em retirada, enquanto o pano cai lentamente.


FIM DO SEGUNDO QUADRO

SEGUNDO ATO

PRIMEIRO QUADRO

Três dias depois. Aproximadamente 5 horas da tarde. Com exceção do "apartamento" do Profeta, em todos os outros se nota um esforço para torná-los mais habitáveis, notando-se a melhor arrumação dos móveis. Roupas penduradas em varais, principalmente na área, à esquerda, em que se vê também uma grande bacia, onde Isabel lava algumas peças. Bené, estendido no colchão, curte uma ressaca. No apartamento da direita, Santa esquenta um prato de comida. O 1.º piso está vazio. Mané Gorila entra, do fundo e vem até a área. O detalhe marcante de sua personalidade é a agressividade que emana de seu físico avantajado e de seu sorriso felino. O apelido advém, naturalmente, do tipo rústico, da força e do andar gingado. Contrastando com tudo isso, sua fala é sempre macia, envolvente. Quando ameaça, sua voz corta como navalha, mas sem nunca se altear. Ele percorre com o olhar, demoradamente, toda a cena. Ergue os olhos para os andares superiores e seus lábios se abrem num sorriso que é quase uma careta, um sorriso de gato. Isabel, desde que o vê, mantém-se numa atitude de receosa expectativa.


GORILA
É, vocês se arrumaram bem. Há quanto tempo estão aqui?
ISABEL
Três dias.
GORILA
Tou besta.
ISABEL
Por que?
GORILA
Era pra terem botado vocês pra fora daqui há muito tempo.
ISABEL
Quiseram.
GORILA
Eu sei. Ouvi que botaram a Polícia pra correr.
ISABEL
Botamos, sim, que é que há?
GORILA
(Irônico) Não sabia que tinha tanto valente por aqui.
BENÉ
(Ergue a cabeça) Quem taí, Zabé?
ISABEL
É seu Mané Go... (Detem-se)
GORILA
(Sorri) Pode dizer, eu não ligo.
ISABEL
Seu Mané Gorila.

BENÉ solta um grunhido e torna a deitar-se.

ISABEL
Tá de ressaca.
GORILA
A Polícia não voltou mais?
ISABEL
Não, o advogado da União dos Favelados está vendo se arranja uma ordem do juiz, um troço de nome complicado pra gente ficar aqui. Mas não é nada seguro. De uma hora pra outra eles tão aí pra botar a gente pra fora.
GORILA
Tou informado que não passa de hoje.
ISABEL
Quem disse?
GORILA
Eu que sei. (Respira fundo) É, aquela enchente foi o diabo.
ISABEL
O senhor também... perdeu a renda dos barracos... devia dar um bom dinheiro...
GORILA
Dava pra viver. (Lamenta-se) Sabe, tenho mulher e um monte de crianças pra sustentar...
ISABEL
Verdade que o senhor ficou com os filhos da irmã do Profeta?
GORILA
Verdade. Estão lá em casa. São uns capetas. Com os quatro que eu já tinha, são seis.
ISABEL
E nenhum é seu?
GORILA
Nada. Tudo apanhado na rua. E são seis. Seis bocas pra dar de comer, e mais a mulher, que come por dez. Vê a senhora a desgraça que foi pra mim também essa enchente.
ISABEL
Imagino.
GORILA
É bem verdade que o grileiro me deu uma gaita pra ficar quieto...
ISABEL
É, vocês sempre se entendem. A gente é que paga.
GORILA
Deve ter comprado também a Polícia e a Prefeitura pra não deixarem vocês voltarem pra lá. Eles querem o terreno pra fazer arranha-céu. (Ri) A pedra rolou em boa hora...
ISABEL
Engraçado: eu antes pensava que o terreno era seu.
GORILA
(Com simplicidade) Não, quem sou eu?
ISABEL
(Consegue vencer por um momento o medo que MANÉ GORILA produz) Então como é que o senhor cobra aluguel?...
GORILA
Eu cobro porque dou a madeira pra fazer os barracos, converso a Polícia... quer dizer: entro com o capital e o trabalho. Não é justo que leve algum?

Há uma pausa, ISABEL cala-se, intimidada.

GORILA
Esse tal dono do morro, que apareceu agora, também não é dono de nada. E quer botar todo mundo pra fora. Arranjou uns papéis falsos proteção de gente graúda e vai acabar ficando com tudo. O mundo é de quem pode.
ISABEL
Safadeza.
GORILA
Eu, pelo menos, não faço safadeza. Não digo que o terreno é meu, nem nada. Meu negócio é honesto. O que eu cobro é até muito pouco pelo que faço. Mas não gosto de explorar ninguém. Faço isso mais porque gosto de ajudar.
ISABEL
(Há um leve traço de ironia em sua voz) É, o senhor tem ajudado muito...
GORILA
Ontem mesmo dei dez contos do meu bolso pra comprar bancos pra escolinha lá do morro, (Olha em volta) Se vocês ficassem aqui, eu era até capaz de fazer uma escola aqui também. É preciso ensinar essas crianças a ler, Sem saber ler, elas não vão poder votar amanhã.
ISABEL
O senhor já é candidato a deputado?
GORILA
(Modestamente) Quem sou eu, dona Isabel? Meu candidato a senhora sabe qual é. Dr. Deodato. Só trabalho pra ele É meu compadre e um homem de bem, amigo dos pobres. A senhora sabe o que ele tem feito pela gente lá do morro, Bica, luz elétrica, tudo que a gente quer ele consegue. Um homem e tanto.

JUSTINO entra, lento, desanimado.

GORILA
Olá.
JUSTINO
(Reconhece-o) Ah... boa tarde,
GORILA
O senhor também tá aqui...
JUSTINO
Enquanto deixarem.
GORILA
O senhor não teve sorte. Nem chegou a terminar o barraco...
JUSTINO
Foi.
GORILA
E olhe que o lugar que eu lhe arranjei era bem bom. Reforçando bem, com boas estacas, não tinha perigo...
JUSTINO
Falta de sorte.
GORILA
O garotinho... me disseram que morreu.
JUSTINO
É, foi.
GORILA
Se tivessem me avisado, eu arranjava de graça o caixão. Caixão branco, com friso dourado, de anjinho mesmo.
JUSTINO
Não sabia. Fiquei até devendo.
GORILA
Eu pago. Me diga onde comprou que eu pago.
JUSTINO
Não precisa...
GORILA
Faço questão. Sempre fiz isso lá no morro. Tá aí dona Isabel que não me deixa mentir.
ISABEL
Lá isso é verdade. Criança tem tudo dele.
GORILA
Anjinho vai pro céu garantido, seu Justino. E o que vai pro céu deve levar boa informação da gente.
JUSTINO
Tava pensando... se o senhor não se ofende, aquele dinheiro que eu lhe dei...
GORILA
Que tem?
JUSTINO
Se o senhor pudesse devolver...
GORILA
Devolver por que?
JUSTINO
A gente não chegou a construir o barraco...
GORILA
Aquele dinheiro foi pelo direito de utilizar o terreno.
JUSTINO
Mas a gente não utilizou...
GORILA
E de quem foi a culpa? Minha? Quem mandou a enchente não fui eu, foi Deus. Cobre d'Ele (Dá-lhe as costas e inicia a saída com seu passo lento e gingado)

Dois garotos descem dos andares superiores, gritando: "Mané Gorila, me dá uma prata! Mané Gorila, me dá uma prata!"

GORILA
(Tira do bolso dinheiro e distribui entre os garotos) Tome lá. (Sai, seguido dos garotos, batendo paternalmente na cabeça deles)
SANTA
(Aproxima-se de Justino) Que foi?...
JUSTINO
Aquele desgraçado que arrumou aquela beira de ribanceira e as tábuas pra fazer o casebre... pedi pra devolver o dinheiro, me deu as costas...
ISABEL
Isso é uma peste. Capaz de explorar até a mãe dele. Inda bem que estamos livres desse miserável.
SANTA
Era o dono do terreno...
ISABEL
Era dono de nada. Acabou de dizer. Arranjava uns pedaços de pau e depois passava a vida cobrando aluguel.
SANTA
E por que pagavam?
ISABEL
E quem era que tinha coragem de dizer pra ele que não pagava? Só se não quisesse mais dormir sossegado. E acordar uma noite com o barraco pegando fogo.
SANTA
Ele...?
ISABEL
Fez isso muitas vezes. Ninguém nunca descobria quem tinha sido.
JUSTINO
E a Polícia?
ISABEL
Ora, a Polícia é quem garante ele... Que eu sei, já matou dois.
JUSTINO
E não foi preso?
ISABEL
Tem as costas quentes. Gente da política. Deputado. Precisam dele. Por isso faz o que quer. (Olha em volta com desprezo) E também porque aqui não tem homem. (Voltando à bacia de roupa) Ah, eu devia ter nascido macho... (Torce as peças de roupa e pendura-as no varal) BENÉ! Levanta, homem! Vai emendar o dia com a noite?

LINDALVA passa ao fundo com uma lata d'água na cabeça, sobe a escada e vai ao seu apartamento, enquanto SANTA e JUSTINO dirigem-se para a direita. LINDALVA assobia o samba de BOLA SETE.

JUSTINO
(Vê o prato de comida) Tonho trouxe dinheiro?
SANTA
Não. Ele inda não chegou do trabalho.
JUSTINO
E esse prato?...
SANTA
Come. Você não tá com fome?
JUSTINO
(Sem conseguir aceitar ainda a idéia da esmola) Santa, você foi de novo...!
SANTA
(Interrompendo) Come, homem de Deus. Que importa? (Coloca um pouco de comida em outro prato, na mesa improvisada).

JUSTINO fica um instante imóvel, depois senta-se num caixote, lentamente, diante do prato de comida. Põe-se a comer silenciosamente.
SANTA
Arrumou nada não?
JUSTINO
Prometeram, pra semana que vem. Um lugar de vigia, numa construção.
SANTA
Pagam bem?
JUSTINO
Doze contos. (Pausa) Fiz as contas: guardando a metade, dava pra comprar passagem pra todo mundo em menos de um ano.
BENÉ
(Levanta-se, mal humorado) Que horas são?
ISABEL
Quase de noite. Quer café, tem no bule. É só esquentar.

BENÉ apanha o bule, acende o fogo, com gestos preguiçosos.

ISABEL
Esteve um cara aí procurando Lula.
BENÉ
Não era do Flamengo? Me prometeram mandar chamar o Lula pra treinar.
ISABEL
Era nada. Conheço ele. Aquele tal de Rafael que andava lá no morro. (Volta ao seu serviço).
BENÉ
Lula tá de novo metido com essa gente?

Entram MALÚ e RITA.

JUSTINO
Onde vocês andaram?
MALÚ
Por aí tudo. Vendo aqueles anúncios do jornal. Senta-se, exausta) Tou que não posso mais. (Tira os sapatos, movimenta os dedos doloridos).
SANTA
Arrumaram alguma coisa?
RITA
Malú arrumou.
MALÚ
Pra começar amanhã.
SANTA
Que serviço?
MALÚ
Arrumar casa. (Não parece muito animada) Pagam quatro contos.
RITA
E tem onde dormir.
SANTA
Graças a Deus.
MALÚ
Um quarto sem janela, que só cabe uma cama.
SANTA
Mas é melhor do que isto.
RITA
Mãe, posso comer?
SANTA
Pode. Deixe um pouco pra sua irmã...

RITA separa um pouco de comida para si em outro prato. Põe-se a comer.

SANTA
(Para MALÚ) Você não quer? É pouco, mas dá pra enganar. Você não almoçou.
MALÚ
(Levanta-se, num gesto cansado) Lula me chamou pra sair com ele de noite.
JUSTINO
(Bruscamente) Você tá dando confiança?...
MALÚ
Tou não. Tou só pensando que ele podia me levar pra comer em algum lugar.
JUSTINO
Tonho vai chegar daqui a pouco, vai trazer dinheiro.
MALÚ
Lula prometeu também arrumar emprego pra mim na fábrica. (Come qualquer coisa).
SANTA
Pra que? Você não tá empregada?
JUSTINO
Dois contos. Quem sabe dá pra guardar um pouco. Você vai ter casa e comida.
MALÚ
(Vem até a área) Tem muita diferença não, entre isto aqui e o quarto onde vou ter que dormir. Aqui, pelo menos se vê o céu.
RITA
Malú disse pra moça que não cabia naquela cama. A moça respondeu que ela encolhesse as pernas. (Ri)
LULA
(Entra, vindo do fundo) Olá.
ISABEL
Esteve um cara aí procurando por você. Aquele tal de Rafael.
LULA
Eu sei. Encontrei com ele aí na esquina.
BENÉ
Que é que aquele sujeito tá querendo aqui?
LULA
Foi um colega lá da fábrica, o Antônio, que mandou.
BENÉ
Mandou pra que?
LULA
Pra ajudar a gente.
BENÉ
Ajudar em que?
LULA
Na resistência.
BENÉ
Você inda vai se dar mal. Quando pegar uma cana, não diga que não avisei. Essa gente chama cadeia!
ISABEL
Também acho que você devia se afastar dessa gente.
LULA
Eles estão do nosso lado, mãe!
BENÉ
(Desconfiado) Que interesse têm eles nisso?
LULA
Interesse nenhum. Quer dizer... Eles sabem que nós estamos com a razão.
BENÉ
E será que nós estamos mesmo? Eles dizem isso pra levar a gente na conversa. Sei como é.
ISABEL
E se a Polícia souber que eles estão metidos nisso, então é que a gente não fica nem mais um dia aqui.
LULA
Porque vocês não viram na fábrica, na última greve. Eles que organizaram tudo. Antônio foi preso, mas depois tiveram que soltar. E da prisão ele só mandava dizer pra gente: Agüenta firme, pessoal. Agüenta que eles têm que ceder.
BENÉ
E cederam?
LULA
Bem, não deram 40 por cento, deram 25. Mas era o que a gente queria.
ISABEL
E que adiantou? Aumentaram também o preço de tudo. Greve é besteira.
LULA
(Com veemência) Besteira não, mãe. Greve é um direito; é... (A incredulidade e o quase sarcasmo estampados nos rostos de ISABEL e BENÉ O fazem desistir de sua argumentação) Mas que adianta? Vocês... (Retoma com ardor com palavras que, percebe-se, não são suas) Mas isto aqui é coisa muito mais séria que uma greve. Nós estamos mexendo com um dos pilares da sociedade capitalista: a propriedade privada! É muito sério! É preciso que a gente se organize e trace um plano de defesa.
BENÉ
Isso é coisa que eles andaram metendo em sua cabeça. (Inicia o movimento para sair)
ISABEL
Onde é que você vai?
BENÉ
No boteco.
ISABEL
Começar de novo?
BENÉ
Não, tomar uma homeopatia. (Sai pelo fundo)
LINDALVA
(Grita do 1.° piso para ISABEL) Tem um pedaço de sabão aí que m'impreste, Zabé? O meu acabou...
ISABEL
(Com manifesta má vontade, apanha um pedaço de sabão) Pega lá. (Atira-o e LINDALVA O apara)
LINDALVA
Obrigada. (Põe-se a lavar roupa também, numa bacia)
ISABEL
Mas veja se compra sabão. (Resmunga) É todo dia a mesma história, que o sabão acabou. Tou pra sustentar seu homem não. Já sustento o meu e chega.
LULA
(Aproxima-se de MALÚ, na área) Seu lugar tá quase arrumado.
MALÚ
Onde?
LULA
Lá na fábrica, ué. Falei hoje de novo. Mês que vem parece que vão mandar um bocado de moças embora, na fiação. Gente que tá com muitos anos de casa. Safadeza... mas então vão admitir gente nova...
MALÚ
Já arrumei emprego hoje.
LULA
Arrumou? Onde?
MALÚ
Casa de família.
LULA
(Revelando certo preconceito) Você vai ser criada?
MALÚ
Que tem?
LULA
Nada. Operário ganha mais. Tem direito a férias... é oprimido também, mas é outra coisa.
MALÚ
Que é que a gente vai fazer? A vida não é como a gente quer. Se fosse, eu não ia ser criada, nem operária.
LULA
Que era que você queria ser?
MALÚ
Sei lá. Só sei que às vezes tenho inveja dos meus irmãos que nasceram mortos.
LULA
Não diga bobagem. Tudo isso vai mudar um dia.
MALÚ
Você crê mesmo?
LULA
Então! É coisa certa! Nem Deus é capaz de impedir!

A convicção de LULA deixa MALÚ, por alguns segundos magnetizada. Mas esse magnetismo é quebrado pela entrada de TONHO.

TONHO
(Para LULA) Olá.
LULA
Olá, Tonho.

TONHO dirige-se para casa e MALÚ faz menção de segui-lo.

LULA
(Detendo-a por um braço) Tá combinado, hoje de noite?...
MALÚ
(Com ar prometedor) Vamos ver. (Segue o irmão)

BOLA SETE entra ao fundo e sobe a escada para o 1° piso. Antes de subir, assobia de maneira característica. LINDALVA volta-se, reconhecendo o assobio.

JUSTINO
(Para TONHO) Tudo bem?
TONHO
Tudo. Só que... trouxe dinheiro não. Só pagam no fim da semana. No sábado.

Há uma pausa de decepção.

SANTA
Também, sábado já é depois de amanhã. Até lá a gente se arruma.

No 1.° piso, LINDALVA, vergada sobre a bacia, lava roupa, BOLA SETE vem por detrás e dá-lhe uma palmada nas nádegas.

BOLA SETE
Tá no lesco-lesco, nega?
LINDALVA
Lavando tua camisa, infeliz.
BOLA SETE
(Ri) Nega, juro por São Jorge, inda vou te dar uma lavadeira de madama. Daquelas que é só apertar um botãozinho e a roupa já sai do outro lado, lavada e passada.
LINDALVA
Você só tem conversa.
BOLA SETE
O samba do moreno vai dar dinheiro, nega. É só encontrar quem grave.
LINDALVA
Não conseguiu nada?
BOLA SETE
Tenho andado aí por essas gravadoras. Só querem música de gringo. Mas não há de ser nada. Um dia a gente toca todos eles daqui, com música e tudo.

Súbito, ouvem-se as sirenas de vários carros da Rádio-Patrulha. Tocados por uma mesma mola, todos se põem à escuta. BOLA SETE e LINDALVA, do primeiro piso, olham na direção do ruído.

LINDALVA
Bola!...
BOLA SETE
É a cana, nega!
LINDALVA
Quanto carro!... (Conta) Um, dois, três, quatro!
BOLA SETE
Vão cercar o quarteirão. É tira que não é vida! Dessa vez eles vieram pra valer! (Grita para baixo) Minha gente, se preparem que o negócio agora vai ser feio!
MALÚ
A Polícia de novo!
RITA
E agora é um batalhão!
BENÉ
Eles tavam demorando.
ISABEL
Bem Mané Gorila disse...
LULA
(Para os nordestinos, que estão mais assustados que os outros) Tenham calma. E nada de mostrar medo, senão vai ser pior.

Os tiras invadem a cena. O PRIMEIRO TIRA, O SEGUNDO TIRA e mais dois, chefiados todos por um COMISSÁRIO. Entram abruptamente, dispostos a tudo.

COMISSÁRIO
(Para os tiras) Guardem as saídas, deixem que eu me entendo com eles! (Avança para a área) Primeiro que tudo, fiquem sabendo que o prédio está cercado e que ninguém vai ser besta de resistir. Tenho vinte homens comigo, com ordem de descer a borracha em quem se fizer de engraçado.
BENÉ
Ninguém tá fazendo nada.
COMISSÁRIO
Tou avisando. (Lança em volta um olhar de intimidação) Quem deu ordem pra vocês invadirem esta construção?
BENÉ
O Presidente da República.

Há uma gargalhada geral.

COMISSÁRIO
Não quero graça comigo. E mesmo que fosse o Presidente da República, vocês iam sair daqui agora, por bem ou por mal. Vamos! Têm meia hora pra desocupar o prédio.
LULA
Nós não temos pra onde ir.
COMISSÁRIO
Procurem.
ISABEL
Tem um advogado tratando do nosso caso.
LULA
O Juiz vai resolver.
COMISSÁRIO
(Ri, zombeteiro) Advogado... com certeza prometeu conseguir que o Governo dê o prédio de presente a vocês.

Os TIRAS riem.

LULA
A União dos Favelados...
COMISSÁRIO
(Corta) Comunistas...
LINDALVA
Também aqueles padres prometeram...
COMISSÁRIO
Comunistas, todos comunistas!
ISABEL
Na rua é que a gente não pode ficar.
COMISSÁRIO
E eu não vim aqui pra discutir. Vim dar cumprimento a uma ordem. Comecem a desocupar o prédio, se não querem que mande meus homens atirarem tudo na rua.

Há um momento de hesitação. Todos se entreolham.

COMISSÁRIO
Vamos. Que estão esperando?
JUSTINO
É, tem jeito não. (Entra em seu apartamento e desarma a rede)

Aos poucos, lentos e de má vontade, cada qual vai apanhando um móvel, uma trouxa, etc. e vai saindo.

PRIMEIRO TIRA
Vocês aí de cima também.
SEGUNDO TIRA
E mais depressa.
COMISSÁRIO
É, ligeiro, ligeiro que eu não vou ficar aqui a vida toda.

Os favelados voltam, um a um, depois de descarregar fora o fardo. Apanham novos utensílios e preparam-se para sair novamente, quando entram DEODATO PERALVA e MANÉ GORILA. DEODATO é moço ainda. Bem falante, demagogo sem qualquer limitação.

DEODATO
(Aparenta surpresa e indignação) Que é isso? Que está acontecendo aqui?
COMISSÁRIO
Estamos despejando essa cambada.
DEODATO
Despejando com ordem de quem?
COMISSÁRIO
Sou Comissário de Polícia.
DEODATO
Mas isso é uma violência. Não podem fazer isso!
COMISSÁRIO
E quem é o senhor pra dizer que não podem?
DEODATO
Sou o deputado Deodato Peralva. Não admito que procedam desse modo.
COMISSÁRIO
Não posso proceder de outro modo. Eles invadiram o prédio. E se instalaram aqui como se isto fosse deles.
DEODATO
E fizeram muito bem. Se o Governo não resolve o problema da habitação popular, o povo tem o direito de dar a solução que estiver ao seu alcance.
COMISSÁRIO
Essa teoria é um perigo, excelência!
DEODATO
Eu me responsabilizo por ela, como me responsabilizo por essa gente.
COMISSÁRIO
Excelência, eu tenho que tirá-los daqui!
DEODATO
O senhor não vai tirar coisa nenhuma! Eles vão continuar onde estão. Eu assumo a responsabilidade, já disse.
VOZES
Isso! Muito bem! Isso é que é!
COMISSÁRIO
Mas excelência, compreenda...
GORILA
O deputado não tá dizendo que se responsabiliza?
COMISSÁRIO
(Mostra-se intimidado) Está bem... se é assim... se o senhor assume a responsabilidade... o senhor que sabe... Vamos... vamos, pessoal...

Saem, o COMISSÁRIO e os TIRAS. OS favelados explodem numa grande demonstração de alegria.

BENÉ
(Ri) Eles meteram o pé!...
ISABEL
Não quiseram mais conversa!
TONHO
Sujeito paidégua esse deputado!
RITA
Chegou na hora!...

Todos cercam DEODATO, que recebe os agradecimentos com um sorriso de triunfo.

ISABEL
Gostei de ver. Se não fosse o senhor...
SANTA
Também, ele é deputado...
RITA
Como é que ele se chama?
BOLA SETE
Deodato Peralva.
GORILA
Dr. Deodato sempre foi amigo da gente, protetor dos pobres.
DEODATO
E enquanto eu for deputado, vocês podem contar comigo.
LULA
Vamos apanhar os troços que levamos pra rua.
BOLA SETE
É, vamos, antes que levem!
TODOS
Vamos, vamos...

Saem todos, alegremente. Ficam apenas DEODATO e GORILA.

DEODATO
(Certificando-se antes de que estão a sós) Parabéns, Gorila. Bom serviço.
GORILA
(Sorri) O Doutor sabe que Mané Gorila não falha...
DEODATO
Quanto você prometeu aos tiras?
GORILA
O combinado. Pro Comissário é que é mais. Dessa vez ele quis endurecer. Mas em compensação fez a encenação bem feita...
DEODATO
Passe amanhã no meu escritório e eu lhe dou o dinheiro. O que é preciso depois é você trabalhar essa gente...
GORILA
Pode deixar por minha conta.

Voltam todos, alegremente, trazendo os objetos que haviam levado.

DEODATO
(Procura, a princípio, falar sem ênfase, mas, aos poucos, vai-se deixando arrastar pela oratória) Meus amigos, sou um homem simples, igual a vocês. Sou um homem do povo, filho de pais humildes, criado em ambiente humilde, que por isso sente na própria carne o drama que estão vivendo. É um drama vivido por centenas de milhares de pessoas, nesta cidade, ante a indiferença criminosa das autoridades competentes. Fizeram muito bem, invadindo esta construção, resolvendo por suas próprias mãos um problema que os homens públicos não querem resolver. Fizeram muito bem e aqui estou, não só para lhes dar o meu apoio, como também para assumir um compromisso solene. (Faz uma pausa de efeito) Se reeleito nas próximas eleições, comprometo-me a apresentar um projeto desapropriando este prédio e entregando-o aos seus heróicos conquistadores!
LINDALVA
(Não se contém) Muito bem!
BOLA SETE
Chiu! Cala a boca!
DEODATO
Desse modo, não só poderão continuar a habitá-lo, como serão de fato, cada qual proprietário da parte que hoje ocupa.

Os favelados que desceram dos andares superiores mostram-se entusiasmados com as palavras de DEODATO. Entre eles, ouvem-se vozes: "Isso mesmo!" — "Isso é que é!"

DEODATO
(Anima-se com os apartes e perde todo o senso de medida) E prometo mais: prometo arranjar financiamento para terminar os apartamentos. Assim terão, todos, habitações dignas de seres humanos!

MANÉ GORILA puxa uma salva de palmas. ISABEL, LULA, JUSTINO e BOLA SETE se abstêm.

DEODATO
É um compromisso que eu, Deodato Peralva, assumo neste momento; e que cumprirei se, com a ajuda de Deus e de vocês, for eleito.

LULA e BOLA SETE mostram certa frieza. JUSTINO e ISABEL, apenas descrentes. Mas TONHO e RITA não escondem o seu entusiasmo.

RITA
Vão dar uma casa pra gente, mãe?
TONHO
Esse cabra é bom de fala!
DEODATO
(Para MANÉ GORILA) Devia ter trazido uns retratos para distribuir.
GORILA
Pode deixar, doutor, eu distribuo. Aqui é tudo voto garantido.
DEODÁTO
(Num gesto democrático, estende a mão a TONHO, depois a JUSTINO) Podem contar comigo. (Estende a mão a SANTA, dá uma pancadinha paternal na cabeça de RITA e ao estender a mão a MALÚ nota a sua beleza linfática e desidratada) São do Norte?
MALÚ
(Balança afirmativamente a cabeça) Hum-hum...
DEODATO
Está empregada?
MALÚ
Tou quase.
DEODATO
Apareça no meu escritório. Talvez eu lhe arranje um bom emprego. (Tira da carteira um cartão) Aqui tem o meu cartão. Pode ir me procurar. Não tenha cerimônia. (Despede-se de todos com um gesto largo) Adeus, minha gente Contem comigo, que eu conto com vocês. (Sai, sem notar que LULA voltou-lhe as costas, para não lhe apertar a mão. MANÉ GORILA O segue, no seu passo balançado)

Os favelados que desceram dos andares superiores, voltam aos seus pavimentos.

RITA
(Curiosa, espicha o pescoço para ver o cartão) Que é que tem escrito aí?
MALÚ
(Bruscamente) Ixe! É o nome do homem, gente! (Atraída por uma curiosidade irreprimível, avança lentamente até o fim do corredor, por onde saiu DEODATO. Fica olhando para fora, com o cartão entre os dedos).

LULA, da área, fita-a, triste, enciumado.

ISABEL
Ela tá pensando que ele vai mesmo fazer alguma coisa. De conversa de candidato eu tou cheia. É sempre assim. Antes da eleição eles prometem mundos e fundos. Depois... dão uma banana!

RITA corre e vai reunir-se a MALÚ.

LINDALVA
Quem sabe? Se ele diz que pode conseguir isto pra gente, é que deve poder mesmo. É só querer.
BOLA SETE
Você parece que nasceu ontem...
TONHO
Sei não. Que o cabra fala um bocado bonito, fala.
JUSTINO
Gente que promete muito, não cumpre.
SANTA
Mas ele defendeu a gente da Polícia. Até prometeu emprego pra Malú.
JUSTINO
(Balança a cabeça, em dúvida) Sei não.

Ouve-se o ruído de um carro que parte. RITA vem correndo, alvoroçada.

RITA
Que carro, mãe! Paidégua!

MALÚ volta, lentamente. LULA tem os olhos presos nela.

LULA
Isso é conversa, Malú. Você chega lá, ele manda vir depois. E depois. E vai embromando até chegar o dia da eleição.

MALÚ não responde. Apenas olha o cartão, parada no meio da área.

LINDALVA
(Do 1.° piso) Tá com tudo, hein Malú?
TONHO
Se você quiser, eu lhe levo lá...
MALÚ
Pra que? Sou cega pra precisar de guia?
LULA
(Incrédulo e sentido) Você vai mesmo, Malú?
MALÚ
(Quase com arrogância) E por que não? (Guarda o cartão no seio) O moço quer me ajudar. E pode.

No 1.° piso, BOLA SETE dedilha o violão. Pelo fundo, entra MANÉ GORILA. Vem até o meio da área. BOLA SETE pára de tocar.

GORILA
É um homem e tanto esse dr. Deodato. Com ele não tem polícia. Vocês devem a ele não terem sido despejados.
TONHO
O senhor acha que ele garante mesmo a gente ficar aqui?
GORILA
Ora, você não viu, homem? E tem mais. Já combinei com ele. Amanhã mesmo vou providenciar madeira, pregos, sou capaz até de arranjar luz elétrica. Já pensou? Fechar todas essas paredes com madeira, fazer porta, janela... vai ficar uma beleza. Apartamento mesmo de verdade.
LULA
Ninguém tá lhe pedindo isso.
GORILA
Mas eu quero fazer. Vocês não podem continuar morando com tudo isso assim, aberto, apanhando chuva. Como disse doutor Deodato, vocês merecem habitação digna de seres humanos.
ISABEL
E depois? Vamos ter que pagar aluguel?
GORILA
Que diabo, Mané Gorila também é filho de Deus... E lembre que lá no morro vocês pagavam não era só pelos barracos, era também pelo direito de morar e viver em paz. Pela certeza de não vir ninguém disputar a posse do seu pedaço de morro. Pela tranqüilidade de não ter que acordar de noite com o barraco pegando fogo... Tudo isso quem garantia era eu, Mané Gorila. E vou garantir aqui também... se todo mundo andar direito comigo.
LULA
E se não...
GORILA
(Sorri) Bem, não garanto nada. Já vi que ainda cabe muita gente aqui. (Aponta para o compartimento de ISABEL) Ali cabe mais uns três. Lá em cima ainda cabe o dobro. Conheço muito cara, gente que anda sempre fugindo da justa, que gostava de vir pra cá...
ISABEL
Não queremos aqui nenhum malfeitor.
GORILA
E fazem bem, porque se amanhã a Polícia resolvesse dar uma batida aqui pra prender algum... sabe, nessa hora apanha todo mundo. Eles vão descendo a borracha, sem olhar... (Faz uma pausa) Mas nada disso vai acontecer. Mané Gorila tá aqui pra garantir a ordem e a tranqüilidade, com a ajuda de Deus e da Polícia. No fim do mês venho acertar as cotas de cada um. Como tem aí uma lei que proíbe aumentar os aluguéis, e eu gosto de respeitar a lei, vocês continuam pagando a mesma coisa que pagavam no morro.
JUSTINO
Nós também?
GORILA
Pagam o que iam pagar lá.
JUSTINO
Nós tamos sem dinheiro.
GORILA
Trate de arranjar. Tem tempo pra isso. (Lança a MALÚ um olhar libidinoso) E olhe que pra vocês isso até que não é difícil... Vou lá em cima avisar o resto do pessoal. (Vai na direção da escada e esbarra com o PROFETA que entra) Oh, o Profeta também tá aqui?... Olhe, os seus sobrinhos estão lá em casa.
PROFETA
Eu sei... Deus há-de pagar... O senhor é um homem bom, neste mundo de maldade.
GORILA
Sou mesmo. Onde é que você tá?
PROFETA
Ali em cima. (Aponta para o seu alojamento)
GORILA
Hum... vou providenciar umas tábuas e melhorar aquilo ali.
PROFETA
Muito obrigado.
GORILA
É claro que você vai ter que pagar alguma coisa.
PROFETA
Aluguel?
GORILA
É, o mesmo que sua irmã pagava no morro.
PROFETA
Mas eu... eu não tenho...
GORILA
Então, vai ter que desocupar o lugar.
PROFETA
(Suplicante) Eu não tenho pra onde ir... O senhor sabe... Não tenho renda... Vivo da caridade de algumas pessoas...
GORILA
E por que não trabalha?
PROFETA
Trabalho, sim, mas pra Deus Nosso Senhor. Ele me confiou uma nobre missão na Terra: sou profeta.

GORILA tem um gesto de impaciência.

PROFETA
Muita gente pensa que eu sou louco. Mas eu sou um homem de juízo perfeito. Também Jesus disse a seus profetas: Sereis perseguidos e tomados por loucos... A diferença que há entre mim e os outros homens é que eu tive o privilégio de ver o futuro!
GORILA
Pois veja qual vai ser o seu futuro, se não arranjar dinheiro pra pagar o aluguel... (Inicia o movimento para sair, mas o PROFETA agarra-se a ele)
PROFETA
Espere! Deixe que lhe conte a visão que tive...!
GORILA
(Com um brutal safanão, atira-o ao solo) Ah!... vai pro inferno com tuas visões!... (Sobe a escada para o 1.° piso e depois a que vai dar ao segundo, saindo, enquanto o PROFETA, estendido ao solo, profetiza).
PROFETA
Eu vi a terra em chamas, rolando, rolando, como uma enorme bola de fogo!...

E a luz se apaga, em resistência.


FIM DO PRIMEIRO QUADRO

SEGUNDO QUADRO

Passa da meia-noite. Todos dormem. A cena está quase às escuras. Apenas a luz da lua batendo nas pilastras. Entram Malú e Lula. Param no meio da área.


MALÚ
Bem... até amanhã.
LULA
(Segura-a por um braço e puxa-a para si) Você vai assim?... Ele tenta beijá-la, ela esboça uma reação.
MALÚ
Não faça isso. (Liberta-se dos braços dele) Que é que você tá pensando? Que eu sou dessas?
LULA
Que é que tem? Ninguém tá vendo. E eu gosto de você. Você não gosta de mim?
MALÚ
Gosto. Mas isso é outra coisa.
LULA
É coisa de quem gosta. Quem gosta faz isso... e eu estou louco por você. (Torna a enlaçá-la)
MALÚ
Olhe que podem ver...
LULA
Tá todo mundo dormindo. Vamos lá pra trás dos tabiques... lá não tem perigo...
MALÚ
(Reage vigorosamente) Não!
LULA
(Muito sincero) Que bobagem...
MALÚ
Eu sei o que você tá querendo.
LULA
E que tem isso? Não quer dizer que eu não tenha boa intenção com você.
MALÚ
Eu sou moça.
LULA
E daí?
MALÚ
Você casa comigo?
LULA
Não vou largar você depois. Nem depois nem nunca mais.
MALÚ
Você fala assim e não tem onde cair morto.
LULA
No terceiro andar ainda tem lugar. Se a gente se juntasse, eu podia arranjar umas tábuas, fechar as paredes... Depois a gente comprava uns móveis em segunda mão, eu mesmo fazia, conheço o ofício de carpinteiro. Ia ficar uma beleza de barraco, com a vista bonita que tem lá de cima...
MALÚ
Isso é sonho. Amanhã botam a gente daqui pra fora.
LULA
Botam, mas custa. Tá todo mundo disposto a resistir até o fim.
MALÚ
E será que vale a pena?
LULA
O que?
MALÚ
Lutar tanto... por isto?
LULA
Você acha que não? Que a gente não deve lutar pelo que tem direito?
MALÚ
Mas é só a isto que a gente tem direito? Miséria... fome... lixo...
LULA
Claro que não, mas... a gente tinha menos que isto. Foi uma conquista. É preciso lutar pra conservar. Entende?
MALÚ
Entendo não. Lutar pra conservar uma coisa que a gente devia acabar com ela. Conservar o que devia ser destruído.
LULA
Tenho um amigo que diz que o importante não é a gente ganhar, é ter consciência de nossa força. E isso a gente só consegue lutando.
MALÚ
Esse seu amigo acha que a gente deve morrer por este monte de lixo?
LULA
Acha. E ele sabe o que diz. Ele tem preparo e tem experiência.
MALÚ
Experiência de quê?
LULA
De luta. Já foi preso um monte de vezes. Preso e espancado pela Polícia. Arrancaram o bigode dele, fio por fio, a pinça.
MALÚ
Por quê?
LULA
Porque queriam que ele falasse. E ele não falou.
MALÚ
Você era capaz disso?
LULA
Não sei... a gente nunca sabe. Na hora é que se vê. Mas eu não sou Rafael. Eu agora é que estou começando a entender uma porção de coisas... Não é fácil porque... eu não tive estudo e... sou meio burro. Por isso eu não sei lhe responder quando você diz que a gente devia lutar era pra acabar com isto e não pra conservar. Mas eu garanto que Rafael lhe dava a resposta.
MALÚ
Nós deixamos a nossa terra quando já tinha secado tudo quanto era cacimba e a gente vivia mastigando raiz de umbuzeiro pra matar a sede. Mas nem assim o pai queria arredar pé dali. Sem água, sem comida, e ele queria ficar. Ficar pra morrer. É como vocês. Lutam pra ficar, quando deviam lutar pra sair daqui.
LULA
Sair... pra onde?
MALÚ
Sei lá. Mas o mundo é grande. Tem que haver, em alguma parte, um lugar pra gente.
LULA
(As palavras de MALÚ O abalam um pouco) Acho que você tem razão. Mas isso é depois. Agora a gente tem que lutar por isto aqui. Pelo menos aqui a gente está junto... e se você gostasse um pouco de mim... se você imaginasse, como eu imaginei, o nosso barraco no terceiro andar... (Ele a aperta desesperadamente contra o peito) Se eu tivesse você, Malú, ninguém mais botava a gente daqui pra fora. Nem morto! (Ele a beija. Ela resiste um pouco e logo se abandona. Depois repele-o bruscamente)
MALÚ
Aí é que está: você não quer sair daqui, nem morto... e eu quero sair viva. A vida é feia, muito feia, pra gente querer resolver tudo com palavras bonitas. Antes de nós entrarmos na fila dos retirantes, o coronel mandou me chamar na casa dele. Disse que se eu quisesse, não precisava ir embora... Ele arrumava uma casa pra mim, na cidade e garantia o meu futuro... E quis me agarrar à força.
LULA
Você?...
MALÚ
Mandei ele à merda e fugi.
LULA
Fez bem. Filho da mãe!
MALÚ
Tou arrependida até hoje.
LULA
Não acredito. Você não nasceu pra isso. Pra se vender.
MALÚ
O que você quer de mim, é a mesma coisa que ele queria. A diferença é que ele me dava uma casa de verdade e você promete só uma gaiola lá no terceiro andar.
LULA
Não, Malú, a diferença é que eu gosto de você e ele só queria se aproveitar.
MALÚ
Homem só quer a gente pra levar pra cama. Pelo menos a dele devia ser grande e macia... com ele eu não precisava ir atrás do tabique.
LULA
(Segura-a pelo braço) Malú... me desculpe. Eu disse aquilo porque... porque não me agüento junto de você! Não quis lhe humilhar!
MALÚ
Eu sei! É que com você não pode ser de outro modo... tem que ser mesmo atrás do tabique... (Encaminha-se para o seu apartamento)
LULA
(Tem um gesto para detê-la) Malú...
MALÚ
(Detém-se) Obrigada pelo jantar. (Entra em casa)

LULA fica no meio da área, imóvel.

SANTA
(Deitada) Malú, é você?
MALÚ
Sou, mãe.
SANTA
Ele levou você pra comer?
MALÚ
Levou.
SANTA
Inda bem. (Vira-se para o outro lado e dorme)

MALÚ começa a arrumar sua cama, enquanto as luzes se apagam em resistência.


FIM DO SEGUNDO QUADRO

TERCEIRO QUADRO

Decorreram dois meses. Notam-se algumas melhorias nas habitações. As paredes laterais foram construídas com pedaços de madeira. Amanhece. Todos dormem, com exceção de Justino e Malú, que não se encontram em cena, e Santa e Isabel, que já estão de pé. Ouve-se um despertador no apartamento de Bené, Isabel sacode Lula.


ISABEL
Lula? Acorda...

LULA resmunga, vira-se para o outro lado e continua a dormir. ISABEL prepara o café e a marmita do filho. No primeiro piso, LINDALVA levanta-se e acorda BOLA SETE.

LINDALVA
É hora, nego.
BOLA SETE
(Boceja ruidosamente) Sono desgraçado. (Espreguiça-se e levanta-se)

JUSTINO entra da direita, abotoando as calças.

JUSTINO
Tonho acordou não?
SANTA
Deixe ele dormir mais um pouco. Tenho que acabar de preparar as marmitas.
JUSTINO
Tá ficando durminhoco esse cabra. Na roça, dava cinco horas já tava de pé.
SANTA
Tem necessidade disso?
JUSTINO
É, a cidade amolece a gente.

BOLA SETE desce a escada, atravessa a cena com uma toalha no ombro e sai na direção de onde veio JUSTINO.

ISABEL
(Sacode LULA novamente) Lula?
LULA
(Mal humorado) Já vou, Mãe! (Levanta-se, por fim, de um salto. Apanha uma toalha, uma escova de dentes e sai pela direita, na mesma direção de BOLA SETE)

JUSTINO tira do bolso um maço de notas e põe-se a contá-lo.

SANTA
Você tá sempre contando esse dinheiro.
JUSTINO
Na esperança de ter contado errado, de ter mais um pouco.
SANTA
Falta muito?
JUSTINO
Mais de metade.
SANTA
Também, em dois meses...
JUSTINO
Estive ontem no Campo de S. Cristóvão...
SANTA
Fazendo?...
JUSTINO
Fui indagar o preço das passagens.
SANTA
E não é o mesmo da vinda?
JUSTINO
É, nada. Já tinha me dito. É muito mais caro. Diz que por causa da gasolina que subiu. Seu Mané Gorila que disse.
SANTA
Tava lá?
JUSTINO
Tava. Tá sempre esperando chegar pau-de-arara. Caboclo não tem pra onde ir, ele faz como fez com a gente: arruma um pedaço de despenhadeiro num morro desses, umas tábuas...
SANTA
E depois fica vivendo à custa dos coitados.
JUSTINO
Aqui é tudo assim, uns vivendo à custa dos outros. Não vejo a hora de ir embora, Santa. Num vejo a hora. A seca já deve tá terminando.
SANTA
Tá nada.
JUSTINO
(Como se não tivesse ouvido, sonhador) Você já imaginou? A terra enfeitada de verde... esperando a gente, perfumada de chuva... como mulher esperando seu homem. Terra boa aquela, Santa. A gente é que não presta.

TONHO levanta-se.

TONHO
Já é hora?
JUSTINO
Então. Você não pega às sete? Pra Malú é que ainda tem... (Nota que MALÚ não está no colchão) Cadê?...
SANTA
(Finge-se de desentendida) Cadê o que?
JUSTINO
Malú?
SANTA
(Procurando encarar o fato como coisa natural) Veio dormir não.
JUSTINO
Não veio dormir? E você tá nessa calma, não me disse nada...
TONHO
Capaz de ter acontecido alguma coisa com ela.
SANTA
Por que deve ter acontecido?
TONHO
Pra ela não vir pra casa...
SANTA
Deve ter ficado trabalhando no escritório.
JUSTINO
Trabalhando? De noite?
SANTA
É. Ela disse ontem que ia trabalhar depois da hora, pra adiantar o serviço. Com certeza ficou tarde e ela dormiu lá mesmo.
JUSTINO
Lá onde? No escritório?
SANTA
(Está evidentemente insegura, pouco convencida de tudo o que diz) Sim... não sei... como quer que eu saiba?
JUSTINO
Tou perguntando.
SANTA
Você sabe como é o emprego dela. Tem dia que vai só de tarde, dia que não vai... O doutor tem sido muito bom pra ela, um dia que ele precise que ela fique de noite, ela não pode negar, você não acha?
TONHO
É, pai...
JUSTINO
Mas devia ter avisado. E onde ela dormiu?
SANTA
E eu sei? Quando chegar, ela diz. Tem umas amigas... (Nota que JUSTINO não se satisfaz com as explicações) Que é, homem? A vida é dura. Ela tá querendo melhorar de vida... tá se esforçando...
JUSTINO
(Acomodando-se à justificativa) Tá bem, eu não sabia que ela ia trabalhar até depois da hora.

TONHO lava o rosto numa bacia. Entram, da direita, LULA e BOLA SETE. LULA ainda se enxugando.

BOLA SETE
Vambora, Tonho!
TONHO
Tou indo. Espere por mim.
LULA
(Para BOLA SETE) Tome café depressa e venha pra gente decidir.
BOLA SETE
Tá. (Sobe a escada, vai para o seu apartamento, onde LINDALVA prepara o café e a marmita)

LULA entra em casa. BENÉ acorda.

BENÉ
Que horas são?
ISABEL
Uma hora que não existe pra você: 6 e 10.

BENÉ levanta-se, sonolento.

ISABEL
(Enorme espanto) Ué! Você vai se levantar?l
BENÉ
(Mal humorado) Que é que tem? Nunca viu?...
ISABEL
Não. Você deve tá doente, ou o mundo tá pra se acabar.
BENÉ
Arranjei um biscate pra hoje. Hoje só, não. Três vezes por semana.
ISABEL
Três vezes?! Vai ficar tuberculoso de tanto trabalhar!
BENÉ
Ora, vá pro inferno!
ISABEL
Mas que serviço é esse? Tou curiosa.
BENÉ
Lavar o carro do doutor Deodato.
LULA
(Volta-se, repentinamente) Daquele filho da mãe?
BENÉ
Filho da mãe por quê? Vai me dar cem pratas de cada vez. Chato é que tem de ser de madrugada. (Apanha a toalha) Nem mesmo quando jogava no Vasco eu acordava a esta hora... (Sai pela direita)
ISABEL
Que é que você tem?... Falou no nome do doutor Deodato...
LULA
(Corta bruscamente) Tenho nada. (Avança para a área)
ISABEL
Ele precisava era se agarrar com esse doutor Deodato, pra ver se arranjava um emprego.
LULA
Arranja nada.
ISABEL
Quem sabe? Agora, em véspera de eleição...
LULA
Tudo conversa. Ele também disse que garantia a gente ficar aqui. Soube ontem que o juiz tá pra assinar a ordem de despejo. Vão tocar a gente daqui pra fora de hoje pra amanhã.
ISABEL
Como você soube?
LULA
Rafael que me disse. Informação segura. A coisa tá por horas.

BOLA SETE se aproxima.

LULA
Já falei com Bola Sete. Preciso agora falar com os outros.
ISABEL
Pra quê? Se é ordem do Juiz, que é que a gente vai fazer?
LULA
Temos que ir à Câmara.
BOLA SETE
Eu e você?
LULA
Não, todo o mundo. Mulheres, crianças, todos. Quanto mais gente melhor. E também umas faixas. Podemos fazer aqui mesmo. Se todo mundo trabalhar, vai ser formidável!

JUSTINO e TONHO se aproximam, curiosos. Do primeiro piso, LINDALVA escuta.

BOLA SETE
Não tou entendendo. A gente vai à Câmara fazer o que?
LULA
Protestar!
ISABEL
(Desconfiada) Isso é idéia sua ou do Rafael?
LULA
Não importa de quem seja. Se a gente não fizer alguma coisa, amanhã vai ser tarde. Ontem eu soube da história... Isto aqui era pra ser um Hospital do Governo. Uma companhia particular foi encarregada de construir. Mas o Governo não pagou o dinheiro todo e a Companhia parou a construção. O caso tá rolando na Justiça há três anos. A companhia quer devolver o prédio pro Governo como está, mas o Governo não quer receber porque o prédio não tá pronto.
TONHO
Mas então a coisa tá boa pro nosso lado. Se nenhum dos dois quer ficar com o prédio, a gente vai ficando.
BOLA SETE
Pois é!
LULA
É, mas ontem eu soube que tem gente querendo se aproveitar da situação e ficar com o prédio por uma ninharia. E essa gente comprou um juiz pra assinar um mandato de despejo.
ISABEL
Gente safada!
LULA
Por isso é que a gente tem de agir!

BENÉ entra e vem reunir-se ao grupo.

JUSTINO
Agir como?
LULA
Indo todo mundo, em massa, à Câmara de Deputados. Com faixas, cartazes, tudo que a gente puder levar pra chamar a atenção.
JUSTINO
Ir quando? Agora?
LULA
Agora, não. A Câmara só abre à uma hora da tarde. Mas nós temos que estar lá ao meio-dia.
TONHO
E o trabalho? Nós pegamos às sete.
LULA
Ninguém trabalha hoje, companheiro. Vocês não entenderam ainda? Amanhã eles tão aí pra botar a gente na rua. E dessa vez não tem apelação, é ordem do juiz! Isso é mais importante que um dia de trabalho!
BENÉ
Não acho. Acho é que você tá querendo arrumar encrenca. Isso é coisa que esse tal de Rafael andou metendo na sua cabeça.
LULA
Rafael tem experiência dessas coisas.
BENÉ
Pra ele é muito fácil dizer que a gente deve fazer isso ou aquilo, ele não mora aqui...
JUSTINO
E se não mora, não tem nada com isso.
ISABEL
Ele tá querendo é que a Polícia bata aqui de novo.
BENÉ
Isso mesmo: o que ele quer é que botem a gente pra fora. Conheço esses caras! Só querem desgraçar a vida da gente.
LULA
(As palavras do pai o ferem profundamente) Não diga bobagem! Você não sabe o que tá dizendo!
BENÉ
(Avança agressivamente para LULA) Eu não sei?...
LULA
Não! Você não passa de um bêbado!

BENÉ tenta agredir LULA.

ISABEL
(Grita) Bené!

BOLA SETE se interpõe entre LULA e BENÉ. MANÉ GORILA entra.

GORILA
Eh, que é que há por aqui?...

Diante de MANÉ GORILA, todos procuram disfarçar.

BOLA SETE
Não há nada. Brincadeira.

Dispersam-se. BENÉ volta para casa. ISABEL O segue. LULA permanece ao lado de BOLA SETE, ao fundo. TONHO vai acabar de tomar o seu café.

BENÉ
(Para SANTA) E vem me chamar de bêbado...
ISABEL
Deixe isso pra lá. Ele anda nervoso, você sabe.
BENÉ
Sei, e sei também porque: dor de corno. Mas não tenho nada com isso.
GORILA
(Para JUSTINO, na área) Era com o senhor que eu queria falar.
JUSTINO
Comigo? Tou em dia...
GORILA
Tá em dia no aluguel. Mas tá devendo.
JUSTINO
Devendo o que?!
GORILA
Não lembra aquelas tábuas que eu lhe dei pra fazer o barraco, lá no morro?
JUSTINO
Mas aquilo... ficou lá!
GORILA
Pois é, ficou lá e se perdeu. Foi soterrado. Quem é que paga o meu prejuízo?

BOLA SETE e LULA prestam atenção ao diálogo. TONHO interrompe o café, escuta a conversa, apreensivo, como SANTA.

JUSTINO
Nenhum de nós tem culpa...
GORILA
Nenhum de nós tem culpa, mas quem perdeu fui eu. (Num tom levemente ameaçador) E eu não posso perder, seu Justino. Tenho família pra sustentar... mulher e seis crianças. Sou um homem que luta.
JUSTINO
O senhor tá querendo... que eu lhe pague a madeira?
GORILA
(Condescendente) Toda, não. Vou mostrar que sou um homem justo. Vamos repartir irmãmente o prejuízo. A madeira valia uns vinte contos. O senhor paga só dez.
TONHO
Dez contos! (Ameaça levantar-se, num gesto agressivo, mas SANTA o detém)
JUSTINO
Tenho não! O senhor sabe.
GORILA
(Som) Não pague o bem com o mal, seu Justino. Tou sendo camarada, cobrando só metade do prejuízo e o senhor tá querendo me enganar?
JUSTINO
Não tou enganando! Não tenho esse dinheiro!
GORILA
Ontem, no Campo de São Cristóvão, o senhor me disse que tinha dez contos guardados.
JUSTINO
Mas é pra comprar a passagem de volta!
GORILA
E o senhor, como homem decente que é, vai voltar sem pagar suas dívidas?
JUSTINO
(Angustiado) Mas esse dinheiro... eu não posso! É um dinheiro que eu venho juntando com sacrifício. Eu e minha gente temos passado fome, juntando tostão a tostão! É um dinheiro sagrado!
GORILA
(Insensível) Suas dívidas também devem ser sagradas.
JUSTINO
Aquelas tábuas... a gente nem a usou... Depois da enchente, ficou tudo lá... é capaz do senhor inda achar e aproveitar...
GORILA
(Corta) Seu Justino, o senhor quer ir embora pra sua terra, não quer?
JUSTINO
Tou juntando esse dinheiro pra isso.
GORILA
(Sua voz é ameaçadora, mas sempre macia) Então trate primeiro de pagar o que deve. Ou o senhor pensa que vai sair daqui sem me pagar? Se tá pensando nisso, afaste essa idéia do pensamento. Tenho gente minha por toda a parte, seu Justino. Aqui, na favela, na Polícia, no Campo de São Cristóvão... não sai um pau-de-arara sem que Mané Gorila seja avisado.
JUSTINO
Não vou fugir sem lhe pagar.
GORILA
Além do mais, é uma ingratidão de sua parte. Se não fosse eu, a mocinha não tava com o futuro garantido, como tá... (Pisca um olho, mas JUSTINO não compreende a insinuação) Fui eu que trouxe o doutor Deodato aqui e depois ajudei a arrumar as coisas... Sabe, doutor Deodato precisa de mim. Sou cabo eleitoral dele. Uma palavra minha é ordem. E a mocinha vai tão bem... era uma pena...
JUSTINO
(Intimidado) Até quando o senhor quer esse dinheiro?
GORILA
Agora, seu Justino. Tou precisando e o senhor tem o dinheiro. Pra que esperar?

Num gesto lento, sofrido, como se arrancasse o próprio coração JUSTINO puxa do bolso o maço de notas e o entrega a MANÉ GORILA.

GORILA
(Sorri) Olhe, quando quiserem voltar, falem comigo, Eu talvez arranje um abatimentozinho. Conheço tudo quanto é chofer de pau-de-arara...
JUSTINO
Precisa não.
GORILA
(Saindo) É um favor que não custa nada. (Sai, ante os olhares de revolta de LULA, BOLA SETE, TONHO e SANTA)
SANTA
(Corre para JUSTINO, que parece arrasado) Ele levou tudo?!
JUSTINO
Levou.
TONHO
O dinheiro das passagens!...
JUSTINO
(Mais como uma justificativa para sua própria fraqueza) Fiquei com medo que ele prejudicasse Malú.
LULA
(Avança para JUSTINO, revoltado) Você devia mesmo esse dinheiro pra ele?
JUSTINO
Sei lá... ele falou numas tábuas
TONHO
A enchente carregou com tudo!...
JUSTINO
Ele não obriga todo o mundo a pagar aluguel aqui, só porque fez esses tabiques?
LULA
Porque a gente quer. Porque a gente não se revolta!

BENÉ vem para a área, pronto já para sair, ISABEL O segue.

LULA
Nós somos muitos e ele é um só!
ISABEL
Ele não é um só, Lula...
LULA
Sim, eu sei que ele tem capangas, que é um malfeitor. Mas e a Polícia? Nós botamos a Polícia pra correr e vamos ter medo desse sujeito?
ISABEL
Brigar com a Polícia é brigar com a Polícia só. Brigar com Mané Gorila é brigar com os dois.
LULA
Nada, ele faz isso porque a gente se submete. Querem ver? quando ele voltar aqui, vamos dizer que o Comitê de Resistência decidiu que ninguém mais vai pagar um tostão.
BENÉ
Mas o Comitê não decidiu coisa nenhuma. Quem decidiu foi você!
SANTA
E quem é que vai dizer isso a ele?
LULA
Um de nós.
BENÉ
Não eu.
TONHO
Nem eu.
LULA
Pois digo eu.
BENÉ
Quando eu falo que esse cara só tá querendo arrumar encrenca.
LULA
(Para JUSTINO) Se você quiser, eu arranjo um advogado e garanto que ele vai ter que devolver o seu dinheiro.
JUSTINO
(Acovardado também ante a idéia de fazer frente a MANÉ GORILA) EU não quero coisa nenhuma! Não pedi nada pra você!
LULA
Não tenha medo. Nós todos, unidos, podemos expulsar esse sujeito daqui para sempre!
BENÉ
(Agressivo) Você não vai expulsar ninguém! Você vai é sumir daqui agora mesmo!
JUSTINO
(Unindo-se a BENÉ) É o que é!
SANTA
Pra deixar de se meter onde não é chamado!
BENÉ
Se não sair daqui já, eu chamo a Polícia e denuncio você! Você, Rafael e toda essa cambada!
LULA
Pois chame. Denuncie. Assim eu fico sabendo de uma vez de onde foi que eu nasci! De um covarde!
BENÉ
(Atira LULA ao chão com um bofetão)

LULA levanta-se e ameaça investir novamente contra BENÉ, mas BOLA SETE o contém.

ISABEL
Lula! É seu pai!...

BENÉ hesita um instante e por fim sai bruscamente. Há um enorme silêncio. LULA fica imóvel no meio da área. BOLA SETE vem até TONHO.

BOLA SETE
Tonho, vambora?
TONHO
Vamos. (Apanha sua marmita e sai com BOLA SETE)
ISABEL
(Aproxima-se de LULA) Você não vai trabalhar? Vai chegar atrasado...
LULA
Tenho vontade é de encher a cara.
ISABEL
Seu pai tá com a razão...
LULA
(Corta bruscamente) Não fale mais! (Dirige-se para casa, ISABEL lhe entrega a marmita. Ele vai sair quando surge MALÚ. Vem da rua. Sofreu grande transformação. Pinta-se com algum exagero e veste-se com acentuado mau gosto. Mas vê-se que sua situação, financeiramente, melhorou bastante. Suas maneiras adquiriram também certa afetação, fruto exclusivo de um macaquismo provinciano, exceto nos momentos de grande sinceridade. Ao vê-la, LULA detém-se como se levasse um choque. JUSTINO também a recebe com um ar de censura)
MALÚ
(Mostra-se ligeiramente intimidada ao deparar com LULA e o pai, mas resolve reagir e enfrentar a situação. Entra em casa com passo firme) Que foi? Por que tá todo o mundo aqui com essas caras?
JUSTINO
Onde é que você esteve?
MALÚ
Dormi no apartamento duma colega. É por isso?
JUSTINO
E por que essa cara pintada desse jeito? (Passa o polegar com violência nos lábios de MALÚ) E essa boca toda lambuzada...
MALÚ
(Reage) Pai, eu não sou mais criança não! Faço o que quero da minha vida!
JUSTINO
Faz o que quer!... E o que é que você tá querendo fazer? Tá querendo pegar homem na rua?
MALÚ
Tou querendo sair daqui, desta desgraça!
JUSTINO
Todos nós tamos querendo sair daqui. Ninguém tá aqui porque quer!
MALÚ
Mas vocês nunca hão-de sair.
JUSTINO
E você, já arranjou um jeito?
MALÚ
(Faz uma pausa e diz corajosamente) Já.
JUSTINO
Já?!
MALÚ
Aluguei um apartamento, vou viver sozinha.
JUSTINO
Você que alugou?!
MALÚ
Não, Deodato.
JUSTINO
(Avança para ela, compreendendo tudo) Deodato!... Então você deu confiança práquele...
SANTA
Justino!
MALÚ
Ele gosta de mim. Não pode casar, porque é casado. Alugou um apartamento pra mim em Copacabana e vai me dar tudo! (Grita desesperadamente, como se quisesse impor ao mundo inteiro as suas justificativas) Ele é rico! Vou poder me vestir como todo o mundo, comer e dormir numa cama de verdade! Tou cansada de passar fome, de viver como porco em chiqueiro! Se os outros podem viver de outro jeito, eu também devo poder! E se não pode ser de outro modo, que importa... tou decidida!

RITA desperta, senta-se na rede, sonolenta.

JUSTINO
Quer dizer que o trabalho de noite no escritório... era isso. (O silêncio de MALÚ é uma confirmação) Sua fêmea! (Grita) Fêmea! (Avança para ela, como para espancá-la, mas SANTA toma-lhe a frente, resolutamente).
SANTA
Não! Você não vai fazer nada com ela!
JUSTINO
Você inda defende ela! Não entendeu então que...
SANTA
(Corta) Entendi tudo! Há muito tempo!
PROFETA
(Ele tem um choque) Há muito tempo?! E ficou calada?!
SANTA
Tive dez filhos. Três nasceram mortos. Quatro morreram de fome... tuberculosos. Ela, pelo menos, não vai morrer assim. O moço tem dinheiro. Ela vai comer bem, vai se tratar...
JUSTINO
E a honra?
SANTA
Nossos quatro filhos que morreram de fome, morreram com honra.

JUSTINO baixa a cabeça, arrasado.

SANTA
(Para MALÚ) Vá embora. Você teve sorte.

MALÚ beija a mãe, beija a irmã e faz menção de abraçar o pai. Mas JUSTINO está de costas, os olhos pregados no chão. Ela hesita, volta-se e sai bruscamente para a área, onde encontra LULA à sua espera. Ele presenciou toda a cena. Está também arrasado.

LULA
Malú!

Ela se detém.

LULA
Malú! Não vá! Você vai se arrepender!

Ela olha-o demorada e angustiosamente, como se, no fundo, sentisse ter que dar aquele passo. Súbito, como se temesse que ele ainda pudesse prendê-la ali, volta-se e sai correndo.


O PANO CAI RÁPIDO — FIM DO TERCEIRO QUADRO

TERCEIRO ATO


Seis meses depois. Os apartamentos têm já portas e janelas feitas de madeira desigual e pintada das mais desencontradas cores. Assim sendo, o interior das habitações já não é tão devassado, vendo-se mesmo, no térreo, que um tabique separa o quarto de Rita. É Domingo, cerca de meio-dia. O Profeta está no centro da área pregando. Isabel, Lindalva, Tonho, Santa e mais alguns favelados, escutam atentamente.


PROFETA
(De olhos cerrados, continuando) Porque, meus caríssimos irmãos, está na Bíblia: José, também chamado Barnabé, vendeu a casa que tinha e entregou o dinheiro aos apóstolos. E assim faziam os primeiros cristãos, repartindo o que possuíam entre todos. Ninguém dizia que era dono de nada, porque o que era de um era também dos outros.

Entram COMISSÁRIO, PRIMEIRO TIRA e SEGUNDO TIRA. Ficam parados à distância, ouvindo o PROFETA.

PROFETA
Ninguém então passava necessidades, porque quem possuía terras vendia essas terras e quem possuía jóias vendia essas jóias e tudo era atirado aos pés dos apóstolos e distribuído a cada um segundo as necessidades que cada um tinha. (Aponta para um ponto vago, como que tendo uma visão profética) E eu vi!... todos os mundos fazendo um só mundo! Todos os países misturados num só país! E todas as riquezas formando uma enorme montanha, onde cada um vinha buscar o que precisava, sem ter que pagar, pedir ou roubar! Era assim na minha visão. E se era assim, assim será, porque eu sou apenas um apóstolo do Senhor. (Baixa a cabeça, num gesto de humildade) É Ele quem vê pelos meus olhos. É Ele quem fala pela minha boca. É Ele quem aponta pelo meu braço o caminho! (Seu braço se imobiliza no ar, o indicador apontando para o alvo, e depois de alguns segundos cai bruscamente)
COMISSÁRIO
(Faz um sinal ao PRIMEIRO TIRA, que avança e segura o PROFETA por um braço) Vamos até o Distrito.
PROFETA
(Espantado) Distrito? Por que?
PRIMEIRO TIRA
Queremos ter uma conversinha com você.
COMISSÁRIO
Você conhece o Rafael?
PROFETA
Rafael? Na Bíblia existe...
COMISSÁRIO
(Corta) Não quero saber da Bíblia. Quero saber de Rafael, que vocês sabem muito bem quem é.
PROFETA
Não sei...
PRIMEIRO TIRA
Sabe, sim, seu Comissário. Todos eles sabem.
COMISSÁRIO
É ele que nós queremos, não é você. Portanto é melhor falar. Onde está Rafael?
PROFETA
Não conheço! Juro por Deus Nosso Senhor que não sei!
ISABEL
Ele não sabe mesmo.
TONHO
Ele é beato.
LINDALVA
É Profeta.
SANTA
Tem dom divino!...
ISABEL
E nunca fez mal a ninguém, coitado.
COMISSÁRIO
E vocês? Vão me dizer que não sabem quem é Rafael?

Há um instante de silêncio. Ninguém responde.

COMISSÁRIO
(Insiste) Hein? Respondam! Não sabem também quem é Rafael?
ISABEL
Eu sei. Mas não sei onde ele mora.
COMISSÁRIO
(Avança para ela, procurando intimidá-la) Não sabe mesmo?
ISABEL
(Enfrenta-o, sem intimidar-se) Não. E não vou com a cara dele. Mas mesmo assim, se soubesse, não dizia.
SEGUNDO TIRA
(Irônico) Ela é metida a valente.
COMISSÁRIO
Valentia de mulher a gente cura com duas palmadas. (Gira o olhar em torno) Quer dizer que ninguém sabe onde está Rafael... (Para os TIRAS) Vamos levar esse aí. Tenho certeza que sabe onde ele está.
PROFETA
Os senhores estão enganados... eu não sei de nada... não sei de quem estão falando... sou um apóstolo do Senhor...
ISABEL
Vocês não têm vergonha de prender um homem desse?...
SANTA
É até pecado!
TONHO
É atraso na certa!
COMISSÁRIO
Não acredito nisso. Vamos!
PROFETA
O Senhor é testemunha de que só vivo para transmitir aos homens as suas palavras.
COMISSÁRIO
É, eu ouvi há pouco o seu sermão. Pode ser que você engane aos trouxas, a mim, não. Há 20 anos que lido com comunistas. Vamos embora!

Saem COMISSÁRIO e os dois TIRAS, arrastando o PROFETA.

PROFETA
(Saindo) Senhor!... Senhor!...
LINDALVA
Coitado! Vão dar nele?
ISABEL
Sei lá. Polícia é capaz de tudo.
SANTA
Mas por que?... Ele que vive aqui sem tomar conhecimento de nada... fora de tudo, lá com suas visões...
TONHO
Tão procurando Rafael. Eu sei porque. A ordem de despejo já foi assinada pelo Juiz.
SANTA
Ah, tem seis meses que todo dia dizem isso. E a gente vive nesse aperreio.
ISABEL
Mas dessa vez a coisa tá feia mesmo. Dr. Deodato disse pro Bené...
TONHO
Deodato perdeu a eleição e tá desinteressado. Dizem também que ele levou bola.
LINDALVA
Que lista era aquela que o Lula andou correndo, pedindo a todo mundo pra assinar?
SANTA
(Para TONHO) Você não devia ter botado seu nome naquilo. Seu Bené não assinou. Disse que era coisa pra dar cadeia.
ISABEL
Coisa do Rafael.
SANTA
E você tá vendo o resultado...
TONHO
Era pro juiz. Pra tentar impedir o despejo.
LINDALVA
Não enteado é porque prenderam justamente o Profeta.
SANTA
Eles vão ver a maldição que vai cair sobre eles. (Afasta-se para a direita, parecendo assaltada for outras preocupações)
LINDALVA
Um homem que nunca fez mal a ninguém...
TONHO
E tem sabença!
ISABEL
Tem, sim. Estudou num colégio de padre. Tem vez que fala umas coisas numa língua que aprendeu lá. E é um santo homem.
TONHO
Você acredita nele?
ISABEL
Não acredito, nem desacredito. Negócio de santo, de religião, é como futebol: besteira discutir.
LINDALVA
A gente podia fazer alguma coisa pra soltar o coitado.
ISABEL
Fazer o que? Que é que a gente pode fazer?
TONHO
(Vai a SANTA, que parece preocupada, esperando alguém) O pai tá demorando.
SANTA
Mandou que eu arrumasse os teréns...
LINDALVA
(Para ISABEL, em frente ao apartamento desta) Falar em futebol, Bola Sete disse que Lula foi treinar no Flamengo. Verdade?
ISABEL
Foi hoje. Bené levou ele. Levou quase à força.
LINDALVA
Por que?
ISABEL
Sei lá. Esse menino anda de cabeça virada.
LINDALVA
Se ele fosse contratado pelo Flamengo, hein?... Puxa vida! Seu Bené ia morrer de alegria.
ISABEL
Nem me fale.

Entra JUSTINO. Vai direto ao seu apartamento. LINDALVA sobe a escada.

SANTA
Como é?...
JUSTINO
Tudo certo! O caminhão sai às três horas.
TONHO
Comprou as passagens?
JUSTINO
Comprei. Foi a conta certa. Fiquei com cem cruzeiros.
TONHO
E como é que vão fazer pra comer no caminho? São dez dias de viagem.
SANTA
A gente se arruma. Agora somos só eu, Justino e Ritinha.
JUSTINO
Estava com medo era de encontrar Mané Gorila.
TONHO
Agora não tem mais perigo, o senhor já tá com as passagens pagas...
JUSTINO
Não é isso. É que pra comprar as passagens eu tive que lançar mão do dinheiro do aluguel deste mês. Senão, só mês que vem a gente ia poder...
TONHO
Quer dizer que vocês vão embora sem dar o dinheiro dele?
JUSTINO
É o jeito...
SANTA
(Receosa) Se aquele peste souber, é capaz de...
TONHO
Tenha medo não. Ele não vai saber. Quando souber, vocês já tão longe.
SANTA
E você?...
TONHO
Eu digo que não tenho nada com isso. E vou tratar de sair daqui. Isso tá mesmo por pouco. A ordem de despejo já foi assinada pelo Juiz... Como hoje é Domingo, não puderam fazer nada. Mas amanhã a Polícia deve tá aí de novo. Se bem que o Rafael andou correndo uma lista...
JUSTINO
Eu assinei.
SANTA
Não devia.
TONHO
Só Bené não assinou.
JUSTINO
É um cabra tinhoso, esse Rafael.
TONHO
É, mas dessa vez eu acho que vamo ter que sair, tem jeito não.
JUSTINO
(Inconformado com a decisão de TONHO de ficar) E você vai ficar mesmo...?
TONHO
Vou, pai. Quero voltar não.
JUSTINO
Não tá convencido ainda que isso aqui é uma desgraça? Tem lugar pra nós aqui não, Tonho!
TONHO
Quero tentar, pai.
JUSTINO
(Vencido) Tá bem. O dia que você se cansar de bater cabeça, tamos lá à sua espera,
TONHO
Brigado, pai.
JUSTINO
(Para SANTA) Podemos ir?
SANTA
Rita...
JUSTINO
Que tem?
SANTA
Saiu dizendo que ia ali na esquina, voltava logo — tem uma hora.
JUSTINO
Ela não tá sabendo que nós temos que sair cedo?
SANTA
Tá.
JUSTINO
Daqui lá é um estirão... e não tem bonde que vá direto, vamos ter que gramar um pedaço a pé.
TONHO
Vou ver se encontro ela por aí... (Sai)

JUSTINO vem para a porta do apartamento, preocupado. LINDALVA faz funcionar uma vitrola. Ouve-se um samba triste, dolente.

