domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um beijo da alma - Shay Youngblood.txt

Um beijo da alma, primeiro romance de Shay Youngblood que imediatamente a impôs no panorama da nova narrativa Norte-americana, conta-nos a odisseia de uma jovem, Mariab Santos, que aos sete anos é abandonada pela mãe e cuja viagem até à idade adulta se pautará pela descoberta de um erotismo magoado e confuso. Amada pelas tias, a quem ficou entregue, mas nada habituada a uma vida regrada e sem conseguir superar o estigma do abandono, Mariab é uma adolescente carente e problemática. Quando, acidentalmente, conhece a identidade e o paradeiro do pai, as questões acerca da sua identidade familiar e sexual intensificam-se, e ela decide ir viver com ele. Mas a sua ânsia de ter alguém que a ame quase os conduzirá a uma relação incestuosa...
Inteligente e erótico, comovente e humano, por vezes deliciosamente poético, um beijo da alma revela-nos uma autora de grande talento que vai certamente conquistar os leitores habituais da colecção pequenos prazeres.


nota do digitalizador.
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fim da nota.


SHAY YOUNGBLOOD

UM BEIJO DA ALMA


TRADUZIDO DO INGLÊS POR
EUNICE RANGEL
REVISÃO LITERÁRIA
ANA MARIA CHAVES

ASA
LITERATURA


TÍTULO ORIGINAL : SOUL KISS
1997, Shay Youngblood

1.ª edição: Junho de 2001
Depósito legal nº 164106/01
ISBN 972-41-2588-2
Reservados todos os direitos

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à Laura e ao meu pai

I

Na primeira noite em que a minha mãe não volta para casa faço uma sanduíche com as folhas da sua carta de despedida. Quero comer as suas palavras. Olho e torno a olhar para a mensagem escrita naquele papel duro e amarelado, como se os gatafunhos trémulos pudessem sair da página e falar comigo. A Mamã ama-te muito. Espera aqui por mim. Quero que ela apague aquela parte da espera. Depois de ama-chucar o papel até o fazer em duas bolinhas, achato-as com o punho e meto-as no sobrescrito que a tia Faith me deu depois de a minha mãe se ter ido embora. Sinto-me frágil como a água e fria como a pedra quando me sento com as pernas balouçando na beira do colchão grosso da cama alta de ferro a ler à luz fraca do candeeiro. Desenrolo o lenço tigrado que a minha mãe me deu e embrulho nele a sanduíche da despedida, um pequeno livro de versos, uma bolacha que sobrou do jantar embrulhada em papel vegetal, e o seu rádio cor-de-rosa, tão pequenino que cabe na palma da minha mão. Ato as pontas do lenço em cruz à volta dos meus tesouros e aperto-os contra o peito, juntinho ao coração. Apago a luz e atravesso o quarto às escuras.
Desço as escadas pé ante pé. A três degraus do fim a
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madeira geme na escuridão. Deixo cair o meu fardo e o rádio ganha vida. O Elvis canta Love Me Tender. A tia Merleen aparece como um gigante ao cimo das escadas com um pijama vermelho, chinelos de homem nos pés e o belo cabelo negro escondido por baixo de uma touca de renda. Muito alta e magra, tem a pele cor de fogo, da cor do solo da Geórgia. Tem nas mãos uma caçadeira apontada na minha direcção.
- Mexe-te e és um homem morto. Chega-te para a luz - ordena a tia Merleen.
A tia Faith sai da escuridão, como um fantasma, com uma grande camisa de noite branca de algodão e o cabelo prateado caído solto sobre os ombros. Os seus dedos roliços apontam a lanterna para o fundo das escadas. Entro no foco de luz e olho para o rádio e para o degrau que me traiu.
- Mariah! - grita a tia Merleen, como se o meu nome fosse sinónimo de crime. Afasto-me da luz com passos pequeninos.
- O que fazes a pé a esta hora da noite? - A voz da tia Faith é suave como o lenço da minha mãe.
- A Mamã está à minha espera. Vou para casa - respondo, olhando para o fundo das escadas.
- Porque não ficas aqui à espera dela? - insiste a tia Faith.
- Vocês não gostam de mim. Quero a minha mãe - respondo calmamente.
Ao andar, a tia Faith vai transferindo o peso imenso do seu corpo de um lado para outro. Os seus seios volumosos misturam-se com os rolos de carne à volta da cintura. As coxas e as pernas são longas e sólidas como troncos de árvore. A pele é de um bege quente, da cor do pó de arroz da minha
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mãe, e o cabelo é comprido e prateado. Macia, redonda e cinzenta. Desce as escadas e senta-se no último degrau. Fala comigo à distância. A sua voz, doce e triste, flutua até mim através da escuridão. Estou quase a aproximar-me dela. Preciso do conforto dos seus braços.
- Não passamos de umas velhas. Há muito tempo que não convivemos com crianças. Mas vamos habituar-nos. Vem para cima. A tua mãe vai voltar logo. Ela tinha uns... - a sua voz doce denota hesitação - .. .assuntos a tratar.
A tia Merleen, alta e tempestuosa, repete a palavra "assuntos" dando-lhe um toque de mistério, comprimindo os lábios contra os dentes como a minha mãe fazia quando não acreditava nalguma coisa ou quando estava farta. Mas que tipo de assuntos a teriam obrigado a deixar-me com estas velhas tão azedas?
- Já és uma mulherzinha - dizia a minha mãe confiante quando tinha de me deixar sozinha no apartamento por uma ou duas noites. Nunca me tinha deixado com estranhos. Estas são as tias dela; ela sempre as conheceu, mas eu só as conheci esta manhã e não gosto delas. E parece que elas também não gostam de mim.
- Vamos pôr os pontos nos "is". Não permito que se ouça música do Elvis Presley nesta casa - ruge a tia Merleen. - Ele disse ao mundo inteiro que a única coisa que um negro podia fazer por ele era engraxar-lhe os sapatos e comprar os seus discos, ele, que roubou dos lábios dos pretos cada nota que canta. Desliga essa porcaria.
Olha-me friamente do cimo das escadas e volta para a cama com a caçadeira ao ombro.
Desligo o rádio, apanho o livro, a bolacha e a sanduíche
de palavras. Subo atrás da tia Faith, um degrau triste de cada vez, e entro no quarto onde vou ficar a dormir. Sento-me na cama e esfarelo a bolacha entre os dedos até ficar reduzida a pó, deixando-a cair para o papel. Espalho as migalhas à volta da cama para que os fantasmas que possam aparecer durante a noite as comam e não me perturbem o sono. Foi a minha mãe que me ensinou a fazer isto depois de terem aparecido inúmeros fantasmas que tinham conseguido passar pelo sal espalhado nas portas e nas janelas para me interromperem os sonhos. A minha mãe acredita em espíritos e sabe do que são capazes. Passado um bocado deito-me na cama com o lenço sobre o rosto, aspirando o cheiro a bergamota do cabelo da minha mãe e sentindo o sabor amargo das minhas lágrimas. Como pedacinhos da sanduíche, tendo o cuidado de saborear cada uma das suas palavras, mesmo as que não entendo, engolindo cada uma delas com uma ou duas lágrimas.
Quando eu e a minha mãe vivíamos juntas, o mundo era um lugar perfeito para uma menina. Eu adorava a minha mãe e ela também me adorava a mim. Mais ninguém interessava. Uma das minhas primeiras lembranças é vê-la vestir-se para ir trabalhar. Junto à pele castanho-avermelhada, amaciada todas as noites com uma fina camada de vaselina e creme hidratan-te, usava uma combinação de cetim cor-de-rosa. O rosa era romântico, dizia ela, a cor do amor e do riso. Os olhos amendoados da minha mãe, herança, dizia ela, do seu avô cherokee, recordavam, sonhadores, como o meu pai lhe dizia que parecia uma princesa quando se vestia de cor-de-rosa. Por fora usava branco. O seu uniforme de enfermeira era engomado e
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rígido, muito branco; de tamanho pequeno, um 34, com uma touca pequenina encarrapitada no cabelo curto de caracóis apertados pintado de louro, mas não completamente, deixando aparecer as raízes de tom escuro. Umas meias brancas de seda velavam-lhe as pernas longas e esbeltas. Calçava sapatos brancos silenciosos, que me deixava apertar e que lhe assentavam na perfeição no seu pé número 36. Todos os dias de manhã, a caminho do hospital militar, levava-me à escola que ficava por trás das casernas cinzentas do exército, nos barracões de aço em forma de pão onde nos alinhávamos para jurar fidelidade à bandeira.
Armada com uma sanduíche, uma peça de fruta e uma palavra escrita num pequeno quadrado de papel cor-de-rosa dobrado duas vezes, estava pronta para tudo. A palavra estava escrita a tinta azul na caligrafia bonita da minha mãe... bonita. .. doce... azul... música... sonho... Às vezes dava-me palavras em espanhol... bonita... dulce... suenos... agua... azul... A palavra, essa guardava-a na boca e repetia-a como uma oração quando sentia saudades dela. A minha mãe dizia-me que pensaria na mesma palavra todo o dia. Este pensamento fazia com que o tempo que passávamos longe uma da outra fosse suportável. Antes de me deixar à porta da escola sussurrava--me a palavra ao ouvido. Eu fechava os olhos e ela beijava-me rapidamente no pescoço e largava-me a mão. E depois ficava a olhar para mim pela janela enquanto eu me dirigia para o meu lugar ao fundo da sala. Murmurávamos a nossa palavra ainda mais uma vez antes de ela desaparecer. À tarde, quando a minha mãe ia buscar-me, eu dava-lhe a mão e balançávamos os braços como se fôssemos duas meninas a dar um passeio.
"Azul. A-Z-U-L. Azul é a cor da música triste, dos blues".
Eu pronunciava, soletrava e dava significado à nossa palavra. Às vezes, durante os nossos passeios, inventávamos palavras e falávamos entre nós em novas línguas. Para me elogiar, a minha mãe fazia-me cócegas no queixo, apertava-me o rosto entre as suas mãos quentes e delicadas e fechava os olhos. Depois pousava os seus lábios nos meus e dava-me aquilo a que chamava um beijo da alma. Todo o meu corpo vibrava com o abraço da minha mãe.
- Amo-te, Mamã - dizia eu, olhando-a nos olhos.
- E eu amo-te ainda mais - respondia ela, olhando-me fundo.
Eu já sabia ler antes mesmo de saber andar, dizia a minha mãe. Aos três anos já me sentava ao colo dela a ler-lhe o jornal. Não me lembro disso, mas a minha mãe dizia que era verdade. Eu era tão esperta que até tinha tratamento especial na escola. A "queridinha dos professores" era um dos nomes que os outros meninos me chamavam e que eu aprendi a odiar. Não tinha amigos, mas também não precisava, pois tinha a minha mãe. Todos os dias de escola eram passados à espera, à espera que a minha mãe viesse para me libertar daquela caixa de pão de metal. Foi ela que me ensinou todas as coisas importantes que havia para saber.
Vivíamos numa base militar perto de Manhattan, no Kansas. Grandes quadrados de relva, planos, ocupados por longos blocos de apartamentos cinzentos a perder de vista. Havia um baloiço no nosso quintal onde a minha mãe passava horas a empurrar-me em direcção ao céu. Às vezes punha-me a cantar canções ao vento e entravam-me pedacinhos das nuvens para a garganta, que eu engolia para os guardar bem guardados. ¦>.¦.¦
Vivíamos num apartamento minúsculo. As paredes nuas eram de um verde-claro desagradável, transformado à noite num ventre de veludo cor-de-rosa pelas lâmpadas coloridas da minha mãe. No centro da sala de estar, em cima da tijoleira de linóleo pintalgada de cinzento, estava um sofá de veludo vermelho com os estofos muito duros. Havia uma mesa numa ponta da sala e em cima dela um candeeiro com uma franja vermelha e um grande rádio preto. A antena do rádio estava enrolada em papel de alumínio para melhorar a recepção dos blues e do jazz que todas as noites vinham de um lugar tão distante que as músicas eram acompanhadas de interferências da estática. A minha mãe mantinha os estores fechados até abaixo "para que ninguém se metesse na nossa vida", dizia ela. A sala de estar dava para a cozinha onde havia uma toalha de plástico amarelo-forte com flores cor-de-rosa estendida em cima de uma mesa de jogo rodeada de três cadeiras desdobráveis prateadas. No centro do tecto branco estava suspensa uma simples lâmpada branca. Armários de metal branco cobriam uma parede e, por baixo, havia um lava-loiça duplo à moda antiga com um dos lados mais fundo do que o outro. A minha mãe dizia que costumava lavar-me na parte mais funda quando eu era tão pequenina que bastava uma mão para me segurar. Esta história dava-me sempre vontade de rir, pois eu não conseguia imaginar-me assim tão pequena. Às vezes queria ser suficientemente pequena para poder rastejar novamente para dentro da barriga dela, onde ela dizia que eu já tinha sido suficientemente pequena para caber. Não conseguia imaginar um lugar mais confortável para estar. O quarto era suficientemente grande para lá caberem a cama e a cómoda onde estavam guardadas todas as nossas roupas, cuidadosamente
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dobradas e colocadas entre bolas de cedro perfumadas. A casa de banho de azulejo branco tinha uma sanita onde corria água toda a noite e um lavatório que pingava, mas também uma banheira de porcelana branca, funda e macia, suficientemente grande para lá cabermos as duas na perfeição.
À noite comíamos directamente das latas aquecidas no micro-ondas enquanto ouvíamos música na rádio. No Verão ela dizia que estava demasiado quente para acender o fogão, no Inverno dizia que estava demasiado cansada para cozinhar. Em ocasiões especiais fazíamos piqueniques, escolhíamos latas de carne de conserva, tomates estufados, salada de fruta, sumo de maçã e carne de porco com feijão, para espalhar em bolachas de água e sal ou petiscar com palitos e empurrar com chá gelado de limão. A minha mãe não tinha jeito para cozinhar e isso nunca me fez falta, pois só conhecia aquele tipo de comida. Depois de jantar tomávamos banho juntas, ensaboando-nos uma à outra com uma esponja macia cor-de--rosa. Às vezes ela deixava-me tocar-lhe nos seios e então parecia-me que estava a segurar nuvens nas minhas mãos pequeninas. Pareciam fruta demasiado madura. Os mamilos eram círculos escuros que se transformavam em botões espessos quando eu os pressionava suavemente, o que me fazia sentir como uma ascensorista. Ajoelhava-me na água morna e cheia de espuma entre as suas pernas, deixando que a água que escorria através dos meus dedos pequeninos caísse nos seus seios e ficava a vê-la recostar-se na banheira de olhos fechados, com o cabelo emaranhado e coberto de vapor e a boca ligeiramente entreaberta como se estivesse a suster a respiração. Sentia-me tão perto dela como se a minha pele fosse a sua e fôssemos um único corpo moreno. Ela não parecia
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importar-se com a curiosidade dos meus dedos tocando e ensaboando todas as curvas e todos os mistérios do seu corpo. Não havia fronteiras nem lugares que eu não pudesse explorar. Depois do banho deitávamo-nos no sofá com os nossos pijamas brancos muito limpos, a ouvir rádio até adormecermos. Eu adorava dormir com a sua barriga quente encostada às minhas costas e o seu braço à volta da minha cintura. Às vezes ela segurava-me na mão enquanto dormíamos.
Aos fins de semana jogávamos ao Oceano. À hora de ir para a cama ela vestia-se com roupas lindas e ia dançar. Deixava-me sozinha com instruções para que ficasse no sofá, avisando-me de que, se de lá saísse, mesmo que fosse para ir à casa de banho, podia afogar-me no oceano. Deixava-me as torradas que tinham sobrado do pequeno-almoço, que eu partia aos pedacinhos para atirar aos tubarões das águas perigosas da minha ilha, para que eles não me trincassem os dedos enquanto dormia. Lembro-me de um candeeiro cor-de-rosa com uma lâmpada cor-de-rosa e do rádio a tocar baixinho. Algumas gotas de uísque e montes de ponche cor-de-rosa, que rodopiava numa taça de porcelana azul estalada, queimavam-me na garganta. Fui levada tão longe pela corrente que imaginei que era capaz de nadar. Os tubarões começaram a rodear-me enquanto as minhas pálpebras se fechavam e o horizonte do oceano começava a ficar turvo. O som das pequenas ondas embalava-me como se fossem braços, conduzindo-me para a parte mais profunda do meu sono. Normalmente começava a sonhar mal a minha mãe saía.
Pareço-me com a minha mãe. O meu cabelo está pintado de louro, os meus olhos são rasgados, como
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amêndoas, delineados com tinta preta. Os meus ¦'' lábios estão cobertos de beijos suaves, cor-de-rosa. Os seus cabelos. Os seus olhos. Os seus lábios. Até tenho os seios da minha mãe. Os seus mamilos carnudos, deliciosos. No meu sonho mais secreto, no meu sonho preferido, visto-me com as suas roupas, vestidos cor--de-rosa de tecidos brilhantes e cintura fina, e danço num círculo de luz. Danço até os meus pés se tornarem tão leves que começo a flutuar na pista de dança em direcção ao tecto repleto de estrelas cadentes, e depois saio a voar pela janela em direcção a outros oceanos.
Quando acordava, a minha mãe estava sempre em casa. Uma vez acordou-me a meio da noite a chorar. Contou-me que um amigo muito especial, um médico, ia ser destacado para fora e que, como não era sua mulher - ele já tinha uma -, ela não podia ir. Quando a minha mãe estava triste, eu ficava triste. As suas lágrimas eram as minhas lágrimas. Quando a minha mãe chorava parecia que o mundo inteiro chorava também.
De repente a minha mãe começou a mudar. Fiquei assustada e confusa. Quando saía da escola queria falar-lhe dos meus novos colegas da segunda classe: a menina coreana que tapava a cara com a mão e chorava em silêncio todo o dia; o cenourinha de olhos azuis do Arkansas, que falava como se tivesse a boca cheia de pedras; a menina de pele morena e olhos grandes chamada Meera, que tinha o cabelo todo feito de nuvens pretas que me deixava tocar no recreio, e cuja mãe era uma indiana da índia. Tinha uma amiga nova, livros novos
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e uma professora nova, mas a minha mãe já não se interessava por nada disso. Parecia uma sonâmbula a vaguear pelas nossas vidas. Cada vez mais tinha de ser eu a tratar de tudo. Ela deixava-me fazer tudo. À tarde era eu que nos levava a nós as duas para casa. Os seus movimentos tornaram-se mais lentos, caminhava como se tivesse uma bola de ferro presa aos tornozelos. Os seus olhos estavam sem vida e a sua voz parecia cansada. Às vezes nem falava comigo, limitando-se a murmurar a nossa palavra do dia enquanto eu lhe desapertava os sapatos e lhe massajava os dedos dos pés. Soltava as meias das ligas e enrolava-as cuidadosamente até caírem das suas pernas exaustas. Adormecia e eu enchia uma pequena panela azul com água quente e punha-lhe os pés de molho, massajando-os suavemente. Desabotoava-lhe o uniforme branco e pendurava-o no armário. A peruca que ela tinha começado a usar era escura e encaracolada. Tirava-lha da cabeça e punha--a no manequim. Pegava num pente, raspava-lhe a caspa do couro cabeludo e massajava-o com óleo de bergamota enquanto ela dormitava, perguntando-me porque é que o seu cabelo tinha começado a cair. Estava seco e já não era louro. E eu ficava a vê-la afundada no sofá com a combinação cor-de--rosa de cetim e os seios a subir e a descer. Enroscava-me no seu colo e alisava-lhe o cetim por cima do peito com ambas as mãos, pressionando os contornos do seu corpo dos ombros até à cintura vezes e vezes sem conta. Os seus olhos manti-nham-se fechados e a sua respiração era fraca e vazia. Às vezes a minha mãe dormia dias inteiros quando não tinha de ir trabalhar. Quando acordava, queria água. Água fria.
A minha mãe tinha uma resposta para tudo, até para as coisas que não sabia.
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- Onde está o meu pai? - perguntava-lhe à luz rosa indolente antes de adormecermos.
- No México, a pintar o céu de azul. - Ela pintava retratos com as palavras.
- É bonito? - perguntava eu, desejando secretamente saber mais.
- Muito bonito. Tens as mãos do teu pai - dizia-me ela, beijando cada um dos meus dedos.
A sua voz era sonhadora e as histórias que me contava acerca dele pareciam contos de fadas a entrar pela porta aberta dos meus sonhos. Lembrava-me delas ou sonhara-as? Ela só me falava dele nestes momentos entre o acordar e o sonhar.
Eu fechava os olhos para ouvir, procurando cada detalhe e preenchendo os espaços em branco com a imaginação.
- Como é que o conheceste? Conta-me tudo sobre ele - exigia. A minha mãe fechava os olhos e flutuava para fora do meu alcance. Atirava-me migalhas para eu mordiscar. E eu devorava as noites e os dias das suas memórias, engordando cada vez mais com todos esses tesouros. Os detalhes das suas histórias mudaram com o passar do tempo. A estação, a cidade, a catástrofe natural que tinha acontecido no dia em que se conheceram, a cor dos seus olhos.
- Eu era feliz - começava sempre. - Era muito feliz. Uma das lendas começava assim: - Era Primavera na
Califórnia. Uma leve brisa soprava do oceano. Tinha acabado de entrar ao serviço, quando ele entrou nas urgências. Estava a sangrar de um corte na cabeça. Caíra de uma escada. Tinha tinta azul-clara no rosto e nos braços. Pensei que tinha caído do céu, era tão belo, parecia um anjo. Os seus olhos eram tão negros que tive medo de ser hipnotizada por eles. Estava a
medir-lhe a tensão quando a sala começou a tremer. A terra abanou-me como se fosse uma criança nervosa e eu caí nos seus grandes braços azuis. A minha mente trabalhava tão depressa que conseguia ver através dele. Conseguia ver-te a ti. Sendo eu a terra e ele o céu, sabia que íamos ter um anjo. E tivemos. Quis chamar-te Angelita, aquela que caminha com os anjos, mas ele não concordou e por isso chamámos-te Mariah, o nome da sua mãe.
Outras vezes a história era diferente: - Era Inverno em Nova Iorque. No dia em que conheci o teu pai estava tanto frio que as minhas pestanas congelaram e ele derreteu o gelo com o seu calor.
Às vezes a sua memória dizia que se tinham conhecido durante um temporal numa praia das Caraíbas: - O teu pai estava no cimo de uma escada a primeira vez que o vi. Um vento forte atirou-o directamente para os meus braços. Quando nos conhecemos ele pintava o meu retrato todos os dias. Corpos cor-de-laranja com caras amarelas, braços roxos e cabelo vermelho. Bebia cerveja de framboesa e esfregava-me os pés com folhas de hortelã-pimenta. Quando conheci o teu pai, um vento forte batia-me nos cabelos, torcendo-me a mente como um furacão.
Nas histórias da minha mãe o meu pai era sempre belo e tinha sempre tinta azul no rosto e nos braços. Aprendi a amá-lo também.
Na escola, eu e os meus amigos, a Meera e o David, o menino de olhos azuis do Arkansas, brincávamos às guerras durante o recreio. Inventávamos guerras e lutas contra exércitos invisíveis de dragões e monstros marinhos. Quando acabava o
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recreio já a guerra tinha terminado e aquilo de que eu mais gostava era estarmos sempre todos do mesmo lado.
A bela letra azul da minha mãe foi substituída por letras de imprensa, incertas e escritas a lápis ou com lápis de cera vermelhos. As palavras nos pedaços de papel começaram a mudar. Vieja... lluvia... vévé... lagrimas... mohosas... Xis e Os. Uma vez encheu um pequeno quadrado de papel com Zês e Quês. Às vezes o papel ficava molhado com as suas lágrimas. A sua letra começou a ser difícil de ler. As linhas já não estavam separadas nem encurvadas, parecia que não tinham um destino para onde ir. Ela parecia nervosa e magoada, como se tivesse medo de tudo. Uma manha esqueceu-se até de me dar a palavra desse dia. Quando lhe chamei a atenção, tirou um pedaço de papel amarfanhado do bolso da bata. Mas os seus dedos tremiam e não conseguiam segurar no lápis que lhe dei. Por isso, pressionou o papel contra os lábios duas vezes e depois esmagou-o na minha mão. À hora do almoço, depois de ter comido a fatia de pão seco e a banana pisada que trazia na lancheira, desdobrei o papel que a minha mãe me tinha dado e pressionei-o contra os lábios. E, fechando os olhos, tentei sentir o calor dos seus beijos de papel.
Uma vez a minha mãe levou-me até ao hospital onde trabalhava. Esperei nas urgências. Uma das enfermeiras deu-me um chupa-chupa e perguntou-me se eu sabia alguma das novas danças.
- Não, mas sei cantar - respondi.
Pus-me em cima de uma cadeira e abri a boca. Não sei porque é que me saiu a Billie Holiday. God Bless the Child encheu o ar. A minha mãe cantava-a quando estava triste. As enfermeiras e alguns doentes aplaudiram quando acabei. O tal
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médico amigo da minha mãe estava lá e disse que parecia que eu tinha um anjo na garganta. Expliquei-lhe que guardava nuvens na garganta para que ficassem bem guardadas e ele disse que eu era igualzinha à minha mãe. Gostei dele apesar de saber que era ele que fazia a minha mãe chorar. Deixei que me beijasse, porque a minha mãe disse que não fazia mal. De perto tinha um cheiro doce, um cheiro a uma mulher que não era a minha mãe.
Foi em Abril que deixámos o Kansas. Tinha a certeza de que ia ter saudades dos carros de gelados no armazém de abastecimento do exército, de me balouçar até ao céu e dos meus amigos, a Meera e o David, mas tinha esperança de que aquilo de que sentia mais falta acabasse por voltar - o riso da minha mãe. No dia em que partimos, a minha mãe foi buscar--me à escola logo a seguir ao almoço. Tinha um lenço tigrado apertado por debaixo do queixo e os seus olhos estavam escondidos atrás de uns óculos escuros enormes. Trazia um vestido azul-marinho de manga cava que lhe realçava as formas. Botões brancos em forma de pequenos barcos navegavam desde o cimo do vestido até abaixo do joelho. O vestido era tão apertado que quando ela respirava eu conseguia ver pedaços da combinação cor-de-rosa a aparecer entre os botões. Trazia umas meias escuras com malhas caídas e os sapatos eram de salto alto e já usados. Numa mão segurava uma mala verde, a camisola vermelha e a carteira de imitação de crocodilo e na outra a minha mão. Íamos apanhar o comboio para a Geórgia. E então meteu cinco beijos no meu bolso.
Prédios, portões e passeios passavam por nós. Só olhei
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uma vez para trás, quando saía da base num enorme autocarro azul. Acenei aos meus amigos como se eles pudessem ver-me. A enorme bandeira à qual jurávamos fidelidade esvoaçava a meia haste na imensidão azul do céu. Vi dois soldados fazerem continência um ao outro em frente à biblioteca. Este seria um dia perfeito se não fosse o facto de estar de partida. A minha mãe disse que tinha morrido uma pessoa importante. Chorava tanto que até pensei que ela conhecia esse tal Martin Luther King Jr. pessoalmente.
- Mamã, porque estamos a ir embora? - perguntei enquanto embarcávamos no comboio.
- Não estamos a ir embora, estamos a ir para outro lugar - respondeu ela tristemente.
- Mas porquê, Mamã? - choraminguei.
- Porque gosto de viajar - disse ao fim de um longo silêncio.
A minha mãe deixou-me sentar à janela. Pequenas povoações e grandes cidades passavam à nossa frente. Vi uma tabuleta que dizia: está a sair do kansas, o estado dos girassóis. Uma estação, depois outra. Bebés choravam e jornais eram abertos e fechados. O ritmo do comboio embalou-me até adormecer e acordar novamente. O cobrador, alto e ossudo, com cabelos cor de vassoura que lhe saíam do chapéu cinzento como se fossem palitos, sorriu para a minha mãe, exibindo os dentes podres, e piscou-lhe o olho. A minha mãe deu-lhe o bilhete sem se dignar sequer erguer os olhos. As pessoas entravam e saíam do comboio. As que estavam do lado de fora da minha janela despediam-se e cumprimentavam-se. A cara macia e morena do novo cobrador aproximou-se e disse baixinho à minha mãe que já tínhamos entrado no Mississippi.
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Tivemos de mudar de lugar duas vezes. A minha mãe disse que a vista era melhor, mas não gostei de ir sentada de costas nem perto da casa de banho. Eu só me perguntava quem é que estaria à nossa espera no final desta viagem. Continuei a olhar pela janela até só conseguir ver-me a mim própria e ao reflexo da minha mãe bebendo delicadamente o conteúdo de um frasco de medicamentos que trazia na carteira
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II

A minha mãe acordou-me quando o comboio entrou na Geórgia. BEM-VINDO AO ESTADO DA GEÓRGIA. Árvores verdes enormes e terra vermelha. Montes de metal enferrujado sepultado em terrenos sem demarcação. Máquinas de Coca--Cola metidas nos alpendres de pequenas casas de madeira com aspecto de estarem prestes a ruir. A minha mãe parecia assustada. Começou a falar como se quisesse convencer-me de alguma coisa. Deixava espaços em branco para que eu pudesse fazer perguntas, como se eu soubesse o suficiente para fazer as perguntas certas. O seu tom de voz mudou. Estava diferente, parecia quase uma menina. Parecia acreditar em metade das coisas que me dizia. Ofereceu-me as suas palavras como se fossem um doce veneno.
- Vou levar-te a visitar as tuas tias-avós. A tia Faith e a tia Merleen. Porta-te bem. Porta-te bem, ouviste? Obedece--lhes.
Molhou a ponta do dedo indicador e penteou-me as sobrancelhas com ele.
- São severas, mas são boas pessoas. Quando eu era pequena costumava ficar com elas. Gostam de ter tudo muito limpo.
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Semicerrei os olhos enquanto ela me tirava os restos do sono dos cantos dos olhos.
- Eu ficava com as tias quando a minha mãe tinha de trabalhar ao sábado à noite e às vezes quando ia para a Flórida apanhar fruta. Chegava a passar o Verão todo lá. Elas eram boazinhas. São umas senhoras... e sabem cozinhar - calou--se e olhou para a janela como se estivesse a recordar e a ver toda a bondade das tias. Os seus olhos tinham fome - se calhar estava à espera de um prato repleto de coisas boas.
- Talvez te ensinem a fazer um bolo de veludo vermelho ou até mesmo sangria. Já não bebo sangria desde... já nem me lembro. Elas sabem realmente cozinhar. Ah, e a tia Faith toca piano. Talvez te ensine. Ela só toca música clássica e religiosa.
A voz rouca da minha mãe sussurrava trechos de uma música, Os problemas do mundo podem fazer-nos chorar... Um dia a vida será mais doce... A sua voz desvanecia-se num murmúrio. Mesmo quando já não conseguia ouvi-la ainda podia ver a música a percorrer o seu corpo.
- Elas têm uma bela casa. Vão tratar-te muito bem. Vais ver. Vão tratar-te bem - dizia a minha mãe, enquanto pegava nas minhas mãos e as encostava ao rosto. E eu perguntava-me porque é que elas teriam de me tratar bem.
- Porque choras, Mamã? - Tive medo e, com as mãos, tentei limpar as lágrimas que lhe corriam pelo rosto e pelo pescoço.
- Estou feliz. Estamos quase a chegar a casa - disse ela, voltando a colocar delicadamente as minhas mãos no meu colo. Calou-se. O seu rosto não parecia feliz; lançou um olhar frio para a paisagem que passava lá fora.
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Gradualmente passavam por nós pequenas casas tão próximas umas das outras que pareciam estar a escutar-se. O comboio entrava na cidade onde a minha mãe tinha crescido. A estação não era mais do que uma plataforma erguida ao lado da estrada. Não havia ninguém à nossa espera. A minha mãe aproximou-se de um táxi amarelo e perguntou ao motorista se nos dava boleia. O homem disse alguma coisa à minha mãe que a fez afastar-se como se tivesse sido mordida por uma cobra. A minha mãe chamou-lhe "branco estúpido". Estava furiosa, mas recusava-se a dizer porquê. Outra mulher de cabelos longos ruivos e belos dentes brancos entrou no táxi e o carro arrancou, deixando para trás uma nuvem de pó. A minha mãe tirou o sapato de salto alto e atirou-o em direcção ao táxi. Depois sentou-se no passeio e começou a chorar.
- Não faz mal, Mamã. Podemos apanhar outro comboio e ir para outro sítio qualquer - disse eu, sentando-me ao seu lado.
- Não querida, chegámos ao fim da linha - disse ela a choramingar, enquanto coxeava em busca do outro sapato.
A minha mãe deu-me a mão e seguimos os trilhos durante muito tempo até começarmos a ver pessoas. Caras simpáticas, sorrisos, todos nos acenavam e alguns até diziam "Bom-.-dia". Perguntei à minha mãe se conhecia todas aquelas pessoas e ela disse-me "Não, as pessoas do Sul são assim mesmo, amistosas". Comecei também a acenar e a dar os bons--dias a pessoas que nem sequer conhecia. Passámos por uma escola de tijolo vermelho com uma bandeira a esvoaçar, uma mercearia, uma loja de bebidas e umas casas compridas de madeira que a minha mãe dizia serem casas com uma arquitectura tipicamente sulista. Finalmente chegámos ao nosso
27destino. A minha mãe parou para olhar para a casa grande e branca que tínhamos à nossa frente, cuspiu no lenço e limpou-me o rosto. Penteou-me o cabelo preto com a mão. Quando se deu por satisfeita, compôs o lenço de pescoço e entrou pelo enorme portão preto.
Quando nos aproximámos da parede de tijolo muito limpa e ornamentada com flores, vimos as cortinas de renda serem afastadas da janela e voltarem ao seu lugar. A minha mãe subiu rapidamente os degraus arrastando-me com ela.
- Tia Faith, tia Merleen, esta é a minha menina, a Mariah. Tem sete anos e já canta como um anjo - anunciou a minha mãe, enquanto se aproximava da porta fechada. - Canta, minha querida - disse-me ela.
A minha mãe apertava-me a mão com ansiedade. Doía--me um bocado, mas não me queixei. Mantive os olhos baixos, presos às pintas de pó nos sapatos da minha mãe. Senti um frio no estômago. Antes de ter tempo de abrir a boca ouvi a porta a abrir-se, ergui os olhos e vi duas senhoras de idade a olharem para nós.
A tia Merleen olhou para mim através da rede como se eu fosse um presunto estragado e depois deu meia volta e entrou em casa. A outra, a tia Faith, parecia ter medo de nos deixar atravessar a soleira da porta da casa grande e branca com grandes janelas fechadas e um alpendre com o tecto pintado de azul-mar.
- Já não te víamos há algum tempo, Coral - disse acusadora a mulher doce e gorducha.
- Foste visitar a tua mãe? - inquiriu de dentro da escuridão a mulher alta e tempestuosa. <
- Ainda não - respondeu a Minha mãe timidamente.
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Abateu-se sobre nós um pesado silêncio. A minha mãe batia no pescoço com as pontas do lenço e brincava com o meu colarinho. E aí estávamos nós a passar o peso de um pé para o outro, à espera de um sinal de boas-vindas.
- Está mesmo quente - disse finalmente a minha mãe. A tia Faith disse algo para a mulher alta que estava atrás
dela e, relutantemente, abriu a porta. Lá dentro estava escuro e fresco. Agarrei-me ao vestido da minha mãe como costumava fazer no meio da multidão para não me perder dela. Seguimos a tia Faith até uma sala grande com pesados cortinados nas janelas. Sentámo-nos num sofá de costas altas, bastante desconfortável, coberto com um tecido de lã que picava, enquanto a tia Faith se sentou à nossa frente numa cadeira a condizer.
- Preciso de falar consigo, tia Faith. Estou em apuros.
A tia Merleen entrou na sala e parou ao lado do grande piano preto.
- Parece que estás sempre metida em apuros, Coral. Não saíste daqui debaixo de uma nuvem negra? - disse a tia Merleen, enchendo a sala com a sua voz dura.
Sentei-me no colo da minha mãe e tentei desabotoar-lhe o vestido para encontrar algum conforto nas suas almofadas de suavidade, mas ela afastou-me.
- A pequena parece grande de mais para isso - disse a voz dura que me toldava os ouvidos.
Senti vergonha pela primeira vez ao sentir-me examinada por elas. Comecei a diminuir até ficar do tamanho de um bebé que podia caber na palma da mão da minha mãe. A minha mãe pousou as minhas mãos no colo dela e pôs o botão na casa errada. Depois tirou o lenço e deu-mo, e, segurando-me
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o rosto entre as mãos, beijou-me os lábios. Apertou-me contra ela, levantou-se
e afastou-se de mim, olhando-me como se estivesse a tentar tirar-me um retrato. Os seus olhos estavam tristes e molhados. Começou a chorar alto e saiu da sala com a mão da tia Faith no seu ombro. Eu e a tia Merleen ficámos a olhar fixamente uma para a outra até que eu desisti e comecei a procurar padrões no tapete, contando as flores do rebordo por debaixo dos meus pés.
- Sabes falar? - gritou ela como se eu fosse surda.
- Sim - sussurrei.
- Sim, o quê?
- Sim, sei falar - respondi atrevendo-me a olhar para o seu rosto duro e enrugado, os olhos claros, o nariz grande e achatado, e a boca pequena e
fina.
- Sim, senhora. A tua mãe não te ensinou a ter maneiras ? - perguntou em tom de acusação.
Tornei a voltar os olhos para o labirinto de flores que desabrochavam na carpete por debaixo dos meus pés. Tentei pensar em palavras para defender a minha mãe. Pressionei as mãos contra o meu próprio centro e tentei tirar a dor do estômago. Subitamente ouvi a porta bater e o som dos saltos da minha mãe a bater nos degraus da entrada. Escorreguei do sofá, arranhando as palmas das mãos na aspereza do tecido, e corri para a porta. Mas estava fechada, fechada à chave. A mala verde era tudo o que restava da minha mãe.
- Onde está a Mamã ? - perguntei à porta fechasda, sentindo o pânico crescer-me no peito
- Teve que sair. Mas volta. Quis que ficasses connosco durante algum tempo. E nós também queremos que fiques - sussurrou-me a tia Faith atrás das costas. A sua voz era a única
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que eu ouvia. Queria chorar, mas não chorei. Voltei a sentar--me no sofá e fingi que eu e a minha mãe estávamos a brincar ao Oceano.

O meu pai está no México a pintar o céu de azul, mas eu estou perdida numa floresta de árvores escuras. Árvores tão altas e escuras que não deixam ver o céu. As árvores começam a cantar-me cantigas em espanhol. E eu também canto mesmo sem saber a letra. Vejo uma luz e encaminho-me para ela. Depois de ter andado tanto tempo que até pareciam dias, vou ter a um sítio onde estão sentadas duas bruxas à volta de uma fogueira. Elas dizem-me que estavam à minha espera e que me vão cortar em pedacinhos para fazerem uma sopa para dar de comer às suas crianças mortas. Uma das bruxas segura-me pelos braços enquanto a outra me arranca os olhos. Grito, mas não sai nenhum som da minha boca.

Quando caí do sofá dei por mim a afogar-me num oceano de flores vermelhas.

