domingo, 28 de fevereiro de 2010

Travessuras de um cupido.txt


Título: Travessuras de um cupido
Autor: Irene Northan
Título original: The marriage brokers
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1992
Publição original: 1989


Miranda Branscombe parecida destinada a permanecer solteira para sempre. Era uma moça excêntrica, com idéias muito avançadas para o seu tempo. E não podia ser considerada
uma verdadeira beldade, pois era desajeita e alta demais... Foi então que seu irmão, Richard, decidiu arranjar-lhe um marido, e convidou o amigo Peter para ajudá-lo
na difícil missão. Quando, por fim, encontraram não apenas um, mas dois candidatos à mão da jovem, Peter se sentiu enciumado. Por que lhe doía tanto a idéia de ver
Miranda casada com outro homem?


CAPITULO I

- O senhor não pode estar falando a sério! - Richard Branscombe encarou o pai com expressão de horror no rosto bonito. - Por favor, diga que está brincando, que
falou sem pensar. Diga o que quiser, mas confesse que não está falando a sério!
- Estou, sim! - sir Henry demonstrou uma firmeza que não lhe era habitual. - Se quiser que eu pague suas dívidas, encontre um marido para Miranda! Esta é minha
condição.
- Esta proposta não é razoável! - protestou Richard. - Farei tudo que puder, vou procurar um marido para Miranda com todo o prazer, mas a tarefa é muito difícil,
papai! O senhor sabe que gosto muito de Miranda, que é ela é a melhor irmã do mundo, mas encontrar-lhe um marido, tão depressa, é pedir o impossível!
- Impossível ou não, é a condição que imponho para saldar os seus débitos, Richard.
Raramente sir Henry demonstrava tanta determinação, mas no presente momento estava preocupado, quase em desespero, e transmitia ao filho parte dessa ansiedade.
- Por que ficou tão aflito de repente, papai? Afinal, Miranda tem frequentado a sociedade nestas últimas quatro Temporadas, e o senhor nunca demonstrou tanta
preocupação com o fato de minha irmã continuar solteira. Por que está com pressa de vê-la casada, agora?
- Foram cinco Temporadas, não quatro - corrigiu sir Henry. - E a razão da pressa, como você diz, é que percebi uma certa semelhança de Miranda com a sua tia-avó
Evangeline.
- Oh, não!
Desde pequeno Richard se assustava' com as histórias que lhe contavam sobre a íia-avó, assim como outras crianças se assusta-
vam com histórias sobre ciganos ou fantasmas.
- Sim, é verdade. Você não conheceu Evangeline pessoalmente, meu filho, mas eu ainda tremo ao me lembrar dela - disse sir Henry Branscombe. - Ela não tinha a
menor ideia do que era certo ou apropriado para uma dama. Você não pode calcular o aborrecimento que Evangeline causava à família toda com sua mania de fugir para
o campo, levando pão de queijo nos bolsos, para conversar com os camponeses e distribuir panfletos religiosos. Ela possuía um pombo domesticado, desses que pousam
no ombro das pessoas, você sabe. A ave se comportava muito mal, e sua presença chegava a ser, digamos, pouco higiénica. Evangeline, contudo, não se importava com
isto. O pior de tudo, porém, era aquela mania horrível de usar meias amarelas! - sir Henry fechou os olhos ao recordar.
- Que horror! - Richard espantou-se com tanta falta de gosto. - E o senhor está convencido de que Miranda está ficando parecida com ela? Não é apenas imaginação
sua, papai, porque gostaria de vê-la casada?
- Não, não estou enganado, meu rapaz. Para começar, Miranda está com um filhote de gralha em sua sala íntima. Contou que viu a avezinha caindo do ninho e por
isto a trouxe para casa. Mas seja um pombo ou uma gralha, tudo dá na mesma.
- Sim, na tia-avó Evangeline. Começo a compreender que a situação é urgente, de fato.
- É bom mesmo que você compreenda a gravidade do caso, porque os hábitos estranhos de Miranda podem nos arruinar socialmente, meu caro.
- E o senhor acha que o casamento é o único remédio?
- A menos que você encontre outra alternativa. Sei que nossa sociedade suspeita de solteironas excêntricas. Mas se a mulher for casada seu comportamento não tem
importância, todos se contentam em ter pena do marido.
- Compreendo o que quer dizer - Richard não escondeu sua admiração pela perspicácia do pai.
- Alegro-me com isso, Richard.
Sir Henry se admirava do filho, tão semelhante ao que ele próprio tinha sido na juventude. O rapaz herdara o mesmo rosto bonito do pai, a mesma elegância nata.
Há vinte anos atrás, sir Henry costumava ser chamado de "o cavalheiro mais atraente do condado", título que prazerosamente cedera ao filho. Mas não podia se queixar,
a passagem dos anos não lhe tinha sido cruel; ainda conservava o corpo esbelto e ágil. Além disso, alguns fios grisalhos nas têmporas davam ao seu tipo castanho
um ar três distingue. Richard era mais alto que ele, como Miranda. Sir Henry costumava marcar o crescimento dos filhos com traços a lápis na porta da sala de estudos,
mas abandonara o hábito quando Miranda alcançara quase um metro e oitenta de altura.
- Alegro-me que você tenha compreendido a situação - repetiu sir Henry, dando fim a seus devaneios. - Muito bem, voltemos à questão dos seus débitos. Acho duas
mil libras uma soma exorbitante para você me pedir assim, tão apressadamente. Onde gastou tanto dinheiro? Andou saindo com mulheres?
- Não, papai, apenas exagerei um pouco nas apostas durante um jogo de cartas, e Peter me emprestou o dinheiro na hora.
- O jovem Kerswell? E agora ele está cobrando você? Pensei que era seu melhor!
- Peter continua sendo meu melhor amigo, e não está me cobrando, é claro! Na verdade, ele nunca tocou no assunto, mas sei que está precisando de dinheiro no momento
para realizar um excelente negócio. Peter vai precisar de todo o capital de que puder dispor.
- Se conheço bem o jovem Kerswell, este "excelente negócio" tem quatro patas, o que significa que o pai não vai ajudá-lo.
- Bem, o senhor sabe qual é a opinião de sir John a respeito de corridas de cavalos.
- Sim, conheço as ideias dele e até simpatizo um pouco com elas. Afinal, as pessoas que frequentam as corridas se vestem mal, usam colarinhos em péssimo estado.
Mas o que você acaba de me dizer muda as coisas, meu filho. Peter Kerswell o ajudou em um momento difícil, não é mesmo? Pois agora é seu dever ajudá-lo também.
- Concordo plenamente, papai - aquiesceu Richard, esperanço.
- Talvez eu pague imediatamente a dívida. Mas só farei isso se você se comprometer a aceitar minha condição.
- O senhor quer dizer que ainda preciso encontrar um marido para Miranda?
- Exato.
- Papai, torno a repetir, esta é uma tarefa impossível! Miranda é... Quero dizer, ela não é muito bonita...
- Pode dizer claramente, sua irmã é uma moça sem graça.
- Mais que isto, Miranda é a moça mais desajeitada que já vi. Ficarei muito grato se o senhor pagar minha dívida, mas a condição que me impôs... Oh, está bem,
papai, tentarei fazer o que me pede! Mas não será fácil...
Depois que Richard saiu da biblioteca, sir Henry ficou pensando se não teria sido exigente demais com o filho. Lembrou-se da falta de graça e da deselegância
da filha e soltou um gemido. Realmente, não seria fácil arranjar-lhe um marido. Ele mesmo havia tentado desesperadamente durante cinco anos, sem sucesso. E agora
Richard precisava continuar tentando, pelo menos durante mais um ano. Miranda logo completaria vinte e quatro anos, uma idade significativa. Passando disso, estaria
fadada a ser uma segunda tia Evangeline, uma solteirona sem possibilidade de encontrar marido.
- Apesar de ser uma moça sem graça -, sir Henry comentou em voz alta -, Miranda dará uma excelente esposa, tenho certeza. É meiga, afável, sabe tomar conta
de uma casa e sabe dar ordens à criadagem. Além disso, é inteligente, bem informada e... original!
Sir Henry sentiu-se triunfante ao encontrar o adjetivo certo para descrever o maior atributo da filha.
Richard atravessou o grande parque da propriedade paterna, Branscombe Hall, com a ordem de pagamento de duas mil libras que o pai lhe dera no bolso. Estava aliviado
por poder pagar o que devia a Peter, mas a condição imposta por sir Henry o preocupava. Como não era particularamente inteligente, ficava tenso diante de um problema
e, como sempre fazia quando estava em dificuldade, ia pedir conselho a seu melhor amigo, Peter Kerswell.
Os Kerswell moravam na mansão vizinha, New Park, e eram considerados nouveaux riches, graças à grande habilidade de sir John como banqueiro. Sendo muito discreto,
ele se contentara com um simples baronato, título que já lhe permitia frequentar a alta sociedade. A família Kerswell possuía tanto bom gosto e elegância que sir
Henry Branscombe não hesitara em permitir que seus filhos fizessem amizade com os vizinhos. Peter, Richard e Miranda logo haviam se tonado íntimos.
Por essa razão, Richard Branscombe pegou um atalho que encurtava o trajeto entre as duas propriedades, como fazia desde
criança. Aproximou-se da residência dos Kerswell e nem precisou entrar e pedir ao mordomo que chamasse o amigo, porque logo viu Peter debruçado sobre a mureta
do terraço observando algo.
- Bom dia, Peter!
- Bom dia, Richard. Está muito elegante, como sempre. - O amigo sorriu-lhe. - Foi bom você chegar agora. Quer fazer uma aposta? O Raio de New Park contra a Bela
de Branscombe?
- Que aposta? Você andou comprando novos cavalos?
- Não, desta vez descobri um negócio em menor escala. Corrida de lagartixas. Vai entrar na moda, tenho certeza. - Ele indicou duas lagartixas tomando sol sobre
a mureta.
- Ora, você está brincando! - Richard, às vezes, achava difícil saber quando o amigo fazia graça. - Ouça, eu vim aqui por causa de um assunto sério.
- Algum problema?
Peter endireitou o corpo. Era mais alto que Richard, e poderia ser igualmente elegante se tivesse qualquer preocupação com a própria aparência, pois tinha ombros
largos e pernas musculosas. Preferia, porém, usar roupas mais simples, embora de boa qualidade.
-Então, diga, o que há de errado? - ele insistiu.
Richard entregou-lhe a ordem de pagamento de sir Henry e Peter corou.
- Ora, não havia tanta apressa! - ele exclamou. - Eu podia ter esperado, você sabe.
- Não, você não podia! Emprestou-me boa parte de suas economias e me ajudou muito, mas agora está precisando do dinheiro. Eu não deixaria que perdesse esta boa
oportunidade com os cavalos e fosse prejudicado por minha causa.
- Bem, devo admitir que o dinheiro chega em boa hora. Não é todo dia que aparece uma chance como esta, um belo lote de cavalos que podem disputar as corridas
de Newmarket. Mas não quero causar nenhum problema entre você e seu pai. Sir Henry não ficou irritado?
- Sim... e não.
- Que resposta esclarecedora!
- Quero dizer, ele não ralhou muito comigo, mas impôs uma condição em troca do pagamento da dívida que contraí.
Mandou você ficar longe das mesas de jogo por trinta anos?
Excelente! Pode acreditar, é para o seu bem. Ouça o que eu lhe digo, você não tem sangue de jogador, tanto que acabou caindo nas mãos daquele bando de espertalhões.
Não percebeu que os homens não prestavam? Faziam mais sinais entre eles que o telégrafo da marinha! Evidentemente, estavam à espera do primeiro pato que aparecesse
para depená-lo...
- Papai não me proibiu de nada - Richard irritou-se por ser descrito como um pato. - Trata-se de Miranda.
- Miranda?
- Sim. Prometi que vou achar um marido para ela o quanto antes. Peter, você precisa me ajudar! Nem sei por onde devo começar!
- Richard, não é minha intenção criticar Miranda, é claro. Na verdade, gostaria que qualquer uma de minhas irmãs fosse tão agradável quanto ela. Sua irmã é uma
ótima moça. Mas encontrar-lhe um marido... Com todos os diabos! Ela já está no mercadode casamentos há algum tempo, não é?
- Sim. Oh, se ao menos papai houvesse se casado novamente depois que mamãe morreu! Uma madrasta cuidaria melhor deste assunto. Mas papai insiste que eu preciso
encontrar alguém, em troca do pagamento da dívida. O que devo fazer agora? Terei de passar o resto de meus dias procurando um marido para Miranda? Oh, como eu gostaria
de nunca ter chegado perto de um baralho! Nunca mais vou jogo de novo...
- Não fique assim - Peter consolou-o, vendo que o amigo estava à beira do desespero. - Vou fazer tudo o que puder para ajudá-lo, e juntos encontraremos uma saída.
Primeiro, vamos estudar o assunto de um modo prático. Podemos começar fazendo uma lista das qualidades de sua irmã. Ela é bem-nascida, bem-educada, tem mais juízo
que a maioria das moças que conheço.
- É também meiga, gentil e carinhosa, não se esqueça disso- Richard atalhou rapidamente.
- É verdade, Miranda é a melhor moça que conheço. E qual é a situação financeira dela?
- No momento, papai lhe dá três mil libras por ano, mas sei que seria muito generoso na hora de estipular o dote.
- Ótimo! Agora, quanto ao marido, em si...
- Ele precisa ser um homem decente! - exigiu Richard. - Você sabe, Miranda é minha irmã e gosto muito dela. O sujeito precisa ser... um cavalheiro.
- Claro que precisa! Eu também gosto muito de Miranda. Acha que eu a magoaria, deixando-a cair nas mãos do primeiro desconhecido que aparecesse? Não, Miranda
precisa ter o melhor marido que pudermos arranjar. Devo conhecer pelo menos uma dúzia de candidatos com excelentes qualidades, em idade de casar. O único problema
na vida deles é a falta de dinheiro.
- Para evitar enganos -, disse Richard, que não confiava muito nas "excelentes qualidades" dos amigos de Peter -, vamos fazer uma lista dos atributos que o futuro
marido de Miranda deve ter enquanto procuramos o candidato. Para começar, já concordamos que precisa ser um cavalheiro.
- Certamente. Depois... Ora, veja, não é Miranda que vem chegando pelo bosque?
Os dois rapazes, que haviam deixado o terraço e começado a caminhar enquanto conversavam, tinham chegado à divisa da propriedade; da direção de Branscombe Hall
se aproximava uma moça alta e desajeitada.
- É ela mesma - Richard suspirou. - O que será que veio fazer por aqui?
Apesar do ar puro e do exercício, Miranda Branscombe continuava pálida como sempre. Além disso, o vento que soprava do mar lhe deixara úmidos e despenteados os
cabelos castanhos. Ao ver os dois rapazes, os olhos castanhos de Miranda brilharam de alegria. Ela sorriu.
Richard não reparou na expressão inteligente no rosto da irmã, notou apenas uma ponta da blusa escapando de debaixo do casaco de montaria que ela usava e a saia
suja em razão do passeio pelo bosque. Ela lutava para afastar os dois cachorros que a acompanhavam.
- Céus, nossa tarefa será impossível! - Richard murmurou.
Peter não o ouviu porque correra para controlar os cães.
- O que você tem no bolso para causar tanto interesse nestes selvagens? - ele perguntou, rindo.
- Vou mostrar, assim que Richard chegar mais perto. Quero me divertir com o espanto dele - respondeu Miranda, protegendo o bolso grande do casaco com as mãos.
- Realmente, Miranda -, Richard comentou ao aproximar-se -, não vê como está desarrumada?
- Ora, esqueça minha aparência, irmãozinho!
- Mas você está horrível!
- Não se preocupe com isso, querido. Você sabe que ninguém presta atenção em mim. Garanto que os vizinhos têm mais o que fazer do que se preocupar com minha aparência.
- Você está totalmente enganada, os vizinhos... Miranda! Seu bolso! - o irmão exclamou alarmado.
- O que há de errado com meu bolso?
- Ele se mexeu!
- Que bobagem! Bolsos não se mexem. O conteúdo deles pode se mexer, mas os bolsos, nunca!
- Miranda, o que você tem aí dentro? - Richard perguntou quase gritando, porque os cachorros latiam.
- Você quer mesmo ver o que é? Não teme levar uma mordida? - ela brincou.
- Miranda!
- Está bem, mas ajude Peter a segurar estes cães horríveis.
Ela abriu o bolso com cuidado e os dois rapazes viram um par de olhos escuros numa carinha peluda e duas grandes orelhas.
- Um filhote de coelho! Que belezinha! - Peter sorriu.
- Oh, como você pode ter uma coisa destas no bolso? - Richard disse em tom de desaprovação. - O animal está sujo! O que pretende fazer com ele, pelo amor de Deus?
- Foi Joe Townson quem me deu o bichinho. Ele o encontrou perto da mãe morta e não teve coragem de matá-lo para comê-lo.
- Se Townson é tão sentimental, por que não ficou ele mesmo com o coelho?
- Ora, você conhece os Townson. Moram em uma casinha muito pequena, cheia de crianças e cachorros. O coelhinho não sobreviveria muito tempo no meio deles. Mas
eu lhe arrumarei uma caixa quentinha, perto da lareira, em minha sala íntima.
- Miranda, você não pode fazer isso! Não conheço nenhuma lady que crie um coelho em seu boudoir. O que irão pensar de você? Vão considerá-la uma excêntrica!
Richard não disfarçava o desespero, lembrando-se da tia-avó Evangeline. E ela só tinha um pombo de estimação! Miranda, por sua vez, tinha uma gralha, além de
vários cães e, agora, um coelho. Era demais!
- Pois eu acho que um coelhinho de estimação é uma graça! - Peter exclamou, rindo muito. - Quero vê-lo quando estiver correndo pela casa.
- Se o aguentarmos até lá - Richard comentou amargamente. - Oh, céus, aconteceu o que eu temia! Veja sua saia, Miranda. O animal fez uma coisa muito desagradável.
Não foi o coelho - ela respondeu calmamente. - Foi o bebé .dos Townson. Eu carreguei a criança no colo.
Richard, mortificado, soltou um suspiro. Peter riu ainda mais.
- Por favor, vá para casa, Miranda - disse Richard. - Troque de roupa antes que alguém a veja.
- Se isto o aborrece tanto, eu vou. Mas preciso me apressar, porque prometi ir à casa do velho Cummings. Ele recebeu um panfleto contra as iniquidades da nova
Lei do Jogo e da Caça. Preciso ler o panfleto para o coitado, porque ele está quase cego.
- Miranda e suas ideias estranhas! - o irmão comentou, escandalizado, acrescentando quando ela se afastou: - Nunca encontraremos um marido para Miranda! É impossível!
- Não pense em fracassar antes mesmo de começarmos a procurar o candidato ideal. - Peter argumentou com ar pensativo.
- Ser casado com Miranda teria lá algumas vantagens. Por exemplo, a vida doméstica nunca cairia na rotina... Mas do que é que estávamos falando, mesmo, quando ela
chegou?
- Estávamos decidindo quais seriam os atributos necessários ao futuro marido de minha irmã. Contudo, como podemos exigir que o candidato tenha qualidades se Miranda
é uma moça sem graça, cria em sua sala íntima bichos estranhos, não se incomoda com a própria aparência e ainda se propõe a ler panfletos com ideias radicais para
velhos cegos? - Richard encarava a situação com pessimismo.
Peter preferiu simplificar a situação ao máximo:
-Na verdade, meu amigo, o candidato precisará ter uma única qualidade: tolerância!

CAPITULO II

Se Richard esperava que o amigo começasse a procurar um marido para Miranda de imediato, deve ter ficado desapontado. Em vez de se dedicar a esta tarefa urgente,
Peter partiu no início da tarde, tendo arrumado as valises apressadamente, contrariando os criados de quarto. Foi a Berkshire concluir a compra dos cavalos de corrida,
o que Richard considerou uma frivolidade, já que ele tinha um assunto mais sério a tratar.
Na ausência de Peter, Richard não teve outra opção a não ser começar a procurar o candidato a marido por conta própria. Fez uma lista dos solteiros e viúvos que
moravam por perto, mas depois de eliminar os que não eram ricos, os bêbados e os que já haviam demonstrado que não queriam casar com Mirando, sobrou apenas um. Era
um viúvo de meia idade, com muitos filhos e uma pequena propriedade.
- O coronel Marks? Nunca! - explodiu sir Henry quando o filho sugeriu o único candidato. - Ele é um homem doentio, duvido que compre um casaco novo por
ano! Eu não poderia chamá-lo de meu filho! E o que é pior, ele pode querer me chamar de "pai". Não, ele não serve. Pense em outra pessoa.
O pobre Richard riscou o nome do coronel e suspirou, ansioso pela volta de Peter. Cabisbaixo, foi até a sala. Entrando no aposento, Miranda reparou na expressão
preocupada do irmão.
- Você está aflito com alguma coisa, querido? Passou o dia todo de cenho franzido, está até com a testa marcada.
- Não, isso não! - Richard, muito alarmado, correu para o espelho mais próximo e esfregou a testa. - Está melhor agora?
- Muito. Você está tão lindo como sempre - Miranda garantiu. - Mas não respondeu minha pergunta. Alguma coisa o aflige? Está devendo dinheiro ou, meteu-se em
alguma enrascada? Se for isto, sabe que sempre pode contar comigo.
- Eu sei, mas não é este o caso. Tudo está bem, eu garanto.
Richard sentiu-se pouco à vontade com as perguntas da irmã. Ela sempre percebia quando ele estava com problemas ou enfrentava alguma dificuldade mais séria. Miranda
o ajudava desde criança, apesar de ser uma ano mais nova.
- Tem certeza? - ela não parecia convencida. - Fui convidada para tomar chá com os Crawford, mas terei prazer em não ir se você preferir que eu fique.
- Ora, não há nada errado. Vá, e divirta-se!
- Está bem, se é o que deseja... Acho melhor eu sair logo, assim posso passar pela casa de Jem Price, que fica no caminho. O telhado está com goteiras e alguma
coisa precisa ser feita.
Quando Miranda partiu, Richard lembrou-se de um fato que o preocupou. Se ela se casasse, quem cuidaria da propriedade e dos criados? Na verdade, os problemas
eram apresentados a sir Henry, mas todos sabiam que quem resolvia tudo era a srta. Branscombe. Richard ficou ainda mais perturbado. Teria de enfrentar sozinho os
problemas de contabilidade e administração das terras? Não poderia, não era esperto e capaz como Miranda!
Sentindo-se entre a cruz e a caldeirinha, Richard pensou nas dificuldades durante uma semana, sem reparar que a irmã o observava em silenciosa ansiedade. Ele
sentiu um grande alívio quando Peter finalmente voltou e foi visitá-lo.
- Meu querido amigo, pensei que você tinha partido para sempre!
- Que recepção! - Peter riu. - Eu fui só até Berkshire, não dei a volta ao mundo.
- Seja qual for o lugar, você parece muito bem - Miranda comentou.
- E tenho motivos - Peter estendeu as pernas depois de sentar-se e aceitou o copo de vinho que Miranda lhe ofereceu.
- Não é todo dia que um homem tem uma chance de ouro, o melhor negócio do mundo.
- Na última vez que ouvi uma história parecida você se deu mal - disse Miranda.
Foi falta de sorte, pode acontecer com qualquer um - argumentou Peter. - Mas agora o cavalo tem cor diferente, se posso usar uma metáfora. Só que não é um cavalo
pequeno, é todo um lote. Comprei uma parte dele.
- Trata-se, realmente, de uma aventura arriscada. Quantos animais você tem? - Miranda perguntou, demonstrando interesse.
- No momento, apenas seis, mas pretendo trazer potros de boa qualidade da Irlanda para serem treinados aqui. Um de meus sócios vai cujdar disto, ele entende muito
do assunto.
- Você vai precisar de um bom estábulo para levar avante este projeto.
- Oh, nós já o temos. É uma boa construção de tijolos e pode durar para sempre. Fez parte do negócio, gastei até o último centavo que consegui amealhar. Mas valeu
a pena, estou satisfeito. Se não tivesse capital, não teria me metido no negócio. Claro, não espero lucros nos próximos dois ou três anos, talvez até mais. Mas vamos
nos concentrar em cavalos de primeira classe e estou convencido de que no fim meu investimento trará grandes lucros, além do prazer de lidar com os animais. Ora,
por que você está rindo?
- Eu estava pensando - Miranda não conteve o riso. - Seu pai ficaria muito surpreendido se o visse falando de negócios, as sim. Sabe, você fala exatamente como
ele!
- Não diga isso! Meu velho ficaria horrorizado. Ele me considera um cabeça-oca,
- Sir John ficaria muito mais horrorizado se ouvisse o filho chamá-lo de "meu velho"! Mesmo assim, Peter, você fica mais parecido com ele a cada dia que passa.
A única diferença é que seu pai emprega a inteligência em sérios assuntos financeiros, e você nas corridas de cavalos. Espero que o contrato do estábulo esteja bem
feito.
- Claro que está! Acha que sou tolo? Consultei Meredith, com quem trabalhei vários anos, e ele achou tudo certo e legal. Um bom advogado sempre vale seus honorários.
- Peter também começou a rir. - Você tem razão, Miranda. Estou começando a falar como meu velho. Acho que é porque agora também sou um homem de negócios.
Richard ouvia a conversa sem disfarçar a impaciência. Além de não se interessar pelo assunto, ele queria discutir com Peter um problema vital para seus interesses.
- Toda esta conversa sobre cavalos me deu vontade de dar um bom galope - declarou Richard com falso entusiasmo.
- Eu posso acompanhá-lo, se Miranda nos -der licença.
Peter compreendeu a ânsia do amigo em se afastar dali, mas Miranda estranhou a súbita necessidade de movimento e ar puro.
- Dou licença, naturalmente, assim que descobrir o que vocês dois estão tramando.
- O que quer dizer? - Richard desviou o olhar assustado para o amigo.
- Você está ficando muito desconfiada, Miranda - Peter comentou com calma. - Por que acha que estamos tramando algo? Não nos vemos há uma semana, temos muito
o que conversar.
- Quando quiser um companheiro para uma conspiração, não escolha Richard - ela respondeu. - Ele não sabe fingir. Enquanto você esteve fora ele andou muito ansioso,
e nesta última meia-hora nem conseguiu parar sentado. Eu sei que vocês estão tramando alguma coisa.
- Pois bem, senhorita desconfiada. Terá de aguentar mais algum tempo até satisfazer sua curiosidade. Mas prometo que acabará sabendo de tudo, no final.
- Peter! - Richard exclamou logo que saíram da sala. - Eu tive uma ideia brilhante!
- Teve? Congratulações, meu amigo.
- Ora, não brinque! Essa história de encontrar um marido para Miranda tem me preocupado muito, mas lembrei-me de alguém que pode nos ajudar. Não podemos pedir
que lady Kerswell nos dê alguns conselhos? Afinal, sua mãe tem experiência, já conseguiu casar suas quatro irmãs.
- Mamãe não fez muita coisa - Peter pareceu menos entusiasmado. - Vivia apenas preparando listas de convidados para festas, e a toda hora pedia mais dinheiro
ao velho para os enxovais. As meninas fizeram tudo sozinhas. Quando decidiam que um pobre coitado servia, fisgavam-no como a um peixe. Sophia, por exemplo, resolveu
agarrar Bagshaw no momento em que o viu, e ele não teve mais a menor chance de escapar. Não, acho que não devemos envolver minha mãe neste assunto, a não ser como
último recurso. Além disso, já encontrei um excelente candidato para a mão de Miranda.
- Encontrou? - Richard espantou-se. - E por que não me disse antes?
- Porque estava preocupado com outras coisas. O estábulo...
-Eu sei, eu sei - o amigo interrompeu-o. - Mas quem é ele? Você o conhece? É de boa família?
- Qual pergunta devo responder primeiro? Está bem, pare de-me aborrecer e eu conto. O nome do cavalheiro é Arnold Denley, acho que você não o conhece porque ele
não costuma frequentar a sociedade. É um cavalheiro de ótimo caráter, e nunca teve energia para ser mais nada na vida. É solteiro, tem uns trinta anos, uma boa renda,
e pertence a uma boa família, já que é aparentado com os Kerswell. É meu primo em segundo ou terceiro grau, não me lembro. Mas já está na idade de se casar.
- Parece perfeito - Richard comentou.
- Parece mesmo, não é? Na semana que vem Arnold virá passar alguns dias em minha casa, e teremos oportunidade de conhecê-lo melhor. Ele será apresentado a Miranda,
e ambos descobrirão que se atraem mutuamente.
- E se não houver atração mútua?
- Não lhes daremos oportunidade de escolha. Vamos organizar as coisas de tal modo que estarão noivos em um mês. Um assunto tão importante não pode ficar só nas
mãos deles. O ver dadeiro amor precisa do auxílio de pessoas decididas.
Este comentário sugeria que Peter já tinha alguma coisa em mente, o que Richard achou muito reconfortante. Mas a prática o ensinara a ser precavido em relação
aos planos do amigo.
- Como pode estar tão seguro de que tudo dará certo? Seu primo está procurando uma esposa?
- Arnold ainda não sabe que precisa de uma esposa. Precisamos persuadi-lo disto. Até hoje ele tem se esquivado da ideia de casamento, fica nervoso só de pensar
no assunto. Não nos visitava quando as minhas irmãs eram solteiras por causa disto. Arnold imagina que vai ficar apenas com meus pais e comigo durante a visita.
Coitado, ainda não sabe que meus sobrinhos também virão. Espero que seus nervos resistam à balbúrdia das crianças!
Richard, que conhecia os sobrinhos de Peter, começou a ter pena de Arnold Denley.
- Mas ele está bem, não é? Seu primo Denley, quero dizer. Esta história de nervos...
- Se está bem? Claro! Arnold não é louco, se é o que você quer saber, apesar de ter a saúde um pouco frágil. Mas a não ser por isto, é um ótimo partido para Miranda.
Além do mais, ela gosta de cuidar dos outros, e ele terá alguém para mimá-lo.
- É verdade - Richard animou-se. - O plano pode funcionar. A sra. Hart, que foi nossa nanny, deve acompanhar Miranda quando ela se casar, e também adora cuidar
de inválidos.
- Está vendo? Os três serão muito felizes, eu garanto.
Mais calmo, Richard aguardou ansiosamente a chegada do sr. Denley. Miranda, que sempre era sensível aos humores do irmão, reparou que em vez do cenho franzido ele
demonstrava entusiasmo, agora. Teria se alegrado com a mudança se não notasse também que havia um brilho estranho nos olhos verdes de Peter Kerswell.
"Não há dúvida, estes dois estão tramando alguma coisa", disse a si mesma em pensamento.
Por sorte, Miranda não sabia que a trama a envolvia. Reconhecia que era uma moça sem atrativos pelo modo como as pessoas a olhavam. Até a sra. Hart, que se consolara
durante muitos anos com a ideia de que uma menina que é feia no berço geralmente se transforma numa beldade quando adulta, já perdera as esperanças naqueles vinte
e três anos. Miranda sabia que o pai se entristecia por sua causa, e Richard ficava embaraçado quando a apresentava a alguém, mas o fato de não ser bonita tinha
suas compensações. Como não era uma "ameaça" feminina, todos a recebiam bem, e ela possuía um grande círculo de amigos. E se era feia, que importância tinha seu
interesse por assuntos excêntricos? Miranda Branscombe estava sempre a par do que acontecia por toda Europa, estudava os peixes que habitavam os fundos das lagoas,
procurava compreender o funcionamento dos motores a vapor, enfim, interessava-se por qualquer assunto que lhe despertasse a curiosidade.
Miranda não se surpreenderia se soubesse do interesse do pai em casá-la, mas considerava tal ideia um sonho impossível. Como uma moça feia como ela encontraria
um marido? E para que se atormentar com o assunto? Preferia dedicar-se aos amigos e cuidar da casa e da propriedade. Vivia ocupada e feliz.
Quando chegou o convite para o jantar na casa dos Kerswell, Miranda não sabia que queriam apresentá-la a um possível pretendente, e vestiu-se com sobriedade.
Richard passou a tarde nervoso, e sir Henry, que tinha tomado informações sobre o sr. Arnold Denley, experimentou mais de dez gravatas até ficar satisfeito com a
própria aparência. Afinal, ia conhecer o possível genro e queria causar boa impressão.
-Peter disse para agirmos com naturalidade. Ele cuidará da flecha do Cupido - Richard sussurrou ao pai com ar de conspirador.
Sir Henry concordou alegremente porque gostava, como o filho, que outros resolvessem seus problemas por ele.
Ao entrarem no grande salão de New Park, os Branscombe viram Arnold Denley pela primeira vez.
Sir Henry reparou que o cavalheiro estava usando uma sobrecasaca no estilo Wellington, o grito da moda. Era de veludo azul e combinava perfeitamente com a calça
cinza. Além disso, usava o laço da gravata à Ia Byron. "Eu não me envergonharia de genro destes", pensou consigo mesmo.
Richard entusiasmou-se menos, porque notou logo que o sr. Denley era vinte centímetros mais baixo que a futura noiva. O rapaz podia ser tudo o que Peter havia
dito, mas tinha um ar imbecil e movimentos lânguidos.
Miranda não sabia que estava encontrando um candidato a marido. Viu apenas um homenzinho pálido,, doentio, e ficou com pena dele.
No momento em que todos se sentaram para jantar, o sr. Denley teve oportunidade de iniciar uma conversa com os anfitriões.
- Meus queridos primos, foi muita amabilidade de sua parte me convidarem para passar alguns dias aqui. Eu não gostaria de pregar-lhes um susto desnecessário
e, sendo assim, deixem-me preveni-los de que posso ser encontrado morto na cama qualquer dia desses.
Todos ficaram em silêncio e o olharam espantados. Miranda, que estava sentada à direita do convidado, foi quem primeiro se recobrou do choque.
- Costuma sofrer de melancolia, senhor? - ela perguntou, delicadamente.
- Oh, sim. Sofro diariamente. Quem tem uma constituição frágil como a minha precisa estar preparado para receber o beijo da morte. A qualquer momento posso cair
fulminado por um ataque do coração. Antes mesmo de terminar o jantar, por exemplo, posso partir para o Além!
O sr. Denley parecia muito entusiasmado com tal perspectiva, mas os outros convidados preferiram ocupar-se em satisfazer seus apetites e não lhe deram a devida
atenção. Foi Miranda, novamente, quem respondeu, aparentando calma.
- Não faça uma coisa destas, senhor. Lady Kerswell se preocupa muito com o bem-estar de seus convidados, e ficaria triste se o senhor partisse tão prematuramente,
antes de terminar o jantar.
- É verdade, srta. Branscombe. Muito bem lembrado. Em consideração à lady Kerswell, *minha querida prima, vou me esforçar para permanecer neste invólucro
mortal até o final da refeição.
Todos os convidados continuaram jantando animadamente. Apenas o mordomo pareceu ficar impressionado com as palavras de Arnold Deniey. Vendo que não conseguia
manter a atenção geral, o rapaz consolou-se conversando com a infeliz Miranda sobre suas várias enfermidades.
- Está vendo? - Peter comentou com Richard quando as senhoras saíram da mesa. - Eles estão se dando muito bem.
Arnold Denley acompanhara as damas porque não suportava fumaça de charuto, e o vinho do porto lhe causava dispepsia.
- Peter, você está convencido de que seu primo é um bom candidato? - Richard perguntou, em dúvida.
- Convencido? Claro que estou! Eles formam um casal ideal!
O rosto de Peter era uma máscara de inocência.
- Como você pode dizer isto? Denley fica abaixo dos ombros de Miranda. Além disso, é muito aborrecido!
- Um pouco egocêntrico, realmente. Mas temos outra alternativa?
Richard foi obrigado a admitir que não, e murmurou:
- Só espero que eles não venham nos visitar com frequência depois de casados. Miranda pode aparecer quando quiser, é evidente, mas Denley...
Mais tarde, na mesma noite, quando voltaram a Branscombe Hall, Richard perguntou a opinião da irmã sobre o visitante dos Kersweíl.
- O rapaz é bonzinho, mas só se preocupa com seus sofrimentos. Coitada de lady Kerswell, não será fácil para ela distrair o sr. Denley. Precisamos ajudá-la.
Não havia muito entusiasmo no comentário, mas não faltava simpatia. Richard procurou não pensar que Miranda teria dito a mesma coisa de qualquer mendigo. Preferiu
pensar positivamente. Miranda estava preparada para encontrar Denley outras vezes, e isto era um bom sinal. O resto ficaria a cargo da habilidade de Peter.
E o amigo esmerou-se, nos dias seguintes, em seu papel de Cupido. Cuidava para que Miranda sentasse ao lado de Denley durante as refeições, colocava-os na mesma
carruagem quando saíam todos a passeio, e procurava aproximá-los nas mesas de carteado. Arnold Denley ficava muito feliz com isto, porque Miranda era atenciosa e
ele podia queixar-se à vontade de seus males diante dela. Depois de três semanas, porém, Peter cansou-se de tantos esforços. A companhia de Denley refreava a alegria
natural das pessoas, e Peter começou a ter pena de Miranda por ter de passar o resto da vida ao lado de um homem assim.
Os Branscombe, pai e filho, consideravam o casamento de Miranda apenas uma questão de tempo, apesar de não comentarem nada com ninguém. Quanto a Arnold Denley,
devia ficar satisfeito; onde encontraria uma esposa melhor que Miranda? A conversa aborrecida do rapaz era considerada apenas um leve defeito. Richard e sir Henry
haviam adotado uma atitude complacente, e assustaram-se ao perceber que o sr. Denley partiria dentro de poucos dias, mas ainda não fizera o pedido de casamento.
- O que devemos fazer? -Richard perguntou a Peter, em tom ansioso. - Seu primo partirá na quinta-feira e nunca mais o veremos!
- Por mim, não sentirei saudades - o amigo desabafou. - Ele me deu uma aula completa sobre o funcionamento do fígado, logo no café da manhã! Ouça o que eu digo,
Richard, tenho sérias dúvidas sobre este casamento. Miranda é muito boazinha, não merece passar o resto da vida aturando Arnold.
- Oh, mas é necessário! - Richard exclamou, em pânico. - Precisamos casá-la, este assunto é urgente! A cada dia que passa ela fica mais parecida com a tia-avó
Evangeline. A gralha já começou a voar pela casa e atacar as criadas. E Miranda só dá risada! Denley precisa se casar com ela, depressa!
Miranda tinha contado o caso a Peter, o ataque da gralha não passara de um pequeno incidente. As criadas já haviam alimentado a ave e feito amizade com ela. Mas
Peter reconhecia que Miranda precisava encontrar um marido. Era uma moça inteligente e capaz, não podia ficar solteira no mundo moderno de 1820. Arnold Denley tinha
de servir como candidato.
Neste momento, Peter teve um de seus rasgos de inspiração, tão temidos pela família e pelos amigos.
- Não tema, meu caro Richard - ele declarou em tom dramático. - Será feito a sua vontade!
- Como?
- Mamãe organizou uma festa campestre para meu primo. Será amanhã. Sei que sua família receberá um convite porque eu mesmo mandei entregá-lo. Amanhã será o dia
em que o primo Denley cairá de joelhos, se a relva não estiver úmida, e pedirá a mão de Miranda.
- Como você tem tanta certeza?
- Ora, o cenário será perfeito: a sombra das árvores frondosas, os cisnes deslizando suavemente no lago, a brisa fresca... Arnold não resistirá e fará a proposta,
mas talvez precise de nossa assistência. Agora ouça o meu plano...
Richard ouviu. No início, com esperança e otimismo, mas depois com crescente horror.
- Eu jamais farei isto! Nunca! Nunca! - declarou quando Peter calou-se.
- Coragem, meu amigo - Peter comentou gravemente, pondo a mão em seu ombro. - Tempos difíceis exigem medidas drásticas. Pense no futuro de Miranda. Você pode
falhar com ela neste momento tão vital?
Não, acho que não. Está bem, vou fazer o que você diz -respondeu Richard, sem nenhum entusiasmo.

