quarta-feira, 31 de março de 2010

Holly Black - Fadas Ousadas e Modernas, volume 1 e 2









Tradução de Alda Porto




















Para meu marido, Theo,
porque ele gosta de garotas angustiadas, iradas























Prólogo


Pois aprenderei com a folha e a flor
Com cada gota que elas contêm, aquela cor
Para mudar o vinho de morta dor
Em ouro vivo.

- Sara Teasdale, Alchemy


A
mulher-árvore sufocava em veneno, a lenta seiva, que era seu sangue, queimava. A maioria das folhas já havia caído, mas as restantes enegreciam e secavam ao longo de suas costas. Ela puxava as raízes da terra profunda, longas gavinhas peludas que se retraíam no ar frio de fim do outono.
Uma cerca de ferro circundara-lhe o tronco durante anos, o mau cheiro do metal tão conhecido quanto qualquer pequena dor. O ferro a descascava, enquanto ela arrastava as raízes por sobre a cerca. Tombou sobre a calçada de concreto, as lentas idéias de árvore tomadas de pesar. Um ser humano que passeava com dois cachorrinhos trombou na parede de tijolos de um edifício. Um táxi parou chiando e buzinou.
Longos galhos tropeçaram numa garrafa quando a mulher-árvore se arrastou para se desprender do metal. Ela olhou fixamente o vidro escuro que rolou para a rua, vendo pingar do gargalo um resto do veneno amargo. Observava o rabisco conhecido na pequena tira de papel presa com cera. O conteúdo daquela garrafa devia ter sido um tônico, não o instrumento de sua morte. Ela tentou se erguer mais uma vez.
Um dos cachorros começou a ladrar.
A mulher-árvore sentiu o veneno agindo dentro de si, sufocando-lhe a respiração e fazendo com que sentisse tontura. Andara rastejando em algum lugar, mas não conseguia lembrar onde. Manchas escuras e verdes, como hematomas, brotavam ao longo de seu tronco.
- Ravus - ela sussurrou, a casca dos lábios rachando-se. - Ravus.




















Capítulo 1


Agora, aqui, entende, é necessário correr o quanto for possível,
para permanecer no mesmo lugar. Se quiser chegar a algum
outro canto, precisa correr pelo menos duas vezes mais rápido!

? Lewis Carroll, Do outro lado do espelho


V
alerie Russell sentiu uma coisa fria tocar suas costas e, girando o corpo, golpeou-a. Seu tapa tocou em carne. Uma lata de refrigerante atingiu o piso de concreto do vestiário e rolou, um pegajoso líquido marrom formou uma poça, ainda efervescente. Outras meninas ergueram os olhos das malhas de ginástica que vestiam e começaram a dar risadinhas nervosas.
As mãos erguidas simularam uma rendição, Ruth riu.
? Foi só uma brincadeira, Princesa Badás de Badássia.
? Desculpe ? Val forçou-se a dizer, mas a súbita onda de raiva não se dissipara inteiramente e ela sentiu-se como uma idiota. ? O que você está fazendo aqui embaixo? Achei que ficar perto de pessoas suadas lhe dava alergia.
Ruth sentou-se num banco verde, parecendo exótica num antiquado paletó de smoking e numa longa saia de veludo. As sobrancelhas como finas linhas de lápis, os olhos contornados com delineador preto e sombra vermelha, que a faziam parecer uma dançarina japonesa de kabuki. Os cabelos negros brilhavam, mais claros nas raízes, e entremeados de tranças púrpuras. Ela deu uma profunda tragada no seu cigarro de cravo-da-índia e soprou a fumaça na direção de uma das colegas de time de Val.
- Só o meu próprio suor.
Val revirou os olhos, mas sorriu. Teve de admitir que fora uma resposta fantástica. Val e Ruth eram amigas havia uma eternidade, por tanto tempo que Val se habituara a ser a obscurecida, a "normal", a que criava as piadas, não a que as contava. Gostava desse papel; sentia-se segura nele. O Robin do Batman de Ruth. O Chewbacca do Han Solo da amiga.
Val abaixou-se para retirar os tênis com um chute e viu-se no pequeno espelho na porta do seu escaninho, mechas de cabelos alaranjados escapando de uma bandana verde.
Ruth tingia o cabelo desde a quinta série, primeiro de cores que se compravam em embalagens no supermercado, depois em belos e loucos tons, como verde-sereia e fúcsia-poodle, mas Val só tingira os seus uma vez. Fora um castanho-avermelhado comprado em loja, apenas mais escuro e forte que sua própria cor clara, mas, mesmo assim, aquilo acabou gerando a maior confusão. Naquela época, sua mãe punia-a toda vez que ela demonstrava estar crescendo. Não queria que usasse sutiã, nem saias curtas, e não queria que ela namorasse antes de chegar ao ensino médio. Agora que ela já estava no ensino médio, não mais que de repente, a mãe lhe empurrava maquiagem e conselhos sobre namoro. Mas ela se habituara a prender os cabelos para trás, sob bandanas grandes, usar jeans e camisetas, e não estava a fim de mudar.
? Consegui algumas estatísticas para o nosso projeto de controle da natalidade e selecionei alguns nomes em potencial para o boneco que a gente vai ter que fazer. ? Ruth tirou do ombro sua gigantesca bolsa de mensageiro. A aba da frente era manchada de tinta e enfeitada com botões e adesivos, um triângulo rosa descascado nas pontas, um outro com letras escritas à mão: "Ainda não sou rei", um menor onde se lia: "Algumas coisas existem, quer a gente acredite nelas ou não" e mais uma dezena.
? Eu estava pensando se talvez você não quisesse aparecer lá em casa de noite para a gente trabalhar nisso.
? Eu não posso. Tom e eu vamos ver um jogo de hóquei, na cidade, após o treino.
? Você um dia ainda vai transformá-lo num menino ? disse Ruth, enrolando uma das tranças roxas em volta do dedo.
Val franziu a testa. Não podia deixar de notar a má vontade na voz de Ruth quando falava sobre Tom.
? Acha que ele não quer ir? ? perguntou. ? Ele te disse alguma coisa?
Ruth abanou a cabeça e deu outra rápida tragada no cigarro.
? Não. Não. Nada disso.
? Eu estava pensando que podíamos ir ao Village depois do jogo, se der tempo. Passear em volta da catedral de São Marcos.
Apenas dois meses antes, na quermesse da cidade, Tom aplicara uma tatuagem adesiva na parte de baixo das costas dela, ajoelhando-se e umedecendo o local com a língua antes de grudá-la na pele. Agora, ela mal conseguia transar com ele.
? A cidade à noite. Romântico.
O jeito como Ruth disse isso fez Val achar que ela queria dizer o contrário.
? Como? O que você tem?
? Nada. Só estou meio distraída. ? Ruth se abanou com uma das mãos. ? Tantas meninas quase nuas no mesmo lugar.
Val fez que sim com a cabeça, meio convencida.
? Você olhou aqueles registros de chats da internet que mandei para você? Encontrou aquele, para o projeto? Com as estatísticas sobre mães solteiras?
? Ainda não vi. Procuro amanhã, certo? ? Val revirou os olhos. ? Minha mãe fica on-line vinte e quatro horas, nos sete dias da semana. Ela arranjou algum namorado novo na internet.
Ruth fez um ruído como se estivesse se engasgando.
? Que foi? ? perguntou Val. ? Eu achava que você apoiava o amor virtual. Não era você quem dizia que é o amor da mente? Verdadeiramente espiritual, sem carne para atrapalhar?
? Espero não ter dito isso. ? Ruth apertou as costas de uma das mãos contra a testa, deixando o corpo cambalear para trás num falso desmaio. Sacudiu-se de repente, empertigando-se com um salto. ? Ei, você prendeu seu cabelo com um elástico? Vai arrebentar os fios. Vem cá, acho que tenho um prendedor de pano e uma escova.
Val deixou-se cair no banco em frente da amiga e deixou-a tirar o elástico.
? Ai! Você está deixando a coisa ainda pior.
? Vocês do tipo atleta não deviam ser mais machonas?
Ruth escovou os cabelos já soltos de Val e enfiou-os no círculo de pano, prendendo-o apertado o suficiente para fazê-la achar que sentia os finos fios da nuca repuxados.
Jennifer aproximou-se e curvou-se sobre o bastão de lacrosse. Era uma garota sem graça, de ossos largos, que frequentava a escola com Val desde o jardim-de-infância. Sempre parecia artificialmente limpa, dos brilhantes cabelos ao cintilante branco das meias na altura dos joelhos e o short sem um vinco. Também era a capitã do time.
? Ei sapatão, leve isso para outro lugar.
? Tem medo de que seja contagioso? ? perguntou Ruth meigamente.
? Vai se foder, Jen ? disse Val, menos espirituosa e um segundo tarde demais.
? Você não pode fumar aqui ? retrucou Jen, mas sem olhar para Ruth. Fitava a malha de ginástica de Val. Tom decorara um dos lados, desenhando uma gárgula com marcador permanente, que subia por uma das pernas. A outra era quase toda coberta com frases ou simplesmente coisas aleatórias que Val escrevera com um monte de canetas diferentes. Provavelmente não era o que Jen considerava um traje normal para as aulas de educação física.
? Não faz mal. Preciso mesmo ir. ? Ruth largou o cigarro no banco, abrindo, com a brasa, uma cratera na madeira. ? Até logo, Val. Até logo, sapata não assumida.
? Que é que há com você? ? perguntou Jennifer suavemente, como se de fato quisesse que Val fosse sua amiga. ? Por que anda com ela? Não vê que ela é uma esquisita?
Val olhou para o chão, ouvindo as palavras que Jen não havia dito: Você é lésbica também? Sente tesão por mim? Não vamos aturar você por muito tempo neste time, a não ser que tome jeito.
Se a vida fosse como um jogo de videogame, ela usaria seus poderes para tacar Jen para o alto e a derrubaria contra a parede com dois golpes do bastão de lacrosse. Claro, se a vida fosse realmente um jogo de videogame, Val, na certa, teria feito isso de biquíni e teria seios gigantescos, cada um deles formado por polígonos separadamente animados.
Na vida real, Val mastigou o lábio e deu de ombros, mas com as mãos enroscadas em punhos. Já havia se envolvido em duas brigas desde que entrara na equipe e não podia se dar ao luxo de brigar mais uma vez.
? Que é? Precisa que sua namorada fale por você?
Val deu um soco na cara de Jen.


Com os nós dos dedos ardendo, Valerie largou a mochila e o bastão de lacrosse no chão já entulhado de seu quarto. Remexendo nas roupas, pegou uma calcinha e um sutiã esportivo que a deixava com os seios ainda mais chatos do que já eram. Depois, agarrando uma calça preta, que julgou estar provavelmente limpa, e o moletom verde de capuz, da pilha de roupa lavada, saiu para o corredor, os sapatos com chapas de ferro rachando os livros de contos de fada espalhados pelo chão e soltando-os das capas, deixando um rastro de terra sobre uma série de caixas de jogos de videogame. Ouviu o plástico estalar sob os saltos e tentou chutar alguns para um lugar seguro.
No banheiro do corredor, tirou o uniforme. Após esfregar uma toalha de banho debaixo dos braços e reaplicar desodorante, começou a vestir as roupas, parando apenas para inspecionar a pele esfolada nas mãos.
? Esta foi sua última chance ? dissera o treinador. Ela já estava esperando há quarenta e cinco minutos no escritório dele, enquanto todas as outras garotas treinavam e, quando ele afinal entrou, Val já sabia o que o homem ia dizer antes mesmo que ele abrisse a boca. ? Não podemos permitir que você continue no time. Sua presença está afetando o senso de amizade do grupo. Temos de ser uma unidade coesa, com apenas uma meta: vencer. Você entende, não?
Ouviu-se uma única batida antes de a porta abrir. A mãe de Val parou na soleira, as mãos, com unhas feitas à perfeição, ainda na maçaneta.
? O que houve com seu rosto?
Val sugou o lábio partido na boca e examinou-se no espelho. Esquecera isso.
? Nada. Foi só um acidente no treino.
? Você está com uma aparência horrível.
A mãe entrou espremendo-se, sacudiu os cabelos curtos e louros, com luzes, para que as duas pudessem se ver no mesmo espelho. Toda vez que ela ia ao cabeleireiro, parecia carregar cada vez mais nas luzes, de modo que o castanho original dava a impressão de estar afogado numa alta maré de amarelo.
? Muito obrigada, droga. ? Val bufou, apenas levemente aborrecida. ? Estou atrasada. Atrasada. Atrasada. Atrasada. Como o coelho branco.
? Espere aí.
A mãe de Val virou-se e saiu do banheiro. O olhar dela seguiu-a pelo corredor até o papel de parede listado e as fotografias de família. A mãe como a segunda colocada no concurso de rainha da beleza. Valerie com aparelho de dentes, sentada junto dela no sofá. Vovó e Vovô diante de seu restaurante. Mais uma vez Valerie, agora com a meia-irmã bebê no colo na casa do pai. Os sorrisos nos rostos imobilizados parecendo caricaturas e os dentes excessivamente brancos expostos.
Alguns minutos depois, a mãe de Val retornou trazendo uma bolsa de tecido de zebra, cheia de maquiagem.
? Não se mexa.
Valerie branqueou, erguendo os olhos das tiras de sua mochila verde preferida.
? Não tenho tempo. Tom vai chegar a qualquer minuto.
Não tinha colocado o relógio e, por isso, ergueu a manga da blusa da mãe e conferiu a hora no dela. Ele já estava mais que atrasado.
? Tom sabe como entrar sozinho.
A mãe pôs no dedo um pouco de base grossa de um tom bronzeado e começou a aplicá-lo, delicadamente, sob os olhos de Val.
? O corte é no lábio ? retrucou a menina.
Não gostava de maquiagem. Sempre que ria, os olhos lacrimejavam e a maquiagem escorria como se estivesse chorando.
? Você podia usar um pouco de cor no rosto. As pessoas em Nova York se arrumam.
? É só um jogo de hóquei, mãe, não é a ópera.
A mãe deu aquele suspiro, o que parecia insinuar que algum dia Val ia descobrir como estava errada. Passou pó compacto no rosto da filha e depois tirou o excesso. Aplicou em seguida mais pó nos olhos. Val lembrou-se de seu baile de formatura do ensino fundamental no último verão e desejou que a mãe não fosse tentar recriar aquele visual reluzente e pegajoso. Por fim, passou-lhe um pouco de batom nos lábios. Isso fez o ferimento incomodar novamente.
? Acabou? ? ela perguntou quando a mãe começou com o rímel. Olhou de lado para o relógio de pulso que mostrou que o trem iria partir em cerca de quinze minutos. ? Droga! Preciso ir. Onde está esse menino?
? Você sabe como Tom é às vezes ? disse a mãe.
? O que você quer dizer? ? Val não sabia por que a mãe sempre tinha de agir como se conhecesse seus amigos melhor do que ela.
? Ele é um garoto. ? A mãe balançou a cabeça. ? Irresponsável.
Valerie pegou o celular da mochila, sem tirá-la das costas, e deslizou a lista de nomes na tela até chegar ao dele. Entrou direto na mensagem de voz. Desligou. Voltando para o quarto, olhou pela janela e avistou as crianças que andavam de skate numa rampa de compensado, na entrada da garagem do vizinho. Não viu a lata-velha que era o Caprice Classic de Tom.
Telefonou mais uma vez. Mensagem de voz.
? Aqui é Tom. Bela Lugosi morreu, mas eu não. Deixe uma mensagem.
? Você não devia ficar ligando assim. ? A mãe a seguiu até o quarto. ? Quando ele tornar a ligar o celular, vai ver quantas chamadas não atendeu e quem ligou.
? Não me importa o que ele veja ? disse Val, apertando os botões. ? De qualquer modo, esta é a última vez.
A mãe de Val balançou a cabeça e, esticando-se na cama da filha, começou a contornar os próprios lábios com um lápis marrom. Conhecia tão bem a forma de sua boca que não precisava se dar o trabalho de pegar um espelho.
? Tom ? disse Valerie ao telefone, assim que a mensagem de voz entrou. ? Já estou indo a pé para a estação. Não se preocupe em vir me pegar. Encontre-me na plataforma. Se eu não o vir, vou pegar o trem e encontrar você no Garden.
A mãe fez cara feia.
? Acho que não é seguro você ir à cidade sozinha.
? Se não pegarmos esse trem, vamos nos atrasar para o jogo.
? Bem, pelo menos leve este batom.
A mãe remexeu na bolsa e passou o batom para a filha.
? Como isso vai me manter mais segura? ? resmungou Val e pendurou a mochila no ombro.
Continuava com o celular na mão, o plástico aquecendo-lhe o punho fechado.
A mãe sorriu.
? Vou mostrar uma casa esta noite. Está levando suas chaves?
? Claro ? disse Val. Beijou a face da mãe, inalando perfume e laquê. Deixou uma marca de lábios cor de vinho tinto. ? Se o Tom aparecer, diga a ele que já fui. E que ele é um babaca.
A mãe sorriu, mas com uma expressão um tanto constrangida.
? Espere ? pediu. ? Você devia esperá-lo.
? Não posso. Já avisei a ele que estava de saída.
Com isso, desceu a escada depressa, saiu pela porta da frente até a rua e atravessou a pequena área de jardim. Era uma caminhada curta até a estação e o ar frio estava agradável. Era melhor fazer qualquer outra coisa que esperar.
O estacionamento de asfalto da estação de trem continuava molhado da chuva da véspera e o céu nublado prometia ainda mais água. Quando Val atravessou o estacionamento, os sinais começaram a piscar e tinir em advertência. Ela chegou à plataforma assim que o trem rangeu ao parar, levantando uma lufada de ar quente, malcheiroso.
Ela hesitou. E se Tom tivesse esquecido o celular e estivesse em casa, esperando-a? Se ela partisse agora e ele tomasse o próximo trem, os dois talvez não se encontrassem. Ela estava com os dois ingressos. Talvez pudesse deixar o de Tom na bilheteria, mas ele poderia não pensar em procurar lá. E mesmo que tudo desse certo, ele ia ficar todo mal-humorado. Quando aparecesse, se aparecesse, não teria disposição de fazer coisa alguma além de brigar. Ela não sabia aonde poderiam ir, mas esperava que encontrassem um lugar para ficar a sós por algum tempo.
Mastigou a pele em volta do polegar, quase arrancando o pedaço de uma unha, e depois puxou uma fina tira de pele. Era estranhamente agradável, apesar do minúsculo volume de sangue que se formou na superfície, mas quando o retirou com uma lambida, a pele tinha um gosto mais amargo. As portas do trem afinal se fecharam, acabando com sua indecisão. Viu-o rolar para fora da estação e então saiu andando devagar para casa. Ficou aliviada e ao mesmo tempo chateada ao ver o carro de Tom estacionado junto ao Miata? da mãe na entrada da garagem. Onde ele havia se metido? Acelerou o passo e abriu a porta com um empurrão.
E ficou petrificada. A porta de tela escorregou-lhe dos dedos, fechando-se com um estrondo. Pela tela, viu a mãe curvada para a frente no sofá branco, a camisa azul-clara desabotoada até a parte superior do sutiã. Tom estava ajoelhado no chão, a cabeça com corte moicano erguendo-se para beijá-la. As unhas pretas, totalmente roídas, às voltas com os botões restantes na camisa dela. Os dois se assustaram com o barulho da porta batendo e viraram-se para ela, os rostos sem expressão, a boca de Tom toda borrada de batom. De algum modo, Val desviou os olhos para trás deles, para as margaridas murchas que Tom lhe dera pelo aniversário de quatro meses de namoro. Estavam em cima do armário da televisão, onde as deixara semanas atrás. A mãe quisera que ela as jogasse fora, mas Val se esqueceu. Via os caules através do vaso de cristal, a parte inferior imersa em água salobra e formigando de fungos.
A mãe emitiu um ruído sufocado e atrapalhou-se toda para se levantar, fechando a camisa com um puxão.
? Merda! ? Tom quase caiu para trás sobre o tapete bege.
Val sentia vontade de dizer alguma coisa cáustica, que queimasse os dois até as cinzas, ali mesmo onde se encontravam, mas as palavras não lhe vieram. Virou-se e foi embora.
? Valerie! ? gritou a mãe, parecendo mais desesperada que dominadora.
Virando-se, ela a viu na porta da entrada. Tom era uma sombra atrás dela. Começou a correr, com a mochila batendo no quadril. Só diminuiu o passo quando chegou novamente à estação de trem. Ali, ajoelhou-se na calçada de concreto, arrancando ervas daninhas murchas e ligando para o número de Ruth.
Ruth atendeu. Parecia estar rindo.
? Alô?
? Sou eu ? disse Val.
Esperava que a voz tremesse, mas saiu neutra, sem emoção.
? Ei, onde você está?
Val sentia as lágrimas começarem a arder nos cantos dos olhos, mas as palavras continuavam saindo firmes.
? Eu descobri uma coisa sobre Tom e minha mãe...
? Droga! ? interrompeu Ruth.
Valerie calou-se por um momento, o terror deixando-lhe as pernas pesadas.
? Você sabe de alguma coisa? Sabe do que estou falando?
? Que bom que você descobriu ? Ruth falava rápido, as palavras quase atropelando umas às outras. ? Eu queria lhe contar, mas sua mãe me implorou que não dissesse. Ela me fez jurar que não contaria.
? Ela contou para você? ? Val sentia-se uma completa idiota, mas simplesmente não conseguia aceitar muito bem as palavras que ouvia. ? Você sabia?
? Ela não contaria para ninguém se não tivesse descoberto que Tom deixou a coisa escapar. ? Ruth riu e interrompeu-se, sem graça. ? Não que fosse continuar assim por tanto tempo. Francamente. Eu teria dito alguma coisa, mas sua mãe prometeu que faria isso. Cheguei a dizer que ia contar, mas ela disse que negaria tudo. E eu tentei te dar umas indiretas. De verdade.
? Que indiretas?
Val sentiu-se tonta de repente. Fechou os olhos.
? Bem, eu disse que você devia checar as salas de bate-papo na internet, lembra? Escute, não tem importância. Fico muito feliz que ela tenha afinal lhe contado.
? Ela não me contou ? disse Valerie.
Fez-se um longo silêncio. Val ouvia Ruth respirando.
? Por favor, não fique puta comigo ? Ruth acabou dizendo. ? Eu simplesmente não podia lhe contar. Não podia ser logo eu quem ia lhe contar.
Val desligou o telefone. Chutou um pedaço de asfalto solto numa poça e depois a própria poça. Seu reflexo ficou turvo; a única coisa claramente visível era a boca, um rasgão vermelho num rosto claro. Esfregou-o, mas a cor apenas se espalhou.
Quando chegou o trem seguinte, ela entrou, desviando-se para um banco laranja rachado e encostando a testa na fria janela de acrílico. O celular zumbiu e ela o desligou sem olhar a tela. Mas ao virar-se mais uma vez para a janela, foi o reflexo da mãe que viu. Levou um momento para perceber que olhava a si mesma maquiada. Furiosa, dirigiu-se às pressas para o banheiro do trem.
O compartimento era sujo e grande, com um pegajoso piso emborrachado e paredes de plástico rígido. O cheiro de urina misturava-se com o odor de flores químicas. Pequenos e grossos pingos de chiclete descartado decoravam as paredes. Ela sentou-se na tampa do vaso e forçou-se a relaxar, respirar profundamente aquele ar podre. Enterrou as unhas na carne dos braços e, de algum modo, isso a fez sentir-se um pouco melhor, sentir que estava um pouco mais no controle.
Surpreendia-se com a força de sua própria raiva. Aquele ódio a oprimia, fazendo-a temer que pudesse começar a gritar com o condutor, com cada passageiro do trem. Não conseguia se imaginar existindo a viagem inteira. Já se sentia exausta do esforço de não se desmontar.
Esfregou o rosto e baixou os olhos para a palma da mão, riscada de batom cor de vinho tinto e ligeiramente trêmula. Abriu o zíper da mochila e despejou o conteúdo no chão imundo quando o trem deu uma guinada.
Sua câmera fez barulho ao cair no revestimento de borracha do piso, junto com dois rolos de filme, um livro da escola ? Hamlet ? que já devia ter lido, dois prendedores de cabelo, uma embalagem amassada de chiclete e um estojo de toalete de viagem que a mãe lhe dera no último aniversário. Tateou para abri-lo ? pinça, tesourinha de unha e aparelho de barbear, tudo tremeluzindo na luz fraca. Retirou a tesoura, apalpou as pontas pequenas e afiadas. Levantou-se e examinou o espelho. Pegando um tufo de cabelos, começou a cortar.
Quando terminou, mechas isoladas curvavam-se em volta dos tênis como serpentes de cobre. Correu a mão pela cabeça careca. Tinha uma textura escorregadia como sabão e áspera como a língua de um gato. Ela fitou seu próprio reflexo, que se tornara estranho e sem graça, os olhos resolutos e a boca contraída numa linha fina. Os fios de cabelo grudados no rosto, como finas lascas de metal. Por um momento, não teve certeza sobre o que pensava aquele rosto no espelho.
O aparelho de barbear e a tesourinha tiniram na pia quando o trem avançou sacolejando. A água esparramou-se no vaso.
? Oi? ? gritou alguém do lado de fora da porta. ? O que está acontecendo aí?
? Só um minuto ? gritou Val em resposta.
Lavou o aparelho de barbear embaixo da torneira e jogou-o dentro da mochila. Pendurando-a no ombro, pegou um chumaço de papel higiênico, umedeceu-o e agachou-se para retirar os cabelos do piso.
O espelho atraiu-lhe mais uma vez o olhar quando ela se levantou novamente. Desta vez, um rapaz retribuiu-lhe o olhar, as feições tão delicadas que ela achou que ele não podia se defender. Val piscou os olhos, abriu a porta preta e saiu para o corredor do trem. Voltou para seu banco, sentindo os olhares dos outros passageiros retraírem-se ao verem-na passar. Olhando para fora da janela, viu os gramados suburbanos deslizarem por eles até que entraram num túnel e ela viu apenas seu novo e estranho reflexo na janela.


O trem parou numa estação subterrânea e ela saltou, seguindo a pé em meio ao fedor de exaustão. Subiu por uma escada rolante estreita e imóvel, espremida entre pessoas. A estação Penn vivia apinhada de pessoas que viajavam diariamente para o trabalho, cabisbaixas ao passarem umas pelas outras, e de quiosques que vendiam penduricalhos, cachecóis e flores de fibra ótica resplandecentes de cores em constante mutação. Valerie manteve-se junto a uma única parede, passando por um homem imundo que dormia sob um jornal e um grupo de meninas de mochilas nas costas, gritando umas para as outras em alemão.
A raiva que sentira no trem esvaíra-se e ela se deslocava pela estação como uma sonâmbula.
Madison Square Garden ficava acima de outra escada rolante, além de uma fila de táxis e quiosques vendendo amendoins confeitados e salsichas. Um homem estendeu-lhe um panfleto e ela tentou devolvê-lo, mas ele já se afastara, deixando-a com uma folha de papel prometendo "Garotas ao vivo". Val amassou o panfleto e o enfiou no bolso.
Atravessou um corredor estreito apinhado de pessoas e esperou diante da cabine da bilheteria. O garoto atrás do vidro ergueu os olhos quando ela deslizou para o outro lado o ingresso de Tom. Parecia surpreso. Ela achou que talvez fosse a falta de cabelos.
? Pode me devolver o dinheiro por isto? ? perguntou Val.
? Você já tem ingresso? ? ele perguntou, franzindo os olhos para ela, como se tentasse compreender exatamente qual era a fraude.
? Tenho ? ela respondeu. ? O babaca do meu ex-namorado não conseguiu chegar.
A compreensão espalhou-se pelas feições dele, que assentiu com a cabeça.
? Saquei. Escute, não posso devolver o dinheiro a você porque o jogo já começou, mas se me der os dois poderia trocá-los por um lugar melhor.
? Claro. ? Val sorriu pela primeira vez em toda aquela viagem.
Tom já lhe dera o dinheiro do ingresso dele e ela ficou contente porque poderia ter a pequena vingança de conseguir um lugar melhor em troca da entrada dele.
Ele passou-lhe o novo ingresso e ela girou a catraca, avançando a custo pela multidão. Pessoas discutiam, os semblantes acalorados. O ar fedia a cerveja.
Ela estivera aguardando ansiosamente por aquele jogo. Os Rangers estavam fazendo uma excelente temporada. Mas, mesmo que não estivessem tão bem, ela adorava a maneira como os homens se moviam pelo gelo, como se a lei da gravidade não agisse sobre eles, o tempo todo equilibrados em lâminas de faca. O hóquei fazia com que o lacrosse parecesse sem graça, apenas um bando de pessoas avançando com dificuldade sobre um campinho gramado. Mas quando olhou à procura do portão de entrada para sua cadeira, sentiu o pavor embrulhar-lhe o estômago. O jogo era importante para todas as pessoas como antes havia sido para ela, mas, agora, Val estava apenas matando o tempo antes de ter de voltar para casa.
Encontrou o vão da porta e entrou. A maioria dos assentos já estava ocupada e ela teve que se desviar de lado para passar por um grupo de rapazes de rostos acalorados. Eles esticaram os pescoços para contorná-la e olhar além da divisória de vidro, onde o jogo já começara. O estádio cheirava a frio, como o ar após uma nevasca. Mas até quando o time dela patinava em direção a um gol, os pensamentos de Val tremeluziram de volta à mãe e Tom. Não devia ter saído daquele jeito. Gostaria de poder refazer tudo. Não teria nem se incomodado com a mãe. Teria dado um soco na cara de Tom. E, então, olhando só para ele, diria:
? Eu esperava mesmo isso dela, mas pensava que você fosse melhor.
Isso teria sido perfeito.
Ou talvez devesse ter despedaçado as janelas do carro dele. Mas o carro era realmente uma lata-velha, portanto, talvez não.
Poderia ter ido à casa de Tom para contar aos pais dele sobre a bolsinha de erva que ele guardava entre o colchão e as molas da cama. Juntando com esse lance da mãe de Val, talvez a família o mandasse para alguma instituição de detenção por aberrações como trepar com mães e dependência de drogas.
Quanto à mãe, a melhor vingança que Val poderia fazer era ligar para o pai, pôr a madrasta, Linda, no viva-voz e contar-lhes a coisa toda. O pai e Linda tinham um casamento perfeito, daqueles que vinham com duas adoráveis crianças babando, carpetes de parede a parede e que quase sempre causava náuseas em Val. Mas, se contasse, a história passaria a ser deles. Iam contá-la sempre que quisessem, gritá-la para a mãe de Val quando brigassem, relatá-la para chocar os companheiros de golfe. A história era de Val e ela ia controlá-la.
Um bramido ergueu-se do público. Em toda a volta, pessoas pulavam. Um dos Rangers tinha derrubado algum cara do outro time e arrancava as próprias luvas. O juiz agarrou o Ranger, e seu patim deslizou, cortando uma linha na face do outro jogador. Enquanto eram retirados, Val olhou fixamente para o sangue no gelo. Um homem de branco chegou e raspou-o quase todo. O veículo de recuperação de superfície alisou o gelo durante algum tempo, mas uma área de vermelho permaneceu, como se a mancha tivesse penetrado tão fundo que não pudesse ser retirada. Até quando seu time fez o gol da vitória e todo mundo ao redor dela se levantou mais uma vez, Val parecia não conseguir desviar o olhar do sangue.
Depois do jogo, ela acompanhou a multidão na saída para a rua. A estação do trem ficava a apenas alguns passos de distância, mas ela não podia enfrentar o retorno para casa. Queria retardá-lo um pouco mais, até poder entender melhor as coisas, dissecar um pouco mais o que havia acontecido. A própria idéia de voltar ao trem encheu-a de um pânico nauseante que fez sua pulsação disparar e o estômago agitar-se.
Começou a andar e, depois de pouco tempo, notou que os números da rua ficaram menores e os prédios mais antigos, as ruelas estreitavam-se e o tráfego reduzia-se. Virando à esquerda, para o que julgou ser a periferia do West Village, passou por lojas de roupas fechadas e fileiras de carros estacionados. Não tinha muita certeza da hora, mas devia ser quase meia-noite.
A mente de Val não parava de tentar desvendar os olhares entre Tom e a mãe, olhares que agora faziam sentido, insinuações que ela devia ter entendido. Via o rosto da mãe, uma estranha combinação de culpa e honestidade, quando lhe pedira que esperasse Tom. A lembrança a fez vacilar, como se o corpo tentasse livrar-se de um peso físico.
Parou e comprou uma fatia de pizza numa loja sem muito movimento, onde uma mulher com um carrinho de supermercado cheio de garrafas, estava sentada bem no fundo bebendo Sprite de canudinho e cantando para si mesma. O queijo derretido queimou o céu da boca de Val e, quando ela olhou para o relógio no alto da parede, deu-se conta de que perdera o último trem para casa.






















Capítulo 2


Tentando mais uma pez as asas em desesperado vôo:
Mariposas cegas contra os arames das telas de janela.
Qualquer coisa. Qualquer coisa por uma prise de luz.

? X. J. Kennedy, "Street Moths",
The Lords of Misrule


V
al cochilou mais uma vez, a cabeça apoiada numa mochila quase vazia, o resto estendido no piso de azulejos frio, sob o mapa do metrô. Escolhera um lugar perto da bilheteria, imaginando que ninguém tentaria roubá-la nem esfaqueá-la diante das pessoas. Passara quase toda a noite no estado nebuloso entre o sono e a vigília, cabeceando por um momento e depois despertando sobressaltada. Às vezes, acordava de um sonho sem saber onde estava. A estação fedia a lixo rançoso e bolor, mesmo sem o calor necessário para fazer os cheiros aflorarem. Acima da pintura e do mofo rachados, uma borda escultural de tulipas enroscadas, que era um vestígio de outra estação de Spring Street, talvez antiga e grandiosa. Ela tentava imaginar aquela estação, quando caiu de novo no sono.
O mais estranho era que não estava com medo. Sentia-se distanciada de tudo, uma sonâmbula que se desviara do caminho da vida normal e penetrava numa floresta onde tudo podia acontecer. A raiva e a dor haviam esfriado, transformando-se numa letargia que deixava seus membros pesados como chumbo.
Na vez seguinte em que abriu os olhos, viu pessoas paradas à sua volta. Sentou-se, escavando a mochila com os dedos de uma das mãos e erguendo a outra como para se esquivar de um golpe. Dois policiais encaravam-na de cima.
? Já é manhã ? disse um deles. Tinha cabelos curtos e grisalhos e rosto corado, como se houvesse ficado parado por muito tempo ao vento.
? É.
Val esfregou os cantos dos olhos com a parte de trás das mãos para espantar os fiapos de sono. A cabeça doía.
? Você escolheu um lugar péssimo ? o homem comentou.
Pessoas que viajavam de trem para o trabalho passaram por eles, mas só algumas se davam ao trabalho de olhá-la.
Val estreitou os olhos.
? E daí?
? Quantos anos você tem? ? perguntou o outro policial, que era mais jovem, magro, de olhos sombrios e hálito que cheirava a cigarro.
? Dezenove ? ela mentiu.
? Tem alguma identidade?
? Não ? ela respondeu, esperando que não revistassem sua mochila. Tinha uma autorização provisória para dirigir, já que ainda não tirara carteira de motorista, pois foi reprovada no exame de direção, mas esse documento bastava para provar que acabara de fazer dezessete anos.
Ele deu um suspiro.
? Não pode dormir aqui. Quer que a levemos a algum lugar onde possa descansar um pouco?
Ela se levantou, pendurando a mochila num dos ombros.
? Estou ótima. Só estava esperando amanhecer.
? Para onde vai? ? perguntou o policial mais velho, bloqueando-lhe o caminho com o corpo.
? Pra casa ? disse Val, porque achou que soaria bem.
Ela abaixou-se sob o braço dele e precipitou-se escada acima. O coração martelava quando percorreu desabalada a rua Crosby, por entre multidões de pessoas, passou pelos zonzos trabalhadores madrugadores que arrastavam mochilas e pastas, pelos mensageiros de bicicleta e os táxis, atravessando as rajadas de vapor que subiam em ondas das tampas dos bueiros. Diminuiu a velocidade e olhou para trás, mas ninguém parecia estar seguindo-a. Ao atravessar para a Bleecker, viu um casal de punks desenhando na calçada com giz. Um tinha um corte moicano, levemente dentado no alto. Val contornou cuidadosamente a arte deles e seguiu em frente.
Para ela, Nova York sempre fora o lugar que fazia sua mãe segurar-lhe a mão apertada, a cintilante grade dos arranha-céus revestidos de painéis de vidro, os Cup O'Noodles fumegantes, ameaçando derramar caldo fervente nos garotos que esperavam na fila para participar de algum programa da MTV, a poucas quadras de distância de onde Les Miserables era representado em matines para estudantes de francês do ensino fundamental, trazidos de ônibus dos subúrbios. Mas, agora, atravessando para Macdougal, Nova York era muito mais e muito menos do que Val lembrava. Passou por restaurantes ainda vazios, que despertavam para as atividades, as portas ainda fechadas; uma corrente enfeitada com mais de uma dúzia de fechaduras, cada uma com um recorte do rosto de um bebê, e uma loja que só vendia robôs de brinquedo. Lugares pequenos, interessantes, que sugeriam a imensidão da cidade e a estranheza dos habitantes.
Dirigiu-se com cautela a um bar fracamente iluminado chamado Café Diablo. O interior era revestido de papel de parede aveludado vermelho. Um diabo de madeira, junto ao balcão, estendia uma bandeja de prata pregada à mão. Val comprou um café grande e quase o entupiu com canela, açúcar e creme. O calor da caneca proporcionou-lhe uma sensação gostosa nos dedos frios, mas a deixou ciente da dureza de seus membros, os nós nas costas. Esticou-se, arqueando a coluna para trás e girando o pescoço, até ouvir alguma coisa estalar.
Encaminhou-se para um lugar nos fundos, escolhendo uma poltrona puída perto de uma mesa onde um rapaz com tranças finas e uma garota com emaranhados de cabelo azul desbotado e botas brancas na altura dos joelhos sussurravam. Ele rasgava e despejava um saquinho de açúcar atrás do outro em sua caneca.
A garota deslocou-se um pouco e Val viu que tinha um gatinho cor de mel no colo. O animal esticou uma pata para bater no zíper do casaco de retalhos de pêlo de coelho dela.
Val sorriu, pensativa. A garota viu-a olhando, retribuiu o sorriso e pôs o gato na mesa. Ele miou lamentosamente, farejou o ar, tropeçou.
? Espere ? disse Val.
Desprendendo a tampa de seu café, foi até a frente, encheu-a de creme, depositou-a diante do gatinho.
? Brilhante ? elogiou a menina de cabelos azuis.
Val viu que o piercing no nariz dela estava infeccionado, a pele em volta da pedra brilhante com um inchaço duro e vermelho.
? Como se chama o gatinho? ? perguntou.
? Ainda não tem nome. Estávamos discutindo isso. Se tiver alguma idéia me diga. Dave acha que não devíamos ficar com ela.
Val tomou um gole do café. Não conseguiu pensar em nada. Seu cérebro parecia inchado, pressionando o crânio, e ela sentia-se tão cansada que não conseguia focar muito bem as imagens quando piscava.
? De onde ela veio? É uma gata perdida?
A garota abriu a boca, mas o garoto pôs a mão em seu braço.
? Lolli. ? Ele apertou-o como um aviso e os dois partilharam um olhar intenso.
? Eu a roubei ? respondeu Lolli.
? Por que diz às pessoas coisas assim? ? retrucou Dave.
? Eu digo tudo às pessoas. As pessoas só acreditam naquilo com que podem lidar. É assim que sei em quem confiar.
? Roubou de uma loja sem que nenhum vendedor percebesse? ? perguntou Val, olhando o corpo minúsculo do gatinho, a língua rósea enrolada.
Lolli fez que não com a cabeça, visivelmente maravilhada consigo mesma.
? Eu atirei uma pedra na vitrine. À noite.
? Por quê?
Val deslizou facilmente para o papel de platéia apreciadora, emitindo os ruídos certos, como fazia com Ruth, Tom ou sua mãe, e fazendo as perguntas que quem contava a história queria ouvir, mas sob aquele hábito conhecido havia verdadeira fascinação. Lolli era exatamente o que Ruth queria ser com todas aquelas poses.
? A dona da loja de animais de estimação fumava. Bem na loja. Dá pra acreditar nisso? Ela não merecia cuidar de animais.
? Você fuma. ? Dave abanou a cabeça, consternado.
? Mas não tenho uma loja de animais de estimação. ? Lolli virou-se para Val. ? Sua cabeça parece bem legal. Posso tocar?
Val deu de ombros e curvou a cabeça para a frente. Era uma sensação estranha ser tocada ali ? não desconfortável, apenas estranha, como se alguém lhe acariciasse as solas dos pés.
? Eu sou Lollipop ? disse a garota. Virou-se para o rapaz com as tranças. Era magro e bonito, com olhos asiáticos. ? Este é Dave Mal Acabado.
? Só Dave ? ele corrigiu.
? Eu sou só Val.
Val sentou-se direito. Era um alívio conversar com pessoas após tantas horas de silêncio. Era mais que um alívio conversar com pessoas que não sabiam nada sobre ela, Tom, a mãe, nem nada de seu passado.
? Não é diminutivo de Valentine? ? perguntou Lollipop, ainda sorrindo.
Val não tinha certeza de que a menina estava caçoando dela ou não, mas como seu nome era Lollipop, pirulito, que poderia haver de engraçado com o nome de Val? Apenas fez que não com a cabeça.
Dave bufou e rasgou outro saquinho de açúcar, despejando os grãos na mesa e dividindo-os em longas linhas, que comia com um dedo molhado de café.
? Você vai à escola por aqui? ? perguntou Val.
? Nós não vamos mais à escola, mas moramos aqui. Moramos em qualquer lugar que queremos.
Val tomou outro gole de café.
? Que quer dizer?
? Ela não quer dizer nada ? interrompeu Dave. ? E você?
? Jersey. ? Val olhou para o líquido lácteo cinza em sua xícara. O açúcar trincou entre os dentes. ? Acho. Se eu voltar. ? Ela levantou-se, sentindo-se idiota, perguntando-se se eles estavam gozando dela. ? Com licença.
Ela foi ao banheiro e lavou-se, o que a fez sentir-se menos repugnante. Gargarejou com água da torneira, mas quando cuspiu, viu-se no espelho com demasiada nitidez: manchas de sardas pelas faces e pela boca, incluindo uma logo abaixo do olho esquerdo, todas parecendo sujeira solidificada contra o bronzeado remendado que adquirira graças aos esportes ao ar livre. A cabeça recém-raspada parecia estranhamente branca e a pele ao redor dos olhos azuis estava sanguinolenta e inchada. Esfregou a mão no rosto, mas não ajudou. Quando retornou, Lolli e Dave tinham ido embora.
Ela terminou o café. Pensou em cochilar na poltrona, mas o Café ficara cheio e barulhento, fazendo sua dor de cabeça piorar. Saiu para a rua.
Uma drag queen, com uma peruca que mais parecia uma colméia, parada, em pé, num ângulo torto, correu atrás de um táxi, com uma sandália de plataforma de acrílico numa das mãos. Quando o taxista se afastou acelerado, ela atirou-a com força suficiente para bater na janela traseira.
? Seu fodido de merda! ? ela gritou, mancando em direção ao sapato.
Val precipitou-se para a rua, pegou-o e devolveu-o para a dona.
? Obrigada, fofuchinha.
De perto, Val viu que os cílios falsos eram entremeados com prata e a purpurina cintilava nas maçãs do rosto.
? Você dá um príncipe adorável. Lindo penteado. Por que não fazemos de conta que eu sou a Cinderela e você põe este sapato bem no meu pé?
? Tudo bem - disse Val, agachando-se e afivelando a tira de plástico, enquanto a drag queen tentava não pular ao oscilar para manter o equilíbrio.
? Perfeito, boneca.
Endireitou a peruca.
Quando Val se levantou, viu Dave Mal Acabado rindo ao sentar-se na grade no outro lado da rua estreita. Lolli estendia-se de lado sobre uma canga de batique azul com livros, castiçais e roupas. A luz do sol, o azul de seus cabelos brilhava mais intenso que o céu. O gatinho deitava-se a seu lado, uma pata batendo num cigarro no chão.
? Ei, Príncipe Valente ? chamou Dave, dando um sorriso radiante como se fossem velhos amigos.
Lolli acenou. Val enfiou as mãos nos bolsos e encaminhou-se para eles.
? Senta aí ? disse Lolli. ? Achei que tínhamos assustado você.
? Ia para algum lugar? ? perguntou Dave.
? Na verdade, não. ? Val sentou-se no concreto frio. O café começara afinal a disparar por suas veias e ela sentia-se quase desperta. ? E vocês?
? Vamos vender algumas coisas que Dave garimpou. Fique aqui conosco. Ganhamos algum dinheiro e depois damos uma festa.
? Tudo bem. ? Val não tinha certeza de que queria uma festa, mas não se importava em ficar sentada na calçada por algum tempo. Ergueu a manga de uma jaqueta de veludo vermelho. ? De onde vieram todas essas coisas?
? A maioria de mergulhos em caçambas de lixo ? disse Dave, sério. Val se perguntou se parecia surpresa. Queria mostrar-se desinteressada e descontraída. ? Você ficaria pasma com o que as pessoas pagam pelo que já jogaram fora.
? Eu acredito ? Val assentiu. ? Pensava em como é simpática essa jaqueta.
Deve ter sido a resposta certa, porque Dave deu um largo sorriso, mostrando um dente da frente lascado.
? Você é legal. Então, como foi mesmo que disse, "se você voltar"? Que quer dizer? Está na rua?
Val deu um tapinha no concreto.
? Estou bem aqui.
Os dois riram. Quando Val se sentou ao lado deles, pessoas passavam por ela, mas viam apenas uma garota de jeans sujos e cabeça raspada. Qualquer um da escola poderia ter passado por ela, Tom talvez pudesse ter parado para comprar uma gravata, a mãe, tropeçado numa fenda na calçada, e nenhum deles a teria reconhecido.
Refletindo melhor, Val sabia que tinha um hábito de confiar demais, ser muito passiva, disposta a acreditar no melhor dos outros e no pior de si mesma. E, no entanto, ali estava ela, fazendo amizade com outras pessoas, dando-se bem com elas.
Mas havia alguma coisa diferente no que fazia agora, que a enchia de um estranho prazer. Era como olhar para baixo de um edifício alto, do modo como a adrenalina nos atinge quando balançamos para a frente. Poderoso, terrível e totalmente novo.
Val passou o dia ali com Lolli e Dave, sentada na calçada, falando sobre nada. Dave contou-lhes uma história sobre um sujeito que ele conhecia que se embriagou tanto que comeu uma barata num desafio.
? Uma daquelas baratas de Nova York, do tamanho de um peixe-dourado. A coisa estava a meio caminho da boca e continuava se retorcendo quando ele mordeu. No fim, depois de mastigar várias vezes, ele engoliu. De verdade. E meu irmão estava lá, viu tudo. O Luis é um desses loucos inteligentes, imagine que leu a enciclopédia quando estava em casa com catapora e disse ao cara: "Você sabe que as baratas põem ovos mesmo depois de mortas?" Bem, o cara no início não acreditou, mas depois começou a berrar que estavam tentando matá-lo e segurou o estômago, dizendo que já sentia as baratas o devorando por dentro.
? Ai, que nojo ? disse Val, mas ria com tanta força que tinha lágrimas nos olhos. ? Totalmente nojento.
? Não, mas fica ainda melhor ? disse Lolli.
? É ? confirmou Dave Mal Acabado. ? Porque ele vomitou nos próprios sapatos. E a barata estava bem ali, toda picada, mas dava para ver muito bem os pedaços de um bicho preto bem grande. E, agora, o melhor de tudo: uma das pernas se mexeu.
Val gritou de nojo e contou que ela e Ruth fumaram catnip achando que ia dar um barato.
Depois de venderem uma luva de crocodilo falsa, duas camisetas e uma jaqueta de lantejoulas da canga, Dave comprou cachorros-quentes para todos numa caminhonete de rua, pescados da água suja e entulhados de chucrute, molho condimentado e mostarda.
? Venha. Precisamos celebrar o nosso encontro ? disse Lolli, pulando. ? Você e o gato.
Ainda comendo, saíram correndo pela rua. Atravessaram várias quadras, com Lolli abrindo caminho, até chegarem a um velho que enrolava seus próprios cigarros nos degraus de um prédio de apartamentos. Tinha ao lado uma sacola imunda cheia de outros sacos. Os braços eram magros como palitos e o rosto enrugado como uva passa. Mas beijou Lolli na face e cumprimentou Val muito educadamente. Lolli deu-lhe dois cigarros e um chumaço de contas amassadas e ele levantou-se e atravessou a rua.
? Que é que há com ele? ? sussurrou Val para Dave. ? Por que é tão esquelético?
? Detonado pelo crack ? respondeu Dave.
Alguns minutos depois, ele voltou com uma garrafa de conhaque de cereja num saco de papel pardo.
Dave retirou uma garrafa de Coca-Cola quase vazia de sua sacola de mensageiro e encheu-a da bebida.
? Assim os tiras não param a gente. Eu detesto policiais.
Val tomou um gole do gargalo e sentiu o álcool arder pela garganta abaixo. Os três passaram-na um para o outro ao seguir andando pelo trecho oeste da Terceira Avenida. Lolli parou diante de uma mesa cheia de bijuterias pendendo de árvores de plásticos, que retiniam sempre que um carro passava. Retirou com o dedo um bracelete feito de minúsculos sinos prateados. Val foi até a mesa seguinte, onde se empilhavam incensos em fardos e amostras queimavam numa bandeja de abalone.
? Que vamos querer aqui? ? perguntou o homem atrás da mesa.
Ele tinha a pele da cor de mogno envernizado e cheirava a sândalo.
Val sorriu ligeiramente e voltou-se para Lolli.
? Diga a seus amigos para tomar mais cuidado com quem servem. ? Os olhos do homem dos incensos eram sombrios e reluziam como os de um camaleão. ? São sempre os mensageiros os primeiros a conhecer a insatisfação do cliente.
? Certo ? Val assentiu, afastando-se da mesa.
Lolli saltitava, os sinos retinindo em volta do pulso. Dave tentava fazer o gato lamber o conhaque da tampa do refrigerante.
? Aquele sujeito é realmente estranho ? comentou Val.
Quando olhou para trás, pelo canto do olho, só por um momento, o homem do incenso parecia ter longos espinhos aflorando das costas como um ouriço.
Val pegou a garrafa.
Foram andando sem rumo até chegar a um mediano de asfalto em forma de triângulo, margeado nos dois lados por bancos de parque, na certa para namorados comerem seu almoço quando a temperatura estava mais quente e aspirar o ar úmido e a fumaça dos canos de descarga. Sentaram-se, largando o gato no chão para investigar os restos esmagados de um pombo. Ali, passaram o conhaque um para o outro até Val sentir a língua dormente, os dentes formigando e a cabeça flutuando.
? Você acredita em fantasmas? ? perguntou Lolli.
Val pensou um momento.
? Acho que gostaria de acreditar.
? E nas outras coisas? ? Lolli miou e esfregou os dedos uns nos outros, chamando o gato para perto.
Ele não deu a menor atenção.
Val riu.
? Que coisas? Quer dizer, eu não acredito em vampiros nem em lobisomens, nem em zumbis, nem em coisas assim.
? E em seres fantásticos?
? Seres fantásticos como...?
Dave deu uma risadinha.
? Como monstros.
? Não ? disse Val, abanando a cabeça. ? Acho que não.
? Quer saber de um segredo? ? perguntou Lolli.
Val curvou-se mais para perto e assentiu com a cabeça.
Claro que queria.
? Sabemos onde tem um túnel com um monstro ? sussurrou Lolli. - Uma fada. Sabemos onde moram as fadas.
? Como?
Val não tinha certeza de que ouvira direito.
? Lolli ? advertiu Dave, mas a voz soou meio enrolada ?, feche a matraca. Luis ficaria furioso se ouvisse você.
? Você não pode mandar no que eu falo. - Lolli envolveu os braços em volta de si, enterrando as unhas na pele. Jogou os cabelos para trás. - Quem acreditaria nela, de qualquer modo? Aposto que a Val nem acredita em mim.
? Caras, vocês estão falando sério? ? perguntou Val.
Bêbada como estava, quase parecia possível. Tentou pensar nos antigos contos de fada que gostava de reler, os que colecionara desde pequena. Não tinham muitas fadas. Pelo menos, não o que ela julgava como tal. Tinham fadas madrinhas, ogros, gigantes, gnomos travessos e homenzinhos que barganhavam seus serviços com as crianças e depois se irritavam ao saber que seus nomes verdadeiros haviam sido descobertos. Ela pensava nas fadas do videogame, mas aqueles eram elfos e ela não tinha certeza se elfos eram sequer fadas.
? Conte a ela ? disse Lolli a Dave.
? Quem você pensa que é para ficar me dando ordens? ? perguntou Dave, mas Lolli apenas lhe deu um soco no braço e riu. ? Está bem. Está bem. ? Dave fez que sim com a cabeça. ? Meu irmão e eu fazíamos algumas explorações urbanas. Sabe o que é isso?
? Invadir lugares onde você não deveria estar ? disse Val. ? Eu tinha um primo que saía para lugares misteriosos de Nova Jersey e punha fotos deles no fotolog dele. Quase todos são lugares antigos, não é? Como prédios abandonados?
? É. Tem todo tipo de coisas nesta cidade que a maioria das pessoas não pode ver ? assentiu Dave.
? Certo ? disse Val. ? Jacarés brancos. Toupeiras humanas. Anacondas.
Lolli levantou-se e tirou o gato de onde arranhava o pássaro morto. Segurou-o no colo e acariciou-o com força.
? Eu achei que você podia lidar com isso.
? Como ficou sabendo dessas coisas que ninguém mais sabe?
Val tentava ser educada.
? Porque Luis tem a segunda visão ? respondeu Lolli. ? Ele as vê.
? Você também vê? ? perguntou Val a Dave.
? Só quando me deixam. ? Ele olhou para Lolli por um longo momento. ? Estou congelando.
? Volte com a gente. ? Lolli virou-se para Val.
? Luis não vai gostar.
Dave girou a bota, como se esmagasse uma barata.
? Nós gostamos dela. É tudo que importa.
? Para onde vamos voltar? ? perguntou Val.
Ela tremia de frio. Embora estivesse aquecida pelo álcool que corria em suas veias e a deixava sonolenta, a respiração soltava rajadas de fumaça no ar e as mãos alternavam-se entre geladas e quentes quando as apertava embaixo da camisa e na pele.
? Você verá ? respondeu Lolli.
Caminharam por algum tempo e depois desceram para uma estação de metrô. Lollipop passou pela catraca com uma batida de seu cartão e depois o passou de volta pela grade para Dave. Olhou para Val.
? Vem?
Val fez que sim com a cabeça.
? Fique na minha frente ? disse Dave, esperando.
Ela dirigiu-se para a catraca. Ele bateu e depois colou nela, atravessando os dois de uma só vez. Seu corpo era puro músculo nas costas dela e ela sentiu cheiro de fumaça e de roupas que precisavam de uma boa lavada. Val riu e cambaleou um pouco.
? Vou dizer mais uma coisa que você não sabe. ? Lolli ergueu vários cartões. ? Estes são cartões do metrô de palito de dente. Você quebra os palitos de dente bem pequenininhos e depois os entala na máquina. As pessoas pagam, mas não conseguem pegar seus cartões. É como uma armadilha de lagosta. Você volta depois e vê o que apanhou.
? Oh ? disse Val, a cabeça nadando em conhaque e confusão.
Não tinha certeza do que era e do que não era verdade.
Lollipop e Dave Mal Acabado dirigiram-se para a ponta extrema da plataforma do metrô, mas, em vez de parar e esperar o trem, Dave pulou no poço onde corriam os trilhos. Algumas pessoas que aguardavam pela locomotiva deram uma olhada e depois desviaram rápido o olhar, mas a maioria nem pareceu notar. Lolli seguiu-o atabalhoadamente, avançando para sentar-se na beirada e então deixar que ele a pegasse para descer. Ela segurava o gatinho que agora se contorcia.
? Aonde vão? ? perguntou Val, mas eles já desapareciam na escuridão.
Quando saltou no concreto cheio de lixo depois deles, pensou como era louco seguir duas pessoas que nem sequer conhecia para os intestinos do metrô, mas, em vez de ter medo, sentia-se feliz. Tomaria todas as suas próprias decisões agora, ainda que a conduzissem ao mais completo fracasso. Era a mesma sensação prazerosa de rasgar uma folha de papel em pedaços minúsculos.
? Cuidado para não tocar no terceiro trilho senão vai ser frita ? gritou a voz de Dave de algum lugar adiante.
Terceiro trilho? Ela olhou em volta, nervosa. O do meio. Tinha de ser o do meio.
? E se vier um trem? ? perguntou Val.
? Está vendo aqueles buracos? ? chamou Lolli. ? Basta se deitar colada num deles.
Val olhou de novo a plataforma de concreto do metrô atrás dela, alta demais para subir. À frente, a escuridão, salpicada apenas com minúsculas lâmpadas que pareciam emanar pouca luz real. Ruídos sussurrados pareciam perto demais e ela achou ter sentido pequenas patas passarem correndo sobre um dos tênis. Sentiu o pânico que vinha esperando durante todo esse tempo e que a engoliu. Parou, tão dominada pelo medo, que não conseguia mover-se.
? Vamos. ? A voz de Lolli veio da escuridão. ? Continue.
Val ouviu o longínquo chocalhar de um trem, mas não soube dizer a que distância nem em que trilho estava. Correu para alcançar Lolli e Dave. Nunca sentira medo do escuro, mas ali era diferente. A escuridão era devoradora, espessa. Parecia uma coisa viva, respirando pelos seus próprios pulmões, soltando rajadas de mau cheiro, no túnel ao redor dela.
O cheiro de sujeira e umidade era opressivo. Ela apurava os ouvidos, em busca dos passos dos outros dois. Mantinha os olhos nas luzes, embora mais se assemelhassem a uma trilha de migalhas de pão, que a levavam para longe do perigo.
Um trem passou a toda no outro lado dos trilhos, a repentina claridade e o ruído furioso deixaram-na atordoada. Sentiu o deslocamento de ar, como se tudo nos túneis estivesse sendo arrastado para o trem. Se a locomotiva houvesse passado no lado por onde ela caminhava, Val jamais teria tido tempo de saltar para o nicho.
? Aqui.
A voz estava perto, surpreendentemente perto. Não conseguiu ter certeza se era de Lolli ou de Dave.
Val percebeu que estava parada junto a uma plataforma. Parecia a estação que haviam deixado, exceto que as paredes ladrilhadas eram cobertas de pichações. Colchões empilhavam-se no patamar de concreto, amontoados de mantas, travesseiros jogados e almofadas de sofá ? a maioria em alguma variação de amarelo-mostarda. Tocos de vela tremeluziam fracamente, algumas entaladas nas bocas rasgadas de latas de cervejas, outras em altos jarros de vidro decorados com o rosto da Virgem Maria no rótulo. Um garoto, com os cabelos puxados para trás numa trança, sentava-se perto da grelha de um fogareiro japonês hibachi no canto dos fundos da estação. Tinha um dos olhos embaçado, esbranquiçado e estranho e piercings de aço franziam a pele escura. As orelhas brilhavam com argolas, algumas grossas como vermes, e uma barra projetava-se para fora de cada uma das faces, destacando as maçãs do rosto. O nariz era perfurado por um piercing e um aro passava de um lado ao outro do lábio inferior. Quando ele se levantou, Val viu que usava uma jaqueta preta bufante e jeans largos e rasgados. Dave Mal Acabado começou a improvisar uma escada de ripas de madeira.
Val virou-se para o lado oposto. Uma das paredes era decorada com tinta spray que dizia: "para sempre e sempre."
? Ela está impressionada ? observou Lolli.
A voz ecoou no túnel.
Dave bufou e foi para junto do fogareiro. Tirou guimbas de cigarro achatadas da sacola de mensageiro e jogou-as dentro de uma das canecas lascadas, e depois em latas de pêssego e café empilhadas. O garoto dos piercings acendeu uma das guimbas e deu uma profunda tragada.
? Quem é essa, porra?
? Val ? ela mesma respondeu antes de que Lolli pudesse responder.
Deslocou o peso do corpo de um lado para o outro, com a desconfortável consciência de que não sabia o caminho de volta.
? É minha nova amiga ? disse Lollipop, instalando-se num ninho de mantas.
O garoto dos piercings bronqueou:
? O que aconteceu com o cabelo dela? É algum tipo de cancerosa?
? Eu cortei ? respondeu Val.
Por algum motivo, isso fez tanto o garoto dos piercings quanto Dave Mal Acabado rirem. Lolli parecia satisfeita com ela.
? Se você ainda não adivinhou, este é Luis ? apresentou Lolli.
? Vocês não acham que já tem pessoas demais que encontram o caminho até aqui embaixo sem precisar de guia turístico? ? perguntou Luis, mas ninguém lhe respondeu, de forma que sua pergunta não passou de um comentário.
A exaustão começava a rastejar sobre Val. Ela acomodou-se num colchão e puxou uma manta para cobrir a cabeça. Lolli dizia alguma coisa, mas a combinação de conhaque, medo avassalador e cansaço era esmagadora. Sempre poderia ir para casa mais tarde, no dia seguinte, em alguns dias. Qualquer hora. Desde que não fosse naquele momento.
Quando apagou, o gato de Lolli subiu em seu colo, saltando nas sombras. Val estendeu a mão até o animalzinho, afundando os dedos no pêlo curto e macio. Era realmente uma coisinha minúscula, mas já era doido.