Enquanto esperava que a minha mãe voltasse, fingia que as minhas tias queriam que eu vivesse com elas. Fingia ter outro lugar para onde ir, mas não tinha. Fingia que todas nós tínhamos poder de escolha. Não queria segui-las pelas escadas alcatifadas acima e depois pelo corredor fora até ao quarto que elas me tinham dito ser da minha mãe. Mas segui-as, a arrastar os pés. Era um quarto bonito. A janela estava emoldurada por
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cortinas floridas bem engomadas e a cama de ferro, coberta com uma colcha de cores alegres, tinha um colchão tão alto que eu tive de trepar para cima dela. Aos pés da cama havia uma pequena cómoda branca com um espelho redondo pendurado por cima, inclinado de tal forma que eu conseguia ver a cama vazia atrás de mim. Sabia que ia sentir-me muito só naquela cama, mas não podia saber como as almofadas iriam suportar as minhas lágrimas, murros e dentadas ao longo dos anos que estavam para vir. A secretária e a mesinha de cabeceira estavam cobertas por rendas finas semelhantes aos panos que se põem nos altares. Tudo muito limpo, branco e sem quaisquer objectos pessoais. As minhas tias falavam comigo e diziam-me coisas que eu nem sequer tentava lembrar, pois não contava ficar lá muito mais tempo. Amarfanhei na mão o lenço da minha mãe e esfreguei-o contra a parte de dentro do braço como se fosse uma pomada. Tinha calor, fome e comichão nos braços. Não vi a mala da minha mãe, mas as roupas que tínhamos posto nela estavam dobradas cuidadosamente numa arca por baixo da janela. O meu livro de versos estava pousado numa pequena pilha, e eu olhei para ele repetindo cada um dos versos que sabia de cor.
- Queres comer alguma coisa? - perguntou a mais alta. Mordi os lábios para não chorar. Estava vazia por dentro.
- Há comida no forno. Anda comigo lá abaixo - disse a tia Faith, enquanto me pegava na mão e me levava até à cozinha.
Lavei as mãos no lava-loiça. Ela pôs uma coxa de frango aquecida e uma bolacha num lindo prato cor-de-rosa à minha frente. À esquerda do prato estava um guardanapo de papel dobrado em triângulo onde estava pousado um lustroso garfo
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de prata. À direita, um pequeno copo de leite e uma faca. As duas mulheres sentaram-se à mesa a ver-me pegar no pedaço de carne com as duas mãos. Quando eu estava quase a dar uma dentada, a tia Merleen disse:
- Não rezas antes de comer?
Pousei o frango no pequeno prato cor-de-rosa e vi-as fechar os olhos e rezar pela comida que iam receber. Esperei que começassem a comer antes de pegar no garfo. Comi devagar e cuidadosamente, observando-as a observarem-me. Foi a melhor e a pior refeição que alguma vez comi. O melhor paladar, mas, sem a minha mãe, o sabor não tinha a menor importância.
- Quando acabares põe os ossos num daqueles sacos de plástico. Lava os pratos e deixa-os a escorrer que eu depois trato do resto - disse a tia Faith, afastando-se da mesa pesadamente.
- Ela deixou ficar isto para ti - disse a mais alta pousando um pequeno sobrescrito ao lado do meu prato. Uma carta da minha mãe. O meu nome estava escrito no sobrescrito com a sua letra. As tias deixaram-me sozinha. Podia ouvi--las a bichanar na outra sala, mas mantive os olhos pregados na carta. Não consegui comer a bolacha, pois só pensava na minha mãe e desejava que ela voltasse depressa.
A nossa rotina alterou-se um pouco nessa primeira Primavera e Verão. Às cinco da manhã a tia Merleen começava a tossir; depois os seus pés pesados batiam no chão de madeira como se fossem um trovão. Alguns minutos mais tarde ouvia-a pôr a água a correr para o banho e depois a sua voz grave a
cantar blues. Os chinelos de flanela da tia Faith sussurravam junto à minha porta e pelas escadas abaixo. A chaleira apitava como um comboio. Duas pancadas fortes na minha porta, truz truz. A tia Merleen berrava pelas escadas acima para eu me "alçar" da cama. Papas de aveia. Bolachas de manteiga. Café preto bem forte para elas, e para cada uma de nós um pequeno copo de sumo de cenoura, um dente de alho e meia dúzia de vitaminas coloridas. A tia Faith acreditava no poder das vitaminas e das ervas para curar todos os males reais e imaginários. Será que ela pensava que as ervas iam curar-me das lembranças e pesadelos? Lavava-me todas as manhãs, sentindo falta das mãos da minha mãe a acariciarem-me todas as partes do corpo com um pano ensaboado e a deitarem-me água quente pelos ombros na pequena bacia na cozinha. A minha mãe estava sempre comigo, a sussurrar, a tocar-me, a contar--me coisas. Não passava um só dia sem que eu contasse vê-la entrar no quarto como se nunca tivesse partido.
A tia Merleen acreditava que mãos preguiçosas eram o instrumento do diabo e mantinha-me ocupada com a jardinagem. De início sentava-me no alpendre das traseiras a vê-la espalhar estrume e deitar sementes à terra. Usava umas jardineiras e botas de borracha. Às vezes chamava-me para lhe levar alguma ferramenta, um pacote de sementes ou um copo de água que a tia Faith deixara no alpendre.
- Enterra o dedo o mais fundo que puderes - dizia-me ela apontando para um monte de terra.
Eu olhava-a como se ela tivesse duas cabeças.
- Já te disse para vires aqui plantar alguma coisa. Escolhe alguma coisa para depois a veres crescer - dizia ela, falando como se eu fosse um cão assustado.
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Hesitei e escolhi finalmente um pacote com belos tomates vermelhos na fotografia. Todas as manhãs esperava que crescessem.
- Podes regá-los, mas não podes obrigá-los a crescer - dizia a tia Merleen para si própria. - Tens de cuidar deles.
Em segredo, plantei palavras escritas em pequenos pedacinhos de papel. Cuidava delas, falava com elas e esperava que palavras como amor e cor-de-rosa, música e Mamã crescessem entre as fiadas de vegetais. No primeiro Verão que passei com as minhas tias o jardim ficou inundado durante uma semana com chuva constante. Tinha esperança de que as minhas palavras tivessem criado raízes, mas apercebi-me de que tinha de começar tudo outra vez. Ouvimos dizer que tinha chovido tanto que havia caixões a boiar na rua principal. Estaria a chover no sítio onde a minha mãe estava?
Almoçávamos ao meio-dia. Vegetais da horta, pão de milho e carne estufada ou cozida. Elas começaram a notar que a minha roupa estava a ficar pequena. A tia Faith costurou vestidos de Verão muito simples. Depois do almoço dormíamos a sesta. Eu tinha lições de piano, coisa que detestava, no grande piano preto. A tia Faith adorava música clássica e estava determinada a fazer com que eu também gostasse. Era tão diferente dos blues e do jazz envolvidos em luzes cor-de-rosa suaves a que eu estava habituada... Comecei a fazer a minha própria música. Quando via a cor azul dava voz aos gemidos guturais que evocavam o espírito de Billie Holiday. Havia um pequeno televisor a preto e branco numa mesa ao canto da sala. O televisor só era utilizado para ver o noticiário das seis com Walter Cronkite, para ver pessoas de cor como Aretha Franklin e Sammy Davis Jr. a cantar e dançar, ou para ver
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homens a andar na lua, ou, como julgava a tia Merleen, "a andar no deserto nos arredores de Las Vegas"
- Acredito tanto que Deus pôs um homem na lua como que a tenha feito de queijo - disse ela na noite do grande acontecimento. A maior parte das vezes o televisor encontrava-se silencioso por baixo de um véu de renda florida.
Depois do jantar a tia Merleen lia em voz alta algo saído do Readers Digest ou do catálogo das sementes. Elas encomendavam flores exóticas e vegetais gigantes para o jardim e revistas familiares para cultivarem a mente. QUando tinha os olhos cansados, a tia Merleen mandava-me ler Eu não me importava muito, pois as palavras e a leitura faziam-me lembrar a minha mãe. Quando podia escolher, lia o livro de versos que a minha mãe me deixou, mas geralmente obrigavam-me a ler poemas enormes, retirados de livros fininhos com capa de couro escritos por homens e mulheres que elas diziam ser de cor como nós. Claude McKay, Langston Hughes, Gwendolyn Brooks e Geórgia Douglas. Não havia fotografias destes poetas, mas pelas suas palavras podia ver que eram como eu Escreviam acerca dos blues, da solidão, do amor da amargura da dor e de serem de cor. Às vezes roubava Um dos livros dormia com ele debaixo da almofada para poder ter Sonhos especiais. Às vezes rasgava páginas desses livros e comia os poemas, palavra por palavra, para os manter dentro de mim.
Às oito horas a casa grande e branca estava a dormir. As suas janelas longas e azuis estavam fechadas, as suas carpetes floridas livres de pegadas. Ouvia música soul, essa música da alma, com o rádio cor-de-rosa encostado ao ouvido até mergulhar na escuridão dos sonhos. Perseguida por espíritos sem rosto, perdida, sozinha dentro de árvores ocas. Acordava a chorar
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pela minha mãe e o meu coração lembrava-se de que ela não estava ali. Deitada na escuridão tentava lembrar-me de todas as palavras que a minha mãe me tinha dado até adormecer novamente. .. verde... coração... dança... círculos... Ia luna...
No primeiro domingo a tia Faith entra no meu quarto com um vestido amarelo nos braços.
- Esta manhã vamos à missa. Despacha-te e veste-te.
Pousa o vestido na cama e desaparece no corredor. Sento-me na cama a olhar para ele. Toco-lhe, é tão macio e tão leve. A minha mãe costumava levar-me ao quartel para escolher as minhas roupas. Escolhia geralmente uniformes que me faziam parecer um soldado. Bombazina bege, lã escura e camisolas caqui. Sempre vesti o que quis. Cheirei o vestido. Tinha o cheiro da tia Faith, velho e doce. Estou sentada na cama a olhar para o vestido, quando a tia Faith volta a entrar no quarto.
- Ó menina, o vestido não vai saltar da cama e vestir-se sozinho. Hoje vamos à igreja.
- Nós não costumamos ir à igreja - disse eu, voltando a enfiar-me nos cobertores.
- Nesta casa vamos à igreja. Vá, toca a vestir o vestido e vamos embora - diz ela, colocando a mão na anca.
Não me mexo. - Não gostas do vestido?- A voz dela eleva-se, expectante. - É tão bonito!
- Não uso vestidos desses - digo eu, levando os joelhos ao peito e enterrando os pés no colchão.
- Todas as meninas vestem vestidos quando vão à igreja ao domingo.
- Como é o nome dela? - pergunto, tocando nos folhos do vestido.
- O nome dela?
A tia Faith senta-se aos pés da cama virada para mim. Começam a aparecer pequenas contas de suor por cima do seu lábio, que depois lhe descem pela face rechonchuda.
- A menina que costumava usar este vestido.
Levanto a bainha do vestido como se uma menina pequenina pudesse estar ainda dentro dele. O tecido produz um som semelhante a dois discos a roçarem um no outro.
- O nome dela era Grace, acho eu. A nossa vizinha, a Mrs; Williams, trabalha para a família dela. Ela cresceu e o vestido deixou de lhe servir, mas penso que te vai assentar como uma luva. A Mrs. Williams mandou-te uma caixa grande cheia de roupa, alguns livros e outras coisas. Podes ver o resto das coisas quando voltarmos da igreja.
A tia Faith pega no vestido e encosta-mo ao corpo.
- Vamos lá ver como te fica.
- Ela morreu? - pergunto.
No hospital onde a minha mãe trabalhava havia uma caixa com roupas de crianças mortas. Ela disse-me para nunca usar roupa de pessoas mortas, pois podia ter pesadelos ou ser perseguida pelo espírito dessa pessoa se ela me visse com as suas roupas vestidas. Tinha de ter a certeza absoluta.
- Não. Ela cresceu e as roupas já não lhe servem. Mas não morreu - diz a tia Faith, ainda com o vestido na mão. Mas eu não estou convencida.
A impaciência da tia Merleen enche a entrada da porta. Vamos chegar atrasadas por causa dela. Se não quiser vir que fique.
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- Não podemos deixá-la aqui sozinha - diz a tia Faith, tentando erguer o seu peso da cama.
A tia Merleen aproxima-se de mim enquanto enrola o belo cabelo preto.
- Veste já esse vestido - grita.
Fico tão surpreendida que caio da cama. Não me magoo, mas coxeio um pouco e a tia Faith aproxima-se para me confortar.
- Não quero chegar atrasada à missa - diz a tia Merleen, saindo do quarto.
De repente receio que elas sejam as bruxas do meu pesadelo. Tenho medo que façam de mim uma sopa e a minha mãe nunca mais me encontre. Depois de me lavar, visto o vestido, rezando para que nenhum espírito me reconheça no seu vestido amarelo.
Quando a tia Faith me escova o cabelo com demasiada força, começo a chorar mas não digo nada. Gravo na memória todas as palavras duras que elas me dirigem, todas as malda-des que me fazem, para poder contar tudo à minha mãe quando ela voltar.
Sento-me no banco traseiro do grande carro azul. Os assentos cobertos de plástico colam-se às minhas pernas que ficam penduradas. Olho para o céu pela janela. A tia Merleen conduz como se a polícia estivesse a persegui-la. A tia Faith deixa escapar um pequeno grunhido sempre que passamos um sinal vermelho. A tia Merleen entra bruscamente no parque de gravilha da igreja, a primeira Igreja Baptista da Macedónia, um edifício simples de tijolo, ladeado de árvores e com a auto--estrada do outro lado. Grito quando caio do assento ao chão.
- Estás bem, querida? - pergunta a tia Faith.
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Digo que sim, mas sei que atia Merleen fez de propósito. / - Talvez a tia Faith te ensine a conduzir quando ela própríâ aprender - diz a tia Merleen A tia Faith endireita o chapéu, fingindo não ter ouvido o comentário, antes de entrarmos pela porta dupla da igreja levando-me pela mão. Parecem não se dar conta de que não vou ficar com elas tempo suficiente para me poderem ensinar muitas coisas
Nunca tinha visto o interior de uma igreja Os meus olhos fotografam este novo lugar. Entramos numa sala pequena e escura com uma fonte de água à direita e uma janela à esquerda, onde a tia Faith pára para pagar os seus deveres religiosos. Ficamos à espera em frente a outro par de portas duplas Ouço o sussurrar de preces abafadas. De repente ouço cânticos que parecem brotar de um lugar profundo, rico e fértil, e música tão alegre que me apetece dançar. A musica puxa por mim. os cânticos agarram-me pelos braços e abanam-me. Começo a mexer os pés e as ancas até a tia Merleen me agarrar pela gola de folhos e me dizer ao ouvido: _ Aqui não te quero ver a meter o dedo no nariz. - Sinto o Coração a bater nos ouvidos quando dois pares de mãos calçadas com luvas brancas abrem as portas para nos deixarem entrar. Um homem de fato e uma mulher de uniforme branco como o da minha mãe sorriem para mim. Todas as pessoas se levantam. As minhas pernas nervosas seguem a passadeira vermelho-sangue até ao fundo da igreja, caminhamos entre duas filas de bancos de madeira repletos de mulheres mais velhas, Atadas, perfumadas e bem vestidas, com chapéus elaborados e raparigas com o cabelo desfrisado a embalarem bebés que choram. Os poucos homens estão junto à parede, de pé, Com uma mão enluvada de branco sobre o peito ou sentado num sítio que mais tarde
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vim a saber ser o cantinho dos beatos, na parte da frente da igreja à direita. O canto dos beatos da esquerda estava cheio com as mães da igreja - mulheres já velhas com lenços brancos na cabeça. A partir desse dia sentamo-nos sempre na terceira fila a contar da frente. No Domingo de Páscoa ou no Dia da Mãe a igreja está tão cheia que tenho de me sentar no colo da tia Faith. O meu primeiro domingo na igreja não é desagradável. Entretenho-me a ver a luz entrar pelos vitrais das janelas e brilhar incandescente até à passadeira vermelho-sangue.
A música é bonita e quando o pregador se alonga, adormeço e babo o vestido da tia Faith até acordar com o barulho de alguém que transborda de felicidade. Uma das mães da igreja está tomada pelo espírito. Com os olhos fechados, a velha senhora salta do seu lugar para dar testemunho, dizendo; ámen sem parar.
- O que é que aquela senhora tem? - pergunto baixinho à tia Faith.
- A irmã Rose está feliz. Ela grita para que Deus a ouça - responde a tia Faith a sussurrar, batendo-me na mão como para me acalmar. Todos os domingos a mãe da igreja recebe o espírito juntamente com outras senhoras. Se alguma delas desmaia, uma ajudante vestida de branco chega-lhe um frasquinho de sais ao nariz e os homens ajudam-na a ir para uma sala nas traseiras da igreja onde é abanada até estar livre do espírito. Um domingo também eu decido gritar. Grito simplesmente a Deus pela coisa que mais quero: "Mamã. Mamã. Mamã. Ámen". Depois sento-me e volto a adormecer.
Depois do serviço religioso é oferecida a mão direita da amizade. Toda a gente cumprimenta toda a gente enquanto sai da igreja. Mulheres jovens beliscam-me as bochechas e
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dizem-me que sou amorosa. As mais velhas soltam Ohs e Ahs, tocando-me na cabeça e sussurrando palavras como vergonha e pena. Sento-me à sombra de uma árvore de ramos grossos a observar as senhoras que olham para mim e abanam a cabeça em resposta ao que quer que seja que a tia Merleen está a dizer-lhes debaixo da árvore do parque de estacionamento. Uma rapariga mais velha do que eu, com um vestido verde-escuro grande de mais para ela, aproxima-se do lugar onde estou a remexer a terra com um pauzinho. Os seus caracóis curtos e brilhantes emolduram-lhe o rosto como uma coroa. Sorri e um dente de ouro brilha do lado esquerdo da boca. Parece demasiado feliz para guardar esse sentimento só para ela.
- Tens uns olhos muito bonitos. Aposto que também tens um sorriso muito bonito - diz ela, sentando-se ao meu lado na raiz grossa da árvore. - Chamo-me Joanne. Queres vir comigo à loja dos doces?
Os seus grandes olhos redondos são de uma cor de caramelo estranha e as suas pestanas são espessas e longas. Gosto do cheiro dela, o cheiro da flor com que as abelhas sonham quando se lhes acaba o mel. Sem esperar pela resposta, agar- • ra-me na mão e levantamo-nos juntas. Quem dera que ela fosse a minha mãe e eu pudesse ir para casa com ela.
- A tua tia disse que não havia problema se viesses comigo. Não é longe, - Ela fala com a mesma voz da minha mãe quando entrámos na Geórgia, doce e infantil, com um modo de falar que lhe amacia as palavras na boca, que as torna estranhas, mas calmantes. Olho para o sítio onde as minhas tias estão a falar e a tia Merleen acena-nos. Viro-me e sigo a Joanne pelo caminho de terra até às traseiras de uma casa de madeira a alguns metros da igreja. A Joanne fala e eu ouço.
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Diz-me que mora ao fundo da minha rua com a mãe, que fuma demasiado, e com a avó, que escreve cartas às pessoas mortas, vê televisão o dia todo e insulta o carteiro quando só lhe traz contas para pagar. - Eu tenho um namorado, mas a minha mãe é tão severa que só me deixa vê-lo na igreja. O Henry não é do tipo religioso - diz ela, rindo.
A Joanne bate duas vezes na porta velha. Aproxima-se um homem numa cadeira de rodas. Tem a cabeça e as bochechas cheias de cabelos brancos. Sobre as suas calças verdes e largueironas da tropa está pousada uma grande caixa de madeira cheia de diferentes tipos de doces.
- Boa tarde - diz Joanne. - Dois de coco, por favor.
O Homem dos Doces dá a Joanne duas barras de coco às riscas vermelhas, brancas e amarelas. Ela paga-lhe com uma nota de um dólar novinha em folha. Sem uma palavra tira o troco do bolso do peito da T-shirt do homem, branca e suja.
- Obrigada e fique com Deus - diz Joanne, enquanto descemos cuidadosamente os degraus. - Ele não fala. Foi ferido na guerra ou coisa parecida. Uma vez tentei entrevistá--lo para um projecto da escola, mas ele nunca fala nada. Mas aceita o nosso dinheiro.
Caminhamos lentamente em direcção ao parque de estacionamento onde a tia Merleen e a tia Faith estão sentadas no carro à nossa espera. Antes de chegarmos junto delas, a Joanne pára e olha para mim com muita afabilidade.
- Sabes dançar? - pergunta-me. Digo que não com a cabeça.
- Não fiques triste - diz ela, enfiando os dentes na barra de coco. - Se parares de fazer essa cara vou perguntar às tuas tias se podes ir a minha casa e eu ensino-te.
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- Obrigada - digo eu, engolindo o rebuçado pegajoso. Estou-lhe grata pela amabilidade e certa de que vai salvar-me das minhas tias, mas nunca mais torno a vê-la. A tia Faith diz que ela fugiu para ir viver com o namorado, um soldado aquartelado algures na Flórida. Começo a aperceber-me de que nada dura para sempre, nem mesmo a esperança.
Todos os domingos depois da missa vamos visitar a minha avó ao Ressurrection Rest Home. Um cheiro forte a amoníaco inunda o corredor comprido e luminoso ladeado de idosos amarrados a cadeiras de rodas. A avó Gert chora quando nos vê. Mas a sua dor é breve.
- O que é que me trouxeram? - Os dedos finos e secos da minha avó percorrem o prato de comida como se fossem garras. Ela torce o nariz largo como se já soubesse. - Espero que não tenham voltado a trazer aquele pão que sabe mais a cinza do que a milho. Quero sopa de rabo de boi como a minha mãe costumava fazer. Rabos com muita carne num molho espesso e o arroz à parte.
Retira a folha de alumínio e, assim que a desilusão se confirma, empurra o prato para o lado e cruza as mãos sobre o colo.
- Aquela manta que vocês me deram, dei-a a uma senhora do fundo do corredor. Os vossos pontos ainda são irregulares e arranham. A lã foleira que usam faz-me comichão. - Coça os braços cor de cinza como se sentisse a lã na pele. Ponho-me atrás da tia Faith e tento perder o ouvido e o olfacto. Tento desaparecer, mas nada acontece.
- Eles tiveram de prender a pobre Mrs Donnell à cama,
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mas agora já está bem. Não queria tomar mais remédios. Dizia que a punham a dormir todo o dia. Dorme tanto que até já podia estar morta. Estas enfermeiras querem manter-nos drogadas que nem viciados. Faith, estás grande como uma casa. Como queres tu arranjar marido com esse tamanho? A família da minha mãe era toda grande. A tia Dot pesava cerca de cento e quarenta quilos, não era? - Ela não pára de falar sozinha, continuando a picar a tia Merleen e a tia Faith como se fossem perus do Natal.
A minha avó queixa-se das suas dores e achaques, da comida e da maldade das enfermeiras. Nunca fala comigo e nem sequer parece aperceber-se de que estou no quarto. Odeio-a desde o momento em que abre a boca, torcida para norte e para sul por uma trombose. Parece seca e vazia e cheira a urina e a pó. A tia Faith empurra a cadeira de rodas para o jardim onde nos sentamos com outras famílias sem falar muito durante a hora que se segue. A avó Gert, falando muito depressa e muito alto, comenta a quantidade de cabelos grisalhos que as irmãs têm. Sente prazer em perguntar se a Faith ainda não está grávida. Depois ri-se delas e chama-lhes "irmãs" como se isso fosse um insulto, e depois começa a chorar e pede-lhes que a levem com elas para casa, dizendo que podia limpar a casa e fazer um bom pão de milho. Nunca pergunta pela minha mãe.
- Eu conheço os segredos do sexo. Posso ensinar-vos a arranjar um homem e a mantê-lo, se me levarem para casa - diz num sussurro alto, com um sorriso manhoso.
A tia Faith chora no carro a caminho de casa. Depois de voltarmos, a tia Merleen fica ainda mais fria e distante, a jardinar no escuro. Deito-me na cama e sinto pena da minha mãe.
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Se eu tivesse uma mãe má e malcheirosa como a velha Gert Rainey também tinha fugido de casa e feito um bebé que me amasse. Tenho fome de amor de mãe. Continuo à espera que as palavras cresçam no jardim do meu coração, palavras mágicas que tragam a minha mãe de volta.
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III

Pego fogo à cama e fico à porta a vê-la arder. A chama do primeiro fósforo brilhou e depois morreu. O segundo fósforo ardeu e enrubesceu tudo diante dos meus olhos. Olho para as chamas e vejo as mãos da minha mãe a estenderem-se na minha direcção, e o nó traiçoeiro que tenho na garganta cresce mais e mais à medida que me aproximo dela. Peguei fogo à cama. A cama onde sonho os sonhos da minha mãe e onde transpiro os pesadelos dela, fugindo dos seus inimigos. Fico à porta a vê-la arder. Tenho saudades da minha mãe, mas não quero ter. Tenho sete anos e ontem é hoje, o amanhã nunca chega.
Afastando-me para o lado, a tia Merleen agarra no jarro branco de porcelana cheio de água, sempre pousado na mesinha de cabeceira, e apaga o fogo.
Ouço a tia Faith cantar: A minha cama. A minha linda cama, num doce soprano.
A tia Merleen limita-se a abanar a cabeça ao som de "humm, humm, humm", num baixo ressoante.
O fumo enche-me os ouvidos e forra-me a língua de tristeza. O sonho incendiário enche-me os pulmões de ansiedade.
- El a está morta? - pergunto da porta, olhando para os minúsculos pés descalços da tia Faith.
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- Não, querida, ela não está morta - responde a tia Faith com tristeza.
A sua resposta esmaga toda a esperança contra a parede. Se ela estivesse morta, eu podia parar de esperar. Se ela estivesse morta, eu podia morrer também.
- Porque é que ela me abandonou? - Grito-lhes e bato com a cabeça contra a esquina da porta vezes e vezes sem > conta até a tia Faith me puxar para ela, segurando-me a cabeça contra a sua barriga. Ela deixa-me chorar e gritar durante
• dias a fio no seu avental macio e impregnado de fumo. Não ¦volto a perguntar pela minha mãe durante muito tempo, i Começo a dormir numa manta no chão duro de madeira que ¦ cheira a óleo de limão. Deixo de sonhar e começo a ver sombras por baixo da cama.
Um domingo, depois de termos ido visitar a avó Gert, a ¦tia Faith diz à tia Merleen para a deixar no hospital para ir visi-= tar uma das senhoras da igreja que está doente. Fico sozinha com a mulher tempestuosa. Entro atrás dela pela porta das traseiras. Tiro os meus sapatos de domingo, pretos e brilhantes, e arrumo-os na caixa ao pé da porta. Calço uns sapatos de ballet cor-de-rosa que elas me pediram para usar em casa. \ Depois arrasto o banco até à banca da cozinha onde esfrego as mãos com líquido de lavar a loiça e uma escova dura, tal e qual como elas me ensinaram. Caminho pelo corredor estreito e alcatifado, repleto de poemas e orações encaixilhadas, e ¦sento-me no degrau debaixo das escadas da frente a olhar para a porta fechada, como se ela se fosse abrir a todo o momento e a minha mãe estivesse lá com as mãos nas ancas
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pronta para me levar dali para fora. Quase consigo ver a sua mão macia e suave a chamar-me para ela. É por isto que eu rezo todos os domingos; por isso, sento-me, espero e tenho esperança. Geralmente a tia Merleen ignora-me. Quando a ouço a resmungar, a dizer qualquer coisa sobre a cama, tento evitar as lágrimas, mas não consigo.
- Tens saudades dela, não tens? - A sua voz é um sussurro tempestuoso ao meu lado.
Não posso falar, mas digo que sim com a cabeça, limpando as lágrimas.
- Vem comigo. - O seu vociferar torna-se mais suave à medida que se afasta.
- Vem comigo. Eu não mordo. - Está a sorrir levemente. Sigo-a até à cozinha. Ela dá-me um macacão azul, uma
camisola de flanela azul de rapaz e um par de sapatilhas pretas. Deixo escorregar o vestido amarelo domingueiro de boneca para o chão de linóleo e entro num mundo masculino. Entre a Primavera e o Verão sujo as mãos a olear parafusos do cortador de relva e a plantar roseiras. Os meus dedos ficam ensanguentados de fazer pássaros e peixes de madeira. Corro. Trepo às árvores. Atiro pedras a latas. Distraio-me da dor que me dá vontade de me incendiar. Durante muitas noites durmo enfiada nas minhas novas roupas de rapaz, sonhando com a minha nova vida.
A tia Merleen é dura por fora, mas aprendo onde guarda a sua bondade. Ela não suporta ver dor da mesma forma que outras pessoas não suportam ver sangue. Eu guardo os seus segredos e ela guarda os meus.
Não me deixa ir brincar com as outras crianças da vizinhança, pois pensa que são todos ladrões e futuros criminosos.
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IAs crianças Que eu conheço na catequese moram demasiado longe e por isso brinco sozinha, fazendo jogos que recordo e outros que invento para passar o tempo. Leio os livros que a tia Faith me compra e invento histórias à frente do espelho. Sou Cleópatra, Dalila, Maria Madalena e a Rainha do Sabá, uma personagem após outra ou todas ao mesmo tempo. Sou também Harriet Tubman no Underground Railroad e Frederíck Douglass a fazer um discurso, Mighty Mouse e Batman.
para lá dos trilhos do comboio fica o Bairro da Previdência Da janela do meu quarto vejo as crianças a saltar à corda, a jogar à amarelinha na terra, a jogar à bola e a andar de skate nos passeios esventrados. Imagino-me a entrar nos seus jogos, mas acabo sempre a brincar sozinha. Durante todo o Verão finjo ser rapaz, faço coisas de rapaz e uso roupas de rapaz.
A escola vem quebrar a rotina. No meu primeiro dia na escola de tijolo vermelho ao fundo da rua, insisto em usar roupa de rapaz.
__As meninas não usam calças na escola - diz pacientemente a tia Faith, esperando que eu mude de ideias.
__A tia Merleen anda sempre de calças - digo eu,
enfiando os polegares nas alças das minhas jardineiras como tinha visto fazer a tia Merleen quando fazia uma pausa na jardinagem para admirar as flores, os frutos e os vegetais que tinha cultivado.
- Isso é diferente. É a minha roupa de trabalho. Se eu
fosse para a escola levava roupa de escola.
A tia Merleen está a perder o seu tempo comigo e a ficar cansada, Pois começa a andar para trás e para a frente no
corredor, a tentar arranjar um bom argumento para me convencer. Tinha descoberto uma maneira de as amolecer e de levar a minha avante. Raramente diziam não ao que eu pedia. Pensava que, muito em breve, podia estar a conduzir o carro para ir buscar a minha mãe à estação.
- Por favor? - disse eu, dirigindo-lhes o olhar mais infeliz que consegui arranjar.
Ambas riram e baixaram os braços como se eu tivesse ganho este assalto.
- És tal e qual a tua mãe. Pega na camisola e na pasta e vamos embora antes que percas completamente o teu primeiro dia de aulas - diz a tia Merleen enquanto desce as escadas pesadamente. Trazia um vestido simples de lã às pregas que nunca lhe tinha visto antes e os sapatões que costuma calçar quando vai trabalhar para o jardim. Leva-me de carro até à escola, ao fundo da rua, e acompanha-me à porta.
- Presta atenção ao que a professora diz e faz o melhor que puderes - diz ela, ao mesmo tempo que abre a porta da minha sala de aula. Acena à professora do cimo das escadas e larga-me a mão. Olho para as filas de rostos muito sérios a olharem para mim. Só um rosto sorri, uma menina com uma fita cor-de-rosa no cabelo. Quando olho para trás, a tia Merleen já se foi embora. Desde o momento em que desço as escadas em direcção à grande sala de aula na cave, a professora recusa-se a ensinar-me, as crianças metem-se comigo e não querem brincar comigo por eu ser diferente. Nenhuma das outras meninas usa calças. Elas são todas umas bonecas, com os seus vestidinhos de folhos e fitas de cetim. Chamam-me nomes e atiram-me pedras. Brinco sozinha nas grades inventando letras de canções. Quero chorar, mas não choro. No dia seguinte
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levo um dos vestidos que a tia Faith remodelou para mim, um vestido à marinheira, azul-escuro com botões brancos a flutuar na frente de cima até abaixo. O vestido faz-me lembrar a minha mãe.
Faço amizade com uma menina que usa vestidos às flores e fitas esfarrapadas cor-de-rosa no longo cabelo escuro. Ela mora numa das casas do Bairro da Previdência. O seu nome é Joyous, mas chamo-lhe Joy porque ela está sempre a rir, mesmo quando não há nada para rir. Ela tem a língua presa e por isso chama-me Myra. Gosto da maneira como o diz. Na sua boca o meu nome ganha uma felicidade inesperada. Torna-mo-nos tão amigas que quando encontramos na rua uma vara comprida, uma árvore ou um pneu velho, damos as mãos e contornamo-lo juntas pelo mesmo lado. Sabemos que dá azar quebrar uma vara. Deve sempre seguir-se a pessoa que amamos quando nos deparamos com um obstáculo na estrada. Ela vem comigo para a casa grande e branca. Apercebo-me de que a tia Merleen não aprova, mas não diz nada, nem sequer boa-noite. A tia Faith é mais simpática. Dá-nos um prato de bolinhos polvilhados com açúcar em pó e pequenos copos de leite. Tenho de mostrar à Joy onde deve deixar os sapatos e como calçar os pequenos sapatinhos de ballet cor-de-rosa por cima das meias e esfregar as mãos no lava-loiça até ficarem limpas.
Brincamos no alpendre que dá para o jardim. A Joy diz--me que é, em parte, índia. Pergunto-me qual será essa parte. Digo-lhe que isso faz de nós irmãs, pois a minha mãe tem sangue cherokee. Digo-lhe que também tenho sangue espanhol. Para o provar ensino-lhe algumas palavras que a minha mãe me deu.
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Bonita... encaje... dulce... azul... música... sueno...
Fazemos bonecas com as revistas francesas da tia Faith, garrafas de Coca-Cola, atacadores partidos, botões e cola. Enchemos as garrafas com limonada doce, colorimo-la com tinta, e bebemos até os nossos lábios ficarem da cor de rosas azuis e tão macios como elas, quando ela me ensina a beijar. E beija-mo-nos durante horas, passam anos e os nossos lábios e os nossos olhos permanecem fechados, unidos. Descobrimos os nossos sentimentos secretos no meu quarto com a porta fechada. Gosto de tocar nos seus olhos fechados com os lábios, tocar com a língua no seu umbigo e encostar as minhas bochechas às suas coxas suaves e gordas. Escondo lápis de cor e dedos nervosos entre as suas pernas para ver até onde podem ir. Escondemo-nos debaixo da cama para brincar às casinhas e no armário para brincar aos médicos. Quando brincamos ao Bingo do Cobertor, debaixo de cobertores postos em cima de cadeiras, eu passo a ser a Frankie e ela a Annette. Sou sempre eu quem manda.
Apesar de morar do outro lado da linha do comboio num pequeno bloco de apartamentos de cimento virados para um beco, mesmo em frente do cemitério e ao lado do Bairro da Previdência, a Joy continua a ser uma menina do Bairro da Previdência. Diz ela que, quando chove, têm de pôr panelas no chão para aparar a água que cai do tecto. Mora numa casa de três assoalhadas com a mãe, Nag, o padrasto, Jack, duas irmãs e um irmão. Ela e a irmã mais velha, a Nicky, dormem no quarto numa cama grande e encovada, e o irmão, o Lark, num catre perto do fogão da cozinha. A mãe, o padrasto e a bebé Eriça, um nome tirado de uma personagem de telenovela, dormem no sofá-cama da sala. É tão diferente da casa onde eu
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vivo. A casa onde vivo tem um lugar para tudo e tudo no seu lugar. Cheira a flores frescas, óleo de limão e à doçura húmida da tia Faith. O apartamento onde vive a Joy está impregnado de cheiro a fritos, fraldas sujas e a cigarros Lucky Strike que a mãe fuma constantemente. Às vezes queria que a Joy pudesse viver connosco. Há espaço suficiente para a família dela caber toda na casa grande e branca, mas acho que nem a tia Faith nem a tia Merleen iam gostar da ideia. A mãe dela diz-me para a tratar por Nag.
Um dia somos apanhadas a beijar-nos. A mãe dela apanha-nos e eu volto a ser uma rapariga como se tivesse sido uma borboleta que se depois se transformou numa rocha.
- É uma abominação aos olhos de Deus - declara a mãe, e faz-nos rezar juntas de joelhos no chão sujo da cozinha. O choro da Eriça rivaliza com a televisão, no quarto ao lado e com o volume no máximo, e confunde-se com as nossas orações de perdão ditas em voz alta. A mãe dela lê as escrituras para o ar pegajoso durante horas a fio. Depois leva--me a casa. Caminha três passos à minha frente com uma camisa sem mangas de um verde desbotado que já teve um fecho mas que agora está presa com dois enormes alfinetes de ama. Os seus chinelos azuis batem no chão como se fossem mãos molhadas a bater no pavimento. A noite cai sobre mim, fechando-me dentro dela. A mãe da Joy leva-me até à porta da casa grande e branca. Tenho tanto medo que começo a chorar antes de a Nag poder falar. Mas ela fala. Conta tudo o que sabe e diz qual vai ser o meu futuro se eu não mudar as minhas atitudes perversas. A tia Merleen ouve-a da soleira da porta. Manda-me entrar para casa, mas não convida a Nag a passar além dos degraus do alpendre.
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- Não tem de se preocupar mais com ela. Ela não volta mais lá. Obrigada por a ter trazido a casa. Boa noite, Miss Dyson. - A tia Merleen fecha-lhe a porta na cara. Ainda consigo ouvir a Nag a amaldiçoar-nos do alpendre na escuridão.
- Estás atrasada para o jantar - diz a tia Merleen, dando grandes passos em direcção à cozinha. Sigo-a, perguntando--me o que irá acontecer-me. Ela escolhe cuidadosamente cada palavra. - A tua tia Faith está no ensaio do coro. Não precisa de saber o que se passou aqui. - Faz uma pausa, morde os lábios e diz: - Eu tinha-te dito para não brincares com aqueles miúdos do Bairro da Previdência.
A tia Merleen começa a falar para uma lata de sopa que está a abrir para o meu jantar. - Devias esperar até seres mais velha para andares por aí aos beijos. Beijar e todas essas coisas são para gente crescida. - É esta a última vez que fala sobre o assunto. Um segredo que guardamos da tia Faith. Passo horas no meu quarto a pensar no dia em que vou ser mais velha, no dia em que vou voltar a transformar-me numa borboleta e começar novamente a beijar raparigas.
Eu e a minha amiga somos amigas há muito tempo depois disto, mas já não nos beijamos na boca nem procuramos lugares secretos para brincar no corpo uma da outra. Não falamos desses tempos, mas nunca mais os esqueci. Não consigo parar de pensar nos beijos. A minha amiga entusiasma-me a usar vestidos. Pareço adaptar-me, mas nunca consigo.
- Onde está a mala da minha mãe? - pergunto quando tenho tantas saudades dela que o peito me dói. Os dois anos que esperei por ela parecem-me uma sentença de prisão injusta.
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Tenho nove anos e sinto que fui muito paciente, mas também' me tornei muito curiosa. As respostas às minhas perguntas são'' tão raras como as preces atendidas.
-- Nós estamos no lugar dela - diz a tia Faith sem tirar os olhos da costura.
- Posso vê-la? Talvez tenha deixado a morada - sento---me ao lado do piano puxando um fio do fundo da minha camisa.
- A tua mãe não tem morada certa, querida. Ela anda a' viajar,
- Tiveram notícias da minha mãe? - pergunto arregalando os olhos. - Quando é que ela me vem buscar?
- Na verdade não tivemos notícias dela - responde calmamente a tia Faith.
- O genro do Reverendo Wilson viu-a em Atlanta o ano* passado. Ela disse que te mandava chamar assim que pudesse - diz a tia Merleen monocordicamente da sua cadeira, trocando com a tia Faith um olhar que diz mais do que os meus-ouvidos podem ouvir. Depois vira ruidosamente as páginas do; jornal aberto à sua frente.
- O que está ela a fazer em Atlanta? - Continuo a puxar os fios, que caem na carpete construindo padrões como o1 ninho de um pássaro.
- Acho que ele disse que ela estava a trabalhar e a preparar-se para ir para Memphis. - A tia Faith continua a manejar a agulha e o fio fazendo pequenos pontos que serão invisíveis ao olhar.
- Ela vem buscar-te quando puder. Mas enquanto ela não vem estamos a sair-nos bem, não estamos? Porque é que não me lês uma das Histórias Simples de Langston Hughes?
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Ele escreve umas histórias engraçadas, não escreve? - A tia! Merleen dobra rapidamente o jornal e começa a falar muito depressa como se estivesse a tentar tirar-me a minha mãe do pensamento, mas eu não deixo.
- Mas ela não deixou morada nenhuma? Eu podia escre-~ ver-lhe para os correios de Memphis. Ela deve estar à espera de uma carta minha. Posso ir ver à mala dela?
- Não há nada naquela mala que te possa interessar. O que está lá é para a tua mãe, quando ela voltar. Agora deixa---nos em paz. - O tom de voz da tia Merleen acerta-me como1 um murro no estômago. Apanho os fios da carpete e levo-os para o meu quarto para os enfiar na rede da janela como se" fossem constelações no céu. Não quero que elas me vejam chorar.
Quero procurar a mala, mas nunca me deixam sozinha-em casa. Desconfio que a guardam no quarto que eu só vi da entrada, perto da casa de banho. É um quarto grande com' duas camas iguais cobertas com colchas de padrões coloridos. As camas estão separadas por uma pequena mesa de cabecei--ra. Tem também um toucador de madeira escura por baixo de um espelho fumado, um cabide a condizer, com um lugar para a tia Faith pendurar os seus chapéus de domingo, e uma cómoda alta com gavetas. A caçadeira da tia Merleen está dei--tada como um soldado adormecido debaixo da cama. Está1 tudo no seu lugar. Há lugar para tudo menos para mim. Estou do lado de fora com o nariz colado à janela à espera de algo que me pertence.
Passam os Verões índios e os dias de cão. As férias e os
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dias de anos passam à mesma velocidade do crescer da relva. Nem uma palavra dela. Estou tão zangada com a minha mãe por me ter deixado que nem tenho a certeza de conseguir perdoar-lhe. A vida é tão difícil sem ela. Nas reuniões da Associação de Pais tenho de ficar sentada ao lado da tia Faith, que a minha professora pensa ser minha avó. No Dia da Mãe as minhas tias Faith e Merleen levam para a igreja flores brancas presas aos vestidos, porque a mãe delas está morta. Sou obrigada a levar uma flor vermelha, porque a minha mãe está viva, mas eu sinto-me como se ela estivesse morta. Gostava de usar uma rosa de cetim cor-de-rosa, porque a minha mãe está desaparecida.
Na escola as outras crianças fazem troça de mim.
- Onde está a tua mãe? - perguntam, como se isso lhes interessasse.
Sem esperarem pela resposta, algumas põem-se a especular.
- Se calhar está presa. - E desatam todas a rir, todas menos o Dwight James cuja mãe está presa por ter matado o pai, porque ele lhe bateu mais do que ela podia aguentar.
- Ou então está na segurança social à espera de conseguir uma ajudinha do governo. - O riso delas magoa-me como se fosse um enxame de abelhas.
Antes de pensar em alguma coisa inteligente para dizer, outra rapariga diz: - Aposto que ela nem sequer tem mãe. - Aprendi a fingir-me surda a estes insultos. Num piscar de olhos posso encher os meus ouvidos de cimento. Se me concentrar na cor azul, às vezes consigo ouvir música na minha cabeça... doce... azul... música... O céu é tudo o que preciso ou a página dum livro ou a barra de uma saia, desde que seja azul.
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Durante o tempo que tenho de estar na biblioteca peço licença para ir à casa de banho. A bibliotecária, a Miss Belton, é uma graciosa senhora de meia-idade que usa o cabelo apanhado em duas tranças pretas amarradas no topo da cabeça como duas cobras enroscadas. Ela gosta de mim e por isso não tenho de implorar como os outros alunos. Acena-me à saída da sala e a sua mão acaricia o ar tão delicadamente como se fosse um lenço de senhora. O som dos meus passos ecoa no corredor comprido e largo. A casa de banho das raparigas, na cave, ao fundo de dois lanços de escada, é uma sala grande e aberta com uma fila de sanitas brancas de porcelana viradas para uma fila de lavatórios brancos e espelhos quadrados com molduras cromadas. Estou a lavar as mãos no lavatório. Quando olho para cima, vejo duas raparigas mais velhas a entrar. A Sonya é a pior rapariga da escola. É também a maior. Já fez duas vezes a quarta classe. Acho que foi isso que a tornou tão má. A Victoria, a sua sombra, está com ela. A Victoria faz tudo o que a Sonya manda. Uma vez bateram numa rapariga depois da escola e tiraram-lhe o dinheiro do almoço todos os dias durante um mês antes de a mãe dela ter feito queixa ao director. A Sonya foi mandada para casa por uma semana. Quando voltou, tinha um braço partido e diziam que tinha sido o irmão. Voltou ainda pior do que era. Quando me vêem começam a rir. Continuo a esfregar as mãos com a suave barra 'de sabonete cor-de-laranja que cheira a remédio. A Sonya começa a meter-se comigo.
- Olha-me pra esta a olhar prò espelho como se fosse uma beldade - diz ela num tom de voz duro e acusador.
Depois é a vez da Victoria. - Achas-te uma grande coisa, não é? Achas-te muito gira. ¦¦ , -,-¦
- E com um nome estúpido como Mariah Santos deves ser mexicana ou outra coisa parecida.
- És mesmo uma santinha mexicana de pés de barro. É por isso que te achas tão boa?
Pisco os olhos duas vezes, mas estou tão furiosa que consigo ouvi-las através do cimento que me preenche os ouvidos. -Olho em volta, mas não consigo encontrar a cor azul. Até o (céu está cinzento. Não sei o que dizer. A Victoria empurra-me ,contra o lavatório. Estou quase a atirar-lhe sabão para os olhos, quando a Joy entra. A sua saia desenha círculos no ar quando ela, num rodopio, se interpõe entre mim e elas, de mãos nas ancas como se fosse o Marshall Dillon em Gunsmoke. Como se fosse um assassino contratado em Wild, Wild West.
- Estão a meter-se com a minha amiga? - pergunta, empertigando-se toda como se tivesse dois metros de altura em vez de um metro e cinquenta.
- O que é que tu tens com isso? - pergunta a Sonya, (dando um passo em frente.
- Se vocês estão a meter-se com a minha amiga, estão a meter-se comigo, e se se meterem comigo a minha irmã Nicky dá-vos cabo da saúde. -A Joy atira o cabelo para trás dos ombros e mantém-se firme na mesma posição. A vida move-se em câmara lenta. A Sonya desiste. A Nicky está sempre metida em sarilhos por andar à pancada no liceu e corre o boato de que ela mordeu uma rapariga de tal maneira que ainda podem ver-se as marcas dos dentes na cara dela.
- Ninguém se está a meter contigo nem com essa tua amiguinha convencida. Anda Vic, vamos embora. Isto aqui cheira mal - diz a Sonya, despedindo-se de nós com um aceno de mão ao sair da casa de banho.
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Quando elas saem volto a respirar e largo o lavatório. Estou aliviada por não ter sido obrigada a lutar com a maior rapariga da escola. Nem sequer sei lutar. Nunca ninguém me ensinou. Até àquela altura só tinha precisado de me defender com palavras. Não sei o que dizer. Quero beijá-la, mas ela, toda recatada, afasta-se de mim.
- Não posso voltar a fazer isso. Vou meter-me em sarilhos. A minha mãe diz que vamos para o inferno metidas numa cesta. - Encosta-se no lavatório e sorri.
- Desculpa. Não quero que vás para o inferno. - Mantenho-me estranhamente no centro da casa de banho a morder o dedo, não me importando se vou para o inferno ou não.
- Não faz mal. Continuo a ser tua amiga até ao fim. És a minha maior amiga, mas não podes deixar que as pessoas te pisem. Não vou aparecer sempre como o Batman mesmo a tempo de te salvar a pele. Se alguém se meter contigo pega num tijolo, numa pedra ou na maior coisa que encontrares e antes de elas poderem pestanejar dá cabo do focinho à maior e as outras deixam-te logo em paz. - A seguir ensina-me a usar uma garrafa de Coca-Cola vazia como arma. Antes de sairmos da casa de banho pisca-me o olho. Pisco-lhe também o meu tal como ela me tinha ensinado há dois Verões atrás.
Quando uma rapariga muito maior que eu diz: "Ó Santos, eu vi a tua mãezinha a fazer biscates na bomba de gasolina!", eu digo: "Quero ver-te repetir isso quando eu voltar!". Vou até à casa grande e branca e encho uma garrafa de Coca-Cola com água. Ponho AIka-Seltzer na água e deixo borbulhar. Saio de casa e grito-lhe: "Repete lá isso agora! Queimo-te o couro com este ácido. Viras churrasco". E atiro-lhe com a garrafa, que voa pelo ar e aterra a poucos centímetros dos ténis sujos
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da rapariga. E ela foge a gritar: "Estás doida, Santos. Doida varrida. Deviam internar-te no manicómio". A partir daí nunca mais ninguém se meteu comigo. Deixaram-me em paz. Os boatos espalharam-se rapidamente: "A Santos está louca. Com-pletamente passada".
Os professores recompensam o meu bom comportamento e as minhas excelentes notas, cinco a tudo, e eu continuo a servir de exemplo aos outros alunos, mas isso não me traz grandes amigos. A Miss Belton deixa-me levar livros sobre o México. Eu sei que não devo estragar os livros da biblioteca, mas corto um dos mapas coloridos para poder dormir com ele debaixo da almofada. Cada noite sonho com uma cidade ou vila mexicana diferente, e nesses sonhos passeio por ruas e estradas poeirentas e sem pavimento, à procura do meu pai, esperando que ele tenha encontrado a minha mãe e estejam os dois à espera que eu vá ter com eles para, todos juntos, podermos pintar o céu de azul.
Sinto a falta da minha amiga. O seu riso fácil e os seus jogos. A Neicey só brinca comigo porque a minha tia lhe dá lições de piano e tem de esperar que o pai a venha buscar no seu táxi. Não conversamos muito. Ela é realmente convencida. Vive numa casa na Randall Estates e frequenta a escola católica apesar de a sua família ser baptista. Depois das lições de piano aos sábados de manhã jogamos ao Monopólio ou às damas até ela ouvir o pai tocar à campainha. Nem se dá ao trabalho de se despedir quando ele chega, limita-se a passar as mãos pelo seu vestido de veludo como se se tivesse sujado a brincar comigo. As minhas tias pensam que ela é uma menina amorosa, mas uma rapariga que faz batota a jogar às damas só demonstra falta de classe, seja qual for a escola em que ande.
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IV