CAPITULO III

A festa campestre de lady Kerswell tinha todos ingredientes necessários para ser uni sucesso. A comida e o vinho eram excelentes, e o dia estava agradável, ensolarado.
Um quarteto de músicos enchia o ar com suaves melodias. Os convidados passeavam sobre gramado bem cuidado de New Park, deliciados por poderem estar ao ar livre,
à vontade, após o inverno rigoroso. Alguns jovens mais animados descobriram que havia recantos deliciosos para o flerte no parque.
- É pena que a gente não possa deixar a natureza seguir seu curso - comentou Richard, observando uma mocinha que fugia rindo de um oficial do exército. - Todos
parecem cuidar muito bem da própria vida amorosa. Por que Miranda e Denley não conseguem fazer o mesmo?
- Ah, mas estamos tratando de casamento, não de amor -Peter observou sabiamente.
- É verdade, existe uma diferença.
- Claro que sim! E agora, você já decorou sua parte?
- Sim. Fiquei acordado a noite toda decorando o que tinha a dizer. Devo estar com uma aparência horrível, com os olhos vermelhos como os de um bêbado.
Pela primeira vez Peter não encontrou palavras para encorajar o amigo, pois ele estava realmente com uma aparência péssima.
- Não importa, Richard, contanto que você se lembre do que precisa fazer. Eu organizei as mensagens, agora trata-se apenas de uma questão de tempo. Miranda precisa
chegar lá antes do primo Denley... Oh, veja, que sorte ingrata! Eles já estão juntos. Passei semanas tentando aproximá-los, e na única ocasião em que precisavam
ficar separados, estão conversando animadamente!
- Pelo visto, estão gostando da conversa - disse Richard.
- Você acha que poderia haver alguma chance de Denley propor casamento a Miranda sem nossa ajuda?
- Nem posso imaginar a ideia! Se o primo Denley está tão prosa, deve estar falando de suas doenças. Vejamos, ele já falou do fígado, dos pulmões, da bexiga,
do coração... Sobraram os rins. Aposto uma coroa de ouro como o assunto da conversa é a dor que ele sente nos rins.
- Aposta aceita - Richard murmurou, desanimado.
Peter e Richard, no entanto, estavam enganados. Arnold não discorria sobre sua saúde, e sim sobre seus planos para deixar este mundo de maneira digna.
- O querido reitor Brownjohn foi muito amável, conversamos durante mais de uma hora para acertar os detalhes do funeral. Tudo precisa ser muito bem organizado,
não é mesmo? O deão de Bath e Wells concordou em dizer a oração fúnebre, e eu lhe enviei várias notas pessoais para orientá-lo, falando de meu sofrimento na terra
e de minha fragilidade. Ele agradeceu muito e disse que nunca tinha recebido tanta assistência em um caso assim. Mandei imprimir o programa completo, com capa preta
e letras douradas, naturalmente. É minha leitura preferida, muito reconfortante. Poderia arrumar o xale no meu pescoço, por favor? Posso jurar que o vento esfriou.
Miranda reprimiu um suspiro e fez o que o rapaz pediu, embora a superfície do lago parecesse lisa como um espelho, sem o menor sinal de brisa. Ela desejava fugir
do entediante do monólogo do sr. Denley, mas não tinha coragem de deixar o pobrezinho a sós. Todos os vizinhos já sabiam como evitá-lo discretamente.
Além da conversa aborrecida sobre o funeral, Miranda tinha outro motivo para querer afastar-se do sr. Denley naquela tarde. Queria conversar com Peter e Richard
porque sabia que estavam tramando alguma coisa, apesar de teimarem que não. Ao vê-los de longe, passeando pelo gramado, ela percebia, por detrás da aparência elegante,
o ar travesso e endiabrado deles, principalmente de Peter. Miranda sabia que eram capazes de despejar sal no ponche ou esconder rãs entre as tortas sobre a mesa.
Portanto, não podia afastar os olhos deles para evitar qualquer desastre durante a festa.
Além disso, Miranda gostaria de encontrar-se com a nova vizinha, uma viúva de ideias radicais, muito interessante. A sra.
Parkinson tinha prometido entregar a Miranda alguns panfletos sobre a construção de vilas rurais, um conceito positivamente revolucionário. Miranda pretendia
receber os papéis com discrição, pois sabia que sir Henry não aprovaria sua nova amiga.
O criado do sr. Denley aproximou-se de repente, chamando-o para tomar a dose diária de calmante. Miranda aproveitou a chance e levantou-se rapidamente.
Estava passeando, à procura da sra. Parkinson, quando outro criado aproximou-se e entregou-lhe um bilhete. Ela leu a mensagem:
Querida srta. B,
Por favor, encontre-me no estaleiro dos barcos. Peço-lhe que aguarde minha chegada, trata-se de assunto muito delicado. A tenciosamente,
As duas iniciais no final do bilhete estavam borradas, ilegíveis. Miranda estudou-as durante algum tempo e concluiu que eram um "H" e um "P", de Hester Parkinson.
Sorriu. Aquela senhora, apesar dos pontos de vista modernos, parecia um tanto dramática.
"Ou talvez eu tenha exagerado quando pedi que me entregasse os folhetos discretamente", pensou Miranda. "Seja qual for a razão é melhor que eu vá até o estaleiro
e descubra de que se trata."
O estaleiro, como costumavam chamar a casa de barcos, era uma construção de madeira à beira do lago, e contrastava violentamente com o luxo grandioso do resto
de propriedade. Esta simplicidade toda era devida a uma discussão entre sir John e a esposa.
- Quero uma construção imponente, algo como um templo grego, com uma ou duas esculturas de mármore na frente - tinha declarado John Kerswell.
- Precisamos, meu amor -, a mulher respondera com igual determinação -, é de uma bela casa de verão com largos degraus chegando até a água, onde as acrianças
poderão brincar quando vierem nos visitar.
Como resultado do impasse, a casa de barcos continuou em seu estado lastimável, esperando a ruína total. Miranda foi até lá, abriu a porta e sentou-se no interior
cheio
de teias de aranhas, à espera da amiga.
- Lá vai Miranda - Peter murmurou, observando-a por de trás de uns arbustos. - O primo Denley não deve demorar.
- Talvez ele nem apareça - Richard murmurou, constrangido.
- Ele sempre aparece, não tenha medo - Peter animou-o.
- Enviei um bilhete que ele não pode ignorar. Diz o seguinte: "A cura para todos os seus sofrimentos está à sua espera na casa de barcos. Não demore e vá sozinho."
Richard suspirou.
- Você tem razão. Denley não perderia a oportunidade de tentar outra cura milagrosa. Ele não sabe que o único remédio é o casamento com Miranda...
- E você não considera o casamento como uma cura para tudo? Vamos, Richard, nunca pensei que você fosse um cínico. Ah, quanto mais penso em nosso plano, mais
estou convencido de que será melhor para todos! Miranda terá um marido, você cumprirá sua obrigação com seu pai, e Arnold terá quem cuide dele. O casamento com Miranda
lhe fará muito bem, ouça o que eu digo.
O entusiasmo de Peter seria muito encorajador se Richard não notasse que era falso. Preocupou-se, porque, conhecendo o amigo, sabia que ele disfarçava segundas
intenções.
- Vamos abandonar todo o plano e voltar à festa! - exclamou Richard, de súbito, amedrontado. - Pode ser um desastre total, e pagaremos caro pelo erro. Além disso,
este lugar é muito úmido e já estou com os pés molhados. Vamos embora, agora!
- Não seja um fraco, tudo vai dar certo - Peter segurou-o pelo braço. - Não o deixarei fugir, e você ainda vai mé agradecer por isto. É nossa última chance de
forçar o primo Denley. Veja, lá vai ele!
Richard, ainda relutante, escondeu-se atrás dos arbustos. O sr. Denley chegou à casa de barcos, com o rosto pálido demonstrando grande curiosidade.
- Olá, quem está aí? - Arnold perguntou, de perto da porta. - Há alguém aí dentro?
Miranda encolheu-se, aborrecida. Logo o sr. Denley! Ela pensou em fugir, mas desistiu da ideia. Se a visse inesperadamente, o coitado podia morrer de susto.
- Estou aqui, sr. Denley - respondeu Miranda.
- Ah, srta. Branscombe! Então, devo esperar alívio de suas mãos...
Arnold Denley alegrou-se, mas não entendeu o subterfúgio. Por que a srta. Branscombe não tinha dito nada enquanto conversavam no jardim?
- Como assim, sr. Denley? - Miranda perguntou, espantada.
- Não está compreendendo? Vim aqui em resposta ao seu bilhete - explicou Arnold enquanto entrava no barracão. - Eu...
Ele se calou quando a porta fechou-se de repente e ambos ficaram no escuro. Denley já havia visto, porém, as teias com algumas aranhas peludas prontas a caírem
em sua cabeça. Sua reação foi imediata; soltou um grito de horror, atirando-se nos braços de Miranda.
- Podemos soltá-los agora? - Richard perguntou, aflito.
- Concordamos que deveríamos deixá-los a sós durante vinte minutos - respondeu Peter, olhando seu relógio de bolso.
- Mas já estamos aqui há meio hora!
- Bobagem, passaram-se apenas cinco minutos. Se está tão cansado de esperar, por que não senta um pouco?
Richard olhou o chão úmido e estremeceu. Não pretendia arruinar sua bela calça de jérsei cor-de-creme.
- Prefiro ficar de pé - ele respondeu, tentando ignorar que seus pés afundavam na lama.
Por fim, achou que o relógio do amigo tinha parado. Sentia-se cada vez mais nervoso, achando que dado tudo errado.
- É hora de irmos, meu velho - Peter guardou o relógio no bolso. - Mas lembre-se, vá entrando na casa de barcos naturalmente, como se não soubesse de nada. Depois,
demonstre espanto, fale dos cabelos brancos de seu pai, enfim, recite todo o texto que decorou.
- Oh, acho melhor pular esta parte, papai ficaria zangado. Além disso, o cabelo dele não está branco, apenas um pouco grisalho nas têmporas.
- Então diga o que quiser, mas vá! - Peter insistiu, puxando o amigo.
Ele também queria terminar logo com aquilo. Não se importaria caso o plano falhasse porque, afinal, detestava pensar no futuro a que Miranda estava condenada.
Os dois amigos caminharam devagar até a casa de barcos, que estava em completo silêncio. Ambos se entreolharam, alarmados.
- Não devia haver algum barulho ou pedido de socorro? -Richard sussurrou.
- Não necessariamente. Vamos, use sua imaginação, um homem está a sós com uma moça...
A imaginação de Richard não era o seu forte, e por mais que se concentrasse não conseguia ver Miranda nos braços de Arnold Denley.
- Então... então vamos - disse afinal, destrancando e escancarando a porta. Em seguida, gritou com voz aguda: - Por Deus, senhor, o que estou vendo?
A cena não tinha nada a ver com o que ele imaginara. Arnold Denley, pálido e esverdeado, suando muito, jazia semi-inconsciente no colo de Miranda. Era uma cena
nada comprometedora.
- Você demorou inuito a chegar, meu caro irmão - declarou Miranda, friamente. - Chame Peter e levem o sr. Denley
para tomar um pouco de ar fresco. Ele não está passando bem.
- Você estava nos esperando? - Richard a olhava espantado.
- Quem mais poderia inventar uma brincadeira tão boba? Agora chame Peter ou eu mesma vou carregar o sr. Denley para fora daqui!
Richard obedeceu, porque sabia que a irmã era capaz de cumprir aquela horrível ameaça. Peter adiantou-se e enfrentou o duro olhar de Miranda.
- Levem-no até a sombra, com cuidado, e sejam discretos. Tenho certeza que o pobre homem não quer chamar a atenção de ninguém - disse ela. - Vamos, sr. Denley,
agora vai respirar um pouco de ar fresco. Acabou seu sofrimento, logo estará se sentindo bem melhor.
- Ele... ele está bem? - Peter perguntou.
- Aparentemente está melhor, pelo menos o suficiente para ir até a casa. Vocês dois precisarão ampará-lo, e sei que não querem chamar a atenção geral.
Miranda olhou-os severamente, provocando lágrimas em Richard. Até Peter corou, porque estava habituado a receber a aprovação da amiga.
- Sim, acho que podemos levá-lo de volta discretamente -ele respondeu.
Depois de deixarem o sr. Denley no quarto, sugiro que voltem logo aqui. Quero ter um segundo encontro particular nesta casa de barcos, e sei que não vão me desapontar.
- Claro que não, Miranda - os dois responderam, obedientes.
Meia hora depois estavam diante dela, tendo deixado Arnold Denley aos cuidados de seu criado particular. Richard demonstrava ansiedade e culpa, e Peter procurava,
instintivamente, se proteger de um tapa, para o caso de Miranda reagir como suas irmãs durante uma briga. Mas ela observou-os calmamente com os grandes olhos castanhos
e indagou:
- Digam-me, o que deu em vocês para forçarem uma aproximação do sr. Denley comigo?
- Uma aproximação entre você e o sr. Denley? - Richard tentou disfarçar. - Que absurdo!
- Você é muito esperta, Miranda - Peter sacudiu a cabeça. - Como percebeu?
- Só não teria percebido o plano de vocês se fosse muito tola. Eu não compreendia porque era obrigada a viver na companhia deste rapaz aborrecido até notar que
vocês dois estavam tramando algo. Esta peça que me pregaram hoje confirmou minhas suspeitas. Agora só quero saber porquê!
- Precisamos encontrar um marido para você - Richard respondeu, evitando o olhar da irmã.
- Precisam? Por que tanta urgência? Sei que papai vive aflito com a falta de candidatos, mas achei que tinha desistido da ideia. E por que vocês dois se intrometeram
no assunto?
- Eu prometi a papai que o ajudaria a encontrar um marido para você se ele me ajudasse a pagar minhas dívidas. Ele está muito preocupado porque você está ficando
parecida .com a tia-avó Evangeline, com essa história de gralhas e coelhos e panfletos. Peter me ajudou porque eu devia dinheiro a ele, e Denley foi o melhor que
conseguimos encontrar. Mas ele logo vai embora, e quisemos apressar as coisas.
Peter soltou um suspiro e fechou os olhos. A honestidade podia ser a melhor política, mas o amigo tinha exagerado. Rezou silenciosamente, esperando que Miranda
não compreendesse as palavras ditas com afobação.
O silêncio reinou na casa de barcos.
- Presumo que papai tenha sugerido que você procurasse um marido para mim, não é? - Miranda perguntou finalmente.
- Sim.
- E o episódio extraordinário desta tarde foi aconselhado por Peter?
- Sim.
O silêncio voltou a reinar, e Peter pensou na calmaria que antecede a tempestade. Mas Miranda não perdeu a calma.
--Vocês dois deviam estar envergonhados - comentou ela. - Ninguém pensou que o sr. Denley podia ter uma indisposição nervosa? Se o pobrezinho é mesmo frágil ou
imagina ser, apenas, não importa. O caso é que ele sofre desesperadamente quando fica preso em locais fechados. Surpreendo-me que vocês não tenham pensado nisso.
Os dois rapazes ficaram mais envergonhados com as palavras suaves ditas em tom reprovador do que se a reação de Miranda tivesse sido de fúria e histeria. Peter
queria que o chão se abrisse e o tragasse para fugir dali.
- Sentimos muito, Miranda. De verdade, não é, Richard? - ele murmurou, mas o amigo continuava em silêncio, a torcer o lenço nas mãos.
- Vocês deveriam se desculpar com o sr. Denley, pois ele sofreu muito - disse Miranda. - E agora, vamos discutir meu casamento. Confesso que não fico satisfeita
em saber que este assunto está em suas mãos, já que se mostraram tão irresponsáveis. No entanto, você deu sua palavra a papai, não é, Richard? Não vejo saída...
Pobre papai, deve estar muito aflito para ter arrancado esta promessa de você. Por mim, não me incomoda ser parecida com a tia-avó Evangeline. Ela é a mais interessante
de nossos ancestrais, mas sei que papai detesta tal ideia. Oh, querido irmão, sinto-me culpada por tê-lo envolvido nesta situação, porque sei que sou uma moça muito
sem graça! Agora você será obrigado a me encontrar um marido, mesmo contra a vontade. Acho que a solução é eu cooperar da melhor forma possível, antes que você e
Peter assustem mortalmente outro cavalheiro qualquer...
- Então, você gostaria de se casar? - Richard a olhava com admiração.
- Não especialmente, mas talvez seja necessário para que você fique livre da promessa que fez a papai. Além disso, ele vai continuar desesperado até eu encontrar
um marido. Sim, vou ajudá-lo, Richard, ou você nunca terá paz.
- Miranda, nunca existiu uma moça tão bondosa quanto você!
É verdade, é verdade! - Peter a ergueu e girou no ar, rindo.
- Mas lembrem-se -, Miranda avisou, ainda corada, depois de ser recolocada no chão -, não insistam no sr. Denley. Sei que é seu primo, Peter, e não quero
ofendê-lo, mas acho que eu não teria a paciência necessária para aturá-lo.
-- De acordo! - os rapazes gritaram em uníssono.
Sir John Kerswell concordava plenamente com a opinião de Miranda, e reagiu com energia à novidade de que o sr. Denley w ficar sob seu teto por mais uma semana.
- Uma semana inteira? Eu não vou suportar! Serei obrigado a me afastar de minha própria casa! - foi sua reação quando a mulher lhe deu a notícia no café da manhã.
- Ele está mal, querido. Não podemos mandar o infeliz em bora - argumentou lady Kerswell.
- Poderíamos tentar! O que provocou este súbito ataque de nervos, afinal?
- Eu não entendi muito bem. Parece que ele ficou preso na casa de barcos com Miranda Branscombe.
- Com Miranda? - sir John baixou o garfo antes de espetar um pedaço de bolo. - Com Miranda? Você não acha que... Por Deus, ele é bem mais baixo que ela!
- Concordo, querido. Não acho que formam um bom par.
- Esta história está muito mal contada... Aposto como seu filhinho está metido nisso.
- Por que Peter é sempre meu filho quando faz alguma coisa errada? - lady Kerswell observou calmamente.
- Aquele velhaco não é meu filho!
- Acho um pouco tarde para você me acusar de ter posto um pássaro estranho em seu ninho, caro marido. Peter é um retrato seu. Na idade dele, você era igualmente
levado. Por que acha que me apaixonei por você?
- Bobagens! - sir John refugiou-se atrás das páginas do jornal, mas logo desistiu. - O fato é que Peter nos obrigou a suportar a companhia do primo Denley por
mais uma semana e não vou perdoá-lo tão cedo por isto! Talvez até o exclua de meu testamento! Graças a Deus, a Temporada está começando e iremos para Londres dentro
de poucos dias. No entanto, continua sendo um mistério para mim este desejo súbito de seu filho de promover a união de Miranda com Denley!
No andar de cima da mansão dos Kerswell, no quarto em penumbra, Arnold Denley descansava no leito com uma compres-
sa de vinagre na testa e alguns sais aromáticos na mesa de cabeceira, perto do programa do serviço fúnebre. Ele deixara o programa à vista, no caso de estar às
portas da morte. Gemia de tempos em tempos, apenas para provar a si mesmo que ainda estava vivo. Não conseguia esquecer o episódio na casa de barcos, sem dúvida
o mais triste de sua vida. Não sabia como ainda continuava vivo, e convencera-se de que teria morrido se não fosse a bondade da srta. Branscombe.
Srta. Branscombe! Jamais sentira mãos tão suaves a acariciá-lo desde que sua querida mãe havia partido para o Outro Mundo melhor. Sim, a srta. Branscombe era
maravilhosa... Denley lembrou-se das palavras suaves que o acalmaram, dos gestos delicados que lhe afrouxaram a gravata. Miranda Branscombe demonstrara sincera preocupação.
Ele vivia rodeado de criados, mas sempre sentira falta de um cuidado especial. Cuidados de mãe ou de uma esposa... Denley nunca tinha pensado seriamente em casamento
porque achava que ficaria cercado de pessoas que dependeriam dele. Não tinha saúde para tantas responsabilidades. Mas e se arranjasse uma esposa em quem pudesse
se apoiar, como Miranda Branscombe, por exemplo?
Ela o reanimara rapidamente na casa de barcos e ministrara-lhe os sais muito bem. Na verdade, não levava um pequeno frasco de sais com ela, e precisara usar os
dele, mas esta era uma pequena falha, fácil de corrigir. Sim, a srta. Branscombe era muito bondosa.
Arnold Denley continuou pensando, e pela primeira vez esqueceu-se do episódio infeliz. Estava considerando possibilidades bem mais agradáveis...