Capítulo 3


Encontrei na floresta as quentes grutas,
enchi-as de panelas, esculturas, estantes,
armários, sedas e inúmeras obras;
preparei refeições para os vermes e os duendes.

? Anne Sexton, Her Kind


C
om os músculos tensos, Val saltou do sono para a total vigília, o coração martelando forte no peito. Quase gritou, antes de lembrar-se de onde estava. Imaginou que ainda fosse de tarde, embora continuasse escuro nos túneis; a única luz vinha das lâmpadas nos canos de esgoto furados. No outro colchão, Lollipop deitava-se enroscada com as costas coladas em Luis. Ele passava um braço em volta dela. Dave Mal Acabado, do outro lado, embrulhava-se num cobertor sujo, a cabeça curvada para Lolli como o galho de uma árvore que cresce rumo ao sol.
Val enterrou a cabeça mais fundo na colcha, embora sentisse um vago cheiro de xixi de gato. Sentia-se zonza, porém mais descansada.
Ali deitada, lembrou que duas semanas antes olhou alguns catálogos de faculdade com Tom. Ele vinha falando sobre a de Kansas, que tinha um bom programa de escrita criativa e não era um absurdo de cara.
? E veja ? ele dissera ?, lá tem uma equipe feminina de lacrosse.
Como se talvez os dois fossem juntos depois do ensino médio. Ela sorrira e beijara-o ainda sorrindo. Gostava de beijá-lo; ele sempre parecia saber exatamente como retribuir o beijo. Pensar nisso foi doloroso e fez com que se sentisse idiota, traída. Queria cair de novo no sono, mas não conseguia e ficou ali imóvel até que a desesperada necessidade de urinar a levou a sair e agachar-se, as pernas escancaradas, sobre o balde malcheiroso que encontrou num canto. Baixou os jeans e a calça, tentando equilibrar-se nas pontas dos pés, enquanto afastava o aperto das roupas o máximo possível do corpo. Tentou dizer a si mesma que era como quando se dirigia numa auto-estrada sem nenhuma parada à vista e tinha de ir ao mato. Não havia papel higiênico nem folhas e ela começou a dar saltinhos na esperança de secar-se.
Ao voltar, viu Dave Mal Acabado se mexendo e desejou não tê-lo acordado. Enfiou as pernas de volta na manta, notando agora que os fortes odores da plataforma se misturavam com um cheiro que não soube identificar. A luz fluía de uma grade na rua acima, iluminando barras de ferro pretas e riscadas de sujeira.
? Ei, você dormiu durante quase catorze horas ? ele disse, virando-se de frente para a luz e espreguiçando-se.
Estava sem camisa e, mesmo na obscuridade, ela viu o que parecia um ferimento a bala no centro do tórax. A cicatriz repuxava o resto da pele ao redor, um charco fundo que arrastava tudo para o coração.
Dave dirigiu-se para o hibachi e acendeu-o com fósforos e bolas de jornal. Depois, colocou uma panela em cima, despejou grãos de uma lata e água de um galão plástico que originalmente continha leite.
Ela deve tê-lo olhado fixamente por muito tempo, porque ele se virou e olhou-a com um largo sorriso.
? Quer um pouco? É café caubói. Não tem leite, mas você pode pôr muito açúcar se quiser.
Assentindo com a cabeça, ela se enrolou nas mantas. Dave estendeu-lhe uma caneca fumegante, que ela segurou, agradecida, usando-a primeiro para aquecer as mãos e depois as faces. Correu, meio ausente, os dedos pelo couro cabeludo. Parecia barba por fazer, uma lixa fina.
? Você bem que poderia garimpar comigo ? sugeriu Dave Mal Acabado, olhando para o colchão com alguma coisa de ansiedade. ? Luis e Lolli vão dormir para sempre se a gente deixar.
? Por que você está de pé? ? ela perguntou e tomou um gole da caneca.
O café era amargo, mas ela o achou satisfatório para beber, aromatizado com fumaça e nada mais. Grãos flutuavam na superfície, formando uma película preta.
Ele deu de ombros.
? Sou o cara da sucata. Tenho de ver o que os riquinhos jogam fora.
Ela fez que sim com a cabeça.
? É um talento, como aqueles porcos que percebem o cheiro de trufas. Ou a gente tem ou não. Uma vez, encontrei um relógio Rolex misturado com correspondência rasgada e uma torrada queimada. Era como se alguém tivesse jogado tudo na mesa da cozinha direto no lixo, sem sequer olhar.
Apesar do que ele dissera sobre eles dormirem muito, Lolli gemeu e saiu deslizando por baixo do braço de Luis. Ainda tinha os olhos quase fechados e um vestido tipo quimono jogado sobre as roupas da véspera. Era linda de uma forma que Val jamais seria, exuberante e rude, tudo ao mesmo tempo.
Lolli deu um empurrão em Luis. Ele grunhiu e rolou de barriga para cima, escorando-se nos cotovelos. Houve um movimento oscilante ao longo da parede e a gata chegou passeando e deu uma cabeçada na mão de Luis.
? Ela gosta de você, viu? ? disse Lolli.
? Vocês não têm medo de que os ratos a peguem? ? perguntou Val. ? É meio pequena.
? Na verdade, não ? disse Luis, com um ar sombrio.
? Vamos lá, você acabou de batizá-la ontem à noite.
Lolli ergueu o gato e jogou-o no colo.
? É ? Dave assentiu. ? Polly e Lolli.
? Polímnia ? disse Luis.
Val curvou-se para a frente.
? Que quer dizer Poli... sei lá o quê?
Dave serviu outra caneca para Luis.
? Polímnia é uma musa grega. Não sei qual. Pergunte a ele.
? Não importa. ? Luis acendeu uma guimba de cigarro.
Dave Mal Acabado deu de ombros, como se pedisse desculpas por saber tanto quanto ele:
? Nossa mãe era bibliotecária.
Val, na verdade, não sabia o que era uma musa, a não ser por uma vaga recordação de que estudara a Odisséia na oitava série.
? Onde está sua mãe agora?
? Morta ? respondeu Luis. ? Nosso pai atirou nela.
Val prendeu o ar e, ia gaguejar uma desculpa, mas Dave Mal Acabado falou primeiro.
? Eu pensei em talvez me tornar bibliotecário, também. ? Dave olhou para Luis. ? A biblioteca é um bom lugar para pensar. Meio parecido com este. ? Virou-se para Val. ? Sabia que fui o primeiro a descobrir este lugar?
Ela fez que não com a cabeça.
? Garimpei aqui. Sou o príncipe da sucata, o senhor do lixo.
Lolli riu e o sorriso dele alargou-se. Pareceu mais satisfeito com sua piada agora, ao ver que Lolli gostara.
? Você não queria ser bibliotecário. ? Luis balançou a cabeça.
? Luis sabe tudo sobre mitologia. ? Lolli tomou um gole de café. ? Como Hermes. Fale a ela sobre Hermes.
? Ele é um píssico. ? Luis lançou um olhar sinistro a Val, como a desafiá-la a perguntar o que isso queria dizer. ? Ele viaja entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Meio como um mensageiro. É isso que Lolli quer que eu diga. Mas esqueça esse assunto por um minuto. Você perguntou sobre a possibilidade de os ratos pegarem Polly. O que você sabe sobre ratos?
Val abanou a cabeça.
? Não muito. Acho que um passou por cima do meu pé quando eu vinha para cá.
Lolli pigarreou e até Dave sorriu, mas Luis manteve o semblante intenso. Sua voz tinha um tom ritual, como se ele houvesse dito isso várias vezes antes.
? Os ratos são envenenados, baleados, presos em armadilhas, espancados, como as pessoas de rua, como as pessoas, como nós. Todo mundo os odeia. As pessoas odeiam o jeito como eles andam, saltam, odeiam o ruído de suas patas quando se deslocam roçando o chão. Eles são sempre os vilões.
Val olhou as sombras. Luis parecia à espera de que ela reagisse, mas ela não sabia qual era a resposta certa. Não tinha nem certeza de que sabia do que ele realmente falava.
Luis continuou:
? Mas os ratos são fortes. Eles têm dentes que são mais duros que ferro. Podem engolir tudo que roem, vigas de madeira, paredes de gesso, canos de cobre... tudo, menos aço.
? Ou diamante ? disse Lolli com um sorriso falso. Ela não parecia nada irritada com o discurso dele.
Luis mal parou para reconhecer que ela falara. Continuava com os olhos em Val.
? As pessoas lutavam contra eles em fossas aqui na cidade. Punham eles contra furões, cachorros, pessoas. Isso mostra como eles são duros.
Dave sorriu, como se tudo isso fizesse sentido para ele.
? Eles também são inteligentes. Você já viu um rato no metrô? Às vezes embarcam num carro, numa plataforma, e saltam na parada seguinte. Estão dando um passeio.
? Eu nunca vi isso ? ridicularizou Lolli.
? Não me interessa se você já viu ou não. ? Luis olhou para Dave, que parara de balançar a cabeça. Depois, virou-se para Val. ? Eu posso cantar hinos de louvor aos ratos de manhã, ao meio-dia e à noite, que isso não vai mudar o modo como vocês se sentem em relação a eles, vai? Mas e se eu dissesse que há coisas aí fora que pensam de vocês o mesmo que vocês pensam dos ratos?
? Que coisas? ? perguntou Val, lembrando o que Lolli dissera na noite anterior. ? Quer dizer, seres sobrena...
Lolli afundou as unhas no braço de Val.
Luis olhou-a por um longo tempo.
? Mais uma coisa sobre os ratos. São neofóbicos. Sabe o que isso significa?
Val fez que não com a cabeça.
? Não confiam em coisas novas ? explicou Luis, sério. ? E nem nós devíamos confiar.
Então se levantou, atirou a guimba de um cigarro nos trilhos, subiu a escada e saiu da estação.
Que babaca. Val pegou um fio solto na calça e puxou-o, desfazendo o tecido. Eu devia ir para casa, pensou. Mas não foi a lugar algum.
? Não se preocupe com ele ? disse Lolli. ? Só porque ele vê coisas que nós não enxergamos, acha que é melhor do que nós.
Ela vigiou até Luis sair do campo de visão e então pegou uma pequena merendeira com um gato rosa. Abriu o fecho e tirou lá de dentro uma camiseta, que desenrolou para espalhar sobre ela o conteúdo da merendeira: uma seringa, uma antiga colher folheada em prata, com parte do prateado descascado, uma meia-calça cor de carne e vários saquinhos minúsculos, comprimidos e selados contendo um pó âmbar que reluzia um fraco tom de azul na luz fraca. Tirou pelo ombro uma manga do roupão e Val viu marcas pretas na parte interna do cotovelo, como se a pele ali estivesse carbonizada.
? Segure a onda, Lolli ? disse Dave Mal Acabado. ? Na frente dela, não. Isso, não.
Lolli reclinou-se numa pilha de travesseiros e sacos.
? Eu gosto de agulhas. Gosto da sensação de aço sob a pele. - Olhou para Val. ? A gente tem barato mesmo quando injeta água e até um pouco de vodca. Vai direto para a corrente sanguínea. Deixa a gente bêbada por um preço mais barato.
Val esfregou o braço.
? Não pode ser muito pior do que me arranhar.
Devia ter ficado horrorizada, mas o ritual daquilo a fascinava, o modo de estender todas as ferramentas na camiseta suja, à espera de serem usadas uma de cada vez. Fazia-a pensar em alguma coisa, mas ela não tinha muita certeza do quê.
? Desculpe as unhadas no seu braço! ? ela disse. ? Mas Luis estava tão de mau humor que eu não quis que você começasse a falar das fadas.
Lolli fez uma careta quando cozinhou o pó com um pouco de água sobre o fogareiro hibachi, que borbulhou na colher. O cheiro de açúcar queimado impregnou o nariz de Val. Lolli puxou o conteúdo da colher para dentro da seringa e expulsou as bolhas com um esguicho de líquido. Amarrando o antebraço com a meia-calça, inseriu a ponta devagar numa das marcas pretas.
? Agora eu sou mágica!
Ocorreu a Val então que aquilo a fez lembrar da mãe se maquiando ? primeiro, organizava as ferramentas e depois as utilizava uma por uma. Antes de tudo, a base, depois o pó compacto, a sombra, o delineador, o blush, sempre com a mesma formalidade tranquila. A fusão das imagens enervou a garota.
? Você não devia fazer isso na frente dela ? repetiu Dave, indicando Val com o queixo.
? Ela não se importa. Importa-se, Val?
Val não sabia o que pensar. Nunca vira alguém aplicando uma injeção em si mesmo desse jeito, profissional como um médico.
? Ela não devia ver ? insistiu Dave.
Val viu-o levantar-se e percorrer a plataforma. Ele parou sob um mosaico de azulejos, onde se lia o nome da rua "DIGNA". Atrás, achou que viu a escuridão mudar de forma, espalhando-se como tinta despejada na água. Dave também pareceu ver. Arregalou os olhos.
? Não faça isso, Lolli.
A escuridão parecia coagular em formas confusas, que arrepiavam os pêlos nos braços de Val. Chifres indistintos, bocas entulhadas de dentes e garras compridas como galhos formavam-se e depois se dissipavam.
? Qual é? Está com medo? ? zombou Lolli, antes de virar-se de novo para Val. ? Ele tem medo da própria sombra. Por isso é que a gente o chama de Mal Acabado.
Val não disse nada, ainda fitando a escuridão em movimento.
? Venha ? disse Dave a Val, encaminhando-se, vacilante, para a escada. ? Vamos garimpar.
Lolli fez um beicinho exagerado.
? De jeito nenhum. Eu que a encontrei. Ela é minha nova amiga e quero que fique aqui para brincar comigo.
Brincar com ela? Val não sabia o que Lolli queria dizer, mas não gostou do tom. Naquele exato momento, não queria nada além de sair daqueles túneis claustrofóbicos e afastar-se da sombra que não parava de se mexer. O coração batia tão rápido que ela temeu que fosse saltar-lhe do peito como o cuco de um relógio de parede.
? Preciso tomar um pouco de ar. ? Val se levantou.
? Fique ? pediu Lolli preguiçosamente. Os cabelos estavam mais azuis que um momento antes, varados por luzes cor de água-marinha, e o ar tremulava ao redor dela como sobre uma rua no sol quente. ? Você não vai acreditar em como vai se divertir.
? Vamos ? insistiu Dave.
? Por que você sempre tem de ser tão chato?
Lolli revirou os olhos e acendeu o cigarro no fogo. Uma boa metade ateou-se em chamas e ela tragou mesmo assim. Tinha a voz lenta, desarticulada, mas o olhar, mesmo que os olhos estivessem sonolentos, era severo.
Dave começou a subir os degraus amarelos de manutenção e Val logo o seguiu, tomada por um medo incerto. Já no alto, ele levantou o gradil e os dois saíram para a calçada. Quando ela emergiu na claridade da luz do sol ao entardecer, percebeu que deixara a mochila na plataforma com o tíquete de volta dentro. Deu quase meia-volta para a grade e, então, hesitou. Queria a bolsa, mas Lolli andara agindo tão estranhamente, tudo ficara tão esquisito. Será que talvez apenas o cheiro da droga não fizesse as sombras se alterarem em sua mente? Examinou a lista da aula de ciências sobre substâncias a serem evitadas ? heroína, ecstasy, pó-de-anjo, cocaína, metanfetamina, special k. Não sabia muita coisa sobre nenhuma delas. Ninguém que conhecia fazia mais que fumar maconha ou beber.
? Vamos? ? chamou Dave.
Ela notou as solas gastas das botas dele, as manchas que cobriam a calça jeans, os músculos firmes dos braços finos.
? Eu deixei minha... ? começou a dizer, mas depois pensou melhor. ? Deixa para lá.
? Lolli simplesmente é assim mesmo. ? Ele deu um sorriso triste, olhando para a calçada e não nos olhos de Val. ? Nada vai mudá-la.
Val olhou ao redor, observando o grande edifício do outro lado da rua e o parque de concreto onde eles estiveram no dia anterior, com o lago seco e rachado, e um carrinho de compras abandonado.
? Se é tão fácil entrar por aqui, por que atravessamos os túneis?
Ele pareceu sem graça e ficou calado por um momento.
? Bem, o centro financeiro é muito cheio por volta das cinco horas numa sexta-feira, mas fica quase vazio aos sábados. Não é muito legal brotar assim do nada no meio da calçada com um milhão de pessoas em volta.
? É só isso? ? ela perguntou.
? E eu não confiava em você.
Ela tentou sorrir, porque imaginou que Dave tinha um pouco de confiança nela agora, mas só conseguia pensar no que teria acontecido se, em algum lugar, seguindo pelos túneis, ele decidisse que não podia confiar nela.

? ? ?

Val remexia numa caçamba de lixo. Os cheiros de comida ainda a faziam sufocar, mas, após as duas pilhas de lixo anteriores, começava a ficar mais acostumada. Afastou montes de papel rasgado, mas só encontrou pedaços de madeira com pregos, caixas de CD vazias e uma moldura de quadro quebrada.
? Ei, olha isso! ? gritou Dave Mal Acabado da caçamba seguinte. Ele surgiu usando um casaco militar cor de ervilha, um braço ligeiramente rasgado, e segurando uma embalagem de isopor para entrega de comida, que estava quase cheia de lingüini ao molho Alfredo. ? Quer um pouco? ? perguntou, levantando um punhado de talharim e jogando-o na boca.
Ela fez que não com a cabeça, enojada, mas rindo.
Pedestres serpeavam pela rua indo do trabalho para casa, com bolsas de mensageiro e pastas a tiracolo. Nenhum deles parecia ver Val ou Dave. Era como se os dois tivessem se tornado invisíveis, apenas parte do lixo que catavam. Aquelas coisas que ela já sabia pela televisão e pelos livros. Isso devia fazê-la sentir-se pequena, mas ela se sentia liberta. Ninguém a olhava nem julgava se sua roupa combinava ou quem eram seus amigos. Nem sequer a viam.
? Não é tarde demais para encontrar alguma coisa boa? ? perguntou, pulando fora.
? É, de manhã é a melhor hora. Neste horário, no fim de semana, as lojas jogam fora material de escritório. Vamos ver o que tem por aí, depois voltamos quando estiver perto da meia-noite, quando os restaurantes despejam o pão e os legumes velhos do dia. E depois, ao amanhecer, se formos mais uma vez à área residencial, teremos de chegar lá antes dos caminhões de lixo.
? Mas você não pode fazer isso todo dia, certo? ? Val olhou para ele, incrédula.
? É sempre dia de lixo em algum lugar.
Ela viu uma pilha de revistas amarradas com uma corda. Até então, não encontrara nada que julgasse merecer ser pego.
? O que estamos procurando exatamente?
Dave comeu o resto do lingüini e jogou a caixa de volta na caçamba de lixo.
? Pegue qualquer tipo de pornografia. Sempre conseguimos vender. E qualquer coisa bonita, eu imagino. Se achar que é bonita, alguém mais, na certa, também vai achar.
? Que tal isso?
Ela apontou uma cabeceira de cama de ferro enferrujado, encostada na parede de uma ruela.
? Bem ? ele parecia tentar ser gentil ?, poderíamos levar de caminhão para uma daquelas lojinhas extravagantes, eles pintam coisas velhas como essa e revendem por um dinheirão, mas não vão valer todo o trabalho que vai dar. ? Dave olhou para a luz que sumia do céu. ? Droga. Tenho de pegar uma coisa antes que escureça. Talvez tenha de fazer uma entrega.
Val pegou a cabeceira. A ferrugem arranhou-lhe as mãos, mas ela conseguiu equilibrar o ferro fundido no ombro. Dave tinha razão. Era pesada. Tornou a colocá-la no mesmo lugar.
? Que tipo de entrega?
? Ei, veja isso. ? Ele se agachou e arrancou uma caixa cheia de romances água com açúcar. ? Talvez valham alguma coisa.
? Para quem?
? Na certa poderíamos vender.
? É?
A mãe de Val sempre lia esses romances e ela se habituara à visão das capas: uma mulher nos braços de um homem, os cabelos compridos e ondulantes, uma bela casa ao longe. Todas as letras dos títulos eram rebuscadas e algumas ornadas com relevos dourados. Ela apostava que nenhum daqueles livros falava em trepadas com o namorado da filha. Teve vontade de ver se uma das capas mostrava isso: um garoto e uma senhora maquiada demais e com rugas em volta da boca.
? Por que alguém ia querer ler essa merda?
Ele deu de ombros, carregou a caixa embaixo de um dos braços e abriu um livro. Não leu em voz alta, mas moveu a boca enquanto passava os olhos pela página.
Ficaram calados por algum tempo da caminhada e, então, Val apontou para o livro na mão dele.
? É sobre o quê?
? Ainda não sei ? respondeu Dave Mal Acabado.
Parecia chateado. Seguiram em silêncio por mais algum tempo, ele com o rosto enterrado no livro.
? Olhe aquilo! ? Val apontou uma cadeira de madeira sem assento.
Ele analisou-a criticamente.
? Não. Não podemos vender. A não ser que queira para você.
? E o que eu ia fazer com isso? ? perguntou Val.
Dave encolheu os ombros e virou-se para cruzar um portão preto numa praça quase vazia, jogando o romance de volta à caixa. Val parou para ler a placa: parque Seward. Árvores altas sombreavam quase todos os brinquedos do parquinho, espalhados pelo espaço. O concreto era atapetado por folhas amarelas e marrons. Passaram por uma fonte seca com focas de pedra que talvez esguichassem água sobre as crianças no verão. A estátua de um lobo espreitava de um canteiro de grama marrom.
Dave Mal Acabado passou por tudo isso sem parar e dirigiu-se a uma área, separada por um portão, que circundava uma das filiais da biblioteca pública de Nova York. Dave atravessou por uma abertura na cerca. Val seguiu-o, subindo num jardim japonês em miniatura, cheio de pequenas pilhas de pedras pretas e lisas, dispostas em alturas variadas.
? Espere aqui ? ele disse.
Ele afastou uma das pilhas de pedra e ergueu um pequeno bilhete dobrado. Momentos depois, voltava pela cerca e desdobrava-o.
? O que diz aí? ? perguntou Val.
Com um largo sorriso, Dave estendeu-lhe o papel. Estava vazio.
? Veja isso ? ele disse.
Amassando-o numa bola, atirou-o no ar. O papel voou pelo atalho e caiu, quando de repente mudou de direção, como se tivesse sido soprado por um vento rebelde. Enquanto Val olhava maravilhada, a bola de papel rolou até parar sob a base de um escorrega.
? Como você fez isso? ? ela perguntou.
Dave estendeu a mão embaixo do escorrega e retirou um objeto coberto de fita adesiva.
? Só não conte a Luis, está bem?
? Você fica repetindo isso o tempo todo? ? Ela olhou para o objeto na mão dele. Era uma garrafa de cerveja, lacrada com cera derretida. Em volta do gargalo, uma tira de papel pendia de um pedaço de corda desfiada. Dentro, uma areia cor de caramelo se espalhava a cada inclinação do recipiente, mostrando um brilho arroxeado. ? Que grande coisa é essa?
? Escute, se não acredita em Lolli, não vou discutir com você. Ela já lhe contou demais. Mas digamos que tenha acreditado nela por um minuto e que Luis realmente vê todo um mundo que o resto de nós não consegue enxergar e digamos que ele faça alguns trabalhos para eles.
? Eles?
Val não soube decidir se achava que isso era uma conspiração para assustá-la ou não.
Ele se agachou e, com um rápido olhar para a posição do sol no céu, retirou a rolha da garrafa, desfazendo em migalhas a cera em volta do gargalo. Despejou um pouco do conteúdo num saquinho igual àquele do qual ela vira Lolli despejar a droga. Ele enfiou o saquinho no bolso da frente da calça jeans.
? Por favor, o que é isso? ? ela perguntou, mas a voz saiu sussurrada.
? Posso dizer francamente que não tenho a mínima idéia ? respondeu Dave Mal Acabado. ? Escute, eu tenho de ir ao bairro residencial na parte alta da cidade para deixar isso. Você pode vir comigo, mas vai ter de esperar do lado de fora quando chegarmos lá.
? É aquela coisa que Lolli injetou no braço? ? ela perguntou.
Dave hesitou.
? Escute ? ela insistiu ?, eu posso simplesmente perguntar a Lolli.
? Não pode acreditar em tudo que ela diz.
? Que quer dizer exatamente com isso? ? Val quis saber.
? Nada.
Ele balançou a cabeça e saiu andando.
Ela não teve outra opção senão segui-lo. Não tinha nem certeza de que saberia encontrar o caminho de volta para a plataforma abandonada, sem ele para guiá-la, e precisava da bolsa para ir a qualquer outro lugar.
Tomaram o F para a rua Trinta e Quatro e depois baldearam para o B, seguindo direto para a Noventa e Seis. Dave Mal Acabado pendurou-se numa barra de metal e fez levantamentos enquanto o trem atravessava os túneis com estrondo.
Val olhava para fora da janela, vendo as luzinhas que marcavam a distância formar linhas, mas após algum tempo seus olhos foram atraídos para os outros passageiros. O negro magro e rijo, cabelos cortados bem rentes, gingava inconscientemente segundo a música em seu iPod, com uma pilha de manuscritos balançando num dos braços. Uma menina sentada a seu lado desenhava cuidadosamente na própria mão uma luva de caracóis. Encostado nas portas, um homem alto, de terno cinzento listado, agarrava-se à pasta e olhava horrorizado para Dave. Cada pessoa parecia ter um destino, mas Val era um pedaço de madeira flutuante, girando rio abaixo, sem nem saber ao certo em que direção se movia. Mas sabia como girar mais rápido.
Da estação, percorreram algumas quadras até a margem do parque Riverside, uma imensa área verde que se inclinava até a rodovia lá em baixo, terminando mais adiante na imensidão do oceano. Do outro lado da rua, as casas com vistas para o parque tinham desenhos ornamentais de ferro que formavam arabescos nas janelas e portas. Blocos de concreto intricadamente esculpidos emolduravam as entradas e balaustradas das escadas, formando fantásticos dragões, leões e grifos que a olhavam de soslaio refletindo o brilho das lâmpadas de rua. Os dois passaram por uma fonte onde uma águia de pedra, com o bico rachado, armava uma carranca para um lago verde-escuro entupido de folhas.
? Espere aqui ? ordenou Dave Mal Acabado.
? Por quê? ? ela perguntou. ? Qual é o grande mistério? Você já me disse todo tipo de merda que não devia.
? Eu disse que você não devia vir junto comigo.
? Ótimo ? ela cedeu e sentou-se na borda da fonte. ? Vou ficar bem aqui.
? Bom ? ele assentiu, antes de atravessar a rua numa corridinha até uma das únicas portas que não possuía uma grade de ferro trabalhado.
Subiu os degraus brancos, largou a caixa de romances e apertou uma campainha junto a um lugar onde alguém imprimira em estêncil um cogumelo com tinta spray. Val ergueu os olhos para as gárgulas esculpidas que flanqueavam o telhado do edifício. Enquanto olhava, uma pareceu tremer, como uma ave num poleiro, farfalhando as penas de pedra, para fechá-las logo em seguida. Ela sentiu-se congelar, os olhos fixos na estátua e, após um momento, a gárgula se imobilizou.
Ela se levantou em um salto e atravessou a rua, chamando o nome de Dave. Mas, quando chegou aos degraus, a porta preta se abriu e uma mulher apareceu no vão. Usava uma longa camisola branca. Os cabelos, castanhos e verdes emaranhados, pareciam sujos e a pele sob os olhos era escura como um hematoma. Cascos projetavam-se para fora, por debaixo da bainha da camisola, onde deviam estar os pés.
Val ficou petrificada e a saia da mulher se acomodou, tampando os cascos e deixando Val com dúvidas sobre o que vira.
Dave Mal Acabado virou a cabeça e lançou-lhe um olhar feroz, antes de tirar a garrafa de cerveja da sacola.
? Vai entrar? ? perguntou a mulher de cascos, a voz rouca, como se houvesse gritado.
Ela não pareceu notar que o lacre fora violado.
? Vou ? ele disse.
? Quem é sua amiga?
? Val ? ela respondeu, tentando não ficar boquiaberta. ? Sou nova. Dave está me pondo a par das coisas.
? Ela pode esperar aqui fora ? disse Dave.
? Acha que sou indelicada? O ar frio vai cortá-la até o osso.
A mulher manteve a porta aberta e Val entrou atrás de Dave, com um sorriso amarelo. Havia um vestíbulo revestido de mármore e uma escada com corrimão antigo de madeira envernizada. A mulher de cascos conduziu-os por aposentos escassamente mobiliados, passando por uma fonte onde nadavam carpas prateadas ? os corpos tão translúcidos que o rosa das vísceras se revelava através das escamas ?, por uma sala de música com apenas uma harpa de colo de cordas duplas numa mesa de mármore e chegaram a uma sala de estar. A dona da casa sentou-se num canapé cor de creme, os relevos do tecido brocado desbastados, e fez um gesto para que os dois se juntassem a ela. Numa mesa baixa ao seu lado, havia uma xícara, um bule e uma colher manchada. A mulher de cascos usou a colher para medir um pouco de areia âmbar e despejá-la no copo, depois o encheu de água quente e deu um longo gole. Retraiu-se uma vez e quando ergueu a cabeça os olhos resplandeciam com um brilho arrepiante e reluzente.
Val não pôde impedir que seu olhar se desviasse para os pés de cabra da mulher. Sentia alguma coisa obscena nos vislumbres do pêlo curto e grosso, que cobria os tornozelos finos, o brilho do chifre preto, os dois dedões alargados do pé.
? Às vezes um remédio pode parecer outro tipo de doença ? disse a mulher de pés de cabra. ? David, não deixe de dizer a Ravus que houve outro assassinato.
Dave Mal Acabado sentou-se no piso de madeira manchado de preto.
? Assassinato?
? Dunnie Berry morreu ontem à noite. Coitadinha, mal tinha acabado de sair de sua árvore. É horrível como aquele portão de ferro cercou suas raízes. Deve tê-la chamuscado toda vez que o cruzava. Você fazia entregas para ela, não?
Dave Mal Acabado mudou desconfortavelmente de posição.
? Semana passada. Quarta-feira.
? É bem possível que você tenha sido a última pessoa que a viu viva. Tome cuidado. ? A mulher ergueu a xícara de chá, despejou um pouco mais da solução. ? As pessoas andam dizendo que seu mestre está misturando veneno ao produto.
? Ele não é meu mestre. ? Dave Mal Acabado se levantou. ? Precisamos ir.
A mulher de pés de cabra também se levantou.
? Claro. Venha aqui nos fundos que lhe darei o que devo.
? Não coma nem beba nada, senão vai ficar mais fodida do que já está ? sussurrou Dave a Val quando seguiu a mulher até outro quarto, deixando a caixa de romances no chão.
Val fez uma cara feia e foi até uma pequena vitrine. Dentro da porta de vidro, havia um grande e sólido pedaço de algo semelhante à uma obsidiana. A seu lado, viam-se algumas outras coisas, igualmente estranhas. Um pedaço de casca de árvore, uma vareta quebrada, um carrapicho pontiagudo, em forma de cone de pinheiro e cada uma das pontas afiadas como uma navalha.
Alguns momentos depois, Dave Mal Acabado e a mulher de pés de cabra retornaram. Ela sorria. Val tentou encará-la sem se fixar nos olhos. Se alguém lhe perguntasse o que faria vendo uma criatura sobrenatural, não teria imaginado que não faria absolutamente nada. Sentia-se incapaz de ter certeza do que via, sem condições para decidir se tinha realmente um monstro bem à sua frente. Quando saíram do apartamento, ouvia o sangue latejando na cabeça no ritmo das batidas aceleradas do coração.
? Eu disse a você, porra, para ficar ali ? grunhiu Dave Mal Acabado, indicando com um gesto o outro lado da rua, em direção à fonte.
Val estava agitada demais para se zangar.
? Eu vi uma coisa! Uma estátua se mexendo. ? Val apontou para cima, para o topo do prédio e o céu quase noturno, mas estava confusa. ? E então eu vim atrás de você e... que diabo é aquilo?
? Porra! ? Dave deu um soco na parede de pedra, os nós dos dedos voltando avermelhados e arranhados. ? Porra! Porra!
Afastou-se, a cabeça curvada como se houvesse sido deslocada por um vento forte.
Ela alcançou Dave e o agarrou pelo braço.
? Me diga ? ela exigiu, apertando-o com força.
Ele tentou se soltar, empurrando-a, mas não conseguiu. Val era mais forte. Dave lhe lançou um olhar estranho, como se reavaliasse os dois.
? Você não viu nada. Não havia nada para ver.
Ela o encarou.
? E o que diria Lolli? Uma fada, não é mesmo? Só que as fadas não existem, porra!
Ele desatou a rir. Ela largou o braço dele e empurrou-o com força. A caixa de romances caiu, espalhando os livros pela rua.
Dave olhou os volumes caídos no chão e lançou mais uma vez um olhar a ela.
? Sua puta de merda. ? Dave cuspiu no chão.
Toda a raiva e a confusão da véspera ferveram dentro dela. Cerrou as mãos em punhos. Queria bater em alguma coisa.
Dave curvou-se para pegar a caixa de papelão e recolocou os livros caídos no lugar.
? Você tem sorte de ser menina ? resmungou.












Capítulo 4


Não devemos para duendes olhar,
Nem seus frutos comprar:
Quem sabe em que terra eles alimentam
Suas raízes famintas e sedentas?

? Christina Rossetti, Goblin Market


N
o trem, na viagem de volta, Val sentou-se num banco de plástico bem longe de Dave, encostou a cabeça num mapa do metrô sob um revestimento de acrílico e perguntou-se como alguém podia ter cascos. Vira sombras movendo-se sozinhas e garrafas de areia marrom que tinham alguma coisa a ver com os mexericos fantásticos de misteriosas senhoras da Alta Zona Oeste sobre pessoas em corpo de árvore assassinadas. O que de fato sabia era que não queria ser cega nem idiota, o tipo de menina que só percebeu que a mãe e o namorado vinham fazendo sexo quando viu tudo com os próprios olhos. Queria saber a verdade.
Quando chegou perto do parque de concreto na rua Leonard, viu Luis sentado num rebordo, bebendo alguma coisa numa garrafa de vidro azul. Uma menina esmirrada, com tênis descasados e barriga inchada sentava-se a seu lado, os dedos trêmulos segurando um cigarro. Ao se aproximar, Val viu feridas que vazavam pus nos tornozelos da menina. As ruas estavam quase desertas, a única pessoa por perto era um segurança particular do outro lado da rua, que se encaminhava de vez em quando para o meio-fio e desaparecia dentro do prédio.
? Por que ainda está aqui? ? perguntou Luis, erguendo os olhos para ela.
Val continuou impassível diante dos olhos nebulosos e repletos de ferocidade do rapaz.
? Só me diga onde está Lolli e não estarei mais ? ela respondeu.
Ele indicou com o queixo a grade no terreno quando Dave se aproximou dos dois.
A menina deixou o cigarro cair e tornou a pegá-lo, roçando os dedos na ponta acesa enquanto o tateava para colocá-lo de volta na boca.
? O que foi que você fez? ? perguntou Luis a Dave, endurecendo o queixo. ? O que aconteceu?
Dave olhou os carros estacionados que ladeavam a rua.
? Não foi culpa minha.
Luis fechou os olhos.
? Você é uma porra de um idiota.
Dave disse mais alguma coisa, porém Val já se encaminhava para a entrada de serviço, cuja grade ela e Dave haviam aberto naquela tarde. Agachou-se com as mãos e os joelhos, levantou a ponta sem dobradiça das barras de metal e deslizou para os degraus abaixo.
? Lolli? ? gritou para a escuridão.
? Aqui ? veio a resposta sonolenta.
Val avançou a custo por entre os colchões e cobertores até o lugar no qual dormira na noite anterior. A mochila não estava onde a deixara. Ela chutou para o lado algumas das roupas sujas na plataforma. Nada.
? Onde está minha bolsa?
? Acho que é nisso que dá você confiar suas coisas a um bando de vagabundos. ? Lolli riu e levantou a mochila. ? Está aqui. Relaxe.
Val abriu o zíper da bolsa. Tinha todas as suas coisas dentro, a lâmina ainda entupida de cabelos, os treze dólares ainda dobrados na carteira, bem ao lado da passagem de trem. Até o chiclete continuava ali.
? Desculpe ? disse e sentou-se.
? Não confia em nós? ? perguntou Lolli, com um grande sorriso.
? Escute, eu vi uma coisa e não sei o que era e acabei ficando confusa.
Lolli sentou-se, abraçando as pernas junto ao peito, os olhos arregalados e alargando ainda mais o sorriso.
? Você viu um deles!
A imagem da mulher de pés de cabra moveu-se aflitivamente na memória de Val.
? Eu sei o que você vai dizer, mas acho que não era uma fada.
? Então que acha que era?
? Eu não sei. Talvez meus olhos tenham me enganado. ? Val sentou-se num caixote de laranjas virado para baixo, que rangeu mas aguentou seu peso. ? Isso não faz o menor sentido.
? Acredite no que pode dar conta de acreditar.
? Mas, quer dizer... fadas? Até parece que você acredita mesmo em fadas.
Lolli bufou.
? Você viu uma, você é quem deve me dizer.
? E eu te disse. Eu te contei que eu não sei o que vi. Uma mulher com pés de cabra? Você injetando uma coisa misteriosa no braço? Papéis que dançam? Essas coisas deveriam fazer sentido?
Lolli fez uma cara feia.
? Como a gente sabe que é real? ? Val quis saber.
? O túnel do troll ? respondeu Lolli. ? Nunca vai conseguir uma explicação plausível para aquilo.
? Troll?
? Luis fez um trato com ele. Quando Dave e a mãe deles foram baleados. A mãe já estava morta quando a ambulância chegou, mas Dave ficou no hospital por algum tempo. Luis prometeu ao troll que iria servi-lo por um ano se ele salvasse a vida de Dave.
? E era para essa coisa que Dave fazia a entrega? ? perguntou Val.
? Ele levou você a um deles? ? Lolli emitiu um som que poderia ter sido uma risada. ? Uau, ele é realmente o pior espião do mundo.
? Que é que tem de tão importante em ele me contar? Por que Luis se preocupa com o que eu sei? Como você disse a Dave, ninguém vai acreditar em mim.
? Luis diz que nenhum de nós deveria saber, nem mesmo Dave. Eles ficariam furiosos, segundo ele. Mas, desde que começou a fazer entregas para Ravus, alguns dos outros seres encantados o têm mandado fazer o mesmo para eles. Dave faz alguns dos trabalhos do troll.
? Minha amiga Ruth inventava coisas. Dizia que tinha um namorado chamado Zachary, que morava na Inglaterra. Ela me mostrava cartas cheias de poesia angustiada. Basicamente, a verdade era que a própria Ruth escrevia as cartas para si mesma, imprimia e mentia a respeito. Sei tudo sobre mentirosos ? disse Val. ? Não é que eu não acredite no que você diz, mas e se Luis estiver mentindo para você?
? E daí? ? perguntou Lolli.
Val sentiu uma onda de raiva, que era piorada pelo fato de não ser direcionada a ninguém específico.
? Dane-se. Onde é o túnel do troll? Vamos descobrir sozinhas.
? Eu conheço o caminho ? disse Lolli. ? Segui Luis até a entrada.
? Mas não entrou? ? Val levantou-se.
? Não. ? Lolli também ficou de pé, tirando a poeira da saia. ? Eu não quis ir sozinha e Dave não iria comigo.
? O que seria um troll? ? perguntou Val, enquanto Lolli remexia nos panos e sacolas na plataforma.
Pensou na história dos três ursos, no jogo WarCraft e nos pequenos trolls verdes que tinham machados e diziam: "Quer comprar um charuto?" e "Cumprimente meu amiguinho", quando se clicava neles várias vezes. Nenhum parecia real, mas o mundo sem dúvida seria mais divertido com alguma coisa tão irreal assim.
? Achei ? disse Lolli, erguendo uma lanterna que emitia uma luz fraca e inconstante. ? Isso não vai durar.
Val saltou para o nível do trilho.
? Vamos ser rápidas.
Com um suspiro, Lolli desceu depois dela.
Quando atravessavam o túnel do metrô, a lanterna quase se extinguindo inundava de âmbar as paredes pretas, destacando a fuligem e os quilômetros de fiação elétrica que cobria o túnel de fios coloridos. Era como andar pelas veias da cidade. Passaram por uma plataforma movimentada, onde pessoas esperavam um trem. Lolli acenou para elas quando a olharam, mas Val abaixou-se e pegou as pilhas descartadas de uma dezena de aparelhos de CD. Enquanto avançavam, experimentou cada uma das pilhas, até encontrar duas que intensificaram o facho de luz da lanterna.
Agora iluminava pilhas de lixo, captando o reflexo verde de olhos de ratos e das paredes movediças de baratas que prosperavam no calor e na escuridão. Val ouviu um fraco assobio.
? Trem! ? berrou, empurrando Lolli para a abertura na parede, uma fenda rasa, coberta de sujeira.
Uma rajada de pó atravessou o ar um momento antes de o trem passar como uma bala em outro trilho. Lolli resmungou e colou o rosto no de Val.
? Um belo dia no meio das trevas ? ela entoou. ? Dois meninos mortos levantaram-se para brigar.
? Pare com isso. ? Val se afastou.
? Costas com costas viraram-se para um ao outro enfrentar, sacaram as espadas e lançaram-nas para um ao outro eliminar. O policial surdo na ronda ouviu e veio para com balas os dois meninos mortos matar. ? Lolli riu. ? Qual é? É uma rima que minha mãe me contava. Você nunca ouviu antes?
? É uma merda de assustadora.
Val tinha os joelhos trêmulos quando retomaram a caminhada pelos infindáveis e serpeantes túneis. Por fim, Lolli apontou uma abertura que parecia haver sido feita a pancadas nos blocos de cimento.
? Por ali.
Val deu um passo, mas Lolli fez um barulho.
? Val...
? Se está com medo, pode ficar aqui. Eu entro e volto logo.
? Eu não estou apavorada ? disse Lolli.
? Tudo bem.
Val atravessou o áspero vão de concreto da entrada.
Saiu num corredor escuro cheio de água, com depósitos de cálcio pendendo em estalactites quebradiças. Deu mais alguns passos, a água fria encharcava os tênis e a bainha da calça jeans. A luz da lanterna iluminou tiras rasgadas e denteadas de tecido plástico bem em frente. Deslocavam-se com o vento fraco, como cortinados de gaze ou fantasmas. O movimento era enervante. Espirrando água ao avançar, ela se abaixou sob o plástico e saiu numa grande câmara entupida de raízes, que balançavam por toda parte, longas gavinhas peludas arrastavam-se na água mais profunda, troncos de raízes espessas rachavam o teto de concreto e afinavam-se ao se espalhar. O mais estranho, porém, era o fruto que pendia delas como galhos. Globos brancos nasciam dos arabescos peludos, sem ser aquecidos por nenhum raio de sol nem nutridos por nenhum nutriente do solo. Val aproximou-se mais. A casca de cada um era leitosa e translúcida, mostrando um rubor rosado embaixo, como se tivessem os centros vermelhos.
Lolli tocou em um.
? São quentes ? disse.
Foi então que Val notou a escada enferrujada, o corrimão envolto em tecido encharcado.
Ela hesitou. Olhando mais uma vez para a árvore invertida, tentou dizer-se que era apenas algo misterioso, mas não sobrenatural. Não importava. Era tarde demais para voltar.
Val começou a subir os degraus que rangiam e ela viu uma luz difusa. Quando os trens passavam com estrondo lá em cima, a luz caía como uma chuva de pó fino, que riscava e se agarrava às paredes gotejantes. As meninas subiram a escada espiral, cada vez mais alto, até chegar a uma grande janela emoldurada por uma esquadria, coberta de velhas mantas presas com pregos. Val curvou-se sobre o corrimão e afastou o pano. Surpreendeu-se ao ver uma quadra de basquete, edifícios de apartamento, a rodovia e o rio mais adiante, cintilando como um colar de luzes. Estava dentro da ponte de Manhattan.
Continuou andando e finalmente chegou a um aposento grande e aberto com canos e cordas grossas que corriam pelo teto e tinha pesadas prateleiras de madeira ao longo dos dois lados da parede. Parecia destinar-se a trabalhadores de manutenção. Livros empilhavam-se em estantes improvisadas e em empoeiradas pilhas no chão. Velhos volumes, surrados e gastos. Uma placa de compensado, apoiada em dezenas de blocos de concreto perto da entrada, formava uma escrivaninha improvisada. Vidros de geléia ladeavam uma borda e, apoiada neles, via-se uma espada que parecia feita de vidro.
Val deu mais um passo para a frente, estendeu a mão e uma coisa caiu sobre ela. Uma pesada manta molhada, fria e amorfa cobriu-a. Tapava-lhe a visão e a sufocava. Ela atirou as mãos para cima, agarrando a coisa levemente molhada, sentindo-a ceder sob suas unhas afiadas e curtas. Ouviu Lolli gritando como se estivesse muito longe. Manchas começaram a formar-se diante de seus olhos e ela estendeu as mãos, às cegas, para pegar a espada. A mão deslizou pela lâmina, cortando-lhe de leve os dedos, mas deixando-a empunhá-la.
Ela apoiou-a e equilibrou-a no próprio ombro. A coisa escorregou e, por um atordoante momento, ela conseguiu mais uma vez respirar, empunhando a espada de vidro da melhor forma possível, como se fosse um bastão de lacrosse, com a qual golpeou a coisa branca e desprovida de ossos que ondulava em sua direção, a cara esticada e as feições achatadas fazendo-a parecer uma boneca de papel pálida e corpulenra. A coisa contorceu-se no chão e capengou.
As mãos de Val tremiam. Ela tentou controlá-las, mas não paravam de tremer, mesmo quando as cerrou em punhos, enterrando as unhas na própria carne.
? Que coisa era aquela? ? perguntou Lolli.
Val balançou a cabeça.
? Como vou saber?
? Precisamos ser rápidas.
Lolli foi até a escrivaninha e despejou várias geléias na sua bolsa.
? O que você está fazendo? ? perguntou Val. ? Vamos sair logo daqui.
? Certo, certo. ? Lolli revirou algumas garrafas. ? Já vou.
Ervas haviam sido atadas em feixes num dos potes. Outro fora enchido de mariposas mortas, mas um terceiro tinha o que parecia ser nós de cordões de sapato de alcaçuz avermelhado. Alguns exibiam rótulos nas tampas: cereja silvestre, hissopo, absinto, papoula. No centro do compensado, havia uma placa de mármore com bolas verdes espinhentas à espera de serem picadas pela pequena meia-lua de uma faca, que estava ao lado da placa.
Na parede, via-se uma série de objetos pregados com alfinetes ? um invólucro de bala, um chumaço cinza de goma de mascar, a guimba queimada de um cigarro. Pendurada em frente a cada objeto, uma lente de aumento ampliava não apenas os artigos, mas também as notas manuscritas que os circundavam. "Respire", dizia uma. "Ame", dizia outra.
Lolli arquejou forte. Val deu meia-volta sem pensar e ergueu automaticamente a espada. Surgiu um vulto ameaçador no vão da porta, alto e magro como um jogador de basquete, curvando-se para atravessar o portal. Quando tornou a erguer-se, cabelos ralos, pretos como tinta, emolduravam a pele verde-cinzenta do rosto. Dois caninos proeminentes sobressaíam da mandíbula, as pontas afundavam na carne mole do lábio superior. Ele arregalou os olhos com alguma coisa que poderia ser medo ou até fúria, mas Val se viu paralisada pela forma como as íris pretas eram polvilhadas de ouro ao redor, como os olhos de uma rã.
? Ora. ? A voz do troll era um grunhido profundo. ? Que temos aqui? Um par de meninas de rua imundas.
Deu dois passos em direção a Val e ela tropeçou para trás sobre os próprios pés, a mente repleta unicamente pelo pânico.
Com um pé calçado numa bota, o ogro cutucou a coisa sem ossos.
? Vejo que passou pelo meu guardião. Que coisa mais improvável. ? Ele usava um sobretudo preto abotoado, que lhe cobria do pescoço à batata da perna, com uma calça preta por baixo que parecia realçar a faixa verde que cobria os punhos desfiados e a nuca, onde o tecido se misturava com a pele, que tinha a mesma cor horrível que às vezes pode ser encontrada sob um aro de cobre muito usado. ? E você também se serviu de mais alguma coisa minha.
O medo cerrou a garganta de Val e a deixou paralisada. Ela viu o sangue leitoso escorrer pela espada e sentiu as mãos começarem a tremer mais uma vez.
? Só um ser humano conhece esse lugar. Portanto, o que foi que Luis disse a você? ? O troll deu outro passo em direção às duas, a voz baixa e furiosa. ? Ele as desafiou a entrarem? Disse que aqui havia um monstro?
Val olhou para Lolli, mas ela estava aturdida e calada.
O troll correu a ponta da língua sobre o dente incisivo.
? Mas o que pretendia Luis, esta é a verdadeira questão. Dar a vocês um belo susto? Dar a mim um belo susto? Uma boa refeição? É inteiramente possível que ele achasse que eu ia querer comer vocês. ? Ele fez uma pausa, como se esperasse que uma delas negasse. ? Acham mesmo que quero comer vocês?
Val ergueu a lâmina da espada.
? Não vai mesmo responder? ? A voz dele se aprofundou num berro. ? Claro, talvez vocês sejam apenas uma dupla de ladras azaradas.
Os instintos de Val apoderaram-se dela, que correu para a saída, em direção ao troll. Quando ele tentou pegá-la, Val se abaixou, passou por baixo de seu braço e bateu nas tiras de plástico. Achava-se na metade da escada, quando ouviu Lolli gritar.
Ali, em pé, com os trens chocalhando na ponte lá em cima, ainda empunhando a espada de vidro, Val hesitou. Era ela o motivo de Lolli estar dentro daquele lugar. Fora sua a idéia idiota de tentar provar a si mesma que seres encantados não existem. Devia ter voltado quando viram a árvore. Não deveria sequer ter ido ali. Respirando fundo, subiu correndo a escada.
Lolli estava estendida com as pernas e os braços abertos no chão. Lágrimas escorriam-lhe pelo rosto e o corpo, estranhamente frouxo. O troll a segurava pelo pulso e parecia estar prestes a exigir-lhe alguma coisa.
? Solte-a ? disse Val.
A voz saiu de sua boca como se fosse de outra pessoa. Alguém corajoso.
? Acho que não. ? Curvando-se, o troll arrancou a sacola de mensageiro do ombro de Lolli e virou-a de cabeça para baixo. Várias moedas ricochetearam no piso de madeira, rolando para junto de garrafas cheias de areia preta, agulhas, uma faca enferrujada, pedaços de goma de mascar, guimbas de cigarro e um pó compacto, que quebrou quando bateu no chão, derramando pó por todo o piso. Ele se abaixou para pegar uma das garrafas, os dedos compridos quase tocando o gargalo. ? Por que você ia querer...
? Não temos mais nada seu. ? Val adiantou-se e ergueu a lâmina. ? Por favor.
? É mesmo? ? ele bufou. ? Então o que é isso que você tem nas mãos?
Ela olhou para a espada, que cintilava como um pingente de gelo sob as lâmpadas fluorescentes, e surpreendeu-se. Esquecera que era dele. Virando a ponta para o chão, pensou em largá-la, mas temeu ficar inteiramente desarmada.
? Pegue-a. Pegue-a e vamos embora.
? Você não está em posição de me dar ordens ? disse o troll. ? Largue a espada. Com cuidado. É uma coisa mais preciosa que você.
Val hesitou, curvando-se como se fosse pôr a lâmina de vidro no chão. Não colocou e continuou a vigiá-lo.
Ele torceu bruscamente o dedo de Lolli e ela gritou.
? Para doer toda vez em que sentir coceira para pegar uma coisa que não é dela. ? Ele agarrou um segundo dedo. ? E que você sofra por achar que é a causa dessa dor.
? Pare! ? gritou Val, largando a espada sobre as ripas de madeira do piso. ? Eu fico se você a soltar.
? Como? ? Ele estreitou os olhos e, então, ergueu uma sobrancelha. ? Mas não é mesmo muito galante da sua parte?
? Ela é minha amiga ? disse Val.
O troll parou e ficou com o semblante curiosamente sem expressão.
? Sua amiga? ? ele repetiu, monocórdio. ? Muito bem. Você vai pagar pela tolice dela assim como pela sua. É o fardo da amizade.
Val deve ter parecido aliviada, porque um pequeno e cruel sorriso se insinuou no rosto dele.
? Quanto tempo ela vale? Um mês de serviço? Um ano?
Os olhos de Lolli faiscaram com lágrimas.
Val assentiu com a cabeça. Claro. Qualquer coisa. Seja o que for. Era só deixá-las ir embora e depois não importaria o que ela prometera. Ele soltou um suspiro.
? Você vai me servir por um mês, uma semana para cada artigo roubado. ? Fazendo uma pausa momentânea, acrescentou: ? De todas as maneiras que eu precisar.
Ela retraiu-se e ele sorriu.
? Você irá ao parque Seward todos os dias, no crepúsculo. Lá, vai encontrar um bilhete debaixo da pata do lobo. Se não fizer o que está escrito, as coisas vão ficar pretas para você. Está entendendo?
Val fez que sim com a cabeça. Ele soltou a mão de Lolli. Ela correu para jogar suas coisas de volta na sacola. O troll apontou um dedo comprido.
? Vá até aquela mesa. Nela, há uma tintura assinalada "palha". Traga para mim.
Val apalpou os potes, lendo a caligrafia encaracolada: valverde, sanguinária, ruta, sanguinária do Canadá, artemísia. Ela ergueu uma solução, o conteúdo era espesso e turvo.
Ele assentiu com a cabeça.
? Sim, essa. Traga-a aqui.
Ela assim fez, aproximando-se dele, perto o bastante para notar que o tecido de seu sobretudo era de lã esfarrapada e cheia de buracos de traça. Chifres pequenos e curvos projetavam-se do alto de cada orelha, fazendo parecer que as pontas haviam endurecido até se tornarem osso.
Ele pegou o pote, abriu-o e tirou um pouco do conteúdo. Ela retraiu-se e afastou-se dele. A solução cheirava a folhas podres.
? Fique aqui ? ele disse, como se ela fosse um cachorro e ele, seu dono.
Furiosa com o próprio terror, mas, ainda assim, impotente, Val permaneceu imóvel. Ele correu a base dos dedos sobre a boca da menina, besuntando-a com a solução. Ela se preparou para sentir algo horrível, mas sentiu apenas que a pele dos lábios esquentava.
Então, quando ele a encarou, o olhar foi tão intenso que Val estremeceu.
? Repita as condições de sua promessa.
Ela obedeceu.
Dizem que os jogos de videogame são ruins porque deixam as pessoas paralisadas como zumbi e fazem com que se registrem entranhas respingando pela tela como um sinal de sucesso. Naquele momento, Val achou que o verdadeiro problema dos jogos era que o jogador deveria tentar de tudo. Se fosse uma gruta, deveria entrar nela. Se fosse um estranho misterioso, deveria conversar com ele. Se fosse um mapa, deveria segui-lo. No videogame, eram necessários um bilhão de vidas e ela só tinha uma.