LINDALVA
(Grita para ISABEL) Zabé! Sabe que o samba de Bola Sete tá pra sair por esses dias? Com o nome dele e tudo!
ISABEL
Só vendo pra crer.
JUSTINO
(Para SANTA) Você disse pra alguém que a gente ia viajar?
SANTA
Disse não. Você pediu pra não contar...
JUSTINO
É melhor... alguém podia dizer praquele desgraçado...

Entra LULA. Traz na mão o par de chuteiras. Atira-o a um canto, dentro de casa,

ISABEL
Treinou?
LULA
Meio tempo.
ISABEL
Por que só meio tempo?
LULA
Bastou pra eles verem que eu sou um perna-de-pau. Eles e o velho.
ISABEL
Cadê ele?
LULA
Vem aí. Parou no boteco pra afogar as mágoas. Foi bom. Assim ele desiste de uma vez.
ISABEL
(Com uma leve desconfiança) Você se esforçou mesmo?
LULA
Esforcei, o mais que pude. Juro! Joguei o que sabia! (Noutro tom) Não por mim, por ele.

Entra BENÉ. Vem um pouco "alto". LINDALVA desliga a vitrola.

BENÉ
(Bate amigavelmente no ombro do filho) Tou zangado não. Você fez o que pôde. (Procurando uma justificativa mais para o seu próprio fracasso do que para o dele) É a falta de preparo físico. Se você pudesse treinar mais, levar outra vida... dormir e se alimentar bem... Mas é a desgraça de todos nós... ninguém pode ser atleta no Brasil... trabalhando como uma besta, comendo mal... quem é que pode? Quando chega na sua idade, já tão todos estourados. Um ou outro escapa... uns heróis! Em mil, aparece um... um Bené!... Ninguém sabe como é difícil aparecer um Bené, numa raça como esta de tuberculosos, de sifilíticos. (Sua mágoa é profunda) Se soubesse, não esquecia deles tão depressa... (Pousa novamente a mão no ombro do filho) Liga pra isso não.
LULA
E eu tou ligando? Tou contente de ser o que sou.
BENÉ
Operário... aquele seu amigo diz que é a classe do futuro. (Ri, sarcástico). Pode ser... (Numa confissão) Eu só queria que eles vissem que Bené inda pode dar alguma coisa... Era uma vingança! Iam ser obrigados a falar de mim, a se lembrar de mim... mas não pôde ser... (Inicia a saída) Operário... classe do futuro... (Sai)
ISABEL
Vai amarrar três dias de porre.
LULA
(Bruscamente) Vou tomar um troço também. (Inicia a saída)
ISABEL
Olhe, tome cuidado, a Polícia tá atrás de Rafael. Estiveram aqui e prenderam o Profeta.
LULA
O Profeta?!
ISABEL
É, parece que ele também tá fichado. Eu achava bom você se esconder.
LULA
Nada disso. Tenho é que avisar Rafael. (Sai e cruza com RITA que entra, seguida de TONHO)
JUSTINO
Tamos te esperando...
SANTA
Onde é que você foi?
RITA
(Hesita um instante, como se tomasse coragem) Fui ver um emprego.
SANTA
Emprego?!. Emprego pra quê?
JUSTINO
A gente vai agora de tarde. Já comprei as passagens.
RITA
Quero ir não. Quero ficar.
SANTA
Tá louca, menina? Então nós vamos deixar você...
RITA
(Corta, procurando defender com veemência a sua resolução) Arranjei um emprego numa casa de família. Pra começar hoje mesmo.
SANTA
Emprego de quê?
RITA
Ama seca.
JUSTINO
(Investe para ela) Você não se enxerga?!...
RITA
(Enfrenta-o) Tenho quinze anos, pai... já posso ganhar minha vida!

JUSTINO titubeia ante aquela insubmissão inesperada.

SANTA
Mas você não pode ficar aqui sozinha!
RITA
Não vou ficar sozinha. Tenho Malú...
JUSTINO
(Corta) Não me fale!...
RITA
E Tonho.
TONHO
Se ela quer mesmo ficar, podem deixar. Eu olho por ela.
SANTA
(Hesita) Esse emprego...
RITA
Casa e comida, três contos e quinhentos.
SANTA
Começa hoje?
RITA
Vim só buscar a roupa.
JUSTINO
Quer dizer que você já tava de plano feito.

SANTA troca um olhar com JUSTINO. Um olhar triste, angustiado, de súplica, impotência e conformação.

JUSTINO
É, vamos só nós... (Apanha uma sacola. Para TONHO) Você ajuda a gente a levar isso até o bonde.
TONHO
Ajudo.
RITA
(Preocupada, como se desejasse retê-los mais um pouco) Vocês já vão?
JUSTINO
Já. Daqui lá é longe.
RITA
Mas tem tempo. Podiam esperar mais um pouco...
JUSTINO
Pra que?

Surge MALÚ. RITA, ao vê-la exprime a sua satisfação, assumindo logo uma atitude de mal disfarçada cumplicidade.

TONHO
Veja... Malú!

JUSTINO procura mostrar-se frio. SANTA, porém, não esconde a sua alegria, como se isso lhe tirasse um peso da consciência.

SANTA
(Baixo) Graças a Deus!
MALÚ
(Sente-se um pouco constrangida com a frieza do pai) Vim me despedir de vocês...
JUSTINO
Como soube?...
MALÚ
Rita me disse.

RITA baixa os olhos, ante o olhar de censura do pai.

SANTA
Foi bom você vir. Eu não ia embora sossegada...
MALÚ
Acabou a seca, pai?
JUSTINO
(Secamente) Acabou.
MALÚ
Que bom! Pena que eu não possa ir com vocês.
SANTA
Você tá bem?
MALÚ
(Procura aparentar uma felicidade um tanto exagerada) Tou. Muito bem. Tenho de tudo. Um apartamento que é uma beleza...
RITA
Paidégua, mãe! (Logo arrepende-se de seu entusiasmo, percebendo que se traiu)
MALÚ
Rita conhece.
SANTA
E ele... é bom pra você?
MALÚ
Muito bom. É doido por mim. Tive sorte, mãe. Acredite. Ele já falou até em casar...
SANTA
Casar? Como é que pode? Não é casado?
MALÚ
Ora, pobre é que só casa uma vez. Rico casa quantas quer.
TONHO
Com a mulher viva?
MALÚ
Então.
SANTA
Tou contente. Você, pelo menos, se salvou. Já é alguma coisa.
JUSTINO
Vambora. Senão não dá tempo.
MALÚ
Rita não vai?
SANTA
Vai não. Arrumou emprego, quis ficar. Olhe por ela.
RITA
(Beija a mão do pai) Benção, pai.
JUSTINO
Deus te abençoe.

MALÚ repete o gesto da irmã, quebrando a resistência de JUSTINO.

JUSTINO
Sua mãe é que tem razão. Em tudo. Ou então fui eu que fiquei frouxo duma vez. (Sai um tanto bruscamente, para não ceder mais ainda, SANTA e TONHO O seguem, carregando trouxas e sacolas. Na área, são detidos por ISABEL)
ISABEL
Onde vocês vão?
SANTA
Simbora.
ISABEL
De vez?!
SANTA
De vez.
ISABEL
Tão de repente. Não disseram nada...
SANTA
(Aflita, vendo que JUSTINO já saiu) Repare não... Tonho explica depois... (Sai apressadamente, seguida de TONHO, ante o olhar intrigado de ISABEL)
ISABEL
Esses paus-de-arara... quando chegam, parece que vêm fugidos, quando voltam parece que vão fugidos também...
MALÚ
Eles não acharam ruim de você ficar?
RITA
Acharam. Mas qual é o meu? Também tenho o direito de viver a minha vida. Doutor Deodato vai mesmo casar com você?
MALÚ
Vai nada. Já me largou tem mais dum mês.
RITA
(Um tanto ingenuamente, um tanto movida pela curiosidade) Por que?
MALÚ
Enjoou.
RITA
E agora?...
MALÚ
Agora é arrumar outro, até esse outro enjoar também. (Noutro tom) Você ainda é muito criança pra entender essas coisas...
RITA
(Levanta o queixo, com arrogância) Você que pensa que eu sou criança. Entendo tudo muito bem.

Entra LULA, do fundo, como se alguém o tivesse avisado da presença de MALÚ. Eles se encontram na área. Seus olhares se chocam, inicialmente, dentro de um silêncio constrangedor.

MALÚ
Olá.
LULA
Você aqui...
MALÚ
Vim me despedir dos velhos.
LULA
Vi eles carregados de trouxas... vão viajar?
MALÚ
Vão voltar pro Norte.
LULA
E você?
MALÚ
Eu fico. (Há um contraste chocante entre a pureza que LULA ainda conserva e a atitude irônica, desencantada, de MALÚ)
LULA
Fica... aqui?
MALÚ
Não. Tenho meu apartamento.
LULA
(Depois de longa pausa, a pergunta vem como se tivesse aguardado anos para ser feita) Você é feliz?
MALÚ
(Sorri, um sorriso amargo, o sorriso das desencantadas) Como é que a gente é feliz? Quando come todos os dias? Quando tem cama pra dormir, roupa pra vestir e pode andar de automóvel de vez em quando?
LULA
A vida não pode ser só isso.
MALÚ
Que mais?
LULA
A gente precisa lutar por alguma coisa. Nem que essa coisa seja... o barraco que a gente mora... o salário que a gente ganha... ou a pessoa que a gente gosta. Mas lutar sem se vender, sem se trair... e sem trair quem tá do nosso lado, lutando pelas mesmas coisas.
MALÚ
Tudo isso é muito bonito. Mas antes de mais nada a gente precisa comer e saber que vai comer no dia seguinte.
LULA
(Sente-se sem argumentos, ante a crueza da argumentação de MALÚ) É pena que você não possa compreender... e que eu também não saiba explicar. Tenho pouco estudo. Se eu fosse um cara como Rafael, que leu uma porção de coisas, que sabe falar...
MALÚ
Você já dormiu num colchão de molas?
LULA
Nunca.
MALÚ
No dia que você dormir vai ver que o colchão de molas faz muito mais bem ao corpo que as palavras bonitas do seu amigo.

Entra MANÉ GORILA. Tanto MALÚ como LULA O recebem com certa frieza.

GORILA
(Tem um ar desconfiado, mas ao ver MALÚ sorri) Olá... voltou pra cá de novo?

De dentro de casa, RITA vê MANÉ GORILA. Receosa, esconde-se em seu quarto.

MALÚ
Não. Tou aqui de passagem.
GORILA
Ah... logo vi que o doutor não ia largar a mocinha sem um pé de meia...
LULA
(Compreende, olha para MALÚ interrogativamente) Malú, ele...?
MALÚ
(Para GORILA) Tá muito enganado. Não fiquei com um tostão dele.
GORILA
Burrice. Devia ter exigido. Tinha direito a uma indenização. Afinal de contas, você perdeu alguma coisa... e ele não perdeu nada. A não ser a eleição, mas você não tem nada com isso. E era tão fácil... Bastava ameaçar um escandalozinho... Político tem um medo de escândalo.
MALÚ
Não sou mulher de escândalo.
GORILA
(Ri) Hum... com esses escrúpulos, minha filha, você nunca vai fazer carreira. (Dirige-se para a direita, passo lento, olha, pela janela, para o interior do apartamento de JUSTINO, com ar desconfiado)
LULA
(Segura-a pelos ombros, ansiosamente) Malú... acho que você agora entendeu o que eu quis dizer. Não é preciso palavra nenhuma pra explicar... Você já deve ter aprendido, por si mesma... a vida já lhe ensinou...
MALÚ
Aprendi muita coisa nesses seis meses. Mas não tou entendendo o que você tá querendo dizer agora.
LULA
(Com veemência, quase gritando) É preciso ser mais claro, Malú? Tou querendo dizer que apesar de tudo... se você tá disposta a mudar de vida... eu ainda lhe quero! (Noutro tom) Sei que vão dizer... que você já foi de outro, que eu tou pegando resto... mas não importa. Se você quer, não importa.
MALÚ
Não, Lula. Agora, tem mais jeito não.
LULA
Por que? Será que você ficou gostando daquele cara?!
MALÚ
Detesto ele. Tenho nojo.
LULA
Então?...
MALÚ
Mas sou resto mesmo. E comida feita pra outro nunca tem o tempero que a gente gosta.
LULA
Não quis te ofender...
MALÚ
Eu sei. Mas não ia dar certo. Não quero também enganar você. Esta vida... nunca mais eu ia me habituar... tou já mal acostumada...
LULA
Nossa vida não vai ser sempre esta. Um dia há-de mudar!
MALÚ
Mas vai demorar muito... e a vida é curta. Posso morrer amanhã... que m'nteressa que isso mude, se eu não puder aproveitar?

LULA sente o abismo que agora os separa. TONHO entra, vindo do fundo. Vê MANÉ GORILA e se assusta.

TONHO
Quem é que o senhor tá procurando?
GORILA
Cadê seu pai?
TONHO
Saiu.
GORILA
Sua mãe?
TONHO
Também.
GORILA
Ouvi dizer que vocês tão pensando em voltar pro Norte...
TONHO
(Não consegue dominar o seu nervosismo, embora procure manter-se firme) Ninguém tá pensando nisso não.
GORILA
Me informaram. Garantiram até que já tavam de mala pronta...
TONHO
Quem disse, mentiu.
GORILA
Queria só lembrar que o aluguel vence amanhã. Se estão pensando em sair sem pagar...
TONHO
Ninguém vai fazer isso.
GORILA
É, mas o jeito de vocês não me agrada. Estão com cara de quem tá querendo me fazer de palhaço. (Vai até a porta do apartamento e olha para dentro) E aqui não tem quase nada... (Volta-se, bruscamente) Falem a verdade: eles foram embora? Se me enganarem vai ser pior!
MALÚ
Foram, sim. Mas o senhor não vai fazer nada.
TONHO
Eles iam pagar o senhor antes de ir, mas o dinheiro não deu.
GORILA
(Sorri) Ah, o dinheiro não deu... então o jeito era passar a perna no Mané Gorila. Ganhar a estrada e amanhã, quando o otário chegasse aqui...
TONHO
Eu não vou com eles...
GORILA
(Lamenta-se) O que é a ingratidão. A gente se sacrifica, luta pra melhorar a vida dos outros... Fazer o que eu tenho feito aqui. Escola, bica d'água, tenho até dado dinheiro do meu bolso pra controlar a Polícia e no fim... fazer isso comigo.
MALÚ
O dinheiro fazia falta pra eles. Pro senhor não vai fazer.
GORILA
Como é que não? Minha vida é dura! Suada! E vejam que tudo que eu ganho é para fazer o bem. Por isso não gosto quando me pagam o bem com o mal. (Consulta o relógio) Que horas eles embarcam?
MALÚ
Pra que o senhor quer saber?
LULA
Que é que você vai fazer?
GORILA
(Irônico) Nada... me despedir deles, desejar boa viagem...
TONHO
Se é pelo dinheiro, eu não tenho agora, mas um dia eu pago.
GORILA
Um dia... sim, um dia alguém ia ter que pagar... mas eles podem pagar hoje mesmo.
MALÚ
(Suplicante) Deixe eles irem embora! Eles não pensavam noutra coisa, desde que chegaram aqui! Juntaram esse dinheiro com tanto sacrifício! Tostão a tostão!... deixando de comer... de tudo!
LULA
Tonho já disse que paga...
GORILA
Não é só isso. O outro também quis me tapear.
MALÚ
Que outro?
GORILA
O chofer do pau-de-arara. Quando é gente minha, ele tem que me dar comissão, é do trato. E ficou quieto. Os dois se combinaram pra me passar a perna. (Torna a consultar o relógio) Mas a coisa talvez saia um pouco diferente... (Inicia a saída, TONHO O detém)
TONHO
O senhor não vai impedir eles de viajar!
GORILA
Isso vai depender mais deles que de mim. Primeiro nós vamos acertar nossas contas. (Afasta TONHO com um gesto brusco e sai pelo fundo)

TONHO fica um instante imóvel, vendo, cheio de ódio e revolta MANÉ GORILA sair. Subitamente, lança-se numa carreira desabalada para dentro de casa, apanha qualquer coisa e sai na mesma direção de MANÉ GORILA.

MALÚ
(Pressente a tragédia e grita) Tonho! Não, Tonho!

Alguns segundos e surge MANÉ GORILA ao fundo, com as duas mãos sobre o ventre. Cambaleia, de olhos esbugalhados até o centro da área. Consegue manter-se de pé ainda por um momento, com a morte nos olhos e por fim cai de bruços. TONHO entra atrás dele, com a faca ainda na mão, um tanto assustado com o próprio gesto. Há um silêncio terrível. MALÚ, LULA, ISABEL e TONHO contemplam o cadáver de MANÉ GORILA tomados de pavor.

ISABEL
Nossa mãe!
LINDALVA
(Do primeiro piso) É Mané Gorila?!
ISABEL
(Para TONHO) Rapaz... você tá perdido!
MALÚ
(Agarrando-se ao irmão) Tonho!
LINDALVA
Ele tá morto?! Mataram Mané Gorila!

VOZ (Fora)
Mataram Mané Gorila!

OUTRA VOZ (Fora)
Mataram Mané Gorila!

Os favelados começam a surgir de todos os lados, tomados de incredulidade. No fundo, cada um deles alimentava uma sede insaciada de vingança contra MANÉ GORILA. A contemplação de seu corpo estendido ao solo, morto, faz aparecer em todos os rostos uma alegria sádica de desforra, misturada ao temor gerado pelo fato de cada um deles sentir-se co-autor do crime. E, mesmo morto, MANÉ infunde temor.

ISABEL
(É a única que tem coragem de chegar bem perto do corpo) Tá morto mesmo. Se não fosse covardia, eu inda cuspia nele.
MALÚ
(Aflita) E agora, Tonho?! Como vai ser?
LULA
A Polícia não tarda a dar por aqui!...
ISABEL
Eles farejam defunto!
LULA
Trate de fugir, ao menos pra evitar o flagrante!...
TONHO
(Inteiramente atordoado) Fugir pra onde?!
LULA
Mete a cara num morro desses e ninguém nunca mais te acha!

TONHO parece disposto a fugir, quando surge BOLA SETE, ao fundo. Traz um disco na mão e está completamente fora de si de alegria.

BOLA SETE
(Grita, brandindo o disco no ar) Pessoal! Tá aqui! Pra quem não acreditava, tá aqui! (Sua alegria é tanta que nem nota o corpo de MANÉ GORILA. Grita para LINDALVA, que está no primeiro piso) Espia, nega!... saiu da máquina agora!... Tá fresquinho!... Apanhei o primeiro!... (Sobe a escada correndo e sua euforia imobiliza a todos, inclusive a TONHO) Quero que você veja... o nome do crioulo gravado na cera!... Gravado com todas as letras, como manda o figurino!... Oriovaldo Santos!... (LINDALVA não sabe como conter aquela torrente de alegria. Ele coloca o disco na vitrola) Vocês vão ouvir... em primeira audição!...
LINDALVA
Não...
BOLA SETE
Não por que?! A gravação tá uma beleza, nega! A vitrola começa a tocar o samba de BOLA SETE.
BOLA SETE
Dança, nega! O samba é seu! Foi você que inspirou! (Começa a dançar a fazer figurações diante de LINDALVA, que ri nervosamente)

Entram o PRIMEIRO TIRA e o SEGUNDO TIRA. Parecem intrigados, pressentindo que algo de anormal está ocorrendo.

MALÚ
(Baixo) Pronto!...

Todos procuram interpor-se entre os TIRAS e o cadáver, ocultando este inteiramente.

PRIMEIRO TIRA
(Desconfiado) Que é que tá havendo por aqui?...
SEGUNDO TIRA
Todo mundo assim reunido...
LULA
É nada não! É o samba de Bola Sete! Foi gravado! Com o nome dele e tudo! Não tá ouvindo!

Os TIRAS prestam atenção ao samba, olhando para o apartamento de BOLA SETE, que dança com LINDALVA, alucinadamente.

BOLA SETE
Este vai ser pra cabeça, nega!
LINDALVA
(Rindo sempre) Se Deus quiser!

Como numa reação em cadeia, um após outro, todos se põem a dançar. A princípio, discretamente, apenas para ludibriar os TIRAS. Depois, com mais calor, contagiados já pelo ritmo do samba.

ISABEL
(Baixo, para TONHO) Anda, rapaz!... aproveita!...
TONHO
Malú!...
MALÚ
Vai!...

TONHO foge, todos fazendo parede para que ele escape sem que os TIRAS O notem.

BENÉ
(Entra do fundo, com uma garrafa de cachaça na mão, um tanto embriagado) (Grita) Pessoal! Ganhamos!
LULA
O que?
BENÉ
O despejo!... O juiz voltou atrás, depois que viu o abaixo-assinado! Disse que não sabia que morava tanta gente aqui!... tinham enganado ele, que era só meia dúzia de vagabundos...
LULA
(Radiante) Eu não disse?
ISABEL
E agora?...
LULA
Agora ninguém mais tira a gente daqui!
BENÉ
E sabem quem me deu a notícia? Rafael!
LULA
Rafael?!
BENÉ
Ele vem pra cá... vem vindo aí... não é mau sujeito, esse Rafael...
LULA
Malú, Rafael vem aí!

RITA aparece na porta do seu apartamento. Excessivamente pintada, de salto alto, parece subitamente amadurecida. Acaba de pintar os lábios, com trejeitos sofisticados. MALÚ e LULA o vêem, e se mostram surpresos. RITA responde com um olhar arrogante e sai num passo que lembra muito a própria irmã. MALÚ, impressionada, faz menção de segui-la, mas LULA segura-a pelo braço, num último apelo.

LULA
Malú!...
MALÚ
Adianta não, Lula.
LULA
Espere ao menos Rafael! Ele vem aí!... Vamos esperar por ele! Só pra você conhecer...
MALÚ
(Hesita um instante e por fim cede) Tá bem, só pra conhecer...

Os TIRAS vêem, por fim, o corpo de MANÉ GORILA. Debruçam-se sobre ele, verificam que está morto e olham em torno à procura do assassino. Mas, com exceção de MALÚ e LULA, que, de mãos dadas, esperam RAFAEL, todos os outros dançam alucinadamente, tomados por um verdadeiro delírio. Como se diante do corpo sem vida de MANÉ GORILA, se sentissem vingados de todos os MANÉS GORILAS...
E LENTAMENTE...
CAI O PANO — FIM

A Revolução
dos
Beatos

A REVOLUÇÃO DOS BEATOS
(3 atos — 14 quadros)


PERSONAGENS:
Vendedor de orações
Romeiro
Romeiro II
Romeiro III
Romeiro IV
Penitente
Beata
Menino
Menino II
Zabelinha
Bastião
Vaqueiro
Beato da Cruz
Moribundo
Mateus
Mocinha
Padre Cícero
Floro Bartolomeu
Cego
Cabo
Romeiros e Soldados
e o Boi

AÇÃO: Juazeiro, Ceará
ÉPOCA: 1920

ESTA É UMA TENTATIVA de Teatro Popular. Tentativa para encontrar uma forma brasileira para esse tipo de Teatro, no qual o Povo se sinta representado, pesquisado, discutido e exaltado, em forma e conteúdo. Parece-me desnecessário dizer que esse Teatro, além de popular, é também político — não poderia deixar de sê-lo. Se escrevemos para o Povo, uma pergunta se impõe: a favor ou contra? Pois não é possível ficar neutro com relação a ele. Como Povo, entendemos massa oprimida. Se lhe apontamos caminhos para livrar-se da opressão, se o armamos contra o opressor, estamos a seu favor; se apenas o distraímos — e por conseqüência o distraímos da luta — estamos contra ele. Não há neutralidade possível.
Aqui, fabulizando certo episódio de fanatismo religioso (o caso do Boi Santo ocorreu no Ceará e sobre ele podem ser encontrados maiores esclarecimentos no livro de LOURENÇO FILHO Juazeiro do Padre Cícero), procurei sincretizá-lo com o auto popular do "Bumba-meu-Boi". Tentei encontrar neste a forma, a ponte para chegar ao Povo, sem contudo atingir o exagero da submissão formal. Busquei mais a inspiração, o clima, um certo estado de espírito para, dentro dele, transmitir a minha história. Roubei-lhe também algumas personagens: Zabelinha, Bastião, Mateus, o Capitão Boca-Mole, o Vaqueiro e o próprio Boi. Usei a Dança do Boi para exprimir um momento de euforia e exaltação totêmica. Sou de opinião que a Direção deve seguir o mesmo espírito, inspirando-se no Auto do Boi, sem deixar-se prender ao puramente folclórico ou ao pitoresco, pois o que se pretende é apenas encontrar uma linguagem. E o importante é que essa linguagem fale politicamente.
D. G.

PRIMEIRO ATO

PRIMEIRO QUADRO

Um telão representa o mapa do Estado do Ceará, assinalado apenas o município de Juazeiro. A um canto do mapa, os dizeres:

(População: 20.000 habitantes
Juazeiro Milagres: 1.302
Escolas: 2
Crianças sem Escolas: 94%

Diante do telão, começam a desfilar os ROMEIROS, enquanto o VENDEDOR DE ORAÇÕES vem ao proscênio e declama:


VENDEDOR
Quem for para o Juazeiro,
vá com dor no coração
visitar Nossa Senhora
e o Padre Cícero Romão.

Que meu Padrim é um santo,
isso tá mais que provado;
basta atentar os milagres
que ele tem realizado.

O primeiro foi ter feito,
em certa manhã pacata
— isso já faz tantos anos,
não me alembro bem a data
— a hóstia virar sangue
na boca duma beata!

Houve então quem dissesse
que aquilo era balela,
milagre coisa nenhuma!
o sangue era mesmo dela,
e vinha de um tumor
que a beata tinha na güela.

Mandaram o sangue a exame
numa junta de doutor
e chegou o diagnosco
escrito neste teor:
é sangue de Jesus Cristo,
sangue de Nosso Senhor!

Em setembro deste ano,
num domingo, dia três,
perante muitos romeiros,
meu padrinho então fez
falar um menino
que tinha nascido há um mês!

Um romeiro, o velho Cunha,
veio da Várzea do Ovo,
do Rio Grande do Norte;
fez abismar todo o povo
ele ser cego há trinta anos
e cobrar a vista de novo!

Veio de Campina Grande,
da Paraíba do Norte,
aqui para o Juazeiro,
sem guia nem passaporte,
a irmã de Chica Caçamba,
Lili Mimosa sem sorte.

Fazia mais de três anos
que essa moça não dormia,
que essa moça não rezava,
que essa moça não sorria,
que essa moça não chamava
por Deus nem Santa Maria!

Logo que ela chegou
e teve os santos tremores,
pôs-se logo a rezar,
de alegria, jogava flores
e de alegria, exclamava:
Nossa Senhora das Dores!

Eu carecia de cem anos
pra contar com exatidão
os milagres que tem feito
o padre Cirso Romão
na matriz de Juazeiro
para nossa salvação!

FIM DO PRIMEIRO QUADRO

SEGUNDO QUADRO

Rua, em frente à casa do Padre Cícero. É uma casa baixa, com uma janela gradeada. Tanto a porta como a janela estão fechadas. Os ROMEIROS, uns sentados outros de pé, entre eles alguns doentes e aleijados, aglomeram-se diante da casa, à espera da bênção do "Padrinho". Sujos e abatidos trazem chapéus de couro ou de palha de carnaúba, alpargatas amarradas à cintura ou pendentes do cano do rifle. De vez em quando, um deles se aproxima da casa do Padre e beija o portal. Um MORIBUNDO, deitado numa rede sustentada nas extremidades por dois ROMEIROS, geme angustiosamente. Um FANÁTICO, de joelhos, reza, enquanto bombas e foguetes espoucam aos gritos de "Viva meu Padrim!


FANÁTICO
Santa Mãe de Deus e Mãe Nossa, Mãe das Dores, pelo amor do nosso Padrinho Cícero, nos livre e nos defenda de tudo quanto for perigo e miséria; dai-nos paciência para sofrer tudo pelo Vosso Amor e do meu Padrinho, ainda que nos custe a morte. Minha Mãe, trazei-me o Vosso retrato e o do meu Padrinho no Vosso altar retratado, dentro do meu coração, daqui para sempre; reconheço que vim aqui por Vós e meu Padrinho; dai-me a sentença de Romeiro da Mãe de Deus, dai-me o Vosso Amor e a dor dos meus pecados, para nunca cair no pecado mortal; dai-me a Vossa Graça, que precisamos para amar com perfeição nesta vida e gozar na outra, por toda a eternidade. Amém. Viva o meu Padrinho Cícero!
VENDEDOR
(Traz pendurado ao pescoço, um pequeno tabuleiro, com folhetos, imagens de santos, bentinhos, etc.) Vigie, moço, vossoria que vem de longe, fique com esta oraçãozinha de lembrança do nosso santo Juazeiro.
ROMEIRO
Quanto é?
VENDEDOR
É só dois tões.
ROMEIRO
(Compra a oração) O Padrim vai aparecer hoje?
VENDEDOR
Tem quinze dias que ele não bota a santa cara na janela. Sabia não?
ROMEIRO
Tou sabendo.
VENDEDOR
Esteve doente. Mas Beata Mocinha, que mora com ele, disse que hoje ele vai aparecer. Depende é do doutor Floro. Se o doutor Floro deixar...
ROMEIRO
Médico dele?
VENDEDOR
É, doutor Floro Bartolomeu. Traz o santo num cortado... (Segue adiante, vendendo as orações) Dois tões, dois tões a oração do Padrinho. Cura qualquer mal, livra de pecado e quebrante...
PENITENTE
Tou aqui tem três dias...
ROMEIRO 2
Vosmicê donde veio?
PENITENTE
Do Pilar. Perto de Maceió.
ROMEIRO 2
Um estirão.
PENITENTE
Se é! Cheguei caindo aos pedaços. Não posso voltar sem tomar a bênção do meu Padrim.
ROMEIRO 2
Adisculpe a indiscreção, mas qual é o mal que lhe aperrêia?
PENITENTE
Uma filha que desgarrou. Fiz de tudo pra trazer a peste pro bom caminho, mas o quê, meu senhor, o Cão montou nela. Só meu Padrim, com seus santos poderes, pode salvar aquela infeliz. Vosmicê?...
ROMEIRO 2
Sou romeiro não. Quer dizer: sou e não sou, sendo. Tou aqui pra me acoitar da Polícia e pedir a proteção do meu Padrim mode uma vadiação que andei fazendo na Capital...
PENITENTE
Crime de morte?
ROMEIRO 2
Não por culpa minha, culpa de arma que eu trazia... (Mostra a "peixeira")
PENITENTE
E o Padrim dá proteção pra isso?
ROMEIRO 2
Então. Tem dado pra tanta gente. Juazeiro tá cheio de cabra fugido. Até cangaceiro ele protege. (Convicto) É um santo!
MORIBUNDO
(Dentro da rede, ergue os braços para o céu) Meu Padrim!... Meu Padrim!...
ROMEIRO 3
(Sustentando a rede) Tá nas últimas.
ROMEIRO 4
(Idem) Só a esperança de ver o Padrim impede ele de morrer. (Dois meninos brigam por causa de um pedaço de rapadura)
BEATA
Parem com isso, meninos! Respeitem a casa do Padrim!
MENINO
Ele roubou minha rapadura!
MENINO 2
Mentira! A rapadura é minha!
BEATA
Parece que estão com o diabo no corpo! (Benze-se repetidas vezes)
MENINO
(Agarra-se à saia da BEATA e chora) Eu tou com fome!
BEATA
Ajoelhe e reze que a fome passa.
FANÁTICO
(Canta) Não tenho capacidade
mas sei que não digo atôa:
— Padre Cirso é uma pessoa
da Santíssima Trindade!

(ZABELINHA entra durante o canto do FANÁTICO. Está aflita, e, ao ver a janela da casa do padre fechada, torce as mãos, angustiada. BASTIÃO entra logo depois, como se a seguisse. Olhar triste e apaixonado, Me a observa, a pequena distância).

ZABELINHA
O Padrim deu a bênção inda não?
PENITENTE
Até agora, não. Tamos esperando.
ZABELINHA
Será que ele não vai aparecer?
PENITENTE
E eu sei? Tou aqui tem três dias. Não tenho saído nem pra fazer as necessidades.
ZABELINHA
(Angustiada) Minha Mãe das Dores!... (Vai até à janela da casa do PADRE, beija-a e procura ver alguma coisa pelas frestas. Ao voltar-se, dá com BASTIÃO, que a segue como que hipnotizado) Quer parar de andar atrás de mim, como o jegue do leiteiro?
BASTIÃO
(Suplicante) Zabelinha...
ZABELINHA
Me deixe! Já disse que não quero conversa com você, Bastião!
BASTIÃO
Duas palavrinhas só... prometo nunca mais...
ZABELINHA
Sou uma mulher casada!
BASTIÃO
Todo pecado tem seu preço, Zabelinha. Depois a gente falava com Padrim e ele arranjava uma penitência bem grande pra nós...
ZABELINHA
Devia era ter mais respeito pelo Padrim.
BASTIÃO
Tenho certeza que se falasse com ele, o Padrim ia entender... Por mais santo que ele seja.
ZABELINHA
(Quase gritando, nervosamente) Pare de dizer besteira, Bastião! Você não vai poder forçar a minha natureza nem o meu gosto.
BASTIÃO
Gosto é também questão de provar... Às vezes a gente pensa que não gosta de uma comida, depois que prova um bocado... não pode mais passar sem ela.
ZABELINHA
Mas de você eu não hei de provar bocado nenhum, Bastião. Perca a esperança. (Sai. BASTIÃO a segue com o olhar triste, amargurado. VAQUEIRO entra trazendo um boi amarrado a uma corda. É um boi de bumba-meu-boi, isto é: uma grande canastra de cipós, coberta de pano branco com manchas escuras. Numa das extremidades, a cauda, na outra uma caveira de boi. Dois atores carregam a canastra às costas, imitando todos os movimentos do boi).
MENINO 2
Eh, boi!
MENINO
Eh, boi! (Os meninos correm à frente do boi, provocando-o)
VAQUEIRO
Menino, olha o bicho!
MENINOS
Eh, boi! Eh, boi!
VAQUEIRO
Olha que o boi é valente! Te dá uma chifrada!
MENINOS
Eh, boi! Eh, boi!
BEATA
Meninos, deixem o boi e respeitem o santo! Este lugar é sagrado. Bicho de chifre lembra o Demônio! (Benze-se). Os meninos deixam o boi, no momento em que entra o BEATO DA CRUZ. Todas as atenções se voltam para ele. Barba Nazarena, veste comprida opa preta, enfeitada de cadarços, rendas e galões de defunto. Traz nos braços, erguida acima da cabeça, uma cruz rústica de madeira, toda enfeitada de santos, rosários, bentinhos, fitas, medalhas e outras bugigangas. Na cabeça, um solidéu também preto, com uma cruz dourada. Entra, ereto, com ar de sonâmbulo e pára diante da casa do PADRE.
BEATO
Foi aqui! Foi aqui que o Senhor me mandou vir! (Volta-se para os ROMEIROS) É aqui, meus irmãos, que mora o Messias! (Há um murmúrio geral de aprovação)
ROMEIRO
Meu santo Padrim!
BEATO
Quem morrer por Ele, morre por Deus Nosso Senhor e ressuscita na cidade d'Ele, santificado por Ele! (O murmúrio vai crescendo)
MORIBUNDO
(Da rede) Meu Padrim!...
ROMEIRO
Sua benção, meu Padrim!
FANÁTICO
(Canta) Não tenho capacidade
mas sei que não digo atôa:
— Padre Cirso é uma pessoa
da Santíssima Trindade.
Coro
Padre Cirso é uma pessoa
da Santíssima Trindade.
BEATO
Eu recebi o aviso do céu! O mundo vai se consumir em chamas! O fogo vai destruir o pecado! Só vai escapar do fogo final aquele que estiver com Ele, o escolhido de Deus, o nosso Padrinho! (Beija a porta da casa e cai de joelhos, agitando a cruz numa das mãos e beijando o chão repetidas vezes).
FANÁTICO
(Canta) Viva Deus Onipotente,
viva a cruz da Redenção,
e o Padre Cirso Romão
viva! Viva eternamente!
Coro
E o Pade Cirso Romão
viva! Viva eternamente!

Sobre o último canto, ouvem-se bombas e foguetes espoucarem, aos gritos de "Viva meu Padrim!" Todos gritam, cantam, rezam ou se agitam alucinadamente, beijando a porta da casa do PADRE, num clima de insânia.

MORIBUNDO
(Ergue-se na rede) Quero descer! Me deixem descer! (Os ROMEIROS que carregam a rede procuram impedir) Quero ir lá!... Quero beijar a porta!
ROMEIRO
Deixem ele ir...
VAQUEIRO
Deixem ele descer!
ROMEIRO 2
Quer beijar a porta da casa...
ROMEIRO 3
(Sem soltar a rede) Pode não, está moribundo!
ROMEIRO 4
(Idem) Há três meses que não anda!
MORIBUNDO
(Sentando-se na rede) Vou andar, sim! Vou ficar bom! Meu Padrim vai me curar! (Força os ROMEIROS a baixarem a rede)
BEATO
Deixem! Deixem! Deixem ele vir!... Tenham fé! Fé no Padrim!
MORIBUNDO
(Firma-se nos ombros dos romeiros, a princípio, depois solta-se e dá alguns passos, trôpegos, na direção da casa do PADRE) Meu Padrim, valei-me... valei-me...
ROMEIRO 3
(Abismado) Tá andando!
ROMEIRO 4
Inda há pouco tava morrendo!
ROMEIRO 3
Já tinha recebido a extrema unção!
ROMEIRO 4
Milagre!
TODOS
Milagre!

Espoucam foguetes e bombas. Vivas ao Padrinho.

BEATO
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
BEATA
Louvado seja!
PENITENTE
(Explode numa gargalhada nervosa)
FANÁTICO
(Canta) Viva Deus Onipotente
viva a cruz da Redenção,
e o Pade Cirso Romão
viva! viva eternamente!
Coro
E o Pade Cirso Romão
viva! viva eternamente!
BEATO
Venha! Venha mais! Com fé! Fé em Deus e no Padrim!

MORIBUNDO dá mais dois ou três passos em direção do BEATO, leva uma das mãos à garganta e cai por terra.


FIM DO SEGUNDO QUADRO

TERCEIRO QUADRO

A cena abrange uma sala e uma parte do quintal da casa do PADRE CÍCERO. Na sala, ao fundo, vê-se a porta e a janela que dão para a rua. Continuam a ouvir-se os gritos e vivas dos ROMEIROS, em segundo plano, bem como o espoucar de foguetes e bombas, quando MATEUS atravessa o quintal e entra na casa. É um negro de meia-idade, que tem no porte e no olhar a arrogância dos beatos, quebrada de vez em quando pela humildade atávica de sua raça. Chega à sala no momento em que MOCINHA nela penetra, vinda do interior da casa.


MATEUS
Padrim?
MOCINHA
(Meia idade, triste, vagarosa e essencialmente caquética. Traz a cabeça sempre descoberta e os cabelos à escovinha. Testa curta e protuberante. O rosto é quase sempre inexpressivo, a não ser nos momentos de exaltação de seu fanatismo militante). Já se levantou.
MATEUS
Graças a Deus! Temos rezado muito, eu e toda a Irmandade.
MOCINHA
Ele está bom há muitos dias. Doutor Floro é que teima em não deixar ele sair do quarto.
MATEUS
Doutor Floro é médico, sabe o que faz.
MOCINHA
Deus sabe mais que ele.
MATEUS
Lá isso é verdade.
MOCINHA
Mas doutor Floro tem substituído tanta coisa nesta casa e nesta terra, que é capaz de querer substituir Deus também.
MATEUS
Padrim confia nele como um cego em seu guia.
MOCINHA
Quem enxerga com a luz do céu não precisa de guia. Padrim nunca precisou de quem lhe mostrasse o caminho, porque Deus sempre guiou seus passos. Até que doutor Floro chegou a Juazeiro.
MATEUS
Me lembro. Chegou aqui como romeiro...
MOCINHA
(Irônica) Romeiro...
MATEUS
Também já ouvi dizer... (Baixa a voz) que ele veio da Bahia, fugido... Mas é capaz de ser invenção do povo.
MOCINHA
(Numa indignação contida) Fingiu-se de romeiro pra ganhar a proteção de Padrim.
MATEUS
Padrim deu uma cela pra ele morar...
MOCINHA
Ele pediu.
MATEUS
Depois fez ele vereador, deputado...
MOCINHA
Agora quer ser deputado federal!
MATEUS
E vai ser. Padrim tem força. É só mandar votar, todo o mundo vota.
PADRE
(Vindo do interior da casa, entra, apoiando-se num bordão. É setuagenário, de pequena estatura, apresentando uma gibosidade natural. A voz é branda e harmoniosa, tem a doçura e os acentos da fala de uma criança. Mas os olhos são movediços e brilhantes. Eis o retrato psíquico que dele pinta o médico e político cearense Dr. Fernandes Távora: "Terreno mental mioprágico, traduzido num conjunto de estados psicopáticos constitucionas degenerativos; transformação profunda da personalidade em notáveis perturbações da vontade e da emotividade; delírio de perseguição algo velado, e de grandeza, evidentíssimo; organização de um sistema interpretativo, não alucinatório, com prevalência de uma idéia fixa, que lhe empolgou o espírito e orientou toda a sua atividade religiosa e social; marcha lenta e crônica; incurabilidade. Ante sintomatologia tão completa, não sei como possa alguém cogitar de outro diagnóstico que não o de paranóia". — Revista do Instituto do Ceará, dezembro de 1938. Convém entretanto frisar que, com setenta anos e doente, o PADRE SÓ muito raramente dá vasão ao delírio de grandeza e ao espírito dominador que marcaram a sua vida. Velho, alquebrado, é ele agora um instrumento dócil nas mãos de FLORO BARTOLOMEU). Mocinha?
MOCINHA
Senhor?
MATEUS
Benção, meu Padrim!
PADRE
Deus lhe abençoe, Mateus. (Para MOCINHA) Muita gente aí fora?
MOCINHA
Como sempre.
MATEUS
A rua está cheia, de ponta a ponta. Na cidade não há mais comida pra tanta gente.
MOCINHA
Há quinze dias que Padrinho não aparece aos romeiros.
MATEUS
Tem gente que está há duas semanas esperando, dormindo na rua, porque a cidade não tem mais lugar.
MOCINHA
Convinha o senhor aparecer hoje.
MATEUS
Ao menos pra ir um bocado de gente embora.
PADRE
Dr. Floro acha que eu não devo... Mas eu estou me sentindo bem.
MOCINHA
Então? O senhor é quem sabe, não Dr. Floro.
PADRE
(Pensa um instante, hesita ainda, ouvem-se com mais nitidez os gritos, vivas e o foguetório, ele se decide) Está bem... abra a janela. (MOCINHA dirige-se à janela, no momento em que FLORO BARTOLOMEU entra pelo quintal. Ele chega a sala quando MOCINHA vai retirar a tranca).
FLORO
(Apesar de médico, não passa de um aventureiro sagaz, valente, atrevido e ambicioso. É violento, por vezes, sabendo ser envolvente e persuasivo, quando lhe convém. Seu domínio sobre o PADRE é evidente e chocante) Que vai fazer? (MOCINHA detém-se)
PADRE
Vou aparecer aos romeiros...
FLORO
(Corta, decisivo) O senhor não vai aparecer coisa nenhuma. MATEUS sai, discretamente, pelo quintal.
PADRE
(Justificando-se) A cidade está cheia de romeiros. Há perigo de faltar alimentos. É preciso atender alguns, para que voltem...
FLORO
Não importa. O que importa é a sua saúde. Já o proibi de fazer qualquer esforço. O senhor não devia nem estar aqui na sala, devia estar na cama.
PADRE
Ia somente abençoá-los da janela gradeada. Isso não me custaria esforço algum.
FLORO
Eu sei como é. Esses loucos gritam, penduram-se nas grades...
MOCINHA
(Contendo a custo a sua indignação) Eles têm fé no Padrinho. Andam léguas e léguas para vê-lo!
FLORO
Eu sei, eu sei como é isso. Não se esqueça, Mocinha, de que eu também cheguei aqui como romeiro, vindo da Bahia...
MOCINHA
(Baixa um pouco a voz) Não sei bem se foi como romeiro...
PADRE
(Repreende-a) Que é isso, Mocinha?
MOCINHA
Não sou eu quem diz, é o povo.
FLORO
Calúnias que os nossos inimigos políticos andam espalhando, agora que sabem que vou candidatar-me a deputado federal. Querem que o Padre retire o apoio que me dá e ficam inventando mentiras. Mas não adianta, não. Padrinho conhece a minha alma e o meu caráter. Sabe que foi a Divina Providência que me mandou aqui, pra ser um instrumento do Padrinho, como o Padrinho é um instrumento de Deus.

Os gritos, fora, aumentam. Ouvem-se batidas na janela.

PADRE
(As palavras de FLORO tocaram o seu messianismo) O doutor diz bem, eu sou o instrumento de Deus, enviado a Juazeiro, a nova Jerusalém, onde Cristo, para salvação dos homens, de novo derramou seu sangue.
MOCINHA
(Dirige-se à janela) E só Satanás pode querer deter a mão do instrumento de Deus!
FLORO
(Compreende que perdeu a parada) Está bem. Um minuto só (MOCINHA retira a tranca, abre a janela de par em par. Através as grades vêm-se os romeiros, que explodem num grito delirante de fanatismo. Atiram-se sobre as grades, todos ao mesmo tempo, como loucos. O PADRE aproxima-se da janela).
ROMEIRO
Padrim! Sua benção, meu Padrim!
PENITENTE
Meu Padrim Cirso! Proteção, meu Padrim!
ROMEIRO 2
Deus me benza por sua mão, meu Padrim! Sou um desgraçado!
BEATO
Meu pai! Meu pai! Livrai-nos do fim do mundo! Livrai-nos do fogo e do inferno!
ROMEIRO
(Passando um embrulho por entre as grades) Um presente, meu Padrim! (MOCINHA recebe o presente)
BEATA
Deus esteja com ele! Deus esteja com ele e ele com a gente!
VAQUEIRO
Também lhe trouxe um presente, meu Padrim!
PENITENTE
Minha filha, Padrim! Faz ela voltar ao caminho do bem! Salva aquela desgraçada! (Cai num acesso de choro)
ROMEIRO
Me cure, meu Padrim! Me cure! Tou condenado!
FANÁTICO
(Canta) Tem duas beatas santas
na matriz de Juazeiro,
meu Padrim Cirso Romão
é o rei do inundo inteiro!
Coro
Meu Padrim Cirso Romão
é o rei do mundo inteiro!

Sobre o canto, explode um foguetório terrível, ao mesmo tempo que os romeiros continuam a gritar e a saltar, empurrando-se, à frente da janela gradeada. Alguns enfiam as mãos. aflitas pelas grades, tentando tocar a batina do PADRE. Outros tentam, mesmo galgá-las, como macacos. Outros ainda fazem chegar às mãos do PADRE presentes que MOCINHA ajuda a receber).

PADRE
(Quando o clima de insânia atinge o auge, ergue a mão e o silêncio se faz de súbito) Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, Amém!
FLORO
Chega. Feche a janela.

MOCINHA fecha a janela, quando os gritos de "Viva meu Padrim 1" explodem de novo, com foguetes e bombas. Continuarão por mais alguns segundos da cena seguinte.

FLORO
O senhor precisa suspender por alguns dias essas bênçãos. Até se restabelecer de todo. Tenho que viajar amanhã para o Rio, não quero ir preocupado.
PADRE
Pode ir tranqüilo, estou passando bem.
FLORO
Mas pense na sua idade. Não pode continuar fazendo tudo que fazia quando chegou aqui.
PADRE
Oh, não faço mais nem a décima parte. O doutor não me conheceu moço. Quando cheguei aqui, Juazeiro era só uma fazenda.
FLORO
Eu sei.
PADRE
Fui eu quem fez isto virar cidade. E depois município. Saí por aí construindo poços e açudes. E a grande seca de 77, não fosse eu, teria sido uma calamidade bem maior. Não trouxe para cá somente a palavra de Deus, trouxe também a ação. Isso, aliás, foi reconhecido pelo Presidente Venceslau, em carta que me escreveu.
FLORO
O padre fala como se eu estivesse duvidando. Então não fizemos juntos a Revolução de 14? Não depusemos o Rabelo? E não era o padre o chefe?
PADRE
O chefe era o doutor...
FLORO
Nomeado pelo padre... que foi quem iniciou o movimento, desarmando o batalhão da Força Pública e me fazendo Governador do Estado. (Ri) Governador por três meses...
PADRE
(Sorri, sem poder dissimular um certo envaidecimento) Não fica bem dizer que um sacerdote católico chefiou uma revolução. Eu só queria contestar suas palavras, que eu continuo fazendo tudo que fazia quando era moço. Isso, infelizmente, não é verdade.
FLORO
Seja como for, o senhor precisa se poupar. Lembre-se de que na minha campanha para deputado o senhor vai ter que fazer uns comícios, ir à praça pública. Precisa estar bem forte para isso.

MATEUS entra, pelo quintal, trazendo o BOI. Amarro-o num morão).

PADRE
Não fique preocupado, ainda que eu não possa me levantar da cama, o doutor está eleito.
FLORO
É, mas não podemos facilitar. Essa campanha de calúnias que estão fazendo contra mim pode desnortear algumas pessoas. Precisamos desfazer essas intrigas. Se eu for derrotado, a derrota será também sua e de Juazeiro. (Inicia a saída, quando entra MATEUS) Que é?
MATEUS
Um romeiro trouxe um garrote de presente pro meu Padrim.
FLORO
(Sem dar importância ao fato) Eu vou até à Prefeitura. Tenho que deixar tudo arrumado, antes de viajar,
PADRE
Acho que amanhã ou depois eu já vou poder reassumir.
FLORO
Não, nem pense nisso. Nem pense nisso. (Sai)
MOCINHA
(Mordaz) Não se preocupe, o doutor substitui o senhor como Prefeito. E é pena que o Bispo tenha proibido o padrinho de celebrar...
PADRE
Por que?
MOCINHA
Porque com toda a certeza o doutor ia querer rezar missa em seu lugar. (Benze-se várias vezes) Que Deus me perdoe! Que Deus me perdoe!
MATEUS
Meu Padrim?
PADRE
Que é, Mateus?
MATEUS
Que é que eu faço com o garrote?
PADRE
Ah, sim... Onde está ele?
MATEUS
Meu Padrim pode ver daqui... (Mostra o BOI, pela janela) O romeiro diz que é em paga de uma receita pra espinhela caída que meu Padrim deu pra ele.
PADRE
É zebú?
MATEUS
Mestiço.
PADRE
Então não quero que misture com o gado da fazenda.
MATEUS
É, não deve. Lá é tudo raça pura...
PADRE
Tome você conta dele. Arrume um lugar... aí mesmo no quintal.
MATEUS
Sim senhor, meu Padrim, pode deixar... pode deixar. (Passa ao quintal)
MOCINHA
Com toda a certeza, quando Doutor Floro chegar vai dar outra ordem. Se não resolver tomar o boi pra ele.
PADRE
Por que você não gosta do doutor, Mocinha?
MOCINHA
Porque conheço bem ele.
PADRE
Dr. Floro é meu médico e meu amigo. Tenho que ouvir o que ele diz.
MOCINHA
Acho que o senhor só devia ouvir o que diz Nossa Mãe das Dores e Deus Nosso Senhor. Porque o Dr. Floro... só ouve o Demônio! (Benze-se rapidamente)
PADRE
Não diga isso!
MOCINHA
Eu não queria dizer... mas já disse! Há anos que quero dizer e não tenho coragem! Hoje tive! (Inicia a saída, gritando, histericamente) Hoje tive! Hoje tive!

O PADRE fica um momento surpreso com a explosão de MOCINHA. Depois sai atrás dela. No quintal, MATEUS dá um pedaço de mandacaru ao BOI.

MATEUS
Toma lá... mandacaru... Nesse tempo de seca, meu filho, capim e água valem mais que ouro. Trate de se arrumar com esse mandacaru.
BASTIÃO
(Entra, mas não se aproxima de MATEUS. Chama, a meia voz) Mateus!
MATEUS
(Olha em volta) Bastião...
BASTIÃO
Posso chegar?
MATEUS
Pode, homem. Os cachorros estão presos.
BASTIÃO
Entrei aqui pelos fundos pra ver se conseguia falar com meu Padrim.
MATEUS
Ah, ele hoje não fala com ninguém. Dr. Floro proibiu.
BASTIÃO
(Angustiado) Será que você não arranjava, Mateus? Você é homem da confiança dele, tem prestígio...
MATEUS
Já lhe disse, Bastião, Dr. Floro proibiu tá acabado!
BASTIÃO
Eu precisava tanto!...
MATEUS
(Observa o desespero de BASTIÃO) Tanto assim?
BASTIÃO
Você nem calcula!
MATEUS
Doença?
BASTIÃO
Pior que doença.
MATEUS
Pior?
BASTIÃO
Tou morrendo, Mateus! Tou me acabando!
MATEUS
Sabe que eu sou da Irmandade dos Penitentes. Sei umas rezas pra ajudar a morrer.
BASTIÃO
Mas não é morrer assim... por fora. É morrer por dentro.
MATEUS
Entendo não.
BASTIÃO
Mateus, sabe o que é um homem enrabichado?
MATEUS
Sei não. Fiz voto de castidade.
BASTIÃO
Então você não pode me entender.
MATEUS
Quem é a moça?
BASTIÃO
Zabelinha.
MATEUS
A mulher do Capitão Boca-Mole?!
BASTIÃO
(Balança afirmativamente a cabeça) É ela, Mateus, é ela que está me matando. Já não como, não durmo... tou como árvore que deu cupim... um buraco assim dentro de mim, me roendo, me secando, me matando.
MATEUS
E Zabelinha sabe disso?
BASTIÃO
Sabe, mas é como se não soubesse. Pra ela só tem um homem no mundo: o excomungado do Capitão Boca-Mole. Excomungado de sorte...
MATEUS
E você ia falar com o Padrim amóde...
BASTIÃO
Ia pedir pra ele tirar essa coisa de dentro de mim, ou então... (Pára um pouco, encabulado)
MATEUS
Então?
BASTIÃO
Fazer a Zabelinha pegar por mim a mesma doença.
MATEUS
Botar os chifres no Capitão Boca-Mole?
BASTIÃO
E você acha justo que eu me acabe desse jeito, Mateus, só pro Capitão continuar de testa limpa?
MATEUS
Sei não... Só sei que você ia se arriscar a levar uma descompostura.
BASTIÃO
De quem?
MATEUS
Do Padrim. Ele não faz desses arranjos, não! Mulher casada cornear marido... isso é graça que se peça pra um santo fazer? Isso é negócio de rezador, não é negócio de santo!
BASTIÃO
Com Zabelinha não adianta rezador. Já tentei. Até já coei café na ceroula...
MATEUS
Pra que?
BASTIÃO
Então não sabe? Coar café na ceroula e depois dar pra mulher beber faz ela esquecer o homem que gosta e gostar da gente.
MATEUS
E você fez a Zabelinha...?
BASTIÃO
Fiquei dias e dias de tocaia na janela, esperando ela passar. Até que um dia surgiram ela e o marido, o Capitão Boca-Mole. Corri na porta, fiz uns rapapés pro Capitão e convidei pra entrar, tomar um cafezinho que eu tinha recebido de São Paulo, naquele dia. Ela não queria, mas eu tanto fiz que o Capitão obrigou ela a entrar. Eu já tinha preparado tudo: um bule com café de coador e outro com café de ceroula. Fui depressa no fogão, esquentei, trouxe uma xícara de cada café e servi a eles.
MATEUS
E Zabelinha bebeu o café coado na ceroula?
BASTIÃO
Nada, quem bebeu foi ele! Ela não quis, o miserável bebeu as duas xícaras! E ainda disse que o dela estava melhor! (Desanimado) Adianta não, Mateus. Só mesmo meu Padrim é que podia fazer esse milagre.
MATEUS
Quer um conselho? Coe mais café na ceroula e tente de novo, porque com o Padrim vai ser difícil... (Aproxima-se do BOI) Acho que ele ainda está com sede...
BASTIÃO
Quem? O Padrim?
MATEUS
Não, homem, o Boi!
BASTIÃO
Ah, sim... É do Padrim?
MATEUS
É. Fique aqui olhando ele que eu vou buscar mais um pedaço de mandacaru lá no fundo do quintal.
BASTIÃO
(Estranha) Mandacaru?
MATEUS
É o que tem.
BASTIÃO
Boi do Padrim... comendo mandacaru cheio de espinho! Isso é até uma ofensa! Boi do Padrim só devia comer capim fresquinho, verdinho... beber água de pote, como gente.
MATEUS
Com essa seca, queria ver você arranjar esse capim fresquinho. (Sai)
BASTIÃO
(Dirigindo-se ao BOI) É ou não é, meu compadre? Boi do Padrim não é boi como os outros... é boi que merece trato, respeito. Se meu Padrim é santo, santifica tudo que anda em volta dele. (Vem-lhe a idéia) Quem sabe até se... se você também não tem poder, como ele, poder de fazer milagre? Nesse caso, você mesmo podia me valer... Mateus acha que o Padrim ia se escandalizar com o meu pedido. Garanto que você ia achar muito natural. Boi não tem dessas coisas. Qual é o boi que acredita na honra de vaca? Então?... Você ia ter acanhamento de pregar um chifre na testa do Capitão Boca-Mole, você que já nasceu com dois? Pois olhe, Boi do meu Padrim, eu lhe prometo um feixe de capim da melhor qualidade, fresquinho, macio... como só mesmo um boi que vai pro céu merece comer! Prometo, juro pelo meu Padrim Cirso, vou buscar esse capim até no inferno, se você fizer a Zabelinha cair pro meu lado e me tirar desse desespero!
ZABELINHA
(Ainda fora, solta um grito de dor) Ai!... (Entra pelo quintal, mancando de uma perna)
BASTIÃO
(Boquiaberto) Za... Zabelinha!
ZABELINHA
Eu... fui pular a cerca, torci o pé! (BASTIÃO continua a fitá-la, incrédulo)
ZABELINHA
Também carece de arregalar esses olhos? Carece? Eu não sou a mula sem cabeça!
BASTIÃO
Até parece arte do Cão!... Indagorinha mesmo eu...
ZABELINHA
Não fale no Cão na casa do Padrim, Bastião! Tesconjuro!
BASTIÃO
O Padrim me perdoe, mas...
ZABELINHA
(Interrompe) E seja um pouco mais delicado. Em vez de ficar aí me olhando com essa cara de quem viu lobisome, venha me ajudar.
BASTIÃO
(Corre a ampará-la. Ela se apóia no ombro dele, que não esconde a sua emoção) Pode... pode se apoiar em mim... todo o peso do corpo...
ZABELINHA
(Passa o braço em volta do pescoço dele, provocante).
BASTIÃO
Tá doendo muito?
ZABELINHA
(Sensual) Agora não... mas quando boto o pé no chão dói muito. (Apoiada no ombro de BASTIÃO, ZABELINHA vai até o banco. Senta-se. BASTIÃO ajoelha-se aos seus pés).
BASTIÃO
Posso, posso pegar?
ZABELINHA
Pode...
BASTIÃO
(Toma o pé dolorido de ZABELINHA e procura massageá-lo).
ZABELINHA
Ai... devagar...
BASTIÃO
(Acaricia-lhe o pé) Assim?...
ZABELINHA
(Delicada) Assim está passando... Mas por que você disse, quando me viu, que parecia arte do Cão?
BASTIÃO
Porque indagorinha mesmo eu estava... estava sozinho aqui... com o Boi do meu Padrim, não sabe?... conversando... contando pra ele as minhas máguas, quando de repente...
ZABELINHA
Entrei pelos fundos pra ver se Mateus me arrumava falar com o Padrim...
BASTIÃO
Ah, não arruma não. Floro proibiu ele de falar, receber qualquer pessoa.
ZABELINHA
(Mostra-se angustiada) Então como é que vai ser?!
BASTIÃO
Precisada assim de falar com o Padrim, Zabelinha?
ZABELINHA
Se estou, Bastião! Se não falar com o Padrim hoje... eu não sei... não sei o que fazer da minha vida!... (Cai em pranto)
BASTIÃO
Zabelinha! (Senta-se ao lado dela, no banco)
ZABELINHA
(Abraça-se a ele, chorando) Eu sou uma infeliz Bastião!
BASTIÃO
Infeliz sou eu, Zabelinha!
BASTIÃO
Que nada, você não casou com aquele desgraçado!
BASTIÃO
O Capitão Boca-Mole? Ele não é bom pra você?
ZABELINHA
Ele nem se lembra de que eu sou mulher dele!
BASTIÃO
Nem se lembra! Como é que pode ser uma coisa dessas?! Um homem que tem a sorte de casar com um anjo desse e...
ZABELINHA
...e nem parece que eu tenho marido.
BASTIÃO
Meu Padrim Cirso Romão! Que pecado!
ZABELINHA
E se a gente não tem filho, ele diz que a culpa é minha. Não é! É do Espírito Santo, que é só quem podia dar jeito...
BASTIÃO
(Atordoado) E eu que sempre pensei que vocês... Nem olhar pra gente na rua você olhava!...
ZABELINHA
Sabe, não é por ser infeliz que a gente vai olhar pra qualquer um.
BASTIÃO
(Sentido) Bastião, por exemplo...
ZABELINHA
(Olha-o, provocante) Eu tou olhando pra você, não tou?
BASTIÃO
Tá... e eu tou pegando fogo cá por dentro, Zabelinha!
ZABELINHA
(Suspira fundo) Se eu tivesse casado com um homem como você, Bastião!
BASTIÃO
(Não resiste, agarra-a violentamente e beija-a. Depois levanta-se de um salto). Milagre! Milagre! Não tem por onde, o Boi fez o milagre!
ZABELINHA
Boi? Que Boi?
BASTIÃO
(Muito agitado) Eu... eu fiz uma promessa... Bem, depois eu lhe falo... Zabelinha, você sabe, eu sempre fui doido por você! Se esse miserável desse Capitão Boca-Mole não lhe trata como deve, eu dou um fim nele e depois nós...
ZABELINHA
(Corta) Precisa não.
BASTIÃO
Por que?
ZABELINHA
Ele foi embora? Fugiu esta noite, o peste!
BASTIÃO
Fugiu?
ZABELINHA
Como a trapezista do circo! Só me deixou um bilhete dizendo que não voltava.
BASTIÃO
(Incrédulo) Que não voltava... nunca mais?
ZABELINHA
Nunca mais.
BASTIÃO
(Abismado) Não é possível! Isso é milagre demais! Êta Boi paidégua!

(As luzes se apagam em resistência).


FIM DO TERCEIRO QUADRO

QUARTO QUADRO

Na sala, Mateus está diante do PADRE, dando uma explicação. No quintal, há agora um pequeno curral onde se vê o Boi.


PADRE
Mas o que é que ele tem a fazer lá?
MATEUS
Quer pagar uma promessa que fez.
PADRE
Sim, isso eu já entendi. Só não entendo por que ele tem de
entrar no curral.
MATEUS
Porque ele fez a promessa pro Boi.
PADRE
Pro Boi?
MATEUS
(Sem jeito) É, eu também achei que isso não tava muito direito. Se eu estivesse junto, na hora, não tinha deixado.
PADRE
Claro, isso não tem cabimento! Os bois são também criaturas de Deus, mas nem por isso o Senhor lhes concedeu o dom de servir de intermediários das graças divinas.
MATEUS
Aí é que tá...
PADRE
Aí é que está o quê?
MATEUS
Bastião recebeu a graça pedida. E agora tem que pagar.
PADRE
(Irônico) Quer dizer que o meu boi já faz milagres.
MATEUS
Tá claro que não foi o Boi. Também não podia ter sido o Padrim...
PADRE
Por que não?
MATEUS
Porque a graça que Bastião pediu... não era coisa que um santo decente atendesse. Mas fosse como fosse, verdade verdadeira é que ninguém podia imaginar que o Capitão Boca-Mole fosse fugir de Juazeiro com uma artista de circo, como fugiu... e que Zabelinha fosse ficar enrabichada por Bastião, como ficou. Dá pra pensar, não é, meu Padrim?
PADRE
(Pensativo) É, dá... (Reagindo) Mas tudo não passou, com certeza, de uma coincidência.
MATEUS
É o que eu acho. Mas Bastião tá convencido que não. Que nada podia ter acontecido sem interferência divina. Diz que naquele mesmo dia, de manhã, aqui em frente da casa do Padrim, Zabelinha tratou ele como se trata um cão danado. E de noite, depois que ele falou com o Boi... Zabelinha era outra! Quem mudou Zabelinha?
PADRE
A senvergonhice!
MATEUS
Mas antes ninguém nunca falou nada de Zabelinha, Padrim! Sempre foi tida como modelo.
PADRE
Mulher que o marido larga numa noite e na noite seguinte já tem outro na cama, só pode ser modelo de descaramento!
MATEUS
Bem, lá isso é...
PADRE
(Encurtando o assunto) Bem, bem, deixe ele entrar e vamos acabar logo com isso. E é melhor que o caso não se comente. (Sai)
MATEUS
Senhor sim, meu Padrim. (Abre a porta da rua) Pode entrar, ele deixou.

(Entram BASTIÃO e ZABELINHA. Ele na frente, com um feixe de capim na cabeça)

BASTIÃO
Com licença.
MATEUS
(Ao ver ZABELINHA) Você também veio?
ZABELINHA
Que tem? Posso não?
MATEUS
É que... o Padrim não gostou muito...
ZABELINHA
De que? Do milagre?
MATEUS
(Intencional) É, do milagre... Mas agora entre. E andem depressa!

BASTIÃO, seguido de ZABELINHA, dirige-se ao estábulo, enquanto MATEUS fecha a porta.

BASTIÃO
(Chega diante do curral, arreia o capim no chão) Pronto, meu boizim. Pensou que eu não vinha pagar? Promessa é dívida! Bastião quando promete, cumpre! Capim verdinho, fresquinho, de primeira!
ZABELINHA
Deixe eu ver bem a cara dele. Naquele dia, não reparei direito. (Contempla o boi) É um boi simpático...
BASTIÃO
É uma beleza! (Abraça ZABELINHA) Bem se vê que é um boi mandado do céu pra fazer a nossa felicidade!
MATEUS
(Examina o feixe de capim) Onde foi que você arrumou esse feixe de capim, Bastião?
BASTIÃO
Ah, fui buscar a doze léguas daqui, numa várzea onde a seca nunca chega. A várzea fica na fazenda dum coronel.
MATEUS
O coronel lhe deu o capim?
BASTIÃO
Não... quer dizer...
MATEUS
Você roubou!
BASTIÃO
Não tinha outro jeito, Mateus! Eu prometi capim fresco, verdinho... Com essa seca, onde é que eu ia arrumar capim fresco e verdinho por aqui? Onde, Mateus?
ZABELINHA
Onde?
MATEUS
É, por aqui, não arrumava não. Boi aqui tá comendo é galho de xiquexique.
BASTIÃO
Eu pensei nisso, antes de pular a cerca do coronel, que não era direito pagar uma promessa, roubando.
MATEUS
Podia ter pedido ao coronel.
BASTIÃO
Fiquei com medo dele não dar. E daí é que eu não ia poder roubar, porque a jagunçada ia estar de olho. Pelo sim, pelo não, preferi pular a cerca e roubar o capim. Pelo menos eu vou agora pagar a promessa conforme o prometido.
ZABELINHA
Isso é o que vale.
MATEUS
Veja então se paga logo de uma vez. O Boi tá esperando.
BASTIÃO
(Apanha o feixe de capim e fica indeciso) Acha que eu devo me ajoelhar?
MATEUS
Ajoelhar diante de um boi?
BASTIÃO
(De pé, dirige-se ao BOI, como numa oração) Boi do meu Padrim, venho aqui lhe agradecer a graça que recebi.
ZABELINHA
(Sussurra no ouvido de BASTIÃO) Eu também...
BASTIÃO
Ela também. Desculpe se demorei um pouco em pagar, mas é que não foi fácil conseguir um feixe de capim, como eu tinha prometido. Espero que este esteja do seu gosto. (Fica um instante indeciso, sem saber como terminar) Amém. (Coloca o capim na manjedoura. O BOI cheiro o capim, ante respeitoso silêncio de BASTIÃO, ZABELINHA e MATEUS. Depois levanta a cabeça e dá as costas para a manjedoura) Mateus!
ZABELINHA
Ele não quis!
MATEUS
(Também abismado) Não quis capim fresco!
BASTIÃO
(Aterrado) E os olhos que ele botou em mim!... Vocês viram?... Parecia que tava dizendo: você roubou! Este capim é roubado! (Cai de joelhos) Misericórdia, meu Padrim! Misericórdia! Eu furtei, mas não furto mais! Misericórdia!
ZABELINHA
O Boi descobriu que o capim era roubado!
BASTIÃO
É um Boi santo, Mateus! Um Boi santo!
MATEUS
Agora eu acredito! Boi que recusa capim só porque foi roubado ... só mesmo santo!

(MATEUS e ZABELINHA caem de joelhos diante do BOI) E...


CAI O PANO — FIM DO QUARTO QUADRO


SEGUNDO ATO

QUINTO QUADRO

Casa do Padre Cícero. Ouvem-se o foguetório e os vivas do início, em segundo plano, porém com menos intensidade. MOCINHA olha a rua por uma fresta da janela. PADRE entra, lendo uma carta. Quando vê o PADRE, MOCINHA fecha a janela, rapidamente.


