quinta-feira, 11 de novembro de 2021

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{clube-do-e-livro} Lançamento: O Preço de Ser Diferente - Mônica de Castro- Formato : pdf e txt

O pre�o
de ser

diferente




Revis�o e Editora��o Eletr�nica:

Jo�o Carlos de Pinho

An�lise e Adapta��o de Conte�do:
Marcelo Cezar


Dire��o de Arte:


Luiz Antonio Gasparetto

Capa:

K�tia Cabello

1- Edi��o
l" Impress�o

Maio � 2004

10.000 exemplares
Publica��o, Distribui��o
Impress�o e Acabamento
CENTRO DE ESTUDOS
VIDA & CONSCI�NCIA EDITORA LTDA.


Rua Agostinho Gomes, 2312
Ipiranga � CEP 04206-001
S�o Paulo � SP � Brasil
Fone / Fax: (11) 6161-2739 / 6161-2670
E-mail: grafica@vidaeconsciencia.com.br
Site: www.vidaeconsciencia.com.br


� proibida a reprodu��o
de parte ou da totalidade
dos textos sem autoriza��o
pr�via do editor.



M�nica de Castro

ditado por Leonel


O pre�o
de ser

diferente




Este livro � dedicado
a todos aqueles que,
de uma forma ou de outra,
foram alvo de algum
tipo de preconceito.
Porque o amor n�o conhece fronteiras
nem esbarra na conven��o dos limites.




azia um calor infernal quando as portas da escola p�blica
em que Romero estudava se abriram. O menino saiu esbaforido,
esfregando a testa e o pesco�o para enxugar o suor. Caminhou alguns
metros, at� que chegou ao ponto de �nibus e parou. Do outro
lado da rua, os colegas de turma passaram e apontaram para ele. Em
seguida, pararam e cochicharam algo nos ouvidos uns dos outros,
soltando risadas sarc�sticas.


� Olha l� a bichinha! � cantarolou um deles, apontando o
dedo para Romero e rindo feito um dem�nio.
Na mesma hora, Romero sentiu o rosto arder. Abra�ou a pasta
e desatou a correr, sob as risadas dos outros meninos, que continuavam
a apontar para ele e a gritar:

� L� vai a bichona!
� Pega, pega o veadinho!
� Ai, ai, boneca...
Romero correu tanto que nem percebeu que disparava a caminho
de casa. Somente quando viu o port�o de ferro de seu jardim
foi que se deu conta de que havia chegado. Apoiou a m�o no port�o,
tentando respirar e lutando para n�o chorar. Por que n�o o deixavam
em paz? Por que o viviam acusando de algo que n�o era?

� Veio a p�, Romero? � Era a voz de Judite, que vinha chegando
da faculdade. � O que houve? Voc� est� p�lido.
Judite era a irm� querida, a �nica que parecia realmente se importar
com ele. Cinco anos mais velha, ingressara na faculdade de


letras e era muito bela. Romero correu para seus bra�os e desatou a
chorar. Era sempre assim: os meninos da rua ou da escola implicavam
com ele, e era Judite quem sempre o defendia e consolava.

� O que lhe fizeram? � prosseguiu ela, com ar bondoso. � Foram
os garotos de novo? Debocharam de voc�?
� Ah, Judite, n�o sei por que fazem isso comigo. N�o sou
nada disso que eles dizem que sou!
� Sei que n�o, querido. E voc� n�o devia se importar.
� Mas eu me importo. Sabe o que papai vai dizer.
� Ele n�o vai dizer nada. Voc� n�o precisa contar.
� Mas ele tem um jeito de adivinhar as coisas...
Era verdade. O pai de Romero era inspetor na escola em que
ele estudava, trabalhando em dois turnos para sustentar a fam�lia.
Era honesto e correto, gozando de prest�gio com o diretor. N�o havia
nada que acontecesse na escola que ele n�o descobrisse.

� Voc� acha que algu�m viu e vai contar a ele? � perguntou
Judite.
� N�o sei...
� Mas o que lhe fizeram desta vez? Bateram em voc�? Xingaram?
� �. Eu estava no ponto, esperando a condu��o. Os meninos
passaram e me chamaram de bichinha, de veado... S� porque n�o
tenho namorada...
Romero fez um beicinho tr�mulo e agarrou-se a Judite, que acariciou
e beijou seus cabelos.

� Vamos entrar. Se papai chegar e brigar com voc�, direi que
n�o foi culpa sua. E n�o foi mesmo. Que culpa tem se os garotos implicam
com voc�?
� Voc� sabe que papai vive me cobrando coisas. S� porque n�o
quis ir ao tal bordel, n�o quer dizer que n�o sou homem.
� E claro que n�o! Papai � um tolo. Pensa que sair por a� deitando
com qualquer vagabunda � sinal de masculinidade. Mas voc�
n�o precisa ir, se n�o quiser. N�o tem de provar nada a ningu�m.
Nem a ele. No dia em que conhecer uma garota legal, vai ver como
as coisas mudam.
Romero silenciou-se. Achava muito dif�cil conhecer uma
garota legal. Quer dizer, conhecer, conhecia muitas garotas legais,

1O


mas nenhuma que o fizesse mudar. Mudar em qu�? Ele era homem,
disso n�o tinha d�vida... Mas, ent�o, por que n�o se interessava pelas
meninas? Judite dizia-lhe que ele era muito novo e ainda n�o
conhecera a garota certa. Mas como seria a garota certa? Loura?
Morena? Alta? Baixa? Gorda? Magra? Ele n�o sabia. S� o que sabia
era que algo dentro dele lhe dizia que jamais encontraria a garota
certa, o que lhe causava imenso desgosto, um quase desespero. O
que o pai faria se ele n�o namorasse ningu�m?

Enquanto Romero se trocava, ouviu o bater das panelas na cozinha,
e a voz da m�e se elevou, falando algo com Judite. Mesmo
sem entender, Romero sabia que falavam dele. Judite, na certa, contara
� m�e o que acontecera. A m�e era uma mulher muito bondosa,
mas tinha medo do marido e n�o ousava contrari�-lo. Por mais
que tentasse proteger o filho, n�o se atrevia a contestar as ordens
do marido, e Romero, muitas vezes, apanhava sem que a m�e sequer
levantasse os olhos.

Apenas Judite interferia. Ela era danada! Meiga e decidida.
Educada e atrevida. Carinhosa e corajosa. Romero queria ser como
Judite quando crescesse. Ah! Se tivesse nascido menina, nada
daquilo estaria acontecendo. Ele poderia ser ele mesmo, sem ter de
corresponder �s expectativas do pai. Romero era medroso e arredio,
t�mido e calado, mas sabia ser generoso e sentia que seu cora��o era
um oceano de sentimentos. Era sens�vel, gostava de plantas e de animais.
Adorava crian�as e respeitava os idosos. Era um menino af�vel
e extremamente educado, o que o pai interpretava como sin�nimo
de fragilidade. "Um homem deve ser forte e destemido", era

o que dizia. "Deve ser viril, m�sculo e proteger as mulheres, jamais
se misturar com elas ou com suas bobagens."
Mas Romero adorava as "bobagens femininas" Gostava de
poesia, de apreciar a natureza, de escutar o canto dos p�ssaros.
Amava ver a irm� vestir-se para sair, passar batom, empoar o rosto,
levantar o cabelo em um coque ou rabo-de-cavalo. Chorava com
as fitas de cinema, emocionava-se at� com novelas. Lia romances
e mais romances, derretendo-se com os beijos e as car�cias que os
personagens trocavam.

Em nada disso Romero conseguia vislumbrar problema ou defeito.
Mas o pai se aborrecia e gritava com ele todas as vezes que o


flagrava admirando os vestidos da irm� ou lendo um romance �guacom-
a��car. Pior ainda quando Romero apanhava na rua ou chegava
em casa choroso, magoado com as piadinhas que os colegas
faziam. Ele n�o entendia. N�o fazia nada para provocar tantos gracejos.
Nem desmunhecava. Mas o fato era que todos duvidavam de
sua masculinidade, e o pai ficava furioso quando ele voltava para
casa fugido, ap�s ter sido humilhado pelos outros garotos.

� Romero! Venha c�!
O garoto voltou de seu devaneio e teve um sobressalto. Silas,
o pai, acabara de chegar e, pelo tom de voz, estava claro que j� ficara
sabendo do ocorrido. O garoto terminou de se trocar e foi para
a sala, onde o pai caminhava de um lado para o outro.
� Mandou me chamar? � indagou com voz mi�da.
O pai deu um salto sobre ele e agarrou-lhe a orelha, puxando-
a com viol�ncia e fazendo com que ele se sentasse no sof�.

� Seu maricas! � vociferou. � Quando vai aprender que n�o
se deixa que brinquem com a honra de um homem?
� Eu n�o fiz nada... � murmurou Romero, j� sentindo o peito
estrangular, uma vontade louca de chorar.
� Voc�, n�o! Mas aqueles cretinos daqueles garotos chamaram
voc� de bichinha novamente!
Torceu a orelha do filho com mais for�a, e Romero choramingou
sentido:

� Ai! Por favor, pai, n�o tive culpa. Foram eles que me
xingaram...
� Porque voc� deixou. Devia ter reagido.
� O que eu poderia fazer?
� Sei l�, ter atirado uma pedra na cabe�a deles, dado um murro
no queixo, qualquer coisa.
� Eles estavam do outro lado da rua.
� Papai! � foi o grito de Judite, que correu at� onde eles estavam.
� Solte-o. N�o v� que o est� machucando?
Embora contrariado, Silas soltou o filho, n�o sem antes o ofender
mais uma vez:

� Seu mariquinhas! Voc� s� faz me envergonhar.
Saiu desabalado para a cozinha, onde sua mulher, � beira do fog�o,
fungava com os olhos cheios d'�gua.


� Isso � culpa sua, No�mia! � berrou ele. � Quem manda criar
o menino feito uma donzela?
� N�o � verdade, Silas � contestou ela, magoada. � Romero
� um menino de ouro.
� Ele � um maricas! Os outros t�m raz�o. Vive se escondendo,
s� quer saber de ficar grudado na barra da saia da irm�. E voc�
estimula esse comportamento.
� Eu!?
� E, voc�. Voc� e Judite. Por isso ele nem tem namorada.
� Mas ele s� tem treze anos!
� E o que � que tem isso? Na idade dele, eu j� conhecia mulher.
� Voc� est� exagerando. Romero � um menino. Gosta de jogar
bola e soltar pipa...
� Se fosse assim, eu n�o estaria preocupado nem me importaria
com o futuro dele. Mas ele est� mais para brincar de bonecas e
casinha do que para soltar pipa.
� Voc� se preocupa demais. Romero � s� uma crian�a. Nem
tem idade para se interessar por mulheres. Mais tarde, voc� vai ver
como ele muda.
� Mais tarde? Que mais tarde o qu�? Vou resolver isso � agora.
Voltou �s pressas para a sala, onde Romero via televis�o, agarrado
a Judite. Silas desligou o aparelho e estacou em frente a eles.
Dedo em riste, disparou:

� Escute aqui, Romero, j� perdi a paci�ncia com voc�. Hoje
voc� vai aprender a ser homem.
� O que quer dizer com isso, pai? � interveio Judite.
� N�o se meta. N�o � problema seu. O assunto agora � de homem
para homem.
� Mas, pai � lamentou-se Romero �, o que o senhor vai fazer
comigo?
� Vou ensin�-lo a ser um homem de verdade. E ai de voc� se
me decepcionar!
Saiu batendo a porta. Naquele dia, Romero quase n�o comeu.
S� pensava nas palavras do pai. Embora ele n�o tivesse dito abertamente,
Romero estava certo de que pretendia lev�-lo ao encontro
de alguma mulher. Essa id�ia causou-lhe p�nico. O que faria
diante de um corpo nu feminino? E se ela o despisse tamb�m? Na


certa, morreria de vergonha e n�o conseguiria fazer nada com ela,

o que deixaria o pai ainda mais furioso.
Tentou conversar com Judite, mas ela ajudava a m�e com as
costuras. No�mia, todas as tardes, costurava para fora, e era assim
que a fam�lia conseguia equilibrar o or�amento dom�stico sem que
Judite tivesse necessidade de trabalhar fora para ajudar.

� Mam�e... � come�ou a jovem, enquanto pregava bot�es
numa blusa.
� O que foi?
� Por que n�o faz nada?
� Fazer o qu� ?
� Por que n�o impede papai de levar Romero... voc� sabe ...
No�mia pousou a costura sobre os joelhos e olhou para a filha
por cima dos �culos.

� N�o h� nada que eu possa fazer. Voc� conhece seu pai t�o
bem quanto eu e sabe como ele � teimoso. E, depois, talvez seja bom
para Romero. Vai acabar com essa agonia.
Judite fixou-a com ar pensativo e tornou com voz grave:

� E se Romero n�o gostar?
� Como assim, n�o gostar? Romero pode ser s� um menino,
mas � homem. Ele est� assustado, mas vai acabar se acostumando.
� Eu n�o teria tanta certeza.
� O que est� querendo dizer, Judite? Que seu irm�o n�o gosta
de mulher?
� N�o � isso. Mas Romero me parece t�o inseguro...
� Seu pai acha que j� � hora de acabar com os medos e as inseguran�as
dele, e eu concordo.
Concordava, nada. Judite sabia que ela estava mentindo. No
fundo, morria de pena do filho, mas n�o tinha coragem de enfrentar
o marido. E ela tamb�m n�o tinha como ajudar. S� lhe restava
esperar e torcer para que Romero se sa�sse bem.

Quando o pai chegou para busc�-lo, j� passava das nove da noite.
Naquele dia, Silas n�o jantou em casa, e Romero imaginou que
ele deveria ter ido a algum prost�bulo combinar tudo. Embora percebesse
o nervosismo do filho, Silas n�o fez nenhum coment�rio.
Limitou-se a abrir a porta do quarto e dizer lac�nicamente:


� Venha.
Romero obedeceu. Em sil�ncio, ganharam a rua, caminhando
em dire��o ao ponto de �nibus. Da cal�ada, Romero p�de ver o rosto
da irm� pela janela, tentando transmitir-lhe coragem.

� Boa sorte � foi o que ele leu em seus l�bios.
Caminharam at� o ponto sem trocar uma palavra. Entraram no
�nibus, que rodou alguns minutos, at� que desceram em frente a seu
destino. Era uma casinha toda pintada de branco, com janelas azuis
e vasos de flores nos peitoris. Romero n�o conseguiu ocultar a surpresa.
Esperava algo bem diferente daquilo. Mas o pai, sabendo de
seus receios, escolheu uma mo�a j� conhecida de seus tempos de solteiro,
que trabalhava por conta pr�pria. Ela cobrava caro, mas valeria
a pena.

Silas bateu e esperou. Pouco depois, a porta abriu-se, e uma
mulher de trinta e poucos anos, vestida numa camisola vermelha
transparente, rosto excessivamente pintado, veio abrir.

� Boa noite, Domitila � cumprimentou Silas, com certa
intimidade.
Ela deu um sorriso e chegou para o lado, dando passagem para
que ambos pudessem entrar.

� Ent�o, � esse o rapazinho?
� E, sim. O menino est� meio assustado, � a primeira vez...
Voc� sabe como �.
Ainda sorrindo, Domitila aproximou-se e foi segurando Romero
pela m�o, puxando-o para outro c�modo.

� Pode deix�-lo comigo. Volte daqui a uma hora.
� Lembre-se � sussurrou Silas ao ouvido de Romero. � N�o
me decepcione.
Saiu e foi procurar um bar onde pudesse fazer hora at� Domitila
terminar com Romero.
Na casa, o menino tremia. Nem sabia se a mulher era bonita
ou feia, pois n�o ousava levantar o rosto. Estava envergonhado, com
medo, inseguro. Ela se acercou dele e, sem dizer nada, come�ou a
toc�-lo em suas partes �ntimas. Assustado, tentou fugir, mas ela n�o
lhe deu chance. Estava t�o apavorado que quase urinou nas cal�as.

� Que... quero... ir ao ba... banheiro... �gaguejou.
Com o dedo, Domitila indicou-lhe onde ficava o banheiro, e

ele correu para l�. Quando voltou, ela continuava no mesmo lugar
em que a deixara, s� que, agora, completamente nua. Romero quis
chorar, mas ela nem lhe deu tempo para isso. Aproximou-se novamente
e fez nova investida, acariciando-o e beijando-o por toda parte.
Romero queria fugir, mas n�o sabia para onde. E, depois, havia

o pai. Se Romero o decepcionasse, nem queria pensar no que o pai
faria. Era at� capaz de lhe dar uma surra.
Mais por medo do que por desejo, Romero conseguiu fazer o que
esperavam dele. Foi tudo muito r�pido. Ao sentir que ele correspondia,
Domitila deitou-se na cama e puxou-o para cima dela, guiando-
o apressadamente. Em poucos segundos, estava tudo terminado.

� Pronto, meu bem � falou ela com fingido carinho, empurrando-
o para o lado. � J� terminou. Pode sair de cima de mim.
Na mesma hora, Romero correu para o banheiro e vomitou.
Sentia-se arrasado, violado em sua intimidade, invadido em seus
brios. Com o p�, fechou a porta do banheiro e desatou a chorar, torcendo
para que Domitila n�o fosse perguntar o que estava acontecendo.
Mas ela parecia nem ligar. No fundo, julgara-o mesmo um
maricas, mas n�o seria ela que iria questionar aquilo. Se Silas dizia
que o menino era m�sculo, isso era l� com ele. Cumprira sua parte
e esperava receber seu dinheiro.

Quando Silas voltou, encontrou-os sentados no sof� da sala: ele
bebendo um refrigerante; ela, uma cerveja. Como n�o tinham o que
conversar, permaneceram bebericando, sem trocar palavra.

� E ent�o? � perguntou Silas, ansioso. � Como foi? Correu
tudo bem?
� Muito bem � respondeu Domitila, tentando parecer interessada.
� O rapaz escondia o jogo. � um garanh�o. Tive de implorar
para que parasse.
� N�o me diga! � tornou Silas, todo orgulhoso, nem percebendo
o ar de espanto do filho. � Eu n�o lhe falei? O que ele tinha
era vergonha.
� �. Os quietinhos s�o os piores!
Silas pagou Domitila e agarrou Romero pelo bra�o, saindo
com ele em estado de quase euforia.

� Muito bem, meu filho � elogiou. � Sabia que voc� n�o iria
me decepcionar. Garanh�o, hein? Quem diria? Espere s� at� eu con

tar para o pessoal. Quero ver quem � que vai mexer com voc� depois
disso. V�o todos morrer de inveja, isso sim.

Romero enrubesceu. Como poderia encarar algu�m depois daquilo,
ainda mais se o pai contasse aos outros o que acontecera? O
que faria para esconder a vergonha que sentia?

Silas n�o estava preocupado com os sentimentos de Romero. Estava
t�o feliz que nem sequer se lembrara de perguntar ao jovem se
havia gostado ou como se sentira. A �nica coisa em que pensava era
que seu filho, ao contr�rio do que diziam, n�o era nenhuma bicha.

S� que Romero, longe de compartilhar a alegria do pai, sentia-
se frustrado e deprimido, desejando jamais ter de passar por aquilo
novamente.

Nos dias que se seguiram, as coisas acabaram se acalmando. Silas,
satisfeito com o desempenho do filho, vivia apregoando aos quatro
cantos o qu�o macho ele era. Apesar de envergonhado, Romero
at� que gostou. As crian�as pararam de mexer com ele, e ele
podia ir e vir da escola sem maiores problemas.

No�mia tamb�m ficou satisfeita. O que mais queria era paz no
lar. E, depois, o sucesso de Romero tirara-lhe um grande peso. Tinha
medo de que ele n�o fosse capaz, o que causaria uma tempestade em
casa. Mas Romero sa�ra-se muito bem, segundo o que o marido lhe
dissera, e ela estava feliz. Silas, muito discretamente, contara-lhe que
levara o garoto a uma prostituta muito bem recomendada. No�mia,
apesar da vergonha e da timidez, aquiescera com al�vio.

Apenas Judite n�o se convencia. Sabia, pelo olhar de Romero,
que a experi�ncia devia ter sido das piores. Conhecia o irm�o
muito bem para saber quando ele n�o estava feliz. Romero parecia
aliviado, porque se livrara da persegui��o do pai, mas parecia muito
pouco � vontade em sua nova posi��o de homem.

No domingo, Judite convidou Romero ao cinema. Estavam passando
uma nova fita, Tubar�o, a sensa��o do momento.
� Ser� que consigo entrar? � questionou ele, interessado. �
A censura � para catorze anos.

� Voc� j� tem quase isso. Aposto como ningu�m vai perguntar.
O porteiro, ao contr�rio do que Judite esperava, pediu a carteirinha
de estudante de Romero.


� N�o pode entrar � falou com arrog�ncia.
� Por favor, mo�o � pediu Judite. � Ele vai fazer catorze anos
daqui a dois meses. Deixe-o entrar.
� Daqui a dois meses n�o � hoje. Hoje, ele s� tem treze anos.
� Que diferen�a vai fazer ver o filme hoje ou daqui a dois meses?
Ah, por favor, mo�o, deixe-o entrar.
Romero pregou os olhos no ch�o. Tinha pavor de estar em evid�ncia.
O porteiro encarou-o com ar carrancudo, mas acabou deixando-
o passar. Como ainda era cedo, Judite foi com ele comprar
balas e sentou-se na poltrona para esperar terminar a sess�o anterior
� sua. Acabou encontrando alguns amigos, e, enquanto conversavam,
Romero ia olhando tudo que acontecia ao redor.

Notou que, de vez em quando, algu�m o olhava, e prestou aten��o.
Era um rapaz de pouco mais de vinte anos, alto, moreno, forte.
Em dado momento, os olhos de ambos se cruzaram, e Romero
sentiu um arrepio. O rapaz pareceu-lhe bastante bonito, e o garoto
surpreendeu-se ao perceber que lhe aprazia olhar para aquele tipo
atraente. Assustou-se consigo mesmo e virou o rosto. Ele era homem,
homem! Como podia sentir-se atra�do por outro homem?

A sess�o ia come�ar, e Judite pegou sua m�o.

� Vamos nos sentar com o pessoal � chamou, sem perceber
o que se passava.
Romero obedeceu e saiu seguindo a irm� e os amigos. As pessoas
entravam em fila, vagarosamente, e ele, de vez em quando,
olhava para tr�s e percebia que o rapaz continuava olhando-o. Corou
violentamente. O que ser� que aquele mo�o estava pensando?
Que ele era alguma bicha?

Sentou-se ao lado da irm�, e o rapaz sentou-se na fileira de tr�s,
duas poltronas ao lado da sua, o que deixou Romero gelado. E se o
homem falasse com ele? O que diria a irm�? Olhou de soslaio para
Judite, mas ela estava muito interessada na conversa com um amigo.
De repente, a tela se iluminou, e come�aram a passar alguns
an�ncios. Veio um curta-metragem, alguns trailers e o jornal. Durante
todo esse tempo, Romero olhava para o rapaz, que lhe devolvia
o olhar com um sorriso maroto.

Quando as luzes se apagaram por completo, anunciando o come�o
do filme, Romero centrou sua aten��o na tela. Durante cerca


de duas horas, esqueceu-se do rapaz na fila de tr�s. S� quando a sess�o
terminou, e eles se levantaram para sair, foi que se lembrou dele,
porque o rapaz estava parado no mesmo lugar, fitando-o insistentemente.
Sem nada perceber, Judite saiu conversando com os amigos,
falando sobre o filme, praticamente se esquecendo de Romero.

� Por que n�o vamos tomar um sorvete? � sugeriu Alex, um
dos amigos, bastante interessado em Judite.
� N�o sei � respondeu ela. � Preciso levar meu irm�o para
casa.
� Por que ele n�o vem conosco?
� Voc� quer vir? � perguntou ela a Romero.
O olhar de Judite quase que implorava, e Romero respondeu:
� N�o quero, n�o. Mas voc� pode ir. Vou para casa.
� Ah, n�o, Romero! N�o vou deix�-lo voltar sozinho.
� O que � que tem? N�o sou nenhum beb�.
� N�o � isso. Mas � chato voltar s�.
� Bobagem. Voc� est� com vontade de tomar sorvete com seus
amigos. Eu n�o quero ir. Por que voc� tem de perder seu programa
por minha causa?
� Tem certeza de que quer voltar sozinho?
� Absoluta.
� N�o vai ficar chateado?
� N�o. Ande, v� logo. Vai acabar ficando tarde.
Judite decidiu-se. Deu um beijo na bochecha de Romero e murmurou
agradecida:

� N�o vou demorar. Diga a papai que voltarei logo.
Romero ficou vendo a irm� afastar-se em dire��o � sorveteria.
Depois que o grupo entrou, ele se virou para ir para casa e quase esbarrou
no rapaz que ficara olhando para ele no cinema.

� Voc�?! � exclamou Romero, assustado. � Est� me seguindo?
� N�o � respondeu o outro, com simpatia. � Estava esperando
voc�.
� Por qu�?
� Para que pud�ssemos nos conhecer. Como voc� se chama?
� Romero. E voc�?
� J�nior. Meus amigos me chamam assim. N�o gostaria de dar
uma volta por a�?

� Onde?
� N�o sei. Podemos dar um passeio na praia.
� Na praia? Hum, n�o sei, n�o. Fica muito longe, e eu preciso
ir para casa.
� Que tal uma bebida?
� Um refrigerante?
� Se voc� quiser...
� Quantos anos voc� tem, J�nior?
� Vinte e um. Por qu�? Isso tem import�ncia para voc�?
� Para mim, n�o. Mas meu pai pode brigar comigo. Ele n�o
gosta que eu ande com garotos mais velhos.
� Seu pai n�o precisa saber que nos conhecemos, n�o � mesmo?
Algo no tom de voz de J�nior n�o agradou Romero. Al�m disso,
a admira��o que sentira pelo outro assustou-o, e ele, pensando
em recuar, considerou:

� J� est� ficando tarde. Preciso ir para casa.
� Vou acompanh�-lo.
� N�o precisa. N�o � longe, chego r�pido.
� N�o, fa�o quest�o. Quero que sejamos amigos.
Sem saber o que dizer, Romero deu de ombros e tomou a dire��o
de sua casa, e J�nior seguiu com ele. No caminho, iam conversando
sobre o filme, e Romero entusiasmou-se, falando sobre o
tubar�o, cheio de admira��o.

� Nossa, foi demais! E quando o tubar�o comeu o homem no
final? Quase morri de medo!
J�nior escutava as palavras de Romero e fazia observa��es interessantes,
tocando-o de leve no bra�o. Romero estava t�o empolgado
com o filme que nem se deu conta de que haviam se desviado
do caminho. Seguiam agora por uma ruazinha escura e
quase deserta, e foi s� quando J�nior parou que ele percebeu que
aquele n�o era o caminho de sua casa.

� Onde estamos?� indagou assustado.
� N�o sei. Pensei que voc� conhecesse o caminho.
� Acho que me distra� � acrescentou, olhando para os lados.
� N�o sei onde estou. Vamos voltar.
Deu meia-volta, mas sentiu que a m�o do outro o segurava
pelo bra�o.


� Por que a pressa? � perguntou J�nior com ar malicioso.
� Eu... eu... preciso ir... Minha irm� est� me esperando...
� Sua irm� � aquela que saiu com a turma? Pois n�o creio que
v� dar por sua falta t�o cedo.
� Mas � que j� est� tarde... Meu pai...
Tentou se desvencilhar, mas J�nior era mais forte e puxou-o
com viol�ncia, tentando beij�-lo na boca.

� O que est� fazendo! ? � contestou Romero com veem�ncia.
� Ficou louco? N�o sou dessas coisas, sua bicha!
� A quem quer enganar? Ent�o n�o vi o jeito como me olhava?
� Mas que jeito? Voc� ficou maluco? Eu n�o estava nem olhando
para voc�.
� Ah, estava, sim! E era olhar de desejo. Conhe�o bem.
� N�o, n�o, est� enganado. N�o sou desse tipo. Sou homem!
At� j� dormi com mulher. Sou homem, ouviu? N�o sou veado
como voc�!
� Voc� me provocou. Agora vai ter de ag�entar.
Indiferente aos apelos e gritos de Romero, J�nior agarrou-o com
for�a, deitando-o no ch�o frio da cal�ada. Sua superioridade f�sica
deu-lhe imensa vantagem, e ele facilmente subjugou Romero, que
lutava desesperadamente para se soltar. J�nior segurou-o pelos cabelos,
deitando-o de bru�os no ch�o, ao mesmo tempo em que rasgava
suas roupas. Romero chorava angustiado, implorando que ele
n�o fizesse aquilo. O outro, por�m, n�o lhe deu import�ncia. Parecia
mesmo que, quanto mais Romero gritava, mais ele se enchia de
desejo, e J�nior come�ou a bater nele, esfregando seu rosto no
ch�o. Ao mesmo tempo em que lhe dizia palavras sujas e obscenas,
ia penetrando-o aos pouquinhos, at� que, dominado pelo prazer, penetrou-
o violentamente, fazendo com que Romero uivasse de dor.

Quando terminou, soltou-lhe os cabelos e levantou-se calmamente.
Abotoou as cal�as, enquanto fitava o corpo ca�do e ferido
de Romero, que n�o parava de chorar, sem coragem de encar�-lo.
Ajeitou a camisa, afivelou o cinto e, quando ia saindo, falou em tom
sarc�stico:

� At� que n�o foi mau, foi? � Romero n�o respondeu. � Voc�
gostou. Pode n�o querer admitir, mas voc� gostou. � sempre assim.
Todos gostam. No come�o, dizem que n�o, que n�o querem, que n�o

s�o disso. Mas, depois que s�o comidos, n�o querem mais saber de
outra coisa.

Soltou uma risada nervosa e rodou nos calcanhares, saindo
apressadamente. Sentindo que ele se afastava, Romero ergueu o corpo
e, ajoelhado, gritou em desespero:

� Est� enganado! Seu animal nojento! Sou homem! N�o sou
nenhum veado! Sou homem, homem!
Arriou o corpo no ch�o, chorando copiosamente. Sentia o corpo
todo dolorido, uma imensa humilha��o assolava-o. O que diria
ao pai? O que diria o pai? Embora dorido, conseguiu p�r-se de p� e
come�ou a caminhar na dire��o oposta � que J�nior tomara. Mal
conseguia andar, tamanha a dor que sentia. Parecia que havia sido
estilha�ado por dentro, sentia-se despeda�ado. O sangue escorria de
sua testa, que J�nior esfregara e batera no ch�o. O nariz tamb�m sangrava,
e v�rias manchas roxas surgiam em suas costas, nos locais em
que ele o socara. Por que tanta viol�ncia? Por que tivera de ser t�o
cruel? J� n�o lhe roubara a honra e a dignidade? Por que tivera de
maltrat�-lo daquela maneira?

A passos arrastados, Romero conseguiu voltar para a rua que
dava acesso � sua casa. Queria esperar a irm�, mas achava que n�o
conseguiria. Estava sentindo muita dor, um gosto amargo de sangue
na boca. Precisava de um m�dico. Ser� que iria morrer? A muito custo,
conseguiu chegar em casa e escancarou a porta. A m�e e o pai
estavam na sala, vendo televis�o, e levaram um susto quando ele entrou,
todo machucado e inchado, andando de um jeito esquisito.

Romero n�o conseguiu dizer nada. Entrou todo tr�pego e, chegando
ao meio da sala, sentiu que o ch�o lhe faltava, a respira��o
parecia dif�cil, e tudo ficou escuro. Desmaiou.



o sair para o plant�o naquela noite, Pl�nio estava
bastante aborrecido. Era m�dico do hospital municipal fazia alguns
anos e trabalhava na emerg�ncia. Reconhecia que estava ficando
cansado de tanta viol�ncia, mas sentia que n�o podia deixar aquele
posto. Nascera para ajudar as pessoas e gostava do que fazia.
J� no hospital, lembrou-se da pequena discuss�o que tivera em
casa na manh� anterior, logo que chegara do hospital. Lav�nia, sua
mulher, estava sentada na cadeira de balan�o, tricotando uma roupinha
para o filho rec�m-nascido, que dormia no carrinho a seu lado.
Pl�nio beijou-a com suavidade, e ela exibiu o casaquinho, falando
enternecida:

� N�o est� uma beleza? J� estou quase terminando. � para o
batizado de Eric.
� Est� lindo.
Ela sorriu embevecida e alisou o casaquinho. Retomou a agulha
e continuou a tricotar, enquanto Pl�nio se servia de uma dose
de u�sque.

� J� estou cansado de tanto sofrimento � comentou ele. � Todos
os dias chegam adolescentes e crian�as estupradas, violentadas...
E os pais n�o fazem nada.
Lav�nia soltou o tric� por uns instantes e retrucou em d�vida:

� N�o sei se deveria culp�-los. Talvez a dor de reviver a humilha��o
seja maior do que o desejo de ver o criminoso na cadeia.
� Voc� n�o deixa de ter raz�o, e, se o motivo fosse s� esse, eu
23


conseguiria compreender. Mas muitos pais n�o denunciam por
medo da vergonha. E n�o � nem dos filhos. � deles mesmos.

� At� que ponto denunciar resolve alguma coisa? O mal j� est�
feito, n�o pode ser reparado. Vingar-se do criminoso n�o restitui a
honra, a vergonha, a dor e tudo o mais.
� Quem falou em vingan�a? Tamb�m sou contra querer se vingar.
Mas a repress�o penal � necess�ria. Quem comete um crime tem
de arcar com as conseq��ncias daquilo que faz. Talvez, passando uns
tempos na cadeia, o sujeito consiga refletir sobre o que fez...
� Duvido muito � disse uma voz ir�nica, vinda do outro
lado da sala.
� Rafael! � exclamou Lav�nia, surpresa com a chegada intempestiva
do irm�o.
� N�o devia estar na faculdade? � perguntou Pl�nio, de m�
vontade.
� Sa� mais cedo. N�o estava com saco de assistir �quela aula
chata.
� N�o estava com saco? � repetiu o m�dico, abismado. � O
que pensa da vida, Rafael? Pago faculdade para voc� sem cobrar nada
em troca, mas o m�nimo que espero � que assista �s aulas.
� Vai jogar em minha cara agora, vai? S� porque n�o tenho
dinheiro, n�o precisa me humilhar.
� N�o o estou humilhando nem jogando nada em sua cara.
Mas nosso trato foi esse: eu o sustento at� voc� terminar a faculdade,
mas voc� tem de ir �s aulas.
� � sempre assim, n�o �, Pl�nio? S� porque � o dono do dinheiro,
pensa que pode mandar em mim.
� Voc� est� distorcendo as coisas. N�o mando em voc� e n�o
sou o dono do dinheiro. O que ganho � com o suor de meu trabalho.
� Ser� que voc�s dois podiam deixar de discutir pelo menos
uma vez? � queixou-se Lav�nia, debru�ando-se sobre o carrinho. �
V�o acabar acordando o beb�.
� Est� certo, Lav�nia � concordou Rafael. � Por causa de voc�
e de meu sobrinho, n�o vou dizer mais nada.
Com um sorriso de triunfo, Rafael deu meia-volta e sumiu pela
porta da varanda, indo em dire��o � piscina.

� Esse rapaz me deixa louco � desabafou Pl�nio. � Concor

dei em ficar com ele aqui, comprometi-me com seus estudos, mas
ele n�o reconhece nada. Quanto mais fa�o, mais ele me espezinha.

� Rafael � uma pessoa dif�cil. N�o estou querendo justific�-lo,
mas ele sofreu muito com a morte de mam�e e papai.
� Eu sei. Posso imaginar. Mas isso n�o lhe d� o direito de ser
desagrad�vel nem mal-agradecido.
� Procure relevar, meu bem. Rafael ainda � um garoto. Logo,
logo, isso vai passar.
� Ele j� � um homem. Tem vinte e dois anos. J� podia estar
terminando a faculdade, mas vive sendo reprovado. Imagine que
bom arquiteto ele n�o vai ser.
� Isso vai passar, voc� vai ver. Quando ficar mais velho, ele
se emenda.
� Voc� vem me dizendo isso desde que seus pais morreram. De
l� para c�, ele n�o mudou muito.
� Ele estava se sentindo muito sozinho. Perdeu tudo...
� Perdeu tudo porque sempre foi irrespons�vel. Se n�o fosse
eu, ele teria torrado seu dinheiro tamb�m.
� Eu sei, eu sei. Mas tente entender. � duro viver de favor.
� Ele n�o vive de favor. Nunca lhe disse isso. Ele � meu
cunhado; s� o que quero � seu bem. Mas ele parece ter raiva disso.
Tem raiva porque posso ajud�-lo e sente-se humilhado com minha
ajuda, quando deveria se sentir agradecido. Mas deixe isso para l�.
N�o quero que voc� se aborre�a nem quero perturbar o sono de Eric.
Pl�nio lembrou-se de que encerrara aquela discuss�o com um
beijo na mulher e sorriu, procurando n�o pensar em Rafael. Seus
pensamentos estavam agora inteiramente voltados para a mulher
e o filhinho, quando a porta de seu consult�rio se abriu e uma enfermeira
bem novinha entrou apressada.

� Dr. Pl�nio � chamou. � Acaba de chegar um rapazinho bastante
machucado.
O m�dico assentiu e levantou-se, seguindo direto para a sala
de emerg�ncia. Viu de relance os pais do menino no corredor, mas
n�o lhes deu aten��o. Mais tarde, falaria com eles.

Algum tempo depois, sentados na sala de espera do hospital,
Silas e No�mia conversavam com Pl�nio, que j� completara os exames
em Romero.


� N�o pode ser, doutor � negava Silas, com ar abobado. � Isso
n�o pode ter acontecido com meu filho.
� Sr. Silas � rebateu o m�dico �, os crimes sexuais s�o bem
mais comuns do que se imagina.
� Mas com meu filho, n�o. Ele n�o pode ter sido violado...
� Violentado. O nome � violentado. � um crime, Sr. Silas, e
pode levar o criminoso � cadeia. Mas � preciso que se fa�a a queixa.
� Isso � que n�o! � Silas levantou-se bruscamente e tornou a
sentar-se. � N�o quero que ningu�m saiba o que aconteceu.
� Mas, se o senhor n�o disser nada, o criminoso vai continuar
impune.
� Se eu o encontrar, sou capaz de mat�-lo.
� O senhor n�o vai matar ningu�m. E ele vai fazer a outro menino
o que fez a seu filho. Precisamos det�-lo.
� N�o, n�o. N�o vou me submeter a essa vergonha. Meu filho,
mulherzinha de um marginal! Isso � que n�o!
� Ele tem raz�o, Silas � interveio No�mia. � Esse monstro
n�o pode continuar solto por a�. Imagine o que n�o vai fazer a outros
meninos como nosso Romero.
� Isso n�o me interessa. Cada um que cuide de sua cria.
� Silas! N�o pode falar assim.
� N�o quero parecer insens�vel ou coisa parecida. Mas tenho
de cuidar de meus interesses. E n�o vai ser nada agrad�vel expor Romero
ao rid�culo. Imagine o que meus amigos n�o v�o dizer!
� E ele, Sr. Silas, o que vai dizer?
� N�o importa. Romero � menor de idade, e eu tenho de cuidar
de seus interesses. N�o vai pegar nada bem se os outros souberem
que ele foi... sodomizado.
� Ainda assim, acho que o senhor deveria conversar com ele.
Talvez ele tenha outra opini�o.
� A opini�o dele n�o tem import�ncia nesse caso. Meu filho,
v�tima de um atentado... como � mesmo, doutor?
� Atentado violento ao pudor. � um crime s�rio.
� N�o me interessa. E, depois, n�o tenho dinheiro para gastar
com advogado.
� Mas n�o precisa. Olhe, j� estou acostumado a ver esse tipo

de coisa e sei que, se o senhor n�o tiver como pagar, um promotor
p�blico assume o caso.

� Deus me livre! Piorou. Imagine se vou tornar p�blico o que
aconteceu a meu filho? Isso � que nunca!
� Prefere manter sigilo, ent�o?
� Prefiro. A essa altura, n�o vai adiantar nada. O mal j� est�
feito, n�o est�? S� espero que Romero n�o fique... diferente.
� N�o diga isso nem brincando � objetou No�mia. � Nosso
filho n�o vai ficar diferente.
� Como assim? � indagou o m�dico, curioso. � Diferente
em qu�?
� Bem, doutor, sabe como �... O garoto � t�mido, e o senhor
sabe como s�o as l�nguas ferinas. Mas o meu Romero � homem, isso
�. Outro dia mesmo, levei-o a uma... o senhor sabe... uma mulher
da vida, e ela me disse que ele � um garanh�o.
� Sr. Silas, isso n�o importa agora. Seu filho foi v�tima de um
ato de extrema viol�ncia. Mesmo que ele fosse homossexual, n�o
gostaria de ter passado por isso.
� Meu filho n�o � homossexual!
� Eu n�o disse que �. O que quis dizer � que ningu�m gosta de
sofrer um ato de viol�ncia. Nem mesmo quem � homossexual.
� Mas meu filho n�o �!
� E claro que ele n�o � � reafirmou No�mia. � N�o precisa
ficar repetindo isso.
� Sua mulher tem raz�o � concordou o m�dico. � Esse assunto
n�o vem ao caso agora. Temos de nos preocupar � com o bem-
estar de Romero.
� S� falei para que n�o pairem d�vidas.
� N�o precisa se preocupar. Ningu�m est� duvidando de nada.
� Melhor assim.
� Por que o senhor n�o vai para casa e pensa no assunto? Reflita,
discuta com sua mulher. Talvez amanh� mude de id�ia.
� N�o vou mudar de id�ia. E agora, doutor, se nos d� licen�a,
queremos ir para casa. A noite foi cansativa, e Romero e eu ainda
temos muito o que conversar. Quero saber direitinho como foi que
isso aconteceu.

� Lamento, mas Romero n�o poder� ir para casa hoje. Ainda
est� em observa��o.
� Mas o senhor me disse que ele estava bem.
� E est�. Mas sofreu muitos golpes e... bem, o senhor sabe...
� Sei, doutor, n�o precisa falar. � Engoliu em seco e desabafou:
� Meu filho nunca mais ser� o mesmo depois disso.
� N�o diga isso, Silas. � Era No�mia novamente. � Ele vai
continuar o mesmo, voc� vai ver. Com o tempo, vai esquecer. Arranja
uma namorada bonitinha e nem pensa mais no assunto.
� Espero que voc� tenha raz�o. Porque, se ele ficar diferente,
nem sei do que sou capaz.
Pl�nio assustou-se com a revolta de Silas e teve medo por Romero.
N�o sabia como tudo se passara. Descobrira que ele fora violentado
porque procedera a um exame detido no menino. Ele chegara
desmaiado, todo machucado e, ao examin�-lo, Pl�nio notou que
havia sangue em sua cueca. Antes mesmo de constatar a viol�ncia,
n�o foi dif�cil deduzir o que havia acontecido.

Mas havia em Silas algo mais do que um simples medo de que
Romero ficasse falado. Pelo que Pl�nio podia perceber, o homem �
sua frente estava apavorado com a id�ia de que o filho pudesse ser
homossexual, o que n�o era de todo uma id�ia absurda. Pl�nio sabia
que muitos meninos eram violentados por pura maldade, mas
sabia tamb�m que outros atra�am o agressor por algo em seus gestos,
em suas maneiras, em seu jeito de olhar. Algo que demonstrasse
um homossexual em potencial, ainda que n�o assumido ou inconsciente.
Romero podia estar num ou noutro caso, o que, para ele,
n�o fazia a menor diferen�a. N�o era preconceituoso e achava que
toda viol�ncia devia ser reprimida, n�o importava contra quem fosse
realizada.

S� que Silas parecia n�o compartilhar seu jeito de pensar. Pelo
visto, aquele homem estava menos preocupado com o bem-estar do
filho do que com sua pr�pria imagem. Tudo em que pensava era no
que os outros iriam dizer se descobrissem o que havia acontecido a
Romero. Ou, o que lhe parecia pior, se descobrissem que Romero
n�o fosse um homem de verdade, na concep��o de Silas.

� V� para casa � aconselhou Pl�nio novamente. � Descanse,
e amanh� conversaremos.

� Quero levar Romero comigo.
� Infelizmente, n�o posso permitir que o leve. Se o fizer, n�o
poderei me responsabilizar por nada que lhe aconte�a.
� Ele tem raz�o, Silas � intercedeu No�mia. � Deixe que Romero
fique.
Estar� mais bem cuidado aqui.
Silas encarou Pl�nio com ar de d�vida e indagou inseguro:

� Quando ele ter� alta?
� Talvez amanh�. Vamos ver como vai passar a noite. Se nenhum
dos ferimentos inflamar, ele poder� sair amanh�, depois do
almo�o.
Com um aceno de cabe�a, Silas levantou-se e permitiu-se conduzir
pela mulher. N�o queria deixar Romero no hospital; tinha
medo de que algu�m ficasse sabendo do que acontecera. Mas o m�dico
lhe parecia decidido, e ele n�o queria assumir riscos.

Do lado de fora do pr�dio, fizeram sinal para um t�xi e foram
para casa. J� era muito tarde, e eles estavam tamb�m preocupados
com Judite. Ela ainda n�o havia chegado quando eles sa�ram e n�o
sabia de nada do que acontecera. Devia estar aflita em casa, esperando
por not�cias.

� Dev�amos ter telefonado para ela � observou No�mia.
� E voc� acha que tive cabe�a para pensar em Judite? S� agora
me lembrei dela.
� O que lhe diremos? A verdade?
� Isso nunca! Vamos contar-lhe o que contaremos a todo
mundo: que Romero foi agredido num assalto. Ningu�m nunca vai
saber o que lhe aconteceu. Nem a irm�!
� Mas e se ele contar? Sabe como Romero e Judite s�o ligados.
� Eu o proibirei. Se ele disser alguma coisa, mesmo que seja a
Judite, dou-lhe uma surra! E voc�, No�mia, trate de n�o dizer nada
a ningu�m, entendeu bem?
No�mia limitou-se a aquiescer. No fundo, n�o via motivo para
tanto alarde, mas Silas era quem sabia. Se ele n�o queria que ela falasse,
ela n�o falaria.

Em casa, Judite quase morria de preocupa��o. Chegara do cinema
por volta das nove e meia e n�o encontrara ningu�m. N�o


lhe deixaram nem um bilhete, n�o lhe telefonaram. O que teria
acontecido?

Sentou-se na sala para esperar os pais. Estava quase pegando
no sono quando ouviu o barulho de um autom�vel parando na porta.
Espiou pela janela e viu os pais saltando do t�xi. Aflita, escancarou
a porta e correu para o jardim, indagando quase sem f�lego:

� Pai? M�e? O que aconteceu? Cad� Romero?
No�mia olhou de soslaio para Silas, que foi caminhando a passos
vagarosos para os degraus que davam acesso � pequena varanda
de sua casa.

� Seu irm�o est� no hospital � respondeu cauteloso. � Sofreu
um acidente.
� Acidente? Mas como? Eu o deixei no cinema...
� � isso mesmo, Judite. Voc� o deixou no cinema. Por que n�o
veio para casa com ele?
O rosto de Judite tornou-se rubro, e ela sentiu algumas got�culas
de suor deslizando pela testa. Com a voz embargada, respondeu
receosa:

� � que fui tomar um sorvete...
� Sozinha?
� N�o. Encontrei uns amigos da faculdade.
� Por que n�o levou seu irm�o com voc�?
� Ele n�o quis ir. Disse que queria vir para casa. Oh, papai, eu
n�o tive culpa. N�o podia imaginar que ele sofreria um acidente.
O que foi? Um carro? Ele foi atropelado?
� N�o. Seu irm�o foi assaltado.
� Assaltado? Mas, mas...
� Assaltado, sim, por qu�? Voc� o deixou sozinho, j� era tarde.
Veio um malfeitor e o assaltou. E n�o foi s�. Bateu nele tamb�m.
Ele est� todo machucado.
� Oh!
Judite desatou a chorar, e a m�e abra�ou-a, tentando consol�-
la.

� N�o chore, minha filha. Ele foi hospitalizado, mas est� passando
bem. O m�dico disse que amanh� poder� sair.
� Quero v�-lo.
� Isso � imposs�vel � objetou o pai, veemente.

� Por que n�o me deixaram um bilhete? Eu teria ido encontr�-
los no hospital.
� E quem teve cabe�a para isso? S� pens�vamos em socorrer
seu irm�o.
� Tem raz�o, papai... � que essa not�cia me deixou profundamente
abalada.
� Todos n�s ficamos, minha filha � contemporizou No�mia.
� Mas agora n�o h� mais nada que possamos fazer. Apenas rezar.
Ele j� foi atendido e medicado. Gra�as a Deus, n�o foi nada realmente
s�rio.
� Vamos dormir � ordenou Silas. � J� � tarde, e Judite tem
aula de manh� cedo.
� N�o quero ir � aula, pai � protestou a mo�a. � Quero ver
Romero.
� Depois. Quando voc� voltar da faculdade, poder� v�-lo.
Talvez, at� l�, ele j� esteja em casa.
� Ah, pai, por favor! Deixe-me ir com voc�s busc�-lo no hospital...
� Nada disso. Voc� vai � faculdade e pronto. N�o poder� ajudar
em nada mesmo.
� Como n�o? Romero vai se sentir mais seguro comigo a
seu lado.
� Ele tem a mim e � sua m�e. E, agora, chega de discuss�o. J�
para a cama.
Embora contrariada, Judite teve de obedecer. Sentia o peito
oprimido, um remorso cruel a dominar-lhe o cora��o. Por que deixara
Romero sozinho? Se o tivesse acompanhado, nada daquilo teria
acontecido. Ela nem sabia direito o que tinha acontecido, nem
como. O caminho do cinema at� sua casa era movimentado e
iluminado. Como algu�m fora assaltar Romero em meio a tantas
pessoas? N�o adiantava ficar pensando. No dia seguinte, quando
voltasse, ele mesmo lhe contaria tudo.

Pensando nisso, Judite deitou-se na cama e apagou a luz. Custou
muito a pegar no sono, porque a imagem de Romero n�o lhe
sa�a do pensamento. Como estaria passando o irm�o? E mais: como
estaria se sentindo, longe da seguran�a do lar?


No dia seguinte, bem cedinho, Romero despertou sentindo o
corpo todo dolorido. Tentou levantar-se, mas a dor o impediu, e ele
arriou novamente na cama. Olhou ao redor, tentando identificar o
lugar em que estava. Era um hospital, com certeza, e ele estava numa
enfermaria. A um canto, uma enfermeira aplicava uma inje��o
num velhinho e, ao levantar os olhos, ela viu que ele a olhava espantado.
Deu-lhe um sorriso e saiu apressada. Em seguida, voltou
acompanhada por algu�m, que ele deduziu ser o m�dico, e foi retomar
as suas atividades.

� Bom dia, Romero � disse o m�dico. � Sou o Dr. Pl�nio e
vim ver como est� passando. Sente-se melhor?
Romero levou as m�os � cabe�a e tornou com voz triste:

� O qu�... o que aconteceu?
� N�o se lembra?
Ele balan�ou a cabe�a, mas parou abruptamente, e em sua
mente perpassou a sombra de uma lembran�a mordaz. Baixou os
olhos, envergonhado, e come�ou a chorar baixinho.

� Aquele homem... � balbuciou com amargura, calando-se
com um solu�o.
� Voc� n�o tem do que se envergonhar � tornou Pl�nio, notando
seu constrangimento. � Voc� foi v�tima de um ataque, e o
�nico ato vergonhoso foi o de seu agressor.
� Onde est� meu pai?
� Foi para casa ontem � noite, mas em breve voltar�.
� Deve estar furioso.
� Seu pai ficou muito preocupado, assim como sua m�e. E n�o
� para menos. O que fizeram com voc� foi muita covardia.
� Eu n�o tive culpa...
� � claro que n�o.
De repente, Romero viu-se abrindo o cora��o para aquele desconhecido,
como se j� fossem amigos de longa data:

� Ele... ele me enganou... Disse que queria ser meu amigo...
Eu n�o sabia... n�o podia imaginar... Se eu soubesse, n�o teria feito
aquilo.
Romero agora chorava convulsivamente, e Pl�nio condoeu-se
sobremaneira. J� vira muitos casos como aquele. Meninos e meninas
sofrendo com a trai��o e a viol�ncia, sentindo na carne a dor


de ingressar no mundo adulto de forma t�o abrupta, violenta e
traumatizante.

� Voc� n�o fez nada � tranq�ilizou o m�dico. � N�o foi culpa
sua.
� Deixei-o acompanhar-me. Est�vamos falando do filme... eu
me empolguei... nem percebi para onde ele estava me levando...
De repente, ele me agarrou... come�ou a fazer coisas... Ah, doutor,
foi horr�vel!
� Posso imaginar.
� O senhor sabe o que ele me fez?
� Fui eu que o examinei.
� Eu n�o queria! Mas ele me for�ou! Fez de mim uma mulherzinha.
Mas eu n�o queria. Juro, doutor, eu n�o queria. Eu sou homem!
Ante os solu�os angustiados de Romero, Pl�nio afagou sua cabe�a
e tornou com voz bondosa:

� Tenha calma. N�o precisa se justificar. N�o estou aqui para
julg�-lo. S� o que quero � ajudar.
� Mas meu pai... quando souber... vai querer me matar...
� Seu pai j� sabe.
� J�? E n�o disse nada?
� Ele est� bastante transtornado, o que � natural num caso
como este. Mas n�o me parece que esteja querendo mat�-lo.
� N�o?
Nesse momento, a enfermeira entrou novamente e cochichou
algo ao ouvido de Pl�nio, afastando-se em seguida. O m�dico fitou
Romero com piedade e informou:

� Seus pais est�o a� fora. Acabaram de chegar.
Silas e No�mia entraram aflitos, procurando o leito de Romero
entre tantos que ali estavam. Ao avistarem o m�dico ao lado de
sua cama, correram para l� a passos apressados.

� Bom dia, doutor � disse Silas, e No�mia balan�ou a cabe�a.
� Bom dia � respondeu o m�dico.
No�mia correu para junto do filho e abra�ou-se a ele, falando
entre l�grimas:

� Ah, Romero, meu filho, meu menino! O que fizeram a voc�?
� Ui! � gemeu Romero, sentindo o corpo doer sob o abra�o
da m�e.

� Cuidado, Dona No�mia � advertiu Pl�nio. � Ele ainda
est� muito machucado.
� Desculpe-me, meu filho. Mas � que estava t�o preocupada!
Seu pai e eu ficamos muito aflitos.
Romero fitou o pai, que o cumprimentou com certa emo��o:

� Como est�, meu filho? Melhor?
� Vai-se indo.
Silas deu um sorriso amargo e virou-se para o m�dico:
� Ent�o, doutor? Podemos lev�-lo hoje?
� Creio que sim � respondeu o m�dico, a contragosto. � Ele
est� reagindo muito bem. Creio que, depois do almo�o, poder� sair.
� Por que n�o agora?
� Por que a pressa? Ainda quero fazer mais alguns exames. Coisa
de rotina, mas necess�ria.
� Entendo.
Pl�nio olhou para os lados e chegou o rosto mais para perto de
Silas, indagando a meia-voz:

� E ent�o? Pensou no que conversamos?
Sem tirar os olhos do ch�o, Silas respondeu:
� Pensei, sim, doutor. E minha resposta continua sendo "n�o".
Estava encerrado o assunto. Silas voltou-lhe as costas e aproximou-
se do filho, pondo-se a apreciar os gestos de carinho da mulher.
N�o tendo mais o que dizer para convenc�-lo, Pl�nio afastou-
se, falando desapontado:

� Bem, podem ficar com ele. Vou preparar a alta para depois
do meio-dia. Depois, virei aqui terminar os exames.
Assim que ele se foi, Silas virou-se para Romero e falou com
ar grave:

� Nem uma palavra do que aconteceu ontem, Romero.
� O qu�? � indignou-se o menino, pensando que n�o havia
entendido direito.
� Nem uma palavra! N�o quero que conte isso a ningu�m.
Nem � sua irm�. Se contar, dou-lhe uma surra da qual jamais ir� se
esquecer.
� Mas... mas... o que direi?
� Que voc� foi assaltado. Vinha caminhando distra�do, e um

homenzarr�o o assaltou. Bateu em voc� para tomar-lhe o dinheiro.
Nada mais. E n�o se fala mais nisso.

� Mas, pai...
� Nada de "mas". O assunto est� encerrado. N�o quero mais
ouvir falar nesse epis�dio. Para mim, est� tudo acabado e enterrado.
N�o quero saber como foi que lhe tiraram a vergonha. S� espero
que voc� n�o tire tamb�m a minha. N�o diga mais nem uma palavra
sobre esse... incidente. Vamos colocar uma pedra sobre tudo
isso. O que passou passou. Agora, bola pra frente. Esque�a o que
aconteceu e trate de arranjar uma namorada.
Romero engoliu em seco. Nada de perguntas... O pai nem queria
saber como tudo acontecera. Simplesmente o proibia de tocar
no assunto, com medo de se envergonhar. Mas envergonha-se de
qu�? Ent�o n�o fora ele a �nica v�tima de tudo aquilo? O �nico realmente
humilhado, vilipendiado, tratado feito um traste, um c�o sarnento?
Quem, sen�o ele, tinha algo de que se envergonhar?

A amea�a do pai, entretanto, era por demais real e s�ria, e Romero
n�o disse mais nada. Olhou para a m�e, em busca de apoio,
mas ela grudou os olhos no ch�o e n�o ousava encar�-lo. Por que
tinha de ser t�o passiva e omissa?

E Judite? Por que n�o estava ali tamb�m? Na certa, porque o
pai n�o deixara. Pelo visto, n�o haviam contado nada a ela, e Judite
devia estar pensando que ele fora mesmo assaltado. Romero
queria correr e contar-lhe tudo, mas o pai o proibira de compartilhar
sua dor at� com a irm�, e ele o temia demais para contrariar
suas ordens. Silas era bem capaz de cumprir suas amea�as e dar-lhe
uma surra inesquec�vel, que hospital nenhum poderia curar.

Os exames transcorreram calmamente. A sa�de de Romero, no
geral, estava boa, e os ferimentos n�o davam mostras de infec��o.
Assim, logo depois do almo�o, ele foi liberado para ir para casa. Pl�nio
lamentou profundamente o fato de que mais um pai incompreensivo
impedia que a justi�a fosse feita, mas n�o havia nada que
ele pudesse fazer. Se fosse seu filho, saberia direitinho como agir. Procuraria
a pol�cia e faria a queixa-crime. Jamais deixaria passar impune
o agressor de seu filho. Mas Romero n�o era seu filho, e ele
n�o tinha o direito de passar por cima da vontade daquele pai. A


lei o protegia, dava ao pai o direito de optar por ir avante ou n�o
com uma a��o criminal. E quem era ele para ir contra a lei?

Quando chegaram em casa, No�mia levou Romero para o
quarto, para descansar. Ele ainda estava muito do�do e com dificuldades
de andar, o que desgostava Silas imensamente, lembrando-
se de que seu filho jamais seria o mesmo depois daquilo. Mesmo que
ele arranjasse uma namorada e procurasse levar uma vida normal,
Silas jamais poderia esquecer que Romero fora violado naquilo que
possu�a de mais valioso: sua masculinidade.

No�mia deitou-o em sua cama e acomodou-o nos travesseiros.
Ligou o ventilador e abriu a janela.

� Quer mais alguma coisa, meu filho? � indagou sol�cita.
� N�o, m�e, obrigado. Onde est� Judite?
� Na faculdade.
� Ela n�o quis ir me buscar?
� Seu pai n�o deixou. Sabe como ele � rigoroso com as coisas
de estudo.
� Mas eu estava no hospital!
� Agora voc� est� em casa. E Judite, logo, logo, chega por
a�. Ent�o poder�o conversar. Mas cuidado: lembre-se do que seu
pai falou.
� Pode deixar � tornou acabrunhado. � N�o direi nada. � o
que ele quer, n�o �? Que eu finja que nunca aconteceu nada.
� Seu pai s� quer seu bem.
� Acho que ele quer � o bem dele mesmo.
� N�o diga isso. Ele ficou muito preocupado. E, se o proibiu
de tocar no assunto, foi para que voc� n�o virasse motivo de chacota
na rua.
� Para que quem n�o virasse motivo de chacota? Eu ou ele?
� N�o fale assim, Romero. Seu pai pode n�o gostar.
A id�ia de que o pai pudesse escutar aquelas palavras assustou-
o, e Romero silenciou-se. Faria sem maiores questionamentos o que

o pai lhe ordenara. No entanto, n�o podia fingir que n�o estava magoado.
Sofrera um duro golpe, e o m�nimo que podia esperar era a
compreens�o da fam�lia. Mas o pai se negava a escutar, a m�e tinha
medo de perguntar e a irm� ignorava tudo. E ele estava proibido de
tocar no assunto.

Ningu�m poderia imaginar como estava se sentindo. A viol�ncia
de que fora v�tima deixara-lhe profundas marcas. Sentia-se triste,
inseguro, culpado. Se n�o tivesse dado conversa para aquele
sujeito, nada daquilo teria acontecido. Mas ele era ing�nuo e inexperiente,
e jamais poderia prever uma coisa assim. At� porque
aquele assunto era tabu em sua casa. O pai nunca o alertara para coisas
daquele tipo. Por isso, ao deparar com aquele homem, Romero
nem imaginou que ele fosse capaz de lhe fazer mal. Lembrava-se de
que chegara a desconfiar de que ele fosse homossexual, mas nunca
poderia supor que ele quisesse violent�-lo. Ainda mais com tanta
brutalidade.

Depois que a m�e saiu, Romero afundou o rosto no travesseiro
e desatou a chorar. Em minutos, adormeceu. Era melhor dormir
do que enfrentar aquela situa��o, e ele ferrou num sono profundo
e agitado. Despertou mais tarde, sentindo a presen�a de algu�m a
seu lado. Era Judite, que chegara da escola e se sentara em sua
cama, acariciando-lhe os cabelos. Quando ele abriu os olhos, ela sorriu
e deu-lhe um beijo na testa.

� Meu menino � falou com ternura �, o que foi que fizeram
a voc�?
Ele n�o respondeu. Tentou sorrir, mas sua boca se contraiu num
esgar de dor, e ele acabou chorando no colo da irm�. Ela alisava seus
cabelos com carinho e, quanto mais doce e amorosa ela era, mais
ele se entregava ao pranto. Por fim, quando achou que j� n�o possu�a
mais l�grimas para chorar, enxugou os olhos e balbuciou:

� Judite... Voc� nem sabe o que passei...
� Como foi? N�o posso imaginar. Aquela rua � t�o movimentada...
Seguindo as ordens do pai, Romero mentiu:

� Eu vinha distra�do... Nem percebi quando o cara se aproximou
por tr�s. Ele me pegou de jeito, me bateu e me tomou todo
o dinheiro.
� E ningu�m viu? N�o vieram ajudar?
� N�o havia ningu�m por perto.
� Mas que coisa!
� Deixe isso para l�. J� passou. Quero esquecer.
� Sinto-me t�o culpada!
37



� Voc� n�o tem culpa de nada. N�o podia imaginar que iam
querer me assaltar.
� N�o. Eu devia t�-lo acompanhado at� em casa. Jamais irei
me perdoar por isso.
� Assim voc� me deixa triste. N�o foi culpa sua. N�o foi culpa
de ningu�m.
� Ele o agrediu muito?
� N�o quero mais falar sobre isso...
Romero sentiu que a voz se estrangulava na garganta, e Judite
abra�ou-se a ele, falando cheia de arrependimento:

� Tem raz�o, Romero, perdoe-me. Sei que deve ser horr�vel
lembrar-se do que aconteceu. S� perguntei porque fiquei curiosa e
porque estou muito arrependida de ter deixado voc� sozinho. Mas
n�o vou perguntar mais. Agora descanse. Na hora do jantar, trarei
uma bandeja para voc�.
Judite saiu. Ao v�-la se afastar, Romero sentiu-se extremamente
s�. Ela era sua �nica amiga, a �nica que o compreendia. Se
n�o podia compartilhar com ela sua dor, como faria para enfrent�la?
E mais: como conseguiria venc�-la? Romero pensou que jamais

o conseguiria.

entada na lanchonete, Judite conversava com Alex.
Desde o dia do assalto, vinham saindo juntos. Alex era amigo de
um colega de turma de Judite e j� estava quase terminando a faculdade
de engenharia. Aos vinte e dois anos, era um rapaz bonito e
inteligente, disputad�ssimo pelas garotas.

� Sabe, Alex � come�ou Judite, enquanto mordiscava um
queijo quente �, n�o entendo o que aconteceu com Romero. Desde
que foi assaltado, anda muito esquisito.
� Ele est� traumatizado. Com o tempo, isso passa.
� Tomara que voc� esteja certo. Ele anda arredio, n�o quer
conversar com ningu�m. Nem comigo, que sou sua maior amiga.
� Ele est� apenas assustado. � natural. Levou uma surra do tal
sujeito e deve se sentir envergonhado. Qual � o homem que gosta
de apanhar?
Judite n�o estava bem certa. Fazia j� dois meses que tudo acontecera,
e, desde ent�o, Romero nunca mais fora o mesmo. Mas talvez
Alex tivesse raz�o e aquilo fosse passageiro. Passado o susto e o
trauma, Romero voltaria ao normal. Ela suspirou e alisou a m�o de
Alex por cima da mesa, indagando meio sem jeito:

� Quando voc� vai l� em casa?
� Estive pensando. J� estamos namorando h� dois meses, e
creio que estou apaixonado por voc�. � Ela corou, e ele prosseguiu:
� Por isso, gostaria de falar com seus pais, mostrar a eles que minhas
inten��es s�o s�rias.
39


� Ah, Alex, que bom! Papai j� estava mesmo come�ando a
reclamar. Disse que rapaz bem-intencionado faz logo quest�o de
conhecer a fam�lia da mo�a.
� Pois �. Podemos marcar para breve um encontro. Que tal um
jantar em sua casa?
� �tima id�ia. Mam�e j� havia sugerido isso.
� E quando pode ser?
� Creio que s�bado estaria �timo.
� S�bado, ent�o. Est� combinado.
Beijaram-se longamente, e a conversa mudou de rumo. J� eram
quase nove horas, e Judite precisava voltar, porque o pai n�o gostava
que permanecesse na rua at� tarde. Alex levou-a de carro at�
a porta de casa e depois foi embora.

Ao descer do ve�culo, Judite parou alarmada. Mesmo da rua,
podia ouvir os gritos do pai ecoando pela janela aberta. Atravessou
correndo o jardim e irrompeu porta adentro, bem a tempo de presenciar
a bofetada que Silas acabara de estalar na face de Romero.

� Seu mariquinhas! � esbravejou. � � por isso que todo mundo
vive falando de voc�!
Romero encolheu-se todo a um canto, e Judite exclamou indignada:


� Papai!
O pai, a m�e e o irm�o olharam-na ao mesmo tempo, e Romero
sentiu imenso al�vio ao v�-la. Na mesma hora, correu a seu encontro
e atirou-se em seus bra�os, choramingando em seu ombro,
agarrado como se ela fosse sua m�e. Silas encarava-os com raiva, e
No�mia abaixou a cabe�a, ao mesmo tempo aliviada e temerosa.
Pelo menos Judite tinha coragem de enfrentar Silas, algo que No�mia
n�o se atrevia a fazer, e tomaria a defesa de Romero.

� Mas o que est� acontecendo? Posso saber? � Era Judite novamente.
� � esse moleque! � esbravejou Silas, apontando para Romero
o dedo amea�ador. � Vai fazer catorze anos e se comporta feito
uma mocinha. E donzela!
� O que ele fez?
� O que ele n�o fez! J� est� na hora de voltar a sair sozinho,
mas ele se recusa.

� Sair para onde?
� N�o lhe interessa. � assunto de homem.
Pela voz irritada do pai e pelo olhar de s�plica de Romero, Judite
sabia que ele estava falando da tal Domitila, de quem o irm�o
lhe falara na primeira vez em que fora � sua casa. Ela sabia
que a experi�ncia havia sido ruim e que ela mentira, chamando-

o de garanh�o s� para agradar o pai. Sabia que Romero havia detestado
a mulher, o que ela julgava compreens�vel, visto a pouca
idade do menino.
� Por que n�o o deixa em paz? � rebateu Judite, um tanto
agressiva. � Por que n�o o deixa escolher quando � hora de sair?
� J� disse para n�o se meter nisso. Voc� � uma mocinha e n�o
entende dessas coisas.
� E do que voc� entende, al�m de si mesmo? S� consegue pensar
no que os outros v�o dizer se o seu filho n�o dormir com uma
rameira.
� Cale a boca! Isso n�o s�o modos de uma mo�a de fam�lia
falar.
� E isso n�o s�o modos de um pai educar o filho. Filhos devem
ser tratados com amor e respeito, n�o com viol�ncia e agress�o.
� Est� querendo dizer que n�o amo meus filhos?
� N�o estou querendo dizer nada. O senhor � quem sabe o que
sente por n�s.
� Voc� � muito atrevida, menina.
� O senhor � que � autorit�rio, prepotente e dono da verdade.
Por que n�o experimenta perguntar o que sentimos, s� para variar?
Em vez de responder, Silas aproximou-se e ergueu a m�o para
bater em Judite tamb�m, mas No�mia segurou sua m�o e objetou:

� Pense no que vai fazer, Silas, para n�o se arrepender depois.
Caindo em si, Silas soltou o bra�o ao longo do corpo. N�o costumava
bater em Judite. Ela era uma menina, e ele tinha um jeito
todo especial de tratar as meninas. Achava que toda mulher era um
ser fr�gil e submisso, e levantar a m�o para uma mo�a era, no m�nimo,
um pecado mortal. Com os meninos, podiam-se usar m�todos
mais agressivos. As meninas deviam ser tratadas com severidade,
mas jamais com viol�ncia f�sica.

� V� j� para seu quarto � ordenou ele.

Sem baixar os olhos, Judite apertou Romero contra si e saiu com
ele para seu quarto. N�o deixaria o irm�o ali por nada. Pensou que

o pai fosse mandar que o menino voltasse, mas ele n�o fez nada. Foi,
ele tamb�m, para seu pr�prio quarto. N�o queria mais conversar com
ningu�m.
Naquela noite, Romero dormiu no quarto de Judite. Sentia-se
inseguro, com medo de que o pai surgisse de repente e o espancasse.
Judite ajeitou a cama para os dois e trancou a porta, s� para se
certificar de que o pai n�o os incomodaria. Apagou a luz e acendeu

o abajurzinho da mesinha-de-cabeceira. A casa toda estava em sil�ncio,
e Judite puxou assunto:
� Papai brigou com voc� por causa daquela Domitila?
� �, sim. Quer me obrigar a ir l� novamente.
� E voc� n�o quer ir?
� N�o.
� Por qu�? N�o gostou dela?
� N�o � respondeu, ap�s breve pausa. � Ela me d� nojo.
� Mas por qu�, Romero? Ela � feia, gorda, malcheirosa?
� N�o. At� que � uma mulher bonita.
� Ent�o, qual o problema?
� N�o sei, Judite. Ela � grosseira, vulgar. Faz coisas... � engoliu
em seco e afundou o rosto no travesseiro.
� N�o precisa ter vergonha de mim. Sei muito bem como s�o
essas coisas.
� Voc� sabe?
� Mais ou menos. Nunca fiz, mas sei como s�o. Alex e eu...
bem,
estamos namorando.
Romero ergueu o corpo na cama e indagou perplexo:

� Voc�s j� dormiram juntos?
� Bem, dormir, n�o dormimos. Mas eu o deixei passar as m�os
em meu seio.
� Judite!
� N�o conte nada a papai. Se ele souber, me mata.
� Imagine se eu ia contar uma coisa dessas! Pode confiar em
mim. N�o digo nada a ningu�m.
� Obrigada. Sabia que podia confiar em voc�. Voc� � meu irm�ozinho,
e � a pessoa no mundo que eu mais amo.

� E Alex?
� � diferente. Estamos namorando h� pouco tempo, mas sinto
que estou gostando dele tamb�m. E ele se declarou apaixonado.
Quer vir aqui em casa, falar com papai.
� � mesmo? Quando?
� No s�bado. Veja s�: na confus�o, esqueci de contar.
� Nem sei se papai ouviria. Estava t�o bravo... Tudo por causa
daquela Domitila.
Judite abra�ou-o e, como que escolhendo as palavras, disse
baixinho:

� Quero que saiba que amo voc� de qualquer jeito. Seja de que
jeito voc� for, eu amo e amarei sempre voc�.
� O que quer dizer, Judite? Como assim, de que jeito eu for?
� Quero dizer, mesmo que voc� seja... diferente.
� Diferente como? N�o sou diferente. Sou igual a todo mundo.
� Eu sei. Mas voc�... voc�... � ela baixou a cabe�a e desanimou.
� Deixe para l�.
Romero deixou. N�o entendia bem o que Judite estava tentando
lhe dizer, ou fingia que n�o entendia, e virou-se para o
lado. N�o ag�entava mais a press�o do pai sobre ele. Quando ele
iria compreender que Romero n�o apreciava aquelas ordin�rias
com quem ele insistia que o filho devia dormir? Quando chegasse
a hora, arranjaria uma namorada como Judite: linda, meiga, inteligente,
decidida. N�o queria uma vagabunda qualquer. Queria
uma mo�a decente.

S� na noite seguinte Judite conseguiu comunicar aos pais sobre
o jantar no s�bado. Silas at� que ficou satisfeito. Pelo que a filha
dissera, Alex era um rapaz estudioso e de boa fam�lia. O pai era
engenheiro, e a m�e era professora. Seria um excelente partido para
Judite, c ele at� torcia para que eles se casassem logo. Em tempos
como os que viviam, em que a garotada andava se esquecendo da
moral e dos bons costumes, seria bom que ela se casasse com um rapaz
decente e constitu�sse fam�lia cedo, o que significava uma preocupa��o
a menos.

Silas n�o tocou mais no assunto de prostituta com Romero. Estava
satisfeito com as perspectivas de um noivado para Judite, e os


problemas com o filho podiam esperar. Ainda assim, quase n�o falava
com ele, o que Romero at� achou bom, para poder ficar livre
daquela insist�ncia.

Em seu �ntimo, sentia-se profundamente magoado, n�o s� com
as lembran�as do que passara, que ainda n�o conseguira apagar, mas,
e principalmente, com a indiferen�a dos pais. Mais ainda, da m�e.
Ele n�o conseguia entender como a m�e podia ser t�o omissa.
Como desejava que ela o defendesse, que o acariciasse, que o tomasse
no colo e alisasse seus cabelos enquanto ele chorava, at� que ele
se acalmasse e pudesse dormir. Mas ela n�o fazia nada disso. Silas
dizia � mulher que aquilo n�o era coisa para homem e que ele acabaria
se transformando num mariquinhas, de t�o mimado. E a m�e
foi obrigada a concordar, passando a dispensar-lhe apenas car�cias
discretas e comedidas.

Por isso, afei�oara-se cada vez mais a Judite. Esta n�o se importava
com o que o pai dizia ou pensava e sempre tinha uma palavra
amiga para Romero. Dava-lhe beijos, acarinhava-lhe as faces e os
cabelos, deitava-se com ele na cama, e ficavam at� tarde conversando,
dividindo alegrias e tristezas. Mais do que amigos, eram
c�mplices. A �nica coisa que Romero n�o ousava comentar com a
irm�, por medo da rea��o do pai, era sua experi�ncia com J�nior.

Pensando em J�nior, sentiu um calafrio. Ainda guardava no
corpo as marcas da viol�ncia, e seu cora��o se confrangia todas as
vezes em que se lembrava daquele epis�dio. Romero pensou que,
enquanto vivesse, jamais passaria por aquela experi�ncia novamente.
N�o permitiria que nenhum homem o tocasse, n�o acreditaria
mais na conversa mole de malandro algum. N�o queria passar
por tudo aquilo de novo. N�o queria servir de mulherzinha para
nenhum veado.



cap�tulo


o s�bado pela manh�, o telefone tocava insistentemente,
e No�mia veio atender. Era Alex, pedindo para falar com
Judite. Ela veio correndo atender, e Alex foi logo dizendo:
� Oi, Judite, aconteceu uma coisa meio chata.
� O qu�? N�o v� me dizer que n�o poder� vir.
� N�o � isso. Meus tios chegaram de Bras�lia hoje de manh�.
� E da�?
� E da� que trouxeram meu primo com eles. Meus pais e meus
tios marcaram de ir ao show de Juca Chaves, mas o garoto s� tem
dezessete anos e n�o pode ir. Sabe como � a censura...
� Voc� est� tentando me dizer que quer traz�-lo ao jantar?
� Se voc� n�o se importar...
� E claro que n�o. Imagine se me importaria. Traga-o com
voc�. Se � seu primo, vai ser de minha fam�lia tamb�m.
� �timo. Sabia que voc� ia concordar.
Desligaram. Mais tarde, quando Alex chegou, veio trazendo o
primo, um garoto alegre e extrovertido, que logo se p�s � vontade
na casa de Judite. Chamava-se Mozart, em homenagem ao c�lebre
compositor alem�o, e era, segundo Alex, excelente pianista, o que
deixou a fam�lia de Judite deveras impressionada.

Silas e No�mia gostaram muito de Alex. Ele era educado e de
boa fam�lia, e daria um excelente marido para sua filha. Depois do
jantar, a fam�lia reuniu-se na sala de estar para uma conversa informal,
e No�mia demonstrou curiosidade a respeito de Mozart.

45


� Meu primo toca piano desde os seis anos � anunciou Alex.
� Sempre teve dom para m�sica.
� � mesmo? � admirou-se No�mia. � Pena que n�o temos um
piano em casa para o escutarmos.
� Que tal se f�ssemos � casa de Dona Filomena? � sugeriu Judite.
� Ela tem um piano antigo.
Dona Filomena era a vizinha que morava do outro lado da rua.
Vi�va idosa e solit�ria, adorava receber visitas em sua casa. Depois
de uma breve discuss�o sobre os inconvenientes de importun�-la
num s�bado � noite, sem aviso, todos acabaram concordando que
isso poderia ser uma boa id�ia.

De um canto da sala, Romero assistia a tudo em sil�ncio. Simpatizara
muito com o rapaz. Ele era alegre, inteligente, falante e divertido.
Tudo que ele n�o era. Al�m disso, era muito bonito. De um
louro p�lido, olhos verde-escuros, parecia mesmo um alem�o. Pensando
nisso, Romero achou que seu nome fora apropriado e pegou-
se olhando para o rapaz a todo instante.

Assustou-se consigo mesmo. N�o entendia o que havia naquele
jovem que lhe atra�a tanto a aten��o. Quanto mais Mozart falava,
mais Romero se encantava. Em alguns instantes, chegou mesmo
a rir de suas piadas engra�adas e de seu jeito espont�neo. Como
gostaria de ser como Mozart! Achou que era essa admira��o que o
atra�a para o rapaz e tranq�ilizou-se. N�o havia com que se preocupar.
Mozart era um rapaz bonito e simp�tico, mas era apenas um
menino. N�o era seu parente nem seu amigo, e aquela admira��o
acabaria no instante em que ele cruzasse a porta da rua, de volta
para sua casa.

Romero acompanhou os outros sem dizer nada e foi bater � porta
da casa de Dona Filomena. Ela ficou muito feliz com a visita e
convidou a todos para entrar. Seus dedos j� estavam ficando duros
e, h� muito, ningu�m tocava aquele instrumento.

� J� deve at� estar desafinado � desculpou-se.
Mozart sentou-se ao piano e experimentou as teclas.
� Ainda est� bom � anunciou, correndo os dedos pelo teclado,
para admira��o de todos, principalmente de Romero. � Deixem-
me come�ar com algo de meu homenageado. Tocarei primeiro um
cl�ssico. � P�s-se a dedilhar o piano e elucidou: � Allegro.

Estavam todos mudos, tamanha a admira��o. O rapaz era,
efetivamente, um virtuose. Judite, depois de ouvi-lo encantar a
todos com as mais variadas sinfonias de Mozart, Bach e Tchaikovski,
sugeriu:

� Por que n�o toca algo mais moderno agora?
� Ah, n�o, Judite � contestou o pai. � Est� t�o bom.
� Acho que os mo�os gostariam de ouvir algumas cantigas da
moda � disse Dona Filomena.
Se a dona da casa concordava com m�sica popular, n�o seria
Silas quem iria discutir. Limitou-se a aquiescer e sorriu meio sem jeito.
Com uma gra�a sem igual, Mozart come�ou a tocar uma m�sica
mais atual e, para espanto geral, limpou a garganta e soltou a voz
de bar�tono:

"Lindo, e eu me sinto enfeiti�ada

"l�, �, correndo perigo,

"Seu olhar...

"� simplesmente lindo...

Era "Menino Bonito", de Rita Lee. Ele cantava lindamente, e

o mais estranho � que olhava para Romero de soslaio, todas as vezes
em que levantava os olhos do teclado. Romero sentiu-se enrubescer.
Olhou para o pai pelo canto do olho, mas ele parecia
absorvido pela m�sica e embalava-se na cadeira, com a m�e pendurada
em seu bra�o. A um canto, Judite e Alex, sentados bem
agarradinhos, pareciam n�o perceber a exist�ncia de mais ningu�m
no mundo, e dona Filomena havia se levantado para ir buscar limonada
na cozinha.
Todos estavam distra�dos, e ningu�m percebeu os olhares de
Mozart para ele. Eram para ele, sim. Tinha certeza. Cada vez que
sua voz rouca diminu�a um pouco mais, ele olhava para Romero,
tomando o cuidado de n�o deixar que os outros notassem. Mozart
cantava aquela m�sica para ele, e Romero ficou envaidecido. Ele

o achara bonito, estava elogiando-o por interm�dio da m�sica.
Sem se dar conta, Romero come�ou a fixar o outro com insist�ncia
e, em pouco tempo, j� o encarava sem constrangimento. Quanto
mais ele olhava para Mozart, mais Mozart o fitava, at� que
tocou o acorde final da m�sica e sorriu, desviando os olhos para os
demais presentes.
47


Aquele sorriso foi encantador. Dona Filomena chegou com a
limonada, elogiando a habilidade e o sentimento com que Mozart
tocava, no que foi seguida pelos demais.

� Voc� j� terminou seus estudos de m�sica? � quis saber Silas.
Romero desviou os olhos do rapaz para fitar o pai.
� Acabei de completar o curso b�sico.
� Mozart j� tem uma bolsa de estudos garantida para estudar
em Salzburgo � informou Alex.
� N�o me diga! � espantou-se Dona Filomena.
� Isso � verdade? � indagou Judite.
� E, sim. Mas s� vou em julho.
� Vai fazer faculdade na Europa? � tornou Silas.
� Vou, sim. E pretendo integrar a filarm�nica de l�, quando
terminar.
A conversa concentrou-se nos estudos de Mozart, at� que Silas
decidiu que era hora de partirem.

� J� � tarde � anunciou �, e Dona Filomena deve estar querendo
dormir.
� Foi um prazer receb�-los em minha casa � finalizou Filomena.
� Venham quando quiserem.
Despediram-se e voltaram para a casa de Silas. Alex entrou para
um �ltimo caf� e, enquanto ele e Judite iam para a sala conversar
com os pais, Mozart saiu para o jardim com Romero.

� Espero que n�o tenha ficado chateado por ter de tocar para
n�s � disse Romero, para puxar assunto.
� Chateado, eu? Imagine... Pois se � a coisa no mundo que
mais gosto de fazer! � Olhou fundo nos olhos do outro e indagou:
� E voc�? Do que mais gosta?
Romero, acanhado, deu de ombros e respondeu:
� N�o sei. Acho que nada.
� Nada? Imposs�vel. Todo mundo gosta de alguma coisa.
� Bem, o que aprecio, meu pai n�o me deixa fazer.
� Como assim?
� E que gosto de coisas... que ele considera... impr�prias.
� O qu�, por exemplo? Ser� que voc� gosta de fumar e beber?
� N�o, n�o. Mas gosto de... poesias, por exemplo.
� E o que h� de mais? Tamb�m gosto de poesias. Quer ver?

Recitou um verso de Vin�cius de Morais e perguntou:

� Gostou?
� Ser� que existe alguma coisa que voc� n�o conhe�a? � tornou
Romero, at�nito.
� Muitas. Mas no que se refere �s artes, acho dif�cil. Adoro
tudo que se relaciona a arte.
� S�rio? E seus pais n�o ligam?
� Ligar? � claro que n�o.
� Que sorte a sua. Meu pai acha muitas coisas inadequadas.
Quero dizer, n�o � que ele n�o goste. Voc� viu hoje como ele ficou
com sua m�sica. Mas ele diz que poesias e romances a�ucarados s�o
coisas para mocinhas.
� Ah! � isso? Seu pai � bem careta, n�o �?
� �, sim. � muito antiquado. Acha tudo feio.
� Ainda bem que meus pais n�o s�o assim. Eles concordam
com tudo que fa�o. Ao menos, com quase tudo.
� Como assim? Voc� faz coisas que os desagradam?
� N�o exatamente. Fa�o coisas que eles n�o sabem.
� O qu�?
Antes que Mozart pudesse responder, Alex veio do interior da
casa, de m�os dadas com Judite e com Silas a seu lado.

� Vamos, Mozart � chamou o primo. � Est� na hora de irmos
tamb�m. J� � quase meia-noite.
Mozart levantou-se e limpou as cal�as. Estendeu a m�o para
Romero, que se levantara tamb�m, e esperou at� que os outros
passassem.

� Posso telefonar para voc�?� indagou, acompanhando com
o olhar os outros caminharem at� o port�o. � Podemos marcar de
ir a um cinema ou algo parecido. Voc� gostaria?
� E claro que sim � respondeu Romero, sentindo o rosto arder.
� �timo. Pegarei seu n�mero com Alex.
Apertaram-se as m�os e separaram-se. Romero ficou onde estava,
vendo o rapaz afastar-se, tentando imaginar por que algu�m
como Mozart sairia com um cara bobo igual a ele. Devia haver mil
garotas querendo sair com ele, mas Mozart convidara-o para ir ao cinema.
Por qu�? Por mais que tentasse arranjar uma desculpa, Romero
sabia que Mozart se interessara por ele. O rapaz nada dissera, mas


seus olhares foram bastante significativos. Ser� que ele era homossexual?
Se fosse, n�o seria muito apropriado que os vissem juntos.

