quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

para verônica e kem mais kiser: Nora Roberts - A Flor de um Mistério ( Irish Rose).txt

O MISTÉRIO DE UMA FLOR
Momentos Íntimos nº. 205
Copyright: Nora Roberts
Título original: The Irish Rose
Originalmente publicado em 1988
Digitalização: m_nolasco73

Contra-capa: Burke quer de Erin apenas uma noite fortuita de amor!
Erin está decidida a viver esse jogo de amor e de sedução. Sabe que não receberá nada de Burke, mas seu corpo precisa dele com urgência. Tem de ser assim,
pensa Erin, e tem de bastar, pois nunca Burke lhe ofereceria mais. Decidida, aperta-se contra ele, oferecendo-se com volúpia.
Burke, então, a beija com fúria e sofreguidão, os lábios famintos dominando Erin.
E o amor se faz, num ritmo quente e alucinado. Nos braços desse homem, Erin percebe que o jogo que tramara', poderia levá-la à autodestruição, poderia levá-la
à loucura!


CAPÍTULO I

A Irlanda é uma terra de contrastes: rebelde e poética, apaixonada e taciturna, berço de gente forte, que luta por suas crenças, combate teimosamente até
por causas perdidas e é famosa por sua generosidade. Assim é a terra de Erin, como a chamavam os antigos gaélicos.
Ela também se chamava Erin, Erin McKinnon, e, como a terra, ocultava a vontade de ferro sob a pele de veludo. Seus sonhos eram doces, e as ambições desmedidas.
Erin McKinnon, muito nervosa, observava as idas e vindas daquela gente de sorte, no Aeroporto de Cork que podia viajar.
Londres, Nova York, Paris. O sol reverberava nos metais dos aviões e, separada da pista por um vidro espesso, Erin tentava se concentrar no que viera fazer
ali. Pela centésima vez passou a mão pelos cabelos, ajeitou o casaco, alisou a saia.
Agradeceu a Deus o fato de a mãe ser tão hábil com uma agulha, pois a última coisa que queria era parecer desleixada, acanhada ou... pobre. O azul profundo
do tailleur combinava com os olhos, realçando a brancura da pele. Verdade que o conjunto era um tanto conservador para seu gosto, apagava-lhe um pouco a graça petulante,
mas Erin se vestira para parecer competente, capaz, e com o mesmo objetivo conseguira domar amassa rebelde de cabelos vermelho-escuros num coque apertado na nuca.
Para maior sofisticação, havia atenuado com pó-de-arroz a profusão de sardas, e os lábios mostravam um rosa mais escuro que o normal. Quase nada de sombra
azul nos olhos, e nas orelhas os adoráveis brincos em forma de crescente, herança da avó.
Erin tinha certeza de não estar com cara de prima pobre, o que era um alívio, pois possuía o orgulho dos McKinnon. A sorte podia não ter lhe sorrido como
sorrira para a prima, mas nem por isso era obrigada a despertar sentimentos de caridade ou até, horror dos horrores, pena.
"Lá vêm eles", pensou, e teve de engolir em seco, observando o jatinho elegante que gente rica e poderosa tinha condições de alugar para cobrir o trajeto
da cidade mais importante de Curragh até Cork. Erin imaginou como seria estar lá dentro, bebericando champanhe ou algo ainda mais exótico. Imaginação era o que não
lhe faltava, e sim meios para tornar as imagens reais.
Uma mulher rústica, de cabelos brancos de neve, desembarcou primeiro. Trazia pela mão uma garotinha ruiva de cinco anos, que por sua vez carregava uma bruxa
de pano que já havia visto dias melhores. Mal tocaram o chão e atrás delas, quase por cima de todos, saltou um garoto que recebeu com um sorriso travesso a reprimenda
da mulher. Devia ser Brendon, o filho mais velho de Adélia, pensou Erin cheia de simpatia, e a menina era Keeley.
Reconheceu o homem alto que desembarcou em seguida: Travis Grant, casado havia sete anos com Adélia, criador de puros-sangues e dono do haras Royal Meadows.
Ele sorriu para o filho, que o esperava impaciente na pista. Belo sorriso, pensou Erin. Só o havia visto uma única vez, por pouco tempo, quatro anos antes quando
ele trouxera a esposa para visitar a Irlanda. E, desde aquela época, decidira que Travis era autoconfiante e confiável, excelente marido para uma mulher que soubesse
onde tinha a cabeça.
Ele trazia outra criança no colo, um menino de cabelos escuros, que sorria olhando para o céu de onde acabava de descer. Travis o colocou no chão. Virou-se
e estendeu a mão.
O sol fez cintilar a cabeleira de Adélia assim que ela passou pela porta, enfeitando com luzes vermelhas o castanho que emoldurava o rosto sorridente. Travis
a pegou pela cintura e a depôs no chão com o cuidado devido a uma mulher de porte delicado que mal lhe chegava ao ombro, e obviamente grávida. Ela desmanchou o pequeno
tableau doméstico colocando-se nas pontas dos pés e beijando o marido com o ardor de uma amante.
Um arrepio de inveja percorreu Erin, que não se reprimiu. Nunca tentava reprimir seus sentimentos; antes, estimulava-os a irem até o limite, sem se importar
com as conseqüências.
Por que não deveria invejar Dee? Adélia Cunnane, a pequena órfã da pequena aldeia de Skibbereen, era digna de inveja, e Erin tinha intenções de algum dia
vir a sê-lo também.
Endireitou os ombros e já partia na direção dos primos quando outra figura emergiu do avião. Com certeza mais um empregado, pensou, olhando demoradamente
para o homem e chegando à conclusão de que se enganara: aquele não era empregado de ninguém.
Saltou imponentemente para o chão, uma cigarrilha segura entre os dentes. Devagar, um pouco desconfiado, olhou ao redor. Como um gato, pensou Erin, um gato
num lugar estranho. Os olhos estavam escondidos por óculos escuros, mas tudo indicava que também seriam felinos, intensos e penetrantes.
Tão alto quanto Travis, tinha o corpo mais esguio e longilíneo. Esquivo. Quando se inclinou para falar com uma das crianças, o movimento foi descontraído
mas não descuidado. Os cabelos escuros cresciam para além do colarinho da camisa de brim azul. Usava botas e jeans desbotados, o que não fez com que Erin chegasse
à conclusão de não estar olhando para um capataz. Mais do que alguém que trabalhava na terra, parecia dono dela.
O que um homem como aquele estaria fazendo numa viagem junto com a família de Dee? Pouco à vontade com a surpresa, Erin empurrou um grampo do cabelo que ameaçava
escorregar-lhe pelo pescoço. Se fosse parente de Travis Grant, então estava tudo certo.
Entretanto, o estranho não se parecia com Travis, a não ser pela cor morena. Travis não tinha aquele aspecto quase satânico, cheio de ângulos, nem a elegância
atrevida, das ilustrações do diabo nos livros de catecismo.
"Antes governar o inferno do que ser governado no céu."
Sim... pela primeira vez os lábios de Erin esboçaram um sorriso. Sacudindo a cabeça, adiantou-se para cumprimentar a família.
O menino Brendon veio na frente, correndo pela porta com um sapato desamarrado e os olhos acesos de curiosidade. Com rapidez surpreendente, atrás veio a mulher
de cabelos brancos.
- Fique quieto, menino danado. Não vou deixar que se perca outra vez.
- Só estou querendo ver, Hannah - foi a resposta desinibida do garoto, quando foi seguro pela mão.
- Vai ver assim que chegar a hora. Pare de preocupar sua mãe, e você também, Keeley, fique quieta.
- Tá bom - concordou a menina, olhando em volta com a mesma curiosidade do irmão, mas menos agitada. Reparou em Erin, e sem nenhuma timidez interpelou-a sorrindo.
- Olha ela lá. Nossa prima Erin, igual à fotografia. Você é nossa prima Erin, não é? Eu sou a Keeley. A mamãe falou que você vinha esperar agente.
Encantada, Erin se curvou para segurar o queixo da menina, já se sentindo menos nervosa.
- Sim, sou Erin, e da última vez que a vi você era uma coisinha deste tamanho, toda enrolada num cobertor e berrando alto o suficiente para acordar os mortos.
Keeley arregalou os olhos e anunciou:
- Ela fala igual à mamãe. Hannah, venha ver. Ela fala igualzinha à mamãe.
Hannah ofereceu uma das mãos, mantendo a outra firme no ombro de Brendon.
- Prazer em conhecê-la, srta. McKinnon. Sou Hannah Blakely, governanta de sua prima.
Governanta, pensou Erin, correspondendo ao cumprimento. As Cunnane que conhecera poderiam ter sido governantas, mas nunca haviam sequer sonhando em ter uma.
- Bem-vinda à Irlanda. E você deve ser Brendon.
- Já estive na Irlanda antes, mas desta vez vim pilotando o avião.
- Mesmo? Bem, você cresceu um bocado desde a última vez que o vi - respondeu Erin, examinando as feições graciosas e os profundos olhos verdes do menino.
Devia ser terrível, pensou, como sua mãe dizia que Adélia sempre fora.
- Sou o mais velho. O nenê agora é Brady.
- Erin?
Adélia adiantou-se num passo rápido, apesar da gravidez adiantada. Abraçou a prima com força, feliz.
- Oh, Erin, é tão bom estar de volta, tão bom te ver. Deixe-me olhar para você.
Não havia mudado nada, pensou Erin. Adélia devia estar perto dos trinta anos, mas aparentava menos. Ainda usava os belos cabelos compridos e soltos. O prazer
em seu rosto era tão genuíno, tão vital, que Erin sentiu sua própria reserva se desmontar.
- Você está maravilhosa, Dee. A América tem lhe feito bem.
- E a menina mais bonita de Skibbereen se tomou uma linda mulher. Oh, Erin, Como é bom chegar em casa. Lembra-se de Travis?
As palavras se precipitaram, entremeadas de beijos nas bochechas de Erin e sem lhe soltar a mão.
- Claro que sim. É bom vê-lo de novo.
Travis beijou-lhe o rosto.
- Você cresceu nesses quatro anos. E ainda não conhece Brady - disse ele, apontando para o menino que tinha um braço ao redor do pescoço do pai e encarava
Erin com atenção.
- Não conhecia, não. Mas é a cara do pai. Você é um menino simpático, primo Brady.
Ele sorriu e escondeu o rosto. Passando a mão pelos cabelos do garoto, Adélia comentou:
- E tímido, diferente do pai. Erin, foi tão gentil de sua parte se oferecer para vir nos encontrar e levar-nos ao hotel.
- Não é sempre que recebemos visitas. Eu trouxe a perua. Você sabe como é complicado alugar um carro por aqui, por isso vão ficar com ela enquanto forem nossos
hóspedes.
Erin sentiu uma comichão na nuca enquanto falava, como um aviso. Fez meia-volta e encarou o homem de rosto magro que havia visto descer do avião. Adélia apressou-lhe
a dizer:
- Erin, este é Burke. Burke Logan, minha prima, Erin McKinnon.
- Sr. Logan - disse Erin, inclinando muito pouco a cabeça, decidida a não olhar para seu próprio reflexo nas lentes escuras dos óculos.
- Srta. McKinnon - sorriu ele, e logo voltou a morder a cigarrilha.
Incomodada pelo fato de saber que ele a observava por detrás daquelas lentes cegas, Erin dirigiu-se a Adélia.
- Vocês devem estar cansados, o carro está bem ali na frente. Vou levá-los para lá, depois tratamos de bagagem.
Burke deixou-se ficar um pouco para trás enquanto atravessavam o aeroporto acanhado, para observar melhor o ambiente. Seu primeiro objeto de atenção foi Erin
McKinnon.
A figura harmoniosa, a longas pernas que se moviam sob a saia discreta o fizeram lembrar-se de um puro-sangue, uma potranca nervosa prestes a disparar. Disparar
para onde?
Burke aprendera algumas informações sobre Erin nas conversas durante a viagem desde os Estados Unidos e de Curragh até aquele pequenino ponto no mapa. Os
McKinnon e os Cunnane não eram parentes próximos. Pelo que se podia deduzir, a mãe de Adélia e a mãe da muito interessante Erin McKinnon haviam sido primas em terceiro
grau, que cresceram em fazendas vizinhas.
Burke sorriu quando Erin se virou para olhá-lo, desconfiada. Se Adélia Cunnane Grant achava que ela e os McKinnon pertenciam à mesma família, não seria ele
a contrariá-la. De sua parte, preferia evitar os laços de família, em vez de estreitá-los.

Erin engatou a marcha com a energia que teria usado para colocar aquele sujeito descarado no seu devido lugar. A bagagem estava arrumada, as crianças tagarelavam
e, como motorista, Erin sentia-se responsável por todos. Nada de ceder ao temperamento explosivo.
Via-o pelo espelho retrovisor, as pernas ocupando o estreito espaço entre os bancos, o braço apoiado nas costas da poltrona muito gasta... e os olhos fixos
nela. Por mais que tentasse, ficava cada vez mais difícil se concentrar nas perguntas de Adélia sobre a família.
Sim, todos iam bem. Sim, a fazenda produzia o suficiente. Sim, as MacBride ainda se vestiam todas de vermelho. Santo Deus, ele jamais desviaria aquele olhar?
Pois então que olhasse, se fazia tanta questão de se mostrar grosseiro. E Erin, num gesto decidido, arrumou outro grampo que escorregava do penteado.
Também queria fazer perguntas, e a primeira delas era quem seria esse tal de Burke Logan. Distraiu-se, dividida entre a atenção à estrada esburacada, Logan
e as perguntas de Adélia, que recomeçavam:
- Então, Cullen ainda não casou.
- Cullen? Ah, sim. Não. Para enorme desgosto de minha mãe, continua solteiro. Vez por outra vai a Dublin tocar e cantar suas composições. Oh, desculpem, acertei
o buraco em cheio.
- Não foi nada.
- Tem certeza, Dee? Fico pensando se não é perigoso para você fazer uma viagem tão longa.
- Estou forte como os cavalos de Travis, e faltam meses para que nasçam - respondeu a prima, apalpando a barriga arredondada.
- Nasçam?
- Sim, desta vez vão ser gêmeos. Faz tempo que ando querendo.
- Gêmeos - repetiu Erin, sem saber se devia levar um choque ou ficar encantada.
Adélia acomodou-se melhor no banco e olhou para trás, verificando que os filhos menores já cochilavam, enquanto Brendon tentava travar uma árdua, porém inglória,
batalha contra as pálpebras que se fechavam. Voltando a Erin, acrescentou:
- Eu sempre quis uma família grande como a sua.
- E pelo jeito vai conseguir. Que o bom Deus tenha piedade de você - brincou Erin, quando já entravam na aldeia.
Adélia riu e dedicou-se a saborear a vista e os sons de sua infância.
As casas ainda eram bonitas, apenas um pouco mais velhas. Canteiros de grama alta e verde destacavam-se contra a terra morrom-escura. A placa no pub da aldeia,
o Shamrock, oscilava e gemia à brisa com gosto de chuva e mar.
Ao longe ficavam os altos rochedos, recortados pela erosão do mar selvagem. Adélia lembrava-se das vezes que ficara olhando a chegada dos barcos de pesca,
a ansiedade dos tripulantes em pendurar as redes para secar e a euforia em se dirigir ao pub para molhar a garganta seca.
A conversa ali variava de pescarias para fazendas, de bebês para namoros.
Lar. Adélia olhou pela janela aberta. Seu lar, sua terra natal: um modo de viver, um lugar que nunca deixara de ocupar terreno no coração. Viu uma carroça
de feno. A cor e o perfume doce eram os mesmos em seus estábulos na América.
Mas estava na Irlanda, e por isso o feno parecia mais colorido e mais perfumado que em qualquer outro lugar do mundo.
- Nada mudou.
Erin parou o veículo e olhou ao redor. Conhecia cada centímetro quadrado da aldeia, e cada fazenda num perímetro de cinqüenta quilômetros. Na verdade, aquilo
era tudo o que conhecia do mundo.
- Esperava que tivesse mudado? Nada nunca muda por aqui.
Dee desceu do automóvel. Queria sentir o chão que pisara na juventude sob os pés, encher os pulmões com o ar de Skibbereen.
- Lá está a mercearia de O'Donnelly. Ainda é o dono?
- O bode velho morrerá atrás do balcão, contando o último vintém.
Rindo, Dee tirou Brady do colo de Travis e o afagou, enquanto o menino se aninhava em seu ombro.
- Então também não mudou nada, como a terra. Travis, veja a igreja onde vínhamos todo domingo assistir à missa. O velho padre Finnegan fazia sermões intermináveis.
Ainda faz, Erin?
- Ele morreu, Dee, há mais de um ano, - respondeu a prima, guardando as chaves do carro na bolsa. Reparando no desapontamento de Dee, acariciou-lhe a face
de leve antes de prosseguir: - Tinha mais de oitenta anos, moça, e morreu dormindo tranqüilamente.
- Foi ele quem enterrou mamãe e papai. Nunca esquecerei como foi bom para mim.
- Temos um padre jovem, mandado de Cork, e garanto que ninguém dorme durante seus sermões. Conseguiu fazer de Michael Ryan um temente a Deus, e o homem vem
à missa, sóbrio, todo domingo de manhã. - Erin voltou-se para ajudar com a bagagem e deu um encontrão em Burke, que a segurou pelo ombro, como se para ajudá-la a
equilibrar-se, mas não tirou a mão durante muito tempo.
- Desculpe.
- A culpa foi minha - respondeu ele, sorrindo.
Tirando duas malas pesadas do bagageiro disse a Travis:
- Por que não leva Dee e as crianças para dentro? Eu resolvo isto aqui.
- Obrigado, vou cuidar do nosso registro. Erin, veremos você e a sua família à noite?
- Sem a menor sobra de dúvida. Dee, é melhor que você descanse agora, ou mamãe vai deixá-la louca, tentando tomar conta de você.
- Precisa ir embora? Não pode entrar um pouco?
- Tenho de tomar algumas providências. Agora vá, ou as crianças vão dormir aqui mesmo na calçada. Até breve.
Sob os protestos de Brendon, Hannah levou todos para dentro. Erin virou-se, pegou mais duas maletas e começou a descarregá-las. Passou-lhe pela cabeça que
roupas caras deviam pesar mais que as comuns.
O interior do hotel tinha pouca luz, mas muita algazarra. O alvoroço de receber hóspedes da América já durava uma semana. Toda madeira fora encerada, o piso
esfregado. Quando Erin entrou, a velha sra. Malloy levava Dee para o andar superior, desfiando um rosário de reminiscências. Ofereceram a todos chá quente e biscoitos
e as crianças foram tratadas com grande deferência. Percebendo que os havia deixado em boas mãos, Erin saiu.
O vento oeste havia dissipado as nuvens da manhã, deixando, como era freqüente na Irlanda, uma luz perolada no ar. Erin parou um momento para estudar a paisagem
que tanto havia fascinado a prima. Uma aldeia comum, parada, tranqüila, povoada de homens e mulheres trabalhadores. De quase qualquer ponto da cidadezinha podia-se
ver o porto acanhado, onde atracavam os barcos carregados de peixe, cujo cheiro muitas vezes se espalhava pelas ruas. As frentes das lojas eram bem cuidadas, motivo
de orgulho para os proprietários. Ninguém trancava as portas. Era o costume.
Ali todos conheciam Erin, e ela conhecia todo mundo. Os segredos que porventura surgissem não ficavam secretos durante muito tempo, mas eram passados adiante
como doces proibidos a serem saboreados entre suspiros.
E Erin queria tanto fazer algo diferente antes de morrer! Queria ver cidades grandes, cheias de vida, anônimas. Queria caminhar por uma rua onde ninguém soubesse
quem ela era, ninguém que se incomodasse em saber como vivia. Uma vez, pelo menos uma vez na vida, queria fazer algo inesperado, impulsivo, que não repercutisse
como um eco na língua da família e dos vizinhos. Uma vez, pelo menos.
A batida da porta da perua trouxe de volta a realidade na forma de Burke Logan que, encostando-se no pára-lama, puxou o isqueiro e acendeu a cigarrilha, apagada
até então em respeito ao estado de Dee. Olhos fixos em Erin, comentou:
- Você e a sra. Grant não são muito parecidas.
Era a primeira vez que juntava mais de duas palavras numa frase. Erin reparou que tinha um sotaque diferente do de Travis. As palavras vinham mais devagar,
como sem pressa de acabar a frase. Como a moça não dissesse nada, continuou:
- Talvez nos cabelos, mas os dela são mais parecidos com o castanho do potro premiado de Travis, enquanto os seus... têm a cor do criado-mudo de mogno do
meu quarto. Um lindo criado-mudo, por sinal.
Erin tirou as chaves da bolsa e disparou:
- Um elogio adorável, sr. Logan, mas não sou nem cavalo nem móvel. Olhe, vou deixar estas chaves com o senhor.
Em vez de pegá-las, ele cobriu-lhe a mão com a sua, as chaves no meio. Tinha a palma áspera. Logan apreciou a maneira como Erin reagiu, inabalável, a sobrancelha
erguida, mais por desdém que por sentir-se ofendida.
- Deseja mais alguma coisa, sr. Logan?
- Sim, te dar uma carona.
- Não será preciso, qualquer pessoa indo naquela direção pode me levar - respondeu ela, cerrando os dentes e acenando com a cabeça ao ver duas das mexeriqueiras
mais famosas da cidade passarem. Erin Mckinnon de mãos dadas com um estranho no meio da rua seria a manchete do jornal da tarde, com toda certeza.
- Pois eu vou para aquela direção, seja qual for, já falei com Travis. E não se preocupe, estou quase acostumado a dirigir do lado errado da estrada.
- São vocês que dirigem do lado errado - questionou Erin e, depois de uma breve hesitação, entrou pela porta que ele abriu assim que soltou sua mãe. Afinal
de contas, tinha muito o que fazer, e não era sensato perder tempo.
Burke acomodou-se no assento do motorista, virou a chave no contato e disse:
- Seus grampos estão escorregando.
Erin ergueu as mãos e consertou o penteado.
- Dobre à esquerda na encruzilhada e siga por cinco quilômetros - disse, e pousou as mãos no colo, decidindo que já havia falado o suficiente.
- Bela região, assim perto do mar - comentou Burke, olhando as colinas verdes varridas pelo vento. Abrunheiros cresciam um tanto inclinados por causa da brisa
constante. As urzes formavam macios tapetes lilases, e a distância se elevavam montanhas escuras e misteriosas.
- É, bem perto do mar.
- Não gosta de americanos?
- Não gosto de homens que ficam me encarando.
- Isso reduz muito o número de homens pelos quais possa se interessar.
- Os homens que conheço são educados, sr. Logan.
Ele gostou da maneira como ela lhe pronunciava o nome, com apenas um toque de irritação.
- Pior para eles. A mim ensinaram olhar bem para tudo que me interessasse.
- Considera isso um elogio?
- Apenas um comentário. É esta a encruzilhada?
Sim. Trabalha para Travis? - disse Erin, esforçando-se para não perder a paciência.
- Não. Acho que posso dizer que Travis e eu somos sócios. Sou dono da fazenda vizinha à dele - respondeu Logan, aspirando satisfeito o perfume forte da Irlanda,
e o perfume mais suave, mas igualmente telúrico da mulher a seu lado.
- Cria cavalos de corrida?
- No momento.
Erin franziu os lábios, imaginando-o nas pistas, entre o ruído e o cheiro de cavalos. Combinava. Impossível era vê-lo atrás de uma escrivaninha, ocupado com
contabilidade e livros-caixa.
- A fazenda de Travis vai muito bem.
- É o seu jeito de perguntar sobre a minha?
- Não creio que seja de minha conta - disse Erin, empinando o queixo.
- Na verdade, não. Mas estou me saindo bem. Não pertenço ao ramo desde que nasci, como Travis, mas me agrada... por enquanto. Eles a levariam para a América
se pedisse.
Erin não entendeu a conexão a princípio. Em seguida abriu a boca, surpresa, voltando-se para ele. Burke soltou uma baforada de fumaça que desapareceu pela
janela.
- Reconheço uma alma inquieta quando vejo. Você está doente de vontade de sair dessa manchinha no mapa, onde nasceu. Que para mim, se quer saber, tem seus
encantos.
- Ninguém lhe perguntou.
- Tem razão, mas é difícil ignorar quando você olha em volta como se desejasse mandar tudo para o inferno.
- Não é verdade - replicou Erin, sabendo que, no fundo, era.
- Tudo bem, vamos dizer então que é você que gostaria de estar em outro lugar qualquer. Conheço bem a sensação, Irlandesa.
- Não sabe como me sinto. Não me conhece em absoluto. A resposta veio num murmúrio.
- Melhor do que você pensa. Está se sentindo presa, sufocada, abafada? Olhando para a mesma paisagem desde o dia em que nasceu e se perguntando se será a
última coisa que vai ver antes de morrer? Se perguntando por que não cai fora, molha a ponta do polegar e segue na direção que o vento soprar? Quantos anos tem,
Erin McKinnon?
- Vinte e cinco, e daí? - reagiu incomodada por ele parecer enxergar dentro dela.
- Eu tinha cinco a menos quando molhei o polegar. E não posso dizer que esteja arrependido.
- Bem, sinto-me feliz pelo senhor, sr. Logan. Agora, se diminuir a marcha, ali está o caminho de casa. Pode parar, eu sigo a pé.
- Como quiser.
Erin já estava quase descendo quando ele a segurou pelo braço para dizer:
- Reconheço a ambição ao primeiro olhar porque é a primeira coisa que o espelho me mostra todas as manhãs. Alguns consideram-na pecado. Sempre achei que é
uma bênção.
- Posso saber por que está dizendo tudo isso, sr. Logan?
- Você é bonita, Erin. Seria uma pena marcar esse rosto com rugas de frustração. Tudo de bom para você - e se despediu, levando a mão à aba de um chapéu imaginário.
Sem saber se fugia de Logan ou de seus próprios demônios, Erin saiu do carro, bateu a porta e disparou pela estradinha de terra.

CAPÍTULO II

A família estava reunida no salão de jantar do hotel da sra. Malloy. O ambiente recendia boa comida e a uísque, brilhava com todas as luzes acesas, vibrava
ao som de risadas, de vozes erguendo um brinde ocasional, do retinir de pratos e talheres, e do arrastar de cadeiras.
Erin comeu pouco, e não porque os irmãos a interrompessem constantemente, pedindo-lhe para passar uma coisa e outra. O fato é que ainda não havia parado de
pensar nas palavras que Burke dissera à tarde.
Estava realmente insatisfeita, e irritada por saber-se incapaz de ocultar de um estranho o que escondia tão bem da família. E o pior era que cada vez sentia
menos culpa por isso. Claro que haviam lhe ensinado que inveja era pecado, mas...
Ora bolas, ela não era santa nem queria ser. A inveja que sentia ao.ver Dee aconchegada ao marido era saudável, não pecaminosa. Afinal, não desejava ver a
prima infeliz. Só queria ser feliz também. Não era possível que alguém fosse condenada ao inferno só por desejar ser feliz. Entretanto, duvidava que tais desejos
fizessem crescer asas nas costas...
No fundo do coração, estava feliz por os Grant terem vindo. Por alguns dias poderia ouvir as histórias que contavam da América e formar sua própria imagem
da terra. Poderia fazer perguntas e visualizar o casarão de pedra onde Dee vivia e quase participar da emoção do mundo das corridas de cavalo. E, quando eles fossem
embora, tudo voltaria à rotina de sempre.
Mas não para sempre, Erin prometeu a si mesma. Não, de jeito nenhum. Dentro de um ano, talvez dois, teria economizado o suficiente para partir para Dublin.
Arranjaria emprego num escritório e um apartamento só para ela. E ninguém a impediria de realizar aquele sonho.
Os lábios de Erin começaram a se curvar diante da idéia, mas então os olhos cruzaram com os de Burke, do outro lado da mesa. Ele estava sem óculos, e os olhos
cinzentos, intensos, a perturbavam ainda mais do que as lentes escuras. Olhos de lobo, mortiços, pacientes e manhosos. Se ele achava que podia intimidá-la, estava
muito enganado. Sustentou o olhar.
O barulho e a confusão à volta da mesa continuou, mas Erin deixou de perceber. O que a atraía tanto naqueles olhos? A expressão divertida ou a arrogância?
Talvez fosse a combinação das duas, talvez fosse porque ambas as expressões pareciam confirmar que Erin, quisesse ou não, sentia alguma coisa pelo dono daqueles
olhos.
Uma rosa irlandesa, pensou Burke. Não estava certo de já ter visto uma rosa irlandesa em sua vida, mas sabia que deviam ter espinhos, e pontiagudos. Uma rosa
irlandesa, uma rosa selvagem, não poderia ser frágil nem exigir tratamento cuidadoso. Teria de ser robusta, forte e teimosa o suficiente para sobreviver fora das
estufas. Uma flor que Burke achava que podia respeitar.
E gostava da família daquela rosa. O sal da terra, isso eles eram. Simples, mas não simplórios. Aparentemente a fazenda progredia, desde que trabalhassem
sete dias por semana. Mary McKinnon também dirigia uma pequena oficina de costura, mas naquele jantar estava mais interessada em discutir com Dee sobre crianças
do que sobre moda. Os irmãos eram loiros, exceto o mais velho, Cullen, um guerreiro moreno com voz de poeta. E Burke havia adivinhado que aquele era o favorito de
Erin. Continuava a observá-la, desejando descobrir quais seriam suas outras fraquezas.
Ao final do jantar, Burke declarou a si mesmo estar satisfeito por ter deixado Travis convencê-lo a passar alguns dias a mais na Irlanda. A viagem tinha sido
lucrativa, a visita ao hipódromo de Curragh valera por uma aula, e havia chegado a hora de misturar negócios com um pouco de prazer.
Adélia estendeu o braço sobre a mesa e segurou a mão do irmão de Erin, pedindo:
- Toca para a gente, Cullen? Em nome dos velhos tempos.
Mary McKinnon falou com ele e com os dois filhos mais novos ao mesmo tempo:
- Ele não precisa de muita insistência. Vocês dois, é melhor afastarem uns móveis. Depois de uma refeição como esta, nada melhor do que um pouco de dança.
- Por acaso eu trouxe minha gaita - riu Cullen, enfiando a mão no bolso. Ficou de pé, um homenzarrão de ombros largos e quadris estreitos. Os dedos das mãos
de trabalhador correram pelos buracos quando levou o instrumento à boca.
Burke ficou surpreso ao ver um homem tão grande e rude produzir música tão delicada. Recostou-se na cadeira, saboreou o amargo do uísque irlandês e observou.
Mary McKinnon colocou a mão na do filho mais novo e, sem parecer estar se mexendo, bateu os pés no ritmo da música. Uma dança muito restrita, pensou Burke,
com um desenho complicado de calcanhares e dedos. Então o ritmo começou a se acelerar, lenta, quase imperceptivelmente. Os outros acompanhavam batendo palmas e com
assobios ocasionais. Quando olhou para Erin, viu-a de pé, a mão no ombro do pai e sorrindo como ainda não a havia visto sorrir.
Um arrepio, muito breve, percorreu-o e cessou, como se nunca tivesse acontecido.
- Ela ainda dança como uma menina - disse Matthew McKinnon, admirando a esposa.
- E é tão bonita quanto uma - concordou Erin, vendo a mãe rodopiar, deixando entrever uma nesga de perna.
- Será que você tem a mesma fibra?
- Acho que não, pai.
Ele lhe envolveu a cintura com o braço.
- Pois vai ter de ter. Investimos em você.
E antes que pudesse protestar Erin viu-se no turbilhão da antiga dança folclórica que aprendera junto com os primeiros passos. A música que saía da gaita
era um alegre desafio, que Erin aceitou como que por instinto. Colocou as mãos na cintura e ergueu o queixo.
- Pode dançar?
Adélia lançou ao primo de dezoito anos um olhar assassino.
- Poder? Ainda está longe o dia que vai me ver recusando uma dança, rapazinho.
Travis ensaiou um protesto, mas mudou de idéia. Se havia uma coisa que sua Dee sabia fazer, era medir a própria força, cuja profundidade ainda o surpreendia.
Murmurou para Burke:
- Bela família, hein?
- Você não dança? - rebateu o amigo, sem tirar os olhos de Erin, enquanto pegava uma cigarrilha do maço.
Travis riu, recostando-se na parede.
- Dee tentou me ensinar mas declarou que sou caso perdido. Estou inclinado a acreditar que é um talento inato.
Interrompeu-se ao ver Brendon tomar o lugar do primo para fazer par com a mãe. Tal mãe tal filho, pensou orgulhoso. Das três crianças, Brendon era o de vontade
mais forte e cabeça mais dura. Voltou a falar com Burke.
- Ela precisava mais disto do que imaginei.
- A maioria das pessoas fica saudosa da terra natal vez por outra - respondeu ele, desviando a custo os olhos de Erin para pousá-los no perfil de Travis.
Observando as faces rosadas da mulher, os olhos sorridentes e a alegria com que ensinava Brendon a dançar, Travis refletiu:
- Só voltou duas vezes em sete anos. Não é suficiente. Sabe, ela é capaz de encostar agente na parede numa discussão, e metade das vezes sobre pontos que
um homem sensato é incapaz de entender. Mas não reclama nunca, e jamais pede nada.
Por um momento Burke não falou. Ainda admirava o fato de ter se tornado amigo de Travis, ele que era tão pouco afeito a aceitar as responsabilidades que acompanham
qualquer relacionamento afetivo. Passara quase metade de seus trinta e dois anos só, sem precisar de ninguém. E então, quatro anos antes, conhecera os Grant, e tudo
mudara.
- Não entendo muito de mulheres... não, não ria, Travis, estou falando de esposas. Mas me arrisco a dizer que a sua é feliz, aqui ou no Estados Unidos. Se
quer saber a verdade, se ela não o amasse tanto e tão evidentemente, eu já teria tentado conquistá-la.
- Pois da primeira vez que a vi pensei que fosse um menino.
- Está brincando - disse Burke, tirando a cigarrilha da boca.
- Estava escuro.
- Desculpa esfarrapada.
- Ela também achou! Ficou uma fera comigo. Acho que fui fisgado naquela hora.
Ouviu-a rir e viu-a se afastando dos dançarinos para vir até ele, as mãos estendidas. O anel de pedra preciosa que ele lhe dera havia anos ainda brilhava.
Um pouco sem fôlego, cobriu os bebês que cochilavam nas cadeiras e declarou:
- Eu ainda agüentaria horas e horas, mas estes dois já se divertiram o bastante. Vai arriscar uns passinhos, Burke?
- Nem morto.
Ela riu e pôs a mão no braço dele, com a franqueza simples à qual ele nunca chegara a se acostumar.
- Se um homem não faz papel de bobo de vez em quando, não aproveita a vida. Oh, Cullen toca como um mágico, mas o mais mágico é estar aqui para ouvir.
Acompanhando o ritmo com o pé, pegou a mão de Travis e levou-a aos lábios, encostando depois o rosto nela.
- Mary McKinnon ainda é a melhor dançarina do condado, mas Erin também é maravilhosa, não é?
Burke tomou um longo gole de uísque antes de responder:
- Realmente, olhar para ela não é nenhum sofrimento.
Rindo de novo, Adélia descansou a cabeça no braço do marido.
- Suponho que, como mulher mais velha e prima, eu devia alertá-la sobre sua reputação com nosso sexo.
- Que reputação? - indagou Burke, balançando o copo com ar inocente.
- Oh, eu ouço coisas, sr. Logan. Coisas fascinantes. O mundo das corridas de cavalo é pequeno e falador, sabe disso. Ouvi rumores de que um homem tem de tomar
cuidado com as filhas e com a mulher quando você está por perto.
- Se eu estivesse interessado na mulher do próximo, você seria a primeira a saber. - Ele tomou-lhe mão, levando-a aos lábios. Os olhos dela sorriram.
- Travis, acho que Burke está flertando comigo.
- Parece mesmo - concordou o marido com placidez, beijando-lhe o alto da cabeça.
- Um aviso, senhor Logan: é muito fácil flertar com uma mulher grávida de cinco meses, de gêmeos, e que sabe que o senhor não presta. Mas olhe onde pisa,
os irlandeses são difíceis de enganar. Se continuar olhando para ela desse jeito, Matthew McKinnon vai carregar a espingarda.
Dizendo isso, Dee ficou nas pontas dos pés e beijou-o no rosto. Burke observou que Erin se afastava do grupo.
- Não existe lei que proíba de olhar.
- Pois, no seu caso, devia haver. Parece que Erin vai lá para fora tomar ar. Você provavelmente gostaria de acender sua cigarrilha e caminhar ao sereno, não?
Dee falou com ar inocente, voltando a se apoiar no marido.
- Para dizer a verdade, gostaria, sim.
Com um aceno de cabeça, Burke foi para a porta.
- Você estava dando um aviso ou uma pista? - quis saber Travis.
- Estava só apreciando a paisagem, amor - e Dee ergueu o rosto para receber um beijo.