Nós não somos realmente irmãs - diz a tia Merleen casualmente um domingo à noite quando estamos sentadas no alpendre das traseiras a fazer mochos em blocos de madeira aromática. Eu olho-a pelo canto do olho e espero. Mantenho a cabeça baixa, tal como ela, concentrando-me nas asas abertas do mocho.
- Mas somos parentes, primas. Os nossos pais eram irmãos. Trabalharam juntos nos caminhos de ferro. Morávamos uma ao lado da outra desde que nascemos.
A faca escorrega e corta-me o polegar. Levo o dedo à boca e chupo-o.
- Ainda somos parentes da avó Gert? Ela ainda é minha avó? Não gosto nem nunca vou gostar daquela velha má. Quem me dera não ter nenhum sangue dela misturado no meu.
- Ela é que é mesmo irmã da Faith. Já estás a ficar cres-cidinha e eu disse à Faith que estava na hora de ficares a saber algumas coisas sobre a família. - Hesita, olhando-me para tentar avaliar o que pode dizer-me. Tenho dez anos e estou grande para a idade. Já não me servem dois pares de jardineiras nem a minha camisa de cowboy preferida. A tia
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Merleen volta os olhos para o mocho e começa a contar-lhe tudo. Quase tudo.
- Eu e a Faith sempre fomos grandes amigas. Foi a Gert que tentou destruir a nossa amizade. Sempre teve inveja da beleza da Faith. Os rapazes queriam sempre falar com a Faith e não ligavam a mais ninguém. Bonita por dentro e por fora. Uma Páscoa, a Gert roubou meia dúzia de fósforos e uns cigarros sem filtro e obrigou-nos a vê-la representar como se fosse uma estrela de cinema. Éramos adolescentes, mas sabíamos que os nossos pais nos esfolavam vivas se nos apanhassem a fumar cigarros roubados. Ouvimos barulho e a Gert atirou o cigarro aceso para debaixo da cama. Pegou fogo a alguns jornais e as chamas devoraram as cortinas onde a Faith estava escondida. A Faith iluminou-se como uma árvore de Natal. Gritou e chorou, mas a Gert limitou-se a olhar para ela da porta e fugiu do quarto a rir. Atirei uma colcha para cima dela e, não sei como, consegui tirá-la da casa. Conseguimos sair todas vivas, mas a casa ardeu totalmente, não sobrou nada excepto a chaminé e um punhado de cinzas. A família delas mudou-se para a minha casa. E desde aí somos irmãs.
Não sei como é que as chamas não lhe deixaram cicatrizes no rosto, nas mãos ou nos pés, mas a verdade é que não deixaram. Ela parece bem exteriormente, mas aquela mulher : pequenina e corajosa vive atormentada pela dor. Por causa de tudo isso, de ter ficado desfigurada como ficou, pensou que nunca viria a casar-se; eu sabia que eu não viria. Vivemos juntas há quarenta e sete anos. Às vezes amo a Faith como uma irmã, mas a maioria das vezes... a maioria das vezes amo-a apenas.
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As lágrimas parecem acumular-se e depois abandonam os seus olhos. Ela fecha o canivete e guarda o resto da história.
Depois de a Tia Merleen me ter contado a história, sinto que já nos compreendemos. Ambas sabemos algo acerca da relação entre o amor e a dor. Ela começa a ensinar-me a conduzir em segredo. Aprendo depressa. A condução tira-me a minha mãe do espírito durante algum tempo. Finjo que vou estar à espera dela na estação quando o seu comboio passar outra vez por aqui. Tenho a certeza disso e estarei lá à sua espera.
A tia Faith é uma professora incansável. Mesmo quando não consigo concentrar-me e estou irritada, ela espera pacientemente que o mau humor passe antes de continuar a lição. Às vezes sentamo-nos numa poça de silêncio espesso, no banco da sala de música, depois de ter dado erros atrás de erros.
- Mariah, hoje estás a pôr à prova a minha paciência. - Às vezes odeio-a por tentar ser a minha mãe, mas principalmente hoje. Dou erros de propósito só para a irritar. Pela maneira como respira sei que está a contar até vinte. Sentamo--nos em silêncio na sala, com as portadas fechadas por causa da luz do sol. Sinto-me má e apesar de achar que sei a resposta à pergunta pergunto na mesma.
- Porque é que nunca casou e teve filhos seus? - pergunto, entrelaçando as mãos no colo.
Ela deixa cair na carpete a régua amarela que usa para marcar os tempos e, depois, segue o som da minha voz. Os seus olhos detêm-se nos meus e depois tornam-se tristes e distantes.
- Eu já tive dezassete anos. O meu rosto era jovem e
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bonito e sobre o meu corpo bem torneado tinha o meu vestido de Verão favorito cor de alfazema. Ria o tempo todo e tocava piano só porque me dava prazer. Conheci o Lincoln, pouco antes de ele ser recrutado, numa aula de francês dada por uma velha senhora crioula de Nova Orleães. Ele tocava aquele violoncelo que está ali.
E aponta para a caixa escura e alta, em forma de mulher, encostada à parede a ouvir-nos.
- Tinha alma de poeta. Conseguia encontrar música em quase todos os sons. Estava sempre a trautear, a tamborilar com os dedos nos tampos das mesas e a compor as mais belas melodias soul. O Lincoln tinha um grande amor pela música e pela poesia. Era um homem muito sensível. Muitas vezes me questionei sobre como seria a minha vida se ele tivesse voltado ou se o tivéssemos encontrado. Depois da guerra escreveu--me uma carta de França.
A tia Faith tira uma frágil folha de papel do interior do seu livro de hinos e lê-ma em voz alta.

Faith, meu tesouro:
Decidi continuar os meus estudos aqui em França e formei um trio. Vou continuar neste porto de abrigo pois aqui é seguro ser-se um negro educado e inteligente. Ainda não fui chamado de preto nem maltratado. Devias considerar a possibilidade de teres uma vida livre num país estrangeiro. Espero ver--te novamente. Sinto saudades da ternura do teu doce encanto sulista.
Sinceramente teu
Lincoln A. Porter

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- Ouvimos dizer que casou com uma mulher branca e que se mudaram para a Suíça. Mas não podia acreditar nisso. Ele odiava os brancos. Ela devia ter a pele clara. Ele gostava de raparigas magras de pele clara e cabelos longos; dizia que fariam bebés bonitos.
Tento com toda a força imaginar a tia Faith bonita e magra num vestido de Verão cor de alfazema. Pergunto-me se ela pensa que a minha pele clara e o meu cabelo forte são bonitos.
- Ele era de pele clara com um cabelo forte e ondulado. Não digas à tia Merleen que eu te falei no Lincoln. Isso entristece-a sempre. Tínhamos o hábito de amar as mesmas coisas.
Fez uma pausa para me mostrar uma fotografia de um jovem sorridente posando com o braço à volta do braço de um violoncelo.
- Podíamos ter feito bebés tão lindos, mas a Merleen dizia que ele era bonito de mais para marido.
Acho que saí vencedora, porque a fiz chorar, mas ela limita-se a continuar a lição com a mesma determinação de me tornar civilizada através da música.
Abro a mala poeirenta e toco na madeira polida, dourada e envernizada, acariciando as curvas e puxando as cordas. Encontro o arco e tiro o violoncelo do seu lar. Nunca vi nada mais belo. Desejo-o desesperadamente. Aperto-o contra o coração e toco. A tia Faith deixa-me ficar com o violoncelo no meu quarto e puxo-lhe o lustro todos os dias.
Quando já sou mais crescida, a tia Faith contrata o Mr. Giovanni para me dar lições. O Mr. Giovanni é um senhor
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velho e elegante que usa laço com fatos escuros e brilhantes e cheira a queijo. É um judeu italiano de Nova Jérsia. É um velho professor da escola de música onde a tia Faith estudou. Senta-se perto de mim com os olhos fechados, flutuando ao som de outra música enquanto toco. Faz barulhos com a garganta quando está satisfeito e estala a língua quando está descontente. Geralmente nunca fica satisfeito quando toco. Os meus dedos são desastrados e eu sou impaciente. Quero tocar como a música no rádio, suave, triste e cheia de sentimento. Mas a minha música soa como se eu estivesse a atirar pedras para a lama.
- Pareces uma menina tão triste. O que é que tens para ser tão triste?
Tenho vergonha dele e não digo nada. Não tenho palavras para descrever a solidão profunda que sinto. Ele não insiste. Às vezes o Mr. Giovanni conta-me contos de fadas no fim da aula. O som da sua voz é como música. Fecho os meus olhos para ouvir o partir de ossos de crianças a serem comidas por gigantes alemães, ou o sibilar de uma cobra gigante pronta a esmagar um ladrão de ovos na índia, ou o crepitar de velhas malvadas que transformam meninas más em troncos e depois os atiram para o fogo para se aquecerem.
- Tem alguma filha? - pergunto, imaginando que ele conta estas histórias a outras crianças.
- Que idade tens? - diz ele, respondendo-me com outra pergunta.
- Onze.
- O aniversário da minha Anna é na próxima semana. Ela tocava violino.
- É bonita? - Sinto inveja.
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- Era. Tocava como o Paganini, mas ainda melhor.
E o Mr. Giovanni conta-me a história da sua vida. É triste, cheia de perdas e arrependimento. A maior parte da sua família foi morta durante a guerra.
- A Guiditta, o tio Pepi, o Benjamino, a Anna. Todos mortos - diz ele.
Recorda a cor dos seus olhos, a forma das suas mãos, o som da sua felicidade. Tem números tatuados no braço e cicatrizes profundas que ninguém pode ver. Eu já tinha visto fotografias da guerra e lido histórias. Percebo que ele deixa de fora o som dos ossos a partir, o cheiro a carne queimada e a visão de flocos delicados de cinza humana nos céus escuros e cinzentos. Durante muitos anos disse que não queria viver, mas tinha de contar a história e tinha música para tocar.
- Se vais viver não deixes os outros ou tu mesma passar fome -- diz-me com a voz da experiência, tocando-me no ombro de forma estranha.
Eu não passo fome. Como até muito. Tento encher o buraco que a minha mãe deixou aberto. Mas todos os motivos que me costumavam fazer chorar parecem mesquinhos depois de ter ouvido a história do Mr. Giovanni. Todos menos a falta da minha mãe. ;
A tia Merleen diz que o Judeuzinho é tão bonito como uma menina. O seu verdadeiro nome é Samson, mas todos o tratam por Judeuzinho, pois nasceu na Alemanha e quando fala parece que tem a língua cortada a meio. Uma vez, quando o Mr. Giovanni me estava a dar uma lição de violoncelo, o Judeuzinho chegou mais cedo para uma aula de piano. Mete a
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cabeça na sala e começa a fazer-me caretas. Começa a flutuar na música tal como o Mr. Giovanni. Fico irritada, pois penso que ele está a fazer troça do Sr. Giovanni.
- Pára, Judeuzinho. Isso não tem graça nenhuma- digo eu, ameaçando-o com o punho fechado.
Ele foge como um ladrão em direcção à cozinha.
- O que é que lhe chamaste? - pergunta o Mr. Giovanni, virando-se para mim.
-Judeuzinho. É a alcunha dele. - Coço com o arco uma picada de mosquito no calcanhar.
- Porque é que lhe chamam isso?
- Porque tem uma maneira de falar esquisita. Ele nasceu no estrangeiro, na Alemanha.
O Mr. Giovanni olha para mim com os olhos muito tristes.
- Os Alemães chamavam-nos nomes e matavam os Judeus por eles serem diferentes. Lá por falares bem isso não te dá o direito de fazer troça dele. Compreendes? Eu sou judeu e isso é uma coisa boa. Tu és de cor e é uma coisa igualmente boa.
- Desculpe. Não disse por mal. Todos o tratam assim. - Torço-me desconfortavelmente sob o seu olhar.
- Não imites os outros em tudo - diz ele e eu olho para os números tatuados no seu braço. O Mr. Giovanni conta-me mais uma das suas histórias e depois dá-me um pequeno pião azul de madeira. Nunca mais chamei o Samson pela alcunha e não tarda ele estará a falar como as outras pessoas de cor da Geórgia, perdendo o fim das palavras e inventando outras novas.
Pouco depois de o Mr. Giovanni me levar a um concerto de música clássica no novo auditório integrado, deixa de me dar lições de violoncelo. A tia Faith diz que ele morreu durante
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o sono. Não estou triste. Sei que ele está no céu a contar contos de fadas à filha.
Sem lições, continuo a tocar violoncelo procurando os meus próprios sons. Bato-lhe do lado direito, usando-o como se fosse um tambor e como se estivesse em transe. Improviso de acordo com a disposição do momento, movendo os dedos para cima e para baixo ao longo das cordas a todo o comprimento do seu braço e passando o arco pela reentrância da sua cintura horas a fio. A princípio parece que estou a serrar madeira, mas depois começo a sentir a música nos meus ossos. Às vezes consigo fazer o violoncelo cantar. Outras faço-o chorar. O meu violoncelo produz os sons mais belos de todos. Eu sei que é um violoncelo, mas para mim é uma mulher, tem corpo e voz de mulher. Por isso, ponho-lhe o nome de Rosemary. E passa a ser a minha companhia, a minha melhor amiga. Às vezes adormeço a apertar a Rosemary nos meus braços.
A minha cabeça está pousada no cimo do corpo da Rosemary. Pus um laço como o do Mr. Giovanni. As minhas pernas estão pousadas por baixo das suas ancas. Os meus pés estão descalços e tatuados com números azuis. Os meus braços estão ligados à madeira da sua cintura. Formamos uma coisa só, um todo inseparável. A minha mão esquerda toca uma canção de embalar, os dedos puxam as cordas até elas gemerem, e a outra mão escorrega pelo seu corpo para cima e para baixo até ficarmos as duas a pingar. Fazer amor com a Rosemary é como fazer amor comigo própria, delicioso e proibido.
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V

Não tenho bem a certeza do que é que estou à procura. A princípio tenho medo que as minhas tias me apanhem a mexer nas coisas delas, mas quando encontro o meu tesouro, esqueço a preocupação e o medo. Não tinha visto a mala desde que cheguei a esta casa. Desde o dia em que a minha mãe me deixou com elas. Encontro-a escondida no fundo do armário trancado da tia Faith, debaixo de várias caixas de sapatos. As chaves de todos os sítios trancados foram deixadas na mesa da cozinha. Elas foram para a igreja sem mim. Disse--lhes que estava doente, vomitando no chão da cozinha para ser mais convincente e poder ficar em casa. Estou farta, farta de ir à igreja todos os domingos. Farta de a avó Gert, aquela velha má, me tratar como uma barata que ela se recusa a ver durante as visitas que lhe fazemos ao lar.
A primeira página azul-pálido do diário da minha mãe diz, A curiosidade matou o gato, mas a satisfação trouxe-o de volta. Matisse manchou-me com paixão. De dois de Janeiro a quinze de Setembro as páginas estão rasgadas. A entrada seguinte é no dia vinte e dois de Setembro, o dia dos meus anos. Aqui a minha mãe escreveu: Fartei-me de gritar, mas esta noite tenho um anjo nos braços. As páginas restantes
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estão vazias. Degusto cada palavra que ela escreveu, saboreando a memória da sua dor tão doce. Leio entre cada linha deixada em branco, procurando as pontas dos seus dedos, uma lágrima, o seu cheiro, uma gota de sangue.
Sento-me no chão do quarto das minhas tias. Desdobro duas camisas de cetim cor-de-rosa, uma liga preta, um par de meias pretas e uma fotografia desfocada de mim e da minha mãe deitadas na cama que costumávamos partilhar. Tem o braço à minha volta. As pernas estão nuas e cruzadas. Veste uma combinação de cetim. Sorri, olhando directamente para a objectiva, com um copo de uísque erguido num brinde. Lembro-me de estar deitada no cobertor de lã escura que picava. Lembro-me de tudo tão claramente. A minha mãe tinha convidado o amigo médico para o nosso apartamento.
— Sou canadiano, como o bacon - disse ele e todos rimos e fizemos ruídos roufenhos, como os porcos. Ele era alto, magro e pálido. As suas mãos eram macias e húmidas quando me tacteava o rosto à procura de traços da minha mãe. Ele movia-se como um fantasma através dos nossos pequenos quartos. Eu deitava-me na cama, com a porta aberta, e fingia dormir. Ele e a minha mãe sentavam-se à mesa da cozinha a beber de uma grande garrafa de uísque. A minha mãe começou a dançar pelo apartamento, seguida pelo médico. O médico pediu-lhe para tirar o uniforme. Ela desabotoou três botões antes de entrar no quarto a dançar e cair na cama comigo. Ele tirou a máquina e começou a tirar fotografias de nós duas, mas principalmente da minha mãe com a sua combinação de cetim cor-de-rosa. Nessa noite a minha mãe riu-se muito, mas também chorou quando o médico se foi embora. Pergunto-me se estará com o médico agora.
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Na mala estão três cartas do meu pai, Matisse Santos. São dirigidas à minha mãe no Kansas. Os sobrescritos azuis-claros são idênticos aos belos selos azuis-escuros com bordas vermelhas do México. As cartas estão atadas com uma fita preta brilhante. Dentro do primeiro sobrescrito está uma pequena pintura, feita num quadrado de madeira embrulhado num guardanapo de papel, de uma mulher nua cor de tangerina. A mulher parece-se com a minha mãe. Nesse momento começo a sentir a falta dela e a sofrer pelo meu pai. Na parte de trás do quadro está escrito um poema numa letra firme, em duas línguas:

Um dia o poeta Guillén escreveu: .

Un rio de promesas
Baja de tus cabellos...

Um rio de promessas
Cai dos teus cabelos...

A voz do meu pai persegue-me e tortura-me o coração. A segunda carta é para mim:

1 de Outubro
Angelita Mariah,
O teu pai está no México a pintar quadros e casas perto do oceano. A tua mãe prometeu trazer-te aqui para começarmos a conhecer-nos. Diz que andas na escola e que já sabes ler. Quem me dera ter
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podido ensinar-te. Talvez te possa ensinar outras coisas. Mando-te uma fotografia para que fiques a conhecer-me. Mando-te também todo o meu amor.
Havemos de nos juntar um dia.
Teu pai, Matisse Santos

È como se o meu pai estivesse a falar comigo, como se o tempo não tivesse passado e ele tivesse renascido da terra com a tão esperada promessa de união. Uma pequena fotografia cai das dobras da carta para o meu colo. A fotografia de um homem sem camisa, de calções de praia, em frente ao oceano. Ele sorri. È belo. Procuro vestígios de tinta azul no seu corpo, qualquer vestígio de mim. O último sobrescrito está cheio de cinzas. Sou surpreendida por um maremoto de
lágrimas que se acumulam nos meus olhos e depois se entornam sobre a frente do vestido. Sinto-me como se tivesse perdido uma vida inteira e estivesse a preparar-me para uma nova. Até este momento nunca tinha a certeza se o meu
era de carne e osso ou simplesmente um produto da imaginação complicada de minha mãe. Tenho nas minhas mãos provas da sua existência e do seu amor por mim. Quero estar com ele mais do que tudo.
Tocar a Rosemary acalma-me um pouco enquanto espero pelas minhas tias na sala. O violoncelo e eu fazemos o som das árvores a cair, do vento a uivar, de pés descalços por cima de vidro partido. Enchemos o ar com o nosso luto.
Ainda estou de pijama quando as minhas tias chegam a casa. A mala verde jaz aberta ao meu lado. A tia Faith está com um pé dentro da porta e a chamar por mim quando me vê. Medimo-nos uma à outra como se fôssemos lutadores num
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combate. A tia Merleen quase esbarra nela. Entreolhamo-nos para ver quem pestaneja primeiro. A tia Merleen costumava dizer que "Um cão grande uivará" e faz o que diz, pois começa a falar primeiro, tentando defender-se, usando desculpas para tentar justificar-se por ter mantido a minha vida escondida de mim mesma.
- Não tinhas o direito de mexer nas nossas coisas...
- O meu pai ainda me escreve cartas? - Aperto os sobrescritos azuis contra o peito.
- Isso foi há anos. Desde que estás connosco nunca mais te escreveu. - A tia Merleen evita os meus olhos.
- Ele telefonou para cá uma ou duas vezes - admite a tia Faith.
- Porque é que não me disseram nada? - pergunto calmamente apesar de estar toda a tremer por dentro.
- Não havia nada a dizer. Ele só queria saber se estavas bem. Estás bem aqui connosco. - A tia Faith brinca com o cinto.
- Pensávamos que ela estivesse quase a voltar. - A tia Merleen defende-se.
- Não tínhamos o direito. - A voz da tia Faith soa fraca, quase assustada.
Os meus olhos abrem caminho até à porta da entrada. Imagino-me a passar por elas a correr em direcção à rua e a encontrar a estrada que me leva à minha vida verdadeira com o meu novo pai que jurou o seu amor por mim. Mas em vez disso continuo sentada no sofá com a Rosemary entre as pernas. Enrolo os braços à volta do seu corpo e encosto o rosto à sua superfície fresca e macia. Fecho os olhos para o caso de ter de ir para outro lado, para o caso de o que elas me disserem ser
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duro de mais para suportar. Finalmente, e com relutância, as vozes sobrepõem-se e a tia Faith e a tia Merleen começam a cantar.
- A tua mãe... - começa a Faith com os lábios a tremer. - Custa-me dizer-te isto.
- A tua mãe é uma drogada - diz a tia Merleen.
- Estava metida em sarilhos... - a Faith tenta acabar a história. - Quando veio ter connosco, estava desfeita por causa de um médico casado. Estava grávida dele. Quando ele disse à tua mãe que a ia deixar, ela ficou histérica. Então o médico começou a dar-lhe drogas para a acalmar. E quando a deixou de vez ela começou a roubar drogas do hospital e eles ameaçaram tirar-te de junto dela. Ela implorou-lhes que a deixassem trazer-te para junto de nós.
As minhas entranhas estremecem. Percebo pelas suas hesitações que entre cada nova declaração há ainda mais segredos que tenta desesperadamente esconder. Tornou-se numa tira de renda desbotada pela qual posso ver tudo.
- Ela não queria ser encontrada. Para te dizer a verdade, querida, telefonou para cá umas vezes, mas nem parecia ser ela mesma. Dissemos-lhe que estás muito bem. Dissemos-lhe que ias muito bem na escola e que tocas violoncelo maravilhosamente.
- Onde está ela agora? - pergunto com medo de ouvir as nuvens negras que elas têm na garganta.
- A última vez que soubemos dela estava numa clínica a tentar recompor-se. Saiu antes de tempo. Mandou buscar-te, mas o conselheiro disse-lhe que ainda não estava pronta. Saiu de lá e não falamos com ela já há algum tempo. Ela não queria que tu soubesses tudo isto. - A tia Faith suspira e tira os
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sapatos de domingo, arrumando-os muito direitinhos ao lado da cadeira.
- E o diário dela? - Aperto o braço da Rosemary cada vez com mais força até as cordas me entrarem na pele.
As minhas tias trocam olhares.
- Não era para tu veres - responde a Merleen.
- Só teria desgraçado a tua mãe se lhe acontecesse alguma coisa. - A Faith desvia o olhar como se estivesse a lembrar-se de todas as palavras vergonhosas que tinha engolido com os olhos.
- Ela não está morta. Lá por não terem tido notícias dela não quer dizer que esteja morta. Não tinham o direito de destruir o que ela escreveu. - Consigo ouvir o relógio da cozinha a fazer tique-taque demasiado alto. Todos os sons, todas as manchas de cor e palavras novas que caem dos meus lábios parecem arranhar-me a pele.
- A nossa Coral era uma bebé muito mansinha, nunca deu problemas nenhuns. - A tia Faith está sentada na sua cadeira ainda com o chapéu de domingo na cabeça. Parece estar a falar para a jarra de gladíolos amarelos em cima do piano.
Os pés pesados da Merleen, calçados com meias de vidro, desenham sulcos na carpete. A Faith está quase a chorar, mas não olha para mim. Nenhuma delas vai olhar para mim. Apetece-me espicaçá-las até mais não. Quero que sofram como eu estou a sofrer. A tia Merleen volta a repisar os sulcos longe do meu alcance. Fala num tom de voz demasiado alto para tentar desviar a minha atenção das suas mentiras silenciosas e dos seus actos demoníacos.
- Ela não queria que tu visses isso tudo.
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- E o meu pai? - A minha voz estala, as lágrimas começam a formar-se por trás dos meus olhos muito fechados.
Elas dizem-me que o meu pai é um pintor instável que vive em Los Angeles.
- Porque é que ele não veio buscar-me? - grito, perdendo subitamente o contacto com a Rosemary, que cai no chão com um sonoro baque.
- Não sabíamos nada sobre ele. Não te íamos mandar para junto de um homem que nunca vimos sem a permissão da tua mãe. Ele é um solteirão. E a tua mãe, quando te mandou chamar há alguns meses, não estava pronta, o seu conselheiro disse-lhe que ela não estava pronta - repete a Faith.
Sou um furacão que gira em torno da sala partindo taças e copos.
Abro uma a uma as gavetas do louceiro e atiro o conteúdo para a carpete.
- Onde está ela? Onde está ela? - Grito pragas, esfarrapo o jornal de domingo, arranho a tinta da parede e choro. A tia Merleen agarra-me pelos braços e segura-me afastada dela. É tão forte quanto parece.
- Perguntámos à tua mãe se podíamos ficar contigo - diz a tia Faith. Dirigiu-se para a porta com o chapéu na mão.
- Ficarem comigo? - O meu corpo congela nas mãos da tia Merleen.
- Adoptar-te. Mas ela não quis assinar os papéis. Diz que vai voltar assim que estiver boa.
Estou atordoada. A verdade é como um martelo a bater--me na cabeça. Não pertenço a ninguém. Sou o pacote que não foi entregue, a torrada a mais, algo que ninguém quer mas que não pode ser deitado fora.
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- Recebemos isto a semana passada. - A tia Faith entrega-me uma carta que tira da sua carteira de domingo.
É um bilhete da minha mãe. Na sua letra trémula estava escrito: Entreguem isto à minha menina e digam-lhe que a amo. Um pequeno quadrado de papel cor-de-rosa-pálido flutua no meu colo. Está em branco, mas consigo ver a marca dos seus lábios. Dedos frios e invisíveis acariciam-me a nuca. Enrolo os braços à volta do corpo e encosto-me à parede a tremer.
- Ela ainda anda a viajar, minha querida - diz a tia Faith, pousando-me a mão no rosto. Deixo de resistir, o meu corpo amolece.
- Não posso também ir viajar? - pergunto, aninhando--me nos seus braços.
- Queremos-te aqui connosco - sussurra a tia Faith para o meu cabelo.
Não é o suficiente, penso. Não é um amor de mãe ou um amor de pai. Odeio a minha mãe por me ter deixado só no mundo.
- Quero falar com o meu pai - digo. A ideia cresce na minha mente à medida que a sua imagem azul ganha vida.
Na cozinha, a tia Faith disca o número. Os meus olhos seguem os seus dedos. Memorizo os números, fazendo vergões vermelhos na face interna do braço com a unha. Estou ansiosa e com medo do som da voz do meu pai.
- Daqui fala a tia da Coral, a Faith. A Mariah quer falar consigo. - Passa-me o telefone. Sinto-o quente nas minhas mãos.
- Papá? - sussurro, afastando-me dos olhos argutos e dos ouvidos atentos das minhas tias.
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- Mariah. Como estás, querida? - A sua voz é uma canção de blues que sai bem. Ele diz as coisas certas. Posso sentir (> seu amor paterno através dos fios telefónicos da Califórnia e ele salva-me. Mal consigo ouvir o que diz, porque choro muito, e muito alto. No final da nossa primeira conversa o meu pai promete escrever-me e diz que quer ver pelos seus próprios olhos o quanto cresci. Agarro-me às suas palavras como se estivesse a afogar-me e ele viesse salvar-me. Nessa noite misturo as cinzas da carta do meu pai com mel e lambo a colher até ela brilhar. Imagino que nessa carta perguntava por mim e afirmava o seu amor eterno. Não saio do meu quarto o fim de semana inteiro. Toco a Rosemary em silêncio, sem dar às minhas tias o prazer de ouvirem a sua voz. Encontro uma marcha fúnebre nas suas cordas. As memórias da vida da minha mãe ameaçam apagar-nos a ambas. Consigo ouvir as minhas tias no corredor a sussurrarem iradamente. Estão à porta do meu quarto a ouvir o meu sofrimento. Quando chega a manhã estou a dormir com a Rosemary nos braços.
Uma semana mais tarde aparece na minha cama uma caixa castanha. É do meu pai. Dentro da caixa está um dicionário novo de capa dura, um caderno de desenho e uma caixa de lápis de cor afiados. Abro o dicionário e na primeira página está uma nota de dez dólares aberta. Debaixo dela está uma dedicatória elaboradamente desenhada a tinta vermelha: Para a minha filha, Mariah, com todo o amor, do teu pai Matisse. Por baixo da inscrição está um desenho de um homem a ler um livro a uma menina sentada no seu colo encostada ao seu braço. Ele é o meu pai e eu sou a sua menina. Todas as noites leio o dicionário e encontro novas palavras bonitas de se verem, adoráveis quando as deixo sair da minha língua. Sublinho palavras a tinta vermelha. Promessa... aspiração...
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fidelidade... laço... palpável... Quando encontro uma palavra nova que acho que ele vai gostar, faço um desenho sobre ela, encho-o de cores e mando-o para o meu pai juntamente com algumas palavras minhas. Falamos ao telefone todos os meses durante uns minutos e, no Natal e nos meus anos, ele manda--me uma grande caixa castanha. Dentro dela está um vestido que é sempre grande de mais ou pequeno de mais. A tia Faith altera-os e só os uso ao domingo para ir à igreja. Envia-me papel colorido e canetas e livros com fotografias sem palavras. Todos os meses manda às minhas tias um sobrescrito com dinheiro. Às vezes sinto-me uma prisioneira. Quero fugir para onde o paraíso deve estar, junto do meu pai.
No final desse Verão uma flor de sangue vermelho mancha-me a roupa interior. A tia Faith tinha-me avisado de que esse dia iria chegar e mostrou-me uma gaveta na casa de banho onde eu iria encontrar o que precisava todos os meses. Parece envergonhada e não me olha nos olhos enquanto me dá breves instruções sobre como tratar do meu novo corpo e manter-me limpa. Mas sou eu que sinto vergonha, como se tivesse feito algo de errado.
- Isto significa que já és uma mulher. Tens de ter cuidado na maneira como te comportas com os homens. Podes meter-te em trabalhos - diz ela, fazendo uma pausa entre cada ordem para se assegurar de que eu compreendi o peso das suas palavras. Olho para a garrafa de vinagre branco que está entre nós em cima da mesa da cozinha. Pergunto-me se isto também se aplica ao meu pai.
- Quando eu era nova as pessoas não costumavam falar acerca disto. Costumávamos rasgar bocados de lençóis para
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usar nessa altura do mês. Mas agora há livros para explicar essas coisas. Se tiveres alguma dúvida podes vir aqui procurar - e pousa na mesa um pequeno panfleto, deixando-me sentada a olhar para ele.
A irmã da Joy, a Nicky, já me contou o significado deste acontecimento. Diz que se eu beijar um rapaz de que goste posso ter um bebé. A minha mãe devia estar aqui para me dizer estas coisas. Começo a escrever palavras na parede por trás da minha cama. Deito-me com a barriga contra o chão frio de madeira, por baixo das vigas de metal ferrugento, com um lápis na mão. Escrevo numa letra miudinha cartas para a minha mãe e para o meu pai, a minha última vontade em testamento, uma canção, as minhas cores preferidas e o nome das minhas duas melhores amigas, a Rosemary e a Joy, nenhuma das quais me pode abraçar agora. Escrevo na escuridão para ver o que irá sair dali à luz do dia.
Uso vestidos para que, debaixo deles, possa viver na pele de cetim cor-de-rosa da minha mãe. Pressiono as minhas mãos contra os meus pequenos seios e por todo o meu corpo, vezes e vezes sem conta, até começar a sentir os seios da minha mãe a crescer sobre o frio cetim cor-de-rosa. Quero acreditar que ela me deixou aqui por segurança, por eu ser o seu tesouro. Sinto-me confortada com estas pequenas coisas.
Todas as noites pego na mão da minha mãe e descemos as escadas como se ela nunca me tivesse deixado. Saímos pela porta da frente e caminhamos pelos trilhos do comboio, apanhando pirilampos com as mãos e deixando-os ir. Nestas visitas nocturnas não falamos, mas compreendemo-nos perfeitamente.
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VI