Pensando melhor, que mal poderia haver? Pelo visto, ningu�m
sabia dessa particularidade da vida de Mozart, se � que isso era verdade.
E ningu�m teria motivos para desconfiar dele. Nem seu pai.
Ele e Mozart poderiam travar uma amizade sincera, e o pai ainda os
estimularia, s� para ver se Mozart seria capaz de arranjar uma namorada
para ele.

Mas era s� isso que poderiam ter: uma amizade sincera. Romero
n�o queria nada al�m disso. Se o rapaz era homossexual, isso era
l� problema dele. Mas Romero n�o queria se envolver com aquele
tipo de coisa. Ainda guardava fresquinha na mem�ria a tr�gica experi�ncia
que tivera com J�nior e n�o pretendia que aquilo se repetisse.
Fora horr�vel! As m�os grossas de J�nior em seu corpo, as
pancadas que levara, a dor das entranhas dilaceradas.

Ao se lembrar desse epis�dio, Romero chorou baixinho. Como
algu�m era capaz de fazer aquilo com outra pessoa? Era medonho.
Ser ultrajado daquela maneira, ferido, humilhado. Ele n�o merecia.
Ficou recordando as m�os de J�nior e a sensa��o que tivera quando
ele o tocara. Fora nojento! J�nior apalpara-o e apertara-o. Aquilo
lhe causara dor.

Mas n�o fora apenas dor. Romero soltou um grito abafado de
pavor ao pensar nisso. Por detr�s da dor que J�nior lhe infligira, podia
sentir algo diferente. Fora doloroso, sim, porque violento. Mas
al�m da dor, da viol�ncia, havia algo que Romero n�o sabia definir.
Ele queria se convencer de que fora v�tima de um ato abomin�vel
e de que jamais passaria por aquilo novamente. Mas a verdade
� que, pensando em Mozart, a experi�ncia com J�nior n�o lhe
parecia mais assim t�o terr�vel.

Cada vez mais assustado consigo mesmo, Romero tinha at�
medo de pensar e descobrir coisas que n�o gostaria de ver. Mozart
despertara nele sentimentos que antes J�nior havia despertado,
sem que ele soubesse. Quanto mais constatava isso, mais se indignava
e ficava repetindo para si mesmo que o que J�nior lhe fizera
fora horrendo, porque ele o obrigara a fazer coisas que n�o queria.
N�o queria? Se n�o queria, por que ent�o aceitara sua companhia?
Ent�o n�o vira que ele o ficara olhando? Que homem olha para ou



tro homem do jeito como ele olhara para J�nior se � verdadeiramente
homem?

Ele sabia. No fundo, sabia o que J�nior queria. E o que J�nior
queria, inconscientemente, era o que ele queria tamb�m. Por isso
lhe do�a tanto. Saber que J�nior o maltratara por algo que ele tamb�m
desejava, s� que de outra forma. E era o mesmo que ele sentira
com rela��o a Mozart. S� que Mozart era um jovem educado e
sens�vel, ao passo que J�nior era um grosseir�o. Mas, em seu �ntimo,
Romero sabia que o que o atra�ra para J�nior era o mesmo sentimento
que o atra�a agora para Mozart. N�o era paix�o nem desejo.
Nem curiosidade, nem perversidade. Era instinto. Apenas
instinto. Por um motivo que Romero n�o sabia explicar, sentia-se
atra�do pelos rapazes, como jamais fora por garota nenhuma.

Mas como aquilo era poss�vel? Talvez ele estivesse confuso. Talvez
a experi�ncia traum�tica com Domitila o houvesse levado para
o outro lado. Mas, se Domitila o traumatizara, o que deveria dizer
de J�nior? Domitila n�o lhe batera, ao passo que J�nior o espancara
at� quase o deixar inconsciente. As car�cias de Domitila o enojaram,
enquanto as m�os de J�nior lhe causaram imensa dor. Mas
por detr�s da dor...

N�o queria reconhecer, teimava em n�o aceitar. O que sentira
com J�nior fora dor, s� dor. Contudo, se fora apenas dor, o que
seria aquele fogo que o queimava por dentro todas as vezes em que
se lembrava do contato da pele de J�nior sobre a sua pr�pria pele?
Era dor, insistia, dor. Dor, dor! Ficava repetindo para si mesmo essa
palavra, tentando com isso se fazer surdo ao apelo do prazer que lutava
para emergir. Um prazer que ele n�o queria reconhecer ou aceitar.
Um prazer proibido, inaceit�vel, vil. Mas fora um prazer. N�o
fosse a dor do espancamento e da humilha��o, Romero teria se deliciado
com J�nior, ao passo que Domitila, por mais que o acariciasse,
jamais conseguiria lhe dar um m�nimo de prazer, o mais �nfimo
que fosse.

Essa descoberta o angustiou e apavorou. Se o pai soubesse de
uma coisa daquelas, era bem capaz de mat�-lo. Jamais entenderia.
Trataria de cham�-lo de veado, pederasta, bichona, mariquinhas e
outras coisas do g�nero. Dar-lhe-ia uma surra maior que a de J�nior.
E, se n�o o matasse, ele o colocaria para fora de casa com uma m�o


na frente e outra atr�s, dizendo que n�o tinha mais filho. Romero
conhecia-o muito bem. Seu pai jamais aceitaria uma coisa daquelas.
Mas quem aceitaria? Naquele mundo de preconceitos, ningu�m.
Talvez Judite. Apenas ela seria capaz de compreend�-lo.
Apenas seu amor estava acima de todas aquelas coisas.



a ter�a-feira � tarde, o telefone tocou e Romero le


vantou os olhos do livro que estava lendo, apurando os ouvidos. Ouviu
os passos da m�e aproximando-se pelo corredor e susteve a respira��o.
Em poucos segundos, a porta entreabriu-se de leve e a voz
de No�mia anunciou:

� Telefone para voc�. � Mozart, o primo de Alex.
Tentando n�o demonstrar excessiva ansiedade, Romero balan�ou
a cabe�a e levantou-se da escrivaninha. Sorriu para a m�e e atravessou
o corredor, cora��o aos pulos, morrendo de medo de que a
m�e percebesse sua euforia. Quando atendeu, esfor�ou-se para tornar
a voz o mais casual poss�vel:

� Al�?
� Al�! Romero? Sou eu, Mozart.
� Oi, Mozart. Tudo bem?
� Muito bem. Estou atrapalhando?
� N�o, claro que n�o.
� �timo. Estive pensando... N�o gostaria de ir ao cinema hoje?
� Hoje? N�o sei. Meu pai n�o gosta de que eu saia nos dias
de semana.
� Ah, que pena! Pensei que pud�ssemos conversar. H� uma
lanchonete �tima aonde pod�amos ir depois.
� Eu gostaria, mas n�o sei se vai dar.
� E mesmo uma pena, mas enfim... Fica para uma pr�xima
vez, ent�o.
53


Antes que Mozart desligasse, Romero falou apressado:

� Espere! N�o desligue ainda. Vamos fazer o seguinte: meu pai
vem do trabalho l� pelas seis horas. Quando ele chegar, pe�o a ele.
Se ele deixar, ligo para voc� de volta. Sen�o, deixamos para outra
ocasi�o. Combinado?
� Combinado � respondeu Mozart rapidamente.
Desligaram. Romero percebeu que, assim como ele, Mozart
tamb�m estava ansioso, e ficou perguntando-se por qu�. No fundo,
ele bem que sabia. Mozart estava interessado nele e deveria pensar
nele com freq��ncia, assim como Romero tamb�m pensava em
Mozart. Mas o que diria o pai se desconfiasse daquilo? Silas jamais
poderia desconfiar. N�o havia nem motivo. Romero falaria com ele
e pediria para sair com Mozart, e talvez ele deixasse, pensando que
seria uma �tima oportunidade para que Romero se entrosasse com
um rapaz educado como Mozart e, quem sabe, juntos, n�o poderiam
arranjar namoradas?

Efetivamente, foi o que aconteceu. Ao saber do convite de Mozart,
Silas deu um sorriso maroto e considerou:

� Aquele Mozart � muito esperto. Nem bem chegou ao Rio e
j� est� querendo companhia para ir � ca�a das meninas.
Romero achou aquela express�o terrivelmente vulgar, mas n�o
disse nada. Sem d�vida, as meninas mereciam mais respeito, pois
n�o eram animais para serem ca�ados, mas era assim que Silas entendia
a no��o de masculinidade. O verdadeiro homem, para ele,

o macho, como dizia, era avaliado pela quantidade de mulheres com
quem dormia. Romero escondeu uma careta de repulsa e indagou
ansioso:
� Quer dizer que posso ir?
� Pode. Mas s� porque � com Mozart, que � primo do namorado
de sua irm�, um rapaz de bem, uma �tima amizade para voc�.
Tenho certeza de que ele, no m�nimo, vai ensin�-lo a paquerar.
Como Silas estava enganado! Mozart n�o lhe dissera nada, mas
Romero sabia o que ele estava pretendendo. Pediu licen�a ao pai e
foi telefonar. Quando Mozart atendeu, Romero foi logo falando, mal
contendo a euforia:

� Tudo combinado. Meu pai concordou.

Mozart, do outro lado da linha, deixou escapar um sorriso de
al�vio e satisfa��o, e finalizou:

� Passo em sua casa �s sete e meia. Pegamos a sess�o das oito
e depois vamos � lanchonete. Est� bom assim?
� Est�.
Assim que Mozart pousou o fone no gancho, Alex entrou na
sala e viu o primo parado perto da mesinha do telefone. Cumprimentou-
o com um sorriso e indagou curioso:

� Por que essa cara de felicidade? J� arranjou uma namoradinha
carioca?
O outro fez um ar enigm�tico e objetou:

� Ainda n�o descobri nenhuma garota interessante.
� N�o?
Alex queria perguntar com quem ele estava falando ao telefone,
mas n�o teve coragem. Mozart, contudo, foi logo esclarecendo:

� N�o. Eu estava falando com Romero.
� Romero? Irm�o de minha namorada?
� Esse mesmo. Convidei-o para ir ao cinema e depois � lanchonete.
� N�o diga! E o pai dele deixou?
� Deixou.
� Bom, fico feliz que tenha arranjado um amigo. Mas n�o v�
se animando muito. Se pensa que arranjou uma companhia para paquerar,
pode esquecer. Judite diz que Romero � t�mido e retra�do.
Al�m disso, � mais novo do que voc�. Pode acabar atrapalhando.
� Quantos anos ele tem?
� Fez catorze h� poucos dias.
� Isso n�o importa � tornou Mozart, com ar alheado. � E n�o
creio que ele v� me atrapalhar. H� garotas de todas as idades por a�.
� Bom, voc� � quem sabe. De qualquer forma, � melhor sair
com ele do que ficar em casa. N�o posso ficar lhe dando aten��o o
tempo todo.
� Nem eu queria que voc� ficasse de bab�. J� sou grandinho
e posso me virar.
� Talvez seja at� bom voc� e Romero fazerem amizade. Quem
sabe voc� n�o ajuda o menino a se soltar?
� Farei isso � concluiu com ar sonhador.

�s sete e quinze, Mozart bateu � porta da casa de Romero. No�mia
atendeu e demonstrou genu�na alegria ao deparar com o rapaz.

� Entre, Mozart. Romero est� terminando de se arrumar e
j� vem.
Com um sorriso encantador, Mozart passou para o lado de
dentro e sentou-se no sof� da sala, onde Silas j� se encontrava, fazendo
palavras cruzadas.

� Boa noite, seu Silas � cumprimentou com jovialidade.
� Ah, Mozart, boa noite. Chegou cedo.
� � que o �nibus veio r�pido.
� Esses motoristas de hoje s�o mesmo uns loucos. T�m mania
de Fittipaldi.
� � verdade...
� Quer dizer ent�o que voc�s v�o ao cinema...
� � sim.
� E depois v�o lanchar?
� Se o senhor n�o se incomodar que Romero chegue um pouco
mais tarde...
� � claro que n�o me incomodo. Romero � homem. Eu, na idade
dele, j� aprontava das minhas.
Piscou um olho para Mozart e olhou de soslaio para No�mia,
como a dizer que aquele era um assunto que um marido n�o deveria
comentar na frente da mulher. Mozart sorriu meio sem jeito e
consultou o rel�gio, torcendo para que Romero aparecesse logo.

� Onde fica essa lanchonete? � indagou No�mia, preocupada.
� Fica mais ou menos perto da casa de Alex. Inauguraram
outro dia.
� Deve haver muitas garotas bonitas por l�, n�o � mesmo? �
observou Silas, com ar de mal�cia.
Felizmente, Mozart n�o precisou responder, porque Romero
chegou em companhia de Judite. Ele estava muito bonito, de jeans,
camisa p�lo e t�nis Rainha. Mozart levantou-se embevecido, mas
foi para Judite que dirigiu o cumprimento:

� Ol�, Judite. Linda como sempre.
� Obrigada, priminho � respondeu ela, beijando-o no rosto.
Mozart sorriu satisfeito e devolveu o beijo, acrescentando de
bom humor:


� N�o vejo a hora de virarmos, realmente, primos.
� Ei, v� devagar � censurou Silas em tom de brincadeira. �
Judite j� tem namorado. E � seu primo.
Todos riram, inclusive Romero, que tinha medo at� de falar. A
mesma emo��o que Mozart sentira, ele tivera tamb�m. S� que Mozart
n�o tinha nenhuma irm� ali com ele para quem pudesse dirigir
sua admira��o.

� Acho que j� est� na hora de voc�s irem � incentivou Judite.
� N�o querem perder a hora do cinema, querem?
Os dois rapazes despediram-se e seguiram rua abaixo, em dire��o
ao ponto de �nibus.

� N�o vamos a p�? � perguntou Romero, acostumado que estava
a caminhar at� o local onde ficava a maior parte dos cinemas
de seu bairro.
� Estou um pouco cansado � desculpou-se Mozart. � Se n�o
se importar, preferia ir de �nibus.
Romero deu de ombros e n�o respondeu. A condu��o logo chegou,
e, depois que se acomodaram, Mozart retomou a palavra:

� Quer mesmo ir ao cinema?
� Como assim? N�o foi para isso que voc� me convidou?
� Foi... quero dizer... foi essa a minha id�ia, a princ�pio. Mas
est� uma noite t�o bonita. E t�o quente!
Aproximou-se de Romero e soprou de leve em seu rosto, causando-
lhe arrepios pelo corpo todo. Romero assustou-se. Lembrou-
se do que acontecera com J�nior e sentiu vontade de fugir. Rosto
coberto de rubor, argumentou:

� Mas meu pai me deixou ir ao cinema.
� Por que n�o esquece seu pai?
� Ele pode n�o gostar se souber que n�o fomos.
� N�o precisamos contar a ele.
Aquela situa��o pareceu a Romero extremamente familiar.
Mozart dizia mais ou menos as mesmas coisas que J�nior lhe dissera.
Assustado, virou o rosto para a janela, sentindo que o p�nico o
dominava, e s� ent�o percebeu que o �nibus que haviam tomado
estava chegando � zona sul. Apavorou-se. N�o era aquilo que haviam
planejado. Ser� que Mozart tencionava fazer a ele o mesmo
que J�nior fizera? Teria armado aquela encena��o toda s� para


atra�-lo para longe e atac�-lo covardemente? De repente, sentiu a
m�o de Mozart apertar de leve a sua e virou o rosto para o rapaz.

� Por que est� fazendo isso? � perguntou Romero com voz
tr�mula.
� Gostaria que f�ssemos amigos.
Era demais. Mozart, efetivamente, n�o tinha boas inten��es
para com ele. Sen�o, n�o estaria repetindo quase as mesmas palavras
que J�nior lhe dissera na noite em que o vioLentara. Mozart
apertou ainda mais sua m�o, e Romero descontrolou-se. De um salto,
levantou-se do banco e deu o sinal, correndo pelo corredor at�
a porta da frente. Embora tomado de surpresa, Mozart conseguiu
levantar-se e desceu atr�s dele, correndo pela rua e chamando-o
pelo nome:

� Romero! Espere! Pare a�! O que aconteceu?
Sem responder, Romero disparou em dire��o � praia, s� parando
ao sentir os t�nis cheios de areia. Olhou para a frente e viu o mar
escuro, calmo naquela noite de ver�o. Parou arfante, e Mozart conseguiu
alcan��-lo.

� Fique longe de mim! � berrou aos prantos, andando para tr�s.
� Romero, por favor, espere. O que foi que fiz?
� N�o se aproxime de mim, sua bicha nojenta!
� Mas o que � isso? Por que est� me ofendendo?
� N�o � isso o que voc� �? Uma bicha nojenta?
O outro olhou-o com ar magoado e respondeu lac�nico:
� N�o.
� Mentiroso! Por que me trouxe aqui, ent�o?
� Pensei que pud�ssemos ser amigos.
� Aqui? Na praia? Longe de casa? Igualzinho ao outro!
� Que outro?
� N�o interessa! Voc� n�o tem nada a ver com minha vida!
� Ou�a, Romero, n�o sei o que aconteceu com voc�, mas n�o
� o que est� pensando.
� N�o estou pensando nada! Voc� � que est�! Voc� pensa que,
s� porque aceitei seu convite, sou igual a voc�. Mas n�o sou. Eu sou
homem, viu?
� Ningu�m est� dizendo o contr�rio.

� Mas voc� est� pensando. Sen�o, n�o teria me arrastado
para c�.
� Desculpe-me se tomei o �nibus sem o consultar. Mas pensei
que voc� tivesse visto que �nibus era.
� Sou muito distra�do para essas coisas. E voc� se aproveitou
para... para...
� Para o qu� ?
� Voc� sabe. N�o se fa�a de desentendido.
� N�o, n�o sei. N�o sei nem do que voc� est� falando. Voc�
me acusa, e nem sei de qu�.
� N�o sabe, n�o �? Vai me dizer que n�o ficou me olhando
esquisito?
� Do mesmo jeito que voc� ficou me olhando.
� Eu!? Era s� o que me faltava!
Mozart deu um passo � frente, e Romero amea�ou:
� Fique onde est�. Sen�o, vou gritar at� que algu�m apare�a.
N�o vou deixar que fa�a aquilo comigo. De novo, n�o!
� Aquilo o qu�?
� Aquilo! Voc� sabe!
� N�o vou fazer nada com voc�.
� � mentira! Voc� � igualzinho a J�nior. Fala as mesmas coisas
que ele, ficou me olhando como ele tamb�m ficou. Depois, me
atraiu para um lugar deserto e... e... � Desatou a chorar convulsivamente,
e Mozart tentou aproximar-se novamente, mas Romero
reagiu como da outra vez: � N�o! N�o chegue perto de mim!
Mozart estacou. Agora estava come�ando a entender. Sentou-
se na areia e dobrou os joelhos. Aguardou alguns instantes at� que
Romero se acalmasse e falou com voz pausada:

� Ou�a, Romero, n�o sei quem � esse J�nior nem o que ele fez
a voc�. Mas posso imaginar...
� Ah! Voc� pode, n�o �? Porque faz as mesmas coisas!
� Est� enganado. H� pouco, voc� me perguntou se eu era
uma bicha nojenta...
� E voc� ainda teve coragem de dizer que n�o.
� Porque n�o sou. Se voc� quer saber se sou, bem, homossexual,
sou. � isso o que sou. S� isso. N�o sou nojento. Sou uma pes

soa decente e jamais faria nada contra sua vontade. Nem a voc�,
nem a quem quer que seja.
Romero fitou-o espantado.

� Voc�... � homossexual? O qu�? Um veado?
� Se voc� prefere chamar assim... Eu n�o me importo. Mas
n�o sou nojento. E n�o tenho culpa de ser o que sou.
� Meu pai diz que todo veado � nojento.
� Seu pai � um homem muito preconceituoso. N�o o culpo;
ele � como todo mundo. Mas voc� n�o precisa ser igual a ele. Pode
ser do jeito que �.
� Eu n�o sou veado...
� Eu n�o disse que �. Mas, se for, �timo. Para mim, pelo menos,
porque gostei muito de voc�. Mas, se n�o for, n�o faz mal. Vou
ser seu amigo assim mesmo. Podemos ir ao cinema, � lanchonete,
mas sem susto. N�o vou atacar voc�. N�o sou nenhuma besta nem
nada parecido.
� N�o vai querer... me... violentar?
� Violentar? Deus me livre! Detesto viol�ncia.
� Ent�o, por que me trouxe aqui?
� Para ser seu amigo, j� disse.
� Voc� n�o quer ser s� meu amigo.
� � verdade. Posso at� querer algo mais. Mas somente se voc�
quiser. Sen�o, vamos apenas ser amigos mesmo. N�o sou tarado. Vou
respeitar voc� e nunca mais tocarei nesse assunto nem insinuarei
nada. S� o que pe�o � que me respeite tamb�m.
Agora mais calmo, Romero aproximou-se e sentou-se ao lado
de Mozart. Ele parecia sincero, e seu semblante demonstrava uma
serenidade que Romero n�o conhecia.

� Voc� gostou de mim? � perguntou Romero timidamente.
� J� disse que gostei. E pensei que voc� tivesse gostado de mim
tamb�m. Mas, se me enganei, pe�o que me perdoe.
� Voc�... n�o se enganou... � tornou Romero, a voz cada vez
mais sumida.
Mozart sentiu imensa emo��o. Teve vontade de tom�-lo nos
bra�os e beij�-lo, mas n�o queria assust�-lo. Estava na cara que Romero
estava ainda muito confuso, nem sabia que era homossexual.
Mas era. Apesar de seus dezessete anos, Mozart j� era um rapaz ex



periente no assunto e reconhecia um homossexual a dist�ncia,
mesmo que o outro n�o se reconhecesse. Era o que acontecia com
Romero. Muito novinho, n�o sabia ainda lidar com seus instintos.
E o pai n�o ajudava. Pelo visto, era um homem preconceituoso e
cr�tico, e condenava as pessoas antes mesmo de as conhecer, apenas
com base em seu comportamento externo. Se Silas soubesse que
Mozart era homossexual, apagaria toda a boa impress�o que fizera
dele, de sua educa��o, de sua simpatia, de sua m�sica, e trataria logo
de tach�-lo de pessoa ruim e indesej�vel.

� Fico feliz � balbuciou Mozart, por fim. � Assim, podemos
nos conhecer melhor.
� Olhe, Mozart, gostei muito de voc�, mas n�o sou igual a
voc�. Sou diferente.
� Ent�o, por que gostou de mim?
� Porque voc� � um cara legal.
� S� por isso?
� S�.
Mozart deu um suspiro profundo e tornou conformado:
� Est� bem. S� voc� para dizer o que sentiu.
Passaram alguns minutos em sil�ncio e ficaram observando a espuma
branca das ondas sobressaindo-se no negrume do mar. Olhando
pelo canto do olho, Mozart notou l�grimas nos olhos de Romero,
mas tinha medo de perguntar por que ele estava chorando.

� Tenho medo... � falou Romero de repente. � Medo de mim
mesmo.
� Por qu�?
� Tenho medo de descobrir em mim coisas que n�o gostaria
de descobrir.
� O qu�, por exemplo?
� Voc� sabe. J� passou por isso.
� �, passei. Mas, em meu caso, as coisas foram mais f�ceis.
Eu n�o tenho um pai machista nem encontrei nenhum J�nior em
minha vida.
� Como voc� sabe de J�nior? � revidou Romero em tom
agressivo.
� Foi voc� quem falou.
� Eu?
61


� Disse que sou igualzinho a ele.
� Voc� n�o �...
� Que bom. N�o sei quem � J�nior, mas, seja quem for, quero
que saiba que n�o sou como ele.
Agora foi a vez de Romero suspirar, um suspiro doloroso, carregado
de lembran�as dif�ceis.

� J�nior foi o cara que... que... me... o cara que...
Era dif�cil para Romero tocar no assunto, e Mozart compreendeu
isso. Apertou novamente sua m�o e, com voz doce, finalizou:

� N�o tem import�ncia. N�o precisa falar, se n�o quiser.
Mozart levantou-se e puxou o outro pela m�o, caminhando com
ele pela praia. Mesmo sem admitir, Romero sabia que estava feliz.
A exce��o de Judite, Mozart fora a �nica pessoa que o tratara bem,
que realmente parecia se importar com ele. Romero sorriu intimamente
e buscou a m�o de Mozart a seu lado. Apertou-a gentilmente
e sorriu. Estava realmente feliz.

Daquele dia em diante, Mozart e Romero, sempre que podiam,
ficavam juntos. Como estavam de f�rias, tinham bastante tempo
para se divertir. Os pais de Mozart haviam voltado para Bras�lia, deixando
o menino com os tios at� o final da esta��o. Silas parecia satisfeito
com aquela amizade, ainda mais porque Mozart sempre tocava
no nome de uma ou outra garota em sua frente, levando-o a
crer que estavam saindo com elas. Mas eles sa�am quase sempre sozinhos.
Vez ou outra, Judite e Alex acompanhavam-nos; outras vezes,
tinham de fazer passeios em fam�lia, mas ningu�m percebia nada
entre eles. Para todos os efeitos, Romero e Mozart eram garotos e
camaradas, dividindo juntos as aventuras das f�rias de ver�o.

� Quando voc� vai embora? � perguntou Romero a Mozart,
enquanto jogavam cartas na cama do primeiro.
� Ainda falta muito.
� Mas quando?
� No fim de fevereiro. Fico em Bras�lia at� julho e depois parto
para Salzburgo.
� Como ser� l�?
� Frio.
Ambos riram, e Mozart anunciou, estirando as cartas na cama:

� Bati.
Ouviram batidas na porta, e No�mia entrou com uma bandeja
de sandu�ches e refrigerantes.

� Voc�s v�o sair hoje? � perguntou, depositando a bandeja
perto deles.
� N�o sabemos ainda, m�e. Por qu�?
� Porque parece que vai chover.
� Chuva de ver�o � disse Mozart. � Passa logo.
� N�o sei, n�o. Parece que est� armando um temporal.
Efetivamente, a chuva desabou cerca de meia hora depois e
durou quase quarenta minutos. Quando estiou, Silas chegou do
trabalho, todo molhado, indagando pelos filhos.

� Judite est� no quarto escutando m�sica � esclareceu No�mia.
� E Romero est� jogando cartas com Mozart.
� Gra�as a Deus! Parece que as ruas est�o alagadas por a�. �
bom que ningu�m saia hoje.
� E Mozart?
� Pode dormir no quarto de Romero.
Foi, ele mesmo, dar a not�cia aos meninos.
� Acho que minha tia vai ficar preocupada � objetou Mozart,
internamente saltitando de felicidade.
� Pode deixar que eu mesmo ligo para ela. Voc� dorme aqui
hoje e, amanh� cedo, vai para casa.
Foi uma felicidade. Os dois ouviram m�sica com Judite, jogaram
Banco Imobili�rio, brincaram de m�mica, assistiram a televis�o.
Vendo os dois juntos, Judite punha-se a observ�-los. Havia algo de
estranho naqueles dois. Nem o pai, nem a m�e, nem Alex notaram
nada. Mas ela percebia. Havia em seus gestos um qu� de intimidade
que n�o era comum entre amigos. Os dois viviam se tocando e
se esbarrando de uma maneira fora do comum. Al�m disso, havia
os olhares. Eles eram cuidadosos na presen�a dos pais, mas pareciam
n�o se importar muito com ela. E Judite percebia que a excessiva
camaradagem existente entre eles ia al�m de uma simples amizade.

Mas Romero estava feliz, ela reconhecia. Fosse o que fosse que
estivesse acontecendo entre eles, estava fazendo bem ao irm�o. E
ver a felicidade dele era o suficiente para Judite n�o questionar
nem sugerir nada. H� muito desconfiava de Romero, mas ele nun



ca lhe dissera nada. Agora, por�m, tinha quase certeza. E o pai deveria
ser cego para n�o notar. Logo ele, que era t�o machista, t�o
preocupado com a virilidade, com sua no��o distorcida do homem
de verdade.

Judite n�o se importava. Temia apenas as conseq��ncias. Se alguma
coisa estivesse acontecendo entre Romero e Mozart, era muito
perigoso. Se o pai descobrisse, ela nem queria pensar. Por isso,
tinha medo. Medo da rea��o do pai, das pessoas em geral. Ser� que
Romero ag�entaria ser rejeitado pela fam�lia e pela sociedade? Amigos,
ele n�o tinha, a n�o ser ela e, agora, Mozart. E Alex? Ser� que
ia aceitar? Ela nunca havia conversado sobre isso com ele, mas tinha
quase certeza de que Alex n�o aceitaria uma coisa daquelas. Se
� que havia mesmo alguma coisa entre Romero e Mozart.

Depois do jantar, os tr�s ficaram ainda um pouco mais vendo
televis�o, at� que Judite, bocejando, anunciou que ia dormir.

� Ser� que Mozart n�o quer tomar um banho? � indagou
No�mia, toda sol�cita.
� Eu gostaria, sim. Mas n�o trouxe nenhuma roupa.
� Isso n�o � problema� respondeu Romero. � Posso lhe emprestar
um short e uma camiseta.
� Isso mesmo � concordou Silas. � No�mia, providencie
uma toalha limpa para o menino.
No�mia deu a toalha para Mozart e voltou para a sala. Sentou-
se ao lado do marido e continuou assistindo � TV. Pouco depois, Mozart
reapareceu, cabelos molhados, vestindo as roupas de Romero.

� Tamb�m vou tomar banho � anunciou o outro, encaminhando-
se para o banheiro.
Demorou mais que o habitual. Fazia muito calor, e a presen�a
de Mozart desconcertava-o. Quando saiu do banheiro, a casa estava
quase silenciosa, � exce��o da televis�o, que tocava baixinho a
can��o de um filme. Romero espiou da porta e viu que apenas o pai
estava na sala, cabeceando em frente ao aparelho ligado. Sorrindo,
deu meia-volta e foi para seu quarto.

A m�e havia colocado um colchonete aos p�s de sua cama,
onde Mozart estava deitado, bra�os cruzados embaixo da cabe�a. Os
cabelos, agora secos, esvoa�avam toda vez que o vento do ventilador
os atingia. Romero engoliu em seco e entrou.


� Est� com sono? � perguntou a Mozart.
� N�o. Acho que hoje n�o conseguirei dormir.
� Por qu�? Est� sentindo alguma coisa?
Ele sorriu e n�o respondeu. Levantou-se do colchonete e foi
sentar-se na cama, ao lado de Romero.

� Est� fazendo muito calor hoje � observou.
� �, sim.
Estavam os dois desconcertados. Ambos sentiam uma atra��o
irresist�vel um pelo outro, mas nenhum dos dois queria tomar iniciativa.
Romero, por medo e inseguran�a; Mozart, temendo assustar
e chocar o amigo. Mas o cora��o, muitas vezes, n�o consegue
conter o sentimento, assim como o medo n�o det�m a paix�o.
Num impulso genu�no, Mozart afastou os cabelos da testa de Romero
e, num segundo, pousou-lhe delicado beijo nos l�bios.

A princ�pio, Romero pensou em repeli-lo. Mas aquele beijo lhe
causava uma sensa��o t�o gostosa, um prazer nunca antes experimentado,
uma paz reconfortante, que Romero se deixou beijar. No
come�o, limitou-se a deixar-se beijar. Aos poucos, por�m, sentindo-
se confiante, passou a corresponder com ardor e, em breve, os
dois estavam se amando.

Tudo terminado, Mozart acariciou-o gentilmente e foi s� ent�o
que percebeu l�grimas nos olhos de Romero.

� Por que est� chorando? � perguntou aflito. � Por acaso o
magoei? Fiz algo de que n�o gostasse ou que o agredisse?
� N�o... E que voc� � t�o diferente! Diferente do que eu pensava.
Tudo com voc� � diferente. Diferente de J�nior...
� L� vem voc� de novo com esse tal de J�nior.
� Sinto muito. � que n�o consigo me esquecer de que foi J�nior.
.. � Calou-se envergonhado.
� Por que n�o me conta logo o que ele lhe fez?
� N�o sei se poderia. � vergonhoso.
� Sente vergonha do que fizemos hoje?
� N�o sei... N�o. Sinto medo.
� Melhor sentir medo do que vergonha. O medo � natural,
porque voc� � diferente, e ningu�m gosta de ser diferente. Por isso,
vem o medo da rejei��o. Mas, se voc� sente vergonha, isso signifi65



ca que voc� n�o consegue se aceitar e acha que o que est� fazendo
n�o � certo.

� E�?
� Por que n�o � ?
� Porque n�o � natural.
� E o que � natural?
� N�o sei. Acho que normal � um homem transar com uma
mulher.
� Isso pode ser o mais normal. Mas n�o � a �nica coisa natural.
Natural, para mim, � fazer tudo aquilo que o cora��o manda, porque
o cora��o jamais engana ningu�m.
Romero quedou pensativo por alguns segundos e depois acrescentou:


� Voc� tem um jeito de pensar sobre as coisas! Como pode
ser assim?
� Sei l�. Acho que � porque eu sempre me assumi.
� Sempre? Contou a todo mundo?
� Isso � outra coisa. Para me assumir, n�o preciso me expor,
at� porque n�o tenho necessidade de ter a aprova��o de ningu�m.
Eu me assumi porque aceito o que sou e n�o me sinto nem culpado
nem uma aberra��o. Sou apenas diferente em uma particularidade,
o que n�o significa que seja melhor ou pior do que ningu�m.
� E seus pais? Eles sabem?
� Creio que desconfiam. Mas nunca me perguntaram nada.
� E se perguntarem?
� Vou dizer a verdade. E tenho certeza de que eles v�o compreender.
Minha m�e era meio hippie quando conheceu meu pai, que
� um artista.
� Seu pai tamb�m � artista?
� Por que acha que tenho este nome? A m�sica � um dom de
fam�lia.
� Voc� tem sorte. Quisera eu ter pais iguais aos seus. Mas meu
pai � superpreconceituoso, e minha m�e n�o abre a boca para dizer
nada. Morre de medo de contrari�-lo.
� E sua irm�?
�� Judite � diferente. � minha amiga, e acho que tamb�m en

tenderia. Uma vez, ela veio at� com uma conversa de que gosta de
mim de qualquer jeito, mesmo eu sendo diferente.

� Isso � muito bom. E voc�? J� teve outras experi�ncias al�m
desta?
� N�o... quero dizer... houve J�nior... Mas ele n�o conta.
� Por qu�?
� Porque ele foi... foi... violento.
� O que ele lhe fez?
� Quer mesmo saber?
� Se n�o quisesse, n�o estaria perguntando.
� Ele... ele... me... ele me... violentou...
� Como?
Romero baixou os olhos e chorou de mansinho. Abriu a boca
para falar e contou tudo, desde a troca de olhares no cinema at�
quando o pai lhe proibira de tocar no assunto. Mozart foi bastante
compreensivo e abra�ou o outro com ternura, dizendo-lhe palavras
reconfortantes e amistosas. Romero, mais uma vez, sentiu-se feliz.
Feliz e seguro. Tudo que queria era algu�m como Mozart. E ele n�o
queria mais se separar de Mozart. Nunca mais.


67



cap�tulo


partir daquela noite, passou a ser costume Mozart
dormir na casa de Romero, e os dois ficavam acordados at� tarde,
jogando cartas ou assistindo a televis�o, at� que Silas e Noemia fossem
dormir. Depois, tudo em sil�ncio, os dois se trancavam no
quarto e acabavam quase sempre se amando, pegando no sono altas
horas da madrugada.

� Acha certo o que estamos fazendo? � indagou Mozart,
certa vez.
� Como assim? N�o v� me dizer que mudou de id�ia e que agora
acha que devemos virar heterossexuais � gracejou o outro.
� N�o me refiro a isso, mas sim ao fato de estarmos transando
dentro de sua casa. Seu pai pode ser um careta, mas sempre me
tratou bem e confia em mim.
Romero ficou pensativo. Mozart n�o deixava de ter raz�o, mas

o que poderiam fazer?
� N�o temos idade bastante para entrar num motel � arriscou
Romero. � Por isso, n�o vejo outro jeito.
� Ainda assim, n�o me sinto bem. Parece uma trai��o.
� N�o exagere. N�o temos culpa se nos amamos e n�o temos
um lugar s� para n�s. Quando eu ficar maior, vou me formar e n�s
vamos viver juntos.
� Voc� se esquece de que vou para Salzburgo?
� � verdade � tornou Romero, pensativo. � Quase havia
me esquecido... Mozart?
69



� Hum?
� O que vai ser de mim quando voc� for embora?
� Vai arranjar outra pessoa � respondeu Mozart, hesitante.
� N�o quero outra pessoa. Quero voc�. Voc� n�o me quer?
� � claro que quero.
� Ent�o, o que vamos fazer? Em julho, voc� parte para a �ustria.
E eu? Como vou me arranjar por aqui sem voc�?
� N�o sei, Romero, nem quero pensar nisso. D�i, s� de imaginar
o dia em que teremos de nos separar.
� Voc� tem mesmo de ir?
� Tenho. E um sonho antigo... E � muito dif�cil arranjar uma
bolsa como a que eu arrumei.
� N�o vai sentir minha falta?
� Vou.
� Pois, ent�o, n�o v�.
Mozart fitou Romero com ang�stia. Estava realmente gostando
dele, e uma separa��o seria bastante dolorosa. Mas como abandonar

o sonho de toda uma vida? Ambos eram ainda muito jovens, mas Mozart
j� definira o que queria fazer de sua vida. Amava a m�sica e, desde
pequenino, via-se como solista de uma grande orquestra.
� N�o posso fazer isso � desabafou com ang�stia. � � minha
vida, minha carreira que est� em jogo. Mais do que isso, � um sonho.
Meu sonho, aquilo por que me esforcei e lutei durante v�rios
anos. A carreira de pianista n�o � f�cil, Romero. S�o necess�rias v�rias
horas de estudo di�rias para ser um bom m�sico.
� Sua carreira � assim t�o importante?
� �.
� Mais do que eu?
� Voc� est� sendo injusto. N�o d� para comparar as coisas.
� Desculpe se estou sendo insistente. Mas eu o amo tanto...
� Ser� mesmo? Ser� que n�o est� apenas deslumbrado com o
mundo em que o introduzi?
� Como pode dizer uma coisa dessas? Sei bem o que sinto, e
n�o � deslumbramento. � amor.
� Eu sei. N�o queria ofend�-lo. Mas n�o sei o que fazer.
� Por favor, Mozart, pense bem. N�o posso viver sem voc�. E,
se voc� me ama, n�o me deixe.

Durante alguns segundos, Mozart permaneceu de olhos fechados,
segurando a vontade de chorar.

� Voc� podia ir comigo � considerou.
� Eu? Como? Meu pai jamais permitiria.
� E se cont�ssemos tudo a ele? Se nos explic�ssemos e diss�ssemos
que estamos apaixonados? Ele teria de entender.
� Voc� deve ter ficado maluco! Meu pai nos mataria. Ou me
expulsaria de casa. De qualquer forma, eu n�o poderia ir. Sou menor,
lembra-se? Como espera que eu saia do Pa�s sem uma autoriza��o?
Cada vez mais angustiado, Mozart abra�ou-se a Romero e suplicou
com voz chorosa:

� N�o pensemos mais nisso agora. Vamos aproveitar os momentos
que ainda temos juntos. Quando chegar a hora, veremos o
que fazer.
Romero n�o insistiu. Apertou a m�o do outro, e Mozart desceu
da cama para o colchonete. Pouco depois, ambos estavam adormecidos.


Quando acordaram, notaram o ar de contentamento de Silas,
mas Romero n�o quis perguntar do que se tratava. O pai, por�m,
logo ap�s a sa�da das mo�as, apertou o bra�o do filho e anunciou
animado:

� Tenho uma �tima surpresa para voc�s hoje.
� S�rio? � tornou Mozart, curioso. � O que �?
Silas chegou o corpo para a frente e olhou para os lados, certificando-
se de que nem a mulher nem a filha poderiam ouvi-lo.

� Falei com Domitila ontem. E adivinhem s�! Ela convidou
uma amiga, e ambas estar�o esperando voc�s hoje � noite para uma
festinha particular. S� os quatro.
� O qu�?! � Romero estava horrorizado e quase se delatou,
mas Mozart interveio a tempo de salvar a situa��o:
� Eu gostaria muito, seu Silas, mas n�o tenho dinheiro.
� E quem falou em dinheiro? N�o se preocupe, � tudo por minha
conta.
� N�o sei se devo...
� Ora, vamos, meu rapaz, o que � isso? N�o fa�a cerim�nia comigo.
Domitila � uma mulher e tanto! Romero j� lhe falou sobre
ela, n�o falou?

� Falou.
� Pois ent�o? N�o se acanhe. Vamos, Romero, diga a ele
quanto voc� gostou. Vamos, diga.
O menino engoliu em seco e obedeceu balbuciante:

� � verdade... gostei muito... Domitila �... sensacional...
� Viu s�?
� Mas, seu Silas...
� Nada de "mas". Se voc� n�o aceitar, vou ficar ofendido.
N�o v� me fazer uma desfeita dessas. Ou ser� que voc� n�o gosta
dessas coisas? � ironizou, piscando um olho para Mozart.
� Gosto...
� J� experimentou? E claro que j�. Voc� j� � um homem.
Terminou batendo-lhe com for�a nas costas. Mozart teve de se
esfor�ar para n�o ter uma crise de tosse, e Silas levantou-se, indo
para a sala ler o jornal.

� E agora? � indagou Romero, apavorado.
� E agora, nada. Vamos fazer o que ele mandar.
� Voc� ficou maluco? Da primeira vez, j� foi dif�cil conseguir.
Agora, ent�o, vai ser imposs�vel.
� E quem disse que precisamos conseguir?
� Como assim? Se n�o conseguirmos, meu pai vai desconfiar.
� Deixe comigo � finalizou Mozart, misterioso. � Agora,
vou at� em casa. Mais tarde, volto para irmos at� a casa de... como
� mesmo o nome?
� Domitila.
� Isso, Domitila.
Saiu apressado, deixando Romero entregue a um quase desespero.
Quando chegou � casa de seus tios, Alex deu-lhe o recado de
que os pais haviam ligado. Mozart apanhou o telefone e ligou de volta.
Precisava de algum dinheiro, e o pai consentiu em lhe dar. Era
s� pedir ao tio, e ele enviaria o dinheiro pelo banco.

Mais tarde, quando chegou de volta, Silas e Romero j� o estavam
esperando para irem juntos � casa de Domitila. Mozart estava
sorridente e confiante; Romero, acabrunhado e receoso. Silas, por
sua vez, ia falando nas maravilhas que Domitila era capaz de fazer,
at� que concluiu:

� Faz muito tempo que trouxe Romero aqui, e ele nunca se

interessou em voltar. Domitila falou que ele � um garanh�o, sabia,
Mozart?

� Sabia. Romero me contou.
� Mas um garanh�o muito t�mido. Se eu deixasse por conta
dele, aposto como nunca mais veria mulher novamente. � ou n�o
�, Romero?
Romero estava apavorado. Jurara a si mesmo que jamais passaria
por aquilo novamente. Ao avistar a casinha branca de janelas
azuis, pensou que iria vomitar. Mas o olhar confiante de Mozart
lhe deu coragem de seguir avante, sem dizer uma palavra.

Chegaram. Silas bateu e Domitila veio atender. Recebeu-os
com um sorriso cordial e frio e f�-los entrar. Sentada no sof�, a amiga
olhava-os com ar cr�tico. Como da outra vez, Domitila tratou de
despachar Silas, recomendando que s� voltasse dali a duas horas.
Assim que a porta se fechou, Domitila investiu contra Romero e a
outra se acercou de Mozart, tentando beijar-lhe o pesco�o.

� Como � seu nome? � indagou Mozart.
� �rsula � respondeu a mo�a, sem muito interesse.
� Muito bem, �rsula, o que acha de voc� e Domitila ganharem
uns trocados a mais?
Essa pergunta agu�ou a curiosidade e a gan�ncia de Domitila,
que soltou Romero e se aproximou dele, perguntando com avidez:

� Por qu�? O que pretende? N�o v� me dizer que � algum tipo
de s�dico, porque �rsula e eu n�o gostamos de apanhar.
� E quem falou em apanhar?
� O que voc� quer?
� Nada.
� Se n�o quer nada, por que quer nos pagar a mais? � insistiu
�rsula. � O que quer que fa�amos?
� Nada, j� disse.
� Qual �, garoto? � revidou Domitila, zangada. � Deixe de
brincadeiras conosco. Se quer algo especial, v� logo falando.
� Quero que voc�s nos deixem em paz � disparou Mozart. �
N�o estamos a fim de transar.

� O problema � de voc�s. Silas nos paga pelo nosso tempo, mas
vou ser obrigada a dizer a ele que voc�s n�o quiseram. � o nosso trato,
e n�o quero perder a confian�a de um �timo cliente.

� Sei disso. Mas ele n�o precisa saber. Basta voc�s dizerem que
correu tudo bem. E ficarem de boca fechada.
Domitila estava come�ando a entender. Quando transara com
Romero, percebera que o garoto n�o se interessara muito e se esfor�ara
ao m�ximo para conseguir uma ere��o. Ela bem que desconfiara,
mas n�o tinha certeza, e tamb�m n�o lhe interessava muito.
Desde que Silas lhe pagasse, estava tudo bem.

� Voc�s por acaso s�o veados? � foi logo perguntando.
� Somos � respondeu Mozart, sem titubear. � E � por isso que
estamos lhe oferecendo uma graninha a mais... Para que voc�s nos
deixem em paz e n�o digam nada.
�rsula desatou a rir, mas Domitila cortou com veem�ncia:

� Onde est� o dinheiro?
Mozart retirou as notas do bolso e exibiu-as a Domitila, que as
apanhou e contou.

� Isso basta? � perguntou ele.
� Basta.
Contou novamente as c�dulas e passou metade a �rsula, que
as apanhou rapidamente. Em seguida, sentaram-se no sof�, e Domitila
ligou a vitrola.

� Vamos dan�ar, pelo menos � convidou. � Assim, quando
Silas chegar, n�o vai perceber nada.
Romero assistia a tudo boquiaberto. Estava espantado com a
ast�cia e a seguran�a de Mozart. Levantou-se aturdido e foi dan�ar,
mas, ao inv�s de tomar Domitila como par, dirigiu-se a Mozart e p�s-
se a dan�ar com ele. Domitila e �rsula riram e deram de ombros,
indo sentar-se no sof� com um copo de bebida na m�o.

� Obrigado � sussurrou Romero ao ouvido de Mozart.
� N�o disse que escapar�amos desta?
Riram tamb�m e continuaram a dan�ar, at� que Silas voltou.
Domitila recebeu-o novamente, e ambas fizeram muitos elogios ao
desempenho de Romero e Mozart. Silas ficou satisfeito e recompensou-
as regiamente. Escutara o que queria escutar.


altava pouco menos de um m�s para o fim das f�rias, e
Mozart queria aproveitar ao m�ximo sua estada no Rio de Janeiro.
Chegou cedo � casa de Romero, e logo pela manh� foram � praia.
Na volta, Mozart foi para casa, e Romero entrou para tomar banho.
Iriam almo�ar e tinham combinado de ir ao cinema com Alex e Judite.
Por volta das cinco horas, Alex chegou com Mozart. Depois
dos usuais cumprimentos, foram todos ao cinema.

Ao atravessar a roleta da entrada, uma tristeza perpassou o olhar
de Romero, e Mozart indagou ao seu ouvido:

� Aconteceu alguma coisa?
� N�o. E que foi neste cinema que conheci J�nior.
� E da�? Provavelmente, ele n�o est� aqui hoje. E, se estiver,
voc� n�o tem com o que se preocupar. Estamos juntos.
Era verdade. Desde o incidente com J�nior, Romero nunca mais
fora ao cinema. Agora, por�m, em companhia de Mozart, sentia-se
seguro e confiante. Deixou de lado o medo e entrou decidido.
Como ainda era cedo, tiveram de esperar. A sess�o s� come�aria �s
seis horas, e eles ainda tinham tempo suficiente para comprar balas
e pipocas.

No balc�o de doces, Romero escolhia um chocolate quando ouviu
uma voz familiar atr�s de si:

� Ora, ora, se n�o � a bichinha enrustida que eu vejo por aqui.
Sentiu saudade?
Romero voltou-se assustado, e todos os seus temores se confir



maram. Era realmente J�nior quem estava ali, parado � sua frente,
um sorriso debochado pendurado no rosto.

� Deixe-me em paz � falou Romero, agressivo.
� Ui! � debochou o outro. � A mocinha ficou valente, foi?
� O que quer de mim, J�nior? J� n�o basta o que me fez?
� Ah! Ainda se lembra de meu nome? � claro que se lembra.
Depois daquele dia, n�o poderia esquecer. Voc� gostou, n�o gostou?
Fale a verdade.
Olhando por cima do ombro de J�nior, Romero avistou os
outros em animada conversa, ningu�m se dando conta do que lhe
acontecia. At� que Mozart, passando os olhos ao redor do sal�o, deu
de cara com seu olhar de s�plica e, ao ver que ele conversava com
outro rapaz, imediatamente desconfiou de quem se tratava. Pediu
licen�a ao primo e foi em sua dire��o.

� Romero � chamou, parando a seu lado. � Voc� n�o vem?
A sess�o j� est� para come�ar.
Mozart lan�ou um olhar de desafio para J�nior, que respondeu
com outro, amea�ador.

� Parece que seu namorado est� com ci�me � ironizou J�nior.
� E � para estar. Duvido que seja como eu.
� Tenho certeza de que n�o sou � respondeu Mozart firmemente.
� Sou uma pessoa decente, ao passo que voc� n�o passa de
um oportunista covarde e nojento, que se aproveita da ingenuidade
de criancinhas para conseguir o que nenhum homem de verdade
ir� lhe dar.
Puxou Romero pelo bra�o e saiu com ele em dire��o a Judite
e Alex, deixando J�nior vermelho e furioso.

� Aquele � J�nior?
Romero limitou-se a assentir. Tinha vontade de sair correndo,
mas a firmeza da m�o de Mozart ao redor de seu bra�o deu-lhe tranq�ilidade.
Rapidamente, chegaram at� onde os outros estavam.

� Por que demorou tanto? � indagou Judite. � E cad� as
balas?
� A fila estava muito grande � apressou-se Mozart em responder.
� �amos perder o come�o do filme.
Alex, lendo o programa de filmes em cartaz, nada percebeu, mas
Judite, olhando para o balc�o de balas, n�o viu nenhuma fila que


pudesse causar a perda do in�cio da sess�o. Ainda mais porque antes
havia trailers, an�ncios, jornal, curta-metragem e tantas outras
coisas. N�o disse nada, por�m. Avistou um rapaz parado perto do
balc�o, que n�o conhecia, mas, a julgar pelo olhar de �dio que lan�ava
para Mozart e Romero, devia ser ele o motivo da retirada dos
dois. Achou aquilo estranho, mas guardou sil�ncio. N�o queria encher
o irm�o de perguntas ali, na frente de todo mundo.

A sess�o transcorreu normalmente. Quando sa�ram, J�nior estava
parado na cal�ada, fingindo que esperava o �nibus. Judite percebeu
que Mozart o encarava e Romero se encolheu todo, cabe�a
baixa, evitando olhar para o rapaz. Quando passaram por ele, J�nior
deu dois passos adiante e esbarrou prop�sitalmente em Mozart, falando
em tom de sarcasmo:

� Desculpe-me. Fiquei distra�do e n�o o vi. As coisas que a
gente n�o faz sem querer...
Passou adiante feito uma bala.

� Voc�s conhecem esse rapaz? � quis saber Judite.
� N�o � respondeu Romero.
� � um idiota qualquer � acrescentou Mozart.
� Por que tudo isso? � tornou Alex. � Foi s� um esbarr�o.
� Tem raz�o, Alex � concordou Mozart. � Foi s� um esbarr�o.
Vamos embora.
Partiram para a casa de Romero. Sem que percebessem, J�nior
os seguira. Queria saber onde ele morava. Notou que era em uma
casa com ar distinto, numa rua familiar, e sorriu intimamente.
Aquele Romero devia ser filhinho de papai, e ele e seu namoradinho
iam ver s� uma coisa. Tomou nota do endere�o e foi embora.
Daria um jeito de se vingar daqueles dois.

Como j� era tarde, Mozart foi para casa com Alex. Depois que
eles sa�ram, Judite foi se trocar e, j� de camisola, foi bater � porta
do quarto de Romero.

� Est� acordado? � perguntou ela, aproximando-se da cama.
� Estou.
Sentou-se a seu lado e tomou sua m�o. Acariciou seu rosto, alisou
seus cabelos e beijou sua testa.

� Sou sua irm�, Romero � sussurrou. � Amo voc� imensamente.
Sabe disso, n�o sabe?
77


- Sei.
� Acima de tudo, sou sua amiga. Voc� pode confiar em mim.
Romero n�o sabia aonde ela queria chegar, mas come�ou a desconfiar
daquela conversa macia.

� O que est� querendo, Judite?
� N�o estou querendo nada. Talvez voc� � quem queira desabafar.
� N�o tenho nada para desabafar.
� Tem certeza?
� Tenho.
� E aquele rapaz do cinema?
� O que tem ele?
� Vai repetir que n�o o conhece?
� N�o o conhe�o.
� N�o acredito em voc�. Vi o terror em seus olhos, o �dio nos
olhos dele e o desafio nos de Mozart. O que h�? Pensa que sou alguma
tonta?
Havia tanta ternura, tanta seguran�a, tanto amor na voz de Judite,
que Romero desatou a chorar. N�o ag�entava mais tanta press�o.
Vivia torturado por aquela lembran�a, uma lembran�a que o
amor de Mozart conseguira diminuir, mas n�o exterminar. E naquele
dia, ao ouvir a voz de J�nior no cinema e dar de cara com sua fisionomia
odienta, sentiu que todo o antigo pavor retornara.

� Ah, Judite...
Agarrou-se � irm� e chorou ainda mais, tentando engolir os
solu�os.

� O que houve, Romero? Por que est� assim?
� Papai vai me matar.
� Por qu�? O que voc� fez?
� Ele n�o quer que eu conte a voc�.
� O qu�? O que voc� n�o pode me contar?
� Judite � levantou-se e encarou-a, os olhos brilhantes �,
aquele rapaz �... um marginal... ele desgra�ou minha vida.
� Como? O que ele fez?
� Ele... ele... me violentou...
Judite n�o demonstrou surpresa. N�o sabia por qu�, mas aquilo
n�o a surpreendia. Esperou at� que ele lhe contasse tudo, e sen



tiu imensa revolta do pai. Aquilo n�o era jeito de tratar o pr�prio
filho. Fingir que nada havia acontecido era muita insensibilidade.

� Papai se sentiu muito envergonhado...
� E voc�, Romero, como se sentiu?
� Eu... eu...
N�o conseguiu terminar. Agarrou-se ainda mais � irm� e deu
livre curso �s l�grimas. Judite n�o fez mais perguntas. Abra�ou-o com
ternura e afagou seus cabelos. Em seu �ntimo, sabia como ele se
sentia. Percebia isso no jeito como ele e Mozart se tratavam. Mas
Romero estava angustiado. Aquelas lembran�as o haviam incomodado
sobremaneira, e ela n�o queria causar-lhe ainda mais transtornos
com perguntas indiscretas. Sentiu que, naquele momento, o que
ele mais necessitava era de amor, e por isso estreitou-o ainda mais.
N�o precisava fazer perguntas nem dizer nada. Bastava que ele sentisse
quanto era amado e querido.

No dia seguinte, o telefone tocou bem cedinho, ainda n�o eram
nem sete horas da manh�. No�mia estranhou, mas foi atender.

� Al�? � Ningu�m disse nada. � Al�? Quem �? Al�?
No�mia pensou que a liga��o havia ca�do, mas o som de uma
respira��o ofegante indicou-lhe que havia algu�m do outro lado
da linha.

� Hum... � gemeu a voz.
Assustada, No�mia desligou. Devia ser um trote, mas de muito
mau gosto. N�o prestou mais aten��o ao ocorrido e, mais tarde,
com a fam�lia toda reunida ao redor da mesa do caf�, o telefone tocou
de novo, e a pr�pria No�mia foi atender.

� Al�?
Novamente aquela respira��o. Aborrecida, No�mia fez sinal
para que Silas se aproximasse e, tapando o bocal com uma das
m�os, falou baixinho:

� Acho que � um trote.
Silas apanhou o telefone e disse com voz grave:
� Quem est� falando? O que deseja?
A voz deu um gemido, como se estivesse tendo um orgasmo, e
soltou uma gargalhada debochada. Desligou, e Silas pousou o fone
no gancho.


� Quem era? � perguntou Judite, nervosa.
� Algum palha�o � respondeu Silas. � N�o tem o que fazer.
A vida pela hora da morte, e ele a�, gastando dinheiro de liga��o �
toa, s� para passar trotes.
� O que ele disse? � perguntou Romero, fingindo displic�ncia.
� Nada. Ficou s� gemendo.
� Que tolice � recriminou No�mia. � Mas j� � a segunda vez
que ele liga hoje.
� � ? � retrucou Silas, curioso.
� �, sim. Ligou antes, bem cedo.
� � voz de homem ou de mulher? � quis saber Judite.
� N�o sei bem, mas parecia de homem. Ele n�o disse nada. S�
gemeu e riu, mas parecia uma gargalhada masculina. Por qu�? N�o
v� me dizer que � algu�m atr�s de voc�, Judite!
� De mim? Deus me livre! N�o conhe�o gente dessa esp�cie.
� Ai, meu Deus! � rogou No�mia. � Ser� que � algum tarado
de olho em nossa filha?
� N�o diga besteiras, mam�e! Deve ser algum idiota que n�o
tem mais o que fazer.
Mudaram de assunto. Cerca de meia hora depois, o telefone tocou
novamente. Silas correu a atender apressado, e l� estava o mesmo
gemido, a mesma gargalhada.

� N�o tem mais o que fazer, n�o, seu cretino? � xingou. � Por
que n�o vai arranjar uma mulher?
Bateu o telefone, com raiva. Do outro lado da linha, J�nior tamb�m
desligava, �s gargalhadas. Fora muito f�cil descobrir o telefone
daquele tolinho. Bastara anotar o endere�o e procurar na lista
telef�nica. Ele n�o sabia quem havia atendido �quelas liga��es
mas, pelo jeito e pela voz, deveriam ter sido a m�e e o pai de Romero.
�timo, pensou. Seu plano daria certo.

� �, meu amigo � disse em voz alta. � Vamos ver quem vai
rir por �ltimo.
Quando Mozart chegou, no final da tarde, encontrou Silas de
cara amarrada, demonstrando-se bastante aborrecido.

� Aconteceu alguma coisa, seu Silas? � perguntou cauteloso.
� Nada que mere�a seu tempo, meu rapaz � respondeu de for8O



ma cort�s. � Algum palha�o resolveu nos passar um trote. Fica ligando
de meia em meia hora, como se n�s n�o tiv�ssemos mais nada
para fazer.

� Um trote? E o que ele diz?
� Nada. Fica s� gemendo e rindo. Ah, se eu descubro quem �
o desgra�ado...
� Ainda acho que � algu�m de olho em Judite � considerou
No�mia.
� Pode ser. E � mais um motivo para me aborrecer. N�o quero
nenhum marginal dando em cima de minha filha.
Mozart n�o fez nenhum coment�rio. Romero chegou em seguida
e chamou-o, levando-o para o quarto de Judite. Fechou a porta,
e os dois foram se sentar perto dela.

� Que hist�ria � essa de trote? � questionou Mozart.
� Algu�m est� ligando aqui para casa desde cedo � esclareceu
Judite. � N�o diz nada. Geme e d� gargalhadas. O pior � que
meu pai pensa que � comigo.
� E �?
� N�o. Romero e eu estamos desconfiados de que seja J�nior.
Mozart olhou para Romero com ar de d�vida, e ele tratou logo
de explicar:

� Contei a Judite sobre J�nior. Ela precisava saber.
� Fez bem � concordou Mozart, percebendo que aquilo fora
o m�ximo que ele contara. � Mas ser� que � ele mesmo?
� E bem poss�vel. Ele pode ter nos seguido ontem e descoberto
nosso telefone no cat�logo.
� O que ser� que ele quer?
� N�o sei. Queria perguntar eu mesma, mas papai n�o deixa
mais ningu�m atender o telefone. Est� danado da vida com esse
sujeito.
� Ser� que J�nior ficou com raiva por causa de ontem, no
cinema?
� Deve ter ficado. Romero me contou como voc� lhe respondeu
� altura, e ele deve estar morrendo de raiva.
� Isso � perigoso � refletiu Mozart.
� Tamb�m acho � concordou Judite prontamente. � Ele
pode estar pensando em lhes fazer algum mal.
8I


� Que tipo de mal?
� Dar-lhes uma surra, sei l�. Uma pessoa que fez o que ele fez
a Romero � capaz de muitas outras coisas.
� Judite tem raz�o � aquiesceu Romero. � Ele pode estar nos
armando alguma cilada.
� De hoje em diante � aconselhou Judite �, � melhor que nenhum
dos dois saia sozinho.
� Isso � que n�o! � objetou Mozart. � N�o vou me curvar �s
amea�as de nenhum covarde marginal.
� Nem eu... � apoiou Romero, embora sem muita convic��o.
Mozart temia mais por Romero do que por ele. Ele sempre fora
destemido e audacioso, ao passo que Romero era um menino t�mido
e medroso. E J�nior sabia disso. Como era covarde, n�o seria de
espantar se ele procurasse Romero para algum tipo de vingan�a.

Mas a vingan�a de J�nior era bem outra. Estava mais interessado
em destruir a vida de Romero do que em lhe dar uma surra ou
mesmo mat�-lo. Ele conhecia bem aqueles garotos. Sentiam, desde
cedo, o desejo a corro�-los por dentro e ficavam aturdidos quando
percebiam que esse desejo n�o era o que eles esperavam. Ao inv�s
de se interessarem por garotas, como todos os colegas, voltavam
seus olhos para os meninos e se assustavam com seus pr�prios pensamentos.
N�o viam gra�a nas mocinhas. Gostavam mesmo era dos
rapazes bonitos e esbeltos, embora custassem a se dar conta disso.
At� que chegava algu�m mais experiente e lhes mostrava o caminho
do prazer, e eles passavam a n�o querer outra coisa.

Com Romero, n�o seria diferente. Depois do estupro que levara,
J�nior apostava que ele havia se descoberto sexualmente. Da�
para um namorado, era apenas um pulo. Fosse quem fosse o garot�o
que estava com Romero, J�nior tinha certeza de que n�o era apenas
um amigo. Era algo mais. Vira no jeito como o defendera, como
segurara seu bra�o, como falara com ele. Aqueles dois eram amantes,
tinha certeza.

S� que Romero era de fam�lia direita. Desde o primeiro dia, dera
para perceber. E o que diriam seus pais se soubessem que o filhinho
querido, deposit�rio de todos os seus sonhos e esperan�as, n�o passava
de uma bicha louca, um pederasta enrustido? Sim, porque
J�nior duvidava que os pais soubessem ou desconfiassem de algo.


� claro que eles sabiam que o filhinho n�o era mais intacto, que fora
violado por outro homem e que jamais seria o mesmo depois disso.
Mas, at� a�, eles podiam dar a desculpa de que Romero fora atacado
e violentado � for�a. Contudo, se descobrissem que Romero gostara
da experi�ncia, que sentira prazer na subjuga��o por outro homem,
o que iria acontecer? Seria a vergonha total, a humilha��o,

o esc�rnio e o desprezo, tanto da fam�lia, quanto dos amigos e da
sociedade. E era isso que Romero merecia por incitar seu amiguinho
emplumado a desdenhar de J�nior publicamente.
Com um sorriso de esc�rnio nos l�bios, J�nior apanhou o telefone
e ligou de novo. J� havia decorado o n�mero. Como das outras
vezes, foi o homem que atendeu, quem ele acreditava ser o pai
de Romero, Silas, que era o nome constante na lista telef�nica.
J�nior gemia e soltava gritinhos de prazer, terminando com aquela
gargalhada debochada. O homem ficava louco. Xingava e batia
o telefone, mas sempre tornava a atender. Estava curioso para
saber quem era.

� Seu porco! � esbravejou Silas, como de costume. � Por que
n�o nos deixa em paz? Se pensa que assim vai conseguir alguma coisa
com minha filha, est� muito enganado. Mato-o antes mesmo de
chegar perto dela.
Bateu o telefone, completamente transtornado, e J�nior redobrou
a gargalhada. O idiota ainda pensava que ele estava de olho
em sua filha! Ela at� que era bonitinha, mas ele n�o gostava de mulher.
Ligou de novo, e Silas atendeu:

� Al�! E voc�, seu cretino? Por que n�o d� uma de homem e
diz alguma coisa? � porque tem medo?
Para espanto e surpresa de Silas, a voz do outro lado, ao inv�s
de gemer, como de costume, fez um breve sil�ncio e respondeu, rouca
e baixa:

� N�o. N�o tenho medo de nada.
Num instante, Silas se recobrou do espanto e revidou:
� O que voc� quer? � com minha filha?
� N�o � foi a resposta lac�nica.
� O que quer, ent�o?
� Romero.
Desligou rapidamente, sem dar a Silas tempo de responder. Si

las tamb�m desligou e esperou para ver se o telefone ia tocar novamente,
mas ele permaneceu mudo. Ficou desconfiado. O que aquele
homem, gemendo e urrando como se estivesse tendo rela��es sexuais,
podia querer com seu filho? Se fosse com Judite, ele ficaria
furioso, mas conseguiria entender. Judite era uma mo�a muito bonita,
e n�o seria de espantar que tivesse despertado o interesse de
algum tarado ou man�aco. Mas com Romero...

Balan�ou a cabe�a, a fim de afastar aquela desconfian�a, e foi
at� o quarto do filho. Ele sa�ra com Mozart e ainda n�o havia voltado.
Nervoso, Silas voltou para a sala. Sentou-se no sof� e ligou a
televis�o, tentando prestar aten��o ao programa. Durante o resto
da tarde, permaneceu sentado junto ao telefone, � espera de que o
homem ligasse novamente. Mas J�nior, para agu�ar-lhe a curiosidade,
n�o telefonou mais o resto do dia.

Somente na tarde seguinte foi que ele tornou a ligar. Silas
atendeu ansioso, e J�nior foi logo dizendo:

� O senhor � o pai de Romero?
� Sou. Por qu�? O que quer com meu filho?
� O senhor sabe � riu debochado.
� N�o sei, n�o. N�o vejo o que um sujeito sujo como voc� possa
querer com um rapaz direito como meu filho.
� Direito? � gargalhou. � S� n�o v� quem n�o quer.
� Por qu�? O que est� querendo dizer?
� Pergunte a ele. Ou a seu amiguinho...
Desligou novamente. Silas n�o gostou nada do jeito como ele
pronunciara aquele seu amiguinho. Parecia que estava tentando lhe
dizer alguma coisa. Mas o qu�? Seria poss�vel que Romero e Mozart.
.. Abanou a cabe�a, dizendo a si mesmo que n�o, e ficou imaginando
que motivos poderia ter aquele homem para ligar para sua
casa e fazer insinua��es sobre o filho.

De repente, uma id�ia lhe ocorreu. Seria poss�vel que aquele
homem fosse o mesmo que violentara Romero? Sim, era bem poss�vel.
Na certa, descobrira onde ele morava e estava pensando em
atac�-lo novamente, s� para vici�-lo e alici�-lo para seu bando de
pederastas. Sim, s� podia ser isso! A essa certeza, soltou um suspiro
de al�vio. Romero n�o era culpado se aquele homossexual tarado
resolvera persegui-lo. S� que n�o conseguiria nada. Romero n�o


gostava daquelas coisas, sa�a-se muito bem com Domitila. De nada
adiantaria tentar vici�-lo naquela vida... Ou ser� que adiantaria?

J�nior n�o ligou mais naquele dia. Agora agia de forma diferente.
Se antes n�o dava descanso, causando a impaci�ncia de Silas,
agora fazia suspense, agu�ando-lhe a curiosidade e levando-o a
esperar e a desejar que ligasse. Queria saber mais.

Quando Romero voltou da rua, em companhia de Mozart, Silas,
gentilmente, pediu a este que fosse embora.

� N�o me leve a mal, Mozart � justificou �, mas � um assunto
de fam�lia. Amanh� voc�s se encontram de novo. Estou at� pensando
em lev�-los a Domitila novamente.
Mozart nem ligou para esse an�ncio. Estava mais preocupado
com o teor daquela conversa. Contudo, n�o tinha como ficar. Silas
pedira-lhe que sa�sse, e ele obedeceu. Depois que ele se foi, Romero
sentou-se ao lado do pai, todo tr�mulo, � espera do pior.

� Filho � come�ou pausadamente �, sei que eu mesmo lhe
pedi para nunca mais tocar nesse assunto, mas como � o nome do
rapaz que o atacou?
Romero quase caiu da cadeira. Podia esperar qualquer coisa do
pai, menos que ele perguntasse sobre J�nior. Recomp�s-se rapidamente
e respondeu inseguro:

� J�nior.
� S� J�nior?
� � s� o que sei.
� Voc� acha poss�vel que J�nior esteja nos passando esses
trotes ?
� Por qu�?
� Acha ou n�o acha?
� Bem... � titubeou o jovem, a voz tr�mula. � Acho...
Silas sacudiu a cabe�a e continuou:
� Voc� o tem visto?
� N�o...
A resposta foi t�o hesitante que Silas n�o acreditou.
� Tem certeza? Vamos, filho, pode falar.
Romero jamais ouvira o pai falar com tanta serenidade, de forma
quase carinhosa, e acabou confessando:

� Vi-o uma vez... no cinema.

� Falou com ele/
� Ele falou comigo.
� O que ele disse?
� Nada. Perguntou como eu estava.
� S� isso?
� S� isso.
� E Mozart?
� O que tem ele?
� Mozart conhece J�nior?
� N�o.
� J�nior n�o o viu no cinema?
� Viu.
� Ent�o eles se conhecem.
� N�o. Mozart s� o viu de relance.
� Entendo.
� Por que est� fazendo essas perguntas, pai? O que Mozart tem
a ver com
isso?
Silas olhou bem dentro de seus olhos e respondeu:

� Porque o rapaz que tem telefonado disse que est� interessado
em voc�.
� Em mim? Como assim?
� Disse que quer voc�. Que voc� n�o � um rapaz direito. E ainda
sugeriu que eu perguntasse a Mozart.
� Perguntasse o qu�?
� Se voc� � um rapaz direito.
Romero remexeu-se, inquieto.
� Voc� �, Romero? E um rapaz direito?
Ele engoliu em seco e respondeu com a maior convic��o
poss�vel:

� Sou.
� Tem certeza?
� Tenho.
Ele tinha. Era um rapaz direito. N�o da forma como o pai pensava,
mas da forma como tinha de ser. S� agora compreendia os par�metros
que Mozart tra�ava para delinear o car�ter das pessoas. O
fato de ser homossexual n�o o transformava em bandido ou marginal.
Era um rapaz direito, sim, e precisava afirmar isso com bastan




te convic��o. Pena que n�o tinha coragem de expor aqueles pensamentos
diante do pai. Para Silas, a concep��o de rapaz direito era
bem diferente da sua e da de Mozart. Para ele, um rapaz direito era
aquele que n�o se metia em pouca-vergonha, ou seja, que n�o se deitava
com outro homem.

� Est� certo, Romero. Pode ir agora.
O menino foi saindo, e Silas acrescentou:
� N�o quero que saia mais hoje.
Romero nem discutiu. N�o estava em condi��es. J�nior fizera
insinua��es grav�ssimas a seu respeito que puseram o pai em d�vida.
J�nior devia saber. Romero tinha certeza de que J�nior sabia que
ele era homossexual. Experiente, deveria ter desconfiado de Mozart
tamb�m. Pois n�o fora Mozart mesmo quem lhe dissera que era f�cil
reconhecer um homossexual apenas pelo jeito de olhar? J�nior
reconhecera. E agora estava tentando destruir sua vida, insinuando
ao pai que ele era homossexual tamb�m.

O que poderia fazer? Ele era homossexual mesmo, reconhecia-
se como tal, assumia sua prefer�ncia pelos homens. N�o podia negar
isso a si mesmo. Todavia, diante do pai, era imperioso que fingisse.
Jamais confirmaria as insinua��es de J�nior. Por mais que o
pai lhe perguntasse, diria que J�nior era um pederasta mentiroso e
s� estava dizendo aquilo para denegrir sua imagem. Convenceu-se:
precisava mentir.


87


cap�tulo


primeira coisa que Judite percebeu quando entrou
em casa foi o pai andando de um lado para o outro na sala, rodeando
o telefone, sobressaltando-se cada vez que ouvia um barulhinho
qualquer.

� Pai! � exclamou espantada. � O que houve? Por que est�
rodando pela sala feito uma barata tonta?
Antes que Silas pudesse responder, No�mia entrou no aposento
com um copo de suco na m�o e estendeu-o para o marido.

� Seu pai agora est� obcecado com aquele homem � respondeu
contrariada. � Vive � espera de que ele ligue.
� Que homem?
� O tal dos trotes.
� Ah!
� Ele n�o perde por esperar � rugiu Silas, col�rico.
� J� parou para pensar que ele deve estar se divertindo � sua
custa? � tornou Judite, cansada daquela hist�ria.
� Divertindo-se? Pois vamos ver quem vai rir por �ltimo.
� Talvez, se o senhor o ignorar, ele pare de telefonar.
� Judite tem raz�o � concordou No�mia. � Talvez ele s� ligue
porque voc� lhe d� muita aten��o, e � isso o que ele quer.
� Ele falou mal de Romero... � deixou escapar.
� Falou? � era No�mia. � Como assim? O que ele disse?
J� arrependido, Silas tentou voltar atr�s:
� Nada. Ele � um idiota, isso sim.
89



Silas n�o queria que ningu�m mais soubesse das insinua��es de
J�nior, nem a mulher nem a filha. Por isso, murmurou uma desculpa
qualquer e saiu em dire��o ao banheiro. No�mia foi cuidar de
seus afazeres, mas Judite ficou preocupada. Agora que sabia o que
havia acontecido entre J�nior e Romero, bem podia imaginar o que
ele andava falando do irm�o. J� ia saindo para seu quarto quando

o telefone tocou. Mais que depressa, Judite correu a atender, antes
que o pai, ainda no banheiro, pudesse chegar � sala.
Ao ouvir uma voz feminina, J�nior n�o disse nada. Apenas deu
seus gemidos e riu baixinho.

� Escute aqui, seu cretino � rosnou Judite, entre dentes �, n�o
adianta tentar denegrir a imagem de meu irm�o. Ele n�o � um pederasta
covarde como voc�, que nem tem coragem de mostrar a cara.
Vive se escondendo atr�s de um fio de telefone.
Furioso, J�nior desligou. Quem era aquela que se intrometia assim
em sua vida? Seu assunto n�o era com ela, era com o pai de Romero.
Seria aquela voz a de sua m�e ou de sua irm�? Parecia jovem
demais para ser da m�e, logo s� podia ser da tal irm�zinha.

Cada vez mais, J�nior abria seu cora��o para o �dio, sem perceber
que densas sombras se aproximavam dele, envolvendo-o num
abra�o sinistro, transmitindo-lhe vibra��es de �dio e revolta. J�nior
nem sabia por que se sentia daquele jeito. N�o era l� nenhum santinho
e sabia bem o que havia feito a Romero. Apesar de tudo, nunca
havia for�ado nenhum rapaz a ter rela��es com ele. N�o daquela
forma. Podia ter insistido algumas vezes, at� usado uma forcinha.
Mas jamais havia machucado nem humilhado algu�m como o fizera
com Romero. Por que Romero?

Ele n�o sabia a resposta. Tudo que sabia era que, quando viu
Romero pela primeira vez, sentiu uma estranha inquieta��o no
peito, como se fosse imperioso para sua vida que se aproximasse dele.
Por isso seguira-o com os olhos durante toda a sess�o de cinema. Por
isso tamb�m o acompanhara, j� premeditando o que iria fazer. Precisava
desesperadamente transar com ele, e fora exatamente o que
fizera.

Ainda se lembrava do prazer que sentira ao v�-lo subjugado e
humilhado, chorando e implorando que o soltasse. Uma parte dele
at� queria solt�-lo, mas outra lhe dizia que era bem feito e que ele


at� estava gostando. Se, por um lado, sua consci�ncia alertava-o para
a impropriedade de sua conduta, por outro, as sombras que o acompanhavam
lhe toldavam o racioc�nio, estimulando seus instintos,
cada vez mais, para a viol�ncia.

Romero tinha muitos inimigos. Alguns, encarnados como
J�nior, n�o compreendiam bem a origem daquele sentimento, atribuindo
seu �dio �s circunst�ncias a que haviam chegado. Os desencarnados,
por sua vez, sabedores dos comprometimentos de Romero,
se aproveitavam do �dio de J�nior para atingi-lo, o que tamb�m
s� era poss�vel gra�as aos medos e �s culpas do rapaz. Mesmo sem
saber, Romero vivia atormentado por forte sentimento de culpa e,
desconhecendo a raz�o desse sentimento, atribu�a-o ao fato de ser
homossexual e de estar fazendo algo que talvez n�o fosse certo.

Fosse como fosse, o fato era que o medo e a culpa haviam colocado
Romero em sintonia com J�nior, e o �dio aproximara este
dos esp�ritos inferiores.

Quando Silas chegou � sala, correndo e ainda abotoando as cal�as,
Judite j� havia desligado o telefone. Ele estacou esbaforido e perguntou
ansioso:

� Quem era?
� N�o era quem o senhor esperava, papai. Era para mim.
Judite virou-lhe as costas e saiu a passos r�pidos. N�o queria que
o pai soubesse que ela desafiara o homem.
Aquilo j� estava virando uma obsess�o. Ningu�m conseguia
convencer Silas a deixar de lado aquela hist�ria. Ele vivia obcecado,
n�o mais pela chatea��o e o desaforo, mas pelas insinua��es que
J�nior fizera sobre Romero.

Somente no dia seguinte J�nior ligou novamente, e, dessa vez,
foi Silas quem atendeu.

� Ol� � cumprimentou J�nior ir�nico. � Pensei que houvesse
me abandonado.
� J� sei quem � voc� � fremiu Silas. � � o veado nojento que
fez aquilo a meu filho.
J�nior soltou uma gargalhada e respondeu naturalmente:

� Seu filho gostou muito daquilo.
� � mentira! Romero � um homem de verdade!
91


� Se � assim, por que voc� est� t�o preocupado?
� N�o estou preocupado. S� n�o quero que voc� ultraje a imagem
de meu filho.
� A imagem de seu filho � a de uma mocinha vibrando de prazer
ao ser penetrada pela primeira vez.
Aquilo foi muito forte. Tr�mulo de �dio, Silas atirou o telefone
longe, sem, contudo, deslig�-lo. Do outro lado da linha, J�nior
percebeu o que acontecera e permaneceu firme. Tinha certeza de
que ele tornaria a pegar o fone. E foi o que aconteceu. N�o demorou
nem um minuto, e a voz de Silas fez-se ouvir novamente.

� O que voc� quer para nos deixar em paz? Dinheiro? N�o tenho
dinheiro, mas posso tentar arranjar alguma coisa.
Nova gargalhada se fez ouvir. O homem estava ficando desesperado,
e J�nior exultava. Estava alcan�ando seu objetivo.

� Dinheiro n�o me interessa.
� O que quer, ent�o?
� Romero, j� disse.
� Romero n�o est� interessado em voc� � rebateu, com voz
sofrida. � Ele n�o � desse tipo.
� Acho que o senhor est� enganado.
� Ou�a, rapaz... J�nior. � esse o nome, n�o �? � O outro n�o
respondeu. � S� porque voc� fez mal a meu filho, n�o quer dizer
que ele tenha se viciado nisso... � Silas tinha at� medo de falar. �
Por isso, vou lhe dar um conselho: deixe-nos em paz, ou serei obrigado
a chamar a pol�cia. Voc� j� est� passando dos limites.
J�nior fez alguns segundos de sil�ncio, o que deixou Silas ainda
mais nervoso. Quando falou, foi com voz calma e civilizada:

� Agora quem vai me ouvir � o senhor. Seu filho � t�o veado
quanto eu.
� N�o...
� Deixe-me terminar, por favor. Romero est� enganando-o.
Faz o senhor pensar que ele � homem, se � que isso � poss�vel.
Tamb�m, tem pai que � cego... Mas isso n�o vem ao caso. O fato �
que Romero est� de caso com aquela outra bichinha... n�o sei
seu nome.
Ele estava se referindo a Mozart. Silas queria rebater aquela inf�mia,
xing�-lo, amea��-lo. Mas ficou paralisado. Por mais que n�o


quisesse reconhecer, algo dentro dele lhe dizia que J�nior estava
falando a verdade. Tentando segurar as l�grimas, Silas desligou. Esperou
alguns minutos, mas J�nior n�o ligou novamente. Seria verdade
o que dissera? Seriam, Mozart e seu filho, amantes?

Naquele dia, quando Romero chegou com Mozart, Silas olhou-
os desconfiado, mas n�o disse nada. Os dois estavam alegres, como
sempre. Sentaram-se para ver um pouco de televis�o, e Mozart foi
embora mais tarde. Na noite seguinte, Romero e Mozart sa�ram, dizendo
que iam ao cinema. Assim que eles sa�ram, Silas levantou-se
e saiu atr�s deles. Tinha de se certificar. Precisava descobrir.

Os dois tomaram um �nibus para o centro da cidade, e Silas fez
sinal para um t�xi. Ia gastar uma nota, mas n�o fazia mal. Se aqueles
dois estivessem fazendo alguma coisa errada, era hoje que iria descobrir.
Na Cinel�ndia, saltaram, e Silas saltou mais atr�s. Era um
cinema, e estava passando um filme pornogr�fico. Silas teria achado
gra�a, n�o fosse o filme sobre casais de homossexuais. Olhando

o cartaz, sentiu nojo e teve �nsias de v�mito. Olhou a censura: 18
anos. Como haviam deixado seu filho entrar?
Silas foi at� a bilheteria e comprou um bilhete. Entrou no cinema,
constrangido com os olhares dos homens sobre ele. Alguns
cochichavam, outros chegaram a piscar o olho para ele. Teve vontade
de gritar com eles e agredi-los, mas sentiu medo. Era melhor
n�o os provocar.

Sentindo-se pouco � vontade, entrou na sala de proje��o e procurou
com o olhar, tentando ver no escuro. A sess�o h� havia come�ado,
e um lanterninha veio oferecer ajuda.

� Est� sozinho?� perguntou com voz mole. � Quer um lugar
mais � frente ou mais atr�s?
� Pode deixar que me arranjo sozinho � respondeu de m�
vontade.
O lanterninha deu de ombros e afastou-se, e Silas sentou-se na
�ltima fileira. O cinema estava praticamente vazio, apenas alguns
casais de homossexuais aqui e ali. De vez em quando, o filme na tela
projetava uma claridade p�lida no cinema, e Silas podia ver um pouco
melhor. Alguns se beijavam descaradamente. Outros pareciam
assistir ao filme, mas o movimento de seus bra�os dava sinais de que


se acariciavam mutuamente. Silas sentia-se cada vez mais enojado.
Ainda se recusava a acreditar que seu filho se prestasse �quilo.

De repente, nova luminosidade invadiu a tela, e Silas avistou
Romero e Mozart mais � frente. Eles estavam de costas, beijando-
se e acariciando-se. Na mesma hora, Silas levantou-se. N�o conseguia
pensar em nada. A revolta foi tomando conta dele, e ele se mostrou
cego � raz�o. Se n�o estivesse vendo com seus pr�prios olhos,
n�o acreditaria que era seu filho quem estava ali, esfregando-se em
outro homem. Era nojento, revoltante!

Mais que depressa, aproximou-se, chegando pelo lado de Mozart.
Sem que os dois percebessem, agarrou o rapaz pelo colarinho
e come�ou a sacudi-lo, gritando descontrolado:

� Seu veado nojento! Sem-vergonha! Ent�o recebo-o em
minha casa, e � assim que me paga?
Levou algum tempo at� que Romero entendesse que era seu pai
quem estava ali. Como os descobrira? Ser� que os seguira?

� Pai... � falou aturdido. � Como... o que... o que est� fazendo
aqui?
� De voc�, cuido depois! � esbravejou.
Aproveitando-se de sua distra��o, Mozart conseguiu empurr�lo
para o lado e levantou-se, ao mesmo tempo em que os seguran�as
do cinema se aproximavam.

� Vamos parar com isso a� � disse um grandalh�o. � N�o quero
saber de briga de veados!
� N�o sou veado! � berrou Silas, ofendido. � Onde est� o gerente
desta espelunca? Exijo falar com o respons�vel daqui!
� Vamos andando, dondoca � continuou o outro, em tom de
deboche. � Resolva seu ciuminho l� fora.
Silas estava cada vez mais indignado e ofendido. Como aquele
brutamontes se atrevia a confundi-lo com aqueles homossexuais
nojentos? O homem segurou-o pelo bra�o e come�ou a pux�-lo para
longe de Mozart e Romero, que, aturdidos, n�o conseguiam dizer
nada. Na mesma hora, Silas p�s-se a berrar:

� Solte-me, animal! Ou chamo a pol�cia!
A palavra pol�cia deu excelente resultado. O seguran�a soltou-
o espantado, porque n�o era comum falar em pol�cia naquele lugar.

O que costumavam fazer era correr da pol�cia, e n�o procur�-la. As
outras pessoas j� os olhavam carrancudas, e algu�m reclamou:

� Ser� que d� para fazer sil�ncio a�?
� Chi! � acrescentou mais algu�m.
Veio o gerente.
� O que est� acontecendo aqui? � perguntou baixinho.
� Exijo respeito! � esperneou Silas. � Seus corruptores de
menores! Vou process�-los por admitir a entrada de menores neste
antro!
� Menores!? � indignou-se. � Que menores?
� Meu filho!
Silas apontou para o lugar em que Romero e Mozart estiveram
sentados, mas as poltronas estavam vazias. Os dois haviam se aproveitado
da confus�o para fugir. Sa�ram sorrateiramente e ganharam
a rua, sem que Silas ou o gerente notassem.

