sábado, 31 de março de 2012

{clube-do-e-livro} NAMORE UMA GAROTA QUE LÊ - ROSEMARY URQUICO.

Encontrei este texto ano passado, mas acho que é chegada a hora de repostar ele.

Prato do dia: Namore uma garota que lê – Rosemary Urquico

Namore uma garota que gasta seu dinheiro em livros, em vez de roupas. Ela também tem problemas com o espaço do armário, mas é só porque tem livros demais. Namore uma garota que tem uma lista de livros que quer ler e que possui seu cartão de biblioteca desde os doze anos.
Encontre uma garota que lê. Você sabe que ela lê porque ela sempre vai ter um livro não lido na bolsa. Ela é aquela que olha amorosamente para as prateleiras da livraria, a única que surta (ainda que em silêncio) quando encontra o livro que quer. Você está vendo uma garota estranha cheirar as páginas de um livro antigo em um sebo? Essa é a leitora. Nunca resiste a cheirar as páginas, especialmente quando ficaram amarelas.

Ela é a garota que lê enquanto espera em um Café na rua. Se você espiar sua xícara, verá que a espuma do leite ainda flutua por sobre a bebida, porque ela está absorta. Perdida em um mundo criador pelo autor. Sente-se. Se quiser ela pode vê-lo de relance, porque a maior parte das garotas que leem não gostam de ser interrompidas. Pergunte se ela está gostando do livro.

Compre para ela outra xícara de café.
Diga o que realmente pensa sobre o Murakami. Descubra se ela foi além do primeiro capítulo da Irmandade. Entenda que, se ela diz que compreendeu o Ulisses de James Joyce, é só para parecer inteligente. Pergunte se ela gosta ou gostaria de ser a Alice.
É fácil namorar uma garota que lê. Ofereça livros no aniversário dela, no Natal e em comemorações de namoro. Ofereça o dom das palavras na poesia, na música. Ofereça Neruda, Sexton Pound, cummings. Deixe que ela saiba que você entende que as palavras são amor. Entenda que ela sabe a diferença entre os livros e a realidade mas, juro por Deus, ela vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco como seu livro favorito. E se ela conseguir não será por sua causa.

É que ela tem que arriscar, de alguma forma.
Minta. Se ela compreender sintaxe, vai perceber a sua necessidade de mentir. Por trás das palavras existem outras coisas: motivação, valor, nuance, diálogo. E isto nunca será o fim do mundo.

Trate de desiludi-la. Porque uma garota que lê sabe que o fracasso leva sempre ao clímax. Essas  garotas sabem que todas as coisas chegam ao fim.  E que sempre se pode escrever uma continuação. E que você pode começar outra vez e de novo, e continuar a ser o herói. E que na vida é preciso haver um vilão ou dois.

Por que ter medo de tudo o que você não é? As garotas que leem sabem que as pessoas, tal como as personagens, evoluem. Exceto as da série Crepúsculo.

Se você encontrar uma garota que leia, é melhor mantê-la por perto. Quando encontrá-la acordada às duas da manhã, chorando e apertando um livro contra o peito, prepare uma xícara de chá e abrace-a. Você pode perdê-la por um par de horas, mas ela sempre vai voltar para você. E falará como se as personagens do livro fossem reais – até  porque, durante algum tempo, são mesmo.
Você tem de se declarar a ela em um balão de ar quente. Ou durante um show de rock. Ou, casualmente, na próxima vez que ela estiver doente. Ou pelo Skype.
Você vai sorrir tanto que acabará por se perguntar por que é que o seu coração ainda não explodiu e espalhou sangue por todo o peito. Vocês escreverão a história das suas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos mais estranhos ainda. Ela vai apresentar os seus filhos ao Gato do Chapéu [Cat in the Hat] e a Aslam, talvez no mesmo dia. Vão atravessar juntos os invernos de suas velhices, e ela recitará Keats, num sussurro, enquanto você sacode a neve das botas.

Namore uma garota que lê porque você merece. Merece uma garota que  pode te dar a vida mais colorida que você puder imaginar. Se você só puder oferecer-lhe  monotonia, horas requentadas e propostas meia-boca, então estará melhor sozinho. Mas se quiser o mundo, e outros mundos além, namore uma garota que lê.

Ou, melhor ainda, namore uma garota que escreve.

Texto original: Date a girl who reads – Rosemary Urquico

Tradução e adaptação – Gabriela Ventura

Achei o texto neste Blog:
http://quinasecantos.wordpress.com/2011/04/28/prato-do-dia-namore-uma-garota-que-le-rosemary-urquico/

Bom domingão para todos,
voando_vento

http://groups.google.com.br/group/expresso_literario
http://groups.google.com.br/group/digitalsource



--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} Fwd: Texto de Hoje no Jornal Alô Brasília: Eu gosto é de mulher!!


Ueba!! Está no ar minha coluna de hoje no jornal Alô Brasília!
Para acessá-la, vá ao endereço: http://www.alo.com.br/digital/
Procure a edição de sábado, 31/03 e clique na Editoria Vida e Lazer. Prontinho... Meu texto está lá, na coluna Conceito, no verso da página anterior.
Sábado passado eu estava viajando, por isso, não anunciei a publicação de meu texto. Mas, se você quiser ler, é só procurar a edição de sábado, 24/03.
Se você tiver dificuldades de acessar na edição impressa, eles sempre publicam a última na pagina:
http://www.alo.com.br/colunas/
A vantagem é que lá, dá para comentar!! Uêba!!


--
**CAMPANHA POR UMA INTERNET MAIS SEGURA**
Combata o SPAM!! Ao repassar:
 - Envie sempre seus e-mails como cópia oculta (Cco ou Bcc) e limpe o corpo da mensagem, retirando o endereço de quem a enviou a você e também, todos os e-mails "esquecidos" pelos remetentes anteriores.
 - Verifique a veracidade de qualquer mensagem muito alarmista sobre crianças desaparecidas ou doentes, remédios e refrigerantes que matam e outros que tais. Na dúvida, consulte o www.quatrocantos.com.br.
- NÃO ENVIE CORRENTES!!!

----------------

Beijos,

Nena
http://www.nenamedeiros.com

Conheça meus livros:



--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

sexta-feira, 30 de março de 2012

{clube-do-e-livro} ALBERT DE ROCHAS : A LEVITAÇÃO

Repostando:

Muita paz!

 

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} ALLAN KARDEC: OBRAS PÓSTUMAS E RESUMO DAS LEIS DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS

Repostando:

Muita paz!

 

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} ALLAN KARDEC: LIVROS DOS ESPÍRITOS EM EDIÇÃO DIFERENTE PDF

Repostando:

Muita paz!

 

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} ALLAN KARDEC: O CÉU E O INFERNO E O ESPIRITISMO EM SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES

Repostando:

Muita paz!

 

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} ALLAN KARDEC: A GÊNESE , PRECE SEGUNDO O ESPIRITISMO pdf

Repostando:

Muita paz!

 

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} ALLAN KARDEC : O QUE É O ESPIRITISMO E O LIVRO DOS ESPÍRITOS EM PDF

Repostando:

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

{clube-do-e-livro} ALLAN KARDEC LE LIVROS DOS ESPÍRITOS E RESUMO DAS LEIS DOS FENÔMENOS ESPÍRITAS

 

Muita paz!

 

 Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br

 

--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

quinta-feira, 29 de março de 2012

{clube-do-e-livro} Site Espirita




--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

terça-feira, 27 de março de 2012

{clube-do-e-livro} DE FRENTE COM A VERDADE - MÔNICA DE CASTRO (179) -ANEXADO



Olá, bons amigos:

                       Mais um bom  livro espírita para todos !

Muita paz!

 

Bezerra

Livros:

http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/

 Áudios diversos:

http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/

https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br


--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-

segunda-feira, 26 de março de 2012

{clube-do-e-livro} LANÇAMENTO Livros Loureiro: Quilombo, Calabouço de Almas - Angelina Sales

Quilombo, calabouço de almas
Angelina Mota Sales
pelo espírito
Pedro


Sinopse

Europa, berço de uma experiência doutrinária que, em nome e
Deus, acorrenta almas tingidas, pela necessidade geográfica. no
suposto intuito de serem evangelizadas.
África, nação da recomposição emocional aprisionada pelas
correntes da escravatura.
De senhores a escravos do próprio destino, o homem forja a lei
sagrada.
Transcorrem os anos e séculos, e o aventureiro e destemido europeu
engaja a esperança na Terra Santa -Brasil.
Nasce uma nação mercantilista que se utiliza do recurso de almas
de pureza regional; para atingir o eldorado da fartura. Neste belo
romance, acompanharemos a história de Pedro Zumbaia -desde sua
captura; no Zambe, na África, até seu destino final, a cidade de
Sabará...
Bandeiras de homens destemidos e gananciosos percorrem mata
adentro, com seus escravos e guiados pelos índios.

Nesta corrida desenfreada, o europeu se encasula mais no
reforçar a posição de senhor do rodopio de almas, que se
amarguram e se entregam a quilombos imaginários perdidos.
Nomes e renomes, até o apogeu denominado Sabará, fixam em seu
eixo central seu magnetismo próprio.
De sentimentos de ganho a sentimentos de perda, os gigantes e os
escravos ataram laços de recomposição de vida.


No hoje, alimentados pela desonra emocional, os envolvidos neste
transcurso África, Brasil e Sabarabuçu, acorrentados, farejam a
libertação dos quilombos mentais.

Nosso amigo Pedro
Pedro é um incansável trabalhador na seara de Jesus, que procura
junto a nossa equipe, que é liderada pelo nosso querido Dr. Bezerra
de Menezes ser socorrista de almas que também experimentou a
sensação de um quilombo, calabouço de almas. Como somente o
filho que rebela nos processos encarnatórios, pode experimentar o
sabor da libertação, quando caminha servindo ao seu Maior Senhor,

o Pai Criador, Pedro conquistou o direito de ser um servo a
caminho da luz, no exercício do resgate das almas que se encontram
no calabouço intimo. Como um socorrista incansável, ele galga a
expressão da transposição literária e reproduz em linhas o
aprisionamento dos que ainda se encontram nos calabouços
íntimos, em busca da libertação.
Aos irmãos desencarnados e encarnados que caminham na direção
da luz, encontrem, nestas páginas, o caminho do entendimento, do
que é ser Servo.
Ânimo, Fé e Coragem, para efetuarem a própria remoção do
calabouço intimo
Adolfo Fritz

Angelina Sales é terapeuta com consultório em Belo
Horizonte/Minas gerais. Durante muitos anos atuou n área da
educação como professora de Português e Inglês Espírita desde o
berço; é oradora


e expositora com trabalhos desenvolvidos em várias casas
espíritas, trabalhos estes, voltados ao estudo e divulgação do
espiritismo. Médium a mais de 25 anos atualmente colabora
ativamente na Casa Fraternidade e Amor; durante as reuniões de
orientação e tratamento espiritual, atuando ainda na orientação às
gestantes*'* carentes. Voluntária nas Instituições: Novo Céu; lar do
Marcos; asilo Frei Otton. Por meio da psicografia tem trazido até
nós obras de grande importância ;na divulgação d Doutrina
Espírita, tais como: -Gota de Luz na Flor de Laranjeira:
-O Despertar de um Novo Dia;
-Quilombo, Calabouço da Alma.

Quilombo, calabouço de almas
Angelina Mota Sales
pelo espírito
Pedro


Agradecimento

Hoje estamos em agradecimento ao Pai Maior que nos
auxiliou nesta experiência de partilha com o nosso amigo
Pedro.
Retratar uma jornada encarnatória, com amor ao próximo, se
torna um exemplo para todas as almas, que se colocam
despertas para a evolução da vida.
Felizes são todos que observam o registro do trilhar do irmão,
com expressão de auxilio como assim Jesus nos ensinou.



Pedro, exemplo vivo, daquele que cuida com carinho, das
almas como as nossas, que se projetam nos quilombos
mentais.
Como não caminhamos sozinhos, independentes do pólo que
sitiamos, agradeço os meus amigos, que partilharam junto a
mim e ao Pedro deste maravilhoso descortinar, da posição
mental, que alojam todos que buscam vingar algo.
Ao meu amigo, Alexandre Magalhães, pela dedicação e
carinho que se colocou diante deste humilde trabalho. Aos
colaboradores, que não se aprisionaram no quilombo mental
do tempo, e cederam o tempo, para reajustarmos, todos os
ensinamentos ofertados pelos nossos amigos espirituais, como

o Dr. Renato Daré, Julio Pinho, Vilian e Luana.
Meu eterno agradecimento ao meu pai e a minha mãe, ao meu
esposo e aos meus filhos, que sem eles eu não poderia
caminhar.
A rica história de Sabarabuçu

Sabarabuçu é considerada uma das primeiras povoações das
Minas Gerais, e teve impulso com a chegada da bandeira de
Fernão Dias Paes, por volta de 1674.
Muitas eram as lendas que habitavam o imaginário dos
primeiros exploradores que penetraram o Brasil. No território
onde hoje está Minas Gerais, um lugar em especial chamava a
atenção e atiçava a cobiça daqueles homens: uma serra de
nome Sabarabuçu, repleta de ouro e pedras preciosas das mais
diversas cores. Foi ela um dos principais objetivos das
expedições, um troféu à espera de seu dono. Quem
encontrasse Sabarabuçu, encontrava a glória.


O ouro abundante no solo movimentou os arraiais da região,
elevando o maior deles à categoria de vila -Vila Real de
Nossa Senhora da Conceição do Sabará-, em 17 de julho de
1711.
Em 1714, a vila foi transformada em sede da extensa Comarca
do Rio das Velhas, uma das quatro primeiras a ser criadas na
Capitania das Minas Gerais. Sua área de jurisdição
compreendia limites com Goiás, Pernambuco e Bahia.
O bandeirante paulista Manuel de Borba Gato passou à
História como o fundador de Sabará, até porque foi ele quem
enviou ao governador da Capitania de São Paulo as primeiras
notícias sobre a existência das minas de Sabarabuçu,
localizada no Vale do Rio das Velhas.
Sabará foi um dos núcleos de mineração da província que mais
ouro encaminhou à Coroa portuguesa. Seus rios e lavras eram
riquíssimos do precioso mineral, e houve época em que os trabalhos
de garimpagem ocupavam milhares de escravos.
Tão intensa tornou-se a mineração nessas paragens, que o governo
português ali fez instalar uma Casa da Intendência, para a cobrança
do "quinto". Fundido o ouro, dele se excluía a quinta parte,
destinada à Coroa, sendo o restante devolvido ao minerador em
barras que levavam o cunho oficial. Só assim poderia o ouro ser
negociado, incorrendo os transgressores em severas penas.
Sabará teve dias de esplendor, de honraria e de riqueza. Sucederam-
se, todavia, dias alegres e dias sombrios. Do grande centro
comercial que chegara a ser, servido inclusive pelo porto fluvial do
Rio das Velhas, já nos princípios do século XIX, restaram várias
lembranças do ciclo do ouro.
Localizado em um majestoso vale, no encontro do Rio das Velhas
com o Rio Sabará, o município, hoje com cerca de 120 mil
habitantes, possui o mais rico acervo histórico da região
metropolitana de Belo Horizonte, representado por igrejas, capelas e
casarões.


Sabará possui ainda vários antigos chafarizes, sendo os mais
conhecidos o do Kaquende, construído em 1757, na Rua São Pedro,
no antigo centro comercial da cidade, e o do Rosário, instalado ao
lado da igreja de mesmo nome, na Praça Melo Viana.
A cidade possui um dos mais notáveis acervos de igrejas
setecentistas de Minas. Nossa Senhora do Ó, de 1717, uma das mais
representativas do barroco mineiro, possui influência chinesa em
sua arquitetura externa e na decoração interna. O seu nome é
devido às ladainhas de Nossa Senhora, que sempre começam com
Ó.

Foi em Sabará que morreu um dos delatores da Inconfidência
Mineira, o coronel do regimento de auxiliares de Paracatu, Basílio
do Brito Malheiro. Morreu amaldiçoando o Brasil e os brasileiros,
temendo ser emboscado em algum beco escuro, punido pelo povo
de Sabará por sua vil delação. Daqui também saiu um dos mais
implacáveis devassantes da Inconfidência, o desembargador César
Mantti, ouvidor da Comarca e escrivão do tribunal que condenou os
inconfidentes.

Nota da médium.

Quilombo, quilombando, quilombado

Desde que o homem tomou consciência de seu espaço na estrutura
do Pai, vem medindo força que nem uma criança birrenta,
reclamando por seus direitos.
Há milênios, os encarnados esbarram no egocentrismo e aniquilam
a própria vida.
Na superação de suas ações, pretende o embrionário espírito



demonstrar que já se "desuterizou" e, sendo assim, não mais precisa
exercer a obediência ao Pai.
Por trazer no pórtico encarnatorio o vício do domínio, ele continua
quilombado nas encarnações e se aprisionando, cada vez mais, nas
estruturas simples de nosso Pai.
Julgam-se deuses e defendem essa ideia, como assim faz um partido
político em vésperas de eleições.
Vendem santos milagrosos e se esquecem que o maior santo está
dentro de cada um, que é servir ao próximo como a si mesmo.
Percorrem quilômetros em busca de posição social e, quando
param, observam que podem até ter enchido cofres e mais cofres,
mas não alimentaram de amor aqueles que dentro do lar se
encontram.
Alimentam-se com excesso e dizem, com orgulho, que não têm nada
para ofertar. Preferem jogar pela porta as sobras do alimento a
alimentar um necessitado.

Quilombam e são quilombados todos os que viajam de
encarnação em encarnação não produzindo nada de real em
favor de si mesmo nem do próximo.
E nos quilombos mentais se perdem em força e caminham
para a petrificação dos quilombados.
Sempre a renovar débitos, acumulam, como em uma Mega
Sena, milhões de anos para ser ressarcidos no porvir, por meio
de um acolhimento fraternal e amadurecido para aguentar a
vivência a dois.
Sonorizam freneticamente as experiências, e as fazem como
um cartão único de visita.
Constroem as paredes íntimas e espreitam as mudanças
sugeridas pelo Mestre Jesus.
Reforçam atitudes altruístas e se enforcam no egoísmo
corrosivo danificador.
Abraçam a luxúria e vendem a alma a comandos distorcidos.


Assim é o homem atual, que se encontra perdido pela avareza
dos próprios atritos íntimos.
Lavar os pés, para a retirada do pó perecido, é dever de todos.
A estagnação é o mesmo que a paralisação do indivíduo que
busca o alimento sem nenhum esforço.
QUILOMBO, QUILOMBANDO, QUILOMBADO somos todos
nós, os candidatos à mudança íntima emergencial.
Paz


Ricardo Luiz.

Nosso amigo Pedro

Como é natural do ser encarnado, que ainda se sobrecarrega
pelo véu da obscuridade, fazemos uma pequena apresentação
do nosso querido amigo, Pedro.
Como uma sociedade que ainda caminha em busca de apoio
concreto, Pedro é um incansável trabalhador na seara de
Jesus, que procura junto a nossa equipe, que é liderada pelo
nosso querido Dr. Bezerra de Menezes, ser um socorrista de
almas que também experimentou a sensação de um Quilombo,
Calabouço de Almas.
Como somente o filho que rebela nos processos encarnatórios,
pode experimentar o sabor da libertação, quando caminha
servindo ao Seu Maior Senhor, o Pai Criador, Pedro
conquistou o direito de ser um servo a caminho da luz, no
exercício do resgate das almas que se encontram no calabouço
intimo.
Como estamos todos conectados, e isto foi muito bem
desenvolvido por Jesus, quando "Ele" oferta a água da vida


para a mulher samaritana no poço de Jacó; Pedro, também
como a samaritana, aceitou de Jesus essa água divina.
Pedro, através dessa belíssima reflexão, que acompanha as
páginas deste livro, direciona todos à fonte da vida.
Como um socorrista incansável, ele galga a expressão da
transposição literária e reproduz em linhas o aprisionamento
dos que ainda se encontram nos calabouços íntimos, em busca
da libertação.
Aos irmãos, desencarnados e encarnados, que caminham na direção
da luz, encontrem nestas páginas o caminho do entendimento, do
que é ser Servo.
O Pai Maior, através de Jesus, espera por todos os filhos pródigos
que ainda perambulam no inconsciente do real estar.
Ânimo, Fé e Coragem, para efetuarem a própria remoção do
calabouço íntimo.

Adolfo Fritz.

Sumário

Europa, África, Brasil, Sabarabuçu,
Calabouço de um quilombo ...............................
Colônia Lar Amparo ............................................
1 -Filho africano e o companheiro Neil...........
2 -Zambe Zumbaia ..............................................
3 -O navio negreiro ..............................................
4 -O cheiro da natureza .....................................



-A viagem ...........................................................
6 -Brusuia ...............................................................
7 -O castigo de Zumbam ...................................
8 -A grande tormenta ..........................................
9 -A alimentação de bordo .................................


-Descobrindo a liberdade ..............................
11-Os preconceitos .............................................
12-Reunião esclarecedora .................................
13-Preparativos para a chegada......................
14-Castigo ao fugitivo .......................................


-Rio de janeiro .................. ......................
16-Sinhazinha .......................................................
18-0 índio Sebastião ................ ..........................
19 -O pelourinho ..................................................


-Meu nome é Pedro ........................................
21 -Envolvimentocom Sinhazinha ...................
22 -O aborto ...........................................................
23 -A emboscada..................................................
24 -A história de Sebastião................................


-As instruções do Ministro Fernando ........
26 -Conhecendo Outro Preto .............................
27-A presença da discriminação.......................
28 -Previlégios e castigos na casa de Deus....
29 -Um lugar sem lei ...........................................


-Idéias abolicionistas. O amor se manifestando ...
31 -Conhecendo João ..........................................
32-Bretão ................................................................
33 -A chacina na mina.........................................
34 -Sebastião muda de "plano" .........................


-Sofrimento na Casa de Deus ......................
36-0 pedido de casamento .................................
37-0 massacre no Gaia .........................................



38 -Padre Cirlinano -o doente ..........................
39 -Epílogo -Planeta azul ..................................


Europa, África, Brasil, Sabarabuçu,
Calabouço de um quilombo


Inauguram, todas as vezes, o berço sagrado da vida na busca do
aprimoramento.
Reiniciam a escalada evolutiva, na oportunidade concedida pelo
Criador, sob a base doutrinária do reencontro com a divindade.
Matizam esperanças na acolhida abençoada do exercício benéfico
das experiências concedidas da renovação.
Assim, a história formata as ações do homem falido, que,
quilombado, projeta-se de experiência em experiência.
Europa, berço de uma experiência doutrinária, que em nome do Pai
acorrenta almas tingidas, pela necessidade geográfica, no suposto
intuito de serem evangelizadas.
Africa, nação da recomposição emocional, aprisionada pelas
correntes da escravatura.
A serviço da Igreja, os negros foram assim requisitados, sem
questionamentos, a enfileirar a coluna dos acorrentados.
De senhores a escravos do próprio destino, o homem forja a lei
sagrada.
Transcorrem os anos e séculos, e o aventureiro e destemido europeu
engaja a esperança na Terra Santa -Brasil.
Desbravam oceanos e margeiam nas rotas marítimas, o ganho
futuro de uma riqueza geradora de conflitos.
África, desde o início de sua formação, como em qualquer
continente subdividida, encontrava-se com suas tribos ideológicas,



acolhendo cada qual o seu deus de ação.
Como o homem registra e faz seu percurso histórico e cultural,
impregna de mazelas deprimidas no forjar ações distorcidas de um
criador de amor.
Chega a hora de, assim, imantar a terra Santa com as propostas dos
deuses homens, no ditame de regras de respeito ao criador.
Acorrentam almas no auxílio de, assim, quilombarem a si mesmos e
ao próximo no exílio da contínua vingança.
Nasce uma nação desprovida da maldade, já mercantilista, que
utiliza do recurso de almas de pureza regional, os índios, para
atingir o Eldorado da fartura.
Bandeiras de homens destemidos e gananciosos percorrem mata
adentro, com seus escravos, e guiados pelos índios, que eram tidos
como bússolas humanas para direcionar o europeu aos veios do
ouro e das pedras preciosas.
Inauguram a jornada do contexto histórico em 1500, com as
esquadras já sobrecarregadas da mácula registrada do poderio e da
falência de homens a serviço de um deus denominado ouro.
No vai e vem concorre Fernão Dias, que, acolhido pelo vento
farejador, alcança Sabarabuçu. Nesta corrida desenfreada, o
europeu se encasula mais no reforçar a posição de senhor do
rodopio de almas, que se amarguram e se entregam a quilombos
imaginários perdidos.
Borba Gato, como outros, carrega o mastro da coragem e formata a
continuidade de uma história de gigantes.


Criaram pousos para refrescar a jornada de outras bandeiras,
e capitão Matias Cardoso de Albuquerque desenvolveu Roça
Grande para o abastecimento da vida.
Nomes e renomes, até o apogeu denominado Sabará, fixam em
seu eixo central o seu magnetismo próprio.
De sentimentos de ganho a sentimentos de perda, os gigantes e os
escravos ataram laços de recomposição de vida.
No hoje, alimentados pela ignomínia emocional, os envolvidos



neste transcurso África, Brasil e Sabarabuçu, acorrentados, farejam a
libertação dos quilombos mentais.
Neste pequeno relato, eu, Pedro, me encontro nos recônditos
abrigos edificados pela bondade do Pai, nas esferas desta
cidade de acolhimento Sabará, na busca por aliviar
companheiros quilombados, que, por vez, ainda quilombam a
angústia da falta do perdão e permanecem no quilombo
mental.
Que as esquadras de verdadeiros guerreiros do amor auxiliem
na limpeza psíquica, formada em Sabará e em outras
instâncias planetárias, para o homem atual reencontrar o
caminho da paz.

Pedro

Colônia
Lar Amparo


Situarei e descreverei para você, leitor, a localização do Lar
Amparo em Sabará.
Estamos alojados bem acima de Roça Grande, antigo arraial de
Santo Antônio do Bom Retiro da Roça Grande. Local escolhido
pelos superiores em razão do intenso magnetismo que
emanou neste espaço no plano adensado que foi desenvolvido
por Matias Cardoso.
Aqui temos cinco ministérios, um lar-hospital e uma escola
doutrinária.
O ministério que acolhe os recém-chegados, analisa as
condições dos companheiros e determina qual o melhor
tratamento que estes devem receber.
O ministério que administra a colônia, onde se faz a interligação dos


desencarnados recém-chegados, dos trabalhadores de todos os
setores e dos guias espirituais com os superiores. Aqui não é
permitido ultrapassar as regras, e todos têm de obedecer. Não
existe o jeitinho que, quando encarnados, utilizamos para
burlar as regras.
O ministério do serviço, que é o que eu mais visito, pois estou
sempre buscando preencher meu tempo. Detesto ociosidade.
Enquanto estamos com as mãos ocupadas, estamos envolvidos
na seara do Pai, mas esta ocupação tem de ser em beneficio do
próximo.
O ministério dos superiores, onde todos sempre estão no
oficio da ajuda. Eles já não precisam mais do famoso descanso
que, quando encarnados, necessitamos. Quando
desencarnamos, estamos viciados neste movimento, sendo
necessário formar o libertar desse exercício. Eu já quase não
sinto necessidade de descanso nem do alimento para me
fornecer energia. Junto a Neil, meu amigo e mentor, faço o
exercício da captação energética concedida aos desencarnados
e já permaneço horas sem sentir a ansiedade da fome em meu
perispírito.
O ministério dos socorristas, onde, sempre que posso, peço
para estar. Principalmente em se tratando de um ex-escravo,
sou o primeiro a buscar esta tarefa. Como é bom auxiliar! Isso
nos revigora e nos fortalece na fé.
A escola doutrinária é realmente prazerosa, reeduca os
espíritos nos fundamentos de Jesus. Temos horários
determinados para este momento e a disciplina é rigorosa,
mas, no tocante à escola doutrinária, frequenta quem assim
desejar, e vejo que aqui raros são os que não se envolvem
neste movimento. Creio que todos buscam recuperar o tempo
perdido. Os encarnados deveriam buscar se aprimorar mais na
doutrina do Mestre, para entender melhor o que é o beneficio
da reencarnação.


Neil elucida sempre: "O espírito evangelizado é um espírito
do Pai em busca dos passos do Cristo Jesus".
Quanta luz expande do Pai para nós, filhos, e nós ofuscamos
essa luminosidade por falta de simplicidade e amor. Quando
retornamos às colônias de acolhimento, como esta aqui, nos
envergonhamos dos bloqueios que criamos em razão do nosso
orgulho, egoísmo e vaidade. De jornada em jornada, o filho,
por muitas vezes, fica paralisado na evolução. Buscar o
Evangelho é DEVER.
E, finalizando, o Lar-Hospital é o local mais perfumado de
amor, é o aconchego de todos os flagelados, que, após a jornada
encarnatória, aportam neste porto seguro.
Observo e caminho nesta colônia edificante agradecendo à vida, e
vejo que só fica parado quem quer, porque tanto para o encarnado
quanto para o desencarnado não falta trabalho de amor.

Pedro.

1
Filho africano
e o companheiro Neil


No percurso da história do homem, foram a ele oportunizadas
as descobertas, e uma delas foi a do domínio. Esse domínio
precário levou muitos companheiros de cor a ressentir a árdua
caminhada. Mas, no mundo espiritual, conhecido por todos, a
organização dos queridos benfeitores também se preparava
para a demanda do momento.
Apesar de já trazer, no âmbito da Terra, registros de uma
experiência de força de um Cristo Jesus, o homem ainda margeava a


ressonância de Moisés, que trazia no Velho Testamento o olho por
olho'. E esta transcendência, tão necessária para o amor que Jesus
deixou registrado no planeta, necessitará ainda de muitas lutas
íntimas dos companheiros em projeção à luz.
Companheiros, homens estes de alma destemida, que, como
um radar, sintonizavam suas antenas para as orientações que
recebiam do alto. Para esse intercâmbio que hoje se processa
com certa facilidade, os amigos espirituais recorriam aos
avisos, sonhos e premonições para guiar os destemidos,
aqueles que estavam incumbidos de desbravar as terras e os
oceanos.
Muito havia o homem percorrido para, assim, sair da fase
embrionária, aquela fase latente que foi necessária para o
espírito ganhar a infância e começar a buscar a adolescência
tão emergencial.
Em meados de 1800, o homem ainda experienciava o
Renascimento, base de experiências precárias de
desenvolvimento que hoje a tecnologia do vosso tempo lhe
provém.
Atualmente, a Terra experimenta a tecnologia em projeção
maior, mas foi necessário o navio negreiro para o homem
formar, na sua máquina cerebral, a fabulosa engenhoca que
rasgou os oceanos bravios.
E necessário, prudente e salutar compreender que tudo evolui,
pois assim concorre nas esferas criadas pelo Pai Maior, e
também na nossa colônia espiritual a evolução concorre.
Travo conversação com os companheiros de sustentação, esses
abnegados irmãos que nos acompanham incansavelmente.
Como em todo período necessário se faz ser humilde e aceitar
a ajuda dos que caminham na nossa frente, em entendimento
maior, assim ocorreu comigo na minha encarnação.
E assim começa minha luta íntima, pois refazer a jornada dos
débitos requer uma fé inabalável. Esta estadia no campo da


carne me fez, por várias vezes, executar comandos de
determinação na proposta de não vacilar nas pegadas dos
deuses que eu acreditava, mesmo às vezes duvidando até do
firmamento, que, para nós, era um deus maior que olhava por
todos.
Nessa encarnação contei com meu amigo espiritual e fraterno
Neil, que me fortificou nas horas das mais intensas emoções.
Sem ele e muitos outros companheiros teria fracassado.
Obrigado a todos vocês, valorosos irmãos.
Nesse período de 1800, surge o conflito maior desta minha
experiência encarnatória. Filho africano, filho de um pai
único, registrado pelos irmãos como um irmão de jornada,
servidor dos princípios mais árduos e tristes. Retirado fui,
como um animal, do meu habitat.
Negro, forte, com arcada dentária perfeita, cuja produção
ainda serviria ao meu senhor homem branco. As vezes, parece
que o Pai Maior escolheu nos tingir de cor diferente para,
assim, denominar quem manda no terreno. Quanta ironia da
nossa parte, porque, quando atingimos um grau de
compreensão, reconhecemos que a pele é somente a proteção
ou a derrota de nós mesmos.
Hoje não me revolto mais ao escutar os mestres dirigentes de
Casas de Amor verbalizarem: "Utilizem a túnica branca.
Acolham os necessitados. Utilizem da caridade. Baseiem-se
nos mandamentos do Cristo Jesus".
Falo que não me revolto porque, quando me deparei com uma
Casa de Amor, por necessidade, eu, o negro, vi, muitas vezes,
a discriminação acontecer no próprio meio que se intitula
Casa de Amor. Mas o tempo é sábio, e a escola doutrinária nos
ensina também a orar pelos fracos dirigentes de instituições
que utilizam as palavras "Faremos tudo por amor". Não quero
dizer que não existam companheiros que assim não
exemplifiquem, tal como um companheiro no vosso meio tão


falado pela postura gigante de amor, o querido Chico Xavier.
Mas ainda são poucos, pela riqueza que esta doutrina nos
ensina.
Como seria belo se diante dos já falados ensinamentos os
homens não se baseassem somente no querer se projetar como

o melhor e o mais sábio dentro do núcleo do qual, por
necessidade, partilham. Nossa realidade sobressai quando nos
deparamos com o verdadeiro encontro com nosso espelho
íntimo. Não tem como fugir do reflexo, e aí dói, pois a luz
ofusca nossa visão e nos tornamos cegos bloqueados por
nosso orgulho.
Hoje posso caminhar junto a meu companheiro Neil e
observar os companheiros encarnados e desencarnados em
suas ações, e me é dada esta oportunidade para assim poder,
por meio do exercício, enfileirar a coluna dos socorristas e
auxiliar companheiros que ainda estão presos nos quilombos
mentais. Esses quilombos são formações de grupos de almas
que se projetam para se vingar de seus credores de outrora.
Como é triste ver companheiros prisioneiros do ódio, orgulho
e vaidade tornarem-se disformes, pois começam a transformar
o perispírito por tanto buscar vingança.
Bem, voltemos à cor branca que havia relatado há pouco, esta
cor que me fez escravo do meu próprio destino. Quando falo
do meu próprio destino, é porque eu, por vários anos, senti o
tremor do ódio vibrar no meu corpo.
Revolta contra os deuses, nem tenho palavras para explicitar.
Mas tudo é aprendizado, seja aos olhos dos encarnados felizes
ou infelizes.
Momentos de insanidade registrei debaixo de 150 chibatadas,
sem piedade, por parte daqueles que utilizaram as chibatas
com pontas de ferro nas extremidades, para melhor ferir o
tecido julgado diferente do daqueles que assim ordenavam.
Bem, aqui começo a relatar minha experiência quando em vida

corpórea. Quilombo, espaço de dor, aflição, angústia,
desespero, onde inúmeros companheiros, ainda por registros
maltrabalhados, sobrecarregam-se formando-o para não ser
presas dos senhores de engenho. O relato nos é árduo, mas se
unirmos forças, ajudaremos companheiros de evolução a se
libertarem dos próprios buracos formados. Que não venhamos
a ter necessidade de formar nenhum quilombo.


Agradeço ao bom Pai pelos unguentos a mim ofertados nos
momentos de dor maior.
Que a luz de Maria, Nossa Senhora dos Aflitos, nos abençoe.


ORAÇÃO DO APELO

Oh! Mãe Santíssima, nossa Padroeira, somos fracos e oprimidos, filhos em busca do
alívio, que a própria opressão íntima eternizou, os escravos a permanecer sufocados
no abismo do pelourinho.
Ajuda, oh! Mãe Santíssima, intercedendo junto às forças geradoras, o clarear dos
irmãos que no processo do abismo se encontram entorpecidos pelo ódio e pela
vingança. Registros estes em que não nos cabe mais permanecer.
Docíssima senhora dos eternos escravos, tu como mulher que também se aprisionou
pelo teu filho, nos leva ao Calvário da libertação e suaviza a tensão do cárcere íntimo
de cada companheiro que ainda cogita na tua fidelíssima presença.
Senhora das forças maiores, nos ensina a perdoar como tu mesmo assim o fizeste
diante da cruz de teu filho.
Que assim seja!


2
Zambe
Zumbaia


Encontro-me no terreno de amor, minha África. Denominarei

o lugarejo no qual, em uma grande clareira, situava-se meu
lar, de Zambe. Homens encarnados necessitam de posição
geográfica para melhor situar a mente concreta em eixo
seguro, o qual vim a perder quando me tiraram de lá.
Em tenra idade, pelo costume do espaço, eu já registrava o
aprendizado de constituir uma família. Casado aos 19 anos
com minha bela, formosa e amada Tuanã, que trazia nos
braços meu filho pequeno, Tuã; quadro este registrado na
minha memória, que permanece como uma pintura sagrada.
Tinha a riqueza de Deus e não sabia dar valor fiel a esse
envolvimento perfeito. Mas é ainda caminho de todos os
espíritos em desenvolvimento ter compreensão fiel do correr
justo dos laços fraternos só quando os perdem. Vime neste
principio de perda de sentimentos maltrabalhados quando,
em vida, fui retirado dos laços de amor.
Bem, Zambe, terra ainda virgem de experiências, nos permitia
o deleite do ambiente natural. Podia correr na mata adensada
e eternizar com os puros irmãos menores. Que delícia, que
perfume embriagador e envolvente que o cheiro da mata nos
oferecia! Podia sentir nos pés a umidade natural de uma terra
fertilizada pela bondade do Grande Arador. Nestes
momentos, eu, Zubaia, agradecia o deus da mata, registrava
as vibrações dos irmãos guardiões daquele espaço
manifestando-se junto às minhas preces. Sons belíssimos me
faziam penetrar no íntimo de cada nota manifestada pela
delicadeza dos cantores do Pai. E uma verdadeira orquestra
sinfônica, bem compassada, que os homens procuram imitar,
mas que é impossível, pois trazem o orgulho cravado no eu

inferior. Sons semelhantes no cativeiro pude registrar
também, mas era cativeiro, e o sabor da prisão nos deixa com
um torpor de raiva e perdemos o bálsamo natural que o Pai
nos oferta.
Olhar para trás, fazer uma reflexão dos passos dados,
reconhecer aqueles que falseamos e agradecer pelo que fomos
capazes de acertar é a gratidão do filho pródigo que retorna
ao seio do Pai Maior. E hoje posso dizer que sou este filho,
que agradece pela acolhida do Criador.
Origem, como todos nós trazemos uma, eu nasci de pais
simples, de desenvolvimento nativo, e pude, por intermédio
deles, desenvolver a crença nos deuses. Deuses da mata, da
água, do tempo, dos homens e outros grandes deuses, que por
outras crenças também o homem ainda carrega consigo,
distribuindo a fé por seus deuses. Por trazermos instintos
naturais sempre em agradecimento, nos postávamos, pois a
pequena aldeia era amparada pelo deus da mata, ao qual todo
respeito tínhamos para reverenciar.
Como já mencionei, Zambe se situava em uma grande clareira,
que os meus antepassados, por sentimento de defesa,
limpavam em forma de círculo, pois assim ficaria mais fácil a
defesa contra os invasores naturais. Naquele tempo, o que
poderia atacar o espaço eram animais de grande porte e
tribos, mas o tempo correu e em outras partes do planeta o
homem evoluiu e trouxe junto a ambição.
Nossas tabas eram reforçadas com plantas naturais que
provocavam o afastamento de bichinhos e insetos
indesejáveis. Vivíamos pela sobrevivência natural do dia,
corríamos, nadávamos, pescávamos e, às vezes, partilhávamos
de festas na tribo. Era muito bom. Graças a este cultuar,
sobrevivi às torturas dos homens brancos, senhores e deuses
da moeda, cujo poder tortura milhares de mentes até hoje.


Zambe, local que eu, por instinto, imantei com minhas
meditações, ficou como registro fixado para meu
envolvimento íntimo, porque é assim que acontece. A nossa
mente tem um grande poder de construir ou destruir, e esse
espaço em Zambe eu construí com energias benéficas. Refúgio
sagrado cujas copas frondosas me davam total amparo.
Assim eu pude, em meus delírios, retornar em vibrações de
emoção o teor de energia necessária que coletei nas minhas
meditações em Zambe e superar as sensações de baixo teor.
Neil me trouxe um pouco mais de conhecimento sobre essa
energia que nós acumulamos quando encarnados, e repasso a
vocês:
Começamos nossa jornada com uma parcela de energia
adormecida, e se faz necessário reativá-la. E por isso que os
pais, orientadores, tuteladores e outros mais trazem grande
responsabilidade na condução de almas, pois cabe a eles
redirecionar estas energias com exemplos de amor. Mas nem
sempre esses orientadores estão evangelizados, e se perdem
no processo mais belo da vida, porque, se somos todos
aprendizes, temos de desenvolver o potencial que nos cabe
trabalhar conosco mesmo e com os outros.
Como eu pude ter essa experiência dentro de uma
simplicidade maior de vida, foi-me fornecido esse exercício de
respeito à vida e à energia que nossos corpos exalam. Quando,
em agradecimento, nos colocamos diante da vida, nos
guarnecemos de vitalização, nos potencializando para que
nossos corpos estejam em perfeito equilíbrio, mesmo que
temporário. Esse temporário nos fornece reservas para
adoecer pouco. E nos registros que trago dessa encarnação,
poucas vezes adoeci, mesmo no tempo do cativeiro.
Posso e devo ainda continuar o exercício do agradecimento,
porque só me faz bem. Se alimentarmos somente o ódio,
rancor, revolta e angústia, acumulamos energias deletérias,


que, com o tempo, danificarão nosso perispírito e atingirão o
corpo físico, potencializando doenças.
Caros amigos, tomem como princípio que tudo o que venha a
nos acontecer é de lei. Se potencializamos todos os nossos
pensamentos, ações e emoções em construção positiva,
estaremos fortalecendo nosso campo fluídico e, assim,
carregando de energia benéfica nosso perispírito.
Em tudo o que percorre nas linhas seguintes, eu estava apenas
em reajuste do tempo. Mas, quando estamos em reajuste do
tempo e nos embrutecemos, nos deixamos envolver no nosso
eu inferior e nos perdemos no reajuste.
Neil, sempre a me auxiliar nos meus momentos de meditação,
traz para mim o caminho do alargamento superior, pois, como
ele mesmo relata, somos seres de abertura, e por sermos seres
em busca da espiral da evolução, temos por obrigação nos
permitir alargar nossos conhecimentos. Alguns de nós, os
espíritos, tanto na experiência da carne como na erraticidade,
somos morosos para nos posicionar para o aprendizado, então
rodopiamos mais na queima das experiências.
Explana Neil: "Se buscarmos o Evangelho do Cristo Jesus, que
é o código de referência, reativaremos o que Ele, o Pastor de
almas, nos ensinou, e esta lá em Paulo1, o apóstolo do amor,
quando ele relata: 'Se não colocar amor de nada me adiantará'.
Mas o homem ainda precisa se permitir sentir este amor
sublime para começar a executar a ação da pacificação
interior".
Zambe, aldeia progressista, dava-nos o conforto necessário
para a sobrevivência nesse pequeno paraíso. Eu e todos os
companheiros tínhamos o alimento necessário, que surgia das
águas e da terra. A caça era o meio natural de sobrevivência,
onde podíamos, por lei divina, compartilhar.
Podia correr por entre as árvores e sentir o odor de todos os
animais. Graças a esse processo natural desenvolvido, pude eu, pelo


¹ Paulo, I Coríntios 13:1-3.

olfato, sentir no ar o odor do branco e, por muitas vezes, me livrar
de castigo doloroso por estar a contemplar a natureza.
Bem, contemplar a natureza é um movimento que, quando
assim realizado, nos permite penetrar na mais pura essência
do Pai. Quando em meditação me colocava, tornava-me a
árvore, e era tão forte quanto a árvore; tornava-me o rio, e era
tão bravo e corajoso quanto ele; tornava-me tigres ferozes, e
podia registrar a força que eles traziam; penetrava na densa
mata e permanecia denso e compacto para as investidas do
tempo. Assim eu havia aprendido a meditar em Zambe.
Por meio desse processo, aprendi a me defender de animais
ferozes e pude, também, criar grande resistência para me
defender dos homens que agiam com torpeza.
Neil, meu parceiro de luz, esclareceu que esse processo de
contemplação às coisas do Pai nos abastece de energia
cósmica, e quando estamos alimentados por essa energia, nos
momentos de maior necessidade, seja orgânico ou espiritual,
naturalmente essas forças acumuladas são acionadas.
Se os espíritos encarnados tivessem mais disciplina, colocarse-
iam à disposição do Criador e trabalhariam tal qual nosso
Irmão Francisco de Assis, que é a representação da alma de
amor.
Bem, a minha amada, nunca mais vi, pois, quando a milícia
alcançou a nossa aldeia, pude lhe dar abrigo necessário e,
assim, assegurar a vida dela e de meu filho amado.

Não sei bem como, mas parece que nos acompanham, durante
nossa existência, sinalizadores íntimos de como devemos
caminhar, e foi graças a esses sinalizadores que pude me
precaver com cuidados especiais para amparar aquela que me
preencheu de vida.


Após o nascimento de meu filho, temia pela vida do pequeno,
esse temor que só se adquire depois de vivenciar a vida. Ele, o
meu filho, era para mim o meu deus; deus que se guarda a
sete chaves. Foi o que eu fiz. Atrás de minha taba era uma
densa mata, havia uma enorme pedra perto de nossa cabana,
que era impossível de ser removida. Do outro lado dessa
grande pedra havia se formado, pela ação do tempo, uma
pequena vala, que se acentuava no encontro com a base da
pedra. Foi exatamente aí, nesse encontro, que aprofundei a
vala. Fiz um pequeno buraco que só se encontraria se tivesse
tempo para retirar as plantas naturais do caminho, pois deixei

o local bem arborizado para não deixar rastro de curiosidade.
Esse lugar só eu conhecia.
Ficaram somente nas lembranças as noites eternizadas de
amor que pude desfrutar junto de minha deusa. Desde então,
me pus em oração pela proteção dos adorados.
Só depois do meu desenlace é que pude chegar aos registros
de minha flor, e mais uma vez, sem compreender, senti ódio
do Criador, pois vim a saber que ela havia se casado pela
segunda vez. Senti-me traído por aquela a quem eu mesmo
havia dado guarida, pois aos braços de outro homem se
entregou. Como ainda somos egoístas, eu queria que minha
amada ficasse em cativeiro, o cativeiro da solidão, por julgar
que somente a mim pertencia, mesmo sem medir a extensão
do meu apego e do meu processo masculino.
Bem, superamos ou apenas aceitamos sem nos permitir o
trabalho mais profundo, que é o perdão.
Volto a Zambe, em meio à mata, onde grande queda d'água
registrava o cântico de Deus, embalado pelos orixás, por meio
dos pássaros abençoados. Sei que também você, querido
companheiro, desfruta dessa orquestra, mas a sombra do
egoísmo o bloqueia dos belíssimos registros oferecidos pelo
Pai, que nos aproximam da essência pura do Grande

Estruturador da Vida. A necessidade de superar a nós mesmos
nos faz ignóbeis perante a oportunidade cedida pelo Criador.
Eu, no meu cativeiro íntimo ora relatado, deixei-me embrutecer
pelas circunstâncias e perdi o tempo belo de aproveitar as
coisas mais sublimes que o Pai nos ofertou.

3
O navio negreiro


No fim do ano de 1801, o navio negreiro, assim registrado por
carregar uma carga com cor denominada, foi, para mim, o
encapsulamento mental.
Embarcamos nesse navio, que seria o nosso lar por alguns
dolorosos meses. Correntes nos pés e nas mãos, cinturão de
ferro para impossibilitar os movimentos do corpo,
controlando, assim, a revolta coletiva.
Bem, retornemos a Zambe exatamente no ano de 1801, 17 de
outubro. Gritos, tiros, mortes, choros, desespero, angústia,
suicídios, tudo por meus olhos negros registrado.
Tristeza, melancolia, depressão sufocada por correntes. Eu,
por preservar a vida, acovardei-me diante da arma de fogo e
me pus de joelhos igual a muitos companheiros de
compromisso coletivo.
Lágrimas até hoje eu registro no íntimo, pois ainda quando
estou a relatar me emociono e volto aos momentos de dor, de
prisão e de melancolia. O que a memória perene faz com todas
as almas em evolução, aí encontramos a beleza da Criação!
O Pai Maior nos dá o direito do livre-arbítrio e, ao mesmo
tempo, esse mecanismo se torna concreto quando deparamos
com nosso eu íntimo, nada mais que a nossa memória perene.