PADRE
Carta do Dr. Floro. Avalie você o que ele diz. Que o Diretor da Instrução Pública foi queixar-se de mim ao Ministro.
MOCINHA
Queixar-se de que?
PADRE
Diz que eu me oponho a que se criem mais Escolas em Juazeiro.
MOCINHA
Não teria sido aquele homem que esteve aqui, querendo saber o número de crianças...?
PADRE
Foi ele mesmo, com certeza. Queria que eu andasse com ele para baixo e para cima, que arranjasse casas para fazer escolas, dinheiro para pagar professoras e mais uma porção de coisas. Disse a ele que tinha mais o que fazer e que não via motivos para criar mais escolas em Juazeiro, quando as duas que existem não estão nem com as matrículas completas. Me veio com uma porção de mapas e estatísticas, querendo provar que outros municípios estão mais adiantados e uma porção de tolices.
MOCINHA
Escolas, escolas... igrejas eles não pensam em construir. A capela do Horto está até hoje por terminar.
PADRE
Foi o que eu disse, que o homem não precisa de tantas escolas para chegar até Deus. E toquei ele daqui.
MOCINHA
Fez muito bem.
PADRE
Agora foi se queixar. Mas o Dr. Floro já desfez toda a intriga.
MOCINHA
Ele... volta?
PADRE
Dr. Floro? Mas claro. Esta carta... (Verifica a data) é de um mês atrás. Ele deve estar estourando por aí.

Espoucam bombas e foguetes, em plano afastado.

FANÁTICO
(Afastado) Viva meu Padrim Cirso Romão!
VOZES
(Idem) Vivaaa!
ROMEIRO 2
(Idem) Sua bênção, meu Padrim!
PADRE
(Caindo em si) É hora de atender aos romeiros... esqueceu?
MOCINHA
(Intranqüila) Esqueci não. Pensei que... que meu Padrim não fosse dar a bênção hoje...
PADRE
E por que?
MOCINHA
(Arranja um pretexto) Sua saúde.
PADRE
Que é isso? Você tomou o lugar do Dr. Floro? Ontem já não me deixou abrir a janela...
MOCINHA
(Procurando desviar o assunto) A carta do Dr. Floro...
PADRE
(Corta) A rua deve estar cheia de gente. Esse foguetório...
MOCINHA
(Timidamente) Nos últimos dias tem vindo menos gente. Mas a carta...
PADRE
É, tenho notado.
MOCINHA
(Sem coragem para abordar o assunto) A carta do Dr. Floro...
PADRE
(Um pouco irritado) Que viu você na carta do Dr. Floro?
MOCINHA
Nada... Quer dizer... o senhor não vai responder?
PADRE
Responder? Até a resposta chegar ao Rio, o doutor já está aqui morrendo de velho. Mas vamos, abra a janela.

MOCINHA hesita ainda.

PADRE
Que está esperando?
MOCINHA
Nada. Está bem... (Vai à janela, abre-a de par em par. Não há ninguém diante da janela)
PADRE
(Surpreso) Que houve?... Ninguém!

MOCINHA baixa a cabeça, constrangida.

PADRE
Você não ouviu a gritaria, o foguetório? (MOCINHA não responde) É verdade que o número de romeiros vem diminuindo dia a dia, mas... nunca imaginei que um dia... Isso nunca aconteceu, em 25 anos!
MOCINHA
Agora, eles só passam por aqui, beijam o portal, dão um "viva meu Padrim", e seguem...
PADRE
Notei também que os presentes...
MOCINHA
Eles seguem com os presentes.
PADRE
Seguem para onde?
MOCINHA
Para o curral.
PADRE
Para o curral?
MOCINHA
Vão adorar o Boi!

MATEUS entra, pelo quintal, conduzindo a fila de romeiros que se dirige ao curral. Aí surge o BOI, como se se levantasse do chão, onde estivera até então oculto. Tem agora fitas e bentinhos amarrados nos chifres e no pescoço. Espoucam foguetes e bombas. Entre os novos romeiros, figuram também o BEATO DA CRUZ, o FANÁTICO, a BEATA, o ROMEIRO 2, MENINO e MENINO 2).

FANÁTICO
Viva o Boi santo! Viva o Boi de meu Padrim!
BEATO
Meu Pai! Meu Pai!
BEATA
Não empurra! Mais respeito!
ROMEIRO 2
Olha o cego!
CEGO
(Conduzido por um menino) Vim de longe, vim da Paraíba!
MATEUS
Calma! Calma, irmão! Um de cada vez! Senão eu boto todo o mundo pra fora! (Toma posição em frente ao curral, enquanto todos caem de joelhos diante dele) Quem trouxe presente pro Boi, deixa ali na manjedoura. Lugar de ajoelhar é aqui. Com ordem, com ordem que isto é um lugar de respeito.

Da sala, PADRE e MOCINHA apreciam a cena.

MOCINHA
Meu Padrinho, que acha de tudo isso?
PADRE
Francamente, não sei. A princípio, pensei que fosse um grande sacrilégio. Mas depois... diante dos milagres que todos os dias se produzem, já nem sei o que pensar!
MOCINHA
(Iluminada) Quem sabe se Deus não resolveu manifestar-se através o Boi?

O PADRE olha MOCINHA como se as suas palavras o tivessem chocado um pouco, balança a cabeça, perturbado e sai.

ROMEIRO 2
Meu boizim, trouxe aqui um presente... vosmicê vai gostar.

Oferece um grande bolo ao BOI.

MATEUS
(Tomando o bolo) Me dá aqui... dou pra ele depois. (Guarda o bolo na manjedoura)
BEATO
(De joelhos, agita a cruz) Meu Pai! Meu Pai está nele! Tem o céu aquele que se mostra mais humilde que ele! De quatro, como ele!
BEATA
Diz que um pedacim do chifre cura quebrante...
MATEUS
Do chifre direito. Do chifre esquerdo cura espinhela caída.
BEATA
Tem pra vender?
MATEUS
(Apanha um embrulhinho numa prateleira.) É três tões.
CEGO
Isso também cura cegueira, moço?
MATEUS
Não, pra cegueira, sapiranga, qualquer doença da vista, o remédio está aqui dentro deste frasco. (Apanha um frasco com um líquido amarelado) Vosmicê passa no olho de noite, no dia seguinte amanhece enxergando.
CEGO
É do Boi?
MATEUS
Não tá vendo que é? Inda tá quente...
CEGO
Quanto? (Recebe o frasco)
MATEUS
Dois tões só... (CEGO paga) E pra ferida, cabreiro, bicheira de gado, tem aqui um santo remédio: a bosta do Boi santo! Cura qualquer ferida, mesmo feita com faca ou com bala.
ROMEIRO 2
(Rezando) Meu boizim adorado do meu Padrim Cirso, protegei-me de todo mal, que eu vim aqui por vós e pelo meu Padrim!
BEATA e ROMEIROS
(Como resposta) Santa Mãe de Deus e Mãe Nossa, Mãe das
Dores, pelo amor do nosso Padrim Cirso e de seu Boi santo, nos livre e nos defenda de tudo quanto for perigo e miséria, nesta vida e na outra, onde queremos estar, ao lado do nosso Padrim e do seu santo Boi. Amém!

DIREÇÃO: AS falas são ditas simultaneamente, num clima de fanatismo.

FANÁTICO
(De joelhos, diante do BOI) É um santo! Tenho fé em Deus, tenho fé no Padrim, tenho fé no meu Boi! Meu Boi é sagrado, seu chifre é sagrado!
MATEUS
(Com um frasco de urina do BOI na mão) É dois tões o frasco! Quem quiser ande depressa, tá acabando!
CEGO
Quero beijar o meu Boi! Quero beijar o chifre dele! Os meninos brincam diante do boi, açulando-o.
BEATO
(Brandindo a cruz) Uái, uái, meu Pai!
CEGO
(Beija, emocionado, os chifres do BOI) Tem pena de mim, meu Boi! Há três anos que não vejo a luz do Sol! Manda
pra mim uma luz do céu! (Canta):
Meu boizim que virou santo,
como santa é Maria,
tem pena do pobre cego
que não vê a luz do dia.

(Todos rezam, gritam, lamentam-se, ao mesmo tempo, num clima de verdadeira insanidade. Os meninos correm à frente do BOI, enquanto alguns romeiros se acotovelam para ter o privilégio de beijar a madeira do curral)

MATEUS
(Sobrepondo sua voz à barulhada geral) Vamos com calma! Vamos com calma! Mais respeito pelo santo!

As luzes se apagam em resistência


FIM DO QUINTO QUADRO

SEXTO QUADRO

Em casa do Padre. Em cena, além deste, FLORO, BARTOLOMEU e MOCINHA.


FLORO
(Indignado) Isso é um absurdo! Não podemos permitir uma coisa dessas!
PADRE
O doutor estava no Rio de Janeiro...
FLORO
Por isso. Se estivesse aqui, isso não teria nem começado. E muito me admira que o senhor, Padre, tenha consentindo em semelhante heresia. Um Boi adorado como um Deus!
PADRE
Ninguém podia prever que a coisa tomasse esse vulto.
MOCINHA
Nem que, através do Boi, Deus resolvesse se revelar.
FLORO
A senhora acredita nisso?!
MOCINHA
Quando a hóstia consagrada virou sangue na boca de Maria de Araújo, houve hereges que negaram o milagre. Houve até médicos como o senhor, que afirmaram que o sangue vinha de uma ferida na garganta de Maria e não do corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Hoje, todos eles pagam pela sua descrença: um morreu envenenado, outro cegou, outro morreu de repente. É o castigo dos que não sabem ver Deus, quando Ele aparece!
FLORO
Isso é diferente. A transformação da hóstia consagrada em sangue de Cristo foi um milagre do Padre Cícero, que se repetiu várias vezes durante a comunhão da Beata Maria de Araújo. Eu acredito que Deus se manifeste através do Padre. Mas não creio que faça isso pelos chifres de um zebú.
PADRE
O doutor talvez tenha razão. Mas os fatos miraculosos atribuídos ao Boi são tantos que...
FLORO
(Interrompe) Será possível que o Padre também acredite na santidade do Boi?
PADRE
Está claro que não. Mas o povo crê. Os romeiros não param mais diante de minha janela, não esperam pela minha bênção. Seguem e vão ajoelhar-se no curral, diante do Boi. Não me pedem mais receitas, compram pedaços de chifres, embrulhinhos com estrume, e outros produtos do Boi, para curar suas moléstias. E quando precisam de uma graça especial, não é mais a mim que se dirigem, é ao Boi.
FLORO
E o senhor tem consentido nisso?!
PADRE
Tenho pensado... que talvez Deus esteja querendo me dar uma lição de humildade. Talvez que eu tenha me mostrado muito orgulhoso como intermediário das graças divinas... e Deus está me fazendo ver que eu nada sou superior ao meu Boi.
FLORO
(Irritado) O senhor me perdoe, Padre, mas nunca ouvi tanta tolice. Como quer se comparar a um boi, um irracional? Se Deus quer humilhá-lo, igualando o senhor a um quadrúpede, por que não deu também ao bicho o dom de pensar e falar? Por que não lhe deu inteligência? O senhor continua sendo superior! Deus então não ia ver isso?
PADRE
(O argumento de FLORO satisfaz a sua vaidade, um tanto abalada) De fato... não havia pensado nisso...
FLORO
Deus não é nenhum tolo. E sabe perfeitamente que o Padre também não é.
PADRE
Foi um pensamento que me ocorreu, diante do que estamos assistindo.
FLORO
Padre, precisamos pôr um fim a essa história. Ou então... estaremos perdidos!
PADRE
Perdidos?
FLORO
Será possível que o senhor ainda não tenha percebido o perigo que esse culto representa?
PADRE
Não...
FLORO
O santo de Juazeiro não é mais o senhor, é o Boi! Daqui a pouco, esse Boi será também o Prefeito e o chefe político do município!
PADRE
Absurdo!
FLORO
Não tanto quanto parece. Vamos ser realistas, Padre. Seu prestígio nasceu dos milagres que fez e que ninguém discute. Das chuvas que fez cair em tempo de seca, dos paralíticos que fez andar, dos cegos que fez recuperar a vista. Com esse prestígio, o senhor se fez Prefeito...
MOCINHA
... e o doutor chegou a Deputado.
FLORO
Isso mesmo.
MOCINHA
Se votam no senhor, é porque o Padrinho manda votar.
PADRE
Também não é assim... Dr. Floro tem seu valor.
FLORO
Mocinha tem razão, em parte. Além do meu valor pessoal, eu preciso do seu prestígio. Dentro de poucas semanas, teremos eleições para deputado federal. É preciso que o povo vote em mim, como tem votado.
PADRE
Eu tenho mandado votar.
FLORO
(Grita) Mas é preciso também que o senhor seja obedecido, como das outras vezes, senão seremos derrotados! Afinal de contas, uma derrota minha será também sua!
PADRE
Claro!
MOCINHA
(Sarcástica) O doutor pode ficar tranqüilo, o Boi não tem candidato.
FLORO
Mas tem prestígio! Prestígio que está roubando do Padre!
PADRE
O doutor exagera.
FLORO
Não exagero. É verdade. É estúpido, mas é verdade! O Padre sabe que tenho inimigos. Zé Pinheiro me trata bem, mas eu sei que se ele pudesse mandava me arrancar a língua e comia com cebola. Ele e os outros podem se aproveitar da situação pra desviar votos. Esse Mateus também não me merece muita confiança. Inda mais que eu soube que o candidato do Coronel Costa Lima, de Iguatú, esteve aqui pra pedir a proteção do Boi. Um dia espalham que o Boi balançou a cabeça e mandou votar nele... estou perdido!
PADRE
Bem, mas... que sugere o doutor que se faça? Proibir que os romeiros façam promessas ao Boi e tragam presentes para ele? Obrigá-los a vir de novo, como antigamente, postar-se diante de minha janela? Não posso fazer isso, doutor.
MOCINHA
Claro que não.
PADRE
Diriam que estou com inveja do Boi.
FLORO
Seja lá como for, temos que achar um meio.
PADRE
Mandar o Boi para uma de minhas fazendas?
FLORO
Isso!
PADRE
Os romeiros iriam atrás.
MOCINHA
Seria pior, Juazeiro ficaria deserta, não restaria ninguém para votar no doutor.
PADRE
Podíamos era pedir ao Bispo para nomear uma comissão que estudasse os milagres do Boi, tal como foi feito com Maria de Araújo.
FLORO
(Anima-se) Sim, uma comissão! A comissão verificaria a farsa e o Boi seria desmascarado!
MOCINHA
O povo jamais acreditaria nessa comissão.
PADRE
Lá isso é verdade. Os milagres de Maria de Araújo foram negados pela própria comissão que de início os afirmara. E isso não abalou em nada a crença do povo.
FLORO
Serve não. Serve não! Além disso, ninguém nos garante que essa comissão não será formada de idiotas que acabarão canonizando o Boi. (Benze-se) Que Deus me perdoe!
PADRE
Francamente, não vejo saída.
FLORO
(Pensa um instante) Me diga... esse Bastião, que tipo de homem é ele?
PADRE
Bom rapaz... trabalhador... várias vezes veio me capinar o quintal, sem cobrar um tostão.
FLORO
Ambicioso?
PADRE
Nunca me pareceu.
FLORO
Dos nossos?
PADRE
Sempre votou no doutor.
FLORO
O senhor acha que ele era capaz de compreender a dificuldade política em que nos achamos?
PADRE
Como?
FLORO
Quero dizer: era capaz de ficar do nosso lado, contra o Boi?
PADRE
Isso nunca. Se foi ele quem obteve a primeira graça do Boi!
FLORO
(Nervosamente) Sim, sim, é claro... O nível político dessa gente é muito baixo. Votam por votar, sem nenhuma consciência.
MOCINHA
É a sorte do doutor... (Sai)
FLORO
Mas quanto à ambição... um homem apaixonado por uma mulher bonita ambiciona o céu e a terra!...


FIM DO SEXTO QUADRO

SÉTIMO QUADRO

Casa de BASTIÃO. Sala. Numa das paredes, um feixe de capim já seco, amarrado com uma fita colorida, da qual pendem vários bentinhos e medalhas. É o capim que o Boi não comeu, o capim sagrado.


ZABELINHA
(Abre a porta, mostra surpresa) Doutor Floro!
FLORO
(Entra, sorridente, cativante) Boa tarde, Zabelinha! Posso chegar?
ZABELINHA
Mas nem se pergunta... É uma honra. Só que... o doutor não repare, é casa de pobre...
FLORO
Ora... (Galanteador) É de pobre, mas é de gosto. Espelho da dona...
ZABELINHA
(Encabulada) Doutor Floro... o senhor tá mangando de mim.
FLORO
(Gira os olhos em torno, num reconhecimento tático do terreno) O Bastião não está?
ZABELINHA
Tá não. Mas não demora. Foi na plantação de mandioca.
FLORO
Ele já tem plantação de mandioca?
ZABELINHA
Comprou a semana passada.
FLORO
Quer dizer que as coisas estão indo bem pro lado dele. Mulher bonita, plantação de mandioca... Será que a plantação foi também milagre do Boi?
ZABELINHA
Foi não senhor. Foi o Capitão, não sabe? que na pressa de fugir com a mulher do circo, esqueceu o relógio de ouro e mais umas coisas. Nós vendemos, juntamos com umas economias do Bastião e compramos uma rocinha na Serra do Araripe. Pegamos metade, a outra metade vamos pagar em 2 anos.
FLORO
(Irônico) Mas será que não foi o Boi quem fez o Capitão esquecer o relógio e as outras coisas?...
ZABELINHA
Capaz. A bem dizer, nossa sorte a gente deve a ele.
FLORO
Você acha, é?
ZABELINHA
Não havia de achar? Foi ele quem me fez enxergar de repente o homem bom que é Bastião.
FLORO
Dizem que você não podia ver Bastião nem pintado... como foi que de repente descobriu nele tantas qualidades?
ZABELINHA
Sei não... Foi uma coisa esquisita... divina mesmo.
FLORO
Eu só sinto não estar aqui quando o Capitão... bateu asas.
ZABELINHA
Por que?
FLORO
Porque senão quem ia fazer promessa pro Boi era eu...
ZABELINHA
(Encabulada) Doutor Floro!
FLORO
Mas se o Boi é santo, com certeza que pode repetir o milagre...
ZABELINHA
Como?
FLORO
Fazendo a mulher que eu sempre cobicei largar tudo e vir comigo pra Capital.
ZABELINHA
O doutor tá dizendo isso só pra me escabrear.
FLORO
É não... você sabe. Estou falando sério. Vou me eleger deputado federal. Você nunca sonhou morar no Rio? Numa bonita casa, com todo o conforto, vestidos, jóias, perfume francês... (Tenta enlaçá-la, ela reage).
ZABELINHA
... e uma mulher-dama!
FLORO
Mulher-dama?
ZABELINHA
É pra quem o senhor deve fazer essa proposta. Tem algumas aqui em Juazeiro e dizque na Capital tem mais ainda.
FLORO
(Sorri, um tanto desarmado) Você se ofendeu? Mas não há motivo. Pois se seria um milagre... mais um milagre do Boi santo. Sim, porque todo o santo que se preza repete o milagre pra não deixar dúvidas. Ou você não acredita que a fuga do Capitão Boca-Mole e seu novo "casamento" com Bastião tenham sido... fatos sobrenaturais?
ZABELINHA
Acredito, sim. Herege e ingrata é o que eu era, se não acreditasse.
FLORO
Então?... Se o Boi fez o Capitão sumir e Zabelinha se enrabichar por Bastião, não pode também fazer Zabelinha fugir com o doutor?
ZABELINHA
Mas Bastião fez promessa. O doutor não fez.
FLORO
Isso é o de menos. Posso fazer. E em vez de um feixe de capim, vou oferecer um capinzal. (Tenta novamente enlaçá-la) A graça pedida vale mais que isso...
ZABELINHA
(Repele-o bruscamente. Lança-lhe um olhar de desafio) Pois faça a promessa. Duvido que o Boi lhe atenda!

(Entra BASTIÃO. Traz no ombro uma enxada e um gadanho).

FLORO
(Abre os braços, sorridente, num excesso de expansividade que deixa BASTIÃO instintivamente desconfiado) Oh, aí está ele! Estava à sua espera. (Bate nas costas de BASTIÃO, amigavelmente) Então... grandes progressos! Meus parabéns! Acabo de saber.
ZABELINHA
Ele está falando da plantação.
BASTIÃO
(Modestamente) Um roçado.
FLORO
Mas é assim que se começa. (Intencional) E quando se tem uma mulher bonita estimulando a gente, dentro em pouco o roçado vira sítio e o sítio vira fazenda. Vim aqui mesmo pra lhe falar sobre isso... (Tem um olhar de constrangimento ante a presença de ZABELINHA).
BASTIÃO
É particular?
FLORO
Não, não é, mas...
ZABELINHA
(Compreende que é demais) O doutor fique à vontade. (Sai)
FLORO
(Oferece um charuto a BASTIÃO) Charutos da Bahia.
BASTIÃO
Obrigado, me dá tonteira.
FLORO
(Acende o charuto. Vê o capim sagrado) Esse feixe de capim?...
BASTIÃO
É o capim sagrado.
FLORO
Ah! O tal feixe de capim roubado que o Boi não quis comer.
BASTIÃO
Guardo como coisa santa.
FLORO
Bastião, você já pensou em política?
BASTIÃO
Se eu já pensei... pra eu me meter?
FLORO
Sim.
BASTIÃO
(Ri) Pensei não, doutor.
FLORO
Pois sabe que você tem um grande futuro na política?
BASTIÃO
O doutor tá debochando.
FLORO
Palavra. Não vim aqui pra brincar. Vim lhe fazer um convite. (Pausa) Quer ser vereador?
BASTIÃO
(Sorri, tomado de surpresa e incrédulo) Vereador?
FLORO
E depois, quem sabe? deputado estadual...
BASTIÃO
Mas eu, doutor? Eu não tenho preparo, nem merecimento...
FLORO
Sabe ler e escrever?
BASTIÃO
Isso sei, mas...
FLORO
Metade da Câmara de Juazeiro mal sabe assinar o nome. Em política, meu caro, o que conta em primeiro lugar é a habilidade de tirar de qualquer acontecimento o máximo de vantagem em benefício próprio... quer dizer, do partido. Numa palavra, é preciso ser esperto... e isso você é mais do que ninguém. Haja visto essa história do Boi Santo, que você arrumou para ficar com a mulher do Capitão Boca-Mole...
BASTIÃO
(Ofende-se) Seu doutor, eu não arrumei história nenhuma. Sempre gostei de Zabelinha, sempre fui doido por ela. O resto quem fez foi o santo Boi do meu Padrim.
FLORO
Está bem, está bem... Mas voltando ao assunto, que diz da minha proposta? Eu garanto a sua eleição. Garanto o apoio do Padre Cícero. Sabe que isso é o bastante.
BASTIÃO
(Hesitante) Eu sei... mas acho melhor o doutor procurar outro. Dou pra isso não.
FLORO
Pense bem, Bastião, você está dando um pontapé na sorte. E pense na Zabelinha. Vocês não são casados. Todo o mundo agora vira a cara pra ela, por causa disso...
BASTIÃO
Que importa? Nem eu nem ela tamos ligando. (Com superioridade e convicção) Foi Deus quem me deu Zabelinha. Nós nos juntamos pela graça divina, manifestada no santo Boi. Casamento mais legítimo que esse?
FLORO
Também acho. Mas nem todos são da mesma opinião. E por isso viram a cara, fazem Zabelinha passar vexame. Quando você for vereador, depois deputado, quem é que vai se atrever a virar a cara pra Zabelinha? (Sentencioso) Bastião, amiga de pobre é mulher atôa, amiga de deputado é madama!
BASTIÃO
Isso é verdade.
FLORO
Dinheiro compra tudo, Bastião. Compra certidão de casamento, compra até virgindade. (Ri) Filha de pobre dá mau-passo e cai na vida; filha de coronel continua virgem e casa na igreja.
BASTIÃO
Verdade verdadeira.
FLORO
E ser cabo eleitoral do doutor Floro significa dinheiro na mão. Zabelinha me disse que vocês ficaram devendo metade do preço da roça...
BASTIÃO
Vamos pagar em dois anos.
FLORO
Nada disso. Mando pagar amanhã.
BASTIÃO
(Sem entender) O doutor? Mas por que?
FLORO
Porque você é do meu partido e é meu afilhado político.
BASTIÃO
Nesse caso, eu fico devendo ao senhor?...
FLORO
Não, homem, você não fica devendo nada a ninguém. É um presente que eu lhe faço. Presente de correligionário. Preciso de você, Bastião. Você é um reforço valioso para a nossa causa. Vale o presente.
BASTIÃO
(Sorri, envaidecido, deixando extravasar uma alegria quase infantil, que sente necessidade de partilhar com alguém). Zabelinha?
FLORO
Espere... por que está chamando?
BASTIÃO
Ela vai pular de contente!
FLORO
Depois, depois você conta tudo a ela. Primeiro vamos terminar o nosso acerto. Eu até agora só lhe disse o que você pode esperar de nós. Não disse o que nós esperamos de você.
BASTIÃO
É verdade, o doutor não disse o que eu tenho que fazer.
FLORO
Coisa muito simples. Basta que você dê uma declaração — e que Zabelinha confirme — negando os milagres do Boi.
BASTIÃO
Negando?!
FLORO
Isso mesmo.
BASTIÃO
Mas como é que eu posso negar uma coisa que está vista, provada?
FLORO
Não é preciso negar o milagre. Basta que negue a autoria. O milagre foi feito, mas pelo Padre Cícero e não pelo Boi.
BASTIÃO
Mas isso não é verdade!
FLORO
(Som) Aprenda, Bastião! Em política, verdade é aquilo que nos convém. Há sempre a verdade da situação e a verdade da oposição. Ambas são verdadeiras, para cada lado.
BASTIÃO
Mas isso não é questão de política, doutor.
FLORO
É muito mais do que você pensa. Porque disso depende a minha eleição... e a sua. (Intencional) E depende tudo o mais... E afinal de contas, o Boi é do Padre Cícero. Se o Boi faz milagres, é ao Padre que se deve creditar. Você nunca pediu ao Padrinho pra Zabelinha gostar de você?
BASTIÃO
De viva voz, não. Só em pensamento.
FLORO
Vale. Não é assim que a gente se dirige aos santos? E o Padrinho é um santo. Ouviu seu pedido. E você pensa que foi o Boi.
BASTIÃO
E a recusa do capim roubado?
FLORO
Ora, isso não é milagre. Boi também tem fastio.
BASTIÃO
E os outros milagres? A menina que não dormia há três anos, o cego de nascença que saiu enxergando?
FLORO
(Interrompe) Nada disso diz respeito a vocês. Eu só quero que você diga que deve ao Padre Cícero e não ao Boi a graça que recebeu.

BASTIÃO cai em tremendo conflito de consciência.

FLORO
Diga isso e amanhã a escritura da roça está em suas mãos. E a sua cadeira de vereador está também garantida. (Coloca a mão no ombro de BASTIÃO, num gesto protetoral) Sob a minha proteção, você vai ser gente, Bastião.
BASTIÃO
E se eu não aceitar?
FLORO
Bem, se você não aceitar, perde tudo... e ganha um inimigo. Um, não, dois: eu e o Padrinho, que está muito triste com você.
BASTIÃO
(A revelação choca-o profundamente) O Padrim triste comigo?!
FLORO
E não é pra menos. Tantos milagres que ele fez, tantas graças e tanto bem que espalhou por aí... e agora ser trocado por um Boi... O santo padre está amargurado.
BASTIÃO
Mas eu não tenho culpa!
FLORO
Não sei, Bastião, não sei se você não tem culpa.
BASTIÃO
Eu não disse a ninguém que trocasse o Padrim pelo Boi. Eu por mim não troquei um pelo outro — sou devoto dos dois. E continuo tendo pelo Padrim o mesmo amor, o mesmo respeito.
FLORO
Era bom que o Padrinho soubesse disso.
BASTIÃO
O doutor podia dizer a ele, me fazia um favor.
FLORO
É preciso não. Basta que você faça o que lhe pedi há pouco e o Padrinho fica sabendo.
BASTIÃO
O senhor quer que eu diga... Tenho que dizer onde?
FLORO
Por aí, em qualquer lugar. Na botica, na venda, onde puder falar. Basta que diga e que confirme quando eu disser nos comícios. Amanhã mesmo vou falar no Largo da Cadeia. Quero você junto de mim. Combinado?
BASTIÃO
Eu não podia... pensar um pouco mais?
FLORO
Não há tempo pra pensar.
BASTIÃO
(Depois de longa pausa, mas ainda não convencido da justeza de sua decisão) Combinado.
FLORO
(Estende a mão a BASTIÃO, alegremente) Vamos selar com um aperto de mão esta aliança política.

BASTIÃO aperta a mão do deputado, cabisbaixo.

FLORO
(Inicia a saída, pára na porta) Uma coisa: é preciso que Zabelinha confirme.
BASTIÃO
Deixe ela por minha conta.
FLORO
Eu sei que ela vai compreender a situação melhor do que você. Basta que lhe diga que vai ser mulher de deputado, dona de terras... Mulher sabe o quanto vale uma situação. (Sai)

BASTIÃO fica um instante pensativo, fitando a porta por onde FLORO saiu. ZABELINHA entra, enquanto isso, sem que ele perceba. Quando ele se volta, dá com ela e assusta-se ligeiramente.

BASTIÃO
Zabelinha...
ZABELINHA
(Marcando bem as palavras) Você vai fazer isso que ele pediu, Bastião? Vai trair o santo que nos juntou, que fez a nossa felicidade? Vai, Bastião?


FIM DO SÉTIMO QUADRO

OITAVO QUADRO

Casa do Padre. FLORO e PADRE na sala.


PADRE
E o doutor acha que isso é suficiente?
FLORO
Acho que sim. Se Bastião nega o milagre do Boi, confessa a farsa, o Boi está desacreditado.
PADRE
Mas houve outros milagres...
FLORO
O povo passará a duvidar deles. E enquanto isso, eu e o Padre faremos uma campanha de desmoralização do Boi. O Padre deve dizer que o Boi não é emissário de Deus, mas de Satanás. E deve ameaçar com o Inferno a todos aqueles que forem adorá-lo.
PADRE
Não posso fazer isso!
FLORO
Por que?
PADRE
Porque não há nenhum indício, nada que justifique.
FLORO
Como não há, Padre? Quem pode ter interesse em desviar os crentes da Igreja, senão o Diabo? Quem tem poderes sobrenaturais, além de Deus, senão o Diabo? Quem pode enfeitiçar um animal, senão o Diabo?
PADRE
Não são provas suficientes.
FLORO
E se nós estamos com Deus e o Boi está contra nós, isso não é prova de que ele está com o Demônio? Não é prova suficiente?
PADRE
Era preciso estudar mais o caso. É uma acusação muito séria pra se fazer assim... mesmo a um animal.
FLORO
Pois então, Padre, pegue os livros de teologia e estude o assunto. Porque as eleições estão aí... E o Boi é o nosso maior adversário, não tenha dúvida.
PADRE
Acho também que o doutor exagera. Se há tanta gente que hoje acredita nos milagres do Boi, é porque o Boi me pertence. Fosse ele de outra pessoa e teria o destino de todos os bois. O próprio Bastião jamais teria feito a promessa. E ninguém viria de tão longe para adorar um quadrúpede, se o dono dele não fosse o Padre Cícero.
FLORO
O senhor acha então que eles vêem no Boi a segunda pessoa do Padrinho?
PADRE
(Não gosta muito da comparação) Mais ou menos.
FLORO
E o Senhor conclui daí o que, Padre?
PADRE
Concluo que o meu prestígio não está abalado, como o doutor julga. E que quando eu mandar votar no doutor, eles obedecerão, como das outras vezes.
FLORO
Não me fio nisso, Padre. Mesmo sabendo que nós temos a máquina eleitoral nas mãos e que podemos alterar os resultados até certo ponto... mesmo contando a nosso favor com os votos dos analfabetos e dos mortos, ainda assim, tenho medo. É preciso liquidar politicamente esse Boi. E isso nós começaremos no comício de amanhã.


FIM DO OITAVO QUADRO

NONO QUADRO

Praça em frente à cadeia pública. Um palanque armado, sobre o qual estão FLORO, O PADRE e BASTIÃO. O Padre está sentado. BASTIÃO, ao fundo, cabisbaixo. FLORO discursa. Entre os assistentes estão ZABELINHA, BEATA, FANÁTICO, BEATO DA CRUZ, VENDENDOR AMBULANTE, MATEUS, VAQUEIRO, MENINO, MENINO 2, ROMEIRO, ROMEIRO 2. Envolvendo o palanque horizontalmente, há uma faixa com os dizeres: o PADRINHO MANDA: VOTE NO DR. FLORO BARTOLOMEU.

FLORO
... e lembre-se, minha gente, que há quarenta anos Juazeiro era um lugar esquecido de Deus e dos homens. Foi quando o Senhor nos mandou o Padre Cícero Romão...
ROMEIRO
Viva meu Padrim!
TODOS
Vivaaa!
FLORO
... o Padre Cícero Romão e Juazeiro se transformou na nova Jerusalém. Gente de toda a parte vem receber do Padrinho a palavra salvadora, o remédio para seus males. Não é preciso dizer que apesar das secas, das doenças, da fome e de todas as provações por que passamos, Juazeiro é hoje um lugar abençoado por Deus. Não há quem não deseje, já não digo viver, mas morrer em Juazeiro. Porque em todas as cidades do nordeste se morre de fome e de sede, mas em nenhuma delas se morre abençoado e recomendado pelo Padrinho! (Aplausos)
ROMEIRO 2
Padrim! Padrim! ...
ROMEIRO
Viva meu Padrim!
TODOS
Vivaaa!
FLORO
Grita a oposição que em Juazeiro não há escolas, que em Juazeiro não há hospitais, que nada fazemos contra as secas. Como não há escolas, se Juazeiro é uma imensa escola de fé cristã, onde o Padrinho é o mestre? (Aplausos)
Como não há hospitais, se os paralíticos daqui saem andando, se os cegos recuperam a visão, se dezenas e dezenas de enfermos daqui saem curados, todos os dias? (Aplausos)
E quem diz que nada fizemos contra as secas? Então no ano atrasado mesmo, para não ir mais longe, no ano atrasado mesmo o Padrinho não fez chover quinze dias seguidos, quando já não havia nem esperança de chuva? (Aplausos entusiásticos)
VAQUEIRO
Viva meu Padrim Cirso e seu Boi santo!
TODOS
Vivaaa!
FLORO
(Lança um olhar a BASTIÃO, como a preveni-lo de que vai chegar a sua vez) Mas... é preciso não abusar da clemência divina! É preciso saber ser reconhecido àquele a quem Deus escolheu para intermediário de suas graças! É preciso, sobretudo, saber distinguir o verdadeiro do falso escolhido... E ai daqueles que trocam a Igreja pelo curral!
ROMEIRO 2
Mas o Boi é santo também!
ROMEIRO
Então não é?
FLORO
(Aponta BASTIÃO) Vocês conhecem Bastião. Dizem que ele presenciou o primeiro milagre e recebeu a primeira graça desse Boi que afirmam ser santo. Pois ele aqui está para dizer a vocês toda a verdade. Venha cá, Bastião.

BASTIÃO, sempre cabisbaixo, chega à frente do palanque.

FLORO
Diga a essa gente, você mesmo, com sua voz. Você acredita que tenha sido o Boi o autor das graças que recebeu?

Há uma pausa. BASTIÃO hesita, presa de tremendo conflito de consciência.

FLORO
Responda, Bastião. Você deve ao Boi essas graças? Acredita que seja ele o autor dos milagres que presenciou?

Nova pausa. Todos os olhares estão presos em BASTIÃO.

FLORO
Lembre-se, Bastião, da importância que terá a sua resposta... para essa gente... e para você, principalmente! Você acredita na santidade do Boi?
ZABELINHA
Bastião!
BASTIÃO
(Seu olhar cruza com o olhar angustiado de ZABELINHA) Acredito! (Grita nervosamente) Acredito! Acredito!

Um clamor se eleva do povo.

BASTIÃO
Acredito e vou pedir perdão a ele por ter prometido negar!

Desce do palanque e sai correndo.

ZABELINHA
Bastião, espere! (Sai correndo atrás dele)
FLORO
(Furioso, gritando) Ele mente! Ele mente!

Os romeiros vão saindo, sem dar ouvidos a FLORO.

VAQUEIRO
Queriam que ele negasse!
ROMEIRO
Como era que podia?!
ROMEIRO 2
Ele que recebeu a primeira graça!
BEATA
Havia de ser uma heresia!
BEATO DA CRUZ
(Agitando a cruz) Negar a santidade do nosso Boi! Hereges! Hereges! Vamos nos purificar desse pecado rastejando diante dele...
VENDEDOR
Meu Padrim não disse nada; isso é só coisa de doutor Floro.
FANÁTICO
Coisa do Demo! Coisa do Demo!

Saem todos os assistentes, com exceção de MATEUS, que continua de pé na praça. PADRE e FLORO permanecem como que fulminados sobre o palanque.

FLORO
Idiota!
PADRE
O senhor fez mal em confiar nele.
FLORO
Como eu podia imaginar?...
PADRE
Sofremos uma grande derrota, que podia ter sido evitada. Agora as coisas vão ficar muito mais difíceis.
FLORO
Só há um jeito, agora. Matar o Boi.
PADRE
(Espanta-se) Matar o Boi! Está falando sério?
FLORO
Por que se espanta? Por acaso os bois não nasceram pra isso mesmo, para serem sacrificados?
PADRE
Mas esse... não é um boi comum...
FLORO
Não vejo diferença. É ruminante, quadrúpede, irracional, como todos os outros.
PADRE
O povo não pensa assim, o senhor viu!
FLORO
Porque alguns idiotas inventaram que o Boi faz milagres.
PADRE
Não são alguns idiotas, são milhares. Matá-lo, seria provocar uma revolta!
FLORO
Não creio, mas se houver, estou disposto a enfrentá-la.
MATEUS
(Que ouviu o diálogo anterior, estarrecido, sobe ao palanque) Ouvi o doutor dizer...
FLORO
Ah, Mateus não é o guarda do Boi?
PADRE
É... ele é quem toma conta do animal.
MATEUS
Com muita alegria, graças a Deus Nosso Senhor e ao Padrim Cirso. Fui eu quem cuidou dele desde o dia do primeiro milagre.
FLORO
Vamos acabar com isso, Mateus. Essas coisas envergonham uma cidade como Juazeiro. E você, como membro da Irmandade dos Penitentes, devia me ajudar.
MATEUS
A Irmandade...
FLORO
(Interrompe) Padre Cícero, que é um santo, e a quem vocês tudo devem, condena o culto do Boi.
MATEUS
Meu Padrim...
FLORO
(Interrompe) E obedecendo a ordens dele, amanhã, nesta praça, o Boi será sacrificado.
MATEUS
O senhor vai matar o Boi?!
FLORO
Eu, não. Mas alguém fará isso.
MATEUS
(Fora de si, numa exaltação crescente) Ninguém! Ninguém vai fazer isso com o meu Boi santo!
FLORO
E por que não?
MATEUS
Porque eu não vou deixar! Nem eu, nem Deus Nosso Senhor!
FLORO
Não meta Deus nessa história.
MATEUS
Foi Deus quem fez os bois. E se fez desse um santo, é porque está com ele, contra quem quiser lhe fazer mal. Deus defende sua gente!
FLORO
Mesmo contra o Padrinho?
MATEUS
Eu não creio que o Padrim queira matar o Boi! O doutor pode dizer, mas eu não creio! Um santo não pode querer a morte de outro santo!
FLORO
(Perde a paciência) Pois você acredite ou não acredite, o Boi será morto.
MATEUS
Pode ser, doutor. Mas por essa luz que me alumia, vão ter que me matar primeiro!

As luzes se apagam em resistência.


FIM DO NONO QUADRO

DÉCIMO QUADRO

É noite. O Largo da Cadeia está novamente repleto. Entre os assistentes, BEATA, FANÁTICO, BEATO DA CRUZ, VENDEDOR AMBULANTE, VAQUEIRO, MENINO, MENINO 2, ROMEIRO, ROMEIRO 2; sobre o palanque, MATEUS.


MATEUS
Apois é isso, meus irmãos, querem matar o nosso santo Boi!
TODOS
Não! Nunca! Não vamos deixar!
FANÁTICO
Nós morremos com ele!
BEATA
Ele me curou de quebrante!
ROMEIRO
Me curou de sapiranga!
BEATA
Deus não há de permitir!
ROMEIRO 2
Nem Deus, nem nós.
TODOS
(Gritam, fanáticos) Nem nós!
FANÁTICO
Ninguém bota a mão no Boi! Ninguém!
MATEUS
É o doutor Floro Bartolomeu quem quer fazer essa barbaridade. Meu Padrim não falou nada. Mas o doutor faz dele o que quer. E diz que amanhã vão matar o Boi, aqui, nesta praça!
TODOS
(Num grito de horror) Não!
BEATO
(Agitando a cruz) A maldição de Deus há de cair sobre quem fizer isso! E também sobre quem consentir!
BEATA
Sobre nós!
BEATO
Sobre a terra e a gente cairá um castigo!
FANÁTICO
Uma seca de sete anos!
BEATA
A peste!
BEATO
Ou quem sabe, o fim do mundo!
TODOS
O fim do mundo? Será o fim do mundo!
BEATO
(Iluminado) Quando o sangue do santo Boi encharcar a terra, vai virar fogo! E o fogo vai limpar o mundo de todos os pecados! De todos os vícios! De todos os crimes!
VAQUEIRO
(Desesperadamente) Não! Não podem matar o meu Boi! Fui eu quem deu o Boi de presente ao Padrim! Não deixem matar meu Boi!
MATEUS
A Irmandade dos Penitentes vai defender o santo Boi com a própria vida!
TODOS
Nós também!
MATEUS
(Iluminado) Quem morrer pelo Boi, tem vida eterna!
VENDEDOR
(Olhando para fora) Minha gente, lá vem o Bastião com o Boi! (BASTIÃO entra, trazendo o boi).
TODOS
O Boi! Bastião trouxe o Boi!

Há uma verdadeira explosão de alegria. Uns se arrojam aos pés do animal, outros beijam sua testa, seus chifres, rindo, gritando, dançando.

BASTIÃO
Por via das dúvidas, garrei o Boi e trouxe.
MATEUS
Fez bem, Bastião. Temos que guardar o Boi bem guardado! Todos circundam o Boi, alegremente.
VAQUEIRO
Viva o meu boizim!
TODOS
Vivaaa!
VAQUEIRO
(Canta)
Vem, meu boi lavrado,
vem fazer bravuras,
vem dançar bonito,
vem fazer mesuras!
Coro
Vem dançar, meu boi,
aqui no terreiro,
que o dono da casa
tem muito dinheiro.

O Boi dança, roda, inclina-se, conforme as ordens do VAQUEIRO

VAQUEIRO
Alô, meu boi!
Coro
Eh! bumba!
VAQUEIRO
Dança de jeito!
Coro
Eh! bumba!
VAQUEIRO
Faz a mesura!
Coro
Eh! bumba!
VAQUEIRO
Espalha a gente!
Coro
Eh! bumba!

O Boi investe contra o povo, que corre.

VAQUEIRO
Meu boi laranjo!
Coro
Eh! bumba!
VAQUEIRO
Meu boi bargado!
Coro
Eh! bumba!
VAQUEIRO
Dá volta e meia!
Coro
Eh! bumba!
VAQUEIRO
Vai sossegado!
Coro
Eh! bumba!

A dança é interrompida pelo grito de ZABELINHA, que entra correndo,

ZABELINHA
Bastião! Bastião!
BASTIÃO
Zabelinha! Que aconteceu?
ZABELINHA
(Arfante) Espere... deixe... deixe eu respirar... vim correndo do telégrafo até aqui...
BASTIÃO
Do telégrafo?
ZABELINHA
É... seu Maneca telegrafista disse... que o Doutor Floro acaba de telegrafar pra Capital... pedindo tropa!
BASTIÃO
Tropa? Soldados?
ZABELINHA
Isso mesmo... por causa do Boi!

Todos rodeiam ZABELINHA.

VENDEDOR
Soldados! Doutor Floro mandou buscar macacos na Capital!
ROMEIRO 2
Pra matar o Boi?
ZABELINHA
E quem não quiser deixar, com certeza!
BEATA
Minha Mãe das Dores!
BEATO
É o Anti-Cristo!
ZABELINHA
Seu Maneca disse que ele pediu um Batalhão!
BASTIÃO
Um Batalhão?
VAQUEIRO
Um batalhão quantos soldados tem?
ROMEIRO
Acho que uns cem...
ROMEIRO 2
Mais! Tem trezentos!
VENDEDOR
Me adisculpe, mas eu servi na Polícia: um batalhão tem quinhentos homens.
TODOS
Quinhentos!
BASTIÃO
Pois que venham! Que tragam dois batalhões até! Vou levar o Boi pra nossa casa. E nem o exército brasileiro arranca ele de lá!
MATEUS
Isso! Nós cercamos a casa e quero ver!
ZABELINHA
E se eles tiverem ordem pra matar?
MATEUS
Que matem! Quem está disposto a morrer pelo Boi santo, que levante o braço!

Todos erguem os braços, sem hesitação. E...


CAI O PANO — FIM DO DÉCIMO QUADRO

TERCEIRO ATO

DÉCIMO PRIMEIRO QUADRO

Casa de BASTIÃO. A BEATA está a um canto, encolhida, com um terço na mão, rezando. BASTIÃO, junto a uma janela fechada, tenta ver algo por uma fresta. Ouve-se um tiro, ele se esconde. Outros tiros se seguem.


FLORO
(Fora de cena, afastado, grita). Não adianta, Bastião! A casa está cercada, é melhor se entregar!
BASTIÃO
(Grita, junto à janela). Venham me buscar! Venham me buscar, se são homens!
FLORO
(Fora). Os romeiros já se entregaram! Você está sozinho, Bastião!
BASTIÃO
Não está sozinho quem está com Deus Nosso Senhor!
FLORO
(Fora). Pois vamos ver quem está com Deus e quem está com o Cão!

Nova descarga de quatro ou cinco tiros de fuzil.

BEATA
(Reza em voz alta), "Santa Mãe de Deus e Mãe Nossa, Mãe das Dores, pelo amor de nosso Padrim Cirso e de seu Boi Santo, nos livre e nos defenda de tudo quanto for perigo e miséria, nesta vida e na outra, onde queremos estar, ao lado de nosso Padrim e de seu Boi Santo, amém!
ZABELINHA
(Entra). Bastião, prenderam Mateus e os penitentes!
BASTIÃO
Gente frouxa!
ZABELINHA
Frouxa nada. Vi Mateus todo ensangüentado levantar os braços para o céu e cair junto da porta do quintal. Os outros arrodearam ele e começaram uma reza pra ajudar a morrer. Foi aí que os macacos chegaram e prenderam todo o mundo!
CORO DOS PENITENTES
(Afastado)
Nossa Mãe Nossa Senhora
Virgem Santa e Mãe das Dores
é a guarda de nós todos,
de nós todos pecadores.
BEATA
(Logo no início do coro). Escutem!...

Eles escutam o coro até o fim.

ZABELINHA
São eles...
BEATA
Um "canto de sentinela!'
BASTIÃO
Mateus morreu!

BEATA benze-se, BASTIÃO e ZABELINHA imitam.

CORO DOS PENITENTES
(Afastando-se cada vez mais)
Oh! Mãe gloriosa,
Oh! Mãe de Juazeiro,
Oh! Mãe virtuosa,
Oh! Mãe dos romeiros.
BEATA
(Afasta-se para o seu canto, rezando). "Jesus vai contigo e Nossa Mãe das Dores é tua guia até a porta de S. Pedro. E o Arcanjo Gabriel com a espada na mão te defenderá contra os ataques do Cão!"
ZABELINHA
Bastião, tou com medo.
BASTIÃO
E quem é que não tá?
ZABELINHA
É de morrer não. É de ser castigada.
BASTIÃO
Castigada por que?
ZABELINHA
Eu sou culpada, Bastião, culpada de tudo que tá acontecendo.
BASTIÃO
Porque foi por sua causa que o Boi fez o primeiro milagre? Nesse caso, eu sou mais culpado que você; fui eu quem fez a primeira promessa. Eu que provoquei o bicho.
ZABELINHA
É isso não, Bastião. É isso não.
BASTIÃO
Que é, então?

O Boi entra.

BEATA
Olhe o Boi! O Boi se soltou!
BASTIÃO
Se assustou com os tiros, com certeza. Aproxima-se do Boi, segura-o pela corda e tenta levá-lo para fora. Mas o Boi resiste). Vamos, meu santo, vamos lá pra dentro. Aqui é perigoso, podem lhe acertar um tiro. (O Boi resiste).
ZABELINHA
Ele não quer ir, Bastião. É melhor deixar. Ele sabe mais que você onde deve ficar.

(BASTIÃO afrouxa a corda. O Boi se encaminha para o feixe de capim seco pendurado na parede. A ante os olhares estarrecidos de BASTIÃO, ZABELINHA e da BEATA, arranca o capim com os dentes.

ZABELINHA
O capim! O capim sagrado!...

O Boi come o capim.

BASTIÃO
(Impressionadíssimo). Ele tá comendo! Ele tá comendo o capim que eu roubei, Zabelinha!
ZABELINHA
E o capim tá seco!
BASTIÃO
Então... por que ele não comeu daquela vez? Se é o mesmo capim...
BEATA
É um novo milagre!
ZABELINHA
Ou é fome.
BASTIÃO
Fome não; de manhãzinha eu dei de comer a ele. É milagre, milagre não é... comer capim, mesmo seco, qualquer boi come.

O Boi, ainda ruminando, inicia a saída. BASTIÃO, estático, nada faz para detê-lo.

ZABELINHA
Ele pode fugir... (Sai atrás do Boi)
BASTIÃO
Ele devia saber que era o mesmo capim... ele devia saber!... e não recusou!
BEATA
Que é que você acha? Que o Boi perdeu a santidade?
BASTIÃO
(Tremendamente confuso). Sei não... sei não!...
ZABELINHA
(Entra). Prendi ele de novo no quarto.
BASTIÃO
(Meditando profundamente sobre o acontecido, não parece tê-la ouvido). Ele comeu o capim roubado...
ZABELINHA
Bastião... queria lhe dizer uma coisa.
BASTIÃO
Ahn?
ZABELINHA
Há muito que eu tou pra lhe dizer e não tenho coragem. Agora tou com remorso. Remorso de ter escondido de você.
BASTIÃO
Escondido o que?
ZABELINHA
Naquele dia que o doutor Floro esteve aqui, antes de você chegar, ele... ele se engraçou comigo.
BASTIÃO
Se engraçou, como?
ZABELINHA
Disse que me cobiçava e que ia fazer promessa pro Boi, pra eu largar de você e ir com ele pro Rio de Janeiro.
BASTIÃO
Filho da mãe! Ele disse isso?!
ZABELINHA
Disse. E eu acho que fez. E como o Boi não atendeu, ele tá danado fazendo tudo isso. De raiva.
BASTIÃO
É capaz. Agora tou entendendo... Por isso ele queria que eu negasse a santidade do Boi. Pro Boi me castigar, atendendo o pedido dele. Cabra safado.
ZABELINHA
E agora?... Se ele, de vingança, matar o Boi? Eu vou ser a culpada!
BASTIÃO
Você?
ZABELINHA
Não fui eu que fiz ele ficar com raiva? Não fui eu que disse a ele pra fazer aquela proposta pra uma mulher-dama, não pra mim?
BASTIÃO
E disse bem. Tá arrependida?
ZABELINHA
Tou não. Mas se o Boi morrer por causa disso? Por causa de uma palavra minha?
BASTIÃO
É palavra de mulher honesta.
ZABELINHA
E será que minha honestidade vale mais que a vida de um santo?
BASTIÃO
(Custa a entender o conflito de ZABELINHA. Suas palavras o deixam extremamente confuso). Sei não... não entendo o que você tá dizendo. Será que você acha que devia ter ido dormir com o doutor?!
ZABELINHA
Se o Boi morrer.
BASTIÃO
Se o Boi morrer... E na minha honra você não pensa? (Há uma pausa. Silêncio absoluto). Você reparou?... Pararam de atirar...
ZABELINHA
(Pressentindo) Esse silêncio...

BASTIÃO vai até à janela e olha pela fresta. É quando FLORO e o CABO entram pela porta dos fundos. FLORO empunha um revólver e o CABO um fuzil.

ZABELINHA
Bastião! (BASTIÃO volta-se)
CABO
(Aponta-lhe o fuzil). Se reagir, leva fogo!
BEATA
(Leva as mãos aos lábios, abafando um grito). Minha Mãe das Dores!
FLORO
Espere, Cabo. Ele não vai ser besta de reagir. Onde está o Boi?
BASTIÃO
Sei não.
FLORO
Onde esconderam o bicho? É melhor dizer.
BASTIÃO
Sei, mas não digo.
FLORO
Leve ele, Cabo.
CABO
Pra onde, doutor?
FLORO
Pra cadeia. O Boi há-de aparecer.
CABO
(Segura BASTIÃO por um braço e arrasta-o consigo). Vamos! (Saem. De fora, grita). Tá aqui o Boi, seu doutor! Os meus homens acharam ele!
FLORO
(Vai até a porta interna, grita para fora). Levem ele pra casa do Padre. Deixe dois homens lá montando guarda. (Aproxima-se de ZABELINHA). Toda essa carnificina por causa de um boi!
ZABELINHA
A gente deve lutar por aquilo que acredita.
FLORO
Mesmo errado?
ZABELINHA
Acho que sim. Mesmo errado.
FLORO
Isso é ignorância.
ZABELINHA
Ninguém tem culpa de ser ignorante.
FLORO
(Olha-a demoradamente). É... é possível que a culpa seja nossa mesmo. (Inicia a saída).
ZABELINHA
E Bastião? Que vão fazer com ele?
FLORO
Vai ficar guardado uns dias... Talvez tenha que ser removido pra Capital.
ZABELINHA
Mas ele não tem culpa!
FLORO
Como não tem culpa? Chefiou uma revolta, desacatou as autoridades constituídas, desafiou a Igreja e o Estado, representados na pessoa do Padre Cícero e o Poder Legislativo representado na minha pessoa...
ZABELINHA
(Apavorada). Mas se ele fez tudo isso... vai passar o resto da vida na prisão!
FLORO
(Som). E Zabelinha vai ficar de novo solteira... Quem sabe se não será esse o último milagre do Boi?... (Sai)
BEATA
(Aponta na direção em que FLORO saiu). É o Demônio! É o Demônio!


FIM DO DÉCIMO PRIMEIRO QUADRO

DÉCIMO SEGUNDO QUADRO

Na cadeia. BASTIÃO está deitado de bruços sobre um catre, parecendo ter levado boa surra. É noite. CABO entra com ZABELINHA.


ZABELINHA
Bastião!
BASTIÃO
Zabelinha...
CABO
(Abre a porta da cadeia). Podem conversar aqui fora. Mas não demorem muito, se o doutor aparece aqui tou frito.

BASTIÃO sai do cubículo.

ZABELINHA
Eu podia... falar com ele em particular?
CABO
Sozinha?
ZABELINHA
Um instantinho só...
CABO
(Um pouco desconfiado). Tá bem. Mas veja lá, hem? Tou arriscando o meu galão. (Apanha o cinturão com o revólver e o sabre, que estão pendurados num cabide e sai)
ZABELINHA
Te bateram?
BASTIÃO
Uns covardes.
ZABELINHA
Já sabe? O Boi vai ser morto amanhã cedinho. E o sacrifício vai ser aqui na frente da cadeia.
BASTIÃO
Pra que eu veja.
ZABELINHA
Acho que sim, que é pra que você veja.
BASTIÃO
É um cabra mau que nem cobra. Quer me machucar até o fim.
ZABELINHA
Tá todo o mundo imaginando a desgraça que vai cair sobre Juazeiro. Muita gente já fugiu da cidade. E eu tenho a impressão que todos me olham como se eu fosse culpada do que vai acontecer!
BASTIÃO
Você? Por que? Você contou a alguém?...
ZABELINHA
Contei pro Beato da Cruz.

BASTIÃO tem um olhar de censura.

ZABELINHA
Eu carecia, Bastião! Carecia de um conselho!
BASTIÃO
O Beato que disse?
ZABELINHA
(Convicta, iluminada). Que eu fui a escolhida de Deus pra salvar o Boi.
BASTIÃO
Escolhida? Escolhida, como?
ZABELINHA
Cedendo aos caprichos do Anti-Cristo.
BASTIÃO
Ele quer... quer que você vá se dar em troca...
ZABELINHA
Em troca da vida do Santo Boi e de sua liberdade, Bastião.
BASTIÃO
Não quero! Não quero liberdade comprada com desonra!
ZABELINHA
(No mesmo tom messiânico). O Beato disse que não vai haver desonra nem pecado. Que eu vou sair tão pura como antes... porquê tudo não vai passar de um sacrifício pela salvação do Santo Boi.
BASTIÃO
E eu, Zabelinha? Você acha que eu posso aceitar essa situação?
ZABELINHA
É a tua parte no sacrifício, Bastião.
BASTIÃO
O Beato também disse isso?
ZABELINHA
Disse. Ele acha que nós fomos escolhidos pra uma provação. E que devemos estar felizes por Deus ter se lembrado de nós, entre tantos.
BASTIÃO
Feliz por Deus, entre tantas testas, ter escolhido a minha!
ZABELINHA
Foi o que ele disse.
BASTIÃO
E você... você tinha coragem de ir se oferecer?... De se humilhar como... qualquer mulher-dama?
ZABELINHA
O Beato disse que se eu não fizer e o Boi for sacrificado, o castigo vai ser pior.
BASTIÃO
Pior?... Pior castigo que esse? E eu já duvido que venha algum castigo.
ZABELINHA
(Como se ele houvesse proferido uma heresia). Duvida?! Pois se o Beato disse...
BASTIÃO
Ah, o Beato, o Beato!... O Beato só vê castigo... Há dez anos que ele vive anunciando o fim do mundo. Desde ontem que estou começando a desacreditar de uma porção de coisas.
ZABELINHA
Desde ontem?
BASTIÃO
Você viu... o Boi comeu o capim roubado. Se eu roubasse outro feixe, ele era capaz de comer também. Naquele dia mesmo, no dia do milagre, se eu tivesse insistido, se tivesse deixado lá o capim, mais tarde, quem sabe se ele não comia? Só não comeu porque eu levei o capim pra casa, como coisa sagrada.
ZABELINHA
Bastião, você não tá duvidando do milagre, tá?!
BASTIÃO
(Confuso). Sei não, Zabelinha... sei não se houve mesmo milagre.
ZABELINHA
E a fuga do Capitão?
BASTIÃO
Quando eu fiz a promessa pro Boi, o Capitão já tinha fugido.
ZABELINHA
E eu embeiçar por você de repente?...
BASTIÃO
Foi mesmo de repente? Você nunca pensou em mim?
ZABELINHA
Bem, verdade-verdade, às vezes eu pensava. Mas aquele dia me deu uma coisa... uma vontade de ser sua que eu não tinha antes. E a felicidade que nós temos gozado todo esse tempo? Maior prova do milagre que essa, Bastião?
BASTIÃO
Sei não, Zabelinha, sei não... Tou meio tonto. Acho que me bateram muito...
ZABELINHA
Quer ver que o miolo saiu do lugar...
BASTIÃO
Sei não... Mas que tem alguma coisa fora do lugar, tem. Não sei se é na minha cabeça... ou é no mundo.
ZABELINHA
No mundo?
BASTIÃO
Mateus deu a vida pelo Boi... Tanta gente que podia ter também morrido — e morrido feliz — por ele...
ZABELINHA
Tanta gente que morreu feliz pelo Padrim...
BASTIÃO
Por ele ou pelo Padrim. É a mesma coisa.
ZABELINHA
E você tem culpa?
BASTIÃO
Sei não... o pior é isso, que eu não sei quem tem a culpa.
ZABELINHA
A culpa é minha, Bastião. É por minha causa que o doutor tá fazendo tudo isso. E por isso o Beato disse que eu tenho que me sacrificar.
BASTIÃO
Uma ova!
ZABELINHA
O Beato disse, Bastião.
BASTIÃO
O Beato pode dizer o que quiser. Mulher minha não faz esse tipo de penitência.

O BEATO entra, abruptamente, seguido do CABO, que tenta detê-lo.

CABO
Espere... não pode ir entrando assim... Isto é uma cadeia, é preciso respeitar!
ZABELINHA
Ele veio comigo.
BEATO
(Avança para BASTIÃO, de cruz em punho, em atitude agressivamente profética). Minha Mãe das Dores me apareceu e falou: se matarem o Boi, virá uma seca de sete anos, como nunca houve! E todos aqueles que tentarem fugir pra outras terras verão a água virar sangue e a terra virar fogo! E os que puderem salvar seu povo e não fizerem, esses serão duplamente castigados!
ZABELINHA
Tá ouvindo, Bastião?!
BEATO
Porque em verdade vos digo: o fim do mundo tá próximo e o Anti-Cristo vai soprar sobre a terra o vento da destruição e do pecado! Nessa hora, é preciso esquecer todo egoísmo, toda vaidade, todo orgulho e ouvir a voz de Deus! Porque só os humilhados hão de gozar as delícias da vida eterna!

O BEATO sai, tão abruptamente como entrou, e ZABELINHA, magnetizada, segue-o.

BASTIÃO
Zabelinha!
ZABELINHA
(Da porta). Coragem, Bastião! (Sai)

BASTIÃO ameaça segui-la, mas o CABO barra-lhe a passagem.

CABO
Eh, espera lá! Que anarquia é essa? Pensa que aqui todo o mundo pode entrar e sair a hora que quer?
BASTIÃO
Ele vai levar ela pro doutor!...
CABO
Pra se tratar?
BASTIÃO
Não, pra me trair! Disse que Nossa Mãe das Dores mandou!
CABO
Tou entendendo não... Nossa Mãe das Dores deu agora pra...
BASTIÃO
Nossa Mãe nada, mãe dele! Me deixe sair, Cabo! Eu prometo que volto! Antes do dia clarear estou aqui, juro!
CABO
Vou nessa conversa não. Fiz isso uma vez com um cabra, até hoje tou esperando por ele. (Tira o cinturão, com o sabre e o revólver, pendura-o no cabide).
BASTIÃO
Seu Cabo, o senhor me conhece, sou homem de palavra.
CABO
A única palavra que vale aqui é a Lei. E a Lei diz que lugar de preso é ali, no xadrez.
BASTIÃO
(Apossa-se do cinturão do CABO). Pois então, seu Cabo, sinto muito, mas vou ter que desrespeitar a Lei. (Empunha o sabre).
CABO
Que é isso? Largue essa arma!
BASTIÃO
Largo não. E saia da minha frente, se não quer que a Lei seja ainda mais desrespeitada.
CABO
Tá maluco, menino? Pense no que vai fazer...
BASTIÃO
Quantos filhos o senhor tem, Cabo?
CABO
Tenho seis, trabalhando pra mais um.
SANTA
Então pense o senhor neles e saia da minha frente. (Inicia a saída)
CABO
Eh, espere!
BASTIÃO
(Detém-se). Que é?
CABO
Me prenda ali, ao menos, senão vai ficar feio pra mim...

CABO entra na cela, BASTIÃO fecha a porta a chave.

CABO
Obrigado.

BASTIÃO sai.


FIM DO DÉCIMO SEGUNDO QUADRO

DÉCIMO TERCEIRO QUADRO

Em casa do PADRE. PADRE e MOCINHA, na sala, ambos muito preocupados. No quintal, dois soldados encarregados de montar guarda ao BOI, dormem.


PADRE
Eu sabia. Sabia que isso ia acontecer. Avisei o doutor...
MOCINHA
Se ele teima em matar o Boi, não sei o que será de nós. A cidade está em pé-de-guerra desde ontem. A morte de Mateus revoltou os penitentes, que agora são capazes de tudo!
PADRE
Não haviam sido todos presos?
MOCINHA
Foram soltos depois. Não havia lugar na cadeia. O senhor sabe que no xadrez não cabe mais que um preso.
PADRE
Também nunca houve necessidade de lugar pra mais.
MOCINHA
Levaram o corpo de Mateus pro Horto e estão lá, desde ontem, de quarto e sentinela.
PADRE
Pobre Mateus. O doutor acha perigoso eu ir até lá, mas eu tenho que ir. Não posso permitir que sepultem o corpo desse infeliz, sem ao menos uma oração por sua alma.
MOCINHA
É a primeira vez que eu concordo com o doutor: acho que o senhor não deve ir.
PADRE
Não ia me acontecer nada. Eles me respeitam.
MOCINHA
É bem verdade que ninguém acredita que tenha sido o Padrinho quem mandou matar o Boi.
PADRE
E não foi mesmo, você sabe.
MOCINHA
Muita gente acha mesmo que o senhor não aprova o procedimento do Doutor Floro.
PADRE
O que também não é mentira.
MOCINHA
É, o Padrinho fez bem em não se pronunciar claramente. Foi de boa política, como diz o doutor. Mas mesmo assim, acho que o senhor não deve ir ao Horto. Ninguém sabe o que pode acontecer de hoje pra amanhã,

FLORO entra, vindo da rua.

PADRE
Ah! o doutor...
FLORO
Que há? Parecem assustados...
PADRE
E não é pra estar?
FLORO
Depois que o Boi morrer, tudo voltará à calma.
PADRE
Mas até lá...
FLORO
Já tomei todas as providências, pode ficar tranqüilo.
PADRE
Que providências?
FLORO
Pedi mais reforços à Capital.
MOCINHA
Mais soldados!
FLORO
Vão ser precisos amanhã, pra garantir a execução.
PADRE
O Doutor teme que o povo, na hora, se revolte?
FLORO
Acredito não. Mas esses cabras são muito capazes de chamar algum bando de cangaceiros pra defender o Boi; é bom estar prevenido.
MOCINHA
Lampeão?...
FLORO
Não, Lampeão tem muito respeito pelo Padrinho. Mas outro bando qualquer. Até mesmo Zé Pinheiro, que, agora, soube, está mancomunado com o Coronel Costa Lima de Iguatú.
PADRE
Zé Pinheiro tem muitos jagunços.
FLORO
E sabe que se eu perder essa parada do Boi perco também as eleições.
PADRE
(Conciliatório). Doutor... acho que devemos agir com mais cautela. Compreendo que seja preciso dar um fim ao Boi. Mas não podemos, em torno disso, provocar uma guerra santa. Mesmo porque, nessa guerra, nós estaremos sozinhos, contra todos.
MOCINHA
Até mesmo contra Deus.
PADRE
É uma loucura.
FLORO
Agora é tarde, padre. Tarde demais pra recuar.
PADRE
Por quê?
FLORO
Um recuo, nesta altura, era um suicídio político. Era o mesmo que eleger o candidato do Coronel Costa Lima. E o Padre pode bem imaginar as conseqüências disso: Zé Pinheiro ia mandar e desmandar em Juazeiro. Era capaz de ser nomeado Prefeito. Na primeira oportunidade, mandava um dos seus jagunços me passar fogo e tocava o Padre daqui.
MOCINHA
Ele não ia poder fazer isso.
FLORO
Ia. E até com apoio do Bispo. Não se esqueça de que o Padre está suspenso de ordens e que já esteve até ameaçado de excomunhão. O prestígio do Padre é muito incômodo, tanto pra Igreja como pros políticos. E nem um nem outro ia perder essa oportunidade de se ver livre dele.
PADRE
É suponho que levemos isso até o fim, não acabaremos, afinal de contas, antipatizados, odiados pelo povo?
FLORO
Não se vencermos. Não se liquidarmos o Boi e nada nos acontecer, nenhuma desgraça cair sobre nós ou sobre Juazeiro, como apregoam por aí.
PADRE
O doutor acha que isso será suficiente para fazê-los entender?...
FLORO
Claro, padre. Será que o senhor ainda não compreendeu que essa é a única maneira de provar a essa gente que Deus está conosco e não com o Boi?
MOCINHA
Eles não duvidam que Deus esteja com o Padrinho. Duvidam que esteja com o doutor, isso sim.
FLORO
Pois verão que está comigo também. E apesar de todas as precauções que tomei, o mais certo é que o povo assista calmamente à execução do Boi. Os cabeças da revolta eram Mateus e Bastião. Um já "embarcou" e o outro está no xadrez: a revolta está terminada.
MOCINHA
(Surdamente). O senhor é que pensa! O senhor é que não sabe... O senhor é que não sente... A cidade inteira murmura... A revolta vem agora de baixo da terra! E vai explodir na hora em que matarem o Boi!
FLORO
Pois veremos.
PADRE
Talvez fosse melhor.,. dar outro fim ao Boi... sem precisar matá-lo.
FLORO
Não, o fim tem que ser esse. Precisamos provar que o Boi não é santo, nem tem qualquer poder sobrenatural. Que é um cornípede como todos os outros. Vamos matar o Boi e comê-lo.
MOCINHA
Comê-lo?! O senhor tem coragem?!
FLORO
E por que não? E faço questão de que toda a cidade fique sabendo.
MOCINHA
Padre, o senhor é o Prefeito, é a maior autoridade aqui. O senhor pode proibir essa barbaridade!
PADRE
Proibir?
MOCINHA
Sim, proibir que o doutor Floro, ou qualquer outra pessoa, toque no animal. O senhor pode fazer isso!
PADRE
Sim, claro que posso.
MOCINHA
Pode e ninguém vai ter coragem de lhe desobedecer. Quanto mais que todo o povo ia ficar do seu lado, Padre!
PADRE
(Seu delírio de grandeza amortecido, aviva-se, por um momento). O povo sempre esteve do meu lado e sempre me obedeceu. E nunca se fez nada em Juazeiro que não fosse a vontade de Deus, traduzida na minha vontade.
MOCINHA
Pois então, padre, imponha a vontade de Deus e a sua vontade, que é uma só: salve Juazeiro da maldição do céu!

(Há uma pausa, o PADRE parece disposto a enfrentar FLORO BARTOLOMEU)

FLORO
(Lentamente, em tom quase patético). O senhor vai fazer isso, Padre? Vai desmoralizar aquele que tem sido sempre seus amigo, seu defensor, seu conselheiro? Vai arruiná-lo politicamente, a ele que sempre foi seu porta-voz na Câmara Estadual e que pode ser agora na Câmara Federal? Vai se colocar contra ele, quando o que ele quer é restabelecer a sua autoridade, o seu prestígio? (Pausa). O senhor vai fazer isso, Padre?
PADRE
(Hesita, evitando o olhar angustiado de MOCINHA. Por fim, sucumbe). Quando vai ser o sacrifício?
FLORO
Amanhã, de manhãzinha, no Largo da Cadeia.
PADRE
Vou rezar para que Deus nos inspire e nos proteja. (Sai) (Batem na porta)
MOCINHA
Vou rezar também... por sua alma! (Sai)

FLORO ri. Novas batidas na porta. FLORO vai abrir. Entra ZABELINHA.

ZABELINHA
(Na porta). Posso falar com o senhor?
FLORO
(O tom de voz de ZABELINHA O deixa um tanto intrigado). Pode...

ZABELINHA avança com a altivez dos mártires.