Capítulo 5


Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera...
nem mais voz nem movimento fez...
E eu..., perdido, murmurei lento: "Amigos, sonhos ? mortais
Todos ? todos já se foram... Amanhã também te vais."
Disse o Corvo: "Nunca mais."

? O corvo, Edgar Allan Poe (tradução de Fernando Pessoa)


A
s luzes da cidade brilhavam intensamente e as ruas entupiam-se de fumantes parados diante de bares e restaurantes, quando Val e Lolli saíram cambaleando da ponte para a rua.
Um homem dormindo numa caixa de papelão desfeita rolou de bruços e se cobriu com um sobretudo. Val assustou-se violentamente com o movimento, os músculos contraindo-se tão rápido que os ombros doeram. Lolli embalava a bolsa de mensageiro como se fosse um animal de pelúcia, abraçando-a e a si mesma também.
Era estranha a loucura no momento em que as coisas aconteceram, difícil acompanhar o conjunto de razões, impulsos e pensamentos que a levou àquele lugar louco. Embora Val tivesse desejado encontrar provas da existência de seres fantásticos, a prova concreta a devastava. Quantas fadas e que outras coisas poderiam existir ali? Num mundo onde esses seres sobrenaturais eram reais, haveria demônios, vampiros ou monstros do mar? Como podiam existir essas coisas e não estar na primeira página dos jornais em toda parte?
Val lembrou-se do pai lendo Os três ursos quando ela era criança. Trip trap, trip trap, seguia em frente o menor deles, o Ursinho Billy. Aquele troll do túnel não era nada parecido com a ilustração no livro ? poderia ser algum deles? Quem foi que passou saltitando na minha ponte?
? Veja meu dedo ? disse Lolli, segurando-o na outra mão aberta. Estava inchado e torto, num ângulo estranho em relação à junta. ? Ele quebrou a porra do meu dedo.
? Talvez só tenha deslocado. Já fiz isso antes. ? Val lembrou-se do tombo que levara sobre as próprias mãos no campo de lacrosse, escorregando ao tentar desviar de uma árvore, as idas ao médico com seu cheiro de iodo e charuto. ? Você precisa endireitar o dedo e pôr uma tala.
? Escute ? disse Lolli, áspera. ? Eu não pedi que fosse meu cavaleiro de armadura brilhante. Sei cuidar de mim mesma. Você não tinha de prometer nada àquele monstro e não tem de fazer papel de médica agora.
? Tem razão. ? Val chutou uma lata de alumínio esmagada, vendo-a saltar pela rua como uma pedra deslizaria sobre a água. ? Você não precisa de nenhuma ajuda. Tem tudo sob controle.
Lolli olhou atentamente a vitrine de uma loja de aparelhos eletrônicos, onde televisões mostravam os rostos delas.
? Eu não disse isso.
Val mordeu o lábio, provando o resto da solução do ogro. Lembrou-se dos olhos dourados dele e da raiva abundante e quente que tinha na voz.
? Sinto muito. Eu devia ter simplesmente acreditado em você.
? É, devia mesmo ? disse Lolli, mas sorriu.
? Escute, podemos arranjar um pau ou alguma coisa para a tala. E amarrar com um cadarço de sapato.
Val se agachou e começou a desamarrar o tênis.
? Tenho uma idéia melhor. ? Lolli virou-se para a entrada de um beco. ? Que tal eu esquecer a dor? ? Ela sentou-se encostada nos tijolos imundos e retirou da bolsa a colher de sopa, a agulha, o isqueiro e um saquinho transparente seja lá do que ele fosse. ? Mesmo assim, me passe o cadarço.
Val pensou nas sombras se modificando, lembrou-se da areia âmbar e não teve a mínima idéia do que poderia acontecer em seguida.
? Que é isso?
? Nunca Mais ? disse Lolli. ? É assim que Luis chama isso, porque há três regras: nunca mais que uma vez por dia, nunca mais que uma picada de cada vez e nunca mais que dois dias seguidos.
? Quem criou essas regras?
? Dave e Luis, eu acho. Depois de que passaram a morar na rua, Luis começou a fazer entregas para mais seres encantados. Imagino que eles tenham incumbências que precisam que alguém faça e Dave assumiu algumas das entregas. Uma vez, ele pegou um pouquinho do Nunca Mais, misturou com um pouco de água, como os seres encantados fazem, e tomou. Isso dá às fadas mais encanto ou alguma coisa do tipo, para impedir que o ferro os afete demais, mas nos deixa doidões. Beber foi legal por algum tempo, mas é muito melhor injetado no braço ou cheirado, como Dave faz.
Lolli cuspiu na colher e acendeu o isqueiro. A solução faiscou como se acabasse de ganhar vida.
? Encanto?
? A forma como os faz parecerem diferentes ou outras coisas parecerem diferentes. Magia, eu acho.
? Como é isso?
? O Nunca? É como o mar se quebrando na sua cabeça e levando você para dentro dele ? Lolli tentou explicar. ? Nada mais pode tocá-la. Nada mais tem importância.
Lolli aspirou a coisa com a agulha. Val perguntava-se se conseguiria sentir-se assim. Parecia esquecimento. Parecia paz.
? Não ? disse e Lolli parou.
Val sorriu.
? Faça em mim primeiro.
? Verdade? ? sorriu Lolli. ? Você quer?
Val fez que sim com a cabeça, enrijecendo o braço e estendendo-o.
Lolli fez um torniquete no braço dela, deu uns petelecos na seringa para tirar as bolhas e introduziu a agulha tão maciamente como se a pele tivesse sido feita para absorvê-la. A dor foi tão de leve que era menor que o corte de uma gilete.
? Você sabe ? disse Lolli ?, o negócio com as drogas é que fazem as coisas meio se deslocarem, vão para a esquerda, para os lados e ficam de cabeça para baixo, mas com o Nunca você pode fazer com que todo mundo fique de cabeça para baixo com você. Que outra coisa faz isso?
Val nunca pensara muito na parte interna do próprio cotovelo, mas, agora, ela parecia tão vulnerável quanto o pulso, a garganta. Ela esfregou o hematoma quando a agulha foi retirada. Quase não saiu sangue.
? Eu não sei. Nada, imagino.
Lolli assentiu com a cabeça, manifestando satisfação com a resposta. Enquanto preparava outra dose de Nunca, Val viu-se distraída pelo ruído do fogo, a sensação de suas próprias veias contorcendo-se como um ninho de serpentes sob a pele.
? Eu... ? Ela começou, mas a euforia derreteu-lhe os ossos.
O mundo tornou-se mel, espesso, lento e doce. Ela não conseguiu pensar no que queria dizer e, por um momento, imaginou-se perdendo as palavras para sempre. E se ela jamais pudesse voltar a pensar no que queria dizer?
? Suas veias estão absorvendo a magia. ? A voz de Lolli parecia vir de uma grande distância. ? Agora você pode fazer qualquer coisa acontecer.
O fogo inundou Val, levando embora o frio, banindo todas as pequenas agonias ? a bolha no dedão do pé, a dor no estômago, os músculos demasiadamente tensos na região dos ombros. Seu medo dissolveu-se, substituído por força. Força que pulsava dentro dela, vertiginosa e ávida, abrindo-a como uma caixa de quebra-cabeça para revelar toda a sua mágoa, raiva e confusão secretas. Força que lhe sussurrava em línguas de fúria, com promessas de triunfo.
? Viu? Não está mais doendo ? disse Lolli.
Pegou o dedo e torceu. Fez um ruído como se estalasse e tornou a encaixá-lo no lugar.
Tudo parecia muito claro e brilhante. Val imaginou que se perdia nos desenhos formados pela sujeira na calçada, a promessa de placas de néon cor de balas, o cheiro de uma distante fumaça de cachimbo, de canos de descarga, de óleo de fritura. Tudo era estranho, belo e cheio de possibilidades.
Lolli ria como um chacal.
? Quero lhe mostrar uma coisa.
O fogo consumia a parte interna dos braços de Val, causando dor, mas de forma igualmente deliciosa, como se estivesse inundada de luz. Ela se sentia volátil e invencível.
? É sempre assim a sensação? ? perguntou, embora uma distante parte da mente lhe dissesse que era impossível Lolli saber o que ela sentia.
? Sim ? respondeu Lolli. ? Oh, é, sim.
Lolli conduziu Val pela rua, abordando um asiático de cabelos grisalhos, cortados quase rentes à cabeça, que vinha na direção oposta. A princípio, ele recuou quando chegaram mais perto, mas, depois, alguma coisa pareceu relaxá-lo.
? O senhor poderia me dar algum dinheiro? ? pediu Lolli.
Ele sorriu e enfiou a mão no bolso do paletó, retirando uma carteira. Pegou várias notas de vinte.
? Isso basta? ? A voz do homem soou estranha, baixa e deslumbrada.
Ela curvou-se para beijá-lo no rosto.
? Obrigada.
Val sentia o vento açoitá-la, vindo do rio Hudson, mas o frio avassalador já não a tocava. A mais violenta rajada parecia uma carícia.
? Como conseguiu que ele fizesse isso? ? perguntou, mas era tudo maravilhoso e não sentia preocupação com nada.
? Ele quis ? respondeu Lolli. ? Todos querem que a gente tenha o que quiser.
Enquanto caminhavam, cada pessoa por quem passavam dava-lhes o que pediam. Uma mulher de saia de lantejoula deu-lhes seu último cigarro, um rapaz de boné de basquete entregou-lhes o casaco sem uma palavra, uma mulher de capa de chuva dourada tirou um par de brilhantes argolas de ouro diretamente das orelhas.
Lolli enfiou a mão numa lata de lixo e ergueu cascas de banana, papel molhado, pão mofado e xícaras cheias de água viscosa.
? Veja isso.
Em suas mãos, os detritos transformaram-se em bolinhos tão brancos e lindos que Val estendeu a mão para pegar um.
? Não ? disse Lolli. ? Para eles.
Deu um bolinho a um velho quando passou e ele o engoliu como um animal, pegando mais como se fosse a melhor comida do mundo.
Val riu, em parte pelo prazer do velho, em parte pelo poder delas sobre ele. Pegou uma pedra e transformou-a num biscoito. Ele comeu também, lambendo nas mãos dela o último restinho. O cara estalou a língua e isso apenas a fez rir com mais vontade.
Percorreram mais algumas quadras, Val não sabia ao certo quantas. Continuava vendo coisas fascinantes que não vira antes: o brilho nas asas de uma barata quando atravessou deslizando uma grade, o sorriso numa cara esculpida acima de uma vitrine, os talos quebrados das flores diante de uma taberna.
? Chegamos. ? Lolli apontou para uma loja escura. Na vitrine, manequins posavam em saias justas estampadas com cenas de histórias em quadrinhos ou se refestelavam em modernos canapés vermelhos, erguendo taças de martini com bolinhas. ? Eu quero entrar.
Val foi até a vitrine e chutou o vidro. Trincou-o, mas não o quebrou. O alarme disparou duas vezes e silenciou.
? Tente isto ? instruiu Lolli, pegando um canudinho de plástico, que em sua mão se transformou numa alavanca pesada e fria.
Val sorriu, maravilhada, e bateu na vitrine com toda a raiva intensificada pelo ódio que sentia por Tom, pela mãe e por si mesma, toda a raiva do troll na torre e a fúria contra o universo inteiro. Bateu até o vidro vergar como metal curvado.
? Legal.
Lolli deu um largo sorriso e rastejou vitrine adentro. Assim que Val entrou, o vidro refez-se, sem um arranhão, melhor do que se fosse novo.
Dentro da loja, luzes se acenderam e música começou a tocar.
Cada novo encanto parecia alimentar a força dentro de Val, em vez de esvaziá-la. A cada encantamento, sentia-se mais vertiginosa, selvagem. Nem mais tinha certeza de qual das duas fazia o quê.
Lolli tirou os sapatos no meio da loja e experimentou um vestido de cetim verde. Val viu que os pés descalços estavam vermelhos de bolhas.
? Acha bonito?
? Claro. ? Val pegou duas calcinhas e uma calça jeans, lançando suas roupas velhas no braço estendido de um manequim. ? Veja essa porcaria, Lolli. É uma calça jeans de cento e oitenta dólares e não parece nada. É apenas uma calça jeans.
? É grátis ? corrigiu Lolli.
Val encontrou as roupas que queria e depois se sentou numa poltrona coberta por um tecido que imitava uma história em quadrinhos para ver Lolli experimentar mais coisas. Enquanto ela dançava pela loja, com um xale bordado com contas na cabeça, Val notou o mostruário ao lado da poltrona.
? Está vendo isso? ? perguntou, erguendo um cálice de vinho cor abacate. ? Vê como esse troço é feio? Quer dizer, quem pagaria por uma coisa tão horrenda?
Lolli riu e pegou um chapéu com franja feita de plumas num tom bem forte de cor-de-rosa.
? As pessoas compram o que lhes mandam comprar. Não sabem que é feio ou talvez saibam e achem que tem alguma coisa errada em pensar assim.
? Então precisam ser protegidas de si mesmas. ? Val lançou o copo no piso de linóleo. O vidro se espatifou. Os cacos se espalharam por todos os lados. ? Qualquer um vê que essas coisas são feias. Feias, feias, feias.
Lolli desatou a rir e continuou rindo até Val quebrar o último copo.


Voltando a pé para a estação da Worth Street com Lolli, Val sentiu-se desorientada, sem saber o que realmente acontecera. À medida que o Nunca vazava dela, foi se sentindo cada vez mais apagada, como se o fogo do encantamento houvesse consumido alguma parte tangível sua, como se a houvesse dilacerado.
Lembrava-se de uma loja e de pessoas que haviam comido de suas mãos e de que andara, mas não tinha muita certeza de onde conseguira as roupas que usava. Lembrava-se de um borrão de rostos, presentes e sorrisos, tão nebuloso quanto a lembrança de um monstro numa torre antes de tudo aquilo.
Quando baixou os olhos para si mesma, viu roupas que não se lembrava de haver escolhido ? grandes botas pretas de chutar bundas, decididamente mais quentes que seus tênis, uma camiseta estampada com um leão desses que fazem parte de brasões de famílias antigas, calças pretas com toneladas de bolsos fechados com zíperes, e um casaco preto grande demais para ela. Afligia-a pensar que suas próprias roupas haviam simplesmente desaparecido, deixadas para trás em algum lugar. As botas beliscavam-lhe os pés quando ela andava, mas sentia-se satisfeita com o casaco. Parecia que tinham andado até o SoHo e, sem a magia no corpo, sentia mais frio que nunca.
Quando tomaram a entrada de serviço e desceram a escada, Val viu várias pessoas no túnel. A luz oscilante das velas iluminava uma das maçãs do rosto deles, a curva de uma mandíbula, a garrafa coberta por um saco de papel que alguém levava à boca. A menina de barriga inchada estava lá, enrolada num cobertor com outro corpo.
? Aí estão vocês ? disse Dave Mal Acabado. A voz soou pastosa e, quando a luz de vela o captou, ela viu que a boca tinha a aparência frouxa dos muito embriagados. ? Venha se sentar aqui comigo, Lolli. Venha se sentar aqui.
? Não ? ela respondeu, dirigindo-se em vez disso para Luis. ? Você não pode me dizer o que fazer.
? Não estou tentando lhe dizer coisa alguma. ? A voz dele agora soava infeliz. ? Não sabe que eu a amo, meu bem? Eu faria qualquer coisa por você. Olha só. ? Ele ergueu o braço. Tinha "Lolli" esculpido na pele em letras que sangravam lentamente. ? Veja o que fiz.
Val se encolheu. Lolli apenas riu.
Luis acendeu um cigarro e, por um momento, ao riscar o fósforo, ficou com o rosto todo iluminado. Parecia furioso.
? Por que não acredita em mim? ? insistiu Dave.
? Eu acredito em você. ? A voz de Lolli tornou-se estridente. ? Eu não dou a mínima. Você é chato. Talvez eu o amasse se não fosse tão chato!
Luis levantou-se em um salto, apontando o cigarro primeiro para Lolli e depois para Dave.
? Só fechem a porra dessa matraca, os dois.
Virou-se e lançou um olhar furioso a Val, como se tudo aquilo fosse de algum modo culpa dela.
? Quem são eles? ? perguntou Val, indicando com a mão o casal enrolado em mantas. ? Achei que ninguém devia descer aqui.
? Ninguém deve descer aqui ? ele disse, sentando-se junto ao irmão. ? Nem você, nem eu ou eles.
Val revirou os olhos, mas achou que ele não percebeu esse movimento à luz de vela. Fugindo para perto de Lolli, sussurrou:
? Ele é tão pentelho assim quando eu não estou aqui?
? É complicado ? sussurrou Lolli. ? Eles ficavam aqui antes, mas Derek foi enviado ao interior para alguma merda e Tanya se mudou para um prédio abandonado no Queens.
Luis deslocou-se mais para perto do irmão e falou baixinho com ele. Dave Mal Acabado levantou-se com as mãos fechadas em punhos.
? Você tem tudo ? ele gritou com Luis, lágrimas nas faces, muco escorrendo do nariz.
? O que você quer de mim? ? cobrou Luis. ? Eu nunca toquei nessa menina. Não é minha culpa que você seja maltratado.
? Eu não sou uma coisa ? berrou Lolli com os dois trazendo uma expressão terrível no rosto. ? Não podem falar de mim como se eu fosse uma coisa.
? Foda-se ? gritou Dave. ? Eu sou chato? Sou covarde? Um dia, você vai desejar não ter falado assim comigo.
A menina sentou-se no cobertor, piscando rápido.
? Que...
? Por favor. ? Luis pegou Dave pelo braço. ? Vamos sair daqui, Dave. Você só está bêbado. Precisa andar para eliminar isso.
Dave desprendeu-se do irmão com um empurrão.
? Vai se foder.
Val levantou-se, os últimos fios remanescentes do Nunca fazendo a escuridão calcária dos túneis nadar. As pernas pareciam emborrachadas e as solas dos pés ardiam de toda a caminhada que o corpo apenas começava a perceber que fizera, mas a última coisa que queria era ficar presa naquele lixo claustrofóbico.
? Não faz mal. Vamos sair daqui.
Lolli seguiu-a escada acima.
? Por que você gosta tanto dele? ? perguntou Val.
? Eu não gosto dele. ? Lolli não se deu ao trabalho de perguntar o que Val queria dizer. ? O olho dele é apagado. Ele é magro demais e age como um velho.
Val encolheu os ombros e enfiou o polegar no ilhós da cinta da calça nova, vendo as botas pisarem nas fendas da calçada e deixando o silêncio falar por ela.
Lolli soltou um suspiro.
? Ele devia me implorar por isso.
? Devia ? concordou Val.
Desceram a Bayard Street, passando por armazéns que vendiam sacos de arroz, pilhas de maçãs dourado-claro, brotos de bambu boiando em tigelas com água e enormes frutas pontiagudas penduradas no teto. Passaram por lojinhas que vendiam óculos escuros, luminárias de papel, tufos de bambu amarrados com fitas douradas e dragões de plástico verde-claros, moldados para parecerem jade esculpido.
? Vamos parar ? pediu Lolli. ? Estou com fome.
A simples menção de comida fez o estômago de Val grunhir. O medo a deixara com o estômago ácido e ela se deu conta de que não comera nada desde a noite anterior.
? Tudo bem.
? Vou mostrar como se faz garimpo em mesa.
Lolli escolheu um lugar onde haviam vários patos pendurados com os pescoços curvados em volta de um arame, pingando um caldo vermelho. Covas vazias ficavam onde antes havia olhos. Dentro da loja, as pessoas se enfileiravam para se servir de comida a partir de um sortimento de pratos fumegantes. Lolli pediu chá quente e pãozinho de ovo para as duas. O homem atrás do balcão parecia não falar inglês, mas pôs os artigos nas bandejas delas junto com uma dúzia de pacotinhos de plástico.
Elas entraram num compartimento reservado. Lolli olhou em volta, depois rasgou um pacote de molho de pato e espremeu-o no pãozinho, rematando-o com mostarda quente. Meneou a cabeça casualmente na direção de um compartimento vazio ainda com alguns pratos.
? Está vendo aquelas sobras?
? Estou. ? Val mordeu seu pãozinho de ovo, a gordura besuntou-lhe o lábio. Era delicioso.
? Aguenta aí. ? Lolli levantou-se, foi até um prato com a refeição comida pela metade, pegou-o e voltou para a mesa delas. Eram almôndegas chinesas. ? Garimpo em mesa. Viu?
Val bufou, ligeiramente escandalizada.
? Eu não acredito no que você acabou de fazer.
Lolli sorriu, mas o sorriso se desfez numa expressão estranha.
? Às vezes acabamos fazendo um monte de loucuras que nem a gente mesmo acredita.
? Imagino que sim ? disse Val, devagar.
Afinal, ela não conseguia acreditar que passara a noite numa estação de metrô abandonada com um bando de meninos sem-teto. Nem que, em vez de gritar e chorar quando descobrira sobre Tom e a mãe, raspara a cabeça e fora a um jogo de hóquei. Nem que estava sentada ali calmamente, jantando a comida de outra pessoa, depois de ter visto um monstro.
? Eu fui morar com meu namorado quando tinha treze anos contou Lolli.
? É mesmo? ? perguntou Val.
A comida entrando na boca acalmava Val, fazendo com que acreditasse que o mundo seguiria em frente, mesmo existindo seres encantados e estranhas drogas de fadas. Continuaria existindo comida chinesa, que seria sempre picante, gordurosa e boa.
Lolli fez uma careta.
? O nome do meu namorado era Alex. Tinha vinte e dois anos. Minha mãe achava que ele era um pervertido e mandou que eu não o visse mais. Acabei ficando cheia de sair escondida e simplesmente me mandei.
? Merda ? disse Val porque não sabia mais o que dizer. Quando ela tinha treze anos, os meninos eram tão misteriosos e inacessíveis como as estrelas no céu. ? E o que aconteceu?
Lolli deu duas rápidas mordidas nas almôndegas e empurrou-as goela abaixo com um bom gole de chá.
? Alex e eu discutíamos o tempo todo. Ele traficava no apartamento e não queria que eu fizesse nada, mesmo quando gritava bem na minha cara. Era pior que os meus pais. Por fim, encontrou uma outra menina e simplesmente me pôs para fora.
? Você voltou para casa? ? perguntou Val.
Lolli fez que não com a cabeça.
? Não dá para voltar ? respondeu. ? Você muda e não pode mais voltar.
? Eu posso voltar ? disse Val automaticamente, mas a lembrança do troll e do acordo não lhe saíam da cabeça. Tudo aquilo parecia irreal agora, diante da claridade e da temperatura amena do restaurante, mas, no fundo, aqueles pensamentos a atormentavam.
Lolli parou por um momento, como se analisasse as palavras de Val.
? Sabe o que fiz com Alex? ? perguntou, com o sorriso perverso retornando ao rosto. ? Ainda tenho as chaves. Voltei quando não tinha ninguém lá e destruí a casa. Atirei tudo pela janela, as roupas dele, as dela, a televisão, as drogas dele, todas as merdas em que pude pôr as mãos viraram poeira na rua.
Val riu, deliciada. Podia bem imaginar a cara de Tom se houvesse feito isso com ele. Imaginava seu novo computador quebrado na calçada, o iPod esmagado em pedacinhos brancos, roupas pretas espalhadas por todo o gramado.
? Entããão ? disse Lolli com um falso olhar inocente ?, você gostou demais dessa história porque não tem uma história de namorado babaca.
Val abriu a boca, insegura sobre o que ia dizer. As palavras presas na língua.
? Meu namorado estava dormindo com minha mãe ? acabou forçando-as a saírem.
Lolli riu até se engasgar, depois encarou Val por um momento, os olhos arregalados e incrédulos.
? Verdade? ? perguntou.
? Verdade ? respondeu Val, estranhamente satisfeita por ter conseguido chocar até mesmo Lolli. ? Eles acharam que eu tinha tomado o trem e estavam transando no sofá. Tinha batom dela manchado em todo o rosto dele.
? Ai, que asqueroso! Totalmente nojento!
Lolli contorceu a boca, dando uma risadinha com um nojo sincero. Val também riu, porque, de repente, era engraçado. Riu tanto que a barriga doía, ficou sem ar e lágrimas vazaram, molhando-lhe o rosto. Era cansativo rir assim, mas ela sentia que acordava de um sonho estranho.
? Você vai mesmo voltar para casa, para isso? ? perguntou Lolli.
Val continuava quase bêbada de tanto rir.
? Eu tenho de voltar, não? Quer dizer, mesmo que fique aqui por algum tempo, não posso passar o resto da minha vida num túnel.
Percebendo o que dissera, ergueu os olhos para Lolli, esperando que ela não tivesse se sentido insultada, mas apenas apoiara a cabeça nas mãos e parecia pensativa.
? Devia ligar para sua mãe, então ? acabou dizendo.
Apontou na direção do vestíbulo. ? Tem uma cabine ali.
Val ficou chocada. Era o último conselho que esperava receber de Lolli.
? Eu tenho meu celular.
? Então ligue agora mesmo para sua mãe.
Val pegou o celular com uma sensação de pavor e ligou o aparelho. A tela reluziu, a contagem das chamadas perdidas deslizava. Parava às seis e meia da tarde. Só recebera um texto. Era de Ruth e dizia: "kd vc? sua mãe pirando."
Val apertou para responder.
? Ainda na cidade. ? Digitou, mas depois parou, sem saber o que escrever em seguida.
Que iria fazer agora? Poderia mesmo ir para casa?
Concentrando as energias, passou para as mensagens de voz. A primeira era da mãe, a voz baixa e estrangulada dizendo:
? Valerie, onde você está? Só quero saber se está em segurança. É muito tarde e eu liguei para Ruth. Ela me contou o que disse a você. Eu... Eu... Eu não sei como explicar o que aconteceu, nem dizer o quanto estou arrependida. ? Houve uma longa pausa. ? Sei que está muito furiosa comigo. Tem todo o direito de estar furiosa comigo. Por favor, só avise a alguém que está tudo bem com você.
Era estranho ouvir a voz dela depois de todo aquele tempo. Fez-lhe a barriga contrair-se de dor, fúria e um constrangimento profundo. Dividir o namorado com a mãe despia-a mais fundo que ficar nua.
Apagou e clicou na mensagem seguinte. Era do pai:
? Valerie? Sua mãe está muito preocupada. Disse que tiveram uma briga e você fugiu. Sei como sua mãe é às vezes, mas passar a noite toda fora não ajuda em nada. Eu a julgava mais inteligente.
Ao fundo, ouviam-se as meio-irmãs gritando acima do barulho de desenhos animados.
A voz de um desconhecido falou em seguida. Parecia entediado.
? Valerie Russell? Aqui é o policial Montgomery. Sua mãe comunicou seu desaparecimento após um desentendimento que as duas tiveram. Ninguém vai mandar você fazer nada que não queira fazer, mas eu realmente preciso que me dê um telefonema e diga que não se meteu em nenhuma encrenca.
Deixou um número.
A mensagem seguinte era um silêncio pontuado por vários soluços parecendo molhados. Após alguns momentos, a voz sufocada da mãe choramingou:
? Onde está você?
Ela desligou. Era horrível saber como a mãe ficara transtornada. Devia ir para casa. Talvez ficasse tudo bem... se nunca levasse um namorado para casa, se a mãe se afastasse dela por algum tempo. Faltava menos de um ano para concluir o ensino médio. Depois disso, nunca mais iria precisar morar lá de novo.
Rolou até "casa" e apertou o botão de ligar. O telefone na outra ponta tocou e os dedos de Val gelaram. Lolli arrumou as almôndegas restantes na forma de alguma coisa que poderia ser o sol, uma flor ou um leão realmente muito mal desenhado.
? Alô. ? A mãe atendeu. ? Querida?
Val interrompeu a chamada. O celular tocou quase imediatamente após ter desligado.
? Você sabia que eu não podia fazer isso ? ela acusou Lolli. ? Não sabia?
Lolli encolheu os ombros.
? Melhor descobrir isso logo agora. É um longo caminho para ir embora. Não dá para simplesmente esquecer tudo e voltar para casa.
Val assentiu com a cabeça, receosa de uma maneira bem diferente, aguda. Pela primeira vez, percebeu que talvez nunca mais estivesse pronta para ir para casa.
















Capítulo 6


Realidade é aquilo que, quando você deixa de acreditar,
não vai embora.

? Philip K. Dick


V
al acordou com o grito agudo de um trem passando como uma bala. O suor fazia com que o casaco de lã grudasse na pele fria e úmida, apesar do frio. A cabeça latejava, a boca queimava e, mesmo com toda a comida que ingerira à noite, sentia-se esfomeada. Tremendo, apertou mais a coberta em volta do corpo e enroscou as pernas mais para junto do corpo.
Tentava remontar o que acontecera antes da comida garimpada da mesa e do telefonema para casa. Houvera um monstro e uma espada feita de vidro, depois uma agulha em seu braço e a onda de poder que ainda a enchia de ansiedade. Sentou-se, examinando as novas roupas, provas concretas de que suas lembranças não se formavam apenas de fragmentos de sonhos. O braço de Dave sangrara e estranhos fizeram tudo que ela lhes tinha ordenado e a magia foi real. Ela pegou a mochila, aliviada por não a ter deixado em algum lugar, junto com o resto de suas roupas.
Só Lolli continuava dormindo, enroscada em posição fetal, um novo vestido por cima de uma saia e uma nova calça jeans. Dave e Luis não estavam ali.
? Lolli? ? Val rastejou até ela e sacudiu-lhe o ombro.
Lolli virou-se, retirou os cabelos azuis do rosto e emitiu um ruidozinho de irritação. Tinha o hálito azedo.
? Vá embora ? repreendeu, puxando o cobertor manchado sobre o rosto.
Val levantou-se cambaleando. A visão estava embaçada. Pegou a mochila e forçou-se a atravessar a escuridão até as ruas escuras de Manhattan. O céu do anoitecer brilhava cheio de nuvens, o ar, espesso de ozônio, como se uma tempestade se aproximasse rapidamente.
Sentia-se de ressaca, quebradiça e frágil como uma das poucas folhas sopradas do parque pelo vento. Parecia que, se excluíssem todos os esportes, a escola e a vida normal, o que restaria dentro dela não seria grande coisa. Tinha o corpo dolorido, como se alguma coisa lhe houvesse cavalgado toda a pele na noite anterior, tão terrível e enorme que lhe carbonizara as entranhas. Mas também uma sensação de satisfação, apesar do medo. Eu fiz isso, pensou, eu o fiz a mim mesma.
Respirou profundamente o ar frio e isso lhe acalmou o estômago, mas a boca apenas ficou ainda mais quente.
As palavras da criatura voltaram à sua cabeça sem serem convidadas: "Você vai me servir por um mês, uma semana por cada artigo roubado. Você irá ao parque Seward todos os dias, no crepúsculo. Lá, vai encontrar um bilhete debaixo da pata do lobo. Se não fizer o que está escrito, as coisas vão ficar pretas para você." Já estava atrasada.
Pensou na solução pegajosa que o troll espalhara por sua pele e sentiu que uma carga elétrica atravessou seu corpo, impelindo-a a levar uma das mãos aos lábios. Estavam secos e inchados ao toque, mas não encontrou nenhum corte ou ferimento que explicasse o ardor.
Entrou numa delicatéssen e comprou um copo d'água com cubos de gelo, com algumas moedas do fundo da mochila, esperando que a boca esfriasse. Diante da loja, sentou-se no concreto e chupou um cubo de gelo, a mão tremendo tanto que temeu engolir a pedra.
Uma mulher que saía da loja de bebidas alcoólicas ao lado olhou para ela e largou uns trocados no copo. Val ergueu os olhos, surpreendida e pronta para protestar, mas a mulher já tinha se afastado.

? ? ?

Quando ela retirou o papel dobrado debaixo da pata do lobo, tinha toda a boca dolorida como se fosse um ferimento. Agachou-se perto da fonte seca e apoiou a cabeça na barra lascada de uma cerca de metal, enquanto abria o papel com os dedos dormentes.
Esperava ver um papel vazio, que teria de amassar e jogar fora, como o que Dave pegara, mas havia palavras, escritas na mesma caligrafia encaracolada de quem havia emitido aquela garrafa de areia de âmbar: "Venha para debaixo do suporte da ponte de Manhattan e bata três vezes na árvore agachada onde nenhuma deveria estar."
Ela enfiou o bilhete no bolso, mas, ao fazê-lo, a mão esbarrou em outra coisa. Retirou um clipe prateado com uma enorme e áspera peça turquesa no centro, o prendedor recheado com uma nota de vinte, duas de cinco e pelo menos uma dúzia de um dólar.
Ela teria pegado o dinheiro? Ou Lolli? Não conseguia se lembrar. Jamais roubara qualquer coisa antes. Uma vez, saiu de uma loja no shopping com um pôster dos Rangers na mão, sem se dar conta de que não o tinha pago até chegar com as amigas às escadas rolantes. As amigas ficaram impressionadas e, por isso, ela fingiu que fizera de propósito, mas depois se sentiu tão mal que nunca teve coragem de pendurá-lo na parede.
Tentava relembrar a noite anterior, as coisas terríveis que devia ter feito, mas era como se lembrar de uma história antiga contada por outra pessoa. Apenas um borrão que, apesar de tudo, fez a pele formigar graças ainda aos efeitos do Nunca Mais.
Pôs-se a andar, dolorida demais para fazer mais alguma coisa. O pavor revirava seu estômago. Seguiu pelo mercado, passando por lojas asiáticas e uma casa de chá super movimentada, com um grupo de adolescentes em pé, todos falando uns com os outros e rindo. Val sentiu-se desligada de todos eles, como se fosse centenas de anos mais velha. Pegou a mochila, querendo ligar para Ruth mais que qualquer coisa, querendo ouvir alguém que a conhecia, alguém que pudesse fazê-la se lembrar daquele antigo eu. Mas a boca doía muito.
Cortando caminho pela Cherry, percorreu uma distância maior, até se aproximar o suficiente do rio Leste para que nenhum edifício lhe tampasse a visão. A água brilhava com o esplendor refletido da ponte e a praia ao longe. Uma barcaça próxima tornou-se uma massa de espaço negativo, a não ser por algumas lâmpadas reluzindo na proa.
A ponte surgia diretamente diante de Val, cada um dos suportes lembrava a torre de um castelo, um trabalho de pedra bruta elevando-se da rua, altivo, avermelhado graças à ferrugem que escorria das vigas de metal mais altas. A extensão de pedra era interrompida por janelas emolduradas por esquadrias muito acima das ruas.
Um vidro quebrado esmagou-se sob as botas de Val quando ela passou embaixo de um gracioso arco da passagem inferior da ponte. A calçada fedia a urina velha e alguma coisa podre. De um lado, ficava uma cerca de ferro improvisada, bloqueando o acesso a uma área de construção, onde uma montanha de areia esperava para ser espalhada. No outro, perto de onde ela andava, via-se o que parecia um portal feito de tijolos. Abaixo, localizou o toco de uma árvore, com as raízes perfurando fundo o concreto.
? A árvore.
Val chutou o toco de leve. A madeira era molhada e escura de sujeira, mas as raízes afundavam na calçada, de forma que pareciam se estender além dos túneis e canos, introduzindo-se em algum solo secreto e rico. Ela se perguntou se aquela era a mesma árvore que florescia com frutas translúcidas.
Era misterioso ver um toco ali, aninhado junto a um prédio, como se fossem membros da mesma família. Mas talvez a idéia mais misteriosa era de que ela tinha caído num conto de fadas. Num jogo de videogame, haveria alguma tempestade de pixels coloridos e talvez até uma mensagem na tela avisando-a de que deixava o mundo real para trás. Portal para o Reino das Fadas. Você quer atravessá-lo? S/N.
Val ajoelhou-se e bateu três vezes no toco. A madeira molhada mal fez um ruído sob os nós dos dedos. Uma aranha saiu deslizando para a rua.
Um barulho estridente a fez erguer os olhos. Uma fratura surgiu na pedra acima do toco, como se alguma coisa a houvesse atingido. Ela levantou-se e estendeu a mão para correr os dedos pela fissura, mas, quando tocou a superfície, pedaços de pedra racharam-se e desfizeram-se, até transformarem-se numa entrada tosca.
Ela cruzou-a e entrou num vestíbulo com uma escada, com degraus acima e abaixo do patamar. Quando olhou para trás, a parede havia se solidificado novamente. Uma repentina onda de terror quase a fez desistir e apenas a dor a manteve no lugar.
Trip trap.
? Olá? ? ela gritou para o alto da escada.
Sentia dor quando mexia a boca.
Trip trap.
O troll apareceu no patamar.
Quem é que está saltitando na minha ponte?
? A maioria das pessoas teria chegado mais cedo. ? A voz rouca, cavernosa, encheu o poço da escada. ? Como sua boca deve ter doído para trazê-la aqui, afinal.
? Não foi tão ruim assim ? ela disse, tentando não recuar.
? Suba, sua mentirosinha.
Ravus virou-se e voltou para seus aposentos. Ela saiu correndo pelos degraus empoeirados.
O grande espaço semelhante a uma cobertura tremeluzia com as chamas de velas gordas postas no chão, o brilho fazendo sua sombra saltar nas paredes, imensa e terrível. Trens passavam com estrondo lá em cima e o ar frio varava todas as janelas cobertas.
? Tome. ? Na palma de uma mão de seis dedos, ele trazia uma pedrinha branca. ? Chupe.
Ela pegou a pedra e jogou-a na boca, sentindo muita dor para fazer perguntas. A textura era fria e tinha um gosto de sal que logo desapareceu. A dor diminuiu devagar e, com isso, o resto da náusea se foi, mas Val constatou que a exaustão ocupava o lugar do enjôo.
? O que você quer que eu faça? ? perguntou, empurrando a pedra até a bochecha com a língua para poder falar.
? Por ora, pode pôr alguns livros nas prateleiras. ? Virando-se, ele foi até a mesa e começou a filtrar o líquido de uma pequena panela de cobre espessa com gravetos e folhas. ? Talvez haja alguma ordem para eles, mas como perdi a compreensão do que há neles, não espero que a encontre. Ponha onde couberem.
Val ergueu um dos volumes de uma pilha empoeirada.
O livro era pesado, o couro da encadernação rachado e gasto ao longo da lombada. Ela abriu-o. As páginas eram escritas à mão e a maioria tinha desenhos de plantas em aquarela e tinta.
"Amaranto", leu em silêncio. "Entremeie-o numa coroa para acelerar a cura da deterioração. Se tecido como uma guirlanda, confere invisibilidade." Ela fechou o livro e empurrou-o para dentro das prateleiras de compensado e tijolo.
Val rolava a pedra ao redor da boca como uma bala enquanto guardava os tomos espalhados do troll. Recolhia o emaranhado de cobertores do exército comidos por traça, tapetes manchados e sacos de lixo cortados em tiras, que serviam de cortinas tão espessas que nem a luz das lâmpadas de rua conseguiam penetrar. Havia uma encardida chávena florida, cheia até a metade de um líquido turvo, ao lado de uma poltrona de couro rasgada. A idéia do troll segurando a delicada xícara nas garras a fez explodir em risadas.
? Conhecer as fraquezas de seu alvo, este é o gênio intuitivo de grandes mentirosos ? disse o troll sem erguer os olhos, a voz seca. ? Embora as pessoas sejam muitíssimo diferentes umas das outras, somos semelhantes nisso: não podemos dizer abertamente o que é inverdade. Mas eu me vejo fascinado por mentiras, até mesmo a ponto de querer acreditar nelas.
Val não rebateu.
? Você se considera com talento para mentir? ? ele perguntou.
? Na verdade, não. Sou uma completa otária.
Ele nada disse.
Erguendo outro livro, Val notou a espada de vidro pendurada na parede. A lâmina fora limpa recentemente e, através dela, via a pedra, cada cova na rocha ampliada e distorcida como se estivesse debaixo d'água.
? É feita de marzipã? ? Ele falou baixo e Val percebeu o longo tempo em que havia ficado contemplando a espada. ? Gelo? Cristal? Vidro? ? Era isso que se perguntava, não? Como uma coisa que parece tão frágil é tão difícil de quebrar.
? Eu estava só pensando em como é linda.
? É uma coisa amaldiçoada.
? Amaldiçoada? ? repetiu Val.
? Falhou com um querido amigo meu e custou-lhe a vida. ? Ele correu uma das garras em forma de gancho pelo comprimento da arma. ? Uma lâmina melhor teria detido o oponente.
? Que... quem era o oponente?
? Eu ? respondeu o troll.
? Oh. ? Val não soube pensar numa resposta.
Embora ele parecesse calmo agora, e até gentil, ela ouviu a advertência em suas palavras. Pensou em alguma coisa que a mãe dissera quando ela acabara rompendo com um dos mais desajustados dos namorados que já tivera. Quando um homem disser que vai machucar você, acredite. Eles sempre avisam e estão sempre certos. Val repeliu essas palavras de sua mente. Não queria nenhum dos conselhos da mãe.
O troll voltou para a mesa e pegou garrafas de cerveja lacradas com cera. Através do vidro âmbar, ela não via a cor do conteúdo, mas a idéia de que fosse a mesma areia âmbar que lhe percorrera as veias na noite anterior fez sua pele excitar-se com as possibilidades.
? A primeira entrega será no Washington Square Park, para um trio de fadas. ? A unha em forma de gancho apontou um mapa dos cinco municípios e de quase toda Nova York e Nova Jersey colado com fita adesiva na parede. Ela aproximou-se dele, notando pela primeira vez que havia finos alfinetes pretos enfiados em vários pontos ao longo da superfície. ? A segunda pode ser deixada diante de um edifício abandonado, aqui. Esse recebedor talvez não deseje se expor. Eu quero que você leve o terceiro a um parque abandonado, aqui. ? O troll parecia indicar uma rua em Williamsburg. ? Há umas pequenas colinas cobertas de relva, perto das pedras e da água. A criatura que terá de procurar vai lhe esperar na margem do rio.
? Para que são esses alfinetes? ? perguntou Val.
Ele lançou ao mapa um rápido olhar de soslaio e pareceu hesitar quando tornou a falar.
? Mortes. Não é raro a nossa gente morrer em cidades... a maioria está aqui exilada ou escondida de outros seres encantados. Viver tão perto de tanto ferro é perigoso. Só fazemos isso pela proteção que oferece. Mas essas mortes são diferentes. Venho tentando desvendá-las.
? Que é que vou entregar?
? Remédio ? ele respondeu. ? Inútil para você, mas alivia a dor dos seres encantados expostos a tanto ferro.
? Devo receber alguma coisa deles?
? Não se preocupe com isso.
? Escute ? disse Val ?, não estou tentando ser difícil, mas nunca vivi em Nova York antes. Quer dizer, já vim aqui para fazer algumas coisas e para passear pelo Village, mas não sei achar todos esses lugares com uma simples olhada num mapa.
Ele riu.
? Claro que não. Se você tivesse cabelos, eu faria três nós, um para cada entrega, mas como não tem, me dê sua mão. Ela estendeu-a, a palma voltada para cima, pronta para recolhê-la caso ele mostrasse alguma coisa pontiaguda.
Enfiando a mão num dos bolsos do casaco, o troll retirou um retrós de linha verde.
? A mão esquerda ? disse.
Ela lhe deu a outra mão e viu-o enrolar os dedos mindinho, médio e anelar com um pedaço de linha e amarrá-lo com um laço.
? Para que serve isso? ? ela perguntou.
? Vai ajudar você a fazer suas entregas.
Ela assentiu com a cabeça, olhando para os dedos. Como aquilo poderia ser mágico? Esperara alguma coisa que reluzisse e cintilasse, algum material incomum. Linha era apenas linha. Sentiu vontade de perguntar mais uma vez a respeito, mas achou que talvez fosse falta de educação e, por isso, perguntou outra coisa que já vinha querendo saber.
? Por que o ferro incomoda os seres encantados?
? Nós não o temos em nosso sangue como vocês. Mais que isso, eu não sei. Um Rei da Corte Indigna foi envenenado com apenas alguns fragmentos, muito recentemente. Chamava-se Nephamael e pensou em fazer do ferro um aliado. Usava um aro deste metal na testa, deixando as feridas cicatrizarem bem fundo até a pele ficar tão fortalecida que não se feria mais. Mas isso não fortaleceu a garganta. Ele morreu sufocado pelo metal.
? Que Cortes são essas? ? perguntou Val.
? Quando há seres encantados suficientes numa determinada área, eles muitas vezes se organizam em grupos. Poderiam ser chamados de gangues, mas geralmente chamamos esses grupos de Cortes. Ocupam algum território, quase sempre em luta contra as outras Cortes vizinhas. Existem as Cortes Dignas, que chamamos de Cortes Luminosas, e as dos Indignos ou Cortes Noturnas. É possível que você ache, à primeira vista, que a Corte Luminosa é boa e a das Trevas má, mas estaria muito, embora não inteiramente, enganada.
Val estremeceu.
? Vou fazer essas entregas sozinha? Algum dos outros vai comigo?
Os olhos dourados do troll reluziram à luz do fogo.
? Outros? Luis é o único mensageiro humano que eu já tive antes de você. Está pensando em mais alguém?
Ela fez que não com a cabeça, insegura do que deveria responder.
? Não importa. Eu peço que faça essas tarefas sozinha e que não comente sobre elas com nenhum dos... outros.
? Tudo bem ? Val concordou.
? Você está sob a minha proteção. ? Ele entregou-lhe a garrafa. ? Mesmo assim, há coisas sobre os seres encantados que eu gostaria de que soubesse. Não permaneça com eles e não aceite nada que oferecerem, sobretudo comida. ? Val pensou na pedra encantada que dera ao velho na noite anterior e balançou a cabeça, pesarosa e culpada. ? Ponha esta consolda no seu sapato. Vai ajudar a manter você segura e acelerar sua viagem. E aqui tem camelina, para mantê-la longe da fascinação. Pode pôr no bolso.
Val pegou as plantas, tirou o sapato esquerdo com o dedão e enfiou a consolda dentro. Sentia-a ali, aninhada na meia, estranhamente reconfortante e assustadora devido exatamente ao fato de ser confortante.
Quando emergiu mais uma vez na rua, sentiu um puxão do primeiro fio enlaçado em volta do dedo mindinho. Magia! Isso a fez sorrir, apesar de tudo, quando seguiu na direção indicada.


Anoitecia quando se encaminhou para a Washington Square. Parou no caminho e gastou um dinheiro roubado num sanduíche de presunto, que ainda estava nauseada demais para digerir, apesar da fome, e teve de jogá-lo fora quase inteiro. Conseguiu até lavar o rosto numa fonte gelada, onde a água tinha gosto de ferrugem e moedas.
As três garrafas do líquido que até então era um mistério para Val trepidavam na mochila, mais pesadas do que seriam se ela não estivesse tão cansada. Sentia vontade de destampar uma e provar o conteúdo, trazer de volta a força e o destemor da noite anterior, mas estava tão cautelosa devido à exaustão desse dia, que não o fez.
Atravessando o parque, passou por estudantes da Universidade de Nova York com cachecóis de cores vivas, por pessoas que se apressavam para o jantar ou levavam cachorrinhos vestidos com suéteres para passear e percebeu que não tinha a mínima idéia do que procurava. O fio impeliu-a em direção a um bando de alunos de ensino médio com caras roupas de skatista trepando por uma das cercas internas. Um garoto de cabelos meio compridos e calça jeans bem baixa nos quadris, joelheiras com estampas de caveiras e tênis Vans xadrez era mais ruidoso que os outros. Estava em pé no nível superior e gritando para três meninas encostadas no tronco grosso de uma árvore. Todas estavam descalças e tinham cabelos cor de mel.
O fio quase a arrastou para as meninas antes de se soltar.
? Oi ? disse Val. ? Tenho uma coisa para vocês, eu acho.
? Eu sinto o encanto em você, denso e doce ? disse uma delas, de olhos cinza como chumbo. ? Se não for cuidadosa, uma menina como você pode ser transportada morro abaixo. Deixamos um pedaço de madeira para trás e todas chorariam por ele, porque seriam estúpidas demais para saber a diferença.
? Não seja tão má com ela ? disse outra, enrolando uma mecha de cabelos com as mãos. ? Ela não pode evitar ser cega e burra.
? Aqui. ? Val empurrou a garrafa nas mãos da que não falara. ? Tomem seu remédio como boas menininhas.
? Ooooh, ela tem língua ? zombou a menina de olhos cinza.
A terceira menina apenas sorriu e olhou para o garoto na cerca.
Uma das outras acompanhou o olhar dela.
? Ele é bem bonito ? comentou.
Val mal diferenciava as meninas entre si. Todas tinham cabelos e membros compridos, que pareciam se mover com a mais fraca das brisas. Naquelas roupas finas e pés descalços, deveriam sentir frio, mas Val logo percebeu que não sentiam.
? Quer dançar com a gente? ? perguntou a fada menina a Val.
? Ele quer dançar com a gente. ? A fada de olhos cinza deu ao skatista barulhento um belo sorriso.
? Venha dançar com a gente, mensageira ? convidou a terceira, falando pela primeira vez.
A voz assemelhava-se a de uma rã coaxando e, quando ela falou, Val viu que tinha a língua preta.
? Não. ? Val lembrou-se das advertências do troll e da camelina no bolso. ? Preciso ir embora.
? Está bem ? disse a fada de olhos cinza, espetando a terra com um dos polegares nus. ? Você vai nos visitar de novo quando não estiver tão cheia de feitiços. Pelo menos espero. Você é quase tão bonita quanto ele.
? Eu não sou nem um pouco bonita ? retrucou Val.
? Como quiser ? disse a menina.


Val não sabia ao certo o que deveria esperar encontrar quando passou pelos prédios pobres tapados com tábuas e armazéns com janelas quebradas. O edifício para o qual o fio em seu dedo a rebocou também era tapado e ela se surpreendeu ao ver um jardim brotando no telhado. Longas gavinhas de plantas pendiam de um lado e o que pareciam árvores semicrescidas brotavam do que devia ser um solo pobre, tudo isso preso por uma gaiola de alumínio que encimava o prédio. Ela se encaminhou para a entrada, agora tomada pela hera. No segundo andar, faltavam todas as janelas, havia buracos abertos na alvenaria e Val quase via os cômodos lá dentro.
Quando pisou nos degraus rachados da frente, o fio desprendeu-se do dedo médio e caiu no mato próximo.
Ela retirou a garrafa da mochila e largou-a, pensando nas instruções do troll. Alguma coisa surgiu no mato e Val uivou, pulando para trás, com a exata noção de como tudo ficara estranho. Os carros continuavam passando como raios e os ruídos da cidade continuavam ali, mas, de algum modo, haviam diminuído. Um rato pardo espichou a cabeça da grama, tinha os olhinhos pretos como seixos polidos, contorcendo o focinho rosa. Ela riu de alívio.
? Ei, você aí ? ela disse, agachando-se. ? Eu soube que você rói até cobre. Isso é realmente incrível.
O rato virou-se e voltou correndo pelo mato, enquanto ela ficava olhando. Uma figura saiu das sombras e pegou o roedor, acomodando-o num ombro largo.
? Quem... ? Val disse e interrompeu-se.
Ele avançou para a luz, uma criatura quase tão alta quanto o troll e mais corpulenta, com chifres que se curvavam para trás da cabeça como os de carneiro e uma espessa barba castanha que se tornava verde nas pontas. Vestia um casaco feito de retalhos e botas costuradas à mão.
? Entre e se aqueça ? ele disse, erguendo a garrafa arrolhada. ? Tenho algumas perguntas para você.
Ela fez que sim com a cabeça, mas desviou o olhar para a rua, querendo ver se poderia fugir para lá. A mão do ser caiu pesada em seu ombro, decidindo a questão. Ele a fez contornar os fundos do prédio e cruzar uma porta que pendia apenas da dobradiça superior.
Dentro do prédio, via-se uma série de partes de manequins, empilhadas aleatoriamente ao longo das paredes, uma pirâmide de cabeças num canto e uma parede de braços em múltiplos tons de pele no outro. Uma pilha de perucas jazia como um imenso animal que repousava no meio do chão.
Uma criatura minúscula, com asas de mariposa e que zumbia, varou o ar como uma agulha e instalou-se no torso do homem para costurar uma túnica em seu corpo.
Val olhou ao redor, receosa, à procura de alguma coisa que pudesse usar como arma, recuando para alcançá-la e agarrá-la atrás com os dedos. Não lhe agradava a idéia de girar uma perna de plástico e tacar na criatura, mas, se tivesse de fazê-lo, não pensaria duas vezes, embora não tivesse esperança alguma de causar algum estrago. Quando seus dedos se fecharam no que ela julgou ser um braço inteiro, a mão do manequim desprendeu-se na dela.
? Que é tudo isso? ? Val perguntou em voz alta, esperando que o ser encantado não notasse o que ela acabara de fazer.
? Eu faço estoque. ? A criatura de chifres sentou-se num engradado de leite, que se arqueou com seu peso. ? Eu e Agulhanix, nós somos os melhores que você provavelmente vai encontrar deste lado do oceano.
O ser com asa de mariposa zumbiu. Val tentou pôr a mão do manequim na prateleira atrás de si novamente, mas, sem olhar, não conseguia encontrar um lugar para aquilo. Decidiu enfiá-la no bolso detrás da calça, sob o casaco.
? A Rainha da Corte Digna, a própria Silarial, utiliza-se de nossos serviços.
? Uau! ? exclamou Val, pois ele claramente queria impressioná-la. Então, no silêncio que se seguiu, foi obrigada a perguntar: ? Estoque?
O ser sorriu e ela viu que tinha os dentes amarelados e muito pontudos.
? É o que deixamos para trás quando roubamos alguém. Agora, seus troncos ou paus, ou o que seja, funcionam muito bem, mas estes manequins são superiores em todos os sentidos. Mais convincentes, até para aqueles raros humanos com um pouco de magia ou visão. Claro, acho que deve ser um frio conforto para você.
? Imagino que sim ? concordou Val.
Pensou nas meninas no parque dizendo: Deixamos um pedaço de madeira para trás. Seria isso que queriam dizer?
? Claro, às vezes deixamos um dos nossos fingir ser uma criança humana, mas essa tolice não me interessa. ? Ele olhou para Val. ? Podemos ser cruéis com aqueles que nos irritam. Ceifamos colheitas, secamos todo o leite no peito de uma mãe e murchamos membros do mais reles dos franzinos. Mas, às vezes, acho que somos piores para aqueles que conquistaram nosso favor. Agora, me diga... ? O ser empertigou-se na cadeira e pegou a garrafa de poção. A luz da fogueira, ela viu que seus olhos eram completamente pretos, como os do rato. ? Isto é veneno?
? Eu não sei o que é ? respondeu Val. ? Não fui eu quem fez.
? Tem havido várias mortes entre os nossos.
? Eu soube de alguma coisa a respeito.
Ele grunhiu.
? Todos estavam usando a solução de Ravus para evitar a doença do ferro. Todos receberam entregas de um mensageiro assim como você, próximo à hora da morte.
Val pensou no homem dos incensos de alguns dias antes. Que fora mesmo que ele dissera? Diga a seus amigos para serem cuidadosos com aqueles a quem eles servem.
? Você acha que Ravus... ? Ela deixou o nome preso nos lábios por um momento. ? Você acha que Ravus é o envenenador?
? Eu não sei o que achar ? respondeu o homem de chifres. ? Bem, siga seu caminho então, mensageira. Eu encontrarei você de novo se precisar.
Ela saiu rápido.