CAPITULO IV

Peter Kerswell apoiou a cabeça no encosto da poltrona, perdido em pensamentos, alheio ao ruído do tráfego londrino perto de St. James Street. Aguardava a volta
de Richard, que havia ido ao alfaiate, pois tinha um assunto importante a discutir com o amigo. Estavam em Londres havia menos de uma semana e suas agendas já se
enchiam de convites, mas precisavam cuidar do casamento de Miranda antes de se entregarem à intensa vida social da Temporada.
Nos últimos dois anos, os dois amigos dividiam o mesmo apartamento em Londres. Anteriormente, Peter decorara um só para ele perto de Picadilly, mas apesar do
luxo e da elegância, sentira-se solitário e deprimido. Na verdade, usara pouco tanto conforto porque era raro encontrar uma companhia feminina para alegrar sua vida
de solteiro e, quando isto acontecia, era por pouco tempo. Quando cansara-se de viver sozinho em Londres, sugerira a Richard que podiam morar juntos. O amigo alegrara-se,
porque não conseguia controlar os empregados e o cozinheiro de seu próprio apartamento, que viviam bêbados. Peter Kerswell era mais exigente no controle doméstico,
e passariam a ser mais bem servidos.
Bem antes da chegada de Richard, Miranda apareceu para fazer uma visita, e o rosto de Peter se iluminou.
- Que coincidência, eu estava pensando em você - ele disse.
- Estava? Oh, meu Deus!
- Por que está clamando por Deus?
- Porque seus pensamentos, em geral, geram problemas.
- Acho que mereço este comentário - Peter sorriu. - Sabe, desde aquele incidente na casa de barcos não tive mais oportunidade de ficar a sós com você para me
desculpar como devia. Você foi magnífica, Miranda. Nunca vi ninguém enfrentar uma situação como aquela tão calmamente.
- Garanto que não teria continuado tão calma se vocês tivessem conseguido me casar com o sr. Denley - Miranda respondeu com olhos brilhantes. - Estou feliz, agora,
e quero esquecer todo o incidente, contanto que você prometa que vai esperar minha aprovação antes de iniciar novas "campanhas de casamento".
- Eu prometo - Peter sorriu. - E tenho certeza de que Richard também prometeria o mesmo se estivesse aqui.
- Pois é, onde está meu querido irmão?
- Foi ao alfaiate.
- Ah, trata-se de um assunto sério para ele. Acho que não poderei esperar por Richard. Vim apenas trazer o convite de papai para jantarem conosco amanhã, em Cavendish
Square.
- Será delicioso. Acho que ainda não temos compromisso algum para amanhã. Mas não se vá ainda, tenho alguns livros para você. - Ele pegou dois volumes sobre uma
mesinha. - Aqui estão... Ivanhoé, de sir Walter Scott. Gostei muito de lê-lo, e acho que você também vai apreciá-lo. O outro é o Contrato Social, de Rousseau.
- Que maravilha! Já ouvi falar de Ivanhoé, é claro, e você sabe que procuro este livro de Rousseau há um século! Já o leu?
- Sim. Ele contém muitas ideias fascinantes, mas não o mostre a sir Henry, por favor. Seu pai não gostaria que você lesse teorias tão revolucionárias.
- Vou escondê-lo, não tenha medo - Miranda sorriu. - O que eu faria sem ter você para me emprestar livros tão interessantes?
Peter Kerswell preferia manter sua inteligência viva e curiosa discretamente escondida da maior parte das pessoas. Preferia exibir uma personalidade alegre e
despreocupada e muita gente, em especial o pai, teria se surpreendido muito com a vastidão e profundidade de seus conhecimentos. Miranda era uma das poucas pessoas
que conheciam esta faceta de Peter, porque era tão curiosa quanto ele.
- Se eu não os emprestasse, você iria procurá-los sozinha e sir Henry ficaria ainda mais preocupado - Peter sorriu. - Portanto, eu lhe peço, contente-se com os
livros que lhe arrumo.
- Está bem. Mas, quando entrei, você disse que estava pensando em mim...
- Sim, em seu casamento.
- Então já é uma certeza?
- Naturalmente. Só estamos em dúvida quanto à identidade do noivo. Agora me diga, o que foi feito nos últimos anos para apresentá-la a possíveis candidatos?
- O que sempre se faz - respondeu Miranda à vontade, apesar do assunto ser delicado. - Levaram-me a uma série de reuniões, jantares, passeios e bailes. Espero
que você e Richard não insistam nisto, especialmente nos bailes. Dançar nunca foi o meu forte, e é muito difícil encontrar um par à minha altura, você sabe.
- Mas nós dois conseguimos dançar muito bem.
- Apenas as danças campestres, lá em casa. Além disso, você é alto o suficiente para me olhar nos olhos. Não, tenho horror dos bailes da moda porque piso em meus
próprios pés e nos do meu par.
- Talvez você precise tomar algumas aulas. Com um bom professor...
- Não se lembra de todos os que papai contratou? Não ficavam muito tempo comigo. Mas acho que monsieur Haye foi o mais engraçado. Ficou tão desanimado com minha
falta de habilidade que trancou-se no banheiro dos criados para chorar, lembra-se?
- Sim, eu me lembro - Peter riu ao recordar. - Ele não queria sair do banheiro, não é? Só saiu quando enfiaram um ratinho vivo por debaixo da porta!
- E de quem foi a ideia?
- Acho que foi uma de minhas sugestões mais inspiradas - Peter admitiu. - Além disso, era um rato muito talentoso. Eu mesmo o havia domesticado.
- Pois bem, a menos que tenha um novo suprimento de ratos amestrados, sugiro que abandone a ideia de me arranjar aulas de dança.
- Talvez você tenha razão. Em vez disso, vou sugerir coisa mais fácil. Que tal usar vestidos diferentes, alguma coisa mais colorida?
Miranda olhou para seu vestido de musselina, de ótima qualidade, mas em discreto tom de tabaco.
- Em que você está pensando? - perguntou com cautela. - Devo avisá-lo que madame Isabelle já declarou que, apesar de gostar de me ter como cliente, agradeceria
muito se eu não dissesse a ninguém que ela é minha modista.
-Achei que você poderia vestir-se com cores mais claras, como azul, por exemplo. Olhe, comprei este livro de moda feminina de um amigo. Dê sua opinião. Não acha
que ficaria muito bem com alguns destes modelos, como o alaranjado ou o verde-brilhante?
Os vestidos que ilustravam o livro eram decotados e justos, criados para valorizar atributos do corpo feminino que Miranda não possuía. Imaginando-se em alguns
deles, ela chorou de tanto rir.
- Miranda! - Peter ficou chocado. - Não gostou dos modelos?
- Acho que são muito bonitos - ela enxugou os olhos. - Só que não servem para mim. É uma pena, porque o fato de você ter comprado o livro indica que se preocupou
comigo. Mas não esqueça que ando sempre acompanhada por meu pai ou meu irmão. Pode imaginar um deles me acompanhando se eu estiver usando modelo do alto da página,
com a saia drapeada e decote bem pronunciado? Particularmente neste tom vivo alaranjado!
- Não é propriamente um vestido sóbrio - Peter concordou, rindo. - Muito bem, vamos deixar mais esta ideia de lado. Talvez fosse melhor mudarmos nossos programas
sociais, já que você não gosta de bailes e reuniões. Poderemos frequentar as corridas de cavalos, por exemplo.
- Oh, não! Não quero me casar com um daqueles seus amigos de Newmarket! - Miranda protestou. - Considero os cavalos ótimos animais de transporte, e gosto de agradá-los
e de dar-lhes torrões de açúcar, mas não entendo nada de corridas.
- Eu não quis dizer isso, sua tolinha. Oh, mas aqui está Richard, afinal! Vamos pedir a opinião dele.
- Um copo de vinho, por favor, antes que eu desmaie de exaustão! - exclamou o rapaz ao entrar na sala.
Richard Branscombe estava imaculadamente arrumado dos pés à cabeça, não parecendo nem um pouco cansado.
- Aquele alfaiate danado levou um tempo enorme para marcar as roupas novas com alfinetes, e ainda não estou convencido de que o resultado será bom. - concluiu
ele, antes de dar pela presença da irmã. - Oh, olá, Miranda. Não esperava vê-la aqui. Vim como mensageira, papai quer convidá-los para jantar conosco amanhã, se
não tiverem outro programa. Não acha admirável a última ideia que Peter teve para me arranjar um marido? Ele descobriu um comerciante de cavalos.
- O quê?
- Não fique alarmado. Miranda adora mudar o que eu digo- defendeu-se Kerswell. - Minha sugestão foi frequentarmos outros ambiente da sociedade para descobrirmos
um candidato aceitável.
- Uma ótima ideia! - Richard exclamou entusiasmado, mas logo preocupou-se. - Que ambientes, por exemplo?
- Que tal os meios políticos? Miranda seria uma ótima esposa para um político.
- Acho que seria um pouco aborrecido -: argumentou Richard. - Digamos, o que papai e eu teríamos para conversar com ele quando fosse a Branscombe Hall?
- Há também o círculo da igreja. Não conhece algum pastor que esteja precisando de uma esposa? - Peter sugeriu, vendo que a outra ideia não fora bem aceita.
- É uma possibilidade. - respondeu Richard. - Mas como faremos para conhecer pessoas fora do nosso círculo social?
- Não acho tão difícil -, Miranda comentou -, a julgar pelo número de convites que vocês recebem. Os seus amigos devem conhecer muitas pessoas.
- Uma ideia excelente! - Peter levantou-se e pegou a pilha de cartões na salva de prata. - Vamos ver o que temos aqui. A sra. Browm-Smithers... Não, já conhecemos
toda a roda dela, assim como os Rosswell, os Donington e os Brand. Um jantar com o general e a sra. Hope... Também não, eles só convidam gente com mais de oitenta
anos. Uma soirée literária... Ah, isto promete. Ouçam: "A sra. Amélia Wordsworth-Pugh tem o prazer de...", et cetera.
Acho que é exatamente o que estamos procurando.
- Quem é a sra. Wordsworth-Pugh? - Miranda perguntou.
- Não lembro direito onde fomos apresentados, mas minha memória prodigiosa registrou duas plumas carmesim adornando o chapéu desta dama. É a viúva do sr. Pugh,
dos Pugh's Patent Corsets. Você já deve ter ouvido falar dessa manufatura de corpetes, mas os anúncios são discretos, naturalmente, e só apare
cem nas melhores revistas. Além de muito rica, a sra. Wordsworth-Pugh é ambiciosa e gosta de aparecer. Suas soirée são muito concorridas. Nós iremos,
é claro. Ouvi dizer que ela tem duas filhas lindas.
- Mas não podemos ir todos juntos, o convite foi só para você - Richard objetou, com expressão amuada.
- Podemos, sim. O convite diz "Sr. Peter Kerswell e amigos".
Anime-se, meu caro! Sei que você não gosta de literatura, mas considere isto como mais um sacrifício pelo bem de Miranda.
- Ou melhor, pense nas belas filhas da viúva, querido irmão - Miranda sugeriu com um sorriso.
- Ah, é verdade... Talvez a noite não seja tão desagradável, afinal!
- Promete ser muito interessante - disse Miranda. - Contanto, é claro, que eu não tenha de usar um vestido decotado cor-de-laranja.
- Imagine, que horror! - exclamou Richard.
Peter apenas sorriu e piscou para Miranda quando ela se retirou.
Na elegante residência da sra. Amélia Wordsworth-Pugh, em Great Brook Street, tudo estava pronto para a soirée. Archotes iluminavam a entrada, e os criados, com
cabelos empoados, formavam fileiras no hall. O falecido sr. Pugh fora inteligente o bastante para inventar um modelo de corpete especial, que permitia às suas usuárias
sentar-se confortavelmente. Graças aos seus esforços, deixara a esposa e as filhas em privilegiada situação financeira.
A sra. Wordsworth-Pugh era ambiciosa, particularmente em relação às filhas: desejava casá-las bem. Ao mesmo tempo, tinha bom-senso suficiente para compreender
que uma fortuna lastreada em corpetes não era o meio mais indicado de ser aceita na alta sociedade. Portanto, procurara uma área específica para penetrar nas altas
rodas sem correr o risco de ser rejeitada. O campo das belas-artes pareceu-lhe o ideal e ela passou a convidar escritores, pintores e artistas famosos para suas
reuniões. Como a comida e o vinho eram excelentes, todos compareciam de boa vontade.
Quando Miranda chegou com seus dois acompanhantes, a quantidade de carruagens na rua demonstrava o quanto a reunião seria concorrida. A dona da casa os recebeu
amavelmente, ostentando duas plumas amarelas muito longas espetadas nos cabelos.
A sra. Wordsworth-Pugh avaliou com cuidado os recém-chegados. Miranda, sendo menos graciosa que suas filhas, não a preocupou. Ela apenas cumprimentou a moça e
esqueceu-se de
sua"presença. Mas os dois rapazes eram assunto muito diferente. Olhou-os com atenção, calculando o custo de suas roupas e a evidente educação. Foi efusiva ao
cumprimentá-los, considerando-os dois novos pretendentes à mão de Bella e Lucy.
Peter, que conhecia o próprio valor no mercado de bons partidos, sorriu discretamente ao entrar no salão.
- Está bem cheio, não há dúvida - comentou ele enquanto abriam caminho por entre os convidados.
- Como faremos para procurar um marido para Miranda?- perguntou Richard.
- Não seja tão indiscreto, por favor - Miranda pediu, sem saber se agira com correção ao concordar com os planos malucos do irmão e do amigo.
Mas consolou-se, porque era melhor saber exatamente o que eles pretendiam do que ser tomada de surpresa.
- Sua irmã tem razão. Procure encarar o assunto com mais naturalidade - Peter aconselhou o amigo. - Misture-se aos convidados, procure ser apresentado
a pessoas novas, e na hora do jantar trocaremos informações. Agora, se me der licença, vou dar uma voltinha antes de começar a fazer o mesmo. Vi uma criaturinha
deliciosa ali adiante... Não, por Deus, são duas! Será que são as filhas da sra. Wordsworth-Pugh?
- Por que não vai descobrir e leva Richard com você? - Miranda sugeriu logo. - Acabo de ver uma amiga de Hester Parkinson, vou conversar um pouco com ela.
- Você não se importa? - os dois perguntaram ao mesmo tempo.
- Claro que não. Corram, ou alguém chegará antes e vocês perderão suas belas.
Ela sertfiu um grande alívio quando os dois se afastaram. Enquanto flertavam não causariam grandes danos. Sabia que as moças os achariam irresistíveis, porque
eram os rapazes mais bonitos do salão. Richard estava mais elegante que nunca em seu casaco da mais fina lã azul, com botões dourados. Peter também, quando queria,
apresentava-se muito bem. Naquela noite ele escolhera uma sobrecasaca verde e usava o nó da gravata em estilo oriental, um modismo que dava mais encanto ao tecido
alvo de musselina. O cabelo loiro, muito claro, estava bem penteado. Miranda não duvidava que as duas senhoritas Wordsworth-Pugh iriam se apaixonar imediatamente
por eles. Com um sorriso, ela foi procurar a amiga da sra. Parkinson.
A primeira parte da noite foi dedicada à literatura. Um cavalheiro de meia-idade, editor de um jornal satírico muito em moda, leu um pequeno ensaio cheio de humor
sobre os perigos das viagens. Uma atriz popular declamou Shakespeare e um jovem poeta recitou alguns versos de sua autoria. Miranda apreciou mais a última parte.
Era uma leitora voraz de poesia, com muito senso crítico, e achou os versos comoventes e originais.
Quando anunciaram o jantar ela olhou à sua volta, procurando localizar Richard e Peter. Não foi difícil, porque continuavam na companhia de Bella e Lucy Wordsworth-Pugh.
As jovens usavam respectivamente plumas cor-de-rosa e brancas, mas bem menores e mais discretas que as da mãe.
- Olá, Miranda. Você está se divertindo? - Richard perguntou sem afastar os olhos dos encantos da srta. Lucy.
- Muito, obrigada - Miranda respondeu com toda a honestidade. - Conheci várias pessoas interessantes.
- Alguém em particular? - Peter indagou. Ele também parecia embevecido com a srta. Bella, mas não esquecera completamente o motivo da visita.
- Sim - Miranda respondeu, com olhos brilhantes. - Um cavalheiro muito charmoso, um escultor. Lá está ele. - Indicou um baixinho gordo e careca.
- Ótimo - exclamou o irmão, sem deixar de fitar os olhos azuis da srta. Lucy. - Fico feliz que esteja se divertindo.
- Vejo que é muito original, srta. Branscombe - comentou a srta. Bella, um pouco mais morena e vivaz que a irmã. - O que achou do sr. Lehmann? Sua poesia não
é divina? E ele tem um aspecto sensível...
Miranda observou o poeta conversando com um grupo de admiradores. O casaco e o sapato estavam meio gastos e ela achou que o ar romântico era causado pela fome,
não pela sensibilidade poética. Desejou que ele aproveitasse bem o jantar.
- Considero-o um poeta promissor, com um talento que eu não via há muito tempo - ela disse em voz alta, por fim. - Os poemas são muito originais, mas lembram,
de certo modo, os primeiros trabalhos de lorde Oxenham, não acha?
Certamente. Falando em lorde Oxenham, não é incrível seu comportamento de homem mau? Mamãe finge que fica chocada, mas sei que ela sempre o convida para suas
soirées. Contudo, ele nunca aparece - a srta. Bella fez um muchocho encantador para demonstrar seu desapontamento.
No entanto, a persistência da mãe da jovem pagou dividendos. Logo após o jantar, quando os convidados conversavam em pequenos grupos, foi anunciada a chegada
de lorde Oxenham! No silêncio que caiu sobre o salão só se ouviam os suspiros de algumas damas. O poeta parou por um momento no umbral da porta pára causar efeito,
com o corpo alto e esguio coberto pelo traje negro de veludo.
Quando a anfitriã aproximou-se para saudá-lo, os sombrios olhos escuros de Oxenham passearam pelo salão, na esperança de dissipar seu tédio constante. Ele recebera
o título de lorde, junto com uma vasta fortuna, aos quinze anos, e aos dezoito já era aclamado nos meios literários como grande poeta. Como este talento combinava
com seu rosto pálido e o belo perfil, transformara-se rapidamente num expoente querido pela sociedade londrina. Todas as mulheres, jovens ou mais velhas, apaixonavam-se
por lorde Oxenham. Aos vinte e um anos, ele já possuía tudo que um homem pode desejar e passara a década seguinte procurando distrair-se. Essa busca constante por
divertimentos provocara muitos comentários sobre sua honra e moral. Tinha o apelido de lorde Mau, o que encantava os círculos da moda, naturalmente. Entediado com
os programas habituais, Oxenham começou a afastar seu tédio aparecendo em reuniões menos importantes, sem nenhum aviso. Gratificava-se com a emoção que sua chegada
criava, dando grande crédito à anfitriã que escolhia. Mas geralmente ela caía no esquecimento logo em seguida, porque ele não voltava a aparecer durante toda a temporada
da Temporada social.
Lorde Oxenham abafou um gemido e ignorou a recepção da sra. Wordsworth-Pugh. Tinha sido um tolo em atender ao convite. Era a mesma velha cena, uma soirée pseudo-literária
com talentos sem expressão e intelectuais de menor importância. Naquele mar de rostos, seus olhos escuros viam adoração, mas não distinguia ninguém que parecesse
uma companhia divertida. A única novidade era uma moça muito alta, no fundo do salão, que conversava com um homem baixinho e careca. Como ela não lhe deu muita atenção,
Oxenham observou-a melhor e viu que, na verdade, era o rosto mais sem graça que já vira. Ele não prestara atenção a todas as belas moças que se mostravam dispostas
a atirar-se a seus pés, mas não se conformou que uma jovem tão sem graça o ignorasse. Talvez ela fosse divertida, e parecia ser a única distração que a noite poderia
oferecer.
- Eu gostaria de ser apresentado à jovem com o vestido listado - Oxenham interrompeu autoritariamente os elogios da pobre sra. Wordsworth-Pugh ao seu último livro
de poemas.
- Ora... é claro, milorde - respondeu ela, assustada, porque não se lembrava mais do nome da feliz escolhida.
- É a srta. Miranda Branscombe, mamãe - Bella sussurrou em seu ouvido.
- Ah, sim, sem dúvida. Srta. Branscombe, posso ter o prazer de apresentá-la a lorde Oxenham?
Miranda surpreendeu-se ao ver-se centro da atenção de todo o salão, e seu companheiro até poucos momentos antes ficou perdido entre a multidão. Em seu lugar surgiu
uma rapaz alto e elegante, com uma expressão de desdém no rosto.
Oxenham esperou a reação de sempre, certo de que a moça ia corar e começar a elogiá-lo. Mas sofreu um choque, porque Miranda continuou pálida como sempre e perfeitamente
lúcida.
- Milorde, tenho grande prazer em conhecê-lo - ela sorriu calmamente estendo a mão. - Desejava conhecê-lo há algum tempo porque tenho uma pergunta a fazer. Que
tipo de mastreação pretende usar em seu novo iate?
- Como? - ele perguntou espantado, franzindo o cenho.
- No seu iate novo, que está no estaleiro de Bray's Yard. Como pretende mastreá-lo? O estaleiro não fica muito distante de minha casa. São apenas três quilómetros,
e às vezes vou até lá. Todos os trabalhadores estão muito interessados em saber, além de estarem muito gratos pelo serviço, porque não tinham muito a fazer desde
o fim da guerra. Pretende navegar com ele em mar alto?
Como estava habituado a escolher ele mesmo o assunto de uma conversa, lorde Oxenham custou a entender.
- Ah... sim... Navegarei pelo Mediterrâneo. Talvez vá até mais longe - respondeu o poeta, por fim.
Então o senhor fez muito bem em escolher uma viga tão grande. O sr. Bray estava um pouco preocupado porque o iate perderia um pouco da velocidade, mas o senhor
prefere, evidentemente, fazer cruzeiros, e não participar de corridas. Ele ficará muito aliviado. Ele é um mestre na profissão.
-Recebi ótimas recomendações e gostei muito de seus projetos - Oxenham respondeu, interessado pelo assunto, tão raro em uma reunião londrina.
Além de si mesmo, o poeta só amava o mar.
- Não seja modesto, milorde. O sr. Bray me contou que o senhor fez desenhos excelentes e ótimas sugestões. Ele apenas adaptou tudo ao projeto e elogiou
o aproveitamento que o senhor deu à área do convés.
Lorde Oxenham nunca tinha sido acusado de modéstia e foi uma nova experiência. Muito satisfeito por ser elogiado como um homem do mar, sentou-se, alegre, ao lado
de Miranda.
- O iate deu muito trabalho, sabe? Refiz várias vezes o pro jeto até ficar satisfeito.
- O que lorde Oxenham tanto conversa com essa jovem Branscombe? - perguntou a cunhada da anfitriã, srta. Pugh.
- É mesmo, não é maravilhoso? Ele sofre constantemente de tédio e nunca fica em lugar nenhum mais que meia hora. Ficou apenas dez minutos na recepção de lady
Bradbury. Aqui, já está há quarenta minutos e não deu sinais de querer partir - comentou a sra. Wordsworth-Pugh, vendo que o sucesso de seu salão estava garantido
por toda a Temporada.
- Não sei o que ele viu nela - continuou a srta. Pugh, que era muito feia. - Aquela moça tem um rosto comprido como o de um cavalo e nem é tão rica assim. Bella
e Lucy são muito mais bonitas e ele nem as olhou direito. Não é justo!
A sra Wordsworth-Pugh não concordou com a cunhada. Era boa mãe e ambiciosa, portanto vigiara as filhas a noite toda. O sr. Branscombe e o sr. Kerswell eram rapazes
de boa posição social, muito finos. O sr. Branscombe era mais bonito e herdara um título mais antigo, mas o sr. Kerswell era amável e receberia uma grande fortuna.
Seriam ótimos maridos para suas filhas. Ela conhecia a reputação dúbia de Oxenham e apesar de apreciar sua presença na soirée, não gostaria de vê-lo interessado
em uma de suas filhas.
- Vamos deixar que lorde Oxenham converse com quem quiser - ela respondeu. - Contanto que continue no salão...
O lorde, realmente, parecia muito interessado na conversa e parecia ter-se esquecido do tempo. Continuava conversando animadamente sobre a vida no mar quando
Miranda interrompeu o assunto.
- Com licença, milorde - ela ergueu-se da cadeira. - O sr. Spiro vai sair e quero despedir-me. Ele acabou de esculpir uma estátua de Apoio e me convidou para
assistir ao processo de fundição em bronze. Eu preciso do endereço completo da fundição, pois sei apenas que é perto de Whitechapel.
Lorde Oxenham olhou-a, espantado. A moça estava se preparando para deixá-lo, o que demonstrava que se cansara de sua companhia! Ia indignar-se diante do fato
extraordinário quando compreendeu a palavra que a srta. Branscombe tinha dito.
- Uma fundição? A senhorita vai a uma fundição?
- Vou, sim. Nunca fui a nenhuma. O senhor já foi? Deve ser muito interessante ver o forno e o metal derretido. O sr. Spiro avisou que devo usar um vestido velho
porque posso me sujar. O senhor não se incomoda se eu o deixar agora, não ficará solitário? Acho que já provocamos comentários para um mês inteiro.

- Como? O que quer dizer?
- Ora -, os olhos de Miranda brilhavam -, o senhor passou a noite conversando com a moça mais sem graça da festa. Este é um bom assunto para mexericos, o senhor
sabe.
A declaração da srta. Branscombe, tão parecida ao motivo que o levara a conhecê-la, o deixou perplexo. Lorde Oxenham procurou palavras para desmenti-la. Miranda,
porém, afastou-se, e ele observou-a ir ainda confuso. A noite tinha sido muito diferente do que imaginara, conversando sobre seu assunto favorito. Miranda Branscombe
lhe dera a sensação de que lia seus pensamentos. O que mais o comovera tinha sido a preocupação que ela demonstrara por sua solidão. Ninguém reconhecia que ele podia
sentir-se só, sendo tão festejado pela sociedade.
Subitamente, ele ergueu o olhar e observou todos os rostos curiosos a seu redor. Qual seria sua próxima companhia? Ninguém mais o interessava. Aproximou-se da
saída e acenou em despedida para a anfitriã. No caminho, parou perto de Miranda.
- Quero desejar-lhe uma boa noite porque já vou partir. E se seu amigo fizer a gentileza de me mandar um convite, gostaria muito de ver a fundição da estátua.
Sem esperar resposta, lorde Oxenham virou-se e saiu da sala, deixando uma onda de murmúrios atrás de si.
Com a partida de Oxenham, Richard e Peter perceberam que não haviam dado a devida atenção a Miranda, preocupados em não se afastarem da srta. Bella e da srta.
Lucy. Quando chegou o momento das despedidas e eles se aproximaram para levá-la para casa, não sabiam se Miranda estava satisfeita ou aborrecida por ter chamado
tanta atenção.
- Sobre o que vocês conversaram? - Richard perguntou curioso.
- Sobre barcos - respondeu Miranda.
- Barcos? - o irmão exclamou, espantado. - Miranda, você não sabe que este não é um assunto para senhoras? O que lorde Oxenham vai pensar?
- Ele pareceu muito interessado na conversa - ela argumentou calmamente.
- Como ele se comportou com você? - Peter inquiriu, cheio de suspeitas. - Não aproveitou a oportunidade para murmurar-lhe convites amorosos, não é? Se o fez,
vou tomar satisfações imediatamente!
- Calma, este é meu dever! Eu sou o irmão de Miranda! - declarou Richard.
- Mas eu tenho mais físico para enfrentá-lo - Peter retrucou.
Miranda caiu na risada.
- Não fiquem tão exaltados, minha virtude está a salvo. Lorde Oxenham se comportou muito bem, e durante o tempo todo tínhamos pelo menos vinte pessoas assistindo
à conversa, o que não aconteceu com a srta. Bella ou a srta. Lucy...
- Elas estavam em perfeita segurança em nossa companhia - Richard comentou com ar inocente, provocando mais risos em Miranda.
- Bem, então não precisamos mais nos preocupar com lorde Oxenham. Duvido que voltemos a vê-lo - disse Peter.
- Eu voltarei - declarou Miranda.
- Como? Onde? - perguntaram os dois, espantados.
- Em Whitechapel.
- Em Whitechapel? O que você vai fazer lá? Ninguém se aproxima de lá, a não ser por acidente! - Richard exclamou horrorizado.
- Vamos ver uma estátua ser fundida em bronze.
- Mas deve ser uma coisa horrível, muito suja! Não, Miranda, sinto muito - Richard foi categórico. - Sou capaz de qualquer sacrifício, mas não vou acompanhá-la
até lá.
- Richard tem razão - Peter atalhou, reparando no olhar decidido da moça. - Você não pode ir sozinha. Eu a acompanharei, mas duvido muito que um homem como lorde
Oxenham vá a um lugar como aquele.
- Ele declarou que ia diante de metade dos convidados da sra. Wordsworth-Pugh - retrucou Miranda.
- Se é assim, eu não perderia uma ocasião como esta por nada! - admitiu Peter. - Quero ver o momento em que Whitechapel vai se transformar em local frequentado
pela sociedade. Você também deveria ir, Richard. Acho que todos estarão lá.
- Você acha? Até a srta. Lucy? - Richard animou-se.
- Se forem obedientes à mãe, claro que ela e a srta. Bella poderão ir - disse Miranda.
- Então está acertado, irei com vocês - disse ele.
- Foi uma noite memorável - Peter comentou um pouco mais tarde, quando chegaram ao seu apartamento de solteiros, depois de terem deixado Miranda em Cavendish
Square. - Não achei que Oxenham provocou nenhum interesse especial. E você, o que achou?
- Nem reparei nele - confessou Richard. - Só tive olhos para a srta. Lucy. Ela não é a criatura mais adorável que você já viu?
- Sim, ela é muito bonita, mas prefiro o temperamento mais alegre da srta. Bella. Vamos, não me olhe assim! Não gostaria que nós dois nos interessássemos
pela mesma moça, não é? Foi uma boa coisa ampliarmos nossos horizontes. Não adiantou muito para Miranda, porém, porque ela passou o tempo todo conversando com Oxenham
em vez de procurar um possível marido. Mas ela parecia feliz, e eu também me diverti. Ora, mas o que é isso?
- Pelo visto alguém veio nos visitar durante nossa ausência - disse Richard, exibindo com expressão divertida o cartão que encontrara sobre a salva de prata na
mesinha do hall.
Mas isto é ótimo! - exclamou Peter, lendo o nome. - Então o primo Denley está em Londres! Ele geralmente detesta a cidade. Talvez a nossa busca de um marido para
Miranda esteja realmente terminando, afinal!

CAPITULO V

Aceito apenas uma fatia bem fina de 'frango cozido, srta. Branscombe, por favor. Qualquer outra coisa seria muito pesada para minha digestão - respondeu Arnold
Denley quando Miranda lhe ofereceu as diversas iguarias da mesa.
- Tem certeza? - ela olhou o pequeno pedaço de frango no prato grande. - O haddock sem molho é bem leve e o fricasée não tem muita gordura, posso garantir.
- Não, não obrigado! O frango é mais que suficiente. Já sei que não vou dormir à noite porque estou habituado à quietude do meu lar e fico com os nervos agitados
quando vou a grandes jantares.
Miranda considerou tal afirmação um exagero, pois havia apenas um pequeno grupo reunido na casa de Cavendish Square. Era um jantar quase familiar, apenas com
a presença de sir Henry, Peter, Richard e das jovens Wordsworth-Pugh, acompanhadas pela mãe.
- Eu ficaria muito triste se soubesse que esta noite lhe causou qualquer desconforto - Miranda respondeu gravemente. -Mas se sentir algum mal-estar, experimente
tomar leite quente. É um bom remédio para a digestão e ajuda o sono.
- É verdade? Vou experimentar sua receita ainda esta noite - Denley agradeceu, sorrindo.
"A srta. Branscombe parece realmente a esposa ideal para cuidar de alguém com uma constituição frágil como a minha", pensou, animado.
- Que bom! Tomara que surta efeito.
- Foi muita amabilidade sua e de sir Henry me convidarem para jantar - ele prosseguiu. - Cheguei à cidade há menos de quarenta e oito horas. Como era de se esperar,
não consegui dormir na primeira noite e passei o dia descansando. Como é triste ser martirizado por uma saúde tão frágil! Achei a viagem muito cansativa, pois não
vinha a Londres há cinco anos. E se não houvesse um forte incentivo, teria permanecido afastado daqui até o fim de minha existência, que deve estar próximo.
- Posso saber qual a natureza do incentivo? - Miranda perguntou, desconfiada.
- Ora, Harley Street, madame! A rua dos médicos mais famosos do mundo! Eu não me arriscaria aos perigos da viagem por menos. Vim consultar alguns especialistas
em busca de cura para os meus males, mesmo sabendo que não tenho esperanças. Mas sei que devo lutar, por meus amigos e por mim mesmo. Devo tentar tudo que estiver
ao meu alcance, não acha?
Mesmo começando a pensar em casamento, ele não resistia ao fascínio da profissão médica, e as consultas vinham em primeiro lugar na sua lista de prioridades.
- Oh, é claro! - Miranda exclamou, aliviada.
Desculpou-se em silêncio com Peter e Richard, pois desconfiara
que eram eles os responsáveis pela aparição inesperada do sr. Denley. Mais tarde, quando já estavam na sala de estar e ela servia café a Peter, reparou que o
amigo tinha um brilho estranho nos olhos verdes ao observar o primo.
- Antes que você faça qualquer plano, minha resposta é um não definitivo - ela murmurou discretamente ao ouvido do rapaz.
- É uma resposta que não deixa dúvidas, mas qual é a pergunta? - perguntou Peter, enquanto servia-se de açúcar.
- A pergunta é se quero me casar ou não com Arnold Denley.
- Pensei que esse assunto tinha sido resolvido em New Park.
- Eu também, mas não contava com a volta do sr. Denley.
Ele tornou a surgir em minha vida como um novo Moisés.
- Aposto que o Moisés bíblico era bem mais divertido - Peter respondeu, rindo. - Olhe, meu primo está recitando seu monólogo para a srta. Bella. A pobre moça
nem pode abrir a boca!
Mas você precisa admitir, uma vez que ele está na cidade e ainda não encontramos ninguém adequado...