FLORO
Se veio pedir pelo Bastião, perde tempo.
ZABELINHA
Não venho pedir, venho oferecer.
FLORO
Oferecer?
ZABELINHA
(Cabeça erguida, sem fitá-lo). Nossa Senhora das Dores apareceu ao Beato da Cruz e disse que eu fui escolhida pra salvar o santo Boi, livrando meu povo da vingança divina.
FLORO
(Perplexo). Escolhida... como?
ZABELINHA
O doutor falou na promessa que ia fazer ao Boi. Fez?
FLORO
(Sorri). Não, porquê não acredito no Boi. Mas fiz a Nossa Senhora das Dores...
ZABELINHA
(Olha-o pela primeira vez, impressionada). Fez mesmo? Pediu a ela?
FLORO
Pedi...
ZABELINHA
Será por isso que ela apareceu ao Beato?
FLORO
Com toda certeza. Que foi que ela disse ao Beato?
ZABELINHA
Falou no meu nome... (Como que repetindo as palavras do BEATO) e disse que eu devia fazer o sacrifício de minha honra pra deter a mão assassina. Mandou que eu fosse à procura do Anti-Cristo...
FLORO
O Anti-Cristo sou eu...
ZABELINHA
Foi o que a Santa disse. Que eu fosse à procura do Anti-Cristo e me oferecesse. E eu vim.

FLORO sente-se um tanto inibido pela atitude messiânica de ZABELINHA. Há uma pausa.

ZABELINHA
(Repete). E eu vim.
FLORO
Sim, estou vendo.
ZABELINHA
Então. Agora é a sua vez de falar.
FLORO
Que é que você quer que eu diga?
ZABELINHA
O senhor não sabe?
FLORO
Confesso que não.
ZABELINHA
Em primeiro lugar, que aceite as condições.
FLORO
Que condições?
ZABELINHA
Soltar Bastião e o santo Boi.
FLORO
Em troca?...
ZABELINHA
Isso hoje, e amanhã tou em minha casa, preparada pro sacrifício.
FLORO
Bastião sabe desse... sacrifício?
ZABELINHA
Sabe. O Beato convenceu ele de se sacrificar também, pra salvar Juazeiro da maldição e do castigo do céu.
FLORO
(Pensa um pouco). Eu aceito, mas tenho também uma condição. Vou à sua casa hoje e compro o prometido amanhã.
ZABELINHA
Não. O prometido tem que ser cumprido antes.
FLORO
Você não confia em mim? Dou minha palavra.
ZABELINHA
Palavra de Anti-Cristo não merece fé. Prometido hoje, sacrifício amanhã.
FLORO
E quem me garante que amanhã você não vai roer a corda?
ZABELINHA
Pro senhor é fácil: manda de novo prender Bastião e matar o Boi. Tem força pra isso. Ao passo que eu não vou poder anular o sacrifício...
FLORO
(Tenta enlaçá-la). Garanto que não vai ser sacrifício...
ZABELINHA
Não me toque! E respeite a casa do Padrim!

BASTIÃO entra, pelo quintal. Hesita ao ver os soldados, esconde-se.

FLORO
(Irritado). Afinal, menina, o que foi que você veio fazer aqui? Veio se divertir às minhas custas?
ZABELINHA
Já disse o que vim fazer.
FLORO
(Desconfiado). Você está muito bem instruída... Quem mandou você aqui?
ZABELINHA
(Messiânica). Minha Mãe das Dores.
FLORO
Diga a verdade! (Segura-a pelo pulso). Não foi Zé Pinheiro? Não foi aquele cachorro?
ZABELINHA
(Liberta-se com esforço). O senhor tá sabendo que não. Nem dez Zé Pinheiro me faziam vir aqui me oferecer. Somente um mandado do céu era capaz.

FLORO ri.

ZABELINHA
O senhor ri, mas o castigo há-de cair sobre todos.
FLORO
Se o meu castigo é você... (Aproxima-se novamente de ZABELINHA e tenta acariciá-la. Ela cerra os olhos e consente, como um sacrifício)
BASTIÃO
(Verifica que os soldados estão dormindo, avança cautelosamente em direção à casa. No momento, porém, em que vai entrar, o Boi levanta-se e coloca-se à sua frente) Que é isso, meu santo? Tá me estranhando? Sou eu, Bastião... (Tenta passar, mas o Boi continua a barrar-lhe a passagem,). Me deixe passar. Zabelinha tá lá dentro com o doutor... tá correndo perigo! Meteram na cabeça dela que Deus tinha escolhido ela pra isso... Mas eu não acredito. Não posso acreditar que Deus ande arranjando mulher pro doutor. E principalmente a mulher que você me deu, meu santo. Deus tem mais o que fazer e não ia se dedicar a esse ofício.

FLORO abraça ZABELINHA e tenta beijá-la. Ela não permite.

ZABELINHA
Não!
FLORO
Por que? Foi Nossa Senhora das Dores quem mandou...
ZABELINHA
Decida primeiro.
BASTIÃO
(Faz nova tentativa para entrar na casa e o Boi investe decididamente contra ele, que recua, apavorado). Meu boi-bim! É possível que você esteja contra mim? Contra mim que tenho enfrentado até bala por sua causa?! É possível que tenha passado pro lado do doutor, boi da peste?
FLORO
Olhe, depois que eu me livrar desse Boi, se você quiser, posso fazer Bastião ir passar uns tempos na cadeia de Fortaleza. Não sou santo, mas posso fazer esse milagre. Quer?
BASTIÃO
(No quintal, diante do Boi). Quer, fazemos um negócio. Me deixe passar e eu juro que não conto pra ninguém que você comeu o capim sagrado. Sim, porque, se eu contar, ninguém mais vai acreditar em você. Era uma vez a sua santidade. Quer?
FLORO
Responda: quer?
ZABELINHA
Quero que o senhor solte Bastião e poupe a vida do santo Boi.

BASTIÃO tenta passar novamente e o boi arremete contra ele, dando-lhe uma chifrada e atirando-o ao chão.

FLORO
(Bruscamente). E me desmoralize. E dê de mão beijada uma cadeira de deputado ao candidato do coronel Costa Lima. E troque quatro anos no Rio, com boas mulheres, bons negócios, por uma noite na cama com Zabelinha. (Ri).
BASTIÃO
(Revoltado). Boi do inferno! Agora é que eu tou vendo... Você nunca foi santo! Santo não se presta a um papel desses! Não defende quem vendeu a alma ao Cão.
ZABELINHA
(Decepcionada, humilhadíssima). O senhor... não aceita?
FLORO
Não sou nenhum idiota. Depois de eleito deputado, terei todas as mulheres do mundo.
BASTIÃO
Santo não protege safadeza.
ZABELINHA
(Quase chorando). E agora, o que é que eu faço?... O Beato não vai acreditar que o senhor não quis... ninguém vai acreditar! Vão achar que fui eu, eu que não me esforcei...
FLORO
(Acercando-se novamente). Bem, na verdade, você não se esforçou muito. Como missionária, acho que você devia entregar-se com mais entusiasmo à sua missão... (Abraça-a) E então, quem sabe?... Você é uma enviada do céu, Zabelinha... é uma santa...

ZABELINHA entrega-se. FLORO a beija.

BASTIÃO
Santo ou demônio, ou você sai da minha frente ou eu lhe racho ao meio!


FIM DO DÉCIMO TERCEIRO QUADRO

DÉCIMO QUARTO QUADRO

Largo da Cadeia. Romeiros e soldados cercam o palanque, ainda vazio. VENDEDOR DE ORAÇÕES, BEATA, VAQUEIRO, BEATO DA CRUZ, FANÁTICO, ROMEIRO, ROMEIRO 2, ROMEIRO 3, ROMEIRO 4 , MENINO, MENINO 2, estão entre os presentes.


VENDEDOR
Vigie, moço, vossoria que vem de longe, fique com essa lembrancinha do nosso santo Juazeiro.
ROMEIRO 3
Que é?
VENDEDOR
Um pedaço do chifre do nosso Boi santo, que o Anti-Cristo quer sacrificar.
ROMEIRO 3
Quanto é?
VENDEDOR
Cinco mil réis. Mas é uma raridade e uma defesa contra tudo quanto é moléstia. E juro pelo meu Padrim, só existe este pedaço em todo Juazeiro.

ROMEIRO 3 paga. VENDEDOR vai a ROMEIRO 4.

VENDEDOR
Vossoria que vem de longe, fique com essa lembrancinha do nossa santo Juazeiro. É um pedaço do chifre do nosso Boi santo, o único pedaço que existe em todo Juazeiro...

ROMEIRO 4 recusa com um gesto.

ROMEIRO
Quando vão trazer o Boi?
ROMEIRO 4
Tão demorando.
ROMEIRO
Disseram que era de manhãzinha.
ROMEIRO 4
E o Sol já vai alto.
VENDEDOR
Será que o doutor desistiu de matar meu Boi?
BEATA
Sei não. Só quem pode saber é Zabelinha.
VAQUEIRO
E ela?...
BEATA
Sumiu.
BEATO DA CRUZ
(Aponta dramaticamente), Olhem o céu Olhem o céu!
FANÁTICO
Uma nuvem negra!
TODOS
(Supersticiosos). Uma nuvem! Uma nuvem!
VAQUEIRO
Nuvem nesse tempo!
BEATA
Nunca vi!
BEATO
É o castigo! O castigo vem na nuvem! Vem do céu!
BEATA
Valha-me Santa Bárbara!
VAQUEIRO
Valha-me Santa Luzia!
MENINO
Mamãe, eu tou com medo!
BEATA
Cala a boca, menino!
MENINO
Vamos embora, mãe!
BEATA
Vamos esperar o Boi. Você não queria ver o Boi?
MENINO
Quero ver mais nada não. Quero é ir pra casa.
ROMEIRO
Espia! A nuvem tá tomando forma!
ROMEIRO 2
Forma de um bicho!
VAQUEIRO
De um boi!
BEATO
É o fim do mundo! Se matarem o Boi santo, o mundo vai se acabar em fogo! O fogo vai vir do céu! E vai varrer a terra — e aí está o fim do mundo!

Há um começo de pânico na praça. Entram FLORO, PADRE e MOCINHA. Os dois primeiros sobem ao palanque.

PADRE
Meus filhos, é chegada a hora de reconhecer e corrigir nosso erro. É chegada a hora do arrependimento. Que Deus misericordioso se compadeça de nós e nos perdoe a grande heresia que se cometeu nesta terra.
FLORO
(Grita). Tragam o Boi!
VAQUEIRO
Vão mesmo matar o meu Boi!
BEATO
Zabelinha não cumpriu a missão divina. Ai de nós!
BEATA
Nunca tive confiança naquela sujeitinha.
BEATO
Ai de nós! Ai de nós!
VENDEDOR
Agora a gente compreende por que o Capitão Boca-Mole deu no pé...
BEATO
Ai de nós! Ai de nós!
BEATA
Também por que foram escolher justamente a ela, que nunca foi capaz de uma penitência?
PADRE
Não tenham medo. Deus está conosco, como sempre esteve, e aprova o que estamos fazendo.
FLORO
Onde está o Cabo com o Boi?

Entra ZABELINHA.

BEATA
Aí está ela, a imprestável!
BEATO
Podia ter salvo o Boi e a todos nós!
ROMEIRO
Egoísta!
ROMEIRO 2
Orgulhosa!
BEATA
Perdida! Perdida!

Todos cercam ZABELINHA, em atitudes agressivas.

ZABELINHA
Eu não tenho culpa! Deus é testemunha! Eu não tenho culpa!
BEATO
Deixem! A hora do juízo se aproxima. Ela será julgada.

Entra o CABO correndo.

CABO
Padrim! Seu Doutor! (Sobe ao palanque)
FLORO
Que houve, Cabo? Cadê o Boi? Está atrasado.
PADRE
Seu doutor me desculpe, eu me atrasei porquê... aquele excomungado do Bastião fugiu e...
FLORO
Fugiu?!
CABO
Fugiu e me trancou no xadrez!
FLORO
Que vergonha, Cabo! Um homem só...
CABO
Só uma conversa, seu doutor. Mais de cem! Mais de cem romeiros atacaram a cadeia. Tive que lutar sozinho contra todos.
FLORO
Bem, depois eu lhe arranjo uma promoção. Mas e o Boi?
CABO
Meus homens vêm com ele aí. Mas o Boi tá muito esquisito, seu doutor.
FLORO
Esquisito, como?
CABO
Não houve jeito de fazer o bicho levantar. Tivemos que trazer ele carregado.

Entram dois soldados trazendo o Boi numa rede. Sobem ao palanque e depositam a rede no chão.

CABO
Acho bom seu doutor examinar... Esse boi não tá bom, não.
FLORO
É capaz de ser manha. É um bicho manhoso. Com certeza já sabe que seu dia é hoje...

Faz-se silêncio na praça. FLORO debruça-se sobre o Boi e ausculta-lhe o coração.

FLORO
Está frio... Está morto!

Uma exclamação de assombro percorre a praça.

VAQUEIRO
(Grita, desesperado). O meu boi morreu! Que será de mim?!
TODOS
Nosso boi morreu! Que será de nós!
FLORO
Como foi isso, Cabo? O boi está morto. Quem foi que matou?
CABO
Sei não senhor. Tinha dois homens montando guarda. Ninguém podia ter entrado lá. Não sei como foi. Até parece arte do Cão!
FLORO
(Reflete um instante). Foi Deus! Deus quis, Ele mesmo, mostrar com quem está a verdade. Destruiu o falso ídolo pra que todos entendessem que é o seu verdadeiro emissário. Foi Deus quem matou o Boi.

Quase todos os ROMEIROS caem de joelhos.

PADRE
O doutor tem razão, foi a vontade de Deus. Devemos reconhecer, humildemente, que erramos e pedir perdão pela heresia que praticamos. Deus provou que está conosco. Que esteja sempre conosco.
MOCINHA
Amém!
PADRE
Aqueles que esperavam um castigo do céu, receberam uma lição. O Boi está morto e o céu mais limpo que nunca. Deus espera nossas orações. (Sai, seguido de MOCINHA)
FLORO
Deus espera vocês também. E não deve estar nada satisfeito... Aproveitem, sigam o Padrinho, peçam perdão a ele de tudo que fizeram. Está provado agora que o Padrinho é o único santo de Juazeiro.

Os ROMEIROS iniciam a saída.

FLORO
Cabo, deixe aqui o Boi, pra que toda a cidade veja que está morto e bem morto. Quando escurecer, dê um sumiço nele; quero o palanque limpo pro comício de amanhã.
CABO
Seu doutor não acha que... já que foi Deus quem matou o Boi, a gente devia fazer um enterro decente pro infeliz?
FLORO
Ao contrário, Cabo, Deus ia ficar ofendido e era capaz de mandar rebaixar você a soldado raso. (Sai)

(Saem todos, lentamente, alguns depois de se aproximarem do palanque e lançarem um olhar temeroso ao Boi. Somente ZABELINHA permanece imóvel. Depois que todos se retiram, avança até o palanque.

ZABELINHA
Meu Boizim... me desculpe, mas não teve jeito. Eu até que me esforcei... mas não teve jeito.

Entra BASTIÃO.

ZABELINHA
Bastião!
BASTIÃO
Onde você andou? Procurei o dia todo.
ZABELINHA
No Horto, Bastião, pedindo perdão a Nossa Mãe das Dores pelo meu fracasso.
BASTIÃO
Fracasso mesmo?
ZABELINHA
(Mostra o boi). Tá vendo não?
BASTIÃO
Tou vendo o corpo de um traidor.
ZABELINHA
Bastião! Não diga isso!
BASTIÃO
Que foi que o doutor disse?
ZABELINHA
Que foi Deus quem matou.
BASTIÃO
(Ri). Deus... (Ri nervosamente). Deus!... (Continua rindo, alucinadamente)
ZABELINHA
Bastião! Que é que você tem? Perdeu o juízo, Bastião? Foi a surra que lhe deram, com certeza!
BASTIÃO
(Saco do sabre, sobe ao palanque, gritando). Eu sou Deus, Zabelinha! Eu sou Deus!


CAI O PANO — FIM

ÍNDICE

Notícias sobre Dias Gomes

A Invasão
PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO

A Revolução dos Beatos
PRIMEIRO ATO
SEGUNDO ATO
TERCEIRO ATO



Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.
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Coleção
TEATRO HOJE
Volume 31





































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Dias Gomes



AS PRIMÍCIAS
Alegoria político-sexual
em 7 quadros















Copyright © by Dias Gomes, Rio de Janeiro, 1977

Capa:
EUGÊNIO HIRSCH

Diagramação:
LÉA CAULLIRAUX

Revisão:
NILO FERNANDES

É proibida qualquer representação desta peça em Teatro, Rádio, Televisão, ou sua reprodução por quaisquer meios mecânicos, no original ou em adaptação, sem o consentimento expresso do Autor.

Do Autor, publicados por esta Editora:
O berço do herói, 1965.
A invasão — a revolução dos beatos, 1962.
O santo inquérito, 1.ª ed. 1966, 2.a ed. 1976.
O pagador de promessas, 1967.
Teatro de Dias Gomes, em 2 volumes, 1972.

Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto, 91/93
RIO DE JANEIRO

1978

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CONTRA CAPA
DIAS GOMES
— consagrado autor de O Pagador de Promessas e das melhores novelas da televisão brasileira — publica agora seu mais recente trabalho como autor teatral:
AS PRIMÍCIAS
— uma alegoria sobre o inefável direito do homem à liberdade. Na base da trama estão dois noivos camponeses e o todo-poderoso amo e senhor, que não abre mão do jus primae noctis, o privilégio do proprietário de terras de dormir com as noivas de sua fazenda antes do marido. A revolta do jovem casal contra esse costume provocará a irrupção do conflito. O amor explode em um canto noturno de revolta. Peça de significado amplo e universal,
AS PRIMÍCIAS
está sem dúvida destinada a ser outro grande sucesso de
DIAS GOMES.
Mais um lançamento de categoria da
CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA


ORELHAS DO LIVRO
AS PRIMÍCIAS
Dias Gomes é o autor que, com a mesma obra — O Pagador de Promessas — conseguiu dar uma contribuição fundamental à propagação, aqui e no mundo, de nossa dramaturgia e de nossa cinematografia. O sucesso (e não um sucesso fácil e efêmero, mas sólido, resultado de rara combinação entre qualidade e popularidade) não largou dele, desde então. Roubado por algum tempo da ribalta pela televisão, à qual emprestou um pouco de seu extraordinário talento apontando o caminho para a renovação das novelas, retoma o fio e o prumo de sua vocação maior, mais profunda: o teatro. O arauto dessa retomada foi o grande êxito da re-montagem de O Santo Inquérito. Ele está de volta. Uma nova peça, sem dúvida um novo sucesso, uma bênção de beleza poética: AS PRIMÍCIAS.
Sexo e poder, as bases desta alegoria sobre o inefável direito do homem à liberdade. Ou, como Dias Gomes a classificou, alegoria político-sexual em 7 quadros. Cenário e personagens: uma grande propriedade rural, época indeterminada, dois noivos, uma noite de núpcias. Felicidade? Ainda não. Há o todo-poderoso amo e senhor e o jus primae noctis, o direito do proprietário de terras à virgindade das noivas camponesas. O marido, só na segunda noite. O jovem Lua e a jovem Mara decidem não aceitar a humilhação e se rebelam contra o costume. Vão enfrentar todas as perseguições e punições, mas as primícias da sensualidade juvenil de Mara serão de Lua. O amor explode num canto noturno de revolta.
Há algo de Garcia Lorca nesta peça versejada: a noite, as bodas, os brancos lençóis banhados de luar, a postura hierática e orgulhosa dos personagens diante do destino que lhes vem ao encontro em inexorável tropel. Já o padre é uma figura bem mineira. Respeitar a Deus, sim, mas aos poderosos também, por que não? O mais importante no entanto é que, acima de época, lugar, influências, divergências ou semelhanças, AS PRIMÍCIAS é um texto do melhor Dias Gomes num significado além de limites e fronteiras. Um cântico universal de libertação.
A peça terá estréia mundial no Rio de Janeiro, nos próximos meses, e é motivo de grande satisfação profissional para a CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, que já editou o teatro completo de Dias Gomes, lançá-la em forma de livro para o público leitor de nosso país.
EDUARDO FRANCISCO ALVES

Sumário
Personagens 8
Primeiro quadro 10
Segundo quadro 28
Terceiro quadro 42
Quarto quadro 61
Quinto quadro 68
Sexto quadro 76
Sétimo quadro 82


PERSONAGENS:
PROPRIETÁRIO
MARA
LUA
DONANA
VIGÁRIO SENHORA
1.ª DONZELA
2.ª DONZELA
3.a DONZELA
1.° Noivo

FIGURANTES:
Padrinho, Madrinha, 2.° Noivo, 3.° Noivo, 4.° Noivo.

AÇÃO:
Em uma aldeia da Europa ou da América Latina, entre os séculos VI e XX.

O Direito das Primícias, ou Direito de Pernada, ou Direito da Primeira Noite, (jus primae noctis) foi uma instituição que vigorou na Idade Média e que, em alguns países, como a França, chegou até à Revolução de 89 (Beaumarchais, O Casamento de Fígaro), havendo notícia de que tenha persistido na Itália (Sicília) até meados do século passado. Era o direito do senhor feudal de desvirginar as noivas na noite de sua boda. No Brasil colonial, como lei não escrita, semelhante direito foi largamente usado pelos senhores de engenho e pelos grandes senhores de terra de um modo geral, ainda que de maneira menos ostensiva, mais hipócrita, o que, entretanto, não lhe tirava o seu caráter de violentação da integridade da criatura humana. Aqui, quase sempre, o senhor não esperava pela boda, servindo esta apenas para acobertar a violência já cometida.
Embora a humanidade tenha evoluído a ponto de tornar inadmissível hoje a prática legal de tal costume, sabemos que outras formas do direito de violentar (quer seja essa violentação física, moral ou política) continuam em vigor em certos regimes ditos autoritários, servindo o Direito de Primícias de apropriada ilustração a uma legenda que pode falar de acontecimentos do nosso cotidiano.

D.G.

A ação transcorre em três cenários: a) casa da noiva; b) capela; c) casa do Proprietário. Este último se divide em dois ambientes: a sala e o quarto. Os quatro ambientes podem ser resolvidos num mesmo cenário fixo ou em quatro cenários simplificados e de rápida mutação, o que é essencial à fluência do espetáculo.


1.° quadro

Casa da noiva. O ambiente é pobre, rural, mas festivo. Ao centro, a mesa de doces. As janelas e portas são sugeridas com arcos de flores, que também formam guirlandas em volta e por sobre a mesa. Entram as 3 DONZELAS, duas delas carregando um enorme bolo, que colocam no centro da mesa.

1.ª DONZELA
Depressa, meninas,
depressa que os noivos
não tardam a chegar;
cuidado que o bolo
foi feito de nuvens
e fios de luar.

2.ª DONZELA
Sua faca de prata,

3.a DONZELA
seu olhar de cetim,

2.a DONZELA
coroada de sol,
a noiva é que vai
o bolo partir,
repartir sua sorte.

3.a DONZELA
seu leito de virgem,

1.a DONZELA
seu fogo de fêmea,

3.a DONZELA
no ventre o riacho
ansiando apagar
do noivo à espera
seu fogo de macho.

1. DONZELA
Riacho de rosas
vermelhas contidas
no monte de musgo,
o noivo esperado
que venha afogar
seu falo guerreiro.

AS TRÊS
(CANTAM E DANÇAM)
Depressa, meninas,
depressa que os noivos
não tardam a chegar;
cuidado que o bolo
foi feito de nuvens
e fios de luar.

Ouve-se o sino repicando distante e festivo.

1.a DONZELA
Escutem o sino!

2.a DONZELA
Destino da noiva
em bronze selado!

3.a DONZELA
Será esta noite
sua prova de fogo!

1.ª DONZELA
sua sorte lançada!

AS TRÊS
(CANTAM E DANÇAM)
Depressa, meninas,
depressa que os noivos
não tardam a chegar;
cuidado que o bolo
foi feito de nuvens
e fios de luar.

Entra o PROPRIETÁRIO, de botas e esporas, nas mãos o chicote, na cinta a faca e o revólver. Sua figura infunde respeito e temor, ainda que procure ser envolvente e paternal.

PROPRIETÁRIO
Ô de casa!

As 3 DONZELAS param de cantar e dançar subitamente.

1.a DONZELA
An? Quem é?

PROPRIETÁRIO
É de paz.

2.a DONZELA
(AGORA o RECONHECE). O Proprietário!

PROPRIETÁRIO
(ANDA PELA CENA, OBSERVANDO). OS noivos, onde estão?

1.a DONZELA
Na igreja. Também os padrinhos, convidados, todo o mundo.

3.ª DONZELA
Não devem tardar. O sino acaba de anunciar o final da cerimônia.

2.a DONZELA
Se bem que são cinco, cinco casamentos num só dia!


PROPRIETÁRIO
(SORRI E ROUBA UM DOCE DA MESA). Louvado seja o Senhor!

3.a DONZELA
Louvada seja Maria!

PROPRIETÁRIO
Casar, casar... isso é bom pra aumentar a população. Precisamos de mão de obra num país em construção. Por incrível que pareça, em toda essa região, não se chega a dois braços por légua de extensão. Muita terra sem proveito, sem render fruto ou tributo, sem a menor serventia. Até dói no coração. Por isso eu digo, vocês precisam casar e ter muitos, muitos filhos mesmo, que pra todos eles eu tenho o futuro assegurado: uma pá e uma enxada, um bom pedaço de terra. Quem sabe até um arado? Palavra, em minhas terras ninguém fica sem trabalho ou sem minha proteção. Mas a daqui qual é mesmo?

1.ª DONZELA
O quê?

PROPRIETÁRIO
A noiva?

1.a DONZELA
É Mara... Mara, filha de Donana, viúva de Malaquias...

PROPRIETÁRIO
Ah, sim, agora me lembro... É uma alta, esguia... olhos grandes... ancas redondas de quem vai dar boa cria... Taí uma que merece de mim a honra que vai ter. Porque nem sempre é um prazer... Às vezes é sacrifício a que só me submeto porque, como pai de todos, não devo ter preferência. Mas só Deus sabe o que passo... Deus e os lençóis do meu leito, que às vezes ficam tintos não do sangue das donzelas, mas do meu próprio, no esforço para cumprir o ritual.

1.ª DONZELA (CHOCADA).
Senhor!

2.a DONZELA
De que ritual ele fala?

3.a DONZELA
Não entendi nada, nada...

1.a DONZELA
(DISCRETAMENTE). O direito de primícias...

2.a DONZELA
Ah, sim, a primeira noite...

1.a DONZELA
O direito de pernada... A sua mãe nunca te disse?

3.a DONZELA
Por alto... sem detalhar...

PROPRIETÁRIO
Verdade, palavra de honra. Tivesse eu o direito de abrir mão desse direito e, em certas ocasiões, o faria de bom grado. Não em todas, certamente... Nem me refiro às meninas... é claro, qualquer das três, terá o que bem merece, por lei e também por justiça, quando chegar sua vez. Com prazer e com respeito, cumprirei o ritual. Ainda que venham as três a casar no mesmo dia, cumprirei o meu dever, todas terão a honraria de partilhar do meu leito e nenhuma, isso eu garanto, sairá insatisfeita. Por exemplo, hoje são cinco. Será uma noite exaustiva! Mas o que hei-de fazer? São os ossos do ofício. Minha posição exige todo esse sacrifício. Vou agora para casa me preparar com afinco. Minha mulher separou cinco lençóis, todos cinco de alvura imaculada. Quanto a mim, vou repousar. Quem sabe uma gemada talvez venha a tomar, que a empresa não é fácil, exige disposição... Um supremo mandatário nunca pode demonstrar qualquer irresolução no exercício do poder, sob pena de perder força, prestígio e até provocar contestação. Não sei se vocês entendem a minha situação...

1.a DONZELA
Entendemos...

2.ª DONZELA
Sim, mas...

3.ª DONZELA
Claro...

PROPRIETÁRIO
É um problema político... e também de tradição. O poder absoluto só se mantém pelo uso continuado da força. É um direito, não um abuso. Bem, mas este é um assunto que não pode interessar a três formosas donzelas... (INICIA A SAÍDA)

1.ª DONZELA
E os noivos? Não vai esperar?

PROPRIETÁRIO
Não... vou agora pra casa me lavar, me perfumar, depois aguardar a noiva em meu quarto de dormir... Adeus, meninas.

3.ª DONZELA
Adeus...

O PROPRIETÁRIO sai.

1.ª DONZELA
Senhor do castelo,
guardião das virtudes,
o Proprietário
exige o tributo.
É dono das rosas,
da flor e do fruto
que brotam em seus campos
cobertos de pó.

2.a DONZELA
É justo que colha
e que saboreie
o fruto primeiro
das virgens em flor.

1.a DONZELA
Da noite pioneira
exige as primícias.

3.a DONZELA
Feliz é a noiva,
vai ter as carícias
do grande senhor.
E vai partilhar
seu leito de prata
e nele deixar
a sua inocência
firmada no sangue
de sua virgindade.
O grande machado
do grão-lenhador
irá desbravar
a densa floresta,
matar o dragão
que guarda a entrada
da gruta do amor.

1.ª DONZELA
O noivo fogoso,
o falo a pulsar,
o peito a ferver,
vai ter que esperar.

2.a DONZELA
(NA PORTA). Atenção! Eles vêm vindo! E Donana vem na frente! (CORRE PARA A MESA COM AS OUTRAS, DÃO OS ÚLTIMOS RETOQUES APRESSADAMENTE)

1.a DONZELA
Depressa... acertem a toalha... ajeitem os guardanapos...

DONANA
(ENTRANDO). Meninas, está tudo pronto? Ou ficaram tagarelando?

1.a DONZELA
Tudo pronto, Donana. Veja o bolo, veja os doces... as rosas como pediu...

DONANA
Vim na frente para ver se não faltava mais nada.

2.ª DONZELA
Agora só faltam os noivos.

DONANA
Estão vindo com o Vigário e também com os padrinhos.

3.a DONZELA
O arroz! Falta o arroz!

As 3 DONZELAS correm, pegam punhados de arroz, LUA e MARA entram, seguidos do VIGÁRIO, do PADRINHO e da MADRINHA. AS DONZELAS jogam arroz nos noivos enquanto cantam.

TODOS
(CANTAM)
Viva o noivo
viva a noiva
viva a nossa freguesia,
que os anjos
digam amém,
também a Virgem Maria.

1.a DONZELA
Viva a noiva com seu véu,
sua flor de laranjeira.

2.ª DONZELA
Viva o noivo e seu anel,
seus sapatos de verniz.

3.a DONZELA
Toda árvore só cresce
se tiver boa raiz.

1ª DONZELA
Viva a noiva com seu pássaro
canto preso na garganta.

2.ª DONZELA
viva o noivo com seu mastro,
sua bandeira desfraldada.

DONANA
Bom plantio, boa colheita,
boa terra fecundada.

TODOS
(CANTAM)
Viva o noivo
viva a noiva
viva a nossa freguesia,
que os anjos
digam amém,
também a Virgem Maria.

As 3 DONZELAS jogam mais arroz sobre os noivos, entre risos, girando em volta deles.

DONANA
Chega, meninas, chega. Não me gastem todo o arroz que amanhã vai fazer falta à nossa mesa. Não estamos em tempos de fartura. Este ano a colheita não foi das melhores e vocês sabem, temos que dar metade ao Proprietário.

VIGÁRIO
Metade?

DONANA
É o trato. Por isso nos deixa trabalhar a terra, plantar a cana, o milho e o feijão.

VIGÁRIO
Quem tem a terra, faz a condição. Não há por que reclamar.

DONANA
E quem está reclamando? Isso nem me passou pela idéia. Afinal, se a terra é dele, ainda nos faz favor.

As 3 DONZELAS arrastam MARA para um canto.

1.ª DONZELA
Mara, vem cá...

2.a DONZELA
Você vai dizer?...

1.ª DONZELA
Claro, ela precisa saber.

MARA
O quê? Que aconteceu?

1.a DONZELA
Enquanto vocês estavam na igreja, casando, sabe quem esteve aqui? Adivinhe...

MARA
Como posso adivinhar?

3.a DONZELA
Alguém que estará à sua espera...

2.a DONZELA
... esta noite...

1.ª DONZELA
... para poupar a seu noivo certos trabalhos...

MARA
(PREOCUPADA). Quem? O Proprietário!? Ele... ele não vai abrir mão?!

1.ª DONZELA
Por que abriria? Além do mais, seria uma ofensa a você...

2.a DONZELA
Você tem direito. É lei e é tradição.

MARA
O Vigário prometeu falar com ele, interceder...

1ª DONZELA
Pelo visto, ele não concordou ou o Vigário esqueceu, porque saiu daqui dizendo que ia esperar você. Esperar e se esmerar no ritual...

2.a DONZELA
Sabe, ouvi dizer que usa lençóis de puro linho, importados da Europa!

1.ª DONZELA
Lençóis que só são usados uma única vez, depois guardados numa grande arca, como documentos, para quem quiser comprovar...

MARA vai a LUA, preocupada. Ele está com os padrinhos.

MARA
Lua... Licença, padrinho? Licença, madrinha?


LUA
(AFASTA-SE COM MARA). Que houve?...

MARA
Você falou com o Vigário?...

LUA
Sobre que?

MARA
Sobre esta noite, Lua... Disseram as meninas que o Proprietário esteve aqui à minha procura.

LUA
O Vigário prometeu... Deve ter falado com ele pra abrir mão desse direito... que não me parece direito nenhum.

O VIGÁRIO se aproxima.

MARA
Senhor Vigário...

VIGÁRIO
Lamento não poder ficar, mas tenho que ir à Casa Grande tratar daquele assunto, conforme prometi.

MARA e LUA se mostram mais aliviados.

MARA
Ah, pensei...

LUA
Mara está preocupada, o Proprietário esteve aqui...

MARA
Julguei que o senhor tivesse fracassado.

LUA
Como o senhor acha que ele vai reagir?

VIGÁRIO
Não faço a menor idéia. Creio que ele nunca, enfrentou uma recusa. Isso deve ser novo para ele, sempre acostumado a usar dessa prerrogativa sem contestação, até mesmo com a alegria e a gratidão dos noivos.

MARA
Não vá ele se ofender...

VIGÁRIO
Tenho que ser hábil pra não parecer um ato de rebeldia. Isso poderia ser pior.

LUA
O Vigário sabe como falar. Mas vou dizer com franqueza, rasgando o coração: nem eu, nem Mara, nenhum de nós pode aceitar com alegria, muito menos gratidão, que alguém separe a gente, nem mesmo por uma noite, e logo a mais importante de nossa vida, e invocando não sei que direito roube o que guardamos para dar um ao outro e a mais ninguém, como acabamos de jurar diante de Deus.

MARA
Lua disse o que eu sinto, eu e ele sentimos igual. Eu até mais do que ele tenho motivo pra discordar, porque é meu corpo, é minha virgindade que vira tributo.

VIGÁRIO
Eu sei. Por isso é que vou defender a causa de vocês. Também não estou de acordo com esse costume, embora não possa me pronunciar publicamente. Não é matéria da competência da Igreja. Pelo menos assim eles entendem, os donos da terra e as autoridades de direito ou de fato. Eles fazem as leis e cobram os impostos. Nós só podemos cobrar missas e batizados. Eles fazem a justiça, e também a injustiça. Nós só podemos rezar e pedir a Deus pelos injustiçados. Nunca lutar por eles, ao lado deles, como o Cristo teria lutado. Sob pena de sermos acusados de agitadores, maus sacerdotes, desviados da doutrina. Mas vamos ver o que consigo. (INICIA A SAÍDA).

MARA
Confiamos no senhor.

DONANA
Padre, não vai esperar partir o bolo? Mara, minha filha...

VIGÁRIO
Mais tarde, Donana, ainda volto. Se quiserem guardar um pedaço...

DONANA
Mas é uma pena...

MARA
Deixe, mãe, o Vigário tem que sair, é importante para nós.

VIGÁRIO
Até logo. Espero voltar com uma boa notícia.

LUA
A gente vai esperar... o senhor entende, como uma sentença de morte ou clemência.

VIGÁRIO
Entendo perfeitamente. (SAI).

DONANA
De que estão falando?

MARA
De nada, mãe. Já está na hora, devo cortar o bolo? Como devo fazer?

DONANA
Calma, calma... chame os padrinhos... Meninas... vamos lá... Venham, venham todos!

Todos se acercam da mesa. MARA empunha a faca.

MARA
A quem devo dar a primeira fatia?

AS 3 DONZELAS
Ao noivo!

TODOS
(CANTAM, ENQUANTO MARA PARTE O BOLO, SERVINDO A UM POR UM)
Sua faca de prata
seu olhar de cetim,
coroada de sol,
a noiva é que vai
o bolo partir,
repartir sua sorte.
Meu barco de sonhos
de velas morenas
lançadas ao mar...
Cuidado que o bolo
foi feito de nuvens
e fios de luar.
A rosa dos ventos
não vá nesses mares
se despetalar...
Cuidado que o bolo
foi feito de nuvens
e fios de luar.


2.° quadro

Mutação. Sala da Casa Grande. O PROPRIETÁRIO, sentado à mesa, bebe vinho e alimenta-se. A SENHORA, de pé, observa-o.

SENHORA
(É UMA FIGURA FRIA E ALTIVA, EM QUE PESE A SUA ATITUDE SERVIL DIANTE DO PROPRIETÁRIO. SEU ROSTO PARECE JAMAIS TER-SE ABERTO NUM SORRISO. VESTE-SE DE NEGRO E SUA IDADE PODE OSCILAR ENTRE OS 30 E OS 45 ANOS) . Não convém comer demais... Ir pra cama de barriga cheia, tendo que fazer tanto esforço, isso pode resultar em congestão.

PROPRIETÁRIO
Eu sei. Mas também não posso ficar sem me alimentar. Tenho que estar bem disposto para executar o ato com arte, eficiência e gosto.

SENHORA
São cinco esta noite...

PROPRIETÁRIO
Cinco.

SENHORA
Isso deve então durar quase até o amanhecer. É melhor eu ir dormir nos aposentos dos hóspedes.

PROPRIETÁRIO
E quem vai trocar os lençóis?

SENHORA
É verdade...

PROPRIETÁRIO
É a parte que lhe cabe no ritual. A menos que não deseje mais seguir a tradição.

SENHORA
O que sempre fiz, farei. Cinco vezes... Você não acha que é muito pra sua idade?

PROPRIETÁRIO
Talvez. Mas que quer que eu faça? Que dê prova de fraqueza? Que recuse alguma delas? Além de ofensa grosseira à moça, isso seria desastroso para mim. Depois disso ninguém mais havia de me respeitar. É o princípio do poder: quem o detém precisa se mostrar capaz de usá-lo de maneira absoluta. Ninguém teme um homem armado com um pesado porrete, se ele não é capaz de levantá-lo do chão. Entendeu?

SENHORA
Que diferença faz se eu entendi ou não?

PROPRIETÁRIO
(ESTRANHA). Que há? Alguma objeção?

SENHORA
Nenhuma. Só estou pensando em sua saúde, só isso. Repetir numa só noite cinco vezes o ritual... não será exigir demais de sua virilidade? Já imaginou um fracasso?

PROPRIETÁRIO
Sou proibido de pensar. Isso significaria não estar mais apto a exercer as responsabilidades, os encargos do poder. Por favor, mais uma gemada.

A SENHORA pega a xícara e o prato no momento em que se ouve o sino do portão.

PROPRIETÁRIO
Será que já é a primeira?

SENHORA
Ainda nem anoiteceu... (SAI COM A XÍCARA E o PRATO).

PROPRIETÁRIO
Também não seria mau comermos um pouco antes. São cinco virgens... e algumas são bastante complicadas... exigem esforço e perícia.

VIGÁRIO
(ENTRANDO). Deus esteja nesta casa.

PROPRIETÁRIO
Oh, padre, seja benvindo.

VIGÁRIO
Chego em má hora?

PROPRIETÁRIO
Oh, não. Estava forrando o estômago. O Vigário é servido?

VIGÁRIO
Sou muito agradecido, mas não posso demorar.

PROPRIETÁRIO
Mas Vossa Reverendíssima, pelo que ouvi dizer, hoje andou atarefado.
Celebrou cinco casórios. Também algum batizado?

VIGÁRIO
Não. As bodas me tomaram quase que a tarde inteira e até a derradeira acabei de celebrar. Foi a de Lua e Mara. Ela, filha de Dona-na e do finado Malaquias, que Deus o tenha.

PROPRIETÁRIO
Amém.

VIGÁRIO
Ele, órfão de pai e mãe, um excelente rapaz, bom cristão e bom vaqueiro, gente humilde e muito simples, mas de enormes virtudes.

PROPRIETÁRIO
Tantos elogios por que? Algum pedido especial, talvez, em relação à noiva... Quem sabe se em vez da quinta quer ser logo a primeira?

VIGÁRIO
Não...

PROPRIETÁRIO
(INTERROMPENDO). Costumo, nesses casos, seguir a ordem das cerimônias religiosas. Não é justo?

VIGÁRIO
Justíssimo. Mas permita...

PROPRIETÁRIO
Entretanto, é claro, se Vossa Reverendíssima vê uma razão qualquer para alterar essa ordem, se a moça está aflita, posso começar por ela, isso pra mim tanto faz.

VIGÁRIO
Não, absolutamente, não é essa a questão. Ao contrário, creio mesmo que preferisse ficar no fim, se fosse o caso, se não houvesse alternativa... se o senhor não atendesse ao apelo dela e dele...

PROPRIETÁRIO
Apelo? Eu não entendo...

VIGÁRIO
Apelo que é, justamente, a razão desta visita.

Entra a SENHORA com outra gemada, que coloca sobre a mesa.

VIGÁRIO
Mara e Lua, os noivos, pedem por meu intermédio dispensa do ritual.

PROPRIETÁRIO
Continuo não entendendo.

VIGÁRIO
Embora reconhecendo que seria uma grande honra ter seu véu de castidade rompido por tão ilustre pessoa, Mara, humildemente, suplica que lhe seja permitido conceder o privilégio ao noivo.


PROPRIETÁRIO
Mas é um insulto!

VIGÁRIO
Não, por Deus, não julgue assim. Longe deles pretender de qualquer modo insultá-lo. Tanto ela como ele se sentiriam honrados...

PROPRIETÁRIO
Mas então, por que razão? Um ato de rebeldia?

VIGÁRIO
Não, nada disso, senhor. São pessoas muito humildes, que acatam inteiramente a vossa autoridade.

PROPRIETÁRIO
Não existe então um motivo.

VIGÁRIO
Existe, sim. Eles se amam.

PROPRIETÁRIO
E isso acaso é razão pra romper uma tradição? Eles se amam... grande coisa! Por isso então ficam isentos de taxas e de impostos e podem andar fora da lei, sem sofrer qualquer castigo. É isso o que eles pensam e o Vigário endossa! Basta se amarem então pra não deverem respeito, ou qualquer submissão, para não estarem sujeitos às normas e aos mais primários deveres de um cidadão. Nesse caso o amor lhes daria imunidades. E os outros? Também se amam, pois não? Tanta gente aí que se casa por amor... De todos os motivos por que duas pessoas se casam, esse é o mais banal e também o mais comum entre os desfavorecidos.

VIGÁRIO
Lógico, os que nada têm, não têm também porque casar-se por interesse.

PROPRIETÁRIO
E por eles não terem nada, quer Vossa Reverendíssima que eu renuncie publicamente ao direito de pernada.

VIGÁRIO
Perdão, não me referi aos outros casais. Pedi que abrisse uma exceção.

PROPRIETÁRIO
Por que uma e não duas? Por que duas e não três? O Vigário sabe bem que não posso transigir. Pois seria um precedente perigoso, há de convir.

VIGÁRIO
Mas eu vim advogar uma causa somente...

PROPRIETÁRIO
O que muito me espanta, pois é uma causa perdida, além de não ter que ver nada com religião. Peça-me um adjutório pra conservar sua igreja, esmola para seus pobres, tudo bem, mas isso não.

VIGÁRIO
Mas esta noite, afinal, senhor, serão cinco vezes, serão cinco rituais, cinco virgens... Uma a menos...

SENHORA
É, que diferença faz?

PROPRIETÁRIO
Mas não é a diferença, o problema é o precedente, é abrir uma exceção que deverá certamente ser vista como fraqueza, um sinal de frouxidão.

VIGÁRIO
Mas a repetição do ato por quatro vezes seguidas não será demonstração de força suficiente?

PROPRIETÁRIO
Não se à força o povo já está acostumado. Nesse caso, o que ressalta é a simples exceção, que alguns vão pretender que se transforme em regra. Aí é que está o perigo! Vão tentar tirar proveito aqueles que estão querendo violar a lei e o direito, subverter a ordem e os costumes. E essa subversão pode até chegar ao cúmulo de querer abolir o direito de primícias.

VIGÁRIO
Considerando o direito das criaturas de dispor de seu corpo, esse tributo, que em latim se denomina jus primae noctis, perdoe, é por demais repulsivo, uma violentação da dignidade humana.

PROPRIETÁRIO
Um linguajar subversivo! Padre, isso me espanta!

VIGÁRIO
Nada quero subverter, juro, apenas tocar vossa sensibilidade. Talvez quem sabe, acordar para a realidade, para a injustiça que existe...

PROPRIETÁRIO
E Vossa Reverendíssima, cabeça-dura, ainda insiste! É realmente espantoso. Ele quer que eu abra mão de um direito legítimo! Estaria por acaso o Reverendo disposto a abdicar dos seus? Do direito de casar, de batizar e crismar, ou ouvir em confissão?

VIGÁRIO
Aí se trata, perdão, de atos voluntários. É bastante diferente, não são impostos, tributos.

PROPRIETÁRIO
E não será por acaso tributos a Deus ir à missa, confessar e comungar?

VIGÁRIO
Mas Deus, em troca, oferece a todos a salvação.

PROPRIETÁRIO
E eu, não ofereço nada? E a honra de partilhar meu leito e nele deixar a virgindade, ritual que se pode comparar até à sagrada missa?

VIGÁRIO
Blasfêmia, senhor, blasfêmia!

PROPRIETÁRIO
Se Deus oferece o Céu, eu lhes prometo, na Terra, toda a minha proteção. E passo a ser para elas, as jovens recém-casadas, como que um Sagrado Esposo, um Amante Honorário, um Superpai Amoroso.

VIGÁRIO
E acredita que todas passam então a amá-lo?

PROPRIETÁRIO
Claro! E aí estão os fundamentos políticos desse ato ou desse ritual: ele estabelece um vínculo entre o senhor e as famílias, fortalece a unidade. É portanto de interesse de toda a comunidade.

VIGÁRIO
Depois dessa, me parece que é melhor desistir.

PROPRIETÁRIO
É melhor. Chega a ser absurdo o que pleiteia. Absurdo, insensato e até insultuoso.

VIGÁRIO
Não foi minha intenção e nem dos noivos...
(CUMPRIMENTA A SENHORA) Senhora...

SENHORA
Apreciei vossa atitude e vossa argumentação.

VIGÁRIO
Permita ainda, senhor, antes de ir, não um conselho, mas uma observação. O excesso de poder enfraquece, é ilusão imaginar o contrário. E todo poder, não vindo do povo, é indevido, é um poder discricionário. (SAI).

PROPRIETÁRIO
E deixou no ar uma ameaça! A audácia desse Vigário!

SENHORA
Convém talvez refletir, meditar sobre suas palavras.

PROPRIETÁRIO
Pro inferno! Eu não vou refletir coisa nenhuma. Vou mas é fazer valer meu direito esta noite com mais convicção ainda. E é pena que em vez de cinco não sejam dez as donzelas. Faria dez vezes o ato e satisfaria todas elas e dez vezes tu terias de ir trocar os lençóis manchados de sangue

SENHORA
Sangue...

PROPRIETÁRIO
(PROCURANDO ARGUMENTAR). Porque o sangue derramado ratifica uma aliança, sela um pacto político, um contrato social onde os que estão por cima e os que estão por baixo se unem espontaneamente no sublime amor carnal para declarar sua completa concordância com a ordem e com as posições aqui estabelecidas. Este o sentido do ato, o mais é asneira ou maldade de quem quer deturpar os fatos.

Ouve-se soar novamente o sino do portão.

SENHORA
Talvez seja...

PROPRIETÁRIO
A primeira.

SENHORA sai. O PROPRIETÁRIO alimenta-se. Bebe vinho e toma gemada. A SENHORA volta com a 1.ª NOIVA e o 1.° NOIVO. Eles vêm de mãos dadas e estão visivelmente constrangidos.

SENHORA
A primeira da noite.

PROPRIETÁRIO
Adiante! (LEVANTA-SE E VAI A ELES, SORRINDO, ENVOLVENTE). Linda noiva... (PARA O NOIVO). Parabéns... soube escolher...

NOIVO
O senhor aprova? Ótimo... alegro-me por saber que não será um sacrifício o que vai fazer por nós... a imerecida honra com que vai nos distinguir.

PROPRIETÁRIO
Mesmo sendo sacrifício, não iria me eximir. Porque a lei é a lei. Deve ser pra todos igual. Esse ato expressa meu imenso amor ao povo, sem o menor preconceito estético ou racial. Sinceramente, eu espero que vocês entendam isso.

NOIVO
Mas claro que entendemos e somos reconhecidos... eu e ela... não repare, está assim tão calada por timidez e emoção... passar uma noite assim em tão ilustre companhia... ela está emocionada. Não é pra menos, não acha? Até eu estou, palavra!

PROPRIETÁRIO
(PARA A SENHORA). Pode conduzir a moça até os meus aposentos.

A NOIVA ergue os olhos para o NOIVO, um olhar assustado, de quem se sente perdida e segue a SENHORA.

NOIVO
E eu? Devo esperar... ou devo voltar mais tarde?

PROPRIETÁRIO
Como quiser... o ritual às vezes demora.

NOIVO
Quanto tempo?

PROPRIETÁRIO
Isso depende... às vezes, alguns minutos. Outras vezes, uma hora. Isso é como uma missa, tanto pode ser rezada a seco, simplesmente, como pode ser cantada, com coro e grande pompa. Difícil dizer a priori, por isso, o tempo que dura, se não depende de mim, depende da conjuntura...

NOIVO
Se o senhor permite, então, eu vou esperar aqui.


PROPRIETÁRIO
Fique à vontade, rapaz. E agora... vamos à luta!

NOIVO
Muito boa sorte, senhor...

PROPRIETÁRIO sai.

NOIVO
...grande filho duma puta!


3.° quadro

Mutação. Casa da noiva, onde a festa continua. Durante a mutação, há um bailado de inspiração rural, do qual participam todos, destacando-se MARA e LUA. Quando termina a dança, todos se dispersam. DONANA fala com os padrinhos.

DONANA
Esta é a terceira, a terceira que eu caso. E a última, graças a Deus. Termina aqui a minha tarefa. Com todas as filhas casadas, já posso morrer em paz.

Os padrinhos protestam.

DONANA
Deus foi cruel comigo, dos nove filhos que pari, seis morreram antes de inteirar um ano de vida. E todos os seis eram machos. Só as fêmeas vingaram. Sei lá por que. Mulher nasce com sina traçada. Quem sabe por isso?...

Durante a fala de DONANA, MARA foi até à porta e ficou olhando para fora, preocupada. LUA percebeu e foi até ela.

LUA
Nada?...

MARA
Nada. Nem sombra... E já escureceu.

LUA
Deve estar discutindo, explicando...

MARA
Esse tempo todo?

LUA
É...

MARA
Lua, tenho um mau pressentimento.

LUA
Calma. Também pode ser um bom sinal. O Vigário não ia demorar tanto, se o Proprietário não quisesse conversa. (ABRAÇA-A E PROCURA TRANQÜILIZÁ-LA). Fique tranqüila, hoje é o nosso dia.

MARA
Custou tanto a chegar... agora ter que adiar... Morro por dentro quando penso.

LUA
Eu me recuso a pensar.

DONANA
(NOTANDO O NERVOSISMO DE MARA). Ela está nervosa... é natural. Qual é a noiva que não fica? Por mais preparada que esteja... E isso eu fiz, preparei bem o espírito dela, dei as necessárias instruções. Isto é, até onde se pode ir... Nem tudo se pode dizer a uma moça donzela, senão ela é capaz de nem querer casar. É ou não é? A primeira noite assusta, porque sendo a primeira, nem ao menos é com o homem com quem se vai estar nas noites seguintes. Eu me lembro da minha... Quando me vi naquele quarto enorme, sozinha com aquele senhor que eu só tinha visto uma vez, de longe, no seu cavalo negro com arreios de prata, brandindo o chicote... eu morri! Juro que morri! O que ele tirou do meu corpo naquela noite, o sangue e o gozo, foi de um corpo gelado e sem vida, parado no espanto. Depois, toda vez que caso uma filha, tudo vem à lembrança... porque é ele... sempre ele! E é como se fosse eu de novo, novamente sacrificada.
Parece que me queimam as entranhas com uma tocha acesa! Bem, o que não quer dizer que eu não considere uma honra, uma distinção da parte dele...

VIGÁRIO entra.

MARA
Lua, o senhor Vigário!

LUA
Enfim!

VIGÁRIO
Demorei muito? Desculpe, não foi possível resolver a questão em menos tempo.

MARA
(ESPERANÇOSA). Resolver?!

VIGÁRIO
Quer dizer... desimcumbir-me da missão.

LUA
Mas então?... Ele concordou? Abriu mão?

DONANA
Padre, o senhor não provou do bolo.

VIGÁRIO
Sim, Donana, quero provar. Voltei pra isso.

DONANA
Mara, Lua, os padrinhos querem se despedir.

Os PADRINHOS se despedem de MARA e LUA

MARA
Já vão? É cedo.

DONANA
Fiquem mais um pouco...

PADRINHO
Não... já é noite...

MADRINHA
Sejam felizes...

LUA
Obrigado.

PADRINHO
Até amanhã...

DONANA
Até amanhã. Obrigada.

Os PADRINHOS saem.

MARA
(BAIXO, ANSIOSA). Padre, por Deus, não me deixe nessa angústia.

DONANA
Que tanto vocês cochicham com o senhor vigário? Se têm algum pecado a confessar, por que não fazem isso depois, na igreja? Ou já deviam ter feito ates da cerimônia, pra se casarem de alma limpa.

VIGÁRIO
Donana não está a par?...

MARA
Não, não disse nada a minha mãe.

DONANA
Não disse o que, menina?

LUA
Pedimos ao Vigário que intercedesse junto ao Proprietário... pra ele abrir mão do direito da primeira noite.

DONANA
(SURPRESA). Vocês... pediram isso?! Tiveram coragem?!

MARA
O Vigário nos apóia e por isso foi nosso advogado.

VIGÁRIO
Um advogado fracassado.

LUA e MARA se decepcionam.

MARA
Como?!

LUA
Ele negou?!

VIGÁRIO
Categoricamente. Obstinadamente.

MARA
O senhor insistiu, explicou...?

VIGÁRIO
Gastei todos os meus argumentos. É um homem impenetrável a qualquer argumentação. Só raciocina em termos de autoridade, que procura manter a todo o custo. Não pode abrir mão de qualquer dos seus poderes porque teme com isso dar um sinal de fraqueza. De nada adianta mostrar-lhe que está violentando criaturas humanas que também têm seus direitos como seres feitos à semelhança divina. Ele acredita realmente que essa violência é necessária e que com ela está semeando amor, paz e prosperidade. E que em cada virgem que deflora deixa a marca de sua autoridade, planta em seu ventre o gérmen da submissão. E que isso é para o bem de todos.

LUA
Mas hoje são cinco, cinco noivas!

VIGÁRIO
De nenhuma ele abre mão. Em hipótese alguma.

MARA
Como se pode ser assim tão prepotente!

VIGÁRIO
Não sei se é prepotência ou delírio de poder.

DONANA
Se vocês tivessem me consultado, eu teria dito que desistissem. Teriam evitado uma decepção. Conheço bem esse homem. Por ele passamos, eu e suas irmãs e também as minhas. Todas nós dele guardamos boa lembrança de uma noite que nunca se apaga.

VIGÁRIO
Fiz o que pude. Mas acho que tudo que consegui foi irritá-lo. Lamento, gostaria muito de ter sido bem sucedido. Vocês nem imaginam como eu gostaria... Porque seria um bom precedente... isso ele percebeu. Você ia abrir caminho para outras, ia ser a nossa bandeira.

MARA
Quem sabe se ainda não serei?

DONANA
(PREOCUPA-SE COM O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS DE MARA). Espera lá, nada de tolices.

VIGÁRIO
Também acho que, fora o que tentei, qualquer outra reação é perigosa.

LUA
Por que?

VIGÁRIO
Pode ocasionar represálias.

LUA
Que tipo de represálias?

DONANA
Em vez de apenas uma noite, a primeira, ele pode exigir segundas e terceiras, sempre que lhe apetecer. Tem força pra isso. É o Proprietário. Quem não se sujeitar, será expulso de suas terras. Não poderá viver aqui nem plantar.

LUA
(REVOLTADO). Temos então que nos submeter sem qualquer apelação. Eu tenho que ceder minha mulher, esperar que ele dela se sirva e até faça nela um filho que levará o meu nome! Depois ainda agradecer a honraria!

DONANA
Como todos. Em que você é melhor?

LUA
Em nada, mas não me conformo.

DONANA
Terá de se conformar.

VIGÁRIO
Segundo o costume, você terá que levar a noiva até a Casa Grande. Mas não precisa se apressar, ela será a última das cinco.

DONANA
Agora venha, padre, venha provar uma fatia do bolo.

DONANA leva o VIGÁRIO até à mesa e serve-lhe uma fatia do bolo.

DONANA
Que maluquice deu neles?

VIGÁRIO
Temo que estejam pensando em loucura ainda maior. Se bem que a humanidade só tenha caminhado pelos pés desses loucos.

Luz em MARA e LUA isolados.

MARA
Lua, eu não quero ir. Antes prefiro morrer.

LUA
Não há meio de fugir. Que poderemos fazer?

MARA
Todo meu corpo recusa servir de mero tributo pago por sua inocência a um senhor dissoluto. Por guardar a virgindade merece alguém ser punido? Por conservar a pureza num mundo tão corrompido? Para poder pertencer ao homem que escolhi, terei então que entregar-me a outro que nunca vi?! É esse o imposto cobrado pelo senhor Proprietário: ter que sangrar em seu leito, corpo nu e aberto em cruz, como uma crucificada!

LUA
(DESESPERADO). Mara, por Deus, por Jesus! pare de falar assim! Não posso imaginar seu corpo sendo violado por outro que não por mim!

MARA
Meu corpo é terra adubada à espera do lavrador; não deixe que outra semente, que não aquela do amor, penetre minhas entranhas. Esta flor amanhecida anseia por teu orvalho!

LUA
Então está decidido. Façamos agora um trato: nem mesmo à custa da vida haveremos de ceder.

MARA
Eu por mim, disse e repito, antes prefiro morrer. Que morta talvez me levem ao leito do sacrifício, já que é o corpo e não a alma que o senhor quer violar.

LUA
Vou já buscar os cavalos e volto pra te apanhar. Vamos para nossa casa e fingimos ignorar essa exigência absurda. E quando o sol se deitar em nosso leito de núpcias, já será tarde demais...

MARA
O direito é só à primeira e não à segunda noite... muito menos à terceira! O patrão será logrado!

LUA
Claro, ele vai se vingar. Há de querer nos punir pela rebeldia. Pode mandar nos prender, até mesmo torturar.

MARA
De tortura bem maior terei eu já escapado.

LUA
Pense bem: teremos então selado nosso destino

MARA
Já pensei e decidi: pode ir buscar os cavalos.

LUA sai.


DONANA
Lua?... Onde é que ele vai?

MARA
Aqui perto... não vai demorar.

DONANA
Porque está quase na hora... Sabe, não fica bem ele não te acompanhar até a Casa Grande. Pode ser mal interpretado, depois do senhor Vigário já ter intercedido...

VIGÁRIO
Certamente, isso seria tomado como um acinte. O Proprietário já está de espírito prevenido... já tomou conhecimento da discordância... qualquer gesto fora do habitual pode adquirir para ele um significado e tomar proporções... Deus sabe lá! pode até imaginar que exista aqui um foco de revolta..

MARA
Mãe, eu e Lua tomamos uma decisão. Vamos nos rebelar, dizer não ao Proprietário.

DONANA
Como duas crianças malcriadas!

MARA
Não, como duas pessoas adultas que sabem o que querem.

DONANA
Eu não lhe dizia, padre? Estão loucos! Pensam que podem enfrentar o Proprietário. Desobedecer mandá-lo pro inferno e tudo vai ficar por isso mesmo.

MARA
Sabemos que isso vai nos custar alguma coisa. Mas estamos dispostos a pagar o preço.

DONANA
Não há dúvida, perderam a cabeça!

VIGÁRIO
Minha filha, não seria eu que iria procurar demovê-la desse propósito, se visse alguma possibilidade de resistência. Mas a verdade é que não há.

MARA
Quem sabe? Nunca ninguém tentou resistir.

DONANA
Porque é loucura!

VIGÁRIO
É uma atitude suicida. Ele já está de pé atrás. Basta que note a sua demora para que mande seus jagunços caçá-la por toda a parte. E então será muito pior. Porque aí não só você irá sofrer, também seu noivo. Sobre ele talvez até caia o maior peso do castigo.

DONANA
Quer você se tornar viúva antes mesmo de ser mulher?


MARA
(OS ARGUMENTOS DO VIGÁRIO E DE DONANA ABALAM SUA DECISÃO). Acham que Lua pode ser morto?

DONANA
Não seria o primeiro.

VIGÁRIO
Quando o direito é mantido pela força e não pela razão, o uso da força é incontrolável. E não só seu noivo pode ser atingido, também sua mãe, suas irmãs, seus amigos. Ninguém pode prever até onde irá a repressão.

DONANA
O Vigário tem razão. Não seja tão egoísta, pense nos seus, que irão pagar por sua rebeldia. E depois, será que não pode fazer um pouco de sacrifício pela tranqüilidade de todos? Cada uma de nós já passou por isso... Feche os olhos ao nojo e o coração à revolta. É uma noite só... Pra que provocar o touro? Se algumas gotas de sangue aplacam a sua sede, por que não ceder? E esquecer. Como um tempo que não houve, uma hora que se risca do tempo e da lembrança.

VIGÁRIO
Ainda não é chegado o momento da resistência.

MARA
E quando, quando vai chegar?! Se alguém não começa, mesmo se arriscando, nunca, nunca que as coisas vão mudar!


DONANA
E por que tem de ser você a primeira? Quem lhe deu essa incumbência? Não seja pretensiosa. E vou lhe dizer mais: eu lhe proíbo, está entendendo? Proíbo!

MARA
Lua não vai se conformar, não vai! Ele não vai poder suportar!

DONANA
Ora, seu pai suportou muito bem, quando foi a minha vez. Lua não é melhor nem pior que ele.

MARA
Eu também não consigo me imaginar...

DONANA
Todos suportam, se não há outro jeito. Também não é assim... É um homem muito gentil, muito perfumado... (PUXA-A DE PARTE). Vou lhe dizer o que deve fazer para que a coisa não seja tão desagradável. Basta que na hora do sacrifício feche os olhos, relaxe e pense no homem que desejaria ter por cima... Não digo que vá sentir prazer... mas ajuda muito. Padre, talvez fosse melhor o senhor mesmo levá-la.

MARA
(ESTÁ INDECISA). Não, espere!... ainda não decidi.

DONANA
Já está ficando tarde, Lua não volta e o Proprietário já deve estar imaginando coisas.

VIGÁRIO
É bem possível...

DONANA
Com toda a certeza você já está marcada.

MARA
Mas Lua... eu prometi... nós fizemos um trato...

DONANA
Deixe Lua comigo. Eu cuido dele. Vá com o Vigário.

VIGÁRIO
É que o costume é o próprio noivo... Isso vai parecer já uma atitude inconformista por parte de Lua...

DONANA
(CORTA INCISIVA). Padre, se ele chega as coisas se complicam de novo. Atenda ao meu pedido.

VIGÁRIO
(COMPREENDENDO). É, talvez seja melhor... Vamos, filha, eu vou levá-la. Se for preciso, dou uma explicação, justifico a ausência do noivo.

DONANA
Bebeu demais na festa, não está em condições...

VIGÁRIO
Boa idéia.

MARA
(AINDA HESITANDO). Lua... por que demora tanto?!

DONANA
Anda, filha, o Vigário está esperando.

MARA
Tenho então mesmo que ir!

DONANA
É o melhor, para vocês dois e para todos nós.

MARA
Também, se Lua estivesse aqui ia ser muito mais difícil. Eu mesma não ia conseguir...

DONANA
Então vá logo, antes que ele chegue.

As 3 DONZELAS se acercam.

1.ª DONZELA
Mara já vai?

2.a DONZELA
Não vai com Lua?

DONANA
Não, meninas, e calem essa boca de trapo.

MARA
Adeus, mãe.

DONANA
Que a Virgem te ajude e dê coragem.

3.a DONZELA
Boa noite, Mara!

1.ª DONZELA
Felicidades!

2.a DONZELA
Boa sorte!

MARA
Que Lua ao menos vá me buscar.

DONANA
Ele irá, amanhã. Vá tranqüila.

MARA sai com o VIGÁRIO, passos lentos, como uma condenada a caminho do cadafalso.

3.a DONZELA
Nunca vi noiva tão triste!

1.ª DONZELA
Parece uma condenada seguindo pro cadafalso onde será enforcada!

DONANA
Não falem do que não entendem, que cada uma de vocês vai ter que passar por isso quando chegar sua vez.

DONANA sai e as 3 DONZELAS avançam até à boca de cena, enquanto muda a luz.

1ª DONZELA
É a noiva que vai
sua sina cumprir.

2.a DONZELA
Vai morta morrendo
em branca mortalha
de flores florando
o negro caminho.

3.a DONZELA
Seu fim confinado
não é fim nem começo
é só o tropeço
a queda exigida

1.a DONZELA
da carne pisada

2.ª DONZELA
da taça partida

3.a DONZELA
da voz sufocada

1.a DONZELA
da ave ferida.


4.° quadro
Mudança de luz. LUA entra.

LUA
Mara?... Mara... (PARA AS DONZELAS). Já terminou a festa?... Mara onde está? Uma de vocês pode ir dizer que estou com os cavalos lá fora, esperando?

As 3 DONZELAS se entreolham, constrangidas.

LUA
Ei, que há?

1.a DONZELA
Você esperava que ela estivesse aqui?

LUA
Claro. Ela vai comigo... (SUSPEITA). Por que? Saiu?

3.a DONZELA
Com o Vigário.

1.a DONZELA
Estranhamos... Não cabe ao noivo, segundo a tradição...

2.a DONZELA
Minha mãe me disse.

LUA
Mas como?! Ela não pode ter ido a parte alguma. Prometeu! Isso ficou decidido entre nós! Vocês estão brincando... Precisam casar também pra aprenderem a levar a vida mais a sério. (AFASTA-SE E CHAMA). Mara!

DONANA entra.

LUA
Donana! Por favor, diga a Mara que já estou aqui...

1.a DONZELA
Ele não acredita que ela tenha ido com o Vigário.

LUA
Claro que não acredito. Por que iria? Isso não tem nenhum sentido!

DONANA
Meninas, vão lá pra dentro.

As 3 DONZELAS saem.

DONANA
É verdade, Lua. O padre concordou em levá-la, pessoalmente, ao Proprietário.


LUA
(REVOLTADO). Levá-la... Numa bandeja de prata! Enfeitada com os ramos da minha vergonha!

SENHORA
Foi uma gentileza do senhor Vigário.

LUA
(COM INDIGNAÇÃO). Bela gentileza! Talvez ainda deva me ajoelhar e beijar-lhe a mão!

DONANA
Não se desespere... Amanhã ela estará de volta e será a mesma, sem marcas e sem faltar pedaço. E vai ser sua mulher, na alegria e na tristeza, como jurou diante de Deus. E como será também um novo dia, um novo sol, se vocês decidirem não tocar no assunto, será como se nada tivesse acontecido.

LUA
Mas por que essa decisão, quando minutos antes havíamos decidido o contrário? Vocês a obrigaram!

DONANA
Ela saiu daqui caminhando sobre seus próprios pés, as meninas são testemunhas.

LUA
Não posso entender! Não posso aceitar!

DONANA
É fácil. Falou mais alto o bom-senso. Era uma loucura o que vocês tinham planejado. Loucura e leviandade. Se o mundo está torto, é ridículo querermos nós consertá-lo, quando não temos força nem para desentortar um prego.

LUA
Esse raciocínio é que faz com que os Proprietários continuem fazendo o que querem, pisando e violentando, impondo sua lei e seu tributo. Porque ficamos nós de quatro, é que eles montam nas nossas mulheres. Na verdade, montam em nós e nos enrabam com o nosso consentimento!

O VIGÁRIO entra.

DONANA
Aí está o Vigário. Ele vai ter a palavra certa para acalmá-lo.

VIGÁRIO
Tudo bem... Deixei-a lá, esperando a vez. Parecia mais conformada, disposta ao sacrifício.

LUA
Ah, ela está conformada! Então eu também devo ficar! E devo fazer com que todos saibam disso. Principalmente ele, o nosso bem-amado Proprietário.

DONANA
Lua, meu filho...

LUA
Digam a ele que estou feliz por ter recebido minha mulher em seu colchão de penas de avestruz. Que estou agradecido pelos trabalhos executados esta noite por seu pequeno membro forjado em chumbo e excremento. E que vou fazer um grande lenço com o véu de esperma e amarrá-lo no pescoço nos feriados nacionais!

DONANA
Lua, pense bem no que faz e no que diz. O Proprietário tem olhos e ouvidos por toda a parte.

VIGÁRIO
Este é um momento em que precisa mostrar serenidade.

DONANA
Você não é mais um rapaz sem responsabilidades. Tem que pensar agora no futuro, na sua mulher, nos filhos que hão de vir.

VIGÁRIO
Nada de atos impensados, de gestos não medidos. Considere-se parte daquele imenso rebanho de humilhados e ofendidos que têm as preferências do Senhor. E entregue a Ele, que Ele, saberá fazer justiça.

LUA
Que mais quer o Vigário? Que caia de joelhos e reze ao Bom Deus, na hora em que Mara está lá, estendida, e uma lagarta com seus pés de larva passeia atrevida no seu corpo nu, queimando seus peitos, lameando seu ventre, fazendo em pedaços seu hímen dourado!


VIGÁRIO
Você se tortura... Ponha um freio à imaginação. Do contrário vai acabar sofrendo no próprio corpo a dor e a violência do ato. Acabará sangrando também.

LUA
E eu estou, padre... sangrando no sangue sugado de meu santuário. Na nudez cavalgada da virgem abatida, na dor usurpada, na raiva contida. Sangrando, minha mente sangrando, meus olhos sangrando na espera do tempo do homem, que virá, estou certo, depois dos tiranos. (INICIA A SAÍDA).

DONANA
Lua! Espere, aonde vai?

LUA
(PÁRA). Não tenho de ir buscar a noiva? Não faz parte do ritual?

DONANA
Mas não agora, ainda é cedo. Só quando clarear o dia. Fique aqui, que as meninas vão lhe fazer companhia.