Erin aconchegou-se mais no casaco. Não estava muito preocupada com a noite fria de fevereiro, nem com a meia-lua que brilhava no céu. Estava contente por
o pai a ter forçado a dançar. Festejavam tão raramente nos últimos tempos. Havia muito trabalho afazer, e não possuíam muitos braços na fazenda depois que Frank
se casara. Dentro de um ano seria a vez de Sean se casar com a garota dos Hennessy e, como Cullen se interessava mais pela música do que pela ordenha, restavam só
Joe e Brian. Além dela, Erin.
A família estava crescendo, mas ao mesmo tempo se espalhando. A fazenda precisava sobreviver, Erin sabia que aquilo era indiscutível. O pai definharia até
a morte sem ela. Assim como Erin sabia que iria definhar se permanecesse ali por muito mais tempo. A única solução era descobrir um jeito de salvar a fazenda e a
si própria.
Abraçou-se para enfrentar uma lufada de vento que trouxe consigo o perfume das rosas silvestres e rododendros da sra. Malloy. Aquela não era hora de pensar
no futuro. Breve os Grant iriam embora e os sonhos empalideceriam um pouco. Na hora certa alguma coisa aconteceria. Erin olhou para alua e sorriu. Não havia prometido
a si mesma que faria alguma coisa acontecer?
Ouviu o estalido de um isqueiro.
- Bela noite.
Não se voltou. Não, não havia desejado que ele aparecesse, por que haveria de desejar? Ele tinha vindo por livre e espontânea vontade, por isso não merecia
mais do que boa educação.
- Um tanto fria.
- Você não parece estar com frio.
Silêncio. Burke achou graça, seria um prazer domá-la.
- Gostei de ver a dança.
Erin começou a andar devagar , distanciando-se do hotel, e não se surpreendeu quando ele a acompanhou.
- Não acabou de dizer que gostava de ver a dança?
A ponta da cigarrilha brilhou mais forte.
- Você parou. Seu irmão tem dom para a música!
Erin prestou atenção na melodia que passara de saltitante a triste.
- Sim. Foi ele que escreveu essa. Ouvi-la é como ouvir um coração se partindo. Gosta de música, sr. Logan?
- De vez em quando. - Era uma valsa, lenta e chorosa. Num impulso, ele a tomou nos braços e acertou o passo.
- O que pensa que está fazendo?
- Dançando, oras.
- Espera-se que um homem peça para dançar com uma dama.
Mas Erin não se desvencilhou. Os passos dos dois combinaram facilmente, fazendo-a sorrir. Sentia a grama macia de baixo dos pés, a doçura do luar.
- Não parece do tipo de homem que sabe valsar.
- Um dos meus poucos atributos culturais. E a noite está a calhar. - Erin se adaptava com perfeição aos braços dele, esbelta mas sem fragilidade, macia mas
não maleável.
Ela ficou quieta por um momento. Um momento mágico, sob as estrelas, com perfume de rosas e música triste. A ligeira pressão no estômago, o calor da pele,
tudo dizia a Erin que era arriscado valsar com um estranho ao luar, mas ela não parou até o fim da música, quando saiu dos braços dele, sem muita vontade e aliviada
a um só tempo, e continuou a andar.
- Por que veio para cá?
- Vim ver cavalos. Comprei dois em Kildare. Os puros-sangues do Irish National Stud não têm rival. São caros, é verdade, mas nunca me incomodei de gastar
dinheiro com um vencedor
- Interessante... - a palavra veio sem Erin perceber, e irritou-se por tê-la dito.
- E vim também assistir algumas corridas. Já esteve em Curragh?
- Não. E não vai achar puros-sangues aqui em Skibbereen.
Falou olhando para a lua. No que lhe dizia respeito, Curragh, Kilkenny e Kildare poderiam estar tão longe quanto a foice brilhante no céu.
- Não? Então digamos que aproveitei a carona. É a primeira vez que venho à Irlanda.
- E o que está achando? - Erin disse e parou, não querendo ultrapassar o limite do círculo mágico estabalecido pela música.
- Linda e contraditória.
- Com um nome como Logan, deve ter ascendência irlandesa.
Ele olhou para a cigarrilha e falou, seco:
- É possível.
- Você me contou que é vizinho de Travis, mas seu sotaque é diferente.
A pequena onda de mau humor pareceu passar e Burke sorriu.
- Sotaque? Bem, acho que é assim que fala quem veio do Oeste.
- Oeste? O Oeste americano? Dos caubóis?
Daquela vez ele riu, uma risada atraente e profunda, que a distraiu o suficiente para que ele lhe tocasse o rosto.
- É, só que não andamos por aí de cartucheira já faz algum tempo.
- Não precisa caçoar de mim - disse Erin, arrufada.
- Eu estava caçoando? O que diria se eu perguntasse dos leprechauns, não é assim que se chamam os duendes irlandeses, e das... como é mesmo o nome que vocês
dão às feiticeiras?
- Banshees?
- Isso.
Erin teve de sorrir.
- Eu diria que o último a ver um leprechaun por estas bandas foi Michael Ryan, depois de um litro de uísque.
- Não acredita em lendas, Erin? - disse ele, avançando um passo para poder ver o luar se refletir nos olhos dela como a luz num lago.
- Não. Acredito no que posso ver e tocar. O resto é para sonhadores.
Não se deixou intimidar pelo avanço de Burke, nem se afastou. Não fazia parte de sua natureza recuar nem mesmo quando se sentia ameaçada. Ganhasse ou fosse
derrotada, preferia enfrentar os resultados com os pés bem firmes, plantados no chão. Burke compartilhava da mesma opinião, no entanto murmurou:
- Que pena. A vida é mais leve quando a gente sonha.
- Nunca pedi à vida que fosse leve.
Ele puxou um cacho de cabelo que se enroscava no rosto dela.
- O que pediu à vida, então?
- Tenho de entrar. Com licença, sr. Logan, o vento aumentou.
Disse a si mesma que não se tratava de uma retirada. Estava com frio, só isso. Frio. Ao se voltar, no entanto, sentiu que Burke a retinha pelo braço. Olhou-o
friamente, sem zanga, determinada.
- Sei que o vento aumentou. Você não me respondeu.
- Não, porque não é de sua conta. Não faça isso - falou, quando os dedos dele se fecharam de leve sobre seu queixo, mas não fez menção de fugir.
- Estou interessado. Quando um homem encontra alguém que reconhece, fica interessado.
Erin compreendeu o que ele queria dizer. Durante a valsa, nos braços dele, sentiu que o conhecia. Havia alguma coisa que os fazia se refletirem um no outro,
como espelhos. Era a mesma força misteriosa que acelerava o coração de Erin, lhe esfriava apele e a fazia dizer:
- Não nos conhecemos e, se for preciso, como estou vendo que é, serei rude: não faço questão de conhecê-lo.
- Você costuma reagir tão fortemente assim a estranhos?
Erin sacudiu a cabeça, mas ele não soltou seu queixo.
- A única reação que estou tendo agora é de irritação.
Era mentira. Já havia examinado a boca de Logan e imaginado como seria seu beijo.
- Tenho certeza de que acha que vou ficar lisonjeada por me dar atenção, sr. Logan, mas bateu em porta errada. Não sou nenhuma caipirinha ingênua que beija
um homem por causa do luar e da música.
- Erin, se eu tivesse intenção de beijá-la, você já teria sido beijada. Nunca perco tempo... com uma mulher.
De supetão, Erin se sentiu tão ingênua quanto havia afirmado não ser. Sabia que teria correspondido ao beijo e, pior, sabia que ele também tinha consciência
disso.
- Bem, está perdendo seu tempo agora, sr. Logan. Boa noite.
Por que afinal não a beijara? Foi o que Burke se perguntou, olhando-a voltar apressada para o hotel. Imaginara o beijo com muita clareza. Por um momento,
quando o luar inundou o rosto dela, chegou a sentir o gosto de sua boca.
E, no entanto, não tinha havido nada. Algo o tinha aleitado que um beijo seria suficiente para mudar a ordem das coisas tanto para ele quanto para Erin. E
Burke não estava preparado. Não tinha certeza de poder controlar-se.
Dando uma última tragada, fez a ponta da cigarrilha descrever um arco de luz dentro da noite. Viera à Irlanda para ver cavalos, e seria melhor se contentar
com aquilo. Mas só que Burke Logan era um homem difícil de contentar.
Erin chegou tarde de propósito. Empurrou a bicicleta para a entrada da cozinha do hotel, deixando-a lá. Sabia que estava sendo orgulhosa, mas simplesmente
não queria que Dee soubesse que trabalhava ali. Não teria importância se fosse apenas a administração e contabilidade, atividades que a realizavam um pouco. Já sobre
tarefas de cozinha, preferia que a prima fosse mantida na ignorância.
A sra. Malloy havia prometido não dizer nada, mas Erin sabia o quanto era difícil para a boa senhora manter um segredo. Estava preocupada.
Dee e a família haviam saído pela cidade, fazendo visitas, e passariam fora a manhã toda. Erin então tinha tido tempo de fazer os serviços de casa e vir com
calma para lavar a louça do café da manhã e dar a arrumação diária. Uma vez que os livros estavam em ordem, teria condições de tirar algumas horas durante a tarde
para levar a prima à fazenda onde crescera.
Não se tratava de fingimento, explicava a si mesma enquanto enchia de água a pia enorme. E, se fosse, não havia outro jeito. Jamais admitiria ver Dee sentindo
pena dela. Trabalhava para ganhar dinheiro, era tudo. Assim que amealhasse o suficiente, poderia se mudar para Cork ou Dublin e trabalhar num escritório. E, por
todos os santos, nunca mais lavaria pratos que não fossem seus,
Começou a cantarolar enquanto esfregava a louça rústica. Aprendera desde pequena que onde havia trabalho o melhor era fazer sem resmungar porque, assim como
o sol nasce pela manhã, assim ele estaria à espera no dia seguinte.
Olhou pela janela, para o campo onde havia passado com Burke na noite anterior. Onde havia dançado com ele. Ao luar, pensou, antes de se dar conta de por
onde andava a cabeça. Bobagem. Era apenas um homem se contentando com o que podia conseguir naquele fim de mundo. Erin podia nunca ter viajado ou visto cidades grandes,
mas não era nenhuma ingênua.
Se aqueles minutos ao lado de Burke, sozinha, a haviam perturbado, era por causa da novidade. Um homem diferente, o que não o tornava especial. E não justificava
nem um pouco ela estar ali, em plena luz do dia, os braços mergulhados até os cotovelos na água engordurada, pensando nele.
Ouviu a porta se abrir às suas costas e acelerou o ritmo do trabalho.
- Sei que estou atrasada, sra. Malloy, mas apronto tudo antes do almoço.
- Ela está no mercado, reclamando das verduras.
Ao som da voz de Burke, Erin fechou os olhos. Quando ele chegou perto e tocou-lhe o ombro, começou a esfregar a louça com fúria vingadora.
- O que está fazendo?
Erin colocou um prato no escorredor e atacou outro.
- Não tem olhos para ver? Desculpe não lhe dar atenção, já perdi muito tempo hoje.
Sem dizer uma palavra, ele foi até o fogão se servir do café que ficava sempre ali, quente. Erin estava com um macacão largo, que devia ter pertencido a um
dos irmãos. Os cabelos soltos eram mais compridos do que Burke tinha imaginado, passavam dos ombros, cheios e crespos, seguros longe do rosto por uma fita. Tomou
um gole de café, observando-a, sem saber bem o que pensar diante da situação. Mas sabia que Erin estava envergonhada.
- Não disse que trabalhava aqui.
A resposta se seguiu ao baque de outro prato no escorredor.
- Não disse, não, e ficaria agradecida se você também ficasse quieto.
- Por quê? Não se trata de trabalho honesto?
- Eu preferiria que Dee não soubesse que eu lavo os pratos que ela usou.
Orgulho era outra emoção que Burke compreendia bem.
- Certo.
Ela olhou-o por sobre o ombro, cautelosa.
- Não vai dizer a ela?
- Já disse que não - repetiu, aspirando a mistura de detergente na água morna. Apesar de todos os anos passados, o cheiro continuava a evocar más lembranças.
Viu que os ombros de Erin relaxaram um pouco.
- Obrigada.
- Quer uma xícara de café?
- Não, não tenho tempo.
Não tinha esperado que ele tornasse as coisas tão fáceis. Ainda cautelosa, mas com menos reserva, sorriu, depois desviou a vista porque estava gostando mais
do que o necessário de olhar para ele.
- Pensei que tivesse saído com os outros.
- Saí, mas voltei.
A intenção dele havia sido tomar café e depois caminhar sem destino pela cidade ou então conversar no pub. Estudou Erin, as costas retas, os braços mergulhados
na água e sabão.
- Quer uma ajuda?
Ela se virou como um raio, entre estarrecida e horrorizada.
- Não, não, beba seu café. Se quiser muffins pode pegar na despensa, ou então vá passear. O dia está bonito.
- Outra vez tentando se livrar de mim? - e Burke pegou um pano de prato.
- Por favor, a sra. Malloy...
- Está no mercado - completou ele, pegando um prato para enxugar.
Estava mais perto, os quadris quase se encostando. Erin resistiu ao impulso de se afastar, ou seria de se aproximar? Tornou a mergulhar as mãos na água.
- Não preciso de ajuda.
Ele colocou o prato seco na mesa e pegou outro.
- Não tenho mais nada que fazer .
Erin pegou outro prato, a testa franzida.
- Não gosto quando você fica simpático.
- Não se preocupe, eu quase nunca fico. Então, o que mais você faz além de dançar e lavar louça?
Foi por orgulho, Erin sabia, mas virou-se para ele lançando chispas pelos olhos.
- Contabilidade, se quer saber. Faço a contabilidade do hotel, da mercearia e da fazenda.
- Parece trabalhar um bocado. É boa contadora?
- Ninguém reclamou ainda. Vou arranjar emprego em Dublin no ano que vem. Num escritório.
- Não consigo imaginá-la num escritório.
Erin estava com uma faca de pão na mão, e considerou a hipótese de usá-la.
- Não pedi que imaginasse.
- Há paredes demais num escritório. Você enlouqueceria.
Erin segurou forte a faca, resistindo à tentação de, pelo menos, assustá-lo um pouco.
- Quem deve se preocupar com isso sou eu. Me enganei quando disse que não gostava de você simpático. Não gosto de você, ponto final.
- Sabe que só precisa pedir para que Dee a leve para a América.
Erin atirou a faca na água, provocando uma pequena explosão de espuma.
- E daí? Vou viver da caridade dela? Isso é o que você acha que quero? Depender da bondade de outra pessoa?
Ele colocou mais um prato na pilha.
- Não, só queria ver você zangada de novo.
- Você é um canalha, sr. Logan.
- Acertou, e, já que somos íntimos, devia me chamar de Burke.
- Devia chamá-lo de muitas coisas. Por que não vai tratar da vida e me deixa terminar aqui? Não tenho tempo para gente de sua laia.
- Então vai ter de arranjar.
Pegou-a desprevenida, se bem que depois Erin dissesse a si mesma que devia ter esperado por aquilo. Aproveitando-se das duas mãos ocupadas, ele a abraçou
pelo pescoço e beijou-a. Um beijo rápido, mais uma ameaça que promessa. Tinha os lábios duros e firmes, surpreendentemente quentes. Erin não teve tempo de reagir
ou pensar, e num átimo ele a havia soltado e voltado a enxugar pratos.
Erin engoliu em seco, e cerrou os punhos por debaixo da água.
- Você acha que pode tudo, não?
- Um homem não vai muito longe se não pensar que pode tudo. Nem uma mulher, por sinal.
- Pois lembre-se: quando quiser que me toque, eu digo.
- Seus olhos falam demais, Irlandesa. É um prazer ficar vendo como desmentem sua boca.
Não iria discutir. Não se rebaixaria exagerando a importância do incidente. Num gesto deliberado, Erin puxou a tampa do ralo da pia.
- Vou limpar o chão. Vai ter de tirar os pés de cima dele.
- Então é melhor dar o tal passeio - e Burke pendurou o pano de prato bem esticado, para secar. Sem mais uma palavra ou um olhar, saiu pela porta dos fundos;
Erin esperou dez segundos completos, depois permitiu-se a satisfação de sacudir um trapo molhado na direção dele.

Duas horas mais tarde, depois de uma rápida troca do macacão por uma saia e suéter, Erin encontrou os Grant no salão do hotel. A roupa suja estava numa mochila
presa ao bagageiro da bicicleta, e Erin tinha usado um pouco do precioso creme da sra. Malloy para remediar o prejuízo diário que causava às mãos. Burke estava lá,
é claro, e foi solenemente ignorado. Erin passou por ele, que fazia Brady cavalgar em seu joelho, e estendeu para Dee um pacote embrulhado numa toalha muito limpa.
- Minha mãe mandou um bolo de passas. Não queria que vocês pensassem que a sra. Malloy cozinha melhor do que ela.
Dee levantou uma das pontas da toalha para olhar.
- Lembro do bolo de passas de sua mãe. Vez por outra um de vocês levava de presente para nós na fazenda. - O cheiro reavivou lembranças. algumas doces, outras
dolorosas. Dee voltou a cobrir o bolo e disse a Erin:
- Estou contente que possa vir com agente.
- Lembre-se que é só com a condição de pararem lá em casa. Minha mãe está esperando.
- Então melhor reunir aninhada. Burke, se der chocolate ao pequeno merece que ele o lambuze todo. Brendon, Keeley, para a perua. Vamos passear.
Não foi preciso mandar duas vezes.
A primeira visita foi ao cemitério. onde a grama era alta e verde e as pedras cinzas e gastas. Flores silvestres brotavam como uma promessa de vida. Algumas
pessoas da família de Erin estavam enterradas lá, e da maioria ela mal se lembrava. Nunca perdera ninguém muito próximo, mas, como amava profundamente a família,
considerava-se capaz de entender a dor de uma perda.
Ainda assim, fazia tanto tempo, pensou, observando a prima entre os túmulos dos pais. O tempo não aliviaria a dor de uma perda daquelas? Adélia era criança
quando morreram, não teria mais que nove ou dez anos. A lembrança deles não teria enfraquecido? Mas tantas conjecturas eram inúteis. Erin podia se imaginar num mundo
distante da família, mas nunca um mundo onde eles não existissem mais.
- Ainda dói - murmurou Dee, olhando para as pedras com os nomes de seus pais.
- Eu sei - falou Travis, passando-lhe a mão pelos cabelos.
- Lembro-me do padre Finnegan dizendo, depois que aconteceu, que era a vontade de Deus, e de mim mesma pensando que não parecia justo. Ainda não parece, Travis.
Acho que nunca serei capaz de superar isso.
- Acho que não - concordou ele, segurando-lhe a mão. Uma parte dele queria puxá-la para longe da tristeza, outra sabia que Dee havia sido forte o suficiente
para lidar com o fato anos antes de se encontrarem.
- Gostaria de tê-los conhecido.
No rosto dela as lágrimas se misturaram com um sorriso.
- Haveriam de adorar você. E as crianças. Iam mimar as crianças, estragá-las. Mais do que Hannah. O que me consola é saber que estão juntos. Acredito que
estejam, mas é tão triste eles não terem conhecido você ou as crianças.
Keeley segurou a mão de Adélia.
- Não chore, mamãe. Olhe, fiz uma flor, Burke me ensinou. Disse que eles iam gostar, mesmo estando no céu.
Dee olhou para a pequena guirlanda feita de ramos e relva.
- Ficou linda. Vamos colocá-la bem no centro, assim. Ah, tenho certeza de que vão gostar.
Erin mal ouvia o tagarelar de Brendon, sentada ao lado de Burke na perua. Pensava em como aquele homem era estranho. Havia-o visto sentado na grama, fazendo
uma guirlanda de mato para Keeley. Embora se tivesse mantido a distância, tinha percebido que a menina o ouvia com atenção e olhava-o com absoluta confiança.
Burke Logan não parecia homem de inspirar confiança.
Erin conhecia a estrada que levava à fazenda que pertencera aos Cunnane. Os pais de Dee não passavam de sombras vagas, mas Lettie Cunnane, a tia com quem
vivera depois de perder os pais, aquela Erin conhecera bem. Uma mulher rude, de rosto severo, e por causa dela as primas não se viam muito. Sacudindo a cabeça e
afastando as lembranças, mostrou a Brendon através da Janela:
- Veja, sua mãe cresceu numa casa logo atrás daquela colina.
- Numa fazenda, eu sei. Nós também temos uma fazenda. A melhor de Maryland, não é, Burke?
- Ainda vai ser a segunda melhor depois que eu acabar de ajeitar a minha - disse Burke, prazerosamente mordendo a isca.
- Royal Meadows existe há várias gera... gera...
- Gerações - ofereceu Burke.
- Isso. E você ainda está nos cueiros, porque foi o tio Paddy que disse.
Hannah advertiu, solene:
- Brendon Patrick Grant. E quanto a você, Burke, devia parar, de se comportar feito criança e não encorajar o menino.
Burke limitou-se a sorrir e desmanchar os cabelos do garoto.
- Ele não precisa de muito encorajamento.
- Burke ganhou a fazenda dele num jogo de pôquer. E está me ensinando a jogar
- informou Brendon, deliciado, quando a perua parou.
- De modo que, quando você for o dono de Royal Meadows, vou poder ganhá-la de você, também - replicou Burke, abrindo a porta de correr e agarrando o garoto
risonho pela cintura.
Erin esperou Hannah pegar Keeley pela mão e perguntou baixinho:
- Verdade? Ele ganhou um haras no jogo?
Um tanto temerosa, Hannah desceu, lançando um olhar a Burke que se afastava com Brendon nos ombros.
- Foi o que me disseram. E dizem também que ele já ganhou e perdeu mais uma fazenda. Difícil acusá-lo por isso, embora o jogo seja uma coisa feia.
Erin jamais o acusaria, pensou, indo ao encontro dos outros. Era irlandesa demais para torcer o nariz diante de um jogador, especialmente um jogador bem-sucedido.
Andando atrás de Dee, olhou do alto a fazenda no vale.
Não mudara muito, não na sua memória. Oh, o estábulo era novo, e o celeiro fora pintado havia pouco tempo. Era a única fazenda até onde as montanhas deixavam
a vista alcançar .A horta já estava plantada, e algumas vacas se espalhavam pelo pasto. A fumaça espiralava da chaminé da casinha de pedra, muito parecida com a
de Erin, e o vento trazia até alio cheiro forte e bom da turfa queimando.
Porque Adélia passou muito tempo olhando sem dizer nada, Erin resolveu falar:
- A família Sweeney é muito boa. Sei que teriam o maior prazer em recebê-la, se quisesse descer.
- Não. Prefiro olhar daqui.
A própria Adélia pareceu reconhecer que a negativa havia sido brusca, e suavizou-a com um toque da mão. A verdade era que não suportaria chegar perto de um
lugar que havia sido seu e não era mais.
- Lembra-se, Erin, quando tia Lettie ficou doente, e você e sua mãe vieram visitá-la?
- Sim, você nos deu uma rosa daquela roseira. A roseira de sua mãe. Ainda floresce no verão.
- Um lugar tão pequenino. Menor ainda do que me lembrava. Keeley, ajude a mamãe a se agachar. Está vendo aquela janela? Aquele era meu quarto quando eu era
do seu tamanho.
Adélia voltou a ficar de pé. Os outros voltaram para a estrada, deixando-a só com Travis.
- Dee, como eu já disse antes, você pode ter a fazenda de volta, se quiser. Podemos fazer uma boa oferta aos Sweeneys.
Ela continuou a olhar, a lembrar. Depois, com um leve suspiro, passou a mão pela cintura do marido.
- Sabe, quando saí daqui, há tanto tempo, pensei que tivesse perdido tudo. E estava errada. Vamos andar um pouco, o dia está tão bonito.
Erin olhava para eles. Havia um campo pequeno, muito verde, mas que em poucas semanas se encheria de flores silvestres. Ouviu Burke atrás dela e falou sem
pensar:
- Se eu tivesse de ir embora, sair daqui para outro lugar, nunca olharia para trás.
- Se não espiar por cima do ombro de vez em quando, o passado a alcança antes do que imagina.
Erin virou a cabeça, e os cabelos lhe emolduraram o rosto e
os ombros.
- Não entendo você. Num minuto fala como quem não tem raízes, no outro parece que se limitou a transplantá-las para onde o solo é mais propício, ou conveniente.
Burke segurou uma das mechas de cabelo, indomável e livre demais para ser seda.
- Talvez seja o truque, Irlandesa, não deixar que penetrem muito fundo. Você pode arrancar as suas, pois se não fizer corre o risco de se estrangular, mas
vai levar um pouco disso com você.
Abaixou-se e apanhou um punhado de terra.
- Me parece uma boa base.
- E qual é a sua?
- Já viu areia do deserto, Irlandesa? Não, não viu. Cresceu nesta terra rica. A areia é fina. Escorrega das mãos, por mais que tente segurá-la.
-Grãos de areia costumam se colar à pele.
-E são levados embora quando esfregamos as mãos. -Burke
olhou para trás quando Brady riu, alegre, vendo uma gaivota vinda do mar.
- Por que me beijou naquela hora? - Ela não queria perguntar, não queria que ele soubesse que tinha alguma importância. Ele sorriu, um brilho muito ligeiro
nos olhos, um leve divertimento na voz.
- Uma mulher nunca deve perguntar por que um homem a beijou.
- Bem, nem foi um beijo de verdade - disse Erin, dando de ombros.
- Quer um beijo de verdade?
- Não.
Erin continuou a andar, mas o diabinho tentador lavrou um tento. Olhou para trás, com um meio sorriso, e não pôde deixar de dizer:
- Aviso quando quiser.
CAPÍTULO III

Erin sentia a tempestade se aproximando. Sentia-se por dentro, tão claramente quanto via as nuvens se unindo para esconder o sol e escurecer o topo das colinas.
Seus gestos eram rápidos e experientes ao tirar os pregadores do varal e deixar a roupa seca cair, ondulamente, num cesto a seus pés.
Apreciava aquele tipo de trabalho monótono e automático, pois deixava a cabeça livre para pensar, relembrar e fazer planos. Naquela tarde, com o vento desfraldando
lençóis como bandeiras e o céu prestes a explodir, Erin estava adorando o que fazia. Queria ver a tempestade se desencadear, fundir-se com o vento e a chuva. Depois
tudo se estabilizaria na rotina tranqüila que, pouco a pouco, a estava enlouquecendo.
O que haveria de errado com ela? Erin tirou do varal uma camiseta de trabalho do irmão e, seguindo o hábito há muito arraigado, dobrou-a para não ficar amassada.
Amava a família, tinha amigos e trabalho suficientes para que a cabeça não tivesse tempo para pensar em loucas aventuras. E, no entanto, vivia tensa como um elástico
esticado ao último ponto de resistência. Responsabilizar a visita da prima ou a aparição inesperada de Burke Logan era uma maneira de simplificar as coisas. A inquietação
datava de antes de chegarem, mas por alguma razão a presença deles... dele, intensificara-a.
Não podia falar sobre aquilo com a mãe. Erin recolheu um avental e enterrou o rosto no tecido fresco cheirando a limpeza. A mãe simplesmente não podia compreender
descontentamentos ou necessidades indefinidas, não quando havia um teto resistente sobre a cabeça e comida suficiente para todos. Erin perdera a conta das vezes
em que desejara um coração sereno como o dela, sabendo que o seu nunca seria.
38Não podia procurar o pai, se bem que soubesse que ele entenderia a tempestade que havia dentro dela. Não era um homem calmo e fácil. Das histórias que ouvira,
Erin deduziu que o pai tivera uma juventude atribulada, e que havia sido preciso o casamento com Mary e um par de bebês para que começasse a pensar na vida a sério.
Mas, embora entendesse, Erin sabia também que o pai ficaria arrasado. Se ela queria mais, precisava de mais, então era porque ele não lhe havia dado o suficiente,
seria a conclusão que tiraria.
Havia Cullen. Falar com Cullen sempre fora fácil. Mas ele andava tão ocupado, e os sentimentos de Erin tão confusos, as vontades tão indistintas, que ela
tinha dúvidas se, mesmo com um ouvinte disposto, seria capaz de articulá-los.
A conclusão foi que teria de esperar, deixar cair a tempestade e soprar a ventania.

Burke contemplava o quadro formado por Erin no meio da roupa agitada pelo vento. Ele nunca havia achado rude observar as pessoas sem que elas percebessem.
Podia-se aprender mais sobre alguém quando esse alguém pensava estar sozinho.
Ela se mexia bem. Mesmo naquela tarefa tão simples os movimentos tinham uma sensualidade inata. Erin tinha mais fogo do que aparecia nos cabelos. Dentro dela
ardia uma chama que Burke reconhecia, porque ele mesmo nascera com uma igual. Aquele tipo de calor, de paixão, poderia e deveria explodir, desde que os elementos
certos se juntassem: tempo, lugar, circunstância.
De vez em quando Erin erguia os olhos para o céu num desafio para que se abrisse e despejasse toda a fúria sobre ela. Os cabelos estavam revoltos, brigando
com a fita que os segurava, do mesmo modo que ela brigava contra o que quer que tentasse detê-la. Burke já havia se perguntado quais seriam os resultados quando
ela finalmente se soltasse, e estava decidido a ficar por perto para ver.
- Faz muito tempo que não assisto a uma cena assim.
Erin girou o corpo, os calcanhares se enterrando na terra fofa, uma fronha na mão. Ele parecia estar em casa, pensou, com a gola do casaco levantada contra
o vento, e contraditoriamente os botões abertos. Os polegares estavam enganchados nos bolsos e o sorriso satânico instalado no rosto. Erin nunca tinha visto um homem
que se adaptasse melhor ao cenário de campo aberto e céus tempestuosos. Decidindo que seria idiota ficar ali admirando-o, voltou ao varal, puxando os pregadores
com uma fúria um tanto descabida.
- Lá de onde você vem as mulheres não recolhem a roupa?
- O progresso muitas vezes acaba com a tradição. Todas usam secadoras automáticas
- disse Burke, movendo-se com a segurança de quem sabe o que quer. Tirou do varal uma combinação de algodão, de Erin, dobrou-a e deixou-a cair no cesto.
Erin rilhou os dentes e disse a si mesma que só uma camponesa ignorante ficaria embaraçada com aquilo.
- Não há a menor necessidade de você pôr as mãos na roupa lavada.
- Não se preocupe, minhas mãos estão limpas - e, para provar, ele as mostrou. Erin notou uma cicatriz irregular nas juntas dos dedos.
- O que veio fazer aqui?
- Vim ver você.
Nada de desculpas. Direto ao ponto.
- Por quê?
- Porque eu quis. - Recolheu uma calcinha de algodão, dobrou-a com ar impassível e colocou-a sobre a combinação.
- Você não deveria estar com Travis e Dee?
- Acho que sobreviverão a uma tarde sem mim. Gostei da fazenda quando estivemos aqui ontem.
Enquanto falava, Burke olhou ao redor, para as dependências bem cuidadas. A casa era bem maior do que aquela que Adélia crescera, mas com o mesmo telhado
amarelo de sapé e sólidas paredes de pedra. E também ali havia flores, que os irlandeses pareciam gostar de deixar crescer onde bem entendessem, alegres, livres
e resistentes. Uma moita de fúcsia silvestre já desabrochava. Burke pensou na sua terra, onde a neve cobria os campos.
O teto do celeiro mostrava remendos recentes. A pintura do silo estava descascando, mas as galinhas no galinheiro eram gordas e saudáveis. Imaginou que os
McKinnon deviam trabalhar sete dias por semana para manter tudo em ordem. Vida de fazendeiros.
- Um belo pedaço de terra. Seu pai pelo jeito sabe como lidar com ele.
- Vive para isso - disse Erin com simplicidade, recolhendo as últimas peças de roupa.
- E você?
- Não sei o que quer dizer.
Burke pegou o cesto antes dela.
- É uma boa fazenda, uma boa vida para algumas pessoas. Você não nasceu para isto.
Erin tomou-lhe o cesto e foi andando na direção da porta da cozinha.
- Não me conhece bem o suficiente para prever o futuro mas já falei que vou para o norte trabalhar num escritório dentro de um ano ou pouco mais.
Respirando fundo, empurrou a porta. A mãe ficaria horrorizada se não convidasse o homem para entrar e lhe oferecesse ao menos uma xícara de chá. Voltou-se
para ele, mas antes de ser convidado ele se adiantou.
- Vamos andar um pouco. Quero lhe fazer uma proposta.
Erin encostou-se no batente os olhos frios.
- Oh, aposto que quer mesmo.
Ele tornou a pegar o cesto, colocou na soleira da porta e o empurrou ligeiramente.
- Está se precipitando, Irlandesa. Digamos apenas que, quando a quiser na cama, não vou perguntar nada.
Erin acreditou. Ele não era o tipo de homem que faz a corte a uma mulher com flores e palavras bonitas, ou bajulações. Ela não era do tipo que quisesse ser
bajulada, mas muito menos atacada.
- O que exatamente você está querendo, Burke?
- Andar - repetiu ele, puxando-a pela mão.
Erin poderia ter recusado, mas então jamais saberia o que ele tinha a dizer. Decidiu que se, se soltasse e fechasse a porta no nariz dele, Burke Logan enfiaria
as mãos nos bolsos e iria embora calmamente, deixando-a fora de si de curiosidade e raiva.
Por isso acertou o passo com o dele, pensando que não havia nada de mal num passeio. A mãe estava em casa e o pai, com dois dos irmãos, em algum lugar da
fazenda. Acrescida a isso havia a confiança absoluta na capacidade de Erin de cuidar de si.
-Não tenho muito tempo, ainda há bastante trabalho a fazer.
- Isto não vai levar muito tempo - foi tudo o que ele disse ao se afastarem da casa. Não parecia estar prestando muita atenção, mas via tudo: o cuidado, o
suor empregado lia fazenda, as longas horas de trabalho árduo e a esperança. Contou trinta vacas. Imaginava que um homem poderia viver com menos. Não fazia muitos
anos ele mesmo trabalhara horas sem fim. Não esquecera, pois nunca esquecia que o destino poderia tomar de volta o que possuía, com a mesma facilidade com que lhe
havia dado.
- Se você queria fazer uma excursão pela fazenda... - começou Erin.
- Fiz isso ontem, lembra-se?
Burke parou um pouco para olhar para um campo. Sabia o que era preparar o solo, tirar as pedras, arar, suar durante a colheita e amaldiçoar a terra, mesmo
adorando-a com fervor.
- Vocês cultivam aqui mesmo a ração dos animais?
- Sim, e logo chega o tempo de arar.
- Você trabalha na roça?
- Sou famosa pela competência.
Burke virou a mão dela de palma para cima e estudou-a. Não tinha a pele vermelha ou rachada, mas áspera, calosa. Unhas curtas e sem esmalte.
- Não poupa muito suas mãos.
- E por que o faria? Não me envergonho de resultados que horas a fio deixam.
- Não. É prática demais para isso. Olhe para mim. Sim, estou vendo em seus olhos que não é do tipo de mulher que sonha com cavaleiros brancos.
- Sempre achei que cavaleiros brancos devem ter uma conversa bem desinteressante, e a última coisa que desejo é ser uma dama indefesa. Prefiro matar meus
próprios dragões.
- Ótimo. Não tenho utilidade para uma mulher que precisa que tomem conta dela. Por que não volta para a América comigo, Erin?
Ela perdeu a fala, ao mesmo tempo que os céus se abriram, ensopando os dois numa questão de segundos. Erin teria ficado mais tempo imóvel, de olhos e boca
muito abertos, se Burke não a levasse pelo braço para dentro de um barracão.
A penumbra cheirava a esterco e a umidade. Ferramentas de horta estavam alinhadas contra a parede. Os vasos de turfa e as sementes que a mãe de Erin guardava
esperavam pela primavera nas prateleiras. A chuva batia no teto de zinco, o vento gemia nos interstícios das tábuas das paredes.
Erin parou perto da porta, os cabelos colados à cabeça, a roupa gotejante, mas perfeitamente lúcida.
- Você é louco, Burke Logan. Por todos os santos, você devia estar internado. Acha que eu arregaçaria minhas saias e cruzaria um oceano só porque chamou?
Ah, claro, não é, seu vigarista convencido, que pensou que era só assobiar para me ter correndo atrás de você. Eu nem ao menos o conheço!
Ainda tremia, mas de raiva, e estava cada vez mais contente por ter, enfim, um motivo para explodir com aquele homem impossível. Passou a mão pelo rosto,
para tentar secá-lo, e com a mesma mão batia com força no peito forte e musculoso de Logan.
- E Deus sabe que não tenho o menor desejo de conhecê-lo!
Virou-se para a porta e teria disparado por ela afora se Burke não a tivesse segurado pelos ombros. Num impulso, ela agarrou um ancinho e empunhou-o, dizendo:
- Tire as mãos de mim, serpente. Mais um toque e fatio você, fatias tão finas que vai ser difícil juntá-las outra vez.
Então era assim que ela matava dragões, com um ancinho de jardim, pensou ele, erguendo as duas mãos com a palma para cima num gesto de paz.
- Não precisa defender sua honra, Irlandesa. Não estou atrás dela... ainda. Quero falar de negócios.
Deu um passo à frente, e ela sacudiu o ancinho.
- Que tipo de negócio eu poderia ter com você? Chegue mais perto e prometo que vai perder pelo menos uma orelha. Se tiver sorte.
Ele fingiu que ia recuar, mas foi um blefe, e conseguiu arrancar o ancinho das mãos de Erin, que praguejou. Viu-se encostada na parede, e com rosto de Burke
tão próximo que só os olhos enfumaçados e escuros eram visíveis. Tentou se soltar, mas ele a prendia pelos ombros.
-Vai ter de aprender a não baixar a guarda. Fique quieta um minuto, por favor, está fazendo papel de boba.
Nada a teria feito ficar mais raivosa. Mostrou os dentes e quase rosnou.
- Não sei quando, não sei onde, mas você vai pagar por isto.
- Todo mundo paga, Irlandesa. Agora respire fundo, cale a boca e ouça. Tudo o que estou lhe oferecendo é um emprego. Preciso de alguém esperto, que seja bom
em números, para fazer minha contabilidade.
- Contabilidade?
- O haras, despesas, folha de pagamento. Meu antigo empregado foi um tanto criativo demais. Uma vez que ele vai ser hóspede do governo durante os próximos
anos, preciso de um contador. Quero alguém que eu conheça, alguém com quem posso falar, alguém que eu possa ver, antes de entregar meu dinheiro a uma empresa impessoal
que não liga a mínima para a fazenda ou para mim.
- Então... quer dizer que... você quer que eu vá para a América para fazer sua contabilidade?
Burke sorriu, pois ela parecia quase desapontada.
- Não estou lhe oferecendo uma viagem grátis. Você é uma festa para os olhos, Erin, mas no momento só pretendo pagar por seu cérebro.
Com voz subitamente firme ela ordenou:
- Vá mais para trás. Não consigo respirar com você tentando me empurrar através da parede.
- Não vai mais me atacar com instrumentos agrícolas?
- Não.
Erin falou de queixo erguido. Burke soltou-a, e ela respirou fundo uma ou duas vezes. Tinha de manter a cabeça no lugar. Não achava má a idéia de tomar um
novo caminho; na verdade, havia sonhado muito com ele. Só queria estudar todas as curva e ângulos primeiro.
- Quer me contratar?
- Isso mesmo.
- Por quê?
- Acabei de dizer.
- Você me disse que precisa de um contador. Imagino que deva existir milhares de contadores na América.
- Digamos apenas que gosto do seu estilo. - Inclinando-se, ele pegou o ancinho e guardou-o no lugar. Perguntou-se se ela o teria usado, e concluiu, sorrindo
para si mesmo, que com certeza teria. Teria, sem a menor duvida.
- Pelo que sabe de mim, posso ser incapaz de somar dois e dois.
- A sra. Malloy e O'Donnelly, da mercearia, pensam diferente. - Burke se encostou numa bancada de carpinteiro, e viu que havia falado a verdade antes, na
hora da briga: Erin era um prazer para a vista.
- A sra. Malloy. Falou com ela? Foi fazer perguntas a me respeito para o sr. O'Donnelly?
- Só verifiquei suas referências.
- Ninguém lhe pediu que saísse pela cidade investigando a minha vida.
- Negócios, Irlandesa. Estritamente negócios. O que descobri é que você é de confiança e honesta. Que seus números conferem, que os livros estão limpos. Para
mim isso basta.
Tentando dissimular o entusiasmo que crescia dentro dela, Erin passou a mão pelos cabelos ainda gotejantes.
- Isto é loucura. Não se contrata uma pessoa que se conhece há poucos dias.
- Irlandesa, as pessoas são contratadas após uma entrevista de dez minutos.
- Não foi isso o que eu quis dizer. Não se trata de eu lhe entregar um curriculum vitae, depois pegar um ônibus para um novo emprego do outro lado da cidade.
Está falando de eu ir para a América e iniciar um trabalho maior do que o hotel, a mercearia e a fazenda juntos.
- Apenas uma questão de mais números, não é? Você disse que queria ir para o norte daqui a um ano. Estou lhe dando a oportunidade de ir para a América já.
Escolha.
- Não é assim tão simples. - Junto com o entusiasmo crescia o pânico. A vida toda tinha esperado uma oportunidade assim, mas a realidade da proposta a horrorizava.
- É um jogo, Irlandesa. A maioria das coisas que valem a pena ganhar são assim. Pagarei sua passagem em sinal de boa fé. Você começará com um salário semanal.
- Ele considerou por um momento, depois disse uma quantia que a fez abrir a boca. - Se der certo, terá um aumento de dez por cento em seis meses. Por esse dinheiro
tomará conta de todos os detalhes, todas as cifras, todas as contas. Vou querer um relatório semanal. Partiremos dentro de dois dias.
Paralisada, Erin olhou para ele.
- Dois dias? Mas mesmo que eu aceitasse, nunca estaria pronta para viajar em dois dias.
- Só tem de fazer as malas e cuidar da despedida, eu faço o restante.
- Mas eu...
Ele deu um passo à frente.
- Tem de decidir, Erin. Fica ou vai. Se ficar, estará segura, e para o resto da vida vai ficar pensando: e se...
Tinha razão. O "e se" já começava a perturbá-la.
- Se eu for, onde vou morar?
- Minha casa é grande.
Teria de ser firme, muito firme, desde o começo.
- Não, não vou concordar com isso. Posso dizer que vou trabalhar com você, mas não vou morar com você.
- A escolha é sua. Não acho que Adélia colocaria algum obstáculo para você ficar lá. Na verdade, acho que sabe que ela adoraria tê-la consigo. E nada de caridade,
pois você estaria se sustentando. Claro que sempre poderia alugar um apartamento, mas acho que a princípio seria mais confortável ficar com sua prima. E nossas fazendas
são próximas o suficiente para tornar o arranjo conveniente.
- Vou falar com ela.
Erin tinha tomado a decisão. Iria. Os navios atrás dela ainda não estavam em chamas, mas com certeza soltavam fumaça.
- Terei de falar com minha família, também, mas gostaria de aceitar sua oferta.
Erin estendeu a mão, que Burke segurou com indiferença, embora por dentro estivesse, para um homem tão frio, inexplicavelmente aliviado.
- Tenho altas expectativas quanto a seu trabalho, Erin. Espero que as cumpra.
- Pode ficar tranqüilo. Sou grata pela oportunidade.
- Terei de lembrá-la disso depois que tiver passado alguns dias verificando o caos que meu último contador deixou.
Erin ficou bem quieta por um momento, esperando assentar o rebuliço que se havia instalado dentro dela. Em seguida rodopiou os pés girando firmes no chão
de terra batida rindo.
- Mal posso acreditar. América! Parece um daqueles sonhos malucos. Eu que nunca fui além de cinqüenta quilômetros de Skibbereen, e agora, num piscar de olhos,
vou viajar milhares de quilômetros.
Ele gostou de vê-la daquele jeito, o rosto corado de prazer, os olhos acesos. E a chuva ainda tamborilava no teto.
- Demora um pouco mais que um piscar de olhos cruzar o Atlântico.
- Não seja tão literal. Em questão de dias estarei num país novo, casa nova, trabalho novo. Dinheiro novo.
Ele começou a procurar uma cigarrilha, desistindo em seguida.
- O dinheiro faz seus olhos brilharem.
- Qualquer pessoa que tenha sido pobre brilha um pouco quando surge uma chance de ganhar dinheiro.
Ele concordou com um movimento de cabeça. Havia sido pobre, mas duvidava que Erin entendesse aquele grau de pobreza. E gostava de dinheiro, se bem que, se
o perdesse, como já o havia perdido outras vezes, simplesmente sacudiria o pó dos sapatos e partiria para ganhar mais.
- Vai ter de trabalhar por ele.
- Não o aceitaria de nenhuma outra maneira. Mas... Burke, preciso de um passaporte e aquela carteira verde que permite que a gente trabalhe... Deve haver
uma pilha de papéis para serem processados.
Ele tirou um formulário do bolso e deu-o a Erin.
- Já disse que vou providenciar. Preencha isto e entregue-o no hotel hoje à noite. Já providenciei para que seja processado amanhã. O passaporte e qualquer
outro documento de que precisar estarão em Cork quando chegarmos lá.
- Você estava bem seguro de si, não estava? De que eu iria aceitar? - Erin disse, balançando lentamente a folha de papel.
- Valeu a pena. Vai precisar de uma fotografia recente, também.
- E se eu tivesse dito não?
- Então você teria sido uma boba e eu jogaria o formulário no lixo.
Erin guardou o papel no bolso da calça folgada e sacudiu a cabeça.
- Não entendo você. Me fez uma oferta muito generosa, está me dando a oportunidade de realizar um sonho que tenho há nem sei quanto tempo. Mas mesmo enquanto
o faz, parece que não está nem um pouco interessado no que pode acontecer.
- Às pessoas dão demasiada importância a tudo. É uma forma garantida de se magoar.
- Está dizendo que não dá importância nenhuma? A nada? E sua fazenda?
- Bem, a fazenda... é um lugar. No momento, confortável e razoavelmente lucrativo. Mas isso é tudo. Não tenho com a fazenda os laços que vocês têm com aterra
daqui, Erin. Por isso que, se tivesse de deixá-la, o faria sem olhar para trás. Quando você deixar a Irlanda, por m~is que tenha desejado partir, vai ficar triste.
- Não vejo nada de errado nisso. É meu lar. Está certo sentir saudade do próprio lar.
- Algumas pessoas não constroem lares. Moram em algum lugar, e é tudo.
Ela o enxergou mais claramente, embora o barracão continuasse na penumbra. Viu embora dizendo a si mesma que não tinha importância que havia pontos dentro
dele que ninguém, nenhuma mulher, jamais tocaria.
- É uma forma de vida fria e triste.
- É uma escolha. Agora, não esqueça de me entregar o formulário à noite. Vou para Cork bem cedo pela manhã.
- Mas disse que partiríamos em dois dias.
- Encontro-a lá.
- Então está bem. Preciso ir agora, tenho muito que fazer.
- Há mais uma coisa que devemos resolver, e que não tem nada a ver com negócios.
Agarrou-a pelos braços e puxou-a contra si. Furiosa, Erin tentou empurrá-lo, mas foi inútil. Viu a boca de Burke cada vez mais próxima, rude, exigente, impaciente.
Ela teria lhe arranhado o rosto. Teria lutado, mordido, esbravejado. Foi o que disse a si mesma que teria feito se... se os lábios dele não fossem tão firme~,
quentes, apaixonados, tentadores.
A cabeça de Erin se encheu de sons, mais altos e profundos do que a chuva batendo furiosa no teto de zinco. As mãos estavam presas entre os dois corpos, e
ela sentia um coração disparado, só não sabia de quem.
Aquele devia ser o gosto da maçã quando Eva deu a primeira dentada, pensou um pouco tonta. Suculento, ácido, insuportavelmente delicioso. Nada que experimentasse
depois o satisfaria tanto. Vencida, Erin abriu os lábios.
Burke sabia o que queria, mas não o que esperar em troca. Estava disposto a enfrentar arranhões, fúria, gritos. Era um lutador, e tudo o que ganhara na vida
fora através do jogo ou da briga. Desde a primeira vez que a vira, ficou tentando se convencer de que Erin McKinnon não era diferente. E se enganou.
Pois ela cedeu. Depois do primeiro instante de choque cedeu apaixonadamente, deixando-o abalado e ansioso por mais. Erin tinha a boca ávida e móvel, o corpo
rijo e vibrante. Sentia o desejo dela, tão forte quanto o seu, correndo pela veia e agitando o corpo todo.
Queria amá-la ali, no chão úmido, sentindo o cheiro da chuva e da terra. Queria que ela o tocasse, sentir aquelas mãos fortes na carne. Ouvi-la dizer seu
nome. Ver os olhos azuis se escurecerem quando lhe cobrisse o corpo com o seu. Podia ser naquela hora, dava para sentir na pressão do corpo dela contra o seu, na
avidez da boca.
Podia ser naquela hora. Em outros tempos, com outras mulheres, ele não teria hesitado. Por que hesitava naquela hora não saberia dizer, e no entanto afastou-a,
segurando-a pelos ombros e com os olhos fitos nos dela, que se abriam.
Erin ficou incapaz de falar por um momento. Uma agitação imensa não deixava lugar para palavras. Não sabia que um corpo podia se encher de sensações com tal
rapidez, nem que uma mente pudesse ser esvaziada com a mesma velocidade. Não sabia até aquela hora. Se alguém lhe tivesse dito antes que o mundo podia mudar no tempo
de uma batida de coração, teria rido. Mas naquela hora entendeu.
Burke não falou. Erin lutava para recuperar o equilíbrio enquanto ele permanecia em silêncio. Não podia se permitir aquele tipo de loucura, nunca mais. Se
era para atravessar um oceano com aquele homem, trabalhar para ele, entendê-lo ao menos um pouco, não podia deixar que aquilo voltasse a acontecer. Não com um homem
como aquele. Erin respirou fundo. Se aqueles últimos momentos lhe haviam ensinado alguma coisa, era que Burke era um conhecedor de mulheres e das suas fraquezas.
- Não tinha o direito de fazer isso - limitou-se a dizer, sem energia para uma nova crise temperamental.
- Não foi uma questão de ter direito, e sim de querer. Esse foi um beijo de verdade, Irlandesa, e precisávamos nos livrar dele quer você fosse viajar comigo
quer não.
- Então, já que estamos livres, não há necessidade de isto acontecer de novo.
- Não me peça promessas, não sei cumprir.
Burke foi até a porta e empurrou-a, deixando entrar o vento e a chuva. Queria esfriar a cabeça e acalmar o coração.
- Fale com Dee e Travis quando for levar o formulário. Lembranças à família.
E desapareceu na tempestade. Erin correu para a porta, mas só viu uma sombra vaga rapidamente engoli da pela chuva e pela tarde que caía.
Uma sombra, pensou, sobre a qual nada sabia. E era aquela sombra que ela, Erin, iria seguir até a América.