� Onde est� seu filho? � tornou o homem, aliviado, percebendo
que o garoto havia desaparecido. � N�o estou vendo ningu�m.
� Ali... � balbuciou Silas, olhando ao redor, confuso. � Eles
estavam ali... mas fugiram... ele e aquele garoto... tenho certeza...
� O senhor deve ter se enganado � continuou o gerente,
agora mais confiante.
� N�o me enganei, n�o! Ent�o acha que n�o conhe�o meu filho?
Ele s� tem catorze anos.
� Pode provar que era seu filho?
Silas encarou-o com desgosto e respondeu desanimado:
� N�o. Mas era, eu juro. Tenho certeza.
Deixou cair os bra�os ao longo do corpo e foi se afastando em
l�grimas. Sentia-se t�o envergonhado que, se pudesse, cavaria um
buraco ali mesmo e enterraria a cabe�a para sempre. N�o tinha mais

o que dizer. O homem estava certo. Como ele iria provar que seu
filho estivera ali? E, depois, ser� que valeria a pena processar aquele
homem? N�o estaria assumindo publicamente o que, at� ent�o,
lutara para esconder? N�o, decididamente, n�o era aquilo que ele
desejava. Surpreendera Mozart e Romero aos beijos e abra�os naquele
cinema, e nada no mundo poderia apagar aquela cena de sua
mente. Entender-se-ia com os dois sem a necessidade de expor a
pouca-vergonha do filho.

Logo que ganharam a rua, Mozart e Romero correram feito
loucos, s� parando ap�s se certificarem de que Silas n�o os estava
seguindo. Pararam ofegantes num ponto de �nibus e tomaram
uma condu��o para Copacabana. Queriam estar o mais longe poss�vel
de casa.

� Acha que ele nos seguiu? � perguntou Romero, olhando
pela janela do �nibus.
� Acho que n�o. Ele estava distra�do, tentando se livrar do seguran�a.
S� agora deve ter dado pela nossa falta.
� O que faremos? � perguntou Romero com ang�stia, os
olhos rasos d'�gua.
� Acha que pode voltar para casa?
� Ficou louco? Meu pai vai me matar.
� Vamos para a casa de meus tios. De l�, ligaremos para
meus pais.
� E se seus tios nos expulsarem? Na certa, v�o ficar sabendo
de tudo. Ser� o primeiro lugar onde meu pai ir� nos procurar.
� Voc� tem alguma id�ia melhor? � Romero meneou a cabe�a.
� Ent�o, � isso mesmo o que faremos.
Desceram do �nibus no primeiro ponto e atravessaram a rua,
tomando outro coletivo para a casa de Alex. Quando chegaram, j�
era tarde, e os tios pareciam de nada saber. Estavam vendo televis�o
e apenas sorriram quando eles entraram. Alex havia sa�do com
Judite, e os dois seguiram direto para o quarto que Mozart dividia
com o primo.

� E agora? � indagou Romero.
� Pelo visto, seu pai n�o veio aqui.
� Mas ainda pode vir.
� Pode...
Mal teve tempo de terminar, e logo ouviram a campainha da
frente soar com estrid�ncia. Ambos prenderam a respira��o e aguardaram.
De repente, uma voz elevou-se, nervosa e agitada, e eles reconheceram
a voz de Silas.

� Ele j� chegou � anunciou Mozart.
Do quarto, n�o podiam distinguir com clareza as palavras de Silas.
Mas, pelo tom de sua voz, sabiam que ele estava contando tudo
que acontecera. N�o demorou muito, e o tio veio cham�-los.

96


� Mozart � falou com desgosto. � O pai de Romero est� a�.
Disse que os surpreendeu num cinema suspeito, aos beijos e abra�os.
N�o sei o que pensar...
� Tio Cl�vis � respondeu Mozart, em tom de desculpa �,
perdoe-me...
� Quer dizer que ele est� certo?
Mozart apenas baixou e sacudiu a cabe�a. N�o conseguia dizer
nada. Estava envergonhado, n�o por estar aos beijos e abra�os com
Romero, como o tio dizia. Mas porque fora apanhado como um gatuno
surpreendido com a m�o na bolsa de alguma senhora. E ele tinha
certeza de que n�o cometera crime nenhum. Mas como dizer
isso ao tio? Pior: como se explicar ao pai de Romero?

� Acho melhor voc� ir com ele, Romero � continuou Cl�vis.
� E vou telefonar a seus pais, Mozart. N�o sei como lidar com
isso e n�o posso mais ficar com voc� aqui.
� Por favor, seu Cl�vis � implorou Romero �, deixe-me ficar
aqui. Meu pai vai me matar.
� N�o vai, n�o. Ele est� aborrecido, e com raz�o. Mas n�o vai
matar voc�.
� Vai, sim, tenho certeza.
� Sinto muito, Romero, mas n�o posso contrariar seu pai. E,
depois, voc�s tra�ram nossa confian�a. A minha e a dele. Venha,
ele o espera.
Derrotado, Romero levantou-se, seguido por Mozart.

� Voc�, n�o � disse para o sobrinho. � Voc� fica aqui. N�o
quero complicar ainda mais as coisas.
Mozart n�o ousou contest�-lo. Estava na casa dele e, embora
n�o achasse que o houvesse tra�do, devia-lhe respeito e n�o podia
enfrent�-lo. Romero saiu sozinho. Chegou � sala, onde o pai havia
ficado, em companhia da tia de Mozart. O olhar de Silas era de �dio.
Se n�o estivesse diante de outras pessoas, teria arrancado o menino
dali a tapas. Contudo, conseguiu controlar-se. Puxou o filho pelo
bra�o e despediu-se. Silas fez sinal para um t�xi, e os dois entraram,
seguindo em sil�ncio at� em casa. Pelo canto do olho, Romero podia
ver a cara de �dio do pai. Ele mordia os l�bios e fechava as m�os,
controlando o �mpeto de acertar um soco no queixo do filho.


Saltaram na porta de casa, e No�mia correu a seu encontro. Silas
havia sa�do sem dizer nada, deixando-a deveras preocupada.

� Gra�as a Deus! � exclamou ela. � O que houve? Por que
saiu sem me dizer nada, Silas?
Silas n�o respondeu. Foi empurrando o filho pela nuca para
dentro de casa e fechou a porta com estrondo. Sem dizer nada, acertou
em seu queixo o murro que havia horas vinha segurando.

� Sem-vergonha! � rugiu.
� Silas! � protestou No�mia. � O que � isso? Por acaso enlouqueceu?
� Pergunte a seu filho! Pergunte a ele o que ele fez para me levar
ao extremo da loucura!
O olhar interrogativo de No�mia causou imenso transtorno
em Romero, sentado no sof�, segurando o queixo dolorido e a boca
que sangrava.

� Responda � sua m�e! Vamos, canalha, responda � sua m�e!
Como Romero nada dissesse, Silas partiu para cima dele novamente
e acertou-lhe novo soco, dessa vez no olho, que logo foi
se tornando roxo.

� Meu Deus, Silas, pare com isso! � gritou No�mia, tentando
segurar o bra�o do marido. � Ele � seu filho.
� Ele n�o � mais meu filho! N�o tenho filho veado!
� N�o o estou reconhecendo, Silas. Isso l� � linguagem para
usar dentro de casa? Ainda mais diante de sua mulher e de seu filho.
� Pois n�o estou falando nenhuma mentira. Romero � um veadinho,
pederasta, bichona!
� Silas!
� � isso mesmo! Ele e aquele maricas do Mozart.
� N�o diga isso.
� Peguei-os hoje, sabe onde, No�mia? Num cinema, na Cinel�ndia,
desses s� para veados. Passavam um filme pornogr�fico, e
sabe de qu�? De homens, No�mia, de homens! Fazendo as coisas
mais repulsivas com outros homens!
No�mia recuou aterrada, cobrindo a boca com a m�o.

� N�o... N�o � verdade! � contestou, at�nita. � Meu filho,
n�o.
� Eu bem devia ter desconfiado. Sempre agarradinho com
98


Mozart, saindo juntos, dormindo juntos. Como fui est�pido! Ainda
cedi minha casa para essa pouca-vergonha! Voc�s faziam essa
nojeira bem debaixo de meu nariz!

Um barulho de carro do lado de fora f�-los perceber que Judite
estava chegando, e Silas calou-se. N�o queria envolver a filha
naquilo. Ela abriu a porta vagarosamente e virou-se para dar um
�ltimo adeus a Alex. Quando entrou em casa, estacou abismada.

� Nossa! � indignou-se, olhando para os pais, sem perceber Romero
num canto. � O que deu em voc�s? Est�o com umas caras...
� V� para seu quarto � ordenou Silas. � E s� saia quando
eu mandar.
� Por qu�? O que foi que eu fiz?
� Fa�a como estou mandando, menina! Se n�o quiser apanhar
tamb�m.
S� ent�o Judite se deu conta de que Romero estava presente,
chorando, com o rosto todo machucado. Pronto! Foi o suficiente
para desobedecer �s ordens do pai. Largou a bolsa sobre a poltrona
e correu para ele.

� Romero! � assustou-se. � O que houve, meu Deus? Quem
fez isso com voc�? Foi J�nior?
Ela nem se lembrou de que o pai n�o queria que ela soubesse
do epis�dio com J�nior, o que deixou Silas ainda mais irado. Romero
desobedecera-lhe e contara a ela o que lhe acontecera.
Cada vez mais irritado, puxou Judite pelo bra�o e empurrou-a para

o corredor.
� Para o quarto, j� disse � tornou a mandar.
Ela n�o obedeceu. Desvencilhou-se dele e agarrou-se a Romero,
respondendo em tom de desafio:

� N�o vou. Meu irm�o est� ferido. Quero ficar com ele.
Silas perdeu de vez as estribeiras. J� n�o pensava em mais
nada. A �nica coisa que conseguia sentir era a raiva a crescer dentro
do peito. Sem raciocinar direito, partiu para cima de Judite e
puxou-a pelos cabelos, ignorando os gritos de protesto e ang�stia
de No�mia.

� Voc� vai para o quarto agora! � esbravejou, dando-lhe um
tapa no rosto.
Aquela cena foi demais, at� para Romero. Pela primeira vez em

99


sua vida, conseguiu reagir. Que o pai descontasse nele, podia entender.
Mas bater em Judite era uma injusti�a, e ele n�o iria permitir.
De um salto, agarrou o bra�o do pai e torceu-o para tr�s, gritando
entre l�grimas e solu�os:

� Deixe-a em paz, seu monstro! Covarde! Solte-a!
Aturdido, Silas largou-a e virou-se para ele. Romero sempre fora
um menino franzino, e o pai descarregou sobre ele toda a f�ria de
seu �dio. Nem Judite nem No�mia conseguiram impedi-lo. Espancou
o filho quase at� a morte, s� parando quando percebeu que ele
estava im�vel no ch�o.

� Cachorro! � berrou. � N�o o quero mais em minha casa,
debaixo de meu teto, comendo de minha comida! Isto aqui � lugar
de gente direita! Levante-se e ponha-se daqui para fora!
Romero mal conseguia se mexer. O rosto inchado, n�o enxergava
direito. O corpo todo do�do, parecia que havia quebrado
alguma coisa. Ainda assim, conseguiu se levantar, auxiliado por
No�mia e Judite.

� Deixem-no � ordenou o pai, totalmente irado. � N�o quero
que ningu�m o ajude.
Na mesma hora, No�mia soltou-o, chorando desconsolada.
Mas Judite n�o obedeceu. Encarou o pai com olhar frio e disparou:

� Se quiser me impedir, vai ter de me espancar tamb�m.
Silas conteve o �mpeto de esbofete�-la novamente. Ela era
mulher, e n�o ficava bem bater em mulheres, principalmente numa
filha. Furioso, correu para a porta e escancarou-a. Apontou o dedo
para fora e bradou a plenos pulm�es:

� Muito bem. Leve-o daqui. N�o quero esse pederasta em
minha casa.
Judite ainda n�o sabia qual fora o motivo daquele briga horrenda,
mas podia imaginar. S� que aquela n�o era a hora de perguntar
nada. Sustentando-o em seus bra�os, apanhou a bolsa e saiu com
ele para a rua. Foi caminhando at� uma transversal, onde havia um
orelh�o. Amparando Romero, quase desmaiado, tirou uma ficha da
carteira e telefonou para Alex, pedindo que fosse busc�-los.

Alex havia acabado de entrar em casa quando o telefone tocou.
Estranhou ver a fam�lia reunida na sala, Mozart com os olhos
inchados de tanto chorar, mas nem teve tempo de perguntar o que


estava acontecendo. A voz de Judite ao telefone era grave, e ele foi
�s pressas a seu encontro. Parou o carro ao lado do orelh�o onde ela
disse que estaria e saltou, abrindo a porta para Romero.

� O que houve? � perguntou, sem de nada desconfiar.
� Vamos para o hospital � pediu ela, sem responder � sua
pergunta.
Judite sentou-se com Romero no banco de tr�s e pousou a cabe�a
dele sobre seu ombro, afagando-lhe os cabelos. Ele come�ou
a chorar, envergonhado e dolorido, sentindo os olhares de Alex pelo
espelho retrovisor. N�o conseguia dizer nada, apenas chorar.

No hospital, Romero ainda teve de esperar algum tempo antes
de ser atendido. Havia muitas emerg�ncias naquele dia e, com
poucos m�dicos, a prioridade era para aqueles que apresentassem perigo
de vida. Romero, apesar de seu estado, n�o corria risco de vida
e teve de esperar sua vez. Era dia de plant�o de Pl�nio, o mesmo que

o atendera no dia em que fora violentado. Ele n�o se lembrava do
rapaz, porque eram muitas as pessoas que atendia ali, mas tratou-o
com o cuidado de sempre.
Examinou-o minuciosamente. Deu-lhe alguns pontos no rosto
e apalpou seu corpo, em busca de alguma fratura. Felizmente, estava
tudo inteiro. As costelas do�am-lhe, mas n�o havia quebrado
nenhuma. Depois de medicado, Pl�nio colocou-o em observa��o e
foi ao encontro de Judite, que havia acabado de preencher uma ficha
no balc�o de atendimento.

� Boa noite � disse ele. � Foram voc�s que trouxeram o
rapazinho?
� Fomos, doutor. Sou a irm� dele, Judite. Como ele est�?
� Bem. Levou uma surra danada, mas vai ficar bom.
Ela suspirou aliviada e deixou escapar um desabafo:
� Gra�as a Deus.
� Pode me contar o que aconteceu?
Judite n�o queria dizer que o pai havia espancado o irm�o, com
medo de que ele fosse preso. Por isso, ao dar seu nome na recep��o,
dissera que Romero fora assaltado e que apanhara do ladr�o. E foi
exatamente isso que ela repetiu ao m�dico.

Pl�nio sabia que aquilo n�o era verdade, mas n�o era direito
insistir. Limitou-se a balan�ar a cabe�a e concluiu:


� Ele vai passar umas duas noites aqui. Depois, pode lev�-lo.
Sorriu com simpatia e foi para dentro atender outros clientes.
Judite e Alex, n�o tendo mais o que fazer, sa�ram tamb�m, e s� o
que ela p�de dizer-lhe fora que o pai batera em Romero. O motivo,
n�o conhecia. Embora ela at� pudesse imaginar, tinha medo de compartilhar
suas suspeitas com o namorado. Como todo mundo, Alex
era preconceituoso com essas coisas de homossexualismo, e Judite
n�o queria se desentender com ele e tamb�m n�o queria que ele se
desentendesse com Romero.


102



inda assustada, Judite entrou em casa. Despedira-se

de Alex da porta e entrou, pensando no que o pai estaria fazendo.
Estranhamente, a casa estava toda �s escuras. Ela entrou na ponta
dos p�s e foi espiar o quarto dos pais. Nenhum dos dois estava dormindo,
embora fingissem estar. Com cuidado, Judite encostou a
porta e dirigiu-se a seu quarto. Despiu-se e foi tomar um banho.
Quando voltou, a m�e estava sentada em sua cama, olhos inchados
de tanto chorar.

� Como est� seu irm�o? � foi logo perguntando, aflita.
� Como a senhora queria que ele estivesse, depois daquela
surra?
� O que o m�dico disse? Ele vai ficar bom?
� Vai. O doutor disse que n�o � nada grave. Mas Romero vai
passar duas noites no hospital.
No�mia juntou as m�os sobre a boca e cerrou os olhos, e Judite
sabia que ela estava rezando.

� E papai? � indagou, assim que a m�e abriu os olhos.
� Est� dormindo, eu acho.
� Por que n�o impediu, m�e? Por que deixou que papai fizesse
aquilo com Romero?
� O que eu poderia fazer? Seu pai me proibiu...
� E a senhora obedece, n�o �? A tudo que papai fala, a senhora
diz am�m. � sempre assim. Ser� que, ao menos uma vez na vida,
n�o podia ter reagido?

� N�o me acuse, Judite. Estou sofrendo muito.
� N�o tanto quanto Romero. Imagine s� o que ele deve estar
passando naquele hospital.
� A culpa n�o � minha. Seu pai � o chefe da fam�lia.
� Ah! E por isso ele pode fazer o que quiser, n�o �? At� nos
matar, se for de sua vontade.
� N�o diga isso. Seu pai � um homem bom.
� Nota-se.
� Ele ficou transtornado. Romero tirou-o do s�rio.
� Por qu�? O que foi que ele fez de t�o terr�vel para provocar
essa f�ria de papai?
� Ele n�o lhe contou?
� Ele n�o estava em condi��es de me contar nada.
No�mia soltou doloroso suspiro e ciciou:
� Seu pai n�o vai gostar...
� Ser� que a senhora n�o pode esquecer papai um momento?
Estamos falando de seu filho!
� Silas n�o quer que eu conte nada. Principalmente a voc�.
� Mam�e! Deixe de ser medrosa e submissa. O que papai vai
fazer contra a senhora? Bater-lhe tamb�m?
� Deus me livre, que seu pai n�o � homem disso!
� Ele s� bate nos filhos, n�o � mesmo?
� Voc� est� sendo injusta, Judite. Seu pai nunca bateu em
voc�s.
� O que foi que ele fez com Romero, ent�o?
� Com Romero foi diferente.
� Por qu�?
� Porque ele... bem... ele provocou...
� Como? O que foi que ele fez?
� Ele... ele...
� Ele o qu�, mam�e? Pelo amor de Deus, fale logo de uma vez!
No�mia n�o conseguiu mais segurar aquilo. Come�ou a chorar
e contou tudinho a Judite, do mesmo jeito que Silas lhe havia
contado. Judite sentiu imensa ang�stia. N�o que se surpreendesse.
No fundo, j� esperava por aquilo. Surpreendia-se com o preconceito
e a incompreens�o do pai. Mais ainda, com a passividade da m�e.

� E agora, m�e, o que vamos fazer?

� Vou rezar para que seu pai o aceite de volta. Talvez possamos
lev�-lo a um psiquiatra ou algo parecido. Romero est� doente.
� A �nica doen�a de Romero � a surra que levou.
� Mas, minha filha, nenhum homem, em s� consci�ncia, faz
o que ele fez com outro homem.
� A senhora n�o sabe de nada mesmo, n�o �, mam�e? Romero
� homossexual...
� N�o diga isso! � feio.
� Feio � o preconceito. Ele � homossexual mesmo, e da�? O que
podemos fazer? Foi a escolha dele, n�o foi?
� Seu pai jamais vai aceitar uma coisa dessas.
� Mas a senhora devia aceitar. � mulher, � m�e. Devia ser mais
sens�vel.
� Romero � meu filho, e eu seria capaz de aceit�-lo de volta,
seja ele como for. Mas seu pai j� disse que n�o quer.
� E a senhora vai aceitar isso?
� O que posso fazer, Judite? Brigar com ele?
� Imponha sua vontade.
� Silas � o homem. � o chefe desta fam�lia. � ele quem paga
as contas, quem p�e comida dentro de casa.
� E a senhora, � o qu�? Sua empregada? Que eu saiba, a senhora
trabalha tanto quanto ou mais que ele, cuidando de n�s e da casa.
Isso, sem falar em suas costuras, que contribuem em muito com o
sustento da fam�lia.
� Mas n�o � direito, Judite. N�o posso contrariar meu marido.
� Pois, ent�o, conven�a-o. Conven�a-o a reconsiderar e aceitar
Romero de volta.
� Ainda que eu conseguisse isso, de que adiantaria? Seu pai
nunca mais seria o mesmo com ele. Viver�amos num inferno.
� Mam�e, acho que a senhora ainda n�o entendeu a situa��o.
Romero s� tem catorze anos, n�o trabalha, n�o tem para onde ir.
O que espera que ele fa�a da vida?
� N�o sei, Judite, n�o sei! Por isso, pe�o a Deus que o ajude.
� Deus, s�, n�o vai bastar! Precisamos dar uma forcinha.
� N�o blasfeme, minha filha. Deus pode mais que tudo.
� N�o digo o contr�rio. Mas acho que Deus n�o quer, ele mesmo,
resolver nossos problemas. Se fosse assim, tudo seria muito f�

cil. O que ele quer � que fa�amos nossas escolhas e tomemos as atitudes
certas.

� Como saber o que � certo ou errado?
� Seguindo o cora��o.
� N�o, Judite, sinto muito. Meu cora��o de m�e est� apertado
com o futuro que vislumbro para Romero. Ele � meu filho, e ningu�m
mais do que eu sofre por ele. Mas ele tamb�m h� de assumir
seus erros.
� Mas que erros?
� Voc� n�o disse que ele � homossexual? Tem de assumir essa
escolha tamb�m.
� Que � uma escolha, concordo com a senhora. Mas n�o vejo
onde est� o erro em seguir seus instintos. Romero n�o est� fazendo
mal a ningu�m.
� S� a ele mesmo.
� N�o concordo. Se ele est� feliz, onde est� o mal?
� Ele n�o pode estar feliz na situa��o em que se encontra.
� Tem raz�o. Ningu�m pode ficar feliz numa cama de hospital,
todo arrebentado.
� Foi ele quem causou essa situa��o.
� Ah, quer dizer que a culpa � dele, por ter apanhado?
� Se n�o fosse homossexual, seu pai n�o teria lhe dado essa
surra.
� Isso n�o � justificativa. Ser homossexual n�o � crime nem
pecado.
� Mas � feio, � imoral.
� Em sua concep��o, porque na minha n�o � nada de mais. �
apenas uma op��o, um caminho como outro qualquer.
� Voc� tem id�ias muito estranhas para uma mocinha de sua
idade. � bom que seu pai n�o a ou�a falar assim.
� No�mia! � era a voz de Silas, chamando do outro quarto.
� Venha dormir. J� � tarde!
Judite encarou a m�e com desapontamento. N�o adiantava
nada discutir com ela. No�mia n�o se atrevia a contrariar o marido,
ainda que isso significasse a perda dos filhos.

� V�, mam�e, v� dormir. N�o deixe papai esperando. Ele
pode se aborrecer e coloc�-la de castigo.

Apesar de perceber a ironia nas palavras da filha, No�mia n�o
respondeu e voltou para seu quarto. Deitou-se ao lado de Silas, que
n�o disse nada. Ele sabia que ela estivera conversando com Judite,
vira quando se levantara. Deixara que ela fosse apenas para que
ficasse mais calma. Podia compreender sua ang�stia de m�e, embora
n�o permitisse que ela o contrariasse. Permitira que Judite
lhe desse not�cias de Romero e esperava que ela parasse de se preocupar
com ele. Daquele dia em diante, n�o tinham mais filho.
Apenas uma filha.

No dia seguinte, logo cedo, Judite telefonou para Alex.

� Al�? Alex? Tudo bem? Ser� que voc� pode me levar ao hospital
agora de manh�? Quero ver como Romero est� passando.
� Certo � respondeu Alex, sem muito �nimo. � Passo a�
dentro de meia hora.
Alex tamb�m j� sabia o que havia acontecido. Seus pais lhe
contaram tudo. Embora n�o achasse certo bater em Romero, concordava
que ele e Mozart haviam agido errado. Alex era totalmente
contra qualquer esp�cie de homossexualismo, ainda mais em
sua fam�lia.

No carro, ele e Judite iam conversando.

� Creio que voc� j� sabe o que houve, n�o sabe? � perguntou
ela.
� Sei, sim. Meu pai me contou.
� E Mozart? Como est�?
� Est� bem, aparentemente. Seus pais chegam hoje de Bras�lia
para lev�-lo.
� Voc�s o mandaram embora?
� N�o exatamente. Mas voc� h� de convir que n�o foi nada
agrad�vel para papai saber que o sobrinho estava metido nessa semvergonhice.
� Por que fala desse jeito? Eles n�o estavam fazendo nada
de mau.
� Como n�o? Enfiados num cineminha poeira, s� para ficarem
de esfrega��o... Como n�o � sem-vergonhice?
� O que voc� queria que eles fizessem? Que namorassem em
pra�a p�blica? Ou na praia?

� N�o acredito que voc� os esteja defendendo!
� Estou, sim. Tudo bem que o lugar em que foram vistos n�o
era l� muito bem freq�entado. Pode ser sujo, nojento, de baixo n�vel,
mas foi a isso que eles tiveram de se sujeitar para fugir do preconceito.
Eles queriam estar juntos, e o �nico lugar em que podiam
fazer isso com liberdade, infelizmente, era num cinema suspeito,
como aquele. Mas n�o vejo nada de mais no que eles fizeram. Eles
s�o garotos saud�veis, bonitos, inteligentes...
� E deveriam estar atr�s das meninas. Onde j� se viu, dois
homens se beijando na boca? E muito me admira voc�, Judite, concordar
com uma esquisitice dessas.
� Lamento se n�o penso como voc�, Alex. Mas n�o vou mudar
de opini�o s� porque voc� quer.
Chegaram ao hospital e calaram-se. Ali, naquele momento, Judite
teve a certeza de que ela e Alex n�o iriam muito longe com
aquele namoro. Ele deixara bem claro seu pensamento, e ela n�o
concordava com nada do que ele dissera. Tampouco iria se sujeitar
� sua vontade s� para n�o o perder. N�o era como sua m�e e n�o queria
se tomar submissa a nenhum homem, por mais que o amasse.

No hospital, foram informados de que Romero melhorara. Era
um rapaz forte e estava se recuperando bem.

� Podemos v�-lo? � perguntou Judite.
� Podem. Est�o no hor�rio de visitas.
Romero, de olhos fechados, n�o percebeu quando eles se aproximaram.
Sentiu que o tocavam de leve no ombro e abriu os olhos,
encontrando o olhar doce e compreensivo da irm�.

� Judite... � balbuciou, j� come�ando a chorar.
� N�o precisa falar, Romero � tornou ela, afagando-lhe os
cabelos. � S� quero saber como voc� est�.
� Bem... Foi o que me disseram.
S� ent�o percebeu Alex parado mais atr�s.
� Ol�, Alex � cumprimentou. � Tudo bem?
� Tudo bem, e voc�?
Romero fez um gesto com as m�os, indicando que ia mais ou
menos. Sentiu-se envergonhado com a presen�a do namorado da
irm�. Imaginava se, �quela altura, todos j� n�o estariam sabendo por
que o pai agira daquela forma.


� Papai lhe contou o que aconteceu?
� Mam�e contou.
� Sinto muito, Judite. N�o queria magoar voc�.
� Magoar-me? Voc� n�o me magoou, Romero. N�o tenho
nada com sua vida. Amo-o e respeito-o pelo que voc� �, n�o pelas
escolhas que faz.
Nesse ponto, Alex pediu licen�a e saiu. N�o queria tomar parte
naquela conversa infame.

� Alex n�o pensa como voc�, n�o �? � afirmou Romero.
� N�o ligue para ele.
� N�o quero causar-lhe problemas, Judite. Se for para brigar
com Alex, n�o precisa mais vir me visitar. N�o precisa nem falar
comigo, se n�o quiser. Vou entender.
� Nem pensar! Voc� � meu irm�o, e por nada neste mundo eu
o abandonaria. Ou Alex me aceita desse jeito ou pode procurar outra
namorada.
� Voc� n�o gosta dele?
� Gosto. Mas n�o posso conviver com um homem que n�o
sabe respeitar seus semelhantes.
� Voc� � muito especial, Judite � falou ele, emocionado. �
Deveria ter lhe contado h� mais tempo.

� N�o pense mais nisso agora. N�o tem import�ncia.
� J�nior conseguiu sua vingan�a, afinal.
� Acha que foi ele que contou?
� E quem mais haveria de ser? Foi depois que ele come�ou a
ligar que papai descobriu.
� Tem raz�o. Mas que sujeitinho � toa!
� Sabe se ele ligou de novo?
� N�o sei. Nem perguntei.
� Espero que agora ele nos deixe em paz.
� N�o pense mais nisso. Ele agora n�o poder� mais lhe fazer mal.
A hora da visita terminou, e Judite teve de ir embora. Ficou de
voltar mais tarde, na hora em que o m�dico estivesse, para saber
quando Romero teria alta. E, quando tivesse, o que iria fazer? Para
onde iria?

Do lado de fora, Alex aguardava-a impaciente. Ao v�-la, fran



ziu o cenho e foi saindo apressado. J� dentro do carro, perguntou
de m� vontade:

� Por que demorou tanto ?
� Estava conversando com ele. Romero est� muito abalado.
E estou preocupada com seu futuro.
� Isso n�o � problema seu.
� E claro que �. Romero � meu irm�o.
� Mas n�o h� nada que voc� possa fazer por ele. Seu pai expulsou-
o de casa, e voc� n�o tem como ajud�-lo.
� E isso que me angustia. O que vai ser de meu irm�o?
� Pare de se preocupar. Aposto como ele vai saber se virar
direitinho.
� Como assim? O que quer dizer?
� Ora, Judite, ele j� se iniciou nessa vida. Na rua, est� cheio
de pederastas velhos e cheios da grana atr�s de um garotinho. N�o
vai ser dif�cil para ele.
Judite sentiu o sangue ferver e rebateu indignada:

� O que est� dizendo, Alex? Meu irm�o n�o � nenhum
marginal.
� Desculpe-me, Judite � tornou acabrunhado, j� arrependido
do que dissera. � N�o foi isso que quis dizer.
� Mas foi o que insinuou. Voc� � igualzinho a todo mundo. S�
porque existem pessoas que agem de forma diferente, critica e vai
logo julgando. Por acaso se acha melhor do que os outros?
� N�o. Mas, pelo menos, n�o saio por a� transando com homens.
� Quanto preconceito! Voc� devia se envergonhar de ser t�o
preconceituoso.
� N�o � preconceito, n�o. Se algu�m quer ser pederasta, n�o
tenho nada com isso. Desde que n�o seja de minha fam�lia.
� Ah! Ent�o o problema � com seu primo.
� Com meu primo e com meu futuro cunhado. Mozart n�o �
problema, porque os pais est�o vindo busc�-lo, e ele vai partir logo
para a Austria. Mas Romero vai ser meu cunhado. N�o quero que
meus amigos digam que o tio de meus filhos � pederasta.
� Isso � um disparate! E o que voc� espera que eu fa�a?
� O que qualquer pessoa decente faria numa situa��o dessas.
Afastar-se dele.

� Voc� ficou maluco? Romero � meu irm�o. � um menino!
Meu pai o colocou para fora de casa. Como posso abandon�-lo?
� N�o digo abandonar. Mas tamb�m n�o precisa ficar amiguinha
dele.
� Eu n�o vou ficar amiguinha dele. J� sou. Sempre fui!
Chegaram � porta da casa de Judite. Alex estacionou, puxou o
freio de m�o e, encarando-a bem fundo nos olhos, confessou:

� Ent�o, Judite, creio que vai ficar muito dif�cil para n�s...
� Dif�cil, n�o � cortou ela, rubra de raiva. � Imposs�vel!
Saiu batendo a porta e entrou correndo para dentro de casa, sem
nem olhar para tr�s. Estava com raiva de Alex, decepcionada por
causa de seu preconceito. Mas foi melhor descobrir como ele era agora.
Se descobrisse que ele era t�o preconceituoso depois do casamento,
o desgosto seria maior. E ela n�o estava disposta a subjugar seus
princ�pios, aquilo em que acreditava, em nome de ningu�m.

Para ela, aquele namoro havia terminado ali.



telefone tocou e Judite atendeu com agressividade,

certa de que ouviria a voz debochada de J�nior do outro lado. Para
sua surpresa, por�m, n�o foi J�nior quem ligou, mas Mozart, que sussurrou
bem baixinho:

� Quem fala? � Judite?
� Mozart! Que bom que ligou!
� Queria mesmo falar com voc�. Preciso ver Romero.
� Onde est�?
� Na casa de meus tios. Meus pais chegaram hoje cedo, e
partiremos amanh�. Mas n�o posso ir sem falar com Romero.
� N�o sei se ser� poss�vel. Ele est� no hospital.
� Por favor, leve-me at� l�. N�o posso ir embora e deix�-lo
como se nada tivesse acontecido.
Judite considerou por alguns segundos. Podia imaginar o que
ele estava sentindo, quanto deveria estar sofrendo. Partir para longe,
sem se despedir de quem amava, deveria ser muito duro. Mas o
pai ficaria furioso se soubesse que ela levara Mozart at� o hospital.
Ou talvez n�o. O pai renegara Romero, dizia que, dali em diante,
n�o queria mais saber dele, que n�o tinha mais filho. Se era assim,
n�o se incomodaria se Mozart fosse visit�-lo. Nem tomaria conhecimento.
E, se tomasse, pouco importava. Ele j� n�o tinha mais ascend�ncia
sobre Romero, mesmo.

� Est� certo � concordou ela, finalmente. � Mas a hora da
visita j� passou.

� N�o h� nenhum jeito?
� Bom, eu fiquei de voltar mais tarde para falar com o m�dico.
Quer ir comigo?
� Quero.
� Est� certo, ent�o. Mas n�o estou prometendo que voc� possa
v�-lo. Vai depender do m�dico, se ele autorizar ou n�o.
� Vou arriscar.
� Bom. Vamos nos encontrar mais tarde na porta do hospital.
� Deu-lhe o endere�o. � Sabe onde fica?
� Eu descubro.
� Muito bem. Espero-o �s oito horas. N�o se atrase. Se voc�
se atrasar, entrarei sozinha.
� N�o se preocupe, n�o me atrasarei.
Desligaram. Judite ficou pensativa, imaginando o que os pais
de Mozart teriam dito daquilo tudo. Pelo que ela sabia, eles eram
pessoas avan�adas e liberais, mas ela n�o imaginava at� onde ia a
liberalidade deles.

Jantou mais cedo naquela noite e saiu sem falar com ningu�m.
N�o queria ouvir as lam�rias da m�e nem as censuras do pai. O hospital
era perto, e ela tomou um �nibus. Poucos minutos depois, descia
em sua porta. Ainda faltavam vinte minutos para as oito, mas
Mozart j� estava l�, consultando o rel�gio a todo instante. Logo que
ele a viu, correu a seu encontro e abra�ou-a com efus�o, deixando
que as l�grimas escorressem de seus olhos.

� Judite... � balbuciou. � Eu sinto tanto!
� Eu sei. Tamb�m sinto.
� A culpa foi minha...
� N�o diga isso.
� Foi, sim. Romero era um garoto normal at� me conhecer. Fui
eu que o iniciei nessa vida.
� Muito me admira ouvir voc� falar desse jeito. Logo voc�, que
sempre teve a mente t�o aberta.
� Jamais poderia imaginar que as coisas chegariam a esse ponto.
Ah, se eu n�o o tivesse seduzido...
� N�o diga besteiras, Mozart! Romero sempre foi desse jeito,
apenas n�o sabia ou n�o se aceitava. O que voc� fez foi tirar-lhe o
v�u do medo e do preconceito com ele mesmo.

� Acha mesmo?
� N�o tenho d�vidas. E, se quer saber mesmo, acho que quem
o despertou para isso n�o foi nem voc�. Foi o tal de J�nior. Foi depois
que ele violentou Romero que ele come�ou realmente a questionar
sua sexualidade.
� Mas ele ainda resistia. Fui eu quem o desvirtuou.
� Voc� apenas o ensinou a ser verdadeiro com seus sentimentos.
Isso n�o � nada de mais.
� Acha isso mesmo?
� � claro. N�o acredito que algu�m se torne homossexual ou
qualquer outra coisa pela s� influ�ncia de outro. N�o acredito nem
que algu�m possa se tornar homossexual. Quem � homossexual j�
nasce assim. As pessoas relutam, n�o querem se aceitar, algumas at�
se casam para n�o ter de se enfrentar. At� que, um dia, acontece alguma
coisa que as coloca diante de si mesmas, e elas s�o impelidas
a reconhecer suas tend�ncias, a se aceitar do jeito que s�o. Muitas
n�o conseguem e vivem cheias de conflitos.
� Acho que � a maioria. Todo mundo tem medo do preconceito.
� � verdade. O preconceito � uma chaga na humanidade.
� O preconceito destr�i uma pessoa, Judite. Veja s� o que fez
a Romero.
� Acho que quem se destruiu mais foi meu pai. A incompreens�o
traz o desassossego, a raiva que consome, o medo que o transformou
numa pessoa superficial e amarga.
� Voc� � t�o diferente de todo mundo! Romero tem muita sorte
de ter uma irm� como voc�.
� Sei que sou um pouco diferente. Mas � que n�o consigo ver
os erros que as pessoas costumam apontar nos outros. Observo as diferen�as
de comportamento, de gostos, de ideais. E isso, para mim,
� natural, faz parte da vida. Mas n�o consigo ver essas diferen�as
como aberra��o, apenas como diversifica��es no jeito de viver,
sentir e pensar. E da�? Somos todos seres humanos, n�o somos? As
coisas est�o a�, n�o est�o? Se est�o, � para serem experienciadas. Sen�o,
Deus, que � muito inteligente, jamais as colocaria no mundo.
� E uma maneira, no m�nimo, inusitada de ver as coisas.
� E porque todo mundo complica tudo. Sabe, Mozart, eu acre

dito muito em Deus. N�o nesse Deus vingativo e punitivo que
todo mundo prega por a�. Mas num Deus de amor e compreens�o.
Numa for�a inteligente que criou o mundo e tudo que est� nele. E
Deus n�o erra nunca, n�o � mesmo? Se n�o erra, por que ent�o
pensar que ser homossexual � um erro? Pois n�o foi Deus quem fez

o homem e permitiu que ele conhecesse a homossexualidade?
� N�o sei. Talvez as pessoas achem que o homossexual se desvirtuou
dos ensinamentos de Deus.
� S� se desvirtua dos ensinamentos de Deus quem n�o consegue
amar. Para mim, a �nica lei que � eterna e verdadeira � a lei
do amor. A partir da�, tudo o mais � conseq��ncia. Quem ama compreende,
ajuda, n�o critica, n�o rouba, n�o inveja, n�o mata, n�o
fala mal. E isso, para mim, � o que conta no ser humano. N�o importa
se homem ou mulher, h�tero ou homossexual, branco ou negro,
rico ou pobre. Cada um vive o que tem de viver, e ningu�m vive
de forma errada. Vive o que precisa. E o que precisamos � sempre
o melhor para n�s. E o melhor, seja o que for, � o que vem para
nossas vidas.
� Nossa, Judite, de onde tirou essas id�ias?
� Das reflex�es que fa�o sobre a vida. Bom, mas deixemos essas
considera��es para outro dia. Viemos ver Romero. Vamos entrar?
Entraram juntos, e Judite dirigiu-se � mocinha da recep��o:

� Gostaria de falar com o Dr. Pl�nio Portela, por favor.
A recepcionista consultou uma prancheta e respondeu com voz
mec�nica:

� O Dr. Pl�nio est� na emerg�ncia. Voc�s podem ir por esse
corredor e virar � direita no final. Perguntem por ele � recepcionista
de l�.
� Obrigada.
Afastaram-se e foram para o local indicado. Por sorte, quando
eles chegaram Pl�nio estava no corredor, dando orienta��es a um
casal. Os dois se puseram um pouco mais atr�s. Logo que ele terminou,
reconheceu Judite e cumprimentou-a:

� Como vai, Judite?
� O senhor se lembra de mim?
� Como n�o? � a irm� daquele rapazinho, Romero, n�o �
mesmo?

� Sou eu mesma. Puxa, doutor, que bom que se lembrou de
mim. Gostaria muito de falar com o senhor.
� Voc� deu sorte. O movimento hoje est� fraco. Vamos por
aqui, para meu consult�rio.
Mozart olhou para Judite com olhar de s�plica, e ela indagou:

� Doutor, ser� que meu amigo aqui n�o poderia dar uma
palavrinha com Romero?
� O hor�rio de visitas j� acabou.
� Eu sei � interveio Mozart, j� agoniado. � Mas � que eu vou
viajar para Bras�lia amanh�. De l�, parto para a �ustria e n�o sei
quando poderei ver Romero novamente.
Pl�nio compreendeu. Era um homem vivido e de uma sensibilidade
extrema. Piscou o olho para Mozart e respondeu em tom
amistoso:

� Bom, creio que n�o far� mal se voc� der apenas uma palavrinha
com ele.
Chamou a enfermeira de plant�o e deu autoriza��o para que
Mozart entrasse, seguindo com Judite para seu consult�rio particular.
Mozart entrou na enfermaria com todo o cuidado. N�o queria
perturbar os doentes. A enfermeira conduziu-o at� o leito que
Romero ocupava, e ele se aproximou. O rapaz dormia e ressonava,
e Mozart sentiu a garganta estrangular. J� o amava sinceramente e
sentiria muito sua falta. Contudo, n�o tinham como permanecer
juntos naquele momento.

Os dois eram menores de idade, n�o trabalhavam, n�o tinham
onde viver. Mozart sabia que muitos homossexuais ca�am na marginalidade
por causa do preconceito. N�o tendo um come�o de vida
s�lido, seria dif�cil arranjar um emprego que os sustentasse. E, mesmo
que achassem, teriam de viver de forma obscura, escondendo-
se, ocultando seus sentimentos, policiando gestos e palavras, tudo
para que ningu�m descobrisse a verdade sobre eles e os discriminasse.
Era uma vida muito ingrata e injusta, mas era a vida que a sociedade
lhes oferecia.

Por isso, Mozart sabia que era preciso vencer. Concluiria seus
estudos de piano e retornaria ao Brasil triunfante, como grande pianista.
Enquanto isso, esperava que Romero fizesse uma faculdade,
mas agora n�o sabia se ele conseguiria. Seu futuro era incerto, o que


quase fez Mozart desistir de seus planos. Os pais, por�m, n�o permitiriam.
N�o porque era homossexual, porque j� desconfiavam e
aceitaram bem, mas porque n�o queriam que o filho sofresse com

o preconceito. Queriam prepar�-lo para a vida e para seus dissabores,
a fim de que Mozart tivesse condi��es de se sustentar e viver
sem precisar se humilhar diante de ningu�m.
Mozart ficou parado, observando Romero. Este, como que sentindo
sua presen�a, abriu os olhos lentamente e sorriu. Ergueu o corpo
na cama e abra�ou o amigo.

� Mozart � gemeu. � Pensei que nunca mais fosse v�-lo.
� N�o poderia partir sem ver voc�.
� J� vai embora?
� Tenho de ir. Meus tios ligaram para meus pais, e eles vieram
me buscar. Tio Cl�vis n�o me quer mais aqui.
� Entendo... Vai logo para a Europa?
� Assim que as f�rias terminarem. Papai est� providenciando
minha ida antes do programado, para me tirar desta situa��o.
� Seus pais ficaram zangados com voc�?
� N�o. Ficaram chateados por causa de meus tios. Eles n�o
compreendem, e meus pais n�o querem desrespeit�-los.
� Como o invejo! Ah, se meus pais fossem assim...
� Voc� tem Judite. Ela � uma mo�a maravilhosa.
� � verdade. N�o h� ningu�m igual a Judite. Pena que Alex
n�o pense assim. S� espero que eles n�o se desentendam por causa
disso.
Embora Judite n�o tivesse dito nada, Mozart sabia que ela e
Alex haviam brigado, porque o primo os acusara de serem os
respons�veis pelo rompimento do namoro. N�o contou nada a Romero.
Ele j� estava muito abalado, e saber que a irm� havia terminado
com Alex s� serviria para transtorn�-lo ainda mais, impondo-
lhe uma culpa que, absolutamente, ele n�o tinha.

� Ela n�o veio? � indagou Romero, passando os olhos pela
enfermaria.
� Est� l� fora, conversando com o m�dico.
Nesse ponto, Romero n�o ag�entou mais. Estava tentando ser
forte, mas a not�cia da breve partida de Mozart causou-lhe imensa
tristeza. S� havia duas pessoas no mundo que ele amava e em quem


podia confiar: Judite e Mozart. Mozart ia embora, e Judite precisava
viver sua vida. O que seria dele dali para a frente?

� Vou me sentir t�o s�... � desabafou. � O que ser� de mim,
Mozart?
� Nada mudou em nossos planos. Apenas temos de antecipar
algumas coisas. Eu vou mais cedo para a �ustria, e voc� tamb�m vai
ter de se virar.
� Mas como? O que poderei fazer? Meu pai n�o me quer mais
em casa. Como viverei?
Mozart engoliu em seco. Sabia que Silas n�o voltaria atr�s em
sua palavra, o que talvez at� fosse melhor. Se aceitasse Romero de
volta, na certa exigiria que ele se enquadrasse em seus padr�es, impondo-
lhe verdadeira tortura mental.

� Voc� tem de ser forte e corajoso. Arrume um emprego e continue
estudando. Tente se formar. Disso vai depender todo o nosso
futuro.
� Voc� fala s�rio, Mozart? Vai mesmo voltar para me buscar?
� S� n�o volto se voc� n�o quiser � abaixou-se rapidamente
e deu-lhe um beijo discreto nos l�bios, acrescentando bem baixinho:
� Vou lhe mandar algum dinheiro da Europa. Para ajudar nas
despesas. Ningu�m precisa saber.
� Como?
� Deixe comigo, que darei um jeito. Judite pode nos ajudar.
A vontade de Romero era atirar-se nos bra�os de Mozart, mas
conseguiu controlar-se. Apesar do horror da situa��o, nem tudo estava
perdido. Mozart parecia sincero ao dizer que voltaria para busc�-
lo. E por que n�o voltaria? Ent�o os dois n�o se amavam?

Discretamente, Romero apanhou a m�o de Mozart e beijou-a,
molhando-a com suas l�grimas sentidas.

� Eu amo voc� � balbuciou. � Sempre.
Mozart n�o respondeu. Estava por demais emocionado para
conseguir falar. Sentiu que os olhos tamb�m se enchiam de l�grimas
e apertou a m�o de Romero, dizendo-lhe, com o olhar, quanto
o amava tamb�m.


o dia seguinte, ao meio-dia, Mozart partiu com seus
pais de volta a Bras�lia. Os tios haviam ido lev�-lo ao aeroporto e
pareciam felizes com sua partida. Alex despediu-se em casa. Estava
magoado com o primo, julgando-o culpado por seu rompimento
com Judite.

No outro dia, Romero teria alta do hospital, e Judite estava deveras
preocupada com seu destino. N�o sabia o que fazer para ajud�-
lo. Mozart dissera-lhe que mandaria dinheiro para colaborar com

o sustento de Romero, mas onde ela iria coloc�-lo para viver?
Faltavam apenas quinze dias para o come�o das aulas, o que ela
considerava at� um al�vio. Romero tamb�m deveria voltar para a
escola, mas ela achava que o pai n�o permitiria. A hist�ria vazara,
como era de se esperar, e alguns vizinhos cochichavam entre si,
apontando Silas com deboche ou com piedade. Isso s� servia para
irrit�-lo ainda mais. Passados apenas poucos dias do ocorrido, parecia
que ele havia redobrado seu �dio.

No�mia, por sua vez, s� o que fazia era rezar. Diante do pequenino
altar montado em seu quarto, rezava para que Nossa Senhora
protegesse seu filho, lhe desse ju�zo e o fizesse arrepender-se de seus
erros, retornando ao bom caminho. Quem sabe, assim, Silas n�o o
aceitaria de volta? Judite assistia a essas rezas com mal disfar�ado
desd�m. N�o que desacreditasse do poder da ora��o ou dos santos.
S� n�o conseguia acreditar que Romero houvesse cometido algum
pecado que necessitasse de piedade ou repara��o.

121


Ela havia ido ao hospital de manh� e agora estava sentada na
sala, ajudando a m�e com as costuras, quando o telefone tocou. Silas
veio correndo atender e quase explodiu de �dio ao ouvir a voz
debochada de J�nior:

� E ent�o, seu Silas? J� descobriu o casinho de Romero? � riu.
� Eu tinha ou n�o tinha raz�o?
J�nior n�o sabia o que havia acontecido, e Silas n�o conseguiu
se controlar. Estava com raiva, frustrado, deprimido. Eram
tantos sentimentos ao mesmo tempo, que ele parecia um caldeir�o
em ebuli��o.

� Seu moleque! � gritou. � Destruiu nossa vida! N�o est�
satisfeito?
� Destru�? Mas eu n�o fiz nada...
� Veado!
Silas bateu o telefone com f�ria e sentou-se no sof�, chorando
desconsolado. Um minuto depois, o telefone tocou novamente,
e Judite correu para atender. O pai n�o estava mais em condi��es
de faz�-lo.

� Al�? � disse ela, mas J�nior n�o respondeu. � Por que n�o
nos deixa em paz, J�nior? J� conseguiu o que queria. Meu irm�o est�
no hospital por sua causa. N�o est� satisfeito?
J�nior desligou. N�o precisava ouvir mais nada. Conseguira
mesmo o que queria. Vingara-se daquele cretino e da bichinha sua
amante.

Mas n�o estava satisfeito. Precisava descobrir em que hospital
Romero estava. Queria v�-lo pessoalmente, rir na cara dele, apontar-
lhe o dedo e dizer-lhe: Viu? Quem mandou mexer comigo?

Estava irrequieto. Sa�ra do trabalho mais cedo, alegando dor de
cabe�a. J� faltara muito naquele m�s, e o chefe estava de olho nele.
Mais um pouco e levaria uma justa-causa. Precisava se cuidar, mas
n�o podia perder aquela oportunidade. Apanhou as P�ginas Amarelas
e come�ou a procurar os telefones dos hospitais mais pr�ximos.
Um a um, foi telefonando, dando o nome de Romero, at� que encontrou
o que procurava.

No dia seguinte, faria uma visitinha ao rapaz. No hor�rio de visitas,
o movimento deveria ser grande, e ningu�m barraria sua entrada.
Tampouco o conheciam, de forma que n�o teria problemas.


E, ainda que algu�m o conhecesse, o que poderiam fazer contra ele?
N�o podiam acus�-lo de nada. A viol�ncia que cometera contra Romero
fora realizada havia muito tempo, e nenhum processo tinha
sido aberto. E ele n�o podia ser acusado de ser o respons�vel por Romero
estar no hospital. De qualquer forma, trataria de se prevenir.
Apanhou o canivete em cima da mesa e virou-o nas m�os, sorrindo.
Ningu�m o pegaria desprevenido.

As visitas come�avam �s oito horas, e �s oito e meia J�nior entrou
no hospital, seguindo direto para a enfermaria. Ao chegar, por�m,
uma surpresa: Romero n�o estava mais l�. Procurou em todos
os leitos, mas nem sinal do rapaz. Sentiu a raiva crescer dentro dele
e foi chamar uma enfermeira.

� Por favor � disse, esfor�ando-se para controlar a ira �, procuro
um paciente, Romero Silveira Ramos. Sabe onde est�?
� O Dr. Pl�nio deu-lhe alta hoje cedo. Saiu agorinha mesmo,
com a irm�. Se correr, ainda ser� capaz de peg�-los na rua.
N�o era poss�vel! Perdera-os por quest�o de segundos. Mas nem
tudo estava perdido. Talvez eles ainda estivessem por ali.
J�nior passou pela enfermeira feito um furac�o, quase derrubando-
a ao ch�o. Correu pelos corredores feito louco, at� que alcan�ou
a rua. Efetivamente, l� estavam eles. Parados na beira da cal�ada,
eles conversavam e olhavam para a rua. Estavam esperando
um t�xi.

O carro logo apareceu, e Judite fez sinal. O t�xi parou, e ela
abriu a porta, para que Romero pudesse entrar primeiro. Apenas
Dona Filomena concordara em receb�-lo, mas s� naquele dia, para
que ele n�o ficasse na rua. Entretanto, n�o podia ficar com ele: n�o
queria se desentender com Silas. Judite o levaria para l� e depois
veria o que fazer. N�o podia contar com mais ningu�m. Os tios
tamb�m lhe voltaram as costas, e ela era grata a Filomena por sua
bondade. Ainda acreditava que um milagre fosse acontecer.

Assim que ela abriu a porta do carro, J�nior apareceu por tr�s
e fechou a porta com um empurr�o, pondo-se entre Romero e o t�xi.
A surpresa do rapaz foi t�o grande, que ele quase caiu para tr�s.

� Ora, ora, ora � zombou J�nior. � Aonde � que as mocinhas
pensam que v�o?
Apesar de s� haver visto J�nior uma vez, e, assim mesmo, de


relance, Judite sabia que era ele. S� podia ser. Romero sentiu uma
onda de p�nico invadi-lo e recuou dois passos, esbarrando na irm�,
parada logo atr�s. Aquilo era um desaforo! Judite n�o iria permitir
que aquele brutamontes covarde espezinhasse o irm�o. Rapidamente,
puxou Romero com a m�o, colocando-o atr�s dela, e encarou
J�nior com ar de desafio.

� O que quer aqui? � indagou s�ria.
� Porqu�? � revidou J�nior, olhando-a amea�adoramente. �
A rua � de todos.

� Saia de nosso caminho � ordenou ela, sustentando o olhar.
J�nior come�ou a rir e bateu na porta do t�xi, que arrancou na
mesma hora. O motorista n�o queria se envolver em nenhuma briga
de namorados e foi apanhar outro passageiro, mais � frente.

� Mas que bonitinho � ironizou, fitando Romero. � Al�m de
veado, � covarde. Precisa da irm�zinha para defend�-lo.
� Se voc� n�o sair da minha frente, vou chamar a pol�cia �
amea�ou ela.

� Chame e vai se arrepender.
� N�o tenho medo de suas amea�as. C�o que ladra n�o morde.
E voc� � um c�o bem vagabundo, que nem sabe onde p�r o pr�prio
rabo.
J�nior sentiu vontade de esbofete�-la. Aquela vadia era muito
atrevida e arrogante. Merecia uma li��o. Mas eles estavam na
porta do hospital, havia uma por��o de gente olhando e um guarda
come�ou a aproximar-se. Romero suspirou aliviado, e Judite
fixou J�nior com ar de vit�ria.

� Algum problema aqui?� indagou o policial, fitando J�nior
de cima a baixo.
� � esse rapaz, seu guarda � retrucou Judite, com desd�m. �
Acho que perdeu o caminho da cadeia, que � onde deveria estar.
O guarda olhou-a espantado, mas J�nior interp�s:

� A mocinha � muito espirituosa. Pena que a TV n�o esteja
atr�s de comediantes.
� Mas a Justi�a continua atr�s de bandidos � rebateu Judite
com firmeza.
� O que est� acontecendo? � tornou o guarda. � Mo�a, esse
sujeito lhe fez alguma coisa?

J�nior n�o esperou resposta. Empurrou o guarda para cima de
Judite e Romero e saiu correndo. O policial logo se recomp�s e correu
atr�s dele. Mas o rapaz havia sumido na multid�o, e o guarda
n�o p�de alcan��-lo. J�nior correu o mais r�pido que p�de, s� parando
quando se certificou de que n�o havia ningu�m atr�s dele. Estava
furioso, sentindo um �dio fremente de Judite. J� era a segunda
vez que aquela cadelinha lhe dizia uns desaforos. Mas aquilo n�o
ficaria assim. Ela ia ver s� uma coisa. Ela n�o o conhecia e n�o sabia
com quem estava lidando.

Rapidamente, fez sinal para um t�xi e deu o endere�o da casa
de Romero. N�o sabia que ele havia sido expulso de casa e pensava
que Judite o estaria levando para l�. Deu um trocado a mais, para
que o motorista corresse e avan�asse alguns sinais, e chegou � frente
de Judite. Saltou do t�xi e foi se esconder do outro lado da cal�ada,
atr�s de uma �rvore, bem defronte � casa de Filomena.

Poucos minutos depois, o t�xi de Judite e Romero apareceu, parando
exatamente na cal�ada em que J�nior estava escondido. Ele
n�o entendeu nada, mas procurou ocultar-se da melhor forma poss�vel.
Judite saltou e ajudou Romero a descer. Assim que se viraram
para a porta da frente da casa de Filomena, J�nior saltou de seu esconderijo,
canivete em punho, apontando-o para a mo�a de forma
amea�adora.

Nessa hora, Filomena, ouvindo o ru�do do carro, abriu a porta
para receb�-los. Viu J�nior amea�ando Judite e soltou um grito de
pavor. J�nior assustou-se e olhou para Filomena com cara de espanto,
dando � mo�a a chance de empurr�-lo para longe. Com o susto,
J�nior se descontrolou. Com um golpe r�pido e mec�nico, enterrou
a l�mina do canivete bem fundo no abd�men de Judite, que
tombou na cal�ada com um gemido de dor.

Dona Filomena, apavorada, redobrou a gritaria, enquanto Romero,
abaixado ao lado do corpo da irm�, solu�ava e chamava-a
pelo nome:

� Judite! Judite! Fale comigo, Judite! Judite!
O espanto foi tamanho, que J�nior se aproveitou para fugir. Todos
os vizinhos acorreram, atra�dos pelos gritos de Filomena, assim
como Silas e No�mia. Ao verem o corpo da filha tombado no ch�o,


envolto em uma po�a de sangue, No�mia desmaiou, e Silas come�ou
a berrar tamb�m:

� Uma ambul�ncia! Pelo amor de Deus, algu�m chame uma
ambul�ncia! Minha filha est� ferida! Minha filha...
Um vizinho apareceu de carro e ofereceu-se para lev�-los ao
hospital. Entraram todos. No�mia e Romero atr�s, com Judite atravessada
em seu colo, e Silas no banco da frente. Em meio ao desespero,
nem se importaram com a presen�a de Romero. Quinze minutos
depois, chegaram ao hospital, e Judite foi logo levada para o
Centro de Tratamento Intensivo. Seu estado era grave, e Pl�nio foi
chamado �s pressas. Havia muito j� terminara seu plant�o, mas voltou
para seu �ltimo atendimento do dia.

Judite ainda respirava, embora sua pulsa��o estivesse se tornando
fraca. Pl�nio examinou a ferida e mandou que a levassem com
urg�ncia para a sala de cirurgia. Mas n�o havia mais nada que pudesse
ser feito. A facada lhe perfurara o f�gado e, ao dar entrada na
sala de cirurgia, ela j� n�o respirava mais.

Dar a not�cia � fam�lia era sempre algo doloroso. Por mais que
visse situa��es como aquela, Pl�nio n�o conseguia se acostumar.
Ainda mais quando a v�tima era algu�m t�o jovem e cheia de vida
como aquela mo�a. Ainda se lembrava de que estivera com ela naquela
manh� mesmo, quando dera alta ao irm�o. O que teria acontecido
em t�o curto espa�o de tempo?

A not�cia da morte de Judite foi um choque para todos. No�mia
desmaiou novamente e foi levada para a enfermaria, e Silas
come�ou a andar de um lado para o outro, as m�os na cabe�a, gritando
feito louco. Apenas Romero parecia manter a calma. Chorava
baixinho, angustiado, olhos pregados no ch�o.

� Isso n�o � poss�vel! � berrava Silas. � Minha filha, n�o!
N�o pode ser verdade!
� Por favor, meu senhor, tenha calma � Pl�nio tentava
consolar.
� Mas n�o pode ser! N�o � verdade! Por favor, doutor, diga que
n�o � verdade!
� Como gostaria que n�o fosse...
� Por qu�, meu Deus? Por que isso tinha de acontecer logo
comigo? Sou um homem direito, honesto, trabalhador... Nunca

fiz mal a ningu�m... Por que isso tinha de acontecer justo com minha
filha?
� Deus tem mist�rios que ningu�m consegue desvendar �
continuava Pl�nio.

� N�o pode ser! Como Deus foi injusto comigo! Primeiro, meu
filho... e, agora, isto...
S� ent�o Silas se deu conta de que Romero estava ali entre eles.
Empurrou Pl�nio para o lado e acercou-se dele, encarando-o com
os olhos chispando de �dio.

� Voc�! � bradou.
� Pai... � gemeu Romero, tomado pela dor.
� Foi voc�! A culpa foi toda sua! Voc� matou minha filha!
� N�o, n�o. Foi J�nior. Eu vi, Dona Filomena viu.
� J�nior! Mas como?
� N�o sei, pai. Ele nos seguiu...
� N�o me chame de pai! Nunca mais me chame de pai, seu
pederasta nojento! � Romero encolheu-se todo, envergonhado, enquanto
Silas continuava a gritar: � A culpa foi toda sua! Se voc�
n�o tivesse se metido em m�s companhias, nada disso teria acontecido!
Mas n�o! Meu filho resolveu achincalhar o nome da fam�lia
com suas veadagens! N�o satisfeito, matou minha filha! Minha
�nica filha!
� Pai, por favor...
� J� disse para n�o me chamar de pai!
Descontrolado, Silas partiu para cima de Romero aos tapas, e
o rapaz, ainda dolorido da surra anterior, ajoelhou-se no ch�o, tentando
aparar os golpes com os bra�os. Vendo aquela cena ins�lita,
Pl�nio agarrou as m�os de Silas e falou incisivo:
� Pelo amor de Deus, senhor, controle-se! Sen�o, serei obrigado
a chamar a seguran�a!
� Foi esse cachorro, doutor! Esse pederasta! Por culpa dele,
minha filha agora est� morta!
� Sei que � doloroso, mas o senhor precisa tentar manter a calma.
Sua mulher est� l� dentro e inspira cuidados. E seu filho...
� Ele n�o � meu filho! N�o tenho filho veado!
Foi um custo acalm�-lo. Pl�nio s� conseguiu porque levou Romero
para seu consult�rio. Sentia imensa pena do jovem. Judite fi



zera-o lembrar-se do que havia lhe acontecido algum tempo antes.
Ele havia sido brutalmente violentado e o pai n�o lhe dera nenhum
apoio. Depois, fora espancado pelo pr�prio pai, fato que a irm� tamb�m
havia confessado na noite anterior, em troca de segredo absoluto.
E, agora, o menino era humilhado pelo pai na frente de todo
mundo. Sempre o pai.



cap�tulo


oi muito dolorosa a morte de Judite. A pol�cia foi chamada
e um inqu�rito foi instaurado. O corpo teve de ser levado �
per�cia, porque Judite morrera assassinada, e � esse o procedimento
comum nesses casos.


Logo que o corpo foi removido para o Instituto M�dico Legal,
Silas quis ir junto, mas o delegado n�o permitiu. Entendia sua dor,
mas n�o havia nada que ele pudesse fazer ali. Melhor seria ir para
casa com a fam�lia e aguardar a libera��o do corpo.

Silas estava transtornado. No�mia, ap�tica, tivera de ser sedada
para n�o ter uma crise. Os dois foram para casa. Em sua dor,
No�mia esquecera-se por completo de Romero, e Silas recusou-se
a v�-lo ou falar com ele. Julgava-o respons�vel pela morte da filha
e dizia que jamais iria perdo�-lo.

Romero permaneceu no consult�rio de Pl�nio at� que os pais
se foram. Quando as coisas pareciam ter retomado � normalidade,

o m�dico voltou a seu consult�rio e encontrou o rapaz chorando,
arrasado.
� Como est� se sentindo, meu filho? � perguntou bondoso.
� Ai, doutor, minha irm�... � Foi s� o que conseguiu dizer,
caindo num pranto convulso e atormentado.
Pl�nio aproximou-se dele e envolveu-o num abra�o fraterno,
passando a m�o pelas suas costas com delicadeza. Aos poucos, Romero
foi se acalmando, at� que o pranto cessou, restando apenas
alguns solu�os mais persistentes.

129


� Faz bem chorar, meu filho � acrescentou Pl�nio, compreensivo.
� Limpa a alma e alivia o cora��o.
� O senhor n�o me repeliu...
� Por que faria isso?
� Meu pai... meu pai falou coisas horr�veis sobre mim.
� Seu pai est� com o cora��o carregado pela dor. � compreens�vel.
� Ele n�o mentiu � sussurrou envergonhado.
� N�o precisa me contar. N�o tenho nada com sua vida.
A exce��o de Judite e Mozart, Romero n�o havia sido tratado
com gentileza por mais ningu�m. Baixou os olhos e chorou novamente,
de emo��o, grato pelas palavras amigas daquele m�dico
quase desconhecido.

� Doutor... o que farei de minha vida? Perdi tudo. Minha fam�lia
n�o me quer... Minha irm� se foi...
� E o amigo que veio visit�-lo ontem?
Rosto coberto de rubor, Romero respondeu:
� Partiu com os pais.
� N�o tem nenhum lugar para onde ir? Nenhum parente, nada?
Romero meneou a cabe�a e retrucou angustiado:
� Meus av�s j� morreram. Tenho dois tios e uma tia. Mas eles
tamb�m n�o v�o querer me aceitar.
� J� os consultou?
� Judite me disse. Ela ligou para eles, mas disseram que n�o
queriam se envolver. E, depois, t�m filhos... N�o querem correr o
risco de que eu os vicie, como eles mesmos disseram.
� Entendo.
Pl�nio levou a m�o � cabe�a, pensativo. Aquele era um bom rapaz,
podia-se perceber. Era uma injusti�a e uma crueldade abandonar
assim uma crian�a, s� porque gostava de coisas que ningu�m
conseguia compreender. Ele estava transtornado. Sabia que sua
obriga��o seria procurar o juizado de menores e informar o caso. Romero
s� tinha catorze anos e deveria ir para uma institui��o. Mas

o que seria dele em uma institui��o para menores? Seria discriminado
tamb�m, se n�o acabasse apanhando ou coisa pior. E, a�, tornar-
se-ia um marginal. Por mais digno e honesto que fosse, seria dif�cil
resistir aos maus tratos sem reagir. E a maior rea��o � agress�o

costumava ser a pr�pria agress�o. N�o demoraria muito, e Romero
acabaria fugindo e atirando-se na prostitui��o ou coisa pior. Poderia
cair no v�cio das drogas ou na bandidagem, o que seria uma pena.

Mas o que ele, Pl�nio, poderia fazer? N�o era respons�vel pelo
rapaz. Cuidara dele como m�dico, n�o podia ser tamb�m seu pai.
Ele tinha fam�lia... Fam�lia? N�o podia chamar aquilo de fam�lia.
O pai, preconceituoso ao extremo, dificilmente o aceitaria de
volta. E a m�e n�o passava de uma criatura apagada e sem vontade
pr�pria.

Olhando para ele, Pl�nio sentiu o cora��o se confranger. Ele era
t�o jovem! Bem podia ser seu filho. Ficou imaginando qual seria sua
rea��o se aquilo acontecesse a seu filho. Reagiria diferente. Jamais

o teria expulsado. Ao contr�rio, ter-lhe-ia oferecido amor e compreens�o.
Teria de aprender com ele. Talvez fosse at� doloroso,
porque � dif�cil para um pai ver seu filho escolher caminhos diferentes
dos programados para ele. Mas a vida dos filhos � dos filhos,
e a fun��o dos pais � am�-los, seja qual for o caminho que estiverem
percorrendo.
Mas isso se fosse com seu filho. S� que Romero n�o era seu filho.
Era um paciente como outro qualquer. A �nica diferen�a � que
estava sozinho. N�o tinha casa, n�o tinha dinheiro, n�o tinha ningu�m.
Apenas ele se preocupava com sua sorte. Temia por seu futuro,
n�o desejava que ele fosse atirado no po�o amargo da marginalidade.
Ah, se pudesse fazer algo para impedir...

S� que n�o podia... Ou ser� que podia? Pl�nio era um homem
de posses, morava numa bela mans�o com a mulher, o filho e o
cunhado. Rafael era um in�til, n�o gostava de estudar, n�o queria
trabalhar. E Eric estava crescendo. Viviam rodeados de conforto e
de empregados. N�o precisavam de mais ningu�m.

Contudo, ele podia ajudar. Podia assumir a cria��o do menino.
Podia dar-lhe estudo, uma boa educa��o. E, quanto ao fato de
ser homossexual, isso n�o seria problema. Orientaria Romero para
que soubesse agir com dignidade e respeitasse sua casa. Tinha certeza
de que o rapaz n�o adotaria nenhuma conduta que pudesse
envergonhar ou desrespeitar sua fam�lia.

Pediu licen�a a Romero e foi para outra sala. Precisava antes
consultar a mulher. Lav�nia, a princ�pio, n�o gostou da id�ia. Le



var para dentro de sua casa um rapaz desconhecido, envolvido em
tantos problemas, podia ser um problema para eles tamb�m. Mas a
maternidade rec�m-conquistada acabou por enternecer seu cora��o.
E se fosse seu filho? N�o gostaria tamb�m que algu�m o estivesse ajudando?
Por fim, concordou, e Pl�nio desligou o telefone satisfeito.
Voltou a seu consult�rio e anunciou:

� Vou ajud�-lo, Romero, se voc� desejar.
� Como?
� Vou lev�-lo para morar comigo.
� O senhor vai o qu�?
� Vou lev�-lo para minha casa. Voc� quer ir?
Romero desatou a chorar. Agarrou a m�o do m�dico e p�s-se
a beij�-la, murmurando entre solu�os:

� Obrigado, doutor... Nem sei o que fazer para lhe agradecer.
Vou trabalhar, serei seu criado, farei o que o senhor mandar. Nem
precisa me pagar...
� N�o precisa fazer nada disso � objetou Pl�nio, puxando a
m�o. � Quero assumir sua educa��o, se seu pai n�o se opuser.
� Meu pai?
� Sim. Terei de consult�-lo tamb�m.
� Tenho certeza de que meu pai vai ficar muito feliz de se ver
livre de mim.
� Se ele concordar, pretendo colocar voc� numa boa escola,
para que voc� estude e fa�a uma faculdade mais tarde. Se depender
de mim, vai ter um futuro decente.
Romero estava emocionado. E com medo. Ser� que o doutor
havia se esquecido do que o pai falara? Enxugou as l�grimas e, olhos
baixos, sussurrou:

� O senhor ouviu bem tudo que meu pai disse a meu respeito?
� Ouvi.
� Sabe que sou... diferente, n�o sabe?
� Para mim, voc� � igual a todo mundo. Tem olhos, nariz e
boca. Respira, come, vai ao banheiro. Tem sentimentos e � inteligente.
N�o sei onde est� a diferen�a.
� N�o se importa por eu ser... homo... homo...
� Homossexual? Em absoluto. J� disse que n�o tenho nada

com sua vida. Desde que voc� saiba respeitar meu lar, para mim n�o
h� problema.

� Eu vou respeitar, doutor, o senhor vai ver. Posso ser homossexual,
mas n�o sou nenhum tarado nem imoral. Nunca sa� por a�
cantando ningu�m nem me exibindo.
� Isso n�o me preocupa, Romero. Sei que voc� � um bom rapaz
c n�o costumo me enganar com as pessoas. Agora, vamos. Meu
plant�o j� terminou h� horas, e estou ficando com fome.
Sa�ram e foram para a casa do m�dico. Romero ficou impressionado
com a beleza e a impon�ncia da mans�o em que ele vivia.
A pedido de Pl�nio, Lav�nia mandou preparar um quarto s� para ele.
Rafael n�o estava em casa, mas ela tinha certeza de que o irm�o n�o
concordaria em dividir seu quarto com algu�m. Ainda mais com um
homossexual.

� Fique � vontade � falou Lav�nia, mostrando-lhe o quarto.
� O banheiro � aqui e � todo seu. Pode tomar um banho, se quiser.
Romero estava agradecido, por�m envergonhado. Quase n�o
tivera coragem de dizer que estava sem roupas para mudar. Lav�nia
saiu em sil�ncio e foi ao quarto do irm�o. Ele n�o ia gostar, mas n�o
havia jeito. Abriu o arm�rio e apanhou uma bermuda e uma camiseta.
Ficariam um pouco largas em Romero, porque ele era um menino
franzino, mas era o que podia arranjar no momento.

Quando Rafael chegou em casa, n�o gostou nada de saber que
tinham h�spedes, e que o h�spede estava usando suas roupas.

� Isso � um absurdo, Lav�nia! � queixou-se. � Dessa vez,
Pl�nio passou dos limites. Trazer para dentro de casa um menor
abandonado!
� Ele n�o � menor abandonado. A irm� foi assassinada, e o pai
o colocou para fora de casa.
� Por qu�? O que ele fez?
� N�o sei e n�o me interessa.
� N�o sabe? Duvido. Pl�nio n�o traria um menino para c� sem
lhe contar toda a sua hist�ria.
� Ou�a, Romero, o menino � homossexual. Mas Pl�nio n�o
queria que eu lhe contasse. Por isso, fique quieto. N�o diga nada que
lhe falei, est� bem?
Rafael deu de ombros. Achava um absurdo o cunhado levar um


homossexual para morar com eles, mas n�o adiantaria nada falar.
Pl�nio era o dono do dinheiro, era quem mandava, e ele n�o podia
questionar nada.

� Mas ele tinha de usar minhas roupas? � reclamou, nitidamente
demonstrando sua contrariedade.
� � s� por enquanto. Depois que tudo se acalmar, Pl�nio vai
buscar as coisas dele em sua casa.
� Enquanto isso, ele usa o que � meu? Ora, Lav�nia, francamente!
J� � um absurdo que Pl�nio queira trazer uma bicha para
morar conosco, mas tudo bem: quem manda aqui � ele, e eu n�o posso
dizer nada. Mas n�o acho que eu seja obrigado a concordar que
ele use minhas roupas. E se tiver alguma doen�a?
� Voc� est� exagerando. Romero � um rapazinho muito direito.
Vai ver quando o conhecer.
� N�o fa�o a menor quest�o de conhec�-lo.
� Mas vai. Ele agora mora conosco, vai fazer parte da fam�lia.
� Era s� o que me faltava!
� Quanto �s roupas, n�o se preocupe. Hoje � tarde sairei para
comprar algumas para ele, at� que Pl�nio busque suas coisas.
Na hora do almo�o, Romero foi apresentado a Rafael. A antipatia
foi rec�proca, mais pelo fato de que Rafael franzira o cenho ao
conhecer Romero do que pela repulsa.

Depois do almo�o, Lav�nia deixou Eric com a bab� e foi comprar
algumas pe�as de roupa para Romero. Pl�nio estava descansando
do plant�o noturno, e o menino ficou praticamente sozinho. Saiu
andando pela casa, conhecendo salas e sal�es, a piscina, a quadra
de v�lei, o jardim. Aquela casa mais parecia um clube, de t�o grande
e com tantas coisas. Romero estava maravilhado. Era realmente
uma beleza!

Quando voltou para casa, encontrou a bab� dando um suco a
Eric. O menino era uma gracinha, e Romero ficou encantado com
ele. J� estava come�ando a engatinhar, e Romero e a bab� divertiam-
se a valer com seus tombos e gorgolejos. De um canto, Rafael
observava-os com ar de ironia, at� que se aproximou e perguntou
com sarcasmo:

� Gosta de crian�as, Romero?
� Gosto muito.

� Prefere as meninas ou os meninos?
Romero sentiu o rosto arder, mas respondeu com aparente firmeza,
fingindo que n�o havia percebido o tom de ironia em sua voz:

� Gosto dos dois.
� Pois eu prefiro as meninas.
Afastou-se, com risinhos de deboche. Romero n�o se sentia
bem na presen�a de Rafael. O rapaz fazia-o lembrar de J�nior, o
que era bastante desagrad�vel. Olhando para ele, Romero ficou
imaginando onde � que J�nior estaria �quelas horas. Na confus�o,
ele aproveitara para fugir. Ser� que j� estava preso? O delegado
dissera-lhe que ele seria intimado a depor, tanto na delegacia quanto
em ju�zo. J�nior desgra�ara de vez sua vida. E, agora, Rafael parecia
querer inferniz�-lo tamb�m.

Toda a fam�lia de Romero esteve presente ao enterro de Judite,
menos Romero. A conselho de Pl�nio, ele n�o compareceu. O
jovem ainda quis protestar, alegando que era sua irm� querida, mas

o m�dico foi convincente:
� Por que se expor ainda mais? Quer ser humilhado novamente,
diante de toda a fam�lia?
� N�o.
� Pois, ent�o, o melhor que tem a fazer � n�o ir.
� Mas, doutor, Judite era minha irm�. Eu a amava muito.
� Voc� n�o precisa chorar em sua sepultura para provar que a
amava. Se existir algum lugar para onde as almas v�o depois de mortas,
Judite deve estar l�, sabendo quanto voc� a amava e ainda ama.
A muito custo, Pl�nio conseguiu convenc�-lo. Por mais que Romero
estivesse sentindo a morte da irm�, ainda guardava bem vivas
na mem�ria as palavras �speras e acusadoras do pai. E ele n�o
sabia se teria for�as para passar por aquilo novamente. Por isso, deixou-
se convencer.

Somente ap�s a missa de s�timo dia Pl�nio resolveu procurar a
fam�lia. Bateu � porta da casa e, assim que No�mia veio abrir, sentiu
o ar pesado de tristeza que vinha l� de dentro.

� Boa tarde, Dona No�mia � cumprimentou ele. � Lembra-
se de mim?

A fisionomia daquele homem n�o lhe era estranha, mas No�mia
n�o conseguia se lembrar de onde o conhecia.

� Do hospital � esclareceu o m�dico. � Sou o Dr. Pl�nio. Fui
eu que atendi sua filha no dia em que foi ferida.
No�mia agarrou-se � porta e desatou a chorar. Ainda n�o conseguira
se acostumar com a morte da filha, e aquele homem falava
sobre o dia da trag�dia como se fosse uma coisa corriqueira.

� V� embora, por favor � gemeu ela.
� Gostaria de falar-lhe um instante, se poss�vel.
� Meu marido n�o est�...
� N�o tem import�ncia. Por favor, � s� um minutinho.
� O que o senhor quer? Minha filha j� se foi. De nada v�o
adiantar seus conselhos m�dicos.
� N�o � sobre sua filha que vim lhe falar, mas sim sobre seu
filho.
No�mia largou a porta e fixou-lhe os olhos.

� O que disse? Sabe alguma coisa sobre Romero?
� Dona No�mia, seu filho est� comigo, em minha casa.
� Em sua casa?
� Sim. Naquele mesmo dia, levei-o para l�. Ele n�o tinha para
onde ir, � apenas uma crian�a. N�o podia deix�-lo ao abandono.
� Oh! Gra�as a Deus! � exclamou No�mia, m�os postas em
sinal de ora��o. � Deus ouviu minhas preces. Vamos, doutor, entre.
Puxou-o para dentro e fechou a porta. Queria aproveitar que
Silas n�o estava para ter not�cias do filho.

� Vim aqui para saber se voc�s n�o voltaram atr�s na decis�o
de expuls�-lo de casa.
Ela meneou a cabe�a com ar sofrido e considerou:

� Silas se recusa at� a ouvir falar no nome de Romero. Diz que
ele � o culpado pela morte de Judite. Mas n�o �. Sei que n�o �. Meu
filho andou metido com m�s companhias. Aquele tal de Mozatt o
viciou e o levou para o mau caminho. Mas ele � um bom menino.
Tenho certeza de que, se estivesse aqui entre n�s, abandonaria essa
vida de pecados.
Embora n�o concordasse com a opini�o de No�mia, Pl�nio
achou melhor n�o discutir. Ela era uma mulher muito conservadora
e jamais entenderia a situa��o do filho. Ainda assim, seu cora



��o de m�e falava mais alto, e ela parecia aliviada por saber que Romero
n�o estava desamparado.

� N�o vim aqui para discutir os motivos que levaram Romero
a escolher o caminho que escolheu. Vim apenas para me certificar
de que seu marido n�o o quer mais de volta.
� De jeito nenhum. Eu, por mim, jamais o teria mandado embora.
Mas o senhor sabe como �, n�o, doutor? O marido manda...
O que eu posso fazer? S� rezar.
� Entendo. Se � assim, creio que a senhora n�o se importar�
se ele permanecer em minha casa.
� Importar-me? Pelo contr�rio. Vou rezar todos os dias pelo
senhor. Deus h� de lhe pagar por essa caridade.
� N�o � caridade, Dona No�mia. � apenas uma quest�o de humanidade.
Seu filho � um bom menino, e eu tenho condi��es de
educ�-lo.
� Educ�-lo? Como assim?
� Vou coloc�-lo na escola, dar-lhe um futuro.
� Oh! Isso � muito mais do que poderia esperar.
� Apenas gostaria de poder levar suas coisas. Minha mulher
at� j� lhe comprou algumas roupas novas, mas estar em contato com
suas pr�prias coisas vai ajud�-lo a se acostumar mais depressa. Ele
ainda est� pouco � vontade.
No�mia sorriu e falou com orgulho:

� Esse � o meu Romero. Aprendeu bem tudo que lhe ensinei.
Pode ficar sossegado, doutor, que Romero n�o � um menino atrevido
nem confiado. N�o mexe em nada que � dos outros, n�o responde
mal. � um menino de ouro. Pode andar meio perdido, mas
educa��o ele tem.
� Isso � o que importa, Dona No�mia. E ent�o? Posso levar
suas coisas?
� Pode. Se o senhor me der licen�a, vou preparar umas sacolas
com as coisas de que ele mais gosta, para o senhor levar.
� �timo.
� Posso colocar alguns discos tamb�m? Romero sempre gostou
muito de m�sica.
� A vontade. O que a senhora quiser.
No�mia foi para o quarto, agradecendo a Deus por aquela b�n

��o. Nem tudo estava perdido. A filha fora-se para sempre, e n�o
haveria no mundo nada que apagasse sua dor. O filho, contudo, embora
tamb�m n�o estivesse mais com ela, ao menos fora acolhido
por um m�dico humano e bondoso.

Enquanto ela arrumava as coisas de Romero em algumas sacolas
de supermercado, Silas entrou em casa. Ao abrir a porta, deu de
cara com Pl�nio sentado no sof� da sala. O m�dico levantou-se para
cumpriment�-lo.

� Como vai, Sr. Silas? Tudo bem?
Ao contr�rio de No�mia, Silas lembrava-se muito bem dele.
N�o de quando tentara salvar a vida da filha, mas da vez em que
atendera Romero, logo ap�s o jovem ter sido violentado.

� Doutor � cumprimentou, com um aceno de cabe�a. � O
que faz aqui? Mais alguma coisa que dev�ssemos saber sobre a morte
de Judite?
� N�o. A morte de Judite � agora responsabilidade das autoridades.
A pol�cia deve estar investigando o caso.
� Est�o atr�s daquele cachorro. J�nior fugiu.
� Espero que seja encontrado logo.
Silas sentou-se defronte a ele e olhou-o com curiosidade.
� Se me permite perguntar, doutor, o que o traz aqui?
Pl�nio pigarreou e respondeu com cautela:
� Vim buscar algumas roupas para Romero. Ele est� em minha
casa.
Durante alguns segundos, pareceu a Pl�nio que Silas n�o havia
entendido direito o que ele dissera. Mas, passado o primeiro
susto, ele se levantou transtornado, deu uma volta na sala e retorquiu
irado:

� E muito atrevimento seu vir � minha casa tocar no nome
daquele ordin�rio!
� Perd�o, Sr. Silas � desculpou-se Pl�nio, levantando-se tamb�m.
� N�o queria ofender. S� pensei que gostaria de saber o paradeiro
de seu filho.
� Eu n�o tenho filho!
� Est� bem, se � assim que prefere. N�o vim aqui para discutir.
Vou pegar as coisas de Romero, se n�o se importar, e irei embora.

� Por que est� fazendo isso? � indagou, entre at�nito e desconfiado.
� Por acaso est� amasiado com ele?
� Eu!? Mas que id�ia! Romero � um garoto.
� � s� por isso? S� porque ele � um garoto? E se ele j� fosse um
homem? Seria diferente? O senhor � homossexual tamb�m? E por
isso que o est� ajudando?
� N�o. Estou ajudando-o porque ele � apenas uma crian�a,
n�o tem para onde ir. Mas n�o sou homossexual, n�o. Tenho mulher
e filho.
� Um menino?
� Sim.
� Pois, ent�o, vou lhe dar um conselho, para que depois o senhor
n�o venha me acusar de nada. Tome cuidado com seu filho.
Romero n�o � confi�vel. � um veadinho sem-vergonha e sem moral.
N�o me espantaria nada se seduzisse seu garoto tamb�m.
� Mas que disparate! Seu filho � homossexual, n�o � um
criminoso.
� Eu n�o tenho mais filho! Perdi tudo que tinha. Minha filha
morreu, e prefiro pensar que meu filho est� morto tamb�m.
� Como quiser.
Nesse instante, No�mia voltou para a sala, olhos rasos d'�gua.
N�o suportava ver o marido falar do filho daquele jeito.

� J� est� tudo pronto � avisou chorosa. � Se algu�m vier me
ajudar a pegar...
Vendo que Silas n�o se mexia, Pl�nio seguiu No�mia at� o quarto
que fora de Romero. No caminho, viu um outro, com a porta
aberta, uma colcha cor-de-rosa na cama, bichinhos de pel�cia numa
prateleira mais alta. Devia ter sido o quarto de Judite. Pl�nio engoliu
em seco e seguiu avante, parando na pr�xima porta.

No�mia havia arrumado as roupas, os livros, os discos e alguns
jogos de Romero em v�rias sacolas de supermercado.

� Coloquei coisas demais? � perguntou envergonhada.
� N�o, est� perfeito. Vamos levar isso para o carro.
Em duas viagens, j� haviam transportado tudo. Pl�nio despediu-
se apenas de No�mia, porque Silas havia ido para o quarto e
trancado a porta.


� Por favor, doutor � suplicou ela, com olhos �midos. � Cuide
de meu menino.
� N�o se preocupe. Cuidarei dele como se fosse meu pr�prio
filho.
� Deus h� de lhe pagar em dobro por tanta bondade. Nada h�
de lhe faltar at� o fim de seus dias.
� Obrigado.
� Estarei rezando pelo senhor e pela sua fam�lia.
� Reze por Romero. Ele vai precisar muito mais do que n�s.
Pl�nio deu partida no motor e foi embora. Pelo retrovisor, viu
No�mia parada na porta, as m�os sobre a boca, chorando. De Silas,
nem sinal.