Bem, querido companheiro de caminhada, mesmo tendo
desencarnado há bastante tempo, ainda busco a oração como
auxílio para a jornada. A oração é a bênção, o refúgio, o
refrigério dos aflitos. Por isso, aprendi a estar na plenitude da
oração ativa.
Quando nos colocamos a servir ao Pai Maior, não nos
aprisionamos, ficamos libertos em nível mental superior de
vibração, c realizamos a tarefa com amor. Assim Francisco de
Assis realizou sua grandiosa tarefa de luz!
Correntes nos pés e nas mãos, cinturão para aprisionar ainda
mais o negro. Já havia antes relatado que no navio, por meses,
ficamos assim atados uns aos outros, tratados como animais,
pois nossa individualidade, nessa altura, havia se perdido no
primeiro tiro assolado no terreno de Zambe.
Quantos tiros, ainda, o homem espírito registrará no
infortúnio do ser refletindo no coletivo? Quando será que
estaremos todos despertos para a real evolução?
Há correntes contrárias que ainda estão em percepção latente
da infância maltrabalhada que busca a discórdia dos
ensinamentos do Cristo Jesus e se deixam no registro do
trabalho contrário ao Pai Maior.
E com grande tristeza que observamos companheiros ainda
em fúria mental levar grupos de amor à derrota. Observem,
companheiros, busquem a análise fria de quantos núcleos
foram destruídos pela força desorganizadora.
E hora de buscar a simplicidade do abraço fraterno, do sorriso
sincero, da comunhão na tarefa de amor. Os nossos
companheiros de luz, como o meu fraterno Neil, vêm nos
alertando incansavelmente sobre essa demanda que ainda
permanece no coração dos homens encarnados. Todos, ou
melhor, quase todos aprisionados pelo bezerro de ouro.
A condensação do egoísmo passa de geração a geração, pois
todo esse sentimento menos feliz é ainda uma mácula de


aprisionamento que o espírito incorpora à sua jornada
evolutiva.
Ser evangelizado, permitir-se ser, na criação do Grande
Arquiteto, é se colocar a serviço do bem comum, alinhando o
compromisso com a disciplina do amor.
Na minha mente acorrentada ao passado, volto à caminhada
de dor, por horas em fila, aquela que todos nós conhecemos: a
famosa fila indiana, que tanto pode elevar o ser, dando força
de evolução, quanto auxiliando para a paralisação coletiva.
Bem, naquela hora, começou uma corrente de paralisação
coletiva desse grupo de almas.
Temos consciência do resgate de nossas ações e do Evangelho
do Cristo Jesus. Que venhamos a trabalhar esse resgate. Mas o
que ainda ocorre é que o homem se deixa envolver no seu eu
inferior e busca a cobrança, mesmo em nível inconsciente,
esbarrando no processo do "dente por dente". Como é árduo
sermos coadjuvantes nesse processo!
Quando falo coadjuvantes, é porque, quando estava em
trabalho no departamento de arquivos do dr. Clarêncio, o
médico responsável pelo acolhimento dos recémdesencarnados,
ele me explicou que todos os que encarnam
trazem consigo o processo de refazimento, mas estão
vinculados a outros companheiros que também estão no
ressarcimento, e ora somos os protagonistas, ora somos os
coadjuvantes do desenrolar das ações.
Sendo assim, é muito difícil para o encarnado saber dissociar

o que lhe pertence ou não. E questão de organização
energética. Se os encarnados já se colocassem em postura
crística, não se permitiriam ficar presos a ações repetitivas,
bloqueando, assim, o andar da evolução.
Ficam atados a elos que formam correntes energéticas. Para se
desvincular delas, necessário se faz a reforma íntima, que nada mais
é do que se libertar dessas repetições.Voltando aos momentos,

correntes enormes nos entrelaçavam. Estávamos descalços, porque
negro não tem pé. Fomos, assim, levados ao nosso cativeiro.
Durante o percurso, apenas andávamos. Não podíamos
falar nem pedir nada, nem água, nem comida, somente
quando o senhor de engenho julgasse a hora.
Esse senhor de engenho que conheci logo no início divertia-se
a cada passo dado. Vim a saber que, por sua bravura, foi lhe
dada permissão para fazer parte da expedição na qual fui
capturado. Ele, homem alto, forte e sem nenhum registro de
amor, comandava a expedição com gritos e chicote na mão,
mostrando que mandava ali.
Bem, os estudos afirmam que os bichos agridem por medo.
Então, o meu senhor, atrás daquela força imensa, registrava
um grande medo. Por ter tido uma vivência maior que a
nossa, já conhecia muito bem o que era uma rebelião, e sabia
que poderia passar por uma, a qualquer momento, com nossa
comunidade de negros.
Talvez, se nós, os negros, fôssemos mais organizados, não
teríamos sido presas dos homens brancos, mas são resgates de
ambas as partes. Pena que o homem se perde no poderio e
arrasta mais abismos para si mesmo.
Haverá um dia em que os encarnados compreenderão que se
deixarem de atirar a primeira pedra não haverá outra. Ou, se
receberem a primeira e a recolherem, não haverá revide, então
ocorrerá a pacificação. O homem, por não trabalhar ainda o
orgulho, dilacera sua própria jornada. Que o bom Deus
ampare todos os que por necessidade, como eu, ainda
precisam dos registros para o autoaprendizado.
Neil me esclarece quando verbaliza sempre esta belíssima
frase: "O amor cobrirá uma multidão de pecados"1.


¹ I Pedro 4-8.

4
O cheiro da natureza


Estou a correr em Zambe, terra virgem de sentimentos,
onde a pureza da natureza se entrelaça com os
sentimentos dos homens. Éramos crianças de alma para os
momentos necessários. Parece que o homem se permitiu
vender a alma para o bezerro de ouro, tal qual Narciso1
quer seu reflexo luzindo nas esferas mentais dos irmãos
de jornada.
Eu, de galho em galho, pois, no meio da floresta a
brincadeira saudável é imitar os animais. E nos
deixávamos envolver nos galhos para deles fazermos a
deliciosa queda na água. Banhávamos no balançar dos
corpos; este balançar era a liberdade mais profunda que
tínhamos, e à qual não dávamos a menor importância,
pois simplesmente vivíamos na inocência do momento.

Tenho saudades desses momentos de grande felicidade.
Ainda ecoa a doce voz de minha amada mãe a nos alertar
dos perigos da mata, dos animais selvagens e de homens sem
escrúpulos, mas levávamos essas advertências como simples
grau de preocupação de mãe.

¹ Narciso = Mitologia Grega. Filho do rio Cefiso e da ninfa Liríope, tornou-se um
belo rapaz e foi objeto da paixão de numerosas ninfas. Certa vez, numa fonte, ao
se abaixar para saciar a sede, Narciso viu-se refletir nas águas e, seduzido pela
própria beleza, apaixonou-se de si mesmo. Incapaz de se afastar da própria
imagem, Narciso definhou.


0 autor espiritual faz uma ligação entre o mito Narciso "vaidade" e o apego aos
bens materiais, que do mesmo modo, aprisiona o ser.
Na profundeza da alma, mamãe sabia que um dia, no percurso
da vida, iríamos ser arrebatados e ganharíamos outro
caminho, árduo caminho para mim.
Hoje fico a observar o balanço projetado pelo homem atual,
que não se permite a delícia da natureza íntima que nos
aproxima de Deus. Aprisionam-se em quadrados de concreto e
engessam o próprio espírito em nome da evolução
tecnológica. Com isso, o homem moderno afasta-se da criação.
Zambe era um paraíso, rico das dádivas do Pai. Podíamos
correr livremente, nos embriagando com o dom mais puro; o
ar era um suave cântico dos anjos a penetrar nossas narinas. O
reconhecimento do odor, já relatado, era de tamanha beleza,
que até o cheiro da terra removida pelas infatigáveis formigas
eu podia sentir. Pensem nisso, até o odor exalado pelas
formigas...
Encontro-me aqui sentado ao relento do anoitecer, pois a
colônia em que estou estagiando fica bem em cima de Sabará,
em Minas Gerais, no Brasil.
Neil e Clarêncio estão também usufruindo deste momento
comigo. E como estamos sempre interligados, eles adentraram

o meu pensamento e travaram esta conversa que irei relatar:
Neil: Que belo, irmão Pedro, o odor exalado por nossas
pequenas construtoras formigas. Pelos estudos já
desenvolvidos no planeta concreto, que é a Terra, as formigas
formatam colônias imensas debaixo da crosta, fazendo uma
proteção natural no terreno.
Clarêncio: Deve ficar bem claro, Neil, que a proteção natural
não serve para os danos provocados pelos homens, pois estes
são de ordem humana e terão de ser redimensionados pelos
próprios homens. É da lei.

Mas sobre o odor que as formigas exalam, é belíssimo, pois é
para a preservação da comunidade. É o sinal que Deus
permitiu a cada colônia de animais, grupo de pessoas e até a
própria natureza, como uma mata, para auxiliar na
preservação da vida.
Entristece-nos saber que o homem, tido como imagem e
semelhança do Criador, seja o que mais danifica o corpo da
criação.
Como o homem concorre para seu próprio embrutecimento!
Ele, por ansiedade de ultrapassar a si mesmo, ignora as leis já
tão bem definidas. O Pai de suprema sabedoria eleva os filhos,
permitindo o livre-arbítrio, do qual se fazem escravos.
Voltemos à corrente da água cristalina onde o banho salutar
nos envolvia em grande proporção de benesses. O alimento
tão bem distribuído nos fartava e nos beneficiava, para que
não viéssemos a adoecer. Para isso, nosso curandeiro nos
envolvia em pajelanças sagradas e, com suas orações, nos
protegia dos maus espíritos. Eu, pelo dom natural, estava
sendo conduzido para substituir o curandeiro, pois filho de
curandeiro, curandeiro é.
Assim deveria ser o homem atual, voltado para as coisas do
Pai, cuja bondade a natureza virgem oferta, e em grande culto
de amor eternizar a criação.
Zambe, para mim, era assim. O homem de Zambe era assim. A
natureza de Zambe, interna e externa, era assim. E os homens
deuses somente projetam o processo falido. Consigo
desenvolver, agora, o entendimento do grande espaço
existente dentro de cada um de nós.
Como eternos aprendizes da Lei Maior, e pela dinâmica
belíssima desenvolvida pelo Criador, começo a ampliar meus
sentidos e a compreender melhor a passagem do Mestre Jesus,
quando Ele eleva para a mente coletiva as estâncias das
moradas de nosso Criador.


Podemos perscrutar essas moradas dentro de cada um dos irmãos
encarnados e desencarnados. O processo repetitivo das ações nos
aprisiona, deixando-nos rodopiar na própria poeira criada.
É fascinante. Quando nos permitirmos estudar, concluímos que o
homem bifurcado não está inserido na Lei Maior do Criador, pois
ele constrói sua própria lei, ficando, assim, preso ao seu bezerro
de ouro nas minas falidas da ambição.

5
A viagem


Cinco de outubro de 1801, sete horas da manhã, sol
despontando num belo quadro que jamais, nessa experiência
encarnatória, eu teria olhos de olhar. Como se tornou, naquele
momento, o mais belo e majestoso amanhecer, era como se eu
tivesse recebido o maior presente do Pai, pois, apesar de estar
sempre em agradecimento aos deuses, naquela manhã foi
como se eu concebesse toda a minha nova vida, ou melhor,
minha posição de prisioneiro e, apesar da apoteose do lindo
dia, já não estava mais liberto.
Olhei para o céu e escutei o guincho do pássaro visitador
retumbar junto do tambor ensurdecedor. Lágrimas ao olhar
para trás e ver minha Zambe desaparecer por entre as árvores.
Que quadro deprimente!
Sabem, companheiros, não damos a devida atenção, ou
melhor, a devida importância ao movimento real da vida, e
nos deixamos vencer pelo cotidiano. E quando ele nos escapa
das mãos, sentimos o teor profundo da perda.


Eu estava gradualmente perdendo Zambe, minha amada, meu
filho, meus pais que, por serem velhos, foram aniquilados.
Corpos no chão e, entre eles, os meus pais. Quanta dor! Nem
chorar os mortos eu pude, ainda mais os meus pais!
Por que tanta provação em tão pouco espaço de tempo? Mas
negro não tem sentimentos. E assim seguimos, por cinco dias
de caminhada árdua. Quando chegamos à margem do grande
mar, orei à deusa das águas, conhecida no vosso meio por
Iemanjá, pedindo a ela que não permitisse o grande monstro
se apoderar daquela enorme embarcação.
Quanto medo registrei, e quanto já me encontrava irritado,
pois aquele maldito tambor não parava de marcar, registrar o
compasso de marcha. Eles chamavam as batidas de disciplina.
Que disciplina! Creio que para eles também negro era surdo,
pois, pelo resto da vida escutei os tambores.
Tambores para Vossa Alteza Real; tambores para oficializar
momentos de vultos históricos; tambores para açoitar negro
na praça; tambores para decapitar aqueles que, por rebeldia,
ultrapassaram as leis.
Leis criadas para coordenar as estruturas civis, mas, como já
relatei, o homem, por vezes, se perde e faz sua própria lei. E
naquele momento a lei era só dos homens que ali estavam a
comandar vidas cedidas pelo Criador. Pois eles eram como
miniaturas de deuses direcionando a vida.
Subimos em pequenas canoas, em grupos de dez homens,
sempre com a mira da carabina nas nossas faces, para assim
alcançarmos a grande embarcação. E, pela primeira vez, ousei
olhar para trás, fazendo um movimento maior com meu
corpo, e no meu movimento fui abordado por uma chicotada.
Que dor pude perceber! Como o cipó que se usa para bater
nos animais doía no lombo! Como o homem pode utilizar
chicotes para punir os animais e os próprios homens?


Naquele momento, vi minha terra natal ficar distante, e
percebi que a mesma água que fecunda pode destruir.
Entrei naquela embarcação com temor do chicote. Tentei
movimentar meu corpo com toda a suavidade que pude,
porque bem ao certo não sabia o motivo da chicotada. E, por
receio de outra com o mesmo teor, procurei me mover como se
movimenta uma cobra por entre as ramas.
A embarcação era linda, isso ninguém podia contestar. Tinha
velas enormes, um grande timão e cabina de máquinas
perfeitas. Os homens, como deuses, gritavam a mostrar que
eles dominavam aquele enorme veículo.
Como o homem ainda se torna infantil diante de suas
conquistas terrenas! Valerá o dia em que nós conquistarmos
nosso verdadeiro passaporte para o aprimoramento íntimo.
Levaram-nos ao porão, lugar bem fúnebre. O cheiro da morte
ali se registrava. Como eu trazia a sensibilidade maior, pude
entrar na psicosfera dos que ali já haviam estado em dor,
angústia e desespero.
Lágrimas involuntárias começaram a sobressair das minhas
vias lacrimais e, não sei bem como, escutei um companheiro já
desencarnado falar: "Ajude-me, quero sair daqui". Olhei à
minha volta e percebi que o navio estava assombrado.
Comecei a rezar aos deuses defensores para que não me
deixassem envolver nas forças ruins. Temi ficar como Tapuia,
companheiro que morreu porque ouvia vozes dos mortos,
vozes trevosas. Tapuia ficou louco.
Acomodaram-nos em paus mal acomodados, pois era assim
que nos primeiros dias eu os percebia. Lugar estranho, escuro,
num formato que não nos dava estabilidade por não estarmos
acostumados com tamanha embarcação. As nossas canoas
eram só para uso pequeno. O que mais fazíamos era andar, e
agora, pelo menos por um período, íamos navegar.


Somente podia ver o sol ou as estrelas por frestas, que, com o
decorrer do tempo, a madeira permitiu surgirem. Aí, mais
uma vez analisei a bondade do deus sol, por penetrar nos
cantos mais obstruídos que se possa imaginar.
O homem branco temia nossa crença, então não podíamos
cantar nem reverenciar nossos deuses em voz de amor. Assim
aprendi a reverenciar em silêncio, e vi que o deus do céu
recebia minhas oferendas mentais, pois a mesma luz no céu
piscava para mim em bênção maior.
O temor do monstro das águas, este eu sofri por meses. Sei
que foram meses pelos registros do tempo, pois dentro da
embarcação negro não podia ter nenhuma informação.


Mas, como em qualquer lugar sempre há aquele que fala,
encontramos um aliado que sabia andar com os dois lados.
Ele era jovem, alto, forte, mas dócil, tal como eu, e assim ficou
fácil ele estar no meio dos brancos e passar para nós as
informações necessárias.
Como nossa terra, exatamente nossa tribo, ficava bem dentro
da África, os mais velhos traziam a crença de que o dialeto
desenvolvido pelos antigos deveria perdurar para não
passarmos nossa cultura mais profunda para outras tribos.
Assim, poucos de nós conhecíamos o português. Como no
futuro próximo eu iria substituir o curandeiro, ele próprio já
havia começado a me ensinar um pouco dessa língua, pois,
como curandeiro, teve acesso a outras tribos, e essas tribos,
por sua vez, também transitavam em outras, fazendo assim a
corrente da comunicação. Mas não chegou a ser suficiente,
ainda precisaria aprender mais.
Neil, nesse momento em que relato esse processo, interveio
com sua belíssima colocação a respeito da comunicação.
Colocarei suas próprias palavras para ser fiel a ele:
"Bem, Pedro, a comunicação que existe desde os primórdios é


o alicerce do encarnado, ou melhor, deveria ser o alicerce do

encarnado, pois ele, o espírito na forma adensada, se perde
em todas as modalidades de funções que o Criador permitiu a
ele ter".
Mas voltemos à comunicação. Se o Pai nos permitiu a
verbalização, deveríamos cuidar com todo apreço desse
belíssimo veículo concedido a todos nós, mas o que vemos são
homens utilizando essa ferramenta em paradigmas obsoletos,
arrastando milhares de companheiros para o abismo.
Mas é também de consciência que todos os companheiros
trazem o livre-arbítrio para se deixarem aprisionar uns pelos
outros. Jesus não aprisionou ninguém; ele libertou quando
trouxe ao conhecimento coletivo as leis de amor por tudo e
todos.

Entristece-nos muito vermos companheiros de casas espíritas
manipulando os irmãos, conduzindo e afirmando que as leis
do espiritismo devem ser seguidas tais como eles a
compreendem.
A ordem é necessária em todos os reinos de nosso Pai,
concordo, mas manipular as leis, forjando o egoísmo, é o
mesmo que cegos conduzindo cegos. E, na atualidade,
companheiros das casas intituladas de amor estão destruindo
esta belíssima estrutura codificada por nosso saudoso Allan
Kardec.
Existe uma evolução que emparelha todos os espaços de nosso
Criador. Se é concedido ao planeta Terra concorrer para a
evolução, é porque os homens que habitam essa esfera
também galgaram esse patamar, após várias experiências
encarnatórias.
Vemos que quanto mais o homem evolui, mais vaidoso se
torna. Médiuns que trazem a responsabilidade de ampliar a
união forjando, por intermédio de outros companheiros, a
desunião. E o que, por vezes, nos entristece, é que ainda esses
médiuns estão experienciando o "dente por dente".


Quantos companheiros poderiam ter a oportunidade de
resgate moral, tanto encarnados quanto desencarnados que
circulam em âmbito comum nos centros espíritas!
Mas o local em que ocorre desunião, intrigas, desavenças,
preconceitos e indiferenças de uns para com os outros não
pode concorrer para trabalhos salutares, se somos todos
energias lidando com energias.
O planeta Terra grita por socorro, e os homens brincam de ser
deuses. A lei é implacável; todos os atos por nós provocados
terão de ser ressarcidos. Por isso a comunicação é
fundamental para o homem que já traz o Evangelho como
suporte de vida. Se Jesus verbalizou amor, compreensão e
união, por que ainda o homem não se permite comunicar
unificando? O que ainda arrasta o homem para o aprisionar e
comandar desordenadamente, valendo-se de regras falidas?

6
Brusuia


Voltemos ao desenrolar do processo. No balançar da grande
embarcação, a nossa angústia começava. Coloco "nossa" por
estar dividindo o espaço com irmãos da mesma tribo e outros
capturados de outras tribos.
Ali, naquele buraco flutuante, nos tornamos amigos, sendo
que, antes daquele confinamento, éramos inimigos.
Como nós não conseguimos nos relacionar com harmonia com
nossos vizinhos e os fazemos inimigos! Fiquei pensando nisso
quando vi o Brusuia encolhido no canto à minha direita


passando mal, como outros, devido à fragilidade do
estômago, iniciando, assim, o processo de desencarne.
Não suportando o balançar, pelo processo de vomitar iniciava-se o
quadro doloroso da desidratação.
As primeiras regurgitações já nos davam sinal de coisa séria, pois
dentro da embarcação seria impossível usar as ervas salutares de
Zambe.
Chorei, primeiro, por sentir nojo, depois por minha falta de
capacidade de estancar o processo que, com o decorrer do
tempo, vira sangue misturado com bile em quem já não tem o
que vomitar.
Orei aos deuses da mata e me entristeci, pois eles não me
responderam. Orei aos deuses das águas e me frustrei, pois
eles também não me responderam. Orei, aos deuses do
firmamento e me sufoquei.

Vi, então, que os deuses buscavam o companheiro mais frágil.
Em menos de um dia ele partiu.
Melhor para ele, não é? Jogado ao mar, foi arremessado como
um qualquer. Fiquei recolhido por três dias em completo
silêncio, recordando os momentos, e chorei no mais completo
abandono.
Quando desencarnei, após ter sido recolhido, direcionado pelo
tempo de reajuste natural do adequamento de espaço, que
levou exatamente trinta anos no tempo da Terra, comecei a
sondar os superiores sobre a existência dos companheiros que
guardava na minha mente, e perguntei sobre Brusuia. Aí
chorei, pois vim a saber que ele estava preso mentalmente no
navio negreiro, juntamente com outros companheiros,
registrando a mesma angústia que eu havia presenciado.
Como eu, com minha pouca compreensão, poderia incorporar
tamanho desajuste mental? Como poderia compreender que
ainda estaria preso no navio negreiro? Questionei bastante o


superior Francisco, que, pacientemente, respondeu-me todas
as perguntas, e me dei por satisfeito quando ele falou:
"Pedro, ficamos presos, se assim quisermos ficar, pois quem
comanda é a mente associada às ações de respeito, perdão e
aceitação aos desígnios de Deus. Como Brusuia, há muitos
companheiros presos, pois ele ainda não perdoou o processo
que vivenciou e está fixado na vingança. Ficará lá até que os
companheiros de luz encontrem um afrouxamento da
vingança em seu coração para, assim, fazer o resgate.
E da lei, cada um colhe o que planta. Mas na bela escola da
evolução, o Pai Maior permite a companheiros abnegados
compartilharem do processo, envolvendo em energias
salutares os companheiros impregnados pelo ódio.
E por isso, Pedro, que a doutrina do amor veio complementar

o Evangelho do Mestre Jesus, quando o apóstolo Pedro assim
nos ensinou: 'O amor cobrirá uma multidão de pecados'.
Sabe, Pedro, ficamos rodopiando, quando encarnados, nas
necessidades do dia a dia, e perdemos o direcionamento real
da vida, que é a simplicidade, esta companheira que nos eleva
os sentidos aclarados do Criador".
A partir daquele momento, passei a orar por Brusuia, recordei
meus momentos de dor íntima esperando meu resgate e fiquei
penalizado por saber que ele ainda se encontrava com as
amarras do ódio.
Quanto o espírito precisa despertar, retirar do coração
qualquer ponto fixo de desordem, pois esses pontos nos
aprisionam e não nos deixam caminhar!
A evolução se processa lentamente no âmbito terreno porque
o homem ainda não se permitiu sair do irreal buscado há
milênios pelo próprio homem.
Surgem sempre no planeta companheiros voluntários para
impulsionar o desenvolvimento coletivo. Como são ciclos que

a humanidade experiencia, cada etapa exige discernimento
para acompanhar o processo evolutivo.
Se buscarmos a ciência e fizermos uma análise, veremos o
grande salto desenvolvido na atualidade, mas o homem-
espírito está se afastando do real e fixando a mente no irreal.
Será necessária a parada para retomar o real, mas, para essa
parada, vemos que o homem busca a dor, e aí esbarramos no
paradigma criado tempos atrás -"Se não for pelo amor, será
pela dor" -, sendo que o Pai Criador nos fez simples de alma
para sermos felizes.
Se nos foi dada esta realidade, por que ainda os espíritos
encarnados navegam no irreal?
Bem, voltemos à embarcação. A limpeza do nosso espaço era
realizada com baldes de água salgada, que eram jogados do
alto em nós, e vários baldes recebemos, pois era preciso retirar

o cheiro da morte do porão. Mal eles sabiam que o cheiro, com
o tempo, se desfazia, mas a coletividade de dor mental ali
permanecia.
Após o último dos trinta e dois baldes de água, recebemos
panos para acabar a limpeza. Era realmente nojento o
processo, pois nossas necessidades eram também ali
realizadas. Estávamos expostos a todo tipo de doença, pois o
asseio deixava a desejar.
Havia buracos com rolhas que eram retiradas das laterais, por
onde escorria a água suja.
Quanta falta de humanidade! Tal como os bichos, nós assim
éramos transportados. A limpeza era realizada só para dar
conforto aos senhores do ouro, pois nós, os negros, não
tínhamos conforto nenhum. O porão ficava molhado por
muitas horas, por não haver possibilidade de os raios solares
nos atingir, e assim passamos meses nessa verdadeira agonia.
Ficava horas a pensar como e por que éramos carregados para
longínquas águas. Qual era o real objetivo dos homens de pele

branca? Será que nos matariam? Será que nos venderiam? Será
que nos trocariam como carga de animal? E assim eu vagava
nesses pensamentos.
Enquanto estamos encarnados não observamos com olhos
libertos e nos deixamos vencer pelo desejo do ter contínuo,
que nos faz atravessar o abençoado momento reencarnatório
com enorme desperdício de tempo, porque ficamos somente
projetando o que iremos ganhar no próximo movimento que
fizermos.
Naquele momento, na embarcação, quantas dúvidas assolavam
meus pensamentos. Mas os dias corriam e, com eles, a distância
ficava maior.

7
O castigo de Zumbam


Às vezes, em sonhos reais, no balançar da embarcação,
lembrava de minha doce amada. Até dos momentos de não
entendimento registrava agora como complemento de
partilha, partilha que ficou nos meus registros pelos cinco
anos que desfrutei do enlace.
Recordei do nascimento do meu príncipe, Tuã. Sonhei, até na
hora do seu despertar, que ele seria conduzido a comandar
Zambe, coisa de pai que projeta os filhos como donos, e pude
sentir que ser dono é perigoso. E neste momento de reflexão,
pedi ao Deus do firmamento que livrasse meu Tuã dessa
predestinação.
Senti o adoecer da alma só em pensar que meu Tuã pudesse
ferir alguém. O poder de conduzir almas, ou melhor, o dever


de conduzir irmãos que em aprendizado também se
encontram é de cunho imenso, pois o Pai Maior confia e
entrega aos dirigentes experiências de comando. Aqui abro
mais um parêntese, pois, quando falamos de dirigentes,
abranjo todos eles, seja de nação, de estado, de cidade, de
bairro, de rua, do lar ou de um centro espírita, que buscam, a
próprio pedido, experiências de tal vulto. Mas, quando
estamos encarnados, nos perdemos pela vaidade, nos
aprofundamos em nosso egoísmo e levamos uma coletividade
ao desencontro da realidade vigente ao espírito.
A partir daquele momento, comecei a formular ideias que se
tornariam monstros a me perseguir. Projetava a rota que o
navio vinha realizando para, depois, eu mesmo, com minhas
mãos, construir o meu navio de brancos. Não seria mais um
navio negreiro, e sim um navio de escravos brancos.
E por meio desse pensamento, a raiva, a fúria, a própria
maldade assolava a minha alma, níveis de consciência que
todos nós trazemos cravados em nossas camadas emocionais e
que devemos tratar com cuidado especial, tais como feras
adormecidas que espreitam o momento exato para dar o bote
contra nós mesmos.
Mas eu não arriscava a me rebelar, porque, para os donos, um
ou outro atirado ao mar de pouco valia constava. Foi o que
aconteceu com nosso companheiro Zumbam, que de tanto se
rebelar foi levado ao mar.
Jamais esquecerei essa cena. Neste dia, fomos todos levados
ao convés. Era um entardecer maravilhoso, mas, não sei como,
eu sentia a dor e o medo de Zumbam, acorrentado, várias
correntes grossas no corpo do negro.
As correntes, também em minha alma, entrelaçavam a minha
vida. Arrepios, turbilhão em minha mente, vozes
aterrorizadas, grande nuvem negra começava a me sufocar.
Comecei a ter uma tosse descontrolada, que chamou a atenção


do carrasco, que passou a ficar incomodado com meu
proceder, julgando que estava querendo adiar o sofrimento do
meu companheiro.
Gritou:
-Pare com isso, negro fedorento; preciso de concentração para
exterminar o entulho.
Não cheguei a compreender todas as palavras, mas a vibração
sim. Busquei força e respirei profundamente, mas não
consegui suspender completamente o surto de tosse, e fui
levado para perto dele, puxado pela orelha, ainda com o
processo ocorrendo. Foi aí que senti uma das piores dores que
alguém pode registrar. O carrasco, como que tomado pelo
ódio, disse:
-Para não, negro? Então vai parar pelo processo induzido. Eu
continuava a não compreender, mas sabia que coisa boa não
era. Ele tomou nas mãos uma espécie de pinça de ferro,
daquelas que servem para pegar ferro quente, aproximou-se
da minha genitália e deu uma grande gargalhada, e todos os
outros tripulantes, como que conduzidos, entraram no
processo, fazendo um ritmar de vozes: aperta, aperta, aperta...
Ele não teve piedade, e assim executou o processo. A tosse
desapareceu, e eu vi além da embarcação, muito além. Chegou
a ser realmente estranho. No primeiro momento, foi uma dor
que não consigo explicar; depois, um desligar do corpo e
registrar o mundo paralelo foi o que aconteceu. Foi meu
primeiro contato com meu guia espiritual, ou melhor, o meu
grande amigo. Ele impôs as mãos no local da dilaceração e fez
uma belíssima prece para mim.

"Oh, Senhor da Criação, atenue a dor do físico e da alma deste irmão, que hoje, por
lei maior, experimenta o registro da dor.
Limpe a alma da necessidade de vingança.
Traga o alimento salutar para ele discernir os passos que assim registrará.



Tonifique o espírito, para que o corpo físico receba do alto o medicamento para as
feridas.
Criador, abrande o coração de todos os homens, porque somente os brandos e
pacíficos herdarão a 'Terra."¹

¹Mateus, V-5.
Experimentei o mundo paralelo em plena consciência, e pude
ver que Zumbam estava envolto em raios de luz.
Recobrei os sentidos e voltei ao doloroso processo. Poucos de nós
compreendíamos tamanha crueldade, pois as falas, para nós, não
eram de total compreensão, mas os gestos e a rispidez do tom
da fala davam a entender que coisa boa não era.
Gesticulavam apontando para uma tábua imensa, colocada na
lateral do navio, que chegava ao mar sem nenhuma proteção.
Apontavam para Zumbam subir na tábua e andar.
Chorei recolhido, e as lágrimas com gosto de sangue registrei,
pois também estava ferido. Vi meu amigo olhar nos meus
olhos em ato de despedida.
Voltamos a Zambe, ele e eu mentalmente, e nos vimos a nadar
no grande rio, e com essa imagem tenho a certeza que ele, em
rufar dos tambores, subiu acompanhado do carrasco que
trazia nas mãos enorme remo, o mesmo remo utilizado para
conduzir tanto para terra firme como para a morte. Odiei o
remo.
Ele caminhou, com grande dificuldade, até a ponta desta
tábua, e o homem, em distância favorável e fora de risco para
ele, permaneceu. A marcha dos tambores mudou, começou a
evolução com maior euforia, e meu coração também
acompanhava o retumbar. De repente, os tambores pararam.
Não sei se o silêncio foi melhor ou pior, pois naquele
momento o silêncio penetrou na minha alma me causando um


enorme nó, e comecei a registrar grande falta de ar. Pude
sentir a vibração dos companheiros, de revolta, angústia e
dor. Fomos levados a assistir a esse quadro com tamanha
violência que até hoje, quando o relato, fica fácil sentir a
vibração emocional de todos os envolvidos.
Jesus nos ensinou que tudo o que realizamos fica registrado, e fica
mesmo. E, dependendo dos registros, ficamos encarnações após
encarnações presos a essas vibrações. É da lei. Colherás o que
plantares.
O carrasco para o qual hoje oro, tomou com violência do remo
e empurrou ao mar, acorrentado, o nosso Zumbam, e fomos
assim conduzidos a ver as borbulhas que o pulmão de
Zumbam registrou. Foi a triunfal despedida de um grande
companheiro.

8
A grande tormenta


Começou o entardecer, e meu coração registrava algo de
diferente no ar. Bem, queridos irmãos, eu estava sendo
preparado em Zambe para ser um curandeiro para a minha
tribo. Então, tive iniciação para receber as vibrações dos
deuses, e pude perceber que no bloqueio no qual se registrava

o tempo, os nossos deuses do firmamento começavam a se organizar
para fazer a limpeza, a varredura de elementos negativos.
Aprendi que quando a aglomeração das nuvens no céu se
formava, era para eliminar a contaminação de pensamentos.
Em razão da violência que até ali havíamos registrado, já se
fazia necessário esse processo. E para que as águas venham há

toda uma organização da natureza, e pelas circunstâncias ali
vivenciadas, provavelmente os guardiões que circundavam
aquelas águas estavam conclamando reajustes.
Agitado eu fiquei, porque, ao mesmo tempo, percebia que a
deusa das águas também regia o grande encontro das aguas,
tanto do firmamento quanto do grande mar. Os deuses se
intercomunicavam para a verdadeira fúria necessária.
Pus-me em prece, orei aos deuses pedindo que abrandassem o que
eu percebia, mas, por mais uma vez, os deuses não me ouviram. E
começou assim a tormenta.
Homens na proa a correr e a gritar. Eu não compreendia a
fala, mas registrava as vibrações de medo. O balanço das
águas, agora em maior dimensão, fazia a embarcação nos
descontrolar no porão do navio.
Todos os companheiros estavam em grande agitação, pois
permanecíamos acorrentados, e os movimentos começavam a
ferir nossos tornozelos e punhos. Não conseguíamos ficar
sustentados pelo pau interno que corria de fora a fora no
porão, e os mais fracos se perdiam em rolar de um lado para
outro, presos ao desespero.
Eu podia escutar os passos acima em grande desordem, e com
todo esse descontrole, era-me impossível ter a organização
lógica para a oração.
Quando estamos sob pressão, se não trazemos a devida
elevação, não somos donos de nós mesmos, ficamos
margeando o mental coletivo e nos tornamos presas das
circunstâncias.
O querido Neil me salientou a respeito desse magnetismo que
promovemos quando temos o hábito sagrado da oração.
Aqueles companheiros que, tal como Francisco de Assis,
entregam-se à postura contínua da oração, em qualquer
situação trazem o equilíbrio e se alinham a esse magnetismo
real de concórdia íntima.


Mas como o espírito-homem encarnado ainda se perde no
irreal, ele, por si mesmo, desorganiza sua estrutura de
sentimentos e perde o alinhamento com a real lei deixada pelo
Cristo Jesus.
Bem, como eu estava desalinhado pelo medo, não trouxe a
postura devida, e me perdi com meus sentimentos inferiores,
desperdiçando a oportunidade de colaborar com o real
magnetismo da fé.
Escutei o comandante gritar: "Homem ao mar!" Logo nesse
momento senti prazer por imaginar que o homem branco
estava se afogando. Depois, um grande calafrio na coluna,
pois poderia ser um negro já adestrado ao trabalho com os
senhores.
Aí chorei, porque olhei pelo buraco e vi que o deus raio
chicoteava as águas, levantando enormes ondas. E se esse
fosse um companheiro de cor, provavelmente, nenhum
esforço seria realizado para retirá-lo das águas.
Homens gritavam, lanternas a óleo ao vento a iluminar o que
era impossível de iluminar, pois, pela violência do vento, seria
impossível manter aceso qualquer coração.
As velas se danificaram e houve grande perda para nos guiar
a nosso destino. Um dos escravos, já preparado para esses
momentos, desceu ao porão e nos falou:
-Bartolomeu foi lançado ao mar. Ele não teve chance de se
salvar. Uma enorme onda, o grande e assustador monstro, o
pegou. Ele estava sustentando umas das velas que se soltou
das amarras e foi lançada ao mar juntamente com esse grande
companheiro. Agora estamos parados e vamos permanecer
assim por alguns dias, pois teremos de arrumar tudo o que foi
estragado. A situação não é favorável.
Passei a duvidar dos grandes deuses e, com esse processo,
começamos a perder a fé. Comigo não podia ser diferente.
Foram cinco horas de grande tormenta, que se tornaram


registro para uma eternidade. Já observaram que quando
estamos em processo de alinhamento com as forças da
provação, e quando essa provação é prazerosa, não paramos
para avaliar o processo de bem-estar, apenas vivenciamos sem
nem sequer avaliar a experiência? Mas quando é de
insatisfação ficamos rodopiando e não sabemos nos posicionar na
fé.
Mas se os momentos são de provas reais, pelo que o aprendiz já tem
como reserva a superar, este aprendiz não deveria se perder no teor
das experiências encarnatórias.
Foi o que aconteceu comigo, pois não penetrei nos comandos
elevados e adoeci; fiquei por seis dias a queimar em febre alta.
Pedi a morte, pois a diarreia e o vômito eram o que mais
acontecia.
Baldes de água gelada no lombo do negro eram pouco para
me recuperar, mas o destino queria mais de mim e, assim, por
recursos internos, eu sarei.
Devido à violência da tempestade, mastros, velas e o convés
estavam totalmente perdidos. As velas que sobraram estavam
furadas e teriam de ser remendadas; os mastros quebrados, os
buracos no convés e o reparo necessário levariam algum
tempo.
Como são as misturas de raças! O Pai Maior permite aos
homens articularem a interação, mas essa interação vem com a
perturbação que assola o instinto inferior, e assim se mesclam
pela inconsciência madura e perduram no vai e vem da
destruição. Faço incansavelmente as seguintes perguntas: "Se

o Criador nos criou todos irmãos, o que estamos fazendo? Por
que ainda não utilizamos o amor exemplificado por Jesus? Por
que ainda fazemos guerra? O que falta no homem encarnado
para realizar o verdadeiro cumprimento da lei divina? O que
mais será necessário para despertar a dormência coletiva? Por

que o homem insiste em colocar os filhos na experiência para
fazê-los egoístas e inconsequentes para com os próprios atos?"
Neil nos esclareceu que é necessário um líder em qualquer
agrupamento, que terá de exercitar sempre o esclarecimento
do grupo sob o feixe da luz do Cristo Jesus.
E o que acontece é que o líder, por sua vez, julga-se poderoso
e se sufoca no processo do orgulho exagerado. Ele leva ao abismo
profundo a si mesmo e os companheiros que não se prestaram a
buscar a realidade, tornando-se aprisionados pelo irreal.
Se o homem já tivesse o interesse pela realidade do Pai, se colocaria
de joelhos e estudaria o Evangelho. Essa codificação ajuda a
religação do homem consigo mesmo e com a estrutura do Criador.
Mas o homem, por se julgar senhor do conhecimento, não se
permite inferir a real lei e navega em sua lei falida.
Nós, os filhos de Zambe, deveríamos escutar os deuses para nos
posicionar diante da vida. Era o que exercitávamos para as escolhas
íntimas, sendo que as escolhas coletivas do grupo cabiam ao nosso
líder. Jesus abençoe e proteja os líderes de todos os comandos.
Quando houve esse agrupar de ideias de nossa cultura com a
cultura dos chamados senhores de escravos, o homem tornou-
se receptivo ao desenrolar da própria trama.
Se o homem parasse para meditar com real propriedade, veria
que o contexto é bem direcionado pelo Pai, pois em eras
remotas o espaço denominado África se aglutinava com a
América-Brasil.
Houve, por necessidade, a separação dos dois continentes,
mas o tempo justo buscou agrupar essas duas linhas de
evolução, sendo necessário o reajuste, levándonos ao encontro
com esta terra em próspera evolução.
Neil, em sua peculiar sabedoria, colocou para mim que o
planeta Terra, como todo o resto do universo, faz parte do
corpo de Deus. O Criador é paciente, mas tudo no universo


tem limite e, por essa razão, hoje esta maravilhosa esfera azul
traz o tempo contado para a reposição de alinhamento.
Alinhamento com o real posicionamento da criação torna-se
uma demanda indispensável no campo mental de cada
encarnado e dos desencarnados também.
Enquanto o homem procurar o que não é real, permanecerá no
intangível, por vício contínuo e desenfreado, buscando
doenças para o próprio corpo, vaso sagrado ofertado pelo
Criador, e da mesma forma adoecendo o planeta Terra.
Quando o filho da Criação comungar com o paradigma
maravilhoso do Cristo Jesus, o homem conquistará o que Ele
assim verbalizou: "Cuidai das coisas de meu Pai".
Neste momento de total envolvimento, Neil fitou o finitoinfinito
e orou por todos nós:

"Oh! Grande Arquiteto, magnífico engenheiro, educador de almas, Jesus amado.
Trago em meus sentidos a esperança de um movimento irai na mente de todos os
companheiros encarnados e desencarnados.
Edifico no magnetismo da essência mais elevada deste pastor, que se permitiu
adensar na esfera terrestre para, assim, impulsionar a elevação da humanidade.
Concorro para o despertar de irmãos viajantes, descobridores do descortinar da
própria alma.
'Tonifique, por mais uma vez, o coração mental de cada espírito, abastecendo-o de
esperanças, amor, determinismo, vontade e humildade.
Assim sendo, tal qual 'Tu, amado grande mestre, que nossos canais estejam sempre
vibrando no real sentido da vida".


Após esta oração, me permiti a reflexão e, em silêncio,
permanecemos na esperança de um mundo íntimo trabalhado
na esfera da paz.


9
A alimentação de bordo


Estamos todos atados uns aos outros, e nos mesmos
movimentos do vai e vem da embarcação. Ao despertar, nossa
rotineira refeição era um caldo quente e grosso. Não sei até
hoje, pelos meus registros, explicar o que era aquele grude,
nem salgado, nem doce e às vezes azedo. Quão dolorosa era
aquela porção para todos nós!
Lembrava que todas as manhãs, em Zambe, nossa primeira
refeição era um mingau de farinha mais grossa de mandioca,
feita com alguns pedaços de carne; isso, sim, era alimento
salutar. Aquecia nossos estômagos, nos dando a satisfação de
agradecer aos deuses. E devo confessar que começava o dia,
na embarcação, odiando os deuses.
Perguntas repetitivas assolavam minha mente: o que os
deuses queriam de mim? Por que os deuses não me
ampararam? Por que eu, o escolhido como futuro curandeiro,
havia sido traído pelas forças maiores? Mal sabia que até aos
brancos eu seria chamado a servir com os conhecimentos
adquiridos.
Há uma colocação no vosso meio de real padrão: o que se
adquiriu não se perde, e é assim mesmo. As minhas
conquistas, mesmo que bloqueadas, foram de grande valia
ainda nessa encarnação.

e começávamos a marear. O vai e vem se realizava no nosso
organismo, as ondas começavam a fazer parte do nosso corpo,
com aquela pasta compacta a subir e a descer tal qual concreto
endurecido, causando-nos enjoo e o famoso vômito, até não
sermos capazes de manter a massa na caçamba chamada de
estômago, devolvendo-a, assim, ao fundo do barco. Era nosso
contínuo martírio.


Assim percorríamos a parte da manhã. No mear do dia, eram
ofertadas a nós mandiocas, até podres, grosseiramente cozidas
que, com pouco sabor, nos faziam sentir o apodrecer de nossa
alma.
Mas como negro, na concepção dos homens, não trazia alma,
não lhes importava como seria o processo alimentício.
À noite ofertavam-nos uma pasta de arroz bem triturado, para
se tornar em maior proporção.
Às vezes eu não comia, pois, apesar de ser eleito o curandeiro,
tinha o estômago fraco. Falo assim porque os curandeiros
trazem em si a fortaleza de suportar qualquer tipo de
alimentação, pois eles sempre são os primeiros na tribo a
provar qualquer alimento nunca antes degustado pelo grupo.
Mas eu, provavelmente, precisaria de um auxiliar para me
ajudar nesse processo, ou então não seria curandeiro com real
posição.
Procurava, pela meditação, abastecer-me pela emanação dos
deuses. Sentia saudade das minhas pajelanças, que eram feitas
com ervas nativas que despontavam da própria natureza. Sem
nenhum auxílio do homem, elas surgiam da entranha da terra,
no tempo certo, para curar a dor surgida no terreno.
Hoje, o homem embrutecido não aquiesce do potencial à sua
volta, que o Pai Maior oferta aos filhos, e se aprisiona nas
químicas produzidas em laboratórios preparadas mais para
produzir o ouro amoedado.
Não quero dizer que as químicas não sejam necessárias ao
homem. Sim, elas são, pois o Pai Maior permitiu que o homem
viesse a formular remédios em laboratórios apropriados para
guarnecer a vida. Faz-se necessária a intervenção de
medicamentos que somente os médicos são capacitados a
receitar. Mas eles próprios, os médicos, não se permitem
alargar os conhecimentos e utilizar os remédios que


antigamente as vovós usavam com tamanha sapiência, pois
eram passados de mãe para filha.
O Brasil é uma terra abençoada pelo saudável terreno que lhe
provém. Chegará o dia em que o homem saberá respeitar a
mãe natureza, e voltar-se-á para a verdadeira preservação.
Como era agradável penetrar no mundo do imaginário, ou
mais real. Não sei bem diferenciar para vocês o que era sentir
a brisa mais suave, ver o rio mais límpido, ouvir o canto dos
pássaros mais aguçados vibrar na mata, dançar junto ao fogo e
ver tal como eram fumaças, ora alvas e prateadas, ora negras e
revolucionárias. Contentava-me apenas em sonhar.
O homem sonha, planeja, realiza, constrói, e nas construções
modifica o curso natural da vida. Foi o que aconteceu comigo.
Por várias vezes, julguei ter sido capturado por não ter tido o
devido cuidado de vigiar. Bem, mas isso não vem ao caso.
Hoje sei que o Mestre Jesus nos ensina a orar e vigiar nossos
pensamentos. Para não me tornar uma presa fácil dos meus
pensamentos, busco o consolo nas Suas palavras, das quais
vim tomar consciência maior só depois do meu desenlace.
Tínhamos a fé, a nossa fé, que aos olhos do Criador não é
diferente para nenhum filho. Mas os espíritos, quando estão
em processo encarnatório, esquecem-se do real compromisso
com a própria encarnação e se julgam deuses a comandar o
próprio caminho, e se entregam ao tempo perdido, abolindo
do caminho o maior DEUS.
E o maior alimento que os corpos podem registrar é o
alimento do Pai. Eu não tinha dentro de mim esta grande
ciência, e queimei o tempo sagrado a mim confiado.


10
Descobrindo a liberdade


Às vezes, fico a olhar, pela fresta, a estrela maior. Lembro que
em Zambe meu pai assim a batizara, para denominar a estrela
de luz maior. Parecia que ela me perseguia, como que a dizer:
"eu, seu pai, estou ainda te acompanhando". Meu pai, homem
bruto e forte, que foi por várias vezes capaz de se defrontar
com leões imensos, lutou com jacarés e derrubou enormes
árvores para limpar o espaço tão necessário.
Na calmaria do balançar da embarcação, sentia-me como em
uma enorme rede afagado pela ternura de minha esposa.
Nesse momento, deisxei-me envolver nos meus pensamentos,
ultrapassar as barreiras da dor e me banhar na bela forma de
Zambe, na minha taba, a espreguiçar no meu enorme pano
tecido com as grosseiras cordas que as árvores favoreciam, e
que, por meio de uma perfeita estrutura, tornavam-se tecido
justo para ao leito se poder deliciar o prazer do repouso do
corpo, cansado pela saudável luta do dia.
Transportei-me para perto da estrela maior e cheguei a sentir
a essência de minha flor. Se nós estivéssemos mais
desprendidos, poderíamos sentir o odor natural dos corpos,
que é sagrado e que, por lei, faz os filhos se diferenciar.
Mas o homem, com seu aculturamento, buscou as belas formas
de essência que a natureza também oferta e transformou-as
em fragrância embriagadora, bloqueando o poder do faro
natural.
Bem, vamos um pouco mais além. Como é de ordem natural, a
própria natureza emite sons, produz aromas e tinge com belas
cores a grande organização do Pai. Por que, então, nós, a obra
dita mais perfeita, por sermos racionais, nos permitimos ser


tingidos de sangue buscando o odor apodrecido de sangue
maltrabalhado?
Ah se nós, quando em aprimoramento aqui no planeta Terra,
tivéssemos um pouco mais de discernimento, trabalharíamos
para buscar a encarnação completista. Mas ainda somos filhos
rebeldes, nos deixando envolver em processos danificados, c
nos tornamos obsoletos para nós mesmos. Temos de passar
pelo processo do desprocessar para, depois, começar a
processar todo o proceder de novo. E o eterno vai e vem.
Voltemos à embarcação. Estava eu registrando a calmaria do
mar e, sob esse torpor de emoção assim represada, pude me
aprofundar em belíssimas meditações e ver no céu belas
formas a riscar a imensidão.
A cada rastro de luz que deslizava no firmamento, eu
também, como que a brincar com os deuses, me punha a
bailar, me posicionando como um daqueles grandes riscos, e
permitia me tornar imenso, a deslizar na palma da mão de
meu Xangô.
Momento de libertação do processo no qual eu me posicionei
quando fui capturado, pois comecei apenas a viver, não me
importando se chovia ou se o dia se apresentava ensolarado.
Hoje, às vezes, nos transportamos para uma dessas gaiolas
que os homens, por capricho, buscaram ter para fazer
prisioneiros animais; e eles mesmos serem, assim, objetos de
posse.

£ como se ainda fôssemos senhores com seus escravos,
escravos esses coibidos a somente embelezar o que o coração
está impossibilitado de registrar, que são as vibrações de
desconforto, pois, se um pássaro tem asas e pelo dom de Deus
elas foram feitas para voar, por que o homem bloqueia esse
belíssimo proceder?