CAPÍTULO IV

América. Erin estava muito longe da ingenuidade dos primeiros imigrantes, a quem diziam que as ruas eram calçadas de ouro, mas decidida a confirmar a crença
de que aquela era a terra da oportunidade. Sua oportunidade.
O que a atingiu primeiro foi a velocidade, a pressa que parecia acometer toda aquela gente. O que afazia agitar-se também, constatou, ao sentar-se no banco
de trás da perua da prima. Tentou parecer natural.
Outra surpresa foi o frio, um frio paralisante que penetrava até os ossos, coisa nunca experimentada no ameno clima irlandês. No entanto, a neve compensava
muita inconveniência. Montes dela cobriam colinas ondulantes e se erguiam dos dois lados da estrada. O céu sobre a cabeça era diferente, diferente o ar que respirava.
Erin dispensou a afetação de tentar parecer natural e olhou em volta como uma criança numa loja de brinquedos.
Burke havia cumprido a palavra, a papelada havia se arranjado como por si mesma, e dias depois da oferta de emprego Erin já estava do outro lado do Atlântico.
Burke a havia entregue aos cuidados da família no aeroporto. Estado da Virgínia, comentando descuidadamente que a veria breve, assim que estivesse acomodada. E,
com isso, havia desaparecido, deixando a nova contratada de boca aberta.
Erin tinha esperado mais, esperado, talvez um tanto bobamente, que ele mostrasse mais prazer em chegar com ela à sua terra. Chegara mesmo a esperar aquele
meio-sorriso, a sombra de divertimento no olhar, ou sentir o toque de um dedo no rosto. Entretanto, Burke a dispensara como quem dispensa uma empregada, aliás exatamente
o que ela era. Não mais valsas e abraços furtivos.
Erin por acaso queria aquilo? O problema era que Burke Logan havia ocupado seus pensamentos naquele período quase tanto quanto a vinda para a América. Algo
lhe dissera que estava prestes a correr dois riscos, um com o homem e outro com o país. Sem saber quando nem como, Erin havia começado a misturar os dois, e descoberto
que queria a ambos. E, chegando à conclusão de que estava mesmo ficando louca, decidiu que a terra seria o bastante.
E aterra era linda. As montanhas escuras a distância fizeram-na lembrar-se de casa, enquanto o burburinho de carros ao lado do deles em três pistas era estranho
o suficiente para. entusiasmá-la. A combinação do antigo, trazido pelos primeiros imigrantes para o novo mundo, com o absolutamente novo que a mudança criara era
fascinante.
Adélia virou-se para trás no banco e sorriu para a prima.
- Lembro-me do meu primeiro dia aqui, quando tio Paddy foi me buscar no mesmo aeroporto. Senti como se tivesse sido jogada no meio de um circo.
- Vou me acostumar. Vou me acostumar bem depressa, assim que acreditar que vim de verdade.
Dee murmurou alguma coisa para Brady, que se remexia na cadeirinha, e distraiu-se com um cachorro de pelúcia antes de dizer:
- Sabe, estou grata a Burke. Nem me passou pela cabeça, ao ir para a .Irlanda, que pudesse trazer alguém querido conosco.
- Sei que foi tudo muito repentino, e nunca lhe agradecerei o bastante, Dee.
- Ora, que bobagem, me sinto como uma menina, trazendo a melhor amiga para casa. Sabe o que acabei de pensar? Podemos dar uma festa. Uma linda festa, não
acha, Travis?
- Acho que é uma boa idéia.
- Não quero que tenham trabalho por minha causa - interferiu Erin.
Estavam entrando no Estado de Maryland, e Travis falou:
- Se não der trabalho a Dee, vai matá-la de desgosto. Amor, estamos quase em casa.
- Voltar é quase tão bom quanto sair para viajar. Brendon, se não parar de aborrecer sua irmã vai ficar trancado no quarto até amanhã de manhã - ralhou Dee,
depois suspirou e se remexeu no banco. Travis olhou-a preocupado.
- Tudo bem?
Tranqüilizou-o dando-lhe tapinhas na mão.
- Coisas de criança. Os meninos mantêm uma tradição de irritar as irmãzinhas.
- Eu gostaria de ajudar a cuidar das crianças, ou fazer qualquer outra coisa para recompensá-los por terem me trazido.
- Você é da família, Erin - foi a resposta simples de Adélia, que logo em seguida endireitou o corpo, pois o carro passava entre dois pilares de pedra que
marcavam a entrada da fazenda. - Bem-vinda a Royal Meadows, prima. Seja feliz.
Erin não sabia o que tinha esperado. Algo grandioso, com certeza, e não ficou desapontada. O sol batia forte na neve de fevereiro, fazendo a fina camada de
gelo brilhar. Acres e acres de um mundo branco e brilhante. Até mesmo as árvores estavam cobertas, os galhos nus revestidos de neve e gotejando gelo transparente.
Como o país das fadas num livro de histórias que Erin lera quando criança.
Quando a casa apareceu, ficou sem palavras. Nunca vira nada tão grande nem tão adorável. As paredes de pedra se erguiam sólidas e majestosas da base branca
de neve. Todas as janelas tinham sacadas com graciosas grades de ferro forjado. Inspirando fundo, Erin conseguiu murmurar:
- É a casa mais linda que já vi.
Dee virou-se para desamarrar Brady da cadeirinha de bebê quando Travis freou o carro.
- Também acho prima. E é sempre bom vê-Ia de novo. Venha, garotão, estamos em casa.
- Tio Paddy! - Do banco de trás, tanto Brendon quanto Keeley começaram a gritar, para logo depois saírem correndo, espalhando neve. Um homem baixo e atarracado,
cabelos brancos esvoaçantes e rosto de gnomo abriu os braços para eles. Hannah falou para Dee:
- Dê-me o bebê, patroa. Já está carregando dois. E vamos deixar que os homens tomem conta da bagagem enquanto você entra, toma uma boa xícara de chá e coloca
os pés para cima.
- Pare de me tratar como se eu estivesse doente - reclamou Dee, e começou a rir ao ser agarrada pelo tipo num abraço de urso.
- Como está a melhor menina que eu conheço?
- Em perfeita forma e feliz por voltar para casa. Veja o que trouxemos de Skibbereen, tio. Lembra-se de Erin McKinnon, não lembra? Filha de Mary e Matthew
McKinnon.
- Erin McKinnon? - Ele franziu todo o rosto, tentando se lembrar, e logo o franzido foi substituído por um amplo sorriso.
- Ah, Erin McKinnon! Menina, a última vez que a vi não passava de um bebê. Eu costumava virar um copo com seu pai de vez em quando, mas você não lembra.
- Não, mas ainda se fala de Paddy Cunnane na aldeia.
Ele sorriu como se soubesse exatamente o que diziam.
- Falam, é? Bem, vamos sair deste frio.
- Posso ajudar com as malas - começou Erin, enquanto Adélia conduzia as crianças para dentro da casa.
Travis já havia começado a descarregar o porta-malas e colocar os volumes no chão, mas os olhos acompanhavam a esposa.
- Eu ficaria agradecido se entrasse com Dee e a deixasse mostrar seu quarto. Ela não gosta de admitir que está cansada e, se ocupar com você, vai deixar as
tarefas mais pesadas para os outros.
Erin ficou dividida entre carregar suas próprias malas e fazer o que ele havia pedido.
-Tudo bem, se você achar melhor.
- E seria interessante se você lhe dissesse que queria sentar e tomar um chá.
Dominador, mas discreto. Num impulso, Erin beijou o rosto do primo.
- A sua é uma mulher de sorte. Vou providenciar para que ,
descanse sem perceber que está sendo manobrada - e Erin, pegando uma das malas, levou-a para dentro da casa.
O calor a atingiu em cheio, não apenas a mudança de temperatura mas também as cores e o clima da casa em si. As crianças corriam de peça em peça, como se
quisessem se certificar de que nada havia mudado durante sua ausência.
Dee já estava tirando as luvas e pondo-as sobre uma mesa ornamental no vestíbulo. Em seguida, aproximou-se de Erin, dando-lhe o braço e levando-a para a escadaria.
- Antes de mais nada, vai querer ver seu quarto. Diga se lhe agrada ou não, e se quer mais alguma coisa. Assim que estiver instalada, mostre o restante.
Erin limitou-se a assentir com a cabeça. O espaço já fazia perder a voz. Adélia abriu uma porta e convidou-a a entrar com um gesto.
- Este é o quarto de hóspedes, gostaria que tivéssemos tido tempo de colocar flores para você, e dar mais alguns toques pessoais. O banheiro é no fim do corredor,
e lamento dizer que as crianças estão sempre jogando toalhas molhadas no chão e fazendo desordem. Quando a casa foi construída não se usava fazer um banheiro para
cada quarto, e Travis e eu gostamos tanto dela que não nos animamos a fazer reformas.
O quarto era decorado em cinza e rosa, com uma cama enorme de latão e carpete espesso. A mobília era de mogno com puxadores de latão, e sobre a cômoda havia
um espelho emoldurado, grande o bastante para refletir quase o quarto todo. Alguns bibelôs se distribuíam pelos móveis, um cachorrinho de porcelana, uma pequena
taça cor-de-rosa, um estranho leão de metal. As portas que davam para a varanda mostravam uma grande extensão de neve através das cortinas de gaze, criando uma fronteira
de sonho entre o quente e o frio. Incapaz de falar, Erin ficou olhando, a mala segura pelas duas mãos.
- Gosta? Pode modificar o que não a agradar.
Erin conseguiu engolir o nó da garganta, mas não relaxou o aperto das mãos na alça da mala.
- Não. É o quarto mais lindo que já vi. Não sei o que dizer.
Gentilmente, Dee tomou-lhe a mala.
- Diga que ele a agrada. Quero que se sinta bem, Erin, em casa. Sei como é deixar tudo para trás e chegar num lugar estranho.
Erin respirou fundo, incapaz de suportar mais um segundo.
- Não mereço isto.
- Que bobagem. - Dee, com ar de mulher de negócios, colocou a mala sobre a cama com a intenção de ajudar a prima a desfazê-la.
- Não, por favor - disse Erin, colocando a mão sobre a de Dee e sentando-se. Não queria que a prima se cansasse nem que visse as roupas lamentáveis que havia
trazido.
- Dee, tenho de confessar...
- Quer um padre? - riu Dee, sentando-se ao lado dela.
Entre o riso e o choro, Erin sacudiu a cabeça.
- Tenho tido tanto ciúme de você.
- Mas você é muito mais bonita do que eu - respondeu Dee, depois de um minuto de consideração.
- Não, não é verdade, e o problema não é esse. Oh, eu odeio confissões.
- Eu também. Para gente como nós parece que o pecado vem naturalmente.
Erin olhou de lado, viu o bom humor e relaxou.
- Para mim, pelo menos, vem mesmo. Eu tinha ciúme, ou inveja. Tenho. Pensava em você aqui nesta casa grande e linda, cheia de coisas bonitas e roupas boas,
sua família e tudo, e quase morria de inveja. Quando a encontrei no aeroporto naquele dia eu estava ressentida e nervosa.
Dee nem se incomodou com o ressentimento.
- Nervosa? Por me ver? Erin, nós praticamente crescemos juntas.
- Mas você veio para cá, e é rica. Eu tenho esse terrível amor pelo dinheiro.
Dee ia sorrir, mas controlou-se a tempo.
- Bem, não me parece um pecado muito grande. Dois ou três dias de purgatório, talvez. Erin, sei o que é não ter quase nada e desejar mais. Não modifica minha
opinião sobre você saber que me inveja, pelo contrário, fico vaidosa. E imagino que também seja pecado, pensando bem.
- É pior porque você é tão boa comigo, vocês todos, e me sinto como se estivesse usando todo mundo.
- Talvez esteja, mas eu também estou usando você, para trazer a Irlanda um pouco mais perto, para ser minha amiga. Tenho uma irmã, a irmã de Travis, mas ela
se mudou para longe há dois anos. Nem sei expressar a falta que sinto dela. Acho que estava esperando que você preenchesse a vaga.
Com a consciência mais leve, Erin segurou a mão de Dee.
- Então, se o uso é recíproco, não fica tão ruim, acho.
- Vamos esperar para ver o que acontece. Agora vou ajudá-la a desfazer a mala.
- Não é preciso. Eu preferiria descer e tomar uma xícara de chá.
Erin levantou-se, seguida pelo olhar de Adélia.
- Travis lhe pediu para me fazer ficar quieta?
- Não sei do que está falando.
- Mentir também é pecado - lembrou Dee, mas sorriu enquanto desciam a escada.

Naquela noite Erin sonhou com a Irlanda, com as verdes colinas e o perfume sutil das urzes. Viu as montanhas escuras e as nuvens que cruzavam o céu impelidas
pelo vento. E a fazenda, a terra fértil revolvida pelo arado e vacas pastando. Sonhou com a mãe despedindo-se sorridente e com a lágrima que lhe corria pela face.
Com o pai, e o abraço forte que fizera doer-lhe as costelas. Ouviu as vozes dos irmãos, uma a uma.
Naquela noite, Erin chorou pela Irlanda, lágrimas lentas e silenciosas. por uma terra que havia deixado para trás e que no entanto levava consigo.
Mas, ao acordar, tinha os olhos secos e a mente clara. Havia tomado a decisão, escolhido seu caminho, o melhor era seguir por ele.
Escolheu no guarda-roupa um vestido cinzento muito simples, que lhe ficava bem. A mãe era excelente costureira. Começou a prender os cabelos, depois mudou
de idéia e domou-os com uma trança. Estudou-se ao espelho com o que esperava que fosse um olho crítico e objetivo. Decidindo que havia conseguido um ar eficiente,
dirigiu-se para a escada.
A algaravia vinda da cozinha alcançou-a assim que chegou ao andar inferior, mas, longe de intimidar-se, avançou:
- Vai ter muito que dizer aos seus amigos na escola - Hannah dizia a Brendon, enquanto preparava ovos mexidos. Dee falou da ponta da mesa, onde lutava para
amarrar uma fita nos cabelos de Keeley.
- Já faltou duas semanas, meu rapaz. Não existe um motivo no mundo para não voltar para a escola hoje.
- Estou com jet lag - disse o menino, fazendo uma careta horrenda para a irmã e atacando com fúria os ovos que Hannah acabava de colocar à sua frente.
- Ah, jet lag, então é isso? Bem, se sofre tanto assim em aviões, acho que podemos esquecer as aulas de pilotagem quando tiver dezesseis anos. Um comandante
de jato não pode ter jet lag.
Sem titubear, Brendon corrigiu:
- Talvez não seja jet lag. Pode ser que eu tenha pegado alguma doença estrangeira lá na Irlanda.
- Febre de brejo - atalhou Erin, da porta. Estalando a língua, foi até Brendon e pousou a mão na testa sob o topete ruivo.
- Ah, com certeza, e é a praga mais terrível da Irlanda.
Dee perguntou, a voz comicamente trêmula:
- Febre de brejo? Oh, não, Erin, não pode ser. Meu filhinho não!
- Meninos pequenos são os que pegam com mais facilidade, infelizmente. Só existe uma cura, sabe disso.
Dee estremeceu melodramaticamente e fechou os olhos.
- Oh, não, isso não. Pobre querido, pobre do meu rapazinho. Não sei se vou agüentar.
Erin pousou uma mão consoladora no ombro do menino.
- Se o garoto está com a febre do brejo, terá de ser feito. Nada além de espinafre cru e nabos durante dez dias. É a única esperança.
- Espinafre cru? - Brendon sentiu o estômago dar uma volta. Não tinha certeza absoluta do que fossem nabos, mas o nome não era nada apetitoso. - Estou me
sentindo muito melhor.
Dee inclinou-se para verificar , ela mesma, a testa do filho.
- Tem certeza? Não está muito quente, mas não sei se devemos correr riscos.
De um salto, Brendon levantou-se e agarrou o casaco.
- Estou ótimo. Venha, Keeley, não quero perder o ônibus da escola.
Dee beijou os filhos.
- Bem, se tem tanta certeza... Tio Paddy vai levá-los de carro até o portão. Está frio, portanto fiquem dentro do carro até o ônibus chegar.
Esperou até que a porta batesse atrás deles antes de se atirar sobre uma cadeira, torta de riso.
- Febre de brejo? De onde tirou isso, Erin?
- Minha mãe sempre usava com Joe. Nunca falha.
Hannah virou-se para elas, rindo também:
- Você pensa rápido. O que quer comer?
- Oh, eu não...
Entendendo o embaraço da prima, Dee tirou a toalha que cobria a cesta de pães, dizendo:
- Se pensa que a sra. Malloy cozinha bem, espere até provar os pãezinhos de Hannah. Por que não pede ovos também? Quando estou grávida como igual a um leão
e detesto ser a única gulosa.
- Café? - perguntou Hannah, trazendo o bule.
- Por favor, obrigada. Ah, Travis ainda está deitado?
- De pé e na luta. Faz mais de uma hora que foi para os estábulos. Quando viaja a negócios, nunca sei de quem sente mais falta, se de mim ou dos cavalos.
Está vendo este pãozinho, eu não devia pegar, mas vou. Afinal, estou comendo por três. Brendon está na primeira série, e Keeley vai para o jardim-de-infância de
manhã. Assim ficamos só com Brady, este belo bebê que a gente vê quando não está escondido atrás de uma máscara de mingau de aveia. A criança mais bem-humorada do
mundo. Agora, Erin, o que quer fazer hoje?
- Na verdade, gostaria de ir para a fazenda do sr. Logan e começar a trabalhar.
Dee sorriu agradecendo a Hannah, quando esta colocou os pratos na frente das duas primas.
- Já? Mas acabou de chegar. Com certeza Burke não se importa se tirar um ou dois dias para se ambientar.
- Eu sei mas estou ansiosa para começar, ver o que há para fazer. E ver se sou capaz.
- Não consigo imaginar Burke Logan incluindo em sua folha de pagamento alguém que não saiba trabalhar.
- Para mim é diferente. Até pensar em dólares em vez de libras é complicado. Se começar logo e descobrir o que há para fazer vou ficar menos tensa.
Dee se lembrou de o quanto havia ficado ansiosa para começar a trabalhar quando viera para a América, para provar a si mesma que ainda era competente e capaz
de abrir o próprio caminho.
- Então está certo, eu mesma vou levá-la depois do café.
- Nem pensar, patroa - disse Hannah, do fogão.
- Ora, eu ainda consigo ficar atrás de um volante.
- Não vai dirigir nada para lugar nenhum até a próxima consulta, e daí só se o médico permitir. Paddy pode levar a srta. McKinnon.
Dee franziu o nariz quando Hannah voltou as costas, mas cedeu.
- Sou uma prisioneira em minha própria casa. Se vou para os estábulos, Travis faz todos os trabalhadores me vigiarem feito falcões. Parece que nunca tive
um bebê.
- Sabe muito bem que gêmeos costumam ser prematuros.
Dee sorriu.
- Quanto mais cedo, melhor. Bem, vou ficar e planejar a festa. E Brady e eu podemos brincar com blocos, não é, amor?
Como resposta, ele gritou e bateu com a mão no prato de aveia.
- Depois que ele tomar banho.
- Por que não posso fazer isso? - Levantando-se, Erin foi tirá-lo do cadeirão.
- Não comece a me mimar também, Erin. Acabo enlouquecendo.
- Nada disso. Apenas acho que está na hora de conhecer melhor este cavalheiro tão simpático.
Depois do banho do bebê e de uma nova toalete para se livrar dos vestígios de aveia, e embrulhada num cardigã e num casaco, Erin foi com Paddy Cunnane para
a casa da fazenda de Burke.
Sentia a tensão dos nervos nos dedos, quando os entrelaçava.
Perda de tempo ficar nervosa por homens como aquele, pensou. O que acontecera naquela tarde tempestuosa no barracão estava morto e enterrado. A partir daquele
dia seriam nada além de patrão e empregada. Ele havia dito que esperava eficiência, e Erin pretendia comportar-se à altura.
Os outros sentimentos que Burke lhe despertara haviam sido fruto do momento, simples atração física. Erin era madura o suficiente para enfrentar os fatos
da vida. E forte também o suficiente para resistir a eles.
A partir de então, seria uma contadora. Uma contadora com um bom emprego e um bom salário. Logo poderia começar a mandar dinheiro para casa e ainda ficar
com suficiente para comprar... Senhor, nem dava para pensar o que compraria primeiro.
Paddy virou o jipe na direção de um portal. A placa era grande, de ferro batido, mais forte do que elegante, e dizia: Three Aces. Erin mordeu o lábio inferior.
Três ases... Teria Burke ganho a fazenda com aquelas cartas, ou melhor, teriam sido a ruína do dono anterior?
A colina ali, mais íngreme, também estava coberta de neve. Um salgueiro que talvez fosse até gracioso no verão se retorcia, as folhas amarelecidas, em frente
da casa.
Que casa. Maior e mais imponente do que a dos Grant, fora construída em pedra fosca, cinzenta, e parecia um castelo: cúpulas e torreões. janelas góticas com
parapeitos projetados para fora. O jipe contornou uma ilha oval. coberta de neve recém-caída, e parou ao pé da escadaria.
- Mora gente aí? - Erin pensou alto.
- Cunningham, o dono antes de Logan, gostava de pensar que pertencia à realeza. Colocou mais dinheiro nos enfeites da casa do que nos estábulos e na criação.
Fez uma piscina interna.
- Está brincando.
- Não, juro. Bem no centro da casa. Quando quiser voltar, telefone. Virei buscá-la ou então um dos rapazes.
- Muito obrigada. - Mas os dedos de Erin pareciam congelados na maçaneta da porta.
- Boa sorte, pequena.
- Obrigada de novo. - Juntando toda a coragem, saiu do jipe. Ficou aliviada ao ver que tio Paddy a esperava subir os degraus de pedra que levavam à porta
principal.
E que porta principal, pensou. Tão grande quanto um celeiro e toda esculpida. Correu a mão sobre a madeira antes de puxar a aldrava. Esperou. A porta foi
aberta por uma mulher de cabelos escuros, olhos grandes e corpo miúdo e empertigado. Erin ergueu o queixo e engoliu em seco.
- Sou Erin McKinnon, a contadora do sr. Logan.
A mulher mediu-a em silêncio e deu um passo atrás. Erin sorriu para Paddy por cima do ombro antes de entrar.
"Por todos os santos, isto é um átrio de igreja", pensou, olhando o teto altíssimo e as janelas em forma de ogiva. Parecia que o sol vinha de to.das as direções
para iluminar o verde das inúmeras folhagens. A altura que devia corresponder o primeiro andar, uma passarela contornava a parede com um corrimão da mesma madeira
da porta. Os saltos dos sapatos de Erin ressoaram no assoalho, parando em seguida, pois ela não fazia idéia de para onde Ir.
- Vou dizer ao sr. Logan que a senhorita chegou.
Erin assentiu. A mulher tinha um sotaque espanholado, o que reforçava a sensação de ter entrado num mundo estranho. Enxugou a palma das mãos na saia e pensou
que Alice devia ter sentido a mesma coisa no país do espelho.
- Isso tudo é disposição para o trabalho ou apenas saudade mim?
Erin se voltou. O jeans e as botas, e o sorriso eram os mesmos. A arrogância que havia abandonado Erin ao ver a imponência da mansão voltou a protegê-la.
- Com vontade de trabalhar e ganhar dinheiro.
O frio e o nervosismo haviam acentuado a cor nas maçãs do rosto e escurecido os olhos. Burke achou que parecia pronta para conquistar o mundo.
- Podia ter reservado uns dias para se familiarizar com as novidades.
- Podia, mas não quis. Espero que não se incomode por eu ter decidido diferentemente do que esperava. Burke a convidou para segui-lo com um gesto.
- Gosto de moças independentes e sem medo de serviço. Morita, meu último contador, deu um jeito de desviar trinta mil dólares antes de as grades se fecharem
sobre ele. Para encobrir a fraude, armou uma confusão com os papéis e relatórios: Sua primeira prioridade é colocá-los em ordem. Enquanto isso, terá de fazer a folha
de pagamento e as faturas correntes.
- Certamente - "Certamente, repetiu uma vozinha zombeteira dentro dela"
Burke abriu a porta de uma sala e ambos entraram.
- Vai trabalhar aqui. Espero que não precise me fazer um monte de perguntas enfadonhas, mas em caso de dúvida pode chamar Rosa pelo interfone e ela passará
o recado para mim. Faça uma lista do que vai precisar, que providenciarei.
O escritório tinha o tamanho do depósito de O'Donnelly. A mobília era antiga e lustrosa, o carpete parecia saído de um palácio. Erin foi até a mesa. Burke
tinha razão, a desordem era total. Pela primeira vez desde que tinha se aproximado da mansão de pedra, sentiu-se à vontade no meio de objetos familiares.
Livros-caixa, cadernos e papéis se misturavam numa única pilha. Havia uma calculadora, muito diferente da velha máquina de somar manual que Erin usava na
Irlanda. Perdido no meio da confusão estava um telefone, um porta-lápis de porcelana e cestos para documentos onde se lia: entrada e saída.
Burke foi para trás da escrivaninha e começou a abrir e fechar gavetas.
- Aqui há selos, papel de carta, de rascunho, talões de cheques. Desde Morita, nada sai daqui sem a minha assinatura.
- Se tivesse tomado essa precaução antes, seria trinta mil dólares mais rico.
- Ponto para você - disse Burke, sem acrescentar que Morita havia trabalhado para ele durante dez anos, alguns bons, outros maus.
- Erin, estabeleça seu próprio ritmo, desde que não seja muito arrastado. Rosa vai lhe servir o almoço. Pode comer aqui ou na sala de jantar. De vez em quando
lhe farei companhia.
- Você passa o dia aqui?
- Vou e venho. Você não dormiu bem - e Burke encostou-se na beirada da escrivaninha.
Num gesto automático, Erin levou a mão ao rosto, pensando que devia estar com olheiras.
-Não, eu... acho que foi a mudança de tempo.
- Está bem instalada com os Grant?
- Sim, estão sendo maravilhosos comigo. Todos eles.
- São pessoas extraordinárias. Não se encontram muitos iguais a eles.
- Você, por exemplo... oh, desculpe, eu não quis ofender. Só que você é mais... desconfiado, como se tivesse arestas.
- Então tome cuidado para não chegar muito perto. Arestas costumam ser afiadas.
- Já percebi - ela disse com leviandade, e estendeu a mão para a primeira pilha de papéis. Burke fechou a mão devagar e com firmeza sobre o pulso delicado.
- Está tentando me provocar, Irlandesa?
- Não, mas imagino que não seja difícil.
- E acertou... Melhor avisá-la de que tenho pavio curto, e perigoso.
- Estou avisada, e agora por favor solte meu pulso.
- Mais um aviso, então: visto que se mudou para nossa pequena comunidade, vai acabar sabendo, por isso estou lhe falando antes dos outros. Quando uma mulher
me atrai, dou um jeito de tê-la. E acho que os fins justificam os meios.
Não era aviso, e sim ameaça. Sob os dedos de Burke o pulso batia rápida e intensamente, mas Erin manteve os olhos nos dele.
- Não havia necessidade de me dizer isso nem tenho a menor intenção de atrair você.
- Tarde demais. Acho você suficientemente instigante para dançar ao luar, desejável para beijar num barracão de horta e apaixonada para imaginar como seria
fazendo amor.
- Cuidado, sr. Logan. Pode virar a cabeça de uma mulher com essa conversa. Diga-me, quis que eu viesse para a América para dormir com você ou fazer sua contabilidade?
- Os dois, mas primeiro vamos tratar de negócios.
- E ficar nisso. Gostaria de começar agora.
- Está bem. - Mas em vez de ir embora, ele correu as mãos pelos braços de Erin, que enrijeceu o corpo mas ficou imóvel. Burke roçou os lábios pelo rosto dela.
Não conseguia pensar em outra coisa desde que voltara da Irlanda, nada além de Erin. Pensou em como havia sido tê-la nos braços, em como reagia ao vê-la sorrir,
ao ouvir-lhe a voz doce e quente.
Burke sabia que poderia possuí-la. A resposta dela havia sido pronta e rápida, nenhum dos dois poderia fingir o contrário. Sabia que Erin o queria, o que
não combinava com ela. Mesmo naquela hora, enquanto a beijava de leve, evitando os lábios, sentiu que a respiração começava a lhe faltar. Nunca conhecera uma mulher
cuja paixão estivesse tão à flor da pele. E ela estava ali, na sua casa. Era irresistível.
Mas queria que a iniciativa fosse dela. Seu orgulho queria. Por isso provocava, sabendo que a perturbava. Provocava-a sabendo que se arriscava a cair na própria
armadilha. Murmurou.
- Meios lícitos ou não, eu quero você.
Erin tinha os olhos fechados. Como era possível se deixar levar com tal rapidez, querer tão desesperadamente o que sabia que não devia ter? Colocou a mão
no peito dele, empurrando-o.
- E está acostumado a tomar o que quer. Compreendo. Não vou negar que mexe comigo, mas não estou aqui para me oferecer, Burke.
- Talvez não. Posso ser paciente, Irlandesa. Quando um homem está com as cartas, tem de saber quando conservá-las e quando pô-las na mesa. Vamos ter de jogar
essa partida, mais cedo ou mais tarde. E você é quem vai começar.
Erin esperou até que ele saísse antes de soltar a respiração. O que haveria nele que, apesar de toda a arrogância, a fazia querer sorrir? Sacudindo a cabeça,
sentou-se numa poltrona estofada de couro atrás da escrivaninha.
Burke tinha razão numa coisa. Iriam jogar aquela partida, mais cedo ou mais tarde. O problema era que Erin tinha medo de, mesmo ganhando, sair perdendo.
CAPÍTULO V

Erin levou uma semana para estabelecer a rotina que considerou agradável: levantava-se pela manhã, cedo o suficiente para ajudar Dee a aprontar as crianças
para a escola, depois guiava um carro emprestado até Three Aces, onde começava a trabalhar às nove.
Burke havia sido muito modesto ao chamar de caótico o estado da contabilidade da fazenda, assim como Erin havia sido modesta ao calcular a riqueza dele. Colocando
a escrita em ordem, tentava pensar naquelas quantias astronômicas em termos simples e práticos. Afinal, números não passavam de números.
Raramente a interrompiam, e Erin almoçava no escritório, para onde a discreta Rosa levava a comida. No final da primeira semana, havia feito progresso suficiente
para ficar satisfeita consigo mesma. Apenas por duas vezes a sensação de ser uma camponesa ingênua a havia dominado: na primeira, tivera de pedir a Burke o manual
de instruções para a calculadora eletrônica,e na segunda um apontador de lápis. Ele havia pegado na mesa um cilindro com um buraco no meio e entregado a ela.
- E para que serve isso? Nem tem uma manivela.
Burke havia pegado um lápis, enfiado no buraco e, com sua típica maldade, dado risada ao vê-Ia pular para trás, pois a maquininha funcionava.
- São baterias, Irlandesa, não se trata de mágica.
Erin superara a pequena humilhação enterrando o nariz nos livros de contas. Talvez não fosse muito moderna, mas, por todos os santos, havia equilibrado a
contabilidade. Naquela tarde, sentou-se à máquina de escrever portátil elétrica e bateu o relatório semanal, depois arrumou a escrivaninha e foi procurar o patrão.
A casa. em sua maior parte, ainda era território não desbravado. No átrio, Erin hesitou. Podia ter chamado Rosa pelo interfone, mas sempre se sentia idiota
falando com aquela caixinha. Em vez disso tomou o que esperava ser a direção da cozinha.
A casa parecia não acabar nunca, e ficava cada vez mais difícil resistir à tentação de abrir portas e espiar o que havia dentro. Ouviu um zumbido e seguiu
na direção dele, pensando ser uma máquina de lavar pratos, ou roupa. Sacudiu os ombros: fosse do que fosse, junto com a origem do zumbido deveria encontrar Rosa.
Pensando na mulher, decidiu que era mais um mistério. Rosa era calada, e sempre parecia saber com precisão onde Burke se encontrava. Embora a governanta se
referisse a ele como sr. Logan, Erin pressentia algo menos formal entre eles. Cogitou, um tanto contrariada, se os dois não seriam, ou teriam sido, amantes. Afastando
o pensamento, continuou andando pelo corredor agora.
No entanto, não encontrou nem cozinha nem lavanderia. Deu com uma porta dupla, empurrou uma das partes e deu de cara com uma cena antes nunca vista: uma piscina
de um azul convidativo, faiscante sob a luz artificial que se derramava pelo teto e pelas paredes de vidro. Ao redor dela, havia árvores de espécies completamente
desconhecidas para Erin, plantadas em enormes vasos de cerâmica. E flores. Deu um passo adiante, encantada como perfume de primavera ao mesmo tempo em que via a
neve cair. Flores vermelhas, laranja, amarelas e azuis. Se fechasse os olhos poderia jurar que ouviria papagaios. Paraíso, pensou sorrindo, avançando mais um pouco.
De olhos semi-cerrados, o corpo apenas começando a relaxar, Burke observava-a. Ela surgia no ambiente abafado como um sopro de ar fresco. A luz fazia seus
cabelos, presos por uma fita como a tinha visto usar na Irlanda, brilharem como fogo. E ele ainda se lembrava bem demais da sensação de correr os dedos naquela massa
de fios indomáveis.
Viu-a estender a mão para uma flor como se sentisse cócegas de vontade de colhê-la, depois desistir e mergulhar o rosto entre os botões. Riu baixo, deliciada,
pensando estar sozinha.
Então a rosa irlandesa tinha um fraco por flores. E por dinheiro. Burke sacudiu os ombros. Quem era ele para acusar alguém de ambição?
No entanto, o fato de o corpo ter esquecido de relaxar era, seguramente, culpa de Erin.
- Quer nadar, Irlandesa?
Erin girou nos calcanhares, lembrando, de repente, que estava ali por causa de um zumbido. Vinha da direção onde Burke se encontrava. Era uma banheira de
hidromassagem, como as dos spas cujas fotos vira em revistas. Como seria estar dentro de uma banheira assim?
- Quer me fazer companhia?
Burke falou rindo, e Erin limitou-se a dar de ombros.
- Obrigada, mas tenho de ir para casa. Acabei por hoje e vim trazer o primeiro relatório.
Burke indicou com um gesto a cadeira de vime branco ao lado da banheira.
- Sente-se.
- Você pode se dar o luxo de perder tempo, mas tenho mais o que fazer. Seja rápido
- Erin, suspirou, sentando-se.
Burke espreguiçou-se, sem mencionar que havia ficado nos estábulos desde o amanhecer, nem que distendera cada músculo do corpo supervisionando o cruzamento
de uni garanhão com uma égua particularmente arisca.
- Ainda faltam alguns minutos para seu horário de saída, Irlandesa. Então, como vão minhas finanças?
- É um homem rico, sr. Logan, embora o fato de conseguir sê-lo ainda, depois do que fizeram com seus livros, me deixe estupefata. Estudei um pouco e armei
um novo sistema. Se quiser, posso esperar que acabe seu... banho e explicá-lo. - A verdade é que Erin havia passado duas noites em claro debruçada sobre livros de
contabilidade.
- É mesmo?
- Até o fim da semana que vem devo estar com tudo funcionando.
- É bom saber. Por que não me diz como?
Burke moveu os ombros, e Erin desviou os olhos da pele molhada, dos músculos fortes e dos cabelos revoltos. Não devia ficar ali, disse a si mesma, especialmente
quando sentia a mente se desviar dos assuntos de contabilidade.
-Está tudo aqui no relatório. Se, se der ao trabalho de sair daí, poderá vê-lo.
- Como quiser - Burke apertou o botão que desligava as duchas e ficou em pé. As pernas de Erin,amoleceram, pois ele estava nu. Agradeceu o fato de não ter
ficado corada, se bem que soubesse que devia estar pálida.
Burke pegou uma toalha e enrolou-a nos quadris antes de sair da banheira.
- Você não tem vergonha, Burke Logan.
- Nenhuma.
- Bem, se pretendia me escandalizar, deu com os burros n'água. Deve se lembrar que tenho quatro irmãos, e... ei, você se machucou! O que foi? Haverá algum
osso quebrado?
Esquecida da inconveniência ao ver a mancha escura sob as costelas dele, foi tomada da mesma preocupação que tinha com os irmãos, e levantou-se para examiná-la.
- Acho que não - murmurou ele. Estava imóvel, o prazer de escandalizá-la perdido. Sentia os dedos frescos, ternos, na pele. Tocava-o como se gostasse dele.
Burke havia aprendido a viver sem aquele tipo de carinho havia muito tempo.
- Vai ficar pior ainda amanhã. Devia passar um lenimento. Como aconteceu? - E Erin, com a mesma naturalidade, retirou a mão e olhou para ele.
- O potro novo que eu trouxe da Irlanda.
- Bem, vai ter de ficar um pouco mais longe da próxima vez.
- É o que pretendo. Tenho o maior respeito pelo temperamento irlandês.
- Pois faz muito bem. Se quiser ver o relatório agora, responderei a qualquer pergunta que fizer antes de ir para casa.
Burke pegou as folhas cuidadosamente datilografadas. Erin olhou para as paredes de vidro, recobertas por uma fina camada de vapor por causa da água quente.
Mas não viu a neve, e sim Burke: os braços longos e musculosos, o peito forte e molhado, os quadris estreitos levando às coxas grossas.
Alguns diriam que se tratava de um belo espécime. Ela também diria. Um espécime perigoso. A voz dele despertou-a:
- Me parece bastante claro, você entende do assunto. Obviamente eu não teria contratado você se não tivesse acreditado nisso. Já tem idéia do que vai comprar
com seu primeiro pagamento?
Erin relaxou e sorriu, conservando os olhos acima do pescoço dele. Metade do dinheiro estaria a caminho da Irlanda na manhã seguinte. Quanto ao resto...
- Ah, uma coisinha ou duas. Se está satisfeito, já vou para casa. Tenho muita coisa a fazer.
- Satisfeito... bem... Ouça, já pensou que a contabilidade poderia ser muito mais interessante se você soubesse mais sobre os estábulos, as corridas?
- Não. Mas suponho que deveria.
- Um cavalo meu corre amanhã. Por que não vai comigo, ver de onde vem e para onde vai o dinheiro?
Erin mordeu o lábio inferior, pensativa.
- Ir às corridas? Eu poderia apostar?
- Uma mulher como eu gosto. Esteja pronta às oito. Primeiro quero levá-la para ver os estábulos e os paddocks.
- Está certo, até amanhã então. E, olhe, eu poria um pouco de ungüento de hamamélis nesse hematoma.
Erin andava de um lado para o outro da sala. Seu primeiro dia de folga, e ia passá-lo nas corridas. Haveria multidões de desconhecidos, ouviria dúzias de
vozes pela primeira vez. Correu a mão pelos cabelos, esperando estar bem. Não para Burke, pensou rapidamente. Para si mesma. Queria estar com boa aparência, sentir-se
à vontade no meio de toda aquela gente.
No minuto em que ouviu uma buzina, correu para fora. Hesitou no alto da escada, intimidada pelo carro esporte vermelho-vivo. Falaria daquele carro na próxima
carta para casa. Seu irmão Brian ia morrer de inveja.
- Não se pode dizer que você seja do tipo que se faz esperar - disse Burke, quando ela entrou no carro.
- Está brincando? Nunca estive numa corrida antes. Cullen já foi, e me contou que os cavalos são lindos e as pessoas fascinantes. Nossa, quantos mostradores
há neste painel. É preciso ser engenheiro para guiar este carro.
- Quer tentar?
Ao perceber que ele falava sério Erin foi invadida pela tentação, mas lembrou-se da estrada pela qual havia vindo do aeroporto, das três pistas e da quantidade
de carros.
- Por enquanto serei apenas observadora. Quando começa a corrida?
- Temos muito tempo ainda. Como vai Dee?
- Bem. O médico disse que está tudo às mil maravilhas, mas mandou que fizesse um pouco de repouso. Ela resmunga, por não ficar nos estábulos o tempo que gostaria,
mas tentamos distraí-Ia. A neve está derretendo.
- Mais uns dias como este e desaparecerá.
- Espero que não, gosto de olhar para ela. Ah, andar num carro esporte é como correr com o vento. Por que vestiu essa roupa tão leve? Ainda está frio.
- Não se preocupe. E então, do que gosta mais na América até agora, além da neve?
- O jeito como vocês falam.
- Falamos?
- É, o sotaque. É encantador.
- Encantador. - Ele olhou-a de soslaio, depois riu até a pancada que recebera no dia anterior começar a doer. Distraído, passou a mão sobre o hematoma, ainda
arfante.
- A batida está incomodando você?
- O que, isto? Não.
- Usou hamamélis?
- Nem sei onde encontrar.
- Imaginei que tivesse uma ou duas caixas de lenimento para cavalos nos estábulos. Oh, veja só os aviõezinhos. Aqui não é um aeroporto? Por que viemos para
cá?
- Para voar num dos aviõezinhos.
O estômago de Erin deu um salto.
- Mas pensei que fôssemos às corridas.
- E vamos. Meu cavalo vai correr em Hialeah. Na Flórida.
- O que é Flórida?
- Sul.
- Você quer dizer, o Estado da Flórida, capital Miami?
- Esse mesmo.
Muito assustada para pensar, muito apavorada para objetar, Erin viu-se dentro do avião. A cabina era tão pequena que teve de baixar a cabeça, ela que não
era muito alta, mas a poltrona em que se sentou era fofa e confortável. Burke sentou-se à sua frente e mostrou o cinto de segurança. Quando Erin o fechou, ele ligou
o interfone:
- Estamos prontos, Tom.
- Certo, sr. Logan. Parece que vai ser um vôo tranqüilo. O céu está limpo a não ser por uma região nas Carolinas, que tentaremos evitar.
Quando ou.viu e sentiu os motores ligados, Erin agarrou os braços da poltrona.
- Tem certeza de que esta coisa é segura?
- A vida é um jogo, Irlandesa.
- Bem, acho que tem razão. E estamos no ar. Que vista, hein? Quando vocês desembarcaram em Cork, olhei para o avião e pensei em como seria estar lá dentro.
E agora eu sei. Em uma semana, viajei duas vezes! Em dois tipos de avião.
- E que tal?
- Bem, falta champanhe.
- Pode pedir.
- Às oito e meia da manhã? Acho que não, obrigada. E devo agradecer também seu convite. Os Grant têm sido uns amores comigo, por isso estou bem contente de
lhes dar um dia de folga da minha presença.
- É a única razão pela qual deveria me agradecer? - quis saber Burke, levantando-se e indo para uma pequena alcova com armários.
- Não. Também gosto da idéia de ir à corrida.
- Quer creme no café?
- Sim.
Quando Burke sentou, entregou-lhe uma xícara, mas estava muito excitada para beber.
- Burke, responderia a uma pergunta indiscreta?
Ele acendeu uma cigarrilha.
- Respondo, mas não necessariamente com a verdade - e esticou as pernas, descansando-as na poltrona ao lado da de Erin.
- E verdade que ganhou a Three Aces no pôquer?
- Sim e não - disse ele, dando uma baforada.
- Isso não é resposta de jeito nenhum.
- Sim, eu joguei pôquer com Cunningham, muitas vezes, e ele perdeu feio. Quando a gente joga tem de saber quando insistir ou desistir. Ele não soube.
- Então ganhou a fazenda dele.
Ela gosta disso, pensou Burke, olhando-a nos olhos. Imaginava que Erin estivesse vendo uma sala enfumaçada, cheirando a bebida, dois homens debruçados sobre
cinco cartas cada um, a escritura da fazenda iluminada pela luz da única lâmpada sobre a mesa.
- De certa maneira. Ganhei dele, mais do que tinha para perder. Ele não dispunha de dinheiro vivo o suficiente para me pagar nem para pagar a outros que estavam
ficando cansados de colecionar duplicatas. No final, comprei a fazenda dele, bem barato.
Não era tão romântico quanto Erin havia pensado.
- Oh! Então você já era rico antes.
- Digamos que minha sorte estava em alta naquele tempo.
- Jogar não é jeito de ganhar a vida.
- Melhor que limpar chão.
- Bem, tenho de concordar. Entendia de cavalos antes?
- Sabia que tinham quatro pernas, mas quando a gente coloca dinheiro num projeto, aprende fácil. Onde aprendeu contabilidade?
- Sempre tive facilidade com aritmética. Quando foi possível freqüentei a escola, depois comecei a mexer com as contas da fazenda. Gostava mais delas do que
de ordenhar as vacas pela manhã. Daí, porque na minha cidade todo mundo sabe o que todo mundo faz, me vi fazendo os livros para a sra. Malloy, depois para o sr.
O'Donnelly. Também trabalhei uns tempos para Francis Duggan, no mercado, mas o filho dele, Donald, resolveu que eu devia me casar com ele e ter dez filhos, por isso
tive de sair do emprego.
- Não queria casar com Donald Duggan?
- E passar o resto da vida contando batatas e nabos? Não, obrigada. Chegou a um ponto em que eu sabia que, ou lhe deixava os dois olhos pretos ou desistia
do trabalho. Foi mais fácil o segundo. Por que está sorrindo?
- Estou só pensando que foi sorte de Donald Duggan você não levar um ancinho para o mercado.
- Meu café já está esfriando e nem bebi. E o avião quase não mexe, pensei que se sacudisse todo. Quanto ao ancinho, a sorte foi sua, de eu ter me controlado.
Fale-me do cavalo que vai correr hoje.
- Double Bluff tem dois anos de idade. Temperamental e nervoso, exceto quando está na pista. Já provou que é bom desde a primeira corrida, ganhou o Derby
da Flórida na semana passada. O maior prêmio do Estado.
- Sim, ouvi Travis falar nele. Parece pensar que seu cavalo é o melhor que já viu na última década. É mesmo?
- Pode ser. Em todo caso, vai ser meu concorrente para o Derby deste ano. O pai dele ganhou mais de um milhão de dólares em prêmios durante a carreira, e
a mãe era filha de um vencedor da Triple Crown. Gosta de vir por trás, pelo lado de fora da pista. - Burke tornou a tragar a cigarrilha, e Erin anotar a cicatriz
nas juntas dos dedos.
- Você parece gostar muito dele.
Era verdade, para constante surpresa de Burke. Deu de ombros:
- É um vencedor .
- E quanto ao que comprou na Irlanda, o que o escoiceou?
- Vou apresentá-lo primeiro na região de Three Aces, em Charles Town, Laurel, Pimlico. Mantê-lo sob minhas vistas. Se meu palpite estiver certo, vai sobrar
o que paguei por ele em um ano.
- E se o palpite estiver errado?
- Não acontece com muita freqüência. De qualquer jeito, continuarei achando que ir para a Irlanda valeu a pena.
Erin ficou perturbada pela forma com a qual ele a olhava. Tentou manter a voz neutra:
- Sendo um jogador, você deve saber perder.
- Sei ganhar melhor.
Ela colocou a xícara na mesinha ao lado da poltrona.
- Como conseguiu essa cicatriz na mão?
Burke não fez como qualquer pessoa faria, isto é, olhar para a mão, mas conservou os olhos fixos em Erin enquanto batia as cinzas da cigarrilha.
- Uma garrafa de cerveja quebrada numa briga de bar na periferia de EI Paso, Texas. Houve desentendimento a respeito de um jogo e de uma loira bonita.
- Você ganhou?
- O jogo. A mulher não valia a pena.
- Suponho que seja mais sensato arriscar-se a perder a mão por causa de um jogo de cartas do que por uma mulher.
- Depende.
- Da mulher?
- Do jogo, Irlandesa. Sempre depende do jogo.
Outro mundo novo esperava por Erin na Flórida. Burke havia dito para deixar o casaco no avião, mas mesmo assim o brilho e calor do sol foram uma surpresa.
Rindo, segurando as mãos dele, Erin bradou:
- Palmeiras. Aquelas ali são palmeiras.
- Mesmo? - fez Burke, e antes que ela tivesse chance de ficar brava passou-lhe o braço pelos ombros e levou-a para um carro que estava à espera. Erin entrou,
querendo fingir que aquilo tudo era perfeitamente comum em sua vida.