No�mia voltou para casa sentindo-se mais confortada. Foi para

o quarto onde o marido estava e olhou para ele, em busca de um pouco
de compreens�o. Mas Silas abriu a porta novamente e, j� do corredor,
indagou com estudada frieza:
� O jantar est� pronto?
No�mia engoliu as l�grimas e passou por ele, desgostosa, balbuciando
com amargura:

� J� vou terminar.
Afastou-se pelo corredor e foi para a cozinha chorar suas l�grimas.
Sentia-se mais s� do que jamais estivera em toda a vida, pensando
em como faria para sobreviver sem a companhia dos filhos.


140


cap�tulo
ssim que desencarnou, Judite foi acolhida no plano
cap�tulo
ssim que desencarnou, Judite foi acolhida no plano
espiritual e submetida a longo tratamento em um hospital do espa�o.
Ao despertar, sentiu como se algo queimasse em sua barriga. A
princ�pio, n�o entendia direito o que havia acontecido. Embora bem
assistida, acordara muito confusa, achando que estava doente ou que
havia sofrido algum acidente. Levou algum tempo para compreender
o que se passara com ela.

F�bio, guia espiritual encarregado de orient�-la e esclarec�-la,
mostrara-se incans�vel durante toda a sua recupera��o. No come�o,
fora dif�cil. Judite aceitara o fato de que havia desencarnado, mas
sentia muitas dores no abd�men.

� Seu f�gado foi seriamente atingido � esclareceu o esp�rito,
ap�s ministrar-lhe revigorante passe. � Foi isso que a fez desprender-
se do corpo.
� N�o entendo o porqu� dessa dor. N�o morri? Ent�o n�o
deveria sentir mais nada.
� As coisas n�o s�o bem assim. Seu corpo flu�dico ainda
est� muito preso �s sensa��es da mat�ria, porque os seus sentimentos
continuam arraigados �s emo��es de sua vida corp�rea. Liberte-
se dessas emo��es e a dor tamb�m desaparecer�. Ela � mera
ilus�o que seu corpo astral alimenta, porque est� preso a sentimentos
inferiores.
� Sentimentos inferiores? � objetou Judite, entre perplexa e
aborrecida. � Que eu saiba, n�o desejo mal a ningu�m!

� N�o foi isso o que eu disse. Mas, enquanto permanecer com
essa raiva dentro de voc�, essa dor n�o vai passar.
� Raiva?! � indignou-se. � N�o tenho raiva.
� Tem, sim. Tem raiva de J�nior e de seu pai.
� Eles agora pertencem a outro mundo. N�o foi o que disse?
� Foi.
� Ent�o, como posso ter raiva de pessoas que n�o podem mais
conviver comigo? Sou apenas esp�rito; eles, mat�ria.
� Da mesma maneira pela qual ainda sente dor. Somos todos
esp�ritos e temos sentimentos. E sentimentos n�o se apagam com a
morte. Se transitamos entre v�rios mundos, nossos sentimentos
nos acompanham aonde quer que vamos. Cabe a n�s modific�-los
em favor de nossa melhora.
� Mas eu n�o tenho raiva. Como posso tirar de mim algo que
n�o tenho?
� Tem tanta raiva, que n�o consegue sequer enxerg�-la. Que
tal come�ar reconhecendo-a, para depois se livrar dela?
� Isso n�o � justo. Voc� quer justificar minha dor com um sentimento
que n�o existe em mim.
� Tem certeza?
� Tenho.
� Ent�o, venha comigo. Vamos juntos rezar por seu pai e por
J�nior.
Na mesma hora, todo o corpo flu�dico de Judite retesou-se, e
ela revidou com veem�ncia:

� Tamb�m n�o precisa exagerar. N�o tenho raiva, mas voc�
n�o acha que � querer muito que eu ainda v� rezar pelo homem que
causou minha morte?
� Isso n�o � raiva?
� N�o.
� Ent�o, o que �?
� �... �... n�o sei, n�o interessa!
� Pois, ent�o, reflita sobre si mesma. Se o que sente por J�nior
n�o � raiva, gostaria que me dissesse o que �.
� Est� bem! � explodiu ela. � � raiva, sim. E da�? O que quer
que eu fa�a? Que finja que n�o estou sentindo nada? Afinal, o desgra�ado
me matou!

� N�o quero que voc� finja nada. Ao contr�rio, fui o primeiro
a lhe pedir que reconhecesse que tem raiva.
� Est� bem, reconhe�o. E agora? A dor ainda continua l�.
� Por que sente raiva de J�nior?
� Por qu�? J� lhe disse: porque ele me matou. Eu era jovem,
bonita, tinha a vida toda pela frente. Mas ele veio e me tomou
tudo isso.
� Reflita mais um pouco, Judite. Voc� desencarnou jovem e
cheia de vida, � verdade. Mas fa�a uma an�lise verdadeira de seus
sentimentos. Ser� que voc� lamenta mesmo o fato de ter deixado
para tr�s todas essas coisas? Ou ser� que existe algo bem mais profundo
escondido a� dentro de voc�, algo que voc� teme rever?
� Como assim? N�o entendo.
� Pense, Judite, pense. Tente pensar em J�nior como um
pobre-coitado. Ser� que voc� consegue?
� N�o. Se � para ver as coisas desse jeito, pobre-coitada sou
eu, que morri, ao passo que ele est� l�, no bem-bom.
� Quem disse que ele est� no bem-bom?
� Ele est� vivo, n�o est�?
� E quem disse que isso � bom? �s vezes, pode ser melhor estar
desencarnado.
Judite parou para pensar. Lembrou-se de tantas pessoas que viviam
no mundo sofrendo, aleijadas, enfermas, miser�veis. Nessas circunst�ncias,
era melhor mesmo estar morta.

� Mas esse n�o � o caso de J�nior � insistiu.
� Quem disse que n�o?
Ela n�o respondeu. Ele continuou:
� Quer saber o que aconteceu a ele?
Judite titubeou, mas acabou aquiescendo:
� Quero.
� Ent�o, venha comigo.
Imediatamente, Judite viu-se transportada, ao lado de F�bio,
a um barraco numa favela. O lugar era sujo e escuro, e Judite p�de
perceber v�rios esp�ritos circulando por ali. Recuou assustada quando
um vulto alto e forte passou rente a eles, olhos vermelhos, e
entrou no barraco.

143



� N�o se preocupe � tranq�ilizou F�bio �, eles n�o podem
nos ver.
A um sinal, Judite seguiu F�bio para dentro do barraco. Largado
sobre uma cama de ferro, J�nior parecia adormecido. A seu
lado, uma seringa vazia e uma tira de borracha davam sinais de
que ele consumira drogas. Colado a ele, o vulto parecia adormecido
tamb�m.

� Mas o que � isso? � indagou Judite, aterrada.
� J�nior anda se drogando. Desde o dia em que matou voc�,
vem tomando fortes doses de hero�na. A vibra��o de sentimentos
dif�ceis, como a culpa e o �dio, encontrando na droga um facilitador
de sintonia, atraiu v�rios esp�ritos viciados, que se aproveitam
da droga que ele injeta no sangue para se drogarem tamb�m. Fora
os que j� o acompanhavam antes.
� Meu Deus, que horror!
� Sim, Judite, � um horror. Esse que a� est�, colado a ele, � um
velho conhecido seu. H� muito vem assediando J�nior, inspirando-
lhe todos os atos que ele praticou at� ent�o.
� Quer dizer que ele me matou e violentou Romero por causa
desse esp�rito?
� Eu n�o disse isso. Disse apenas que o esp�rito o inspirou. Ele
s� aceitou as sugest�es porque quis. Ningu�m est� obrigado a proceder
de um jeito que n�o quer. O que acontece � que J�nior � um
esp�rito por demais fraco, inexperiente, despreparado para a vida.
Ainda guarda muito do �dio de antigamente e, com isso, chamou
para junto de si outros esp�ritos que tamb�m se alimentam de �dio.
Principalmente por Romero.
� Por qu�? O que Romero lhes fez?
� Em breve, voc� vai descobrir.
� Descobrir o qu� ?
� Sua liga��o, e a de Romero, com J�nior.
� Voc� est� me dizendo que J�nior, Romero e eu j� nos conhec�amos
de outras vidas?
� Isso mesmo. Voc�s se conheciam e se ligaram reciprocamente.
� Mas como? Por qu�?
� Voc� mesma vai descobrir. Mas n�o agora. Neste momen

to, quero que olhe bem para J�nior e me diga: quem est� em situa��o
melhor?

� Isso n�o vem ao caso. Ele est� assim por culpa dele mesmo.
Ningu�m mandou virar assassino.
� Tem raz�o. A culpa, ou melhor, a responsabilidade n�o � de
mais ningu�m, a n�o ser dele mesmo. Mas ser� que isso nos impede
de nos compadecermos de sua sorte e de nos utilizarmos de todos
os meios dispon�veis para ajud�-lo? Ser� que somos iguais a ele,
t�o iguais que nos tornamos indiferentes ao sofrimento e � dor,
achando bem feito, porque ele teve o que mereceu? Ser� certo deixar
que se queime a crian�a que teima em brincar com fogo ou n�o
cuidar de seu ferimento s� porque foi teimosa e n�o nos obedeceu?
Judite engoliu em seco e olhava de J�nior para F�bio, sem saber
bem o que dizer ou pensar.

� Olhe, F�bio � tornou em d�vida �, o estado dele � lament�vel.
Mas, se voc� quer saber se sinto pena dele, n�o sinto, n�o.
Cada um tem aquilo que merece.
� Sem d�vida. Ser� que n�o foi por isso mesmo que ele a
assassinou?
Ela recuou aterrada, sufocando um grito de indigna��o e espanto:


� Voc� est� insinuando que eu mereci ser assassinada?
� Foi voc� quem falou. Disse: cada um tem aquilo que merece.
� N�o foi isso o que eu quis dizer. Foi apenas uma maneira
de falar.
� Uma maneira de dizer cada um tem aquilo que merece, a menos
que seja comigo, porque s� mere�o coisas boas, e as ruins acontecem
por injusti�a?
Judite silenciou, pensativa. No fundo, ele tinha raz�o. Utilizando
aquele racioc�nio, ela fizera por onde ser assassinada. E Romero
tamb�m merecera ser violentado.

� N�o acha que esse merecimento � muito cruel e vingativo?
� Se voc� olhar pelo lado da puni��o, � mesmo. Mas, se encarar
as coisas de forma construtiva, ver� que a vida � como um
quebra-cabe�a, no qual cada pe�a se encaixa em seu lugar e s�
nele. As vezes, nos enganamos e achamos que determinada pe�a pertence
a outro lugar, mas basta tentarmos encaix�-la para perceber

mos nosso engano. Se, naquele momento, ainda n�o sabemos que
lugar lhe foi destinado, deixaremos a pe�a � espera, at� que finalmente
surja o espa�o vazio que s� por ela poder� ser preenchido.

� A vida � um jogo, F�bio? � isso que est� tentando me dizer?
� Digamos, de uma forma bem-humorada, que � um jogo educativo,
movido por pe�as denominadas experi�ncia. Participa quem
quer e quem sabe, e quem n�o sabe tenta aprender. Cada qual em
seu momento, vai encaixando as pe�as no lugar que j� consegue reconhecer
como sendo o local que a elas � destinado. Encaixadas todas
as pe�as, pode-se dizer que o esp�rito j� n�o tem mais nada a experienciar
nesse plano e al�a a outros, onde novos jogos lhe ser�o
propostos, com objetivos mais inteligentes e sublimes. Nada acontece
fora de hora ou de lugar, e cada um aprende o que precisa para
avan�ar em seu est�gio de evolu��o. � a experi�ncia construindo e
desenvolvendo o jogo, tornando-o din�mico, atrativo, pedag�gico
e extremamente compensador.
� E J�nior? Tamb�m participa desse jogo?
� Tem d�vida?
� Ele est� encaixando as pe�as no lugar errado.
� Exatamente. Enquanto n�o perceber seu erro, o jogo n�o se
completa e poder� ter de se repetir.
� Ele est� � se matando.
� E n�o vai durar muito.
� Como assim? Quer dizer que ele tamb�m vai morrer?
� Veja bem: ele n�o tem sa�da. N�o a que ele deseja. O melhor
para ele seria permitir que a pol�cia o prendesse, porque seria
�til para ele viver essa experi�ncia. Mas, por medo e covardia, enveredou
por um caminho paralelo, cuja possibilidade j� conhecia
e cujo risco assumiu. E J�nior, ao contr�rio de voc� e de Romero, �
um fraco. N�o vai conseguir suportar suas pr�prias escolhas.
� Vai se matar?
� A droga vai mat�-lo, o que d� no mesmo.
� E da�? Talvez seja melhor para ele. Vai se livrar da cadeia e
ainda vai ter assist�ncia.
� Engana-se, minha querida. Quem � suicida dificilmente
tem um bom amparo. As culpas s�o t�o grandes que o esp�rito, mes

mo sem saber, recusa qualquer tipo de ajuda. Nem enxerga o aux�lio
do alto e cai num vale de sombras.

� Cruzes!
� J�nior n�o vai fugir � regra. O futuro que o aguarda � por demais
triste e doloroso.
� Por que voc� n�o faz algo para ajud�-lo, j� que est� com tanta
peninha dele?
� Eu n�o estou com peninha dele. Ele tem seu livre-arb�trio.
E, depois, as companhias que atraiu n�o me permitem alcan�ar sua
mente. Sem saber, ele est� cada vez mais sendo tomado por esses esp�ritos
menos esclarecidos.
� Como voc� mesmo disse, ele tem seu livre-arb�trio. E est�
usando-o da pior forma poss�vel.
� Ele ainda n�o est� maduro o suficiente para us�-lo de outra
maneira. Est� fazendo o melhor que pode. Eu apenas lamento o fato
de J�nior estar desperdi�ando um tempo precioso.
� Uma encarna��o jogada no lixo, voc� quer dizer.
� Nada disso. Toda encarna��o � aproveitada. De tudo na vida,
h� de se tirar uma li��o, ainda que essa vida seja abreviada por medo
ou covardia. Ele apenas desperdi�a um tempo que poderia estar aproveitando
em outras experi�ncias, postergando, assim, de maneira
inevit�vel e mais dolorosa, seu crescimento.
� Ou�a, F�bio, tudo isso � muito bonito, mas n�o estou entendendo
aonde voc� quer chegar.
� Quero que voc� se recorde do passado.
� Para qu�? Para descobrir o que foi que fiz a J�nior que justificasse
o que ele me fez? A mim e a Romero?
� Para entender, Judite. A si mesma, a Romero e a J�nior. E
a seu pai.
� Meu pai?
� Voc� n�o achou que seu pai, justo ele, fosse um estranho em
sua vida, achou?
� N�o sei. Nunca pensei nisso.
� Pois j� � hora de pensar.
� Meu pai � um homem cruel.
� Crueldade � uma falsa interpreta��o da ignor�ncia. Seu pai
est� ferido e magoado. E voc�, com raiva.

� Raiva dele tamb�m?
� Vai negar?
� Acho que n�o d�, n�o � mesmo? A vida toda, meu pai foi
um homem autorit�rio. Nunca nos tratou com carinho.
� Cada um tem aquilo que merece. S�o as suas palavras. Eu diria
mais: cada um tem aquilo de que precisa. � Judite calou-se, e
F�bio chamou-a com um gesto de m�os: � Vamos. Nossa presen�a
aqui j� n�o � mais necess�ria.
Voltaram � col�nia, e F�bio deixou Judite em seu alojamento,
sozinha com seus pensamentos. A visita a J�nior fora proveitosa. Judite
estava com raiva, mas era uma mo�a inteligente e sens�vel. Aos
poucos, come�ou a questionar seus pr�prios sentimentos, e as palavras
de F�bio foram se tornando vivas dentro dela. Voltou os
olhos para a janela, onde um sol alaranjado espalhava seu colorido
de ouro sobre o planeta. Aquilo lhe trouxe � mem�ria fragmentos
h� muito esquecidos. E ela come�ou a recordar.



medida que o sol ia se pondo, Judite ia estreitando medida que o sol ia se pondo, Judite ia estreitando
mais e mais a vista, tentando enxergar o bordado que tinha sobre

o colo. Estranhou o fato de estar bordando, coisa que jamais fizera,
mas sentiu que aquela atividade fazia parte de sua vida. Em dado momento,
ergueu os olhos e olhou-se no espelho, parando assombrada.
A imagem que o espelho lhe devolvia era de uma Judite diferente,
muito loura e de profundos olhos azuis. Espantou-se consigo
mesma... Seria mesmo ela? Algo dentro de si lhe dizia que estava
diante de algu�m que ela fora um dia e que ficara para tr�s, mas algu�m
cujas atitudes passadas ainda se faziam sentir no presente.
Voltou a aten��o para o bordado e come�ou a desligar-se de
sua mente. Sentiu que a Judite que fora um dia ia sumindo e dando
lugar �quela mulher loura que bordava incessantemente. De
repente, percebeu que j� n�o pensava mais como a Judite de hoje.
Ainda era ela mesma, embora com outro corpo, outra mente, outros
pensamentos. Viu seus companheiros de jornada terrena com
outros corpos, outros rostos, trajando roupas diferentes e utilizando
uma linguagem estranha. Mas eram os mesmos, ela sabia. Estavam
todos ali. Inclusive ela mesma. Identificando um a um, come�ou
a se lembrar...

Naquele tempo, Judite provinha de uma fam�lia de nobres e vivia
no campo, numa mans�o rica e luxuosa, juntamente com o marido
e o filho. A m�e, No�mia, logo ap�s a morte do pai, gastara toda
a fortuna para pagar as d�vidas que o marido deixara, e No�mia fora

149


obrigada a aceitar a caridade de Silas, ent�o seu genro, para n�o ter
de viver na rua. Silas acolhera-a a contragosto, s� para satisfazer a
chorosa esposa, mas n�o simpatizava com a sogra nem admitia que
se intrometesse em seus assuntos dom�sticos. Por isso, No�mia vivia
calada, quase como uma estranha, evitando ao m�ximo dar opini�o
sobre a vida da filha, do genro e do neto, a quem adorava, mas
de quem n�o podia muito se aproximar.

Quando Romero, filho de Judite e Silas, completou sete anos,
Silas sentiu a necessidade de lhe providenciar esmerada educa��o.
N�o tinha tempo nem paci�ncia para dar aulas ao filho, portanto

o melhor era encontrar algu�m que pudesse lhe ensinar a boa educa��o
e as letras.
Partiu para a cidade em busca de um preceptor e foi apresentado
a um rapazinho de gestos afetados, muito h�bil na arte de ensinar,
embora n�o fosse propriamente o que se pudesse chamar de
homem. Mas aquilo agradou Silas. Admirado com a educa��o e a finura
do rapaz, decidiu contrat�-lo, achando que estaria resolvendo
dois problemas de uma s� vez. Sendo o rapaz um sujeito efeminado,
Silas n�o precisaria se preocupar com os perigos que a proximidade
de um homem atraente e viril pudesse representar para sua jovem
e fogosa mulher. Satisfeito consigo mesmo, partiu com F�bio
para sua mans�o no interior.

No princ�pio, ningu�m percebeu nada. F�bio era um jovenzinho
muito atraente, de gestos cuidadosamente afetados para enganar
o marido de Judite. Silas nunca fora um homem m�sculo e, por
isso mesmo, tinha muito ci�me da mulher. Fora por medo de perd�-
la que aceitara aquele preceptor efeminado, sem desconfiar que
aquilo n�o passava de uma manobra para engan�-lo e conseguir

o emprego.
F�bio enganara todo mundo, at� mesmo a pr�pria Judite, que,
julgando-o um efeminado irremedi�vel, n�o lhe prestava muita
aten��o. Aos poucos, por�m, o rapaz foi se interessando por ela, at�
que n�o p�de mais esconder. Um dia, aproveitando-se de que ningu�m
estava olhando, tomou-a nos bra�os e declarou seu amor. Apesar
do espanto, Judite correspondeu. Era uma mulher jovem e insaci�vel,
insatisfeita com o desempenho sexual do marido, que, al�m
de j� se aproximar da casa dos sessenta anos, nunca fora um aman



te ardoroso. N�o eram raras as ocasi�es em que n�o conseguiam
manter rela��es, o que a deixava frustrada e infeliz.

O filho, Romero, desde cedo demonstrara um temperamento
dif�cil. Era arrogante, atrevido e mal-educado. Gostava muito da
m�e e de F�bio, a quem considerava seu �nico amigo, mas jamais
poderia imaginar que ele e sua m�e estivessem tendo um caso.
Quando descobriu, pensou que o mundo fosse desabar sobre ele. F�bio
dormia num quarto ligado ao de Romero. Este, uma noite, escutou
ru�dos vindos l� de dentro. Sem saber do que se tratava,
escancarou a porta e parou estarrecido. Deitados na cama, nus, a
m�e e F�bio se amavam.

Foi um choque. O menino ficou espantado e come�ou a chorar,
amea�ando fazer um esc�ndalo, mas Judite conseguiu cont�-lo.
Pegou-o no colo e disse-lhe quanto o amava. Explicou-lhe que ela
era mulher e tinha certas necessidades que ele ainda n�o podia compreender,
e o pai, que era quem deveria prov�-las, j� n�o tinha mais
condi��es de faz�-lo. Mas Silas era seu marido, e ela lhe devia respeito.
O que faria se descobrisse? E se a matasse? Ser� que Romero
estava preparado para ficar sem a m�e? Judite explicou ao filho que
a melhor maneira de evitarem uma desgra�a seria mantendo sil�ncio.
E ainda havia F�bio. Silas mataria ou mandaria embora o �nico
amigo de verdade que Romero tivera em toda a vida. Era isso o
que ele queria?

Com medo de perder o amigo e, principalmente, a m�e, Romero
aceitou. N�o entendia bem por que aquilo estava acontecendo,
mas acabou se acostumando. Todas as noites, quando
Judite chegava para se deitar com F�bio, Romero corria a espreit�-
los. Aos poucos, foi achando aquilo tudo muito natural. J� rapazinho,
tentava repetir com as criadas o que aprendia com a m�e
e seu amante.

Romero cresceu e tornou-se um rapaz muito bonito, cabelos e
olhos castanhos, corpo esbelto e bem torneado. Nas costas, uma cicatriz
em forma de meia-lua, um pouco acima das n�degas, emprestava-
lhe um charme especial que levava as mulheres � loucura. Mas
tinha problemas s�rios, com os quais n�o sabia lidar. N�o conseguia
se apaixonar por mo�a nenhuma. S� o que lhe interessava era o
sexo. Quanto mais dormia com as mulheres, menos se apegava a


elas. Seus gestos lhe pareciam maquinais, muito diferentes dos de
Judite, e Romero buscava em seus corpos, inconscientemente, o corpo
ardente da m�e. A m�e era o fruto de sua paix�o, o objeto do desejo
proibido que jamais sonharia ter. Nenhuma mulher se igualava
a ela, e Romero vivia insatisfeito, sempre � procura de algo que
preenchesse o vazio e a car�ncia que Judite deixara em seu corpo e
em sua alma.

Com o tempo, esse vazio foi crescendo, pois Romero jamais
conseguia se sentir realizado com mulher alguma. At� que, um dia,
foi apresentado a uma mo�a, filha de um parente distante de seu pai,
por quem come�ou a se interessar. A mo�a fora mandada ao campo
pelos pais para tentar amenizar um grave defeito de seu car�ter:
era ninfoman�aca. Aos dezesseis anos, j� havia se deitado com praticamente
todos os homens que integravam a alta sociedade que freq�entavam,
inclusive alguns maridos de mulheres importantes.
Pretendiam seus pais que ela passasse algum tempo longe das atribula��es
da sociedade, em meio � natureza, onde n�o pudesse ter
muito contato com rapazes.

A mo�a, de rara beleza, possu�a uma sensualidade exacerbada
e n�o se importava com o ju�zo que faziam a seu respeito. Era voluntariosa
e sedutora como ningu�m. Poucos eram os homens que
conseguiam resistir a seu ass�dio. Muitos se apaixonavam, mas a
mo�a, de nome Teresa, era fria e insens�vel, pouco se importando
com o sentimento que os homens nutriam por ela. Dizia-se que um
rapaz havia enlouquecido por sua causa, enquanto muitos outros se
entregavam ao desespero e viviam acabrunhados e tristes.

Os pais, desesperados, tentavam prend�-la dentro de casa,
amea�ando envi�-la para um convento ou uma terra long�nqua, mas
Teresa n�o se importava. No fundo, possu�a certo dom�nio sobre os
pais, que j� come�avam a temer pela sanidade da filha, vendo perdida
sua reputa��o.

Quando o marido de uma influente dama da sociedade se
suicidou, deixando aos p�s da cama em que ingerira forte dose de
veneno um bilhete apaixonado, os pais de Teresa n�o viram outra
sa�da: ou afastavam a filha dali ou corriam o risco de algum apaixonado
acabar assassinando-a. Feito o contato com Silas, Teresa foi
enviada para sua casa de campo, onde o inevit�vel logo aconteceu.


Teresa e Romero apaixonaram-se e, ap�s intenso e tumultuado romance,
acabaram por ficar noivos.

Os pais da mo�a adoraram a id�ia, achando que Romero seria
a salva��o de sua filha. Mas Silas n�o gostou. Ver o nome de sua fam�lia
associado ao daquela devassa era demais. Concordara em receb�-
la em sua casa por considera��o a seus pais, e tamb�m porque
eles lhe ofereceram rendosa propriedade como paga por aquele favor.
Mas um casamento entre aquela ninfoman�aca e seu filho estava
fora de cogita��o.

S� que Romero n�o era o tipo de homem que se deixasse dominar,
nem Teresa o tipo de mulher que se intimidasse com facilidade.
O temperamento sensual de ambos os unira feito dois �m�s,
e tudo que queriam era ficar juntos. Marcaram a data do casamento,
para desgosto de uns e alegria de outros. As v�speras das bodas,
uma desgra�a sucedeu. Quando os noivos cavalgavam juntos, o cavalo
de Teresa assustou-se com uma cobra e deu imenso pinote, jogando
a mo�a ao ch�o com viol�ncia. Na queda, Teresa bateu com
a cabe�a numa pedra e morreu.

Romero pensou que fosse enlouquecer. Buscou apoio na m�e,
mas ela estava ocupada demais com F�bio para lhe dar muita aten��o.
Afagou seu rosto, beijou-lhe as faces e tranq�ilizou-o, dizendo
que, mo�as solteiras, havia muitas pela regi�o. A av�, que n�o costumava
dizer nada, permaneceu silente, temendo uma rea��o violenta
do genro. Sentia pena do neto, mas n�o ousava apoi�-lo, com
medo de que Silas cumprisse a amea�a de expuls�-la de sua casa. O
pai, por sua vez, agradeceu imensamente aquele infort�nio. Estavam
resolvidos seus problemas.

Depois da morte de Teresa, Romero jurou que jamais tornaria
a se apaixonar. A falta da noiva despertou novamente em seu �ntimo
o desejo oculto, e n�o reconhecido, pela m�e. Sem perceber,
jogara de volta seus sentimentos para Judite. Toda aquela sensualidade
que sentira com rela��o a Teresa retornava agora para a
m�e, s� que mais intensa, marcada pela frustra��o. Romero passou
a sentir ci�me da m�e, n�o gostava de v�-la com F�bio e vivia se-
guindo-a com o olhar, acompanhando os movimentos leves de seu
corpo feminino.

Seu desespero foi aumentando cada vez mais. Perdera sua c�m



plice de prazeres, a �nica mulher com quem conseguira se identificar.
E a m�e, objeto secreto de todos os seus desejos, cada vez lhe
prestava menos aten��o. Romero voltou a dormir com todo tipo de
mulher, sem jamais conseguir satisfazer-se. Justificava sua insatisfa��o
com a diferen�a que via entre elas e Teresa, mas a verdade era
que nenhuma daquelas mulheres supria a car�ncia da m�e que Romero
sentia, n�o s� em seu corpo, mas em seu cora��o.

Aos poucos, seu car�ter foi se distorcendo cada vez mais, naquela
incessante e desenfreada busca de prazer. Era preciso experimentar
outras coisas. As mulheres n�o conseguiam satisfaz�-lo por
completo, deixando sempre a impress�o de que lhe faltava algo mais.
Desesperado, procurou um efeminado, mas n�o conseguiu o prazer
que buscava. Ainda n�o era aquilo que queria.

No auge de sua insatisfa��o, come�ou a reparar nas garotinhas,
entre dez e treze anos, que trabalhavam nos campos de planta��o.
Percebeu que elas o excitavam, e talvez estivesse ali a solu��o que
procurava. Rico e poderoso, pagava pelo sexo infantil. Oferecia aos
pais das meninas somas vultosas em troca de algumas noites de prazer
com suas filhas, muitas das quais ainda nem haviam se tornado
mocinhas. Alguns homens ainda relutavam, mas o poder do dinheiro
falava mais alto, e muitas crian�as eram levadas ao leito de Romero
pelas m�os gananciosas dos pr�prios pais.

Tudo para ver se Romero conseguia reencontrar o prazer que
um dia conhecera e perdera. Mas as meninas n�o eram Judite e n�o
conseguiam repetir com ele os mesmos movimentos, os mesmos
sussurros, o mesmo tremor que ele, por tantas e tantas vezes, presenciara
no corpo da m�e. A desculpa que dava a si mesmo era que
jamais conseguiria encontrar algu�m que se igualasse a Teresa. Porque
Teresa, sem que ele soubesse, fora a �nica que conseguira chegar
perto do que Judite sempre representara para ele.

Embora as meninas o excitassem e lhe dessem prazer, n�o bastavam
para suprir sua lubricidade, e ele resolveu experimentar tamb�m
os meninos. Assim como as meninas, Romero pagava para que
os pais levassem seus filhos at� ele. Talvez pudesse vivenciar com
os garotos o que gostaria de ter sentido, ele mesmo, com as car�cias
e beijos da m�e. Mas os meninos n�o eram Romero, assim como Romero
jamais seria igual a Judite.


Com o tempo, isso passou a ser um costume, e a �nica forma
que Romero encontrou de chegar perto de saciar sua sede de sexo
era dormindo com crian�as. E ele n�o se dava conta de que a �nica
pessoa capaz de realmente satisfaz�-lo plenamente seria a �nica
que jamais poderia ter. Mesmo em seus desvios, Romero jamais poderia
conceber que o que sentia era uma paix�o plat�nica pela
m�e. Por isso, entregou-se de corpo e alma �quelas pr�ticas e, sempre
que queria, mandava buscar um menino ou uma menina para
satisfazer seu v�cio. As crian�as choravam e imploravam, mas ele
lhes prometia doces e brinquedos, e elas acabavam cedendo.

Quando o pai descobriu, foi um tremendo choque. Silas j�
desconfiava de que Romero levasse mo�as para seu quarto, mas
jamais poderia imaginar que se deitasse com crian�as. Ao surpreend�-
lo com um garotinho de onze anos nos bra�os, Silas quase perdeu
a raz�o. Agarrou o filho pelos cabelos e tirou-o do quarto a tapas,
jurando que ia mat�-lo. Foi um desastre.

Revoltado com o pai, Romero acabou por delatar a m�e, s� para
se satisfazer com sua humilha��o. Contou-lhe sobre seu antigo caso
com F�bio, e Silas sentiu imenso desgosto. Atormentado, soltou o
filho e parou estupefato, sem saber o que o revoltava mais: se a trai��o
da mulher ou a indignidade do filho. Empurrou-o para longe e
afastou-se acabrunhado. S� agora compreendia tudo. Por isso Judite
insistira em n�o despedir o preceptor quando Romero completou
seus estudos. Pediu-lhe que mantivesse o rapaz ali, para
ajud�-la com a literatura, e Silas concordou. Como fora est�pido!
E, agora, corro�a-se de ci�me, o cora��o dilapidado pela dor da trai��o.
Quanto mais pensava nas palavras de Romero, mais se indignava.
Por que Judite traiu-o logo com o preceptor, um efeminado?

Esse pensamento foi dominando sua mente, fazendo com que
refletisse sobre a mentira de F�bio, e a verdade desabou sobre ele
feito uma avalanche. Analisando aquela situa��o, sentiu profundo
�dio de Judite. Aquele sentimento horrorizou-o, porque o �dio que
sentia, voltara-o todo para Judite, jamais para F�bio. Frustrara-se
com o preceptor, n�o com a mulher. Sentia-se tra�do por ele, n�o
pela mulher, porque, no fundo, era a F�bio que Silas desejava, n�o
a Judite.


Chocou-se profundamente com essa descoberta. Se ele era homem,
como podia estar sentindo tudo aquilo por outro homem? Deveria
lamentar era pela mulher. Mas Judite, estranhamente, n�o era
a causa verdadeira de seu ci�me. A causa de sua dor n�o era ela. Era
F�bio. Era a ele que temia perder, n�o a ela. Tentou imaginar Judite
nos bra�os de F�bio e quedou estarrecido. O que sentia, na verdade,
era inveja. Inveja porque gostaria de estar no lugar da mulher,
gostaria que fosse ele, n�o Judite, o amante de F�bio. Foi s� ent�o
que percebeu que teria dado tudo para sentir em sua boca os l�bios
quentes e macios do preceptor.

Por isso seu casamento sempre fora t�o dif�cil. Jamais conseguira
satisfazer a mulher. O sexo cansava-o e causava-lhe at� certa
repulsa, e ele precisava se esfor�ar ao m�ximo para conseguir
manter rela��es com Judite. Silas obrigava-se a algo que n�o era de
sua natureza. Era um homem que, inconscientemente, admirava outros
homens, n�o se interessando pelas formas nem pelos encantos
femininos.

Ao constatar essa verdade, sentiu-se imensamente angustiado.
S� ent�o se dava conta de que passara a vida toda se enganando.
Pensou em se matar. Assumir-se como efeminado representaria o fracasso
de toda uma vida. Seria a vergonha, o esc�rnio, a humilha��o.
Como aceitar perder o respeito da mulher, do filho e de toda
a sociedade? Jamais!

Faltou-lhe coragem para tirar a pr�pria vida. Ao encostar o
cano da pistola na t�mpora, seu dedo hesitou no gatilho, e ele recuou.
Al�m de tudo, era um covarde! Guardou a pistola de volta
no arm�rio e p�s-se a chorar. Foi quando Romero o surpreendeu aos
prantos. Inteligente e perspicaz, logo percebeu o dilema do pai. Seguindo
seus olhares, notou a dor que os nublava todas as vezes em
que fitava F�bio. Sim. O pai sofria pelo rapaz, n�o pela mulher. Era
um efeminado, sem coragem de se assumir, sofrendo calado a dor
de seu desvio.

Movido por sentimentos menos dignos, Romero aproveitou-se
para escarnecer do pai. Prometeu sil�ncio, em troca de que ele
continuasse permitindo que levasse crian�as para seu leito. Silas,
com medo, aquiesceu, e entre pai e filho estabeleceu-se um pacto
de sil�ncio, embora Romero n�o perdesse a oportunidade de humi



lh�-lo, sempre que se viam sozinhos. Chamava-o de efeminado e sodomita,
perguntando-lhe quantas vezes j� havia sonhado com F�bio
fazendo amor com ele. Apesar da raiva, Silas n�o dizia nada. O
medo de ser descoberto acabava paralisando-o, e ele ia guardando
dentro de si a raiva que sentia de si mesmo e daquela vergonhosa
doen�a que o transformara em um homem pela metade.

Aos poucos, um �dio surdo come�ou a crescer dentro dele. �dio
de si mesmo, do filho, da mulher, de F�bio. Como n�o se atrevia a
fazer nada contra ningu�m, descontava na sogra. Humilhava No�mia
publicamente, gritava com ela, dava-lhe ordens como se fosse
uma criada, sujeitando-a �s tarefas mais degradantes. E No�mia sofria
calada, temendo ser posta na rua, aceitando passivamente tudo
que ele lhe dizia e ordenava.

Pior do que tudo era o �dio que sentia de si mesmo. Silas queria
ser homem. Nascera homem, precisava da virilidade. Jamais
aceitaria aquela aberra��o que descobrira ser. Por qu�? Por que tivera
de se transformar naquilo? N�o era nenhuma mulherzinha.
Era homem, homem! Dia e noite, ficava repetindo para si mesmo
que n�o era um efeminado. Era homem! Todas as vezes em que via
F�bio, por�m, suas palavras ca�am no vazio, e ele se desesperava, porque,
por mais que quisesse negar, desejava ardentemente o corpo
do preceptor.

N�o entendia por que Deus permitia que aquilo acontecesse.
Para ele, era antinatural, e ele estava embrenhado naquela deformidade
da natureza. Mas ningu�m poderia saber. Jamais! Precisava
continuar fingindo que era um homem de verdade. Resolveu
ocultar-se do mundo. Tornou-se um homem sombrio e ap�tico, desinteressado
da vida e dos problemas dom�sticos. Come�ou a emagrecer
e passou a se isolar de tudo e de todos. Quase n�o sa�a do quarto
e n�o se importava mais com o correr dos dias e dos meses. Para
ele, sua vida j� havia terminado.

Assim foram passando os anos. Romero continuava a seduzir
crian�as para preencher o vazio deixado pela m�e. Judite, por sua
vez, cada vez mais apaixonada por F�bio, percebendo a passividade
de Silas, j� nem se dava mais ao trabalho de esconder seu caso
amoroso. Tanto desgosto acabou por destruir o fr�gil cora��o de Silas.
Em uma manh� fria de inverno, cerrou os olhos para a vida. Para


Judite, foi a liberta��o. Agora, sim, via-se livre para assumir seu amor
de tantos anos. Embora Romero fosse contra, ela se casou com F�bio
logo ap�s o t�rmino do per�odo pr�prio de luto e mudaram-se
para a cidade.

Quanto mais velho Romero ficava, mais se interessava por
crian�as. Aos trinta e oito anos, era ainda solteiro e sem perspectivas
de nenhum noivado. N�o que faltassem mo�as interessadas
nele. Era Romero quem n�o conseguia se interessar por mais ningu�m.
Embora Judite aceitasse a justificativa da perda da noiva
querida, algo no comportamento do filho chamou-lhe a aten��o.
Estava agora mais velha, casada com o homem que realmente amava,
e o fogo da paix�o come�ava a arrefecer. Um pouco liberta do
apego que sentia por F�bio, p�de reparar melhor nas atitudes de Romero,
que lhe pareceram bem estranhas. Passou a espreit�-lo e, em
pouco tempo, descobriu o que ele fazia.

Assim como Silas, Judite tamb�m ficou chocada, mas, n�o sabendo
como proceder, foi procurar F�bio. S� que F�bio j� n�o estava
mais interessado no comportamento de Romero. Ele agora era
um homem, e F�bio n�o era mais seu preceptor. Achava que n�o
deviam se envolver e aconselhou Judite a fingir que de nada sabia.
Se os pais das crian�as n�o reclamavam, por que ela deveria
se preocupar?

Certa tarde, foi procurada por um velho conhecido, que vivia
numa casa pr�xima � sua. O homem estava abismado. O filho de
onze anos e a filha de dez lhe disseram que haviam sido molestados
por Romero.

� Como assim, molestados? � quis saber Judite, perplexa.
� Molestados, a senhora entende. Meu Iv� e a pequena Brigite
disseram que Romero os acariciou.
� Ora, senhor, fa�a-me o favor. Acariciar crian�as, que eu
saiba, n�o � nenhum crime.
� N�o quando as car�cias atingem partes impr�prias � rebateu
o homem, vermelho de raiva e de vergonha. � Vou lhe dar um
conselho, senhora. Mantenha seu filho longe dos meus.
Judite n�o respondeu. N�o tinha o que dizer. Aquele homem
era J�nior, um homem severo, que enriquecera subitamente, envolvido
em neg�cios escusos. J�nior terminou suas amea�as, levantou


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se irado e foi embora, e Judite ficou deveras preocupada. Queria ajudar
o filho, mas n�o sabia como. Resolveu procur�-lo. Romero
olhou para ela com um misto de ternura e m�goa, e anunciou:

� Quer me ajudar? Compre as crian�as para mim.
Judite ficou chocada. Sentiu vontade de dar-lhe um tapa no rosto
e cham�-lo � raz�o, mas n�o fez nada disso. No fundo, sentia-se
culpada por ele ser do jeito que era. N�o fosse sua louca paix�o por
F�bio, que a cegara at� diante do pr�prio filho, e talvez Romero n�o
tivesse aquela tara. Sempre soubera que o filho os espionava enquanto
se amavam, mas a loucura do prazer com o amante era maior do
que suas responsabilidades de m�e.

S� agora compreendia o mal que fizera ao filho. Jamais deveria
t�-lo deixado sem os cuidados maternos em fun��o de homem
algum. Deixara-o � vontade para que ela pudesse fazer o que queria.
N�o se interessava por suas brincadeiras nem pelo que andava
fazendo, porque andava sempre ocupada em deleitar-se no leito do
amante. Mesmo em seu maior momento de dor, quando Teresa morrera,
n�o soubera confort�-lo. Limitara-se a dirigir-lhe frases feitas
e palavras despidas de qualquer sentimento, aliviada por achar que
cumpria com seu dever de m�e. Agora, por�m, sentia-se horrorizada,
enojada. Romero n�o ouvia ningu�m, s� fazia o que queria. E
tudo por culpa dela. Sem saber, criara um monstro.

J�nior era um homem influente na cidade, e Romero n�o conseguiu
o que queria. Via seus filhos brincando no jardim e enchia-
se de desejo. Quanto mais pensava neles, mais os desejava. Fosse o
menino, fosse a menina, ao menos um dos dois precisava ter. Mas
era dif�cil. At� ent�o, s� seduzira filhos de criados ou de gente humilde.
Em troca de uma boa soma, os pais sempre acabavam por
concordar. Mas ele n�o podia comprar J�nior. Era um homem rico
e jamais venderia os filhos por dinheiro algum.

Precisava dar um jeito. Mandou chamar L�lio, seu criado de
confian�a, e deu-lhe ordens para espreitar a casa de J�nior e descobrir
os hor�rios em que as crian�as sa�am para a escola ou para o parque.
Informado de tudo, p�s-se a segui-las, sempre que sa�am sozinhas
com a bab�. Queria uma das duas, n�o importava qual fosse.
Se Iv� ou Brigite, tanto fazia. Desde que tivesse nas m�os o corpo
macio, fresco e intocado de uma crian�a, era quanto lhe bastava.


No parque, esperou o momento oportuno. As crian�as jogavam
bola com alguns amiguinhos, enquanto a bab� lia, sentada em um
banco. Em dado momento, a bola caiu um pouco mais distante e
rolou para o meio de um bosque que havia ali, bem perto de onde
Romero estava. O rapaz sorriu e sentiu a boca seca, �vido que estava
por colocar as m�os numa das crian�as. Para sua felicidade, Iv�
foi atr�s da bola. A bab� ainda o chamou, mas o menino apontou
para o lugar aonde a bola havia rolado, e ela consentiu que ele fosse
busc�-la. Assim ele fez. Desavisado, deu dois passos e entrou no
pequeno bosque.

Depois de quinze minutos, vendo que Iv� n�o voltava, a bab�
largou o livro que estava lendo e correu na dire��o do lugar por onde
ele havia entrado. Tudo estava quieto; nem o vento soprava nas �rvores.
Assustada, a mo�a chamou uma, duas, tr�s vezes. Mas Iv� n�o
respondia. Sentindo-se dominada pelo p�nico, virou-se para correr.
Precisava chamar a pol�cia. Foi quando escutou um choro abafado,
vindo de mais al�m. Desesperada, correu aos trope��es, arranhando
a perna nos espinhos dos arbustos.

Em poucos instantes, alcan�ou o local de onde provinha o choro
e estacou estarrecida. Recostado a uma �rvore, o corpo todo encolhido,
Iv� solu�ava. A roupa rasgada, o rosto arranhado, os cabelos
em desalinho davam mostras de que ele havia sofrido algum tipo
de viol�ncia. Ela se aproximou e tentou segur�-lo, mas ele come�ou
a gritar e a chorar desesperado.

� O que houve? � indagou a bab�.
� O homem... o homem... o homem... � o menino ficava
repetindo.
Ajudada por outras bab�s e algumas m�es, a mo�a conseguiu
lev�-lo para casa. O pai ainda n�o havia chegado do trabalho, e a
m�e quase desmaiou ao ver o estado em que o filho se encontrava.
O m�dico foi chamado �s pressas. Examinou o menino e constatou
a agress�o. Ele havia sido violentado e estava traumatizado. Perguntaram-
lhe o que havia acontecido, mas ele n�o conseguia falar. O
choque fora muito traum�tico, e Iv� parecia alheio ao mundo.

Quando J�nior chegou, n�o teve d�vidas. Somente uma pessoa
podia ter feito aquilo a seu filho. Pistola em punho, partiu para
a casa de Romero. Iria vingar o mal que ele havia feito a seu filho.


Chegou na hora do jantar. Enfiou a pistola no cinto, tocou a
sineta e esperou que abrissem a porta. N�o se anunciou. Empurrou

o criado para o lado e entrou apressado. Na sala de jantar, a fam�lia
estava reunida em volta da mesa, e J�nior esbravejou:
� Ainda consegue comer, canalha? Deleita-se � mesa, enquanto
meu filho jaz como um morto-vivo sobre a cama?
Romero, tomado de surpresa, n�o respondeu. Foi F�bio quem
assumiu a palavra:

� Senhor, a que devemos t�o inesperada visita?
� Aquele canalha! � apontou para Romero o dedo tr�mulo.
� Aquele canalha abusou de meu filho!
� N�o! � objetou Judite, veemente. � Est� enganado. Meu
filho jamais faria uma coisa dessas.
� N�s todos sabemos o que esse monstro � capaz de fazer!
� Tenha calma, senhor � interp�s F�bio. � Vamos conversar.
O corpo todo de J�nior sacudiu de solu�o, e ele largou os bra�os
ao longo do corpo, apertando com a m�o a pistola presa na cintura.

� Ele violentou meu filho � choramingou angustiado. � E
agora Iv� n�o consegue nem mais falar.
� Lamento pelo que aconteceu a seu filho � falou Romero,
tentando emprestar � voz um tom compungido.
� Lamenta?! Como lamenta, canalha, se foi voc� o autor do
atentado?
� N�o tenho nada com isso.
� Ainda tem a coragem de negar?
� Senhor � interveio Judite �, posso imaginar quanto est�
sofrendo, mas meu filho nada teve a ver com esse infeliz epis�dio.
� Foi ele! � esbravejou J�nior, fora de si.
Romero levantou-se calmamente, sorveu um gole de vinho e,
fitando o outro com olhar c�nico, disse mansamente:

� O senhor n�o tem provas.
� Cachorro!
� Vamos para a outra sala � sugeriu F�bio, olhando significativamente
para Judite. Queria que ela tirasse Romero dali.
� N�o! � berrou J�nior, fincando os p�s no ch�o. � Esse
monstro n�o pode mais viver. Preciso livrar o mundo dessa praga,
antes que ele fa�a mal a mais algu�m.

Rapidamente, sacou da cinta a pistola e apontou para Romero,
e um brilho de terror passou pelos olhos do rapaz. J�nior n�o teve
tempo de atirar. Judite foi mais r�pida e interp�s-se entre eles, enterrando-
lhe no peito uma faca de cortar carne. Ele soltou a arma
e levou as m�os � faca, tentando pux�-la de dentro de si. J� n�o tinha
mais for�as. De sua boca, um gemido gutural se fez ouvir, e ele
fitou Judite com espanto. Ela recuou assustada, e ele se arrastou em
sua dire��o. Mas seus olhos j� n�o podiam ver mais nada. J�nior estendeu
a m�o para a frente e tocou o vazio, desabando em seguida
no ch�o, rosto colado no soalho.

Embora muitos desconfiassem dos motivos que haviam levado
J�nior � casa de Romero armado de uma pistola, nada p�de ser
provado contra o rapaz. Iv�, aterrado e traumatizado com o que havia
lhe acontecido, jamais recuperou a fala. Vivia meio abobado,
sempre com medo de que Romero aparecesse para machuc�-lo novamente.
Devido � invas�o, e sem provas de que fora Romero quem
violentara o menino, J�nior foi acusado de tentar fazer justi�a com
as pr�prias m�os, o que ratificou a leg�tima defesa de Judite. Ningu�m
foi acusado de nada.

Voltando dessa vis�o, Judite piscou os olhos diversas vezes. O
sol ainda continuava a se p�r, e ela ficou abismada. Em poucos segundos,
recordara diversos epis�dios de sua �ltima vida. Chorou baixinho,
sentindo imensa tristeza pelo que havia acontecido. Agora
sabia. Mesmo sem que lhe dissessem, sabia perfeitamente quem era
quem naquela trag�dia.

Ouviu uma batida de leve na porta, e F�bio entrou com seu sorriso
meigo. Acercou-se de Judite e confortou sua ang�stia. Sentindo
o abra�o fraterno do esp�rito amigo, Judite soltou o pranto e chorou
por quase meia hora. Pacientemente, F�bio acariciava-lhe os
cabelos, transmitindo-lhe vibra��es de amor e compreens�o. N�o
disse nada. Esperou at� que Judite sossegasse o pranto e tivesse
vontade de falar. Assim que se sentiu mais fortalecida, ela enxugou
as l�grimas e desabafou:

� Estou arrasada, F�bio. Vi tudo.
� Se fosse para voc� ficar arrasada, n�o teria recordado esses
acontecimentos.

� Como n�o ficar, depois de tudo que aconteceu? Fomos
todos uns monstros.
� Monstros s� existem na imagina��o de quem n�o consegue
compreender o lado oposto do bem. Se voc� encarar esses fatos com
outros olhos, ver� que eles s�o apenas experi�ncias do dia-a-dia.
Todos n�s precisamos viver para aprender. Faz parte da vida e do
crescimento, e n�o precisamos nos culpar quando ainda n�o conseguimos
realizar a atitude desejada. Quando compreendermos isso,
perceberemos que n�o h� monstros no mundo, nem v�timas, nem
malfeitores. O que h� s�o esp�ritos em crescimento.
� Voc� fala como se tudo fosse simples.
� A vida � muito simples, Judite. N�s a complicamos porque
ainda n�o estamos acostumados com a simplicidade. Para que algo
seja valoroso, para que pare�a realmente importante, � preciso ser
complexo. O que � simples parece despido de import�ncia.
Judite ficou pensativa. Havia uma grande verdade no que F�bio
dizia mas, ainda assim, n�o justificava o que acabara de recordar.

� Matar aquele homem n�o foi t�o simples assim � objetou ela.
� Foi simples, na medida em que seu assassinato foi apenas a
resposta que a vida lhe deu a uma causa anterior. Nada acontece por
acaso, e ningu�m recebe aquilo que n�o merece. N�o � o que voc�
mesma diz?
� �... Suas palavras fazem sentido. Mesmo assim, n�o me sinto
nada � vontade em saber que fui eu o instrumento da resposta da
vida, nem que foi por minhas m�os que aquele homem experimentou
a simplicidade das coisas.
� Use o mesmo racioc�nio para voc� e ver� que tudo continua
sendo muito simples. O fato de voc� ter servido de instrumento naquele
instante apenas atendeu � sintonia que sua alma estabeleceu
com sua v�tima.
� Ele n�o era v�tima!
� Est� vendo s�? N�o h� v�timas nem algozes. A v�tima de agora
foi o carrasco de antes, e por a� vai. Todo mundo d� e tudo mundo
recebe.
� Todo mundo faz maldade e todo mundo recebe castigo.
� Todo mundo vive e todo mundo aprende. Quem faz o mal
sempre tem a oportunidade de repensar o que fez e de refazer sua ati

tude. Mais cedo ou mais tarde, todos acabam acertando. Mas ningu�m,
jamais, � castigado. Deus � bom demais para pensar em castigos.
O que ele nos apresenta s�o as oportunidades que a vida p�e
a nosso dispor. Cada um aproveita o que quer, na medida do que pode.

� Foi isso, ent�o, F�bio? Foi por isso que as coisas aconteceram
daquela forma?
� Tudo est� em seu lugar. N�o existe pedra ou folha que esteja
acima ou abaixo de onde deveria estar. Cada coisa no mundo tem
um lugar pr�prio, que nunca � ocupado ou tomado por outra. N�o
existem erros. Ningu�m passa pelo que n�o deveria passar, ningu�m
sofre o mal direcionado a outro, ningu�m vive ou morre sem precisar
viver ou morrer. E a vida, Judite, e a vida � por demais s�bia
para nos enganar. E sabe por qu�? Porque � cria��o de Deus.
� Suas palavras fazem-me sentir mais aliviada. Obrigada.
� N�o precisa me agradecer. Agrade�a a si mesma por se permitir
recordar em t�o pouco tempo. Muitos est�o aqui h� anos e ainda
n�o conseguiram.
-� Por que n�o?

� Por medo, culpa, orgulho, �dio e tantos outros sentimentos
dif�ceis.
� Fiquei triste com o que vi.
� Pois n�o devia. Veja s� a maravilhosa oportunidade que voc�
teve de refazer seus atos. Foi voc� quem pediu essa oportunidade.
E aqui � assim: pediu, � atendido.
� Sempre?
� Desde que seja para o crescimento, sim.
� E quanto a Romero? Ele tamb�m pediu a vida que est�
levando?
� E claro. Romero � um esp�rito muito querido aqui entre n�s.
Depois que desencarnou, passou muito tempo nas trevas. Primeiro
sentiu raiva porque ficou perdido, depois vieram a solid�o e o medo.
Em seguida, o cansa�o e a compreens�o. Por fim, veio o desejo de
mudar. E voc� nem pode imaginar quanto ele j� se havia modificado
quando desencarnou. Ademais, os anos nas trevas, e depois
aqui, serviram para expandir bem seus pensamentos, e ele hoje � um
esp�rito muito mais l�cido e esclarecido que h� cem anos.
� Se � assim, por que teve de passar por tudo que passou?

� A culpa ainda � um tormento. Por conta dela, assumimos
as mais dolorosas experi�ncias.
� Foi ele quem quis assim?
� Foi. Essa foi a maneira que ele encontrou de livrar-se da culpa
e considerar-se quite com a vida.
� E era necess�ria? Quero dizer, ele n�o poderia ter feito isso
de outro modo?
� Foi a op��o dele, e n�o nos cabe julgar. Voc� ou eu poder�amos
ter nos aliviado da culpa de outra maneira, seja de uma forma
mais leve, seja mais sofrida. Mas cada um tem seu livre-arb�trio e
age conforme suas escolhas.
� Sempre escolhemos?
� As vezes, n�o. Muitas vezes, o esp�rito pode estar em tal estado
de confus�o que n�o consegue nem raciocinar direito, que dir�
escolher alguma coisa. A�, ent�o, os esp�ritos encarregados de ajud�-
lo tra�am planos para sua nova reencarna��o e apresentam-no
a ele. Se ele concordar, vive aquela experi�ncia. Sen�o, pensa-se em
outra coisa.
� Em suma: ou escolhemos ou aceitamos o que vamos viver.
� Exatamente.
� Ent�o, ou eu escolhi ser assassinada ou aceitei o assassinato.
� Voc� aceitou essa possibilidade. Ningu�m se compromete a
assassinar ningu�m. Se o faz, � porque n�o conseguiu ainda compreender
o valor da vida e do perd�o. Por isso, na primeira oportunidade
esquece os compromissos assumidos e deixa-se levar pelos
instintos.
� E eu aceitei isso.
� Aceitou. Voc� j� sabia que J�nior poderia mat�-la nessa vida.
Aceitou correr o risco, assim como ele aceitou o fato de que poderia
vir a mat�-la, embora, aqui, acreditasse que n�o.
� J�nior n�o conseguiu me perdoar...
� O �dio e o desejo de vingan�a ainda s�o sentimentos muito
arraigados no homem. Por mais que tentemos nos desfazer deles,
eles sempre v�m � tona quando n�o estamos muito firmes em nosso
desenvolvimento moral.
� O mesmo aconteceu com meu pai, n�o � mesmo?
� Seu pai, ainda hoje, ao ver um homossexual, sente medo do

que foi um dia e revolta-se consigo mesmo. Por isso odeia-os tanto:
porque eles acionam a lembran�a daquilo que mais gostaria de
ter sido e que o medo, o orgulho e o preconceito n�o o deixaram
assumir.

� E voc�, F�bio? Por que n�o reencarnou comigo?
� Preferi esper�-la aqui.
� Voc� j� est� muito evolu�do. Virou guia espiritual?
F�bio riu gostosamente e retrucou em tom jovial:
� Sou apenas mais um trabalhador do espa�o.
� Mas voc� me parece t�o s�bio, t�o... evolu�do.
� Andei estudando desde que cheguei aqui. Reconhe�o que
aprendi muito e hoje penso de uma maneira muito diferente da que
pensava antes. Estou mais amadurecido, mais consciente da vida e
de seus processos. Mas n�o sou evolu�do. Ainda tenho muito o que
aprender.
� Posso aprender com voc�? Isto �, voc� me ensina?
� Voc� vai ter suas oportunidades. E eu estarei sempre por perto
para ajud�-la. Ainda a amo, sabia? N�o � s� porque estou aqui
que deixei de am�-la.
Abra�aram-se com ternura. Judite estava feliz. Sentia-se mais
reconfortada, menos sozinha, mais confiante em si mesma.

� Preciso ajudar Romero � falou ela, ap�s passada a emo��o.
� Eu sei. Ainda se sente culpada, n�o � mesmo?
� Falhei como m�e. Foi minha loucura, nossa loucura, que
contribuiu para que Romero se tornasse a criatura que se tornou.
� Tem raz�o, Judite. N�s fomos inconseq�entes, irrespons�veis
e imaturos. Jamais dever�amos ter nos relacionado daquela forma
na frente de uma crian�a.
� Foi por isso que ele assumiu aquele comportamento distorcido,
n�o foi?
� Foi por isso que deu continuidade a ele. Romero j� vinha de
outras vidas com um sentimento mal resolvido por voc� e com s�rios
desvios sexuais, resqu�cios do tempo em que viveu no imp�rio
romano. A maternidade serviria para acertar as coisas. E at� que
melhorou. Mas voc� n�o se deu conta de que ele precisava se desvencilhar
da sexualidade e, ao inv�s de orient�-lo, acabou estimulando-
o a manter vivo o desejo que tinha por voc�.

� Mas ele n�o sabia disso. Quero dizer, nem percebia que me
desejava.
� Claro que n�o. Romero tinha a no��o perfeita dos pap�is de
m�e e filho. Por isso, n�o conseguia entender o que sentia. Jamais
lhe passou pela cabe�a que a desejasse.
� Tanto que se apaixonou por Teresa.
� Teresa era uma alma que possu�a s�rias enfermidades na
�rea sexual. Sempre foi mulher er�tica e gostava de usar os homens.
Em v�rias encarna��es, foi-lhe dada a chance de se modificar. Mas
ela n�o conseguia. N�o conseguia ver nos homens nada al�m de uma
fonte de prazer.
� At� que conheceu Romero...
� Justamente. Ligaram-se por afinidade e desenvolveram um
sentimento que poderia se transformar em amor. Mas Teresa havia
feito outros planos para sua vida e optou por desencarnar no auge
da juventude. Foi a primeira forma que encontrou de conter sua sensualidade
desmedida.
� Por que diz a primeira?
� Porque a segunda foi escolhendo trocar de sexo na encarna��o
seguinte.
� O qu�? Quer dizer que Teresa vai nascer homem?
� J� nasceu. E conviveu com voc�s durante algum tempo.
� N�o v� me dizer que � Mozart!
� Ele mesmo.
� Meu Deus! � por isso que ele � homossexual?
� No caso dele, sim. O apego � feminilidade � ainda muito forte,
embora Mozart possua muito da natureza masculina em seu ser.
� um homem decidido, senhor de si mesmo, dono de sua vontade.
� Nesse caso, devo agradecer por eles terem se encontrado.
Mozart hoje me parece uma pessoa bastante equilibrada.
� E �. Seu desejo de se modificar � muito forte. E ele est� conseguindo.
Hoje � uma pessoa com perfeita no��o de moralidade, incapaz
de se envolver em rela��es menos dignas ou prom�scuas.
� Isso nada tem a ver com a homossexualidade?
� N�o. Ser homossexual � uma coisa e, no caso de Mozart, especificamente,
est� ligado ao apego. Ser prom�scuo � outra coisa bem
diferente. A promiscuidade est� ligada a problemas na �rea sexual

como forma irrespons�vel e imatura da busca do prazer sem limites.
O que gera isso � a imaturidade do esp�rito, ainda muito preso
a seus instintos mais prim�rios. Isso se aplica a homens, mulheres
e homossexuais. Qualquer um que n�o saiba orientar sua sexualidade
de uma forma sadia, aproveitando a plenitude que o prazer pode
proporcionar com respeito e ilumina��o, estar� em desequil�brio
com a natureza e, conseq�entemente, consigo mesmo.

� Romero hoje � apaixonado por Mozart, como um dia j� o
foi por Teresa. Ser� que conseguiu se desvencilhar do desejo que
sentia por mim?
� Conscientemente, ele n�o sentia desejo. L� no �ntimo, sua
alma tinha o conhecimento do desejo, mas ele jamais fez contato
com isso. E respondeu a esse sentimento da �nica forma que encontrou.
Dormia com crian�as para satisfazer a car�ncia da crian�a dentro
de si, porque a �nica pessoa que n�o podia ter era a pr�pria m�e.
� Que horror!
� N�o � um horror, Judite. � um estado de desequil�brio moment�neo,
mas nada que seja irrevers�vel. Tanto que voc�s optaram
por nascer irm�os com o intuito de libertar Romero do apego � sexualidade
que o ligava a voc�, ensinando-o a desenvolver o amor
fraterno. Pretendiam, dessa forma, atingir um amor mais sublime e
sem posse.
� Mas aquelas crian�as...
� Todas aquelas crian�as vibravam na mesma sintonia que ele.
Sen�o, n�o teriam sido atra�das. O caso de Iv�, por exemplo... Romero
estava de olho nele e em sua irm�. Por que ele, e n�o a irm�zinha,
correu atr�s daquela bola? Porque, para a pequena Brigite,
aquela experi�ncia n�o seria necess�ria.
� E por que o foi para Iv�?
� A hist�ria de Iv� � outra hist�ria, e n�o devemos ser curiosos.
Seria um desrespeito para com aquele esp�rito.
� Desculpe-me, F�bio. Tem raz�o.
� N�o precisa se desculpar. A curiosidade � um estado normal
nos seres humanos. Devemos apenas control�-la, para que ela n�o
se torne inconveni�ncia ou invas�o.
Judite silenciou-se por alguns minutos, impressionada com a
sabedoria de F�bio. Agora que se recordava de tudo, lembrava-se


dos momentos que haviam passado juntos. Ambos haviam se
amado de verdade, e F�bio, como preceptor, era um homem sens�vel
e inteligente. N�o era de espantar que estivesse t�o bem na
vida espiritual.

� Voc� vai me ajudar com Romero? � tornou ela, ap�s breve
reflex�o.
� Vou. Tamb�m me sinto respons�vel. O que t�nhamos de viver
jamais deveria ter interferido em seus deveres de m�e. Era minha
obriga��o ajud�-la a orientar Romero, pois n�o foi � toa que
fui escolhido para seu preceptor. Era meu dever ensinar a ele n�o
apenas as letras e os n�meros, mas a retid�o de car�ter e de conduta.
Esse era meu prop�sito quando aceitei, na vida espiritual, ser seu
mestre. Infelizmente, por�m, deixei-me levar pela paix�o e abandonei
meu compromisso.
� Fico feliz de poder contar com voc�.
� Assumi essa responsabilidade novamente, mas aqui, no
astral. Venho acompanhando-os, a voc� e a Romero, desde que
encarnaram. Espero poder fazer por ele aquilo que n�o fui capaz de
realizar naquela vida passada.
Judite abra�ou-o novamente, molhando o peito dele com suas
l�grimas de amor e de gratid�o. N�o sentia mais �dio de J�nior nem
do pai. Come�ava a compreender. J� nem sentia mais dor.


169



cap�tulo


s anos passados na casa de Pl�nio foram os melhores
da vida de Romero. O m�dico era um homem muito bom e atencioso,
e a amizade entre eles fluiu genu�na. Durante um tempo, as
coisas pareciam se acertar.


O inqu�rito que apurou a morte de Judite apontou J�nior
como o culpado, mas, enquanto a pol�cia estava em seu encal�o, ele
destru�a a vida com o veneno da hero�na. Alguns meses depois, foi
encontrado morto no barraco em que Judite o visitara, v�tima de
overdose.

Enquanto ia crescendo, Romero fez de tudo para ter not�cias
de Mozart. Mas o rapaz ficara de se corresponder com Judite, e Judite
agora estava morta. Em Salzburgo, recebera a not�cia em uma
carta que Alex lhe enviara, quase acusando-o de ser culpado por
aquela desgra�a. Mozart lamentou muito o ocorrido e chegou a pedir
aos pais que entrassem em contato com a fam�lia de Romero. Mas
Silas destratou-os e bateu o telefone, e eles nunca mais ligaram.

Alex ouvira falar que Romero fora levado para a casa do m�dico,
mas n�o contou ao primo nem aos tios. Silas n�o queria nem
ouvir falar no nome do filho, e No�mia era por demais omissa para
tentar mandar not�cias a Mozart ou � sua fam�lia. Romero telefonou
a Alex, pedindo o endere�o de Mozart na �ustria, mas tampouco
Alex quis falar com ele. Como n�o sabia o telefone ou o
endere�o dos pais de Mozart em Bras�lia, Romero n�o conseguiu falar
com eles tamb�m. Assim, o contato entre os dois rapazes aca



bou se perdendo, e os anos transcorreram sem que soubessem do
paradeiro um do outro.

Em sua nova vida, Romero continuou a estudar. Pl�nio pagou-
lhe um bom col�gio, e ele acabou entrando para a faculdade de medicina
e j� estava para se formar. Queria ser pediatra. Fora essa a forma
que seu esp�rito encontrara de remediar o mal que havia feito a
tantas crian�as no passado. Cuidando de suas doen�as e de suas feridas,
estaria, de alguma forma, compensando-as pelas tantas dores
que lhes causara.

Sem que ele soubesse, os esp�ritos de Judite e de F�bio estimulavam-
lhe os estudos, davam-lhe for�a e coragem, incentivavam-
no quando ele pensava em desistir. A vida de um homossexual era
bastante dura e, por mais que ele tentasse esconder, algum colega
sempre acabava descobrindo, e Romero virava motivo de chacota
entre alguns.

Pl�nio tivera uma s�ria conversa com Romero sobre a sua homossexualidade.
Dissera-lhe que jamais o julgaria ou que o impediria
de seguir seu caminho. S� o que pedia era que respeitasse seu
lar, e teria pedido o mesmo se o rapaz fosse heterossexual, como o
fizera com Rafael. Nem um nem outro estava autorizado a levar rapazes
ou mo�as para dormir em sua casa. Podiam namorar quem quisessem,
levar namorados e namoradas para festas e reuni�es, at� para
banhos de piscina. Mas sempre com o cuidado de n�o desrespeitar
a fam�lia.

Embora Rafael n�o seguisse muito as regras, Romero era bastante
respeitador. Nunca levara um amigo ou namorado para dentro
de casa. Sentia-se pouco � vontade e, por mais que Pl�nio lhe
dissesse que n�o tinha do que se envergonhar, achava-se diferente,
e as diferen�as sempre desaguam no medo e na vergonha, frutos do
preconceito.

Era comum Rafael reunir amigos � beira da piscina aos domingos.
Finalmente conclu�ra a faculdade e tinha sua pr�pria firma de
arquitetura, que Pl�nio montara para ele. S� que o rapaz era desinteressado
e deixava os projetos a cargo dos arquitetos que contratara,
ocupando seu tempo com divers�o e mulheres.

Rafael odiava Romero em sil�ncio. Sabia que ele era protegido
de Pl�nio e, por isso, n�o o confrontava diretamente. Certa


ocasi�o, por�m, chegara a insinuar que o cunhado e o rapaz deveriam
ter um caso, o que justificaria a afei��o que os unia. Mas Lav�nia
n�o se deixou sugestionar e brigou com o irm�o, o que o deixou
ainda mais furioso.

Naquela tarde, Rafael mandara preparar um churrasco � beira
da piscina e convidou os amigos e a namorada. Pl�nio e Lav�nia apenas
passaram para cumprimentar as pessoas, mas n�o se detiveram
muito tempo ali. Pl�nio n�o gostava das amizades do cunhado, embora
as tolerasse por causa da mulher. Depois de quinze minutos, pediram
licen�a e retiraram-se.

Na varanda do andar de cima, Romero brincava com Eric. O
menino estava agora com onze anos e tornara-se quase um irm�o
para Romero. Eric gostava do rapaz como se fosse mesmo seu irm�o
mais velho. Contava-lhe segredos, pedia-lhe ajuda com os deveres,
sa�am juntos para irem ao cinema. Eram mesmo como irm�os, e
Romero nutria sincera afei��o pelo menino. S� n�o tivera ainda
coragem de lhe contar que era homossexual.

Tamanha afei��o incomodava Rafael aos extremos. Por mais
que ele fizesse, Eric parecia n�o gostar dele. Sempre que o via, arranjava
uma desculpa para se afastar, o que o irritava bastante, ainda
mais quando sa�a de perto dele para ir � procura de Romero. Era
um disparate! Seu pr�prio sobrinho, rejeitando-o por causa de uma
bicha, que nem da fam�lia era! Ser� que Eric demonstrava tamb�m
certas tend�ncias?

Rafael pensou em dividir suas suspeitas com Pl�nio, mas mudou
de id�ia. O cunhado, na certa, ficaria furioso e brigaria com ele,
protegendo e defendendo Romero. E, depois, Eric n�o valia tamanho
desgaste. Era um menino tolinho, apesar de sua beleza. O fato,
por�m, era que a amizade de Eric e Romero o incomodava muito,
e Rafael n�o conseguia fazer com que o menino gostasse dele. Pior:

o garoto parecia tem�-lo. Eric demonstrava no semblante certo temor
de Rafael, o que o irritava e excitava ao mesmo tempo. Era boa
a sensa��o de saber que era temido, isso o fazia sentir-se superior e
poderoso.
� Eric! � chamou Rafael l� de baixo. � Por que n�o vem at�
aqui um instante? Minha namorada quer conhec�-lo.

� Agora n�o, titio � protestou o menino. � Romero est� me
ensinando a jogar xadrez.
� Xadrez? Mas � um absurdo voc�s dois ficarem trancados a�
com um dia t�o bonito! Ou ser� que est�o fazendo outra coisa que
n�o querem me contar?
� N�o estamos fazendo nada de mais � objetou Romero. �
Ao contr�rio de voc�, que fica o tempo todo se agarrando com
aquela mo�a.

Apontou para uma mo�a que tomava sol � beira da piscina,
tendo ao lado um copo de cerveja.

� E da�, Romero? � retrucou com ironia. � Por acaso est�
com ci�me? Mas ela n�o � o seu tipo, e eu n�o como de seu fruto.
Romero olhou-o com desd�m e n�o respondeu. Queria evitar
discuss�es na frente de Eric. Ele era ainda muito crian�a e n�o entendia
daquelas coisas. Romero virou as costas para Rafael e fez sinal
para que Eric se afastasse da balaustrada.

� Venha, Eric � chamou. � Vamos continuar nosso jogo.
Eric afastou-se e tornou a se sentar em frente a Romero, e Rafael
voltou resmungando para a piscina. O menino parecia concentrado
no jogo, at� que perguntou:

� O que ele quis dizer com aquilo?
� Com o qu�? � tornou Romero, pensando no que ia lhe dizer.
� Aquilo, voc� sabe, de que ela n�o � o seu tipo e ele n�o come
de seu fruto. N�o entendi.
Romero soltou a pe�a que segurava e olhou para ele. N�o sabia
o que lhe dizer. Ele e Pl�nio nunca haviam conversado sobre
como deveriam proceder quando Eric come�asse a fazer perguntas,
e agora se sentia confuso. N�o queria contar a verdade ao menino,
porque n�o sabia se Pl�nio iria gostar. Por isso, deu de ombros e respondeu
com aparente naturalidade:

� N�o sei. Rafael fala coisas sem pensar, s� para nos chatear.
Eric voltou os olhos para o tabuleiro e colocou as m�os sobre
seu pe�o.

� N�o ser� porque voc� � homossexual? � indagou, sem tirar
os olhos da pe�a que come�ava a mexer.
Romero olhou-o abismado, todo vermelho, o rosto pegando
fogo. Como � que ele sabia disso?


� O que quer dizer, Eric? Agora quem n�o est� entendendo
nada sou eu.
� � que outro dia ouvi uma conversa entre tio Rafael e mam�e,
e ele se queixava de que n�o era nada agrad�vel ter um
homossexual dentro de nossa casa, mexendo em nossas coisas,
comendo de nossa comida. Disse que papai deveria mand�-lo embora
assim que se formasse.
Ele sentiu o rosto arder ainda mais e come�ou a balbuciar:

� N�o... n�o d� aten��o ao que seu tio diz... Isto �, pergunte
a seu pai... Eu n�o sei...
Levantou-se aturdido, os olhos j� marejando. A �ltima coisa
que gostaria era que Rafael envenenasse Eric contra ele. Eric era ainda
muito crian�a para entender certas coisas e, provavelmente, a
id�ia que fazia dos homossexuais, se � que j� sabia o que era isso, era
de marginais sem escr�pulos e sem vergonha.

Virou as costas para o menino e foi caminhando para dentro.
N�o queria que Eric o visse chorando.

� N�o vai mais jogar? � indagou o menino.
Romero limitou-se a balan�ar a cabe�a e saiu. Estava confuso,
envergonhado. Por que Rafael n�o o deixava em paz? Desde que chegara
ali, o rapaz vivia implicando com ele. Sempre que n�o havia
ningu�m olhando, chamava-o de bichinha e de maricas. Romero
n�o se importava, j� estava meio acostumado. Na escola e, depois,
na faculdade, n�o eram poucos os que o chamavam assim, e os olhares
de tro�a e de reprova��o tamb�m eram muitos. Embora ele
nada fizesse, as pessoas pareciam adivinhar que ele era homossexual,
talvez pelos seus trejeitos levemente afetados.

Ele n�o ligava. Pl�nio ajudara-o a enfrentar e superar aquelas
coisas. Por isso, quando debochavam dele, fingia que n�o escutava
ou sa�a de perto. Tinha poucos amigos, porque era uma pessoa t�mida
e retra�da. Alguns colegas ainda o tratavam bem, embora
com certa dist�ncia. Nunca o chamavam para festas ou passeios, e
ele acabou se acostumando � solid�o. N�o tinha amigos, � exce��o
de Pl�nio e, agora, de Eric. Mesmo os parceiros que tivera nada representaram
em sua vida. Ainda do�a em seu cora��o a saudade que
sentia de Mozart.

Para tudo isso, ele n�o ligava. Mas agora, na imin�ncia de que


Eric se aborrecesse com ele, come�ou a sentir-se angustiado. Ele era
seu amigo, seu irm�ozinho, e seria por demais doloroso se o rapaz
passasse a desprez�-lo por influ�ncia n�o s� do tio mas de toda a sociedade.
Pl�nio era um homem �mpar em seu tempo, Romero sabia.
Ningu�m pensava feito ele. As pessoas, principalmente os homens,
eram muito preconceituosas e incompreensivas. Iam logo julgando
e inventando coisas que em nada refletiam a realidade.

Ao cair da tarde, Pl�nio chegou do trabalho e veio falar com
ele. Romero estava estudando quando o m�dico chegou, mas foi com
alegria que o recebeu.

� Dr. Pl�nio! Chegou agora?
� Sim, acabei de chegar. E j� soube o que aconteceu.
Romero enrubesceu e retrucou:
� O que aconteceu?
� A pergunta de Eric... � Romero corou mais ainda, e Pl�nio
prosseguiu: � Por que ficou t�o sentido? Eric n�o o destratou,
destratou?
� N�o, claro que n�o. Ele apenas me fez uma pergunta, e eu
n�o soube o que responder. Fiquei surpreso pelo fato de ele j� saber
que sou homossexual.
� Por qu�? Por acaso, n�o � isso o que voc� �?
� Sou, mas... n�o queria que ele soubesse.
� Por qu�?
� Ele pode n�o compreender. � apenas uma crian�a.
� As crian�as compreendem as coisas muito melhor do que
n�s, Romero. E sabe por qu�? Porque s�o puras e n�o t�m imagens
preconcebidas. Somos n�s que lhes incutimos o preconceito.
� Mas tive medo de que o senhor n�o aprovasse que ele
soubesse.
� Voc� acha que vou criar meu filho numa mentira? Pensa que
poderemos esconder dele a realidade ? Ent�o ele n�o tem olhos, n�o
tem ouvidos?
� Tem. Foi por isso que descobriu.
� Pois �. E lhe fez uma pergunta, n�o uma acusa��o ou um julgamento,
muito menos uma condena��o. Apenas uma pergunta. E
voc� n�o soube responder. N�o soube ser sincero e simples o bastante
para lhe responder com a verdade.

� N�o � t�o simples assim.
� E bastante simples. Dizer a verdade � muito f�cil. O que complica
� a mentira. Para mentir, precisamos inventar uma hist�ria e
memoriz�-la, para que sempre a contemos do mesmo jeito, ao passo
que a verdade j� vem pronta e sempre ser� do mesmo jeito. Voc�
n�o precisa tomar cuidado para n�o cair em contradi��o, o que sempre
acontece com a mentira. Porque mentir at� que � f�cil. Dif�cil
� sustentar a mentira.
� Tem raz�o � desabafou Romero, envergonhado. � Mas �
que fiquei confuso... Nunca hav�amos falado sobre Eric, sobre
como proceder quando ele descobrisse.
� Compreendo, Romero, e n�o o estou recriminando. Apenas
quero que voc� entenda que n�o � preciso mentir em minha casa.
Sei que muitos de meus colegas n�o aprovam o que fa�o, mas � assim
que eu sou. Procuro ser verdadeiro, principalmente comigo
mesmo, e n�o me importo com o ju�zo que fazem de mim.
� O senhor � uma pessoa muito especial, doutor.
� Todos somos especiais, meu filho. Mas o fato � que voc� ainda
n�o consegue se aceitar. Tem vergonha de ser o que �. Por isso
vive por a� pelos cantos, escondido at� de si mesmo.
� As pessoas n�o me compreendem. Por que deveria expor
ao mundo o que sou? Para provocar seu preconceito?
� � claro que n�o. Voc� deve se preservar, porque as pessoas
s�o mesmo muito preconceituosas, o que acaba tornando-as um pouco
cru�is tamb�m. N�o precisa dizer nada a ningu�m, porque ningu�m
tem nada a ver com sua vida. Mas tamb�m n�o precisa ficar
se escondendo, com vergonha de si pr�prio. Seja voc� mesmo, aja
naturalmente, ame e viva sem medo, fale com as pessoas como um
igual, porque voc� n�o � diferente de ningu�m.
� � dif�cil...
� Mas voc� tem de tentar, sen�o vai viver a vida toda se escondendo
e jamais conseguir� ser feliz.
� N�o sei se consigo...
� Comece por Eric. Ele � seu amigo, e voc� n�o precisa ocultar
nada dele. Conte-lhe, voc� mesmo, que � homossexual.
� O senhor acha que devo?
� Acho, sim. Ele veio me perguntar, e foi o que eu disse a ele:

que perguntasse a voc�, porque se tratava de sua vida e eu n�o tinha
o direito de me meter.

Romero sorriu agradecido, cheio de admira��o por aquele
homem. Jamais havia conhecido algu�m como ele. Pl�nio era uma
pessoa muito segura de si e de suas convic��es, n�o tinha medo de
nada nem de ningu�m, assumia o que pensava sem se preocupar com

o que diriam dele. Aquilo era fant�stico! Havia apenas uma diferen�a.
Pl�nio era heterossexual, n�o era homossexual, e n�o tinha
por que temer o preconceito.
Esse era o maior medo de Romero: o preconceito. Fora por causa
dele que sua vida se desgra�ara. O pai expulsara-o de casa, Mozart
partira para a Europa e a irm� fora assassinada. E, agora, corria

o risco de perder Eric tamb�m.
O maior exemplo de simplicidade que podemos seguir s�o as
crian�as. Para elas, tudo � muito f�cil e simples, e ningu�m precisa
ser exclu�do s� porque � diferente. Basta que elas compreendam. As
crian�as encontram lugar no mundo e em seus cora��es para tudo:
para os animais, as plantas, os brinquedos, as pessoas. Para uma
crian�a, uma pessoa � uma pessoa, e n�o importa que seja rica, preta,
bonita ou homossexual. Importa apenas que goste dela. Somos
n�s, com os preconceitos que vamos assumindo ao longo de nossas
vidas, que tornamos as crian�as preconceituosas tamb�m. Elas seguem
nosso exemplo e ser�o exatamente do jeito que as ensinarmos.
Se apenas lhes mostrarmos as diferen�as, sem nenhum peso ou julgamento,
elas entender�o e aceitar�o tudo normalmente, sem motivos
de medo ou discrimina��o. Ao contr�rio, se fizermos parecer
que algu�m � pior ou inferior s� porque n�o � como n�s, elas achar�o
que ser diferente � feio e crescer�o cr�ticas e preconceituosas, a
tudo julgando e condenando conforme os valores que aprenderam.

Criado num ambiente sem preconceitos, Eric ouviu o relato de
Romero com calma e tranq�ilidade. Romero foi quem chegou cheio
de preocupa��es. Como dizer a verdade sem o chocar, decepcionar,
magoar? Sentou-o no sof� da sala, pigarreou v�rias vezes e come�ou
devagarzinho:

� Bem, Eric, outro dia voc� me perguntou por que seu tio havia
falado aquelas coisas, voc� se lembra? � O menino lembrava178



se e balan�ou a cabe�a. � Pois �. Perguntou-me tamb�m se eu era
homossexual. Voc� sabe o que � isso, um homossexual?

� Sei. E um homem que gosta de outros homens.
� Pois �... � pigarreou novamente. � Isso � uma coisa que
acontece a certos homens... e a mulheres tamb�m... N�o sei lhe
dizer por qu�. N�o t�m culpa. Nascem assim, n�o t�m como evitar...
E um impulso, um instinto... ou talvez seja um desvio, sei l�... Mas
� algo muito forte... � mais forte do que eles, sabe?
O olhar de espanto de Eric o fez pensar. Ele estava fazendo justamente
o contr�rio do que Pl�nio lhe dissera. Estava complicando
as coisas, tentando explicar demais. Falava como se fosse culpado
por ser homossexual, quase como se estivesse se desculpando por ser
do jeito que era. E n�o precisava de nada disso. Nem Eric estava
questionando nada. Pl�nio vivia lhe dizendo que n�o tinha do que
se envergonhar, mas ele falava de um jeito como se fosse revelar
algum tipo de aberra��o.

� Voc� est� querendo me dizer que � mesmo homossexual?
Ele corou violentamente. Por mais que pensasse estar preparado,
ainda lhe era dif�cil assumir. Dif�cil at� para si mesmo. Contudo,
n�o podia mentir para o menino. Nem tinha mais como. Pigarreou
novamente, roxo de vergonha, e respondeu baixinho:

� �... � isso... sou...
Durante alguns instantes, Eric ficou olhando seu rosto, at�
que respondeu s�rio:

� Papai me disse que algumas pessoas n�o gostam dos homossexuais,
o que n�o � o caso de nossa fam�lia. Aqui em casa, gostamos
de todo mundo.
Romero n�o resistiu. Come�ou a chorar baixinho, e Eric alisou
sua cabe�a. Havia tanto carinho nas m�os do menino, que
Romero come�ou a solu�ar.

� N�o chore, Romero � prosseguiu ele. � N�o sou como as
outras pessoas. Gosto de voc� assim mesmo. Voc� � como meu irm�o
mais velho. Gosto de voc� muito mais do que gosto de meu tio.
Romero abra�ou Eric e foi se acalmando. Sentia-se reconfortado
pelo seu amor, um amor que nada tinha de sexual. O que Romero
sentia por Eric era um afeto profundo e sincero, que se acentuava
� medida que os anos iam se passando.


Os dois permaneceram abra�ados por muito tempo, at� que a
entrada inesperada de Rafael os tirou daquele momento �nico de
carinho. O rapaz vinha chegando do trabalho quando viu os dois
abra�ados na sala, e em sua cabe�a come�aram a despontar sentimentos
os mais mesquinhos poss�veis. Via naquela cena inten��es
que n�o existiam e parou diante deles abismado.

� Mas o que est� acontecendo aqui? � indagou at�nito. �
O que pensa que est� fazendo com meu sobrinho, sua bicha desaforada?


Romero e Eric separaram-se, e foi o menino quem respondeu:

� Romero e eu s� est�vamos conversando.
� Estou vendo. Que tipo de conversa � essa? � algum segredo?
� Rafael, n�o � nada disso que voc� est� pensando � justificou
Romero. � Eric � como um irm�o para mim.
� Bem se v�, seu sem-vergonha. Mas isso n�o vai ficar assim.
Vou agora mesmo chamar Pl�nio!
Largou a pasta sobre o sof� e correu para dentro. Pl�nio estava
em seu quarto, analisando uns exames, e levou um susto com a entrada
intempestiva do cunhado.

� Rafael! � espantou-se. � O que houve?
� Aquele aproveitador! � berrou Rafael, irado. � Molestador
de criancinhas!
� Quem? De quem est� falando?
� De Romero! E de quem mais haveria de ser? Quem � a �nica
bicha que mora nesta casa?
� O que quer dizer, Rafael? Fale logo, ande!
� Cheguei do trabalho agora mesmo e flagrei-o aos abra�os
com Eric, no sof� da sala! E sabe-se l� o que n�o teria feito se eu n�o
tivesse chegado a tempo!
� Ser� que n�o est� exagerando? � questionou Pl�nio. � Os
dois precisavam conversar.
� Que bela conversa eles estavam tendo! Espere s� at� minha
irm� saber disso. Vai exigir que voc� expulse aquele veado de
nossa casa!
� Sua irm� n�o vai fazer nada disso. Lav�nia conhece Romero
t�o bem quanto eu e sabe que ele seria incapaz de fazer qualquer
coisa com Eric.