O homem experiente contradiz o proceder porque diz que está
em busca do voo da libertação, mas não percebe que ele
próprio impede esse voo.
A partir desse momento, comecei a reconhecer que a liberdade
está realmente dentro de cada um e, então, decidi me sentir
livre. Não me envolvia mais no sentimento de amargura, e
comecei a admirar aqueles homens-lobos. Lobos porque
traziam a bravura e o determinismo desse animal, os olhos
vermelhos assim se apresentavam sempre quando era
necessário tomar decisões.
Apesar da brutalidade, eram homens de fibra buscando seu
ideal. Pena que o ideal deles não era o meu. Traçavam,
rabiscavam e analisavam para buscar outra vez a rota, então
eram homens inteligentes, pois, por um conjunto de estrelas e
uma bússola ainda rústica, eles, os incansáveis homens,
desbravaram horizontes e atingiram a evolução. Pena que o
custo dessa evolução ainda repercuta nos corações que,
sedentos de justiça, conclamam o reajuste. Por isso Jesus nos
ensinou que deveríamos perdoar setenta vezes sete. Dádiva
ofertada pelo Pai Maior e que ainda não sabemos vivificar
com sabedoria. Perdemos oportunidades grandiosas, que são
dividir, compartilhar e aprimorar cada momento.
Pude ver, nesse dia de paz momentânea, que eles também
utilizavam o firmamento, o nascer e o pôr do sol.
Permanecemos na proa até o anoitecer, e vi que eles
gesticulavam mostrando as estrelas e apontavam para a minha
estrela maior, aquela à qual meu pai havia ofertado o nome, e
me lembrei de meu pai mais uma vez.
A partir daquele dia, um dos cativos teria a incumbência de
nos ajudar com algumas palavras, como por exemplo: "Sim
Sinhô; Sim Sinhazinha", e assim por diante. Seria a maneira de
nos dirigir aos nossos senhores.


Em um desses momentos de prática, percebi uma marca no
corpo do companheiro que estava exercitando as frases
conosco, e ousei tocá-la. Vi que algo dolorido havia se
passado com aquele irmão, e senti medo, pois provavelmente
eu também passaria por aquele processo, e perguntei a ele o
que era aquela marca.
Com objetividade, ele me respondeu que era a marca do se u
dono, e que em breve eu também receberia a minha. Essa
marca era feita com ferro quente, tal qual se faz com o animal
para deixar registrado quem é o dono. Então cada dono marcava
seu grupo de escravos como se marca o gado, para que não
houvesse perda.
Homens brancos fazendo de homens negros registros de seres sem
alma.
Em razão da tormenta já relatada e de termos ficado à deriva
nas águas, a grande embarcação foi paralisada no meio do
grande mar. Ficamos assim por alguns dias, e com essa
paralisação pudemos, os escravos, respirar a liberdade na
proa.
No primeiro contato com o sol, ele e eu nos tornamos virgens.
Vocês não podem imaginar o que é ficar recluso sem poder
ver o sol e o céu na sua totalidade. Assim como a expulsão do
bebê, o choro que ele emite, eu também registrei. Era como se
estivesse renascendo, com o domínio maternal. Comecei a
registrar sons antes nunca registrados e pude agradecer à mãe
das águas por provocar tamanha desordem no tempo. Talvez,
se não tivesse ocorrido a tempestade, eu não teria percebido o
dom mais perfeito do Pai, por meio das águas.
Tivemos a felicidade de ser cortejados por um cardume
belíssimo. Naquele momento, eu queria fazer parte daquele
imenso cardume e me banhar, tal como eles, nas águas do Pai.

Retornei ao real estar, e comecei a observar com mais cautela
todos os movimentos dentro da embarcação. Os homens


estavam em grande movimento para organizar o serviço que
teria de ser executado. Todos, sem exceção, seriam solicitados
a contribuir para os reparos, e eu fiquei na turma que iria
reparar as velas. Gomo havia relatado, a tempestade fez
estragos.
Foi o mesmo que abrir o portal da minha mente, e me vi na
minha querida Africa.
Nesse período, a Africa era pouco desenvolvida, éramos muito
puros, pois nos contentávamos com o que a natureza nos ofertava.
Alguns espaços eram em grande proporção arborizados e outros
totalmente sem vegetação, o que nos fazia perdê-los de vista.
Tínhamos comunicação precária com outras tribos, que era
realizada por intermédio de mensageiros, que corriam de um
local ao outro levando as devidas informações.
A minha tribo não era grande, pois nos reservávamos a
tradição de não nos deixar misturar com outras culturas. Na
Africa, cada tribo trazia e traz sua cultura dos antepassados, e
isso deve ser respeitado, pois é a história, e assim deveria ter
continuado, até que o homem de pele não tingida veio, sem
pedir licença, e roubou nossa liberdade.
Ainda registramos, com grande tristeza, o que o racismo faz
com os companheiros que estão aprisionados no contexto do
Deus de tez alva. Que Pai é esse que seleciona os filhos, se
somos cópia da perfeição? Vemos grandes homens, os mesmos
que alardeiam e conclamam ao mundo o proceder da
igualdade, também excluírem o homem pardo, amarelo, negro
e outros que, pela miscigenação, venha a raça assim ocasionar
as mudanças necessárias.
E de lei. Flabitarás o reino que te convenhas, mas é também de
lei que farás o que de melhor lhe aprouver. Não é assim a lei
maior? Então cada um busca a prisão por meio de suas ações.
O preconceito é registrado em vários aspectos que o homem
nem mesmo vislumbra nesse parecer.


África, o espaço ainda castigado pela estrutura geográfica,
traz até hoje contexto bem precário em algumas áreas, mas o
desenvolvimento de cada país depende da permissão do Pai
para o comando maior acionar esse proceder.
Existe todo um planejamento do mundo astral, onde os
construtores executam o comando de ordens superiores e os
filhos obedientes trabalham no comando correto das leis, para
não danificarem os comandos do Pai. Inspiram os homens de
boa vontade, e esses encontram grandes dificuldades para
realizar as inspirações, pois encontram no caminho companheiros
que trabalham na corrente contrária, como que impedindo o
trabalho a ser realizado.
Mas como todo o trabalho do Construtor tem de ser realizado,
de uma maneira ou de outra ele alcança o apogeu.

11
Os preconceitos


Nossa alimentação era à base de papa e carnes de animais,
como já relatei. Devido à influência dos espaços geográficos,
fica no mental dos homens o vibrar das ondas regionais, e
minha querida África vibrava naquele contexto de
precariedade, mas que não nos perturbava, pois era a
realidade que conhecíamos. Não se deseja o que não se
conhece, não é!
Dei uma pausa em minhas lembranças para escutar e aprender
mais sobre o proceder da vibração da vida, e fui ter com Neil.
Encontrei meu querido Neil a trabalhar. Nossos guias
espirituais jamais param de elaborar na senda da divindade. E
Neil estava em companhia de um grupo que iria alcançar a


esfera adensada, o plano Terra. Quando ele me viu,
perguntou-me:
-Pedro, querido irmão, gostaria de fazer esta tarefa
junto conosco, pois hoje Carlos está ocupado com os arquivos
e não poderá nos acompanhar?
Logo me coloquei à disposição.
-O que iremos fazer?
-Pedro, nossa tarefa é um pouco árdua, pois teremos de
inspirar dois dirigentes de uma casa espírita, alojada no
interior de Minas Gerais, a abraçar um companheiro médium
de grande vulto, mas os dirigentes estão pondo em
questionamento a escolaridade, o trabalho e sua tez, por se
tratar de um irmão negro. -Ah! sim...
-Mas por que me procurou?


-Queria que você me esclarecesse mais sobre a vida.
-Olha, Pedro, a providência divina é perfeita, não acha? Você
questionando sobre a vida e o convite chegando a você. Terás
a oportunidade de acompanhar de perto o processo da vida
conosco. Vamos!
A caravana era composta de vinte companheiros, contando
comigo. Chegamos ao centro por volta das nove horas da
manhã de domingo. O presidente, o vice-presidente e alguns
dirigentes da comunidade espírita estavam se preparando. O
presidente da casa começou com uma belíssima oração, que eu
irei repassar, pois a oração me tocou profundamente.


"Que o Mestre Jesus seja o nosso medianeiro neste momento de vulto doutrinário,
pois cabe a nós, que temos a direção, conduzir os companheiros no exercício da
mediunidade, e necessitamos da intervenção do alto para concedermos os benefícios
corretos neste intercâmbio de luz.
Sendo assim, com a proteção divina, colocamo-nos a serviço do bem. "



Fiquei transbordado de luz, pois o ambiente estava cheio de
luminosidade. Mas havia um companheiro, no meio dos
dirigentes, que estava altamente irritado com a situação e não
se permitiu sentir os eflúvios do benefício da oração.
Começou o presidente, que chamaremos de Jacques, para nao
constranger nenhum companheiro. Isso se faz necessário
porque trabalhamos por amor e só queremos construir o bem,
e quando nos foi permitido trazer este caso aos queridos
leitores, é como alimento de boa conduta que o espiritismo
assim trata.

Vamos ao diálogo:
-Queridos companheiros, estamos aqui para tratar do assunto
referente ao nosso médium que vem despontando como um
grande colaborador da nossa instituição, que vem solicitar
aprimoramento para exercitar o receituário. Como presidente
do nosso núcleo, venho colocar a todos vocês todas as
ponderações que a mim chegaram para, juntos, decidirmos o
que fazer. Mas, antes de continuar, tornarei a colocar o meu
parecer, que é de conhecimento de todos, e quero deixar bem
claro que não mudarei o meu pensamento.
O nosso companheiro Joaquim traz, nesta encarnação,
condições para o trabalho ativo, e trago em meu íntimo
grande expectativa para o aprimoramento do mesmo.
Neste momento, nosso companheiro Max, que já estava
enfurecido, tornou-se opaco, perdeu por completo o
envolvimento com o grupo, rompeu para ele o cordão
energético que circundava a equipe, mas o alimento que
vibrava no cotação dos outros companheiros fortaleceu-se
outra vez, não deixando a corrente se partir.
Fiquei maravilhado e me virei para Neil, que percebeu, e logo
falou:
-Agora não irei te responder nada. Continue a vibrar, pois do
mesmo jeito que eles estão neste cordão de isolamento, nós


também ficamos em outro cordão de isolamento, no qual se
faz necessário o alimento contínuo da fé.
Pude ver que o irritado Ficou perdido no devaneio dos
pensamentos, não fazendo mais parte do grupo energético. O
corpo estava presente, mas a mente maquinando estratégias
de como iria tirar Joaquim do convívio do grupo.
Jacques começou a enumerar as questões:
-Foi colocado que o companheiro não tem escolaridade
suficiente para o exercício do receituário; é um trabalhador
que tem como emprego recolher o lixo da fábrica central do
nosso município, então não traria credibilidade para o nosso
núcleo; ficou viúvo e, logo após, casou-se com uma jovem bem
mais nova que ele, e alega que só queria outra esposa para
cuidar dos sete filhos; três noites ele dobra como vigilante da
fábrica, restando, assim, só duas noites livres para o exercício
da psicografia.
Bem, aos meus olhos, não vejo nenhum desses itens interferir
no trabalho do nosso médium, mas o que mais me
surpreendeu foi a colocação de um companheiro aqui
presente, que não irei relatar o nome por respeito a ele.
Este companheiro alegou que a cor não era de bom tamanho,
pois estaríamos expondo nosso centro, uma vez que a alta
sociedade nos visita sempre trazendo donativos de vulto.
Fiquei extremamente chateado com esse patecer, pois foge
completamente dos passos do Mestre Jesus.
Após esta fala, iniciou-se uma desarmonia no ambiente, e o
próprio Jacques pediu aos companheiros para se refazerem,
dando-lhes alguns minutos de silêncio para analisarem a
situação.
Após alguns minutos, quando Jacques percebeu que os
corações já ganhavam a quietude, continuou a falar.
-Gostaria de lembrá-los que nosso candidato à psicografia
estará sendo amparado por nós o tempo todo, com


supervisões contínuas das orientações que concorrem por
intermédio dele.
Nesse momento, nosso companheiro que se colocava em
postura de irritabilidade pediu a palavra.
-Quero registrar minha insatisfação diante deste processo, e
sei que nosso companheiro Gladson, apesar de não estar
presente, é também contrário à permanência de Joaquim no
nosso centro.
Se para vocês não são importantes todas essas ponderações
aqui colocadas, devo lembrá-los que nosso núcleo é um centro
de respeito e merece continuar a ser.
-Querido companheiro, sabemos do seu passado e das
desavenças que lhe correm a alma -falou Jacques com ternura
de pai -, mas temos também a consciência de que jamais nosso
querido Joaquim estaria pondo nosso centro contra os
princípios doutrinários ou familiares. Pelo contrário, ele tem
demonstrado grande empenho em manter os filhos unidos e o
lar munido de sobrevivência.
Se o ontem te atormenta, faz-se necessário o perdão imediato
de sua parte. Vemos as interferências das forças negativas
invadir, cada vez mais, os núcleos de amor.
Não devemos nos deixar arrastar nesta corrente de desunião
que está tomando conta dos núcleos que carregam nosso Jesus
como bandeira de trabalho e amor.
-Mas, desde o início, não fui com a cara desse tal de Joaquim.
Nem nome ele traz para um médium. Não tem porte de
médium, não tem nome de médium, não tem cor de médium.
-Agora basta desta conversa, não posso admitir tal disparate.
Preconceito no nosso meio é voltar atrás e se permitir ficar
preso às amarras do passado. Está na hora de limpar nossos
sentidos, que estão conturbados.


Eu observava Neil empenhado, fortalecendo o núcleo central
do cérebro do dirigente, tonificando-o com eflúvios de paz e
segurança.
Acorrente magnética que os vigilantes companheiros
emanavam para os componentes do centro era belíssima de
presenciar. Gotas de luz invadiam o ponto central, impedindo
que forças externas se apoderassem do processo, mas nosso
irmão que vibrava na discórdia não conseguia fixar o eixo
central na paz, ficando volátil nas próprias interferências.
Jacques, buscando alimentar de bom ânimo todos os
companheiros, para oportunizar a Joaquim o trabalho na
senda do amor, desdobrava-se em prece íntima, armazenando
forças para as futuras investidas.
Mais irritado se apresentava o querido irmão, desequilibrando
os vacilantes, conseguindo, assim, contaminar os
companheiros com a força negativa.
E mais dois companheiros passaram a se sentir desarmônicos
com o processo. Percebendo o desalinho de alguns
companheiros, Jacques, com prudência, falou:
-Queridos companheiros, percebo que o ânimo de alguns
preciosos amigos está se tornando um pouco desconfortado.
Interromperemos a reunião por uma semana e depois
voltaremos a este assunto de interesse coletivo.
E ele mesmo encerrou com outra belíssima prece:

"Pai de bondade infinita, favoreça nossos sentidos com o alargamento de nossa
compreensão do sentido real de um centro espírita.
Permita-nos atingir a simplicidade, limpando da nossa alma o egocentrismo, que
aniquila a humanidade, e a nós mesmos.
Amplie nosso coração para a verdade do Cristo Jesus, que exemplificou o amor
incondicional na abertura do acolhimento maior.
Derrame sobre nossos sentidos a pureza de Maria, mulher concebida de ternura e
paz.



Afaste-nos das intempéries que nós mesmos provocamos, e não nos deixe cair na
trama da inconsciência coletiva.
Alimente nosso íntimo com benefícios de Francisco de Assis, que amou a todos sem
distinção.
E não permita ao nosso núcleo a invasão do preconceito de nenhuma ordem.
Que assim seja!


Em silêncio e cabisbaixos, saíram todos refletindo na prece de
teor elevadíssimo que nosso Jacques verbalizou. Jacques ficou
sentado esperando até que o último se ausentasse do centro, e
chorou.
Chorou pelos irmãos, chorou por Joaquim, chorou por si mesmo.
Neil ficou ali a sustentá-lo, fortificando-o para seguir a jornada.


Aproximou-se bem perto dele e falou:
-Querido filho, os espinhos que hoje te perturbam são a paz
do porvir. Não se enfraqueça, porque as trevas não
abandonam o posto, esperando uma pequena brecha para
preencher o espaço cedido. Mantenha-se em prece do coração
e caminhe, você não está só.
Após essas palavras, até eu me senti mais confortável diante
da situação.
Voltamos na expectativa do retorno e na rogativa ao pai para


o alimento correto para todos os companheiros.
12
Reunião esclarecedora



Durante o tempo decorrido de uma semana no período da
Terra, retornamos ao núcleo para o auxílio necessário.
Francisco permaneceu no centro, inspirando todos os
companheiros ao bem, e na abertura da reunião ele se
aproximou do nosso querido Jacques e o inspirou na belíssima
prece:

"Que a paz do Grande Mestre esteja em nossos corações, nos banhando em luz.
Venhamos ceder nosso espaço mental para o trabalho de amor que nos sustenta, pois
sem os eflúvios dos nossos queridos amigos de luz não somos capazes de discernir
com clareza os nossos atos.
Que, apesar do nosso livre-arbíttio, não nos deixe ficar no imperialismo do nosso eu
inferior.
Que o alinhamento tão necessário com as forças superiores seja a canalização da paz
neste ambiente.
Que assim seja!"


-Bem, queridos companheiros, após esta semana de reflexão,
gostaria de saber o que cada um concluiu. Podemos começar
por nosso companheiro Max e, depois, o companheiro
Gladson, aqui presente hoje, e depois os demais. A palavra é
toda sua, Max.

-Não compreendi bem por que se fez necessário uma semana
para tal reflexão. O meu parecer, como é de conhecimento do
núcleo, é de que Joaquim não traz, nesta encarnação, nenhuma
aptidão para o exercício mediúnico, ficando claro para todos
nós que ele não pode ser receitista.
Neste momento, Claudius pediu a palavra:
-Querido companheiro, não consigo compreender por que
tamanha desordem no seu coração em relação ao nosso
companheiro Joaquim. Eu tenho seguido os passos dele, pois
sou o dirigente da reunião de terça, à qual ele pertence, e não


vejo nenhuma agravante nas comunicações dele. Quero
colocar, também, que não me afastarei dele, e que ele está sob
minha total responsabilidade.
-Apesar de todo esse amparo que vejo de sua parte e da parte
do presidente Jacques, gostaria de lhes dizer que a
preferência, ou melhor dizendo, que seu protegido não tem
melhor posição que ninguém aqui.
Para nós, do plano sutil, era notória a interferência dos irmãos
desordeiros, trabalhando incansavelmente para desestruturar
o núcleo. E o foco era nosso querido irmão Max. Ele trazia o
orgulho aflorado por ser médium receitista e controlador da
casa por intermédio do seu mentor, e temia perder o comando.
E Jacques falou:
-Vamos relembrar a passagem de Jesus, quando falou aos
companheiros discípulos sobre o bom samaritano. Será que
seremos bons samaritanos acolhendo ou faremos o papel dos
inquisidores, que, por medo de perder o comando, mandavam
matar os irmãos? Sabe, Max, existem várias maneiras de
acabar com os companheiros, e a meus olhos esta seria uma
delas. Joaquim é um excelente companheiro colaborador de
todas as horas, assim não vejo justificativa alguma para
afastarmos quem trabalha com tanto amor.
Mas só a minha opinião, a do Claudius e a sua, perante o
grupo, não significam a decisão, como falei. Quero escutar
nosso querido companheiro Gladson. O que você pensa sobre
tudo isso?
-Bem, Jacques, estou entre a cruz e a espada, pois concordo
em parte com o Max na questão da vida particular do nosso
companheiro. Quando a esposa estava acamada, ele já trazia o
conhecimento de que ela logo partiria para outras esferas de
nosso Pai Maior, e trouxe para dentro do lar sua atual
companheira, que nada mais é que a prima da desencarnada.
Neste momento, Claudius interveio na conversa e


falou:
Como todos sabem, acompanho o desenrolar da vida de nosso
companheiro Joaquim, e posso lhes assegurar que Madalena, a
primeira esposa, quando acamada, pediu ao próprio Joaquim
que fosse buscar em Belo horizonte a sua prima Mércia para
ajudar com os filhos. Já no fim de sua vida, ela mesma pediu à
prima que não se afastasse dos meninos, temendo que o
esposo ficasse sozinho ou casasse com uma mulher que não
acolhesse seus filhos com amor. Mércia imediatamente
concordou com isso. "Não devemos julgar", -essas não são
as palavras de Jesus? Tomemos conta de nossa vida e auxiliemos os
necessitados. Hoje Joaquim é o nosso necessitado de amor, temos de
acolhê-lo com todo carinho e amor.
-Bem, somos cinco companheiros aqui, eu (Jacques), Max,
Gladson, Claudius e Brito e, por enquanto, estamos num
embate de ideias. E você, Brito, será aquele que vai dar o voto
de minerva. O que tem a dizer?
-Bem, queridos companheiros, entristece-me muito saber que
numa casa espírita companheiros ficam vasculhando a vida
dos colaboradores no intuito de denegri-los. Como podemos
nos dizer espíritas, se o próprio Kardec nos orientou que esta
é uma doutrina de amor, que ele próprio estaria iniciando a
obra, e que caberia a nós continuá-la!

Que obra é esta que afugenta os companheiros? As religiões
vieram para auxiliar, fazer os irmãos crescer, e o que estou
presenciando aqui é um orgulho exacerbado, aquele que
aniquila qualquer grupo.
Creio que se faz hora de nos recolher em oração e pedir o
auxílio do alto, pois trago a certeza de que os bons espíritos
nos ajudarão, nos fortalecendo para o trabalho vindouro.
Quanto a nosso Joaquim, pedirei permissão ao presidente,
Jacques, para auxiliar o Claudius no acompanhamento dos
trabalhos que ele realizará. Tenho certeza de que ele será um


excelente psicógrafo, pois as orações que ele transmite são de
teor elevadíssimo, demonstrando que os bons espíritos o
acompanham.
Neste momento, Max, enfurecido, deu um soco na mesa e
falou:
-Não faço mais parte deste grupo, e o que puder fazer para
denegrir a imagem do mesmo farei.
Claudius falou:
-Agora basta! Não queria expor aos companheiros o que
tenho observado de sua parte, mas irei colocar. Você tem
apresentado um distúrbio. Estou a par de suas visitas-
surpresa ao lar de Joaquim e de suas tentativas de sedução da
Mércia, que tem sido uma esposa fiel e uma mãe extremada.
Peço-lhe que venha a solicitar tratamento espiritual e clínico
com os médicos do nosso plano. Assim ficará mais fácil para
você vencer este processo.
Neste momento, Max foi acometido de um choro
descontrolado, perdendo até o foco do seu desatino.
Jacques, como um pai, aproximou-se dele e falou com ternura:
-Querido Max, vejo que teu coração encontrou o distúrbio, e
que qualquer um de nós poderia ser visitado por essa
enfermidade. Cabe a você acolher o tratamento em ambos os
planos e continuar os trabalhos nesta casa que o acolheu.
Quando seus pais completaram a encarnação, sabemos que foi
uma etapa dolorosa, que você venceu com muita dor.
Concordo, pois, que o desencarne deles no acidente de carro,
deixando-o muito novo sem o suposto amparo, o fez se sentir
desprotegido, e hoje busca em Mércia a mãe que lhe falta no
lar. Vamos tratar, companheiro, pois, como você pode ver,
estamos sempre amparados pela luz divina, não é?
Max somente acenou com a cabeça, concordando com as
sábias palavras do presidente do núcleo.


Jacques completou:
-Daqui para a frente, trabalharemos para que a discriminação,
o orgulho, a inveja e as desavenças não venham fazer parte do
nosso meio. Concordo com o auxílio pedido por nosso
companheiro Brito em favor de Joaquim. Dou por encerrada a
reunião, agradecendo aos bons espíritos que aqui estão a nos
beneficiar com os raios fecundos de amor. Que estejamos
sempre aptos aos comandos do alto!

"Mestre amado Jesus, reconheço em Ti a providência maior, sei que sem o Teu
auxílio não seríamos capazes de solucionar nossas demandas. Aos bons espíritos
somente podemos rogar ao Pai Maior a luz eterna. E aos companheiros encarnados,

o meu muito obrigado pela partilha.
Que assim seja!"
Após este momento, todos os membros do núcleo se
recolheram para seus lares com o sentimento mais aliviado.
Da minha parte, muitas perguntas pairavam na mente.
Observei que todos os companheiros ainda estavam em prece
profunda, e fiquei a contemplar a luz que cada um emitia do
próprio ser. Extasiado, roguei ao Pai Maior para chegar à
mesma condição dos companheiros um dia.
Passados alguns minutos, Neil falou:
-Queridos companheiros, que esta paz que exala do halo
fecundo do Cristo Jesus esteja no reflexo de nossa energia, nos
tonificando de bom ânimo. Agradecemos o auxílio contínuo
dos nossos superiores para as tarefas realizadas. Que
retornemos a nossa esfera com o dever concluído, mas na
certeza de que esta foi somente uma etapa vencida, e que
nossos irmãos estarão sempre precisando da nossa
intervenção, pois aqueles que se propõem a servir ao Pai


sempre serão visitados pelas trevas íntimas, e cabe a nós
auxiliá-los incansavelmente.
Fitando os olhos negros nos meus, falou com doçura de pai:
-O que o perturba, Pedro?
-Bem, como pode o homem atual, com um desenvolvimento
intelectual aprimorado, ainda se deixar aprisionar por
preconceito, orgulho, egoísmo e outras demandas que o
condicionam no teor terreno?
-Querido Pedro, a evolução pede um trabalho íntimo
incansável. O homem-espírito se embriaga com o poder que
lhe é oferecido e se intoxica com as próprias atitudes. Faz-se
necessária a limpeza íntima para o acolhimento do Evangelho.
O que nos chama mais a atenção é que companheiros que
incansavelmente buscam doutrinar corações ainda não
doutrinaram o próprio coração. Mas, como é de lei, "cada um
responderá segundo suas obras".

Após este momento, silenciamos e retornamos ao nosso
núcleo.

13
Preparativos para a chegada


Retornando às batidas ensurdecedoras daquele tambor, que
fazia o compasso registrado para marcar a marcha certa de um
pulsar que envolvia, nos momentos emocionais aqueles que,
como eu em outras vidas, já haviam experimentado o
compasso de um tambor. Como médium que sou, naquele
momento eu recebia as vibrações dos irmãos desencarnados
que já haviam passado por essa rota tempos atrás. Nas


vibrações, voltei na sensação da minha encarnação na
Mesopotâmia, cujo senhor teria de também servir, e no
compasso do tambor ficaram impregnados na minha alma os
registros marcados.
E eu vivia em duplo movimento, dos desencarnados e dos
encarnados que já se encontravam no quilombo: o quilombo
mental. Quão doloroso era esse compasso, pois as correntes
não facilitavam o movimentar. As vezes ficava a pensar por
que nós, os negros, precisávamos ficar presos às correntes, se
já éramos prisioneiros? O que é aprisionar o próximo? E assim
ficamos horas nas mesmas batidas, aprisionando e sendo
aprisionado, pois o espírito em busca da libertação ainda traz
consigo a necessidade de revidar as ações impensadas dos
companheiros de jornada. Se buscarmos nas elucidações de
Jesus, encontraremos um homem de elevada conduta, porque
em seu maior martírio foi capaz de dizer: "Pai, perdoai-os,
pois eles não sabem o que fazem"1.
Quantas dores íntimas eu registrei nesse espaço sujo e sem
conforto, regido por um tambor! Quantos companheiros ainda
estão vinculados a esse processo dos tambores do ódio,
revolta e falta de habilitação para se libertarem das opressões
em que se deixaram ficar afixados?
Após minha partida, fiquei registrando o som que me
acompanhou a existência. O próprio tambor que louvava
meus deuses me fazia chorar de dor.
O homem ainda não se permitiu parar, deixa-se levar pela
força motriz do desenvolvimento do intelecto e se obstrui na
rota que expande luz, que é a rota do Mestre Jesus.
Em determinado amanhecer de abril, estávamos em
preparativos para a chegada, e tivemos a oportunidade de ser
levados à proa novamente. Como estava lindo o dia, o céu
espalhava a luminosidade do meu deus.


Tive, como já relatei, dificuldade para registrar os raios
solares. Mas foi como um belo presente voltar a sentir na pele
a beleza e a fortaleza desse deus maior, qual bola de fogo a
queimar. Ao mesmo tempo refletir no azul mais límpido e
belo que a natureza podia proporcionar das águas se
mesclando com o firmamento. Nenhuma nuvem a brincar no
céu veio se manifestar. Embriagado eu estava, e fui outra vez
despertado pelos tambores.
A embarcação, por mais uma vez, foi paralisada. Gritos fortes
de ordens concêntricas foram dados:
-Banho nos negros; esfregão nos negros; observem a boca dos
negros; tirem as roupas e leve-os ao canto apropriado para
serem asseados.

¹ Lucas XXII: 34.
No desenrolar dos movimentos, eu já não registrava tanta
angústia, pois no dia em que fomos capturados, lá ficou nossa
privacidade. Éramos mais de cem homens nus, enfileirados,
expostos uns aos outros, dando vazão ao imaginário coletivo.
Como em todos os tempos, o espírito e o reajuste encontram
atropelos de ordem sexual. Ali também, no silêncio da noite,
por vezes, o capitão mandava buscar os capturados que lhe
haviam chamado mais a atenção e se servia dos prazeres da
carne.
Após o asseio, roupas adequadas foram-nos ofertadas e
correntes devidamente averiguadas, fazendo o movimento do
som mais triste que pode um homem perceber.
Os corpos se movimentando e as correntes se arrastando
davam-nos a impressão do espírito da morte a nos convidar a
bailar na frieza humana.
Assim fomos devidamente preparados para a majestosa
chegada. Sons maravilhosos de pássaros a gralhar nos


mostrando o belo palco da vida que o Pai Maior oferta aos
filhos, que é a liberdade.
Liberdade para seus ideais, para seu viver, para sua partilha e
todas as liberdades de que pode um homem-espírito usufruir
em seu contexto encarnátorio.
Mas os homens se embriagam e escravizam para se apropriar
da moeda, que falida estará no encontro íntimo dos
testemunhos maiores.
Bem, retornemos às belas aves a formar movimentos
espetaculares no céu, nos dando a certeza de terra à vista.
Fomos alimentados, sendo que essa foi a primeira refeição ao
ar livre. Sentados no chão da proa, por mais uma vez, chorei.
Lembrei da minha liberdade, da minha esposa e do meu filho.
Envolvi em minhas mãos uma cuia, da qual um caldo mais
grosso pudemos sorver.
O meu corpo registrava aspereza, pelo teor do sal acumulado
na minha pele. Como negro não queima? Os brancos não
podiam mensurar a dor das queimaduras que nós
registrávamos nas nossas dobras naturais.

Mas tudo passa, e eu tinha certeza de que também aquele
inferno uma hora passaria. Cada dobra, como a virilha, que
registrávamos a minar, era como um fogo incandescente a
penetrar nossa alma.
Ficamos o dia em refazimento, pois seríamos apreciados por
nossos convidados do cais. Quanta ironia nos movimentos
ajustados pelos interesses próprios! O homem oculta de si
mesmo os atos não bem coordenados, fantasiando para
amenizar o seu eu inferior.
Tivemos oportunidade de beber água doce por três vezes
nesse dia, pois antes estava restrita até a água de beber, mas
nesse dia era necessário hidratar os negros.


No fim desse dia recebemos mais uma porção do caldo
salutar, pois a energia do negro deveria estar estabilizada
para não cambalear na descida do barco.
Foi dada a ordem ao imediato para que ele tomasse a pequena
embarcação e chegasse ao cais primeiro. Avisaria à corte da
nossa chegada triunfal, pois essa viagem tinha sido um marco
de conquista. Havia muito uma viagem como essa não trazia
tantos negros vivos.

14
A chegada


Após dois dias de paz, em plenitude de silêncio, pois o
ensurdecedor barulho do tambor havia cessado, nossa alma
recobrava o teor da paz.
Como é estranho o silêncio! Como ele nos traz o equilíbrio! E
por não controlarmos nossa ansiedade, perdemos o equilíbrio
natural que o Pai Maior nos oferta!
A poluição sonora que na atualidade vossos corações
registram, os faz irmãos desgastados pela impressão
desregrada das altas vibrações sonoras. O silêncio é o
reencontro do homem com seu interior. E pela demanda do
dia a dia o homem se permite estar em alta-tensão contínua,
perdendo o fluxo da criação.


Jesus, em sua sabedoria, nos ensinou o ato do recolhimento
pelo jejum da alma, que ainda traz algumas interpretações
diferenciadas que o Cristo nos mostrou.
Ele, o Mestre dos Mestres, nos conduziu a meditar em busca
da nossa essência, para que assim viéssemos a encontrar o
despertar do caminho. Mas o que vemos são homens
desperdiçando a jornada por causa do bezerro de ouro.
Retomada a marcha, esta de dor, em cada batida o tremor no
meu coração. O medo, a angústia, a desilusão começaram a
dominar meu ser, acomodando-se em minha mente e me
levando a questões pesadas e obsessivas.
Momento esse, cm termos grosseiros, "umbralinos",pois abri
fendas emocionais e comecei a margear as tensões do
desespero, pânico surdo, transpiração descontrolada,
ressecamento nos lábios e no interior do meu ser um grande
buraco, me fazendo rodopiar no infortúnio oculto.
Tentei buscar o equilíbrio, lembrando da minha terra natal,
mas foi pior, pois voltei meses atrás e me vi sendo capturado.
Busquei no íntimo os meus deuses, mas nem a eles eu alcei.
Lágrimas ocultas, tornei-me mestre nelas, pois o temor das
chibatadas era um processo grandioso.
Respirei profundamente e talvez, na minha ignorância, reagi
como Francisco de Assis, e falei: "Estou pronto para o meu
suplício".
"Terra à vista!"
Que palavras tristes para todos nós, os escravizados, e o
grande contraste para os escravizadores, alegria total.
Bem, recuso até agora o vibrar dessas palavras, pois "terra à
vista" tornou-se tão doloroso quanto registrar a queimadura
do ferro a me marcar, que relatarei mais adiante.
O porto, a embarcação desacelerando, homens brancos felizes;
negros tristes, homens brancos festejando, negros confinados.


Assim é a realidade dos momentos encarnátorios, às vezes se
festeja, às vezes se confina.
Desembarquei no Rio de Janeiro, cidade progressista, homens
e mulheres andando pelas ruas com trajes exóticos; negros
como babás carregando grandes sombrinhas para proteger do
sol os pobres de pele sensível. Os deuses abençoaram os
negros e lhes deram a cobertura necessária para suportar o
calor.
Nós, os negros, estávamos enfileirados, tal qual mercadorias a
ser apreciadas. Em grande cordão humano, descemos a rampa
que interligava a embarcação ao cais. Comecei a observar as
vielas e o espaço geográfico no qual nos posicionávamos.
A incerteza nos levava a distúrbios drásticos, e eu passei
horas nesses distúrbios.
Para entrar em disturbio se leva uma fração de segundo, e
para sair dele, às vezes, uma encarnação. Hoje, sentado na praça
central de Sabara, no coreto, com meu querido companheiro Neil,
posso compreender um pouco esses dois planos em que o próprio
espírito se coloca.
Quando Jesus assim falou "Há várias moradas na casa de meu
Pai"1, Neil, com sua sabedoria, me explicou que essas são
moradas que nós, pelo livre-arbítrio, escolhemos para
estagiar. E numa única encarnação podemos ficar nos
posicionando em várias moradas, depende do estado
vibratório da nossa emoção. E eu, naquele momento no coreto,
busquei ficat em alta vibração de amor e pude sentir a
felicidade de estar bem.
Por isso Jesus alertou a todos nós que viéssemos a caminhar
nas coisas de nosso Pai e utilizássemos o perdão. Mas o
perdão do coração, porque o perdão de boca é o mesmo que
somente ocultar a alma do Pai, tornando-nos prisioneiros de
nós mesmos.


Quanto o homem necessita ainda se evangelizar para
compreender que viver é servir a obra do Pai!
Dentro desse processo no qual o meu ser se encontrava,
vomitei. Mas negro não pode vomitar, e levei mais 50
chibatadas pela falta de controle do organismo. Após a
rotineira exibição das chibatas, fomos levados a uma enorme
gaiola, que assim denominei por se assemelhar ao espaço no
qual colocávamos nossas presas em Zambe.
Aí pude perceber o que é temer. Nesse momento, um dos
companheiros se revoltou e começou a tentar desorganizar
nosso espaço. Ele queria, sim, provocar uma rebelião. Foi
retirado do nosso meio e levado para o centro da praça. Como
ficamos em espaço de aberturas visuais liberadas, nos foi dada
a lição mais prolongada para negro desobediente.

Buscaram um ferro bem grande e, por detrás do negro,
bateram com tal violência na altura do joelho direito, que ele
quebrou a perna e foi ao chão de joelhos. O carrasco se

¹João XIV:2.
aproximou do homem e pisou-lhe com os dois pés na perna
esquerda. Gritos de dor! E tomou-o de grande fúria,
segurando-o pelos ombros. O pobre homem se encontrava
desfalecido, mas as torturas continuaram. O negro, não sei se
pelo destino escolhido ou por resgate, foi o primeiro a ser
sacrificado em terra firme até o desenlace.
Buscaram outro ferro com pontas em brasas e fincaram nas
costas do molambo, ainda vivo, por várias vezes. E nessa
altura já estava desmaiado. Pegaram uma foice e deceparam o
companheiro.
Não muito satisfeitos com a lição, levaram a cabeça até nossa
jaula e nos mostraram. Como íamos permanecer naquele local
por alguns dias, até que a expedição estivesse pronta para


partir, fincaram um pau no chão e colocaram a cabeça do
companheiro no topo, na altura certa para os abutres
perfurarem. Um espetáculo imperdível, não é?
Eu ficava voltando aos momentos fortes, e naquele exato
tempo voltei ao momento da minha descida da embarcação.
Bem, desci do meu estágio de dormência e despertei no meu
umbral, porque, como homem de cor, a revolta assolava meu
íntimo.
Poucos dias, poucos perante a minha existência, foram eternos
no meu sentimento, e esta revolta perdurou por toda minha
experiência no Brasil. Enfileirei a coluna dos intimamente
desajustados.
Comecei a perceber uma voz que me ajudava e, durante meu
processo de aprendizado no Brasil, ficou sempre a me
inspirar. O meu mentor sussurrava: "Seja dócil, seja dócil para
não sofrer".
Pisei em terra firme e tive a sensação árdua de experimentar a
textura endurecida do solo brasileiríssimo, colonizadores nos
faziam registrar muito além do nosso próprio processo.
Era como se eles, os donos do terreno, tivessem o poder de
nos fazer sentir a dor por todo o corpo. Por termos ficado por
meses no porão do navio, nossos pés se tornaram finos para a
textura do solo. A canalização pelos pés, que se tornam a
porta de entrada para nosso emocional, naquele momento era
a grande tonicidade de angústia. Naquele momento, ficou
fixada nossa eterna permanência no Brasil. Digo eterna
porque alguns companheiros ainda estão aprisionados nesta
embarcação da revolta íntima.
Em momento oportuno, relatarei o que é ficar preso nos
espaços de tortura.
Bem, naquele instante, eu somente registrava a estupidez dos
espíritos incorporados na tinta branca da cútis. Comecei,
então, a reparar à minha volta, mas com a cabeça baixa, pois


fui instruído para que permanecêssemos dessa forma. Como
tudo que nos dá conforto ou desconforto é experiência para
que não venhamos a fazer ao próximo o que não queremos
que façam conosco, convido você, querido irmão, a partilhar
comigo deste processo que todos nós, escravos, registramos.
Fique de pé, bem ereto, coloque somente sua cabeça a olhar os
seus pés. Fique nesta posição por meia hora, para sentir a
sensação de desmaio e de enjoo e tudo o mais que isso
proporciona. Pois é, ficamos assim mais ou menos umas três
horas, debaixo de um sol causticante.
Foi aí que percebi minha real posição de mero ser encarnado
ressarcindo débitos de outrora. Vi passos de milhares de
homens a nos observar, e me confundi com os encarnados e
desencarnados que se mesclavam, fazendo grande tumulto na
minha mente, e então vomitei.

15
Castigo ao fugitivo


Após o massacre, eu, Zumbaia, voltei ao encontro íntimo e
recordei, durante o resto daquele dia doloroso e por toda a
noite, de algumas guerrilhas nas nossas tribos. Comecei, nesse
momento, a modificar meu pensamento. Não compreendia
bem, mas passei a sentir pena de todos nós, os envolvidos
nessa trama. Talvez meu registro de outras vidas começou a
me convidar à reflexão do real estar em vida. E aquela
sensação que todos sentimos quando temos de desenvolver o
que já sabemos, e não sabemos por que temos este
conhecimento, mas que tem de ser feito diferente, e que nós


mesmos temos de desenvolver esse movimento. Não é assim
que ocorre com todos nós? Bem, os companheiros de Luz
Maior hoje me explicam que são momentos que o Pai Maior
permite a todos, para, assim, pôr em prática o que já
conceberam.
Então assentei-me e busquei meditar sobre o que realmente
somos e fazemos. Qual é a real proposta de vida? Recordei de
minha amada Tuanã, dando direito ao meu filho de vir à vida.
Nesse momento, após esse imenso conflito, entrei em confusão
mental, respirei profundamente e comecei a buscar a
organização necessária do meu íntimo.
Se eu estava ali naquela jaula, se não conseguia nadar de volta
para Zambe para reencontrar meus laços de amor, o bom seria
trabalhar tal como um servo sem resistência, talvez assim
sofresse menos.
Lembrei dc todas as vezes em que capturei um animal, e que
este, por sua vez, permanecia tranquilo. Ele sofria menos,
porque nós, os senhores, não o maltratávamos. Mas se fosse o
contrário, partiríamos para a briga e levaríamos o pobre
animal à morte, tal como estávamos presenciando. A cada
movimento dos abutres perfurando o crânio do meu irmão de
cor, era como se eles estivessem ali me alertando para ser
pacífico.
Nas primeiras tentativas de perfuração do couro cabeludo,
senti em mim mesmo o bater, tal como martelo na minha
própria cabeça. A seguir, os irmãos podem imaginar o que os
companheiros irmãos limpadores do espaço realizaram.
Bem, nesse momento, como relatei, em uma das guerrilhas,
eu, Zumbaia, comandando, para que não viéssemos a perder o
direito das nossas tabas, capturamos outros companheiros de
solo nativo e os fizemos também escravos, torturamos e
colocamos os corpos deles fincados em paus para oferenda aos
deuses.


Aí, pergunto: "Não fazemos o mesmo?" Nesse momento,
tornei a chorar e entrei em profunda oração para os deuses,
por minha grande falta dc compreensão.
Busquei observar os movimentos dos pobres soldados, ou
melhor, os capitães do mato, a nos mostrar suas armas, c me
vi também a mostrar minhas armas aos inimigos do tempo
corrido.
Percebi quanto covarde e agressivo eu também me
posicionava perante a vida. Se já havia aprendido a não falar,
nesse momento de imensa dor me silenciei para o mundo.
Agora compreendo que é da lei buscar plantar flor para colher
perfume, porque se plantamos revolta colhemos tempestade.


Eu começava a colher minha tempestade íntima. É como
corroer a alma, tal como fogo que derrete o ouro para
formatar as barras da prisão, nossas ações também fazem o
tempo derreter e virar somente um grande lodo que de nada
serve.


Eu servi ao meu senhor como verdadeiro servo. Consegui,
com este processo, perdoar a todos e obtive, também, o
perdão para meus atos impensados. Hoje oro por todos os que
ainda estão presos nos quilombos íntimos.


Bem, após grande amargura, dei-me o direito de me sentar no
fundo dessa jaula. Fui me arrastando, estávamos outra vez
espremidos, tal como no porão do navio. O odor continuava,
pois, como relatei, nossa privacidade havia terminado, pois
homens sem alma, como éramos tratados, não precisavam de
recolhimento para as necessidades íntimas. Então, já se
tornava outra vez insustentável, misturando com o sangue
pisado do pobre coitado que agora estava fincado para nos
mostrar o que é autoridade. Tivemos de abolir, como já
mencionei, a vergonha. E falando em abolir, vamos em frente
que relatarei, também, a abolição. E será que ela existe?



No fundo da jaula onde eu me posicionava, podia ver as
estrelas. A estrela maior lá estava a me mostrar, como
sinaleira, que provavelmente papai estaria a me guardar.
Parecia que os deuses a deixavam aparecer, por entre as
nuvens, para acalentar meu coração.
Chorei no silêncio e, por várias vezes, utilizei-me desse
processo de limpeza. Dos olhos brotavam as lágrimas das
entranhas maltratadas.
Altas horas da noite, gritos, cachorros latindo e homens
gritando: "Pega o nego fujão, pega este filho do demo".
Quando, de repente, gritos de dor, os cães de guarda o
pegaram. O feroz cão, sem nenhum escrúpulo, pegou a mão
direita do pobre coitado e cravou os dentes por várias vezes
no punho do negro, perfurando o punho e, no perfurar,
rasgando a pele, atingindo as veias e dilacerando sua mão.
A mão ficou pelos tendões dependurada. O negro foi ao chão
semimorto. O capitão do mato terminou o serviço. Mas, antes
de completá-lo, ele falou:
-Antes do término, vamos até a jaula levar o negro fujão para
que todos aprendam, desde já, que a lei aqui é esta.
O companheiro foi arrastado, rastro de sangue pelo caminho,
registro de morte.
Já sem vida, foi colocado diante dos nossos olhos. Mais um
companheiro de cor tratado com um ser que não foi criado por
Deus.
Com um chicote na mão, ele, o capitão do mato, começava a
chicotear a mão do nego para, assim, com as chicotadas, fazer
romper o tecido ainda preso. A cada chicotada, o corpo
registrava uma contorção.
Permanecemos emudecidos assistindo ao massacre daquele
homem. Foram mais de oitenta chibatadas, contadas no sabor
das gargalhadas.


Fico imaginando a capacidade que trazemos de realizar em
prol da grande ilusão que carregamos chamada "poder".
O companheiro semimorto foi erguido. O capitão levantou a
cabeça do fujão e lhe mostrou sua própria mão e a lançou ao
alto. Imediatamente, soltou os cachorros, e eles, como que
compartilhando da chacina, atracaram-se para se apoderar
daquela mão.
Olhei minhas mãos, as mãos de meus companheiros e também
as dos feitores, e entrei em tremor profundo. Contraí febre
alta, uma febre emocional. Meu intestino se desajustou, e eu
temi por minha vida mais uma vez.
Voltei os meus olhos para a cena. Não queria registrá-la, mas
era impossível não olhar.


O sangue gotejava, gotejava, gotejava e, graças à bondade
divina, no corpo ele já não estava.
Mas esta compreensão me faltava, pois, por mais uma vez,
desacreditei dos meus deuses.
"Por que meus deuses, talvez no Brasil, não podiam interferir?", foi


o que comecei a pensar. E quando estamos sob pressão, começamos
a nos sentir abandonados, porque não fica palpável o alimento da
fé. Nesse momento me faltavam o chão e o ar.
Quantos registros podem uma mente registrar? Olhei o meu
companheiro soerguido pelos braços de outro negro, que
estava sob as ordens do capitão do mato.
Neste momento, ele julgou necessário terminar com o
sofrimento do escravo. Tirou da bainha a espada e perfurou,
por várias vezes, o corpo do fujão. Não era necessário
compreender as palavras, os gestos bastavam para nós.
Não se dando por satisfeito, o capitão, enfurecido, buscou o
machado, rachou o peito do homem e retirou o coração,
colocando-o pendurado ao lado da cabeça do outro
companheiro, como que fazendo desta ação sua coleção de
força.

Como seria bom se o homem atual já incorporasse a
verdadeira partilha do bem entre os povos! Não seria
necessário o desgaste das palavras, porque os gestos de amor,
por si sós, eternizariam os laços fraternos.
Mas o homem ainda insiste em utilizar dos gestos de terror
para eternizar angústias coletivas. Mas, como é de lei, teremos
de ressarcir até a última ação de desamor.
Agora me encontro com meu querido amigo Neil, que junto a
mim observa o céu maravilhoso que podemos contemplar, as
inúmeras estrelas a refletir a luz do Pai Criador, nos
oportunizando a beleza do universo.
Só de imaginar que esses reflexos são energias que
vislumbram a existência, percebo que nós, filhos da criação,
ainda não sabemos realmente por que nos são concedidos a
vida e o livre-arbítrio.
Neil, nesse momento, virou-se para o sul e falou: -Olha lá,
companheiro, sua estrela predileta! Como ela é realmente
linda e como o Pai Maior é perfeito, nos permite
companheiras eternas a nos acompanhar iluminando nossa
jornada, tal como nosso mestre Jesus, a estrela maior que nos
iluminou, ilumina e iluminará.
Nesse momento, senti a mão do Criador tocar minha essência
e me conduzir para a lucidez da existência. Que sabor
delicioso testemunhar o halo do Pai! E isso mesmo, queridos
amigos, é preciso deixar um tempo para as coisas do Pai, para
nos abastecer e seguir a jornada.