- Sei o que está pensando, Peter. Como ainda não encontrei um bom candidato a marido, você quer me convencer a aceitar o seu primo. Sinto muito, meu caro, mas
o sr. Denley não serve!
- Ora, está bem - Peter fingiu um suspiro. - Nós o perderemos para a Harley Street. Agora devo pedir-lhe licença, preciso ir salvar a srta. Bella.
- Acho que deve ir, mesmo - Miranda concordou. - A pobrezinha está um pouco pálida. A conversa de seu primo às vezes exige um ouvinte de estômago forte.
- Bem mais forte que o meu, especialmente durante as refeições - Peter assentiu, afastando-se.
Perdendo a companhia de Bella, o sr. Denley voltou a conversar com sua anfitriã com renovado vigor. Miranda evitou o olhar brincalhão de Peter, que a observava
de longe. Richard não via nada, inteiramente dedicado a admirar a srta. Lucy.
Sir Henry Branscombe, por sua vez, sentira novas esperanças com a chegada inesperada do sr. Denley. Seu filho tinha declarado, quinze dias antes, que não havia
nenhuma perspectiva de casamento à vista, mas ele não estava tão certo. Os moços achavam sempre que sabiam de tudo, mas em assuntos do coração costumavam acontecer
grandes surpresas... Sir Henry desejaria apenas que o cavalheiro em questão falasse de assuntos mais agradáveis. Ainda achava, porém, que o problema de Miranda poderia
resolver-se. Pobre sir Henry, nem acabava de enfrentar uma dificuldade e surgia outra, na figura da sra. Wordsworth-Pugh.
Vendo que as filhas estavam indo bem, a viúva achou que era o momento de pensar no próprio futuro. Sendo rica e bem conservada, olhou na direção de sir Henry
com intenções românticas.
Sir Henry Branscombe percebeu de imediato a manobra. Como era viúvo havia vinte anos, estava habituado a ser objeto de sonhos matrimoniais. Aprendera a evitá-los
com perícia, pois não pretendia mudar seu estado civil. No entanto, o instinto lhe dizia que a sra. Wordsworth-Pugh não era uma adversária comum, apesar das roupas
coloridas e exageradas.
- Sir Henry, o senhor irá visitar a fundição em Whitechapel, na terça-feira, não é mesmo? - perguntou-lhe a viúva com ar provocante. - Sem dúvida será
o maior acontecimento da temporada. Não o perderíamos por nada neste mundo!
A notícia de que lorde Oxenham visitaria o local já se espalhara por toda Londres...
- Infelizmente, madame, tenho um outro compromisso. - ele conseguiu responder, vendo o filho que chegava para socorrê-lo.
- A fundição, em Whitechapel? - perguntou Richard. -Claro, estaremos lá.
Além de não perder a oportunidade de ver a linda srta. Lucy, ele tinha outro motivo para ir a um evento social tão exótico: não queria que a irmã parecesse muito
excêntrica, e precisava acompanhá-la para vigiá-la.
- Estou vendo gente muito elegante por aqui - comentou Richard quando uma pequena carruagem descoberta ultrapassou a deles, nas proximidades de Whitechapel.
- De fato, parece que metade de Londres veio para a zona leste, não é? - perguntou Peter.

- É sim, já reconheci várias pessoas que estavam na soirée da sra. Wordsworth-Pugh. Fico imaginando se a fundição vai entrar na moda e todos os cavalheiros vão
querer ter o seu próprio forno... - Miranda se divertia.
- Oh, espero que não! Você está brincando, confesse! - Richard sorriu e procurou algum sinal da família Wordsworth-Pugh.

- A maioria dessa gente está apenas seguindo lorde Oxenham - argumentou Miranda. - Estou convencida de que todos seriam capazes de segui-lo até mesmo ao inferno,
só alcançar status. O pobre homem deve estar cansado de ser tão admirado!
- Você acha que ele não gosta de receber tanta atenção? -perguntou Peter.
- Não sei ao certo. Talvez lorde Oxenham tenha se acostumado com isto e não consiga abandonar o hábito. A fama chegou quando ele ainda era muito jovem... Tenho
pena dele.
- Aposto que é a única moça em Londres que tem pena dele.- Peter riu. - Todas as outras o jantariam se pudessem.
- Talvez - Miranda também sorriu. - Mas acho que todos vão ficar muito desapontados, porque duvido que ele apareça. Ouvi dizer que lorde Oxenham é muito caprichoso.
- É verdade. Por que paramos, Jenkins? - Peter perguntou, abrindo a janela para falar com o cocheiro.
- A rua está congestionada, senhor. Infelizmente, acho que os senhores terão de fazer o resto do percurso a pé.
- Céus, ele tem razão! - Richard olhou para fora pela outra janela. - Peter, você já tinha visto tanto movimento?
- Garanto que o pessoal de Whitechapel nunca viu. - comentou Miranda. - Vejam, as pessoas encheram a rua como se fossem assistir a um cortejo real!
Na verdade, os trabalhadores que moravam em Whitechapel nunca tinham visto tanta gente bem vestida, e resolveram apreciar o es-petáculo. Enchiam as calçadas e
olhavam para dentro das carruagens, comentando em altas vozes as roupas elegantes dos visitantes.
- Não conseguiremos atravessar esta multidão! - declarou Richard.
- Deve haver um modo... - Peter pensou um pouco. - Podemos oferecer dinheiro para que dois homens fortes abram caminho para nós.
- Por dinheiro podemos até carregar sua carruagem nas costas, senhor! - afirmou um sujeito grandalhão, que se aproximara o bastante para ouvir a conversa.
- Nós iremos a pé, contanto que vocês nos levem até a fundição Fox - disse Peter.
- Ora, isto é muito fácil! Venham por aqui.
O homem chamou um amigo. Aliando a força bruta ao conhecimento do bairro, ambos conduziram o pequeno grupo através de ruas paralelas que estavam sem movimento
e logo chegaram à fundição, na Montague Street. O edifício de pedra, aquecido pelo forno aceso, estava lotado. Muitas pessoas saíam ao pátio ou iam até a rua para
jse refrescarem.
- Bem, talvez este seja o programa mais exótico desta Temporada londrina, mas... É uma pena, só conseguiremos ver as cabeças dos que estão na frente - disse Miranda.
- Ora, alegre-se por estarmos aqui. Pense nos que se encontram confortavelmente sentados em suas poltronas, nos clubes, ou nos que passeiam sob as árvores nos
parques. Eles devem estar morrendo de inveja dos que vieram à fundição... Ver o que se passa dentro do edifício já seria pedir demais - Peter comentou, com ironia.
- Estou transpirando demais - Richard protestou. - Meu casaco vai ficar imprestável. Vejam como ficou empoeirado!
- Não se preocupe - Mirando confortou-o. - Você continua lindo, mesmo com aspecto mais displicente. Oh, lá está o sr. Spiro! Parece tão acalorado! Está acenando
para nós.
- Srta. Branscombe! - o pequeno escultor suava muito e a chamava energicamente. - Reservei-lhe um lugar aqui na frente! Por favor, senhoras e senhores, abram
passagem para a srta. Branscombe! Por favor.
Richard soltou um gemido ao ver a irmã chamar a atenção no meio de tantas pessoas elegantes. Não era distinto. Mas não teve outra opção e foi obrigado a segui-la
e vê-la receber as efusivas boas-vindas do sr. Spiro.
- Minha querida srta. Branscombe! Poderia imaginar um sucesso como este? Devo tudo à senhorita! Sabe, já vendi meu Apoio por duzentos guinéus, e ele ainda
nem foi fundido em bronze! Como posso lhe agradecer?
- Não precisa me agradecer, eu não fiz nada.
- Nada! - O pequeno escultor ergueu as mãos para o céu. - A senhorita demonstrou sincero interesse por meu trabalho, comentou-o com seu amigo, lorde Oxenham.
E onde ele vai, toda Londres vai atrás. Pode dizer que isto não é nada, mas eu lhe serei eternamente grato.
Miranda ia protestar, explicando que lorde Oxenham não era propriamente seu amigo, mas neste momento ouviu um murmúrio da multidão e lorde Oxenham surgiu em pessoa.
As pessoas lhe abriam passagem naturalmente, graças à sua fama.
- Srta. Branscombe, é um prazer revê-la! - ele fez uma mesura para Miranda, ignorando friamente as outras pessoas.
- Milorde, sua presença me alegra muito. A fundição vai começar logo. Eu temia que o senhor perdesse um espetáculo tão interessante.
Oxenham olhava as paredes imundas, o chão sujo, cheio de restos de metal, e se perguntava por que tinha ido até ali. Que interesse poderia ter aquele buraco do
inferno? Bem, já que estava ali, procuraria tirar máximo proveito da situação.
- Comecem! - ordenou ele imperiosamente, olhando para o sr. Spiro.
O pobre escultor abriu a boca, mas não conseguiu dizer nenhuma palavra, havia ensaiado um discurso com explicações técnicas sobre o processo de fundição e comentários
eruditos sobre a arte da escultura, mas não esperava se ver face a face com toda a sociedade londrina. Esqueceu-se de tudo.
- Acho que a maior parte do trabalho já foi feita - Miranda aproximou-se do dono da fundição. - O senhor estava muito ocupado, não é?
O sr. Fox, dono da fundição e chefe do serviço, não estava muito admirado com toda aquela popularidade. Dedicara-se ao trabalho durante cinquenta anos e o achava
tão fascinante que considerava natural o interesse de todo mundo por ele.
- Eu e meus rapazes já adiantamos bastante o serviço, senhorita. Hoje falta apenas um servicinho final.
- O que o senhor faz em primeiro lugar? Acende o forno? -ela procurava aprender todo o possível sobre aquele trabalho desconhecido.
- Não, pelo amor de Deus! Temos muita coisa a fazer antes de acender o forno. Primeiro fazemos os moldes do trabalho do sr. Spiro. Meu cunhado, Ned Harris,
é mestre em tirar molde de estátuas. Um molde mal feito estragaria todo o serviço.
O sr. Fox explicou todo o processo com clareza e fluência, pois estava habituado a ensinar o serviço aos filhos e aos empregados. Dirigia-se à moça alta porque
ela parecia a mais interessada no assunto. O rapaz trajado de veludo preto também poderia ouvir as explicações se quisesse, o sr. Fox não se importava. Mas não estava
nervoso com a presença dele como o sr. Spiro, já que desconhecia a grande fama do poeta visitante.
Miranda ouvia tudo com tanta atenção que lorde Oxenham fez o mesmo, para não perder nenhuma palavra. De vez em quando, voltava a pensar no que estava fazendo
ali, mas logo o sr. Fox dizia alguma coisa interessante e o distraía de seus pensamentos.
O metal derretido foi por fim derramado nos moldes e todos aplaudiram quando tudo terminou. A multidão que lutara tanto para entrar esforçou-se ainda mais para
sair, não esquecendo de deixar algumas moedas nas mãos do fundidor chefe, o que o alegrou muito. Todos ficaram satisfeitos porque tinham participado de um evento
que contara com a presença de lorde Oxenham, um sucesso garantido.
Apenas Richard não estava muito feliz, porque não conseguira conversar com a srta. Lucy. As plumas do chapéu da mãe da moça apareciam ao fundo, a metros de distância,
e a multidão formava uma barreira intransponível entre eles. Quando Richard afastou-se de Miranda para procurar a família Wordsworth-Pugh, o sr. Spiro aproximou-se
com o rosto ainda suado.
- Srta. Branscombe, milorde, senhores, que triunfo! Distribuí cem convites para minha próxima exposição! Que grande ideia a senhorita teve!
- Foi ideia sua, srta. Branscombe? - Oxenham ergueu a sobrancelha com expressão irónica.
- Eu apenas sugeri ao sr. Spiro que aproveitasse a presença de tantas pessoas influentes para convidá-las a apreciar seus trabalhos.
- Pretende estabelecer-se como patronesse das artes e ter seu próprio salão, srta. Branscombe? - Oxenham perguntou.
- Claro que não! - Miranda riu. - O sr. Spiro é um homem de talento, e fiquei feliz em ajudá-lo a chamar um pouco a atenção sobre seus trabalhos.
- Oh, quanta bondade! - o poeta exclamou, estranhando a palavra que usava tão raramente.
Estranhava ter provocado o riso de Miranda, porque as senhoritas que o rodeavam costumavam apenas suspirar, gemer e chorar.
- A srta. Branscombe é sempre bondosa com as pessoas - Peter comentou, irritado, imaginando que Oxenham a criticava veladamente.
- É verdade? - Lorde Oxenham lançou um olhar frio a Peter, mas não iniciou uma discussão porque estava mais preocupado com as horas que ainda teria de passar
sozinho naquele dia.
Que tédio! Como sobreviveria a tal provação?
- Miranda! - Richard reapareceu, apressado. - Você não adivinha quem está aqui! O sr. Denley! E parece que está passando mal.
Arnold Denley estava deitado sobre um carrinho de transporte no pátio, como um herói da antiguidade em seu ataúde. Mas a atitude não era heróica, porque sentira
uma tontura e desmaiara ali mesmo, sendo atendido pela sra. Wordsworth-Pugh, infelizmente. A gentil senhora não sabia administrar os sais como a srta. Branscombe.
Quanto mais pensava, mais Denley se convencia de que ela seria a esposa perfeita para suas necessidades, e só havia ido até Whitechapel para cortejá-la. Que tolo
tinha sido! Devia ter esperado a oportunidade de revê-la em um ambiente mais agradável.
- Oh, pobre sr. Denley! Como está pálido!
Ao ouvir a voz de Miranda, ele entreabriu os olhos ligeiramente.
- Srta. Branscombe, estou morrendo - gemeu.
- Ele simplesmente desmoronou - explicou a sra. Wordsworth-Pugh, aproximando demais o vidrinho de sais das narinas do sr. Denley.
- Ele não vai morrer, vai? - exclamou horrorizada a srta. Lucy.
- Claro que não - Richard garantiu-lhe. - Minha irmã sabe como ajudá-lo, e ele logo estará recuperado. Ofereço-lhe meu braço, podemos nos afastar um pouco. Miranda
se encarregará de tudo.
Richard afastou-se logo com Lucy, temendo que Denley cometesse a indelicadeza de morrer, de fato.
- Deve ter sido o calor - Miranda afrouxou o nó da gravata para que o doente respirasse melhor. - O dia está muito abafado, além do aquecimento provocado pelo
forno da fundição. Eu não podia respirar, estava sufocando... sufocando!
- Agora esqueça, já passou. O senhor logo vai ficar bom. Vou fazer uma compressa de água de colónia em sua testa com meu lenço, e vamos afastar este carrinho
para o outro lado do pátio, está bem?
- Oh, agora estou muito melhor - Arnold Denley sentia-se quase feliz por ser tão bem assistido.
- Primo Denley, logo que estiver melhor trarei sua carruagem até o portão e você irá para casa - disse Peter.
- Oh, não! Eu não aguentaria ser sacudido durante o trajeto, morreria no caminho! Eu preciso de ar! Ar! O que devo fazer? Por favor, srta. Branscombe, me ajude!
- O senhor pode ficar onde está, e quando cair a noite irá beneficiar-se com a atmosfera de Whitechapel - Oxenham comentou irónico.
- Lorde Oxenham gosta de brincar, sr. Denley - Miranda aparteou rapidamente. - Não fique aborrecido. Encontraremos um jeito de levá-lo até sua casa com mais conforto.
Não se amofine.
Arnold Denley tranquilizou-se e fechou os olhos com um suspiro.
- Já pensou em outro meio de transporte, já que não deseja usar uma carruagem? - lorde Oxenham perguntou em tom sarcástico. - Ouvi dizer que os balões são muito
confortáveis, acho que esta será a única alternativa.
- Evidentemente, o senhor não conhece muito bem a srta. Branscombe, ou confiaria mais em sua engenhosidade- Peter atalhou. - Se ela diz que descobrirá uma forma
de levar meu primo para casa com mais conforto, é o que fará.
Peter se irritava com a superioridade de Oxenham e procurava falar autoritariamente, sabendo, como sempre, que Miranda resolveria o problema.
- Eu não pretendo dispensar a carruagem - ela declarou. -- O senhor aguentaria um pequeno trajeto, não é, sr. Denley? Não serão nem dois quilómetros.
- Eu... acho que sim, se for necessário, srta. Branscombe.
Denley reuniu o resto de suas forças para o sacrifício.
- E como pretende percorrer os seis quilómetros restantes?- perguntou lorde Oxenham.
- Poderemos ir muito mais suavemente pelo rio. - disse Miranda.
- Pelo rio? - sete pares de olhos a fitaram.
- Por que não? Estamos perto do Tamisa, e o percurso seria muito fresco e agradável. Além disso, chegaríamos mais cedo.
- E não sentiremos cheiros desagradáveis. É um ótimo plano! - Peter aprovou de imediato.
- É mesmo! - Richard concordou. - As senhoras não gostariam de ir também?
- Oh, mamãe, por favor! Podemos? - pediu Lucy.
A sra. Wordsworth-Pugh concordou logo, entusiasmada com o namoro da filha caçula. Não ficariam ao abrigo do sol num barco, e poderiam queimar a pele, mas valia
a pena. Depois fariam compressas de pepino para clarear a cútis.
- O que acha, sr. Denley? - Miranda perguntou.
- Srta. Branscombe, minha salvadora! A viagem pelo rio será tão refrescante que vou melhorar, tenho certeza.
- Então, estamos combinados - disse Peter satisfeito, pois teria por mais tempo a companhia da filha mais velha da sra. Wordsworth-Pugh. - Será uma viagem agradável,
não acha, srta. Bella?
- Naturalmente, sr. Kerswell. Nunca viajei neste trecho do rio. Vamos ver os navios de perto!
- Claro - Miranda assentiu. - Vamos nos divertir. Lorde Oxenham é um grande-entendido em questões náuticas e pode nos dar explicações. Mas onde está ele?
O poeta dera as costas ao grupo e estava chegando ao portão da fundição, muito aborrecido. Detestava ser ignorado e ninguém pedira sua opinião. Nem mesmo tinha
sido convidado! Estava furioso.
- Milorde! - Miranda alcançou-o. - Não está querendo nos deixar, não é? Ficaríamos em péssima situação, porque confiamos em seus conhecimentos sobre barcos.
O passeio deve ser interessante e acho que o senhor vai gostar.
Ele não estava habituado com aquele tipo de convite, e quase respondeu com o tom de ironia que o tornara famoso. Mas teve vontade de participar do passeio e surpreendeu-se
com a própria resposta:
- Sugiro, então, que embarquemos em Tower Stairs. Não acha o local mais conveniente?
O pequeno comboio levou algum tempo para percorrer Whitechapel Road até Minories e depois seguir pelo Embankment até
a Torre de Londres. A discussão sobre o tipo de barco, se devia ser um veleiro ou um barco a remo, também tomou tempo. Por fim, alugaram uma embarcação conveniente.
- A viagem será muito longa, sr. Kerswell? - perguntou Bella. - Estou começando a sentir muita fome.
- Bella! - a mãe exclamou, indignada, ao vê-la admitir aquela fraqueza humana.
- Ela tem razão - Miranda defendeu a jovem. - Algum alimento faria bem a todos nós porque tivemos uma longa manhã.
O que comeu no desjejum, sr. Denley?
- Um pouquinho de vinho diluído em água e uma torrada bem fina - Arnold respondeu, quase desmaiando novamente.
- Foi o que pensei. O senhor precisa alimentar-se um pouco.
- Onde poderemos almoçar? Comeremos um sanduíche no Wapping? - perguntou lorde Oxenham, fazendo ironia com a região em que se encontravam.
- Que tal irmos a Greenwich? - Peter sugeriu. - Há um lugar com comida excelente perto do rio, e os vinhos não são maus.
Todos o olharam entusiasmados, mas Oxenham discordou:
- Greenwich fica na direção oposta!
- É verdade, mas a margem do rio por aqui é fascinante, cheia de locais históricos - disse Miranda com ar inocente. - Além disso, gostaríamos que o senhor fosse
nosso timoneiro, acho que os marujos vão concordar.
Lorde Oxenham não resistiu à sugestão, e foram todos para Greenwich.
O lugar indicado por Peter era bastante razoável. A tarde já estava adiantada quando chegaram ao pequeno restaurante, e o, lanche se transformou em um jantar.
Arnold Denley sentiu-se bem melhor depois de comer um pedaço de salmão, ovos cozidos e puré de pêras. Declarou que estava muito bem e permitiu que Miranda o acomodasse
num canto do barco, pegando logo no sono.
- Nunca vi meu primo tão bem disposto - Peter sussurrou. - Miranda, ouça o que eu digo. Se continuar cuidando dele, vai transformá-lo em um Hércules.
- Que exagero! Mas ele está melhor, mesmo, não acha? Ficou até um pouco corado. Contudo, não espere que eu mude de ideia. Mesmo que o sr. Denley se transforme
em um Hércules, não o quero para marido.
- Se é assim, não vou insistir. Mas foi uma boa ideia voltarmos pelo rio. Algo me diz que você estava pensando nisto o tempo todo.
- É verdade - Miranda concordou. - Sempre tive vontade de fazer este passeio, mas nunca houve oportunidade porque as Temporadas em Londres são sempre cheias de
compromissos sociais.
- Então meu primo deu-lhe uma excelente oportunidade...
- Sim, embora seja uma pena que tenha passado tão mal.
- Mas ele goza de ótima saúde quando você está por perto.
- Não adianta ser tão persistente, Peter, desista.
- Você é ainda mais persistente em não aceitar minhas sugestões _ Peter lançou um olhar irritado na direção de lorde Oxenham. - Espero que aceite pelo menos esta:
não deve ser vista frequentemente em companhia deste poeta. Ele não tem boa reputação.
- Ora, ele comportou-se muito bem em nossa presença. Você não está com ciúmes porque ele conversou com a srta. Bella, está?
_ Não - Peter sorriu. - A srta. Bella me confidenciou que ficou muito desapontada com ele. Todos lhe diziam para ter cuidado, mas ninguém a preveniu de o poeta
ele podia ser tão aborrecido.
- Pobre homem, ele anda apenas solitário e infeliz, qualquer um pode ver.
- Só alguém tão caridosa quanto você.
Lorde Oxenham, que ouvira parte da conversa, ficou contrariado ao ver que perdia a reputação de homem perigoso. Aborrecido, solitário e infeliz? Como ousavam
manchar sua fama de mau daquele modo? Sempre achara que era irresistível ao sexo oposto. Afinal, as mulheres não lutavam por ele, não o perseguiam? Chegavam a oferecer-se
como criadas em sua casa só para vê-lo! Como podia, de repente, ter-se transformado em um homem solitário e infeliz, sendo ainda por cima um maçante? Estava furioso!
Sabia que a culpa toda era de Miranda Branscom-be, a única mulher que ousara ter pena dele! "Uma moça sem nenhum atrativo", pensou enquanto a observava lutar contra
o vento para conservar o pequeno chapéu ajeitado na cabeça. Precisava afastar-se dela imediatamente, sem maiores explicações. Pobre moça, teria de contentar-se com
o pouco que o conhecera!
Com o orgulho ferido, lorde Oxenham voltou a assumir o ar melancólico que lhe dera fama e participou da conversa apenas por monossílabos. Mas Miranda não reparou
na mudança, porque Arnold Denley acordou sem nenhum mal-estar.
Denley se admirou com a novidade, mas logo descobriu que sentia terror de morrer afogado. As palavras reconfortantes da srta. Branscombe, porém, foram mais fortes
que o medo.
O barco finalmente chegou a York Stairs, onde as carruagens os aguardavam.
Quando todos já estavam em terra, Miranda ocupou-se em instalar o sr. Denley confortavelmente e não reparou que lorde Oxenham afastou-se sem despedidas, com o
orgulho ainda mais ferido, porque a moça nem notara seu desprezo. O poeta subiu na carruagem e deu ordem de partida.
- O lorde Oxenham já foi? - perguntou Miranda à sra. Wordsworth-Pugh, segundos mais tarde.
- Acho que acabou de partir, senhorita - respondeu a distraída senhora, preocupada apenas com as atenções que Richard devotava à sua filha Lucy.
Os dois jovens tinham passado o dia juntos e não escondiam o interesse mútuo.
- Eles fazem um belo par, não? Seu irmão e minha Lucy?
- Fazem, mesmo - Miranda sorriu. - Os dois parecem estatuetas de Dresden, ele moreno, e ela tão loura.
A sra. Wordsworth-Pugh soltou um discreto suspiro de alívio. Sabia que uma fortuna conseguida com corpetes femininos não era um meio fácil de ser aceito na sociedade,
não adiantando a beleza ou o amor. Famílias antigas como os Branscombe costumavam ser muito severas em assuntos de casamento. Mas estava mais confiante agora que
Miranda aprovava a união, pois seria mais fácil levar sir Henry a fazer o mesmo. Tudo poderia chegar a um final muito satisfatório. E se aceitavam uma união, por
que não duas? Sir Henry ainda era um homem muito atraente...
- Srta. Branscombe -, sugeriu a sra. Wordsworth-Pugh -, gostaria que persuadisse sua família a ir jantar um dia destes lá em casa.
- Será um prazer. Tenho certeza de que todos se alegrarão com o convite.
- Acha que o sr. Kerswell também iria?
- Claro - Miranda olhou para Peter, que ajudava a srta. BelIa a subir na carruagem. - Sem dúvida alguma.
Quando já estavam de volta à privacidade do lar, a mãe confidenciou à filha Bella:
- Tenho muita esperança de casar Lucy com o jovem Branscombe.
- Espero que sim. Lucy jogou-se sobre ele logo que o conheceu, e está se oferecendo muito - a irmã comentou com franqueza.
- Eu gostaria que não usasse estas expressões vulgares, meu amor - a mãe advertiu. - Será muito bom ter como filha a futura Lady Branscombe, especialmente por
Richard ser tão moço e tão bonito. Mas não sei se não seria você o par ideal para ele.
- Ora, mamãe, não me incomodo se Lucy casar antes de mim, mesmo sendo um ano mais velha que ela.
- Você é muito generosa, querida. Mas eu me referia ao temperamento, e não à idade. Lucy é muito suave, e o sr. Branscombe não parece ser uma pessoa muito decidida,
não é? Se você fosse esposa dele, poderia dirigi-lo facilmente.
- Lucy me odiaria pelo resto da vida! Não, obrigada, mamãe. Além disso, acho que ele é um pouco aguado. Prefiro gente mais espirituosa.
- Pois bem, mas quero dar-lhe um aviso. Sei que gosta das brincadeiras do sr. Kerswell, mas ele é mais difícil de ser conquistado. Escreva o que eu digo. Sei
que a srta. Miranda vai ajudar Lucy. Aliás, o que mais poderia fazer uma moça tão desenxabida? Graças a Deus, é sensata e agradável.
A sra? Wordsworth-Pugh ficaria muito espantada se soubesse que naquele mesmo instante lorde Oxenham, em sua própria casa, sofria muito ao pensar em Miranda. Continuava
com o orgulho profundamente ferido porque ela sentira piedade dele, mesmo sendo uma moça tão sem graça! Se fosse uma beldade, talvez a situação ainda fosse suportável,
ou quase!
"Nunca mais olharei o rosto daquela criatura! Nunca mais! Vou ignorá-la se a encontrar, como se não a conhecesse! Vou ensinar uma lição àquela jovem feia e deselegante,
ela compreenderá que não pode agir assim comigo!", refletiu, indignado.
Levado pela fúria, o lorde poeta agarrou uma bela garrafa de cristal veneziano, contendo vinho do Porto, e atirou-a contra a parede.

CAPITULO VI

Para infelicidade de lorde Oxenham, Miranda nem percebeu que ele pretendia puni-la com o desprezo. Não recebera mais nenhuma notícia dele desde o passeio de barco,
mas não desapontou-se porque não esperava que o poeta tornasse a procurá-la. Que interesse ele podia ter em revela com tantos programas mais interessantes para fazer?
Miranda continuou a se dedica/ alegremente a tudo que despertava sua curiosidade, além de desempenhar seu papel de anfitriã ao lado do pai.
O clima continuava delicioso, e a moda era passear à sombra das árvores em Hide Park.
- Como todos estão frequentando o parque, vamos encontrar muitos conhecidos - Richard comentou com Miranda e Peter enquanto caminhavam. - Será que a sra.
Wordsworth-Pugh e as filhas vieram tomar um pouco de ar fresco?
Miranda e Peter se entreolharam.
- Você não quer que a gente dê voltas pelo parque inteiro só para encontrá-las, não é? - perguntou Peter. - Afinal, estivemos com elas há três dias, apenas.
- Só três dias? Parece um século! O tempo se arrasta, não quer passar - queixou-se o pobre Richard, como um amante atormentado.
- Pois eu acho que as horas voam, mas compreendo o tédio que você sente, querido. - Miranda consolou-o.
- Não poderíamos convidá-las para jantar? - ele pediu.
- Não seria apropriado. Elas jantaram conosco recentemente e devemos esperar que a sra. Wordsworth-Pugh retribua o convite. Sinto muito, meu caro. Compreendo
sua ansiedade, mas devemos observar os costumes. Por outro lado, você poderia mandar umas flores para a srta. Lucy.
- Acha que devo? - o rosto de Richard iluminou-se.
- Acho que sim, se o buque não for muito grande e o bilhete for simples. Mande também um ramalhete para a sra. Wordsworth-Pugh, pedindo permissão
para ver a srta. Lucy. Duvido que ela recuse.
- É uma ideia formidável! E que flores devo escolher? Gladíolos amarelos? Ou rosas brancas com uma fita dourada? Vocês me dão licença por um instante? Vou até
a florista!
- Ninguém pode dizer que não incentivamos o verdadeiro amor - comentou Peter. - Cupido acertou-lhe uma flechada, sem dúvida!
- Temo que sim - Miranda concordou enquanto continuavam o passeio. - Parece um caso bem agudo de paixão... Graças a Deus, a srta. Lucy também parece apaixonada
por Richard. Seria horrível se os sentimentos de meu irmão não fossem correspondidos.
- Você não tem objeções ao namoro dos dois? Seu sangue de família tão tradicional pode se misturar com o de uma moça sem berço?
- Não me incomodo com isto, se ela amar Richard sinceramente e o fizer feliz. Mas você deveria ser mais amável com os ancestrais da sra. Wordsworth-Pugh, especialmente
porque não tira os olhos da srta. Bella.