LUA
Não, vou para lá... que o dia pode clarear mais cedo. (SAI)

VIGÁRIO
Também vou para casa, que já me excedi de mais em minhas atribuições. Boa noite. (SAI)

DONANA
Deus permita que seja uma boa noite. (SAI)

Luz sobre as 3 DONZELAS que entram.

1.ª DONZELA
O noivo estrangula
a dor nas virilhas,
o falo enrijado
na fome do amor.

2.a DONZELA
O gozo primeiro
pertence ao senhor,

3.a DONZELA
são dele as primícias
do coito pioneiro.

1.a DONZELA
Nas dobras da noite
sufoca a revolta,
a voz estancada
no grito impossível,

2.a DONZELA
no olhar a visão
do ato terrível,

3.a DONZELA
a noiva desnuda,
a cruel provação.


5.° quadro

Quarto do Proprietário. Ao centro da cena, uma enorme cama. A SENHORA entra trazendo nos braços estendidos um lençol branco, dobrado. Vai trocá-lo pelo que cobre a cama quando MARA entra, a SENHORA interrompe o movimento. MARA também fica imóvel, intimidada, na entrada.

SENHORA
Ande, não fique aí parada. Vamos logo acabar com isso.

MARA dá alguns passos tímidos na direção do leito. A SENHORA retira o lençol e mostra a mancha de sangue.

SENHORA
Triste sina a minha, trocar lençóis na cama de meu marido. É o quinto que mudo hoje. Estou farta.

MARA
(OLHA EM VOLTA ASSUSTADA). Onde está ele?...

SENHORA
Nosso guerreiro, está na sala, descansando. Refazendo-se da última batalha. Pediu um mingau de aveia, vinho do porto... Não sei como ainda consegue... Essa última tomou-lhe mais de uma hora. Essas camponesas, quando passam um pouco da idade, ressecam que nem terra sem chuva curtida de sol. Ele também já não é mais aquele jovem combatente sempre de lança em riste... É um velho guerreiro de coração cansado. Você, menina, vê se não exige demais dele.

MARA
Eu por mim não exigia nada.

SENHORA
(ESTRANHA, OLHA-A FIXAMENTE). Você tem coragem, menina.

MARA
Tenho é medo. E vergonha.

SENHORA
Nenhuma entrou aqui com esses olhos de vespa e essas unhas à mostra...

MARA
Já disse que tenho medo.

SENHORA
Se não quer lhe dar um gozo ainda maior, não deixe transparecer.

MARA
Que outros conselhos me dá? A senhora que tantos lençóis tem trocado por esses anos a fio?

SENHORA
Acha que isso me dá prazer?

MARA
Não disse isso. Pedi que me ajudasse porque está há tanto tempo nesse ofício... e porque sinto na senhora uma aliada.

SENHORA
(OLHA-A COM DESCONFIANÇA). Não gosto do seu atrevimento. Tudo que nessa cama se passa é com meu consentimento. Se troco os lençóis, é que essa é a parte que me cabe, por direito, no ritual. Não vou cedê-la a ninguém.

MARA
Deve ter então um certo orgulho...

SENHORA
E por que não? Todo esse sangue derramado tem a sua razão de ser. Como todo sangue vertido em defesa da ordem, da paz e da união entre as famílias. Pelo menos é o que ele diz.

MARA
É o que ele diz.

SENHORA
E você está aqui para que? Para contestar? Se não, eis aí uma boa justificativa para sua humilhação. Acredite nisso e se sentirá bem melhor.

MARA
É o que me aconselha, que procure me enganar a mim mesma.

SENHORA
Que prefere você? Desprezar a si própria? Não há uma terceira saída.


MARA
Não há mesmo?

SENHORA
Não há. E essa segunda não lhe parece mais dolorosa?

MARA
Não sei, senhora, não sei... Acreditar que meu corpo pisado, meu orgulho ferido, minha honra ultrajada, meu gozo contido, tudo isso são coisas necessárias ao bem comum... eu me sinto idiota!

SENHORA
Se conseguir mesmo acreditar, não se sentirá idiota.

MARA
Não, prefiro um sofrimento consciente a uma falsa paz de espírito.

SENHORA
Talvez seu corpo anseie pela violência. Quer senti-la fundo e forte entre as pernas e prefere ganir como uma cadela no cio. A escolha é sua.

MARA
Ao contrário, toda minha carne grita inconformada. Mas já vi que falamos duas línguas. A senhora não me entende, nem pode me ajudar em nada.

SENHORA
Entendo mais do que pensa. Mas não espere outra ajuda que não esses conselhos. Como o carcereiro ou o carrasco, estou por demais comprometida (INICIA A SAÍDA).

MARA
Vai me deixar sozinha?

SENHORA
Não vai querer que assista...

MARA
E por que não? Não é um simples ritual? Um ato não de amor, mas de força, de autoridade... E mostrar autoridade não é imoral. Ou
é?...

A SENHORA olha-a fixamente, nos olhos.

MARA
Por que me olha assim?

SENHORA
Vai ter ainda que atravessar a noite... e já amanhece em seus olhos!

MARA
Que quer isso dizer?

SENHORA
É o que eu me pergunto. (SAI)

MARA fica só um instante. Vai até o grande leito, olha, inquieta, apreensiva, até que escuta a vos de LUA, que ecôa, sonora e distante.

LUA
(FORA, DISTANTE, GRITA). Maaaaaara! Maaaaara!

MARA
Lua!

LUA
(IDEM). Maaaaara!

MARA
Meu Deus, ele está louco! (ELA LOGO SENTE QUE NÃO VAI PODER RESISTIR ÀQUELE CHAMADO. OLHA EM VOLTA, VÊ QUE PODE FUGIR, SE QUISER. E LENTAMENTE, COMO QUE ATRAÍDA POR UM ÍMÃ, SAI) .

PROPRIETÁRIO
(ENTRANDO). A menina me perdoe se eu a fiz esperar... Tive que fazer uma pausa para poder repousar... Esta noite está sendo um tanto quanto exaustiva... Cinco noivas, cinco lindas donzelas... uma estiva! (PROCURA MARA E NÃO ENCONTRA). Mas onde é que ela está?...

SENHORA entra.

PROPRIETÁRIO
Onde a moça se meteu?

SENHORA
Eu a deixei aqui esperando...

PROPRIETÁRIO
Será que se escondeu? Que brincadeira é essa?

SENHORA
Ouvi uns gritos...

PROPRIETÁRIO
Também eu...

SENHORA
Alguém chamando por ela como um doido varrido!

PROPRIETÁRIO
O que está insinuando? Que ela deve ter fugido?

SENHORA
Pra mim não seria surpresa...

PROPRIETÁRIO
Isso nunca aconteceu! Nem vou deixar que aconteça!

SENHORA
Calma... Quem sabe?... Talvez se arrependa e ainda volte.

PROPRIETÁRIO
E eu? vou ficar esperando? Se ela veio até aqui, aqui tinha de estar, à minha disposição. Se fugiu, isso é grave! Eu só posso interpretar como uma rebelião que é preciso sufocar. E o Vigário está com eles... quem sabe se mais alguém... Tenho de agir com rigor! (AMEAÇA SAIR)

SENHORA
Vai convocar os jagunços?

PROPRIETÁRIO
Os jagunços, a Polícia, toda a população. Que o povo certamente, sendo como é pela ordem, pela paz e tradição, há de ficar do meu lado, sem qualquer hesitação. Chame todos, todos, todos! Pois quero que todos saibam e se unam a mim na repressão a esse gesto insólito!

SENHORA sai. Ele avança para a boca de cena, enquanto se realiza a mutação.

PROPRIETÁRIO
(DISCURSA PARA A PLATÉIA). É meu supremo dever dar ciência do que se passa. Uma minoria, senhores, subversiva e radical, resolveu se rebelar contra um sagrado ritual, um costume secular, um direito consagrado e assim talvez contestar, quem sabe, até o regime de trabalho e convivência que todos nós adotamos em nossa comunidade. Enquanto a maioria é unida e obediente, abre-se na minoria esse odioso precedente. Enquanto a maioria demonstra compreensão e cumpre o seu dever, rebela-se uma minoria e resolve dizer não, desafiando meu poder. Um poder que por direito exerço em nome de todos, que por todos estendo, com a minha proteção e democraticamente e sem fazer distinção, sem mesmo discriminar raça, cor ou religião. Será isso admissível? Iremos nós consentir num gesto tão egoísta e tão anti-social? Uma reação extremista e até ditatorial! É claro que não podemos de forma alguma ceder. E custe o que custar, aconteça o que aconteça, a noiva aqui deve estar antes que o dia amanheça. Pelos morros ou planícies, pelas matas ou descampados, tanto a noiva como o noivo, os dois devem ser caçados!


6.° quadro
Capela, simbolizada pelo altar, encimado pela cruz de Cristo. Rosas, muitas rosas, últimos vestígios dos casamentos celebrados. Um vitrô colorido joga sobre a cena a luz do luar.

Entram MARA e LUA, ambos dando sinais de terem feito longa caminhada.

LUA
Pronto... aqui estamos a salvo.

MARA
Estamos mesmo? Você acha?

LUA
Por esta noite ao menos.

MARA
E amanhã?

LUA
Eu não sei... Esta noite nós faremos a nossa própria lei em nosso pequeno mundo. E amanhã, amanhã seremos outras pessoas, o mundo terá mudado. Ainda que dividido entre mandantes e mandados, opressores e oprimidos, já não será como dantes. (NOTA QUE ELA ESTÁ INTRANQÜILA). Você... você não acredita?

MARA
Terei de acreditar, já que o que fiz está feito, não posso mais recuar. (ERGUE OS OLHOS PARA A CRUZ). Mas isto aqui é uma capela...

LUA
Por isso mesmo é um lugar onde ninguém terá idéia de vir nos procurar.

MARA
Mas aqui... aqui não podemos...

LUA
Por que?

MARA
Seria sacrilégio!

LUA
Deus vai por certo entender que outra saída não temos. E se a Ele prometemos, diante deste mesmo altar, nos unirmos pelo amor até a morte separar... Ou será que o juramento que fizemos esta tarde...

MARA
(INTERROMPE). Não, estou disposta a tudo, não me faça essa injustiça. Fugi do Proprietário depois de estar em seu quarto, à beira do grande leito! Sabe o que vai me custar? Atrás de mim abriu-se um fosso, impossível retornar.

LUA
Mas temos à nossa frente um macio leito de noite sob um lençol de luar. O que importa é que o tesouro que nos quiseram furtar será nosso, todo nosso... e quando o amanhã vier e de mulher te chamar, te encontrará não mais virgem, mas tão pura quanto antes. Terás perdido a inocência, mas não a dignidade.

MARA
Não, nada terei perdido. Em te dando a virgindade, só terei me enriquecido. Não se empobrece a Terra que se abre para o plantio da semente desejada.

Após um longo beijo, ela tira a grinalda e se deita de costas diante do altar.

MARA
Venha...

Ele se deita sobre ela. Logo se ouvem vozes fora. Eles estremecem.

MARA
Você não ouviu?!

LUA
Acho que há gente lá fora... escutei um vozerio...

VIGÁRIO
(FORA). Não tem, não tem ninguém aqui, vocês estão enganados. (ENTRA E ESPANTA-SE AO VER LUA E MARA). Vocês!... Meu Deus, que loucura!
LUA e MARA levantam-se, rápido.

MARA
Perdão, Vigário, perdão...

LUA
Era o único lugar onde podíamos estar em segurança...

VIGÁRIO
Segurança... Eles estão aí! Correram toda a aldeia caçando vocês!

MARA
Soldados!!

LUA
Jagunços!

VIGÁRIO
E muita gente! Um bando! Todos armados! E sabe quem vem na frente?

MARA
Adivinho! O Proprietário!

VIGÁRIO
Nada disso, os quatro noivos! Os quatro que hoje pagaram o tributo exigido, que a ele cederam as noivas no adultério consentido!


LUA
Mas logo eles que deviam formar do nosso lado!

VIGÁRIO
Vai levar tempo até eles disso terem consciência.

MARA
Mas o Vigário não pode de modo algum permitir... Isto aqui é uma igreja! Eles não podem invadir!

LUA
Ele sabe mais que nós: aqui nem o Proprietário, nem ninguém, ninguém tem voz. Somente Deus e o Vigário.

VIGÁRIO
É uma questão delicada... A divisão dos poderes não é assim tão respeitada... Mas claro, vou resistir!

Entram os QUATRO NOIVOS, todos armados de espingardas de caça.

VIGÁRIO
Êi! alto lá! para trás! Esta é a casa de Deus! TRÊS NOIVOS dominam LUA, separando-o de MARA.

LUA
Traidores! Sujos traidores!

MARA
Será que não têm vergonha!!

1.° Noivo
Nós a perdemos esta noite. E se isso nos foi imposto, em que ele é melhor que nós? Por que vai livrar o rosto?

As luzes se apagam e se acendem depois sobre as TRÊS DONZELAS.

AS TRÊS DONZELAS
A lei é inflexível:
decreta a vergonha,
tributo terrível
partido entre todos.

2.a DONZELA
A noiva não vai
descumprir sua sina.

3.a DONZELA
Ninguém lhe permite
fugir ao suplício.

2.a DONZELA
O senhor a espera
para o sacrifício.

1.a DONZELA
Ao noivo aviltado,
no seu desespero,
só resta gritar s
eu grito sem voz
nos surdos ouvidos
da noite sem rosto,
enquanto que a noiva
— paga o imposto.


7.° quadro

Quarto do Proprietário. MARA, imóvel, de pé ao centro da cena, enquanto que o PROPRIETÁRIO vai despindo-a, peça por peça.

PROPRIETÁRIO
Espere... cabe a mim retirar peça por peça... Assim... mas bem devagar... Faz parte do ritual. (OLHA-A DETIDAMENTE). Você então tentou fugir ao compromisso... Por que? Tem medo? Acanhamento? Ou quem sabe imagina que sou um tarado sexual?

MARA fecha os olhos, envergonhada.

PROPRIETÁRIO
Não consigo atinar com o motivo da recusa. Porque é a primeira, fique sabendo, a primeira que pensa em abrir mão da honra de ocupar meu leito e da glória de passar comigo a sua derradeira noite de moça donzela. Isso me choca muitíssimo e me deixa intrigado. Pois quem vai sair lucrando é só você, minha bela... que vai dar, por minhas mãos, os seus primeiros passos na doce, nobre e difícil arte de fazer amor. E que moça não sonha com tão sábio professor? Esta noite, quatro delas aqui estiveram cumprindo o sagrado ritual, o honroso dever de dar a este proprietário o que por lei lhe pertence. E saíram todas quatro bem instruídas, satisfeitas e felizes por perderem a honra assim de maneira tão inegavelmente honrosa. Garanto que agora estão contando aos seus maridos... (ELE CONTINUA DESPINDO-A, ATIRANDO AO CHÃO O VÉU, A GRINALDA, O VESTIDO, AS PEÇAS DE BAIXO). É como despetalar uma rosa, suavemente, assim, pétala por pétala... até alcançar o fim, o cálice, onde beberei o vinho do amor submisso da servil propriedade pelo seu proprietário, do escravo por seu senhor, da vítima por seu algoz, do oprimido pelo opressor... e erguendo a hóstia consagrada ao direito de punir, violentar, corromper, esmagar e denegrir, cantaremos um hino à paz e levantaremos um brinde à harmonia entre as classes! (ELE ARRANCA A ÚLTIMA PEÇA, RASGANDO-A. MARA FICA INTEIRAMENTE NUA, O PESCOÇO ERGUIDO, OS OLHOS CERRADOS).

LUA
(FORA, DISTANTE, GRITA). Maaaaara!... Maaaara!...

PROPRIETÁRIO
Que é isso?

MARA
É alguma brincadeira... de alguém que bebeu demais na festa do casamento (COBRE-SE COM O VÉU).

PROPRIETÁRIO
(COMEÇA A DESABOTOAR A TÚNICA). ISSO é um desrespeito, perturba o ritual.

MARA
O senhor foi tão gentil despindo as minhas roupas... Será que permitiria retribuir por igual?

PROPRIETÁRIO
(SORRI). Bravo... isso sim... gostei... uma atitude inteligente e bastante construtiva. Já vi que evoluiu da oposição formal pra colaboração ativa. Isso me torna feliz. Diminui a oposição, diminui a violência. Pois é por demais sabido que o emprego da força só aumenta na razão direta da resistência. São somente os que resistem os verdadeiros culpados se às vezes, contra a vontade, nós nos vemos obrigados a usar de energia pra impor nossos direitos.

MARA
(TIRA-LHE A TÚNICA). Onde ponho?

PROPRIETÁRIO
No chão mesmo...

MARA
(DESADOTOANDO-LHE A CAMISA). Como sois forte...

PROPRIETÁRIO
Você acha?

MARA
Tudo em seu corpo é poder, força e autoridade! Desculpe se a princípio eu procurei resistir... É mesmo uma grande honra entregar a virgindade a alguém tão acima de qualquer pobre mortal. Desde já eu agradeço o que vai fazer por mim...

PROPRIETÁRIO
(SORRINDO). Acho que vamos ter o mais belo ritual.

MARA
Também espero que sim...

Ele atira-a sobre o leito, deita-se sobre ela e beija-a. MARA, num gesto rápido, que somente se percebe pela contração do corpo dele, arranca-lhe a faca da cinta e golpeia-o no ventre. Ele se ergue, com as mãos sobre o ventre.

PROPRIETÁRIO
Você me arranhou, sua gata!... (NOS OLHOS A VISÃO DA MORTE, ELE DÁ ALGUNS PASSOS INCERTOS E CAI AO SOLO, PESADAMENTE).

A SENHORA entra logo a seguir, MARA ainda está com a faca na mão, olhando para o corpo do PROPRIETÁRIO, horrorizada. Ao ver a SENHORA, MARA julga que está perdida, deixa cair a faca.

SENHORA
Você... foi você!?

MARA
Sim, fui eu. Pode chamar a Polícia.

SENHORA
(OLHA-A COM ADMIRAÇÃO). Esse clarão matutino em seus olhos... eu sabia! Era você a que devia chegar! Tenho finalmente a explicação... por que amanheceu de repente, enquanto nas outras noites custava um século!

LUA
(FORA, GRITA). Maaaaara!... Maaaara!...

SENHORA
É seu noivo!

MARA
Ele nada tem com isso!

SENHORA
Tem, sim, é claro que tem. Por qualquer justa razão você deve ter feito isso. Ande, corra atrás dele. Não deixe que o sol nascente venha encontrá-lo assim, desatinado, perdido, gritando pelas colinas, que nem cavalo ferido. (ARRANCA DA CAMA O LENÇOL). Tome, leve para ele o imaculado lençol, troféu da tua bravura. Façam dele uma bandeira e a coloquem bem alto para que todos a vejam quando forem regar os campos e trabalhar a terra. (ENVOLVE MARA NO LENÇOL) . Ande, vá! E vá com Deus!

MARA fica um instante indecisa, depois sai correndo. A SENHORA se volta para o corpo do PROPRIETÁRIO, seu olhar é frio, mas em seus lábios há um quase-sorriso de libertação. Ela avança até a boca de cena e anuncia, dirigindo-se à platéia.

SENHORA
Minhas senhoras e senhores, cabe a mim participar que o nosso bem-amado Proprietário está morto. Tombou em ação heróica, cumprindo o seu dever, vitimado por seu zelo no exercício do poder.





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Dias Gomes

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador, Bahia, a 19 de outubro de 1922. Aí realizou seus primeiros estudos, passando a residir no Rio de Janeiro a partir de 1935. Cursou várias carreiras, entre as quais Direito e Engenharia, sem concluir nenhuma delas. Escreveu sua primeira peça teatral aos 15 anos, A Comédia dos Moralistas, obtendo com ela o prêmio do Serviço Nacional do Teatro. Mais tarde, aos 19 anos, viu sua primeira obra encenada, Pé-de-Cabra, com sucesso de público e de crítica, sendo saudado por Viriato Corrêa, o mais importante crítico da época, como aquele que seria, "mais cedo ou mais tarde, o autor mais importante do teatro brasileiro". Nessa sua primeira fase como dramaturgo, Dias Gomes escreveu ainda Amanhã Será Outro Dia; Doutor Ninguém; Zeca Diabo; João Cambão, quase todas encenadas por Procópio Ferreira. Alguns textos desta fase permanecem inéditos no teatro, como O Pobre Gênio; Eu Acuso o Céu; Sinhazinha; O Homem que não Era Seu e Beco sem Saída, que foram apresentados apenas pelo rádio, anos mais tarde. Em todos eles, Dias revela já a preocupação de questionar a realidade brasileira, ou, como diria Anoto Rosenfeld, "de oferecer uma imagem crítica da realidade brasileira, naquilo que é caracteristicamente brasileiro e naquilo que é tipicamente humano".
A partir de 1944, Dias Gomes estendeu suas atividades ao rádio, para o qual foi levado por Oduvaldo Vianna, pai, tendo atuado em várias emissoras de São Paulo e do Rio, escrevendo e dirigindo programas. Foi diretor artístico da Rádio Bandeirantes de São Paulo, da Rádio Clube do Brasil (Rio) e da Rádio Nacional (Rio). Nessa fase, publicou quatro romances, Amanhã será Outro Dia; Um Amor e Sete Pecados; A Dama da Noite e Quando É Amanhã?
Em 1954, após nove anos de ausência do teatro, fez nova experiência cênica com Os Cinco Fugitivos do Juízo Final, produzida por Jaime Costa, com direção de Bibi Ferreira. Mas foi em 1960, com O Pagador de Promessas, que retornou definitivamente ao teatro. O estrondoso sucesso nacional e internacional desta peça fez com que seu nome atravessasse as fronteiras do país, sendo hoje Dias Gomes, talvez, o nosso dramaturgo mais conhecido e mais representado no exterior. Vertido para o cinema, O Pagador de Promessas conquistou a "Palma de Ouro", no Festival de Cannes de 1962, além de vários outros prêmios nacionais e internacionais. Seu texto está traduzido para os seguintes idiomas: inglês, francês, russo, polonês, espanhol, italiano, vietnamita, hebraico, grego e servo-croata, tendo sido encenado nos Estados Unidos (seis produções), Polônia (quatro produções), União Soviética, Cuba, Espanha, Itália, Grécia, Israel, Argentina, Uruguai, Equador, Peru, México, Vietnã do Norte (durante a guerra) e Marrocos.
Na década de sessenta, Dias Gomes escreveu ainda as seguintes peças: A Invasão; A Revolução dos Beatos; Odorico, O Bem-Amado; O Berço do Herói (proibida pela censura); O Santo Inquérito; O Túnel; Dr. Getúlio, Sua Vida e Sua Glória e Vamos Soltar os Demônios.
Em 1969, pressionado pela censura, que vetara vários textos seus, e sentindo que dificilmente poderia continuar sua obra teatral, a menos que se adaptasse às novas limitações impostas pelo regime vigente, preferiu experimentar um novo meio de expressão, a televisão. Sem trair a sua temática, levou para a TV suas preocupações políticas e sociais, escrevendo uma série de telenovelas que deram ao gênero um alto nível artístico e uma linguagem própria. Verão Vermelho; Assim na Terra Como no Céu; Bandeira 2; O Bem-Amado; O Espigão; Roque Santeiro (proibida pela censura); Saramandaia e Sinal de Alerta constituem um ciclo que repete na TV a tentativa de pintar um vasto painel de nossa realidade, levando ao espectador a consciência da necessidade de transformá-la.
A partir de 1978, após novo período de afastamento, durante o qual apenas se preocupou com reencenações de suas peças em todo o mundo, Dias Gomes voltou a escrever para o teatro. As Primícias foi publicada em livro e O Rei de Ramos foi encenada com enorme sucesso. Segundo Anotol Rosenfeld, autor de um dos mais inteligentes estudos sobre a sua obra, esta "no seu todo, se apresenta repleta de esplêndidas invenções, povoada de uma humanidade exemplar na glória e na miséria. Distinguem-na a imaginação rica, a variedade de caracteres vivos, a extraordinária latitude da escala emocional, indo dos comoventes destinos de Zé do Burro e Branca Dias ao riso amargo de O Berço do Herói e Dr. Getúlio, e à franca gargalhada de Odorico. Aberta ao sublime, sensível à grandeza trágica, a obra recorre ao mesmo tempo aos variados enfoques do humor, do sarcasmo e da ironia para lidar com os aspectos frágeis ou menos nobres da espécie humana. (...) Por isso a obra é amorável e respira futuro".

Prêmios:
Prêmio Nacional de Teatro (I.N.L.), 1960
Prêmio Governador do Estado (SP), 1960
Prêmio Melhor Peça Brasileira (A.P.C.T.), 1960
Prêmio "Padre Ventura" (C.I.C.T.), 1962
Prêmio Melhor Autor Brasileiro (A.B.C.T.), 1962
Prêmio Governador do Estado da Guanabara, 1962
Laureada no III Festival Internacional de Teatro, em Kalsz, Polônia

Em Versão Cinematográfica:
"Palma de Ouro", do Festival de Cannes, 1962
1° Prêmio do Festival de S. Francisco (EUA), 1962
"Critics Award" do Festival de Edimburgo, Escócia, 1962
I Prêmio do Festival da Venezuela, 1962
Laureada no Festival de Acapulco, México, 1962
Prêmio "Saci" (S. Paulo), 1962
Prêmio Governador do Estado (SP), 1962
Prêmio Cidade de S. Paulo, 1962
Prêmio Humberto Mauro





Para
Janete,
com amor.


Para
Páscoal Longo
e
Edison Carneiro.


Personagens:

Zé-do-Burro
Rosa
Marli
Bonitão
Padre
Sacristão
Guarda
Beata
Galego
Minha Tia
Repórter
Fotógrafo
Dedé Cospe-Rima
Secreta
Delegado
Mestre Coca
Monsenhor
Manoelzinho Sua-Mãe
e a Roda de Capoeira

Ação: - Salvador
Época: - Atual


Primeiro Ato

Primeiro Quadro

Ao subir o pano, a cena está quase às escuras. Apenas um jato de luz, da direita, lança alguma claridade sobre o cenário. Mesmo assim, após habituar a vista, o espectador identificará facilmente uma pequena praça, onde desembocam duas ruas. Uma à direita, seguindo a linha da ribalta, outra à esquerda, ao fundo, de frente para a platéia, subindo, encadeirada e sinuosa, no perfil de velhos sobrados coloniais. Na esquina da rua da direita, vemos a fachada de uma igreja relativamente modesta, com uma escadaria de quatro ou cinco degraus. Numa das esquinas da ladeira, do lado oposto, há uma vendola, onde também se vende café, refresco, cachaça etc.; a outra esquina da ladeira é ocupada por um sobrado cuja fachada forma ligeira barriga pelo acúmulo de andares não previsto inicialmente. O calçamento da ladeira é irregular e na fachada dos sobrados vêem-se alguns azulejos estragados pelo tempo. Enfim, é uma paisagem tipicamente baiana, da Bahia velha e colonial, que ainda hoje resiste à avalancha urbanística moderna.
Devem ser, aproximadamente, quatro e meia da manhã. Tanto a igreja como a vendola estão com suas portas cerradas. Vem de longe o som dos atabaques dum candomblé distante, no toque de Iansan. Decorrem alguns segundos até que Zé-do-Burro surja, pela rua da direita, carregando nas costas uma enorme e pesada cruz de madeira. A passos lentos, cansado, entra na praça, seguido de Rosa, sua mulher. Ele é um homem ainda moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura média. Seu olhar é morto, contemplativo. Suas feições transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um "quê" de infantilidade. Seus gestos são lentos, preguiçosos, bem como sua maneira de falar. Tem barba de dois ou três dias e traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira. Rosa parece pouco ter de comum com ele. É uma bela mulher, embora seus traços sejam um tanto grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem "sangue quente". É agressiva em seu "sexy", revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste-se como uma provinciana que vem à cidade, mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui.
Zé-do-Burro vai até o centro da praça e aí pousa a sua cruz, equilibrando-a na base e num dos braços, como um cavalete. Está exausto. Enxuga o suor da testa.


(Olhando a igreja)
É essa. Só pode ser essa.

(Rosa pára também, junto aos degraus, cansada, enfastiada e deixando já entrever uma revolta que se avoluma).

ROSA
E agora? Está fechada.


É cedo ainda. Vamos esperar que abra.

ROSA
Esperar? Aqui?


Não tem outro jeito.

ROSA
(Olha-o com raiva e vai sentar-se num dos degraus. Tira o sapato).
Estou com cada bolha d'água no pé que dá medo.


Eu também.
(Contorce-se num ritus de dor. Despe uma das mangas do paletó). Acho que os meus ombros estão em carne viva.

ROSA
Bem feito. Você não quis botar almofadinhas, como eu disse.


(Convicto)
Não era direito. Quando eu fiz a promessa, não falei em almofadinhas.

ROSA
Então: se você não falou, podia ter botado; a santa não ia dizer nada.


Não era direito. Eu prometi trazer a cruz nas costas, como Jesus. E Jesus não usou almofadinhas.

ROSA
Não usou porque não deixaram.


Não, nesse negócio de milagres, é preciso ser honesto. Se a gente embrulha o santo, perde o crédito. De outra vez o santo olha, consulta lá os seus assentamentos e diz: - Ah, você é o Zé-do-Burro, aquele que já me passou a perna! E agora vem me fazer nova promessa. Pois vá fazer promessa pro diabo que o carregue, seu caloteiro duma figa! E tem mais: santo é como gringo, passou calote num, todos os outros ficam sabendo.

ROSA
Será que você ainda pretende fazer outra promessa depois desta? Já não chega?...


Sei não... a gente nunca sabe se vai precisar. Por isso, é bom ter sempre as contas em dia.

(Ele sobe um ou dois degraus. Examina a fachada da igreja à procura de uma inscrição).

ROSA
Que é que você está procurando?


Qualquer coisa escrita... pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara.

ROSA
E você já viu igreja com letreiro na porta, homem?


É que pode não ser essa...

ROSA
Claro que é essa. Não lembra o que o vigário disse? Uma igreja pequena, numa praça, perto duma ladeira...


(Corre os olhos em volta)
Se a gente pudesse perguntar a alguém...

ROSA
Essa hora está todo o mundo dormindo.
(Olha-o quase com raiva).
Todo o mundo... menos eu, que tive a infelicidade de me casar com um pagador de promessas.
(Levanta-se e procura convencê-lo).
Escute, Zé... já que a igreja está fechada, a gente podia ir procurar um lugar pra dormir. Você já pensou que beleza agora uma cama?...


E a cruz?

ROSA
Você deixava a cruz aí e amanhã, de dia...


Podem roubar...

ROSA
Quem é que vai roubar uma cruz, homem de Deus? Pra que serve uma cruz?


Tem tanta maldade no mundo. Era correr um risco muito grande, depois de ter quase cumprido a promessa. E você já pensou; se me roubassem a cruz, eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui. Sete léguas.

ROSA
Pra quê? Você explicava à santa que tinha sido roubado, ela não ia fazer questão.


É o que você pensa. Quando você vai pagar uma conta no armarinho e perde o dinheiro no caminho, o turco perdoa a dívida? Uma ova!

ROSA
Mas você já pagou a sua promessa, já trouxe uma cruz de madeira da roça até à igreja de Santa Bárbara. Está aí a igreja de Santa Bárbara, está aí a cruz. Pronto. Agora, vamos embora.


Mas aqui não é a igreja de Santa Bárbara. A igreja é da porta pra dentro.

ROSA
Oxente! Mas a porta está fechada e a culpa não é sua. Santa Bárbara : deve saber disso, que diabo.


(Pensativo)
Só se eu falasse com ela e explicasse a situação...

ROSA
Pois então... fale!


(Ergue os olhos para o céu, medrosamente e chega a entreabrir os lábios, como se fosse dirigir-se à santa. Mas perde a coragem)
Não, não posso...

ROSA
Por que, homem?! Santa Bárbara é tão sua amiga... Você não está em dia com ela?


Estou, mas esse negócio de falar com santo é muito complicado. Santo nunca responde em língua da gente... não se pode saber o que ele pensa. E além do mais, isso também não é direito. Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja, tenho que levar. Andei sete léguas. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro.

ROSA
E pra você não se sujar com a santa, eu vou ter que dormir no chão, no "hotel do padre".
(Olha-o com raiva e vai deitar-se num dos degraus da escada da igreja).
E se tudo isso ainda fosse por alguma coisa que valesse a pena...


Você podia não ter vindo. Quando eu fiz a promessa, não falei em você, só na cruz.

ROSA
Agora você diz isso. Dissesse antes...


Não me lembrei. Você também não reclamou...

ROSA
Sou sua mulher. Tenho que ir pra onde você for ..


Então...

Rosa ajeita-se da melhor maneira possível no degrau, enquanto Zé-do-Burro, não menos cansado do que ela faz um esforço sobre-humano para não adormecer. Cochila, montando guarda à sua cruz. Subitamente, irrompem na praça Marli e Bonitão. Ela tem, na realidade, vinte e oito anos, mas aparenta mais dez. Pinta-se com algum exagero, mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo-esverdeada. Possui alguns traços de uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida. Usa um vestido muito curto e decotado, já um tanto gasto e fora de moda, mas ainda de bom efeito visual. Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma tirania que, no entanto, é necessária ao seu equilíbrio psíquico - a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem, em parte, satisfazer um instinto maternal frustrado. Há em seu amor e em seu aviltamento, em sua degradação voluntária, muito de sacrifício maternal, ao qual não falta, inclusive, um certo orgulho. Bonitão é insensível a tudo isso. Ele é frio e brutal em sua "profissão". Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos físicos. Em seu entender, sua beleza máscula e seu vigor sexual, aliados a um direito natural de subsistir, justificam plenamente seu modo de vida. É de estatura um pouco acima da média, forte e de pele trigueira, amulatada. A ascendência negra é visível, embora os cabelos sejam lisos, reluzentes de gomalina e os traços regulares, com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas. Veste-se sempre de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores. Descem a ladeira, ela na frente, a passos rápidos. Ele a segue, como se viessem já de uma discussão.

BONITÃO
Espere. Não adianta andar depressa...

MARLI
É melhor discutirmos isso em casa.

BONITÃO
(Alcança-a e obriga a parar torcendo-lhe violentamente o braço)
Não, vamos resolver aqui mesmo. Não tenho nada que discutir com você...

MARLI
(Livra-se dele com um safanão, mas seu rosto se contrai dolorosamente)
Estúpido!

BONITÃO
Ande, vamos deixar de mas-mas. Passe pra cá o dinheiro.

MARLI
(Tira do bolso do vestido um maço de notas e entrega a ele)
Não podia esperar até chegar em casa?

BONITÃO
(Chega mais para perto do jato de luz e conta as notas, rapidamente)
Só deu isto?

MARLI
Só. A noite hoje não foi boa. Você viu, o "castelo" estava vazio.

BONITÃO
E aquele galego que estava conversando com você quando cheguei?

MARLI
Uma boa conversa. Queria se fretar comigo. Ficou mangando a noite toda e não se resolveu...

BONITÃO
(Mete subitamente a mão no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota)
Sua vaca!

Ele faz menção de dar-lhe um bofetão, ela corre e refugia-se atrás da cruz. Zé-do-Burro desperta de sua semi-sonolência.

MARLI
Eu precisava desse dinheiro. Pra pagar o quarto, você sabe.

BONITÃO
Não gosto de ser tapeado. Por que não pediu?

MARLI
E você dava?

BONITÃO
Claro que não.
(Guarda o dinheiro na carteira)
Isso ia fazer falta no meu orçamento. Tenho compromissos e você bem sabe que não gosto de pedir dinheiro emprestado. É uma questão de feitio.

MARLI
E eu, que faço pra pagar o quarto? Já devo dois meses e a dona anda me olhando atravessado.

BONITÃO
(Indiferente)
É um problema seu. Tenho muita coisa em que pensar.

MARLI
Eu sei, eu sei no que você pensa...

BONITÃO
(Sorri e há em seu sorriso uma sombra de ameaça)
Penso, por exemplo, que você, de três meses pra cá, está fazendo muito pouco. A Matilde está fazendo quase o dobro...

MARLI
(Compreende a ameaça, avança para ele sacudida pelo ciúme e pelo pavor de perdê-lo)
Eu sei, você está dando em cima daquela arreganhada. Ela mesma anda dizendo.

BONITÃO
Eu não dou em cima de mulher nenhuma, você sabe disso. É uma questão de princípios.

MARLI
Quer dizer que é ela quem está dando em cima de você!

BONITÃO
Ela perguntou se eu estava precisando de dinheiro.

MARLI
(Ansiosamente)
E você?...

BONITÃO
Eu só pedi umas informações de ordem técnica, arrecadação diária etc...

MARLI
(Agarra-o freneticamente pelos braços)
Bonitão, você não aceitou o dinheiro dela, aceitou?! Você não aceitou o dinheiro daquela vagabunda!

BONITÃO
(Olha-a friamente)
E que tinha, se aceitasse? Eu também preciso viver.

MARLI
Mas o que eu lhe dou não chega?!

BONITÃO
Você compreende, eu também tenho ambições. Se eu não tivesse qualidades, bem. Mas eu sei que tenho qualidades. É justo que viva de acordo com essas qualidades.

MARLI
Mas o que lhe falta? Eu não tenho lhe dado tudo que você me pede? Se for preciso, dou mais ainda. Não pense que é por medo de que você me largue pela Matilde, não.
(Alisa sua roupa e admira-o, maternalmente)
É porque tenho prazer em ver você vestido com a roupa que eu dei, com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra você. Tenho orgulho, sabe?

BONITÃO
(Desvencilha-se dela)
Pois então veja se na próxima vez não esconde dinheiro no decote. Tenho certeza de que a Matilde não é capaz de um gesto feio desses.

MARLI
Ela é capaz de coisas muito piores. Se você quiser, eu lhe conto.

BONITÃO
(Bruscamente)
Não quero ouvir nada. Quero é que você vá pra casa.

MARLI
(Decepcionada)
Você não vai comigo?

BONITÃO
Não, vou ficar um pouco mais por aqui. Vá na frente que daqui a pouco eu apareço por lá.

MARLI
(Enciumada)
E o que é que você vai ficar fazendo na rua a uma hora dessas?

BONITÃO
(Com muita seriedade)
Ora, mulher, eu preciso trabalhar!
(Acende um cigarro, abstraindo-se da presença de Marli, que o fita como um cão escorraçado pelo dono. Só então este se mostra intrigado com a cruz no meio da praça. Examina-a curiosamente e por fim dirige-se a Zé-do-Burro)
É sua?

Zé balança a cabeça em sinal afirmativo. Marli vai até à escada da igreja, senta-se num degrau, sem se incomodar com Rosa, deitada mais acima, tira os sapatos e movimenta os dedos doloridos.

BONITÃO
(Nota a igreja, faz uma associação de idéias)
Encomenda?


Não, promessa.

BONITÃO
(A princípio parece não entender, depois ri).
Gozado.


Não acho.

BONITÃO
Não falei por mal. Eu também sou meio devoto. Até uma vez fiz promessa pra Santo Antônio...


Casamento?

BONITÃO
Não, ela era casada.


E conseguiu a graça?

BONITÃO
Consegui. O marido passou uma semana viajando...


E o senhor pagou a promessa?

BONITÃO
Não, pra não comprometer o santo.


Nunca se deve deixar de pagar uma promessa. Mesmo quando é dessas de comprometer o santo. Garanto que da próxima vez Santo Antônio vai se fingir de surdo. E tem razão.

BONITÃO
O senhor compreende, Santo Antônio ia ficar mal se soubessem que foi ele quem fez o trouxa viajar.
(Nota que Marli ainda não se foi)
Que é que você ainda está fazendo aí?

MARLI
Esperando você.

BONITÃO
(Vai a ela)
Já lhe disse que vou depois. Vai ficar agora grudada em mim?

MARLI
(Levanta-se)
Escute, Bonitão... você não podia deixar eu ficar ao menos com aquela nota?

BONITÃO
Já lhe disse que não. Não insista.

MARLI
Mas eu preciso pagar o quarto!

BONITÃO
O quarto é seu, não é meu.

MARLI
Mas o dinheiro é meu. É justo que eu fique ao menos com algum.

BONITÃO
É justo por quê?

MARLI
Porque fui eu que trabalhei.

BONITÃO
E desde quando trabalhar dá direito a alguma coisa? Quem lhe meteu na cabeça essas idéias?
(Olha-a de cima a baixo, com desconfiança)
Está virando comunista?

Marli fita-o com ódio e sai bruscamente pela direita. Bonitão acompanha-a com o olhar e depois sorri, tira o dinheiro do bolso e torna a contá-lo.


(Candidamente)
Esse dinheiro... é dela mesmo?

BONITÃO
(Guarda o dinheiro)
Bem, esta é uma maneira de olhar as coisas. E toda coisa tem pelo menos duas maneiras de ser olhada. Uma de lá pra cá, outra de cá pra lá. Entendeu?


Não...

BONITÃO
Não vale a pena explicar. É uma questão de sensibilidade.


O senhor é... marido dela?

BONITÃO
Não, sou assim uma espécie de fiscal do imposto de renda.
(Sobe, como se fosse sair, mas se detém diante de Rosa, cujo vestido, levantado, deixa ver um palmo de coxa).

ROSA
(Abre os olhos, sentindo que está sendo observada)
Que é?

BONITÃO
Nada... estava só olhando...

(Rosa conserta o vestido.)

BONITÃO
Não deve ser lá muito confortável essa cama...

(Rosa olha-o com raiva.)

BONITÃO
(Olha-a mais detidamente)
E olhe que você bem merece coisa melhor.

ROSA
Diga isso a ele
(Aponta Zé-do-Burro).

BONITÃO
A ele?

ROSA
Meu marido.

BONITÃO
Ah, você também veio pagar promessa...

ROSA
Eu não, ele. E por causa dele estou dormindo aqui, no batente de uma igreja, como qualquer mendiga.
(Senta-se)


Não deve faltar muito para abrir a igreja. O senhor sabe que horas são?

BONITÃO
(Consulta o relógio)
Um quarto para as cinco.


Sabe a que horas abre a igreja?

BONITÃO
Não, não é bem o meu ramo...


Mas às seis horas deve ter missa. Hoje é o dia de Santa Bárbara...

ROSA
(Ressentida)
Às seis horas. Tenho que agüentar mais de uma hora ainda neste batente duro. E a promessa não é minha!

BONITÃO
É capaz da porta da sacristia já estar aberta.


O senhor acha?

BONITÃO
Padre acorda cedo...


Às cinco horas?

BONITÃO
Então; tem que se preparar para a missa das seis.


É verdade...

BONITÃO
Por que o senhor não vai ver?


É...
(Hesita um pouco)

BONITÃO
A porta é do lado de lá...


Rosa, você vigia a cruz, eu vou dar a volta... não demoro.
(Sai)

BONITÃO
Pode ir sem susto que eu ajudo a tomar conta de sua cruz.
(Depois que Zé-do-Burro sai)
das duas.

ROSA
Só que uma ele carrega nas costas e a outra... se quiser que vá atrás dele.
(Levanta-se)

BONITÃO
E você não é mulher para andar atrás de qualquer homem... ao contrário, é uma cruz que qualquer um carrega com prazer...

ROSA
(Com recato, mas no fundo envaidecida)
Ora, me deixe.

BONITÃO
Palavra. Seu marido não lhe faz justiça. Isso não é trato que se dê a uma mulher... mesmo sendo mulher da gente.

ROSA
Se ele faz pouco de mim, faz pouco do que é dele.

BONITÃO
Não discuto. Só acho que você não é mulher para dormir em batente de igreja. Tem qualidades para exigir mais: boa cama, com colchão e melhor companhia.

ROSA
Não fale em cama pra quem tem o corpo moído, como eu.

BONITÃO
Tão cansada assim?

ROSA
Duas noites sem dormir, sete léguas no calcanho...

BONITÃO
Sete léguas? Quantos quilômetros?

ROSA
Sei lá... só sei que sete vezes amaldiçoei aquele dia em que fui roubar caju com ele na roça dos padres...

BONITÃO
Ah, foi assim...

ROSA
A gente faz cada besteira...

BONITÃO
Quanto tempo faz?

ROSA
Oito anos...

BONITÃO
E você casou com ele?

ROSA
Casei.

BONITÃO
Sem gostar?

ROSA
(Depois de um tempo)
Gostava, sim. Sabe, na roça, o homem é feio, magro, sujo e mal vestido. Ele até que era dos melhores. Tinha um sítio...

BONITÃO
E daí?

ROSA
Daí, eu achei que ele garantia tudo que eu queria da vida: homem e casa. A gente quando é franga, com licença da palavra, tem merda na cabeça

BONITÃO
(Algo interessado)
Ele tem um sítio, é?

ROSA
Tinha, agora tem só um pedaço. Dividiu o resto com os lavradores pobres.

BONITÃO
Por quê?

ROSA
Fazia parte da promessa.

BONITÃO
Que é que está esperando? Virar santo?

ROSA
Não brinque. Pelo caminho tinha uma porção de gente querendo que ele fizesse milagre. E não duvide. Ele é capaz de acabar fazendo. Se não fosse a hora, garanto que tinha uma romaria aqui, atrás dele.

BONITÃO
Depois de cumprir a promessa, ele vai voltar pra roça?

ROSA
Vai.

BONITÃO
E você?

ROSA
Também. Por quê?

BONITÃO
Se você viesse pra cidade, eu podia lhe garantir um bonito futuro...

ROSA
Fazendo o quê?

BONITÃO
Isso depois se via.

ROSA
Eu não sei fazer nada.

BONITÃO
(Segura-a por um braço)
Mulheres como você não precisam saber coisa alguma, a não ser o que a natureza ensinou...

Rosa puxa o braço bruscamente, depois de manter, por alguns segundos, um olhar de desafio.

ROSA
Não faça isso! Ele pode voltar de repente

BONITÃO
Ele deve ter ido acordar o padre.
(Volta a aproximar-se dela)

ROSA
(Desvencilha-se dele novamente)
Me solte.
(Volta a sentar-se na escada)
Eu queria era dormir. Dava a vida por uma cama... com um lençol branco... e uma bacia d'água quente onde meter os pés.

BONITÃO
Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto...

(Rosa lança-lhe um olhar hostil.)

BONITÃO
Isso sem segundas intenções... só pra você dormir, descansar dessa romaria.

ROSA
Não quero me meter em encrencas.

BONITÃO
Não há nenhum perigo de encrenca. Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relações com a polícia. Nesta zona, todos respeitam o Bonitão.

ROSA
(Quase sensualmente)
Bonitão.

BONITÃO
(Vaidoso)
É um apelido...

ROSA
(Olha-o de cima a baixo).

BONITÃO
(Senta-se junto dela)

ROSA
Não chegue perto, estou muito suada.

BONITÃO
No hotel tem banheiro... para quem andou sete léguas, um banho de chuveiro e depois uma cama com colchão de mola...

ROSA
Colchão de mola mesmo?

BONITÃO
Então...

ROSA
Nunca dormi num colchão de mola. Deve ser bom.

BONITÃO
Uma delícia...

Entra Zé-do-Burro pela direita. Bonitão levanta-se.


Tudo fechado. Tem jeito não.

ROSA
(Revoltada)
E eu que agüente este batente duro até Deus sabe lá que horas.


Paciência, Rosa. Seu sacrifício fica valendo.

ROSA
Pra quem? Pra Santa Bárbara? Eu não fiz promessa nenhuma.


Oxente! Melhor ainda. Amanhã, quando você fizer, a santa já está lhe devendo!

ROSA
Nunca vi santo pagar dívida.
(Volta a deitar-se no degrau)

BONITÃO
(Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível)
A senhora faz mal em ser tão descrente. Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida? E quem sabe se não escolheu a mim pra pagador?


(Muito ingenuamente)
O senhor não era fiscal do imposto de renda? Agora é pagador de Santa Bárbara...

BONITÃO
Meu caro, com o custo de vida aumentando dia a dia, a gente tem que se virar. Mas não é esse o caso. Digo que Santa Bárbara já deve estar tratando de liquidar o débito hoje contraído com sua senhora, porque me fez passar por aqui esta noite.


Não vejo nada de mais nisso.

BONITÃO
Porque o senhor não sabe que eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama, com colchão de mola, num hotel perto daqui.


Pra ela?

BONITÃO
E pro senhor também.


Eu não posso. Tenho que esperar abrir a igreja. Se soubesse que não iam roubar a cruz...

BONITÃO
(Rapidamente)
Oh, não, a cruz não deve ficar sozinha. Esta zona está cheia de ladrões. A cruz é de madeira e a madeira está caríssima.


É o que eu acho. Não devo sair daqui.

BONITÃO
Mas eu posso ficar tomando conta, enquanto o senhor e sua senhora vão descansar.


O senhor?

BONITÃO
E por que não?


Mas a igreja pode demorar a abrir. Pelo menos uma hora ainda.

BONITÃO
Eu espero. Sua esposa me contou a caminhada que fizeram, o senhor carregando nas costas essa cruz através de léguas e léguas, para cumprir uma promessa. Isso me comoveu.


Mas não é justo. Não foi o senhor quem fez a promessa.

ROSA
Ele está querendo ajudar, Zé.


Mas não é direito. Eu prometi cumprir a promessa sozinho, sem ajuda de ninguém. E essa história de dormir no hotel não está no trato.

BONITÃO
E sua senhora está no trato?


Rosa? Não, ela pode ir.

BONITÃO
Nesse caso, se quiser que eu leve sua senhora... ao menos ela descansa enquanto espera pelo senhor.


Você quer, Rosa? Quer ir esperar por mim no hotel?
(Volta-se para Bonitão)
É hotel decente?

BONITÃO
(Fingindo-se ofendido)
Ora, o senhor acha que ia indicar...


Desculpe, é que sempre ouvi dizer que aqui na cidade...

BONITÃO
Pode confiar em mim.


É longe daqui?

BONITÃO
Não, basta subir aquela ladeira...


Que é que você diz, Rosa?

ROSA
(Percebendo o jogo de Bonitão)
Quero não, Zé. Prefiro ficar aqui com você.


Ainda agora mesmo você estava se queixando.

BONITÃO
Não é pra menos. Deve estar exausta. Sete léguas.


Afinal de contas, você tem razão, a promessa é minha, não é sua. Vá com o moço, não tenha acanhamento.

BONITÃO
Eu vou com ela até lá, apresento ao porteiro, que é meu conhecido - sim, porque uma mulher sozinha, o senhor sabe, eles não deixam entrar - depois volto para lhe dizer o número do quarto. Daqui a pouco, depois de cumprir a sua promessa, o senhor vai pra lá.


Se o senhor fizesse isso, era um grande favor. Eu não posso me afastar daqui.

BONITÃO
Nem deve. Primeiro, Santa Bárbara.

ROSA
Zé, é melhor eu ficar com você...


Pra que, Rosa? Assim você vai logo descansar numa boa cama, não precisa ficar aí deitada nesse batente frio...

BONITÃO
Um perigo! Pode pegar uma pneumonia.

ROSA
(Inicia a saída. Pára, hesitante. Pressente o perigo que vai correr. Procura, com o olhar, fazer Zé-do-Burro compreender o seu receio)
Zé...


Ahn, sim.
(Enfia a mão no bolso, tira um maço de notas)
Pode ser que precise pagar adiantado...

ROSA
(Recebe o dinheiro. Encara o marido)
Talvez seja melhor, depois de entregar a cruz, você mandar também rezar uma missa em ação de graças...


(Sem entender o alcance da sugestão)
É, não é má idéia.

Rosa sobe a ladeira e Bonitão a segue.

BONITÃO
(Saindo)
Volto num minuto.


Está bem.

(Senta-se ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela. Aos poucos, é vencido pelo sono. As luzes se apagam em resistência)


Segundo Quadro

As luzes voltam a acender-se, lentamente, até dia claro. Ouvem-se, distante, ruídos esparsos da cidade que acorda. Um ou outro buzinar, foguetes estouram saudando Iansan, a Santa Bárbara nagô, e o sino da igreja começa a chamar para a missa das seis. Mas nada disso acorda Zé-do-Burro. Entra, pela ladeira, a Beata. Toda de preto, véu na cabeça, passinho miúdo, vem apressada, como se temesse chegar atrasada. Passa por Zé-do-Burro e a cruz sem notá-los. Pára diante da escada e resmunga.
Fica a critério da direção utilizar neste quadro figurantes que descerão a ladeira e entrarão na igreja


BEATA
Porta fechada. É sempre assim. A gente corre, com medo de chegar atrasada e quando chega aqui a porta está fechada. Por que não abrem primeiro a porta, pra depois tocar o sino? Não, primeiro tocam o sino, depois abrem a porta. Isso é esse sacristão (Pára de resmungar ao ver a cruz. Ajeita os óculos, como se não acreditasse no que está vendo. Aproxima-se e examina detalhadamente a cruz e o seu dono adormecido. Sua expressão é da maior estranheza) Virgem Santíssima!

Neste momento, abre-se a porta da igreja e surge o Sacristão. É um homem de perto de 50 anos. Sua mentalidade, porém, anda aí pelos quatorze. Usa óculos de grossas lentes, é míope. O cabelo teima em cair-lhe na testa, acentuando a aparência de retardado mental. Ele parece bêbedo de sono. Boceja largamente, ruidosamente, depois de abrir a primeira banda da porta. Espreguiça-se e solta um longo gemido. Depois que abre toda a porta, encosta-se por um momento no portal e cochila, sem dar pela Beata, que se aproxima.

BEATA
(Dá-lhe uma leve cotovelada)
Ei, rapaz...

SACRISTÃO
(Desperta muito assustado)
Sim, Padre, já vou!...

BEATA
Que padre coisa nenhuma...

SACRISTÃO
Ah, é a senhora...

BEATA
Vou me queixar ao Padre Olavo dessa mania de bater o sino antes de abrir a porta da igreja. Eu ouço o toque, venho pondo as tripas pela boca, chego aqui, e a porta ainda está fechada.

SACRISTÃO
Também por que a senhora vem logo na missa das seis? Por que não vem mais tarde?

BEATA
(Malcriada)
Porque quero. Porque não é da sua conta.
(Aponta para a cruz)
Que é isso?

SACRISTÃO
Isso o quê?

BEATA
Está vendo não? Uma cruz enorme no meio da praça...

SACRISTÃO
(Apura a vista)
Ah, sim... agora percebo... é uma cruz de madeira... e parece que há um homem dormindo junto dela...

BEATA
Vista prodigiosa a sua! Claro que é uma cruz de madeira e que há um homem junto dela. O que eu quero saber é a razão disso.

SACRISTÃO
Não sei... como quer que eu saiba? Por que a senhora não pergunta a ele?

BEATA
(Bruscamente)
Eu é que não vou perguntar coisa nenhuma!

SACRISTÃO
Talvez ele tenha desgarrado da procissão...

BEATA
Que procissão? De Santa Bárbara? A procissão ainda não saiu. E já viu alguém carregar cruz em procissão? Nem na do Senhor Morto.
(Benze-se e entra apressadamente na igreja)

O Sacristão aproxima-se de Zé-do-Burro, curioso. E quando entra Bonitão, pela ladeira. Ele vê a igreja aberta, estranha.

BONITÃO
Oxente...

SACRISTÃO
(Olha-o aparvalhado)
É uma cruz mesmo...

BONITÃO
E que pensou você que fosse? Um canhão?
(Aproxima-se de Zé-do-Burro)
Sono de pedra... não acordou nem com os foguetes de Santa Bárbara. Dizem que é assim que dormem as pessoas que têm a consciência tranqüila e a alma leve...
(Cínico)
Eu também sou assim, quando caio na cama é um sono só.
(Sacode Zé-do-Burro)
Camarado... oh, meu camarado!...


(Desperta)
Oh, já é dia...

BONITÃO
Já. E a igreja já está aberta, você pode entregar o carreto.


(Levanta-se, com dificuldade, os músculos adormecidos e doloridos)
É verdade...

BONITÃO
Eu voltei aqui pra lhe dizer o número do quarto de sua mulher. É o 27. Um bom quarto, no segundo andar.
(Apressadamente)
Pelo menos foi o que o porteiro me garantiu.


Ah, obrigado...

BONITÃO
O hotel é aquele ali, o primeiro, logo depois de subir a ladeira e dobrar à direita. Hotel Ideal Eu demorei um pouco porque fiquei jogando damas com o porteiro.

SACRISTÃO
(Vivamente interessado)
Ganhou?

BONITÃO
Empatamos.

SACRISTÃO
Ah, eu também sou louco por damas!

BONITÃO
(Examina-o de cima a baixo)
Francamente, ninguém diz...

Padre Olavo surge na porta da igreja.

SACRISTÃO
(Como se tivesse sido surpreendido em falta)
Padre Olavo!...


Preciso falar com ele...

Sacristão dirige-se apressadamente à igreja. Pára na porta, ante o olhar intimidador de Padre Olavo. É um padre moço ainda. Deve contar, no máximo, quarenta anos. Sua convicção religiosa aproxima-se do fanatismo. Talvez, no fundo, isto seja uma prova de falta de convicção e autodefesa. Sua intolerância - que o leva, por vezes, a chocar-se contra princípios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão ao seu lado - não passa, talvez, de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente.

PADRE
(Para o Sacristão)
Que está fazendo aí?

SACRISTÃO
(À guisa de defesa)
Estava conversando com aqueles homens.

PADRE
E eu lá dentro à sua espera para ajudar à missa.
(Repara em Bonitão e Zé-do-Burro)
Quem são?

SACRISTÃO
Não sei. Um deles quer falar com o senhor.


(Adianta-se)
Sou eu, Padre.
(Inclina-se, respeitoso e beija-lhe a mão)

PADRE
Agora está na hora da missa. Mais tarde, se quiser...


É que eu vim de muito longe, Padre. Andei sete léguas...

PADRE
Sete léguas? Para falar comigo.


Não, pra trazer esta cruz.

PADRE
(Olha a cruz, detidamente)
E como a trouxe... num caminhão?


Não, Padre, nas costas.

SACRISTÃO
(Expandindo infantilmente a sua admiração)
Menino!

PADRE
(Lança-lhe um olhar enérgico)
Psiu! Cale a boca!
(Seu interesse por Zé-do-Burro cresce)
Sete léguas com essa cruz nas costas. Deixe ver seu ombro. Zé-do-Burro despe um lado do paletó, abre a camisa e mostra o ombro. Sacristão espicha-se todo para ver e não esconde a sua impressão

SACRISTÃO
Está em carne viva!

PADRE
(Parece satisfeito com o exame)
Promessa?


(Balança afirmativamente a cabeça)
Pra Santa Bárbara. Estava esperando abrir a igreja...

SACRISTÃO
Deve ter recebido dela uma graça muito grande! Padre faz um gesto nervoso para que o Sacristão se cale.


Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo.

PADRE
(Padre parece meditar profundamente sobre a questão)
Mesmo assim, não lhe parece um tanto exagerada a promessa? E um tanto pretensiosa também?


Nada disso, seu Padre. Promessa é promessa. É como um negócio. Se a gente oferece um preço, recebe a mercadoria, tem que pagar. Eu sei que tem muito caloteiro por aí. Mas comigo, não. É toma lá, dá cá. Quando Nicolau adoeceu, o senhor não calcula como eu fiquei.

PADRE
Foi por causa desse... Nicolau, que você fez a promessa?


Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma árvore que caiu, num dia de tempestade.

SACRISTÃO
Santa Bárbara! A árvore caiu em cima dele?!


Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa, escorrendo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos dele, mas o sangue não havia meio de estancar.

PADRE
Uma hemorragia.


Só estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta de vaca e taquei em cima do ferimento.

PADRE
(Enojado)
Mas meu filho, isso é atraso! Uma porcaria!


Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse aquela porcaria de cima da ferida, que senão Nicolau ia morrer.

PADRE
Sem dúvida.


Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma cachoeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar? Ensopava algodão e mais algodão e nada. Era uma sangueira que não acaba mais. Lá pelas tantas, o homenzinho virou pra mim e gritou: corre, homem de Deus, vai buscar mais bosta de vaca, senão ele morre!

PADRE
E... o sangue estancou?


Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário sabia? Não sendo de vaca, de cavalo castrado também serve. Mas há quem prefira teia de aranha.

PADRE
Adiante, adiante. Não estou interessado nessa medicina.


Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau começou a tremer de febre e no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido: eu saí de casa e Nicolau ficou. Não pôde se levantar. Foi a primeira vez que isso aconteceu, em seis anos: eu saí, fui fazer compras na cidade, entrei no Bar do Jacob pra tomar uma cachacinha, passei na farmácia de "seu" Zequinha pra saber das novidades - tudo isso sem Nicolau. Todo mundo reparou, porque quem quisesse saber onde eu estava, era só procurar Nicolau. Se eu ia na missa, ele ficava esperando na porta da igreja...

PADRE
Na porta? Por que ele não entrava? Não é católico?


Tendo uma alma tão boa, Nicolau não pode deixar de ser católico. Mas não é por isso que ele não entra na igreja. É porque o vigário não deixa.
(Com grande tristeza)
Nicolau teve o azar de nascer burro... de quatro patas.

PADRE
Burro?! Então esse... que você chama de Nicolau, é um burro?! Um animal?!


Meu burro... sim senhor.

PADRE
E foi por ele, por um burro, que fez essa promessa?


Foi... é bem verdade que eu não sabia que era tão difícil achar uma igreja de Santa Bárbara, que ia precisar andar sete léguas pra encontrar uma, aqui na Bahia...

BONITÃO
(Que assistiu a toda a cena, um pouco afastado, solta uma gargalhada grosseira)
Ele se estrepou.

Padre Olavo olha-o, surpreso, como se só agora tivesse notada a sua presença. Bonitão pára de rir quase de súbito, desarmado pelo olhar enérgico do padre.


Mas mesmo que soubesse, eu não deixava de fazer a promessa. Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito...

PADRE
Rezas?! Que rezas?!


Seu vigário me disculpe... mas eu tentei tudo. Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona: Sarna de cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três rabiscos no chão. Todo o mundo diz... e eu mesmo, uma vez, estava com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de passar... Chamei preto Zeferino, ele disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça. Botou uma toalha na minha testa, derramou uma garrafa d'água, rezou uma oração, o sol saiu e eu fiquei bom.

PADRE
Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.


Do demo, não senhor.

PADRE
Do demo, sim. Você não soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez de viver atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno.


Para o inferno? Como pode ser, Padre, se a oração fala em Deus?
(Recita)
"Deus fez o Sol. Deus fez a luz, Deus fez toda a claridade do Universo grandioso. Com sua Graça eu te benzo, te curo. Vai-te Sol, da cabeça desta criatura para as ondas do Mar Sagrado, com os santos poderes do Padre do Filho e do Espírito Santo". Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante.

SACRISTÃO
Incrível!

PADRE
Meu filho, esse homem era um feiticeiro.


Como feiticeiro, se a reza é pra curar?

PADRE
Não é pra curar, é para tentar. E você caiu em tentação.


Bem, eu só sei que fiquei bom.
(Noutro tom)
Mas com o Nicolau não houve reza que fizesse ele levantar. Preto Zeferino botou o pé na cabeça do coitado, disse uma porção de orações e nada. Eu já estava começando a perder a esperança. Nicolau de orelhas murchas, magro de se contar as costelas. Não comia, não bebia, nem mexia mais com o rabo para espantar as moscas. Eu vi que nunca mais ia ouvir os passos dele me seguindo por toda a parte, como um cão. Até me puseram um apelido por causa disso: Zé-do-Burro. Eu não me importo. Não acho que seja ofensa. Nicolau não é um burro como os outros. É um burro com alma de gente. E faz isso por amizade, por dedicação. Eu nunca monto nele, prefiro andar a pé ou a cavalo. Mas de um modo ou de outro, ele vem atrás. Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas, duas horas ele espera por mim, plantado na porta. Um burro desses, seu padre, não vale uma promessa?

PADRE
(Secamente, contendo ainda a sua indignação)
Adiante.


Foi então que comadre Miúda me lembrou: por que eu não ia no candomblé de Maria de Iansan?

PADRE
Candomblé?!


Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça.
(Com a consciência de quem cometeu uma falta, mas não muito grave)
Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo. Eu também nunca fui muito de freqüentar terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau estava morrendo. Não custava tentar. Se não fizesse bem, mal não fazia. E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que era mesmo com Iansan, dona dos raios e das trovoadas. Iansan tinha ferido Nicolau... pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa. Mas tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansan, que tinha ferido Nicolau com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me lembrei então que Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.

PADRE
(Como se anotasse as palavras)
Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...


A Santa Bárbara.

PADRE
A Iansan!


É a mesma coisa...

PADRE
(Grita)
Não é a mesma coisa!
(Controla-se)
Mas continue.


Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres, mais pobres que eu.

PADRE
Dividir? Igualmente?


Sim, padre, igualmente.

SACRISTÃO
E Nicolau... quero dizer, o burro, ficou bom?


Sarou em dois tempos. Milagre. Milagre mesmo. No outro dia já estava de orelha em pé, relinchando. E uma semana depois todo o mundo me apontava na rua: - "Lá vai Zé-do-Burro com o burro de novo atrás!"
(Ri)
E eu nem dava confiança. E Nicolau muito menos. Só eu e ele sabíamos do milagre.
(Como que retificando)
Eu, ele e Santa Bárbara.

PADRE
(Procurando inicialmente controlar-se)
Em primeiro lugar, mesmo admitindo a intervenção de Santa Bárbara, não se trataria de um milagre, mas apenas de uma graça. O burro podia ter-se curado sem intervenção divina.


Como, Padre, se ele sarou de um dia pro outro...

PADRE
(Como se não o ouvisse)
E além disso, Santa Bárbara, se tivesse de lhe conceder uma graça, não iria fazê-lo num terreiro de candomblé!


É que na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara. Mas no candomblé tem uma imagem de Iansan, que é Santa Bárbara...

PADRE
(Explodindo)
Não é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica! O senhor foi a um ritual fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que prometeu esse sacrifício!


Não, Padre, foi a Santa Bárbara! Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz! E é diante do altar de Santa Bárbara que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que ela fez por mim!

PADRE
(Dá alguns passos de um lado para outro, de mão no queixo e por fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial)
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua promessa?


(Não entendeu a pergunta)
Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha consciência e quite com a santa.

PADRE
Só isso?


Só...

PADRE
Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?


Eu?!

PADRE
Sim, você que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martírio de Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imitar o Filho de Deus...


(Humildemente)
Padre... eu não quis imitar Jesus...

PADRE
(Corta terrível)
Mentira! Eu gravei suas palavras! Você mesmo disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo.


Sim, mas isso...

PADRE
Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda maior.


Qual, Padre?

PADRE
A de igualar-se ao Filho de Deus.


Não, Padre.

PADRE
Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade? Não, para salvar um burro!


Padre, Nicolau...

PADRE
É um burro com nome cristão! Um quadrúpede, um irracional! A Beata sai da igreja e fica assistindo à cena, do alto da escada.


Mas Padre, não foi Deus quem fez também os burros?

PADRE
Mas não à Sua semelhança. E não foi para salvá-los que mandou seu Filho. Foi por nós, por você, por mim, pela Humanidade!


(Angustiadamente tenta explicar-se)
Padre, é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum... o senhor não conhece Nicolau, por isso... é um burro com alma de gente...

PADRE
Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja você não entrará com essa cruz!
(Dá as costas e dirige-se à igreja. O sacristão trata logo de segui-lo).


(Em desespero)
Mas Padre... eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a minha promessa!

PADRE
Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num antro de feitiçaria.


Eu já expliquei...

PADRE
Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao diabo!


Padre...

PADRE
Um ritual pagão, que começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja!


Mas Padre, a igreja...

PADRE
A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do diabo!


Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não pode impedir a minha entrada. A igreja não é sua, é de Deus!

PADRE
Vai desrespeitar a minha autoridade?


Padre, entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara.

PADRE
(Para o Sacristão)
Feche a porta. Quem quiser assistir à missa que entre pela porta da sacristia. Lá não dá para passar essa cruz.
(Entra na igreja)

A Beata entra também apressadamente atrás do padre. O Sacristão, prontamente, começa a fechar a porta da igreja, enquanto Zé-do-Burro, no meio da praça, nervos tensos, olhos dilatados, numa atitude de incompreensão e revolta, parece disposto a não arredar pé dali. Bonitão, um pouco afastado, observa, tendo nos lábios um sorriso irônico. A porta da igreja se fecha de todo, enquanto um foguetório tremendo saúda Iansan.

CAI O PANO LENTAMENTE.


Segundo Ato

Primeiro Quadro

Aproximadamente, duas horas depois. Abriu-se a vendola e o Galego aparece trepado num caixote, amarrando um cordão com bandeirolas vermelhas e brancas que vai da porta da venda ao sobrado do lado oposto. Zé e sua cruz continuam no meio da praça. Ouve-se um pregão: "Beiju... olha o beiju!" Logo após, surge no alto da ladeira uma preta em trajes típicos, com um tabuleiro na cabeça. Ela desce a ladeira e ao passar pelo Galego saúda.

MINHA TIA
Iansan lhe dê um bom-dia.

GALEGO
(Espanhol)
Gracias, Minha Tia.

Minha Tia vai até à igreja e aí, junto dos degraus, pára.

A critério da direção e em momentos em que não prejudiquem a ação, transeuntes cruzarão a praça, durante todo o ato.

MINHA TIA
(Para o Galego)
Quer vir aqui dar uma mãozinha pra sua tia, meu branco?

Galego apressa-se a ir ajudá-la. Retira primeiro o cavalete que está sobre o tabuleiro, abre-o, depois ajuda-a a tirar o tabuleiro da cabeça e colocá-lo em cima do cavalete.

MINHA TIA
Santa Bárbara lhe pague.
(Nota Zé-do-Burro)
Oxente! Que é aquilo?

GALEGO
Não sei. Já estava acá quando abri a venda. Parece maluco.
(Volta a pregar as bandeirolas, enquanto Minha Tia põe-se a arrumar o fogareiro, procura acendê-lo).

Desce a ladeira, passo mole, preguiçoso, Dedé Cospe-Rima. Mulato, cabeleira pixaim, sob o surrado chapéu de coco - um adorno necessário à sua profissão de poeta-comerciante. Traz, embaixo do braço, uma enorme pilha de folhetos: abecês, romances populares em versos. E dois cartazes, um no peito, outro nas costas. Num se lê: "ABC da Mulata Esmeralda - uma obra-prima" e no outro "Saiu agora, tá fresco ainda! O que o cego Jeremias viu na Lua".

DEDÉ
(declama)
Bom dia, Galego amigo!
dia assim eu nunca vi;
para saudar Iansan,
não repare eu lhe pedi:
me empreste por obséquio
dois dedos de parati.

GALEGO
É, com esta história de hacer versos, usted sempre me leva na conversa.
(entra na venda e dá a volta por trás do balcão)
É boa mesmo essa do cego Jeremias?
(Serve o parati).

DEDÉ
(Bombástico, teatral)
Uma epopéia. Uma nova Ilíada, onde Tróia é a Lua e o cavalo de Tróia é o cavalo de São Jorge!
(Tira um exemplar e coloca sobre o balcão)
Em paga do parati.