16



RiodeJaneiro


Dezessete de outubro de 1802 é uma marca registrada no meu
código, pois tornou-se um presente. Depois de tantas
turbulências, pude respirar com tranquilidade. Foi nos dado
um dia de paz e, de repente, voltei ao navio negreiro, senti o
balançar da embarcação de novo, sensação estranha, mas meu
registro ainda partilhava aquele vai e vem.
Voltei, em pensamento, a todos os meus envolvimentos. Já
não chorei ao recordar as milhas de distâncias que estava da
minha amada Tuanã e do meu filho, Tuã.
Senti, realmente, um imenso vazio, a mesma vala que relatei
no início, que ocultou meu filho e minha deusa. Agora eu
estava nela.
Pude sentir o cheiro da terra úmida, as raízes das árvores em
volta, e até escutar o canto dos pássaros. Aprofundei-me nesse
pensamento e deparei com a vala íntima.
Quando é que o homem perde a essência maior? Se somos parceiros
de vidas, por que ainda negamos a convivência salutar? Por que o
homem ainda busca os desenganos para danificar as estruturas de
sentimentos?
A partilha de um homem e de uma mulher é o processo mais
belo que o Pai Maior oferta aos filhos para o reajuste natural.

Só pude começar a entender quando, por lei natural de
reconquista, fui retirado da minha amada.
Vim saber, após meu desenlace, que em outras oportunidades
eu feri o sentimento de minha flor em um processo de
adultério e a fiz sofrer muito. Só tomamos conhecimento
maior desses atos descontrolados quando deparamos com
nossa própria consciência desbloqueada do apego terreno.
Agradecimentos devo sempre relatar, pois os incansáveis
tarefeiros do bem jamais desistem de nos acolher, nós, os
desajustados. E graças a esse acolhimento, posso hoje contar


minhas passagens. Bem, depois eu relatarei o processo com
Tuanã. Voltemos ao Rio de Janeiro.
Fui escolhido para acompanhar o senhor de escravo, até então
meu senhor, pois a ele devia obediência. Dirigimo-nos para a
parte central da cidade. Fiquei maravilhado com a estrutura
do Rio. Tinha saído de um pequeno lugarejo e me deparei com
a proporção de uma metrópole, pois era essa a sensação que
registrei.
Caminhamos por entre as ruelas bem definidas, com
calçamento perfeito, pois a terra os meus pés já não mais
registravam. Casas bem delineadas, senhoras com belíssimas
roupas a cobrir os delicados corpos, a Guarda Real a caminhar
pelas ruas, impondo o devido respeito.
Ele, o meu senhor, andava com passos largos, e eu o
acompanhava com uma enorme caixa nas mãos, pois era uma
encomenda para um tal de comendador Belar.
Essa caixa de madeira muito pesada me fazia caminhar com
dificuldade, pois eu trazia correntes nos pés e nas mãos. Na
minha cintura, um enorme cinturão de ferro com uma argola
que favorecia a outra corrente a segurar a caixa ao meu corpo.
Em minha ingenuidade, julguei ser somente o carregador, mas
fui surpreendido de novo pela separação dos companheiros, e
teria de começar, outra vez, a me adaptar com outros
companheiros de jornada.
Adentramos a cidade, que hoje é tida como Cidade
Maravilhosa, apesar de tantas dores que ainda carrega,
desenvolvidas no decorrer do tempo. Ouvimos os
companheiros dizer que devemos ressarcir todos os nossos
débitos, mas esquecemos que a Terra também evolui com a
marcha de crescimento dos espíritos encarnados, e que cada
cidade, estado, país e continente recebe os espíritos-homens
para contribuir com o desenrolar da evolução.


Mas os homens negam a vida que o Pai Maior oferta e não
agradecem o espaço concedido pelo Criador. Ao contrário,
eles danificam toda a estrutura para se julgarem beneficiados
pela ilusão, ficando presos na construção mental do que
criam.
O Rio de Janeiro, como qualquer cidade, conclama a união da
prece e a irmandade para se libertar da opressão desenvolvida
no decorrer dos tempos.
Se os companheiros já evangelizados mantivessem a estrutura
mental acionada ao Cristo Jesus nas vinte e quatro horas do
dia, numa vigília constante, o planeta Terra já teria superado
muitas dores ocultas, porque Jesus nos ensinou que, se
perdoássemos setenta vezes sete, cobriríamos uma multidão
de pecados. Mas a vigília é árdua e requer disciplina e amor
incondicional, tornando-se, assim, um trabalho íntimo
constante para os tarefeiros do bem.
Mas nunca é tarde para começar esse exercício. Sendo assim,
podemos ampliar o sofrimento ou atenuar a dor. No próprio
Evangelho nos é colocado que devemos trabalhar para auxiliar

o próximo, atenuando, no que for possível, sua dor. Por que
será que o homem busca sempre o caminho mais árduo?
Bem, segui meu senhor, homem de poucas palavras, mas de
muitos gestos. Também não me adiantariam as palavras, pois
o dialeto que desenvolvi em Zambe tinha pouca
funcionalidade naquele local. Mas como trago facilidade para
o aprendizado, muitas palavras eu já sabia do português, tão
majestoso, utilizado pelos senhores dos escravos.
A expressão facial que trazia o meu senhor revelava-me sua
alma, e eu temia por essa alma, pois me causava terror.
Porque é assim mesmo, a face revela o que somos.
Comecei a observar as casas, cada qual com lampiões
belíssimos fixados nas paredes laterais, que ganhavam vida ao
pôr do sol; eram acesos com enormes tochas que davam ar de

movimento pela queima dos pavios de óleo que guarneciam
os lampiões.
E aquela simples forma de iluminação me fez sentir um
homem afastado da evolução. Hoje, no vosso tempo, cruzar o
oceano tornou-se questão de horas, e mesmo assim minha
adorada África não conseguiu sua libertação. Em alguns
lugares, a precariedade de vida é vergonhosa, pois, se somos
todos irmãos, como irmãos deveríamos ajudar uns aos outros.
Onde fica o realismo desta expressão?
Tenho o conhecimento de que meus companheiros africanos
estão ressarcindo débitos do passado, e por eles tenho total
respeito. Oro ao Pai Maior que venha lhes ofertar força para
superarem as dificuldades dessa etapa de amor, a qual vocês,
por meio da telecomunicação, apreciam nos noticiários.
Como é bom, após os momentos de aprendizado, termos a
compreensão clareada do que é encarnação.
E como é bom estar, como agora, dividindo o espaço de
Sabará, nome atual, onde estagio em um campo mental de
readaptação. Estou relatando a minha história.

17
Sinhazinha

Chegamos à casa do comendador Belar, que recebeu esse
título por ter prestado serviço de honra militar ao rei de
Portugal. Que estrutura belíssima! Logo na entrada do lar,
pude notar formas bem delineadas, rebordadas em estilo
europeu. A escada solidificada de madeira rústica e bem
pesada mostrava a imponência do ambiente que iríamos
adentrar. Eu estava estupefato. O corrimão suntuoso vinha
com detalhes a contornar as bordas, como se uma grande
bordadeira tivesse ali dado o arremate perfeito dos grandes


artistas que esta época vislumbrou, complementando, assim, a
obra do marceneiro.
Foi nessa época que o estilo europeu invadiu com força total a
alma do Brasil, pois a comunicação já era de fácil acesso.
A varanda central era recoberta com imensas samambaias
nativas encantadoras. Não faltou ali o toque da originalidade
do melhor especialista em decoração do momento, pois as
janelas que nos permitiam olhar para o salão central foram
projetadas com treliças e bem compostas como uma dama,
com rendas finíssimas vindas de Portugal.
Assim como acontece com qualquer um, minha imaginação
começou a funcionar. Como seria esta majestosa casa por
dentro? Eu havia saído de uma tribo, local completamente
diferente. As tabas tinham somente um único espaço, para,
assim, ocultar-nos das ações naturais do tempo. Ali me
deparava com estruturas gigantescas.
Fui despertado das minhas divagações pela ordem do meu
senhor. Até então, o próprio que havia conduzido o navio. Fez
sinal para que eu permanecesse ali do lado de fora sob os
olhares dos capitães do mato, homens brutos e ignorantes, os
quais deveriam ficar de olho na mercadoria mais valiosa, que
seria eu. Não imaginava que seria vendido naquele dia.
Abaixo da escadaria, pude avistar dois homens com uniformes
bem engraçados, pois o paletó era de um azul bem forte, com
botões dourados, e nos ombros almofadas com franjas a
contornar os braços, espingarda na mão, calças compridas
brancas, botinas pretas, nos mostrando que tinham algum
poder. Depois vim a saber que eles faziam parte do Exército
do Rio de Janeiro.
Pude atravessar, com meus olhos, a porta central e observar o
movimento íntimo do lar. O cheiro era embriagador, ainda
mais porque eu estava há muitos meses sem sentir o odor
agradável de alimento.


Notei um gracioso movimento de uma sinhazinha, que mexeu
comigo. A suavidade e a leveza no caminhar da pequena
donzela balançaram minha estrutura masculina.
Ela era realmente linda, tinha cabelos ruivos e olhos
amendoados e firmes. Em um movimento simples, ela parou
em frente à porta central da casa e me olhou. Por temer,
abaixei a cabeça, mas pude perceber que ela se apiedou de
mim.
Receosa, ela se aproximou mais um pouco para observar a
presa. Eu só podia registrar da cintura para baixo os
movimentos que ela fazia. Ela se encheu de coragem e se
aproximou, quando viu que eu estava sob a guarda dos
capitães do mato, que já faziam parte da casa, por prestar
inúmeros serviços ao comendador.
Eles sinalizaram para que ela não desse nem mais nenhum
passo em minha direção, porque eu era selvagem.
Pouco entendia dos movimentos e das falas, mas pude
compreender que eles haviam dado a ela um alerta de perigo.
Então, pus-me de joelhos para demonstrar que não faria mal a
tão frágil flor.
Vi-me traindo minha Tuanã em pensamentos. Pedi perdão aos
meus deuses por trazer pensamentos tão baixos, mas a desejei.
Ela se assentou num enorme banco que contornava a varanda
e ficou paralisada a me olhar.
Se horas, minutos, eu não sei relatar, mas meus joelhos
doeram. Vim a pensar que eu mesmo me dava o castigo justo
por desejar a pedra preciosa.
Quando volto a pensar nesse momento sinto dor e vergonha.
Mais à frente relatarei o que ocorreu no nosso caminho.


18

O índio Sebastião

Depois do meu desenlace, fui recolhido para ser tratado.
Após ter me recuperado, foi-me permitido voltar a Sabará e
recomeçar o trabalho de amor com os companheiros que estão
aprisionados no contexto da história. Existe um pronto-
socorro em esfera sutil nas proximidades de Sabará que
denominarei de Lar Amparo.
Permaneço neste lar de apoio para inspirar os companheiros
que buscam o reequilíbrio.
Aqui divido as horas de trabalho com uma equipe de
benfeitores, médicos, enfermeiros, psicólogos e terapeutas do
amor. E um lar que acolhe não só os escravos, mas também os
senhores do tempo; porque ora somos escravos, ora somos
senhores. E muito raro sermos irmãos.
Neste espaço, Neil encontra sempre tempo para conversar
comigo, e como é bom encontrar um irmão que dedica horas
para compartilhar o aprendizado!
Tal como Jesus nos ensinou, "aquele que acolher um dos
pequenos assim estará me agasalhando"1, hoje me sinto
agasalhado por Neil. Um dia terei também a condição de
agasalhar aquele que, no tempo das conquistas, encontrar.

Tenho permissão para relatar como esta grande comunidade
de espíritos benevolentes atua em favor de todos nós. Após
meu desenlace, pude recorrer aos arquivos extrafísicos e
colher informações de como ocorre nossa proteção por nossos
guias espirituais, que até então eu chamava de meus deuses.
Lembram quando em Zambe fui capturado? Estávamos todos
no momento do relaxamento, e aí ocorreu a emboscada.
Também relatei que havia aquela enorme pedra atrás de
minha taba, onde tive a inspiração de perfurar o buraco.


Naquele momento, eu estava com minha amada e meu filho a
deliciar o momento, andando ao derredor do nosso lar,
quando ouvi o movimento desordenado na aldeia.
Corri e coloquei minha esposa e meu filho no devido lugar
protegido, o buraco atrás da taba.
Após este momento, meus guias-deuses começaram a se
organizar, como que um exército, para nos amparar nos
momentos árduos pelos quais iríamos passar.
Explicaram-me que eles não podem interferir no que é de lei,
mas podem atenuar a dor, ou melhor, ajudar no processo.
Assim, eles concorreram para o auxílio necessário, os
tarefeiros do amor a recolher e a auxiliar aqueles que tinham
completado a encarnação.
Como grandes enfermeiros e a postos com macas para fazer a
remoção, eles acolhiam com amor; outros jorrando fluidos
necessários para a dor das feridas se abrandar; outros
trabalhando para paralisar a fúria dos capitães do mato, e

¹Malens XXV 35:4.

outros fazendo grande corrente magnética para sustentar o
volume energético desprendido e gasto pelo movimento
realizado.

Os que naquele momento desencarnaram e estavam aptos a
seguir para o curso dos hospitais, foram levados; outros que,
pela revolta, colocaram-se na defensiva, permaneceram
vagando por um período, rodopiando no espaço projetado por
eles mesmos.
Na atualidade vigente no plano da Terra, esses benfeitores
buscam maior número de companheiros para reforçar o teor
magnético da Terra, que está na plenitude do caos, que
somente se abrandará se o homem buscar exercitar ações de
amor. A Terra conclama a pacificação e ondas mentais


elevadas que impulsionarão o gigantesco movimento que o
Cristo Jesus realizou e que poucos companheiros
compreendem.
Este movimento requer vigilância constante, e esta vigilância
causa desânimo nos companheiros, e estes perdem grandes
fluidos vitais.
E hora de refazer a jornada do amor. Nós mesmos que, de
outras vezes, forjamos o desalinho da estrutura do Pai,
continuamos a desalinhar o eixo central da luz.
Para que o homem possa se reestruturar, faz-se necessário o
trabalho ativo íntimo.
Por isso, companheiros, façam do lar íntimo a morada de
nosso Pai Maior. Esse processo mental nos auxilia
constantemente, é a guarita da luz para todas as investidas do
tempo.
Bem, voltemos à casa de Belar. Doce menina de traços bem
definidos, vestido longo até os pés, cinturado e bem cuidado
pelas mucambas, trazia um cheiro adocicado de flor de
pêssego.
Eu estava envolto nesse movimento quando fui despertado
por um sacolejar brusco nos meus ombros, ordenando que me
levantasse. Pus-me de pé. O comendador deu várias voltas em
torno de mim, como a observar a mercadoria. Tocou nos meus
braços para sentit o teor dos meus músculos, olhou os meus
pés e fez sinal para levantá-los. Depois, com um pequeno
bastão, levantou meus lábios e o enfiou para dentro, para eu
abrir meus dentes. Observou-os detalhadamente e, logo
depois, minha língua e garganta.

Eu fiquei imaginando o que ele procurava na minha boca, pois
nunca tivera a curiosidade de olhar a boca de outro
companheiro, e nesta divagação permaneci. Será que a boca
ocultava algum registro de doença?


Mais tarde foi me explicado que a boca mostrava para os
senhores a saúde que a mercadoria trazia.
Eu estava em ótimas condições, pois fui vendido para a
família Belar.
Mais um elo rompido, assim ocorreu com minha venda. Eu já
estava habituado aos companheiros de jaula, e nesse dia
rompia mais um elo que havia formado.
Como é estranho o costume. Naquele momento, senti o
perfume de minha Tuanã exalar no ar. Chorei em silêncio,
pois algo pressentia. O comendador bateu no madeiro trinta
moedas de ouro pela minha venda, que, em princípio, foram
rejeitadas pelo capitão. Por causa desse processo, iniciou-se
um debate de árdua visão comercial.
Eu era o foco da oferta, disputado por moedas, e me vi como
verdadeira mercadoria.
Quando chegaram a um acordo, virei duzentas moedas de
ouro. Somente os mais fortes, de porte saudável, eram
vendidos com moedas de alto quilate.
Retiraram da minha cintura o cinturão e a caixa. O
comendador ordenou a um dos seus escravos que me
conduzisse aos aposentos dos fundos da casa, onde eu ficaria
por alguns dias.
Bem, este companheiro escravo trazia outra origem. Tinha a
pele de cor mais suave, pois era originário do próprio Brasil,
um índio. Era realmente amável e dócil esse companheiro.
Colocou-me sentado em um tosco banco debaixo de uma
enorme árvore. Tomou nas mãos dois gravetos e começou a
falar, pois já estava alfabetizado na língua portuguesa.
Com os dois gravetos, começou a contar uma longa história.
Eu tentava compreender os movimentos e as falas que
produzia, mas pelos desenhos estruturados no chão deu para
entender que seria necessária cautela.


Ele descreveu a trajetória dos companheiros sendo
capturados, e recordei-me de Zambe. Parecia que eles também
tinham sido tomados com a mesma violência pela qual
havíamos passado.
Houve destruição e mortes. Os mais rebeldes foram
aniquilados e perderam o direito de continuar a usufruir a
terra pátria, que o homem assim aviltou.
Por que os homens se julgam no direito de entrar na casa do
outro, roubar sua privacidade e ainda o tornar escravo?
O que permite ao homem traçar o destino do próximo?
Como podemos, quando estamos encarnados, direcionar à
força o que o outro tem de fazer?
O que fez o homem colocar no processo de vida a escravidão,
se nem o Pai de Força Maior faz uso desse preceito? Ele
respeita o filho em seus próprios passos. E o filho julga-se
dono do próximo e o escraviza.
Bem, com a mesma autoridade, foram os índios arrebatados
da corrente da vida. Eles traziam sua cultura e a perderam.
Eles traziam seus rituais e foram coibidos de continuar suas
crenças.
E ele, o escravo, continuava a desenhar sua história. Desenhou
uma enorme clareira, dividia o espaço com várias tabas, e
indicou, por várias vezes, aquela que deveria ser a sua. Tal
como eu, ele também era casado, só que tinha três filhos.
Os homens brancos o buscaram como animal, abusaram de
sua esposa, o colocaram sentado ao chão e três dos capitães se
satisfizeram por meio do estupro.
A pobre mulher, possivelmente, sofreu em todos os níveis,
físico, moral e espiritual. Após esse ato de violência, ele foi
levado acorrentado, e ela foi ali deixada sangrando,
desmaiada, no processo do desencarne. Ele nunca mais teve
notícias de seus companheiros.


É estranho como a história se repete, parece que vira um ciclo
de atos impensados, que o homem só reproduz porque o outro
assim o fez e demonstrou ter força e poder. E, para imitá-lo,
outros fazem o mesmo, só que em proporção ainda maior,
aumentando a fúria do revide.
Após alguns anos, ele foi vendido, assim como eu, para o
coronel Belar Balzar Coutinho. E lá ele recebeu sua
identificação. Havia registro em seu braço direito de um B, o
qual ele apontou e deu a entender que eu também receberia
um igual.
Ele se afastou, foi até o porão, pegou um enorme ferro que
tinha esta letra envolta em um aro, também de ferro. Ele
demonstrou como seria o processo: aqueceu o ferro, colocou
sobre um pedaço de madeira e deixou a brasa queimar o toco.
Senti medo, entrei em pânico e tentei me levantar e correr,
mas as correntes não me permititam. Eu estava preso a outra
corrente que ficava fixada no chão.
Ele me segurou e apontou para o céu e, nesta altura, já era
noite. Ele me mostrou a estrela maior e sorriu. Pude
compreender que se fosse marcado, como ele, ao anoitecer,
provavelmente, a dor já teria aliviado.
Ele buscou um pano grosso, cobriu-me, deu-me caldo de
mandioca com sobra de carne de porco, o sabor estava
delicioso. Depois de vários meses sem comer uma comida
verdadeira, naquele dia pude comer e beber água com
dignidade.
Com o estômago cheio, dormimos no capim. Alta noite, ele,
Sebastião, pois foi assim batizado pelo comendador Belar,
apontou para um enorme portão e fez sinal para que não
viéssemos a fazer barulho. Retirou a corrente central dos meus
pés, e julguei que ele iria me ajudar a escapar, mas ele pegou
outra corrente e atou na minha, para se assegurar de que eu
estava seguro, e pegou na ponta, que se fazia uma guia.


Levantei e caminhamos em direção ao portão, passamos por
ele, e adentramos em uma rua delineada pela estrutura como
uma passarela, mas ainda respeitada pelo arquétipo natural
do ambiente. Era enfeitada com frondosas árvores que
formavam copas que se entrelaçavam, mosttando a força da
mãe natureza.
Caminhamos por alguns minutos e nos deparamos com
esqueletos, cabeças dependuradas em paus, com extensas
cabeleiras, a indicar que eram índios punidos. Voltei a Zambe
e recordei do mesmo ato cometido por nós em oferendas aos
nossos deuses. Como ainda somos leigos na estrutura de
amor!
Sebastião agachou-se e fez reverências aos seus deuses,
chorou e cantou, provavelmente lamentando a grande perda
dos amigos. Voltamos ao nosso leito. Fiquei a pensar em tudo

o que em poucas horas havia presenciado.
Tentei organizar as ideias, e isso me foi muito árduo.
Ao amanhecer, a doce sinhazinha à janela despontou.
Olhamo-nos e senti outra vez a mesma sensação. Sebastião,
por trazer a natureza masculina, tal como eu, logo percebeu e
me advertiu por meio dos desenhos.
Fez a silhueta da sinhazinha e de um negro, tal como eu, cuja
aproximação acabou em decapitação.
Coronel Belar chamou Sebastião e pediu-lhe para começar a
me ensinar a correta comunicação, pois, pela minha força
registrada, por ter carregado a caixa sozinho -e para retirá-la
da varanda foram necessários três homens -, eu enfileiraria a
caravana quando fosse recomendada a transferência para
Sabarabuçu.

19
O pelourinho


Decorreram alguns meses de trabalho forçado e muitas
experiências diferentes. Eu já estava bem envolvido com a
família, e nessa altura dos acontecimentos, cortava lenha,
limpava ao derredor da casa, plantava milho, ajudava na
colheita da mandioca.
Coronel Belar era um homem futurista, trazia uma visão
ampla, então tinha sua própria produção alimentícia, que
garantia a sobrevivência dos escravos, dos porcos, galinhas e
dos muares que utilizava nas suas viagens. Eu também
acendia os lampiões e os apagava ao amanhecer.
Ele falava: "Negro tem de se exercitar; negros são preguiçosos,
por isso não posso dar trégua", com isso eu ganhava mais
força. O objetivo era esse. Ele me queria cada vez mais forte,
pois no futuro próximo eu estaria auxiliando no que fosse
necessário em Sabarabuçu, até num tal de veio de ouro de que
ele tanto falava.
Dentro do lar, o trânsito das mucambas era intenso. Organizar
uma expedição levando toda a família e todos os pertences
demandava tempo.
Somente as mucambas e Sebastião tinham a permissão do
movimento dentro do lar.
As cozinheiras faziam quitandas deliciosas. Eu podia provar
porque Sebastião, por costume de usar uma sacolinha na
cintura, colocava sempre pedaços de alguma guloseima para
mim.


Nossos laços estavam mesmo atados. Vim a saber, por
intermédio dos meus amigos espirituais, que já estava
programado o nosso reencontro nesta encarnação.
Sebastião e eu já estávamos tão íntimos a ponto de dividir
nossas dores e nossas alegrias. Lembro-me da primeira vez
que Sebastião me deu o machado para segurar, e fiquei
encantado com tal perfeição de corte.
Em Zambe, utilizávamos materiais cortantes, mas não tão bem
desenvolvidos. Nossa tribo conservou nossa cultura por muito
tempo, e então ficamos presos aos nossos antepassados em
todos os aspectos.
Naquela manhã primaveril, fomos todos levados à praça
central. Era realmente majestosa a arquitetura do porto, que
abria extensão para a praça central, onde os grandes eventos
aconteciam. Havia, além da praça escultural, o pelourinho, e
nesse dia o evento não era de cunho agradável.
Por ordem do governador, todos os escravos deveriam
presenciar a punição de um negro saqueador. Estava ele em
pé na praça sendo condenado pelos doutores da lei.
Ele estava em cima de um pequeno tablado de madeira bem
estruturado. Leram a sentença:
-Terás de se pôr de joelhos com a mão direita sobre um toco.
Nessa hora, o negro já chorava. O carrasco tomou nas mãos
um machado. Eram exatamente onze horas da manhã, e o sol
já começava a castigar, os nossos pés ardiam, mas creio que o
ardor maior era por não poder fazer nada.
Dois senhores de cor que conquistaram o título por fidelidade
máxima à Coroa, por traírem os próprios irmãos de cor, foram
acionados para segurar o pobre coitado.
Com imensa violência, pois o teor do golpe eu também senti,
foi executada a punição. Ironicamente ao som dos tambores
malditos. Na contagem de um, dois, três, o carrasco levantou


o cutelo a tal altura que a lâmina brilhava de tão bem afiada e,
num golpe, rompeu a mão do pobre homem.
Jorrou sangue como o curso de um rio. Para completar a ação
e não ocorresse o falecimento por causa da dilaceração,
buscaram uma enorme chapa de ferro incandescente e
levaram de encontro ao punho partido do negro, fazendo a
queima dos tecidos.
Cheiro de pele e carne queimada, o restolho humano no chão
ficou. Mulheres negras a correr com os unguentos para tratar
da queimadura e da decepação, que, por meio do aparelho
denominado cutelo, houve o registro da dor.
Após este momento, ficamos parados em frente ao chafariz
central. Angústia, dor, solidão, tristeza, partilha de
sentimentos no silêncio maior. Então o homem procura
entender por que há guerras, escravidão, flagelos e desordem
de todas as ordens.
Aí somos acolhidos pelos amigos do campo espiritual. Fico a
questioná-los, e eles, com muita paciência, esclarecem que o
homem-espírito ainda precisa remover do íntimo o ódio, esse
companheiro que se torna inimigo da evolução coletiva.
Por isso, o homem ainda rasteja no revide, e permanecerá
nessa posição mental até que, por si só, dê um basta nessa
neurose angustiante. Enquanto houver sentimentos
maltrabalhados, haverá a destruição coletiva.
Eles, os nossos amigos mentores, sempre nos lembram das
doces palavras de Jesus:
"Bem-aventurados os limpos de coração"1.
20



Meu nome
é Pedro


A organização que hoje se faz tão necessária depende do
espírito que se encontra na posição de encarnado.
Alguns companheiros que se propuseram a estar no belíssimo
planeta Terra com o objetivo de auxiliar no processo de
clarear os princípios da lei do nosso Pai Maior, esquecendo-se
do compromisso, permitem-se envolver com a demanda falida
do poderio desestruturado e reforçam a desordem coletiva.
E nessa desordem caminha a humanidade.
Após o momento de violência, o comendador Belar, em
conversação com as autoridades, colocava-os a par das
recomendações vindas de Portugal. Em poucos dias, ele
pegaria a Estrada Real com seus trinta escravos.
Homem de posses, tinha em seus domínios terreno vasto,
onde cultivava a preciosidade do momento: a mandioca. Na
certeza de que iria produzir muito mais em ouro nos veios das
Minas Gerais, estava ele tratando da venda de suas
propriedades.

¹Matous V 8.
Constava de um envelope timbrado com um belo brasão, pois
sua marca, o B, lhe dava passaporte para trânsito livre.
Após ter acertado os pormenores, nos chamou, a mim e a
Sebastião. A praça, a essa altura, já estava vazia. Pedimos
presteza na entrega do envelope na Câmara central.
Quando sinhazinha, sempre acompanhada de sua mucamba
preferida, ouviu que iríamos até a Câmara, pediu permissão
para ir junto, pois queria ver as novidades em rendas recém-
chegadas de Portugal, e comprar, também, algumas


guloseimas, pois julgava que em Sabarabuçu ela não teria esse
meio de fartura.
Pois o que se ouvia era que nas Minas Gerais o ouro era o foco
de produção, impedindo o crescimento de outras áreas.
A princípio, o senhor comendador hesitou, mas depois, por
tanta lamúria, acabou cedendo. Filha única, mulher, era só
choramingar para alcançar o que queria. Eu fiquei repleto de
felicidade, pois iria desfrutar da companhia da sinhazinha.
Ele, o comendador, bateu no meu ombro e falou:
-Cuide bem do meu tesouro.
De cabeça baixa fiquei a balançar que sim. E ele completou:
-Ao retornar, iremos lhe dar sua identificação e seu nome, de
agora em diante.
Sebastião chorou em silêncio, pois minha identificação seria a
marca com o B no braço esquerdo, pois era assim que ele
julgava melhor. Depois de marcado, levaria mais de um mês
para a pele recobrar a ferida causada pelo ferro quente. Nesse
meio tempo, os preparativos estariam organizados, e não
haveria o risco de infecção no meu braço. Seria uma marcha
longa, pela Estrada Real, até o objetivo central de Belar.
Tentei não ficar preso naquelas palavras que o comendador
havia emitido; queria, sim, seguir a sinhazinha, que não
parava de falar um segundo sequer. Perdera a mãe muito
jovem e, até então, sua ama era sua segunda mãe, e a ela todos
seus segredos eram confiados.
Caminhamos pela Rua Direita e chegamos à Câmara.

Sebastião fez a entrega e voltou com um enorme pacote para
ser entregue ao comendador.
Saímos às compras junto com sinhazinha. As sedas e as
guloseimas foram adquiridas. Balas-puxa, feitas pelas
vendedoras das ruas, cocadas que enfeitavam os estômagos
das moçoilas.


Ao chegar em casa, o comendador já nos esperava, e pediu a
sua filha que se recolhesse. Buscou o ferro já bem aquecido e,
attás de sua casa, me disse:
-Bem, Pedro...
Então deduzi que iria me chamar Pedro.
-Sei o quanto tem se mostrado dócil e, por sua conduta, vou
lhe aplicar a marca sem precisar segurá-lo. Dei ordem aos
feitores para irem até o porto para ver se outras mercadorias
haviam aportado no cais. Quanto a você, Pedro, eu mesmo me
encarregarei. Sebastião lhe dará um pano umedecido para
colocar entre os dentes, porque os tem como se fossem o
melhor ouro que já vi, e não quero que venha a quebrá-los.
Comecei a suar profundamente. Não falei sequer uma sílaba,
mas voltei a Zambe, me pus de joelhos, porque assim minhas
pernas não bambeariam, e orei em silêncio aos deuses
pedindo proteção e amparo para a dor.
Lembrei do curandeiro e gritei mentalmente por sua proteção.
Aí entrei em êxtase e o vi a dançar na minha frente, a dança
do clamor à dor e, então, me senti protegido.
Sebastião se aproximou como um pai, colocou a mão sobre o
meu ombro com suavidade, dando-me o conforto necessário.
Coloquei o pano por entre os dentes e fechei os olhos.
Nesse momento, comecei a brincar nas águas do rio, depois me vi a
correr na mata, trabalhando a minha mente para não sentir a
perfuração do ferro na minha pele.
Saí do contexto e acordei no dia seguinte, com forte dor no braço
esquerdo.


Neil veio até a mim e me inspirou.
"Querido irmão, perdoe-o, pois, tal como nosso amado }esus
nos ensinou, devemos perdoar sempre, é ato de amor e
benevolência."
Eu sentia as vibrações desse incansável amigo trazendo-me
conforto, o verdadeiro refrigério para minha alma.



Eu estava embriagado, com o braço envolto em um emplasto
que as mulheres tornaram-se especialistas em fazer com o
bagaço de mandioca.
Hoje eu perguntei ao meu querido Neil:
-O que é, aos olhos dos espíritos de maior compreensão, a
falência moral? Porque recordar este momento, para mim, foi
sentir totalmente a falência moral.
Neil, com toda sua sabedoria, me respondeu:
-Querido Pedro, a falência moral cabe a cada um discernir.
Mas volte ao ensinamento do mestre Jesus: "A todos que você
assim acolher é a mim que estará acolhendo"1

¹ Mateus XXV 35:40.
. Creio que este ensinamento responde a sua pergunta. No momento em que
alguém fizer algo que venha a prejudicá-lo, ele estará fazendo a si mesmo. E, do
mesmo jeito, quando um irmão o colocar em luz, será ele que estará em luz. E da
lei.
A moral ou a falência da moral registrada por um companheiro é o experienciar
do liyre-arbítrio, pois Paulo falou: "Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém".

21

Envolvimento com Sinhazinha

Casa em grande movimento, pude agora adentrar aquele
belíssimo espaço. O salão principal amplo, com belíssimas
cantoneiras rebordadas, tendo como acabamento belíssimos
lampiões.
No centro havia um enorme lustre pendurado com dois lances
que redobravam a iluminação, os bojos que sustentavam as


velas, no total de dezesseis, garantiam a total claridade. As
janelas eram bem rebordadas, com finíssimas cortinas
europeias.
Uma enorme mesa, com doze lugares, de mogno, com cadeiras
aveludadas em tom salmão compunha a sala. Os quartos todos
bem mobiliados, até o dos hóspedes, davam-nos o sabor de
um lar, o lar que fui furtado de ter.
Na venda do casarão, tudo ficaria no devido lugar, pois a casa
foi vendida com todos os móveis, devido à beleza. Um jovem
casal recém-chegado de Portugal entrou em completo
encantamento e quis manter o mesmo padrão que tinha em
terra pátria.
Somente os adornos sairiam da casa, pois sinhazinha fez
questão de levar. A grande recordação que ela trazia de sua
mãe estava realmente nos enfeites.
A cada peça uma identificação com sua amada mãe. Foi tudo
bem preparado e empacotado cuidadosamente.

Copos belíssimos, vindos de Portugal, cortesia da realeza.
Nesses ninguém ousou tocar, somente os frágeis dedos de
Ermelinda.
Num desses movimentos, tive a oportunidade de tocar a mão
de minha preciosidade. Ao mesmo tempo desejo e receio. A
mesma vibração do corpo de sinhazinha eu senti.
Ela se tornou rubra, e eu fiquei sem movimento, sentindo a
delicadeza da menina. Movimento delicado e ao mesmo
tempo comprometedor.
Nessa noite, o pai de Ermelinda fora convidado a ir a uma
grande festa, na qual a menina-moça não poderia estar, pois a
idade não lhe permitia frequentar o lugar.
Belar chegou até a mim, que já era de confiança no lar, e disse:
-Pedro, estarei fora esta noite, pois, em breve, estaremos a
buscar a Estrada Real, e o barão me oferta uma festa de


despedida. Sebastião me acompanhará, para a minha
segurança. Cuide da minha casa e de minha filha.
Senti um frio correr na minha espinha. Qualquer homem com
desejo de sua presa sentiria esse frio que registrei. Somente
balancei a cabeça.
Até aquela noite, só olhares, nenhuma palavra trocada, mas
não precisava de palavras, as vezes o silêncio é a máquina de
derrota para nós mesmos.
Eu estava no meu posto, quando, por detrás, senti o perfume
de sinhazinha. Os outros escravos, a esta altura, estavam
festejando, pois o comendador, depois de muito tempo, havia
se ausentado do lar, dando condição a todos de relaxar.
Ela simplesmente tocou no meu ombro com seus suaves
dedos, e como que a bailar, rodopiou na minha frente, tocando
a minha face.
Temi a caricia, afastei-me, e ela não se incomodou, e tornou a
rodopiar. E falou:
-Meu escravo, faça o que eu lhe ordenar.


Não falei nada, pois, como escravo, teria de obedecer. E como
homem estava embevecido.
-Venha comigo, quero te dar algo.
Ao mesmo tempo que estava empolgado, sentia medo, vergonha e
temor do momento. Ela me levou para o fundo da casa e disse:
-Agora vamos, me abrace e me toque.
-Não, sinhazinha.
No fundo, eu não queria esse envolvimento, mas, ao mesmo
tempo, eu a desejava. Sabia que estava cometendo uma traição
ao comendador.
Então ela tomou nas mãos um chicote, e me chicoteou com
doçura, e disse:
-Não tema, é só um abraço.



Ela se aproximou me envolveu, e me deixou embriagado com
suas carícias.
Foi um momento de grande emoção. Após o nosso
envolvimento, ela falou:
-Olha, Pedro, você não é o primeiro a me tocar, então seja
discreto, pois se papai descobrir manda arrancar sua cabeça,
como aconteceu com Bartolomeu.
Depois desse momento, outros também aconteceram e, devido
a esse envolvimento, que relatarei mais à frente, eu mesmo a
salvei do desencarne.
Depois desse dia, nossa aproximação tornou-se maior.
Qualquer brecha que encontrávamos era motivo para nos
envolver, sempre tomando os devidos cuidados.
A mucamba tornara-se cúmplice do processo, acobertando a
sinhazinha, mas sempre me advertindo sobre o perigo que
estava correndo.
Falava, também, que os senhores escolhiam as negras para
satisfazerem seus desejos, e isso era normal no meio dos
senhores, mas as filhas jamais deveriam se alinhar aos
escravos, elas teriam de se casar com filhos de portugueses ou,
pelo menos, filho de algum membro do vínculo nobre.
Mas tanto eu como Ermelinda não estávamos preocupados
com a situação, só queríamos aproveitar, porque, desde que o
homem está no registro da Terra, a idéia sobre o processo do sexo é
de aproveitar, como se o mundo regesse somente nesse contexto.
Nós não fugíamos dessa conduta.
Hoje, com meu guia Neil, encontro um pensamento mais
divino sobre a questão do sexo. O real motivo pelo qual o Pai
Maior o permitiu é para que viéssemos a dividir a energia
vital.
O homem ganhou liberdade de ação, e com essa liberdade foi
dado a ele o processo natural do acasalamento pata assegurar
a continuidade da espécie. Mas o homem, no processo natural,


começou a desviar os sentidos reais. Se o homem encarnado
buscasse o sexo somente para a transmutação natural da
energia no respeito à vida, não haveria tantos filhos órfãos de
pais vivos, e provavelmente o planeta Terra já estaria em
outro nível de evolução, porque o homem estaria cumprindo o
real papel de paternidade transitória.
Manhã primaveril, todas as peças prontas, os trintas escravos
já preparados para a grandiosa marcha. Havia mais de oitenta
bagagens, e todos nós faríamos revezamento para assegurar os
objetos.
A organização da viagem começou com os tropeiros se
apresentando para escoltar o coronel com todas as
mercadorias, porque até nós, os escravos, éramos tidos como
mercadoria.
Naquela época, os tropeiros eram muito respeitados, pois a
fama que traziam era de heróis ou criminosos. Por serem
homens destemidos, enfrentavam tudo para deixar, em tempo
hábil, as mercadorias encomendadas.
Eles levavam porcos de uma região à outra e, pelo que diziam,
era uma das cargas mais difíceis de carregar, pois os porcos
grunhiam muito e comiam tudo o que alcançavam. Eles
levavam galinhas, sal, farinha e ouro (barras) de um
município ao outro.

Passavam por rígida fiscalização e, quando um dos tropeiros
era acusado de roubo de diamantes ou pepitas de ouro, ele era
revistado. Se encontrassem o que procuravam, ele era julgado
e levado, muitas vezes, à morte.
Eles também tinham o direito de, nas estradas, ser a lei. Assim
era o tropeiro. Homens experientes, que, para viagens longas,
sabiam quanto de munição e alimentos seria necessário para o
transcurso.
Também traziam o conhecimento sobre muares e bois, pois
estes eram os animais que Belar estaria transportando. Seriam


necessárias algumas sacas de sal e milho para que os animais
não viessem a adoecer e morrer no percurso.
Também teriam de carregar barris de água para a
sobrevivência de todos.
Havia trechos na Estrada Real que, pelo árduo acesso, nem
água se encontrava, mas também tinha lugares maravilhosos,
com quedas d'água perfeitas, que dava para se banhar e
refazer para prosseguir a viagem.
O transcurso também oferecia estalagens para os tropeiros se
alimentarem e descansar.
Pela pobreza da rota, os tropeiros levavam sua própria
comida, e ainda em troca das acomodações deixavam um
pouco do alimento para a estalagem. Então, em cada parada,
eram recebidos com festa.
O capitão dos tropeiros pediu licença ao comendador, e
começou a organizar a caravana. Ele disse:
-Primeiro grupo: é o grupo dos alimentos. Separem
rapaduras, queijos bem embalados em cestos adequados,
panelas de pedras, sal, açúcar, cereais, carne, toucinho,
farinha e feijão.
Segundo grupo: é o grupo dos utensílios indispensáveis ferro,
pólvora, armas e escravos.
Terceiro grupo: é o grupo de vestimentas, calçados, mobília e
indumentária de cavalgadura.
Quarto grupo: é o grupo dos artigos de luxo -as coisas supérfluas e
caras.


Quinto grupo: é o grupo do tabaco e a cachaça que os
tropeiros faziam questão de ter, mais que a própria água.
Sinhazinha seria conduzida confortavelmente nas famosas
cadeirinhas, entre o segundo e o terceiro grupo, ficando,
assim, protegida de qualquer investida.
A mucamba acompanharia do lado, para dar todo o conforto a
Ermelinda.



Eu e Sebastião ficaríamos próximos a ela também, pois assim
ela estaria muito mais protegida.
A mucamba já estava apreensiva, pois tanto eu quanto
sinhazinha trocávamos olhares sem nenhuma discrição. Ela se
aproximou de mim e falou:
-Você está doido! Se o coronel percebe, tu não sai nem do Rio.
E Sebastião concluiu:
-É sim, Pedro, disfarce se não quiser morrer.
Nas paradas para descanso, enquanto o comendador ia
inspecionar o local, nós, por várias vezes, encontramos meios
de nos satisfazer, até o momento da minha maior aflição, que
relatarei em seguida.


22
O aborto


Terreno úmido, fresco e belo, assim começava a majestosa
Estrada Real no Rio de Janeiro.
O teor vibratório ainda era suave e com pouca carga de tensão.
No vosso momento atual, vocês registram o acúmulo de angústia
que paira no campo energético dos grandes centros comerciais. E o
acumulo de tensões sobre o poder.
Nesta época, o Brasil respirava a universalidade pela fonte
natural de riqueza que sustentava, já estava inserido no
comércio exterior, mexendo com a Europa e os Estados
Unidos.
Propiciada pela terra fértil, o homem-espírito não
compreendeu que a evolução seria encaminhada com
simplicidade, se não houvesse por parte dele o sentimento de
ganância.


O homem-espírito, por estar nas brasas do poder, queima-se e
não permite a si mesmo o clarear da sua condição como filho
em evolução. Queima a estrutura perfeita cedida pelo Criador
em prol da evolução geográfica.
Mas ainda nesse período a deusa mata virgem registrava a
delícia do perfume natural. As formosas grandes árvores
denominadas pau-brasil frondosamente nos convidavam ao
deleite do descanso.
Pássaros como jamais meus olhos haviam registrado.


Que cores belíssimas, que som inigualável! Quantos macacos a
nos acompanhar, como que a dizer, com seus gritos e agitação:
"Intrusos estão rasgando nosso habitat".
Vez por outra, pelo caminho belíssimo, cachos de bananas, ali
preservados, como presente dos deuses, e a manifestação era
de alegria por parte de todos.
Após várias horas de caminhada, fazíamos acampamento, e os
cozinheiros, juntamente com os escravos, preparavam a
comida.
Comendador, sinhazinha, comandante dos tropeiros, o senhor
capitão do mato e o primeiro imediato comiam primeiro,
depois a tropa e, por último, os escravos.
Para nós, os negros, sobravam o caldo do feijão e toucinho,
com farinha de mandioca. Com essa porção, ficávamos mais
fortalecidos que os brancos, porque o toucinho com o caldo do
feijão preto e a farinha de mandioca nos protegiam dos
mosquitos, porque nosso suor era beneficiado pelo odor do
toucinho.
Então, não ficamos com febre durante a marcha, ao contrário,
de vez em quando um branco morria.
Eu, pelo envolvimento com sinhazinha, vez ou outra recebia
um pedaço de doce que ela havia adquirido no Rio de Janeiro,


o qual partilhava com Sebastião e outros irmãos de cor que
nos viam comer.

A marcha começava por volta das cinco da manhã, pois, para
a delicadeza da moça, ficava confortável o calor.
Interrompíamos para o almoço, com duas horas de parada, ou
por alguma necessidade de Ermelinda. Depois continuávamos
a marcha até as cinco da tarde, porque à noite era
imprudência avançar com carga tão grande como a que
incorporávamos.
Montávamos o acampamento e atravessávamos a noite.
Quando, pelo caminho, encontrávamos queda d água,
fazíamos a parada e ali todos tinham o direito de se refrescar.


Pela hierarquia, sinhazinha era sempre a primeira, depois
Belar, a seguir os tropeiros, que revezavam guarda com os
capitães do mato e, por último nós, os escravos, o que deixava
os tropeiros e os capitães do mato com muita raiva, pois para
eles negro não precisava tomar banho.
O sr. Belar era um homem forte, de poucas palavras, mas
justo. Algumas vezes ele era inquirido sobre esse
comportamento de oportunizar aos escravos se banhar, e ele
somente falava:
-Tropa toda refrescada marcha mais satisfeita. Virava as
costas e seguia.
Após longos dias de marcha, nas proximidades de Ouro Preto,
terra escura, a minha sinhazinha começou a ter um forte
sangramento.
Fizemos uma parada de urgência. Em toda a minha existência,
eu não tinha visto tantos panos ensanguentados. Senti um
temor imenso. Orei aos deuses, porque não trazia tal ciência
comigo, e pedi a eles que concedessem a ela a recuperação.
Mas, pela fragilidade do contexto, ela estava em processo de
definhamento. O sangue não estancava.
Coronel, sem compreender o que estava acontecendo com sua
filha, aflito, mandou um mensageiro, acompanhado pelos
tropeiros, buscar o doutor em Ouro Preto.



Mas isso levaria, no total, quatro dias, dois para ir e dois para
voltar, sem fazer parada para dormir. Era necessário que
fossem homens fortes e resistentes para enfrentar essa
jornada, depois de tão árdua caminhada já realizada. Assim
mesmo ele arriscou.
A prudente mucamba me chamou e falou:
-Pedro, sinhazinha está abortando seu filho. Ainda bem que o
feto veio nos panos e pude enterrá-lo sem que o comendador
percebesse.
Entrei em pânico e, dentro do meu íntimo, voltei a Zambe
para me lembrar do curandeiro e, nesse momento, escutei-o
falar comigo:
-Pedro, você deve seguir sua intuição se quiser salvar a moça.
Entre na mata e encontrará ervas para fazer a tão necessária
garraiada.
Eu teria de pedir permissão ao comendador para adentrar
aquela mata e convencê-lo de que iríamos buscar o melhor.
Fui rezando e pedindo proteção aos deuses.
Quando cheguei perto da sinhazinha, ela já estava delirando.
Sebastião, como que tomado por um espírito, estava em
posição de reverência aos seus deuses. Em grande estilo, ele
fazia a dança da cura. Ele dançou um dia e uma noite sem parar ao
redor de uma fogueira.
Vi que o comendador não estava se incomodando com ele.
Sebastião até ousou falar comigo:
-Pedro, o fogo vai queimar.
Sim, provavelmente era a cauterização, que hoje se realizaria
nos hospitais. Mas, por meio das forças da natureza, Sebastião
projetava mentalmente a cauterização com a ajuda dos seus
deuses.
Enchi-me de coragem, fui até o comendador e lhe pedi
permissão para seguir minha intuição e adentrar a mata.


O comendador, em grande desespero, permitiu minha entrada
na mata. Como que impulsionado pelos guardiões do Pai
Maior, ele próprio falou:
-Sim, vá sozinho. Se está em suas mãos a cura de minha
amada, traga o que for necessário.
Segui minha intuição e adentrei a mata densa, como que
guiado pela força inspiradora do curandeiro, trabalhada pelo
deus da mata. Pedi licença, assim como o curandeiro fazia, e
segui adiante. Encontrei, sem nunca antes ter caminhado
naquele local, a direção perfeita.
Nesse momento, diante de mim surgiu o curandeiro. Não
questionei, somente o segui. Ele não falou nada durante uma
hora de caminhada. Em minhas mãos trazia somente um facão
para me libertar dos cipós. Chegamos a um local lindo, onde
havia uma cachoeira natural que formava, na queda d'água,
uma maravilhosa lagoa, que se estreitava e corria em curso
normal. Próximo da lagoa, muita argila virgem.
Naquele momento, eu não sabia o que fazer com aquela argila.
No primeiro momento, julguei ser barro comum. Aí ele
começou a me instruir.
-Pegue a folha grande -e, apontando, ele me mostrou folhas
imensas de fumo.
-Pegue a quantidade suficiente desse barro para cobrir o
ventre da moça. Coloque a folha por cima do barro. Quando o
barro secar, retire do ventre da sinhazinha.
Apontando para trás, mostrou-me várias ervas nativas.
-Pegue as ervas que correm o chão e faça um grande escalda-
pés, e coloque no pé da moça com panos embebidos. Quando

o pano esfriar, troque-o, colocando outro quente, e isso por
dez vezes.
-Busque o umbigo da bananeira e faça uma água. Pingue
gotas na boca da moça durante o curso do dia. Amanhã ela
estará melhor, e você deve trazê-la para cá com bastante

cuidado e colocá-la deitada nesta lama por dois tempos do
dia.
-Vá, não perca tempo. Ficarei a seu lado. A meia-noite, pegue

o pano ensanguentado e o enterre, ofereça à deusa Terra, para
que ela venha tomar conta e curar a moça.
Retornei em menos de uma hora, pois o tempo agora se
tornava nosso inimigo. O caminho agora já estava limpo,
facilitando minha volta.
Em grande delírio, encontrei a doce Ermelinda. O pai já não
falava, só olhava aflito.
Em seu delírio, ela só me chamava:
-Pedro, Pedro, Pedro...
Senti pavor, mas tinha de prosseguir. Naquele momento
pensei: "Será que o comendador compreende o que há entre
nós?"
Foi quando ele me viu e falou:
-Como é, Pedro, conseguiu o necessário para ajudar a minha
filha? Até parece que ela sabe que é você quem vai ajudá-la,
pois não parou de chamá-lo!
Não falei nada, somente balancei a cabeça. Pedi à mucamba
para preparar a argila sobre o ventre da moça e cobrir a argila
com as folhas de fumo. Enquanto ela tomava essa providência,
preparei a água com as ervas, colocando perto da sinhazinha a
bacia de água quente, e lhe pedi para fazer as compressas nos
pés de Ermelinda.
Pedi todas as forças e me vi fazendo coisas que não
compreendia, mas eu fiz com o umbigo da bananeira.
Ficamos nesse processo com a Ermelinda durante vinte quatro
horas. Durante esse tempo fui inspirado pelo curandeiro.
Neste ínterim, o mensageiro já havia atingido Ouro Preto e
estava a caminho de retorno com o doutor.
Nós já estávamos acampados perto da cachoeira e formamos
um segundo acampamento. Não houve rejeição, por parte do



comendador, de levar sinhazinha até a cachoeira, pois a
melhora ocorreu com perfeição.
Por intuição, Sebastião fez outra garraiada com um torrão de
rapadura e um torrão menor de sal, o soro artesanal, e passou
a lhe dar uma colher de hora em hora.
Ela já correspondia bem ao processo que nos propusemos a
realizar, deixando a bondade maior atuar por nossos atos.
O nosso segundo acampamento contava com dois capitães do
mato, cinco escravos, contando comigo e Sebastião, e a
mucamba, por ser necessário maior número de escravos e
vigilantes junto à caravana. Foi determinada por Belar esta
distribuição de escravos e capitães, pois o local em que nos
encontrávamos era de difícil acesso, e nos parecia que era a
primeira vez que o homem havia atingido aquele espaço.