� Voc�s s�o dois cegos mesmo. Ou dois idiotas!
Voltou correndo para a sala, onde Eric e Romero haviam permanecido,
agora mais afastados um do outro. Quando Rafael entrou,
seguido por Pl�nio, Romero levantou-se e foi logo se explicando:

� Dr. Pl�nio, n�o � nada disso que Rafael est� pensando. Ele
entendeu tudo errado.
� Sei disso, Romero, n�o precisa se justificar � tranq�ilizou
Pl�nio.
� N�o acredita em mim, n�o � mesmo? � explodiu Rafael. �
Pois vou contar tudo a Lav�nia. Lav�nia!
Saiu correndo em dire��o � cozinha, certo de que a irm� estaria
ali, mas ela havia ido ao cabeleireiro e ainda n�o voltara, o que
s� servira para irrit�-lo ainda mais.

� Deixe de bobagens, Rafael � censurou Pl�nio, logo que ele
voltou da cozinha. � Sua irm� e eu sab�amos e incentivamos essa
conversa entre Romero e Eric. N�o h� nada de mais.
� S� quero ver o dia em que ele lhes aprontar uma trai��o
� disse entre dentes, os olhos chispando de �dio. � A�, v�o me
dar raz�o.
� Jamais irei tra�-lo, doutor! � op�s Romero. � N�o precisa
se preocupar.
� Sei disso.
Rafael saiu aos trope��es e foi para seu quarto. Naquela noite,
nem desceu para jantar. Estava com tanto �dio que n�o conseguiria
engolir nada. Por que ningu�m acreditava nele? Por que Pl�nio
preferia dar cr�dito a um estranho, ao inv�s de acreditar na palavra
do cunhado? Aquilo n�o estava direito.

Ligou o aparelho de televis�o e escolheu um filme de horror.
Mais tarde, quando o filme j� havia quase terminado, Pl�nio veio
bater � sua porta. Rafael espantou-se sobremaneira com a presen�a
do cunhado ali e, pensando que ele quisesse recrimin�-lo, come�ou
a atacar:

� Por que est� aqui? Veio me censurar por ter olhos e ver o que
ningu�m mais v�?
� N�o � nada disso, Rafael. Vim aqui em paz.
� Paz? Voc� nunca me deu paz.

� Ao contr�rio, voc� � que nunca quis viver em paz conosco.
Sempre foi rebelde, agressivo, mal-humorado. Por qu�?
� Est� preocupado comigo agora, �?
� Estou. Sua irm� e eu sempre nos esfor�amos para que voc�
tivesse tudo. Voc� estudou, tem uma profiss�o, sempre foi bem tratado
em nossa casa. Se n�o fiz mais por voc�, foi porque voc� n�o
permitiu.
� Voc� jamais gostou de mim!
� N�o � verdade. Quando voc� veio morar conosco, tentei me
aproximar de voc�. Mas voc� sempre me rejeitou. Nunca quis minha
amizade.
� E voc� achou �timo, n�o foi? S� assim podia recriminar tudo
que eu fazia.
� Isso tamb�m n�o � verdade. Deus sabe quanto me esforcei
para me aproximar de voc�.
� E da�? O que isso tem a ver com o descaramento de Romero?
� Voc� odeia o rapaz. Por qu�?
� Eu n�o o odeio. Apenas n�o me agrada ter de conviver com
um veadinho.
� Romero nunca lhe fez nada. Ao contr�rio, desde que chegou
aqui, tem se comportado muito bem. E Eric o adora.
� E esse o problema. Ele est� seduzindo o menino. Ser� que
voc�s n�o conseguem ver?
� Voc� est� pondo maldade onde n�o existe. Romero � um
rapaz direito.
� � um veado! N�o � confi�vel.
� Engano seu. S� porque � homossexual, n�o quer dizer que
seja tarado. Ele gosta de Eric e o respeita. Romero n�o transa com
crian�as.
� Como voc� sabe? J� saiu com ele? Sabe aonde ele vai? Viu
com quem ele transa?
� Nem � preciso.
� Ou ser� que voc� pensa que ele � algum santinho? Que n�o
tem parceiro e que vive dedicado � fam�lia?
� Isso n�o me interessa. Romero � livre para fazer o que quiser
e sempre foi muito respeitador, ao contr�rio de voc�.
� Ele � sempre melhor do que eu, n�o �?

� N�o disse isso. Mas ele obedece �s regras da casa e nunca
trouxe ningu�m para c�. Ao contr�rio de voc�, que vive se agarrando
com as mo�as na piscina. E cada dia com uma!
� E da�? Devia ficar satisfeito. Pelo menos eu fa�o o que �
natural.
� O que voc� faz � imoral, isso sim. E d� mau exemplo a Eric.
� Ah! Quer dizer agora que quem d� mau exemplo sou eu? Eu,
que sou normal, sou o mau exemplo, e Romero, que � um transviado,
� que � o bonzinho? Essa � boa!
� Voc� interpreta as coisas a seu favor.
� Foi o que voc� disse!
� Mais ou menos. N�o quis me referir � sexualidade de cada
um, porque isso � o menos importante para mim. O mau exemplo
vem da conduta, n�o do sexo.
� Fale o que quiser, Pl�nio, mas o fato � que voc� d� sempre
um jeito de defender Romero e me acusar.
� N�o estou acusando nem defendendo ningu�m. Estou apenas
tentando ser justo.
� Quero s� ver o dia em que ele aprontar alguma...
� Isso n�o vai acontecer. Conhe�o Romero e seu car�ter. Ele
� um homem de bem.
� Ele n�o � nem homem. Que dir� de bem!
� Lamento muito que seus valores sejam esses. Um dia ver�
quanto est� errado.
� Quem ver� que est� errado � voc�. Aposto como ele, mais
cedo ou mais tarde, vai mostrar o falso que realmente �.
Pl�nio suspirou e revidou entristecido:

� Infelizmente, Rafael, j� sabemos quem � o mais falso aqui.
� Quer dizer que sou eu, n�o �? � Pl�nio n�o respondeu. �
Posso perguntar uma coisa, cunhadinho?
Apesar do ar de deboche, Pl�nio assentiu:

� Pode.
� O que voc� faria se descobrisse que seu protegido n�o � nada
disso que voc� pensa? Que � um veado cretino e mau-car�ter?
� Ele n�o � nada disso.
� Mas e se fosse? O que voc� faria?
� Sei que n�o �.

� Tudo bem, voc� sabe. Mas e se fosse? O que voc� faria? Continuaria
deixando-o viver aqui conosco? � Sil�ncio. � Continuaria?
� N�o � foi a resposta seca.
� Era o que eu queria saber.
Com ar de cansado, Pl�nio levantou-se para sair. Fora ao quarto
do cunhado para tentar acalm�-lo e faz�-lo ver que Romero era
uma pessoa decente. Queria viver em paz com ele tamb�m; j� estava
cansado de tantas brigas. Mas Rafael era uma pessoa dif�cil e sentia
muito ci�me de Romero. Tanto, que n�o conseguia esconder.



cap�tulo


estava lan�ada a semente do �dio. Rafael n�o conseguia
entender o sentimento de Pl�nio por Romero. Ou melhor, n�o
conseguia entender o que ele mesmo sentia pelo rapaz. Desde que
Romero ali chegara, Rafael n�o simpatizara com ele, mas fora obrigado
a toler�-lo porque o cunhado, por um motivo desconhecido,
enchera-se de amores por ele. Aquilo n�o era justo. Ele era da
fam�lia, mas Pl�nio reservara suas aten��es para um estranho homossexual.


Pior de tudo era Eric. Rafael fazia o que podia para que o sobrinho
gostasse dele, mas n�o adiantava. Eric parecia ter verdadeiro
horror a ele. Por que seria? Rafael nunca lhe fizera nada. Ao contr�rio,
sempre o tratara bem. Por que, ent�o, Eric n�o gostava dele?
Por mais que se esfor�asse, n�o conseguia entender. S� o que compreendia
era que o menino adorava Romero, o que cada vez mais o
enchia de despeito.

Alheio aos sentimentos do tio, Eric estudava em seu quarto. A
m�e dissera-lhe que quando terminasse os deveres poderia ligar a
televis�o. Romero ainda n�o havia chegado da faculdade. Fazia est�gio
num hospital de cl�nicas e sempre voltava mais tarde. Eric estava
t�o absorto na li��o de hist�ria que n�o viu Rafael entrar. O
tio chegou sorrateiro e apoiou os cotovelos na escrivaninha, fitando
o menino com olhar malicioso. Na mesma hora, Eric encolheu-
se e indagou assustado:

� O que voc� quer, tio Rafael? Estou estudando.
185


� N�o quero nada, Eric. Vim apenas ver se precisa de alguma
ajuda.
� N�o preciso, obrigado. Gosto de hist�ria e, al�m do mais,
sempre que tenho alguma d�vida, Romero a tira para mim.
Romero, Romero! Sempre Romero. Rafael sentiu vontade de
dar uns tapas no sobrinho, mas conseguiu se conter.
� Romero n�o est� � retorquiu, com mal disfar�ada raiva. �
Por isso, se precisar de alguma coisa, � s� me chamar.

� Obrigado, titio, mas j� disse que n�o precisa.
� Hmm... Ent�o, que tal um sorvete?
� N�o vai dar. E agora, se voc� n�o se importar, gostaria que
sa�sse. Ainda n�o terminei a li��o.
Rafael deu um sorriso carregado de sarcasmo, despenteou os cabelos
de Eric e saiu. Depois que ouviu a porta do quarto fechar-se,
Eric soltou um suspiro. Por mais que o tio fizesse, n�o conseguia gostar
dele. Havia algo de falso em suas palavras, e seu jeito amistoso
parecia pura engana��o. Eric n�o se deixava convencer. Sabia que
Rafael n�o gostava de Romero, e talvez aquele fosse o motivo para
querer conquistar sua amizade: para competir com Romero.

No corredor, o cora��o de Rafael se enchia de �dio. N�o apenas
por Romero e Pl�nio, mas come�ava a antipatizar com Eric tamb�m.
O garoto parecia n�o compreender o que ele estava tentando
fazer. Queria apenas ser seu amigo. Era seu tio, algu�m da fam�lia
com quem poderia contar, n�o um veado estranho em quem n�o se
podia confiar.

A medida que ia caminhando, Rafael ia refazendo em sua mente
a imagem assustada de Eric. O menino estava ficando bem crescido
e era muito bonito. Daria trabalho com as garotas, e o cunhado
n�o deveria deix�-lo a s�s com Romero. Nunca se sabia o que
ele seria capaz de fazer. Nada. Romero n�o seria capaz de nada. E
aquilo era o que mais irritava Rafael. Romero era homossexual e tinha
tudo para ser um marginal. Mas n�o era. Era um homem bom
e ajuizado, respeitador e amoroso, sincero e esfor�ado. Tudo que ele
n�o era. S� que ele era heterossexual, e Romero, n�o. Essa era sua
grande vantagem sobre o outro.

Quando Romero chegou mais tarde, Eric j� estava dormindo.


Rafael tamb�m j� se havia recolhido, e Pl�nio estava de plant�o no
hospital. Apenas Lav�nia estava acordada, vendo televis�o.

� Boa noite � cumprimentou ele. � Tudo bem?
� Tudo �timo � respondeu ela. � E voc�? Est� com fome?
� Estou, sim.
� H� comida no fog�o. Quer que eu v� esquentar para voc�?
� N�o precisa. Posso me arranjar sozinho.
Mesmo assim, Lav�nia foi esquentar a comida para ele. Como
j� era tarde, n�o quis acordar nenhuma das empregadas, e ela n�o
se importava de fazer alguns servi�os dom�sticos.

� Onde est�o todos? � indagou Romero, entre uma garfada e
outra.
� Dormindo.
� Que pena. Trouxe um presente para Eric.
� � mesmo? O que �?
Romero tirou um embrulhinho do bolso da camisa e exibiu-o
a Lav�nia. N�o era nada de mais. Apenas a miniatura de uma motocicleta.


� Amanh� darei a ele � falou Romero, enquanto limpava os
l�bios com o guardanapo. � Bem, agora acho que vou tomar um banho
e dormir. Estou cansado.
� Eu tamb�m. Amanh� levanto cedo para acordar Eric e Rafael.
Ele disse que tem uma reuni�o logo pela manh� e me pediu para
cham�-lo. E voc� sabe como Rafael � dif�cil de tirar da cama.
Ambos riram, e cada qual seguiu para seu quarto. Romero foi
direto tomar um banho, e Lav�nia passou no quarto do filho para
ver se ele n�o estava vendo televis�o. O menino dormia profundamente,
e ela se aproximou, pousou-lhe um beijo na testa e tornou
a sair, fechando a porta lentamente. A caminho de seu quarto, parou
para dar uma espiada no irm�o, e Rafael tamb�m dormia profundamente.
Sorriu satisfeita e foi para a cama.

No dia seguinte, bem cedinho, Lav�nia foi acordar o irm�o e

o filho. Rafael resmungou um pouco, como sempre, mas acabou
acordando.
� Levante-se, seu pregui�oso � chamou ela, com jovialidade
�, ou vai se atrasar.
Certificando-se de que Rafael j� estava de p�, a caminho do ba



nheiro, dirigiu-se para o quarto do filho. Para sua surpresa, Eric j� estava
acordado. Parecia mesmo que nem havia dormido. Todo encolhido
sob os len��is, mostrava olheiras fundas e olhos lacrimejantes.

� O que h� com voc�, meu filho? � indagou preocupada, experimentando-
lhe a testa. � Est� doente?
O menino n�o respondeu. Ao inv�s disso, agarrou-se � m�e e
desatou a chorar. Nessa hora, Pl�nio vinha voltando de seu plant�o
e, escutando o choro do filho, foi direto para seu quarto.

� Eric! � chamou. � Lav�nia! O que houve?
� N�o sei. Quando entrei aqui para acord�-lo, encontrei-o
assim.
� Deixe-me examin�-lo � falou incisivo, gentilmente puxando
a mulher pelo bra�o.
� N�o! � foi o grito angustiado de Eric. � N�o quero! N�o
tenho nada!
� Eric, meu filho � indignou-se Pl�nio, que nunca havia visto
o menino reagir daquele jeito �, n�o vou machuc�-lo. Quero
apenas ver se h� alguma coisa...
� J� disse que n�o! N�o tenho nada. Estou bem. Apenas gostaria
que voc�s sa�ssem e me deixassem sozinho.
A voz de Romero se fez ouvir preocupada:

� Est� tudo bem a�?
Romero havia acabado de chegar, seguido por Rafael, que indagou
sol�cito:

� Posso ajudar em alguma coisa?
� O que foi, Eric? � indagou Romero, aproximando-se do
menino.
Na mesma hora, Eric redobrou o choro. Agarrou-se ao colo da
m�e e chorou copiosa e desesperadamente.

� Mas o que deu nesse menino? � tornou Lav�nia, cada vez
mais aflita.
Subitamente, Pl�nio percebeu que algo de muito errado havia
acontecido. Eric n�o conseguia sentar-se direito, o que ele
achou muito estranho. A todo instante, virava-se de um lado
para outro, evitando o contato direto com a cama. Pl�nio sobressaltou-
se. J� vira muitas vezes aquela situa��o no hospital e sabia
bem o que significava.

188


� Deixem-me a s�s com meu filho � ordenou incisivo.
� Por qu�, Pl�nio? � contestou Lav�nia.
� Quero examin�-lo sozinho.
� Mas por qu�? Eu sou a m�e dele.
� E eu sou o m�dico.
A muito custo Pl�nio conseguiu fazer com que o menino soltasse
o pesco�o da m�e. Sa�ram todos, e o m�dico sentou-se ao lado
do filho na cama. Eric chorava sem parar, evitando o olhar penetrante
do pai. Com cuidado, Pl�nio foi afagando a cabe�a do menino,
at� que ele se acalmou. Quando percebeu que ele j� estava mais
calmo, pediu com carinho:

� Eric, por favor, deixe-me examin�-lo agora. � para o seu bem.
� Mas eu j� disse que n�o tenho nada.
� N�o adianta querer enganar seu pai. Sou m�dico e conhe�o
muito bem certos sintomas.
� Que sintomas?
� Deixe-me examin�-lo primeiro. Depois falaremos sobre isso.
Pl�nio tentava deitar o menino na cama, mas ele relutava.
Percebeu o rubor cobrindo suas faces, e novamente as l�grimas voltaram
a cair.

� Por favor, pai � suplicou ele �, deixe-me ficar aqui sozinho.
Estou bem. S� o que lhe pe�o � que me deixe faltar � escola hoje.
� Como quiser. Mas o fato de n�o querer ir � aula j� n�o � um
sinal de que algo n�o anda bem? � Eric n�o disse nada. � O que
houve, meu filho? O que lhe fizeram:

� Nada.
� Est� sentindo alguma dor?
� N�o.
� Est� machucado?
� N�o.
� Ent�o, por que est� com essa dificuldade de se sentar?
Eric n�o ag�entou mais. Agarrou-se ao pai e come�ou a chorar
em desespero, falando aos borbot�es:

� Eu n�o queria! Mas ele me for�ou! Entrou em meu quarto
no meio da noite e me obrigou a fazer coisas! Foi horr�vel, pai, horr�vel!
Ele me fez deitar de bru�os... tirou meu pijama... e me machucou...
e riu. Quase me sufocou... e riu!

� Quem, meu filho, quem? � retrucou Pl�nio, entre revoltado
e horrorizado. � Quem fez isso a voc�?
Eric desvencilhou-se de seu abra�o, encarou-o por alguns segundos
com um estranho brilho no olhar. Por uns momentos,
pareceu hesitar. Mas em seguida baixou os olhos e, entre solu�os,
respondeu com voz sumida:

� Romero.
Pl�nio recuou aterrado. Aquilo n�o podia ser verdade. N�o Romero!
N�o o Romero que ele conhecia, que havia ajudado e por
quem seria capaz de colocar a m�o no fogo. Desesperado, escancarou
a porta do quarto e berrou o nome do rapaz. Rapidamente, todos
acorreram. N�o apenas Romero, mas tamb�m Lav�nia e Rafael.

� Romero... � balbuciou o m�dico, sem saber bem o que dizer.
� � verdade o que Eric me diz?
� O qu�, doutor?
� Diga-me que n�o � verdade. Diga-me que ele sonhou. Que
n�o foi voc�, foi outra pessoa.
� Que n�o fui eu o qu� ?
� Que o machucou.
� Eu, machucar Eric? De onde tirou essa id�ia?
J� agora recobrando o dom�nio sobre si mesmo, Pl�nio conseguiu
expor o problema com mais calma:

� Algu�m atacou meu filho. Fez... voc� sabe bem o qu�.
� Minha nossa senhora! � foi o desabafo angustiado de Lav�nia,
que correu a abra�ar o filho, em prantos.
� Como! ? � espantou-se Romero. � O senhor est� tentando
me dizer que algu�m...
que algu�m... violentou Eric?
Pl�nio assentiu e respondeu agoniado:

� E ele diz que foi voc�.
� Eu!? Mas isso � um absurdo! Ele s� pode estar brincando.
� Acha que meu filho brincaria com uma coisa dessas?
� Eric � apelou angustiado �, diga a verdade. Eu n�o fiz isso
a voc�. Jamais lhe faria algo semelhante. A voc� ou a qualquer outra
pessoa. Vamos, Eric, conte a verdade. Diga que n�o fui eu.
� Pare de aterrorizar o menino! � interveio Rafael, irado. �
J� n�o basta o que lhe fez?

� Mas eu n�o fiz nada.

� Ah! N�o? E por que Eric iria inventar uma coisa dessas, hein?
� N�o sei... N�o fa�o id�ia...
� Por favor, Eric � tornou a rogar Romero �, diga-lhes a verdade.
N�o fui eu. Quem fez isso a voc�?
� Ele n�o quer falar � objetou Rafael. � Est� com medo de
voc�, o que � bem f�cil de compreender, n�o �?
� Eric jamais sentiria medo de mim!
� Meu filho � interveio Pl�nio �, n�o precisa ter medo. Sou
seu pai e estou aqui para proteg�-lo. Por isso, n�o tenha medo de
falar a verdade. Vamos, diga-me: quem lhe fez isso?
Rosto lavado em l�grimas, Eric olhou timidamente para Romero
e depois para Rafael, que incentivou em tom amistoso:

� Vamos, Eric, pode falar. N�o tenha medo.
� Pelo amor de Deus, Eric! � insistia Romero.
Apenas Lav�nia parecia n�o se importar com quem havia feito
aquilo. Estava t�o angustiada que nem conseguia pensar direito.
Naquele momento, s� lhe importava o bem-estar do filho.

� Vamos lev�-lo a um hospital � ponderou. � Ele precisa de
cuidados m�dicos.
� Eu sou m�dico, Lav�nia � argumentou Pl�nio. � Vou cuidar
dele pessoalmente.
� Eric ainda n�o respondeu � sua pergunta, Pl�nio � lembrou
Rafael, ansioso.
� Ele n�o quer � falou Lav�nia. � E isso n�o � o mais importante
agora. O mais importante � ver se ele est� bem.
� Vamos, Eric, fale � insistia Rafael. � Quem fez isso a voc�?
Foi Romero ou n�o foi?
� N�o fui eu!
� Foi ou n�o foi? � continuava Rafael.
Eric abaixou os olhos novamente e apertou a m�o da m�e.
Quando falou, foi em tom quase inaud�vel, com profundo sofrimento:


� Foi... Foi Romero...
O olhar de triunfo de Rafael teria sido detest�vel, n�o fosse a
dor que atravessou o cora��o de Pl�nio naquela hora. Ele n�o quis
ouvir mais nada. Empurrou todo mundo para fora do quarto e, tentando
conter as l�grimas, conseguiu convencer Eric a deixar-se


examinar. N�o era preciso nem um exame minucioso para que fosse
constatada a viol�ncia. O menino estava bem machucado e chorava
dolorosamente. Sentia-se envergonhado e humilhado, e nada
do que Pl�nio fizesse poderia curar a dor daquele momento.

Depois que examinou bem o filho, Pl�nio chamou Lav�nia
para que o ajudasse a se lavar e trocar de roupa. Passou-lhe uma pomada
e deu-lhe um rem�dio, al�m de um leve calmante. Em seguida,
limpo e asseado, as roupas de cama trocadas, Eric adormeceu,
com Lav�nia montando guarda � sua cabeceira.

� O que faremos? � indagou Pl�nio, em busca de socorro.
� Fa�a como quiser � foi a resposta seca de Lav�nia. � S� n�o
quero esse rapaz nem mais um minuto em nossa casa.
� Acredita mesmo que foi ele?
� E quem mais haveria de ser?
� N�o sei... Ainda me custa crer. N�o temos provas.
� A palavra de Eric n�o � prova suficiente?
� Tenho minhas d�vidas. Eric � uma crian�a. Est� confuso e
assustado.
Antes que Lav�nia pudesse responder, seus olhos foram atra�dos
para um pequenino objeto ca�do perto da cama do filho, que agora
dormia tranq�ilo. Mais que depressa, ela correu a apanh�-lo, e
l�grimas de �dio afloraram em seus olhos.

� Isto! � falou com raiva, exibindo-lhe a miniatura de motocicleta.
� Isto � prova mais do que suficiente para mim!
� O que � isso?
� Pergunte a Romero.
Lav�nia colocou a miniatura na m�o do marido e voltou para
junto do filho, deixando Pl�nio sem entender bem o que aquilo significava.
Ainda n�o queria acreditar que Romero fosse capaz de um
crime como aquele, mas n�o podia fingir que Eric n�o o acusara. O
menino sempre o adorara, e isso era motivo mais do que suficiente
para n�o duvidar de sua palavra.

Com muito pesar, saiu em busca do rapaz.

� Onde est� Romero? � perguntou a Rafael, que havia permanecido
do lado de fora do quarto do sobrinho.
� Foi para seu quarto, eu acho � respondeu em tom falsamente
doloroso. � J� posso entrar?

� Eric est� descansando. � melhor deix�-lo em paz.
Saiu pelo corredor, em dire��o ao quarto de Romero, e Rafael
foi seguindo-o.

� Eu bem que lhe avisei, n�o foi? � disse, em tom de vit�ria.
� N�o me amole, Rafael. N�o � hora para isso.
� O que pretende fazer agora?
� Ainda n�o pensei em nada.
� Creio que a �nica coisa sensata a fazer � chamar a pol�cia e
entregar o criminoso.
� N�o quero me precipitar.
� Precipitar-se? Voc� viu o que aconteceu!
� Vi. Mas ainda n�o resolvi o que vou fazer.
� N�o me diga que vai deix�-lo ficar. O que ele fez foi imperdo�vel!
� Ainda n�o tenho certeza se foi ele.
� Como n�o? Acha que Eric est� inventando isso?
� Ele est� muito amedrontado.
� O que � natural, n�o acha?
� Ou�a, Rafael � objetou Pl�nio, a m�o pousada na ma�aneta
da porta do quarto de Romero �, n�o me surpreenderia nada se
descobrisse que quem fez isso foi voc�.
� Eu! ? Ora, essa � boa. Isso � um ultraje, uma cal�nia! Entendo
que voc� goste de Romero e esteja decepcionado. Mas da� a querer
me culpar s� para livrar a cara dele j� � demais, n�o concorda?
Sem responder, Pl�nio entrou no quarto de Romero e bateu a
porta na cara de Rafael, o que o deixou ainda mais furioso. Depois
de tudo, o cunhado ainda defendia aquele safado.

Romero, semblante triste, colocava suas coisas numa mala e levantou
os olhos quando Pl�nio entrou.

� Como est� Eric? � perguntou interessado.
� Vai ficar bem.
� Fico feliz.
� Vai a algum lugar?
� Vou embora, doutor. N�o posso mais ficar aqui depois de ter
sido acusado de algo que n�o fiz. Se o senhor n�o confia em mim,
n�o vejo por que ficar.

� N�o se trata disso, Romero. Confiei em voc� minha vida inteira.
Jamais poderia imaginar que fizesse uma coisa dessas.
� N�o fiz nada, e o senhor sabe disso t�o bem quanto eu.
� Por que Eric o acusaria?
� N�o sei. Gostaria de perguntar a ele, mas, dado seu estado,
n�o sei se seria conveniente.
� Gostaria de acreditar que n�o foi voc�.
� Pois pode acreditar. N�o fui eu mesmo.
Ele retirou do bolso a miniatura que Lav�nia havia colocado em
sua m�o e estendeu-a para Romero.

� Sabe o que � isso?
A um olhar r�pido, Romero reconheceu o presente que havia
comprado para Eric e respondeu:

� � um presente. Nada de mais. Comprei para Eric ontem, mas
nem tive tempo de entregar.
� Pois Lav�nia achou isso no quarto de Eric.
� O qu�? Imposs�vel. Nem cheguei a lhe dar.
� Se n�o lhe deu, como isso foi parar no quarto de meu filho?
� N�o sei. Explique o senhor.
� N�o tenho explica��o para isso.
� Nem eu.
� Pois devia, porque o objeto � seu. Ou n�o �?
� J� disse que �. N�o tenho por que negar. Comprei-o ontem,
mas, quando cheguei, Eric j� estava dormindo. Por isso, n�o pude
entreg�-lo, o que faria hoje.
� Chegou a dar pela falta dele?
� S� agora que o senhor me mostrou. Havia at� me esquecido
de que o comprara.
� � curioso que um objeto que voc� comprou na noite em que
tudo aconteceu tenha ido parar junto � cama de meu filho.
� Curioso, �.
� E voc� tem certeza de que n�o sabe como isso aconteceu.
� J� disse que n�o.
� Estranho...
� Ou�a, doutor, sei o que est� pensando. Que fui eu que, no
meio da noite, entrei sorrateiramente no quarto de seu filho, a pretexto
de levar-lhe o brinquedo e, n�o resistindo, abusei dele e o vio

lentei. Em seguida, por descuido, deixei cair ou esqueci a miniatura
no ch�o. N�o � isso?
O m�dico revirou-se na cama de Romero, onde estava sentado,
e respondeu com vis�vel desconforto:

� Por mais que eu n�o queira, � a essa conclus�o que chego.
� E, s� porque sou homossexual, o senhor acha que eu seria
capaz de uma barbaridade dessas.
� N�o se trata disso. N�o � apenas porque voc� � homossexual.
Mas as provas...
� Que provas? Essa moto? Isso n�o prova nada. Qualquer um
poderia t�-la apanhado em meu quarto e colocado l�.
� Est� sugerindo que algu�m incriminou voc� deliberadamente?
� N�o estou sugerindo nada. Eric mesmo podia ter acordado
no meio da noite, ido a meu quarto e apanhado a moto. Mas � um
caso a se pensar.
� Quem faria isso, Romero, quem?
� O senhor n�o imagina?
� Rafael? � deixou escapar, com medo at� de pronunciar
aquele nome.
� O senhor o conhece melhor do que eu.
� E uma acusa��o grave, Romero. N�o h� prova nenhuma
contra ele.
� Por isso, n�o quero acus�-lo. J� chega o que estou sentindo
por ser acusado injustamente. N�o quero fazer o mesmo com outra
pessoa. Mesmo que seja com algu�m detest�vel como Rafael.
� Voc�s dois n�o se d�o mesmo, n�o �? Por qu�?
� Pergunte a ele. � ele quem vem implicando comigo desde
que vim morar nesta casa.
Romero terminou de fechar a mala e fitou o rosto dorido de Pl�nio.
O m�dico n�o sabia o que dizer. Queria muito acreditar nas palavras
de Romero, mas estava dif�cil. Eric acusara-o formalmente,
e n�o havia nenhum ind�cio de que Rafael � que fosse o culpado. E
ele era irm�o de sua mulher, tio de Eric. Ningu�m no mundo acreditaria
que ele tivesse feito aquilo. E n�o era homossexual. Andava
sempre bem acompanhado de mulheres bonitas, ao contr�rio de
Romero, que, al�m de seu hist�rico de trag�dias, era homossexual


declarado. Todos iriam achar que ele estava reagindo ao meio social
da mesma forma como fora tratado e que fazia agora com Eric

o que antes lhe haviam feito e que o havia "viciado".
� Para onde voc� vai? � perguntou Pl�nio, preocupado.
� Para uma pens�ozinha na cidade. � s� o que posso pagar com
o dinheiro que recebo da bolsa do est�gio.
Pl�nio ainda pensou em lhe dar algum dinheiro, mas mudou de
id�ia. O rapaz ficaria ofendido, e Lav�nia ficaria irritada. Romero
apanhou a mala de cima da cama e estendeu a m�o para Pl�nio, que
n�o a tomou.

� Bem � falou com desgosto �, at� logo, ent�o.
� At� logo � respondeu Pl�nio, engolindo em seco.
Da porta, Romero ainda falou, sem se voltar:
� Se n�o se importar, gostaria de saber not�cias de Eric.
� � melhor n�o. Lav�nia pode n�o gostar.
� Entendo.
Romero rodou nos calcanhares e saiu, fechando a porta sem fazer
barulho. Pl�nio ficou sozinho no quarto, lutando para conter as
l�grimas. O que acontecera ao filho j� do�a bastante, e ainda tinha
de suportar outra dor, que era a de ver Romero indo embora daquela
maneira. Mas ele n�o podia impedi-lo. Lav�nia ficaria furiosa e
acabaria brigando com ele. No fundo, ela at� tinha raz�o. Todas as
provas apontavam Romero como o criminoso, e nem ele teria motivos
para duvidar. S� que, em seu �ntimo, algo lhe dizia que alguma
coisa n�o estava correta naquela hist�ria. Fosse pelo �dio que
Rafael sentia por Romero, fosse pela amizade que unia Romero a
Eric, o fato era que Pl�nio n�o conseguia acreditar que fosse ele o
respons�vel por aquele crime abomin�vel.

Com profundo suspiro, Pl�nio levantou-se e voltou para o quarto
de Eric. O menino dormia a sono solto, e Lav�nia n�o estava mais
ali. Ouviu vozes vindas de seu quarto e foi para l�, onde a mulher
e Rafael conversavam baixinho.

� Ah, Pl�nio � disse Rafael. � Que bom que chegou! Est�vamos
imaginando que provid�ncias voc� tomou contra Romero.
� N�o tomei provid�ncia alguma.
� Como assim? � tornou Lav�nia, abismada. � Pensei que fosse
chamar a pol�cia.

� Pol�cia? Achei que voc� n�o estivesse interessada no que eu
faria a ele. Disse que s� o que queria era que ele fosse embora daqui.
E isso ele j� fez.
� Romero foi embora? � indignou-se Rafael. � Assim, sem
dar conta de seus atos?
� O que queria que eu fizesse, Rafael? Que o prendesse aqui?
N�o podia. Foi ele mesmo quem quis ir.
� Quis fugir, voc� quer dizer. Ele deve estar apavorado, com
medo de que voc� o entregue � pol�cia.
� Ele sabe que eu n�o faria nada disso.
� E por que n�o, Pl�nio? � objetou Lav�nia, de uma forma
transtornada e quase irreconhec�vel. � N�o era voc� mesmo quem
vivia dizendo que os crimes sexuais n�o podiam passar impunes?
� Lav�nia tem raz�o � concordou Rafael. � � seu dever noticiar
o fato � pol�cia. Romero tem de ir preso. � uma amea�a para
a sociedade.
� N�o estou bem certo se foi ele quem fez isso.
� Vai come�ar com isso de novo? � sibilou Lav�nia. � J� n�o
temos provas suficientes?
� N�o tenho prova nenhuma, a n�o ser a palavra de Eric, que
n�o pode ser tida como definitiva.
� E a moto? � tornou Lav�nia.
� Qualquer um podia t�-la colocado l�.
Disse isso e olhou fixamente para Rafael, que tratou logo de se
defender:

� O que est� sugerindo? Que fui eu?
� � voc� quem est� dizendo.
� Acusa-me injustificadamente, Pl�nio. Voc� est� querendo
me acusar s� para salvar seu amiguinho. Por qu�? Por que tanto interesse
naquela bicha?
� E isso mesmo, Pl�nio � concordou Lav�nia, desconfiada. �
Por que defende tanto Romero, a ponto de n�o acreditar na palavra
de seu pr�prio filho e de duvidar do car�ter de seu cunhado?

� O que voc�s dois est�o querendo insinuar � uma inf�mia!
Voc� sabe muito bem, Lav�nia, que sou um homem honesto em
meus princ�pios e em meus sentimentos. Se fosse homossexual e tivesse
algum caso com Romero, n�o estaria mais casado com voc�!

� Perdoe-nos, Pl�nio � desculpou-se ela, j� arrependida. �
N�o foi isso que tencionamos dizer. E que estou t�o nervosa...

� Tamb�m estou. Mas nem por isso devemos nos comportar
como irrespons�veis. Temos de pesar bem as conseq��ncias de tudo
que faremos, a fim de que n�o prejudiquemos um inocente.
� Voc� tem raz�o...
� N�o se deixe levar por essa conversa mole, Lav�nia � irritou-
se Rafael. � O culpado � Romero, est� mais que provado. E
seu lugar � na cadeia!
� N�o se meta mais nisso, Rafael! � censurou Pl�nio, bastante
irritado. � Voc� n�o � o pai de Eric, n�o tem direito de dar
opini�o nem de perturbar a cabe�a de sua irm�, muito menos de
decidir como devemos proceder.
Rafael engoliu o �dio e saiu batendo a porta. N�o iria permitir
que Romero continuasse levando a melhor sobre ele. N�o deixaria
que aquilo ficasse assim. Daria um jeito de convencer Lav�nia
a acusar formalmente o rapaz. E r�pido!



cap�tulo cap�tulo
epois de vivenciar tantas experi�ncias dolorosas como
aquela, Pl�nio via-se agora na mesma situa��o de outros pais, que
vacilavam ante a d�vida de se deviam ou n�o acusar os violentadores
de seus filhos. S� agora conseguia entender a hesita��o deles.
Expor a crian�a �quela humilha��o era algo por demais doloroso,
e ele n�o sabia se devia fazer o mesmo a Eric. Tinha medo das conseq��ncias
danosas que um processo criminal daquela natureza
poderia causar ao filho e temia que o trauma daquela viol�ncia acabasse
causando algum dano em sua mente. N�o seria melhor deixar
as coisas como estavam e tentar esquecer? N�o seria melhor para


o menino lev�-lo a um psiquiatra e tentar resolver as coisas sem envolver
a pol�cia e a Justi�a?
Mas havia o culpado. Seria justo, por outro lado, permitir que
continuasse livre para violentar outros meninos, para fazer a outros

o mal que fizera a seu filho? Em situa��es semelhantes, ele sempre
fora o primeiro a orientar os pais a procurar ajuda da pol�cia. Mas,
agora, n�o sabia... Tinha d�vidas sobre o que seria o mais certo a
fazer. O que seria melhor para o filho? N�o para ele ou Lav�nia, mas
para Eric. Pensou em consultar o menino, perguntar-lhe o que preferia,
mas Lav�nia foi veemente em suas recrimina��es. O filho era
ainda uma crian�a, dizia, e n�o estava apto a tomar uma decis�o de
tamanha responsabilidade sozinho.
� Voc� tem de denunciar esse rapaz, Pl�nio � dizia ela. � Ele
� uma abomina��o! Onde j� se viu fazer isso a uma crian�a?

� E se n�o foi ele? � rebateu Pl�nio, ainda incr�dulo.
� L� vem voc� de novo com essa hist�ria. Pois ent�o n�o v�
que foi ele mesmo?
� N�o estou bem certo.
� Pare com isso. N�o vou admitir que voc� acuse meu irm�o.
Rafael pode ser um doidivanas, mas � um homem decente. N�o �
nenhum pederasta.
� Agora voc� trata Romero assim, n�o � mesmo? Antes, n�o
se referia a ele dessa forma.
Ela enrubesceu e retrucou embara�ada:

� Antes, eu n�o tinha medo. Mas agora tenho. � isso o que
d� querer dar chance a essa gente.
� N�o v� quanto est� sendo injusta, Lav�nia? Romero sempre
foi um rapaz direito.
� Ele veio de um meio que n�o � igual ao nosso. Onde morava
antes de conhecer voc�? L� no sub�rbio, lugar de gentinha...
� Mas que disparate! S� porque morava no sub�rbio, n�o
quer dizer que a fam�lia de Romero era de gentinha. Eram gente direita.
Gente como eu ou voc�.
� Isso � que n�o! Somos pessoas de estirpe. N�o criamos homossexuais.
E me reservo o direito de n�o querer que Eric seja um.
� Voc� me surpreende, Lav�nia. N�o sabia que era t�o preconceituosa.
� N�o sou. Estou apenas tentando ser mais seletiva, o que deveria
ter feito quando voc� resolveu trazer esse rapaz para viver aqui
conosco.
Pl�nio fixou-a desgostoso. N�o reconhecia mais a mulher. Lav�nia
nunca agira daquela forma. Sempre fora uma mulher doce e
generosa, mas agora estava mudada. Teria sido por causa da dor de
ver o filho magoado? Ou aquele fora o motivo que encontrara para
revelar quem realmente era?

Com uma sombra de tristeza no olhar, Pl�nio demonstrou sua
indigna��o:

� Voc� ainda tem coragem de dizer que n�o � preconceituosa?
Pois fique sabendo que h� homossexuais em qualquer classe social.
A diferen�a � que entre os ricos eles s�o tolerados, porque o
que manda nas pessoas � o poder do dinheiro. Ningu�m tem cora

gem de abrir a boca para discriminar um homossexual se ele for rico
e influente. Agora, se for gente comum, vira o bode expiat�rio do
mundo, n�o �?

� Mesmo os mais abastados, Pl�nio, viram alvo das l�nguas ferinas
dos fuxiqueiros. O que acontece � que ningu�m tem coragem
de falar nada pela frente. Agora, por tr�s, a hist�ria � outra. J� cansei
de ouvir coment�rios maldosos sobre homossexuais endinheirados.
Quando surgem em sociedade, s�o tratados com defer�ncia e
uma quase subservi�ncia. Mas, quando viram as costas, tornam-se
o alvo preferido dos mexeriqueiros.
� Isso tudo � hipocrisia!
� Concordo que seja hipocrisia, mas � assim que as coisas
funcionam. Mesmo em sociedade, isso � feio. Voc� mesmo sabe que
a toler�ncia � muito grande, porque ningu�m se atreve a criticar
quem tem dinheiro. E � por isso que n�o quero o nome de meu Eric
servindo de chacota e de divertimento nas rodas seletas dos mach�es
da elite.
� N�o a estou reconhecendo, Lav�nia. Jamais poderia imaginar
que voc� fosse assim. Sempre a julguei uma mulher sensata e
de princ�pios. Surpreende-me com essas palavras mesquinhas e carregadas
de preconceito.
� Julga-me assim porque n�o se importa com o que possa vir
a acontecer a seu filho. Farei de tudo que estiver a meu alcance para
evitar que ele vire homossexual. Esse infeliz epis�dio pode arruinar
a vida de nosso filho. Por causa disso, ele pode se tornar gay tamb�m.
E o que dir�o nossos amigos?
� Engana-se. Se Eric tiver de ser gay, � porque j� �, embora eu
n�o acredite nisso. E � exatamente para defend�-lo que hesito em
acusar Romero.
� N�o � o que parece. Pelo visto, voc� quer � defender Romero.
N�o sei por que se tomou de amores pelo rapaz...
� N�o vamos come�ar com isso de novo.
� N�o estou come�ando nada. Eu s� queria entender. Lembro-
me das vezes em que voc� cuidava de casos semelhantes. Chegava
em casa sempre arrasado, questionando a atitude dos pais que se recusavam
a acusar os agressores. E agora faz a mesma coisa.
Ele sabia que ela tinha raz�o. Nem ele conseguia entender di



reito sua atitude. Estava apenas tentando proteger o filho. E Romero.
Talvez sua indecis�o residisse no fato de que n�o acreditasse que
Romero fosse o culpado. Embora seu filho o tivesse delatado e todas
as provas apontassem para o rapaz, Pl�nio n�o conseguia se
convencer. Algo naquela hist�ria n�o ca�a bem, e ele sabia o que
era. Mas n�o tinha como provar. Nem para si mesmo. A exce��o
daquela forte intui��o, n�o havia nada que comprovasse que suas
suspeitas estavam certas.

� E eu, por minha vez, n�o entendo voc� � retrucou ele. �
Diz que est� preocupada com a sociedade, porque n�o quer que Eric
vire motivo de chacota entre suas amiguinhas f�teis e vazias. E o
que acha que v�o falar de nosso filho se esse caso vier � tona? N�o
teme a rea��o dos mach�es, nas rodas sociais, contando a todo mundo,
em detalhes, o que lhe aconteceu? Acha que n�o haver� risinhos?
Nem ironias? Ou sugest�es maldosas?

� De qualquer forma, algu�m vai acabar descobrindo. Voc�
sabe como s�o as fofocas sociais. E o que v�o dizer? Que n�o tomamos
nenhuma atitude para esconder as tend�ncias de nosso filho.
E, depois, as situa��es s�o diferentes. Uma coisa � ser v�tima inocente.
Outra coisa � ser pederasta por op��o. Se delatarmos o culpado,
todos v�o compreender e nos apoiar, certos de que estaremos
tentando limpar a honra de nosso filho. Ningu�m quer um jo�oningu�m
pederasta e molestador circulando entre pessoas de bem.
Por mais que Lav�nia tentasse se justificar com o medo do
preconceito social, Pl�nio sabia que aquele n�o era o �nico motivo
pelo qual ela insistia em que ele acusasse Romero. O real motivo
de tanta insist�ncia era Rafael. Ele sempre tivera muita influ�ncia
sobre a irm�. Mesmo quando ela o recriminava ou discordava
dele, fazia-o com contrariedade e inseguran�a. Pl�nio tinha certeza
de que Rafael enchera a cabe�a de Lav�nia com uma por��o
de bobagens sobre discrimina��o e pederastia, e ela se deixara
convencer, porque, no fundo, era t�o preconceituosa quanto todo
mundo. Apenas ocultara de Pl�nio essa faceta, inconscientemente
tentando adaptar-se a seus princ�pios para agrad�-lo. Mas n�o
era essa sua natureza. Lav�nia era uma mulher altamente preconceituosa,
e agora havia motivos que a levavam a desvendar sua
real personalidade.


� Est� certo � concordou ele, por fim, contrariado e infeliz.
� Se � o que quer, vou � pol�cia. Mas saiba que vai ser doloroso para
Eric. Vai ter de passar por um exame de corpo de delito que n�o sei
se ser� agrad�vel.
� Ele pode suportar. J� suportou coisa pior. Voc� � o m�dico.
Vai poder ajud�-lo.
Com profundo suspiro de dor, Pl�nio aprontou-se para ir �
delegacia.
Antes, por�m, passou pelo quarto do filho. Queria ter uma �ltima
conversa com o menino. Ao colocar a m�o na ma�aneta, levou
um susto, porque algu�m do lado de dentro, ao mesmo tempo,
abria a porta com cuidado.

� Pl�nio! � surpreendeu-se Rafael, ao quase esbarrar com o
cunhado.
� O que est� fazendo aqui, Rafael?
� Vim ver como Eric est� passando.
Com certa irrita��o, Pl�nio chegou Rafael para o lado e entrou.
O menino estava recostado na cama, fingindo ler um gibi, atento
� antipatia que flu�a entre o pai e o tio.

� Deixe-me a s�s com meu filho, por favor.
O rapaz saiu revoltado, quase batendo a porta, e Pl�nio aproximou-
se do filho. Sentou-se a seu lado e afagou seus cabelos.

� Como se sente? � perguntou com voz amorosa.
� Bem...
� Ainda est� com dor?
� Um pouco. Estou assado e dolorido.
� Vai passar. � Apanhou a m�o do menino, que soltou o
gibi, e prosseguiu constrangido: � Sua m�e insiste em que eu v�
� pol�cia.
� Para qu�! ?
� Quer denunciar Romero.
� Oh!
Havia tanta ang�stia naquela interjei��o, que Pl�nio se sentiu
encorajado a perguntar:

� Tem certeza de que foi Romero quem fez isso a voc�?
Eric n�o respondeu e Pl�nio insistiu:
� Tem?

� Tenho � respondeu o menino, com voz hesitante.
� Certeza absoluta?
� Sim...
� N�o pode estar enganado?
� N�o � falou Eric ap�s breve sil�ncio.
� E seu tio?
� O que tem ele?
� Esteve aqui conversando com voc�, n�o foi?
� Foi.
� O que ele queria?
� Nada. Veio ver como eu estava passando.
� Ou�a com aten��o, Eric, e responda-me sem medo: seu tio
fez algum tipo de amea�a a voc�?
� N�o � foi a resposta r�pida.
� Ele o tocou?
� N�o.
� N�o foi ele quem fez isso, ao inv�s de Romero?
� N�o.
� Tem certeza?
� Tenho.
� N�o foi ele quem entrou em seu quarto na outra noite?
� N�o, n�o! J� disse que n�o! Por que n�o acredita em mim?
N�o foi tio Rafael quem fez isso comigo. Foi Romero! Quisera eu
que n�o fosse, mas foi ele! Foi Romero, Romero!
Eric solu�ava desesperado, e Pl�nio abra�ou-o:

� Psiu! Est� bem, Eric, acredito em voc�. N�o precisa se desesperar.
Aos pouquinhos, o menino foi se acalmando, sentindo-se seguro
nos bra�os do pai. Pl�nio ficou pensativo. Eric parecia falar a
verdade. Estava arrasado, triste, angustiado. Sua voz era carregada
de dor e ressentimento, mas parecia sincera. Teria Pl�nio se enganado?
Seria mesmo Romero capaz de uma atrocidade daquelas?
Talvez estivesse se enganando, n�o querendo enxergar o que estava
bem diante de seus olhos. Talvez Romero fosse o culpado, e ele
se houvesse enganado com o rapaz durante aqueles anos todos. As
pessoas realmente surpreendiam, e ningu�m podia dizer o que ia no
fundo da alma dos outros.


Pl�nio deu um beijo na testa do filho, alisou seus cabelos e levantou-
se para sair.

� Descanse � falou com voz sentida.
� Aonde voc� vai?
� Fazer o que j� devia ter feito antes. Ir � pol�cia.
Eric engoliu o solu�o e apanhou de volta a revista, mal conseguindo
enxergar as letras, com os olhos cheios de l�grimas. Esperou
at� que o pai sa�sse e deitou-se na cama, afundando o rosto entre
os travesseiros.

Por que n�o tivera coragem de falar a verdade? Por que tinha
de ser medroso, covarde? Por que n�o enfrentara o tio com a mesma
aud�cia com que ele mentia e o amea�ava?

Entre solu�os, relembrou a cena da noite passada.

J� devia ser muito tarde, porque a casa estava escura e em sil�ncio
quando ele acordou, sentindo que a cama afundava a seu lado.
Abriu os olhos sonolento e viu o tio ali sentado, sorrindo seu usual
sorriso de sarcasmo.

� Tio Rafael! � dissera espantado. � Aconteceu alguma
coisa?
� N�o, meu querido � foi a resposta melosa, em tom de falsidade.
� Ainda n�o.
Sorrindo, Rafael acariciou seu rosto e seus cabelos, causando
imensa repulsa em Eric, que tentou recuar. Mas o tio n�o o permitiu.
Rapidamente, sem dizer nada, pulou em cima dele e tapou sua
boca com a m�o. Em seguida, dominando-o, virou-o de bru�os e machucou-
o. Foi horr�vel! Eric ainda se lembrava da dor que sentira
ao ser brutalmente violado. Ele chorava, os solu�os abafados pela
m�o do tio, que parecia n�o se importar.

Eric sentiu-se sufocar, porque Rafael apertava sua boca com for�a,
por vezes tapando-lhe tamb�m o nariz, o rosto de encontro ao
travesseiro. Parecia que, quanto mais ele chorava, mais o tio sentia
prazer com o que fazia, e, � medida que o ar ia lhe faltando, a respira��o
de Rafael tornava-se mais e mais ofegante. At� que parou.
Rafael afrouxou a m�o sobre a boca do sobrinho e virou-o de frente
para ele.

� Nem uma palavra, ouviu? � amea�ou. � Se disser algo a algu�m,
mato-o de pancada.

Eric n�o conseguia falar. Apenas chorava e solu�ava, enquanto
o tio prosseguia amea�ando:

� Se algu�m desconfiar, diga que foi Romero, aquela bicha nojenta.
Est� me ouvindo?
Eric n�o respondeu, e Rafael esbofeteou-o de leve.

� Acho bom voc� fazer como estou mandando, ou vai ser
pior para voc�. Sabe do que sou capaz, n�o sabe?
O menino assentiu e ele continuou:

� N�o estou de brincadeiras. Se voc� disser que fui eu, nego
tudo. Ser� sua palavra contra a minha. E ningu�m vai acreditar em
voc�. Muito menos naquele veado. Todos v�o pensar que voc�s est�o
tendo um caso e que, ao ser descoberto, voc� quis me acusar. Porque
� isso mesmo o que direi. Que Romero o violentou e o viciou,
levando-o para o mau caminho. Um garotinho! Ha, ha, ha! E voc�
sabe o que acontece com essas bichas que molestam crian�as? Elas
v�o presas. V�o para a cadeia, que � para onde Romero vai acabar
indo tamb�m. Voc� entendeu bem tudo que eu falei, n�o entendeu?
Responda!
� Entendi... � respondeu Eric, ainda solu�ando.
� �timo. � por isso que gosto de voc�. Sempre foi um menino
obediente e comportado. Agora, repita comigo: quem foi que
violentou voc�?
O garoto engoliu em seco e respondeu hesitante:

� Romero...
� Muito bem! Fico impressionado com a rapidez com que voc�
aprende as coisas. Se fizer tudo direitinho, conforme mandei, ningu�m
vai se dar mal. Se n�o fizer, acabo com voc� e com Romero
tamb�m. Voc� duvida, Eric, que eu possa acabar com Romero?
� N�o.
� �timo! Porque posso. Dou um jeito de acabar com ele, e ningu�m
nunca vai ficar sabendo que fui eu. Um belo dia, ele vai ser
encontrado na sarjeta, com a boca cheia de formiga.
Eric sentiu um arrepio e encolheu-se todo. Achava que o tio
falava a verdade. Por isso jamais gostara dele. Sempre sentira, em
seu �ntimo, que Rafael n�o era uma boa pessoa, apesar de a m�e dizer
que o era.

� N�o fa�a nada com Romero, por favor � suplicou o menino.

� S� vai depender de voc�. Se fizer tudo direitinho, conforme
mandei, Romero continua vivo. Se n�o fizer... � Correu
o dedo pelo pesco�o, como se o estivesse cortando com uma faca.
� ...j� era.
Eric levou a m�o � boca, assombrado, sufocando uma exclama��o
de espanto, e apenas murmurou:

� Vou fazer como voc� mandou.
� Pense bem, queridinho do titio � debochou Rafael. � Mais
vale uma bicha presa e viva do que largada no cemit�rio, voc�
n�o acha?
Riu de sua piada sem gra�a e apertou a bochecha do sobrinho,
levantando-se para ir embora. Quando ele j� ia saindo, Eric ouviu
um barulhinho, como se alguma coisa pequenina ca�sse ao ch�o, e
s� no dia seguinte veio a descobrir que era a miniatura de moto que
Romero havia comprado para lhe dar de presente e que Rafael tirara
de seu quarto enquanto dormia e deixara cair propositalmente
ao lado de sua cama.

Na delegacia, o delegado tomou nota de tudo que Pl�nio lhe
dissera, louco de vontade de p�r as m�os naquele safado, como chamara
Romero. Pediu a Pl�nio que levasse o menino para fazer o exame
de corpo de delito, assegurando-lhe que o m�dico perito era homem
cuidadoso e procederia ao exame sem causar maiores danos �
honra do menino. Como Pl�nio tamb�m era m�dico, embora n�o
tivesse habilita��o legal para aqueles casos, poderia acompanhar o
exame pessoalmente, a fim de minorar o sofrimento da crian�a.

� N�o se preocupe, doutor � disse o delegado, como se estivesse
fazendo-lhe imenso bem em prender Romero �, acharemos
o meliante. N�o sabemos para onde foi, mas sabemos onde estuda
e onde trabalha. Haveremos de encontr�-lo.
Pl�nio voltou para casa com o cora��o oprimido, com medo de
estar cometendo uma grande injusti�a. Quando chegou, Lav�nia e
Rafael estavam reunidos na sala, conjeturando sobre a pena que
seria aplicada a Romero.

� O que est� acontecendo aqui? � perguntou Pl�nio, mal
ocultando a contrariedade que aquela cena lhe causava.

� Nada � disfar�ou Lav�nia. � Est�vamos apenas conversando.
E ent�o? Como foi?
Ele a encarou com desgosto e respondeu com ar cansado.

� Precisamos levar Eric � per�cia.
� Onde?
� No Instituto M�dico Legal.
� Voc� quer dizer o IML, aquele IML? � rebateu Lav�nia,
horrorizada.
� N�o conhe�o outro.
� Mas voc� n�o pode lev�-lo �quele lugar. Ser� muito traumatizante
para Eric.
� Foi voc� quem quis assim.
� Mas pensei que voc� mesmo fosse fazer o exame nele,
acompanhado de um m�dico de nossa confian�a, num consult�rio
particular.
� Infelizmente, n�o � assim que a lei procede. O delegado mandou-
me lev�-lo ao IML o mais depressa poss�vel, sob pena de sumirem
os efeitos da viol�ncia. � Vendo o ar de desagrado de Lav�nia,
ele sugeriu: � Ainda est� em tempo de desistirmos.
Um r�pido olhar de Rafael foi suficiente para que Lav�nia retomasse
o controle sobre si mesma e rebatesse com uma quase f�ria:

� Isso � que n�o! Aquele maldito tem de pagar! Venha, Pl�nio,
vamos conversar com Eric. Voc� ir� junto, n�o ir�?
� Sim, o delegado deu-me essa autoriza��o.
� Melhor assim. N�o ser� t�o dif�cil, se voc� o acompanhar.
Sen�o, podemos pedir a Rafael que v� em seu lugar.
� De jeito nenhum! � rebateu Pl�nio, indignado. � Eric � meu
filho, e sou eu quem vai estar ao lado dele nessa hora. E, depois, creio
mesmo que ele n�o gostaria da companhia de Rafael.
Lav�nia deu de ombros e foi ao quarto do filho ajud�-lo a se
preparar, e Rafael tamb�m ia saindo quando sentiu a m�o de Pl�nio
sobre seu bra�o.

� N�o pense que me engana, Rafael. Voc� pode enganar sua
irm�, que � uma tola e confia cegamente no irm�ozinho querido.
Mas eu sei quem voc� � e estou de olho em voc�.
Com ar sarc�stico, Rafael puxou o bra�o e falou ironicamente:

� N�o sou eu que sou a bicha. Muito menos o ped�filo.

� Tenho minhas d�vidas.
Rafael n�o respondeu. Limitou-se a soltar um risinho debochado
e foi para a beira da piscina. N�o estava com vontade de trabalhar
naquele dia e resolveu ficar para ver se Lav�nia ia precisar dele
para alguma coisa. J� havia mesmo perdido a reuni�o da manh�, e

o cliente, na certa, arrumara outra firma.
O menino arrumou-se aos prantos. Estava assustado, com medo
do que iria lhe acontecer. Pl�nio procurou tranq�iliz�-lo da melhor
forma que p�de, embora soubesse que ningu�m sa�a sem marcas de
uma ida ao Instituto M�dico Legal.
Por sorte, ou talvez porque Pl�nio fosse m�dico tamb�m, o exame
realizado em Eric foi r�pido e o menos constrangedor poss�vel.
O m�dico que o examinou n�o o submeteu a interrogat�rios desnecess�rios
nem fez qualquer coment�rio que pudesse embara��-lo.

� Tudo bem, meu filho? � perguntou Pl�nio, j� no carro, a
caminho de volta.
� Tudo � respondeu Eric, choroso.
� Voc� n�o precisa sentir-se envergonhado. O que lhe aconteceu
foi horr�vel, mas voc� vai superar.
� Vou virar veado tamb�m?
Pl�nio olhou-o penalizado e respondeu com compreens�o:
� S� se voc� quiser.
� Tio Rafael diz que quem passa por isso fica viciado e vira
veado. � o que vai acontecer comigo?
Pl�nio mordeu os l�bios e procurou esclarecer:

� Seu tio Rafael n�o sabe de nada. Ningu�m vira homossexual.
Quem � j� nasce assim.
� Mas tio Rafael disse que Romero ficou assim depois que foi
violentado, como eu fui.
� Ele n�o ficou assim, meu filho. O atentado que Romero
sofreu s� serviu para despertar algo que estava adormecido dentro
dele.
� Por qu�?
� N�o sei lhe dizer. S� sei que foi assim que Romero descobriu
que era homossexual, n�o que se tornou um.
� Mas, se n�o fosse aquilo, ele jamais teria assumido o que �.
� Talvez. Cada pessoa reage � vida � sua maneira, e Romero

tamb�m encontraria a dele. Talvez vivesse a vida inteira infeliz sem
se assumir, travando uma batalha impiedosa consigo mesmo. Talvez
at� viesse a se casar e ter filhos, s� porque era isso que se esperava
dele. Ou talvez ele tivesse descoberto sua homossexualidade
de outra forma e a tivesse aceitado naturalmente. N�o temos como
saber como cada um descobre seu caminho.

� � errado, pai? Romero est� cometendo algum pecado por
ser homossexual?
� N�o, Eric. Em minha opini�o, nada que acontece na vida
est� errado. Apesar de n�o ser um homem religioso, acredito numa
for�a maior que n�s, que nos criou a todos e � muito mais s�bia do
que pensamos. E essa for�a n�o criaria nenhum tipo de armadilha
para os homens s� para v�-los em queda. N�o acredito nisso. Quem
criou o homem criou tamb�m a homossexualidade, e, se a criou, �
porque achou necess�rio.
� Mam�e diz que n�o � natural.
� Sua m�e est� ferida, com raiva.
� Ela tamb�m tem medo de que eu fique igual a Romero.
� Voc� n�o tem de se preocupar com isso. Seja o que for que
vier a ser em sua vida, ter� todo o meu apoio.
� N�o quero ser como Romero, pai. Gosto das garotas.
� Ent�o, n�o tem com que se preocupar.
� Mas... e se elas n�o gostarem de mim? E se meus amigos descobrirem
o que me aconteceu e ca�oarem de mim?
� Voc� n�o tem culpa do que lhe aconteceu. Ningu�m tem.
Mas n�o � isso que vai determinar as escolhas que vai fazer em sua
vida. S�o as suas pr�prias tend�ncias e necessidades.
� Mas tio Rafael diz...
� N�o se impressione com o que seu tio diz. Ele � uma pessoa
amarga e pouco confi�vel. Ainda n�o me convenci de que n�o foi
ele quem fez isso a voc�.
� J� disse que n�o foi ele! � revidou Eric com raiva.
� Est� bem, meu filho, n�o precisa se zangar. Se voc� diz,
eu acredito. � Esperou alguns minutos e perguntou: � E Romero?
O que voc� sente pelo homem que lhe fez mal? Est� com raiva
dele?
Como poderia? Romero n�o havia feito nada al�m de ser seu


amigo. Eric sentia imensa ang�stia pelo que estava prestes a lhe
acontecer, mas lembrava-se bem das amea�as do tio. Temia n�o s�
por sua vida mas pela do pr�prio Romero. Achava que, se falasse a
verdade, Rafael cumpriria a promessa e daria um jeito de mat�-los,
a ambos. Com o peito sufocado pela dor, come�ou a chorar e, olhos
baixos, respondeu amargo:

� N�o quero mais falar de Romero.
Pl�nio compreendeu sua dor e respeitou-a. Ainda n�o estava
convencido, mas n�o tinha argumentos para refutar as afirma��es
de Eric. Talvez ele tivesse mesmo raz�o e Romero n�o fosse nada daquilo
que ele pensasse ser. Ou talvez Romero apenas n�o conseguisse
controlar seus instintos. De qualquer forma, se fora ele mesmo
quem fizera aquilo ao menino, merecia puni��o.



cap�tulo cap�tulo
ssim que saiu da casa de Pl�nio, Romero foi para o

centro da cidade e alugou um quarto numa pens�ozinha barata. N�o
era nenhuma maravilha, mas era limpo e asseado. Ajeitou suas
coisas no arm�rio velho e recostou-se na cama, angustiado com os
�ltimos acontecimentos. Ningu�m mais do que ele lamentava a
sorte do pequeno Eric. Como podiam pensar que fora ele o respons�vel
por aquele ato abomin�vel? Logo ele, que passara por situa��o
semelhante?

Pensando nisso, n�o p�de deixar de sentir certa m�goa. Pl�nio
jamais deveria ter acreditado naquela inf�mia. Ent�o n�o o conhecia?
N�o estava a par de tudo que sofrera na vida? A mentira de Eric,
at� que podia entender. O menino estava assustado, com medo de
ser castigado pelo tio. Sim, porque Romero tinha certeza de que fora
Rafael quem fizera aquilo. Lembrava-se de que, na noite anterior,
estava dormindo quando pensou ter ouvido um barulho na porta.
Olhou, mas n�o viu nada, embora tivesse ficado com a sensa��o de
que algu�m entrara em seu quarto, procurando alguma coisa, e sa�ra
sorrateiramente. S� depois se dera conta de que Rafael devia ter
entrado na surdina, procurando algo incriminador, e, achando o embrulhinho
em cima da mesinha de cabeceira, tirara-o sem que percebesse.
S� isso justificava o fato de a miniatura ter sido encontrada
perto da cama de Eric.

Mas como faria para provar sua inoc�ncia? Al�m da palavra de
Eric e da pequena moto, Romero era homossexual, o que, por si s�,


j� parecia prova suficiente. Ningu�m hesitaria em acreditar que fora
ele o culpado, porque um homossexual, na cabe�a dos ignorantes,
era algu�m sem moral e sem car�ter. Ele sabia que isso n�o era verdade.
Era homossexual, sim, mas n�o era um cafajeste. Era um homem
decente. Estudava, trabalhava e s� sa�a com rapazes adultos,
respons�veis por seus pr�prios atos. Jamais se interessara por crian�as.
N�o era tarado, e o corpo dos meninos n�o lhe despertava nenhum
desejo. Como poderia? Eram crian�as.

Eric, em especial, era seu amigo, o irm�o mais novo que n�o
tivera. Ao perder Judite, Romero sentira-se mais s� do que nunca
no mundo. Pl�nio fora muito bom para ele, cuidara de sua educa��o,
fora compreensivo e carinhoso. Mas Eric era mesmo seu amigo.
Romero sentia-se � vontade com o menino, nutria por ele uma
afei��o sincera e desinteressada, muito semelhante � que sentira por
Judite. Como puderam p�r em d�vida seu afeto, conspurcar um sentimento
que era puro e verdadeiro?

Apesar da decep��o e do desgosto, precisava continuar vivendo.
Faltavam poucos meses para se formar, e ele estava ansioso por
come�ar a trabalhar. J� estava providenciando resid�ncia num hospital
municipal, onde poderia ingressar na pediatria. S� ent�o lhe
ocorreu que, se algu�m soubesse do ocorrido, jamais confiaria nele
para levar-lhe os filhos. Diriam at� que ele escolhera aquela profiss�o
s� para poder abusar dos meninos, o que seria uma inf�mia. Mas
era o que diriam, e ele n�o teria chances como pediatra. Come�ou
a sentir-se inquieto, temendo por seu futuro. Embora n�o acreditasse
que Pl�nio fosse procurar a pol�cia, sabia que corria grande risco
de aquela hist�ria vazar, ainda mais com Rafael encarregando-se
de espalh�-la para todo mundo.

Resolveu n�o pensar mais naquilo. De nada adiantaria sofrer
antecipadamente. O jeito era esperar para ver o que iria acontecer
e continuar tocando a vida. Desceu para comer alguma coisa
por ali mesmo e voltou para o quarto. Tomou um banho e ligou o
aparelho de televis�o. Esperou um longo tempo at� que a imagem
aparecesse, em preto-e-branco e sem brilho. Passou o dia naquele
quarto, sem coragem de sair para a vida, at� que veio a noite e ele
acabou adormecendo.

No dia seguinte, acordou bem cedo. Precisava estar no est�gio


�s sete horas e correu para l�. Quando chegou, notou algo estranho
na entrada do hospital. Havia um carro de pol�cia parado na porta,
e um guarda conversava com o chefe dos estagi�rios. Ele hesitou
e teve vontade de correr, mas ficou dizendo para si mesmo que
aquilo nada tinha a ver com ele. Caminhou a passos vagarosos, tentando
n�o olhar para a pol�cia, e foi se aproximando. Cumprimentou
o chefe com um sorriso for�ado e j� ia entrando quando viu que

o homem apontava para ele com o queixo. Imediatamente, dois policiais
o cercaram, e ele foi colocado no carro, sem muitas explica��es.
Estava preso.
Na delegacia, o tratamento que recebeu foi o pior poss�vel, chegando
at� a apanhar. Queriam que ele confessasse um crime que n�o
havia cometido, mas ele resistia. Quando, finalmente, n�o ag�entou
mais levar pancadas, assinou a confiss�o. Ele sempre fora fraco,
e faria qualquer coisa para n�o sentir mais tamanha dor.

Trancafiaram-no numa cela, onde ele permaneceu por alguns
dias, ao lado de prisioneiros da pior esp�cie. Ao saberem que ele
estava sendo acusado de atentado violento ao pudor contra um menino
de onze anos, os presos se revoltaram. Tinham um estranho
c�digo de �tica e n�o admitiam estupradores ou violentadores
entre eles.

� Olhem s� � ironizou Carl�o, um dos presos mais mal-
encarados �, temos uma bichinha aqui.
Os outros presos riram e olharam para Carl�o, ansiosos.

� Deixe-me em paz � rebateu Romero, timidamente.
� Ele pensa que � melhor do que n�s � prosseguiu Carl�o. �
S� porque, al�m de veado, � filhinho de papai.

� N�o penso nada. N�o tenho nada contra voc�s.
� Mas n�s temos contra voc�, bichinha. Sabe o que �? � que
n�s n�o gostamos de molestadores.
Romero nem viu direito o que aconteceu. Rapidamente os
homens se aproximaram dele e o seguraram, deitando-o no ch�o frio
e �spero da cela. Rasgaram suas roupas e o violentaram. Ele ficou
aterrado. Chorava e implorava que o largassem, mas os homens n�o
ligavam para sua ang�stia. Para eles, estavam vingando a sorte do
pobre menino, fazendo a Romero o que ele impiedosamente fizera
ao pobre garotinho.


Esse fato se sucedeu por mais alguns dias. Os homens, revoltados,
aproveitavam para saciar seus instintos em Romero, sob o pretexto
de serem justiceiros. Na verdade, queriam apenas sentir prazer
com o sexo violento e s�dico. Nas primeiras vezes, Romero
chorou muito. Mas depois acabou se acostumando e parecia n�o ligar
mais. Suportava tudo com extrema passividade, quase que com
apatia, o que acabou desinteressando Carl�o e os outros presos.
Finalmente, deixaram-no em paz.

O inqu�rito foi muito r�pido, e logo o advogado de Pl�nio havia
ingressado com a queixa-crime. Como Romero n�o tinha recursos,
foi designado um defensor p�blico para o caso. No dia seguinte
ao ajuizamento da a��o, ele foi visitado por uma mo�a de vinte
e oito anos, dizendo-se sua defensora naquele caso.

� Muito prazer � cumprimentou ela secamente, colocando �
sua frente os autos do processo de Romero. � Meu nome � Maria
da Gl�ria Soares Pimenta e fui designada para ser sua defensora.
Romero olhou-a incr�dulo e contestou envergonhado:

� Olhe, doutora, n�o me leve a mal, mas n�o acha que, para
meu caso, seria melhor um homem mais velho e experiente?
Maria da Gl�ria fitou-o por cima dos �culos de aro de tartaruga
e respondeu com firmeza:

� Para quem afirma aqui ser v�tima do preconceito, at� que o
senhor est� me saindo um belo de um preconceituoso, n�o acha?
O rosto de Romero corou violentamente, e ele come�ou a
balbuciar:

� Sinto muito... N�o queria ofend�-la. Perdoe-me mesmo.
Mas � que uma mulher...
� Romero � cortou ela impaciente, sem lhe dar tempo de concluir
sua frase �, n�o sei bem o que aconteceu neste caso. S� o que
sei � que voc� est� sendo acusado de violentar o filho de gente importante.
Voc� � homossexual, j� sofreu abuso antes, e as provas a
seu favor n�o s�o das melhores. N�o creio que voc� seja a pessoa
mais indicada para julgar quem quer que seja.
Romero sentiu as orelhas arderem e teve vontade de pedir
�quela mulher que sa�sse e o deixasse sozinho. N�o precisava ser defendido
por algu�m t�o arrogante. E, depois, estava na cara que ela
tamb�m j� o havia condenado, antes mesmo de o conhecer.


� N�o quis ser grosseiro nem a estou julgando � desculpou-
se ele, cada vez mais ruborizado. � � que pensei que cargos como
esse fossem dados apenas a homens mais experientes.
� Pois pensou errado. Estou formada h� sete anos e, h� tr�s,
sou defensora p�blica. E ningu�m me deu esse cargo. Fui aprovada
em concurso p�blico.
� Pe�o desculpas novamente por t�-la ofendido � repetiu ele
com certa raiva, o que n�o era comum em seu comportamento. �
N�o quis ofend�-la, mas, se a senhora j� vai come�ar a me defender
com essa antipatia toda, achando que sou mesmo culpado, acredito
que n�o dar� muito certo.
� Quem foi que disse que eu o acho culpado?
� E n�o acha? Acabou de me acusar agora mesmo.
� Eu o acusei? N�o me lembro de t�-lo acusado de nada.
� A senhora mesma disse que eu violentei o filho de um homem
importante porque sou homossexual e porque j� fui violentado
tamb�m. Isso n�o � uma acusa��o? Ou melhor, um julgamento
precipitado?
Ela tirou os �culos do rosto e fixou os olhos dele, falando com
muita seguran�a:

� Em primeiro lugar, n�o o acusei de nada, muito menos o estou
julgando precipitadamente. Em segundo, eu n�o disse que voc�
violentou o menino porque � homossexual e porque tamb�m j� foi
violentado. Disse que voc� � acusado de ter violentado o garoto,
que � homossexual e que j� sofreu abuso sexual antes. Falei alguma
mentira?
Romero corou de novo e tornou envergonhado:

� Pe�o que me perdoe novamente. Mas achei que a senhora
pensasse como todo mundo.
� Quem pensa como todo mundo � voc�. Pensa que, s� porque
� homossexual, ningu�m vai acreditar em sua palavra. Est�
sendo preconceituoso com voc� mesmo.
� N�o � verdade! Sei que sou inocente, apesar de ter assinado
uma confiss�o.
� Aquela confiss�o n�o tem valor jur�dico nenhum. � muito
f�cil desacredit�-la em ju�zo, porque todo mundo sabe como s�o
obtidas as confiss�es.

� Est� me dizendo que acredita em mim?
� N�o estou dizendo nada. Mas que mania voc� tem de querer
adivinhar tudo que penso!
� Desculpe-me.
� Bem, voltando ao caso, vamos esquecer a confiss�o. Ela n�o
� prova suficiente.
� Doutora � interrompeu Romero, agora com certo tom de
ang�stia, e ela o olhou impaciente �, perdoe-me por perguntar. Mas
tenho mesmo de ficar preso aqui? Este lugar � horr�vel. E os presos...
fizeram-me tantas coisas...
Engoliu em seco e acabou por deixar escapar um solu�o, sensibilizando
imensamente o cora��o de Maria da Gl�ria. Ela sentiu
tremenda piedade dele, de sua fragilidade, do caminho que escolhera
para sua vida, que o tornara culpado apenas por ser homossexual.
S� naquele momento foi que se deu conta do que os outros presos
lhe haviam feito e sentiu compaix�o, n�o porque estivesse sendo
preso e acusado, pois ela n�o sabia ainda se ele era inocente ou culpado,
mas pela imensa injusti�a por v�-lo atirado ali unicamente
pelo fato de ser homossexual. Ele era uma alma sens�vel, podia perceber,
e devia estar sofrendo muito com tanta brutalidade.

� Fique tranq�ilo � falou com mais brandura. � Irei daqui direto
ao juiz com um pedido de habeas corpus. Voc� � r�u prim�rio,
estudante de medicina, embora sem endere�o fixo.
� Estou morando numa pens�o.
� Vai servir. Bem, acho que isso � motivo mais que suficiente
para voc� ser solto. Desde que n�o fuja...
� N�o vou fugir. Pode confiar em mim.
Naquele momento, um sentimento mais profundo come�ou a
nascer entre Romero e Maria da Gl�ria. Ela sentia que podia confiar
no rapaz. Entrara ali com certa preven��o, imaginando que
monstro poderia ter feito algo t�o terr�vel a um garotinho. Mas,
conhecendo-o, duvidava de que ele fosse mesmo culpado. Ele
parecia t�o fr�gil, t�o sens�vel! Como algu�m com aquela aura de
sensibilidade poderia ter violentado uma crian�a? Resolveu que
estudaria melhor o caso, em vez de preparar uma defesa formal e
impessoal. Se Romero fosse inocente, ela queria descobrir. Se n�o
fosse, deixaria a Justi�a agir a seu modo.


o astral, Judite assistia a tudo com o cora��o oprimio
astral, Judite assistia a tudo com o cora��o oprimido.
N�o fosse F�bio a seu lado, n�o teria conseguido manter-se em
equil�brio. Mas o esp�rito amigo ia encorajando-a e fazendo-a lembrar-
se, a todo momento, de que nada na vida acontece em v�o.

� Mas isso era necess�rio? � questionava ela, ainda tentando
encontrar um meio de aliviar o sofrimento do irm�o.
� Bem... sim e n�o. Nada que acontece no mundo � desnecess�rio.
Por outro lado, Romero poderia ter optado por outros
caminhos. Mas nada melhor do que a experi�ncia para nos fazer
conhecer e compreender os efeitos de nossos atos.
� Tem raz�o. Mas ele est� sofrendo tanto!
� Sofre o que escolheu para si mesmo. Foi a op��o dele, n�o
para que sofresse, mas para que compreendesse. S� que n�s, quando
encarnados, estamos presos ao sentir da carne e medimos nosso
sofrimento pelo que a atinge, seja f�sica, seja emocional, seja mentalmente.
� Como assim?
� Fisicamente, reagimos � dor. Pancadas, escoria��es, mutila��es.
Emocionalmente, sentimos tristeza, saudade, culpa, rejei��o.
Mentalmente, retemos lembran�as dif�ceis, criamos ilus�es e m�scaras
de comportamento para levarmos avante a personalidade que
nos foi dada nessa vida. Tudo isso, embora se processe em n�veis distintos
de nossa consci�ncia, acaba por refletir-se em nosso corpo f�sico.
Tanto que adoecemos.
219


� � verdade...
� E isso porque n�o conseguimos enxergar al�m do mundo material.
Quando conseguimos ver com os olhos da alma, vamos entendendo
nossos processos. Para Romero, nesse momento, ele � v�tima
de uma trama e de uma injusti�a. Para sua alma, ele apenas est�
acionando a roda da vida, fazendo com que se cumpra mais uma etapa
em sua jornada de luta pela evolu��o. E, creia-me, Judite, nada
acontece que n�o tenha sido escolhido ou aceito por ele. Porque ele
quis, porque desejou, porque acreditou ser essa a melhor forma de
aprender. Nada lhe foi imposto nem exigido. Ningu�m quis castig�-
lo nem o incentivou � autopuni��o. Foram suas culpas, seus
medos, seus �dios que o fizeram escolher essa experi�ncia. E seu
desejo de mudar.
� Pobre Romero...
� N�o diga isso. Ningu�m � pobre quando est� ganhando valiosos
ensinamentos morais. Tudo que acontece � para nosso bem,
se n�o nesta, em outra vida. Porque ningu�m consegue escapar da
vida espiritual. E � l�, quando deparamos com o que somos e com
quem somos, que temos de acertar contas com nossa consci�ncia.
� ela que vai determinar o que j� vencemos e o que ainda n�o.
� Sei que tudo na vida tem um porqu�. Sei tamb�m que ningu�m
sofre por acaso. Sei de nossas escolhas e de tudo o mais. Mas
Romero � meu irm�o. Sinto pena dele.
� Pois n�o devia. Por que sentir pena de quem est� crescendo?
Agora pode n�o parecer, mas depois voc� ver� os resultados.
Quando ele se libertar das culpas que traz, do antigo v�cio da pedofilia,
da total aus�ncia de respeito por seus semelhantes, voc� me
dir� se valeu ou n�o a pena. Nada como ser livre, Judite. E s� seremos
inteiramente livres quando nosso cora��o n�o se confranger
mais diante das lembran�as. No dia em que pararmos e olharmos
para dentro de n�s mesmos, evocando recorda��es de tempos idos,
e isso n�o nos incomodar, a�, sim, j� teremos nos libertado e estaremos
prontos para viver novas experi�ncias em outros mundos. �
Fez uma pausa e mudou o tom de voz: � Mas ainda h� outros esp�ritos
sofrendo verdadeiramente, porque atirados num lama�al de dor
por sua ignor�ncia e relut�ncia em crescer.
� Quem? Algu�m que eu conhe�a?

� Sim. Algu�m que voc� conheceu de perto. Quer ver quem �?
� N�o me diga que meu pai ou minha m�e desencarnaram!
� N�o, seus pais v�o muito bem, nos padr�es que estabeleceram
para si mesmos. � a outra pessoa que me refiro.
� Quem �? Quero v�-la.
� Ent�o, venha comigo. Mas devo alert�-la de que iremos
adentrar o mundo inferior, onde alguns esp�ritos ignorantes permanecem
em profundo sofrimento.
Em quest�o de segundos, Judite viu-se numa caverna, no astral
inferior, onde v�rios esp�ritos pareciam amontoados, gemendo,
olhos vidrados. Alguns pareciam disputar alguma coisa, outros riam
abobalhados.

� Mas o que � isso? � sussurrou horrorizada, agarrando-se ao
bra�o de F�bio.
� N�o se preocupe. Eles n�o podem nos ver nem ouvir.
Caminharam por entre aqueles corpos semimortos, at� que
chegaram a uma esp�cie de vala, onde alguns esp�ritos tossiam, como
se estivessem engasgados com alguma coisa.

� O que eles t�m? � indagou, entre aterrada e penalizada.
� S�o esp�ritos que desencarnaram em conseq��ncia das drogas
e do �lcool.
� Todos eles?
� Todos eles.
Nesse momento, F�bio avistou quem estava procurando. Jogado
a um canto da vala, com uma seringa agarrada na m�o, J�nior
debatia-se. Judite fitou-o horrorizada. Mal o havia reconhecido.

� E J�nior! � exclamou, mais para si do que para F�bio. � Mas
ele est� muito mal!
� Muito mal mesmo. Ainda nem sabe que morreu.
� Depois desses anos todos, ainda permanece na ignor�ncia?
� Sim. E, oferecendo-lhe drogas como recompensa, alguns
esp�ritos se utilizam dele.
� Como assim?
� Pedem que ele perturbe encarnados. Como ele est� num est�gio
de quase dem�ncia, nem se d� conta direito do que est� fazendo.
� levado de um lado a outro feito um aut�mato. Colocam-no.
junto a algum encarnado que queiram prejudicar, e ele fica ali, su

gando as energias da pessoa. Depois, como pagamento, d�o-lhe a
droga que o mant�m.

Judite sentiu imensa pena de J�nior. Naquele momento, pouco
importava que fosse ele quem lhe houvesse tirado a vida. Sentiu
o cora��o apertar-se e segurou a m�o de F�bio, contendo nos
olhos as l�grimas de compaix�o.

� N�o podemos ajud�-lo?
� Voc� pode.
� Eu?!
� Foi a culpa por hav�-la assassinado que o colocou assim. Foi
por remorso que ele aplicou aquela dose e se matou.
� Ele quis se matar?
� Intencionalmente, n�o. Mas assumiu o risco e responde
como suicida.
� O que posso fazer para ajud�-lo?
� Por enquanto, reze por ele. Envie-lhe vibra��es de amor e
de perd�o. Fa�a-o sentir que voc� n�o o odeia, que n�o lhe quer mal.
S� quando ele acreditar em seu perd�o � que conseguir� sentir-se
digno de perdoar-se a si mesmo tamb�m.
� N�o sei se posso fazer isso. N�o me sinto capaz.
� Voc� ainda n�o o perdoou? Seja sincera.
� J�. Se n�o o tivesse perdoado, n�o estaria t�o condo�da.
� Pois, ent�o, � o que basta.
� N�o estou preparada para isso.
� Estamos sempre preparados para agir em nome do amor. Para
ajudar, basta querer.
Voltaram � col�nia espiritual. Judite estava impressionada. Jamais
vira tanto sofrimento. Perto daqueles esp�ritos, Romero at� que
n�o estava t�o mal. Podia estar sofrendo tamb�m, mas nada que n�o
houvesse sido programado como parte de seu plano de crescimento.
E, depois, estava assistido. F�bio estava sempre a seu lado, dando-
lhe passes, encorajando-o com sonhos e pensamentos otimistas.
Mas e J�nior? N�o tinha ningu�m por ele.

� J�nior n�o tinha fam�lia? � perguntou Judite de repente.
� N�o. O pai era um b�bado e morreu cedo, atropelado. A
m�e largou-o aos cuidados de uma tia e sumiu no mundo. Quando
a tia descobriu que ele era homossexual, fez como seu pai

fez com Romero e expulsou-o de casa. J�nior viu-se sozinho aos
dezesseis anos. Virou garoto de programa, fez alguns biscates, arranjou
uns empreguinhos suspeitos e de baixa remunera��o. At�
que aconteceu o que aconteceu.

� Pobre rapaz... N�o � � toa que virou marginal.
� V�, Judite, como nada acontece por acaso? Muitas vezes nem
precisamos voltar a outras vidas para encontrar a causa de nossos
infort�nios. E ent�o? Est� disposta a ajud�-lo?
� E claro que sim. Farei o que puder.
� �timo. Fico feliz.
Como precisava esperar que J�nior aceitasse sua ajuda, s� o que
Judite podia fazer por ele era enviar-lhe vibra��es de amor, de paz,
de coragem e, acima de tudo, de perd�o. Todas as manh�s, aproveitando
a energia renovadora do sol nascente, Judite sentava-se no
jardim e irradiava para J�nior um pouco daquela luz.

E para Romero tamb�m.



o mesmo dia em que Maria da Gl�ria visitara Romero
na pris�o, ele fora solto. O juiz acatou o pedido de habeas corpus,
pois ele era prim�rio e tinha bons antecedentes, e Romero viu-se
novamente livre. Nunca antes dera tanto valor � liberdade como
naquele momento. Sentiu que era a coisa mais importante em sua
vida e, estimulado por Judite e F�bio, decidiu que n�o deixaria de
lutar por si mesmo. Afinal, n�o fora ele quem fizera aquilo. N�o
tinha de se entregar ao des�nimo por estar sendo acusado de um
crime que n�o cometera.

De volta � pens�o, tomou um banho e foi descansar. Precisava
estar apresent�vel quando reaparecesse no est�gio. A bolsa era
pequena, mas era s� com o que podia contar. No dia seguinte, arrumou-
se todo e partiu para o hospital. Entrou acabrunhado, temendo
a rea��o das pessoas, e foi caminhando direto para seu posto, na
pediatria. O m�dico encarregado dos estagi�rios daquele setor cumprimentou-
o com ar de espanto, pediu licen�a e saiu. Voltou pouco
depois, em companhia do diretor do hospital.

� Voc� � Romero Silveira Ramos? � perguntou o diretor,
com cara de poucos amigos.
� Sou � foi a resposta lac�nica de Romero.
� Venha comigo.
Romero seguiu-o em sil�ncio, sentindo os olhares de recrimina��o
dos colegas e dos enfermeiros. Entrou em seu gabinete e sentou-
se na poltrona que ele lhe indicara.