- Você se esquece de que nós, os Kerswell, somos nouveaux-riches, ou seja, gente muito simples. Temos mais liberdade para casar, sem nos preocuparmos tanto com
linhagem e árvores genealógicas.
- A sra. Wordsworth-Pugh ficará muito aliviada quando souber disto. Depois de instalar uma filha em Branscombe Hall, es
perará ver a outra em New Park. Não ficarei surpresa se ela pedir minha ajuda.
- Não precisa se preocupar em me arranjar nenhuma namorada, sou capaz de escolher sozinho. Na verdade, meu forte é formar casais, por isto estou cuidando pessoalmente
do seu caso.
- Ah, você não falou nisto nas últimas vinte e quatro horas, pensei que houvesse esquecido o assunto. Não desistiu do plano?
- Desistir? Claro que não! Nestes últimos dois meses você tem contado com minha famosa tenacidade. Terá seu marido até o fim do ano!
- Não insista mais com o sr. Denley, por favor.
- Sua opinião será respeitada. Alegro-me que tenha respeitado a minha, pelo menos uma vez.
- Que declaração estranha! A que está se referindo?
- Ora, a lorde Oxenham, naturalmente. Fiquei feliz porque não se viram mais. Ele não é boa amizade para você.
- E as suas amizades, são boas?
- Talvez não, mas não podem me causar tanto dano como Oxenham a você.
- Oh, Peter! Você não acha que minha virtude estaria ameaçada! Afinal, ele tem as mais belas moças de Londres à disposição.
- Conheço sua sensatez, Miranda, mas sei também que tem muita ternura no coração. Sua afeição por um homem como ele poderia causar muito sofrimento. Não confio
em Oxenham.
- Sua opinião sobre o caráter de lorde Oxenham e minha credulidade não é muito lisonjeira.
- Ele é muito vaidoso e não se incomodaria de fazer outra pessoa sofrer.
Miranda ficou em silêncio por um momento, porque também tinha pensado a mesma coisa, mas logo arrependeu-se da ideia tão pouco caridosa.
- Não acredita que o coitado apenas procura algum alívio para seu tédio constante? - perguntou ela pouco depois.
- Acredito, tanto quanto acredito em Papai Noel! Se encontrar novamente Lorde Oxenham, não o convide para nada, eu lhe peço. Sei que quer ajudá-lo, mas é um libertino.
Sei de vários casos sobre ele, mas não posso contá-los a você. Até eu corei ao ouvi-los.
- O que não o impediu de ficar de ouvidos bem abertos -ela respondeu, contrariada.
- Só não ouviria se fosse surdo. Todas as semanas alguém surge nos cafés contando alguma novidade. Peço-lhe para não estreitar a amizade, com Oxenham, Miranda,
por favor.
- Apenas por causa dos mexericos que escuta nos cafés? Que bobagem, Peter!
- Você está muito obstinada. Com aquele maldito poeta por perto, será muito mais difícil encontrarmos um bom marido para você.
- Se os candidatos forem todos como o sr. Denley, não vou me aborrecer.
- Ouça o que eu digo, não torne a ver Oxenham - Peter insistiu.
- Esta discussão é puramente académica, meu caro -, argumentou Miranda -, pois lorde Oxenham está vindo em nossa direção. Seremos obrigados a cumprimentá-lo.
- Não! Ignore-o!
Peter ficaria surpreso se soubesse que o lorde poeta estava pensando a mesma coisa. Ele também teria o prazer de ignorar Kers-well, porque não gostara dele desde
o princípio. Quanto à srta. Branscombe... Ergueu ligeiramente o perfil magnífico para que ela pudesse admirá-lo ao passar.
Foi pura perda de tempo. Miranda não era capaz de interpretar tão mal a atitude de alguém. Achou apenas que lorde Oxenham não a vira porque estava temporariamente
cego pela luz do sol. Cumprimentou-o:
- Bom dia, milorde. Não está uma manhã magnífica? Fico muito feliz por encontrá-lo, porque descobri uma coisa que pode despertar seu interesse. Já escolheu
a figura de proa que porá em seu iate?
Lorde Oxenham estava determinado a ignorá-la, mas parou, indeciso. Como é que aquela moça sempre conseguia chamar sua atenção? Como adivinhara que ele andava
preocupado com a escolha de uma bela figura de proa? De repente, mudou de ideia. Poderia desprezá-la, mas em outra ocasião.
- Bom dia, srta. Branscombe. Sr. Kerswell.
Os dois cavalheiros trocaram mesuras quase imperceptíveis.
- Quanto à figura de proa -, disse Oxenham -, tenho pensado no assunto, mas resolvi apenas o que não quero. Essas figuras, na maioria dos barcos, parecem caricaturas.
São ridículas e sem nenhum refinamento.
- Eu concordo. Mas e se o senhor encontrasse alguma peça artística e realmente bela? Não mudaria de ideia? Estou perguntando porque descobri um jovem escultor
que trabalha com madeira, amigo do sr. Spiro, que é muito talentoso. Quando vi os trabalhos dele, encontrei um que achei ideal para o seu iate. É uma nereida, uma
ninfa do mar. Até o motivo é apropriado. O sr. Watts, o escultor, até me deu seu desenho. Espere um pouco, está aqui!
Lorde Oxenham desdobrou o papel que Miranda tirou da bolsa e lhe entregou, achando que esta seria uma excelente oportunidade de demonstrar seu desprezo por ela.
- Ora, realmente... - ele começou a dizer com ironia, mas ao primeiro olhar encantou-se com o desenho.
Era exatamente o que procurava: uma ninfa do mar arqueada sobre as ondas, com os cabelos revoltos caindo sobre os ombros e misturando-se ao drapeado da roupa.
Todas as linhas eram leves, suaves, e a expressão do rosto era viva, como se quisesse abrir caminho até o horizonte distante. Era uma nereida que enfeitaria qualquer
proa de navio de luxo. O seu iate!
- Posso prometer que o sr. Watts fará uma escultura tão bela quanto o desenho - disse Miranda, reparando que ele estava encantado.
Oxenham, que não queria desistir inteiramente de suas malévolas intenções, procurou manter um ar crítico.
- Eu não gostaria que ela fosse pintada! - foi a única objeção que lhe ocorreu.
- Oh, não! Certamente que não! O original é em madeira natural, e tem sessenta centímetros de altura, mas o sr. Watts garantiu que pode reproduzi-lo em tamanho
maior sem perder as proporções e os detalhes. Não acha que ficaria bem toda dourada?
- Bem... Sim, talvez uma douração suave, formando uma linha mais acentuada que percorrerá o resto do casco do barco.
Acho que ficará um acabamento de bom gosto. Ele se chama Watts, não é? Sabe onde ele mora? Vou procurá-lo, e se for tão bom quanto a senhorita afirma, pretendo encomendar-lhe
minha figura de proa.
Ele estava tão interessado que esqueceu-se completamente de seus propósitos e começou a passear ao lado de Miranda, conversando sobre os detalhes e possíveis
modificações da nereida. Peter os seguia mais atrás, detestando Oxenham ainda mais a cada segundo. Pensou em afastar-se, mas não podia abandonar Miranda nas mãos
daquele libertino. Precisava salvá-la, se fosse o caso, e ainda temia o pior: salvá-la de si mesma, antes que se apaixonasse por ele.
"O melhor é encontrar logo um marido para Miranda", pensou indignado. Se Richard abandonasse os esforços, preocupado apenas com os planos de seu próprio casamento,
ele continuaria a busca sozinho. Faria qualquer coisa para salvar sua amiga de Oxenham!
Peter levou um choque quando lorde Oxenham convidou Miranda a acompanhá-lo ao estúdio do escultor no dia seguinte.

- A senhorita conhece o homem e aparentemente conversa muito bem com esta gente - comentou Oxenham. - Eu ficaria muito grato se me acompanhasse.
- Qual é o problema? - perguntou Peter. - O sr. Watts não fala a nossa língua, para que o senhor precise de uma intérprete?
- Presumo que sim, mas duvido não que seja muito fácil compreendê-lo. - Oxenham respondeu friamente. - Eu não tenho muito jeito para falar com gente do povo,
além de meus criados, e temo que o escultor não entenda bem as minhas ordens.
- Acredito que a "gente do povo" o entenderá muito bem se o senhor falar de um modo claro e pausado. Imagine que está falando com seu cão - ironizou Peter.
- Agradeço seu conselho, sr. Kerswell. Certamente está mais habituado a conversar com este tipo de gente do que eu - Oxenham replicou com suavidade.
- Estou convencido de que o senhor pode sentir-se à vontade com pessoas de qualquer nível da sociedade, mesmo do mais baixo -- retrucou Peter. - Mas, se não houver
problema, acho que também vou ao estúdio do sr. Watts. Estou ansioso para ajudá-lo no que for possível, para que sua viagem marítima comece o quanto antes.
- É muita amabilidade sua, Peter - Miranda interrompeu, amável. - Creio que você vai achar a visita ao estúdio muito interessante.
- Também acho, sr. Kerswell - murmurou Oxenham. - O entalhe em madeira é uma das mais antigas formas de arte, e é apreciada até mesmo por aborígenes incultos.
Com este último comentário tão direto e maldoso, lorde Oxenham despediu-se, antes de Peter recobrar o fôlego. Quando o poeta lembrou-se da resolução de não dar
atenção a Miranda, viu que era tarde demais. Não sabia o que o atraía na moça; não era bonita, mas o distraía muito. Extraordinário! Ele podia pensar no dia seguinte
sem sentir o aborrecimento de sempre. Infelizmente, teria de aguentar Kerswell, e talvez aquele irmão almofadinha da srta. Branscombe também fosse. Paciência...
Oxenham cruzou tão feliz o parque, com passos tão leves, que até condescendeu em cumprimentar uma senhora obesa com suas filhas gordas, obrigando-as a cheirar
um pouco de vinagre para não desmaiarem de tanta emoção.
Peter, ao contrário, ficou de mau humor. Não parava de resmungar, porque Miranda aceitara o convite do lorde. Seu ânimo não melhorou com a volta de Richard, que
pisava nas nuvens por ter mandado flores a Lucy.
- Ora, não acho assim tão mau - disse Richard, depois que soube do convite para o dia seguinte. - Será um programa melhor do que ir à fundição! Não sei porque
você está reclamando, Peter. Agora quero contar para vocês o que escolhi. A florista me aconselhou rosas amarelas numa linda cestinha enfeitada com fita azul-esverdeada.
Ficou a coisa mais linda que já vi, mas não sei se está à altura de Lucy. Ela vai receber o arranjo daqui a uma hora... Ah, quando eu saía da loja, encontrei o sr.
Denley. Ele mandou lembranças, Miranda. Você não acha que, afinal...
- Não, não acho! - Miranda respondeu com firmeza.
- Oh, está bem. Foi apenas uma ideia. Afinal, Arnold Denley ficou tão interessado quando contei que enviei flores a uma jovem dama que não me surpreenderei se
você também receber um buque, minha irmã.
- Será muita amabilidade do sr. Denley, mas ele não será meu marido!
- Não é de se admirar que a gente não ache um bom partido. Você é muito difícil de contentar, Miranda - resmungou Peter.
- Qual a razão de tanto mau humor? - Richard surpreendeu-se.
- Lorde Oxenham o irritou - disse Miranda.
- Ora, é só isto? Não se desespere, a Temporada está apenas começando, Peter. Tenho certeza de que vamos encontrar um bom marido para Miranda.
- Não se lorde Oxenham continuar pairando como uma nuvem negra sobre nós - murmurou Peter.
Richard não ouviu o comentário, pois estava muito ocupado descrevendo à irmã, palavra por palavra, o bilhete que enviara à sra. Wordsworth-Pugh, pedindo-lhe permissão
para visitar Lucy.
Sir Henry Branscombe acabara de chegar em casa após uma manhã exaustiva no camiseiro. De fato, a Temporada em Londres era extremamente cansativa ao exigir uma
série infindável de visitas a alfaiates, chapeleiros e todo resto. Mas naquela manhã sir Henry estava mais animado porque, ao cruzar o parque, vira Miranda passeando
com lorde Oxenham; os dois conversavam com animação. Na verdade, Oxenham não gozava de muito boa reputação, mas era um lorde, solteiro, e usava os casacos mais bem-feitos
que sir Henry já vira. Nesse momento, ele ouviu passos no hall e viu que Miranda tinha chegado do passeio.
- Olá, papai - ela disse poucos minutos depois, entrando na sala de estar com os olhos brilhantes e o cabelo um pouco desfeito pelo vento. Depois de beijá-lo
na testa, avisou: - Há um convite da sra. Wordsworth-Pugh na mesa do hall. Ela nos convida para jantar na quinta-feira. Deve ter enviado outro convite a Richard.
Ele estava tão ansioso!
- Suponho que será uma noite interessante. A sra. Wordsworth-Pugh é até agradável, se ignorarmos suas plumas. E suas filhas são lindas! Na última vez que vi a
srta. Lucy, ela estava usando um vestido de seda finíssimo, que deve ter custado uma fortuna. Reparei que as luvas e o leque combinavam perfeitamente. Aprecio uma
jovem que dá tanta atenção aos detalhes da aparência.
- Diga isto a Richard, ele ficará muito satisfeito - Miranda riu, sem notar que suas luvas cor-de-rosa não combinavam com o vestido listado em tons de marrom
e bege.
- E como você passou a manhã, minha querida? Quem con versava com você no parque era lorde Oxenham?
- Era, sim. Nos encontramos por acaso, mas gostei de vê-lo porque encontrei a figura de proa ideal para seu iate.
- E ele ficou satisfeito?
- Oh, sim. Vamos amanhã ao estúdio do artista. Agora, se meder licença, vou responder ao convite da sra. Wordsworth-Pugh.
- Sim, claro. Oh, mas antes, veja estas flores que chegaram para você. Talvez tenham sido entregues por engano, não?
Miranda olhou na direção que o pai indicara e viu um vaso de margaridas brancas, começando a rir enquanto abria o envelope do cartão.
- Não, acho que já sei quem as mandou... Sim, foi ele mesmo! Não houve engano, papai, são do sr. Denley. Então vou aproveitar e escrever dois bilhetes,
agradecendo as flores também.
Ainda rindo, ela pegou as margaridas e saiu da sala. O pai a observou afastar-se, admirado. O sr. Denley e lorde Oxenham! Será que o tipo sem atrativos de Miranda
estava na moda? Sentiu o coração mais leve. Talvez, naquela Temporada, a filha finalmente conseguisse arranjar um marido. Quanto a ele, precisava evitar os avanços
da sra. Wordsworth-Pugh.

CAPITULO VII

As semanas se passaram e Londres ficou ainda 'mais agitada. A Temporada estava no auge. Lorde Oxenham, para sua própria surpresa, continuou a ver Miranda frequentemente.
Tornou a prometer a si mesmo, mais de dez vezes, que não voltaria a vê-la, porque todos poderiam estranhar uma companhia tão sem encantos a seu lado. Em geral, só
era visto com as mais conhecidas beldades da sociedade. Mas a srta. Branscombe atraía constantemente sua atenção com ideias interessantes e originais, ou o intrigava
com questões que lhe davam o que pensar. As sugestões de passeios, principalmente, eram irresistíveis. Foram assistir demonstrações de hipnotismo, saltos de pára-quedas
dos balões e outros espetáculos que aguçavam a curiosidade e o entusiasmo de Miranda, contagiando Oxenham.
Ele era obrigado a concluir, quando pensava no assunto, que a srta. Miranda Branscombe era diferente das outras moças. Não tentava induzi-lo a fazer nada, não
tinha crises de ciúme e ameaços de desmaio. Bem ao contrário, transmitia serenidade e era uma companhia reconfortante.
Temendo tanta influência da srta. Branscombe, lorde Oxenham procurava periodicamente suas velhas tias. Morando em luxuosas residências, oferecendo reuniões literárias
famosas, elas o recebiam com o prazer de sempre e ele reinava entre os súditos, como um príncipe. Achava as reuniões muito aborrecidas, porém. Apenas Miranda era
capaz de transmitir seu entusiasmo em relação a qualquer coisa, e ela já declarara que não gostava de bailes e reuniões noturnas. Era natural, sendo tão alta e desajeitada...
E assim, o poeta prosseguia pela Temporada, perplexo consigo mesmo.
Mais que ele, Londres inteira estava espantada. As semanas se passavam e lorde Oxenham não fazia nada que pudesse despertar comentários, não dava um passo em
falso. A dama que geralmente o acompanhava agia de maneira irrepreensível, e até os críticos mais persistentes não conseguiam descobrir uma única falha que desse
origem a mexericos. Os cronistas não tinham notícias para publicar nos jornais sobre o poeta que costumava dar tanto assunto, e rezavam para que se curasse daquela
"crise de virtude".
A família de Miranda não criava problemas, porque sir Henry estava encantado com o amigo da filha. Admirava-se com o interesse de lorde Oxenham por Miranda e
não o compreendia, mas sentia prazer e orgulho. Quanto a Richard, vivia feliz porque podia dedicar-se mais à mulher amada.
- Oxenham parece muito interessado em Miranda - o rapaz confidenciou à bela Lucy. - Fico feliz por minha irmã, ele parece um ótimo rapaz.
- Se você o aprova, ele deve ser um cavalheiro digno e de ótimo caráter - respondeu Lucy, apaixonada demais para compreender que seu amado não tinha o menor senso
crítico.
Apenas Peter desaprovava o relacionamento, argumentando:
- Esta amizade ainda nos trará problemas. Como poderemos arranjar um marido para Miranda se Oxenham não se afasta dela um minuto?
Ele vivia se queixando, com eterno mau-humor. Como todos estavam habituados à sua alegria constante, sua irritação causava-lhe problemas até com a srta. Bella,
a quem só queria agradar.
- Você é muito amável por se preocupar tanto comigo - disse Miranda a Peter certo dia, quando ele foi visitá-la. - Mas acho que não tem motivos para agir
assim. Minha amizade por lorde Oxenham é inteiramente inocente, não há nenhuma intenção amorosa. E não me diga que não acredita em tal coisa, porque nós temos sido
amigos a vida toda.
.- Mas nossa situação é muito diferente - retrucou ele. - Nós nos conhecemos desde a infância, quase desde o berço. Sempre gostei de você como se fosse minha
irmã. Não, mais que isso, porque nem sou tão amigo assim de minhas irmãs. Além disso, sei que não sou santo, mas a reputação de Oxenham é péssima. Mesmo que eu fizesse
o impossível, não conseguiria a fama de mau-caráter que ele tem.
- Lá vem você com esta velha história! - Miranda exclamou. - Estou convencida de que falam do pobre lorde Oxenham sem razão. Muita gente só espera dele
as piores coisas. Os críticos é que são maus.
- Pois eu me incluo nesta categoria, e declaro que se ele fizer algum mal a você, terá de se haver comigo.
- Oh, prometa que nunca fará uma bobagem destas! - Miranda alarmou-se. - Você sabe que minha virtude não está ameaçada. Não percebe que eu sou apenas uma novidade
para este homem? Coitado, ele vive tão entediado, tão carente... Pobre lorde Oxenham, deve ser uma situação muito triste ter tudo o que se deseja desde cedo: riqueza,
fama e talento.
- Eu não sofri tanto, por que acha que ele foi tão afetado? - Peter indagou em tom irónico.
- Ah, mas ele não teve irmãs mais velhas para ajudá-lo a manter o equilíbrio - Miranda sorriu, satisfeita porque a conversa ganhava uma nota mais alegre.
- Isto é verdade. A vida com minhas irmãs foi um batismo de fogo, um martírio capaz de transformar qualquer homem em um santo.
- Pensei que você tinha dito que não era um santo - ela brincou.
- Foi apenas um modo de expressão, nada mais. É que a modéstia me impede de exaltar minhas virtudes.
- Ora, economize este discurso para impressionar a sita. Bella.
- É melhor - Peter riu. - Ele soará melhor aos ouvidos de alguém que não me conhece tanto quanto você. Mas não pense que este desvio na conversa me fará esquecer
dos defeitos de lorde Oxenham!
- Peter -, Miranda suspirou -, sei que você quer o melhor para mim. Mas peço-lhe, não critique tanto a amizade que sinto por ele. Pelo menos uma vez, está sendo
tão agradável ver papai e Richard satisfeitos...
- Sir Henry e Richard? O que eles têm a ver com nossa conversa?
- Se você tivesse passado as últimas Temporadas comigo em Londres, compreenderia melhor o que quero dizer. Foram desastrosas, e papai sofreu muito. Fui um grande
desapontamento para ele. Apesar de ter sido sempre o pai mais carinhosos e dedicado que se possa desejar, não sou tão tola a ponto de não perceber que ele seria
muito mais feliz se tivesse uma filha como Lucy Wordsworth-Pugh, por exemplo. Enfim, uma moça bonita e elegante, e não alguém como eu, tão alta e sem atrativos.
Agora, graças à amizade com lorde Oxenham, tenho recebidodúzias de convites que jamais seriam enviados, você sabe.
- Ora, não exagere.
- Não estou exagerando. Mas agora a coisa mudou, finalmente fui aceita pela sociedade. Fiz as feias entrarem na moda, e todas devem estar recebendo mais atenções
que antes. E papai está muito feliz. Eu nunca me incomodei por ser tão alta e sem graça, mas papai e Richard sofrem por minha causa porque são bonitos e elegantes.
Portanto, torno a lhe pedir, deixe que todos continuem alegres e aramados nas últimas semanas que restam desta Temporada.
Peter ficou algum tempo em silêncio e finalmente falou baixinho:
- Miranda, sou um bruto. Não pensei que estava atrapalhando tudo. Como sempre, você é generosa e está mais preocupada com seu pai e seu irmão. Eu prometo, não
farei mais ameaças contra Oxenham. Mas não esqueça, continuarei de olho nele para ter certeza de que está se comportando bem. Não consigo gostar dele, nem que seja
só para agradá-la, mas aproveite o resto da Temporada. Afinal, ela já está quase no fim.
- Pois é, logo partiremos da cidade e provavelmente nunca tornarei a ver lorde Oxenham.
- E vai ficar triste por isto?
- Claro, gosto muito dele. Quando esquece de representar seu papel de mau-caráter ou de grande poeta, é uma ótima companhia. Já viajou muito, e tem sempre histórias
interessantes para contar. Além disso, para ser honesta, é muito agradável ser o objeto das atenções de um cavalheiro que as outras mulheres desejam tanto. Elas
não compreendem o motivo destas atenções, e eu também não, mas é muito bom. Porém, não espero que nossa amizade se prolongue, posso garantir. Estou muito satisfeita
em voltar para Branscombe Hall como uma solteirona. Tal perspectiva não me assusta, até me alegra. Se Richard logo se casar com Lucy, como esperamos, vai encher
a casa de sobrinhas e sobrinhos para me distrair.
- Se está tão ansiosa para ter sobrinhas e sobrinhos, fique com alguns dos meus. São muitos, não farão falta - Peter ofereceu, zombeteiro. - Mas não aceito esta
resignação que você demonstra diante da ideia de ficar solteirona. Você é uma moça maravilhosa, merece o melhor marido do mundo. E eu pretendo encontrá-lo para você.
Miranda corou com o cumprimento sincero e seus olhos ficaram mais brilhantes.
- Você é muito amável - ela respondeu. - Mas não se entregue à tarefa impossível de me encontrar um marido. Você teria de negligenciar o tempo que dedica
à srta. Bella, e a sra. Wordsworth-Pugh iria aborrecer-se.
- Não tenha medo, a sra. Wordsworth-Pugh não vai me fisgar tão facilmente. Graças a Deus, no momento ela está concentrando as energias em Richard para garantir
o casamento da srta. Lucy, apesar de não haver necessidade disto porque o rapaz já está apaixonadíssimo. Sem dúvida, a sra. Wordsworth-Pugh me dará toda atenção
dentro de algum tempo, mas até lá já terei encontrado um marido para você.
- Não o sr. Denley! - implorou Miranda.
- Está bem, não o primo Denley, se está tão decidida. Porém, estou convencido de que ele está esperando apenas um pequeno empurrão para pedir sua mão. Mas vou
continuar procurando.
Depois de se despedirem, Miranda observou da janela enquanto Peter cruzava a praça. Ao chegar à esquina da Holles Street, ele vpltou-se e acenou-lhe adeus. Ela
o achou mais bonito que nunca, até mais que Richard. A sra. Wordsworth-Pugh ia ter dois genros muito atraentes... Peter desapareceu e Miranda olhou para o outro
lado da rua, vendo aproximar-se uma figura familiar e um pouco deprimente, por ser tão frágil. Arnold Denley já a vira. na janela, portanto não podia fugir.
Poucos minutos depois ele foi anunciado pelo mordomo Banks, e entrou na sala com expressão sombria.
- Srta. Branscombe, vim lhe dar adeus. Não é um au revoir ou um até breve, mas um adeus final e definitivo.
- O senhor vai voltar a Somerset? - Miranda perguntou, envergonhada pelo alívio que sentia.
- Ah, não é a isto que me refiro. Vou para o destino final de todos nós, meus dias estão contados.
Poucos meses antes uma declaração como aquela deixaria Miranda cheia de compaixão, mas a experiência a ensinara a usar o bom-senso, além da simpatia, quando se
tratava do sr. Denley.
- Que tristeza - comentou, olhando-o pesarosa. - O senhor está certo do que afirma?
- Perfeitamente. Não sente nem um pouquinho de pena de mim? Achei que a senhorita, mais que ninguém, iria apiedar-se de minha situação.
- Se o que o senhor diz é verdade, claro que vou ter muita pena. Mas não está enganado? Quem lhe deu essa opinião?
- Todos eles, a Harley Street inteira, de certo modo.
- O que os médicos disseram exatamente?
- O que importa é o que eles não disseram. E só se pode chegar a um conclusão.
- Senhor Denley -, Miranda foi amável, mas usou de firmeza -, por favor, conte-me exatamente o que os médicos lhe disseram, palavra por palavra.
Arnold Denley ficou inquieto na poltrona, mal disfarçando sua satisfação. Quando fazia comentários dramáticos como aquele, as pessoas costumavam responder com
simpatia, mas sem a menor sinceridade. Apenas sua falecida mãe, tão querida, era tão insistente quanto a srta. Branscombe para conhecer a verdade. A moça era realmente
um tesouro!
- Como a senhorita sabe, vim a Londres com a intenção de consultar os doutores da Harley Street. Prometi a mim mesmo que pediria a opinião dos melhores médicos
do mundo, e fui a todos os consultórios de um lado da rua, depois do outro. Esta manhã fui consultar o último, Dr. Baum. Ele fica bem na esquina desta rua. Minha
cara senhorita, estão todos perdidos. Minha doença desafia a ciência.
- Verdade?
- Eles não concordam entre si - prosseguiu Denley. - Um põe a culpa no fígado, outro fala de uma doença no sangue. Um diz que devo comer só legumes, outro me
receita dietas especiais à base de carne. Deixei os maiores especialistas da medicina tão confusos que só me resta uma alternativa: voltar a Somerset e esperar o
fim.
- Tal espera pode ser muito longa - Miranda não se conteve. - Talvez uns trinta ou quarenta anos.
- A senhorita acha? Tanto tempo? - Denley ficou chocado com a ideia. - Mas os especialistas...
- Foram muito bem pagos pelo serviço que lhe prestaram. Naturalmente, cada médico quis justificar o preço alto da consulta. Já que eles discordam tão radicalmente
entre si, não lhe ocorreu que existe outra alternativa? A de que não haja nada de errado com sua saúde.
- Srta. Branscombe! - Denley sentiu-se ofendido.
- Pense no que eu disse, sr. Denley. O senhor toma muitos remédios por dia, não é? Se eu tomasse um quarto das pílulas que o senhor engole diariamente, ficaria
muito mal. E sei que gozo de muito boa saúde. Devo confessar que estes remédios todos não podem lhe fazer bem. Não gostaria de abandoná-los durante algum tempo,
pelo menos em caráter experimental?
- Sita. Branscombe! - ele exclamou outra vez, ao ouvir aquela blasfémia.
- Pense nisto. Se o senhor continua doente depois de tantos tratamentos, não tem nada a perder se abandoná-los.
- Inteiramente? Não posso usar nem os sais?
- Não.
- Nem o elixir digestivo?
- Também não.
- Mas preciso fazer alguma coisa! O que a senhorita sugere?
- Sabe quando o vi mais saudável, senhor Denley? No dia da excursão pelo rio, quando o senhor tomou bastante ar puro e se alimentou bem. Isto não quer dizer alguma
coisa?
- Eu... eu acho que sim... mas o que devo fazer se tiver uma tontura ou precisar de ajuda? Necessito de uma companhia, com certeza. - Denley expressava na face
todo o horror que sentia por aquelas ideias tão extraordinárias.
- O que o senhor precisa é dos conselhos de um bom médico que não seja influenciado por sua riqueza, que seja um clínico geral e exerça a profissão seriamente.
Vou lhe dar o nome de um médico assim, ou melhor, de dois. São pai e filho, trabalham no mesmo consultório. Deste modo, o senhor pode contar com a experiência de
um e os avanços mais atualizados do outro. Sugiro que vá consultá-los agora mesmo. Garanto que não vão enchê-lo de remédios sem necessidade.
- A senhorita acha, realmente, que devo tentar?
- O senhor não acha? Ou prefere voltar a Somerset e ficar esperando a morte?
Denley observou Miranda, pensativo, e teve uma ideia salutar. Se estava com os dias contados, nem adiantava casar-se com a srta. Branscombe. Mas se desejava pedi-la
em casamento, não pretendia passar pela terrível experiência apenas para viver um mês ou dois com ela.
- Sim, vou tentar! - ele exclamou, por fim. - Preciso de ar puro, e um pouco de exercício me fará bem, eu sei. Quando chegar em casa darei novas instruções
ao cozinheiro. Vou passear no parque diariamente, vou andar a cavalo, e dizem que a esgrima também é um exercício muito benéfico. Quem sabe, quando ficar um pouco
mais forte, talvez eu pratique outros esportes. Vou começar de imediato!
- Que bom! - Miranda comentou, um pouco assustada por ter provocado tanto entusiasmo. - Mas peço-lhe que vá devagar, com toda a calma. Antes de mais nada, consulte
o dr. Lee e o filho. Eles vão cuidar do senhor muito bem.
- Eu vou, eu vou. Oh, srta. Branscombe, estou tão agradecido! Cheguei aqui como um moribundo e saio como se tivesse renascido!
- Oh, não seja exagerado - Miranda respondeu ainda mais alarmada. - Alegro-me, apenas, por vê-lo mais otimista.
- Otimista? Srta. Branscombe, já estou me sentindo curado.
É um verdadeiro milagre! Agora, se me der licença, devo deixá-la. Fui convidado pela sra. Wordsworth-Pugh para jantar em sua casa esta noite. Ela tem filhas lindas!
Acho que vou revê-la, não é? A senhorita também vai ao jantar? Pois bem, acho que volta rei a pé para casa. Sim, darei um passeio. Será muito revigorante.
Arnold Denley partiu, agradecido, depois que Miranda confirmou que também iria ao jantar.
Mais tarde, na residência da sra. Wordsworth-Pugh, quando todos estavam à mesa, Denley não teve oportunidade de falar de suas dietas e exercícios porque outro
assunto tomou a atenção de todos. Naquele mesmo dia, Richard pedira formalmente a mão de Lucy em casamento. E a jovem aceitara.
- Não podem imaginar como estou feliz - declarou a triunfante sra. Wordsworth-Pugh, sacudindo vitoriosa suas plumas.
- Claro, algumas pessoas vão comentar que Bella deveria casar-se antes, porque Lucy é a caçula, mas acho que um amor verdadeiro está acima de formalidades
tolas. Além disto, minha Bella está feliz e provavelmente logo entrará na igreja para unir-se ao sr. Kerswell, não é mesmo?
- O homem que merecer a mão da srta. Bella será muito afortunado, madame - Peter respondeu, amável.
- Tem certeza de que não quer pedir logo a mão da srta. Bella? - Miranda murmurou-lhe quando a sra. Wordsworth-Pugh não estava ouvindo.
O jantar terminara e todos tinham passado ao salão.
- Tenho, mas isto não basta para a sra. Wordsworth-Pugh.
- Peter sorriu. - Minha esperança é que ela fique tão feliz por ter fisgado Richard que me deixe em paz neste fim de Temporada.
- É, acho que ela exagera um pouco em seu papel de belle mère - Miranda concordou.
- Exagera ao ponto de oferecer-se para renovar Branscombe Hall! O pobre sir Henry quase teve um ataque de apoplexia quando a sra. Wordsworth-Pugh sugeriu uniformes
estampados em lilás para as criadas e casacos vermelhos para os criados, comentando logo depois que as paredes da sala ficariam lindas em seda amarela e verde-limão.
- Coitado do papai! Logo ele, que é tão sensível às cores -ela riu. - Mas a boa senhora não se ofereceu para me reformar também, graças a Deus. Declarou amavelmente
que eu era parte de Branscombe Hall e prestaria uma inestimável ajuda a Richard e Lucy no futuro.
- Você não se sentiu como os móveis e utensílios? - Peter perguntou, indignado. - Pois a sra. Wordsworth-Pugh vai ficar muito desapontada dentro em breve, porque
a filha não vai receber tal ajuda. Logo seu marido a levará para longe, Miranda, para sua própria casa. Não me olhe assim, isto vai acontecer! Eu não disse que vou
lhe encontrar um marido? Agora, não adianta contar com Richard. Ele apenas suspira e fala de Lucy sem parar, portanto cuidarei do assunto sozinho.
- Você também não tem tempo.
- Não? Pois até já entrei em ação! Escolhi cinco ou seis rapazes excelentes para ver se pelo menos um lhe agrada.
- E onde eles estão? - Miranda olhou para os lados. - Ou são tão pequenos que passei por cima deles e nem notei?
- Vou apresentá-los um a um, com toda a dignidade - Peter respondeu, ofendido.
E ele cumpriu a palavra nas semanas seguintes, apresentando vários cavalheiros a Miranda. Mas estranhava a atitude de todos, porque após as amabilidades trocadas
no primeiro encontro, desapareciam.
- O que há de errado? A srta. Branscombe não é a moça mais agradável que um homem pode conhecer? - ele perguntou ao major Percy Welbeck, do exército de Sua Majestade.
- Claro que é, meu caro. Nunca passei uma noite tão agradável ao lado de uma jovem.
- Então, por que você desapareceu tão depressa? Sei que está precisando de uma esposa, foi você mesmo quem disse. Se não se casar, seu pai vai cortar sua mesada,
não é? Portanto, o que há de errado com Miranda? Você considerou-a feia??
- Céus, claro que não! - Percy Welbeck indignado. - A srta. Branscombe é tão agradável que eu acabaria me apaixonando por ela, mais cedo ou mais tarde. Não, é
que...
- Diga de uma vez! 7- Peter insistiu.
- Bem, eu soube que ela tem sido vista na companhia de lorde Oxenham com muita frequência.
- E daí?
- Você conhece a reputação dele tão bem quanto eu. O homem é um verdadeiro demónio quando se irrita, e eu não gostaria de fazer nada para provocá-lo. Ora, não
me incomodo se você me achar um covarde. Se eu já estivesse afeiçoado a ela, vá lá. Mas não estou, e não vou provocar a ira de Oxenham tentando roubar-lhe a namorada
bem diante do nariz dele. Eu soube que ele deu uma surra de chicote em um amigo que lhe tomou um cachorro... Imagine o que ele não faria por causa de uma dama!
Não era só Welbeck que pensava assim; muitos homens temiam desagradar lorde Oxenham. Peter soltou um gemido de desânimo. Por mais que pensasse, não encontrava
um meio de contornar o problema. Simplesmente rezava para que a Temporada terminasse logo, e com ela a amizade entre Miranda e o lorde.
O calor abafado de Londres cansara muitas pessoas, as quais desejavam que chegasse logo o fim da Temporada. Quase todos queriam voltar para suas propriedades
no campo ou no litoral, outros pretendiam visitar alguma estação de águas da moda.
Lorde Oxenham não encarava com bons olhos a mudança de cenário na vida social. Mesmo que não quisesse admitir, estava se divertindo muito naquela Temporada, mais
que nos outros anos. A ideia de passar meses e meses indo de um lugar a outro como um hóspede inconstante não lhe era atraente. Sabia que sempre seria bem-vindo,
porque todos se orgulhavam de ter um hóspede tão famoso, mas não aguentava ficar muito tempo em lugar algum. Permanecer em sua enorme propriedade seria ainda pior.
Ocorreu-lhe que não tinha amigos verdadeiros, que ninguém se importava com ele de verdade. Apenas Miranda Branscombe sentira compaixão e notara que ele era sensível
e solitário. Não se lembrava, entre suas relações, de ninguém mais com tanta sensibilidade.
Se ao menos pudesse contar com a companhia da srta. Branscombe naquele momento, não estaria tão deprimido com a perspectiva do fim da Temporada. Teria pelo menos
uma amiga interessante com quem conversar, e não teria de perder tempo com o interminável disse-me-disse da sociedade londrina. Sim, Miranda Branscombe seria o antídoto
perfeito para sua depressão, mas ela estava perdendo tempo em um jantar na casa da futura sogra do irmão, e nem mesmo ele podia forçar sua presença em uma reunião
tão íntima.
Muito aborrecido, lorde Oxenham acabou bebendo demais e irritou-se quando o mordomo entrou na sala em que se encontrava.
- O que você quer, Finch?
- É lady Whitelea, milorde - anunciou o criado.
- Querido Oxenham! - a moça entrou rapidamente na sala e atirou-se nos braços do poeta.
Esguia, elegante e com um rosto de beleza refinada, Maria Whitelea tinha sido companheira constante de Oxenham nos meses anteriores, e dera ensejo a notícias
escandalosas na imprensa. Nunca permitira que seu casamento com um idoso par do reino interferisse em sua devoção por Oxenham, e naquele momento demonstrava tal
devoção com muito ardor.
No passado, o poeta aceitara as atenções da jovem como um direito natural, sem criar objeções. Mas naquele momento estava tão irritado que recusou a demonstração
exagerada de afeto.
- Seja mais discreta, Maria - disse , zangado. - Finch nem saiu do aposento, ainda.
Maria baixou os braços, olhando-o espantada.
- Desde quando você se preocupa com a opinião de seu mordomo? De qualquer modo, a esta altura, ele já deve saber que estamos perdidamente apaixonados um pelo
outro. O que houve? Pensei que você ia ficar feliz em me ver.
- Claro que estou - ele respondeu, sem a menor sinceridade. - Tive um dia muito aborrecido, é só isso.
- Não me surpreendo, porque ouvi dizer que anda na companhia de um estranho grupo de desconhecidos. É gente do interior, não? Kitty Alphington me contou que o
viu no Hyde Park com uma estranha criatura de quase dois metros de altura, usando um chapéu ridículo. O que aconteceu, Oxenham? É uma de suas brincadeiras? Se for,
também quero participar.
- Não é brincadeira, não. A Srta. Branscombe é apenas uma moça alta, não tem nada de gigantesco. O que me surpreende é que você dê ouvidos a esta mexeriqueira
Kitty Alphington. Todos sabem que ela tem uma língua ferina.
- Céus, como você defende a moça! - Maria sentiu despeito. - Ah, agora estou compreendendo... Ela deve ser uma herdeira riquíssima e você anda sem dinheiro. Portanto,
é obrigado a cortejá-la contra a vontade. Coitadinho do meu querido!
- Ora, deixe de bobagem! - ele respondeu ainda mais irritado. - Você sabe que não é nada disso! Chega, por favor! Vamos mudar de assunto. Será que você só sabe
repetir boatos e mexericos? Não pensa em mais nada? Não sabe conversar?
- Está me dizendo que não sei conversar? Acha que o estou aborrecendo? - Maria ficou indignada. - E você, não tem me aborrecido? Nem tem me procurado mais! Esperei
algum recado, algum bilhete, e nada! Fiquei sem saber quais eram seus planos.
- Eu não tinha motivo nenhum para enviar-lhe bilhetes. Pelo que me lembro, não combinei nada com você e não sou seu marido, graças a Deus!
Este último comentário tirou o fôlego de Maria por alguns instantes, mas ela logo se recuperou.
- Oh! - Maria soltou um grito estridente. - Você é um ingrato! Como ousa falar comigo assim? Você não tem sentimentos, é um bruto! É um homem frio e calculista!
Como fui cega a ponto de me apaixonar por você! E os sacrifícios que tenho feito, os riscos que tenho enfrentado! Coitada de mim! Se você ao menos soubesse! Se o
mundo soubesse o que temos sido um para o outro nestes últimos meses!
- O mundo todo saberá se você continuar berrando tanto - Oxenham a interrompeu. - Por que não vai até a ponte de Westminster e grita a plenos pulmões? Lá encontrará
uma audiência maior para suas indiscrições. Não grite aqui porque está me dando dor de cabeça!
Aquilo foi demais! Lady Whitelea soltou um gemido, caiu em lágrimas e saiu correndo da sala. Oxenham a seguiu, furioso, e bateu a porta.
- Mallard! - o poeta chamou seu camareiro, que logo apareceu.
- Pois não, milorde.
- Mallard, quero uma mulher que fale baixo quando eu me casar, compreendeu?
- Sim, milorde.
- E ela deve ter bom humor e não me aborrecer. Acima de tudo, preciso de uma mulher que não me aborreça, entendeu?
- Sim, meu senhor - repetiu Mallard.
O criado não estava entendendo nada, mas este não era o momento apropriado para demonstrar seu espanto.
- Se ela não tiver estas três qualidades, você deve interromper o pastor e parar a cerimónia de casamento, Mallard. Quando o pastor perguntar se há algum impedimento,
você dirá "sim", combinado? De agora em diante, a responsabilidade é sua se eu me envolver com qualquer bruxa mexeriqueira. Fui bem claro?
- Sim, milorde. - Mallard não teve coragem de contrariar o patrão.
- Está bem. Pode ir.
Em seu aposentos, o mordomo Finch preparava os cálices e a garrafa de xerez, esperando o colega Mallard para a costumeira conversa noturna.
- Meu caro Mallard, o que foi que aconteceu? - ele perguntou quando o amigo chegou.
- Aconteceu uma coisa muito estranha, Finch. Muito estranha! Lorde Oxenham falou em casamento!
A dignidade do mordomo o impediu de deixar o queixo cair de espanto, mas o lábio inferior tremeu um pouco.
- Milorde disse "quando eu me casar" - prosseguiu Mallard. - "Quando", entendeu? Não disse "se", como sempre.
Nos últimos dez anos, ele só mencionou a possibilidade de casar-se uma vez!
- Talvez você não tenha ouvido bem - sugeriu Finch.
- Ouvi, sim. Não foi engano. O milorde foi muito claro. "Quando eu me casar", ele disse. Eu não sabia que ele estava pensando em casamento. E você?
- Também não. Qual seria a noiva possível entre as moças que conhecemos? - o mordomo perguntou com igual curiosidade.
- Existem muitas jovens bonitas, mas quanto a casar-se com uma delas... - Mallard sacudia a cabeça reprovadoramente. -Existe, é claro, a srta. Branscombe, essa
de quem falam tanto. Uma dama muito cordial e agradável, apesar de feiosa.
Os dois homens balançaram as cabeças, porque conheciam o gosto exigente do senhor lorde. Tristemente, abandonaram a ideia de ver o patrão casado com a srta. Branscombe.
A escolhida devia ser alguma bela jovem de temperamento dramático.
- Que azar - comentou o sr. Finch, pesaroso. Levantando-se, tornou a encher os cálices com xerez. - Mallard, meu amigo, as coisas estão ficando sérias
para nós. Muito sérias, na verdade.