Passando por um velho cinema, foi atraída pelo cheiro de pipoca e a promessa de calor. Sentia o rolo de dinheiro no bolso do casaco, mais que suficiente para entrar e, no entanto, a idéia de ver um filme parecia inimaginável, como se ela tivesse de transpor uma barreira dimensional impossível entre esta vida e a antiga para sentar-se diante de uma tela.
Quando era mais nova, Val e a mãe iam ao cinema todo domingo. Primeiro ao filme que Val queria ver e depois ao que a mãe escolhia. Em geral, acabava em alguma coisa como um filme de zumbi seguido por um romance lacrimoso. Sentavam-se no cinema escuro e sussurravam uma com a outra: Aposto que foi ela quem fez isso. Ele vai morrer agora. Como alguém pode ser tão idiota?
Aproximou-se dos cartazes, só para ser do contra. A maioria era de filmes de arte dos quais ela nunca havia ouvido falar, mas um chamado O jogo lhe atraiu o olhar. O cartaz mostrava um cara atraente posando como se fosse um valete de copas, a tatuagem de um coração vermelho desenhado no ombro nu. Segurava uma carta também de copas.
Val pensou em Tom, espalhando seu baralho de tarô repleto de desenhos na bancada da cozinha da casa dela.
? Essa carta representa o obstáculo que bloqueia o seu caminho ? ele dissera, virando uma carta com a imagem de uma mulher vendada empunhando espadas nas duas mãos. ? Dois de espadas.
? Ninguém pode prever o futuro ? Val comentou. ? Não com uma coisa que se compra na Fnac.
A mãe fora até eles e sorrira para Tom.
? Você poria cartas para mim? ? perguntara.
Tom retribuíra o sorriso e os dois haviam começado a falar de fantasmas, cristais e toda essa merda new age. Val devia ter sabido ali mesmo. Mas pegou um copo de refrigerante, instalou-se num banquinho e ficou vendo Tom ler o futuro da mãe, no qual desempenharia um importante papel.
Ela subiu os degraus, comprou um ingresso para a sessão da meia-noite e entrou na cafeteria. Deserta. Um conjunto de mesinhas de metal com tampos de mármore rodeado por duas poltronas de couro marrom. Instalou-se num sofá e olhou fixamente para o único lustre que iluminava o local, posicionado no centro do saguão, pendendo de um mural que imitava o céu. Descansou ali, vendo-o tremular por alguns momentos e desfrutando o luxo do calor antes de obrigar-se a entrar no banheiro. Faltava meia hora para o início do filme,e queria ficar limpa.
Com chumaços de toalhas de papel, tomou um banho quase decente, esfregando a calcinha com sabão antes de vesti-la ainda úmida, e ainda gargarejou alguns esguichos d'água. Depois, sentando-se num dos cubículos, encostou a cabeça na parede de metal pintado e fechou os olhos, deixando-se banhar pelo ar quente que jorrava dos dutos. Só um momento, disse a si mesma. Vou me levantar em apenas um momento.


Uma mulher de olhos escuros e um rosto magro debruçou-se sobre ela.
? Pardon?
Val levantou-se de um salto e a faxineira recuou com um ganido, o pano de limpeza estendido à frente.
Sem graça e aos tropeços, ela pegou a mochila e correu para a saída. Empurrou as portas de metal da sala de exibição e os lanterninhas de terno partiram em sua direção.
Desorientada, viu que ainda estava escuro. Perdera o filme? Dormira apenas por um momento?
? Que horas são? ? perguntou a um casal tentando acenar para parar um táxi.
A mulher conferiu nervosamente as horas no relógio, como se Val fosse arrancá-lo do seu pulso.
? Quase três.
? Obrigada - ela resmungou.
Embora houvesse tido menos de quatro horas de sono sentada num banheiro, agora que caminhava mais uma vez, constatava que se sentia muito melhor. A tonteira quase desaparecera e o cheiro de comida asiática de restaurante vinte e quatro horas a algumas quadras fez seu estômago roncar de fome.
Começou a andar na direção do cheiro.
Uma caminhonete preta com janelas fume parou a seu lado, as janelas abaixadas. Dois rapazes sentavam-se na frente.
? Ei ? chamou o do lado do passageiro. ? Sabe onde fica a discoteca Búlgara? Achei que era ao largo do Canal. Mas agora já contornamos quase toda a volta dele.
Tinha faixas louras nos cabelos cuidadosamente penteados com gel. Ela fez que não com a cabeça.
? De qualquer modo, deve estar perto agora.
O motorista curvou-se. Tinha cabelos escuros e pele morena, olhos grandes, límpidos.
? Estamos só a fim de nos divertir. Você gosta de diversão?
? Não ? respondeu Val. ? Só vou comer alguma coisa.
Apontou o exterior japonês completamente fake do restaurante, feliz por não ser muito longe, mas dolorosamente consciente das ruas desertas que ainda a separavam de lá.
? Eu até que comeria uma porção de arroz frito ? comentou o louro. A caminhonete avançou devagar, acompanhando-a enquanto andava. ? Vamos, somos caras normais. Não somos monstros nem nada assim.
? Olha só ? disse Val ?, não estou a fim de me divertir, ok? Só me deixem em paz.
? Certo, certo. ? O louro olhou para o amigo, que encolheu os ombros. ? Podemos ao menos lhe dar uma carona? Não é seguro você ficar andando aí fora sozinha.
? Obrigada, mas estou legal.
Val se perguntava se conseguiria ultrapassá-los, se devia arrancar disparada na frente com uma boa vantagem. Mas continuou andando, como se não estivesse assustada, como se eles fossem apenas dois caras simpáticos, preocupados, tentando convencê-la a entrar na caminhonete.
Tinha consolda no sapato, camelina no bolso e uma mão de plástico nas costas, embaixo da camiseta, mas não tinha certeza de como alguma dessas coisas poderia ajudá-la.
As portas destrancaram-se com um estalo quando a caminhonete parou e ela tomou uma decisão. Virando-se para a janela aberta, sorriu e disse:
? Que faz vocês acharem que eu não sou uma das pessoas perigosas?
? Tenho certeza de que você é perigosa ? disse o motorista, todo sorrisos e insinuações.
? E se eu disser que acabei de cortar a mão de um bonitinho? ? ela perguntou.
? Como?
O louro olhou-a, confuso.
? É verdade. Quer ver?
Lançou a mão de manequim pela janela. Caiu no colo do motorista.
A caminhonete desviou-se e o louro gritou.
Ela atravessou a rua, correndo em direção ao restaurante.
? Tarada fodida ? gritou o louro, quando arrancaram do meio-fio, cantando os pneus.
O coração de Val batia duas vezes mais rápido quando ela entrou no calor seguro do Dojo. Sentando-se a uma mesa com um suspiro de alívio, pediu uma enorme tigela de sopa missô fumegante, talharins frios de gergelim pingando molho de amendoim e galinha frita com gengibre, que comeu com os dedos. Quando terminou, achou que ia adormecer mais uma vez, bem ali na mesa.
Porém, ainda tinha mais uma entrega a fazer. A rua parecia quase deserta com a sarjeta repleta de vidros quebrados, preservativos secos e uma meia-calça rasgada. Mesmo assim, o cheiro de orvalho na calçada, na ferrugem da cerca e na grama escassa, junto com as ruas vazias, fazia Williamsburg parecer muito longe de Manhattan.
Ela se abaixou sob uma cerca gradeada. O terreno estava vazio, mas ela viu uma vala entre o concreto rachado e as pequenas colinas. Pisou ali, usando-a como um caminho para chegar ao lugar onde pedras pretas demarcavam o espaço entre a margem e o rio.
Tinha alguma coisa ali. A princípio, Val achou que fosse um monte de algas marinhas secas, um saco plástico extraviado, mas, ao chegar mais perto, percebeu que era uma mulher de cabelos verdes, deitada de bruços nas pedras, metade dentro d'água e a outra metade fora. Apressando-se, viu as moscas zumbindo em volta do torso e seu rabo balançando com a corrente, escamas captando as luzes da rua e brilhando como prata.
Era o cadáver de uma sereia.








Capítulo 7


A estes eu me volto, nestes eu confio ?
Irmão Chumbo e Irmã Aço.

? Siegfried Sasson,
O velho caçador e outros poemas


A
primeira vez que Val viu alguma coisa morta foi no shopping perto da casa do pai, quando tinha doze anos.
Atirou um centavo dentro da fonte perto da praça de alimentação pois desejava um par de tênis de corrida. Alguns minutos depois, pensou melhor e correu de volta para tentar encontrar a moeda e refazer o desejo. Mas o que viu, flutuando na água parada, foi o corpo flácido de um pardal. Estendeu a mão e ergueu-o. A água escorreu do minúsculo bico como de uma xícara. Tinha um cheiro horrível, como uma carne esquecida, deixada na geladeira para descongelar. Ela fitou-o um momento antes de perceber que estava morto.
Enquanto corria pelas ruas e sobre a ponte de Manhattan, a respiração formando nuvens no ar, Val pensava no passarinho afogado. Agora, já havia visto duas coisas mortas.
A porta da entrada mágica sob a ponte abriu-se da mesma forma com que na última vez, mas quando ela pisou no patamar escuro, viu que não estava sozinha. Alguém vinha descendo a escada e só quando a vela que o outro embalava fez as argolas prateadas, enfiadas no lábio e no nariz, tremeluzirem e o branco dos olhos brilharem, ela viu que era Luis. Parecia tão surpreso quanto ela e, naquela luz oscilante, exausto.
? Luis? ? ela chamou.
? Eu esperava que você já tivesse se mandado há muito tempo. ? A voz dele era baixa e implacável. ? Que tivesse voltado para a mamãe e o papai no subúrbio. É tudo o que vocês meninas ponte-e-túnel sabem... ir embora quando as coisas ficam difíceis. Correr para a cidade grande e má e depois voltar correndo para casa.
? Foda-se ? disse Val. ? Você não sabe nada sobre mim.
? Ora, você também, não sabe nada sobre mim. Acha que fui babaca com você, mais só lhe fiz favores.
? Qual é o seu problema comigo? Você me odiou assim que apareci!
? Todas as amigas da Lolli sempre acabam fazendo merda e foi exatamente isso o que você fez. E aqui estou eu, sendo submetido a um interrogatório por um troll enfurecido, por causa de vocês. Acha que meu problema é qual?
A raiva deixou o rosto de Val quente, mesmo na escadaria fria.
? Acho o seguinte: a única coisa especial em você é que tem a Visão. Fala um monte de merda sobre seres encantados, mas adora ser o único que pode vê-los. Por isso fica com tanto ciúme quando conhece alguém mais que, além de ver, fala com uma delas.
Isso o deixou boquiaberto, como se houvesse levado um tapa.
As palavras continuaram a sair da boca de Val antes que ela sequer percebesse o que ia dizer.
? E também acho mais uma coisa. Os ratos talvez consigam destruir cobre com os dentes, ou seja lá o que for, mas o único motivo de sobreviverem é porque existem zilhões deles. O que há de tão especial nos ratos é o seguinte... eles fodem o tempo todo e têm um milhão de filhotes.
? Pare. ? Luis ergueu as mãos como se tentasse se esquivar das palavras de Val. A voz ficou bem mais baixa, a raiva parecendo esvair-se dele como um balão estourado. ? Muito bem. É isso aí. Para Ravus e o resto dos seres encantados, isso é que todos os humanos são... coisas patéticas, que procriam adoidado e morrem tão rápido que não se pode distinguir um e outro. Escute, eu passei as últimas horas respondendo a perguntas, depois de beber algum tipo de coisa tóxica que me fez dizer a verdade. Tudo por causa da invasão que você e Lolli fizeram aqui. Estou cansado e puto da vida. ? Ele esfregou o rosto com a mão. ? Não é a primeira desgarrada que Lolli trouxe para casa, você sabe. O que não sabe é com que tipo de coisa anda brincando por aí.
Ela não se intimidou com a repentina mudança no tom dele.
? Que quer dizer?
? Há uns dois meses, Lolli decidiu trazer outra menina desgarrada para o subterrâneo. Foi quando, pela primeira vez, alguém teve a idéia de que dava para injetar as poções. Lolli e a menina, Nancy, queriam arranjar alguma droga, mas não tinham dinheiro. Então ela começou a falar sobre o que mais podiam injetar e prepararam um pico com a substância de uma das entregas de Dave. De repente, começaram a dizer que viam coisas que não estavam ali e, até pior, Dave começou a ver a merda também. Nancy foi atropelada por um trem e sorria feliz até o momento em que o trem passou por cima dela.
Val desviou o olhar da vela que tremeluzia na escuridão.
? Isso parece mais um acidente.
? Claro que foi a porra de um acidente. Mas Lolli continuou a adorar a parada, mesmo depois disso. Convenceu Dave a usar também.
? Lolli sabia o que era? ? perguntou Val. ? Ela sabia de alguma coisa sobre os seres encantados? Sabia sobre Ravus?
? Sabia. Eu contei a Dave sobre Ravus, porque ele é meu irmão, embora seja um idiota. Dave contou a Lolli porque ela é uma implicante e ele faria qualquer coisa para impressioná-la. E Lolli contou a Nancy, porque não sabe manter a porra da boca fechada.
Val ouvia na mente a frágil risada de Lolli.
? E o que há de tão mal assim em ela contar às pessoas?
Ele soltou um suspiro.
? Veja isso. ? Luis apontou a pupila clara do olho esquerdo. ? Repugnante, não é? Um dia, quando eu tinha oito anos, minha mãe me levou ao mercado de peixes. Estava comprando uns siris-moles e barganhando com o peixeiro, realmente envolvida naquilo, porque adorava pechinchar. Então eu vi um sujeito carregando uma braçada de peles de foca ensanguentadas. Ele me viu olhando e deu um sorriso grande de verdade. Tinha os dentes parecidos com os de um tubarão: minúsculos, afiados e muito separados uns dos outros.
Val agarrou-se ao corrimão, a tinta descascava-se sob as unhas dos dedos.
? "Você me vê?", ele perguntou e, como eu era um menino imbecil, fiz que sim com a cabeça. Minha mãe estava bem do meu lado, mas não notou nada. "Você me vê com os dois olhos?", ele quis saber. Fiquei nervoso e isso foi a única coisa que me impediu de lhe dizer a verdade. Apontei o meu olho direito. Ele largou as peles e elas fizeram um barulho horrível, molhado, caindo todas juntas daquele jeito.
A cera escorreu pelo lado da vela e caiu no polegar de Luis, mas ele não se retraiu nem mudou a maneira como a segurava. Pingou mais cera, formando um gotejamento constante na escada.
? O cara me agarrou pelo braço e enfiou o polegar no meu olho. A expressão dele não mudou sequer um instante enquanto fazia isso. A dor foi tão terrível que comecei a gritar. Foi quando minha mãe se virou e, finalmente, me viu. E você sabe o que ela e o vendedor de siri decidiram? Que eu, de algum modo, tinha arranhado a porra do olho. Que eu bati com alguma coisa. Que eu mesmo me ceguei.
Os pêlos arrepiaram-se nos braços de Val e ela sentiu aquele frio atravessando sua espinha, o que demonstrava apenas como estava realmente apavorada. Pensou nas peles de foca do relato dele, no corpo da sereia que vira junto ao rio e não chegou a nenhuma conclusão, exceto que não havia fuga de coisas horríveis.
? Por que está me contando isso?
? Porque me deixa puto da vida ter sido logo eu. Um passo errado e eles decidiram que eu não precisava do outro olho. Isso é o que há de tão mau nessa história toda. Dave e Lolli não entendem. ? Luis baixou a voz para um sussurro e curvou-se mais para perto dela. ? Estão brincando com aquela droga, roubando de Ravus, quando eu devia estar saldando uma dívida. Aí trazem você. ? Ele se interrompeu, mas Val viu o pânico em seus olhos. ? Você está remexendo a merda. Lolli tem piorado as coisas ao invés de melhorar.
O troll surgiu no alto da saliência e olhou para Val lá embaixo. Sua voz foi baixa e profunda como um tambor.
? Não consigo entender por que você voltou. Precisa de alguma coisa?
? A última entrega ? ela disse. ? Era uma... sereia? Está morta.
O troll se calou, arregalando os olhos. Val engoliu em seco.
? Parece que já tinha morrido havia algum tempo.
Ravus desceu as escadas, o sobretudo ondulando atrás dele.
? Quero que me mostre.
As feições dele mudavam à medida que chegava mais perto, o verde da pele desaparecia, os traços modificavam-se até ele parecer humano, como um menino desajeitado, apenas um pouco mais velho que Luis, um rapaz de estranhos olhos dourados e cabelos pretos desgrenhados.
? Você não mudou... ? disse Val.
? É assim que funciona o encanto ? ele disse, interrompendo-a. ? Há sempre uma insinuação do que a pessoa era. Pés virados para trás, rabo, as costas ocas. Uma pista da nossa verdadeira natureza.
? Eu vou me mandar ? disse Luis. ? De qualquer maneira, já estava de saída mesmo.
? Luis e eu tivemos uma conversa interessante sobre você e a maneira como nos encontramos ? disse o troll.
Era desorientador ouvir aquela voz profunda e encorpada sair dos lábios de um rapaz.
? É. ? Luis deu um sorriso meio de lado. ? Ele conversou. Eu rastejei.
Isso fez Ravus sorrir por sua vez, mas, mesmo como humano, os dentes incisivos pareciam um pouco longos demais.
? Acho que essa morte tem a ver com você também, Luis. Adie o sono um pouco mais e vamos ver o que podemos aprender.


Os únicos ruídos à beira-mar vinham das ondas lambendo as pedras na praia, quando Ravus, Val e Luis chegaram. O corpo continuava lá, os cabelos flutuando como algas marinhas, colares de conchas, pérolas e ouriços-do-mar presos em volta do pescoço como cordas a estrangulá-la, o rosto branco parecendo um reflexo da lua na água. Minúsculos peixes movimentavam-se em volta dela, entrando e saindo a nadar por entre os lábios separados.
Ravus ajoelhou-se, encaixou a parte de trás do crânio da sereia nos longos dedos e levantou a cabeça. A boca abriu-se mais, mostrando dentes pequenos, translúcidos, que pareciam feitos de cartilagem. Ele aproximou tanto seu rosto do da sereia, que por um momento deu a impressão de que talvez fosse beijá-la. Em vez disso, cheirou duas vezes, antes de gentilmente baixá-la de volta na água.
Olhou para Luis com olhos sombreados, retirou o sobretudo e estendeu-o no chão. Virou-se para Val.
? Se você pegar o rabo, podemos passá-la para o tecido. Eu preciso levá-la de volta ao meu gabinete.
? Ela foi envenenada? ? perguntou Luis. ? Você sabe o que a matou?
? Tenho uma teoria ? respondeu Ravus.
Puxou os cabelos para trás com as mãos molhadas e depois avançou patinhando pelo rio Leste.
? Vou ajudar. ? Luis adiantou-se.
Ravus abanou a cabeça.
? Você não pode. Todo esse ferro que insiste em usar poderia queimar a pele dela. Eu não quero a prova mais contaminada do que tem de ser.
? O ferro me mantém seguro ? disse Luis, tocando o aro no lábio. ? Mais seguro, de qualquer modo.
Ravus sorriu.
? No mínimo, vai mantê-lo a salvo de uma tarefa repugnante.
Val patinhou na água e ergueu o rabo escorregadio, as pontas esfarrapadas como um pano rasgado. As escamas reluziram como prata líquida quando as lascas se soltaram na mão dela. Viam-se trechos de carne branca expostos ao longo do lado da sereia, onde caranguejos já haviam começado a alimentar-se dela.
? Que drama insignificante para se ver encenado ? disse uma voz vinda de uma montanha de lixo.
? Greyan.
Ravus olhou em direção às sombras. Val reconheceu a criatura que se adiantou, o fabricante de manequins com a barba esverdeando. Mais atrás vinha mais gente que ela não conhecia, seres com braços compridos e mãos enegrecidas, olhos semelhantes aos de pássaros, caras de felinos, asas esfarrapadas finas como fumaça e tão brilhantes quanto as luzes de néon da placa de bar distante.
? Outra morte ? disse um deles e ouviu-se um murmúrio.
? Que é isso que está entregando dessa vez? ? perguntou Greyan.
Uma explosão de risos constrangidos.
? Eu vim para descobrir o que fosse possível ? disse Ravus.
Fez um sinal com a cabeça para Val. Juntos, transferiram o corpo para o sobretudo. Ela se sentiu nauseada quando percebeu que o cheiro de peixe vinha da carne em suas mãos.
Greyan avançou um passo, os chifres irradiavam um brilho branco na iluminação de rua.
? E ver o que foi descoberto.
? Que está insinuando? ? quis saber Ravus.
Em seu disfarce humano, Ravus era magro e alto e, ao lado do volumoso Greyan, parecia estar em terrível desvantagem.
? Você nega que é um assassino?
? Pare ? disse um dos outros, uma voz vinda das sombras, presa ao que parecia um corpo comprido e delgado. ? Nós o conhecemos. Ele tem feito poções inofensivas para todos nós.
? Nós o conhecemos? ? Greyan moveu-se mais para perto e, das dobras do casaco de couro rachado, tirou duas pequenas foices curtas e curvas, com lâminas de bronze escurecido. Cruzou-as sobre o peito como um faraó estendido numa tumba. ? Ele foi exilado por causa de um assassinato.
? Tome cuidado ? aconselhou uma criatura minúscula. ? Vai querer que todos nós sejamos julgados agora pelo motivo de nosso exílio?
? Sabe que não posso contestar uma acusação por assassinato ? disse Ravus. ? Assim como eu sei que é covardia brandir uma espada para alguém que jurou nunca mais fazer isso.
? Belas palavras. Você ainda se julga um cortesão ? retrucou Greyan. ? Mas sua língua inteligente não vai ajudá-lo.
Uma das criaturas lançou um sorriso falso para Val. Tinha olhos de papagaio e a boca cheia de dentes pontiagudos. A menina se abaixou e pegou um pedaço de cano que estava jogado nas pedras. Era tão frio que lhe queimou os dedos.
Ravus ergueu as mãos para Greyan.
? Eu não quero lutar contra você.
? Então essa será sua ruína. ? Greyan lançou uma foice em Ravus.
O troll esquivou-se da lâmina e tomou uma espada da mão de outro ser encantado, empunhando uma chapa de metal afiada. O sangue vermelho escorreu-lhe da palma. Curvou a boca com alguma coisa semelhante a prazer e o encanto se desfez como se houvesse sido esquecido.
? Você precisa do que eu faço ? cuspiu Ravus. A fúria contorcia-lhe o rosto, tornando suas feições assustadoras e forçando as presas a morderem a carne do lábio superior. Limpou o sangue com uma lambida e os olhos pareciam cheios de alegria, embora o sentimento fosse de raiva. Apertou o punho na lâmina da espada, apesar disso aprofundar o corte na pele. ? Eu lhe dou minhas poções de graça, mas se fosse eu o envenenador, se fosse meu capricho matar um entre as centenas que ajudo, você ainda teria de viver da minha indulgência.
? Não vou viver da indulgência de ninguém.
Greyan lançou-lhe as foices. Ravus girou o punho da espada, bloqueando o golpe. Os dois perseguiam um ao outro em círculos, trocando golpes. A arma de Ravus desequilibrava-se por estar empunhada de cabeça para baixo e escorregava com o próprio sangue de seu duelista.
Greyan golpeava rápido com as pequenas foices de bronze, mas Ravus aparava cada investida.
? Basta ? gritou Greyan.
Um monstro de rabo comprido e encaracolado correu para a frente, agarrando um dos braços de Ravus. Outro se adiantou empunhando uma faca de prata em forma de folha.
Nesse momento, Greyan virou-se para o pulso de Ravus e Val mexeu-se antes de saber que se mexia. O instinto apoderou-se dela. Todos os treinos de lacrosse e os jogos de videogame surgiram com um chiado baixo, encorpado, fazendo-a perder o equilíbrio por um momento. Então ele se virou para Val, arremetendo com as duas foices para baixo. Val mal teve tempo de erguer o cano e defender-se, antes de que as foices a atingissem, fazendo o metal faiscar. Ela rodopiou para o lado e Greyan ficou encarando-a, assombrado, antes de atirar as lâminas de bronze na perna dela.
Val sentiu uma onda de frio atravessar seu corpo e os barulhos no segundo plano reduziram-se a um assobio nos ouvidos. A perna, na verdade, não doía tanto, embora o sangue empapasse a calça já rasgada.
Na outra vida de Val, aquela onde fora quase uma piada e não acreditava em seres encantados, ela e Tom jogavam videogame e matavam o tempo no porão da casa dele depois da escola. O jogo preferido dela era Almas Vingadoras. Sua personagem, Akara, tinha uma cimitarra e um poder que lhe permitia cortar as cabeças de três dos adversários de uma só vez e isso lhe dava muitos pontos de saúde. Eles surgiam no alto da tela, esferas azuis que se transformavam em vermelhas com um estalo quanto mais Akara se ferisse. Era só isso que acontecia. Akara não diminuía os ataques quando se machucava, nem tropeçava, gritava ou desmaiava.
Val fez tudo isso.


Alguém segurou seu braço com muita força. Ela sentia as unhas na pele. Doía. Tudo doía. Val abriu os olhos.
Viu um rapaz em pé, olhando-a, e a princípio não o conheceu. Recuou, rastejando rápido para longe dele. Então, viu os cabelos pretos retintos, os lábios inchados e os olhos salpicados de dourado. Luis estava no segundo plano.
? Val ? ele disse. ? É Ravus. Ravus.
? Não me toque ? ela pediu, querendo que a dor parasse.
Deu um sorriso amargo quando ele soltou as mãos dela.
? Você podia ter morrido ? disse Ravus baixinho.
Ela interpretou isso como um sinal encorajador de que não ia realmente morrer.


Val acordou quente e sonolenta. Por um momento, achou que estava de volta em sua própria cama, em casa. Perguntava-se se dormira além da hora e perdera a escola. Depois, achou que talvez houvesse adoecido, mas quando abriu os olhos, viu a luz da vela tremeluzindo e o telhado obscurecido muito acima. Estava envolta num casulo de mantas com perfume de lavanda, no alto de uma pilha de almofadas e tapetes. No alto, o constante rugir do tráfego quase parecia chuva.
Apoiou-se num cotovelo. Viu Ravus em pé atrás de sua mesa de trabalho, cortando um bloco de uma substância escura. Observou-o por um momento, vendo os compridos e eficientes dedos embalarem a faca, depois tirou uma das pernas de debaixo das cobertas. Despida, estava coberta com ataduras na coxa, envolta com folhas e estranhamente dormente.
Ele olhou-a.
? Você está acordada.
Ela enrubesceu, envergonhada porque ele devia ter tirado sua calça e ela estava imunda.
? Onde está Luis?
? Voltou para os túneis. Estou preparando algo para você. Acha que consegue beber?
Ela assentiu com a cabeça.
? É algum tipo de poção?
Ele bufou.
? Nada além de chocolate.
? Oh ? disse Val, sentindo-se tola. Olhou-o mais uma vez. ? Sua mão não tem nenhuma atadura.
Ravus estendeu-a, a palma estava intacta.
? Os trolls curam-se rápido. Sou duro de matar, Val.
Ela olhou para a mão dele e a mesa de ingredientes e balançou a cabeça.
? Como funciona a magia? Como é que você pega coisas comuns e as torna mágicas?
Ele olhou-a intensamente e depois voltou a picar a barra marrom.
? É isso que acha que eu faço?
? E não é?
? Eu não torno as coisas mágicas. Poderia, talvez, mas não em quantidade ou potência. Isso estaria além de mim, além de quase qualquer um, a não ser um Senhor ou Dama do Reino Encantado. Essas coisas... ? Estendeu o braço aberto e varreu a mesa de trabalho, as pepitas endurecidas de goma de mascar, os vários invólucros de bala e latas, as guimbas de cigarro sujas de batom. ? Já são mágicas. As pessoas as fizeram assim. ? Pegou uma embalagem prateada de chiclete. ? Um espelho que não se quebra. ? Pegou um lenço de papel com a mancha de uma boca de batom. ? Um beijo que não acaba. Um cigarro. A respiração de um homem.
? Mas os espelhos e beijos também não são mágicos.
Ele riu.
? Então não acredita que um beijo seja eficaz para transformar uma fera ou acordar os mortos?
? E estou errada?
? Não ? ele respondeu, sendo claramente irônico. ? Está bem certa. Mas, por sorte, esta poção não se destina a fazer nenhuma dessas coisas.
Ela sorriu. Pensou em como notava todos os olhares dele, seus suspiros, as sutis mudanças no rosto. Pensou no que isso poderia significar e preocupou-se.
? Por que sempre tem essa aparência? ? ela perguntou. ? Você podia parecer qualquer coisa. Qualquer pessoa.
Ravus largou o almofariz de cara feia e contornou a mesa. Ela sentiu uma emoção que só em parte era terror atravessá-la.
Tinha plena consciência de que estava deitada no que devia ser a cama dele, mas não queria sair sem a calça.
? Ah, você está falando sobre o encanto? ? Ele hesitou. ? Fazer com que eu pareça menos apavorante? Menos abominável?
? Você não é... ? começou Val, mas ele ergueu a mão e ela parou de falar.
? Minha mãe era muito bonita. Sem dúvida, eu tenho uma idéia mais ampla da beleza do que você.
Ela não disse nada, assentindo com a cabeça. Não queria pensar muito a fundo sobre se tinha uma idéia ampla da beleza. Sempre julgara que tinha uma visão muito estreita, que incluía a mãe e outras pessoas que se esforçavam demasiadamente. Sempre sentira um pouco de desprezo pela beleza, como se fosse algo pelo qual era necessário trocar por outra coisa vital.
? Ela tinha sincelos nos cabelos ? ele continuou. ? Ficavam tão frios que se transformavam em gelo, transformando os tufos das tranças em jóias cristalinas, que tiniam umas contra as outras quando ela andava. Você devia vê-las à luz de velas. A chuva iluminava aquele gelo como se fosse feito de fogo. Era uma boa coisa ela não poder ficar sob a luz do sol... teria iluminado o céu.
? Por que ela não podia ficar na luz solar?
? Ninguém do meu povo pode. Nós nos transformamos em pedra no sol... e ficamos assim até o cair da noite.
? Isso dói?
Ele fez que não com a cabeça, mas não respondeu.
? Apesar de toda essa beleza, minha mãe nunca mostrou seu verdadeiro eu ao meu pai. Ele era mortal, como você, e, perto dele, ela sempre usava um encanto. Oh, era linda com o encanto, também, mas uma beleza suavizada. Meus irmãos e irmãs também tinham de usá-lo.
? Ele era mortal?
? Mortal. Caiu pelo sorriso de uma fada. Era o que dizia minha mãe.
? Então você é...?
? Um troll. O sangue de um ser encantado gera outro ser encantado.
? Ele sabia o que sua mãe era?
? Fingia não saber o que era qualquer um de nós, mas deve ter imaginado. No mínimo, deve ter desconfiado de que não éramos humanos. Tinha uma fábrica que serrava e secava a madeira das várias centenas de hectares que possuía. Freixo, cerdo, bétula, carvalho, salgueiro, zimbro, pinheiro, teixo. Meu pai tinha outra família na cidade, mas minha mãe fingia não saber nada a respeito. Havia muito fingimento. Ela cuidava para que a madeira de meu pai fosse excelente e lisa. Era belamente aplainada e nunca se entortava nem apodrecia. Nós, seres encantados, não fazemos nada com moderação. Quando amamos, somos todo amor. Assim era minha mãe. Mas, em troca, pedia que ele tocasse uma sineta no topo da colina para avisá-la de que estava chegando. Um dia, meu pai se esqueceu de tocar a sineta. ? O troll se levantou, dirigiu-se para o leite fervente e despejou-o numa xícara chinesa. O cheiro de canela e chocolate flutuou na direção dela. ? Ele nos viu como realmente éramos. ? Ravus sentou-se ao lado da garota, o longo sobretudo preto embolando-se no chão. ? E fugiu, para nunca mais voltar.
Ela pegou a xícara das mãos dele e tomou um gole, com muita cautela. Quente demais, queimou-lhe a língua.
? Que aconteceu então?
? A maioria das pessoas ficaria satisfeita pelo fato de a história terminar aqui. O que aconteceu então é que todo o amor de minha mãe se transformou em ódio. Mesmo os filhos não eram nada para ela depois disso, apenas lembranças dele.
Val pensou na própria mãe e se deu conta de que nunca tinha questionado se a amava. Claro que amava a mãe, mas, agora, a odiava. Não parecia certo que uma coisa pudesse se transformar tão facilmente em outra.
? A vingança dela foi terrível.
Ravus olhou para as mãos e Val lembrou a forma como ele as cortou, segurando a espada pela lâmina. Perguntou-se se a raiva dele era tão grande a ponto de não notar a dor. Perguntou-se se amava da maneira como a mãe dele amava.
? Minha mãe também era muito linda ? disse.
Queria continuar a falar, mas aquele único gole de chocolate quente a enchera de um langor tão delicioso que ela se viu mais uma vez se entregando ao sono.


Acordou com vozes. A mulher de pés de cabras estava ali, falando com Ravus bem baixinho.
? Um cachorro perdido, eu poderia entender ? ela disse. ? Mas isso? Você tem um coração muito mole.
? Não, Mabry ? contrapôs Ravus. ? Não tenho. ? Olhou na direção de Val. ? Acho que ela quer morrer.
? Talvez possa ajudá-la afinal. Você é bom em ajudar pessoas a morrerem.
? Você veio aqui para algo além de me manchar com minha própria sujeira? ? ele perguntou.
? Seria um propósito suficiente, mas houve outra morte. Alguém do nosso povo do mar no rio East. Um humano encontrou o corpo dela, mas grande parte já tinha sido comida pelos caranguejos. Sendo assim, duvido de que haja muito escândalo.
? Eu sei disso - disse Ravus.
? Você sabe demais. Conhece todos eles. Cada um que morreu. Você é o assassino?
? Não ? ele respondeu. ? Todos os mortos são exilados da Corte dos Videntes. Seguramente alguém notou isso.
? Todos envenenados ? disse Mabry. ? É o que se tem notado.
Ravus assentiu com a cabeça.
? O odor de veneno de rato estava no hálito da sereia.
Val abafou um arquejo, cobrindo o rosto com as mantas.
? Nosso povo acha que você é o responsável ? continuou Mabry. ? É coincidência demais que todos os mortos sejam seus clientes e tenham morrido horas depois de receber uma entrega de um de seus mensageiros humanos.
? Depois que houve aquela falha no pagamento do tributo à Corte das Trevas, dezenas de membros solitários da Corte dos Não-Videntes devem ter deixado as terras de Nicnevin. Não vejo por que alguém acharia mais provável que eu tenha me transformado num envenenador.
? As terras são de Lorde Roiben agora. ? A voz de Mabry enchia-se de alguma coisa que Val não sabia identificar. ? Pelo tempo que Silarial deixá-lo mantê-las.
Ravus fungou e Val achou que estava vendo uma coisa nele que não tinha percebido antes. Embora usasse um sobretudo, era novo demais para ser do período ao qual seu estilo remetia. Uma fantasia, percebeu, e de repente teve certeza de que Ravus era muito mais jovem do que ela imaginara. Não sabia como aqueles seres mágicos envelheciam, mas achou que ele tentava com demasiado esforço soar sofisticado na frente de Mabry.
? Não me importa quem seja o Lorde ou a Dama da Corte das Trevas no momento ? ele disse. ? Que todos se matem uns aos outros para que não tenhamos de lutar contra eles.
Mabry olhou-o com um ar sombrio.
? Não duvido de que deseje isso.
? Eu vou enviar uma mensagem à Dama Silarial. Sei que ela ignora o nosso povo que vive muito próximo às cidades, mas nem ela poderia ficar indiferente ao assassinato dos exilados da Corte Luminosa. Nós continuamos nas terras dela.
? Não ? apressou-se a dizer Mabry, com um tom de voz diferente. ? Eu acho que seria insensato. Invocar a pequena nobreza poderia piorar tudo.
Ravus deu um suspiro e olhou para onde Val estava deitada.
? É difícil imaginar como as coisas poderiam ficar piores do que já estão.
? Espere mais um pouco para enviar qualquer mensagem ? disse Mabry.
Ele soltou outro suspiro.
? Foi gentil de sua parte vir me alertar, não importa o que pense de mim.
? Alertar? Eu vim apenas me divertir. ? Ela saiu do aposento, os cascos fazendo barulho pelos degraus abaixo.
Ravus virou-se para Val:
? Já pode parar de fingir que está dormindo.
Ela se sentou, franzindo a testa.
? Você acha que ela é indelicada ? disse Ravus, em pé, dando-lhe as costas. Val desejou poder ver a expressão no rosto dele; sua voz era difícil de interpretar. ? Mas é minha culpa o fato de Mabry estar encurralada aqui nesta cidade de ferro malcheiroso e ela tem outros motivos, até melhores, para me odiar.
? Que motivos?
Ele ondulou a mão sobre uma vela e a fumaça formou o rosto de um rapaz, lindo demais para ser humano.
? Tamson ? respondeu.
Cabelos dourados claros polvilhavam o pescoço da figura, puxados para trás do rosto e tão descuidadamente arrumados quanto seu sorriso.
Val arquejou. Jamais vira o encanto usado assim antes.
O resto de Tamson formou-se, do nada, como numa armadura que parecia feita de casca de árvore, rugosa e pontilhada de musgo. A espada de vidro fora amarrada com uma correia ao lado de seu corpo e, nele, a lâmina parecia líquida, como água, moldada em uma forma improvável.
? Ele foi meu primeiro e melhor amigo na Corte Luminosa. Não se importava por eu não aguentar a luz do sol. Visitava-me na escuridão e me contava histórias divertidas sobre o que acontecia durante o dia. ? Ravus fez uma cara feia. ? Imagino que eu era uma boa companhia.
? Então a espada de vidro era dele?
? É uma coisa muito elegante para mim.
Junto a Tamson surgiu outra figura nebulosa. Esta, uma conhecida de Val, embora ela levasse um momento para identificá-la. Os cabelos castanhos da fada entremeavam-se com fios verdes, como o tapete frondoso de uma floresta e, sob a curva ondulada do longo vestido vermelho, viam-se pés de cabra. Ela cantava uma balada, a voz encorpada, gutural, engrossando as palavras com promessas. O troll fez um gesto em sua direção.
? Mabry, amante de Tamson.
? Ela também era sua amiga?
? Acho que ela tentou, mas era difícil olhar para mim. ? Tamson pôs a mão no braço de Mabry e ela se virou para ele. A música foi interrompida pelo abraço. Por sobre o ombro dela, a imagem esfumaçada de Tamson encarava Ravus, os olhos ardendo como carvões em brasa. ? Ele falava nela sem parar. Ravus soltou um sorriso torto. O rosto encantado de Tamson falou:
? Os cabelos dela são da cor do trigo no auge do verão, a pele tem cor de ossos, os lábios são vermelhos como romãs.
Val perguntou-se se Ravus achava essas descrições precisas. Mordeu a parte interna da bochecha.
? Ele queria impressioná-la ? continuou Ravus. ? Pediu que eu fosse seu parceiro para que pudesse exibir seu talento como duelista. Eu sou alto e imagino que possa parecer feroz. A rainha da Corte Luminosa acha que o combate é o melhor dos esportes. Ela organizava torneios onde o nosso povo pudesse exibir suas perícias. Eu era novo para a corte e não gostava muito de competir. Meus prazeres vinham do meu trabalho, da minha alquimia. Era uma noite quente; disso, eu me lembro. Pensava na Islândia, nas florestas frias da minha juventude. Mabry e Tamson haviam sibilado palavras um para o outro. Ouvi-o dizendo: "Eu vi você com ele." Quisera eu saber o que Tamson viu, embora possa adivinhar.
Ravus virou-se para as janelas cobertas de mantas.
? Meu povo não faz nada pela metade, nós podemos ser caprichosos. Cada emoção é um gole que precisamos beber até o fim, mas, às vezes, acho que gostamos tanto do amargo quanto do doce. Não há sentido em alguém na Corte Luminosa achar que, por Mabry haver flertado com Tamson e ele a amar, ela não devia flertar com outro. A armadura de Tamson era feita de casca de árvore, encantada por magia para ser mais resistente que o ferro.
Ele parou de falar, fechou os olhos e recomeçou:
? Tamson era um espadachim melhor do que eu, mas estava desesperado e eu o atingi primeiro. A espada atravessou a casca como se fosse de papel.
Ela viu o golpe fazê-lo cair na fumaça da vela encantada. A armadura desfez-se em pedaços em volta da lâmina, o olhar de surpresa de Tamson, o grito de Mabry varando o ar, alto e agudo como se ela tivesse percebido o que tinha acontecido um momento antes de todo mundo. O berro, mesmo sendo um encantamento, atravessou a sala enfumaçada.
? Quando eu luto, luto como um troll... a fúria me domina. Talvez outro pudesse ter contido seu golpe; eu, não. Continuei segurando o punho da espada como se estivesse soldado em minha mão; era impossível soltá-lo. A lâmina parecia ter sido pintada de vermelho.
"Por que ele retiraria a magia de sua própria armadura?" Ravus olhou-a e, por um momento, Val achou que talvez ele esperasse por uma resposta. Desviou o olhar para o nada e o encanto se dispersou. "Mesmo assim, provavelmente foi exatamente isso o que aconteceu. Ninguém mais teria motivo para desejar mal a ele."
A voz dele saiu baixa e áspera:
? Eu sabia que ele estava angustiado. Vi no seu rosto. Achei que isso passaria como tudo passa e, de maneira bem egoísta, fiquei feliz porque Mabry o decepcionou. Eu sentia falta do companheirismo dele. Achei que Tamson voltaria a ser mais uma vez meu. Ele deve ter visto essa vulgaridade em mim... por que outro motivo me escolheria como veículo para sua morte?
Val não soube o que dizer. Compôs frases na cabeça: Não foi culpa dele. Todo mundo pensa coisas terríveis, egoístas. Só podia ter sido um acidente. Nenhuma delas parecia ter significado algum. Eram apenas palavras para preencher o silêncio. Quando ele recomeçou a falar, percebeu quanto tempo devia ter ficado debatendo calada.
? A morte é um sinal de mau gosto no Reino Encantado. ? Ele riu, pesaroso. ? Quando eu disse que viria para a cidade, para exilar-me aqui depois da morte de Tamson, foi conveniente para eles. Não me culparam tanto pela morte quanto por me julgarem manchado por ela.
"Silarial, a Rainha da Corte Luminosa, ordenou que Mabry me acompanhasse para sofrermos juntos. O mau cheiro da morte também se grudou nela e deixou os outros inquietos. Assim, ela teve de me acompanhar, o assassino de seu amante, e aqui ela deve ficar até que eu complete a duração de meu exílio auto-imposto ou morra."
? Isso é terrível ? disse Val e, com o silêncio dele, percebeu a estupidez e a inadequação de suas palavras. ? Quer dizer, obviamente é terrível, mas eu estava me referindo ao fato de terem mandado Mabry junto com você. Isso é cruel.
Ele bufou, quase soltando uma risada.
? Eu cortaria meu próprio coração para ter o de Tamson batendo mais uma vez em seu peito. Mesmo que só por um instante. Nenhuma sentença custaria muito para mim. Mas suportar a punição e o exílio para substituir a dor da perda deve ter sido simplesmente demais para ela.
? Como é aqui? Quer dizer, ficar exilado na cidade?
? Acho difícil. Vivo angustiado pela pressão dos cheiros e do barulho. O veneno está em toda parte e o ferro tão perto que faz minha pele coçar e causa queimação na garganta. Só posso imaginar como Mabry se sente.
Ela estendeu-lhe a mão e ele tomou-a, correndo os dedos pelos calos de Val. Ela encarou-o direto no rosto, tentando transmitir compaixão, mas ele olhava atentamente para a mão dela.
? De onde vem isso? ? ele perguntou.
? O quê?
? Suas mãos são ásperas. Cheias de calos.
? Lacrosse.
Ele fez que sim com a cabeça, mas ela viu pela expressão em seu rosto que não a entendeu. Poderia ter respondido qualquer coisa, que ele teria balançado a cabeça assim.
? Você tem mãos de cavaleiro ? acabou dizendo e soltou-a.
Val esfregou a pele, sem saber ao certo se tentava apagar ou recordar a lembrança do toque dele.
? Não é seguro que você continue a fazer entregas. ? Ravus foi até um dos armários e retirou um frasco, onde uma borboleta esvoaçava. Depois, pegou um rolinho de papel e começou a escrever com uma caligrafia em miniatura. ? Eu tenho uma grande dívida com você, que não posso pagar facilmente, mas, ao menos, posso cancelar sua promessa de servidão.
Ela contemplou a espada de vidro que tremeluzia na escuridão, quase tão escura quanto a parede atrás dela. Lembrou-se da sensação do cano em sua mão, a adrenalina precipitando-se e a clareza de propósito que sentia no campo de lacrosse ou numa briga.
? Eu quero continuar a fazer entregas para você ? disse. ? Você também poderia me pagar com uma coisa, mas talvez não queira fazer isso. Ensine-me a usar a espada.
Ele ergueu os olhos de onde enrolava o papel e prendia-o na perna da borboleta.
? Saber disso me proporcionou pouca alegria.
Ela esperou, sem falar. Ele não disse não. Terminou o trabalho e soprou, lançando o pequeno inseto no ar. Ele voou meio instável, talvez desequilibrado pela tira de papel,
? Você quer matar alguém? Quem? Greyan? Talvez queira morrer?
Val fez que não com a cabeça.
? Eu só quero aprender como usá-la. Quero ser capaz de fazer isso.
Ele balançou a cabeça, devagar.
? Como quiser. É sua dívida descartar e seu direito pedir.
? Então vai me ensinar? - ela perguntou.
Ravus balançou mais uma vez a cabeça.
? Vou torná-la tão terrível quanto deseja.
? Eu não quero ser... ? Ela começou, mas ele ergueu a mão.
? Eu sei que você é muito valente. Ou idiota.
? E idiota. Valente e idiota.
Ravus sorriu, mas logo o sorriso se desfez.
? Nada pode impedi-la de ser terrível uma vez que tenha aprendido como sê-lo.












Capítulo 8


Leite preto da alvorada nós o bebemos à noite,
de manhã e ao meio-dia, nós o bebemos à tarde,
bebemos e bebemos

- Paul Celan, Death Fugue


D
ave, Lolli e Luis estavam sentados num cobertor no estacionamento de concreto, com alguns dos achados de Dave espalhados diante deles. O papelão, usado como forro para protegê-los do frio que vinha da calçada, despontava de debaixo do tecido. Dave recostava a cabeça no colo de Lolli, enquanto ela enrolava, nas palmas das mãos, os dreads dele, torcendo e esfregando as raízes. Lolli fez uma pausa, retirando alguma coisa dos cabelos, beliscou-a entre as unhas e besuntou os dedos com a cera da lata que estava entre suas pernas. Dave abriu os olhos, depois os fechou mais uma vez, como se estivesse em êxtase.
Lolli acariciou uma das coxas do Luis com um dos pés manchados e vermelhos de frio metidos em chinelos. Ele tinha um livro aberto diante de si e franziu os olhos para lê-lo à luz que escasseava.
? Ei, caras ? disse Val, sentindo-se tímida ao se aproximar deles, como se ficar dois ou três dias afastada a tivesse tornado, mais uma vez, uma estranha.
? Val! ? Lolli saiu deslizando de debaixo de Dave, deixando que ele se contorcesse para apoiar a cabeça nos cotovelos, evitando que se machucasse no calçamento.
Ela correu para Val, com os braços abertos.
? Ei, meu cabelo! ? gritou Dave.
Val abraçou Lolli, que cheirava a roupa suja, suor e cigarro, e sentiu o alívio inundá-la.
? Luis nos contou o que aconteceu. Você é doida.
Lolli sorriu, como se fosse um grande elogio.
O olhar de Val deslizou para Luis, que ergueu os olhos do livro com um sorriso que fez o rosto dele parecer bonito. Ele balançou a cabeça.
? Ela é doida. Medir forças com a porra de um troll. Lolli Lunática, Dave Mal Acabado e Val Maluca. Vocês são um bando de esquisitos.
Val fez uma reverência formal, mergulhando a cabeça na direção deles e depois se sentou no cobertor.
? Luis, o maior lunático de todos ? disse Lolli, chutando o chinelo na direção dele.
? Luis, o caolho ? disse Dave.
Luis soltou um risinho falso.
? Dave cabeça-de-bagre.
? Luis, a princesa ? retrucou Dave. ? O Príncipe Valente.
Val riu, pensando na primeira vez em que Dave a chamara assim.
? Que tal Dave, o temido?
Luis curvou-se para a frente, agarrando o irmão numa chave de cabeça, os dois rolando no tecido, e perguntou:
? Que tal Irmão Bebê? Irmão Bebê Dave?
? Ei ? disse Lolli ?, e eu? Também quero ser uma princesa como Luis.
Quando Lolli disse isso, os rapazes se soltaram um do outro, desatando a rir. Val deitou-se no pano e no papelão, o ar frio arrepiava-lhe os pêlos dos braços, até debaixo do casaco. Nova Jersey parecia muito distante e a escola, um estranho e absurdo ritual. Ela sorriu de satisfação.
? É verdade o que Luis disse? Alguém acha que estamos envenenando as criaturas sobrenaturais? ? perguntou Lolli.
Ela pusera outra manta sobre os ombros e pegou a cera de cabelo.
? Ou que Ravus está ? respondeu Val. ? Ravus disse alguma coisa sobre acabar com as entregas. Acha que poderia ser perigoso demais para nós.
? Como se ele realmente se importasse ? resmungou Luis. ? Eu aposto que ele fez uma grande e elegante exibição de agradecimentos, mas você continua sendo um rato para ele, Val. Apenas um rato que fez um truque muito bom.
? Eu sei disso ? mentiu Val.
? Se ele quer que a gente pare com as entregas, é para salvar o próprio rabo.
Uma coisa no rosto de Luis enquanto dizia isso, talvez o jeito como olhava além dela, para o longe, sem focar em absolutamente nada, fez Val perguntar a si mesma se ele ao menos estava inteiramente convencido.
? Só pode ser Ravus o responsável pelos envenenamentos ? observou Dave. ? E ainda nos pôs para fazer seu trabalho sujo. Não sabemos o conteúdo dos potes que levamos.
Val virou-se para olhá-lo.
? Acho que não é ele. Enquanto fiquei lá, aquela mulher de pés de cabra... Mabry... apareceu. Ravus disse que ela devia escrever alguma coisa para a rainha Digna. Imagino que se a Corte é como uma gangue, então a cidade continua sendo, em certo sentido, um território da rainha. De qualquer modo, por que Ravus escreveria para ela se fosse o culpado?
Dave sentou-se ereto, puxando os dreads dos dedos de Lolli.
? Ele vai armar uma cilada para nos incriminar. Luis acabou de dizer... que somos todos ratos para eles. Quando há algum problema, basta você envenenar os ratos e ganhar o dia.
Val se lembrou com desconforto de que fora o veneno de rato que matara a sereia. Envenene os ratos. Veneno de rato. Deu uma olhada em Luis e ele parecia indiferente, cortando com os dentes um fio solto das luvas.
Luis ergueu os olhos e encontrou o olhar dela, mas seu rosto não revelava nada, nem culpa, nem inocência.
? É estranho ? ele disse ? que, com toda essa merda que vocês enfiam no nariz e nos braços, jamais topem com algum veneno.
? Acha que fui eu quem fez isso? ? perguntou Lolli.
? É você quem odeia as criaturas mágicas ? Dave falou ao mesmo tempo que Lolli e, por isso, suas palavras se sobrepuseram. ? É você que sempre vê merda.
Ele ergueu as mãos.
? Espere um momento, porra. Não acho que algum de nós envenenou os seres encantados. Mas tenho de concordar com Val. Ravus me fez um monte de perguntas na outra noite. Ele me... ? Luis fez uma cara feia para Lolli. ? Algumas delas sobre como vocês duas conseguiram se infiltrar escondidas na casa dele, mas Ravus me perguntou, sem rodeios, se era eu o envenenador, se sabia quem era, se alguém tinha me subornado para fazer alguma entrega adulterada. Por que ele faria tudo isso, se eliminou todas aquelas criaturas?
Val assentiu com a cabeça. Embora o conhecimento de que o veneno de rato tinha matado os seres encantados a incomodasse, lembrou-se do rosto de Luis dentro da ponte. Acreditava em que ele tivesse sido interrogado minuciosamente. Claro, talvez estivessem sendo vítimas de uma cilada preparada por Ravus ou então por alguma outra pessoa.
? E se alguma coisa fez um encanto para si mesma querendo parecer um de nós?
? Por que faria isso? ? indagou Lolli.
? Para dar a impressão de que estamos por trás das mortes.
Luis fez que sim com a cabeça.
? Devíamos parar de fazer entregas. Assim, outros babacas seriam incriminados.
Dave coçou o braço, onde se viam as marcas de navalha.
? Não podemos parar com as entregas.
? Não seja tão drogado ? irritou-se Luis.
? Val pode conseguir algum Nunca, não pode, Val? ? perguntou Lolli, com um olhar sonso sob as pestanas pálidas.
? Que quer dizer com isso? ? reagiu Val, a voz parecendo defensiva demais até aos seus ouvidos.
Sentia-se culpada, mas não sabia dizer ao certo por quê. Olhou para o dedo de Lolli, reto, como se jamais houvesse sido deslocado.
? O troll deve a você, não é?
A voz dela saiu num tom baixo, quase sensual.
? Acho que sim. ? Val se lembrou do cheiro do Nunca, Nunca Mais, queimando na colher, e isso a encheu de desejo. ? Mas ele pagou sua dívida. Vai me mostrar como se usa a espada.
? Não brinca. ? Dave olhou-a com um ar estranho.
? Você deveria ter cuidado ? aconselhou Luis.
De algum modo, essas palavras a encheram de um mal-estar que pouco tinha a ver com perigo físico. Ela não enfrentou o olhar dele, fitando, em vez disso, um espelho com a moldura quebrada. Apenas momentos antes, sentira-se o máximo, mas, agora, o mal-estar já havia penetrado em seu coração. Estava instalado. Lolli levantou-se de repente.
? Pronto ? anunciou, balançando os dreads de Dave para que eles chocalhassem como cobras barrigudas. ? Esqueçam tudo isso. Hora de brincar de faz-de-conta.
? Não sobrou muito para nós ? disse Dave, mas já se levantava, recolhendo as coisas da manta.
Juntos, os quatro enfiaram-se de volta no bueiro e entraram no túnel.
Luis fez uma cara feia quando Lolli trouxe a areia âmbar e seu equipamento.
? Isso não é para mortais, você sabe. Não é mesmo.
Na quase escuridão, Dave levou um pedaço de papel-alumínio ao nariz, acendendo-o por baixo para o Nunca emitir fumaça. Deu uma inalada profunda e olhou solenemente para Lolli.
? Só porque alguma coisa é má idéia não significa que a gente deva deixar de fazê-la.
Dave desviou os olhos para Luis, cuja expressão que trazia no rosto fez Val se perguntar em que ele pensava exatamente.
? Me dá um pouco ? pediu Val.