GALEGO
Si, pêro... yo prefiro la otra, la da mulata Esmeralda.

DEDÉ
Uma prova de bom gosto, Galego!
(Troca os folhetos)
É também uma obra-prima. Lembra Castro Alves, modéstia à parte.
(Bebe o parati de um trago. Refere-se às bandeirinhas)
Bandeirinhas vermelhas e brancas, as cores de Iansan. Depois diz que não crê em candomblé.

GALEGO
Yo no creo, pêro hay quem crea. E yo soy um comerciante...

DEDÉ
Somos dois!
(Estende novamente o cálice)
Mais uma dose. Esta eu pago amanhã.
(Galego faz cara feia, mas enche de novo o cálice).

A Beata entra da direita e detém-se junto a Minha Tia, ao ver Zé-do-Burro. Mostra-se surpresa e indignada.

BEATA
É o cúmulo! Ainda está aí!

MINHA TIA
Não vai abrir a igreja hoje, Iaiá? Dia de Santa Bárbara...

BEATA
(Lança um olhar acusador a Zé-do-Burro).
Não enquanto esse indivíduo não for embora.

MINHA TIA
Que foi que ele fez?

BEATA
Quer entrar com essa cruz na igreja.

MINHA TIA
Só isso?

BEATA
E você acha pouco? Acha que Padre Olavo ia permitir?

MINHA TIA
Oxente! Por que não? Foi promessa que ele fez?

BEATA
Foi. Mas promessa de candomblé. Pra uma tal de Iansan... que Deus me perdoe.
(Benze-se).
(Dirige-se para a esquerda e ao passar por Zé-do-Burro insulta-o)
Herege!
(Sobe a ladeira, seguida do olhar de comovedora incompreensão de Zé-do-Burro).

DEDÉ
(Que ouviu a conversa. Para o Galego)
Vou ver se Minha Tia me dá um abará.
(Atravessa a praça. Não sem mostrar-se intrigado e curioso ao passar por Zé-do-Burro)
Bom dia, Minha Tia!

MINHA TIA
Bom dia, seu Dedé.
(Oferece)
Acarajé, abará, beiju... Vem benzer!

DEDÉ
(Aponta)
Um abará. Pago daqui a pouco, quando entrar o primeiro dinheiro.

MINHA TIA
Eu já sabia...
(Entrega o abará embrulhado numa folha de bananeira).

DEDÉ
(Referindo-se a Zé-do-Burro)
Que história é essa?

MINHA TIA
O Senhor ouviu?

DEDÉ
Ouvi.

MINHA TIA
(Com respeito)
Obrigação pra Iansan...
(Toca com as pontas dos dedos o chão e a testa).

DEDÉ
Por isso o Padre não deixou ele entrar?

MINHA TIA
É... coitado.

DEDÉ
Chegou a fechar a porta.

MINHA TIA
O senhor entende?

DEDÉ
Entendo não.

MINHA TIA
O Padre é um homem tão bom.

DEDÉ
A senhora acha?

MINHA TIA
Então. Ele é tão amigo dos pobres, faz tanta caridade. Sei não.

O Guarda entra pela direita. Vai direto a Zé-do-Burro. É um homem que procura safar-se dos problemas que se lhe apresentam. Sua noção do dever coincide exatamente com o seu temor à responsabilidade. Seu maior desejo é que nada aconteça, a fim de que a nada ele tenha que impor a sua autoridade. No fundo, essa autoridade o constrange terrivelmente e mais ainda o dever de exercê-la.

GUARDA
Olá, amigo.


Olá.

GUARDA
(Refere-se à cruz)
É para a procissão de Santa Bárbara?


Não.

GUARDA
Porque a procissão não sai daqui, sai do Mercado aqui perto e vai até à igreja da Saúde.


Não tenho nada com essa procissão.

GUARDA
E o senhor está aqui fazendo o quê? Esperando a festa? Ainda é muito cedo. São oito e meia da manhã. Só na parte da tarde é que isso pega fogo.


Estou aqui desde quatro e meia da manhã.

GUARDA
Quatro e meia?!
(Coça a cabeça, preocupado)
O senhor deve ser um devoto e tanto! Mas acontece que escolheu um mau lugar...


A culpa não é minha.

GUARDA
Sim, eu sei, não foi o senhor quem inventou a festa de Santa Bárbara. Mas eu também não tenho culpa de ser guarda. Minha obrigação é facilitar o trânsito, tanto quanto possível.


Sinto muito, mas não posso sair daqui.

GUARDA
(Sua paciência começa a esgotar-se)
Ai, ai, ai, ai, ai... eu estou querendo me entender com o senhor...


(Irritando-se também um pouco)
Eu também estou querendo me entender com o senhor e com todo o mundo. Mas acho que ninguém me entende.

Dedé Cospe-Rima, que assistiu a toda a cena, não resiste à curiosidade e vem presenciá-la mais de perto. Minha Tia também acompanha tudo com interesse.


Aquela mulher me chamou de herege, o Padre fechou a porta da igreja como se eu fosse Satanás em pessoa. Eu, Zé-do-Burro, devoto de Santa Bárbara.

DEDÉ
Mas afinal, o que é que o senhor quer?


Que me deixem colocar esta cruz dentro da igreja, nada mais. Depois, prometo ir embora. E já estou vexado mesmo por isto!

DEDÉ
Foi promessa. Promessa que ele fez.

GUARDA
(Raciocina, - operação que lhe parece custar tremendo esforço físico)
Promessa... colocar a cruz dentro da igreja... Não vejo dificuldade nenhuma nisso. Fala-se com o padre e...


Se o senhor conseguir que ele abra a porta e me deixe entrar, está tudo resolvido.

GUARDA
(Pensa mais um pouco, vê que não há outra maneira de resolver o problema, decide-se)
Pois bem, eu vou falar com ele.
(Dirige-se para a porta da igreja. Ante os olhares de grande expectativa do Galego, de Dedé, de Minha Tia).

DEDÉ
Não vou lá ajudar também porque eu e esse padre estamos de relações cortadas.
(Sai)

GUARDA
(Bate na porta várias vezes, sem resultado, encosta o rosto na porta e chama)
Padre? Abra um instante, por favor!

Segundos após, abre-se uma fresta e surge por ela a cabeça do Sacristão, receoso.

GUARDA
Quero falar com o padre.

SACRISTÃO
(Certifica-se de que não há perigo, abre um pouco mais a porta).
Entre!

Guarda tira o quepe e entra. Sacristão fecha a porta rapidamente. Rosa desce a ladeira. Vem um pouco apressada, como se temesse não mais encontrá-lo ali. Mas quando vê Zé-do-Burro, diminui o passo, tranqüiliza-se em parte. Não perde, entretanto, um certo ar culposo procura disfarçar.

ROSA
Você ainda está aí!
(Nota a igreja fechada)
A igreja não abriu?


Abriu, sim. Mas o Padre não quer me deixar entrar com a cruz

ROSA
Por quê?


(Balança a cabeça, na maior infelicidade)
Não sei, Rosa não sei. Há duas horas que tento compreender... mas estou tonto tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa. Já não entendo nada parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são. O céu no lugar do inferno... o demônio no lugar dos santos

ROSA
(Refletindo na própria experiência)
É isso mesmo. de repente, a gente percebe que é outra pessoa. Que sempre foi outra pessoa é horrível


Mas não é possível, Rosa. Eu sempre fui um homem de bem Sempre temi a Deus.

ROSA
(Concentrada em seu problema)
Zé, isso está parecendo castigo!


Castigo? Castigo por quê? Por eu ter feito uma promessa tão grande? Por ter sido no terreiro de Maria de Iansan? Mas se santa Bárbara não estivesse de acordo com tudo isso, não tinha feito o milagre

ROSA
Zé, esqueça Santa Bárbara. Pense um pouco em nós.


Em nós?

ROSA
Em mim, Zé.


Em você?

ROSA
Sim Zé, em mim, sua mulher.


Que é que você quer? Não dormiu, não descansou?

ROSA
(Sem fitá-lo)
Zé, vamos embora daqui.


Agora?

ROSA
Sim, agora mesmo.


Não posso Você sabe que eu não posso voltar antes de chegar ao fim da promessa. Não ia ter sossego o resto da vida.

ROSA
Você acredita demais nas coisas.


É porque você não pensa no que pode acontecer.

ROSA
Mais do que já aconteceu?


Que aconteceu? A caminhada, as noites sem dormir, e agora ser xingado como a figura do diabo? Tudo isso é nada, comparado com o castigo que pode vir.

ROSA
Mas se o Padre não quer deixar você entrar com a cruz, que é que você ainda vai ficar fazendo aqui?


O Guarda foi falar com ele. Estou esperando.
(Como que desculpando-se por não pensar na situação dela)
Você, se quiser, pode ir comer qualquer coisa.

ROSA
(Ante a impossibilidade de comunicar a ele o seu problema)
Já tomei café no hotel.


Não era bom o hotel que aquele camarada arranjou?

ROSA
Muito bom. Tinha até pia no quarto e colchão de mola.


Fiquei um pouco preocupado.

ROSA
(Ferida pela falta de ciúmes dele)
Comigo?


Você num hotel, sozinha. Cidade grande, a gente nunca sabe. Se bem que o moço garantiu que era hotel de família.

ROSA
Não tinha então que ter cuidado. O moço era de toda confiança. Tão amável, tão prestativo...

REPÓRTER
(Entra acompanhado do Fotógrafo)
Lá está ele.
(Vai a Zé, enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos. O Repórter é vivo e perspicaz. Dirige um cumprimento entusiasta a Zé-do-Burro)
Bom dia, amigo!
(Aperta efusivamente a mão de Zé-do-Burro)
Parabéns! O senhor é um herói.


(com estranheza)
Herói?

REPÓRTER
(Com entusiasmo)
Sim, sete léguas carregando esta cruz.
(Calcula o peso)
Pesada, hem? Sete léguas... quarenta e dois quilômetros. A maior marcha que eu fiz foi de vinte e quatro quilômetros, no Serviço Militar. E o fuzil não pesava tanto assim.
(Ri, mas seu riso murcha como um balão, ante o ar de desconfiança de Rosa e Zé-do-Burro)
Oh, desculpe... eu sei que o senhor fez uma promessa. A comparação não foi muito feliz...
(Para o Fotógrafo)
Carijó, pode bater uma chapa.
(Posa de frente para Zé-do-Burro, de caderno e lápis em punho)
Finja que está falando comigo.


(Começa a impacientar-se)
Fingir que estou falando... pra quê?

REPÓRTER
E dentro de algumas horas o Brasil inteiro vai saber. O senhor vai ficar famoso.


(Contrariado)
Mas eu não quero ficar famoso, eu quero...

ROSA
(Interrompe, em tom de repreensão)
Que é isso, Zé. Seja mais delicado com o moço. Ele é da gazeta...

REPÓRTER
Mulher dele?

ROSA
Sou. Também andei sete léguas - meu pé tem cada calo d'água deste tamanho.

REPÓRTER
Maravilhoso. E em quanto tempo cobriram o percurso?

ROSA
(Não entendeu)
Como?

REPÓRTER
Quero dizer: quando saíram de lá, de sua cidade?

ROSA
Da roça. Saímos ontem de manhãzinha. Cinco horas da manhã.

REPÓRTER
A que horas chegaram aqui?

ROSA
Antes das cinco.

REPÓRTER
Fizeram o percurso então em 24 horas. Com uma cruz que deve pesar?...
(Olha interrogativamente para Zé-do-Burro)


(Contrariado)
Não sei, não pesei.

REPÓRTER
Por menos que pese, é um "record"! Sob este aspecto, podemos considerar um grande feito esportivo. Uma prova de resistência física...
(para Rosa)
e de dedicação...

Rosa sorri, envaidecida, sentindo-se heroína também.

REPÓRTER
Mas como nasceu a idéia dessa... peregrinação?
(As perguntas são feitas a Zé-do-Burro, mas este recusa-se a respondê-las).

ROSA
Não nasceu idéia nenhuma. O burro adoeceu, ia morrer - ele fez promessa pra Santa Bárbara.

REPÓRTER
O burro? Que burro?

ROSA
O Nicolau.


(Irritado)
Por quê? O senhor também vai achar que o meu burro não vale uma promessa?

REPÓRTER
Não, de modo algum... eu... eu apenas não sabia... então, tudo isso... quarenta e dois quilômetros... a cruz... tudo por causa de um burro...
(Repentinamente, antevendo o interesse que despertará a reportagem)
Fabuloso!

ROSA
E não foi só isso. Ele prometeu também repartir o sítio com aquela cambada de preguiçosos.


Que preguiçosos. Gente que quer trabalhar e não tem terra.

REPÓRTER
Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a favor da reforma agrária?


(Não entende)
Reforma agrária? Que é isso?

REPÓRTER
É o que o senhor acaba de fazer em seu sítio. Redistribuição das terras entre aqueles que não as possuem.


E não estou arrependido, moço. Fiz a felicidade de um bocado de gente e o que restou pra mim dá e sobra.

REPÓRTER
(Toma notas)
É a favor da reforma agrária.


É bem verdade que se o meu burro não tivesse ficado doente, eu não tinha feito isso...

REPÓRTER
Mas, e se todos os proprietários de terra fizessem o mesmo. Se o governo resolvesse desapropriar as terras e dividi-las entre os camponeses?


Seria muito bem feito. Cada um deve trabalhar o que é seu.

REPÓRTER
(Ofensiva)
É contra a exploração do homem pelo homem. O senhor pertence a algum partido político?


(Com alguma vaidade, dissimulada num sorriso modesto)
Já quiseram me fazer vereador... qual...

ROSA
O que atrapalhou foi o burro.

REPÓRTER
O burro? Por quê?

ROSA
Aonde ele vai, o burro vai atrás. Se ele fosse eleito, o burro também tinha que ser...

REPÓRTER
É, mas desta vez, "seu"...


Zé-do-Burro, seu criado.

REPÓRTER
..."seu" Zé-do-Burro, o senhor será eleito com burro e tudo.
(Confidencial)
Escute aqui, será que essa história da promessa não é um golpe para impressionar o eleitorado?


(Ofendido)
Golpe?!

REPÓRTER
E de mestre! Avalio a agitação que o senhor fez com isso. Pelas estradas, no caminho até aqui, deve ter-se juntado uma verdadeira multidão para vê-lo passar.


É, tinha...

ROSA
Muito moleque também.

REPÓRTER
E imaginem a volta! A chegada à sua cidade, em carro aberto, banda de música, foguetes!


O senhor está maluco? Não vai haver nada disso.

REPÓRTER
Vai. Vai porque o meu jornal vai promover. Só faço questão de uma coisa: que o senhor nos dê a exclusividade. Que não conceda entrevistas a mais ninguém.
(Noutro tom)
É claro que o senhor terá uma compensação...
(Faz com o indicador e o polegar um gesto característico)
e também a publicidade. Primeira página, com fotografias, o senhor e sua senhora... mandaremos fotografar também o burro - em poucas horas o senhor será um herói nacional.


(Profundamente contrariado)
Moço, eu acho que o senhor não me entendeu .. ninguém ainda me entendeu...

REPÓRTER
(Sem lhe dar atenção)
O diabo foi o senhor ter escolhido um dia como o de hoje. Sábado. Amanhã é domingo, o jornal não sai. Só segunda-feira. E o nosso Departamento de Promoções precisaria preparar a coisa... Podemos dar o furo na edição de hoje, mas o barulho mesmo só segunda-feira. Quando o senhor pretende voltar?


Por mim, já estava de volta.

Abre-se parcialmente a porta da igreja. O Sacristão deixa o Guarda passar e torna a fechá-la. O Guarda vem ao encontro de Zé-do-Burro, que o aguarda sem muita esperança.

GUARDA
(Balança a cabeça, desanimado)
Não consegui nada.


O senhor falou com o padre?

GUARDA
Falei, argumentei... não adiantou. E ainda tive que ouvir um sermão deste tamanho. Ele acha que, em vez de ir pedir para deixar o senhor entrar na igreja, eu devia era levá-lo preso. Claro que eu não vou fazer isso, mas o senhor bem que podia ter arranjado uma promessinha menos complicada.

ROSA
Também acho.

GUARDA
Porque não adianta o senhor ficar aqui; o padre já disse que não abre a porta e não abre mesmo - eu conheço ele.

REPÓRTER
Ótimo! Mas isso é ótimo! Assim temos um pretexto para adiar a entrega da cruz para segunda-feira. Dará tempo então de organizarmos tudo. As entrevistas, as apresentações no rádio... e a sua volta triunfal com batedores e banda de música!


(Cada vez mais contrariado e mais infeliz)
Moço, eu vim a pé e vou voltar a pé.

ROSA
(Ela vislumbrou nas palavras do Repórter uma possibilidade confusa de libertação, ouviu-as num entusiasmo crescente)
Oxente! Não seja estúpido, homem! O moço está querendo ajudar a gente.


Então ele que me ajude a convencer o vigário a abrir a porta...

REPÓRTER
Eu vou já entrevistar o vigário. Mas fique certo de uma coisa: seja qual for o seu objetivo, uma publicidadezinha não fará mal algum...
(Pisca o olho para Zé-do-Burro, que não percebe a insinuação)
Carijó, bata mais uma chapa.
(Para Zé-do-Burro)
Quer fazer o favor de carregar a cruz?
(Para Rosa)
A senhora também.

Zé-do-Burro fica indeciso, sem palavras para traduzir a sua indignação.

ROSA
Vamos, Zé!
(Empurra-o para baixo da cruz e coloca-se a seu lado, numa atitude forçada)

O Guarda também procura, discretamente, aparecer na fotografia. A cena é caricatural, com Rosa escancarando-se num sorriso de dentifrício, Zé-do-Burro vergado ao peso da cruz e de sua imensa infelicidade. E o Guarda, de peito estufado, disputando honrosamente a sua participação no acontecimento.

GALEGO
(Sai da venda, apressado e dirige-se ao Fotógrafo)
Um momento! O senhor não podia fazer aparecer também o meu estabelecimento? Sabe... uma publicidadezinha...

Fotógrafo coloca-se de molde a aparecer, no fundo, a venda. Galego corre para junto do balcão e posa.

REPÓRTER
Ótimo. Pode bater, Carijó.

O Fotógrafo bate a chapa.

REPÓRTER
Obrigado. Esta vai sair hoje na primeira página.
(Para o Fotógrafo)
Vamos agora entrevistar o vigário.

GUARDA
É melhor o senhor ir pela porta da sacristia.


Eu levo o senhor até lá.

REPÓRTER
(Não gosta da idéia)
Não, acho melhor o senhor esperar aqui...


(Com decisão)
Mas eu quero ir com o senhor.

REPÓRTER
(Cede, de má vontade)
Está bem.
(Sai, com Zé-do-Burro e o Fotógrafo)

Ouvem-se buzinas insistentes.

GUARDA
Garanto que agora o padre vai abrir a igreja. Não há quem não tenha medo da imprensa.
(Olha na direção da direita).
Eu vou pra lá, que a coisa está piorando.
(Sai pela direita).

Bonitão desce a ladeira e pára na vendola. Rosa o vê e não esconde a sua emoção.

BONITÃO
(Para o Galego)
Uma dupla.

GALEGO
Olá, Bonitão. Usted por aqui "de madrugada"...
(Serve a cachaça).

ROSA
(Vai à venda e encosta-se no balcão, ao lado de Bonitão)
Um café, moço.

BONITÃO
Ainda?...

ROSA
Ainda.

BONITÃO
Não sei como você agüenta.

ROSA
Eu também não.

BONITÃO
Ele desconfiou de alguma coisa?

ROSA
Nada. Ele só pensa na cruz e na promessa,

BONITÃO
Sabe que eu fui pra casa dormir e não consegui?

ROSA
Por quê?

BONITÃO
Fiquei pensando em você.

ROSA
Melhor que não pense.

BONITÃO
Está arrependida?

ROSA
Estou.

BONITÃO
Agora é um pouco tarde.

ROSA
Não é não. Uma noite a gente pode apagar.

BONITÃO
A gente pode apagar uma porção de noites. Isso não deixa marca.

ROSA
Em mim deixou. Nem sei como ele não vê. Dá até raiva. Dá vontade de contar tudo.

BONITÃO
Não é má idéia. Ele não é homem violento. Podia era largar você aqui na cidade e voltar sozinho pra roça. Isso resolvia tudo.

ROSA
Resolvia o quê?

BONITÃO
Sua vida. Você tem futuro.

ROSA
Adianta não. Minha sina é essa mesma. Às vezes eu tenho vontade, sim, de arrumar a trouxa e ganhar a estrada. Mas não tenho coragem. E se tivesse, não ia saber pra onde ir...

BONITÃO
Quando eu era menino, fui guia de cego...

ROSA
Não estou cega. E sabia muito bem o que estava fazendo. Como sei também que sou capaz de fazer de novo, se ele não me levar daqui. Mesmo sem querer.

BONITÃO
Se você não se livrar dele, vai acabar idiota como ele.

ROSA
(Procurando uma justificativa para sua falta de coragem)
Ele precisa de mim.

BONITÃO
Ele tem o burro.

ROSA
Estúpido!

BONITÃO
Não quis comparar...

ROSA
Ele é muito homem, fique sabendo!

BONITÃO
Se é assim, por que você tem tanta sede?...

ROSA
(Ela se sente cada vez mais empurrada para ele, como para um abismo, e não há nela, precisamente, um desejo de resistir ao salto definitivo. Há apenas a imensa fraqueza da pessoa humana no momento das grandes decisões)
Que tinha você de aparecer aqui de novo?

BONITÃO
Foi você quem veio falar comigo.

ROSA
Você me obriga a fazer o que eu não quero.

BONITÃO
(Ri, cônscio de seu poder de sedução)
Que culpa tenho eu de ter nascido com tantas qualidades?

Ela vai voltar ao centro da praça. Ele a segura pelo braço.

BONITÃO
(Baixo)
Espere...

ROSA
(Idem)
Está louco?

BONITÃO
Pelo jeito, ele ainda vai ficar muito tempo aí. Entendeu?

ROSA
(Solta-se dele com um safanão)
Não entendo nada. Você é doido e eu estou ficando doida também.

BONITÃO
Ele não pode sair de junto da cruz. Mas você pode... pode ir descansar no hotel... ou mesmo ir rezar em outra igreja, pedir a outro santo pra ajudar a convencer o padre a abrir a porta... Um reforço sempre é bom...

Entra Zé-do-Burro. Rosa e Bonitão disfarçam.

MINHA TIA
(Detendo-o)
E então?...


Eles não quiseram que eu entrasse. Acham melhor falar com o Padre em particular...

MINHA TIA
(Assume uma atitude de extrema cumplicidade)
Meu filho, eu sou "ekédi" no candomblé da Menininha. Mais logo o terreiro está em festa. Você fez obrigação pra Iansan, Iansan está lá pra receber!


(Ele não entende)
Como?

MINHA TIA
Eu levo você lá! Você leva a cruz e a santa recebe! Você fica em paz com ela!


Iansan...

MINHA TIA
Foi ela quem lhe atendeu!


Mas a igreja...

MINHA TIA
Mande o padre pro inferno! Leve a sua cruz no terreiro! Eu vou com você!


(Hesita um pouco e por fim reage com veemência)
Não, não foi num terreiro que eu disse que ia levar a cruz, foi numa igreja. Numa igreja de Santa Bárbara.

MINHA TIA
Santa Bárbara é Iansan. E Iansan está lá! Vai baixar nos seus cavalos! Vamos!


Não. Não é a mesma coisa. Não é a mesma coisa.

Abre-se a porta da igreja e surgem Repórter, Fotógrafo e Sacristão.

REPÓRTER
(Para o Sacristão)
O senhor acha que o padre não deixa mesmo ele entrar?

SACRISTÃO
O senhor não ouviu ele dizer? É Satanás! Satanás sob um dos seus múltiplos disfarces!

REPÓRTER
Satanás disfarçado em Jesus Cristo... acho que é um pouco forte. Em todo caso, isso é lá com ele. Eu confesso que não sou muito entendido na matéria. O que interessa é mantê-lo aqui, pelo menos até segunda-feira. Se for preciso, mandarei vir comida e bebida. Contanto que ele não vá embora antes de segunda-feira. Zé-do-Burro dá um passo em direção à igreja. Sacristão assusta-se.

SACRISTÃO
Com licença, senhores, com licença.
(Entra e fecha a porta, precipitadamente).
Fotógrafo vai à vendola.

REPÓRTER
(Vindo a Zé-do-Burro)
Nada feito, meu camarada. O padre é uma rocha.
(Procura estimulá-lo a resistir)
Mas ele vai acabar cedendo. Se você não arredar pé daqui, ele vai ter que abrir a igreja. Eu lhe garanto. Agora a causa não é somente sua, é também do nosso jornal. E sendo do nosso jornal, é do povo!

Zé-do-Burro olha-o como se procurasse inutilmente entender um ser vindo de outro planeta.

REPÓRTER
Eu o aconselho a resistir. Afinal de contas, é um direito. Direito que o senhor adquiriu em 42 quilômetros de "via crucis". Eu confio no senhor.
(Para Rosa)
Leia o meu jornal hoje à tarde. Vai ser um estouro.
(Sai seguido do Fotógrafo)

BONITÃO
Jornalistas, é?

ROSA
É.
(Com vaidade)
Tiraram o meu retrato. Será que vão publicar mesmo?

BONITÃO
Se estivesse nua, eu garantia. Assim... não sei.

Neste momento, entra Marli pela direita. Ao ver Bonitão junto a Rosa, avança para ele em atitude agressiva.

MARLI
Eu sabia!... Tinha que estar atrás de algum rabo-de-saia!

BONITÃO
Que é que você vem fazer aqui?

MARLI
Venho saber por que o senhor não apareceu em casa esta noite.

BONITÃO
Que casa?

MARLI
A minha casa.

BONITÃO
Estava indisposto. Fui para o meu hotel.

MARLI
(Mede Rosa de alto a baixo)
Sim, eu estou vendo a sua "indisposição".

BONITÃO
(Em voz contida, mas enérgico)
Não faça escândalo!

MARLI
Por quê? Está com medo do marido dela?

BONITÃO
Não estou com medo de ninguém, mas não vou deixar você fazer a senhora passar vexame.

MARLI
(Irônica)
A senhora... se ela é senhora, eu sou donzela...

BONITÃO
(Autoritário)
Marli, me obedeça!

MARLI
Está querendo bancar o machão na frente dela, é?

BONITÃO
Eu não tenho nada com ela!

MARLI
Você passou a noite com ela!

O rosto de Zé-do-Burro se cobre de sombras e ele busca nos olhos de Rosa uma explicação. Ela não o fita.

BONITÃO
(Segura Marli por um braço, violentamente)
Vamos para casa!

MARLI
Não! Primeiro quero tirar isso a limpo. Quero que essa vaca saiba que você é meu.
(Com orgulho)
Meu!
(Grita para Rosa)
Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro! Esta e todas as que ele tem!

BONITÃO
(Perde a paciência, ameaçador)
Se você não for para casa imediatamente, nunca mais eu deixo você me dar nada!

MARLI
(Deixando-se arrastar por ele na direção da direita)
Ele é meu, ouviu? Fique com seu beato e deixe ele em paz! É meu homem! É meu homem!

Há uma pausa terrivelmente longa, na qual Zé-do-Burro apenas fita Rosa, silenciosamente, sob o impacto da cena. Em seu olhar, lê-se a dúvida, a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar. As luzes se apagam em resistência.


Segundo Quadro

Três horas da tarde. Zé-do-Burro e Rosa continuam no meio da praça. Minha Tia com seu tabuleiro, na porta da igreja, o Galego na venda, Dedé Cospe-Rima entra da direita.
"ABC da Mulata Esmeralda", romance completo contando toda a vida de Esmeralda, desde o nascimento, no Beco das Inocências, até a morte, por trinta facadas, na Rua da Perdição. (Oferece a Zé-do-Burro) 10 cruzeiros...
Zé-do-Burro recusa com um gesto.

DEDÉ
(Lê, declamando)
Ai, meu Senhor do Bonfim, dai-me muita inspiração, dai-me rima e muita métrica pra fazer a descrição das penas de Esmeralda na Rua da Perdição.
(Para Zé-do-Burro)
Estava pensando... sabe que essa sua briga com o Padre dava um abecê? Quer, eu escrevo.


(Com decisão)
Não.

DEDÉ
Por que não quer? Abecê em versos, ficava bonito...


Não.

DEDÉ
Versos que, modéstia à parte, são lidos pela Bahia inteira.
(Com intenção)
Inclusive pelo Padre Olavo... e não é por me gabar, meu camarada, mas aqui como me vê, poeta pela graça da Virgem e do Senhor do Bonfim, eu sou um homem temido! Quando eu anuncio que vou escrever um folheto contando as bandalheiras desse ou daquele deputado... ah, menino, não tarda o fulano me procurar pra adoçar meus versos.
(Faz com os dedos um sinal característico de dinheiro).
Se eu anunciar nesta tabuleta que vou escrever o "ABC de Zé-do-Burro", tenho certeza de que o Padre abre logo a porta e vem ele mesmo carregar a cruz.

Zé olha-o com desconfiança.

ROSA
Que é preciso pra isso?

DEDÉ
Bem, o consentimento dele, em primeiro lugar. E em segundo, sabe... papel está pela hora da morte, a tipografia está cobrando os olhos da cara...

ROSA
Ah, é preciso pagar...

DEDÉ
Aí uns cinco contos pra ajudar.
(Vai a Zé)
Mas garanto o resultado.


(Vigorosamente)
Não quero que faça nada.

DEDÉ
Olhe que o senhor se arrepende. Garanto que basta anunciar, o Padre se borra todo...


(Corta, irritado)
Não quero, já disse!

DEDÉ
Está bem. Quem perde é o senhor. O senhor e a Poesia nacional.

Mestre Coca desce a ladeira, gingando e pára na vendola. É um mulato alto, musculoso e ágil. Veste calças brancas "boca de sino" e camisa de meia.

COCA
Buenas.

GALEGO
Opa!

DEDÉ
Boa tarde, Mestre Coca.

COCA
Dedé Cospe-Rima... precisa arranjar um serviço de homem, meu camarada...
(Para o Galego)
Me dá um porongo.
(Galego serve a cachaça)
(Ouvem-se trovões longínquos)
Dia de Santa Bárbara... tem que roncar trovoada.

DEDÉ
Já largou a estiva, Mestre Coca?

COCA
Já. Descarreguei um cargueiro holandês até à uma hora e caí no mundo. Hoje, dia de Iansan, não é dia de carregar peso, é dia de vadiar.

DEDÉ
Vamos ter capoeira hoje?

COCA
Mais logo. Mais logo vamos ter vadiação. Vou jogar com Manoelzinho Sua-Mãe.
(Nota Zé-do-Burro)
Me disseram que tinha aqui um homem querendo entrar na igreja com uma cruz e o Padre não queria deixar...

GALEGO
É esse aí.

COCA
Mas lugar de cruz não é dentro da igreja?

DEDÉ
É, mais parece que a cruz é pra Iansan, e o Padre não gostou da história.

COCA
E fechou a porta?

DEDÉ
Não é de admirar. Outro dia ele não quis proibir que eu vendesse meus livros aqui na porta da igreja?

COCA
Por quê?

DEDÉ
Disse que o "ABC da Mulata Esmeralda" era indecente. Falou isso num sermão. E de lá pra cá essas beatas quando passam por mim viram a cara, como se eu fosse a pintura do Cão.

GALEGO
No me gustan los padres. Pero esse está haciendo um buen servido. Por causa dele a freguesia aumentou e já fui até fotografado.

DEDÉ
Se ele quisesse, eu fazia o Padre abrir a porta em dois tempos.

GALEGO
Nada. Deixa el hombre aí. Quanto mais demorar, mejor...

DEDÉ
Vou dar um pulo até o Mercado de Santa Bárbara.

COCA
Ah, lá a festança já começou é de hoje. Capoeira, roda de samba... está bom que está danado.

DEDÉ
Tem turista?

COCA
Vi uns gringos.

DEDÉ
Vou até lá.
(Sobe a ladeira com os folhetos embaixo do braço).

ROSA
(Para o marido)
Sabe que horas são? Três horas da tarde. Você não está com fome?


Não Vá ali na mulher no tabuleiro, compre qualquer coisa pra você
(Tira do bolso uma nota)

Rosa toma a nota e vai a Minha Tia

MINHA TIA
Que é, Iaiá?

ROSA
Qualquer coisa pra matar a fome

MINHA TIA
Precisa mesmo É de hoje que vosmincês estão aí.

ROSA
Desde manhã cedo.

MINHA TIA
(Fitando Zé do Burro com simpatia e incredulidade)
E ele parece um homem tão bom

SECRETA
(O "tira" clássico Chapéu enterrado até os olhos, mãos nos bolsos, inspira mais receio que respeito À primeira vista, tanto pode ser o representante da lei, como o fugitivo da lei Entra pela direita e atravessa a cena, lentamente, em direção à vendola Ao passar por Zé do Burro, demora nele um olhar de desabusada curiosidade)
Uma dupla
(Olha em torno, procurando alguém, consulta o relógio)

ROSA
(Durante a entrada do Secreta, esteve escolhendo alguns quitutes no tabuleiro da baiana Recebe os agora, embrulhados em folha de banana, das mãos da preta. Paga)

MINHA TIA
Diga a ele que não desanime, Iansan tem força!

Rosa leva os quitutes para Zé do Burro Este recusa com um gesto Entra da direita o Guarda, com um jornal na mão

GUARDA
Vejam a Primeira página com retrato e tudo!
(Mostra o jornal a Rosa, que corre ansiosamente)

ROSA
Meu retrato?

GUARDA
Eu também saí.

ROSA
(Examina o retrato)
Hum o senhor saiu muito bem, é cópia fiel!

GUARDA
(Sorri vaidoso)
É eu acho que saí bem vou levar pra minha mulher

ROSA
Quem saiu mal fui eu
(Faz uma careta de desagrado)
Horrível!

GUARDA
Não ligue Fotografia de gazeta é assim mesmo


(Sua atitude para com Rosa é agora de recalcada e surda revolta Embora ele não pareça ter certeza ainda de sua infidelidade, instintivamente começa a perceber que ela se encontra do outro lado, do lado daqueles que, por este ou aquele motivo, não o compreendem, ou fingem não compreendê-lo)
Afinal, que é que diz aí?

GUARDA
(Como se só agora lhe ocorresse ler a reportagem)
Ah, sim (lê) "O novo Messias prega a revolução"


(Estranha)
Revolução?
(Espicha o pescoço e lê por cima do ombro do guarda)

GUARDA
É, revolução... Está aqui...
(Continua)
"Sete léguas carregando uma cruz, pela reforma agrária e contra a exploração do homem pelo homem"
(Entreolham-se sem entender)


Eu bem achei que aquele camarada não era certo da bola

GUARDA
(Continuando a ler)
"Para o vigário da paróquia de Santa Bárbara, é Satanás disfarçado Quem será afinal Zé do Burro? Um místico ou um agitador? O povo o olha com admiração e respeito, pelos caminhos por onde passa com sua cruz, mas o vigário expulsa o do templo No entanto Zé-do-Burro está disposto a lutar até o fim". Acho que o moço não entendeu bem o seu caso
(Olha-o com certa desconfiança)
Ou então fui eu que não entendi
(Dá o jornal a Zé-do-Burro)
Podem ler, mas não joguem fora
(Iniciando a saída)
Quero levar pra casa
(Sai)

ROSA
Zé, não estou gostando disso


Nem eu

ROSA
Não entendi bem o que botaram na gazeta, mas uma coisa me diz que isso não é bom


(Não esconde o ressentimento que guarda dela)
Bem Maria de Iansan disse que a promessa tinha que ser bem grande. Com certeza Santa Bárbara achou que não era bastante o que eu prometi e está cobrando o restante
(Fita Rosa)
Ou está me castigando por eu ter prometido tão pouco

ROSA
Então eu também estou sendo castigada


Ou pode ser que esteja me fazendo passar por tudo isso pra me experimentar. Pra ver se eu desisto da promessa. Santa Bárbara esta me tentando e ainda há pouco quase que eu caio

ROSA
Quando?


Quando aquela sujeita disse tudo aquilo. O sangue me subiu na cabeça e se eu me deixo tentar tinha matado um homem ou uma mulher... Ia preso... e não podia cumprir a promessa. Pensei nisso, naquela hora e agüentei tudo calado. Foi uma prova. Tudo isso é uma provação.

ROSA
(Agarrando-se a uma justificativa para sua própria falta)
Deve ser, sim. É a única explicação pra tudo que aconteceu. Santa Bárbara me usou pra pôr você à prova.


Mas Santa Bárbara não teria feito isso se não conhecesse você melhor que eu...

ROSA
(Veemente)
Eu senti, Zé... senti que havia uma vontade mais forte do que a minha me empurrando pra lá... E você ajudando. Você também é culpado. Eu não queria ir e você insistia. Não é pra me desculpar, mas se tudo é obra de Santa Bárbara, o que é que eu podia fazer?


Podia resistir à tentação, como eu tenho resistido.

ROSA
Era diferente. Não era a mim que ela estava pondo à prova. Era a você. E se ela é santa, se ela pode fazer milagre, pode me obrigar a fazer o que eu não quero, como obrigou. Pode botar o diabo no meu corpo, como botou. Mas isso não vai acontecer mais. Acho até que isso nem aconteceu. Pois se foi uma provação divina...


(Não muito convencido.)
Esse assunto nós vamos resolver depois, na volta.
(Lê o jornal).

Entra Bonitão pela direita e vai diretamente à vendola. Aproxima-se do Secreta. Traz um jornal embaixo do braço.

BONITÃO
(Em voz baixa, disfarçadamente)
Você veio depressa.
(Para o Galego)
Uma dose.

Galego serve.

SECRETA
(Idem)
Que é que você quer falar comigo? Se é sobre a sua volta à Polícia...

BONITÃO
(Corta, sorrindo)
Não, nada disso. Nem estou pensando mais em voltar. Estou muito bem de vida.

SECRETA
Mas tome cuidado. Estão com sua ficha em dia...

BONITÃO
(Ri)
Não acredito. Vocês vivem comendo mosca. Olha aí...
(Indica, com o olhar, Zé-do-Burro)
No meu tempo, esse cabra já estava no xilindró
(Noutro tom)
E vocês me expulsaram...

SECRETA
Quem é ele?

BONITÃO
(Mostrando o jornal)
Tome, leia... Vocês nem lêem gazeta e querem estar em dia.
(O Secreta põe-se a ler o jornal atentamente, dando de vez em quando, uma mirada para Zé-do-Burro, como a comprovar as afirmativas. Bonitão atira uma nota sobre o balcão).

SECRETA
Você já conversou com ele?

BONITÃO
Já. O homem é perigoso. Banca o anjo de procissão, mas não é à toa que o padreco dali de frente fechou a igreja e jurou que ele não entra.

SECRETA
É, mas a coisa é esquisita.

BONITÃO
Eu, se fosse você, "guardava" ele por uns dias...

SECRETA
Também não pode ser assim. Tenho que investigar, depois comunicar ao Comissário.

BONITÃO
Qual, vocês não sabem trabalhar. Dá o flagra no homem!

SECRETA
Flagra de quê? Ele não está fazendo nada...

BONITÃO
Como não? Agitação social!

SECRETA
Venha comigo.

BONITÃO
(Iniciando a passagem)
Ele vai lhe contar a história de um burro, mas não vá nessa conversa.

GALEGO
(Para Mestre Coca)
Polícia... estão querendo prender el hombre!

COCA
Está certo, não. Fazer promessa não é crime.

Zé-do-Burro recebe Bonitão e Secreta com desconfiança.

Rosa mostra certo constrangimento diante de Bonitão. Este apresenta o Secreta.

BONITÃO
Um amigo. Quer conversar com vocês... quer ajudar.

SECRETA
Olá!


(Dentro dele, uma revolta de proporções imprevisíveis começa a crescer)
Ajudar? todo o mundo quer ajudar...
(Arrebata o jornal das mãos de Rosa e o faz em pedaços)

ROSA
(Assustada)
Não faça isso, homem! É do Guarda! Ele pediu pra guardar!


O Guarda também quer ajudar.
(Repete como uma obsessão)
Todos querem ajudar...
(Seu olhar, que começa a ser agora um olhar de fera acuada, cai sobre Bonitão)
Todos...

SECRETA
O senhor sabe que suas idéias são muito perigosas?


Perigosas?

SECRETA
O senhor não devia dizer isso no jornal. E muito menos aqui, em praça pública. Porque isso pode lhe dar muita aporrinhação.


Mais do que já tive?

SECRETA
Por muito menos, tenho visto muita gente ir parar no xadrez.

ROSA
Xadrez?

SECRETA
Estou avisando como amigo.


Amigo. Já vi que estou cercado de amigos. É amigo por todo lado... Cada qual querendo ajudar mais do que o outro.

SECRETA
O senhor é um revoltado.


Não era, não. Mas estou ficando.

SECRETA
É por isso que está aqui desde esta madrugada?


É.
(Inflamando-se)
E daqui não saio enquanto não fizer com que todo mundo me entenda! Todo mundo!

SECRETA
Como pretende fazer isso?


Como... sei lá... mas tem de haver um jeito... tem de haver um jeito...
(Desesperado)
A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba...
(Inicia um gesto, como se atirasse uma bomba contra a igreja, mas o braço se imobiliza no ar, ele percebe a heresia que ia proferir, deixa o braço cair e ergue os olhos para o céu)
Que Deus me perdoe!
(Secreta e Bonitão trocam olhares significativos. Zé-do-Burro avança dois ou três passos em direção à igreja, isola-se do grupo e grita a plenos pulmões)
Padre! Padre!
(Dedé desce a ladeira e fica assistindo à cena, curioso)
Padre, eu andei sete léguas pra vir até aqui! Deus é testemunha! Ainda não comi hoje... e não vou comer até que abra a porta! Um dia, dois... um mês... vou morrer de fome na porta da sua igreja, padre!

Galego deixa a vendola e vem para o meio da praça, no momento em que surgem também na ladeira dois tocadores de berimbau, de instrumento em punho. Colocam-se ao lado de Mestre Coca e ficam apreciando.


(Gritando, alucinadamente)
Padre, é preciso que me ouça, padre!

Abre-se de súbito a porta da igreja e entra o Padre. O Sacristão atrás dele, amedrontado. Grande silêncio. O Padre avança até o começo da escada.

PADRE
Que pretende com essa gritaria? Desrespeitar esta casa, que é a casa de Deus?


Não, Padre, lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz.

PADRE
Estou vendo. E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja.


Está bem, Padre. Se for assim, Deus vai me castigar. E o senhor não tem culpa.

PADRE
Tenho, sim. Sou um sacerdote. Devo zelar pela glória do Senhor e pela felicidade dos homens.


Mas o senhor está me fazendo tão infeliz, padre!

PADRE
(Sinceramente convicto)
Não! Estou defendendo a sua felicidade, impedindo que se perca nas trevas da bruxaria.


Padre, eu não tenho parte com o Diabo, tenho com Santa Bárbara.

PADRE
(Agora para toda a praça)
Estive o dia todo estudando este caso. Consultei livros, textos sagrados. Naquele burro está a explicação de tudo. É Satanás! Só mesmo Satanás podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de Jesus.

ROSA
Não, Padre, não!

PADRE
Por que não?

ROSA
Porque eu conheço ele. É um bom homem. Até hoje só fez o bem.

PADRE
Lúcifer também foi anjo.

ROSA
É até bom demais. Nunca fez mal a ninguém, nem mesmo a um passarinho. É capaz de repartir o que é dele com os outros. De deixar de comer até... pra dar de comer a um burro. É um homem bom, isso eu garanto.

PADRE
Como pode garantir?

ROSA
Sou mulher dele. Vivo com ele. Durmo na mesma cama, como na mesma mesa.

PADRE
Isso não quer dizer nada...

ROSA
(Com mais veemência)
Como é que não?!

Entra o Guarda da direita e se detém no meio da praça.

PADRE
Lúcifer iludiu o Senhor até o último momento!
(Leva o dedo em riste)
Mas eu conheço seus adeptos! Mesmo quando se disfarçam sob a pele do cordeiro! Mesmo quando se escondem atrás da cruz de Cristo! A mesma cruz que querem destruir! Mas não destruirão! Não destruirão!

Neste momento, entra Monsenhor. O Padre está no auge de sua cólera. Ao ver Monsenhor, seu braço se imobiliza no ar, como ante uma aparição sobrenatural.

PADRE
Monsenhor!

SACRISTÃO
Monsenhor Otaviano!

PADRE
(Grita para a praça)
Deixem passar Monsenhor!

Todos abrem passagem e se curvam respeitosamente. Monsenhor avança para a igreja. Ao passar por Zé-do-Burro, este lhe cai aos pés e beija-lhe a mão.

MONSENHOR
(Paternal, magnânimo)
Já sei. Estou tratando do seu caso.
(Entra na igreja, seguido dos seminaristas, do Padre e do Sacristão. Fecha-se a porta).

GUARDA
É Monsenhor Otaviano! Deve ter vindo a mando do Arcebispo!

ROSA
E o Padre ficou apavorado quando viu ele, reparou?

DEDÉ
Com certeza o Arcebispo mandou puxar as orelhas do Padre.

MINHA TIA
Bem feito!

GALEGO
Se deixam el hombre entrar, prejudicam nuestro negócio.


(Com esperança)
Será?... será que o Arcebispo chegou a saber?!

GUARDA
Ora, a cidade inteira já sabe! O rádio já deu!

COCA
Não se fala noutra coisa, da Cidade Baixa até a Cidade Alta!


E ele vir até aqui por causa disso...

ROSA
É porque veio trazer alguma ordem. E ordem do Arcebispo!

DEDÉ
Mandou o Padre deixar de ser besta.

COCA
Mandou abrir a porta!

MINHA TIA
Eu disse: Iansan tem força! Agora ele vai entrar! Vai entrar!


Eu sabia que Santa Bárbara não ia me desamparar!

Abre-se a porta da igreja. Surgem Monsenhor e Padre, seguidos do Sacristão. Há um grande silêncio de expectativa.

MONSENHOR
Venho aqui a pedido de Monsenhor Arcebispo. S. Excia. está muito preocupado com o vulto que está tomando este incidente e incumbiu-me, pessoalmente, de resolver a questão. A fim de dar uma prova da tolerância da igreja para com aqueles que se desviam dos cânones sagrados...


(Interrompe)
Padre, eu sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem, mas queria que o senhor entendesse que eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado, mas sou católico.

MONSENHOR
Pois bem. Vamos lhe dar uma oportunidade. Se é católico, renegue todos os atos que praticou por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja.


(Sem entender)
Como, Padre?

MONSENHOR
Abjure a promessa que fez, reconheça que foi feita ao Demônio, atire fora essa cruz e venha, sozinho, pedir perdão a Deus.


(Cai num terrível conflito de consciência)
O senhor acha mesmo que eu devia fazer isso?!...

MONSENHOR
É sua única maneira de salvar-se. A igreja católica concede a nós, sacerdotes, o direito de trocar uma promessa por outra.

ROSA
(Incitando-o a ceder)
Zé... talvez fosse melhor...


(Angustiado)
Mas Rosa... se eu faço isso, estou faltando à minha promessa... seja Iansan, seja Santa Bárbara... estou faltando...

MONSENHOR
Com a autoridade de que estou investido, eu o liberto dessa promessa, já disse. Venha fazer outra...

PADRE
Monsenhor está dando uma prova de tolerância cristã. Resta agora você escolher entre a tolerância da Igreja e a sua própria intransigência.


(Pausa)
O senhor me liberta... mas não foi ao senhor que eu fiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E quem me garante que como castigo, quando eu voltar pra minha roça não vou encontrar meu burro morto.

MONSENHOR
Decida! Renega ou não renega?

MINHA TIA
Êparrei! Maleme pra ele, minha mãe!

COCA
Maleme!


Não! Não posso fazer isso! Não posso arriscar a vida do meu burro!

PADRE
Então é porque você acredita mais na força do demônio do que na força de Deus! É porque tudo que fez foi mesmo por inspiração do diabo!

MONSENHOR
Nada mais posso fazer então.
(Atravessa a praça e sai)


(Corre na direção de Monsenhor)
Monsenhor! Me deixe explicar!
(No auge do desespero)
Me deixe explicar!

PADRE
Que ninguém agora nos acuse de intolerantes. E que todos se lembrem das palavras de Jesus: "Porque surgirão falsos cristos e falsos profetas, e farão tão grandes sinais e prodígios, que, se possível fora, enganariam a muitos".


Padre, eu não quero enganar ninguém.

PADRE
Enganaria a muitos, sim. E muitos o seguiriam ao sair daqui.


Eu não quero que ninguém me siga!

PADRE
Mas seguiriam, como já o seguiram pelas estradas, sem saber que seguiam a Satanás!


(Subitamente fora de si, corre para a cruz, levanta-a nos braços como um aríete e grita)
Padre! Por Santa Bárbara ou por Satanás, vou colocar esta cruz dentro da igreja, custe o que custar!

PADRE
(Ante a decisão que vê estampada no rosto de Zé-do-Burro, recua amedrontado)
Eis a prova: um católico não ameaça invadir a casa de Deus! Guarda! Prenda esse homem!
(E ante a investida de Zé-do-Burro, que caminha para a igreja, corre seguido do Sacristão e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus. Este, revoltado e vencido, atira a cruz contra a porta. A cruz tomba, estrondosamente, sobre a escada. Zé-do-Burro senta-se num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos).

COCA
(Para os tocadores de berimbau)
Fiquem aqui. Vou chamar o resto do pessoal...
(Sobe a ladeira).

BONITÃO
(Para o Secreta)
Que está esperando?... Não está convencido ainda?...

SECRETA
(Faz um sinal afirmativo com a cabeça)
Espere...
(Sai pela direita)

ROSA
(Que percebeu a troca de palavras entre o Secreta e Bonitão)
Espere o quê? Quem é ele?

BONITÃO
Um secreta.

ROSA
(Começando a compreender)
Polícia! Você?! Você denunciou...?!

BONITÃO
Daqui a pouco, você vai ficar livre desse idiota.

ROSA
(Horroriza-se ante a idéia da traição)
Você não devia ter feito isso! Não devia!

BONITÃO
É pro seu bem. Pro nosso bem.

ROSA
(Angustiada pelo conflito de consciência que se apossa dela)
Não... assim, não! Eu não queria assim!...

BONITÃO
Agora está feito.

Rosa se debate em seu conflito: de um lado, sua noção de lealdade gerando um repúdio natural à delação. Do outro, todos os seus recalques sexuais, sua ânsia de libertação, de realização mesmo, como mulher, que Bonitão veio despertar. Enquanto isso, Zé-do-Burro, sentado nos degraus da igreja, sofre uma crise nervosa. Soluça convulsivamente. Os tocadores de berimbau fazem gemer a corda de seus instrumentos.

E lentamente, enquanto as luzes de cena se apagam,

CAI O PANO.



Terceiro Ato

Entardecer. A praça está cheia de gente. Na escadaria da igreja, Zé-do-Burro e Rosa. Na vendola, o Galego. À frente da vendola, formou-se uma roda de capoeira. Dois tocadores de berimbau, um de pandeiro e um de reco-reco, sentados num banco, e os "camaradas", formando um círculo, ao centro do qual, de cócoras, diante dos músicos, estão Mestre Coca e Manoelzinho Sua-Mãe. Dedé Cospe-Rima está entre os componentes da roda e Minha Tia não se encontra em cena. Choram os berimbaus e Rosa, dominada pela curiosidade, aproxima-se da roda.

MESTRE DO CORO
(Canta):
Sinhazinha que vende aí?
Vendo arroz do Maranhão
Meu sinhô mando vende
Na terra do Salomão.
Aruandê
Camarado.

CORO
É, É.
Aruandê
Camarado

MESTRE
Galo canto

CORO
Ê, ê.
Aruandê
Camarado

MESTRE
Cocorocó

CORO
Ê, ê
Aruandê
Camarado

MESTRE
Goma de goma

CORO
Ê, ê
Goma de goma
Camarado.

MESTRE
Ferro de mata

CORO
Ê, ê
Ferro de mata Camarado

MESTRE
É faca de ponta

CORO
Ê, ê
Faca de ponta
Camarado

MESTRE
Vamos embora.

CORO
Ê, ê
Vamos embora
Camarado

MESTRE
Pro mundo afora

CORO
Ê, ê
Pro mundo afora
Camarado

MESTRE
Dá volta ao mundo

CORO
Ê, ê
Volta do mundo
Camarado

E tem início o jogo. Mestre Coca e Manoelzinho Sua-Mãe percorrem a roda virando o corpo sobre as mãos e começam a luta-dança, cuja coreografia é ditada pelo toque do berimbau.

DEDÉ
(Grita)
Quero ver um "rabo-d'arraia", Mestre Coca!

UMA VOZ
Manoelzinho Sua-Mãe é porreta no aú!

OUTRA VOZ
Eu queria vê isso à vera.

MESTRE DO CORO
Quem te ensino essa mandinga?
Foi o nego de sinhá.
O nego custo dinhero,
dinhero custo ganha, Camarado.

CORO

Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.

MESTRE DO CORO
Amanhã é dia santo,
dia de corpo de Deus
Quem tem roupa vai na missa,
quem não tem faz como eu.

CORO
Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.

MESTRE DO CORO
Minino, quem foi teu mestre?
quem te ensino a joga?
- Só discip'o que aprendo meu mestre
foi Mangangá,
na roda que ele esteve,
outro mestre lá não há Camarado.

CORO
Cai, cai, Catarina,
sarta de má, vem vê Dalina.

Rosa, apreensiva, nervosa, desinteressa-se da capoeira: vai até a ladeira, olha para o alto, ansiosamente, como se esperasse alguém, depois volta pra junto do marido. Muda o ritmo do jogo.

MESTRE DO CORO
Panha a laranja no chão, tico-tico
ai, se meu amo fô s'imbora eu não fico

CORO
Panha a laranja no chão, tico-tico

MESTRE DO CORO
Minha camisa é de renda de bico

CORO
Panha a laranja no chão, tico-tico

MESTRE DO CORO
Ai, se meu amo fô s'imbora eu não fico

E novamente muda o jogo, agora rápido, com os dois jogadores empenhando-se em golpes de espantosa agilidade, no ritmo cada vez mais acelerado da música.

MESTRE DO CORO
Santa Bárbara que relampuê
Santa Bárbara que relampuá

CORO
Santa Bárbara que relampuê
Santa Bárbara que relampuá

MESTRE DO CORO
Vou pidi a Santa Bárbara.
Pra ela me ajudá

CORO
Santa Bárbara que relampuê
Santa Bárbara que relampuá

Esse estribilho é repetido várias vezes em ritmo cada vez mais rápido, até que Minha Tia surge no alto da ladeira e marca, num canto sonoro.

MINHA TIA
Óia, o ca-ru-ru!

Cessa de repente o canto e o acompanhamento. Os jogadores param de jogar.

MINHA TIA
É o caruru de Santa Bárbara, minha gente!

A roda de capoeira se desfaz, alegremente. Todos cercam Minha Tia, que vai instalar seu tabuleiro no local costumeiro, ajudada pelos capoeiristas. Apenas os músicos continuam nos seus bancos e Mestre Coca vai à vendola. Rosa também permanece junto do marido, demonstrando um nervosismo, uma ansiedade crescente.

A capoeira não deve durar mais que dois minutos, a fim de não quebrar a continuidade dramática da peça.

DEDÉ
O primeiro caruru é meu, Minha Tia!

Minha Tia enche um prato e coloca-o de lado, no chão.

DEDÉ
Pra quem é esse?

MINHA TIA
É pra Santa.
(Enche outro prato, dá a Dedé)
Agora sim, é seu.

Dedé recebe o prato e dirige-se à vendola.

COCA
(Tira do bolso uma nota e coloca-a sobre o balcão)
Aposto cem.

GALEGO
(Coloca uma nota sobre a de Mestre Coca)
Casado.

COCA
Fica na mão de quem?
(Dedé vem se aproximando)
De Dedé Cospe-Rima.

DEDÉ
Também quero entrar nessa aposta.

COCA
O Galego diz que o padreco não deixa o homem entrar. Eu digo que vai acabar entrando, hoje mesmo, com cruz e tudo.

GALEGO
Entra nada. Yo conheço esse padre. Moça com vestido decotado no entra nesta igreja. Yo mismo já vi ele parar la missa até que uma turista americana, de calças compridas, se retirasse...

DEDÉ
E eu digo que o homem entra, mas não hoje, amanhã. O Padre quer humilhar ele primeiro, mas depois vai ficar com medo dele ir se queixar pra Santa Bárbara e vai abrir a porta.

GALEGO
Pero usteds no entenderam la cosa. Ele no fez promessa pra Santa Bárbara. Fez para Iansan, num candomblé.

COCA
E que tem isso?

GALEGO
Tem que candomblé és candomblé e igreja és igreja.

COCA
E a Santa não é a mesma?

DEDÉ
Não, o Galego tem razão. A santa pode ser a mesma, mas o Padre tem medo da concorrência e quer defender o seu negócio.

COCA
Mas não adianta. Iansan tem força. O homem entra.

GALEGO
Nem Iansan nem todos os orixás do candomblé fazem ele entrar.

DEDÉ
Entra, sim. Amanhã ele entra.
(Num tom de mistério)
E não se admirem se for eu que fizer ele entrar...

GALEGO
Usted?

DEDÉ
Sim, eu, Dedé Cospe-Rima.

COCA
E como?

DEDÉ
Ah, isso é segredo profissional...

COCA
Então, se ele entrar hoje, ganho eu. Se entrar amanhã, ganha você. Se não entrar, ganha o Galego.

DEDÉ
Fechado.

COCA
Bota cem pratas.
(Estende a mão)

DEDÉ
(Segura o prato com u'a mão, com a outra remexe os bolsos)
Não tenho ainda não, mas de noite eu lhe dou.

COCA
(Desconfiado)
Vê, lá, hem?
(Dá o dinheiro ao Galego)
Por via das dúvidas, fica com o dinheiro, Galego.

MANOELZINHO
(Aproxima-se de Mestre Coca)
Tu tá um bicho na capoeira, Mestre Coca.

COCA
Você é quem diz.

MANOELZINHO
Tinha ido lá pro mercado, pensando que ia ser lá a vadiação. Lá me disseram que tinha vindo todo mundo pra cá...

COCA
Por causa do homem da cruz.

MANOELZINHO
Diz que ele quer cumprir obrigação pra Iansan...

UM CAPOEIRA
Quer botar essa cruz lá dentro da igreja.

OUTRO CAPOEIRA
E já quiseram até prender ele.

MANOELZINHO
Só por causa disso?

UM CAPOEIRA
Então.

MANOELZINHO
Não pode!

COCA
Não pode e não vão fazer. O homem não fez nada.

DEDÉ
(Aproxima-se de Zé-do-Burro)
Amanhã... amanhã você entra, meu camarada. Lhe garanto. Vou hoje pra casa escrever a história desse padre. Sei umas coisas dele... e se precisar a gente inventa. Amanhã vou chegar aqui com uma tabuleta: "Aguardem! O padre que fechou a casa de Deus"! Vai ver se ele abre ou não abre a porta. Ou abre ou vai ter que me passar uma gaita pra não publicar os versos.
(Pisca o olho e afasta-se).

MINHA TIA
(Para Rosa)
Não quer também, Iaiá?

ROSA
Não.

MINHA TIA
Caruru de Santa Bárbara. Antigamente a gente fazia isso e era de graça. Hoje, com a vida do jeito que está, a gente tem mesmo é que cobrar.

GALEGO
(Atravessa a praça com um prato de sanduíches na mão e vai a Zé-do-Burro)
Pero yo no cobro nada.
(Oferece)
Oferta da casa.


Pra mim?

GALEGO
Si, para usted. Cachorro-quente. Después trarê un cafezito.


Não, obrigado.

GALEGO
Pode aceitar sin constrangimento. E podemos até hacer um negócio. Se usted promete no arredar pé de cá, yo me comprometo a fornecer comida e bebida gratuitamente para los dos.


Não, não tenho fome.

GALEGO
(Muito preocupado)
Pero, asi usted no poderá resistir!


Não importa.

GALEGO
(Oferece a Rosa)
A senhora não quer?...

ROSA
Não estou com vontade.

GALEGO
(Encolhe os ombros, conformado)
Bien...
(Volta à venda)


(Ele observa a intranqüilidade indisfarçável de Rosa, que a todo o momento olha assustada para a ladeira ou para a rua, esperando ver surgir a polícia)
Que é que você tem?

ROSA
Nada. Queria era ir embora.


Sozinha?

ROSA
Não, com você.


(Com intenção)
Pensei que estivesse farta de mim.

ROSA
(Nervosamente)
Estou farta é dessa palhaçada. Estamos aqui bancando os bobos. Toda essa gente está rindo de nós, Zé! Quem não está rindo está querendo se aproveitar! É uma gente má, que só pensa em fazer mal.
(Sacode-o pelos ombros, como para chamá-lo à realidade)
Largue a cruz onde está, Zé, e vamos embora pra nossa roça, antes que seja tarde demais!


De que é que você está com medo?

ROSA
De tudo.


Não é de você mesma?

ROSA
Também! Mas já não sou eu quem corre perigo, é você.


Que perigo?

ROSA
Você não vê? Não sente? Não respira? Está no ar!... E cada minuto que passa, aumenta o perigo.
(Olha para todos os lados, como fera acuada)
Esta praça está ficando cada vez menor... como se eles estivessem fechando todas as saídas.
(Volta-se para ele, com veemência)
Vamos embora Zé, enquanto é tempo!


(Desconfiado)
Que deu em você assim de repente?

ROSA
Não é de repente, desde que chegamos que eu estou querendo voltar. Você foi que teimou em ficar. Por mim, você tinha largado aí essa cruz e voltado no mesmo pé.
(Com intenção)
A esta hora, já estava na estrada longe daqui, e nada tinha acontecido...


Você acha que depois de andar sete léguas eu ia voltar sem cumprir a promessa?

ROSA
Você já pagou essa promessa, Zé. Não é sua culpa se há gente sempre disposta a ver demônios em toda a parte, até mesmo naqueles que estão do seu lado e que odeiam também o demônio. É gente que vai acabar enxergando na própria sombra a figura do diabo.

Entreabre-se a porta da igreja e surge na fresta a cabeça do Sacristão, que, ao ver Zé-do-Burro, torna a entrar e fechar a porta.

ROSA
Está vendo? O Padre mandou ver se você ainda estava aqui; não vai abrir a porta enquanto a gente não for embora. Vamos, Zé!


(Reage com irritação, procurando combater em si mesmo o desejo de ir)
Não, já disse que não. Só arredo pé daqui depois de levar a cruz lá dentro da igreja.

Secreta entra na direita e atravessa a praça em direção à vendola, observando dissimuladamente, Zé-do-Burro. Ao vê-lo, Rosa não esconde a sua inquietação. Acompanha-o com um olhar amedrontado até a vendola

SECRETA
(Para o Galego)
Uma meladinha.

Galego serve a cachaça com mel.


(Notando a apreensão de Rosa)
Que há?

ROSA
Ele não é nosso amigo.


E que tem isso?

ROSA
Ouvi dizer que é da polícia.


Não sou nenhum criminoso, não fiz mal a ninguém.

ROSA
Por isso mesmo que eu tenho medo, porque você não sabe fazer mal... e eles sabem!

Mestre Coca e Manoelzinho vão à vendola, encostam-se no balcão junto do Secreta.

GALEGO
Que van hacer com o homem?

SECRETA
Deixe que eu cuido disso.

COCA
Mas ele não fez nada...

SECRETA
(Lança a Mestre Coca um olhar de intimidação)
E é melhor não se meterem onde não são chamados.

Secreta bebe a cachaça de um trago, coloca uma moeda sobre o balcão e volta a atravessar a cena, com ar misterioso, saindo pela rua da direita. Mestre Coca e Manoelzinho trocam um olhar de solidariedade.

ROSA
Ele só veio ver se a gente ainda estava aqui... vamos aproveitar, antes que ele volte.


Deixe de bobagem. Não sou menino que quando brinca com fogo mija na cama.
(Põe-se a picar fumo com uma faquinha).

MARLI
(Entra da direita, atravessa a cena, lentamente, num andar provocante).

DEDÉ
(Referindo-se a Marli)
Boa moça... Só que... casou com a humanidade...

Mestre Coca ri

MARLI
(Na vendola, para o Galego)
Viu Bonitão?

GALEGO
Já esteve aqui várias vezes, hoy.

MARLI
(Referindo-se a Rosa)
Eu sei... e sei também o motivo.

GALEGO
Festa de Iansan?

MARLI
Não é bem Iansan, é outro orixá.

ROSA
(Para Zé-do-Burro)
Vou ali, preciso falar com aquela mulher.


Que é que você ainda tem que falar com ela? Não lhe basta a vergonha que ela lhe fez passar?

ROSA
Mas eu preciso, Zé! Eu preciso!
(Vai à vendola. Zé-do-Burro a segue com um olhar de profunda desilusão)
Preciso falar com você.

MARLI
(Hostil, estranhando)
Comigo?

ROSA
Ou melhor, com ele, Bonitão. Onde está ele?

MARLI
Sujeita sem vergonha. Dá em cima do meu homem e ainda tem o descaramento de vir me pedir pra dizer onde ele está! Não lhe basta o seu? Precisa do meu pra se contentar?

ROSA
Não preciso do seu homem pra nada. Quero só falar com ele, pra evitar uma desgraça.

MARLI
(Ameaçadora)
Se você quer mesmo evitar uma desgraça, o melhor é deixar ele em paz.

ROSA
Mas eu tenho que falar com ele. Juro que é assunto sério.

MARLI
Você pode enganar o trouxa do seu marido. Mas a mim, não!

ROSA
Onde ele mora?

MARLI
Mora comigo.

ROSA
Mentira. Eu sei que ele mora num hotel.

MARLI
Pois vá lá atrás dele, pra ver o que lhe acontece.

ROSA
(Reagindo)
Pare com isso que eu não tenho medo de você.

MARLI
Nem eu de você.

As duas se olham desafiadoramente a ponto de quase se atracarem. Zé-do-Burro, que ouviu a discussão, aproxima-se.


Rosa, você perdeu a cabeça? Não sabe qual é o seu lugar? Discutindo na rua com uma...
(completa a frase com um gesto de desprezo).

MARLI
Com uma o quê, seu beato pamonha? Carola duma figa! A mulher dando em cima do homem da gente e ele agarrado aí com essa cruz! Isso também faz parte da promessa?

ROSA
Cale essa boca! Não se meta com ele. Ele não tem nada com isso!

MARLI
Não tem! Não é seu marido?

ROSA
É, mas não se rebaixa a discutir com você.

MARLI
(Mede-o de cima a baixo, com mais desprezo ainda)
Corno manso!
(Dá-lhe as costas, bruscamente e sobe a ladeira).

Galego solta uma gargalhada, que corta de súbito, ante o olhar ameaçador de Zé-do-Burro. Este, num gesto instintivo, ergue a pequena faca de picar fumo.

ROSA
Zé!

GALEGO
(Intimidado)
Perdon... no se puede dar confiança a essas mujeres....


(Para Rosa, num tom que revela sua desilusão, sua revolta e sua decisão de não mais deixar-se iludir)
Esta noite a gente vai embora.

ROSA
E por que não agora?


Vamos deixar passar o dia de Santa Bárbara

ROSA
De noite, talvez seja tarde...


Tarde pra quê?

ROSA
Pra voltar!


O que você ainda queria falar com aquele sujeito?

ROSA
Pedir pra ele deixar você em paz.


A mim?

ROSA
Ele denunciou você à polícia.


Mas eu sou um homem de bem. Nunca tive nada com a polícia.

ROSA
Eu sei. Mas eles torcem as coisas. Confundem tudo.
(Angustiada)
Zé! Ouça o que eu digo. A gente devia ganhar a estrada agora mesmo. Neste minuto.

O Repórter e o Fotógrafo entram pela direita, a tempo de ouvirem a última "fala" de Rosa.

REPÓRTER
Eh, que é isso? Já estão pensando em ir embora?!


(Hostil)
Vou embora quando quiser, não tenho que dar conta disso a ninguém.
(Dá as costas ao Repórter, ostensivamente e volta para junto da cruz, na escadaria da igreja. O Fotógrafo conversa qualquer coisa com os componentes da roda de capoeira e sai seguido de Mestre Coca e mais três ou quatro).

REPÓRTER
Vocês não estão falando sério, não?... Sim, porque eu espero que vocês cumpram o que prometeram. Meu jornal está cumprindo. Já tomei todas as providências para que sua estada aqui até segunda-feira seja a mais agradável possível.

ROSA
Como?...

Neste instante, entram os capoeiristas conduzindo primeiro uma tenda de pano já armada e em seguida um colchão de molas. Na tenda, há um letreiro: Oferta da Casa da Lona. No colchão há outro: Gentileza da Loja Sonho Azul. Com enorme espanto de Zé-do-Burro e Rosa, eles colocam a barraca no meio da praça e o colchão dentro da barraca.

REPÓRTER
Fomos aos nossos clientes e eles se dispuseram prontamente a colaborar conosco.

Entra o Fotógrafo trazendo uma mesinha e um aparelho de rádio de pilha, que coloca também na barraca.


(Surpreso)
O senhor trouxe essas coisas... pra nós?

REPÓRTER
Bem julgamos que um pouco de conforto durante esses dias não reduzirá também o valor de sua promessa. Além disso, segunda-feira, depois da entrada triunfal na igreja, o senhor percorrerá a cidade em carro aberto, com batedores, num percurso que irá daqui até a redação do nosso jornal. De lá irá ao Palácio do Governo, onde será recebido pelo Governador.
(Zé vai dizer qualquer coisa e ele o interrompe)
Já sei: vai dizer que se o vigário de Santa Bárbara não o deixar entrar em sua igreja, o Governador vai também lhe bater com a porta na cara. Não se preocupe. Já estamos mexendo os pausinhos. E se o senhor puder dizer uma palavrinha a favor do candidato oficial nas próximas eleições, estará tudo arranjado.

ROSA
Por favor, leve tudo isso daqui. Nós estamos de partida.

REPÓRTER
De partida? Não, não pode ser... isso seria um desastre para mim... O jornal já fez despesas... já compramos foguetes, contratamos uma banda de música para a volta...

ROSA
A volta vai ser hoje mesmo.

REPÓRTER
Hoje?! Mas não dá tempo!... Não está nada preparado... O que é que a senhora pensa? Que é assim tão simples organizar uma promoção de venda? É muito fácil pegar uma cruz jogar nas costas e andar sete léguas. Mas um jornal é uma coisa muito complexa. Mobilizar todos os departamentos para dar cobertura... e depois, eu já lhe disse, amanhã é domingo, não tem jornal!

ROSA
(Irritando-se)
E qual é o meu?! Que se dane o seu jornal! Eu quero é ir embora daqui! O Zé tem razão, vocês todos querem ajudar, ajudar... ajudam mas é a desgraçar a vida da gente.