CAPITULO VIII

A alta sociedade arrumou as malas e partiu à 'procura de um clima mais fresco, deixando Londres entregue à seus habitantes fixos, que não podiam fugir do calor
oprimente. Ao iniciar a viagem na carruagem dos Branscombe, Miranda lutava contra emoções diversas e sentimentos confusos. Era bom voltar para casa, onde poderia
novamente caminhar pela relva fresca e sentir a suave brisa do mar, mas não seria humana se não sofresse por afastar-se de lorde Oxenham. Passara a sentir uma afeição
genuína por ele, e só uma criatura muito insensível não se comoveria com as atenções de um homem tão atraente. Mas tudo aquilo tinha terminado. Com o fim da Temporada,
era mais provável que nunca se encontrassem de novo.
Naturalmente Miranda não tinha nenhuma ilusão romântica porque já aceitara, há tempos, a ideia de que estes assuntos eram para moças mais bonitas e graciosas.
Mas aquele interlúdio tinha sido muito agradável. Com alguns suspiros, ela procurou afastar as lembranças e dedicar sua atenção ao casamento de Richard e Lucy.
Ao combinarem a data das núpcias, a sra. Wordsworth-Pugh optou pelo outono, e ninguém ousou a temeridade de contrariá-la.
- Sei que seria muito cruel afastar os dois pombinhos tão apaixonados até o "grande dia", portanto aluguei uma casinha bem perto de Branscombe Hall. Não foi uma
excelente ideia? - declarou a infatigável senhora.
Sem dar tempo para respostas, ela informou a todos que já reservara o dia na igreja, escolhera os hinos que seriam cantados na cerimónia e dera instruções sobre
o que o pastor deveria dizer no sermão.
Richard ficou encantado ao saber que sua amada iria ficar tão perto dele e que continuariam se vendo todos os dias, praticamente. Mas seu pai não ficou tão satisfeito.
Sir Henry não se conformava com as plumas que a futura sogra de seu filho gostava de usar, sempre combinadas às cores de seus vestidos extravagantes. O mau gosto
da sra. Wordsworth-Pugh passava da conta. Além disso, sir Henry temia que ela continuasse a interpretar suas atenções de maneira errada, achando que as gentilezas
eram galanteios. Não havia dúvida, a dama pretendia ser cortejada. Pessoalmente, ele não era contra o casamento, a princípio, mas não podia aceitar aquelas plumas!
- A senhora disse que é perto, madame? - sir Henry perguntou depois de certa hesitação. - Digamos, dois quilómetros, mais ou menos?
- Menos, sir Henry. Afinal, há tanta coisa naquela região que desejo conhecer! E o senhor tem ótimos vizinhos - ela fez uma graciosa mesura e sorriu para Peter,
pestanejando docemente para sir Henry em seguida.
- Começa a temporada de caça! - Peter sussurrou ao ouvi do de Miranda. - Imagino que seu pai e eu somos as raposas...
- Por que você não se casa logo com a srta. Bella? Evitaria muitos problemas para nós todos - Miranda respondeu.
- Há uma coisa que me impede. Temo que a srta. Bella fique como a mãe daqui a vinte anos... Você já pensou?
- Que horrível ouvi-lo falar assim, Peter! Enquanto promete que vai me arranjar um marido, faz toda essa confusão com sua vida amorosa! Eu tinha certeza de que
você ia pedir a mão da srta. Bella um dia destes!
- Não digo que isto não venha a acontecer, é até possível.
Mas alguma coisa me segura... Não me decidi ainda e não vou pensar no assunto por enquanto. Pelo menos, até o Natal.
- Acho que seus amigos de Newmarket já estão apostando em seu casamento, e vão ganhar.
- Veremos. Mas eles ganhariam mais se apostassem no seu casamento. Eu pretendo me dedicar inteiramente à procura do candi
dato ideal de agora em diante. E isto será muito bom porque, ficarei livre das atenções da sra. Wordsworth-Pugh. Agora que você se livrou de lorde Oxenham, nossas
chances são muito melhores.
- Eu não aprovo sua escolha de palavras, sabe? - Miranda reprovou-o. - Mas você tem razão, duvido que volte a ver o lorde poeta. Ele já deve ter esquecido completamente
que eu existo...
Mas Miranda estava enganada, Oxenham não a esquecera. Ao contrário, ele mesmo se admirava por não conseguir parar de pensar nela. Dizia a si mesmo que precisava
encontrar um modo de dar continuidade à sua amizade com a srta. Branscombe, porque não podia perder o contato com alguém tão diferente, com a única pessoa capaz
de afastá-lo do tédio constante.
Depois de passar três semanas muito aborrecidas encerrado em sua enorme propriedade, ele procurava com empenho uma maneira de voltar a vê-la, usando sua imaginação
sem sucesso.
Infelizmente, por falta de prática, lorde Oxenham não sabia o que fazer para cultivar amizade com moças respeitáveis de família, e o esforço para encontrar uma
solução era maior do que imaginara. Por fim, a resposta surgiu de forma totalmente inesperada e surpreendente.
O sr. Bray, que estava encarregado da construção do iate, enviou-lhe uma carta informando em que estágio do trabalho se encontrava. Avisava que a embarcação seria
testada no mar quinze dias mais tarde, se o tempo permitisse. Para finalizar, sugeria que milorde fizesse uma visita ao estaleiro. Vendo o iate na água, talvez ele
quisesse fazer melhorias no projeto.
O poeta concordou inteiramente com a sugestão. Oh, o sr. Bray era muito valioso! Que homem competente! Oxenham congratulou-se por ter encontrado um artesão tão
inteligente. Que sagacidade!
"Agora, não serei obrigado a viajar até Devon apenas para ver a srta. Branscombe, tenho uma desculpa melhor", pensou o lorde. Esta era uma de suas maiores preocupações.
Estaria exposto a muitos comentários, e não desejava dar uma importância exagerada à visita que faria a Miranda.
Enquanto percorria o longo trajeto em sua carruagem, lorde Oxenham repetia a si mesmo que o único propósito da viagem era examinar o barco e fazer as sugestões
necessárias. Naturalmente, não podia deixar de visitar os conhecidos que moravam na região, porque seria uma grave falta social. Plenamente convencido de seu papel,
esperou doze longas horas antes de apresentar-se em Branscombe Hall.
- Milorde, que prazer inesperado! - Miranda exclamou, sorrindo para o visitante com sincera alegria.
Eu tinha compromissos aqui na região, senhorita. Portanto, não podia deixar de vir cumprimentá-la estando tão perto.
Hoje, ao passar diante do portão de Branscombe Hall, achei que era o momento oportuno.
Com aquela resposta, ele afastava qualquer suspeita da moça sobre o motivo de sua presença, constatou, aliviado. Mas ideias românticas Não haviam ocorrido a Miranda.
Nenhum cavalheiro faria o menor esforço para vê-la, em seu modo de entender.
- Já sei! O senhor veio ver seu iate! - ela exclamou, animada.- E como ele está? Já colocaram a figura de proa?
- Para ser sincero, o iate excedeu minhas expectativas em todos os sentidos. Quanto à figura de proa, deu um toque especial ao acabamento final da embarcação.
O sr. Bray comentou que todos que a viram gostaram muito! Depois de examinar todo o trabalho, só me resta uma dúvida, referente ao lastro. Tenho a impressão de que
o iate ficará muito leve na água.
Oxenham, sem dar-se conta, começou a relatar tudo o que vira e discorreu sobre cada detalhe do barco, que era sua paixão mais recente. Descreveu as modificações
que ordenara na cabine e a dificuldade que enfrentara para escolher ò conjunto exato de velame que ia usar. Miranda ouvia tudo com entusiasmo e perguntava sempre
alguma coisa mais, provocando novas explicações.
- Então o senhor ainda não saiu ao mar com ele, milorde? - ela perguntou, por fim.
- Não, ainda não. E mal consigo conter a impaciência, a senhorita pode imaginar. O primeiro teste no mar está marcado para depois de amanhã. O sr. Bray me garantiu
que vai fazer tempo bom e que o vento vai ajudar. Portanto, estou confiante, acho que nada poderá perturbar ou atrasar o teste. Não é ótimo?
- Que bom!
- Bem, pensei que talvez a senhorita fizesse a gentileza de testar o iate comigo. Tem sido tão amável e demonstrado tanto interesse pelo projeto! Acho justo que
compartilhe a emoção desta experiência. Acha que pode me acompanhar? Sei que não seria muito próprio ir sozinha, mas talvez seu pai ou seu irmão... Ouvi dizer que
a sra. Wordsworth-Pugh está hospedada por aqui, não é? Isso é bom, porque a senhorita não poderia ir sem alguma companhia feminina.
Oxenham espantava-se com a própria animação. Não havia resolvido adotar uma atitude fria e distante com a srta. Branscom-be? E no entanto, além de convidá-la,
estava reunindo todas- as pessoas mais maçantes daquela região provinciana para um passeio a bordo de seu precioso iate! Ele espantou-se ainda mais com
a ansiedade crescente que o silêncio da srta. Branscombe lhe provocava. A aflição era tanta que não se conteve.
- As condições são um pouco primitivas, naturalmente - prosseguiu lorde Oxenham.. - Não garanto que o iate seja muito confortável, mas sei que a senhorita
compreende que se trata de uma viagem de teste. Não posso falar por todos, mas, pessoalmente, ficaria imensamente grato se aceitasse o convite.
Sim, a presença da srta. Branscombe valia o fato de ter de aguentar um grupo inteiro de acompanhantes, refletiu o poeta. E havia tantos anos que não pensava em
um convite como aquele! Jamais pensava em levar acompanhantes quando queria a companhia de uma moça! O que estava acontecendo? Talvez estivesse sofrendo o início
de um estado crescente de loucura, ou algum problema mental da meia idade, o que era pior.
Quando lorde Oxenham deixou Branscombe Hall, depois de Miranda aceitar o convite, procurou persuadir-se de que o teste no mar seria um programa muito aborrecido.
Ao mesmo tempo, sentia-se ansioso, com medo de que o clima mudasse, impedindo o barco de sair ao mar. O pobre sr. Bray foi quem sofreu as consequências, sendo obrigado
a garantir, vezes sem conta, que o céu sem nuvens e o vento suave continuariam até o grande dia.
- Oxenham está aqui? - Peter perguntou, irritado. - Ele está aprontando alguma! Não sei o que pretende com essa ideia de levar você para o mar!
- Seu conhecimento sobre a vida marítima e os hábitos a bordo de um iate são, evidentemente, muito limitados, meu caro amigo - Miranda comentou sorrindo. - Ele
não poderia fazer nada a sós comigo. Você não sabe que além da tripulação e de nosso grupo de amigos, vários homens do sr. Bray estarão a bordo? Toda essa multidão
não o deixaria aprontar nada, no meu modo de pensar.
- Você não tem de pensar nada a respeito do que pode acontecer entre um homem e uma mulher a bordo de um iate, mocinha! Não seria próprio! - Peter retrucou. -
Está vendo? Isto mostra a influência que Oxenham exerce sobre você. Mas tem razão, eu não conheço nada sobre a vida a bordo de um iate de luxo. E não faço nenhuma
questão de conhecer! Prefiro andar com minhas próprias pernas em terra firme ou confiar em cavalos, que me entendem quando lhes dou ordem de parar. O mar é muito
bom, mas nunca fica parado.
- Então não vai se incomodar de perder o passeio, não é?
- Não estou tão certo disto. Você ainda não me convenceu de que estará bem acompanhada e protegida.
- Que bobagem! Richard vai comigo, além da sra. Wordsworth-Pugh e das filhas. A propósito, quando comentei que a sra. Wordsworth-Pugh também iria,
papai lembrou-se de que tinha outro compromisso marcado. Acho que ele resolveu se defender dos avanços da boa dama! Aliás, reparei que papai tem dado muita atenção
à bela viúva do capitão Bakewell, nos últimos tempos.
- A sra. Bakewell é encantadora e tem um bom gosto excepcional para se vestir. Está sempre impecavelmente trajada. Acho que devo desculpas a seu pai, ele é bem
mais esperto do que eu pensava. Mas sir Henry está deixando você muito desprotegida. Richard só enxerga a srta. Lucy na frente, nem perceberia se o iate fosse invadido
por um bando de piratas sanguinários que carregassem você como parte, da pilhagem.
- Nunca fui sequestrada por piratas. Talvez fosse uma experiência interessante... Você acha que temos chance de encontrar algum navio pirata durante o passeio?
- Miranda perguntou com ar inocente.
- Você não leva a sério o que eu digo, mas se isto acontecesse, aposto que a sra. Wordsworth-Pugh faria o impossível para descobrir se um dos piratas seria um
bom candidato à mão da srta. Bella ou dela mesma.
- Aparentemente, você não está muito preocupado com a segurança da srta. Bella, não é?
- Ora, ela estará muito bem protegida. A mãe dela seria capaz
de enfrentar todos os piratas dos sete mares. A propósito, eu gostaria que você lembrasse que nem mesmo a sra. Wordswòrth-Pugh aceitou lorde Oxenham como um possível
genro. Isto deve lhe dar uma boa ideia da reputação que este cavalheiro tem.
- Sabe de uma coisa? Fico muito feliz que você não vá conosco, Peter. Você poderia estragar o passeio de todos com o seu mau humor.
- Não esteja tão certa. Afinal, posso resolver ir na última hora, se achar que devo proteger sua virtude.
Miranda riu e não o levou a sério.
No dia do teste, Miranda Branscombe chegou ao estaleiro do sr. Bray e teve de esperar. Lorde Oxenham não estava presente para recebê-la.
Logo pela manhã, o poeta resolvera retomar sua atitude de desprezo deliberadamente, para não dar a ideia de que estava muito ansioso pela companhia da srta. Branscombe.
Não importava o fato de ter se aprontado uma hora antes e ter ficado esperando em seus aposentos na estalagem, consultando o relógio vezes sem conta. Ele ignorava
que Miranda nem se preocupara com sua ausência, achando apenas que tinha chegado antes do horário marcado. Richard, naturalmente, só pensava na chegada da srta.
Lucy.
- Elas estão tão atrasadas! Você acha que podem ter sofrido algum acidente no caminho? - ele perguntou ansioso à irmã.
- Não, claro que não! Nós chegamos adiantados, não percebe? Você, apressado demais, é que insistiu para sairmos mais cedo de casa. - Depois, temendo que o irmão
ficasse magoado com o comentário, Miranda acrescentou em tom de quem fala com uma criança: - Sua pressa foi natural, querido. Queria chegar logo aqui para ver a
srta. Lucy, não é mesmo?
Felizmente, para tranquilidade de Richard, a carruagem das damas apareceu na estreita passagem que levava à doca. Ele correu para recebê-las. A srta. Lucy desceu
do veículo, e a felicidade de Richard foi tão grande que ele quase esqueceu que suas futuras sogra e cunhada existiam. Somente alguns segundos depois lembrou-se
de ajudá-las, e estendeu-lhes a mão ao saírem da carruagem. Havia mais um passageiro no veículo, um passageiro que não precisou de auxílio. Peter Kerswell desceu
depois da srta. Bella, lutando para disfarçar sua apreensão.
- Afinal, resolvi fazer companhia a vocês - disse ele a Miranda. - A sra. Wordsworth-Pugh me pediu amavelmente para acompanhá-las.
- Que bom!
- Você acha que enfrentaremos alguma tempestade? - Peter perguntou em tom jocoso, depois de observar o oceano e o horizonte.
- Teremos apenas uma brisa suave - Miranda comentou, conhecendo o medo que o amigo sentia do mar.
- Uma brisa suave? Que coisa saudável! - disse uma voz conhecida atrás dela.
Voltando-se, Miranda ficou frente a frente com Arnold Denley, e levou algum tempo para compreender que ele também saíra da carruagem da sra. Wordsworth-Pugh.
- E então, não está espantada por me ver aqui, srta. Branscombe? - ele fez uma mesura. - Como vê, tenho seguido seu conselho. Ando respirando muito ar puro e
cheguei à conclusão de que é muito benéfico.
- O primo Denley nos deu a honra de uma nova visita - Peter explicou. Depois, baixando a voz, comentou só com Miranda: - Acho que você é a culpada por mais esta
provação, sabia? Desde que chegou, Arnold só fala em ar puro e exercícios.
- Achei que uma mudança de hábitos faria bem ao sr. Denley - Miranda sussurrou-lhe de volta.
- Sendo assim -, Arnold Denley prosseguia numa espécie de monólogo, sem se preocupar se os outros o estavam ouvindo -, decidi respirar bastante ar fresco. E não
existe lugar melhor para isso do que New Place, com a brisa que vem do mar. Meus primos tinham insistido tanto para que eu voltasse que não hesitei!
- Isso é coisa de mamãe - Peter murmurou ao ouvido de Miranda. - Meu velho, em represália, recusou-se a falar com ela durante toda a manhã. Céus, além de enfrentar
um passeio no mar, ainda terei de aguentar a companhia de Arnold!
- Você não precisa ir conosco - Miranda sugeriu.
- Oh, mas faço questão! - disse Denley, pensando que ela falara com ele. - Sei que o ar marinho é o melhor do mundo. Talvez por ser salgado, não acha? Ou será
que pode fazer algum mal? Pense no que o sal faz às carnes. Ao bacon, por exemplo. Talvez tenha razão, senhorita. Acho que não devo ir.
- Tenho certeza de que não há nada a temer, sr. Denley. Também estou convencida de que o ar marinho é o mais puro que existe, e só pode fazer-lhe bem - Miranda
respondeu, ignorando os sinais frenéticos que Peter lhe fazia.
- Oh, que bom! Sendo assim, está resolvido. Participarei do passeio!
Peter fez uma careta de desagrado.
A voz da sra. Wordsworth-Pugh elevou-se acima do ruído do mar e dos sons produzidos pelas ferramentas dos trabalhadores:
- Ah, chegou afinal, milorde! Pensei que o senhor tinha partido sem esperar por nós.
- Seria um pouco difícil, madame, visto que o iate ainda está solidamente preso às amarras, a menos de cinco metros de distância daqui - respondeu Oxenham, irritado.
Espantou-se com o grande grupo que o aguardava. Não se lembrava de ter convidado tanta gente! Claro que não! Jamais teria convidado o detestável Kerswell, e muito
menos o hipocondríaco Denley. Mas começara a duvidar das próprias faculdades mentais, não tinha mais certeza do que fizera ou deixara de fazer. Era uma situação
incrível! Talvez houvesse dito à srta. Branscom-be que podia convidar mais alguém... Mas não importava. Recusava-se a entreter toda aquela gente a bordo de seu iate!
Tratava-se apenas de um teste no mar, não de uma viagem de recreio! Eles teriam de ficar em terra, e ponto final! Abriu a boca para esclarecer os fatos, mas foi
interrompido pela sra. Wordsworth-Pugh.
- Ah, então este é o seu barco, milorde? É magnífico! Tem uma figura de proa muito original, embora um tanto ousada. Acho que seria mais apropriado se houvesse
mais drapeados para esconder a anatomia da sereia.
- Mas é uma peça artística, mamãe - objetou Bella.
- Ah, é artística? Neste caso, não está mais aqui quem falou.
Venha, querida, vamos embarcar. Richard, segure a mão de Lucy com bastante firmeza, porque ela pode escorregar.
Com instruções totalmente desnecessárias, a sra. Wordsworth-Pugh encaminhou todos a bordo, mantendo Peter a seu lado. Ele olhou desesperado ao redor quando Miranda
ficou para trás e começou a conversar a sós com lorde Oxenham na doca.
- O senhor ia dizer alguma coisa? - perguntou-lhe Miranda, amável.
- Não era nada importante - disse o poeta com um suspiro.
- O dia está esplêndido. E o senhor tinha razão, seu iate excedeu todas as expectativas. Mas o nome ainda é um mistério para mim. Pretende batizá-lo de Nereida?
- Não - respondeu ele, sem saber mais o que dizer.
- Não se incomoda se eu perguntar que nome escolheu?
Oxenham observou atentamente a srta. Branscombe. Ela era um tipo comum, sem nenhuma graça especial. No entanto, ele sentia uma estranha satisfação quando estava
com ela. Tudo, ou quase tudo, parecia em ordem no mundo.
- Miranda - disse Oxenham, por fim.
- Como? - Ela quase engasgou de espanto. - Pretende dar a este barco tão lindo um nome igual ao meu?
Oxenham estava igualmente espantado. O que o levara a dizer aquilo? Dar o nome dela para o seu querido iate! Mas não, a srta. Branscombe tinha sido suficientemente
modesta para notar a diferença, dizendo "dar um nome igual ao meu". Era muito simpática.
- Claro que sim - ele ouviu a própria voz responder, como em um sonho. - Com sua permissão, eu ficaria muito feliz se pudesse batizá-lo de Miranda.
- Então, finalmente o senhor escolheu um nome, milorde! - exclamou o sr. Bray, que ouvira a última declaração do poeta ao aproximar-se. - Mirandal Um nome muito
bonito e bem apropriado. Não tem ligação com uma velha lenda grega ou latina a respeito do mar? Mas o senhor deve saber disso melhor do que eu, não é? Claro que
sim, porque foi o nome que escolheu.
O sr. Bray reparou em seguida que a srta. Branscombe estava muito corada, e percebeu que lorde Oxenham não escolhera o nome do iate pensando em alguma ninfa grega
esquecida. O motivo era evidente. O pequeno armador era um romântico incurável, mas um trabalhador eficiente e responsável quando chegava o momento de um barco navegar
pela primeira vez. Assustara-se com o grande número de convidados, mas a presença da srta. Branscombe entre eles era um alívio. Sabia que bastaria um pedido discreto
e ela o ajudaria a controlar tanta gente.
- Srta. Branscombe, milorde, vamos embarcar? Tudo está pronto, podemos soltar as amarras.
Peter observava tudo que acontecia debruçado na amurada, e notou que Miranda mudava de expressão, o que aguçou ainda mais sua curiosidade. Não conseguia ouvir
o que Oxenham e Bray lhe diziam e precisou controlar seus instintos para não sair correndo e salvar a amiga do que causara aquele rubor. Mas a sra. Wordsworth-Pugh
exigia a presença dele, e escapar dela era mais difícil do que fugir de uma masmorra.
Ouviu-se a ordem de zarpar. A tripulação do luxuoso iate começou a correr atarefada de um lado para o outro. Os passageiros receberam ordens de não ficar no caminho
dos marinheiros. Tudo corria às mil maravilhas. Apenas Miranda sentia uma certa ansiedade por causa de Peter; conhecia-o muito bem, sabia que temia o mar e, portanto,
não deveria ter-se aventurado a participar do passeio.
Mas com todo aquele movimento, ela não teve tempo de vigiá-lo, e quando voltou a vê-lo, Peter estava conversando com a srta. Bella. Ou melhor, a moça falava e
Peter a ouvia em silêncio, com um ar estranhamente infeliz.
- As iguarias que nos aguardam para o almoço são tentadoras. O sr. Denley e eu demos uma espiada na mesa da cabine maior, e posso garantir-lhe que a decoração
dos pratos era suntuosa. Havia massas diversas, carne fria e lagosta. Eu adoro lagostas, e o senhor?
A descrição dos pratos não fez bem a Peter, que se mostrava mais tenso a cada minuto. Miranda decidiu que era o momento de salvá-lo para não estragar o dia.
- Posso roubar-lhe a companhia do sr. Kerswell por um momento, srta. Bella? - ela perguntou, interrompendo o discurso gastronómico. - Peter, não é o velho
sr. Fortescue acenando para nós lá da praia? Vamos cumprimentá-lo também, se não ele ficará magoado.
Discretamente, Miranda levou-o a um canto menos movimentado da embarcação. Estava realmente preocupada com seu aspecto.
- Você está se sentindo mal? - perguntou.
- Claro que sim. Você sabe que não aguento o balanço de um barco no mar, fico enjoado na mesma hora.
- Por que não volta para terra firme? Os botes dos operários ainda não partiram. Vá com eles.
- Você quer dizer que ainda nem içamos as velas para começar a viagem? - Horrorizado, Peter reparou que a pequena frota de botes ainda puxava o iate para o meio
da baía. As águas estavam calmas como um lago. - Não, prefiro ficar aqui. O que você está pensando? Que voltarei para a praia e a deixarei com...
- Acalme-se, por favor - Miranda pediu, vendo que ele piorava.
- Oh, meu Deus, o que vou fazer? Não quero passar mal na frente de Oxenham!
- Se não quer voltar para a doca, vá lá para baixo. Direi a todos que você foi examinar o casco, ou algo assim.
Um membro da tripulação, que ia passando, entendeu imediatamente a situação.
- Não está passando bem, senhor? Venha comigo, vai melhorar logo. No caminho eu lhe arranjarei um balde, para o caso do senhor querer... Bem, acho que
me entende, não?
Peter protestou entre gemidos, mas desceu atrás do marujo.
- Aquele era o sr. Kerswell? - lorde Oxenham perguntou a Miranda.
- Era, sim. Ele foi conhecer o convés inferior - ela informou com ar inocente.
- Ótimo! - o poeta alegrou-se porque ficava livre da presença que o irritava. A seguir, procurando ser amável, comentou: - Só espero que ele não atrapalhe o trabalho
dos homens de Bray.
- Tenho certeza de que ele não fará isso - Miranda respondeu, convicta.
- Alegro-me, então. Agora me diga, o que achou de meu iate? A seguir, perguntou a si mesmo em pensamento por que a resposta dela era tão importante.
- Gostei muito! Adorei! Quando o vi na doca, achei que era o iate mais bonito que já tinha visto. Mas aqui, em pleno mar, ele parece ainda mais maravilhoso. E
dá uma sensação de liberdade tão grande! Oh! Não estarei dizendo uma bobagem?
- Não, claro que não. Você descreveu a sensação muito bem!
Oxenham admirou-se porque era exatamente o que sentia quando navegava, uma sensação de beleza e liberdade.
Subitamente, ele desejou levar a srta. Branscombe em sua primeira viagem. Seria uma companhia maravilhosa!
- A senhorita adoraria a Grécia - falou inesperadamente.
- O senhor acha? É para onde pretende ir?
- Talvez, ainda não estou certo. Mas estou convencido de que a senhorita adoraria conhecer aquele país. É uma terra magnífica, ainda primitiva e com as ruínas
de uma das maiores civilizações que já existiram!
- Parece um lugar fascinante. Sempre desejei conhecer a Grécia.
Havia uma nota nostálgica no comentário que tocou o coração de Oxenham. A srta. Branscombe parecia não acreditar que chegaria um dia a terras tão distantes. Impetuosamente,
pensou em convidá-la para acompanhá-lo. Devia haver um jeito. Mas calou-se, porque naquele momento surgiu diante deles uma visão extraordinária. Ele e Miranda haviam
caminhado pelo convés enquanto conversavam, e finalmente chegaram ao lugar onde ficava o mastro de. proa. Bem ali, sentado confortavelmente sobre um barril, amarrado
ao mastro por uma corda, estava Ar-nold Denley.
- Céus! O que significa isto? - Oxenham exclamou, atónito. - Será que este cavalheiro está prevendo mau tempo ou algo parecida?
- Espero que não, patrão. Mas o cavalheiro foi muito insistente - respondeu o contramestre, que estava por perto. - Ele teimava que queria ar fresco, e escolheu
um bom lugar para tirar o máximo proveito da brisa. Acho que fiz o que era certo, não é, senhor? Nunca me fizeram um pedido como este, a não ser uma vez, quando
cruzamos o cabo da Boa Esperança com forte tempestade.-
- O cavalheiro está apenas muito preocupado com a própria saúde - Miranda comentou, procurando acalmar o contramestre. - E ele parece tão feliz... Como não está
atrapalhando ninguém, acho que pode continuar onde se encontra.
- A senhorita tem razão - disse o contramestre. - O cavalheiro já causou grande confusão ficando no caminho da tripulação.
- Pois deixe o cavalheiro onde está e prossiga com seus deveres - ordenou Oxenham.
O lorde não sabia ao certo se devia lamentar a interrupção de sua conversa com Miranda, se valia a pena seguir adiante com aquela loucura de levá-la à Grécia.
Refletindo um pouco, achou a ideia absurda, mas ficou curiosamente desapontado com isto.
- Vamos, srta. Branscombe - disse Oxenham, por fim. - Quero mostrar-lhe o resto do iate. O vento está mais forte e o barco começou a jogar um pouco, peço-lhe
que se apoie em meu braço.
Miranda aceitou com prazer a sugestão. Era muito agradável apoiar a mão no braço de um cavalheiro alto, pois sempre tinha problemas com homens mais baixos que
ela. Passearam pelo convés enquanto Oxenham mostrava os detalhes que davam "mais conforto ao iate. O poeta se mostrava muito atencioso, e aos poucos foi ficando
entusiasmado com o interesse que ela demonstrava por tudo. Por fim, sugeriu mostrar-lhe os aposentos mais íntimos no convés inferior. Miranda, modesta e virtuosa,
não considerou o convite perigoso, já que não se imaginava objeto dos desejos do lorde. Mas ela estava preocupada com Peter, provavelmente passando mal em algum
banheiro do barco. Não queria humilhá-lo com a presença de Oxenham. O que fazer para contornar a situação? O orgulho de Peter foi salvo pela chegada
do capitão, um homem grandalhão com voz de trovão e pele curtida pelos ventos marinhos.
- Com licença, milorde - ele procurou falar o mais baixo possível. - Surgiu um assunto muito delicado e confesso que não sei qual a atitude que devo tomar.
- Aconteceu alguma coisa com uma das damas? - disse Oxenham, um pouco irritado com a nova interrupção.
- Talvez seja melhor eu deixá-los a sós - disse Miranda.
- Oh, não se preocupe - o capitão respondeu. - Ao contrário, a senhorita pode sugerir alguma coisa. É a respeito do ca
valheiro que se encontra amarrado ao mastro. Precisamos tomar uma providência. Ele fica perguntando aos meus homens como é um funeral no mar, e todos estão alarmados.
- Funeral no mar? - Oxenham olhou-o espantado. - Acha que ele está pensando em morrer durante a viagem? Não pode esperar até chegarmos ao porto novamente?
- Não tenho ideia dos planos dele, milorde, mas está deixando a tripulação muito nervosa. Os marinheiros são muito supersticiosos, se este barco ficar com fama
de trazer má sorte teremos muitos problemas.
- Teremos mesmo! Precisamos fazer alguma coisa imediatamente! - Oxenham concordou.
Miranda pensou por um momento. Ninguém podia esperar que o sr. Denley mudasse tanto em tão pouco tempo.
- Estou vendo alguém que pode nos ajudar - ela disse, afinal. - Sr. Griggs, por favor, poderia nos dar um momento de atenção?
Ela dirigiu-se a um senhor de meia-idade com vivos olhos azuis. Era um dos assistentes do sr. Bray. Como tinha terminado seu serviço poucos minutos antes, estava
descansando e fumando seu cachimbo. Aproximou-se sorrindo.
- Estou sempre às ordens, srta. Branscombe, pode contar comigo. O que deseja?
- Receio que seja um pedido um pouco estranho. O senhor foi carpinteiro em navios antes de ir para o estaleiro do sr. Bray, não é?
- É verdade. Naveguei durante quinze anos.
- Então deve ter ajudado seu capitão em vários funerais no mar, porque isto faz parte dos deveres de um carpinteiro de bordo, não é mesmo?
- Exato, senhorita. Por que pergunta? É por causa do cavalheiro que está no mastro?
- Sim. - Miranda alegrou-se. - Infelizmente, poucas pessoas desejam ou conseguem conversar com ele. Talvez o senhor pudesse distraí-lo contando-lhe suas experiências.
Mas conte baixinho, por favor. Não queremos perturbar o resto da tripulação.
- Como queira, senhorita. Vou falar sobre a epidemia de febre amarela que tivemos a bordo. Acho que é um assunto bem triste para agradá-lo.
- Oh, obrigada, o senhor é um tesouro. Venha, vou apresentá-lo ao sr. Denley, sr. Griggs. Ele vai adorar conhecê-lo.
O carpinteiro seguiu Miranda, guardando alegremente no bolso o meio guinéu que recebeu de Oxenham.
- Graças a Deus a srta. Branscombe estava por perto, milorde. - O capitão soltou um suspiro de alívio. - Ela compreendeu o problema imediatamente, e resolveu-o
logo. A situação podia ficar muito difícil, mas ela encontrou a solução certa. É uma moça excepcional, senhor! Sim, excepcional!
Lorde Oxenham tinha a mesma opinião sobre Miranda Branscombe. Ela possuía um talento nato para resolver situações difíceis. Mesmo numa viagem tão curta como aquela
ela já evitara vários aborrecimentos. Sabia como lidar com as pessoas e levara as outras senhoras até um local de descanso que não atrapalhava o trabalho dos homens,
além de ter a capacidade de controlar o hipocondríaco Denley. Sem Miranda, o passeio marítimo teria sido um desastre.
Mas lorde Oxenham lembrou-se também de que sem ela não teria havido nenhum problema, porque não teria convidado um grupo de pessoas tão esquisitas só para agradá-la.
Quanto a isso, não havia dúvida. Mas quem ele teria convidado se não a escolhesse como companheira de passeio? Maria Whi-telea? Kitty Alphington? Elas teriam
desmaiado e soltado gritinhos durante toda a viagem, chamando a atenção da tripulação e dos operários do estaleiro. Oxenham fechou os olhos e estremeceu, só de pensar
naquilo. Quando tornou a abrir os olhos, estava convicto de que gostava da companhia de Miranda, não se importando com seus amigos estranhos. Para um homem que podia
escolher belas moças às dúzias como companhia, esta era uma observação extraordinária, sem dúvida.
Miranda não sabia que tinha um efeito tão avassalador sobre o lorde. Naquele momento ela observava o sr. Denley, muito animado com a conversa fúnebre do sr. Griggs.
- Srta. Branscombe, eu não imaginava que me apresentaria uma pessoa tão interessante! - ele exclamou deliciado.
- O sr. Griggs pode lhe dar todas as informações que deseja -Miranda respondeu. - O senhor está confortável?
- Muito, obrigado. Um dos marinheiros me arranjou o barril e me garantiu que daqui eu desfrutaria o ar mais puro durante toda a viagem. E acho que ele tem razão.
- Então, se me der licença, vou deixá-lo conversando com o sr. Griggs - disse Miranda, afastando-se rapidamente.
Queria procurar Peter. Sentia remorsos por tê-lo abandonado durante tanto tempo. Esperava que ele não estivesse sofrendo muito, mas ouviu seus gemidos à distância.
- Olá, senhorita - disse o marinheiro que servia de anjo da guarda a Peter, pondo à mostra os dentes manchados de fumo.
- Veio ver o cavalheiro, não é? Um caso sério, posso afirmar. Nunca vi ninguém assim"em vinte e um anos de mar. Eu disse que a experiência fará dele um
homem novo, porque não vai sobrar muito do antigo.
- Se eu não morrer, vou matar este marujo! - Peter gemeu, já sem o menor senso de humor.
- Coitadinho! - Miranda exclamou. - Você quer alguma coisa?
- Só quero morrer, mas antes vou esganar este sujeito!
- Está vendo? - o homem riu. - Eu não disse que ele era um caso raro?
- O senhor deve estar atrasando seu trabalho, não é? - Miranda comentou, vendo que não havia grande simpatia entre os dois. - Agora eu farei companhia a ele,
pode ir.
- Obrigado, senhorita. Devo confessar que estou com fome. Vou arranjar um bom pedaço de bacon ou uma perna de carneiro bem temperada para mastigar. - ele disse,
e afastou-se rindo.
- Este marujo é um verdadeiro demónio - Peter gemeu, tentando se recompor. - Aposto que Oxenham o contratou só para me atormentar.
- Não se preocupe, ele já foi embora. Pedi ao cozinheiro uma fatia de limão e alguns biscoitos para você, veja.
- Isto é comida! Por que me trouxe comida? O demónio me atormentava falando nisto e você me obriga até a sentir o cheiro!
- Tente mastigar os biscoitos vagarosamente - Miranda aconselhou, ignorando a reclamação. - Se não aguentar, chupe um pouquinho de limão. Vai sentir-se melhor,
aos poucos.
- Eu nunca vou me sentir melhor - Peter resmungou. - Fui muito injusto com o primo Denley. Agora sei como é sentir a morte de perto...
- Deixe de bobagens! Além disso, o sr. Denley está passando muito bem neste momento, instalado no mastro da proa, ouvindo um caso de epidemia de febre amarela
num navio. A srta. Bella está com ele, nunca o vi em melhor forma.
- Você não contou a ninguém onde estou, não é? - Peter obedeceu e começou a mastigar um biscoito.
- Claro que não. Nem eu sabia, até ouvir seus gemidos. O enjoo está melhorando?
- Sim, mas estou fazendo um papelão, não é? Todos estão passando bem, até o coitadinho do Denley. Só eu sucumbi como uma jovem histérica... E pensar que eu pretendia
defendê-la de Oxenham! No fim, é você que está cuidando de mim. Deve me achar um idiota.
- Não acho, não. Sei que você detesta o mar e passa mal, mas insistiu em vir por minha causa. Foi teimosia de sua parte, porque eu não estava em perigo, mas foi
também um ato de muita amizade e grande bravura.
- A boa Miranda de sempre, que só pensa o melhor dos piores amigos... Não sei como você consegue ser assim.
- Penso o melhor porque é verdade. Agora feche os olhos e descanse um pouco, tente dormir.
- Não, eu me recuso a dormir! Posso não ser um bom protetor, mas se você ficar a meu lado estarei vigilante. Quem sabe, Oxenham pode vir à sua procura.
- Duvido muito. Ele estava com o capitão quando vim para cá, devem ter muito o que conversar sobre o barco. Aliás, o iate está navegando muito bem, mesmo que
você não concorde. Mas não se preocupe, logo estaremos de volta em terra firme e seus sofrimentos acabarão. É uma boa notícia, não?
Miranda não recebeu nenhuma resposta.
Peter Kerswell, o "defensor da honra de jovens indefesas" tinha caído no sono. Ela sorriu, tirou o biscoito da mão dele e afastou-se.