� N�o sou homem de fazer rodeios � come�ou o diretor,
carrancudo. � Por isso, vou direto ao ponto. Seu caso j� � conhecido
de todos aqui, e n�o creio que seja conveniente mant�-lo a
servi�o deste hospital.
� Mas, doutor...
� N�o me interrompa, por favor. Ainda n�o terminei. � Romero
sentiu as orelhas em fogo e baixou os olhos, enquanto o diretor
prosseguia: � N�o sei como uma coisa dessas foi acontecer justo
em meu hospital. Mas n�o posso permitir que algu�m como voc�
mantenha contato com as crian�as que s�o atendidas aqui.
� Doutor! � protestou Romero, indignado. � N�o sou um
monstro! Jamais tocaria numa crian�a.
� N�o � o que parece.
� N�o aconteceu nada entre mim e aquele menino. Posso lhe
assegurar. Gosto de crian�as, jamais lhes faria qualquer mal.
� Ah, n�o? � ele meneou a cabe�a. � Nega que � homossexual?
� N�o sei o que tem isso a ver... � revidou ruborizado.
� Tem tudo a ver! Se voc� n�o fosse um pederasta, n�o estaria
sendo acusado de ter molestado um menino.
� O senhor tem raz�o. Se eu n�o fosse homossexual, ningu�m
pensaria em me acusar. Como sou, virei o culpado de todas as pervers�es
do mundo.
� N�o se fa�a de v�tima. Ningu�m mandou gostar de transar
com garotinhos.
� Eu n�o transo com garotinhos! � objetou veemente, vermelho
feito um piment�o. � N�o sou nenhum marginal. Sou uma
pessoa decente!
� Olhe, Romero, n�o quero entrar em discuss�es sobre o que
� ou n�o ser decente. Mas o fato � que voc� � homossexual declarado
e est� sendo acusado de ter violentado o filho de um m�dico.
Como espera que algu�m confie os filhos a seus cuidados?
J� havia come�ado. O preconceito estava atirando sua rede, e

o primeiro peixe a cair nela fora sua profiss�o. Em poucos segundos,
Romero vislumbrou sua t�o sonhada carreira de pediatra ir por
�gua abaixo. O diretor tinha raz�o. Ningu�m, em s� consci�ncia,
levaria seus filhos para ele cuidar. Teriam medo de que ele se aproveitasse
de sua condi��o de m�dico e molestasse os meninos.

� Vai me mandar embora? � sussurrou vencido.
� Diante das circunst�ncias, � a �nica coisa sensata a fazer.
Voc� vai se tornar um m�dico! Devia pensar nisso e dar-se mais ao
respeito. Voc� h� de convir que j� n�o fica nada bem um m�dico
pederasta. Que dir� pederasta e ped�filo!
� Doutor... � suplicou, a voz embargada. � N�o fa�a isso, por
favor. Preciso desse emprego para sobreviver.
� Ora, vamos, meu rapaz. Isso nem emprego �. � apenas um
est�gio.
� Mas a bolsa � razo�vel. Estou me mantendo com ela.
� N�o, n�o, sinto muito. N�o � poss�vel.
� Mas, doutor, o que vou fazer de minha vida? Fui solto porque
estou estudando, tenho esse est�gio e arranjei uma pens�ozinha
barata para morar. E se o juiz mandar me prender de novo?
� N�o quero parecer insens�vel, mas isso � um problema que
voc� mesmo ter� de resolver. N�o � por culpa minha que voc� est�
nessa situa��o. Cada um deve responder pelos seus atos.
� Mas eu n�o fiz nada!
� Isso � a Justi�a que ir� decidir.
� De que adianta a Justi�a, doutor? O senhor j� me condenou.
O senhor e todo mundo. S� porque sou homossexual, acham que
n�o presto. Mas n�o � assim. Sou um homem honesto, cumpridor
de meus deveres, incapaz de fazer mal a quem quer que seja. Eu sei
que sou assim. E o senhor n�o acredita em mim s� porque sou homossexual.
N�o sou doente nem tenho nenhum tipo de peste.
� Pense como quiser, meu rapaz. Mas aqui voc� n�o fica mais.
Passe no departamento pessoal e apanhe o resto de sua bolsa. E, para
n�o dizer que n�o sou generoso, mandei que lhe pagassem a bolsa
integral. Embora n�o tenha trabalhado o m�s todo, vai receber como
se tivesse.
Romero olhou para o diretor com profundo desgosto. No fundo,
ainda esperava que ele agradecesse pela sua generosidade. Mas
Romero apenas balan�ou a cabe�a e saiu. J� se humilhara demais.
Ainda assim, aceitou o dinheiro que ele lhe dera. N�o era muito,
mas Romero n�o estava em condi��es de recusar nenhuma ajuda.

Comprou o jornal a caminho da pens�o e abriu-o, procurando
nos classificados algo que lhe servisse. Havia poucos an�ncios na



quele dia, porque n�o era domingo. Depois de dar uma topada no
meio-fio, fechou o jornal e fez o resto do caminho em sil�ncio.

Mais tarde, foi at� a faculdade e trancou a matr�cula. Estava no
�ltimo semestre, mas Romero n�o sabia se conseguiria enfrentar os
olhares do resto da turma. Nunca fora uma pessoa popular e n�o tinha
muitos amigos. Pensou em sua fam�lia, tentando imaginar se
eles j� saberiam do ocorrido.

Ao receber a not�cia, No�mia chorara desconsolada, mas Silas
nem queria ouvir falar no nome do filho. Sentia cada vez mais
�dio por ele ter se tornado aquela aberra��o, como dizia. Apesar do
medo, Romero resolveu ligar. Escolheu uma hora em que sabia que

o pai n�o estaria e telefonou.
� Al�?
Era a m�e. Ele podia reconhecer sua voz cansada.
� M�e? Al�, m�e! Sou eu, Romero.
Por uns instantes, Romero achou que ela ia desligar. No�mia
n�o respondera nada, e ele pensou que ela n�o queria falar com ele.
Decepcionado, insistiu:

� M�e, sou eu, Romero, seu filho.
� Sei quem � Romero � respondeu ela por fim, e Romero n�o
saberia dizer se sua voz era de raiva, frieza ou medo.
� Fale comigo, m�e.
� Voc� sumiu. H� anos que n�o o vejo.
� O que voc� queria? Papai me expulsou de casa.
� Por que resolveu aparecer agora?
� Preciso de voc�. Estou encrencado.
� J� sei. Seu pai tem um conhecido que trabalha no f�rum e
tratou logo de vir contar a novidade.
� Por favor, m�e, me ajude. Estou arrasado.
� Por que fez aquilo, Romero? Por que n�o seguiu meu conselho
e virou um rapaz direito? Viu no que deu?
� N�o fui eu, m�e. N�o fiz aquilo.
� N�o d� para acreditar. Voc� �...
� Sou homossexual, m�e, n�o sou tarado nem criminoso.
Quantas vezes tenho de repetir isso?
� O que voc� quer?

� Preciso de ajuda. Estou quase sem dinheiro.
� Lamento, meu filho, mas n�o posso ajud�-lo. Seu pai n�o quer.
Nesse momento, o esp�rito de Judite aproximou-se, atra�do
pelos pensamentos da m�e, que lamentava a perda dos dois �nicos
filhos. F�bio, que vinha junto, aproximou-se dela e deu-lhe um passe
revigorante, e Judite soprou ao seu ouvido:

� Ajude-o, m�e. Ele � seu filho.
Recebendo as sugest�es da filha como seus pensamentos, No�mia
respondeu:

� Gostaria de ajud�-lo, Romero. Mas seu pai...
� Papai n�o precisa saber � prosseguiu Judite.
� N�o precisa contar a ele � retrucou Romero.
� Mas e se ele descobrir?
� N�o vai descobrir � falou Romero, quase suplicando.
� Se descobrir, diga que agiu seguindo seu amor de m�e �
orientou Judite.

� N�o sei...
� Por favor, m�e! � implorava Romero. � Meu dinheiro est�
acabando. Preciso sobreviver.
� Devia ter pensado nisso antes de fazer o que fez.
� Mas n�o fui eu! N�o fui eu! Por que ningu�m acredita em
mim? S� Judite. Se Judite estivesse viva, aposto como acreditaria
em mim!
� Eu acredito nele, m�e � confirmou Judite. � Por que voc�
tamb�m n�o acredita? E, mesmo que ele fosse culpado, n�o � seu filho?
Ao aceitar receb�-lo como filho, n�o aceitou tamb�m todas as
responsabilidades de m�e? N�o se comprometeu a cuidar dele e
orient�-lo pela senda do bem? E, depois, ajud�-lo n�o significaria
compactuar com seus atos, ainda que ele tivesse feito isso. Voc� �
m�e. N�o deveria am�-lo acima de tudo e pelo resto da vida?
A saudade de Judite fez com que No�mia quase que ouvisse as
palavras da filha. Sentia, em seu cora��o, a s�plica de ambos os filhos.
N�o sabia que a mo�a estava ali a seu lado, embora pudesse
sentir sua presen�a.

� Pelo amor de Deus, m�e! � Romero come�ava a chorar. �
Estou implorando. S� desta vez, ajude-me!


� Ajude-o, m�e � insistia Judite tamb�m. � Ver� como isso
lhe far� bem.
� M�e! Diga alguma coisa, m�e! Por favor!
Romero chorava muito, e o cora��o de m�e de No�mia falou
mais alto.

� Est� certo, meu filho � concordou por fim. � Diga-me
onde est�, e eu irei at� a�. N�o quero que seu pai nem desconfie de
uma coisa dessas.
Ainda chorando, Romero deu-lhe o endere�o da pens�o. Ela
anotou no caderninho e arrancou a folha, para que Silas n�o
descobrisse.

� Amanh�, assim que seu pai sair para o trabalho, tomarei um
�nibus e irei a�. Vou lhe arranjar algum dinheiro.
� Obrigado, m�e � solu�ou Romero, agradecido.
Desligaram, e Judite beijou a m�e no rosto. No�mia n�o sentiu
o beijo, mas a saudade que sentia da filha intensificou-se. Olhou

o papelzinho que tinha nas m�os e pensou em Romero. Por que tivera
de perder os dois filhos de uma vez?
Assim que Silas saiu para o trabalho, No�mia vestiu-se e preparou
uma cesta de comida para o filho. Passou primeiro na Caixa
Econ�mica Federal e sacou algum dinheiro da caderneta de poupan�a
que ela e o marido tinham em conjunto. Em seguida, tomou um
�nibus e foi para a pens�o em que Romero se encontrava. Ele a estava
esperando embaixo, na rua, e correu em sua dire��o logo que
a viu, levantando-a no alto com um abra�o.

� M�e � murmurou enternecido, a voz embargada de emo��o.
� Como senti sua falta!
Ela acariciou seu rosto, em l�grimas, e respondeu emocionada:
� Como voc� cresceu! E que rapaz bonito ficou! Pena que est�
um pouco magrinho...
Romero beijou-lhe a m�o e puxou-a para a pens�o, subindo com
ela para seu quarto. Ela estudou o lugar com olhar cr�tico, mas n�o
fez nenhum coment�rio. Judite, a seu lado, em sil�ncio desencorajava-
a de coment�rios desestimulantes. Em uma mesa, colocou a cesta
e dela retirou o que levara. Um pouco de frango assado com farofa,
p�o, um peda�o de queijo, algumas frutas, uma garrafa de suco


e um bolo de laranja que assara na v�spera e escondera na cristaleira
da sala, para que Silas n�o o visse.

� Isso tudo � para mim? � perguntou incr�dulo.
� Imaginei que n�o estivesse se alimentando direito.
Ela tinha raz�o. Foi s� quando se sentou e experimentou um
peda�o do frango que ele percebeu quanto estava faminto. Havia
dias n�o comia nada decente, e devorou o frango com farofa. Comeu
uma banana de sobremesa e guardou o resto.

� Vou guardar para depois. N�o sei quando terei chance de ver
comida de verdade outra vez.
� Por qu�, Romero? � perguntou ela, lutando para conter as
l�grimas. � Por que teve de fazer isso?
� N�o fiz nada, m�e. N�o fui eu.
� Mas o menino falou que sim...
� Ele estava assustado. Falou o que mandaram.
� Quem? Quem o mandou falar uma barbaridade dessas?
� � o que vou descobrir.
� Ah, Romero, Romero. Por que n�o seguiu meus conselhos?
Por que n�o largou esse v�cio e voltou para sua fam�lia? Voc�
ficou um rapaz muito bonito. Podia se casar, ter filhos, levar uma
vida normal.
Ele baixou os olhos e suspirou com tristeza. A m�e n�o conseguia
entender. Jamais entenderia que casar e ter filhos, para ele, n�o
seria uma vida normal.

� N�o tenho nenhum v�cio, m�e � afirmou baixinho.
� E fazer o que voc� faz com outros homens n�o � um v�cio?
� N�o, m�e. � s� uma prefer�ncia.
� Pois essa prefer�ncia n�o � saud�vel.
� Est� bem, m�e. N�o quero discutir.
Apesar de desapontado com a incompreens�o da m�e, Romero
estava feliz porque ela viera. J� n�o se sentia t�o s�. Embora
No�mia nunca tivesse sido uma m�e decidida, jamais deixara faltar-
lhe nada. Sempre fora carinhosa e atenciosa. Seu mal era que
morria de medo do marido.

Ap�s alguns minutos, No�mia suspirou e observou:

� J� est� ficando tarde. Preciso ir. N�o quero que seu pai d�
pela minha falta.

� Quando vir� de novo?
� N�o sei. Quando precisar de algo, ligue para mim. � Tirou
o dinheiro da bolsa e colocou-o na m�o dele. � Aqui est� o dinheiro
que me pediu. N�o � muito, mas foi o que deu para arranjar.
� Como voc� conseguiu tanto assim? � tornou ele, espantado
com as notas que virava em seus dedos.
� Saquei da poupan�a.
� M�e!
� Seu pai n�o pode nem desconfiar. Sabe como ele � com aquele
dinheiro.
S�o nossas economias.
Ele a fitou agradecido e correu a dar-lhe um beijo no rosto.

� Voc� � um anjo, m�e.
� N�o sou, n�o. Sou apenas sua m�e.
Ela acariciou-o novamente e levantou-se. Desceram juntos, e
Romero acompanhou-a at� o ponto de �nibus. Estava mais tranq�ilo.
Aquela visita o confortara muito mais do que a comida e o dinheiro
que ela lhe levara, porque ela lhe dera aquilo de que mais
necessitava naquele momento: amor.

Dois dias depois, Romero teve de comparecer � primeira audi�ncia
de seu caso. Maria da Gl�ria j� havia chegado e aguardava-o.

� Como est�, Romero? Nervoso?
� Um pouco.
� Pois n�o h� com o que se preocupar. Voc� teve sorte: o
juiz Vit�rio � muito humano.
� � preconceituoso?
� N�o sei. Vamos descobrir agora.
Romero entrou cabisbaixo. Sentado a uma mesa, imponente,
o juiz parecia-lhe Deus. A sua direita, um homem feio e carrancudo
olhou-o com desd�m, e Maria da Gl�ria explicou que aquele era
o promotor.
� � ele que vai me acusar? � quis saber Romero.
� N�o. Ele s� vai acompanhar o caso. Quem vai acusar voc�
� o advogado do Dr. Pl�nio, o Dr. Antero Nunes.
Do outro lado da mesa, Pl�nio estava sentado ao lado do advogado,
que Maria da Gl�ria cumprimentou com um aperto de m�o.


Sentaram-se, Romero evitando encarar Pl�nio. Foi quando F�bio
se aproximou e soprou em seu ouvido:

� N�o tenha receio de olhar para ele, Romero. Voc� n�o fez
nada. � inocente. N�o precisa evitar seu olhar.
Romero achava que aquele pensamento lhe aflorara espont�neo
e concordou consigo mesmo. Ergueu os olhos, hesitante, e fitou
Pl�nio de frente. O m�dico, sentindo seu olhar, virou-se para ele
e devolveu-o. Sentiu o cora��o enternecer-se e quase sorriu. Romero
parecia-lhe um menino assustado e triste. Era t�o fr�gil, com ar
inocente e gentil. Como poderia ter feito uma coisa daquelas?

Quando a audi�ncia come�ou, terminados os procedimentos
preambulares, o juiz pediu a Romero que lhe contasse tudo que havia
acontecido naquela noite.

� Cheguei da faculdade � come�ou ele �, e Dona Lav�nia estava
na sala. Ela foi esquentar o jantar para mim, e eu lhe mostrei
uma miniatura de motocicleta que havia comprado para Eric. Depois
do jantar, fui para meu quarto. Tomei um banho e fui dormir.
� S� isso? � tornou o juiz.
� Que eu me lembre, s�.
O juiz havia se dado por satisfeito, e o advogado de Pl�nio fez-
lhe algumas perguntas tamb�m. Por fim, chegou a vez de Maria
da Gl�ria.

� Excel�ncia, gostaria que o senhor Romero nos dissesse onde
colocou a miniatura.
� Pode responder � pergunta � disse Vit�rio a Romero.
� Na mesinha de cabeceira. Queria d�-la a Eric no dia seguinte.
� Tem certeza de que n�o a entregou naquele dia? � era Maria
da Gl�ria novamente.
O juiz olhou para ele, que respondeu:

� Absoluta.
� E como acha que ela foi parar no quarto de Eric?
� Como? � repetiu o juiz.
� Algu�m a pegou.
� Quem? � foi o pr�prio juiz quem perguntou. � Quem voc�
sup�e que possa ter feito isso?
� N�o sei.

� N�o sabe ou n�o quer dizer?
� N�o tenho certeza.
� Diga assim mesmo � incentivou o juiz.
Romero olhou para o advogado de Pl�nio. O m�dico havia se
retirado da sala, de modo que n�o ouvisse seu depoimento.

� Fale, Romero � estimulou o esp�rito de Judite. � N�o tenha
medo de falar a verdade.
� Desconfio do tio do menino, Rafael.
� Mas isso � um disparate! � protestou o advogado. � O senhor
est� tentando se salvar acusando outra pessoa. Quanta indignidade!
Romero n�o disse mais nada. Sentia-se intimidado por aquele
homem e pelo seu tom de voz agressivo. Talvez fosse melhor n�o falar
mais aquilo. Ningu�m iria acreditar nele mesmo. O juiz ainda
tentou tirar mais alguma coisa de Romero, mas ele n�o quis responder,
e a audi�ncia foi encerrada.

� Por que n�o contou tudo? � perguntou Maria da Gl�ria,
quando j� estavam do lado de fora.
� Para qu�? Quem iria acreditar em mim?
� N�o sei. Talvez o juiz acreditasse. A fun��o dele � buscar a
verdade.
� A verdade est� do lado dos ricos e poderosos. Rafael � um
rapaz de fam�lia rica e tradicional. Quem vai acreditar que ele violentou
o sobrinho e colocou a culpa no pederasta enjeitado? N�o
lhe parece uma hist�ria por demais inveross�mil?
� Nem sempre o que � veross�mil � verdadeiro. A verdade, por
vezes, se esconde sob a apar�ncia do imposs�vel.
� Pode at� ser. Mas n�o vou me arriscar a ficar mais encrencado
do que j� estou.
� Voc� � muito estranho. Diz que � inocente, mas n�o quer se
defender.
� Quero, sim. S� n�o quero acusar ningu�m de algo que n�o
tenho certeza.
� Ou�a, Romero: algu�m violentou o menino. Isso est� mais
do que provado. A princ�pio, voc� parece ser o culpado. Mas, se n�o
foi voc�, quem foi?
� Pergunte a Eric. Ele � o �nico que sabe. Al�m do violentador,
� claro.

� Tem raz�o. Se algu�m conhece a verdade, esse algu�m � Eric.
� Vai falar com ele?
� N�o. Seus pais n�o permitiriam. Mas talvez o juiz consiga
fazer com que ele fale a verdade.
� Por que est� fazendo isso, doutora?
� Porque sou sua defensora.
� S� por isso?
� E porque acredito em sua inoc�ncia. Ao tomar posse em meu
cargo, jurei defender a Justi�a.
Movido por um impulso fraterno, Romero abra�ou-a. Estava
muito carente, e a amizade de Maria da Gl�ria emocionou-o. Desde
que aquele inferno come�ara, todos lhe voltavam as costas. Mas
havia conseguido reaproximar-se da m�e e ganhara uma nova amiga.
At� que as coisas n�o iam t�o mal assim.



cap�tulo


�bio e Judite acompanhavam tudo. Do mundo espiritual,
tentavam alcan�ar a mente do juiz, assim como haviam feito com
a defensora, incutindo-lhe pensamentos que revelavam a verdade.
Com Maria da Gl�ria, o efeito surtira r�pido. Com o juiz, esperavam
que n�o fosse diferente. Vit�rio simpatizara com o rapaz, achara-
o um mo�o t�mido e com ar decente. Teria mesmo sido capaz de
uma atrocidade daquelas? Precisava descobrir. Interrogaria o menino
e o levaria a falar a verdade. N�o o intimidaria nem o pressionaria.
Mas n�o era dif�cil a um magistrado extrair a verdade de
uma crian�a.

Ao voltar da audi�ncia, Pl�nio encontrou Lav�nia e Rafael andando
de um lado para o outro na sala, ansiosos por sua chegada.

� At� que enfim! � exclamou Lav�nia, correndo para o marido.
� E ent�o? Como foi?
Pl�nio sentou-se no sof� e encarou-a com ar cansado.

� Como esperava que fosse? Constrangedor.
� Romero estava l�? � perguntou Rafael.
� O que voc� queria? Que ele n�o comparecesse e fosse preso
de novo? � claro que estava l�.
� N�o precisa falar com Rafael nesse tom � censurou Lav�nia.
� N�o � ele o criminoso.
� Nem eu � respondeu Pl�nio rispidamente.
Levantou-se irritado e foi ao quarto de Eric. O menino havia
retomado suas atividades normais e estava estudando. Voltara a


freq�entar a escola, mas n�o conversava com ningu�m sobre o que
lhe acontecera. Estava triste, acabrunhado, evitando o contato
com os amigos. Pl�nio entrou e sentou-se na cama, atr�s dele.

� Ol�, meu filho. Como est�?
Eric soltou o l�pis em cima do caderno e virou-se para ele, os
olhos brilhantes das l�grimas que os umedeciam de quando em vez.

� � dif�cil, pai � desabafou, a voz embargada.
� Est�o escarnecendo de voc�? Fizeram algum coment�rio
maldoso?
� N�o diretamente. Mas, por tr�s, sei que comentam e apontam
para mim.
� Sinto muito, Eric. Deus sabe quanto gostaria de ter evitado
expor voc� a esse constrangimento. Mas sua m�e insistiu... E, depois,
n�o acho justo um criminoso andar impune por a�. Eu n�o gostaria
que isso acontecesse ao filho de mais algu�m. N�o concorda?
Eric apenas balan�ou a cabe�a, evitando o olhar do pai.

� N�o quero mais estudar l� � falou baixinho.
� Mas, meu filho, j� estamos quase no fim do ano. N�o seria
melhor esperar um pouco mais?
� N�o, pai. � muito dif�cil. Nem sei se vou conseguir passar
de ano. Eu leio, leio e n�o entendo nada. E se for reprovado?
� N�o faz mal. Se for reprovado, no ano que vem voc� se
recupera.
� Todos v�o me apontar na rua.
� Ningu�m vai fazer isso. N�o precisa se sentir envergonhado.
Voc� n�o teve culpa.
� Ouvi uma conversa de alguns garotos maiores. Foi por acaso,
na escola. Eles nem me viram. Mas sabe o que disseram?
� O qu� ?
� Que eu nunca mais serei o mesmo depois disso. Que j� fui
arrombado, e nada vai poder me remendar.
� Mas quanta grosseria! Quem s�o esses garotos? Vou falar com
o diretor. Isso n�o pode ficar assim.
� N�o, pai, por favor! J� � dif�cil saber que riem de mim. Vai
ser pior se ainda me odiarem.
Pl�nio n�o sabia ao certo o que dizer. J� esperava por algo semelhante.
Mas n�o podia simplesmente dizer ao filho que n�o li



gasse ou que fingisse que n�o escutava nada. Aquelas palavras eram
por demais aviltantes para serem ignoradas. O que poderia fazer?
Eric tinha raz�o: falar com o diretor da escola para que tomasse uma
provid�ncia seria pior. S� serviria para expor ainda mais o filho e
provocar raiva nos outros garotos. E a� as humilha��es e as chacotas
seriam maiores, o que poderia ter efeitos desastrosos na cabe�a
do filho.

Vendo que o menino chorava, Pl�nio estendeu os bra�os para
ele, e Eric aninhou-se em seu colo.

� N�o quero que voc� sofra, meu filho.
� N�o posso evitar. � muito dif�cil!
� Est� bem. Olhe, se n�o quiser, n�o precisa mais ir � escola.
Posso arranjar de voc� s� aparecer nos dias de prova.
� Voc� faria isso?
� � claro. Vou amanh� mesmo conversar com o diretor do
col�gio. Com o dinheiro que pago, garanto que ele n�o ir� se importar.
Acha que consegue estudar em casa?
� Vou me esfor�ar.
� Se precisar, posso ajud�-lo. Sua m�e e seu tio Rafael tamb�m.
Pl�nio havia propositadamente tocado no nome de Rafael.
Queria experimentar a rea��o do menino. Como era de esperar, Eric
encolheu-se todo e franziu o cenho, protestando veemente:

� Tio Rafael, n�o. N�o preciso da ajuda dele.
� Por que n�o, meu filho?
� Porque n�o gosto dele.
Foi a resposta lac�nica. Eric evitava falar sobre o tio, e Pl�nio
j� percebera isso. Para ele, aquele comportamento s� tinha uma explica��o.
Eric tinha medo de acabar falando a verdade. Mas por
qu�? Na certa, porque Rafael o estava amea�ando. Tinha quase certeza
disso.

� N�o quer saber como foi a audi�ncia de hoje? � indagou
de s�bito.
� N�o... � hesitou o menino.
� Nem como vai Romero?
� Isso... n�o me interessa.
� Ele est� muito abatido. Mais magro e muito p�lido.
Pl�nio notou a sombra de tristeza que atravessou o olhar de Eric,

deixando duas l�grimas ca�rem silenciosas. O menino, por sua vez,
achando que devia dizer alguma coisa, retrucou com fingida raiva:

� N�o tenho nada com isso.
� Tem certeza?
� Tenho. E n�o quero mais falar sobre esse assunto.
Com um suspiro profundo, Pl�nio deu um tapinha no joelho de
Eric e levantou-se. N�o queria for��-lo a nada.

� Est� bem, meu filho. Voc� � quem sabe.
Deu-lhe um beijo carinhoso na testa e saiu. Poucos minutos
depois que ele se foi, a porta abriu-se novamente, mas dessa vez foi
Rafael quem entrou. O rapaz acercou-se do sobrinho, que imediatamente
sentiu o corpo retesar-se, e disse em tom de amea�a:

� N�o se esque�a de nosso trato, Eric. O pre�o que ir� pagar
� muito alto para se arriscar.
� N�o precisa vir aqui para me lembrar de nada.
� Ser� que n�o? Olhe para voc�! Est� com cara de madalena
arrependida.
� Deixe-me em paz! J� n�o basta o que voc� fez?
� O que seu pai veio lhe dizer, hein? Veio lhe falar sobre o coitadinho
do Romero? Contar-lhe como a vida tem sido dif�cil para
ele? Pois lembre-se de que ser� ainda muito mais dif�cil se voc�
falar alguma coisa.
� J� disse que n�o vou falar nada!
� Calma, n�o precisa ficar nervoso. Vim apenas me certificar
de que voc� est� bem lembrado disso.
� Voc� � nojento!
� Ah, est� ficando valente, �? A bichinha vai dar uma de macho
agora, vai?
� N�o sou bichinha! Voc� � que �! Uma bicha nojenta e
covarde!
Rafael ergueu a m�o para bater-lhe, mas recuou a tempo. N�o
podia perder a cabe�a, ou poria tudo a perder. Tinha de manter o
controle, dele e de Eric, at� o fim. Se perdesse a calma, perderia tamb�m
o dom�nio que mantinha sobre o garoto.

� N�o sou bicha � protestou Rafael, olhos injetados de
sangue. � Nunca dei o rabo por a�. Mas voc�... Voc� j�, n�o �
mesmo?

Eric era apenas uma crian�a. Espantado com o linguajar chulo
do tio, desatou a chorar. N�o sabia o que lhe responder.

� V� embora... � solu�ou. � Deixe-me em paz.
� Vou sim. N�o tenho mais nada a fazer aqui. J� dei meu recado
e espero que voc� o tenha entendido bem. Voc� entendeu? �
Eric balan�ou a cabe�a. � �timo.
Por que o tio n�o o deixava em paz? Desde quando o violentara,
n�o passava um dia sequer em que n�o o atormentasse. Na
maioria das vezes, n�o falava nada. Limitava-se a passar por ele e
fazer um gesto de sil�ncio com o dedo. Outras vezes, passava o
dedo no pesco�o, como se o estivesse cortando, e Eric encolhia-se
todo, de medo. J� n�o estava ag�entando mais.



cap�tulo


ozinho em seu quarto de pens�o, o que mais Romero ti


nha tempo para fazer era pensar. Conseguira um emprego de frentista
num posto de gasolina, mas foi despedido poucos dias depois,
quando o gerente descobriu que ele estava sendo acusado de violentar
um menino de onze anos. Depois, arranjou um lugar de estocador
num supermercado, mas foi despedido na primeira vez em
que teve de se ausentar, para ir � segunda audi�ncia. Em todos os
empregos que arrumava, acontecia sempre a mesma coisa: os patr�es
acabavam descobrindo seu caso e despediam-no. Era muito dif�cil
esconder uma coisa daquelas.

Em sua solid�o, voltou a pensar muito em Mozart. Fazia muitos
anos que n�o tinha not�cias dele. Por onde andaria? Teria j� terminado
seus estudos na Europa? Sentiu imensa saudade. Como o
amara! Desde que ele partira, jamais conseguira se afei�oar a algu�m
como se afei�oara a ele. Tivera alguns relacionamentos, mas nada
duradouro. Conhecera pessoas agrad�veis, gays como ele, mas ningu�m
por quem pudesse realmente se apaixonar. Os anos iam passando,
e seu cora��o ainda pertencia a Mozart.

Como o processo estava se arrastando muito, a m�e achou que
era melhor n�o se falarem mais pelo telefone. Ficou acertado que
ela o visitaria uma vez por semana, �s segundas-feiras pela manh�.
Levava-lhe ent�o alguma comida, lavava e passava sua roupa, fazia-
lhe companhia por algumas horas. Depois, voltava para casa e
deixava-o sozinho com sua solid�o.


Quando No�mia entrou naquela segunda-feira, encontrou-o
mais cabisbaixo do que nunca.

� O que houve, meu filho? � indagou preocupada, j� lhe
apalpando a testa. � Est� doente?
� N�o � nada, m�e.
� �, sim. Voc� est� estranho. O que foi? Algo com o processo?
� N�o. O processo vai caminhando.
� Mas como demora!
� A Justi�a � demorada mesmo.
� Se n�o � isso, ent�o o que �?
Romero ficou olhando-a, tentando imaginar se podia confiar
a ela seu segredo. Embora a m�e estivesse mais atenciosa com ele e
houvesse parado de recrimin�-lo, ainda n�o o aceitava do jeito
como ele era. Por vezes at� parecia fingir que nada estava acontecendo,
que ele n�o estava sendo processado e que n�o era homossexual.
Uma ou duas vezes chegara a insinuar que tudo melhoraria
depois que ele se casasse e tivesse filhos. Romero n�o dizia nada. N�o
queria mago�-la ainda mais e, por isso, escutava tudo em sil�ncio.

Mas ela era a �nica pessoa com quem podia contar. Era sua m�e,
n�o lhe queria mal. Ao contr�rio, queria ajud�-lo. S� que a ajuda
que ela lhe oferecia n�o era exatamente a que ele estava esperando.

� M�e � come�ou ele a dizer cautelosamente �, se eu lhe
pedisse um favor, voc� o faria?
� Depende. Que tipo de favor?
� Gostaria que encontrasse algu�m para mim.
� Quem?
� N�o vai se zangar se eu disser?
� N�o. Quem est� procurando? Algu�m que eu conhe�a?
� �, sim, embora n�o o tenhamos visto por muitos anos.
� Quem �?
Ele titubeou por alguns segundos, at� que respondeu com certa
hesita��o:

� � Mozart...
� O qu�? Mozart? Ficou maluco? Por que quer encontrar o homem
que desgra�ou sua vida?
� Ele n�o desgra�ou minha vida.
� Foi ele quem viciou voc�.

� N�o sou viciado. E, depois, quem primeiro me iniciou nesta
vida n�o foi ele. Foi J�nior.
� N�o fale no nome daquele assassino na minha frente! Nunca
mais repita o nome do animal que tirou a vida de sua irm�!
� Ele est� morto.
� Espero que esteja queimando no inferno.
� N�o quero falar de J�nior. Quero falar � de Mozart. Preciso
saber onde ele est�.
� N�o fa�o a menor id�ia. E nem fa�o quest�o de saber. Aquele
mo�o foi um mal-agradecido; traiu nossa confian�a bem debaixo
de nosso nariz!
� Por favor, n�o seja rancorosa. J� se passaram tantos anos...
� Mas veja s� no que deu. Voc� ficou assim at� hoje. N�o fosse
por ele, n�o teria virado... virado... isso que voc� �.
Romero j� estava arrependido de ter come�ado a falar. Devia
ter imaginado que a m�e reagiria daquela forma. Soltou um longo
suspiro e considerou:

� Est� bem. N�o vamos mais falar sobre isso. Eu s� pensei que
voc� pudesse me ajudar.
� Pois pensou errado. N�o vou ajudar meu filho a se encontrar
com nenhum marginal.
� Mozart n�o � marginal. � um artista e j� deve estar famoso
na Europa. At� voc� gostou da m�sica dele.
� Isso n�o lhe dava o direito de fazer o que fez.
� Est� certo, vamos mudar de assunto.
� Posso saber por que voc� quer encontr�-lo agora, depois de
todos esses anos?
� Sinto falta dele. Ele era meu amigo.
� Bem sei a amizade que voc�s tinham. Uma pouca-vergonha,
isso sim!
� J� pedi para mudarmos de assunto.
� Acho bom mesmo. N�o vou contribuir ainda mais com essa
sem-vergonhice.
A muito custo, Romero conseguiu desviar o assunto. Por mais
que No�mia dissesse que n�o gostava de se lembrar do ocorrido, n�o
parava de falar. Externava ainda sua indigna��o diante de tudo que
acontecera. Parecia agora aceitar Romero melhor, desde que ele n�o


tivesse nenhum parceiro nem tocasse no assunto. Romero era homossexual,
mas ela bem podia fingir que n�o o era.

Quando No�mia chegou em casa mais tarde, Silas j� havia voltado
do trabalho. Ela levou tremendo susto ao v�-lo em casa t�o cedo
e pensou r�pido numa desculpa para dar.

� Onde esteve? � perguntou ele, curioso.
� Fui � farm�cia � respondeu rapidamente. � E voc�? Por que
voltou mais cedo?
� Faltou �gua na escola, e as crian�as foram dispensadas.
� Quer um caf�? Vou fazer um fresquinho.
Silas limitou-se a assentir. Achou estranho que ela tivesse ido
� farm�cia e houvesse voltado sem nenhum embrulho, mas n�o fez
nenhuma observa��o. Estava conferindo a correspond�ncia e indagou,
mais para si do que para a mulher:

� Por que ser� que a Caixa n�o manda mais os extratos?
No�mia gelou, mas conseguiu disfar�ar e correu para a cozinha,
rezando para que ele n�o perguntasse de novo. N�o perguntou.
At� aquele momento, Silas achava que o problema deveria
ser do correio ou do pr�prio banco. Mais tarde veria o que estava
acontecendo.

Depois que a m�e saiu, Romero ficou ainda mais pensativo.
Pensava cada vez mais em Mozart, sem saber que o rapaz, recentemente
de volta ao Brasil, tamb�m pensava em encontrar-se com ele.
Jamais o esquecera. Perdera contato com ele por causa das circunst�ncias,
mas tinha esperan�as de rev�-lo e tornar-se, ao menos, seu
amigo. Imaginava que ele pudesse estar compromissado com algu�m,
mas estava disposto a arriscar. Queria oferecer-lhe sua amizade.

Desconhecendo esse fato, Romero encheu-se de coragem e
procurou, em sua caderneta de telefones, o n�mero da casa de Alex,
antigo namorado de Judite. Colocou o caderninho no bolso e desceu
para telefonar. Parou num orelh�o, enfiou as fichas e, dedos tr�mulos,
discou o n�mero de Alex.

� Al�? � atendeu uma voz feminina do outro lado.
� Por favor, eu gostaria de falar com Alex � pediu, a voz
hesitante.
� Ele n�o est�.

� Quando posso encontr�-lo?
� N�o sei. Talvez venha aqui no fim de semana.
� Quem est� falando? � a m�e dele?
� E, sim. Quem fala?
� � um amigo da faculdade. � que estou precisando falar
com ele...
� Bem, Alex est� casado, se � que voc� n�o sabe. E n�o mora
mais aqui. Mas costuma vir nos visitar aos s�bados. Se quiser, pode
telefonar para ele. Sen�o, deixe seu n�mero, que darei o recado.
� N�o precisa, obrigado.
Desligou. Ent�o, Alex casara-se. Era mesmo de esperar, depois
de tantos anos. Contudo, mesmo que tivesse conseguido falar com
ele, o que lhe diria? Que estava sendo acusado de violentar uma
crian�a e queria falar com Mozart? Alex lhe diria uns desaforos e
bateria o telefone em sua cara.

Triste, voltou para a pens�o. Seria melhor desistir daquela
id�ia. Mozart estava mesmo perdido para ele; n�o adiantava nada
tentar encontr�-lo. E o que lhe diria? Escrever-lhe-ia uma carta, contando-
lhe seus dissabores e pedindo-lhe para voltar? N�o podia, n�o
tinha esse direito.

Enquanto isso, Mozart tamb�m pensava em Romero. Havia desembarcado
em Bras�lia e pedira not�cias do rapaz, mas os pais n�o
souberam lhe dizer. Tudo que sabiam era que Romero havia ido morar
com o m�dico que o atendera, mas n�o sabiam o endere�o. Tamb�m
desconheciam o processo que o envolvia. A fam�lia de Alex,
envergonhada com o que acontecera, nunca mais tocara no nome
de Romero, e o caso acabou caindo no esquecimento. S� que agora
Mozart n�o conseguia parar de pensar nele. Onde estaria? O que
teria sido feito dele?

� V� para o Rio de Janeiro � sugeriu o esp�rito de Judite, que
em muito colaborara para que as lembran�as de ambos se reavivassem.
� Ainda n�o gosta dele?
Gostava. Mozart gostava muito de Romero. Por isso, resolveu
partir � sua procura. J� era homem feito e viera ao Brasil em f�rias.
Tinha tempo para procur�-lo sem ter de se preocupar com nada. Ficaria
num hotel, para n�o envolver a fam�lia, e tentaria encontr�lo
sozinho. Se Deus ajudasse, conseguiria.


ais uma audi�ncia estava para se realizar, e, dessa
vez, Eric seria ouvido.

O dia ainda nem havia raiado quando o menino ouviu um ru�do
estranho em seu quarto e quase desmaiou de susto no momento
em que Rafael pulou sobre ele.

� Nem um pio! � sussurrou o tio, tapando-lhe a boca com uma
das m�os. � S� vim aqui para lhe dar um aviso: muito cuidado com
o que vai dizer mais tarde.
Da mesma forma como veio, partiu. Eric ficou sozinho, fitando
o teto escuro, com medo at� de pensar. N�o conseguiu mais dormir
e ficou acordado at� que a m�e viesse cham�-lo. Desde cedo,
come�ou a passar mal. Sentiu dor de barriga, vomitou, chegou at�
a urinar nas cal�as. Estava apavorado.

� N�o precisa se preocupar � tranq�ilizou a m�e. � Fale a verdade
e vai dar tudo certo. N�o tenha medo de Romero. O juiz n�o
vai permitir que ele o machuque mais.
Como dizer a ela que n�o era Romero que ele temia, mas o tio?
Como contar que Romero nunca fora nada al�m de seu amigo, ao
passo que Rafael, al�m de o violentar, aterrorizava-o todos os dias,
amea�ando matar a ele e a Romero?

� N�o tenho medo de Romero, m�e � admitiu.
� Voc� � um menino muito corajoso � elogiou Lav�nia, beijando-
o na bochecha.
� E � um homem de verdade!
N�o era. Eric n�o se sentia um homem. Sentia-se um menino,

249


uma crian�a fr�gil e indefesa. Por que a m�e exigia dele atitudes que
estavam al�m de suas for�as?

� Est� pronto? � era a voz de Pl�nio, que chegara para busc�lo.
� N�o devemos nos atrasar.
Lav�nia ajeitou a gola da camisa do filho e deu-lhe novo beijo
no rosto.

� Tem certeza de que ele precisa ir? � indagou ao marido, bastante
aborrecida com aqueles procedimentos judiciais. � Ele j�
disse tudo � pol�cia. Vai ser dif�cil ter de relembrar e repetir tudo
novamente.
� A defensoria insiste. � um direito seu.
� Mas que coisa! Que falta de sensibilidade.
� N�o se esque�a de que foi voc� quem insistiu para que fosse
assim. Ou pensou que Romero seria logo acusado, condenado e
preso, sem nenhuma chance de defesa? Agora voc� n�o tem do que
reclamar.
Pai e filho foram tomar o carro, enquanto Rafael os espiava da
janela de seu quarto. N�o queria aparecer diante do cunhado. Sabia
que Pl�nio estava de olho nele e n�o queria que pensasse que ele
estava pressionando o menino.

Quando a audi�ncia come�ou, o juiz mandou que Romero
sa�sse e come�ou o interrogat�rio, tendo a seu lado os esp�ritos de
Judite e de F�bio.

� Eric, quero saber se voc� compreende bem o que est� acontecendo
aqui. Voc� compreende?
� Compreendo.
� Muito bem. Aquele homem que saiu daqui h� pouco, o senhor
Romero Silveira Ramos, est� sendo acusado de haver violentado
voc�. Isso � exato?
� Sim, senhor.
� Voc� mesmo o acusou, n�o foi?
� Foi.
� Pode me contar como foi que tudo aconteceu?
� Ele... ele... entrou em meu quarto... � come�ou a choramingar,
e o pai abra�ou-o.
O juiz mandou que trouxessem �gua para o menino. Esperou
pacientemente at� que ele bebesse tudo, para depois prosseguir:


� Sente-se bem? Podemos continuar? � O menino fez que sim.
� Muito bem. Do que voc� se lembra daquela noite?
� Eu... estava dormindo... ouvi um barulho... � solu�ou e parou
abruptamente.

� Era algu�m?
Eric assentiu, e o juiz continuou:
� Quem?
� Ele...
� Ele quem?
� Ro... Romero... � gaguejou, em tom quase inaud�vel.
� Tem certeza?
Eric desatou a chorar novamente, redobrando o pranto de prop�sito.
Queria que o juiz se comovesse e o liberasse daquele interrogat�rio.
N�o queria acusar Romero ali, diante do juiz, mas tinha
medo de dizer a verdade. Se Rafael descobrisse, seria seu fim.

� Eric � tornou com calma o magistrado, apesar dos solu�os
do garoto �, n�o quero que pense que o estou obrigando a falar. N�o
� nada disso. Mas, se voc� disser a verdade, poderemos punir o homem
que fez isso a voc�. N�o deseja puni-lo?
Eric meneou a cabe�a e baixou os olhos, agarrando o bra�o
do pai.

� Excel�ncia � protestou o doutor Antero �, est� claro que
o menino est� transtornado e n�o tem condi��es de falar. Solicito
que ele seja dispensado dessa situa��o t�o penosa.
� N�o concordo, excel�ncia � objetou Maria da Gl�ria. � O
depoimento do menino � fundamental para esclarecermos os fatos.
O juiz olhou para ambos por alguns momentos e fitou Pl�nio,
que abra�ava o filho, tentando acalm�-lo.

� E o senhor, Dr. Pl�nio? � dirigiu-se ao m�dico. � Como pai,
o que diz?
Pl�nio teve de lutar com todas as suas for�as para resistir � tenta��o
de livrar o filho daquela situa��o embara�osa. Mas sabia que
somente ele poderia salvar Romero. Por mais que amasse e quisesse
proteger o filho, n�o podia permitir que um homem inocente fosse
condenado.

� Meu filho est� muito nervoso � falou por fim �, mas n�o
creio que isso deva obstruir a descoberta da verdade.

� Teremos ent�o de adiar a audi�ncia � determinou o juiz. �
Est� encerrada.
Juntaram suas coisas e sa�ram. Do lado de fora, Antero tornou
indignado:

� Por que fez isso, Pl�nio? Deveria ter concordado com a dispensa
de Eric. O juiz ia aceitar.
� O depoimento dele n�o � meio de prova?
� Os fatos j� est�o mais do que provados. Eric n�o precisava
depor, a n�o ser por insist�ncia da defesa. A advogada de Romero
insiste que foi outra pessoa que violentou Eric e acha que poder�
provar com o depoimento do menino.
� Tamb�m acho � foi a resposta seca de Pl�nio.
No caminho de volta para casa, Eric seguiu em sil�ncio. N�o
tinha vontade de falar. Ver Romero ali fora extremamente embara�oso.
Eric n�o sabia se conseguiria sustentar aquela mentira por
muito tempo. Sabia que n�o teria de contar nada na frente dele, mas

o s� fato de saber que o estaria prejudicando causava-lhe imensa dor.
Em casa, Lav�nia correu para eles e abra�ou o filho, beijando-
o repetidas vezes nas faces.
� Meu menino � falou amorosa. � Como foi? Falou a verdade
direitinho?
� Ele n�o falou nada � esclareceu Pl�nio. � Ficou nervoso, e
a audi�ncia foi adiada.
� N�o me diga que ele vai ter de se sujeitar a isso de novo!
� Infelizmente, vai ter, sim.
� Mas que coisa ma�ante! Bem, n�o importa. Venha, querido,
venha comer alguma coisa.
Levou o filho para a cozinha, a fim de preparar-lhe um lanche.
Na sala, Pl�nio e Rafael haviam permanecido. O rapaz, desde que

o cunhado entrara, n�o dissera uma s� palavra. Podia-se perceber
a tens�o em seu semblante. Pl�nio tamb�m notou. Aproximou-se
dele, que fingia ver televis�o, e indagou:
� N�o foi trabalhar hoje?
� Lav�nia me pediu que ficasse e lhe fizesse companhia.
Pl�nio abaixou-se diante dele e encarou-o bem fundo nos olhos.
� Lav�nia � uma tola, Rafael. Acredita em voc� e acha que o
irm�ozinho ainda � o beb� que ela segurou nos bra�os um dia. Mas

voc� n�o perde por esperar. A verdade ainda vir� � tona, e Lav�nia
h� de descobrir o monstro em que voc� se transformou.

Apesar de intimidado, Rafael sustentou-lhe o olhar e respondeu
com frieza:

� Tolo � voc�, se pensa que pode me acusar de algo. N�o fiz
nada, n�o sou culpado de nada. E n�o tenho culpa se seu queridinho
� quem n�o presta. Tome cuidado, Pl�nio, pois est� arriscado
a chegar o dia em que Lav�nia descobrir� aquilo em que voc�
se transformou.
Pl�nio quase o esbofeteou. Segurou-o pelo colarinho, mas soltou-
o a tempo. N�o valia a pena sujar as m�os com aquele verme.
Empurrou-o de volta para o sof� e foi ao encontro da mulher e do
filho. Agora, mais do que nunca, estava certo de que fora Rafael
quem fizera aquilo a Eric. Ele, apenas ele, era o culpado daquele crime.
E iria pagar.



cap�tulo


ozart retirou o fone do gancho e parou com o

dedo sobre o disco do telefone, ainda em d�vida sobre se devia ou
n�o tentar encontrar Romero. Os tios disseram-lhe que nunca
mais ouviram falar dele, e Mozart, embora n�o acreditasse muito,
n�o quis insistir. Por fim, tomou coragem e discou o n�mero
da casa do rapaz. Esperou alguns segundos, at� que uma voz de mulher
veio atender:

� Al�?
Assustado, Mozart n�o respondeu, e No�mia continuou:
� Al�? Quem est� falando?
Mozart desligou o telefone em sil�ncio. Por que n�o tivera coragem
de falar? Do que tinha medo? Afinal, n�o fizera nada de errado.
Se antes Romero era uma crian�a, agora j� era um homem, e
os pais n�o deveriam mais interferir em sua vida. Decidido, apanhou

o telefone novamente e ouviu, pouco depois, a voz de No�mia do
outro lado da linha:
� Al�? Quem fala?
� Sou eu, Dona No�mia � respondeu com hesita��o. �
Mozart...
Por alguns instantes, No�mia pensou que houvesse entendido
errado e retrucou perplexa:

� Quem! ?
� Mozart... amigo de Romero... n�o se lembra de mim?
Lembrava-se muito bem, embora preferisse n�o se lembrar.

� O que voc� quer? � cornou ela, em tom agressivo.
� Desculpe-me incomod�-la, mas seria poss�vel me dar not�cias
de Romero?
� Por qu�? O que quer com ele?
� � que cheguei agora da Europa. Gostaria de rev�-lo. Pode
me dar seu telefone?
� Romero n�o tem telefone.
� E o endere�o? Pode me dar?
� N�o sei onde ele mora � mentiu. � E, por favor, n�o nos
telefone mais. Silas n�o gostaria de saber que voc� ligou.
� Sinto muito... eu... n�o queria causar nenhum transtorno...
� Pois, ent�o, fa�a como lhe digo: n�o telefone mais para minha
casa. N�o sei de Romero e, ainda que soubesse, n�o lhe diria.
O que voc� fez a ele foi imperdo�vel.
Do outro lado da linha, Mozart sentiu o rosto arder e quase desligou
o telefone. Seria poss�vel que, depois de tanto tempo, eles ainda
sentissem raiva dele? E Romero? Ser� que ainda n�o o haviam
aceitado do jeito como era? Pelo visto, ele e os pais ainda continuavam
sem se falar.

Contendo o desejo de desligar para fugir �quela acusa��o injusta,
Mozart insistiu:

� Est� bem, n�o ligarei mais. Mas a senhora podia anotar o telefone
de onde estou?
� Para qu� ?
� Quem sabe, a senhora n�o se encontre com Romero por acaso
e possa lhe dar meu n�mero?
� Isso n�o vai ser poss�vel.
� Ainda assim, n�o poderia anotar? Vamos, Dona No�mia,
n�o custa nada.
� Est� bem � concordou, a contragosto. � Pode falar.
Apanhou a caneta na gaveta da mesinha de telefone e abriu o
caderninho. Anotava ou n�o anotava? Pensou em n�o anotar. N�o
queria que Romero soubesse que Mozart estava de volta. Mas, estranho...
Por que o filho fora perguntar pelo rapaz justamente no
momento em que ele voltava ao Brasil? Teria tido alguma premoni��o?
Pensando nisso, rapidamente mudou de id�ia e tomou nota
do n�mero.


� A senhora anotou? � era Mozart novamente, preocupado
com o sil�ncio repentino.
� Anotei. Mas n�o prometo nada. N�o sei por onde Romero
anda.
� N�o faz mal. � s� para o caso de a senhora encontr�-lo.
� Est� certo. Bem, se � s� isso...
� E s� isso. Muito obrigado.
Mozart pousou o fone no gancho e ficou pensativo, evocando
o tempo em que ele e Romero se encontravam diariamente. Desde
que partira, n�o havia um s� dia em que n�o pensasse nele. Depois
de tudo que acontecera, principalmente da tr�gica morte de Judite,
n�o conseguiram mais manter contato. Mesmo agora, as coisas
pareciam dif�ceis. No�mia dizia n�o ter not�cias do filho, o que bem
poderia ser verdade. Romero fora expulso de casa e estava vivendo
na casa do m�dico...
O m�dico! Era isso. Romero fora acolhido pelo m�dico que cuidara
dele no hospital. Ent�o, se ele encontrasse o m�dico, encontraria
Romero tamb�m. Vira-o apenas uma vez, quando fora despedir-
se de Romero. Qual era mesmo seu nome? N�o se lembrava muito
bem, mas, ainda assim, tentaria descobrir. Tomou um t�xi e foi
para o hospital, torcendo para que o m�dico ainda trabalhasse l�.
J� se haviam passado mais de dez anos, e tudo deveria estar diferente.
De qualquer forma, precisava tentar.

No hospital, seguiu direto para a recep��o e perguntou polidamente
� enfermeira que estava atr�s do balc�o:

� Bom dia. Estou procurando um m�dico que trabalhava aqui
h� uns dez anos...
� Dez anos? Sinto muito, meu jovem, mas vai ser dif�cil. Eu
n�o estava aqui h� dez anos.
� Mas ele ainda deve trabalhar aqui.
� N�o sabe o nome dele?
� N�o me lembro. S� sei que atendia na emerg�ncia.
� Emerg�ncia? Hmm... deixe ver... Temos o Dr. Paulo
Sampaio...
� Paulo Sampaio? � Mozart pensou por alguns instantes e
balan�ou a cabe�a. � N�o, n�o � esse.
� E o Dr. Carlos Soares ?

� Tamb�m n�o.
� Dr. Ant�nio Amorim Sobrinho? � Ele meneou a cabe�a. �
Dr. Pl�nio Portela? Dr. Vicente...

� Espere um instante! Pl�nio Portela... era isso! Era o Dr. Pl�nio,
agora me lembro.
Foi esse nome que ouvi Judite falar.
A mo�a sorriu e foi consultar seus apontamentos.

� Ah! Que pena! � lamentou. � Hoje n�o � dia do plant�o
dele.
� E quando ser�?
� Deixe-me ver... Ah! Aqui est�. Quinta-feira, ou seja, depois
de amanh�.
� Ele continua no plant�o noturno?
� Hmm... continua. O plant�o da noite vai das oito horas at�
as oito da manh� seguinte.
� Obrigado.
� De nada.
Mozart saiu com o cora��o palpitante. Tinha certeza de que
aquele m�dico poderia dar-lhe not�cias de Romero. Quem sabe, at�,
ele ainda n�o estivesse morando em sua casa?

Enquanto isso, No�mia chegava � pens�o em que Romero vivia.
O rapaz estava sentado em sua cama, um livro de medicina pousado
no colo, quando ela bateu � porta. Sabendo que era a m�e, ele
correu a atender. A m�e era a �nica pessoa que o visitava.

� Ol�, mam�e � disse ele, beijando-a no rosto.
� Que cara � essa, meu filho?
� Estava lendo.
� Voc� parece desanimado.
Ele suspirou profundamente e tornou a sentar-se. Passou a m�o
pelos cabelos e baixou a cabe�a, lutando para conter as l�grimas.

� Passei a semana toda procurando emprego. N�o consegui
nada.
� Nessa situa��o, � mesmo dif�cil. Voc� precisa primeiro se livrar
desse processo.
� E o que estou tentando. Minha advogada insiste no depoimento
de Eric. Acha que isso vai ajudar.
� Deus queira.

Ela foi retirando da sacola as coisas que havia trazido, e, enquanto
arrumava tudo em cima da pequena c�moda, Romero perguntou
com jeito casual:

� Pensou naquilo que lhe pedi?
� Naquilo o qu�?
� Sobre tentar encontrar Mozart.
No�mia teve um sobressalto. Romero parecia sentir a proximidade
do amigo, o que era muito estranho. Era muita coincid�ncia.
Romero come�ou a perguntar sobre Mozart justo no momento em
que ele chegava da Europa e o procurava tamb�m. Haveria, por tr�s
daquilo tudo, alguma estranha for�a movendo seus destinos? Com
esse pensamento, pensou em lhe dizer que Mozart havia telefonado,
mas mudou de id�ia. Ainda n�o estava bem convencida de que
aquela not�cia seria realmente �til ao filho.

� Trouxe algum dinheiro para voc� � desconversou, colocando
as c�dulas sobre a c�moda, ao lado de um saco de biscoitos.
� Sacou da poupan�a outra vez?
� Foi.
� Mas papai vai acabar percebendo.
� Espero que n�o.
� Voc� � um amor � falou emocionado, abra�ando-a com
ternura.
� Eu apenas me preocupo com voc�. Embora seu pai o tenha
renegado, eu ainda o tenho como filho. Ao longo desses anos, percebi
que meu amor de m�e � maior do que qualquer coisa que voc�
venha a fazer. Ainda n�o concordo com o que voc� faz... Juro que
at� tentei entender, mas, com seu pai martelando em minha cabe�a,
fica dif�cil!
� N�o precisa se justificar, m�e. Estou feliz que tenha, pelo
menos, me aceitado.
� Cansei de lutar contra isso. Gostaria muito que voc� se voltasse
para o lado do bem e se casasse. Mas, se voc� n�o quer...
� N�o estou do lado do mal, m�e. Sou uma pessoa direita. Estou
at� estudando para ser m�dico!
� � verdade... Bem, talvez seja isso mesmo o que importe nas
pessoas, e eu n�o tenha ainda compreendido direito a verdade de

Deus. Seja como for, voc� � meu filho, e essa � a �nica verdade que
me importa no momento.

Ele abra�ou-a novamente e sentou-se na cama para comer o
sandu�che que ela lhe havia preparado. Enquanto ia mastigando,
perguntou novamente:

� E Mozart, m�e? Ainda n�o me respondeu...
� O que quer que lhe diga? N�o sei dele e n�o tenho meios
de saber.
� Mas voc� podia tentar.
� N�o sei como. Quer que eu telefone para a fam�lia dele? Isso
eu n�o vou fazer. Tamb�m tenho meu orgulho.
� Por favor, m�e, � importante. N�o sei explicar, mas sinto que
ele est� pr�ximo.
� Pr�ximo? Como � poss�vel? Ele foi para a �ustria.
� Isso foi h� dez anos. J� deve ter completado os estudos.
Quem sabe n�o est�, agora mesmo, aqui no Brasil?
� Voc� est� sonhando. � a solid�o que o leva a crer em coisas
absurdas.
� Por que absurdas? Mozart � um ser humano real. N�o � nenhum
absurdo que tenha resolvido voltar para a terra natal.
� N�o pense mais nisso, Romero. Para n�o sofrer mais.
Mozart sumiu no mundo, e n�o vai lhe fazer bem ficar pensando
nele. Esque�a.
Embora silenciasse, Romero n�o esqueceu. Nem de longe desconfiava
que Mozart havia telefonado para a m�e, mas algo lhe dizia
que o rapaz n�o estava t�o sumido assim. Quase que sentia sua presen�a,
embora n�o soubesse explicar de onde vinha tanta certeza.

Talvez a m�e tivesse raz�o: a solid�o estava torturando-o a tal
ponto que o fizesse imaginar coisas. Na certa, Mozart nunca mais
voltaria ao Brasil, e eles jamais tornariam a se encontrar.

Do lado do astral, por�m, Judite dizia-lhe que n�o. Seu esp�rito,
que havia acompanhado toda a conversa, aproximou-se do irm�o
e soprou em seu ouvido:

� N�o desanime de encontrar Mozart. Ele tamb�m o procura,
e n�s vamos ajud�-los a se reencontrarem.
Inexplicavelmente, Romero sentiu-se mais confiante. Era isso
mesmo. N�o havia nenhum motivo para ele crer que Mozart esti



vesse por perto, mas seu cora��o dizia-lhe que, em breve, voltariam
a se ver. Romero lembrou-se de Judite e sentiu a saudade apertar-
lhe o cora��o. Como gostaria que a irm� estivesse ali!

Na quinta-feira, muito antes de o rel�gio bater oito horas, Mozart
estava parado no sagu�o do hospital em que Pl�nio trabalhava.
Na recep��o, fora informado de que ele ainda n�o havia chegado e
p�s-se a esper�-lo. Quase �s oito, Pl�nio entrou, cabe�a baixa, carregando
na m�o sua maleta de m�dico. Mozart reconheceu-o logo
que o viu. Embora dez anos se houvessem passado, ele continuava
praticamente o mesmo. A n�o ser pelo ar cansado, n�o havia mudado
em nada.

� Dr. Pl�nio? � perguntou Mozart, ainda hesitante.
� Sim � respondeu o m�dico, fitando-o curioso, puxando
pela mem�ria para lembrar-se de onde o conhecia.
� N�o sei se o senhor se lembra de mim. Faz alguns anos que
o conheci. Encontrei-o apenas uma vez...
� Mesmo? Em que posso ajud�-lo?
� � que sou amigo de Romero... Soube que ele est� vivendo
em sua casa.
Mozart percebeu que Pl�nio havia empalidecido e come�ado a
suar frio. Teria acontecido alguma coisa a Romero?

� Como � seu nome ?
� Mozart.
� Ah! Agora me lembro. Romero sempre falou muito em voc�.
� Quer dizer que � o senhor mesmo? Gra�as a Deus! Precisava
tanto falar com ele! Pode me dizer onde est�?
� Infelizmente, meu jovem, isso n�o ser� poss�vel.
� N�o? Por qu�? Ele n�o mora mais com o senhor?
� N�o. Faz alguns meses que Romero se foi.
� Para onde? O senhor n�o poderia me dar o endere�o? Ele saiu
da cidade? Mudou-se de pa�s?
� Calma, rapaz, uma pergunta de cada vez. Em primeiro lugar,
n�o lhe dou o endere�o porque n�o sei onde ele est� vivendo.
Quanto a sair da cidade ou do Pa�s, tenho certeza de que ele continua
aqui.

� Mas n�o tem id�ia de onde ele est�? Deve ter, ou ent�o n�o
afirmaria com tanta certeza que ele continua no Rio de Janeiro.
� Ou�a, Mozart, sei que ele continua aqui porque est� respondendo
a um processo criminal em liberdade e est� proibido de
se ausentar.
� Processo criminal? � indignou-se o rapaz. � Mas por qu�?
O que ele fez?
� Lamento, mas n�o gostaria de tocar nesse assunto.
� Por favor, doutor, ajude-me. O senhor � amigo dele. N�o pode
t�-lo mandado embora s� porque ele se meteu em alguma encrenca.
� E voc�? Por que o interesse depois de tantos anos?
� � que acabei de chegar ao Brasil...
� Por que n�o o procurou antes? Ele sentiu muito sua falta.
� Eu bem que tentei. Mas ningu�m quis me dizer onde ele
estava. Por isso, perdi o contato com ele. S� que agora estou de
volta. Gostaria muito de v�-lo.
� Por qu�?
� Por qu�? Bem, gosto muito de Romero... somos amigos...
Pl�nio suspirou dolorosamente. Ouvira muito falar de Mozart
e sabia quanto aquele rapaz havia sido importante na vida de Romero.
E agora, vendo-o ali � sua frente, sentiu que podia confiar nele.
O rapaz parecia estar dizendo a verdade, seus sentimentos pareciam
genu�nos. Ele gostava mesmo de Romero. Talvez pudesse ajudar.

� Venha comigo � falou incisivo, e Mozart seguiu-o.
Pl�nio levou-o para seu consult�rio e trancou a porta. Sentou-
se defronte a ele e, sem mais rodeios, declarou:

� Muito bem, Mozart. Vou lhe contar o que aconteceu. Romero
est� sendo acusado de ter violentado um menino de onze anos
de idade.
� O qu�! ? Mas isso � um absurdo! Uma cal�nia! Romero jamais
faria uma coisa dessas.
� Foi o pr�prio menino quem contou.
� Ele est� mentindo! E o senhor deveria conhecer Romero
melhor. N�o podia ter acreditado numa barbaridade dessas!
� Acontece, Mozart, que o menino � meu filho.
Mozart quedou embasbacado.
� Seu filho? � repetiu at�nito. � Mas como pode ser? Rome

ro sempre foi um rapaz decente. O senhor sabe o que ele passou.
Conhece sua hist�ria melhor do que ningu�m.

� E � por isso que n�o acredito que tenha sido ele.
� N�o? N�o estou entendendo. Foi o senhor mesmo quem
falou...
Pl�nio cortou-o e, em breves palavras, contou a Mozart tudo que
estava acontecendo. O rapaz co�ou o queixo e encarou o m�dico.

� Quer dizer ent�o que o senhor n�o acredita mesmo que tenha
sido ele?
� N�o. Mas n�o posso provar. Ainda.
� Por qu�? Como espera poder provar?
� Espero que meu filho nos diga a verdade. Ele est� com medo
de Rafael, mas talvez o juiz consiga faz�-lo falar.
Mozart fitou-o desgostoso. Agora, mais do que nunca, precisava
encontrar Romero.

� Por favor, doutor, onde ele est�?
� Quisera eu saber... Talvez sua defensora saiba.
� Quem � ela?
� Uma advogada, Maria da Gl�ria n�o sei de qu�.
� Onde posso encontr�-la?
� Na defensoria p�blica.
� Irei at� l� agora mesmo. Quanto antes encontrar Romero, melhor.
Preciso lhe dar meu apoio, mostrar a ele que n�o est� sozinho.
� Fa�a isso, meu rapaz. Tor�o para que voc� o encontre e o
ajude a enfrentar esse momento dif�cil. E espero poder provar sua
inoc�ncia.
� Ele � inocente, doutor, n�o tenho d�vidas disso.
Mozart saiu do hospital sentindo uma ang�stia sem fim. Por
que permitira que o tempo e a dist�ncia os afastassem? Por que n�o
insistira em encontr�-lo? Ele agora deveria estar sofrendo muito,
pensando que n�o havia ningu�m que se importasse com ele. Havia
a m�e, mas ela dissera que desconhecia o paradeiro do filho.
Estaria mentindo? Ou preferira n�o se envolver e fingia n�o ter
conhecimento de nada?

Foi dif�cil trabalhar naquela noite. A figura de Mozart n�o sa�a
do pensamento de Pl�nio. Depois de tantos anos, o rapaz resolvera


aparecer, o que n�o deixava de ser uma pena. Por que n�o voltara
alguns meses antes? Se tivesse aparecido h� mais tempo, talvez Romero
estivesse com ele, fora de sua casa, e nada daquilo tivesse acontecido.
Mas as coisas n�o aconteceram daquele jeito, e ele precisava
conformar-se.

Terminou o plant�o e foi embora. Ao entrar em casa naquela
manh�, Pl�nio logo percebeu que Rafael n�o havia ido trabalhar novamente.
J� passava das dez horas, e ele estava tomando sol � beira
da piscina. Eric, agora de f�rias, permanecia trancado no quarto,
vendo televis�o ou jogando videogame.

Foi conversar com o filho. Ele estava assistindo a um epis�dio
de Jornada nas Estrelas e nem desviou os olhos quando o pai entrou.

� Ol�, meu filho � cumprimentou Pl�nio, beijando-o nas faces.
� Como estamos hoje?
� Bem...
� Por que n�o vai tomar um pouco de sol? Est� fazendo um dia
t�o bonito!
� N�o quero. N�o tenho vontade.
� Seu tio est� na piscina � falou de prop�sito. � Por que n�o
se junta a ele?
Pl�nio percebeu que o corpo todo de Eric estremeceu, mas n�o
fez nenhum coment�rio. Era evidente que o filho tinha medo Rafael.

� J� disse que n�o quero � repetiu Eric.
� Gostaria de ir ao cinema?
� Com quem?
� Comigo. Se sua m�e quiser, tamb�m poder� ir.
� Tio Rafael tamb�m vai?
� N�o, se voc� n�o quiser.
� N�o quero.
� Ent�o est� certo. Vou dormir um pouco e, mais tarde, iremos
ao cinema. Depois, poderemos lanchar e tomar um sorvete. N�o
� uma boa id�ia?
� �.
Pl�nio beijou-o novamente e foi para seu quarto. Estava cansado,
com sono e precisava descansar. Tirou a roupa, tomou um
banho r�pido e desabou na cama, sem nem falar com a mulher.
Acordou com o p�r-do-sol e olhou pela janela. Ouviu um barulho


de �gua e foi espiar. L� embaixo, Rafael ainda se divertia � beira da
piscina, mergulhando com uma garota.

� Ol�, querido � disse uma voz atr�s dele. � Dormiu bem?
Era Lav�nia, que chegara sem que ele percebesse. Pl�nio virou-
se para ela e abra�ou-a.

� Muito bem � respondeu com um bocejo. � E voc�? O que
fez durante o dia?
� Fui ao cabeleireiro.
� Por que n�o levou Eric j unto ?
� Ele n�o quis ir. Chamei-o para ir � piscina, mas ele se recusou
terminantemente. Acho que vamos ter de coloc�-lo num
psic�logo.
� Talvez voc� tenha raz�o.
Ele n�o queria dizer que Eric estava com medo de Rafael e
acabou concordando. Eric estava muito traumatizado, n�o s� pela
viol�ncia que sofrera, mas por estar sendo obrigado a mentir e a
incriminar seu melhor amigo.

� Fiquei de lev�-lo ao cinema hoje � continuou ele. � N�o
gostaria de nos acompanhar?
� � claro. Vou falar com Rafael. Tenho certeza de que tamb�m
gostaria de ir.
� Por favor, Lav�nia, n�o fa�a isso. Eric n�o iria gostar.
Apesar de contrariada, Lav�nia n�o discutiu. Talvez fosse
melhor mesmo que Rafael n�o fosse. Ele e o marido n�o vinham
se entendendo muito bem ultimamente e, por mais que ela n�o
acreditasse naquela vers�o de que fora o irm�o quem violentara
Eric, preferia n�o criar caso com Pl�nio. Depois que a verdade viesse
� tona e Romero fosse preso, sua vida voltaria ao normal.

� Est� bem � concordou. � Vou a seu quarto mandar que
se vista.
A noite no cinema foi �tima. Assistiram ao filme e tomaram
sorvete. Eric estava feliz, embora um tanto quanto acabrunhado. De
volta � casa, foram dormir. Pl�nio deu uma espiada no quarto de Rafael
e, constatando que o cunhado dormia, foi para a cama.

Na escurid�o, Rafael abriu os olhos. Ouvira quando Pl�nio
chegara e atirara-se na cama, apagando a luz do abajur. Sabia que

o cunhado iria verificar se ele estava dormindo e ficou esperando.

Depois que Pl�nio saiu, aguardou ainda cerca de vinte minutos e ent�o
se levantou. P� ante p�, foi ao quarto de Eric.

O menino havia acabado de adormecer quando sentiu a cama
afundar e abriu os olhos, espantado. Ao deparar com o tio ali sentado,
teve vontade de gritar, mas, a um gesto de sil�ncio de Rafael,
ele se calou.

� O que voc� quer? � sussurrou o garoto no escuro, agarrando-
se ao len�ol.
� Soube que voc� n�o quis minha companhia hoje � respondeu
sarc�stico. � Posso saber por qu�? N�o somos amigos?
Acariciou o rosto de Eric, que recuou aterrado.

� Deixe-me em paz � suplicou, � beira das l�grimas.
� N�o se preocupe, Eric. N�o vou fazer nada. N�o sou tolo. S�
vim lhe dar um aviso. Voc� est� me tratando muito mal. Sua m�e
j� percebeu e n�o est� entendendo, ou finge que n�o entende. Mas
seu pai sabe. Se voc� deixar escapar alguma coisa, vai se arrepender.
Cumpro minhas amea�as, e a� a coisa vai ficar feia para seu lado.
O seu e o daquela bichinha.
� N�o falei nada.
� � bom que n�o fale mesmo. Estou de olho em voc�.
266



a defensoria p�blica, Mozart teve outra decep��o. a defensoria p�blica, Mozart teve outra decep��o.
Como a Justi�a estava em recesso de fim de ano, Maria da Gl�ria
n�o se encontrava, e ele n�o p�de obter o endere�o de Romero. Mozart
voltou ao hotel com o cora��o cada vez mais oprimido. Sabia
que Romero estava pr�ximo, mas onde encontr�-lo? Se ao menos
a m�e dele soubesse...

Resolveu telefonar-lhe novamente. Ela devia saber de alguma
coisa. Mozart discou o n�mero de sua casa e aguardou que algu�m
atendesse. Dessa vez, por�m, quem atendeu foi Silas. Mozart consultou
o rel�gio e constatou que j� era noite, hora em que Silas
retornava do trabalho. Pensou em desligar, mas o desejo de encontrar
Romero falou mais alto.

� Al�, seu Silas? � falou da forma mais cort�s que podia. �
Aqui quem fala � Mozart.

� Quem!? � foi a rea��o, igualzinha � de No�mia. � Que
Mozart?
� Amigo de Romero.
� N�o conhe�o nenhum Romero.
� Por favor, seu Silas, preciso falar com Dona No�mia.
Ele ia bater o telefone na cara de Mozart, mas, ao ouvir o nome
da mulher, mudou de id�ia. O que aquele pederasta podia querer
com sua mulher?

� No�mia n�o est� � mentiu. � Pode falar comigo.
� N�o... Pode deixar. Se � assim, prefiro ligar mais tarde.
267


� O que h�, rapaz? Est� de segredinhos com minha mulher, �?
� N�o se trata disso. Mas � que o assunto � s� com ela mesmo.
� J� disse que pode falar comigo. Eu e minha mulher n�o temos
segredos.
� Obrigado, mas ligo depois.
� Escute aqui, mo�o! N�o quero voc� telefonando para minha
casa. Se tem algo a dizer, diga agora.
� � que... � titubeou � ...gostaria de dizer a ela que j� sei
de Romero.
� Sabe o qu�?
� O que aconteceu a ele. Sei que est� sendo processado.
� Isso por acaso � de sua conta?
� N�o. Mas imaginei se ela n�o o estaria ajudando.
� Minha mulher n�o ajuda ningu�m sem minha autoriza��o!
� berrou, a tal ponto que Mozart teve de afastar o fone do ouvido.
� Tudo bem, seu Silas, o senhor tem raz�o. Perdoe-me. N�o
vou ligar mais.
Desligou apressadamente, antes que Silas gritasse de novo, torcendo
para que n�o tivesse causado nenhum problema a No�mia.
Assim que Silas colocou o fone no gancho, No�mia entrou na
sala, trazendo uma tigela, que p�s na mesa do jantar. Com ela, estavam
os esp�ritos de Judite e F�bio. Silas encarou-a desconfiado, e
ela perguntou inocentemente:

� Quem era?
� Ningu�m. Engano.
Embora n�o tivesse acreditado, No�mia n�o perguntou mais.
Percebera que ele havia demorado ao telefone, apesar de n�o ter ouvido
o que dissera. Sentiu uma apreens�o dominar-lhe o peito, mas
tentou manter-se firme.

� O jantar est� servido � falou secamente.
Silas sentou-se e esperou at� que ela se sentasse e o servisse, para
s� ent�o interrogar:

� Tem tido not�cias de Romero?
� De Romero? � espantou-se. � Por que a pergunta?
� Responda-me apenas. Tem tido ou n�o not�cias daquele
safado ?
Ela engoliu em seco e mentiu:


� N�o.
� Tem certeza?
� Tenho.
� E de Mozart?
� De Mozart? Imagine, Silas, � claro que n�o. Mozart est� na
Europa.
� Digamos que ele tenha voltado. Ser� que n�o a procurou?
� A mim? E por que o faria?
� Para saber de Romero.
� N�o sei de nada disso. Que eu saiba, Mozart est� na �ustria,
e Romero est� sumido.
� E voc� n�o tem not�cias de nenhum dos dois, n�o �?
� J� disse que n�o.
Ele pousou a colher no prato de sopa e olhou fixo nos olhos de
No�mia, o que a deixou deveras incomodada. Limpou os l�bios com

o guardanapo e disparou com mal contida raiva:
� Quero que me escute bem, No�mia, que � para depois n�o
dizer que n�o avisei. Se eu descobrir que voc� anda ajudando aquele
veadinho do seu filho, coloco-a para fora de casa tamb�m, e voc�
que v� viver na sarjeta com ele!
Judite aproximou-se mais ainda e quase que se colou ao corpo
da m�e. Ela precisava reagir. N�o era certo ser tratada como uma
incapaz.

� Vamos, m�e, tenha coragem. Reaja! Ele n�o pode falar
assim com voc�. N�o � direito.
� N�o gosto de brigas � pensou No�mia. � � melhor n�o
responder.
� N�o precisa brigar � continuava Judite. � Apenas mostre-
lhe que � preciso respeitar as pessoas. Voc� n�o � uma coisa, sem
vontade ou sentimentos.
� Se responder, ele vai ficar ainda mais furioso.
� N�o vai, n�o. Ele vai se espantar e vai parar para pensar.
O que o estimula a ser arrogante e autorit�rio � sua passividade.
Ajude-o, m�e. Ajude-o a se ver e a modificar esse temperamento
dif�cil.
� Ouviu bem o que lhe disse, No�mia? � era a voz de Silas,
interrompendo o di�logo dela com o invis�vel.

� Agora, m�e! � incentivou Judite. � Responda! Coloque-
se como gente!
� Ouvi, sim � respondeu No�mia, um tanto hesitante. �
Mas n�o precisa falar comigo desse jeito. Voc� n�o � o dono da
verdade nem senhor de minha vontade. � Elevou o tom de voz,
agora mais confiante. � Romero � meu filho, e, se eu quiser, vou
ajud�-lo tanto quanto achar necess�rio. Quanto � amea�a de me
colocar daqui para fora, isso n�o me assusta. Somos casados h� quase
trinta anos, e eu hei de ter meus direitos.

Era a primeira vez que No�mia lhe respondia, o que deixou Silas
deveras aturdido. Nem ela se reconhecia, e ficou esperando que
ele esbravejasse e gritasse com ela de novo. Mas Silas n�o fez nada
disso. Olhou-a com indigna��o e retrucou:

� N�o foi isso que eu quis dizer... N�o vou realmente expuls�la.
.. � Com o rosto vermelho, explodiu: � Mas que droga, No�mia!
S� de ouvir o nome de Romero, fico fora de mim! Ele me
deixa louco!
� Pois n�o devia � prosseguiu ela, inspirada pelo esp�rito da
filha. � Romero � t�o seu filho quanto meu. Dev�amos ajud�-lo.
N�o somos seus pais? N�o foi com isso que nos comprometemos?
� Comprometemos? N�o me comprometi com nada. N�o
pedi para ter filhos!
� Mas teve. E � dever dos pais orient�-los pelo caminho do bem.
� Voc� est� querendo dizer que Romero virou veado porque
eu n�o o orientei direito? � isso, No�mia?
� N�o falei nem pensei nada disso. Romero � o que � por
vontade pr�pria, e n�o nos cabia direcionar seu destino. Mas n�s
dever�amos t�-lo mantido aqui em nossa casa, e talvez ele n�o estivesse
envolvido nesse processo infamante.
� Ele deve arcar com as conseq��ncias do que fez. Ningu�m
mandou violentar o menino.
� Voc� n�o acredita nisso! Est� apenas usando isso como desculpa
para extravasar seu �dio. Por que odeia seu filho, Silas? O que
foi que ele lhe fez?
� Ele � um pederasta, isso sim! Dormia com aquele sem-
vergonha em nossa casa. Traiu nossa confian�a.

� Nada disso teria acontecido se voc� n�o tivesse insistido em
fazer dele o que voc� gostaria que ele fosse.
� Eu!? Gostaria que meu filho fosse homem. Ser� que isso �
pedir demais?
� Pois deveria gostar que ele fosse um homem honesto e
decente, e n�o apenas viril.
� Ora vamos, Noemia, nenhum pai gosta de ter um filho
homossexual.
� Isso, por si s�, n�o � motivo para discriminar e renegar o
pr�prio filho.
Silas jogou o guardanapo em cima da mesa e levantou-se bruscamente,
quase derrubando seu prato no ch�o.

� N�o estou entendendo voc�. Durante todos esses anos,
concordou comigo. Posso saber o que aconteceu para mudar de
id�ia agora?
� Jamais concordei com voc�. Apenas lhe obedeci. S� que
n�o sou uma boneca manipul�vel, Silas. N�o sou marionete. Sou
sua mulher, m�e de seus filhos, e tenho o direito de ter minhas pr�prias
opini�es.
Ele n�o respondeu. No fundo, sabia que ela tinha raz�o, mas o
orgulho n�o lhe permitia concordar com ela. Remoendo a raiva,
deu-lhe as costas e saiu batendo a porta. No�mia permaneceu sentada,
sem se mover. Sentiu uma estranha emo��o tomar conta de
todo o seu corpo. Era como se, naquele momento, estivesse se libertando
das amarras �s quais vivera atada por toda a vida. Silas
sentira-se intimidado, ela percebera. Dera import�ncia ao que ela
dissera, o que era uma sensa��o nova para ela. Nunca, em toda a
vida, tivera voz ativa para nada. Ele nunca a escutara, e ela n�o tinha
direito de ter opini�o pr�pria. Mas, agora, n�o. Impusera sua
vontade e ele se espantara. E n�o tivera coragem de enfrent�-la.

Agora ela sabia. Era uma mulher, uma pessoa digna, que tinha
direito de ser respeitada. Tinha o direito de ser ela mesma.

No �nibus para casa, No�mia ia pensando. Acabara de visitar

o filho na pens�o e estava angustiada. Romero andava triste, cabisbaixo,
sentindo-se extremamente s�, sem amigos nem ningu�m
que o pudesse entender. Al�m dela, n�o havia mais ningu�m no

mundo disposto a ajudar. Ningu�m, a n�o ser Mozart. Desde a �ltima
vez que telefonara e falara com Silas, nunca mais dera sinal de
vida. Teria desistido de Romero? Teria voltado para a Europa, desiludido
e certo de que nunca mais se encontrariam? No�mia come�ou
a pensar. N�o concordava com aquele meio de vida do filho,
mas agora se sentia em d�vida sobre o que seria o certo e o que
seria o errado. Gostaria muito que Romero tivesse se casado e lhe
dado netos, mas ser� que valeria a pena um casamento sem amor?
O filho n�o dava para aquilo. Ele mesmo dizia que n�o havia jeito
de gostar de mulheres. Como ent�o pretender obrig�-lo a desposar
uma e, pior, ter filhos com ela, filhos que acabariam sofrendo imensamente
quando, mais tarde, a verdade viesse � tona? Ou ser� que
Romero conseguiria viver a vida inteira fingindo ser o que n�o era?
Mesmo que conseguisse, seria isso o ideal? Ser� que valeria a pena
fingir que ele era igual a todo mundo, s� para manter a apar�ncia
que a sociedade exigia, e viver infeliz? J� n�o estava bem certa.

Os pensamentos de No�mia voltaram ao passado, � �poca em
que Romero, rec�m-entrado na adolesc�ncia, sofrera aquela viol�ncia.
Desde ent�o, nunca mais fora o mesmo. Durante muito
tempo, No�mia quis acusar J�nior, e depois Mozart, pelos desvios
do filho. Mas agora via que eles n�o podiam ser respons�veis pela
escolha que Romero fizera de sua vida. Romero era o que era e
teria sido o mesmo, ainda que J�nior ou Mozart jamais houvessem
atravessado seu caminho.

S� que agora ele estava enfrentando um processo criminal s�rio.
� claro que tudo isso acontecera porque ele era homossexual.
N�o que ela acreditasse que Romero houvesse violentado o garoto.
Pelo que conhecia de seu filho, sabia que ele seria incapaz de uma
atitude daquelas. Era o preconceito contra sua homossexualidade
que fazia com que todos acreditassem que ele era o culpado. Mas,
como Romero mesmo dizia, ele era apenas um homossexual, n�o um
criminoso ou marginal. Era diferente, ela sabia. Romero sempre fora
um bom filho, estudioso, educado, honesto, de bom cora��o. Ser�
que todas essas qualidades haviam se apagado s� porque ele escolhera
outra forma de se relacionar sexualmente?

Por mais que Silas insistisse em que Romero n�o era um rapaz
digno, ela n�o conseguia concordar. Por muito tempo, vivera �


sombra do marido, pensando o que ele pensava, desejando o que ele
queria, fazendo o que ele mandava. Repudiara o filho porque Silas
assim determinara, e ela, embora desgostosa e contrariada, n�o
teve coragem de enfrent�-lo. Mas isso agora havia acabado. N�o que
ela de repente, de uma hora para outra, virasse uma mulher ousada
e atrevida. Tamb�m ela n�o ia tentar ser o que n�o era. Sempre
fora mulher calma e pac�fica, mas agora estava conseguindo ver a
grande diferen�a que havia entre a pacificidade e a passividade. Precisava
continuar pac�fica, mas jamais voltaria a ser passiva. Afinal,
n�o fora justamente isso que lhe tirara a paz?

Como se isso n�o bastasse, havia o amor. O amor n�o devia estar
atrelado a esse tipo de coisa. Achava mesmo que o amor n�o devia
estar atrelado a nada. Amor � um sentimento, n�o uma equa��o
que deva ser resolvida � base da l�gica. Fulano � um bom rapaz,
logo � digno de ser amado. J� o outro n�o �, portanto n�o merece

o amor. Para amar, basta sentir. S� isso. N�o � preciso explica��o
nem justificativa nem motivo. O amor � simplesmente o amor.
No�mia agora compreendia isso. Ainda mais ela, que era m�e
e amava seus filhos desde quando nasceram. Perdera Judite havia
alguns anos, e s� agora conseguia compreender tamb�m a filha. Judite
sempre amara Romero e nunca se importara com o que ele era.
Para ela, o que contava era o sentimento. Em sua curta vida, tentara
dizer-lhe isso, mas ela n�o entendera. Estava surda a qualquer
coisa que n�o fosse a voz do marido.

S� que agora entendia. Entendia e iria fazer tudo que estivesse
a seu alcance para n�o perder Romero tal como perdera Judite.
A filha partira, e, se havia algum lugar para onde os esp�ritos
bons iam, devia ser l� que ela estava, porque Judite sempre fora
uma pessoa boa, e No�mia acreditava que a filha estaria sendo ajudada
por algu�m. Mas o filho ainda vivia entre eles. Ela tinha tempo
de reconquist�-lo.

Entrou em casa decidida. Silas ainda n�o havia voltado do
trabalho, de forma que ela poderia agir sem maiores problemas.
Apanhou o caderninho dentro da bolsa e tirou o fone do gancho.
Sem hesitar, discou o n�mero que Mozart lhe dera. Uma voz met�lica
atendeu do outro lado da linha, e ela pediu que a ligassem com

o quarto do rapaz. Em poucos instantes, ele atendeu.