Os dias passaram como um sonho febril. Durante o dia, Val fazia entregas antes de ir para a casa de Ravus dentro da ponte, onde ele lhe ensinava a arte de espadachim nos aposentos escuros. Depois, à noite, ela injetava o Nunca nos braços e, na companhia de Dave e Lolli, fazia o que bem entendia. Às vezes, dormiam ou bebiam um pouco, para espantar o vazio que se seguia ao barato, quando o mundo tornava a acomodar-se em padrões menos mágicos.
Cada vez mais ia se tornando difícil lembrar-se das coisas básicas, como comer. O Nunca transformava migalhas de pão em mesas de banquete cheias de comida, porém, mesmo que comesse, Val vivia faminta.


? Mostre-me como você segura um bastão ? pediu Ravus, durante a primeira aula.
Val segurava a metade do cabo da vassoura como se fosse um bastão de lacrosse, com as duas mãos separadas entre si por uns trinta centímetros.
Ele pós as mãos dela mais juntas e mais embaixo.
? Se você segurasse uma espada assim, cortaria a mão na lâmina.
? É, só um idiota faria isso ? disse Val, só para ver o que ele diria.
Ravus não reagiu com mais que uma contração no lábio.
? Eu conheço a sensação do peso, mas com uma espada não será assim. Tome. ? Ele desprendeu a espada de vidro da parede e colocou-a na mão de Val. ? Sinta o peso. Está vendo? É equilibrado. Isso é o mais importante, o equilíbrio.
? Equilíbrio - ela repetiu, deixando a espada oscilar na palma da mão.
? Isso é o pomo da espada - disse, apontando cada lugar por vez. ? Isso é a envergadura, o punho, a guarda. Quando você segura a espada, o gume que aponta para seu adversário é o gume verdadeiro. Você precisa segurar a lâmina para que a ponta siga o oponente. Agora fique na mesma posição que eu.
Ela tentou copiá-lo, pernas separadas e ligeiramente flexionadas, um pé na frente do outro.
? Quase. ? Ele ajeitou o corpo dela na posição certa, sem se importar onde a tocava.
Val sentiu o rosto quente quando ele lhe empurrou as coxas para que se afastassem uma da outra, embora a constrangesse mais o fato de que apenas ela parecia notar as mãos dele em seu corpo. Para ele, o corpo dela era uma ferramenta e nada mais.
? Agora ? ordenou Ravus ?, mostre-me como você respira.


Às vezes Val, Dave, Luis e Lolli falavam sobre as coisas estranhas que tinham visto ou os seres encantados com quem haviam falado. Dave contou-lhes que foi direto até o Brooklyn apenas para ser perseguido por todo o parque por uma criatura de chifres curtos na testa. Ele gritou, correu e largou a garrafa sem olhar para trás. Luis contou que percorreu a cidade à procura de flores avulsas para um maluco que morava perto de Cloisters e tinha planejado um encontro romântico. Pelo trabalho, recebeu uma garrafa de vinho que nunca se esvaziaria, desde que não olhasse para o gargalo. Realmente, devia ser magia, não apenas um simples encanto, porque funcionou até para Luis.
? Que mais você ganhou? ? perguntou Val.
? Sorte ? disse Luis. ? E os meios para quebrar os feitiços dos seres encantados. Meu pai nunca fez nada com seu poder. Eu vou ser diferente.
? Como se quebram os feitiços? ? perguntou Val.
? Com sal. Luz. Sopa de casca de ovo. Depende do feitiço. ? Ele tomou outro gole da garrafa. Estendeu o dedo para tocar a barra de metal que lhe atravessava a face. ? Mas, sobretudo, ferro.

? ? ?

Não houve movimentos de espada no treino seguinte, apenas posturas e posicionamento dos pés. Recuos e avanços nas empoeiradas tábuas corridas do piso e Val mantinha a metade da vassoura apontada para Ravus enquanto avançava e recuava.
Ele corrigia Val quando ela dava um passo largo demais, quando sua postura saía do equilíbrio, quando não mantinha o pé reto. Ela mordia a parte interna da bochecha de frustração e continuava a mover-se, mantendo a mesma distância entre os dois pés, como se estivesse à espera de uma batalha que nunca começava.
Ele se virou de repente para um lado, forçando-a a acompanhá-lo às pressas.
? Velocidade, ritmo e equilíbrio. São as coisas que farão de você uma lutadora competente.
Ela rangeu os dentes e pisou mais uma vez errado.
? Pare de pensar ? ele disse.
? Preciso pensar ? retrucou Val. ? Você disse que eu tinha de me concentrar.
? Pensar deixa você lerda. Precisa deslocar-se como eu. Nesse momento, só está me seguindo.
? Como posso saber aonde você vai antes que tenha chegado lá? Isso é burrice.
? Não é nada diferente de saber para onde qualquer oponente poderia se deslocar. Como sabe para onde uma bola tem probabilidade de correr no campo de lacrosse?
? As únicas coisas que você sabe de lacrosse são as que eu lhe expliquei.
? Eu poderia dizer o mesmo sobre você e luta de espada ? Ravus interrompeu-se. ? Viu? Você conseguiu. Estava tão ocupada em me agredir que nem notou que vinha fazendo o certo.
Val fez uma cara feia, chateada demais para ficar satisfeita, satisfeita demais para dizer mais alguma coisa.


Lolli, Dave e Val percorriam as ruas do oeste do Village e faziam mágicas com folhas caídas, transformando-as numa multidão de rãs cobertas de jóias, que pulavam em desenhos caóticos, encantavam estranhos para fazê-los beijarem-se, fazendo qualquer zona que os três imaginassem.
Val lançou um olhar para o outro lado da rua, através das cortinas transparentes de um apartamento térreo, para um candelabro com macacos esculpidos que pendia do teto e cintilava com gotas de cristal em forma de lágrimas.
? Eu quero entrar ali ? comentou Val.
? Vamos ? Lolli assentiu.
Dave encaminhou-se para a porta e apertou a campainha. O interfone, perto da porta, zumbiu ganhando vida e uma voz distorcida disse alguma coisa indecifrável.
? Eu gostaria de um cheeseburger ? disse Dave com uma gargalhada alta ?, um milk shake e anéis de cebola.
A voz tornou a falar, mais alta, embota Val continuasse a não entender as palavras.
? Olha só. ? Ela afastou Dave para o lado.
Apertou o botão do interfone e segurou-o até um sujeito de meia-idade surgir na porta.
O cara usava calça de algodão desbotada e uma camiseta muito larga, que lhe cobria a ligeira pança. Óculos baixos pendiam de seu nariz.
? Que é que há com vocês? ? o homem reclamou.
Val sentiu o Nunca efervescendo dentro dos braços, borbulhando como bolhas de champanhe.
? Eu quero entrar ? ela disse.
O homem ficou com o rosto relaxado e abriu mais a porta. Ela sorriu-lhe ao passar por ele e entrou em seu apartamento.
As paredes eram tingidas de amarelo e tinham pinturas a dedo penduradas com molduras douradas. Uma mulher refestelava-se num sofá, com um cálice de vinho. Assustou-se quando Val entrou, espirrando líquido vermelho na blusa. Uma menininha sentava-se num tapete junto aos pés da mulher, vendo um programa na televisão que parecia ser sobre ninjas chutando uns aos outros. A menininha virou-se e sorriu.
? Esta casa é tão legal ? comentou Lolli do vão da porta. Quem mora aqui?
? Ninguém ? respondeu Dave. ? Eles contrataram três faxineiros, talvez uma decoradora para falsificar a vida deles.
Val entrou na cozinha e abriu a geladeira. Havia caixas de comida entregues em casa, algumas maçãs murchas e uma embalagem de papelão de leite desnatado. Ela deu uma mordida na fruta. Embora marrom e mole por dentro, continuava doce. Val não entendia por que nunca tinha comido uma maçã marrom antes.
Lolli pegou a garrafa de vinho na mesa de centro e emborcou-a na boca, deixando o suco vermelho escorrer pelo queixo e pelas faces.
Ainda comendo a maçã, Val encaminhou-se até o sofá onde a mulher estava sentada, entorpecida. O lindo apartamento, com a mobília elegante e a família feliz, lembrou-lhe a casa do pai. Ela não se sentia melhor ali do que se sentiria lá. Estava muito furiosa, muito perturbada, muito chapada.
E como deveria contar ao pai o que acontecera entre Tom e a mãe? Era como confessar-lhe que ela era ruim de cama ou coisa assim. Mas não contar apenas deixaria que a nova mulher dele a rotulasse como uma personagem de um desses filmes idiotas feitos para a televisão, uma adolescente desajustada carente de amor rígido.
? Está vendo? ? diria Linda. ? Ela é igualzinha à mãe.
? Você nunca gostou de mim ? Val disse à mulher no sofá.
? Sim ? repetiu a mulher como um robô. ? Eu nunca gostei de você.
Dave empurrou o homem para uma poltrona e virou-se para Lolli.
? Podíamos simplesmente expulsar esse pessoal ? sugeriu. ? Seria muito fácil. Podíamos morar aqui.
Lolli sentou-se ao lado da menininha e puxou um cachinho de seus cabelos pretos.
? O que você está vendo?
A menina deu de ombros.
? Quer brincar com a gente?
? Claro ? respondeu a menininha. ? Este programa é chato.
? Vamos começar nos fantasiando. ? Lolli conduziu a menina ao quarto dos fundos.
Val virou-se para o homem. Ele parecia dócil e feliz em sua poltrona, a atenção desviada para a televisão.
? Onde está sua outra filha? ? perguntou Val.
? Eu só tenho essa. ? Ele parecia levemente aturdido.
? Você só quer esquecer a outra. Mas ela continua aqui.
? Eu tenho outra filha?
Ela sentou-se no braço da poltrona e curvou-se mais para perto, baixando o tom da voz.
? Ela é um símbolo da merda espetacular que foi seu primeiro casamento. Toda vez que você vê como ela está grande, lembra-se de como está velho. Ela o faz sentir-se vagamente culpado, como se talvez devesse saber que esportes ela pratica ou qual é o nome da sua melhor amiga. Mas você não quer saber dessas coisas. Se soubesse, não se esqueceria dela.
? Ei ? chamou Dave, erguendo uma garrafa de conhaque quase cheia. ? Luis gostaria de um pouco disso.
Lolli voltou para a sala vestindo uma jaqueta de couro cor de manteiga queimada e um fio de pérolas. A menininha tinha uma dezena de presilhas reluzentes imitando brilhantes.
? Pelo menos você é feliz? ? perguntou Val a mulher.
? Eu não sei ? ela respondeu.
? Como pode não saber? ? gritou Val. Ergueu uma cadeira e atirou-a na televisão. A tela rachou-se e todo mundo deu um pulo. ? Você é feliz?
? Eu não sei ? repetiu a mulher.
Val derrubou uma estante de livros, fazendo a menininha gritar. Ouviram-se gritos do lado de fora da casa. Dave desatou a rir.
A luz do candelabro refletia-se nos cristais, lançando faíscas brilhantes que cintilavam nas paredes e no teto.
? Vamos ? disse Val. ? Eles não sabem nada.


A gatinha gemia sem parar, empurrando Lolli com a pata de pequenas unhas afiadas, e saltou sobre a menina com o corpinho macio.
? Cale a boca, Polly ? Lolli resmungou, rolando de bruços e puxando o pesado cobertor sobre a cabeça.
? Talvez ela esteja chateada ? disse Val, sonolenta.
? É fome ? retrucou Luis. ? E olha que eu já dei comida para essa porra.
Com um gemido lancinante, Polly saltou nas costas de Lolli, batendo em seus cabelos.
- Saia de cima de mim ? ela disse à gata. ? Vá matar uns ratos. Você já está bem grandinha para ficar sozinha.
Um ruído agudo de metal rangendo em metal e uma luz fraca sinalizaram a aproximação de um trem. O estrondo abafou os gritos da gata.
No último instante, quando toda a plataforma estava inundada de luz, Lolli atirou Polly nos trilhos, bem na frente do trem. Val levantou-se de um salto, mas era tarde demais. A gata se fora e o trem passou trovejando.
? Por que você fez isso, porra? ? berrou Luis.
? De qualquer jeito, ela sempre mijava em tudo. ? Lolli enroscou-se e fechou os olhos.
Val olhou para Luis, mas ele simplesmente desviou o olhar.

? ? ?

Depois que ficou satisfeito com a postura dela, Ravus ensinou-lhe mais um movimento e obrigou-a repeti-lo até que seus membros doessem e Val convencer-se de que ele a julgava uma idiota, até ter certeza de que não sabia ensinar nada a ninguém. Ensinava-lhe cada movimento até torná-lo automático, quase como o hábito de morder a pele em volta das unhas ou a agulha que enfiava no braço.
? Expire ? ele gritou. ? Acerte o compasso da expiração com o golpe.
Ela assentiu com a cabeça e tentou lembrar-se de fazer isso, tentou fazer tudo.


Val gostava de garimpar nas caçambas de lixo com Dave Mal Acabado, gostava de percorrer as ruas, divertia-se com a caça e com um ocasional achado surpreendente ? como as mantas xadrez, de forro prateado que as pessoas que se mudam usam para acolchoar móveis, encontradas empilhadas perto de uma caçamba e que mantiveram os quatro aquecidos como ratos até o final de novembro, ou o velho telefone maneiríssimo, com um discador giratório pelo qual alguém pagou dez dólares. A maior parte do tempo, contudo, estavam ofuscados demais pelo Nunca para conseguir fazer as antigas rondas. De qualquer modo, era mais fácil pegar o que queriam. Bastava pedirem.
Um relógio de pulso. Uma câmera. Um anel de ouro.
Essas coisas eram muito mais fáceis de ser vendidas do que um monte de tranqueiras velhas.


Então, finalmente, Ravus deixou-a começar a combinar os movimentos para lutar. Os compridos braços do ser encantado punham-no em ininterrupta vantagem, mas ele não precisava disso. Era impiedoso, derrubando-a com a vassoura no chão, repelindo-a de costas contra as paredes, jogando-a sobre a mesa quando ela tentava pô-la entre eles. O instinto e anos de esportes misturavam-se ao desespero quando conseguia desferir um ocasional golpe certo.
Quando seu bastão atingiu a coxa dele, foi maravilhoso ver a expressão no rosto de Ravus, uma raiva que mudou para surpresa no espaço de um momento.
Recuando, recomeçaram novamente, andando em círculos, um na cola do outro. Ravus simulou um golpe e Val aparou-o, mas, ao fazê-lo, a sala começou a rodar. Ela tombou contra a parede.
O bastão dele atingiu-lhe no outro lado. A dor fez Val arquejar.
? O que há com você? ? ele gritou. ? Por que não bloqueou o golpe?
Val forçou-se para sentar-se ereta, enterrando as unhas na palma da mão e mordendo o interior da bochecha. Continuava atordoada, mas achou que conseguiria fingir não estar.
? Eu não sei... Minha cabeça.
Ele bateu o cabo de vassoura contra a parede com força, lascando a madeira e arranhando a pedra.
Largando os restos do bastão, virou-se para ela, os olhos pretos e quentes como aço numa forja.
? Você nunca devia ter me pedido para lhe ensinar a lutar! Não sei conter meus golpes. Vou acabar ferindo você.
Ela deu um passo instável para trás, vendo os restos do bastão nadarem em sua visão.
Trêmulo, ele inspirou fundo, o que pareceu acalmá-lo.
? Talvez seja a magia da sala que a tenha desequilibrado. Muitas vezes sinto o cheiro dela em você, na sua pele, no cabelo. Talvez você esteja passando tempo demais aqui.
Val fez que não com a cabeça e ergueu o bastão, adotando uma posição inicial.
? Estou bem agora.
Ele olhou-a com uma expressão intensa no rosto.
? É o encanto que a tem deixado fraca ou alguma coisa que você anda fazendo lá fora, na rua?
? Não importa. Eu quero lutar.
? Quando eu era criança ? ele disse, sem se mexer para mudar de posição ?, minha mãe me ensinou a lutar com as mãos, antes de me deixar usar qualquer tipo de arma. Ela e meus irmãos e irmãs me batiam com escovas, me bombardeavam com neve e gelo, até que eu me enfurecia e atacava. A dor não era desculpa, nem a enfermidade. Deviam alimentar minha fúria.
? Eu não estou me desculpando.
? Não, não ? reagiu Ravus. ? Não foi o que eu quis dizer. Sente-se. A fúria não nos transforma em grandes espadachins, mas num espadachim instável. Eu devia ter visto que você estava doente, mas só percebi sua fraqueza. Essa falha é minha e não quero que tome isso como um erro de sua parte.
? Odeio não ser boa nisso. ? Val desabou sobre um tamborete.
? Você é boa. O que odeia é não ser sensacional.
Ela riu, mas a risada acabou soando falsa. Ficou transtornada porque o mundo não se restabelecera na imobilidade e ainda mais transtornada pela raiva de Ravus.
? Por que faz poções, se foi tão bem treinado para ser espadachim?
Ele sorriu.
? Depois que deixei as terras da minha mãe, tentei deixar a espada para trás. Queria fazer alguma coisa independente.
Ela assentiu com a cabeça.
? Embora alguns dos nossos talvez ficassem escandalizados, aprendi a fazer poção com um humano. Ela preparava medicamentos, unguentos e cataplasmas para outros mortais. Muita gente imagina que as pessoas não fazem mais isso, mas em certos lugares ainda fazem. Ela sempre foi amável comigo, uma amabilidade distante, como se julgasse que acalmava o espírito de um desconhecido. Acho que sabia que eu não era mortal.
? E o Nunca? ? ela perguntou.
? O quê?
Ela viu que Ravus jamais ouvira alguém chamar a coisa assim. Perguntou-se se ele tinha alguma idéia do que a substância podia fazer para os seres humanos. Balançou a cabeça, como se tentasse afugentar as palavras.
? A magia dos seres encantados. Como aprendeu a fazer o que tornaria as poções mágicas?
? Ah, isso. ? Ele deu um largo sorriso de uma forma quase ridícula. ? Eu já sabia a parte mágica.


Nos túneis, Val exercitou o movimento de um corte, tendo de torcer as mãos como se torcesse uma toalha de cozinha encharcada. Exercitou o sinuoso número oito, girando a espada nas mãos como as meninas giravam as bandeiras nos intervalos de jogos. Adversários invisíveis dançavam nas sombras em movimento, sempre mais rápidos e equilibrados, com perfeito cálculo de tempo.
Ela pensou no treino de lacrosse, exercícios de passes de inversão do bastão, desvios de espada e trocas de mão. Lembrou que aprendera a lançar a bola da haste do bastão, da parede lateral, e pegá-la nas costas ou entre as pernas.
Experimentou fazer esses movimentos com o cabo de vassoura cortado pela metade. Só para ver se podiam ser feitos. Só para ver se podia aprender alguma coisa com isso. Rebateu uma lata de refrigerante com o punho improvisado do bastão, depois a chutou com o lado do pé, dirigindo-a aos oponentes de sombra.


Olhou seu rosto numa janela quando acertou o arremesso em cheio. Sua pele parecia argila, infindavelmente maleável. Podia mudá-la para o que quisesse, aumentar os olhos como uma personagem de desenho animado, esticar a pele das maçãs do rosto.
Ondulou a testa, afinou a boca e o nariz ficou longo e arrebitado. Era fácil fazer-se linda ? entediara-se fazendo isso ?, mas se fazer grotesca era infinitamente mais interessante, pois podia ser feito de inúmeras maneiras.


Val brincava um jogo cujo nome não conseguia lembrar, onde as pessoas eram encurraladas dentro da torre do necromante e subiam escadas intermináveis. Ao longo do caminho, pegavam poções. Algumas as tornavam menores e outras muito altas, para poder cruzar todas as diferentes portas. Em algum lugar muito alto, havia um alquimista preso. Sua câmara era tão alta que não conseguia ver nada do que se passava lá embaixo. Em algum lugar, também havia um monstro, mas às vezes o alquimista era o monstro e o monstro era o alquimista. Val tinha uma espada na mão, mas não mudava quando ela se transformava e, por isso, ora era um palito de dentes afiado na palma de sua mão, ora era um traste enorme que tinha de arrastar atrás de si.
Quando abriu os olhos, viu que estava deitada na calçada, as coxas e as costas doendo, a face com marcas de concreto. Pessoas passavam por ela num fluxo constante. Perdera mais uma vez o treino.
? Que aconteceu com essa moça? ? Ouviu a voz de uma criança perguntar.
? Só está cansada ? respondeu uma mulher.
Era verdade, estava cansada. Fechou os olhos e voltou para o jogo. Precisava encontrar o monstro.
Em algumas tardes, ela chegava à ponte extenuada da noite anterior, o distúrbio do encanto ainda lambia-lhe as veias, a área em torno dos olhos parecia carbonizada, como se tivessem sido delineados com cinzas, a boca seca, com uma sede que ela não podia saciar.
Esforçou-se para manter as mãos firmes, impedindo-as de tremer e revelar sua fraqueza. Quando errava um golpe, tentava fingir que não fora por estar tonta nem doente.
? Está se sentindo mal? ? perguntou Ravus uma manhã, quando ela se achava bastante trêmula.
? Estou ótima ? mentiu Val.
As veias pareciam secas. Sentia-as pulsando nos braços, as feridas pretas na parte interna dos cotovelos estavam duras e doloridas.
Ele empoleirou-se na beira da mesa de trabalho, fazendo um gesto em direção ao rosto dela com o bastão de treino na mão, como se fosse uma vara de condão. Ela ergueu automaticamente as mãos, mas, se ele quisesse atingi-la, ela estaria atrasada demais para aparar o golpe.
? Você está visivelmente pálida. Suas aparas são desanimadoras... ? Ele deixou a frase continuar inacabada.
? Acho que estou um pouco cansada.
? Até seus lábios estão pálidos ? ele prosseguiu, desenhando-os no ar com a lâmina de madeira.
O olhar de Ravus era intenso, sem oscilações. Ela sentiu vontade de abrir a boca e contar-lhe tudo, falar do roubo da droga, do encanto que lhes dava, sobre todos os sentimentos confusos que pareciam se cancelar em seu íntimo, mas o que fez foi avançar um passo mais para perto, para que ele parasse de gesticular e pusesse o bastão de lado, com o intuito de impedi-lo de feri-la.
? Só estou com frio ? disse, baixinho.
Vivia com frio nos últimos dias, mas era inverno, portanto, talvez não fosse tão estranho.
? Frio? ? ecoou Ravus. Tomou-lhe o braço e esfregou-o entre as mãos, examinando-as como se estivessem traindo-o. ? Melhor? ? ele perguntou, cauteloso.
A pele dele era quente, mesmo através da blusa dela, e seu toque, ao mesmo tempo calmante e elétrico. Ela se encostou nele sem pensar. Ele separou as coxas, o tecido preto áspero arranhando a calça jeans quando ela se ajeitou entre as pernas compridas dele.
Tinha as pálpebras quase fechadas quando se projetou para fora da escrivaninha, os corpos dos dois escorregando juntos, as mãos dele ainda segurando as dela. Então, de repente, ele ficou petrificado.
? Tem alguma coisa... ? ela começou, mas ele se afastou dela bruscamente.
? É melhor você ir embora. ? Ele encaminhou-se para uma janela onde ficou simplesmente parado. Ela sabia que ele não ousava abrir as persianas enquanto fosse dia do outro lado. ? Volte quando estiver melhor. De nada nos serve treinar enquanto se sentir mal. Se precisar de alguma coisa, eu posso...
? Eu disse que estava bem.
Sua voz saiu num tom agudo mais alto do que ela pretendera. Pensou na mãe. Teria se atirado para Tom assim? Ele teria se afastado dela no começo?
Ravus continuava voltado para a janela quando ela ergueu uma garrafa inteira de Nunca e pôs na mochila.


Naquela noite, Lolli e Dave felicitaram-na pelo feito, gritando seu nome tão alto que as pessoas pararam em torno da grade do bueiro. Luis sentava-se nas sombras, mastigando o piercing da língua e calado.
Naquela manhã, ela desabou no colchão imundo, como fazia quase todas as manhãs, mergulhando em um sono profundo e sem sonhos, como se jamais tivesse tido outra vida além dessa.








Capítulo 9


Os que reprimem o desejo fazem isso porque o deles
é fraco suficiente para ser reprimido.

? William Blakc, O matrimônio do céu e do inferno

V
al acordou com alguém mexendo nos fechos de sua calça jeans. Sentiu os dedos na cintura, a torção e o beliscão de um botão quando saiu da casa.
? Saia de cima de mim ? ela disse, mesmo antes de perceber que era Dave curvado em cima dela.
Ela se contorceu, saiu de debaixo dele e sentou-se, ainda acalorada pelos resquícios do Nunca. A pele empapava-se de suor, embora o ar frio soprasse da grade acima, e a boca estava seca como areia.
? Vamos lá ? ele sussurrou. ? Por favor.
Olhou para os dedos e viu o esmalte azul de Lolli em suas unhas, as botas brancas de Lolli nos seus pés e longas madeixas de cabelos azuis desbotadas, escorridas abaixo dos seus ombros.
? Eu não sou ela ? disse com a voz grossa de sono e confusão.
? Poderia fazer de conta que é ? disse Dave Mal Acabado. ? E eu poderia ser qualquer um que você quisesse, me mude para qualquer um.
Ela fez que não com a cabeça, percebendo que ele a encantara para ser Lolli, perguntando-se se Dave já tinha feito isso antes com outras e se Lolli sabia. A idéia de brincar de ser outras pessoas era assustadora, mas, com o finalzinho do Nunca ainda enxameando dentro dela, ficou intrigada com a pura maldade disso. Sentia a mesma emoção que a impelira para os túneis, o prazer vertiginoso de fazer uma opção clara e obviamente errada.
Qualquer um. Ela examinou Lolli e Luis, dormindo bem juntos um do outro, mas sem se tocarem. Val deixou-se imaginar o rosto de Luis em Dave. Era fácil; não tinham os rostos muito diferentes. A expressão de Dave alterou-se, assumindo um ar entediado e irritado que era todo de Luis.
? Eu sabia que você ia escolhê-lo ? disse Dave.
Ela inclinou a cabeça para a frente e surpreendeu-se quando os cabelos caíram e cobriram-lhe o rosto. Tinha esquecido como a proteção dos cabelos a fazia se sentir.
? Eu não escolhi ninguém.
? Mas vai escolher. Quer fazer isso.
? Talvez.
A mente de Val tornou a figura que estava em cima dela mais conhecida. O moicano rígido de Tom brilhou graças ao gel e, quando ele sorriu, as faces exibiram as covinhas. Ela sentia até o perfume conhecido da loção pós barba que ele usava. Curvou-se para ele, tomada pela sensação de que estava de volta ao lar e nada daquilo jamais acontecera.
O Tom que estava em cima dela deu um suspiro que ela julgou ser de alívio e enfiou as mãos sob a sua blusa.
? Eu sabia que você era solitária.
? Eu não era solitária ? disse Val automaticamente, recuando.
Não sabia se estava deitada ou não. Era solitária? Pensou nos seres encantados e na incapacidade de mentir deles, perguntando-se o que faziam quando não sabiam o que era verdade.
Em reação a esse pensamento, a pele de Tom ficou verde, os cabelos escureceram e caíram em volta dos ombros até ela ver Ravus, os longos dedos dele que lhe tocavam a pele e seus olhos quentes encarando-a.
Viu-se imobilizada, enojada por sua própria fascinação. A inclinação da cabeça estava correta, a expressão inquisitiva.
? Você não me quer ? ela disse, mas se falava à imagem de Ravus diante dela ou a Dave, não tinha certeza.
Ele apertou a boca na dela, o que a fez sentir uma picada dos dentes dele em seus lábios e estremeceu de desejo e pavor.
Como poderia não ter sabido que queria isso, quando agora não queria nada mais? Sabia que não era realmente Ravus e que era obsceno fingir que era, mas, mesmo assim, o deixou baixar a calça jeans. O coração martelava-lhe o peito, como se ela estivesse correndo algum perigo, como se estivesse em algum perigo, mas entrelaçou os dedos nos cabelos pretos e oleosos. O comprido corpo dele acomodou-se sobre o dela e ela agarrou-lhe os músculos das costas, concentrando o olhar no buraco da garganta, o ouro reluzente dos olhos rasgados, enquanto tentava ignorar os grunhidos dele. Foi quase suficiente.
Na tarde seguinte, quando Ravus a fez passar por uma série de movimentos de espada segurando a lâmina de madeira, ela observou mais de perto o rosto distante dele e desesperou-se.
Antes, conseguira convencer-se de que não sentia nada por ele, mas agora era como se houvesse provado uma comida que a deixara faminta por um banquete que nunca se realizaria.


Voltando a pé da ponte, ela passou perto de um ponto de ônibus. Três prostitutas tremiam de frio em suas saias curtas. Uma garota com casaco de pele falsa encaminhou-se para Val com um sorriso e em seguida deu meia-volta quando percebeu que ela não era homem.
No quarteirão seguinte, atravessou a rua para evitar um barbudo de minissaia e botas flexíveis com os cadarços desatados. O vapor subia de debaixo da saia enquanto ele urinava na calçada.
Val foi escolhendo o caminho pelas ruas até a entrada para a plataforma no túnel. Ao chegar mais perto do estacionamento de concreto, viu Lolli discutindo com uma jovem que usava um casaco de pelúcia e uma mochila com spikes de borracha pontiaguda nas costas. Por um momento, sentiu uma estranha sensação de desnorteamento. A garota era conhecida, mas tão totalmente fora do contexto que não soube inseri-la naquela situação.
Lolli ergueu os olhos. A moça virou-se, acompanhou o olhar dela e abriu a boca, surpresa. Saiu correndo em direção a Val com botas de salto plataforma, um saco de farinha grudado no braço. Só quando notou que alguém tinha pintado o rosto com farinha, se deu conta de que estava olhando para Ruth.
? Val? ? Ruth girou o braço como se fosse pegá-la, mas então pensou melhor. ? Uau! Seu cabelo. Devia ter me dito que ia cortá-los. Eu a teria ajudado.
? Como você me encontrou? ? perguntou Val, entorpecida.
? Sua amiga. ? Ruth virou-se para Lolli, com um ar cético. ? Ela atendeu ao seu telefone.
Val pôs automaticamente a mão na mochila, mesmo sabendo que seu telefone não devia estar ali.
? Eu desliguei.
? Eu sei. Tentei ligar para você um zilhão de vezes mas sua caixa postal está cheia. Tenho andado assustada.
Val balançou a cabeça, sem saber o que dizer. Tinha consciência da sujeira grudada na calça, as meias-luas pretas das unhas e o mau cheiro do corpo, sempre esfregado em banheiros públicos com ela metida em quase todas as roupas.
? Escute, eu trouxe alguém para conhecer você. ? Ruth estendeu o saco de farinha. Só então Val percebeu que se tratava de um boneco. Tinha os olhos contornados com pesado delineador preto e a boca, minúscula e franzida, pintada de esmalte azul cintilante. ? Nosso bebê. Sabe, é duro para ele com uma das mamães desaparecidas e é duro para mim ser mãe de uma produção independente. Na aula de controle de natalidade, tive de fazer todos os trabalhos escritos sozinha. ? Ruth soltou um sorriso enviesado para Val. ? Lamento ter sido tão babaca. Eu devia ter contado sobre Tom. Comecei a contar, acho que um milhão de vezes. Simplesmente nunca consegui pôr todas as palavras para fora.
? Isso não tem mais importância ? disse Val. ? Não me preocupo mais com Tom.
? Escute, está gelado aqui fora. Podemos entrar em algum lugar? Vi um café não muito longe daqui ? sugeriu Ruth.
Estava gelado? Val se habituara tanto ao frio quando não usava o Nunca que parecia normal sentir os dedos dormentes e a medula parecer feita de gelo.
? Tudo bem ? concordou.
Lolli tinha uma expressão satisfeita consigo mesma no rosto. Acendeu um cigarro e soprou fios gêmeos de fumaça branca das narinas.
? Vou dizer a Dave que você voltará logo. Não quero que ele se preocupe com a nova namorada.
? Como?
Por um momento, Val não soube o que ela queria dizer. Dormir com Dave parecia tão irreal, uma coisa feita no meio da noite, embriagada de encanto e sono.
? Ele disse que vocês transaram ontem à noite.
Lolli falou com um tom altivo, mas Dave obviamente não tinha contado que ela tinha a aparência idêntica à de Lolli quando eles transaram. Isso a encheu de um vergonhoso alívio.
Agora entendia por que Ruth estava ali, por que Lolli pegara o celular e armara aquela cena. Aquela era uma forma de punir Val.
Era isso mesmo que ela merecia.
? Não foi nada de importante. Apenas uma coisa boba. ? Val fez uma pausa. ? Ele só queria provocar ciúmes em você.
Lolli pareceu surpresa e, de repente, sem graça.
? Eu simplesmente não achava que você gostava dele a esse ponto.
Val deu de ombros.
? Volto daqui a pouco.
? Quem é ela? ? perguntou Ruth, enquanto as duas se encaminhavam para o café.
? Lolli. Ela é legal, quase sempre. Tenho andado por aí com ela e mais alguns de seus amigos.
Ruth assentiu com a cabeça.
? Você podia voltar para casa, sabe disso. Podia morar comigo.
? Acho que sua mãe não ia gostar muito dessa idéia.
Val abriu a porta de madeira e vidro e entrou no cheiro de leite açucarado. Sentaram-se a uma mesa nos fundos, equilibrando-se nos pequenos caixotes de madeira que a casa tinha como bancos. Ruth tamborilou os dedos no tampo de vidro da mesa, como se os nervos estivessem à flor da pele.
A garçonete veio e elas pediram chá com leite, torrada com leite condensado e manteiga de coco e broas. Ela examinou Val por um longo momento antes deixar a mesa, enquanto avaliava se elas tinham como pagar a conta.
Val inspirou fundo e resistiu à imensa vontade de morder a pele em volta do dedo.
? É tão estranho você estar aqui.
? Você parece doente ? comentou Ruth. ? Está super magra e os seus olhos parecem dois hematomas.
? Eu...
A garçonete pôs os pedidos na mesa, interceptando o que Val ia dizendo. Satisfeita com a interrupção, ela mexeu a bebida com o grosso canudo azul e depois mordeu um grande pedaço de torrada pegajosa e ingeriu um bocado de chá doce. Tudo que fazia parecia vagaroso, os membros tão pesados que a mastigação era exaustiva.
? Sei que vai dizer que está ótima ? disse Ruth. ? Só me diga que realmente não me odeia.
Val sentiu alguma coisa dentro dela oscilar e depois se julgou, afinal, em condições de começar a explicar.
? Não estou mais puta com você. Mas me sinto uma babaca tão grande e minha mãe... Eu simplesmente não posso voltar. Pelo menos ainda não. Não tente me convencer.
? Então quando? ? perguntou Ruth. ? Onde está morando?
Val apenas abanou a cabeça, pondo outro pedaço de torrada na boca. O pão pareceu derreter em sua língua, desaparecendo antes que ela percebesse que comera tudo. Em outra mesa, um grupo de moças cobertas de purpurina explodiram em gargalhadas. Dois indonésios olharam para elas, aborrecidos.
? Então que nome deu ao boneco? ? perguntou Val.
? Como?
? Nosso bebê de farinha. O que eu abandonei sem pagar pensão alimentícia.
Ruth riu.
? Sebastian. Gosta?
Val fez que sim com a cabeça.
? Bem, tem uma coisa que você na certa vai gostar ? disse Ruth. ? Não vou voltar para casa, a não ser que volte comigo.


Apesar de tudo que Val disse, não conseguiu convencer Ruth a ir embora. Por fim, achando que a visão de sua verdadeira acomodação a convencesse, levou-a à plataforma abandonada. Com outra pessoa lá, ela notou mais uma vez o mau cheiro do lugar, suor, urina, o açúcar queimado do Nunca, os ossos animais nos trilhos e os montes de roupas jamais mexidos porque se enxameavam de piolhos. Lolli desenrolara o equipamento e despejava um pouco de Nunca numa colher. Dave já viajava, a fumaça de seu cigarro desenhando formas de personagens de quadrinhos que perseguiam uns aos outros com martelos.
? Você só pode estar de gozação ? disse Luis. ? Me deixe adivinhar. Outra gata perdida para Lolli atirar nos trilhos.
? Va... Val? ? A voz de Ruth tremeu quando ela olhou em volta.
? Esta é minha melhor amiga, Ruth ? disse Val, antes de perceber como essas palavras soaram infantis. ? Veio me procurar.
? Achei que nós éramos seus melhores amigos.
Dave deu um sorriso meio de soslaio e Val arrependeu-se de tê-lo deixado tocá-la, permitindo-lhe achar que tinha algum poder sobre ela.
? Somos todos os melhores amigos ? disse Lolli e disparou-lhe um olhar furioso, apoiando uma das pernas na de Luis, a bota quase lhe tocando a virilha. ? Todos os melhores dos melhores amigos.
Dave fez uma cara feia.
? Se você fosse qualquer espécie de amiga dela, não a arrastaria para essa merda ? disse Luis a Val, afastando-se de Lolli.
? Quantas pessoas estão aí? Saiam para onde eu possa ver vocês ? gritou uma voz áspera.
Dois policiais desceram a escada. Lolli imobilizou-se, a colher na mão ainda sobre o fogo. A droga começou a enegrecer-se e queimar. Dave riu, uma estranha e louca risada que continuou ininterruptamente.
Lanternas vararam a estação escura. Lolli largou a colher, que ficou quente demais para segurar, e os fachos convergiram para ela, em seguida deslocaram-se para Val, cegando-a. Ela tapou os olhos com a mão.
? Todos vocês. ? Um dos policiais era uma mulher de expressão severa. ? Encostados na parede, mãos na cabeça.
Um facho de luz localizou Luis e o policial cutucou-o com a bota.
? Vamos. Ande logo. Ouvimos alguns relatos de que havia uma garotada aqui embaixo, mas eu não acreditei.
Val levantou-se devagar e encaminhou-se para a parede com Ruth ao seu lado. Sentia-se tão nauseada de culpa que queria vomitar.
? Me desculpe ? sussurrou.
Dave ficou simplesmente imóvel no meio da plataforma. Tremia.
? Algum problema? ? gritou a policial, não fazendo de modo algum uma pergunta. ? Encostado na parede!
Com isso, a voz dela se transformou em latidos. Do lugar onde antes estivera a policial, surgiu um cachorro preto, maior que um Rottweiler, espumando.
? Que diabo é isso? ? O outro policial virou-se e sacou a arma. ? O cachorro é de vocês? Ponham esse bicho para fora.
? Não é nosso ? respondeu Dave, com um sorriso enigmático.
O cachorro virou-se para Dave, rosnando e latindo. Dave apenas ria.
? Masollino? ? gritou o policial. ? Masollino?
? Pare de fazer merda ? gritou Luis. ? Dave, o que você está fazendo?
Ruth soltou os braços da cabeça.
? O que está acontecendo?
O cachorro exibiu os dentes brilhantes quando avançou contra o policial. Ele apontou a arma e o cachorro parou. O cão ganiu e o policial hesitou.
? Cadê minha parceira?
Lolli deu umas risadinhas e o homem ergueu os olhos, feroz, e logo os desviou para o cachorro.
Val deu um passo à frente, Ruth ainda lhe segurava o braço com tanta força que machucava.
? Dave ? sibilou. ? Pare com isso. Vamos.
? Dave! ? berrou Luis. ? Transforme-a no que era antes!
O cachorro moveu-se ao ouvir essas palavras, virando-se, e saltou na direção onde eles estavam, a língua esticada formando uma faixa vermelha na escuridão.
Dois estalos agudos foram seguidos pelo silêncio. Val abriu os olhos, nem sequer consciente de que os tinha fechado. Ruth gritou.
Estendida no chão, a policial sangrava no pescoço e no tronco. O outro policial olhava horrorizado para sua própria arma. Val se imobilizou, impressionada demais para se mexer, os pés pesados como chumbo, a mente ainda procurando no escuro por alguma forma de desfazer o que fora feito. Isso é apenas uma ilusão, disse a si mesma. Dave está pregando uma peça em todos nós.
Lolli saltou no poço dos trilhos e saiu correndo, esmagando o saibro sob as botas. Luis agarrou o braço de Dave e empurrou-o em direção aos túneis.
? Temos de sair daqui ? disse.
O policial ergueu os olhos quando Val saltou da lateral da plataforma, com Ruth atrás dela. Luis e Dave já desapareciam na escuridão.
Um disparo ressoou atrás deles. Val não olhou para trás. Corria ao longo do trilho, agarrando a mão de Ruth, como se fossem duas criancinhas atravessando a rua. Ruth apertou-a duas vezes, mas Val ouviu-a começar a soluçar.
? Os policiais não entendem nada ? disse Dave, enquanto se deslocavam pelos túneis. ? Têm todas essas normas para prender as pessoas e só ligam para isso. Descobriram nosso lugar e iam apenas trancá-lo para que ninguém o usasse, e que sentido tem isso? Não prejudicamos ninguém por morar aqui. É uma casa. Nós encontramos.
? De que está falando? ? interpelou-o Luis. ? Em que pensou naquela hora? Pirou de vez?
? Não é culpa minha ? disse Dave. ? Nem sua. Não é culpa de ninguém.
Val desejou que ele se calasse.
? Tem razão ? disse Luis, com a voz trêmula. ? Não é culpa de ninguém.


Emergiram na estação da Canal Street, pulando na plataforma e entrando no primeiro trem que parou. O vagão estava quase vazio, mas ficaram em pé apesar disso, apoiados na porta, enquanto o trem seguia balançando. Ruth já tinha parado de chorar, mas a maquilagem deixou-lhe com manchas escuras nas faces e o choro deixou-lhe com o nariz vermelho. Dave parecia esvaziado de toda emoção, sem olhar nos olhos de ninguém. Val não imaginava o que ele sentia naquele momento. Não sabia nem como descrever com certeza o que ela própria sentia.
? Podemos dormir no parque esta noite ? disse Luis. ? Dave e eu fazíamos isso antes de encontrar o túnel.
? Eu vou levar Ruth até a estação Penn ? disse Val de repente.
Pensava na policial, a lembrança de sua morte como um fardo que ficava mais pesado a cada passo que dava para longe do cadáver. Não queria arrastar Ruth com eles. Luis assentiu com a cabeça.
? E você vai com ela?
Ela hesitou.
? Eu não vou entrar sozinha naquele trem ? disse Ruth ferozmente.
? Preciso me despedir de alguém ? disse Val. ? Não posso simplesmente desaparecer.
Saltaram na parada seguinte, transferiram-se para um trem que ia para a parte norte da cidade e seguiram até a estação Penn, onde subiram para conferir os horários. Depois, se instalaram na área de espera e Lolli comprou café e sopa, que nenhum deles quis.
? Encontre-se comigo aqui em uma hora ? disse Ruth. ? O trem parte quinze minutos depois. Dá para você se despedir desse cara nesse tempo, certo?
? Se eu não voltar, você tem de entrar no trem ? disse Val. ? Prometa.
Ruth fez que sim com a cabeça, o rosto pálido.
? Desde que me prometa voltar.
? Vamos ficar perto do castelo do tempo no Central Park ? disse Lolli. ? Se você perder seu trem.
? Não vou perder ? disse Val, olhando para Ruth.
Lolli girou uma colher numa embalagem de sopa, mas não a levou à boca.
? Eu sei. Só estou informando.
Val saiu aos tropeços para o frio, feliz por se afastar de todos eles.
Quando chegou à ponte, ainda havia luz suficiente para ver o rio Leste, marrom como café deixado tempo demais no bico de gás. A cabeça doía, os músculos dos braços contraíam-se em espasmos e ela se deu conta de que não tinha tomado nenhuma dose de Nunca desde a noite anterior.
Nunca mais que dois dias seguidos. Não conseguiu se recordar de quando essa regra fora esquecida e a nova regra tornara-se todo dia e às vezes mais que isso.
Bateu no toco e entrou na ponte, mas, apesar da ameaça da luz do dia, Ravus saíra. Pensou em pintar com o dedo um bilhete num folheto rasgado de mercearia, mas se sentia tão cansada que decidiu esperar um pouco mais. Sentou-se na espreguiçadeira, os odores de papel velho, couro e frutas a embalaram, levando-a a recostar a cabeça e a abrir apenas uma fresta da cortina. Ficou ali sentada inconsciente por uma hora, vendo o sol mergulhando cada vez mais baixo, deixando o céu em chamas, mas Ravus não retornou e ela só se sentiu pior. Os músculos, que antes haviam doído como se houvesse feito muito exercício, agora ardiam como uma cãibra que nos acorda do sono.
Examinou todas as garrafas, poções e misturas, sem ligar para o que desarrumava nem onde punha as coisas, mas não encontrou um único grão do Nunca para fazer a dor sumir.


Uma família terminava seu piquenique nas pedras quando ela saiu se arrastando para o Central Park, a mãe embalando os sanduíches que haviam sobrado, uma filha desengonçada empurrando um dos irmãos. Os dois meninos eram gêmeos, Val notou. Sempre achou gêmeos meio arrepiantes, como se apenas um deles pudesse ser o real. O pai olhou-a, mas fixou o olhar nas pernas compridas e nuas de uma ciclista, enquanto mastigava a comida devagar.
Val seguiu andando lentamente, as pernas doendo, passou por um lago espesso de algas, onde um barco sem piloto flutuava à luz do anoitecer. Um casal de velhos passeava junto à margem, de braços dados, e um corredor com roupa esportiva os contornava, levava um mp3 balançando contra o bíceps. Gente normal, com problemas normais.
O caminho continuava subindo por um pátio com as paredes esculpidas com frutas e pássaros em alto-relevo. As paredes ainda eram cobertas por trepadeiras tão intrincadas que quase pareciam vivas, de onde floresciam rosas e flores menos comuns.
Ela parou para se recostar numa árvore. As raízes estavam expostas e emaranhadas como o desenho das veias sob a pele, a casca do tronco úmida e escura, coberta por seiva gelada. Val estava andando já fazia algum tempo, mas não havia nenhum castelo à vista. Passaram três meninos com calças bem abaixo da cintura, um deles quicando uma bola de basquete nas costas do amigo.
? Onde fica o castelo do tempo? ? ela gritou.
Um dos meninos balançou a cabeça.
? Não existe isso aqui.
? Ela quer dizer o Castelo Belvedere ? disse o outro, apontando a cabeça meio enviesada na direção de onde ela viera. ? Depois da ponte e atravessando o passeio.
Val assentiu com a cabeça. Depois da ponte e floresta adentro. Tudo doía, mas ela continuou andando, antecipando a picada da agulha e o doce alívio que traria. Pensou em Lolli sentada junto ao fogo com a colher na mão e ficou sem ar com a lembrança de que todo o Nunca ficara lá, nos túneis, com a mulher morta ? então sentiu ódio de si mesma, por ter sido isso que a preocupara, por ter sido isso que a deixara sem ar.
O passeio era um labirinto de trilhas, que se entrecruzavam e desviavam para becos sem saída e duplicavam-se de volta a si mesmas. Alguns atalhos pareciam intencionais, outros criados por pedestres fartos de tentarem escolher o caminho pelo curso inconstante. Val seguiu se arrastando, esmagando folhas e gravetos, as mãos nos bolsos, agarrou a pele através do fino forro do casaco como se o ato de enterrar os dedos pudesse punir o corpo, para que não doesse.
No abrigo de galhos remendados, dois homens enroscavam-se um no outro, um deles de terno e sobretudo, o outro de calça jeans e jaqueta de brim.
No topo da colina, ficava um castelo cinza, com um pináculo que chegava bem acima da linha das árvores. Parecia ser uma grandiosa e antiga propriedade, que se tornava estranha por situar-se contra as brilhantes luzes da cidade ao entardecer, algo inteiramente deslocado. Quando Val chegou mais perto, viu uma série de criaturas empalhadas logo atrás de uma janela, os olhos pretos a observarem através do vidro.
? Ei ? gritou uma voz conhecida.
Val virou-se e viu Ruth encostada num pilar. Antes que pudesse pensar no que dizer, notou Luis debruçado sobre o patamar que dava para um lago e uma quadra de beisebol, dando beijos profundos, molhados e carinhosos em Lolli.
? Eu sabia que você nunca teve a intenção de aparecer ? disse Ruth balançando a cabeça, consternada.
? Você disse que entraria no trem mesmo que eu não aparecesse ? reagiu Val, tentando demonstrar uma raiva hipócrita, mas as palavras saíram como uma defesa, parecendo pouco convincentes.
Ruth cruzou os braços sobre o peito.
? Como queira.
? Onde está Dave? ? perguntou Val, olhando em volta.
O parque ia ficando cada vez mais escuro e ela não o via em nenhum lugar próximo.
Ruth encolheu os ombros e pegou uma xícara que estava próxima a seus pés.
? Ele saiu para pensar ou fazer alguma coisa. Luis foi atrás dele, mas voltou sozinho. Acho que se apavorou. Merda, eu estou apavorada... aquela mulher se transformou num cachorro e agora está morta.
Val não sabia explicar as coisas para que Ruth entendesse, sobretudo porque só ia piorar tudo. Era melhor acreditar que a policial tinha se transformado num cachorro do que pensar que ela mesma havia sido encantada para ver um cachorro.
? Dave não vai gostar nada daquilo.
Apontou Lolli e Luis com um gesto do queixo, ignorando de todo a questão da magia.
Ruth fez uma careta.
? É repugnante. Aqueles fodidos insensíveis.
? Eu não entendo. O tempo todo ela dá em cima dele e Luis escolhe logo agora para entrar na dela?
Val não conseguia entender. Luis era um babaca, mas cuidava muito bem do irmão e realmente gostava dele. Não era do feitio dele deixar Dave vagar em volta do Central Park enquanto ele transava com uma garota.
Ruth franziu o cenho e estendeu a xícara que segurava.
? Os amigos são seus. Aqui, tome um pouco de chá. Está repugnantemente doce, mas ao menos é quente.
Val tomou um gole, deixando o líquido aquecer-lhe a garganta e tentando ignorar como sua mão tremia.
Luis desprendeu-se de Lolli e lançou-lhe um sorriso enviesado.
? Ei, quando você deu as caras?
? Algum dos dois tem um pouco de Nunca? ? desabafou Val.
Achava que não conseguiria suportar a dor por mais tempo. Sentia espasmos até na mandíbula.
Luis fez que não com a cabeça e olhou para Lolli.
? Não ? ela disse. ? Deixei cair. Você não conseguiu algum com Ravus?
Val inspirou fundo, tentando não entrar em pânico.
? Ele não estava lá.
? Viu Dave no caminho para cá? ? perguntou Lolli.
Val balançou a cabeça negativamente.
? Vamos lá para o lugar quente ? disse Luis. ? Acho que está escuro o bastante para nos manter escondidos.
? Dave sabe como encontrar a gente? ? perguntou Ruth.
? Claro ? respondeu Luis. ? Vai saber onde procurar. Já dormíamos lá antes.
Val rangeu os dentes de frustração, mas seguiu os outros, que pularam o portão por um dos lados do castelo e rastejaram pelas pedras. Um platô suspenso o suficiente por outro pedregulho projetava-se para dar-lhes abrigo. Ela notou que eles já haviam providenciado alguns papelões.
Luis sentou-se e Lolli encostou-se nele, ficando com as pálpebras quase fechadas.
? Vou garimpar alguns materiais melhores amanhã ? ele disse, curvando-se para colar a boca na dela.
Ruth pôs um braço em volta da amiga e suspirou.
? Eu não acredito nisso.
? Nem eu ? disse Val, porque, de repente, tudo aquilo parecia surreal, aleatório e inacreditável.
Parecia menos possível Ruth dormir numa caixa de papelão no Central Park do que a existência de seres encantados.
Luis deslizou as mãos pela saia de Lolli e Val tomou outro gole do chá que esfriava, ignorando o lampejo de pele, o vislumbre de argolas de aço, tentando não notar os sons molhados e as risadinhas. Quando virou a cabeça, viu a perna das calças largas de Luis mexendo-se para cima e para baixo tão depressa, que as marcas chamuscadas na parte de dentro do joelho eram visíveis, marcas chamuscadas que só podiam vir do Nunca.
Enquanto a respiração de Ruth se nivelava no adormecer, a de Lolli e Luis escalava para uma outra coisa, Val mordia a parte interna do lábio tentando afugentar a dor da abstinência.









Capítulo 10


Eles não amam o veneno, mas a necessidade que sentem pelo veneno.