Com a chegada do doutor, houve necessidade de nos
afastarmos para os exames necessários. A mucamba
acompanhou tudo, e também pediu silêncio ao doutor sobre o
assunto. Ele falou ao pai de sinhazinha que ela tivera um
processo natural de moça recolhida a sete chaves, por ter
enfrentado tão árdua caminhada, até então nunca realizada.
Por detrás, ele, o doutor, recebeu da mucamba anel belíssimo
que pertencia à sinhazinha. Com toda a garantia, Ermelinda
agradeceria à própria mucamba pela postura discretíssima em
resolver o problema.
As recomendações foram de permanecermos ali por uma
semana e, depois, seguirmos para Ouro Preto, paragem que
deveria ser realizada para o check-up, pois ele próprio, o
doutor, viu que dali poderia retirar mais algumas moedas de
ouro.
O comendador providenciou um mensageiro para correr a
trilha até Sabarabuçu e levar a mensagem à Câmara, pois a
data não iria se cumprir em tempo hábil.


A semana passou, a bela moça, apesar de estar se recuperando
favoravelmente, estava muito fraca, perdeu as belas formas
por ter perdido muito líquido.
Ermelinda, criada de forma muito mimada, não admitia ter
perdido totalmente as curvas que a embelezavam, e passava
por um processo de tristeza profunda e melancolia. Estava em
depressão.
Até então não tínhamos conhecimento de que esse processo
emocional ocorre com várias mulheres quando há a perda de
um filho, mesmo sem ela ter noção no campo concreto da
consciência. No nível do inconsciente, a mulher sabe que está
espetando um filho.
Mas, para o comendador, ela estava viva e isso bastava. E ele
disse:
-Não se preocupem, ela vai se recuperar.
Assim a mucamba fazia, acalentava a jovem, afirmando-lhe
que o melhor remédio era o tempo

Hoje, Neil nos ensina que esse belo processo de readaptação
de alguns espíritos ao planeta Terra requer paciência por
parte de todos os envolvidos. O aborto natural é providência
divina que auxilia os espíritos necessitados do choque com o
veículo denso. O calor do ventre de uma mãe lhe aquece a
alma, garantindo-lhe o choque de amor para, em outra
oportunidade, ele ganhar força necessária e seguir o curso
natural da reencarnação.
Já o processo do aborto forçado, provocado pelas mãos dos
próprios irmãos, esse é danoso, triste de se presenciar e árduo
de se ressarcir, pois os espíritos envolvidos criam mais
débitos, e os credores encontram campo favorável para
continuar o processo de cobrança que os aprisionam, adiando

o encontro com a verdadeira libertação.
Mas a lei se encarrega de reajustar todos os processos.

Este momento que eu e Ermelinda passamos foi de
aprendizado para nós três, porque o irmão reencarnante teria
de, antes de ter a oportunidade de vivenciar a experiência do
retorno à vida, passar por um choque no espaço uterino a fim
de ganhar força energética para, em outro corpo, poder
ressarcir seus débitos.
Neil também me explicou que não é uma regra geral, e que
cada caso é um caso. Só que nosso relacionamento
proporcionou esse alívio ao irmão que estava enfraquecido e
precisava de força para realizar o choque. Os abortos naturais
são concedidos pela força Criadora como um processo de
amor. Mas o aborto provocado se torna contra a lei maior,
pois o próprio Mestre nos ensinou que não deveríamos tirar a
vida de nenhum irmão.
Fiquei aliviado, pois me julguei um criminoso, naquele
momento, por ter me envolvido com Ermelinda.
Voltei ao momento que estava recordando. Voltei a Zambe,
lembrei de minha esposa amada e do meu filho, e também
percebi que já havia se passado muitos anos desde que me
tornara escravo, e que Tuã, provavelmente, já alcançava a préadolescência,
a correr por Zambe, e sua mãe a lhe contar como
foi que eu os protegi dos invasores portugueses.
Orei aos deuses e pedi conforto para aqueles que estavam
distantes e dos quais eu não pude acompanhar o crescimento.
Nessa altura, nos preparávamos para retornar à marcha. Noite
de lua grande, bichos agitados, dando sinal de emboscada.
Sebastião ficou todo arrepiado. Era assim que ele falava
quando registrava energias confusas no ar. Ele se aproximou
de mim e disse:
-Lembra-se quando foi capturado e que, intuitivamente,
estava andando com sua família e teve tempo para salvá-los?
-Sim, Sebastião, me recordo. E daí?


-Pois creio que vamos enfrentar alguma investida, e que não
será agradável, principalmente para mim. Olhe os olhos dos
cachorros nos demonstrando pavor. Eles estão agitados como
se estivessem vendo espíritos ruins. Vou avisar o comendador
Belar dessa minha suspeita. Fique de olhos abertos e não se
descuide da moça, pois os revoltados, pelas histórias que já
ouvi serem contadas, roubam moças e as tornam escravas,
para vendê-las, e sinhazinha daria um excelente preço.
-Tive pavor. Pela segunda vez, fui para perto da tenda de
Ermelinda e fiquei em alerta, esperando o pior. Estávamos
bem afastados do acampamento maior e, por causa da
organização para a partida, naquele momento se encontravam
conosco, nesse segundo acampamento, o comendador, a
mucamba e mais três negros. Se algo acontecesse, teríamos de
lutar até a morte, se fosse necessário.

23
A emboscada


Assim ocorreu a emboscada. Sebastião comunicou ao
comendador Belar sobre seu pressentimento. Imediatamente,
Belar pediu a Sebastião para ir o mais rápido que pudesse até

o acampamento maior para trazer reforços. Sebastião, como
um raio perfeito, entrelaçou o corpo por entre a mata, não
seguindo a trilha já formada. Como índio, trazia a condição de
rastrear, sem ser notado, o caminho melhor para trazer os
vintes escravos, como ordenou o comendador, os capitães do
mato e alguns tropeiros, permanecendo somente cinco dos

escravos, alguns capitães do mato e alguns tropeiros para
cobrir a defesa do acampamento.
Eu e sinhazinha, juntamente com a mucamba, ficamos
recolhidos por detrás de uma enorme pedra, de onde eu podia
observar tudo. Em flashes, os quadros me surgiam na mente.
Zambe, a minha deusa com meu filho nos braços se ocultando
dos invasores. A cena se repetia.
Como é estranho o circuito cíclico. Naquele momento, meu
sentimento voltado a Zambe me cobrava: eu deveria ter ficado
com minha esposa e meu filho, não me expondo ao campo de
batalha, mas, pelo impulso natural, optei por lutar e defender
minha tribo.
Por que será que estava dentro dessa trama? Fui escolhido
para defender a filha do comendador, aquele que, de uma
maneira ou outra, fez a encomenda de buscar na África um
negro forte para auxiliar em suas necessidades. Eu, o
capturado, defendendo a vida dos que retiraram a minha.
Quantas perguntas assolavam minha mente em poucos
segundos! Quando, de repente, escutamos tiros. O
comendador, com o próprio punho, atirou para cima e falou:
-Vocês aí, que estão escondidos, saiam e digam o que
querem.
Nenhum movimento foi manifestado, silêncio total.
Sinhazinha chorava em silêncio, ainda enfraquecida. Ela
registrava culpa, pois, se não tivesse se aproximado de mim,
não teria tido aborto e, provavelmente, já estaríamos em Ouro
Preto em segurança.
A mucamba falou:
-Silencie, não é hora de arrependimentos, fique quieta. Eu
estava atento a todos os barulhos. O comendador
deu outro tiro e falou:
-Seja homem e apareça. Vamos conversar.


Assim ele ganharia tempo para os escravos e os outros
chegarem com Sebastião. De repente, uma voz:
-Comendador, estamos te seguindo desde que saiu do Rio de
Janeiro. Hoje irei ajustar as contas.
-O que queres? E dinheiro? Apresente-se.
-Não, queremos mais, vamos levar sua jóia preciosa, ela nos
vale muito mais.
Nesse momento, Ermelinda desmaiou, e assim foi melhor.
Pelo menos, silêncio total. Belar gritou novamente:
-Apresente-se, é uma ordem.
Nesse momento, Sebastião, de peito aberto, chegou à clareira.
O comendador gritou:
-Saia daí, Sebastião!
Mas foi tarde demais. Um tiro foi acertado bem no peito de
Sebastião, e ele foi ao chão. Ficamos paralisados,


pois ele não registrava nenhum movimento ou respiração.
Neste mesmo tempo, Belar falou:
-Não saiam dos seus postos, fiquem onde estão. Sebastião está
bem.
Gargalhadas escutamos, e o invasor falou:
-Gostou, comendador, o seu guia agora é só carcaça. Como é,
vai nos dar a jóia sem violência, ou teremos de utilizar a
força?
O comendador falou:
-Venha buscar, se és homem.
Começou uma grande confusão. Os cachorros ganharam
liberdade, e correram em direção ao flanco maior. Os
saqueadores se mostraram, eram em torno de vinte homens
violentos e dementados, sem nenhum escrúpulo, alimentados
por vingança.
Tiros, lutas, facas, tudo a vibrar em grande proporção. Retirei
do bolso um canivete bem afiado, dei-o à mucamba e falei:



-Tome conta dela, vou ajudar o comendador.
O meu espírito de guerra ressurgiu outra vez. Vi-me retirando
vidas, cortando pescoços e amparando o comendador. Eu
lutei, matei e mutilei homens. O comendador foi baleado e
poderia ter morrido se eu não o tivesse empurrado.
Aproximei-me de Sebastião e vi que ele ainda estava vivo.
Arrastei-o, retirando da confusão, e voltei para a luta.
Perdemos cinco escravos e, dos saqueadores, somente dois
ficaram vivos, que pediram para não ser mortos.
Mas foi por pouco tempo, pois, logo após a confusão, o
próprio comendador fez o julgamento e os executou, por
medo de represália. Pediu aos homens que enterrassem todos
os mortos, para não deixar registro nenhum, e que, depois
daquele momento, ninguém comentasse o ocorrido.
Após as arrumações necessárias, nos colocamos em marcha
para alcançar a tão famosa cidade de Ouro Preto, ou melhor,
Vila Rica, que mais tarde seria apelidada de vila pobre pela
queda do ciclo do ouro e, finalmente, ganhando o belíssimo
nome que até hoje vigora com todas as pompas justas, pelo
que a cidade hoje é.
Tivemos a grata satisfação de ser acompanhados por outro
grupo de tropeiros que a bondade divina permitiu que
estivesse passando pelo local, e ofereceram préstimos ao
comendador ao verem-no com o braço na tipóia e Sebastião
sendo arrastado por uma enorme armação feita por madeira e
forração nativa, que ele próprio nos ensinou a fazer. O
ferimento de Sebastião era grave, jorrava, às vezes, muito
sangue, e aí era necessário estancá-lo.
Em caminhada normal, gastaríamos quatro dias de marcha pesada,
mas levamos seis. Chegamos a pensar que Sebastião não resistiria.
Ele passou por delírios imensos. Eu presenciei, por várias vezes,
sua fala, e ele conversava com seus antepassados da tribo dos
tupis. Em uma das vezes, ele começou a narrar sua história


sob forte emoção íntima. Mesmo delirando, ele chorava. Creio
que chorava pelo aprisionamento que o fez perder a condição
de correr, como falava no seu delírio:
-índio corre e busca alimento para tribo, vou e trago o
necessário.
E, nesse processo, por vezes, cantava aos seus deuses e
silenciava. Percebi que ele tinha retornado à sua tribo, junto
ao seu grupo alma.
Nesse momento, chorei. Não sei como pude me interligar a ele
e vê-lo dançando a dança da fertilização do terreno. Não
precisava de palavras para decifrar o que eu via, apenas
sentia.
Hoje, junto ao meu companheiro guia de todas as horas, Neil,
encontro apoio para minhas indagações, e uma delas foi esta:
-Como eu, encarnado, pude aferir esse processo que era
só do Sebastião?

E, com toda a paciência, Neil me respondeu:
-Pedro, entre o céu e a terra há muitos espaços de atuação que
o Pai Maior permite ao homem compartilhar, para que surja o
despertar do coração. Naquele momento, você foi agraciado
por essa interligação, que lhe oportunizou aprimorar seus
sentidos no tocante ao próximo. Como esse registro ficou
também impregnado em seu conceito mental espiritual,
agregado a outros, possibilitou-lhe perdoar os companheiros e
não prosseguir no mesmo parecer de vingança.
Se os homens prestassem mais atenção nos momentos
ofertados pelo Pai, o desenrolar das encarnações estaria mais
evoluído; o planeta Terra ganharia mais harmonização; os
companheiros que ainda estão aprisionados na busca da
vingança não encontrariam pólo de atuação; e todos os que
estão enclausurados nos sentimentos maltrabalhados seriam
beneficiados. Mas cada um desperta no seu tempo.


Voltando ao momento em que eu registrei minha encarnação,
Ermelinda se apresentava bem melhor, estava falante e já
trazia a seu pai maior tranquilidade.
Chegamos a Ouro Preto, terra escura envolvida por
montanhas, majestosas montanhas, que até hoje enaltecem
como uma apoteose riquíssima, mas não de ouro, e sim de
vibração ao Pai Maior.
Pena que os homens registram seu proceder, em terra tão
benéfica, com sentimentos de destruição. Hoje, buscam as
energias das drogas de todas as ordens para satisfazerem o
próprio ego, ego falido que fica à espreita do infortúnio
inconsciente. Quantos companheiros a se misturar com o
registro de dor dos escravos, subjugados pela revolta íntima, e
que ganham vulto no próprio proceder, tornando-se mártires
do contexto vigente.
Faz-se necessário a conscientização de que todos os filhos do
Pai Maior devem orar para abrandar a vibração inferior de
sentimentos mal conduzidos.
Vila Rica ofertava, neste momento da história, empregos a
todos os que por ali passavam e sitiavam. A troca ali acontecia
como recurso palpável de sobrevivência. Arroba de carne
trocada por quilo de farinha, rapadura já trabalhada trocada
por palmito, comida preferida dos bandeirantes. As histórias
eram contadas pelos cantos das Minas Gerais sobre esses
valentes homens, que, por determinação íntima, cortaram
estradas para galgar a riqueza tão almejada.
Chegamos ao estabelecimento do dr. Armando. Fomos
recebidos com toda a atenção devida a um comendador do
grau de autoridade que trazia Belar. A nossa espera estava o
doutor, pois o capataz de Belar foi à frente para orientar o
médico do ocorrido, dando-lhe tempo para se preparar para
receber o comendador.


Com duas assistentes, água quente e muitos panos, ele já
estava pronto para atuar. Ele nem se lembrou da pequena
jovem a quem havia dado assistência na estrada, pois teve de
se envolver com Belar e Sebastião, que estava entre a vida e a
morte. Belar havia lhe pedido que atendesse primeiro
Sebastião, seu homem de confiança, o que surpreendeu a
todos. E foi melhor ele não se lembrar da sinhazinha, pois
assim não mexeu na ferida e ela não precisou dispor de mais
nenhuma joia.
O comendador ordenou que a mucamba levasse sinhazinha
para o melhor estabelecimento de Vila Rica, para o adequado
asseio, alimento quente e roupas limpas. Nós, os escravos,
ficaríamos por ali assegurados pelos capitães do mato.
Agradecimentos adequados aos tropeiros que se juntaram a
nós e recompensa justa pela grande gentileza.
O comendador era bem político, e sabia como lidar com
qualquer situação. Fiquei sentado em uma pedra belíssima,
admirando a beleza de Vila Rica. Voltei a Zambe e, pela pouca
compreensão, observei o espaço geográfico de Vila Rica e
comparei-o com o de Zambe. Que deus era aquele que
construía diferenciações em terras para o homem habitar? Que
saudade de minha terra natal, mas Vila Rica era embriagante!
Nessa altura do dia, o sol se pondo dava reflexos espelhados
às montanhas, tal como senhoras vestidas brilhavam nos
famosos saraus de época bem conduzida, refletindo o
movimento natural do findar do dia. As luzes formadas por
entre as rochas delinearam um quadro indescritível na minha
mente, que até hoje consigo vivenciar. Pena que o homem
atual não se permita parar e registrar a beleza de Deus.
O Pai Maior reflete a vida por oportunidades belíssimas, mas nós
criamos fendas de desalento e temos de buscar a corrigenda em
caminhada do porvir.


Ficaríamos em Vila Rica por uma semana, pois o comendador
e Sebastião precisavam se restabelecer dos ferimentos.
Sebastião recebeu uma bala profunda, que o atingiu no meio
do peito. Mas, por graças maiores e proteção de seu guia, a
bala foi desviada, não atingindo o coração.
Perguntei a Neil como um guia pode intervir nesses
momentos, e ele me explicou que, quando os homens
encarnados, durante a vida, trazem um procedimento de
amor, pacificação e trabalho, recebem do alto um acúmulo de
energia para ser utilizada nas horas de necessidade maior. Em
razão de Sebastião jamais ter contrariado o processo do
aprisionamento, a ele foi concedida essa proteção e, no
momento em que a bala foi direcionada a ele, seu mentor teve
recursos para interferir no processo e ajudá-lo, comandando
para que virasse o corpo. A bala, que estava direcionada para
atingir o coração, o atingiu mais para a direita, poupando-lhe
a vida naquele momento.
Doutor Armando levou exatamente oito horas operando
Sebastião, e a cirurgia foi realizada com sucesso. Conseguiu
estancar o sangue e cauterizar a perfuração. A bala só não foi
retirada em razão da profundidade em que se localizava.
O comendador ficou alojado, juntamente com sua filha, numa
hospedaria de maior requinte. Caldos quentes e quitutes da
melhor qualidade foram a eles ofertados, pois ele próprio
seria promessa para Vila Rica.

O comando que exerceria em Sabarabuçu reforçaria o
desenvolvimento em Vila Rica. Nós, os escravos, ficaríamos
alojados no estabelecimento dos tropeiros. Fui escalado para
ficar perto de Sebastião o maior tempo possível. Foram horas
intermináveis. Fiquei atrás do ambulatório com ele, em um
quarto de tábua cujas frestas favoreciam o frio ser o dono da
noite. Por Sebastião estar com febre alta, cobri seu corpo com

o único saco que sobrava. Podia perceber, por uma das frestas,

a estrela maior. Naquele momento, voltei àquela embarcação
nojenta. Lembrei do meu irmão de sangue sendo empurrado
para dentro do mar. Era como se ele tivesse a oportunidade de
reavivar minha memória e adentrar na minha mente com
aquele olhar de despedida, ressuscitando minha revolta. Olhei
Sebastião, naquele momento um trapo humano, nascido nas
terras brasileiras e também aprisionado pela inconsciência de
outro homem, tal como ele.
Tentava organizar minha mente, mas era impossível, e mais
uma vez fui maltratado pelos deuses e chorei, porque senti a
presença de minha amada e de meu filho bem próximos a
mim.
Após momentos de aflições maiores em relação à saúde de
Sebastião, ele começou a recobrar a consciência. Nesse espaço
de tempo do qual pude desfrutar com ele, fiquei sabendo um
pouco mais sobre a vida daquele grande homem.
índio, natural do Brasil, terra antes conhecida por vários
nomes, que os desbravadores assim a abençoaram: Ilha de
Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, por último, Brasil.
O nome BRASIL traz uma vibração belíssima. Se os brasileiros
soubessem o teor da vibração do nome, trariam a terra pátria
com maior amor. Cuidariam da casa que lhes guarnece a
sobrevivência, depositariam nesse lar as bênçãos concedidas
pelos talentos cedidos pelo Criador e os multiplicariam em
crescimento mútuo. Mas o homem ainda vislumbra a infância
das querenças e se permite perder a encarnação.

Sebastião pertencia a uma tribo tupi localizada próxima ao
litoral. Andavam sem nenhuma proteção para o corpo. Os
índios não conheciam vestimenta como os portugueses,
porque, sendo o Brasil um país tropical, os índios não sentiam
a necessidade de cobrir o corpo como o europeu, cujo clima os
obrigava a vestimentas pesadas.


A defesa da tribo cabia aos homens, e o alimento às mulheres.
Percebia semelhanças com minha tribo africana. Como somos
todos iguais, não é?
Naquele tempo, os índios respeitavam as mulheres e viceversa,
normas naturais se encontravam na tribo, campo
próprio para o ensaio para a vida. Assemelhava-se à minha
tribo, que fora também destruída pela ambição dos homens.
A tribo de Sebastião permanecia em uma enorme clareira
circundada de árvores, que favoreciam a proteção necessária.
Pelo relato, a comida era deliciosa, tapioca, caldos com ervas
naturais que, em vosso tempo, pelo desgaste, se fez perder a
essência das mesmas, doces feitos com o mel que exalava das
árvores, tal como era favorecido pelo famoso pau doce. Eu
mesmo tive a grata felicidade de deparar com a origem
indígena, e hoje posso observar que os homens de cultura
vasta ainda não conseguem compreender o espaço do outro, e
sempre o retiram sem nenhum respeito.
Na época de Moisés, era cultuado o "dente por dente". Depois,

o Construtor Maior enviou o exemplo de pacificação, o nosso
amado Mestre Jesus. E outra vez o homem, por se julgar
senhor, buscou os exemplos do rabino e instituiu as religiões
e, com elas, em nome do Pai Maior, aniquilam o próprio
irmão.
Os companheiros que hoje, por resgate natural, encontram-se
experienciando o vislumbre dessa etapa carregam consigo o
dever de amar a pátria, auxiliar com amor todos os irmãos,
que, prisioneiros, estão em busca da libertação do cárcere da
alma.
Encontro-me sentado margeando as esferas mentais de Sabara.
Olho meus irmãos a buscar o desenvolvimento monetário,
mas me entristece vê-los perdidos do elo maior, que é o
próprio regaste das energias de paz. Os antigos moradores
desta modesta cidade trazem o conhecimento, pela história, de

massacres e dores, de todas as ordens, aqui ocorridos, mas
não param para elevar o pensamento em favor da coletividade
que perambula pelas ruelas, vivendo ainda a época dos
senhores e suas senzalas. Sabara, como outras cidades que
registraram no campo periférico e no campo central energias
de aprisionamento, deve sintonizar com o Pai para a
libertação das energias estagnadas. Cabe aos moradores
unirem-se para transmutar o magnetismo instalado pelos
irmãos do tempo. Junto com Neil faço sempre a oração de
amor aos companheiros que estão aprisionados nos quilombos
íntimos, espreitando a hora certa de atacar o senhor da mata e
os feitores. Fora aqueles que estão esperando o momento para
aniquilar o próprio dono, aquele que marcou a alma pela
crueldade dos comandos. E choro pelos irmãos que ainda
estão ressecados esperando voltar ao coração da África.

"Oh! Majestosa Rainha, senhora acolhedora dos filhos que projetados foram à vida,
lançados às experiências da partilha mútua, concita ao Criador o alívio tão
necessário àqueles que perdidos se encontram em busca do alívio da mente, que os
aprisiona nas margens das vinganças.
Libertadora Mãe que se posta em harmonia perante os companheiros que
experimentam a dor, lança-lhes o tônico esclarecedor e pacificador, dilatando a
percepção para assim alcançarem a atualização planetária.
Mãe, que eterniza a doçura de mulher, preencha o perímetro energético dos feridos
do tempo e os envolva em tua libertação.
Aos irmãos que ainda estão aprisionados nos quilombos de Sabara, e a todos os que
estão atados à cobiça da vingança.
Que assim seja!"


24



A história de Sebastião


Sebastião, pela jornada da vida, foi um filho sem conflitos
maiores. Atendeu com suporte necessário às demandas da
tribo, e após ser capturado permaneceu na sobriedade do
gentio, formando uma gleba de benfeitores a lhe guarnecer de
benesses.
Fico observando como é perfeito o proceder do Pai Maior.
Acolhe os filhos com brandura, e nós, por vezes, renegamos o
acolhimento, tal como Jesus elucidou: "Bem-aventurados os
puros de coração"1.
Fico observando o proceder dos irmãos encarnados e trabalho

o meu íntimo para compreender por que o homem ainda
necessita experimentar a dor. Não é o mesmo que aprofundar
na ilusão do vivenciar e negar a estrada real da vida?
Como se estivesse delirando, mas ao mesmo tempo
permanecendo na vigília, Sebastião continuou sua história:
-Éramos um povo livre, não sabíamos que uma pedra
arrancada da terra, o ouro, poderia aprisionar, matar,
sacrificar e torturar tantos homens.
A minha tribo ficava alojada no coração da mata. Por não
termos ambição, andávamos sem nenhuma proteção para
nossos corpos, pois nossos sentimentos nao estavam
recobertos pela ganância, então, não havia necessidade de nos
ocultar.
Os homens respeitavam as mulheres e, assim, a partilha era
compactuada. Normas naturais se encontravam no campo
propício do ensaio natural da vida.
Enquanto Sebastião relatava sua história, eu recordava a
¹Mateus V-8.


minha, pois eram semelhantes. Hoje fico junto com o
companheiro Neil orando ao Criador para que Ele, na sua
bondade infinita, venha a encontrar nos espíritos encarnados
uma brecha para tocá-los e despertá-los do inconsciente que
ainda almeja a vingança.
As vezes, me perco em minhas divagações. Não compreendo
por que a vida tomou este rumo. Se o Pai nos fez puros de
alma, como podemos destruir a própria moradia íntima e a
externa, que nos viabiliza a sobrevivência? Será que, na
torpeza, o homem se permite embriagar no ilusório e se torna
cada vez mais o vilão da sua própria vida?
Nesses momentos de profunda meditação, Neil se aproxima e
me traz o equilíbrio necessário para seguir a jornada.
-Querido Pedro, o Pai de Bondade Maior jamais abandona os
filhos. Jesus, quando encarnado, trouxe ao homem planetário
a lei de amor. Exemplificou a libertação da posse, pois se fez
homem simples, andarilho a percorrer as almas sequiosas do
conforto espiritual. Jogou a semente, pois como semeador saiu
a semear. Como você bem sabe, somente as terras íntimas,
propícias à fecundação, permitem-se serem tocadas pelo real
estar. Sendo assim, o homem só será tocado pelas palavras do
rabino quando abrir a porta íntima.
O tempo é o melhor remédio para libertar o homem
prisioneiro da cobiça. Sempre que este guardião, Jesus, se
aproxima, traz o equilíbrio com suas emanações de amor. E,
neste momento, convido todos a interagir nesta oração de
conforto à alma.

Neil colocou-se em profunda ligação com o Criador e orou
com toda a pureza de sentimento:

"Pai Criador, como teu filho Jesus, nosso irmão, nos ensinou, ajuda-nos a semear o
caminho do bem, para que este caminho seja o conforto dos irmãos que ainda não
engrandeceram o coração com a simplicidade do perdão.


Fortaleça os companheiros que se ajustam na seara do bem, equilibrando, assim, esta
corrente focalizada pelos apóstolos, irmãos preparados para contagiar as nossas
almas de luz.
Estimule os companheiros a navegar no mar da vida como grandes pescadores de
almas necessitadas, como a nossa.
Que assim seja!"


Ficamos contemplando o céu e, naquele momento, ele se
tornou tão translúcido que me permitiu sentir a presença do
Criador no ambiente com tamanha força que pude perceber o
que Francisco de Assis sentiu em toda sua existência.
Como ainda preciso realizar dentro de mim o sim diante do
Pai, e falar com toda a alma "Fazei de mim um instrumento de
sua paz!"
Sebastião continuou sua narrativa. Naquele momento, já
avançando a noite, vi a estrela maior fazendo a curvatura
natural e, enquanto o ouvia, chorava em silêncio.
-Nossa aldeia era grande, tínhamos o sábio, que era nosso
curandeiro, que tudo sabia e nos ensinava. Ele só não foi
capaz de compreender o sinal das aves naquele momento
fatal. Ele pensou que poderia ser um animal grande que
estava espantando os bichos que dividiam o espaço com ele.
Apontava para o céu a mostrar que eles estavam
desorganizados, amedrontados, buscando refúgio na mata
densa quando, de repente, um silêncio enigmático assolou a
floresta e ficamos imóveis.
E fomos roubados por homens de armas que, para impor,
mataram o curandeiro sem pedir licença. Desarmaram-nos
imediatamente. Ficamos, naquele momento, sem nossa
proteção, parecia que nossos deuses haviam desaparecido.
Hoje, após muito ter pensado sobre esse assunto, imagino que
mataram o curandeiro por temer que ele pudesse fazer algo
contra eles, pois era o único que gesticulava e falava pedindo


proteção aos deuses da mata. Parecia que ele sabia que, em
breve, estaria com eles.
Como os homens chegaram e pediram silêncio por meio de
gestos e da fala, e ele estava tão envolvido que não os escutou,
retiraram-lhe a vida e a nossa também.
Homens brutos, sem nenhum trato, pegaram minha esposa e
abusaram dela. Todos eles, porque ela era a mulher mais
jovem e bonita da aldeia. Tentei lutar com eles, mas me
amarraram no tronco bem diante dela, e me fizeram assistir à
triste cena de ver minha companheira ser assassinada diante
dos meus olhos. Eles não tiveram complacência. Ela estava
grávida do quarto filho, e tudo foi ocorrendo, o aborto e eles
esperaram ela abortar. Nessa altura, já desacordada estava, e
eu pedi ao deus da morte que a levasse, pois não pude mais
aguentar tamanha crueldade.
Chorei e, quando perceberam que eu estava chorando, me
bateram muito. Fiquei bem dolorido, do corpo e da alma. Para
finalizar a barbárie, mataram todos os meninos e velhos da
tribo, pois seria carga difícil de carregar.
Não fizemos nada; eles fizeram tudo. Fiquei por muito tempo
sem entender o que havíamos feito para passar por tudo
aquilo. Ainda hoje me pergunto: por que eles não pediram
licença para entrar? Por que eles não explicaram que
precisavam dos nossos serviços? Por que eles mataram tudo o
que tínhamos, até a nossa vida? Por quê?
Fiquei mudo, não tinha o que falar, pois a dor dele era
semelhante à minha. É muito difícil recomeçar e, tanto ele
como eu tivemos de silenciar e continuar a jornada. Talvez,
por ele ser pacífico como eu, ou talvez pelos mentores que o
inspiram, ele, como tantos, resistiu à tamanha crueldade.
Recuperei a força mental e lhe perguntei:
-Sebastião, como era o seu habitat?


-Bem, Pedro, vivíamos em mata densa, com o curso natural
da água a nos favorecer. Havia uma belíssima queda d'água a
nos convidar a banhos deliciosos. Como a mata era bem
condensada, não havia para nós este calor que ora sentimos,
pois a natureza, por si mesma, nos provia desse deleite.
Os animais corriam com tranquilidade, envolvendo todos os
deuses. Não havia pânico. Vivíamos...

Sabe, encontro-me sempre na interrogativa. Por que será que o
espírito encarnado precisa aprisionar o outro? Por que será
que o diálogo no vosso meio é tão árduo? Por que ainda
mesmo com a psicologia nos guarnecendo com tantas
explicações, o homem do século tecnológico se aprisionou na
informatização e virou as costas para a expressão mais bela do
Pai, que é a vida?
Por que os homens atuais não se permitem sustentar a
família? Por que cuidar, direcionar, disciplinar e evangelizar
tornou-se obsoleto, como um chip inútil para a evolução do
homem-espírito?
Falível, inconsequente, aturdido, assim é o homem atual, que
não busca o princípio da criação e, descompensado, registra a
bênção da encarnação construindo somente a desunião.
Como é lindo poder entender que todos somos irmãos e que a
partilha é o princípio do Verbo. Homens de fibra, ou melhor,
espíritos de amor encarnam para testemunhar a essência do
Criador, nos dando exemplo de fraternidade e amor.

Cada país contrai o aprendizado, as dores e o grito abafado. O
Brasil, coração planetário que auxilia a oxigenação terrena,
traz o compromisso do respeito aos índios e aos descendentes
africanos. Mas o homem embrutecido apegou-se ao ouro e
deixou de lado o verbo amar.


25
As instruções do Ministro Fernando


O tempo passa e, a cada dia, tornava-se melhor o estado de
saúde do sr. Belar e de Sebastião. A dinâmica cidade de Vila
Rica, visitada pela nobreza, dava um ar de suntuosidade a
cada detalhe, nas telhas rebordadas a contrastar com o
calçamento perfeito, fixado, pedra por pedra, pelos irmãos de
cor, que assim tingiram com o suor as tonalidades de vida.
Carros de boi a ranger pelas pedras sonorizavam as ruelas
singelas de Vila Rica. Carregavam leite, farinha, verduras,
mandioca e toucinho do mais puro produto desenvolvido
pelas redondezas
Homens bem trajados, com ternos arredondados e mangas
bordadas com rendas a contornar punhos e laterais das blusas,
separavam a realeza dos plebeus. As senhoras portavam
vestimentas que também qualificavam seu poderio financeiro.
Naquele tempo, o homem já escalava, por meio do figurino,
quem mandava. Soldados do rei sempre a desfilar na praça
central em nome da ordem; tropeiros de todos os cantos
manifestavam com tropas enormes as encomendas e descargas
de produtos: animais, ouro, alimentos e homens.
Noite fria tal qual eu nunca havia registrado. Nós, os negros,
em volta da fogueira feita pelos tropeiros, cujo calor aquecia
nossa pele desnudada. Eles, os tropeiros, bem agasalhados,
com sobretudo, isolando a geada, e nós, com os pés no chão. O
frio penetrava no corpo nos impedindo a perfeita respiração e
permanecíamos a bater os dentes.
De repente, um companheiro da cidade, também negro,
encostou-se em mim e disse:
-Olha, companheiro, tome esta água para se esquentar, mas
não pode engasgar, pois os capitães vigiam tudo e, se


engasgar, eles virão aqui para saber o que está acontecendo,
entendeu?
Balancei a cabeça, peguei o copo e virei. Esquentou para valer.
As lágrimas rolaram da minha face e, naquele torpor, fiquei
paralisado, quando escutei chibatas a cortar o chão, latidos
dos cães bravios e gritos.
-Pega, pega, nego fujão, ninguém se movimenta. Fiquem nos
seus lugares, vamos fazer a revista.
Tremi, pois achei que iriam me acusar de ter bebido aquela
água de fogo. O calor que meu corpo registrava tornou-se
gelado de medo, e fiquei a esperar a punição.
Aproximaram, olharam bem dentro dos meus olhos e falaram:
-É ele.
Fiquei aturdido, e não falei nada. Na minha mente, um
turbilhão se formou. Se relatasse a eles que o companheiro é
que estava com a água, o companheiro poderia alegar que
nunca tinha me visto, que era morador da cidade, e eu estava
só de passagem, e o castigo seria ainda maior. Neste
envolvimento de pensamento e chibatas a tocar o chão, fui
despertado do meu devaneio pela fala do capitão do mato.
-Bem, senhores, não sei o que procuram, por isso peço
prudência neste inquérito, pois este negro está na diligência
do comendador Belar, e não tirei os olhos dele sequer um
instante. Então observem bem para que não haja enganos,
porque terão de se ver com o sr. Belar.


-Tudo bem -falou o comandante da busca. -Ordeno que
retire as calças para vermos se a pepita está com ele.
Fiquei mais confuso. Será que o nome daquela água era
pepita? E como eu poderia guardar uma garrafinha dentro de
minha calça?
Com a ponta da chibata, ele bateu na minha cabeça e gritou:
-Agora!



Mais uma vez, eu estava exposto. Retirei a calça, e ele
rodopiou várias vezes em volta do meu corpo. Não satisfeito,
mandou que eu agachasse e, depois, que retirasse a blusa.
Estava nu de corpo e alma. Voltei à minha África e senti a
morte me avizinhar, pois os cães latiam, a chibata ressoava no
chão e a raiva irradiava pelos poros do capitão. Tudo
concorrendo para o extermínio.
Um bofetão recebi, e ele falou:
-Fala, negro, onde escondeu a pepita que você roubou?
-Não roubei nada, fiquei aqui o tempo todo, pois pertenço ao
comendador Belar -justifiquei-me.
Naquele momento, um dos capitães interveio, e a ele devo a
permanência da vida na carne.
-Calma aí! Ele é homem do comendador Belar mesmo, e não
saiu daqui hora nenhuma, está sob nossa mira o dia inteiro.
Passando, o carrasco, falou:
-Sorte sua, pois iria ficar sem mão hoje. Um dos
tropeiros aproximou-se e disse:
-Vista sua roupa, senão vai congelar, e tome esta água. Ela vai
te aquecer. E mais uma vez bebi daquela água ardente.
Os homens se afastaram e, após um segundo, escutamos:
-Ele está aqui.
Pegaram o coitado com a pepita de ouro.


Levaram-no para o pátio onde estávamos. Pedi proteção aos
deuses para mim e para ele, pois sabia que iria presenciar
mais um desastre humano.
Fizeram ali mesmo o julgamento, pois, pela comarca, os
capitães tinham o direito de interrogar e de executar a
sentença.
Começou o julgamento, com o capitão do mato chicoteando o
chão:
-Vamos, fale sobre seu ato, qual era a sua intenção? -aplicoulhe
três chibatadas.



O negro só olhava, sem expressar um gemido sequer, pois,
por ter mentido um tempo atrás, tinha perdido a ponta da
língua, tendo a fala dificultada. Ele traiu o próprio irmão de
cor, entregando-o para o patrão, cuja sentença seria receber
ferro quente por todo o corpo. Este homem ficou deformado
na alma e no corpo e, após esse terrível castigo, tomou-se de
uma fúria inigualável e, na calada da noite, buscou o ferro
quente e queimou a língua do negro, deixando sem condição
de fala e paladar. Após alguns meses, suicidou-se.
O capitão não conhecia esse fato, e continuou a chicotear o
negro. Já irritado pelo silêncio, buscou um alicate e o levou ao
fogo. Quando estava em brasa, chegou próximo da orelha
direita do negro e disse:
-Vai falar por bem ou por mal?
O negro só murmurava e balançava a cabeça.
Ele pegou o alicate e apertou tanto a orelha do nego que,
quando parou o castigo, um pedaço da orelha ficou torrado no
alicate.
As torturas continuaram até que o capitão falou:
-Abra a boca, negro fedorento, deve ter mais ouro dentro dela
-e lhe aplicou uma bofetada com tamanha violência que,
quando o negro abriu a boca, cuspiu dois dentes.


O sangue jorrava pela boca e pingava da orelha. Por que se fez
necessário tanto sangue?
Quando capitão viu a ponta da língua chamuscada, deu uma
grande gargalhada e falou:
-Está explicado, já é um corrupto. Vou livrar a sociedade
desse entulho, ladrão e traidor.
Colocaram-no no tronco, buscaram o cutelo, estenderam suas
mãos para cima e, num único e certeiro golpe, retiraram as
duas mãos do coitado, que imediatamente desmaiou,
permanecendo assim até a morte.



Olhando com tamanha satisfação, o capitão do mato falou:
-Há anos vocês sofrem por não serem corretos nas ações. O
que leva vocês a querer castigos? E tão fácil não sofrer, mas os
sem-alma não têm raciocínio, não é? Então não importa as
dores, porque dentro dessas cabeças deve haver somente titica
-e, virando-se, saiu nos repudiando.
Noite gélida. Eu não conseguia me acostumar com esse
proceder dos homens brancos, e começava também a odiar os
irmãos de cor. Ainda hoje fico buscando a razão para entender
por que o filho criado pelo Pai Supremo se deixa seduzir pelo
fascínio do perecível? Por que as coisas do Criador são tão
árduas para nós, filhos em desenvolvimento, colocarmos em
prática?
Vemos homens comprometidos, na atualidade, com a mesma
demanda do ontem. O Evangelho foi aposentado nas estantes
do íntimo, e permite o bolor ocupar espaço no mental coletivo,
danificando, assim, o mais belo, que é a vida espiritual.
Ficamos silenciosos aguardando mais um renascer. Parece que
os raios de sol reluzem na alma nos dando bom ânimo para
seguir a jornada.
Ouro Preto, majestosa cidade, um quadro belíssimo de se
apreciar. Não sei bem por que naquela manhã, apesar dos
momentos doloridos vivenciados, não me deixei abater.
Um halo de amor exalava o perfume embriagador que se
misturava com as quitandas que eu não iria degustar e com o
perfume das floradas da época, um banquete dos deuses a
encantar nossas almas.
Aproximei-me do beiral, o que me facilitava ver o começo do
dia. Pude ver a beleza de uma cidade que mais parecia um
quadro do que realmente uma cidade em movimento. As
casas, a descer a ladeira bem esquadrinhada, me deixaram
sufocado por tamanha beleza ali emoldurada pela capacidade
do próprio homem.


Pude avistar, por entre as ruelas, uma negra carregando
quitandas, e fiquei imaginando que ela provavelmente se
utilizava da fala para vender seus quitutes, porque ora e vez
uma daquelas portas pesadas se abria e me permitia ver as
mãos buscarem as quitandas e as moedas retornarem às mãos
que ofereciam as guloseimas. Naquele momento, vi como foi
que o homem se fez escravo de si mesmo. Pela necessidade da
evolução e do poder, foi criada a moeda, o cárcere da alma.
E o homem, ainda na infância, percorre a ajuntar moedas.
Como relatei, do parapeito eu observava o delinear dos
telhados, com uma visão quase que aérea, a cidade ganhava
uma forma de um belíssimo tapete esquadrinhado. O terreno,
ora em sulcos, em alto-relevo, como um verdadeiro ondular
de formas e cores.
Os lampiões cuidadosamente sendo apagados por um
imediato da cidade, que trazia a função de acender e apagálos.
Neste plano, no qual hoje aprimoro meu espírito, tenho
oportunidade de visitar a bela Ouro Preto. Sento-me no
mesmo parapeito e me delicio com a beleza dessa cidade
singela, mas ao mesmo tempo oro por tantas almas que se
seduziram por esse magnetismo embriagador que traz esta
estância na Terra e pelos que hoje transitam na luxúria dos
vícios de todas as ordens.
Num destes momentos, fui acompanhado por Neil, e ele me
viu rogando ao Pai Maior e me pediu que inspirasse de novo a
prece que, junto a mim, iria direcionar também aos irmãos
cárceres de si mesmos.
Envolvi-me em profundo amor e falei:

"Santíssima Mãe, mulher que prossegue na jornada planetária em busca do
reajuste dos filhos aprisionados no martírio da vingança, concita junto ao Altíssimo

o alimento para as almas que estão aniquiladas por não saberem perdoar.

Oh! Doce Mulher, que somente de teu ser exala a sabedoria, envolva teus filhos
entorpecidos no ódio inseparável e eleva-os ao encontro do Criador, para que sejam
tocados pelo halo de paz.
Que assim seja!"


Escutei ao longe badaladas e algumas senhoras apressadas
para a missa dominical. O padre, na porta da catedral central
de Ouro Preto, já as esperava, para abastecê-las com palavras
de bom ânimo.
Vi minha princesa, depois de alguns dias, sendo acompanhada
pelo comendador e pela mucamba. Voltei a minha mente aos
prazeres sexuais que desfrutei com ela, e me julguei injusto
pela recordação que trazia de minha mulher e meu filho.
Permaneci ali a divagar nas lembranças de Zambe.
Em Zambe não tínhamos as missas dominicais, mas nossa
tribo trazia e ainda traz a reverência aos nossos deuses, e
trago esse movimento todo na minha alma com profundo
respeito. Felizes daqueles que trazem, mesmo da sua maneira,
a fé inquebrantável.
Nas minhas divagações, agradeço às inúmeras oportunidades
concedidas a nós, filhos em expansão, por um Pai de Amor.
De encarnação em encarnação, encontramos e reencontramos
irmãos amorosos, que nos acolhem fraternalmente, como aqui
no espaço do educandário de almas, o nosso ministro da
cultura, que é conhecido como Fernando.
Fernando é um instrutor de amor. Sempre quando estou
profundamente recolhido, ele se aproxima e me auxilia nos
meus questionamentos. E, naquele momento, eu estava
pensando na morosidade que acomete a maioria dos filhos do
Criador, como eu.
Paternalmente, Fernando me envolveu no halo de amor e
disse:


-Pedro, qual é a sua necessidade por agora? Tenho este
espaço de tempo e estou ao seu dispor.
-Bem, Fernando, se o Pai Maior permite aos filhos os
reajustes, nos oportunizando a encarnação para que
.venhamos a compartilhar a vida e evoluirmos em conquista
de nós mesmos, sintonizados no amor que Jesus desenvolveu
como exemplo de humildade e perdão, por que o homem
ainda se embriaga pelo bezerro de ouro perecível, permitindo-
se invalidar a encarnação no precipício íntimo?
Fernando, paciente amigo, envolveu minhas questiúnculas e,
com profundo respeito, fez uma prece para que o auxílio da
resposta pudesse penetrar na esfera mental com a exatidão do
clareamento à minha pessoa.

"Oh! Divina luz, Foco imenso de paz,
Envolva o meu raciocínio para auxiliar este irmão em projeção, como eu, para a Tua
luz.
Amenize o meu eu interior e coloque o Teu comando nas expressões necessárias
para que ocorra a justa comunicação."


Fiquei extasiado com a singela oração, em poucas palavras,
com tanta sabedoria.
-Querido Pedro, Jesus nos asseverou: "perdoar setenta vezes
sete", não é? Esta questão tão difundida no nosso meio é ainda
pouco vivida, pois o homem encarnado ainda busca ficar
aprisionado no fundo da caverna íntima, somente
armazenando o que julga ser correto para ele. Utiliza da
persona, e não alça o voo da libertação, tal qual Francisco de
Assis o fez. "E dando que se recebe", mas o homem encarnado
só quer receber.
Chegará um dia em que o homem compreenderá que a escola
da vida é partilha e trabalho. Enquanto o homem encarnado


for prisioneiro de si mesmo, ele não receberá a túnica branca
que Jesus nos ensinou, pois, para usar a túnica, faz-se
necessário estar com a alma em plenitude de justiça.
As encarnações são bênçãos ofertadas pela força Criadora aos
filhos, que, pelo princípio, têm liberdade para conduzir os
próprios passos. Quando o espírito já traz consigo a
consciência, trabalha com maturidade nesses passos. Caminha
construindo e resvala em poucas ações não benéficas nos fatos
corriqueiros do dia a dia.
Mas, quando somos principiantes da lei do Pai, por negarmos
de encarnação em encarnação, caminhamos como que bebês
mal direcionados e resvalamos na própria construção.
Conquistar a maturidade espiritual requer muito amor do
iniciante ao apostolado do bem. E necessário superar as
necessidades que não elevam e que só incitam a ficar
rodopiando em várias situações.
Nós, que concorremos para as conquistas dos irmãos que
retornam à vida no vaso físico, nos sentimos também
principiantes nas experiências dos mesmos, pois a partilha se
torna um leque imenso. O livre-arbítrio é utilizado durante a
encarnação toda e muitas das ações que os encarnados
executam nos surpreendem.
Buscamos essas ações que, por vezes, os atrasam, auxiliando-
os para reajustar a jornada. Quando o espírito é pacífico,
torna-se fácil o auxílio; mas, quando são companheiros presos
ao orgulho, que são a maioria dos encarnados, temos de nos
envolver em muito mais amor, para, assim, incentivá-los à
reforma íntima.
É como se fosse uma nascente desbravando o terreno duro
para tornar-se um rio manso e determinado a correr para o
grande oceano da conquista íntima.
Cada gota, cada força adquirida é uma ação que constrói ou
destrói o curso natural da vida. Como cada proceder é íntimo


e individual, os irmãos envolvidos no decurso do processo
deveriam buscar o Evangelho para melhor proceder no âmbito
do amor.
Enquanto os espíritos estão na erraticidade, não atribuem o
somatório do dia a dia quando percorrem a escola da vida
reencarnatória, e buscam, junto aos ministros, reajustes
pesados na escolástica, não avaliando o processo da vida
como conquista lenta e gradual. Assim, quando o espírito
passa por essa escola bendita, resvala no orgulho e na
vaidade. Envereda por ações coletivas e, por vezes, cansado
de lutar contra a corrente, adere ao processo, ficando fadado a
acúmulos maiores, tendo de recomeçar em outras
oportunidades concedidas pelo Pai Maior.
Somente o Grande Mestre Jesus suplantou o abismo da
encarnação e voou o grande voo do pássaro alado.
Ele, o Espírito em Luz, buscou o reflexo do corpo para
bloquear a expansão de sua grandeza e não perdeu a fé no
Criador, demonstrando a fé imperecível.
Conduz a todos nós até hoje no exemplo perfeito de amor. Ele
foi o mais testado e, mesmo em dose de alta potencialidade,
ampliou os corpos energéticos e suplantou a dor do corpo
físico e do espírito. Exemplificou em cada segundo a toda a
humanidade. E nós, quando precisamos dar nosso
testemunho, corremos de nós mesmos, acobertamos nosso eu
superior, alimentamos nosso eu inferior de orgulho e vaidade
e nos revoltamos contra a lei divina, perdendo a belíssima
oportunidade do exercício.
O Rabino galgou o teor espiritual, e esta conquista só se atinge
com desprendimento, discernimento e amor pelas leis do Pai
Maior.
Os grupos espíritas, por vezes, utilizam-se da fantasia de
formar médiuns que venham a incorporar a pureza de alma e
trazer ao processo grandes companheiros que são canais de


amor belíssimo. Por interpretarem as letras com a consciência
atual que vislumbram no processo contextual do poder,
perdem-se na disputa que ainda vigora no meio dos
encarnados, fazendo com que as casas espíritas e outras casas
de luz do Evangelho venham a ser derrotadas pela vaidade
corrosiva.
Vemos, com grande tristeza, irmãos de reajustes incorporarem
a vaidade e o orgulho, forçando mentores a se afastar do
processo e outros companheiros de ligações de sentimentos a
compartilhar com médiuns mal direcionados e destruir os
espaços de luz criados em conjunto com o campo espiritual.
A desunião e a falta de compromisso no meio dos que se

intitulam membros efetivos de centros e fraternidades
espíritas geram dissabores e, com isso, conflitos
intermináveis.