- Não há manivela para os vidros - começou.
Burke apertou no console o botão que abria a janela.
- Oh!
Dez segundos depois Erin desistiu de posar de sofisticada e deu
vazão ao entusiasmo.
- Mal posso acreditar. Faz tanto calor, e as flores. Oh, minha mãe morreria se visse essas flores. Igual àquela sala em sua casa, a das paredes de vidro.
Duas semanas atrás eu esfregava o chão da sra. Malloy, e agora estou olhando para palmeiras.
Burke dirigia com competência, sem pedir informações nem consultar mapas. Erin se deu conta de que aquela vida não era nova para ele, e que a devia estar
achando uma tonta, tagarelando sem parar. Fez uma tentativa de se conter, e logo desistiu. Ele que pensasse o que quisesse.
Burke por sua vez estava encantado com tanta espontaneidade. Por um momento desejou - que não chegassem nunca, para que ela continuasse falando;rindo, perguntando.
Havia praticamente esquecido que ainda existiam pessoas capazes de olhar para o mundo como se Deus tivesse acabado de criá-lo.
Para ele, viajar era profissão, e como a maioria dos viajantes profissionais, há muito deixara de prestar atenção ao que havia ao seu redor. Mas ali, com
Erin apontando para a areia branca, os jovens praticando skate e os imensos hotéis; recordou-se do prazer das primeiras descobertas.
Todos os conheciam na pista. Erin notou na caminhada sobre o gramado até os estábulos que as pessoas meneavam a cabeça em sua direção e o cumprimentavam com
respeito. Havia jóqueis, treinadores e cavalariços já se preparando para as corridas da tarde.
- Logan.
Erin olhou na direção do chamado e viu um homem alto, barrigudo, suado. Usava chapéu de palha, e no dedo mindinho flamejava um brilhante.
- Durnam.
- Não sabia que estava por aqui.
- Gosto de ter tudo sob minhas vistas. Seu cavalo correu bem na semana passada.
- Em CharlesTown. Não sabia que você estava lá, também.
- Não estava. Erin McKinnon, Charlie Durnam. Dono do Durnam Stables em Lexington.
- Lugar de cavalos bons, madame. Um prazer, um verdadeiro prazer. Ninguém escolhe potrancas como Logan. - O homem tomou a mão de Erin e deu-lhe um sorriso.
- Não vou participar de nenhuma corrida, sr. Durnam - respondeu sorrindo. Um homem simples, vulgar, nada a temer.
- Você é irlandesa, não é?
- É prima de Adélia Grant - explicou Burke, calmo, olhando fixo para Durnam até ele soltar a mão de Erin.
- Ora, vejam só, que coisa. Pois, madame, os amigos dos Grant são amigos de Charles Durnam. Boa gente.
- Obrigada, sr. Durnam.
- Vou dar uma olhada em meu cavalo, Charlie. Até logo.
- Pois aproveite e olhe também para Charlie's Pride. Aquilo é que é cavalo - disse Durnam, enquanto se afastavam.
- Que homem engraçado - murmurou Erin.
- Pois esse homem engraçado é dono de um dos melhores estábulos do país e de um olho vivo.
- Pois pode olhar quanto quiser. Não acredito que tenha muito sucesso quando tentar ir além.
- Ficaria surpresa ao ver quanto sucesso dez ou quinze milhões de dólares podem comprar. Meu cavalo corre contra o dele hoje.
- É? Bem, então, terá de vencê-lo, não é?
Sorrindo, Burke voltou a rodear-lhe os ombros com o braço.
- É o que pretendo.
Passaram por algumas baias. Erin tomou cuidado em se posicionar sempre de maneira que Burke se interpusesse entre ela e os cavalos. O cheiro de animais e
feno era familiar, bem como o aperto no estômago. "Pense em outra coisa", ordenou a si mesma, parando ao ver que Burke se detinha diante de uma baia.
- Este é Double Bluff.
Erin calculou que o baio de pêlo escuro devia medir cerca de quinze palmos. Tinha o peito largo, como que projetado para correr. A beleza do animal atingiu-a
primeiro, e quando ele sacudiu a cabeça sentiu-se congelar.
- Ele é grande.
Burke acariciou o focinho de Double Bluff. As orelhas do potro se moveram tomando conhecimento da mão do dono, mas continuou atentar empinar.
- Pronto para ganhar? Impaciente, hein? Este aqui odeia esperar. É um demônio arrogante e acho que vai ser ele quem vai levar para Three Aces a primeira Triple
Crown. O que, acha?
Erin, que havia recuado um passo na primeira vez que o potro olhara em sua direção, respondeu:
- Ele é adorável. Tenho certeza de que vai ser motivo de orgulho.
- Vamos olhar mais de perto, se o cavalariço fez um bom trabalho.
Burke abriu a portão da baia e entrou. Erin, com o coração aos saltos, foi atrás, parando junto à entrada.
- Está com boa aparência; companheiro -disse Burke, correndo as mãos sobre o flanco do potro, depois espiando por baixo para verificar o outro lado. Levantou
cada casco, sacudindo a cabeça em aprovação.
- Limpíssimo. Espere até que coloquem uma sela nele. No minuto em que acontecer, ele está pronto. A gente tem que segurá-lo para não correr para o ponto de
partida.
Como se tivesse entendido, Double Bluff bateu as patas no chão, impaciente. Jogou a cabeça para trás e rinchou sob a risada de Burke. Erin desmaiou.
Quando voltou a si, estava amparada por um braço. Alguma coisa fria e molhada tocou-lhe os lábios, e ela engoliu num reflexo, antes de abrir os olhos para
perguntar:
- O que aconteceu?
- Você é que tem de dizer - a voz de Burke era brusca... mas a mão que lhe tocava o rosto, gentil.
- Provavelmente excesso de sol. - Erin ouviu a voz carregada de sotaque e olhou por cima do ombro de Burke. Viu um rosto jovem e um topete de cabelos cor
de areia. Resolveu agarrar-se a desculpa.
- Isso mesmo, mas já estou bem.
Ia tentando levantar-se, mas Burke a forçou a ficar sentada.
- Melhor ficar quieta um pouco. Tudo bem, Bobby, já posso cuidar dela.
- Sim, senhor, sr. Logan. E a senhora tome cuidado, fique a sombra.
Erin fechou os olhos, com raiva de si mesma por ter se deixado levar pela fraqueza.
- Obrigada. Oh... sinto muito ter feito uma cena. Não faço idéia do porquê disso.
- Foi tão de repente. Desviei o olhar um segundo e quando olhei de novo você estava caída no chão.
Nada, absolutamente nada na vida de Burke jamais o havia assustado tanto.
- Ainda está pálida. Por que não seguimos o conselho de Bobby e vamos procurar uma sombra?
- Sim - e Erin suspirou de alívio. Quando começava a se levantar, Double Bluff esticou a cabeça outra vez e sacudiu o portão da baia. Com um grito abafado,
Erin agarrou-se ao pescoço de Burke.
Ele não levou mais de um segundo para juntar as coisas.
- Pelo amor de Deus, Erin, por que não me disse que tinha medo de cavalos?
- Não tenho.
- Teimosa - ele resmungou, pegando-a no colo sem a menor cerimônia.
- Não me carregue. Não acha que já tive humilhações suficientes por hoje?
- Cale a boca.
Quando achou que estavam a uma distância razoável dos estábulos, Burke a colocou à sombra de uma palmeira, deixando-se cair também, e dizendo:
- Se tivesse tido a idéia luminosa de me contar, teria salvo dez anos da minha vida.
Se tivesse certeza de que as pernas poderiam carrega-la, Erin teria ido embora.
- Ora, não me venha com sermões agora. Além disso, não tinha nada que contar, pensei que tudo já tivesse passado.
- Pois pensou errado. Ei, Irlandesa, me dê sua mão. Sabe que ainda está pálida? Por que não me conta tudo?
- É infantil.
- Conte assim mesmo.
- Bem... nós tínhamos dois cavalos de campo, muito bons. Estavam fora, e uma tempestade se aproximava. Brian soltou um para levá-lo de volta ao celeiro. O
céu estava carregado, trovões e relâmpagos à beça, o que deixava os cavalos nervosos... Joe estava soltando o segundo, e eu perto da cabeça, tentando acalma-lo.
Não sei, aconteceu rápido demais, um relâmpago mais forte o apavorou e ele empinou. Não imagina como os cascos parecem grandes quando estão por cima da cabeça da
gente. Caí, e ele passou por cima de mim.
- Meu Deus - e Burke apertou-lhe mais a mão.
- Tive sorte, não aconteceu nada de muito grave. Duas costelas quebradas, arranhões, mas desde então não consegui mais chegar perto de um cavalo sem entrar
em pânico.
- Se tivesse me contado não a teria trazido para cá.
Ela passou a mão pelo rosto e arrumou os cabelos.
- Pensei que já tivesse passado. Foi há mais de cinco anos. Que atitude estúpida. Durante toda a semana venho inventando desculpas para explicar a Dee e Travis
por que não vou ver os estábulos.
- Porque não conta a eles? Não adianta dar de ombros, ter medo não é estúpido, ter vergonha de ter medo é que é.
Erin levantou o queixo, suspirou. Evitando olhar de frente para Burke, pegou um talo de grama.
- Talvez seja. Não diga a eles.
- Mais segredos? Não devia se preocupar tanto com o que as pessoas pensam de você. Eu sei que lava pratos e desmaia quando vê cavalos, e ainda gosto de você.
- Gosta? De verdade?
- O suficiente.
Ela estava bonita, pálida e, pela primeira vez, parecia vulnerável. Burke não estava acostumado a resistir ao desejo, a qualquer desejo, muito tempo, por
isso tocou a boca de Erin com a sua, para sentir o gosto, morder, explorar .Ela colocou uma mão no peito dele, como se fosse afastá-lo, mas em vez disso segurou-lhe
a camisa, impedindo-o de se afastar.
Os outros beijos não lhe haviam dado paz ou segurança, mas aquele foi diferente. Mais doce e suave.
Burke queria puxá-la para mais perto, pegá-la no colo, niná-la. Queria murmurar palavras desconexas. Nunca tivera aquele tipo de vontade com nenhuma mulher.
A sensação tomou-o, estranha e difícil de encarar , e, ao mesmo tempo, reconfortante. Afastou-se só um pouco.
- Vou levar você para casa.
- Para casa? Mas quero ver as corridas. Estou bem, juro. Além disso, se eu aprender a ver cavalos de longe talvez não congele quando chegar perto de um. Vamos,
Burke, não tomamos o avião e viemos para a Califórnia... desculpe, para a Flórida, só para fazer meia-volta e ir para casa. Aquele belo animal lá da baia vai ganhar,
não vai?
- Apostei meu dinheiro nele.
- Eu também quero apostar.
Rindo, ele aceitou a mão que Erin, já de pé, lhe estendia.
- Vamos conseguir um lugar .
As arquibancadas já estavam se enchendo. Nelas, como Erin havia previsto, viu muitos rostos, bronzeados e queimados do sol, rostos com rugas se abrindo em
leque nos cantos dos olhos e outras com a pele lisa como creme recém-batido. Algumas pessoas se concentravam em tabelas de corridas, outras fumavam charutos grossos
ou então bebiam algo em copos plásticos.
Nos camarotes havia elegância, a elegância originada da riqueza. Vestidos leves de verão, em tons pastel, combinavam bem com ternos de algodão e chapéus de
palha. Viu mais de uma mulher bronzeada e esbelta inclinar a cabeça na direção de Burke. Vez por outra ele erguia a mão num cumprimento, sem fazer esforço para se
juntar a elas.
Do camarote de Burke, bem na frente, Erin podia ver a pista de terra, onde os cavalos iam correr, oval, tendo no centro um canteiro de flores tropicais. Por
toda a volta, arquibancadas vergando-se ao peso do público.
- Nunca vi tanta gente num só lugar ao mesmo tempo. E todos vieram assistir à corrida.
- Quer uma cerveja?
Erin assentiu, distraída, e continuou a observar tudo. Logo viu Durnam, não muito longe dali, falando com uma mulher com o short mais curto que já tinha visto.
Erin olhou em seguida par o placar eletrônico que estava começando a se iluminar com números e placês para a primeira corrida.
Burke voltou, e antes que tivesse chance de sentar, foi interpelado por Erin.
- Quero que me explique o que cada coisa significa naquele placar, para eu saber melhor como fazer minhas apostas.
- Se quer um palpite, espere pelo terceiro páreo e aposte no número cinco.
- Por quê?
- O cavalo é de Royal Meadows. Mesmo sem sentimentalismos, é um corredor forte. A ficha dele tem altos e baixos, mas parece bem hoje. O primeiro páreo não
diz nada. Até agora o placê não é espetacular.
- Vai apostar?
- Não.
- Pensei que fosse um jogador.
- E sou, quando me convém.
Erin ficou quieta para escutar os anúncios do primeiro páreo.
- Crystal Maiden é um lindo nome. A Donzela de Cristal.
- Nomes bonitos não ganham corridas. Cuide de seu dinheiro, Irlandesa.
Erin sossegou, contentando-se em absorver os sons e cores que a rodeavam. Quando os cavalos foram trazidos para o ponto de partida, debruçou-se na cadeira,
e ficou grata quando Burke segurou-lhe a mão.
- São lindos.
O pulso de Erin martelava. Burke calculou que estivesse tão animada quanto nervosa. Havia acertado quanto às contradições dela. Quando os portões se abriram
soltando os cavalos, ela apertou-lhe mais os dedos, mas não se encolheu.
- Que barulho - murmurou, sentindo o coração bater quase tão alto quanto os cascos na grama. Fez força para acompanhar os animais correndo a primeira volta.
Aquilo era força, pensou, ao mesmo tempo bruta e controlada. Corridas de cavalos podiam ter se tornado um negócio como qualquer outro, mas Erin entendeu naquela
hora por que fora e era ainda o esporte dos reis.
Quando acabou, levou a mão ao peito.
- Meu coração ainda está galopando. Não sorria para mim desse jeito, Burke. É a coisa mais maravilhosa que já vi. Tanta cor, tanta energia. Pode imaginar
fazer isso todo dia?
- Um bocado de gente faz.
Mas ela apenas sacudiu a cabeça. Aquele era um dia especial, que acontece uma vez na vida.
- Quero apostar na próxima.
- Terceiro páreo - repetiu Burke, e tomou um gole de cerveja.
Quando o terceiro páreo enfim chegou, Erin insistiu em ir ao guichê de apostas. Colocou o ticket no bolso da camisa, mudou de idéia e guardou-o com cuidado
na carteira. De novo sentada ao lado de Burke, não conseguiu parar quieta até os cavalos serem trazidos para a raia. Sorriu.
- Não me importo de perder, mas com toda certeza gostaria muitíssimo mais de ganhar.
Quando os cavalos deram a largada, Erin ficou de pé, debruçada na grade do camarote, puxando a mão de Burke para que se juntasse a ela. De repente, interrogou:
- Qual é o meu cavalo?
- O quarto a contar de dentro.
- Ele corre bem, não corre? - e Erin começou a torcer.
- Sim.
- Oh, veja, está avançando.
- Controle-se, Irlandesa. Ainda faltam seiscentos metros.
- Mas ele está avançando. Veja, já é o segundo!
Em volta dela a gritaria era generalizada, competindo com o locutor e as batidas dos cascos. Erin esforçava-se para ouvir tudo, agarrada à manga da camisa
de Burke.
- Primeiro. Olhe para ele!
Ao ver que o cavalo chegava meio corpo na frente, atirou-se nos braços de Burke.
- Ele ganhou! Eu ganhei!
Rindo, beijou Burke na boca.
- Quanto! Quanto eu ganhei, Burke?
- Bruxinha mercenária.
- Nada a ver com mercenária, tudo a ver com ganhar. Vou para casa dizer a Dee que apostei no cavalo dela e ganhei. Quanto?
- O placê era cinco por um.
- Cinqüenta dólares? Eu pago a próxima cerveja. Quando corre o seu cavalo?
- No quinto.
- Graças a Deus, vou ter tempo de me recuperar.
Comprou uma cerveja para Burke, pensou melhor e comprou também dois cachorros-quentes. Só se lembrava de ter passado um dia assim tão frívolo uma vez, numa
feira. E aquilo parecia uma feira, os ruídos, os cheiros e cores. Quando o quinto páreo foi anunciado, Erin tinha outro ticket no bolso e os óculos escuros de Burke
pendurados no nariz. Falou com a boca cheia:
- Espero mesmo que ele ganhe, e não só porque apostei.
- Então somos dois.
- Como a gente se sente sendo dono de um cavalo? Não um simples cavalo, quero dizer, mas um de alta linhagem?
- A maior parte do tempo é como ter uma amante cara, que você conserva feliz a troco de rios de dinheiro para receber de volta momentos de intensa gratificação.
Erin voltou-se, olhando-o por cima das .lentes dos óculos.
- Você gosta de se fazer de cínico.
- Nem sempre é faz-de-conta.
Burke olhou para o cavalo que passava pelo portão. Como se sentia? Como era para um bastardo pobretão do Novo México sentar e assistir seu cavalo de centenas
de milhares de dólares voar numa pista de corridas? Incrível. Tão incrível que ele não podia começar a descrever nem tinha certeza de querer. Sequer sabia se tudo
estaria lá no dia seguinte.
E se não estivesse?
A vida havia lhe ensinado, bem cedo, que quando as pessoas agarram com muita força o que lhes pertence, as coisas escapam por entre seus dedos. Estava dando
o melhor de si em Three Aces, embora nunca tivesse planejado se envolver com nada semelhante. Apegar-se, então, nem pensar. Burke funcionava melhor sem raízes, na
estrada. E no entanto, já há quatro anos estava no mesmo lugar.
Fazia muito menos tempo que brincava com a idéia de que estava na hora de contratar um administrador para a fazenda e tirar férias prolongadas. Monte Carlo,
San Juan de Porto Rico, Tahoe. Era preciso variar o jogo. Mas então veio a viagem à Irlanda. E Erin.
E, por isso, as idéias de Monte Carlo e outras estavam cada vez mais distantes. Cada vez mais fácil ficar num lugar só. E pensar numa mulher só.
- Você ganhou! Me dê um abraço! Ganhou por dois corpos, talvez três, não deu para ver. Oh, Burke, estou tão feliz por você .
- Está? - ele tinha esquecido a corrida, o cavalo e a aposta.
- Claro que sim. É maravilhoso seu cavalo ter ganho, e ele venceu tão lindamente. E estou feliz por mim, também. O placê era oito para cinco.
E foi a vez de Erin levar um susto, pois Burke puxou-a para si, beijando-a com paixão.
- Quem está ligando para placês? - resmungou, beijando-a outra vez.


CAPÍTULO VI

Erin não sabia o que pensar. Ninguém poderia ter sido mais gentil do que Burke no dia que passaram juntos. Ela havia assistido às corridas, visto belos cavalos
em competição feroz, belas mulheres também competindo ferozmente pela glória de ser a mais elegante, jóqueis vestidos de seda. Tinha ouvido o barulho levantado por
milhares de pessoas num só lugar. Havia visto flores e pássaros exóticos, bebido champanhe num avião particular. E sua lembrança mais vívida era a de sentar-se na
grama, nos braços de Burke.
Erin não sabia o que pensar.
Desde então, dois dias se passaram rotineiramente. Teve de fazer força para lembrar-se de que estava cumprindo com exatidão os objetivos da viagem: ganhava
dinheiro, começava vida nova, num meio novo. Mas Burke tinha sumido, e ela desviava os olhos e a atenção do trabalho para a porta, esperando que se abrisse.
Descartou tais pensamentos, rotulando-os de frívolos. Afinal, Burke a havia feito rir, mostrado coisas maravilhosas e, quando estava disposto, comportava-se
como um cavalheiro. Era arrogante o suficiente para manter suas arestas sem afastar Erin. Uma mulher podia gostar de um homem como aquele sem arriscar o coração.
Por que não ela? Era possível até beijar um homem como aquele sem se envolver. Um divertimento, era tudo.
Mas, não importava o quanto racionalizasse, Erin sabia ter chegado a um ponto onde pensar em Burke, e desejar vê-lo estava passando de divertimento a necessidade.
Burke decidiu que já havia ficado longe de Erin tempo suficiente. Foi o que pensou ao entrar na casa pelos fundos, vindo dos estábulos. Havia se afastado
desde a rápida viagem à Flórida porque seus sentimentos andavam confusos. Estava habituado a pensamentos claros e emoções definidas, e não àquela desordem angustiante,
mistura de vontade e restrição.
Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Erin no hipódromo, assistindo à corrida. Viva, excitada, excitante. O tipo de mulher com quem ele se entendia. E,
ao mesmo tempo, pensava nela desmaiada, praticamente caída a seus pés. Pálida e indefesa, assustada.
Burke nunca quisera a responsabilidade de uma mulher carente de proteção ou cuidados. Mas queria Erin. Ela não tinha nenhuma idéia liberal a respeito de noites
de amor inconseqüentes. Mas Burke a queria. Erin tentava se fazer de aventureira, mas no fundo era uma mulher que criava raízes com facilidade. Ele nunca quisera
se ver tolhido pelo que as pessoas chamam de lar. Mas Burke Logan queria Erin McKinnon.
E já havia ficado longe dela tempo suficiente.
Erin soube, antes de levantar os olhos, que era Burke quem havia entrado no escritório, mas terminou uma coluna do livro-caixa com sua caligrafia nítida e
precisa antes de lhe dar atenção.
- Olá, faz tempo que não o vejo.
- Andei ocupado.
- Confirmo isso pelos papéis na minha mesa. Acabei de pagar a conta do veterinário. O dr. Harrigan de Skibbereen poderia viver um ano com o que você paga
por mês ao médico dos cavalos. As novas crias estão bem?
- Servem.
- Vejo que contratou um novo cavalariço.
- O treinador trata disso.
Erin levantou uma sobrancelha. Ah, então ele queria brincar de senhor feudal?
- Seu Ante Up correu bem em Santa Anita.
-Tem lido as páginas de esporte dos jornais?
- É, vivendo com os Grant e trabalhando para você, achei melhor me manter informada. E agora que tivemos uma conversa tão agradável vou voltar a trabalhar,
a menos que precise de alguma coisa.
- Venha comigo.
- O quê?
- Eu disse venha comigo. Onde está seu casaco?
Antes que qualquer um deles pudesse pensar, Burke pegou no braço de Erin e a colocou de pé.
- Para onde?
Em vez de responder, ele olhou em volta, viu o casaco sobre uma cadeira, pegou-o, atirou-o para ela e começou a andar enquanto dizia:
- Vista.
Arrastada corredor afora, Erin reclamou:
-Muito bonito. Interrompe meu trabalho no meio do dia, me arranca do escritório sem explicações. Burke Logan, o fato de me pagar não justifica que deva obedecê-lo
como um cachorrinho. Uma empregada goza de direitos neste país. O que me faz lembrar, precisamos discutir minhas férias.
- Aprende depressa - resmungou ele, abrindo a porta.
- Se não soltar meu braço não terei condições de vestir o casaco. Nem vou abotoar, porque... com certeza o dia está bonito. Um pouco de lama no chão, por
causa da neve derretendo, mas afinal trata-se de um prenúncio da primavera. Se era isso que queria me mostrar, vou voltar ao trabalho.
Burke tornou a agarrar-lhe o braço e retomou a caminhada.
- Burke, que demônio o possuiu? Se quer que eu veja ou faça alguma coisa, tudo bem, mas não precisa me tratar como uma criminosa presa em flagrante.
- Quanto tempo faz que trabalha para mim?
- Três semanas - Erin desistiu de ser razoável e acertou o passo com o dele.
- E em três semanas você mal colocou o nariz para fora do escritório.
- É lá que eu trabalho, lembra?
- Já lhe ocorreu alguma vez que não vai entender o trabalho se nunca verificar de onde vem o dinheiro, nem para onde vai?
- Pensei que esse fosse o motivo de termos ido às corridas.
Pelo menos foi a explicação que me deu.
- A corrida é apenas parte do negócio.
- Por que preciso entender, não basta que os números confiram?
Não estava certo da resposta, só sabia que queria mostrar a Erin o que era seu, deslumbrá-la, seduzi-la.
Afastando os cabelos dos olhos, ela olhou para Burke. Um perfil bem determinado, .e uma ligeira sombra nos olhos.
- Você está com algum problema?
- Não. Não, é claro, nada - respondeu Burke, na defensiva. Nada, a não ser que fazia coisas absurdas, comportava-se como se estivesse intoxicado, e a droga
era a presença, a voz, o gosto de Erin.
Ela continuou a andar em silêncio, prestando atenção nas noites de açafrão cor púrpura que se erguiam do solo encharcado, entre as pequenas manchas de neve.
Viu aterra que ondulava, refletindo de mil maneiras a luz do sol. E os estábulos, a madeira branca reluzindo. Viu o tabuleiro de xadrez dos paddocks e a longa pista
oval onde um cavalo tratava, solitário, com seu treinador.
- Puxa, é encantador. Como se tivesse saído de um livro. Deve se orgulhar de ser dono de tudo isto.
Burke não tinha muita certeza, mas parou para admirar sua propriedade junto com Erin. Ele a ganhara num jogo limpo, mas sua vida fora uma sucessão de perdas
e ganhos. Nunca pensara na fazenda como algo permanente, por isso cuidou de tudo como quem aplica o lucro de um jogo em outro jogo, mais complicado e desafiador.
Havia entrado sabendo pouco de cavalos e nada de corridas ou criação, e convencera-se a aprender para tirar da experiência um lucro genuíno.
Ainda segurando a mão de Erin, recomeçou a andar.
- Temos trinta cavalos, dois do quais são garanhões que nada fazem além de agradar as damas.
- E a eles próprios - acrescentou ela.
- Duas éguas acabaram de dar cria, e mais duas devem ter as suas em breve. Perto de metade dos animais restantes está sendo treinada para o ano que vem. No
momento temos cinco potros de dois anos, no auge da forma, e alguns veteranos que ainda têm uma ou duas temporadas pela frente antes de se dedicarem à procriação
ou aposentadoria. Vê aquele cavalo fazendo exercícios na pista? É um dos que comprei na Irlanda.
Erin acompanhou a mão que apontava, com um relâmpago branco na testa. Suas pernas já se alongavam num ritmo cada vez mais acelerado, os cascos batendo na
pista enlameada.
- Ele é veloz.
- E ruim como o demônio.
- Então foi ele que escoiceou você... Se é tão temperamental, por que o comprou?
- Gostei do estilo dele - Burke ia começar a andar quando viu que Erin não o acompanhava.
- Já eu prefiro não ter nenhuma intimidade.
- Quero lhe mostrar outra coisa.
- Se tivesse me avisado que iríamos passear no quintal eu teria usado botas.
- Bem, seja como for, está precisando de sapatos novos - respondeu Burke, olhando para o chão.
- Muito obrigada.
- Pensei que já tivesse tido tempo de fazer compras, depois do segundo pagamento.
- Estou pensando em ir.
Passaram pelos estábulos, onde o cheiro de cavalos e grama molhada invadiu-lhes as narinas. De dentro vinham vozes de homens. Erin ficou apreensiva, mas não
parou. Até ver o paddock, onde a égua amamentava um potrinho de pêlo fulvo.
- Este é um dos mais novos residentes de Three Aces.
Com passos cautelosos, Erin chegou perto da cerca.
- São tão doces quando pequenos, não é verdade?
Relaxou o suficiente para segurar na travessa mais alta e debruçar-se para ver melhor. O ar estava suave, anunciando a primavera. Não havia por ali nem o
verde nem o aroma dos campos irlandeses, mas Erin se sentia bem, e até sorriu para o potrinho que mamava gulosamente.
- Lá em casa nunca me liguei muito nos animais. Quem gostava de ficar perto deles e acariciá-los era Joe. Ele adoraria ver isto.
- Está com saudade da família.
- É estranho não ver todo mundo todo dia. Eu não tinha pensado... Mas as cartas dizem que vai tudo bem. Cullen voltou para Dublin para cantar num clube, e
Brian está namorando Mary Margaret Shannesy. Minha mãe diz que se comporta feito um idiota, como era de se esperar .
O potrinho, tendo mamado bastante, começou a saltar em volta do paddock. Erin observou-o distraída, a cabeça ainda na Irlanda.
- A mulher de Frank está para ter o bebê. Talvez eu até já seja tia. Engraçado, quase todo dia, ao acordar, acho que está na hora de descer para o galinheiro.
Mas aqui não há galinheiro.
O potrinho veio até acerca farejá-la. Sem pensar, Erin acariciou-o entre as orelhas.
- Gostaria que houvesse galinheiros por aqui, Erin?
- Imagino que Possa viver uma vida longa e feliz sem nunca mais ter de recolher ovos.
- Ela olhou para a própria mão e, reparando no que fazia, começou um gesto automático de retirada. Burke impediu-a, colocando a mão sobre a dela.
- Almazinha confiante, não?
- Sim, mas e a mãe?
- Com toda certeza está aliviada por tomarmos conta do bebê. Às vezes, quando se tem medo, o melhor é enfrentá-lo em doses homeopáticas.
- Imagino que sim. Ele é tão macio. Veja como cheira meu casaco! Ah, não gostou, vai procurar a mãe. Este vai ser um campeão?
- Se estiver nas cartas.
Erin afastou-se da cerca, colocou as mãos nos bolsos e olhou firme para Burke.
- Por que me trouxe aqui?
- Não sei. Por que pergunta? - e, como se estivessem sós, abstraindo os homens que entravam e saíam dos estábulos e caminhavam pelo terreiro, passou a mão
pelo rosto de Erin.
As coisas haviam ido assim tão longe, que um simples toque com a ponta dos dedos fazia o coração de Erin disparar. Dentro dos bolsos a palma das mãos ficaram
úmidas.
- Porque quero entrar.
- Já enfrentou um medo hoje, por que não enfrentar outro?
- Não estou com medo de você! - E era verdade. O coração disparado tinha outros motivos.
- Talvez não - Burke escorregou a mão da face para a nuca de Erin, trazendo-a mais perto. Ela parecia dividida entre ceder ou recuar.
- Não acredito que seja uma coisa inteligente me beijar agora, daquele jeito.
- Então vamos tentar de outro.
E ele mordeu-a de leve, brincando, tentando. Erin sentiu os dentes roçarem seus lábios, depois a carícia da língua. A mão dela tocou-lhe o rosto, num gesto
de assentimento. Era uma sensação nova, nunca antes experimentada.
Então Burke podia ser doce, paciente, fascinante. Ela não sabia. Entreabriu os lábios, mergulhando os dedos nos cabelos dele. Não tinha medo, dele não. Se
o que lhe trazia era mais do que fora capaz de imaginar, então estava disposta, até ansiosa, para aceitar. Com um suspiro deixou a cabeça cair para trás e se entregou.
Burke foi mais contido. Quanto mais generosa Erin se mostrava, maior era o receio de aceitar. Dentro dele ardia o desejo de levá-la dali, de ficar só com
ela, de fazer amor. Comprimiu os lábios contra os dela e imaginou como seria tocá-la por inteiro. Sem barreiras. Enquanto seus dentes prendiam de leve a carne macia,
imaginava como seria sentir toda a pele.
Erin tinha gosto de campo, de calor e de seiva. Mas ele queria mais do que a boca. Precisava de mais. Segurou-lhe os cabelos e murmurou baixinho:
- Quero que fique comigo esta noite.
- Ficar? - Erin saiu do sonho como alguém que cai de uma bóia para a água no meio de um cochilo, e levou um susto ao ver os olhos opacos de Burke muito perto,
ouvir sua voz repetindo:
- Fique. Hoje. Ou melhor, mude para cá. Vá buscar suas coisas e...
- Mudar para cá? Quer que eu viva sob seu teto, coma sua comida, durma em sua cama? - As mãos de Erin adquiriram mais força para afastá-lo a cada nova pergunta.
- Quero você comigo. Sabe muito bem que desejo isso desde a primeira vez que pus minhas mãos em você.
- Sim, talvez eu saiba. Mas só concordei em trabalhar para você. Acha que eu seria sua amante? Acha que eu permitiria que você me conservasse em sua linda
casa, como uma...
A cabeça de Erin estava de novo inclinada para trás, mas não em sinal de rendição. Sentimentos eram uma coisa, princípios outra muito diferente.
- Ninguém está falando em conservar.
- Não, você não é homem de conservar ninguém, eu sei, o que você faz é pegar, aproveitar e jogar fora. Pois escute bem: por mais que me perturbe, por mais
que me faça desejar você, eu nunca serei amante de ninguém. Não o tipo de amante que está propondo que eu seja. Se o beijo, é porque me dá prazer, nada mais. Não
vou morar na sua casa, envergonhar minha família, e esperar que se canse de mim. E agora vou voltar ao trabalho e acho melhor que tique fora do meu caminho a menos
que esteja disposto a explicar aos empregados o motivo do atraso no pagamento.
Erin jogou os cabelos para trás e, girando nos calcanhares, afastou-se. Burke tornou a se debruçar na cerca do padock. Um homem esperto teria recolhido as
cartas e saído da mesa de jogo. Ele resolveu arriscar mais uma rodada.

Sentindo-se animada ou não, Erin teve de se envolver nos planos de Adélia para a festa. E que dia melhor para celebrar do que o de São Patrício? Erin tinha
vontade de quebrar louça, gritar, chutar cachorros.
Nada de "venha comigo e seja meu amor" para os da laia de Burke Logan, pensou, atacando uma bandeja de prata com uma flanela e polidor como se quisesse atravessar
o metal. Oh, não, com ele era só "junte suas coisas e ande depressa". Hah!
Como se ela quisesse ouvir palavras melosas daquele infeliz! A verdade era que Erin McKinnon não queria palavras melosas de ninguém. O que ela queria era
que a deixassem em paz para progredir na carreira. Em seis meses teria um lugar só seu e um novo emprego, decidiu. Onde não tivesse que agüentar um homem que a fazia
rir num minuto e ferver de raiva no seguinte. Aliás, ferver não só de raiva, acrescentou, jogando a flanela sobre a mesa.
Estudou o próprio rosto refletido na bandeja. Aquele homem estava brincando com ela, não soubera desde o começo? Bem, o que era bom para um devia ser para
o outro, então ela podia brincar também. E aquela noite seria tão boa quanto qualquer outra! Dee havia dito que viriam muitos homens na festa. Inclusive um certo
Burke Logan...
- Já acabou de fazer caras feias para você mesma? - Do outro lado da mesa, Dee acabou de polir os copos.
- Quase.
- Então está bem, pois só temos mais duas horas. Pode deixar as vasilhas e bandejas aqui, ao lado dos cristais. Hannah e o pessoal do bufê darão um jeito.
Gostaria de conversar comigo?
- Não.
- Nem explicar a razão pela qual anda resmungando pelos cantos há uma semana, mais ou menos?
Erin cerrou os dentes, depois apoiou o queixo na mão.
- Acho que os homens americanos são ainda piores que os irlandeses.
Adélia veio até ela e colocou a mão em seu ombro.
- Burke não está se comportando?
- Mais ou menos...
- E eu que pensei que se davam bem.
- Não queria conversar sobre isso, Dee!
- Bem, então vamos parar de nos preocupar com Burke. Temos de nos aprontar para a festa.
Erin assentiu com a cabeça e se levantou. Havia começado a ficar assustada assim que vira as pratas e cristais. Tinha piorado quando vira a equipe de garçons
e cozinheiros do bufê se ocuparem de coisas como mousse de salmão e patê de fígado de ganso.
Vira engradados de garrafas de champanhe sendo entregues. E depois o caviar preto que dera um jeito de provar quando ninguém estava olhando. E flores, dúzias
e dúzias, que a criadagem arrumava enquanto ela e Dee atravessavam a sala e o vestíbulo na direção da escada.
- Um hospício, não parece? Mais tarde, quando estiver enjoada de ouvir falar de cavalos e corridas e taxas de garanhões, basta fazer um sinal.
- Gosto de ouvir. É um pouco como aprender uma nova língua.
Dee a fez entrar em seu quarto, pegando de sobre a cama uma caixa grande e dizendo:
-Tem razão. Feliz dia de São Patrício.
Automaticamente, Erin escondeu as mãos atrás das costas.
- O que é isso?
- Um presente, é claro. Não vai pegá-lo?
- Não há necessidade de você me dar presentes.
Adélia era bastante capaz de entender o orgulho, pois também era orgulhosa.
- Necessidade não, mas não pensei nisso como sendo necessário. Gostaria que aceitasse, Erin, de todos nós, como boas-vindas para sua nova casa. Quando vim
para cá, eu só tinha o tio Paddy. Acho que só agora entendo como ele ficou feliz em partilhar tudo comigo. Por favor.
- Não tenho intenção de parecer ingrata.
- Ótimo, então vai fingir que gostou, mesmo que não seja verdade. Pegue. Isso! Agora abra, nunca fui capaz de esperar com paciência - e Dee sentou-se na cama.
Erin hesitou só por um momento, depois colocou a caixa sobre a cama e tirou a tampa. Sob uma camada de papel muito fino aparecia a seda verde-escura.
- Oh! Que cor!
- Verde, a cor da Irlanda, a cor de se usar no dia de São Patrício. Bem, desdobre. Estou morrendo de vontade de ver como fica em você.
Cautelosamente, Erin tocou a seda com a ponta dos dedos, depois tirou o vestido da caixa. O tecido caía num drapeado mole na frente e simplesmente desaparecia
em ondas abaixo da cintura nas costas, afunilando-se na saia. Dee levantou-se para colocá-lo na frente da prima, o rosto iluminado.
- Eu sabia! Eu tinha certeza de que era o modelo certo. Oh, Erin, você vai ficar estonteante.
Quase com reverência, Erin passou os dedos sobre a saia.
- É a coisa mais linda que já vi. Macio como o pecado.
Dee riu, dando um passo atrás para ver melhor.
- Sim, e você vestida com ele será um pecado também! Vai virar a cabeça. de todos os homens.
- Você é boa demais para mim, mais do que mereço.
- Provavelmente. Vá vesti-lo, seja frívola por meia hora - disse Dee entregando vestido e caixa a Erin.
Esta beijou-lhe o rosto. Depois, dando vazão aos sentimentos, abraçou fortemente a prima e disse, rindo:
- Obrigada. Fico pronta em dez minutos.
- Não precisa se apressar.
Erin parou à porta.
- Não, quanto mais cedo o vestir, mais tempo poderei ficar com ele.
A festa já estava animada quando Burke parou o carro em frente da casa. Chegara a pensar em passar direto. Inquieto e com os nervos à flor da pele, planejara
continuar dirigindo até Atlantic City, arriscar na roleta, nos dados. Aquele era seu meio, cassinos com luzes brilhantes nas salas da frente e difusas nos fundos.
Uma festa da aristocracia das corridas, com seu dinheiro e círculos fechados, aquilo não era para ele. Questão de estilo.
Jurara a si mesmo ter vindo por causa dos Grant, não de Erin. Desde o último encontro havia tentado se convencer, vezes seguidas, de que não havia nada entre
eles. Oh, uma faísca, um frisson, uma pequenina chama, mas era tudo. A sensação avassaladora e indesejável de que havia algo mais profundo, mais verdadeiro, não
passara de imaginação.
E o fato de estar ali naquela noite também não significava que tivesse de provar nada para ninguém. E, farto de pensar em desculpas, entrou.
Foi recebido por Travis, no meio do alarido de vozes e do fundo musical de gaita irlandesa que dava o tom da festa. O dono da casa fechou a porta, livrando-os
do ar frio de meados de março.
- Dee estava preocupada com você.
- Tive de resolver umas coisas.
- Nenhum problema?
- Nenhum problema - afirmou Burke, desmentido pelos ombros tensos, pelo ar de fera acuada pronta para dar o bote.
- Conhece quase todo mundo aqui - disse Travis, levando-o para a sala.
- Convidou um bocado de gente - murmurou Burke, parando no umbral e correndo os olhos pela multidão, procurando.
- Parece que desta vez Dee superou a si mesma. - Com um gesto discreto, Travis indicou a extremidade da vasta sala. E Erin.
Burke não imaginava que ela pudesse mudar tanto de aparência. A mulher que Travis lhe mostrava era elegante, de uma sensualidade velada. Bebia champanhe e
ria por sobre a taça, para Lloyd Pentel, herdeiro de uma das fazendas mais antigas e de maior prestígio da Virgínia. Flanqueando-a estavam dois outros homens conhecidos,
barões das corridas de terceira e quarta gerações, diplomados em universidades famosas e aperfeiçoados na Europa. O sangue de Burke ferveu quando um deles se inclinou
para murmurar alguma coisa no ouvido de Erin.
Entre divertido e solidário, Travis tocou o ombro de Burke.
- Cerveja?
- Uísque.
Virou a primeira dose de um gole, apreciando o trago. Mas não ajudou a relaxar os músculos. Pegou uma segunda e bebeu mais devagar.
Erin tinha perfeita consciência de que Burke estava lá. Havia sentido a presença dele assim que pisara a soleira da porta. Sorriu e flertou com Lloyd e os
outros que se aproximaram, dizendo a si mesma que estava se divertindo como nunca. Mas nem por um segundo relaxou a vigilância em Burke e nas mulheres que gravitavam
ao seu redor.
Adélia tinha razão: só se falava de cavalos. Prêmios, corridas, política em relação à criação e competições, tudo era discutido ali. Erin absorvia tudo, segurando
sempre a mesma taça de champanhe que fingia beber de vez em quando, os olhos inquietos.
O homem sequer tivera a cortesia de cumprimentá-la, pensou. E parecia muito interessado na loira de pernas compridas para pensar em educação. Erin aceitou
dançar com Lloyd, e ignorou quando ele a apertou um pouco além da conta. Não tirava os olhos de Burke.
Ela não parecia perturbada com as atenções do jovem garanhão dos Pentel, notou Burke, balançando o copo de uísque. Em que butique infernal ela havia comprado
aquele vestido? Deixou o copo em algum lugar e acendeu uma cigarrilha. Ela não merecia tanta preocupação, pensou. Se queria usar um vestido indiscreto e piscar os
olhos para Pentel, o problema era dela.
Não, não era. Burke apagou a cigarrilha e, cortando uma frase da loira no meio com uma desculpa esfarrapada, foi até Erin.
- Pentel.
Aborrecido, mas tão bem-educado quanto o potro premiado do pai, Lloyd cumprimentou:
- Logan.
- Tenho de tomar-lhe Erin por um minuto. Negócios.
Antes que um dos dois objetasse, Burke havia feito uma manobra entre eles e tomado Erin nos braços.
- Você é um sem-vergonha grosseiro, Burke Logan - deliciou-se Erin.
- Como tem coragem de falar em vergonha usando um vestido desses?
- Gostou?
- Eu gostaria de ouvir a opinião de seu pai.
Erin sorria, mas na curva dos lábios havia um desafio, não humor.
- Você não é meu pai. Um homem como você não se preocupa com a sorte, Burke? Como não está usando verde no dia de São Patrício?
- Quem disse que não estou?
- Dinheiro não conta.
- Eu não estava falando de dinheiro.
- Não, estava falando de negócios, se não me engano.
- Não quer saber onde estou usando verde?
- Quero saber por que interrompeu minha dança.
- Irlandesa, você progrediu muito desde a nossa última dança, num campo banhado de luar.
- Sim. O que quis dizer com isso?
- Você é uma mulher ambiciosa, de altas aspirações.
Burke falava e sentia nela o mesmo perfume que havia sentido no barracão da horta. Quase voltava a ouvir a chuva batendo no teto.
- E daí?
- Lloyd Pentel seria uma boa escolha para realizar seus desejos. Jovem, rico, bem menos esperto que o pai. O tipo de homem que uma mulher inteligente dirige
com o dedo mindinho.
- É muito gentil de sua parte me dar informações, mas pense bem: por que eu deveria escolher o potro se posso ficar com o garanhão? O velho é viúvo.
A voz de Erin saiu muito baixa, muito fria. O sorriso de Burke rompeu lábios cerrados.
- Trabalha depressa.
- Você também. A loira magricela não tira os olhos de nós.
Deve ser gratificante entrar numa sala e ver que seis mulheres se atropelam para chegar primeiro até você.
- Tem suas compensações.
- Bem, por que não volta para elas?
Erin tentou largá-lo, mas a mão de Burke pressionou-lhe as costas, e os corpos se tocaram. A chama, nunca muito controlada, avivou-se com o contato. Sentindo-o
apertar-lhe os dedos, Erin murmurou:
- Você é insuportável.
- Estou cansado de brincadeiras. - Burke arrastou-a através da sala, para o vestíbulo, sem lhe dar tempo de respirar.
- O que está fazendo?
- Estamos de saída. Onde está seu casaco?
- Não vou a lugar nenhum, e eu...
Burke tirou o paletó e colocou-o nos ombros de Erin antes de puxá-la para fora da casa.
- Entre no carro.
- Vá para o inferno.
- É para lá que estamos indo. Entre no carro, Erin.
Ela ficou parada por um momento. Olhou para Burke, impassível, segurando a porta do carro aberta. Ela era livre para decidir. Se quisesse voltar para a festa,
ele não a impediria. Não precisava, Erin entrou no carro e bateu a porta, com toda a força.