? William Shakespeare, A tragédia de Ricardo II


C
om o lento transcorrer da noite, Val não melhorou. A trepidação dos músculos sob a pele intensificou-se até ela se levantar e sair furtivamente do lugar quente para poder pelo menos contorcer-se e mudar de posição quando o desconforto fosse mais intenso. Atravessou as pedras e retomou o caminho de volta pelo passeio, dispersando uma rajada de folhas amassadas dos galhos. Tomou outro gole do chá, mas já estava gelado. Crescera pensando no Central Park como um local perigoso, mais ainda que o resto de Nova York, o tipo do lugar onde pervertidos e assassinos espreitavam atrás de todo arbusto, à espera de algum corredor inocente. Lembrava-se de inúmeras matérias de jornal sobre esfaqueamentos e assaltos. Mas, agora, o parque parecia apenas tranquilo.
Ela pegou uma vara e fez exercícios de arremesso, lançando a ponta da madeira no centro do nó de um espesso olmo, até perceber que tinha intimidado alguns esquilos que talvez morassem ali. Os movimentos fizeram-na sentir-se tonta e levemente nauseada e, quando sacudiu a cabeça, achou que viu luzes movendo-se num atalho próximo.
O vento intensificou-se bem nesse momento e o ar pareceu carregado, como antes de um temporal, mas, quando ela tornou a olhar, não viu nada. Fazendo uma cara feia, agachou-se e esperou para ver se tinha alguém ali.
O vento passou açoitando-a e quase lhe arrancou a mochila do ombro. Dessa vez, Val teve certeza de que ouvira risadas. Virou-se, mas viu apenas as espessas tiras de heras rastejando em uma árvore próxima dali.
A rajada seguinte de vento finalmente a atingiu, derrubou-lhe a xícara da mão, derramando o resto de chá numa poça e rolando a xícara branca na terra molhada.
? Pare com isso! ? ela berrou, mas, no silêncio que se seguiu, suas palavras pareceram fúteis, até mesmo perigosas demais para ser gritadas no ar imóvel.
Um assobio a fez virar a cabeça. Ali, num toco, sentava-se uma mulher feita inteiramente de hera.
? Eu sinto cheiro de encanto, fino como de neve em forma de pó. Você é uma de nós?
? Não ? Val respondeu. ? Não sou um ser encantado.
A mulher inclinou a cabeça num gesto bem leve.
? Espere. Eu preciso... ? começou Val, mas não soube como terminar.
Precisava de um pouco do Nunca, mas não fazia a menor idéia se aqueles seres tinham um nome para isso.
? Uma das apaixonadas por doce? Infeliz criatura, você vagou e se desviou para muito longe das delícias. ? A mulher de hera passou por ela e dirigiu-se para a ponte. ? Eu lhe mostro o caminho.
Embora não soubesse o que ela queria dizer, Val foi atrás da mulher de hera, não apenas porque Lolli e Luis partiam o coração de Dave em algumas pedras próximas e ela não queria ter de ver isso, nem apenas pelo fato de que os olhos mortos da policial pareciam segui-la na escuridão, mas porque a única coisa que parecia importante naquele momento era fazer cessar sua própria dor. E no lugar onde os seres encantados faziam suas festas deveria haver alguma forma de encontrar seu alívio.
A mulher de hera levou-a de volta ao terraço com as paredes esculpidas de pássaros e galhos, a fonte no centro e o lago além. A fada farfalhava nos azulejos, uma coluna em movimento de verdor. A névoa elevava-se ondulante da água, um nevoeiro prateado que tinha pairado no ar por um momento e avançava turvo, denso e rápido demais para ser natural. A pele de Val arrepiava-se, mas ela estava demasiadamente tonta e cheia de dores para fazer mais que recuar, tropeçando quando o nevoeiro chegou até ela como a maré numa praia escura.
O nevoeiro instalou-se ao redor de Val, quente e pesado, transportando um estranho perfume de podridão e doçura. Uma música espectral atravessou o ar ? o tilintar de sinos, um gemido, as notas estridentes de uma flauta. Ela caminhava sem firmeza, engolida e ofuscada por ondulações de névoa. Ouviu um coro de risadas por perto e virou-se. O nevoeiro dispersava-se em alguns lugares, deixando-a ver uma nova paisagem.
O terraço continuava ali, mas as trepadeiras haviam brotado da pedra como coisas silvestres encaracoladas, gerando estranhas flores e espinhos compridos e finos como agulhas. Pássaros saíram voando dos ninhos esculpidos para bicar as uvas inchadas que pendiam dos corrimões das escadas e para brigar com abelhas do tamanho de punhos pelas maçãs de aço que juncavam o quebra-mar.
E também havia fadas e outros seres encantados. Mais do que ela imaginasse que pudessem viver em meio ao ferro e aço da cidade, criaturas com olhos estranhos e orelhas pontiagudas, saias tecidas de urtiga ou filipêndulas, camisetas e túnicas bordadas com rosas e sem absolutamente nada, a pele cintilando sob o luar. Val passou por uma criatura com pernas que pareciam galhos e um rosto esculpido em casca de árvore e um homenzinho que a investigava com um binóculo, com lentes de vidro azul da cor do mar. Passou por um homem com espinhos que corriam ao longo de uma corcunda. Cheirava a sândalo e Val achou que o conhecia. Cada criatura mágica parecia brilhante como chamas saltitantes e furiosas como vento. Os olhos dele ardiam quentes e terríveis ao luar e ela sentiu medo.
E também, ao longo da margem do lago, havia panos tecidos em ouro e repletos com toda forma de gostosuras. Tâmaras, marmelos e caquis arrumados em travessas de folhas rachadas secas, ao lado de garrafas de vinhos safira e oliva. Montes de bolos com nozes assadas empilhavam-se junto a espetos de pombos tenros e xícaras de caldas viscosas. Próximo a eles, numa pilha, estavam as maçãs brancas de Ravus, os corações vermelhos visíveis através da casca de véu, prometendo a Val o repouso da dor.
Ela esqueceu o medo. Agarrou uma e mordeu a polpa quente e doce. A gosma deslizou por sua garganta como um sangrento pedaço de carne. Reprimindo a náusea, mordeu-a muitas vezes, o suco escorrendo-lhe pela mandíbula, a casca da fruta cedendo sob seus dentes afiados. Não era parecido com o Nunca, mas foi suficiente para entorpecer-lhe os membros e fez parar sua tremedeira.
Aliviada, Val afundou junto ao lago e uma criatura de musgo e líquen surgiu por um momento com um peixe estranho a debater-se na boca e depois tornou a mergulhar. Cansada demais para mexer-se e muito aliviada para ser qualquer coisa além de alguém saciado, ela se contentou em observar a multidão. Para sua surpresa, viu que não era a única humana ali. Uma menina, tão jovem que devia estar ainda no ensino fundamental, apoiava a cabeça no colo de uma fada azul de lábios pretos, que entrelaçava minúsculos sininhos e trevos nas marias-chiquinhas da criança. Um homem de cabelos grisalhos e paletó de tweed ajoelhou-se ao lado de uma menina verde com cabelos de musgos que pingavam. Dois rapazes comiam fatias das maçãs brancas na borda de uma faca, lambendo-a para aproveitar todo o suco.
Eram eles os apaixonados por doces? Servos humanos, dispostos a fazer qualquer coisa por uma prova do Nunca, sem sequer saberem o que era espetá-lo no braço nem queimá-lo junto ao nariz. Nunca, disse Val a si mesma. Nunca mais. Nunca. Jamais. Nunca a Terra do Nunca. Não precisava fazer as sombras dançarem. Não precisava continuar escolhendo o caminho errado, regozijando-se porque ao menos escolhia sua ruína. Por mais erradas que fossem suas decisões, não iam manter quaisquer outros problemas à distância.
Outro ser encantado desceu a escada. Tinha alguma coisa errada com sua pele, parecia sarapintada e coberta por bolhas em alguns lugares. Uma das orelhas e parte do pescoço pareciam ter sido toscamente esculpidos em barro. Alguns dos outros recuaram quando ele atravessou o terraço sem pressa.
? Doença do ferro ? comentou alguém.
Val virou-se e viu uma das meninas fadas de cabelos cor de mel do parque da Washington Square. Continuava com os pés descalços, embora usasse uma tornozeleira de azevinhos.
Val estremeceu.
? Parece que ele foi queimado.
? Alguns dizem que isso vai acontecer com todos nós se não ficarmos no parque ou voltarmos para o lugar de onde viemos.
? Vocês foram exilados aqui?
A menina fada assentiu com a cabeça.
? Um dos meus amantes também era amante de um Lorde bem favorecido. Ele deu a entender que eu tinha roubado um rolo de pano. Era um tecido mágico, do tipo que mostra nossas histórias, um material precioso. E o castigo do tecelão teria de ser elegante e severo. Minhas irmãs e eu fomos exiladas até podermos provar minha inocência. Mas e você?
Val curvara-se para a frente, imaginando como aquele tecido deveria ser deslumbrante, e foi pega desprevenida pela pergunta da fada.
? Acho que se poderia dizer que me exilei. ? Então, olhando em volta, perguntou: ? É sempre assim aqui? Todos os exilados vêm aqui todas as noites?
A fada de cabelos cor de mel riu.
? Ah, sim. Se a gente tem que ir a Terra do Ferro, pelo menos pode vir aqui. É quase como estar de volta à corte. E, claro, há os mexericos.
Val sorriu.
? Que tipo de mexerico?
Ela voltou a ter uma parceira. Era automático fazer as perguntas que a companheira queria responder e era um alívio ouvir. As palavras da fada suprimiam seus próprios pensamentos inquietos.
A menina riu.
? Bem, o melhor mexerico é que a Dama Luminosa, a Rainha da Corte Digna, Silarial, está aqui, na Terra do Ferro. Dizem que vai cuidar pessoalmente dos envenenamentos. Parece que Mabry, uma das nossas exiladas, sabe de alguma coisa. Todo mundo soube que as duas tiveram um encontro.
Val enterrou as unhas nas costas da outra mão. Mabry teria acusado Ravus? Pensou nos aposentos abandonados dele, lá dentro da ponte, e fez uma careta.
? Ah, veja ? sussurrou a fada. ? Aí está ela. Repare como todos hesitam, fingindo que não estão doidos para lhe pedir que confirme os rumores.
Val levantou-se.
? Eu vou perguntar a ela.
Antes que a fada de cabelos cor de mel pudesse protestar ou aplaudir, Val avançou por entre os seres encantados. Mabry usava um vestido longo creme claríssimo, os cabelos verdes e castanhos amontoados na cabeça com um arco feito do interior de uma concha. Pareceu estranhamente familiar, mas não soube localizá-la.
? Bonito arco ? Val elogiou.
Mabry retirou-o dos cabelos, deixando as madeixas caírem pelas costas, e deu-lhe um largo e lascivo sorriso.
? Eu a conheço. O servo Ravus gostou muito de você. Fique com essa pequena bugiganga se a agrada. Talvez seus cabelos cresçam dentro dela.
Val correu os dedos pela fria superfície da concha, mas teve certeza de que um presente dado com uma observação tão ferina não merecia qualquer agradecimento. Mabry estendeu um dedo e tocou o lado da boca de Val.
? Vejo que saboreou uma prova do que sua pele tem bebido.
Val sobressaltou-se.
? Como você soube?
? É meu hábito saber coisas ? ela respondeu, virando-se para afastar-se antes que Val chegasse a perguntar uma única coisa que queria saber.
Val tentou segui-la, mas uma criatura com longas ervas no lugar do cabelo e a boca cheia de risinhos cruéis interpôs-se.
? Minha linda, deixe-me devorar sua beleza.
? Você só pode estar brincando. ? Val tentou empurrá-lo para longe.
? Nem um pouco ? ele disse. E, de repente, de uma maneira estranha, Val sentiu o desejo contorcer-se dentro dela. Ficou com o rosto afogueado.
? Posso realizar qualquer um dos seus sonhos.
Uma mão enlaçou-a pela garganta e uma voz profunda e áspera falou baixinho e próximo à sua orelha.
? E então, para que serve seu treinamento agora?
? Ravus? ? perguntou Val, embora conhecesse a voz.
O outro ser encantado afastou-se furtivamente, mas Ravus manteve os dedos no pescoço da menina.
? É perigoso aqui. Você devia ser mais cuidadosa. Agora eu gostaria de que pelo menos tentasse lutar e se libertar.
? Você nunca me ensinou... ? ela começou, mas se interrompeu em seguida, envergonhada de como sua voz soou lamentosa.
Ele ia ensiná-la então. Afinal, dava-lhe tempo para pensar em quais movimentos seriam possíveis. Não era como se a sufocasse, mas como se lhe desse tempo.
Val relaxou, pressionou as costas no peito dele e espremeu-o. Surpreendido, ele soltou o aperto e ela se libertou. Ele agarrou o braço dela, mas a menina rodopiou e colou a boca na dele.
Ele tinha os lábios ásperos, esfolados. Val sentiu a picada dos dentes caninos no lábio inferior. Ravus emitiu um ruído agudo do fundo da garganta e fechou os olhos, abrindo a boca sob a dela. O cheiro dele ? de pedra fria e úmida ? fez-lhe a cabeça rodar. Um beijo deslizou em outro e foi perfeito, exatamente certo, verdadeiro.
Ele recuou bruscamente, virando a cabeça para não vê-la.
? Eficaz ? disse.
? Eu achei que talvez você quisesse que eu o beijasse. Às vezes tive a impressão de que via isso.
O coração martelava no peito e as faces a escaldavam. Val ficou satisfeita por parecer calma.
? Eu não queria que você... Eu não queria que você visse isso.
Ela quase riu.
? Você pareceu tão chocado. Nunca ninguém o beijou antes?
Val queria repetir a dose, mas não ousava.
A voz dele saiu fria.
? Em raras ocasiões.
? Você gostou?
? Das outras vezes ou agora?
Ela prendeu o ar e soltou-o com um suspiro.
? As duas coisas. Qualquer uma.
? Gostei ? ele respondeu em voz baixa.
Foi então que ela se lembrou de que ele não mentia. Correu a mão pelo seu rosto.
? Retribua meu beijo.
Ravus tomou os dedos dela e apertou-os com tanta força que os machucou.
? Basta ? disse. ? Seja qual for o jogo que esteja fazendo, acabe já com isso.
Ela puxou a mão do punho dele e ficou bruscamente sóbria, recuando vários passos.
? Me desculpe... Pensei que...
Na verdade, não se lembrava do que tinha pensado, do que fez aquilo parecer uma boa idéia.
? Venha comigo. ? Ele não olhou para Val. ? Vou levá-la de volta para os túneis.
? Não ? ela disse.
Ravus parou.
? Seria insensato ficar aqui, não importa sua...
Ela fez que não com a cabeça.
? Não é isso que eu quero dizer. Alguém descobriu nosso abrigo. Não há mais lugar para onde voltar. ? Fazia muito tempo desde que havia alguma coisa para a qual voltar.
Ele abriu a mão, como se tentasse expressar algo inexprimível.
? Nós dois sabemos que eu sou um monstro.
? Você não é...
? Cobrir carne podre com mel a rebaixa. Sei o que eu sou. Que você poderia querer com um monstro?
? Tudo ? respondeu Val solenemente. ? Lamento ter beijado você... fui egoísta e isso o machucou, mas não pode me pedir para fingir que eu não queria. ? Ravus encarou-a cautelosamente, quando ela se aproximou um passo. ? Não sou muito boa em explicar coisas. Mas acho que você tem olhos lindos. Adoro o dourado deles. Adoro o fato de serem diferentes dos meus... Vejo os meus o tempo todo e fico cheia deles.
Ele bufou, achando divertido, mas permaneceu imóvel. Val ergueu a mão e tocou-lhe o verde-claro da face.
? Eu gosto de tudo que o torna monstruoso.
Ele entrelaçou os longos dedos pela penugem de pêssego dos cabelos dela, as garras descansando cuidadosamente na sua pele.
? Receio que tudo o que eu toque se estrague.
? Eu não tenho medo de ser estragada ? ela disse.
Ravus torceu o canto da boca.
Uma voz feminina varou o ar, aguda como o ressoar de um sino.
? Você mandou buscar Silarial, finalmente.
Val deu meia-volta. Mabry surgiu no pátio, as gavinhas que compunham seu cabelo acolhidas pela brisa. Em toda a volta, as criaturas os olhavam fixamente. Afinal, ali se oferecia uma chance para mexericos.
Ravus continuou com a mão apoiada nas costas de Val e ela sentia a curva das unhas dele na espinha. A voz de Ravus saiu neutra quando se dirigiu a Mabry.
? A misericórdia de Lady Silarial talvez seja terrível, mas tenho pouca escolha além de me entregar a ela. Sei que ela veio conversar com você. Talvez quando a rainha vir como tem sido infeliz e quão útil você pode ser, ela a leve de volta para a Corte.
Mabry curvou a boca num sorriso torto.
? Todos nós devemos nos valer da clemência dela. Mas agora quero fazer uma boa ação para você, em troca da que fez para mim.
Val enfiou a mão no bolso de trás para devolver o arco de Mabry, as pontas espetaram-lhe os dedos quando a retirou. Pérolas envoltas em algas marinhas e minúsculas pombas rodopiantes agarravam-se à crista do arco. Olhando-a, Val de repente viu a sereia, o colar enroscado em fios de pérolas e pássaros de concha, os olhos mortos fitando-a para sempre, os cabelos flutuando na superfície da água.
Com o arco entre os dedos dormentes, ela percebeu que viera de um cadáver.
? Mabry me deu isso ? disse.
Ravus olhou-a de relance, não associando claramente qualquer significado ao arco.
? Veio da sereia ? explicou. ? Ela tirou isso da sereia.
Mabry bufou:
? Então, como é que foi parar na sua mão?
? Você me deu...
Mabry virou-se para Ravus, interrompendo-a, impassível.
? Sabia que ela anda roubando você? Ela raspa a tampa de suas poções como um fantasma do mal bebe a camada de creme de uma garrafa de leite. ? A criatura agarrou o braço de Val, puxando a manga para que ele visse as marcas pretas na curva interna do cotovelo, as marcas que pareciam queimaduras de cigarro na carne dela. ? E veja o que ela tem feito... recheado as veias com nosso bálsamo. Agora, Ravus, você me diz quem é o envenenador. Vai sofrer pelos erros dela?
Val estendeu a mão para Ravus, que a empurrou.
? O que você anda fazendo? ? perguntou, os lábios comprimidos.
? Sim, eu injetei as poções ? ela respondeu.
Não tinha mais sentido negar qualquer coisa agora.
? Por que faria isso? ? ele perguntou. ? Achei que era uma droga inofensiva, apenas uma coisa para impedir que nossa gente sentisse dor.
? O Nunca... nos dá... torna os seres humanos... encantados. ? Não era isso, exatamente, mas o rosto dele já dizia: Você não se importou que eu fosse monstruoso porque também é um monstro.
? Eu tinha feito um juízo melhor de você ? disse. ? Eu tinha pensado tudo de você.
? Sinto muito ? desculpou-se Val. ? Por favor, me deixe explicar.
? Seres humanos. ? As palavras de Ravus eram repletas de repugnância. ? Mentirosos, é o que todos vocês são. Agora eu entendo o ódio de minha mãe.
? Eu posso ter mentido sobre isso, mas não estou mentindo sobre o arco. Não estou mentindo sobre todo o resto.
Ele agarrou o ombro dela, os dedos tão pesados que Val teve a sensação de estar sendo segurada por uma pedra.
? Agora eu sei o que você viu em mim para amar. Poções.
? Não! ? Ela reagiu.
Quando ergueu os olhos para o rosto dele, não viu nada ali que lhe parecesse conhecido, nada amável. Ele enfiou o polegar com garra na garganta dela.
? Acho que já era hora de você ter ido embora.
Val hesitou:
? Só me deixe...
? Vá! ? ele gritou, empurrando-a para longe e enroscando os dedos num punho tão apertado que as garras cortaram as bases de sua própria mão.
Val tropeçou para trás, a garganta ardendo.
Ravus virou-se para Mabry.
? Diga que se sente vingada. Pelo menos me diga isso.
? De jeito nenhum ? Mabry respondeu com um sorriso azedo. ? Eu lhe fiz uma boa ação.
Val foi embora, refazendo os passos ao longo do caminho, atravessou a muralha de nevoeiro, a mata e subiu até o castelo, os olhos turvos e o coração doendo. Ali, vendo a trêmula cintilação das luzes da cidade, pensou de repente na mãe. Foi assim que ela se sentiu, depois que Tom e Val foram embora? Teve vontade de voltar e mudar e tudo, mas lhe faltou força?


Arrastando-se pelas pedras, viu a ponta vermelha do cigarro de cravo-da-índia de Ruth antes de ver o resto do acampamento improvisado deles. Ruth levantou-se quando ela se aproximou.
? Achei que você tinha me abandonado de novo.
Val olhou para Lolli e Luis, enroscados juntos. Ele parecia diferente, os olhos rodeados por círculos escuros e a pele pálida.
? Só fui dar uma caminhada.
Ruth deu outra tragada longa, a ponta do cigarro faiscando.
? É, bem, seu amigo Dave também acabou de sair para dar uma caminhada.
Val pensou na reunião dos seres encantados e perguntou-se se Dave também estivera lá, outro apaixonado por doces vagando, tonto, em meio a senhores caprichosos.
Sentou-se, oprimida, e cobriu o rosto com as mãos.
? Eu ferrei tudo. Eu realmente ferrei tudo. De verdade.
? Que quer dizer?
Ruth sentou-se junto dela e passou o braço em volta de seu ombro.
? É muito difícil de explicar. Existem seres encantados, como as criaturas de Final Fantasy, só que reais, e eles têm sido envenenados e essa coisa que eu ando tomando... é uma espécie de droga, mas também é uma espécie de magia.
Sentiu lágrimas escorrerem-lhe pelas faces e enxugou-as.
? Sabe ? comentou Ruth ?, as pessoas não choram quando estão tristes. Todo mundo pensa assim, mas não é verdade. As pessoas choram quando estão frustradas ou são ameaçadas até o limite de suas forças.
O arco da sereia continuava nas mãos de Val, ela percebeu, mas veio segurando-o com tanta força que se despedaçara. Apenas pedacinhos de concha, nada mais. Inútil achar que isso provaria alguma coisa.
? Escute, admito que você pareça meio louca ? disse Ruth ?, mas e daí? Mesmo que esteja completamente delirante, ainda temos que descobrir seu delírio, certo? Um problema imaginário precisa de uma solução imaginária.
Val deixou a cabeça cair no ombro de Ruth, relaxando de um modo que não relaxava desde antes de ver a mãe e Tom, e talvez até antes disso. Esquecera o quanto adorava conversar com Ruth.
? Tudo bem, então comece do início.
? Quando vim para a cidade, estava simplesmente agindo no piloto automático. Eu tinha os ingressos para o jogo, então fui. Sei que isso parece insano. Mesmo enquanto eu ia, achava que era loucura, como se fosse uma daquelas pessoas que matam o chefe e depois se sentam de novo diante do computador para terminar relatórios. Quando topei com Lolli e Dave, só queria me perder, não ser mais nada, um zero à esquerda. Sei que tudo isso parece errado e burro.
? Muito poético. ? Ruth deu um risinho dissimulado. ? Bem gótico.
Val revirou os olhos, mas sorriu.
? Eles me apresentaram a uns seres encantados e é aí que tudo deixa de fazer sentido.
? Seres encantados? Como elfos, goblins, trolls? Como nos livros de RPG?
? Escuta, eu...
Ruth ergueu a mão.
? Só conferindo. Tudo bem, seres encantados. Estou acompanhando.
? Eles têm problemas com o ferro, por isso tem essa coisa que Lolli chama de Nunca Mais. Ou apenas Nunca, que impede que eles fiquem muito doentes. Os seres humanos podem tomá-la, o que nos deixa com a capacidade de criar ilusões ou fazer as pessoas serem do jeito que a gente quer. Estávamos fazendo entregas disso para Ravus, é ele que faz o Nunca. Nas entregas, tirávamos um pouco para nós.
Ruth assentiu com a cabeça.
? Tudo bem. Então Ravus é um ser encantado?
? Mais ou menos isso. ? Val via uma risada nos olhos de Ruth e sentiu-se grata pelo fato de a amiga não a ter deslocado para os lábios. ? Alguns deles morreram envenenados e culparam Ravus. Acho que esse arco veio de uma das criaturas mortas. Mabry estava com ele e eu simplesmente não sei o que isso significa. Tudo é tão louco. Dave transformou aquela policial num cachorro de propósito. Mabry disse a Ravus que estávamos roubando a poção dele e agora ele acha que eu tive alguma coisa a ver com as mortes. Não tomo Nunca há dois dias e todo o meu corpo dói.
Era verdade, as dores haviam recomeçado fracas e aumentavam aos poucos, a suspensão temporária do fruto encantado não foi suficiente para impedir que suas veias clamassem por mais.
Ruth apertou os ombros de Val numa espécie de abraço de lado.
? Merda. Tudo bem, que loucura. O que podemos fazer?
? Podemos descobrir o que realmente aconteceu ? respondeu Val. ? Eu tenho todas essas pistas. Só não sei como se encaixam.
Olhou para os restos do arco e pensou mais uma vez na sereia. Ravus disse que veneno de rato mata os seres encantados, mas veneno de rato é uma substância perigosa e improvável para um envenenador que pertencesse a seu povo usar, sobretudo um alquimista como Ravus. E por que ele iria querer matar um bando de criaturas inofensivas?
Um ser humano poderia ter feito aquilo. Um mensageiro humano era mais provável, nem um pouco suspeito.
Val lembrou-se da primeira entrega de que participara e da garrafa de Nunca que Dave destampara, quebrando a cera. Mabry não devia ter se preocupado? Com todos os envenenamentos, não seria como tomar uma aspirina com o selo de garantia rompido? A única maneira de alguém poder fazer isso era se já soubesse quem era o envenenador ou se fosse ele mesmo o responsável.
E Mabry já sabia que Val vinha usando o Nunca. Alguém tinha lhe contado.
? Mas por quê? ? ela disse em voz alta.
? Por que o quê? ? perguntou Ruth.
Val levantou-se e andou de um lado para o outro na pedra.
? Estou pensando. Qual o motivo dos envenenamentos? Meter Ravus em apuros!
? E daí? ? perguntou Ruth.
? Então Mabry quer se vingar dele. Claro! Vingança pela morte do amor dela. Vingança pelo seu exílio.
Mabry então. Ela e um cúmplice humano. Dave era o óbvio, já que jamais se deu ao trabalho de disfarçar que estava surrupiando o Nunca de Mabry, mas que motivo ele tinha para matar seres encantados?
Poderia ter sido Luis. Ele odiava as criaturas pelo que haviam feito no seu olho. Usava todo aquele metal para se proteger. E vinha usando o Nunca, como provavam as marcas embaixo de seu joelho, embora negasse isso. Mas para quê, se não via o encanto? E por que não se importava com o desaparecimento de Dave? Por que escolheu se enganchar com Lolli justo agora, se ela o desejava há mais tempo do que Val a conhecia? Ele parecia despreocupado demais. Era como se soubesse onde estava o irmão.
Ela parou diante desse pensamento.
? Já sei o que temos a fazer ? disse. ? Temos de ir à casa de Mabry enquanto ela continua na reunião para encontrar provas de que ela está por trás dos envenenamentos. ? Uma prova que convencesse Ravus de que ela era inocente e uma prova que convencesse os outros de que ele não era, de modo algum, o envenenador. Uma prova que o salvaria, fazendo com que lhe perdoasse.
? Tudo bem. ? Ruth pendurou a mochila no ombro. ? Vamos ajudar seus amigos imaginários.




















Capítulo 11


Bata num vidro, que ele não durará um instante;
simplesmente não bata, e durará mil anos.

? G. K. Chesterton, Orthodoxy


A
s duas amigas seguiram para o Riverside Park nas frias horas antes do amanhecer. O céu estava azul-escuro e as ruas silenciosas. O coração de Val batia com a rapidez com que bate o de um coelho, a adrenalina e a cãibra muscular impediam-na de notar o ar gelado ou a hora tardia. Ruth tremia de frio e apertava o casaco de pelúcia mais para junto do corpo quando soprava o vento que se elevava da água. Tinha riscos de maquiagem nas faces manchadas por lágrimas e as mãos descuidadas, mas, quando sorriu para Val, parecia a mesma e confiante Ruth de sempre.
O parque em si estava quase vazio, com um pequeno grupo de pessoas aconchegadas junto a uma das paredes, uma delas fumava o que parecia ser um baseado. Val olhou a fileira de prédios de apartamentos do outro lado, mas nenhum deles parecia muito reto. Escolheu a fonte entupida onde ficara dias antes, mas quando olhou para o outro lado da rua, a porta defronte dela não era da mesma cor e havia uma grade de metal nas janelas.
? Então? ? perguntou Ruth.
Val deslocou o peso de uma perna para a outra.
? Não tenho certeza.
? Que vamos fazer se você a encontrar?
Erguendo os olhos, Val notou uma gárgula num lugar ligeiramente diferente de onde se lembrava, mas o monstro de pedra bastou para convencê-la de que a casa tinha que ser a de Mabry. Talvez sua memória estivesse apenas avariada.
? Vigie. ? Val começou a atravessar a rua.
O coração martelava-lhe o peito. Não tinha a menor idéia de em que ia meter as duas.
Ruth correu atrás da amiga.
? Maravilha. Vigiar. Sou uma vigia. Outra coisa para pôr na minha proposta de inscrição na faculdade. E se eu vir alguém?
Val olhou para trás.
? Na verdade, não sei.
Examinando o prédio por um longo momento, agarrou-se a um dos aros da calha no cano vertical de escoamento da água da chuva, que vinha desde o telhado, e içou-se até o muro. Era como trepar numa árvore, como subir por uma corda na aula de educação física.
? O que você está fazendo? ? gritou Ruth com a voz trêmula.
? Para que você achou que eu precisava de uma vigia? Agora feche a matraca.
Val trepou mais alto, impulsionando-se com os pés nos tijolos do prédio e enfiando os dedos nos aros de metal, enquanto a calha grunhia e ficava com mossas sob a pressão do seu peso. Quando estendeu a mão para o parapeito de uma janela, descobriu-a na boca de uma gárgula, cuja cara parecia um cruzamento entre uma galinha e um terrier. A estátua tinha a cabeça inclinada para um lado e os olhos arregalados de surpresa ou excitação. Val retirou os dedos momentos antes que os dentes de pedra se fechassem com um estalo. Desequilibrando-se, esperneou no ar por um momento, todo o seu peso apoiado na calha e numa das mãos. O alumínio curvou-se e soltou-se dos suportes.
Val comprimiu os pés na alvenaria com força e impulsionou-se, saltando e subindo para agarrar-se à borda. Ouviu um grito agudo vindo de baixo quando se agarrou ao parapeito de uma janela. Ruth. Por um momento, apenas se segurou ali, temendo se mexer. Então, impulsionou-se para a frente pela cornija e empurrou uma janela, que emperrou e, por um momento, Val temeu que estivesse trancada ou grudada pela tinta, mas empurrou com mais força e a porta cedeu. Descendo pelas cortinas emboladas, viu-se no quarto de dormir de Mabry. O piso era de mármore cintilante e a cama tinha um dossel curvo de galhos de salgueiro, cheio de sedas e cetins amassados. Um dos lados da cama estava limpo, mas o outro se encontrava coberto de terra e amoras.
Val saiu no corredor. Uma série de portas abria-se para quartos vazios e para uma escadaria de madeira escurecida. Desceu-a e chegou à sala de estar, ouvindo apenas o rangido das tábuas do assoalho e o respingo da fonte.
A sala de estar era como lembrava, mas a mobília parecia arrumada numa disposição diferente e tinha uma das entradas maior. Val saiu do apartamento e tomou o corredor principal do prédio, com cuidado para manter a porta do apartamento de Mabry aberta. Deu uma pancadinha na fechadura da porta da frente do prédio e abriu-a. Ruth olhou-a boquiaberta. Por um momento, ficou na calçada, depois correu para dentro.
? Você pirou de vez ? disse. ? Acabamos de invadir um apartamento de luxo.
? Está protegido por encanto ? disse Val. ? Tem de estar.
Pela primeira vez, examinou as duas portas que julgara darem para outros apartamentos. Uma ficava em frente ao de Mabry, a outra no fim do corredor. Em vista do tamanho dos aposentos e da escadaria do apartamento de Mabry e das dimensões do prédio visto da rua, não parecia possível que as portas levassem a algum lugar. Ela balançou a cabeça para clarear a mente. Não tinha importância. O importante era encontrar alguma prova para incriminar Mabry, alguma coisa que provasse que ela envenenara outros seres encantados, provar isso não apenas para Ravus, mas para Greyan e para qualquer outro que achasse que o troll estava por trás das mortes.
? Pelo menos é quente aqui. ? Ruth entrou no apartamento e virou-se no cintilante piso de mármore. A voz ecoou nos aposentos quase vazios. ? Se tivermos de ser presas por arrombamento, vou ver o que tem para roubar na geladeira.
? Estamos tentando encontrar prova de que ela é uma envenenadora. Só pense bem antes de começar a pôr coisas na boca.
Ruth deu de ombros e passou por ela.
Uma cristaleira ficava num canto da sala de estar. Val observou pelo vidro o que havia exposto ali dentro. Um pedaço de casca de árvore, entrelaçado com cabelo carmesim; uma estatueta de bailarina, os braços nos quadris e os sapatos vermelhos como rosas; o gargalo quebrado de uma garrafa e uma flor castanha desbotada. Ela achou que se lembrava de tesouros estranhos diferentes da visita anterior.
Isso fez com que Val ficasse consciente de como sua tarefa era impossível. Como perceberia a prova, mesmo que a visse? Ravus poderia reconhecer esses objetos, saber para que serviam e talvez até parte de sua história, mas ela não conseguia deduzir nada deles. Era difícil imaginar Mabry como uma criatura sentimental, mas talvez houvesse sido em outra época, antes da morte de Tamson torná-la odiosa.
? Ei ? disse Ruth do aposento seguinte ?, veja isso.
Val seguiu a voz da amiga e chegou até a sala de música. Ruth estava ao lado da harpa de colo, sentada num divã forrado com um estranho couro rosado. O corpo do instrumento parecia ser de madeira dourada, esculpida com arabescos de acanto, e cada corda era de um matiz diferente. A maioria era marrom, dourada ou preta, mas algumas eram vermelhas e havia uma verde-folha. Ruth ajoelhou-se ao lado da harpa.
? Não... ? disse Val, mas Ruth roçou os dedos numa corda marrom.
Imediatamente, um gemido inundou a sala.
? Muito tempo atrás, eu era uma das damas de companhia da rainha Nicnevin ? entoou uma voz lacrimosa com um sotaque forte e estranho. ? Era sua favorita, a confidente, e me divertia em atormentar as outras. Nicnevin tinha um brinquedo particular, um cavaleiro da Corte Digna, do qual gostava muito. As lágrimas de ódio dele davam-lhe mais prazer que os gritos de amor de outro. Fui intimada à presença da Rainha... ela queria saber se eu andava fazendo intrigas com ele. Não, não fazia. Então ela ergueu um par de luvas dele e pediu que eu olhasse o bordado ao longo dos punhos. Era um desenho caprichado, bordado com fios de meus próprios cabelos. Havia mais supostas provas: visões de nós dois juntos, um bilhete na letra dele jurando devoção, mas nenhuma delas era verdadeira. Joguei-me a seus pés, implorando misericórdia a Nicnevin, louca de medo. Quando me levaram para a morte, vi uma das outras damas, Mabryn, sorridente, os olhos brilhantes como agulhas, os dedos estendidos para arrancar um único fio de cabelo da minha cabeça. Agora preciso contar minha história para todo o sempre.
? Nicnevin? ? perguntou Ruth. ? Quem será?
? Acho que é a antiga Rainha Indigna ? explicou Val. Arrastou os dedos por várias cordas de uma só vez. Uma cacofonia de vozes elevou-se, cada uma contando sua história amarga e mencionando Mabry. ? São todas de cabelo. O cabelo das vítimas de Mabry.
? Isso é uma assombração das boas ? Ruth observou.
? Cala a boca! ? disse Val.
Uma das vozes parecia conhecida, mas ela não soube exatamente localizar onde a ouvira antes. Puxou uma corda dourada.
? Outrora eu era um cortesão a serviço da rainha Silarial ? começou uma voz masculina. ? Vivia para os esportes e para os enigmas. Duelava e dançava. Então, me apaixonei e tudo isso deixou de ter importância. Minha única alegria estava em Mabry. Só desejava algo se isso lhe desse prazer. Cobria-a de alegria. Então, numa tarde de ócio, quando colhíamos flores para tecê-las em guirlandas, vi que ela se afastara. Segui-a e ouvi-a falando com uma criatura da Corte Indigna. Pareciam muito amigos e ela baixou a voz quando lhe contou a informação que obtivera para a Rainha Indigna. Eu devia ter ficado furioso, mas senti muito medo por ela. Se Silarial descobrisse, as consequências teriam sido terríveis. Eu disse a Mabry que não contaria a ninguém, mas que ela devia partir imediatamente. Ela me disse que ia partir e chorou amargamente por ter me enganado. Dois dias depois, eu devia participar de um duelo com um amigo num torneio. Quando vesti a armadura, ela pareceu estranha, mais leve, mas não dei a menor importância. Mabry me disse que costurara seu próprio cabelo à armadura como lembrança. Quando meu amigo a atingiu, a armadura se desfez e a espada me varou. Senti a seda do cabelo dela no rosto e soube que havia sido traído. Agora preciso contar minha história para todo o sempre.
Val desabou no divã, fitando a harpa. Mabry era uma espiã da Corte Indigna. Ela própria matara Tamson. Ravus fora apenas seu instrumento.
? Quem era esse? ? perguntou Ruth. ? Você o conhecia?
Val fez que não com a cabeça.
? Mas Ravus, sim. Foi ele quem brandiu a espada nessa história.
Ruth mordeu o lábio inferior.
? Que coisa mais complicada. Como vamos descobrir alguma coisa?
? Já descobrimos alguma coisa. ? Val se levantou e entrou no cômodo seguinte.
Era a cozinha. Não tinha fogão, nem geladeira, apenas uma pia numa longa extensão de ardósia polida. Val abriu um dos armários, mas ele continha apenas frascos vazios.
Pensou na forma encantada de Ravus, os olhos dourados, a falha no disfarce. Emanava alguma coisa inquietante daqueles aposentos perfeitos, sem poeira e nem sequer um fio de cabelo solto ou alguma sujeira, ecoando apenas com passos e com respingos d'água. Mas se aquele lugar havia sido encantado, ela não tinha a menor idéia do que estava sob o encanto.
Ruth entrou na cozinha e Val notou o pó branco que chuviscava de sua mochila.
? Que é isso? - perguntou.
? O quê? ? Ruth olhou para o piso atrás de si e retirou a mochila, rindo. ? Parece que cortei a lona e fiz um buraco no nosso bebê.
? Merda. Isso é pior que uma trilha de migalhas de pão. Mabry vai saber que estivemos aqui.
Ruth agachou-se e começou a varrer o pó com as duas mãos. Em vez de formar um montinho, o pó jorrava em nuvens brancas. Quando Val olhou para a farinha, teve uma idéia:
? Espere. Escute, acho que talvez eu tenha cometido infanticídio.
Ruth encolheu os ombros e retirou o saco de farinha.
? Acho que sempre poderemos ter outro.
Val rasgou a embalagem de papel e começou a pulverizar a farinha no chão.
? Deve haver alguma coisa aqui que não podemos ver.
Ruth pegou um punhado de pó branco e lançou-o na porta. Val lançou outro. Logo o ar ficou espesso graças à farinha, que já cobria o cabelo das meninas e, quando elas respiravam, o pó grudava-se em suas línguas.
A farinha instalou-se sobre todo o apartamento, mostrando o lago de peixes como um cano quebrado, esguichando água em baldes e formando poças no chão, o revestimento despedaçado do teto, os azulejos rachados nas paredes e caminhos de fezes de rato no chão.
? Veja.
Ruth encaminhou-se para uma das paredes. O pó a tornando fantasmagórica. A farinha grudou-se em quase toda a parede, mas deixou uma grande área descoberta.
Val atirou mais pó nessa lacuna, mas, em vez de atingir a parede, parecia atravessar o espaço.
? Conseguimos. ? Deu um sorriso e ergueu o punho. ? Super-gêmeos, ativar!
Ruth retribuiu o sorriso, batendo o punho de Val.
? Forma de duas lunáticas fodidas.
? É você quem diz ? disse Val e, abaixada, atravessou a abertura.
Ali, num quarto sombrio com cortinas de veludo, estava Luis. Embora estivesse deitado num tapete estampado de romãs e envolto numa manta de lã, tremia de frio. Tinha sangue no couro cabeludo e várias de suas tranças haviam sido cortadas.
A princípio, Val apenas olhou-o, boquiaberta.
? Luis? ? acabou conseguindo dizer.
Ele ergueu os olhos, franzindo-os, como se olhasse para uma luz brilhante.
? Val? ? Ele arrastou-se para poder sentar. ? Onde está Dave? Está tudo bem com ele?
? Não sei ? ela respondeu, distraída. A mente disparava como um raio. ? O que você está fazendo aqui?
? Não vê que estou acorrentado? ? Virou os pulsos e Val viu as tranças dele amarradas e presas bem apertadas.
? Você está preso no chão? ? perguntou idiotamente Val. ? Mas e o tapete?
Luis riu.
? Imagino que este lugar deva parecer lindo aos seus olhos.
Val olhou os sofás baixos, as estantes de livros transbordando de volumes de histórias de fadas encapados com tecido, a grandeza desbotada do tapete e as molduras pintadas nas paredes.
? É um dos mais magníficos quartos em que já entrei.
? As paredes de gesso são rachadas, tem um vazamento no telhado, o que significa que cada canto está preto de mofo. Também não tem mobília aqui e com certeza nenhum tapete, apenas ripas de madeira com alguns pregos velhos despontando.
Val olhou a luz suave ao redor, que vinha de uma luminária de estanho com uma cúpula franjada.
? Então o que estou vendo?
? Encanto, que mais?
Ruth enfiou a cabeça no quarto.
? Quem está... Luis?
? Espere aí. Como podemos ter certeza de que você é realmente Luis? ? perguntou Val.
? Quem mais seria?
Ruth entrou quase toda, com o pé ainda na abertura encantada, como se achasse que a porta poderia se fechar a qualquer momento sem uma cunha.
? Acabamos de deixá-lo no parque e você estava dormindo.
Luis deixou cair a cabeça para trás.
? É, bem, a última vez que vi Ruth, eu estava com Lolli e Dave no parque. Tínhamos escolhido um lugar para dormir perto do Castelo do Tempo. Lolli cochilava encostada em mim, quando Dave simplesmente se levantou e foi embora. Eu sabia que ele estava transtornado. Merda, eu também estava apavorado. Achei que talvez ele quisesse ficar sozinho. Mas, como passou um certo tempo e ele não voltou, fiquei sem saber o que pensar. Por isso, saí à procura dele. Finalmente, vi Dave voltando pelo passeio e ele também não estava sozinho. A princípio achei que fosse algum cara que eu não conhecia, batendo nele, mas depois vi que a figura tinha penas no lugar do cabelo. Fui correndo na direção deles e foi quando dedos finos cobriram a minha boca e o meu olho bom, agarraram meus braços e minhas pernas. Ouvi-os rindo baixinho, quando me ergueram no ar e meu irmão dizia: "Não tenha medo. É só por algum tempo." Eu não soube o que pensar. Com certeza, não achei que ia acabar aqui.
? Você viu Mabry? ? perguntou Val. ? Ela te disse alguma coisa?
? Não vi muito bem. Ela estava desesperada com alguma coisa que tinha acontecido. Alguém a visitou e ela ficou fula da vida.
? Eu preciso lhe contar uma coisa ? disse Val.
Luis se calou, a boca comprimida numa linha fina.
? O quê? ? perguntou, a voz tão baixa que fez o coração dela doer.
? Nós estávamos achando que o Dave tinha desaparecido. Ele sumiu. Alguém está fingindo ser você.
? Então vocês vieram aqui à procura do Dave?
? Viemos à procura de provas. Acho que Mabry está por trás das mortes dos seres encantados.
Luis fez uma cara feia.
? Espere, então onde está meu irmão? Ele se meteu em apuros?
Val abanou a cabeça.
? Acho que não. Quem quer que esteja fingindo ser você parece passar o tempo todo trepando com Lolli. Não acho que isso esteja exatamente na ordem do dia sobrenatural, mas decididamente está nos planos de Dave.
Luis estremeceu, mas não disse nada.
? Devíamos nos apressar. ? Ruth afagou a cabeça de Val e entrelaçando os dedos pelos fios curtos e espetados. ? Só porque essa puta não pode amarrar você com seus próprios cabelos não significa que devemos ficar aqui.
? Certo.
Val curvou-se sobre Luis, olhando as tranças que o prendiam ao chão.
Tentou arrebentá-las ou soltá-las, mas eram tão rígidas como se fossem feitas de aço.
? Mabry cortou-as com tesoura ? disse Luis. ? E também esfolou meu couro cabeludo.
? Acha que uma tesoura cortaria as tranças? ? perguntou Ruth.
Val assentiu com a cabeça.
? Ela precisa ter um modo de desfazer seus próprios feitiços. O que poderia ser?
? Eu não sei ? respondeu Luis. ? Talvez isso nem se pareça com uma tesoura.
Val levantou-se e foi para a sala de estar, parando na fonte onde a farinha se dissolvera, depois foi até a cristaleira.
? Vê alguma coisa? ? perguntou Val.
Ruth retirou uma gaveta e esvaziou o conteúdo no chão.
? Nada.
Val examinou a cristaleira, notando mais uma vez a bailarina, as curvas que seus braços faziam e a cor de sangue dos sapatos. Pegando a boneca, levantou-a, enfiando os dedos pelas aberturas do braço, e empurrou-as. As pernas da estatueta fecharam-se e abriram-se, iguais a uma tesoura.
? Pegue a harpa ? disse Val. ? Vou pegar Luis.


Ainda não tinha amanhecido totalmente quando tomaram o caminho de volta pelo passeio, atravessaram as trilhas ramificadas até onde haviam deixado Lolli e o que parecia ser Luis. As cordas da harpa chiavam enquanto elas se deslocavam, mas Ruth abafou-as, segurando o instrumento bem junto do peito. Quando Val, Ruth e Luis se aproximaram, viram que o outro Luis estava acordado.
A voz de Lolli saiu alta e trêmula.
? Faz tanto frio e você está ardendo de febre.
O falso Luis olhou-os. Tinha olheiras profundas e a boca arroxeada. A pele, branca como papel, estava toda coberta pelo brilho de suor que a fazia parecer de plástico. Com dedos trêmulos, ele levou um cigarro aos lábios. A fumaça não deixou seu corpo.
? Dave ? disse o verdadeiro Luis, a voz normal, calma, exatamente como a de Val depois que vira a mãe com Tom. A inflexão era tão cheia de emoção que soava como sem emoção alguma.
Lolli olhou para Luis e depois para o clone.
? O que... que está acontecendo?
? Você não saberia distinguir um do outro, saberia? ? disse-lhe o Luis disfarçado.
Seu rosto alterava-se, as feições mudando sutilmente e tornando-se as de Dave.
A boca e os olhos enegrecidos permaneceram, assim como o brilho de suor na pele.
Lolli arquejou.
Ele ria como um maníaco, a voz rascante.
? Você não poderia sequer distinguir um do outro, mas jamais me daria uma chance.
? Seu merda filho-da-puta.
Lolli deu um tapa no rosto de Dave. Atingiu-o mais uma vez, os golpes chovendo contra as mãos que ele ergueu para repeli-la.
Luis agarrou os braços dela, mas Dave riu de novo.
? Acha que me conhece? Sou Dave Mal Acabado? O Dave Covarde? O Dave Idiota? Dave Que Precisa Da Proteção Do Irmão? Eu não preciso de nada. ? Ele encarou Luis. ? Você é tão inteligente, não é? Tão inteligente que não viu nada disso acontecer. Quem é o imbecil, hein? Tem alguma porra de uma palavra extravagante à altura de sua idiotice?
? Que foi que você fez? ? perguntou Luis.
? Fez um trato com Mabry ? concluiu Val. ? Não fez?
Dave sorriu, mas parecia um riso forçado, a pele da boca muito contraída. Quando falou, Val viu apenas um negrume além dos dentes, como se olhasse para um túnel escuro.
? E, eu fiz um acordo. Não preciso da Visão para saber quando tenho alguma coisa que alguém quer. ? Dave enxugou a testa, com os olhos ficando cada vez mais arregalados. ? Eu queria...
Ele desabou, com o corpo tremendo. Luis ajoelhou-se ao lado do irmão e estendeu a mão para retirar os dreads de seu rosto, depois puxou-a bruscamente.
? Ele está quente demais. É como se o rosto dele ardesse em chamas.
? O Nunca ? disse Val. ? Ele tem usado Nunca muito mais que uma vez por dia. Precisava tomar o tempo todo para manter essa forma.
? No cinema, colocam as pessoas com febres loucas numa banheira com gelo ? disse Ruth.
? Como quando detectam drogas do Reino Encantado no sangue das pessoas? ? retrucou Lolli, agressiva.
? Agarre-o ? disse Val. ? O lago deve estar frio o suficiente.
Luis deslizou as mãos sob os ombros do irmão.
? Tome cuidado. O corpo está realmente quente.
? Tome minhas luvas.
Ruth retirou um par do bolso do casaco e entregou-o a Val.
Pondo-as rápido, Val segurou os tornozelos de Dave. Tocar a pele dele era como pegar a alça de uma panela de água fervente. Ergueu-o. Ele era tão leve que parecia oco.
Juntos, ela e Luis desceram os degraus correndo e tomaram as trilhas do passeio até a beira d'água. O calor do corpo de Dave chamuscava-lhe a pele através das luvas e ele se contorcia e debatia como se lutasse contra uma força invisível. Val rangia os dentes e segurava firme.
Luis patinhou para a água e Val seguiu-o, o frio gelado nas batatas das pernas formava um terrível contraste com a queimadura das mãos.
? Muito bem, abaixe ? ordenou Luis.
Baixaram Dave na água, o corpo fumegando ao tocar o lago. Val soltou-o e saiu de volta para a margem, mas Luis continuou segurando-o, mantendo a cabeça do irmão acima da água, como um pastor realizando um terrível batismo.
? Está ajudando? ? gritou Ruth.
Luis assentiu com a cabeça, esfregando o rosto flutuante do irmão. Val viu que as mãos tinham um forte tom de cor-de-rosa, mas se era queimadura ou apenas frio, não teve certeza.
? Melhor, mas temos de levá-lo para um hospital.
Lolli entrou no lago e examinou Dave.
? Seu idiota fodido! Como pôde ser tão burro? ? De repente, Lolli pareceu perdida. ? Por que foi fazer isso comigo?
? Não pode se sentir responsável. ? Val tentou acalmá-la. ? Se eu fosse você, acho que ia querer matá-lo.
? Não sei o que sentir ? confessou Lolli.
? Val ? disse Luis ?, precisamos pedir ajuda a Ravus.
? Ravus? ? quis saber Ruth.
? Ele já salvou a vida de Dave antes ? lembrou Luis.
Val pensou no rosto de Ravus, bem perto, os olhos sombrios de fúria. Pensou em tudo que sabia sobre Mabry e nas coisas que mal acabara de deduzir sobre a moeda que Mabry havia utilizado para pagar pela ajuda de Dave.
? Não sei se ele vai querer fazer isso agora.
? Eu levo Dave para o hospital ? ofereceu-se Lolli.
? Vá com ela, ok? ? pediu Val a Ruth. ? Por favor.
? Eu? ? Ruth parecia não acreditar naquele pedido. ? Eu nem conheço esse cara.
Val curvou-se mais para perto dela.
? Mas eu conheço você.
Ruth revirou os olhos.
? Tudo bem. Mas vai ficar me devendo uma. Você me deve, digamos, um mês de servidão cega.
? Eu lhe devo um ano de servidão cega. ? Val patinhou até a água para ajudar Luis a erguer mais uma vez o corpo do irmão.
Devagar, foram andando até a rua. O primeiro táxi que chamaram parou e então, vendo o corpo de Dave, arrancou antes que Lolli pudesse segurar a maçaneta da porta. O seguinte parou, parecendo indiferente quando as duas meninas entraram e Luis estendeu o irmão, que não parava de se contorcer no colo delas.
? Tome. ? Ruth entregou a harpa para Luis.
? Vamos cuidar dele ? disse Lolli.
? Vou para lá assim que puder.
Luis hesitou ao fechar a porta.
O táxi começou a afastar-se e Val viu o pálido rosto de Ruth fitando-a da janela de trás, articulando com os lábios alguma coisa sem som que ela não conseguiu entender, enquanto o carro se afastava cada vez mais.














Capítulo 12


E os doces lábios dela nos lábios meus
Ardiam como o fogo rubi em chamas
Na oscilante lâmpada de um santuário carmesim
Ou as feridas que sangravam da romã,
Ou o coração do loto encharcado e molhado
Com o sangue do vinho tinto rosa derramado.