� Mozart? � indagou ela. � Aqui quem fala � No�mia, m�e
de Romero.
� Ah! Dona No�mia, como vai? � replicou ele, ansioso.
� Vou bem. Estou ligando porque gostaria de saber se voc�
ainda quer se encontrar com Romero.
� Se quero? Mas � claro que quero! A senhora sabe disso.
� Eu sei. Vou lhe dar o endere�o. Quer anotar?
� S� um instante � Mozart correu a apanhar l�pis e papel. �
Pode falar.
No�mia deu-lhe o endere�o e explicou direitinho a Mozart
onde ficava a pens�o.

� Anotou tudo?
� Tudinho.
� Ent�o v�. Ele ainda n�o sabe que voc� chegou ao Brasil. Vai
ficar feliz.
� Obrigado, Dona No�mia!
Mozart desligou e arrumou-se correndo. Tomou um t�xi e deu
ao motorista o endere�o da pens�o. N�o demorou muito, e logo chegaram.
O jovem saltou, cumprimentou o homem da recep��o com
um aceno de cabe�a e subiu os degraus de par em par. No segundo
andar, foi andando pelo corredor, com o papel na m�o, procurando
o quarto de Romero. At� que o encontrou. Parou � porta, indeciso,
encheu os pulm�es de ar e bateu.

Do lado de dentro, Romero assustou-se com aquelas batidas. A
m�e sa�ra dali havia pouco, e ele n�o esperava a visita de mais ningu�m,
ainda mais �quelas horas. Encostou o ouvido na porta, mas
n�o ouviu nenhum barulho do lado de fora. Inseguro, perguntou:

� Quem �?
Ouvindo aquela pergunta, proferida numa voz t�o incerta e sumida,
o outro respondeu:

� Sou eu, Romero. Mozart...
Nem precisou dizer mais nada. Reconhecendo-lhe a voz, Romero
escancarou a porta. N�o havia d�vida. Era mesmo Mozart
quem estava parado ali, na sua frente, olhando-o com um misto de
saudade e arrependimento.

� Mozart... � sussurrou. � Que milagre o trouxe aqui?
� Sua m�e. Ela me deu seu endere�o, e eu vim.

� Voc� sumiu... Pensei que n�o quisesse mais me ver.
� Eu tentei. Fiz de tudo para encontr�-lo. Mas o destino
n�o quis.
Calou-se, a voz embargada, e Romero abra�ou-o comovido, escondendo
o rosto em seu ombro, chorando feito uma crian�a. N�o
podia crer que, depois de tantos anos, Mozart estava ali novamente.
O outro gentilmente empurrou-o para dentro e fechou a porta,
estreitando-o num abra�o amoroso e amigo.

� Como senti sua falta! � desabafou Romero entre solu�os.
� S� Deus sabe quanto senti saudade sua!
Com extremo cuidado, Mozart sentou-se ao lado de Romero
na cama e permitiu que ele extravasasse o pranto. Ele precisava chorar.
Estava passando por momentos dif�ceis, e o pranto aliviava a dor.
Chorou por quase meia hora, agarrado ao pesco�o de Mozart, sem
conseguir falar. Apenas sentia o puro afeto que emanava do outro.

Depois que se acalmou, conseguiu falar com mais clareza. Os
dois estavam felizes com o reencontro, e Mozart pediu a Romero que
lhe contasse direitinho o que havia acontecido. Em detalhes, Romero
contou tudo, desde o dia em que fora morar com Pl�nio, ap�s
a morte de Judite, at� quando toda aquela desgra�a acontecera. Mozart
ficou revoltado com a atitude de Rafael, mas concordava que

o melhor seria provar a inoc�ncia de Romero.
� E o que estou tentando fazer. E minha advogada espera que
Eric conte a verdade ao juiz.
� Quando ser� a pr�xima audi�ncia?
� Daqui a um m�s, mais ou menos.
� � muito tempo. Voc� n�o pode continuar morando aqui at�
l�. Arrume suas coisas e v� comigo para o hotel.
� Voc� acha isso conveniente?
� Por que n�o?
� Talvez a minha advogada n�o ache.
� Tem raz�o. � melhor falar com ela primeiro. Mas ela est�
de f�rias.
� Como voc� sabe disso? Voc� a conhece?
� N�o, n�o conhe�o. Mas ouvi falar a seu respeito.
� Como? Quem lhe disse?
� Desde que cheguei, venho tentando localiz�-lo. Primeiro,

procurei sua m�e. N�o obtendo sucesso, fui atr�s do m�dico com
quem voc� morou. Eu sabia o hospital em que ele trabalhava e parti
para l�.

� Voc� falou com o Dr. Pl�nio?
� Falei, sim. Foi ele quem sugeriu que eu procurasse a defensora
p�blica. Est� muito preocupado com voc�.
� N�o acredito. Foi ele quem abriu esse processo contra mim.
� Acho que ele foi obrigado. Mas ele n�o acredita que voc�
tenha feito isso. Tamb�m desconfia do cunhado.
� Ele lhe disse isso?
� Disse. E tamb�m espera que Eric fale a verdade. Ele gosta
muito de voc�, e me pareceu que estava sofrendo muito. Est� ansioso
para esclarecer tudo.
Romero sentiu-se duplamente feliz. Encontrara Mozart, em
quem vinha insistentemente pensando, e agora ele lhe dizia que Pl�nio
n�o acreditava que ele fosse culpado. Isso tamb�m era motivo
de alegria. Gostava de Pl�nio como se fosse seu pai e ficara muito
triste ao imaginar que ele estivesse acreditando que ele fora capaz
de machucar Eric. N�o bastasse o fato de que n�o era ped�filo, Romero
amava o menino profunda e sinceramente, e jamais faria
algo que pudesse mago�-lo. N�o o faria a ele nem a nenhuma outra
crian�a.

Do lado do astral, Judite e F�bio, de m�os postas, irradiavam
fluidos de amor e esperan�a pelo ambiente. Deram um passe em
Mozart e outro em Romero. A mo�a beijou o irm�o na face e sorriu
para F�bio.

� Mais uma etapa cumprida � disse o esp�rito.
� Sim. Minha m�e est� conseguindo se libertar da pris�o
ps�quica em que meu pai a colocou e tenta ser ela mesma. Mozart,
finalmente, encontrou Romero. Em breve, o processo criminal
chegar� ao fim, com vit�ria de meu irm�o, acredito, e tudo estar�
terminado. Apenas meu pai n�o consegue enxergar.
� Tudo tem sua hora, Judite. Seu pai ainda � um esp�rito
muito empedernido. Vamos rezar para que ele tamb�m compreenda
e aceite.
De m�os dadas, os dois esp�ritos afastaram-se, deixando Romero
e Mozart a s�s com seu amor e seus carinhos.


Quando Maria da Gl�ria voltou das f�rias, faltavam poucos
dias para a audi�ncia de Romero. O rapaz fora procur�-la em seu
escrit�rio, acompanhado de Mozart. Maria da Gl�ria foi apresentada
a Mozart e ficou surpresa ao saber que ele era um m�sico
famoso na Europa.

� N�o acho que seja uma boa id�ia voc� ir morar com um rapaz
nesse momento � aconselhou ela. � Lembre-se de que voc� s�
foi acusado porque � homossexual. N�o quer fazer parecer que estava
louco para se atirar nos bra�os de outro homem, quer?
� N�o.
� Pois, ent�o, espere um pouco. Quando tudo terminar, voc�
poder� levar sua vida normalmente.
� Doutora � interveio Mozart �, n�o gostaria que a senhora
pensasse mal de n�s. Romero e eu nos conhecemos h� muitos anos
e sempre nos amamos. N�o quero que pare�a que nossa rela��o �
algo sujo ou imoral.
� N�o estou dizendo isso. Mas � o que as outras pessoas v�o
dizer. Voc�s, mais do que ningu�m, devem saber o que � ser discriminado
pelo preconceito.
� Sabemos...
� Pois, ent�o, compreendam. Todo mundo vai acusar Romero
de tarado, v�o dizer que ele n�o pode passar sem homem e
sem sexo. E o advogado do Dr. Pl�nio vai se utilizar disso como
uma arma. Far� parecer que Romero est� desesperado para continuar
transando com seus homens, tanto que nem liga para o que
aconteceu e j� foi viver com outro. N�o. � melhor que Romero
permane�a sozinho.
� Sei que tem raz�o � concordou Mozart. � Mas � importante
que ao menos a senhora saiba que n�s n�o somos imorais.
� Eu sei. Eu tive de aprender que ser homossexual n�o significa
ser imoral ou criminoso. Aprendi isso com Romero, se voc� quer
saber. At� ent�o, eu tamb�m fazia uma id�ia meio errada de voc�s.
� E? � indignou-se Romero. � Como assim?
� Bem, perdoe-me, Romero, mas eu achava que os homossexuais
eram pessoas sem moral, que seriam capazes de tudo para se
satisfazer. Quando entrei em sua cela naquele dia, ainda pensava assim.
Achava que voc� devia mesmo ser culpado, mas ia defend�-lo

porque � minha fun��o. Mas depois, conhecendo-o melhor, vi que
n�o � nada disso. Hoje, fa�o uma id�ia bastante diferente dos homossexuais.
Sei que um homem gostar de outro n�o significa abandonar
os princ�pios nem a moral.

� A senhora � casada? � perguntou Mozart.
� Sou.
� Tem filhos?
� Tenho. Um casal.
� Seria capaz de deix�-los aos cuidados de um homossexual?
� Essa � uma pergunta dif�cil. Mas sim... Se o homossexual for
uma pessoa direita, eu os deixaria, sim.
� Como a senhora iria saber?
� Conhecendo-o como pessoa, como ser humano. Eu jamais
deixaria meus filhos com uma pessoa qualquer, fosse h�tero, fosse
homossexual. Porque h� homossexuais maldosos, tanto quanto h�
heterossexuais tarados e molestadores. S� que o fato de ser homossexual
j� n�o conta mais como um ponto a menos para a pessoa,
como algo que deponha contra sua conduta. Hoje sei que as pessoas
contam pelas suas atitudes, sua dignidade, seu car�ter. E isso
nada tem a ver com a sexualidade.
� Embora boa parte dos homossexuais acabe mesmo na marginalidade
� observou Mozart.
� Para mim � continuou ela �, o que leva muitos homossexuais
� marginalidade � o preconceito, a discrimina��o. Ou o medo
de serem discriminados, mal compreendidos. Muitos homossexuais
n�o conseguem se assumir, acham-se diferentes e n�o se julgam
dignos ou merecedores de conviver normalmente com as outras
pessoas. Por isso, n�o lutam, n�o competem com os outros por uma
posi��o melhor na vida, e a� acabam mesmo caindo na marginalidade,
ou seja, p�em-se � margem da sociedade, julgando-se errados,
condenando-se pelo que s�o. Da� por que h� tantos homossexuais
na prostitui��o, levando uma vida libertina, descambando para a
obscenidade e a perdi��o, o que � uma pena.
� A senhora pensa exatamente como o Dr. Pl�nio... � comentou
Romero, com certa tristeza.
� A senhora � muito avan�ada para nossa �poca � considerou
Mozart, tentando desviar a mente de Romero da lembran�a do

m�dico. � Se fosse na Europa, n�o dizia nada. Apesar de haver preconceito
por l� tamb�m, ele n�o � t�o forte quanto aqui.

� Est� na hora de as coisas mudarem � ponderou Maria da
Gl�ria. � Eu, por mim, j� mudei meu pensamento. Estou tentando
deixar de lado toda forma de preconceito.
� Fico feliz � disse Romero. � Ainda mais porque a senhora
� minha defensora.
� � isso mesmo, Romero. E, como sua defensora, vou voltar
ao assunto que os trouxe aqui. N�o v�o viver juntos por ora. Mozart
pode continuar visitando-o, mas tomem cuidado para que ningu�m
os veja e tire conclus�es precipitadas e maldosas. Sua conduta
� muito importante para firmar seu car�ter. E o juiz me parece
simp�tico a voc�. Tanto que vai interrogar Eric. N�o estrague tudo,
por favor.
� Pode deixar. Vou me comportar direitinho.
� Muito bem. At� o dia da audi�ncia, ent�o. Qualquer novidade,
entrem em contato.
Apertaram-se as m�os e sa�ram. Apesar de desaconselhados de .
morarem juntos, Mozart e Romero n�o estavam tristes. Haviam se
reencontrado, o que era o mais importante. Depois, poderiam assumir
sua rela��o e continuar levando uma vida normal.


279



cap�tulo


inalmente, chegara o dia da audi�ncia em que Eric iria
prestar depoimento. Como v�tima, sua palavra era de suma import�ncia,
embora ouvida com os cuidados que toda crian�a requer.

Logo pela manh�, ele acordou passando mal. Sentia o est�mago
arder e chegou a ter uma pontinha de febre. Pl�nio, por�m, medicou-
o e cuidou dele, tentando fazer com que n�o ficasse nervoso.

� Talvez seja melhor ele n�o ir � sugeriu Lav�nia, deveras
preocupada com o filho. � O Dr. Antero poder� dizer que ele n�o
est� bem. � uma crian�a; n�o h� de advir nenhuma conseq��ncia
ruim para ele.
� N�o se trata disso, Lav�nia � objetou Pl�nio. � O depoimento
de Eric � muito importante para que se descubra a verdade.
� Mas que verdade? A verdade est� mais do que na cara. N�o
sei do que voc� ainda duvida.
Pl�nio n�o respondeu. Limitou-se a olh�-la com desgosto e entrou
no banheiro. Queria encerrar aquela discuss�o. Irritada, Lav�nia
saiu do quarto e foi ver como o filho estava. Ele parecia bem,
apesar de extremamente nervoso.

� Voc� n�o precisa se preocupar, querido � tranq�ilizou ela,
abra�ando-o com ternura. � N�o precisa nem ir, se n�o quiser.
� Foi o que disse a ele � era a voz de Rafael, que vinha entrando
nesse momento. � Que n�o precisa ir. N�o foi, Eric?
O menino balan�ou a cabe�a, mas n�o disse nada. Estava apavorado
com a id�ia de que teria de mentir diante do juiz. N�o sa


281


bia se conseguiria. Al�m do mais, sentia que estava no limite de suas
for�as. Aquela mentira toda o estava sufocando, e o que ele mais
queria era poder contar a verdade. Mas, se falasse, o tio cumpriria
sua promessa, e ele e Romero poderiam acabar mortos. O que poderia
fazer?

� Voc� quer ir, Eric? � perguntou Lav�nia, de forma inocente.
Eric n�o respondeu, e Rafael falou no lugar dele:
� � claro que ele n�o quer. Voc� n�o est� vendo, Lav�nia? O
menino est� apavorado. A simples id�ia de ter de se ver frente a frente
com aquele monstro de novo deve lhe dar calafrios. Coitadinho!
Isso � uma maldade, Lav�nia! Pl�nio n�o devia expor o menino dessa
maneira. Imagine como deve ser dif�cil ter de reviver todo aquele
horror.
Essas palavras foram decisivas para Lav�nia. De um salto, murmurou
um "Tem raz�o" e voltou correndo para seu quarto. Depois
que ela saiu, Rafael soltou um sorriso c�nico, deu um tapinha no rosto
de Eric e sibilou em tom de amea�a:

� Voc� n�o vai se esquecer do que eu lhe disse, vai? � Eric meneou
a cabe�a. � �timo. Porque, sen�o...
Fez novamente aquele gesto de quem cortava a garganta e foi
embora, deixando o menino apavorado em sua cama.
Enquanto isso, Lav�nia tornava a entrar em seu quarto.

� Ele n�o vai � comunicou incisiva. � N�o vou permitir que
voc� exponha meu filho a tanto sofrimento.
Pl�nio, que estava terminando de dar o n� na gravata, estacou
a meio e fitou-a pelo espelho, respondendo com calma:

� Ele vai. Sou o pai dele, fui eu quem come�ou aquela maldita
a��o. E por sua vontade. S� que agora pretendo termin�-la. E de
forma justa.
Virou-se e saiu pelo corredor, caminhando a passos r�pidos. Ao
entrar no quarto de Eric, encontrou o menino todo encolhido sobre
a cama, os olhos brilhantes de l�grimas.

� Apronte-se, Eric � falou amoroso. � J� est� quase na hora.
Lav�nia veio logo atr�s e protestou com veem�ncia:
� Deixe-o em paz, Pl�nio! N�o v� que ele est� apavorado?
� Ele est� apavorado, sim, mas n�o � por causa de Romero.

� Como n�o? Ele est� com medo de se encontrar com aquele
cafajeste novamente.
� Ele n�o tem o que temer. Sou seu pai e irei proteg�-lo de tudo
e de todos. Ainda que da pr�pria fam�lia!
� O que est� querendo dizer com isso? Que eu posso fazer-lhe
algum mal?
� Voc�, n�o.
� Quem, ent�o?
� Voc� sabe.
� Pl�nio, n�o vou admitir que fa�a insinua��es sobre meu irm�o!
N�o � justo voc� querer defender seu... seu...
� Meu o qu�, Lav�nia? Vamos, fale. Repita essa inf�mia!
� � isso mesmo, Pl�nio. Eu n�o queria acreditar. Mas voc� j�
est� passando dos limites. Nenhum pai exp�e o filho dessa forma
se n�o tem um motivo muito forte por tr�s de tudo!
� Em primeiro lugar, n�o estou expondo meu filho. N�o foi minha
a id�ia de ajuizar essa a��o. Foi sua. Em segundo lugar, n�o vou
discutir com voc� os motivos que me levaram a fazer o que estou
fazendo agora. Mentiras n�o me incomodam.
� N�o vai discutir porque n�o tem o que dizer. � isso, n�o �?
Quer salvar a pele de seu amante acusando o cunhado inocente e
nem liga para o que ele fez a seu pr�prio filho!
� Cale-se, Lav�nia! J� basta!
O pranto angustiado de Eric f�-los calar. Lav�nia correu para
ele e abra�ou-o, afagando-lhe os cabelos.

� Eric � disse Pl�nio, incisivo �, fa�a como estou lhe mandando.
Vista-se e vamos agora ao f�rum. Est� na hora de sua audi�ncia.
Lav�nia tentou protestar novamente, mas Pl�nio n�o permitiu.
Pela primeira vez em sua vida, foi rude com ela. Segurou-a pelo bra�o
com for�a e levou-a para fora, trancando a porta do quarto. Ela
ficou do lado de fora, esmurrando a porta e gritando, mas Pl�nio, voltando-
se para o filho, indagou:

� Voc� acredita no que sua m�e disse? � Eric meneou a cabe�a.
� Pois, ent�o, fa�a como lhe digo. Vista-se e vamos � audi�ncia.
Sem medos. Eu estou a seu lado e nada nem ningu�m poder�
lhe fazer mal. Eu prometo.
Eric obedeceu. Vestiu-se vagarosamente e segurou a m�o do pai.


Pl�nio apertou-a com for�a e abriu a porta. Parados no corredor, Lav�nia
e Rafael obstru�am a escada.

� Vai ter de me bater para passar por mim � rosnou Lav�nia.
� N�o sou nenhum covarde, Lav�nia � respondeu Pl�nio. �
Mas, se for para salvar a vida de um inocente e levar paz ao cora��o
de meu filho, esteja certa de que n�o hesitarei em empregar toda
a minha for�a para tir�-la de meu caminho.

Eric escondeu-se atr�s do pai, com medo de encarar o tio. N�o
queria ir, mas tamb�m n�o queria ficar. Sentia-se movido por uma
estranha for�a, algo que o compelia a ir avante, algo que nem sabia
explicar. S� o que sabia, naquele momento, era que precisava ir.

Diante de tanta convic��o, Lav�nia chegou para o lado, e Pl�nio
passou por ela a passos decididos. Nem se deu ao trabalho de
olhar para o cunhado. Simplesmente empurrou-o para o lado e
desceu as escadas, puxando Eric pela m�o. Rafael n�o se atreveu a
dizer nada. Do jeito que Pl�nio estava, era bem capaz de lhe acertar
um soco.

Chegaram ao f�rum em cima da hora, e Antero correu a seu
encontro.

� Pensei que n�o viessem mais.
� J� chamaram?
� J�. A advogada de defesa e Romero acabaram de entrar.
� Ent�o vamos. O que estamos esperando?
� Tem certeza de que quer mesmo fazer isso? Pode ser doloroso
para Eric.
� N�o se preocupe. Sou o pai dele. E, depois, a verdade o
reanimar�.
Entraram apressados e foram sentar-se em seus lugares. Pelo canto
do olho, Eric fitou o rosto sofrido de Romero, que olhava para a
frente, evitando encar�-lo. Por um momento, por�m, seus olhares
se cruzaram, e Eric baixou os olhos, tentando conter as l�grimas.

Terminadas as formalidades preliminares, o juiz mandou que
Romero sa�sse para que come�asse o interrogat�rio.

� Muito bem, Eric � come�ou o magistrado. � Sabe por que
est� aqui de novo, n�o sabe?
� Sim, senhor.
� Voc� n�o prestou nenhum compromisso de falar a verdade;

� menor de idade e n�o est� obrigado a responder a nenhuma pergunta.
Quem vai lhe fazer todas as perguntas serei eu. Se seu advogado
ou a doutora defensora quiserem saber alguma coisa, far�o as
perguntas por meu interm�dio. Se voc� achar que est� sendo dif�cil,
pararei a audi�ncia. Mas, se voc� conseguir ir adiante, pe�o que
se concentre e fale apenas a verdade. Sem medos. Voc� aqui est�
protegido pela Justi�a e ningu�m lhe far� nenhum mal. Compreendeu?
� O garoto assentiu. � �timo. Podemos come�ar, ent�o?

� Podemos.
� Vamos retomar do ponto em que paramos na audi�ncia passada.
� Ele consultou os autos e interrogou: � Voc� disse que o senhor
Romero entrou em seu quarto naquela noite, n�o foi?
� Foi.
� O que aconteceu?
� Ele... �solu�os � ...fez coisas comigo.
� Entendo, Eric. N�o precisa dizer que coisas foram. O que eu
gostaria de saber � se voc� tem certeza de que foi mesmo o Sr. Romero
que entrou em seu quarto naquela noite.
� Foi...
� Voc� viu o Sr. Romero com nitidez? N�o estava escuro?
� Estava.
� E como voc� tem certeza de que foi o Sr. Romero?
� Eu o conhe�o.
� S� por isso? � Sil�ncio. � O Sr. Romero n�o lhe disse nada?
Ouvir o nome de Romero repetidas vezes, sendo acusado de algo
que, absolutamente, n�o havia cometido, causou imenso mal-estar
em Eric. A medida que o juiz ia falando, ele via e revia aquela cena,
lembrando-se de tudo que Rafael havia feito com ele. Olhou discretamente
para o pai, que lhe deu um sorriso encorajador, e respondeu.

� N�o, senhor. Ele n�o me disse nada.
� O Sr. Romero chegou a lhe mostrar o presente que lhe
levara?
� N�o.
� No entanto, ele o deixou cair no ch�o de seu quarto.
� Foi.
� Voc� viu quando a miniatura caiu?
� N�o.

� Como voc� se sente, Eric, tendo sido violentado pelo homem
que, depois de seu pai, voc� acreditava ser seu melhor amigo?
A pergunta foi dura e de efeito. Eric n�o resistiu mais. Agarrou-
se ao pai e desatou a chorar convulsivamente.

� Excel�ncia � protestou Antero �, est� claro que o menino
n�o tem condi��es de prosseguir. Pe�o que ele seja dispensado.
Ele j� contou essa hist�ria in�meras vezes. O depoimento que deu
� pol�cia est� nos autos. N�o vejo necessidade de submet�-lo a esse
sofrimento de novo.
O juiz olhou para Maria da Gl�ria, que contestou veemente:

� N�o posso concordar, excel�ncia. O depoimento do menino
� fundamental para que descubramos a verdade. Lembre-se de
que � a vida de um homem que est� em jogo, um homem inocente
que est� prestes a pagar por um crime que n�o cometeu.
� Como n�o cometeu? � irritou-se o advogado. � Est� mais
do que provado que foi ele!
� Se estivesse t�o bem provado assim, ele j� teria sido condenado.
Mas, que eu saiba, o juiz ainda n�o proferiu a senten�a.
O juiz Vit�rio fez um gesto com as m�os, e ambos os advogados
se calaram.

� Senhores, vou fazer apenas mais uma pergunta ao menino.
Se ele n�o conseguir se controlar, e se eu perceber que essa audi�ncia
est� causando efeitos danosos � sua mente, encerrarei a sess�o e
n�o o convocarei mais. Est� certo? � Ambos assentiram. � Muito
bem, Eric. Acha que pode responder apenas a mais uma pergunta?
� Por favor, Eric � sussurrou Pl�nio em seu ouvido �, conte
a verdade. Se algu�m lhe fez alguma amea�a, n�o precisa temer. Ningu�m
vai lhe fazer mal algum, eu prometo. E, depois, voc� n�o quer
ser o respons�vel pela desgra�a de seu amigo, quer?
Eric enxugou os olhos e olhou bem fundo nos olhos do pai. Virou-
se para o juiz e respondeu, ainda solu�ando um pouco:

� Est� certo, senhor juiz. Pode perguntar.
� Muito bem. Quero que voc� me diga apenas uma coisa. Voc�
est� absolutamente certo de que foi mesmo o Sr. Romero que entrou
em seu quarto, imobilizou-o � for�a e o violentou naquela noite?
Eric engoliu em seco, lembrando-se das m�os do tio sobre seu
corpo, machucando-o, e respondeu hesitante:


� Foi...
� Tem certeza?
� Te... tenho... � come�ou a solu�ar novamente e, num
rompante, acabou explodindo: � N�o! N�o foi ele! N�o foi Romero.
Foi meu tio! Tio Rafael! Ele entrou em meu quarto, estava
escuro... fez carinho em meu rosto... depois saltou sobre mim e
tapou a minha boca com a m�o. Foi horr�vel! Eu n�o conseguia respirar.
A� ele me virou de bru�os, encostou minha boca no travesseiro
e... e... me for�ou a fazer aquilo... Como doeu! Doeu muito!
� Excel�ncia, protesto! � berrou Antero. � O menino est�
visivelmente transtornado. Est� claro que s� est� fazendo isso porque
tem medo do querelado.
� O querelado n�o tem acesso � v�tima � apressou-se Maria
da Gl�ria em dizer. � Ao contr�rio de seu tio, que mora na mesma
casa em que ele.
� Isso � um disparate! O Sr. Rafael � um homem decente. N�o
est� sendo acusado aqui.
� Mas foi ele! � gritou Eric novamente, bastante nervoso e
vermelho. � Foi ele. E ainda me amea�ou. Disse que, se eu contasse
a verdade, ele me mataria e mataria Romero. E eu menti. Estava
com medo e menti. N�o queria que ele machucasse Romero, n�o
queria! Romero � meu amigo. Nunca fez mal a ningu�m.
O juiz deu-se por satisfeito. Ap�s certificar-se de que Eric estava
bem, a audi�ncia foi encerrada, e o juiz Vit�rio marcou uma
nova, onde pretendia ouvir Rafael. Pl�nio voltou para casa com Eric,
sob os protestos de Antero, que n�o se conformava com o depoimento.
Maria da Gl�ria tamb�m saiu, levando Romero. Ainda n�o
era hora de seu cliente falar com o menino.

No caminho para casa, Pl�nio e Eric iam conversando.

� Sente-se melhor? � perguntou amoroso, e o menino assentiu.
� Voc� foi muito corajoso, Eric. Estou orgulhoso de voc�.
� O que vai acontecer agora, papai? E se tio Rafael nos matar?
� Voc� j� ouviu falar no ditado de que c�o que ladra n�o
morde?
-J�.

� Pois �. Seu tio Rafael � um covarde. Tinha medo de que voc�
falasse porque sabia que estaria encrencado. E o amea�ou porque

voc� � uma crian�a, e � muito f�cil assustar as crian�as. Mas estou
certo de que n�o lhes far� mal, nem a voc� nem a Romero. Falta-
lhe coragem para isso. E, depois, eu estou aqui para proteg�-lo.

Eric sorriu e apertou a m�o do pai, sobre o volante.

� Eu sinto tanto por tudo isso! Espero que Romero consiga
me perdoar.
� � claro que o perdoar�. Voc� n�o teve culpa.
Quando chegaram em casa, Antero j� havia telefonado para
Lav�nia, que desmaiara sobre o sof�, tendo sido acudida imediatamente
pelos criados. Rafael nem precisou perguntar o que havia
acontecido. J� sabia. Rodou nos calcanhares e ganhou a rua. Precisava
sumir.

Pl�nio correu para Lav�nia, preocupado. Ela havia acabado de
desmaiar, e os empregados andavam de um lado para o outro, sem
saber bem o que fazer. Rapidamente, Pl�nio foi a seu quarto e apanhou
sua maleta de m�dico. Deu � mulher algo para cheirar, e ela
acordou tossindo. Olhou para o marido, depois para o filho e come�ou
a chorar:

� N�o pode ser. Isso n�o pode estar acontecendo. Diga que n�o
� verdade, Pl�nio, diga. � um pesadelo. Meu irm�o, n�o!
� Temo ser verdade, sim, Lav�nia. Como voc�s souberam?
� O Dr. Antero telefonou ainda agora. Que desgra�a! Meu
pr�prio irm�o! Eric! Voc� tem certeza do que disse, meu filho? N�o
estava com medo de Romero? Foi isso? Se foi, pode dizer. Mam�e
perdoa voc�.
� N�o foi isso, m�e � rebateu ele com uma vozinha mi�da. �
Eu estava com medo era do tio Rafael.

� Mas por qu�? Ele � seu tio, tem seu sangue. Ah, meu Deus,
por que ele foi fazer isso? Por qu�?
� Onde ele est�? � indagou Pl�nio.
Os criados menearam a cabe�a. Ningu�m sabia onde ele estava.
Pl�nio mandou que fossem a seu quarto, mas ele estava vazio.
Na piscina, ele tamb�m n�o estava. Vasculharam a casa toda, mas
Rafael n�o foi encontrado.

� Ele sumiu � continuou Pl�nio. � Quer maior prova de
sua culpa?

� N�o pode ser. Ele n�o faria isso... faria?
� Ele fez, Lav�nia. Eric contou tudo. O menino estava apavorado
com as amea�as de Rafael. Por isso acusou Romero.
� N�o ter� sido o contr�rio? Ainda acho que ele temia uma
rea��o de Romero.
� J� disse que n�o, m�e! � protestou Eric com raiva. � Tio Rafael
me obrigou a mentir. Foi ele quem me violentou. � horr�vel,
ningu�m acha mais horr�vel do que eu. Ser violentado pelo pr�prio
tio... Mas foi ele, e eu n�o posso mais continuar mentindo para
encobrir seu crime!
� Mas Romero � que � o homossexual.
� E Rafael � pior � atacou Pl�nio. � � ped�filo, aquele canalha!
Lav�nia silenciou-se. S� agora compreendia quanto havia sido
cega. Rafael sempre tivera um comportamento distorcido e vivia
cercando Eric pela casa. O medo nos olhos do menino era bastante
vis�vel. S� ela que n�o enxergava, porque amava o irm�o e n�o
queria acreditar que ele fosse capaz de um ato t�o abomin�vel. Se
ele tivesse violentado outro garoto qualquer, Lav�nia o teria repreendido
severamente. Teria at� contratado um psiquiatra para cuidar
desse desvio. Mas, com seu filho... n�o podia perdoar. Amava muito
o irm�o. Mas o amor pelo filho superava qualquer outro.

Por causa do irm�o, ela levantara as mais infundadas suspeitas
sobre o marido. Acusara-o de manter um caso esp�rio com Romero,
porque se deixara envolver pelas insinua��es maldosas de
Rafael, acreditando que havia uma paix�o camuflada na rela��o
entre Pl�nio e Romero. Mas n�o havia. Ela agora sabia disso. E o
marido? Poderia perdo�-la?

� Vou para meu quarto � falou aflita. Precisava pensar.
� E Rafael?
� N�o sei. E n�o sei se quero saber disso no momento. �
Abra�ou o filho e perguntou com ang�stia: � Pode me perdoar, Eric?

� Perdoar o qu�, m�e?
� Por n�o ter percebido nada.
� Voc� n�o teve culpa. Tio Rafael a enganou.
Ela balan�ou a cabe�a tristemente e subiu as escadas. Estava arrasada,
com vontade de dormir e acordar em outro lugar, longe de to



dos aqueles problemas. Foi para seu quarto e recostou-se na cama.
Queria esvaziar a mente e n�o pensar em nada, mas a imagem do irm�o
n�o sa�a de seus pensamentos. Rafael perdera os pais ainda menino,
e ela fora para ele a �nica m�e que conhecera. Criara-o com
mimos exagerados, fingindo n�o perceber a falha que se ia abrindo
em seu car�ter. Pl�nio tentara alert�-la, mas ela nunca lhe dera ouvidos.
E, agora, ele se tornara um homem sem virtude nem dignidade.

Ainda assim, era seu irm�o, e ela n�o podia deixar de sentir-
se um pouco respons�vel pelo que ele se tornara. Deveria ter tido
mais pulso com ele, ao inv�s de deix�-lo fazer o que bem entendesse.
Sempre arranjara uma desculpa para seus atos negligentes e suas
palavras desrespeitosas, justificando para si mesma que Rafael s� era
assim porque era um coitadinho e sentia a falta dos pais.

Suspirou dolorosamente e olhou para o lado, no exato instante
em que a porta se abriu. Pl�nio entrou cauteloso e foi para o
arm�rio, afrouxando a gravata. Trocou de roupa em sil�ncio e s�
depois se voltou para a mulher.

� Como est� se sentindo? � indagou.
� Como voc� esperava que eu me sentisse? Estou p�ssima.
� Posso imaginar.
� Custa-me crer que isso seja verdade. Jamais gostaria de ter
tido um desgosto desses.
� Preferia que n�o tivesse lhe contado nada?
� Em absoluto! Como poderia viver enganada a respeito de
uma coisa dessas? Rafael � meu irm�o, e eu o amo muito. Sinto-me
respons�vel por ele. Mas Eric � meu filho. Nada no mundo poder�
superar o amor que tenho por ele.
� Voc� n�o deve se sentir respons�vel. Cada um age conforme
seus pr�prios instintos e tend�ncias.
� Mas Rafael ficou a meus cuidados. Tinha para com ele os
mesmos deveres de m�e que tenho para com Eric, porque fui sua m�e
depois que meus pais morreram. N�o era minha obriga��o educ�lo
e orient�-lo?
� Um erro n�o justifica o outro. Ainda que voc� o tenha criado
com liberdade excessiva, isso n�o serve de escusa para o que ele
fez. � uma quest�o de tend�ncia, de car�ter.
Ela suspirou desanimada e perguntou com cautela:


� E agora, Pl�nio, o que faremos?
� N�o sei. Nem sei as conseq��ncias jur�dicas desse caso. Preciso
antes conversar com o Dr. Antero.
� Apesar de tudo, eu n�o gostaria que meu irm�o fosse parar
na cadeia.
� Mas n�o se importou quando Romero foi acusado e preso.
� Romero n�o tem meu sangue.
� Mas � um inocente. Ia ser preso por um crime que n�o
cometeu.
� Eu sei, Pl�nio, eu sei. Lamento muito pelo que houve a Romero.
Ainda assim, n�o gostaria de ver meu irm�o atr�s das grades.
� E Eric? N�o se importa com o que aconteceu a ele? Vai permitir
que Rafael fa�a a outros o que fez a nosso filho?
� � claro que me importo. S� n�o acredito que Rafael v� fazer
isso novamente. Foi uma loucura que ele cometeu, mas deve ter
aprendido a li��o.
� Pode at� ser... S� o tempo nos dir�.
Ela se aproximou dele e abra�ou-o em l�grimas.
� Ainda bem que tenho voc�.
Gentilmente, Pl�nio desvencilhou-se de seu abra�o e encarou-
a com desgosto.

� O que h�? � indagou ela, entre receosa e confusa. � Por que
me evita?
� Ainda pergunta? � tornou ele angustiado, tentando evitar
que ela o tocasse novamente. � Ser� que j� se esqueceu de tudo que
me disse?
� Eu estava com raiva... � justificou-se insegura, torcendo as
m�os nervosamente. � Falei sem pensar.
� O caso � que voc� n�o me ama e n�o me respeita. Do contr�rio,
jamais teria dado ouvidos a Rafael.
� Eu estava com raiva, acreditando que Romero era o culpado.
N�o conseguia entender por que voc� o defendia tanto. E Rafael
trouxe argumentos que me pareceram vi�veis. A princ�pio, n�o quis
acreditar. Ralhei com ele, mandei que n�o repetisse mais aquilo. Mas
depois, vendo voc� sempre defendendo Romero, comecei a duvidar.
Que motivos teria para tentar desesperadamente inocent�-lo?
� A justi�a, Lav�nia. S� a justi�a. Nunca ouviu falar nisso? N�o

pode imaginar o que deve ser para algu�m pagar por um crime que
n�o cometeu?

� Eu n�o acreditava nisso! N�o acreditava em Romero! Para
mim, ele era o culpado e estaria respondendo por seu pr�prio crime!
� Devia ter acreditado em mim.
� Eu acredito, Pl�nio. Agora sei que voc� estava com a raz�o.
� Agora voc� sabe, n�o �? Pois deveria ter sabido antes. Eu lhe
disse, Lav�nia, e voc� deveria conhecer melhor o homem com
quem se casou. Posso ter muitos defeitos, mas a desonestidade n�o
� um deles. Sempre fui um homem leal e sincero. Jamais trairia meus
princ�pios ou os seus.
� Mas eu acredito em voc� agora. Isso n�o conta?
� Voc� n�o acredita em mim. Acredita nas provas irrefut�veis
que apontam seu irm�o como o �nico culpado.
Ela se aproximou novamente e come�ou a chorar.

� Ser� que voc� � t�o duro que n�o pode me perdoar? Eu estava
confusa, arrasada.
� E eu, n�o? S� que eu busquei a verdade, enquanto voc� se
contentou com aquela que estava mais de acordo com o que voc�
queria acreditar como verdade.
� N�o seja injusto, Pl�nio. Rafael � meu irm�o.
� E eu sou seu marido. Voc� s� se lembra de que tem um irm�o
e um filho. E marido, n�o tem? O que sou para voc�?
� � meu marido, jamais me esqueci disso... E eu o amo... �
Baixou os olhos, confusa, as l�grimas correndo abundantes. � Voc�
se diz um homem justo e compreensivo, sempre em busca da verdade.
Mas agora sou eu quem lhe pergunta: ser� que sua no��o de
verdade e de justi�a sufocou a do perd�o? E, mais, a do amor? Ser�
que voc� n�o � capaz de compreender minha dor de m�e, minha
posi��o de irm�, minha desconfian�a de um estranho? O que voc�
queria? Que eu n�o desse ouvidos �s acusa��es de meu filho, que
apontavam um estranho como o agressor, e fosse acreditar que o
malfeitor era justamente meu irm�o? Ponha-se em meu lugar,
Pl�nio, e responda-me sinceramente. O que voc� faria se Rafael
fosse seu irm�o?

Pl�nio deixou cair os bra�os ao longo do corpo e fitou-a com
um quase desespero. Jamais havia pensado nisso. Rafael n�o era seu


irm�o e eles nunca se haviam dado bem. N�o que sentisse prazer em
acusar o rapaz. Todavia, n�o fora dif�cil reconhecer-lhe a culpa, porque
a antipatia m�tua que sentiam facilitava isso. Mas, se Rafael fosse
seu irm�o querido, teria agido da mesma forma?

Durante alguns minutos, Pl�nio ficou refletindo no que Lav�nia
lhe dissera. Sentou-se na cama e afundou o rosto entre as m�os.
N�o sabia o que pensar. N�o nutria bons sentimentos por Rafael e,
por isso, n�o conseguia colocar-se no lugar da mulher. Estavam em
p�los opostos. Ambos amavam Eric, n�o tinha d�vida. Mas cada um
viu a verdade nos olhos daquele que mais amava. Lav�nia acreditou
em Rafael movida pelo seu amor de irm�. Assim como ele acreditara
em Romero porque nutria um forte afeto pelo rapaz. Com
quem estaria a raz�o? Como tachar os sentimentos de certos ou errados?
Por que � certo amar algu�m e seria errado amar outro algu�m?
O amor n�o faz escolhas. Lav�nia acreditou no que queria porque
estava mais de acordo com o que ela sentia por Rafael. Por isso
ficara cega e n�o conseguira enxergar. Mas n�o poderia ter sido o
contr�rio? N�o poderia ter sido Pl�nio a se enganar com Romero?
Por mais que o conhecesse e seu cora��o lhe dissesse que o rapaz era
inocente, n�o poderia ele tamb�m estar se enganando, tentando,
de forma inconsciente, transferir para o desafeto a culpa que jogavam
sobre seu ente querido?

Com imenso desgosto, Pl�nio fitou a mulher, afundada numa
poltrona, as faces p�lidas, os l�bios tr�mulos. Nos olhos brilhantes
de l�grimas, um mundo de medos e expectativas. Naquele momento,
Pl�nio sentiu sua fragilidade e p�de ler em seu olhar a verdade
do amor. Lav�nia amava-o, n�o podia duvidar. Seu sentimento era
quase palp�vel, e ele se sentiu invadido pela onda de amor que emanava
dela. Junto, um forte arrependimento, a dor imensur�vel da
culpa misturada � fraqueza do apego que ela confundia com amor.

Sentiu-se tomado por uma emo��o indescrit�vel. Lav�nia surpreendera-
o e revelara-se, mostrando-se uma mulher preconceituosa,
precipitada em seus julgamentos e vingativa. Fora injusta com
Romero e com ele. Acusara-os de uma indignidade que ambos jamais
seriam capazes de cometer. Mas quem era ele para julgar seus
motivos? S� porque a raz�o estava com ele n�o significava que Lav�nia
estivesse errada. A sua maneira, ela procedera de forma cor



reta. Fizera aquilo em que acreditava, e n�o era culpa sua n�o haver
enxergado o equ�voco. N�o era culpa de ningu�m. Era apenas
a obra da vida, levando a cada um seu quinh�o de experi�ncias.

De repente, tudo lhe pareceu mais claro, mais leve. Ningu�m
havia cometido erro algum. Nem Rafael. Era imaturo e mimado, mas
talvez ainda tivesse chance de recuperar-se. Quem sabe Lav�nia n�o
tivesse raz�o, e s� o que ele necessitasse fosse de um pouco de amor
e compreens�o? E quando � que Pl�nio fora compreensivo com
Rafael? Nunca. O rapaz sempre fora rebelde, e Pl�nio tentara corrigi-
lo chamando-lhe a aten��o. Mesmo nas vezes em que tentara
conversar com ele, sentia-se, por detr�s de suas palavras, o tom intencional
da repreens�o. Jamais lhe dera um beijo ou um abra�o.
N�o teria isso tamb�m contado?

Bem l� no fundo de seu cora��o, uma voz interna lhe dizia:
perdoar � tarefa divina que ao homem cabe por obriga��o; eis que
a ningu�m � dado ser juiz de seus semelhantes, porque n�o h� no
mundo alma que jamais tenha falhado no conv�vio com seu irm�o.
Aquele pensamento, vindo n�o sabia de onde, eclodiu espont�neo
em sua mente, e Pl�nio foi capaz de enxergar, naquelas palavras, uma
pequenina manifesta��o da divindade, que lhe alertava a consci�ncia
para que n�o incidisse na tenta��o do orgulho de se julgar
dono do direito de n�o perdoar.

Ainda fitando a mulher, sentiu os olhos umedecidos. De um salto,
ajoelhou-se diante dela e estreitou-a com ardor, sentindo que
tamb�m a amava. Ficara magoado com suas palavras, mas nem a m�goa
nem a raiva eram sentimentos capazes de destruir o amor. N�o
respondeu � sua pergunta. Ao inv�s disso, pousou-lhe caloroso beijo
nos l�bios e sussurrou emocionado:

� S� o amor � capaz de compreender e perdoar. E de curar
nossas feridas...
Calou-se, a voz embargada, e Lav�nia agarrou-se a ele, certa
tamb�m de que ele a amava. J� n�o sentia mais medo. Ao contr�rio,
sentia-se agora mais confiante e mais l�cida para agir com equil�brio
e discernimento. Estavam agora integrados nas malhas do
amor, compreendendo sua mais verdadeira e genu�na fei��o. Abra�ados,
ambos agradeciam a Deus, cada um a seu modo, por terem
conseguido manter-se unidos e fortalecidos. Em suas ora��es silen



ciosas, nem perceberam a presen�a dos amigos invis�veis que lhes
faziam intuir as verdades do esp�rito, que cada qual ia absorvendo
e depositando em seus cora��es.

Felizes com mais uma etapa da tarefa cumprida, Judite e F�bio
deram-se as m�os e partiram.

Ao fugir da casa da irm�, Rafael come�ou a vagar sem rumo.
Estava sem roupas de reserva e deixara a carteira em casa. Para onde
iria fugir? Eric, o idiota, acabara contando tudo. Devia ter imaginado
que aquilo acabaria acontecendo, e tolo fora ele de ficar esperando.
Seria melhor se tivesse aprontado as malas, apanhado
algum dinheiro com a irm� e fugido, talvez para a Europa ou os
Estados Unidos. Agora, por�m, n�o havia mais jeito. Estava sem o
passaporte e n�o tinha dinheiro para comprar a passagem. O que
poderia fazer?

Acabou passando a noite na casa de um amigo, mas, no dia seguinte,
teve de ir embora. Contara-lhe o que havia feito, e o amigo
acabou pedindo delicadamente que se retirasse. N�o queria se envolver.
Ningu�m queria. S� ent�o percebera que n�o tinha amigos.
As pessoas com quem se relacionava eram como ele: interesseiras
e oportunistas. Sua amizade era boa por causa das festas que dava �
beira da piscina, dos presentes que ofertava �s mulheres.

Foi vagando a esmo, pensando em quem deveria procurar. N�o
havia ningu�m. O tal amigo deveria ter dado alguns telefonemas,
e todo mundo parecia fugir dele. Amigos, namoradas, todos inventavam
uma desculpa para n�o o receber. Parou numa banca de jornal,
colheu do bolso algumas moedas esquecidas e comprou fichas
de telefone. Procurou um orelh�o pr�ximo e discou para a casa da
irm�. N�o tinha escolha. Quem atendeu foi um dos criados, e ele
disfar�ou a voz, pedindo para falar com Lav�nia. Ela atendeu. Algo
no �ntimo dela dizia-lhe que era o irm�o.

� Al�! � falou apressada. � Quem fala?
� Lav�nia? Sou eu, Rafael.
� O que voc� fez foi imperdo�vel, Rafael � atacou ela. � Jamais
poderia esperar uma coisa dessas de voc�.
� Eu sei, Lav�nia, perdoe-me. Foi um ato de loucura. N�o sei
o que me deu.

� Onde voc� est�?
� Na rua.
� Venha para casa.
� N�o posso. Estou com medo.
� Venha para casa e veremos o que fazer. Caso contr�rio, n�o
conte comigo para mais nada.
Desligou bruscamente, e Rafael ficou parado na rua, segurando
o fone na m�o. O que deveria fazer? Lav�nia dissera-lhe para
voltar para casa, mas Pl�nio n�o concordaria. E se lhe desse uma surra?
Se o levasse at� a pol�cia e ele fosse preso? Sabia como eram
tratados os criminosos sexuais na cadeia. Todo mundo sabia. Violentara
Rafael, mas n�o era homossexual. Aquilo era apenas uma
prefer�ncia que ele descobrira com o sobrinho. Nem sabia que era
assim. Nunca havia se deitado com nenhum outro homem nem sentia
atra��o por rapazes. S� gostava de certas particularidades que as
mulheres, em geral, n�o gostavam de lhe oferecer. N�o era culpa sua
se n�o conseguia controlar seu desejo e seu �mpeto.

Mas ningu�m iria entender. Ele seria trancafiado, e os outros
presos, atendendo a seu c�digo de honra distorcido, fariam dele a
mulherzinha da cadeia. N�o era como Romero. Romero conseguira
suportar. Mas ele, n�o. Acabaria degolado ou enlouqueceria de
tanto sofrer abusos.

Resolveu voltar para casa. N�o tinha mesmo para onde ir.
Quando chegou, Antero, o advogado, estava sentado na sala, conversando
com Pl�nio e Lav�nia. Eric estava na casa de um amiguinho.
N�o precisava ter de enfrentar o tio novamente.

Lav�nia olhou para ele e n�o disse nada, e Pl�nio encarou-o com
ar indecifr�vel. Rafael entrou cabisbaixo e foi recebido por Antero,
que faria o papel de mediador. O principal, naquele momento,
era manter a cabe�a fria e evitar as brigas.

� Entre, Rafael � disse o advogado, puxando-o pelo bra�o. �
E sente-se.

Rafael sentou-se acabrunhado, evitando encarar a irm� e o
cunhado. Sentia certa hostilidade no ambiente e acomodou-se
todo encolhido.

� Espero que tenha conhecimento dos graves atos que voc�
cometeu � prosseguiu Antero.

Rafael balan�ou a cabe�a e respondeu com voz quase inaud�vel:

� Sim, senhor.
� Muito bem. Pois, ent�o, deixe-me esclarec�-lo. Voc� pode
ser acusado, no m�nimo, de quatro crimes diferentes...
� O qu�? � indignou-se o rapaz.
� Deixe-me terminar, por favor. Em primeiro lugar, voc� � o
autor do atentado violento ao pudor contra seu sobrinho. Em segundo,
fez-lhe graves amea�as, o que constituiu outro crime. Como
se isso n�o bastasse, acusou falsamente um homem sabidamente inocente,
causando a abertura de processo criminal indevido, o que se
chama denuncia��o caluniosa. � o de conseq��ncias mais graves
para voc�, no momento. Isso sem falar no crime de cal�nia de que
Romero poder� acusar voc�.
Rafael sentiu o rosto arder. Nem ele sabia que havia cometido
tantos crimes ao mesmo tempo. Estava apavorado, com muito medo
do que poderia lhe acontecer.

� Por favor, Lav�nia � apelou para a irm�, com voz chorosa.
� Tente me perdoar...
� O que voc� fez n�o tem perd�o... � rebateu ela, mais por
m�goa do que por convic��o.
� A princ�pio, Rafael � interp�s Pl�nio, com medo de Lav�nia
se descontrolar �, pensamos mesmo que voc� n�o seria digno
de perd�o. Voc� tem consci�ncia do mal que fez a meu filho? Em
todos os sentidos? O menino anda apavorado, tem pesadelos � noite,
sente-se humilhado diante dos colegas. Foi brutalmente ferido,
n�o s� em seu corpo, mas em sua honra. E ainda foi obrigado a tolerar
suas amea�as, apavorando-se cada vez que o via despontar no
port�o. N�o, Rafael, decididamente, talvez voc� n�o mere�a perd�o.
Contudo... � olhou para Lav�nia, que chorava discretamente
� voc� � meu cunhado...
� E isso deve contar, n�o deve? � falou Rafael, esperan�oso.
� Voc� n�o vai querer ver seu cunhado na cadeia, vai? De que vai
adiantar querer se vingar de mim? O que os outros v�o dizer?
� N�o quero vingan�a nem estou preocupado com o que os outros
v�o dizer. Preocupo-me apenas com o bem-estar de meu filho
e com a seguran�a de outros meninos que possam se ver na mesma

situa��o. O que Eric passou, n�o desejo a mais ningu�m. Sem contar
ainda o que voc� fez a Romero.

� Pelo amor de Deus, Pl�nio, n�o me mande para a cadeia! �
Virou-se para o advogado e suplicou: � Doutor, n�o deixe. O senhor
� advogado da fam�lia h� anos. H� de dar um jeito.

� Sua irm� e seu cunhado est�o dispostos a perdoar o que voc�
fez a Eric...
� Oh! � desabafou Rafael. � Gra�as a Deus!
� Entretanto � prosseguiu Pl�nio �, n�o o quero mais em nossa
casa. Voc� ter� de apanhar suas coisas e partir. � o m�nimo que
devemos a Eric.
Sem contestar, Rafael engoliu em seco e levantou-se para apanhar
suas coisas, mas a voz de Antero o deteve:

� Gostaria de esclarecer mais algumas coisas. Seu cunhado
pretende abandonar a causa, o que vai acabar com o processo contra
Romero. Isso facilitar� as coisas para voc�. Com um pouco de
sorte, o juiz, ou o promotor, n�o mandar� instaurar inqu�rito para
apurar a denuncia��o caluniosa, e as amea�as que voc� fez a Eric tamb�m
n�o ser�o levadas em conta. Amanh� mesmo pedirei para falar
pessoalmente com o juiz e tentarei convenc�-lo a terminar tudo por
ali. Mas falta Romero. Se ele quiser mover outra a��o contra voc�,
por crime de cal�nia, n�o haver� nada que possamos fazer. Se ele fizer
isso, pode reavivar os fatos, e a denuncia��o caluniosa vir� � tona
outra vez. Talvez voc� venha a ser processado, julgado e condenado.
� O que devo fazer? � rogou Rafael.
� V� falar com Romero � sugeriu Pl�nio. � Pe�a-lhe que o
perdoe.
� N�o posso fazer isso � desabafou Rafael.
� N�o pode por qu�?
� N�o me atreveria. Ele vai me humilhar, me escorra�ar.
� Voc� n�o teve coragem de amea�ar um menino de onze anos,
dizendo que ia fazer e acontecer? Por que agora se acovarda diante
do homem que voc� jurou matar?
� N�o falei s�rio.
� Sabemos que n�o. Sua covardia n�o permitiria que passasse
da amea�a para a a��o.
Rafael baixou a cabe�a, humilhado, sem saber o que dizer. Es



tava sendo obrigado a ouvir aquelas barbaridades, que nada tinham
de mentiras, s� para n�o ser acusado e preso. N�o era inten��o de
Pl�nio, mas Rafael sentia-se humilhado pelo cunhado. Teria de humilhar-
se tamb�m diante de Romero? Era demais. Contudo, se
precisasse, ele o faria. Tentaria qualquer coisa para n�o ser preso.

� V� aprontar suas coisas, Rafael � ordenou Pl�nio. � N�o
temos mais o que conversar, por ora. Mais tarde, telefone, informando-
nos onde est�, e no momento oportuno o Dr. Antero ir�
procur�-lo.
Rafael foi saindo da sala, arrasado, vencido, humilhado. Parou
e olhou para a irm�, que permanecia quieta, fumando um cigarro
atr�s do outro.

� N�o diz nada, Lav�nia? � perguntou, cheio de esperan�a.
Ela apagou o cigarro no cinzeiro e olhou para ele com desgosto.
� O que voc� quer que eu diga? Estou arrasada, Rafael. Pode
imaginar como me sinto? Saber que meu irm�o, de quem cuidei
como um filho, teve coragem de fazer o que fez ao pr�prio sobrinho?
N�o est� sendo nada f�cil para mim. Contudo, voc� � meu irm�o,
e n�o quero v�-lo preso. Mas concordo com Pl�nio. N�o temos mais
condi��es de mant�-lo aqui conosco. N�o confiamos mais em voc�.
E Eric... pode imaginar como seria penoso para ele tamb�m. Meu
filho n�o merece isso. Merece um pouco de paz.
N�o havia mais o que argumentar. A palavra final j� havia sido
dada, e ele mesmo concordava que tinha de ser assim. Come�ava
a lamentar o que fizera, n�o sabia se por medo ou arrependimento.
S� o que sabia era que n�o podia continuar ali. Iria embora, procuraria
um lugar para ficar. Afinal, tinha seu pr�prio escrit�rio de arquitetura.
Dali em diante, por�m, teria de ser respons�vel e comparecer
mais vezes ao trabalho. Havia perdido a boa vida e agora
teria de cuidar de si mesmo. Mas n�o era t�o ruim assim. Tinha como
sobreviver.

A �nica coisa que o preocupava era Romero. Como faria para
falar com ele? Ou seria melhor esperar para ver se ele iria mesmo dar
in�cio a alguma a��o penal? Ser� que ele faria mesmo isso? Romero
sempre lhe parecera t�mido e retra�do. Ser� que o acusaria formalmente?
Essa d�vida o assolava. Rafael tinha horror � cadeia. Tanto, que


n�o conseguiria simplesmente sentar e esperar para ver o que viria
em seguida. N�o conseguiria esperar para ver se seria acusado ou n�o.

Enquanto aprontava suas coisas, lembrou-se de Eric. O sobrinho
n�o estava em casa, e ele bem entendia por qu�. Sentiu certa
ang�stia e engoliu em seco. O que fizera fora grave. S� agora conseguia
vislumbrar a gravidade de seus atos. Estava arrependido,
sentia vontade de desculpar-se com o sobrinho tamb�m. Mas sentia
medo. Medo e vergonha. Eric era apenas uma crian�a e jamais
gostara dele. Um dia, se tivesse a oportunidade, talvez o procurasse
para que se entendessem. Mas aquele n�o era o momento. Nem
Pl�nio iria deixar. Estava protegendo Eric de todas as formas, o que
era natural.

Era isso mesmo o que Pl�nio pensava. Quem sabe, um dia, Eric
e Rafael n�o tivessem a oportunidade de conversar? Mas, naquele
momento, n�o achava apropriado. O filho s� tinha onze anos, embora
fosse muito maduro para sua idade, ainda mais depois do que
lhe acontecera. Mas ele ainda sentia medo do tio e n�o queria v�lo,
e Pl�nio iria respeitar seu desejo. Era o melhor a fazer, naquele
momento: esperar que Eric digerisse e amadurecesse bem tudo por
que passara. S� ent�o estaria pronto para conversar com o tio, de
igual para igual, sem medo e sem repulsa.



o receber a not�cia de que Eric havia falado a verdao
receber a not�cia de que Eric havia falado a verdade,
No�mia quase pulou de contentamento. O filho n�o mentira,
afinal. Era mesmo inocente naquela hist�ria.

Desligou o telefone assim que ouviu ru�dos na porta. Era Silas,
que vinha chegando do trabalho. Mas n�o era prudente que ele recebesse
a not�cia. Ainda.

� Com quem estava falando? � indagou carrancudo.
� Com minha irm� � respondeu No�mia, apressada, e saiu
para a cozinha.
Silas n�o se convenceu e saiu atr�s dela.

� Voc� est� mentindo � acusou. � Aposto que falava com
seu filho.
� Que filho? N�o foi voc� mesmo quem disse que n�o temos
mais filho nenhum?
� N�o se fa�a de tola, No�mia. Sei que voc� tem se encontrado
com Romero.
Por um instante, sentiu-se tentada a falar a verdade. Ele n�o
podia mesmo proibi-la, mas ela ainda n�o se sentia segura o suficiente
para enfrent�-lo.

� Tudo isso por causa de Romero, n�o �? � indagou Silas
com desd�m.
� Romero � meu filho... � defendeu-se, afinal.
� Se �, � s� seu, porque eu n�o tenho filho algum.
� Ent�o, por que pergunta?
301


� Porque quero saber com quem voc� anda falando. N�o a quero
envolvida com aquele sem-vergonha.
� Ele n�o � sem-vergonha. � nosso filho...
� J� disse que n�o tenho mais filho! � gritou irado.
� Mas eu tenho � retrucou ela calmamente, lutando para conter
o nervosismo. � S� lamento ter permitido que voc� tivesse me
afastado dele por tanto tempo.
� Voc� o tem visto, n�o �? Tem visto aquele vagabundo.
� Ele n�o � vagabundo. Est� no �ltimo ano de medicina.
� Est�? � Silas espantou-se. Jamais poderia imaginar que Romero
fizesse uma faculdade.
� Est�. Vai se formar e ser algu�m na vida.
� Como voc� sabe disso?
� Ouvi falar.
Silas calou-se novamente. N�o queria nem saber como ela
ouvira falar. Se descobrisse que ela e Romero andavam mesmo se
encontrando, nem queria pensar na briga que iriam ter. Desde que
Romero se fora, nunca mais tivera not�cias dele. O m�ximo que soubera
era que o m�dico o acolhera, porque fora o pr�prio doutor quem
fora at� sua casa buscar suas coisas. Mas que Romero estava estudando
para ser m�dico era uma novidade e tanto. N�o sentiu mais
vontade de prosseguir com aquela discuss�o e voltou para a sala.

Talvez tivesse sido muito rigoroso com o rapaz. Ele dera um mau
passo na vida, tudo por causa do atentado que sofrera. Fora aquele
canalha do J�nior quem o viciara. E, depois, Mozart completara o
servi�o. Se ele n�o tivesse se envolvido com Mozart, talvez n�o
tivesse ficado daquele jeito. Sim, a culpa n�o fora dele. Fora de J�nior
e de Mozart. Foram eles que levaram o filho para o mau caminho,
ensinando-lhe coisas que jamais teria aprendido na conviv�ncia
com a fam�lia, porque eram uma fam�lia decente, e Romero n�o
teria aqueles exemplos ali.

Ficou imaginando como andaria o processo em que se envolvera.
Teria mesmo sido capaz de violentar aquele garoto? Pelo que
conhecia de Romero, ele jamais teria cometido um ato infame daquele.
Mas o filho tornara-se homossexual, e tudo era poss�vel.
Deixara de lado os princ�pios que Silas lhe ensinara para se entre



gar a uma vida transviada, interessando-se por homens. N�o teria
mesmo violentado o menino? Era um pederasta...

Deixou de lado esses pensamentos e foi at� a caixa de correio.
Fazia j� algum tempo que o banco deixara de lhe enviar os extratos
de sua caderneta de poupan�a. Ele perguntara a No�mia se ela
n�o os recebera, mas ela dissera que nenhum havia chegado. A caixa
de correio estava vazia. No�mia j� havia recolhido a correspond�ncia,
e nada dos extratos. Precisava dar um pulo na ag�ncia para
reclamar.

� Por que ser� que a Caixa n�o manda mais os extratos?� indagou,
sentando-se � mesa para tomar um caf�.
Da beira do fog�o, No�mia teve um sobressalto. Cada vez que
Silas perguntava pelos extratos, ela ficava apreensiva. Se ele descobrisse
que ela estava tirando dinheiro para dar ao filho, teriam uma
briga como nunca antes haviam tido. Eram suas economias, e ela
as estava desviando para ajudar Romero. Por isso n�o chegavam os
extratos. Toda vez que o carteiro passava, ela corria a apanhar as cartas
e subtra�a os extratos, queimando-os no fog�o. Fazia isso havia
alguns meses, e Silas n�o desconfiara, a princ�pio. S� que, nos �ltimos
dias, vinha insistentemente perguntando pelos extratos.

� Devem estar se extraviando � tentou disfar�ar No�mia. �
Mas, se voc� quiser, vou l� amanh� e procuro saber o que est�
acontecendo.

� Fa�a isso.
Silas nem desconfiava da mulher. Jamais poderia imaginar que
ela estivesse sacando dinheiro da conta. Seria mesmo uma boa
id�ia que ela fosse � ag�ncia reclamar. Isso lhe pouparia o trabalho
de ter de sair mais cedo da escola s� para ir at� o banco.

No dia seguinte, l� foi No�mia para a Caixa Econ�mica. N�o
sabia como resolver aquilo. Precisava evitar ao m�ximo que Silas descobrisse
que ela estava retirando o dinheiro. Entrou na fila do caixa
e, na sua vez, pediu que lhe informassem o saldo. A mo�a do caixa
consultou as listagens e anotou o valor num papelzinho, entregando-
o a No�mia. Foi assim que teve uma id�ia que poderia enganar
Silas, ao menos por enquanto, at� que Romero fosse inocentado e
voltasse a trabalhar, quando ent�o reporia o dinheiro que tirara.


Aproximou-se de um rapaz que estava no balc�o preenchendo
uma ficha de dep�sito e pediu a ele que anotasse num outro papel
a quantia que ela lhe ditara. O rapaz, julgando-a meio cegueta,
fez como ela lhe pediu, e No�mia saiu dali satisfeita. Quando Silas
chegou em casa no fim da tarde, ela lhe mostrou o papelzinho que
ela pedira ao rapaz para escrever, com um valor mais elevado.

� Tem certeza de que � s� isso?� indagou ele, preocupado. �
Pensei que tiv�ssemos mais.

Ela tomou um susto. Achara que havia chutado uma import�ncia
suficiente, mas, pelo que Silas dizia, equivocara-se. Nunca fora
muito boa mesmo nas contas. Ainda assim, conseguiu se controlar
e esclareceu:

� � s� isso, sim. Foi o saldo que a mo�a do caixa me deu.
� Por que n�o tirou um extrato na m�quina?
� Ora, Silas, voc� sabe que n�o sei mexer com essas m�quinas
modernas. Fico toda enrolada.
� Podia ter pedido a algu�m para ajudar.
� Meu Deus, ser� que n�o serve o papel que a mo�a deu? Vai
desconfiar do banco agora, vai?
� N�o... Mas e os extratos? Por que n�o t�m chegado?
� O gerente disse que nosso endere�o estava errado. Est� providenciando
a corre��o.
Silas n�o se deu por satisfeito, mas n�o disse nada. Aquilo
tudo era muito estranho, e ele agora come�ava a desconfiar. Por mais
que No�mia n�o soubesse lidar com aquelas novas m�quinas, sempre
havia um funcion�rio do banco disposto a ajudar. Ela estava escondendo
algo, e ele iria descobrir. Na primeira oportunidade, iria,
ele mesmo, � ag�ncia para saber o que estava acontecendo.

No�mia, por sua vez, sentiu o cora��o apertar-se. Se o marido
descobrisse, ficaria uma fera, e a�, sim, � que jamais perdoaria Romero.
Precisava falar com o filho para repor o dinheiro o mais r�pido
poss�vel.

Na segunda-feira, ao visitar o filho, encontrou-o em companhia
de Mozart.

� Bom dia, Dona No�mia � cumprimentou o rapaz.
� Bom dia, Mozart. � Aproximou-se de Romero e beijou-o no
rosto. � E voc�, meu filho? Como est�?

� Bem, m�e. Feliz.
� Tamb�m estou. Aliviada. Queria vir aqui antes, mas seu pai
est� ficando desconfiado.
� N�o quero lhe causar problemas.
� Seu pai e eu temos muito que nos entender, e isso j� n�o me
assusta tanto. N�o � com isso que estou preocupada.
� Com o que �, ent�o?
� Seu pai est� ficando desconfiado, porque os extratos do
banco n�o chegam mais. Eu os separo do restante da correspond�ncia
e os queimo.
� Extratos do banco? � estranhou Mozart.
� Mam�e vem fazendo saques na poupan�a que tem com papai,
para me ajudar.
� E agora ele est� desconfiando. Mas eu n�o podia deix�-lo ver
os extratos. Ia descobrir tudo.
� Por que n�o me avisou, Romero? � tornou Mozart. � Eu poderia
t�-lo ajudado.
� N�o � justo. N�o quero seu dinheiro.
� Isso n�o � hora para orgulho. Se seu pai descobrir, vai brigar
com sua m�e.
� Ele n�o pode descobrir � falou Romero.
� E por isso que preciso lhe pedir um favor � retrucou No�mia.
� Assim que isso terminar, arranje um emprego e reponha o
dinheiro. N�o sei se poderei enganar seu pai por muito mais tempo.
� � claro que n�o vai poder! � avaliou Mozart. � Quanto tempo
acham que vai demorar at� que ele descubra tudo? Mais um m�s
ou dois, no m�ximo.
� Estou tentando fazer com que ele acredite que os extratos
se extraviaram. Acho que o convenci.
� N�o se iluda, Dona No�mia. Seu Silas � um homem esperto
demais. Em breve, vai descobrir tudo.
� N�o posso nem pensar numa coisa dessas � afirmou Romero.
� Meu pai vai fazer um esc�ndalo.
� Por isso, aceite minha oferta. Deixe-me emprestar-lhe o dinheiro.
Quando voltar a trabalhar, voc� me paga.
� Talvez voc� deva aceitar � sugeriu No�mia. � N�o quero

mais encrencas com seu pai. E o que voc� nos deve, pode ficar devendo
a Mozart.

� � isso mesmo � concordou Mozart. � Quanto antes repusermos
a import�ncia que sua m�e tirou, melhor. Vai evitar muitos
aborrecimentos.
� Est� certo, ent�o � concordou Romero. � Mas � apenas um
empr�stimo. Quando eu for absolvido, vou terminar a faculdade e
arranjar um bom emprego. A�, pago-lhe tudo. Quanto foi que voc�
j� sacou, m�e?
No�mia abriu a bolsa e retirou as guias de retirada. Rapidamente,
Romero fez as contas e calculou mais ou menos os juros que perderam,
apresentando o total a Mozart.

� Muito bem. Amanh� mesmo vou trazer o dinheiro.
� Que bom que voc� vai ajudar, Mozart � agradeceu No�mia.
� Essa situa��o j� estava me afligindo.
� N�o precisa agradecer. Ser� que a senhora pode voltar amanh�,
para apanhar o dinheiro?
� Darei um jeito. Silas sai cedo para o trabalho e n�o perceber�
minha aus�ncia.
Era o que esperava. No dia seguinte, daria um jeito de tornar
a aparecer, apanhar o dinheiro e correr para a Caixa Econ�mica,
para fazer o dep�sito. Depois, pediria um saldo, j� contando o dep�sito,
e levaria o valor a Silas. Diria que a mo�a se enganara na outra
vez, dando-lhe o saldo da conta de outra pessoa. E ele n�o teria
motivos para desconfiar.

Assim que Silas saiu para o trabalho, No�mia apanhou a bolsa
e partiu ao encontro de Mozart. Haviam marcado na pr�pria pens�o
em que Romero vivia, e ela n�o queria se demorar. Precisava
fazer o dep�sito o mais cedo poss�vel. Quando chegou � pens�o, Mozart
j� estava l� e rapidamente lhe passou o dinheiro. Ela agradeceu
e dirigiu-se ao banco.

Antes de a ag�ncia abrir, Silas j� estava na fila para entrar.
Aquela hist�ria de saldos no caixa n�o o havia convencido. No�mia
n�o era nada est�pida e n�o iria convenc�-lo de que n�o sabia
tirar um extrato na m�quina. Foi logo um dos primeiros a chegar �
m�quina e digitou pausada e corretamente os n�meros correspondentes.
Em poucos segundos, retirou o extrato. N�o foi nem preci



so conferir atentamente para saber que algo estava muito errado.
Logo no topo avistou a anota��o de uma retirada; um pouco mais
abaixo, outra. Por fim, o saldo bastante reduzido, bem inferior �quele
que No�mia lhe fornecera.

Pediu para falar com o gerente e solicitou que lhe mostrasse um
extrato completo. N�o havia como imprimir um naquele momento,
mas o gerente consultou as anota��es na ficha de Silas e informou
as datas e os valores de todas as retiradas, o que o deixou estarrecido.
N�o disse nada, por�m. Apanhou os pap�is, agradeceu e
foi embora. No�mia tinha muito o que lhe explicar.

Quando No�mia chegou para fazer o dep�sito, Silas j� havia
partido. Sem de nada desconfiar, depositou a import�ncia que Mozart
lhe dera e pediu novo saldo no caixa. Devia servir para convencer
o marido. Foi para casa.

Ao chegar, estranhou que Silas a estivesse aguardando no sof�
da sala. Aquilo n�o era comum. O marido nunca chegava em casa
antes das seis horas. Por que voltara t�o cedo?

� Silas? � alarmou-se. � O que houve? Por que est� em casa
t�o cedo? Est� doente?
Ele se levantou bruscamente e estendeu os pap�is diante dela,
quase esfregando-os em seu nariz.

� O que houve?! � esbravejou. � Eu � que lhe pergunto: o que
� isso aqui?
Aturdida, No�mia apanhou os pap�is das m�os de Silas e examinou-
os, imediatamente reconhecendo as anota��es e o extrato
banc�rio relatando, minuciosamente, cada retirada efetuada ao
longo daqueles meses.

� Silas... � come�ou a balbuciar. � N�o fique bravo... Posso
explicar...
� Acho bom mesmo! Para onde foi nosso dinheiro, hein? O
dinheiro que juntei com tanto sacrif�cio, para nossa velhice, No�mia,
para que voc� n�o tenha mais de for�ar a vista costurando para
fora. E agora, o que temos? Nada. Foi-se quase tudo.
� N�o � bem assim...
� N�o? Pois, ent�o, o que � isto? N�o sobrou nem a quarta parte
do que t�nhamos. Por qu�? O que voc� fez com nosso dinheiro?
� Precisei dele.

� Aposto que sei para qu�. Para ajudar aquele pederasta do
seu filho, n�o �? Por qu�? Ele queria fazer uma opera��o de mudan�a
de sexo?
� Silas! � objetou chocada. � Como pode falar assim de nosso
filho?
� J� disse que n�o tenho filho!
� Mas eu tenho.
� Pois ele � s� seu filho. N�o � meu.
� � uma pena que voc� pense assim. Romero � um bom rapaz
e est� estudando para ser m�dico.
� Imagino que belo m�dico n�o vai ser � ironizou. � Vai dar
em cima de todos os pacientes homens.
� Isso � um absurdo! Romero � um rapaz decente. S� agora
pude perceber isso.
� N�o quero retomar essa discuss�o, No�mia. O que quero saber
� o destino que voc� deu ao nosso dinheiro.
� Quer mesmo saber? Pois dei a Romero, sim. Ele estava precisando,
e eu n�o podia deixar meu filho passando necessidade por
causa de sua mesquinharia.
� Mesquinharia? � errado n�o querer distribuir o que economizei
para a velhice?
� N�o distribu� nada. Dei a meu filho porque ele estava precisando.
E, se voc� n�o gostou, lamento.
� Ele a convenceu, n�o � mesmo? Aposto como fez um draminha
qualquer, e voc� logo ficou com pena.
� Ele est� sendo processado por um crime que n�o cometeu.
� Quem garante? Ele � um veadinho declarado. Quem garante
que n�o fez mal �quele garoto?
� O pr�prio menino! Ele revelou a verdade. Contou que n�o
foi Romero!
� E da�? � disse Silas, com certa hesita��o. � O dinheiro �
nosso; voc� n�o poderia t�-lo dado a ningu�m sem me consultar.
� Voc� disse bem, Silas. O dinheiro � nosso, n�o seu.
� Mas fui eu que ganhei. Com o suor do meu trabalho.
� E do meu tamb�m. Ou voc� se esquece quanto venho trabalhando
esses anos todos, dentro desta casa, sem pedir nada, sem reclamar
de nada, aceitando tudo que voc� me imp�e? Ser� que voc�

seria o que � hoje sem minha ajuda? Teria conseguido juntar algum
dinheiro se n�o tivesse uma escrava dentro de casa, lavando, passando
e cozinhando de gra�a para voc�? Sem falar em minhas costuras!

� N�o precisa exagerar, No�mia. Eu nunca lhe exigi nada. E
sempre valorizei seu servi�o. Temos vivido bem at� ent�o.
� N�o. Voc� tem vivido bem. Eu sofro calada a falta que meus
filhos me fazem.
� N�o tive culpa pelo que aconteceu a Judite. Eu tamb�m sofri.
Se h� algum culpado, � Romero. Foi por causa de sua esquisitice
que nossa filha foi assassinada.
� Foi por causa de sua intoler�ncia e de seu preconceito. Voc�
espancou Romero, colocou-o para fora de casa e impediu sua
volta. Foi por sua causa que ela morreu, Silas, n�o dele. Se voc� tivesse
feito esfor�o para compreender seu filho, nada disso teria
acontecido. Ele jamais teria ido parar naquele hospital, e Judite n�o
precisaria ter ido tir�-lo de l�. Ambos estariam em casa, sob nossa
prote��o, e talvez hoje pud�ssemos todos estar vivendo felizes.
� Por que relembrar esses momentos t�o dif�ceis agora? J� n�o
basta tudo que aconteceu?
� Basta. E foi por isso que quis ajudar Romero. Basta de indiferen�a
com ele, de fingir que ele n�o existe e n�o � meu filho. Ele
� meu filho, eu o amo e vou ajud�-lo enquanto puder, quer voc�
queira, quer n�o.
Silas olhou-a espantado. Nos �ltimos tempos, No�mia estava
muito mudada. Talvez ele n�o devesse ter sido t�o duro com Romero.
Talvez devesse ter permitido que ela o visitasse, que mantivesse
contato com ele, embora n�o o quisesse mais em sua casa.
Afinal, era m�e, e as mulheres tinham uma tend�ncia a ser excessivamente
protecionistas com os filhos e a desculpar todos os seus
erros. Devia ter entendido isso.

� Muito bem, No�mia � tornou cauteloso. � Quer ajudar seu
filho, v� l�, ajude. Mas precisava gastar todo o nosso dinheiro? Romero
� jovem, est� estudando medicina, como voc� mesma disse,
tem um futuro, sua vida est� come�ando. Mas e n�s? J� estamos no
fim da vida. N�o quero contar s� com o dinheirinho da aposentadoria.
Queria algo melhor para n�s.

� Ele n�o teria futuro nenhum se fosse condenado por um crime
que n�o cometeu.
� Muitos anos se passaram. As pessoas mudam. Romero deve
ter tido muitas experi�ncias. Como garantir que ele n�o tenha se
desvirtuado para esse v�cio tamb�m?
� Isso � um disparate! Ningu�m muda o car�ter. Romero sempre
foi uma pessoa decente. Por mais que goste de homens, jamais se
aproveitaria de uma crian�a! E, depois, o menino j� falou a verdade.
� E voc� acha isso certo? Acha certo que seu filho ande por
a� se deitando com outros homens?
� J� n�o sei mais o que � certo ou errado. S� o que sei � que o
amor est� acima dessas coisas. Posso n�o entender muito bem o caminho
que Romero escolheu, mas ele � meu filho, e vou tentar compreend�-
lo e aceit�-lo da melhor forma que puder.
� N�o acredito que voc� v� compactuar com uma imoralidade
dessas!
� N�o estou compactuando com nada. A vida de Romero, s�
a ele interessa. Quanto a mim, no que me diz respeito, � meu papel
de m�e. J� falhei com ele uma vez, Silas; n�o quero falhar de novo.
Silas calou-se pensativo. N�o sabia mais o que dizer. Depois de
todos aqueles anos, ainda guardava dentro de si enorme m�goa pelo
que Romero lhe fizera. Mas o que Romero lhe fizera? N�o lhe roubara
nada, n�o o tra�ra, n�o matara ningu�m. Por que ent�o sentia
tanta raiva? Porque Romero lhe frustrara as expectativas. Porque se
tornara exatamente o oposto do que ele esperava que ele fosse. Silas
constru�ra para si a imagem do filho perfeito, mach�o e viril. Como
depois aceitar que Romero n�o se transformaria em nada disso? Que
era homossexual mesmo, n�o porque fora violentado ou porque Mozart
o iniciara naquela vida, mas porque estava em seu sangue, era
parte dele, fora para aquilo que nascera. Era uma coisa dif�cil.

Fitou a mulher com desgosto e ainda tentou rebater, embora
sem muito �nimo:

� Mas e nosso dinheiro? Como faremos para nos manter na velhice?
Romero, na certa, n�o vai nos sustentar.
� Se � s� nisso que est� interessado, n�o precisa mais se
preocupar. Hoje mesmo depositei a quantia que saquei. Com juros
e corre��o.

Abriu a bolsa e retirou o canhoto da guia de dep�sito e o papelzinho
do saldo, estendendo-os para o marido. Silas apanhou-os
e conferiu, indagando com vis�vel assombro:

� Onde conseguiu esse dinheiro?
� N�o importa. O que interessa � que o dinheiro foi depositado,
e voc� n�o tem mais com o que se preocupar. Vai ter dinheiro
em sua velhice, embora fique sem o principal, que s�o o amor e
a amizade de um filho.
Virou as costas e foi para dentro. J� n�o tinha mais o que conversar.
Dissera tudo que Silas precisava ouvir e n�o estava mais disposta
a ficar se repetindo. Daquele dia em diante, visitaria o filho
quando quisesse, sem se esconder. Se Silas gostasse, muito bem. Sen�o,
era problema dele. N�o deixaria mais que ele a conduzisse nem
que mandasse nela.

Silas, por sua vez, desabou no sof�, as �ltimas palavras da mulher
ainda ecoando em sua mente: Vai ter dinheiro em sua velhice, embora
fique sem o principal, que s�o o amor e a amizade de um filho. O
amor e a amizade de um filho... de um filho... um filho... Aquilo
n�o lhe sa�a da cabe�a. No fundo, No�mia tinha raz�o. De que
adiantava levar uma vida relativamente tranq�ila, sem se preocupar
com dinheiro, mas extremamente solit�ria? N�o tinham netos
e jamais os teriam. Judite estava morta, e Romero era homossexual.
Qualquer esperan�a de um neto estava perdida.

Como seria quando ele e No�mia estivessem bem velhinhos e
n�o pudessem mais trabalhar? Como se sentiriam, vivendo sozinhos
naquela casa, que se tornara um casar�o, vazia que ficara, de filhos
e de crian�as? Ser� que conseguiriam suportar a solid�o? Ser� que
valia a pena continuar teimando em n�o aceitar Romero do jeito
que ele era? Afinal, No�mia tinha raz�o. Ele sempre fora um bom
rapaz. Quando garoto, era estudioso e educado, e n�o havia quem
n�o o admirasse. Por que agora tinha de ser diferente ? S� porque
era homossexual havia perdido todos os seus valores e passara a ser
um marginal? N�o. Seu filho n�o era um marginal. Continuava estudando,
fazia at� faculdade, tinha um ideal. Queria ser m�dico. Ia
salvar vidas. Haveria coisa mais bonita do que salvar vidas? Mas ser�
que ele, Silas, conseguiria salvar a pr�pria vida?


cap�tulo cap�tulo
urante os trinta dias seguintes, o advogado de Pl�nio
deixou de dar andamento ao processo, acarretando o abandono
da causa. Antero fora procurar Maria da Gl�ria e dissera-lhe o que
pretendia. Reconhecia que o rapaz n�o fora o autor do crime e n�o
queria mais prosseguir com aquela a��o. S� o que pedia era que o
caso morresse ali mesmo.

� Isso vai depender de meu cliente � informou ela secamente.
� E da decis�o do promotor. O senhor sabe que o que
Rafael fez foi muito grave. Denuncia��o caluniosa d� cadeia. E
cal�nia tamb�m d�.
� Eu sei, doutora, e n�o me cabe questionar a atitude do promotor
ou de Romero. Todavia, j� falei com o promotor e com o juiz,
e eles me disseram que, se Romero n�o insistir, dar�o por encerrado
o caso e n�o far�o press�o quanto � denuncia��o caluniosa.
Pl�nio, por sua vez, resolveu deixar de lado o atentado violento ao
pudor e n�o vai ingressar mais com nenhuma queixa-crime. O destino
de Rafael est� agora nas m�os de Romero.
� Vou marcar um encontro com Romero. E, o senhor, traga
seus clientes.
O encontro ficou marcado para dali a tr�s dias, no gabinete de
Maria da Gl�ria, na defensoria p�blica. Romero chegou logo cedo,
ansioso para falar com Pl�nio. Esperava n�o um pedido de desculpas,
mas uma reconcilia��o com o m�dico, que, mais do que um amigo,
fora seu pai por v�rios anos.

313


Pl�nio tamb�m estava ansioso. Queria poder falar com Romero
e pedir-lhe desculpas. Gostaria de convid�-lo a morar com eles,
mesmo contra a vontade de Lav�nia. Era o m�nimo que lhes deviam,
e era o desejo de Eric tamb�m.

Rafael, que alugara um apartamento, chegou cabisbaixo,
nada satisfeito com a humilha��o a que estava prestes a se expor.
Teria de se desculpar com aquele sujeitinho de quem n�o gostava
e ainda implorar para que ele n�o o processasse. E teria de manter
a calma, porque seu futuro dependia �nica e exclusivamente
de Romero.

� Boa tarde a todos � disse Maria da Gl�ria, introduzindo-os
em sua sala.
Todos entraram e se sentaram, e Pl�nio foi o primeiro a fitar
Romero nos olhos. O rosto do rapaz estava sereno, embora ele se
sentisse um tanto constrangido.

� Romero � disse Pl�nio, n�o conseguindo aguardar a hora
de se manifestar. � Como esperei por este dia! Estou t�o envergonhado.
Romero engoliu em seco e fitou-o com olhos �midos.

� O senhor n�o tem do que se envergonhar. N�o teve culpa
de nada.
� Devia ter acreditado em voc�.
� Acreditou na palavra de seu filho. At� eu teria acreditado.
� No come�o, acreditei mesmo. Mas, depois, comecei a achar
que Eric estava sendo pressionado para mentir. E fiz de tudo para
provar sua inoc�ncia.
Pelo canto do olho, Romero fitou Rafael, que se mantinha de
olhos baixos, evitando olhar para quem quer que fosse.

� Posso imaginar... � prosseguiu Romero. � E s� tenho a
agradecer.
� Voc� n�o tem de me agradecer coisa alguma. N�o fiz mais
do que minha obriga��o. Desconfiava de sua inoc�ncia e n�o podia
permanecer inerte, vendo-o ser acusado de um crime que n�o
cometeu.
Romero deu um sorriso sem gra�a e perguntou:

� E Eric? Como est�?

� Aliviado. Sentia-se muito mal por estar acusando voc�.
Mais tarde, voc� poder� encontr�-lo.
� Sim, isso mesmo � interveio Maria da Gl�ria. � Deixemos
essas coisas para mais tarde. Voc�s ter�o muito tempo para acertar
suas m�goas. Por ora, vamos ao que interessa.
Todos se empertigaram e olharam para Antero, que pigarreou
e come�ou a falar:

� Bem, Romero, voc� sabe por que estamos aqui, n�o sabe? �
Romero balan�ou a cabe�a. � Estive conversando com sua advogada
e ela sugeriu que fal�ssemos com voc�. Bom, o que queremos
saber �... que provid�ncias pretende tomar contra Rafael?