CAPÍTULO VII

Teria enlouquecido? Erin olhava fixamente para os faróis do carro de Burke cortando a noite, e só ouvia o som do próprio coração. Devia estar louca para atirar
ao vento toda precaução, toda sensatez, toda pretensão ao bom comportamento. Por que nunca ninguém lhe dissera que a loucura era muito parecida com a liberdade?
Erin nunca fora autodestrutiva. Ou fora? As perguntas giravam dentro da cabeça entorpecida pela velocidade, pela noite e pelo homem a seu lado. Talvez aquilo
fosse ainda outra característica que Burke havia reconhecido nela. A necessidade de correr riscos e mandar às favas as conseqüências. Se não era verdade, por que
não dizia a ele para parar, para levá-la de volta?
Erin apertou as mãos até as juntas dos dedos ficarem brancas. Se não tinha falado, não era de todo por achar que Burke não iria ouvir. Não, a razão para não
falar era que havia perdido mais que a cabeça. Perdera o coração também.
Talvez cabeça e coração não fossem assim tão incompatíveis, pensou. Porque, com certeza, amar Burke era um tipo de loucura. E ela o amava, de uma maneira
que nunca havia pensado que pudesse amar alguém. Com uma ferocidade, uma espécie de desespero que apertava o coração mais do que o expandia. Naquela hora, o coração
de Erin parecia uma pedra, quente, dura, incômoda, pulsando sob o seio.
O amor seria sempre assim? E o calor , a doçura, a suavidade? Então o amor era isso, uma combinação de força e terror? Pois, por mais que procurasse, Erin
não encontrava ternura em seus sentimentos. Talvez porque eles fossem um reflexo dos de Burke. Relanceou os olhos para o homem a seu lado, e não viu nenhuma suavidade.
As mãos dele se agarravam ao volante e os olhos estavam fixos na estrada.
Erin comprimiu os lábios e ordenou a si mesma que parasse de bancar a tola romântica. O amor não tinha de ser suave para ser verdadeiro. Não tinha sabido
desde o começo que as emoções que Burke despertava nela nunca seriam comuns nem simples? Ela também queria que fossem, embora, tinha de confessar, teria sido bom
colocar a mão sobre a dele, dizer uma palavra para que ele soubesse o que sentia. Mas não se tratava de ouvir apenas o coração. Tinha de considerar também o espírito,
o orgulho. Ser realista o suficiente para entender que só porque o amava não significava que era correspondida.
Assim, Erin permaneceu em silêncio e assim passaram pela placa e entraram na fazenda.
Por que Burke se sentia como se a vida estivesse irremediavelmente mudada? Viu as luzes da casa a distância e se retraiu como se esperasse um golpe. Queria
Erin, e, mesmo a necessidade sendo mais forte do que admitia, pelo menos naquela noite seria mitigada. Ela não havia aberto a boca. Os nervos de Burke estavam prestes
a se romper quando chegaram à porta da casa. Significava assim tão pouco para ela, a ponto de encarar o que estava acontecendo entre eles tão levianamente que não
merecia uma palavra?
Burke não queria isso. Era tudo novidade para ele.
O que ela estaria sentindo? O que se passava dentro daquela mulher? Será que não via que cada dia, cada hora que haviam passado juntos o atraíam mais e mais
para a beira do abismo? Que abismo? Burke não coordenava mais as idéias. Que espécie de fronteira havia bem ali, que nunca cruzara antes? O que seria da vida dele,
e da de Erin, uma vez que fosse dado o passo definitivo?
Que fosse tudo para o inferno. Burke parou na base da escadaria e, sem olhar para Erin, saiu do carro.
As pernas trêmulas, Erin fez o mesmo e começou a subir os degraus. A porta parecia maior, como o portal de outro mundo. Respirando fundo, Erin atravessou-o.
Aquele silêncio, aquela raiva, então era assim quando amantes se encontravam?, perguntava-se, subindo a escada para o quarto. Sentia a mão muito seca, muito
fria, correndo pela balaustrada. Queria que Burke a pegasse, esquentasse, segurasse. Mas não era o estilo dele. Nem o dela.
Ele entrou antes no quarto, esperando que Erin sorrisse, oferecesse a mão, desse algum sinal de sentir-se feliz por estar ali. Mas quando a porta se fechou
a suas costas ela ficou simplesmente parada, o queixo erguido, os olhos desafiadores.
Que vá tudo para o inferno, Burke tornou a pensar. Erin não precisava de doçura, nem ele. Eram dois adultos, conscientes, e estavam ali porque queriam estar.
Ele devia até congratular-se por ter encontrado uma mulher que não queria palavras bonitas, luz de velas e promessas tão raramente cumpridas.
Então puxou-a para ele. Os olhos de ambos se encontraram, num reconhecimento. As bocas se uniram e a chance para palavras doces e carícias suaves passou.
Tinha de ser assim, pensou Erin, ao ser envolvida pelo calor. E tinha de bastar, pois nunca receberia mais dele. Aceitando o jogo, apertou-se contra Burke,
oferecendo-lhe o corpo e o coração que, ele não fazia idéia, mas já lhe pertenciam. Sem hesitação, os lábios de Erin se abrira, e as línguas se encontraram num beijo
ardente e faminto. Quando as mãos dele lhe correram pelas costas, pressionando-lhe os quadris, ela se deixou levar. Estava preparada para confiar nele, deixá-lo
ensinar a arte da intimidade. Estava preparada para arriscar a autodestruição, desde que fosse parte do jogo.
Os dedos de Erin tremiam apenas ligeiramente ao se cravarem nos braços de Burke. A força estava ali, uma força quase brutal que a atraía e fascinava.
Nunca mulher alguma havia deixado Burke tão perto do desespero em tão pouco tempo. Bastara um toque, um beijo. Por um doce momento ele pôde quase acreditar
que era amado. Loucura. Um homem são se contentaria com aquela única noite. Mas como uma droga Erin apossava de seu metabolismo, fazia seu coração disparar, sua
cabeça girar.
,Agarrou-lhe o vestido e Erin se esfregou nele, murmurando. Reconheceu a excitação, a espera, mas não- o pudor. Quando a viu exposta para ele, Burke a tomou
com mãos rudes que incitaram tanto o desejo quanto o pânico. Nunca ninguém a havia tocado assim, como se tivesse direito ao corpo dela. Nunca havia experimentado
tal mistura de atração e medo.
Erin ficou nua, foi atirada na cama, o corpo de Burke cobriu-a. O medo do desconhecido passou com a excitação que as mãos dele provocaram, fazendo-a arquear
o corpo. Sentindo o peso de Burke, Erin perdeu o fôlego, ficou tonta. Chegou a estranhar o próprio corpo, de repente sábio na busca de sensações até então desconhecidas.
E apavorantes. Se ele dissesse uma palavra, uma única palavra, mostrando que tudo estava bem, tudo teria sido diferente, mas Erin não sabia pedir.
Impaciente, Burke a beijava e ao mesmo tempo despia a camisa. Queria sentir pele sobre pele. Quantas vezes havia imaginado aquela cena, ele e Erin juntos,
cheios de desejo, sem perguntas ou dúvidas? Ela dizia seu nome num sussurro arquejante e desesperado, o que lhe precipitou a paixão. Tirou o resto das roupas em
movimentos convulsos, fora de si.
O corpo de Erin queimava sob o dele, e a cada movimento as chamas subiam mais. Ela enterrou as unhas nos ombros dele, as bocas se fundiram. Sem pensar em
mais nada, Burke a possuiu.

Erin estava encolhida, longe dele, tremendo. Burke, deitado no escuro, tentava clarear a cabeça. Inocente. Grande Deus, ele a havia tomado cheio de paixão
e nenhum cuidado. E tinha sido o primeiro. Devia ter sabido. Mas como, se desde a primeira vez que a abraçara ela parecera tão madura, tão pronta? Mostrara força,
paixão, correspondera plenamente aos beijos e abraços. Nem sequer lhe havia passado pela cabeça que Erin não tivera outro homem.
Burke correu as mãos pelo rosto, esfregando-o com força. Não havia visto porque era um idiota. A inocência estava presente naqueles olhos, para qualquer homem
que a olhasse. Qualquer homem inteligente. Ele não havia olhado, talvez por não querer ver. E tinha magoado Erin. Ela estava ferida por causa dele. Burke tinha fama
de insensível, descuidado com as mulheres, mas nunca havia machucado ninguém. Porque as mulheres que escolhera antes conheciam as regras. Erin não. Ninguém as havia
ensinado.
Buscando uma forma de se desculpar, tocou-lhe os cabelos, o que a fez se encolher ainda mais.
Não ia chorar. Ela apertou bem os olhos e jurou para si mesma. Já havia sido humilhada o suficiente, sem lágrimas. Ele devia achar que era uma tonta, fungando
feito criança. Mas como poderia ela saber que o amor era uma batalha, e não um encontro?
Burke estendeu a mão para os pés da cama e puxou uma coberta sobre Erin. O problema era que não tinha nenhuma habilidade com as palavras. Tentando escolher
as mais adequadas, continuou a acariciar os cabelos de Erin.
- Erin, sinto muito! - Por Deus, ele era mesmo um animal. Tantas palavras para escolher e não arranjava nenhuma melhor que aquelas?
- Não peça desculpas, eu não agüento. - Ela enterrou a cabeça no travesseiro, rezando para que ele não repetisse as desculpas.
- Tudo bem. Só quero dizer que eu não devia ter... - O quê? Tê-la desejado? Possuído?
- Eu não devia ter sido tão grosseiro com você, isto é, não ter tomado cuidado. - Ah, aquilo era lindo de dizer, pensou, detestando-se. - Eu não sabia que você...
que hoje era sua primeira vez. Se tivesse sabido, eu...
- Teria fugido? - sugeriu ela, sentando-se. Antes que pudesse sair da cama, Burke a segurou pelo braço. Ela teve uma reação de repulsa que o atingiu como
um soco no estômago.
- Tem todo o direito de estar zangada comigo.
- Com você? Por que deveria estar zangada com você? É comigo mesma que estou furiosa - disse Erin, forçando-se a olhar para ele. Pouco mais que uma silhueta
no escuro. Haviam se amado no escuro, pensou, sem ver ou partilhar nada. Talvez fosse melhor assim, para que ele não pudesse ver a devastação no rosto dela.
- Se tivesse me contado...
- Contado? Claro, eu devia ter contado. Enquanto estávamos rolando na cama, nus como viemos ao mundo, eu devia ter dito: "Oh, por falar nisso, Burke, talvez
esteja interessado em saber que nunca fiz isto antes". Perfeito.
Surpreso, Burke viu-se sorrindo, e continuou sorrindo mesmo quando tentou acariciar-lhe outra vez os cabelos e ela afastou a cabeça.
- Talvez pudesse ter escolhido uma hora melhor.
- Está feito, e não há razão de insistir no assunto. Quero ir para casa já, antes de me humilhar de novo.
- Não.
- Não o quê?
- Não vá. O que aconteceu não foi errado, só mal feito. Por minha culpa. Erin, não tenho muito jeito para pedir, mas gostaria que me deixasse reparar o que
fiz.
Não eram as palavras, mas a gentileza na voz dele começava a surtir um efeito calmante.
- Não é preciso. Já disse que não estou zangada. É verdade que foi minha primeira vez, mas não sou mais criança. Vim para cá de livre e espontânea vontade.
- Agora estou pedindo que fique. Vou lhe preparar um banho.
Burke segurou-lhe a mão, virou-a de palma para cima e pressionou os lábios bem no centro. Quando ergueu os olhos, viu que Erin estava surpresa.
- Você vai fazer o quê?
- Preparar-lhe um banho. Vai sentir-se melhor.
Quando ele desapareceu no cômodo vizinho, Erin continuou olhando para a parede, na direção onde ele havia estado segundos antes. O que haveria dado nele?
Enrolou-se num cobertor e ficou de pé. Burke voltou, vestindo um roupão frouxamente amarrado na cintura. A luz do banheiro formou um desenho geométrico no chão.
Erin ouviu o som da água correndo e sentiu, com toda a certeza erroneamente, que ele hesitava.
- Vá para a banheira e relaxe. Quer alguma coisa? Chá?
Muda de espanto, Erin negou com a cabeça.
- Então fique à vontade. Volto já.
Bastante perplexa, ela entrou rio banheiro e na banheira embutida no chão. A água quente começou a relaxar a tensão e a dor quase que de imediato. Recostando-se,
a nuca apoiada na beirada, Erin fechou os olhos.
Gostaria de ter outra mulher com quem conversar, uma mulher que lhe dissesse como era realmente fazer amor. Gostaria de falar sobre os próprios sentimentos
com outra mulher. Amava Burke, mas depois de ter estado com ele, a sensação não era de plenitude. Havia sido excitante. O modo como ele lhe havia tocado o corpo,
a sensação da pele dele contra a sua, tudo a fizera tremer e sentir dor, criara uma expectativa. Mas não houvera o clímax, nem luzes coloridas, nenhuma sensação
de plenitude.
Dee. Mas onde encontrar a coragem de dizer tudo aquilo a Dee? E se a prima risse dela, zombando por ter acreditado nos poetas e sonhadores? Dee tinha três
filhos, logo teria cinco. Como faze-Ia perder tempo com aquilo? Depois, estavam na América, e na América não havia.lugar para mulheres que não fossem práticas.
Pesando e medindo o que havia acontecido, Erin chegou à conclusão de que seria melhor guardar tudo aquilo consigo. Afinal, não acontecera nenhuma tragédia,
e o banho, como Burke havia dito, a fez sentir-se muito melhor. Decidida, saiu da banheira disposta a enfrentar o homem que a esperava no quarto. Nada de lágrimas,
rubores ou recriminações.
Enrolou-se na enorme toalha felpuda pendurada ao lado da banheira e saiu.
Ele havia acendido velas, dúzias delas, enchendo o quarto de uma luz suave e de... música, sim, lenta e romântica. Os lençóis da cama tinham sido trocados.
Erin sentiu a couraça de confiança construída no banheiro começar a fraquejar.
Burke viu-a olhar para a cama, e notou-lhe a reação de pânico. Resolveu apagar a lembrança da experiência frustrada de Erin. Levantou-se e ofereceu-lhe uma
rosa recém-colhida no solário.
- Está melhor?
- Sim - Erin aceitou a rosa, mas seus dedos quase partiram o cabo.
- Disse que não queria chá, por isso eu trouxe vinho.
-Tudo muito bonito, mas eu... Burke!
Ele ergueu-a nos braços e beijou-lhe a têmpora, levando-a para a cama.
- Relaxe, não vou machucar você. Tome um pouco de vinho, feliz dia de São Patrício!
- Com um meio-sorriso, deu-lhe um copo e tocou-o com o seu. Erin tomou um gole.
- Este quarto é bonito. Eu... não tinha reparado.
- Estava escuro - disse ele, rodeando-lhe os ombros com o braço e reclinando-se, apesar de senti-la tensa.
- Sim. Eu... ah, trabalhando lá embaixo, sempre imaginava como seriam os quartos aqui em cima.
- Poderia ter olhado.
Ela tomou mais um gole de vinho e passou a rosa pelo rosto. Pétalas macias, prestes a se abrirem.
- Não queria ser indiscreta. Parece uma casa grande demais para um homem só.
- Só uso um quarto por vez.
Erin umedeceu os lábios. Que música seria aquela? Cullen devia saber. Tão bonita e romântica.
- Ouvi dizer que Double Bluff ganhou a última corrida. Travis contou que ele bateu o potro de Durnam por um corpo. Todos já estão falando do Derby do Kentucky
e que seu cavalo é o favorito. Deve estar contente - falou depressa, tentando parecer à vontade, tentando relaxar sob a mão que lhe acariciava os cabelos.
- É difícil não ficar contente quando se está ganhando.
- E hoje na festa, Lloyd me disse que eu devia apostar em Bluff.
- Eu nem falei como você estava maravilhosa naquela festa.
- O vestido. Foi presente de Dee.
- Fez meu coração parar.
- Ora...
- Se bem que ele também parou quando a vi de macacão.
- Sim, agora tenho certeza de que descende de irlandês. Essa vocação para a mentira.
- Descobri que tinha uma fraqueza por mulheres recolhendo roupa.
- Eu diria que é mais um caso de fraqueza por mulheres em geral.
- Foi. Mas recentemente comecei a prestar atenção só nas sardentas.
- Se está tentando flertar comigo, devia caprichar mais. Odeio estas sardas - disse Erin, esfregando o nariz.
- Você também poderia caprichar e me dizer algo delicado. - Burke pegou a mão que segurava a rosa e beijou os dedos.
Erin prendeu o lábio inferior entre os dentes e esperou que ele olhasse para dizer:
- Estou pensando... bem, suponho que gosto... que você tem um rosto aceitável.
Ele riu, mordeu-lhe as juntas dos dedos e respondeu:
- Nunca ouvi elogio tão espontâneo.
- Se soubesse o quanto sou exigente, iria se sentir bastante lisonjeado. E, embora não tenha o corpo de Travis, eu até que gosto de homens magros.
- Dee já sabe que você está de olho no marido dela?
- Olhar não tira pedaço - riu, Erin, quase engasgando com o vinho.
- Então olhe aqui. - Fazendo-a erguer o rosto, beijou-a, muito de leve, um sussurro, não um grito.
- É, e você tem outra qualidade - murmurou Erin.
- Que bom. Qual?
- Faz meu estômago ficar frio e as pernas moles.
- E isso é bom? - Quase sem afastar os lábios dos dela, Burke pegou o copo de vinho e colocou-o de lado.
- Não sei, mas gostaria que fizesse de novo.
Cheio de uma ternura que Erin ignorava, ele esperou que os lábios dela cedessem aos seus. Hesitante, ela colocou a mão no ombro forte. Forte, sim, já sabia,
mas ao mesmo tempo tão paciente, doce e suave. Quando ele aumentou a pressão os dedos dela contraíram-se. Imediatamente o beijo ficou mais doce, até ela relaxar.
Burke queria tomar todo cuidado, não só por causa de Erin mas também por si. Queria saborear, explorar, abrir porta para ambos. Nunca fora homem de ligar
para luz de velas ou música, nada de romance para ele. Mas o clima o estava seduzindo quase tanto quanto a Erin.
Ela cheirava a banho, fresca, limpa. O sabonete de todo dia na pele dela criava um perfume feminino, misterioso. Tinha pele lisa, mas nada frágil, revestindo
músculos firmes, frutos da vida dura. Uma atração mais poderosa que a da fragilidade, mas sentia os nervos reagirem dentro de Erin. Daquela vez se comportaria como
se ela nunca tivesse sido tocada. Com respeito e paixão. Para ele, aquilo também começava a se parecer com uma iniciação.
Erin ouviu o corpo dele roçar os lençóis. Um novo desejo, misturado com medo, começou a brotar. Era natural, pensou, e, como não tinha mais expectativas,
não iria ficar desapontada.
- Não vou machucar você de novo, Erin, prometo. Ela não acreditou. Abriu os braços, aceitando, mas não acreditou. Burke beijou-lhe os lábios e pensou só nela.
Nunca havia sido um amante egoísta, mas também nunca se destacara pelo desprendimento. E, no entanto, via-se ignorando os próprios desejos em função de Erin.
Quando a tocava, não era para sentir, e sim fazê-la sentir. Ela começou a mudar lentamente, soltando-se, murmurando-lhe o nome como num sonho.
Tensa, Erin havia esperado apressa, a pressão, a dor. Em vez disso recebeu languidez, indulgência e puro prazer. As mãos de Burke moviam-se com liberdade,
como antes, mas com uma diferença. Roçavam, acariciavam, insistiam até que ela se sentisse flutuar. A sensação de vulnerabilidade voltou, sem o pânico. Leve e doce,
ele colocou a boca sobre seu seio e sugou, de modo que Erin sentiu a resposta dentro de si, um calor que se espalhou até a ponta dos dedos.
Com um gemido apertou-o entre os braços, não estava apenas aceitando e sim recebendo.
E como ela era doce... Os, lábios roçando-lhe o corpo descobriram um gosto original, que Burke nunca mais poderia dispensar. O corpo sob o dele era tão completamente
receptivo que ele soube que poderia tomá-la naquela hora e satisfazer a ambos. Mas estava faminto de outra maneira. Com fome de dar.
Entrelaçou os dedos nos dela, um gesto íntimo e inusitado. Viu o rosto reluzir de prazer à luz das velas.
Para dar tempo aos dois, Burke voltou a beijar a boca de Erin.
Um leve sabor de vinho, e moveu os lábios dizendo palavras que ela ouvia só com o coração.
Ali estava o esplendor imaginado, as cores que os poetas prometiam. Ali estava a música em surdina e a luz suave. Ali estava tudo que uma mulher apaixonada
podia querer.
Havia amado Burke antes, mas naquela hora soube que o amor era definitivo.
Devagar, com cuidado, ele começou a desvendar outros segredos, a sentir o corpo que estremecia e se aproximava do dele sem hesitação, sem restrições. Quando
a fez chegar ao primeiro auge, viu que Erin abria os olhos de repente, de choque e delícia.
Sem fôlego, agarrou-se a ele. Era como se a cabeça corresse para não perder o corpo de vista. E ainda assim o corpo a levava para lugares que nunca sonhara
que existissem. A onda seguinte a atingiu com um força que a fez erguer-se da cama. Impossível que ainda houvesse mais. As cores estavam vivas demais, e o prazer
se expandira a ponto de ficar lancinante e doce a um só tempo.
Agarrou-se a Burke, murmurando-lhe o nome. Não era possível que houvesse mais.
Ele a penetrou e provou que era.

Erin tremia de novo, mas não havia se afastado de Burke. Virada para ele, o rosto apoiado no ombro musculoso, segurava-o nos braços. Nenhum dos dois dizia
nada.
Burke tentou se lembrar de que não era novato naquele jogo. Por que então sentia como se alguém tivesse acabado de mudar as regras? As velas enchiam o quarto
de sombras, e Burke sacudiu a cabeça. Ele mesmo havia mudado as regras. Luz suave, música suave, palavras suaves. Não, não era seu estilo, e no entanto caía tão
bem...
Estava acostumado a viver do jeito mais difícil, amar de passagem e seguir caminho. Vencer, perder ou se retirar. E naquela hora parecia-lhe que morreria
feliz se nunca mais precisasse sair dali. Desde que Erin também ficasse.
O pensamento enviou várias ondas de choque pelo seu corpo. Erin ficar com ele? Desde quando tinha começado a pensar naquilo? Desde que pusera os olhos nela,
deu-se conta, expirando longamente, e sem muita segurança. Bom Deus, estava apaixonado por ela. Toda a vida nunca sentira mais que interesses passageiros por mulheres.
E então alguém havia aberto o alçapão, e ele caíra de amores por uma mulher que ainda nem tivera oportunidade de conhecer os homens.
Burke não tinha tempo para aquilo. Sua vida sempre instável, o fato de desejar que continuasse assim, tudo contribuía para negar aquele amor. Era e queria
ser dono dos seus atos, palavras, suas idas e vindas. Tinha planos, lugares onde ir. Tinha... nada, pensou. Não tinha absolutamente nada sem ela.
Fechando os olhos, tentou convencer-se do contrário. Era loucura, ele estava louco. O que entendia de amor? Só amara uma pessoa em toda a vida, e muito tempo
antes. Outro tipo de amor. Era um forasteiro, um vagabundo. Se havia ficado um pouco mais de tempo num lugar era só porque... porque não aparecera jogo melhor, só
isso. E, pensou, tudo aquilo era mentira.
Devia fazer um favor a Erin e a si mesmo e partir para Monte Carlo. Na manhã do dia seguinte, não, naquele mesmo dia. Que a fazenda e as responsabilidades
fossem para o inferno. Como sempre, pegaria suas coisas e iria embora. Nada o prendia ali.
Mas a mão de Erin descansava sobre seu coração.
Burke não iria a lugar algum. Mas talvez estivesse na hora de subir as apostas, jogar suas cartas.
- Você está bem, Erin?
- Estou me sentindo... vai achar que sou boba.
- Provavelmente. Como se sente?
Rindo, ela atirou os braços em volta do pescoço dele.
- Linda. Me sinto a mulher mais linda do mundo.
- Acho que é apenas razoável - murmurou ele, sabendo naquele momento que, por mais que tentasse escapar, estava irremediavelmente preso.
- Nunca mais quero sentir nada além disso.
- Pois vai ter de sentir, o que não a impede de voltar a procurar essa sensação tanto quanto quiser. Vamos buscar suas coisas amanhã.
- Que coisas? - Ainda sorrindo, os braços repousando ao redor dele, ela recuou.
- Suas coisas, ora. Não há por que ir buscá-las hoje. Amanhã estará bem.
Muito devagar, ela encolheu os braços.
- Buscar... Burke, eu já disse uma vez que não vou morar aqui com você.
- As coisas mudaram - disse ele com simplicidade, servindo-se de vinho e desejando que fosse uísque.
- Sim, mas minhas idéias não. O que aconteceu hoje... - Tinha sido lindo, a mais bela experiência de sua vida, Erin não queria estragá-la falando de partilhar
uma vida com ele que não era uma verdadeira vida, nem verdadeira partilha. - Quero me lembrar disso. Gostaria de pensar que nós vamos... nos amar de novo desse jeito,
mas isso não significa jogar meus princípios no lixo e vir para cá como sua concubina.
- Amante.
- O rótulo é o de menos. - Erin começou a sair da cama, mas Burke reteve-a pelos ombros. O copo caiu no chão e se quebrou.
- Quero você, em nome de Deus, não entende? Não só por uma vez. Não quero ter de arrastá-la da casa dos Grant para cá toda vez que quiser passar uma hora
com você.
A paz de após o amor foi substituída pelo orgulho ferido.
- Pois não vai me arrastar para lugar nenhum. Acha que me mudarei para cá para ficar a mão quando você tiver vontade de rolar um pouco na cama? Bem, pois
eu não sou artigo de conveniência, nem para você nem para qualquer outro homem. Vá para o inferno, Burke Logan.
Estava quase de pé, mas ele a puxou e deitou-se sobre ela.
- Estou ficando cansado de ser mandado para o inferno.
- Pois pode ir se acostumando. E tire as mãos de mim, vou para casa.
- Não vai, não.
- Não pode me prender aqui.
- Pois vou! - Antes que pudesse fazer qualquer coisa, Erin cravou os dentes na mão dele. Burke soltou um palavrão, e os dois rolaram pela cama antes que ele
conseguisse imobilizá-la de novo.
- Da próxima vez juro que tiro sangue. Agora me solte.
- Cale a boca, sua irlandesa maluca.
- Ah, vai baixar o nível da linguagem? - Erin inspirou fundo por entre os dentes cerrados e resmungou uma série de palavras em gaélico.
Não era hora de rir, Burke teve de lembrar a si mesmo. Inutilmente, pois não pôde deixar de soltar uma risada ao abrir a boca para perguntar:
- O que foi isso?
- Uma maldição. Dizem que minha avó era bruxa. Se tiver sorte, você morre depressa.
- Para deixar você viúva? Nem pensar.
- Talvez viva, mas sofrendo tanto que vai acabar desejando... O que disse?
- Vamos nos casar.
Erin amoleceu, e Burke aproveitou para soltá-la e colocar a mão mordida na boca. A outra mão remexeu no criado-mudo à procura de uma cigarrilha.
- É bom saber que tem bons dentes. Nada a dizer, Irlandesa?
- Casar?
- Isso mesmo. Podemos pegar o avião para Las Vegas amanhã, mas Dee me mata se o fizermos. Melhor pegar uma licença e casar aqui mesmo, semana que vem.
- Semana que vem. Acho que o vinho subiu muito depressa, não estou entendendo nada.
Burke acendeu a cigarrilha e falou com voz prática, decidindo que seria o estilo ao qual Erin reagiria melhor.
- Quero você. Você me quer, mas não vem morar comigo.
Parece a solução mais lógica.
- Solução?
Calmamente, como se não estivesse apostando a própria alma, Burke soprou fumaça.
- Vai passar o resto da noite repetindo tudo que eu digo?
Erin sacudiu a cabeça, tentando desanuviá-la. Aparentemente calma, observou-o, procurando algum sinal. Os olhos estavam velados, o rosto fechado. Era um jogador,
jamais deixaria transparecer quais eram sua cartas naquela jogada definitiva.
- Por que quer casar?
Outra baforada de fumaça.
- Não sei. Nunca me casei antes. E não pretendo fazer do casamento um hábito. Penso que uma vez bastará.
- Não acho que se deva brincar com um assunto tão sério.
Burke estudou a ponta da cigarrilha, e inclinou-lhe para batê-la no cinzeiro.
- Não estou brincando. Nunca pedi uma mulher em casamento antes, jamais quis pedir. Estou pedindo você.
- Você...
Ela queria perguntar se Burke a amava, mas não conseguiu. Fosse qual fosse a resposta, seria errada, pois aquelas coisas não se deviam perguntar.
- Acha mesmo que o que houve conosco, aqui, é suficiente para valer um casamento?
- Não, mas funcionamos bem juntos. Nos entendemos. Você vai me fazer rir, não vai me deixar descansar e será fiel. Não posso pedir nada além disso. - Não
ousava. - Vou lhe dar o que sempre quis. Uma boa casa, vida confortável, e você será a pessoa mais importante da minha vida.
Ao ouvir aquilo, Erin ergueu a cabeça. Podia ser suficiente. Se ela fosse realmente importante para ele.
- Está falando serio?
- Raramente minto. A vida é um jogo, Irlandesa, lembra-se?
- Sim.
- A maior parte dos casamentos não dá certo porque as pessoas começam pensando que vão modificar o outro. Não quero mudar você. Gosto exatamente do que é.
Burke tomou-lhe a mão, levou os dedos aos lábios e o coração de Erin falou mais alto que a cabeça:
- Então imagino que devo aceitá-lo do jeito que é, também.


CAPÍTULO VIII

Erin estava de pé em cima de uma cadeira, envolta numa nuvem de cetim branco que a costureira se ocupava em prender com alfinetes. Sentada na cama, Dee só
observava. Depois de um tempo, falou:
- Tudo está acontecendo tão depressa. Tem certeza de que não precisa de mais tempo?
- Para quê? - retrucou a prima, olhando pela janela, imaginando que logo um daqueles alfinetes iria espetá-la, fazendo-a acordar daquele sonho.
- Para tomar fôlego, pensar um pouco mais.
- Mesmo que eu tivesse mais seis meses, ainda não conseguiria tomar fôlego - e Erin passou a mão pelo corpete do vestido recoberto por pequenas pérolas. Quem
poderia imaginar que Erin McKinnon, de Skibbereen, Irlanda, pudesse um dia usar um vestido como aquele? E para casar-se com Burke Logan, ainda por cima. Levou um
susto com a voz da costureira:
- Olhe no espelho, srta. McKinnon. Acho que o comprimento está bom. Sem falsa modéstia, está perfeito. Não é toda mulher que pode usar um modelo assim.
Erin se olhou. Um vestido de sonho, milhares de pérolas sobre, cetim, um brilho nacarado ao sol da tarde. Sentiu-se uma princesa medieval, com as mangas justas
que formavam um bico sobre as mãos e quilômetros de saia cor de neve.
Vendo que a prima não dizia nada, Adélia apressou-se a tranqüilizar a costureira:
- Está lindo, sra. Viceroy. E é um milagre que tenha conseguido aprontá-lo em tão pouco tempo. Estamos em dívida com a senhora.
- É um prazer servi-Ia sra. Grant. E a senhorita, quer alguma alteração?
Erin tocou muito de leve a fazenda da saia, como se tivesse medo de vê-Ia desfazer-se sob os dedos.
- Não quero que mude nem um ponto, sra. Viceroy. Desculpe não ter falado antes, mas fiquei tão encantada...
- Então vou acabar a barra. Acho que seu noivo vai ficar satisfeito. Venha, deixe-me ajudá-la a tirá-lo.
Erin viu-se ao espelho com a combinação de algodão que Burke um dia a havia ajudado a tirar do varal. Enquanto a sra. Viceroy guardava o vestido, enfiou-se
num chemisier e pensou que sabia direitinho como Cinderela devia ter se sentido à meia-noite. Mais uma vez sua linha de pensamento foi interrompida pela voz da costureira:
- Se aceita uma sugestão, o efeito do vestido e do véu será bem melhor se prender os cabelos de um jeito simples, à antiga.
- Isso mesmo - murmurou Dee, observando que a prima tinha os olhos perdidos, dirigidos para a janela, mas sem vê-Ia.
- E, naturalmente, o mínimo possível de jóias.
- Vou lhe emprestar meus brincos de pérolas.
- Boa idéia.
- Obrigada mais uma vez, sra. Viceroy. Eu a acompanharei até a porta.
- Não é preciso que fique descendo escadas, no seu estado. Sei o caminho. O vestido será entregue depois de amanhã, às dez.
"Depois de amanhã", pensou Erin, sentindo um frio na espinha. A vida com Burke seria um permanente agora ou nunca?
- Um amor de pessoa - comentou Dee, depois que a mulher saiu.
- Foi muito gentil da parte dela vir aqui.
- Gentileza é uma coisa, negócios são outra. Dificilmente ela deixaria passar a oportunidade de agradar a futura sra. Burke Logan. Erin... estou feliz por
você, é lógico. Me sinto um pouco sua mãe. Desculpe dizer, mas... é isso mesmo que você quer?
Erin deixou-se cair na cama, ao lado da prima, e desabafou:
- Não sei o que quero. Estou morta de medo, e não paro de pensar que vou acordar lá na fazenda, que tudo isso não passa de um sonho.
Dee apertou-lhe a mão.
- É verdade. Tem de entender que é tudo muito real, e por isso mesmo é que estou preocupada.
- Eu amo Burke, Dee. Gostaria de conhecê-lo melhor. Saber da família, do passado. Gostaria que meu pai, minha mãe, enfim, todo mundo estivesse aqui. Mas...
- Mas...
- Mas eu amo Burke. Isso basta, não basta?
- Basta para começar. Eu comecei apenas com um amor cego por Travis, o resto veio com o tempo. E Burke é difícil de se conhecer.
- Mas você gosta dele?
- Sempre tive um fraco por ele. Tem bom coração, o que tenta esconder de todo mundo. Um tanto rude, mas acredito que fará o possível para não ferir a quem
ama.
- Não sei se ele me ama.
- O quê?
- Não tem importância, Dee. Eu o amo o bastante para nós dois. - Erin levantou-se e começou a andar pelo quarto.
- Por que ele se casaria com você se não a ama?
- Ele me quer, e tenho de encarar isso de frente, Dee.
- Erin, casamento é um passo muito importante para que um homem como Burke o dê para satisfazer um capricho. Se ainda não se declarou explicitamente foi porque
nunca aprendeu.
- Não tem importância. Não preciso de palavras.
- Claro que precisa.
- Ah, sim, você tem razão, mas acho também que posso esperar.
- Às vezes uma pessoa precisa sentir-se segura antes de abrir o coração.
- Você é boa para mim, Dee. E, sabe, estou feliz. E, apesar de eu e Burke sermos como somos, vou lutar para que sejamos felizes.