? Oscar Wilde, In the gold room: a harmony


U
ma carruagem puxada a cavalo parou sob o arco da viga da ponte. Era uma longa distância do parque ou de qualquer outro lugar em que se esperava encontrar um veículo como aquele e o cavalo pardo parecia agitado na fraca luz do amanhecer. Estava sem condutor.
? Acha que alguém pegou uma carona para ir ao supermercado? ? perguntou Val.
? Isso não é cavalo coisa nenhuma. ? Luis afastou Val para longe dali com os olhos injetados, os lábios rachados de frio. ? Alegre-se por não ver o que realmente é.
Parecia qualquer outro cavalo urbano, com o lombo grande e frouxo e cascos gordos. Val franziu os olhos para o animal até a imagem ficar borrada, mas continuou sem saber o que Luis via e decidiu não perguntar.
? Venha.
Colando-se na parede oposta, ela rastejou sob o viaduto, com Luis logo atrás. Bateu no toco, mas quando deslizaram pela entrada, Val ouviu alguém descer a escada da ponte com passos estrondosos.
Era tarde demais para fazerem alguma coisa além de olharem boquiabertos para Greyan. Ele tinha as mãos cobertas de sangue, sangue que pingava das pontas dos dedos e coagulava-se nos degraus empoeirados, brilhante demais para parecer real. Segurava duas facas de bronze juntas numa das mãos, que também brilhavam com sangue coagulado.
? Está feito ? disse o ogro. Parecia cansado. ? Esses serezinhos humanos, deixe-me ensiná-la a não se intrometer mais nas atividades dos seres encantados.
? Onde está Ravus? ? quis saber Val. ? O que aconteceu?
? Vai lutar contra mim de novo, mortal? Sua lealdade é louvável, embora fora de lugar. Poupe sua coragem para um inimigo mais merecedor. ? Greyan passou por ela empurrando-a e desceu os degraus restantes. ? Não posso me dar ao luxo de lidar com mais mortes hoje.
Tudo se estreitou naquele momento, naquela palavra. Mortes. Claro que não, disse Val a si mesma, tocando a parede de pedra fria em busca de apoio. Por um momento, achou que não ia conseguir subir o resto da escada. Não suportaria.
Luis subiu os degraus devagar, até o patamar, e depois voltou. Levou o dedo aos lábios.
? Ela está lá.
Val pôs-se a subir, rápido demais, e ele segurou-a pelo braço.
? Nada de barulho ? sibilou.
Val assentiu com a cabeça, não ousando perguntar sobre Ravus. Juntos, subiram degrau por degrau, cada pisada provocando uma pequena baforada de poeira, o rangido da estrutura de ferro, o chiado das cordas da harpa, coisas que ela esperava que fossem abafadas pelo estrondo constante do tráfego acima. Quando se aproximaram do patamar, ouviu a voz de Mabry, cheia de ansiedade.
? Onde você o guarda? Sei que há veneno aqui em algum lugar. Diga logo, faça-me um último serviço.
Val esperou ouvir a resposta de Ravus, mas ele não falou.
Luis parecia sinistro.
? Você era tão ansioso por agradar ? continuou Mabry, ressentida.
Alguma coisa caiu dentro do aposento e Val achou que ouvira o som agudo de vidro despedaçando.
Ela avançou de mansinho, rompendo a divisória de plástico. A escrivaninha de Ravus fora virada, os livros e papéis espalhavam-se pelo aposento. A poltrona, cortada nitidamente no meio do encosto, vazava plumas e espuma. Algumas velas tremeluziam do chão, rodeadas de caminhos de cera. Havia profundos cortes abertos na pedra das paredes. Ravus jazia de costas, uma das mãos sobre o peito, com sangue despontando entre os dedos. Listas escuras, molhadas, tingiam o piso, como se ele tivesse se arrastado por ali. Mabry, curvada sobre um armário, remexia o conteúdo com uma das mãos, a outra segurava um prato contendo os restos vermelhos de alguma coisa.
Val rastejou mais para perto, alheia aos beliscões de advertência que Luis lhe dava, o medo entorpecendo tudo que estava ao seu redor, menos a visão do corpo de Ravus.
? Sabe quanto tempo esperei para ver você morrer? ? perguntou Mabry, a voz quase frenética agora. ? Finalmente ficarei livre do exílio. Livre para retornar à Corte Luminosa e ao meu trabalho. Mas, agora, todo o prazer que imaginei sentir com sua morte me é roubado.
"Tinha de aparecer alguém responsável pelo assassinato de todas aquelas criaturas, portanto, você pelo menos serviu para alguma coisa. Ninguém gosta de pontas soltas." Mabry escolheu um frasco do armário e inspirou fundo. "Isso servirá... minha nova Dama está impaciente e quer tudo resolvido antes de meados do inverno. Não é irônico que, depois de todo esse tempo, depois de toda a sua lealdade, seja eu a escolhida para ser a agente dela na Corte Indigna? Eu não teria imaginado que a Rainha da Corte Luminosa iria querer uma agente dupla para ela. Talvez eu passe a gostar de trabalhar para Silarial. Afinal, ela provou ser uma ama tão implacável quanto minha própria querida Dama."
Val abriu a divisória de plástico e esgueirou-se para o aposento. Ravus tinha a cabeça voltada para a parede de onde pendia a espada de Tamson, os olhos dourados opacos e desfocados. Com a mão, escondia uma profunda cavidade no peito, como se implorasse por alguma coisa no momento da morte. O aposento tinha um cheiro forte de uma estranha e pesada doçura que causou náuseas em Val.
Entrego meu coração e espero a morte.
Val tremia quando se levantou, não mais se importando com Mabry, política, planos, nem com qualquer coisa a não ser com Ravus.
Não conseguia desviar o olhar do sangue que manchava os cantos dos lábios e tingiam os dentes dele. Na pele pálida demais, o verde era a única cor que restava.
Mabry deu meia-volta, o prato em suas mãos continha, claramente, o pedaço de carne que faltava no peito de Ravus. O coração. Val sentiu uma tonteira que ameaçou dominá-la. Tinha vontade de gritar, mas a garganta se fechou com as palavras de Mabry.
? Luis ? ela disse ?, seu irmão vai lamentar saber que se cansou tão rápido da minha hospitalidade.
Val deu meia-volta. Luis estava parado atrás dela, um músculo na mandíbula do garoto tremia.
? É minha harpa. ? Desprendia-se da voz dela um certo prazer provocativo, que conflitava com o ambiente em volta, com as mobílias quebradas e o sangue. ? Ravus, veja o que seus empregados trouxeram. Um pouco de música.
? Por que não pára de falar com ele? ? gritou Val. ? Não vê que ele está morto?
Ao som da voz dela, Ravus virou ligeiramente a cabeça.
? Val? ? grunhiu.
Ela deu um salto, recuando para longe do corpo dele. Não era possível que Ravus estivesse falando. A esperança guerreava contra o horror e ela sentiu um bolo avolumar-se na garganta.
? Ande, Luis ? disse Mabry. ? Toque. Tenho certeza de que ele descansaria com mais facilidade sabendo da história.
Luis dedilhou uma corda e a voz de Tamson ecoou pelo aposento, contando sua história. Assim que Tamson disse a palavra "traído", a espada de vidro caiu da parede, quebrando-se por dentro, como gelo num lago.
? Tamson ? disse Ravus, baixinho. Ele ergueu os olhos duros de ódio, mas tinha o braço escorregadio demais graças ao sangue para apoiá-lo. Tornou a cair com um gemido.
Mabry curvou o lábio para cima e avançou com o ar empertigado sobre Ravus.
? Oh, ver seu rosto quando você atravessou a espada nele. Seu cabelo será a próxima corda na minha harpa, gemendo sua patética história para sempre.
? Saia de perto dele ? disse Val, erguendo um pedaço de madeira, uma parte quebrada da mesa.
Mabry ergueu o prato.
? Assombroso, não é, que os trolls possam viver por algum tempo sem o coração? Ele tem talvez uma hora, se eu não o apressar, mas arremessarei o coração dele no chão se não sair do meu caminho.
Val ficou imóvel, largando o pedaço de madeira.
? Muito bem ? disse Mabry. ? Eu o deixarei em suas hábeis mãos.
Desceu pela escada, os cascos fazendo um estardalhaço nos degraus, a cauda do vestido ondulando atrás dela.
Val ajoelhou-se ao lado de Ravus, que ergueu um longo dedo com garra para tocar-lhe o rosto. Tinha os lábios manchados de carmesim escuro.
? Eu desejei que você viesse. Não devia, mas desejei.
? Diga o que posso pegar para você ? pediu Val. ? Que ervas devo misturar.
Ele fez que não com a cabeça.
? Isso eu não posso curar.
? Então vou buscar seu coração. ? A voz de Val era pesada.
Levantou-se de um salto, passou a toda por baixo da divisória de plástico e desceu a escada. Bateu na parede e atravessou a entrada para a rua. O ar frio chicoteou-lhe o rosto, mas Mabry e a carruagem haviam desaparecido.
Tudo se desenrolara louca e estonteantemente, ficando tão fora de controle que Val não pudera impedir. Não tinha saída alguma. Nenhum plano.
A única coisa sobre a qual ainda tinha algum poder era sobre si mesma. Podia afastar-se dali, correr desembestada mais uma vez, sem parar, até ficar tão gelada e entorpecida que não sentisse nada. Pelo menos seria ela a tomar a decisão; estaria no controle. Não ia ter que ver Ravus morrer.
Ali, agachada na calçada, engasgou-se com soluços de olhos secos. Era como vomitar quando nada restara no estômago. Enterrou as unhas no pulso, a dor fez sua mente concentrar-se até ela conseguir forçar-se a subir de volta a escada sem gritar.
Luis ajoelhava-se junto a Ravus, a mão apertada na dele.
? Uma corda de amaranto ? disse roucamente o troll, uma bolha vermelha formando-se no lábio. ? O sono de uma criança, o perfume do verão. Teça isso numa coroa para seu irmão e ponha-a na cabeça dele com suas próprias mãos.
? Não sei como arranjar essas coisas. ? A voz de Luis falhava.
Val fitou os dois, desviou o olhar para a parede e para as persianas empoeiradas.
? Perdoe-me ? disse.
Ravus virou-se para ela, que não pôde, contudo, esperar a resposta dele. Puxou o tecido, arrancando as cortinas, e o espaço inundou-se de luz. Grãos de poeira dançavam no ar.
? O que você está fazendo? ? gritou Luis.
Ela ignorou-o e correu para a janela seguinte. Ravus ergueu-se sobre um dos cotovelos. Abriu a boca para falar, mas sua pele ficou cinza e a boca endureceu, os lábios ligeiramente separados, as palavras silenciadas. Tornou-se pedra, uma estátua feita pela mão de algum escultor distorcido, e o sangue no chão virou pedregulhos.
Luis correu para onde ela arrancava mais cortinas.
? Você enlouqueceu?
? Precisamos de tempo para deter Mabry ? gritou Val. ? Ele não morrerá enquanto for pedra. Não morrerá até o crepúsculo.
Luis assentiu com a cabeça, devagar.
? Achei que podia... não pensei na luz do sol.
? Ravus pode tecer ele mesmo a coroa para Dave quando acordar. Foi sobre isso que perguntou a ele, não foi? ? Val ergueu a espada de Tamson, brilhando tão intensamente à luz do sol que ela não pôde olhá-la diretamente. Segurou o punho entre as palmas das mãos. ? Vamos encontrar Mabry e depois salvar os dois.
Luis recuou um passo.
? Pensei que as espadas mágicas não se quebrassem.
Val sentou-se de pernas cruzadas no chão, deixando a espada apoiada nos joelhos. A rachadura era visível sob o vidro, mas quando ela correu os dedos pela superfície, ficou intacta.
? Mabry disse alguma coisa sobre ser uma agente na Corte Indigna.
? Agente dupla. ? Luis girou a argola no lábio com o polegar e o indicador enquanto refletia. ? E procurava veneno.
? As criaturas no parque disseram que Silarial havia chegado para ver Mabry. Achavam que ela tinha alguma prova. Será que as duas fizeram algum acordo?
? Um acordo para ela envenenar alguém?
? Muito bem ? disse Val. ? Se Silarial sabia que ela tinha sido responsável pelo envenenamento dos membros da Corte Digna exilados, então deixou Mabry numa situação extremamente difícil. Teria de fazer o que Silarial mandasse para salvar a própria pele. Até voltar para sua própria corte e matar alguém.
? Foi meu irmão que os envenenou, não foi? ? perguntou Luis.
? Como?
? Foi isso que Dave fez para Mabry. Envenenou todos aqueles seres encantados para parecer que Ravus estava por trás das mortes. Em retribuição a Dave, ela me amarrou na casa dela. Foi isso o que você quis dizer quando contou que Silarial é a responsável. Quis dizer que ela orquestrou tudo, mas outra pessoa fez o envenenamento.
? Eu não quis dizer essas coisas. Não sabemos se foi isso o que aconteceu.
Luis ficou calado.
? Surpreende-me que você se importe. ? A frustração e o medo tornaram Val agressiva. ? Nem sequer imaginava que achasse o assassinato de seres encantados uma coisa tão importante.
? Você achou que eu era o assassino, não achou? ? Luis desviou o olhar de Val.
? Claro que sim. ? Val sabia que estava sendo cruel, mas as palavras brotavam-lhe dos lábios como coisas vivas, aranhas, vermes e besouros loucos para sair de sua boca. ? Toda essa sua conversa de que os seres encantados são perigosos e, depois, ah, escute, eles têm sido mortos com veneno de rato. Se você tivesse adivinhado que Dave era o envenenador, que teria feito? Teria realmente detido o criminoso?
? Claro que teria ? cuspiu Luis.
? Ah, qual é. Você odeia as criaturas mágicas.
? Eu tenho medo deles ? berrou Luis e depois respirou bem fundo. ? Meu pai tinha a Visão, e isso o enlouqueceu. Minha mãe está morta. Meu irmão catatônico. Sou um vagabundo caolho aos dezessete anos. O Reino Encantado deve ser uma festa ininterrupta.
? Bem, então, abra o champanhe. ? Val aproximou-se dele o suficiente para sentir o calor de seu corpo. Girou a mão em volta do aposento. ? Mais um deles está morto.
? Não foi isso que eu quis dizer. ? Luis afastou-se dela, a luz lavando a cor de seu rosto. Encaminhou-se para o corpo de Ravus, estendeu a mão para tocar a pedra e tornou a retirá-la como se fosse ser queimado. ? Eu simplesmente não sei o que podemos fazer.
? Quem você acha que Silarial quer que Mabry envenene? Tem de ser alguém na Corte Indigna.
? É a que Ravus chamava de Corte Noturna.
Val foi até o mapa na parede do quarto de Ravus.
? Aqui, nas imediações da cidade de Nova York, longe dos alfinetes que assinalam cada um dos envenenamentos, onde há duas marcas pretas, uma no norte de Nova York, a outra em Nova Jersey. ? Ela tocou a de Jersey. ? Aqui.
? Mas quem? Isto está muito acima de nosso poder.
? Não tem um rei novo lá? ? perguntou Val. ? Mabry disse alguma coisa sobre meados do inverno. Poderia ser ele quem ela deveria matar?
? Talvez.
? Mesmo que não seja, isso não tem importância. Só precisamos saber onde ela está.
? Mas as cortes não são lugares aonde seres humanos podem ir, sobretudo a Corte Indigna. A maioria dos seres encantados nem ousa pisar lá.
? Nós precisamos ir, temos que pegar o coração do Ravus. Ele vai morrer se não o trouxermos.
? O que vamos fazer? Ir até lá e pedi-lo?
? Quase ? ela respondeu.
Quando Val se levantou, viu um frasquinho de Nunca caído ao lado do asfódelo e dos frutos de roseira. Pegou-o.
? Para que isso? ? perguntou Luis, embora soubesse perfeitamente bem.
Ela desviou os pensamentos para Dave, mas mesmo a pele pálida e a boca enegrecida não a deixaram menos faminta de Nunca. Talvez precisasse. Precisava agora. Uma picada e toda a dor iria embora. Mas enfiou o frasco na mochila e pegou as passagens de trem que comprara semanas antes, entregando-as a Luis. O papel desgastara-se tanto dentro da mochila que lhe pareceu tão macio quanto tecido, mas quando Luis pegou o dele, a passagem cortou superficialmente a pele dela. Por um momento, a pele pareceu tão surpresa que se esqueceu de sangrar.




Capítulo 13


Logo após os monstros, morrem os heróis.

? Roberto Calasso, As núpcias de cadmo e harmonia


V
al empoleirou-se no assento por alguns momentos e em seguida se pôs a andar pelo corredor de um lado para o outro. Toda vez que o condutor passava por ela, perguntava-lhe qual era a próxima parada, se estavam atrasados, se podiam ir mais rápido. Ele respondia que não. Vendo a espada embrulhada numa manta suja e amarrada com cadarços, seguia adiante, apressado.
Ao embarcar, ela teve que mostrar o punho para provar que a espada era apenas decorativa. Apenas vidro, afinal. Explicou que fazia uma entrega.
Luis falava baixinho no celular de Val, a cabeça voltada para uma janela. Ligou para os hospitais em que conseguiu pensar antes de lembrar-se de ligar para o telefone de Ruth e, enquanto falava com ela, seu corpo relaxou, parou, enfim, de enterrar os dedos na lona da mochila de Val. A mandíbula já não estava mais cerrada, mas permanecia tão tensa que os músculos do rosto saltavam.
Desligou o telefone.
? Só resta um pouco de bateria.
Val assentiu com a cabeça.
? Que foi que ela disse?
? Dave está em estado crítico. Lolli se mandou. Não conseguiu aguentar o hospital, detesta o cheiro ou coisa assim. Estão fazendo Ruth passar por um sufoco porque ela não vai dizer o que Dave tomou e, claro, não a deixam vê-lo, porque não é da família.
Val cutucou a borda rasgada do assento de plástico, as narinas palpitando quando respirava com força. Era mais fúria empilhada sobre o que já parecia fúria demais para suportar.
? Talvez você...
? Não posso fazer nada. ? Luis olhou para fora da janela. ? Ele não vai sair dessa, vai?
? Vai ? disse Val firmemente.
Ela podia salvar Ravus. Ravus podia salvar Dave. Como dominós pretos, arrumados em fileiras sinuosas, e o mais importante era não derrubar.
Olhando as mãos, lascadas e manchadas de sujeira, era difícil imaginar que fossem as mãos que salvariam alguém.
Seus pensamentos instalaram-se no Nunca na mochila.
A droga prometia cantar enquanto descia por suas veias, tornando-a mais rápida, forte e melhor do que era. Não seria idiota para cair nessa. Não ia terminar como Dave. Não mais que um pico. Não mais que uma vez nesse dia. Só precisava dele agora para manter-se inteira, enfrentar Mabry, deixar toda a raiva e a dor serem engolidas por alguma coisa maior que ela mesma.
Luis acomodou-se no outro lado do banco, reclinando-se o máximo que podia, olhos fechados, braços cruzados no peito, cabeça apoiada na mochila dela e encostada na aba de metal de uma janela. Não notaria se ela se esgueirasse para o banheiro.
Ela se levantou, mas uma coisa atraiu seu olhar. O tecido que embrulhava a espada escorregara, revelando um pouco do objeto de vidro, etéreo à luz do sol. Isso a fez pensar nos pingentes de gelo pendendo dos cabelos da mãe de Ravus.
Equilíbrio. Como uma espada bem feita. Equilíbrio perfeito.
Não podia confiar em si mesma com o Nunca agindo dentro dela, deixando-a alternadamente formidável ou distraída, sonhadora ou intensa. Instável. Desequilibrada. Não sabia por quanto tempo aguentaria ficar sem ele, mas podia continuar adiando para outro momento. E talvez um momento depois. Mordeu o lábio e recomeçou a andar de um lado para o outro.
Val e Luis saltaram na estação Long Branch, lançando-se para a plataforma de concreto assim que as portas se abriram. Havia alguns táxis vazios por perto.
? Que fazemos agora? ? perguntou Luis. ? Em que diabo de lugar estamos?
? Vamos até a minha casa ? disse Val. Segurando a espada pelo punho, apoiou a lâmina embrulhada no ombro e começou a andar. ? Precisamos pegar um carro emprestado.


A casa de tijolos parecia menor do que ela lembrava. A grama marrom e coberta de folhas, as árvores escuras e desnudas. O Miata vermelho da mãe estava parado diante da casa, na rua, embora ela devesse estar no trabalho. Lenços de papel embolados e xícaras de café vazias tomavam conta do painel. Val franziu o cenho. Não era do feitio da mãe ser bagunceira.
Abriu a porta de tela, sentindo que atravessava uma paisagem de sonho. Tudo era ao mesmo tempo conhecido e estranho. A porta da frente sem a tranca, a televisão desligada na sala de estar. Apesar do fato de passar do meio-dia, a casa estava às escuras.
Era angustiante estar no mesmo lugar onde vira Tom deitado sobre a mãe, embora ainda mais estranho fosse ver como a sala parecia menor. De qualquer modo, crescera-lhe tanto na mente, que parecia tão imensa a ponto de não conseguir imaginar atravessá-la para voltar ao próprio quarto.
Retirou a espada do ombro e largou a mochila no sofá.
? Mãe? ? chamou em voz baixa.
Não teve resposta.
? Apenas ache as chaves ? disse Luis. ? É mais fácil obter perdão do que permissão.
Val virou a cabeça para brigar com ele, mas um movimento na escada a deteve.
? Val ? disse a mãe, que descia os degraus correndo e parou no patamar mais baixo.
Tinha contornos vermelhos ao redor dos olhos, o rosto desfeito e os cabelos desgrenhados. Val sentiu tudo ao mesmo tempo: culpa por deixá-la tão fora de si, uma satisfação merecida por vê-la sofrendo e esgotamento profundo. Queria que as duas parassem de se sentir tão infelizes, mas não tinha a menor idéia de como fazer isso.
A mãe desceu os últimos degraus devagar e abraçou-a. Val encostou a cabeça no ombro dela, sentindo cheiro de sabonete e um fraco perfume. Com os olhos ardendo de repentina emoção, afastou-se.
? Eu estava tão preocupada. Não parava de achar que você ia entrar, assim mesmo, mas você não vinha. Passaram-se dias e dias e você não vinha.
A voz da mãe saiu estridente e entrecortada.
? Estou aqui agora ? disse Val.
? Oh, querida. ? A mãe estendeu hesitantemente a mão para afagar sua cabeça com os dedos. ? Você está tão magra. E seu cabelo...
Val desvencilhou-se da mão dela.
? Deixa, mãe. Eu gosto do meu cabelo como está.
A mãe empalideceu.
? Não é isso que eu quis dizer. Você está sempre linda, Valerie. Só que está diferente.
? Eu sou diferente ? disse Val.
? Val ? advertiu Luis. ? As chaves.
Ela olhou feio para ele e respirou fundo.
? Preciso pegar o carro emprestado.
? Você sumiu durante semanas. ? A mãe olhou para Luis pela primeira vez. ? Não pode estar indo embora de novo.
? Vou voltar amanhã.
? Não. ? Uma nota de pânico se desprendeu da voz da mãe. ? Valerie, eu sinto tanto. Sinto tanto por tudo. Não sabe como tenho ficado preocupada com você, as coisas que tenho imaginado. Não parei de esperar que o telefone tocasse e dissesse que a polícia a tinha encontrado numa sarjeta. Não pode me fazer passar por tudo isso de novo.
? Eu preciso fazer uma coisa. E não tenho muito tempo. Escute, eu não entendo você e Tom. Não sei no que vocês pensavam nem como aconteceu, mas...
? Você precisa saber que eu...
? Mas não me interessa mais.
? Então por que... ? começou a mãe.
? Isso não tem nada a ver com você e eu não posso voltar para casa enquanto não terminar o que tenho de fazer. Por favor.
A mãe deu um suspiro.
? Você foi reprovada no teste de direção.
? Sabe dirigir? ? perguntou Luis.
? Eu tenho carteira ? disse Val a mãe, desviando então o olhar para Luis. ? Eu sei dirigir muito bem. Só não sei fazer baliza.
A mãe foi até a cozinha e voltou com uma chave e um alarme pendurado num chaveiro com uma imitação de diamante e um "R" gravado.
? Eu lhe devo alguma confiança, Valerie, aqui está. Não faça com que eu me arrependa.
? Não farei.
A mãe pôs as chaves na mão dela.
? Promete que voltará amanhã? Prometa.
Val pensou em como ficou com os lábios ardendo quando não cumprira a promessa de voltar para Ravus na hora certa. Fez que sim com a cabeça. Luis abriu a porta da frente. Val encaminhou-se para lá, sem se virar para trás.
? Você ainda é minha mãe ? disse.
Quando desceu os degraus da fachada, sentiu o sol no rosto e pareceu que pelo menos uma coisa talvez estivesse bem.

? ? ?

Val dirigiu o carro pelas ruas conhecidas, lembrando-se de ligar a seta e ficar de olho na velocidade. Esperava que ninguém os mandasse encostar.
? Sabe ? disse Luis ?, a última vez que entrei num carro foi no fusca de minha avó e fomos a uma loja comprar alguma coisa num feriado de Ação de Graças, acho. Ela morava em Long Island, onde se precisa de carro para ir a todos os lugares. Eu me lembro disso porque meu pai tinha me puxado para o lado antes, para me dizer que via gnomos no jardim.
Val não disse nada. Concentrava-se na rodovia.
Conduziu o Miata para além das colunas que ladeavam a entrada do cemitério, o tijolo coberto de gavinhas encaracoladas de trepadeiras sem folhas. O cemitério propriamente dito estendia-se por uma colina pontilhada de pedras brancas e abóbadas fúnebres. Apesar de ser final de novembro, o gramado ali continuava verde.
? Consegue ver alguma coisa? ? perguntou Val. ? Para mim, parece igual a qualquer outro cemitério.
Luis não respondeu logo de cara. Olhava para fora da janela, erguendo inconscientemente uma das mãos para tocar o vidro embaçado.
? Porque você é cega.
Val pisou nos freios, parando o carro de repente.
? O que você está vendo?
? Estão em toda parte.
Luis pôs a mão na maçaneta da porta, a voz um pouco mais alta que um sussurro.
? Luis? ? Val desligou o carro.
A voz dele soou distante, como se falasse consigo mesmo.
? Nossa, olhe para eles. Asas encouraçadas. Olhos pretos. Dedos longos, com garras. ? Então, ele olhou para Val, como se, de repente, tivesse se lembrado dela. ? Abaixe-se!
Ela mergulhou, jogando a cabeça no colo dele e sentindo o calor de seus braços a cobri-la quando o ar açoitou o capo do carro.
? O que está acontecendo? ? ela gritou mais alto do que o lamento do vento.
Alguma coisa arranhou o teto do carro e o capo tremeu.
Então o vento imobilizou-se, reduzindo-se a nada. Quando Val levantou a cabeça devagar, pareceu-lhe que nem uma única folha se mexia com a brisa. Todo o cemitério silenciara.
? Este carro é todo de fibra de vidro. ? Luis ergueu os olhos. ? Podiam rasgá-lo com as garras e entrar direto pelo capo se quisessem.
? Por que não fizeram isso?
? Imagino que estejam esperando para ver se viemos aqui deixar algumas flores numa sepultura.
? Não precisam fazer isso. Vamos descer.
Curvando-se para o banco detrás, Val desembrulhou a espada de vidro. Luis pegou a mochila dela e pendurou-a no ombro.
Val fechou os olhos e respirou fundo. Sentia o estômago embrulhar-se, como acontecia sempre antes de um jogo de lacrosse, mas aquilo era diferente. O corpo parecia distante, mecânico. Apurou os sentidos para perceber cada ruído, cada alteração de cor e forma. A adrenalina exigiu-lhe o sangue, gelando os dedos, acelerando o coração.
Olhando a espada, ela abriu a porta e pisou no cascalho.
? Venho em paz ? disse. ? Leve-me ao seu líder.
Dedos invisíveis fecharam-se em sua pele, beliscando a carne, puxando os cabelos, impelindo-a e empurrando-a para a colina, onde tufos de grama erguiam-se e pulavam para longe da terra preta. Ela tentou gritar quando caiu para a frente, o rosto voltado para a terra, inspirando o rico cheiro mineral, enquanto sufocava em seu grito agudo. Apoiou os braços no solo quando tentou levantar-se, mas a terra, as pedras e a grama cederam sob seu peso e ela, envolta por raízes, caiu aos trambolhões dentro da escuridão.


Acordou em correntes douradas num salão cheio de seres encantados.
Numa plataforma de terra, sentava-se um cavaleiro de cabelos brancos num trono de bétula trançada, a casca clara como ossos. Ele curvou-se para a frente e acenou para uma menina alada magricela que observava Val com olhos pretos e estranhos. A fada alada fez um gesto e falou baixinho com o cavaleiro no trono. Ele torceu os lábios no que podia ser um sorriso.
Acima dela, via-se o lado inferior da colina, oco como uma tigela, de onde pendiam longas raízes que se estendiam e viravam como se fossem dedos incapazes de pegar o que desejassem.
Ao redor de Val, um grupo de criaturas sussurrava, piscava e maravilhava-se com ela. Algumas eram altas e magras como varapaus, outras eram minúsculas e esvoaçavam no ar como Agulhanix. Algumas tinham chifres que se retorciam para trás desde as testas como videiras, algumas lançavam para trás jubas verdes sarapintadas e espessas como fios num tear e outras tropeçavam ao andar com estranhos e improváveis pés. Val recuou, afastando-se de uma menina com asas empoeiradas e dedos cuja cor ia do branco-gesso ao azul nas pontas. Em nenhum lugar para onde olhasse, via alguma coisa conhecida. Encontrava-se direto no buraco do coelho, bem no fundo.
Um homem encolhido, de longos cabelos dourados, fez uma reverência com um joelho no chão diante da criatura no trono e depois se levantou tão agilmente como se fosse um menino. Lançou um olhar astuto na direção de Val.
? Eles acharam a entrada com tanta facilidade quanto se fossem orientados, mas quem ia dirigir um par de humanos? Um enigma para seu prazer e deleite, meu Lorde Roiben.
? Como queira. ? Roiben acenou-lhe e o ser encantado recuou.
? Eu posso explicar esse mistério ? disse uma voz conhecida.
Val rolou de costas, colidindo com o corpo de Luis, e girou a cabeça para a locutora. Luis grunhiu. Mabry passou por cima deles, com a bainha do vestido longo e rubro roçando na face de Val. Ergueu uma caixa prateada esculpida e abaixou-se numa reverência superficial.
? Eu tenho o que eles buscam.
Roiben ergueu uma única sobrancelha branca.
? Minha Corte não está satisfeita com a luz do sol dançando e regozijando-se em nossos salões, mesmo que seja apenas para a admissão momentânea de prisioneiros.
Luis rolou de lado e Val pôde ver que também estava acorrentado, mas seu rosto sangrava. Cada um dos piercings de aço fora arrancado da carne.
Mabry exibia desânimo nos olhos, mas não parecia muito constrangida.
? Permita-me dar um jeito na luz e em seus portadores.
? Sua babaca filha-da-puta... ? começou Val, mas foi interrompida por um punho no ombro.
? Ele não lhe perguntou nada ? cuspiu a criatura de cabelos dourados. ? Não diga nada.
? Não ? disse o Lorde da Corte Sombria. ? Deixe-os falar. É tão raro termos convidados mortais. Ainda penso na última vez, mas também foi memorável. ? Alguns na multidão reunida riram ao ouvir essas palavras, embora Val não soubesse ao certo por quê. ? O menino tem a verdadeira Visão, se não estou enganado. Um dos nossos arrancou seu olho, não é?
Luis olhou o salão ao redor, o medo estampado no rosto. Lambeu o sangue do lábio e fez que sim com a cabeça.
? Imagino o que você vê quando me olha ? disse Roiben. ? Mas, venha, conte-nos o que foi que veio buscar. Está mesmo na posse de Mabry?
? Ela cortou o coração do meu... ? disse Val. ? De um dos seres da gente dela... um troll. Eu vim levá-lo de volta.
Mabry riu, uma risada profunda, sensual. Alguns dos presentes também riram.
? Ravus já está morto há muito agora, apodrecendo em seus aposentos. Com certeza, você sabe disso. De que lhe serve esse coração?
? Morto ou não ? disse Val ?, vim buscar o coração dele e vou levá-lo.
Um sorriso torto tomou conta da boca de Roiben e Val sentiu o medo rastejar de cima a baixo pelo corpo dela. Com olhos pálidos, ele olhou para Val e Luis.
? O que pede não está em meu poder, mas talvez minha empregada seja generosa.
? Acho que não. Quando se consome o coração de algo, consome-se parte de sua força. Vou me deliciar com o de Ravus. ? Mabry olhou com desprezo primeiro para Luis e depois para Val. ? Vou saboreá-lo muito mais sabendo que você o queria.
Val levantou-se e ficou de joelhos, os pulsos ainda amarrados nas costas. O sangue latejava em seus ouvidos, tão alto que quase abafava qualquer outro som.
? Lute contra mim por ele. Eu aposto o coração dele contra o meu.
? Os corações dos mortais são fracos. Que necessidade tenho eu de tal coração?
Val adiantou-se para ela.
? Se sou tão fraca, então você deve ser uma verdadeira covarde, porra, para não lutar contra mim. ? Virou-se para os seres encantados, os de olhos de gato, os de pele verde e dourada, os de corpos demasiadamente compridos ou achatados ou de todas as formas de proporções singulares. ? Sou apenas um ser humano, não sou? Não sou nada. Desapareço num suspiro da boca de vocês, foi o que disse Ravus. Então, se tem medo de mim, é menos que isso.
Os olhos de Mabry reluziram perigosamente, mas o rosto permaneceu plácido.
? É muita ousadia de sua parte falar isso, aqui, em minha própria corte, perante o meu novo Senhor.
? Eu ouso ? disse Val. ? Tanto quanto você ousa agir toda altiva e poderosa, enquanto está aqui apenas para assassiná-lo como assassinou Ravus.
Mabry riu, breve e ferina, mas alguns resmungos se elevaram.
? Deixe-me adivinhar ? disse Roiben, preguiçoso. ? Não deveria ouvir os mortais por nem mais um momento.
Mabry abriu a boca e depois fechou-a novamente.
? Aceite o desafio ? disse Roiben. ? Não quero que digam que alguém da minha Corte não conseguiu vencer uma criança humana. Nem que digam que minha assassina é uma covarde.
? Como queira ? disse Mabry, virando-se bruscamente para Val. ? Depois que eu acabar com você, vou arrancar o outro olho de Luis e farei uma nova harpa com os ossos de vocês dois.
? Amarre-me em sua harpa ? sibilou Val ? e eu a amaldiçoarei toda vez que tocá-la.
Roiben levantou-se.
? Vocês concordam com os termos do desafio? ? indagou e Val desconfiou de que ele fosse lhe dar uma chance de fazer alguma coisa, mas não sabia o quê.
? Não ? respondeu Val. ? Não posso negociar por Luis. Ele não tem nada a ver com meu desafio.
? Eu posso negociar por mim mesmo ? disse Luis. ? Concordo com os termos de Mabry desde que ela também aposte alguma coisa. Ela pode ficar comigo, mas, se Val vencer, estamos livres. Temos de sair andando daqui.
Val olhou-o, grata por sua percepção e impressionada com a própria estupidez.
Roiben assentiu com a cabeça.
? Muito bem. Se a mortal vencer, eu darei a ela e seu companheiro salvo-conduto pelas minhas terras. E como vocês não decidiram os termos do combate, eu estipularei... Lutarão até a primeira sangrar. ? Ele soltou um suspiro. ? Não pensem que há alguma piedade nisso. Viver, se Mabry ganhar seus corações e ossos, não me parece preferível a estarem seguros na morte. Eu, contudo, tenho algumas perguntas a Mabry e preciso dela viva para responder. Agora, Espinhento, solte os mortais e dê as armas à menina.
O homem de cabelos dourados enfiou uma chave denteada nas fechaduras e as algemas se abriram, caindo no chão com um ruído surdo que ecoou por toda a cúpula.
Luis levantou-se um momento depois, esfregando os pulsos. Uma mulher com pêlos no queixo tão longos que se enrolavam em minúsculas tranças trouxe a espada de vidro para Val, parou a meio caminho e abaixou-se apoiada num dos joelhos, erguendo a lâmina nas palmas. A espada de Tamson. Val olhou para Mabry, mas se ela teve alguma reação à visão da arma, se, por acaso lembrou-se a quem pertencera antes, não deixou transparecer sinal algum.
? Você pode fazer isso ? disse Luis. ? O que ela sabe sobre lutas? Não é nenhum cavaleiro. Só não deixe que ela a distraia com seus feitiços.
Feitiços. Val olhou para a mochila, a alça ainda pendurada no ombro de Luis. Havia quase uma garrafa cheia de Nunca ali. Se os encantos eram as armas de Mabry, Val poderia lutar contra ela nesses termos.
? Me dê a bolsa ? disse.
Luis deslizou a mochila pelo braço e entregou a Val. Ela enfiou a mão lá dentro e tocou na garrafa. Enterrando-a mais fundo, pegou um isqueiro. Só levaria um momento e ela seria inundada de força.
Quando se virou, viu seu rosto refletido no vidro da lâmina, os olhos injetados e a pele manchada de sujeira, antes de as fibras luminosas debaixo do punho atravessarem a espada inteira com súbito esplendor. Val pensou na menina, Nancy, atropelada por um trem porque estava tão cheia de Nunca que não vira o brilho dos faróis nem ouvira o rangido dos freios. O que ela poderia perder enquanto tecia suas próprias ilusões? Sentiu o peso do conhecimento atingir-lhe a barriga como uma pedra engolida. Tinha de fazer aquilo sem o Nunca cantando debaixo da pele.
Precisava combater Mabry com o que sabia... anos de lacrosse e semanas de espada, brigas com os garotos da vizinhança, que sempre diziam que ela não batia como uma menina, a dor de forçar o corpo além do que achava suportável. Não podia combater fogo com fogo, mas podia combatê-lo com gelo.
Largou o isqueiro e tomou a espada de vidro das mãos da menina.
Eu não posso cair, lembrou a si mesma, pensando em Ravus, Dave e nos dominós juntos em fileirinhas perfeitas. Não posso cair nem falhar.
Os cortesãos haviam desobstruído um tablado quadrado no meio do salão e Val entrou ali, retirando o casaco, que caiu embolado no chão. O ar frio arrepiou-lhe os pêlos dos braços. Ela respirou fundo e sentiu o cheiro do próprio suor.
Mabry adiantou-se da multidão, envolta num nevoeiro que se congelou em forma de armadura. Na mão, segurava um chicote de fumaça. Na parte de trás, a ponta arrastava gavinhas que lembraram a Val a forma como as centelhas pegavam fogo.
Val avançou um passo, separando um pouco as pernas e mantendo-as levemente flexionadas. Pensou no campo de lacrosse, na maneira apertada, mas livre, de segurar o bastão. Pensou nas mãos de Ravus, forçando-lhe o corpo na postura certa. Sentia uma fissura pelo Nunca queimando-a por dentro, enchendo-a de fogo, mas cerrou os dentes e se preparou para começar.
Mabry avançou afetadamente em direção ao centro do quadrado. Val quis perguntar se começariam naquele exato instante, mas Mabry rodopiou o chicote e encerrou o tempo das perguntas. Val aparou o golpe, tentando cortar o chicote ao meio, mas a arma tornou-se etérea como a neblina e a lâmina mergulhou no vazio.
Mabry disparou o chicote mais uma vez. Val bloqueou, fez finta e arremessou-se, mas seu alcance foi curto demais. Conseguiu, porém, esquivar-se de outro golpe sem cambalear.
Mabry girou o chicote em volta da cabeça, como se fosse um laço. Sorriu para a platéia e a multidão de seres encantados uivou. Val não teve certeza se estavam a favor de sua oponente ou apenas clamavam por sangue.
O chicote voou, serpeando em direção a Val. Ela abaixou-se e lançou-se por baixo da guarda de Mabry, tentando um daqueles movimentos precisos que pareciam sensacionais quando se conseguia dominá-los. Errou completamente.
Mais dois golpes aparados e Val percebeu que estava se cansando rápido. Ficara acordada durante dois dias e sua última refeição foi uma pálida maçã encantada. Mabry repeliu-a para trás e a Corte teve de se afastar para que Val recuasse aos tropeços.
? Você achou que era uma heroína? ? perguntou Mabry, a voz cheia de falsa compaixão, aguda e alta o bastante para a multidão ouvir.
? Não - respondeu Val.
? Acho que é uma vilã.
Val mordeu o lábio e concentrou-se. Mabry não movia os ombros e pulsos com o refinado controle exigido para desferir os ataques a ela. Era a mente da criatura que fazia o trabalho. O chicote era apenas uma ilusão. Como Val poderia vencer, se a adversária comandava um chicote que mudava de direção ou se estendia além de seu comprimento?
Val ergueu a espada para bloquear outro golpe e a corda enevoada enroscou-se em volta da lâmina. Um puxão forte arrancou-a das mãos dela. A espada voou pelo salão, obrigando vários cortesãos a recuarem emitindo gritos estridentes. Quando a lâmina atingiu o endurecido chão de terra compacta, partiu-se em três pedaços.
O chicote atirou-se mais uma vez sobre Val, açoitando para atingir-lhe o rosto. Ela se abaixou e correu para os restos da espada, o chicote zumbindo logo atrás.
? Não deixe que a idéia da morte próxima a perturbe. ? Mabry soltou uma risada que convidou as outras criaturas a rirem também. ? Sua vida sempre se destinou a ser tão curta que não faz a menor diferença.
? Cala a porra da boca!
Val precisava se concentrar, mas estava desorientada, em pânico. Lutava toda errada, como se quisesse matar a adversária, mas o que precisava fazer para vencer era apenas atingi-la uma vez e, para perder, ser atingida também uma única vez.
Mabry era vaidosa. Até aí, isso era óbvio. Parecia calma e lutava com tranquilidade. Embora estivesse recorrendo ao encanto, fazia-o de tal maneira que se mostrava como a melhor combatente. Se ela conseguira fazer o chicote agarrar a lâmina da espada, não podia simplesmente tê-lo feito atingir a mão de Val? Não podia conjurar facas no pescoço de Val?
Ela deve querer um triunfo espetacular. Uma pequena marca na face da menina. Uma longa dilaceração nas costas. A corda enroscando-se no pescoço dela. Era uma apresentação teatral, afinal. A apresentação de uma mestra da atuação perante uma corte prestes a condená-la.
Val parou, ficando a apenas trinta centímetros do punho da espada de vidro, uma boa parte da lâmina parecia intacta. Virou-se.
Mabry avançava a passos largos para ela, curvando os lábios de novo num sorriso.
Val tinha de fazer alguma coisa inesperada e fez. Simplesmente continuou ali, parada.
Mabry hesitou apenas por um momento antes de arremessar o vibrante chicote de fumaça na direção dela. Val jogou-se no chão, rolou e agarrou o punho do que ainda restava da espada de vidro, erguendo-o e lançando-o no joelho da adversária, sem a menor elegância.
? Espere! ? gritou a criatura de cabelos dourados.
Val baixou o punho, manchado apenas com um pouco de sangue. Bastava. Suas mãos começaram a tremer. A armadura e os braços enevoados de Mabry dissolveram-se e ela se revelava mais uma vez num longo vestido.
? Pouco importa ? disse. ? Sua marca ensanguentada apodrecerá enquanto seu amor fenece. Encontrará um cadáver nada adequado para um companheiro.
Val não pôde impedir o sorriso que se espalhou pelo seu rosto, um sorriso tão largo que chegava a doer.
? Ravus não está morto ? disse, divertindo-se com a expressão de incompreensão que se apoderou das feições de Mabry. ? Eu arranquei todas as cortinas e transformei-o em pedra. Ele vai ficar bem.
? Você não...
Mabry estendeu a mão e a fumaça fundiu-se numa cimitarra. Atirou-a de qualquer jeito para a frente. Val jogou-se para trás, desviando a cabeça do golpe. A lâmina passou de raspão por sua face, desenhando uma linha que queimava sua pele.
? Espere ? repetiu a criatura de cabelos dourados, erguendo a caixa de prata.
? Pare ? ordenou o Rei da Corte Indigna. ? Três vezes você me desagradou, Mabry, espiã ou não. Graças a seu descuido, mortais deixaram a luz do dia entrar na Corte Noturna. Graças a sua falta de valor, uma mortal ganhou uma vantagem sobre nós. E graças a sua mesquinharia, minha promessa de que os mortais não seriam machucados em minhas terras foi desonrada. Daqui em diante, está banida.
Mabry soltou um grito estridente, um ruído inumano que soou como uma forte lufada de vento.
? Ousa banir-me? Eu, a espiã de confiança de Lady Nicnevin na Corte Digna? Eu, uma verdadeira súdita da Corte Indigna e que não possui pretensão alguma de tirá-lo do trono?
Ela transformou os dedos em facas e seu rosto alongou-se, ficando comprido e monstruoso de uma forma nada normal. Avançou para cima de Roiben.
Val mexeu o corpo automaticamente, os movimentos que exercitara centenas e centenas de vezes na ponte empoeirada tão inconscientes quanto um sorriso. Rebateu de lado o golpe de Mabry e apunhalou-a no pescoço.
O sangue derramou-se pelo vestido vermelho até os pés de Mabry e respingou em Val. Os dedos de faca se agarraram à menina, abrindo longos ferimentos em suas costas quando Mabry a puxou mais para perto de si, juntando-as como amantes. Val gritou, a dor latejava, o choque frio rastejando para cima até paralisá-la. Então Mabry tombou bruscamente, o sangue escurecia o chão de terra, as mãos deslizavam pelas costas de Val. Mabry não se mexeu mais.
Uma onda de ruído veio dos cortesãos. Luis avançou a toda, empurrando seres encantados para o lado, querendo segurar Val para que ela não cambaleasse para a frente.
Val via apenas a espada de vidro, quebrada em pedaços denteados e coberta de sangue.
? Não caia ? lembrou a si mesma, mas as palavras não pareciam mais estar no contexto, sua visão estava confusa.
? Me dê o coração ? gritou Luis, mas, naquele caos, ninguém o escutava.
? Basta ? gritou alguém, na certa Roiben.
Ela não conseguia concentrar-se. Luis falava e depois todos se moviam, abrindo caminho por entre um borrão de corpos. Val seguia junto a ele, tropeçando. Luis a mantinha de pé enquanto atravessavam corredores subterrâneos. O barulho da Corte extinguiu-se quando os dois saíram na fria colina.
? Meu casaco ? resmungou Val, mas Luis não parou.
Conduziu-a até o carro e escorou-a ali enquanto reclinava o banco do carona.
? Entre e se deite de bruços. Você está entrando em choque.
Havia alguma coisa sobre uma caixa. Uma caixa com um coração dentro, exatamente como na história da Branca de Neve.
? Você a recebeu do lenhador? ? perguntou Val. ? Ele enganou a rainha má. Talvez tenha nos enganado também.
Luis inspirou em arquejos e exalou o ar num suspiro forte.
? Vou levá-la ao hospital.
A frase atravessou a confusão que se instalara na mente de Val, enchendo-a de pânico.
? Não! Ravus e Dave estão nos esperando. Temos de ir jogar dominó.
? Você está me fazendo sentir muito medo, Val. Por favor, deite-se aí e iremos para a cidade.
? Mas não vá dormir ao volante. Fique acordado, porra ? ela retrucou.
Entrou no carro, encostando o rosto no couro do banco. Sentiu o casaco de Luis cobri-la e retraiu-se. As costas pareciam estar em chamas.
? Eu consegui ? sussurrou para si mesma quando Luis girou a chave na ignição e arrancou para a rua. ? Passei de fase.

















Capítulo 14


Todos os seres humanos deveriam tentar descobrir
antes de morrer de que estão fugindo, e para quê, e por quê.

? James Thurber

C
hegaram à cidade com o sol se pondo atrás deles. O trajeto havia sido lento. Tráfego congestionado e longas filas no pedágio haviam prolongado a viagem e Val mudava constantemente de posição no banco de trás. O ar gélido das janelas que Luis se recusou a fechar congelava-a e a dor, que ficava mais aguda quando o estofo tocava suas costas, tornava impossível virar-se.
? Ainda está tudo bem com você aí atrás? ? gritou Luis.
? Estou acordada ? disse Val, ajoelhando-se e segurando-se no apoio de cabeça do banco do carona, sem ligar para a tontura que sentiu quando se sentou ereta. A caixa de prata estava no centro do banco da frente, as fracas luzes do exterior destacavam a escultural coroa de amoreiras que circundava uma única rosa na superfície.
? Já escureceu.
? Não podemos ir mais rápido. O trânsito está uma loucura, mesmo nessa direção.
Ela olhou para Luis e pareceu vê-lo pela primeira vez. O rosto sangrava, as tranças haviam se desfeito, os cabelos estava embaraçados no alto da cabeça como uma auréola cinzenta, mas sua expressão era calma, até mesmo amável.
? Vamos chegar lá a tempo. ? Ela tentava parecer valente e segura.
? Eu sei que vamos ? respondeu Luis e Val se sentiu contente com o conforto humano proporcionado por mentiras enquanto continuavam serpenteando pelo tráfego.
Pararam na metade da calçada da passagem inferior. Luis desligou o carro e saltou, baixando o banco para que ela também pudesse sair. Val agarrou a caixa e deslizou para fora do carro, enquanto Luis batia no toco de árvore.
Val subiu correndo a escada, com a caixa junto ao peito. Já chorava quando entrou no aposento escuro.
Ravus jazia no meio do chão, não estava mais em forma de pedra, a pele parecia mármore. Ela se ajoelhou a seu lado, abriu a caixa de prata e retirou seu tesouro ensanguentado. Sentiu-o frio e escorregadio nos dedos quando o encaixou no ferimento aberto e molhado, no peito dele. O sangue no chão tinha secado em riscas que se desfizeram em flocos onde ela pisava e aquela visão lhe embrulhou o estômago.
Ergueu os olhos para Luis e ele deve ter visto alguma coisa em seu rosto, porque derrubou com um chute uma pilha de livros, disparando uma nuvem de poeira que rodopiou no ar. Nenhum dos dois disse qualquer coisa, à medida que transcorriam os momentos sem sentido, agora que haviam chegado tarde demais.
As lágrimas de Val secaram nas faces e não brotaram mais. Pensou que devia gritar ou soluçar, mas nenhuma das duas coisas parecia expressar o crescente vazio dentro dela.
Curvou-se, deixando os dedos deslizarem pelo cabelo macio de Ravus, e retirou mechas desgarradas do rosto. Ele deve ter despertado ao retornar do estado pétreo, em um aposento vazio, sentindo uma dor terrível. Teria chamado por ela? Teria amaldiçoado-a quando percebeu que o deixara sozinho para morrer?
Curvando-se mais para baixo e ignorando o cheiro de sangue, ela colou a boca na dele. Ravus tinha os lábios quentes e não estavam tão frios como ela temera.
Ele tossiu e ela recuou num salto, caindo sentada. A pele crescia sobre o peito dele e o coração batia num constante estacado.
? Ravus? ? ela sussurrou.
Ele abriu os olhos dourados.
? Sinto dor em toda parte. ? Ele riu e então começou a engasgar-se. ? Só posso imaginar que isso seja bom.
Val assentiu com a cabeça, os músculos no rosto machucando-a quando tentou sorrir.
Luis atravessou a sala e ajoelhou-se do outro lado de Ravus.
O troll olhou para ele e depois desviou o olhar de novo para Val.
? Vocês dois... vocês me salvaram?
? Deixa disso ? disse Luis. ? Você fala como se tivesse sido difícil para Val ir até a Corte Indigna, fechar um acordo com Roiben, desafiar Mabry para um duelo, vencer, recuperar seu coração e depois conseguir voltar e chegar aqui a tempo bem na hora do rush.
Val riu, mas a risada saiu alta e frágil demais até para seus ouvidos. Ravus fixou o olhar nela e a menina se perguntou se ele odiava a idéia de tê-lo salvado, se achava que agora ficaria em dívida para com alguém que lhe repugnava.
Ravus grunhiu e tentou sentar-se, mas pareceu faltar-lhe forças e ele tornou a cair.
? Eu sou um idiota ? disse.
? Fique onde está. ? Val correu para pegar um cobertor e enfiou-o debaixo da cabeça dele. ? Descanse.
? Eu vou ficar bem.
? Verdade? ? ela perguntou.
? Verdade.
Ravus ergueu o braço para apertar o ombro dela, mas ela se contraiu quando ele roçou os dedos pelos cortes nas suas costas. Ele manteve os olhos nos dela por um longo momento, depois ergueu um chumaço do material da blusa dela. Mesmo pelo canto do olho, ela viu que o tecido endurecera devido ao sangue.
? Vire-se ? disse Ravus.
Ela obedeceu, ajoelhou-se e suspendeu as costas da camiseta pela cabeça. Manteve-se nessa posição por um momento e depois baixou mais uma vez a camiseta para cobrir as costas.
? É grave?
? Luis. ? A voz de Ravus era áspera. ? Traga algumas coisas ali da mesa para mim.
Luis juntou os ingredientes e botou-os no chão ao lado dele. Primeiro Ravus mostrou-lhe como passar a pomada e tratar as costas de Val, depois, como curar os próprios cortes dos piercings arrancados e, por fim, entrelaçou amaranto, crostas de sal e longos talos de mato verde. Entregou-os a Luis.
? Amarre isso em forma de coroa e ponha na testa de David. Só espero que seja suficiente.
? Leve o carro ? disse Val. ? Volte para me encontrar quando puder.
? Certo. ? Luis fez que sim com a cabeça, fazendo menção de levantar-se. ? Trarei Ruth.
Ravus tocou-lhe o braço e ele parou.
? Estive pensando no que foi dito e no que não foi dito. Se os rumores de qualquer uma das duas Cortes incriminarem seu irmão, ele vai correr grande perigo.
Luis levantou-se, contemplando a cidade resplandecente pelas janelas.
? Apenas vou ter que pensar em alguma coisa. Farei algum tipo de acordo. Tenho protegido meu irmão até agora. Vou continuar protegendo. ? Olhou para Ravus. ? Vai contar a alguém?
? Você tem meu silêncio ? respondeu o troll.
? Tentarei fazer por merecê-lo. ? Luis balançou a cabeça quando atravessou a cortina de plástico. Val o viu ir embora.
? O que você acha que vai acontecer com Dave? ? ela perguntou em voz baixa.
? Eu não sei ? disse Ravus igualmente baixo. ? Mas confesso que me preocupo muito mais com o que vai acontecer com Luis. ? Ele virou-se para ela. ? Ou com você. Sabe, está com uma aparência terrível.
Ela sorriu, mas o sorriso se desfez um momento depois.
? Estou terrível.
? Sei que me portei pessimamente com você. ? Ele olhou para um lado, as ripas de madeira do assoalho, seu próprio sangue seco, e ela pensou como era estranho o fato de, às vezes, ele parecer séculos mais velho do que ela e em outras ocasiões a situação ser completamente oposta. ? O que Mabry me disse doeu mais do que eu esperava. Para mim foi fácil acreditar que seus beijos eram falsos.
? Não achou que eu realmente gostava de você? ? perguntou Val, surpresa. ? Acha agora que eu realmente gosto de você?
Ele virou-se para ela. A incerteza instalou-se em seu rosto.
? Você se submeteu a um esforço muito grande para chegar a ter essa conversa, mas... eu não quero ficar interpretando demais o que isso quer dizer.
Val deitou-se ao lado dele, apoiando a cabeça no ombro dele.
? O que você espera?
Ele a puxou mais para perto, cuidadoso com as mãos para não tocar os ferimentos dela ao enlaçá-la.
? Espero que sinta por mim o que sinto por você ? respondeu, a voz como um suspiro na garganta dela.
? E como é isso? ? ela perguntou, os lábios tão perto da mandíbula dele que sentia o gosto de sal de sua pele quando os moveu.
? Você levou meu coração em suas mãos essa noite. Mas eu me sentia como se o houvesse levado muito antes.
Ela sorriu e fechou mansamente os olhos. Ficaram ali deitados juntos, debaixo da ponte, as luzes da cidade ardendo fora das janelas como um céu cheio de estrelas cadentes, enquanto deslizavam para o sono.

? ? ?

Chegou um bilhete no bico de um pássaro preto com asas que emitiam brilhos roxos e azuis, como se fossem feitas de óleo empoçado. Dançou no parapeito da janela de Val e bateu de leve com as patas no vidro, os olhos brilhando como pedacinhos de ônix molhado na luz que esmorecia.
? Que coisa mais misteriosa ? disse Ruth.
Ela se levantou de onde se achava deitada de bruços, com livros da biblioteca espalhados ao seu redor. As duas vinham trabalhando num relatório que iam intitular de "O papel da depressão pós-parto no infanticídio", para um crédito extra da aula de controle de natalidade. Para compensar a terrível reprovação que as duas haviam sofrido no projeto do bebê de farinha.
Fora estranho para Val atravessar mais uma vez os corredores após desaparecer por quase um mês, o tecido macio da camiseta roçando nos cortes ao longo das costas, o cheiro limpo de xampu e detergente no nariz, a promessa de almoços de pizza e leite achocolatado. Quando Tom passou por ela, ela mal o notou. Andava ocupada demais circulando pela escola, puxando o saco dos professores, fazendo provas de segunda chamada e prometendo nunca mais faltar nem um único dia.
Foi até a janela e abriu-a. O pássaro largou o rolinho de papel no tapete e alçou vôo, gralhando.
? Ravus tem me enviado bilhetes.
? Biiiilhetes? ? perguntou Ruth, a voz ameaçando imaginar a coisa mais obscena se Val não lhe desse os detalhes.
Val revirou os olhos.
? Sobre Dave... ele deve sair do hospital semana que vem. E Luis mudou-se para a antiga casa de Mabry. Diz que embora seja um monte de lixo, é um monte de lixo na rica Alta Zona Oeste.
? Alguma notícia de Lolli?
Val fez que não com a cabeça.
? Nada. Ninguém a viu.
? É só sobre isso que ele tem escrito?
Val chutou alguns papéis soltos na direção de Ruth.
? E que sente saudades de mim.
Ruth rolou de costas, rindo baixinho, cheia de alegria.
? Bem, e o que diz esse aí? Ande, leia em voz alta.
? Está bem, está bem, já vou abrir. ? Val desenrolou o papel. ? Diz o seguinte: "Por favor, me encontre esta noite nos balanços atrás da sua escola. Tenho uma coisa para lhe dar."
? Como é que ele sabe onde ficam os balanços da escola? ? Ruth sentou-se, visivelmente intrigada.
Val deu de ombros.
? Talvez o corvo tenha dito.
? Acha que ele vai lhe dar o quê? ? perguntou Ruth. ? Um amasso de troll daqueles?
? Você é tão nojenta. Tão, tão, mas tão maldosa ? gritou Val, atirando mais papéis na amiga e espalhando todo o trabalho delas no chão. Depois, deu um sorriso. ? Bem, não importa o que seja, eu não vou apresentá-lo à minha mãe.
Foi a vez de Ruth gritar de horror.


Naquela noite, quando ia sair de casa, Val passou pela mãe, sentada diante da televisão, que exibia o lábio de uma mulher sendo injetado com colágeno.
Por um momento, a visão da agulha fez os músculos de Val se contraírem, o nariz sentir o conhecido cheiro de açúcar queimado e as veias serpearem como vermes nos braços, mas isso veio acompanhado por um nojo visceral tão forte quanto a fissura.
? Vou dar uma andada ? disse. ? Volto mais tarde.
A mãe se virou, o rosto cheio de pânico.
? É só uma andada ? confirmou Val, mas isso não acalmou as perguntas não feitas e não respondidas que se interpunham entre elas.
A mãe parecia querer fingir que o último mês não acontecera. Referia-se a ele apenas vagamente, dizendo: "Quando você estava fora" ou "Quando você não estava aqui." Por trás daquelas palavras, parecia haver um sombrio oceano de medo e Val não sabia como navegar nele.
? Não chegue muito tarde ? disse a mãe, com a voz apagada.
A primeira neve caíra, envolvendo os galhos em gelo e tornando o céu luminoso como o dia. Val tomou o caminho para o parquinho da escola, quando recomeçaram as rajadas.
Ravus a esperava ali, uma sombra negra sentada num balanço pequeno demais para ele, curvado para a frente a fim de evitar as correntes do brinquedo. Usava um encanto que deixava seus dentes menos proeminentes, a pele menos verde. Em quase tudo, porém, parecia apenas ele mesmo, com o sobretudo longo, as mãos enluvadas segurando uma brilhante espada no colo.
Val aproximou-se, enfiando as mãos nos bolsos e vendo-se, de repente, tímida.
? Ei.
? Achei que você devia ter uma só sua ? disse Ravus.
Ela estendeu a mão e correu um dedo pelo metal fosco. Era fina, a guarda em forma de hera trançada e o punho sem nenhum tipo de invólucro de couro ou tecido.
? É linda ? disse Val.
? É de ferro ? ele informou. ? Feita artesanalmente por mãos humanas. Nenhum ser encantado poderá usá-la contra você. Nem mesmo eu.
Val pegou a lâmina e a pôs no balanço ao lado do dele e arrastou os pés na neve, tornando-a uma lama barrenta.
? É um senhor presente.
Ele sorriu, com um ar satisfeito.
? Espero que continue a me ensinar como usá-la.
Ele alargou o sorriso.
? Claro que sim. É só você me dizer quando.
? Estou pensando em ir para a Universidade de Nova York. Ruth gosta do departamento de cinema de lá e eles têm uma equipe de esgrima. Sei que é uma coisa diferente do tipo de luta que você tem me ensinado, mas não sei, estive pensando que talvez não seja completamente diferente. E sempre terá o lacrosse.
? Você iria para Nova York?
? Claro. ? Val tornou a olhar os pés enlameados. ? Mas preciso terminar a escola primeiro. Recebi todas as suas mensagens. ? Ela sentia as faces acaloradas e culpou o frio. ? Eu gostaria de saber se tem alguma forma de mandar umas coisas de volta para você.
? Você tem algo contra pássaros?
? Não. O corvo que você enviou era lindo, embora eu ache que não gosta de mim.
? Vou mandar o meu próximo mensageiro esperar por sua resposta.
Pouco tempo atrás, ela poderia ter sido esse mensageiro.
? Você soube alguma coisa de Mabry? O que andam dizendo?
? Os rumores das Cortes dizem que ela era uma espécie de agente duplo, mas as duas cortes a desmentem. Os exilados na cidade sabem que ela era o envenenador... a Corte Luminosa parece afirmar que Mabry vinha cometendo assassinatos a mando da Corte Noturna... mas até agora não a associaram a Dave. Lamentavelmente, receio que o tempo acabará revelando o envolvimento dele.
? E aí?
? O nosso povo é inconstante, de lua, como vocês dizem. O capricho, e não alguma idéia mortal de justiça, decidirá a sorte dele.
? Então você vai voltar para a Corte Luminosa? Quer dizer, agora que sabe a verdade sobre Tamson, não tem motivo algum para ficar exilado.
Ravus abanou a cabeça.
? Não há nada para mim lá. Silarial conta as mortes de forma muito leviana. ? Ele estendeu uma das mãos enluvadas e parou o balanço dela. ? Vou permanecer o mais perto de você por todo tempo que tiver.
? Basta o tempo de um suspiro de fada que estarei ao seu lado.
Ele correu os dedos revestidos de couro pelos cabelos curtos dela e descansou-os em sua face.
? Vou ficar esperando ansioso.