� Provid�ncias? � indignou-se Romero. � Como assim?
� Como lhe expliquei � esclareceu Maria da Gl�ria �, Rafael
pode ser acusado de v�rios crimes, em especial de denuncia��o
caluniosa e de cal�nia. N�o se lembra do que lhe disse antes?
� Lembro-me. Mas o que posso fazer?
� Bem � continuou Antero �, conforme falei com sua defensora,
o juiz e, principalmente, o promotor p�blico n�o v�o insistir
num processo de denuncia��o caluniosa, desde que voc� n�o ofere�a
uma queixa por cal�nia.
� Por qu�?
� Porque, se voc� fizer isso, toda a hist�ria ter� de ser revolvida,
e o promotor n�o vai poder fingir que n�o tomou conhecimento
da pr�tica do crime de denuncia��o caluniosa. Vou tentar explicar
de forma simples: a cal�nia que Rafael cometeu � um crime cuja
a��o pertence ao ofendido, no caso, voc�. S� voc� pode decidir se
vai ou n�o process�-lo, mais ningu�m. J� na denuncia��o caluniosa,
que foi a falsa acusa��o que Rafael fez a voc�, a a��o pertence
ao Estado, ou seja, ao promotor p�blico. Se o promotor tiver not�cia
do crime, vai ter de pedir a abertura de inqu�rito para, posteriormente,
instaurar a a��o. A not�cia do crime, no caso, ser� voc�
quem ir� dar, caso venha a oferecer queixa por cal�nia. E o promotor
n�o vai poder fazer como voc�, isto �, pensar se vai ou n�o
processar Rafael. Est� obrigado, por lei, a faz�-lo.
� Entendo...
� O destino de Rafael est� em suas m�os, Romero. A voc� cabe
decidir se oferece ou n�o a queixa.

Pela primeira vez, Romero encarou Rafael. Via diante de si o
homem que fora a causa de tantos infort�nios, e estava tendo a chance
de vingar-se dele. Por um momento, quase cedeu � tenta��o. Mas
a imagem de Judite surgiu de repente em sua mente, e era como se
ele a ouvisse dizer:

� N�o fa�a isso, Romero. N�o por vingan�a.
� Mas ele vai continuar fazendo isso com outras crian�as � respondeu
ele em pensamento, sem saber que conversava com o esp�rito
da irm�.
� Voc� est� camuflando seus sentimentos. No fundo, sente raiva
de Rafael, o que � natural. Permita-se sentir essa raiva, porque
ela foi provocada. Mas acusar Rafael n�o vai tirar essa raiva de dentro
de voc�. Ao contr�rio, vai amargur�-lo ainda mais. Quando voc�
se der conta de que um homem foi preso por iniciativa sua, vai se
culpar, embora, no fundo, voc� n�o seja realmente culpado de
nada. Mas, se voc� tem a chance de perdoar, fa�a isso. Jamais desperdice
a oportunidade do perd�o.
� � verdade � continuava Romero, pensando que falava consigo
mesmo. � Estou num dilema. Tenho duas op��es: ou me vingo
ou perd�o.
� Perdoe.
� Mas ele merece ser punido. Precisa pagar pelo seu crime.
� Rafael apenas reagiu a uma a��o do passado. N�o o fa�a pagar
por isso. Se voc� o perdoar, ter� mais tarde um amigo. Mas,
se o acusar, continuar� alimentando esse c�rculo de �dio que se
estabeleceu entre voc�s.
� Eu n�o o odeio...
� Ent�o prove. Perdoe-o e procure ajud�-lo.
� Mas seu castigo...
� O maior castigo para o crime de um homem � a dor de sua
consci�ncia. Deixe que ela se encarregue de determinar o destino
de Rafael.
� N�o quero que ele torne a fazer isso a mais ningu�m. Ele
precisa de corre��o.
� N�o se engane, Romero. Seu desejo n�o � de corrigi-lo. �
de vingan�a.
E vingan�a n�o combina com voc�.
Romero ia conversando com o invis�vel sem se dar conta de que


falava com o esp�rito de Judite. Julgava ouvir a voz de sua pr�pria
consci�ncia. E sua consci�ncia tinha raz�o. Ele n�o era um homem
mau nem vingativo. Se acusasse Rafael, acabaria se arrependendo
mais tarde. J� experimentara a vida na pris�o e n�o desejava isso a
mais ningu�m. Nem mesmo ao homem que havia desgra�ado sua
vida e a de Eric.

� Por que n�o deixamos Rafael falar? � contrap�s Pl�nio, interrompendo
os pensamentos de Romero. � Afinal, � ele o maior
interessado.
Todas as aten��es se voltaram para Rafael, que, rosto ardendo,
coberto de vergonha, come�ou a gaguejar:

� Eu... n�o sei o que dizer... Sinto muito, Romero... Sei que
o prejudiquei...
� Prejudicou? � tornou Maria da Gl�ria. � Voc� arruinou a
vida dele!
� Sim, eu sei... Talvez n�o mere�a perd�o... Mas j� estou sofrendo
as conseq��ncias do que fiz. N�o espero que voc� me perdoe,
Romero... � Calou-se, a voz embargada.
� Vamos logo com isso � prosseguiu Pl�nio. � Deixe de fazer
rodeios e v� direto ao ponto.
Cada vez mais envergonhado, Rafael continuou:

� A quest�o, Romero, � que n�o sou forte como voc�. Se eu
for para a pris�o, sei que vou morrer...
� N�o se fa�a de coitadinho, Rafael! � exasperou-se Pl�nio.
� N�o foi para isso que veio aqui. N�o para despertar piedade.
� O que voc� quer que eu diga, Pl�nio? Que sinto muito? Pois
bem. Romero, eu sinto muito. Pe�o que voc� me perdoe. Fui um cafajeste,
um canalha... N�o devia ter feito o que fiz. Nem a Eric nem
a voc�. Mas agora � um pouco tarde para desfazer o que fiz. S� o que
posso esperar � que voc�s me perdoem. Voc� e Eric... � Calou-se
novamente, engolindo o pranto.
� N�o v� fazer cenas agora � repreendeu Pl�nio.
� Deixe, doutor � interveio Romero. � N�o precisa mais brigar
com ele. Ele tem raz�o. O que fez est� feito e n�o h� mais como
voltar atr�s. S� o que lhe resta, neste momento, � conviver com sua
consci�ncia. E n�o serei eu que irei determinar como ele deve se entender
com ela.

� O que quer dizer com isso? � perguntou Rafael.
� Que voc� n�o tem de se preocupar comigo. N�o lhe cobrei
nada nem lhe cobrarei.
� Quer dizer que n�o vai me acusar?
� N�o. N�o pretendo acus�-lo. Acho que voc�, sozinho, j�
deve estar se acusando o bastante. S� espero que compreenda a
gravidade do que fez, principalmente a Eric, e nunca mais torne
a fazer isso. Com mais ningu�m.
Rafael baixou os olhos e chorou baixinho, respondendo entre
contidos solu�os:

� Obrigado.
Maria da Gl�ria deu por encerrada a reuni�o. Estava satisfeita;
fizera um bom trabalho. O juiz j� havia proferido a extin��o da
punibilidade, e Romero estava livre. Embora ela lamentasse o fato
de que Rafael continuasse solto, n�o se manifestou. N�o lhe cabia
mais influenciar a cabe�a de Romero.

Apertaram-se as m�os e sa�ram. Do lado de fora, Rafael tornou
a agradecer, nitidamente pouco � vontade, e pediu licen�a para se
retirar. Precisava cuidar de seu escrit�rio de arquitetura, que, entregue
aos empregados, estava quase indo � fal�ncia. Antero tamb�m
se despediu. S� ficaram Pl�nio e Romero.

O jovem, meio sem jeito, estendeu a m�o para Pl�nio e falou:

� Bom, doutor, s� tenho a lhe agradecer.
Com profunda emo��o, Pl�nio apanhou a m�o que ele lhe estendia
e puxou-o para si, envolvendo-o num abra�o afetuoso e amigo.

� N�o v� embora � pediu. � Volte para casa comigo.
� N�o posso. N�o depois de tudo que aconteceu.
� Ser� que n�o vai poder me perdoar?
� N�o � isso. N�o tenho nem do que o perdoar. Mas acho que
Dona Lav�nia n�o se sentiria � vontade. E, depois, vou viver com
outro algu�m.
� Mozart?
� Ele mesmo.
Pl�nio suspirou e deu-lhe um tapinha no ombro.
� Se � para sua felicidade, ent�o est� certo. Mas n�o me guarde
rancor nem m�goa.
� Jamais poderia guardar m�goa ou rancor do senhor. Sempre

foi meu amigo. Agora, contudo, quero viver minha vida. Reencontrei
o �nico homem a quem realmente amei e n�o pretendo perd�lo
novamente.

Pl�nio sorriu e afagou-lhe o rosto, acrescentando em tom
paternal:

� Faz bem. N�o deixe o amor escapar. � o que h� de mais valioso
em nossa vida. No entanto, vou lhe pedir uma coisa.
� O qu�?
� N�o deixe de me visitar. Venha nos ver de vez em quando.
Eric iria gostar.
� Certamente.
� Eric ainda n�o teve oportunidade de se desculpar.
� Nem precisa.
� Mas ele quer. Por favor, respeite isso. Vai fazer bem a ele.
� Se � assim, farei como ele deseja.
� Pode me dar o telefone de onde vai estar? Gostaria de ligar
para voc�.
� Ainda n�o sei onde vou morar. Mas pode deixar, que telefonarei
e darei meu endere�o.
� Est� bem. S� lhe pe�o que n�o se demore muito. Eric est�
ansioso para v�-lo.
� N�o. Irei procur�-lo bem antes disso.
Abra�aram-se comovidos e separaram-se. Tudo estava terminado,
e Romero sentia-se feliz consigo mesmo. Tivera uma dupla vit�ria.
Vencera a adversidade que a vida lhe impusera e vencera a si
mesmo. Conseguira perdoar.

O encontro com Eric fora marcado ao ar livre, numa pra�a
alegre e ensolarada. Pl�nio queria evitar lugares tristes e constrangedores.
Queria que Eric percebesse quanto a vida podia continuar
sendo normal. O menino chegou bastante cabisbaixo, evitando
encarar Romero. Sentia-se culpado pelo que lhe acontecera e temia
n�o conseguir se desculpar.

� Vou deix�-los sozinhos � avisou Pl�nio. � Acho que voc�s
t�m muito o que conversar e n�o quero que se sintam constrangidos
com minha presen�a.

Beijou o filho no rosto e foi sentar-se em outro banco, distraindo-
se com as crian�as que brincavam no parquinho.

Romero tomou a m�o de Eric e perguntou carinhosamente:

� N�o vai me dar um beijo, como sempre fazia?
Eric, desconcertado, deu-lhe um beijo r�pido na face e tornou
a baixar os olhos.

� N�o est� com raiva de mim? � sondou Eric, baixinho.
� O que voc� acha? Pare�o uma pessoa que est� com raiva de
algu�m? � Eric meneou a cabe�a, ainda sem encar�-lo. � Ent�o,
por que age como se estivesse com medo de mim, como se eu fosse
mord�-lo?
Gentilmente, Romero segurou o queixo de Eric e levantou sua
cabe�a, fitando-o bem dentro dos olhos. O menino tentou fugir com
o olhar, mas Romero acompanhou-o, seguindo-o com um sorriso,
at� que o menino acabou se descontraindo e riu tamb�m. Pararam
e olharam-se, e Eric deu vaz�o ao sentimento e abra�ou o amigo.

� Perdoe-me, Romero, eu n�o queria! � desabafou aos prantos.
� Foi o tio Rafael... tive tanto medo dele!
� Est� bem, n�o precisa mais falar sobre isso. J� sei de tudo que
aconteceu e como aconteceu. Voc� n�o teve culpa de nada.
� Gosto de voc�. Gosto de verdade. Mas n�o quero ser como
voc�.
� Quem disse que tem de ser?
� Tio Rafael. Falou que vou virar veado s� por causa do que
me aconteceu.
� E voc� acredita nisso?
� Agora n�o. Meu pai me explicou tudo. Mas � que me sinto
t�o culpado...
� Culpado de qu� ?
� De gostar de voc�, de entender o jeito como voc� �, mas
n�o querer ser igual a voc�. Quero namorar s� as meninas.
� E precisa se sentir culpado por causa disso?
� Tenho medo de que voc� pense que n�o vou gostar mais de
voc� s� porque n�o sou igual a voc�.
� Ningu�m precisa ser igual a ningu�m para gostar. Seu pai e
eu, por exemplo, somos muito diferentes, e gosto dele como se fos

se meu pai tamb�m. Ele nada tem de homossexual e gosta de mim
do jeito que eu sou.

� N�o vai achar que eu o estou discriminando s� porque n�o
quero ser como voc�? Mesmo depois do que me aconteceu?
� � claro que n�o, Eric! Que bobagem! O que lhe aconteceu
foi uma crueldade. Sei porque j� passei por isso.
� Mas voc� n�o gostou?
� Pelo amor de Deus, n�o! Preferia que as coisas tivessem
acontecido de outra maneira.
� Foi depois disso que voc� descobriu que era homossexual,
n�o foi?
� Isso � outra coisa. O que aquele homem fez comigo despertou
sentimentos e instintos que eu j� possu�a dentro de mim,
embora os desconhecesse ou n�o os quisesse aceitar. O que n�o significa
que tenha de ser assim com todo mundo.
� Pensei que voc� fosse se decepcionar comigo. Que fosse
achar que eu o estava criticando s� porque n�o senti a mesma coisa
que voc�.
� � claro que n�o. E, se quer saber, fico at� feliz que voc�
n�o seja como eu.
� Por qu�! ? Tem preconceito de voc� mesmo?
� N�o, exatamente. � muito dif�cil aceitar que somos diferentes
da maioria das pessoas. Ningu�m quer ser colocado � margem.
Por isso, tenho medo. Medo de n�o ser aceito, de ser incompreendido,
de ser discriminado.
� Tem vergonha do que voc� �?
� Durante algum tempo, tive, sim. Mas depois conheci pessoas
boas, que me ensinaram a ver outros valores.
� Que pessoas?
� Seu pai foi uma delas. Voc� n�o tem id�ia de quanto ele foi
importante para mim. Foi ele quem me mostrou que ser homossexual
n�o � nenhum crime e que eu n�o deveria me sentir inferior a
ningu�m s� por causa de minha orienta��o sexual. Mostrou-me que
ser digno n�o � ser viril, mas ser honesto consigo mesmo e com os
outros. Ajudou-me a crer em mim mesmo, em minha capacidade,
em meu direito de conquistar um lugar no mundo. Foi gra�as a ele
que consegui ingressar na faculdade. N�o fosse pelo seu pai, eu te

ria acreditado no que todo mundo diz, que veado n�o tem vergonha,
que n�o � digno de conviver com pessoas de bem, e hoje eu
seria um Jo�o-ningu�m, jogado na marginalidade pela minha pr�pria
fraqueza. Hoje, sei que sou uma pessoa de bem, porque pessoas
de bem s�o todas aquelas que t�m amor no cora��o.

Eric prestava imensa aten��o ao que ele dizia, acompanhando
cada palavra sua com os olhos �midos.

� Voc� � mesmo uma pessoa de bem, Romero. Porque nunca
conheci ningu�m que tivesse mais amor no cora��o do que voc�.
S� o que fez pelo meu tio Rafael...
� Seu tio � digno de pena, porque ainda n�o conseguiu encontrar
seu valor no mundo. A pr�pria vida vai lhe ensinar quais s�o
os verdadeiros valores que devem ser cultivados pelo homem.
Eric abra�ou-o novamente e tomou a indagar:

� Quem foram as outras pessoas importantes para voc�?
� Minha irm�, Judite.
� Ela j� morreu, n�o � mesmo? Meu pai falou algo a respeito,
mas muito por alto.
� Ela foi assassinada. Judite era uma pessoa maravilhosa. Se
havia algu�m no mundo com o cora��o bom, esse algu�m era Judite.
N�o sei se existe vida al�m da morte, mas, se existir, minha irm�
deve estar em um lugar muito bonito. E duvido que Judite esteja alimentando
�dio por aquele que a matou. Se duvidar, ainda vai ajud�-
lo algum dia.
� Voc� gostava muito dela, n�o gostava?
� Eu a amava mais do que tudo no mundo. Foi um choque para
mim quando ela morreu. Mais uma vez, se n�o fosse seu pai, eu n�o
teria sobrevivido. Teria me atirado na vadiagem, carregando uma
culpa que n�o tive. Ningu�m teve. Hoje Judite permanece viva em
minha saudade. Penso nela com freq��ncia e sempre me lembro de
seu sorriso, de sua coragem, de sua determina��o.
Nesse momento, Judite aproximou-se, atra�da pelos pensamentos
saudosos do irm�o. Abra�ou-o comovida, e ele sentiu sua
presen�a, embora n�o soubesse distinguir o que sentia. Nada conhecia
sobre espiritismo ou fen�menos medi�nicos, e n�o encontrou
justificativa para aquela sensa��o, apenas um imenso bem-estar, que
era o que sempre sentia quando pensava na irm�.


� Tamb�m o amo, Romero � soprou ela em seu ouvido. � Vibro
felicidade em seu cora��o, j� t�o combalido pelas agruras da vida.
Mas jamais se deixe desesperar. Confie sempre e voc� ver� quanto
sair� glorioso dos reveses que a vida lhe imp�e.
Pousou as m�os de leve sobre o peito de Romero, que teve um
leve estremecimento e desatou num choro convulso e sentido.

� Ficou triste, Romero? � perguntou Eric, preocupado.
� N�o foi nada. Foi s� a saudade. As vezes, parece que Judite
ainda est� neste mundo, e sinto-a viva ao meu lado.
� Eu estou viva � confirmou Judite. � Jamais sairei de seu lado.
Deu-lhe novo passe, reequilibrando suas energias, e Romero
acalmou o pranto. Enxugou os olhos e alisou o rosto do menino.

� Estou bem � prosseguiu Romero. � S�rio. Foi s� a emo��o
do momento.
� Tem certeza?
� Tenho. N�o se preocupe. Do que � que est�vamos falando,
mesmo?
� Fal�vamos de pessoas que foram importantes em sua vida.
� Ah! Tem raz�o. H� mais uma que n�o posso esquecer.
� Quem?
� N�o adivinha?
� N�o.
� Voc�, seu bobinho. Voc� � muito importante para mim. Gosto
de voc� como se fosse meu filho, embora eu talvez jamais tenha
um. E, creia-me, eu nunca lhe faria algum mal. A voc� ou a qualquer
outra crian�a. Adoro crian�as e quero ser pediatra.
� Voc� vai ser. Tenho certeza.
Romero n�o queria discutir com ele sobre as dificuldades que
encontraria para concretizar aquele sonho. Mesmo n�o tendo sido
condenado, a sombra da desconfian�a ainda o perseguiria por muito
tempo.

� Vai voltar para nossa casa? � foi a nova pergunta de Eric.
� N�o posso. J� conversei sobre isso com seu pai.
� Eu gostaria tanto!
� Sei disso. Mas, depois de tudo que aconteceu, n�o me sentiria
� vontade em sua casa. Sua m�e pode n�o gostar. Afinal, Rafael
� irm�o dela. Sei como deve estar se sentindo com rela��o a ele.

� Meu tio Rafael foi quem errou!
� Sua m�e ama seu tio, porque � irm�o dela. Pode n�o concordar
com o que ele fez e at� recrimin�-lo, mas n�o vai deixar de
am�-lo por causa disso. Ver a mim em sua casa, e o irm�o longe, pode
�ser muito sofrido para ela.
� Voc� tem raz�o...
� E, depois, h� outro motivo.
� Que motivo?
� Reencontrei uma pessoa que eu n�o via h� anos.
� Ela tamb�m foi importante para voc�?
� Das mais importantes.
� E homem ou mulher?
� Homem.
� Vai ser seu namorado?
� Bem... � gracejou � Digamos que sim.
Eric parou por uns momentos, pensando no que Romero lhe
dizia, at� que retrucou:

� Vai ficar feliz com essa pessoa?
� Muito feliz.
� Ent�o, ficarei feliz tamb�m. Desde que voc� n�o se esque�a
de mim.
� � claro que n�o. Amigos n�o se esquecem de amigos. Mais
tarde, depois que tudo isso acalmar, vou apresent�-lo a voc�. Vai gostar
dele. � m�sico, uma pessoa muito especial.
� Como � seu nome?
� Mozart.
� N�o, o nome de seu namorado.
� Pois �, � Mozart.
Eric achou muito engra�ado algu�m ter o nome de um compositor
famoso, ainda mais sendo m�sico tamb�m. A conversa acabou
se descontraindo, e Pl�nio, percebendo que j� n�o havia mais motivo
para continuar afastado, foi at� uma carrocinha de sorvete e
comprou picol�s para todos. Voltou para onde os dois estavam e ofereceu
os sorvetes.

� E ent�o? � perguntou bem-humorado. � Pelo visto, correu
tudo bem.
� Melhor, imposs�vel � respondeu Romero.
324


� Voltamos a ser amigos, papai � avisou Eric, todo feliz.
� Voltamos, n�o � corrigiu Romero. � Nunca deixamos de ser.
Pl�nio sentou-se junto deles e participou de sua alegria. Eram
almas afins, embora n�o soubessem disso. Estavam ligados desde um
passado remoto, mas que estabelecera entre eles fortes v�nculos de
amor e amizade. E o amor, por mais que os anos passem, jamais se
consegue esquecer ou apagar.



o mundo espiritual, Judite abra�ava F�bio, comovida
e feliz.

� Conseguimos, n�o foi, F�bio? O amor se imp�s sobre o �dio
e a vingan�a.
� Sim, Judite. Nada como a honestidade de princ�pios para fazer
com que o amor prevale�a.
� Esses tr�s... � Apontou para Romero, Pl�nio e Eric com o
queixo. � Que mist�rio os une?
� O amor, Judite. Isso n�o � mist�rio algum.
� Sim, mas como foi que eles conquistaram esse amor?
� Voc� n�o se lembra porque n�o participou dessa parte da
vida de Romero, que foi muito importante para seu crescimento.
� Mas o que aconteceu? Posso saber?
� Vamos voltar para a col�nia. L� eu lhe revelarei toda a
verdade.
De volta � col�nia, F�bio sentou-se com Judite perto de uma
bonita fonte e come�ou a narrativa. Aos pouquinhos, as imagens daqueles
tempos remotos foram aparecendo na tela mental de Judite,
que, como espectadora, viu e ouviu tudo que acontecera ent�o.

Novamente, viu Romero em sua �ltima encarna��o. Alguns
anos haviam se passado desde o incidente com J�nior, quando ele
fora morto pelas m�os de Judite. Ela e F�bio tamb�m j� haviam desencarnado,
e Romero contava agora cerca de sessenta anos.

Era um homem atormentado. Com a chegada da velhice, co


327


me�ou a questionar seus atos. Quantas e quantas crian�as n�o havia
seviciado s� para satisfazer seus instintos? Meninos e meninas,
todos eram v�timas de sua cupidez. Mas algo dentro dele o martelava
e o fazia refletir. Por que tivera de se envolver com tanta sordidez?
Tudo por causa da m�e. Se ela n�o o tivesse trocado por aquele
falso efeminado, nada daquilo teria acontecido.

Olhou as m�os tr�mulas e sentiu uma dor aguda no peito. A cela
em que se encontrava recendia a ervas perfumadas, que haviam sido
queimadas por padre Hip�lito para purificar o ambiente. A cela era
pequena e muito simples. Apenas um catre de ferro coberto por um
colch�o de palha, um pequeno ba� com suas roupas, uma mesinha
e uma cadeira. Acima de sua cama, uma pequenina janela dava passagem
aos raios de sol e ao vento.

Romero ouviu batidas leves e fixou o olhar na pesada porta de
madeira que se abria vagarosamente. Padre Hip�lito entrou com seu
habitual sorriso e foi sentar-se junto a ele, na cama.

� N�o quer sair? � indagou. � Est� um dia muito bonito l� fora.
� N�o, padre, obrigado. Prefiro ficar aqui dentro.
� N�o acha que j� est� na hora de esquecer o que aconteceu?
� N�o posso. Sou um pecador condenado. N�o existe perd�o
para meus crimes.
� Sempre existe perd�o para Deus, meu filho.
� N�o para mim.
Padre Hip�lito suspirou profundamente e rebateu:
� Est� na hora da missa das seis. Voc� n�o vem?
� Amanh�.
Depois que o padre saiu, Romero foi se debru�ar na janela e ficou
olhando o entardecer. Pouco depois, o sol sumiu por detr�s das
montanhas, e Romero voltou para dentro, fechando os olhos para
n�o rever aquela maldita cena, tapando os ouvidos para n�o ouvir
seu grito angustiado.

Sua mente se recusava a retroceder, e as lembran�as se atropelavam
pelos seus pensamentos aos borbot�es. N�o queria mais pensar
naquilo, mas sua consci�ncia n�o permitia que ele se esquecesse.
Todos os dias, aquela mesma vis�o. A vis�o de algo aterrador que
ele mesmo havia cometido. Muitos anos atr�s...


Depois que o carrilh�o do sal�o principal de sua mans�o acabara
de dar as seis badaladas, L�lio subiu as escadas, levando pela
m�o uma menina morena e muito bonita, que n�o devia ter mais
que doze anos, rec�m-entrada na puberdade. Chegou � porta do
quarto de seu amo, bateu e esperou. Pouco depois, Romero veio
abrir. Ele vestia apenas um robe de chambre de veludo vermelho e
sorriu para a menina.

� Vamos entrando, crian�a. Venha ver o que o titio comprou
para voc�.
O criado afastou-se sem dizer uma palavra, e Romero levou
a menina para dentro. Sentou-a em seu colo e mostrou-lhe uma
boneca linda de porcelana, trajada num maravilhoso vestido de
noiva, todo bordado com fios de prata, e a menina abriu a boca, extasiada.
Jamais havia visto uma boneca t�o bonita.

� E ent�o? � indagou ele. � Gostou?
Ela apenas fez que sim com a cabe�a, alisando os cabelos da
boneca. Enquanto a menina se distra�a com o brinquedo, Romero
come�ou a acarici�-la. A jovem teve um sobressalto e encolheu-se
toda, mas lembrou-se das palavras da m�e e n�o disse nada. Eram
muito pobres, e a m�e lhe dissera que, se soubesse se comportar direitinho,
ganharia bonitos presentes do senhor daquela casa. Sen�o,
teria de ag�entar as pancadas que ela iria lhe dar.

Com medo da surra da m�e, a menina aquietou-se e respondeu
humildemente quando Romero perguntou seu nome:

� Janina, senhor.
� �timo, Janina. Seja boazinha, e n�o vou machuc�-la.
Fez com que ela largasse a boneca e continuou a apalp�-la, para
desespero de Janina. Ela estava apavorada, sentindo as m�os daquele
bruto sobre sua pele, sem entender direito o que estava acontecendo.
A m�e apenas lhe dissera que fizesse tudo que aquele homem
mandasse, sem gritar ou se queixar. Mas ele a estava machucando.

Romero deitou-a sobre a cama e come�ou a despi-la, e Janina
come�ou a chorar. Queria protestar, pedir que ele parasse com aquilo,
mas n�o tinha coragem. Lembrava-se apenas das amea�as da m�e,

o que era motivo mais que suficiente para n�o abrir a boca. Sabia
quanto a m�e podia machuc�-la tamb�m, e era melhor obedecer.
Em sil�ncio, suportou tudo que Romero fez com ela, engolin



do o pranto e a dor quando ele a deflorou. Nem sabia que aquilo podia
existir e come�ou a chorar baixinho, sentindo-se toda dolorida,
por dentro e por fora. Ao final, ele enxugou seu rosto e colocou
a boneca em seus bra�os.

� J� terminamos � avisou friamente. � Pode se vestir e ir
embora. E n�o se esque�a de levar a boneca. Foi um presente que
voc� mereceu.
Toda dorida, Janina vestiu-se e apanhou a boneca. Nem queria
mais lev�-la, mas o homem dissera que a levasse. Se desobedecesse,
ele podia se zangar e contar � m�e, e ela levaria outra surra.
Saiu a passos tr�pegos, arrastando a boneca, e foi para a cozinha,
onde Clorinde, a m�e, esperava-a com ansiedade.

� E ent�o? � indagou com rispidez. � Como foi?
Sem saber o que responder, Janina deu de ombros e exibiu a
boneca.

� Muito bem � prosseguiu a mulher. � Agora v� me esperar
l� fora. Quando eu chamar, voc� entra de novo.
Janina obedeceu e saiu para o ar frio da noite, encolhendo-se
perto da porta. Alguns minutos depois, L�lio apareceu, com uma
bolsinha de dinheiro, e colocou-a nas m�os da mulher.

� Isso � tudo � falou secamente. � J� pode ir.
� Ainda n�o � rebateu Clorinde, com ousadia. � Preciso falar
com seu patr�o.
� Meu senhor n�o se envolve com esses assuntos. Se tem algo
a dizer, diga a mim, que eu transmitirei o recado.
� Tenho algo a dizer, sim. Mas s� direi a ele.
� Pois, ent�o, guarde para si seu segredo. Meu patr�o n�o est�
interessado.
Come�ou a enxot�-la com impaci�ncia, at� que a mulher agarrou-
lhe o bra�o e falou com �dio:

� Pergunte-lhe quanto est� disposto a pagar pelo meu sil�ncio,
por ter dormido com a pr�pria filha.
O criado largou-a aterrado e revidou incr�dulo:

� O que est� dizendo? Isso � mentira. Meu senhor n�o tem
filhos.
� Pois eu afirmo que Janina � filha dele. E posso provar. V�
cham�-lo imediatamente.

Pelo sim, pelo n�o, era melhor chamar Romero. A menina at�
que era mesmo bem parecida com ele, mas tamb�m podia ser impress�o.
Romero levou um susto quando o criado lhe contou aquela
hist�ria fant�stica mas n�o imposs�vel. Vestiu-se �s pressas e foi
ao encontro de Clorinde.

� Como ousa me chantagear com uma hist�ria absurda dessas?
� esbravejou, logo que entrou na cozinha.
� N�o � absurda. Janina � sua filha, e posso provar.
� Mas isso � um disparate! Como pretende provar um absurdo
desses?
Ela deu um sorriso sarc�stico para Romero e gritou para fora:

� Janina! Venha aqui imediatamente!
A menina entrou assustada, apavorando-se ainda mais ao ver
Romero ali presente. Achava que havia feito algo errado e agora
iria apanhar.

� Tire a roupa, Janina � ordenou a m�e, com voz glacial.
� O qu�?
� Tire a roupa, vamos!
� Pare com isso, mulher! � protestou Romero. � J� vi o que
tinha de ver da menina.
� Fa�a como eu digo, Janina. Tire a roupa!
Janina obedeceu. N�o entendia o porqu� de tudo aquilo, mas
n�o ousou contestar. Rapidamente, largou a boneca em cima da mesa
e, ajudada pela m�e, soltou o vestido e depois a fina combina��o.
R�pida e bruscamente, a mulher virou-a e, apontando para um sinal
nas costas da crian�a, em forma de meia-lua, disse euf�rica:

� Veja! � o mesmo sinal que o senhor tem! Igualzinho. Ou
vai negar?
Romero engoliu em seco. Efetivamente, possu�a um sinal id�ntico,
de nascen�a. Janina come�ou a chorar e vestiu-se novamente,
evitando encar�-lo, sem entender o que estava se passando.

� Ela � sua filha! � vociferou a mulher. � N�o v� a semelhan�a?
Apertou o queixo de Janina, for�ando-a a olhar para cima, e
Romero sentiu uma pontada no cora��o. Como n�o havia percebido?
Ela se parecia mesmo com ele. Os mesmos olhos, o mesmo formato
do rosto, os mesmos l�bios grossos e carnudos.


� Saia daqui! � esbravejou ele. � E leve essa crian�a com
voc�. Nunca mais quero v�-las.
� Ah! Agora quer nos expulsar, n�o � mesmo? H� treze anos,
quando eu era uma menina e voc� me estuprou, n�o pensava assim,
n�o �? E agora faz o mesmo com sua filha, sangue do seu sangue,
que bem pode, neste momento, estar tamb�m carregando um
filho seu!
Janina n�o entendia nada do que estava acontecendo. Jamais
conhecera o pai, e a m�e vivia acusando-a de ser fruto de uma rela��o
pecaminosa, de um porco imundo que a estuprara e depois sumira.
E agora aparecia ali aquele homem, a quem fora for�ada a se
entregar, e a m�e lhe dizia que ele era seu pai? Janina apavorou-se.
Ter um filho do pr�prio pai era um pecado terr�vel, t�o terr�vel que
ela desmaiou, sendo amparada pelo pr�prio Romero.

� Que esp�cie de m�e � voc�, mulher? � redarguiu Romero,
perplexo. � Que m�e, se n�o um verdadeiro monstro das trevas,
seria capaz de empurrar a pr�pria filha para tamanho pecado?
� E que pai seria capaz de se deitar com a pr�pria filha inocente?
Uma crian�a!
� Eu n�o sabia! Como poderia saber?
� Poderia saber, sim. Voc� a teve em seus bra�os, alisou seu corpo.
Mas estava t�o envolvido pela lux�ria que nem se deu conta dessas
semelhan�as todas. Pergunto-lhe, senhor: quantas vezes n�o acariciou
esse sinal, o sinal que o senhor mesmo lhe legou ao colocar
dentro de mim a semente que a fez nascer? Vamos, responda!
Romero sentiu a vista turva e pensou que fosse desmaiar tamb�m.
Aquilo n�o podia estar acontecendo; n�o com ele. Sempre
fora cuidadoso, n�o aceitava dormir com crian�as filhas de mulheres
com quem j� havia se deitado anteriormente. Como aquilo
fora acontecer?

� Deixe-me em paz, dem�nio! � fremiu ele. � Saia daqui! Desapare�a!
� Se me mandar embora, todos conhecer�o sua hist�ria. Saber�o
que Janina � sua filha.
� Ningu�m vai acreditar.
� Ah, todos v�o acreditar, sim. Tenho provas robustas.
� O que voc� quer? O que quer para me deixar em paz?

� Dinheiro. N�o � justo que sua filha continue a viver na pobreza
em que hoje vive. A filha de um nobre merece coisa melhor.
� Quanto? Quanto quer pelo seu sil�ncio?
� Ouro. Muito ouro. E j�ias. Diamantes, esmeraldas. O que tiver
para me dar.
Romero deixou-se cair na cadeira. Estava apavorado, com
medo do que poderia lhe acontecer. Mesmo naqueles dias, estuprar
a pr�pria filha era um crime hediondo. Olhou para a mulher com
desgosto, depois para a filha, desmaiada sobre a mesa, e levantou-
se, caminhando com passos arrastados.

� Cuide dessa infeliz � falou para o criado. � Vou providenciar
o que ela me pediu.
Com ar pesaroso, foi para seu gabinete particular, retirar ouro
e j�ias do cofre. Demorou cerca de dez minutos. Quando voltou, levou
tremendo susto. A mulher jazia morta no ch�o frio da cozinha,

o pesco�o quebrado, enquanto L�lio, debru�ado sobre Janina, apertava
seu pesco�o tamb�m.
� Por Deus, L�lio! � gritou Romero, enquanto corria para ele
e retirava suas m�os do pesco�o da menina. � O que est� fazendo?
Ficou louco?
� Pensei que tivesse me mandado cuidar delas.
� Mas n�o mandei que as matasse!
� N�o posso permitir que elas estraguem sua vida, patr�o.
L�lio era muito fiel. Estava com Romero havia muitos anos e
era quem "comprava" as crian�as para ele. Contudo, Romero n�o
podia permitir que ele matasse sua filha. A m�e, ainda podia fechar
os olhos e fingir que n�o via. Mas Janina era uma crian�a. E era sua
filha. Algo dentro dele despertou sua consci�ncia, e ele sentiu o peso
daquela responsabilidade.

Ca�da no ch�o, Janina chorava ao lado da m�e morta, esfregando
a garganta e tossindo com vigor. Aquele homem quase a sufocara,
tentara mat�-la, assim como matara a m�e. Come�ou a chorar
descontrolada, apavorada com sua sorte. Mas nada aconteceu.
Romero afastou L�lio de seu caminho e ergueu a crian�a.

� N�o tenha medo � tranq�ilizou. � Nada ir� lhe acontecer.
� Mas minha m�e... est� morta! � horrorizou-se.
� Foi um acidente, Janina. Isso foi um acidente.

O acidente n�o passou despercebido pelas autoridades, e L�lio,
surpreendido quando tentava se livrar do corpo, foi preso em
flagrante e acabou se suicidando na cadeia. Romero negara qualquer
envolvimento com o ocorrido, e L�lio recebeu sozinho todas
as acusa��es.

Janina, gr�vida, permaneceu na casa de Romero, at� que deu
� luz um menino, nove meses depois. O parto foi complicad�ssimo,
e ela n�o resistiu, morrendo logo em seguida, sem nem ver o rostinho
do filho. Coube a Romero, ent�o, criar sozinho a crian�a. Entretanto,
atormentado pela culpa, isolou-se da cidade. Vendeu tudo
que tinha e saiu pelo mundo com o filho nos bra�os, at� que foi recolhido
no mosteiro de padre Hip�lito, uma alma boa, que vivia para
a caridade e o aux�lio aos pobres.

E era ali que Romero vivia desde ent�o, juntamente com o filho
incestuoso, agora aos cuidados dos bondosos padres.

Quando F�bio terminou a narrativa, Judite estava chorando.

� Que coisa triste � falou emocionada.
� Sim, Judite. O drama pessoal de Romero � dos mais tristes.
No entanto, naquela vida mesma, ele come�ou a tomar consci�ncia
de seus atos e se arrependeu.
� Quem eram aquelas pessoas? N�o vivi com ele naquela �poca,
n�o as conhe�o muito bem.
� � verdade. Voc� as conheceu somente no astral. Padre Hip�lito,
alma generosa e amiga, reencarnou nessa vida como o
bom Dr. Pl�nio, que tem sido um pai para Romero. A seu lado, Eric,
que foi o filho incestuoso de Romero, hoje aos cuidados paternos
de Pl�nio.
� E aquelas mulheres? Quem s�o elas?
� Clorinde, ambiciosa e venal, capaz de levar a pr�pria filha
ao leito incestuoso, voltou como Rafael, com todo o seu �dio acumulado
e mal resolvido.
� O qu�? N�o acredito.
� Pois � a mais pura verdade. Rafael, ou Clorinde, jamais conseguiu
perdoar Romero, ainda mais depois de desencarnado, julgando-
o culpado pelo seu assassinato.
� A� resolveu trocar de sexo. Por qu�?

� H� muitas vidas, Rafael vem nascendo na pele de mulheres
sensuais e ego�stas, sempre se utilizando do sexo para satisfazer
seus desejos.
� Por isso voltou como homem?
� Tamb�m por isso. Para Rafael, assim como para Mozart, foi
uma forma de tentar acalmar a sexualidade desenfreada e experimentar
um pouco do universo masculino, que nunca soube respeitar.
� Rafael tamb�m � homossexual?
� N�o. O que ele fez a Eric foi apenas a resposta ao �dio que
sentiu por ter sofrido o que sofreu nas m�os de Romero. Em outras
palavras, quis pagar na mesma moeda.
� S� por isso?
� N�o. Eram inimigos de outras vidas, porque Eric j� o havia
estuprado quando fora mulher.
� O que ser� dele?
� Tamb�m est� aprendendo. Se tudo correr bem, com o aux�lio
dos amigos espirituais, vai conhecer a mo�a certa, casar-se e receber
como filho o homem que o matou.
� O criado?
� Esse mesmo. O plano espiritual encadeia as coisas de forma
a que se restabele�a o equil�brio perdido. Depois da morte de Rafael,
a menina, Janina, permaneceu aos cuidados de Romero, sem,
contudo, perdo�-lo pelo abomin�vel incesto a que fora submetida.
Ainda mais porque carregava no ventre o fruto de seu pecado. Essa
mesma menina reencarnou como Lav�nia, que, apesar de ter sido
maltratada por Rafael em outra vida, assumiu o compromisso de
orient�-lo, porque j� estava mais bem preparada para tanto. Por isso,
conseguiu am�-lo e cri�-lo da melhor forma que p�de. Tentou perdoar
Romero e at� que foi mais bem-sucedida nesse intento, embora,
por vezes, os velhos ressentimentos voltassem, o que fez com que
ela se virasse contra ele na primeira oportunidade que teve de acus�-
lo. � F�bio fez uma pausa e prosseguiu: � E ainda h� Eric. Como
filho de Romero naquela vida, foi verdadeiramente amado pelo pai,
amor que perdura at� hoje. Da mesma forma, Pl�nio, que ajudou em
sua cria��o, tamb�m desenvolveu por ele forte afeto. E Lav�nia, se
n�o tivesse desencarnado, t�-lo-ia amado imensamente, despertando
dentro dela a beleza do amor materno. Apenas Rafael n�o con

seguiria alcan�ar esse amor e tentaria utilizar-se do neto para extorquir
ainda mais dinheiro de Romero.

� Creio que Romero j� deu sua quota de sofrimento. Foi o �nico
que foi preso e acusado injustamente. Por qu�?
� Porque se sentiu culpado pela morte de L�lio, o criado, que
se suicidou na cadeia.
� Mas Romero n�o havia matado ningu�m!
� N�o. Mas em seu �ntimo sentiu-se aliviado ao ver a mulher
morta. E mais ainda quando todas as acusa��es reca�ram sobre L�lio,
sem que Romero dissesse uma palavra em sua defesa. Negou at�
que conhecia a v�tima.
� Talvez ele tenha exagerado nessa culpa. N�o precisava ter
passado por tudo que passou.
� Ningu�m passa pelo que n�o precisa. Se ele passou, foi porque
julgou importante.
� De todos, ainda acho que Romero foi quem mais sofreu.
� N�o h� como se medir o sofrimento, porque sua intensidade
depende do que cada um j� consegue suportar. Mas, no caso de
Romero, essa foi a forma que ele encontrou de se ajustar com a vida.
� Ser� que todo mundo que troca de sexo vira homossexual?
� Em absoluto! Isso ocorre muitas vezes porque o esp�rito ainda
est� muito apegado a determinado sexo e n�o consegue se adaptar
� mudan�a que ele mesmo se imp�s. N�o consegue compreender
que a felicidade n�o est� ligada � forma f�sica ditada pelo sexo,
n�o aceita perder o masculino ou o feminino. Muitas vezes, sente-
se um estranho em seu pr�prio corpo, como se o ve�culo carnal que
ocupa n�o lhe pertencesse, como se fosse prisioneiro de um corpo
f�sico que est� em desacordo com seu desejo. Pensa que s� nascendo
como homem ou mulher � que se sentir� completo e inteiro, e
n�o quer mudar. N�o se conforma em experienciar coisas diversas,
porque n�o quer se desapegar da situa��o de homem ou mulher que,
um dia, foi a fonte de seus maiores prazeres. � como se a materialidade
do sexo se embrenhasse em seu ser a tal ponto que ele n�o conseguisse
perceber a sutileza do esp�rito, despertando a consci�ncia
apenas para o que � carnal. Mas isso n�o � uma regra, e cada um vive
aquilo que precisa viver. H� v�rios motivos por que os esp�ritos escolhem
nascer homossexuais. H� pessoas que s� v�m viver o pre

conceito; h� pessoas que abusaram do sexo, seu e de outros; h� pessoas
at� que j� mataram em nome da chamada virilidade. Veja Romero,
por exemplo. Ele vem reencarnando como homem heterossexual
h� muitas vidas, mas somente nesta se tornou homossexual.
Foi a forma que escolheu para tentar se libertar de tantas culpas,
principalmente da pedofilia e do apego excessivo a voc�. Cada
caso � um caso, Judite, e n�o h� como estabelecer uma regra.

� E nada disso � errado?
� Tudo est� certo na cria��o de Deus, e todas as coisas que existem
no mundo trabalham em favor de nosso crescimento. A vida
disp�e de muitos m�todos para nos auxiliar, cabendo a n�s optar por
aqueles que mais se adaptam a nossos prop�sitos.
� N�o poder�amos chamar o homossexualismo de doen�a?
� N�o � uma doen�a. � claro que h� um redirecionamento na
energia que gera o desejo sexual, e a causa desse redirecionamento
est� associada �s experi�ncias que cada um precisa viver. Homens
e mulheres s�o seres de dupla polaridade, onde vai predominar, energeticamente,
o p�lo que � pr�prio de seu sexo, permanecendo o outro
em estado latente e germinal. Mas ningu�m � s� masculino ou
s� feminino. Todos nascemos dotados dessa duplicidade de for�as,
e � preciso que elas estejam em harmonia. Tudo em n�s, como no
universo, se manifesta em dualidade. Se temos um ponto masculino,
havemos de possuir o contraponto feminino, e vice-versa, o que
� nosso equil�brio e nos auxilia na utiliza��o saud�vel dessas duas
for�as. H� homens heterossexuais que s�o extremamente femininos,
assim como h� homossexuais de atitudes pronunciadamente masculinas.
E da�? Ambas as energias est�o l�, na mesma propor��o, embora
vibrando em intensidades diferentes em cada um. A vida coloca
diante de n�s situa��es que desafiam nosso feminino e nosso
masculino, e o desejo sexual � uma delas. Se um homem se sente
atra�do por outro homem, � claro que algo de seu feminino vibra
mais nesse momento, porque ele tem essa polaridade dentro dele,
s� que n�o t�o latente. Por outro lado, na rela��o em fam�lia, por
exemplo, pode ser o sustento do lar, n�o s� financeira como emocionalmente,
"segurando a barra" de todo mundo, como se diz por
a�. Nesse momento, o feminino, que vibra com mais intensidade no
desejo sexual, cede lugar ao masculino, que precisa se sobrepor

para garantir a subsist�ncia. � F�bio fez breve pausa e concluiu: �
Mas o que conta verdadeiramente para o esp�rito � a forma como o
ser humano se conduz diante da vida, porque s� aqueles que j� aprenderam
a abrir o cora��o para o amor � que s�o capazes de vivenciar
todas essas experi�ncias com dignidade e respeito.

Judite calou-se por uns instantes, refletindo nas palavras de
F�bio.

� Tudo isso � muito confuso, F�bio. Para mim, o que importa
mesmo � o amor.
� Tem raz�o. O amor transcende essas coisas todas e n�o faz
qualquer distin��o entre as pessoas. Pode at� se revelar de formas
diferentes, mas ser� sempre um s�.
� � verdade...
� Por falar nisso, como vai indo seu cora��ozinho com rela��o
a J�nior?
� Tenho orado muito por ele. Todas as manh�s, aproveitando
a for�a de renascimento do sol, aproveito para enviar-lhe vibra��es
de amor e de perd�o, conforme voc� me orientou.
� E tem feito isso muito bem, com muita sinceridade. Tanta,
que J�nior j� come�a a ver as coisas com mais clareza. Est� se cansando
de ser escravo e n�o se satisfaz mais com as drogas.
� O que isso quer dizer, exatamente?
� Quer dizer que, em breve, poderemos resgat�-lo. Seu cora��o
anseia pela liberta��o, e ele tem pensado muito em voc� e em
Romero. Est� muito arrependido do que fez, principalmente a voc�.
As vibra��es de perd�o que voc� est� lhe enviando t�m servido para
que ele consiga ao menos pensar em perdoar-se a si mesmo.
� Por que n�o vamos tir�-lo de l� agora, ent�o?
� Ainda n�o. Precisamos esperar que ele nos chame. Quando
ele quiser mesmo sair de l�, vai se voltar para Deus e pedir ajuda.
� Ser� que v�o deix�-lo partir? Quero dizer, sei que os esp�ritos
das trevas adoram escravizar os ignorantes, como J�nior.
� Quando J�nior desejar alcan�ar a luz, n�o haver� esp�rito das
trevas que o impe�a. Se tentar, esse esp�rito poder� at� vir junto.
� Ser�? Acho-os t�o empedernidos...
� Muitos s�o mesmo, porque o poder das trevas � algo inebriante.
Mas nada se compara ao bem-estar e � felicidade que ema

nam da luz, e muitos esp�ritos se v�em tentados a acompanh�-la, tamanho
seu poder de conforto e atra��o.

Judite calou-se novamente, impressionada com as palavras de
F�bio. No fundo, ansiava pelo momento em que iriam resgatar J�nior.
J� n�o lhe tinha mais �dio. Ao contr�rio, come�ava mesmo a
am�-lo. Porque conseguira compreender.



omero acabou mudando-se para o hotel em que Mo-
cap�tulo
omero acabou mudando-se para o hotel em que Mo-
cap�tulo
zart estava hospedado, e os dois, sentados na saleta, faziam planos
para o futuro. Romero havia conseguido destrancar a matr�cula e
concluiria o curso de medicina no fim do semestre.

Conversavam animados, quando o telefone tocou. Mozart foi
atender e, com uma das m�os sobre o bocal do fone, disse para
Romero:

� � sua m�e. Est� l� embaixo, pedindo para falar-lhe.
� O hotel permite que ela suba?
� Claro que sim.
Mozart deu ordens para que a deixassem subir, e ela apareceu
poucos minutos depois. Ap�s cumpriment�-la, Mozart pediu licen�a
e foi para o quarto.

� Mam�e! � exclamou Romero, abra�ando-a com efus�o. �
Vencemos! Eu n�o lhe disse que era inocente?

� Eu sabia, meu filho. No fundo, sempre soube que voc� n�o
era nenhum marginal.
� Obrigado. Sua compreens�o e sua ajuda foram fundamentais
para que eu continuasse a lutar. N�o fosse por voc�, n�o sei o
que teria sido de mim.
No�mia enxugou discretas l�grimas e afagou as faces do filho.

� E o que pretende fazer? � perguntou, disfar�ando a emo��o.
� Mozart e eu est�vamos combinando. Ele vai esperar at� que
eu termine a faculdade, e ent�o vamos viajar para a Europa.
341


� N�o! Voc� n�o pode me deixar agora!
� Lamento, mas � a �nica sa�da. Mozart tem vida feita l�. �
m�sico consagrado, integra a filarm�nica de Salzburgo. N�o pode
deixar tudo isso de lado. E eu, o que tenho? Nada. Minha vida mal
come�ou e j� est� destru�da.
� N�o diga isso.
� � verdade. Que pais levariam os filhos a meu consult�rio depois
de descobrirem do que fui acusado?
� Mas voc� � inocente! A Justi�a provou isso.
� Na verdade, o Dr. Pl�nio abandonou a causa. N�o fui propriamente
absolvido. Sempre restar� uma d�vida no cora��o das pessoas,
e, pelo sim, pelo n�o, ningu�m confiar� os filhos a mim.
� E voc� acha que na Europa vai ser diferente?
� Mozart vai me ajudar. Tem muitos conhecidos e vai me arranjar
resid�ncia num hospital. Depois, vou fazer p�s-gradua��o por
l� mesmo. Quem sabe, at� um mestrado ou doutorado?
� Vou sentir sua falta... � choramingou.
� Sei disso. Tamb�m vou sentir a sua. Mas n�o h� outro jeito.
N�o posso pedir a Mozart que abandone tudo que conquistou e
n�o estou disposto a me expor ainda mais ao preconceito. Considero-
me quite com a sociedade por ser homossexual.
Com a voz embargada, No�mia indagou:

� Quando v�o partir?
� Se tudo correr bem, no final de julho.
� T�o cedo assim?
� N�o posso esperar mais. J� sou um homem. Perdi tudo que
tinha, n�o tenho mais est�gio nem emprego. O que espera que eu
fa�a? Que viva � custa de Mozart?
� Gostaria que voc� ficasse perto de mim. J� perdi tanto tempo...
Gostaria de participar do resto de sua vida.
� Lamento, mas n�o posso ficar. N�o me fa�a sentir culpado
por querer viver minha vida.
� N�o se trata disso. � que vou sentir sua falta.
� Vou escrever para voc�. Virei visit�-la nas f�rias, e quem sabe
voc� tamb�m n�o possa ir � �ustria? Dizem que � lindo por l�.
No�mia deu um suspiro de decep��o. N�o esperava que ele partisse.
Pensava t�-lo junto de si pelo resto da vida, se n�o em sua casa,


ao menos por perto. Mas compreendia a decis�o dele. Ela e Silas
haviam-no ignorado durante todos aqueles anos, perderam sua juventude,
e agora ela n�o tinha o direito de lhe cobrar nada. Seria
ego�smo de sua parte exigir que ele pensasse nela e ficasse. N�o tinha
esse direito. Ainda que ele houvesse vivido sob seu teto durante
todo aquele tempo, n�o teria o direito de lhe pedir aquilo. Romero
tinha sua vida, e era direito seu viv�-la como e onde quisesse.
A ela, s� caberia respeitar.

� Voc� est� certo, meu filho � concordou ela a contragosto.
� Sou eu que estou sendo ego�sta. N�o tenho esse direito.
� N�o se trata disso.
� Sei que n�o. Trata-se de sua vida, e vou respeitar o que voc�
decidir. Mas n�o posso dizer que n�o sentirei sua falta. Voc� � tudo
que me restou...
� Voc� tem papai. T�m um ao outro.
� Seu pai � um homem duro, Romero. N�o sei como ser� nossa
vida daqui para a frente.
� Por que diz isso?
� N�o lhe contei que ele descobriu sobre o dinheiro?
� N�o.
� Pois descobriu. E ficou uma fera.
� Lamento muito. N�o queria que as coisas acontecessem
assim.
� Mas consegui me impor. Dessa vez, consegui. Disse a ele que
voc� � meu filho e que vou v�-lo a hora que quiser.
� Voc� fez isso?
� Fiz. De que outro jeito estaria aqui hoje, conversando com
voc� sem preocupa��es?
� Talvez tenha sido bom. Para voc� e para ele. Papai precisava
mesmo de algu�m que o enfrentasse. Quando Judite estava viva,
fazia bem isso.
� Judite era filha dele e, de certa forma, devia-lhe obedi�ncia.
Eu n�o.
� Tem raz�o. Fico feliz que tenha conseguido se impor. E muito
ruim viver sob o dom�nio de algu�m.
� Isso j� n�o acontece mais comigo. Continuo a respeitar seu
pai, mas n�o mais o obede�o cegamente. N�o sou propriedade dele.

Conversaram por mais algum tempo, aliviados de tantas culpas
e dissabores.
No mundo invis�vel, Judite acompanhava tudo com satisfa��o.
O que mais queria, no momento, era reconciliar a fam�lia.

� Pena que meu pai seja t�o cabe�a-dura � queixou-se a F�bio.
� Por enquanto.
� Acha que ele vai amolecer?
� Tenho certeza. Espere e ver�.
� Minha m�e est� feliz. Reconquistou o filho, que nunca lhe
saiu do cora��o.
� Sua m�e deu um grande passo em sua jornada. J� n�o � mais
a mulher submissa de outrora. Conseguiu impor sua vontade sem
brigas nem �dios. Simplesmente aprendeu que precisa se fazer respeitar.
Do contr�rio, ningu�m mais a respeitar�. V� como agora seu
pai a respeita muito mais do que antes?
� � verdade.
� Agora venha. Temos algo importante a fazer.
� O qu�?
� Lembra-se de quando lhe disse que dever�amos esperar at� que
J�nior nos chamasse? � Ela assentiu. � Pois chegou o momento.
Emocionada, Judite acompanhou F�bio at� o astral inferior,
onde J�nior vivia, cercado de esp�ritos pouco esclarecidos, envolvido
com drogas. Ao se aproximarem, J�nior sentiu algo estranho
no ar e levantou a cabe�a, olhando na dire��o em que F�bio e Judite
se encontravam, sem v�-los, contudo.

� Quem est� a�? � indagou com voz pastosa, apontando para
o invis�vel. � Vamos, apare�a!
Aos poucos, a vis�o de J�nior foi se desanuviando, e a imagem
de Judite e F�bio foi se tornando vis�vel. A princ�pio, J�nior n�o a
reconheceu, tamanho o estado de perturba��o em que se encontrava,
fruto da ess�ncia das drogas que absorvia.

� Quem s�o voc�s? � tornou a perguntar, tapando parcialmente
os olhos ofuscados. � N�o consigo v�-los direito.
� Sossegue � acalmou F�bio. � Viemos ajud�-lo.
� Voc�s n�o s�o daqui, s�o? Nunca os vi por essas paradas.
� N�o moramos aqui, se quer saber. Viemos de longe s�
para v�-lo.

� Por qu�? Quem os enviou?
� Suas preces.
� Minhas preces? N�o estou entendendo.
� Voc� n�o tem rezado e pedido ajuda a Deus? � J�nior fez
que sim, completamente confuso. � Pois, ent�o? A ajuda veio.
� Voc�s n�o se parecem nada com Deus.
� Somos seus enviados.
� Pensei que seus enviados fossem anjos.
� Podemos ser o que voc� quiser.
J�nior fitou-os desconfiado, primeiro F�bio, depois Judite. Ao
fitar o esp�rito da mo�a, seus olhos se detiveram, e ele a olhou mais
atentamente.

� Voc�... � hesitou. � N�o a conhe�o?
� Creio que j� nos encontramos.
� Onde? Onde foi que j� vi seu rosto?
� Foi h� muitos anos. Isso n�o importa mais.
� Importa, sim. Quero saber quem � voc�. N�o me lembro
muito bem, mas sinto que voc� foi muito importante em minha
vida... � Calou-se aterrado, recuando at� o fundo da caverna. �
Agora me lembro! Voc� �... voc� �...
� Judite. Sim, sou Judite.
� Meu Deus! O que est� fazendo aqui? Veio se vingar?
� Ela parece algu�m que quer se vingar? � interveio F�bio. �
Olhe bem para ela e diga: Judite parece ter vindo at� aqui, depois
de tantos anos, para se vingar de voc�?

� Mas eu... eu a matei... Ela deve me odiar.
� N�o odeio voc� � falou Judite com convic��o. � Do contr�rio,
n�o teria vindo at� aqui. Se vim, foi porque voc� pediu ajuda
e eu estava em condi��es de ajudar.
� N�o pedi ajuda a voc�...
� Pediu, sim � rebateu F�bio. � Quantas e quantas vezes
sua alma n�o pediu perd�o a Judite pelo que lhe fez em vida? N�o
� verdade?
� Isso � outra coisa. Estou arrependido. N�o devia ter feito o
que fiz. Eu estava enlouquecido pela raiva. N�o raciocinava direito.
Mas n�o pedi a ela que me ajudasse. Jamais faria isso.
� Por que n�o?

� Porque... porque n�o mere�o. Imagine se um assassino
como eu vai merecer o aux�lio justamente de sua v�tima? Eu n�o
teria esse atrevimento.
� Pois n�o � atrevimento nenhum � esclareceu Judite. � �
arrependimento sincero, primeiro passo para o perd�o, prepara��o
para o amor.
� Amor? Isso � demais para mim.
� O amor n�o � demais para ningu�m.
� Por que n�o vem conosco? � convidou F�bio. � Vai se
sentir melhor.
� N�o posso. N�o mere�o.
� Se n�o merecesse, a ajuda n�o teria chegado at� voc�.
� Tem certeza de que voc�s est�o aqui para ajudar?
� Por que n�o paga para ver?
� Tenho medo.
� O que tem a perder? Nada pode ser pior do que a vida que
leva aqui.
� Isso n�o � vida. � apenas a continua��o da morte.
� Que seja. Acha que pode existir um lugar pior que este? Ou
ser� que prefere continuar executando os servicinhos sujos de que
o incumbem, em troca de um pouco de droga?
� A droga me d� a sensa��o de vida.
� Como voc� mesmo disse, � apenas uma sensa��o. Voc� est�
morto, n�o tem mais um corpo de carne. Tudo que vem da mat�ria
f�sica, neste momento, � ilus�rio para voc�. S�o coisas que voc� plasma
ou cria com sua mente. � tudo parte de uma realidade reconstitu�da.
N�o � natural.
� Venha conosco � incentivou Judite. � Garanto que n�o ir�
se arrepender.
� H� drogas nesse lugar?
� N�o. H� conforto.
� E se eu sentir falta da droga?
� H� pessoas encarregadas de ajud�-lo nesse processo de desintoxica��o.
Ir�o ajud�-lo, voc� ver�.
� E se eu n�o suportar?
� Vai ter de se esfor�ar. Se voc� quiser mesmo mudar, libertar-
se do v�cio, vai precisar fazer uma forcinha. Mas ser� melhor do

que esse torpor em que voc� est� vivendo. Mais um pouco, e j� n�o
ter� nem mais um corpo flu�dico para lhe garantir a forma humana.
Quer virar uma massa disforme de energia, sem consci�ncia nem
vontade?

� N�o!
� Pois, ent�o, por que n�o se liberta desse jugo antes que isso
aconte�a?
� Vou ser bem tratado l�? N�o serei obrigado a fazer nenhum
tipo de servi�o degradante?
� N�o. Mais tarde, se voc� quiser, poder� trabalhar em prol de
seu crescimento e de seus semelhantes.
� Tem certeza?
� Absoluta.
J�nior pensou por alguns instantes, at� que se decidiu:
� Vou com voc�s. O que mais quero agora � readquirir um
pouco da dignidade perdida. Chega de ser tratado feito um bicho,
drogado feito um demente. Quero voltar a sentir a brisa da manh�
em meu rosto.
� D�-nos a m�o, ent�o � pediu F�bio, estendendo para ele
uma das m�os.
A seu lado, Judite estendeu a outra. J�nior ainda titubeou por
uns instantes, mas acabou colocando-se entre ambos e segurando
suas m�os. Na mesma hora, viu-se transportado a um mundo completamente
diferente daquele em que estava. Tudo ali era muito
branco, fresco e ensolarado. Inspirou profundamente, sentindo o ar
penetrar em seus pulm�es, aliviado e contente. Sentia-se agora
mais confiante. Sabia que n�o fora enganado. Fizera um grande mal
a Judite, mas ela falara a verdade quando lhe dissera que n�o lhe
guardava raiva. Queria mesmo ajud�-lo.

Alguns enfermeiros vieram ajud�-lo e conduziram-no a um
quarto muito limpo e perfumado. Deitaram-no na cama e ministraram-
lhe passes calmantes. A seu lado, Judite fitava-o com compaix�o.
J�nior estendeu a m�o para ela, e Judite apertou-a. Ele sentiu-
se seguro novamente, fechou os olhos e, enfim, adormeceu.


ep�logo


av�nia vinha chegando das compras e encontrou Pl�


nio e Eric prontos para sair, o marido dando o �ltimo retoque no
penteado. Eric, sentado na cama dos pais, aguardava pacientemente
at� que ele terminasse.

� V�o a algum lugar? � perguntou ela, curiosa.
� Vamos nos despedir de Romero � respondeu Eric. � � hoje
que ele vai para a Europa.
� Ah... Digam-lhe que mandei lembran�as.
N�o conseguia dizer mais. Desde que Eric acusara Rafael, n�o
se atrevera a encontrar-se com Romero. Ser-lhe-ia extremamente
penoso se ele continuasse vivendo em sua casa. N�o lhe guardava
rancor, por�m. Sabia que o que Rafael fizera fora muito s�rio, n�o
apenas para Romero mas, principalmente, para o filho.

Rafael saiu de casa, e ela raramente o via. Estava magoada e ferida,
tra�da em sua confian�a. Confiara cegamente no irm�o, e ele
lhe aprontara aquela perf�dia. Mais tarde, soube por interm�dio de
amigas que ele conseguira reerguer sua firma de arquitetura gra�as
a dinheiro emprestado ao banco utilizando-se do nome e do prest�gio
de Pl�nio. Disseram que ele estava mais interessado no trabalho,
mais respons�vel e menos irrequieto. Conhecera at� uma mo�a
direita, com quem andava saindo e falava at� em namoro s�rio.

Mesmo com Rafael longe, Lav�nia n�o conseguia encarar Romero.
Sentia-se envergonhada pelo que dissera e n�o se atrevia a
pedir-lhe desculpas. Fora preconceituosa e mesquinha, mas o orgu


349


lho ainda era um entrave para ela. Por mais que tentasse, n�o tinha
for�as para olh�-lo de frente. Por isso, preferia n�o se encontrar pessoalmente
com ele. As poucas vezes em que ele fora � sua casa, visitar
o marido e o filho, levando aquele amigo, ela dera uma desculpa
e sa�ra, permanecendo na rua at� que eles se fossem. Tinha
vergonha de si mesma.

Eric, por sua vez, dera-se muito bem com Mozart. Uma simpatia
m�tua e genu�na logo fluiu entre eles, e os dois conversaram
como se j� fossem velhos conhecidos.

S� que, agora, Romero ia partir. Pl�nio e Eric iam ao aeroporto
despedir-se, mas Lav�nia, n�o. Quando os dois estavam prontos,
ela lhes deu um beijo e pediu novamente que transmitissem a Romero
seus votos de uma boa viagem. Ainda era cedo, mas eles n�o
queriam atrasar-se e perder a oportunidade de abra�ar o amigo pela
�ltima vez.

Entrementes, Noemia tamb�m se preparava para sair. J� havia
terminado de se aprontar e verificava as coisas na cozinha.

� Aonde voc� vai toda arrumada desse jeito? � quis saber Silas,
fitando-a com ar desconfiado.
� Vou me despedir de meu filho no aeroporto.
� � hoje que ele vai embora?
� �, sim, e fiquei de ir ao embarque. Mas n�o se preocupe. Deixei
o jantar pronto nas panelas. � s� esquentar.
� A que horas parte o v�o?
� �s onze da noite.
� T�o tarde!
� V�o internacional � assim mesmo. Os hor�rios s�o todos
trocados. Deve ser por causa do fuso.
� Por que voc� vai agora, ent�o?
� J� s�o oito horas. N�o quero chegar l� e descobrir que ele j�
entrou na sala de embarque.
Voltou para o quarto e apanhou a bolsa. Conferiu o dinheiro
e deu um beijo de leve no rosto do marido.

� At� mais tarde. N�o se preocupe comigo.
� Vai voltar sozinha?
� O que posso fazer? Tomo um t�xi no aeroporto mesmo. Di

zem que os t�xis de l� s�o seguros. Bom, agora chega de conversa.
N�o quero me atrasar.
Beijou-o novamente e saiu, deixando Silas aparvalhado, parado
no umbral da porta.

No aeroporto, o movimento era intenso. No�mia seguiu as instru��es
que Mozart lhe dera, pediu algumas informa��es e encontrou
a �rea de embarque dos v�os internacionais. Romero e Mozart
estavam no balc�o da companhia a�rea, fazendo o check in, e ela parou
do lado de fora, esperando at� que eles terminassem.

� Mam�e! � exclamou ele, vendo-a parada perto de uma pilastra.
� Pensei que n�o viesse.
� Ora, Romero, como p�de pensar uma coisa dessas? N�o disse
que vinha?
� Romero ficaria desapontad�ssimo se a senhora n�o aparecesse
� informou Mozart.
� N�o podia deixar de vir me despedir de meu filho. E de voc�
tamb�m, Mozart, que j� considero como um filho tamb�m. Afinal,
v�o ser... � calou-se, confusa e envergonhada, e os dois riram do
rubor que lhe subia �s faces.
� N�o tem import�ncia, m�e. Mozart e eu, acima de tudo, somos
amigos.
� � isso mesmo, Dona No�mia. A senhora n�o precisa ficar
constrangida.
Olhando por cima do ombro da m�e, Romero avistou Pl�nio
chegando com Eric. O menino foi quem primeiro o viu e correu para
ele, atirando-se em seus bra�os. Romero rodou com ele no ar e estalou-
lhe um beijo na bochecha.

� Que bom que vieram tamb�m. Vou sentir muito sua falta,
Eric.
� E eu, a sua.
Pl�nio aproximou-se tamb�m e enla�ou-o num abra�o carinhoso
e paternal, e Romero encostou o rosto em seu ombro, enxugando
duas discretas l�grimas.

� N�o sinta vergonha de chorar por aqueles que ama � falou
Pl�nio. � S�o as l�grimas mais merecidas.
Romero n�o ag�entou e desabou num pranto sentido e emo



cionado. Chorava, n�o de tristeza, mas de pura emo��o. Via-se cercado
de amigos que realmente o amavam, que se importavam com
ele, o que o deixou bastante sensibilizado. Pl�nio puxou-o gentilmente
pelo bra�o, e foram juntar-se ao resto do grupo. Ficaram conversando,
at� que Mozart apontou para a frente e anunciou:

� Olhe s� quem vem vindo l�.
� N�o! � disse Romero, olhando at�nito para a figura que se
aproximava. � A senhora era a �ltima pessoa que esperava ver aqui.
� N�o podia deixar de me despedir. Voc� foi um caso muito
interessante, Romero.
Maria da Gl�ria abra�ou-o efusivamente, e ele correspondeu
com alegria. Contudo, n�o deixou de sentir uma pontada de tristeza.
N�o estava sendo sincero quando dissera que ela era a �ltima pessoa
que ele esperava ver. Na verdade, s� n�o contava com a presen�a
do pai.

� A que horas parte o v�o? � indagou Maria da Gl�ria.
� �s onze horas.
� � direto?
� N�o. Faremos uma conex�o em Paris, para Viena. De l�, iremos
de trem at� Salzburgo.
� Que maravilha! Desejo-lhes toda a felicidade do mundo.
� Obrigado.
As horas iam avan�ando. O grupo foi junto tomar um caf�, at�
que chegou a hora do embarque.

� J� s�o dez horas � avisou Mozart. � Est� na hora de ir.
� J�? � lamentou No�mia. � Que pena.
� N�o fique triste, Dona No�mia � confortou Mozart. � Voltaremos
no ano que vem.
� Quem sabe, m�e, voc� n�o poder� nos visitar um dia? � sonhou
Romero.
� Quem me dera... Mas n�o creio que isso seja poss�vel.
� N�o diga isso � objetou Pl�nio. � Quando a gente acredita,
consegue.
Chegaram ao port�o de embarque, e Romero abra�ou a todos
novamente, demorando-se um pouco mais nos bra�os de Pl�nio.
Aquele era o pai que jamais tivera. Soltou-o com l�grimas nos
olhos e virou-se para dentro, dirigindo-se para o port�o. Antes de


entrar, por�m, escutou algu�m gritar seu nome e voltou-se abruptamente.
Correndo pelo corredor do aeroporto, todo esbaforido, vinha
Silas, vermelho e agitando as m�os, gritando feito um louco:

� Romero! Romero! Espere, meu filho, n�o v� ainda!
O rapaz estacou onde estava, e Mozart teve de segur�-lo para
n�o cair. A �ltima pessoa no mundo que esperava ver ali aparecera
subitamente, contrariando todas as suas expectativas... mas n�o
sua esperan�a. Todos pararam para ver a cena. Silas chegou suado
e ofegante, quase sem conseguir falar.

� Pai... � balbuciou Romero. � Voc� veio...
� Quase n�o vim. Mas na �ltima hora me decidi. N�o podia
perder a oportunidade de rev�-lo, ainda que pela �ltima vez. J� estou
velho... sabe-se l� se o verei de novo algum dia...
� N�o diga isso. Voc� ainda � um homem forte.
� Sou um homem tolo, isso sim. Perdi os melhores anos de sua
vida, e sabe por qu�? Porque fui orgulhoso. Porque esperava de voc�
algo que voc� jamais poderia me dar. Queria que voc� seguisse meu
exemplo de virtude, aquilo que eu achava que era bom. Mas voc�
n�o quis, e eu o condenei por isso. N�o consegui compreend�-lo e
acho que ainda n�o compreendo. Mas vou me esfor�ar. Vou fazer o
poss�vel e o imposs�vel para entender por que voc� � assim. Os motivos
que levaram voc� a escolher esse tipo de vida ainda s�o muito
confusos para mim. Mas de uma coisa, agora, tenho certeza:
voc� � e sempre ser� o meu filho. N�o importa o que voc� fa�a.
� Pai...
Sem conseguir dizer nada, Romero abra�ou-o. E chorou, muito
mais do que j� havia chorado em toda a sua vida.

� Pode me perdoar? � continuou Silas, tamb�m em l�grimas.
� Pode perdoar um velho idiota e cabe�a-dura, que s� agora entendeu
o que � amar?
� N�o h� o que perdoar, pai. Voc� agiu conforme suas cren�as.
N�o se culpe por isso.
� Voc� � um bom filho � acrescentou emocionado, dando-lhe
tapinhas na face. � Depois de tudo que fiz, ainda quer me justificar.
Abra�ou-se a Romero novamente, chorando em seu ombro feito
uma crian�a. Como se arrependia do que fizera! Se pudesse, vol



taria no tempo e faria tudo diferente. Mas o tempo n�o voltava atr�s,
e era preciso aguardar at� que nova oportunidade surgisse.

Ouviram uma voz met�lica soar pelo alto-falante, anunciando

o v�o de Romero.
� Venha, Silas � chamou No�mia, tamb�m chorando. � Ele
precisa partir.
Silas soltou-se dele e beijou-o nas duas faces. Enxugou os olhos
e virou-se para Mozart, estendendo-lhe a m�o, que o outro apertou,
em sinal de amizade.

� Cuide bem de meu filho, rapaz � ordenou, com um misto de
gracejo e tristeza.
� Sen�o, vai se entender com o pai dele depois.
Todos riram, e Mozart respondeu com bom humor:

� Pode deixar, seu Silas, que cuidarei dele direitinho.
Foi um custo para que Romero conseguisse desvencilhar-se da
fam�lia e dos amigos. Uma parte de seu cora��o queria partir e outra
queria ficar. Tinha vontade de aproveitar a onda de afeto que
os atingira, mas sabia que n�o poderia viver sem Mozart. Seu lugar
era ao lado dele, e era com ele que iria ficar. Deu um �ltimo adeus
e entrou.

Depois que eles sumiram na sala de embarque, todos se dirigiram
ao terra�o para ver o avi�o partir. Em alguns minutos, viram o
avi�o movimentar-se e taxiar pela pista. A aeronave foi ganhando
velocidade, avan�ando at� elevar o nariz e erguer-se no ar. Romero
partia para o novo e o desconhecido.

Uma l�grima brilhou nos olhos de cada um dos presentes,
enquanto o avi�o subia cada vez mais alto, suas luzes piscantes de
encontro �s estrelas. Num �ltimo gesto de prematura saudade, ergueram
as m�os ao mesmo tempo e lhe acenaram adeus.

Fim


354


Sucessos de ZIBIA GASPARETTO

Cr�nicas e romances medi�nicos.
Mais de cinco milh�es de exemplares vendidos.
H� mais de dez anos Zibia Gasparetto vem se mantendo na lista
dos mais vendidos, sendo reconhecida como uma das autoras nacionais
que mais vende livros.


� Cr�nicas: Silveira Sampaio
PARE DE SOFRER
O MUNDO EM QUE EU VIVO
BATE-PAPO COM O AL�M
� Cr�nicas: Zibia Gasparetto
CONVERSANDO CONTIGO!
� Autores diversos
PEDA�OS DO COTIDIANO
VOLTAS QUE A VIDA D�
� Romances: Lucius
O AMOR VENCEU
O AMOR VENCEU (em edi��o ilustrada)
O MORRO DAS ILUS�ES
ENTRE O AMOR E A GUERRA
O MATUTO
O FIO DO DESTINO
LA�OS ETERNOS
ESPINHOS DO TEMPO
ESMERALDA
QUANDO A VIDA ESCOLHE
SOMOS TODOS INOCENTES
PELAS PORTAS DO CORA��O
A VERDADE DE CADA UM
SEM MEDO DE VIVER
O ADVOGADO DE DEUS
QUANDO CHEGA A HORA
NINGU�M � DE NINGU�M
QUANDO � PRECISO VOLTAR
TUDO TEM SEU PRE�O
TUDO VALEU A PENA

Sucessos de LUIZ ANTONIO GASPARETTO

Estes livros ir�o mudar sua vida!
Dentro de uma vis�o espiritualista moderna, estes livros ir�o
ensin�-lo a produzir um padr�o de vida superior ao que voc� tem,
atraindo prosperidade, paz interior e aprendendo acima de tudo
como � f�cil ser feliz-

ATITUDE
SE LIGUE EM VOC� (adulto)
SE LIGUE EM VOC� - n� 1, 2 e 3 (infantil)
A VAIDADE DA LOLITA (infantil)
ESSENCIAL (livro de bolso com frases para auto-ajuda)
FA�A DAR CERTO
GASPARETTO (biografia medi�nica)
CALUNGA - "Um dedinho de prosa"


CALUNGA - Tudo pelo melhor
CALUNGA - Fique com a luz...
PROSPERIDADE PROFISSIONAL
CONSERTO PARA UMA ALMA S� (poesias metaf�sicas)
PARA VIVER SEM SOFRER


s�rie CONVERSANDO COM VOC� (Kit contendo livro e fita k7):
1- Higiene Mental
2- Pensamentos Negativos
3- Ser Feliz
4- Liberdade e Poder


s�rie AMPLITUDE:
1- Voc� est� onde se p�e
2- Voc� � seu carro
3- A vida lhe trata como voc� se trata
4- A coragem de se ver


INTROSPECTUS (Jogo de cartas para auto-ajuda):
Modigliani criou atrav�s de Gasparetto, 25 cartas m�gicas com
mensagens para voc� se encontrar, recados de dentro, que a
cabe�a n�o ousa revelar.



OUTROS AUTORES

Conhe�a nossos lan�amentos que oferecem a voc� as chaves
para abrir as portas do sucesso, em todas as fases de sua vida.

LOUSANNE DE LUCCA:

� ALFABETIZA��O AFETIVA
MARIA APARECIDA MARTINS:

�PRIMEIRA LI��O - "Uma cartilha metaf�sica"
�CONEX� O - "Uma nova vis�o da mediunidade"
VALCAPELLI:

� AMOR SEM CRISE
VALCAPELLI e GASPARETTO:
�METAF�SICA DA SA�DE:
vol.1: sistemas respirat�rio e digestivo
vol.2: sistemas circulat�rio, urin�rio e reprodutor
vol.3: sistemas end�crino (incluindo obesidade), e muscular
MECO SIM�ES G. FILHO:

� EURICO um urso de sorte (infantil)
� A AVENTURA MALUCA DO PAPAI NOEL
E DO COELHO DA P�SCOA (infantil)

ELISA MASSELLI:

� QUANDO O PASSADO N�O PASSA
� NADA FICA SEM RESPOSTA
� DEUS ESTAVA COM ELE
� � PRECISO ALGO MAIS
RICKY MEDEIROS:

� A PASSAGEM
� QUANDO ELE VOLTAR
� PELO AMOR OU PELA DOR...
� VAI AMANHECER OUTRA VEZ
MARCELO CEZAR (ditado por Marco Aur�lio)

� A VIDA SEMPRE VENCE
� S� DEUS SABE
� NADA � COMO PARECE
� NUNCA ESTAMOS S�S
M�NICA DE CASTRO (ditado por Leonel):

� UMA HIST�RIA DE ONTEM
� SENTINDO NA PR�PRIA PELE
� COM O AMOR N�O SE BRINCA
� AT� QUE A VIDA OS SEPARE
� O PRE�O DE SER DIFERENTE

LUIZ ANTONIO GASPARETTO

Fitas K7 gravadas em est�dio, especialmente para voc�!
Uma s�rie de dicas para a sua felicidade.

� PROSPERIDADE:
Aprenda a usar as leis da prosperidade.
Desenvolva o pensamento positivo corretamente.
Descubra como obter o sucesso que � seu por
direito divino, em todos os aspectos de sua vida.
� TUDO EST� CERTO!
Humor, m�sica e conhecimento em busca do
sentido da vida.
Alegria, descontra��o e poesia na compreens�o
de que tudo � justo e Deus n�o erra.
� s�rie VIAGEM INTERIOR (1, 2 e 3):
Atrav�s de exerc�cios de medita��o mergulhe
dentro de voc� e descubra a for�a da sua ess�ncia
espiritual e da sabedoria.
Experimente e ver� como voc� pode desfrutar de'
sa�de, paz e felicidade desde agora.
� TOULOUSE LAUTREC:
Depoimento medi�nico de Toulouse Lautrec, atrav�s
do m�dium Luiz Antonio Gasparetto, em entrevista
a Zita Bressani, diretora da TV Cultura (SP).

� s�rie PRONTO SOCORRO:
Aprenda a lidar melhor com as suas emo��es, para conquistar
um maior dom�nio interior.

1. Confrontando o desespero
2. Confrontando as grandes perdas
3. Confrontando a depress�o
4. Confrontando o fracasso
5. Confrontando o medo
6. Confrontando a solid�o
7. Confrontando as criticas
8. Confrontando a ansiedade
9. Confrontando a vergonha
10. Confrontando a desilus�o
� s�rie CALUNGA:
A vis�o de um esp�rito, sobre a interliga��o de dois mundos,
abordando temas da vida cotidiana.


1. T� tudo b�o!
2. "Se mexa"
3. Gostar de gostar
4. Prece da solu��o
5. Semeando a boa vontade
6. Medita��o para uma vida melhor
7. A verdade da vida
8. "T� ni mim"
9. Quem est� bem, est� no bem
10. Sentado no bem
11.0 poder de constru��o do bem
� s�rie PALESTRA
I - A verdadeira arte de ser forte
2- A conquista da luz
3- Pra ter tudo f�cil
4- Prosperidade profissional (1)
5- Prosperidade profissional (2)
6- A eternidade de fato
7- A for�a da palavra
8- Armadilhas do cora��o
9- Se deixe em paz
10- Se refa�a
II - O teu melhor te protege
12- Altos e baixos
13- Sem medo de errar
14- Praticando o poder da luz em fam�lia
15- O poder de escolha

PALESTRAS GRAVADAS AO VIVO:

� s�rie PAPOS, TRANSAS & SACA��ES
1- Paz emocional
2- Paz social
3- Paz mental
4- Paz espiritual
5- O que fazer com o pr�prio sofrimento?
6- Segredos da evolu��o
7- A verdadeira espiritualidade
8- Vencendo a timidez
9- Eu e o sil�ncio
10- Eu e a seguran�a
11- Eu e o equil�brio
� s�rie PALESTRA AO VIVO
1 - Caia na real (fita dupla)
2- Casamento e liberdade (fita dupla)
3- Segredos da auto-estima (fita dupla)
4- A vida que eu pedi a Deus (fita dupla)
� LUZES
Colet�nea de 8 fitas k7. Curso com aulas captadas ao vivo, ministradas
atrav�s da mediunidade de Gasparetto.
Este � um projeto idealizado pelos esp�ritos desencarnados que
formam no mundo astral, o grupo dos Mensageiros da Luz.

LUIZ ANTONIO GASPARETTO EM CD:

� T�tulos de fitas k7 que j� se encontram em CD:
- Prosperidade
- Confrontando a ansiedade
- Confrontando a desilus�o
- Confrontando a solid�o
- Confrontando as cr�ticas
- Confrontando a depress�o
� s�rie REALIZA��O:
Uma cole��o de cds para todas as pessoas que est�o sinceramente
interessadas em aprender a melhorar.


LUIZ ANTONIO GASPARETTO

em v�deo

� SEXTO SENTIDO
Conhe�a neste v�deo um pouco
do mundo dos mestres da pintura,
que num momento de grande ternura
pela humanidade, resolveram voltar
para mostrar que existe vida al�m da vida,
atrav�s da mediunidade de Gasparetto.
� MACHU PICCHU
Visite com Gasparetto a
cidade perdida dos Incas.
� s�rie V�DEO & CONSCI�NCIA
Com muita alegria e arte, Gasparetto
leva at� voc�, numa vis�o metaf�sica,
temas que lhe dar�o a oportunidade de
se conhecer melhor:
O MUNDO DAS AMEBAS
JOGOS DE AUTO-TORTURA
POR DENTRO E POR FORA

ESPA�O VIDA & CONSCI�NCIA

Acreditamos que h� em voc� muito mais condi��es de cuidar
de si mesmo do que voc� possa imaginar, e que seu destino depende de
como voc� usa os potenciais que tem.

Por isso, atrav�s de PALESTRAS, CURSOS-SHOW e BODY
WORKS, GASPARETTO prop�e dentro de uma vis�o espiritualista moderna,
com m�todos simples e pr�ticos, mostrar como � f�cil ser feliz e
produzir um padr�o de vida superior ao que voc� tem. Faz parte tamb�m
da programa��o, o projeto VIDA e CONSCI�NCIA. Este curso � realizado
h� mais de 20 anos com absoluto sucesso. Composto de 8 aulas,
tem por objetivo inici�-lo no aprendizado de conhecimentos e t�cnicas
que fa�am de voc� o seu pr�prio terapeuta.

Participe conosco desses encontros onde, num clima de descontra��o
e bom humor, aprenderemos juntos a atrair a prosperidade e
a paz interior.

Maiores informa��es:

Rua Salvador Sim�es, 444 � Ipiranga � S�o Paulo � SP

CEP 04276-000 � Fone Fax: (11) 5063-2150

E-mail: espaco@vidaeconsciencia.com.br

Site: www.vidaeconsciencia.com.br


INFORMA��ES E VENDAS:


Rua Agostinho Gomes, 2312
Ipiranga � CEP 04206-001
S�o Paulo � SP � Brasil
Fone / Fax: (11) 6161 -2739 / 6161 -2670
E-mail: editora@vidaeconsciencia.com.br
Site: www.vidaeconsciencia.com.br





De: Reginaldo Mendes 

Olá, pessoal:

                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação  e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.

                   Agradecemos ao Irmão Fernando pela doação e digitalização.

                   Pedimos que não divulguem em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.

 OBSERVAÇÃO: Encontramos na web este livro com páginas pdf até 280 a nossa  digitalização é 365. Não comparei para vê  se foi metodologia de digitalização  ou alguma outra coisa que desconhecemos.

O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !

Desejamos a todos uma boa   leitura !

O Preço de Ser Diferente - Mônica de Castro

 Sinopse:

Romero, um rapaz muito sensível, que apreciava poesias é violentado por um desconhecido. Seu pai, Silas, muito preconceituoso, o proíbe de contar seu drama à outras pessoas. Romero conhece Mozart e surge uma grande amizade. A sociedade, criando um modelo de normalidade, criou uma guerra antropológica com a natureza humana. Cada um de nós é único e quem resolve seguir o modelo, contra sua vontade, ilude-se, bloqueando a expressão de sua alma, criando insegurança, doença, desilusão e sofrimento. Quem assume sua verdade e age de acordo com os valores da Vida, mesmo enfrentando o preconceito e pagando o Preço de Ser Diferente, passa credibilidade, obtém respeito e se realiza. Nesta obra o leitor vai perceber que fraternidade é o resultado da capacidade de apreciar as diferenças.

Lançamento: GrupO Mente Aberta

https://groups.google.com/forum/?hl=pt-BR#!forum/grupo-de-livros-mente-aberta

Nosso grupo parceiro: Grupo Espírita Allan Kardec

https://groups.google.com/forum/?hl=pt-br#!forum/grupo-espirita-allan-kardec



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