Apesar das palavras corajosas. Erin teve um momento de dúvida parada no alto da escadaria, de braço dado com o tio Paddy. A cerimônia ia ser lá embaixo, no
átrio. A música começou. Erin deu um passo e estacou. Tio Paddy apertou-lhe a mão:
- Vamos lá, moça, você está linda. Seu pai ficaria orgulhoso.
Erin engoliu em seco, respirou bem fundo e começaram a descer.
Burke pensou que o smoking fosse estrangulá-lo. Para ele, tudo poderia ter se resolvido no cartório, em poucos minutos. Um juiz, duas palavras e missão cumprida.
A responsável por tê-lo convencido a tomar parte na cerimônia fora Dee. "Uma coisinha simples", ela dissera, "uma mulher só tem direito ao vesti. do branco e flores
de laranjeira uma vez na vida." Burke dera um prazo de duas semanas, acreditando que não seria possível fazer nada de extraordinário em tão pouco tempo. E Dee, como
de costume, tinha conseguido.
O casamento simples prometido havia inflado até se transformar num espetáculo, com duzentas pessoas ávidas para vê-lo dizendo o sim. A casa estava forrada
de rosas brancas e cor-de-rosa, e ele, Burke, havia sido metido, quase à força, num smoking. Dee encomendou um bolo de cinco andares e champanhe suficiente para
encher a piscina. Burke estava absolutamente escandalizado. E assustado, sem saber onde pôr as mãos, tentando manter o rosto impassível...
Quando viu Erin, os cabelos brilhando sob várias camadas de tule branco sentiu um frio no estômago. Parecia pálida, mas seus olhos cruzaram com os dele sem
hesitação. Como não notara antes como ela era pequena, delicada? Só observara isso naquele momento, quando Erin estava prestes a se tornar uma parte permanente de
sua vida. Permanente, pensou e quase entrou em pânico. Então Erin sorriu, e ele estendeu a mão.
Dedos gelados. Tão gelados quanto os dele. Ela apertou-os com força e olhou para o padre.
Não levou muito tempo para que mudassem suas vidas. Alguns momentos, algumas palavras. Erin sentiu o anel sendo colocado no dedo, mas olhava para o rosto
de Burke. E tinha a mão firme quando pegou a aliança que Dee lhe entregava e a colocou no dedo dele.
Estava feito. Burke levantou o véu e tocou a pele quente. Os lábios se encontraram muito de leve, a princípio. Logo Erin riu alto e atirou os braços em volta
do pescoço do marido, e assim foram declarados marido e mulher.
E, num passe de mágica, Erin foi rodeada por aqueles que queriam cumprimentá-la, desejar-lhe felicidades e invejá-la.
Tudo tomou um contorno de sonho, cheio de música, desconhecido, e vinho espumante. Flashes espoucaram, ergueram-se brindes. Garçons vestidos de branco passavam
com bandejas de caviar, canapés e frutas cristalizadas que brilhavam como jóias sob a luz. Erin viu-se respondendo perguntas, sorrindo e desejando estar muito longe
dali.
E de repente estava dançando com Burke, e o mundo voltou ao normal.
- Só agora começo a acreditar. Sonhei a vida inteira com um dia como este. Estamos casados mesmo, ou é pura imaginação?
Burke a fez erguer a mão, mostrando-lhe o anel.
- Isto aqui parece verdadeiro.
Sorrindo, ela olhou para a mão, e levou um choque.
- Oh, Burke, como é lindo! Brilhantes e... safiras, não são? Eu tinha pensado numa aliança simples...
- Faz uma hora que está usando este anel. Não tinha olhado para ele?
- Não, eu... obrigada.
A música parou, e Erin aproveitou a oportunidade de deixá-lo antes de perder o controle.
- Volto num minuto.
- É bom voltar mesmo. Não quero enfrentar essa multidão sozinho.
Correndo escadaria acima, Erin passava o polegar pelo anel recém-descoberto. Precisava só de um minuto, para se recompor, se ajustar, acreditar.
Abriu uma porta, entrou, encostou-se nela. Aquele seria seu quarto daquela noite em diante, dela e do marido. Iria dormir naquela cama, acordar com a luz
daquela janela, esticar os lençóis, mexer nas cortinas. E com o tempo aquilo viraria rotina.
Não, pensou com uma risada, e cruzou os braços, apertando-os. Nunca viraria rotina. Ela não deixaria que virasse. Daquele dia em diante a vida seria especial,
pois amava e era amada.
Lentamente, Erin relaxou os braços. Depois levou a mão ao rosto, verificando se estava quente, ou suado. Sentindo-se mais calma, abriu a porta, apenas uma
fresta, e viu três mulheres a caminho da escada. Uma delas, que conhecia da festa de Adélia, senhora imponente com lindos cabelos brancos e vestido azul esmaecido,
vinha dizendo:
- Ora, pelo dinheiro, é claro. Afinal, ela mal conhece o homem. Por que outro motivo se casaria? Não acredito que faltem homens bonitos na Irlanda. E é evidente
que essa moça não cruzou um oceano para se contentar com um emprego de contadora.
- Parece estranho que Burke tenha se casado com uma maria-ninguém, logo ele que poderia escolher entre as mulheres mais interessantes das redondezas - continuou
a loira de pernas compridas, mexendo nervosa com o fecho da bolsa.
A terceira mulher deu de ombros e fez seu comentário:
- Pois eu achei que formam um lindo casal. Sério, Dorothy, e Burke não seria assim tão bobo de cair no golpe do baú. Como Judy já disse, ele jamais precisou
temer a solidão.
- Mas não há a menor dúvida de que a moça tem cartas na manga. Uma coisa é levar um homem para a cama, outra muito diferente é levá-lo para o altar. Homens
se encantam com facilidade, e com a mesma facilidade enjoam. Calculo a duração desse casamento em um ano. Se ela for tão esperta quanto parece, vai conseguir um
bom pé-de-meia, começando com o anel que ele lhe deu. Encomendado na melhor joalheria de Nova York, sabiam? Dez mil dólares. Nada mau para uma caipirinha vinda sabe-se
lá de onde.
Chegaram ao topo da escada, e a loira disse, mexendo nos cabelos:
- Vai ser interessante assisti-la lutando para ser aceita pela sociedade nos próximos meses.
- Ela não é uma de nós - anunciou a mulher de cabelos brancos.
Parada, a mão ainda na maçaneta da porta, Erin viu-as descer. Não era uma delas? Através do choque veio um tremor de raiva. Pois bem, não era nem queria ser.
Não passavam de um bando de comadres sem nada para fazer além de comentários cruéis sobre a vida dos outros.
Casada pelo dinheiro de Burke? Será que aquela gente lá embaixo acreditava mesmo naquilo? E Burke, acreditaria? Seria aquela a mensagem implícita quando ele
dissera que podia lhe dar o que queria?
Levando as mãos ao rosto, Erin viu que estavam de novo quentes. Não havia feito nenhum esforço para que Burke não pensasse nela como uma aventureira ambiciosa.
Mas ia lhe mostrar. Tinha se casado com o homem, não com a fazenda, ou a casa.
Quando desceu a escada Erin não parecia mais uma noiva pálida e inocente. Tinha as faces rosadas, os olhos escuros. Podia não pertencer àquele ambiente, ainda,
mas saberia entrar para ele. Burke ficaria orgulhoso dela. Forçando um sorriso, foi direto à mulher de cabelos brancos:
- Estou tão feliz que tenha vindo.
- Não teria faltado por nada, querida. Você está uma noiva linda.
- Obrigada, mas uma mulher só é noiva por um dia, e esposa o resto da vida. Com licença.
Com a cauda do vestido ondulando atrás dela, Erin cruzou o salão até onde Burke estava, abriu caminho entre os convidados, pendurou-se ao pescoço dele e beijou-o
até que os assistentes começassem a sorrir e a fazer comentários. Quando acabou, disse com simplicidade:
- Eu amo você, Burke, e vou amar sempre.
- Acabou de chegar a essa conclusão, Erin?
- Não, mas acho que até demorei tempo demais para lhe dizer.

Quando o último dos convidados deixou a festa, Erin parou no meio do átrio, torcendo as mãos.
- Vai ser preciso um exército para colocar este lugar em ordem.
- Ninguém vai passar por aquela porta nas próximas vinte e quatro horas.
- Eu devia subir e trocar de roupa.
- Só um minuto, Erin. Dê-me suas mãos. Devia ter lhe dito como estava linda hoje. E não me lembro de ter ficado mais nervoso do que fiquei parado ali, esperando
por você.
- Verdade? Eu é que estava morta de medo. Tive vontade de sair correndo.
- Eu teria corrido atrás.
- Espero que sim, pois o único lugar em que quero estar é aqui com você.
- Não teve muitas oportunidades de fazer comparações.
- Isso não tem importância.
Mas Burke duvidava que não tivesse. Era o único homem da vida de Erin, e tinha acabado de fazer o possível para continuar sendo. Egoísta, sim, mas um homem
apaixonado age antes de pensar. Beijou Erin, tomou-a nos braços e assim subiram para o quarto, onde Rosa havia deixado champanhe num balde de gelo e duas taças.
- Burke, se incomodaria de me dar dez minutos?
- E quem vai ajudá-la a tirar o vestido?
- Posso dar conta disto sozinha. Dez minutos, por favor.
- Bem, então vou me livrar desta camisa-de-força que eles chamam de smoking em outro lugar.
Precisamente dez minutos depois Burke estava de volta, de roupão. Erin o esperava, pronta. Ainda de branco, mas a camisola era como uma nuvem, ocultando e
revelando o corpo através de doces transparências. Os cabelos soltos nos ombros pareciam fogo sobre a neve.
- Pensei que fosse impossível você ficar mais bonita do que estava à tarde.
- Queria que esta fosse uma noite especial. Sei que já... estivemos juntos, mas...
- Vai ser a primeira vez que vou, fazer amor com minha mulher.
- Sim. E quero que me ame, mais ainda do que antes. E que me ensine o que fazer.
Burke sentiu de novo a falta que lhe faziam as palavras. Tirou uma caixa do bolso, e disse com o jeito prático de sempre:
- Isto é para você.
- Burke, não preciso de tantos presentes.
- Mas eu gosto de vê-la usando meus presentes.
Ela abriu a caixa, revelando um colar de brilhantes com um pingente formado por uma safira perfeita.
- Oh, Burke, combina com o anel.
Exatamente. Não gostou?
- Claro que sim, é como se tivesse saído de uma arca do tesouro. Dá até medo de usar.
- Não seja boba, foi feito para ser usado. Venha cá, deixe que eu o coloque no seu pescoço. Assim. Agora olhe no espelho, vê? Vê como a safira combina bem
com seus olhos, os brilhantes com a pele? Para que servem as pedras bonitas a não ser para serem usadas por mulheres igualmente bonitas? Durante a lua-de-mel vamos
escolher mais algumas. Para onde quer ir? Paris? Aruba?
Irlanda, pensou Erin, mas teve medo que ele risse da idéia.
- Estive pensando e acho que poderíamos esperar um pouco. Afinal, é a época do ano mais atribulada para você, assim perto do Derby. Vamos esperar uns meses?
Burke guardou o colar na caixa antes de responder:
- Se preferir. Erin, o que está errado?
- Nada. Só que tudo é tão novo, e... Burke, juro que nunca vai se envergonhar de mim.
- Erin, estou perdendo a paciência. Quero saber o que você meteu na cabeça, e como.
Erin ficou furiosa por ser sempre um livro aberto para ele, enquanto continuava incapaz de ler nas expressões de Burke.
- Oh, nada. Só que me dei conta, hoje, que não faço parte do seu mundo, nem do estilo de vida de sua gente.
- Minha gente? Não sabe nada da minha gente, Irlandesa, e pode considerar isso uma sorte. Se está se referindo às pessoas que vieram ao casamento, saiba que
dois terços delas não valem seu dedo mindinho.
- Mas pensei que gostasse delas. São seus amigos, alguns até sócios.
- Isso mesmo, gente com quem faço negócios. E isso pode mudar de uma hora para outra. Podemos freqüentar as festas, e você freqüentar clubes, entrar para
comitês. Mas se quiser virar o nariz para todo mundo, saiba que para mim dará no mesmo.
- Mas você está no mundo das corridas. E, ao me casar com você, entrei também. E não vou tolerar que ninguém diga que se casou com uma maria-ninguém desajustada.
- Ah, então foi isso que disseram. Ouça aqui, o que os outros possam pensar não conta. Casei-me com você porque quis, por você ser exatamente o que eu queria.
- E eu serei exatamente como você quer! Juro.
Erin selou o juramento com um beijo. Queria que aquela noite fosse especial, para além do vestido de noiva e do champanhe. Queria provar que amava Burke sem
restrições. Abraçada a ele, bocas coladas, deitou-se na cama. Na cama conjugal.
Ele havia lhe mostrado como era o amor, e Erin esperava devolver-lhe um pouco daquela beleza. Na falta de experiência, teria de ouvir a voz do coração. Não
tinha idéia se um homem era capaz de sentir algo além de desejo e satisfação, mas queria tentar dar a Burke um pouco da doçura, da alegria que recebera dele.
Hesitante, insegura, colou os lábios ao pescoço dele, sentindo o sal da pele e a pulsação. O ritmo acelerou-se, e Erin sorriu. Sim, podia lhe dar alguma coisa.
Gostou da sensação do corpo do marido sob as mãos, os músculos reagindo ao seu toque. Abriu-lhe o roupão, e hesitou quando ele tensionou o corpo.
- Não pare, Erin, quero que toque em mim.
Burke precisou se conter. A mistura de inocência e paixão era inebriante. Erin se entregava livremente, para que ele a ensinasse a dar e receber prazer.
E assim se amaram devagar, com tempo para ensinar e aprender. Erin não vacilou quando ele baixou a alça de renda da camisola. Pelo contrário ficou maravilhada
por se saber desejável. Em resposta, tirou-lhe o roupão e contemplou a força e a beleza do marido.
Paradoxalmente, achava-o mais excitante por saber que lhe pertencia. O desejo angustiante da primeira vez passara, deixando em seu lugar a paixão serena de
saber que havia tempo, que teria o resto da vida para conhecer aquele corpo que se abandonava em suas mãos. Aquilo era apenas o começo. Erin riu.
- Qual é a graça?
- Estou feliz. - Sem maiores explicações, beijou-o, deixando-se cair por cima ele. Burke rolou o corpo, ficando sobre ela e assim a penetrou. Quando o redemoinho
começou, o corpo de Erin assumiu o comando movendo-se instintivamente à procura do prazer que ela sabia que seria total.
Burke achou-a parecida com uma deusa, os cabelos de um vermelho-vivo esparramado no lençol branco, o corpo esbelto, forte e ágil pronto a acompanhar o dele.
Queria que o tempo parasse ali, gravar para sempre aquela imagem de Erin na mente. E foi então que veio o prazer, de forma tão completa que o cegou.

A primeira manhã da sra. Logan foi cinzenta, lavada de chuva primaveril. Erin achou-a linda, e sorriu estendendo o braço para Burke. Ele não estava lá. Apavorada,
pensando que aquilo comprovava que tudo não havia passado de um sonho, sentou-se na cama.
- Você sempre acorda desse jeito? - Do outro lado do quarto, Burke fechava o cinto e olhava para ela.
Não era um sonho, claro que não. Erin riu, sacudindo a cabeça.
- Não, eu pensei... não tem importância. Onde você vai?
- Para os estábulos.
- Tão cedo?
- São sete horas.
Erin esfregou os olhos e fez força para sair da cama.
- Sete. Vou fazer seu café.
- Rosa se encarrega disso. Você devia dormir mais um pouco.
- Mas eu... - Ela queria fazer o café. Era uma das pequenas coisas vitais que uma esposa tinha de cuidar. Erin queria sentar na cozinha com ele, falando do
dia que começava e lembrando da noite passada. Olhou Burke, que já calçava as botas.
- Não estou cansada. Vou descer e trabalhar .
- Você adiantou o trabalho o suficiente para tirar dois ou três dias de folga. Na verdade, não falamos disso, mas não precisa continuar fazendo a contabilidade,
se não quiser.
- É claro que vou continuar. Vim para cá por isso.
- Mas as coisas mudaram. Não quero ver minha mulher trancada num escritório o dia inteiro.
- Se não se incomodar, prefiro não largar o trabalho. Se não quiser que eu continue fazendo sua contabilidade, procurarei outro emprego - disse Erin, pouco
à vontade. Para se ocupar, começou a fazer a cama.
- Não me incomodo se faz ou não minha contabilidade. Só quero que saiba que pode escolher. O que está fazendo?
- A cama, não está vendo?
- Rosa cuida disso, também. - E Burke foi até ela, segurando-lhe a mão. - Não há a menor necessidade de que faça a minha... nossa cama.
Burke beijou-lhe a testa, depois mudou de idéia e abraçou-a, saudando, lábios contra lábios:
- Bom dia.
Os dela se curvaram muito ligeiramente.
- Bom dia.
- Volto logo. Não gostaria de nadar um pouco?
Quando a porta se fechou atrás dele, Erin cruzou os braços. Nadar? No primeiro dia de casada ela não tinha que fazer café nem a cama, e sim ir nadar? Foi
até o espelho. Não parecia diferente, mas os sentimentos nem sempre transparecem. Era estranho, mas mesmo tendo se recusado a ser amante de Burke, era assim que
ela se sentia naquela hora.
Casada por dinheiro.
Afastou-se do espelho, tinha de parar com aquelas cismas. Eram mais de sete horas, e havia trabalho esperando no escritório.
Rosa não cooperou mais do que Burke. Não havia razão para a señora fazer isso. Não havia razão para a señora fazer aquilo. Talvez a señora gostasse de ir
ler no solário. Em outras palavras, pensou Erin, a señora não era de nenhuma serventia ali. Pois as coisas mudariam, ora se mudariam.
Erin atirou-se de cabeça nas contas. Quando viu que Burke não ia voltar para o almoço, resolveu tomar algumas atitudes. Enchendo um balde de água quente e
detergente, levou-o junto com um rodo e um pano de -chão para o átrio. A louça já havia sido recolhida, mas os ladrilhos mostravam que Rosa ainda não tinha tido
tempo par cuidar deles. Erin ficou contente, pensando: "cheguei primeiro".
"Esta é minha casa", disse a si mesma, torcendo o pano sobre o balde. "Meu chão, e eu posso limpá-lo se quiser."
Burke atravessou o pátio debaixo de chuva, pensando que o cavalo que havia inscrito em Charles Town iria correr em pista de lama. Seu segundo pensamento foi
que Erin talvez gostasse ir para West Virginia para ver a corrida. E seria uma oportunidade para exibi-Ia um pouco.
Voltou a se encantar ao lembrar-se de como ela havia acordado linda naquela manhã. Talvez tivesse sido errado apressá-la tanto para se casar com ele, mas,
com relação a si mesmo, Burke sabia ter feito a coisa certa.
Poderia dar a Erin tudo que ela sempre quisera. Indiferente ao dinheiro, pouco lhe importava como ela quereria gastá-lo. Em troca Erin lhe daria uma base
sólida, que ele nunca pensara poder querer tanto.
Já em casa, Burke sacudiu os cabelos molhados e foi procurar a esposa. Estacou ao entrar no átrio: lá estava Erin, ajoelhada no chão, esfregando. Correu até
ela, segurou-lhe o braço, forçando-a a se levantar.
- O que pensa que está fazendo?
- Como assim?, lavando o chão. Estava muito sujo de ontem. Ficaria surpreso de ver as coisas que as pessoas deixam cair e nem pensam em pegar de volta. Burke,
você está machucando meu braço.
- Nunca mais quero ver você ajoelhada no chão. Entendeu?
- Não, não entendi. - Erin desafiou-o esfregando o braço no lugar onde ele havia apertado.
- Minha mulher não lava chão.
Ia fazer meia-volta, mas Erin o deteve.
- Espere aí. Ela vai lavar chão, sim, se assim quiser, e não gostei do tom que usou para falar, "minha mulher", como se eu pudesse ser guardada dentro de
uma caixa. O que você tem?
- Não me casei para ter alguém que lavasse o chão.
- Não. Nem para fazer café ou a cama, isso ficou claro. Então para que se casou?
- Acho que deixei bem claro.
- Sim... acho que deixou, sim. Então o que queria mesmo era uma amante, e conseguiu, só que legalmente.
- Não seja idiota. E deixe o balde onde está.
Com uma careta, Erin deu um pontapé no balde, derramando água suja na parte que já tinha limpado.
- Deve se lembrar que já não se usa a palavra obedecer nos votos de casamento. Mas, para lhe dar prazer, vou deixar o balde aí mesmo.
- E onde você vai?
Já saindo, Erin virou a cabeça:
- Não sei. Espero poder andar pela casa, mesmo sem permissão para tocar em nada.
Burke alcançou-a no corredor, e tentou acompanhar-lhe o passo.
- Pare com isso, Erin. Pode tocar no que quiser, contanto que não limpe.
Erin empurrou a porta dupla e entrou no solário. O calor envolveu-os, combinando perfeitamente com o estado de espírito de ambos.
- Vejo que está na hora de esclarecermos quais são as regras. Pegar e olhar é permitido.
- Pare de se comportar como uma débil mental.
Ela se virou tão bruscamente que quase derrubou um vaso de gerânios.
- Eu? É a mim que está chamando de débil mental? Na sala sou idiota, aqui débil mental? Mas não fui eu quem ficou fora de si só por ver um chão sendo lavado.
- Pensei que tivesse vindo para cá para se livrar disso, por querer mais da vida do que lavar pratos e chãos.
- Sim, vim para a América por isso, mas não foi por isso que me casei com você. Talvez eu possa tolerar que os outros pensem que me casei por dinheiro, mas
você, não. Eu disse ontem que o amava. Não acredita em mim?
- Não sei, não me importa.
- Pois não menti. Agora pode pensar o que quiser porque eu também não me importo.
Muito calma, com deliberação, Erin pegou um vaso de cerâmica e atirou-o com força no chão de lajotas.
- Não precisa se preocupar, não vou limpar isso.
- Já acabou?
- Não decidi ainda. - Erin cruzou os braços e olhou para a piscina.
Burke pôs a mão em seu ombro. Talvez ela o amasse mesmo, um pouco. Talvez ainda pudessem se entender.
- Minha mãe passou mais de metade da vida de joelhos, esfregando o chão da casa dos outros. Morreu ao completar quarenta anos. Não quero que se ajoelhe para
ninguém, Erin.
Quando ele ia tirando a mão, Erin segurou-a, colocando-a na cintura para abraçá-lo.
- É a primeira vez que me confia alguma coisa. Preciso dessa intimidade, Burke, senão enlouqueço.
- Concordou em me aceitar como sou.
- Sim, e vou. Eu te amo de verdade, Burke.
- Então deixe que eu veja que está feliz aqui.
- Mas estou. Gosto de brigar.
Ele passou um dedo pelo nariz ligeiramente arrebitado.
- Que bom que é tão fácil de contentar. Você nadou, como eu sugeri?
- Não, fui trabalhar e depois discuti um pouco com Rosa.
- Dia cheio. Então vamos nadar agora.
- Não posso.
- Tem que discutir mais ainda?
- Não, não, por hoje chega, mas não quero nadar .
- Não sabe nadar?
Como ele esperava, ela empinou o queixo.
- Claro que sei. Mas não tenho maiô.
- Não tem importância - erguendo-a nos braços, Burke foi até a beira da piscina. Erin tentou se livrar, rindo.
- Não faça isso, porque, se tentar, vai cair na água também.
- Nem pensei em fazer nada diferente.
E caíram juntos, vestidos dos pés à cabeça.


CAPÍTULO IX

Antes de completar um mês de casada, Erin já havia viajado para Nova York, Kentucky e voltado para a Flórida. Acostumou-se à aparência e clima das pistas
de corrida, das mais simples às mais glamourosas. Acostumou-se também, sem perder nem um pouco da fascinação, às pessoas que freqüentavam as pistas, desde os jovens
cavalariços de olhos brilhantes de ambição aos funcionários mais antigos que viviam de corrida em corrida e de aposta em aposta.
O que mais despertava a curiosidade de Erin eram os contrastes. De seu camarote observava os outros proprietários, suas famílias e amigos. Suas roupas, tão
características que chegavam a parecer típicas, ternos de linho e chapéus extravagantes, de abas largas. Enquanto isso, junto à cerca, roçando os cotovelos, ficavam
as massas que vinham para se divertir ou por dinheiro. Aprendeu a conhecer o cheiro típico dos arredores dos guichês de apostas, ansiedade e desespero misturados
ao suor. E, distantes de tudo aquilo, como uma aristocracia, os cavalos, as balanças, os jóqueis. Poucos dos que assistiam conheciam a emoção de ser proprietário
de um puro-sangue.
Em Lexington, Erin visitara alguns haras com Burke, vendo estábulos mais luxuosos do que qualquer casa. Viu e aprendeu como vivia aquele pequeno e exclusivo
mundo dos criadores de puros-sangues.
Em coquetéis, jantares e festas Erin ouviu discussões sobre reprodução, treinamento, estratégia. Compreendeu aos poucos que os proprietários muitas vezes
pensavam nos cavalos como posses, enquanto os treinadores tratavam seus animais como atletas, disciplinando-os e mimando-os. Mas acima de tudo o cavalo era o foco,
fosse de inveja ou de orgulho.
Com o tempo Erin foi criando coragem para chegar até os paddocks, onde via os cavalos sendo examinados e selados para as corridas. Embora ainda ficasse perturbada
ao sentir-lhes o cheiro e ouvir os sons que produziam, tinha decidido que não daria motivo para os colegas de Burke fazerem troça dele, por ter se casado com alguém
que tinha medo de cavalos.
Acostumou-se às grandes festas, para onde só eram convidados os privilegiados e as pessoas de sucesso. Onde falavam de cavalos e seus respectivos donos. Nada
tão diferente assim de Skibbereen, começou a pensar. A vida certamente tinha mais glamour, mas as conversas eram tão limitadas quanto na cidadezinha espremida entre
as verdes colinas da Irlanda e o mar.
Erin estudou, debruçada sobre livros de cavalos de raça, história e genealogia. Aprendeu que todos os puros-sangues descendiam de três garanhões árabes e
que os cavalos mais caros do mundo estavam na Irlanda, no Irish National Stud. E sorriu ao ler aquilo, não só de orgulho pela Irlanda como por saber que dois daqueles
cavalos estavam nos estábulos de Burke.
Aprendeu a apostar com conhecimento de causa e a ganhar, habilidade que muito divertia o marido. Burke estivera certo ao dizer que Erin seria capaz de fazê-lo
rir. Pois ela gostava muito mais de apostar nas corridas do que de todas as belas pedras preciosas que Burke lhe havia comprado ou das roupas novas que se amontoavam
no armário. Havia feito uma grande descoberta em um mês de casamento: as coisas que sempre desejara não eram nem um pouco importantes.
E Erin estava grávida.
Ao descobrir, tinha ficado feliz e apavorada. Trazia dentro dela uma criança, filha de Burke, concebida na primeira noite que haviam passado juntos. Em questão
de meses deixariam de ser apenas marido e mulher para se transformarem numa família. Mal podia esperar para dizer a Burke, mas tinha medo da reação dele.
Nunca haviam discutido a possibilidade de ter filhos. Mas, na verdade, nunca discutiam nada. E aquele mês de convívio pouco havia servido para que Erin descobrisse
mais sobre seu taciturno marido. Verdade que chegara a compreender que, para Burke, os cavalos não eram nem posses nem animais de estimação. Nem mesmo o jogo de
azar que ele mesmo dizia que eram. Os cavalos eram para Burke objeto de orgulho e afeição, e ele os admirava por serem o que eram. Não o fato de vencerem, mas a
química que fazia deles campeões inatos.
Nunca mais Burke havia falado da mãe ou da família, e ignorara as sutis tentativas da mulher para que revelasse mais alguma coisa. Sequer usava evasivas.
Ignorava-as.
Não que aquilo importasse muito, pensou Erin, a caminho para contar ao marido que estava grávida. Já presenciara o relacionamento de Burke com os filhos de
Dee, e como ele os tratava bem. Seria melhor ainda com o próprio filho, com certeza. Ela contaria a Burke e ele a tomaria nos braços, apertando-a e dizendo como
estava feliz. Ririam juntos, e Erin lhe mostraria todos os panfletos que recebera do médico sobre puericultura e regimes. Daí escolheriam um quarto para o bebê,
rosa e azul como o céu ao amanhecer.
Encontrou Burke na biblioteca, e engoliu uma imprecação ao ver que falava ao telefone. Com um gesto, convidou-a a entrar.
- Não estou interessado em vender. Não, nem a esse preço nem a nenhum. Se quiser voltar a conversar daqui a alguns anos, quando ele estiver na reprodução...
Sim, e um não definitivo. Diga a Durnam que não estou vendendo nenhum animal por enquanto. Sim, ele será o primeiro a saber.
Desligou e correu os dedos pelos cabelos.
- Problemas? - Erin beijou-lhe o rosto.
- Não. Charlie Durnam está interessado em comprar um potrinho. Acho que quem está com problemas é ele. E então, o que comprou?
- Comprei?
- Disse que ia fazer compras.
De pé, Erin encostou o rosto nos cabelos do marido, sentado ao lado do telefone.
- Ah, sim. Não comprei nada. Burke, quero lhe contar uma coisa.
- Já, já. Sente-se, Erin.
O tom deixou-a de sobreaviso. Era a voz que Burke usava quando ficava aborrecido com ela.
- O que foi?
- Recebi uma carta de seu pai.
Erin não chegou a completar o movimento de sentar-se, ficando de pé num salto.
- Meu pai? Aconteceu alguma coisa? Alguém doente?
Ele remexeu-se na poltrona, e pela primeira vez desde o banho de piscina Erin sentiu que estavam de volta às discussões de negócios.
- Não, nada disso, sente-se. Ele escreveu para me dar as boas-vindas como membro da família e expressar o que imagino ser a preocupação de todos os pais,
isto é, que eu tome bem conta de você.
Erin relaxou, e num movimento inconsciente levou a mão à barriga, dizendo:
- Que bobagem. Ele sabe muito bem que sei cuidar de mim. Só isso?
- Também me agradeceu pelo dinheiro que você tem mandado. Disse que tem sido de muita ajuda. Erin, por que não me contou que manda mais da metade de seu dinheiro
para a Irlanda?
- Nem pensei nisso. Espere aí. Como sabe quanto eu mando?
- Seus livros são excelentes e muito claros, Erin - Burke saiu da poltrona e foi até a janela.
- Não entendo porque está tão zangado. O dinheiro é meu, afinal.
- Seu. Erin, pelo amor de Deus, há um talão de cheques no escritório. Se precisava mandar dinheiro para casa, por que não assinou um cheque, e pronto?
- Tenho mais do que o necessário com meu salário.
- Você é minha mulher, bolas, o que dá direito de fazer o que quiser. Já passou há muito do ponto onde precisa estabelecer um ordenado para você mesma.
Erin demorou para falar, e quando o fez foi com cuidado:
- Então é isso, não é? Ainda acredita que estou aqui por causa do seu gordo talão de cheques.
Os olhos vagando para além da janela, Burke admitiu em pensamento que não sabia o que pensar. Ela era perfeita, calorosa, cheia de amor. E, quanto mais tempo
passava com ela, mais certeza ele tinha de que haveria um truque. Ninguém se entregava tão incondicionalmente. Ninguém dava sem receber nada em troca. Resolveu falar:
- Não inteiramente. Mas não acredito que tivesse se casado comigo se o talão de cheques não existisse. Já lhe disse que não tem importância, combinamos bem.
- É?
- O importante é que o dinheiro está aí, não vejo por que você deveria se privar de usá-lo. Nunca se sabe quanto tempo vai durar, devemos aproveitar enquanto
pudermos. Aproveite, Irlandesa, está tudo incluído no pacote.
Erin pensou na criança dentro dela e teve vontade de chorar. Em vez disso, levantou-se.
- Mais alguma coisa?
- Quero que vá fazer um cheque da quantia que sua família precisar.
- Está bem. Obrigada.
Burke virou de costas para a janela, encostando-se no peitoril.
- Vamos para Kentucky daqui alguns dias. As corridas são Bluegrass Stakes e o Derby. Acho que vai gostar, é um espetáculo e tanto.
- Deve ser uma maravilha. Uma pena que a gravidez de Dee esteja tão adiantada e ela não possa ir com Travis.
- É o preço Que se paga para ter uma família - disse Burke, dando de ombros e voltando à escrivaninha.
- Sim. Vou deixar você trabalhar agora - assentiu Erin, mas a vida havia se apagado de seus olhos.
- Você não queria me contar alguma coisa?
- Não, nada. - Erin saiu, fechou a porta atrás de si e cobriu o rosto com as mãos. Não tinha dito a ele que o amava? Não havia lhe mostrado que o amava o
melhor que podia? Não trazia consigo a prova daquele amor? E, no entanto, para ele tudo aquilo não valia nada.
Erin suspirou, endireitou os ombros e afastou-se da porta, sem saber que, do outro lado, Burke hesitava com a mão na maçaneta.
Não tinha tido intenção de ficar zangado. Ela parecia tão feliz ao entrar. Sorria como se... como se o amasse. Por que ele não podia superar o bloqueio e
aceitar? Por que não acreditava naquele tipo de amor, nem mesmo quando o sentia?
Acreditava, sim, que Erin ficaria com ele, bastante feliz, enquanto lhe desse tudo o que precisava. Quando a conhecera havia visto nela a ambição que também
era um traço característico dele. A necessidade de ver coisas novas, aceitar desafios e vence-los. Fora sorte de ambos ele estar na posição de poder mostrar-lhe
tudo aquilo, dar-lhe meios de provar, ouvir e ver suas fantasias se tornando realidade.
Erin podia amá-lo por aquilo, e Burke entendia tal tipo amor.
Mas, e o homem que viera do nada? E o homem que podia voltar para o nada assim que o jogo virasse? Quais seriam então os sentimentos de Erin em relação a
ele? Burke não podia se dar o luxo de procurar a resposta, pois aquele homem que não acreditava em amor desinteressado amava desesperadamente a própria esposa. Sem
que ela soubesse.
Erin, ao entrar na cozinha, tinha certeza de que Burke só a aceitaria enquanto não se transformasse num obstáculo ao estilo de vida de Three Aces. Mas, mais
cedo ou mais tarde descobria que ela não passava mesmo de um obstáculo.
Rosa lavava os cristais na pia, mas parou no momento em que viu Erin.
- Precisa de alguma coisa, señora?
- Vou fazer chá.
- Esquentarei a água.
- Pode deixar, eu mesma esquento.
- Como quiser, señora.
Erin colocou a chaleira sobre o fogão com um baque, depois encostou-se nele.
- Desculpe-me, Rosa.
- De nada.
Rosa voltou aos cristais, e Erin pegou uma xícara, depois de procurar em vão por pires. "Que espécie de dona de casa eu sou, que nem sabe em qual prateleira
estão os pires? Como é possível uma pessoa ser ao mesmo tempo tão feliz e tão infeliz?"
- Rosa, quanto tempo faz que trabalha para o sr. Logan?
- Muitos anos, señora.
- Antes de ele vir para esta casa?
- Antes.
Era como se tivesse de arrancar-lhe as palavras com um saca-rolhas. Erin suspirou e prosseguiu:
- Onde você trabalhava para ele antes daqui?
- Em outra casa.
Erin deu as costas para o fogão, encarando a empregada.
- Onde, Rosa?
Os lábios da mulher se apertaram.
- Em Nevada. No Oeste.
- O que ele fazia lá?
- Tinha muitos negócios. Devia perguntar a ele, señora.
- Mas estou perguntando a você. Rosa, não acha que tenho direito de saber quem é meu marido?
- Mas não fica bem perguntar a mim, señora.
Com um gesto raivoso, Erin desligou o gás.
- Preciso saber alguma coisa. Não me importa o que ele tenha feito, o que foi. Se cometeu algum crime, não me importa. Como vou poder chegar até ele se não
o entendo?
Rosa colocou a taça de cristal sobre um pano de prato com todo o cuidado antes de falar:
- Señora, não tenho certeza de que fosse entender, mesmo se soubesse.
- Fale, e deixe-me tentar.
- Melhor não remexer no passado.
- Não! Rosa, olhe para mim. Eu amo Burke. Eu o amo, e não agüento mais ser mantida a distância, dentro de uma redoma como um objeto de colecionador. Quero
fazê-lo feliz.
Rosa olhou-a com atenção, e finalmente disse:
- Acredito em você.
Deixando passar o "você" sem comentário, Erin retrucou:
- Quem precisa acreditar é Burke.
- Para alguns é difícil acreditar nessas coisas.
- Por quê? Por que é difícil para ele?
- Sabe o que significa passar fome? Fome de tudo, de comida, educação, amor?
- Não.
- Ele cresceu sem nada, com menos que nada. Quando havia trabalho, trabalhava, quando não havia, roubava.
Rosa sacudiu os ombros e pegou outra taça.
- Tem gente que não sofre muito com esse tipo de vida. Para ele era o inferno. Não conheceu o pai, a mãe era solteira, entende?
- Sim. - Erin sentou-se e não protestou quando Rosa foi para o fogão preparar o chá.
- A mãe dele trabalhou muito, mas sem resultados palpáveis. Nesses lugares as pessoas simples são muito exploradas. Às vezes ele ia para a escola, mas era
mais comum que ficasse trabalhando na roça.
- Numa fazenda? - Erin lembrou-se de Burke comentando sobre a fazenda de seu pai, na Irlanda.
- Sí. E durante um tempo viveu numa, mandando todo o pagamento para a mãe.
- Estou começando a entender.
- Ele detestava aquela vida mesquinha.
- Rosa, como o conheceu em criança?
Ela colocou a xícara de chá na frente de Erin.
- Tivemos o mesmo pai.
Falou e começou a se afastar. Erin impediu-a, segurando-a pelo braço.
- Você é irmã de Burke?
- Meio-irmã. Meu pai me levou ao Novo México quando eu tinha seis anos. Conheceu a mãe de Burke. Ela era bonita, frágil e muito ingênua. Depois que Burke
nasceu, meu pai deixou-me com ela, prometendo mandar buscar-nos assim que arranjasse emprego. Nunca mais voltou.
- Deve ter acontecido alguma coisa a ele. Talvez... - Erin parou ao ver a expressão de Rosa.
- A mãe de Burke descobriu que ele conhecera outra mulher em Utah. Ele era assim mesmo. Portanto, ela trabalhou, fazendo faxina, durante vinte anos. E morreu.
Tinha feito o que podia por Burke, mas ele sempre foi inquieto, um pouco selvagem. No dia em que ela foi enterrada, partiu. E só o vi de novo depois de cinco anos.
- Ele a procurou?
Rosa voltou às taças.
- Não, eu o procurei. Burke não é homem de procurar ninguém. Era sócio de um cassino em Reno. Me ofereceu dinheiro, eu não quis, preferi trabalhar para ele.
Jamais gostou do arranjo, mas não me mandou embora também.
- Nem poderia. Você é irmã dele.
- Para ele, não, pois age como se nosso pai nunca tivesse existido. Na vida de Burke não existe família, raízes ou lar.
- Isso pode mudar.
- Só ele pode fazer com que mude.
Erin levantou-se, sem tocar no chá.
- Sim, tem razão. Obrigada, Rosa.

Erin resolveu não falar sobre o bebê. Nos dias que se seguiram o segredo lhe veio à ponta da língua mil vezes, mas soube se conter. Burke tinha de se preparar
para uma série de corridas muito importantes. A perspectiva com que Erin observava os preparativos ficou diferente desde a conversa com Rosa.
Como aquela infância traumática o teria afetado? Erin reparou na forma como tratava os que trabalhavam para ele. Firme e exigente, mas nunca temperamental.
Erin não o ouviu elevar a voz nem uma vez. Seria por saber como é ser maltratado por um patrão? Porque ele entendia a sensação de depender de outros para sobreviver?
Burke amava os cavalos. Erin não tinha certeza de que ele próprio soubesse daquilo, mas era transparente na forma como ele os observava nos treinos, supervisionava
os cuidados do cavalariço. Talvez fosse verdade que, a princípio, a fazenda não passasse de mais um jogo, mas Burke a havia transformado no centro da vida, conscientemente
ou não. E o fato enchia Erin de esperanças.
Chegou o dia de tomar o avião para Kentucky. Erin jurou intimamente que contaria sobre a gravidez na volta.