Como nós executamos tarefas de harmonização constante,
precisamos de maior pólo magnético, que são os encarnados, e
este trabalho requer dos companheiros encarnados disposição
para o aprimoramento do intelecto. Mas o que presenciamos
são companheiros espíritas confundirem a codificação e
fazerem do eu inferior o comando íntimo, ofertando ao
mundo o desgaste de atitudes impensadas. O rodopiar de
sentimentos de apego e egoísmo leva a humanidade ao aterro
profundo. E o pior é que estão convictos de que realizam o
bem em nome do Criador. E hora de reflexão, e toda reflexão
exige questionamento, e questionar a si mesmo exige reforma
íntima.
Dentro dessa conquista, é só trabalhar servindo, respeitando e
edificando, mas o homem projeta o poder e perde a valiosa
encarnação. E como somos morosos no aprendizado, vamos e
voltamos à escola de vida buscando o aprimoramento. Darwin
trouxe à tona a beleza do princípio evolutivo, e o que o
homem faz com esta construção deixada por ele?


O que nos pertence é a simplicidade da reflexão, executada
com tanta perfeição por Francisco de Assis. Quando estiver
apto para esta mudança, o aprendiz se coloca diante do Pai
dizendo: "Pai, faça de mim o instrumento de vossa paz". Paz
íntima que eleva e constrói.

26
Conhecendo Outro Preto


Estava na bela Ouro Preto, como havia relatado, naquela
época o ponto de maior atração para os grandes de Portugal.
Como o ciclo do ouro luziu na cabeça dos poderosos, ainda
hoje, em tempo de experiência da Terra, o homem se embriaga
com o bezerro de ouro.
Se o homem se permitisse parar e observar a própria conduta,
refletiria melhor sobre os próprios atos. A natureza reclama
reajuste, mas os aprendizes ainda desafiam a criação divina.
As montanhas sustentadas pelas pedras de fortaleza aurífera
já não estão tonificadas para a sustentação adequada do
equilíbrio natural. O homem garimpa e desestrutura todo o
conjunto natural. Os animais já não trazem o alinhamento,
sendo necessária a busca pela sobrevivência em outras
condições não apropriadas para o conjunto dessa bela fauna
criada pelo Grande Arquiteto. O ar, que trazia um curso
natural, hoje embate na terra aquecendo o ambiente, pois não
há espaço natural para a purificação. Com a derrubada das
florestas, derruba-se também a oxigenação natural, e com esse
movimento as águas revoltas se ressecam, recolhendo-se e
esperando o momento certo para reclamar o fluxo correto. E o


espírito encarnado não percebe que a ambição o leva à
derrota, e terá de responder perante a lei maior. Por se
julgarem deuses, brincam de construir fortalezas, que no
futuro próximo serão a própria prisão do espírito.
Ouro Preto trazia aos colonizadores o fascínio e, seduzidos, já
encontravam nesse período uma cidade próspera. O
calçamento me encantou profundamente, pois era belo ver as
pedras todas bem definidas, em forma de paralelepípedos,
esquadrilhando as ruas e nas laterais os passeios, em largas
placas, demarcando a estrutura do isolar as casas, com belos
pavimentos, e ruas pelas quais os animais, por vezes,
deslizavam no trotar dos imponentes tropeiros.
Os tropeiros, homens de brio, trotavam em busca do
equilíbrio do comércio, sobreviviam dele e dos locais de
desembocar os materiais necessários, de troca e venda.
Homens fortes e embrutecidos pelo ofício, por vezes
esqueciam que lhes corria sangue e sentimento nas ações,
somente utilizavam da razão rasteira do vencer o outro.
Quantos ainda hoje trazem esse sentimento de tropeiro e só
querem buscar o ganho?
Após duas semanas, reenconttamo-nos em marcha ao nosso
destino, Sabarabuçu. Vejo a minha flor refeita, com seu
retorno ao ar de uma jovem inocente. A nuvem carregada da
perda já havia passado e estava organizada emocionalmente.
O comendador Belar estava também disposto a comandar de
novo sua tropa para marchar para Sabarabuçu.
Sebastião, guerreiro com potencial de um urso, ganhava, a
cada dia, maior vigor. Ele próprio falava que se morre na mata
e se vive na terra, pois foi assim mesmo que ocorreu. Ele
perdeu algo de profundo naquele dia no meio da mata, mas
ressurgiu na terra de Ouro Preto. Esta cidade marcou grande
princípio de amor. As catedrais belíssimas, que a riqueza
portuguesa registrou o poderoso domínio, decoradas com


peças belíssimas de artistas, que naquele período superavam a
própria época. E só ter olhos e ver que as expressões ali
deixadas são de dor, surpresa, medo e angústia. Os anjos
configurados a sustentar colunas expressam o temor à criação,
maneira encontrada para assegurar o coletivo, aprisionando as
estruturas que buscavam controlar o mental, para não saírem
das regras impostas pelo império.
O comendador Belar mandou me chamar, pois Sebastião já
não precisava da minha companhia. Fui até ele, e ele me
ordenou:
-Pedro, siga com sinhazinha até as vendas, pois ela quer
comprar algumas fazendas para novos vestidos.
Meu coração ficou repleto de felicidade. Pensei em falar
muitas coisas, mas, quando ela se aproximou, somente ela
falou.
-Pedro, vamos manter distância. Meu coração por ti clama,
mas, depois do ocorrido, temo por minha saúde e prefiro ficar
a distância. Conversei com minha ama, e ela é como a minha
segunda mãe. Ela me orientou muito. Devo ficar em
recolhimento e, se possível, tê-lo somente como um grande e
bom servo. Bem, devo te olhar como um escravo, pois você é
um escravo, não é?
Senti a amargura na fala de sinhazinha. Naquele momento,
não compreendi bem, mas, como ela mesma falou, sou apenas
um escravo e devo me colocar como escravo.
Seguimos. Como sempre falante, a moça continuou:
Vou contar-lhe algumas coisas desta bela cidade. Quero que
venha conhecer a história, que lhe será muito importante, meu
escravo predileto. Neste momento, senti vergonha, pois queria
sentir mais uma vez a carícia de sinhazinha e tive de me conter
como negro, escravo. Ainda hoje os espíritos encarnados se
colocam diante dos irmãos de cor com grande diferença. Já estamos
em uma era tecnológica, mas o homem, na essência, rasteja nos seus


preconceitos.
-Bem, Pedro, esta vila que hoje apreciamos com tal
magnitude foi construída por homens fortes e bravos, que
enfrentaram os selvagens. É de conhecimento que ainda
somos vigiados por eles, que fizeram de muitos bandeirantes
refeições. Superaram e se posicionaram para se fixar na terra,
tiveram de aprender a andar com maior flexibilidade e a se
adaptar à alimentação. Tudo muito diferente da nossa terra
portuguesa. Este pedaço de terra a perder de vista não
afugentou os grandes homens, pelo contrário, os aguçou a
ficar e a se enraizar neste terreno.
Agora vou te contar um segredo. Alguns dos homens
mandados para cá eram os banidos, que já não tinham
condição de ficar em Portugal, e nosso rei os mandou para
redirecionar a vida.
-Posso te fazer uma pergunta?
-Sim, Pedro.
-São homens maus, como aqueles que destruíram a minha
vida e a dos meus familiares?
-Mais ou menos, Pedro, mais ou menos. Bem, depois te conto
mais.
Como é triste buscar a evolução por meio da derrota do outro,
não é? As vezes fico aqui observando os homens que buscam a
construção de uma cidade. O egoísmo aprisiona suas energias,
e eles não caminham para a própria libertação. Assim são os
homens, eternos prisioneiros, que trazem fendas imensas,
mergulhados na inconstância do vai e vem.
Sinhazinha continuou a relatar:
-Esta vila, no início, foi a cidade de maior circulação. Trazia o
potencial de trânsito de ouro. Outras terras desbravadas pelos
destemidos portugueses os fizeram alcançar esta grandiosa
vila. A cidade recebeu o nome de Vila Rica por causa da
abundância brilhante que a terra traz.


A arquitetura é desenhada, e posso até falar bordada, porque
quando se olha por cima dos parapeitos parece um tecido
bordado com muito capricho. Foi desenvolvida por artistas,
como o famoso Aleijadinho. Apesar de trazer dificuldade,
como falam, pois não o conheço, é um artista exímio, vou
levá-lo às igrejas e você comprovará.
Sim, hoje, com olhos de ver, posso apreciar de outra maneira
as esculturas desse artista. E, se posso me intrometer como um
apreciador das artes, atrevo-me a dizer que a visão de
Aleijadinho, no contexto que vislumbro, demonstra homens
de fisionomia forte, sobrecarregadas, vigilantes e austeros,
anjos sobrecarregados, guardiões da soberania de Deus.
Belíssimos, mas que trazem uma mensagem de sobreposição
ao poder, mas ao poder do temor castigado. Quanto ainda o
próprio homem utiliza dessa arma para aprisionar os próprios
homens! O livre-arbítrio é lei divina, como também colherás o
que plantares. Há milênios se divulgam esses preceitos,
contudo, os homens utilizam armas para demonstrar o poder,
que sustenta a torpeza de espíritos principiantes no caminho
do Evangelho.
Jesus é a fonte da libertação, e isso já é de conhecimento, mas
os homens bebem da fonte íntima e matam a própria
oportunidade de se libertar pelo amor, e também, como é de
lei, só se libertarão pela dor. Que pena!
Assim, sinhazinha, como sempre apressada, continuou
falando:
-Eu o levarei à matriz para poder apreciar tamanha beleza.
Papai nos levará para receber a bênção do padre Fulgêncio.
Desde que chegamos aqui, estive com ele, que me contou
várias histórias desta bela cidade.
Olha, Pedro, ali está o padre. Quero que você o conheça, e
também ainda sinto necessidade de falar com ele, por mais
uma vez, antes de seguirmos para Sabarabuçu.


Eu estava embevecido e, ao mesmo tempo, tonto com tantas
informações. E as informações, para uma mente que não tem o
conhecimento prévio, tornam-se, às vezes, um castigo, pois
temos de nos desdobrar para compreendê-las.
Gomo fui conduzido a conhecer o que os céus ocultavam, não
me sobrecarregava de ansiedade pelo conhecimento. Apenas
ficava observando. Sei que muitas informações ficaram
margeando minha mente, pois minha área cognitiva nessa
encarnação estava comprometida por causa dos abusos
presenciados desde a minha captura. E isso mesmo,
começamos a bloquear o conhecimento quando somos
solicitados a reservar e preservar a vida das agressões que
sofremos. Aí, nossa área emocional fica sempre em alerta,
esperando o próximo ataque, e com isso nos enclausuramos na
defesa para suportar os ataques. Ermerlinda falou:
-Bom dia, padre Fulgêncio. Como o senhor vem passando?
-Bem, sinhazinha.
E fitando-me e percebendo quem eu era para sinhazinha, pois
ela havia confidenciado a ele sobre nós, logo ele falou:
-Este é o escravo de confiança de seu pai, não é? Gelei com as
palavras bem entoadas pelo padre, e
ainda senti, na firmeza daquele homem, que representava a
ordem de Deus naquela vila, que eu havia traído meu dono,
ultrapassado os limites de um escravo.
-Bem, apresente-me o melhor homem de seu pai, pois ele um
dia poderá ser, para mim, também um homem de confiança.
Como as palavras se tornam um tormento quando estamos
fora da ética! Perante o comendador, eu era como um traidor.
Abaixei a cabeça e não ousei olhar o representante de Deus.
Mesmo sendo escravo, eu sabia dos meus compromissos e
deveres.
Após sinhazinha fazer a apresentação, ela falou:


-Padre Fulgêncio, posso entrar na Igreja com minha ama e
Pedro? Só quero pedir proteção para o término da viagem até
Sabarabuçu.
-Sim, filha, mas não se esqueça de guardar os devidos
lugares.

Entrei pela porta central, que era imensa. O poder da Igreja já
começa pela parte externa. A altura e a suntuosidade nos
deixam menores, e naquela época a cultura de Portugal se
estendia até Vila Rica. O homem era regido pela cultura
religiosa do catolicismo, que demonstrava que o homem
deveria se colocar diante da hierarquia, que era assim
sequenciada: serafins, querubins, tronos, dominações,
potências e virtudes.
Nos degraus mais próximos da Terra estão: principados,
arcanjos (ex.: Gabriel, Rafael, Miguel, etc.) e os anjos.
E, por fim, os homens. Se os homens se encontravam na escala
10, onde estaria eu, negro, escravo e sem alma?
Sinhazinha, como uma pétala de flor, tocou no meu ombro
esquerdo e falou:
-Pedro, você e minha doce mucama ficarão do lado esquerdo,
próximo da entrada, pois é reservado a vocês. Irei mais à
frente rezar.
Fiquei extasiado e, ao mesmo tempo, amedrontado. Parecia
que os anjos me repreendiam e me culpavam. Como
movimentar meu corpo? A opressão da energia da Igreja
coibiu meus movimentos.
Como é interessante! O homem ainda projeta arquiteturas
faraônicas e com elas, sem palavras expressas, mas em código
erguido de paredes concretas, define quem comanda o
espetáculo. Poder, poder e poder, sendo que por este poder
muitos, em nome de Deus, destroem.
Respirar ali dentro tornou-se um processo difícil, pois o
silêncio profundo, naquelas paredes fúnebres, me sufocava.


Os anjos, como relatei anteriormente, os santos e até Nossa
Senhora me olhavam com reprovação. Aí me envergonhei
diante das imagens.
Hoje, creio que o verdadeiro objetivo é de trazer a profunda
meditação a todos os homens, independentemente do sexo, da
cor ou do poder aquisitivo.

O tempo da evolução percorre, e a intimidação que a religião
buscou colocar aos homens, perante a lei divina, muito pouco
clareou a mente do espírito em construção. Ainda vemos
homens buscar o conforto sem querer a própria reforma
íntima.
Os templos erguidos, as seitas edificadas, os centros espíritas
coordenados nos princípios kardequianos trabalham sem
esmorecer, despertando os espíritos encarnados e
desencarnados. Mas o homem-espírito insiste em permanecer
na ilusão. E quem ainda fica na ilusão chora por não se
permitir evoluir.
Faço um convite a todos os espíritos encarnados, que utilizam
da oportunidade da vida corpórea: modifiquem, nesta vida, o
próprio sentido irreal que nos faz escravos de nós mesmos;
saiam do quilombo mental e respirem a supremacia do
Criador. Verão como é simples viver e respirar a atmosfera
que Francisco de Assis respirou, e puro de alma, como ele, se
tornarão.
A jornada dos principiantes ao apostolado com o Cristo Jesus
se faz degrau por degrau, e feliz daquele que se oferece para
ousar o primeiro degrau. Este começa como eu, matriculando-
se no educandário do Peregrino, e esta escola é o melhor
exercício a ser executado, pois eleva nosso padrão de amor.
Ofereça-se hoje para a lista dos apostolados de Jesus, pois
somos necessitados da luz do conhecimento do Pai.


27
A presença da discriminação


De repente, escutamos:
-Andem, andem, seus molengas!
Sem entender, nos afastamos da porta central, e passou por
nós uma comitiva de condes visitantes de Portugal. Que
suntuosidade e, ao mesmo tempo, quão soberbos se
apresentavam. Uma das filhas desse casal passou por nós
tampando o nariz e fazendo vômitos. Como os companheiros
de jornada sentem nojo uns dos outros? Em qual tecido eles
são fabricados, para se julgarem seda pura?
Próximo do altar se encontrava sinhazinha, em grande
euforia, conversando com um noviço. E, apesar de ele ainda
não ter professado os votos, ela já o chamava de padre João
Benedito. Vim a saber que ele era nascido na região e, com
propriedade, podia relatar para Ermelinda a história tão
buscada, pela jovem, sobre Ouro Preto, Vila Rica ou Vila
Pobre, pois nesse período histórico já se confundiam os
nomes. Dependia de quem o pronunciava e do objetivo que se
queria alcançar politicamente.
Ouro Preto já sitiava a escola formadora que os padres
conduziam para profissionalizar os habitantes pertencentes a
essa majestosa cidade.
O noviço chamou sinhazinha ao pátio da igreja, pois a família
visitante exigiu silêncio e menos euforia. Queriam ficar em
oração.
Seguimos os dois e nos posicionamos próximo a eles. Pude
escutar a história que relato a vocês:
"Bem, nos registros da Câmara se encontram os passos
travados pelos destemidos chefes das bandeiras, como
Antonio Dias, saído de São Paulo, da cidade de Taubaté, em


1698, e que com os próprios braços instituiu a Capela de São
João. Ali foi inaugurada a Vila Rica, e no Tripuí começa o
povoamento. Eles estavam a serviço da Coroa e descobriram
que aqui a terra estava banhada de ouro. E só você observar as
gemas belíssimas que contornam as formas dos acabamentos
das igrejas, que são lindíssimas peças bordadas pelos artistas.
Até mesmo nosso querido Aleijadinho utilizou, com
propriedade, esta riqueza natural. Em 1708, deu-se o conflito
dos emboabas, luta que envolveu paulistas e portugueses.
Como a história dos homens é composta de dor, desilusão,
angústia e perdas, não é? O espírito encarnado já traz
conhecimento de ação e reação, mas insiste em perdas
temporárias, sabendo que a corrigenda é a consequência.
E, assim, seguiu o noviço coroando Ermelinda de informações
sobre a exuberante Ouro Preto. Com esse crescimento e a
busca do ouro, Vila Rica se encontrou com a necessidade da
cobrança do quinto, e a Coroa assumiu o comando. Nesse
período, sinhazinha, uma mocinha jamais poderia estar
conversando assim como você está agora. A Coroa era bem
mais rígida, e as mulheres não tinham espaço nenhum de
expressão na sociedade. Somente nas questões religiosas elas
podiam e deveriam participar. Como você bem sabe, as
mulheres representam a mãe, tal como Nossa Senhora, e são
as educadoras do lar, não é, mocinha?
Falam-se também das bandeiras, escudos e cultura que os
portugueses trouxeram nas jornadas, desbravando terrenos.
Com eles, os jesuítas foram mandados pela Coroa para
evangelizar os gentios, homens-índios sem a alma de Deus.
Observe os índios, Ermerlinda, que enfileiram a caravana de
seu pai. Não são eles mais lentos e mais preguiçosos? Não são
como crianças? Mas são mais dóceis que os escravos negros,
que sempre são vistos em praça pública a receber castigos.


-Mas padre, interrompeu sinhazinha, Sebastião não é sem
alma, nem preguiçoso e, muito menos, criança. Ele é o braço
direito de meu pai, e eu gosto muito dele.
-Muito bem, você ainda é uma criança que leva tudo para o
campo pessoal. Mas, como ia lhe contando, foi estabelecida
aqui a ligação com o Rio de Janeiro, de onde você se originou,
não é?
Bem, pelo que sei, a caravana de seu pai passou por alguns
atropelos para chegar aqui em Vila Rica. Imagine como foi
pesado e quantos transtornos os homens das bandeiras devem
ter passado para definir o caminho e recortar as matas para
chegarem até aqui!
-Sim, continue padre, está fascinante.
Se para ela estava fascinante, para mim estava torturante, pois
era muita informação. Fico imaginando em que época o
homem se fez escravo.
Hoje tenho as respostas, pois Neil me auxilia e explica que o
homem se tornou escravo a partir do momento em que
ganhou o livre-arbítrio. Com o próprio gênio ganhou,
também, a escravidão de si mesmo, e posso compreender
perfeitamente esse processo hoje, pois somos o que somos nos
nossos atos, falas e nas manipulações que nos acorrentam ao
quilombo íntimo.
Bem, voltando à história de Ouro Preto, fundam-se as
irmandades que gerenciam as estruturas das igrejas, tanto dos
nobres quanto dos negros. A Câmara surge com toda a força,
colocando lei na terra, e cada espaço ganha as diretrizes, mas
todas com um único fundamento: a Coroa. Após esses
ajustamentos, encontrou-se a necessidade de se ter mais
escravos, e estes foram trazidos da África, pois os gentios não
serviram para o trabalho braçal nas minas de ouro.
Escutamos um badalar. O noviço levantou-se com grande
euforia e falou:


-Está na hora, sinhazinha, tenho de ir.
-Está na hora de quê? -sinhazinha indagou.
-Do coral, e faço parte dele. Tenho de seguir, pois o padre me
aguarda também para as tarefas do dia. Que o bom Deus
acompanhe você e sua família, Ermelinda, até Sabarabuçu.
Sinhazinha aproximou-se da porta central e fez sinal para que
permanecêssemos onde estávamos. Esperamos por alguns
minutos, e um piano, com um som nunca ouvido, começou a
ser dedilhado por dedos sacros, e vozes entoaram cânticos
embriagantes. Como foi bom esse momento, que melodia, que
vozes, que bem-estar!
Fiquei maravilhado com a docilidade das vozes que, em um
único som, entoavam em prece ao Criador. Como é perfeita a
casa do Pai! Todos nós fazemos parte da grande orquestra
dessa arquitetura belíssima. Tomemos consciência do nosso
papel diante do irmão. Se fazemos parte dessa orquestra,
somos responsáveis pela sinfonia, e é muito prazeroso tocar a
nota certa e compor a canção de paz.
Sabemos, hoje, que Ouro Preto foi beneficiada por artistas que
traziam a cultura dos teatros, das letras, que, com primazia,
enalteceram inúmeras páginas, deixando o registro cultural da
época.
E sempre assim. O Pai Criador envolve o filho, que gladia
consigo mesmo por meio dos exemplos de sensibilidade e de
conduta daqueles que se esforçam para crescer no campo da
evolução maior. E estes são os exemplos para os que
guerrilham, sendo que é só no amor que se vence.
O homem ganha o direito do retorno ao mundo dos
encarnados, e ainda, por bloqueio íntimo, busca a rota da
esquadra dos falidos e estende no mastro maior a bandeira da
derrota. E nessa derrota caminha, de oportunidade em
oportunidade, comprometendo-se cada vez mais consigo
mesmo.Acordar é o objetivo que devemos todos utilizar, pois a


direção é a luz e esta foi dada pelo Mestre dos Mestres.
Hoje posso voltar à história registrada por Aleijadinho,
homem que caminhou com todas as dificuldades no plano
Terra e que deixou marcas de expressões significativas, que
evocam aos prudentes reflexões maiores. Como já é do
conhecimento de todos, ele também experimentou as coisas
terrenas sem muita censura, o que o levou, possivelmente,
após o estágio na Terra, à maior reflexão.
Não julguemos, pois também somos fracos, e nossa condução,
por várias vezes, também torna nosso caminhar enfraquecido
para as coisas do Pai.
O lume de Ouro Preto nos mostra a magia do homem, que
impregnou as ruelas com as obras formando o duplo de
satisfação e dor ao mesmo tempo, pois enquanto uns
projetavam a festa, outros (escravos) projetavam angústia.
Limpar, lavar e perdoar é o caminho da luz do espírito
elevado, mas sabemos que poucos trazem esse amor no
coração.
Quantos passos já foram trabalhados nesse contexto de cores
fortes, tal qual uma colcha de retalhos, e a bela cidade, cada
vez mais, aprimora a vibração do Pai.
Por isso devemos, não só em Ouro Preto, mas em todos os
contextos do planeta, orar pelos aflitos e falidos, pois são
todos necessitados da organização lógica para continuarem a
jornada da evolução.
E chegada a hora de retornarmos à jornada que nos levará a
Sabarabuçu, onde sitiei um período da minha encarnação.
Sagrada terra que me acolheu e edificou a minha vida, pois
me pacifiquei.

O comendador Belar reuniu todos para a bênção. No grande
pátio, o padre veio para espargir a água sagrada na realeza,
nos tropeiros e na carga. Nós, os escravos, não fomos
abençoados. Era assim, pelo comando do clero, somente os


amoedados receberiam a bênção, pois esses pagavam os
tributos ao rei de Portugal.
Como a moeda compra prazeres e derrotas! A história se
repete em todos os âmbitos sociais. Observe o seu tempo, as
ações não são parecidas?
Logo após a bênção, moedas rolaram das mãos de Belar e
encontraram o aconchego das mãos do padre, e do padre para
as missões. E saímos em marcha para o arraial de Roça
Grande. Seria o primeiro lugarejo pelo qual passaríamos, pois
uma carga de farinha para troca com mandioca se realizaria e

o comendador queria assistir a esse momento, já que iria
permanecer em Sabarabuçu.
Um lindo amanhecer, com o sol a despontar, matizava a
estrada. As sombras bordavam as laterais, contornando o
quadro de Deus. Que moldura linda faz esse encantamento
divino! Permitam-se ver o Deus artista, que inspira os homens
de dom apurado a transferir para as telas os terrenos sagrados
da criação!
A alegria era translúcida na face de sinhazinha, que já
sonhava com uma Sabará idêntica a Ouro Preto, onde iria
desfrutar das festas que envolviam a corte, constantemente,
com artistas da maior hierarquia. Mas mal sabia que Sabará
ainda se encontrava com algumas dificuldades.
Caminhamos por mais cinco longos dias. As mulheres traziam
maior dificuldade, e Belar, homem nobre, cuidava também
das mulheres escravas, que, por muitas vezes, eram suas
amantes. Essa ação era normal, ainda mais quando o senhor
era viúvo.
Já se mesclava o fim da tarde com o anoitecer quando
chegamos. Invadida de grande emoção, toda a tropa se
contagiou, e voltei a Zambe. O rio que cercava Sabará
chicoteava mostrando sua força de comércio. Vimos
embarcações deslizar, a bailar as encomendas e mercadorias de

todas as ordens.
Senti vontade de me banhar naquelas águas, mas fiquei só na
vontade naquele momento, pois não era mais senhor dos meus
desejos.
O curso do rio no poente do sol concluiu o quadro, e nesse
momento lembrei-me de meu filho. Foi um dos últimos
quadros em que lhe falei no pequeno ouvido sobre o deus sol.
E fui mais longe em meus pensamentos: será que ele se
assemelhava a mim ou a Tuanã?

Bem, Sabará, pelas ações dos homens, perdeu o fluxo das
águas, mas este fluxo, se o homem trouxer a sabedoria, poderá
ser novamente recuperado. Mas os filhos que o Pai Maior nos
dá, estes, se não soubermos cuidar, não se recuperam, e
choramos pela falta do compromisso que não tivemos com
eles. Por isso, ainda se faz tempo de vocês, pais da atualidade,
meditarem realmente sobre o que querem para seus rebentos,
que se tornarão pais no futuro. Corrigir o fluxo de um rio
causa dores, mas não se deixam marcas para sempre. O rio,
por sua própria força, recupera o bem-estar, mas uma alma
mal cuidada leva anos para recuperar ou até encarnações.

28
Previlégios e castigos na casa de Deus


Sabarabuçu era uma cidade acolhedora, de aspecto suave, com
alguns retoques evidenciando a cultura europeia. O sitiante do
local já adaptado à área misturava os costumes com os que o lugar


pedia.
Um belo cortejo não podia faltar, pois o comendador Belar já era
aguardado com ansiedade. A comarca, com os membros, recebeu
aquele que iria, juntamente com eles, servir à Coroa.
A expectativa era grande com a chegada de Belar para
impulsionar Sabarabuçu a se tornar uma segunda Ouro Preto.
A banda de música, o coral da igreja e as quitandas deliciosas
fizeram a festa ficar mais colorida. Tudo foi organizado pelos
mensageiros e representantes da corte.
A recepção não poderia fugir aos padrões da época. Em frente
ao casarão do comendador Belar, a festa durou cerca de uma
hora, devido ao cansaço de todos.
Por seu sentido aguçado, os bandeirantes sabiam que em
Sabarabuçu corria o veio do ouro também, e ali seria um
portal bem localizado para o fortalecimento da circulação dos
tropeiros que se comunicavam com Vila Rica.
Sinhazinha corria pela casa com tristeza nos olhos, pois o
casarão bem rústico não lhe agradou. A casa do Rio era a
referência formada em sua mente, e mudar de padrão foi a
morte para ela.
Nessa experiência, Ermelinda trouxe a necessidade de superar
a angústia arrastada de várias existências, e as perdas se
tornavam muito difíceis para ela. Como o espírito, para a
evolução, necessita de trabalhos profundos, o sentimento é um
dos fatores emergenciais para a libertação do apego.
Jesus, na jornada da escolástica planetária, pleiteou o amor
como base profunda da expansão do espírito ao retorno à Lei
Divina. Ensinou-nos a amar a todos e a tudo, mas ainda nos
subdividimos e complicamos a escalada.
Os sentimentos são formas-pensamento impostas por um vício
coletivo que arrasta os irmãos ao irreal contínuo,
quilombando almas perdidas e bloqueadas para a real posição
de liberdade.


Assim, Ermelinda, por várias vezes, ficou no quilombo íntimo,
nas torturas mentais da punição construída por suas próprias
ações.
Libertar a mente de construções rodopiantes é o dever de
todos que já buscam o Evangelho como expressão de vida.
Após a noite de refazimento, Belar convocou eu e Sebastião
para segui-lo na visitação aos lugares de Sabarabuçu.
Dirigimo-nos, primeiro, à igrejinha próxima da fazenda. Belar
era profundamente religioso e, como comendador, teria de
também dar o exemplo de serventia ao papado, e seguimos no
agradecimento a Nossa Senhora pela viagem e pela acolhida
nas paragens necessárias que o transcurso exigiu.
Presenciamos escravos velhos serem castigados por não mais
conseguirem realizar o trabalho determinado. Estavam presos
ao tronco, com correntes atadas nos punhos, que já estavam
sangrando.

Belar perguntou ao capitão o motivo da tortura, e ele, de
pronto, respondeu todo orgulhoso.
-Ora, sinhozinho, o senhor conhece bem a lei, não é? Pois
bem, não trabalhou pagou.
-Mas são velhos e a esses cabe o devido respeito -reafirmou o
comendador.
-Já sei que vamos ter problemas com suas ideias por aqui. E
melhor o sinhozinho se informar como a ordem é trabalhada
aqui em Sabarabuçu. Como foi determinado pela Coroa, todos
os escravos preguiçosos e desobedientes teriam de ser
punidos em praça pública. Faço o que mandam, e aqui a lei é
seguida, pois o padre tem grande força e eu não discuto.
Observei o olhar daqueles homens e senti a amargura que o
tempo calejou, e por estarem calejados pelas punições, a tristeza se
tornara a forma de vida deles.
Hoje, no campo em que me encontro, ainda oro pelos companheiros
que estão nos troncos aprisionados no inconsciente, trabalhando a


fúria da vingança.
Como é doloroso caminhar no campo mais sutil de Sabará e
rever sentimentos não bem desenvolvidos conclamarem por
ajuda, perdão, vingança e outros processos, ora de dor, ora de
raiva, ora de arrependimento! O teor vibratório dos
companheiros é de suma importância. Qualquer lugar do
planeta Terra onde o homem aprisionou e aprisiona o irmão
para ser seu escravo registra o magnetismo de raiva e dor.
Jesus nos ensinou que só o amor abranda multidões de
pecados1, e como o Evangelho é o caminho para o encontro do
Pai, tanto os encarnados como os desencarnados que já
trabalham na Luz Divina devem intensificar a chama da fé e
multiplicar a corrente do amor.

O Mestre rogou ao Pai: "Perdoai-os, pois eles não sabem o que
fazem2".
Perdoemo-nos para fazermos parte da grande alavanca do
aprimoramento planetário. Refutem a ideia do ouro, pois este
esmaga e aniquila a vida.
A adoração ao bezerro de ouro foi tão bem clareada pelo
rabino! Ele próprio afirmou que tivéssemos olhos de ver e
ouvidos de ouvir.
Renovação é a proposta da reencarnação, mas o verdadeiro
serviço é esquecido quando o espírito se encontra na lida do
corpo. Ampliar, desenvolver, envolver e multiplicar os
talentos foi ensinado pelo Peregrino.
Palavras e ações já se multiplicaram nas páginas de vivência
de todos os envolvidos na trama deste orbe por muitos
companheiros que se colocaram a servir ao próximo. Cabe a
nós seguirmos os exemplos.

¹ Pedro IV-8.

²Lucas XX1I-34.


A mente se torna turva e bloqueada quando entorpecida por
ações impensadas. Voltemos à organização lógica do Criador,
amar ao próximo como a si mesmo. Façais ao próximo o que
gostaríeis que ele vos fizesse, vá ao serviço como se fosse a
última oportunidade a ti concedida, assim sentirá o
verdadeiro prazer da vida, que é primordialmente amar a si
mesmo e ao próximo como Jesus nos ensinou.
Pensativo, Belar adentrou a Igreja, e nós ficamos do lado
esquerdo, próximo da entrada. Orei aos meus deuses e, nesse
momento, escutei gemidos. A medida que o silêncio ganhava
mais vulto, mais audível, para mim, ficava o lamento do
irmão que se encontrava aprisionado nos fundos da igreja,
que mais parecia um calabouço, pois esse era o espaço que o
padre utilizava para castigar aqueles que lhe desobedeciam.
Gretas no altar levavam nosso imaginário longe, pois pude
perceber uma rajada mais escura se movimentando ali.

Mas, como escravo, deveria permanecer em silêncio, e foi o
que fiz. Voltei meu olhar para o interior da igreja, pequena,
mas singela a igreja de Sant'Ana.
Comendador, homem elegante, vestia-se como um aristocrata
e impunha respeito por onde passava. Trazia consigo uma
carta de apresentação da corte, que lhe dava autonomia em
qualquer atitude que viesse a tomar perante a comarca, e
como o padre também fazia parte da comarca, teria de
responder a qualquer pergunta.
E assim começou o interrogatório de Belar, após as orações:
-Padre Cirlinano, que som é esse? E um gemido ou um rato a
roer no porão?
Desconcertado, o padre raspou a garganta e respondeu:
-Sabe, sr. Belar, aqui tenho de obedecer às ordens, e o castigo
para o escravo é aprisioná-lo atrás do altar e deixá-lo sem


água e sem comida. Dói-me, mas como o senhor bem conhece
a lei, eu apenas a cumpro e fico rezando para Sant'Ana.
Ele falou com um ar de sarcasmo:
-Mas padre, estamos na casa de Deus, não é? Ou aqui já se
torna a representação do purgatório, hein padre?
Bem incomodado, Cirlinano bateu com o pé por três vezes no
altar, que era feito de tábua e, então, ecoou dentro da Igreja, e

o silêncio se fez.
Fiquei com aquele choramingo na minha cabeça e imaginando
o que aquele irmão ou irmã estaria passando.
Saímos, e Belar fez questão de dar a volta por detrás da Igreja
para ver exatamente a solitária.
Atrás do altar havia uma portinha em que o negro entrava
bem encolhido, pois o espaço era mínimo, e permanecia
confinado ali, às vezes, por dias. Quando não morria, era
retirado, e os próprios companheiros tinham de recuperá-lo.
Vim a ter conhecimento que ali, na própria Igreja, estavam
enterrados corpos encomendados dos nobres da redondeza,
ou melhor, engavetados no assoalho. Havia muitas
contradições. O que se passava na cabeça daqueles homens
que desafiavam a Deus com seu poder financeiro e, depois,
por temer o próprio Deus, pediam para ser enterrados dentro
da igreja para assegurar o céu? Dualidade, pois a própria
Igreja castigava os sem-alma, deixando-os enterrados vivos e
sem recursos para a sobrevivência.
Quantos desencontros! Os senhores de engenho e nobres, que
por hierarquia tinham o direito de ser enterrados na casa do
Pai, e a mesma casa castigava os que serviam os privilegiados
de Deus.
E assim caminha a humanidade, punindo, cobrando, matando
os companheiros de jornada e, depois, recorrendo à sua crença
para libertar a alma dos pecados.



A repetição dos atos malconduzidos torna o homem
encarnado falido. No banco do amor, nenhuma ação é
contabilizada, mas, como está acostumado a comprar, julga
que no terreno do Pai ele compra a passagem para o reino
eterno.
Esquece da lei divina e caminha titubeando na própria lei.
Buscar a vivência do Evangelho é o banco mais seguro para
aquele que almeja ser um candidato ao apostolado do Cristo
Jesus.

29
Um lugar sem lei


No lado externo da Igreja pude alcançar, com meu olhar, o
grande sino. Uma sensação estranha correu a minha coluna, e
então escutei uma voz bem próxima a falar:
-O próximo será você, negro.
Mais arrepiado fiquei, olhei para todos os lados e não vi
ninguém. Lembrei, nesse momento, do nosso curandeiro, que
havia me ensinado a conversar com os mortos. Recolhi-me por
um segundo e perguntei, em um sussurro:
-Será o quê?
E agora, com mais vigor, a voz falou:
-Morrer!
Arrepios, medo e angústia. Creio que quando os médiuns não
estão trabalhados no exercício da mediunidade devem sentir o
que eu senti naquela hora. O pânico se instala em nosso consciente e
bloqueia nosso domínio como filhos do Pai.
Se permanecermos no pânico, abrimos as fendas e perdemos o


controle de nós mesmos.
Eu me locomovi mais depressa para ficar livre daquela
sombra, mas ouvi outra voz, que era de uma criança. Ela
chorava e eu não conseguia vê-la, e me pus em oração ao Deus
do firmamento. Pedi proteção para aquele ser pequeno e,
como pai, voltei o pensamento ao meu filho e orei por ele
também.

O choro persistia e, no meio dessa desordem espiritual que
registrava, o comendador continuava o interrogatório com o
padre.
Comecei a temer aquela Igreja, e saí desse conflito quando o
comendador Belar passou por mim e disse:
-Vamos, homem, tenho pressa. Não estou gostando do que
vejo por aqui. Terei de investigar melhor. Está bem próximo
da minha moradia e, como agora faço parte desta região,
tenho de pôr a limpo essas ordens dadas a este padre. Vamos
bem depressa até a Câmara.
Em direção à sede central de Sabarabuçu encontramos
Sebastião apressado com uma mensagem para o comendador.
-Senhor comendador, pediram para lhe entregar esta
mensagem urgentemente. O senhor determinou que
ficássemos zelando por sinhazinha, mas o mensageiro do Rio
aguarda resposta e tem pressa. Por isso, pedi à mucamba que
não tirasse os olhos de sinhazinha e que ela permanecesse
dentro de casa. Agi correto, não agi?
-Sim, Sebastião, me dê este bilhete.
Belar afastou-se e leu a mensagem, transfigurando-se
completamente. Tornou-se pálido, pois já trazia a preocupação
com o padre de Sant'Ana, e agora, com o bilhete, o processo
havia se agravado.
Por alguns segundos ele parou e ficou pensando. Depois
falou:


-Sebastião, irei à Câmara para registrar minha chegada e
relatar o que presenciei. Retornarei para conversar com o
mensageiro. Peça-o para aguardar.
Fomos em direção à Câmara. No percurso até a parte central
de Sabarabuçu, seguimos margeando o rio e pude, apesar da
pressa do comendador, ver uma embarcação correndo e outro
tribunal acontecer, com outro irmão de cor. Os homens
gesticulavam, esbofeteavam o negro e preparavam o alicate na
brasa, que eu tão bem conhecia. Orei aos deuses e pedi
proteção para aquele coitado.
Sinhozinho ia ligeiro, e isso foi até positivo, pois assim não
presenciaria o término da tortura.
O comendador foi observando a trilha e anotando as
dificuldades do local. Alguns transeuntes, quando viam a
suntuosidade nas vestimentas de Belar, afastavam-se para dar
passagem.
Como ainda no vosso tempo o homem também se classifica
pela roupagem! A humanidade evolui nos canais de
telecomunicação, mas não progride nos canais do Pai Maior.
Muitos, quando largam o corpo físico, exigem tratamentos
diferenciados por se julgarem ainda afortunados pelo ouro.
Quando encarnados, afastam-se do Evangelho e cultuam a
ilusão dos prazeres. Formatam o concreto do abismo íntimo e
mergulham na inconsciência obcecada pelo poder.
Chegamos à Câmara. Ele foi levado à presença do
representante-geral.
-Sou o comendador Belar.
Retirou do bolso a identificação e mostrou ao imediato, que
logo falou:
-Seja bem-vindo, Belar, à nossa Sabarabuçu.
-Muito obrigado -Belar falou. -Mas não tenho muito tempo.
Um mensageiro do Rio de Janeiro me aguarda, por isso vou
logo ao assunto.


-Pois não, comendador, o que o aflige? Mal se sitiou e já traz
preocupação?
-Sim, trago grande preocupação com a postura do padre
Cirlinano. A Igreja de Sant'Ana é pequena e, talvez por estar
um pouco afastada do centro da vila, não traz grande
acolhimento por parte da Câmara, não é? Fiz perguntas
simples ao padre, e ele se esquivou de me responder. A igreja,
como falei, é pequena, e atrás do altar-mor, na parte inferior,
foi construído um quarto bem estreito onde mal um homem
fica em pé, e nesse quarto os negros são punidos com
severidade. Não sou nenhum escravocrata nem tampouco
abolicionista, mas não posso concordar com determinadas
atitudes. Também não quero respostas precipitadas. Pense no
que estou ponderando com o senhor antes de me responder.
Os métodos de Cirlinano não me agradaram, e vou pesquisálo
mais de perto.
Quero conhecer toda a Sabarabuçu e me fazer amigável, e
espero, da mesma forma, ser acolhido com minha família.
Voltarei amanhã para continuarmos o diálogo e conto com sua
resposta. Terás tempo suficiente para averiguar o que estou
lhe falando sobre o padre.
Apressado, dirigiu-se para a porta central da Câmara, e olhou
para mim, que já estava presenciando outro negro no
pelourinho sendo chicoteado, e lançou outra pergunta:
-Os escravos aqui são todos insubordinados ou os senhores
desta região estão perdendo o controle? Será que a lei aqui
perdeu a direção, pois desde que cheguei só presencio
castigo?
-Bem, senhor...
-Não precisa me responder. Estou lhe dando tempo para
refletir bem sobre suas respostas.
Já trazia o conhecimento de que Sabarabuçu ficou no tempo
de 1700, mas não podia imaginar que estaria ainda tão presa à


falta de cultura. Venho de uma cidade rica em todos os níveis
e encontro uma terra de ninguém. Pouco desenvolvimento
cultural e social. Por que estão presos? Será o medo da perda
do que a terra já não tem?
A Câmara exerce o poder de uma comarca, e vejo você
também perdido. Onde se encontra o presidente da Câmara, o
sr. José Alencar? Sabemos que ele traz uma reputação
incomparável e que a representação do Judiciário, Legislativo
e Executivo anda em perfeita ordem com a Coroa. Mas é o
proceder dos homens que não está agradando a mim.
Com passadas firmes, Belar se afastou, deixando o imediato
pensativo.
Logo próximo do largo do Rosário, outra execução ocorria,
alguns homens da milícia laçando o negro fujão.
Quanta ironia o espaço de Sabarabuçu colocava na vibração
da Terra! Vibração, sim, queridos irmãos, pois sabemos que
somos ondas magnéticas construindo ou destruindo o espaço
em que vivemos. Nesse período, quanta angústia, revolta e
solidão impregnaram o espaço e os próprios homens?
Se já temos esse conhecimento, por que ainda destruímos a
construção Divina?
Olhar o passado teria de ser um instrumento para melhor
caminhar no presente. O homem continua impregnando a casa
do Pai com energia destrutiva.
Se Jesus nos ensinou que há varias moradas, por que o
espírito terreno danifica uma dessas moradas?
Ficamos sabendo que o escravo corria porque havia roubado
um pedaço de pão para se alimentar. Ele implorava o perdão,
pois estava com fome.
O capitão da tropa não deu ouvido e, com o ferro
incandescente, marcou a mão do irmão.
O comendador gritou:
-Alimente o homem! Ele não é seu escravo? E acrescentou:


-Se este homem rouba pão é porque lhe falta alimento, e
ninguém trabalha com o saco vazio, não é? Vocês alimentam
seus animais para que eles percorram distâncias, e por que
negam o pão ao escravo faminto?
O imediato da Câmara, que nesta altura já estava perto,
falou:
-E, senhor Belar, vejo que vai nos criar problemas. Belar
fingiu que não ouviu. Ele sabia da força do
imediato e preferiu ficar no silêncio. Em Sabarabuçu, o
imediato também trazia a função de ser o imediato da Coroa.
Seguimos a trilha de volta, e nessa pequena jornada
encontramos com os tropeiros que haviam nos auxiliado no
caminho até Vila Rica.
O capitão da tropa logo se pôs em préstimos ao nobre Belar.
Por sua vez, o comendador também utilizava da posição que
sustentava e, politicamente, convidou os tropeiros a
permanecer nos aposentos dos fundos do casarão enquanto
estivessem em Sabarabuçu. E acrescentou que, sempre que
passassem por Sabarabuçu, a casa dele seria o ponto de
permanência para os tropeiros descansarem.
Com isso, ele ficaria mais bem-visto na cidade e, quanto mais
amigos, mais favorecido ficaria.
No regresso ao lar, encontrou o mensageiro, que o aguardava
na varanda andando de um lado para o outro.
Sebastião, fidelíssimo ao comendador, estava paralisado na
porta central do casarão como um verdadeiro soldado
guarnecendo o lar.
Belar falou:
-Vamos entrar e tomar um refresco com bolo, pois sei que terá
de seguir viagem. Enquanto se alimenta, passarei uma nota
para ser entregue no Rio de Janeiro, endereçada ao rei.
Relatarei o que presenciei em Vila Rica e aqui em Sabarabuçu.
Esteja à vontade, Sebastião irá servi-lo.


Belar recolheu-se aos seus aposentos e escreveu uma longa
carta, pedindo permissão para enfeitar Sabarabuçu e rever as
ordens que estavam sendo executadas quanto aos escravos, e
acrescentou: "Sei que cada comarca traz sua identidade
própria, mas aqui a brutalidade tem força incomparável. Vejo
os escravos desprovidos de massa corporal e com facilidade
de contrair doença, que pode virar epidemia e contagiar a
todos".
Belar sabia que, se apelasse para esse processo, o rei não
embargaria o seu pedido, pois Roça Grande alimentava o veio
do ouro em Vila Rica.
Provavelmente, ele estaria comprando uma briga no
município, mas isso não o incomodava.
O comendador era um homem futurista, e trazia a visão da
inclusão amigável em vez da exclusão agressiva.
Até hoje reflito nos ensinamentos do meu senhor, quanto ele
deve ter sofrido no meio da torpeza dos homens.
No momento atual, o homem luta pela inclusão, mas ele
próprio não sabe o que é a inclusão, e atropela a sociedade de
maneira agressiva, pois não há formação para tal acolhimento
e se torna presa de si mesmo.
A verdadeira inclusão é aquela que não exclui e marginaliza o
outro. Jesus, o pedagogo fiel, utilizou a inclusão com
perfeição.
Como Mestre, ele se pôs à frente e tratou dos desprovidos de
amor. Acolheu, ensinou, educou e transmutou o tempo na lei
do Pai.
O Messias não olhou a pele, mas sim o caráter. E o homem que
brinca de ser Deus tateia na inclusão própria quando ainda
não se coloca a servir ao Criador, tal como Jesus nos ensinou.
Bem, vamos ao bilhete, ou melhor, à carta de Belar para dom
João VI.