Torna-se mais fácil andar com a Joy quando entramos para o sétimo ano e vamos para a escola que fica para lá do cemitério, do outro lado dos caminhos de ferro, depois da fábrica das bolachas. Apesar de estarmos proibidas de nos vermos, eu e a Boneca encontramo-nos todos os dias na passagem de nível e vamos juntas para a escola. Este ano o nosso primeiro dia de aulas é especial, pois vamos para o liceu O. Williams juntamente com outros alunos do oitavo e nono ano e, pela primeira vez, vamos frequentar uma escola com crianças brancas. Lá na base, em Manhattan, no Kansas, lembro-me de ir para a escola com todo o tipo de miúdos e ninguém se importava com isso, mas as coisas são diferentes no Sul. A tia Merleen e a tia Faith avisaram-me que devia ter cuidado com as maneiras. Até o pastor fez um discurso acerca da relação entre as raças dizendo que, aos olhos de Deus, somos todos Seus filhos. Homens brancos velhos e sem fôlego, com forte pronúncia sulista, gritam muito corados para os repórteres e para todos os que estão a ver o noticiário da noite para terem cuidado com o regresso dos agitadores do Norte e dos radicais que defendem os pretos, sejam lá eles quem forem. Mães e pais brancos apertam contra o peito filhos de olhos esbugalhados
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como se eles fossem os seus últimos tesouros e juram lutar contra o plano de converter os seus filhos ao comunismo. Pensava que o comunismo era uma nova religião. A tia Merleen e a tia Faith disseram-me para não dar importância a toda aquela confusão.
- A tua única preocupação deve ser estudares e fazeres alguma coisa da tua vida - disse a tia Faith, dando-me uma agulha para coser por ela.
- O resto não interessa para nada. - A tia Merleen desligou o televisor e começou a ler o jornal.
A escola de tijolo vermelho em que eu andava desde os meus sete anos era frequentada só por negros que iam desde Dwigth James, sardento e cor de banana, até ao Mr. Champion, o reitor, cor de carvão. O vice-reitor, a secretária, os professores, todas as senhoras que trabalhavam na cantina, as vigilantes e todos os miúdos eram negros. Além de ensinarem a ler, a escrever e a fazer contas, ensinavam-nos também a não denegrir a nossa raça através do nosso comportamento e a ter sucesso, não apenas pelos nossos pais ou por nós mesmos, mas pela própria raça. Os pais eram chamados sé não agíssemos como as senhoras e senhores em ponto pequeno em que era suposto tornarmo-nos. Frequentemente diziam aos professores para nos baterem nas mãos com correias e pequenas réguas de madeira se não nos portássemos como devia ser. Em casos mais raros, os pais eram chamados à escola para baterem nos filhos à frente de toda a turma, para dar o exemplo aos restantes para que obedecessem sem duvidar. Os nossos professores tinham grandes esperanças em relação a nós. Vocês são o futuro, repetiam vezes sem conta. Uma dessas professoras era a Mrs. Towns, uma mulher já velha, alta e
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magra que usava uma peruca castanha curta saliente na nuca e tanta maquilhagem que, pelas costas, lhe chamávamos a "Enfarinhada". A Mrs. Towns ficou comigo todas as tardes depois das aulas, durante semanas, até eu conseguir aprender as fracções. Dizia que era seu dever garantir que eu possuísse as ferramentas básicas para vencer na vida.
- Já é suficientemente duro ser-se negro. Tens de ser melhor do que boa. Tens de ser excelente, Mariah - dizia ela como se estivesse a fazer um discurso. A princípio eu sentia que estava a ser castigada, mas assim que percebi o modo de fazer fracções quase abracei aquela velha mulher enfarinhada. Ela limitou-se a sorrir e a dizer-me para não me entusiasmar de mais.
Por isso, a Joy e eu não sabemos o que esperar do nosso primeiro dia de integração. Vimos muitas vezes o governador George Wallace na televisão, parado à porta da escola em Alabama, para tentar evitar que crianças negras se sentassem ao lado de crianças brancas. Perguntamo-nos se iremos aparecer nas notícias. Damos as mãos como costumávamos dar, enquanto caminhamos ao longo dos trilhos a cantar como a Aretha no seu novo disco de quarenta e cinco rotações. Não aparecem muitos miúdos brancos no primeiro dia de aulas. Os três autocarros vêm meio cheios com rapazes de rosto comprido e raparigas vestidas com novas roupas de escola e novas atitudes. O liceu O. Williams continua a ser constituído na maior parte por miúdos negros que vivem em casas sociais ou apartamentos e casas a 3 Km da escola, ao lado do matadouro. Eu e a Joy estamos em salas diferentes, mas prometemos encontrar-nos no fim do dia na casa de banho, no outro extremo da escola.
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É quase tudo igual. As orações. O juramento de fidelidade à bandeira. A chamada. A nossa professora, contudo, é uma jovem branca com o cabelo louro comprido e liso e uns olhos verde-tartaruga. O cimo da sua cabeça mal chega ao meio do quadro preto. Parece tão nova como a irmã da Joy, a Nicky, que ainda não tem dezasseis anos, e também parece assustada.
- Bom dia, turma. O meu nome é Miss Phillips. Hoje é um dia especial e gostava que começássemos com o pé direito, ajudando-nos a conhecermo-nos uns aos outros. - Tem também a voz de uma menina. A sua voz é alta e fina e vibra como a última folha numa árvore de Inverno. Quando nos diz para encostarmos as cadeiras à parede para formarmos um círculo à volta da sala, nós obedecemos. Ficamos de pé ao lado das nossas mesas e vemo-la pôr-se de joelhos e usar giz branco para desenhar um enorme mapa dos Estados Unidos no chão de cimento enquanto vai enumerando os estados existentes na ponta inferior do mapa. Nunca tinha visto uma professora de joelhos. Ela levanta-se, sacode a saia azul-marinho e volta para a secretária.
- Quero que se ponham no lugar do mapa que corresponde ao sítio em que nasceram.
Todos corremos para o sítio que pensamos ser a Geórgia. Todos têm a sua opinião, mas finalmente chegamos a acordo sobre o local em que deve ser. Uma menina branca magrinha com uma camisola vermelha com buracos numa manga está sozinha na Flórida.
- Muito bem - disse a Miss Phillips sorrindo. - Agora apresentem-se a alguém que não conhecem e digam-lhe onde gostariam de viver.
Ninguém quer ser o primeiro, por isso vou até à Flórida e
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digo à menina branca, de um só fôlego, por que razão quero viver no México: para poder nadar todos os dias no oceano. A princípio ela não diz nada. Depois olha em volta como se estivesse a ser observada e sussurra:
- Chamo-me Maryann. Não tenho licença para falar com pessoas de cor, mas quero morar na Carolina do Norte com a minha avó, porque ela vive numa quinta com galinhas a sério.
Nessa altura todos começam a falar e a professora tem de se pôr em cima de uma cadeira para nos fazer calar.
- Atenção meninos, agora imaginem que este mapa é um mapa da cidade. Isto representa a zona ribeirinha oriental, a baixa ocidental, a alameda norte e a auto-estrada do sul. Ponham-se no sítio onde moram actualmente.
A Maryann e eu separamo-nos, como fazemos todas as tardes quando a escola acaba, em branca e negra. Observo-a no outro lado da sala e pergunto-me se algum dia saberei mais do que o seu nome.
- Vamos falar do significado de integração - diz a Miss Phillips.
Nem tudo está calmo no nosso novo universo. No primeiro dia de aulas começa uma luta. A Joy fala-me disto durante o almoço de feijões secos, arroz pegajoso e carne castanha a boiar em molho.
- O Judeuzinho foi mandado para o concelho directivo antes do primeiro toque - disse a Joy, e depois bebeu do pacote de leite chocolatado com a cabeça inclinada para trás.
- O seu nome é Samson - digo eu, tentando encontrar a carne no meio do molho.
- Sim, é isso. A irmã dele vai ficar fula se tiver de vir de tão longe para o vir buscar. - O garfo da Joy mexe-se tão
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depressa que a comida voa para a mesa. Se calhar não tinha comido nada além do chupa-chupa vermelho de cereja que lhe dei esta manhã a caminho da escola.
- O que é que aconteceu? - pergunto, empurrando o tabuleiro na sua direcção. Observo como limpa o meu prato. Ela fala com a boca cheia e, por isso, tenho de lhe pedir que repita algumas coisas.
Diz-me que o Samson pegou numa rapariga branca que estava no corredor à espera que as aulas começassem e a levantou no ar, por brincadeira, acima da cabeça. Ele já me tinha feito o mesmo algumas vezes desde que nos últimos dois Verões ficou mais alto e espadaúdo do que eu. Eu desatei a berrar e a bater na sua enorme cabeça quadrada até ele me pousar no chão, mas esta rapariga que ele levantou no ar acima da cabeça como se fosse o Mister Universo tinha um irmão que o atirou contra a parede. Os amigos do Samson meteram-se ao barulho e o inferno desceu à terra. O Samson estava sempre a meter-se em sarilhos para fazer jus à força bíblica de Sansão.
O que aconteceu depois foi que a Joy encontrou um anel no lavatório do segundo andar. Mostrou-mo por baixo da mesa.
- Vais levá-lo ao concelho directivo? - perguntei olhando para o belo anel com uma pedra vermelha na palma da sua mão.
- Estás é doida. Se fosse realmente importante não o tinham perdido. Vou tomar bem conta dele - disse a Joy metendo-o no bolso do seu vestido justo às flores. - Nunca tive nada tão bonito na minha vida.
Não digo nada. As minhas tias ensinaram-me a não tirar nada que não fosse meu, mas consigo perceber o ponto de
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vista da Joy. Para a Joy o anel foi-lhe deixado como um presente por uma mão descuidada.
Como se isso não fosse suficiente, antes do toque de saída das três horas, a Joy cola pastilha elástica ao cabelo de uma rapariga branca. A rapariga branca senta-se em frente dela e não pára de atirar os seus grandes caracóis escuros para trás das costas e para a secretária da Joy, e eles batem sem parar no trabalho da Joy. A Joy atirou vários pedaços de pastilha elástica para dentro da boca até fazer um grande balão, deixou-o rebentar no cabelo da rapariga e depois colou-lhe na cabeça o que restava do balão enquanto ela gritava: "Assassina!". Fico furiosa quando a Joy é suspensa por uma semana, pois não tenho ninguém com quem andar.
A Neicey também anda nesta escola, mas é uma convencida. Anda com os brancos e mal me fala quando me vê no corredor. Queria poder falar com o Mr. Giovanni sobre pessoas brancas, mas sei que ele ia dizer-me que "Somos todos iguais ao olhos de Deus". Mas somos diferentes. Gostamos de músicas diferentes, vivemos em sítios diferentes, comemos comidas diferentes e frequentamos igrejas diferentes.
Um dia, quando a Miss Phillips ficou doente, veio uma professora substituta chamada Mrs. Peabody. Tal como a Miss Phillips, era nova e branca. Mas o seu cabelo era castanho e fino e caía sem vida pelo seu rosto comprido abaixo. Nunca se ri e por isso não parece bonita. O seu fato de lã está apertado no pescoço e tem uma malha caída nas meias castanhas muito grossas. Pergunta à Maryann qual é a lição para hoje. Quando a Maryann não responde, pergunta a um rapaz do Bairro da Previdência que também não responde. Quando chega a minha vez, os seus olhos tinham-se transformado em
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punhais de fogo. Ignoro-a e continuo a escrever palavras que não são palavras, mas sim letras unidas em pensamento, com tinta azul, na superfície de madeira da minha secretária: Siaijd... ownciuy... tyoijow... nvgvvd... qoriuf...
- <És estúpida? - pergunta-me ela, como se eu fosse responder-lhe. Ignoro-a como todos os outros, mas é a mim que ela decide punir enviando-me para a aula de Educação Especial. A Educação Especial é onde juntam os miúdos retardados com os miúdos que têm problemas a soletrar, os miúdos que gritam o dia todo, os miúdos em cadeira de rodas, os miúdos que não sabem ler, os miúdos que falam de mais, os miúdos que fazem chichi nas calças, os miúdos que gostam de andar à pancada, os miúdos que gostam de meter o dedo no nariz, e os miúdos, como eu, que precisam que o seu espírito seja domado. Quando entro na sala de Educação Especial, na cave do edifício, o professor, um homem negro de bigode, está a segurar o braço de uma rapariga mantendo-o afastado dela como se ela fosse bater nela própria com a régua que tem na mão se ele a largasse. Não há miúdos brancos na Educação Especial. Todos os miúdos que estão na sala estão a fazer barulho ou a falar com outra pessoa. Vejo outra miúda normal de castigo. É a Tree. A meia irmã do Morto vive no Bairro da Previdência. Todos lhe chamam Tree, mas o seu nome é Teresa. A Joy disse-me que o Morto tinha sido preso aos catorze anos por ter partido o nariz a um polícia. Ele tinha vindo do reformatório com cicatrizes de faca no pescoço. O Morto ficou com esse nome por causa do avô. Ele costumava dormir com o avô. Quando tinha cinco anos acordou a meio da noite com um pesadelo. O avô tinha morrido, mas o Morto pensava que ele estava a dormir e, por isso, aninhou-se no
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velhote e voltou a adormecer. O avô dele era conhecido por se levantar com as galinhas e, na manhã seguinte, quando ele não desceu para o pequeno-almoço, encontraram o Morto a dormir nos braços do avô. Desde esse dia deram-lhe o nome de Morto e todos os que o conhecem juram que ele consegue falar com os mortos durante o sono. As pessoas pedem-lhe para ele não sonhar com elas, pois se ele sonhar é quase certo que, dentro de um dia ou dois, já estão na mão dos espíritos. O Morto viu o pai ser morto em sonhos e, no espaço de alguns meses, o pai foi morto por um comboio na estação de caminhos de ferro onde trabalhava. A Tree é mais sossegada. Costumo vê-la passar à minha porta e é com inveja que a vejo ir de mão dada com a mãe.
A Tree está a ler uma revista numa secretária ao fundo da sala. Levanta os olhos e chama-me. A sua voz é baixa e pesada como fumo de cigarro.
- Porque é que estás aqui? - pergunta dobrando a revista e guardando-a no bolso de trás.
- Roubo à mão armada. E tu?
- Assassínio qualificado - Rimo-nos.
Descubro que ela está aqui há uma semana. Está aqui porque a professora dela disse que ela estava a falar sozinha. A Tree disse que estava a recitar um poema que tinha inventado para não se esquecer, mas a professora não acreditou.
- És a irmã do Morto? - perguntei.
- Culpada. - E levantou a mão direita no ar.
- Porque é que tens um nome como Tree? - pergunto ousadamente.
- O meu irmão tem uma língua preguiçosa. Quando era pequenino não conseguia dizer Teresa. Dizia que, de qualquer
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das formas, queria um irmão. Ele diz que, para irmã, até dou um bom irmão. Dou-lhe uma coça a jogar basquete. - Ri-se, dribla uma bola invisível e atira-a graciosamente para o ar. - Não vives nas casas da Previdência, pois não? - pergunta.
- Não. Vivo na grande casa branca do outro lado dos trilhos.
- Não te iludas. Só porque vives do outro lado da rua continuas a ser uma rapariga do Bairro da Previdência.
Os dias que passo na Educação Especial com a Tree servem para aprender coisas que nunca mais vou esquecer. A mãe da Tree é sindicalista e ensina à Tree e ao Morto coisas que não se ensinam na escola. A Tree diz que é por isso que o Morto está sempre metido em sarilhos e anda à pancada o tempo todo. Ele está furioso porque a mãe deles lhes disse que a vida não é justa para os negros. Segundo a Tree, segundo a mãe dela, o nosso mundo, a casa onde vivemos, as roupas que vestimos, os livros que lemos não nos tornam especiais aos olhos das pessoas brancas se formos negros ou aos olhos das pessoas ricas se formos pobres.
A Tree e eu não voltamos a andar juntas depois dessa semana - ela está numa turma mais avançada -, mas é um rosto simpático com que posso contar para um piscar de olhos ou um sorriso quando a encontro no corredor ou na cantina e mesmo quando está com os amigos. A maior parte das vezes que a encontro está sozinha e os seus lábios estão a mover-se como se estivesse a tentar lembrar-se de outro poema. Conhecê-la faz-me sentir especial, como se pertencesse a algum lugar.
A Joy e eu não prestamos muita atenção às aulas e quase não passamos a disciplina nenhuma excepto Educação Física.
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Chegamos sempre atrasadas à escola, porque antes da escola vamos para a casa de banho para rirmos e fazermos planos juntas. Pintamo-nos uma à outra com sombra verde-pálida, risco azul-escuro nos olhos e brilho rosa-vivo nos lábios.
A Joy mergulha os seus dedos cor-de-rosa num pequeno boião de creme brilhante e pegajoso e aplica-o nos meus lábios. Sinto como se ela estivesse a tocar-me algures debaixo da minha saia. Ela faz-me comprimir os lábios para espalhar a mistela pegajosa por ambos. As minhas mãos tremem quando lhe faço o mesmo a ela. Ela olha-me nos olhos e eu sei que ela sabe porquê. Pousa a mão dela na minha para me acalmar. Tento afastar os antigos sentimentos. Aos treze anos somos consideradas avançadas para a idade ao desfazermos as nossas tranças e transformarmos os rabos de cavalo em puxos africanos que saem do alto das nossas cabeças como esponjas felpudas. A Joy fala muito sobre rapazes. Ela acha o Morto muito giro. Eu acho que a sua meia irmã Tree é mais gira, mas não o digo à Joy. Falamos muito em fugir juntas, mas tenho medo que a minha mãe, quando voltar, não saiba onde me encontrar. À tarde eu e ela passamos muito tempo em frente ao espelho da casa de banho a limpar os rostos com vaselina e a pôr outra vez o cabelo com tranças como estava.
Quero contar à Joy acerca da minha mãe e mostrar-lhe a fotografia do meu pai. Quero contar-lhe tudo, mas é difícil falar da minha mãe, porque até a palavra mãe me deixa a garganta apertada e os olhos rasos de lágrimas. É como se ela estivesse morta. Quero falar-lhe das cartas do meu pai, mas em vez disso deixo que seja a Boneca a falar. Deixo-a contar-me os seus segredos. Ela sabe que nunca direi nada a ninguém Quando a Joy me diz que está grávida quase me engasgo com
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a garfada de gelatina. Dentro de seis meses ela terá alguém que a ame completamente. Eu desejo o mesmo. Ela diz-me que está apaixonada por um homem chamado Willie T. Lovell. Ele já é um homem feito, com 19 anos e a conduzir o seu próprio carro. Ela mostra-me fotografias dele e ele parece muito bem no seu uniforme de soldado. É da Virgínia, mas está aquartelado na base ao pé da auto-estrada.
- Conhecemo-nos no ringue de patinagem na Noite dos Pretos. Ele pensava que eu tinha dezoito anos - diz ela acendendo um cigarro à janela da casa de banho depois de almoço.
- Não uses essa palavra. - Tiro-lhe o cigarro da mão e dou uma passa.
- Todos lhe chamam assim. És demasiado religiosa. - Ela cruza as pernas e começa a esfregar a barriga como se sentisse o bebé a mexer-se lá dentro.
- O que é que a religião tem a ver com isso?
- Tal como eu estava a dizer, ele deixou-me falar com a mãe dele ao telefone. Isto é a sério.
Sinto-me um pouco invejosa, mas finjo estar feliz por ela.
- Ele vai casar comigo quando o bebé nascer. Vamos para o estrangeiro e eu vou ter o meu próprio apartamento. Mrs. Joyous Lovell. - E dá uns passos de dança como se fosse uma bailarina.
- Vais terminar a escola?
- Para quê? O meu homem trabalha para o governo. Tens de arranjar um homem se quiseres sair desta cidade, menina. O Willie tem um primo que te levará daqui.
- Tudo bem. - Sinto-me envergonhada por ela pensar que tem de arranjar alguém para mim.
- Se não te despachares a arranjar um namorado, as
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pessoas vão pensar que és esquisita ou qualquer coisa. - Parece não se lembrar dos nossos beijos, mas eu tenho as minhas lembranças bem guardadas. Dá uma última passa no cigarro e atira-o para a sanita a alguns metros de distância.
- Vou ter um bebé. Se aquele pre... se o Willie T. alguma vez me deixar terei algo meu - diz ela, já a milhares de quilómetros de mim.
Uma vez plantada, a ideia cresce dentro de mim como uma semente. Começo a procurar um homem que me faça um rio de promessas, que me manche de paixão. Quero um anjo nos meus braços.
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VII

É Verão, tenho catorze anos. Esperei, mas o meu pai não veio buscar-me. Ele já não inventa desculpas e eu já não espero por elas. Já não tenho idade para Viver aventuras entre as páginas dos livros ilustrados que ele manda. Em vez de ir à igreja ao domingo, vou sozinha ao GoverriOrs park ver jogos de beisebol.
_ Deus deu-te dois olhos, um para olhares pelo que tens e o outro para olhares para o que queres ter _ diz sempre a tia Merleen.
Durante todo o mês de Julho mantenho os dois olhos no portão de trás do Golden Park procurando o número vinte e dois, o meu número da sorte segundo a médium que está sentada à janela na Fourth Street por baixo da tabuleta com a mão azul. Não sei em que estou a pensar. Talvez tenha esperança que ele repare em mim no meio de todas as outras raparigas que ficam à espera do fim do jogo à procura de um número. Cabelo escuro, olhos escuros encaixados num rosto moreno simpático. Lábios que falam espanhol imagino que irá ensinar-me coisas, dar-me coisas, levar-me para longe de tudo isto. Quatro horas, sábado, treze de Julho, Jesus Miguel Monteverde, número vinte e dois, jogacior da equipa Astro,
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olha-me nos olhos e sorri. Atira-me uma bola clandestinamente. Apanho-a e devolvo-lha num arco que nos faz esticar os pescoços. A meio do voo a bola transforma-se numa laranja perfeita que ele me dá juntamente com uma única palavra: naranja.
Tinha visto outras raparigas apanharem bolas de outros jogadores durante quatro semanas e sabia que ele estava a escolher-me. Disseram-me que nunca devia falar com estranhos, mas quando o Jesus Miguel me pegou na mão segui-o até à Steak house do outro lado da rua. Ele come curvado sobre a comida como um animal faminto. Devora um bife enorme com batatas fritas como se não comesse há dias. Sorvo um pouco de vinho e debico as batatas fritas já frias da beira do seu prato como se não tivesse fome. Não estou certa que ele vá pagar-me o jantar, e por isso bebo a água que a empregada deitou à frente de cada um de nós e volto a encher o copo com vinho, sempre que posso, tentando parecer ter dezoito anos e pensando no que a Joy faria.
Descubro pelo programa de beisebol que a empregada da casa de banho me deixa ler que ele é da República Dominicana. Não falo espanhol e ele só fala algumas palavras de inglês, pelo que passamos muito tempo a olhar para os olhos um do outro, sorrindo timidamente. Apesar de tudo, com-preendemo-nos. A sua mão está a dançar um merengue com a minha mão esquerda no espaço vago de vinil vermelho. Não consigo respirar e o meu peito parece crescer quando ele me toca.
O hotel da baixa onde o Jesus Miguel vive durante a época de beisebol fica a curta distância. O ar da noite é quente e pegajoso quando caminhamos de mãos dadas pelas ruas
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desertas. Tento afastar da minha mente o pensamento de que a tia Faith e a tia Merleen estão em casa à minha espera. Não quero voltar para trás, pelo menos a parte de mim que deixou a grande casa branca logo depois do pequeno-almoço sem nada no bolso a não ser uma nota de dez dólares novinha em folha enviada pelo meu pai. Quero que algo aconteça, uma grande mudança para o meu novo eu que acordou com um novo corpo, uma nova maneira de ver as coisas e novos sentimentos que ainda não têm nome. O Jesus Miguel beija-me delicadamente na face e diz-me adeus ao entrar pelas portas do hotel.
- São nove da noite! Onde estiveste? - A fúria da tia Merleen recebe-me na porta dos fundos. A tia Faith está ao lado dela. Passo pelo meio delas e abro o frigorífico para beber um copo de água.
- Estávamos preocupadíssimas. Pensávamos que te tinha acontecido alguma coisa - diz a tia Faith, falando para as minhas costas.
- Estou bem. Vim para casa pelo caminho mais longo. - Bebo a água fria em goles rápidos.
- Ainda não és nenhuma adulta. É demasiado tarde para chegares a casa - disse ela.
- Desculpem - digo, enquanto lavo o copo. Tento passar por elas e subir pelas escadas de trás. A tia Merleen está a tremer quando pousa a mão no meu ombro. Aproxima-se do meu rosto.
- Quero-te nesta casa todos os dias antes de anoitecer. Percebes? - A tia Faith observa-nos do seu lugar na mesa da cozinha. Os seus olhos estão tristes.
- Compreendo - digo, mas fiquei marcada. Percebo
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como um beijo pode fazer nascer uma flor. O Jesus Miguel Monteverde fez-me ter vontade de fugir para a noite húmida e perder-me no meio de um * beijo da alma.
Sonho com o Jesus Miguel todos os dias da semana. Quando as minhas tias vão o ao lar, no domingo seguinte à tarde, vou até ao campo de besebol. É um jogo demorado e enfadonho. O Jesus Miguel falha duas vezes no taco e o jogo acaba empatado 1-1. Depois do jogo desço a escada e espero. Os jogadores ainda não saíram, mas já há várias raparigas à espera, agarradas à vedação com unhas pintadas da cor de melões de Verão. Procuro"o o número vinte e dois é não fico desapontada. O Jesus Miguel sai dos balneários com uma T-shirt branca e umas calças de ganga bem engomadas. É alto e tem os ombros largos, alguém a quem me posso encostar sem medo de cair. Desta vez paga-me o jantar num restaurante do outro lado da rua. Brinca o Com a minha mão debaixo da mesa. Dirigimo-nos para o hotel dele e, sempre de mãos dadas, entramos juntos. O recepcionista segue-nos com os olhos, mas não diz nada. No elevador consigo ouvir o meu coração a bater. Pergunto-me se o Je^sus Miguel também consegue ouvi--lo. Caminhamos lado a a lado pelo corredor alcatifado sem falar. Ele gira a chave na fechadura e eu perco-me.
Dentro do seu quarto existem duas camas iguais cuidadosamente feitas e cobertas Com colchas azuis-claras, A cómoda está repleta de moedas, revistas desportivas, uma laranja e cupões "dois pelo preço de um" de restaurantes locais. Na mesinha de cabeceira está pousado um copo de água, um telefone e um cartão laminado com a Virgem Maria. A minha cabeça começa a girar e tenho de me sentar numa das camas. O Jesus Miguel toma um duche enquanto eu mudo de canais
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num televisor a cores. Estou estranhamente calma. Como a laranja, vermelha-escura por dentro. O sumo escorre-me pelo braço e cai na cama manchando-a como se fosse sangue, sangue. Chego a comer a casca que sabe a flores, flores. Ele sai da casa de banho em cuecas. Fica parado à porta a olhar para mim durante muito tempo. Mostra-me uma fotografia da irmã. - Rosa. Mi hermana - diz docemente. Olhar para a fotografia é como olhar para o espelho. Os meus olhos, o meu cabelo, a forma dos meus lábios. Ele faz-me perceber que sente saudades dela. Compreendo que ambos temos necessidade de nos sentirmos preenchidos esta noite. Desligo o televisor e deitamo-nos juntos numa das pequenas camas, às escuras, a olhar pela janela e a contar as estrelas. Chama-me Estreita de Noche, Estrela da Noite. Põe o braço à minha volta e começa a cantar a canção mais doce que já ouvi. Não percebo as palavras, são todas em espanhol, mas o significado é óbvio, mucho claro. Fecho os meus olhos e ele beija-me suave e docemente a face esquerda. Nos seus braços sinto-me segura, desejada, sábia por o ter escolhido. Beijo-o nos lábios e sinto como se os nossos corpos fossem tocados por uma cobra trovejante. Uno as coxas para me agarrar a essa sensação. As nossas roupas caem como a casca da laranja. Com a minha língua pinto o seu pescoço e o seu peito liso, tomo-o na boca até ele me afastar suavemente. As suas mãos deixam um rasto de impressões digitais no meu corpo em todas as direcções. Os seus beijos húmidos pelas minhas coxas fazem que o meu corpo chame por ele. Ele afasta as minhas pernas com as suas mãos grandes e suaves e mete um dedo deslizante dentro de mim, mergulhando e voltando à superfície.
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Sabe bem e já não sinto medo. Quando finalmente entra em mim, mordo o músculo duro do seu ombro e choro um pouco. Ele inflama-se dentro de mim até não se conseguir conter mais. Aguento-o dentro de mim muito tempo depois de ele se vir, esperando que esta pequena dor se transforme numa menina perfeita que me ame. Adormecemos e sonhamos os mesmos sonhos.
Vivemos numa casa azul-pálida com um telhado de telhas vermelhas ao lado de um pomar de limões amarelos a florir. Os nossos filhos são estrelas que brilham num céu azul-marinho. O Jesus Miguel esfrega-me os pés com folhas de menta. Com a minha língua tatuo nas suas costas um ramo deflores vermelhas e cor de laranja. Os nossos filhos cantam como anjos por cima das árvores. Cantam para nós em espanhol. Somente sonhos, Solo suenos.
Os meus olhos ainda lhe reconhecem os traços no escuro. Ele parece ser tudo o que há de belo, mágico e bom. Ouço a música da sua voz nos meus sonhos. Que suenes con los angelitos. Estamos ambos a sonhar com os anjos.
Todas as noites, trancada no meu quarto, sozinha na minha cama, apalpo a barriga à procura do nosso bebé. Espremo os mamilos à procura de leite, ponho o meu dedo molhado em mel dentro de mim mesma para ver se o meu bebé está lá. Se houver vida na minha barriga será uma menina, estou certa disso. Uma menina mais bela do que uma estrela. Chamar-se-á
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Estrella. Estrella de Noche. Dar-lhe-ei mel numa colher de prata, amá-la-ei e ela aprenderá a amar-me, porque é o que eu preciso.
Contínuo a tentar escapulir-me para ir ver o Jesus Miguel, para estar com ele, mas as minhas tias trancam-me no quarto a noite inteira. Quando viram que eu não estava em casa à meia-noite telefonaram à polícia, que ligou para o campo de beisebol, donde ligaram para a recepção do hotel, que ligou para o quarto do Jesus Miguel para nos avisar que a polícia estava a caminho. No chuveiro agarrei-o contra mim, não o largando durante muito tempo. Ele afagava-me o cabelo e dizia-me palavras doces em espanhol. Secou-me o corpo, beijando cada bocadinho com ternura. Vestiu-me e deu-me dinheiro para o táxi. Quando nos separámos à porta do hotel não havia necessidade de promessas. Tinha a boca repleta de beijos espanhóis e, quando fechei os olhos, vi bebés sorridentes de olhos escuros que se pareciam com Jesus a brincar entre as estrelas.
As minhas tias ameaçaram mandar prender o Jesus Miguel por rapto. Levantam as mãos aos céus, invocam Deus e finalmente ignoram-me, que é exactamente o que me convém. As únicas palavras que tenho são para o meu futuro bebé. A Rosemary e eu inventamos canções.
Não quero metê-lo em sarilhos, mas sinto-me muito só. Só queria vê-lo mais uma vez. Fujo uma noite, quando a casa está adormecida, descendo muito devagarinho as escadas das traseiras e evitando o degrau traiçoeiro ao fundo. Tacteio às escuras à procura das chaves do grande carro azul. O meu coração bate tão forte que parece fazer tremer o chão debaixo dos meus pés. No momento em que a minha mão toca nos
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pequenos pedaços de metal frio, acende-se a luz fluorescente da cozinha. Retiro rapidamente a mão e tento não parecer culpada do crime que estava prestes a cometer.
- Parece que também não consegues dormir. - A tia Merleen está com o pijama vestido e a touca de dormir na cabeça. Parece cansada.
- Queria apenas sentar-me no alpendre. - A mentira sai-me facilmente pela boca fora.
- Senta-te aqui comigo um bocadinho - diz ela pacientemente, puxando uma cadeira da mesa da cozinha. Parece ter perdido o fôlego.
Relutantemente sento-me à sua frente, brincando com o saleiro em forma de galo. Entorno um pouco de sal na toalha branca. Atiro um punhado para trás das costas. A tia Merleen ri-se.
- A tua mãe costumava fazer isso - diz ela, esboçando um sorriso.
Não respondo.
- Aonde ias? Ias ter com o teu jogador? Minha querida, ele não quer saber de ti. Só vai meter-te em sarilhos e pôr-te com uma grande barriga como aconteceu com aquela tua amiga.
Recuso-me a olhá-la.
- Não deves ir ao Governors Park - diz ela. Soa quase como um apelo. Como é que ela se atreve a proibir-me de ver o homem que me transformou para sempre, o homem que vai dar-me uma coisa realmente minha para amar?
- Não me partas o coração. És tal e qual a tua mãe. Não comeces a viajar cedo de mais senão nunca encontrarás paz. Quando tinha a tua idade, a tua mãe já apanhava comboios e
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fugia de casa, mas isso não a levou a lado nenhum. Não po díamos fazer nada pela sua relação com a Gert, mas podemos fazer algo por ti. Não me partas o coração, minha menina - disse como se ele já estivesse partido. Não quero magoar as minhas tias. Quem me dera que conseguisse fazê-las perceber que preciso de alguém que seja meu. Tal como a tia Merleen tem a tia Faith, como a minha mãe tinha o meu pai, também eu quero ter alguém que seja só meu.
Há um fio azul no pano da loiça a secar no lava-loiça. Tento afogar a sua voz com o bater do coração da minha menina perfeita que irá cheirar a laranja e a flores. Conto mentalmente os seus dedos dos pés e das mãos até a tia Merleen me deixar sentada à mesa às escuras.
Duas semanas mais tarde, e como de costume, aparece--me o período num fluir suave. Durante o resto do Verão sou observada atentamente pelas minhas tias. Sou obrigada a ir com elas para todo o lado, à igreja, ao lar, à mercearia, ao ensaio do coro, e ameaçam mandar-me para um acampamento de escuteiros para raparigas no Alabama. Acompanho-as e deixo que me vigiem, pois não tenho para onde ir. O Jesus Miguel não fez promessas nem eu lhe pedi que as fizesse. No fim da época de basebol o Jesus Miguel volta para a República Dominicana e sei que, muito provavelmente, nunca mais o verei nem ouvirei falar dele.
- A tua mãe telefonou esta manhã depois da Merleen e eu termos ido à loja - diz a tia Faith. - Disse que ia voltar para casa.
Paro de respirar e tento lembrar-me do que ela tinha
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acabado de dizer. Tento que as suas palavras façam sentido. Pouso o garfo cheio de puré de batata, subo as escadas, entro no quarto e junto tudo o que tem algum significado para mim, o que não é muito. Todas as noites me sento nas escadas da frente à espera dela. Durante as três semanas seguintes a mala verde que está ao lado da porta do quarto não faz senão acumular pó. Em que dia é que ela disse que vinha? De onde é que telefonou? Estaria doente? O que será que a faz demorar tanto?
A tia Faith procurou a minha mão por cima da mesa da cozinha e segurou-a na dela fazendo-lhe festas.
Amada... posse... ímpeto... paz... lar...
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VIII

Quase não reconheço a Joy a correr na minha direcção. Estou a voltar para casa no fim da escola mastigando palavras e frases que aprendi na aula de espanhol.
Onde está a minha mãe? iDónde está mi madre? Quem é o meu pai? Quién es mi padre? Quando? Cuándo...? iCuándo... ?
Há semanas que não via a Boneca. Está gorda por causa do bebé. A barriga enorme e redonda está meio escondida por baixo de uma blusa demasiado apertada. Enquanto corre ao meu encontro quase consigo ver o bebé encostado à sua pele, esticada como couro numa bola de beisebol.
- Anda daí, Myra. Eles estão quase prontos para a marcha. - Remói o meu nome na boca e agarra-me, puxando-me na sua direcção.
Olho para a barriga à mostra sem perceber o que ela está a tentar dizer por entre a respiração entrecortada e o som das palavras que me escapam.
- Eles quem? Que marcha? - pergunto, pondo a mão no seu braço para a acalmar. Ela inclina-se para a frente para recuperar o fôlego e depois arrasta-me em direcção à multidão que
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corre para o centro. Consigo libertar-me dela. Ela volta-se e vejo que tinha estado a chorar.
- Estás bem? - Estou assustada, nunca a tinha visto a chorar.
- Conheces o meu primo Warren?
Aceno que sim. Trata-se de um rapaz alto e magro com um dente de ouro em forma de estrela. Está sempre a trabalhar com o avô no quintal da Joy, a consertar carros avariados. Chama-me sempre Ruiva e pisca-me o olho quando passo por casa da Joy.
- Ele está preso e... - recomeça a chorar. - O Judeu-zinho está morto. A polícia alvejou-o pelas costas. Desta vez temos de fazer uma marcha de protesto.
O Samson está morto. Só conheço mais uma pessoa que está morta, o Mr. Giovanni, mas esse era velho. Não conhecia os outros dois rapazes que a polícia matou no ano passado quando estavam a divertir-se no Bottom, quando a Black Maria, a carrinha preta da polícia, surgiu de repente e apanhou todos os negros que lhe apareciam pela frente. Todos disseram que eles só estavam a divertir-se. Não estavam a fazer mal nenhum. Só fugiram porque tinham medo de ir parar à cadeia. Um polícia branco atingiu na perna um rapaz de quinze anos chamado Amendoim, mas o Foguete não teve tanta sorte. Quando o apanharam espancaram-no até à morte. As pessoas revoltaram-se e não falaram de outra coisa todo o Verão, mas nada foi feito. O polícia nunca foi acusado de nada. O NAACP organizou uma marcha, mas não lhes foi dada autorização. Por isso fizeram uma vigília a que só assistiram velhos.
Quando conseguimos alcançar a multidão, cada vez mais
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numerosa, na esquina da Fourth Street, pudemos ver o Reverendo Mordell, um pregador baixo e careca da Igreja do Amor Universal - a tia Merleen diz que é apenas uma fachada - a tentar acalmar as pessoas, gritando por um megafone.
- O Senhor mostrar-nos-á o caminho. Oremos. - Encostando o queixo ao peito, o Reverendo Mordell baixa a cabeça em oração.
Alguém lhe arranca o megafone das mãos empurrando-o em seguida. É o Morto. O Samson era o seu melhor amigo.
- Os brancos são os donos de tudo - grita através do megafone. - Continuam a agir como se fossem os nossos donos. - "Ámens" e "apoiado" elevam-se da multidão. - Não sou nenhum preto escarumba nem quero ser esmagado debaixo das botas de um branco que insiste em dizer que é isso que eu sou. - No ar paira o odor de uma fogueira que ninguém conseguirá apagar.
O Morto dá o megafone à Danita, a irmã mais velha do Samson, de olhos cansados, que já tem filhos da minha idade. Ela parece estar ainda mais magra e mais vazia do que a última vez que a vi, há alguns meses atrás, a descascar ervilhas no alpendre.
- Não podemos deixar que continuem a matar os nossos filhos. O Judeuzinho era um miúdo bom e todos sabem disso - diz ela simplesmente, pousando delicadamente o megafone no chão como se este fosse o braço de uma criança. Sinto um nó na garganta. Sinto-me triste por ela, pois sei que o amava. Foi ela que pagou as lições de piano que ele tinha com a tia Faith. Ela aparecia no fim de cada semana na porta das traseiras da grande casa branca para dar à tia Faith doze moedas de vinte e cinco cêntimos amarradas num lencinho branco.
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Subitamente deixou escapar um uivo de dor arrancado das entranhas. A seguir ouvimos o som de vidro a quebrar. Viramo-nos e vemos a vidraça redonda da montra da Mercearia Masterson escancarada como se fosse uma boca repleta de afiados dentes de vidro.
- Os brancos são donos de tudo! Agem como se ainda fossem nossos donos! Preços de primeira para produtos de segunda! - grita o Morto através do megafone. Esta declaração incendeia a multidão. Numa súbita explosão de movimento, eu e a Joy somos arrastadas pela torrente de corpos que se movem para o interior da loja através da montra partida. Agarramos sacos e enchemo-los com os produtos de segunda do Mr. Masterson - enlatados e carne de qualidade questionável.
Agarro num frasco de picles e numa mão cheia de rebuçados. Vejo a Tree, a meia irmã do Morto, junto da caixa registadora. Pisca-me o olho enquanto enche a blusa com livros de banda desenhada. Não tarda a ouvirmos as sirenes. A Tree desata a berrar para sairmos. Eu, a Joy e mais algumas pessoas seguimo-la e saímos pela janela de trás para o beco nas traseiras da loja. Alguém deitou fogo à loja. Podemos cheirar o fumo e ver as chamas do fundo da rua. Fugimos em fila indiana como se estivéssemos a correr em câmara lenta, coladas ao muro, quando as luzes se atravessam no nosso caminho. A Tree e a Joy deixam-me à porta da grande casa branca. Vejo a Joy dirigir-se para casa com um saco de comida, colada às paredes dos edifícios escuros, esquivando-se às luzes dos carros da polícia. A Tree entra num beco que leva ao parque infantil com as tranças a esvoaçar atrás dela.
Tento entrar pela porta das traseiras, mas a tia Merleen está sentada à mesa da cozinha.
- Onde estiveste? - pergunta inquisidoramente - Não sabes o que está a passar-se lá fora? Procurámos-te por toda a parte.
A tia Faith contorna pesadamente a mesa da cozinha fazendo estremecer os pratos no louceiro.
- O Samson está morto - digo eu. - Pegaram fogo ao Masterson - mudo o saco pesado de um braço para o outro.
- Isso não é motivo de orgulho. O Masterson era careiro, mas não matou o rapaz. Ele está a tentar fazer pela vida como todos nós.
- Qual é a preocupação? Vocês não fazem as compras lá - respondo.
- Felizmente posso fazer as compras noutro lado. Nem toda a gente tem um carro para poder ir ao A&P - a tia Faith repara no saco de mercearias que tenho na mão.
- Não permito que haja ladrões nesta casa. Dá cá isso - a tia Merleen arranca-me o saco das mãos e atira-o para o caixote do lixo por baixo do lava-loiça.
Saio a correr da cozinha e subo as escadas das traseiras para o meu quarto. Deito-me na cama a comer todos os rebuçados que enfiei nos bolsos e a chorar pelo Warren, que poderá nunca mais sair da cadeia, e pelo Samson, o miúdo mais bonito que alguma vez conhecera.
O dia a seguir à marcha é calmo. No bairro há recolher obrigatório às nove horas. Na escola os professores só falam do comportamento violento dos amotinados e dos prejuízos materiais, e todos os alunos só falam em como lutaram. Depois da escola passo pela loja do Masterson e vejo que só restaram cinzas. O Mr. Masterson está sentado no carro em frente da loja com o olhar de quem acabou de perder o melhor amigo.
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Não vou ao funeral do Samson, pois mandaram o seu corpo para o Alabama onde a mãe dele mora. Escrevo o seu nome na parede debaixo da minha cama e desenho um círculo de chamas à volta do seu nome para o manter quente.
Dá-se uma mudança no bairro depois da morte do Samson. As carrinhas da polícia deixam de vir ao bairro durante uns tempos e negros de outros bairros abrem pequenas lojas e outros negócios no fundo da rua e vendem carne fresca e produtos de primeira até abrir uma loja A&P apenas a alguns quarteirões do sítio onde tinha ardido o Masterson. A Joy diz--me que o NAACP teve alguma coisa a ver com a contratação da irmã do Samson para trabalhar como caixa no novo A&P.
Só estou autorizada a sair de casa para ir à escola e voltar. A maior parte das vezes a tia Merleen leva-me de carro e vai--me buscar. Já não sinto prazer nenhum em guardar os livros na pasta e esconder a maquilhagem no estojo dos lápis desde que a Joy foi embora. O meu corpo está presente nas aulas, mas o resto não. A minha mente apanha comboios e inventa palavras que seguem uma geografia íntima. A minha distracção está bem visível nas más notas.
Os novos professores do liceu O. Williams, até mesmo os negros, parecem não se importar se eu passo ou não a Álgebra. Mas a tia Merleen e a tia Faith importam-se; marcam inúmeras reuniões com os professores e com o vice-reitor. O reitor não se dá ao trabalho de as receber quando elas vêm à escola, está sempre demasiado ocupado a treinar a equipa de futebol e a levá-la à vitória. Mas manda-lhes uma carta a dizer que me expulsa se a minha atitude não melhorar. Não melhora nada, mas eu guardo para mim toda a tristeza e raiva que sinto contra o mundo inteiro e o universo.
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Quando, dois meses depois da marcha, encontro a Boneca na drogaria na baixa, tenho medo do que irá acontecer se eu ficar nesta cidade. Ela diz-me que a mãe a pôs fora de casa depois de ter o bebé, um menino amoroso chamado Willie T. Lovell Jr.. O seu soldado foi para a Alemanha sem ela, a mãe dele deixou de aceitar chamadas dela a cobrar no destino e, finalmente, mudou o número do telefone. Dizia que achava que o bebé não era do seu filho. A Joy diz que só não queria deixar de receber o cheque. Está a morar com a irmã, a Nicky, e as suas duas gémeas num parque de campismo do outro lado da cidade. Olheiras profundas marcam os seus olhos.
- Vem visitar-me - diz ela, com um cigarro preso entre os seus quentes lábios rosa-vivo. Dá-me o número de telefone e prometo ligar-lhe, mas nunca o faço.
- A tua mãe telefonou hoje - disse calmamente a tia Faith quando cheguei da escola, como se estivesse a dar uma notícia bombástica. Está sentada à mesa da cozinha a dobrar um guardanapo de papel vezes e vezes sem conta.
- Onde é que ela esteve este tempo todo? - A minha voz soa como o eco numa sala vazia.
- Queres mesmo saber a verdade, querida? - pergunta a tia Faith respirando fundo, com os olhos postos no tecto como se procurassem uma pista por onde começar.
Não sei se esta é a resposta certa, mas sussurro um sim e tento preparar-me para ir até onde ela está prestes a levar-me.
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Sento-me na cadeira ao lado dela deixando que os meus livros caiam ao chão.
- Ela vai voltar? - pergunto, com medo de ouvir mais e com a certeza de que morrerei por causa do medo que se espalha a partir do centro do meu corpo. Pouso a cabeça na mesa e cubro o rosto com os braços, dobrando-os.
- Ela terminou um programa de luta contra a toxicodependência, um programa dos bons, no Michigan. Esta foi a primeira vez que se aguentou num sítio mais do que uma ou duas semanas. Falei com a responsável pelo programa e ela disse-me que ela já tinha progredido bastante. - Pára de falar para ver se ainda estou a ouvir. Aperta a minha mão, larga-a e depois afasta-se da mesa da cozinha. - Quando a tua mãe era pequena ficava acordada até tarde a ouvir os comboios passar para poder viajar neles em sonhos. Adormecia e acordava sempre a pensar em viajar. Todas as manhãs contava à Merleen e a mim onde tinha estado e todas as pessoas que tinha conhecido nos lugares por onde tinha andado durante a noite. Agora diz que está farta de viajar.
- E disse quando é que voltava? - pergunto.
- Disse que desta vez não te ia desapontar - a tia Faith esboça um sorriso, mas os seus lábios estão marcados pela tristeza.
Desta vez não vou fazer as malas e esperar por ela sentada à porta. Mas vou esperar. Todos os dias espero ouvir o som dos seus saltos altos na entrada, mas na segunda é o carteiro, na terça uma vizinha a devolver um tabuleiro de bolos que tinha pedido emprestado. Na sexta-feira sei que a minha mãe perdeu outro comboio. Mas à noite ouço o som dos seus passos no corredor. Todas as noites me sento no primeiro degrau
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das escadas, a olhar para a porta à espera que se abra. Quando a promessa da minha mãe começa a desvanecer-se, decido que era capaz de gostar de fazer as minhas próprias viagens.
Todos os dias desafio as minhas tias para me expulsarem de casa. Falto às aulas, respondo torto aos professores, não entrego os trabalhos de casa, insulto o reitor, fumo na casa de banho e, às vezes, nem sequer apareço na escola. Tento falar com o meu pai, mas ele nunca está em casa. As minhas tias tentam falar com ele na esperança de ele ser capaz de fazer alguma coisa de mim. Depois de ter sido suspensa da escola pela terceira vez as minhas tias admitem que ganhei. Numa tarde chuvosa de Abril conseguem falar com o meu pai.
- Estamos velhas de mais para isto - oiço a tia Faith repetir vezes sem conta. Estou sentada nas escadas, com os ouvidos virados para a cozinha onde elas estão ao telefone com o meu pai. Quando a tia Merleen me chama, o seu rosto é severo. Dá-me o telefone e sentam-se na cozinha, como pedras de jardim, observando-me. O telefone pesa-me na mão, sinto o auscultador quente contra a minha orelha. Fecho os olhos e escuto um som familiar.
- Mariah? Estás aí? - A sua voz surpreende-me. É suave e preocupada.
- Estou aqui - respondo calmamente. ¦ - É o teu pai. Querida, estás bem?
Não hesito em testar o seu amor.
- Papá, posso ir viver contigo? - pergunto enquanto as lágrimas se formam na garganta.
- Sim, quero que venhas. Envio-te um bilhete amanhã.
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Pronto, já está. Estou tão feliz que choro durante o resto da nossa conversa, limpando o nariz às mangas. Quando me volto para devolver o auscultador às minhas tias, elas parecem tristes. Subitamente sinto-me culpada por as abandonar. Ti-nhamo-nos habituado a contar umas com as outras. Quem irá tirar as ervas daninhas quando a artrite da tia Merleen piorar? Quem irá ler as bulas dos remédios à tia Faith quando os olhos estiverem cansados? Elas compram-me livros e belas canetas e papel de carta para eu fazer aquilo que mais gosto. E amam--me, sei que me amam. Aprendemos a amar-nos umas às outras. Mas é tarde de mais para voltar a trás. Corro pelas escadas das traseiras acima parando apenas para dançar no degrau barulhento. Não tenho muita coisa para levar. A coisa mais preciosa que tenho é a mala verde. Depois lembro-me da Ro-semary. Apesar de a velha Rosemary se ter tornado na minha melhor amiga, pertence ao antigo namorado da tia Faith.
No dia anterior à minha partida declaramos tréguas em casa. Elas não querem que o meu pai pense que não cuidaram bem de mim. Não voltam a trancar-me no quarto à noite e eu não tento roubar-lhes o carro. Contam-me mais histórias de quando eram pequenas e mais felizes. Chegamos mesmo a rir um pouco. Insistem em comprar-me roupa e sapatos novos.
No dia da minha partida a tia Merleen e eu percorremos o corredor como se fôssemos para a prisão. A tia Faith toca-me no ombro. Quando me volto diz:
- Esqueceste-te de uma coisa - está a segurar na Rosemary, metida numa caixa nova. - Cuida bem dela. - Abraço a tia Faith com tanta força que espremo lágrimas de nós as duas. Elas prometem mandar-ma pelo correio antes de voltarem para casa. - O violoncelo vai estar à tua espera quando lá
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chegares - promete a tia Faith. A tia Merleen passa por entre nós para ir pôr o carro a trabalhar.
A caminho da rodoviária a tia Merleen passa um sinal vermelho. Antes de a tia Faith ter tempo de dizer alguma coisa a tia Merleen diz: - Quando voltares aqui esta velhota vai buscar-te à rodoviária.
- E podes apostar que quando eu estiver ao volante não passo o vermelho. Não vou ser motorista de reserva toda vida. Bolas. Eu sei guiar, só não gosto de andar depressa - diz a tia Faith, e todas rimos como se fosse uma manhã normal de terça-feira. A tia Merleen entra na bomba de gasolina e fica atrás de uma fila de carros.
- Porque é que não meteste gasolina ontem? - resmunga a tia Faith enquanto tira o suor da ponta do nariz.
- Ontem a fila estava o dobro. Ouve bem o que eu te digo... quando o mercado cair a sério as pessoas vão pensar que estamos outra vez na Depressão. Os preços da comida já estão tão altos... Ainda bem que temos o quintal - diz a tia Merleen.
- Tudo por culpa daquele presidente. Inflação, recessão... São apenas palavras finas para depressão - diz a tia Faith olhando para o relógio.
- Não te preocupes, vamos chegar a tempo - diz a tia Merleen falando alto enquanto puxa a bomba.
Não estou preocupada, penso apenas se tomei a decisão acertada. Quando passamos a passagem de nível que a minha mãe e eu atravessámos juntas, os sentimentos antigos voltam a crescer do fundo dos meus sapatos novos. Passei cá tanto tempo que os comboios já deixaram de parar nesta cidade. A minha mãe vai ter de chegar cá por outro meio, se é que algum dia
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virá, mas já não tenho tantas esperanças de isso acontecer. Já não preciso delas. Na rodoviária sentamo-nos todas juntas, em silêncio, vendo o relógio da parede comer o tempo. Quando o meu autocarro chega, a tia Faith começa a chorar. Apertam--me, apertam-me muito num abraço e recordam-me todas as coisas que nunca devo esquecer: Ser uma senhora... dizer as minhas orações antes de ir para a cama... estudar muito.
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IX