Havia algo diferente em Erin, pensou Burke, enquanto preparava uma bebida na saleta do apartamento do hotel. Só que não sabia precisar onde. O estado de espírito
dela era como uma montanha-russa: para cima, para baixo e para os lados num piscar de olhos. Não que ele não achasse interessante essas mudanças de temperamento.
Burke nunca apreciara a monotonia, e a vida raramente ficava monótona com uma esposa que quebrava coisas e no minuto seguinte sorria com doçura. Erin andava completamente
imprevisível, aconchegando-se a ele, caindo em longos silêncios taciturnos ou então correndo para os estábulos para convidá-lo para um piquenique debaixo do salgueiro.
Comportava-se da mesma forma em público, representando de uma hora para outra a digna esposa ou a coquete. E flertava com outros homens. Burke sentia ciúme,
mas ao mesmo tempo sabia qual era a intenção de Erin.
Sonhadora de manhã, na hora do almoço corria pela casa planejando redecorá-la. Burke se sentia inseguro, mas aquilo só durava até a noite, quando ela o procurava,
e ninguém no mundo poderia ser mais carinhosa.
Percebeu que ela parecia ter perdido o gosto por champanhe, durante as festas que freqüentaram na primavera. Erin tomava apenas sucos e discutia cruzamentos
e o estado de conservação de certas pistas.
Certo dia ele lhe havia dado os brincos de safira que combinavam com o colar. Erin abrira a caixa e saíra correndo e chorando, apenas para voltar uma hora
mais tarde,abraçá-lo e agradecer o presente.
Aquela mulher o estava deixando louco, e ele estava adorando cada minuto.
- Já está quase pronta, ou prefere chegar atrasada, como as pessoas da moda?
- perguntou, entrando no quarto.
- Quase pronta. Visto que você vai ganhar a corrida de amanhã, achei melhor ficar bem bonita nas fotos que vão tirar hoje. Nunca conheci gente que gostasse
tanto de tirar fotografias de festas.
- Você não reclamou deter saído no jornal - começou ele, interrompendo-se ao parar junto à porta. Erin sorriu e deu uma volta, lentamente.
Havia escolhido o vestido com todo o cuidado, sabendo que em poucas semanas a silhueta não permitiria que usasse mais roupas ousadas. A fazenda era de um
azul profundo, entremeada de fios de prata que rebrilhavam mesmo ela ficando parada. O modelo era tomara-que-caia e muito justo, seguindo a linha do corpo. Uma fenda
bem alta na perna permitia que andasse normalmente.
- E então, gosta? A sra. Viceroy disse que eu precisava de uma roupa que realçasse o colar.
Ele chegou mais perto e tomou-lhe as mãos, beijando-a.
- Quem vai reparar no colar? Irlandesa, você está maravilhosa.
- É pecado querer que as outras mulheres morram de inveja, não é?
- Provavelmente.
- Mas eu quero. Quero que olhem para você e pensem: "É o homem mais atraente da festa, e pertence a ela". E então vou olhar para elas e sorrir, um tanto penalizada.
- Pena que não vou poder ver, pois estarei muito ocupado olhando para você.
- Sabe, quando você fala assim, eu ainda sinto aquele frio no estômago. Não acha que essas festas são um pouco... tediosas?
- Pensei que gostasse delas.
Erin, que havia colocado a mão no rosto dele, fez com que o dedo descesse para a lapela.
- Gostar eu gosto, mas às vezes... às vezes sinto vontade de fazer alguma coisa que queime mais energia. Muita energia.
Olhando-o por entre os cílios, acrescentou:
- Que perfume gostoso.
- Obrigado. Está tentando começar alguma coisa? - e Burke franziu a testa ao ver que ela lhe afrouxava o nó da gravata.
- E se estiver? - Erin o fez despir o paletó, e começou a desabotoar a camisa.
- Só estava querendo saber. Isso não vai fazer todas as outras mulheres morrerem de inveja.
Com uma risada, Erin correu as mãos pelo peito nu.
- É o que você pensa.
E, ainda sorrindo, o levou lentamente para a cama.
Pela primeira vez desde o dia em que desmaiara, Erin insistiu em ir para os estábulos com Burke. Explicou que era uma questão de orgulho, e era. Orgulho dele.
Não teve coragem de entrar, mas pediu para que ele fosse e esperou, assistindo às idas e vindas das pessoas sob o sol.
Como Skibbereen parecia estar cada vez mais longe! O ar recendia a primavera, as flores desabrochavam. Treinadores e seus assistentes, que ela já conhecia
de vista, cumprimentavam com a cabeça ou levavam a mão à aba do boné ao passar por ela, chamando-a de sra. Logan.
E o ar também recendia à excitação que precede uma corrida importante. Dentro de alguns dias seria a corrida, mas naquela hora todas as atenções se voltavam
para a Bluegrass Stakes. Se Double Bluff a vencesse, estaria automaticamente transformado no favorito. Erin sorriu, pensando que as apostas seriam desvalorizadas,
e que aquilo não tinha a mínima importância, pois queria que Burke vencesse, alie em Churchill Downs. Já podia sentir o gosto da satisfação de ver Double Bluff eleito
O Cavalo do Ano. Mais do que já desejara qualquer coisa, queria a vitória de Burke.
- Bom dia, sra. Logan.
Erin abriu os braços.
- Paddy! Que bom vê-lo aqui. Lindo dia, não? Como vai Dee?
- Ativa e ranheta como sempre. Mandou-me dizer, que, se o Apollo de Travis não ganhar, a segunda escolha é Double Bluff.
- E você, vai apostar em qual?
- O que está pensando? Eu mesmo treinei Apollo. Mas se fosse um simples apostador, deixaria algum dinheirinho a cargo do potro de Three Aces.
- Um homem esperto poria seu dinheiro em Charlie's Pride - disse Durnam, aproximando-se deles por trás e dando um tapa no ombro de Paddy.
- Bem, claro que seu potro é muito bom, sr. Durnam, e falo sério. Mas acho que vou ficar com o meu mesmo.
- Você é que sabe. Alô, sra. Logan. Está linda, como sempre.
- Obrigada, e boa sorte hoje.
- Não se precisa de sorte quando se tem o melhor. - Ele tocou a aba do chapéu de palha e afastou-se.
- Vamos ver quem é o melhor - disse Erin entre dentes.
Paddy riu, alegre, e passou-lhe o braço pelos ombros.
- Pegou o micróbio, não foi? A competição é muito forte neste negócio. E nem poderia ser de outra forma, pois dinheiro e prestígio podem mudar de mãos em
questão de minutos.
- Como a gente sabe que tem um vencedor nas mãos?
- Bem, vejamos: existe a origem, o treinamento e uma questão de atitude. Há a alimentação e os cuidados de saúde, além de encontrar o Homem certo para a montaria
certa. Mas tudo isso não tem valor se não partir do sangue, minha querida. Está no sangue ou não está, como acontece com as pessoas.
Erin olhou na direção dos estábulos, pensando em Burke.
- Sim, o sangue. Então acha que uma pessoa pode ser privada de cuidados e alimentação apropriados, treinamento, e ainda assim vencer na vida?
- Estamos falando de cavalos ou de gente?
- Tem muita importância?
- Nem tanta. Está no sangue e no coração. E agora tenho de cuidar do meu garoto - e, dando-lhe um apertão no ombro, ele a deixou.
- Vou acenar para você quando estiver recebendo o prêmio, Paddy Cunnane - gritou Erin, vendo-o se afastar.
- Parece segura de si - comentou Burke, aproximando-se.
Ela lhe deu a mão e se encaminharam para o camarote.
- Segura de você. Não precisa me levar, sei que quer ver seu jóquei ser pesado e Double Bluff selado.
- A última vez que deixei que fosse sozinha fui encontrá-la sitiada por repórteres.
- Mas já aprendi a lidar com eles. Além disso, gostei mesmo de ver meu retrato no jornal.
- Você é uma mulher vaidosa, Irlandesa.
- Sim, e por que não? Seja uma questão de orgulho ou vaidade, acho emocionante ver meu retrato na coluna social. Sabia, sr. Logan, que é um homem muito importante?
- É mesmo?
- Sim, é, e já me disseram isso montes de vezes. O que me leva a concluir que, por direito, sou também uma mulher importante.
- Pelo menos é o que parece, hoje - decidiu ele, examinando brevemente o conjunto azul-pálido que ela vestia, acompanhado por pérolas. O chapéu de palha de
abas largas, branco e muito simples, tinha uma inclinação petulante. Tocando-o, Erin riu.
- Achei que o dia merecia uma toalete mais apurada. Bem, mas, como eu ia dizendo, pode me deixar sozinha. Sei que quer ficar perto do cavalo.
- Prefiro ficar perto de você. Atrapalho?
Erin deu-lhe o braço.
- Não. Quer que lhe pague uma cerveja?
O dia estava perfeito, pensou Erin, o mais perfeito de sua vida. Um céu sem nuvens, de um azul primaveril. Reparou na mulher da festa de casamento ao entrar
no camarote, e sorriu-lhe como uma rainha que cumprimenta uma súdita.
- Por que você me dá sempre a impressão de estar judiando de Dorothy Gainsfield?
- Porque eu estou, querido. Gosto de torturá-la. Eu não sabia até outro dia que a loira magricela que não o deixou em paz no dia de São Patrício era a sobrinha
predileta da sra. Gainsfield. Posso estar reservando uma nova temporada no Purgatório, mas a vida é doce, às vezes.
- Vai ter de me explicar tudo isso depois.
- Dentro de dez, vinte anos, talvez. Olhe, Burke, câmeras de televisão!
Satisfeita com o mundo em geral, Erin tomou seu lugar. De vez em quando acenava para algum conhecido, Lloyd Pentel, Honoria Louis, a velha sra. Bingham.
- Sabe que conheci num mês o mesmo número de pessoas que havia conhecido a vida toda? É uma sensação estranha e maravilhosa. Por que está me olhando desse
jeito?
- Porque é uma delícia vê-Ia aqui, absorvendo tudo, armazenando sensações. Fico imaginando como será levá-la para Paris ou Rio.
- Com certeza vou ficar parada de boca aberta, matando você de vergonha.
- Pois vai ter de se comportar melhor. Olhe, já está quase na hora.
- Puxa, e eu ainda nem apostei.
- Apostei para você enquanto ia buscar a cerveja e decidia entre um cheeseburger e dois cachorros-quentes. A vida na América aumentou seu apetite.
Não era apenas a mudança que lhe fazia abrir o apetite, pensou Erin, e mais uma vez perguntou-se quando reuniria coragem suficiente para contar a ele.
- Não foi por minha culpa que perdemos o café da manhã no hotel. Onde está o ticket?
Sem tirar os olhos dos cavalos sendo levados ao ponto de partida, Burke pôs a mão no bolso. Erin pegou a papeleta e estava prestes a guardá-la quando notou
a quantia. A voz lhe saiu esganiçada, fazendo algumas cabeças se voltarem para eles.
- Mil dólares? Burke, onde vou conseguir mil dólares para apostar num cavalo?
- Não seja ridícula.
Ele sequer voltou os olhos, pois o treinador tentava segurar a cabeça de Double Bluff, que pisoteava tentando empinar. Dois cavalariços foram ajudar, e Burke
comentou:
- Parece mais nervoso que de costume.
- Mas, Burke, mil dólares.
- Está com medo de perder?
- Não. Claro que não - e Erin apertou o ticket na mão.
Foi dada a partida. Os cavalos se precipitaram para a frente.
Erin reconheceu o potro dos Pentel na ponta. Lembrou-se que ele sempre saía na frente, mas não tinha muita resistência. Colocou a mão fechada, que ainda segurava
o ticket, no peito. O conjunto dos cavalos correndo formava uma figura de contornos vagos, mas ainda via as sedas verde e branca do jóquei de Burke. Na primeira
volta ele estava em quarto lugar, e o potro de Travis à sua esquerda. A multidão já gritava, abafando a voz do locutor. Erin agarrou a manga da camisa de linho de
Burke e não soltou mais.
- Ele está fazendo seu truque - murmurou ele.
A velocidade dos animais com seus jóqueis quase deitados sobre eles era magnífica. Double Bluff saiu por fora, aumentou o galope, devorando a distância. Parecia
ficar maior, o pêlo mais brilhante, as pernas mais longas.
Um coração de campeão, pensou Erin, outra vez. E seu coração corria junto com Double Bluff. Era mais que uma corrida, sabia, mais que prestígio e certamente
mais que dinheiro. Era o orgulho de Burke. Erin compreendia o que era vir de baixo e ter chance de conseguir tudo.
O potro dos Pentel começou a fraquejar. Depois da última volta os concorrentes se resumiram a três, destacados dos outros, que ficaram bem atrás. Primeiro
vinha Charlie's Pride. Apollo e Double Bluff brigavam pelo segundo lugar. Erin via a poeira voando e o suor. Um barulho ensurdecedor se erguia das arquibancadas.
- Ele vai conseguir! - e ela mal percebeu que gritava quando Double Bluff ultrapassou Charlie's Pride. Ficaram nariz com nariz, pelo que pareceu uma eternidade,
e depois veio a diferença de um pescoço, meio corpo, um corpo, e a velocidade aumentando, sempre aumentando. Chegou com dois corpos de vantagem.
Erin ficou de pé de um salto e pulou ao pescoço de Burke.
- Oh, Burke, ele conseguiu! Você conseguiu! E é o cavalo mais lindo que já existiu. Estou tão orgulhosa de você.
- Eu não corri.
- Correu, sim - disse ela, inclinando o corpo para trás para acariciar-lhe o rosto.
Burke beijou-lhe a ponta do nariz e disse, olhando o jóquei que dava a volta da vitória com o cavalo:
- Pode ser que tenha sido isso mesmo. Vai receber o troféu junto comigo?
- É claro! - Estavam cercados de pessoas que os cumprimentavam, e Erin respondia a todos como em transe, já pensando no momento de receber o prêmio ao lado
de Burke.
Ainda o abraçava quando foi anunciado o vencedor oficial: Charlie's Pride. Double Bluff havia sido desclassificado.
- Desclassificado? O que quer dizer isso?
- Vamos descobrir. - Puxando-a pela mão, Burke saiu do camarote. Os rumores já haviam começado.
- Burke, eles não podem dizer que Double Bluff não ganhou. Por todos os santos, eu vi com meus próprios olhos. Ele chegou pelo menos dois corpos na frente.
Deve ter havido um engano.
- Espere aqui.
Burke foi para a área de paddocks, onde estava Double Bluff. Erin viu um homem careca, de terno, chegar perto de Burke, depois outros dois. Tudo parecia tão
oficial, pensou. O careca falava com calma, apontando para o cavalo, depois para um papel que trazia na mão. Enquanto falava, tanto o jóquei quanto o treinador começaram
a discutir furiosamente, enquanto Burke permanecia quieto, ouvindo.
Erin começou a sentir os efeitos do sol e procurou uma sombra, sempre pensando que devia ser um engano. Tirou o chapéu para abanar o rosto. Ninguém ia tirar
o que era de Burke, o que ele precisava, o que ela precisava para ser feliz com ele.
- O que foi? - perguntou, quando viu que Burke voltava.
- Anfetaminas. Alguém deu anfetaminas ao cavalo.
- Droga? Mas isso é ridículo.
- Tudo indica que não. Alguém desejava muito que esse cavalo ganhasse. Ou perdesse.


CAPÍTULO X

Burke passou da saleta para o quarto da suíte de hotel, e Erin seguiu-o, indignada.
- Como assim, me mandar para casa? Não sou um pacote, para ser embrulhado e despachado. Primeiro mal fala comigo desde que saímos do hipódromo, e agora diz
que vai me mandar embora.
- Não há mais nada a dizer, no momento.
Erin sentou-se, cansada de correr atrás dele.
- Nada a dizer? Double Bluff acaba de ser desclassificado de uma das corridas mais importantes do ano porque foi drogado. Imagino que seja um assunto que
valha a pena discutir.
Ele tirou do armário uma mala, que colocou sobre a cama e abriu.
- Comece ajuntar suas coisas.
Erin ficou onde estava, tentando se controlar, mas seus olhos se estreitaram.
- Ah, estou vendo. Mais uma proibição.
Burke parou por um momento e estudou-a. Dava para ver a raiva tomando conta dela, mas era muito melhor deixá-la zangada do que enfrentar a tempestade dos
dias Que se seguiriam. Burke não era homem de grandes virtudes, mas sabia proteger uma mulher.
- Pode encarar os fatos desse jeito ou como quiser. Tenho de dar alguns telefonemas. Faça as malas, vou providenciar a antecipação da reserva da passagem.
Erin levantou-se, de novo pronta a segui-lo.
- Espere um minuto. Estou farta de receber ordens. Quase tão cheia como de ter que falar com suas costas. Se não desligar esse telefone, Burke Logan, vou
ter o maior prazer em enrolar o fio no seu pescoço.
- Erin, já tenho problemas suficientes no momento sem você acrescentar uma crise temperamental.
Erin cerrou os punhos, chegando perto do marido.
- Temperamental. Você ainda não viu nada, sabe?
Tomando-lhe ambas as mãos, forçou-o a sentar-se.
- E está na hora de destapar os ouvidos e me ouvir, só para variar.
Burke poderia ter se levantado e reagido com seu mau gênio particular. Decidiu contra, da mesma maneira que poderia ter decidido blefar num jogo de pôquer.
A melhor maneira de fazê-la obedecer era fingir desinteresse.
- Vai demorar muito?
- O tempo necessário.
- Então posso tomar uma bebida?
Erin foi até o bar, pegou uma garrafa e um copo e colocou-os na mesa ao lado de Burke, com maus modos.
- Pronto, pode beber a garrafa toda. Afogue-se.
Ele serviu-se de dois dedos de bebida, depois ergueu o copo num brinde.
- Assim está bem. Diga o que pensa, Irlandesa. Tenho de providenciar algumas coisas antes do seu vôo.
- Se eu dissesse metade do que penso, suas orelhas ficariam piores que pimentões. Responda só isso: vai enfrentar essa história passivamente?
- O que acha? - Burke tomou um gole.
- Acho que vai lutar, e acho que não descansará enquanto não descobrir quem está por trás disso. E acho que vai pegá-lo e reduzi-lo a pedacinhos.
Ele tornou a erguer um brinde, depois virou o resto do uísque.
- Resumiu bem a minha idéia.
- E eu não vou para casa fazer tricô enquanto você estiver aqui, se divertindo.
- Não sei se sabe fazer tricô, mas para casa vai, sim, com toda a certeza.
- Não chegou a lhe ocorrer que posso ajudar?
- Não quero nem preciso de sua ajuda, Erin.
Erin começou a andar de um lado para o outro da saleta, infeliz por não saber defender seu ponto de vista sem gritar.
- Não, você não precisa de ninguém! Basta-lhe meia dúzia de serviçais pagos para que possa prosseguir, só e triunfante. Com certeza não precisa de uma mulher,
uma esposa, para cuidar de suas camisas e segurar sua mão quando as coisas ficam difíceis.
- Não me casei para que lavasse minha roupa.
- Não, casou para dormir comigo, disso sei muito bem. Mas vai receber mais do que comprou, porque não vou voltar correndo para a toca, como qualquer mulherzinha
fraca e chorona com medo de confusão.
- Ninguém está duvidando do seu valor, Erin. Apenas tudo ficaria mais fácil se eu não precisasse lhe dar atenção.
- Não vai precisar me dar atenção. Aliás, quando estivermos a sós, ficarei fora do seu caminho e deixarei você agir como bem lhe aprouver. Mas, em público,
vou estar sempre presente.
- A esposa leal e confiante?
- O que há de errado nisso?
- Nada. Se importa com o que essa gente pensa? Ou diz?
- E por que não deveria?
E por que não, na verdade, pensou Burke, olhando para o fundo do copo vazio. Ela estava preocupada com a posição social que quisera tanto alcançar.
- Faça do seu jeito, então, não posso arrastá-la para um avião e prendê-la à poltrona. Mas vou avisando, não vai ser nada bonito.
Quando Erin falou, não estava mais zangada. O desespero era mais forte. Se estivessem casados, no verdadeiro sentido da palavra, teriam tido condições de
conversar sobre o que acontecera, condições de lutar juntos, ficarem furiosos com os outros, em vez de um com o outro.
- Você disse que me compreendia, praticamente foi a primeira coisa que me disse, e eu acreditei. Agora vejo que não compreende é nada. Pode fazer seus telefonemas,
vou andar um pouco.
Mas Burke não pegou o telefone assim que ela saiu. Era mais do que estar acostumado a nunca ter ninguém a seu lado, mais do que sua tendência a ser um lobo
solitário. Havia querido mandá-la embora, a salvo dos murmúrios e olhares enviesados.
Não queria que ela fosse vítima da mesma suspeita que o ameaçava.
Erin sequer havia perguntado. Burke passou as mãos pelo rosto e tentou ir além da própria fúria. Não era perder o troféu ou a corrida que o deixava assim,
mas saber que alguém violara o que era dele. E Erin sequer havia perguntado se ele havia mandado drogar o cavalo. Ela acreditaria assim tão cegamente nele, ou seria
questão de não se importar com os meios, desde que vencessem acorrida?
Por mais que se esforçasse, Burke não poderia protegê-la dos mexericos. Assim que Erin começasse a ouvi-los, iria para Three Aces correndo. Enquanto isso,
havia muito trabalho a fazer. Empurrando a garrafa para o lado, Burke pegou o telefone.

A investigação continuou até Churchill Downs, e enfim chegou a semana do Derby. Erin fez questão de comparecer a todas as festas e a todas as corridas eliminatórias.
Manteve a cabeça alta, e se ouvia um cochicho empinava ainda mais o queixo.
Nem todos pareciam inclinados a acreditar que Burke tinha participado na operação de drogar o cavalo. Para cada palavra ferina e insinuação desagradável havia
alguém que tomava a defesa deles e oferecia apoio. Mas, a única pessoa importante para Erin mal falava com ela. Havia tentado romper a barreira, mas era impossível,
pois toda sua energia estava concentrada em manter as aparências de um casal unido.
Ele levantava cedo, e Erin também. Ele ia para a pista supervisionar o exercício matinal de Double Bluff, e Erin ia também. Ao meio-dia já estava tão cansada
que só desejava ir para a sombra e dormir, mas havia corridas, e almoços e coquetéis. Ela se recusava a perder um que fosse.
Erin McKinnon Logan não era daquelas que se escondem pelos cantos quando o tempo não está bom. A tarefa era difícil, enfrentar olhos que se desviavam e gente
que insultava com boas maneiras.
Quase no fim da semana do Derby, Erin vestiu-se caprichosamente para um jantar formal. Teria de ir sozinha, pois Burke tinha sido chamado para uma reunião
de última hora.
Com o vestido azul-celeste e a safira no pescoço, um copo de suco de laranja na mão, circulou pela sala, conversando com uns e outros. Paddy permaneceu ao
lado dela, animando-a com histórias da Irlanda. Mas nem ele podia protegê-la de tudo e todos.
- Minha querida, que lindo vestido - Dorothy Gainsfield disse ao se aproximar, os olhos tão frios quanto os brilhantes de que estava coberta.
- Boa noite, sra. Gainsfield.
- Diga-me, está gostando de seu primeiro Derby? É o primeiro, não é.
- Sim, é. A senhora deve vir há anos e anos, não?
- Com certeza. Não vi seu marido.
- Ele não pôde vir.
- É compreensível, meu bem.
Paddy avançou um passo, mas Erin o fez parar com um aperto no braço.
- Burke está muito ocupado com a aproximação da corrida.
- Ah, deve estar mesmo. Sabe, fiquei bastante surpresa quando permitiram que ele concorresse depois daquele... ah, digamos infortúnio, no Bluegrass Stakes.
- A comissão que seleciona os concorrentes acha que o currículo de Double Bluff fala por si, e por Burke. Assim que completarem a investigação, os resultados,
também, falarão por si.
- Oh, não duvido, querida, nem por um momento. Não é raro que certas pessoas se entusiasmem um tanto demais com a perspectiva de vencer. Não seria esta a
primeira vez que tal método é usado para baixar as apostas.
- Burke não trapaceia. Não precisa.
A velha senhora sorriu.
- Tem toda razão. Mas eu não estava falando de seu marido... sra. Logan. - E, satisfeita com a insinuação, a sra. Gainsfield se afastou.
- Essa velha de língua afiada vai se ver comigo... - começou Paddy, mas Erin de novo apertou-lhe o braço.
- Não, ela não merece tal atenção. Quando Double Bluff vencer, terá o que merece.
No domingo anterior ao Derby, Burke e Erin foram para a pista de madrugada. A luz da aurora dava a tudo um tom cor-de-rosa, e o ar estava frio, parado e límpido.
As arquibancadas, vazias naquela hora, em vinte e quatro horas começariam a se encher, seção por seção, até que não se poderia mais ver os bancos, nem a grama à
frente deles. A corrida duraria minutos, mas para aqueles minutos cada centímetro quadrado se encheria de emoção, corações palpitantes e esperança.
- O dia, a esta hora, tem qualquer coisa de mágico.
Erin deu um salto e pulou ao pescoço do homem que havia falado. Até aquele momento não se havia dado conta do quanto precisava de alguém.
- Travis! Como fico feliz em vê-lo, mas... e Dee? Ela está bem?
- Bem o suficiente para me botar fora de casa. Disse que precisava de uns dias de folga de mim.
- Sabe tão bem quanto eu que é mentira, mas estou muito grata aos dois. Burke está precisando dos amigos.
- E você?
- Oh, ele não parece precisar de mim.
- Não acredito, mas não foi o que perguntei. Como está agüentando a pressão?
- Eu tenho o couro grosso, Travis. Posso suportar pressões até piores.
Travis segurou-lhe o queixo e murmurou:
- Parece um pouco pálida. Aliás, mais do que isso. Está é bem abatida.
- Não, estou bem, verdade. Só precisaria dormir um pouco mais.
Assim que acabou de falar, Erin cambaleou. Travis a fez sentar-se.
- Fique aqui, vou buscar Burke.
- Não! Quero dizer, fico boa num segundo. É só fechar os olhos.
- Erin, se está doente...
Sem pensar, ela colocou a mão sobre o ventre.
- Não estou doente, juro por Deus.
- Então, parabéns. .
Erin abriu os olhos, muito devagar.
- Você é esperto.
- Já passei por isso algumas vezes. E o que Burke está achando do aumento da família?
- Ele não sabe. Já tem muito com que se preocupar no momento - disse Erin, seca, levantando-se.
- Não acha que uma boa notícia compensaria as más?
- Não, não acho, Travis, porque não estou certa de que ele queira ter filhos. E, no momento, tudo o que me pede é que o deixe em paz.
- Está subestimando Burke.
-Você é amigo dele.
- Seu também.
- Então dê-lhe apoio até isso acabar. E deixe que eu contarei sobre o bebê quando chegar a hora.
- Farei isso, desde quê prometa se cuidar melhor.
- Depois de amanhã, vou dormir uma semana inteira. - Erin sorriu e beijou-lhe o rosto. Burke passou por sob acerca e foi na direção deles.
- Travis, não esperava vê-lo por aqui.
- Detesto perder um Derby. Como vão as coisas?
- O potro está em excelente forma. Digamos que nós dois estamos prontos para colocar os pingos nos is.
- A investigação?
- Lenta. - O que era verdade, pelo menos em se falando da investigação oficial. A que Burke fazia por conta própria era um pouco mais rápida. Gostou de ver
Travis, alguém de confiança para quem poderia expor sua teoria. Embora estivesse de óculos escuros, Erin sentiu que não tirava os olhos dela. Mostrando que havia
percebido, levantou-se.
- Vou deixá-los falar de negócios.
- Ela está preocupada com você - murmurou Travis, quando Erin já não podia ouvi-los.
- Pois eu preferiria que não se preocupasse. Gostaria que voltasse para Three Aces e ficasse lá até tudo se esclarecer.
- Se queria uma esposa tranqüila e obediente não devia ter se casado com uma irlandesa.
Burke puxou uma cigarrilha e contemplou-a.
- Quantas vezes se viu tentado a estrangular Dee?
- Nos últimos sete anos, ou na última semana?
Pela primeira vez naqueles dias Burke sorriu com sinceridade.
- Deixe para lá. Faça-me o favor de ficar de olho nela, sim? Parece que não está passando bem.
- Poderia tentar falar com ela.
- Não sou muito bom nisso de conversar. Gostaria que a levasse com você amanhã, depois da corrida.
- Você não volta?
- Talvez precise ficar mais uns dias em Kentucky.
- Alguma pista?
- Uma intuição. O problema é que a comissão de corridas gosta de provas - Burke acendeu a cigarrilha.
- Quer conversar sobre isso?
- Gostaria, você pode perder alguns minutos?

Erin não soube bem por que, mas teve vontade de ir até os estábulos. Talvez se provasse a si mesma ser forte e capaz, Burke começasse a acreditar também.
Havia enfrentado os mexericos, não vacilara diante de insinuações. Sabia que podia contar consigo mesma, a não ser por aquele estúpido medo de cavalos. Tinha de
vencê-lo, para no dia seguinte entrar com Burke na baia de Double Bluff, e, sem nenhum estremecimento, receber junto com o marido o troféu.
A poucos metros dos estábulos, parou para criar coragem. Colocou a mão sobre o ventre, pensando que o filho merecia crescer sem traumas.
Aproximou-se mais. Os cheiros atingiram-na: feno, aveia, cavalos e suor. Os sons, também, cascos roçando concreto, arreios tinindo, suspiros e relinchos preguiçosos
de cavalos em descanso.
A luz mudou quando entrou no local do desafio. Mais fraca, suave, e aos cheiros havia se juntado o de couro.
A maioria dos cavalos já tinha feito exercícios, e os cavalariços tomavam a primeira refeição antes de começar a rotina de escovação, massagens e esquentamento
dos cavalos. Para Erin era melhor estar lá sozinha, pois se fraquejasse não teria testemunhas.
Mas não fraquejou. Um dos cavalos passou a cabeça por cima do portão da baia e a fez saltar, mas não recuar. Podia tocar nele, Erin disse a si mesma. O portão
estava fechado com trinco. Podia colocar a mão na cabeça dele com a mesma franqueza com que o tinha feito na cabeça do potrinho de Burke.
Os dedos tremiam quando os encostou no focinho do cavalo, que a olhou e moveu-se um pouco. Erin pulou para trás.
- Preciso melhorar isso - resmungou, voltando a colocar a mão no pescoço do cavalo. Era o potro dos Pentels, que havia visto correndo o mesmo número de vezes
que vira Bluff.
- Pronto, não é assim tão ruim. Meu coração está tentando sair pela boca, mas estou aqui, e vou voltar todos os dias. De cada vez deve ser um pouco mais fácil.
Tirou a mão, depois forçou-se a acariciar de novo a cabeça do animal. Foi mais fácil. Burke estava errado. Não era obrigatório aceitar as pessoas, ou a si
mesma, como elas eram. Todos precisavam mudar. Ela, Burke, todos. E depressa.
Recolheu a mão, embaraçada, ao ouvir vozes. Não queria ser encontrada ali por algum cavalariço. Seria difícil, não se sentia pronta para ficar parada, calmamente,
conversando, cercada de cavalos por todos os lados. Erin enxugou a palma da mão úmida na perna da calça e fixou um sorriso descontraído no rosto.
Já ia saindo quando o tom das vozes a fez parar. Eram raivosas, embora baixas, e, também, desesperadas. Por ter hesitado, teve tempo de reconhecer uma delas.
- Se quer o dinheiro, vai descobrir um jeito.
- Pois estou dizendo que o cavalo não fica só nem cinco minutos. Logan o está mandando vigiar como se fosse uma jóia de valor incalculável.
Os lábios de Erin se abriram, para se firmarem em seguida. Afastou-se para onde havia menos luz e prestou atenção.
- Tem um trabalho a fazer, e é bem pago por ele. Se não pode chegar ao cavalo, chegue até a ração. Quero que, até amanhã, esteja fora da corrida.
- Eu não vou envenenar cavalo nenhum, e estou cheio de me arriscar sozinho.
- Pois não ficou cheio de nove-horas para usar a seringa nem pegar dez por cento do prêmio de Bluegrass Stakes.
- Anfetaminas é uma coisa, cianureto outra muito diferente. Se o cavalo morrer, Logan não vai descansar até que alguém seja enforcado por isso. E esse alguém
não vou ser eu.
- Então use drogas. Descubra um jeito, ou não verá um tostão. Se descobrirem que o potro está drogado no Derby, ele será desclassificado para o resto da temporada.
Eu preciso desta corrida.
E Erin precisava encontrar Burke. Ficou imóvel esperando que passassem por ela sem vê-Ia, mas não teve sorte. Vinham exatamente em sua direção, para entrar
no estábulo. Resolveu arriscar, blefar, e, endireitando os ombros, adiantou-se.
- Bom dia para o senhor, sr. Durnam. - Sorriu, vendo o choque se pintar no rosto dele e do cavalariço, o último que o treinador de Burke havia contratado.
- Sra. Logan. Não a vimos nos estábulos antes.
- Só vim dar uma olhadinha nos adversários. Se me der licença, Burke está esperando.
- Acho que não. - Ele a segurou pelo braço quando tentou passar. Como esperasse por aquilo, Erin tentou gritar, mas a mão do homem tapou-lhe a boca.
- Deus todo-poderoso, o que está fazendo? Logan vai matar o senhor - exclamou o cavalariço.
- Vai matar você também se ela der o serviço. A moça ouviu tudo, seu idiota. Aqui está, segure-a. Deixe-me pensar.
- Temos de sair daqui. Se entra alguém...
O rosto de Durnam estava molhado de suor, que tentou limpar com um enorme lenço branco. Seu olhar era o de um homem desesperado que, tendo ultrapassado os
limites, prosseguia sem olhar para trás.
- Cale a boca. Vamos colocá-la no trailer até terminar a corrida de amanhã. Daí vou poder pensar com mais calma. Pegue um pedaço de corda, depressa, vamos
amarrá-la! - E, com o lenço, ele improvisou uma mordaça.
Erin não podia acreditar no que estava acontecendo. Aquele homem que ela ao conhecer considerara inofensivo estava louco, e de um louco pode se esperar tudo.
Num esforço desesperado, antes que lhe amarrassem as mãos tirou o anel de casamento e deixou-o cair no chão.
Jogaram um cobertor por cima dela, ouviu uma porta abrir e foi erguida e jogada num chão duro.
- O que em nome do inferno planeja fazer com ela? No minuto em que a soltarmos ela vai falar - gemeu o cavalariço.
- Então é só não soltá-la! - Durnam amparou-se no lado do trailer e limpou a testa com a manga. Tudo ia dar certo, disse para consigo. Havia ido longe demais,
se arriscado demais para que uma mulher destruísse tudo.
- Eu não vou ser cúmplice de assassinato.
- Você cuide do cavalo e deixe a mulher comigo, está ouvindo?
Iam matá-la. Erin lutou para tirar o cobertor do rosto quando ouviu que fechavam a porta do trailer e se afastavam. Mesmo que Durnam ainda não soubesse, não
havia outra saída para ele.
O bebê. Soluçando, Erin torceu os pulsos e lutou com acorda. Nossa Senhora tinha de proteger aquele bebê. E Burke.
Sabendo que aqueles movimentos convulsivos só serviriam para machucá-la, lutou para se conservar imóvel e pensar. Se conseguisse levantar-se e encontrar a
porta, talvez houvesse um jeito de forçá-la a se abrir. Arrastou-se para onde lhe parecia ser a porta, apoiou-se e ficou de joelhos. Ao ficar de pé já estava encharcada
de suor. Com as costas contra a parede, deslizou ao longo dela, procurando com os dedos algum sinal de onde estava a porta.
Quase chorou ao encontrar a maçaneta. Torceu-a. Trancada. Trancada por fora, é claro. Durnam não estava correndo riscos desnecessários. Tentou bater, chamar
atenção de alguém que passasse por ali, mas as batidas eram tão fracas que desistiu logo. Escorregou de novo para o chão e, fechando a mente para a dor e o pânico,
voltou atentar soltar as cordas.

- Viu Erin por aí?
Travis continuou a apalpar a perna de Apollo e olhou para Burke.
- Não desde hoje pela manhã. Pensei que tivesse voltado para o hotel.
- Talvez. Pode ter tomado um táxi. Parece lógico, mas... viemos juntos bem cedo, e ela costuma esperar.
Travis endireitou o corpo.
- Parecia um pouco cansada. Talvez tenha resolvido descansar para estar em forma à noite.
- Sim. Faz sentido. É bem capaz de estar na banheira, pensando na festa de logo mais. Acho que vou voltar e tirar a dúvida.
- Peça-lhe para ter pena de um homem solitário e me reservar algumas danças.
- Claro.
- Burke?
- Hã?
- Há algo errado?
- Não, nada, nos vemos daqui a pouco. - Mas suas mãos estavam geladas.
E continuaram geladas durante a curta viagem da pista ao hotel. Não se parecia com Erin, sair sem dizer nada. No entanto, não conversavam quase nada desde
a discussão sobre a volta a Three Aces. Culpa dele.
Mas... se Erin não fosse tão obstinada, agarrando-se à posição social... embora fosse uma das coisas que ele prometera ao se casar. Claro que era grato por
Erin ficar a seu lado, mas com a gratidão vinha ainda mais culpa e responsabilidade.
O que Burke queria mesmo era sair dali. Começar do nada, como havia feito tantas vezes antes. Mas havia Erin.
Assim que a corrida e o escândalo ficassem para trás, conversariam. Tinham muito o que conversar, precisava contar a Erin seu passado, a maneira como crescera,
contar tudo e deixar que ela fosse embora. Mais cedo ou mais tarde, era o que estava fadado a acontecer.
Cheio de pensamentos negros, chegou ao hotel. Sabia que era ridículo ficar zangado com Erin por ter saído da pista sem avisar, pois fora aquilo que ordenara.
Mas a presença dela estava ficando cada, vez mais importante.
Ao entrai no apartamento, Burke estava pronto para uma briga. Já fazia muito tempo que vinham usando um verniz de educação sem nenhuma consistência. Ia gritar
com Erin e deixar que ela gritasse também, depois descarregariam o resto das frustrações na cama.
- Erin? - Bateu a porta atrás de si, mas nem precisou chegar ao meio da saleta para ver que ela não estava lá. E suas mãos voltaram a gelar.
Imprecando contra si mesmo, entrou no quarto. Erin teria ido embora? Teria decidido dar o passo final? Burke não queria perdê-la, pensou, abrindo a porta
do armário.
As roupas estavam todas lá.
Devia ter ido fazer compras. Ou ao cabeleireiro. Mas tais conjeturas não lhe deram alívio.
Meia hora mais tarde, ainda passeava pelo apartamento quando o telefone tocou. Louco para gritar com Erin, agarrou o aparelho.
- Burke? - veio a voz de Travis.
- Sim?
- Erin está aí?
- Não. Por quê?
- Lloyd Pentel acabou de me trazer o anel de casamento dela. Achou no chão do estábulo.
Burke, sem perceber, caiu sobre uma cadeira.
- O quê? Estábulo? Isso não está certo. Ela não entra nos estábulos, tem medo de cavalos.
- Burke, ela pelo menos passou pelo hotel?
- Não, não passou. Quero falar com Pentel.
- Já falei. Não a viu. Burke, posso estar colocando o carro adiante dois bois, mas acho que devia chamar a polícia.

Erin havia perdido a noção do tempo. Não conseguira soltar as cordas, e o corpo todo lhe doía. Fechou os olhos e pensou em Burke, chamando-o.
Estaria preocupado? Teria passado tempo suficiente para que ele estranhasse a ausência? E aquilo o incomodaria? Erin rezou, dormiu um pouco, sonhando com
a fazenda na Irlanda. Por que desejara tanto sair de lá, onde vivia sã e salva? Depois sonhou com Burke e achou a resposta.
- Sra. Logan.
Uma mão tocou-lhe o ombro, a venda foi retirada, fazendo-a piscar. Viu na semi-obscuridade o rosto do cavalariço, e o pânico voltou. Ele estava ali para matá-la
e ao bebê.
- Eu trouxe comida. Tem de prometer que vai ficar quieta. Durnam vai ficar louco se souber que eu vim. Se prometer não gritar, tiro a mordaça para que possa
comer. Se fizer barulho, coloco de novo e fica com fome.
Erin assentiu. e aspirou muito ar assim que a boca ficou livre. Não foi fácil controlar o instinto de gritar por socorro, mas a lembrança do gosto da mordaça
era forte.
- Diga, por que estão fazendo isso? Se querem dinheiro, posso arranjar.
- Já estou metido nisso até o pescoço. Coma o sanduíche, senão vai ficar doente.
- Oh, não agüento esse cheiro. Que diferença faz, se eu comer? Vão me matar mesmo.
- Eu não tenho nada a ver com isso. - Erin viu-lhe os olhos cheios de pânico e o suor gotejando no lábio superior. Estava tão apavorado quanto ela. Se aproveitasse,
talvez tivesse uma chance.
- Sabe o que Durnam vai fazer. Ele não pode me soltar.
- Ele só quer ganhar. Meteu-se nuns apuros financeiros, e seu estábulo já não é o que era. Charlie's Pride era sua última esperança, mas o potro de Logan
é melhor. Foi por isso que me fez procurar emprego em Three Aces, para vigiar tudo e estragar a corrida. Mas foi tudo.
O rapaz olhou em volta. Estava falando demais, sempre falava demais quando ficava nervoso. E queria uma bebida, tinha a boca seca.
- Eu só cuidei do cavalo, que era o que Durnam queria. Precisava colocá-lo fora do páreo. Tem de entender, é uma questão de negócios, só isso.
- Você fala de corridas, eu estou falando de assassinato.
- Não quero ouvir nada disso. Não tenho nada a ver com isso. Coma.
- Sr... não sei seu nome.

- Berley, madame. Tom Berley - e, inconsciente do ridículo da situação, ele levou os dedos à aba do boné.
- Sr. Berley, estou implorando por minha vida. E não só pela minha como pelo bebê que estou esperando. Não pode deixar Durnam matar meu filho. Por enquanto,
só está metido em encrenca por causa de um cavalo, mas pode se transformar em assassinato. Uma criança inocente, sr. Berley.
- Não vou ficar ouvindo essas histórias de morte - a voz estava mais rude, mas as mãos tremiam quando tornou a amarrar a mordaça. Precisava desesperadamente
de uma bebida. Começou a recolocar a venda, mas hesitou diante do olhar de Erin.
Afinal, não havia nada para ver, pensou. A parte de trás do trailer não tinha janelas, e estava separada da cabine por uma divisória de madeira.
- Se não quer comer, problema seu. Tenho de cuidar dos meus.
Guardou o sanduíche no bolso. Erin viu que olhava dos dois lados antes de sair, fechar a porta e deixá-la de novo na escuridão.


CAPÍTULO XI

O tenente Hallinger tinha quase sessenta anos, e depois de trinta e sete na polícia achava que já havia visto tudo, e ouvido outro tanto. Enfrentara mais
maridos frustrados e furiosos do que podia se lembrar, e aquele homem vociferando à sua frente era apenas mais um.
- Eu preferiria que fosse procurar minha mulher, tenente, em vez de perder tempo com perguntas.
- Sr. Logan, neste exato momento vários oficiais estão fazendo a busca no hipódromo, e as viaturas que percorrem a cidade têm uma descrição dela. Se o senhor
me respondesse, e cooperasse, seria muito mais fácil esclarecer tudo.
- Já lhe disse que Erin não voltou para o hotel. Não foi vista desde hoje pela manhã, e encontraram seu anel de casamento nos estábulos de Churchil Downs.
- Algumas mulheres são bem descuidadas com jóias, sr. Logan.
- Erin não é. E muito menos com aquele anel.
O tenente tomou nota numa caderneta.
- Hu-hum. Sr. Logan, ocasionalmente esse tipo de coisa acaba não passando de um mal-entendido. Discutiu com sua esposa hoje?
- Não.
- É possível que ela tenha alugado um carro e decidido passear um pouco.
Travis veio com uma xícara de café e entregou-a a Burke, que aceitou e colocou de lado.
- É ridículo. Se Erin quisesse passear, teria ido no carro que já alugamos. Teria me dito que ia sair e voltado há duas horas, pois temos compromisso para
hoje à noite.
- A semana que precede o Derby pode ser caótica. Talvez ela tenha esquecido.
- Erin é a pessoa mais responsável que conheço. Se não está aqui, é porque não pode. Porque alguém a está impedindo de vir.
E já liguei para todos os hospitais.
- Sr. Logan, foi constatado por alguém, algum sinal de que ela possa ter sido seqüestrada? Afinal, o senhor é um homem rico.
- Não, nada desse tipo. Tenente, já lhe disse tudo que sei. E estou cansado de repetir que o senhor perde tempo ficando aqui. Eu iria procurá-la por conta
própria, mas acho mais importante ficar aqui e... esperar. A vida toda, se fosse preciso.
- Sr. Logan, tenho anotado aqui que o senhor enfrentou problemas nos Bluegrass Stakes. O que sua esposa achou?
- Ficou contrariada, naturalmente.
- Contrariada o suficiente para querer evitar ver gente hoje e amanhã? Contrariada o suficiente para querer fugir de tudo, inclusive do senhor?
- Tenente, Erin não é do tipo que foge. Na verdade, fui eu que lhe pedi que voltasse para casa até que o impasse se resolvesse. Ela não quis. Insistiu em
ficar e acompanhar tudo de perto.
- É um homem de sorte.
- Sei disso. Agora, por que não sai daqui e vai encontrar minha mulher?
Hallinger anotou qualquer coisa e voltou-se para Travis:
- Sr. Grant, foi a última pessoa que sabemos ter falado com a sra. Logan esta manhã. Como estava o humor dela?
- Ansiosa por causa da corrida, por Burke. Um pouco cansada. Disse que pretendia dormir uma semana assim que o Derby acabasse. Nem lhe passava pela cabeça
perder a corrida ou abandonar o marido. Estão casados há pouco tempo, e muito apaixonados.
- Hu-hum. Acharam o anel dela no estábulo. O senhor diz que ela nem entra nos estábulos, sr. Logan, e no entanto foi vista a caminho deles de manhã cedo.
- Talvez ela quisesse provar algo a si mesma, não posso ter certeza.
- Provar o quê, exatamente?
- O quê?
- O senhor acabou de dizer que ela poderia ter ido aos estábulos para provar algo.
- Ah, sim. Erin sofreu um acidente anos atrás e ficou com medo de cavalos. Recentemente resolveu lutar para superar o trauma. Mas, diga, que diferença faz
o motivo pelo qual entrou? Esteve lá, e desapareceu, isso é o que importa.
- Se tivermos os detalhes é mais fácil elaborar uma teoria.
O telefone tocou, fazendo Burke saltar na cadeira. Empalidecendo, atendeu.
- Sim? O quê? Está bem. Tenente Hallinger, é para o senhor.
Travis passou por Burke e tocou-lhe o ombro.
- Vão encontrá-la, precisa se concentrar nisso.
-Está tudo errado, muito errado, eu sinto. Se não a encontrarem logo, será tarde demais. Preciso sair daqui. Você ficaria para atender o telefone, Travis?
- Claro.
Hallinger viu que Burke saía e fez um gesto para que um de seus homens o seguisse.

Erin acordou do pesadelo molhada de suor e tremendo de frio. Murmurou o nome de Burke e tentou esticar a mão, mas os braços não se moveram.
Deu-se conta de que não era um sonho, e respirou fundo para afastar a onda de pânico que ameaçava envolvê-la. Quanto tempo? Há quanto tempo estaria ali? Talvez
o plano fosse aquele mesmo, deixá-la ali para enlouquecer ou morrer de fome.
Os olhos escancarados na escuridão, Erin começou um exercício de autocontrole. Repassou mentalmente cada parte do corpo, tentando senti-Ia, apesar da dormência
que a dominava. Depois pensou nos verdes campos da Irlanda, e como era bom correr por eles, sentindo o vento nos cabelos e o perfume das flores. Pensou em Burke.
E adormeceu de novo.
Burke voltou à pista, com a louca esperança de encontrar Erin esperando por ele. Percorreu os estábulos e fez aos cavalariços as mesmas perguntas que a polícia
havia feito.
Nada de Erin, nenhuma pista, nenhum sinal.
E Burke voltou para o hotel, percorrendo incessantemente a saleta e o quarto, ignorando as xícaras de café que Travis lhe oferecia. Às três da manhã estava
sentado numa poltrona, imóvel, fitando o telefone.
Havia dito a Travis que fosse dormir, sem receber atenção. Erin... Ela ainda não havia tido a grande chance na vida, havia tanto que ver... Por que aquela
mudança brusca nos vento da sorte?
O telefone tocou.
- Logan.
A voz do outro lado do fio estava arrastada, bêbada. O coração de Burke começou a palpitar .
- Onde está ela?
- Não quero mais encrenca. Drogar o cavalo tudo bem, mas, não quero mais encrenca.
- Certo. Diga onde ela está.
- Eu não queria tomar parte nesse negócio. Ele vai me matar se descobrir que liguei.
- Diga onde ela está e resolvo o resto.
- No hipódromo, no trailer. Não sei o que pretende fazer. Acho que vai matar a mulher.
- Que trailer? Vamos, diga, que trailer?
- Eu não vou ser cúmplice de assassinato nenhum.
Burke deixou cair o fone e voltou-se para Travis, que esperava, de pé, à sua frente.
- Desligou, o calhorda. Mas disse que ela está no hipódromo, presa num trailer.
- Vou chamar a polícia e sigo logo depois de você.
Burke não tomou conhecimento de sinais ou limites de velocidade. Matar Erin? Como, matar Erin? As ruas estavam desertas, todo mundo recolhido para aguardar
a grande corrida do dia seguinte. Já havia gente acampada na grama ao redor da pista.
Burke rezou para que Erin também estivesse dormindo. E que só acordasse quando ele estivesse lá.
A freada brusca fez voar o cascalho atrás dos estábulos. Lá ficavam estacionados os trailers dos treinadores, dos proprietários que preferiam ficar junto
dos cavalos, dos cavalariços e ajudantes que podiam se dar àquele pequeno luxo.
Logan precisava achar apenas um.
Estava começando a andar quando ouviu passos atrás de si. Rodopiou, os punhos cerrados, e relaxou quando Paddy disse:
- Calma aí, rapaz. Travis ligou para mim.
- Certo. Qual é o trailer de Durnam?
- Durnam? Travis disse que você não sabia de quem era.
- É um palpite. Qual deles é o de Durnam?
- Aquele grande, preto. Ei, essas sirenes não são da polícia?
Burke não respondeu, já corria para o trailer preto.
- Erin! - A porta resistiu. Por um momento pensou que poderia arrombá-la de mãos vazias. Paddy deu-lhe um pé-de-cabra.
- Use isto, Quando Travis ligou para avisar, achei que talvez precisássemos de um.
Burke começou a forçar a porta, sem parar de chamar por Erin. Queria que ela soubesse quem estava ali, que não passasse mais medo. O metal da porta resistiu
um pouco, mas depois cedeu. Afastou a divisória de compensado que separava a cabine do resto do trailer.
- Erin? - Nenhuma resposta, nenhum som. Seria tarde demais? Burke girou o pé-de-cabra entre as mãos úmidas de suor.
- Erin, já está tudo bem, vim tirar você daqui.
Amaldiçoou a falta de luz e caiu de joelhos, apoiando-se nas mãos. E lá estava ela, encolhida num canto.
Aproximou-se de um salto e teve medo. Tocou-lhe o rosto. Frio, imóvel.
- Erin.
Num assomo de raiva, arrancou a mordaça, e quase chorou de alívio quando sentiu que respirava.
- Está tudo bem, Erin.
- Burke.
- Isso mesmo, e vou tirar você daqui, já.
Apalpando, sentiu as cordas e quando começou a desamarra-as Erin gritou de dor.
- Desculpe, mas tenho de tirá-las. Não quero machucar você. Pode ficar bem quieta?
O trailer sacudiu-se sob o peso de outros homens. Burke reconheceu a silhueta do tenente Hallinger .
- Uma faca. Me dê uma faca e saia, ela está apavorada.
Hallinger remexeu no bolso com uma mão e com a outra fez sinal para os policiais saírem.
- Agüente só mais um pouco, Irlandesa, fique quietinha. Pronto, assim, vê? Agora vou carregar você lá para fora.
- Meus braços... doem.
- Eu sei. Vou tomar muito cuidado.
Erin gemeu e apertou o rosto contra o ombro dele.
O estacionamento estava todo iluminado quando saíram. Erin fechou os olhos, pois acostumados à escuridão eles doíam terrivelmente ao contato com a luz.
- Fiquem longe dela - Burke ordenou aos policiais.
Travis passou na frente deles e disse:
- Chamei uma ambulância, já está esperando. Paddy e eu seguimos você.
Como num sonho, Erin sentiu o corpo descer. Conservava os olhos fechados por causa das luzes. Ouvia vozes, muitas vozes, mas só prestava atenção na de Burke.
Não distinguia palavras. Promessas, votos, bobagens. Burke olhava o sangue seco nos pulsos e tornozelos, os arranhões nos braços, e a cada estremecimento
de Erin, pensava em Durnam. E em como iria matá-lo.
Erin murmurou:
- Foi no estábulo. Ouvi quando falavam em drogar o cavalo.
- Não tem importância - disse Burke, acariciando-lhe os cabelos.
- No estábulo. Não consegui fugir. Tentei.
- Está tudo bem agora. É só ficar bem quieta.
Quando chegaram ao hospital, Erin foi colocada numa maca e Burke deixado para trás, desesperado, no corredor.
- Ela vai ficar boa - consolou-o Travis, tocando-lhe o ombro.
Burke assentiu. Os atendentes da ambulância já lhe haviam dito aquilo. As feridas de maior gravidade eram nos pulsos. Cicatrizariam, e as marcas se tornariam
invisíveis. Mas ninguém poderia dizer o que aconteceria com as feridas emocionais.
- Fique aqui com ela, preciso fazer uma coisa.
- Burke, você será mais útil aqui. Para ela e para você mesmo.
- Fique com ela - repetiu Burke, e atravessou as largas portas de vidro.
Tentou não pensar enquanto dirigia para a fazenda de Durnam. A fúria estava ali, mas contida, para não anuviar os pensamentos. Manteve a cabeça bloqueada,
e fria como o ar da manhã.
Fez em quinze minutos um trajeto de meia hora, mas a polícia tinha sido mais rápida. Burke bateu a porta do carro na frente da principesca residência de Durnam
e mais uma vez viu-se frente a frente com Hallinger.
- Vim pensando que o encontraria aqui. Imaginei que já teria somado dois e dois e descoberto que Durnam foi o responsável pela droga ministrada ao seu cavalo.
- Sim, somei dois e dois. Onde está ele?
- Será meu hóspede por hoje. Sabe, alguns policiais são até capazes de pensar. Estávamos aqui interrogando Durnam quando chegou a informação de que o senhor
estava indo para o hipódromo buscar sua esposa.
- Por quê?
- Bem, deduzindo que o desaparecimento da sra. Logan tivesse algo a ver com o problema da semana passada, o que era uma aposta alta, tive de deduzir também
quem sairia ganhando com o caso todo. Cheguei a Durnam. Concluí também que o senhor havia feito o mesmo raciocínio.
- Só me faltavam provas.
- Pois já as temos. O homem já estava no ponto. Só precisou de um telefonema nosso para ser levado a agir. Já havia sacado todo o dinheiro do banco, isto
é, o que havia sobrado. Você sabia disso, não é? Da bancarrota?
- Sabia, sim.
- Já tinha feito as maias. Mas não ia perder por nada a corrida de amanhã. De hoje, já está clareando. Queria muito esse prêmio do Derby. Engraçado como pessoas
aparentemente normais podem se ater a idéias fixas e esquecerem todo o resto, inclusive as conseqüências. Como está sua esposa?
- Machucada. Onde está Durnam?
- Isto é problema da polícia, sr. Logan. Sei como se sente.
- Não sabe, não.
- Bem, acho que tem razão. E duvido que esteja com paciência para ouvir conselhos, mas vou dar um, assim mesmo. Não tem tido um comportamento de escoteiro,
Burke Logan, e não adianta me olhar desse jeito, faz parte de meu trabalho investigar todos os detalhes. Sua ficha não é de todo limpa. Um pouco de azar, outro tanto
de sorte. No momento eu diria que conseguiu uma boa mulher e a chance de endireitar de vez. Não estrague tudo por alguém tão digno de pena como Charles Durnam. Ele
perdeu muito mais do que uma corrida de cavalos. Não é o suficiente?
- Não. Quando ele sair, dentro de um ou vinte anos, será um homem morto.
-Vou tentar me lembrar disso, sr. Logan.

Erin abriu os olhos com todo o cuidado. O hospital. De novo veio a onda de alívio de se sentir segura. A luz ainda estava acesa ao lado da cama, como havia
pedido à enfermeira para deixar.
E Burke não estava. E ninguém lhe dava notícias, a não ser que ele viria breve. Ela tinha de dormir, relaxar, esquecer as preocupações.
Mas Erin queria Burke.
Virou a cabeça para o outro lado, inquieta. Já havia flores no quarto, idéia de Travis ou Paddy, com certeza. Haviam sido tão bons!
Mas ela queria Burke.
Tentando ficar mais confortável, sentou-se na cama. E o viu, parado perto da janela, de costas.
- Burke.
Ele se voltou imediatamente. O primeiro pensamento foi de que Erin estava sentada, e as faces começavam a ganhar alguma cor. O segundo foi que era por causa
dele que Erin estava naquela cama de hospital, com os pulsos enfaixados. Ela estendeu a mão, que ele tocou ao chegar perto da cama.
- Está com melhor aparência - foram as primeiras palavras daquele marido apaixonado.
- Estou melhor. Não sabia que você estava aqui.
- Cheguei faz pouco tempo. Precisa de alguma coisa?
- Sim. Comer. - Erin sorriu e procurou a mão que ele havia estendido, mas Burke pareceu não notar o gesto.
- Vou chamar a enfermeira.
- Não, espere um pouco. Você não dormiu, não foi?
- Foi uma noite cheia.
- Eu sinto muito.
- Não foi culpa sua. Vou chamar a enfermeira.
Sozinha, Erin recostou-se nos travesseiros. Talvez ainda estivesse confusa e desorientada. Burke não podia estar zangado com ela. Com um meio suspiro, fechou
os olhos. Claro que podia. Os homens eram imprevisíveis, e Burke o mais imprevisível deles. Culpa dela ou não, havia-o feito passar um mau pedaço, e depois o deixava
preso num quarto de hospital no dia mais importante da vida dele.
Quando a porta se abriu sorriu com toda a vivacidade possível.
- Devia estar no hipódromo. Não fazia idéia que fosse tão tarde. Alguém lembrou de me trazer roupas? Fico pronta em dez minutos.
- Você não vai a lugar nenhum.
- Está pensando que vou perder meu primeiro Derby? Sei o que o médico pensa, mas...
- Então sabe também que não vai sair dessa cama por vinte e quatro horas. Não seja estúpida.
Erin abriu a boca e tornou a fechar. Não iria discutir com ele. A proximidade que estivera da morte havia lhe ensinado quanto tempo costuma ser perdido em
mesquinharias.
- Tem toda razão. Vou ficar aqui sendo servida, e assistir pela televisão. Quanto a você, melhor se apressar.
- Para quê?
- Para a corrida, é lógico. É quase meio-dia. Já perdeu a manhã inteira.
- Vou ficar aqui.
- Não seja bobo. Não pode perder o Derby. Já é suficientemente ruim que eu perca. Pelo menos me dê o prazer de ver você receber o prêmio. Não tem nada para
fazer aqui.
- Não, imagino que não.
- Então, fora.
- Sim - Burke esfregou o rosto com as mãos. Ele era desnecessário. Totalmente desnecessário.
- E não quero que volte até ter descansado um pouco.
Erin ofereceu o rosto para um beijo, mas ele apenas roçou-lhe a testa com os lábios.
- Até logo mais.
- Burke, você vai ganhar.
Assentindo com a cabeça, fora do alcance dela, fechou a porta atrás de si. E encostou-se na parede, cansado demais para parar em pé, até para pensar. Pouco
lhe importava o Derby ou qualquer outra corrida. Só pensava em Erin, encolhida no fundo do trailer, com medo.
Tinha se recuperado, falava como se nada tivesse acontecido, mas havia aquelas ataduras brancas nos pulsos.
Burke tinha medo de tocá-la, medo de ver que ela o evitava. Ou de feri-Ia. E ela o estava mandando embora, não precisava dele a seu lado. Tudo o que precisava
era de um troféu, um cavalo coberto de rosas vermelhas e muito dinheiro. E ele daria tudo aquilo a ela, era tudo o que podia fazer .

Erin estava nervosa. Ao ver Burke na tela da televisão, saindo dos estábulos, riu e agarrou-se ao travesseiro. Oh, se pudesse estar lá, também. Mas Burke
evitou a repórter, desapontando Erin.
A câmara enquadrou o rosto da repórter, que recapitulou os acontecimentos a partir dos Bluegrass Stakes. Foi bom ouvir que o nome de Burke estava absolutamente
limpo e que Double Bluff era o favorito na Corrida das Rosas.
Ouviu, tentando ficar calma, a história do seqüestro e da prisão de Durnam. O cavalariço havia sido pego bêbado, dormindo numa das baias. Não se havia feito
de rogado para confessar tudo com detalhes. Mostraram slides do trailer, com a porta arrombada e guardado por policiais, e Erin teve de fazer força para não fechar
os olhos.
Riu quando ouviu comentários sobre sua pessoa, que "descansava confortavelmente". A repórter fazia com que tudo parecesse uma grande aventura, saída de um
romance de mistério: a dama em perigo, o vilão e o herói.
Em seguida vieram os cavalos, em fila, saindo do paddock. Lá estava Double Bluff, forte e belo como sempre. Double Bluff, três anos de idade, de Three Aces.
Proprietários: Burke e Erin Logan. Erin sorriu. Era bom ver seu nome na tela, junto com o de Burke.
E riu de novo ao ver que tinha as mãos úmidas de suor. O hipódromo estava repleto, conforme o previsto. A câmara focalizou Dorothy Gainsfield. Erin se deu
à satisfação de mostrar-lhe a língua.
Burke apareceu na telinha. Tinha o aspecto cansado, exausto mesmo. Por isso havia parecido tão distante. Cansaço. Assim que se recuperasse, tudo se; ajeitaria.
Erin esfregou o rosto no travesseiro e murmurou:
- Te amo, Burke. Só agüentei tudo aquilo porque te amo.
Soou a corneta, a multidão gritou. Mais uma vez Erin se viu tentada a pular da cama e correr para o hipódromo. Se não fosse pelo bebê, teria ignorado o médico
e corrido, mas era preciso ser paciente, nos dois sentidos do termo. Colocando a mão no ventre, murmurou:
- Iremos juntos ao nosso primeiro Derby. No ano que vem, iremos nós três.
Soou a campainha, e Erin colou os olhos na tela por dois minutos. Parecia que Double Bluff estava tomado de um sentimento de vingança. Talvez estivesse. Talvez
Burke tivesse transferido seus sentimentos ao cavalo, pois ele corria com muita fúria.
Quando se destacou dos outros, Erin prendeu a respiração. Cedo demais. Sabia que o jóquei havia sido instruído para segurá-lo durante o primeiro quilômetro.
Mas naquele dia não havia como segurar Double Bluff. A preocupação se evaporou quando Erin o viu disparar. Glorioso, temível, irreprimível.
Manteve-se próximo à cerca, fazendo as curvas junto ao chão. O Apollo, de Travis, estava um corpo atrás. O potro dos Pentel, conduzido por um jóquei novo,
vinha rápido pelo lado de fora. E a multidão estava em pé. Erin gritou sem perceber, até que a enfermeira veio ver o que se passava.
Na reta final Double Bluff aumentou a velocidade, o que parecia impossível, fazendo até mesmo o locutor mudar de tom de voz profissionalmente monótona. Dois
corpos, três, três e meio. Cruzou a linha de chegada como se estivesse sozinho na pista.
Erin esfregou o rosto ardente com as palmas úmidas.
- Ele começou e terminou em primeiro. A corrida toda.
- Parabéns, sra. Logan. Eu diria que acaba de tomar o melhor remédio possível.
Erin agarrou-se ao lençol, esperando pelo anúncio oficial. Podia ver tudo com a imaginação, o cavalo sendo pesado, a confirmação. Levou uma eternidade, mas
finalmente os números apareceram no placar.
- O melhor remédio do mundo, o melhor mesmo. Lá está Burke. Oh, enfermeira, me dê sua mão. Ele lutou tanto por isto, esperou tanto. Oh, eu queria estar lá.
Como eu queria!
Viu a câmara e os repórteres se empurrarem para conseguir os melhores ângulos de Burke no pódio, e do treinador. Por que Burke não estava sorrindo?, perguntou-se,
enxugando uma lágrima. Viu que ele sacudia a mão do jóquei mas não ouvia as palavras até um repórter colocar um microfone junto deles.
- Bom dia para Three Aces. Isto deve compensar a desclassificação da semana passada, sr. Logan.
Burke acariciou o pescoço do cavalo.
- Não dá nem para o começo. Acho que Double Bluff provou hoje, aqui, que é um campeão e provou também minha confiança na equipe que cuida dele, mas...
Ele puxou uma rosa do manto que cobria o cavalo.
- Esta corrida foi para minha mulher. Com licença.
- Que coisa linda ele disse - murmurou a enfermeira.
- Sim!
Mas, olhando o jóquei levantar a taça sobre a cabeça, Erin perguntou-se por que se sentia tão perdida.


CAPÍTULO XII

Burke e Erin voltaram para Three Aces assim que ela teve alta do hospital, mas não foi uma viagem alegre. Tudo deveria estar bem: a reputação de Burke estava
salva, Double Bluff tinha batido o recorde no Derby e Erin estava gozando de perfeita saúde. E, no entanto, tudo parecia completamente errado.
Burke podia ser distante, arrogante e teimoso. Motivos ridículos para não se amar um homem. Mas não deixava de ser motivos. Só que Erin não sabia que ele
também podia ser retraído e fechado. Não a tocava mais. Na verdade, depois dos primeiros dias Erin percebeu que ele evitava toda e qualquer oportunidade de tocá-la.
Ia para a cama tarde e levantava cedo. Passava muito mais tempo fora de casa e em ocupações que parecia ter adquirido nova importância.
Erin tentou convencer-se de que ele estava assim por causa dos preparativos para acorrida de Preakness, a segunda jóia da Triple Crown, mas no fundo sabia
que não era verdade. Tendo tempo de sobra para pensar, começou a relembrar as palavras que ouvira no dia do casamento: "Os homens se encantam com facilidade, e com
a mesma facilidade enjoam".
Então seria isso? Burke teria enjoado dela? Tentando encontrar a resposta, passou-se em revista: o rosto estava igual. Talvez com um pouco de olheiras, resultado
de preocupações e noites mal dormidas. O corpo ainda estava firme, embora fosse mudar bastante nas semanas seguintes.
E daí?, Erin se perguntou. Quando falasse do bebê, Burke se afastaria por completo? Não, não era atitude para se esperar dele. Burke nunca se afastaria do
próprio filho. Mas e ela? Se estava cansado dela, qual seria a reação quando começasse a engordar, a ficar com o corpo disforme?
Erin se odiou por pensar aquelas coisas. Sempre tivera uma grande admiração, e outro tanto de inveja, pelas mulheres que agora chamava de "disformes". Mas,
e se Burke fosse um homem preconceituoso? .
Resolveu seduzi-lo antes de mais nada. Escolheu pessoalmente o vinho. E velas. Espalhou dúzias delas pelo quarto, todas com um suave perfume. Vestiu a camisola
da noite de núpcias e colocou no toca-fitas a mesma música que Burke havia tocado na primeira noite que passara naquela casa.
Outra primeira noite, um recomeço. Depois de terem se amado, depois de finalmente recuperarem a proximidade, Erin falaria do bebê. E, juntos, falariam do
futuro.

Burke subiu a escada, cansado. Vinha se cansando deliberadamente, para dormir depressa e esquecer a presença de Erin a seu lado. Não queria fazer amor com
ela, queria lhe dar tempo para escolher. Ela guardava algum segredo, estava em seus olhos, mas Burke não se achava no direito de obrigá-la a contar. Não depois de
tudo por que havia passado por culpa dele.
Desde a volta de Kentucky, Erin havia sido a esposa perfeita. Não exigia, não questionava, não tinha crises de raiva. Burke queria mandar aquela mulher perfeita
para o diabo, queria sua Erin briguenta, temperamental, irlandesa, de volta.
Foi àquela altura dos pensamentos que Burke entrou no quarto e suas pernas amoleceram.
- Pensei que não fosse mais chegar. Tem trabalhado demais - disse Erin, indo a seu encontro com a mão estendida.
- Há muito o que fazer.
Quando ele não segurou a mão que estendia, Erin cerrou o punho mas forçou-se a dar o passo final.
- Existem outras coisas na vida além de cavalos e corridas.
- Pensei que já estivesse dormindo.
- Fiquei esperando. Estou com saudade do tempo em que ficávamos a sós. Venha para a cama, Burke. Faça amor comigo.
- Ainda tenho serviço lá embaixo.
Erin sorriu e começou a desabotoar-lhe a camisa.
- O serviço pode esperar. Faz tanto tempo que não passamos uma noite juntos.
Burke sentiu as ataduras dos pulsos de Erin contra o peito.
- Sinto muito. Só subi para ver se estava bem. Devia descansar um pouco.
- Você não me quer mais, Burke?
- Quero que se cuide, é tudo. Ainda está convalescendo. Passou por uma tensão muito grande.
- Sim, e você também. Por isso é que precisamos ficar juntos.
- Durma, Erin - e, tocando-lhe o rosto de leve, Burke fez meia-volta e saiu do quarto.
Erin olhou fixamente para a porta fechada, depois voltou-se e começou a soprar as velas.

Erin trancou o escritório e se enterrou entre as colunas de números. Aqueles, pelo menos, ela entendia. Quando somava dois e dois, a resposta era sempre a
mesma, lógica, segura. A vida, e Burke em particular, não eram assim tão simples.
Quando veio o telefonema de Travis avisando que Dee havia entrado em trabalho de parto, Erin ficou feliz pela prima e por si mesma, pois logo ela também teria
o seu bebê. Rabiscando um bilhete apressado, deixou-o sobre a escrivaninha. Caso Burke se desse ao trabalho de procurar por ela, encontraria o bilhete. Se não procurasse,
então não importava onde ela estivesse.
Havia aprendido algo com o casamento: tanto a mulher quanto o marido deviam caminhar com os próprios pés. Num mundo ideal o padrão seria permeado por uma
interdependência, uma partilha, amor mútuo e alegria na companhia um do outro. Num mundo menos perfeito, significava no mínimo sobrevivência. Erin era, como sempre
havia sido, uma sobrevivente.
Afastando-se com o carro, ficou olhando para a casa pelo retrovisor. Um lugar tão especial, como sempre havia sonhado viver. A grama estava verde, as flores
se abriam. Se lhe tivessem dito um ano antes que seria ao mesmo tempo dona de algo tão bonito e infeliz, não teria acreditado.
Burke estava lutando com seus próprios demônios quando chegou em casa. Não conseguia esquecer de Erin, linda e desejável, e começava a duvidar que o afastamento
estivesse servindo para alguma coisa. Talvez estivesse deixando a neurose passar dos limites.
Era hora de conversar. Pensar e falar com clareza. Burke não sabia como nem por que nem havia se dado muita conta do processo, mas a verdade era que não poderia
mais viver sem Erin. O problema é que não sabia se a recíproca era verdadeira. Erin não tivera tempo de viver sem ele.
Portanto, teria de acontecer um confronto entre os dois. E o mais rápido possível! Rosa estava no átrio, aguando os gerânios.
- Rosa, Erin está lá em cima?
- A señora saiu já faz algum tempo.
- Saiu? Para onde?
- Ela não disse.
- Levou o carro?
- Creio que sim.
Burke resmungou um palavrão e virou de costas.
- Burke?
- Sim?
Rosa sorriu e colocou o regador no chão.
- Não é mais paciente hoje do que era aos dez anos.
- Não quero que ela fique só.
- E no entanto é o que faz o tempo todo: deixa-a só. Não me olhe assim, é difícil fingir que não vê o que está bem debaixo do nariz. Sua mulher é infeliz,
e você também.
- Erin está bem, assim como eu.
- Dizia a mesma coisa quando vinha para casa com o olho roxo.
- Isso foi há muito tempo.
- Bobagem pensar que eu ou você possamos ter esquecido. Para ter futuro é preciso enfrentar d passado.
- Por que está dizendo tudo isso, Rosa?
Ela teve um gesto que não fazia desde que eram crianças. Foi até ele e tocou-lhe o rosto.
- Ela é mais forte do que você pensa, meu irmão. E você, não tem metade dessa força.
- Não tenho mais dez anos, Rosa.
- Não, mas de certa maneira era mais fácil lidar com você naquela época.
- Nunca foi fácil lidar comigo.
- A vida é que não era fácil. E você a transformou.
- Talvez.
- Sua mãe estaria orgulhosa de você. Muito orgulhosa - insistiu ela, quando Burke fez menção de se afastar.
- Ela não teve a chance.
- Ela não, mas você sim. E me deu chance, também.
- Eu lhe dei um emprego.
- O único decente que eu tive. Antes que saia, quero fazer mais uma pergunta. Por que me deixou ficar? Diga a verdade, Burke.
- Porque ela gostava de você. E eu também.
Rosa sorriu e voltou ao regador.
- Sua mulher não vai esperar o tempo que eu esperei por uma resposta. É impaciente, como você.
- Rosa, por que você ficou?
Ela mexeu nas folhas de uma samambaia.
- Porque amo você. Sua mulher também o ama. Agora, se não se importa, eu gostaria de colher flores para a sala.
- Sim, claro.
Burke deixou Rosa aguando as plantas e voltou para o escritório de Erin. Pela primeira vez havia perguntado a Rosa por que estava ali, e a si mesmo por que
permitira que ficasse. Por que lhe dera um emprego para não lhe ferir o amor-próprio. Ela era da família. Simples, e no entanto tão difícil de aceitar. E Rosa estava
certa ao dizer que Erin não esperaria tanto tempo por uma resposta.
Inquieto, pôs-se a remexer os papéis sobre a escrivaninha. Pensou, com certa ironia, que grande contadora era sua mulher. Tudo arrumado em pilhas impecáveis,
colunas de números nítidos, precisos. Queria juntar tudo aquilo e jogar no lixo.
Parou um pouco e suas sobrancelhas se juntaram ao dar com a conta do médico. Todas as despesas médicas de Kentucky deveriam ter sido endereçadas a ele, mas
a que tinha na mão trazia apenas o nome de Erin. Aborrecido, Burke pegou o papel, na intenção de tratar do assunto pessoalmente. Não queria Erin aborrecida mais
uma vez por aquele episódio traumático. Mas o endereço não era de um médico de Kentucky, e sim em Maryland. Ginecologia e obstetrícia.
Um obstetra? Burke sentou-se na cadeira de Erin. As palavras "teste de gravidez" lhe saltaram aos olhos. Grávida? Erin estava grávida? Impossível, pois teria
dito a ele. Mas lá estava o papel, e no papel, com data de mais de um mês antes, estava escrito: "positivo".
Erin estava grávida, e não lhe havia dito nada. O que mais teria deixado de dizer? Burke remexeu nas outras pilhas, em busca de uma resposta. E encontrou
o bilhete: "Burke, fui para o hospital. Não sei quanto vou demorar".
Relendo as palavras, Burke sentiu que o sangue lhe fugia do rosto.
- Oh, não entendo como Dee pode ser tão calma e paciente!
Paddy virou a página da revista que fingia ler.
- Cada bebê sabe a hora certa de entrar no mundo.
Erin passeava pela sala de espera.
- Como demora! Minhas mãos estão suadas, e ela parecia pronta para dar um passeio no parque. É assustador.
- O quê, ter bebês? Ora, Dee tem uma vasta prática.
- Ela era assim quando teve o primeiro? Acho que o primeiro deve ser o que dá mais medo. A gente tem de acreditar, simplesmente acreditar, que nada vai sair
errado.
- Dee é veterana.
- Sim. E Travis fica com ela o tempo todo, isso deve dar mais segurança. Paddy, acha que a maioria dos homens se comporta como Travis nessas horas?
- Eu diria que quando um homem ama uma mulher do jeito que Travis ama Dee, o normal é não sair de perto dela. Moça, vai cavar um buraco no chão andando em
círculos desse jeito.
- Não consigo parar quieta. Vou descer e procurar uma floricultura, para enfeitar o quarto de Dee.
- Boa idéia.
- E posso lhe trazer uma xícara de chá.
- Ótimo. Não vai demorar tanto assim.
Paddy esperou que Erin desaparecesse de vista e começou a passear de um lado para o outro.


Burke entrou na portaria do hospital como que possuído por mil demônios. Perguntou à recepcionista:
- Onde está minha mulher?
A moça girou a cadeira para o terminal de computador.
- Nome?
- Logan, Erin Logan.
- Quando deu entrada?
- Não sei, há duas horas, pouco mais.
A moça começou a apertar botões.
- Qual o objetivo?
- Ela... está grávida.
A moça continuou a lidar com o teclado.
- Maternidade? Sinto muito, sr. Logan. Sua esposa não está internada aqui.
- Sei que está, pois este exame é daqui. Onde... Ah, sim, dr. Morgan. Quero ver o dr. Morgan.
- O dr. Morgan está fazendo o parto de outra paciente. Se quiser o senhor pode ir ao quinto andar e verificar com à enfermeira, mas...
Deu de ombros quando Burke saiu do elevador. "Pais grávidos", pensou. "São sempre loucos".
Burke apertou o botão de chamada do elevador. Odiava hospitais, sua mãe morrera num hospital. Há poucos dias fora a vez de Erin ficar internada e naquela
hora...
- Burke, que surpresa você ter vindo.
Virou-se e viu Erin avançando em sua direção com um enorme buquê de flores. Tinha os cabelos presos e o rosto corado, e quase deixou as flores caírem quando
ele a agarrou pelos ombros.
- Que diabo está fazendo?
- Burke, você está amassando as flores.
- Vou amassar mais do que um maço de flores. Quero que me diga o que está fazendo.
- Levando as flores para cima, se sobreviverem. Acho que Dee as apreciaria mais inteiras.
- Dee? Do que está falando? Não me parece assim tão estranho comprar flores para uma mãe recente.
- Dee? Veio aqui por causa dela?
- Claro que sim. Não viu meu bilhete?
- Vi. Não estava muito claro - e Burke, tomando o braço de Erin, a fez entrar no elevador.
- Eu estava apressada. Seria tão bom se eu tivesse encontrado mais rosas. Para gêmeos a mãe deveria receber o dobro de flores, não? Sabe, estou contente por
você ter vindo. Dee vai ficar, também.
As portas se abriram, e os dois passaram.
- Como vai ela?
- Está ótima! Paddy e eu estamos em farrapos, mas Dee está inteira.
- Ei, me dê essas flores. Não devia estar aqui, se cansando.
- Não seja bobo - disse Erin, entrando na sala de espera e dando com Paddy, que havia substituído as idas e vindas por uma dança. Gritou para eles:
- Um de cada! Ela teve um de cada.
Erin pulou-lhe ao pescoço, e giraram.
- Oh, Paddy! Ela está bem? E os bebês? Todos estão bem?
- Tudo na mais perfeita ordem, segundo o que a enfermeira disse. Vão trazê-los num minuto, e poderemos dar uma olhada. Bom dia para você, Burke. Muitíssimo
bom dia.
- Olá, Paddy. Erin, por que não senta?
Ela sacudiu a cabeça, rindo, e deu o braço a Paddy.
- Sentar? Nem que minhas pernas fossem de pau. Paddy e eu vamos dançar, não vamos, Paddy?
- Isso mesmo - ele ergueu o queixo e começou a assobiar. Reconhecendo a música, Erin acompanhou-o com os pés.
Burke, segurando o buquê de rosas, ficou parado, olhando. Fazia muito tempo que não ouvia o riso de Erin, nem a via sorrir daquele jeito. Trouxeram Dee numa
cadeira de rodas.
- Aqui está ela! Aqui está minha garotinha. Olhem só. São lindos, moça. Como você!
- Paddy deu um salto e tirou o lenço para enxugar os olhos.
- E eu, não contribuí em nada? - quis saber Travis.
Erin foi até ele e beijou-lhe o rosto.
- Fez um belo serviço, um menino e uma menina. Tão pequeninos!
Dee virou a cabeça para cada lado, apreciando os filhos.
- Vão crescer depressa. O médico disse que vieram completos, sem faltar nada. Os dois nasceram aos berros, não foi, Travis?
- Têm a disposição da mãe.
- Sorte sua eu estar com as mãos ocupadas. Burke, que bom que veio. Nessas horas é reconfortante estar rodeada pela família.
Burke entregou as flores a Travis, desajeitadamente.
- Você está bem, Dee? Precisa de alguma coisa?
- Um sanduíche de presunto. Enorme. Mas receio que me façam esperar um pouco, ainda.
- Sinto muito, temos de levar a sra. Grant para o quarto. Visitas às dezenove horas
- interveio a enfermeira.
- Paddy, traga as crianças quando vier.
- É proibido trazer crianças com menos de doze anos, sra. Grant - disse a enfermeira, começando a empurrar a maca para fora. Dee limitou-se a sorrir e a repetir
o pedido sem voz, apenas movendo a boca.
- Ela estava linda, não estava? - disse Erin.
Paddy guardou o lenço.
- É puro-sangue, minha Dee. Sempre foi. Bem, acho melhor ir para casa e pensar numa maneira de contrabandear aninhada para o quarto às sete.
- A vise se precisar de ajuda.
- Pode deixar, moça. - Ele beijou-a nas duas faces. Caminhando pelo corredor, deu um salto e bateu os calcanhares um contra o outro. Burke voltou-se para
Erin, tenso:
- Deve estar cansada. Vou levá-la para casa.
- Eu trouxe meu carro.
- Deixe-o aqui - disse ele, segurando-lhe o braço.
- Está certo, se acha que vai agüentar minha presença no mesmo carro.
Não falaram mais até Erin entrar feito um rojão no átrio da casa.
- Se não se incomoda, vou subir. Quanto a você, pode levar o mau-humor para os estábulos.
Contando até dez para manter o controle, Burke seguiu-a ao andar superior, entrou no quarto atrás dela e bateu a porta.
- Sente-se.
Erin semicerrou os olhos e cruzou os braços.
- Eu disse: sente-se.
- E eu digo: vá para o inferno!
Burke a pegou no colo e a jogou sobre a cama. Erin atirou a cabeça para trás e cruzou as pernas, lentamente.
- Repare que agora estou sentada. Não diga que está disposto a conversar comigo... ou me bater, a julgar por sua expressão. Pois bata.
- Não me tente.
- Ficou claro para mim, ontem à noite, que não tenho os requisitos necessários para tentá-lo. Se está assim tão ansioso por falar, então fale.
Erin tirou os sapatos.
- Sim, quero falar, e quero respostas diretas.
Mas, por onde começar? Burke pensou. A mão enfiada no bolso brincou com o anel que carregava havia dias. Talvez pudesse começar por ali. Tirou-o do bolso,
estendendo-o para ela na palma da mão aberta.
- Você o achou. Por que não me disse?
- Não perguntou.
- Não, não perguntei porque estava envergonhada. Foi estúpido deixá-lo no estábulo.
- Então por que o deixou?
- Porque não pensei em nada melhor. Sabia que não poderia fugir deles, já estavam me amarrando as mãos. Acho que pensei que alguém poderia achá-lo e entregá-lo
a você, e assim saberia... enfim, era uma pista, a única que, eu podia deixar. Por que não o devolveu?
- Porque queria lhe dar tempo para decidir se o queria de volta ou não. Aqui está, a escolha é sua - e Burke, tomando-lhe a mão, deixou cair o anel.
- Sempre foi. Burke, ainda está zangado comigo por causa do que aconteceu? - Erin não colocou o anel.
- Nunca fiquei zangado com você por causa daquilo.
- Pois a imitação tem sido perfeita, se quer saber.
- Foi minha culpa.Vinte horas. Você ficou amarrada no escuro por vinte horas, por minha culpa.
- Pensei que fosse por causa de Durnam. Nunca pareceu disposto a falar no assunto, a me deixar explicar exatamente o que aconteceu. Se você tivesse...
- Você poderia ter morrido. Fiquei naquele maldito quarto de hotel, esperando o telefone tocar, apavorado de medo que tocasse e sem poder fazer nada, absolutamente
nada. Quando a encontrei, vi o que haviam feito com você, seus pulsos...
- Estão sarando, veja.
Ela estendeu as mãos, e Burke recuou.
- Por que faz isso? Por que foge de mim? Até no hospital foi assim, nem quis ficar comigo.
- Fui matar Durnam. .
- Oh, Burke, não!
- Cheguei tarde, ele já estava preso e fora do meu alcance. Tudo o que podia fazer era ficar naquele quarto de hospital e olhar para você. E pensar em como
quase havia perdido você. Quanto mais tempo eu ficava lá, mais pensava em como a arrastei comigo desde o começo, sem lhe dar opções, sem deixar que soubesse a que
tipo de homem se ligara.
- Chega. Então acha que sou uma mulherzinha burra que não sabe a diferença entre sim e não? Tive opção, sim, e optei por você. E não pelo seu maldito dinheiro.
Foi a vez dela desabafar.
- Estou cansada de ter de descobrir maneiras de provar que amo você. Não nego que queria mais da vida do que alguns acres de chão e os pratos de outra pessoa
para lavar. E não me envergonho de pensar assim. Mas ouça isto, Burke Logan, eu teria descoberto um jeito de conseguir o que queria sozinha.
- Nunca duvidei.
- Acha que me casei com você por causa da casa? Bem, pois ponha fogo nela, pouco me importa. Pensa que é por todas aquelas ações? Pois transforme-as todas
em dinheiro e aposte na roleta. Se perder ou ganhar, para mim dará no mesmo.
Erin foi até a penteadeira e abriu as gavetas, tirando caixas de jóias.
- E tudo isto? Essas lindas coisinhas brilhantes? Bem, leve-as para o inferno com você. Eu amo você, nem Deus deve saber por que, seu cabeçudo, projeto mal
sucedido de homem. Não sei o tipo de pessoa com quem me casei, é isso? Pois conheço muito bem quem e o que você é. E sou uma idiota por amá-lo mesmo assim.
- Não sabe nada, mas se parar de atirar essas jóias por todo lado e sentar eu lhe digo.
- Não vai me contar nenhuma novidade. Pensa que me importo por ter sido um menino pobre e sem pai? Ora, não me olhe assim. Rosa já me contou tudo, faz tempo.
Acha que me importo por ter mentido, trapaceado, roubado? Sei o que é ser pobre, precisar, mas eu tinha minha família. Será que não posso ter pena do menino sem
pensar mal do homem?
- Não sei. Sente-se, Erin, por favor.
- Estou por aqui de ficar sentada. Assim como estou por aqui de andar pisando em ovos no que se refere a você. Realmente, quase morri. Pensei que fosse mesmo
morrer, e só pensava no tempo que nós dois desperdiçamos vivendo como estranhos. Jurei que se voltasse a ficar com você não haveria mais brigas. Agora, faz tempo
que tento me controlar , fico calada quando se afasta de mim. Chega. Se tem mais alguma pergunta, Burke Logan, desembuche, porque ainda tenho muito que dizer.
- Por que não me contou que está grávida?
Erin, apesar das bravatas, sentou-se fia cama, a boca aberta.
- Como sabe?
Burke tirou o exame do bolso e entregou-o a ela.
- Faz um mês que você sabe.
- Sim.
- Não pretendia me contar, ou ia cuidar do assunto sozinha?
- Eu tinha a intenção de contar, mas... o que quer dizer com "cuidar do assunto sozinha?" Mal podia guardar segredo quando... Espere ai, então foi o que você
pensou quando deixei o bilhete falando do hospital. Pensou que eu tivesse ido providenciar para que não houvesse bebê nenhum. Você é um canalha, Burke Logan, capaz
de pensar isso de mim. - Erin levantou-se, deixando o papel escorregar para o chão.
- E o que mais poderia pensar? Tinha tido um mês para me contar.
- Teria contado no dia em que descobri. Vim para lhe contar. Mal podia esperar, mas você começou a fazer um sermão sobre o dinheiro e a carta de meu pai.
Sempre tudo acabava se resumindo a uma questão de dinheiro. Eu vivia tentando lhe entregar meu coração numa bandeja, e você devolvendo. Agora chega. Vou voltar para
a Irlanda e ter o bebê lá. Vamos deixá-lo livre.
Antes que ela saísse do quarto, Burke perguntou:
- Quer o bebê?
- Maldita seja sua estupidez, claro que quero. É nosso bebê. Nós o fizemos na primeira noite que passamos nesta cama. Eu o amava, de todo o coração. Não amo
mais. Detesto você. Detesto por ter me deixado amá-lo assim e nunca dado nada em troca. Nunca, nem uma vez, me tomando nos braços para dizer que me amava.
- Erin...
- Não, nem ouse me tocar agora. Eu tinha medo de que você não fosse querer o bebê, nem a mim, quando descobrisse. Afinal, não incluímos crianças no contrato,
não foi? Você não é homem que goste de se preocupar com os outros, é livre como o vento.
Burke se lembrou dos olhos dela no dia em que fora lhe falar da criança, e lembrou também da mudança do olhar quando ela saiu sem dizer nada. Escolhendo as
palavras com muito cuidado, sabendo que já havia cometido erros suficientes, começou:
- Seis meses atrás você teria razão. Talvez até mesmo seis semanas atrás, mas agora não. Está na hora de sair do círculo vicioso, Irlandesa.
- E fazer O quê?
- Não é fácil para mim dizer o que sinto. Nem sentir é fácil. Quero você e quero também o bebê. - Enquanto falava, Burke aproximou-se e segurou-lhe os ombros.
Erin apertou o anel na mão.
- Por quê?
- Nunca pensei em formar uma família. Jurei quando era garoto que jamais deixaria que alguém me ferisse como meu havia ferido minha mãe. Nunca deixaria que
alguém ocupasse na minha vida um lugar importante demais, suficiente para levar o encontro consigo quando partisse. Daí fui para a Irlanda e conheci você. Teria
ficado lá se você não tivesse voltado comigo.
- Me pediu que viesse fazer sua contabilidade.
- A desculpa era tão boa quanto qualquer outra, para nós dois. Eu não queria me envolver com você. Não queria precisar ver você todos os dias para sentir
que estava vivo. Mas foi o que aconteceu. Pressionei-a para se casar assim depressa porque não queria lhe dar oportunidade de olharem volta e encontrar algo melhor.
- Me parece que tive oportunidade suficiente.
- Nunca sequer estivera com um homem antes.
- Acha que me casei por você ter um certo talento na cama?
- Como você poderia saber? - Burke riu, apesar de tudo.
- Não sei se uma mulher tem de ter montes de amantes para saber distinguir o certo. Sexo é uma desculpa tão esfarrapada para a gente se casar quanto dinheiro.
Talvez nós dois tenhamos sido bobos, eu por pensar que casou comigo pelo primeiro, você por pensar que casei com você pelo segundo motivo. Já disse por que me casei
com você, Burke. Não acha que está na hora de me dizer?
- Tinha medo que você escapasse.
- Bem, por enquanto vou aceitar isso. Aqui está meu anel de casamento. Lembra-se em que dedo deve colocá-lo?
Burke pegou o anel, e a mão de Erin. Tinham tido uma segunda chance, tanto um quanto o outro, e aquilo não acontecia com todo mundo.
- Amo você, Erin.
Viu os olhos dela se encherem de lágrimas, e ficou furioso consigo mesmo por ter demorado tanto para dizer.
- Diga de novo, até ficar bem acostumado.
O anel entrou com facilidade.
- Amo você, Erin, e vou amar para sempre. Você é tudo para mim. Tudo. E vamos criar raízes.
- Já criamos, você é que demorou para notar.
Com todo o cuidado; a mão dele espalmou-se no ventre de Erin.
- Para quando?
- Sete meses, um pouco menos. No Natal seremos três.
- Então é bom descansar. O dia foi cheio. Quero que se deite, já - e Burke ergueu-a nos braços, levando-a para a cama.
- Sim, com a condição de que deite também.
- Como eu sempre digo, Irlandesa, você é uma mulher como eu gosto.

FIM

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Um comentário:

  1. Quero agradecer ao DR.WEALTHY por trazer alegria e felicidade ao meu relacionamento e à minha família. Perdi meu noivo e precisei de ajuda até encontrar o DR.WEALTHY um lançador de feitiços masculino, e ele me garantiu que recuperarei minha noiva em dois dias após o lançamento do feitiço. dois dias depois, meu telefone tocou e, de maneira chocante, foi minha noiva que não me ligou por muito tempo, pediu desculpas pelo coração partido e me disse que está pronta para dedicar o resto de sua vida comigo. DR.WEALTHY a soltou para saber o quanto eu a amava e a queria ...... agora eu e minha noiva estamos vivendo uma vida feliz e nosso amor agora é mais forte do que era antes mesmo de terminarmos.Tudo obrigado ao DR.WEALTHY pelo trabalho excessivo que Ele fez por mim. Abaixo está o endereço de e-mail dela em qualquer situação em que você esteja sofrendo um infarto, e garanto que, como ele fez o meu por mim, ele definitivamente o ajudará também. Email: wealthylovespell@gmail.com Whatsapp +2348105150446

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