REPÓRTER
Está precisando de alguma ajuda... particular?

ROSA
Estou. A Polícia anda rondando a praça.

REPÓRTER
A Polícia?

ROSA
Um secreta. Estão querendo levar ele preso.

REPÓRTER
Por quê?

ROSA
(Pensa um pouco)
Talvez porque ele é bom demais... E o resto é gente safada.

REPÓRTER
Hum... bem me pareceu que por trás dessa história do burro, da promessa, havia qualquer coisa... uma intenção oculta e um objetivo político. A polícia, naturalmente, percebeu também...

ROSA
Mas ele não tem nenhuma intenção, a não ser a de pagar a promessa!

REPÓRTER
(Sorri, descrente)
É claro que a senhora não vai dizer. Nem ele também Mas podem contar comigo e com o meu jornal. Se ele for preso, daremos toda a cobertura. Abriremos manchetes na primeira página. Será uma maravilha para ele!

ROSA
Maravilha! Maravilha ser preso?!

REPÓRTER
Todo líder precisa ser preso pelo menos uma vez!

ROSA
Líder... eu acho que o senhor é maluco. O senhor, esse padre, a polícia, todos. E eu também, se não me cuidar, vou acabar ficando.

(Olha, ansiosamente, para o alto da ladeira)

REPÓRTER
(Chama de parte o Fotógrafo)
Prepare-se, daqui a pouco é capaz de haver um bafafá...

Rosa, angustiada, volta para junto do marido.

ROSA
Desista, Zé. Desista.


Por que você não senta aqui e espera até a hora de ir embora?

ROSA
(Senta-se num degrau)
É, o jeito é esperar...

DEDÉ
(Vai a eles com seus folhetos)
E enquanto espera, deve aproveitar para melhorar sua cultura. O "ABC da Mulata Esmeralda", modéstia à parte, é uma verdadeira jóia da literatura brasileira. Por 10 Cruzeiros apenas, o senhor poderá ler os mais inspirados versos que uma mulata jamais inspirou. Zé-do-Burro balança negativamente a cabeça. Dedé vai a Minha Tia.

DEDÉ
Poesia está muito por baixo, Minha Tia. Quem está por cima é o caruru.
(Aproxima-se da roda de capoeira. Zé-do-Burro sobe um ou dois degraus, fita, revoltado, a porta cerrada)

MINHA TIA
(Para Zé-do-Burro)
Não desanime, moço. Hoje é dia de Iansan, mulher de Xangô, Orixá dos raios e das tempestades. Mais nos terreiros, ela está descendo no corpo dos seus cavalos. Vai falar com ela moço, vai pedir a proteção de Iansan, que tudo quanto é porta há de se abrir!
(Ouvem-se trovões mais fortes que da vez anterior)
Óia!...
(Aponta para o céu)
Iansan está falando!...
(Abaixa-se, toca o chão com a ponta dos dedos, depois a testa e saúda Iansan)
Eparrei, minha mãe!

Neste momento, surge Bonitão na ladeira. Rosa levanta-se, movida por uma mola. Zé-do-Burro, com os olhos pregados na porta da igreja, não o vê Não vê que os olhares de Rosa e Bonitão se cruzam de um extremo a outro da praça. É que ele, da ladeira, faz para ela um gesto, convidando-a a acompanhá-lo. Rosa hesita, presa de tremendo conflito. Olha para Zé-do-Burro, para Bonitão. Este a espera, certo de que ela acabará por ir ao seu encontro. Minha Tia, Galego e Dedé percebem o que se passa e aguardam atentamente. Vendo que ela não se decide, Bonitão dá de ombros, sorri e acena num gesto curto de despedida. Inicia a subida da ladeira, mas pára depois de dar dois ou três passos, fora do ângulo visual de Rosa e Zé-do-Burro. Ela, como que atraída por um ímã, inicia o movimento para segui-lo, quando Zé-do-Burro volta-se.


Aonde vai, Rosa?

ROSA
(Detém-se)
Vou ali, já volto.


Ali aonde?

ROSA
No hotel onde dormi. Lembrei agora que esqueci lá o meu lenço.
(Avança mais na direção da ladeira)


Rosa!

ROSA
(Pára, já na altura da ladeira, vê Bonitão à sua espera)
Que é?


(Num apelo e numa advertência que é quase uma súplica)
Deixe esse lenço pra lá!

ROSA
(Hesita ainda um pouco)
Não posso, Zé. Eu preciso dele!


Compro outro pra você, Rosa!

ROSA
Pra quê, Zé, gastar dinheiro à toa... é daquele que eu gosto!
(Sobe a ladeira)

Bonitão passa o braço pela cintura dela e os dois sobem a ladeira. Galego e Dedé Cospe-Rima trocam olhares significativos.

DEDÉ
(Canta)
Quem corta e prepara o pau,
quem cava e faz a gamela,
toma a si todo o trabalho
e depois fica sem ela...

O sino da igreja começa a tocar as Ave-Marias. A Beata surge no alto da ladeira, apressada. Ao passar pela roda de capoeira que novamente se anima, tem um ar de repulsa e indignação.

BEATA
Falta de respeito! Bem em frente da igreja. Este mundo está perdido!...

MINHA TIA
(Oferece)
Caruru, Iaiá?

BEATA
(Pára junto a ela)
Quê?

MINHA TIA
Caruru de Iansan...

BEATA
(Como se ouvisse o nome do diabo)
Iansan?! E que é que eu tenho com dona Iansan? Sou católica apostólica romana, não acredito em bruxarias!

MINHA TIA
Adiscurpe, Iaiá, mas Iansan e Santa Bárbara não é a mesma coisa?

BEATA
Não é não senhora! Santa Bárbara é uma santa. E Iansan é... é coisa de candomblé, que Deus me perdoe!...
(benze-se repetidas vezes e sai)

CORO
Quem corta e prepara o pau
Quem cava e faz a gamela,
Toma a si todo o trabalho
E depois fica sem ela.

Mestre Coca, entra correndo.

COCA
(A Zé-do-Burro)
Meu camarada, trate de ir embora! Estão lhe arrumando uma patota!


O quê?

COCA
Chegou um carro da Polícia! Eles estão com o Padre, na sacristia.

MINHA TIA
Vieram por causa dele?

COCA
Então!


Mas eu não roubei, não matei ninguém!

DEDÉ
Quer um conselho? Experiência própria, com a polícia, é melhor fugir do que discutir.

COCA
Ande depressa que nós agüentamos eles aqui até você ganhar o mundo!


Não, eu não vou fugir como qualquer criminoso, se estou com a minha consciência tranqüila.

DEDÉ
Ele não se separa da cruz.

COCA
A gente esconde a cruz.

MINHA TIA
E de noite ele leva ela pra Iansan.

COCA
Vamos todo mundo levar! Todos os capoeiras da Bahia!

MINHA TIA
É a mesma coisa, meu filho! Iansan é Santa Bárbara. Eu lhe mostro lá no "peji" a imagem da santa.

COCA
É preciso se decidir, meu camarada! Antes que seja tarde.


(Balança a cabeça, sentindo-se perdido e abandonado)
Santa Bárbara me abandonou! Por quê, eu não sei... não sei!

ROSA
(Desce a ladeira correndo)
Zé! Não adianta... não adianta mais... Falei com ele, mas não adianta. A Polícia já está aí! Vem cercar a praça!

COCA
Eu não disse?

DEDÉ
É preciso andar depressa, meu irmão!

MINHA TIA
Some daqui, meu filho!

ROSA
Vamos, Zé!


Santa Bárbara me abandonou, Rosa!

ROSA
Se ela abandonou você, abandone também a promessa. Quem sabe se não é ela mesma que não quer que você cumpra o prometido?


Não... mesmo que ela me abandone... eu preciso ir até o fim... ainda que já não seja por ela... que seja só pra ficar em paz comigo mesmo.

Subitamente, abre-se a porta da igreja e entram o Delegado, o Secreta, o Guarda, o Padre e o Sacristão.

SECRETA
(Aponta para Zé-do-Burro)
É esse aí.
(Avança para Zé-do-Burro, seguido do Delegado e do Guarda).

GUARDA
(Como que se desculpando)
Eu já cansei de pedir a ele pra sair daqui, seu Delegado, não adiantou...

DELEGADO
(Faz o Guarda calar com um gesto autoritário)
Seus documentos.


(Estranha)
Documentos?...

DELEGADO
Carteira de identidade.


Tenho não...

DELEGADO
Outra carteira, outro documento qualquer.


Moço, eu vim só pagar uma promessa. A Santa me conhece, não precisava trazer carteira de identidade.

DELEGADO
(Sorri irônico)
Pagar uma promessa... pensa que nós somos idiotas.

SECRETA
Não demora e ele conta a história do burro...

DELEGADO
Ele vai contar essas histórias todas mas é na Delegacia. Vamos, acompanhe-me.


(Seu olhar vai do Delegado ao Secreta e ao Guarda, sem entender o que se passa)
Acompanhar o senhor... pra quê?

DELEGADO
Mais tarde você verá. Sou delegado deste distrito. Obedeça.


Não posso. Não posso sair daqui.

DELEGADO
Não pode por quê?

COCA
Promessa, seu Delegado. Ele é crente.

DELEGADO
O Padre disse que ele ameaçou invadir a igreja. Pediu garantias.

SECRETA
Eu mesmo ouvi ele dizer que ia jogar uma bomba. Todo mundo aqui é testemunha!

DELEGADO
Uma bomba, hem... Vamos à Delegacia... quero que o senhor me explique isso tudo direitinho.

SECRETA
Vamos.
(Segura Zé-do-Burro por um braço mas este se desvencilha)
Que é? Vai reagir?

GUARDA
(Apaziguador)
Acho melhor o senhor obedecer...

DELEGADO
Se ele reagir, pior para ele. Não estou disposto a perder tempo e conheço de sobra esses tipos. Só se entregam mesmo é a bala.

ROSA
Não!


Os senhores devem estar enganados. Devem estar me confundindo com outra pessoa. Sou um homem pacato, vim só pagar uma promessa que fiz a Santa Bárbara.
(Aponta para o Padre)
Aí esta o vigário para dizer se é mentira minha!

PADRE
É mentira, sim! E não somente mentira, também um sacrilégio!


Padre, o senhor não pode dizer que é mentira, que eu não fiz essa promessa!

PADRE
Sim, talvez tenha feito, por inspiração de Satanás! Há quem diga que não estamos mais em época de acreditar em bruxas. No entanto, elas ainda existem! Mudaram talvez de aspecto, como Satanás mudou de métodos. É mais difícil combatê-las agora, porque são inúmeros os seus disfarces. Mas o objetivo de todas continua a ser um só: a destruição da Santa Madre Igreja!

DELEGADO
Padre, este homem...

PADRE
Este homem teve todas as oportunidades para arrepender-se. Deus é testemunha de que fiz todo o possível para salvá-lo. Mas ele não quer ser salvo. Pior para ele.

DELEGADO
(Que ganhou decisão com o sermão do Padre)
Sim, pior para ele.
(Avança um passo na direção de Zé-do-Burro, que recua e fica encurralado contra a parede).


(Decidido a resistir)
Não! Ninguém vai me levar preso! Não fiz nada pra ser preso!

DELEGADO
Se não fez não tem o que temer, será solto depois. Vamos à Delegacia.

ROSA
Não, Zé, não vá!

GUARDA
É melhor... na Delegacia o senhor explica tudo.

DEDÉ
Não caia nessa, meu camarado.


Agora eu decidi: só morto me levam daqui. Juro por Santa Bárbara, só morto.

SECRETA
(Vê a faca na mão de Zé-do-Burro)
Tome cuidado, Chefe, que ele está armado!
(Observa a atitude hostil dos capoeiras)
E essa gente está do lado dele!

COCA
Estamos mesmo. E aqui vocês não vão prender ninguém!

DELEGADO
Não vamos por quê?

MANOELZINHO
Porque não está direito!

DELEGADO
Estão querendo comprar barulho?

COCA
Vocês que sabem...

DELEGADO
Não se metam, senão vão se dar mal!

SECRETA
E é melhor que se afastem.

ROSA
Zé!


Me deixe, Rosa! Não venha pra cá!

Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção à igreja. Sobe um ou dois degraus, de costas. O Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé-do-Burro corre e abaixa-se para apanhá-la. Os policiais aproveitam e caem sobre ele, para subjugá-lo. E os capoeiros caem sobre os policiais para defendê-lo. Zé-do-Burro desapareceu na onda humana. Ouve-se um tiro. A multidão se dispersa como num estouro de boiada, Fica apenas Zé-do-Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto

ROSA
(Num grito)
Zé!
(corre para ele)

PADRE
(Num começo de reconhecimento de culpa)
Virgem Santíssima!

DELEGADO
(Para o Secreta)
Vamos buscar reforço
(Sai, seguido do Secreta e do Guarda).

O Padre desce os degraus da igreja, em direção do corpo de Zé-do-Burro.

ROSA
(Com rancor)
Não chegue perto!

PADRE
Queria encomendar a alma dele...

ROSA
Encomendar a quem? Ao Demônio?

O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre Coca consulta os companheiros com o olhar. Todos compreendem a sua intenção e respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e ajudam a carregar o corpo. Colocam-no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado. Carregam-no assim, como numa padiola e avançam para a igreja. Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali. Mas Rosa o repele com um safanão e segue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Intimidados, o Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cortejo. Só Minha Tia permanece em cena. Quando uma trovoada tremenda desaba sobre a praça.

MINHA TIA
(Encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa)
Êparrei minha mãe!


E O PANO CAI LENTAMENTE.





Fim do livro



















Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.
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Coleção
TEATRO DE DIAS GOMES
Volume 3


Teatro de Dias Gomes:
vol. 1: O Pagador de Promessas
vol. 2: O Rei de Ramos
vol. 3: O Santo Inquérito
vol. 4: O Bem-Amado
vol. 5: Os Campeões do Mundo
vol. 6: A Invasão
vol. 7: Dr. Getúlio sua vida e sua glória
(com Ferreira Gullar)
vol. 8: O Berço do Herói
vol. 9: Amor em campo minado












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DIAS GOMES






O Santo Inquérito






(Peça em dois atos)




9.a edição


















Copyright © by Dias Gomes

DO MESMO AUTOR:
(publicados por esta Editora)
TEATRO DE DIAS GOMES — 2º vol.
A INVASÃO E A REVOLUÇÃO DOS BEATOS
O BERÇO DO HERÓI
O PAGADOR DE PROMESSAS
DR. GETÚLIO, SUA VIDA E SUA GLÓRIA
As PRIMÍCIAS
O REI DE RAMOS

Montagem de capa:
EUGÊNIO HIRSCH
sobre desenho de:
ELIFAS ANDREATO
Revisão:
UMBERTO F. PINTO
REGINA BEZERRA


É proibida qualquer representação desta peça em Teatro, Rádio Televisão, ou sua reprodução por quaisquer meios mecânicos no original ou em adaptação, sem o consentimento do Autor,


Direitos desta edição reservados à
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Av. Beira Mar, 262 — Sala 802
20021 — Castelo — Rio de Janeiro — RJ


1985
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

NOTA DO AUTOR
Esta peça teve já várias edições e várias montagens teatrais. A última versão cênica estreou em São Paulo no dia 25 de agosto de 1977, com direção de Flávio Rangel. A presente edição, que considero definitiva, adota alguns cortes que fiz no texto e segue as rubricas sugeridas por aquele espetáculo.
DIAS GOMES

CONTRA CAPA
DIAS GOMES
em suas peças sempre se coloca em posição crítica diante da realidade nacional e humana — e realiza o processo dessa situação.
É o que faz também em
O Santo Inquérito
— peça que gira em torno da histórica
— ou lendária? — figura de Branca Dias, uma vítima da Inquisição.
Vazada num diálogo espontâneo e vivo,
O Santo Inquérito
focaliza, fundamentalmente, o direito que o ser humano tem às suas idéias e à liberdade de expressá-las e vivê-las.

ORELHAS DO LIVRO
Dias Gomes é uma das principais figuras da renovação teatral que se processou no Brasil. O Pagador de Promessas, mais do que um grande êxito dos palcos nacionais e estrangeiros — e também do cinema — , fixou-se, desde logo, como um marco da nova dramaturgia nacional. Foi, ainda, o ponto de partida para outras experiências inovadoras do próprio teatrólogo. Há dois Dias Gomes: um antes e outro depois de O Pagador de Promessas. O escritor baiano, porém, não dormiu sobre os louros colhidos com essa peça já clássica. Enveredou para outros caminhos, empenhado, sempre, no debate da realidade brasileira e na valorização de uma linguagem igualmente apegada aos modos de dizer de nossa gente.
O Santo Inquérito é outra das grandes peças brasileiras modernas, por suas intenções artísticas e por suas preocupações sociais. Baseando-se num episódio histórico — ou lendário — como o de Branca Dias — essa vítima da Inquisição em quem alguns historiadores vêem uma espécie de Joana D'Arc cabocla — Dias Gomes afasta, de imediato, as fáceis, espetaculares e vistosas pompas que um escritor romântico traria para o palco. O que lhe importa é o conflito entre a pureza da personagem, a sua boa fé, a sua sinceridade, e aqueles que lhe deturpam essa forma de comportamento, nesta vendo intentos perigosos à ordem estabelecida e oposição a conceitos que são fundamentais para que nunca sofram abalo instituições ou sistemas de idéias muito confortáveis para quem precisa de preservá-las.
No seu teatro — inclusive em O Santo Inquérito — Dias Gomes pleiteia, no dizer correto do crítico Yan Michalski, "uma sociedade justa e tolerante, na qual o indivíduo possa desfrutar livremente e em paz de todas as maravilhosas dádivas da natureza, e transmitir aos seus semelhantes o impulso de generosidade e amor que existe no coração de todos os homens de boa fé".
Em O Santo Inquérito, Dias Gomes, mais uma vez, propõe uma mensagem "de bondade, de generosidade, de lealdade, de respeito humano", onde o valor moral da sacrificada Branca Dias se sobreleva em relação aos seus algozes, mesquinhas criaturas cuja mente deformada as torna capazes de clamorosa injustiça e de atos de terrível crueldade.

Sumário

Prefácio
O que sabemos
Personagens
Primeiro ato
Segundo ato

Prefácio

YAN MICHALSKI
Lembro-me perfeitamente da profunda emoção e surpresa que senti ao assistir, em 1960, no TBC paulista, a O pagador de promessas. É verdade que estávamos, então, numa época em que a dramaturgia brasileira fervilhava, e que novos textos nacionais de boa categoria não constituíam raridade. Mas, com exceção de alguns nomes já consagrados e que continuavam na ordem do dia — Jorge Andrade, Francisco Pereira da Silva, Ariano Suassuna —, essa dinâmica e súbita explosão da nossa literatura dramática se achava amplamente dominada pela jovem geração ligada ao Teatro de Arena: Guarnieri, Boal, Oduvaldo Vianna Filho. Ninguém podia esperar, em sã consciência, uma contribuição reveladora por parte de Dias Gomes, um escritor que não foi muito bem-sucedido em suas três ou quatro experiências anteriores e que parecia ter desistido da carreira teatral, pois passou a se dedicar ativamente — e aparentemente sem maiores ambições — ao rádio e à televisão; e esta circunstância — além, evidentemente, da densidade intrínseca de O pagador de promessas — contribuiu muito, com certeza, para a nossa emoção, quando a voz do dramaturgo Dias Gomes se fez ouvir de repente com um tão inesperado e irresistível vigor.
Desde essa sua tardia revelação, há seis anos, o escritor baiano percorreu um considerável e respeitabilíssimo caminho dentro do teatro e da cultura brasileiros, como se quisesse recuperar o tempo perdido até então. O pagador de promessas carregou a sua cruz não só em dezenas e dezenas de palcos nacionais, como também em inúmeros teatros fora das nossas fronteiras, desde Nova Iorque até Varsóvia. Transformado em filme, O pagador de promessas trouxe ao cinema brasileiro a sua maior consagração e promoção internacional. O TBC de São Paulo, depois do triunfo de O pagador de promessas, montou A revolução dos beatos. No Rio, uma bela montagem de A invasão proporcionou à companhia do Teatro do Rio uma série de prêmios, antes da bem-sucedida encenação do mesmo texto no Uruguai. No ano passado, O berço do herói foi vítima da violência da nossa censura teatral, tendo a sua apresentação sido proibida poucas horas antes da estréia. Dias Gomes volta agora com O Santo Inquérito, completando, quer me parecer, um ciclo, ou seja, retornando àquilo que havia de melhor em O pagador.
Segui com invariável interesse a evolução de Dias Gomes através de A revolução dos beatos, A invasão, O berço do herói. Como crítico, não pude deixar de constatar certas ingenuidades que pareciam prejudicar, sob determinados aspectos, estas obras, dando a impressão de que o autor, na ânsia de transmitir ao público o seu indignado protesto contra toda espécie de injustiças e opressões de que o povo brasileiro tem sido vítima através dos tempos, carregava às vezes demais nas tintas, sem ter a paciência de vigiar as suas palavras, preferindo o efeito do choque direto e óbvio ao efeito — provavelmente mais eficaz no teatro — do choque-sugestão. Mas nem por isso deixei de acompanhar com o máximo respeito a constante pesquisa que estas peças refletem no sentido da procura de uma forma teatral capaz de projetar, com a maior eficiência, a sinceridade das preocupações sociais do autor. Confesso, porém, que em nenhuma destas obras — e independentemente do mérito de cada uma delas — encontrei aquilo que mais me impressionara em O pagador: um grande, comovente, antológico personagem de teatro. Reencontro agora, em Branca Dias de O Santo Inquérito, um personagem à altura da dimensão humana de Zé-do-Burro, e colocado numa situação de conflito bastante semelhante, sob alguns aspectos.
Zé-do-Burro e Branca Dias: dois seres puros em luta contra uma impiedosa conspiração que não admite a pureza, que se aproveita dela, e que acaba por destruí-la. E assim como em O pagador de promessas, a grande arma usada contra a heroína de O Santo Inquérito é a sistemática e coerente exploração das palavras e dos atos dos protagonistas para a formação de conceitos inteiramente diferentes, na sua essência, das autênticas intenções destes personagens.
A grande tragédia da incomunicabilidade humana, que alimentou e alimenta ainda uma considerável parte do teatro moderno, encontra, portanto, nessas obras de Dias Gomes uma expressão particularmente cruel e patética — porque particularmente singela. Dias Gomes não precisa recorrer ao hermetismo do chamado teatro do absurdo, nem aos elaborados exercícios intelectuais de um Pirandello, para mostrar que a capacidade de comunicação dos homens entre si é muito relativa e que a linguagem, em vez de ser um elo entre os homens, pode se transformar numa terrível fonte de mal-entendidos e de destruição. Tanto Branca como Zé-do-Burro esforçam-se ao máximo para convencer os seus antagonistas da boa fé das suas intenções, mas cada tentativa neste sentido não faz senão fortalecer ainda mais o muro contra o qual eles esbarram:
"BRANCA: Tudo isso que estou dizendo é na esperança de que vocês entendam... Porque eles, eles não entendem... nem eu também os entendo. Vão dizer que sou uma herege e que estou possuída pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! (...) Não sei... não sei o que eles pretendem. Já não entendo mesmo o que eles falam. Parece que as palavras estão mudando de significado. Ou talvez Deus não me tenha dado muita inteligência..."
"ZÉ-DO-BURRO: Não sei, Rosa, não sei... Há duas horas que tento compreender... mas estou tonto, tonto como se tivesse levado um coice no meio da testa. Já não entendo nada..., parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são. O céu no lugar do inferno... o Demônio no lugar dos santos..."
Branca e Zé-do-Burro saem fatalmente derrotados, mas, ao mesmo tempo, também vitoriosos, desta luta desigual. Derrotados, porque a fidelidade aos princípios morais que regem os seus atos tem que ser paga com o sacrifício das suas vidas. Vitoriosos, porque a proximidade desse sacrifício lhes permite a descoberta de valores mais altos, aos quais eles até então não tinham tido acesso, e que dão um sentido consciente e coerente à sua existência.
"BRANCA: Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol."
"ZÉ-DO-BURRO: Não... mesmo que Santa Bárbara me abandone... eu preciso ir até o fim... ainda que já não seja por ela... que seja só pra ficar em paz comigo mesmo."
Além desta trágica e obstinada luta contra um esmagador poder deturpador de valores, Zé-do-Burro e Branca têm em comum o seu admirável, simples e modesto humanismo. Ambos são cheios de vida, ambos têm uma espécie de solidez que lhes vem do íntimo trato diário com a terra e a natureza e ambos não pedem outra coisa senão viver com simplicidade, de acordo com os seus princípios, e cumprindo conscienciosamente a modesta e despretensiosa missão que acreditam ter recebido para cumprir na terra:
"BRANCA: Mas eu não quero ser santa. Minhas pretensões são bem mais modestas. Não é pela ambição que o Capeta há de me pegar. Quero viver uma vida comum, como a de todas as mulheres. Casar com o homem que amo e dar a ele todos os filhos que puder."
"ZÉ-DO-BURRO: Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha consciência e quite com a santa. Só isso... (...) Os senhores devem estar enganados. Devem estar me confundindo com outra pessoa. Sou um homem pacato, vim só pagar uma promessa que fiz a Santa Bárbara."
A capacidade de ternura que Zé e Branca possuem se manifesta, com extrema clareza, na comovente amizade que ambos dedicam aos bichos:
"BRANCA: Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estórias e acompanhar procissão de formigas. Sério. Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno na boca dos buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas."
"ZÉ-DO-BURRO: Nicolau não é um burro como os outros. É um burro com alma de gente. E faz isso por amizade, por dedicação. Eu nunca monto nele, prefiro andar a pé ou a cavalo. Mas de um modo ou de outro, ele vem atrás. Se eu entrar numa casa e me demorar duas horas, duas horas ele espera por mim, plantado na porta. Um burro desses, seu padre, não vale uma promessa?"
Em Branca Dias — mais do que em Zé-do-Burro, e mais talvez do que em qualquer outro personagem da dramaturgia nacional — a alegria de viver, a sensibilidade a tudo aquilo que a vida pode oferecer de bom e a gratidão que ela sabe mostrar a Deus por lhe ter feito o dom de tantas e tão variadas riquezas, se manifestam através de acenos cuja expressão lírica chega, em certos momentos, a nos lembrar uma famosa irmã francesa de Branca: a doce Violaine de L'annonce faite a Marie, de Claudel:
"BRANCA: O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos quando ando a cavalo, na água do rio que me acaricia o corpo quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentada, com muita farofa, desses que jazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso, E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer."
"VIOLAINE : Pardonnez-moi que je suis hereuse! parece que celui que j'aime
M'aime, et je suis sûre de lui, et je sais qu'il m'aime et tout est égal entre nous!
Et parce que Dieu m'a faite pour être heureuse et non point pour le mal et aucune peine."
Um paralelo entre Dias Gomes e o maior dramaturgo católico do nosso século pode, evidentemente, parecer surpreendente, mas se examinarmos atentamente O pagador de promessas e O Santo Inquérito, este paralelo perderá o seu aspecto de paradoxo. Mesmo no aparente e violento anticlericalismo de Dias Gomes podemos sentir nitidamente uma nostalgia — provavelmente inconsciente — de uma Igreja mais justa e humana, menos presa a valores puramente formais e mais voltada para os valores essenciais: uma Igreja à imagem da sociedade com a qual Dias Gomes sonha e pela qual combate. E os ideais representados e defendidos por Branca Dias e por Zé-do-Burro (e também, em última análise, por Dias Gomes, em todas as suas tomadas de posição como escritor e como intelectual ciente da sua missão) poderiam provavelmente ser endossados por qualquer escritor católico identificado com a evolução contemporânea do pensamento cristão. O que Dias Gomes pleiteia é uma sociedade justa e tolerante, na qual o indivíduo possa desfrutar livremente e em paz de todas as maravilhosas dádivas da natureza, e transmitir aos seus semelhantes o impulso de generosidade e amor que existe no fundo do coração de todos os homens de boa fé:
"BRANCA: Acho que as boas ações só valem quando não são calculadas. (...) Não foi querendo agradar a Deus que eu me atirei no rio para salvar o padre. Foi porque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Porque era um gesto de amor ao meu semelhante. E é no amor que a gente se encontra com Deus. No amor, no prazer e na alegria de viver."
Longe de mim, bem entendido, a idéia de rotular Dias Gomes de escritor católico: todas as suas obras refletem um profundo, coerente e sincero engajamento ideológico-político e almejam, quero crer, constituir uma combativa contribuição dialética para a luta por uma ordem social melhor, e não sermões destinados à divulgação de uma doutrina religiosa ou moral. Mas não me parece errado nem tendencioso considerar que a importância maior dessas obras reside, pelo menos em parte, em trazer a um país atormentado e dividido em facções e grupos de opiniões, aparentemente irreconciliáveis, uma mensagem que é, apesar dos seus acentos de justificada indignação, um grito de confiança na fraternidade entre os homens: incompreendidos, perseguidos e acusados, Zé-do-Burro e Branca Dias nos estendem a mão e nos falam numa linguagem de bondade, de generosidade, de lealdade, de respeito ao ser humano. Todos aqueles que souberem entender esta linguagem terão o seu lugar na maior das Igrejas — a dos homens de boa vontade. Mas quem insistir em se recusar, ainda que sob o mais moralizador dos pretextos, a aceitar esse oferecimento de diálogo, estará se colocando ao lado dos inquisidores, nesta interminável série de Santos Inquéritos que é a história universal.

O que sabemos e o que
pensamos das personagens
Parece fora de qualquer dúvida que Branca Dias, realmente, existiu e foi vítima da Inquisição. Segundo a lenda, bastante conhecida no nordeste, Branca foi queimada, como Joana d'Arc. A história não é tão precisa. Há controvérsia. Opinam alguns pesquisadores que, embora tendo sofrido perseguições, Branca deve ter morrido na cama, como os generais. Mas nenhum põe a mão no fogo. Nelson Werneck Sodré inclina-se pela primeira versão. E se Branca, que segundo Ademar Vidal "era jovem de boniteza excepcional", não terminou seus dias numa fogueira, bem poderia ter tido essa sorte, pois os autos-de-fé de meados do século XVIII, em Lisboa, registram a condenação de cerca de quarenta mulheres procedentes do Brasil, Aqui mesmo, na Bahia, em fins do século XVI, a octogenária Ana Roiz foi queimada simplesmente "por ter, doente, tresvariando, dito desatinos". Alguém (um ancestral dos modernos dedos-duros) ouvira e denunciara. Também com relação à sua nacionalidade divergem os pesquisadores, alguns dando-a como portuguesa banida para o Brasil pelas perseguições anti-semitas da Inquisição lusa, no século XVI. Viriato Corrêa, que estudou o assunto, endossa essa versão. Mas a maioria afirma ter sido ela brasileira de nascimento e paraibana. Ademar Vidal chega a citar datas precisas: nascimento "na capital da Paraíba em 15 de julho de 1734, tendo sido seus pais Simão Dias e Dona Maria Alves Dias, ambos da terra de André Vidal", e morte no "auto-de-fé de 20 de março de 1761, às seis horas da tarde, em Lisboa, no lugar onde demora o Limoeiro1". Também quanto ao lugar da execução há divergência, querendo alguns que tenha sido aqui mesmo, no Brasil. Enfim, história e estória entram em choque e esta é uma briga para historiadores e folcloristas. A mim, como dramaturgo, o que interessa é que Branca existiu, foi perseguida e virou lenda. A verdade histórica, em si, no caso, é secundária; o que importa é a verdade humana e as ilações que dela possamos tirar. Se isto não aconteceu exatamente como aqui vai contado, podia ter acontecido, pois sucedeu com outras pessoas, nas mesmas circunstâncias, na mesma época e em outras épocas. E continua a acontecer. Muito embora a Santa Inquisição tenha hoje vários defensores, que procuram amenizar a imagem que dela fazemos e diminuir a responsabilidade da Igreja (a nova Igreja, justiça lhe seja feita, a Igreja de Paulo VI, procura ser, na teoria e na prática, a condenação formal do espírito e dos métodos do Santo Ofício), a verdade é que as razões apresentadas em sua defesa são as mesmas de todos os opressores, quase sempre sinceramente convencidos de que seus fins justificam os meios. São as razões de Hitler, de Franco e de MacCarthy. Vejamos o que diz um desses defensores da Santa Inquisição, o Padre José Bernardo2: "...tanto o Estado como a Igreja se viam em face de um perigo crescente e ameaçador. Toda a sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a civilização e cultura do Ocidente, o progresso, a união e a paz estavam ameaçados de dissolução".
1 Lendas e superstições, Edições O Cruzeiro.
2 A Inquisição — História de uma Inquisição controvertida.

Ameaçados por quê? Pelas heresias, sendo o protestantismo e as práticas judaizantes dos cristãos-novos as que mais preocupavam a hegemonia católica. Na defesa dessa hegemonia, justificava-se o emprego de medidas que, embora contrariando o espírito cristão, encontravam acolhida entre os teólogos da Igreja de Cristo. "Conforme São Tomás, todo aquele que tem o direito de mandar, tem também o de punir, e a autoridade que tem o poder de fazer leis tem também o de lhes dar a sanção conveniente. Ora, as penas espirituais nem sempre bastam. Alguns as desprezam. É por isto que a Igreja deve possuir e possui o direito de infligir também penas temporais3." E embora o braço eclesiástico não decretasse diretamente as penas de morte, na verdade as endossava ao relaxar a vítima ao braço secular, para que este as aplicasse. "É, portanto, justíssimo que a pena de morte seja aplicada aos que, propagando a heresia com obstinação, perdem o bem mais precioso do povo cristão, que é a fé, e, por divisões profundas, semeiam nele graves desordens4." Em Portugal e no Brasil foram os cristãos-novos as maiores vítimas desse direito de punir invocado pela Igreja no poder. Quando, em 1496, Dom Manoel desposou Dona Isabel, filha dos reis católicos, esta exigiu que todos os judeus fossem expulsos de Portugal antes de ela lá pisar. Dom Manoel apressou-se em satisfazer a exigência da noiva, decretando que todos os judeus e mouros forros se retirassem do reino. Entretanto, os navios que deveriam transportá-los à África lhes foram negados, no momento em que eles se reuniam nos portos, prontos para partir, seguindo-se então uma terrível perseguição, à qual poucos sobreviveram. Estes foram convertidos à força, constituindo os cristãos-novos, no íntimo fiéis à sua antiga fé. Acreditando representarem permanente perigo às instituições e à civilização cristã, a Santa Inquisição os mantinha sob severa vigilância. Justificando essa atitude de autodefesa, o Padre José Bernardo traça um paralelo entre o Tribunal do Santo Ofício e os Comitês de Atividades Antiamericanas, criados pelo macarthismo. Diz ele: "Será lícito reprimir a heresia pelo uso da força, quando ela constitui um perigo iminente para a ordem religiosa e civil?" A autoridade civil já dera, havia muito, a resposta afirmativa e continua ainda hoje na mesma disposição.

3 A verdade sobre a Inquisição, Henrique Hello, Editora Vozes.
4 Henrique Hello, ob.cit.

Siga um exemplo: contrariando seus princípios de completa liberdade democrática, os Estados Unidos da América do Norte julgaram necessário proteger-se contra a desintegração da sua sociedade. Começaram a citar diante dos tribunais os comunistas declarados "por pregarem uma ideologia revolucionária", com o fim confessado de derrubar a ordem existente e a constituição democrática... Este proceder contra os comunistas é uma genuína restauração dos princípios inquisitoriais da Idade Média5. Até quando esses princípios serão invocados, até quando forjarão mártires como Branca e Augusto, ou criminosos por omissão, como Simão Dias? Até quando as fogueiras reais ou simplesmente morais (estas não menos cruéis) serão usadas para eliminar aqueles que teimam em fazer uso da liberdade de pensamento?

5 Padre José Bernardo, ob. cit.

Branca é realmente culpada de heresia. De acordo com a monitoria do inquisidor-geral, instruções para a configuração das heresias, ela está "enquadrada" em vários artigos, sendo, além disso, acusada de atos contra a moralidade e da posse de livros proibidos. Mas, do princípio ao fim, ela caminha de coração aberto ao encontro de seu destino, acreditando que a sinceridade e a pureza que lhe moram no coração a absolvem de tudo. Mais importante do que conhecer e seguir as leis e os preceitos ao pé da letra não é estar possuída de bondade? Se ela traz Deus em si mesma, e se Deus é amor, isso não a redime inteiramente? E é isto, justamente, que a perde, não percebe que os homens que a julgam agem segundo uma idéia preconcebida, que subverte a verdade, embora eles também não tenham consciência disso e se considerem honestos e justos. E, sem dúvida, o são, se os considerarmos segundo seu ponto de vista. Branca nada percebe até o fim, quando já é tarde demais. Sua perplexidade cede lugar então a um princípio de consciência, que inicialmente a aniquila e depois a faz erguer-se na defesa fatal da própria dignidade. Branca nada tem de comum com Joana d'Arc, a não ser o fim trágico. Ela não é uma iluminada, não ouve vozes celestiais, nem se julga em estado de graça. É mulher. E para a mulher o amor é a verdadeira religião, o casamento a sua liturgia e o homem a humanização de Deus. Não se julga destinada a grandes feitos, nem a uma vida excepcional. Quer casar-se e ter quantos filhos puder — seu ventre anseia pela maternidade. Nada tem das maneiras masculinas de Joana, nem de seu espírito de sacrifício; é feminina, frágil e vê no prazer uma prova da existência de Deus. A grandeza que atinge, no final, ao enfrentar o martírio é dada pela sua recusa em acumpliciar-se com os assassinos de Augusto. É um gesto de protesto e também de desespero.
Padre Bernardo era jesuíta, muito embora os inquisidores fossem, em geral, dominicanos. Mas, nas visitações ordenadas para o Brasil, os jesuítas tiveram papel de destaque6, vindo a ser, depois, suas maiores vítimas, com a perseguição a eles movida pelo Marquês de Pombal. Além disso, aqui, como em toda a peça, seguimos a lenda, procurando harmonizá-la, sempre que possível, com a verdade histórica e subordinando ambas aos interesses maiores da obra dramática.

6 Capistrano de Abreu, Um visitador do Santo Oficio. 20

A conduta do Padre Bernardo para com Branca, a princípio, é impecável. Ele quer realmente salvá-la, curá-la de seus "desvios", repô-la nos trilhos de sua ortodoxia, e acredita, sinceramente, que assim procede por dever de ofício e gratidão. Quando a paixão carnal (que desde o início o motivou inconscientemente) começa a torturá-lo, ele só encontra um caminho para combatê-la: a punição de Branca, que será, em última análise, a sua própria punição. Mas em nenhum momento ele tem consciência de estar sacrificando Branca à sua própria purificação. Sua convicção é de que ela é culpada, herege irredutível e irrecuperável, sendo justa a pena que lhe é imposta. Também o Visitador do Santo Ofício, ao relaxá-la ao braço secular, tem a consciência tranqüila — está certo de ter esgotado todos os esforços para levá-la ao arrependimento, está convicto de ter usado de toda a tolerância e toda a misericórdia e chegado ao limite onde qualquer irresolução na defesa da fé e da sociedade importa num suicídio dessa mesma fé e dessa mesma sociedade. A tranqüilidade com que ordena a aplicação de torturas em Augusto Coutinho, exigindo somente que sejam observadas as regras impostas pelo inquisidor-geral, não revela nele qualquer sintoma de sadismo, mas apenas a deformação a que pode chegar a mente humana para a defesa de uma causa. Olhado através de seu próprio prisma de interesses, motivações e condicionamento histórico, o bispo visitador pode ser considerado até liberal, equilibrado, humano e justo — muito embora seja ele o executor da tarefa hedionda, desumana e cruel.
Essa deformação, em outro ângulo, pode ser percebida também no Notário. O necessário esquematismo da personagem pode levar à sua desumanização, e isso seria um erro. Ele é o que comumente chamamos "um bom sujeito". Se tivesse oportunidade de encontrar-se a sós com Branca, talvez chegasse até a compadecer-se de sua sina e a pensar "num jeito" de livrá-la. Diante do Visitador, porém, ele é um autômato, em que pesem as suas irreverentes interrupções durante a inquirição. No decorrer do processo, ele se transforma na peça de uma máquina e jamais lhe passaria pela mente emperrar deliberadamente essa engrenagem. A sua irritação ao ver Branca não compreender a inexorabilidade do processo a que está submetida é uma prova de sua humanidade, embora isto não chegue a conscientizá-lo. Mais consciência da iniqüidade de seu papel tem o Guarda — também certo da impossibilidade de modificá-lo.
Diz a lenda que, em noites de plenilúnio, quando o nordeste sopra na copa das árvores, Branca desliza pelas rua silenciosas da capital paraibana e vai visitar o noivo prisioneiro e torturado nos subterrâneos do Convento de São Francisco. Um dos mais belos aspectos da estória é esse amor e a fidelidade a ele. Mas não é apenas o amor que tem por Branca o que leva Augusto a preferir a morte a acusá-la; é a certeza de que sua vida não vale a indignidade que querem obrigá-lo a cometer. Augusto é o homem em defesa de sua integridade moral, cônscio de que o ser humano tem em si mesmo algo de que não pode abrir mão, nem mesmo em troca da liberdade. Ele troca a vida pelo direito de vivê-la com grandeza, ao contrário de Simão. Neste, prevalece o sentimento de salvar-se a qualquer preço. Mesmo ao preço da própria dignidade. É a voz que não se levanta diante de uma injustiça praticada contra outrem, que não protesta contra uma violência, se essa violência não o atinge diretamente, esquecido de que as violências contra a criatura humana geram, quase sempre, uma reação em cadeia que talvez não pare no nosso vizinho. Seu receio de comprometer-se leva-o a assistir à morte de Augusto sem um gesto ou uma palavra em sua defesa. Essa omissão o torna cúmplice, como cúmplices são todos aqueles que se omitem por egoísmo ou covardia, podendo fazer valer a sua voz. Quem cala, de fato, colabora.
D. G.


















Que tempo é este, em que
falar de árvores é quase um crime,
pois importa em calar sobre tantos
horrores.
BERTOLT BRECHT



Homens, eu vos amava! Velai!
(Últimas palavras do diário de JÚLIO
FUCHICK, escritor tcheco assassinado
pelos nazistas.)


Personagens
Branca Dias
Padre Bernardo
Augusto Coutinho
Simão Dias
Visitador do Santo Ofício
Notário
Guarda

ÉPOCA — 1750

AÇÃO — Estado da Paraíba

Primeiro Ato
O palco contêm vários praticáveis, em diferentes planos. Não constituem propriamente um cenário, mas um dispositivo para a representação, que é completado por uma rotunda. É total a escuridão no palco e na platéia. Ouve-se o ruído de soldados marchando. A princípio, dois ou três, depois quatro, cinco, um pelotão. Soa uma sirene de viatura policial, cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, até chegar ao máximo. Ouvem-se vozes de comando confusas, que também crescem com os outros ruídos até chegarem a um ponto máximo de saturação, quando cessa tudo, de súbito, e acendem-se as luzes. As personagens estão todas em cena: Branca, o Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador, o Notório e os guardas.

PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da fé e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização cristã? Não vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentaremos inúmeras provas que temos contra a acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua!

BRANCA
(Desce até o primeiro plano.) Não é verdade!

PADRE BERNARDO
Desavergonhadamente nua!

BRANCA
Vejam, senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas roupas, como todo o mundo. Ele é que não as enxerga!

Padre sai, horrorizado.

BRANCA
Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou vestida? É verdade que uma vez — numa noite de muito calor — eu fui banhar-me no rio... e estava nua. Mas foi uma vez. Uma vez somente e ninguém viu, nem mesmo as guriatãs que dormiam no alto dos jeribás! Será por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente a Deus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos têm mais o que fazer que espiar moças tomando banho altas horas da noite. Não, não é só por isso que eles me perseguem e me torturam. Eu não entendo... Eles não dizem... só acusam, acusam! E fazem perguntas, tantas perguntas!

VISITADOR
Come carne em dias de preceito?

BRANCA
Não...

VISITADOR
Mata galinhas com o cutelo?

BRANCA
Não, torcendo o pescoço.

VISITADOR
Come toicinho, lebre, coelho, polvo, arraia, aves afogadas?

BRANCA
Como...

VISITADOR
Toma banho às sextas-feiras?

BRANCA
Todos os dias...


VISITADOR
E se enfeita?

BRANCA
Também...

VISITADOR
Quanto tempo leva enfeitando-se?

NOTÁRIO
Quanto tempo?

TODOS
Quanto tempo? Quanto tempo?

Saem todos, exceto Branca.

BRANCA
Não sei, não sei, não sei... Oh, a minha cabeça... Por que me fazem todas essas perguntas, por que me torturam? Eu sou uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro segui-la. Mas acho que isso não é o mais importante. O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. É verdade que Deus também fez coisas para o nosso sofrimento. Mas foi para que também o temêssemos e aprendêssemos a dar valor às coisas boas. Deus deve passar muito mais tempo na minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que nos corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver. Tudo isso que estou lhes dizendo, é na esperança de que vocês entendam... Porque eles, eles não entendem... Vão dizer que sou uma herege e que estou possuída pelo Demônio. E isso não é verdade! Não acreditem! Se o Demônio estivesse em meu corpo, não teria deixado que eu me atirasse ao rio para salvar Padre Bernardo, quando a canoa virou com ele!...

PADRE BERNARDO
(Fora de cena, gritando.) Socorro! Aqui del rei!

Branca sai correndo. Volta, amparando Padre Bernardo, que caminha com dificuldade, quase desfalecido. Ela o traz até o primeiro plano e aí o deita, de costas. Debruça-se sobre ele e põe-se a jazer exercícios, movimentando seus braços e pernas, como se costuma jazer com os afogados. Vendo que ele não se reanima, cola os lábios na sua boca, aspirando e expirando, para levar o ar aos seus pulmões.

PADRE BERNARDO
(De olhos ainda cerrados, balbucia.) Jesus... Jesus, Maria, José...

Ele se vai reanimando aos poucos. Abre os olhos e vê Branca, de joelhos, a seu lado.


PADRE BERNARDO
Obrigado, Senhor, obrigado por terdes atendido ao meu apelo desesperado... Não sou merecedor de tanta misericórdia. (Ele beija repetidas vezes um crucifixo que traz na mão.) Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me; Sangue de Cristo, inebriai-me...

BRANCA
Achava melhor o senhor deixar pra rezar depois. Agora era bom que virasse de bruços e baixasse a cabeça pra deixar sair toda essa água que engoliu.

Ajudado por ela, ele vira de bruços e baixa a cabeça. Ela pressiona sua nuca, para fazer sair a água.

BRANCA
Se eu não chego a tempo, o senhor bebia todo o rio Paraíba...

PADRE BERNARDO
(Senta-se, meio atordoado ainda.) A minha canoa?...

BRANCA
A canoa? Seguiu emborcada, rio abaixo. Tinha alguma coisa de valor?

PADRE BERNARDO
Tinha, o cofre com as esmolas...

BRANCA
Muito dinheiro?

PADRE BERNARDO
Bastante.

BRANCA
Agora deve estar no fundo do rio.

PADRE BERNARDO
Só consegui agarrar o crucifixo; tinha de escolher, uma coisa ou outra...

BRANCA
Foi uma pena. Com o dinheiro, o senhor talvez comprasse dois crucifixos. E quem sabe ainda sobrava.

PADRE BERNARDO
Não diga isso, filha!

BRANCA
Por quê?

PADRE BERNARDO
Porque é o Cristo... Não é coisa que se compre. Tivesse eu escolhido o cofre e certamente a esta hora estaria no fundo do rio com ele. Foi Jesus quem me salvou.

BRANCA
(Timidamente.) Eu ajudei um pouco...


PADRE BERNARDO
Eu sei. Você foi o instrumento. Não estou sendo ingrato. Sei que arriscou a vida para me salvar.

BRANCA
Não foi tanto assim. O rio aqui não é muito fundo e a correnteza não é lá tão forte. Quando a gente está acostumada...

PADRE BERNARDO
Acostumada?...

BRANCA
Venho banhar-me aqui todos os dias. Sei nadar e salvar alguém que está se afogando. É só puxar pelos cabelos. Com o senhor foi um pouco difícil por causa da tonsura. Tive de puxar pela batina. Me cansei um pouco, mas estou contente comigo mesma. Hoje vai ser um dia muito feliz para mim.

PADRE BERNARDO
Deus lhe conserve essa alegria e lhe faça todos os dias praticar uma boa ação, como a de hoje.

BRANCA
Não é fácil. Acho que as boas ações só valem quando não são calculadas. E Deus não deve levar em conta aqueles que praticam o bem só com a intenção de agradar-Lhe. Estou ou não estou certa?

PADRE BERNARDO
Bem...

BRANCA
Não foi querendo agradar a Deus que eu me atirei ao rio para salvá-lo. Foi porque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Porque era um gesto de amor ao meu semelhante. E é no amor que a gente se encontra com Deus. No amor, no prazer e na alegria de viver. (Ela nota que o Padre se mostra um pouco perturbado com as suas palavras.) Estou dizendo alguma tolice?

PADRE
No fundo, talvez não. Mas a sua maneira de falar... Quem é o seu confessor?

BRANCA
Não tenho confessor. Vivo aqui, no Engenho Velho, que é de meu pai, Simão Dias, que o senhor deve conhecer de nome. Custo a ir à cidade.

PADRE
Não vai à missa, aos domingos, ao menos?

BRANCA
Nem todos os domingos. Mas não pense que porque não vou diariamente à igreja não estou com Deus todos os dias. Faço sozinha as minhas orações, rezo todas as noites antes de dormir e nunca me esqueço de agradecer a Deus tudo o que recebo Dele.

PADRE
Gostaria de discutir com você esses assuntos. Não hoje, porque estamos ambos molhados, precisamos trocar de roupa.

BRANCA
Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar. Posso lhe arranjar uma roupa de meu pai, enquanto o senhor espera.

PADRE
(A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentação.) Não... isso não é direito...

BRANCA
Por que não?

PADRE
Já lhe dei muito trabalho por hoje. E preciso voltar o quanto antes ao colégio.

BRANCA
Que colégio?

PADRE
O Colégio dos Jesuítas. Sou o Padre Bernardo.

BRANCA
Lá aceitam moças?

PADRE
Não... só meninos, rapazes.

BRANCA
Por que nunca aceitam moças nos colégios?

PADRE
Porque moças não precisam estudar.

BRANCA
Nem mesmo ler e escrever?

PADRE
Isso se aprende em casa, quando se quer e os pais consentem.

BRANCA
(Com certo orgulho.) Eu aprendi. Sei ler e escrever. E Augusto diz que faço ambas as coisas melhor do que qualquer escrivão de ofício.

PADRE
Quem é Augusto?

BRANCA
Meu noivo. Foi ele quem me ensinou. Mas foi preciso que eu insistisse muito e quase brigasse com meu pai. É tão bom.

PADRE
Ler?

BRANCA
Sim. Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estórias e acompanhar procissão de formigas. (O Padre ri.) Sério. Tanto nos livros como nas formigas a gente descobre o mundo. (Ri.) Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros do engenho. O capataz botava veneno na boca dos buracos e eu saía de noite, de panela em panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas.

O Padre espirra.

BRANCA
Oh, mas o senhor com essa roupa molhada no corpo e eu aqui contando estórias. O senhor me desculpe...

PADRE
Não tenho de que desculpá-la, tenho que lhe agradecer, isto sim. Gostaria muito de continuar a ouvir as suas estórias. Todas, todas as estórias que você tiver para me contar.

BRANCA
Pois venha, venha nos visitar lá no engenho. Eu me chamo Branca.

Ela beija a mão que ele lhe estende.

PADRE
Branca... você é um dos tesouros do Senhor. Preciso cuidar de você. (Sai.)

BRANCA
(Acompanha a saída do Padre, envaidecida com as suas últimas palavras. Depois desce até a boca de cena, dirigindo-se à platéia.) Ele disse isso, sim. Disse que eu era um dos tesouros do Senhor e precisava cuidar de mim. Não que eu fosse vaidosa a ponto de acreditar. Mas ele viu que eu era uma boa moça e o Demônio não era pessoa das minhas relações. Muito menos podia estar em meu corpo, pois é coisa provada que Satanás quando vê uma cruz corre mais do que o não-sei-do-que diga. Ele tinha um crucifixo e devia saber disso. Tanto que voltou, alguns dias depois.

Muda a luz.

AUGUSTO
(Entra.) Voltou?

BRANCA
Esta tarde. Pedi a ele que ficasse mais um pouco pra conhecer você. Mas ele tinha hora de chegar no colégio. Os jesuítas se submetem a uma disciplina muito rigorosa. Parecem militares.

AUGUSTO
E ninguém menos militar do que Cristo. Se Ele voltasse à terra e entrasse para a Companhia de Jesus, ia estranhar muito.

Sentam-se a boa distância um do outro, como no noivado antigo.

BRANCA
Foi pena, queria que você o conhecesse. É um bom padre. (Ri.) Se você o visse engolindo água e gritando: "Aqui del rei!" Que Deus me perdoe, mas depois me deu uma vontade de rir.

AUGUSTO
Padre Bernardo... acho que já ouvi falar dele.

BRANCA
Já?

AUGUSTO
Era padre adjunto do visitador do Santo Ofício, em Pernambuco, quando Pero da Rocha foi condenado.

BRANCA
Condenado, por quê?

AUGUSTO
Por trabalhar aos domingos e negar a virgindade de Nossa Senhora. Degredo por dois anos, foi a pena; tendo antes que andar por todo o Recife, com grilhão e baraço, apontado à execração pública.

BRANCA
Agora me lembro. Foi no ano passado. Mas era um herege perigoso. Atirou de arcabuz no familiar do Santo Ofício, quando o foram prender.

AUGUSTO
Concordo com o degredo, não concordo com a humilhação. Pero da Rocha é um herege, mas é um homem. Merecia ser punido, morto, mas com respeito. Eu estava no Recife e o vi passar, com o baraço no pescoço, tangido como um cão, entre insultos e pedradas de uma multidão que ria e incentivava a violência. E nunca esquecerei o seu olhar. Parecia dizer: "Isto que aqui vai, é um homem. Um ser feito à semelhança de Deus".

BRANCA
Mas ele devia ter culpa. Muita culpa. Se Padre Bernardo o julgou. Se o Santo Ofício o condenou. Padre Bernardo tem o olhar transparente das pessoas de alma limpa. E o Santo Ofício é misericordioso e justo.

AUGUSTO
Não é o Santo Ofício. É que em nome dele, em nome da Igreja, do próprio Deus, às vezes cometem-se atos que Ele jamais aprovaria. Em nome de um Deus-misericórdia, praticam-se vinganças torpes, em nome de um Deus-amor, pregam-se o ódio e a violência. Os rosários são usados para encobrir toda sorte de interesses que não são os de Deus, nem da religião.

BRANCA
(Fita-o com admiração e amor.) Você é o mais justo e o melhor de todos os homens.

AUGUSTO
Eu?

BRANCA
Sim, e é por isso que se revolta. Porque é justo e bom.

AUGUSTO
Sou apenas cristão. E no momento talvez possa dizer, sem blasfêmia, que sou mais cristão do que Sua Santidade, o Papa, porque tenho o coração repleto de amor.

Ele toma a mão dela e beija, calorosamente. Branca cerra os olhos, seu corpo parece invadido por um gozo infinito. Súbito, estremece, numa convulsão, puxa a mão, rapidamente. Levanta-se.


AUGUSTO
Que foi?

BRANCA
Um calafrio... a morte passou por aqui.

AUGUSTO
Não diga tolices.

BRANCA
Sinto isso toda a vez que você me beija. Um calafrio de morte... Por que será que o amor dá essa tristeza imensa, essa vontade de morrer? Deve haver um ponto onde o amor e a morte se confundem, como as águas do rio e do mar.

Ele roça os lábios nos cabelos dela.

BRANCA
Que está fazendo?

AUGUSTO
Gosto de aspirar o perfume dos seus cabelos.

BRANCA
Eles cheiram a quê?

AUGUSTO
A capim molhado.

Muda a luz. Branca desce até o primeiro plano, enquanto Augusto sai.

BRANCA
Capim molhado... vocês não acham que se eu estivesse possuída do Demônio meus cabelos deviam cheirar a enxofre? Não é uma coisa lógica, uma prova evidente da minha inocência? Mas eles não aceitam as coisas lógicas, as coisas simples e naturais. Eles só aceitam o mistério.

Muda a luz. Padre Bernardo entra e estende a mão a Branca.

PADRE
Venha...

Toma-a pela mão e a leva a percorrer todos os planos do cenário. Branca passeia os olhos em torno, como se contemplasse as altas paredes de um templo.

PADRE
Então?

BRANCA
Não me sinto bem.

PADRE
Não se sente bem na Companhia de Jesus?

BRANCA
Falta sol. Claridade. Deus é luz. Não é?


PADRE
É também recolhimento. Você precisa habituar-se à sombra, ao silêncio e à solidão. A solidão é necessária para se ouvir a voz de Deus. Foi na solidão do Sinai que Deus entregou a Moisés as tábuas da Lei. Foi na solidão da Palestina que João Batista recebeu a plenitude do Espírito Santo.

BRANCA
Foi para isso que me trouxe aqui?

PADRE
Não. Queria que você conhecesse o colégio. Mas queria, principalmente, conhecê-la mais a fundo.

BRANCA
Já lhe fiz a minha confissão, já me conhece tanto quanto eu mesma. Mais até, porque lhe disse coisas que a mim mesma não teria coragem de dizer.

PADRE
Sei e estou tranqüilo agora, porque poderei protegê-la e salvá-la.

BRANCA
Salvar-me?

PADRE
Você me estendeu a mão uma vez e me salvou a vida; agora é a minha vez de retribuir com o mesmo gesto.


BRANCA
Mas eu não estou em perigo, padre.

PADRE
Toda criatura humana está em permanente perigo, Branca. Lembre-se de que Deus nos fez de matéria frágil e deformável. Ele nos moldou em argila, a mesma argila de que são feitos os cântaros, que sempre um dia se partem.

BRANCA
(Ri.) Tenho um cântaro que meus avós trouxeram de Portugal. Durou três gerações e até hoje não se partiu.

PADRE
Naturalmente porque sempre teve mãos cuidadosas a lidar com ele e a protegê-lo. Queria que você me permitisse protegê-la também, defendê-la também, porque é uma criatura tão frágil e tão preciosa como esse cântaro.

BRANCA
Eu lhe agradeço. Mas não acho que mereça tantos cuidados de sua parte. Sou uma criatura pequenina e fraca, sim, mas não me sinto cercada de perigos e tentações.

PADRE
A segurança com que você diz isso já é, em si, um perigo. Prova que você ignora as tentações que a cercam.

BRANCA
Talvez eu não ignore, mas aceite como uma coisa natural.

PADRE
Pior ainda. Ninguém pode aceitar o Demônio como companheiro de mesa.

BRANCA
Eu não disse isso.

PADRE
Se aceitamos a sua existência como coisa natural, acabamos por admiti-lo como parceiro. Porque, não tenha dúvidas, o Diabo está a todo o momento a nos rondar os passos, a se insinuar e a se infiltrar. E é principalmente os ingênuos, os sem-maldade, como você, que ele escolhe para seus agentes. É um erro imaginar que Satanás prefere os maus, os corruptos, os ateus. Engano. Satanás escolhe os bons, os inocentes, os puros, porque são eles muito úteis e insuspeitos na propagação de suas idéias. Repare que as grandes heresias surgem sempre de pessoas que pretendem salvar a humanidade. Por isso, quando encontro alguém que se julga tão próximo de Deus que pode até senti-lo em sua própria carne, no ar que respira, ou na água que bebe, temo por essa criatura. Porque ela deve estar na mira do Diabo.

BRANCA
Se for o meu caso, o Diabo vai perder tempo e munição. E vai acabar cansando. Garanto.

PADRE
O Diabo não se cansa nunca. E não devemos correr dele, devemos enfrentá-lo e obrigá-lo a fugir de nós. Para o cristão, Branca, toda prova, toda tentação é um meio de santificação e a vida na terra só vale como preço para ganhar o céu.

BRANCA
Mas eu não quero ser santa. Minhas pretensões são bem mais modestas. Não é pela ambição que o Capeta há de me pegar. Quero viver uma vida comum, como a de todas as mulheres. Casar com o homem que amo e dar a ele todos os filhos que puder.

PADRE
(Não como uma acusação, como notação apenas.) Durante a sua confissão, você pronunciou sete vezes o nome desse homem.

BRANCA
(Surpresa.) O senhor contou?

PADRE
Contei.

BRANCA
Bem... eu o amo.

PADRE
Enquanto que o nome de Deus você pronunciou apenas três vezes.

BRANCA
Isso tem importância?

PADRE
Não, não tem importância.

BRANCA
Não se deve invocar o nome de Deus em vão.

PADRE
Claro. São apenas números. Mas nem tudo são números em sua confissão. Os tormentos da carne, por exemplo.

BRANCA
Eu não falei em tormentos da carne.

PADRE
Mas confessou que certa noite rolava na cama sem poder dormir...

BRANCA
Por causa do calor. Meu corpo queimava.

PADRE
E não podendo mais, levantou-se e foi mergulhar o corpo no rio, para acalmá-lo. Tirou a roupa e banhou-se nua.

BRANCA
Era noite de lua nova. Nenhum perigo havia de ser vista. Nem mesmo podia haver alguém acordado àquela hora.

PADRE
Agora responda, Branca, lembrando-se de que está ainda diante de seu confessor: que sentiu ao mergulhar o corpo no rio?

BRANCA
Que senti? Bem, senti-me bem melhor, refrescada.

PADRE
Sentiu prazer?

BRANCA
(Hesita um instante.) Senti, senti prazer.

PADRE
E depois, quando voltou para o leito?

BRANCA
Pude, enfim, dormir.

PADRE
Algum pensamento pecaminoso lhe atravessou a mente nessa noite?

BRANCA
Eu... não me lembro.

PADRE
Não pensou em seu noivo nessa noite?

BRANCA
É possível. Eu penso nele todas as noites, todos os dias. Tudo que me acontece de bom, eu penso em compartilhar com ele, tudo que me acontece de mau, eu acho que não seria tão mau se ele estivesse a meu lado.

PADRE
E ele nunca a viu tomar banho no rio? Responda.

BRANCA
Uma vez... sim. (Adivinha os pensamentos do Padre, reage prontamente.) Mas não foi naquela noite! Juro por Deus, não foi!

PADRE
(Cerra os olhos, como se procurasse fugir a todas aquelas visões e mergulhar em si mesmo.) Branca... pode ir. Eu preciso fazer minhas orações.

Ela vem descendo, de costas, os olhos fixos nele, que parece em êxtase.

PADRE
(Murmura.) Senhor, ajudai-me. Ela precisa de mim e eu devo protegê-la. Ela tem tão pouca noção das tentações que a cercam, que será uma presa fácil para o Demônio, se não a guiarmos pelo caminho que a levará até Vós. Dai-me forças, Senhor, para cumprir essa tarefa. Dai-me forças e defendei-me também de toda e qualquer tentação. Amém.

Muda a luz. Padre sai. Branca está em primeiro plano, onde surge Simão.

SIMÃO
(Muito preocupado.) Que é que ele quer, afinal?

BRANCA
Quer proteger-me, pai.

SIMÃO
E não sai daqui, e faz tantas perguntas.

BRANCA
Ele acredita que eu esteja em perigo. E como o salvei de morrer afogado, quer também salvar-me. O curioso é que eu antigamente me sentia tão segura e agora... Mas ele deve ter razão, talvez eu não veja os perigos que me cercam. Se ele vê, é porque de fato existem, pois ninguém pode saber das artimanhas do Cão melhor do que um padre, que tem isso por ofício.

SIMÃO
Mas nós nunca precisamos dessa proteção. Eu disse isso a ele, na última vez. Quem nos protege é Deus, ninguém mais.

Muda a luz. Padre Bernardo surge. Branca permanece na sombra, durante o diálogo.

PADRE
Isso não é verdade. A Virgem também nos protege e também os santos da Igreja. Também o papa e os sacerdotes. É preciso cuidado com essas afirmações, Simão, porque freqüentemente as ouvimos da boca dos hereges. Que só Deus protege, que só Deus é justo, que só a Ele devemos prestar conta dos nossos atos.

SIMÃO
Eu não disse isso, padre.

PADRE
Acabará dizendo, se prossegue nesse caminho.

SIMÃO
Meu caminho é o da fé cristã, caminho abraçado por meus antepassados.

PADRE
Não por todos os seus antepassados. Seus avós não eram cristãos, seguiam a lei mosaica.

SIMÃO
Sim, mas os meus pais se converteram.

PADRE
Sei disso. Vieram para o Brasil em fins do século passado.

SIMÃO
Já eram cristãos quando aqui chegaram.

PADRE
Cristãos-novos. Chegaram pobres e logo enriqueceram.

SIMÃO
Honestamente.

PADRE
E aqui geraram um filho a quem chamaram Simão.

SIMÃO
A quem batizaram e crismaram.

PADRE
E Simão gerou Branca, a quem também batizou e crismou. E Branca espera gerar quantos filhos puder.

SIMÃO
Está noiva. Augusto Coutinho, seu noivo, é também católico. De boa família. Estudou na Europa.

PADRE
Em Lisboa.

SIMÃO
É muito inteligente e muito preparado. Conhece leis a fundo.

PADRE
Conhece as leis dos homens, que não se podem sobrepor às leis de Deus. Mas ele pensa que sim.

SIMÃO
Ele pensa?...

PADRE
Soube de certas atitudes de rebeldia desse rapaz.

SIMÃO
Coisas da juventude. Quem nunca foi rebelde, nunca foi jovem.

PADRE
Preocupa-me a influência que ele exerce sobre Branca.

SIMÃO
É natural. Ela o adora.

PADRE
O senhor disse a frase exata: ela o adora.

SIMÃO
Cresceram juntos, brincando de esconder no canavial. O velho Coutinho era também senhor-de-engenho. Bom homem, muito respeitador. Depois, Augusto foi estudar na Europa. Voltou já homem feito e disposto a casar. Era do meu gosto e eu só tinha que aprovar.

PADRE
Quando será?

SIMÃO
Em setembro. Faltam três meses somente e já encomendei o enxoval; virá tudo de Paris. Custou-me os olhos da cara. (Sorri.) É filha única, o senhor compreende. Alegria que só terei uma vez na vida. Quem sabe se o senhor mesmo não poderia casá-los?

PADRE
(Estranha a idéia.) Eu?

SIMÃO
Sim, Branca ia ficar muito contente, tendo pelo senhor o respeito e a amizade que tem.


PADRE
(Constrangido.) Será para mim também uma satisfação, se Branca me der essa honra.

Muda a luz. O Padre sai.

SIMÃO
Não fiz bem em convidá-lo?

BRANCA
Fez. Eu já havia pensado nisso. Ele deve ter ficado satisfeito.

SIMÃO
Penso que sim. Não demonstrou muito.

BRANCA
Porque é tímido. Mas pode ficar certo de que o senhor lhe deu uma grande alegria.

SIMÃO
Você acha?

BRANCA
Ele é muito sensível a qualquer gesto de simpatia.

SIMÃO
Ainda bem.

BRANCA
Por quê? O senhor parece preocupado. Teme alguma coisa?

SIMÃO
O temor é um legado de nossa raça.

BRANCA
Somos cristãos.

SIMÃO
Cristãos-novos, ele frisou bem.

BRANCA
Que tem isso? Jesus nunca fez distinção entre os velhos e os novos discípulos.

SIMÃO
Eles não confiam em nós, em nossa sinceridade. Estamos sempre sob suspeita.

BRANCA
Não é suspeita, pai, é que eles têm o dever de ser vigilantes. É essa vigilância que nos defende e nos protege.

SIMÃO
Essa proteção custou a vida a dois mil dos nossos, em Lisboa, numa chacina que durou três dias.

BRANCA
Dois mil?


SIMÃO
Sim, dois mil cristãos-novos. Poucos conseguiram escapar, como seu avô, convertido à força e despojado de todos os seus bens.

BRANCA
Meu avô não era um cristão convicto?

SIMÃO
O ódio não converte ninguém. Uma coisa é um Deus que se teme, outra coisa é um Deus que se ama. E não há nada mais próximo do ódio que o amor dos humildes pelos poderosos, o culto dos oprimidos pelos opressores.

Muda a luz, Simão sai. Branca senta-se, pensativa. As palavras do pai a perturbaram um pouco. A insegurança, cujos germes Padre Bernardo conseguira incutir em seu espírito, acentua-se. Augusto entra.

AUGUSTO
Por que me mandou chamar com tanta urgência?

BRANCA
Não sei... De fato, não é urgente.

AUGUSTO
Aconteceu alguma coisa?

BRANCA
Não... realmente, não aconteceu nada. Não sei explicar. Mas de um momento para outro, eu me senti tão só, tão desamparada. Só me aconteceu isso uma vez, quando eu era menina e alguém me disse que a Terra se movia no espaço. Não sei que sábio havia descoberto. Até então, a Terra me parecia tão sólida, tão firme... de repente, comecei a pensar em mim mesma, uma pobre criança, montada num planeta louco, que corria pelo céu girando em volta de si mesmo, como um pião. E tive medo, pela primeira vez na vida. Uma sensação de insegurança me fez passar noites sem dormir, imaginando que durante o sono podia rolar no espaço, como uma estrela cadente.

AUGUSTO
(Sorri.) E que quer você que eu faça? Que pare a Terra, como Josué parou o Sol?

BRANCA
E se Josué parou o Sol, é porque é o Sol que se move e não a Terra.

AUGUSTO
É o que dizem as Sagradas Escrituras.

BRANCA
E pode um texto sagrado mentir?

AUGUSTO
Talvez seja uma questão de interpretação. Josué não parou o Sol, mas a Terra. Estando na Terra, teve a impressão de que foi o Sol que parou. O sentido é figurado. Do mesmo modo que quando nos afastamos do porto, num navio, temos a impressão de que é a terra que foge de nós.


BRANCA
Tudo é então uma questão de interpretação. Depende da posição em que a gente se encontra. Isto me deixa ainda mais intranqüila.

AUGUSTO
Por quê?

BRANCA
Se um texto da Sagrada Escritura pode ter duas interpretações opostas, então o que não estará neste mundo sujeito a interpretações diferentes?

AUGUSTO
Por que você se preocupa com isso?

BRANCA
Porque ninguém pode viver assim. (Repentinamente, como para pô-lo à prova.) Você sabe que eu já colei minha boca na boca de um homem?

AUGUSTO
Que homem?

BRANCA
Padre Bernardo. Ele estava sufocado, depois do afogamento, e eu tive de colar a minha boca na dele, para fazer chegar um pouco de ar aos seus pulmões. (Fita o noivo corajosamente.) Nós nunca nos beijamos na boca e eu fui obrigada a beijar um estranho.


AUGUSTO
(Evidentemente chocado com a revelação.) Por que você não me contou isso antes?

BRANCA
Porque até hoje ainda não havia pensado que o meu gesto podia ser interpretado de outro modo.