Tenho um bilhete de ida para Los Angeles que o meu pai me mandou. É Primavera. Tenho quinze anos e sinto-me crescida, mas começo a chorar quando o autocarro começa a afastar-se da rodoviária. Talvez tenha medo de estar a afastar--me das coisas com que posso contar e ainda não conseguir tocar nas coisas que eu quero. Durante oito anos soube que podia contar com a tia Faith e a tia Merleen para me alimentarem, vestirem e proporcionarem um lugar seguro para sonhar. Para além disso deram-me um amor maternal que senti ser tão sólido como a fé dos fiéis da Igreja Baptista da Macedónia. Estes pensamentos fazem com que as minhas lágrimas corram ainda mais. Elas deram-me carinho, quando essa não era a sua obrigação. Na minha escola há muitas raparigas a viver em asilos que nunca vêm as famílias. Quero que a camioneta volte para trás para poder saltar e dizer-lhes o quanto as amo, que vou vencer na vida para que o amor delas não tenha sido desperdiçado, mas é tarde de mais. Estamos a atravessar a ponte em direcção ao Alabama.
- A única certeza que tenho é que nada é certo - costumava dizer a tia Faith.
O meu primeiro companheiro de viagem é um jovem
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soldado. Sei que é soldado por causa do seu uniforme castanho com apenas uma insígnia nos ombros, tal como os que me lembro de ter visto no Kansas. É baixo e musculoso. O seu peito largo parece estar sempre cheio de ar. A sua pele cor de chocolate parece suave como seda castanha. Sei que ele vai querer meter conversa, pois apesar de a camioneta estar meio vazia escolheu o lugar oposto ao meu para se sentar. Pousa o saco e instala-se no banco. Começa a pigarrear e diz: - Desculpe, mas não a conheço de algum lado? - Aparecem-lhe covinhas nas bochechas redondas e os seus olhos sorriem. Ambos sabemos que nunca nos tínhamos visto antes. - Nunca esteve no clube NCO, na base?
Mal me pergunta o nome percebo que não tenho de ser a Mariah Kin Santos de quinze anos de idade. Posso ser qualquer outra pessoa.
- Chamo-me Marie. - Se ele pensa que me conheceu num clube deve pensar que tenho mais de quinze anos.
- É um nome bonito. Assenta-te bem. Para onde vais,
Marie?
Gosto do modo como o meu novo nome soa na sua boca, como se eu fosse uma rapariga de uma canção.
- Para L.A. - Digo-o como se já lá estivesse estado.
- Não precisas de ir para lá. Lá já existem demasiadas estrelas. Porque vais para lá? Aposto que vais ser actriz ou algo do género.
Sorrio, lisonjeada com a atenção, e ele continua a falar. Chama-se Theotis e foi dispensado do exército por causa de um tímpano furado. Está a caminho de casa, no Mississippi. Fala do concerto Funkadelic a que assistiu no auditório antes de se vir embora. Eu também quis ir, mas a tia Faith disse que
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tinha de me impor limites: - És demasiado nova para veres homens adultos a pavonearem-se com trapos na cabeça e de fralda, a insultarem as pessoas e a falarem do que é ser funky. O barulho que eles fazem é suficiente para enlouquecer um surdo.
Em vez de ir ao concerto, fiquei a ouvi-los no meu rádio cor-de-rosa, debaixo dos cobertores, no programa Hora do Álbum que deu à meia-noite.
- No concerto estavam todos pedrados. Até alguns dos seguranças passaram o cachimbo da paz. Foi mesmo funky. - Ele ri-se das suas próprias piadas. Na primeira paragem de quinze minutos oferece-me um charro atrás da lixeira da Estação Rodoviária de Montgomery. Nunca tinha fumado droga, mas a Marie tinha, por isso fingi que não era nada de especial. Inalei como se fosse apenas um cigarro, mas o fumo é forte e faz-me tossir. O Theotis põe o braço à minha volta e diz-me para ter calma. Alguns minutos depois sinto-me leve e sem preocupações. Não existem mais lágrimas, mais medos. O Theotis compra Coca-Colas, sanduíches de presunto e imensas barras de chocolate para ambos.
Quando voltamos para a camioneta, senta-se ao meu lado. Depois de comermos adormeço com a cabeça no seu ombro. Quando atravessamos a fronteira estadual do Mississippi, ele diz que se apaixonou por mim. Como prova do seu amor, oferece-me um pequeno saco de plástico cheio de droga que tirou de dentro do seu saco. Ensina-me a enrolar um charro para ficar fino como um cigarro. Conta-me tudo que quer fazer na vida. É tão seguro de si. Diz-me que em breve se mudará para Nova Orleães para pilotar carros de corrida.
- Os homens negros não têm este tipo de oportunidades
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no Mississippi. Vou fazer algo da minha vida. - Acredito nele.
- Marie, tu és uma rapariga muito bonita - diz ele quando chegamos à sua paragem, em Vicksburg. - Um dia irás fazer alguém muito feliz. Quem me dera ser esse homem. Continua a ser assim, tão doce. - Beija-me os lábios fugazmente e vejo as suas costas enormes a avançarem pela coxia fora e a entrarem na noite fria do Mississippi.
O Theotis acena enquanto a camioneta se afasta da estação. Guardo a sua morada no bolso e pergunto-me quem serei da próxima vez.
Sozinha com os meus pensamentos, pergunto-me se a minha mãe, quando saiu de casa, alguma vez olhou das janelas para Phoenix City, Union Springs, Selma, Demopolis ou os intermináveis quadrados dos campos do Sul. Pergunto-me se esta viagem será a última. Espero que Los Angeles seja para mim o final da viagem. Nesse aspecto não me pareço com a minha mãe, não gosto de viajar, gosto de ficar num lugar.
Perto da meia-noite, em Shreveport, no estado da Loui-sana, uma mulher negra já velha, com uma caixa de sapatos cheia de galinha frita e metade de um pão branco fatiado, enfia a custo o seu corpo volumoso no lugar ao meu lado. Sinto o cheiro a galinha frita e o pão cai-me no colo quando ela tenta arrumar a sua mala de cartão. Senta-se com um grande suspiro e depois abre o rosto inteiro num bocejo.
- Pareces demasiado nova para viajares sozinha, querida. Para onde vais? - Oferece-me um pedaço de galinha.
É salgada, gordurosa e muito saborosa. Nunca tinha comido nada tão gostoso em toda a minha vida. Comemos
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uma galinha inteira e o pão todo em menos de quinze minutos. Digo-lhe que o meu nome é Annette.
- Annette é um nome doce - diz ela.
O seu nome é Irmã Lavine. Sorri muito, mas não parece ser uma mulher feliz. Parece estar só no mundo, mas diz que Jesus satisfaz todas as suas necessidades. A Irmã Lavine está a caminho de uma convenção de missionárias no Texas para reclamar almas africanas para Cristo. Como sou boa ouvinte, ela oferece-me uma pequena bíblia branca e alguns panfletos. Diz que irá rezar por mim. Tento não me rir quando me dá um pedaço de tecido vermelho com as extremidades em ziguezague e me diz para o guardar na carteira. Diz que é um tecido de oração, um de apenas uma dúzia que ela recebeu de um pastor da televisão em troca de um pequeno donativo. Assegura-me que se eu tiver fé nas minhas orações a minha carteira se manterá sempre cheia de dinheiro. Agradeço-lhe e guardo-o no meu bolso junto de três notas de vinte dólares novinhas em folha que as minhas tias me deram para alguma emergência. Não acredito que o tecido vermelho multiplique o dinheiro que já lá está, mas não custa tentar. Tento recordar um ritual que a minha mãe tinha para fazer aparecer dinheiro num sobrescrito que guardava debaixo da cama, mas não consigo. Ainda acredito em Deus, mesmo sabendo que me faz sonhar com coisas impossíveis.
É de madrugada quando a Irmã Lavine sai na sua paragem, no Texas. Fico sozinha durante muito tempo. Pela minha janela passam pequenas localidades e cidades. O tempo está pesado e avança lentamente no calor. Pântanos, rios, bosques fechados, campos de milho, algodão e sementes de soja estendem-se ao meu lado e afastam-se a cada quilómetro que
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passa. Sinto-me como se estivesse a perder a pele. A minha mente está atolada em pensamentos. Vejo trabalhadores migrantes a apanhar legumes sob o sol escaldante e pergunto--me se eles falarão espanhol e se algum deles conhecerá o Jesus Miguel Monteverde. Queria estar grávida dele. Desejo de todo o coração que o meu pai me ame como eu teria amado o meu filho.
A travessia do Texas parece demorar uma eternidade. Está quente e húmido e o ar condicionado da camioneta está avariado. Chegamos à estação de Dallas antes do pôr-do-sol. Temos três horas de diferença horária. Vejo tabuletas indicando chuveiros públicos e dirijo-me a eles. Dentro da enorme casa de banho há uma fila de sanitas pagas e vários chuveiros enormes com uma caixa de metal na porta para introduzir dois dólares em moedas. Encontro oito moedas de vinte e cinco cêntimos, meto-as na ranhura estreita e abro a porta, pouso a mala verde num banco baixo de metal que se estende ao longo de uma parede e dispo-me. Tiro as minhas calças de ganga funky e a T-shirt suada, meias e roupa interior, e enfio tudo numa bolsa lateral. Ponho as sapatilhas em cima da mala e dou meia dúzia de passos até ao outro extremo do compartimento. Afasto a cortina de plástico florida, rodo as torneiras ferrugentas e um esguicho de água forte cai sobre mim. A água está quase fria, mas sabe-me bem. Abro uma pequena embalagem de sabonete com cheiro a remédio e livro-me do pó de todas as estações, cidades e localidades. Passo o corpo por água fria. Quando termino, sinto-me tão limpa como uma moeda acabadinha de cunhar. Esqueci-me que não tenho toalha. Sacudo-me para me secar o mais depressa possível e depois uso a camisa para secar o resto da humidade. No outro
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lado do chuveiro passo óleo de bebé no rosto e no corpo, visto umas cuecas lavadas e um top elástico amarelo que faz o meu peito parecer maior, e um vestido largo de algodão branco com alças cruzadas nas costas. Enrolo as fitas de umas sanDallas brancas à romana à volta dos tornozelos. Quero pôr-me bonita para o meu pai. Lavo os dentes e penteio o cabelo à volta dos ombros para secar naturalmente e dar um efeito de um penteado africano menos volumoso e de risca ao meio. É um tipo de penteado que a tia Faith diria fazer parecer que fui dormir antes de acabar de pentear o cabelo. Parece que ainda a estou a ouvir apesar de ela estar na Geórgia. Procuro os fósforos na carteira e dou algumas passas num dos charros que o Theotis me deu. Fico imediatamente relaxada.
Sento-me na sala de espera. Faltam duas horas e meia para a ligação de camioneta para Los Angeles. Olho à minha volta. Há muitos cowboys e índios, mexicanos e velhos vestidos com roupas coloridas, de vozes estridentes e olhares curiosos. Alguns velhos passam por mim, pedindo-me trocos com a palma da mão esticada e os olhos famintos. Uma mulher de cabelos eriçados e um avental por cima do que parecem ser três vestidos de comprimentos diferentes caminha lentamente em círculos murmurando para si própria. O que é que poderá fazer que uma pessoa acabe assim? Ficar sem emprego, sem a pessoa que se ama? Pergunto-me se a minha mãe terá um lar algures. Pergunto-me se ela estará louca algures. Acho que sou afortunada. Afortunada por ter para onde ir, por ter alguém à minha espera quando chegar.
O meu estômago ronca. Tenho fome, na realidade estou esfomeada e farta de comer sanduíches saídas de máquinas. Um velho, com cara de ser avô de alguém, senta-se ao meu
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lado. A sua pele é escura, bronzeada como uma couraça e parece enrugada como papel amassado. Um cowboy de cabelo prateado.
- Para onde vais? - pergunta, e oferece-me um cigarro.
- Para L.A. Vou visitar o meu velho - digo eu. Tiro um cigarro do maço.
- Como te chamas?
- Tina - respondo, por ter uma sonoridade sexy e ser assim que eu me sinto.
- De onde vens, Tina? - pergunta ele lentamente, com um forte sotaque texano. Acende-me o cigarro, depois passa os dedos longos através do cabelo grosso e encaracolado. Os seus olhos escuros perscrutam-me o rosto em busca de uma resposta.
- Da Geórgia.
- Já estive na Geórgia uma vez. Fiz lá a tropa.
- Como é a vida em Dallas? - pergunto, reparando nas suas longas pernas cobertas pelas calças de ganga azuis terminando numas botas de cowboy pretas e poeirentas.
- Se ficasses cá alguns dias podia mostrar-te a cidade. Toca nos pequenos botões de prata na gola da camisa de
ganga.
- Tenho algumas horas para gastar. Conhece algum sítio perto onde eu possa comer alguma coisa? Estou farta de comida de máquina.
- Conheço um bom restaurante mexicano não muito longe daqui.
Observa-me, admirando a minha figura. Aceito o elogio. A razão abandona-me. Guardo a mala verde num cacifo grande. Atravessamos o parque de estacionamento até ao carro
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dele. Abre-me a porta do seu Pinto laranja. Promete trazer-me de volta à estação a tempo. Mantém-se em silêncio enquanto acelera pela auto-estrada. Começa a escurecer.
- Ainda é longe? - começo a ficar nervosa.
- O quê? - diz, mantendo os olhos na estrada.
- O restaurante mexicano.
- Não, não fica longe.
Não fala directamente para mim, apenas diz os nomes dos edifícios que se recortam no céu de Dallas à medida que passamos por eles. Finalmente sai da auto-estrada em direcção a uma estrada estreita de terra batida e a um campo de milho. A noite está cair. Pára o carro e vira-se para mim.
- Porque parámos aqui?
- Noite bonita. Olha para todas estas estrelas. Não vês estrelas como estas na cidade.
- Pensava que fôssemos comer.
- Eu arranjo-te alguma coisa para comer mais tarde. Estica-se em direcção ao meu banco, tenta beijar-me, mas
eu afasto-me. A sua voz é calma, nada ameaçadora, mas muito séria.
- Tira as cuecas, Tina.
Já não quero ser a Tina. Tenho medo, mas tento não o demonstrar. Mantenho a calma.
- Acho melhor levar-me à estação. Posso perder a camioneta. O meu velho vai ficar preocupado se eu me atrasar.
- Neste lugar não há espaço para preocupações - diz ele. - Ninguém te pode ouvir.
Mostra-me uma faca que tirou de debaixo do banco. Passa o lado da lâmina lentamente pela minha coxa. Começo a chorar.
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- Não quero - digo eu, tentando respirar. Ponho a minha mão na maçaneta da porta e penso nas hipóteses que tenho de fugir dele.
- Olha lá miúda, eu não te quero magoar, O.K.? Agora tira as cuecas. Não quero ter de te dizer isto outra vez. - Guarda a faca e pousa ambas as mãos nos meus ombros.
Mexo as ancas e empurro as cuecas pelas coxas abaixo, tirando-as pelos pés. Ele afasta-as de mim e atira-as para cima do tablier. Obriga-me a passar para o banco de trás e a deitar-me de costas. Consigo ouvir o cinto a ser desapertado, o fecho das suas calças a abrir. Passa também para trás e põe-se em cima de mim. É pesado e mal consigo respirar. Tem um cheiro fresco, a sabonete com aroma a Primavera. Os botões de prata da sua camisa batem contra a frente do meu vestido. Esfrega--se em mim rapidamente, repetidamente, ignorando os meus gritos. Antes de entrar em mim veio-se no meu vestido. Olho pela janela e conto estrelas no céu do campo. Não há nada azul na paisagem.
- Vira-te. Eu não me venho dentro de ti - promete. Afasta-me as pernas e entra em mim, desta vez mais devagar. Sinto-me a morrer.
A épara ananás... B épara bebé... Cépara carro... D épara dinossauro... E épara elevador... F é para fugir, fugir para longe. Estou debaixo de água. Estou a afogar-me, a afogar-me, a afogar-me. Grito, mas não sai som algum da minha boca.
Quando abro os olhos ele ainda lá está.
- Desculpa - diz, choramingando. - Desculpa-me.
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Toca-me docemente com as costas da mão grande e dura como se estivesse a ser sincero. Abraça-me contra o peito como se eu fosse uma menina. Parece avô de alguém e cheira a sabonete. Apetece-me raspar a pele com uma faca e pelar todos os lugares onde ele me tocou. Não apenas no exterior onde os seus dedos passaram, mas dentro de mim onde sinto algo frio, duro e partido. Nunca mais quero ser tocada. Quero descascar-me como uma laranja, deixando apenas à vista a polpa esmagada para que ninguém mais queira tocar-me.
Tenho medo de respirar enquanto estou enrolada nos seus braços fortes. Finalmente afrouxa o abraço para acender um cigarro. Suga o cigarro, expelindo o fumo doce pela janela e para longe da minha cara. Durante algum tempo tudo está silencioso na escuridão excepto o ritmo da nossa respiração.
- Não queria magoar-te. Desculpa. Nunca mais volto a magoar-te.
Conduz em silêncio de volta à estação. Escreve o seu nome e número de telefone num pedaço de papel e diz-me para lhe telefonar se alguma vez me meter em sarilhos ou se o meu pai não for bom para mim. Saio do carro, caminho em direcção à estação, tiro a minha mala do cacifo e volto para a casa de banho. No chuveiro não consigo pôr-me limpa. Desligo a água e ouço-me a chorar. Seco-me com lenços de papel e passo óleo no meu corpo ferido. Visto umas cuecas lavadas, as calças funky e a T-shirt que tinha vestido antes. Calço as sapatilhas sem meias. Enrolo o vestido branco e ponho-o na lata do lixo com os lenços molhados. Rasgo em bocados o pedaço de papel com o seu nome e número de telefone e atiro-os pela sanita abaixo. Não quero lembrar-me de nada,
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mas lembro-me. Cada dígito está tatuado na minha carne. O seu nome está gravado na minha testa. Olho para o espelho que está por cima do lavatório para ver se ainda sou a mesma pessoa.
O rosto da Mariah está lá, mas ela está morta naquele campo. Lavo o seu rosto no lavatório deixando que a água o inunde e caia no chão. O som da água a correr é calmante. Escovo o seu cabelo até fazer um rabo de cavalo. Ela fuma um pouco de droga e relaxa. Passado um bocado já não sente nada. Já nem sequer tem fome. Não pensa contar a ninguém. É tudo culpa dela.
Telefono ao meu pai para dizer que perdi a camioneta. Ele diz que vai ter comigo à estação e que leva um fato branco vestido.
- Não fujas com nenhum desconhecido - diz ele a brincar.
Há um estranho com rosto de avô a dormir nos meus ossos. Brevemente será o rosto que eu apunhalo nos meus pesadelos, mas que não consigo matar, o sabor amargo na minha boca, o mau cheiro no ar, a humidade pegajosa nas minhas coxas, permanente como o azul-índigo, duro como os dentes de um fecho estragado a morder-me a carne mais macia. Brevemente separarei cada pequena dor, cada memória até nunca ter acontecido. A Marie, a Annette e a Tina estão mortas.
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X

Sou a última pessoa a sair da camioneta em Los Angeles. Os meus olhos ressentem-se com a luz forte de Verão. Quando desço sinto os hematomas na face interna das coxas feitos pelo homem que esmagou o meu corpo contra o banco traseiro de um carro num campo de milho numa noite estrelada do Texas. Os seus sussurros assemelham-se a ondas que batem nos meus ouvidos. E se eu tivesse resistido... se tivesse fugido... ou contado a alguém? O sol aquece-me a pele, mas é estranhamente fria a sensação de estar viva. Derramo lágrimas perguntando-me por que é que o sol brilha tanto quando dentro das minhas entranhas só existem nuvens negras. Matei de muitas maneiras violentas o homem que molestou o corpo que parece pertencer a outra rapariga. Atei-o a um poste telefónico e deixei-o ler-me os pensamentos homicidas enquanto lhe atropelo o corpo ao volante de um camião do lixo. Apunhalei-o com a sua própria faca enquanto ele pede misericórdia, pendurei-o num carvalho e abri-lhe no peito buracos do tamanho de maçãs. Meti-o num poço repleto de cobras venenosas, meti-lhe um bicho no ouvido e fiquei a observá-lo a perder o cérebro. De todas as vezes ele pede misericórdia, mas eu não me comovo.
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Sinto-me tão cansada. Quero que a minha mãe me embale até adormecer. Quero telefonar à tia Faith e à tia Merleen, mas tenho medo do que elas possam pensar de mim. Manti-veram-me em segurança durante tanto tempo que eu não sabia que a vida podia ser tão perigosa. Não sei se estou a chegar ou a partir ou em que direcção é seguro ir. Não sei o que me espera no próximo quilómetro. Este é o lugar mais solitário em que alguma vez estive. Quero ir para casa, para o lugar onde ainda tenho esperança de esticar os braços e sentir as mãos da minha mãe. Para casa, onde palavras nascidas da minha língua possam ser vertidas na boca da minha mãe. Há medos que ninguém pode apaziguar. Manhattan, no Kansas, não era um lugar perfeito, mas era seguro e era o meu lar. Foi lá que aprendi a dançar como se o mundo não tivesse chão nem tecto, princípio nem fim. A minha mãe chamava-lhe a "Dança de Manhattan, Kansas", pois a maneira de se dançar não importava, o que importava é que se dançasse como se essa fosse a última vez.
Respiro fundo. O ar que exalo faz-me sentir leve. Os meus olhos enevoados perscrutam a estação. Procuro alguém que se pareça comigo. Alguém unido a mim pelo sangue para não me voltar a sentir só e sem mãos a que me agarrar. No balcão de informações vejo-o antes de ele me ver a mim. O meu coração dispara por ele ser meu pai ou por ser o meu cavaleiro andante vestido com um fato de linho branco? Esperei milhares de quilómetros e passei noites em branco à espera deste momento e não me sinto desapontada. Está encostado às colunas do lado de fora da estação, com os braços cruzados e a cabeça inclinada para o lado como se estivesse a ouvir o som dos meus passos. A sua cabeça está coberta por uma
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onda de cabelo espesso e escuro. O seu rosto é esguio, da mesma tonalidade de moreno que eu tenho, com uns olhos repletos de pestanas enormes e espessas como as de uma mulher. A boca é grande e sorridente, cheia de dentes enormes, brancos e perfeitos, como uma estrela de cinema. Tem um tipo de beleza que faz homens e mulheres, novos e velhos, mesmo na Califórnia onde todos são bonitos, pararem para olharem outra vez. Parece ainda muito novo, saudável e sem aquele ar de pai. Pergunto-me se serei realmente sua filha. Pergunto-me se as pessoas à nossa volta pensarão que ele é meu namorado. O coração bate com força no meu peito.
Sinto o efeito da droga que fumei na última paragem a desvanecer-se. Ainda não tinha voltado ao normal desde Dallas. A sensação de estar a flutuar afasta-me da dor. Enquanto caminho na sua direcção, os seus olhos perscrutam o meu corpo. Fica pasmado como se não conseguisse acreditar no que os seus olhos lhe dizem. Gagueja ligeiramente como se tivesse medo de atirar a próxima palavra para o ar que nos separa.
- Mariah. Estás tão crescida - diz, parecendo surpreendido.
- Olá, Papá - digo eu, simplesmente, com a garganta cheia da pronúncia sulista e a dor de um segredo que nunca poderei revelar. Gostava de o conhecer bem para poder cair nos seus braços e afogar no seu peito o significado da palavra dor. Em breve, ele será tudo para mim.
- Trata-me por Matisse - diz ele sem pestanejar. Sentimo-nos pouco à vontade, mas quando o vejo quase
esqueço Dallas. Parece que tudo aconteceu há tanto tempo. Mas o meu corpo é como um campo de batalha. Quando toca
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no meu rosto, o meu corpo reage como se as suas mãos fossem pequenos fogos a apagarem-se na minha pele. Abraça-me com tanta força que a minha respiração é interrompida e o meu corpo se torna rígido, mas ele não repara ou não liga. Dentro da minha cabeça uma nova voz diz-me que o toque pode ser perigoso.
Toca no meu cabelo e sorri. Não parece ter ficado desapontado comigo. Relaxo um pouco.
- Água - digo, afastando-me um pouco dele. - Posso beber um pouco de água, por favor?
Isto distrai-o. Levanta a mala do chão e pega-me na mão. Leva-me a um chafariz e fica a ver-me beber, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Molho as mãos e comprimo-as contra o rosto. O meu pai sorri. O meu pai leva-me a mala. O meu pai leva-me para casa. É um milagre. Um sinal de que, a partir de agora, tudo correrá bem.
Está maravilhado comigo. Tão novinha. Se eu fosse a sua filha recém-nascida despir-me-ia e contaria os meus dedos, observando maravilhado a textura da minha pele, sentindo o meu cheiro, medindo o meu nariz e os meus lábios tão semelhantes aos seus. Com respeito e reverência, beijaria e acariciaria o meu pequeno rosto, pescoço, mãos e pés. Ficaria maravilhado com o milagre do nascimento de uma menina perfeita. Mas sou uma mulher. Cheguei até ele desfeita e desiludida com o mundo. Os meus lábios estão cheios de beijos de adulto, a mente repleta de pensamentos adultos. Os meus membros marcados com hematomas de adulto. Tenho o corpo de uma mulher.
O Matisse conduz velozmente o seu velho Renault cinzento pela via-rápida. O vento é barulho branco aos meus
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ouvidos. Mostramo-nos tímidos um com o outro, roubando olhares quando pensamos que o outro não está a olhar. Não conversamos mais. Ele trauteia uma canção qualquer. Olho pela janela para as palmeiras e para o céu azul, sinto o sol no rosto e o fumo dos carros na boca. Tiro os cigarros dados pelo homem que me molestou e esmago o maço vermelho e branco na mão. Sei que matarei a memória daquela noite um minuto de cada vez, durante o resto da minha vida. Atiro o maço pela janela para a via-rápida.
- Porque fizeste isso? - olha-me contrariado.
- Tenho de deixar de fumar - respondo mecanicamente. Olho para a estrada à nossa frente com a mente muito longe, tão longe quanto me posso afastar do Texas sem morrer.
- Estamos a começar bem - diz sarcasticamente.
O apartamento do meu pai, um primeiro andar, é pequeno e com pouca mobília. Um quarto. Ele diz-me que tenho de dormir na sala, na cama com uma coberta de ganga. Uma janela panorâmica velada com cortinas brancas mostra uma fila de apartamentos e restaurantes de comida rápida na zona ocidental de Hollywood. As paredes brancas estão cobertas com grandes quadros coloridos com árvores azuis e figuras enevoadas correndo na escuridão. No canto, perto da aparelhagem e do televisor, choraminga uma árvore semi morta. Esta é a minha nova casa. Vou adaptar-me a esta nova vida. Quando vejo a Rosemary encostada a uma parede à minha espera quase choro. Quero abri-la, apertá-la contra mim e deixar que ela me cure. Mais tarde, quando estivermos sós, retirarei conforto do seu corpo e enrolar-nos-emos em sonhos e em doce música azul.
O Matisse pousa a minha mala no chão, junto à cama, e
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leva-me à sala de jantar onde a mesa e três cadeiras enchem o aposento. Depois da sala há uma pequena cozinha com electrodomésticos reluzentes de aço inoxidável. Cheira a carne queimada e a vinagre. Voltamos para a sala de estar e continuamos pelo corredor fora passando por um pequeno quarto de banho cor-de-rosa. Ao fundo do corredor está o seu quarto com uma cama das mais largas feita com lençóis brancos e meia dúzia de almofadas volumosas. Parece uma ilha. Subitamente, o cansaço apodera-se de mim e sinto que poderia dormir dias a fio. Sento-me na cama e olho para ele, a sua imagem agita-se como uma bandeira à frente das persianas abertas. A luz é demasiado forte.
- Posso deitar-me aqui? - pergunto, inclinando-me em direcção à grande ilha branca que era a sua cama, fechando os olhos.
- Claro. Tenho de sair por um bocadinho. Há comida e refrigerantes no frigorífico.
Ele fecha as persianas e liga o ar condicionado.
Dobra-se e desaperta-me as sapatilhas, tirando-as ao mesmo tempo que as meias. Sinto-me uma menina acarinhada e mimada, como se as minhas necessidades fossem a única coisa que interessasse.
- Põe-te à vontade. Dorme um pouco. Podes desfazer as malas mais tarde.
A sua voz é um murmúrio distante. Enrosco o corpo e caio num sono profundo. No meu primeiro sonho de Hollywood o tempo é perfeito.
Quando acordo já é noite e estou sozinha na ilha branca. Tacteio até encontrar o interruptor do candeeiro que está ao lado da cama. Sinto-me tonta, a minha cabeça está a girar e
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sinto formigas invisíveis nas pernas. Olho para o telefone, perguntando-me se devo telefonar para casa. Com os dedos desenho a palavra na parede branca por cima da cama do meu pai como se a quisesse tornar real. Casa. Passado algum tempo volto a deitar-me no escuro, mas não há sonhos que me confortem. Quando o telefone toca, o susto é tal que dou um salto, pousando os pés no chão e esticando o braço tentando agarrar algo sólido. Derrubo o candeeiro. Não sei muito bem o que fazer. Talvez a minha mãe lhe telefone. E se é a voz dela ao telefone? O que direi? Como posso pronunciar palavras que nos voltem a juntar? O telefone toca dezenas de vezes, pára e depois volta a tocar. Finalmente levanto o auscultador.
- Estou? - pergunto no meio de um nevoeiro de sonolência.
- Porque é que não atendeste da primeira vez? - pergunta a tia Merleen impaciente.
- Não sabia se devia atender o telefone. - Sento-me na cama e conto os quadrados das portas de correr do armário do meu pai. Quero dizer-lhe que tenho saudades, mas as palavras não me saem da boca.
- Onde está ele? - pergunta a tia Faith nervosamente do outro lado.
- Saiu. - Quero explicar-lhes como estou cansada.
- Ele deixou-te aí sozinha? - A tia Merleen está furiosa.
- Ele já volta - grito, para a acalmar.
Cai um breve silêncio durante o qual a tia Merleen passa a língua pelos dentes.
- Diz-lhe para nos telefonar amanhã. Só queríamos saber se tinhas chegado bem. - Há uma chaga a abrir na voz da tia Faith.
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- Estou bem. Está tudo bem - respondo com mais suavidade.
- Não lhe fales no dinheiro que te demos. Telefona se quiseres voltar para casa. - As suas vozes fundem-se.
- Sim, senhora - respondo, abrindo uma pequena caixinha de dor. Elas lembram-me que deixei uma coisa preciosa com elas. Agora tenho duas casas. - Obrigada - lembro-me de ser uma senhora. Elas educaram-me bem. Aprendi a não demonstrar os meus sentimentos, por isso tento não mostrar as saudades que tenho do nosso dia-a-dia juntas.
Horas depois, quando o Matisse regressa a casa, encontra-me sentada na sala a ver televisão. Nunca tinha visto tantas horas de televisão seguidas e estou fascinada até com a publicidade. Ele senta-se ao meu lado e abraça-me como se fosse a primeira vez.
- Como está a minha menina? Dormiste bem? - pergunta com o braço à volta dos meus ombros.
- Bem - respondo, sentindo uma parede de vidro erguer-se à volta do meu medo. Não é verdade, toda a felicidade que eu imaginei sentir neste momento não chegou, mas penso que bem era a palavra que ele queria ouvir. Digo isto para o descansar. Quero sentir-me parte de uma família, o que quer que isso signifique. Como se eu pertencesse ali, como se pertencêssemos um ao outro. O meu corpo está rígido nos seus braços, ainda não o conheço.
- Bem. Está tudo bem - repito como se fosse uma oração.
Mas nada volta a ser como dantes. O som da chuva a cair faz-me chorar, tal como a palavra milho, o cheiro a sabonete, a cor de laranja e o sabor da comida mexicana. Não falo mais
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alto que um murmúrio. Não conseguiria gritar mesmo que quisesse, e até tentei, mas dos meus lábios magoados só saem sons invisíveis.
- Estás tão calada - diz o meu pai durante o nosso primeiro jantar em família.
Tiro as tirinhas de pimento da minha fatia de pizza e ponho-as na borda do prato de papel.
- Queres comer outra coisa?
- Não tenho muita fome - digo, contando as fatias de carne no meu prato.
- Amanhã vamos a Redondo Beach. Gostas de marisco?
- É fixe - respondo formando uma pirâmide com as tiras de pimento.
- Diz-me de que é que gostas. Qualquer coisa. O que é que te davam de comer lá no Sul para seres assim tão calada? Pão de milho e pernas de doninha? - Ri-se e recolhe os pratos de papel. Está a tentar amar-me, mas não consegue compreender a tristeza profunda que me assola a cada refeição.
A primeira vez que tomo banho na casa de banho cor-de--rosa dou por mim a trautear uma canção sob o esguicho de água quente. Por isso não ouço o meu pai entrar, apenas vejo a sua sombra no lavatório e o ruído de água a correr. Abro a boca e esmago o meu corpo nu a um canto do chuveiro, tentando tapar-me.
- Eu saio já - diz ele sem cerimónia e começa a escovar os dentes. Sinto que começou uma guerra dentro da casa de banho pequena e cheia de vapor. Tremo, sustendo a respiração com o corpo contra a parede. Os azulejos frios deixam
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sulcos nas minhas costas. Tenho medo que ele abra a porta de vidro embaciada e me deixe marcas que terei de apagar. Mas ele não faz nada. Continua a lavar os dentes, o rosto e as mãos. Passada uma hora, ou pelo menos assim me pareceu, diz: - Hasta luego. - Depois deixa-me sozinha na casa de banho.
Quando o meu pai está em casa não tomo banho muitas vezes. Às vezes fico sem tomar banho durante vários dias. Ele refila, mas não me importo.

Já estamos juntos há duas semanas. Mantenho a distância, mas quero saber tudo acerca dele. Não fala muito e eu não sei como raspar a superfície das suas respostas.
- Temos mais família? - pergunto, depois de termos comido o nosso jantar de comida rápida chinesa.
Limpa a boca delicadamente, um gesto que parece significar que está a reunir coragem para contar algo que o incomoda. Levanta-se da mesa e põe-se ao lado da janela que dá para o beco nas traseiras do apartamento. Fala para a janela.
- Vivem em Seattle. O meu pai vive com a tua tia Corrina e a família dela. Há anos que não os vejo. Desde que a minha mãe morreu. - A voz treme-lhe na palavra Mãe.
- Porquê? - Fico desapontada. Nas minhas fantasias imaginava uma grande família com dezenas de primos e reuniões familiares na praia. Irmãos e irmãs para me mimarem e para me lembrarem que nunca mais estarei sozinha no mundo.
- Sou a ovelha negra da família. O meu pai era um grande músico na década de quarenta. Tocava contrabaixo numa banda de jazz, é daí que vem o teu talento musical.
- E ensinou-te a tocar? - pergunto.
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- Nunca estava em casa tempo suficiente para me ensinar nada a não ser a ler horários de comboio para saber quando é que ele ia voltar para casa. O meu pai viajava com a banda e a minha mãe ficava em casa a tomar conta de nós. Eles queriam que os filhos tivessem uma profissão liberal. O meu pai é que queria, na verdade, queria que fôssemos profissionais competentes, respeitados. Pensava que ficaria bem visto se nos tornássemos médicos, professores ou engenheiros. A minha mãe só queria que fôssemos felizes. Eu sou uma grande desilusão para ele. - Não consigo ver-lhe a cara, mas a sua voz é baixa e pesada.
- O que é que tu querias ser? - pergunto. Ele não hesita.
- Não queria ser nada. Só queria pintar. - Volta-se para olhar para mim. Tem os braços cruzados sobre o peito.
- O que é que queres fazer com a tua vida? - pergunta--me. Não sei se posso confiar nele. Abro a boca para falar, mas é ridículo. Tocar violoncelo, escrever, viajar de avião. São coisas que quero fazer e não coisas que acredite poder fazer como profissional. Não sei se é isso que ele quer que eu diga.
- Ainda não sei. - Encho a boca com outra garfada de arroz frito antes de ele fazer nova pergunta.
Diz-me que a minha tia Corrina é arquitecta. O marido dela é um agente imobiliário bem sucedido e têm duas filhas muito novas.
- Eu abandonei a escola quando tinha dezassete anos. Queria ser artista. Cheguei a San Francisco por volta de 1955. Vivi nas ruas durante um tempo. Não há fascínio nenhum nisso. Para ganhar dinheiro arranjei emprego nas docas a carregar navios e, depois, comecei a pintar casas com um amigo. Aprendi por mim mesmo a pintar retratos. A tua mãe foi um
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dos meus primeiros modelos. - Calou-se e olhou-me nos olhos. - Conheces o artista francês Matisse?
Confirmo com a cabeça.
Passei a usar o nome de Matisse, porque tinha de ser uma nova pessoa e não o filho do Joe El. - Fica em silêncio por uns momentos, transformando o seu guardanapo em farripas.
- Quero fazer palavras tão deliciosas que as pessoas vão querer comê-las - digo, decidindo confiar nele. Rimos. Parece ridículo, mas ele leva-me a sério.
- Tudo é possível - olha novamente para o beco como se estivesse a recordar os seus próprios sonhos deliciosos.
- Encontrei um poema. Mandaste-o para a minha mãe - digo, quebrando o silêncio.
- A Coral costumava dizer que lambia a tinta das minhas cartas até a língua ficar azul, para memorizar os poemas na barriga. A tua mãe era uma verdadeira invenção. Lembras-te?
Lambo os lábios como se conseguisse sentir o amor palpitar entre eles. Sentir o sabor dos poemas que me tinham alimentado quando estava no seu ventre. Abano a cabeça negativamente desejando ardentemente lembrar-me.
- Quando nos conhecemos não tinha muito a oferecer à Coral excepto amor, poemas e uma mão cheia de quadros. Na altura não acreditei que fosse o suficiente. Gostava que isso não tivesse tido importância, mas era jovem e filho do meu pai. Queria tomar conta dela, como um homem deve cuidar da mulher que ama, mas não acreditei que pudesse fazer isso e ser também um artista. Não podia deixar que uma mulher tomasse conta de mim, mas ela ofereceu-se.
Quero que ele me conte mais. Aproxima-se da mesa e
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puxa uma cadeira para perto de mim. Pousa a cabeça na mesa e continua a falar.
- Depois de ela ter partido, pintei quadros dela todos os dias. Na nossa primeira noite juntos acordei com ela nua a andar à volta da cama recitando aquele poema Un rio depro-mesas... Encontrou uma colecção de poemas de Nicolás Guillén numa livraria em La Brea. Ela queria aprender espanhol. Era tão bela.
- Ela não está morta.
- Mas não está aqui.
- Talvez volte para nós. - Afago-lhe as costas para o confortar. Ele apoia a cabeça nos braços em círculo e suspira.
- Talvez. Ela abriu-me da forma mais inesperada, como se tivesse uma lâmina que retirasse de mim a realidade. - Levanta a cabeça e olha para mim. - A tua mãe esteve em L.A. a fazer um estágio num hospital. Estava a pensar deixar o exército e viajar um pouco. Nesse aspecto ela era como eu, nenhum de nós queria uma vida convencional.
Pego-lhe na mão e seguro-a até a sala ficar tão escura que parece meia-noite. Estamos a começar a sentir-nos um pouco como uma família.
Vivemos como solteirões. Quando a escola começa em Setembro ele deixa-me todas as manhãs na paragem do autocarro e vai pintar casas para o vale. À noite vai para o estúdio. Na escola os miúdos são brancos e negros, asiáticos e hispânicos, bem vestidos e espertos. A maioria das raparigas ignora-me e os rapazes lançam-me olhares perscrutadores, olhares a
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que não correspondo. Falo de maneira diferente, visto-me de maneira diferente e também não me encaixo aqui.
Enquanto fumo um cigarro proibido na casa de banho, durante a hora de almoço, duas raparigas convidam-me para participar na conversa que estão a ter acerca do combate entre o Muhammad Ali e o George Foreman. Não percebo grande coisa de boxe, mas todas concordamos que o Ali é o maior pugilista e o mais giro do mundo. Sonho que o Muhammad Ali me ensina a combater e, como bónus, dá-me lições de como beijar. A Candy e a Bertine são as únicas raparigas que falam comigo nos intervalos e encontramo-nos sempre antes das aulas para fumar. Elas tratam-me por Santos e ensinam-me palavrões em espanhol. Às vezes falam entre elas em espanhol, outras nem sequer falamos.
Depois das aulas ligo a televisão para ter companhia e deixo-a ligada toda a noite, e por vezes leio ou faço os trabalhos de casa com o som baixo. Vejo televisão para me educar. Aprendo a dançar a ver "Soul Train", a entender as relações a ver "The Young and the Restless", a ver como famílias de negros fazem piadas acerca das suas vidas em "The Jeffersons", "Good Times" e "Sanford and Son". Aprendo leis em "Police Woman" e a importância da amizade em "Laverne and Shirley". Vou à biblioteca buscar cassetes para praticar a pronúncia e livrar-me da minha pronúncia sulista para que, quando levantar a mão para participar na aula, os professores me entendam. Às vezes toco violoncelo até o Matisse chegar a casa, tão tarde que o "Johnny Carson" está quase a terminar. A Rosemary é para mim uma enorme companhia em todas estas horas que passo sozinha. Criamos sons que me massajam os pulmões, o coração e a face interna das coxas. Sinto falta da poesia das
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palavras sulistas na minha boca e, por isso, planto algumas junto à arvore decorativa e rego-as ternamente... algures... tarte de batata doce... fazer momices... e, como sempre, planto também... doce... azul... música... Mamã. Em breve a planta começa a crescer, um pouco inclinada, é certo, e muito devagarinho, mas eu vejo o crescimento e todas as palavras que amo em cada folhinha verde.
O Matisse faz muitas vezes a sua própria comida, pois o médico diz que tem de fazer dieta por causa do ataque cardíaco que sofreu no ano passado. Estava num restaurante chinês a pintar um mural quando desmaiou. Acordou no hospital. Agora faz bifes grelhados, batatas assadas e saladas verdes temperadas com vinagre de arroz quase todos os dias. Às vezes traz-me comida rápida. Pus por ordem alfabética os menus de mais de vinte restaurantes de comida rápida num raio de sete quilómetros. Apesar de ser cuidadoso com a alimentação, desafia-me a experimentar coisas novas. De início recusava-me a comer peixe cru, apesar de cada prato custar mais de vinte dólares. Mas ele subornava-me com promessas de idas ao oceano, filmes no centro comercial e compras na cidade japonesa. Aprendi a gostar de susbi, pãezinhos da Califórnia, bok cboy cozinhado ao vapor, chá tailandês com leite condensado, sopa de coco com raspa de limão, spanakopita e pizza com bacon e ananás. Gosto destes novos sabores e às vezes fecho os olhos e escolho no menu um prato que nunca tinha experimentado.
A princípio fico com medo, quando ele sai à noite. Não há luzes cor-de-rosa nem música suave para me acalmarem. Não há um ressonar suave ou tosse que viaje até mim do outro quarto para eu saber que não estou só. E se o homem
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que me persegue em sonhos voltar? E se eu não conseguir matá-lo com uma faca? E se ele não sangrar?
- Não consigo dormir quando estou aqui sozinha - digo eu, encostada à parede do corredor a vê-lo barbear-se ao espelho.
- Já experimentaste contar carneiros? - Bate delicadamente com o pincel branco no queixo.
- São demasiado barulhentos. - Transfiro o peso de um pé para o outro puxando a bainha da combinação cor-de-rosa da minha mãe.
- Experimentaste desligar a televisão e fechar os olhos? - Ele deixa a água quente a correr embaciando o espelho.
- Estou a falar a sério. Já tenho adormecido nas aulas. Podes ficar em casa hoje? Por favor?
- Não posso, hoje não. - Molha uma toalha de rosto branca e comprime o calor húmido contra a face.
Sinto a dor perfurante da inveja. Põe um pouco de loção para depois de barbear. Vetiver. Cheira a lima fresca e a almíscar. Excita-me. Às vezes ponho um pouco no dedo e inalo até adormecer. Quero tocar no rosto do meu pai, pôr os meus dedos nos seus lábios para testar a sua suavidade e ver o quanto eles são parecidos com os meus. O que será que a minha mãe sentia quando o beijava? Sentiria um terramoto a percorrer-lhe o corpo?
De repente o meu pai parece reparar que tenho vestida a combinação da minha mãe. Aproxima-se e toca no cetim à volta da minha cintura. O meu corpo afasta-se como se fosse picado por uma agulha quente. Fujo para o corredor, para fora do seu alcance.
- Pareces-te tanto com a tua mãe - diz ele com os olhos
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sonhadores, a recordar. - Está um bocadinho justa, não está? - Ele desvia o olhar. Ambos nos apercebemos do nosso erro. Lembro-me sempre de vestir uma T-shirt por cima da combinação por mais calor que faça. Algumas das costuras abriram desde que o meu corpo a começou a encher.
- Toma um destes. - Dá-me um comprimido pequeno e amarelo que tira de um frasco do armário dos medicamentos. - Toma outra metade se o João Pestana não vier.
- O que é isso? - pergunto.
- Valium. Vai ajudar-te a relaxar. - Veste um fato de seda âmbar-pálido e deixa-me só no apartamento. É noite de sexta-feira. Lá em casa costumávamos jantar sempre as três juntas. Depois de jantar tinha lição de piano enquanto a tia Merleen se sentava na sua cadeira a ler o jornal. Quando a lição terminava, comia uma fatia de torta ou bolo caseiro e lavava os pratos enquanto a tia Faith guardava a comida. Mais tarde dobava meadas para a tia Faith ou lia-lhes em voz alta. No Verão sentava-me no alpendre a ver desabrochar as flores da tia Merleen. O que será que as famílias a sério, com mãe, pai, irmãos e irmãs, fazem numa sexta-feira à noite? Fazem alguma coisa ou limitam-se a ficar sentados a amarem-se uns aos outros?
Tranco a porta depois de o Matisse sair e vou à cozinha buscar um copo de água. Engulo um dos comprimidos amarelos e deito-me na cama com a luz acesa. Lembro-me de dezenas das palavras da minha mãe antes de adormecer.
Apressado pelos meus dedos, o tremor começa na parte mais recôndita de mim mesma e alastra até todas as janelas azuis da minha imaginação estarem
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quebradas e o meu corpo estar livre e a flutuar em direcção ao tecto. O meu corpo ergue-se na antecipação da música. O doce tremor recomeça na parte mais recôndita de mim mesma. Os meus dedos pressionam a prega molhada e uma salsa entra a flutuar pela minha janela aberta.
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XI

Acordo no meio da escuridão com o som de vidro a quebrar-se. Ainda estremunhada, com as pernas trémulas, corro para o quarto do Matisse, mas ele não está lá. O chão está a mover-se, treme. Os quadros caem da parede. Não consigo movimentar-me com rapidez suficiente. Esqueço tudo o que devo lembrar-me de fazer durante um terramoto. Corro a porta do armário do quarto do Matisse e sento-me no meio da roupa e dos sapatos até tudo ficar calmo. Ouço uma sinfonia caótica de alarmes contra ladrões, sirenes e alarmes de incêndio. Antes de conseguir sair do armário um enorme projector de filmes e caixas redondas de metal caem da prateleira de cima aos meus pés.
Demoro algum tempo a perceber como, mas consigo montar o projector. É semelhante ao que existe na minha aula de biologia e que nos mostra a reprodução das rãs. Sento-me, espantada, na cama do meu pai. Na parede branca por cima da cama cintilam imagens a preto e branco. É um circo de corpos nus em inúmeras combinações sexuais sobre a mobília de uma sala de estar dos subúrbios. As imagens excitam-me e aterrorizam-me ao mesmo tempo.
Há um tremor doce na parte mais recôndita de mim...
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Meto a mão dentro do pijama e venho-me rápida e silenciosamente. Volto a colocar o projector e os filmes na prateleira do armário. O silêncio é tanto que consigo ouvir as pingas provenientes de uma das fugas da torneira do lavatório a caírem.
No armário o fato branco caiu do cabide. Volto a entrar e fecho as portas. Na escuridão sinto a textura áspera do fato de linho e deixo os meus dedos acariciarem os botões frios, as costuras e o forro dos bolsos em seda. Enrolo as mangas à volta dos meus ombros e enterro o meu rosto nas lapelas. O seu cheiro é tão semelhante ao dele. Cheiro o gancho das suas calças. Agacho-me a um canto do armário e procuro os seus sapatos. Sapatos de pele macios feitos à mão em Itália. Inalo profundamente as suas pegadas e suspiro.
A sua roupa interior, pelo menos uma dúzia de conjuntos, toda branca, está cuidadosamente dobrada na segunda gaveta de uma cómoda em mogno aos pés da cama. Sou inundada por sentimentos que não compreendo. Cedo. Tiro a roupa, uma peça de cada vez, diante de três espelhos. Dispo-me lenta e deliberadamente.
Quando fico nua, olho para o meu corpo através dos olhos dele. Durante horas olho para o meu corpo nos espelhos e é então que, finalmente, algo acontece. Começo a ver as suas mãos a acariciarem os meus ombros por trás. Não consigo afastar os olhos das suas mãos. Sentem o peso dos meus seios, passam fugazmente pelos meus mamilos, desenham a curva da minha cintura até às minhas coxas e, depois, abrem os lábios entre as minhas pernas. Fico paralizada de medo, expectativa e desejo. E tão subitamente como apareceram, desaparecem.
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Fecho os olhos e volto a abri-los lentamente, mas elas não reaparecem. Continuo só.
As cuecas do meu pai são frias e ficam-me largas nas coxas. As camisolas interiores são apertadas e esmagam-me os seios. Calço as meias de seda e enfio o linho áspero nas minhas coxas. Depois a camisa branca engomada com os seus botões macios. Encontro um par de botões de punho em ouro. A gravata enfio-a pela cabeça e dou facilmente o nó, tal como ele me mostrou. Coloco os suspensórios amarelos e fecho-os com os polegares. O casaco é confortável e largo. Os sapatos assentam-me como uma luva.
Olho para o meu reflexo e sinto-me satisfeita. A tia Mer-leen devia saber que me ficavam bem quando me deu aquelas roupas de rapaz, há muito tempo atrás. Não me sinto vulnerável nestas roupas. Sinto-me forte, poderosa e excitada. Passo vezes sem conta pelos espelhos fazendo pose. Vagueio pela casa com a roupa do meu pai até amanhecer.
Volto a despir-me, pendurando o fato do meu pai no respectivo lugar. Mantenho a camisa branca para me proteger no meu sonho. Engulo dois Valiums com uma boca cheia de água. Espero que o meu pai esteja seguro e volte depressa. Será que a terra se abriu e engoliu metade da cidade? Para ter a certeza vejo televisão durante um bocado. Tenho medo de dormir perto da janela panorâmica da sala, pois pode bater e perturbar-me o sono. Vou para o quarto do meu pai e deito--me na sua cama enorme entre os lençóis frios de algodão branco. Parece que dormi durante dias a fios sem sonhar. Quando acordo, o meu pai está junto da cama a observar-me.
- Estás bem? - pergunta.
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- Estou... Esqueci-me do que se deve fazer durante um terramoto. - Mal consigo manter os olhos abertos.
- Porque é que estás com a minha camisa vestida? - Ele senta-se na cama.
- Esqueci-me... Estou acordada... estou bem. - Sei que não estou a ser coerente. O meu cérebro está lento.
- Volta a dormir, querida. Deves estar cansada. Se quiseres podes faltar à escola - diz ele. - E leva a minha camisa à lavandaria quando acordares. - Sorri para mim.
- Tive tanto medo - murmuro, e volto a fechar os olhos agradecida.
Ele cobre os meus ombros com o lençol e beija-me a testa. Volto a cair num sono profundo. É hora de almoço quando acordo. Ele encomenda uma pizza grande que comemos no
chão da sala.
O Matisse está estendido no chão, com a cabeça apoiada na mão. As suas calças largas e a t-shirt cinzenta estão manchadas de tinta cor-de-laranja.
- Arranjei emprego a pintar um baloiço de jardim. Esta semana pago eu a pizza. - Abre a caixa e dá-me outra fatia com pimentos e pedaços de alcachofra. Age como se esta fosse uma segunda-feira como outra qualquer.
- O terramoto de ontem foi bastante forte - digo, encostando melhor as costas à cabeceira da cama por fazer.
- Foi de apenas quatro vírgula dois, nada de preocupan-te. - Deita pimenta vermelha na sua fatia.
- Mas para os meus nervos foi bastante forte. -A pizza tem um sabor estranho, demasiado salgado. Faço uma careta quando descubro que por debaixo dos pimentos há anchovas.
- A maior parte das pessoas nem sequer acorda.
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Pergunto-me se ficarei a dormir quando houver o próximo.
- Quantos Valiums tomaste ontem?
- Dois ou três... Não me lembro. Tive medo.
- Toma cuidado. Um deve ser o suficiente para dormires. - Aproxima-se e toca no meu cabelo despenteado com a sua mão dura.
- A tua tia Corrina telefonou há uns dias. Ela e as filhas querem conhecer-te. Queres passar alguns dias em Seattle? Podes ir às compras ou coisa assim. - Tira as anchovas do meu prato e mete-as na boca.
- Detesto ir às compras. - A minha resposta é rápida e mordaz.
- Pensei que quisesses fazer coisas de rapariga. - Ele finge não reparar na minha mudança de humor. Ainda não me sinto preparada para o partilhar ou para viajar. Quero conhecê-lo melhor.
- Queres ir? Sentes saudades do teu pai? - pergunto.
- Não costumo pensar muito nisso. - Não acredito nele. - Nunca tinha reparado em como me sentia só antes de tu chegares.
- Eu também me sentia só.
- Agora não te vou deixar - diz ele. Tento acreditar, uma parte de mim acredita.
Ele sorri e beija-me as costas da mão. O sangue sobe-me ao rosto. Pego-lhe na sua e esfrego-a contra a minha face como se fosse um gato carinhoso. Subitamente, ele afasta-se de mim. Olho para as suas costas enquanto caminha em direcção ao quarto e fecha a porta. Fico deitada no chão durante muito tempo a pensar nos filmes que estão no quarto. Começo a
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notar como o corpo dele se mexe dentro da roupa. Pergunto-me como eu ficaria se tivesse um fato de linho meu.
Uma manhã faço um teste ao meu pai.
- Não me sinto muito bem - digo, fazendo com que a minha voz pareça fraca.
- O que se passa?
- Dói-me a cabeça.
- Deixa-me tirar-te a temperatura. - Põe-me o termómetro debaixo da língua e encosta a mão à minha testa. Mantenho os olhos fechados e concentro-me no toque quente da sua mão. Às vezes gosto que ele me toque, me pegue na mão ou me segure nos seus braços. Sinto-me a sua menina. Invento doenças e aulas canceladas e anseio por dias passados com ele. Quando finjo estar doente, ele mima-me, compra-me ginger ale e fica em casa a segurar-me na mão, mesmo depois de saber que não estou doente. Penso que ele gosta secretamente destes dias em que ficamos juntos.
Às vezes conta-me histórias de quando era filho de Joe El.
- O meu pai tinha tanto orgulho em mim. Quando eu tinha quatro ou cinco anos, às vezes levava-me com ele para os concertos. Sentava-me em cima do piano em bares fuma-rentos e deixava-me bebericar dos seus copos sem fundo de uísque escocês. O Joe El dizia a quem quisesse ouvir que, um dia, o filho seria um advogado muito rico. Parti o coração do meu pai.
Quando o Matisse me conta histórias acerca do seu pai, percebo que isso o entristece. Quando está triste, vai para o estúdio pintar e eu fico para trás. Às vezes vejo os seus filmes
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eróticos enquanto agarro na minha doce Rosemary e tento criar uma banda sonora.
Todas as noites que o meu pai me deixa sozinha tomo um Valium, às vezes dois.
Um dia o meu pai ensina-me a ver.
- De que cor é a relva? - pergunta, enquanto passeamos de braço dado por Griffith Park.
- Verde. - Estou a saborear a proximidade dele.
- Que tonalidade de verde? - e aperta-me ligeiramente o braço.
Perscruto o meu vocabulário em busca de uma palavra que defina a cor do luar que incide na relva húmida.
- Esmeralda.
Ele recompensa-me com um beijo no pescoço mesmo por baixo da orelha. O beijo deixa-me os dedos dos pés e o pescoço a arder.
- Olha para o observatório. Vê como a luz se curva. Sigo o arco de luz que o seu dedo traça no céu obscurecido.
- Agora dobra-te e olha para ele por entre as pernas.
Faço o que ele diz e o mundo modifica-se. O sangue corre-me para a cabeça e começo a rir tanto que caio no chão. O Matisse ajuda-me a levantar e põe os braços à minha volta num abraço forte, como de quem quase me tivesse perdido.
- Ouve a noite - diz ele, inclinando-se sobre o gradeamento do observatório a ver as luzes da cidade espraiando-se por baixo de nós como um prato de diamantes. O vento deixa-me gelada e abre dentro de mim um lugar que recorda a
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lâmina gelada nas minhas coxas e a quietude da noite num campo de milho no Texas. Fecho os olhos e ouço a música triste da noite como se o som tivesse enrolado os seus braços à minha volta. Está frio e choro nos braços do meu pai. Ele abraça-me como se eu fosse só dele e todas as noites fossem nossas.
- Pronto. Vai correr tudo bem. O papá está aqui. - Não me pergunta porque choro.
O Matisse ensina-me a perspectiva, ensina-me a olhar para os objectos antes de lhes atribuir um valor. Quando estamos a olhar para os quadros do Museu de Arte Contemporânea pergunta-me se gosto de algum em particular e, depois, pergunta-me porquê. Faz-me dar nome aos meus sentimentos. Olho para o mundo com os olhos novos que o Matisse me deu. Estou tão embriagada com os conhecimentos que verteu na minha mente que começo a esquecer coisas.
Telefono às minhas tias todos os domingos do telefone da cozinha. Sento-me na mesa da sala com o fio enrolado no braço. E todos os domingos a tia Faith me faz as mesmas perguntas.
- Mariah, encontraste uma igreja onde possas ir?
- Ainda não - respondo, apertando o fio à volta do dedo.
A tia Merleen, menos preocupada com a minha alma, pergunta: - Ele trata-te bem? - A sua voz é estridente e pouco natural.
- Sim, está tudo bem - é o que respondo sempre. Apercebo-me de que, quando vivia com elas, havia sempre
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alguém por perto e acostumei-me a isso. Sinto a falta do seu cheiro, da proximidade dos seus corpos ao meu lado na missa de domingo. Sinto preocupação nas suas perguntas, algum receio no momento que antecede a minha resposta, medo de termos todos cometido um grande erro.
Provavelmente as minhas tias contaram ao meu pai tudo a meu respeito, a respeito dos problemas que lhes causei no fim, pois passado algumas semanas ele quis saber tudo:
Quando tenho o período. Todos os vinte e dois dias, certa como um relógio. Nas minhas primeiras semanas em L.A. dei socos a mim própria na barriga por várias vezes até saírem das minhas pernas coágulos de sangue escuros e espessos e não um bebé de cabelo grisalho com cara de avô.
De que professores gosto. A Mrs. Oyama, a professora de geografia, é bonita e sorri-me muitas vezes. Tem uns olhos amendoados cor de fumo que desaparecem quando se ri, como os da minha mãe. Depois das aulas levo-lhe pequenos presentes - uma laranja perfeita, um abacate, uma taça de limões e, um dia, uma rosa amarela.
Com quem me dou na escola. A Candy e a Bertine, pois têm ambas fortes pronúncias e não fazem pouco da minha. A Candy é da Nicarágua e a Bertine da zona oriental de L.A.. Fumam cigarros comigo na casa de banho antes de as aulas começarem. Às vezes falam espanhol entre elas como se eu não estivesse lá. Falam dos rapazes giros da equipa de basquetebol, quem beija melhor e qual é o mais agressivo no banco traseiro de um carro. Ouço apenas estas conversas. Não estou interessada em ir para o banco de trás com nenhum rapaz. Às vezes penso em beijar a Bertine, mas não digo nada Penso em como beijava a Joy e isso faz-me desejar ser adulta
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Para beijar qualquer pessoa. O cheiro dos rapazes que passam por mim nos corredores desperta em mim uma vontade homicida. Nunca fui a um jogo de basquetebol por se realizarem depois da escola, à tarde e à noite, e o meu pai diz que devo voltar para casa à tarde, trancar a porta e não a abrir a ninguém por ser perigoso fazer tal coisa em L.A.. Ele diz que qualquer pessoa pode fazer parte de um bando. O meu pai quer que leve todos os meus amigos lá a casa para os poder examinar, mas eu quero manter algumas coisas só para mim. Em breve a Candy e a Bertine deixarão de ser minhas amigas. Uma manhã, depois de ter fumado um cigarro na casa de banho, a Candy tira uma caixa de charutos da mochila.
- O meu irmão acabou de chegar do Havai. - Abre a caixa e mostra um saco de plástico cheio do que ela diz ser Kona Golã.
- O teu irmão deu-te isso tudo? - pergunta a Bertine, assobiando pela falha que tem nos dentes em sinal de espanto.
- Não, pendejal Ele tinha uma mala cheia. Não vai dar pela falta.
A Candy pousa a caixa no parapeito da janela, tira um pacote de mortalhas e ensina-nos a enrolar um charro. Parece fácil nos seus dedos rápidos e morenos. Antes de termos tempo de o acender, ouvimos alguém num dos sanitários. A Bertine pega no charro já enrolado e a Candy mete o resto da droga na mochila. Saímos da casa de banho e dirigimo-nos para a nossa primeira aula.
- Até logo - digo eu.
- Até logo - repetem elas em uníssono. Logo vamos fumar um charro de droga havaiana e vamos ficar a flutuar para o resto das nossas vidas.
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Estou sentada na aula de geografia da Mrs. Oyama quando, duas horas depois, entra o subdirector, o Mr. Martinez, que se dirige à secretária da Mrs. Oyama. Soltam um suspiro breve e depois chamam pelo meu nome.
- Mariah Santos, pega nos teus livros e vai com Mr. Martinez. - Olha-me com gravidade. Reúno as minhas coisas e sigo-o pelo corredor fora. Tenho o coração na boca. O Mr. Martinez não me dirige a palavra. Não sei o que se passa. Na sala de espera vejo a Candy e a Bertine afastadas uma da outra e enterradas nas cadeiras. Ambas me olham gelidamente quando passo. Um agente da polícia está sentado entre as duas a folhear uma revista. Sou levada ao gabinete do director onde me esperam dois agentes, um homem e uma mulher.
- A Candeia Vega e a Bertine Ramos vão ser expulsas. Sabes porquê? - pergunta-me o subdirector. Finjo desinteresse na resposta, seja ela qual for.
- Tu também serás expulsa se descobrirmos que estiveste envolvida em algum tipo de drogas. - Revistam-me o saco e pedem-me para relatar todos os meus movimentos desde que cheguei à escola nessa manhã. Repito várias vezes que fumei um cigarro na casa de banho com a Candy e a Bertine mesmo sabendo que estava a infringir as regras, mas não sabia nada acerca de drogas. Eu sabia pela televisão que uma confissão poderia ficar registada no meu cadastro e que sem provas ou testemunhas eles não me podiam tocar; além disso éramos menores; eu conheço os meus direitos. Ao fim de duas horas assino uma declaração. Informam-me de que fui suspensa por três dias e que só poderei voltar à escola com uma carta assinada por um dos meus pais. Arrumo os livros e saio. A Candy e a Bertine estão a ser levadas pela polícia.
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Quando tento telefonar para casa delas dizem-me que elas não podem falar comigo.
Após este incidente a Mrs. Oyama dá mostras de um interesse especial por mim. Por ter faltado a um teste importante diz-me que tenho de ir ao gabinete dela durante a hora de estudo para recuperar. Ela parece sincera na sua preocupação. Reparo nos seus olhos, na cor do seu vestido e no perfume de jasmim que exala quando passa por mim. Observo os seus gestos e parecem-me familiares. Está sempre a deixar cair coisas e eu sempre a apanhá-las para poder ver o fumo dos seus olhos e o sorriso que parece nascer só para mim.
Ele gosta de pensar que lhe conto tudo, mas não o faço. Eu tenho os meus segredos.
Sem amigas os dias passam devagar. A Candy e a Bertine são expulsas da escola e ficam em regime de liberdade condicional. Na escola pregam-me um sermão acerca dos perigos da droga. Quando chego a casa, o Matisse está a fazer a mala. Vai muito convenientemente para Nova Orleães por alguns dias para ajudar a pintar a casa de um amigo a quem deve um favor.
- Tens a certeza que não vais ter medo de ficar aqui sozinha?
- Vai correr tudo bem. - Certifiquei-me de que haveria uma quantidade suficiente das pequenas pílulas amarelas no armário.
- Precisas de alguma coisa? Alguma coisa que eu possa fazer? - diz ele, quase implorando.
- Leva-me contigo.
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- Desta vez não. - Olha para mim e pisca-me o olho.
Faço-me forte, mas pergunto a mim mesma se ele irá voltar. Passo o fim de semana a ver televisão, a encomendar comida chinesa e a pô-la no cartão American Express do Matisse. O meu pai leva-me de carro para todo o lado. o único sítio para onde vamos a pé é até à banca de cachorros na esquina, e à lavandaria, duas portas acima. Aqui o meu mundo centra-se dentro de casa. Telefono à Bertine, mas são as suas irmãs que atendem o telefone e dizem que ela está no Dakota do Norte. Depois de horas a praticar a assinatura do meu pai, assino a carta da minha suspensão da escola e dobro-a cuidadosamente no envelope endereçado ao vice-director. QUando não estou a ver televisão, estou a dormir. Dois Valums e um copo de água mineral apagam-me totalmente.
No dia em que regresso à escola o Mr. O'Farrell, o professor de inglês, fala sobre a história das palavras. Explica que a mais antiga forma de escrita conhecida dá pelo nome de hieróglifos. A própria palavra significa impressão sagrada. Conta-nos como a Pedra Rosetta foi encontrada em 1799 por membros da expedição napoleónica ao Egipto, e traduzida por um linguista francês em 1822. O Mr. OTarrell faz a história parecer um lugar onde se gostaria de viver.
Subitamente deixo de me conseguir concentrar na página. Sou perseguida pela tinta colada por baixo das minhas unhas. Sinto comichão nas palmas das mãos. Durante o intervalo roubo do armário da sala de desenho um marcador preto grosso, tinta vermelha e giz cor-de-rosa. Aperto o vestido à volta da cintura e rastejo com os joelhos nus enquanto escrevo palavras cor-de-rosa no passeio e palavras negras no fundo da parede até ao refeitório. Escrevo da direita para a esquerda e
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depois da esquerda para a direita, como uma cobra a deslocar-se em águas estagnadas. As palavras são sagradas, ilegíveis, indizíveis, mas necessárias. Compreendo-as, mas não vou traduzir. Pinto a palavra mãe de vermelho. A única palavra que não consigo perceber. A palavra que se recusa a desaparecer. A vigilante, uma rapariga mexicana muito magra, com longas tranças negras e uma boina cor-de-rosa na cabeça, tem na mão um lápis e um bloco para apontar os nomes dos que ficam pelos corredores, dos que falam alto e dos que causam distúrbios. Mal me vê, começa a gritar.
- Estás metida num grande sarilho - diz ela, como se isto me fizesse parar. As suas pernas longas e muito magras fogem de mim.
Tenho tinta vermelha no rosto, pó de giz na garganta e dores lancinantes nas mãos. Os joelhos estão arranhados e manchados de um vermelho profundo, mas continuo a escrever, rastejando pelo passeio até estar com o nariz colado aos sapatos de camurça castanha do Mr. Martinez. Ele levanta-me pelo colarinho da camisa e acorda-me de um sonho.
Abro os olhos numa visão. As palavras que escrevi no corredor estreito não se assemelham a palavras. São desenhos, linhas sorridentes, fios entrelaçados de cor. Está em código. Não me lembro da sua tradução. Sou obrigada a limpar as paredes e o passeio depois das aulas. A Mrs. Oyama vai supervisionar.
- São tão bonitas. Detesto ter de te obrigar a apagá-las - diz ela, com as mãos na cintura, mordendo o lábio inferior, tal como faz nas aulas quando procura a palavra ideal para descrever um lugar que só viu nos livros.
- Parecem orações árabes - diz. No meio das linhas e
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círculos, pontos e traços, consigo discernir orações para que o meu pai nunca me deixe e a minha mãe volte para nós. A Mrs. Oyama pergunta-me se já tinha ouvido falar do Nommo, o conceito africano do poder da palavra.
- Tens de aprender a usar o fôlego, a voz e o papel (com-pletamente fora de moda) para exprimires as tuas ideias. - Pousa a sua mão quente na minha garganta. Como parte do castigo tenho de escrever um pedido de desculpas à escola. Escreverei a carta na minha própria linguagem para que ninguém a compreenda.
A Mrs. Oyama senta-se numa mesa do recreio a corrigir testes e a olhar para mim de vez em quando, para se certificar de que estou a lavar a parede com a escova que me deram. Os meus olhos ficam irritados por causa do sabão forte e do amoníaco. A Mrs. Oyama aproxima-se de mim e pousa-me a mão no ombro.
- Estás triste?
A sua voz é como um par de tesouras que se me espetam nos olhos. Enrolo-me no passeio, numa cama macia de palavras que não podem ser apagadas. Deito-me de costas e olho o céu molhado como se isso a fosse mandar embora a ela e à dor no centro do meu corpo.
Ela ajoelha-se ao meu lado e pega-me na mão. Estou quase a contar-lhe tudo. Sinto o rosto do avô na ponta da língua, mas azeda-me logo na garganta. A paz e o silêncio são demasiado grandes para abrir uma porta tão perigosa. Conto--lhe outras coisas. Ela vai acenando com a cabeça como se compreendesse as palavras que me jorram da boca como letras retorcidas. Passa o cabelo por trás das orelhas e pega-me na mão. Estou-lhe eternamente grata por este pequeno
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sinal de ternura. Quero estar sempre com ela. Perto do seu aroma de jasmim, tocando o seu cabelo escuro e espesso, olhando para os seus olhos de fumo. O seu rosto ilumina-se quando sorri e os olhos quase desaparecem. É uma mulher pequena, compacta, com traços africanos e asiáticos. Usa vestidos compridos que lhe chegam quase aos tornozelos. Há sempre rendas a cobrir-lhe o peito. Imagino que há limões por debaixo da renda. Limões pequeninos, duros e sumarentos.
- Onde moras? - pergunta a Mrs. Oyama.
- Na zona ocidental de Hollywood.
- Deixa-me levar-te a casa. Gostava de conhecer o teu pai. - Endireita a gola de renda.
- Ele não está - respondo, mexendo nos arranhões que
tenho nos joelhos.
- A que horas sai do trabalho? - A sua mão está pousada no meu ombro.
Pergunto-me se poderei confiar nela. Decido que sim quando me lembro do modo como me pegou na mão e me limpou o rosto com um lenço fresco.
- Na quarta-feira.
Mrs. Oyama leva-me para casa dela. Vamos no seu pequeno Volkswagen que percorre a estrada como uma tartaruga com tosse. Mora no Valley. Numa casinha caiada numa rua sem saída. No quintal há uma pequena árvore de abacates e uma samambaia brava. Abre a porta de casa e diz-me para fazer de conta que estou em minha casa. Não percebo o que ela quer dizer com isto e, por isso, sento-me com o máximo de compostura no seu sofá de cabedal preto. O aroma de
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comida condimentada paira no ar. Ela parece dar também por ele. Vejo-a a andar na cozinha por trás do balcão do pequeno almoço. Abre as janelas e somos recompensadas com uma brisa fresca. Do sofá observo a sala repleta de objectos. Sempre imaginei que a sua casa fosse assim, pequena e asseada. A casa está cheia de objectos que parecem ter vida própria. Leques e jarras orientais, máscaras africanas, estatuetas e paninhos de renda, fantoches, bonecas de porcelana e tapetes artesanais, bandejas com frutos de madeira, taças com flores secas a boiar em água turva, e livros, amontoados por toda a parte, com papelinhos a saírem em todas as direcções
- A sua casa parece um museu - digo; enquanto os olhos vão saltando de um objecto para outro. pego numa bela taça azul com uma racha longa e fina que lhe passa pelo centro.
- Colecciono coisas. A minha mãe diz que é lixo. O meu pai diz que são artigos de colecção. Eu digo que são memórias. Encontrei essa taça rachada numa praia na Grécia. As cores lembram-me uma taça que a minha avó usava para servir o arroz quando a íamos visitar. - Abre a porta do frigorífico e enche um copo com vinho branco.
- Queres um sumo?
- Sim, obrigada. - Deita sumo de laranja num copo de pé alto como o dela.
Sentamo-nos viradas uma para a outra em lados opostos do sofá. Ela faz-me perguntas acerca da minha vida na Geórgia e deixa-me falar, sem me interromper, durante muito tempo. Falo-lhe da minha mãe, das minhas tias e da minha melhor amiga, a Joy. Falo-lhe do meu pai e de como me sinto só em Los Angeles. Ouve-me, bebericando, murmurando e concordando. Deixamos as paredes falar. Fazemos jogos de
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palavras com duplo significado para aprofundar a nossa conversa. Rimo-nos como duas crianças e comemos os intragáveis ovos estrelados todos secos que ela faz para o jantar e as fatias de pêra abacate polvilhadas com açúcar amarelo. Depois de beber dois copos de vinho, a Mrs. Oyama começa a contar-me coisas como se eu fosse uma adulta. Faz-me confidências. Depois de três copos diz-me para a tratar por íris e percebo que este é o nosso segredo. Depois de jantar vai ao quarto e volta com uma camisa de noite curta e florida e umas calças de pijama brancas e muito largas. Faz um chá verde.
- De onde é? - disparo, sem saber como hei-de perguntar-lhe onde arranjou aqueles olhos asiáticos, o nariz indiano, a boca africana, o cabelo meio encarapinhado e a sua estranha maneira de cozinhar.
- Nasci em San Francisco. - Senta-se no chão ao pé do sofá, bebe um gole de chá verde e prende o cabelo atrás das orelhas.
- O que eu queria dizer era de que raça é? É negra? - Pergunto isto, porque na Geórgia só se podia ser branco ou negro.
- A minha mãe é negra. É uma poetisa da Carolina do Norte. O meu pai é um jornalista japonês oriundo de uma pequena vila nos arredores de Tóquio. Conheceram-se na universidade e passados quarenta e cinco anos ainda estão juntos. - Ri, bebendo mais um pouco de chá, com o vapor a nublar-lhe um meio sorriso. - Ninguém lhes dava mais de um fim-de-semana.
- Não tem medo de ficar aqui sozinha? - pergunto.
Ela assusta-se com a brusquidão da minha pergunta. Pousa a chávena cuidadosamente ao lado do prato e começa a
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cortar as suas fatias de pêra abacate em quadradinhos, mastigando-os demoradamente. Dá por mim a olhá-la atentamente.
- Não quero ser mãe de ninguém. - Pousa o garfo. Fala como se conseguisse ler-me a mente.
Na minha cabeça somos mãe e filha. Marido e mulher. Noiva e noivo. Amante e amada. Sou um rapaz e um velho. Um bebé e um pirata que descobriu a Pedra Rosetta. Se quiser, posso seduzi-la com as roupas do meu pai, tão suavemente que ela nem vai perceber que estou a fingir.
- Eu tenho mãe - digo. - Do que eu preciso é de uma amiga.
Parece aliviada. Começa a falar muito depressa para disfarçar o nervosismo. As palavras saem-lhe tão depressa da boca que parecem envoltas num espesso nevoeiro.
- Não estive sempre só. Casei com o meu melhor amigo para o salvar dos serviços de imigração. Era aluno do meu pai. Um homem muito doce. Era de Osaka. Nem sequer chegámos a dar as mãos. E, de repente, depois do casamento, quis reclamar os seus direitos de marido. Nunca tinha dormido com um homem e fiquei chocada com a sua falta de sensibilidade. Engravidei passado pouco tempo de casada. Decidi tentar construir uma vida com ele. Um Verão o meu marido regressou a casa para visitar a avó, que estava doente, e levou com ele o nosso filho de três anos. Nunca mais voltaram. - Estica os braços por cima da cabeça e boceja. Quando se encosta ao sofá a camisa de noite sobe e deixa ver as estrias que tem na barriga. Cobras longas e pálidas percorrem-lhe a barriga e marcam-lhe a pele como vergões de chicote.
- Desapareceram - diz.
Parece ter ficado embaraçada, como se não tivesse intenção
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de me dizer estas coisas, e agora está em silêncio e eu desejo ardentemente ouvir o som da sua voz. Salta para o chão, vertendo chá no tapete.
- Podes dormir no sofá. - A sua voz é dura. Empresta-me uma T-shirt do sobrinho, um jogador de futebol americano na USC.
Fazemos a cama no sofá com lençóis perfumados de jasmim.
- Boa noite. - Toca-me no braço de um modo estranho. Estico os braços para tentar abraçá-la. Primeiro o seu corpo enrijece, mas depois relaxa, aperta-me rapidamente as costas e liberta-se do meu abraço. Sinto falta deste tipo de toque. Quando as luzes se apagam, imagino que estou em casa e que eu e a Mrs. Oyama pertencemos a este lugar. Quando acho que já está a dormir, percorro o corredor até ao seu quarto. Deixou a porta aberta. Sento-me no chão do corredor e observo-a enquanto dorme. Fecho os olhos e ouço o som da sua respiração. Deito-me com os tubarões e sonho.
A minha mãe está morta, mas não sinto tristeza. Retiro o doce sabor da água do meu poço de memórias, o poço fundo de um beijo da alma que se espalha pelo meu corpo como mel quente. Os seios da minha mãe parecem nuvens nas minhas mãos pequenas, o seu mamilo é um conforto para a minha boca e agarro-me a ele.
Na manhã seguinte a Mrs. Oyama encontra-me a dormir à porta do seu quarto.
- Tiveste medo? - pergunta, ajoelhando-se a meu lado.
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- Não. A senhora teve? - pergunto, recordando como ela se mexeu durante o sono. Quando, por acidente, lhe toco, a sua pele é macia e húmida. A camisa de noite cola-se ao seu corpo.
- És muito bonita. Tens uns olhos lindíssimos - diz ela. Afasto o olhar dos seus olhos de fumo, embaraçada e fascinada. Ela fala sem parar enquanto prepara um pequeno-almoço de croquetes de salmão com wasabi, papas de aveia grumosas e torradas queimadas.
- Procurou-os? - pergunto. - O seu marido e o seu menino. - Os olhos toldam-se-lhe.
- Desapareceram. Mariah, não fiques à espera que o vento te beije - diz, como se soubesse algo que eu não sei. Mordo as suas palavras. - Agarra as rédeas da tua vida. - Volta a ser a minha professora de geografia. Saímos da sua casa e estamos na auto-estrada. Transporto o meu corpo de aula para aula apesar de não me lembrar de como lá cheguei.
Abro a porta do apartamento na quarta-feira depois das aulas e o Matisse está a dormir na cama desfeita. Acorda assustado.
- Onde estiveste? Quase enlouqueci de preocupação, quando cheguei a casa ontem à noite e não te encontrei. - O Matisse obriga-me a levá-lo a casa da Mrs. Oyama. Não acredita que eu tenha estado com ela. Não me dirige a palavra durante toda a viagem.
Quando a Mrs. Oyama abre a porta, olha primeiro para mim e depois para o meu pai. Os seus olhos examinam-no. Começam a brilhar.
- Desculpe incomodá-la, mas a Mariah disse que esteve
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consigo enquanto eu estive fora. Quando cheguei a casa e não a encontrei quase chamei a polícia.
- Entre Mr. Santos. Ainda bem que o conheci. Fico feliz por ter vindo. Acho que devemos conversar. - A sua voz é diferente. Parece que canta. O seu corpo pequeno parece ainda menor na presença dele. O meu pai manda-me esperar no carro enquanto se senta no sofá de pele preto da Mrs. Oyama. Sei que ela está a contar-lhe tudo o que sabe a meu respeito. Ouço música no rádio e acompanho as músicas que conheço. O Matisse parece triste quando sai.
- Queria fazer-te feliz - diz ele.
- Eu sou feliz - respondo, desejando que isso fosse verdade. Ele leva-me ao Griffith Park e caminhamos com o braço à volta da cintura um do outro, perdidos nos nossos pensamentos, como amantes distantes.
Estou parada em frente aporta da Mrs. Oyama com o fato branco do meu pai. Quando ela abre a porta, olha-me como se tivesse visto um fantasma.
- Pareces mesmo o teu pai- diz, convidando--mepara tomar um chá quente e verde.
A Mrs. íris Oyama apresenta-me o mundo da geografia. Ensina-me a ler mapas. Mapas de lugares onde nunca estive estão espalhados à minha frente como uma refeição. Ela marca as quatro direcções no mapa do meu coração e lembro-me que quando nos sentimos perdidos devemos seguir a pessoa que amamos e ir para onde o amor nos levar.
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XII

Quando era menino corria atrás de todos os Cadillacs brancos com rabo de peixe que via. Pensava que o meu pai era a única pessoa que tinha um. O dele era o único com estofos cor de vinho debruados a amarelo. - O Matisse manobra o Renault pelo meio de um trânsito caótico, esgueirando-se por entre os carros. Gosto quando ele fala do pai apesar de ele não gostar. O seu rosto transforma-se numa janela aberta através da qual vejo as suas mágoas.
- Costumávamos tratá-lo por Popi. Parecia que estava sempre a viajar e eu sempre à espera dele. Depois de jantar sentava-me no alpendre, às escuras, até a minha mãe me obrigar a entrar e ir para a cama. Prometia levar-nos, a mim e a minha irmã, a jogos de beisebol e a ver os fantoches no parque se obedecêssemos à mãe e fôssemos bons alunos. Ao contrário da minha irmã, eu era um aluno de 5, mas apesar de ser bom aluno e bom filho, éramos sempre ignorados. Quando o Popi voltava das suas viagens, eu tinha sempre coisas para lhe contar, desenhos para lhe mostrar, mas ele estava sempre demasiado cansado, demasiado ressacado ou dema-siado ocupado a tocar em clubes locais para nos dar atenção. A não ser quando nos exibia aos seus amigos da banda.
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Demorei algum tempo, mas finalmente decidi fazer apenas o que queria.
Finalmente o Matisse está a levar-me ao seu estúdio, situado num parque industrial em South Central, onde ele passa a maior parte das noites. Não sei porque se mostrou tão relutante em trazer-me aqui. Talvez seja pela mesma razão por que não gosta de falar do pai. Em L.A. está outro daqueles dias de sol, com céu azul, e até as casas de cores fortes com lixeiras protegidas com grades de aço parecem bonitas.
A antiga fábrica de doces não tem um cheiro nada doce, mas sim um odor a café estragado, aguarrás e tinta fresca. Há telas amontoadas junto à parede das traseiras. O seu estúdio, um dos quatro existentes no prédio, é comprido e estreito, com o tecto alto. Os raios de luz deslizam ao longo de uma parede de cimento esborratada de tinta. Há janelas rudimentarmente rasgadas ao cimo da parede oposta. Consigo ver o céu e algumas nuvens juntando-se em redemoinhos de algodão doce azul-claro.
- Encosta-te àquela parede. Ao canto. - Depois pega num grande bloco de desenho e num pedaço de carvão.
- Queres que pose? - Ponho uma mão no cós das calças de ganga no que penso ser uma atitude glamorosa.
- Sê tu mesma. - Senta-se numa ponta de um velho sofá verde e começa a desenhar-me. Encosto-me à parede e observo as nuvens que flutuam no céu enquanto o Matisse trabalha em silêncio. Passado algum tempo olho para ele. A sua mão já não se move através da folha; o pedaço de carvão que segura está pousado no papel, mas não se mexe. Está a olhar para mim como se me tivesse transformado num pássaro, com asas e tudo.
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- Já beijaste um rapaz? - pergunta.
Afasto-me do seu olhar, dou vários passos pela sala. Passo pelas suas telas vendo apenas cores.
- Pensei que precisássemos de ter uma conversa. Sobre... sexo. - Está tão estranho que quase sinto pena dele, mas continuo a evitar os seus olhos, enterro as mãos nos bolsos das calças e deambulo pela sala como se estivesse na horta da tia Merleen a inspeccionar a sua plantação de tomates. Algo cresce entre nós. Ele observa-me e espera. Deixo-o sofrer.
- Podes contar-me tudo... pergunta-me tudo que quiseres. - Faz uma pausa. - Sei que vês os filmes que estão no armário...
Não quero ouvir mais nada. Deixo cair os braços ao longo do corpo e saio do estúdio com os olhos a varrer o chão sujo de cimento, tendo o cuidado de fechar a porta atrás de mim. No rádio tocam quatro canções antes de ele sair. Não quero olhar para ele. Estou envolta numa nuvem de vergonha. Dirigimo-nos para casa divididos por uma parede de silêncio que se torna familiar à medida que iniciamos uma viagem para território perigoso.
Naquela primeira vez não ficámos muito tempo, mas o estúdio de Matisse deixou uma marca em mim. Agora consigo vê-lo. Quando sai à noite, consigo imaginá-lo, despido até à cintura, a aplicar tinta azul na tela com os dedos enquanto a minha mãe jaz nua no chão. Espero que ele não volte a mencionar os filmes do armário, pois se o fizer encherei os ouvidos de cimento e selarei os olhos com mel frio.
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Passou-se um ano desde que vi as estações a mudar. Todos os dias o céu está perfeito e azul ou cinzento da poluição ou molhado pela chuva. Num dia quente de Verão, um dia azul e perfeito, batem à porta. Estou sozinha em casa. Quando pergunto quem é, responde-me uma voz de mulher: - É a Corinna. A irmã do Joe El Jr.. Ele está?
Nunca tinha ouvido ninguém tratar o meu pai assim. Abro a porta. À porta está uma mulher de sapatos escuros de salto alto, meias claras e fato azul-marinho. Tem um lenço cor de limão elegantemente amarrado ao pescoço. O cabelo está apanhado para trás numa trança solta. O seu rosto é uma máscara perfeita de maquilhagem. É como se o meu pai voltasse para casa vestido de mulher.
- Tu deves ser a Mariah - diz ela, passando por mim e entrando no apartamento. Pára no meio da sala, tira um cigarro da carteira e detém-se alguns segundos como se tivesse à espera que alguém lho acendesse. Tira um pequeno isqueiro de ouro e uma chama devora a ponta do cigarro longo e fino. Expele o fumo por entre os lábios pintados de cor de tijolo e observa a sala. Sigo-a enquanto ela faz uma visita completa à casa.
- A tua mãe era uma rapariga muito bonita - diz, endireitando um dos quadros do Matisse na parede.
- Ainda é. - Encontrei a minha língua, mas não a coragem para lhe perguntar de que é que ela está à procura.
- Ah, então tens notícias da Coral? - Pára e encara-me no corredor estreito.
- O que eu queria dizer é que ela não morreu. - Sinto--me encurralada naquele espaço exíguo.
- O nosso pai queria que o Joe El casasse com ela. Essa
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tinha sido a melhor coisa para o prender à terra. Ele já arranjou um emprego estável ou ainda está a desempenhar o papel de artista lutador? - Entra no quarto dele e dirige-se para a janela. Sobe as persianas e olha para a rua movimentada.
- Ele é um artista. E dos bons. - Não gosto dela. É fria e distante mas tenta fingir que estamos a ter uma conversa. Sento-me no chão ao lado da cama do meu pai e puxo fios da carpete. Sinto necessidade de o proteger.
- Onde dormes? - Ela apanha-me desprevenida.
Aponto em direcção ao outro quarto. Um esgar de surpresa seguido por um olhar de desaprovação atravessa o seu rosto. Ela dirige-se para a sala. Levanto-me e sigo-a.
- Quando é que Joe El volta? - Os seus passos são nervosos.
Encolho os ombros. Não sei o que fazer com as mãos e, por isso, vou para o meio da sala e, fixando as costas dela, começo a puxar as cutículas, roendo o excesso.
- Volta esta noite?
Volto a encolher os ombros.
- Amanhã?
Repito o gesto, sugando o polegar.
- Ás vezes dorme no estúdio. - Os meus dedos começam a sangrar.
- Não faças isso, vais infectar os dedos. Gostas de L.A.? - Atira a cinza para a arvorezinha decorativa e volta-se para mim.
- Não é má. - Quem me dera poder mandá-la embora.
- Talvez pudesses ir para Seattle e ficar connosco durante algum tempo. As minhas filhas estão para o acampamento, mas voltam dentro de algumas semanas. O que é que tens feito durante o Verão?
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Nesse momento o Matisse entra no apartamento. Fico aliviada, mas quando vê a irmã recua como se quisesse fugir.
- Estávamos preocupados contigo - diz ela, aproximando-se dele. Abraçam-se e parecem esquecer que estou na sala. Ele afasta-se dela e encosta-se à porta de entrada.
- Não é por isso que estás aqui. - Olha-a com um olhar vazio, à espera.
- O Popi morreu. - As palavras enrolam-se-lhe na garganta.
A expressão do meu pai não muda.
- Quando? - pergunta. Há um soldado na sua voz.
- Ontem à noite. Tentámos falar contigo. - As suas lágrimas arruinam-lhe a maquilhagem. O meu pai aproxima-se para a abraçar.
Por sugestão da tia Corinna vamos jantar e ela fala e fuma o tempo todo. Fala dos planos que tem para me levar com ela para Seattle e para arranjar um emprego para o Matisse na sua empresa. Não consigo habituar-me a ouvi-la a tratá-lo por Joe El.
- O tio Jimmy telefonou-me. Disse que lhe pediste muito dinheiro emprestado. - Exala uma nuvem de fumo que dá ao seu rosto um ar fantasmagórico.
- Isso é entre mim e ele. - O meu pai beberica o seu uísque escocês e finge ouvir o que ela está a dizer. Aproveito a deixa e como a comida que está à minha frente, falando apenas quando a minha tia me faz alguma pergunta, o que é raro. Olho em volta, para o restaurante, e vejo que há brancos e negros, asiáticos e mexicanos a comerem juntos, e apercebo-me de que, na Geórgia, isto não seria prenúncio de uma noite calma. Mistura de raças seria motivo suficiente para um motim.
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- Por que é que não nos contaste o que estava a acontecer? - Ela apunhala a comida furiosamente.
- Para quê? Para que o Popi pudesse dizer-me que eu era um vagabundo? Estou óptimo. Foi só um problema temporário. O tio Jimmy não tinha o direito de te contar nada. - O meu pai bebe o resto do uísque como se fosse água.
- Ele estava preocupado, Joe El. O problema já não se resume a ti. Agora tens a Mariah contigo. - O meu pai fica calado. Mantenho os olhos no prato de esparguete meio comido, desejando poder desaparecer. Ela fala de mim como se eu não estivesse na mesa. Olho para a pedra de lápis lazúli do seu brinco esquerdo e começo a ouvir jazz nos ouvidos até ela parar de falar. O Matisse pede outro uísque e bebe-o ainda mais rapidamente do que o primeiro.
Quando chega a conta, o meu pai não discute, deixa-a pagar com o seu cartão dourado American Express. Lá fora é noite. O Hollywood Boulevard está repleto de actividade. Matisse ajuda a tia Corinna a vestir o casaco.
- Sinto muito pelo Popi, mas ainda não tenho motivos para voltar a Seattle.
Antes de a tia Corinna ter tempo para dizer alguma coisa, o empregado chega com o Mercedes prateado alugado. O Matisse dá-me o braço e afastamo-nos da sua irmã. Deixamo--la parada no passeio de boca aberta, com um cigarro aceso na mão.
Alguns quarteirões mais acima o Matisse abre a porta do carro e senta-se ao volante. Depois de uns momentos a tentar meter as chaves na ignição, passa para o lugar do passageiro e faz-me sinal para entrar pelo outro lado.
- Conduz tu - diz, de maxilar cerrado.
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Entro e ponho o cinto. Ligo o carro e respiro fundo algumas vezes antes de entrar cuidadosamente no caudal de trânsito.
- Vira à esquerda depois do semáforo, vamos entrar na via rápida. - A sua voz é dura.
Tremem-me as mãos. Nunca tinha conduzido em auto--estrada. Agarro o volante e sigo as suas instruções. Para não me afastar dos outros carros tenho de conduzir depressa e em breve começo a sentir-me bem. Gosto da sensação de estar no controlo da situação. Mantenho os olhos na estrada, mas de vez em quando olho para o Matisse para ver se ele me diz o que devo fazer a seguir. Ele diz-me quando devo meter outra mudança e em que saída devo virar. Na realidade não controlo a situação, estou apenas a conduzir. Não paro de conduzir até chegarmos ao deserto. O Matisse está a dormir ao meu lado, com a mão esquerda pousada na minha coxa. Numa faixa da auto-estrada deserta sinto que o carro e eu somos um ser uno a voar por cima da terra antes de entrarmos no céu nocturno.
- Sinto muito pelo teu pai - digo. - O avô. - As palavras soam estranhas na minha boca.
Paramos numa estação de serviço na orla do deserto. Gostava de ter palavras para o confortar.
- Amo-te, Papá.
- E eu amo-te ainda mais. - Abraça-me com força durante muito tempo. Cheira vagamente a jasmim. Sinto-me segura nos seus braços. Completamente.
O meu pai chora mansamente, com a cabeça encostada ao meu ombro e a mão esquerda pousada na minha coxa.
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Passo o meu braço à volta do seu ombro e acaricio-lhe o cabelo. A nossa respiração sobe e desce em uníssono.
Ele podia ter-me mandado embora ou até ter-me abandonado, mas escolheu ficar e eu também o escolhi. Estamos sós no mundo e quero dar-lhe tudo. Quero absorver a tristeza que sente por ter perdido o pai, eliminá-la para que possamos ser uma família feliz. Por ele faria tudo.
- Vamos voltar para trás. - Indica-me o caminho de volta à cidade, para a fábrica de doces em South Central. Sai do carro, abre-me a porta e entramos para o estúdio.
Estou cansada e ensonada. Doem-me os ombros de conduzir com a sua cabeça encostada a mim. Ele avança devagar com os ombros vergados. Sentamo-nos em lugares opostos do sofá verde. Passado um bocado levanta-se e enche um copo de uísque. Vai para um canto do estúdio e volta a sentar-se ao meu lado. Abre uma pasta cheia de desenhos da minha mãe... nua... dobrada... sentada... de pé... encostada... estendida... a dançar... a dormir. Mostra-me uma dezena de pequenos quadros dela em cores térreas. Ela parece tão perto.
Sei o que ele quer e estou disposta a fazê-lo. Tiro o casaco e sento-me em frente a ele no banco.
Ele senta-se no sofá a olhar para mim. O carvão escorrega
lentamente pela página.
- Tira os sapatos - diz, olhando para os meus pés. Desaperto as sapatilhas e meto-lhes as meias dentro. Ele está a desenhar os meus pés nus, mas parece que os está a segurar nas mãos. Todo o meu corpo está quente. Ele pára. Os seus olhos vermelhos abrem-me um buraco na roupa. Parece estar à espera. Desabotoo a camisa e atiro-a para o chão. Desaperto
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o soutien e deixo-o cair. Abro as calças de ganga e empurro-as juntamente com as cuecas para fora das minhas pernas.
Tiro uma almofada do sofá e coloco-a no banco. Volto para o meu lugar e sento-me com ambas as mãos pousadas no colo, as pernas cruzadas, as costas direitas e os olhos voltados para o céu da manhã.
Consigo ouvir as suas mãos a moverem-se rapidamente numa nova página do seu caderno de esboços. Não me sinto nua. Sinto-me como se já fosse um quadro, um objecto, uma taça de fruta, qualquer coisa útil que apaga a sua tristeza. Sinto-me perto dele.
Durante todo o Verão estou nua para o meu pai.
O Matisse começa a deixar na minha almofada pequenos quadros coloridos. No verso escreve frases tiradas de poemas românticos em línguas obscuras. Conforto-o de todas as formas que conheço. Cozinho para ele, levo as suas roupas à lavandaria e espero por ele como uma mulher preocupada. Seja qual for a hora a que volta dá-me sempre um beijo na testa. Ás vezes traz o cheiro da Mrs. Oyarna. Não lhe pergunto porquê. Gosto que também eles sejam amigos.
No estúdio do Matisse o meu corpo nu flutua em água azul, dança envolto em luz azul e salta à corda sob uma lua azul. Está fascinado pelo meu corpo e pela cor azul. E, mesmo estando os rostos escondidos do olhar, são meus os corpos nus na parede do seu estúdio. Não estou apenas nua, os meus pensamentos mais íntimos parecem visíveis sob a superfície
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da minha pele. Agora pede-me para posar nua nas posições mais vulneráveis. Às vezes faz-me ficar horas a fio com as costas coladas à parede do seu estúdio, o peito projectado para a frente e os braços a cobrirem-me o rosto. Ás vezes choro com dores por estar parada na mesma posição durante tanto tempo, mas ele não parece reparar. Raramente falamos durante estas sessões em que ele olha para mim e eu olho para o céu ou para as fatias de lua. Depois oferece-me algo bonito. Uma vez comprou-me um anel em forma de coração. Outras foi um chapéu de veludo azul, um frasco antigo de perfume, uma dúzia de rosas amarelas. A única coisa que quero é que ele seja meu pai. Ele diz que quer ser meu amigo.
Desde que a Candy e a Bertine foram expulsas fiz uma nova amiga na escola. A minha nova amiga, a Song, é uma rapariga dura, coreana, cujos pais adoptivos são antigos hippies brancos que a levam aos fins de semana a manifestações anti-nucleares e marchas a favor da paz. O seu cabelo curto é preto e brilhante e a sua cara redonda está sempre séria até me ver. Então sorri e bate-me suavemente no ombro. Fumamos na casa de banho antes das aulas e faltamos às aulas para irmos fazer compras no centro comercial. Falamos da forma como iremos mudar o mundo quando formos adultas, mas para já a Song está preocupada com a nossa vida social.
- Vais ao baile de finalistas? - pergunta, enquanto passamos pelas lojas.
- Ninguém me convidou.
- Também não fui convidada, mas vou na mesma. Podíamos vestir-nos de vaqueiras ou coisa assim.
- Preciso de um motivo mais forte.
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- Podíamos convencer o meu irmão a levar-nos a uma discoteca depois do baile e apanhávamos uma bebedeira para celebrarmos esta merda de mundo em que vamos entrar depois da formatura. Anda lá, vai ser divertido. Um amigo do meu irmão, o David, vem este fim de semana do estado de San Francisco. Podíamos ir os quatro juntos. Que dizes. A Song é tão convincente.

As cores que ele usa são ricas, os corpos que pinta são carnudos voluptuosos, boémios. Pede-me para posar sempre que está inspirado, o que pode ser a qualquer hora do dia ou da noite alguns minutos ou algumas horas. Os seus quadros são inspirados nos do seu homónimo, nos murais de Diego Rivera e nas colagens de Romare Bearden. Perco-me nos seus loucos rios de cor.
Estou determinada a quebrar os longos silêncios obscuros que existem entre nós. - Qual é a coisa de que melhor te lembras da minha mãe? - pergunto, enquanto ele se concentra com os olhos no meu peito.
- Lembro-me de tudo - diz. - Não te mexas. - O pincel brinca com a tela que está à sua frente.
- Conta-me.
- Conto-te? - repete, distraído e bebe mais um gole do seu uísque escocês.
- Todos os detalhes. Disseste que não devíamos ter segredos. Conta-me tudo o que sabes. - Estou disposta a implorar por uma recordação apenas.
Ele namorisca comigo como se não nos conhecêssemos.
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Coro Estou sentada num sofá, com o peito nu e um pano africano enrolado à cintura, olhando para um céu sem nuvens através das enormes janelas.
- Se eu lhe contar os meus segredos, senorita, conta-me também os seus? - Pisca-me o olho.
Quase lhe conto o que se passou no Texas, mas tenho medo que se zangue comigo.
- Ela falou-me de ti - digo, coçando-me discretamente. __ O que é que ela te disse de mim? - Subitamente, fica alerta.
- Que quando se conheceram era Inverno-Primavera-Verão e Outono. Disse que tinha havido um furacão-tempestade-terramoto na lua onde se conheceram. Contou-me muitas histórias a teu respeito. Não sabia em quais acreditar.
_ A tua mãe gostava de contar histórias. Tinha uma ... - procura a palavra - ...imaginação muito fértil.
- Ela não está morta.
- Eu não disse...
- Ela disse que eras um bom pintor.
- É assim que conto as minhas histórias. Só conheci a tua mãe durante algumas semanas, mas ela está aqui. Estará sempre aqui - diz, apontando para o peito. Respira fundo e esboça um sorriso triste.
Esta é a história que o Matisse me conta sobre a minha mãe.
- A primeira vez que vi a Coral ela estava vestida de branco da cabeça aos pés. Pensei que era um anjo até me aperceber de que estava num hospital. Lambi os lábios quando a vi. Tinha as mãos mais gentis que já vi e uma adorável pronúncia sulista que a fazia parecer estar sempre a cantar.
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Esqueci-me que caí da escada. Esqueci a dor na cabeça. Quando ficámos sozinhos na sala de observações, e antes de conseguir pensar em algo para lhe dizer, beijei-a nos lábios. Ela afastou-me e fez-me festas como se eu fosse o seu novo cachorrinho. Limpou-me o golpe da cabeça e pôs-me uma ligadura. Disse-me para ir para casa e descansar, mas esperei seis horas, até ela terminar o turno, para lhe oferecer boleia para casa. Passámos as semanas seguintes trancados no meu apartamento a amarmo-nos mutuamente. Depois ela partiu e pensei ter sonhado.
- Porque é que ela se foi embora? - pergunto.
- Tinha de se apresentar no hospital militar do Kansas.
- Não tentaram ver-se novamente?
- Ela apaixonou-se por outra pessoa e nunca mais voltei a vê-la. Escreveu-me a dizer que te tinha deixado com as tias dela na Geórgia, porque estava doente. Nunca mais soube nada dela. - Pega-me na mão e acaricia-a.
- Sinto que ninguém me queria realmente.
- Agora vou amar-te. - Beija-me as faces. Lágrimas frias molham-me a cara.
- Chora à vontade - diz ele. - O papá está aqui. - Toma-me nos braços. As suas mãos quentes desenham círculos nas minhas costas.
Não digo ao Matisse que o que quero realmente é dançar com a Mrs. Oyama vestida com um fato branco de linho, bei jar a Song nos lábios e dormir toda a noite no aconchego dos seus braços.
A Song diz que o irmão concordou em me levar ao baile.
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O Matisse não fica impressionado por o irmão da Song ser caloiro na Universidade da Califórnia em Los Angeles.
- És demasiado nova para sair com rapazes - diz.
- Tenho quase dezassete anos. Além disso ele não é meu namorado nem nada.
- Não - diz ele, e recusa-se a voltar a falar no assunto. Uma semana antes do baile de finalistas o Matisse sente
remorsos por não me deixar ir e decide convidar-me para um programa especial. Ir jantar fora e dançar. A Mrs. Oyama ajuda-me a escolher um vestido comprido de malha preto decotado, sandálias prateadas com pouco salto e um colar de prata em forma de coração a condizer com o anel. O Matisse está vestido com um smoking alugado e com os botões de punho em prata que eu lhe comprei com o dinheiro que as minhas tias me deram. É a primeira vez que saio com o meu pai e estou nervosa. Antes de sairmos do apartamento o Matisse beija-me no rosto.
- Estás linda - diz. - Pareces-te tanto com a tua mãe. Coro e endireito-lhe a gravata. Tira o carro da garagem e
espera por mim à porta do prédio. Flutuo pelas escadas abaixo. Felicidade não é uma palavra, mas sim o mundo em que vivo enquanto navegamos pelas ruas na nossa carruagem. Estou rodeada por luzinhas prateadas cintilantes. Rimos e acompanhamos as canções que tocam no rádio. No hotel da baixa da cidade onde vamos jantar o empregado estaciona o nosso carro enquanto o Matisse me dá o braço e me conduz pela passadeira vermelha, por baixo do elegante toldo branco, até ao átrio do hotel repleto de lustres e grupos de mulheres carregadas de jóias com vestidos cintilantes, exalando odores perfumados, com os rostos cobertos de maquilhagem. Os seus
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homens usam óculos e parecem aborrecidos e desconfortáveis nos seus fatos e smokings. Sinto que todos olham para nós por o meu pai ser tão bonito e eu me sentir tão bela. Quando entramos no salão de baile, sinto-me a rapariga de sandálias prateadas mais feliz do mundo. Fico surpreendida quando vejo a Mrs. Oyama ao pé do bar com um vestido cai-cai de um branco resplandecente.
O meu pai arrasta-me pela sala fora em direcção ao bar. Larga-me o braço para beijar a mão da Mrs. Oyama.
- Mariah, pareces tão crescida. És uma linda rapariga - diz, abrindo um grande sorriso. Depois olha para os olhos sorridentes do meu pai.
- Que tal bebidas para as duas mulheres mais belas desta sala? -pergunta o Matisse, com os olhos pregados nos seios pequenos da Mrs. Oyama.
- Que tal um Pink Lady, Mariah? - pergunta ela, piscando-me o olho.
- Prefiro um uísque com soda - respondo. A Mrs. Oyama parece uma estrela de cinema. Encosto-me ao bar e bebo--a com os olhos. Flores desabrocham no ar à sua volta. Jasmins.
- Hoje não, querida. Que tal um refrigerante? - pergunta o meu pai, distraído, e depois convida a Mrs. Oyama para dançar. Passa-lhe o braço à volta dos ombros e ela sorri-lhe.
- Quero um uísque com soda - insisto, olhando para eles. A inveja é uma cobra que me morde.
- Nem penses, Mariah. - Consigo ver que ele está a começar a perder a paciência comigo.
- Então não quero nada. - Afasto-me deles para ir atirar-me ao empregado que limpa o bar atrás de nós. Pisco o
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olho ao velho e aceno-lhe. Quando ele se aproxima sussurro-lhe suficientemente alto para que o Matisse me ouça: - Um uísque com soda.
- Mariah, o que é que se passa contigo? - É a primeira vez que o meu pai grita comigo. Começo a afastar-me deles, atravessando a pista de dança, mas ele agarra-me pelo braço e puxa-me para si.
- Qual é o teu problema? - Sussurra duramente. Liberto-me da sua mão e fujo. Ele entra no elevador ao mesmo tempo que eu. Saímos no vigésimo terceiro andar e ele segue-me através do labirinto de corredores. Agacho-me à porta de um armário a chorar.
- O que é que se passa, querida? - Ajoelha-se ao meu lado. - Estás aborrecida por causa da íris? Pedi para ela vir connosco porque pensei que gostasses dela.
- Queria ser a primeira a dançar contigo.
Pega-me na mão e não a larga durante muito tempo. Entramos no elevador e descemos até ao salão de baile. A Mrs. Oyama está sentada no bar. Parece preocupada. O Matisse deixa-nos por uns momentos em frente à casa de banho das senhoras. Sussurra-lhe qualquer coisa ao ouvido e depois dá-lhe dinheiro para o táxi e acompanha-a até à porta. Ela volta-se para me dizer adeus. Eu respondo ao gesto. Não há ressentimentos. Quando o Matisse volta agimos como se fôssemos namorados em férias. Depois de um jantar elegante no restaurante do hotel, vamos para uma discoteca em Hollywood Boulevard e dançamos ao som de música disco, salsa e baladas como se fôssemos as únicas pessoas no mundo. Mais ninguém importa.
Mais tarde nessa mesma noite, quando pensa que estou a
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dormir, deixa-me só outra vez. Vejo-o afastar-se antes de montar o projector. Depois de me masturbar tomo três Valiums e adormeço na cama dele.
Neste momento o meu corpo concentra-se na promessa de um orgasmo. Abro uma gaveta repleta de desgostos e cada um deles transforma-se numa lágrima que se derrete e desliza pelo meu rosto. Primeiro abro a mamã. Palavras azuis, bonitas. Lenço tigrado. Camisa de cetim cor-de-rosa. Perfume de bergamota e barulho de saltos altos a dançar num chão de madeira. Depois aparecem a tia Merleen e a tia Faith. O último desgosto que abro é o Matisse. Uma onda de dor eprazer abate-se sobre mim.
Quando acordo, o Matisse está deitado ao meu lado por baixo dos cobertores. Há quanto tempo estará ele aqui? Estarei a sonhar?
- Tiveste medo de ficar sozinha? - sussurra.
- Não. Estava a dormir. Não pensei que voltasses esta noite. - Volto-me de costas para ele. Nascem flores na escuridão.
Sinto a sua erecção na parte de trás da minha coxa. Afasto-me do calor do seu corpo. Tenho medo da sua voz sussurrante. Fecho os olhos e vejo a cara do meu avô. Sinto os olhos do meu pai em mim e entro em pânico. Ele conquista o espaço branco que nos separa e começa a acariciar-me o cabelo, os ombros e a parte de trás da camisa cor-de-rosa da mamã. Instintivamente transformo o meu corpo numa bola. O homem, o meu pai, aproxima-se. O meu corpo endurece e
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torna-se gélido à medida que os seus braços se enrolam na minha cintura. Procura na minha voz uma palavra para o deter.
- Papá? - sussurro. - Por favor não me faças mal. - O seu braço afasta-se.
- Desculpa, querida. Eu não ia fazer nada. Não tenhas medo de mim. Não te vou fazer mal. Desculpa. Amo-te - diz, desesperado.
Acordo a gritar. O meu pai não está. Estou sozinha na cama. Estou a suar e a tremer de medo.
Nunca mais volto a adormecer na cama dele, por mais medo que tenha. Volto a evitar os olhos do meu pai. Tenho vergonha dos meus pensamentos acerca dele. Será que ele se apercebe disso? A mamã ensinou-me que os sonhos não mentem.
Às vezes encontro garrafas de uísque vazias ao lado da sua cama. Discutimos por causa de eu usar a sua lâmina para rapar as pernas e as axilas. Discutimos por causa dos pratos deixados no lava-loiça durante a noite. Na realidade não estamos a discutir por causa dessas coisas, mas algo mais profundo veio à tona. Ele está triste por ter perdido o pai e assustado por às vezes esquecer que sou sua filha.
- Estás bem, papá? - pergunto.
- Está tudo bem - responde, mas eu não acredito.
A árvore que reguei e cuidei cresceu. As palavras começaram a despontar da terra. Ainda não consigo lê-las, mas elas estão lá. Apesar de tentar manter-me longe dele, estou suficientemente perto para saber que o meu pai sofre. Ele veste a
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sua tristeza como se fossem roupas velhas. Às vezes chega a casa a meio da noite, senta-se no chão ao lado da minha cama e fica a olhar para mim enquanto durmo.
Começo a coleccionar palavras. O seu significado não importa. Quero saborear vogais deliciosamente longas e consoantes doces, ouvir o som da sua música e comer as letras proteicas da memória como um bolo. Transparente... atraente. .. vicissitudes... definhar... Colecciono palavras estrangeiras. Amore... bisous... habibi... querencia... Palavras com cor, intensidade, tom, textura, forma, cheiro. Meto-as no meu livro de sonhos e escondo-as debaixo do colchão. Cozo-as, asso-as, frito-as em gordura quente e alimento-me delas, tentando compreender a vida que vivo com o meu pai e sem a minha mãe. Quero voltar para junto da tia Faith e da tia Merleen. Lá é que é o meu lugar, mas não quero abandonar o Matisse.
A Mrs. Oyama é a pessoa que me encoraja a permanecer na escola. Quem me dera que ela fosse a minha mãe, pois sentir-me-ia em casa sempre que ela me abraça e beija o meu cabelo. Ela convida-me para ir para sua casa alguns fins de semana que o meu pai está para fora. Gosto de estar sozinha com ela. Será que ela faz companhia ao meu pai à noite?
- Ama o meu pai?
A Mrs. Oyama pára de lavar os pratos e vem sentar-se ao meu lado na mesa do pequeno-almoço.
- Mariah, o teu pai é um homem bom, mas para ele o amor não é suficiente. Ele precisa de algo que nenhuma de nós lhe pode dar.
- Não sei o que fazer.
- Salva-te. - Abre a boca para falar, mas decide ir por outro caminho. - Tens sonhos, objectivos? - Parte limões
numa taça de esmalte vermelha numa mesa baixa colocada à nossa frente.
- Quero encontrar palavras para contar histórias que gostaria de saber.
- Inventa-as, escreve finais felizes, leva esperança a onde ela não existe. - Está convencida de que poderei fazê-lo, mas não tenho a certeza de nada. Quando me for embora não lhe direi adeus. Esgueirar-me-ei durante a noite e pensarei nela tal como a minha mãe pensa em mim, onde quer que esteja. Rezarei pelo meu pai, inventarei rituais para o curar. Mas primeiro tenho de me salvar.
A tia Faith telefona. A sua voz é débil como se estivesse a falar debaixo de água.
- A tua tia Merleen faleceu ontem à noite. - Com estas palavras abrem-se os pontos no meu coração partido.
Agora tenho um morto para chorar. O meu corpo sente um estranho alívio, mas não posso ser confortada. O Matisse não sabe o que fazer. O seu desgosto é acalmado quando ele chega ao fim de uma garrafa de uísque. A tia Merleen morreu de uma hemorragia cerebral. Com o punho abro um buraco na parede do apartamento. Parto o dedo mindinho da mão esquerda. Mas a dor não é suficiente para me distrair da minha perda. Porque é que passou tanto tempo?
- Sinto muito. Sei o que ela significava para ti - diz ele do outro lado da sala.
- Posso ficar sozinha por algum tempo?
- Claro, querida. Sei o que estás a sentir.
- Só quero dormir.
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Ele traz-me um Valium e um copo pequeno com água. Adormeço no chão ao lado da árvore que parece estar a definhar e a morrer diante dos meus olhos.
No dia seguinte o Matisse diz que não quer que eu volte para a Geórgia, pois tem medo de me perder, mas eu tenho medo do que poderá acontecer se ficar. Gritamos um com o outro e ele deixa-me sozinha outra vez. Deito-me na minha cama com a televisão ligada para me fazer companhia. Quero navegar rumo a sonhos agradáveis, mas não consigo relaxar. Tomo mais dois Valiums e começo a ver um filme antigo. A determinada altura ouço uma voz tranquilizadora a fazer-me perguntas.
- Precisa de alguém para falar? Está só? Triste? Precisa de ajuda? - Aquela voz de mulher é-me familiar.
- Sim - respondo, com os olhos fechados.
- Ligue-me - diz a voz dentro do televisor, e eu marco os números.
Quando um homem atende peço para falar com a voz da televisão. Ele pergunta se pode ajudar-me e eu respondo: - Ninguém me pode ajudar. Só ela. - A voz dela é igual à da minha mãe.
- Estou. Fala Ava, qual é o seu nome? - pergunta uma mulher suavemente.
- És a minha mãe? - pergunto.
- Não, não sou a tua mãe. Como te chamas? - Parece estar tão longe.
- Podes ajudar-me?
- Estiveste a beber ou a consumir drogas?
- Eu só queria dormir.
- O que é que tomaste?

- Ela está morta.
- Morreu-te alguém, não foi? Sinto muito. Onde estás?
- Ela ensinou-me a conduzir - lembrei-me onde ela guardava a sua doçura.
- Quero ajudar-te, mas tens de me dizer onde estás. Subitamente apercebo-me de que não é a minha mãe que
está do outro lado da linha. Desligo e caio num sono pesado e sem sonhos. Quando acordo na manhã seguinte está nevoeiro lá fora. Uma luz cinzenta entra pelas cortinas. Estou deitada no meio do chão quando o Matisse entra no apartamento. Olha-me tal como a minha mãe o deve ter olhado em sonhos, com o rosto e os braços salpicados de tinta azul. Tresanda a uísque e a suor. Não toma banho há dias.
- Quero ir para casa. - Disparo as palavras como setas. E elas encontram o alvo.
- Tens a certeza?
- Tenho.
- Vamos telefonar à tua tia Faith para a avisar de que vais voltar - diz tristemente. Senta-se no chão ao lado da árvore morta.
- Querida, sinto muito se te decepcionei. Quero ser um bom pai para ti. Escreve-me, está bem? E telefona, se precisares de alguma coisa. Estou sempre pronto para te receber. - Tenho pena, ele está a partir-me o coração.
Quando estou sozinha faço uma tatuagem em mim própria com uma agulha e fio preto. Subitamente tenho poder sobre a dor. Pesco debaixo da minha pele, criando um código que não pode ser descoberto. Cada vez que furo a minha pele é como se libertasse um pedacinho de dor e em breve estarei vazia e não sentirei nada. Tenho esperança de que isso aconteça.
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Levanto a camisa e toco nas pequenas linhas pretas ensanguentadas inscritas na minha coxa. Toco-lhes para me lembrar de que não preciso de sentir a dor dos outros, já tenho em mim dor suficiente. Tanjo na Rosemary uma faixa solitária de auto-estrada e ela chora comigo lágrimas de sangue.
- Porque me chamaste? - pergunto.
- Porque queria conhecer-te. Porque achava que era a atitude certa a tomar. Achava que ia resultar.
Na estação abraço o meu pai de um modo estranho. Ele fica parado a olhar a camioneta até esta desaparecer.
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XIII

Quando a camioneta chega à estação está a chover intensamente, uma chuva tão intensa que me arranca lágrimas dos olhos. Não consigo ver claramente através da janela, mas reconheço o tecido verde-escuro da gabardina da tia Faith a dançar à volta das suas pernas impelida pela brisa. Ela está debaixo do toldo de metal, ao lado do grande carro azul, protegendo os olhos da chuva. Engordou. O seu chapelinho de veludo verde está à banda como se ela tivesse esbarrado nalguma coisa. O seu rosto é um cálice de dor. Traz um vestido de andar por casa verde-pálido com folhas pintadas. É uma mulher enorme. Doce como um bolo. Abraçamo-nos e beija-mo-nos. Tudo está molhado.
- Sentimos a tua falta - diz a tia Faith esmagando-se por trás do volante e pondo a chave na ignição. Nem acredito que a tia Faith esteja a conduzir. Ela costumava ter tanto medo. Agora tem mais de setenta anos e o que parecia impossível está a acontecer ali mesmo, diante dos meus olhos. Subitamente sinto algo a crescer-me no peito, acho que é orgulho. Espero ser tão corajosa como ela quando for também uma mulher velha e sozinha no mundo.
- Senti tanto a sua falta - digo tocando-lhe no ombro.
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O carro avança em direcção à estrada. - Nem posso acreditar que ela esteja a conduzir.
- Eu tinha-te dito que não iria passar toda a minha vida a ser motorista suplente, mas não consigo falar e conduzir ao mesmo tempo - diz rapidamente, enquanto se debruça sobre o enorme volante tentando concentrar-se para não sair da faixa de rodagem.
- Temos muito tempo para conversar - digo eu. Quero contar-lhe do medo que tive quando o Matisse, me deixou conduzir o carro na auto-estrada. Quero contar-lhe tantas coisas, mas temos muito tempo. Começo a sentir raízes a crescer sob os meus pés. A calma apodera-se de mim enquanto percorro milhas de uma estrada incerta.
A tia Faith conduz lentamente pela Fourth Avenue enquanto o trânsito passa por nós. Carros buzinam e ultrapassam-nos enquanto ela conduz com o pé no travão. Parece nervosa. Depois de passarmos outro quarteirão, começa a suar fortemente. Finalmente encosta o carro ao passeio e desliga o motor. A sua respiração é tão esforçada que tenho medo que possa perder a consciência.
- Sabes conduzir, querida? - pergunta, olhando para os lençóis de chuva que se abatem sobre o pára-brisas.
- A tia Merleen ensinou-me.
- Então leva-nos para casa. Os meus olhos já não são o que eram. - Trocamos de lugar. Sou a adulta e ela a menina assustada. Já não conduzo há algum tempo, mas lembro-me das coisas mais importantes. Parece que consigo ouvir a voz dura da tia Merleen a dar-me instruções.
Carrega no acelerador com o pé direito. Olha para os espelhos. Chave na ignição. Pé no travão. Travão de mão para
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baixo. Luzes ligadas. Mete a mudança. Liga o pisca da esquerda. Volta a olhar pelos espelhos. Olha rapidamente por cima do teu ombro esquerdo. Mantém as duas mãos no volante. Pé no acelerador. Olhos na estrada. Mantém-te dentro dos traços. Vermelho épara parar. Verde épara avançar. Amarelo épara acelerar. Tu consegues.
Não tenho qualquer problema a navegar por aquelas ruas tão familiares até chegar à casa grande e branca do outro lado da linha. Temos de parar na linha férrea para deixar passar um comboio de mercadorias. Os comboios de passageiros já não passam aqui. Costumava pensar em apanhar o comboio para ir ter com a minha mãe, mas esse pensamento já não me ocorre. Ela é que terá de vir ter comigo para explicar todos os minutos que tive de passar sem ela. Guardei um milhar de boas-noites para lhe dar. Manhattan, no Kansas, parece um lugar inventado.
Subitamente a chuva pára e o sol desponta por entre as nuvens escuras. Abro a janela e sorvo o ar fresco e húmido.
- As coisas mudaram desde que te foste embora - diz a tia Faith, dobrando e desdobrando o lenço de renda branca que está pousado no seu colo. Atravesso a linha depois de o comboio passar. Quando estamos apenas a alguns quarteirões da casa percebo o que ela queria dizer. Um pequeno prédio de tijolo branco foi construído no sítio onde era o Masterson's. Grades pretas barram as janelas de uma lavandaria e de uma loja de música. Os bancos de madeira estão decorados com raparigas sentadas em jornais, a empurrar carrinhos de bebé ou a dançar com rapazes ao som da música estridente que sai das colunas colocadas na fachada do edifício. Quase me vejo junto deles a empurrar um bebé com olhos de mel. Um gemido
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abafado leva-me de volta para trás do volante do grande carro azul. A tia Faith está a chorar.
- Sente-se bem? - pergunto, sabendo que ela não está bem.
- Entrou-me qualquer coisa para o olho. - Esfrega os olhos. O caminho para casa está repleto de recordações.
Está tudo como eu me lembrava. A escola de tijolo vermelho, a biblioteca, a loja de bebidas, a fila de casas sulistas, as casas do Bairro da Previdência e a casa branca que é o meu lar. Subo o passeio e estaciono o carro, puxo o travão de mão e desligo o motor. A tia Faith limpa o suor debaixo do queixo com os seus dedos roliços. Tem de lutar contra a força da gravidade para conseguir sair do carro. Ajudo-a a subir as escadas e a entrar em casa. Uma vez lá dentro, aromas familiares envolvem-me e puxam-me. Estou sempre há espera de ouvir os passos tempestuosos da tia Merleen nas escadas ou um tema de blues sussurrado na sua garganta. Mas não, a casa está silenciosa.
A tia Faith começa a desvanecer-se no papel de parede florido. É como um espírito enorme libertado sem uma finalidade. O seu amor desapareceu, retirado do seu corpo como sangue. Perder a Merleen é como perder um dos nossos sentidos. Queremo-la de volta. Tentamos confortar-nos uma à outra, mas este tipo de desgosto não é fácil de apaziguar. A tia Faith e eu encontramos uma nova rotina, contornar os buracos deixados pela tia Merleen.
- É preciso ir arrancar as ervas daninhas do jardim - diz a tia Faith, olhando da janela da cozinha.
- Eu trato disso depois de a levar à consulta. - Descasco
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batatas para o jantar. A dormência que sinto nos membros cresce a cada dia que passa. Tento esvaziar a mente.
Tomo conta da tia Faith cuja diabetes, segundo o médico, está a piorar. Bebe várias latas de Coca-Cola por dia e queixa--se por ter de fazer xixi de cinco em cinco minutos. A sua pele está seca apesar de a ajudar, todas as manhãs depois do banho, a passar manteiga de cacau na pele. Mesmo assim ela está sempre a coçar os braços. Consigo ver as sombras a apoderarem-se dos seus olhos. O médico diz que a tia Faith tem de ser operada às cataratas que estão a toldar-lhe a visão, mas ela recusa-se. As suas recordações do hospital estão repletas de dor, perda e sofrimento. Por isso não a pressiono. Na sua mente ainda consegue ver as coisas importantes. A sua linguagem está repleta de imagens visuais. Às vezes engana-me fazendo-me crer que consegue ver o azul na minha camisa ou uma mancha num copo de água.
Acha que devo manter a mente ocupada e sugere que me matricule num curso de Verão. Concordo, pois só preciso de fazer três disciplinas para acabar o liceu e, assim, não tenho de ficar mais um ano na escola. Inscrevo-me em matemática, inglês e dactilografia.
- Já pensaste para que universidade gostavas de ir? - pergunta a tia Faith no carro a caminho da nossa ida semanal ao supermercado.
- Não. - Ainda não pensei no que vou fazer da minha vida para além do catálogo mundano de dias de Verão quentes e húmidos que passam devagar entre nós duas.
- Que tal a Clark ou a Spelman para poderes ficar perto de casa? Sabes que poupámos algum dinheiro. A Merleen achava que darias uma boa professora. Ou talvez uma enfermeira,
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como a tua mãe. - A tia Faith põe-me a mão no ombro e aperta-o ligeiramente.
A universidade parece-me tão distante. A tia Faith precisa tanto de mim. Se fosse para auniversidade, iria para letras. Talvez desenvolva o gosto pelas viagens que a minha mãe tinha. Podia descascar a superfície das palavras e olhar para o seu interior para compreender o seu significado mais profundo. Talvez me alimente do que encontrar e me torne em alguém irreconhecível.
- Vou pensar nisso - respondo, e estaciono o carro em frente ao A&P por baixo de uma magnólia em flor.
Aos domingos de manhã vamos à missa. As mães da igreja ainda caem nos corredores e rezam a Deus para que nos salve e nos perdoe os pecados presentes e futuros. Só me apercebo de quanto senti a falta da música quando reparo que os meus pés seguem os ritmos africanos dos seus cânticos.
- Aqui não podes estalar os dedos - sussurra a tia Faith, tocando-me na coxa com o seu leque de renda a cheirar a lavanda. Sorrio e estalo os dedos na minha mente. A música faz--me sentir feliz. Sinto-me cheia do espírito como as velhas senhoras que gritam do canto dos beatos, mas não quero que ninguém saiba e por isso abano as minhas pernas ao ritmo da música e tento encontrar uma maneira de rezar que faça sentido na minha mente. Rezo pelo meu pai e pela saúde da tia Faith. Não quero ficar só no mundo.
Eu e a tia Faith vamos ao lar no domingo à tarde para visitar a avó Gert, que por vezes se recusa a falar connosco. A tia Faith já não tem medo da língua afiada da irmã, está apenas a cumprir uma promessa que fez de a visitar todas as semanas. Mas eu não fiz promessa nenhuma para ter de suportar os
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seus olhares lancinantes e os seus insultos verbais. Para a minha avó eu não existo, o que para mim é óptimo. Depois de deixar a tia Faith com uma das enfermeiras na recepção volto para o carro e ouço música soul até ela estar pronta para ir para casa. Para mim a música é um comboio em que viajo, agarrada ao seu ritmo, como se a melodia amena me levasse.
Um domingo estou sentada no carro azul a ouvir James Brown quando vejo um rapaz alto e magro com um boné de beisebol, um casaco vermelho e bege e calças de ganga. Está a empurrar uma cadeira de rodas cheia de livros amarrados ao assento. Empurra-a em direcção ao parque de estacionamento, na minha direcção. Anda de uma maneira funky, balançando-se de um lado para o outro como se conseguisse ouvir a música que está a tocar no rádio através dos vidros fechados. À medida que se aproxima posso ver que sorri. Certifico-me de que as portas estão fechadas e procuro o martelo que a tia Merleen guardava debaixo do banco para uma emergência.
- Parece que te vou morder - disse. Quase caio para o lado quando percebo que é a meia irmã do Morto, a Tree. Abro o vidro.
- Pensei que eras um rapaz - digo sem conseguir evitar o espanto.
- Às vezes bem gostaria de ser. - Tira o boné de base-bol. - Mas continuo a ser eu.
O seu cabelo está tão curto que quase consigo ver-lhe os pensamentos. Mesmo de perto continua a parecer um rapaz. Coro e desvio os olhos.
- O que estás a fazer aqui sozinha? - pergunta, debruçando-se sobre o carro como se quisesse sentir o meu cheiro.
- Estou à espera da minha tia. Ela foi visitar a minha
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avó. - Respiro fundo. Ela tem um cheiro fresco e limpo como se tivesse acabado de tomar banho e passado pó de talco no corpo.
- Quem é a tua avó? - Os seus olhos perscrutam o interior do carro.
- A Gertrude Rains. - O nome parece uma pedra na minha garganta.
- A tua avó é a Gertrude Rains? Não leves a mal, mas ela é a pior mulher que conheci na vida. Na semana passada mordeu uma enfermeira na anca e chamou-lhe cabra com cara de sapo. Tiveram de a amarrar. - A Tree treme de riso, mas o sorriso esmorece quando vê a dureza da minha expressão.
- Acho que tenho sorte, ela nem fala comigo. - Agarro o volante com força com as duas mãos.
- Parece muito triste. Sempre a perguntar quando é que a filha a vem visitar. É a tua mãe?
- É. - Cresce um silêncio estranho.
- Viste a Joy? - Tamborilo com os dedos no volante e abano a cabeça.
- Vivemos juntas.
- Tu e a Joy? - pergunto, e ela sorri ante a minha surpresa.
- Sim. Ela teve um bebé do meu irmão, tu lembras-te do Morto? Está preso outra vez. A irmã dela, a Nicky, casou e ela teve de sair da caravana. E então veio para nossa casa há uns meses. Devias vir visitar-nos. Apartamento 419 D virado para o parque. A Joy está sempre a falar em ti. - A Tree sorri. Os seus lábios estão tão próximos que, se quisesse, podia beijá--la. Será que o campo de beisebol está aberto para ela poder vir assistir comigo ao jogo do próximo domingo?
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- Agora és a rapariga de Hollywood. És famosa lá em casa. A Joy tem o postal que lhe enviaste colado no frigorífico - diz ela. - Vou dar-te o nosso número de telefone.
O único postal que mandei de L.A. foi para a Joy. Era um postal com uma fotografia do Sunset Boulevard. Procuro uma caneta no porta-luvas.
Depois de ela ter escrito o número, olho para os seus dedos longos encostados à porta do carro.
- Telefona quando quiseres. E se precisares de cortar o cabelo, eu trabalho na barbearia Deacon Long, ao lado do Cut and Curl. - Não digo nada pois estou só a pensar nos seus dedos no meu cabelo.
- É melhor ir andando, as velhinhas estão à minha espera. - Começa a afastar-se do carro.
- Vens cá todos os domingos? - Quero mantê-la sob o meu olhar por mais alguns minutos.
- Não, a minha prima é que trabalha aqui. Pediu-me para ler para algumas senhoras da sua ala. - Agora parece estar a ficar envergonhada e começa a empurrar o carrinho em direcção ao edifício que está atrás de nós.
- Pode ser que nos voltemos a encontrar. Diz à Joy que vou telefonar-lhe. - Aceno, mas sinto-me ridícula e cubro a minha boca envergonhada. Ela pisca-me o olho.
- Adeus - diz ela, e afasta-se. Olha por cima do ombro e sorri. E fico a olhar para as costas do seu casaco vermelho até desaparecer no edifício.
Aos domingos à tarde, mesmo antes do pôr-do-sol, eu e a tia Faith visitamos a tia Merleen no cemitério de Pine View. Conduzo devagar, tendo o cuidado de parar quando o semáforo
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passa a vermelho no cruzamento entre o Boulevard e a Bridge Street.
- Podias ter passado - diz a tia Faith no seu papel de segunda condutora. Sorrio e continuo ao meu próprio ritmo em direcção ao fresco campo verde e relvado dos parentes mortos. A tia Merleen é uma memória doce, mas está na boca da tia Faith tão certo como haver sete dias na semana. Levo duas cadeiras desdobráveis na mão esquerda e ofereço o braço direito à tia Faith, conduzindo-a através da colina relvada e para debaixo do velho carvalho.
Às vezes esquece-se que estou lá e as duas têm conversas que explicam o que é que as uniu durante todos estes anos como páginas de um livro. A tia Faith senta-se na cadeira desdobrável com as mãos unidas como numa oração. Às vezes entra numa espécie de sonolência. Outras vezes fala como se a tia Merleen estivesse ali parada à nossa frente no quadrado de terra.
- Tens razão, minha irmã. Só nos temos uma à outra, por isso não vamos discutir mais. Vamos mas é plantar os tomates antes de virem as chuvas. Sabes que os tomates crescem juntos, tão entrelaçados que nada os consegue separar. Tal como nós. - E a tia Faith entrelaça os dedos. - Não tínhamos de esconder nem apressar o nosso amor. Parecia crescer a cada estação que passava. Quando se planta doçura é certo que esta irá florescer. És tão boa para mim. O que seria de mim sem ti? Para onde teria ido? És uma bênção. És uma verdadeira bênção. - A tia Faith contorna a árvore lentamente, a coxear, com os braços cruzados à altura da cintura, como se estivesse a carregar o seu peso nos braços. Caminha como se a tia Merleen estivesse a caminhar a seu lado. Sento-me
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e observo-a, ouço e espero que a tia Faith me diga que está na hora de partir.
A ligação entre elas parece-me tão natural como o crescimento da relva na campa da tia Merleen e tão certa como o céu ser azul. Ter assistido às suas vidas por dentro faz-me acreditar que é possível viver no abrigo acolhedor do amor eterno.
- Vamos para casa - diz a tia Faith. - Estou cansada.
Dou-lhe o braço e regressamos ao carro azul.
A tia Faith começa a assimilar gestos que pertenciam a Merleen. O seu riso torna-se sonoro, começa a cantar blues e a sentar-se no jardim da casa branca a ouvir crescer as flores da Merleen.
A Faith está a perder a visão, mas os seus outros sentidos estão mais fortes. As suas mãos repletas de veias grossas, cada dedo preenchido por um anel de ouro ou prata, cada pulso uma canção de contas prateadas, testa o ar em busca de obstáculos com a sua bengala de ébano em forma de serpente. Ela ensina-me a ver sem olhos. Ensina-me a testar o chão que piso, a ver memórias obscuras e a navegar através do meu rio de dor. A tia Faith não vê, mas consegue sentir-se bem e ensina-me como.