"Vossa Alteza, D. João VI. É com pouco recurso que venho,
por meio desta, desfilar-lhe os ocorridos, até então, por mim
observados. São-me parcas as palavras, em grande desalento
encontro Sabarabuçu.
Há uma grande diferença entre Vila Rica e esta Vila Real a
qual venho fiscalizar.
Vila Rica, progressista, já consta com o educandário que
favorece e enobrece o espaço com a cultura artística que
acelera o município. Creio que em breve se desenvolverão
outras fontes de ensino, não só dos padres, mas dos ofícios
que tenho conhecimento que são aplicados em Portugal.
Estou até envergonhado para discorrer sobre Sabarabuçu. E
um recanto promissor, mas a falta de envergadura dos
homens atravanca o progresso aqui.
Venho solicitar de Vossa Alteza a permissão para buscar
recursos para atrair a cultura para este local que se avizinha
de Roça Grande. A própria precisa de habitantes mais
capacitados para melhor organizar a distribuição de alimentos
para Vila Rica.
Ainda não encontrei tempo para a vistoria da mina que se
encontra no meu terreno. Alguns contratempos nos coibiram
de chegar no tempo previsto por Vossa Alteza. Por isso o seu
mensageiro volta sem a devida resposta esperada pela Coroa,
mas logo que assim averiguarmos, mandarei um homem de
minha confiança ao Rio com todos os apontamentos feitos.
Peço-lhe desculpas, mas seu imediato cavalgou pela Estrada
Real somente com uma diligência, o que possibilitou a
chegada dele no mesmo tempo do que nós, que saímos duas
semanas na frente dele. Mas, devido a uma emboscada e
minha filha ter adoecido, perdi este tempo e tive de recompor
a caravana.
Estamos bem alojados e agradecemos os préstimos desde já.
Belar".


Bem, como todo comendador, Belar tinha também seu brasão,
com o qual selou seu bilhete. Era a marca que o identificava
para a Coroa.
Enquanto isso, eu estava a admirar sinhazinha. Parecia que
ela, após o aborto, ganhara ar de mulher. Sua silhueta se
misturava com os raios de sol e as folhagens, dando-lhe os
trejeitos joviais de uma jovem mulher.
Sebastião me observava, e nesse ínterim, bateu com seu cajado
para espantar os maus fluidos que eu produzia com minha
esfera mental.
Quanta sabedoria trazia Sebastião! Ele sabia que minha
projeção era de desejo carnal e, com a devida providência,
afugentou meu movimento mental.
Voltei a Zambe, recordei de minha amada. Desejava abraçar
sinhazinha e, ao mesmo tempo, deitar com minha esposa.
Com tristeza, olhei-a, pois sabia que ficaria afastado dela
porque iria trabalhar no veio do ouro. Também estaria recluso
da convivência do comendador, pois lá no veio ele iria só
quando houvesse necessidades.
Estagiaria por uma semana para aprender o novo ofício, mas
não imaginava o que iria presenciar.

30
Idéias abolicionistas.
O amor se manifestando


Ao amanhecer, já estávamos a postos para as ordens do
comendador. Eu e mais dez homens. O raiar do dia estava
penetrante, e algumas aves já em organização de bando nos


presenteavam com a belíssima orquestra regida pelo maestro
mais perfeito: o Criador.
De repente, elas se desorganizaram e ficaram agitadas.
Sebastião, que estava agachado no portão, falou:
-Mau presságio. As aves sentiram alguma vibração
complicada. Elas estavam organizadas, voando no circuito
normal e agora estão perdidas. Creio que, pela agitação,
teremos chuva pesada.
Arrepiei-me. Sebastião não errou nenhuma vez. Senti náusea,
respirei fundo e lembrei-me do curandeiro. Pedi proteção.
Sebastião, nascido no território, conhecia os ventos e estava
realmente ventando muito.
Belar despontou na porta do casarão e falou:
-Todos prontos! Iremos marchar para a mina logo que
terminar meu desjejum.
Sebastião, com aquele jeito maneiro e fala lenta, disse:
-Sinhozinho não devia seguir para mina, pois vem muita
água do céu.
-Deixe disso, Sebastião! Quando foi que chuva me parou? Se
está com medo, cuide de Ermelinda por mim.


Também, Sebastião, o médico pediu para poupá-lo de esforço
e nem peso pode pegar, não é? Até mesmo a água que está na
tina você não pode pegar, mas atirar você pode. Então
defenda o meu lar enquanto estiver fora.
Sebastião ficou zelando pelos domínios de Belar e foi poupado
do que passamos. Talvez, se tivesse ido, não sobreviveria.
Saímos juntos com Belar, cinco homens à direita e cinco à
esquerda, para defender o sinhozinho. E eu do lado dele bem
próximo. Depois de ter salvado sinhazinha, ganhei o título de
imediato dos escravos, e essa função era de defesa próxima ao
comendador.
Logo após a elevação da estrada, avistamos a mina, e a recepção não
poderia ser diferente: mais um irmão de cor sendo punido.



O homem branco só dominava os negros com punição, já era
até um vício que percorre a mente coletiva que hoje
registramos: verdadeiras gangues encarnadas demarcando
terreno.
Lutas travadas nas ruas, como verdadeira arena, onde os leões
do ontem margeiam no mental dos que perderam o total
domínio sobre si mesmos.
Se o encarnado buscasse o estudo aprofundado, entenderia
melhor o que Jesus quis dizer: "a cada um segundo a sua
obra".
Muitas obras já foram relatadas sobre o perispírito como
veículo que registra todas as ações e a pendência dos atos, só
alcançado a libertação para o voo espetacular da evolução
quando se pacificar. E, ainda assim, o homem continua na
jornada do empobrecimento do próprio perispírito.
Voltando ao castigo, nas minas de ouro havia uma espécie de
prensa que servia para moldar o ouro e, assim, compactá-lo
para que não viesse a perder nenhum grama. Esse aparelho
era aquecido.

O nosso companheiro estava com a mão esquerda nessa
prensa. Se sobrevivesse, teria de continuar servindo e, se
danificasse a mão direita, de nada serviria. Era tudo bem
pensado.
Como a mente comanda todo o espetáculo da vida regida
pelos homens!
O castigo era porque uma das pepitas havia desaparecido, e o
senhor apertava a mão do negro para ele soltar a língua e
relatar onde a havia escondido.
Quando alcançamos, a tragédia já estava desastrosa, pois, num
golpe de ódio, o capitão apertou a prensa com tanta violência que
triturou a mão do homem. E, num único esguicho, sangue
misturado com pó de ouro e sujeira das almas que ali utilizavam o


poder para denegrir os oprimidos.
O comendador, em um grito, falou:
-Homem de Deus, como podes aferir tal procedimento de
tortura? Não temes a Deus? Ódio gera ódio!
O capitão retrucou a fala:
-Quem és tu que trazes tanta arrogância e manifesta sobre o
meu domínio?
-Pois bem, homem! Fala o comendador. Estou a serviço do rei
de Portugal e algumas punições não irei permitir.
O capitão, já enfurecido, com um timbre de voz enlouquecido,
falou:
-O sinhozinho é abolicionista? O rei traz às cegas a confiança
em você. Não gosto desta postura abolicionista ou o senhor
está tendo visões devido a este sol causticante? Irei me
informar melhor sobre sua pessoa, comendador...
-Belar, ao seu dispor. Faça como achares melhor. Mas agora o
melhor é cuidar deste pobre escravo.
-Não coloque suas mãos nele, quero que sangre até morrer.
Logo chegará o entardecer e o jogaremos no mato, e os bichos
terminarão o serviço.


-Não, não faça isso. Deixe-o viver.
-Já disse que aqui é minha comarca e mando eu.
E, lançando no coração do escravo uma ponteira de ferro em


brasa, perfurou o corpo, levando-o à morte instantânea.
Ainda por ação involuntária, o corpo do negro se contorceu, e
da boca, como que em uma represa cujas comportas
estivessem sendo liberadas, um jato volumoso de sangue
atingiu o rosto do capitão.
Agora ele estava manchado com o sangue da ignomínia humana.
Ainda rodopiando no abismo da torpeza humana, Belar se
projetava para observar o veio do ouro a se misturar com o veio do
sangue dos escravos que ali pairavam nas energias bloqueadas



pela revolta contida pelos golpes de tortura.
Belar ficou penalizado por meia hora, não sei bem se a rezar
para Sant'Ana ou apenas a meditar sobre quão árduo seria o
caminhar em Sabarabuçu.
Era notória a falência humana regida por uma comarca
arcaica. Se buscarmos os registros que estão espargidos pelo
terreno brasileiro, sentiremos as vibrações de muita dor que
assolam a terra abençoada pelo Criador.
O encarnado, por várias gerações, busca somente o domínio.
Os lares estão desfalecendo por sobrecarga de comandos
febris, de homens doentes, com as almas endurecidas pelo
orgulho estrangulador.
Nos registros perispirituais ficam gravados todos os atos e
pensamentos, tornando-se veículo de angústias sucessivas,
pois os espíritos medem força com o Criador e fazem as
próprias leis.
Pela pobreza de sentimento, o encarnado e desencarnado
margeia no insalubre apodrecer.


Logo em seguida, o capitão falou:
-Vamos, homens, retirem o escravo furtador da minha frente.
Ainda tenho carga de raiva a percorrer a trilha do meu corpo
e minhas mãos estão queimando para perfurar mais este
traste.
E, voltando-se para Belar, falou:
-Devido ao ocorrido, o senhor não se apresentou. Qual é seu
nome?
-Belar.
-Ah! E o dono das terras, não é? Bem, se tivesse se
apresentado antes, poderia ter poupado este que aos seus pés
já encontrou o inferno.
Apesar de ter chegado há tão pouco tempo, já rolou o boato de
sua performance. Sei que é abolicionista.



-Terei de ser bem rápido e me apresentar na Câmara antes do
senhor. Vou relatar que, por sua imprudência, errei e golpeei

o escravo, e o responsabilizarei pela morte dele. Tenho mais
força que o senhor aqui. Meu nome c Bonifácio, adotado por
mim mesmo, então é Bonifácio.
O comendador não falou nada a respeito do ataque recebido,
somente olhou bem dentro dos olhos dele e disse:
-Bonifácio, quero que me mostre o veio do ouro e como se
processa o trabalho nesta mina. Após você me mostrar todo o
trabalho, gostaria que me acompanhasse até a Câmara, e aí
reajustaremos a jornada, já que as terras são minhas.
-Melhor do que pensava, senhor...
-Belar!
O capitão, por ser parente do primeiro imediato da Câmara,
julgou que ganharia mais força contra Belar.
-Pois bem, sinhozinho, acompanhe-me. Este veio já não
produz com tanta abundância e, em breve, teremos de
perfurar outro.
Belar se encontrava abatido com tanta brutalidade em tão
curto espaço de tempo e permaneceu em silêncio.
Por ter sempre notícias de Vila Rica e saber que Roça Grande
distribuía os alimentos, julgou que Sabarabuçu estivesse mais


evoluída.
Na verdade, Sabarabuçu transitava com o mental
desequilibrado, exacerbado, contaminando todos os que

sitiavam as redondezas.
Quando o homem já traz a natureza respaldada pelo bem,
sofre na jornada pela insensatez do encarnado que, sem saber,
associa-se aos desencarnados de mesma vibração.
Mas o Pai é misericordioso e acolhe os filhos que se projetam
para a luz e os envolve na aura cósmica de paz.
Hoje posso dizer: "Segue Belar, sinhozinho, no seu avanço da
luz".



Com grande nó na garganta, Belar caminhou em direção à
mina. Agora ele podia mensurar a responsabilidade que trazia
pelas ordens dadas pelo rei de Portugal, D. João VI.
Pego de surpresa, encontrava-me absorto com o movimento
dos encarnados. E assim mesmo, o que a mente não conhece
não alcança o coração.
Como já relatei, homem bom c honesto, caminhava em dois
planos de emoção, sufocado pela intensidade da dor dos atos
dos encarnados e, no frescor da inspiração do Pai, pelo
magnetismo de amor que lhe inspirava o bem viver.
E assim que o homem de bem transita no campo árido das
manobras impensadas dos companheiros de jornada.
Ressente-se das desastrosas ações, mas não se desvincula da
lei Divina. Assim são os passos do homem de bem.
Bonifácio ficava a falar ao vento, enquanto Belar se envolvia
em oração a sua devota Sant'Ana.
E sabido que os homens de boa vontade se fortalecem cm
laços de fé quando estão dispostos a bailar nos ensinamentos
do Cristo Jesus.

O comendador já demonstrava, nesta experiência de vida, sua
elevação. Diferenciava-se do coletivo pela sensatez e
desenvoltura altruísta nas atitudes.
Trabalhava incansavelmente o respeito ao próximo e buscava
incluir nisso o negro e os gentios.
Quando retornou ao convívio mental de Bonifácio, alcançou a
fala dele.
-Belar, este veio traz uma profundidade alargada, e se fez
necessário o amparo com cordas bem grossas para a descida
até o ponto de extração. E um trabalho que demanda paciência
e controle, pois os escravos preguiçosos não trabalham com
afinco. Se isso ocorresse, poderíamos já ter avançado mais na
perfuração.


Belar continuou sem manifestar nenhuma palavra, só
escutando e observando tudo à sua volta.
Poucos percebiam a vibração de dor e angústia daquele local,
mas Belar, sem entender, sentia e se misturava com a aflição.
Várias vezes sentiu mal-estar e alegava que ou o alimento não
lhe fizera bem ou sentia a falta do mesmo, com o organismo
pedindo algo para ingerir.
Como ainda somos todos aprendizes, não compreendemos a
extensão de nossos atos no campo magnético que recobre os
momentos, e caminhamos deixando rastros deletérios para
nós mesmos c nossos irmãos.
Por isso, Jesus, o pedagogo de almas, nos ensinou: "Atire a
primeira pedra aquele que estiver isento de faltas".
Faz-se necessário rever as atitudes do dia, todas as noites,
para melhor realizar os atos no dia seguinte. Se assim
proceder, verá que no fim da jornada terá feito a reforma
íntima sem dor. Mas só será sem dor se fizer com o Evangelho
nas mãos.
Como que não se importando com o falatório de Bonifácio,
Belar perguntou:
-Além da perda deste escravo, que presenciei hoje, outros
escravos foram também assim exterminados?


-Bem, o senhor bem sabe que em todo trabalho acontecem
acidentes, e aqui não é diferente. Registramos, às vezes,
perdas como esta de hoje.
Na semana passada, dentro da mina, um desentendimento entre os
escravos ocasionou a perda de um deles. O mais forte cravou no
peito do companheiro a machadinha, e este faleceu, esguichando
sangue que nem um porco no matadouro.
Era sem nenhuma carga de amor que Bonifácio falava dos
ocorridos, como se realmente fossem animais que no matadouro
estivessem à espreita do desencarne.



Belar respirou profundamente e perguntou:
-Como você, Bonifácio, classifica os escravos?


-Como eu os vejo? Bem, como animais de carga. E assim que
os vejo e eles realmente são.
Belar fazia o exercício de observar tudo, pois precisava


arquivar maiores informações sobre Bonifácio, pois, diante do
primeiro imediato, teria todos os argumentos para dispensálo.
Já sabia quantos escravos estavam na mina trabalhando,
quantas pás, martelos e cutelos.
Até no aparadouro ele já trazia a ideia do trabalho e como era
realizado.
Como relatei no início, perdemos nossa integridade quando
fomos capturados.
Na lavagem do ouro, os escravos tinham de trabalhar nus,
pois assim não roubariam nenhuma pepita de ouro nem pó.
Imagine estar despido aos olhos dos senhores de engenho,
trabalhando para os próprios terem tecidos belíssimos, feitos
para fardá-los e ocultá-los da falta de amor!


31
Conhecendo João


Logo após a vistoria do local, Belar chamou Bonifácio e
seguiram juntos até o juiz da Câmara. Dois escravos de
confiança do sinhozinho também seguiram para protegê-lo.
Eu deveria ficar com o primeiro imediato para aprender o
novo ofício. Feliz daquele que sempre se aprimora. O trabalho é
edificante, primeiro ocupa as nossas mãos e a nossa mente e, em


conseqüência, disciplina o espírito ao serviço.
Somente os espíritos que buscam o Evangelho como diretriz
concebem que o ofício é o alimento do eixo central do
apostolado que Jesus nos ensinou.
Feliz é o encarnado que perfura a pedra bruta do instinto
inferior e a lapida com a água do amor para, num trabalho do
porvir, encontrar a joia do Criador.
Fui apresentado ao mais velho da companhia. Ele já era bem
velho, e por não trazer mais força, ficava a lavar e a retirar os
resíduos do pó de ouro que pudessem ficar impregnados nas
ferramentas utilizadas no local da extração.
Por volta da hora do almoço, ele me dirigiu a primeira
palavra, apresentando-se:
-Olá, meu nome é João, e estou aqui a perder de tempo.
Tenho uma marca secreta que, em breve, se possível, te
mostrarei. Ninguém sabe desta contabilidade que faço do
tempo. Tenho até hoje saudade da minha terra natal. Os meus
parentes, todos os que vieram como escravos, já morreram.
Então creio que da minha casta só restou eu. Mas, também, o
que importa isso, não é?
O Brasil é lindo, não é? Conheço alguns lugares, pois fui
vendido por três vezes, e creio que morrerei aqui nesta mina.
Não tenho permissão para sair deste local. Durmo com os
outros na jaula. Se eu resisti por tanto tempo dormindo no
frio, na chuva e no calor, exposto como um animal, só
morrerei quando o deus da morte me chamar.
Gostei de você assim que o vi, e imaginei que, se meu neto
estivesse aqui, teria o seu porte. Mas ele não resistiu aos
costumes dos senhores e lutou pela liberdade, perdendo a
vida.
O pior foi vê-lo morrer exposto no madeiro por cinco dias. Como
era forte, custou a morrer. Feriram-no no peito e deixaram-no lá
para ser comido pelos abutres, e essa imagem não se apaga da


minha memória.
Ás vezes tenho a impressão de que ele ainda está naquele
madeiro.


Enquanto ele falava, eu revia as cenas da minha Zambe. Por
várias vezes, colocamos inimigos de outra tribo de cabeça
para baixo para morrerem como exemplo para que os outros
não se aproximassem de nós.
Hoje entendo que, ao colocar um irmão de cabeça para baixo,
com o peso do corpo, o pulmão acaba não suportando,
levando-o ao óbito.
Gomo brincamos de ser juízes, não é? Sentenciamos nossa
própria insanidade.
Senti o toque dele no meu ombro, e retornei da minha
divagação.


-Hei! Rapaz, qual é o seu nome?
-Pedro, senhor.
-Pois é, Pedro, temos de passar adiante a nossa história


porque somos filhos da África. Estamos aqui trabalhando para
quem organiza esta terra. Como sou bem mais velho, pude
escutar muitas histórias.
E, das histórias, o homem forma comunidades. Por volta de
1500, mais ou menos, um tal de Pedro Álvares Cabral, em rota
santa, chegou ao Brasil trazendo o poderio do reinado de
Portugal.
Nesse período, nós ainda não tínhamos nascido, mas
provavelmente a nossa África já abrigava nossos irmãos.
Ninguém imaginava, naquele tempo, que o homem iria
avançar tanto e nos trancafiar aqui neste veio, não é?
E, com uma risada de preto velho de longa estrada, finalizou a
fala.
Eu não falei nada, mas fiquei pensativo, e hoje me recolho
sempre e procuro entender o espírito encarnado.



Posso, desta instância, apreciar a bondade divina. O orbe é
lindo quando magnetizado pelos fluidos da paz. A vibração é
eternizante, e só aquele que a experimenta luta pela paz.
Edificar na sintonia de luz é um compromisso para com a
criação, mas ainda registramos ações de baixo teor que
sufocam aqueles que, como eu, já buscam o equilíbrio
constante. Vou explicar por que sufoca: como ainda somos
aprendizes, fica muito árduo manter a vibração com tamanha
desordem mental; como somos energia, ressentimos os fluidos
a mesclarem com o fluido cósmico e o choque constante é
efetuado.
Por isso, convido todos os que já experimentaram os fluidos
da paz a trabalhar para que esta paz seja instaurada no plano
Terra o quanto antes.
Nas esferas conhecidas como superiores, os espíritos que ali
permanecem já estão estruturados no halo da paz.
Busquemos a sutilização dos atos para não só ajudar a nós
mesmos como também, com nossos fluidos, contaminat outros
irmãos.
Após o retorno aos trabalhos, João continuou a falar: Chegaram
ao Brasil os jesuítas, alguns bons e outros maus.
Eles, os homens, mataram, aprisionaram e dominaram o
terreno. Tudo, Pedro, por causa do ouro, da prata e da
esmeralda e em nome de Jesus. Esses artefatos levam o
homem à loucura, fazem jóias e encobrem com sangue a sua
fé.

Destruíram e, provavelmente, destruirão inúmeras aldeias. Já
ouvi muitas histórias, até de que há tribos de índios que se
refugiaram para dentro das matas para preservar suas vidas.
Sabemos que o homem ainda mede o território com a marca
da violência, e essa violência só se intensifica porque os
encarnados não param para analisar que estão aqui de
passagem, e que terão de responder a Deus pelo empréstimo


da moradia. Danificam a camada de ozônio e não calculam os
danos à camada perispirítica.
Reconstituir as camadas é um trabalho de desprendimento
justo que a natureza se dispôs a cobrar. Cabe ao ser que traz o
livre-arbítrio buscar reformular a postura de ação.
O pedreiro leva o tijolo da consciência e edifica a parede do
amor. O pintor, com seu pincel, dá a luz ao emocional da
parede, e o morador lubrifica a parede jorrando
incansavelmente os fluidos da paz.
E simples. E só se permitir ser pedreiro, pintor e homem
evangelizado.
Naveguei nos pensamentos e fiquei imaginando como
realmente o homem fez sua migração, deslocando -se de um
local para outro. E questionei qual o objetivo real da
construção, se o Pai nos fez semelhantes.
Neil sentou-se a meu lado e, sorrindo, falou:

-Enquanto buscamos questionamentos salutares, estamos
movimentando nosso circuito de luz.
O Criador permite aos filhos migrarem para o plano Terra,
adensando o corpo físico e dando expressão à forma por meio
do perispírito. A etapa migratória tem um tempo encarnatório
cedido a cada um por necessidade evolutiva. Finda a etapa, o
Criador permite novamente a migração para a erraticidade.
Cada espaço geográfico traz sua vibração e seu corpo fluido
para sustentar os encarnados e, por vezes, os desencarnados
que mentalmente estão vinculados a esse espaço.
Assim, por necessidade fluídica, os espíritos formam suas
colônias também no plano Terra.
O Pai Criador é perfeito, e deu forma de expressão justa aos
filhos e aos planos que cada filho necessita experienciar.
Bem, João ficou lavando as ferramentas e eu fui levado ao
fundo da mina para observar como se extrai o ouro.


Com o martelo nas mãos e o grampo de ferro cravando a
rocha, o negro abala a pedra e dela extrai o ouro.
A capacidade do encarnado é imensa. Naquele ciclo, o homem
já dominava as ferramentas e seu manuseio. Edificou e edifica
coisas belíssimas, mas jamais conseguiu a perfeição dos atos
como o Criador realizou com a criação.
Brincamos de ser deuses e destruímos os deuses.
Voltei a Ouro Preto e revi, no arquivo mental, as igrejas
decoradas com as gemas de ouro e percebi o trabalho que se
tem para tirar de uma parede formada pelo Pai e formar outra
suspensa pelo homem -a decoração para marcar o domínio.
Buscamos o pó e esquecemos que o corpo que guarnece o
espírito encarnado se torna pó no porvir da encarnação.
Logo aprendi a bater na pepita sem danificá-la. E este
movimento de força o negro poderia ter utilizado contra seu
dono branco. Mas, pela bondade divina, poucos ousaram esse
enfrentamento.
Logo escureceu e escutei dois escravos falando:
-A hora é esta, vamos fugir, pois o capitão está às voltas com
esse tal de Belar. Momento igual a este vai demorar. Se
corrermos, alcançaremos o quilombo do Gaia.
Bretão anda rondando por aqui. Se dermos sorte,
encontraremos com o grupo dele e teremos proteção até o
quilombo.
O outro respondeu:
-Não sei não, ainda tenho medo desta fuga. Lembra do
Manoel, que foi pego no caminho e no mesmo local o
decapitaram? Ficou exposto lá fedendo. Sei não, tenho medo
da morte.
-Olha aqui, seu Pedro, você não viu nem ouviu nada!
-Sim tudo bem, mas quem é Bretão?
-Não tenho tempo para lhe explicar. João sabe quem é ele, e
vi vocês conversando hoje. Pergunte a ele.


Voltei para o casarão com meus questionamentos. Quem seria
Bretão? E esse quilombo, teria realmente força contra os
brancos?
Cheguei a casa já tarde e vi o comendador andando de um
lado para o outro nervoso, gesticulando muito. Boa coisa não
era.
Olhei para o céu e vi as estrelas. São lindos focos de luz que
nunca se apagam. E, quando voltei meu olhar para a estrada,
uma figura esquisita de longe me observava.
Arrepiei-me e tratei de me aproximar mais do casarão. Ele fez
apenas um aceno e sumiu na escuridão.
Vim a saber, mais tarde, que era o Bretão, homem grande,
forte e de emanação segura.


32
Bretão

Neste ínterim, a porta do casarão se abriu e Sebastião saiu e
chegou até a grade da varanda e falou:
-Que é isso, homem, tá pálido! Viu o capeta?
-É, preciso conversar com você, Sebastião. Muitas coisas
acontecem aqui em Sabarabuçu. Enquanto estava na mina,
ouvi falar sobre um tal de quilombo do Gaia e de um escravo
que lidera este quilombo, chamado Bretão.
Fiquei sabendo que à noite ele ronda Sabarabuçu para ver se
consegue ajudar algum escravo que perambula buscando a fuga.
Tive medo, sim, pois vi do outro lado da cerca um escravo esquisito
observando o casarão. Ele percebeu, acenou e sumiu por entre as
árvores.



Temo por sinhazinha e acho que o sinhozinho terá de dobrar a
atenção, Sebastião. Precisamos saber mais sobre ele e Gaia.
Principalmente porque Ermelinda só pensa em ir à Igreja da
Sant'Ana. Ela não pode mais ir só com sua mucamba, você
terá de ir com ela também, Sebastião.
Belar não tem observado sinhazinha. Ela anda muito triste, e,
às vezes, anda chorando pelos cantos.
-Sim, Pedro, ela está bem magra, não tem se alimentado
direito. Anda rejeitando todas as guloseimas que antes vivia
mastigando.
Pedro, não estou bem de saúde. Tenho sentido falta de are
dificuldade para andar. Então não sirvo também para defesa.
O comendador está muito agitado, tenho observado os donos
desta terra, e parece que estão perdendo o controle. Eles
chegaram sem ser convidados, mataram, nos fizeram escravos,
formaram suas tabas, dominaram o espaço buscando o enfeite
que reluz e hoje estão brigando entre si.
-Sim, Sebastião, a Coroa é quem manda e forma a briga. Eles
constantemente falam: "irei relatar a Portugal".
Você gostaria de ser rei? Eu ia ser na minha tribo, e vejo que
ser rei ou curandeiro é perigoso.
-Sabe, Pedro, nós aprendemos a respeitar a natureza, pois ela
tem força, e vemos os homens aqui brincar com os deuses.
Não tenho gostado muito da força das águas, tanto dos céus
quanto dos rios, por isso vamos ficar também alerta com elas.
Bem, Pedro, não estou me sentindo bem, estou com falta de ar.
Preciso me recolher. Como a bala não pôde ser retirada das
minhas costas, ela está me matando lentamente.
Nesse momento, Belar se aproximou e disse:
-Preciso seguir para o Rio de Janeiro, terei uma audiência com


o juiz geral. Ficarei umas semanas fora. Cuidem da minha filha e do
casarão.
Seguirei com a escolta do rei e os tropeiros, então não preciso de

nenhum de vocês comigo. Vou e volto com eles. Boa noite, olhos
abertos, Pedro, bem abertos.
Ao amanhecer, grande tumulto formou-se no lar do coronel
Belar. Ele, já pronto, esperava a guarda real e os tropeiros.
Eu continuaria na mina de ouro, pois a produção não podia
parar. Sebastião e Fabriciano tomariam conta do casarão.
Sinhazinha só poderia ir à igreja quando da volta do
comendador.
Bonifácio, do lado de fora, aguardava para seguir viagem
também. Sua fisionomia não era de bons amigos.
Os tropeiros chegaram nervosos, pois tiveram notícias de
emboscadas perto de Ouro Preto. Sabiam que a guarda real
estaria junto com eles, mas temiam pela emboscada, pois a
última realizada, dias atrás, foi de enorme selvageria.
Retalharam os corpos e colocaram os pedaços nas árvores,
como a enfeitar o caminho. Alguns pedaços de corpos se
apresentavam mordidos.
Era do conhecimento de todos que ainda havia tribos
canibalescas na região, e quando elas atacavam ninguém
sobrevivia.
E, por isso, apressaram o comendador para seguir viagem o
quanto antes.
Sinhazinha, parada na varanda, olhava o vazio. Parecia que a
perda do bebê tinha modificado seus sentimentos, e a vida
estava escoando.
O comendador abraçou a filha e pediu para ela se cuidar, pois
logo estaria de volta. Pediu para que eu não deixasse a mina
sozinha e que ajudasse, também, na guarda do lar.
Sebastião não deveria se afastar de sinhazinha. Pediu ajuda à
guarda de Sabarabuçu, e eles iriam fazer a ronda por três
vezes, pela manhã, à tarde e à noite.
E acrescentou:


-Volto com o médico para fazer exame em você, querida filha.
Creio que a mudança não lhe fez bem.
Sebastião disse:
-Sinhozinho, peço permissão para fazer uma garrafada para
sinhazinha. Também me preocupo com ela.
-Sim, Sebastião, pode fazer. Até logo. Dobrem a vigília à
noite, pois é nessa hora que tudo fica mais vulnerável.
-Sim, senhor Belar, siga em paz.
Após a partida, segui para a mina, mas não sabia que outra
surpresa nos esperava.
Caminhamos em direção à mina, que começava na lateral do
casarão. Voltei o olhar para a janela do quarto de Ermelinda e
percebi que chorava. Fiquei triste, pois vi a desilusão em seu
olhar. Naquele momento, ela se tornara escrava da dor.
Ato impensado nos leva ao cativeiro íntimo. Formamos
quilombos mentais e formatamos estruturas deformadas da
realidade.
Quantos tratamentos serão necessários para reformar a mente
viciada, a mente que rodopia na angústia, na vingança, no
ódio e no profundo buraco da insensibilidade?
Inúmeros são os níveis de escravidão que o homem se coloca.
E de escravidão em escravidão, em delírios profundos, navega


o espírito vicioso. Eternos prisioneiros escravizando o
perispírito, não permitindo a sutilização do mesmo e o
envolvendo, no exercício encarnatório, em fluidos de baixa
vibração. Transportando para si mesmos malefícios
magnéticos que se agregam, tornando-se portadores de mais
débitos.
Chegamos à mina com um torpor no ar e palavras sonoras!
-Alto aí!
De novo a mesma fala, e um capitão do mato se aproximou e
disse:
-O comendador não veio hoje? Eu respondi:

-Não, pois seguiu para o Rio, e eu estou aqui para ajudar na
mina.
-Então venha e olhe com seus próprios olhos.
-Fomos atacados no amanhecer, e perdi muitos homens. Eu só
sobrevivi porque na hora do tumulto eu estava no casarão,
mas infelizmente os meus companheiros foram todos
decapitados.
-Como assim?
-Saqueadores. Eles passam e roubam tudo o que encontram e
matam para não serem reconhecidos.


No alto da montanha estava de novo Bretão a nos observar.
O Capitão falou:
-Não olhe para ele, pois fica a rondar constantemente o
terreno querendo nos intimidar. Ele é bem forte e tem parte
com o demônio, pois ninguém consegue aprisioná-lo.
-Vamos limpar tudo para buscar os negros lá na jaula, para
começar o dia. Não diga nada a ninguém, ouviu negro?
O seu senhor deixa vocês muito à vontade e não gosto disso.
Recolha os corpos e vamos jogar naquela vala e enterrar bem
depressa.
Só eu e você sabemos o que aconteceu aqui, então bico calado,
se não quer ficar sem língua.
Nem ousei levantar a cabeça, mas, ao mesmo tempo, estava
em pânico. Eu não sabia bem o que o tal de Bretão queria e se
podia também querer me matar.
O mais rápido possível, comecei a recolher os mutilados e as
cabeças. Meu Deus, que trabalho árduo! Pegar um corpo e
levá-lo a uma vala é deprimente, mas uma cabeça solta rolada
no terreno é desastroso.
Quando, de repente, por detrás de uma pedra bem próxima de
mim, uma voz sonora falou:
-Ei você aí, escravo. Não faça nenhum movimento, só escute. Diga a
seu dono que o ajuste não é com ele, mas sim com o Bonifácio.



Ah! Diga ao Bonifácio que mato ele também. Para você, que
ainda não me conhece, sou o Bretão. Conselho: cuide da
magrela branca, tem muito homem ruim aqui, viu?
-Por que você está se vingando? -eu perguntei, pois queria
ter noção de qual terra era aquela em que estávamos.
-Ele matou minha mãe e abusou da minha irmã, que hoje está
escondida para nenhum feitor fazer com ela o que ele fez. Ele
é um homem sem escrúpulos, e eu também não os terei com
ele nem com a família dele.
Quanto aos novatos nesta terra, se não fizerem nada contra
mim, eu até os defendo. O meu quilombo é o maior das
redondezas, então sou forte.
Bem, tenho de seguir com meus homens. Observei a hora que
este capitão se ausentou e poupei-o porque alguém teria que
relatar o fato.
Diga ao capitão para ficar parado, pois está cercado por meus
homens, e para contar até cem. Depois, podem continuar o
trabalho. Estou de olho.
Trêmulo, gritei para o capitão, e paralisado fiquei até acabar a
contagem do capitão, que também estava estremecido.
Vimos as ramas se mexer, e eram, provavelmente, mais de
cem homens.
Voltei a Zambe e relembrei da guerra que enfrentamos contra
a tribo vizinha. Muitos homens perderam a vida, e as duas
tribos ficaram enfraquecidas. Levamos muito tempo para
recompô-las.
E assim mesmo, os homens se matam e levam encarnações
para recompor a jornada de amor.
Quanto sangue rolou, rola e rolará no âmbito da Terra! O
homem atual só recebe o nome de atual porque vivência a
experiência do ontem no hoje. Mas o espírito encarnado é
velho e, provavelmente, está cansado de tantos transtornos
mentais. Por isso Jesus asseverou: "deixe o homem velho que


coabita no seu ser, ceda lugar ao homem novo, busque a
transformação tão necessária enquanto se faz tempo".
Estou aqui orando por todos, para que encontrem o resgate,
até o pobre do Bretão, que ainda corre para se vingar. E isso
mesmo, ele é o maior prisioneiro, ainda perambula em busca
de vingança.
Ser um trabalhador, ou melhor, um cooperador, porque ainda
sou um aprendiz na seara do resgate, é divino e, ao mesmo
tempo, um exercício de fé. Temos de orar sempre e buscar
energia de irmãos encarnados que se colocam a servir o
próximo como a si mesmos.
É de fundamental necessidade que os companheiros
encarnados vibrem positivamente para que o magnetismo da
Terra mude de padrão vibratório e os necessitados de todas as
ordens recebam os eflúvios de paz.
Bretão se encontra encapsulado na vingança, e igual a ele
inúmeros irmãos estagiam, tanto encarnados como
desencarnados.
Faz-se hora da reforma íntima tão proposta por nossos
companheiros guias que se prestam a servir, servir e servir.
Quando estou meditando sempre busco a oração para aliviar
os pensamentos desconectados da luz do Pai. Então me
permito, agora, orar:

"Pai,
Somos fracos, nos ofertaste o livre-arbítrio, e fizemos desta liberdade a nossa
condicional. Caminhamos embriagados pela insanidade que rastreia o mental
coletivo e não nos permitimos a mudança.
Árdua mudança que requer conhecimento de nós mesmos, e renegamos a
oportunidade do reencontro com a tua essência.
Auxilia, oh! Criador, os fracos e oprimidos na libertação! Somos ainda principiantes
da jornada eterna, e fazemos da eterna indisciplina o cárcere da nossa alma.



Alimente de fé aqueles que estão na luta diária da reforma íntima, impulsione as
famílias que já entendem que o caminho da união é o caminho que o teu filho dileto
assim nos ensinou.
Sustente todos os trabalhadores que não medem esforços para auxiliar o próximo.
E toque com sua paternidade os rebeldes, para que o coração desabroche em luz.
Que assim seja!"


33
A chacina na mina


Logo em seguida, buscamos os escravos para o inicio do
trabalho. Eu estava estomagado, não queria nem falar, mas
João falou:
-Bom dia, homem, hoje você está branco -e deu várias
risadas, e eu continuei sem falar nada.
Quando chegamos à mina, de volta com os outros escravos,
João perguntou:
-Cadê o Bentinho?
Bentinho era um negro que passava a noite junto com os
capitães para servi-los do que necessitassem.
-E os capitães?
Laureano não queria papo, e foi logo apontando a arma para o
João e falando:
-Negro velho, cale a boca e escute. Fomos atacados, ontem à
noite, pelo grupo de Bretão. Estavam atrás de Bonifácio.
Mataram todos, menos eu, que por sorte tinha ido ao casarão
ver se tudo estava em ordem. Demorei um pouco e, quando
retornei, encontrei este flagelo.



Estão todos na vala logo ali embaixo, desça lá e veja se
identifica o Bentinho. Tem tanto sangue nos corpos que não
consigo identificá-los, teríamos de lavá-los.
Foi até boa sua pergunta. Façam a contagem dos corpos, assim
fica mais fácil saber se Bentinho foi para o Gaia com eles.


Fomos eu e João à vala. Fui rezando e pedindo aos meus
amigos deuses que me auxiliassem, pois estava abalado com
tudo o que vi.
João contou oito corpos, e teriam de ser dez. Não viu seu
amigo Bentinho, mas, além dele, faltava um dos capitães.
Retornamos, e ele mesmo falou:
-Capitão, não encontrei a cabeça do Manoel. Será que o
mataram ou o levaram também?
-Também? Por quê?
-Bentinho também não está na vala.
-Então vamos olhar ao derredor para ver se encontramos o
Manoel, porque Bentinho eles devem ter poupado, não é? Ele
também é um escravo e bobo, não faz mal a nenhuma mosca,
por isso deve ter sido beneficiado. Vamos, homens, mas não
pensem em nenhuma gracinha, vocês estão na minha mira.
Fui para perto de João e perguntei:
-Quem é esse Manoel que deixou o Laureano preocupado?
-Irmão do Bonifácio.


Depois desta resposta, o silêncio se instalou, e começamos a
marcha mais dura. O primeiro a encontrar um membro do
Manoel foi o próprio João.
Ficou paralisado com tamanha crueldade.
Provavelmente, o próprio Bretão tinha realizado o estrago no
Manoel.
Aos pés de João estava o peito do Manoel, a parte superior, da
cintuta para cima, até o início do pescoço. O coração estava do lado
de fora, arrancado pelas próprias mãos de Bretão, provavelmente,



pois foi cavado no peito.
Eu falei ao João:
-Meu bom deus das matas, o que realmente se passou aqui?
Que dor deve ter este homem passado! Mesmo sendo escravo,
não conseguia ter ódio de um morto como aquele que estava
diante dos meus olhos.
-Pedro, isso é o que Bretão faz, parece que vinga todos nós.
-Capitão Laureano, encontrei um corpo que deve ser o
Manoel.
-Já vou aí.
-Meu Deus! Que monstruosidade! Vamos procurar o resto
deste corpo. Bonifácio não vai gostar disso.
Conforme entrávamos na mata, íamos encontrando os restos
do corpo. Pés e mãos decapitados com o cutelo do próprio
Manoel, pois ele estava ao lado dos membros. Mais adiante, as
pernas, os braços, a genitália dependurada no tronco e,
fincada na divisa da mina com a estrada, a cabeça com os
olhos fincados em gravetos.
Quanto ódio pode um homem carregar! Quanto mal pode um
homem fazer a ele mesmo e ao próximo!
Os homens encarnados ainda se utilizam de abusos de todas
as ordens para mutilar uns aos outros. Mas a maior mutilação
é do próprio agente da ação. Registros gravíssimos ficam
açoitando o espírito que, por ações não bem direcionadas,
perfura o próprio perispírito com o magnetismo da vingança.
Quando já evangelizado, o homem deve orar pelos inimigos
do ontem, pois somente o perdão modificará o padrão
daqueles que vislumbram na insensatez dos passos.
Casas de amor resgatem a oração! Somos todos veículos de energia,
e esta energia precisa seguir o curso natural do Pai, que é amar a
todos como a si mesmo.
Laureano foi poupado porque se enamorou de uma das escravas e,
naquela noite, foi ter com ela. Sorte ou destino, não sei, mas sei que,



depois desse dia, Laureano falou pouco.
Enterramos os cadáveres, ou melhor, os mutilados em silêncio.
Laureano era bem religioso, fez uma prece para as almas dos mortos
e pediu a Sant'Ana proteção para seguir o trabalho.


Lavamos todo o terreno. O sangue, misturado de novo com o
barro fez um curso natural até desembocar no pequeno braço
do rio que passava logo abaixo.
Hoje olho esse campo que um dia foi registro de dor, de fúria,
de vingança e oro ao Criador pedindo clemência para a
limpeza necessária desse local.
Quanto o homem encarnado precisa se harmonizar para ser o
servo do Pai!
Jesus nos ensinou que a vigília é a sagrada bênção do Grande
Arquiteto das Almas, e a oração o consolo da fé maior.
Busco, junto aos que trabalham no resgate dos irmãos, manter
a vibração de paz. Somente quando a maioria dos encarnados
enfileirar a vigília da oração é que muitas almas perdidas
encontrarão o esteio da brandura nesta morada em que estou.
A reforma já se faz tardia. Busquem o trabalho ativo do amor,
todos os que no veículo carnal se encontram, c busquem a
interligação com a criação. Somente assim realizarão o que o
Mestre nos ensinou. Mente operosa, espírito em reencontro
com a lei Divina.
Laureano falou, após a limpeza:
-Por hoje basta! Voltarei com vocês para a jaula. Logo levarei
comida para vocês. Preciso convocar outros capitães para este
serviço e, enquanto não os encontro, vocês ficarão fora da
mina.
Pedro me acompanhará, pois ficará no casarão, como foi
determinado pelo comendador.
Fiquei feliz de retornar ao casarão, assim estaria perto de
sinhazinha.



Ao retornar, sinhazinha estava na Igreja de Sant'Ana, e logo
rumei para lá. Eu estava temeroso por ela. Vi o que Bretão era
capaz de fazer.
Na Igreja, sinhazinha estava rezando por seu pai e, no outro
banco, um jovem loiro e de boa aparência também rezava por
seu pai, Bonifácio, mas ao mesmo tempo não tirava os olhos
de sinhazinha.
Percebi que havia se interessado pela moça, e senti raiva,
naquele momento, de ser negro, escravo e não ter nenhum
atrativo. Lógico que ele conquistaria Ermelinda.
Fiquei em pé do lado esquerdo da igreja, no fundo, esperando
por sinhazinha. Ao mesmo tempo que meu coração batia
descompassado pelo ocorrido, a pressão aumentara por ver
aquele jovem observando Ermelinda.
Senti um grande tremor quando Carlos, filho de Bonifácio,
passou por mim. Fitando aqueles olhos grandes e azuis, um
enorme mal-estar penetrou nos meus tecidos e atingiu meu
sentimento de homem. Só recobrei meu pensamento quando
Ermelinda me tocou com suavidade no ombro e falou:
-Meu escravo, o que você está fazendo aqui? Não teria de
estar na mina?
Naquela docilidade, voltei a todos os momentos que passamos
juntos, até o aborto no caminho para Sabarabuçu. Superei o
pensamento rapidamente e cedi aos encantos dela. Como
ainda somos espíritos distantes da verdadeira lei! Eu trazia o
conhecimento de que um envolvimento com Ermelinda
poderia resultar em uma gravidez, mas ansiava por mais uma
noite, ainda mais com a presença de um jovem branco com
traços portugueses a luzir na face.
Entre a pergunta e meu pensamento, o padre passou
apressado, e relembrei do padre de Ouro Preto a nos advertir
quanto ao nosso envolvimento. Olhei para o altar c vi Nossa
Senhora me advertindo, e pedi perdão a ela.


Já tiveram a oportunidade de observar os santos nas igrejas?
Parece que eles nos olham conforme nosso proceder. Isso ficou
na minha memória e, quando tive oportunidade, pesquisei
sobre esse assunto com Neil, que me clareou o porquê de isso
acontecer.
-Pedro, quando temos fé e sabemos da lei que navega dentro
de nós, somos, sim, juízes de nós mesmos, encarnados ou
desencarnados. Mas isso só acontece com aqueles que já estão
buscando o caminho do amor, é o regulador do filho.
Você, por sua fé aos deuses, caminhava na margem da
segurança das boas ações. Foi por isso que, naquele momento,
enxergou a imagem te recriminando.
Se o homem encarnado se colocasse nesse sentido de amar a si
mesmo, cometeria menos delitos contra a lei divina, que não é
nada mais do que ele próprio.
Hoje fico aqui observando os encarnados que caminham com a
ajuda divina alertando-os contra a contravenção que possam
cometer, e muifios duvidam da intuição.
Somos constantemente assessorados pelos incansáveis amigos
espirituais e, ainda quando os processos naturais não saem
como queremos, julgamos que o Pai é injusto para conosco.
Somos eternos viciados no coitado de mim e, por sermos os
coitados, não expandimos nosso perispírito e ficamos presos a
rodopiar na faixa de baixa vibração, danificando a abençoada
encarnação.
O que representa o cárcere carnal para os que julgam ter
introjetado o conhecimento segundo as obras de Jesus?
Será que a passagem do Mestre somente é exercida pelos que estão
desprendidos do pó do ouro que o próprio Rabino nos salientou,
quando vocalizou sobre a busca do bezerro de ouro?
Quilombando cada um na sua taba concreta de atos egoísticos,
sufocam e são sufocados pelo magnetismo lançado pelas mentes
sequiosas pelo poder.


Estagiários contínuos para ocupar o posto no apostolado do
bem perdem o estágio porque não se soltam do infortúnio
fantasiado pelo mecanismo gerador do abismo sórdido da
ilusão.
Torna sinhazinha a reafirmar a fala:
-Tudo bem se não vai me responder. Eu peço que me siga,
pois preciso me banhar, estou morrendo de calor.
Sebastião estava sério e de poucas palavras, mas aproximou-
se e falou:
-Homem, o que está fazendo? Se sinhozinho toma consciência
que você está aqui e não na mina, vai ter com você.
-Sebastião, logo te conto o que aconteceu, mas não quero
comentar perto de sinhazinha. As ordens são para que eu
venha ajudar a tomar conta de sinhazinha, e creio que nem
dormir eu vou.
-E grave, Pedro?
-Sim.
-E, deve ser, eu também não gostei daquele moço que estava
na igreja, você viu?
E como vi, sei que viria confusão
-Sim, Sebastião, eu vi. Bem, vamos para o casarão. Só lá
ficarei tranquilo com Ermelinda.
Quando chegamos, a moça entrou para o banho e contei tudo
para Sebastião. A mina ficou parada até o retorno de Belar,
pois notícia ruim corre, e Laureano não conseguiu nenhuma
ajuda dos capitães, todos ficaram temerosos com a chacina e
não aceitaram o emprego. Todos da redondeza conheciam a
história de Bretão e Bonifácio.
Bem, passou uma semana neste vai e vem de sinhazinha e
Carlos. E, durante esse percurso, sinhazinha e Carlos começaram a
se conhecer.
No domingo, no retorno ao lar, Carlos e sinhazinha travaram uma
conversa mais longa. Ele ousou acompanhá-la a meia distância, mas


com muita alegria por parte dos dois.
Sabiam que esse envolvimento poderia ser proibido pelos
pais, porque, nesse momento, eles não estavam se entendendo
bem.
Eu esperava ansioso o retorno do comendador por vários
motivos, mas o mais forte era esse namoro, que eu estava
torcendo para ser proibido por Belar.
Ajornada da experiência encarnatória é um verdadeiro
laboratório, e esse laboratório seria mais funcional se o
homem se colocasse diante da pesquisa com mais
discernimento.
Quantos vírus mentais são lançados no campo energético
planetário! Estes, por sua vez, no tempo certo se fortalecem,
ganham vulto de ação e buscam seu alimento que, como
vibração, instala-se no próprio encarnado.
A despoluição mental é o mais sensato medicamento para
todos os que já trabalham para a grande reforma íntima.
Ganham energia e, passo a passo, vão recobrando suas
energias saudáveis.