CAPITULO IX

Lorde Oxenham passeava pelos aposentos da es-'talagem como um leão preso na jaula. Estava inquieto, não conseguia controlar suas emoções. Na véspera, o teste
do barco tinha sido um sucesso; as modificações a fazer eram mínimas. O sr. Bray calculara o novo prazo de entrega e o iate ficaria pronto antes da data marcada
no início do projeto.
Portanto, nada mais o prendia àquela região tão provinciana, com uma sociedade seni o menor interesse. Por quê, então, achava tão difícil ordenar a Mallard que
arrumasse a bagagem e chamasse a carruagem?
Refletiu sobre o assunto. Estaria sofrendo uma crise poética? Considerou a ideia seriamente, mas afastou-a logo. Não escrevia nada havia muito tempo, a inspiração
desaparecera. Não se animava a fazer poemas desde que descobrira que o público que o adorava não era capaz de distinguir a diferença entre belas rimas ou um rol
de lavanderia, contanto que a assinatura fosse dele. Não, a musa da poesia o desertara quando deixara de escandalizar a sociedade com seus casos com mulheres como
Maria Whitelea.
Maria Whitelea! Oxenham pensou nela durante alguns momentos e lembrou-se de suas antecessoras, todas as que ainda guardava na lembrança. Estremeceu violentamente
com a recordação. Para quê gastar as energias de sua mocidade com mulheres como Maria Whitelea quando existiam outras como Miranda Branscom-be neste mundo?
Com este pensamento em mente, acalmou-se. Iria procurá-la imediatamente, tinha uma coisa muito importante a dizer-lhe!
Foi bom que lorde Oxenham chegasse a esta conclusão, ainda que tardia, ou poderia descobrir que Miranda já estava noiva.
Miranda passou a manhã de forma muito agradável, entregue a seus afazeres domésticos, mas continuava preocupada com Pe-ter. Ele se mostrara tão pálido e exausto
no fim do passeio marítimo que ela precisara usar toda sua engenhosidade para tirá-lo do iate discretamente e levá-lo até a praia sem que os outros o vissem naquele
estado. Não sabia se a sra. Wordsworth-Pugh acreditara na desculpa de que ele estava ajudando o sr. Bray a contar o número de pranchas no casco, mas não lhe ocorrera
nenhuma história melhor em circunstâncias tão difíceis.
Naquele momento Miranda estava sentada à escrivaninha, redigindo um bilhete para enviar a New Place, perguntando sobre o estado de Peter depois de uma noite em
terra firme. Quando acabou, a presença do sr. Denley foi anunciada pelo mordomo.
- Oh, sr. Denley! Que agradável surpresa! O senhor está com ótima aparência - ela declarou.
- Posso tomar a liberdade de dizer que a senhorita também me parece esplêndida? - ele retrucou.
- E muita amabilidade sua.
Miranda olhou-o com curiosidade. Havia algo diferente nele naquela manhã, uma certa agressividade que nunca demonstrara antes.
Ela não sabia que o dia anterior tinha servido para lavar a alma de Arnold Denley, acabando com parte de sua hipocondria. Ele passara.o dia todo afastado de qualquer
assistência médica possível e nem se incomodara! Naquele local tão privilegiado para aproveitar o ar puro, ele tinha passado o tempo ouvindo histórias muito interessantes
do sr. Griggs, com comentários animados da srta. Bella, e esquecera-se completamente de seus problemas de saúde. No fim da viagem, quando pensou que estaria meio
morto de fadiga, descobrira que precisava dar atenção à sra. Wordsworth-Pugh. Ela e suas filhas precisavam de um cavalheiro sensato para acompanhá-las, porque o
sr. Kerswell se mantinha estranhamente ausente e o sr. Branscombe parecia atarantado pelo amor.
Por mais estranho que parecesse, Denley gostara muito da responsabilidade de levá-las em segurança para casa. Era uma experiência nova, e sentira-se feliz no
comando da situação, no papel de protetor. Pela primeira vez, ousara até gritar com o cocheiro para que diminuísse a velocidade para não assustar as senhoras.
A descoberta da auto-confiança perdurou a noite toda e, pela manhã, Denley levantou-se da cama com nova determinação. Durante algum tempo, vinha pensando vagamente
em casamento. Naquele dia, achou que deveria agir.
E agora, Arnold Denley estava em Branscombe Hall para propor casamento a uma jovem dama! Pensara em ajoelhar-se diante de Miranda, mas preferiu ficar de pé porque
temia uma crise de reumatismo. E havia outra vantagem nesta posição: poderia olhar a dama em questão de cima se ela permanecesse sentada. Mas ele entendia muito
pouco de pedidos de casamento, e não sabia exatamente que palavras devia usar.
- Srta. Branscombe -, começou -, já se passaram muitos anos desde que minha querida mãe me deixou e foi para o plano superior, que Deus a tenha. Sinto muita falta
dela, e desde sua partida nunca mais encontrei alguém que cuidasse de mim com simpatia e afeto.
- Mas seus criados...
- Não fale neles, porque essa gente mais simples não tem sensibilidade suficiente para sentir pelos patrões um carinho sincero. Portanto, até chegar o dia de
encontrar mamãe no Paraíso, acho que estou precisando de uma esposa. Pessoalmente, acredito que tenha muito a oferecer a uma dama sensível, dando-lhe inúmeras oportunidades
de demostrar verdadeira compaixão. Já reparei que as pessoas do sexo feminino, na maioria, ficam felizes quando cuidam de alguém. E a senhorita, minha querida amiga,
tem o maior talento que já vi para dar alívio aos doentes e sofredores.
Miranda ouvia o discurso apreensiva e se mantinha em silêncio.
- Pense no prazer que poderia ter sendo minha esposa, srta. Branscombe. Supervisionaria minha dieta alimentar, aconselharia os esportes necessários, cuidaria
de mim quando eu estivesse acamado durante uma crise mais grave. Pense em como seria delicioso! Por favor, diga sim, eu lhe peço. Já trouxe tanto alívio a um inválido
crónico como eu! Estou convencido de que será a companheira ideal para os dias que me restam.
Denley não abandonava seu assunto preferido. O que mais poderia dizer a uma pessoa que compreendia tão bem seus sofrimentos? Na verdade, ele estava muito saudável
naquele momento, mas não sabia se ia continuar assim por muito tempo. Desse modo, estava sendo sincero quando mostrava à srta. Branscombe como ela poderia ser muito
feliz como sra. Denley. De repente, ele se lembrou de interesses mais materiais e prosseguiu:
- Além disso, srta. Branscombe, eu não sou um homem pobre. Oh, não! Recebo dez mil libras por ano e possuo uma bela casa em Somerset, com grandes campos
muito bem drenados à volta, com excelente produção. E minha casa em Londres fica muito bem situada, no caminho do cemitério de Highgate.
Denley calou-se, finalmente, e aguardou a resposta de Miranda.
Como tinha muito senso de humor e a proposta era o oposto do que uma moça romântica poderia esperar, ela precisou de toda a bondade de seu coração para controlar
o riso. Afinal, era o primeiro pedido de casamento que recebia, algo que jamais esperava que pudesse acontecer. Sentia-se grata e sensibilizada.
- Sr. Denley, o senhor me honra muito - ela começou, insegura. - De fato, é a maior honra que um cavalheiro pode pres
tar a uma dama. Agradeço muito seu empenho e imagino, que deve sentir-se muito solitário às vezes. Concordo plenamente que o senhor deveria ter uma esposa dedicada,
mas infelizmente não acho que eu seja a pessoa indicada para uma posição tão importante. Estou sendo honesta, porque este assunto é sério demais. Preciso confessar
que gosto do senhor, mas não sinto afeição suficiente para pensar em matrimónio. Sei também que sem a afeição necessária eu não poderia fazê-lo feliz. Espero que
não fique muito desapontado comigo, tenho certeza de que logo encontrará alguém capaz de dar-lhe toda a felicidade que o senhor merece.
Miranda calou-se, satisfeita consigo mesma. Não estava habituada a rejeitar pedidos como aquele, e tivera o cuidado da não magoar os sentimentos do pequeno amigo.
Mas Denley não demonstrou desapontamento e sim uma grande curiosidade.
- A senhorita quer dizer que não gostaria de cuidar de mim?- perguntou, espantado.
- Se o senhor ficar doente e precisar de alguém, terei prazer em ajudá-lo - ela respondeu delicadamente. - Mas as qualidades que o senhor espera de uma enfermeira
são muito diferentes das que deve desejar de uma esposa. Sabe que uma enfermeira competente pode ser contratada. Aliás, conheço várias, e posso recomendá-las. Mas
uma esposa é um assunto muito diferente.
- Eu não tinha pensado nisso - confessou Arnold Denley, que ainda não compreendia como a srta. Branscombe tinha perdido aquela ótima oportunidade. - Mas a senhorita
acha que pode reconsiderar meu pedido mais tarde?
Miranda apenas balançou a cabeça num gesto negativo, com ar simpático mas decidido.
- Bem, então acho que não tenho mais nada a dizer, não é mesmo? Peço licença para me retirar. Até a vista, srta. Brans-combe - despediu-se Denley.
Ele deixou Branscombe Hall, pensativo. A srta. Branscombe era sempre sensata; se não queria casar-se com ele, devia aceitar sua decisão. Mas onde encontrar outra
candidata a esposa, agora? Depois de pensar mais um pouco lembrou-se da srta. Bella Wordsworth-Pugh. Era uma moça enérgica, capaz e inteligente; além disso, tinha
a vantagem de ser muito bonita. Enquanto se dirigia à residência das damas, ele estudou as palavras para o novo pedido. Afinal, já tinha uma certa experiência no
assunto. O instinto o avisou que dessa vez, para não receber uma segunda recusa, devia começar a proposta falando de suas propriedades e da renda anual de dez mil
libras.
Em Branscombe Hall, um grito alarmado soou na biblioteca. Sir Henry acabava de saber que a filha tinha recusado o pedido de casamento de Arnold Denley.
- Mas é uma loucura! - ele exclamou. - Miranda, você perdeu o juízo, depois de todo o trabalho que tivemos para lhe arranjar um marido! Você devia ter me consultado.
Era o mínimo que podia fazer!
- Talvez, papai. Sinto muito, mas estou convencida de que esse casamento não poderia dar certo. Um casal precisa ter outras afinidades além do conhecimento de
remédios, não é? E depois, o senhor gostaria que eu me mudasse daqui e fosse viver em Somerset? O senhor ficaria sozinho para enfrentar a sra. Wordsworth-Pugh!
Sir Henry chocou-se com a verdade daquela afirmação. Imaginou a sra. Wordsworth-Pugh avançando pela nave da igreja, sacudindo as plumas do chapéu assustadoramente.
A visão foi tão horrível que ele esqueceu por alguns instantes a vontade de ver a filha casada.
- Talvez você tenha razão, minha filha - ele disse, por fim. - Somerset é um lugar muito distante. E, afinal, você recebeu um pedido de casamento, não
é? Já é alguma coisa, mesmo que tenha recusado. Quem diz que não virá outro? Mas se não vier, você pode ficar em casa e cuidar de seu velho pai.
Miranda sorriu. O pai não estava velho. Pelo contrário, ostentava toda sua elegância em um belo casaco de veludo cor de avelã e calça cinzenta.
- Terei o maior prazer, papai. Mas sei que minha função principal é protegê-lo das mulheres que o acham irresistível.
- Ora, que bobagem! Pode ir agora, mocinha!
Sir Henry não conseguiu disfarçar o prazer que o comentário da filha lhe proporcionou. Mas depois que ela saiu e fechou a porta da biblioteca, ele ficou pensativo.
Tinha esquecido certos fatores ao desejar o casamento de Miranda. Sem dúvida, ela era uma criatura muito útil para se ter por perto. Nos últimos anos, não se precisara
se preocupar com os criados e nem com os inquilinos que discutiam o preço do aluguel. Como ia administrar tudo aquilo sem Miranda, se era ela quem cuidava tão bem
de seus interesses?
Mas o que mais se assustava era a sra. Wordsworth-Pugh. Como poderia controlá-la? Seria obrigado a conviver mais com ela depois que Richard se casasse com a srta.
Lucy.
Aproveitando um momento de fraqueza de sir Henry, a sra. Wordsworth-Pugh poderia obrigá-lo a casar, e então ele estaria condenado a aguentar as plumas da mulher
pelo resto da vida. Seria demais, não aguentaria algo do género! Não, Miranda precisava continuar solteira para protegê-lo. Ao mesmo tempo, era uma desgraça ter
uma filha solteirona, especialmente quando podia ficar tão parecida com tia Evangeline. Ah, quantos problemas um homem era obrigado a enfrentar!
Nesse momento, sir Henry lembrou-se da sra. Bakewell, a bela viúva. Era uma mulher charmosa, elegante, agradável. Acima de tudo, não usava plumas. Talvez pudesse
casar-se com ela, se a sra. Wordsworth-Pugh se tornasse inconveniente demais... Ele soltou um suspiro de alívio e acomodou-se melhor na poltrona para descansar dos
últimos minutos de tensão. Teria Miranda ou Emma Bakewell a seu lado. Qualquer uma das duas o protegeria da sra. Wordsworth-Pugh.
Ignorando a agonia que provocara no pai, Miranda tornou a sentar-se à escrivaninha para pôr em dia as contas da casa, mas logo foi interrompida pelo mordomo.
- Lorde Oxenham veio visitá-la, senhorita - ele anunciou. Está à sua espera na Sala Amarela.
Obrigada, Banks. Creio que fnilorde vai partir e veio despedir-se.
- Srta. Branscombe, sua aparência está ótima - Oxenham disse quando ela entrou na sala.
Realmente, a proposta de casamento dera um novo brilho aos olhos de Miranda; seu rosto estava mais corado.
- Obrigada, milorde. Acho que o ar de Branscombe é mais benéfico que o de Londres para mim.
Seguiu-se um instante de silêncio. Miranda esperou que o poeta falasse em partir para despedir-se em seguida. Mas lorde Oxenham não dizia nada e parecia pouco
à vontade, recusando-se a sentar e a aceitar o refresco que ela lhe ofereceu. O silêncio prolongou-se, criando certo embaraço.
- Srta. Branscombe -, disse Oxenham subitamente -, te nho algo a lhe dizer. Estou um pouco constrangido, não sei por onde começar.
Miranda reparou que ele estava muito aflito e tentou adivinhar qual poderia ser a causa de tanto desconforto.
- Penso que sei o que o preocupa! - ela exclamou finalmente, triunfante. - Compreendo a situação, não se preocupe. Escolha o que preferir, eu sei como é importante
para o senhor.
- Não estou entendendo... - Oxenham espantava-se com aquela resposta incompreensível a uma pergunta que ele ainda nem tinha feito.
- Seu iate. O senhor mudou de ideia e escolheu outro nome. Não quer mais chamá-lo Miranda. Foi este o motivo que o trouxe aqui, não é?
- Céus, não é nada disso! - exclamou o poeta. - Eu vim pedi-la em casamento!
A Sala Amarela presenciou o silêncio mais longo de toda a sua história.
- Casamento? - Miranda repetiu baixinho.
- Ora, estou parecendo um tolo! Não poderia ter feito tal pedido à queima-roupa! - Lorde Oxenham segurou a cabeça entre as mãos com ar angustiado. - Perdoe-me,
srta. Branscombe. Eu pretendia abordar o assunto de maneira diferente, mas não tenho experiência em propostas do género, e espero que me desculpe. Sempre imaginei
que ia ficar solteiro a vida toda, portanto nunca dei atenção a este assunto. Prefere que eu comece de novo?
- Eu prefiro não lhe dar tanto trabalho, milorde - respondeu Miranda.
Estava espantada com o propósito da visita de Oxenham, o pedido abrupto e a sugestão de repetir todo o processo. Lutando para recompor-se, prosseguiu:
- Não há necessidade de repetir nada, milorde. O que disse foi muito claro e de fácil compreensão. Agradeço-lhe, porque é muito desagradável não saber exatamente
o que alguém deseja.
- Recebeu alguma outra proposta recentemente? - lorde Oxenham perguntou, cheio de suspeita.
Era um momento muito inconveniente para saber da existência de um rival.
- Só uma, milorde.
- E posso saber qual foi sua resposta? Não desejo importuná-la se já prometeu sua mão a outro.
- Eu agradeci a honra, mas não a aceitei, milorde.
- Seria... seria impróprio eu perguntar qual foi o motivo? Naturalmente, tenho interesse em saber.
- Não há nada de impróprio, milorde. Vi que não sentia afeição suficiente pelo cavalheiro para ser uma boa esposa.
Lorde Oxenham respirou fundo. Estava acostumado a sentir-se à vontade em qualquer situação, mas descobria que propor casamento era bem mais complicado do que
tinha pensado. Considerando o que Miranda havia dito, concluiu que estava fazendo a coisa certa. Ela era uma moça meiga e sincera.
- Foi uma resposta bem típica da senhorita. - Ele sorriu.- Qualquer outra jovem dama teria dito que não sentia afeição suficiente para ser feliz com ele.
- Foi apenas a maneira como encarei a situação - Miranda respondeu.
- Eu sei, e se neste momento tivesse alguma dúvida sobre a atitude que estou tomando, basta ouvi-la para me assegurar de que estou fazendo uma coisa muito sensata.
A senhorita precisaria sentir muita afeição por seu marido?
- Afeição ou um profundo respeito, milorde.
- Srta. Branscombe, sei que fiz meu pedido de uma forma um pouco intempestiva, mas garanto-lhe que fui sincero. Não gostaria de considerar minha proposta?
- É o que tenho feito desde o momento em que o senhor falou - Miranda respondeu com sinceridade.
E posso esperar por uma resposta positiva? Tenho me relacionado com várias damas nos últimos anos, seria inútil esconder este fato da senhorita, porque minha
reputação é bem conhecida. Parte dela é merecida, reconheço. Mas muita coisa que falam de mim é exagero. Digo isto porque nunca encontrei nenhuma jovem que me levasse
a pensar em casamento... até conhecer a senhorita. Quando estou em sua companhia, sinto-me feliz e de bem com a vida. A senhorita é tão... tão boa para mim! Eu quero
fazer por merecê-la, srta. Branscombe. Realmente.
Miranda viu a expressão sincera no belo rosto do rapaz. O que podia responder a esta proposta incrível, que caíra como um raio do firmamento? Recusar o pedido
de Arnold Denley, não fora tão difícil, mas agora...
- Milorde -, ela começou a dizer, pesando cada palavra -, temo que me considere coquete se disser que sua proposta me pegou desprevenida. Tive grande prazer com
sua companhia durante todo o verão, mas não esperava que me propusesse casamento. Na verdade, nunca pensei em me casar porque conheço minhas limitações. Nenhum homem
quer uma esposa sem graça ou sem beleza, a menos que ela tenha um grande dote. Eu gosto do senhor. Para ser bastante sincera, sinto até uma grande afeição pelo senhor,
mas antes de dar o "sim" e prendê-lo à vida de casado, gostaria de algum tempo para pensar melhor. Não acredito que minha opinião favorável a seu respeito seja devida
às atenções que me dá, mas prefiro ter certeza. O casamento deve trazer felicidade, e se não for assim, prefiro continuar solteira.
Lorde Oxenham ouviu a resposta com atenção e descobriu que ficara mais satisfeito com ela do que com um sim imediato. Miranda Branscombe respondera ao pedido
com absoluta sinceridade.
- É claro que terá tempo para pensar, srta. Branscombe. Sei que a surpreendi. Mas a senhorita não me recusou, e isto me agrada. Posso pedir-lhe um favor? Gostaria
de pedir permissão a seu pai para cortejá-la formalmente. Deste modo, se ele aceitar, poderemos nos ver com maior frequência. Se depois de nos conhecermos melhor
a senhorita achar que não será feliz a meu lado, terá toda a liberdade de me recusar.
- Sua sugestão é muito generosa e sensata - Miranda sorriu. Eu gostaria de vê-lo mais vezes, é claro, mas apenas se o senhor também tiver a liberdade de retirar
seu pedido se assim o desejar. Prometo que não farei nenhuma cena dramática se isto ocorrer.
- Não temo uma atitude destas de sua parte, srta. Branscombe. Acha que posso falar com sir Henry agora mesmo? Ele não está ocupado?
- Não, creio que papai poderá atendê-lo. Espero que não se ofenda se eu disser que prefiro não acompanhá-lo. É melhor o senhor conversar com meu pai a sós.
Depois que Oxenham deixou a Sala Amarela, Miranda procurou pôr seus pensamentos em ordem. Sentia-se agitada com a segunda proposta de casamento que recebera,
ainda mais inesperada que a primeira, e precisava de alguns momentos a sós para controlar a emoção.
Lorde Oxenham era um ótimo companheiro, um amigo divertido, um homem muito atraente. Possuía tudo, portanto, para ser o par ideal. Mas Miranda precisava considerar
todos os ângulos da questão com cuidado. Seria capaz de tolerar as infideli-dades prováveis do poeta, já que ele era tão bonito e estava acostumado a atrair as atenções
femininas? Não seria tarde demais para ele se transformar em um marido fiel? Além disso, gostaria dele o suficiente para dar um passo tão sério como o casamento?
.
Sim, sem dúvida, Miranda tinha muito o que pensar...