AUGUSTO
Você acha que era absolutamente necessário fazer o que fez?

BRANCA
Acho.

AUGUSTO
Ele morreria, se não o fizesse?

BRANCA
Quem sabe? Talvez não. Mas foi com o intuito de salvá-lo que o fiz. Só com esse intuito. Estou lhe dizendo isto agora para saber se você acredita em mim.

Ele não responde. Sua perturbação é evidente.

BRANCA
Em sua opinião, eu continuo pura como antes?

AUGUSTO
(Pausa.) Eu preferia que isso não tivesse acontecido.

BRANCA
Então é porque você não acredita na pureza do meu gesto.

AUGUSTO
(Rápido.) Não, não...

BRANCA
Ou porque tem dúvidas.

AUGUSTO
Não tenho dúvidas. Mas ninguém gostaria que a mulher que ama beijasse outro homem, mesmo sendo esse homem um padre e o beijo apenas um gesto de humanidade. Aceito e compreendo a nobreza de seu gesto, mas ele me choca.

BRANCA
Você o aceita, mas não o compreende — esta é que é a verdade. Porém, não é isto o que mais me preocupa. É verificar que hoje eu não seria capaz de um gesto desses. Se visse um homem morrendo, com falta de ar, eu o deixaria morrer. Não colaria a minha boca na dele, não lhe daria o ar dos meus pulmões, porque isso poderia ter outra interpretação. Porque tanto Josué pode ter parado o Sol, como pode ter parado a Terra. Tudo depende de saber se estamos do lado do Sol ou do lado da Terra.

AUGUSTO
Branca, eu sei que você continua tão pura quanto antes...

BRANCA
E você sabe que o Diabo prefere os puros?

AUGUSTO
Eu confio em você, Branca.

BRANCA
Mas não deve. Meu pai me disse que estamos sempre sob suspeita. Eu mesma lhe confessei há pouco que já me sentia capaz de recusar a um moribundo o ar dos meus pulmões. Alguém que se sente capaz disso deve estar mesmo sob vigilância constante, porque não é pessoa em quem se possa confiar.

AUGUSTO
(Segura-a pelos braços, como para chamá-la a si.) Branca, não fale assim. Você está sendo injusta consigo mesma.

BRANCA
Não, não estou. É que começo a me conhecer. E estou descobrindo coisas... Coisas que não descobri nem mesmo nos livros que você me deu. Padre Bernardo talvez tenha razão...

AUGUSTO
(Com desagrado.) Padre Bernardo!

BRANCA
Sim, Padre Bernardo deve ter razão, toda criatura humana está em perigo!

AUGUSTO
Não você, Branca!

BRANCA
Sim, eu, eu sim! (Atira-se nos braços dele e faz-se pequenina, pedindo proteção.) Augusto, não podemos esperar até setembro!

AUGUSTO
Por quê?

BRANCA
Não me pergunte, eu não saberia responder. Só sei que o mundo, que me parecia tão simples, começa a ficar muito complicado para mim. Eu mesma já não me entendo... nos seus braços eu me sinto segura.

AUGUSTO
Em setembro, você virá de vez para os meus braços, virá de vez...

BRANCA
Não, não me deixe desamparada até lá! Eu não posso esperar tanto!

AUGUSTO
Você acha que seu pai concordaria? Ele mandou buscar o seu enxoval na Europa...

BRANCA
O enxoval chegaria depois, isso não tem importância.

AUGUSTO
Ele vai ficar sentido.


BRANCA
Eu falo com ele, explico... o que eu não posso é ficar por mais tempo na mira do Diabo!

AUGUSTO
(Num gesto brusco, puxa-a para si e beija-a na boca. Um beijo violento, desesperado, que é interrompido também bruscamente.) Foi assim que você o beijou?

BRANCA
(Com horror.) Não!

Augusto sai. Branca fica só. Pensativa, agacha-se e põe-se a seguir com os olhos um caminho de formigas.

PADRE
(Entra.) Branca...

BRANCA
(Já não revela a mesma espontaneidade diante dele.) Padre...

PADRE
(Mais como uma queixa do que como uma censura.) Nunca mais foi à missa, nunca mais confessou-se, nunca mais me procurou, por quê?

BRANCA
(Evasiva.) Por nada. Tenho estado muito ocupada.

PADRE
Com suas formigas?

BRANCA
Não são também criaturas de Deus?

PADRE
São seres daninhos, que somente destroem, que somente trabalham em seu próprio benefício e cuja existência nenhum bem, nenhuma utilidade representa.

BRANCA
Se Deus deu às formigas o benefício da vida, elas têm o direito de conservá-lo, não acha? Da maneira que Deus ensinou.

PADRE
Elas não sabem distinguir entre o bem e o mal. Ao passo que nós temos a obrigação de sabê-lo.

BRANCA
Não é tão fácil como eu julgava.

PADRE
Já percebi que você tem certa dificuldade. Por isso estou aqui novamente.

BRANCA
Nunca mais fui procurá-lo porque, como já lhe disse, tenho andado muito atarefada. Com o meu casamento.

PADRE
Não é em setembro?

BRANCA
Não, resolvemos apressá-lo.

PADRE
Não sabia de nada.

BRANCA
É verdade, devíamos ter falado com o senhor, que é quem vai oficiar a cerimônia.

PADRE
(Há uma pausa um tanto longa, que traduz a atual dificuldade de comunicação entre eles.) Há alguma razão especial que justifique a pressa?

BRANCA
O senhor disse: ninguém pode aceitar o Demônio como companheiro de mesa. Casada, terei o meu marido à cabeceira e o Demônio não ousará sentar-se ao nosso lado.

PADRE
Seu marido talvez o convide...

BRANCA
Não creio. Conheço Augusto e confio nele como confio em Deus.

O Padre se choca com a frase. Ela percebe.


BRANCA
Disse alguma coisa errada?

PADRE
Lamentavelmente.

BRANCA
Perdoe-me...

PADRE
Não é a mim que você deve pedir perdão, é a Ele, de quem você se afasta cada vez mais.

BRANCA
(Protesta com veemência.) Não! Isso não é verdade!

PADRE
A ponto de colocá-Lo em pé de igualdade com um simples mortal. Amanhã O colocará em situação inferior; e, por fim, o substituirá inteiramente.

BRANCA
O senhor não pode falar assim só porque eu disse uma tolice.

PADRE
Não me esqueci de sua frase, na beira do rio, quando nos conhecemos: "É no amor que a gente se encontra com Deus". Sim, mas não nesse tipo de amor que você tem por Augusto. Isto é que eu quero que você entenda, Branca. Seu espírito está cheio de confusões.

BRANCA
É possível. Para mim, tudo é amor. E todo amor é uma prova da existência de Deus.

PADRE
Neste caso, está em comunhão com Deus quem ama um cão, ou adora uma vaca. E tanto é justo adorar um Deus verdadeiro, como um deus falso.

BRANCA
Se somos sinceros em nossos sentimentos — isto é que Deus deve considerar em primeiro lugar.

PADRE
Mas os judeus e os mouros também são sinceros em sua lei e em sua religião. Acha você que eles podem se salvar, como os cristãos?

Ela, atônita, sentindo que caiu numa armadilha, não sabe o que responder.

PADRE
Responda, Branca. Os judeus e mouros podem salvar-se?

BRANCA
Não sei... Confesso que não sei...

PADRE
(Olha-a com imensa ternura e piedade.) Pobre Branca. Como precisa de quem a ajude.

BRANCA
(Numa queixa.) Mas o senhor não tem ajudado em nada, padre. O senhor só tem lançado a dúvida em meu espírito.

PADRE
Essa dúvida é a luta entre a luz e as trevas. Eu lhe trago a luz, mas você resiste. Abandone-se, Branca, abandone-se a mim e eu dissiparei todas as dúvidas que a atormentam.

BRANCA
Não, padre, não.

PADRE
(Choca-se com a recusa.) Por que recusa?

BRANCA
Preferia que me deixasse com as minhas dúvidas, as minhas tolices, e os meus perigos e tentações. Sei que o senhor quer salvar-me, mas eu me salvarei por mim mesma.

PADRE
E se não se salvar? Eu terei a culpa.

BRANCA
Não.

PADRE
Sim, porque a abandonei. Porque não cumpri o meu dever de sacerdote, nem mesmo o mais elementar dever de gratidão. Não é só você quem está em causa, Branca. Eu, seu confessor, sou a um tempo seu guia, seu mestre, seu conselheiro, seu amigo, seu irmão. Queria que você visse em mim todas essas pessoas e se confiasse a elas, como a gente se confia a uma sólida ponte sobre o abismo. Eu sou essa ponte, Branca, que pode transportá-la de um lado para o outro, com segurança.

BRANCA
(As palavras do Padre a abalam um pouco.) Eu sei... eu confio também no senhor.

PADRE
Confia mesmo?

BRANCA
Confio. (Consegue reagir.) Mas não vejo necessidade de atravessar nenhuma ponte, de mudar de lado. Eu estou bem onde estou e acho que estamos do mesmo lado.

PADRE
(Começa a experimentar o sabor do próprio fracasso.) Não sei, Branca, não sei... Às vezes temo que você não esteja apenas confusa, não esteja apenas inconsciente dos perigos que corre. Que não seja por pura inocência que se deixa tentar...

BRANCA
Como? Não entendo!

PADRE
Temo, sinceramente, que o Diabo tenha já avançado demais...

BRANCA
Padre!

PADRE
Temo por você, como temo por mim, Branca. Acredite! (Ela sente que ele arrancou essas palavras da própria carne, rompendo barreiras que até então haviam resistido.)

BRANCA
(Timidamente.) O senhor também se julga em perigo?

Ele não responde. Cerra os olhos, como se procurasse recompor-se intimamente. Por fim, avança para ela e põe-lhe a mão sobre a cabeça, escorregando-a depois, lentamente, pelo rosto, como fazem os judeus para abençoar as crianças. Branca ri.

PADRE
Por que se riu?

BRANCA
O senhor agora me fez lembrar o meu avô. Quando eu era pequena, ele costumava pôr a mão na minha cabeça e escorregá-la pelo meu rosto, como o senhor fez agora.

PADRE
Seu avô, fale-me dele.

BRANCA
Oh, era um bom homem. Me levava para chupar cajus na roça, depois fazia um enorme colar com as castanhas, pendurava no meu pescoço e dizia: "Branca, és mais rica do que a rainha de Sabá!" (Ri.) Eu não sabia quem era essa rainha de Sabá, e só a imaginava então cheia de colares de castanhas de caju em volta do pescoço.

PADRE
(Olha-a com tristeza e preocupação.) Que mais?

BRANCA
Não me lembro de muitas coisas mais. Eu tinha seis anos quando ele morreu.

PADRE
Lembra-se desse dia?

BRANCA
Não gosto de me lembrar. Foi o meu primeiro encontro com a morte. Toda vez que me recordo, sinto a mesma coisa...

PADRE
Quê?

BRANCA
Um cheiro ativo de azeitonas e um frio aqui acima do estômago. Mas nunca vou poder esquecer... era um velho cheio de manias. Pediu que botassem uma moeda na sua boca, quando morresse.

PADRE
E cumpriram a sua vontade?

BRANCA
Sim, meu pai me deu uma pataca e eu coloquei sobre seus lábios.

PADRE
(Murmura.) Virgem Santíssima!

BRANCA
(Estremece e treme.) Fiz mal?

Padre Bernardo, ereto, cabeça levantada, leva as mãos em garras ao rosto, escorrega-as pelo pescoço, até o peito, como se dilacerasse a própria carne, num gesto de suprema angústia.

PADRE
Branca, o visitador da Santa Inquisição acaba de decretar um tempo de graça. Durante quinze dias, os pecadores que espontaneamente confessarem as suas faltas e convencerem o inquisidor da sinceridade de seu arrependimento, receberão somente penitências leves.

BRANCA
Por que está me dizendo isso?

PADRE
Para que você medite e se aproveite da misericórdia do Tribunal do Santo Ofício.

Muda a luz. O Padre sai. O Visitador surge no plano mais elevado, desenrola um edital e lê. Branca, Simão e Augusto, em planos inferiores, escutam atentamente. Também o Notório e dois guardas

VISITADOR
(Lendo.) "Por mercê de Deus e por delegação do inquisidor-mor em estes reinos e senhorios de Portugal, eu visitador do Santo Ofício, a todos faço saber que, num prazo de quinze dias, devem os culpados de heresia ou que souberem que outrem o está, virem declarar a verdade. Os que assim procederem ficarão isentos das penas de morte, cárcere perpétuo, desterro e confisco. E para que as sobreditas cousas venham à notícia de todos e delas não possam alegar ignorância, mando passar a presente carta para ser lida e publicada neste lugar e em todas as igrejas desta cidade e uma légua em roda. Dada na cidade da Paraíba, aos dezoito do mês de julho, do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1750."

Muda a luz. Sai Augusto. O Visitador desce ao plano inferior. É um bispo. O Notório vem reunir-se a ele. Os dois percorrem toda a cena com os olhos perscrutadores, detalhadamente, como se estivessem jazendo uma vistoria. Simão e Branca assistem, um tanto intimidados.

VISITADOR
Desculpem, é uma tarefa bastante desagradável, mas somos obrigados a cumpri-la.

NOTÁRIO
É o nosso dever.

SIMÃO
(Mais intimidado do que Branca.) Estejam à vontade... Nós entendemos perfeitamente.

BRANCA
Quem ainda não entendeu nada fui eu. Afinal, que é que os senhores procuram? Somos católicos, nada temos em nossa casa que possa ofender a Deus ou à Santa Madre Igreja.

VISITADOR
(Enigmático.) Recebemos uma denúncia. Temos de apurar.

SIMÃO
Denúncia contra nós? Absurdo.

BRANCA
Quem nos denunciou?

VISITADOR
O Tribunal do Santo Ofício não permite revelar o nome dos denunciantes.

SIMÃO
Deve ter havido um equívoco.

VISITADOR
A única maneira de saber se há equívoco ou se há fundamento, é investigar.

SIMÃO
Sim, isto parece lógico...

Notário sai, com os guardas.

BRANCA
Não acho. É lógico que se procure entre os cristãos os inimigos do cristianismo?

VISITADOR
Houve uma denúncia.

BRANCA
De que nos acusam?

VISITADOR
De alguma coisa.

O Notário e os guardas entram com uma enorme bacia.

NOTÁRIO
Senhor visitador!

VISITADOR
Que é isso?

NOTÁRIO
Uma bacia.

BRANCA
É pecado ter em casa uma bacia?

NOTÁRIO
A bacia contém um líquido.

SIMÃO
É água!

NOTÁRIO
Estou vendo que é água... Mas a cor da água...

O Visitador examina detidamente a água, molha as pontas dos dedos.

NOTÁRIO
Vossa Reverendíssima se arrisca... Ninguém sabe o que há nessa água!

VISITADOR
(Enxuga a mão.) Sim, a cor indica que a água levou algum preparado...

NOTÁRIO
Algum pó mirífico para invocação do Diabo!

SIMÃO
Vossas Excelências me perdoem, mas o único pó que há aí é o pó das estradas, de vinte léguas no lombo dum burro.

VISITADOR
Como?

SIMÃO
Acabei de tomar banho nessa bacia...


VISITADOR
Acabou de tomar banho... hoje, sexta-feira?

SIMÃO
Cheguei de viagem, empoeirado...

VISITADOR
Também trocou de roupa?

SIMÃO
Também; a outra estava imunda.

VISITADOR
Hoje, sexta-feira.

NOTÁRIO
Hoje, sexta-feira.

VISITADOR
(Para o Notário.) Leve daqui esta bacia.

O Notário e os guardas saem com a bacia.

SIMÃO
Foi uma coincidência!

VISITADOR
Estranha.


SIMÃO
Cheguei suado, cheio de poeira...

BRANCA
Há alguma lei que proíba alguém de tomar banho?

Notário entra com um candeeiro.

VISITADOR
Mudaram a mecha?

NOTÁRIO
Não, parece que não mudaram.

VISITADOR
(Examina a mecha do candeeiro.) Também ainda não acenderam. Que horas são?

NOTÁRIO
Quase seis.

VISITADOR
(Para Simão.) Isto será anotado em favor de vocês. Sexta-feira, quase seis da tarde. Candeeiro apagado. Mecha velha.

Notário sai com o candeeiro.

BRANCA
Se querem, podemos pôr mecha nova...

SIMÃO
(Apressadamente.) Não, não! Nunca mudamos a mecha do candeeiro às sexta-feiras. Vossa Reverendíssima viu, a mecha está velha, estragada, há um mês que não mudamos. Também não jejuamos aos sábados, nem trabalhamos aos domingos. Somos conhecidos em toda essa região e todos podem dizer quem somos. Tudo não deve passar de um mal-entendido, ou maldade de alguém que quer nos prejudicar.

VISITADOR
Se for, nada têm a temer. A visitação do Santo Ofício lhes garante misericórdia e justiça. Não desejamos servir a vinganças mesquinhas, mas precisamos ser rigorosos com os inimigos da fé cristã. Temos de destruí-los, pois do contrário eles nos destruirão.

NOTÁRIO
(Entra com a pilha de livros. Como se encontrasse uma bomba.) Livros!

BRANCA
Meus livros! São meus! Que vai fazer com eles?

VISITADOR
Sabe ler?

BRANCA
Sei.

VISITADOR
Por quê?

BRANCA
Porque aprendi.

VISITADOR
Para quê?

BRANCA
Para poder ler.

VISITADOR
Mau.

BRANCA
Não são livros de religião, são romances, poesias...

NOTÁRIO
Amadis de Gaula! (Passa o livro ao Visitador.)

VISITADOR
Amadis!

BRANCA
Estórias de cavalaria. Me emocionam muito.

NOTÁRIO
As Metamorfoses. (Passa o livro ao Visitador)

VISITADOR
Ovídio. Mitologia. Paganismo.

NOTÁRIO
Eufrósina. (Repete o jogo.)

VISITADOR
Também!

NOTÁRIO
E uma bíblia — em português!

VISITADOR
Em português!

BRANCA
Foi meu noivo quem me trouxe de Lisboa. Vejam que tem uma dedicatória dele para mim.

VISITADOR
Estou vendo...

BRANCA
Fiquei muito contente porque, como não sei ler latim, pude ler a bíblia toda e já o fiz várias vezes.

VISITADOR
(Entrega os livros ao Notório.) Todos esses livros são reprovados pela Igreja; vamos levá-los.

BRANCA
Também a bíblia?!

NOTÁRIO
Em linguagem vernácula!

BRANCA
Mas é a bíblia!

VISITADOR
Em linguagem vernácula.

Saem o Visitador, o Notário e os guardas. Há uma grande pausa, como se eles tivessem cavado um enorme precipício diante de Branca e Simão, que se olham perplexos.

BRANCA
Por quê?...

SIMÃO
Como?...

BRANCA
Quem?...

SIMÃO
Em linguagem vernácula. (Depois de uma pausa, volta-se contra ela.) Eu bem lhe disse... eu bem que me opus sempre... Esses livros — para quê? Uma moça aprender a ler — para quê? Que ganhamos com isso? Estamos agora marcados. (Sai.)

Muda a luz. Padre Bernardo surge no plano superior.

BRANCA
Foi o senhor!

PADRE
Não, Branca, não fui eu. Deus poupou-me esse penoso dever.

BRANCA
Quem foi, então?

PADRE
O Tribunal não revela o nome dos denunciantes.

BRANCA
O Tribunal?...

PADRE
Você agora vai ter de comparecer ante ele. Melhor seria que tivesse ido espontaneamente, aproveitando os dias de graça.

BRANCA
Mas por que iria? Que fiz eu?!

PADRE
Talvez eles lhe digam.

BRANCA
Eles, quem?!

PADRE
Os seus inquisidores. Pobre de você, que terá de comparecer ante eles, sem reconhecer os próprios erros; pobre de mim, que estarei entre eles e terei de julgá-la.

BRANCA
Mas não... eu não irei... não irei... (Corre para a direita, mas aí surge um guarda que lhe barra a fuga; corre para a esquerda e aparece outro guarda, que a obriga a retroceder.)

PADRE
É inútil, Branca. Perdeu sua liberdade, pelo mau uso que fez dela. Melhor para você que não tente fugir e se entregue à misericórdia dos seus juizes. Eles tudo farão para salvá-la.

BRANCA
(Encolhe-se, no centro da cena, pequenina, esmagada, perplexa.) Meu Deus! Eu não entendo!... Eu não entendo!...

Uma enorme grade, tomando toda a boca da cena, desce lentamente. As luzes se apagam em resistência.


Segundo Ato
BRANCA
(Deitada de bruços, atrás da grade. Sua atitude revela abandono e perplexidade. Há um longo silêncio, antes que ela comece a falar.) Se ao menos eu pudesse ver o sol... (Pausa.) Será que é essa a melhor maneira de salvar uma criatura que está na mira do Diabo? Tirar-lhe o sol, o ar, o espaço e cerceá-la de trevas, trevas onde o Diabo é rei? (Dirige-se à platéia.) Vêem vocês o que eles estão fazendo comigo? Estão me encurralando entre o Cão e a parede. Será que foi para isso que me prenderam aqui e me tiraram o sol, o ar, o espaço? Para que eu não pudesse fugir e tivesse de enfrentar o Diabo cara a cara. É justo, senhores, que para me livrar dele me entreguem a ele, noites e noites a sós com ele, sem saber por quê, nem até quando, sem uma explicação, uma palavra, uma palavra, ao menos. Não sei... não sei o que eles pretendem. Já não entendo mesmo o que eles falam. Deve ter havido um equívoco. Não sou eu a pessoa... Há alguém em perigo e que precisa ser salvo, mas não sou eu! É preciso que eles saibam disso! Houve um equívoco! (Grita.) Senhores! Guardas! Senhores padres! Venham aqui!


GUARDA
(Entra.) Que algazarra é essa? Estamos num convento.

BRANCA
Houve um equívoco! Não sou eu a pessoa!

GUARDA
Que pessoa?

BRANCA
A que procuram.

GUARDA
Procuram alguém?

BRANCA
Claro.

GUARDA
Claro por quê?

BRANCA
Tanto que me prenderam.

GUARDA
E por que prenderam você?

BRANCA
Não sei.

GUARDA
Devia saber. Isso piora a sua situação.

BRANCA
Piora? O senhor sabe por que estou aqui?

GUARDA
Não.

BRANCA
Então é uma prova! O senhor é quem devia saber!

GUARDA
Por que eu devia saber?

BRANCA
Porque é guarda.

GUARDA
Não diga tolices. Os denunciantes denunciam, os juizes julgam, os guardas prendem, somente. O mundo é feito assim. E deve ser assim, para que haja ordem.

BRANCA
E os inocentes?

GUARDA
Devem provar a sua inocência, de acordo com a lei.

BRANCA
Mas não está certo.

GUARDA
Se não está certo, não me cabe a culpa. Sou guarda. E não foram os guardas que fizeram o mundo. (Sai.)

BRANCA
Está errado... Cada pessoa conhece apenas uma parte da verdade. Juntando todas as pessoas, teríamos a verdade inteira. E a verdade inteira é Deus. Por isso as pessoas não se entendem, por isso há tantos equívocos.

PADRE
(Entra.) Infelizmente, não há equívoco nenhum de nossa parte, Branca. É você mesma quem está em perigo. Mas poderá salvar-se.

BRANCA
Como? Se me deixam aqui, sozinha, abandonada... O senhor mesmo, padre, o senhor me abandonou!

PADRE
(Ele sente profundamente a acusação.) Não diga isso! Eu tenho rezado muito... E não tenho me afastado daqui, das proximidades de sua cela. À noite, tenho passado horas e horas andando no corredor, até sentir-me exausto e poder dormir.

BRANCA
Por que precisa fazer isso? Por que precisa se martirizar desse modo?

PADRE
(Exterioriza o seu conflito interior.) Sou tão responsável quanto você pelos seus erros.

BRANCA
Oh, não, o senhor não tem culpa de nada. Se pequei, devo pagar sozinha pelos meus pecados.

PADRE
Agora já é impossível. Tudo o que lhe acontecer, me acontecerá também. Sua punição será a minha punição, embora a sua salvação não importe na minha salvação.

BRANCA
Não entendo. Se o senhor não pode ajudar-me, quem poderá? Para quem devo apelar, além de Deus? Meu pai? Meu noivo?

PADRE
Também eles nada poderão fazer por você; ambos foram presos.

BRANCA
Presos? Por quê?

PADRE
O visitador do Santo Ofício promulgou um tempo de graça. Aqueles que não se aproveitaram desse gesto misericordioso não só para confessar-se, mas também para denunciar as heresias de que tinham conhecimento, deverão comparecer perante o Tribunal.


BRANCA
Mas eles...

PADRE
Além de culpados de pequenas heresias, são testemunhas importantes do seu processo.

BRANCA
Testemunhas de quê?

PADRE
Deviam saber que você estava sendo tentada pelo Diabo.

BRANCA
Não, eles não sabiam! Se nem eu sabia!

PADRE
Deviam ter denunciado você ao Santo Ofício.

BRANCA
Denunciado? Meu pai? Meu noivo?

PADRE
Os laços familiares ou sentimentais não podem ser colocados acima dos deveres que assumimos com a religião, no momento do batismo. Por mais que isso nos custe, às vezes.

BRANCA
Presos... Meu pai e também Augusto. Estou só, então!

PADRE
Não, Branca, você não está só, porque está entregue à misericórdia da Igreja.

BRANCA
Que vai a Igreja fazer comigo?

PADRE
Inicialmente, protegê-la; depois, tentar recuperá-la; finalmente, julgá-la.

BRANCA
Quando será isso? Já que tenho de ir, por que não me vêm logo buscar?

PADRE
Eu vim buscá-la.

BRANCA
O senhor? (Ante a perspectiva, ela treme um pouco.) Agora?

PADRE
É preciso que você entenda... Sou um simples soldado da Companhia de Jesus. Estou sujeito a uma disciplina e devo cumprir ordens. Muitas vezes, do lado do inimigo há um irmão nosso; mas do nosso lado está o Cristo, que é nosso capitão. Devemos obedecer-Lhe, porque Ele tem o comando supremo.

BRANCA
Compreendo.

PADRE
Podemos ir?

BRANCA
Podemos.

PADRE
Não quer preparar-se espiritualmente?

BRANCA
Estou preparada.

PADRE
Reze um ato de esperança. Repita comigo: eu espero, meu Deus, com firme confiança...

BRANCA
(Mãos entrelaçadas sobre o peito.) Eu espero, meu Deus, com firme confiança...

PADRE
...que pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo...

BRANCA
...que pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo...

Sobe a grade.


PADRE
(Começam a movimentar-se, como a caminho do Tribunal.) ...me dareis a salvação eterna...

BRANCA
...me dareis a salvação eterna...

PADRE
...e as graças necessárias para consegui-la...

BRANCA
...e as graças necessárias para consegui-la...

PADRE
...porque Vós, sumamente bom e poderoso...

BRANCA
...porque Vós, sumamente bom e poderoso...

PADRE
...o haveis prometido a quem observar fielmente os Vossos mandamentos...

BRANCA
...o haveis prometido a quem observar fielmente os Vossos mandamentos...

PADRE
...como eu proponho fazer com Vosso auxílio.

BRANCA
...como eu proponho fazer com Vosso auxílio.

Muda a luz. Surge o Visitador no plano superior. O Padre e Branca ficam no plano inferior. Entram também o Notário e quatro padres, que se colocam nas laterais, enquanto o Guarda surge e permanece ao fundo.

VISITADOR
Ajoelhe-se.

BRANCA
Ajoelhar-me diante de vós? Com ambos os joelhos?

VISITADOR
Sim, com ambos os joelhos.

BRANCA
Perdão, mas não posso fazer isso.

VISITADOR
Por que não?

BRANCA
Porque ninguém deve ajoelhar-se diante de uma criatura humana.

NOTÁRIO
E essa agora! Perdeu a cabeça? Não vê que está diante do visitador do Santo Ofício, representante do inquisidor-mor?

PADRE
Um momento, senhores. Ela talvez tenha motivos que devamos considerar. (Dirige-se a Branca com brandura.) Por que diz isso?

BRANCA
Foi o que aprendi na doutrina cristã: somente diante de Deus devemos nos ajoelhar com ambos os joelhos.

PADRE
Na verdade, ela tem razão. Dos três cultos — a latria, hiperdulia e dulia — deve-se dar somente a Deus o culto da latria, no que se compreende ajoelhar com ambos os joelhos.

BRANCA
Sempre soube que era pecado!

VISITADOR
Aqui se trata de um costume do Tribunal. O réu deve estar de joelhos quando é examinado sobre a doutrina e também quando é lida a sentença.

BRANCA
Mas se foi nessa mesma doutrina que aprendi que não devo ajoelhar-me...

VISITADOR
(Impacienta-se.) Bem, vamos abrir uma exceção. Pode ficar de pé.

NOTÁRIO
(Apresenta-lhe os Evangelhos.) Jura sobre os Evangelhos dizer toda a verdade?

BRANCA
(Hesita.) Toda a verdade? Como posso prometer dizer toda a verdade, se nem sequer sei sobre que vão interrogar-me? Não tenho a sabedoria dos padres jesuítas, sou uma pobre criatura ignorante.

NOTÁRIO
(Tem um gesto de contrariedade.) Mas tem de jurar. É praxe.

BRANCA
Jurar o que não sei se vou poder cumprir?

NOTÁRIO
Se não jura, não tem valor o depoimento.

PADRE
Branca, só se exige que você diga a verdade que for de seu conhecimento.

BRANCA
Bem, se é assim... (Coloca a mão sobre o livro.)

NOTÁRIO
Jura?

BRANCA
Juro.

VISITADOR
Não se justifica, Branca, sua prevenção contra este Tribunal. Nenhum de nós deseja a sua condenação, acredite. Ao contrário, o que queremos é tentar ainda salvá-la, recuperá-la para a Igreja. Tudo faremos para isso. E será sempre nesse sentido que orientaremos este inquérito, no sentido da misericórdia.

BRANCA
Misericórdia. Mas é um ato de misericórdia deixar uma pessoa dias e dias encerrada numa cela sem luz e sem ar, sem ao menos lhe dizer por quê, de que a acusam?

O Notário tem um gesto de contrariedade, enquanto o Padre Bernardo acompanha as reações de Branca em crescente angustia.

VISITADOR
Você conhece as obras de misericórdia?

BRANCA
Conheço.

VISITADOR
Recite em voz alta.

BRANCA
Dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; visitar os enfermos e os encarcerados; remir os cativos; enterrar os mortos; dar bom conselho; ensinar os ignorantes; consolar os aflitos; perdoar as injúrias; sofrer com paciência as fraquezas do próximo; rogar a Deus pelos vivos e defuntos.

VISITADOR
Você saltou uma: castigar os que erram.

BRANCA
É verdade. Desculpe-me.

VISITADOR
Sim, Branca, castigar os que erram é uma obra de misericórdia.

BRANCA
E começam logo a castigar-me; isto quer dizer que já me consideram culpada antes de ouvir-me.

PADRE
Você ainda não sofreu nenhum castigo, Branca; a prisão é uma medida exigida pelo processo.

NOTÁRIO
Essa medida foi tomada com base nas denúncias e provas que temos contra ela.

BRANCA
Denúncias e provas? De quê?

VISITADOR
De heresia e prática de atos contra a moralidade.


BRANCA
(Mostra-se perturbada com a acusação.) Heresia... Atos contra a moralidade... Talvez essas palavras tenham outra significação para os senhores. Pelo que eu entendo que querem dizer, não posso, de modo algum, aceitar a acusação.

O Notório tem um gesto de reprovação.

PADRE
Branca, pense bem no que está fazendo, meça com cuidado suas palavras e atitudes. Como disse o senhor bispo, estamos aqui para tentar reconciliá-la com a fé. Mas isso depende muito de você.

BRANCA
Mas que querem? Que eu me considere uma herege, sem ser?

PADRE
De nada lhe adiantará negar-se a reconhecer os próprios pecados. Essa atitude só poderá perdê-la.

NOTÁRIO
Parece que é isso que ela está querendo.

VISITADOR
Um momento, senhores. Sejamos pacientes. Creio que ela não estava suficientemente preparada para esta inquirição. O Padre Bernardo não a visitou no cárcere durante esses dias?

PADRE
(Sente-se que o sangue lhe sobe ao rosto.) Não... visitei-a hoje.

VISITADOR
Hoje, somente?

PADRE
Julguei que não fosse necessário.

VISITADOR
Necessário ou não, é a maneira de proceder do Santo Ofício.

O Padre sente profundamente a reprimenda. E, ao perceber que Branca tem os olhos nele, baixa o rosto, envergonhado.

VISITADOR
Branca, estamos aqui para ajudá-la. Mas é preciso também que você nos ajude, a nós que temos por ofício defender a fé.

BRANCA
Não creio, senhor, que esteja no momento em condições de ajudar quem quer que seja, mas no que depender de mim...

VISITADOR
A Igreja, Branca, a sua Igreja, está diante de um perigo crescente e ameaçador. Toda a sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a civilização e cultura do Ocidente, estão ameaçados de dissolução.

BRANCA
E sou eu, senhor, sou eu a causa de tanta desgraça?!

VISITADOR
Não é você, isoladamente; são milhares que, como você, consciente ou inconscientemente, propagam doutrinas revolucionárias e práticas subversivas. Está aí o protestantismo, minando os alicerces da religião de Cristo. Estão aí os cristãos-novos, judeus falsamente convertidos, mas secretamente seguindo os cultos e a lei de Moisés.

BRANCA
Se alguém converteu-se, sem estar de fato convicto, é que foi obrigado a isso pela força. (Repete as palavras do pai.) O ódio não converte ninguém.

PADRE
(Agora fala com mais rigor para com ela.) É uma acusação injusta e falsa. Nunca empregamos a força para converter ninguém.

BRANCA
Meu avô foi convertido à força.

PADRE
E isso não isenta ninguém de culpa. Se o ódio não converte, também o medo, a covardia ou a hipocrisia não absolvem.

VISITADOR
É verdade, Branca. Não devemos usar a força para converter, mas devemos ser rigorosos com os convertidos. Quem assumiu, no batismo, o compromisso de conservar a fé, de ser membro da Igreja e da cristandade até a morte, contraiu obrigações inalienáveis. E as autoridades eclesiásticas têm o direito e o dever de exigir o cumprimento dessas obrigações.

BRANCA
Estou de acordo.

NOTÁRIO
(Com ar zombeteiro.) Ora viva!, enfim ela está de acordo com alguma coisa!

VISITADOR
Alegro-me por ver que entendeu os motivos da instituição do Tribunal do Santo Ofício e das visitações que o inquisidor-mor ordenou para o Brasil.

BRANCA
Isto eu entendi; o que não entendo é por que estou aqui. Não fui convertida, nasci cristã e como cristã tenho vivido até hoje. Cristãos de nascimento são também meu pai e meu noivo, que também estão presos, afastados de mim. Na verdade, senhores, não entendo coisa alguma.

O Visitador faz um sinal ao Padre Bernardo, cedendo-lhe a palavra.

PADRE
(É para ele uma ingrata tarefa. Sua auto-suspeição o leva, às vezes, durante o interrogatório, a exceder-se em rigor e no tom da acusação, para cair, em seguida, numa ternura e num calor humano que o redimem e o traem.) Branca, há um gesto que seu avô costumava fazer quando você era criança. Você me disse, lembra-se?


BRANCA
Lembro-me.

PADRE
Pode repetir aqui esse gesto?

BRANCA
Posso, mas... precisaria fazê-lo em alguém. Posso fazê-lo no senhor?

PADRE
(Fica um pouco constrangido, mas concorda.) Pode.

Branca faz a bênção judaica. O Visitador e o Notório trocam olhares significativos.

BRANCA
Era assim. Mas o que tem isso?

PADRE
Você me disse também que não gostava de lembrar do dia da morte de seu avô. E toda vez que o fazia tinha a impressão de sentir aquele mesmo cheiro marcante e peculiar. Quer repetir que cheiro era esse?

BRANCA
Cheiro de azeitonas.

Novamente o Visitador e o Notório trocam olhares significativos.

PADRE
Nesse dia, seu pai lhe deu uma pataca e mandou que você a pusesse sobre os lábios de seu avô.

BRANCA
Ele mesmo havia pedido, antes de morrer.

PADRE
(Mais severo.) E você fez o que seu pai mandou.

O Visitador e o Notório deixam escapar um "Oh!" de horror. Os padres também se escandalizam.

BRANCA
(Atônita, sem entender o significado e muito menos a gravidade de tudo aquilo.) Eu era uma criança... faria tudo que me mandassem... agora mesmo eu o faria, se alguém me pedisse!

NOTÁRIO
(Horrorizado.) Agora mesmo?!

PADRE
(Temendo por ela.) Branca!

BRANCA
Acho que é uma coisa idiota alguém querer que lhe ponham uma moeda sobre os lábios quando morrer, mas todo desejo de um moribundo é um desejo sagrado!

VISITADOR
Acho que ela não sabe, realmente, o que está dizendo.

BRANCA
O que eu não sei é aonde os senhores querem chegar com essa estória de meu avô, patacas e azeitonas.

VISITADOR
Aquele gesto que você fez há pouco, é como os judeus abençoam as crianças.

NOTÁRIO
Quando morre alguém, eles passam a noite comendo azeitonas!

PADRE
A pataca que você pôs na boca de seu avô era para ele pagar a primeira pousada, segundo a crença judaica.

VISITADOR
Tudo isto quer dizer, Branca, que seu avô, cristão-novo, continuava fiel aos ritos judaicos. E que os praticava em sua própria casa.

BRANCA
É possível. Se o batizaram à força, era justo...

NOTÁRIO
Era justo?!

Reação dos padres.

VISITADOR
Cuidado com as palavras, Branca!

BRANCA
Uma pessoa deve ser fiel a si mesma, antes que tudo. Fiel à sua crença.

PADRE
Isso basta para alguém se salvar?

BRANCA
Devia bastar, penso eu...

PADRE
(Triunfante.) Então seu avô, que continuou intimamente fiel à sua crença, conseguiu salvar-se! E todos os judeus e todos os mouros, fiéis à sua religião e aos seus deuses, estão salvos!

BRANCA
Como posso saber?!

PADRE
Você tem que saber! Porque o cristão sabe que só existe um Deus verdadeiro e não pode haver mais de um.

BRANCA
Eu sei, eu creio nisso firmemente. Não estava falando por mim, mas por meu avô.

VISITADOR
O que você acaba de insinuar, Branca, é uma grande heresia. Não deve repetir.

BRANCA
Sim, senhor.

PADRE
(Volta a um tom mais brando, mais humano.) Branca, seu pai costuma banhar-se às sextas-feiras?

BRANCA
Ora, senhores, sou uma moça e não fica bem estar observando quais os dias em que meu pai toma ou não toma banho.

PADRE
E você? Costuma banhar-se às sextas-feiras?

BRANCA
Costumo banhar-me todos os dias; acho que é assim que deve fazer uma pessoa asseada.

PADRE
Também às sextas-feiras?

BRANCA
E por que não?

PADRE
E tem por costume vestir roupa nova nesse dia, ou enfeitar-se com jóias?

BRANCA
Não uso jóias. A única que tenho é este anel que meu noivo me deu no dia em que me pediu em casamento. E nunca o tiro do dedo, nem mesmo quando tomo banho.

PADRE
Nem mesmo quando vai banhar-se no rio?

BRANCA
Nem assim.

PADRE
Que traje costuma usar quando vai banhar-se no rio?

BRANCA
O traje comum...

PADRE
(Interrompe.) Mas naquela noite você não estava com o traje comum. Estava nua.

NOTÁRIO.
Nua!?

Reação dos padres.

BRANCA
Eu já expliquei, padre, foi uma noite somente e ninguém viu...

VISITADOR
Que foi que a levou a proceder assim, Branca?

BRANCA
O calor...

PADRE
Seu corpo queimava...

VISITADOR
Não ouviu alguma voz?

BRANCA
Como?...

VISITADOR
Uma voz incentivando-a a despir-se...

BRANCA
Não, senhor, não ouvi voz nenhuma. Em minha casa todos dormiam.

PADRE
O fato de não ter ouvido não quer dizer que não estivesse possuída pelo Demônio.

BRANCA
Pelo Demônio!

PADRE
Sim, o Demônio pode não falar, mas é ele quem a empurra para o rio e a obriga a despir-se!


NOTÁRIO
(Gravemente.) Há casos...

BRANCA
Padre, lembre-se de que eu mergulhei uma vez no rio para salvá-lo. Foi também o Diabo quem me empurrou?

PADRE
Já não sei se foi realmente para salvar-me...

BRANCA
Como, padre?!

PADRE
Naquele dia também você estava quase nua!

BRANCA
Eu?!

PADRE
E me disse que devia ter salvo o cofre, em vez do crucifixo. Isso prova que era Satanás quem falava por você.

BRANCA
Não, padre, não!

PADRE
(Chegando ao máximo da exacerbação.) Se não estava possuída pelo Demônio, por que aproveitou-se do meu desmaio para beijar-me na boca?!

VISITADOR
Jesus!

NOTÁRIO
Na boca! E seminua!

BRANCA
Fiz isso para que não sufocasse, para que não morresse!

PADRE
(Grita.) Cínica! Foi esse o pretexto que Satanás arranjou para o seu pecado!

Há um grande silêncio. Branca sente-se perdida e arrasada. Padre Bernardo, por sua vez, cai numa espécie de exaustão, como depois de um autoflagelo.

PADRE
(Sua voz desce a um tom de oração.) Branca, você está diante do visitador do Santo Ofício. Ele tem autoridade para puni-la. Leve ou duramente — depende de você. Aproveite a misericórdia deste Tribunal, misericórdia que você não encontraria num tribunal civil.

BRANCA
Aproveitar, como?

PADRE
Da única maneira possível: declarando-se arrependida de todos os pecados que cometeu. Dos pecados mortais e veniais e dos pecados que bradam aos céus.

VISITADOR
Veja, Branca, que este é um Tribunal de clemência divina. Seu simples arrependimento, se sincero, poderá salvá-la. Qual o tribunal civil que absolve um criminoso por ele estar arrependido?

PADRE
(Vendo que ela está indecisa, quase numa súplica.) Branca...

BRANCA
(Sem muita firmeza.) Sim, eu estou arrependida. Mas o meu arrependimento terá valor, se não estou convencida de ter praticado esses pecados?

VISITADOR
E por não estar convencida disso seria capaz de praticá-los novamente?

BRANCA
Acho que sim.

PADRE
(Tem um gesto de desânimo.) Seria bom chamar Augusto Coutinho.

VISITADOR
(Alto, para fora.) Tragam Augusto Coutinho!

O Guarda sai e volta com Augusto. Está algemado e seu aspecto é deplorável. Foi torturado.

BRANCA
(Precipita-se para ele.) Augusto!

VISITADOR
(Enérgico.) Não, Branca! Afaste-se.

Ela obedece, afasta-se para um canto, enquanto o Guarda traz Augusto até o meio da cena, deixa-o diante dos inquisidores e volta ao seu posto.

NOTÁRIO
(Coloca as mãos algemadas de Augusto sobre os Evangelhos.) Jura sobre os Evangelhos dizer a verdade?

AUGUSTO
Juro.

O Notário volta ao seu lugar.

VISITADOR
Augusto Coutinho, sabe que está ameaçado de excomunhão?

AUGUSTO
Sei.

VISITADOR
Como cristão, isso não o apavora?


AUGUSTO
Apavora mais não ter a fibra dos primeiros cristãos.

VISITADOR
Para que desejaria ter a fibra dos primeiros cristãos?

AUGUSTO
Para resistir às torturas.

VISITADOR
Ordenei a tortura pela sua obstinação em esconder a verdade.

AUGUSTO
E vão acabar obtendo de mim a mentira. Isto é o que me apavora, mais do que a excomunhão.

VISITADOR
(Ao Guarda.) Durante quanto tempo o torturaram?

GUARDA
(Adianta um passo). Quinze minutos.

VISITADOR
Lembre-se de que o limite máximo permitido pelas normas do processo é uma hora.

GUARDA
Paramos porque ele desmaiou.


VISITADOR
(Severo.) Não deviam ter chegado a tanto. A finalidade da tortura é apenas obter a verdade. Tenho recomendações muito enérgicas do inquisidor-mor para evitar os excessos.

GUARDA
Mas a culpa foi dele, senhor. Ele assinou a declaração.

NOTÁRIO
É verdade, antes de ter início a tortura, ele assinou a declaração de praxe. Tenho-a aqui. (Mostra um papel, que lê, depois de engrolar algumas palavras.) "... e declaro que se nestes tormentos morrer, quebrar algum membro, perder algum sentido, a culpa será toda minha e não dos senhores inquisidores. Assinado: Augusto Coutinho."

GUARDA
Já vêem os senhores que a culpa é toda dele. (Volta ao seu posto.)

VISITADOR
Aquilo que não foi obtido por meio de torturas, talvez o simples bom senso obtenha.

PADRE
É a minha esperança. (Para Augusto.) Conhece essa moça, Augusto?

AUGUSTO
O senhor sabe que sim. É minha noiva e já seria minha esposa se... se tudo isso não tivesse acontecido.

PADRE
Pois ela ainda poderá ser sua esposa, se você nos ajudar a salvá-la.

AUGUSTO
Eu faria tudo para isso.

PADRE
Então, salve-a. Diga a verdade. Ainda que possa parecer o contrário, a única maneira de ajudá-la é fazê-la reconhecer os próprios erros e arrepender-se.

AUGUSTO
Mas que espécie de verdade querem que eu diga? Que a vi nua, banhando-se no rio? Que a vi invocando os diabos na boca dos formigueiros? Para salvá-la é então preciso lançar calúnias e infâmias contra ela? E quem me garante que não se aproveitarão disso justamente para condená-la? Não, podem arrancar-me um braço, uma perna, mas não me arrancarão uma palavra que não seja verdadeira.

BRANCA
(Grita.) Não, Augusto, não! Se o torturarem muito, pode dizer o que eles quiserem! Não quero que sofra por minha causa!

VISITADOR
(Num gesto enérgico para que ela se cale.) Chiiii!

PADRE
(Mostra a bíblia apreendida.) E este livro, é também calúnia?

AUGUSTO
Este livro é uma bíblia e fui eu quem lhe deu de presente.

PADRE
Uma bíblia em português. Não sabia que estava lhe dando um livro proibido pela Igreja?

AUGUSTO
Para mim a bíblia é a bíblia, em qualquer língua.

VISITADOR
O que está afirmando é uma grave heresia.

PADRE
Não se arrepende de tê-la arrastado a essa heresia?

AUGUSTO
Não. Não me arrependo porque assim a fiz conhecer a sabedoria e a beleza dos Evangelhos.

PADRE
Rebela-se então contra uma determinação da Igreja?

AUGUSTO
Não me parece que seja uma determinação da Igreja, mas de alguns prelados, que não são infalíveis.

PADRE
É uma determinação do papa.

VISITADOR
(Incisivo.) Nega, por acaso, a autoridade do papa?

AUGUSTO
Não, não nego.

VISITADOR
Nega a autoridade da Igreja?

AUGUSTO
Não, não nego.

VISITADOR
Acredita na justiça e na misericórdia do Tribunal do Santo Ofício?

AUGUSTO
(Tem uma leve hesitação.) Acredito na justiça e na misericórdia de Deus.

VISITADOR
(Já um pouco irritado.) Nega que o Santo Ofício seja justo e misericordioso?

AUGUSTO
Afirmo que Deus é justo e misericordioso.

VISITADOR
(Não pode conter um gesto de irritação.) Acho que devemos encerrar aqui esta parte do interrogatório.

O Padre Bernardo assente com a cabeça.

VISITADOR
Podem levá-lo.
O Guarda avança para levar Augusto.

BRANCA
Senhores, eu queria fazer um pedido, confiando na misericórdia do Tribunal.

VISITADOR
Faça.

BRANCA
Antes que nos separem novamente, podíamos conversar durante alguns minutos?

PADRE
Os regulamentos não permitem. As normas do processo...

VISITADOR
(Interrompe, conciliador) Não acho que devamos ser assim tão rigorosos. Não vejo inconveniente em que eles fiquem juntos por alguns momentos e conversem.

PADRE
(Evidentemente contrariado.) Perdoe-me a interferência; é Vossa Reverendíssima quem decide.


VISITADOR
(Ao Guarda.) Pode deixá-los um instante. (Levanta-se e sai, seguido do Padre Bernardo, do Notário, do Guarda e dos outros padres.)

Augusto senta-se no chão, esgotado. Branca senta-se a seu lado.

BRANCA
(Após alguns segundos de hesitação, ela se lança nos braços dele, que a beija nos cabelos.) Meus cabelos ainda cheiram a capim molhado?

AUGUSTO
(Aspira.) Não.

BRANCA
Que perfume têm agora?

AUGUSTO
Nenhum. Parecem um manto. Cheiram a pano.

BRANCA
(Muito triste.) Pano... E você gostava de beijá-los e aspirar o seu perfume.

AUGUSTO
Talvez a culpa seja minha, que já estou incapaz de sentir.

BRANCA
Que fizeram com você?


AUGUSTO
Deitaram-me numa cama de ripas e me amarraram com cordas, pelos pulsos e pelas pernas. Apertavam as cordas, pouco a pouco, parando a circulação e cortando a carne. (Ele lhe mostra os punhos, ela os sopra e beija.) E faziam perguntas, perguntas, e mais perguntas. As mais absurdas. As mais idiotas.

BRANCA
Como você deve ter sofrido!

AUGUSTO
A dor física não é tanta; dói mais o aviltamento. Vamos nos sentindo cada vez menores, num mundo cada vez menor.

BRANCA
É mesmo, o mundo se fecha cada vez mais sobre nós. E por quê? Que fizemos? Que é que eles querem de você? Que me acuse?

AUGUSTO
Querem fazer de mim o que fizeram de seu pai.

BRANCA
Meu pai, que fizeram com ele?

AUGUSTO
Um trapo.

BRANCA
Onde ele está?

AUGUSTO
Na minha cela.

BRANCA
Também o torturaram?

AUGUSTO
Não foi preciso. O que fizeram comigo foi suficiente.

BRANCA
E tudo isso... é por minha causa. Vocês estão pagando pelos meus erros.

AUGUSTO
Quais são os seus erros, Branca?

BRANCA
(Angustiada.) Não sei... Devo ter cometido alguns, sim. Mas eles me acusam de tanta coisa. E parecem tão certos da minha culpa. Talvez o meu erro maior seja não entender. Ou quem sabe se não quero entender?

AUGUSTO
A mim eles não conseguiram e não conseguirão jamais convencer de que você não é a criatura mais pura que já nasceu. Ainda que tenha cometido erros, ainda que tenha feito confusões, ainda que tenha pecado.

BRANCA
Você diz isso porque me ama. Nós não podemos ver as nossas imperfeições, porque estamos um dentro do outro. Mas eles, eles nos olham de fora e de cima. Eles sabem que eu não sou assim. E é egoísmo da minha parte permitir que você e papai sofram o que estão sofrendo, quando bastaria concordar com tudo, reconhecer todos os pecados, mesmo aqueles que fogem ao meu entendimento, e cumprir a pena que me for imposta.

AUGUSTO
Não, Branca, não.

BRANCA
(Está de pé, muito excitada.) Era o que eu já devia ter feito. Assino em branco que reconheço todas as culpas de que me acusam ou venham a acusar-me e pronto. Assim, talvez devolvam a vocês a liberdade e a mim a luz do sol! (Sobe ao plano superior e grita.) Guarda! Guarda!

AUGUSTO
Branca, por Deus, não faça isso! Por que terei então resistido a todas as torturas? Para quê?

BRANCA
Mas eu não quero que você sofra!

AUGUSTO
Mas alguém tem de sofrer!

BRANCA
Não por minha causa.


AUGUSTO
Por uma causa qualquer, grande ou pequena, alguém tem que sofrer. Porque nem de tudo se pode abrir mão. Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol.

BRANCA
Nem mesmo em troca do sol.

GUARDA
(Entra.) Que foi? Alguém chamou?

BRANCA
(Hesita ainda um instante.) Não, ninguém Chamou.

GUARDA
É, mas o tempo já está esgotado. Era só um instante.

BRANCA
(Toma as mãos de Augusto e beija-as. Há nesse gesto gratidão, amor e admiração.) Será que isto vai durar eternamente?

AUGUSTO
Não creio. É demasiado cruel e demasiado idiota para durar.

Augusto e o Guarda iniciam a saída. O Guarda pára e volta-se para Branca.

GUARDA
Não fui eu que botei ele no potro.

BRANCA
Potro?

GUARDA
Na cama com ripas. Só levei ele até lá e fiquei olhando. Sou obrigado. (Sai com Augusto.)

BRANCA
Todos são obrigados. Obrigados a denunciar, a prender, a torturar, a punir, a matar. Mas obrigados por quem?

Muda a luz.

PADRE
(Entra.) É você, Branca, você quem nos obriga a proceder assim.

BRANCA
Eu?

PADRE
A tentação que está em você, o pecado que está em você, a obstinação demoníaca que está em você.

BRANCA
Que será de mim, então, padre, se sou portadora de tanto veneno?

PADRE
É nosso dever exterminar todas as venenosas plantas da vinha do Senhor, até as últimas raízes.

BRANCA
Exterminar?!

PADRE
É um penoso dever que nos foi imposto. A ele não podemos fugir. Sob a pena de deitar a perder toda a vinha.

BRANCA
Como? Além do mais, temem os senhores que eu contamine outras pessoas?

PADRE
Você já contaminou outras pessoas.

BRANCA
Eu, padre? Quem? Augusto?

PADRE
E continuará contaminando muitas outras, porque basta aproximar-se de você para cair em pecado.

BRANCA
Padre, muitas pessoas se aproximam de mim sem que eu tenha sobre elas a menor influência. O senhor mesmo já foi várias vezes à minha casa, fez-se meu confessor e meu amigo...

PADRE
Eu sei o quanto isso me custou!


BRANCA
(Surpresa.) Padre!

PADRE
(Arrepende-se.) Não devemos falar nesse assunto.

BRANCA
Que assunto, padre? Eu lhe fiz algum mal? É preciso que me diga, pois assim talvez eu compreenda alguma coisa.

PADRE
Veja... (Mostra os lábios descarnados.)

BRANCA
Que foi isso? Seus lábios descarnados...

PADRE
Queimei-os com água fervendo. Os lábios, a língua, o céu da boca, para destruir o sentido do gosto.

BRANCA
E por que fez isso?!

PADRE
Para eliminar o gosto impuro dos seus lábios. Mas o gosto persiste. Persiste. (Cai de joelhos, com o rosto entre as mãos.)

BRANCA
Eu... sinto muito. Acho que não devia mesmo ter feito o que fiz.

PADRE
(Ainda com o rosto entre as mãos, dobrado sabre si mesmo.) Chego a ter alucinações.

BRANCA
Se soubesse que ia lhe fazer tanto mal...

PADRE
Antes de você aparecer, eu vivia em paz com Jesus.

BRANCA
Eu também, antes de conhecê-lo, vivia na mais absoluta paz com Deus.

PADRE
É possível que eu esteja sendo submetido a uma prova. E faz parte dessa prova o ter que julgá-la e puni-la.

BRANCA
Agora já não sei de mais nada. Os senhores lançaram a dúvida e a confusão no meu espírito e eu já nem tenho coragem de pedir a Deus que me esclareça. Cada gesto meu, mesmo o mais ingênuo, parece carregado de maldade e destruição.

PADRE
Se é uma provação, que seja bem rigorosa, para demonstrar a minha fidelidade e o meu amor ao Cristo. Que todos os suplícios me sejam impostos, à minha alma e à minha carne.


BRANCA
E o pior é que já não conto com mais ninguém. (Sente, pela primeira vez, em toda a sua terrível realidade, que está só e perdida. E que nada modificará o seu destino.)

PADRE
(Mãos postas e vergado sobre si mesmo com os lábios quase tocando o solo, reza um ato de contrição.) Senhor meu Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, Criador e Redentor meu, por serdes Vós quem sois sumamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas; e porque Vos amo e estimo, pesa-me, Senhor, de todo o meu coração, de Vos ter ofendido; pesa-me também por ter perdido o céu e merecido o inferno; e proponho firmemente, ajudado com os auxílios de Vossa divina graça, emendar-me e nunca mais Vos tornar a ofender. Espero alcançar o perdão de minhas culpas pela Vossa infinita misericórdia. Amém. (Sente-se mais aliviado, levanta-se e, pela primeira vez, nesta cena, pousa os olhos em Branca. Um olhar já tranqüilo e de imensa piedade.) Mandaram-me visitá-la pela última vez.

BRANCA
Pela última vez?

PADRE
Sim, para lhe oferecer a última oportunidade de arrependimento e perdão.

BRANCA
E se eu recusar?

PADRE
Só nos restará o relaxamento ao braço secular.

BRANCA
O que é isso?

PADRE
Isso quer dizer que você será entregue à justiça secular, que a julgará por crime comum. E certamente a condenará.

BRANCA
À prisão?

PADRE
Não, o braço secular é sempre mais severo.

BRANCA
(Apavora-se.) À fogueira?!

PADRE
É bom que você saiba o perigo que corre.

BRANCA
(Cai em pânico.) Não! Não podem fazer isso comigo! Eu não mereço! É uma maldade! E o senhor que tudo prometeu fazer para salvar-me.

PADRE
Já nada mais posso fazer por você, Branca. E desde o princípio seu destino dependeu sempre de você mesma. Você escolherá.

BRANCA
Mas que posso escolher? É claro que não quero ser queimada viva!

PADRE
Está disposta a arrepender-se?

BRANCA
Estou disposta a tudo. Entrego-me em suas mãos e nas mãos do Santo Ofício.

PADRE
Entrega-se sinceramente arrependida, Branca?

BRANCA
Que importa? Os senhores venceram. Vá, diga ao visitador que reconheço os meus pecados e que estou disposta a arrepender-me e cumprir a penitência que me for imposta.

PADRE
Você não está sendo levada somente pelo desespero e pelo medo?

BRANCA
E desde o princípio, não foi ao desespero e ao medo que tentaram levar-me?

PADRE
Não, Branca. Tentamos levá-la a um reencontro com a verdadeira fé cristã. Não usamos a força contra você; tentamos convencê-la pela persuasão.

BRANCA
Sim, uma bonita persuasão! Prendem-me entre quatro paredes, sem luz e sem ar, e ameaçam-me com a fogueira! Prendem meu pai e torturam meu noivo — são bonitos métodos de persuasão.

PADRE
Sua arrogância mostra que o Demônio ainda não a abandonou. (Inicia a saída.)

BRANCA
Padre! Espere! (Corre até ele e arroja-se aos seus pés.) Perdoe-me! Não sei o que estou dizendo. A verdade é que preciso de sua piedade. Aqui me tem, padre, humilde e humilhada, sinceramente arrependida de tudo, de tudo que decidirem que devo arrepender-me.

PADRE
(Pousa a mão sobre a cabeça dela, num gesto de piedade e amor, depois a retira rapidamente.) Vou transmitir sua decisão ao visitador. (Sai.)

Branca fica ainda um tempo estendida no chão. Muda a luz. Entra Simão.

SIMÃO
Branca! (Ele traz, pregada à roupa, no peito e nas costas uma grande cruz de pano amarelo.)

BRANCA
Pai!

SIMÃO
(Corre a abraçá-la.) Filhinha! Eles a maltrataram?

BRANCA
Não muito. E o senhor, está bem?

SIMÃO
Estou vivo, pelo menos. E é isso que importa, não acha?

BRANCA
Sim, é o principal.

SIMÃO
É uma loucura pensar que, num momento desses, se possa salvar alguma coisa além da vida. Desde o primeiro momento compreendi que devia aceitar tudo, confessar tudo, declarar-me arrependido de tudo. Vamos nós discutir com eles, lutar contra eles? Tolice. Têm a força, a lei, Deus e a milícia — tudo do lado deles. Que podemos nós fazer? De que adianta alegar inocência, protestar contra uma injustiça? Eles provam o que quiserem contra nós e nós não conseguiremos provar nada em nossa defesa. Bravatas? Também não adiantam. Eu vi o que aconteceu com Augusto.

BRANCA
O senhor o viu ser torturado?

SIMÃO
Vi. As duas vezes.


BRANCA
Duas vezes? Então o torturaram novamente!

SIMÃO
Ele fez mal em não falar.

BRANCA
Mas queriam que ele me denunciasse. Que me acusasse de coisas terríveis e absolutamente falsas!

SIMÃO
Que importa que sejam falsas? Se você e ele confessassem, salvariam a pele!

BRANCA
Augusto acha que é preciso defender um mínimo de dignidade.

SIMÃO
Em primeiro lugar, o homem tem a obrigação de sobreviver, a qualquer preço; depois é que vem a dignidade. De que vale agora para nós, para os pais dele, para você, para ele mesmo, essa dignidade?

BRANCA
Como? (Ela percebe.) Que fizeram com Augusto?

SIMÃO
(Faz uma pausa. As palavras custam a sair.) Ele não resistiu...


BRANCA
(Num sussurro.) Morreu! (Mais forte.) Eles o mataram! (Seus joelhos vergam, repete baixinho.) Eles o mataram... Eles o mataram...

SIMÃO
Eu sabia que ele não ia resistir. Estava vendo!... depois de tudo, ainda o penduraram no teto com pesos nos pés e o deixaram lá... Quando os guardas voltaram, ainda tentaram reanimá-lo, mas...

BRANCA
(Sua dor se traduz por um imenso silêncio. Subitamente:) E o senhor não podia ter feito nada?!

SIMÃO
Eu?...

BRANCA
Sim, por que não gritou, não chamou alguém?

SIMÃO
Pensei em baixar a corda. Mas...

BRANCA
Pois então.

SIMÃO
Eles têm leis muito severas para aqueles que ajudam os hereges. Eu já estava com a minha situação resolvida, ia ser posto em liberdade...


BRANCA
Bastava um gesto...

SIMÃO
E o que me custaria esse gesto? Um homem deve pesar bem suas atitudes, e não agir ao primeiro impulso. Eu podia ter tido o mesmo destino que ele. Era ou não era muito pior?

BRANCA
Não sei se seria pior...

SIMÃO
Você preferiria que eu morresse também, que tivéssemos todos os nossos bens confiscados ou que fôssemos punidos com uma declaração de injúria até a terceira geração? Se nada disso aconteceu, foi porque eu agi com inteligência e bom senso.

BRANCA
E agora, como é que o senhor vai conseguir viver, depois disso?

SIMÃO
Não entendo o que você quer dizer...

BRANCA
Augusto morreu porque o senhor não foi capaz de levantar um dedo em sua defesa.

SIMÃO
Não foi bem assim...

BRANCA
Porque o senhor não quis se comprometer.

SIMÃO
Não foi por isso que ele morreu.

BRANCA
Teria resistido, se a tortura tivesse sido abreviada.

SIMÃO
Sim, mas...

BRANCA
Para isso teria bastado que o senhor baixasse a corda.

SIMÃO
Eu já lhe expliquei...

BRANCA
(Grita.) E o senhor não foi capaz! O Senhor não foi capaz!

SIMÃO
Minha filha, eu compreendo o seu sofrimento. Eu também sinto muito. Mas não é justo que você se volte agora contra mim. Não foi eu quem matou Augusto. Foram eles. Os carrascos, a Inquisição.

BRANCA
O senhor também o matou. E o que mais me horroriza é que o senhor é um homem decente.

SIMÃO
Branca, você não sabe o que está dizendo!

BRANCA
O senhor é tão culpado quanto eles.

SIMÃO
Não, ninguém pode ser culpado de um ato para o qual não contribuiu de forma alguma.

BRANCA
O senhor contribuiu.

SIMÃO
Não matei, não executei, não participei de nada!

BRANCA
Silenciou.

SIMÃO
Também por sua causa. Por nossa causa. Era um preço que teríamos de pagar.

BRANCA
Preço de quê?

SIMÃO
É uma ilusão imaginar que poderíamos sair daqui, todos, sem que nada nos tivesse acontecido. Alguém teria de ser atingido mais duramente.

BRANCA
E o senhor acha que só ele o foi.

SIMÃO
Digo diretamente.

BRANCA
E imagina que com isso matou a sede de violência, resgatou a nossa quota.

SIMÃO
De certo modo, acho que sim. Devo apenas levar esta cruz na roupa durante um ano. É humilhante, mas ainda é uma sorte. Se você abjurar, pode ser que lhe dêem pena semelhante e estaremos livres.

BRANCA
Se eu abjurar... o senhor quer que eu também seja cúmplice.

SIMÃO
Cúmplice de quê?

BRANCA
Da morte de Augusto.

SIMÃO
Absurdo! Você não tem nada com isso!

BRANCA
Tenho. Todos nós temos. Quem cala, colabora.

SIMÃO
Não tem sentido o que você está dizendo! Não é possível que você não entenda que está perdida se não ceder ao que eles querem, se não confessar e abjurar tudo.

BRANCA
Há um mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol.

SIMÃO
(Olha a filha horrorizado.) Que Deus se compadeça de você!

O Guarda entra e arrasta Simão.
Muda a luz. O Visitador, o Notório e o Padre Bernardo entram com os padres.

VISITADOR
Branca, vamos, mais uma vez, dar provas de nossa tolerância. Vamos permitir que permaneça de pé, enquanto o senhor notário lê o ato de abjuração que você deverá assinar.

O Notório toma posição, desenrola um papel.

BRANCA
É inútil, senhores. Não vou abjurar coisa alguma. O que quero, o que espero dos senhores, é minha absolvição.

Reação dos padres.

VISITADOR
(Indignado.) Como?! Ela não ia abjurar?

PADRE
Ia, prometeu...

NOTÁRIO
Essa agora!

VISITADOR
Branca, você não se disse disposta a abjurar?

BRANCA
Disse, num momento de fraqueza. Mas não posso reconhecer uma culpa que sinceramente não julgo ter. Se sou inocente, se nada podem provar contra mim, o que devo suplicar a este Tribunal é que reconheça a minha inocência.

PADRE
Pela última vez, Branca...

VISITADOR
(Interrompe.) Não adianta, padre, o senhor nada conseguirá dela.

PADRE
Eu lhe suplico, senhor visitador, apelo para sua imensa misericórdia, dê-lhe uma última oportunidade.

VISITADOR
Já lhe demos todas. Acho que nos iludimos com ela desde o princípio. Sua obstinação e sua arrogância provam que tem absoluta consciência de seus atos. Não se trata de uma provinciana ingênua e desorientada; tem instrução, sabe ler e suas leituras mostram que seu espírito está minado por idéias exóticas. Declara-se ainda inocente porque quer impor-nos a sua heresia, como todos os de sua raça. Como todos os que pretendem enfraquecer a religião e a sociedade pela subversão e pela anarquia.

BRANCA
Mas senhores, eu não pretendi nada disso! Nunca pensei senão em viver conforme a minha natureza e o meu entendimento, amando Deus à minha maneira; nunca quis destruir nada, nem fazer mal algum a ninguém!

VISITADOR
(Corta-lhe a palavra com um gesto.) Seu caso já não é conosco, Branca. O Tribunal eclesiástico termina aqui a sua tarefa. O braço secular se encarregará do resto.

BRANCA
(Receosa.) Que resto, senhor?

VISITADOR
O poder civil, a quem cabe defender a sociedade e o Estado, vai julgá-la segundo as leis civis. Nós lamentamos ter de declará-la separada da Igreja e relaxada ao braço secular. Deus e todos vós sois testemunhas de que tudo fizemos para que isto não acontecesse. Procedemos a um longo e minucioso inquérito, em que todas as acusações foram examinadas à luz da verdade, da justiça e do direito canônico. À acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e de arrependimento. Dia após dia, noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio. Mas fomos derrotados. Desgraçadamente. (Sai, seguido do Notório e dos padres.)

BRANCA
Os senhores foram derrotados... E eu?

PADRE
Você, Branca, vai amargar a sua vitória.

BRANCA
Eu sei. E sei também que não sou a primeira. E nem serei a última.

Os guardas entram e amarram-na pelos pulsos e pelo pescoço com cordas e baraço, e a arrastam assim por uma rampa para o plano superior, onde surgem os reflexos avermelhados da fogueira.
Padre Bernardo, no plano inferior, a vê, angustiado, contorcer-se entre as chamas. Contorce-se também, como se sentisse na própria carne.
Um clamor uníssono, a princípio de uma ou duas vozes, às quais vão se juntando, uma a uma, as vozes de todos os atores, em crescendo, até atingirem o limite máximo, quando cessam de súbito.

PADRE
(Caindo de joelhos.) Finalmente, Senhor, finalmente posso aspirar ao Vosso perdão!

O AUTOR E SUA OBRA
O dramaturgo Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu a 19 de outubro de 1922 em Salvador. Não concluiu nenhum dos dois cursos universitários que freqüentou: direito e engenharia.
Foi precocemente premiado, aos quinze anos, pelo Serviço Nacional de Teatro já na sua primeira peça, "Comédia dos moralistas". Mas sua primeira encenação foi "Pé-de-cabra" (1942). Nessa época escreveu também: "Zeca Diabo", "Doutor Ninguém" e "Amanhã será outro dia". Fazem parte ainda dessa fase alguns romances, que costuma qualificar como "muito ruins": "Duas sombras apenas" (1945), "Um amor e sete pecados" (1946) e "Quando é amanhã?" (1948). Trabalhou no rádio durante a década de 50 e voltou ao teatro com a peça "Os cinco fugitivos do juízo final".
Tornou-se realmente conhecido quando Anselmo Duarte filmou sua peça "O pagador de promessas" (1959), ganhando em Cannes a Palma de Ouro em 1962, além de prêmios nos festivais de San Francisco, Acapulco e Venezuela. Continuou no teatro até 1969, escrevendo "A invasão" (1960), "A revolução dos beatos" (1961), "Odorico, o Bem-Amado" (1962), "O berço do herói" (1963), "O Santo Inquérito" (1966) e "Dr. Getúlio, sua vida e sua glória" (1968); algumas nunca encenadas por terem sido censuradas.
Em 1969 despede-se provisoriamente do teatro e concentra suas forças na televisão, que considera o mais poderoso veículo de divulgação de cultura de massa do nosso tempo. Passa, então, a escrever novelas, todas com sucesso nacional: "Verão vermelho" (1969), "Assim na terra como no céu" (1970), "Bandeira 2" (1971), e "O Bem-Amado" (1973), adaptação de sua peça "Odorico, o Bem-Amado", "O espigão" (1974), "A fabulosa história de Roque Santeiro e de sua fogosa viúva, a que era sem nunca ter sido" (1975) — novela proibida pela censura — e "Saramandaia" (1976).
Atualmente, Dias Gomes se dedica a projetos mais ousados, ainda na televisão. Pretende realizar um programa que conte a história da classe média brasileira a partir do século XVIII. E volta outra vez ao teatro, tendo acabado de escrever as peças "As primícias" e "O Rei de Ramos", musicada por Chico Buarque de Holanda e Francis Hime.



























Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.
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Dias Gomes - O Pagador de Promessas (txt)(rev)
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