Os meus dedos tremem quando marco o número da Tree. A Joy atende e grita o meu nome quando ouve a minha voz.
- A Tree disse-me que te viu há um mês no lar. Por onde tens andado?
- Num curso de Verão.
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- Porquê?
- A tia Faith quer que eu vá para a universidade para o ano que vem.
- Não vais para fora, pois não? Acabaste agora mesmo de chegar.
- Ainda não sei.
- Vê lá se não te enterras naquela casa velha. Vem visitar-nos. A Tree não sabia quando é que virias. - Nesse momento decido ir ver a Joy.
Quando conto à tia Faith que vou ao Bairro da Previdência visitar a Joy ela não responde logo.
- Ouviu o que eu disse, tia Faith? Vou visitar a Joy.
Ela olha para mim do seu lugar ao pé da porta das traseiras e acena com a cabeça a confirmar que me tinha ouvido. Parece que entro num outro mundo quando atravesso a rua e percorro metade do quarteirão pelo passeio esburacado. Cores berrantes esvoaçam nos estendais, vozes sonoras reú-nem-se em alpendres e das janelas sai música aos berros. A Joy e a Tree estão sentadas no alpendre. A Joy está ao telefone, mas levanta-se com as suas calças de ganga curtas e top de prender ao pescoço e acena-me.
- Queres beber alguma coisa? - pergunta a Tree. Está com um fato de macaco azul de mecânico, demasiado grande para ela. Fico surpreendida quando vejo as suas unhas dos pés pintadas de cor-de-rosa. Ela vê-me a olhar e aponta na direcção da Joy, que faz caretas e gesticula para dizer que está a tentar terminar a conversa.
- Não. Só passei para dizer olá. - Sento-me no degrau e olho para os dedos cor-de-rosa da Tree. A Joy desliga o telefone com um suspiro sonoro e abraça-me pelas costas. Age
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como se eu tivesse morrido e tivesse ressuscitado diante dos seus olhos. É como se o tempo não tivesse passado; continua a minha amiga de sempre.
Quando não está a gritar com o filho mais velho para parar de comer terra, a Joy fala dos homens, de como sente falta do Morto quando se deita à noite. Conta-me que o Morto foi preso novamente por tentar que os trabalhadores do A&P formassem um sindicato. Ela fica à espera de ouvir um som vindo do berço, onde está o filho do Morto, colocado atrás da porta de rede.
Visito a Tree e a Joy algumas vezes. Bebemos cerveja e recordamos os velhos tempos. Torna-se hábito sentarmo-nos à noite no alpendre da Joy a ver as crianças a brincar, a ouvir a estação de música soul e a pentearmo-nos umas às outras. Nem eu nem a Tree falamos muito. Não consigo entendê-la. Às vezes está tão calada como se estivesse a tomar notas ou coisa do género. Deita-se cedo e acorda tarde para ir para o barbeiro cortar cabelos. A Joy toma conta das crianças, vê telenovelas e cozinha para Tree e para as crianças. Vemos passarem por nós homens vestidos com calças de ganga justas, fatos de trabalho largos e fato completo. Falamos dos seus cabelos, olhos e corpos. Com o mesmo olhar perscrutador observamos as mulheres jovens que passam e, subitamente, o mundo parece encher-se de possibilidades para o amor, sexo e felicidade em cada par de sapatos de salto alto ou botas de trabalho que passam.
A Joy diz que não é assim tão mau esperar pelo Morto, ao menos sabe que um dia ele voltará. E tem o filho dele com ela.
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- Um filho vale tudo no mundo - diz, embalando o menino nos braços.
Um dia a Joy pergunta-me sobre a minha mãe, quebrando a regra silenciosa que tínhamos de não abordar este assunto. Transformo-me numa tartaruga em busca de abrigo na casca dura das feridas antigas.
- Não quero falar dela - digo, um pouco depressa de mais.
- Só queria saber se tinhas tido notícias - diz a Joy.
- Passou muito tempo, não foi? - pergunta Tree.
- Ela volta quando puder. Não quero falar dela. - Elevo demasiado a voz, mas não peço desculpa. Afasto-me delas e atravesso a rua em direcção à segurança da grande casa branca.
- Era capaz de comer um bolo de veludo vermelho sozinha - diz a tia Faith, esfregando o estômago ruidoso com as grandes mãos artríticas, quando entra na cozinha com as velhas pantufas de pele da tia Merleen. Parece que só diz estas coisas para me irritar.
- Não pode comer açúcar.
- Aquele rapaz... o médico... disse que eu podia comer quase tudo moderadamente. - Está a testar a minha paciência.
Ignoro-a. Se eu disser alguma coisa, ela diz que estou a responder torto e que, no final das contas, ela ainda é a única adulta lá de casa. Estou sentada à mesa da cozinha a tentar ler as instruções do seu frasco de insulina. Vai começar a vir uma enfermeira para me ensinar a dar as injecções à tia Faith. Ela
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diz que posso praticar com laranjas. As agulhas são aguçadas e as minhas mãos tremem quando me lembro de como a minha mãe me dava as injecções quando eu estava com gripe. Chorava, mas ela obrigava-me a deitar de barriga para baixo e a fechar os olhos.
- Pensa numa palavra bonita - dizia ela antes de a agulha penetrar na minha carne. Tenho medo de magoar a tia Faith ou acabar por dar a injecção a mim própria. Ela nunca se queixa da dor. Estou a habituar-me a tratar dela. Não tenho tempo para pensar na minha própria vida.
- Esse era o bolo preferido da tua mãe - diz ela, como se eu não tivesse dito nada. Depois dá-me a folha com a receita.
Bolo de Veludo Vermelho
1-1/2 chávena de óleo ou uma fatia de manteiga
sem sal
1 colher de chá de vinagre 3 ovos 1 frasco de corante alimentar vermelho
1 colher de chá de baunilha 1-1/2 de leite
2 chávenas de farinha 2 chávenas de açúcar
1/2 chávena de cacau em pó sem açúcar
2 colheres de chá de fermento em pó
2 colheres de chá de bicarbonato de sódio
1/2 colher de chá de sal
1 caixa de rebuçados vermelhos
Misturar os ingredientes secos. Adicionar os restantes ingredientes deixando os ovos para o fim. Bater
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cuidadosamente com a batedeira a baixa velocidade. Dividir a massa por duas formas e levar ao forno a 350 graus durante 25-30 minutos ou até espetar um palito e este sair seco. Deixar arrefecer. Cobrir com creme de manteiga. Decorar com os rebuçados vermelhos.
Creme de Manteiga para Cobertura
3 chávenas de açúcar em pó peneirado duas vezes
2 colheres de sopa de leite
1/3 de chávena de manteiga sem sal à temperatura ambiente
1 colher de chá de extracto de baunilha
Misturar o açúcar e a manteiga. Adicionar o leite e a baunilha, mexendo com a batedeira a baixa velocidade.
- A tua mãe tinha uma bela voz para a leitura. Enquanto o bolo estava a cozer costumava ler-me extractos do seu livro de sonhos.
- Que livro de sonhos? - Os meus ouvidos ficam subitamente alerta.
- Ela inventava as mais belas histórias. Costumava inventar sonhos e transcrevê-los para um pequeno caderno de apontamentos azul que cabia no bolso do vestido. Aquela miúda tinha uma imaginação tão fértil! Contava que nos sonhos era perseguida por palavras grandes e que, quando as
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apunhalava, elas não sangravam. Imagina - diz a tia Faith, começando a baloiçar-se agarrada ao estômago como se tivesse um bebé nos braços. Põe-se a recordar durante algum tempo. O seu estômago ruge, quebrando o silêncio.
- Podia utilizar-se adoçante no bolo em vez de açúcar. Provavelmente nem se dava pela diferença - diz ela. Lambe os lábios como se pudesse sentir o sabor dos rebuçados vermelhos na língua, a cobertura de manteiga a derreter-se nos lábios.
Parece uma menina a falar. Não consigo resistir. Decido imediatamente que, em breve, vou fazer um bolo de veludo vermelho e decorá-lo com rebuçados vermelhos em forma de coração para lhe dizer que a amo, e amo-a realmente.
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XIV

O Matisse telefona-me algumas vezes depois de eu ter regressado à Geórgia, mas o som do seu sofrimento é como mau tempo para os meus ouvidos. Tenho medo de falar com ele, pois ainda não sei o que responder quando me pede para voltar. Esfrego a tatuagem caseira que tenho na coxa para que traga lágrimas aos meus olhos. Penso que deveria estar triste, mas não estou.
Vejo o sobrescrito cor de marfim, comprido e largo, pousado na mesa da sala de jantar. A sua letra selvagem transforma o meu nome em iniciais abstractas. Ele nunca escreve cartas, diz que o trairão. As pinturas que me envia contam a história. Os seus sentimentos por mim são transparentes. O seu amor é como uma chaga aberta. Abro o sobrescrito e retiro o quadro protegido entre dois pesados pedaços de cartão. Guardo-o na caixa de sapatos que tenho debaixo da cama, juntamente com os outros. Tento esquecer, mas não consigo. Sinto os seus olhos e as suas carícias silenciosas, e a lembrança faz-me comichão na frente da camisa de cetim.
A porta da casa branca está aberta, o corredor vazio, mas
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pesado com o perfume dos lilases. Saio do calor da luz forte de Verão para à sala e sou engolida por sombras cor de vinho, profundas, ricas e espessas.
- Quem está aí? - A tia Faith está parada à porta como uma árvore.
- Sou eu, a Mariah.
Aproxima-se de mim apoiada na bengala. Quando fico tão próxima que consigo sentir o seu hálito a hortelã-pimenta, as suas mãos voam em direcção ao meu rosto e os seus olhos cegos e nublados olham para os meus olhos assustados. Toco--lhe na mão e ela aproxima-se. Ficamos com as barrigas encostadas. Ela emoldura a minha cara com as suas mãos grandes e suaves e percorre lentamente todas as estradas do meu rosto e do meu corpo.
- És saudável. Pele macia. Braços fortes. Ancas largas. - Bate-me levemente no rabo. Está a agir como minha mãe. Quero ser mais parecida com uma filha. Enrolo os braços à volta do seu centro volumoso e afundo-me no seu corpo convidativo.
- Irás fazer um homem muito feliz na tua noite de núpcias. - Ri-se. Rio-me também, pois sei que, tal como ela, nunca casarei.
Nessa noite ouço música e o barulho de dedos a estalar. Desço as escadas na ponta dos pés e sento-me no primeiro degrau. A tia Faith está na sala a cantar e a estalar os dedos ao som de Pinetop Perkins.
- Entra, estamos a dar uma festa - diz ela, sentada na grande cadeira de baloiço vermelha a estalar os dedos e a bater com os pés.
Só eu e a tia Faith. Vou buscá-la e dançamos o hootchie-
-cootchie, o twist and shout, o bumpe o cakewalk até o suor nos arder nos olhos. Ela é uma mulher jovem e magra vestida com um vestido amarelo e eu sou o seu belo acompanhante, excitado por estar na presença de uma rapariga bonita mergulhando as suas ancas estreitas quase até ao chão.
Down to the river/ Down to the river Fm bound /My girl needs a man to go down /Down to the river for a drink of honey wine.
Cantamos e deixamos que sejam os nossos corpos a marcar o compasso.
A tia Faith lembra-me para usar um chapéu quando estiver frio, para levar o guarda-chuva quando os seus joelhos lhe dizem que vai chover. Reza por mim, põe discos a tocar para mim quando estou triste. Toma conta de mim, trata-me como se eu fosse dela e eu gosto. Habituei-me ao seu amor. Leio-lhe em voz alta livros de escritores negros - Ann Petry, Alice Walker, Toni Morrison, James Baldwin e Toni Cade Bambara
- que descobri na biblioteca da escola. Nem sempre gosta do que lhe leio, mas fica sempre agradecida. Espera pacientemente que eu acabe de ler o que escolhi antes de me pedir para terminar a leitura de uma passagem de um livro com histórias bíblicas que a mãe dela lhe lia quando era criança.
A tia Faith faz-me perguntas acerca das cartas que recebo do meu pai todas as semanas. Às vezes duvido que a minha vida com o Matisse tenha existido na realidade. Evito as suas perguntas e revelo o mínimo possível.
Um dia o Matisse telefona-me a dizer que tinha vendido dois quadros.
- No próximo mês vou entrar numa exposição colectiva
- diz, tentando parecer feliz.
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- Isso é bom. - Não sei o que mais dizer. Durante algum tempo reina o silêncio. Penso perguntar-lhe como está o tempo em Los Angeles, mas sei que está sempre igual.
- Tens visto a Mrs. Oyama?
- Não. Nunca mais a vi. - Faz uma pausa. - Quando é que voltas? - pergunta, apanhando-me desprevenida.
- A tia Faith está doente.
- Podíamos ser uma família. - Parece ter esquecido que falhámos redondamente.
- Que quadros vendeste? - pergunto, espremendo uma borbulha no braço e tentando que ela sangre. Durante algum tempo ele não diz nada. Consigo sentir a sua respiração entrecortada. Não tenho coragem para lho dizer, mas nunca voltarei. É demasiado perigoso voltar a percorrer aquela estrada.
- Amo-te - diz ele. Depois desliga o telefone.
O tempo passa devagar. As semanas transformam-se em meses de dormir e beber desgostos com uma colher pouco usada. Um dia encontro uma garrafa de uísque poeirenta num canto do balcão da cozinha e uma receita para apagar a memória.
Há uma janela de Outubro no quarto. Uma cortina de renda velha e manchada com chã filtra o esforço do sol. Através das persianas sujas e amarelas vejo o verdadeiro azul do céu cheio de nuvens e de pontas de árvores em chama. As folhas de Outono dançam no ar como desejos. O Matisse está apintar--me as coxas com a língua e eu estou a vir-me em sonhos.
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Arrumo a caixa de quadros, pinturas e expressões obsessivas de amor que o meu pai me mandou ao longo das semanas que estivemos afastados e envio-lhe tudo de volta com um bilhete: "Papá, amas-me de mais. Mariah".
Cada imagem é uma ferida aberta no meu coração, cada enigmático poema revela a sua devoção pela minha mãe desaparecida e a fenda que existe no meu coração partido aumenta cada vez que o carteiro chega com um pacote manchado de lágrimas. Quando olho para a fotografia do Matisse posando frente ao oceano de tronco nu, vejo o meu pai, mas quando me lembro de como ele era à noite, vejo um homem cujas necessidades são demasiado grandes. Conheço o meu corpo e na escuridão envergonho-me dos meus pensamentos. Os meus sonhos não mentem.
Quando o Matisse me telefona passada uma semana o seu desespero é visível. A tia Faith está a dormir a sesta e eu estou em frente ao frigorífico a pensar no que hei-de fazer para o jantar. O telefone toca três vezes antes de eu atender.
- Estou? - pergunto. Silêncio. - Quem fala? - Um suspiro pesado assemelha-se a um vento estranho no meu ouvido.
- Quero ser um bom pai para ti - afirma determinado. No silêncio desenho círculos na parede com o dedo.
- Tens razão. É de mais. Desculpa... - Ele espera por uma resposta minha, mas eu não ajudo. - Qual é a coisa que mais queres? Se pudesses ter tudo? - pergunta.
Respiro para o auscultador, mas não consigo falar.
- Quero fazer-te feliz. Farei tudo para te ver feliz - diz, com as palavras entaladas na garganta. Custa-me ouvi-lo
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chorar. - Telefona se precisares de alguma coisa. Estarei sempre aqui para te ajudar. - Faz uma pausa e diz: - Amo--te. - Desligamos ao mesmo tempo.
Talvez quando voltarmos a ser dois desconhecidos nos compreendamos melhor.
Nessa noite sonho com a minha mãe.
deixar partir; quando deixo, fico su não cair.
Solo suenos. Estou apenas a sonhar. Solo suenos.
Levanto as cortinas da janela para a vera olhar para mim. O seu cabelo africano, curto e louro, os seus olhos amendoados delineados a prata. Tornou-se mais roliça, mais frágil do que eu me recordava. Traz um vestido de cetim azul-marinho sem alças que parece ter sido cosido ao seu corpo. Está parada no alpendre de pés descalços, com os sapatos poeirentos a balançar na mão esquerda. Uma pequena mala preta está pousada atrás dela. Abro aporta e percorro o corredor perguntando-me se a devo deixar entrar. Fecho os olhos para conter as lágrimas e encosto a mão à boca para evitar um grito.
- Aí estás tu - diz ela.
A sua voz é suave, triste e doce como cada uma das minhas memórias. O som da voz da minha mãe é como mel para os meus ouvidos. Os meus olhos sedentos bebem-na, incham e chovem. Ela dá um passo em frente e oferece-me uma palavra. Hesito, mas a imensidão da minha espera faz-me cair nos seus braços. Ela é quente e cheira como o interior de uma flor. Nos seus braços vou ficando sonolenta. Os meus braços estão cansados, mas tenho medo de a
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deixar partir; quando deixo, fico surpreendida por não cair.
Solo sueños. Estou apenas a sonhar.
Solo sueños.
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XV

Os feios edifícios brancos e modernos da universidade estão reunidos em vários hectares de terra verde como blocos habitacionais abandonados, mas a biblioteca é uma estrutura sólida de dois andares de tijolo vermelho que parece ser a casa de alguém. É como uma ilha orgulhosa no centro do campus, provocadoramente vestida de cortinados grossos verde-escuros, persianas brancas e um telhado de ardósia cinzenta. No meu primeiro ano na universidade, a dez quilómetros da grande casa branca, consigo o emprego perfeito a arrumar livros nas prateleiras. A bibliotecária é uma senhora amável, na casa dos sessenta, chamada Mrs. Walters, que usa uma fita preta no cabelo louro e se veste de modo pouco adequado a uma bibliotecária, cores garridas e sapatos de pele de salto baixo. Caminha em bicos de pés para não fazer barulho quando atravessa a sala.
- Lembro-me de quando os negros não podiam frequentar as aulas de inglês nem de engenharia. Não era coisa que se dissesse abertamente, mas a verdade é que eram desencorajados. Espero que frequentes todas as aulas que te interessem, querida. Estou feliz por ter visto tantas mudanças acontecerem durante a minha vida. - Fala comigo como se não esperasse
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resposta. Por isso continuo a pôr os livros nas prateleiras. A maioria das vezes deixa-me só para usufruir dos meus prazeres secretos.
Estando a trabalhar na biblioteca da universidade, esguei-ro-me por entre as páginas dos livros como se estivesse nua e eles me amaciassem a carne. Cada dia que passa colecciono mais palavras de livros tão novos que sou eu a primeira a partir a lombada, e de livros tão velhos que o seu papel delicado fica colado às minhas impressões digitais. À noite escrevo palavras novas na parede do meu quarto, unindo-as em pirâmides, árvores e tribos, inventando uma nova forma de gerir a linguagem e uma nova vida dentro da poesia do ritmo e da rima, linhas rectas e linhas que se enrolam em expressões na palma da minha mão. Em breve as palavras começam a escapar-se das paredes, tornándo-se maiores e mais ousadas, esticando-se em direcção ao tecto. Começo a escrever poesia num bloco de apontamentos azul que me cabe no bolso.
Inscrevo-me nas aulas de francês. Monpère est un homme triste. O meu pai é um homem triste. Tenho saudades dele. Crítica Musical. Brahms é uma canção de embalar que acalma os meus gritos antes de dormir. Os meus sonhos perturbam-me. História. Todos os dias me sento ao lado de raparigas brancas que pedem para ver os meus apontamentos e rapazes brancos que me pedem o número de telefone. As raparigas negras desconfiam das minhas boas maneiras e das minhas atitudes. Os rapazes negros tratam-me por irmã e convidam-me a ir com eles a encontros políticos. Ignoro-os a todos, sabendo que, mais tarde ou mais cedo, me farão perguntas às quais não posso responder. Divirto-me. Torço palavras longas
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e difíceis em cordas de seda brilhante que à noite uso à volta da cintura.
Estudo estes novos temas à luz de um dos candeeiros esculpidos à mão da tia Merleen, bebendo de tempos a tempos canecas de chá cheias de uísque americano e mel. Sozinha na minha cama, apresento as minhas mãos ao meu corpo. Às escuras, quando já não ouço os dedos a estalar, desabotoo a camisa de noite e abro as coxas contra a madeira escura e fria. A Rosemary amacia as arestas afiadas do uísque. Tocamos as nossas melodias silenciosas até adormecer no seu abraço. Os meus sonhos estão codificados, apenas recordo sensações, não imagens. A maior parte das vezes acordo com a sensação de ter sido sugada e atirada fora como um copo vazio.
É então que um dia, depois de já ter dobrado mais uma esquina da estrada, a tia Faith vem lembrar-me que a morte está sempre por perto.
- A tua avó Gert morreu esta manhã - diz do outro lado da mesa da cozinha decorada com copos medidores e colheres, farinha, ovos, açúcar, taças de cerâmica e uma lata de tinta vermelha.
O meu primeiro sentimento é de alívio por não ter de voltar ao lar depois da missa de domingo. O pensamento seguinte faz-me esquecer as três palavras novas que tenho de escrever na parede; é possível que a minha mãe venha ao funeral.
- Como é que a Mamã vai saber? Acha que ela volta para casa?
- Telefonei a alguém que sabe onde a pode encontrar. Disseram-me que vem ao funeral - diz a tia Faith, como se
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me estivesse a dar uma notícia ainda pior. - Dentro de um ou dois dias.
Não quero acreditar. Quem me dera não o desejar tão ardentemente. Tiro o avental e desligo o forno. O bolo de veludo vermelho da tia Faith terá de esperar. Caminho pelo corredor tal como fiz todas as vezes que tinha tido notícias dela ao longo de todos estes anos. Sento-me e olho para a luz filtrada pelas cortinas finas da janela ao pé da porta e tento avançar no tempo até à parte onde ela me abraça e me beija pela centésima vez. Apesar de já ser maior de idade e saber que ela errou ao abandonar-me, parece que não consigo afastar-me do fundo das escadas onde esperei por ela todos estes anos.
Levo a tia Faith até ao lar para ir buscar os pertences da avó Gert. Pela primeira vez desde que voltei, entro com ela encostada a mim, deixando que a guie através das pesadas portas de vidro e ao longo do comprido corredor branco até ao quarto onde a Gert deve ter, indubitavelmente, gasto o último suspiro a amaldiçoar alguém. Todos os seus pertences cabem num grande saco de plástico verde. Uma camisa de noite roxa nova, cinco vestidos floridos com Gertrude Rains escrito no colarinho com um marcador preto, uma pequena pilha de roupa interior, uma pequena caixa de bijutaria e um par de roupões. Quando vou fechar a gaveta da sua mesa de cabeceira, vejo uma fotografia presa ao fundo da gaveta. É uma fotografia da minha mãe quando era pequena sentada ao colo da minha avó. Ambas sorriem. Guardo a fotografia no bolso e volto a levar Faith para o carro.
Levo a tia Faith até à casa funerária onde, mecanicamente, trato dos preparativos para o funeral. A responsável pela cerimónia é uma mulher de meia-idade vestida com um fato
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azul-escuro, que brinca com a argola de ouro que tem na orelha direita e segura uma bíblia branca em miniatura na mão esquerda. Afaga-me as costas e tenta confortar-me.
- A sua tia teve muita sorte em ter uma sobrinha tão dedicada. Isto deve ser horrivelmente difícil para si.
A tia Faith senta-se num canto a chorar. Tento concentrar--me nos documentos do seguro, tipos de caixão e arranjos florais, apesar de estas coisas não me interessarem. Por mim, a senhora simpática até podia metê-la numa caixa de cartão, transformá-la em churrasco e deitar foguetes. A minha mãe pesa-me na mente.
Mais tarde, nessa mesma noite, para me manter ocupada, para acalmar a dor da tia Faith e para dar as boas vindas à minha mãe, volto a preparar um bolo de veludo vermelho. Ligo o forno. A tia Faith é a cozinheira suplente, dando-me instruções verbais de como mexer, bater, e cozinhar, e quando as várias etapas estão finalmente cumpridas deixamo-lo a arrefecer perto da janela. Faço a cobertura do bolo de duas camadas enquanto a tia Faith passa os dedos na beira da tigela. Cubro a terceira parte do bolo para podermos passar ao teste de degustação. A tia Faith come delicadamente pedacinhos do bolo de veludo vermelho com as duas mãos a caminharem em direcção à boca, e lambe os dedos em sinal de aprovação.
Quase deixo cair o bolo ao chão quando o telefone toca. Corro para o atender no corredor, esperando reconhecer a voz. Reconheço-a, é a voz da Tree. Consigo ouvir os bebés da Joy a chorar do outro lado.
- Sinto muito pelo que aconteceu à tua avó - grita a Tree tentando sobrepor-se ao barulho de fundo.
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- Obrigado por teres telefonado - digo automaticamente. Neste momento não quero falar com ela nem com ninguém, por isso despacho-a rapidamente.
A minha mãe não vem ao funeral. Estou sedenta por um gole de algo que me queime da garganta até à barriga.
Só uma enfermeira do lar, uma enfermeira nova, comparece na capela. Seguimos o cortejo até ao cemitério. A tia Faith chora com se a sua irmã Gertrude Rains não fosse a pessoa mais odiosa, má e mesquinha que existia. Não compreendo o seu desgosto até me lembrar que não foi assim há tanto tempo que ela teve de fazer o mesmo pela Merleen. Chorei por elas nessa altura, mas este desgosto recente é pela minha mãe. As lágrimas começam a fluir dos meus olhos como pedaços de vidro partido enquanto conduzo a tia Faith para fora do caminho, para lá da campa da avó Gert, passando por lápides cobertas de ervas daninhas ou decoradas com flores de plástico e citações floreadas. O nosso falecido pai. Irmã e amiga. Mãe amantíssima está escrito com belas letras grandes numa lápide de mármore rosa junto ao grande portão preto que rodeia o cemitério. Subitamente desato a arrancar os cabelos e a enfermeira tem de me segurar as mãos e afastá-las da destruição.
A minha mãe pode muito bem estar morta. Os seus olhos e órgãos transformados em pó. Não sei se hei-de correr ou esconder-me, estou paralizada. Estou irritável, não vou às aulas nem ao meu emprego na biblioteca e deixo de pentear o cabelo.
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Digo coisas horríveis à tia Faith, mas ignoro-a a maior parte do tempo.
- Estás tão parada. O que se passa, Mariah?
- Tem de se passar alguma coisa? Só não me apetece falar de insignificâncias. - Sei que feri os seus sentimentos, mas não me importo. A sua voz lembra-me que estou viva. As palavras começam a pingar do tecto e a cair-me na cabeça. Palavras grandes, frases pesadas e páginas de jornal velhas caem-me no rosto e derretem-se como chuva. Ganho medo de sair de casa. Tenho medo de que, se sair para a luz, possa perder a vida, medo de que possa perder a voz no meio das árvores, medo de os meus olhos serem comidos por pequenos insectos que andam no ar, medo de que a minha boca seja rasgada pelos dedos que tentam alcançar os carros que passam. Tenho medo de que, se sair, os gritos voem da minha garganta e caiam como árvores ocas num vale de ecos. Tenho medo de tudo. Nada é real. Nada é aquilo que parece ser. Recuso-me a sair do meu quarto. Quando acaba o mel que adoça a bebida, bebo o resto do uísque directamente da garrafa até esta estar vazia.
Através das almofadas de nevoeiro cinzento cerrado ouço um leve bater na minha porta. É irritante. Quero dormir para sempre.
- Mariah? - chama a tia Faith. Não respondo, mas ela continua a bater.
- Mariah? Querida, abre a porta. - A sua voz é irritante, furando as densas camadas de nuvens.
Cubro a cabeça com os cobertores e viro-me no emaranhado de lençóis. Tapo os ouvidos com as mãos. A porta abre-se, depois as cortinas, as janelas abrem-se de par em par.
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A luz do sol não me derrete a pele, o ar fresco não queima. A tia Faith entra no quarto e deixa que o seu peso enorme esmague o colchão com um suspiro.
- Fala com a tua tia Faith. Fala comigo, querida.
Quero responder-lhe, mas não consigo encontrar a língua, que parece estar perdida na boca. Sinto as mãos da tia Faith nas minhas costas. Os seus dedos sobem-me pelo braço até à face. Ela puxa o meu corpo para o dela até o meu rosto estar encostado ao seu peito pesado, perfumado de hortelã--pimenta.
Há paz no vale... Canta hinos ao meu ouvido.
Era uma vez, há muito muito tempo, quando era filha de um ferroviário... Respira para o meu peito as palavras de uma história.
Got my mojo working... Ela estala os dedos ao som de Muddy Waters.
- Água - sussurro. - Água.
A tia Faith empurra a cama, arrastando-me com ela. Com a bengala numa mão e eu na outra, arrasta-nos pelo corredor até à casa de banho. Arrasta metade do meu corpo para o lavatório no canto da divisória. Abre a torneira. Parece um rio a correr. Junto as mãos debaixo do rio de água fria e bebo um oceano. O sabor doce da água mata-me a sede. Lágrimas caem da ponta dos meus dedos, do cabelo, da dobra do braço, dos joelhos e dos dedos dos pés. A tia Faith segura-me.
Depois leva-me para o seu quarto e senta-me na sua cama. Algodão frio e suave. Ouço um rio. A sua mão despe--me. Quando fico nua, leva-me para a banheira. A água está quente. A minha pele treme à medida que o meu corpo é engolido pela banheira comprida e funda. A tia Faith deita
uma mão cheia de ervas na água, pétalas de rosa e uma colher de chá cheia de mel. Cheira deliciosamente. Trauteia uma melodia de blues muito antiga enquanto me esfrega sal grosso nas costas e nos ombros. Estou a nadar numa sopa saborosa.
Acende uma vela branca e esperamos. Exausta, senta-se numa cadeira virada para mim. Descansa as mãos sobre a grande barriga e olha-me com os seus olhos nublados. Está a ouvir-me.
Antes de perceber o que está a acontecer, a minha boca começa a derramar palavras como se fossem cobras. As palavras voam-me da garganta como pássaros. Cuspo todos os detalhes como se fossem veneno. Não deixo nada de fora.
As coisas de que tenho saudades
Os seios da minha mãe... o peso da mão da tia Merleen na minha...
As coisas que perdi
A minha inocência...
As coisas que quero...
Amor... Braços em que possa confiar para me abraçarem...
Sozinha no meu quarto naquela noite, escrevo a última palavra que a minha mãe me deu. Água. Levo o papel aos lábios e bebo-a da página, engulo-a em três longas sílabas até ela chegar ao sítio que está a arder. Sinto-me como se me tivessem tirado uma tonelada de pedras do peito. Sinto-me leve como a página de um livro em branco. Sinto-me vazia, mas completa. A minha boca abre-se e falo às pessoas que se lembram de mim e saúdo os desconhecidos com um sorriso.
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O sol desponta e a relva volta a ser verde e o gosto da água é doce. Escrevo poemas e desenho mapas de linguagem.
A minha mãe ainda telefona de tempos a tempos e fala com a tia Faith, mas eu já não deixo de mexer as panelas, dobrar os lençóis ou escrever poemas para ficar à porta à espera que ela chegue. Decidi não o fazer.
Quando ela passar por aquela porta, bebê-la-ei com goles sedentos. Lembro-me de cada palavra que a minha mãe me deu e saboreio o sabor dos seus beijos da alma.
Doce Música Azul
Sussurros
Água de Sonho
Lágrimas Enferrujadas pela Chuva
A minha sede é insaciável, o poço não tem fundo, mas há amor à minha volta, agora estou certa disso.

AGRADECIMENTOS

A minha gratidão e o meu muito obrigada:
À família Yaddo por me terem dado um lugar à mesa e um quarto só para mim; a Charis Books & More, de Atlanta, por me terem encorajado a tornar-me escritora e por sempre terem apoiado as minhas iniciativas; ao Gabinete de Assuntos Culturais da cidade de Atlanta pelo Prémio Literário Municipal; ao Concelho das Artes da Geórgia e à Fundação Astraea pelas generosas bolsas de estudo que me deram o precioso dom do tempo.
À minha agente Sandy Dijkstra e à fantástica equipa da Agência Literária Dijkstra, especialmente a Debra Ginsberg, por terem acreditado no potencial de algumas sementes; à minha editora Julie Grau, cuja confiança e talento editorial foram inestimáveis; e a Nicole Wan, a sua paciente assessora.
A Ann Khaddar e Eric Broudy por terem deixado a poesia entrar no local de trabalho; à Cantina da Universidade de Brown por ter alimentado o meu corpo e a minha alma com pequenos e grandes actos de bondade; a Irene Zahava por ter revisto generosamente e com infinito cuidado uma primeira versão do manuscrito; a Daniel Alexander Jones pelos seus luminosos beijos da alma; a Marj Salvodon pelas suas mensagens electrónicas
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regulares e edificantes; à minha assistente Nina Shope pelo seu espantoso sentido de oportunidade; e às minhas Irmãs da Alma - a Salon Divas, a Kate Rushin, a Carleasa Coates, a Rebecca Johnson, a Patrícia Powell e a Meredith Woods, pelo poder das suas palavras.
Esta obra não teria sido possível sem o apoio de inúmeros amigos e familiares de Atlanta, Boston, Havai, Londres, Los Angeles, Minneapolis / St. Paul, Nova Iorque, Paris, Providen-ce, San Francisco, Universidade de Brown e Wheaton College.
Bem hajam. Muito obrigada a todos, por tudo.

ACERCA DA AUTORA
Shay Youngblood nasceu em Columbus, na Geórgia, licenciou-se na Universidade Clark, em Atlanta, e fez um mestrado na Brown University. É autora das peças Shakin' the Mess Outta Misery e Talking Bonés, e de The Big Mama Stories, uma colectânea de contos, um dos quais foi galardoado com o Prémio Pushcart.
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Este livro foi composto em caracteres Garamond por
Maria da Graça Samagaio, Porto,
e impresso e acabado por
GRAFIASA,
Rua D. Afonso Henriques, 742 - 4435-006 Rio Tinto PORTUGAL


Digitalização e correcção de

Carla Maria Ferreira dos Mártires
José Alberto Canelas

2004/02/20

Que DEUS dê vida longa aos meus inimigos e invejosos para que aplaudam em pé a minha vitória
Para questões Optimos, pedido de cartões Tag, serviço Kanguru, etc, contacte para:
935362648 917401010
Skype:
franklinrebelo
MSN:
franklin.rebelo@live.com.pt
A mensagem está pronta para ser enviada com os anexos de ficheiro ou ligação que se seguem:
Um beijo da alma - Shay Youngblood.txt

Nota: Para proteger de vírus de computador, os programas de correio de electrónico podem impedir o envio e a recepção de certos tipos de anexos de ficheiros. Verifique as definições de segurança de correio electrónico para determinar como são manipulados os anexos.

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