CAPITULO X

Quando Peter chegou a Branscombe Hall, no dia 'seguinte, encontrou a casa toda muito agitada. Miranda tinha pedido a sir Henry para guardar segredo sobre sua
conversa com lorde Oxenham, mas de algum modo a notícia havia se espalhado. Todos os criados estavam a par do pedido de casamento, e conversavam sobre o assunto
enquanto se entregavam a seus afazeres. Banks, o mordomo, alegrava-se com o possível casamento da srta. Miranda, mas a velha Meg, a cozinheira, chorava sem parar,
com medo de que sua amada patroa casasse logo e partisse para longe com o marido.
Peter percebeu que havia alguma novidade no ar e Richard logo esclareceu o que tinha acontecido.
- O que você acha? Não é uma notícia maravilhosa? Miranda recebeu um pedido, finalmente!
- Não! - Peter arregalou os olhos, espantado. - Você quer dizer que o primo Denley finalmente criou coragem? Isto é incrível! Então, Miranda será minha prima,
não é? Esplêndido!
- Não, não é isto - Richard atalhou, sem entender como o amigo podia ser tão estúpido. - Não estou falando de Arnold Denley. Foi Oxenham quem fez o pedido. Minha
irmã ainda não deu a resposta definitiva, mas estou convencido de que vai aceitar. Seria uma tola se recusasse. Quando papai recebeu a notícia, precisou deitar-se
no sofá da biblioteca para se recuperar do choque, mas agora mal cabe em si de tanta alegria!
- Você disse que foi Oxenham quem fez o pedido? - Peter empalideceu. - Oxenham! Meu Deus! Você não pode estar falando sério!
- Incrível, não acha? Aparentemente, Oxenham encantou-se com Miranda e resolveu desposá-la, veja só! Vão formar um casal maravilhoso, não acha?
- Não, eu não acho! - Peter declarou, furioso. - Você está fora de si, e sir Henry também perdeu o juízo, pelo visto!
- Ei, calma, meu amigo! Dobre a língua, veja lá como fala de meu pai, por favor. Dizer que ele perdeu o juízo é muita falta de respeito!
- Sinto muito, aceite minhas desculpas - Peter esforçou-se para readquirir o auto-controle. - Vou escolher melhor as palavras daqui por diante. Diga-me, na verdade
seu pai não considera lorde Oxenham um candidato aceitável à mão de Miranda, não é?
- E por que não? Agora parece que você foi quem perdeu o juízo. Oxenham é rico, possui um título de nobreza e é um rapaz de ótima aparência. Hoje de manhã ele
estava usando um belíssimo casaco, muito bem feito, com uma fileira de botões dourados, colarinho alto e...
- Que ele vá para o diabo com seu casaco de colarinho alto!- Peter vociferou. - É o futuro de Miranda que estamos discutindo!
- E discutindo muito alto, se me permitem dizer - Miranda observou, entrando na sala. - Peter, imagino que já esteja a parda grande honra que lorde Oxenham me
concedeu. Creio que é tarde demais para pedir a você que não espalhe a notícia, mas rogo-lhe que se esforce áo máximo.
- Honra, imagine! Oxenham não lhe concedeu honra alguma! O pedido de casamento de um libertino não passa de um insulto a uma dama respeitável - Peter declarou,
baixando a voz.
- Oh, meu Deus! O velho problema de sempre - Miranda suspirou.
- Vou continuar a insistir no assunto até você compreender que está prestes a cometer uma loucura. Oxenham já cometeu todos os pecados que existem, conhece todos
os vícios. Tem uma reputação negra, e você ainda pensa em se casar com ele!
- Penso, mesmo. Gosto muito de lorde Oxenham.
- Ora, você gosta de todo mundo, até do velho Sam, o mendigo que nunca tomou banho na vida e tem cheiro de bode!
- Pobre sr. Sam. Ele não tem culpa de...
- Não mude o rumo da conversa, Miranda! Vamos, pense melhor. Oxenham é mau, não se incomoda com os sentimentos dos outros, muito menos com os das mulheres. Mas,
sem dúvida, jurou a você que vai se transformar em um anjinho, certo? Ah, estou vendo em seu rosto que tenho razão. Naturalmente, você não acreditou nesta bobagem,
não é?
- Eu acredito que as intenções dele sejam sinceras, mesmo que não consiga mantê-las por muito tempo. Sei que a vida ao lado de lorde Oxenham não seria fácil,
mas não creio que poderia ser desagradável ou aborrecida. Gosto muito dele, sabe? Se não fosse assim, nem teria pensado na possibilidade de aceitar o pedido.
- Ora, não me diga que se apaixonou pelo poeta romântico, espero! - Peter exclamou, desgostoso. - Eu a conheço, sei que nunca foi tola!
- Gosto muito dele - Miranda repetiu. - Mas acho que isto não lhe diz respeito, Peter, apesar de sermos meu amigo.
- Pois o assunto me diz respeito, sim. Eu seria um péssimo amigo se deixasse você levar esta história adiante.
- Você não pode fazer nada para me impedir. Meu pai já deu o seu consentimento, está encantado com a ideia.
- Mas se você não pode se casar só para agradar sir Henry!
- Eu sempre desapontei papai, Richard, e faria qualquer coisa para alegrá-lo. Qualquer coisa. Além disso, acho que vou gostar de ser lady Oxenham.
- Você quer tanto assim ter um título de nobreza?
- Você sabe que não.
- É verdade, desculpe-me. Sei que não pensaria em tal coisa, que não seria tão mesquinha. Oh, Miranda, você é boa demais para ficar presa a um homem como lorde
Oxenham! Deve haver alguma coisa que eu possa fazer... Estou decidido a impedir este noivado! Antes de deixá-la casar-se com ele, eu... eu... Ora, Miranda, prefiro
eu mesmo me casar com você! - declarou Peter, de repente. - Céus, por que não pensei nisto antes? Seria a solu
ção perfeita! Claro, serei apenas um baronete quando meu velho "partir para o Além", como diria Denley, mas sei que você não se preocupa com isto. E tenho uma fortuna
muito sólida. Sem mencionar que você terá apenas de cruzar o parque para chegar em seu novo lar, o que alegrará muito seu pai. Talvez ele não crie objeções e me
aceite como genro. Sei que mamãe e o velho gostam muito de você, e adorariam tê-la na família. Sim, esta é a melhor solução... Acho que vou falar imediatamente com
sir Henry. Ele deve estar na biblioteca, não é? - Peter já ia saindo quando a voz de Miranda o fez a parar.
- Não! - ela exclamou.
- Não? - ele voltou-se. - Se sir Henry não está na biblioteca, Banks deve saber onde posso encontrá-lo. Por favor, Richard, toque o sininho, sim?
Richard, que ouvira toda a discussão em silêncio, permaneceu
paralisado.
- Não, não e não! - Miranda repetiu com voz estrangulada. - Estou dizendo que não vou me casar com você! Nem sei porque você pensou que eu aceitaria tal sugestão!
- Não quer se casar comigo? - Peter franziu o cenho. - Não compreendo...
- Não compreende? - Miranda estava com o rosto vermelho e os olhos muito brilhantes. - É muito fácil, se você parar para pensar um pouco. Não há necessidade
de perturbar papai, Banks, ou qualquer outra pessoa, porque eu não vou me casar com você. Imagino que deveria estar me sentindo grata pelo pedido, mas não estou!
Prefiro me casar com Oxenham... com Denley... ou até com Sam, o mendigo! Mas não me casaria com você nem que fosse o último homem sobre a face da Terra!
Com esta declaração, ela começou a soluçar e saiu da sala correndo, deixando os dois rapazes se entreolhando boquiabertos como se tivesse chegado o fim do mundo.
- Ora, que grande confusão! - Richard exclamou com o rosto vermelho, muito contrariado.
- Ela não quer se casar comigo! Miranda não quer se casar comigo! - Peter repetia sem parar.
Apesar da recusa de Miranda ser tão clara e de entendimento tão simples, ele ainda não conseguia absorver o sentido completo da mensagem.
- Ela saiu daqui chorando - Richard comentou.
Peter não respondeu. Continuava parado, com uma expressão de espanto e descrença no rosto.
- Ela não quer se casar comigo! - tornou a repetir.
- Ela estava chorando - Richard tornou a dizer.
- Como? - as palavras do amigo finalmente penetraram no cérebro aturdido de Peter.
- Eu disse que Miranda estava chorando quando saiu da sala. Nunca a tinha visto chorar, antes! Oh, o que lhe deu para sugerir uma coisa tão absurda, Peter? Agora
minha irmã está chocada!
- Ela não pode estar chorando.
- Mas está, e a culpa é sua.
- Não compreendo. Apenas sugeri... Você disse que ela estava chorando? E não quer se casar comigo... Por que ela não quer se casar comigo? Oh, eu a fiz chorar!
O que devo fazer? Miranda! Miranda!
Confuso e aflito, Peter saiu correndo da sala, rumo à escada que levava ao andar superior da residência dos Branscombe. Subindo os degraus de dois em dois, deu
um encontrão na velha sra. Hart, antiga nanny de Richard e Miranda e agora governanta da casa.
- Por Deus, o que aconteceu, sr. Peter? - ela perguntou depois de recobrar o equilíbrio.
- Eu fiz uma coisa horrível, nanny. A pior coisa que podia ter feito na vida... Fiz Miranda chorar! - confessou, com voz trémula.
A velha criada se empertigou, fulminando-o com o olhar.
- E o que o senhor andou dizendo à srta. Miranda para aborrecê-la tanto?
- Bem... Eu lhe disse que preferia me casar com ela a vê-la nas mãos de lorde Oxenham. Foi só isso.
- Só isso?! Pois me parece mais que suficiente. Ah, sempre me espanto ao ver como os jovens cavalheiros, em geral tão espertos, podem ser tão tolos" às vezes!
Peter não entendeu o significado das palavras da sra. Hart, mas estava contrariado demais para refletir sobre o assunto.
- Miranda disse que não me aceitava como marido, nanny Nem que eu fosse o último homem sobre a face da Terra! O que eu fiz para desgostá-la tanto? Preciso
vê-la! Preciso falar com ela!
Ela ia terminar de subir o lance de escada que faltava, mas a sra. Hart bloqueou-lhe o caminho.
- Fique aqui, por favor, sr. Peter! - ela ordenou em um tom que o fez sentir-se novamente com dez anos de idade. - Imagine! Um rapaz ir ao quarto de uma
moça! Nunca ouvi falar de uma coisa destas! Espere, vou perguntar à minha menina se ela deseja falar com o senhor.
Peter sentou-se nos degraus da escada para aguardar a resposta e enterrou o rosto nas mãos, em profundo desespero. Vendo o rapaz naquela atitude, Banks, o mordomo,
alarmou-se, pois acostumara-se a vê-lo sempre muito alegre. Para reanimá-lo, ofereceu-lhe um cálice de conhaque.
- Beba um pouco, logo vai sentir-se melhor, sr. Peter.
- Não adianta, Banks, jamais me sentirei melhor. Fiz Miranda chorar - ele murmurou, cabisbaixo.
- Realmente, senhor? Oh, tenho certeza de que ela logo irá perdoá-lo.
- Mas eu nunca me perdoarei! Nunca! Nem que fique tão velho quanto Matusalém! Você já viu Miranda chorar, Banks?
- Devo admitir que não me lembro de um acontecimento como este, senhor.
O mordomo não sabia como enfrentar aquela crise. Desconcertado, tornou a encher o cálice que Peter esvaziara de um só gole e pediu licença para se retirar.
Peter continuou sentado na escada. Tinha a sensação de ter caído num abismo. E não compreendia como nem porquê, o que tornava tudo mais horrível.
- A srta. Miranda irá recebê-lo na sala íntima - a sra. Hart anunciou do alto da escada. - O senhor tem dez minutos para falar com ela. Ficarei por perto,
portanto trate de se comportar, sr. Peter.
Miranda estava de costas para a porta quando ele entrou na saleta. Ele ficou parado, mudo, sem saber como agir. Sentiu-se intimidado na presença da amiga, uma
experiência nova e terrível naquele dia que estava rapidamente se transformando no pior de sua vida. Jamais sentira constrangimento algum na presença de Miranda,
nem mesmo quando ela cuidara dele depois de sua primeira bebedeira de rapazinho. Ela sempre fora a boa e querida Miranda, um ombro amigo tanto para ele como para
Richard. Agora, no entanto, ela estava parada ali, distante e hostil como uma estranha.
- Ora, você não queria falar comigo? Por que não diz alguma coisa? - Miranda perguntou por fim, e sua voz soou diferente.
- Vim pedir desculpas. Sinto muito - Peter respondeu, achando as próprias palavras inadequadas.
- Verdade? Aceito suas desculpas, mas não sei por quê sentiu necessidade de vir me dizer isso. - Novamente sua voz soou com uma nota de aspereza que não era familiar.
- Eu fiz você chorar.
- Ora, não seja presunçoso, Peter Kerswell. Sofri um grande desgaste emocional nos últimos meses, isso é tudo. As coisas se tornaram um pouco difíceis para mim.
Peter baixou a cabeça. Não acreditava nela, mas não sabia o que responder.
- Já terminou o que tinha a me dizer, ou pretende me atormentar por mais tempo? Sei que minha aparência está péssima e que fiz papel de tola. Já não é suficiente
por um dia? Já não se divertiu bastante às minhas custas?
- Oh, Miranda! - Peter exclamou, revoltado com a acusação "Oh, Miranda!" Isto é tudo o que você tem a dizer, Peter?
- Não. Eu queria saber porque você prefere se casar com Oxenham e não comigo.
Ele estava sendo sincero.
Desde criança, Peter e Richard haviam se habituado a contar com a adoração de Miranda. Ela sempre fora carinhosa com os dois durante a infância e a adolescência,
e depois de ficarem adultos também. Richard ainda contava com tal adoração porque, afinal, era irmão dela! Mas Peter tinha sido excluído! Foi como se o mundo caísse
sobre sua cabeça e se transformasse em um lugar frio e vazio. Ele estava completamente perdido. Miranda preferia outro homem, não queria aceitá-lo como marido!
-, Por que você prefere casar com Oxenham e não comigo? - Peter insistiu.
- Não posso me casar com os dois, é contra a lei.
- Por favor, não brinque! Você disse que não me aceitaria como marido e quero saber o motivo.
- Antes de mais nada, Oxenham pediu minha mão primeiro, e você, que eu saiba, não pediu nenhuma vez. Aparentemente, estava tão certo de minha resposta que nem
se deu ao trabalho de me consultar.
- E você ficou contrariada, não foi? - Como não lhe ocorrera uma resposta tão simples? Ele sentiu-se melhor. - Se eu tivesse chegado com um grande buque de rosas
vermelhas e um poema, você teria me aceitado, não teria, Miranda?
- Mas você não chegou - ela retrucou friamente. - E, por favor, não me obrigue a ouvir uma repetição do pedido, porque não vai adiantar nada. Não sei por quê
você está criando tanta confusão por causa de lorde Oxenham, uma vez que vem discutindo com Richard há tanto tempo o melhor meio de me arranjar um marido. Agora
já encontrei um bom candidato! Na verdade, se eu fosse depender de seus esforços, jamais teria conhecido lorde Oxenham, em primeiro lugar.
Peter gemeu, compreendendo que era o causador da própria miséria.
- Ou talvez você esteja aborrecido porque não aceitei o pedido de casamento de seu primo Denley- Miranda prosseguiu irritada.
- Que ideia mais absurda! - Peter exclamou. - Existe um mundo de diferença entre meu primo Denley e Oxenham, o libertino.
- Será? Os dois querem se casar com alguém que se dedique a eles. Seu primo quer uma esposa capaz de persuadi-lo de que não está doente. Oxenham quer uma mulher
que o persuada de que não sente tédio. Por que você cria objeções se preferi escolher o segundo não o primeiro?
Sim, por que ele objetava? Peter havia encarado a possibilidade de Miranda casar-se com Denley muito tranquilamente. E agora, por quê estava tão desesperado só
de pensar que ela poderia ser a esposa de Oxenham?
Peter foi honesto consigo mesmo e refletiu que não era apenas o caráter do lorde que estava em jogo. De repente, ele descobriu a razão de suas atitudes. Se Miranda
casasse com Arnold Denley não correria o risco, nem em mil anos, de apaixonar-se por ele. Mas com Oxenham o caso era muito diferente... O lorde era bonito, inteligente,
tinha maneiras encantadoras. A sensibilidade de Miranda não poderia resistir a tantos atributos. Ela logo se apaixonaria perdidamente por ele. E Peter não se conformava
com tal ideia! Não podia suportá-la! Tinha ciúmes de Oxenham! O amor de Miranda devia ser só dele!
Ao compreender o que acontecia, Peter ficou abalado. Amava Miranda! Claro, não havia dúvida, ele a amava! Sempre havia amado, desde criança. Mas não a amava como
a uma irmã! Não, a emoção era muito diferente da que sentia por Sofia ou por suas outras irmãs. Queria ter Miranda sempre a seu lado, dando só a ele todo o carinho
e adoração que guardava no coração. Em resumo, queria casar-se com ela porque a amava.
Desesperado, continuou tentando demover Miranda da ideia de tornar-se esposa de Oxenham.
- Você gosta dele? Você o respeita? Acha que possui qualidades admiráveis? Que papel de tola você está fazendo, Miranda! Sabe muito bem que é meiga e sensível,
vai prender-se a ele sem amá-lo! E então? O que acontecerá depois?
- Será ótimo se eu me apaixonar por Oxenham. Realmente, será uma coisa muito boa. Nosso casamento será muito mais feliz.
- Tem certeza? O que vai acontecer se ele começar a traí-la? Que felicidade pode haver? Você só terá sofrimento e humilhação!
- Isto pode não ocorrer. Se nosso amor crescer e os laços entre nós ficarem mais fortes, ele não vai querer me trair. O fato de Oxenham não ter amado ninguém
de verdade até hoje não quer dizer que seja incapaz de sentir uma afeição sincera por mim. Acho que ele nunca teve alguém que o amasse e se dedicasse inteiramente
a ele. E é o que pretendo fazer quando nos casarmos.
Sem perceber, os dois tinham passado a falar mais alto, e neste momento Peter ficou enlouquecido de ciúme.
- De jeito algum! - ele exclamou. - Não vou deixar que você o ame mais do que a mim!
Impulsivamente, ele agarrou o braço de Miranda e a obrigou a encará-lo.
- Ora, não seja tolo! Isto é impossível...
Miranda calou-se com um gemido. Tomada de surpresa, percebeu que traíra seus próprios sentimentos e cobriu o rosto com as mãos para esconder as lágrimas que teimavam
em rolar.
- Miranda... - Peter murmurou, ainda não conseguindo acreditar no que ouvira. - Miranda, quer dizer então que você me ama?
- Vá embora, por favor - ela soluçou.
- Primeiro responda minha pergunta. Seja sincera, por favor. Você me ama? - indagou abraçando-a com força.
- Claro que amo, seu grande tolo! - confessou entre soluços.
- Oh, graças a Deus! Eu tinha medo de que você não me amasse! - Peter fechou os olhos e beijou-lhe os cabelos. - Que susto você me deu! Não faça mais isto, por
favor, ou vai me deixar desesperado. Minha querida, eu a fiz chorar tanto... Pode me perdoar? Sou um idiota, um cego que não merece o seu amor. Querida, pare de
chorar para que eu possa dizer o quanto a amo.
- Por que nunca disse antes que me amava? - Miranda perguntou, encostando o o rosto no ombro de Peter.
- Por pura estupidez - admitiu ele. - Só posso dizer em minha defesa que a amo desde sempre, mas foi muito difícil reconhecer que abrigava tal sentimento em meu
coração. Foi por isso que você se recusou a casar comigo?
- Reconheço que sim.
- Nem que eu fosse o "último homem sobre a face da Terra", você disse... Fiquei tão magoado ao ouvir tais palavras!
- Achei que você estava me propondo casamento só porque não confia em Oxenham e não gosta dele.
- É verdade, mas logo compreendi a verdade. Estava com ciúmes e tinha medo de que ele a afastasse de mim. Mas seja honesta, você queria apenas tirar Richard de
uma situação difícil, não é? Pelo menos, estava até disposta a se casar com outro para ajudar seu irmão... Que loucura! - Peter afagou-lhe o cabelo e beijou-a na
base do pescoço.
- Sinto muito - a voz de Miranda traía a emoção. - Achei que devia me casar para ajudar Richard, e até pensei no sr. Denley como um possível marido, se a situação
o exigisse. Mas quando você me propôs casamento daquele modo, como se não se importasse com meus sentimentos...
- Nunca me perdoarei por ter sido tão insensível. Prometo-lhe que vou dedicar o resto de minha vida a fazê-la feliz, quero mostrar-lhe o quanto a amo. Por outro
lado, você não me ajudou em nada atirando a srta. Bella em meus braços. Não é de se admirar que eu não tenha percebido antes o que sentia por você.
-- Eu sempre soube que o amava, Peter, sem precisar que ninguém me ajudasse - Miranda ergueu o rosto para receber um beijo carinhoso. - Jamais pensei, porém,
que nos casaríamos. Sempre achei que este era um sonho impossível. Mas queria vê-lo ter seu próprio lar, com mulher e filhos, porque sei que você nunca seria feliz
sem um bando de crianças à sua volta.
- Pois saiba que serei muito feliz, querida, em sua companhia. Com você a meu lado, encheremos New Place de crianças. Sem falar nos cachorros, gralhas, coelhos,
e todos os bichos que quiser. Faremos sua tia-avó Evangeline parecer a pessoa mais sensata do mundo! Imagine, eu poderia ter perdido você se Oxenham não aparecesse
e não me deixasse louco de ciúmes. Devo a ele gratidão eterna. O que o coitado vai fazer quando souber que vamos nos casar?
- Você ainda não pediu minha mão formalmente, portanto, eu não lhe disse "sim" - Miranda brincou.
- Está bem, o que Oxenham fará se nos casarmos? - Peter corrigiu apressadamente.
- Ele tem o iate novo e o mar... Acho que estes são seus únicos amores verdadeiros. Eu não gostaria de magoá-lo, mas estou convencida de que lorde Oxenham não
sofrerá por muito tempo por minha causa. Especialmente depois que partir para o Mediterrâneo.
- Coitado, chego quase a ter pena dele. E pensar que desejeimatá-lo há pouco! Imagino que Oxenham tenha vindo com um lindo discurso poético para pedir sua mão.
- Não, não veio. Na verdade, as propostas que recebi não foram nem um pouco românticas. Fiquei até desapontada.
- As propostas? Quantas você recebeu? - Peter indagou, espantado.
- Contando com a sua, se é que podemos considerá-la uma proposta, recebi três, ao todo. E a sua foi, sem dúvida, a pior. Espero que se esforce mais na segunda
tentativa. Para começar, gostaria muito de ouvi-lo dizer que me ama.
Peter estava admirado com a revelação, mas um Kerswell enfrentava qualquer desafio.
- Nada me daria maior prazer do que dizer o quanto a amo, Miranda. Vou lhe declarar o meu amor dez vezes ao dia nos próximos cinquenta anos, pelo menos.
E quanto à proposta de casamento, você receberá de mim a mais romântica que possa imaginar. Deseja que eu lhe faça uma serenata à noite, sob a janela do seu quarto,
para pedir sua mão à luz da lua? Ou prefere que eu me ajoelhe aqui mesmo?
Miranda Branscombe sabia exatamente como desejava que a proposta fosse feita. Na última meia-hora ela passara do mais profundo desespero a uma felicidade imensa.
Peter a abraçava como se nunca mais fosse soltá-la. Para Miranda, esta era a maior bem-aventurança que já experimentara na vida. Não queria perturbar um momento
tão perfeito, nem mesmo para ouvir a proposta mais romântica do mundo.
- Estamos tão bem assim, meu amor - ela disse baixinho, enlaçando timidamente o pescoço do amado. - Não quero me afastar de você. O seu pedido de casamento é
perfeito, porque este é o momento mais feliz de toda minha vida. Não existe nada mais romântico do que ouvir você dizer que me ama...
- Eu concordo - Peter respondeu, emocionado. - Minha querida Miranda, eu concordo plenamente!
A sra. Hart continuava parada no corredor, como uma sentinela, com o ouvido colado à porta da sala íntima de Miranda. Os dez minutos de prazo que dera ao sr.
Kerswell já haviam passado há muito tempo, mas nem em sonhos ela pensaria em interromper a conversa do casal. Estava tão feliz por sua jovem patroa!
Banks subiu a escada na ponta dos pés.
- Algum problema, sra. Hart? - perguntou o mordomo, ansioso. - A senhora quer que eu faça alguma coisa?
- Não, obrigada, sr. Banks. Está tudo bem, maravilhosamente bem. - Ela enxugou com discrição uma lágrima de alegria. -Mas se quer mesmo fazer alguma coisa, pode
ir afofar as almofadas do sofá da biblioteca. Tenho a impressão de que logo sir Henry precisará deitar-se outra vez para se recuperar de um novo choque.

FIM

 
A mensagem está pronta para ser enviada com os anexos de ficheiro ou ligação que se seguem:
Travessuras de um cupido.txt

Nota: Para proteger de vírus de computador, os programas de correio de electrónico podem impedir o envio e a recepção de certos tipos de anexos de ficheiros. Verifique as definições de segurança de correio electrónico para determinar como são manipulados os anexos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário