domingo, 28 de fevereiro de 2010

Um mal chamado amor.txt


Título: Um mal chamado amor
Autor: Linell Anston
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991
Publição original: 1990

Ao descer a escada, a jovem lady Elizabeth viu lorde Anthony Russelford no hall. Ele mudara muito: de quase adolescente, tornara-se um homem alto, de ombros largos
e fortes. Nâo fossem os olhos azuis, ainda tímidos, e o sorriso franco, teria certa dificuldade em reconhecê-lo. Ela corou diante do olhar intenso dele. Também crescera,
nâo era mais a jovem inocente de anos atrás. E, naquele momento, prometeu a si mesma que lorde Anthony seria seu marido, por mais que tentasse escapar...




CAPITULO I


- Reggie! Por acaso, está na janela desde que saí?
- Quê? - Sir Reginald Croyton voltou-se, distraído, na direção da irmã.
Em pé, à porta, ela apresentava um quadro adorável em um vestido de passeio marrom. O tecido, pesado, caía perfeitamente, e a barra mal cobria a sapatilha amarela
que batia ritmicamente no chão, demonstrando impaciência. O vestido tinha cintura alta, estilo princesa, e era ornado com uma bonita renda amarela no corpete. Um
amplo chapéu enfeitado com plumas de avestruz dava um toque chique à toalete, porém não escondia por completo os belos e fartos cabelos loiros.
Há três anos ela vinha sendo considerada a Princesa da Temporada de Festas e já recebera inúmeros pedidos de casamento. Nesse instante, o rosto bonito encontrava-se
alterado por uma expressão de profunda censura.
- Por acaso, você foi passear? - indagou lorde Croyton, indiferente à reprovação da irmã mais nova.
- Sabe muito bem que fui à modista - respondeu ainda mais irritada, ao perceber que o irmão observava-a com atenção, através do monóculo.
- Lizzie, escolheu um chapéu encantador. - Foi o veredicto final. - Combina muito bem com você.
A jovem estreitou os lábios, tentando não dar uma resposta malcriada. O chapéu em questão fora-lhe dado de presente fazia menos de um mes, pelo próprio irmão,
que, achando que já cumprira seu dever, voltou a olhar com atenção a vista da janela da biblioteca.
Lizzie suspirou inconformada, mas, como conhecia o irmão, sabia que só conseguiria sua atenção quando esse estivesse disposto a abandonar o que quer que fosse
que o interessava.
O sexto conde de Drenview, com apenas vinte e cinco anos, era considerado um dos melhores partidos da corte inglesa. Alto e delgado, possuía cabelos loiros como
os da irmã, além de belos traços. A diferença entre os dois encontrava-se na expressão. Os olhos claros da jovem mostravam determinação e confiança; percebia-se
facilmente o estado emocional da moça, pois seu rosto brilhava quando estava feliz e ficava sombrio quando estava descontente ou zangada. Já o conde dificilmente
demonstrava suas emoções, a não ser, talvez, o enfado. Seus olhos azuis, como os da irmã, eram inexpressivos.
A diferença entre os dois aumentava ainda mais quando falavam. A jovem, que adorava rir, o que fazia sem dar muita atenção às regras de conduta da sociedade,
expressava-se com emoção, enquanto que o irmão, de temperamento menos alegre, falava sempre num tom incolor e arrastado.
|Lady Elizabeth chegava a ser considerada pelas matronas da corte uma moça rebelde, já que frequentava festas, chás e outros eventos com uma energia incansável,
sem a presença de uma acompanhante mais velha, como seria de esperar de uma jovem em sua posição. E, por incrível que possa parecer, esse comportamento atípico não
era considerado como resultado da negligência de lorde Croyton, pois todos consideravam compreensível que o rapaz não conseguisse ter autoridade sobre alguém tão
decidida e caprichosa. Ele era indulgente demais com a irmã, que uma vez até disputara uma corrida de tílburi com lorde Bettlely, no Hyde Park. Comentou-se que o
conde até mesmo apostara na irmã, e o fato de Elizabeth ganhar a contenda deu mais força a esse comentário absurdo.
A verdade é que lorde Croyton era educado e comedido demais para conseguir controlar a exuberância da jovem. A sociedade londrina iria respirar mais sossegada
quando ela se decidisse por um marido que pudesse controlá-la. Até que isso ocorresse, todos fechavam os olhos às dia-bruras dela. Na realidade, quando queria, a
moça, além de ser a vida das festas, mostrava que era inteligente, meiga e encantadora.
Lorde Croyton, quando disposto, também gostava de falar, e era capaz de transformar os mais terríveis mexericos em casos divertidos. Mas, pelo jeito, esse não
era um desses momentos.
Lizzie, como o irmão a chamava, tirou a pelica, o chapéu e jogou-os em uma cadeira, enquanto o repreendia por não ter ainda cuidado da correspondência do dia.
- Francamente, Reggie! Como pode ser tão irresponsável? Será que tenho de fazer tudo nessa casa? Ainda hoje...
Calou-se ao perceber que o irmão não escutava.
Batia com o monóculo no lábio inferior, pensativo. Curiosa quanto ao que poderia haver de tão interessante na rua, caminhou decidida e deu uma olhadinha na janela.
A residência dos Croyton em Londres situava-se em uma esquina privilegiada de Hanover Square. Além de se encontrar no centro da região da moda, ainda possibilitava
uma visão ampla da casa de vários nobres da corte. Nada poderia passar despercebido aos dois irmãos. Aborrecida, declarou:
- Não existe vivalma na rua! - De repente, ficou toda animada. - Veja! Outra carta do Tony! Está endereçada a você. Abra logo, Reggie!
- Tony endereça as cartas para mim - replicou o conde, indiferente -, porém escreve-as para você. Pode abri-la.
- Por que será que escreveu de novo? Será que aconteceu alguma coisa? --- Lizzie, que não precisara de muito encorajamento, rasgou o envelope com a respiração
suspensa. - Oh, sinto que algo de ruim deve ter sucedido, ou ele não estaria escrevendo pela segunda vez no mesmo mês! E pensar que nem terminei de escrever-lhe!
Estava esperando para falar-lhe sobre a festa de tia Martie, hoje à noite...
Lizzie calou-se e começou a ler, preocupada. Mas logo sua fisionomia transformou-se e declarou alegre:
- Oh, Reggie! É maravilhoso! Tony vai voltar!
- Eu sabia! - exclamou triunfante lorde Croyton, surpreendendo a irmã.
- Como é que podia saber? - perguntou, desapontada e confusa com a reação do irmão.
- Ora, pelo corte da casaca, é claro! - Diante da expressão da irmã, o conde resolveu dar uma explicação: - Faz tempo que estou me especializando em reconhecer
os representantes das classes privilegiadas pelas roupas. Eu o vi apenas de costas e descobri quem era. Ninguém mais usaria uma casaca tão justa na cintura!...
Acostumada com a mente divagante do adorado irmão, perguntou de quem ele estava falando.
- De Harvey Forbisher - respondeu o conde.
- O que tem o sr. Forbisher? - indagou, enquanto visualizava a imagem do cavalheiro de meia-idade.
- Bem... - o irmão disse considerando a resposta -, parece que a boa condessa e o... - declarou, apontando para a janela com o binóculo, com um olhar intencional.
Lizzie aproximou-se e pôde observar o respeitável e aborrecido, na sua opinião, sr. Forbisher sair apressado da casa vizinha. Aquele cavalheiro era um falador
e possuía um péssimo gosto para roupas. No momento, vestia um colete verde e marrom que mal lhe cobria o estômago avantajado. Sua calça era de um tom verde-limão
que a jovem nunca vira antes; a casaca combinava admiravelmente com a cor da calça e possuía botões imensos, horrorosos.
A jovem olhou para o irmão, que se vestia com elegante simplicidade. O conde dispensara a casaca e usava um colete transpassado, com duas fileiras de botões,
seguindo a última moda. Era de seda oriental, dourada e prateada. A calça, de pele de gamo, combinava com o colete, os babados nas mangas e a gola da camisa eram
de renda finíssima; o monóculo era de ouro puro.
A jovem voltou a prestar atenção ao outro cavalheiro. Normalmente, a visita do mesmo à casa de lorde DeBoeulle não seria nada de extraordinário, mas naquele caso
todos sabiam que o proprietário se encontrava no Norte do país a negócios. E o sr. Forbisher movia-se apressado, ao mesmo tempo que olhava furtivamente de um lado
para outro.
- Não está pensando que eles... - sorriu a jovem
- Bem... para descobrirmos que tipo de negócios urgente os dois tinham, é só darmos uma olhada no estado lastimável da gravata do cavalheiro - sussurrou o conde
para a irmã.
- Oh! - exclamou Lizzie, com malícia. Porém, ao se dar conta de que aquele não era o comportamento de uma dama educada, ralhou com o irmão: - Que vergonha!
Como pode espionar nossos vizinhos dessa forma? E nem prestou atenção aò que li!
- Desculpe-me, minha cara dama - afirmou o rapaz, fazendo uma reverência. - Quais são as notícias de seu amado?
- Tony vai voltar! - E ela, feliz, passou a ler a carta para o irmão, que se acomodou em uma poltrona.
"Cheguei à conclusão de que não realizarei meu objetivo na América; então, embarcarei para a Inglaterra dentro de duas semanas. Minha consciência exige que lhe
conte a verdade, agora."
Nesse trecho, Lizzie passou a ler mais devagar, hesitando.
"Perdoe-me por não lhe ter revelado a situação em que me encontro. Minha única desculpa é que temi destruir os momentos de felicidade que suas cartas alegres,
cheias de vida, me proporcionavam, ajudando-me a suportar este lugar infernal."
- Eu não disse que é para você mesmo que ele escreve? - bradou o conde. - Nunca respondi uma carta dele!
Mas ela não o escutou, continuando a ler, ansiosa.
"Não tive o sucesso que imaginava. Vendi as terras de meu pai e voltarei com menos dinheiro que tinha ao sair daí. Compreenderei se ficar zangada com o acontecido
e não posso, em sã consciência, insistir no erro de continuar pretendendo a sua mão..."
A voz da jovem foi baixando de volume, até que terminou a carta em silêncio.
- Reggie! Ouviu isso? - gritou, furiosa. - Não posso acreditar! Nunca pensei que ele poderia ser tão... desprezível! Está desistindo do nosso compromisso!
- Ao contrário da opinião geral, minha querida, não sou surdo. Mas devo ter perdido alguma coisa nessa história, pois não me lembro que tenha ficado noiva - lorde
Croyton observou a irmã, toda agitada -, nem de ter dado minha permissão para você casar.
- Sabe muito bem que não estávamos noivos, porém tínhamos um compromisso! - Ela jogou a carta no chão, ofendida. - Ele devia saber que não me preocupo com dinheiro.
Tenho o suficiente para nós dois. E quanto ao que os outros vão pensar... não dou a mínima!
Mesmo uma pessoa inexperiente podia perceber, pela expressão determinada e pelos olhos coléricos da jovem, que ainda não tinha terminado. O conde aguardou pacientemente.
- Como pôde escrever-me tal carta? - explodiu Lizzie. - Podia esperar essa grosseria de você, Reggie, não de Tony.
O lorde abriu a boca para defender-se de acusação tão injusta, contudo pensou melhor e não disse nada.
- Reggie, precisa tomar alguma providência! - exigiu a jovem, plantando-se à frente do irmão. - Você tem de ir para Bristol e explicar para aquele... aquele idiota
o que acho da ideia dele! Faça-o tomar juízo!
- Graças a Deus, Lizzie! - suspirou o rapaz, aliviado. - Pensei que ia exigir que eu o desafiasse para um duelo, o que não tenho o menor desejo de fazer, não
que me recuse a defender sua honra se fosse preciso, mas... Tony é meu melhor amigo. E, já que não estão oficialmente noivos, seria difícil inventar um bom motivo.
Não seja tolo. É claro que não quero que entre em um duelo. Tony atira muito melhor do que você, e quanto a espada... Reggie, confio mais na sua sorte do que na
sua habilidade. - A jovem tocou o sino chamando um criado e mudou de assunto. - Tem de partir para Bristol ainda esta noite.
- Esta noite? - protestou o rapaz, contrariado. - Acha que é mesmo necessário? Se Tony está retornando a Londres, não vejo por que tenho de atravessar
o país até Bristol!
- De acordo com a carta, ele deve chegar nos próximos dias a Bristol. Você poderá explicar a sir Anthony Russelford a tolice que está cometendo, e trazê-lo
de volta.
- Sua confiança em mim me espanta, minha cara - declarou o conde. - Mas há algo errado no seu plano.
- Besteira! - Lizzie observou o irmão concentrar-se na questão. -Preciso de sua ajuda!
Tocou novamente o sino e, quando o mordomo entrou, disse-lhe:
- Childers, por favor, tome providências. Milorde parte para Bristol imediatamente. Informe Roberts e cuide de que a carruagem esteja pronta.
Sem demonstrar surpresa, o mordomo perguntou a lady:
- Seria possível saber se é uma viagem longa ou curta?
- Uma semana... duas no máximo.
Childers assentiu, sem demonstrar nenhuma emoção. Mas antes de sair notou a agitação da patroa e o ar preocupado do conde.
- Não acredito que essa viagem seja necessária, Lizzie - murmurou o rapaz, com um suspiro, assim que ficaram a sós. - Se dermos tempo, Tony acabará procurando-a.
- Recuso-me a deixá-lo perceber como me perturbou com essa tolice, e conto com você para convencê-lo. Se não quiser ir, pode deixar que eu vou!
- De nada adiantaria, minha cara, pois infelizmente teria de acompanhá-la. Receio não ter saída desse dilema - admitiu antes de levantar-se. - Muito bem irei.
Porém, aposto que será uma perda de tempo.
Ela demonstrou agradecimento ao irmão dando-lhe um forte abraço, e ele a repreendeu por amarrotar-lhe a gravata.
- Childers e Roberts estarão com tudo pronto dentro de uma hora. Ande logo! - disse ela, cheia de ansiedade.
- Uma hora! - exclamou o irmão, alarmado. - Lizzie, por Deus! Pretende que eu parta antes de ter jantado?
- Se precisar, pode comer algo no caminho. Não quero que se arrisque a desencontrá-lo. Tem de partir logo!
- Eu ainda acredito que há algo errado nesse seu plano! - exclamou ele, de sobrolho franzido.
Lizzie, empurrando o irmão escada acima, nem levou em consideração o comentário.
Apesar de Childers ter mantido para si a opinião a respeito do comportamento estranho do patrão, o mesmo não aconteceu com o resto da criadagem. A notícia espalhou-se
como fogo, porque todos sabiam que o conde nunca fazia nada com pressa; planejava tudo com antecedência, é o modo de agir diferente obrigou-os a entrar num lufa-lufa
de atividades.
Todos chegaram à conclusão de que algo estava errado. Depois de muito discutirem, o veredicto geral foi que o lorde perdera o juízo. Childers, que trabalhava
na mansão havia mais de vinte anos, precisou pôr ordem nas coisas. Já há tempo o dedicado mordomo aceitara a realidade de que os membros da corte seguiam regras
que eram incompreensíveis para os simples mortais. Esse era um fato indiscutível e ele sentia-se grato pelos vários anos de existência pacífica, sossegada, que levava
ali. Se agora se via na obrigação de pagar por esse privilégio, iria fazê-lo com a eficiência de sempre. Com a firmeza de um general, acalmou os criados depois da
primeira reação de choque e motivou-os a agirem com presteza. Conseguiu até que a cozinheira preparasse um lanche para o conde, já que não confiava em comida de
estalagens.
Uma hora depois, a carruagem de lorde Croyton foi levada até a entrada da casa, equipada com um belo par de cavalos cinzentos, com a bagagem contendo tudo o que
o lorde poderia precisar, com certeza bem mais do que ele desejava.
De roupa trocada, alimentado, lorde Croyton acomodou-se na carruagem e saiu a caminho de Bristol. Se não estava gostando daquilo, não o demonstrara, assim como
não dera a menor atenção a todo rebuliço que fora feito a seu redor, fato esse que não era de estranhar.

CAPITULO II

A criadagem em pouco tempo voltou à rotina e, a não ser por um ou outro murmúrio de desconfiança, a impressão que se tinha, causada pelas expressões sérias e
olhares furtivos, era de que alguém havia morrido.
A dona da casa, desprovida de qualquer emoção, recolheu a carta que jazia esquecida no chão e releu-a por diversas vezes. Não havia dúvida quanto ao seu significado.
Sir Anthony não se julgava digno de sua mão e estava tentando ser galante.
Lizzie retornou à janela, onde se sentou, deixando os últimos raios de sol da tarde aquecer seu corpo gelado. Lembrava que se apaixonara pelo barão Anthony Russelford
na primeira vez em que se encontraram. Era como se fosse hoje, um dia de primavera. Reggie voltara para casa, em férias, e trouxera um amigo. Os garotos deveriam
ter uns dezesseis anos, o que quer dizer que ela estava com onze, mas assim mesmo tivera certeza de seus sentimentos.
Tony nessa época já era mais alto do que Reggie, e muito bonito. Seus olhos azuis contrastavam com os cabelos castanhos, rebeldes. Ele a fitara e sorrira, apesar
de ser tímido. Naquele momento, Elizabeth tivera certeza de que era o homem com quem ia se casar.
Tinham se passado, então, sete anos de sonhos e amedrontada espera, porque ela vivia sob o medo de que ele se apaixonasse por alguma moça. Cada aniversário chegava
com enervante demora, até que viera a época de ela ser apresentada à sociedade. Infelizmente, o quinto conde de Dren-view, pai de Elizabeth e Reginald, falecera
nessa ocasião. Uma época muito inoportuna segundo o ponto de vista da jovem, que precisara guardar um ano de luto, antes de fazer seu début.
Não que Lizzie deixasse de amar o pai, mas o conde Robert de Croy-ton morrera como vivera, ou seja, causando tristeza profunda e transtorno aos filhos. Ele jamais
estivera presente no lar quando fora necessário e sempre aparecera quando não era desejado. Morrera da mesma forma que vivera: de modo inconveniente.
Os dois rapazes tinham aprofundado a amizade enquanto se tornavam homens. Tony tivera oportunidade de estar sempre com Lizzie. Quando sir Geoffrey Russelford
viera a falecer, depois de prolongada e desgastante doença, coubera ao seu filho único a difícil tarefa de tentar salvar uma fortuna em decadência e recuperar propriedades
que haviam sido mal administradas por muito tempo. Essa tentativa viria a ser frustrante e dolorosa para o jovem lorde.
Lizzie, que sempre fora uma pessoa alegre, extrovertida e franca, tinha sérias dificuldades em compreender a personalidade tímida de Anthony Russelford, ao mesmo
tempo que essa característica era uma das que a atraía para ele. O único problema é que não conseguia quebrar a barreira de timidez que os impedia de se entenderem.
Lembrava-se bem da última vez que vira Tony. Com a desculpa de visitar o amigo, ele aparecera sem avisar e, ao ver que lorde Croyton não estava, começara a dar
a Lizzie as explicações de sua ida para a Jamaica. Como não tinha ideia do estado em que se encontravam as propriedades e plantações do pai, não sabia quando voltaria.
Se tony a tivesse pedido em casamento naquele instante, ela teria aceito e ido com ele. Mas ele não o fizera: duvidava que seu amor fosse correspondido e fora embora
sem se declarar. Durante aqueles três anos de espera Lizzie recusara todos os pedidos de casamento que recebera, e nem um só instante imaginara que Tony não voltaria
para ela. Não iria aceitar isso, de modo algum.
Apesar da preocupação que a atormentava, a jovem não esqueceu o compromisso assumido para aquela noite, porém foi com extrema indiferença que se arrumou para
ir ao baile de lorde e lady Graneville. Seus pensamentos voavam para longe, imaginando a exótica Jamaica onde seu amado se encontrava. E só conseguiu voltar ao mundo
real, com esforço, ao entrar na mansão dos Graneville.
- Lizzie, querida! - cumprimentou a anfitriã. - E seu irmão? Ele prometeu que viria.
- Reggie pede que o desculpe, tia Martie. Ele viajou a negócios.
Amiga da família desde que lady Elizabeth era pequena, a dama observou-a com atenção, duvidando de suas palavras.
Apesar de não ter se esforçado para tal, Lizzie estava adorável em um vestido de baile em crepe azul; um xale cor de pérola, acompanhado por luvas do mesmo tom,
completava a refinada e simples elegância.
Sua aparência era perfeita, mas, com um rápido olhar, lady Graneville pôde perceber o ar preocupado de sua convidada. Inquieta, a senhora resolveu manter Elizabeth
Croyton sob vigilância.
Como não possuía filhos, parecera natural a lady Graneville direcio-nar os seus instintos maternais para os filhos de sua melhor amiga, especialmente porque eles
tinham perdido a mãe ainda crianças e não havia nenhuma mulher na família que pudesse avocar essa posição. Ela conseguira assumir a tarefa que se propusera, porém
tivera muitos problemas, pois o velho conde se recusara a aceitar interferências. E, como ele não tinha muito tempo para os filhos, lady Graneville acabara conseguindo
o que queria.
Lizzie dançou sem parar, até que acabou por se livrar dos persistentes admiradores para conversar com sua melhor amiga, srta. Valerie Bach. As duas jovens eram
inseparáveis desde os tempos de escola. Compartilhavam todos os segredos. E naquele momento lady Croyton punha a amiga a par dos últimos acontecimentos referentes
a sir Anthony. Valerie ficou feliz pela amiga, ao saber que o barão dera notícias, dizendo que ia voltar. A jovem lady não ocultava o entusiasmo.
- Sinto tanta falta dele, Vai. Receava que algo fosse lhe acontecer, impedindo-o de voltar. Minha querida, desculpe-me se vivo a atormentá-la com as minhas preocupações.
- Imagine! - replicou a moça com franqueza. - Papai diz que devo me sentir honrada. Afinal, considera como amiga uma pessoa de classe inferior, e eu...
- Valerie, que tolice! Você é igualzinha a mim!
- Talvez seja. Mas isso é importante para meu pai. Já minha mãe morre de preocupação, porque acredita que nunca encontrarei um marido adequado se continuar a
andar com você: ela acha que cavalheiro algum irá reparar em mim, estando ao seu lado, - riu, os olhos castanhos cheios de carinho. - Respondi a ela que só consigo
conversar com cavalheiros quando estamos juntas.
Sem dúvida, a jovem tinha razão, já que a moça tímida de cachos castanhos dificilmente poderia ser comparada à beleza da amiga. Contudo, Lizzie, que nunca se
impressionara com a própria aparência, considerava o comportamento tranquilo e reconfortante de Valerie bem mais atraente do que sua natureza esfuziante. As duas
complementavam-se de tal maneira, que ela não saberia o que fazer se não tivesse a influência da amiga para acalmar seu espírito inquieto.
Já Valerie Bach sentia-se fascinada pela personalidade franca e extrovertida de lady Elizabeth. A amiga punha aventura e colorido em sua vida, que não era das
mais excitantes, embora recentemente esse aspecto houvesse mudado: Valerie estava apaixonada por Martin Costain, filho do barão Rodney Costain.
Enquanto caminhavam para um canto sossegado do salão, ela contava a Lizzie as inúmeras qualidades do amado: era lindo, inteligente... O cavalheiro em questão
encontrava-se, no momento, dançando com uma
das irmãs de Valerie. Era um rapaz de vinte e quatro anos, moreno, de rosto bonito com traços marcantes, que denotavam extrema confiança em si mesmo.
Enquanto ouvia a amiga, a jovem lady se preocupava, pois havia algo indefinível em Martin Costain que a desagradava. Era cortês, educado, mas em seu rosto havia
uma expressão de eterno sarcasmo. Foi difícil conter esse comentário, porém ela se esforçou, já que sabia que iria magoar profundamente a amiga se lhe dissesse o
que pensava. Outra hora,
talvez.
- Sei que mamãe não aprova - dizia Valerie, sem reparar no silêncio de Lizzie -, contudo acredito que papai não fará objeção. Afinal, somos cinco irmãs e garanto
que ele não pretende nos conservar solteiras, por mais que nos adore. Sir Martin não tem muito dinheiro, porém, é filho de um barão, e papai acha um título muito
importante. Aliás, sei que minha mãe também quer que nos casemos com nobres...
- Já está pensando em casamento? - estranhou Lizzie. - Oh, eu não pensei que a coisa estivesse assim tão séria, Vai!
- Bem, na verdade prometi a ele que não contaria a ninguém... -confessou a jovem - mas você é diferente! Acredito que sir Costain fale com papai em breve. E,
se ele não o fizer, vou ficar muito triste.
- Tenho certeza que tudo vai ser como você deseja, querida... - Lizie apressou-se a animar a amiga, ao ver os grandes olhos castanhos cheios de lágrimas. - Tudo
vai dar certo! Conte-me: o que ele lhe disse que a fez pensar em casamento?
- Bem, ele não disse nada, mas tem sido sempre tão atencioso, tão... Oh, não sei se você me entende, pois vive sendo pedida em casamento! E o sr. Costain é o
primeiro cavalheiro que me faz a corte, apesar de papai ser tão rico! Isso quer dizer alguma coisa, não acha?
Perturbada pelo olhar suplicante da amiga, a jovem lady concordou, incapaz de dizer qualquer coisa em contrário naquele momento. Não havia percebido o interesse
de Valerie por aquele rapaz. Por que ela não lhe havia contado nada? Não tinham segredo uma para a outra. Só então percebeu que alguém se aproximara delas.
- Desculpe, sir Costain - apressou-se a dizer -, porém não ouvi o que o senhor disse. Estava com o pensamento longe.
- Não tem importância. Eu só fiz aqueles comentários habituais, que merecem ser ignorados - respondeu o rapaz, com gentileza.
Ao falar tinha suave sotaque irlandês, e seu sorriso, lembrando o de um menino travesso, era muito atraente.
- Estou surpreso por não ver aqui o seu irmão, lady Elizabeth. Pelo que sei, ele gosta muito de bailes. Espero que não esteja doente.
- Não. Meu irmão foi a Bristol, a negócios.
E ela sentiu-se culpada por ter obrigado lorde Reginald a viajar tão de repente.
- Por muito tempo? - quis saber o cavalheiro, que pareceu estranhamente satisfeito.
- Oh, não! Deverá voltar em dois ou três dias.
Não havia por que, mas Lizzie sentira-se inquieta com o jeito e o olhar de sir Costain; por isso mentira, tratando de mudar em seguida de assunto. Abriu seu sorriso
deslumbrante e perguntou ao cavalheiro por sua última viagem ao continente.
- Foi uma curta visita à França - respondeu ele, com indiferença. - Nada de importante. Considero saudável dar uma fugida para o continente, de vez em
quando.
A expressão irónica e maliciosa com que ele falou não deixaria dúvidas aos mais experientes sobre os propósitos dessas "fugidas", porém Valerie não pertencia
a esse grupo.
- De fato, o inverno na Inglaterra pode ser muito aborrecido - comentou ela, com inocência. - Ouvi dizer que essa é a melhor época para se visitar a Itália. Já
esteve lá, sr. Costain?
- Muitas vezes. É um país muito bonito, principalmente Veneza... a cidade dos amantes. - Sem se importar com o embaraço causado às moças, continuou: - Na verdade,
prefiro a Espanha. O povo desse país tem um certo encanto, com sua simplicidade e inocência.
Ao perceber a reação da amiga, que ficara muito corada, Lizzie resolveu retrucar:
- Depende do que considera simplicidade e inocência, sir. Se com isso quer dizer que a vida daquele povo é mais difícil e que em sua inocência ninguém percebe
isso, não acredita que assim podem ser enganados mais facilmente? Não considero esse um aspecto "encantador"!
- Santo Deus! No futuro preciso tomar mais cuidado ao expressar minha opinião em sua frente, milady! - Riu e voltou-se para Valerie:
- Vamos dançar, srta. Bach?
A jovem tímida sentiu-se livre de um peso, porque temia o encontro de Lizzie com seu amado. Sabia que a amiga jamais roubaria seu pretendente, mas, como a sua
mãe dissera, os homens eram tolos e em geral apaixonavam-se pela beleza, sem prestar atenção no que havia por trás dela. Mais perigo, ainda, apresentava uma moça
como lady Elizabeth,
que além de linda era inteligente, culta e segura de si. Não era de admirar que tantos homens suspirassem por ela.
Assim que sir Costain foi com Valerie para a pista de dança, a jovem lady viu-se rodeada por cavalheiros. Com gentileza, sorridente, dispensou-os, e foi em busca
de lady Graneville. Encontrou-a acomodada em uma poltrona, num canto do salão, tendo seus pedidos satisfeitos por criados atentos e fiéis.
- Tia Martie, por favor, pode me falar o que sabe sobre Martin Costain? - pediu a moça assim que ficaram a sós.
- Cometi um grande erro permitindo que o sr. Naper trouxesse um amigo - respondeu a dama, com ar de desaprovação. - Se soubesse que seria Costain, não teria concordado.
Minha querida, não sabia que o conhecia, e reprovo isso.
- A srta. Bach é quem o conhece, tia...
- Eu sabia que nada de bom resultaria de sua amizade com essa moça.
- Valerie é uma pessoa boa e meiga. Não acredito que tenha a mais leve ideia da... reputação desse homem.
- E você, o que sabe a respeito, minha querida? - quis saber a dama, olhando Lizzie com atenção.
- Só o que ouvi de Reggie.
- Vou ter uma palavrinha com seu irmão, quando ele voltar! - Lady Graneville parecia desgostosa. - Imagine, ter esse tipo de conversa com a irmã!
A jovem lady corou: se a dama soubesse o tipo de conversa que tivera com o irmão naquela tarde!
- Ele não me disse muita coisa, tia Martie - tratou de explicar. -Ouvi comentários aqui e ali. É verdade que Reggie sabe contar histórias...mas não o culpe,
por favor!
A desculpa era fraca, porém a dama acabou cedendo e sorriu.
- É. Não podemos culpá-lo por não ter juízo. Mesmo assim, terei uma conversinha com ele. Aonde mesmo Reggie foi?
- A Bristol. Tia Martie, não respondeu minha pergunta... É importante.
Mantenha-se longe daquele cavalheiro. Ele não tem escrúpulos. Deve ser por causa do sangue irlandês da mãe, pois sir Rodney é um cavalheiro fino, educado. Se
Martin está interessado em sua amiga, só pode ser por um motivo: dinheiro. - Os olhos verde-escuros da dama, ainda bonitos, nublaram-se. - Estremeço só de pensar
no que acontecerá quando sir Rodney falecer. As poucas propriedades da família serão jogadas fora, porque esse rapaz vive precisando de dinheiro, apesar da boa mesada
que recebe do pai.
Lady Graneville calou-se por instante, olhou o salão, pensativa, depois continuou:
- De fato, sua amiga não deve ter ideia do mau caráter desse rapaz... o que não me surpreende, já que a mãe dela não vê nada a um palmo do nariz! Se puder, querida,
afaste a srta. Bach do sr. Costain.
Como duas damas se aproximavam, a lady calou-se. Lizzie ficou pensando no que ouvira: Martin Costain, apesar de ser filho de um barão e herdeiro de uma discreta
fortuna, conseguira uma reputação lamentável. Como as aventuras dele dificilmente poderiam ser consideradas assunto apropriado para jovens damas, ela só tomara conhecimento
dos detalhes mais leves: o rapaz gastava muito dinheiro em distrações nada recomendáveis, como mulheres de vida duvidosa, bebida e jogo.
Os modos do jovem Costain eram finos e educados. Tinha muito sucesso entre certas senhoras casadas que achavam a companhia de um devasso e libertino agradável
distração. E, quando esse libertino tinha ar de garotinho malicioso, gostavam mais ainda dele.
Tudo isso passou pela cabecinha de Lizzie enquanto ela notava a amiga dançando com o sr. Costain. Via-se que estava encantada. Decidiu que prestaria atenção nos
dois, pois não queria que Valerie sofresse. Colocou os próprios problemas de lado e passou a abalizar as possibilidades da amiga. A não ser que Martin Costain mudasse
completamente, o que ela achava que não ocorreria, aquele romance não iria dar certo.
Lady Elizabeth não era a única pessoa preocupada com aquela situação. Um cavalheiro encorpado, forte, que observava o casal, do outro lado do salão, tinha o cenho
carregado, como se o que via o desagradasse profundamente.

CAPITULO III

O sol brilhava atrás da janela da biblioteca. Lizzie encontrava-se encolhida no sofá a ler o mais recente romance publicado. A heroína, deplorável, e a trama
patética não conseguiam prender-lhe a atenção. Foi então que Childers entrou, comunicando que um cavalheiro queria vê-la e que fora conduzido à saletinha.
Não se poderia dizer que o mordomo reprovava a visita, pois sua expressão não mostrava o que pensava. Mas só o fato de ter conduzido o cavalheiro para aquela
sala específica já indicava que não o considerava uma pessoa bem-vinda.
Curiosa, Lizzie resolveu recebê-lo, apesar de não conhecer o nome que lera no cartão de visitas, e ficou desapontada ao ver o sr. Charles Walla-ce. Era um cavalheiro
baixo, com tendência a engordar. Já se podia ver no que se transformaria com o passar dos anos, porque suas roupas estavam bem apertadas na cintura. A jovem não
sabia se o vermelho de sua face era uma condição natural ou devido ao aperto das roupas. Seus trajes eram conservadores e, apesar de não estarem na última moda,
poderiam ser considerados clássicos. Pelo jeito, ele tomara cuidado ao se vestir. Parecia ser um homem de negócios de poucos recursos ou um cavalheiro passando por
uma fase extremamente difícil.
A não ser pelo avermelhado do rosto, o único outro traço que chamava a atenção eram os olhos, em um tom bem claro de azul, que se encontravam atrás de óculos
de lentes grossas.
- Como está, sr. Wallace? - cumprimentou a jovem friamente. - Creio que ainda não tivemos o prazer de ser apresentados. Por acaso é conhecido de meu irmão?
- Oh, não, lady Elizabeth! - replicou ele, que já estava nervoso e ficou ainda pior ao começar a falar. - Não tive o prazer de conhecer o conde. E, confesso que
não teria vindo procurá-la, se não fosse um assunto muito importante. Peço que me perdoe a liberdade que tomei.
- O senhor há de me desculpar, porém não percebo qual é o assunto que podemos ter a tratar.
- Temos uma amiga em comum, lady Elizabeth... a srta. Valerie Bach.
- Por favor, não se ofenda... Tenho a srta. Bach na mais alta conta... Na verdade... amo-a. - A comunicação, feita de maneira tão desastrosa, pareceu liberar
todo o sentimento do sr. Wallace. - Amo-a tão profundamente, que até machuca. - Ele torcia as mãos, aflito, enquanto caminhava de um lado para outro na sala. - Talvez
minha vinda tenha sido um erro... Mas como a vi ontem à noite conversando com ela e por saber que são amigas... Eu tinha de tomar alguma providência!
- Por acaso deseja que interceda junto à srta. Bach a seu favor?
- Não! - exclamou ele, entrando em pânico. - É claro que não... Ela nem sabe que existo... - riu, amargo. - Entenda, nunca fui um homem corajoso. Não pude falar-lhe
a respeito de meus sentimentos. Mesmo porque não tenho fortuna e aparência necessárias para tornar-me um de seus pretendentes.
Lizzie era obrigada a concordar. Contudo, os sentimentos intensos que o cavalheiro demonstrava pela amiga acabaram enternecendo-a. E foi então que pediu ao sr.
Wallace que continuasse com sua história, explicando:
- Senhor, gosto muito da srta. Bach, pois somos amigas desde a época de colégio. Ela é, talvez, uma das pessoas mais doces e inocentes que conheço. E,
apesar de simpatizar com os seus sentimentos, não vejo como poderia ajudá-lo.
Para surpresa da jovem, o cavalheiro não se fez de rogado e sentou-se. Enquanto ela o estudava atentamente, começou a dizer o que desejava:
- Não é a mim que desejo que ajude, já que conheço minhas limitações. É à srta. Bach. Trata-se de um problema delicado, por isso é que só entrei em contato com
milady agora. Tinha esperança de que o caso fosse resolvido sem minha interferência. Mas talvez já seja tarde demais...
- A que, exatamente, está se referindo? - perguntou Lizzie, indo direto ao ponto e encarando o cavalheiro com frieza.
Ele, que já não estava muito à vontade, ficou ainda mais vermelho e passou a mexer no colarinho, nervoso.
- Refiro-me ao sr. Costain. Eu... não estou querendo faltar com o respeito à srta. Bach... porém esse relacionamento... - Parecia que o homem ia sufocar com as
próprias palavras. - Ahn... gostaria que a se nhorita falasse com ela!
- Entendo sua preocupação, porque também não aprovo esse relacionamento. Contudo, não vejo o que posso fazer, pois posso ofendê-la ao tocar no assunto. Acredito
que o senhor é a pessoa mais indicada para interferir no caso. Não que deva dar sua opinião a respeito do sr. Costain, é claro. Mas por que não fala com Valerie
sobre os seus sentimentos?
Creio que se ela souber...
Não poderia! - exclamou o cavalheiro, em pânico. - A senhorita não compreende... Sou um homem modesto, jamais poderia sustentar a srta. Bach no padrão
a que está acostumada. Trabalho para meu tio em Bath... Vim a Londres tratar de negócios com o sr. Bach, e foi assim que conheci sua filha. Não posso permanecer
na cidade indefinidamente e não acredito que o pai da jovem aprovasse tal relacionamento. Pensaria que estou atrás de seu dinheiro... Nem vou herdar os negócios
de meu tio, já que ele tem vários filhos... - suspirou. - Como vê, não há nada que possa fazer...
- Não acredito que esteja sendo justo, sr. Wallace! - exclamou a jovem com veemência; porém ao perceber a expressão chocada de seu interlocutor, acalmou-se.
- Desculpe-me a rispidez... E, como sou uma mulher abastada, ficaria insultada se soubesse que... um cavalheiro não me declara seu amor apenas por receio do que
os outros vão dizer. O senhor deveria dar mais crédito à inteligência feminina.
Os dois permaneceram num silêncio carregado. O sr. Wallace por várias vezes abrira a boca para manifestar-se, mas no final foi Lizzie quem falou primeiro.
- Talvez haja algo que possa ser feito pelo senhor, porém necessitarei de sua ajuda... - Ao perceber que o cavalheiro estava interessado, acrescentou: - Por acaso
poderia dar um passeio a cavalo em Hyde Park hoje à tarde, por volta das três horas?
- Oh, sim! Contudo, vou ter de emprestar um cavalo. Qual é a sua ideia, milady?
- Bem, arrume uma montaria e nos encontraremos no parque. A srta. Bach estará comigo e terá a chance de conhecê-lo. Quem sabe não conseguimos que sua atenção
se volte para o senhor e ela esqueça do sr. Costain? Em geral julgo bem o caráter das pessoas. E gostei do senhor. Agora, tem em mim uma amiga e uma aliada.
- Obrigado. Muito obrigado! - O sorriso do sr. Wallace desapareceu quase tão rápido quanto tinha aparecido. - Infelizmente, não acredito que vá dar muito certo...
- Precisa ter mais coragem! - replicou a jovem que observava o cavalheiro levantar-se. - Além do mais, fé na srta. Bach. Eu acho que tive uma ideia para fazer
os dois se desinteressarem um do outro.
Logo depois o cavalheiro despediu-se e partiu. Lizzie viu-se bem animada. Como o destino podia ser providencial! Tinha uma leve esperança de que os profundos
sentimentos que o sr. Wallace tinha por Valerie acabassem por libertá-la do encanto feiticeiro do sr. Costain. Era uma chance remota, pois o pobre rapaz não tinha
atributos para competir com a elegância e a beleza do seu rival.
O dia não podia ser mais idílico. O sol brilhava e uma leve brisa soprava. Valerie tagarelava alegremente ao lado de Lizzie, no faéton. O tópico da conversa deixava
a desejar, entretanto. Enquanto lady Elizabeth olhava em volta à procura do sr. Wallace, a amiga não parava de falar a respeito de Martin Costain.
- Vai, querida - interrompeu-a a lady -, por que não me contou antes seus sentimentos em relação ao sr. Costain?
- Para ser franca, Lizzie, achei que não fosse aprovar... Tolice minha, não?
A lady dirigia o veículo e fingiu-se ocupada com as rédeas, para não responder. Ao voltar a atenção para a amiga, viu que o sr. Wallace aproximava-se e que parecia
não estar acostumado a cavalgar. O animal insistia em querer decidir o caminho, e o sr. Wallace aparentava estar fazendo um grande esforço para controlá-lo. De alguma
forma conseguiu e parou ao lado da carruagem das duas damas. O quadro que formava, contudo, era cómico. Lizzie cumprimentou-o com excessiva alegria, chamando a atenção
da amiga.
O cavalheiro respondeu fazendo uma reverência e quase caiu da montaria. O cavalo, que escolheu aquele exato momento para fazer uma demonstração de passos, deu
trabalho para ser controlado. Àquela altura, as damas tentavam esconder o divertimento com a situação.
- Não acredito tê-lo visto antes no parque, senhor - comentou Valerie, educadamente.
- Não costumo sair muito, senhorita. Mas hoje o dia estava tão bonito, que não resisti.
- Realmente - concordou a jovem, dando uma olhada para a amiga, que subitamente ficara interessada em algo que ocorria do lado oposto.
- Costuma cavalgar com frequência, sr. Wallace?
Foi então que o cavalo resolveu dar uma pirueta, e apenas por puro senso de sobrevivência o cavalheiro conseguiu se manter na sela. Sua face estava tão vermelha,
que chegava a parecer roxa.
- Na verdade, é a primeira vez que ando a cavalo e não creio estar indo muito bem. A senhorita cavalga?
- Oh, sim! E adoro. - Ela olhou-o timidamente e aventurou-se: - O senhor parece estar tendo problemas. Ficaria aborrecido se eu fizesse uma sugestão?
- Nunca ignoro o conselho de um conhecedor.
Não é bem esse o caso... - refutou a jovem, docemente. - Eu aprendi que, quando não conhecemos o cavalo, devemos relaxar, porque o animal parece perceber quando
estamos nervosos ou não sabemos o que fazer.
Relaxar. - Ele respirou profundamente e soltou o ar bem devagar.
Já me sinto melhor, srta. Bach. Muito obrigado.
- Não há por quê.
O sr. Wallace respirava fundo de novo quando o cavalo resolveu dar alguns passos de dança e ele acabou engasgando.
- Espero também lembrar que não devo relaxar demais - acrescentou o cavaleiro novato, com um sorriso sem jeito.
Valerie abaixou o rosto, tentando esconder o riso.
- Agora entendo porque o sol se escondeu... Duas belas damas numa mesma carrugem - cumprimentou o sr. Costain com galanteria nesse momento, antes de voltar-se
para o cavalheiro. - Creio não ter tido o prazer de ser apresentado ao senhor.
Lizzie franziu o cenho, desgostosa, mas teve de fazer as apresentações. Enquanto observava os dois cavalheiros se medirem, notou que o rosto da amiga iluminara-se
com a chegada do pretendente. Depois de decidir que o sr. Wallace não representava ameaça, voltou a atenção inteiramente para Valerie, que era toda rubor e meiguice.
- É um prazer reencontrá-lo - cumprimentou Lizzie, sorrindo, luminosa, atraindo o olhar do sr. Costain. - Não está um dia maravilhoso?! A srta. Bach e
eu não poderíamos desejar mais nada além da companhia de dois cavalheiros encantadores! Oh, não! De fato, devería mos desejar que um dia assim jamais terminasse!
Valerie piscou, surpresa com a mudança de comportamento da amiga. O sorriso de Martin Costain alargou-se e seus olhos brilharam com maior intensidade.
- Não sei quanto ao sr. Wallace, porém se dependesse de mim realizaria seu desejo com o maior prazer.
Lizzie fez beicinho e bateu os cílios timidamente para o pretendente da amiga, que a fitava, fascinado.
O sr. Wallace observava lady Elizabeth quase tão chocado quanto a srta. Bach. Jamais vira alguém flertar com tanta audácia. Mas, ao perceber a mágoa no olhar
de sua amada, tentou distraí-la com amenidades.
- Notei que a senhorita se divertiu no baile de ontem à noite. Foi um evento deveras concorrido. E, apesar de ter vindo a Londres a negócios, diverti-me
muito.
Ah, sim, o senhor é de Bath! Por acaso toma as águas medicinais da região?
Valerie fizera a pergunta automaticamente, pois tinha toda atenção concentrada na amiga e em Martin Costain, a ponto de nem ouvir a resposta do sr. Wallace.
- Não senhorita. Acho que não me fazem bem e... Senhorita!?
Ao perceber que não fora ouvido, e a tristeza da moça, o sr. Wallace puxou as rédeas com força e, tarde demais, percebeu que cometera um erro. O cavalo empinou,
derrubando-o no chão. Valerie gritou e todos observavam-no preocupados. Após assegurar que estava bem, tentou levantar-se apoiando no cavalo, ique amigavelmente
lhe empurrava o ombro com o focinho, como se quisesse ajudá-lo.
- Depois do que fez - ele declarou, rindo -, esse cavalo decide ser meu amigo! Creio que vou voltar andando...
- Não devia! - interferiu Costain, professoral. - Dizem que sempre se deve voltar a montar após a queda.
- É provável que esteja certo, senhor, mas não o farei. Acredito que já tenha proporcionado divertimento a todos, mais do que suficiente para um dia.
O sr. Wallace se despediu e partiu. Lizzie estava sentindo-se culpada, já que a ideia do passeio fora sua. Valerie lembrava-se do olhar triste do rapaz, antes
de cair.
- Bem, sir, acredito que a srta. Bach e eu devemos seguir o exemplo do sr. Wallace - disse a jovem lady. - Está ficando tarde. Espero que nos dê licença.
Costain mal teve tempo de se despedir, e as duas partiram. Permaneceram em silêncio até que Valerie resolveu falar:
- Gostei muito do seu sr. Wallace, Lizzie.
- Ora, Vai. Ele não é "meu". É apenas um conhecido de Reggie. Vo cê, mais do que ninguém, deveria saber disso.
- Oh! - A jovem observou a amiga com cuidado. - Fiquei satisfeita ao perceber que simpatizou com Martin. Temia que isso não ocorresse. Detestaria perder a sua
amizade...
Sempre me terá por amiga, Vai. Por acaso anda lendo um daqueles romances horríveis? - Lizzie, que conduzia o faéton para fora do parque, desviou a conversa. -
Vi na loja da sra. Trentley um chapéu maravilhoso, ideal para você!
CAPITULO IV

A semana seguinte foi tão cheia de atividades, que Lizzie mal conseguia lembrar dos eventos. Em todas as oportunidades possíveis exaltava as qualidades do sr.
Wallace para Valerie e provocava encontros do cavalheiro com a amiga. Como, porém, desejava deixar os dois sozinhos, acabava tendo de passar muito tempo com Martin
Costain.
A estratégia estava tendo sucesso, mas trazia um grande desgaste para a lady, que mal tinha tempo de pensar nos próprios problemas. No entanto, essa situação
mudou num dia que se preparava para passear com os amigos.
Ao descer a escada, parou ao ver um homem entrar no hall de sua casa. Era Tony. Os três anos passados haviam causado uma grande mudança em Sir Anthony Russelford.
O jovem bonito que partira se transformara num homem alto e musculoso. Quando ele retirou o sobretudo, a jovem pôde notar os ombros largos e os braços fortes. Se
não fossem os olhos azuis, ainda tímidos, e um leve sorriso, Lizzie poderia ter dificuldades em reconhecê-lo logo, se encontrasse na rua.
- Sabe? É ainda mais bonita do que eu lembrava! - exclamou ele e, ao notar o traje de montaria que ela usava, acrescentou: - Se soubesse que ia sair, não teria
vindo. Não quero atrapalhar seus planos.
- Tolice! - Ela continuou a descer e insistiu: - Não está atrapalhando nada. Por acaso, acabou de chegar? Onde está Reggie? Não se encontraram?
Coisa difícil de acontecer, ela notou que corava diante do intenso olhar do lorde. Perturbada, estendeu as mãos, que foram envolvidas pelas dele, morenas e muito
grandes.
- Não tenho ideia de onde seu irmão está. Não o vejo desde que fui embora. Cheguei ontem à noite e a senhorita é a primeira pessoa que procuro... - Ele
franziu o cenho, hesitou, por fim prosseguiu:
- Recebeu minha carta?
Ao ouvir a palavra "carta", ela ficou séria e, soltando bruscamente as mãos, pediu que ele a acompanhasse até a biblioteca. Começou a falar assim que a porta
se fechou.
- Recebemos sua carta na semana passada. Reggie partiu para esperar o seu navio em Bristol, porém parece que nem isso conseguiu fazer direito.
- Não o culpe! - replicou Tony, sorrindo. - Tivemos bom tempo e chegamos antes do previsto. Vim direto para Londres. Mas por que Reggie iria me encontrar? Deveria
saber que eu viria vê-los imediatamente.
Lizzie, não sabendo como responder, caminhou até a janela. É o rapaz mesmo acabou respondendo.
- Foi por causa da minha carta, não é? Pensei que se escrevesse, a estaria preparando...
- Foi muito atencioso em preocupar-se com os nossos sentimentos! --- explodiu a jovem voltando-se, com os olhos brilhantes e magoados. --- Por que não nos contou
a verdade? Como pôde não confiar em nós? Machuca saber que não foi sincero conosco, que nos consideramos seus amigos.
- Sinto muito. - Sir Anthony fez um gesto desolado com as mãos. - Não era minha intenção magoá-la. Contudo, as coisas estavam indo tão mal, que
não vi outra saída... Percebi que agira errado depois de enviar a carta. - O rapaz começou a andar de um lado para outro, agitado. - Também não agi corretamente
em relação a outra coisa.
Sou pobre e seria errado de minha parte pretendê-la. Não posso oferecer-lhe nada.
- Por acaso, julga que isso é importante para mim?
- No entanto, é importante para mim! Antes de partir eu disse umas coisas, fiz insinuações que não devia ter feito. Peço que me perdoe...
- Seus sentimentos mudaram, sir? - indagou ela, com lágrimas nos olhos, sem notar que adotara um tratamento formal, que só pode ria distanciá-los.
- Minha situação é que mudou. Talvez ache que se trata de orgulho masculino, porém...
- Eu daria outro nome ao que fez! O senhor me deu sua palavra! - Agressiva, ela engolira as lágrimas, por orgulho.
- Não prometi nada! - retrucou ele, ríspido, com o maxilar cerrado. - A senhorita sabia que tudo dependeria da minha situação. Nunca lhe pedi que me esperasse!
- Ele também adotara uma atitude distante, defensiva.
- Mas sabia que eu esperaria. E suas cartas nunca deram a entender que deveria ser de outra forma. Não, até a última. - Agitada, ela percebeu que discutindo não
chegaria a nada, e mudou de tática. -Não vê que está sendo pouco razoável, além de tolo e antiquado? Reggie não fará objeções.
- Não pretendo nem discutir o assunto com ele - declarou, o barão, enfático.
Lizzie reconheceu o tom de voz que muitas vezes fora usado por seu pai. O assunto estava terminado e Anthony não mudaria de ideia. Nunca imaginara que ele pudesse
ser tão teimoso. Perdida com a mudança que percebera no amado, tentou sorrir.
- Oh, Tony! Não vamos discutir - implorou. - Que terrível recepção! Não me lembro de termos discutido antes. Vo... - corrigiu-se, ao ver o olhar distante
dele: - O senhor mudou tanto!
Aflita, tentava ver por trás daquele rosto bonito, mas endurecido, ò suave Anthony de outrora.
- Muita coisa aconteceu comigo... - afirmou ele, calmamente. -Não saberia nem como explicar... Não devia ter vindo vê-la.
- Agora sim, está sendo tolo! Se não tivesse vindo, não lhe perdoaria. O que Reggie iria dizer? Ele acredita no senhor... Nós acreditamos no senhor! E sentimos
muito a sua falta.
- Também senti saudade... - Ele pigarreou, no silêncio pesado que se fez, depois fitou-a e ergueu as sobrancelhas, sem saber o que fazer ou dizer.
- Oh, Tony! - exclamou ela, rindo. - Aguardava tão ansiosamente a sua volta, e agora que está aqui... não consigo nem pensar. Sou uma perfeita tola!
- A tola mais linda que já vi - ele concordou.
Lizzie descontraiu-se e percebeu que seu humor voltara ao normal. Pediu que o amigo sentasse e contasse tudo a respeito de sua aventura.
- Nem sei por onde começar - murmurou ele, pensativo.
Mas, diante do interesse da jovem, ele começou a descrever, tenso, seu desapontamento ao descobrir que a grande plantação do pai não passava de um mísero pedaço
de terra tomado pela vegetação tropical. Sem possuir o conhecimento necessário, e determinado a vencer aquela batalha ao ponto do desespero, tentara fazer com que
a terra produzisse. Contudo, no fim só descobrira quão pouco preparado estava para assumir tanta responsabilidade.
Totalmente atenta, a lady notava as pequenas mudanças que haviam ocorrido no barão. Seu tom de voz era mais profundo e denotava cansaço. Estava mais calmo, mais
sóbrio e menos introvertido, e de alguma forma menos vibrante do que ela lembrava. Suas mãos, que descansa-
vam sobre os joelhos, tinham cicatrizes e calos atestando o trabalho duro. Só então a jovem realmente percebeu como o tempo que passara na Jamaica fora difícil
para ele. E condenou-se por ter sido tão egoísta.
- Por que não me contou tudo isso antes? - perguntou, suavemente.
- Não era um problema seu, e o que poderia ter feito? - revidou o barão, com um sorriso cansado.
- Eu? Nada - ela reconheceu. - Mas possuo alguns fundos, além de um irmão que é seu melhor amigo.
- Não posso pedir a ajuda de Reggie sempre que me encontrar em dificuldades. Nunca o fiz e não pretendo começar agora - respondeu ele, firme. - Prefiro
ficar apreciando sua beleza e contar-lhe histórias enfadonhas.
- Não precisa dar desculpas ou dizer palavras bonitas - replicou e, ao sentir que ele corava, Lizzie evitou encará-lo.
- Obrigado. Parece que não sirvo mesmo para isso.
Fez-se de novo silêncio entre eles, porém dessa vez tranquilo e agradável. Tanto que a lady teve um sobressalto quando Childers entrou para anunciar que seus
amigos já haviam chegado. Contrariada, ela explicou a sir Anthony que precisava sair, pois combinara um passeio com a srta. Bach. Convidou-o a juntar-se ao grupo.
Mas, como ele tinha um compromisso com o advogado do pai, teve de recusar; tomou as mãos da moça nas suas e disse:
- Tenho o desejo egoísta de mantê-la comigo e não deixá-la juntar-se aos seus amigos.
- Também gostaria, sir. - Lizzie começava a ter dificuldade para respirar, pela emoção. Tratou de se dominar. - Seus problemas são importantes para mim, recuso-me
a ser deixada no escuro, sem saber o que ocorre. Por favor, fale com Reggie - pediu, com carinho.
Com um sorriso evasivo, ele beijou-a gentilmente nos lábios e, ao descobrir que era correspondido, beijou-a outra vez. E mais uma.
- Tenho tanta coisa para lhe contar - Lizzie murmurou, afastando-se dele. - Queria ficar aqui... É horrível dizer isso, porém gostaria que meus amigos
sumissem. Se disser que vai comparecer ao Brooks esta noite, me sentirei menos infeliz...
Ele respondeu vagamente, com um sorriso que desapareceu de seu rosto assim que lady Elizabeth saiu, deixando-o na biblioteca.
Olhou em volta, pensando no que iria fazer, até que o mordomo veio indagar se necessitava de algo. Depois de agradecer e decidir partir, o barão indagou se Childers
sabia quando o conde voltaria.
Pensei que ele tivesse ido encontrar o senhor - replicou o mordomo - Em todo caso, acredito que Sua Excelência deve voltar o quanto antes. Talvez no final da
semana.
Pelo jeito, desencontramo-nos - comentou o lorde, dando de ombros. - Pensei que ele fosse ficar mais tempo em Bristol. Bem, então devo vê-lo quando retornar
a Londres.
Sir Anthony despediu-se e partiu. Passou pela Hanover Square e seguiu por uma rua calçada de pedras. Em poucos minutos encontrava-se em frente a um prédio de
tijolinhos vermelhos, muito limpo. As janelas e a porta de carvalho refletiam a luz do sol da tarde. Era o escritório da Brown, Haverstock & Gentry.
Ao entrar, o barão notou que nada havia mudado nos últimos três anos. A atmosfera escura e lúgubre ainda lhe trazia lembranças ruins. Quando sir Geoffrey morrera,
o sr. Gentry tentara ajudar mas nada pudera fazer, pois seu pai, que não tinha tino para negócios, perdera quase tudo, deixando-lhe uma renda anual de um pouco mais
de cem libras, além de uma propriedade em Kent que consumia até o último centavo dessa quantia para ser mantida. Na esperança de salvar alguma coisa, o jovem juntara
todo dinheiro que tinha e partira para a Jamaica, porque a plantação de açúcar que o pai comprara nos últimos dias de vida era sua única esperança de reconstituir
a fortuna da família.
- Esperava vê-lo antes - disse o sr. Gentry, assim que sir Anthony acomodou-se em uma cadeira.
- Precisei ir tratar de uns assuntos pessoais, primeiro - explicou o rapaz, observando o velho senhor.
- Tony, meu rapaz - a voz do advogado era baixa, apagada; envelhecera bastante -, sua última carta me preocupou. Por que vendeu tudo?
- Para comprar a passagem de volta. - Sorriu, amargo. - O senhor estava certo quanto ao estado das coisas lá. Não pude fazer nada.
Mais uma vez o jovem narrou a história do que ocorrera, o que lhe era extremamente doloroso.
- Está sendo muito duro consigo - afirmou o advogado. - Eu tinha avisado sir Geoffrey que esse não seria um negócio lucrativo,
mas, quando ele cismava com uma ideia não havia como dissuadi-lo.
Fiquei animado quando o senhor escreveu que havia duas colheitas prontas para vender.
Uma foi destruída por um furacão, a outra pela seca. Não sou um fazendeiro, porém sei reconhecer quando as chances são contra mim. Foi tudo uma tolice! - O barão
sacudiu os ombros. - O que gostaria de saber é qual o estado real das minhas finanças
- O que exatamente deseja saber?
- Gostaria de saber - agitado, sir Anthony levantou-se e caminhou ate a janela, enquanto o olhar triste do advogado o acompanhava - quanto poderia receber por
Brentshire.

CAPITULO V

- Meu rapaz, por que vai vender Brentshire?
- Quanto receberia? - insistiu sir Anthony, sem responder.
O sr. Gentry, então, disse-lhe quanto poderia receber por sua última propriedade.
- Só isso? - chocou-se o barão.
- Receio que não seja o melhor momento para vender. O mercado está ruim e Brentshire não se encontra em bom estado. O dinheiro que vem dos locatários mal cobre
as despesas. Empreguei-o todo para arrumar a mansão, mas ainda assim ela precisa de vários consertos urgentes.
A fábrica de papel, então, encontra-se em pior estado.
- A fábrica! Tinha me esquecido dela...
- No tempo em que sir Geoffrey e eu éramos jovens - lembrou o advogado -, isso há quase cinquenta anos, ela já não era usada. Agora deve estar em ruínas.
- Quanto custaria fazê-la funcionar novamente?
Aquela pergunta causou profundo choque no velho advogado, que custou a conseguir falar.
- Meu rapaz - disse, com falta de ar -, esqueça qualquer ideia a esse respeito. Não sei, exatamente, porém tenho certeza de que seria uma pequena fortuna.
- Eu sei - admitiu o barão -, mas não custava perguntar. Pretendo visitar a propriedade assim que puder, e agradeceria se o senhor tomasse as providências necessárias
para a venda.
- Se me permite fazer uma sugestão - tentou o sr. Gentry -, detestaria vê-lo cometer um erro do qual poderá se arrepender mais tarde. Vender a propriedade da
família é difícil para qualquer cavalheiro, porém creio que seria quase impossível para você, meu menino. Lembre-se da alegria que era lá quando sua mãe ainda vivia.
Naquela época a mansão já não estava em bom estado, mas ninguém reparava.
Com os olhos brilhantes de lágrimas, o velho cavalheiro sorriu, ao recordar os tempos passados.
-Sabe que não tenho família. Quando era jovem, vivia ocupado demais e de repente já estava muito velho. Contudo sempre tive um lar. Aquela casa era um lar para
aqueles que ali se hospedavam. - Ele dominou a emoção e concluiu: - Bem, acho que já estou delirando e peço que me desculpe por isso. Mas gostaria que me fizesse
um favor. Não venda a casa antes de fazer uma última visita à propriedade.
- Garanto-lhe que o farei - respondeu o jovem, com a garganta presa.
- Fico satisfeito. Bem, se quiser podemos dar uma olhada nos livros. Só gostaria de avisá-lo de que, apesar de suas instruções contrárias, mantive seus títulos
de sócio do Brooks e do White's. Pode ser que venha a precisar deles.
Apesar de não aprovar a iniciativa do advogado, sir Anthony mudou de ideia no fim da tarde, quando terminou de olhar o estado de suas finanças.
O White's estava quase vazio quando o barão lá chegou, o que muito o agradou. Infelizmente essa bênção durou pouco, pois, assim que se acomodou em uma mesa junto
à lareira e tomou um bom gole do seu uís-que, um cavalheiro bem avantajado, aproximou-se e sentou na cadeira em frente.
- Russelford! Quando foi que retornou? Pensei que fosse ficar na America por vários anos. Estou surpreso! Não aguentou os rebeldes das colónias? - O Baronete
Harvey Forbisher riu da própria piada.
- Fui para a Jamaica, sir - replicou o rapaz com um suspiro resignado.
O homem continuou a falar sem parar, nem reparar que sir Anthony não se dignava a responder. Falou sobre os conhecimentos dos últimos três anos. Dos fatos históricos
às fofocas mais picantes e misteriosas. O monólogo continuou até que o cavalheiro foi interrompido rudemente pelo jovem.
- O que foi mesmo que disse?
Lorde Forbisher, que sempre se sentia satisfeito ao repetir uma fofoca, repetiu, sereno:
- Estava imaginando se o senhor já teve a chance de encontrar lorde Croyton depois que voltou. Ouvi dizer que eram bons amigos.
- Sir Reginald não se encontra na capital...
- Bem, então isso explica tudo - murmurou o homem, digerindo a informação com prazer.
- Explica o quê? - perguntou sir Anthony, cansado, esquecendo-se das regras de etiqueta.
O cavalheiro não se ofendeu, entretanto. Pelo contrário, sentia-se satisfeito em ser o portador das últimas notícias que intrigavam a corte. Começou a falar,
meio relutante, porém logo em seguida inclinava-se na direção do barão e dizia, em tom confidencial:
- Realmente não devia abordar nada a respeito, mas, já que o senhor é amigo da família, não creio estar sendo inconveniente. Na sociedade não se fala em outro
assunto. Parece que lady Elizabeth está interessada em Martin Costain. Não foi ele seu colega de escola, sir?
- Ele estava um ano atrás de mim.
- Bem, não está mais atrás - o cavalheiro riu, maliciosamente -, se entende o que quero dizer!
- Por acaso está insinuando que lady Elizabeth tem sido acompanhada por esse cavalheiro? - indagou o barão, e sua face parecia ter sido talhada em granito.
- Constantemente. O que surpreendeu a todos, pois pensávamos que ele estava interessado na garota Bach. Todo aquele dinheiro. Nunca se sabe... Mas parece que
nesta última semana Costain se decidiu pela irmã de Drenview. Com certeza o conde, se estivesse presente, jamais aprovaria esse relacionamento. Não concorda? Se
bem que ele é um tipo meio estranho. Nunca se tem certeza de como vai agir e o que vai falar. Não é como o pai, decididamente, que já teria mandado Martin Costain
passear.
- Por quê?
- Meu caro, parece que ficou longe por tempo demais - respondeu o cavalheiro, compadecido. - Costain é um patife. Não possui um centavo, a não ser o que o pai
lhe dá de mesada e que perde na primeira aposta que faz, um jogador do pior tipo. Já ouvi até comentários de que tinha participado de dois duelos por causa de duas
damas, uma das quais parece que era casada... tentei descobrir quem era, porém nada consegui. Parece que é muito bom com uma pistola... e com a espada também. Uma
necessidade, com a vida que leva.
Calou-se, esperando respostas que não vieram. Prosseguiu:
- Acabou de voltar do continente. Provavelmente está precisando de dinheiro, por isso começou a cortejar a garota Bach, uma herdeira facilmente influenciável.
Como vê seria dinheiro fácil. Sabe como é, são cinco irmãs, o que torna o casamento uma necessidade. E como Costain, basicamente, é um sujeito preguiçoso... Se bem
que devo reconhecer que nunca aceita menos do que quer... Talvez seja por isso que tenha mudado seu objetivo. Se tem de casar com uma herdeira, por que não lady
Elizabeth, que além de tudo é uma beleza? Tornaria a vida bem mais agradável, não concorda?
Assustado com a expressão de sir Anthony, lorde Forbisher esqueceu do que estava falando. Indagou, aflito:
- Meu amigo, parece não estar se sentido bem. Acho que ainda não se ajustou ao clima da cidade. Viagens são sempre um transtorno. Evito-as sempre que posso.
- Asseguro-lhe que estou bem - afirmou o barão, depois de tomar o resto de sua bebida de um só gole. - Foi um prazer revê-lo. Agora, se me der licença, preciso
ir...
Ignorando a súbita saída do cavalheiro, sir Forbisher olhou em volta, à procura da próxima vítima.
- Devo dizer que o senhor melhorou muito... - murmurou Valerie para o cavalheiro que cavalgava ao seu lado.
- Acha mesmo? - perguntou o sr. Wallace, sorrindo contente e, quando recebeu a resposta afirmativa, endireitou o corpo na sela e disse: - Para ser honesto, julgava
que nunca ia conseguir, mas agora já estou co meçando a me divertir.
Ele havia se transformado num cavaleiro razoável desde a primeira experiência embaraçosa. Agia com maior confiança e tranquilidade. Parecia até que perdera alguns
centímetros na cintura. Na verdade, estava se esforçando para melhorar a aparência, com regime e exercícios constantes, o que incluía duas horas de cavalgada por
dia.
Não fizera nenhum comentário a respeito para lady Elizabeth, pois, se sua estratégia não desse certo, não queria sentir-se ainda mais tolo. A cada dia que passava
sua cintura diminuía e sua confiança aumentava. E Valerie havia notado a mudança no companheiro. Julgava-o um homem bom, simpático, que adivinhava o que ela ia dizer,
o que desejava. Ria de suas brincadeiras, sempre animado, sempre alegre. Era uma pena que fosse tão quieto e tímido. Ficava vermelho cada vez que se dirigia a ela,
o que não ocorria em relação a Lizzie.
Aliás, era estranho, já que a amiga parecia não falar muito sempre que o sr. Wallace estava por perto, o que obrigava Valerie a manter a conversa. Alguma coisa
estava errada. Felizmente o cavalheiro em questão parecia não se importar quando os momentos de silêncio se prolongavam. Era realmente uma boa pessoa, pensava a
jovem.
Nesse dia, o ar preocupado de lady Elizabeth provocou um suspiro na amiga e uma tosse significativa por parte do sr. Wallace, que começava a sentir-se pouco à
vontade com a mudez dela, pois forçava-o a falar mais. E arranjou assunto. - A senhorita pretende ir ao baile dessa noite?
Oh, sim! - respondeu Valerie. -Mamãe deseja encontrar o príncipe. Ouvimos dizer que estará lá. Lizzie já o conhece pessoalmente, não é?
A jovem teve seus pensamentos interrompidos ao ouvir seu nome e voltou-se para a amiga, aturdida.
- Desculpe-me, Vai, mas o que foi que disse?
- O príncipe. Você o conhece, não é?
- Prinny? Sim, é claro. Já vi o Príncipe Regente várias vezes... -aborrecida, olhou em volta rapidamente. - Oh, lá está tia Martie! Preciso falar-lhe com urgência.
Continuem, que agora mesmo eu os alcanço!
Lizzie cavalgou até onde se encontrava o tílburi de lady Graneville. Precisava se desculpar com os amigos por agir com eles daquela maneira, porém, estava sentindo-se
tão vazia, inquieta e nervosa desde que conversara com sir Anthony!
O casal, perplexo, observou-a ir. O sr. Wallace chegou até a pensar que ela podia estar doente, e disse-o.
- Imagine! - retrucou Valerie. - Ela nunca adoece. Chegou a duelar com o sr. Strawn, porque a insultou chamando-a de frágil.
- Meu Deus! Isso realmente não aconteceu, é boato, não?
- Ah, aconteceu sim! - respondeu a jovem, rindo ao lembrar-se do episódio. - Foi aqui no parque. E, como estávamos no meio do inverno, as armas escolhidas foram
bolas de neve. O sr. Strawn ria tanto, que acabou perdendo. O que não importou muito, pois no final todos entraram na briga. Foi muito divertido. Mais tarde, Lizzie
contou-me que só fizera aquilo porque o dia estava bonito demais para ser passado dentro de casa e queria brincar na neve. Não me lembro bem, mas parece-me que o
sr. Strawn a pediu em casamento no dia seguinte. - Valerie suspirou e continuou num tom confidencial: - É claro que não foi aceito. Ela só vai aceitar... - A jovem
tapou a boca e corou, ao perceber que quase traíra a confiança da amiga.
Sem saber que era tópico da conversa dos amigos, Lizzie cumprimentou o casal Graneville com um sorriso. Sir Henry cumprimentou-a com um leve movimento de cabeça.
Em geral era um homem calado, que deixava a esposa conduzir a conversa.
- Lizzie, minha querida! Sua aparência é terrível! - exclamou a senhora, que observava a jovem com atenção.
- É um prazer vê-la também, tia Martie! - respondeu a moça, rindo, fingindo não ter ouvido o comentário.
- Henry, ajude a garota a descer do cavalo e a entrar no tílburi imediatamente.
A ordem foi seguida sem protesto.
Já no outro dia achei que havia algo errado e agora tenho certeza.
O que está aprontando dessa vez, Lizzie?
- Não estou aprontando nada, tia. Só estou cansada.
- Você, cansada?! Imagine! Aquele seu irmão já voltou? - Diante da negativa da moça, lady Graneville continuou: - Que história é essa com Costain? Primeiro,
me pede informações a respeito dele, para em seguida ser vista em todo lugar em sua companhia! Minha querida, as pessoas já estão falando a respeito. E não venha
me dizer que não se importa, porque um dia desses o seu comportamento irresponsável vai trazer-lhe problemas e nenhum homem a aceitará como esposa.
- Não desejo casar-me. Gosto da minha liberdade.
- Tolice! - exclamou a bondosa dama, erguendo uma sobrancelha. - Já tem vinte e um anos. Não é mais uma garotinha para ficar sonhando com qualquer sorriso bonito.
Oh, pensou que não soubesse a respeito de sir Anthony Russelford, não é?! - perguntou, ao notar que a jovem segurara a respiração. - Conheço-a muito bem, minha menina.
Precisa criar juízo. Esse rapaz não é adequado para você: é tímido, além de ser pobre como um rato de biblioteca. O que você precisa é de alguém com mão firme, para
mantê-la fora de confusões. Vou falar com Reggie a esse respeito.
- Tia Martie, por favor!
- A maneira como seu irmão vem se recusando a cumprir seu dever é vergonhosa! Imagine deixá-la tomar uma decisão tão importante como essa! As coisas eram diferentes
nos meus dias. Comportamentos como o que você vem tendo não eram permitidos. Não eram as moças que escolhiam com quem iam casar!
O rosto de Lizzie queimava ao lembrar-se do encontro que tivera naquela tarde. Se a tia ficasse sabendo, ficaria horrorizada. Lady Graneville olhou para a jovem
bonita ao seu lado e amoleceu. Colocou um braço confortador ao redor dos ombros da sobrinha adotada e deu-lhe um abraço gentil.
- Só estou pensando no seu bem, querida. Com o tempo vai perceber que estou certa.
- Eu sei, tia Martie - disse Lizzie, explodindo em lágrimas. - Simplesmente não sei o que fazer. Sinto-me tão infeliz!
- Não se preocupe, meu bem. Quando se é jovem, tudo acaba dando certo. Volte para junto de seus amigos, divirta-se e esqueça Russelford!
Lizzie prometeu concordar e considerou-se miserável por estar mentindo. Mas lady Graneville sentiu-se bem melhor e o marido ajudou a jovem a montar de novo. Assim
que se virou para despedir-se, fingindo alegria, a dama deu uma última ordem:
- Fique longe de Martin Costain! - Lady Elizabeth já ia longe. - Henry, será que o que estou fazendo é o mais acertado? - perguntou, enquanto a observava.
Lorde Graneville sorriu com carinho para a esposa.
- Minha querida Martie, creio que foi um pouco dura com a menina! - respondeu, com franqueza, antes de acrescentar com afeição: - Contudo, não me lembro de nenhuma
vez que tenha agido mal. Estou curioso: que história era aquela de que no seu tempo as moças não escolhiam os maridos, hein?...
- Oh, estava falando sobre o geral! - Ao perceber o riso caçoísta do lorde, milady rendeu-se. - Sabe muito bem que fui eu quem decidi sobre quem seria meu marido!
- Pelo que sou muito grato - ele retrucou, galante.
Somos casados há quase trinta anos, sir, e ainda consegue fazer-me corar como uma menina de escola!

CAPITULO VI

A noite estava ligeiramente fria. Sir Anthony entrou no Brooks, que se encontrava cheio de gente. Por um momento, o barão ficou na dúvida. Sabia que não estava
vestido adequadamente, seus trajes poderiam ser considerados fora de moda se comparados aos dos almofadinhas locais. Torceu para passar despercebido, o que realmente
ocorreu, pois todos estavam mais interessados em se exibir do que nos outros. Repreendeu-se por ser tão tolo. Afinal, comentários maliciosos não valiam nada, mas
mesmo assim conservou-se fora de atenção e olhou em volta à procura de Lizzie.
Encontrou-a do outro lado do salão de baile, cercada por seus fiéis súditos. Seus cabelos loiros encontravam-se artisticamente presos. O vestido, cor-de-rosa,
de decote baixo e mangas bufantes, permitia que se apreciasse um par de ombros delicados e brancos como a neve. Enquanto Tony a observava, ela acompanhava o ritmo
da música batendo com o leque na palma da mão. Aborrecido, o barão notou que a jovem ria com os cavalheiros que se encontravam a sua volta.
Lizzie, de fato, ria sem vontade para lorde Bettlely, pois na realidade queria encontrar Tony. Começava a sentir dor de cabeça com o falatório ao seu redor. Não
conseguia nem lembrar o que o cavalheiro ao seu lado falava. Contudo, para o bem de Valerie e do sr. Wallace, iria manter aquela farsa.
Aproveitando um silêncio oportuno, o sr. Costain pediu uma contradança a lady Elizabeth, que ficou perplexa. Não queria colocar em perigo a precária amizade que
mantinha Costain longe de Valerie, porém desejava ainda menos dançar com ele.
Começava a balbuciar uma desculpa, quando a interromperam:
- Desculpem-me - disse sir Anthony, que se aproximara e estendia a mão para a jovem -, senhores. Esta dança já foi prometida. Milady?
Lizzie sentiu o coração bater mais rápido ao aceitar a mão do lorde. Mas, lembrando-se dos bons modos, pediu desculpas ao sr. Costain antes de ir com seu par.
Sir Anthony aparentava uma severidade fora do comum ao conduzi-la para o meio do salão. E já dançavam havia algum tempo quando ele finalmente decidiu falar.
- Hoje à tarde esqueci-me de indagar, como está Reggie? - ele murmurou, num tom que julgava ser ameno.
- Muito bem - respondeu a jovem, confusa.
Depois do que houvera entre eles, Tony perguntava de seu irmão, pensou, decepcionada.
- Pelo que vejo, a senhorita é muito popular!
Sem saber o que dizer diante de tal comentário, Lizzie riu e falou qualquer coisa, não dando muita importância ao assunto. Mas o barão persistiu, sarcástico:
- Não entendo por que ficou tão aflita com a minha decisão. Aposto que receberá pelo menos meia dúzia de pedidos de casamento nos próximos dias...
Ele se arrependeu de imediato: fora irónico sem motivo.
- Não é o que desejo, obrigada! - ela exclamou irritada.
Ela não sabia o que pensar dessa mudança de humor.
Felizmente, os passos da dança os separaram por alguns minutos e, quando voltaram a se juntar, sir Anthony parecia mais calmo. Ao perceber o olhar triste e a ruga
preocupada na testa da moça, sentiu-se miseravelmente mal.
- Lizzie... admito que estava errado...
- Mudou de ideia? - A alegria no tom da moça surpreendeu. -Vai falar com Reggie, não é?
- Não - replicou ele, firme, e viu o brilho desaparecer dos olhos dela. - Vejo que me enganei ao pensar que a senhorita entenderia. Eu devia ter escrito antes,
esclarecendo a situação.
- Tento entender - afirmou a jovem lady -, mas não consigo. Parece-me que não o conheço mais...
- Compreenda - implorou ele, com tristeza. - Só estou procurando ser prático. Sabe que não receberá sua parte da herança até os vinte e cinco anos. Que faremos
até lá?
- É isso que o preocupa? - perguntou ela, levando a sério a objeção. - Reggie é meu tutor e nunca me negou nada.
A essa altura, os passos da dança obrigaram-nos a separar-se e, quando tornaram a se juntar, sir Anthony disse, com amargura:
- Todos vão pensar que estou atrás do seu dinheiro... o que não está muito longe da verdade.
Lizzie riu, percebendo que não dava a mínima importância ao que os
outros pensariam. Fitou-o intensamente e respondeu, surpreendida com a própia ousadia:
- Quem se importa com o que vão pensar? Nunca fiz segredo de meus sentimentos em relação ao senhor. Caso não tenha notado, estou, sem pudor algum, fazendo-lhe
um pedido de casamento!
O casal parou de dançar, indiferente ao que acontecia ao redor. O jovem barão levou a mão de Lizzie aos lábios.
- Sinto-me honrado - sussurrou, com um sorriso triste -, porém não posso aceitar... Não, agora. Já pensei muito a respeito e...
- Não pode agora, nem pôde três anos atrás! - exclamou ela, soltando-se abruptamente. E, ao perceber o olhar determinado do lorde, continuou: - Por acaso imaginou
que se me deixasse zangada, me faria desistir? Não vai adiantar! Não aceito que tenha voltado apenas para me dizer adeus!
Lizzie saiu às cegas do salão de dança. Achou um pouco de paz no terraço, que se encontrava vazio. Pôde, então, dar vazão à raiva. Não podia ficar escondida ali
para sempre, e ao mesmo tempo não desejava voltar ao baile. Repreendeu-se por ser tão covarde, mas permaneceu onde estava, aspirando o ar fresco da noite. Não tinha
ideia de quanto tempo havia passado. Suspirou profundamente.
- Pensava que ia realmente dar certo? - sussurrou uma voz suave em seu ouvido. - Eu não apostaria nisso.
Virando-se, assustada, deu com o rosto malicioso de Martin Costain.
- Não sei do que está falando, sir.
- Não mesmo? Pensei que a ideia fosse sua, mas posso estar errado. Peço que me perdoe, se estiver. É provável que seu súbito interesse na minha pessoa tenha sido
provocado por outra razão, não é? - perguntou, aproximando-se.
Lizzie afastou-se instintivamente.
- Pelo jeito, estava certo - respondeu o própio lorde Costain, rindo. - Como sabe, a srta. Bach e eu temos um compromisso. E entristeceme saber que uma
boa amiga como a senhorita quer perturbar a nossa felicidade. Não espero que acredite em mim, depois do que ouviu a meu respeito de seu irmão, porém preferia que
fôssemos amigos. Não concorda comigo? - Diante do silêncio teimoso da moça, ele acrescentou:
- Nem pelo bem de Valerie?
Por que aquele homem lembrava-lhe uma cascavel? Não deveria ter sido tão óbvia! Tinha flertado com ele de maneira descarada e empurrara tanto o sr. Wallace, que
pusera tudo a perder. Começara o jogo tarde demais. Quando finalmente recuperou a voz, disse:
Valerie é minha melhor amiga, e a última coisa que desejo é magoá-la, - Sabendo que tinha pouco a perder, sendo honesta, prosseguiu: -Ela acredita estar apaixonada
pelo senhor e receio que ficará muito chocada ao descobrir que não é correspondida.
Ele ergueu uma sobrancelha, fingindo choque.
- Julgou-me mal, lady Elizabeth. O que a faz crer que não amo a srta. Bach?
- Conheço o seu tipo. O senhor só ama a si mesmo.
- Com certeza já explicou seu ponto de vista para a srta. Bach - sussurrou, desconfiado.
- O senhor sabe bem que não posso fazer isso, sem deixar de ter uma amiga.
- Então, prefere fazer intrigas. O que me lembra a pergunta que fiz. Falando sinceramente achou que o sr. Wallace - pronunciou o nome com desdém - tinha alguma
chance sobre mim? Ou que eu sucumbiria ao seu charme, cara senhorita? - Ele fez uma reverência irónica. - Admito que me diverti imensamente, mas acredito que essa
foi nossa última partida. A não ser que reconsidere sua posição, lady Elizabeth, está bem perto de perder uma amiga.
Lizzie engoliu seco ao deparar com o olhar gelado e maldoso de seu adversário. Lentamente foi soltando os músculos dos ombros que caíram, derrotados. Sentia-se
amortecida. Aquele era um desses dias em que tudo dá errado.
- Devemos retornar ao salão, milady? - ele perguntou educadamente, satisfeito com a vitória.
A jovem fixou um sorriso no rosto e caminhou para o salão, deixando-se ser conduzida à presença do sr. Wallace.
- Agradeço-lhe a conversa adorável, lady Elizabeth - despediu-se lorde Costain, satisfeito. - Se me dão licença...
Charles Wallace observou, preocupado, a expressão de Lizzie, enquanto esperavam o outro cavalheiro afastar-se.
- Eu sabia que não ia dar certo! - declarou o rapaz, desanimado.
- Acho que não tenho mesmo nenhuma chance. A srta. Valerie deve estar apaixonada por ele.
- Sinto tanto, sr. Wallace...! Será que não poderia falar com ela sobre os seus sentimentos? - encorajou a jovem lady.
Com qual propósito? Receio já ter exagerado no meu papel de tolo. Mesmo porque ela nem se encontra no baile. - O cavalheiro segurou a mão de Lizzie, antes de
continuar: - Agradeço por tudo o que fez em meu favor. Sei que não foi fácil. Foram os melhores momentos de minha vida. Tive a chance de conhecer a srta. Bach melhor
e de amá-la ainda mais. Infelizmente, tenho negligenciado meu trabalho e devo retornar a Bath no fim da semana.
Com um sorriso triste, o sr. Charles Wallace despediu-se e deixou o salão do Brooks.
Lady Elizabeth não era a única pessoa a sentir-se frustrada. Seu ir-. mão, o conde de Drenview, também não estava muito contente. Chegara a Bristol para descobrir
que seu amigo, sir Anthony, desembarcara no dia anterior e seguira para Londres. No entanto, no fundo, até que estava um pouquinho feliz ao confirmar que os planos
da irmã tinham uma falha como previra.
Mas esse sentimento não durou muito, porque aparentemente tudo quanto era navio mercante decidira aportar em Bristol, e ele não conseguia arrumar acomodações.
Decidiu voltar a Londres imediatamente. Ro-berts, o valete, chegou a suspirar aliviado, pois já se imaginava tendo de acampar nas ruas.
- Leve-nos para casa, Spaulding. E, por favor, no caminho veja se consegue alguma estalagem para pernoitarmos. - Fez uma pausa, antes de acrescentar: - Evite
aquela em que ficamos ontem à noite, porquanto duvido que os lençóis tenham sido trocados.
Spaulding, o cocheiro, parou nas cinco primeiras estalagens e não encontrou lugar. Então, o lorde decidiu que seguiriam diretamente para Londres.
O trotar rítmico dos cavalos e o avançado da hora acabaram provocando sonolência no conde, que começou a cochilar. Roberts permaneceu acordado. Portanto, foi
ele quem primeiro notou a silhueta suspeita de um homem no meio da estrada. O cocheiro parou tão abruptamente, que acabou provocando a queda de seu senhor em cima
do valete. O conde quis saber o que ocorria e Roberts, que procurava as pistolas que deveriam se encontrar nas bolsas da porta, esclareceu:
- Salteadores, sir - sussurrou o homem, infeliz ao descobrir as bolsas vazias.
- Mas que aborrecimento! - exclamou lorde Drenview, com enfado, ao dar uma olhadinha pela janela.
- Mãos ao alto! - gritou uma voz estridente. - Largue as rédeas! Cocheiro, desça imediatamente!
Spaulding obedeceu com presteza. Roberts também desceu do veículo e protegeu-se atrás do mesmo. O salteador aproximou-se, enquanto gritava para os seus comparsas,
postados entre os arbustos, que não atirassem. O conde não viu nenhum outro salteador, porém, na dúvida, manteve-se quieto. O homem era baixo, troncudo, usava uma
máscara escura cobrindo o rosto, e tudo o que se podia distinguir era um par de olhos negros, tristes, que se escondiam debaixo de sobrancelhas grossas. O homem
parou perto de lorde Croyton, estendeu a mão e exigiu dinheiro. O conde colocou o monóculo e examinou o vilão, como se esse não passasse de um inseto.
- Parece-me que estava correto, Roberts. Este cavalheiro, se assim posso chamá-lo, pretende roubar-nos.
Tal declaração e o exame que sofrera fizeram com que o salteador ficasse desconcertado e recuasse alguns passos. Mas logo se recuperou e rosnou:
- Muito bem, milorde, se não for pedir demais, gostaria de terminar esse serviço logo. Assim estará livre de mim.
- Estou desapontado - reclamou o nobre, que não tinha intenção de ser apressado. - O senhor não aparenta ser um criminoso. Nem parece ser malévolo.
- Pois garanto-lhe que sou! - declarou o homem ofendido, sem en tender aquela vítima que era diferente de todas as pessoas que conhecia. - Só porque não pareço
ser maldoso não quer dizer que não seja.
- Então, tenho certeza que é - falou o conde de maneira conciliatória, penalizado. - Afinal, tem de ser, para ter sucesso na profissão que escolheu. O senhor
é bem-sucedido, não é?
- Bem, milorde, ainda não sei... - respondeu o homem pensativamente. - Para ser franco, esta é a minha primeira tentativa. E não o faria, se não estivesse desesperado.
Há dois dias que não tenho nada para comer.
- É uma pena que me tenha escolhido como sua primeira vítima. E quanto aos outros?
O salteador, que levou um tempo para compreender a quem o lorde se referia, soltou uma exclamação, levantou a arma que baixara e declarou, enquanto gesticulava,
nervoso:
- Meus companheiros já o fizeram milhões de vezes. Portanto, compreenderá que não apreciarão a demora.
Roberts, acovardado, escondeu-se atrás do patrão, enquanto pegava sua bolsa de dinheiro; entregou-a ao vilão e aguardou que o conde fizesse o mesmo. O lorde,
entretanto, observava o criminoso.
- Milorde, preferia que o senhor me desse sua sacola de dinheiro, mas, se necessário, posso tomá-la à força! - ameaçou o salteador, com um movimento brusco
da arma.
Sussurrando, Roberts implorou ao patrão que obedecesse. Parecendo ter sido acordado de um transe, lorde Croyton murmurou com desgosto:
- Faço objeções, senhor! Seus modos exigem melhora. Não há razão para que seja ofensivo! Contudo, levando em conta que é sua primeiratentativa, acredito
que devo ignorar esse detalhe. Mesmo porque nunca estive numa situação dessas. Mas gostaria de deixar claro que bons modos são bem-vindos, não importa qual seja
a profissão. Por isso, tente ser educado!
Roberts engasgou, apavorado. O salteador olhava incrédulo e, de repente, pôs-se a rir; fez uma reverência jocosa ao dizer:
- Perdoe meus modos, sir. Seu dinheiro, por favor!
Mais satisfeito, sir Reginald Croyton passou o objeto desejado. Ao notar o peso da sacola, o homem bradou, alegre:
- Muito agradecido, sir! - E começou a retirar-se.
- Só mais um detalhe, senhor - solicitou o conde, com pouco-caso. - No futuro, quando apontar a arma para alguém, tenha certeza de que ela esteja destravada.
O homem olhou aparvalhado para a pistola em suas mãos e, sem perda de tempo, pulou para trás dos arbustos. Segundos depois, ouviram o som de um cavalo em disparada.
- Cavalheiros, vamos retomar nossa viagem! - exclamou o conde, já esquecido do incidente.
A caminho, o valete quis saber por que seu senhor havia entregue o dinheiro, se sabia que a pistola estava travada. Depois de pensar um pouco, o nobre esclareceu
que o fizera por causa dos comparsas do bandido, que Roberts garantiu não existirem.
- Não?! - O nobre pareceu chocado com tal hipótese. - Se isso for verdade, então o sujeito era um mentiroso. Roberts, não deve pensar mal das pessoas!
- Mas era um ladrão! - exclamou o criado.
- Concordo. - O lorde suprimiu um bocejo. - Isso, porém, não implica seja ele um mentiroso também. Foi de extremo mau gosto da parte dele ter interrompido o meu
sono. Acorde-me na próxima parada. Acho que tenho de comunicar o acontecido à polícia - com isso, encerrou o assunto.

CAPITULO VII

O dia seguinte, em Londres, amanheceu como qualquer outro, mas não seria um dia comum para todos.
No meio da manhã, Lizzie recebeu um envelope com o selo de urgente. A missiva continha um bilhete para ela e um envelope menor destinado a Martin Costain.
"Querida Lizzie,
Encontro-me numa situação desesperadora. Mamãe proibiu-me de encontrar meu querido Martin! Colocou-me sob vigilância, de forma que não posso nem escrever-lhe.
Tive de dizer que escrevia a você para me deixar em paz. Anexo, envio um envelope para Martin Costain, explicando-lhe o que ocorre. Por favor, faça com que ele o
receba. Você é a única pessoa em quem posso confiar. Serei eternamente grata!
Da sua amiga, Vai"
Lizzie revirou o envelope fechado, enquanto pensava. Não havia nada suspeito, porém sentia algo que a incomodava. Valerie era sua amiga. Será que devia atendê-la?
Confusa, não sabia o que fazer. Foi então que Childers anunciou a presença de sir Anthony. Levantou-se quando o cavalheiro entrou na biblioteca. Num instante,
os problemas de Valerie foram esquecidos.
- Sinto estar perturbando-a - afirmou o lorde, formal e sério. - Não será por muito tempo.
Como não havia tirado o chapéu e o sobretudo no hall, desfez-se deles ali mesmo, revelando um traje de montaria simples e severo, que acentuava ainda mais seu
porte ereto e os brilhantes olhos azuis.
Lizzie, sem se dar conta do adorável quadro que apresentava com o delicado vestido azul e o sol a refletir em seus cabelos dourados, sorriu e corou. Mas, ao perceber
que sir Anthony apertava o maxilar, tomou aquele sinal como desaprovação e teimosia; mesmo assim, fingindo uma coragem que não possuía, disse:
Que surpresa! Veio se despedir novamente, sir?
- Vim por duas razões. - Sua voz soou ríspida. - Para informá-la de que estarei ausente de Londres na próxima semana e provavelmente na seguinte, também.
Vou dar uma olhada na minha propriedade, em Brentshire.
- Então, está partindo? - A moça foi até a janela e comentou, como se não fizesse caso: - Desejo-lhe uma boa viagem, sir.
- Lizzie, por favor, tente compreender!
- Realmente, sir, receio não saber por que veio dar-me explicações sobre o seu destino.
- Sei que mereço o seu desprezo. - O rosto dele ficou totalmente sem expressão. - Pensei que a senhorita podia avisar Reggie, quando retornar. Gostaria
muito de encontrá-lo quando estiver de volta, se não fizer objeção.
- Quem meu irmão encontra normalmente me interessa ainda menos do que seu paradeiro, sir - replicou a jovem, virando-se e encarando-o. - Assim sendo, depende
de sua segunda razão o ter vindo ver-me... - acrescentou hesitante e receosa.
- Minha segunda razão - sussurrou ele, lentamente - é desculpar-me. Admito que tentei fazer com que me odiasse, pois acreditava que assim seria mais fácil.
- Nunca poderia odiá-lo.
- E eu nunca poderia dizer-lhe adeus. Estou pensando em vender Brentshire - confessou, sem preâmbulos. Ao notar o ar chocado dela, continuou: - Lembre-se: queria
saber a verdade... Agora pode avaliar bem a minha situação. Acredito que estará melhor sem mim. Vou ver a propriedade, porque é minha obrigação, e falarei com Reggie,
porque a senhorita pediu. Mas, além disso, nada posso prometer. Aceita essas condições?
- Não venda Brentshire, Tony! Fique em Londres! Fale com Reggie antes!
- Conversaremos quando eu voltar - declarou ele, firme.
- Certamente. Há algo mais que queira transmitir ao meu irmão? - ela perguntou, fazendo um gesto brusco e, sem querer, derrubou o bilhete de Valerie.
Sir Anthony abaixou-se para recolhê-lo; ao ler o nome endereçado no envelope, despediu-se rispidamente.
Todo o corpo da jovem tremia e, ao ficar só, tentou recuperar o controle. Será que ele não percebia quanto a magoava com sua teimosia? Respirou profundamente
enquanto olhava o envelope que o rapaz apanhara. Se Tony não tivesse partido tão bruscamente, poderia ter pedido seu conselho a respeito daquele caso.
A felicidade parecia ser tão fugaz! Se mandasse o bilhete para o sr. Costain, talvez garantisse a Valerie um pouco de paz de espírito e uma vida feliz. Decidida,
sentou-se e escreveu para ele, colocou seu bilhete e o da amiga em um envelope e pediu a Childers que providenciasse a entrega.
Resolvido esse problema, voltou a pensar na própria vida. Quando será que o irmão estaria de volta? A casa parecia tão vazia sem ele. Uma hora mais tarde, ainda
encontrava-se pensativa, quando Childers lhe entregou um envelope com um bilhete para ela e um envelope menor endereçado à srta. Bach. Leu-o com suspeita:
"Minha cara lady Elizabeth,
Não consigo expressar-lhe minha alegria ao receber sua missiva. Verdadeiros amigos são raros no mundo de hoje, e é um privilégio tê-los. Como está a par da situação,
desejo saber se pode fazer um favor e mandar o anexo para nossa amiga comum. Detesto ter de usar de subterfúgios, porém receio não existir outra maneira.
Seu humilde servo, Martin Costain"
Depois de hesitar um pouco, Lizzie acabou fazendo o que lhe pediam. E uma hora mais tarde já esquecera por completo a existência da carta, preocupada com sua
própria vida.
Tarde da noite, cansado, lorde Reginald Croyton finalmente conseguiu chegar a sua residência em Londres. Satisfeito por se encontrar em casa, tirou o sobretudo,
que entregou a Childers. Enquanto ajeitava a gravata em frente ao espelho do hall, inquiriu do paradeiro da irmã.
Ao ser informado de que ela se encontrava na biblioteca, para lá se dirigiu e contou-lhe que não encontrara o barão.
- Eu já sabia - ela informou-o, de uma poltrona perto da lareira. - Tony chegou há três dias.
Ao perceber o ambiente calmo, o conde decidiu que estava a salvo, fechou a porta e aproximou-se do fogo, tentando aquecer-se. Lizzie olhava sem ver para uma página
da revista The Lady's Magazine. Ele comentou, satisfeito:
- Pelo que noto, vocês dois já se viram. Nesse caso, como já devem ter chegado a um acordo, não precisa mais dos meus serviços, não, irmãzinha?
-- Oh, Reggie! - Havia tanta tristeza na voz da lady, que o jovem conde interrompeu um bocejo. - Receio que você não possa me ajudar dessa vez.
Enquanto falava, ela levantou-se, derrubando a revista que largara no colo, e pôs-se a andar de um lado para outro.
- Ele está sendo tão odiosamente... teimoso! Fui uma tola ao imaginar que me amava! Se fosse verdade, jamais teria ido embora. Não me importa que não tenha dinheiro
ou perspectivas, e então, por que essas coisas são tão importantes para ele? Não é obrigado a provar nada para ninguém! E tenho certeza de que você não faria objeção!
Chamei-o de tolo!
- Presumo que esteja falando de Tony, Lizzie - falou o conde, que se abaixara para pegar a revista abandonada. - E sou obrigado a concordar: é uma tola!
- Reggie! - Ela estacou, surpresa. - Por acaso, você se opõe ao nosso casamento? Como é possível? Tony é o seu melhor amigo e você o conhece há anos!
- Eu creio que minha opinião não faria a menor diferença para você, maninha - replicou ele, simplesmente. - E de fato Tony é um bom rapaz, só que não sei nada
a respeito de ele querer casar-se com você e... Por que essa cara, agora?
- Você me chamou de tola! - respondeu a jovem lady, os olhos azuis fuzilando de ira.
- Não, senhora! Você disse que era uma tola e eu apenas concordei.
- E por que acha que estou sendo uma tola, então? - perguntou ela, com voz trémula, tentando valentemente conter as lágrimas que faziam seus olhos arder. - Por
que acredito que Tony me ama?
- Meu Deus, Lizzie! - Lorde Croyton sentia-se como que encurralado. - Quer, mesmo, saber a minha opinião?
Fungando, ela fez que sim com a cabeça. Essa atitude da irmã era tão nova e surpreendente, que o jovem conde tratou de pensar bem, depois limpou a garganta e
começou a falar, com calma e de maneira delicada:
- Quando concordei em que você é uma tola, referia-me a tudo o que acaba de dizer atabalhoadamente. Primeiro, acredito que é importante para Tony fazer
algo por si mesmo. E, se você o ama tanto quanto diz, deveria achar isso importante, também. Sempre julguei que dedicação e sacrifício são a essência do amor, coisa
que acho uma bobagem, mas que não deixa de ser romântica. Segundo, homem nenhum gosta de ser chamado de tolo, principalmente pela mulher que ama. A não ser que Tony
tenha mudado completamente nestes três últimos anos, o que eu duvido, tenho certeza de que ele a ama. Aliás, está aí uma coisa que não consigo compreender...
Lady Elizabeth olhava fixamente o irmão, parecendo assombrada com o que ouvia. Levou uns instantes para se dominar; então, forçou-se a dizer:
- Eu fiz uma coisa horrível outra noite, no Brooks. Nem pensei se era adequado para uma moça ou não... - Fitou-o mais atentamente, tentando avaliar a reação
dele. - Tony e eu dançávamos. Começamos a discutir e eu... eu... Oh, Reggie! Eu o pedi em casamento!
Ele se manteve calado, olhando-a e esperando. Ela suspirou e prosseguiu:
- Ele recusou... Fiquei zangada e me afastei.
- Deixe-me ver se entendi bem... Você propôs casamento a ele enquanto dançavam? - Diante do assentimento envergonhado da irmã, a reação do conde foi de puro horror.
- Quer dizer que você o largou no meio de um salão cheio de pares dançando?
- Não havia tantos pares assim... - defendeu-se ela.
- Pior ainda!
Ela voltou para junto da janela e, olhando para fora, disse:
- Se ele me ama, por que foi embora e por que recusou?
- Não sei - respondeu o lorde, sacudindo os ombros. - Quem sabe ficou apavorado com sua falta de modos. Lizzie, não se deixa um cavalheiro no meio do salão. Nunca!
- Isso não importa mais - argumentou ela. - Ele mudou tanto!
Você não o reconheceria. Está frio, indiferente e... cansado. Por que será, Reggie? Quando Tony partiu, eu pensei que ia morrer e agora... Sabe há quanto tempo espero
que ele diga "Lizzie, eu a amo, case-se comigo"?
- É, eu sei... - respondeu o irmão, sorrindo.
- Será que tenho agido como uma tola apaixonada?
- Não. Sou seu irmão, conheço você bem, por isso eu percebi... Você disse que Tony foi embora, Lizzie. Quer dizer que ele viajou outra vez?
- Foi para Brentshire. - Ela deixou-se cair numa poltrona, desanimada. - Pediu para avisar que ficará lá por duas semanas e que quando voltar quer falar com você.
- De repente, os olhos dela se iluminaram.
- Reggie, por que você não compra Brentshire?
- Porque Brentshire não está à venda! - replicou ele, sem pensar.
- Mas talvez venha a ficar. É por isso que Tony foi para lá. Ele quer vendê-la? É inconcebível um cavalheiro vender sua propriedade! Tony não deve desfazer-se
de Brentshire!
- Isso não acontecerá se você a comprar e depois devolver... Assim, ele terá o dinheiro que precisa! Por que não pensei nisso antes?
- Como a propriedade não está à venda, essa sua ideia não tem sentido, Lizzie! - O conde tratou de mudar de assunto, assustado com a nova maquinação da irmã.
- Deixe-me falar-lhe sobre a minha viagem. Como já sabe, desencóntrei-me de Tony em Bristol. Como é um lugar horrível, resolvi voltar imediatamente. Já na estrada,
eu estava quase adormecendo, quando um bando de ladrões nos assaltou. Roberts insiste em dizer que se tratava de um só homem, mas nunca se tem certeza. Ele disse
que os companheiros estavam ocultos no mato e...
A jovem lady não o escutava, imersa em pensamentos. De repente, pareceu despertar:
- Reggie, chegou uma carruagem! - exclamou, agitada.
- ...então, o homem, com a arma apontada...
- Parece que estão descarregando um baú - anunciou ela, que se tinha aproximado da janela e espiava para fora.
- Sei! - exclamou o conde, impaciente. Em seguida, suspirando murmurou: - Depois você diz que eu fico espionando a vizinhança! Lembre-se disso quan...
- Oh, meu Deus! - interrompeu-o a moça. - É Margareth!

CAPITULO VIII

Sem dar atenção ao que o conde de Drenview dizia, a jovem lady saiu correndo e desceu a escadaria, indo para o hall, onde a inseparável criada particular da srta.
Valerie Bach já se encontrava. Com um peso incómodo no estômago, repreendeu a si mesma por ter concordado em mandar os malfadados bilhetes. Instruiu depressa o imperturbável
mordomo:
- Por favor, Childers, leve a srta. Margareth para a saleta.
Sempre às correrias, retornou à biblioteca, onde o irmão, distraído, folheava um livro. Ao vê-la, indagou:
- Voltou para ouvir o resto da aventura?
- Claro! Tenho certeza de que algo horrível ocorreu!

- Nem tanto... embora em certos momentos tive medo de que o pobre Roberts desmaiasse. Mas, no fim, até que o assaltante foi bem-educado, apesar de eu não ter
experiência nessas coisas: foi meu primeiro assalto.
- Alguma coisa aconteceu!
- É claro que sim! - exclamou ele, irritado. - Não...
- Fique quieto, Reggie! Não vê que estou pensando?
- Nesse caso, minha cara, fique sossegada com seus pensamentos -afirmou o conde, pondo o livro de lado -, que eu vou cuidar de mim.
- E ao mordomo, que entrava nesse momento: - Childers, mande preparar uma refeição leve, sim?
- Imediatamente, milorde. Roberts já providenciou o banho.
Sir Reginald retirou-se e o mordomo murmurou:
- Fiz o que mandou, milady. Se me permite perguntar, a senhora vai viajar?
- Por que Childers?
- A senhora que chegou disse que partiriam cedo e que o baú da patroa dela deve acompanhar o restante da bagagem.
Assim que dispensou o criado, a lady foi falar com Margareth. Cumprimentou-a, a criada respondeu, depois disse:
Creio que a sita. Valerie falou com a senhora sobre o presente, porém não o encontrei em lugar algum.
- Presente? - surpreendeu-se Lizzie.
- Oh! Creio que falei o que não devia! Contudo, agora já o fiz. Ela vai ficar triste, mas procurei pela casa toda... Bem, se me disser onde está a srta.
Valerie, irei cuidar das coisas dela.
- Margareth - começou a lady, depois de um profundo suspiro -, acalme-se. Preciso conversar com você.
Apesar do tom tranquilo de lady Elizabeth, que se esforçava para dar essa impressão, os olhos da criada se arregalaram.
- Aconteceu alguma coisa com meu anjinho? Achei mesmo que seu mordomo me olhou de modo esquisito! Ela está bem?
- Vamos, sente-se, Margareth... Isso, assim! Você gosta muito da srta. Valerie, não é?
- Como se fosse minha filha! Criei todas as irmãs, porém ela é a mais meiga... Minha menina fez alguma coisa horrível, eu sinto! Não está aqui... Onde ela está,
milady?
- Não sei. Mas, se você me contar o que sabe, poderemos ajudá-la.
- Não sei de nada, milady - soluçou a criada, com lágrimas descendo pelo rosto gordinho e corado. - Ela ficou tão feliz ao receber sua carta, hoje à tarde!
- Minha carta? Hoje à tarde eu não...
- Sim! A carta em que a convidou para passar o mês em Valstry!
Ela ficou tão animada! Passamos o dia nos aprontando.
Lizzie deixou-se cair numa poltrona, ouvindo a criada.
- Isso é tudo que sei. De acordo com os planos, deveríamos vir dormir aqui hoje, para sairmos bem cedo. Quando deixávamos a casa, a srta. Valerie não encontrava
o presente que ia trazer para a milady. Lembrava-se de tê-lo deixado sobre a penteadeira; daí voltei para pegá-lo e quando saí ela havia sumido. Achei que já viera
para cá, e vim atrás. A madame jamais me perdoará por isso!
- A culpa não é sua, Margareth.
- A sra. Bach me pediu que não tirasse os olhos da menina e... e agora... Oh, meu Deus!
A pobre criada rompeu num choro desesperado e Lizzie consolou-a, dizendo que daria um jeito na situação.
- Sabe, então, para onde foi meu cordeirinho, milady?
- Não, porém sossegue, que eu a encontrarei. Vou dizer a Childers que a acomode e lhe dê algo para acalmá-la.
Deixou a senhora chorosa e subiu a escada de dois em dois degraus.
No primeiro andar, encontrou o mordomo, pediu-lhe que acomodasse a sra. Margareth, lhe desse um cálice de sherry e avisou-o de que partiriam para Valstry de manhã.
- A senhora irá com elas?
- Não. Por favor, peça a Spaulding que prepare o coche agora mesmo e espere à porta. Meu irmão e eu vamos sair e estaremos de volta ainda esta noite.
- Sim, milady. Quanto ao jantar do conde?
- Ele terá de esperar - respondeu a jovem, continuando a subir.
Entrou nos aposentos do irmão, sem se dar ao trabalho de bater. Lorde Croyton, que já se banhara, vestia um robe comprido, de brocado. Ergueu as sobrancelhas,
reclamando:
- Não deveria ter batido antes de entrar, Lizzie?
- Vista-se! Temos de sair imediatamente.
O conde fez um gesto de desespero, porém não discutiu. No entanto, seguiu a irmã até o quarto dela. Lady Elizabeth entrou nele correndo e pediu à criada:
- Mary, meu vestido de viagem marrom!
De imediato, tirou o vestido de noite que usava, expondo as roupas de baixo em seda. Não usava espartilho, pois tinha cintura bastante fina. A empregada obedeceu
e retirou-se. Então, o conde indagou:
- Para onde vamos?
- Gretna Green, Reggie.
- Não dará certo, querida! - riu ele. - Não fazem casamentos entre irmão e irmã...
- Estou falando sério, Reggie - disse ela, aborrecida. - Valerie Bach fugiu com Martin Costain e temos de impedir que se casem!
- Desculpe, sou meio lento... O que temos com isso?
- Eu sou a culpada da fuga! Explico no caminho. Por favor, vá se vestir, depressa!
- Se é a responsável, por que não os impediu? - Ao ver que Mary voltava para ajudar a irmã a vestir-se, tentou, antes de sair: - Seria de mais pedir-lhe para
irmos depois do jantar?
- Não! Vamos agora mesmo.
- Foi o que pensei... - murmurou ele, resignado.
Menos de uma hora depois, o conde e sua bela irmã voavam pelas ruas de Londres, a caminho da estrada para Gretna Green, muito utilizada por namorados desesperados,
assim como por pais, irmãos e tutores enfurecidos.
Reinava silêncio no interior do coche, até que deixaram os subúrbios. O conde de Drenview esticou as pernas o melhor que pôde, mesmo assim ficou inconfortável,
por causa da alta estatura. Então, pediu:
- Lizzie, será que agora poderia me explicar?
A moça, preocupadíssima, uniu as mãos sobre o colo e, enquanto olhava para a noite, lá fora, contou aã irmão tudo o que acontecera, com voz cansada e tensa.
- Entende por que sou responsável? - indagou, ao terminar. - Se não tivesse arquitetado aquele plano com o sr. Wallace, se não tivesse enviado os bilhetes,
nada teria sucedido. Por que tenho sempre que me meter no que não devo? Como não desconfiei? Costain já devia ter tudo planejado.
O lorde, que nada dissera durante toda a narrativa, só então abriu a boca.
- Onde você consegue tanta energia, irmãzinha? - perguntou, com delicadeza. - Eu me sentiria exausto... Aliás, sinto-me exausto! - Segurou as mãos da irmã. -
Encontraremos a sua tola amiga, voltaremos com ela para Londres e, aí enfim, poderei jantar... com sua permissão, é claro!
- Oh, Reggie! - Lizzie apertou as mãos dele e sorriu entre as lágrimas. - Você é o irmão mais maravilhoso do mundo!
Um lenço de cambraia de linho, com suas iniciais bordadas, apareceu como por encanto nas mãos dele, que lhe enxugou as lágrimas com gestos cuidadosos.
Continuaram a viagem em silêncio, e como, apesar de correrem muito, não havia sequer sinal dos fugitivos na estrada, ela começou a se desesperar.
- Não acha que poderia ter se enganado, Lizzie? - indagou o conde, passando a se preocupar também. - Talvez eles não tenham se dirigido à Gretna Green,
e sim para Dover, que fica na direção contrária.
Lady Elizabeth não queria concordar com essa ideia, mas também já pensara nisso, e temia que tivesse acontecido. Ia responder quando soou um tiro, e os cavalos
estacaram bruscamente, fazendo-a cair no colo do irmão.
- Mãos ao alto, por favor! - trovejou uma voz na escuridão. - Tenham a bondade de descer. Homens, não atirem!
Os dois irmãos obedeceram. O conde desceu primeiro e, quando se voltou para ajudar a irmã, seu rosto foi iluminado pelo fraco clarão da lanterna do coche. Ouviu-se
uma exclamação abafada do homem de negro, que montava um bonito cavalo alazão.
- Ora! - expandiu-se ele, rindo. - Então, é o cavalheiro em pessoa!
- Reggie! - Lady Elizabeth parou, surpresa, fitando o irmão. - Você conhece esse homem?
- Infelizmente, sim, maninha! Pelo jeito, melhorou de vida, senhor!- disse ao assaltante.
- De fato! - concordou o bandido, todo alegre, - E devo agradecer ao senhor por isso, pelos seus conselhos...
- Não há por que agradecer... - replicou o conde, magnânimo. - Se não se importa em responder, o que faz nesta estrada?
- Bem, a situação ficou um tanto quente na estrada para Bristol - respondeu o homem, perdendo um pouco do bom humor. - Parece que alguém me delatou à polícia,
o que não foi nada cavalheiresco, se quer saber minha opinião. Afinal, ninguém pode dizer que faço mal às pessoas... até segui seus conselhos e ainda não usei isto
- olhou para a pistola -, a não ser para fazer as carruagens parar. Como o senhor disse, a educação ajuda muito. As pessoas parecem até ficar felizes ao entregar
seu dinheiro, jóias e pertences a alguém que diz "por favor" e "obrigado". Por isso, se não se importam, poderiam fazer a gentileza de...
- Pode ser ótimo para o senhor, porém para mim essa história está ficando cara demais - contra-argumentou lorde Croyton, de sobrecenho franzido.
- Reggie, dê o dinheiro a ele. Temos de continuar a viagem! - pediu a jovem lady.
- Parece que milady está com pressa... - declarou o bandido, dando uma piscadela maliciosa para o conde.
- A dama é minha irmã - explicou o nobre, em tom gelado.
- Oh, desculpe, milorde... e senhora! É que como é noite e o senhor está se dirigindo para norte e...
O homem não sabia o que dizer, nem para onde olhar, tão mal sentia-se com a grosseria que cometera com gente refinada como aquela. Seus olhos pareciam implorar
perdão.
- Seu erro é compreensível, senhor - bradou Lizzie, com meiguice, ignorando o olhar curioso do irmão, pois sentia pena do ladrão.
- Imagino - começou a dizer o conde, com ar pensativo, enquanto pegava a sacola de dinheiro - se poderia deixar-me com uns dois ou três guinéus para despesas
de viagem...
- Eu não só posso, como me sinto orgulhoso em fazê-lo, senhor. Pode ficar com quatro guinéus.
- Obrigado, senhor - suspirou o lorde.
- Não há de que, senhor. Fico feliz porque foi milorde que parou e não o outro que passou... O idiota quase me arrancou a cabeça com o chicote! Conduzia a melhor
parelha de cavalos cinzentos que já vi, mas, do jeito que os tratava, não irão muito longe!
- Costain tem uma parelha de cinzentos, não é? - indagou Lizzie, agarrando o braço do irmão. - Tenho certeza de que são eles! Por acaso o senhor roubou-os?
- Como devido respeito, milady, não posso roubar quem não pára! Mas garanto que não estão muito longe daqui - disse o salteador. -Os cavalos não aguentarão.
- O que o senhor entende de cavalos? - perguntou o lorde, ignorando os cutucões aflitos da irmã.
- Estive no exército do rei por quinze anos - respondeu o bandido, com orgulho. - Passei a vida em cima de cavalos e tenho jeito para a coisa... Aqueles cinzentos
são muito bonitos, porém não trabalham em conjunto, como a sua parelha, milorde. Seus cavalos, sim, são ótimos.
- Há quanto tempo eles passaram? - interrogou lady Elizabeth, ansiosa.
- Há cerca de meia hora. Do jeito que os cavalos lutavam um com o outro, terá de trocá-los na estalagem Buli & Crown. Vão alcançá-lo facilmente.
- Vamos depressa, Reggie! - Lizzie tornou a subir no coche, sem precisar de ajuda.
O lorde ia segui-la, quando o bandido o fez notar que não lhe entregara a bolsa. Depois de hesitar, ele passou-a.
- Espero que não se torne um hábito! - exclamou.
- Oh, não, sir! É a última vez, prometo! - Inclinou-se e, com ar conspiratório, sussurrou: - Se não se importa em receber conselhos de uma pessoa como eu, sugiro
que não carregue tanto dinheiro consigo. É difícil encontrar homens honestos nas estradas, senhor!
Com os olhos brilhantes, o salteador saiu galopando e sumiu na noite. Um sorriso iluminou o rosto do conde, enquanto se sentava ao lado da irmã.
- Para a Buli & Crown, Spaulding - disse dirigindo-se ao cocheiro.
- Reggie - indagou Lizzie, assim que ele se acomodou -, onde andou conhecendo esse tipo de gente?
O conde abriu a boca para dizer à irmã como conhecera aquele homem, porém, desistiu, depois de pensar melhor. Recostou-se no assento, com ar resignado.

CAPITULO IX

Valerie andava de um lado para outro, agitada, na sala particular da Buli & Crown. Apesar de sentir-se exausta, não prestava a menor atenção nas poltronas confortáveis,
nem no fogo que crepitava na lareira.
A parelha de cinzentos de lorde Martin Costain, fatigada ao extremo, tivera de ser substituída, e estavam sendo tomadas providências nesse sentido.
Ela começava a considerar que sua atitude impulsiva não havia sido boa ideia, pois, embora seu acompanhante agisse como um perfeito cavalheiro, não parecia um
apaixonado a caminho do altar. Quando o observara na carruagem, percebera um ar de absoluto triunfo nos olhos dele e uma expressão maldosa que lhe provocara arrepios.
Indagava a si mesma se não cometera um erro. Achava que ainda não era tarde demais para voltar, mas como o faria? Sentia-se como um animal enjaulado, sem meios de
escapar. Desolada, deixou-se cair numa cadeira e, chorosa, notou lorde Costain entrar.
- Mais alguns minutos e poderemos partir - avisou ele, tirando luvas, chapéu, sobretudo e jogando-os sobre uma mesa. - Está muito pálida, senhorita. Vou pedir
algo para reanimá-lar uma bebida...
- Não, obrigada! - Ao perceber que ele não lhe dava atenção, insistiu: - Eu não quero nada! Só queria...
Martin Costain estava com os nervos à flor da pele. Apesar de não ter demonstrado, sentira medo ao deparar com o assaltante na estrada. Mostrava-se também nervoso,
porque seus cavalos, pelos quais pagara uma fortuna, tinham se cansado cedo demais. Além disso, na certa um pai furioso encontrava-se em seu encalço. Como jamais
fora um homem paciente, falou rispidamente com a moça amendrontada:
- Vamos lá! Diga de uma vez qual é o problema!
Ao notar que os olhos castanhos da moça tornavam-se ainda maiores, assustados, lembrou-se que ainda não se haviam casado; então disse, com seu mais encantador
sorriso:
- Sinto muito, parece-me que os problemas fizeram-me perder as boas
maneiras. Desculpe-me... Pode me dizer o que a perturba: prometo não mordê-la - tentou brincar.
- Quero que... que o senhor me leve de volta para casa.
Lentamente, o sorriso desapareceu no rosto de Costain, substituído por um esgar cruel. Seus olhos endureceram e a encararam com intensidade. Quando afinal falou,
o sotaque irlandês estava mais carregado.
- Deve ter dito isso por brincadeira...
Ela fez que não com a cabeça. Então, o homem aproximou-se, inclinou-se e, pressionando-a na cadeira pelos frágeis ombros, disse, entre dentes:
- Não vai voltar, de jeito nenhum! E quanto mais cedo se conformar com isso, melhor. A senhorita vai se tornar minha esposa em Gretna Green, e só então
voltaremos para falar com seu pai. É bom fazer com que ele me aceite na família, se não receio que nosso casamento não tenha boas perspectivas financeiras. Entendeu
bem?
Valerie respirava com dificuldade e havia pavor em seus olhos. Ela conseguiu levantar-se e fugir dele, quando a porta se abriu de súbito.
- Lizzie! - exclamou a jovem, pensando que sonhava.
Correu para os braços dá amiga e começou a chorar.
- Oh, Lizzie! Como estou feliz em vê-la! Cometi um erro terrível fugindo! Será que pode me perdoar?
Lady Elizabeth abraçou a srta. Bach como se fosse uma criança. Somente depois de alguns minutos, quando ela se encontrava mais calma, é que voltou sua atenção
para o sr. Costain. O cavalheiro observava a cena tocante com os braços cruzados e um sorriso cínico. Mas sua expressão modificou-se por completo quando viu lorde
Croyton surgir junto à porta.
- Querida - afirmou o conde, dirigindo-se à irmã -, arranjei um quarto para vocês duas no andar superior. Talvez queiram se arrumar um pouco e... descansar?
A lady fez que sim e retirou-se com Valerie, que não disse uma palavra. Assim que a porta se fechou, o sr. Martin Costain sorriu largamente para o lorde.
- Que grata surpresa! Ouvi dizer que milorde se encontrava em Bristol. Pelo jeito, sua irmã tem o maravilhoso dom da persuasão, se o convenceu a empreender uma
viagem nem bem chegou de outra. Sei que o senhor não gosta muito de viajar e que não costuma se intrometer no que não lhe diz respeito, como faz agora, sir.
- Parece que a srta. Bach é uma grande amiga de minha irmã - declarou o conde, como se estivesse se desculpando. Depois prosseguiu, em tom confidencial: - Sinceramente,
confesso que preferia não me envolver, mas acontece que os bons modos sempre acabam deixando a desejar em situações como esta.
Com um gesto elegante, pegou sua caixa de rapé e, depois de uma longa aspirada, fechou a tampa de prata lavrada com um estalido e voltou a atenção para Costain.
- Fiquei sabendo que o senhor utilizou minha irmã de maneira vergonhosa, para conseguir seus objetivos condenáveis. - Sacudiu o lenço de maneira significativa.
- E o senhor, sem dúvida, veio tirar satisfações! - replicou o outro, com uma gargalhada.
- Oh! Será que imagina que pretendo duelar com o senhor? - O conde tornou-se alerta e observou o adversário através do inseparável monóculo. - Receio não ter
uma reputação à altura da sua... Além de ter horror a sangue, principalmente ao meu! - Fez uma pausa. - Vim como observador interessado, pois, pelo que entendi,
a srta. Bach ia viajar com Lizzie quando foi... digamos, desviada! Naturalmente, minha irmã ficou preocupada e decidimos vir verificar, para que a jovem senhorita
chegue ao seu destino em segurança. Como sei que o senhor também é amigo dela, imagino que se sinta igualmente preocupado. Mas asseguro-lhe que conosco ela estará
muito bem.
- Por acaso, milorde está pensando que vai ser assim tão simples? - A ira do sr. Costain aumentava ao ser tratado com tanta condescen dência. - Talvez a srta.
Bach não queira voltar com o senhor e sua irmã.
- É uma possibilidade, porém muito improvável. Se bem me lembro, ela pareceu-me bastante aflita quando chegamos, o que não condiz com uma pessoa que está gostando
da viagem e da companhia.
Um brilho astuto iluminou os olhos negros de Martin Costain, que falou bem devagar, como se desse um aviso.
- Estou surpreso com sua disposição em se envolver num escândalo.
Não tenha dúvidas: é o que vai acontecer.
Essas palavras provocaram um franzir de testa do conde, porém a alegria de Costain durou pouco, já que o outro sorriu com ar compadecido.
- Pense bem, meu amigo. O que tem a ganhar com isso? Considere as alternativas. Se for embora, já, nada será dito a respeito desse incidente. Não terá
a srta. Bach, mas estará livre para tentar a vida em outras partes... embora eu, pessoalmente, não considere essa perspectiva agradável. Se resolver ficar, serei
obrigado a tomar uma atitude, o que me agrada menos ainda. - Limpou a garganta e acrescentou: - Se tiver a sorte de me matar, o que espero não ocorra, não ficará
com a srta. Bach e será obrigado a fugir do país. A decisão é sua... - Acomodou-se numa poltrona e bocejou profundamente. - Estou a sua disposição, senhor.
Martin Costain estreitou os olhos e amaldiçoou a insolência do nobre a sua frente. Por fim, forçando uma gargalhada amarga, jogou o sobretudo nos ombros, dizendo:
- Um dia, Drenview, vamos nos encontrar... Jamais gostei de você, porém no momento nada tenho a ganhar se o matar, como bem disse. Transmita meus cumprimentos
às damas. Adeus.
Depois que o homem saiu, lorde Croyton esticou as pernas na direção da lareira, recostou-se confortavelmente na poltrona, fechou os olhos e suspirou, satisfeito.
Uma hora mais tarde, depois de convencer a srta. Valerie, cheia de culpas, de que nada estava perdido e de que ainda poderiam ir para Valstry, como fora planejado,
Lizzie desceu, cautelosa, encontrando o irmão quase a ronronar diante do fogo. Tinha certeza de que ninguém ficaria sabendo o que realmente acontecera, pois o sr.
Costain não iria divulgar seu comportamento deplorável; sir Reginald já devia ter esquecido de tudo,-mas se não jamais tocaria no assunto. Divertida, notou que o
irmão adormecera e acordou-o, sacudindo-o com delicadeza.
- Onde está ele? - perguntou, quando viu que Reggie abriu os olhos. Percebendo que o jovem conde nem sabia do que ela falava, acrescentou: - Costain...
- Ora, Lizzie! - exclamou o lorde, bocejando e espreguiçando-se. - Por que me deixou dormir em uma poltrona? É muito desconfortável! - Ela esperou, paciente,
que o irmão continuasse. - E eu pensei que tudo não passara de um pesadelo!
- Será que vai me contar o que aconteceu? - insistiu ela.
- Nada. Conversamos, e ele deve estar a caminho de Londres, que é onde nós deveríamos estar. Se você permitir, eu gostaria de dormir um pouco na minha cama.
- O que disse a ele? Como Costain reagiu, Reggie?
- Não podemos falar nisso amanhã? Quer dizer, hoje, mais tarde, porque a noite está no fim...
- Está bem - concordou ela, para surpresa do irmão. - Vou buscar Valerie, porém quero que me conte tudo amanhã. Não ouse esquecer um só detalhe!
- Tudo?
- Tudo, todos os detalhes! Promete contar?
- Prometo... - assentiu, reconhecendo a derrota, mas acrescentou, quando ela virou as costas: - contar tudo o que eu lembrar.
A volta para Londres deu-se sem incidentes. Não encontraram salteadores e chegaram à Hanover Square ao amanhecer. A casa já se encontrava em franca atividade,
os criados fazendo o necessário para a viagem de lady Elizabeth a Valstry.
Margareth, que passara uma noite tranquila, perto das peripécias dos outros três, recebeu a patroa com lágrimas de felicidade. Depois, séria, assumiu o controle
e fez a srta. Bach ir se deitar, enquanto a jovem lady se deixava cair num sofá, exausta e preocupada com o que sucedera.
- Fugir para Gretna Green... - afirmou, com um suspiro, enquanto seus olhos azuis fitavam a parede sem vê-la. - Não acha romântico?
- Romântico? - surpreendeu-se o conde de Drenview. - Dificilmente eu acharia algo romântico perder uma refeição. Para não falar em viajar à noite numa velocidade
alucinada, no encontro com um salteador e na perspectiva de um duelo numa estalagem!
- Oh, Reggie! - exclamou a moça, rindo, saindo do estado sonhador. - Você duelaria pela mulher amada, para protegê-la?
- Graças a Deus, não estou apaixonado! E se estivesse, que Deus me impeça, seria por uma mulher de bom senso.
- Não se escolhe a pessoa pela qual nos apaixonamos! - Ai a voz da jovem lady falhou. - Acontece...
- Comigo não vai acontecer, cara irmãzinha. Bem, acho que vou me deitar.
O conde beijou a irmã e desejou-lhe boa noite, enquanto os olhos dela se enchiam de lágrimas. Reggie era tão bom! pensou.
Na manhã seguinte, lady Elizabeth não conseguiu acordar cedo como planejara. Ao descer, encontrou o irmão em meio a um desjejum constituído de bifes e ovos. Fez
uma careta, serviu-se de uma xícara de chá e uma rosquinha.
- Está se sentindo bem, Lizzie? - indagou ele, solícito. - Sua aparência é horrível... Tem certeza de que deve viajar?
- Viajar...? - A moça balançou a cabeça, tentando desanuviá-la. - Ah, sim... Valstry! Tinha esquecido. Valerie já levantou?
Lorde Croyton observou atentamente a irmã: todos sabiam que ele costumava esquecer as coisas, porém Lizzie sempre lembrava de tudo. Fez que não com a cabeça para
responder à pergunta dela, que imediatamente chamou o mordomo.
- Childers, a srta. Bach e eu devemos partir para Valstry. Pode pedir a Margareth que a acorde?
Acredito que a srta. Bach já esteja acordada, milady, já que sua criada levou-lhe a bandeja com o desjejum há uns dez minutos. Provindenciarei para que receba
o recado.
Lizzie tentou comer, mas não tinha nenhum apetite. Por isso, concentrou-se no chá. Ao erguer a cabeça, notou que o irmão a olhava, atento.
- Não tem fome? - interrogou ele.
- Não. - Ela apontou para o prato do conde. - Como pode comer isso de manhã?
- Engraçado! Pensei que já fosse hora do almoço... - ironizou ele, rindo. - Desculpe-me pela confusão, porém creio que viagens contínuas e à noite perturbam meu
fuso horário.
Lizzie ignorou a provocação e tomou mais chá.
- Já cavalgou, hoje, Reggie?
Ele ficou tão surpreso, que ela riu com prazer.
- Pensou que eu não sabia, é? Ah! Se a sociedade londrina descobrisse que o correto conde de Drenview levanta antes das onze horas... Tia Martie era capaz de
desmaiar. Sei que sempre acorda bem antes de mim e cavalga durante horas, depois volta para casa, quietinho, e finge que acabou de se levantar. E todos os criados
da mansão juram que o senhor estava dormindo. Que lealdade!
- Criados são pagos para isso, além de serem mantidos vivos pelos segredos. E você tem de concordar: até há pouco tempo nossa vida era sossegada e pouco interessante...
Precisamos manter as aparências, não acha?
- Seu segredo está a salvo comigo - garantiu ela, dando-lhe uns tapinhas carinhosos na mão.
- Então, por que trouxe o assunto à baila? - quis saber ele, desconfiado.
-- Para fazê-lo me contar o que ocorreu ontem entre você e Costain declarou ela, depois de colocar a xícara no pires, com ar decidido.
- Teve de desafiá-lo para um duelo, Reggie?
- Na verdade, nada sucedeu. Expliquei a Costain as possibilidades, diante dos acontecimentos, e ele, como o homem sensato que é, decidiu pela saída menos violenta.
Aliás, fui muito educado deixando-o escolher. Não me preocupava que optasse pelo duelo ou por ir embora em silêncio. Em qualquer dos dois casos, ele não ficaria
com sua amiga. Então, simplesmente, ele partiu.
- Acredita que se tivessem duelado, você...?
- Não está se tornando sanguinária demais, Lizzie? - interrompeu-a o conde, erguendo uma das mãos. - Estremeço só de pensar em tal situação.
- É, eu sei... - suspirou a jovem. - Ouvi dizer que ele é muito bom num duelo.
- O homem é um especialista, e não tenho vontade alguma de morrer tão jovem. Nem mesmo por você, minha querida.
- Bem, estou feliz pelo fato de que tudo tenha dado certo... Creio que vai ser bom passar uns dias no campo. Preciso descansar. Vai nos visitar?
- De maneira nenhuma! - declarou o conde, enfático. - Já viajei mais nas duas últimas semanas do que nos últimos dois anos. Pretendo ficar por aqui.
Lizzie sorriu, divertida, e deu um beijo agradecido na testa do irmão.
- Estou sempre lhe dando trabalho... - murmurou, meiga. - Nem sei como você me aguenta!
- Quem sabe um dia vou precisar de sua ajuda. - Acariciou o rosto da irmã. - Pode ser até que aconteça de eu me apaixonar...
- Você?! - Ela provocou-o com uma careta. - Então, me avise antes de sair como um louco, noite adentro, para duelar em estalagens sinistras! Não quero fazer papel
ridículo, desmaiando quando ouvir as notícias...
- Sempre recriminei nosso pai, dizendo que ele não tinha visão, nem sensibilidade... mas preciso louvá-lo pela perspicácia com que escolheu seu nome, irmãzinha!
- Que quer dizer com isso?
- Elizabeth, em hebraico, significa "praga de Deus"!
Lizzie fez uma reverência graciosa, sorriu encantadoramente para o irmão e saiu, quase correndo. E seu bom humor durou quase o dia inteiro.

CAPITULO X

De mau humor, sir Anthony Russelford vistoriou as terras onde se encontrava o lar de seus antepassados. O tempo mostrava-se nublado, a natureza parecendo estar
de acordo com os pensamentos negros do barão, nesse dia de primavera. Os pássaros haviam deixado de cantar, tinham se recolhido a seus ninhos, e a temperatura esfriara
bastante. Mas ele parecia não reparar nessas coisas.
Havia verificado as condições da propriedade em bem menos tempo do que previra. A mansão precisava de consertos, porém de maneira geral encontrava-se em boas
condições e era possível morar nela. Enquanto andava pelas salas e corredores, ele ia ficando cada vez mais deprimido, a poeira que se acumulara sobre os tapetes,
nos últimos anos, erguia-se e volateava a sua passagem. Restara pouco dos móveis, pois as peças de maior valor tinham sido vendidas, bem como os quadros e retratos
da família. Mais tarde saiu andando pela alameda ladeada de olmos, que conduzia ao velho moinho e à fabrica, construídos por seu bisavô há muitos anos. Aquela ainda
era a única fábrica de papel do condado. Nos velhos tempos, a produção era boa, mas quando seu avô a herdara desinteressara-se dela por outros negócios mais refinados.
Seu pai seguira o mesmo caminho; então, a propriedade e a fábrica de papel se haviam deteriorado pelo abandono.
O jovem barão lembrava-se que, criança, adorava brincar na velha construção fora de uso. A imensidão de madeira oferecia-lhe proteção contra o mundo dos adultos.
Agora, observando a estrutura com olhos práticos, via seus defeitos. Tudo estava em ruínas, as condições do teto permitindo que a chuva e a neve gotejassem, além
das teias de aranha oscilando ao sopro da brisa. A hera apoderara-se do local, estendera-se pelas paredes e vigas do teto, pela roda-d'água do moinho, enfim, por
tudo. Se fosse possível fabricar papel de hera, ele não precisaria se preocupar com matéria-prima.
Ouviu um barulho atrás de si, voltou-se e deparou com um estranho.
- Desculpe se o assustei, sir, porém parece perdido. Posso ajudar? -O velho, que o examinava com atenção, de repente teve os olhos cheios de lágrimas. - Deus
me ajude! É o senhor, sir Patrick?
- Sou sir Anthony Russelford - respondeu o barão, com pena do velho amedrontado.
- Ai, o meu coração! - Aproximou-se para olhar melhor o jovem. - Sabia que não podia ser ele, mas o senhor é tão igual ao seu bisavô que duvidei de meus olhos.
Foi ele quem construiu o moinho e a fábrica... Eu era bem pequeno, porém lembro dele... Trabalhei para o avô do senhor, antes que ele fechasse a fábrica. Agora,
sou um dos seus rendeiros, sir; tenho uma fazendinha perto do riacho. Acho, então, que o senhor não está perdido. Meu nome é Charles Hokum, sir...
- Na realidade, jamais me senti tão perdido quanto agora - declarou o jovem barão.
- Bem, se não sabe onde está, sir, poderei ajudá-lo...
- Sei onde estou - respondeu o nobre, sorrindo -, o que não sei é para onde ir.
- Bem, isso depende do que o senhor deseja! - exclamou o velho Hokum. - Um jovem como o senhor não deve ter grandes problemas, a não ser os que envolvem lindas
damas... - concluiu, com uma piscadela marota.
- Meu problema é uma dama apenas, sr. Hokum.
- Mulheres... - resmungou o ancião, avaliando sir Anthony de alto a baixo. - Terá esse problema até o fim da vida, sir. Não deixe que elas o controlem. Veja a
minha Emma, por exemplo: quando eu era jovem e tolo, confessei-lhe que a amava; ela não aceitou nada a não ser casamento. Depois, fecharam a fábrica e Emma me disse:
"Sr. Hokum, aqui é o meu lar e não pretendo ir embora. Se me ama, como diz, não vai me deixar aqui sozinha e sair pelo mundo, vai?" E aqui estou, quarenta anos depois,
vivendo da minha fazendinha.
- Então, seu conselho é que nunca me case?
- Oh, não! Eu amo a minha Emma e ela tem sido uma ótima esposa... mas eu não devia ter cedido com tanta facilidade, no começo.
Sir Anthony enfiou as mãos nos bolsos e ficou olhando o velho moinho. Depois de alguns minutos de silêncio, o sr. Hokum deu uma tossidi-nha e murmurou:
- Foi triste terem fechado a fábrica. Sir Patrick jamais teria permitido isso, se fosse vivo. Oh, não, sir! O moinho e a fábrica eram a vida dele. Trabalhávamos
aqui para ganhar nosso sustento e ele trabalhava junto... Era um homem duro porém justo. Aqueles, sim, eram dias felizes! Está pensando em reabrir a fábrica, sir?
- Não, sr. Hokum. Não tenho dinheiro para fazê-lo.
- É uma pena! Um dos meus meninos sabe tudo o que aprendi sobre o ofício, e ele tem jeito para a coisa. É o melhor da região, melhor até do que eu.
O velho, animado, gesticulava como se estivesse tirando papel dos grandes recipientes com água, procurando ilustrar a habilidade que tinha nos velhos tempos.
- E, não perdi o jeito, sir! - exclamou, contente consigo mesmo. - E meu menino é ainda melhor. Claro, hoje em dia há máquinas que fazem quase todo o serviço.
Chamam-nas de Ollendens.
- Hollanders - corrigiu sir Anthony.
- É isso! - concordou o velho. - Não precisam mais do moldador. É só colocar o pedaço de madeira de um lado, que a máquina o mastiga até ficar no ponto. Dizem
até que se faz papel de plantas, que não é preciso madeira. O senhor acredita nisso? O que mais vão inventar, hein?
- Vapor, sr. Hokum, é o que não vai faltar daqui por diante. - Sob o olhar assombrado do ancião, o barão começou a explicar como se podia gerar energia do vapor.
- Eles usam vapor para movimentar as máquinas. Não há mais necessidade da roda-d'água. Usam vapor até para...
Sir Anthony calou-se, subitamente, e seu rosto moreno assumiu uma expressão de raiva.
- Até para...? - encorajou-o o sr. Hokum, que ouvia suas palavras com o devido respeito ao progresso, mas com a certeza absoluta de que essa tolice jamais
o atingiria.
O barão não respondeu imediatamente, e o velho ia repetir a pergunta, quando ele continuou:
- Até para fazer funcionar as prensas.
- Bobagem! Espero que não se ofenda, milorde, porém não é possível. O que mais vão querer inventar?
- Não demora muito, e teremos máquinas para fazer quase todos os trabalhos - respondeu o nobre, que andava pela fábrica, examinando tudo. - Onde está a prensa?
- Encostada naquela parede do fundo, milorde - indicou o velho, que ia atrás dele e mal conseguiu segurar o paletó que o barão tirou e jogou de lado.
- Há máquinas, sr. Hokum, que aquecem a água e fazem funcionar as Hollanders, que talvez sejam capazes de produzir até mesmo papel de hera! Contudo, ainda é preciso
do homem para trabalhar com as prensas.
Sir Anthony descobriu a prensa enorme, que parecia ter escapado aos estragos causados pelo abandono de todos aqueles anos. A hera tomara conta do exterior, mas
a estrutura de madeira dura, resistente, achava-se bem conservada.
- Quer seu paletó de volta, sir? - indagou o velho, que, depois de secar a testa úmida de suor de tanta correria, encontrara um banco, onde sentara.
- O que desejo, senhor, é um martelo, uma foice de cabo longo, uma bigorna e todo e qualquer pedaço de metal que descobrir. No caminho, passe por um curtume e
veja se algum deles tem mais de uma caldeira.
- Existe o curtume de Pete Gert, porém creio que as caldeiras dele não prestam.
- Então, ele não vai se importar em livrar-se delas! - falou o lorde, rindo com animação.
- Não. Claro que não vai...
O sr. Hokum observava calmamente sir Anthony, que, em mangas de camisa, cutucava, alisava, limpava a velha prensa. Depois de quinze minutos, cansado de ficar
só olhando, o velho levantou-se e colocou o paletó do barão sobre o banco, com todo o cuidado. Em seguida, tirou o próprio casaco com ar de reprovação, resmungando
algo sobre já não ter mais idade para aquilo, e passou a trabalhar com o barão. Só três horas mais tarde tornou a sentar-se, munido de papel e lápis, para anotar
os números que o lorde lhe ditava.
- Para que está fazendo isso, milorde? - indagou, por fim, não conseguindo mais segurar a curiosidade.
Sir Anthony interrompeu o trabalho de medir a fábrica e sentou-se ao lado do velho, para rever as anotações dele e acrescentar mais alguns números. Explicou,
então, que calculava o espaço disponível para instalar ali as duas caldeiras. O fazendeiro olhou ao redor, com ar de dúvida, e por fim admitiu que havia lugar suficiente
entre o moldador e a prensa.
- Se o tempo continuar bom, sem chuva, não teremos problemas com o teto. De qualquer forma, terei de ir até lá em cima para ter uma ideia da situação -
disse o jovem lorde, como se falasse consigo mesmo. - Vamos ter de trocar esses moldadores; mesmo que ainda possam entrar em uso, são muito antiquados. O restante
parece estar em condições de funcionar.
Levantou-se, de repente, e pediu ao velho senhor que o acompanhasse. Com dificuldade, o sr. Hokum o seguiu, e foram examinar o moinho, a roda-d'água e tudo o
mais.
- Depois disso, o que faremos, sir? - quis saber o fazendeiro.
- Iremos fazer uma visita ao sr. Gert e começaremos a reconstruir a nossa fábrica de papel. Se ela funcionar, se tudo der certo, teremos um novo tipo de papel
para vender, que poderá nos dar um bom dinheiro.
- E depois? - indagou o velho, cansado, balançando a cabeça.
- Depois, veremos! - riu o barão. - Mas, para chegar até esse ponto, vou precisar de quem entenda de fabricação de papel.
- Acho que entendi, sir. O senhor pretende fazer a fábrica funcionar outra vez!
- Isso mesmo. E o senhor estaria interessado?
- Muito! - animou-se o velho, e, logo encarou o nobre, com ar desconfiado. - Desde que o senhor lembre que máquina nenhuma pode substituir o homem!
- Ainda não... - concordou sir Anthony, com um brilho malicioso nos olhos, agora cheios de uma nova luz.
- Nunca! - afirmou o sr. Charles Hokum.
Com a ajuda do fazendeiro e do simpático sr. Gert, o barão trabalhou bastante nos dias seguintes. As longas horas de trabalho físico impediam-no de pensar em outra
coisa que não seu novo plano e clareavam-lhe a mente, o que foi muito útil para a realização do desenho da nova prensa! Em menos de uma semana ele voltou a Londres,
com os planos das novas peças da fábrica no bolso. Só restava encontrar alguém com capital e disposição para financiar o projeto de renovação. Teria de ser alguém
muito rico e desprendido, já que precisaria esperar cinco anos ou mais para começar a ter o retorno de seu investimento, e em seguida os lucros.
A primeira pessoa que procurou ao chegar na cidade foi o advogado Gentry. Depois de ouvi-lo, ele indagou:
- Tem certeza do que vai fazer, filho?
- Vai dar certo, senhor! - retrucou o lorde, com entusiasmo. - Seeu renovar a fábrica, ela funcionará melhor do que antes. Está tudo lá... Claro, vai precisar
de alguns concertos, e seria melhor ter uma prensa nova. Já tenho até um homem que entende da fabricação de papel.
E sir Anthony expôs sua ideia pela terceira vez, com a mesma animação que fizera na primeira.
- Mas, meu rapaz, não tem ideia do custo que isso envolverá.
- Já tenho uma boa ideia, sim, e sei que é mais do que posso dispor. Por isso, preciso de um sócio que queira investir. Ele entrará com o dinheiro, e eu com o
trabalho e o local. Sei que não será fácil encontrar quem se interesse, mas, se o senhor puder me dar umas indicações a respeito, agradeço muito.
- Meu filho, sinto ter de dizer, porém sua situação está pior do que antes, e esse plano é loucura. Por favor, pense em alternativas...
A única que vejo é vender a propriedade por qualquer preço - respondeu o barão, sacudindo a cabeça negativamente. - Não farei isso, demodo algum. Foi o senhor
que me disse para ir ver a propriedade antes de tomar qualquer decisão. Será que, agora, não pode me dar mais a ajuda que vim lhe pedir?
O velho advogado estudou a expressão decidida do rapaz: já não era o homem derrotado que estivera ali uns dias antes.
- O que quer de mim, exatamente, meu jovem?
- Vou precisar verificar a minha situação nos menores detalhes. Para isso necessitaria rever os livros e queria que me ajudasse na contabilidade, até eu ser capaz
de assumi-la. - Diante do sinal afirmativo do advogado, prosseguiu: - Preciso que me indique um engenheiro de confiança, porque sei o que quero, mas não tenho conhecimento
nem experiência para fazê-lo. E talvez o senhor possa me indicar alguém de dinheiro a quem eu possa apresentar o projeto e convidar para sócio.
- Acho que esta última é a parte mais difícil - declarou o advogado, confirmando o temor do lorde. - Comece pela Jeffries & Jeffries; é uma firma que possui muitos
clientes investidores, embora prefiram empreendimentos mais sólidos. Quem sabe não encontra alguém disposto a apostar em sua ideia? Mas não tenha muita esperança.
Conheço bem Calvin Jeffries e, se quiser, posso conversar com ele.
- Agradeceria muito se o fizesse, senhor!
Contudo, o advogado Gentry ainda não terminara.
- Acredito que saiba que a única garantia que poderá dar a esse investidor é a sua propriedade... Se não der certo, o senhor perderá tudo e arriscar-se-á à prisão
por dívidas. Se acontecer, eu não poderei fazer nada.
- Minha situação atual é mais ou menos a mesma. Quanto à prisão, pelo menos terei um teto! - brincou o nobre, amargamente.
- Por que não pensa em algum de seus velhos amigos? Por que não fala com lorde Croyton, por exemplo?
- Não! - exclamou o jovem barão, sacudindo a cabeça, decidido. - Jamais faria isso. Talvez tente outra pessoa... Lorde Graneville era bom amigo de meu pai e me
conhece desde pequeno. Lembro-me de ter ouvido meu pai comentar que ajudou o sr. George Bach a começar seu negócio...
- Pode ser... Nunca se sabia direito o que sir Geoffrey fazia. Não se desaponte se o sr. Bach contar uma história diferente. No entanto, ele é um bom homem de
negócios e acho que é o único capaz de convencê-lo a não pôr sua ideia em prática. Depois de falar com esses dois senhores, milorde, procure-me e veremos o que se
faz.
- Sei que me deseja sorte, e por isso não vou me zangar com essa sua falta de confiança em mim, senhor - riu sir Anthony e despediu-se do advogado.
Só ao sair do prédio ele demonstrou a preocupação que o atormentava, por ver que não convencera o sr. Gentry.
Pouco depois, estava diante do secretário do sr. George Bach e sentia o coração saltar no peito, de ansiedade, ao entregar-lhe seu cartão. Enquanto esperava a
resposta, andava de um lado para outro da sala e começou a entrar em pânico ao notar que nem saberia o que dizer, se o importante homem de negócios decidisse recebê-lo.

CAPITULO XI

Parado ao lado da mesa o sr. Biddle esperava, paciente, que o patrão o atendesse.
- Sim? - perguntou afinal o sr. Bach.
- Um cavalheiro gostaria de vê-lo, senhor - e entregou-lhe o cartão.
- Russelford? - O sr. Bach franziu o cenho, pensando. - Onde será que já ouvi esse nome? Sabe que não recebo ninguém a essa hora, Biddle. Despache-o.
- Ele disse que o senhor conheceu o pai dele - tentou o secretário, hesitante. - Sir Geoffrey...
- Sir Geoffrey? - O sr. Bach ergueu a cabeça, atento. - Bom Deus!
Por que está aí parado? Mande-o entrar!
Sir Anthony quase desistia quando a porta se abriu e foi levado à outra sala. Nem teve tempo para olhar em volta, pois foi recebido com forte aperto de mão, enquanto
era avaliado por um par de olhos pequenos e atentos.
- Então, é o filho de sir Geoffrey! - exclamou o senhor que lhe apertava a mão. - Não se parece com ele. Sente-se!
O jovem barão não sabia se o comentário era elogio ou crítica. Observou o escritório, que era de uma simplicidade espartana; só a mesa chamava atenção pelo tamanho.
Havia estantes de parede inteira e algumas cadeiras espalhadas, o que tornava a sala quase vazia; no entanto, o homem sentado à enorme escrivaninha dava impressão
de preenchê-la.
- Encontrei seu pai pela última vez há mais de trinta anos - contou o negociante, recostando-se na cadeira e fitando os próprios dedos. - Senti muito quando ele
morreu... - Mudando por completo de tom, disse, ríspido: - O que deseja, rapaz? Sei que tem uma razão para me procurar. Qual é?
- Gostaria de lhe propor um negócio, senhor.
O próprio lorde surpreendeu-se pela segurança com que falou, e, sem mais preâmbulos, foi direto ao ponto e explicou toda a situação: as condições de sua propriedade
e o plano que fizera para torná-la produtiva.
Esperava ter dado uma visão razoável dos fatos, já que nada podia deduzir pelo ar insondável do sr. Bach. Quando ele parou de falar, o negociante se manifestou:
- Então, o senhor espera que empregue dinheiro nesse projeto disparatado, somente porque conheci seu pai?
- Não, senhor. Confesso que usei o nome de meu pai apenas para ser recebido. Desculpe-me por isso, mas situações desesperadas exigem atitudes drásticas. Peço-lhe
que julgue minha proposta apenas pelos seus méritos.
- Bem, como o senhor não se parece nada com seu pai, não levarei o parentesco em conta... - afirmou o sr. Bach, sorrindo.
- Bem... - começou o jovem barão, hesitante - uma vez meu pai contou que o havia ajudado e...
- O quê?! - O negociante ergueu-se e começou a andar de um lado para outro, parecendo furioso. - Maldito seja ele! -. E fez uma série de comentários desairosos
sobre o falecido barão. - Além de tudo, jamais conheci alguém tão irresponsável como sir Geoffrey!
- Basta, senhor! - insurgiu-se lorde Anthony, zangado. - Está falando de alguém que não pode se defender. Parece ter esquecido que se trata de meu pai e que,
apesar de seus defeitos, era um homem bom!
- Um homem bom não deixa o filho implorando por dinheiro, sir!
- Um homem bom, senhor, faz o melhor que pode com o que tem sem reclamar - ergueu a cabeça, os olhos brilhando de orgulho -, mesmo que jamais consiga ter sucesso.
Perdoe-me o fato de ter vindo importuná-lo. Bom dia.
- Espere um momento, milorde! - exclamou o sr. Bach, impedindo-o de sair. - Na verdade, devo dar algum crédito a sir Geoffrey, pois ele me deu um empurrãozinho
na direção certa... - Balançou a cabeça e deu de ombros, em seguida continuou: - Certa vez, nos apaixonamos pela mesma moça, quando ainda éramos garotos de escola...
depois cada um de nós casou com moças diferentes... Mas isso não vem ao caso. O fato é que achei que trabalhando muito meu coração partido doeria menos, então passei
a trabalhar duro com meu pai e acabou dando certo. O resto... é passado.
Calou-se por momentos, perdido em lembranças, e logo voltou ao presente e disse:
- Sua ideia não é má, lorde Russelford, e deixar equipamento estrangando, sem uso, é péssimo... Estamos na era das novas experiências e das máquinas: esse
é o futuro. Para um homem sobreviver precisa aprender, experimentar e reaprender. Sugiro que procure o sr. Jason Rory, que é nosso maior entendido em máquinas a
vapor. Biddle lhe dará o endereço.
- Nesse caso, fará negócio comigo, senhor?
- Não. Estou na área do comércio marítimo e emprego dinheiro apenas em terras, que é a única coisa sólida, que sobreviverá a todos nós.
O que eu faria com uma fábrica de papel? A única coisa de valor é a terra onde ela se encontra... - Acrescentou, com suavidade: - Mas, mesmo tendo essa terra como
garantia, é arriscado demais para mim. Se quer um conselho, venda a propriedade: terá menos prejuízo.
- Obrigado por ter me recebido e pelo conselho, porém não venderei minha propriedade antes de tentar. Obrigado...
Sir Anthony foi para casa, e chegou à conclusão de que enlouqueceria se passasse a tarde fechado. Precisava de companhia. Então, vestiu uma roupa mais formal,
apesar de um tanto fora de moda, mas que lhe ficava elegante. Jamais dera importância a roupas, no entanto reconheceu que tudo o que tinha era antiquado. Não se
encontrava em condições de substituir seu guarda-roupa.
Deu de ombros, vestiu um sobretudo e pegou um relógio de bolso, acertando-o. Sorriu, lembrando-se que o recebera de Lizzie, como presente. Colocou-o no bolso
do colete com cuidado: prezava muito aquele relógio, que, juntamente com um anel de sinete, era o único ornamento que usava.
Dirigiu-se ao White's e verificou que havia mais gente lá do que esperava. Os que não haviam conseguido mesas andavam pelas salas, parando aqui e ali para conversar
com conhecidos. Alguns lá estavam em busca de companhia, outros pela bebida, pelo jogo ou, ainda, para exibir roupas novas.
O barão andou pelo clube sem destino, respondendo a inúmeras perguntas sobre a propriedade na Jamaica, seu povo, seus costumes. Depois de cada parada em diferentes
grupos, ele saía com a sensação de que deveria ter ido a um alfaiate antes de reintengrar-se na sociedade.
Disse a si próprio que estava ficando obcecado por roupas, e foi à sala onde jogavam faraó. Assim que entrou, viu lorde Croyton, elegantíssimo. Na mesma mesa
encontrava-se o sr. Martin Costain, também muito elegante, só que inteiramente vestido de preto.
Ouviu alguém dizer que Costain parecia o diabo e concordou: a pose com que ele apostava era de total condescendência; jogava pesado e, a cada rodada ganha, bebia
mais. Depois de entrar na sala, o barão já o vira tomar dois copos de vinho do Porto. Era possível perceber a tensão que havia entre os dois jogadores. O sr. Costain
apostava como se fizesse um desafio, observando o adversário com sorriso de triunfo e olhar maquiavélico. E aquele olhar malévolo não devia ser atribuído ao vinho
que ele bebera.
O conde fazia as apostas com calma, bom senso, sem demonstrar nenhuma emoção, nem dar indicações de ter notado as manobras de seu antagonista. O copo ao seu lado,
cheio, parecia nem ter sido tocado.
Só quando o jogo terminou é que os jogadores se falaram.
- Sua sorte mudou, senhor - afirmou lorde Croyton. - Começou como vencedor, porém saiu vencido...
- Desta vez, sim - Costain foi obrigado a reconhecer. Em seguida, declarou em voz bem alta: - Como está sua bela irmã, milorde?
- Lízzie? - indagou lorde Croyton, surpreso. - Está bem, obrigado, senhor.
Ao ouvir o nome da lady, sir Anthony aproximou-se e prestou atenção.
- Fiquei preocupado quando a vi pela última vez... Estava pálida, cansada. Talvez devido às circunstâncias, não?
- Com certeza - respondeu o conde, distraído. - Ela está bem. Transmitirei suas preocupações a minha irmã, senhor.
O barão Anthony não gostou do sorriso malicioso que iluminou o rosto de Martin Costain, ao falar em tom aveludado:
- Milorde deve saber o que dizem dos efeitos do ar da noite - fez uma pausa significativa - e das viagens para o norte...
Todos os olhares se fixaram no conde de Drenview, o mais agradável e menos agressivo dos frequentadores do White's que se encontrava em situação muito delicada.
- Já ouvi falar a respeito dessas convicções - comentou ele. - Eu, pessoalmente, julgo o ar noturno revigorante e as viagens mais calmas nesse horário, porque
não se precisa enfrentar trânsito. Além disso, encontram-se as mais interessantes pessoas quando se viaja à noite. Ou tro dia, ou melhor, outra noite, quando eu
voltava de Bristol...
- Com licença, senhores - interrompeu sir Anthony, pondo a mão num ombro do amigo. - Preciso falar-lhe, Reggie...
- Tony! Que prazer! Quando chegou, meu caro?
O barão percebeu que o sr. Costain não gostara de sua interferência, porque dispersara as atenções. O conde olhava atentamente o amigo, que ficou constrangido
imaginando que o punha em má situação por estar mal vestido.
- Meu amigo - sussurrou sir Reginald -, onde arranjou essas roupas?
- Garanto que não foi onde o senhor compra as suas, milorde - respondeu sir Anthony, com um sorriso hesitante.
- Espero que não mesmo, senão terei de mudar de alfaiate!
- Reggie, preciso falar com você em particular.
- Já jantou? - Ao ver o amigo negar, o conde acrescentou: - Eu também não.
Alguns minutos depois, os dois amigos achavam-se em uma saleta reservada, saboreando um bom jantar.
Tinham muito que conversar: as respectivas saúdes, a viagem a Jamaica, os últimos acontecimentos na sociedade londrina... Lorde Croyton mostrou-se preocupado
com o pouco - caso com que o amigo se vestia. Repreendeu-o e exigiu que comprasse roupas novas, pois as dele estavam uns três anos fora de moda.
- Não há alfaiates na América? - indagou, brincando.
- Há, sim - retrucou o barão, rindo. - Mas eles também têm o mau hábito de cobrar pelo trabalho!
- A situação está assim tão ruim? Então, não procure meu alfaiate, o que é uma pena. Ele é ótimo, porém creio que seus preços andam exorbitantes.
- Vou ter de me arranjar com o que tenho - declarou lorde Russelford. Limpou a garganta, sem jeito. - É bom estarmos juntos outra vez, Reggie...
Sir Anthony tentava mostrar uma animação que não sentia.
- Espero que seja mesmo! - redarguiu o conde, surpreso. - Por quê? Achou que não seria?
- Não... - O riso sumiu do rosto do barão, que empurrou o prato e fitou os olhos azul-claros do amigo, cheios de tédio. - O que estava sucedendo lá embaixo, Reggie?
- Um jogo de faraó, meu caro. Acredito que já tenha visto alguém jogando...
- Sabe a que me refiro, Reggie. Os comentários de Costain sobre Lizzie foram bem claros e garanto que você percebeu a provocação. Por que aquele patife está querendo
duelar com você?
- Ele só está bêbado, além de muito aborrecido por ter perdido o jogo - retrucou lorde Croyton. - Bem, acho que temos assuntos bem mais interessantes do que Costain.
Quais são seus planos para o futuro, agora que voltou à civilização, meu amigo?
Sir Anthony conhecia bem o conde; aquele jeito evasivo era o modo de lhe dizer que não insistisse. Não muito satisfeito por ter sido colocado fora de um problema,
pois estava convicto de que alguma coisa houvera, respondeu, todo formal:
- Pretendo restaurar Brentshire. Lizzie deve ter-lhe dito que eu ia ver a propriedade e que procuraria você assim que voltasse...
- É, pode ser que ela tenha dito, sim. Como sabe, minha memória não é das melhores. Espero que tenha encontrado tudo em ordem.
- Não quero aborrecê-lo com minhas dificuldades - esquivou-se o barão. - Tenho certeza de que seus problemas são mais do que suficientes - acrescentou, áspero.
- Realmente, ando muito aborrecido com a qualidade do último rapé que comprei. Além disso, há uma casaca que precisei devolver ao alfaiate, pois tinha defeitos.
São coisas tão cansativas!
O jovem barão ficou olhando, assombrado, para o amigo. Reggie sempre fora aborrecido, porém agora transformara-se em um almofadinha insuportável. Não ligava para
nada, só pensava em futilidade. Se três anos podiam modificar tanto uma pessoa, será que ele também mudara?, pensou. Se tivesse acontecido, esperava que fosse para
melhor. A voz de lorde Croyton tirou-o desse estado de introspecção, trazendo-o à realidade.
- Está sentindo alguma coisa, meu caro?
- Descupe, Reggie... Receio que não prestava atenção. O que você disse?
- Nada de importante... Não sei por quê, estou me acostumando com o fato de as pessoas não me escutarem!
Lorde Russelford parecera sentir, de súbito, um profundo interesse pelo vinho que havia em seu copo. Passaram-se alguns segundos até que ele, por fim, falasse,
hesitante:
- Estive pensando, Reggie... Será que Lizzie me receberia? Tivemos uma pequena desavença na última vez que nos vimos...
- No momento isso é muito difícil - respondeu o conde, com ar indiferente e casual. - Ela não se encontra em Londres.
O barão ergueu a cabeça, sobressaltado. Lembrou-se das palavras do sr. Costain, cheias de insinuação ao mesmo tempo que lhe vinha à mente a imagem de um envelope
caído no chão, endereçado a Martin Costain. Provavelmente, não notando os lábios do amigo se apertarem, o conde prosseguiu:
- Ela viajou para Valstry, com uma amiga, há mais de uma semana.
- Uma amiga? - perguntou o outro, desconfiado.
- Sim, dos tempos de escola... Não lembro do nome... Lizzie jamais me conta o que acontece! Por falar nisso, ninguém me conta nada, mas não interessa. Tenho certeza
de que, quando voltar, ela o receberá.
Lorde Russelford censurou-se: que direito tinha de ficar zangado? O que lady Elizabeth fazia não lhe dizia respeito. Afinal, não fora tolo o suficiente para não
se comprometer com ela?, meditava, o coração em tumulto.
- Quando ela estará de volta? - indagou por fim.
- Calculo que dentro de um mês...
O barão ficou tentado a interrogar ao amigo se a irmã lhe falara sobre a conversa que haviam tido, mas desistiu. Reggie já não era o mesmo e Lizzie não lhe fazia
confidências.
- Bem, acho que poderei esperar - suspirou. - Tenho trabalho bastante para me manter ocupado.
- Precisa ir jantar Já em casa uma noite dessas, Tony. Com Lizzie fora, fico muito só. O cozinheiro ainda é o mesmo, portanto a comida continua sendo apenas passável
- acrescentou, sorridente -, porém posso assegurar que lhe servirei o melhor vinho do Porto da cidade. Que tal na próxima quinta-feira?
- Quinta? Como nos velhos tempos? - perguntou o lorde, sem se comprometer.
Contudo, ele sabia que não era mais possível ser como nos velhos tempos, pois eles já não eram os mesmos.
- Está combinado - acrescentou e, meio sem jeito, despediu-se: - Desculpe, mas preciso ir, tenho muito que fazer amanhã.
Apertaram-se as mãos e sir Anthony teve mais forte a sensação de estranheza quando o aperto de mão do amigo tornou-se mais forte. Sir Re-ginald fitou-o profundamente
com os frios olhos azuis, enquanto dizia, sem traço algum de afetação:
- Se houver algo que eu possa fazer para ajudá-lo, é só me dizer, Tony. Então, o olhar do conde tornou-se evasivo outra vez e ele concluiu:
- Lembre que sou seu amigo.
Enquanto voltava para casa, andando, o jovem barão não conseguia recordar se agradecera ou não ao amigo a oferta de ajuda. Nem mesmo sabia ao certo se houvera
uma oferta, tão repentina fora a mudança de sir Reginald. Tinha apenas uma certeza; saíra do White's com mais dúvidas do que quando entrara.

CAPITULO XII

Quero ter uma conversinha com você, meu rapaz!
Lady Graneville entrou na biblioteca sem esperar para ser anunciada. Sentado à enorme escrivaninha, o conde ergueu os olhos de papéis que examinava e fitou-a
com carinho:
- E bom dia para a senhora também, tia Martie - disse, com ironia brincalhona.
A lady respondeu ao cumprimento com a cabeça e, olhando o rapaz com firmeza, tratou de tirar o chapéu e as luvas, enquanto sua expressão severa não se alterava,
ao dizer:
- Está mais do que na hora de conversarmos sobre o comportamento de sua irmã e o futuro dela... para não falar também no seu, meu menino!
Lorde Reginald levantou-se e deu a volta na mesa, enquanto elogiava a bela aparência da dama. Lady Graneville não resistiu e acabou sorrindo.
- Obrigada, Reggie! - Girou para que o sobrinho adotado pudesse admirar melhor o vestido novo. - Gosta? Normalmente, não ligo para a moda e não uso verde,
porém, fiquei encantada com este modelo e...
Ao perceber que o conde conseguira desviá-la do assunto que a levara ali, começou a rir e murmurou:
- Não vai me dar um beijo, menino? - Ao que o lorde obedeceu prontamente. Ela sentou-se. - Pedi a Childers para nos servir um chá.
- Mas eu não tomo chá e...
- Eu tomo, no entanto! O que aconteceu com suas boas maneiras, Reggie? Sente-se! - Observou, atenta, o rosto inexpressivo do jovem lorde.
- Como foi a viagem a Bristol?
- Bristol? Ah, sim! - exclamou ele, depois de situar-se. - Foi razoavelmente tranquila, a não ser na volta, quando tivemos de parar por causa de um salteador
muito interessante e...
- Onde está Lizzie? - interrompeu a dama.
- Em Valstry - respondeu ele, pestanejando. - Como eu ia dizendo...
- O que ela foi fazer lá?
- Não tenho a menor ideia do que uma pessoa faz no campo, tia Martie.
- Muita coisa, tais como cavalgar, caçar, pescar... - Ela calou-se, percebendo que fora desviada de novo. - Fez muito bem em tirá-la da cidade. Desta vez você
demonstrou algum juízo, rapaz. Fiquei chocada ao ouvir os rumores... Anthony Russelford está de volta! - Esperou a reação à novidade.
- É?
- Sei que é seu amigo, porém, não é um bom candidato a marido.
Agora, menos ainda. Já abordou todos os que conheço, atrás de dinheiro. Parece que tem um plano idiota de pôr a fábrica de papel em funcionamento de novo. Ele deve
ter enlouquecido, pois aquilo está desativado desde os tempos do avô dele! Pediu empréstimo até ao meu Henry, as sim como a qualquer pessoa que tem algum capital.
É horrível!
A entrada do mordomo com o chá impediu a resposta do conde. Observou enquanto as xícaras eram servidas e estremeceu de horror, mas aceitou a sua sem protestar,
sendo obrigado também a ouvir a preleção da lady sobre o bem que aquela beberagem fazia à saúde.
Confiante em que seria obedecida, que ele tomaria o chá, ela reatou a conversa.
- Não me diga que nada ouviu a respeito e que não foi abordado por ele!
- Ah, sim, ouvi! - concordou o lorde, depois de breve pausa. - Acho que alguém disse algo a respeito ontem, no White's... ou será que foi no Books?
- Os comentários estão fervendo. Será que ele não se importa com o que dizem? Parece que não, já que continua andando por aí, confiante, sem consideração pela
sensibilidade alheia. Imagine, sair alardeando a própria pobreza dessa forma! - Suspirou, exasperada, antes de continuar: - É um alívio você ter posto Lizzie a salvo.
Com certeza ela fugiria com ele, que assim teria seu problema de dinheiro resolvido... Ah! Isso me lembra por que vim aqui. Precisamos entrar em ação!
Lorde Croyton permaneceu mudo, meio alheio ao falatório.
- Sei que vai ser difícil - prosseguiu a lady -, pois Lizzie já não é uma mocinha. Pensei muito a respeito, porque amo essa menina e quero que seja feliz. Acredito
que o melhor candidato é o sr. Markham. Não é um homem bonito, nem muito moço, mas é um cavalheiro sensato, equilibrado e... Reggie! Você está me ouvindo?!
- Hein? - As palavras gritadas despertaram-no do devaneio em que mergulhara. - Sim, o sr. Markham...
- Nossa Lizzie é bem mais moça do que ele, reconheço, porém creio que isso até pode ser uma vantagem. Assim ela terá alguém que saiba controlá-la. Aquela menina
está precisando de disciplina, coisa que jamais lhe foi imposta. Você sempre foi um bom menino, Reggie, e sei que quer o melhor para ela, mas não creio que tenha
consciência da situação delicada em que sua irmã se encontra. Lizzie recusou todos os pedidos de casamento que recebeu. Um comportamento inacreditável! Além de solteirona,
está ficando velha...
- Todos nós estamos, tia Martie.
- Em pouco tempo - voltou a falar a dama, ignorando o aparte -, nenhum homem decente irá querê-la como noiva e os caçadores de dotes a perseguirão. Aliás, isso
já está acontecendo! Aquele Martin Costain anda sendo visto perto dela, quase sempre. O caso é muito sério, Reggie!
Lady Graneville fez uma pausa para descansar, antes de ralhar amorosamente com o sobrinho adotado.
- Não sei se foi por desconhecimento ou por negligência, mas o fato é que você deixou essa situação ir longe demais. Só espero que ainda seja possível fazer algo
a respeito. Vou falar com Lizzie sobre o sr. Markham.
Ele só precisa de um pequeno encorajamento.
- O sr. Markham é um maçante! - O conde expressou sua opinião pela primeira vez, franzindo as sobrancelhas. - Ela vai deixá-lo louco em menos de uma semana.
- Pois eu acredito que eles combinam! Se tem outra sugestão, diga.
- No momento, não. Preciso pensar a respeito.
- Não leve muito tempo pensando: é sua responsabilidade fazer sua irmã entender a situação! - A lady considerou o silêncio dele como aceitação. - E gostaria de
lembrá-lo que também o seu comportamento deixa muito a desejar. Como pode sair por aí contando histórias de moral duvidosa para jovens damas? Mesmo que seja para
sua irmã! Quando fui contar do sr. Costain a Lizzie, ela já sabia de tudo, porque você lhe narrara! Essas coisas não devem ser ditas a jovens e a senhoras que se
prezam!
- E como a senhora ficou sabendo delas, tia Martie? - indagou ele, em tom brincalhão.
- Sou uma mulher casada, Reggie! - respondeu a dama, amuada.- Isso modifica tudo.
- Quer dizer que depois de casar - começou o rapaz, colocando a xícara, cheinha ainda, sobre a mesa - Lizzie poderá ouvir qualquer barbaridade?
Lady Graneville viu-se obrigada a conter o riso. Não havia como argumentar com alguém tão impossível quanto o conde de Drenview. Resolveu mudar de assunto.
- Um homem da sua posição precisa tomar cuidado, Reggie. É rico, tem um título, é moço e... bonito. Um verdadeiro bom partido! As mulheres irão persegui-lo. Deve
prestar atenção no que diz e...
- Obrigado por tantos elogios, tia Martie, mas o que poderia acontecer de tão terrível?
Satisfeita por ter conseguido a atenção do conde e achando que já resolvera o problema de Lizzie, a boa dama tomou fôlego e abordou o outro tema que a levara
até lá.
- Com quantos anos você está, Reggie?
- Não lembra quantos anos eu tenho, tia?
- Vinte e cinco! Quanto tempo ainda pretende esperar? Até os trinta? Será tarde demais. Você tem um nome e um título a considerar.
- Não diga que descobriu a pessoa certa para me ensinar um pouco de disciplina, tia Martie! - gemeu ele, alarmado.
- Para dizer a verdade...
- Minha querida tia - interrompeu-a o lorde, severo -, permito-lhe que decida sobre o casamento de Lizzie, porque concordo que está na hora de minha irmã se casar.
Mas não concordo que o mesmo ocorra comigo. E, antes que possamos dizer alguma coisa que nos cause arrependimento mais tarde, deixe-me informá-la que pretendo escolher
pessoalmente minha companheira de aventuras.
Surpreendida com a veemência tão pouco característica do sobrinho adotado, a lady decidiu deixar que o assunto morresse. Caiu um silêncio pesado entre eles, até
que lorde Reginald perguntou:
- Só por curiosidade, tia Martie, qual a esposa ideal que descobriu para mim?
Ele se arrependeu da pergunta e maravilhou-se com a própria paciência, pois teve de aguentar duas horas de discurso sobre os atributos de várias jovens damas
que a lady achava dignas da atenção dele. Só depois de eliminar a todas e ofender Lady Graneville pela segunda vez naquele dia, é que ela se resignou e desistiu.
Às quatro horas da tarde, em ponto, lorde Croyton apresentou seu cartão ao secretário e pediu que fosse entregue ao sr. Bach. O sr. Biddle não estava acostumado
a receber nobres de tão alta estirpe; então, foi imediatamente à presença do patrão e, como esperava, este lhe disse que introduzisse o cavalheiro sem demora.
- Agradeço por receber-me, senhor - disse o lorde e, dispensando formalidades, foi ao ponto. - Sei que é muito ocupado, não pretendo tomar seu tempo. Em
geral não me interesso por negócios alheios, porque acho essa uma atitude degradante e exaustiva. No entanto, apesar de considerar isso uma fraqueza minha, vejo-me
inclinado a fazê-lo dessa vez.
- Essa, sir, não é uma boa atitude para um homem de negócios...
Por acaso, está interessado em comércio, milorde?
- Não especialmente - respondeu ele, evasivo. - Mas tenho um amigo interessado em reativar uma velha fábrica de papel e tenho motivos para supor que ele procurou
o senhor.
- Sir Anthony? De fato, esteve comigo na semana passada.
- Então, o senhor está a par dos planos dele.
O sr. Bach fez que sim, enquanto tossia, embaraçado. Não dera grande atenção aos esquemas que o barão lhe mostrara, e agora encontrava-se em posição delicada,
pois deveria explicar ao conde por que não se interessara por aquele negócio. Seria pouco diplomático de sua parte ofender o nobre, ainda mais que a irmã dele agraciara
sua filha dando-lhe amizade... Entretanto, como sempre fora um homem franco e direto, principalmente em negócios, decidiu agir assim.
- Por inúmeras razões fui obrigado a recusar uma sociedade com seu amigo - explicou. - Para citar algumas...
- Sir Anthony não tem experiências - interrompeu-o o lorde -, suas ideias são inovadoras e arriscadas, o investimento não oferecerá retorno imediato, o lucro
será praticamente nulo no início e terá de ser reaplicado em equipamentos. Estas são apenas algumas das desvantagens, não é, sr. Bach?
O negociante estreitou os olhos e avaliou o cavalheiro a sua frente, imaginando qual seria o interesse dele no negócio.
- O senhor - prosseguiu o conde - considera o projeto uma loucura total, completa, além de inevitável, ou se recusou a associar-se por ser cauteloso?
- Diria que a segunda colocação é a minha.
- Quer dizer que um bom incentivo poderia levá-lo a mudar de opinião?
- Pode ser. Por acaso, o senhor verificou os planos de sir Anthony?
- Cal Jeffries, com quem tenho feito negócios, estudou o caso a meu pedido, na semana passada. Ele considerou o projeto bem-feito e razoável - explicou o conde.
- No entanto, preciso tomar certos cuidados por estar envolvido pessoalmente com o barão.
- Mas não é por isso que está aqui, suponho. O senhor poderia ser orientado pelos homens que cuidam de seus investimentos.
- De fato, senhor. - Lorde Croyton levantou-se e passou a brincarcom o monóculo. - Não vim fazer consulta, e sim propor uma troca.
- Minha sociedade e patrocínio para o empreendimento de sir Russelford - adivinhou o negociante -, em troca de...?
-. Da certeza que seu pedido de um título será atendido.
- Já me ofereceram isso antes - disse o sr. Bach, desapontado.
- Não eu. O pedido foi recusado por quatro vezes nos últimos sete anos, de onde concluo que um título é importante para o senhor.
Silenciosamente, o sr. Bach pesou a importância do que vinha desejando há dez anos e o quanto iria custar-lhe.
- Não acho que o senhor deva arcar com todo o custo do projeto, senhor - acrescentou o lorde -, pois sei que um título não justifica tanto risco. Portanto,
estou disposto a responder por vinte e oito por cento das despesas, desde que me dê sua palavra de que minha participação ficará só entre nós dois. Creio que essa
quantia representa meus investimentos em suas empresas... Será que faremos acordo, senhor?
O negociante pensou durante alguns momentos, imaginando se o conde retiraria seus investimentos diante de uma recusa. Por fim, assentiu.
- Ótimo - disse lorde Reginald. - Então, passemos a discutir os detalhes.
- Milorde tem o dom de negociar... - declarou o sr. Bach, uma hora mais tarde. - Vou pedir ao meu secretário que prepare os documentos e marcar uma entrevista
com sir Anthony Russelford.
- Agradecia muito, já que a aflição dele está se tornando um tormento para todos... - lamentou-se o conde, triste. - Apenas, não esqueça que o nosso acordo deve
permanecer só entre nós.
- Assim será, milorde - prometeu o sr. Bach. Antes que ele se retirasse, indagou: - Desculpe a curiosidade, sir, mas por que, simplesmente, não ofereceu os fundos
necessários ao seu amigo?
- Ele não me pediu e, sejam quais forem os motivos dele para isso, eu os respeito, pois prezo muito a amizade de sir Anthony. Tenho um princípio, também:
não misturar negócios e amigos. O senhor pode assumir meu lugar nesse caso, porque costuma financiar projetos e isso me permitirá ficar de fora. Além disso, o senhor
é um homem respeitado pela reputação de negociante honesto e capaz. Este fato, aliado à inteligência e à determinação de sir Anthony, garantirá o sucesso da empreitada.
Meu amigo tem muito que aprender com o senhor... e tenho certeza de que o contrário também é verdadeiro.
Lorde Croyton fez um cumprimento com a cabeça, dirigiu-se para a porta, porém, antes de abri-la, voltou-se e acrescentou:
- A maior razão de ter procurado um acordo com o senhor é que gosto de seguir a lei do menor esforço. Sabia que iria aceitar e, se hesitasse, eu teria
várias outras propostas que, certamente, iriam convencê-lo.
O sr. Bach riu, enquanto comentava:
- E o senhor ainda assim afirma que não é um negociante?
- Não, especialmente, senhor - sorriu o conde.

CAPITULO XIII

Localizada num promontório, a mansão de Valstry apresentava ao mundo uma fachada imponente. O estilo arquitetônico normando da torre de pedra e uma parede era
tudo o que restava de sua estrutura inicial. A elas fora acrescentado um prédio estilo elisabetano, e era evidente que nenhum dos últimos condes resolvera pôr uma
ordem estética naquela caótica mescla de estilos. Esse fato se evidenciava ainda mais nos jardins: caminhos bem conservados conduziam a caramanchões isolados, espalhados
por maciços de flores, em desordenada mistura, que coloriam o jardim sem nenhuma ordem, a não ser a da natureza. O brilho das cores encantava a quem visse as flores.
O sr. Martin conservava-se junto à parede, de onde observava a srta. Bach e lady Elizabeth, sentadas em um banco do jardim. Não levara muito tempo.para descobrir
onde haviam escondido a sua herdeira, com cuidadosas indagações.
Lorde Croyton e a irmã constituíam o único obstáculo a sua realização financeira. Infelizmente, o conde não aceitara a provocação que lhe fizera naquela noite,
no White's. A sorte que Martin Costain costumava ter nas mesas de jogos de azar o havia abandonado, no momento em que mais precisava dela. Por isso, não pudera mais
esperar com paciência por um oportuno momento de vingança e decidira raptar a srta. Va-lerie, envolvendo o sr. George Bach e o conde de Drenview em um escândalo
que os faria arrepender-se de persegui-lo.
Sem saber que era observada, a jovem lady ergueu os olhos do livro que lia e sorriu, alegre, enquanto dizia à amiga que, pelo jeito, o sr. Wal-lace descobrira
o esconderijo delas. Agradavelmente surpresa, a srta. Bach suspirou, feliz, ao ver que o rapaz se aproximava, com ar alegre e feliz.
- Vim para a região a negócios - explicou ele, hesitante -, então pensei que poderia fazer uma visita... Espero não incomodar.
- De maneira alguma! - exclamou Valerie, corando.
Ela notara que o sr. Wallace emagrecera bastante, o que fazia com que a roupa lhe assentasse melhor. Sua aparência era ótima, a não ser pela tendência a ficar
vermelho quando embaraçado, como naquele momento.
- Por favor, sente-se - convidou lady Elizabeth. - Tenho certeza de que aceitará um refresco. Se me derem licença, irei providenciar.
Com um sorriso encantador, ergueu-se e dirigiu-se à mansão. Ficara feliz pelo fato de o sr. Wallace ter aceito seu convite: antes de partirem de Londres, ela
o informara e pedira que fosse visitá-las, pois estava certa de que Valerie logo esqueceria o incidente com o sr. Martin Costain.
Estava tão imersa nos pensamentos, que não percebeu que outra visita a aguardava na saleta onde acabava de entrar. Antes que percebesse, foi abraçada e seus lábios
roçados com um toque leve, porém emocionado.
- Lizzie, sou eu! - Sir Anthony ria, enquanto ela se debatia. Acabou por soltá-la. - Tenho ótimas notícias! Estive em Brentshire e descobri o modo de torná-la
rentável. Vou pôr a fábrica de papel para funcionar. Arranjei um sócio que entrará com o capital para a reforma e compra da maquinaria necessária. Dentro de alguns
anos estarei tendo lucros. Já começamos a trabalhar. Na verdade, eu deveria estar lá neste momento -sorriu, envergonhado -, mas antes queria vê-la.
- Fico feliz... - respondeu ela, ainda atordoada.
O barão, cheio de entusiasmo, continuou explicando o que houvera e quais eram seus planos. Lizzie sentou-se num sofá, acompanhando-o com o olhar, porque ele andava
de um lado para outro, falando. Ela não prestava a menor atenção no que sir Anthony explicava e não poderia repetir uma só palavra, pois sentia-se emocionada demais.
Além disso, o barão falava depressa, usava termos técnicos que Lizzie não entendia.
- O controle do projeto é meu - acrescentou o lorde, sem fôlego, quinze minutos depois. - A terra é minha e não pretendo perdê-la. Sabe o que quer dizer...? Que
poderemos nos casar! - Como ela ficasse em silêncio, ele completou: - Não imediatamente, é claro, já que tenho muito trabalho pela frente. Talvez dentro de um ano...
O que acha, Lizzie?
- Não sei o que dizer - murmurou a moça. - Sinto-me tão feliz! Mas temos de esperar um ano mesmo?
Ele riu e sentou-se ao lado dela, tomando-lhe as mãos.
- É só um ano e vamos nos ver sempre!
- Eu não quero só ver você - reclamou a jovem, evitando fitá-lo, pois ficara muito corada.
- Não pode me culpar por querer que tudo seja perfeito entre nós... - disse ele, acariciando-lhe os dedos longos, delicados, enquanto seu coração batia mais forte.
- Preciso de um ano, Lizzie, e estou convicto de que Reggie fará essa exigência.
Ainda não falou com ele, não é? - Soube a resposta ao ver que ele evitava olhá-la. - Esteve com meu irmão? - Ele fez que sim. - Mas não tocou no assunto, como
eu pedi que fizesse... Por que não pediu a ajuda dele?
- Não preciso da ajuda de Reggie - respondeu ele, tenso.
- Claro! Agora, não. Mas, antes? - Ela sacudiu a cabeça, reprovadora e já conseguindo pensar melhor. - Você nunca pede, sempre determina. Você decidiu que devemos
esperar mais um ano, resolveu o que é melhor para nós e acha que eu tenho de aceitar. Contudo, não vou ficar aguentando momentos difíceis, só porque você determinou
o que deve ser feito!
Fez uma pausa para tomar fôlego e ergueu a mão para impedir lorde Rus-selford de falar. Então, prosseguiu:
- Por acaso, acredita que é o único a ter orgulho? Esperei anos por algum sinal de quais eram seus sentimentos, e afinal descubro que não me incluiu em seus planos
para o futuro. Mesmo assim, acha que vou me dispor a esperar durante um ano! Se está pensando que pode entrar e sair da minha vida como bem entende, pode rever suas
ideias, sir! Sempre considerou meu amor como algo garantido, ignorou meus pedidos, quebrou a promessa que me fez e...
- Conversarei com Reggie assim que chegar a Londres - afirmou o barão, depressa, quando ela parou de novo para respirar -, se isso a torna feliz.
- Oh, Tony! - soluçou ela. - Será que nunca vai me entender se eu falar tanto?
Quando o jovem barão pôs-se a caminho de Londres, quinze minutos depois, sentia que falhara, porque não conseguira devolver o brilho aos lindos olhos azuis de
sua amada.
Um movimento na floresta chamou-lhe a atenção, e, de repente, um garanhão negro saiu dentre as árvores, a galope, indo estrada afora. Pôde reconhecer o cavaleiro:
era Martin Costain.

CAPITULO XIV

Quando chegou a Londres, o barão descobriu que os planos para a rea-tivação da fábrica de papel exigiam sua atenção imediata, pois encontrou recado urgente do
sr. Bach. Reuniu-se várias vezes com ele, com engenheiros e fornecedores. Precisou contratar operários e organizar uma contabilidade. Essas coisas, mais três viagens
a Brentshire, ocuparam cada minuto.
Como não era homem de perder tempo ou energia, dedicou-se às tarefas com intensidade assustadora e, sem nunca demonstrar cansaço, tomou as rédeas da situação
com firmeza. Ocupou a mente e o corpo de tal maneira, que toda vez que retornava a Londres lembrava-se da promessa feita a lady Elizabeth, mas não conseguia cumpri-la.
Passou-se uma semana até conseguir alguns momentos para ir até a mansão dos Croy-ton, em Hanover Square.
Apesar de paciente, sir Anthony não conseguia esconder a ansiedade, enquanto esperava por lorde Reginald, na biblioteca.
- Tony! - exclamou o conde, assim que abriu a porta. - Você está atrasado.
- Atrasado? - indagou o barão, confuso.
- Para o nosso jantar de quinta-feira. Fiquei mortificado por você ter faltado ao nosso compromisso. Não mandou sequer um recado e tive de tomar a garrafa de
vinho sozinho. Sei que anda muito ocupado, porém note que nem mesmo eu esqueci que tínhamos um jantar!
- Mil perdões, milorde! - Sir Anthony fez uma reverência brincalhona. - Sinto muito ter perdido o vinho do Porto.
- E o que o traz aqui, meu caro?
Sir Russelford aceitou a cadeira oferecida e observou o amigo equilibrar-se na beirada da mesa, balançando uma perna.
- Prometi a Lizzie que viria vê-tò. - Então, reparou que começara o discurso de maneira errada e emendou: - O que quero dizer é...
Foi interrompido pela entrada de Childers, carregando uma bandeja com bebidas.
- Eu não quero nada, obrigado - disse sir Reginald. - Contudo, sirva um sherry a lorde Russelford, que ele está precisando.
Tenho certeza - começou o barão, depois de tomar um bom gole da revigorante bebida - de que você está a par de meus negócios, já que não tenho feito segredo.
Tive de vender tudo na Jamaica para comprar a passagem de volta, e achei que teria de vender também Brentshire, mas descobri o jeito de...
E sir Anthony passou a expor seus planos ao amigo, que o ouvia com educado ar de interesse. Subitamente, interrompeu-se, embaraçado:
- Afinal, por que estou lhe contando o que já sabe?
- Como assim?
- Não sou nenhum idiota, Reggie...
- Desculpe desiludi-lo, porém não sei do que fala.
- Da reforma da fábrica de papel.
- Ah, sim! Estou feliz por você. Sabia que as coisas iam dar certo. Precisa de algo, meu amigo?
- Reggie - o barão não pôde deixar de sorrir -, por acaso pensou que eu não ia chegar à conclusão? Creio que você divertiu-se bastante, mas a brincadeira acabou...
- Levantou-se, calmo. - Sinto, porém não posso aceitar, meu caro.
- Desculpe, contudo preciso perguntar. Não pode aceitar o quê?
- O dinheiro. - E sir Anthony tirou do bolso um papel que recebera naquela tarde e entregou-o ao conde. - Fique com ele, Reggie.
O lorde examinou o papel, com o monóculo. Era um cheque.
- Adoraria ficar com ele - afirmou sorrindo -, mas não me lembro de que você me devesse algum dinheiro.
- A primeira vez que fui falar com o sr. Bach, ele não se interessou pelo meu projeto. De repente, tudo mudou. Não só quis se associar a mim, como passou a me
oferecer numa bandeja de prata tudo o que preciso... a ponto de hoje me dar esse cheque. Eu devia ter visto logo que tinha seu dedo nisso, meu amigo.
Lorde Croyton passou a brincar com o monóculo, desviando os olhos do amigo.
- Que eu saiba - disse, enfim -, vocês dois assinaram um contrato. Portanto, esse dinheiro é seu.
- Você sabia que eu não aceitaria seu dinheiro...
O sorriso amargo do amigo não passou despercebido para o conde, que comentou, com voz desprovida de emoção:
- Se eu fosse você, pegaria esse dinheiro que aquele tolo lhe deu e compraria umas roupas. Vejo que ainda não foi visitar um alfaiate... Vai negar que teve algo
que ver com a mudança do sr. Bach? -pressionou o barão.
- Meu caro amigo... - Lorde Reginald suspirou profundamente, com ar desanimado. - Por que é tão teimoso? Se isso o fizer ficar mais feliz, confesso que sou culpado.
Será que assim termina a sua inquietação?
- Que direito você tinha de interferir na minha vida?
- Sinto discordar - respondeu o conde, com jeito quase antipático -, mas a felicidade de minha irmã me dá todos os direitos. Tony, acha que eu ia permitir que
meu futuro cunhado fizesse papel de tolo? - indagou, em tom mais amigável. - Por que não veio falar comigo, logo depois que voltou da Jamaica? - Uma expressão de
mágoa passou, fugaz, pelo rosto bonito do nobre. - Não precisa responder: estou convencido de que não aguentaria um discurso sobre suas nobres intenções.
Você não é o único a ter nobreza de caráter, e, se não tivesse agido de maneira tão pouco razoável, eu teria um pouco de paz!
Sir Anthony sorriu, diante da repreensão.
- Desculpe, Reggie, porém quero lembrá-lo de que também agiu de maneira pouco razoável. Procure entender minha posição: eu não podia pedir-lhe dinheiro... principalmente
porque você mudou muito.
- Parece-me - replicou o conde, colocando o monóculo e fitando o amigo - que todos nós mudamos. Você sempre foi mais do que um amigo, quase irmão. E, já que se
falou em dinheiro, recorda-se daquela vez no colégio, quando eu...?
- É melhor esquecermos esse fato - aconselhou o barão, rindo.
- Bem, de qualquer modo, você me livrou da encrenca e sou-lhe grato. Aliás, não foi a única vez. Agora que posso retribuir os favores que me fez, tem um inconveniente
ataque de pudor. Isso é deveras cansativo, meu caro.
- Talvez você tenha razão... mas reconheça que arranjou um modo muito esquisito de me retribuir pequenos favores!
- Desculpe-me - retrucou lorde Croyton -, porém por acaso não esqueceu o verdadeiro propósito de sua visita? Ou será que essa foi uma introdução improvisada para
me distrair?
O jovem barão ignorou o comentário irónico e pôs-se a andar de um lado para outro, agitado. O silêncio na biblioteca era absoluto. O conde, que balançava as pernas
e o monóculo quase no mesmo ritmo, observava o amigo com um ar sonolento.
- Lizzie - murmurou sir Anthony, por fim. E, mais alto: - Será que estou sendo tolo, meu amigo? O que devo fazer?
- Sim, está sendo mais do que tolo. E o que pode fazer, em primeiro lugar, é parar de andar desse jeito, pois está me deixando tonto. - O barão parou imediatamente.
- Agora, o que deve fazer em seguida é pegar esse cheque e ir comprar algo decente para vestir.
Lorde Anthony balançou a cabeça, incrédulo. Seu amigo sabia, mesmo, ser maçante!, pensou.
- E, quando estiver devidamente trajado - continuou o conde -, iremos até Valstry e...
- Não!
- O que quer dizer não! Por acaso, significa que não quer casar com a minha irmã?
- Você não entendeu, Reggie! É claro que eu desejo me casar com Lizzie. Sempre quis, desde a primeira vez que a vi.
Havia desespero no semblante contraído de sir Anthony. Já lorde Croyton, por sua vez, sentiu calafrios ao lembrar da irmã, menina, quando o amigo a conhecera.
Foi sentar-se em uma poltrona e ergueu os olhos para o amigo.
- Verdade? Agora é que não entendo mais nada. Quanto mais o escuto, menos sentido as coisas têm. Uma hora você quer casar, depois, de súbito, não quer
mais... Está me deixando tonto de novo.
O barão de Brentshire gemeu e sentou-se diante do amigo, para tentar explicar.
- Ela está furiosa comigo... e com razão - declarou, depois de contar a última conversa que tivera com Lizzie. - Ignorei os sentimentos dela, fiz tudo errado,
entende?
- E nem ofereceu-lhe uma rosa, para se desculpar? Aposto que também não tentou se defender, não é?
- De que jeito, se tudo o que ela disse era verdade? Se eu soubesse que você tinha interferido junto ao sr. Bach, não teria ido a Valstry.
- É... Quando fica zangada, minha irmã não mede as palavras -comentou o conde, penalizado.
- Eu não teria ido, por respeito a você, Reggie!
- A mim?
A sala estava na penumbra, pois o sol fora coberto por nuvens. O jovem barão também se sentia sombrio.
- Amo Lizzie mais do que tudo no mundo - murmurou - e quero que seja minha esposa. Não podia me casar com ela, porque nada tinha para lhe oferecer. Agora
tenho, mas não é realmente meu... e só quando for poderei fazê-la minha esposa.
Tenso, passou a descrever o muito e quanto tempo teria de trabalhar para tornar a fábrica de papel produtiva, porém lorde Croyton parecia não prestar atenção.
Dava impressão de apenas estar vendo o monóculo,
que girava entre os dedos, só que um sorriso triste pairava-lhe nos lábios. Quando o amigo terminou a explicação, perguntou a si mesmo por que se dera a esse
esforço. Foi então que o conde fitou-o rindo, triunfante.
- Obrigado por me explicar tão bem a situação, meu caro! Agora entendi.
Levantou-se, serviu um cálice de sherry para si e completou o do barão.
- Se fosse outra pessoa, não você, seria diferente - insistiu sir Anthony. - Como posso aceitar seu dinheiro, se recusei o dela? Seria como você estar
me pagando para casar com sua irmã!
Ao dizer aquilo, sentiu-se mal, lembrando-se imediatamente do sr. Martin Costain. Afirmou, desarvorado:
- Mesmo Lizzie... tenho impressão de não conhecê-la mais...
- Acha que há algo sobre ela que você não sabe, Tony?
- Pode ser... Estive três anos fora e, agora, parece que só conseguimos discutir quando estamos juntos. - A imagem de Costain passou- lhe pela mente. - Será que
os sentimentos de Lizzie não mudaram?
- Oh, meu Deus! - lamenlou-se o conde. - Será que o amor transforma todo mundo em idiota? É demais!
Sir Anthony resolveu encarar aquelas palavras como uma negativa, mas ainda assim sentia-se desconfiado. Arriscou:
- E o sr. Costain? Pode me explicar a presença dele mais ou menos constante entre nós?
- Infelizmente, não tenho permissão para falar sobre isso. Você terá de confiar em mim quando lhe digo que ele nada tem que ver com Lizzie... pelo menos, não
do jeito que está imaginando. Esqueça Costain e qualquer outro homem!
As últimas palavras, ditas num tom estranhamente agudo, causaram um sobressalto no barão, porém logo a voz de sir Reginald voltou ao normal.
- Embora eu odeie me envolver na vida dos outros, vocês não me dão outra saída. E eu que me imaginei num papel totalmente diferente? Que diabo!
- De que está falando, Reggie?
- Na minha opinião - agora lorde Croyton é que se pusera a andar de um lado para outro, com ar aborrecido -, neste momento vocês dois estão fora de sintonia!
Você não consegue decidir se quer casar com ela e Lizzie não sabe se deve aceitá-lo ou não. Ela diz que você não leva em conta seus sentimentos e você diz que não
a conhece mais. Para piorar tudo, nenhum de vocês se deu ao trabalho de saber o que eu penso a respeito dessa confusão toda! Aliás, isso não deveria me surpreender!
- Como assim? - Lorde Russelford sentia-se aparvalhado. - Está retirando seu consentimento?
- Como posso retirar o que ainda não dei, homem? Pode me considerar o responsável pela sua situação financeira, se quiser. O que não entendo é por que acha que
nossa relação de negócios impede você depedir Lizzie em casamento e ela de aceitá-lo. É ridículo! Minha irmã não entende de negócios e, se um dia vier a saber da
situação, não será por mim. Aliás, meu acordo não é com você, e sim com o sr. Bach. E, se eu quero jogar meu dinheiro fora, o problema é meu!
Calou-se, pensou um pouco, com a testa franzida, depois continuou:
- A não ser, talvez, problema também dos meus credores. Tenho certeza de que não vou jogar dinheiro fora. Conheço você há anos e estou convicto de que,
apesar de algumas mudanças superficiais, continua o mesmo. Sei que receberei meu investimento de volta, e com lucros! Aposto mil libras que em menos de quatro anos
você estará côm a fábrica funcionando a toda e terá controle total sobre os negócios. Portanto, não entendo por que deixa o orgulho idiota comprometer seu bom senso.
-Suspirou. - Bem, pondo isso tudo de lado, quero deixar bem claro que não vou admitir que você ponha minha irmã em segundo plano por causa de uma pilha de madeira
e tijolos!
Sir Anthony estava a ponto de ficar ofendido, quando seu lado prático assumiu o controle da situação. Calou-se.
- Eu poderia ignorar todas as objeções - prosseguiu lorde Croyton -, se pelo menos vocês se entendessem, entrassem em sintonia, Tony. Minha paciência chegou ao
fim, e digo-lhe, com toda sinceridade, que não pretendo passar o resto de meus dias como mediador do casamento de vocês!
- Quanto a isso, não precisa se preocupar, meu caro - replicou lorde Russelford, levantando-se. - Eu não estava a par do que pensava e agradeço por ter deixado
tudo bem claro. Gostaria, com sua permissão, de visitar Lizzie, assim que ela regressar de Valstry.
- Ora essa, Tony! Sente-se!
- Entendo suas objeções e já esperava por elas. De qualquer modo, eu disse á Lizzie que teríamos de esperar um ano para nos casarmos, e assim vai ser.
- Mais um ano? Disse isso a ela, seu louco? Como Lizzie o deixou sair vivo de Valstry?
- Creio que não conhece sua irmã tão bem quanto pensa... - declarou sir Anthony, imitando o ar enigmático do amigo.
- Será? - indagou o outro, com superioridade. - Lizzie é teimosa,
temperamental e perdida de amor por você. Por exemplo, guardou as suas cartas e as relê todos os dias. - Voltou-se para a janela com ar de enfado, mas o pigarro
na garganta demonstrou que estava emocionado. - Corre à janela quando acha que você está chegando e se esconde por medo que você perceba... Comportamento tolo, na
minha opinião!
- Também releio as cartas de Lizzie... - confessou sir Anthony.
- É mesmo? E não julga isso uma tolice?
- Não, porque eu a amo, Reggie. Não tenha dúvida quanto a isso! - afirmou, decidido.
- Não tenho, meu caro...
- Mas não é a você que eu devia dizer isto - reconheceu o outro, sorrindo.
- Fica para jantar comigo? Detesto comer sozinho - convidou o conde, sorrindo também.
O barão surpreendeu-se com a mudança de assunto. Aceitou o convite, porém afirmou que tinha algo que fazer antes. Ao sair, sussurrou:
- Aceito a aposta, Reggie. Você disse quatro? Terei total controle da fábrica em três anos, e você terá todo seu dinheiro de volta e os lucros em cinco.
Até logo, amigo.
Saiu antes que lorde Croyton pudesse retrucar. O conde só despertou de seus devaneios quando Childers entrou na biblioteca para acender as velas. A noite caíra
por completo.
- Childers - perguntou ele ao mordomo -, o que acha de pessoas que ficam esperando nas janelas e guardam cartas?
- Não sei, sir... - respondeu o criado, indeciso. - Teria algo que ver com amor? - arriscou com medo.
- É... O amor é a emoção mais exagerada que existe. Ah! Sir Russelford jantará comigo hoje.
E o conde retirou-se, deixando o fiel Childers com sérias dúvidas sobre a sanidade daquela família.

CAPITULO XV

Lizzie continuava indignada com a atitude de superioridade exibida por sir Anthony e dizia a si mesma que ele merecera o tratamento que lhe dera, depois do sofrimento
que inflingira a ela. Mas reconhecia que seu temperamento impulsivo a fizera reagir em momento pouco adequado e de modo um tanto injusto: Tony se desculpara, concordara
em falar com Reggie. No entanto, já se havia passado uma semana e ele não a procurara.
Ela perdera o apetite e quase não dormia. Sabia que era inútil agir assim, mas não conseguia se controlar.
O sr. Wallace visitava Lizzie e Valery constantemente, e a jovem lady inventava obrigações urgentes, para deixá-los a sós. Isso a obrigava a passar muito tempo
sozinha, e então pensava demais. Procurara distrair-se com trabalhos caseiros e leitura, porém descobrira não servir para os primeiros e não ter cabeça para o segundo.
Não descuidava da amiga, e, nesse momento, de uma janela, observava o jovem casal no jardim.
Tentou imaginar o que conversavam e lembrou-se do próprio encontro com Tony, o que a deprimiu mais. Procurou concentrar-se no bordado, enquanto pensava que Valerie
vinha se monstrando meio distante, desde que tinham chegado a Valstry. Raramente ria das brincadeiras de Lizzie, passavam longos momentos em silêncio, e a lady preocupava-se,
pois atribuía o fato à perturbação causada pela atitude do sr. Martin Costain. As visitas do sr. Charles Wallace haviam animado bastante a jovem e, quando Lizzie
passava a julgar que tudo ia bem, Valerie começa a se comportar daquele jeito estranho.
À hora do almoço, quando uma criada disse que a srta. Bach não almoçaria por estar com dor de cabeça, Lizzie foi vê-la. Estava deitada. Então, ajeitou-lhe os
travesseiros e aplicou-lhe compressas de lavanda na testa, notando que os nervos da amiga estavam bem piores que os seus, que se encontravam à flor da pele. Valerie
adormeceu depressa e, ao recolher o vestido dela, de musseline branca, que estava no chão, um envelope caiu. Ao reconhecer a letra, o coração da jovem lady disparou.
Abriu-o e leu o bilhete duas vezes, antes de recolocá-lo no bolso do vestido, que pôs sobre uma cadeira.
Subiu correndo a escada, para o terceiro pavimento da mansão, sentindo os joelhos fraquejar. Já em seu quarto, sentou-se, ofegante, o corpo percorrido por calafrios,
enquanto sua visão se perturbava. Vou desmaiar, pensou. Mas como, eu nunca desmaio!
Foi então tomada por tal raiva, que a sensação de vertigem desapareceu. Como eles tinham coragem de usá-la daquela forma? Primeiro Tony, agora Valerie! O que
fizera para merecer tanta falsidade e mentira? Será que não havia alguém em quem pudesse confiar?
No bilhete estava escrito: "Encontre-me esta noite atrás do castelo", a assinatura era de Martin Costain. Isso explicava a mudança de sua amiga. Como ela era
tola a ponto de cometer o mesmo erro outra vez? Reconhecia que antes talvez a situação não lhe dissesse respeito, porém agora era diferente. Ela não ia permitir
que Costain e Valerie usassem Valstry daquela maneira sórdida.
A tarde passou rapidamente, e a srta. Bach, alegando dor de cabeça, retirou-se logo depois do jantar. Lizzie mostrou-se muito solícita com a amiga doente e disse
que se deitaria cedo, pois também sentia-se exausta. No entanto, às onze e meia encontrava-se à janela da sala de visitas, atenta ao que se passava lá fora. Quinze
minutos depois uma figura coberta por uma capa preta, da cabeça aos pés, emergiu e dirigiu-se para trás da mansão, onde havia um trecho de árvores, perto da parede
em ruínas de um antigo forte.
Imediatamente Lizzie saiu também, atrás da amiga. A noite estava fria, o céu encoberto e ela prosseguiu escondendo-se atrás de arbustos e árvores, até localizar
Valerie, mais adiante. Seu coração disparou ao ver um vulto alto emergir de entre as árvores e a jovem dirigir-se para ele, apressada.
A lua, que aparecera, medrosa, entre as nuvens, foi encoberta novamente e tudo ficou mais escuro, impedindo a lady dé ver o que acontecia. Ela saiu correndo e,
de repente, sentiu-se presa pela cintura e teve boca e nariz tapados. Em pânico, lutou desesperadamente para soltar-se e foi ficando sem respiração. Para evitar
um desmaio, obrigou-se a acalmar-se e descontraiu o corpo. Quem a segurava deveria ter pensado que ela perdera os sentidos, já que retirou a mão brutal, permitindo-lhe
respirar. Seus pulmões doíam.
Meio carregada, meio arrastada, foi levada para um canto do jardim. Podia ouvir a respiração pesada de seu atacante. O braço passado em sua cintura segurou-a
com mais força e ela foi erguida. Ao sentir que
era jogada em uma carruagem, o pânico voltou. Sua cabeça bateu com força no soalho e ela perdeu a consciência, enquanto a porta era fechada.
Quando voltou a si, lady Elizabeth não tinha a menor ideia de quanto tempo permanecera desmaiada. Ao abrir os olhos e tentar se mexer, sentiu que todos os músculos
doíam e manteve-se imóvel, procurando avaliar a situação. A carruagem rodava velozmente e sacudia-se sobre os buracos da estrada, provocando-lhe dores na espinha.
A dor de cabeça que sentia diminuiu até se tornar um latejar nas têmporas. Notou, então, que se encontrava no chão da carruagem, quase embaixo do assento. Movimentou-se
cuidadosamente ao perceber que estava só, levantou-se e sentou-se.
Quando teve certeza de que não desmaiaria de novo, arriscou-se a olhar pela janela. Ao ver quem conduzia a carruagem compreendeu: fora raptada por Martin Costain,
que certamente não percebera que se tratava dela, e não de Valerie. Procurou acalmar-se a fim de pensar com clareza. Fora imprevidente ao usar a capa com capuz,
que lhe cobria os cabelos loiros, e Costain não perdera tempo em verificar se raptava a moça certa, pois precisava agir depressa. Só havia uma solução: informá-lo
do engano e fazê-lo levá-la de volta. Ou será que não daria resultado? Uma herdeira, para ele, servia tanto quanto a outra e, raptando-a, Martin se vingava dela
e de Reggie...
Lembrou-se, desesperada, que o irmão estava em Londres, sem a menor ideia do perigo que ela corria. Será que Valerie percebera o que houvera e iria avisar alguém?
Quem?
Chegando à conclusão de que não adiantava ficar remoendo esses pensamentos, Lizzie olhou ao redor, procurando algo que servisse de arma. Enfiou as mãos nas bolsas
da porta e encontrou uma pistola, que ficou tateando, no escuro. Jamais usara uma arma e não sabia sequer se se achava carregada. Na dúvida, resolveu mantê-la consigo,
para verificar depois.
Quando a carruagem parou, escondeu a arma entre as dobras da capa. Ouviu vozes de homens e percebeu que estavam diante de uma estalagem. A porta foi aberta e
um par de braços fortes agarrou-a, tirando-a do veículo. Tomando cuidado para manter rosto e cabelos ocultos, ela foi arrastada e levada para uma sala reservada
onde o sr. Costain, num murmúrio, disse-lhe que ficasse quieta.
Assim que ficou só, lady Elizabeth avaliou o lugar rapidamente. Precisava descobrir um jeito de escapar antes que Costain voltasse. Para sentir-se mais segura,
examinou a pistola, mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão, pois nada entendia mesmo. Para manter o moral alto, decidiu que estava carregada. Se não estivesse,
teria de blefar e tentar obrigar
o raptor a levá-la de volta. Não confiava em que o blefe desse certo, porque não sabia mentir e seu rosto era muito expressivo. Rezou para conseguir usar a arma,
se fosse preciso.
A sala era pequena e bem decorada. De um lado havia uma mesa de carvalho, rodeada de cadeiras; ao lado da lareira, viam-se duas confortáveis poltronas. O fogo
estava aceso, porém ela ignorou o calor convidativo e continuou o exame. A janela era a única saída possível, mas depois de várias tentativas verificou que não podia
abri-la. Pensou em quebrar o vidro, contudo tal coisa chamaria a atenção; além disso, a janela dava para a entrada da estalagem e alguém poderia vê-la e dar o alarme.
A única possibilidade de fuga era pela porta por onde entrara, concluiu, preocupada. Nesse momento, a porta abriu-se e Martin Costain entrou; jogou o sobretudo numa
poltrona e olhou-a meio de esguelha, enquanto se aquecia junto da lareira.
O coração de Lizzie parecia querer saltar pela boca e ela tentou manter o rosto escondido o mais que podia.
- Se procura um jeito de fugir, vai ficar desapontada, minha querida - afirmou ele, com ironia. - Como já deve ter descoberto, a única saí da é a porta,
e só irá passar por ela em minha companhia.
A lady percebeu que ele não estranhava seu silêncio. Por quanto tempo conseguiria continuar o engano? "Valerie" precisaria dizer alguma coisa, afinal.
- Desta vez tudo vai dar certo - declarou ele, de costas para ela, aquecendo as mãos ao fogo. - Tenho certeza de que você nada falou a lady Elizabeth sobre
nosso encontro. Só irão descobrir seu desaparecimento amanhã de manhã, e então estaremos longe. Nunca pensei que fosse boba o bastante para ir ter comigo sozinha,
principalmente depois de afirmar que não havia mais nada entre nós... Uma pena! Vai ter de haver muita coisa entre nós, minha querida.
Lizzie sorriu, apesar do medo. Lembrou-se, então, que outra pessoa fora ao encontro de Valerie, no jardim. Quem seria...? Charles Wallace! Provavelmente ela confiara
seu problema ao cavalheiro, que decidira ajudá-la, apaixonado como estava. Engolindo seco, a lady confessou a si mesma que dessa vez não fora muito esperta. Tomou
fôlego para exigir que o sr. Costain a levasse de volta, porém engasgou ao ouvir o que ele dizia.
- Sinto tanto não ter conseguido um duelo com o conde de Drenview! O idiota nem percebe quando está sendo insultado. Quanto à intrometida da irmã dele...
- Como ousa falar dessa maneira a meu respeito?!
As palavras de lady Elizabeth soaram como um tiro de canhão. Depois de se refazer, Costain disse, com um sorriso ameaçador:
- Mas que prazer inesperado, milady! Desculpe-me o tratamento pouco cavalheiresco que recebeu... Eu não tinha conhecimento de estar lidando com uma pessoa tão
distinta. - A voz dele tinha a arrepiante maciez do veludo. - Por que não se aproxima da lareira? Aqui está mais confortável.
- Não, obrigada - sussurrou ela, começando a tremer, apavorada.
- Sabe, minha querida? Acho que esta viagem vai se tornar muito divertida!
- O senhor vai me levar imediatamente de volta a Valstry - ordenou ela, criando coragem e mirando-o com a pistola. - Não pretendo usar esta arma, sr. Costain,
mas vou fazê-lo se não fizer o que pedi.
- Não acredito que a senhorita atire - respondeu ele, tornando a sorrir, depois do susto inicial. - Que tal considerarmos as alternativas, como o seu irmão gosta
tanto de fazer? Esclarecerei minha posição, assim a senhorita poderá decidir. Não pretendo deixá-la com a pistola, nem levá-la de volta a Valstry. Dê-me essa arma,
agora, senão teremos um problema. Se ficar com ela, aviso que irei tomá-la, o que nos levará a outro problema: poderá tentar matar-me ou não. Prefiro que não o faça;
portanto, não posso deixá-la com a arma. E vamos embora juntos, como planejei. Entendido?
Ele agitou as mãos, como se tudo fosse brincadeira.
- Caso a senhorita atire - prosseguiu, então -, poderá acertar-me e me matar. Se alguma vez viu uma prisão por dentro, o que duvido, não gostará de ir
para uma delas... Se atirar e errar, a pistola se tornará inútil e iremos embora. Pode dispor de mim, seja qual for sua decisão.
Lizzie engoliu com dificuldade. Não tirara os olhos do inimigo nem por um segundo, e estava convicta de que ele pretendia mesmo tirar-lhe a pistola. Mas será
que arriscaria a vida por uma vingança? Os minutos pareciam arrastar-se, e seus braços, cansados, começavam a tremer. O sorriso de Martin Costain alargou-se e, no
instante que tudo escurecia diante dos olhos dela, ele saltou para a frente. Ela apertou o gatilho e atirou.
Ouviu o homem praguejar, enquanto ele batia-lhe no braço, fazendo a pistola ir ao chão; puxou-a para si, com fúria, e arrancou-lhe o capuz da cabeça. Lizzie encarou
o rosto lívido de seu captor, muito junto ao dela.
- Decisão errada, minha cara, porém para sua sorte a pistola não estava carregada. Pegou-a na bolsa da carruagem, não? Preciso falar com meu cocheiro a
respeito. Agora, vamos dar um passeio até Gretna Green e, se tentar algo parecido de novo, quebro-lhe o braço! - O modo como ele lhe torceu o braço não deixava dúvidas.
- Compreendeu?
Sem esperar resposta, empurrou-a de encontro à mesa e pegou a pistola do chão. Alguém bateu à porta. Praguejando, ele foi falar com o dono da estalagem, que fora
atraído pelas vozes alteradas. Quando voltou, sorria.
- Pena seu irmão não saber onde está, milady... Gostaria muito de encontrá-lo. - Olhou-a de cima a baixo, de maneira malévola. - É, talvez esse seja o jeito de...
Venha para perto da lareira - ordenou, ao notar que ela tremia. - Não quero que fique doente, agora. Teremos de esperar um pouco, até que aprontem uma parelha para
substituir os cinzentos, mas não temos pressa, não é?
Devagar, mantendo uma segura distância do homem, ela aproximou-se do fogo e sentou-se. À porta, ele bloqueava a saída; estava numa armadilha e ninguém viria salvá-la.
Nervosa, nem ouviu o barulhão que vinha lá de fora.

CAPITULO XVI

Ao sair da casa do conde de Drenview, sir Anthony Russelford dirigiu-se ao White's, onde encontrou o sr. Forbisher, a quem estava procurando.
Muito falador, qualquer outro homem já teria perdido a paciência com a tagarelice ininterrupta do homenzinho, porém o barão aguentou com um bom humor que se recusava
a perder. Aguardou que a conversa chegasse ao ponto que lhe interessava. Depois de ouvir, sorridente, mais de uma hora de papo tedioso, tornou-se atento ao que o
outro dizia:
- ... e foi muito rude da parte dele! Nem se despediu de nós. E quem esperaria bons modos de Costain?
- Verdade? Mas o que aconteceu, realmente?
- Acabo de dizer que fui visitá-lo na semana passada - repetiu o cavalheiro, com queixoso ar resignado, pois os jovens nem ouviam direito os mais velhos. - Deviam
ser umas três horas e eu ia parar apenas para uma conversinha...
Na realidade, o sr. Forbisher tratara de procurar um outro ouvinte simpatizante, papel desempenhado até então pelo conde de DeBoeulle, cuja esposa se encontrava
em Bath e retornara, exigindo a atenção do marido.
- Estava lá fazia apenas uns quinze minutos, quando ele sem um mínimo de educação, colocou-me para fora de sua casa do modo mais grosseiro!
O homenzinho se animara, olhos brilhando, ao ver o interesse do barão, que sugeriu:
- Quem sabe algum assunto urgente exigia a atenção dele?
- Imagine! O que Costain poderia ter de urgente a fazer? A não ser que algum credor tivesse aparecido, claro! Isso explicaria sua pressa em partir. Parece que
ele disse que ia para Kestelby...? Não... Crastlebury...? Não... Não sei...
- Não seria Castleby? - indagou sir Anthony, sério.
- Isso mesmo! - concordou Forbisher. - Nome muito estranho, não é? Isso faz... deixe ver... uma semana.
- Uma semana?
O barão saltou da cadeira e dirigiu-se quase correndo para a saída do clube, por pouco não derrubando um cavalheiro que entrava naquele momento.
O sr. Forbisher ficou olhando, assombrado. Realmente, pensou, a geração mais nova parecia não ter nenhuma educação. Primeiro Costain, agora Russelford. E não
entendia o nome daquela cidade, que deveria chamar-se assim porque certamente havia um castelo na região.
Sir Harvey Forbisher tinha razão. Existira um castelo naquelas paragens, porém, restavam apenas ruínas e uma vila minúscula. O que provocara a ansiosa saída do
barão não fora o fator histórico do local, mas sim que a vila ficava a apenas quinze minutos de carruagem de Valstry.
Sir Anthony dirigiu-se imediatamente para a casa de lorde Croyton, onde foi admitido por Childers, que, ao ouvir o nome do conde, indicou o piso superior, sem
dizer uma palavra, depois observou o jovem subir os degraus de dois em dois. Quando ele desapareceu, fechou a porta, suspirando.
Ao alcançar o primeiro piso, o barão parou para recuperar o fôlego e orientar-se. Havia anos não subia para aquela parte da mansão, porém, como nada parecia ter
mudado, não teve dificuldade de encontrar os aposentos do amigo, que no momento achava-se diante do espelho, admirando a própria imagem.
- Tony! - exclamou ele, sorrindo. - Agora, chegou cedo demais!
- Com um movimento rebuscado, o conde passou a dar o laço na gravata. - Não se envergonha? É aceitável chegar alguns minutos atrasado, mas nunca tão adiantado! O
jantar ainda vai demorar um pouco...
Lembre-se da sua educação! - Interrompeu-se, observando o amigo pelo espelho. - Ah, não! Desse jeito vai rasgar meu tapete! Por que anda desse jeito de um lado para
o outro? O que eu fiz, dessa vez?
- Recusou-se a me falar sobre Costain!
Sir Anthony parou atrás do amigo, que o fitou, sério.
- Detesto ter de repetir: não tenho permissão para isso, meu caro.
- Então, talvez se interesse em saber, meu caro, que há uma semana Costain encontra-se em Castleby - redarguiu o barão, irónico.
O conde piscou, surpreso, depois tratou de dar o nó na gravata, comentando:
- Será que ele espera encontrar divertimento por lá?
Lorde Russelford apoiou uma das mãos na penteadeira e a outra num ombro do amigo.
- Reggie, há alguma coisa errada nessa história e juro que vou descobrir o que é, com ou sem a sua ajuda. Escolha entre me contar e ir comigo a Valstry.
- Ora, Tony! Não seja tão dramático...
- Deus me ajude, Reggie! Você é como irmão para mim, mas agora não tenho paciência para bobagens! Estou preocupado com Lizzie e vou vê-la. Como irmão, você deve
ir comigo e irá, nem que eu tenha de carregá-lo!
- Não disse que não iria, meu caro! Acho até uma boa ideia, porém primeiro quero fazer uma interrogação. - O conde sentiu que o amigo se descontraía e o soltava.
- Sei que vou me arrepender de perguntar, pois não vai adiantar... Poderemos ir depois do jantar...? Não? Curioso, isso não me surpreende...
Lorde Croyton suspirou diante do silêncio sinistro do amigo, chamou o valete e ordenou que aprontasse a carruagem para viajarem.
- Não - interferiu sir Anthony, bruscamente -, iremos a cavalo! - Explicou ao amigo, que o olhou aparvalhado: - De carruagem irá demorar muito, Reggie.
A cavalo poderemos cortar caminho.
O conde ficou pensativo por instantes, considerando a questão, mas logo anuiu e disse ao valete que mandasse preparar seus dois melhores cavalos.
- E volte logo, Roberts, porque me nego a cavalgar com esta roupa: preciso trocar-me.
O criado retirou-se para regressar em minutos, com roupa de montaria para o conde e o barão. Ajudou o patrão a se trocar rapidamente, em seguida aproximou-se
de lorde Russelford e começou a tirar-lhe o casaco. O nobre afastou-se de um salto, agradecendo:
- Obrigado, Roberts, porém eu vou assim mesmo.
- Não seja bobo, Tony! - ordenou lorde Croyton, que, depois de se admirar ao espelho, voltou-se para o amigo. - Usamos praticamente o mesmo tamanho de roupas
e Roberts jamais se engana em avaliar o manequim de um cavalheiro. Não pode cavalgar com roupa inadequada. Troque-o, Roberts.
Lorde Anthony ia protestar, contudo compreendeu que era inevitável. Sem demora, sua roupa foi trocada pela do conde, que o observou com maior atenção depois que
estava pronto, considerando:
- E não é que ficam melhor em você do que em mim?
Isso não era bem verdade, pois lorde Croyton encontrava-se sempre impecavelmente vestido. Só que, como ele era um pouquinho menos encorpado do que o amigo, a
roupa ficava mais justa, fazendo-o parecer mais forte e mais alto.
Sem levar em conta o elogio, o barão pediu-lhe que andassem logo,
e pouco depois ambos viam-se a caminho de Castleby, onde ficava a mansão Valstry, da família Croyton.
Sir Anthony galopava à frente, numa velocidade infernal, e, como sabia que o conde era capaz de acompanhá-lo sem problemas, de vez em quando dava uma olhada para
trás. Na maior parte do tempo, atormentava-se imaginando com que iria deparar em Valstry.
Passava um pouco da meia-noite, quando, afinal, chegaram à propriedade dos Drenview. Antes mesmo que o cavalo parasse, o barão saltou e subiu a escadaria da entrada
correndo. Foi lorde Croyton, que o seguiu com mais calma, quem viu as duas pessoas no jardim. Parou, então, e chamou-as, procurando identificá-las, enquanto o amigo
o esperava no pórtico, impaciente.
- É a srta. Bach? - indagou o conde, enquanto as duas pessoas aproximavam-se.
- Sim, milorde - respodeu a jovem, e aí ele pôde ver sua expressão aterrorizada.
- O que está acontecendo aqui? Quem são vocês? - perguntou o barão Russelford, descendo a escada, rápido.
- Lorde Croyton? - O sr. Wallace estendeu a mão para o barão, cumprimentando-o com respeito. - Sinto muito por conhecê-lo nesta lamentável circunstância. Sou
Charles Wallace.
- Eu não sou conde... - murmurou sir Anthony, indicando o amigo. - Esse é lorde Croyton.
- Oh, perdoe-me! - O cavalheiro retirou a mão, embaraçado. - Queira desculpar-me. Pensei... Como foi quem perguntou...? Bem... Pelo seu jeito, pensei que fosse
o conde...
- Não se preocupe, sr. Wallace. Minha irmã falou-me a seu respeito. É um prazer conhecê-lo. - Voltou-se para Valerie. - Boa noite, senhorita. Não é melhor entrarmos?
A impaciência de lorde Russelford chegava às raias da loucura, enquanto esperava que criados fossem acordados e o casal se alcamasse o suficiente para explicar
aquele passeio noturno no jardim. Valerie não conseguia encarar o jovem nobre, evidentemente enfurecido, que acompanhava o conde. Quando ele exigiu saber o que acontecia,
ela começou a gaguejar.
- Onde está Lizzie? - explodiu o lorde, fora de si. - O que vocês dois faziam no jardim, a esta hora?
A moça começou a chorar e não conseguiu responder, enquanto o sr. Wallace lhe oferecia um lenço e tratava de acalmá-la. Ignorando a romântica cena entre os dois,
o conde repreendeu o amigo.
Você é muito insistente, Tony. A srta. Bach é filha do seu generoso sócio. Se eu fosse você, falaria mais gentilmente com ela!
- A senhorita é filha de George Bach?
A moça fez que sim com a cabeça, amedrontada.
- Ora! Por que não me disse logo, Reggie?
- Você não deu chance!
- Desculpe, senhorita, porém preciso saber onde está Lizzie.
- Na cama? - sugeriu Valerie, ainda entre soluços.
- É meio difícil acreditar que ela esteja na cama e que todo o nosso barulho não a acordou!
- De fato - concordou o conde. - Seria meio difícil Lizzie não despertar, com o sono leve que tem. Mas vamos verificar. - Chamou um criado e ordenou que a irmã
fosse acordada. - Bem, acredito que mereçamos uma explicação. Havia algum motivo para esse passeio no jardim à meia-noite?
Valerie fungou e o sr. Wallace tossiu.
- Respondam - exigiu o barão, severo.
O sr. Wallace estufou o peito, e então disse, em tom gelado:
- Apresso-me a atender ao senhor conde, uma vez que a srta. Bach é hóspede dele... Contudo, não vejo por que teria de atender às ordens rudes de alguém
que não conheço! Recuso-me a me explicar em sua presença, senhor. - E voltou-se para Valerie, com ar orgulhoso.
Lorde Croyton fitou o amigo, impedindo-o de reagir com um arquear de sobrancelhas. Sob protestos, sir Anthony concordou em retirar-se da sala, porém sua saída
revoltada foi impedida por um criado que veio avisar: lady Elizabeth não estava em seus aposentos.
- A criada dela procurou pela casa, milorde - explicou ele - , mas a lady não foi encontrada. Estão procurando no jardim.
Sir Anthony deteve-se, compreendendo que, afinal, tivera razão em se agitar tanto. Sentia-se furioso consigo mesmo por ter permitido que alguma coisa acontecesse
a sua Lizzie. Encarou os olhos muito azuis do conde e percebeu que o amigo também estava preocupado, embora procurasse não demonstrar.
Valerie rompeu de novo em lágrimas e lorde Croyton sorriu, com tristeza. Dirigiu-se, então, ao sr. Wallace num tom de voz que o barão jamais ouvira, durante todos
os anos que se conheciam: calmo, controlado, e que não admitia recusa.
- Sr. Wallace, este cavalheiro é o barão Anthony Russelford, mais que amigo, um irmão. O que tem a me dizer pode ser dito diante dele. Nada sairá destas
quatro paredes. Se sabe, diga-nos, por favor, onde se encontra minha irmã.
- Eu não sei, sir.
Ao mesmo tempo, assombrada, Valerie enxugou as lágrimas, olhando fixamente o barão. Exclamou, corada:
- O senhor é Tony? Oh, perdão... Sir Tony?! Lizzie falou muito a seu respeito, porém, eu não sabia que o senhor era o... o senhor!
- Sim, sou Tony - confirmou ele, sorrindo. - Onde está Lizzie, srta. Bach?
- Não sei, exatamente... mas se aconteceu o que estou pensando eu... Oh, é terrível! A culpa é minha!
- O que é terrível? Tem algo que ver com o sr. Martin Costain? - indagou o barão, ansioso.
A jovem recomeçou a chorar, desconsolada.
- Acho que Martin... - começou por fim, num sussurro. - Ouvi algo quando estávamos no jardim, não tenho certeza, mas... parecia ser uma carruagem. Não sei! Oh,
ela deve ter lido o bilhete e... - Chorou mais ainda, enquanto lorde Reginald e sir Anthony olhavam-na, confusos.
- Oh, meu Deus! - suspirou o sr. Wallace.
- Ela leu, sim! - reafirmou Valerie.
Então, com ar aflito, o sr. Wallace começou a explicar:
- A srta. Bach tem recebido bilhetes ameaçadores do sr. Costain. Imaginou que, se marcasse um encontro e nós dois lhe falássemos, ele pararia com isso. O sr.
Costain, então, enviou um bilhete, marcando encontro para hoje. Esperamos e não apareceu...
- Creio que apareceu, sim - atalhou a jovem. - Lizzie deve ter lido o bilhete, veio para o jardim e ele a levou, pensando que fosse eu. Vai trazê-la de volta,
quando descobrir o engano. Não vai se atrever a levá-la para Gretna Green!
- Pois eu acredito que vai - disse o conde, com tanta convicção que lorde Russelford olhou-o com atenção.
Quando tiveram certeza de que lady Elizabeth não se achava no jardim, o barão pediu que o amigo solicitasse uma carruagem, imediatamente.
- Não prefere cavalos, agora?
- Não... Provavelmente precisaremos da carruagem para trazer Lizzie. Ele não deve estar muito a nossa frente. Só queria estar plenamente certo de que está indo
para o norte.
- Tony, todos têm seus hábitos, e o senhor Costain não é diferente. Além disso, Gretna Green é perto.
- Lorde Croyton - afirmou o sr. Wallace -, sei que tem ajudado a srta. Bach e queria agradecer. Olhe, eu...
- Por favor - o conde ergueu a mão, interrompendo-o -, não me diga que está apaixonado, se não eu ficarei doente!
- Estou apaixonado, sim, milorde, e...
- Nem sei por que me aflijo por vocês! - lamentou-se o conde. - Ninguém me ouve!
- Estou ciente do risco que correu pela srta. Bach - continuou o cavalheiro - e, como me sinto meio responsável pelo que sucedeu com sua irmã, gostaria de ajudar.
O conde agradeceu e, ao notar que Valerie apoiava-se no sr. Wallace, garantiu que não era preciso ajudar, que poderia permanecer na mansão.
- O que houve, Reggie? - indagou sir Anthony, sério. - Por acaso, você desafiou Costain por causa da srta. Bach?
- Será que todos querem me ver morto? - suspirou lorde Reginald. - Não desafiei ninguém, mas Costain conseguiu o que queria. Não vejo a hora de encerrar este
capítulo da minha vida!
Anthony não pôde deixar de rir, pois era difícil imaginar o sofisticado amigo num duelo.
Despediram-se, o sr. Wallace também, garantindo a Valerie que voltaria no dia seguinte. Ela baixou os olhos, corando com a amabilidade. Os outros dois cavalheiros
procuraram não prestar atenção na romântica despedida. Mais tarde, já na carruagem, o conde comentou:
- Esse casalzinho combina... você e Lizzie, não. Parecem estar sempre em outro mundo, sem entender direito o que acontece ao redor de vocês!
Por uma questão de tato, sir Anthony mudou de assunto.
- Reggie, desculpe ter insistido tanto com você, por causa de Costain. Fiquei desconfiado confesso... porém devia ter imaginado que jamais poderia haver algo
entre ele e Lizzie. Ando muito confuso, ultimamente...
- Desculpa aceita, meu caro. Agora devo pedir que me perdoe por não lhe ter dito tudo sobre Costain: Lizzie e eu entramos em choque com ele, para impedir que
raptasse a srta. Bach. Como descobriu que ele veio para cá?
- Quando vim falar com Lizzie, eu o vi, por acaso. Mas não pensei que tivesse permanecido aqui. Forbisher me contou.
- Harvey Forbisher? - Ao ver o amigo confirmar, o conde pensou um pouco, depois comentou: - Prometo que nunca mais vou criticar a roupa desse cavalheiro!
Sir Anthony nada respondeu, e a viagem se fez em silêncio. De vez em quando o barão olhava pela janela, porém nada via de importante. Estava se formando uma tempestade
e ele esperava que não fossem apanhados por ela ainda na estrada.
De repente, um raio cortou o céu iluminando tudo, e ele viu, com clareza, um vulto de preto a cavalo, parado no meio da estrada.

CAPITULO XVII

Spaulding, o cocheiro do conde, estalou o chicote e avançou na direção do cavaleiro. Recusava-se a ser assaltado mais uma vez. O assaltante gelou. Um instante
antes de ser atropelado, o cavalo empinou, assustado, e jogou-o para o ar. Na confusão que se seguiu, não ouviram a pistola disparando. Os cavalheiros, no interior
da carruagem, foram jogados para a frente, com a parada brusca.
Sir Anthony desceu e avaliou a situação. Spaulding fora ferido. Voltando-o de frente para a lanterna, verificou que o ferimento sangrava muito, mas não era grave.
-Não é nada sério, meu velho - disse-lhe, dando o lenço para o pálido homem passar no ferimento. - Deve parar de sangrar já. Consegue descer?
Lorde Croyton ajudou-o a baixar o cocheiro. Estavam tão concentrados, que não perceberam o cavaleiro, desmontado, aproximar-se. O barão, ajoelhado ao lado do
ferido, começou a desatar-lhe a gravata para fazer um torniquete no braço, onde a bala se alojara, quando foi impedido pelo conde. Perguntou-lhe se preferia emprestar
a própria gravata para essa finalidade, sugestão recebida com horror.
Spaulding notou a aproximação do salteador e tentou avisar os cavalheiros. Nervoso, não conseguia falar; então, apontava, frenético.
Ao perceber a situação, sir Reginald foi de encontro ao homem, dizendo, impaciente:
-Olhe, meu caro, está na hora de fazer algo a seu respeito. O senhor não apenas quebrou a promessa de não mais me assaltar, o que é imperdoável, como feriu meu
cocheiro.
O homem quis falar, porém o nobre continuou:
-Duas vezes, passa, afinal ocorrem coincidências. Contudo, três vezes é inaceitável. Como o senhor só "trabalha" à noite, quero crer que não tenha reparado no
brasão à porta da minha carruagem, na última vez, mas garanto- lhe que não vai mais esquecer-se dele ou vou tirá-lo das estradas para sempre!
O barão de Russelford, que ficara preocupado pelo amigo ir enfrentar o salteador sozinho, sentiu o maior assombro ao ouvi-lo falar com o homem e este abaixar
a cabeça, contrito.
- Sim, senhor - afirmou o homem, com humildade.
- Perfeito! - exclamou o conde, tranquilo.
- Desculpe, milorde - aventurou-se o assaltante, tímido. - Eu não queria ferir seu cocheiro, porém ele não parou! Quase passou por cima de mim!
- Considere-se um homem de sorte - retrucou o conde, desdenhoso. - Se fosse eu, teria atirado para matá-lo. Agora, vá embora antes que eu faça isso!
Voltou-se para sir Anthony e indagou do estado do cocheiro. O nobre que esquecera de Spaulding acompanhando a cena, sentiu-se culpado.
- Ele não está mal, porém, seria melhor ver um médico. Claro que não poderá dirigir a carruagem, então, um de nós terá de fazê-lo.
- Sair em busca de um médico levará tempo, o que dará muita vantagem a Martin Costain! - lamentou-se lorde Croyton.
- Acho que não, milorde.
Em vez de sumir, o salteador se aproximara mais.
- Ainda está por aqui? - O conde estava zangado.
- Reconheci a carruagem com a parelha de cinzentos, milorde! A mesma que o senhor seguia da outra vez. Foi por isso que quis que parasse, sir: achei que o estava
seguindo. - O homem orgulhava-se da própria lógica e raciocínio. - Não parei o senhor para roubar. Não falto com minha palavra! Julguei que o senhor gostaria de
saber para onde o outro cavalheiro foi... - Os olhos do homem brilhavam à luz da lanterna.
- E para onde foi? - indagou sir Anthony, impaciente.
- Virou à direita e parou na estalagem Gracious Arms, faz uns dez minutos. E em Burnington, ao norte da estalagem, há um médico.
- Reggie, ajude-me a colocar Spaulding na carruagem. Deixe que eu conduzo os cavalos.
- Perdoe-me novamente, sir, porém, essa estrada não é boa e piora quando chove. - Apontou as nuvens escuras no céu. - Se não tem prática, precisa tomar muito
cuidado...
- Você sabe conduzir carruagens? - quis saber o conde, avaliando seu estranho aliado.
Os olhos negros do homem, acima do lenço preto que lhe cobria o rosto, sorriram, enquanto ele garantia que era exímio cocheiro. Ocupado com Spaulding, sir Anthony
percebeu a intenção do amigo; protestou, mas foi inútil.
- Tome o lugar do meu cocheiro - ordenou o conde ao salteador. -Antes tire esse lenço ridículo, para não assustar as pessoas na estalagem.
- Será uma honra conduzir esses animais, milorde! - alegrou-se o homem, tirando o lenço.
Sir Anthony, que fora empurrado para dentro da carruagem pelo amigo que subia, protestava, zangado, porém, o conde retrucou:
- Ele parece saber o que faz e conhece cavalos. Da outra vez me disse que os cinzentos de Costain não prestam, e estava certo. Tem mais. Se você conduzisse
a carruagem, poderíamos acabar na valeta da estrada!
A carruagem começou a rodar, enquanto o nobre prosseguia:
- E, se você conduzisse, eu teria de cuidar do Spaulding... Sabe como me sinto a respeito de sangue. É melhor assim!
- Reggie, até receio perguntar onde conheceu esse...
- Nem pergunte! - interrompeu-o o conde, irritado. Depois, mais calmo: - Um dia, quando estivermos sossegados, eu conto. Como está Spaulding? Vamos levá-lo a
um médico.
- Obrigado, milorde. - O cocheiro suspirou. - Com todo respeito, sir, já não sou jovem para suportar tanta agitação... - Fez uma pausa significativa, antes de
expor sua conclusão: - Tenho uma filha que mora em Kent... Uma vida calma, milorde, é tudo o que preciso.
Sir Anthony notou que seu amigo ficara consternando e, surpreso, ouviu-o dizer, desgostoso:
- Entendo... Ultimamente minha vida tem sido meio corrida. Mas isso me traz um problema, bom homem: quem será meu cocheiro?
A carruagem saiu da estrada principal para uma secundária, em pior estado. Dirigida em boa velocidade, porém, com mãos firmes, os passageiros não tinham sobressaltos.
O barão notou que lorde Reginald olhava para fora, observando o salteador que fazia as vezes de cocheiro.
- Ficou louco, Reggie? - perguntou ao perceber o que ele estava pensando.
- Seria a solução, meu caro - respondeu o conde, sossegado. - Assim esse homem ficaria fora das estradas, pois tem me perturbado ultimamente, sem falar no que
me custou até agora. Se continuar assaltando, ficará mais barato para mim tê-lo como meu cocheiro. É um homem bem-disposto, criativo... e você sabe que adoro experiências.
Apesar da aflição em que estava, lorde Anthony teve de rir ao ouvir aquele raciocínio simplista.
- Eu disse algo engraçado? - quis saber o conde.
- Na minha humilde opinião, Reggie, duvido que um dia a sua vida entre na rotina!
- Espero que não entre mesmo, pois eu não saberia como sair dela!
Sir Anthony não disse mais nada, porém ficou pensando no amigo, em quando eram meninos. De súbito, a chegada à estalagem o trouxe de volta à realidade de maneira
rude.

CAPITULO XVIII

Sir Anthony saltou da carruagem, antes mesmo de ela parar no pátio da Gracious Arms, e ficou observando a carruagem do sr. Costain, enquanto esperava que o( conde
descesse.
- Reggie, não sei se deveria... - começou sir Anthony. - Não que ro ofendê-lo, nem insultar sua coragem, porém... Oh, diabo! -desesperou-se, sem saber como
dizer o que pretendia.
- Não estou ofendido, meu amigo - respondeu o conde, sorrindo tranquilamente. - Como sabe, visões de sangue jamais me agradaram. Esteja à vontade! Bem, não acha
melhor andarmos depressa?
O barão de Russelford sumiu porta adentro, mesmo antes de o lorde terminar de falar.
- Mesmo porque - continuou sir Reginald - Lizzie irá apreciar muito mais a situação, se você brigar por ela.
Voltou-se e surpreendeu-se com o homem parado junto da sua carruagem. Sem a máscara, o salteador, chapéu respeitosamente na mão, mais parecia um criado fiel à
espera das ordens. Começou a trocar o peso do corpo de uma perna para outra, embaraçado com o olhar inquisitivo do conde.
- Se bem me lembro - disse Reggie -, há um médico aqui por perto, não é? - Diante do aceno afirmativo do outro: - Leve-me até lá, por favor.
- Desculpe, milorde... - começou o homem, sem jeito, evitando que lorde Reginald entrasse na carruagem. - Mas... bem... fiquei pen... pensando... quer di... dizer...
eu...
- Precisaremos cuidar dessa gagueira, meu caro. Definitivamente, temos de ver roupas para você. Infelizmente, creio que não teremos tempo para isso agora, pois
precisamos levar Spaulding ao médico, antes que perca todo sangue dentro da minha carruagem. - Ia subir, quando o homem pigarreou, chamando-lhe a atenção outra vez.
Voltou-se. - Se tem alguma coisa entalada, por que não diz logo?
- O que o senhor vai fazer comigo?
- Com você? Bem, se parar de pular de uma perna para a outra, subir na boleia e nos levar a um médico, posso pensar em contratá-lo como meu cocheiro. Já vi que
conhece bem os cavalos e dirige melhor ainda. O queixo do salteador caiu, tal a sua surpresa; ele encontrou sérias dificuldades para fechar a boca de novo. Só o
fez quando percebeu que o nobre achava-se impaciente, à espera de uma resposta. Então, inclinou a cabeça de lado e examinou o possível patrão com cuidado. Nada havia
nos distraídos olhos azuis ou no rosto inexpressivo que indicasse algo mais do que indiferença. Entretanto, antes que pudesse dar uma resposta, o conde manifestou-se
outra vez:
- Se aceitar minha oferta, há três dogmas que precisará seguir sem protesto - explicou, claro e ríspido. - Não aceito desonestidade de ninguém, não tolero
desobediência e tenho horror à preguiça por parte de meus empregados. Costumo levar uma vida calma... Isto é, costumava. Ultimamente ela anda bastante agitada. Se
não esquecer esses três pontos, iremos nos entender bem.
O homem encarou o conde e não teve dúvida sobre a mensagem que seus olhos transmitiam. Aquele nobre elegante demais o deixava confuso, já que seu olhar de um
azul gelado não era o mesmo de há pouco. Agora, parecia saber exatamente o que pretendia. Um sorriso matreiro desenhou-se nos lábios do novo cocheiro do conde, que
por fim entrou na carruagem, enquanto respondia:
- Então, está tudo acertado, sir!
- Ah! Mas seria interessante se me dissesse seu nome.
- Evan, milorde. Apenas Evan.
- Bem, sr. Apenas Evan, meu nome é Croyton... Reginald Croyton. Espero que não esqueça.
Evan assentiu, e eles logo seguiram para a casa do médico.
Ao entrar na estalagem, sir Anthony achava-se quase cego de ira, o que despertou a curiosidade dos clientes do salão. Gerou-se um falatório e o rumor chamou a
atenção do sr. Martin Costain, que entreabriu a porta para observar.
- Creio, minha cara, que não ficarei desapontado - murmurou ele para lady Elizabeth. - Devo ter subestimado a capacidade de seu irmão. Parece que ele não
é o idiota que pensei.
O sorriso de superioridade congelou em seu rosto, quando a porta foi empurrada e aberta bruscamente. O intruso não era lorde Croyton. Lizzie pulou da poltrona,
atravessou a sala correndo e atirou-se nos braços do barão.
- Tony! Oh, Tony estou tão feliz! - exclamou, escondendo o rosto no peito largo do amado.
O barão abraçou-a com carinho, enquanto ela rompia num choro nervoso. Conduzindo-a consigo, distanciou-se da porta, que fechou, empurrando com um pé.
- Está tudo bem, Lizzie... estou aqui. Ele machucou você? - Diante da negativa da moça, virou-se para Costain. - Sorte sua não ter feito isso - declarou, frio.
- Posso saber por que o senhor está aqui? - indagou o outro, com desdém. - Nem sei quem é!
- Dizem que mudei muito, por isso o senhor não lembra de mim. Posso me apresentar, é claro... Sou sir Anthony Russelford.
- É um prazer revê-lo, sir Anthony. Realmente, mudou muitíssimo - concordou Costain. E acrescentou, cortante: - Parece que o senhor é tão intrometido quanto lady
Elizabeth. Posso saber qual o motivo de sua inoportuna interferência?
- Lady Elizabeth é minha noiva, senhor.
Tal declaração provocou surpresa muda em Martin Costain e uma exclamação espantada por parte da lady, que se voltou para observar melhor as feições de sir Anthony,
que pareciam entalhadas em granito. Os lábios formavam duas linhas finas, esbranquiçadas, e o maxilar apresentava-se tão tenso, que dava impressão de que ele não
conseguiria falar. Seus olhos azul-escuros, agora quase violetas, fitavam intensamente o outro cavalheiro, sem sequer piscarem; Lizzie jamais o vira com expressão
tão determinada e furiosa. Achou que Costain não teria a menor chance.
- Eu não sabia que lady Elizabeth estava noiva... - declarou o sr. Costain, sem intimidar-se, sorrindo. - E parece-me que ela também não tinha conhecimento desse
fato.
- Espero que nos desculpe - retrucou o barão, gelado -, mas as circunstâncias nos impediram de fazer um comunicado oficial. É a primeira vez que digo isso em
público.
- Não acredito em suas palavras, sir - retrucou o sr. Martin, começando a irritar-se. - Não tem direito de invadir uma sala reservada, co mo fez.
- Se prefere, poderemos resolver o caso de outro modo...
O coração de Lizzie disparou. Aquilo era uma loucura! Tony não podia duelar com aquele homem, pensou, desesperada.
- Que arma prefere, sir? - indagou Costain, seguro de si. - Seja qual for, providenciarei para que arranjem duas.
- Espada.
Sir Anthony afastou-se, dando espaço para Martin Costain sair, depois dirigiu-se com Lizzie para perto da lareira.
- Você não pode bater-se em duelo por mim Tony!
- Tenha a bondade de não me dizer o que posso ou não posso fazer --- replicou ele, com rispidez.
Lizzie encarou-o assombrada. A raiva que viu nos olhos de um azul agora quase negros deixou-a aflita. Tentou soltar-se dos braços do barão, porém a força com
que ele a segurava era tanta, que não conseguiu. Procurou adivinhar os pensamentos dele. Impossível Tony estar pensando que ela fugira com aquele horrível Costain
por vontade própria. Ou será que pensava? Como teria descoberto seu paradeiro?
- Tony...? - começou, com voz trémula.
- Depois conversaremos. - Foi a respota áspera que recebeu. - Vá esperar lá fora.
Segurou-a, com firmeza, por um braço e conduziu-a até a porta, enquanto Martin Costain tornava a entrar na saleta. A jovem lady ficou como que paralisada, olhando
para as duas espadas rebrilhantes, que ele colocara na mesa com a maior indiferença.
O barão tirou o casaco e colocou-o numa cadeira. Pegou as espadas e examinou as lâminas, dobrando-as com firme habilidade. Agitou-as, fazendo-as vibrar; por fim
recolocou-as na mesa e voltou-se para Lizzie, pedindo por sinais que saísse.
- Não! Não vou sair! - rebelou-se ela.
- Então fique, mas fora do nosso caminho - avisou ele.
O sr. Martin Costain, que também tirara o casaco, apontou para as duas armas e disse:
- Como deve ter reparado, as armas são bastante iguais. Pode escolher a que preferir.
Sir Anthony apanhou a que estava mais próxima e de novo movimentou-a com rapidez, fazendo-a zunir. Satisfeito com o teste, fez um gesto de aprovação com a cabeça
e colocou-se a postos. Costain pegou a outra arma, posicionou-se, sorriu e saudou o barão, que retribuiu a saudação, frio.
Quando as espadas se chocaram pela primeira vez, com agudo retinir, a jovem lady colou-se à porta, pálida.
Os dois homens se estudavam cuidadosos, com golpes experimentais, a certa distância. Costain demonstrou ser o mais rápido, e sua espada, com movimentos graciosos,
aproximava-se cada vez mais do oponente, conforme a luta ia se desenvolvendo. Mostrava nos lábios um sorriso permanente, cheio de desprezo.
As feições de sir Anthony mantinham-se inexpressivas. Ele aparava os golpes do atacante com eficiência, porém dava impressão de estar colado ao chão, e seus movimentos
eram desajeitados. De repente, recebeu um ataque mais certeiro e violento de Costain, aparando-o com dificuldade. Recuou um pouco.
Os dois mantinham-se em movimento o tempo todo, o som das lâminas se entrechocando era constante, assim como o barulho pesado das solas das botas dos esgrimistas
no soalho. As respirações foram se tornando mais e mais difíceis, pesadas, enquanto cadeiras e mesinhas eram destruídas. Lizzie, que se encolhera no canto mais afastado,
observava a cena com horror, sem conseguir fechar nem desviar os olhos, por mais que quisesse. Os minutos pareciam arrastar-se.
O sr. Martin Costain atacava sem cessar e sir Anthony aparava cada um dos golpes, porém sua defesa tornava-se cada vez mais fraca e ineficiente diante da agressão
contfjma e incansável do oponente. Passadas curtas acabaram por colocar os adversários frente a frente, e Costain já sentia o gosto da. vitória.
O barão fez um movimento errado e seu oponente aproveitou para dar uma estocada direta, que sir Anthony conseguiu aparar, mas desequilibrou-se, enroscando um
pé numa cadeira, e caiu. Costain valeu-se da situação vantajosa para avançar, decidido a matar. Com surpreendente agilidade, o jovem lorde girou de lado, ao mesmo
tempo que vibrava um violento golpe com sua espada, que penetrou fundo junto ao ombro de Costain. O barão ergueu-se e retirou a lâmina, que ficara presa no corpo
do adversário. O sorriso desaparecera completamente do rosto pálido de Martin Costain, que caiu de joelhos.
- Vou pedir ao estalajadeiro que mande vir um médico - declarou sir Anthony, com frieza.
- Não é preciso - interveio lorde Croyton, entrando na saleta. - Imaginei que alguém iria precisar dos serviços do doutor, e trouxe-o comigo.
O conde afastou-se da porta e um senhor de pouca estatura entrou, avaliou a cena, abanou a cabeça com ar desgostoso e, sem nada dizer, ajoelhou-se junto do ferido,
abriu a valise e pôs-se a tratá-lo.
Lizzie, tremendo de medo, assistira à luta de olhos fixos, arregalados, e agora fitava lorde Russelford. A expressão dele não mudara, a não ser nos maxilares,
ainda mais apertados. Continuava segurando a espada suja de sangue. A jovem lady sentia o coração na garganta e respirava com dificuldade. Quando percebeu, o barão
estava diante dela, segurando-a por um braço. Olhou-a intensamente e murmurou:
- Lizzie, tenho sido um idiota.
Ainda com a espada, rodeou-lhe a cintura com o braço livre e puxou-a para si, beijando-a com uma ferocidade que fez o coração dela palpitar mais ainda. Ela roçou
as mãos pelos braços dele, consciente apenas dos músculos rígidos e do calor que se alastrava pelo seu próprio corpo. Ao sentir o toque apaixonado de sir Anthony,
a angústia e o medo desapareceram por completo e ela apertou-se mais contra ele, seus lábios correspondendo ao beijo amoroso. Com um suspiro, passou os braços pelo
pescoço do barão, adaptando seu corpo pequeno e macio ao corpo enorme e musculoso dele, que, nesse momento, afastou-se bruscamente. A separação pareceu doer para
Lizzie, que abriu os olhos para ver os olhos tímidos, azuis, brilhando muito, e um sorriso malicioso entreabrir os lábios largos, bem-feitos. Era o seu Tony outra
vez. Os enormes olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Senti tanto a sua falta, Tony! - sussurrou.
Em resposta, ele se inclinou de novo para ela, que fechou os olhos, instintivamente, e entreabriu os lábios, que receberam apenas um leve roçar à guisa de beijo.
Em seguida, ouviu o jovem barão murmurar-lhe ao ouvido:
- Talvez depois de casados eu deixe você determinar algumas vezes o que posso ou não fazer. Mas, note bem: talvez!
- Oh, Tony! - riu ela, feliz. - Beije-me outra vez.
Julgando que aquela era uma ordem razoável, ele obedeceu.
O estalajadeiro apareceu, pedindo que transportassem o sr. Costain, porquanto o médico recusou-se a remover o paciente, pois ele perdera muito sangue. Garantiu
que o ferimento estava limpo, que não havia risco de infecção e que logo cicatrizaria: era uma questão de repouso.
O sr. Costain exigiu que o levassem para sua carruagem: queria ir embora. Lorde Croyton desviou a atenção do casal de namorados e ficou atento à discussão a seu
lado.
- Besteira - afirmou, seco. - Ouviu o doutor. Se for removido, poderá morrer, por perda de sangue, antes de estar a dois quilómetros daqui.
- Obrigado pela preocupação, porém acho que o senhor não se importará se eu sangrar até a morte! - retrucou ele.
- Por menos que acredite, importo-me, sim. Não admito que transforme meu cunhado num assassino. O senhor ficará aqui!
Os protestos do estalajadeiro calaram-se quando o conde pôs várias moedas de ouro na mão dele, ordenando que providenciasse um quarto, de imediato, e cuidasse
do cavalheiro até que ficasse bom. O homem contou as moedas e nem pensou em recusar: havia o suficiente para despesas de dois meses.
- Maldição, Drenview! Espera que eu agradeça sua generosidade? - explodiu o ferido.
- Não, não espero isso - respondeu o conde, observando-o através do monóculo. - Eu é que devo lhe agradecer. Conseguiu realizar em um mês o que não consegui em...
incrível...! mais de três anos! Não havia pensado nisso! Que falta de visão a minha...! Se bem que a última vez que aconselhei Tony a tentar de novo, não sabia que
ele se referia a minha irmã como a mulher que pretendia conquistar como esposa.
O sr. Costain ergueu-se com a ajuda do médico, encarou o barão e disse-lhe que haveriam de encontrar-se de novo.
- Claro que sim, homem! - Quem respondeu foi o conde, sem dar atenção ao tom ameaçador. - Não tenho dúvida quanto a isso. Era minha a responsabilidade
de bater-me em duelo com o senhor, mas sir Anthony mostrava-se tão ansioso., que não quis decepcioná-lo. Espero que o senhor não tenha se ofendido. - Com ar distraído,
tirou uma suposta poeira do ombro do casaco e acrescentou, depois de o outro dizer que não se ofendera: - Fico feliz. Quanto a um duelo entre nós, poderemos resolver
isso em época mais apropriada. Preciso de treino - sorriu.
O sr. Costain respondeu com um sorriso sem alegria e deixou-se levar para seu quarto. Lorde Croyton avaliou os prejuízos causados pelos móveis destruídos e, rodeando
os obstáculos, foi até o casal de namorados.
- Tony - chamou, porém não foi atendido. - Tony! - tentou de novo, com o cenho franzido.
Nada.
- Realmente, Tony! Exijo que... - começou, em tom estridente, mas calou-se em seguida.
Sir Anthony, sem se voltar, levantara a espada que ainda tinha na mão e aproximara a lâmina ensanguentada do rosto do conde. De imediato, este pegou um lenço
de linho do bolso e levou-o ao nariz.
- Esta atitude é inqualificável, Tony! - reclamou. - Você sabe o que sinto com relação a sangue.
- Alguma reclamação, Reggie? - quis saber o jovem barão, voltando-se e encarando-o com os olhos azuis muito frios.
- Bem... - Sir Reginald piscou, surpreendido com o tom e o semblante do amigo; então, resolveu ser mais cuidadoso. - Creio que devo perguntar quais suas intenções,
não acha?
- Pretendo casar-me com sua irmã, milorde, caso obtenha permissão.
- Sim, isso eu sei...
Distraído, lorde Anthony abaixou um pouco a espada e o conde aproveitou para afastá-la, segurando a lâmina com o lenço.
- Gostaria de lembrá-lo - prosseguiu - que jamais me opus a seu casamento com Lizzie. Discordei, apenas, do tempo que levou para se animar a fazer o pedido.
- Desculpe, Reggie! - exclamou o barão, largando a espada, afinal.
- Agora que já resolvemos essa questão, será que pode me dar a resposta ao que perguntei? - interrogou o conde, com um profundo suspiro de impaciência contida.
Anthony Russelford encarou o amigo sem entender nada.
- Suas intenções? - indagou sir Reginald, olhando o teto com ar de quem procura socorro. - Por favor, quero saber quando você tem intenções de voltar à civilização,
a Londres?!
- Eu não voltarei hoje, meu caro.
- Como assim? - estranhou o conde. - Não vai?
O jovem lorde fez que não com a cabeça e beijou lady Elizabeth mais uma vez, antes de explicar:
- Até esta noite eu não tinha descoberto, realmente, o que significava para mim perder Lizzie... Perdoe-me, querida!
Ela fitou-o com adoração, percebendo no olhar dele a firmeza que não existia três anos atrás. Um arrepio percorreu-lhe a espinha e seu coração passou a bater
como louco.
- Cometi erros e o pior deles foi quase deixá-la escapar, meu amor - continuou ele. - Não quero mais correr esse risco. Sei o que quero, pretendo consegui-lo
a meu modo e faço questão que você saiba disso para responder se me quer ou não. Eu a amo, Lizzie, quer casar comigo?
- Quero... - respondeu ela, com suavidade, apoiando a cabeça no ombro de sir Anthony. - Concordo em esperar mais um ano, como você me disse.
- Não, de modo algum! - reagiu ele. - Vamos agora mesmo para Gretna Green e nos casaremos de imediato.
Em vez dos protestos que ele esperava, sentiu que Lizzie o abraçava, enquanto dizia:
- Oh, Tony!
- Se quiser, pode ir conosco, Reggie - convidou o barão, magnânimo, beijando o rosto da amada. - Gostaríamos muito que você estivesse presente; poderá ser meu
padrinho e levar a noiva ao altar.
Lady Elizabeth, entusiasmada como uma criança, pediu ao irmão que também fosse. Depois voltou-se para o noivo. Aparvalhado com tudo o que acabava de acontecer,
o conde de Drenview percebeu que o par de apaixonados já nem lembrava mais da presença dele. Sem saber o que fazer, pegou uma cadeira caída e tratava de colocá-la
de pé, quando o dono da estalagem voltou à saleta para avaliar os estragos causados pelos duelistas. Observou o casal e o nobre com ar de aborrecimento.
- Se há uma coisa que aprendi nas últimas semanas - disse-lhe o conde, tirando mais moedas de ouro da bolsa - é aproveitar toda oportunidade que aparece. - Jogou
as moedas na mesa e acrescentou: -Meu bom homem, essas moedas são suas se arranjar uma garrafa do melhor vinho que tiver e algo para comermos. Não sou muito exigente
e ião se preocupe, vou pagar todos os estragos. - Indicou a saleta, com um gesto.
- Milorde é muito generoso! - declarou o homem, embolsando as moedas e fazendo uma reverência. - Vou servir-lhe o que tenho de mais ino, sir! Ah, o amor! - exclamou,
antes de sair, apontando o barão ; a lady. - Não é maravilhoso?
Lorde Croyton rejeitou esse romantismo com uma imprecação, antes ie iniciar um inflamado discurso.
- O amor é produto das mentes insanas! Imagine viajar pela Inglaerra inteira sem poder dormir ou, o que é pior, sem comer! Isso não : normal! E, quando
penso no estado de minha roupa - acrescentou, jlhando as botas sujas de lama -, sinto arrepios de horror. Meu bom ;enhor, amor é praga de um demente, de um homem
enlouquecido por alta de sono e pela fome!
Amedrontado com o ardor do conde, o estalajadeiro tratou de sair correndo.
- Espero, apenas - concluiu o nobre, com um suspiro -, que esse mal chamado amor não seja contagioso.
Lady Elizabeth e sir Anthony separaram-se um momento para fitar Sir Reginald, riram, e voltaram a se beijar, isolados em seu mundo de amor.

FIM

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Um mal chamado amor.txt

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