34
Sebastião muda de "plano"


Devido às organizações necessárias no Rio de Janeiro, Belar
ficou por lá mais um tempo. A mina estava parada e nós
zelávamos pelo casarão e por sinhazinha.
A guarda real sempre a resguardar a filha de Belar. Com a notícia
da noite de roda, grande movimento ocorreu na estrada que se
avistava da varanda do casarão, o que despertou imensa


curiosidade por parte de sinhazinha.
Logo ela providenciara o pedido de permissão à guarda para
assistir. No primeiro momento, foi negada, mas Carlos,
sabendo desse desejo e com o próprio desejo de ficar próximo
a ela, solicitou a permissão.
Ela ficaria até as vinte horas, pois já seria uma grande
concessão, pela intervenção de Carlos no pedido.
Ermelinda ficaria a três metros de distância, pois era moça
nobre e só com a presença do pai poderia estar na festa de
Nossa Senhora do Rosário.
Foi determinado pela guarda que sinhazinha sairia
acompanhada por Generosa, a mucamba, Sebastião e eu.
Que felicidade para todos nós, pois iríamos a uma roda, festa
tradicional. Como eu, escravo, poderia ir a uma festa dessa se
não tivesse sido selecionado por Belar?
Ela escolheu seu traje mais lindo, branco, com rendas
finíssimas azul-turquesa a contornar todo o vestido, luvas de
seda finíssima que havia herdado de sua progenitora. Chapéu
branco, com uma enorme fita da mesma cor da renda azul-
turquesa. Um lenço fino a envolver o pescoço da menina
atenuava o ar de mulher que já trazia.
A guarda, às seis da tarde, parada na porteira, aguardava a
ordem de se aproximar do casarão e colocar sinhazinha na
carruagem, em que só os nobres andavam.
Lindo quadro que ainda registra o tempo. Como a evolução,
às vezes, estraga a mais bela poesia, pois as mulheres desse
tempo se vestiam com primazia.
Era realmente lindo ver uma mulher bem vestida, ocultando o
corpo com elegância. A conquista era o sabor mais nobre que
já existiu.
Lloje, o homem atual se encontra depreciado. O corpo,
santuário do espírito, perdeu a função real da evolução, e a
nudez se fez a armadilha do próprio espírito infantil, que


ainda percorre a experiência do sexo como mero prazer do
corpo.
Retomar o santuário sagrado é uma das buscas do espírito
encarnado. Vendas de exposições corporais, falência dos
encarnados e desencarnados. Estúdios eróticos fomentam
inúmeras almas desencarnadas a buscar prazeres com
emanações de poses aberrantes, que dizem ser pela arte.
Os que se projetam em nome do ouro contraem demência
energética, polarizando com inúmeras formas desordenadas
que incitam, cada vez mais, a busca desse prazer vibracional
descompensado.
Bem, este festejo de roda, trazido pelos negros, acompanha até
hoje os brasileiros em festas de lugarejos, encantando muitos.
Quando Jesus falou: "Diga com quem andas que direis quem
tu és", é muito mais amplo do que se pensa, e um dos veios é
este, em que hoje posso refletir.
Como é estranho! Somos realmente fluidos que se moldam
conforme o frasco. E o frasco é nosso perispírito que, pelo
comando da mente, opera onde estagiamos.
Com comandos, os senhores dos escravos logo mostraram
quem mandava. Os negros, de posse da observância, por
muitas vezes atuavam com companheiros da mesma cor como
os senhores faziam.
Assim fica o registro de que as ações são meras repetições, e
se são meras repetições, por que o homem não repete as ações
do Mestre?
Chegamos à grande e majestosa Igreja do Rosário. Carlos se
aproximou de sinhazinha, e a troca de olhares e meias
palavras marcaram o anoitecer.
O atabaque coordenava o espaço, som belíssimo saudando
Nossa Senhora do Rosário, que foi apadrinhada como
protetora dos negros.


Vi que o largo do Rosário estava repleto de irmãos de cor.
Nesse momento, vi que a força era mais nossa do que da
guarda que por ali rondava.
Aquietei a mente e me deixei envolver pela força da invocação
que o atabaque faz e rodopiei junto aos meus conterrâneos.
A dança do agradecimento é realmente linda. Quando nos
envolvemos com a alma, penetramos na esfera do Criador, e
nos libertamos do exílio constituído por nós mesmos.
E, nesse festejo, Sebastião também se envolveu, rodopiou e foi
ao chão. Parei de rodopiar e corri para Sebastião. Fui do
delírio ao despertar pelo grito de pavor de Ermelinda.
Quando a olhei, já estava sustentada por Carlos.
Fui até o chão para escutar, pela última vez, meu mestre
brasileiríssimo:
-Pedro, perdi as forças, retorno às forças da mata e encontro
com meus ancestrais. Cuide da sinhazinha. Diga ao
comendador que lhe agradeço pela generosidade que teve
para comigo. E a você cautela e olhos abertos, lembre-se do
Bretão.


E virou o rosto para o lado c suspirou pela última vez. Vim a
saber que ele foi logo resgatado e levado para ser tratado.
Hoje, opera com os raizciros, intuindo-os para aliviar as dores
dos irmãos.
Aproximei de Ermelinda e falei:
-Vamos, temos de levar Sebastião para enterrá-lo.
Mais uma vez sinhazinha ficou apática do anoitecer ao
amanhecer.
Um mensageiro chegou, comunicando que Belar se encontrava
a dois dias do casarão para retomar a chefia.
Bonifácio retornou com ele, mas seguiria para o trabalho na
Câmara e teria de auxiliar Belar em todas as necessidades.
O enterro de Sebastião aconteceu do lado de fora da Igreja,
outra concessão feita a sinhazinha. O padre estava temeroso



com o regresso do comendador e resolveu abrir esse
precedente para sinhazinha, que estava novamente
desfalecida.
Após o enterro, Carlos estava outra vez rondando a casa e
pediu permissão para adentrar o casarão, e nesse momento
tive de pedi-lo para não fazer isso. As ordens do comendador
eram bem claras: ninguém entraria na casa na ausência do
chefe.
No correr do tempo, Belar chegou e encontrou o luto
instalado. Eu não tinha a noção de como Sebastião era
respeitado pelos negros.
Vi sinhozinho durante a noite chorar pela perda de Sebastião
e me comovi com ele.
Os laços afetivos de almas companheiras se manifestam desde
que o homem é homem. E não poderia ser diferente. Após
muitos anos de convivência com a família, Sebastião deixou
saudades.
Belar e Ermelinda estavam muito abatidos. Muito silêncio e
respeito. Realmente, o comendador era diferente, alma
evoluída, como relatei, fora de seu tempo. Mas é assim
mesmo, tem de haver almas mais desprendidas para
impulsionar os que ainda se sufocam nas mazelas íntimas.
Generosa levou a comida e a tina para o banho, por dois dias,
ao quarto de Belar e Ermelinda. As janelas dos quartos
permaneceram fechadas durante esses dois dias, e vim a saber
que igual atitude ele tomou quando sua estimada esposa
faleceu. Seu filho Manoel partiu para Portugal, não ciando
mais notícias após o desencarne da mãe, alegando que o óbito
da progenitora era devido ao descaso do pai para com ela,
pois viajava mais do que ficava em casa. Findados esses dois
dias e recuperado da viagem e dos atropelos ocorridos na
fazenda, o comendador retomou a caminhada.


Ele me chamou e pediu para ser o primeiro imediato no lar,
assegurando a segurança dele e de sua filha. A partir daquele
dia, sinhazinha só sairia quando eu estivesse disponível para
acompanhá-la.
O comendador já tinha conhecimento do Gaia e de Bretão. E se
tornava mais ardiloso, pois teria de manter contato com
Bonifácio após as ordens do rei.
A semana corria entre o veio do ouro e as visitas à Igreja com
sinhazinha. Nesse vai e vem, Carlos se encheu de coragem e
comentou com o pai o interesse despertado por sinhazinha. A
princípio, Bonifácio temeu pela aproximação, mas como que a
compensá-lo pela perda da mãe, tudo fez pelo filho. E
enfrentou a visita ao lar de Ermelinda para acertar o cortejo
do seu filho Carlos.
Belar recebeu do mensageiro o pedido de permissão para filho
e pai visitá-los no dia da Festa de SanfAna, a pedido de
Carlos, pois seria uma estratégia. Ele sabia da devoção da
família à SanfAna, e assim ficaria mais fácil, pois estariam
mais sensibilizados pelo momento.
Belar concordou com a visita, que ocorreria no domingo
seguinte, e pediu a Ermelinda para se vestir adequadamente
para as visitas. Queria mostrar a Bonifácio que, apesar de ter
praticamente criado a filha sozinho, ela era uma moça bem
educada.
Retomamos o trabalho com afinco na mina. Eu ficaria lá e
Belar seguiria à Câmara para ter com o juiz geral e Bonifácio,
para os ajustes necessários.
João, quando me viu, alegrou-se de novo e falou:
-Oi, rapaz, quanto tempo!
-E, João, algumas coisas também aconteceram no casarão.
Sebastião morreu. Sabarabuçu tem uma energia de tristeza
constante, não é?


Enquanto estávamos a bater o prego na parede da mina,
perguntei a João como havia se formado Sabarabuçu.
-Você é bem curioso, não é? Bem, dizem que um tal de
Bartolomeu Bueno da Silva chegou aqui e enraizou moradia.
Alguns falam que Bartolomeu era um homem muito rude e,
por isso, capturou os índios do local e apoderou-se da terra. Já
ouviu falar dos índios canibais?
-Sim, João, e tenho medo só de pensar nisso. Agora temo,
também, Bretão.
-E, Pedro, temos de ficar de olhos abertos.
E neste meio-tempo, levamos uma chibatada do capitão e a
ordem foi dada:
-Trabalhem em silêncio, se não querem ficar sem língua.
A ação gera ação, não é assim? Um carro de boi se movimenta
porque pode atritar com o peso da carroça e promover a ação.
Assim é o movimento dos encarnados, que constantemente
fazem a ação e, de ação em ação, acrescem ladeira abaixo na
consttução dos movimentos, de forma a declinar em sua
própria evolução.
O progresso é alimentar a humildade, evangelizar e
concretizar no amor. Nesse ensaio de retomada de postura, o
homem de bem constrói sua geração mais saudável no
princípio do Pai.


Mercê das forças desordenadas estão todos aqueles que se
colocam no educandário da vida a conduzir almas. Vemos
escolas, doutrinas e direções éticas conflitadas por abolirem o
educandário do Cristo Jesus.
Pedagogos, psicólogos, professores e dirigentes acuados na
engenhoca mercantilista do ouro dominador. Como irão
responder pela falta de controle instalada e vivenciada por
apóstolos do educandário? Deveria ser assim, todos os dirigentes de
nações terem sobre a mesa do plenário o Evangelho e regerem as
normas sob a tutela do Mestre dos Mestres.



No educandário do Cristo Jesus não se desenvolve o orgulho
que a façanha imaginária coloca nas escrituras do homem
sobre o poder temporário.
Nas páginas executadas pelo Rabino, somente obras de amor e
dos dirigentes, obras de interesse íntimo.
Calvário, levando o Mestre à libertação da opressão, este sim,
o sentido desenvolvido para o autoconhecimento, mas o
calvário do encarnado é o exílio contínuo.


35
Sofrimento na Casa de Deus


Ao findar o dia, retornei ao casarão. Encontrei Belar
comunicando a sinhazinha de que fora dado a ele o título de
juiz ordinário. Teria de ficar mais tempo longe de casa, por
isso queria que Ermelinda só se ausentasse do lar com
Generosa e a guarda armada. Então ela ficaria mais dentro de
casa.
Belar ordenou que eu o acompanhasse até a igreja, pois iria ter
com o padre para compreender como a Igreja interferia nas
ordens da Câmara em Sabarabuçu.
Passou pelo soldado da guarda e falou:
-Olhos bem abertos. Sei que Bretão está rondando o casarão à
procura de Bonifácio.
Seguimos para a Igreja, e Belar começou a confidenciar:
-Sabe, Pedro, é bem provável que Bonifácio seja transferido
para o Rio de Janeiro devido a esse ocorrido. O mensageiro
trará a resposta em breve.
Naquele momento, a alegria se instalou no meu coração: o rival se


afastaria.
Chegamos à Igreja, e o padre estava a organizá-la.
-Licença, padre -Belar falou.
Olhei o olhar do padre, que não foi de bom amigo.
-Sim, tem toda.
-Quero lhe falar, mas antes gostaria que me explicasse por
que aquele escravo está no tronco próximo ao sino. Volto do
Rio de Janeiro com o título de juiz também, então teremos de
nos entender bem, não é?
-Sim, senhor juiz, o que queres saber além do corriqueiro,
pois um negro no tronco não é nada de mais, não é?
-Bem, representante de Deus, quero lhe dizer que em breve o
rei visitará Ouro Preto e virá aqui também. Então a ordem é
deixar a cidade organizada para Sua Realeza.
-Vamos para trás da Igreja, assim conversaremos com maior
privacidade, senhor juiz.
-Não vejo necessidade, pois não há fiéis na Igreja.
-Mas há aquele escravo que se encontra na porta a nos
observar.
-Não se incomode com ele, é de total confiança. Aonde eu for
ele vai. Ele me segue para garantir minha segurança.
-O senhor confia muito nesses sem-alma. O que queres saber?
-Primeiro, por que aquele barulho atrás do altar naquele dia?
O que o senhor esconde ali?
-Sabia que a primeira pergunta seria esta, Belar. Devem ser
ratazanas, aqui em Sabarabuçu tem muitas.
-E desde quando ratazanas choramingam?
-Hoje o senhor está escutando algum ruído?
-Não, padre, mas quero ir lá atrás para ver a Igreja.
-Traz alguma ordem para isso?
-Sim, não só para isso, mas também para tudo o que diz
respeito à ordem de Sabarabuçu. Se são ratazanas, temos de



fazer a limpeza, queremos que Sua Realeza se sinta em
segurança nesta comarca, não é?
-Vamos logo, não tenho muito tempo, e o senhor também não.
Fomos à parte de trás da igrejinha. Havia uma entrada bem
pequena que era utilizada para prender os negros, como se
fosse uma solitária.
-O que é isso, santo homem de Deus? -Belar indagou.
O padre falou:
-Belar, só foi aquele dia, depois não coloquei mais ninguém
aí. A prova é aquele escravo no tronco.
-Cuidado, padre, estou muito próximo da Igreja, então é
melhor andar direito. O senhor só tem esse escravo para servilo?
-Não, senhor, este infeliz tem esposa e filho.
-Cadê eles, padre? Quero vê-los agora.
-Agora?
-Sim, e sem demora.
-Irei levá-lo, mas, como te disse, eles são desobedientes e hoje
todos estão passando por um castigo.
-Já posso imaginar -falou Belar.


Abrindo a porta da casa, vimos o menino amarrado no tronco
de sustentação do telhado e a mãe amordaçada, sangrando e
seminua.
-Santo Deus, padre, não quero tirar sua autoridade, mas o
que você pensa sobre castigo? O que ela e o menino tão
pequeno fizeram?
-Eles não fizeram nada, mas o pai sim, então todos pagam.
Assim ele irá pensar outra vez antes de não obedecer às
ordens.
Mas que ordem foi esta que te levou a chicotear tanto a negra
até sangrá-la? O senhor sabe que não está correto, que até escondeu
mãe e filho dentro da sua casa para ninguém vê-los!



-Quem o senhor pensa que é, Belar? Os escravos são meus e
faço o que quero.
-Veremos padre, veremos.
Dirigindo-se à Câmara apressadamente, o juiz ordinário
ganha, em tempo hábil, a presença do senhor

Manoel e começa a relatar o cenário que não aprova.
-Cheguei do Rio de Janeiro e reencontro o padre de Sant'Ana
com atitudes complicadas. E de conhecimento que até a Igreja
é favorecida com escravos para servir a santidade, mas é
também do conhecimento geral que a Igreja representa Deus
e, se é representante de Deus, tem de cumprir o que dizem as
escrituras, não é?
-Aonde o senhor quer chegar?
-Quero colocar um vigia para seguir o padre. Há rumores de
que boa coisa não acontece ali. Já se contam, desde a chegada
deste padre, dezenove escravos que desapareceram, sob a
alegação de que eles todos fugiram com esse tal de Bretão. Por
isso quero tirar isso a limpo.
Falando de Bretão, que não conheço, após minha chegada vim
a tomar conhecimento da chacina realizada na minha mina e
as providências tomadas por seu comando. Quero agradecer-
lhe por enviar ao casarão a guarda para proteger minha filha.
Pedi um mensageiro para ir até o Rio solicitar que Bonifácio
seja transferido para lá por segurança, pois o próximo pode
ser ele. Pelo que me contaram, Bretão está vingando a mãe,
não é? Os detalhes, não precisamos deles, mas quero evitar
mais mortes aqui.
-Sim, Belar, nesse aspecto você pensa como eu. Se for aceito
este pedido, terá de ser escoltado com a guarda, os tropeiros e
alguns negros, pois no Gaia, mais de cem negros se encontram
foragidos sob o comando de Bretão. E bom não espalharmos
isso também. Ele terá de sair de madrugada, não deixando
rastro.


-Vamos aguardar. Voltando ao padre, tenho de resolver este
assunto o quanto antes, pois em breve receberemos a visita do
rei e quero que tudo esteja cm ordem. Quero a banda e a
guarda bem ensaiada para um sarau, e o preparo do teatro
para o baile. Quero toda a nobreza de Sabarabuçu presente,
pois será um momento marcante.


-Bem, senhor comendador, tenho conhecimento de que o
senhor trata seus escravos com liberdade. Não tem medo de
ser traído por eles? Você é mesmo abolicionista? Seu
comportamento com seus escravos nos estranha muito, e não
queremos problemas com nossos escravos aqui. O seu cão de
guarda, este aí, pode uma hora te dar uma punhalada.
-Ora, homem, quanto medo você tem dos escravos! Não sou
abolicionista, mas se tiver algum movimento neste sentido,
provavelmente estarei junto a ele. Bem, chega de conversa e
vamos trabalhar. Logo será domingo e quero estar em ordem
para a festa de Sant'Ana.


Saindo da Câmara, Belar resolveu voltar à Igreja. Ele estava
realmente implicado com o padre. Chegando ao lar do padre,
bateu na porta, e o negro ainda estava amarrado no tronco.
O padre gritou de dentro da casa:
-Quem a esta hora me perturba? Já não se faz hora de visita.
Volte pela manhã que te receberei.
-Sou eu, Belar! Abra agora esta porta.
-Mas não é possível, o que o senhor quer agora? -abrindo
meia banda da porta.
-Quero ver sua escrava e o filho dela, pois o escravo continua
no tronco.
-Olha como o senhor é observador, comendador! A negra e o
menino são minha propriedade, então faço o que quero com
eles.
Neste momento, um gemido nós escutamos e Belar



falou:
-E agora este gemido, vai falar que é um rato, ratazana ou
coisa assim? Deixe-me entrar!
E, empurrando o padre, começou a correr dentro do lar. Fui
barrado pelo padre com duas palavras:
-Fique aí, negro sujo.
-Gelei! Não sei por que, mas tinha medo deste padre.


Belar gritou:
-Cadê a escrava e o menino -e nesta hora outro gemido vindo
do chão.
Pela experiência de Belar, ele bateu com os pés no assoalho à
procura do som oco, pois seria ali a porta para o suposto
porão.
-Que é isso, homem! Agora vai sapatear no meu chão? Peço a
gentileza de se retirar do meu lar.
-Não sairei enquanto não vir o menino e a mãe.
-E realmente abolicionista, não juiz?
-Não estamos discutindo o que sou. Quero ver a escrava e o
filho. Leve-me a este maldito porão.
-Tudo bem, homem da lei, vamos lá.
E, suspendendo uma das tábuas, encontramos a escrava toda
ensanguentada, chutando os ratos, com seu filho nos braços a
chorar.
-Oh, meu Deus! Padre, como pode ser tão ruim assim, não
tem piedade nesse seu coração?
-Dê o seu preço, pois vou comprar esta família.
-Como assim, eles são meus escravos!
-Eram, agora são meus. E, retirando seu casaco, cobriu a
negra, que estava exposta.
Já comuniquei à Câmara sobre as atitudes aqui. Amanhã,
provavelmente, mandarão outro escravo para você. E cuidado
com suas atitudes!



-Quando me mandaram para o Brasil, a ordem era para
catequizar os índios e educar os sem-alma. Agora parece que o
senhor está mudando as regras.
-Pode ser, mas por hoje chega. Fale seu preço, estou saindo
com eles, o senhor querendo ou não. E torno a falar: cuidado
com o que faz.
-Está me ameaçando?
-Não, estou te alertando. E passar bem. Se não dá o preço, eu
faço o preço e mando-lhe o dinheiro em breve.
Ao sair da casa do padre, avistou sua filha andando pela rua e
sendo amparada pela guarda e pela mucamba. Viu, também,
Carlos bem próximo de sinhazinha. Ele se apressou, alcançou
os dois e disse:
-Quem te permitiu andar? Quem é este jovem?
-Bem, papai, este é Carlos. Saí porque está muito calor e
queria pegar a fresca da tardinha e, por um acaso, Carlos
estava passando e começamos a conversar.
-Boa tarde, senhor Belar, sou filho do Bonifácio.
-Sim, no próximo domingo receberei vocês. Agora tenho
pressa. Desculpe-me, tenho de cuidar destes escravos e minha
filha me acompanhará. E quanto a você, cuidado, pois Bretão
não está de brincadeira.
-Sim, o senhor tem razão, devo me apressar, seguirei com a
guarda. Boa noite.
Era mais uma preocupação para Belar. Ele já sabia do
interesse de sua filha por Carlos, e estava temendo por ela
também.


36
O pedido de casamento


O tempo passa rápido quando estamos trabalhando, e logo
chegou a festa de Sant'Ana e a chegada de Carlos e seu pai,
Bonifácio.
A política da boa vizinhança se instalou no casarão, mesmo a
contragosto de Bonifácio, mas a posição dele agora não era
das melhores. Mal ele sabia que em breve seria removido para

o Rio de Janeiro.
Carlos pediu para cortejar Ermelinda e, como o juiz nada
negava à moça, fez-lhe uma pergunta:
-Querida filha, é o que queres?
-Sim, papai.
-Sabe que terá de seguir seu marido aonde ele for?
-Sim, papai.
Apesar de a tristeza bater no coração de Belar, ele supunha
que o casamento da filha a protegeria, pois, casada com
Carlos, ela teria de ir para o Rio de Janeiro, e assim seria
melhor para ela. Estaria afastada de Sabarabuçu e de Bretão.
Após este acordo, pois era assim que ocorria, foram todos à
festa de Sant'Ana. Realmente muito bonita a festa, e logo
sinhazinha casaria e seguiria para o Rio.
Entre a mina e a Câmara Belar dividia seu tempo, até que o
capitão do mato responsável pela ordem na mina falou:
-Comendador, vejo que os negros não estão produzindo nada.
Eles alegam que não há mais ouro neste veio, fazendo-se
necessário perfurar outro.
-Terei de ver com meus próprios olhos. Vou descer até o fundo
desta mina.
Não, senhor comendador, o senhor não pode fazer isso. É muito
perigoso. Parece que vai chover, as nuvens estão bem fortes, não é

bom o senhor entrar hoje, deixe para amanhã.
-Não, tenho de resolver isso hoje. Vou entrar bem rápido e
volto antes de esta chuva cair. Pedro, fique aqui. Se precisar
de você, te chamo.
-Sim, senhor.
E assim se deu, o comendador entrou na mina e eu fiquei com
João, que me colocou mais a par da história de Sabarabuçu.
-Sabe, Pedro, nos registros da história falam que um tal de
Fernão Dias veio para Sabarabuçu por causa do ouro. Paulista
e muito forte, dominou o local com Borba Gato. Logo em
seguida, pediu a um tal de Matias para plantar em Roça
Grande, que até hoje fornece o alimento. E bem interessante,
não é?
-Sim, mas olha lá, homem, a chuva vem depressa! Vamos
avisar o capitão para chamar Belar para fora da mina. Mas
logo a chuva chegou com muita força e começou a entrar na
mina.
A chuva começa a castigar o terreno. A água que cai do céu
encontra a canalização rapidamente, e faz pequenas valas,
que, conforme a torrente, ganham força e se alargam
rapidamente. Foge à mente acompanhar essa rápida
transformação.
Hoje o homem pode, com os próprios olhos, seguir, passo a
passo, esse movimento que a natureza realiza. Os aparelhos
meteorológicos de precisão auxiliam o encarnado em suas
reflexões.
Mas este perde o grande benefício que o Criador lhe permite
no desenvolvimento. Se lhe é permitido avançar na tecnologia,
é para buscar refletir sobre os atos. Como está envolvido
somente no obter, não se permite o simples exercício da
observação e se esquece das palavras de Jesus: "Orai e vigiai'.
Não ora nem tampouco vigia. O homem do hoje se concretiza
formando blocos compactos que bloqueiam a fé.


Construíram os arranha-céus, colocaram-se dentro de tubos
quadrados e se enquadraram em seus tubos compactos.
Voltar ao Pai, ou melhor, às coisas do Criador, requer
desbloqueios, e reformar atitudes é a tarefa atual.
Homens sequiosos não analisam o que fazem de real na
encarnação.
A fúria das águas ganhava proporção devastadora e começava
a desmontar tudo e sobrecarregar a entrada da mina. Neste
momento, já estava segurando a corda de acesso à mina para
dar apoio ao comendador e aos outros. Pela enxurrada, era
impossível que todos os que estavam na mina saíssem vivos,
mas a luta era para salvar todos.
Alguns homens, no desespero, descontrolavam-se e, em vez
de ajudarem, tumultuavam mais, e assim é em todos os
tempos. Sempre quando se passa por alguma prova de fúria
da natureza, os mais tranquilos ganham, porque não perdem a
força. Eu tinha meu controle, voltei à tempestade que havia
enfrentado no navio. Só faltou estar dentro do mar.
Homens gritando fora e dentro da mina, essas ações não
perduraram muito, mas a vibração nos leva a registrar como
se fossem uma eternidade.
Formou-se um caudaloso rio, pois do morro a água ganhou
força e, enfurecida, carregou tudo o que encontrava pelo
caminho, toco, tronco, martelo, cutelo, cabaças e pequenas
pepitas, que se perderam no próprio terreno.
Conseguimos resgatar Belar e alguns escravos; dois não
tiveram sorte e morreram ali soterrados. Como a desordem
era total, um escravo conseguiu fugir. Provavelmente juntou-
se a Bretão, porque num dos momentos em que olhei para
cima vi Bretão no topo da montanha, por entre as árvores, e os
chicotes de raios fazendo da figura dele um ser das
profundezas.


Como ele em vida já havia perdido a forma de homem e
ganhado a forma grotesca de um animal-homem!
Após o vendaval, ficou difícil saber onde não havia barro.
Tudo foi destruído. Teríamos de recomeçar limpando o
terreno. Belar adoeceu e ficou acamado por três dias.
A força das águas lavou um pouco mais a mente de Belar e,
após restabelecer, ele falou:
-Pedro, como sou grato a você, me salvou mais uma vez.
Tenho esta dívida com você. Logo minha filha casará, e tenho
pressa deste casamento. Já que tenho de afastá-la daqui por
proteção, é melhor ir casada. Tenho me informado sobre o
Carlos, e todos falam que é trabalhador e um bom rapaz. Ele
tem umas terras lá no largo. Vou comprá-las, assim ele pode
seguir com Ermelinda para o Rio e construir a vida lá.
Belar seguiu para a Câmara a fim de pedir auxílio para
perfurar outro veio, já que aquele estava destruído.
O filho daquela escrava já encantava Ermelinda, que passava

o dia brincando com ele. Como sinhazinha se apegava rápido
com as crianças, Carlos falava que ela seria uma boa mãe.
A noite chegou c pude sentar com João, que agora partilhava
das proximidades do casarão também. Com a volta de Belar,
nenhum negro mais dormiu na jaula, podíamos dormir nos
fundos do casarão, no paiol.
E, nesta noite, a lua estava linda, cheia e vigorosa. Com minha
eterna curiosidade, pedi a João para contar mais sobre
Sabarabuçu.
Queria saber sobre o Gaia. Como os mais velhos deveriam ser
respeitados! A sabedoria só se assenta após anos de
experiência, e João trazia no coração a experiência.

37
O massacre no Gaia


Olho da colônia de recolhimento, aqui em Sabará, a
negligência para com os idosos. São como um estorvo para a
sociedade, mas no vigor da experiência se encontram. Ocorre
uma ausência de coordenação emocional no exercício
encarnatório, e os homens atuais se afastam com naturalidade
da lei divina.
Se encarnamos para aperfeiçoar nossos sentidos, retardamos
esse aperfeiçoamento negando o acolhimento aos
progenitores, dando a terceiros o ofício do envolvimento mais
bonito, que é o reconhecimento e agradecimento pela
abnegação daqueles que nos permitem, por meio da
experiência da vida, evoluir.
Muitas experiências algumas almas necessitam para
compreender que daqui não se leva nada, somente a
construção de amor. Amoedados eternos, empenhorados,
espíritos devedores para consigo mesmos são eternos
dependentes químicos mentais de ações destrutivas.
João me contou que mais ou menos em 1740 este quilombo se
formou, ganhou tamanha força que fez muitos corações
chorarem, porque, por defesa, eles, do quilombo, saqueavam,
violentavam as moçoilas, filhas dos grandes portugueses que
por aqui passavam. Poucas em vida ficavam e as que morriam
eram também esquartejadas.

Que tristeza! O revide é o mal da humanidade. Bretão
continuou o revide e até hoje, em seu mental, revida as ações.
Busquem os exemplos da guerra. Desde que o homem é
homem ele fomenta a guerra. Jesus trouxe a paz e fizeram guerra
para exterminá-lo.
Há vários níveis de guerra. Observamos lares em guerra, setores


trabalhistas em guerra, o ensino em guerra, as comunidades e assim
por diante, homens armados a retirar vidas.
Moisés asseverou e Jesus confirmou: "Não matarás" e, de
vingança em vingança, Bretão continua quilombando
juntamente com milhares de irmãos apegados à vingança.
De geração em geração se renovam as atitudes. Nesse período,


o bisavô de Bretão foi pego e assassinado. Realizaram uma
devastação no quilombo, fizeram uma perfuração no rim
direito da bisavó, mataram e martirizaram inúmeros negros.
Havia uma mãe que amamentava o filho na hora da invasão.
Os homens, sem escrúpulos, violentaram-na na frente do bebê,
arrancaram-lhe os seios, amarraram-na num tronco na
margem da estrada e ela, pelo instinto de mãe, resistiu à
violência até quando colocaram seu bebê aos seus pés e
soltaram os cães, que completaram o serviço.
Vários dos companheiros de Butu, o bisavô de Bretão, foram
mortos com muita violência, pés estirados pela estrada,
cabeças ficadas no madeiro à espera dos abrutes.
Os corpos mutilados ficaram expostos para os negros temerem
a rebelião.
Toda essa violência foi vivenciada por Butu. Logo em seguida,
Butu foi levado à praça central para concluírem a execução.
Arrancaram-lhe as orelhas, uma de cada vez, a língua e, por
último, a genitália. Como Butu tinha de demonstrar coragem,
morreu em silêncio. Mas o silêncio repercute até hoje em seus
familiares.
Eles caminham como gatos e agem como cobras, lançam o
veneno e pronto.
Em silêncio quem ficou fui eu, não tinha palavras para
tamanha crueldade. Como já falei, o revide faz do homem o
eterno pião. Eles rodopiam, rodopiam e morrem estirados na
própria insanidade.



Fomos acordados deste momento com os cães dos capitães a
ladrar, e ficamos imaginando se seria outra busca a algum
negro fujão, mas ficou só na imaginação.
Como a noite estava bem iluminada pela lua, deu para vermos

o padre correndo na direção do valão.
Falei para João:
-Não gosto dele. João acrescentou:
-Nem eu, fique longe deste padre, ele tem parte com o
demônio.
38
Padre Cirlinano -o doente


O tempo corria, e o comendador estava em grande
movimento, mina, Câmara e festejos para a corte, que visitava
com frequência Sabarabuçu.
Carlos, já como membro da família, organizava o casamento
com Ermelinda juntamente com Belar.
Belar pediu à filha e a Carlos para se casarem em Vila Rica. De
lá, ele, juntamente com a guarda, os tropeiros e os capitães,
acompanharia os recém-casados e Bonifácio até o Rio de
Janeiro.
Bonifácio ficaria no Rio, e Ermelinda com Carlos seguiriam
para Portugal, onde fixariam moradia.
Como as tias de Ermelinda sitiavam lá, Belar estava aliviado
com esta decisão, pois nem seu genro ficaria exposto a Bretão.
O padre estava sendo observado pela guarda e por mim. Algo de
sinistro ele fazia no valão. Mas, como a casa estava a todo vapor
com o casamento de Ermelinda, preferi esperar o casamento passar.


Foi realmente uma mão de obra. Belar teve de ir a Vila Rica
tratar tudo com o padre para o casamento, preparar o salão de
festa que se situava próximo do teatro, levar os doces com
antecedência. Mas, como era comendador, juiz ordinário e
dono de fazenda, tudo ficou resolvido a tempo.

A mucamba Generosa estava muito preocupada com a
primeira noite do casal, e estava planejando com Ermelinda
como fariam. Ela providenciaria uma galinha para cortar o
pescoço e sangrar no lençol do casal. Ermelinda teria de ser
cooperativa e oferecer a ele bastante vinho para deixá-lo bem
alcoolizado, assim não haveria engano quanto à virgindade
dela.
Chegou o grande dia e o casamento foi realizado com todos os
preparativos planejados por Belar. A festa aconteceu com
perfeita organização, e Carlos, encantado com a doçura de sua
noiva, não percebeu nada. Ermelinda conseguiu concretizar o
casamento.
Nos dias seguintes, eles seguiram para o Rio de Janeiro, em
direção a Portugal. Foi a última vez que os vi. Preferi não ver
a partida, por isso me resguardei junto com os outros
escravos.
Voltamos a Sabarabuçu com os capitães do mato. Ficaríamos
sob a guarda deles até a volta de Belar.
As noites se tornaram longas, o padre a correr para o valão e
nós, eu e João, a observar esse trajeto de quase todas as noites.
Numa noite rezamos aos deuses e seguimos o padre a
distância, e vimos o que ele ali fazia.
Ele removia a terra do valão que cobria ossos que os cachorros
desenterravam todos os dias. E ele tinha esse trabalho noite
sim, noite não.
Que ossos eram aqueles? Por que ele ia ao valão enterrá-los?
Qual era o envolvimento dele com aqueles ossos?


Voltamos na frente dele bem depressa. Se sentia medo dele,
agora eu estava apavorado.
Eu estava contando os dias para comunicar ao comendador o
que havia descoberto sobre o padre. Agora eram o padre e
Bretão a prejudicarem meu sono.
Belar retornou aliviado. Vira com os próprios olhos a filha
embarcar para Portugal. Agora ela estava salva, fixando
residência lá seria bem mais seguro e, quando ele tivesse
tempo, iria visitá-la.
Quando ele passou pela porteira, eu já o esperava ansioso
para lhe contar sobre o padre e a história de Butu.
Relatei-lhe tudo e, naquela noite mesmo, ele, eu e João
seguimos o padre, de novo, no mesmo movimento de enterrar
os ossos.
Belar falou baixinho:
-Era só o que me faltava! Este padre é bem esquisito. Vamos,
amanhã volto com a guarda. E melhor fazermos a revista com
a guarda montada.
Pela manhã, seguimos bem cedinho até o valão e lá vimos
vários corpos picados e enterrados. O cheiro era terrível e, por
várias vezes, fizemos vômito.
Belar saiu do valão direto para a casa do padre e bate na
porta.
O padre falou:
-Quem, tão cedo, procura por mim, o representante de Deus?
-Sou eu, padre. Belar.
-Já voltou? Seu nome deveria ser senhor encrenca.
-Quero conversar com você.
-Outra vez? Já conversamos tudo.
-Não, padre, é sobre o valão.
-Valão? O que eu tenho com isso?
-É o que eu quero saber. Por que você vai lá noite sim e noite
não? De quem são aqueles corpos? Por que os enterra sempre?



-Oh! Minha SanfAna, que homem chato!
-Já tenho conhecimento por que veio para o Brasil. A sua
mania de perfeição levou ao óbito um noviço.
-Tá bom, Belar, entre e pare de falar sobre essas coisas aí fora.
Está querendo me pôr contra a comunidade de Sabarabuçu,
homem? O que te fiz? Vejo que tem o poder realmente nas
mãos.


-Entre, já que sabes demais. Peço que isso fique somente entre
mim e o senhor, Belar. Depois da sua visita ao Rio, recebi uma
advertência. Se houver outra reclamação, irão me mandar
para a Africa. Já pensou nisso? Para mim, aqui já é o fim do
mundo, imagine como será viver na terra desses sem-alma?
-Por isso, padre, não tente me enganar. O que o senhor faz no
valão? De quem são aqueles ossos? Qual o interesse do senhor
em ficar enterrando os ossos que os cachorros famintos
desenterram?
-Chega de tantas perguntas, Belar, não aguento mais este
interrogatório.
-Padre, cadê o escravo que mandaram para servi-lo?
-Aquele ingrato fugiu
-Fugiu? Por que não deu parte aos capitães?
-Não quis e resolvi ficar sozinho sem estes sem-alma. E
melhor. Também sou sozinho e não preciso deles.
-Conversa, não é, padre? Vamos ver como fica essa história
do valão, que você não me respondeu. Até mais ver.
Saímos, e Belar foi pedir permissão à Câmara para fazer a
varredura no valão. Ele precisava descobrir o que estava
acontecendo.
Foi dada a permissão e, neste meio-tempo, o padre fugiu.
Encontraram um corpo esquartejado em início de
decomposição e era o que Belar estava suspeitando: o padre
havia exterminado o negro.



-Quantos ele deve ter matado e falado que fugiram? Meu
Deus, ele é doente, tem de ser internado no hospício! Vou dar
a ordem de prisão.
Mas o comendador chegou tarde: o padre havia desaparecido.
As buscas foram feitas por um mês, quando desistiram de
procurá-lo. Do paradeiro do padre, ninguém nunca deu
notícias.
Foram encontradas no lar do padre correntes, ponteiras de
ferro e um serrote.

No porão, uma mesa toda manchada de sangue e sacos de
linhaça, em que, provavelmente, ele envolvia os cadáveres
para serem jogados no valão.
Quantas anomalias em um espaço tão pequeno como
Sabarabuçu! Hoje, tenho o conhecimento de que o padre sofria
de transtorno mental profundo, devido aos processos
familiares por que passou. Ele passou despercebido por todos
que com ele lidaram, porque era padre e ficava mais recluso.
Só Belar conseguiu detectar sua doença.
Doenças de todas as ordens são tratadas hoje em dia, mas são
necessárias almas desprendidas para se dedicarem aos
doentes. Doença emocional requer carinho, proteção e
acolhimento. Não é na primeira dose que se cura. São
necessárias várias doses de passe, de incentivo ao convívio
com palestras edificantes e medicamentos de médicos
especialistas, como os psiquiatras.
Tristeza registro por uma alma que, acorrentada na vingança,
se utiliza da queima do próprio perispírito.
Tenho feito uma rogativa ao Criador para todas as almas
acorrentadas pelo ódio, pela vingança, pela inveja, pelo
egoísmo e por todas as mazelas que atrofiam o mental do
espírito.


"Mestre, hoje eu alcanço um pouco mais sobre Tua passagem no plano 'Terra.
Quanto o espírito encarnado precisa compreender que a vida é um presente doado
pelo Criador para a reforma íntima!
0 que se faz necessário para o espírito se permitir, oh! Pai de Misericórdia, a
corrigenda necessária para o alargamento do seu próprio veículo de ação, que é nada
mais que seu fiel aliado, o perispírito?
Fortaleça todos os fluidos dos companheiros que, incansáveis, colocam-se a orar
pelos falidos.
'Tonifica o mental desses irmãos valorosos que fazem da vigília a oração pelo irmão.


Envolva todos os desprendidos do cárcere do corpo que se envolvem nas coisas da
criação.
Sendo assim, oh Mestre, acolha todos nós. Que assim seja!".


Belar se encheu de coragem e pediu uma equipe para ir até o
valão com ele. Chegando lá, começaram a remover a terra e
surgiram mãos, pés, cabeças e corpos petrificados.
Agora compreendíamos o cheiro que às vezes inundava
Sabarabuçu, o cheiro do matadouro.
Ainda hoje vemos almas choramingando no valão, mas o
maior valão é aquele criado na perfuração do perispírito, que
provocamos com as próprias mãos. Que o bom Pai acolha no
teu seio de luz o padre e todos aqueles dos quais ele, com as
próprias mãos, retirou a vida.
O comendador e os capitães ficaram imobilizados, os cães
estavam enfurecidos por quererem usufruir dos restos.
Quanta violência, meu bom Pai, registrei nos olhos dos cães!
Parece que a onda da ação maléfica toma forma até com os
animais. Um dos cães, depois deste trabalho, ficou louco, babando e
atacando tudo e todos. Belar não vacilou e mandou exterminá-lo.
Ainda não sei o paradeiro do padre, mas sei que companheiros
valorosos tentam o resgate dele e de muitos irmãos que pelo
sacrifício passaram.


A infância do padre não foi das melhores. O pai, muito
violento, violentava a mãe todos os dias, prendia o menino no
porão por dias no escuro e o chamava de criança imunda.
Rejeitava-o, pois o ato da mãe de amamentá-lo o deixava
irritado, pois se sentia traído pelo menino.
Quanto o homem, na sua brutalidade, conduz uma família de
laços maiores a falir no processo de evolução! Repensar a
jornada é ser um irmão em caminhada com os membros
familiares. Cada um guardando o devido respeito faz com que
os afins cresçam com mais amor e compreensão. Assim é o lar
desenvolvido pelo mestre Jesus. Ele nos direcionou, quando
assim falou: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei".
Ele, o Rabino, edificou o culto no lar, que fortifica as paredes
de amor e laços fraternos, nos orientando pelos próprios
lábios articulando a fala do amor.
"Estando dois, ou três, em meu nome, a orar ao nosso Pai, eu
também estarei".
Educar os lares sob a luz do Evangelho é o melhor caminho
para nos libertar da opressão corrosiva de séculos.
A mina já não produzia mais nada. Belar, homem inquieto e
produtivo, desenvolveu o plantio de cana-de-açúcar. A
rapadura utilizada pelos tropeiros garantiria a sobrevivência
da fazenda. E ele também a mandaria para Vila Rica.
O comércio vinha e ia de vento em popa. Bretão havia se
aquietado com a ausência de Bonifácio.
O comendador recebeu a primeira carta de Ermelinda, que,
cheia de felicidade, contava em detalhes sobre a arquitetura
da cidade de Portugal, os saraus, os musicais e teatros aos
quais ela estava tendo acesso.
Mas, em meio a tantas notícias favoráveis à felicidade, uma
incomodou Belar: ela não poderia ser mãe, pois o organismo
não sustentava a gravidez. Por isso ela perdeu o bebê no
caminho para Sabarabuçu.


Esta notícia aliviou o meu coração, pois sempre voltava ao
ocorrido e ficava perturbado, julgando ser culpado pela perda
do bebê de Ermelinda.
Noites de festa entre nós, os escravos, sempre aconteciam.
Belar nos deixava fazer a roda e cantar nossas cantigas.
Ele envelhecia a passos largos, agora mais do que nunca. Ele
se sentia sozinho. Às vezes, ele se assentava em volta da
fogueira, nos observava e nada falava. Levantava e se recolhia
aos seus aposentos.
As cartas de Ermelinda chegavam de três em três meses, e só
elas o motivavam a continuar vivendo.
Numa destas noites vimos Bretão rondando de novo o
casarão. Falei com João:
-Ele estava sumido, não é? Por que será que está voltando?
Bonifácio não mora mais aqui. O que será que ele quer?
-Calma, homem, vou ver o que ele quer. Tenho um sobrinho
no Gaia, vai ver que é sobre ele. Eles sempre tentaram me
levar para lá, mas eu não quis, prefiro ficar longe dele. Não
concordo com que o que eles fazem.
João aproximou-se da meia-luz, onde ele estava, conversaram
e Bretão partiu. João voltou e relatou o que foi falado.
-Bretão está indo embora. Ele, pessoalmente, esteve no Rio e
não achou Bonifácio. Lá, tomou conhecimento de que
Bonifácio se mudou para Portugal, e isso o impediu de seguilo.
-Para onde ele vai?
-Não relatou, somente falou que estava indo embora, que
meu sobrinho não seguiria com ele, e que poucos estavam
aderindo à saída do Gaia.
Temo por este ato, não me cheira bem este momento. Ele não
estava feliz, e sim abatido. Vamos ver no que vai dar isso.
A apreensão de João me deixou incomodado, e a noite passou
sem nenhuma anormalidade. Mas, na manhã seguinte, a


marcha da guarda passou outra vez com aquele tambor
maldito, anunciando uma execução na praça do largo, no
pelourinho.
Gelei, lembrei-me do caso do bisavô de Bretão, triste caso que
revivia a cena com Bretão de novo.
Ele foi traído por um companheiro do quilombo, que o
entregou à milícia, levando o comunicado de que ele e mais
dez negros haviam partido naquela noite. Eta o negro traindo

o negro.
A humanidade caminha sob a pressão do olho por olho no seu
inconsciente massificado de atitudes repetitivas. E nada mais
do que a ação do ontem no hoje reforçando a vingança.
Lá fomos nós de novo presenciar a execução. Tambores com a

batida peculiar para demonstrar que um negro iria morrer.
Ele e os dez companheiros enfileirados diante da guarda
armada seriam fuzilados. Foi lida a sentença em tom grave
para todos os presentes escutarem, e me surpreendeu como
alguém pôde gerenciar um lugar por mais de vinte anos e não
ter sido pego antes.
Realmente forças estranhas movem este espaço entre os
homens encarnados e os desencarnados.
Reforçar a vigília com a oração é a melhor arma de amor, que
pode o filho utilizar como ferramenta de luz contra as trevas
que ainda coabitam na esfera mental de muitos encarnados e
desencarnados.
A tarefa de amor aos necessitados é o escudo benéfico de paz
para os candidatos ao aprimoramento no bem.
Foram todos fuzilados de uma só vez, e Bretão, como relatei,
precisa de muita emanação de paz e perdão para ser resgatado
do momento quilombado que edificou no coração.


39
Epílogo -Planeta azul


Após alguns anos, Belar faleceu, e fomos levados de volta ao
Rio. Lá permaneci por mais alguns anos, e faleci no porto
como auxiliar de navio pesqueiro. João ficou em Sabarabuçu
livre, sobrevivendo do auxílio dos outros, então não foi muito
longe.
Após alguns anos se deu a abolição, mas reafirmo o que
indaguei. Será que realmente ocorreu a abolição?
E assim mais uma jornada encantatória se deu. Eu fico
imaginando quando, neste planeta riquíssimo de fluidos de
vida, estiverem habitando espíritos que vivam a paz.
Será muito prazeroso sentir as vibrações saudáveis, aquelas
vibrações pregadas pelo Mestre Jesus.
Quando a oração não for só dos lábios, mas sim do mental
desenvolvido, promovendo o equilíbrio geral, será realmente

o planeta azul. E é de conhecimento quase geral que azul é a
cor da cura. Se é a cor da cura, por que os homens não buscam
esta cura?
O Pai é perfeito. Ele coloca os doentes na fonte mais elevada,
que é este planeta que traz todo o equilíbrio da terra, da água,
do ar e do fogo, sendo estes os elementos que dão a vida.
Mas o homem, em sua eterna infância, brinca com esses
elementos da natureza e desestrutura a essência do Criador.
Chegará um dia em que o homem não se subdividirá mais, e
sim construirá um único planeta, o verdadeiro planeta azul, e
assim estaremos assinando o compromisso da manutenção da
saúde planetária.
Por isso dizemos:
Oh! Grande Unificador,


Aquele que calejou os pés para deixar o testemunho da lei Divina, vibre no teor mais
elevado para imantar os corações sequiosos, que aguardam uma oportunidade de ver

o seu senhor levado ao pelourinho.
Magnetiza de doçura e fraternidade todos aqueles que ainda se encontram no
quilombo íntimo, paralisados na queima irreal da vivência vingativa.
Fortifique os centros de. amor que trabalham com lealdade à lei do Pai.
Alimente os que têm fome de trabalho ativo em auxílio ao próximo.
Sacie todos os sedentos que buscam o Evangelho. Agasalhe os que se sentem
desprovidos do capote de Deus. Calce os que em chagas se encontram na busca do
caminho correto.
E envolva todos aqueles que se entregam ao auxílio do próximo.
Que assim seja! Pedro

Fim


Visite nossos blogs:

http://www.manuloureiro.blogspot.com/
http://www.livros-loureiro.blogspot.com/
http://www.romancesdeepoca-loureiro.blogspot.com/
http://www.romancessobrenaturais-loureiro.blogspot.com/
http://www.loureiromania.blogspot.com/






Lançamento Livros Loureiro
 Quilombo, Calabouço de Almas - Angelina Sales
 
(links no final da pág.)



   Digitalização: M. Loureiro
(livro de Victor Marinho)

Sinopse:

Europa, berço de uma experiência doutrinária que, em nome e Deus, acorrenta almas tingidas, pela necessidade geográfica. no suposto intuito de serem evangelizadas.

África, nação da recomposição emocional aprisionada pelas correntes da escravatura.

De senhores a escravos do próprio destino, o homem forja a lei sagrada.   

Transcorrem os anos e séculos, e o aventureiro e destemido europeu engaja a esperança na Terra Santa - Brasil...



Links:

Ziddu:

(.pdf):

(.doc)

Este e-book representa uma contribuição do grupo Livros Loureiro para aqueles que necessitam de obras digitais,
como é o caso dos Deficientes Visuais e como forma de acesso e divulgação para todos.
É vedado o uso deste arquivo para auferir direta ou indiretamente benefícios financeiros.
 Lembre-se de valorizar e reconhecer o trabalho do autor adquirindo suas obras.







"Tudo aquilo que não podemos incluir dentro da moldura estreita de nossa compreensão, nós rejeitamos."

Henry Miller




--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
 
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
 
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
 
 
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-