Fim














Agradecimentos

Sou humildemente grata por ter participado da oficina Sem Nome da Filadélfia (Ann, Gail, Judith, Ricardo, Vicky, Ef, Greg), por me darem um grande começo, e ao Massachusetts All-Stars (Ellen, Delia, Kelly, Gavin, Dora, Sarah), por me fazerem alcançar a linha de chegada. Quando eu não tinha nenhuma confiança em mim, a confiança deles foi inestimável. Muitas pessoas leram este livro em diferentes estágios e ofereceram palavras de encorajamento e conselhos. Agradeço a todos vocês e tenho de agradecer em especial a Phil, Angela, Jenni e Elka, por dizerem a coisa exatamente certa na hora exatamente certa.
Obrigada ao meu incansável editor, Kevin, e ao meu inesgotável agente, Barry, por acreditarem que eu podia tirar, mais uma vez,
o coelho da cartola (e por ignorar todas as vezes em que tirei uma coisa inteiramente diferente).
Acima de tudo, tenho de agradecer a Steve, Josh e Cassie, por suportarem até o fim a infindável escrita e reescrita deste livro, e a Theo, por me suportar durante todo esse processo infindável de escrita e reescrita.

Dig./Rev./Format.
S.A.Y.

? Carro de perfil esportivo fabricado pela montadora japonesa Mazda. (N. da Digitalizadora / Toca Digital)
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?227?







Fadas ousadas e modernas


Tradução
AMANDA ORLANDO




Para minha irmãzinha Heidi








"E agradável é a terra das fadas
Mas há uma lenda soturna que deve ser contada
Sempre, ao fim de sete anos
Pagamos um tributo para o Inferno
Sou tão encantada e repleta de carne
Que tenho medo de me tornar o pagamento."

? TAM LIN













PRÓLOGO


"E o malte consegue ser mais útil do que Milton
Para justificar os meios de Deus para com o homem" (

? A. E. HOUSMAN,
"Terence, This is Stupid Stuff"



Kaye deu outra tragada em seu cigarro e o jogou dentro da garrafa de cerveja da mãe. Percebeu que esse seria um bom teste para medir o teor alcoólico de Ellen, ver se a mãe não engoliria a bituca inteira.
Eles ainda estavam em cima do palco, Ellen, Lloyd e os outros componentes da Stepping Razor. Aquela fora uma apresentação ruim e, ao observá-los quebrar o equipamento, Kaye pôde ver que eles sabiam disso. Mas esse fato também não importava realmente, o sistema de som estava alto e rangia muito e todos continuaram bebendo, fumando e berrando, por isso ela duvidava de que o empresário deles houvesse se importado. Houve até algumas pessoas que dançaram.
O barman olhou para Kaye com malícia mais uma vez e lhe ofereceu uma bebida "por conta da casa".
? Leite. ? Ela sorriu afetadamente, ajeitando o cabelo loiro e malcuidado e colocando no bolso algumas caixas de fósforos quando ele virou as costas.
Então sua mãe se aproximou e deu um longo gole na cerveja antes de cuspir por todo o balcão.
Kaye não conseguiu esconder a risada maldosa que escapou-lhe dos lábios. A mãe olhou para ela em dúvida.
? Vá ajudar a colocar as coisas no carro ? disse Ellen, a voz rouca devido ao esforço feito durante o show. Estava afastando o cabelo liso e úmido que lhe caía no rosto. O batom já estava falhado, mas ainda havia um resto um pouco borrado grudado nas bordas da boca. Ela parecia cansada.
Kaye escorregou para fora do balcão e saltou para o palco em um único e simples movimento. Lloyd a encarava quando ela começou a catar os equipamentos ao acaso, então resolveu começar a pegar apenas aquilo que era da mãe. Os olhos dele estavam inexpressivos.
? Ei, garota, você tem algum dinheiro? ? perguntou Lloyd.
Kaye deu de ombros e lhe jogou uma nota de dez dólares. Tinha mais, e ele provavelmente sabia disso ? ela viera direto do Chow Fat's. O comércio de comida chinesa podia pagar um salário de merda, mas ainda dava mais dinheiro do que fazer parte de uma banda.
Ele pegou o dinheiro e caminhou em direção ao bar, provavelmente para pegar uma cerveja e ir bebendo enquanto voltava para casa.
Kaye catou as coisas de Ellen e começou a arrastá-las em meio à multidão. A maioria das pessoas logo saía de seu caminho. O ar fresco outonal que soprava lá fora era um alívio bem-vindo, mesmo que fedesse a ferro, fumaça de exaustor e túneis do metrô. A cidade sempre cheirou a metal para Kaye.
Ela levou apenas alguns minutos para pôr as coisas no automóvel e voltou para o bar com a intenção de levar logo a mãe para dentro do carro antes que alguém quebrasse os vidros e roubasse o equipamento. Não se podia deixar nada à toa dentro de um carro em Philly. A última vez em que quebraram as janelas do carro de Ellen, o fizeram por causa de um casaco de segunda mão e uma sacola com toalhas.
A garota que ficava na porta checando as carteiras de identidade lhe deu uma longa olhada dessa vez, mas não falou nada. De qualquer forma, já era tarde, a campainha que indicava que o bar estava fechando estava prestes a tocar. Ellen ainda estava no balcão, fumando um cigarro e bebendo algo mais forte que cerveja. Lloyd estava falando com um cara de cabelo negro e comprido. O homem parecia um tanto deslocado dentro daquele bar, talvez estivesse bem-vestido demais ou algo assim, mas um dos braços de Lloyd estava ao redor dos ombros do homem. Ela capturou um lampejo dos olhos do cara. Amarelos como os de um gato, brilhando na escuridão do bar. Kaye sentiu um calafrio.
Mas não havia nada demais nisso. Kaye às vezes via coisas estranhas. Ela aprendera a ignorá-las.
? Está tudo no carro ? informou Kaye à mãe.
Ellen balançou a cabeça, mal escutando aquilo que a filha dizia:
? Você tem um cigarro, querida?
Kaye pescou um maço de dentro de sua imensa bolsa estilo militar e tirou dois cigarros, dando um para a mãe e acendendo o outro.
A mãe se inclinou na direção dela, o cheiro de uísque, cerveja e suor era mais familiar para Kaye do que qualquer outro perfume.
? Beijo de cigarro ? disse a mãe naquele tom apatetado que era constrangedor e doce ao mesmo tempo, encostando a ponta do seu cigarro na ponta vermelha do cigarro de Kaye e respirando fundo. Duas tragadas e a brasa do cigarro da mãe ganhou à vida.
? Prontas para ir para casa? ? perguntou Lloyd, e Kaye quase deu um pulo. Não reagiu assim porque havia esquecido que ele estava ali, mas sim por causa do som da sua voz. Ela soara aveludada, com uma sombra de delicadeza. Aquela não era a voz normal de babaca do Lloyd. Não mesmo.
Ellen não pareceu notar nada de errado. Engoliu o que restava da sua bebida.
? Claro ? respondeu.
Um minuto depois, Lloyd levantou o braço como se fosse dar um soco em Ellen pelas costas. Kaye reagiu sem pensar, empurrando-o. Apenas devido à bebedeira de Lloyd, o peso de seu corpo franzino foi suficiente para fazer com que ele perdesse o equilíbrio. Ela viu que Lloyd tinha uma faca quando esta caiu no chão com um ruído metálico.
O rosto de Lloyd estava totalmente vazio, sem nenhum tipo de expressão. Os olhos estavam escancarados e as pupilas dilatadas.
Frank, baterista da Stepping Razor, agarrou o braço de Lloyd. Lloyd teve tempo suficiente apenas para dar um soco no rosto de Frank antes de outros fregueses atracarem-se com ele e alguém chamar a polícia.
Quando os tiras chegaram, Lloyd não conseguia se lembrar de nada. Estava chapado como o demônio e, ainda assim, amaldiçoava Ellen a plenos pulmões. A polícia levou Kaye e a mãe, de carro, até o apartamento de Lloyd e esperaram enquanto Kaye empacotava suas roupas e o resto das coisas em sacos plásticos de lixo. Ellen estava ao telefone, tentando achar um lugar para elas ficarem.
? Querida ? disse Ellen finalmente ?, teremos de ir para a casa da vovó.
? Você ligou para ela? ? perguntou Kaye, amontoando seus vinis da Grace Slick num caixote de laranjas vazio. Elas tinham visitado a avó uma única vez, nos últimos seis anos, desde que deixaram Nova Jersey. E Ellen mal falara com a mãe nos feriados de fim de ano, antes de passar o fone para Kaye.
? Liguei. Ela acordou com o barulho do telefone. ? Kaye não se lembrava da última vez em que vira a mãe com a aparência tão cansada. ? Será por pouco tempo. Você pode aproveitar para visitar aquela sua amiga.
? Janet ? disse Kaye. Ela imaginava que Ellen estivesse se referindo a Janet. Esperava que a mãe não estivesse zombando dela a respeito daquela idiotice de fadas mais uma vez. Se ela ouvisse outra história sobre Kaye e seus simpáticos amigos imaginários...
? Aquela para quem você passa e-mails do computador da biblioteca. Me dá outro cigarro, sim, querida? ? Ellen jogou uma pilha de CDs no caixote.
Kaye pegou uma jaqueta de couro de Lloyd de que ela sempre gostara e acendeu um cigarro para a mãe na boca do fogão. Não fazia sentido desperdiçar fósforos.





1


"Coercivo como um coma, frágil como a flor
insinuante como sua alvorada inversa
inunda o ego
cada um de nossos corpúsculos se torna um elfo!" (

? MINA LOY
"Moreover, the Moon"
The Lost Lunar Baedeker



Kaye rodopiava sobre as tábuas cinzentas e gastas do píer. O ar estava pesado e fedendo a mexilhões secos e a sal incrustado na madeira. Ondas se jogavam contra a praia, arrastando pedras e areia em suas garras à medida que eram lentamente puxadas para trás, em direção ao oceano.
A lua estava alta e pálida no céu, mas o sol estava prestes a nascer.
Era tão bom ser capaz de respirar, pensou Kaye. Ela adorava a brutalidade serena do oceano, amava o poder elétrico que sentia com cada inspiração do ar molhado e salgado pelo mar. Rodopiou novamente sobre as tábuas, sem se importar com o fato de sua saia estar voando acima das bordas das meias longas e justas.
? Vamos embora ? chamou Janet. Ela começou a andar na sarjeta alagada e entupida com folhas que acompanhava a rua paralela ao píer, cambaleando de forma frágil nos saltos grossos de seu sapato plataforma. O glitter da maquiagem faiscando sob a iluminação da rua. Janet exalou fantasmas de fumaça azul e deu outra tragada no cigarro.
? Você vai cair.
Kaye e a mãe já estavam na casa da avó havia uma semana e, apesar de Ellen continuar falando que elas iriam embora em breve, Kaye sabia que elas realmente não tinham mais nenhum lugar para onde ir. Kaye estava contente. Amava a grande casa antiga com sua poeira e suas bolas de naftalina. Gostava da proximidade do mar e do ar que não ardia em sua garganta.
Elas passavam pelos hotéis antigos, que havia muito estavam fechados, com tábuas de madeira cobrindo as portas de entrada e as piscinas drenadas e cheias de rachaduras. Até mesmo os fliperamas estavam fechados, os brindes daquelas máquinas com garras ainda visíveis através dos vidros embaçados. Marcas de ferrugem no alto da fachada de uma loja abandonada sublinhavam a palavra "ALGODÃO-DOCE".
Janet revirou sua minúscula bolsa e tirou um gloss de morango lá de dentro. Kaye rodopiou na direção dela, seu casaco de pele falsa de leopardo esvoaçava, um fio da meia já repuxado. Havia areia no interior das botas.
? Vamos nadar ? sugeriu Kaye. Ela estava atordoada devido ao ar noturno, queimando como uma lua incandescente. Tudo tinha um cheiro molhado e selvagem, como se precedesse uma grande tempestade, e ela queria correr, ávida e veloz, ultrapassando os limites daquilo que podia enxergar.
? A água está um gelo ? Janet suspirou ? e seu cabelo está todo ferrado. Kaye, quando chegarmos lá precisaremos estar apresentáveis. Não aja dessa forma estranha. Garotos não gostam de esquisitas.
Kaye parou e parecia estar escutando com interesse, seus olhos delineados com lápis voltados para baixo, observando Janet tão atentos quanto os de um gato.
? E como eu deveria agir?
? Não é que eu queira que você seja de uma determinada maneira, mas você não quer arranjar um namorado?
? E por que eu deveria me importar com isso? Vamos procurar um íncubos.
? Íncubos?
? Demônios. No plural. E é muito mais provável que nós os encontremos ? falou ela mais baixo, e sua voz assumiu um tom conspiratório ? enquanto nadamos nuas no Atlântico uma semana antes do Dia das Bruxas do que em praticamente qualquer outra ocasião que eu consiga imaginar.
Janet revirou os olhos.
? Você sabe o que parece que o sol está fazendo? ? perguntou Kaye. Não havia nada além de uma fatia vermelha onde o mar encontrava o céu.
? Não, o quê? ? perguntou Janet enquanto passava o gloss para Kaye.
? Parece que ele cortou os pulsos na banheira e o sangue se espalhou por toda a água.
? Que coisa grosseira, Kaye.
? E a lua está apenas assistindo. Ela está apenas assistindo a ele morrer. Deve ter sido por causa dela que ele fez isso.
? Kaye...
Kaye rodopiou novamente, dando gargalhadas.
? Por que você está sempre inventando essas merdas? Isso é o que eu quero dizer quando falo de esquisitice. ? Janet estava falando alto, mas Kaye quase não a ouvia devido ao barulho do vento e às suas próprias risadas.
? Qual é, Kaye. Lembra daquelas histórias de seres encantados que você contava? Qual era mesmo o nome deles?
? Qual dos dois? Spike ou Gristle?
? Isso mesmo. Você os inventou. ? continuou Janet. - Você está sempre inventando coisas.
Kaye parou de rodopiar, com a cabeça pendendo para um dos lados, os dedos deslizando para dentro dos bolsos.
? Eu não falei que não fazia mais essas coisas.


A velha construção em forma de carrossel estava semiabandonada durante anos. Rostos angélicos feitos de chumbo, rodeados por raios de cabelo separavam as janelas quebradas. Toda a fachada era envidraçada, revelando o chão sujo, o vidro refletindo o lixo. Lá dentro, uma rampa de skate feita de tábuas de madeira caindo aos pedaços era o único resquício de uma tentativa de usar a construção para fins comerciais na última década.
Kaye podia ouvir vozes ecoando no ar silencioso desde que entrara naquela rua. Janet jogou o cigarro na sarjeta. A guimba sibilou e foi rapidamente carregada para longe, adiando o contato com a água como uma aranha.
Kaye tomou um impulso e içou o corpo do lado de fora da mureta, suas pernas balançaram no ar por alguns instantes. Já fazia muito tempo que não havia mais janela ali, mas sua perna foi arranhada por um pedaço de vidro remanescente quando ela deslizou para dentro, desfiando ainda mais suas meias.
Andaimes cobriam precariamente as um dia intricadas molduras do interior da construção em forma de carrossel. A rampa no centro do salão havia sido coberta pelo trabalho de grafiteiros locais, adesivos de bandas e rabiscos feitos a caneta esferográfica. E lá estavam os garotos.
? Kaye Fierch, você se lembra de mim, não é? ? Bolo-fofo riu discretamente. Apesar do apelido, ele era baixo e magro.
? Acho que foi você quem tacou uma garrafa na minha cabeça na sexta série.
Ele riu de novo.
? Certo, certo. Tinha me esquecido disso. Você ainda está irritada?
? Não ? respondeu ela. Mas seu estado de espírito despretensioso desaparecera, o que a deixava esgotada e ansiosa. Janet escalou a rampa de skate até o topo, onde Kenny estava sentado, um rei em sua jaqueta de aviador prateada, observando os procedimentos. Bonito, com cabelos escuros e olhos ainda mais negros. Ele levantou uma garrafa de tequila quase cheia como saudação.
Marcus passou para Kaye a garrafa cujo conteúdo ele estava bebendo, fingindo, de brincadeira, que ia jogar a garrafa para ela. Um pouco do líquido derramou na manga da camisa de flanela dele.
? Bourbon. Essa porra é cara.
Ela forçou um sorriso quando pegou a bebida. Marcus prosseguiu destripando um charuto. Mesmo que sua postura fosse um tanto corcunda, ele era um cara grande. A pele marrom de sua cabeça brilhava e Kaye pôde ver onde ele certamente havia se cortado ao raspá-la.
? Trouxe alguns doces para você ? disse Janet para Kenny. Ela trouxera pipoca doce e chicletes.
? Trouxe alguns doces para você ? zombou Bolo-fofo em voz alta e chiada, pulando para a rampa. ? Passe-os para mim.
Kaye andou ao redor da sala redonda. Ela era magnífica, antiga, decadente e maravilhosa. A queimação lenta do Bourbon em sua garganta era perfeita para aquele lugar, o tipo de coisa que um homem num terno de verão e que sempre usava chapéu deveria beber.
? De que parte da Ásia você é? ? perguntou Marcus. Ele encheu o charuto com maconha e estava farejando uma das pontas. O cheiro denso e doce quase o sufocou.
Ela deu outro gole na garrafa e tentou ignorá-lo.
? Kaye! Você está me ouvindo?
? Sou metade japonesa. ? Kaye tocou o cabelo, loiro como o da mãe. Aquele era o cabelo de pessoas confusas.
? Cara, você já viu os quadrinhos que eles fazem lá? Tem umas garotinhas de maria-chiquinha vestindo aqueles uniformes de escola bem curtos. Cara, devia ter uniformes como esses aqui. Você já usou um desses uniformes alguma vez, hein?
? Cala a boca, babaca ? disse Janet, rindo. ? Ela fez o ensino fundamental junto comigo e o Bolo-fofo.
Kenny enroscou um dos dedos nos anéis do cós do jeans dela e a puxou para si no intuito de lhe dar um beijo.
? Bem, que merda! ? Marcus riu. ? Você não poderia fazer maria-chiquinhas ou algo do tipo por pelo menos um momento? Qual é!
Kaye balançou a cabeça. Não, ela não podia.
Marcus e Bolo-fofo começaram a jogar futebol com uma garrafa de cerveja vazia. Ela não quebrou ao ser chutada de uma bota para a outra, fazendo um ruído abafado. Kaye sorveu outro longo gole de Bourbon. A cabeça já estava zumbindo de forma agradável, o assobio acompanhando a música de um carrossel imaginário. Ela se moveu mais para o fundo do salão escuro, onde velhos cartazes anunciavam pipocas e amendoins a cinco centavos o pacote.
Contra a parede mais distante, havia uma porta preta e desgastada, que se abriu aos solavancos quando ela a empurrou. A luz da lua proveniente das janelas da sala principal revelou apenas um escritório com uma escrivaninha antiga e um quadro de cortiça com menus amarelecidos ainda pregados na superfície porosa. Ela entrou, apesar do interruptor da luz não estar funcionando. Tateando na escuridão, achou uma maçaneta. Essa porta conduzia a uma escadaria que tinha uma única luz fraca e oscilante vinda do topo. Ela continuou tateando escada acima. A poeira cobriu a palma de suas mãos à medida que ela as arrastava pelos corrimãos. Ela deu um espirro alto e outro em seguida.
No topo, havia uma pequena janela com uma iluminação brilhante vinda daquela lua mortal, cheia e imensa no céu. Caixas bastante interessantes estavam empilhadas nos cantos. Foi então que seus olhos se voltaram para um cavalo de madeira e ela se esqueceu de todo o resto. Ele era magnífico ? branco pérola brilhante e coberto com minúsculos pedaços de espelhos colados. A cara era pintada de vermelho, roxo e dourado, e ele tinha até uma fileira de dentes brancos e uma língua cor-de-rosa pintada, com espaço suficiente para se colocar um cubo de açúcar. O motivo pelo qual ele havia sido deixado para trás era óbvio suas pernas em todos os quatros lados e sua cauda haviam sido quebradas. Pedaços de madeira pendiam de onde as pernas deveriam estar.
Gristle iria adorar isso. Ela repetira mentalmente essa frase várias vezes desde que deixara a Praia, seis anos atrás. Meus amigos imaginários iriam adorar isso. Ela repetira mentalmente essa frase na primeira vez em que viu a cidade, iluminada como se lá o Natal não tivesse fim. Mas eles nunca foram visitá-la quando estava na Filadélfia. E, agora, ela estava com dezesseis anos e sentia como se não lhe tivesse sobrado nenhuma imaginação.
Ela tentou levantar o cavalo como se ele estivesse de pé sobre os tocos apodrecidos. Ele cambaleou, mas não caiu. Kaye tirou o casaco e o largou no chão empoeirado, colocando o Bourbon ao lado. Levantou uma das pernas até a altura dos seios e a deixou cair do outro lado da sela, usando os pés para evitar que o cavalo caísse. Kaye correu as mãos pela crina, que era entalhada em pequenos anéis dourados. Tocou os olhos pintados de preto e as orelhas lascadas.
O cavalo branco se elevava em suas pernas sem firmeza, na imaginação de Kaye. Os longos cachos da crina dourada eram frios ao toque de sua mão, e o grande volume do animal era real e quente embaixo dela. Acariciou a crina e segurou firme, levemente consciente de estar sentindo uma espécie de picada que percorria todos os seus membros. O cavalo gemeu sob ela, pronto para saltar em direção à água fria e negra. Ela jogou a cabeça para trás.
? Kaye? ? interrompeu uma voz suave o seu devaneio. Kenny estava parado junto às escadas, apreciando a menina inexpressivamente. Mesmo assim, por um momento, ela ainda sentia-se forte. Então, as bochechas pareceram queimar.
À meia-luz, ela pôde vê-lo melhor do que lá embaixo. Duas pesadas argolas de prata reluziam nos lóbulos das orelhas dele. O cabelo curto e cor de canela, com leves ondulações, estava com gel e encontrava as extremidades de um cavanhaque na altura do queixo. Debaixo da jaqueta de aviador, a camiseta branca e muito apertada mostrava músculos naturais, de alguém que já havia nascido com eles.
Ele se moveu na direção de Kaye, estendendo-lhe uma das mãos e a contemplando de maneira estranha, como se não se recordasse da razão de ter decidido estendê-la. Começou a afagar a cabeça do cavalo, devagar, quase que hipnoticamente.
? Eu vi você ? disse ele. ? Vi o que você fez.
Onde está Janet? Kaye não estava muito certa do que ele queria dizer. Poderia ter pensado que Kevin estava zombando dela se ele não estivesse com uma expressão tão séria e falando tão lentamente.
Agora ele estava tamborilando na crina do animal:
? Ela estava preocupada com você. ? A mão dele a fascinava apesar de seu desprezo. Parecia que ele estava entrelaçando a crina como se fosse feita de pêlos imaginários. ? Como você fez aquilo?
? Aquilo o quê? ? Naquele momento ela sentiu medo. Mas também ficou lisonjeada. Não havia brincadeira nem zombaria no rosto dele. Olhava para ela tão intensamente que parecia desprovido de qualquer tipo de expressão.
? Eu vi o cavalo ficar de pé. ? A voz estava tão baixa que ela podia até fingir que não o estava ouvindo direito. A mão dele caiu em sua coxa e deslizou para cima, em direção à parte inferior de sua calcinha de algodão.
Apesar de Kaye ter acompanhado a lenta progressão da mão dele, o toque a assustou. Ficou paralisada por um momento antes de se levantar, deixando o cavalo cair e causando um estrondo. A estátua esbarrou na garrafa de bourbon derrubando-a, o líquido escuro derramando no casaco de Kaye e ensopando o fundo das caixas empoeiradas como a maré subindo ao cair da noite.
Kevin a agarrou antes que ela pudesse ao menos pensar, a mão entrando pela gola de sua blusa. Kaye deu um passo para trás, perdeu o equilíbrio e caiu, ele a largou, mas, mesmo assim, a blusa da menina rasgou, deixando o sutiã à mostra.
O som de sapatos ecoou pelas escadas.
? Que porra... ? Marcus estava no topo da escada com Bolo-fofo, tentando lhe dar um empurrão para que este saísse do caminho e ele pudesse ver o que estava acontecendo.
Kenny balançou a cabeça e olhou ao redor como se estivesse entorpecido, enquanto Kaye se arrastava em busca de seu casaco ensopado de bourbon.
Os garotos saíram do caminho e Janet também estava lá, observando-os com os olhos arregalados.
? O que aconteceu? ? perguntou Janet, olhando para os meninos, confusa. Kaye tomou ânimo e enfiou a mão por uma das mangas do casaco, quando o jogou nas costas.
? Kaye! ? gritava Janet atrás dela.
Kaye a ignorou, descendo a escada de dois em dois degraus no escuro. Não havia nada que pudesse dizer para explicar o que acontecera.
Ela podia ouvir Janet gritando:
? O que você fez com ela? Que porra você fez?
Kaye correu pelo salão em forma de carrossel e pulou o batente da janela. O vidro que ela havia tão cuidadosamente evitado mais cedo fez um corte fino e retilíneo no lado externo de sua coxa quando a menina caiu no solo arenoso e cheio de mato.
A sensação do vento gelado contra sua face quente era muito boa.


Cornelius Stone pegou a nova caixa cheia de tralha de computação e a arrastou para junto das outras em seu quarto. Todas as vezes que a mãe voltava do mercado de pulgas com um monitor quebrado, um teclado pegajoso ou apenas um monte fios, ela lhe dirigia aquele olhar de esperança que fazia com que ele sentisse vontade de espancá-la. Ela simplesmente não compreendia a diferença entre um 286 e um computador de última geração. Não entendia que a era da guerrilha da engenharia eletrônica já estava praticamente terminada, que ser a porra de um gênio não era suficiente. Você tinha de ser a porra de um gênio rico.
Ele largou a caixa, chutou-a com força três vezes, pegou sua jaqueta de brim com o rosto de um demônio nas costas e rumou para a porta.
? Aquelas coisas têm alguma utilidade para você, querido? ? A mãe estava no quarto de Janet, dobrando um par de jeans de segunda mão. Levantou uma camiseta com gatos de miçanga bordados. ? Você acha que sua irmã vai gostar disso?
? Obrigado, mãe ? disse ele trincando os dentes. ? Preciso ir para o trabalho. ? Ele passou pelo marido, que estava curvado pegando uma cerveja da caixa localizada debaixo da mesa da cozinha. A gata branca se equilibrava sobre a bancada, a barriga arrastando graças a outra gravidez, clamando por comida enlatada ou picles, sorvete ou qualquer coisa. Ele acariciou a cabeça da gata de má vontade, mas, antes que ela começasse a se esfregar contra sua mão, o rapaz abriu a porta de tela e saiu para o quintal.
O ar fresco de outubro era um alívio contra a fumaça de cigarro viciada.
Corny amava seu carro. Era um Chevy que conservava a pintura original, com manchas de ferrugem que afloravam e o revestimento do interior pendia do teto como pele solta. Corny tinha noção de sua própria aparência. Corcunda. Esquálido e alto, com um cabelo ruim e uma pele pior ainda. Mantinha o padrão de seu nome. Cornelius. Algo antiquado. Ultrapassado. Mas não em seu carro. Lá dentro, ele era anônimo.
Todos os dias, nas últimas três semanas, ele havia saído um pouco mais cedo para o trabalho. Ia até uma loja de conveniência, comprava algo para comer e ficava dirigindo sem rumo, passando por todas as turminhas de garanhões da cidade, imaginado que tinha um rifle semiautomático e contando quantos deles ele poderia ter acertado.
? Pou! ? disse ele suavemente através das janelas abertas, quando passou por um rapaz de cabelos castanhos com ombros largos e usando um boné de beisebol com a aba virada para trás que dava em cima de algumas garotas que riam como idiotas atrás dos vidros de uma caminhonete vermelha. ? Pou! Pou!
Naquela noite, ele havia comprado uma xícara de café e um pacote de alcaçuzes pretos. Tentou insistir na leitura de um livro barato que trazia um dragão em alto-relevo na capa, passando os olhos pelas primeiras frases, na esperança de que algo o interessasse. O jogo estava começando a ficar chato. Mais do que chato, estava fazendo com que se sentisse mais patético do que antes. Quase uma semana antes do Dia das Bruxas e tudo o mais ? essa seria a ocasião em que um maníaco de verdade iria arranjar uma arma. Ele tomou um pequeno gole do café e quase cuspiu. Muito doce. Bebeu mais um pouco, abstraindo o gosto. Nojento.
Corny saiu do carro e derramou todo o café no estacionamento. O líquido respingou pelo asfalto. Entrou na loja e encheu mais uma xícara. Do outro lado do balcão, uma matrona de cabelo vermelho frisado olhava para ele e apontou para a jaqueta.
? Quem você pensa que é? O demônio?
? Gostaria de ser ? disse Corny, largando vinte e cinco centavos de dólar no balcão. ? Gostaria mesmo.






2


"As pedras eram afiadas,
O vento vinha detrás de mim;
Andando pela estrada,
Rebolando como um gato."(

? THEODORE ROETHKE,
Praise to the End!



O vento açoitava pequenas gotas de chuva no rosto de Kaye. As gotículas congelavam suas mãos, fazendo com que ela se arrepiasse à medida que escorregavam por seu cabelo molhado até a gola de seu casaco. Ela caminhava, a cabeça baixa, chutando o lixo espalhado que girava em redemoinhos ao longo da margem cheia de mato da estrada. Uma lata de soda amassada se movia com rapidez em direção a um coração de espuma encharcado, coberto por crisântemos, que marcava o local de um acidente de carro. Não havia casas deste lado da estrada, apenas uma longa extensão de floresta que dava em um posto de gasolina. Ela já havia avançado mais da metade do caminho até sua casa.
Carros sibilavam no asfalto. O som era reconfortante, como um longo suspiro.
Eu vi você. Vi o que você fez.
O horror torcia suas entranhas, o horror e a raiva. Ela queria esmagar alguma coisa, bater em alguém.
Como poderia ter feito algo? Sempre que tentava fazer com que uma página de revista virasse sozinha ou que uma moeda caísse com a face que indicava cara voltada para cima, nunca havia funcionado. Como ela poderia ter feito com que Kenny visse um cavalo de carrossel com as pernas quebradas se mover?
Também não importava o fato dela assumir que Spike, Lutie e Gristle haviam sido frutos de sua imaginação. Ela já estava em casa havia duas semanas e não tinha nem sinal deles, não importando quantas vezes os chamasse, quantas tigelas de leite deixasse no jardim ou quantas vezes houvesse ido ao velho riacho.
Respirou fundo, aspirando algumas gotas de chuva. Isso a lembrava da sensação de estar chorando.
As árvores pareciam painéis de carro achatados que perdiam seus vidros para poder se encaixar entre os galhos. Ela sabia o que a avó iria dizer quando voltasse, fedendo a álcool e com a blusa rasgada. Verdades.
As mesmas verdades que Janet falaria no dia seguinte. Não tinha como explicar o que acontecera sem admitir algumas coisas. O fato de uma das mãos dele ter escorregado por sua perna era o que realmente importava para Janet ? isso e ela ter deixado a mão dele ficar ali, mesmo que por apenas um instante. E Kaye podia imaginar o que ele deveria estar falando para Janet naquele momento ? o rosto pegando fogo, raivoso e bêbado ?, mas mesmo uma mentira esfarrapada soaria melhor que a verdade.
Eu vi o cavalo ficar de pé.
Ainda que ele não fosse tão longe, quem acreditaria que havia tocado suas coxas de propósito, mas rasgara sua blusa por acidente? Não, ele deve ter contado uma história totalmente diferente. Então o que Kaye deveria dizer quando Janet perguntasse a respeito do que havia acontecido? Janet já achava que ela era uma mentirosa.
Ainda podia sentir o calor da mão de Kenny, um golpe de fogo ao longo de suas coxas, em contraste com a pele encharcada pela tempestade.
Outra rajada de chuva feriu suas bochechas, trazendo consigo um grito vindo da direção da floresta. O som foi breve, mas eloqüente, dolorido. Kaye parou de forma abrupta. Não havia outro som além do ruído da chuva, sibilando como estática.
Então, no mesmo momento em que um caminhão passou em alta velocidade, levantando uma nuvem de chuviscos, ela ouviu outro som. Este era mais baixo, talvez um lamento de conformismo no fim. Vinha exatamente de dentro de um aglomerado de árvores.
Kaye passou por uma pequena poça, abandonou o trecho de grama baixa e entrou na floresta. Esquivou-se dos galhos molhados de um olmo, pisou em tufos de samambaias baixas e urzes entrelaçadas. Ervas daninhas esbarravam ao longo de suas pernas, deixando traços de chuva. O céu brilhante graças à tempestade iluminava a floresta com luz prateada. Um odor adocicado de terra e podridão aflorava nos trechos em que ela perturbava o tapete de folhas.
Então, não havia ninguém lá.
Ela estava parcialmente virada na direção da rodovia Ainda podia ver a estrada. O que ela estava fazendo? O som deveria ter vindo de uma das casas além do riacho que corria na parte de trás da floresta. Ninguém mais poderia ser tão idiota a ponto de ficar correndo pela floresta molhada, cheia de goteiras, no meio da noite.
Kaye foi andando de volta para a estrada, tentando pisar em pontos que, por algum motivo, pareciam estar mais secos do que outros. Espinhos grudaram ao longo das meias e ela se curvou para tirá-las.
? Permanece onde estás. ? Ela pulou ao ouvir a voz. O sotaque era forte e estranho, apesar das palavras terem sido pronunciadas de forma precisa.
Um homem estava largado na lama, apenas a alguns passos dela, apertando uma espada curva em uma das mãos. A lâmina brilhava como um punhado de luz da lua na escuridão enevoada. Os cabelos longos e incomuns, tão encharcados que grudavam em seu pescoço, emolduravam uma face longa e excessivamente angulosa. Filetes de água da chuva corriam da armadura articulada e negra que ele vestia. A outra mão estava no coração, apertando uma flecha fincada em seu ombro. A água da chuva estava tingida de cor-de-rosa devido ao sangue.
? Foste tu, criança? ? A respiração dele era irregular.
Kaye não estava certa do que ele queria dizer, mas balançou a cabeça. O rapaz não parecia muito mais velho do que ela. Certamente não era velho o suficiente para chamá-la de "garota".
? Então tu não vieste para acabar comigo?
Kaye balançou a cabeça de novo. Ele era comprido ? se estivesse de pé, certamente poderia demonstrar o quanto era alto. Mais alto do que a maioria das pessoas, mais alto do que qualquer fada que ela já vira ? contudo, ela não tinha dúvidas a respeito do que ele era. Por nenhuma outra razão além do fato de orelhas pontudas cortarem os cabelos molhados ? e ele era tão bonito que fazia com que sua respiração faltasse.
O rapaz passou a língua pelos lábios. Havia sangue neles.
? Que pena ? disse ele com tranquilidade.
Kaye deu um passo na direção do rapaz e ele se encolheu defensivamente. Ferido como estava, ainda conseguia se mover com rapidez. O cabelo lhe caiu no rosto, mas seus olhos, brilhando como mercúrio, a estudavam atentamente.
? Você é um ser encantado, não é? ? perguntou ela com delicadeza, cruzando as mãos e colocando-as no campo de visão dele. Lutie-loo já havia lhe contado histórias a respeito da corte dos predestinados à Pequena Nobreza, mas nunca vira um deles. Talvez ele fosse um desses seres.
O rapaz permaneceu em silêncio e Kaye deu outro meio passo na direção dele, estendendo uma das mãos como se tivesse a intenção de fazer um afago para acalmá-lo, como se ele fosse algum animal fascinante e perigoso.
? Deixe-me ajudá-lo.
O corpo dele estava tremendo graças à imensa concentração. Os olhos não abandonaram o rosto de Kaye nem sequer por um segundo. Ele segurou o punho da espada, envolvendo-o com força com os nós dos dedos brancos.
Ela não ousou dar nem mais um passo.
? Você vai sangrar até a morte.
Ele permaneceu assim por mais alguns minutos antes de afundar um dos joelhos na lama. Inclinou-se para a frente, os dedos agarravam as folhas e saliva vermelha escorria de sua boca. As pestanas molhadas acima dos olhos semi-abertos eram prateadas como um alfinete de segurança.
Kaye deu dois passos e se ajoelhou próximo a ele, envolvendo-se com as mãos trêmulas. Dessa distância, podia ver que a armadura dele era de couro rígido, esculpida para parecer ser feita de penas.
? Não posso arrancar a flecha sozinho ? disse ele suavemente. ? Eles estão esperando que eu sangre um pouco mais antes de vir contra a lâmina de minha espada.
? Quem está esperando? ? Era difícil de entender que alguém o acertara com um galho de árvore, mas parecia ser isso mesmo o que ele estava dizendo.
? Se estás querendo ajudar, arranca esta flecha. ? Os olhos dele se estreitaram e ele balançou a cabeça. ? Caso contrário, empurre-a o mais fundo possível e torça para que isso me mate.
? Irá sangrar mais ? disse Kaye.
O rapaz riu quando ela falou isso, um som amargo:
? Isso irá acontecer de qualquer forma, não duvide.
Ela podia ver o desespero no rosto dele. Obviamente acreditava que ela fazia parte de algum plano para matá-lo. Com calma, o rapaz fez com que seu corpo escorregasse para trás até que pudesse se inclinar contra o tronco de um carvalho, esperando a reação dela.
Kaye se lembrou dos seres encantados que conhecera quando criança; criaturas travessas e ágeis; não havia nenhuma menção a guerras, flechas mágicas ou inimigos, com certeza não havia mentiras, decepções. O homem que sangrava na lama ao lado dela comprovava quão errados seus conceitos de seres encantados haviam sido.
Os dedos dela recuaram do ferimento no peito do rapaz. Seus pulmões congelaram à medida que contemplava aquele ferimento medonho.
? Não conseguirei fazer isso.
A voz dele permaneceu macia.
? Como eles te chamam?
? Kaye ? respondeu ela. Houve um silêncio por um momento e ela percebeu a nuvem fria de sua respiração sublevando-se com aquela palavra.
? Eu sou Roiben. ? Seres encantados não diziam seus nomes com facilidade, nem mesmo parte deles, apesar de Kaye não ter a mínima idéia da razão desse hábito. Ele estava tentando demonstrar que acreditava nela, talvez tentando reparar as suposições que havia feito a respeito dela. ? Me dê a sua mão.
Kaye deixou que ele segurasse uma de suas mãos e a guiasse até o ferimento. A mão do rapaz se fechou contra a dela, ambas estavam frias e molhadas, os dedos sobrenaturais dele eram longos, ásperos e calejados.
? Apenas fecha tua mão ao redor da flecha e deixa-me puxá-la. Não precisas nem mesmo olhar. Contanto que eu não esteja tocando a flecha, devo ser capaz de arrancá-la.
Isso a deixou envergonhada. Ela disse que queria ajudá-lo, ele estava cheio de dor e não era hora dela ser enjoada.
? Tudo bem. Eu vou fazer.
Roiben largou a mão dela e Kaye deu um puxão brusco. Apesar da face do rapaz estar contraída de dor, a flecha se soltou apenas mais um pouco.
Haveria realmente outro ser encantado na copa das árvores, esperando que ele ficasse fraco o suficiente para poder se defender? Kaye pensou que, se isso fosse verdade, esse seria o momento ideal para ele sair de onde estava e atacar.
? De novo, Kaye.
Desta vez, ela prestou atenção à aresta da armadura, mudando de posição para que a flecha não atingisse nenhuma das placas. Apoiou-se num dos joelhos e, então, se levantou, puxando a flecha para cima o mais forte que conseguiu.
Roiben deu um gemido áspero quando a flecha escorregou para fora de seu ombro, a ponta de metal escurecida pelo sangue. Os dedos dele tocaram o ferimento e ele os ergueu, escorregadios e ensanguentados, como se não acreditasse que havia sido atingido.
? És muito corajosa ? disse ele encostando os dedos molhados na perna da menina.
Kaye arremessou a flecha para longe. Estava tremendo e podia sentir o fantasma do sangue na boca.
? Precisamos estancar o sangramento. Como se arranca essa armadura?
No início, ele pareceu não ter entendido. Apenas olhou para ela com uma expressão de incredulidade. Então se inclinou para frente com um gemido.
? Correias. ? O rapaz finalmente se deu conta.
Ela se aproximou e sentou atrás dele, procurando fivelas pela armadura lisa.
Um vento repentino balançou os galhos acima deles, fazendo com que tomassem mais um banho de gotas grossas de chuva, e Kaye pensou novamente em seres encantados espreitando nas copas das árvores. Os dedos se atrapalhavam por causa do nervosismo. Se essas criaturas ainda estavam com medo de Roiben, não teriam que se preocupar por muito tempo ? ela apostava que levaria apenas alguns minutos para que ele morresse de vez.
Para remover-lhe a couraça do peito, ela não apenas teve que soltar as fivelas da armadura das costas, localizadas nos ombros e em ambos os lados do tronco, como também soltar as presilhas que a conectavam à proteção dos ombros e das pernas. Finalmente ela conseguiu tirá-la do peito dele. Debaixo da armadura, a pele nua estava sarapintada de sangue.
Ele deixou a cabeça cair para trás e fechou os olhos.
? Deixa que a chuva limpe.
Kaye arrancou o casaco e o pendurou em um dos galhos da árvore. Sua blusa já estava rasgada, ela se lembrou enquanto a tirava. Ela a dividiu em tiras longas e começou a enrolá-las ao redor dos braços e do peito de Roiben. Ele abriu os olhos quando ela o tocou. Seus olhos se apertaram e depois se arregalaram. A cor deles era hipnótica.
Ele se retesou, horrorizado.
? Eu nem ao menos ouvi a roupa sendo rasgada.
? Você precisa tentar se manter acordado. ? As bochechas de Kaye estavam tão quentes que a chuva gelada causava, na verdade, uma sensação bastante boa. ? Você tem algum lugar para onde possa ir?
Ele balançou a cabeça. Tateando desajeitadamente na superfície ao seu redor, pegou uma folha e a esfregou contra o interior do peitoral de couro. Quando a retirou, ela estava tingida de um vermelho brilhante.
? Jogue isso no riacho. Eu... Há um cavalo das águas lá... Não estou certo de que conseguirei controlá-lo com esse temporal, mas isso pode ajudar.
Kaye balançou a cabeça com rapidez, apesar de não fazer idéia do que fosse um cavalo das águas, e fez menção de pegar a folha.
Ele não a deixou ir de imediato.
? Estou em dívida contigo. Infelizmente não sei como te recompensar.
? Tenho algumas perguntas...
Ele deixou que Kaye pegasse a folha.
? Eu responderei a três, de forma tão completa e satisfatória quanto estiver ao alcance de meu poder.
Ela balançou a cabeça. Como num conto de fadas. Tudo bem. De qualquer forma, ela não esperava nada dele mesmo.
? Quando jogares a folha na água, diz: "Roiben da corte Indigna clama por seu socorro."
? Devo dizer isso para quem?
? Apenas diz em voz alta.
Ela balançou a cabeça novamente e correu em direção à água. A margem íngreme do riacho estava obstruída pela vegetação e por cacos de vidro. Raízes, varridas pelo vento, se tornando desprovidas da terra que deveria circundá-las, se espalhavam pela margem como cestos emborcados ou corriam ao longo do solo como braços pálidos de cadáveres semicarbonizados. Ela se proibiu de pensar nisso novamente.
Kaye se abaixou e soltou a folha na água com o lado manchado de sangue virado para baixo. Preocupou-se com que a folha não estivesse muito perto da margem e tentou soprá-la para longe.
? Roiben da corte Indigna precisa de sua ajuda ? disse ela, torcendo para que tivesse pronunciado as palavras certas. Nada aconteceu. Ela repetiu, mais alto, se sentido, ao mesmo tempo, idiota e amedrontada. ? Roiben da corte Indigna precisa de sua ajuda.
Um sapo emergiu e começou a nadar em sua direção. Será que isso tinha algo a ver com o Cavalo das Águas? Que tipo de ajuda eles poderiam esperar de um riacho raso e poluído?
Mas então ela viu que estava enganada. O que havia tomado como olhos de um sapo eram, na verdade, ondulações circulares que tremulavam como se alguma coisa nadasse através da água em direção a ela. Sentiu vontade de correr, mas o fascínio, combinado com a obrigação, a enraizaram naquele local. As ondulações se transformaram em narinas cintilantes no focinho de um cavalo negro que se elevou na água escura como se houvesse sido criado a partir do próprio rio. Musgo e lama escorreram de seus flancos gotejantes quando virou a cabeça com o intuito de olhar firmemente para Kaye com seus olhos brancos e luminosos.
Ela não conseguia se mover. Quantos minutos haviam se passado desde o momento em que começara a encarar aqueles flancos malhados de cinza, acetinados como pele de foca e o brilho inacreditável daqueles olhos? A criatura inclinou o pescoço.
Kaye deu um meio passo para trás e tentou falar. Nenhuma palavra saiu de sua boca.
A criatura em forma de cavalo farejou-a, os cascos afundando na lama, fazendo com que os galhos submersos estalassem. Ele cheirava a maresia. Kaye deu outro passo cuidadoso para trás e tropeçou.
Ela precisava dizer alguma coisa.
? Por ali. ? Ela finalmente conseguiu falar, apontando através das árvores. ? Ele está ali.
O cavalo se moveu na direção indicada, trotando para ganhar velocidade, e ela foi deixada para trás, como se devesse segui-lo, quase tremendo de alívio. Quando chegou à clareira, Roiben já estava montado no lombo da criatura. A armadura peitoral havia sido amarrada ao acaso nos flancos. Ela soltou a respiração e só então se deu conta de que, até então, a estava prendendo.
Ele viu Kaye emergindo por debaixo de um dossel de galhos e sorriu. Os olhos de Roiben pareciam mais escuros sob a luz da lua.
? Estando contigo, eu estaria livre do Povo no futuro. Somos pessoas caprichosas, com pouca consideração pelos mortais.
Kaye olhou novamente para ele. Havia arranhões na armadura dos quais ela não se lembrava. Será que ele havia sido atacado? Mas alguns minutos atrás ele mal conseguia erguer a cabeça; era impossível de acreditar que havia lutado contra alguém.
? Aconteceu alguma coisa? ? perguntou ela.
O sorriso dele se tornou ainda mais profundo, espantando o cansaço que estava estampado em sua face. Os olhos brilharam.
? Não desperdiça tuas perguntas.
Então o cavalo começou a cavalgar, se movimentando de uma forma inviável para qualquer coisa viva, disparando por entre as árvores com graça e velocidade sobrenaturais. Os golpes dos cascos agitavam as folhas. A luz da lua brilhava nos flancos.
Antes que pudesse ao menos raciocinar, ela estava sozinha na floresta. Só, arrepiada e orgulhosa de si mesma. Moveu-se para tentar recuperar o casaco, e um lampejo atingiu seus olhos. A flecha.
Ela se pôs de joelhos e pegou o galho com sua ponta de ferro. Os dedos correram pela casca áspera e alcançaram o metal excessivamente quente. Um tremor percorreu-lhe o corpo e ela deixou que a flecha caísse de volta na lama. Subitamente a floresta havia se tornado ameaçadora e ela andou o mais rápido que podia em direção à estrada. Se começasse a correr, ela acreditava que não seria capaz de parar.


Kaye afundou o pé no declive lamacento que marcava os limites do gramado da avó e fez um esforço para subir. Andou sem fazer barulho, passando pela lata de lixo abarrotada, pelo carro quebrado e pelas latas de café enferrujadas amarradas com arame umas nas outras com a intenção de servirem de cerca para um jardim de ervas murchas.
Todas as luzes da casa pareciam estar acesas, realçando as cortinas encardidas. Luzes azuis piscavam na sala onde se localizava a televisão.
Ela abriu a porta dos fundos e entrou na cozinha. Potes e panelas incrustados de comida estavam empilhados na pia. Lavá-las era tarefa de Kaye. Em vez disso, ela abriu o armário, pegou uma tigela, encheu-a de leite e colocou um pedaço de pão branco dormido por cima. Isso deve servir, pensou enquanto abria cuidadosamente a porta e colocava a vasilha no degrau da entrada; apesar de tudo, os únicos seres que ainda poderiam se interessar por aquilo seriam os gatos da vizinhança.
Kaye entrou furtivamente na sala de estar.
No lado contrário à escada, Ellen estava sentada em frente à televisão, comendo um dos Snickers em miniatura que a avó havia comprado como prenda para as crianças no Dia das Bruxas.
? Me deixe sozinha, porra ? murmurou Ellen para a bebida que estava diante dela.
? Você acha que eu não sei de nada. Tudo bem, você é a espertalhona aqui, não é? ? disse a avó de Kaye naquele tom de voz extremamente doce que tanto irritava Kaye. ? Se você é tão esperta, então por que voltou completamente só? Por que todos esses homens apenas usaram você e a abandonaram? Por que a única pessoa que lhe dá abrigo é a sua velha e estúpida mãe?
? Eu já ouvi você dizer toda essa merda mais de um milhão de vezes.
? Bem, você vai ter de ouvir de novo ? continuou a avó de Kaye. ? Aonde sua filha foi essa noite? Já é quase uma da manhã! Você se importa ao menos com o fato dela estar por aí vagabundeando, sabe-se lá por onde, sofrendo do mesmo tipo de maldição que a fará se tornar exatamente como você?
? Não comece a falar da minha filha! ? exclamou a mãe de Kaye com uma veemência surpreendente. ? Ela está bem. Deixe Kaye fora de seus escândalos.
Kaye abaixou a cabeça e tentou subir as escadas o mais rápido e silenciosamente possível.
Ela reparou em seu reflexo no espelho do corredor, delineador e sombra com glitter espalhados pelas bochechas e debaixo dos olhos, escorrendo em traços endurecidos e brilhantes que pareciam ter sido causados por lágrimas. O batom estava borrado e opaco, formando um arco que atravessava sua bochecha esquerda onde ela havia esfregado.
Kaye se virou para dar uma olhada furtiva na sala de estar. A mãe percebeu sua passagem, virou os olhos e fez um gesto furtivo com a mão para que ela subisse as escadas.
? Enquanto estiver nesta casa, ela vai viver de acordo com as mesmas regras com as quais você foi criada. Eu não me importo se ela passou os últimos seis anos em um apartamento infestado de ratos com todos aqueles arruaceiros que você levava para casa. A partir de agora, ela será criada de maneira decente.
Kaye subiu o restante dos degraus sem fazer barulho e entrou em seu quarto. Fechou a porta o mais silenciosamente possível.
O minúsculo armário branco e a cama demasiadamente pequena pareciam pertencer a outra pessoa. Seus ratos, Isaac e Apocalipse, corriam, elétricos, pelo aquário colocado no topo de uma velha caixa de brinquedos.
Kaye despiu as roupas e, sem ligar para a umidade, a lama ou qualquer outra coisa, se jogou na caminha, enrolou-se com o cobertor e encolheu as pernas para que não ficassem para fora. Kaye sabia o que era obsessão ? percebia como a mãe ansiava pela fama, sofrendo por causa de homens que a tratavam como lixo. Kaye não queria desejar alguém que nunca teria.
Mas, pelo menos por aquela noite, Kaye se permitiu pensar nele, lembrar do jeito solene e formal com que ele havia falado com ela, tão diferente de qualquer outra pessoa. Deixou-se pensar nos olhos brilhantes e no sorriso malicioso.
Kaye mergulhou no reino do sono como se sua cabeça estivesse sendo coberta por água.










3


"Um cigarro é o tipo perfeito de prazer perfeito.
É requintado e deixa o fumante insatisfeito.
O que mais alguém pode querer?" (

? OSCAR WILDE
O retrato de Dorian Gray



Kaye estava de pé na beira de um córrego, segurando uma Barbie pelos cabelos loiros, a água gelada fazendo-lhe cócegas nos dedos dos pés. Ondas de calor atingiam as costas dela e Kaye podia sentir o cheiro do verde e o odor penetrante da lama do verão. Tinha nove anos.
Nos sonhos, aquilo fazia total sentido, mesmo que ela soubesse que não havia acontecido exatamente daquela maneira. A memória do verde acolhedor era anterior à dos seus nove anos. Mas, nesse sonho de retalhos, Spike estava sentado no tapete de grama que cobria toda a margem. Estava costurando um vestido e uma bolsa de folhas para a boneca. Lutie sentava com as pernas abertas envolvendo a cintura de um Ken, as asas de borboleta iridescentes vibravam ligeiramente enquanto ela cantava canções obscenas que faziam com que a Kaye de nove anos desse gargalhadas e corasse ao mesmo tempo.

"Eu poderia imaginar que ele pudesse se curvar,
Mas meu ser fica desesperado quando ele fica pelado.
Um peito de plástico musculoso não completa o
resto do corpo;
Até mesmo um boneco precisa tentar fazer uma
boneca suspirar."

Gristle estava parado, em silêncio, ao lado de Kaye. Rindo, a menina se virou na direção dele e o serzinho fez menção de que ia falar algo, mas a única coisa que saiu de sua boca foi uma pedra branca. Ela caiu no riacho com um salpico d'água, se assentando no fundo juntamente com as outras pedras, brilhando com uma luz estranha.

"Um garoto de plástico não é o brinquedo ideal.
Toda menina possui uma jóia especial."

Um crocitar súbito atraiu a atenção de Kaye. Um corvo estava pousado na árvore, penas pretas bruxuleavam com tons diferentes de negro, como gasolina flutuando na superfície da água. Quando o corvo lhe dirigiu seu olhar malicioso, os olhos eram pálidos como a pedra.

"Não vá se importar se você não conseguir encontrar
O negócio ? ele não consegue nem mesmo encontrar
o próprio troço."

O corvo arrastou as garras pelo galho e mergulhou no ar. Um momento depois, ela sentiu um arranhão de garras ao longo de seus pulsos e a mordida do bico do animal em uma das mãos ao mesmo tempo que a boneca foi arrancada e levada em direção ao céu.
Kaye gritou com uma histeria estridente e infantil e se abaixou no intuito de pegar algo para tacar no pássaro. Uma das mãos se fechou em torno de uma pedra e ela a arremessou sem pensar.
O corvo fez uma curva em espiral aproveitando o amortecimento proporcionado pelas árvores. Kaye correu atrás dele. A floresta ao redor da menina se tornou enevoada e, subitamente, ela estava no encalço de apenas uma forma escura. O animal estava imóvel, as penas tremulando levemente ao sabor da brisa. A boneca da Kaye também estava lá, jogada ao lado do pássaro morto, e, entre eles, havia uma pedra branca e lisa. A pedra que saíra da boca de Gristle.
E, então, ela acordou.


A mãe de Kaye estava de pé junto à porta do quarto segurando o telefone sem fio.
? Eu te chamei milhares de vezes lá de baixo. É a Janet ao telefone.
? O quê? ? Kaye piscou com os olhos colados pela maquiagem do dia anterior. Esticou as pernas e os pés chutaram o estribo da minúscula cama.
O sol estava vivo novamente, brilhando com fúria contra as trapaças da noite causadas pelas mãos da Senhora Lua. Clarões de luz ácida a ameaçaram com uma dor de cabeça se ela abrisse os olhos.
? Noite difícil? ? A mãe de Kaye se apoiou no batente e deu uma tragada em seu cigarro.
Kaye esfregou os olhos. Seus punhos voltaram pretos e cheios de glitter.
? É a Janet. ? A mãe de Kaye parecia tanto chateada quanto divertida por ter de ficar se repetindo. ? Você quer que eu diga que retorna a ligação dela depois?
Kaye balançou a cabeça e pegou o telefone.
? Alô? ?Sua voz estava rouca, grossa e arrastada.
Ellen saiu da frente da porta e Kaye ouviu as pancadas dos sapatos da mãe pelos degraus da escada.
? O que aconteceu na noite passada? ? Kaye levou alguns minutos para entender aquilo que Janet estava perguntando.
? Ah, nada. Kenny tentou me segurar e minha blusa rasgou.
? Kaye! Por que você saiu correndo daquele jeito? Pensei que ele tivesse feito alguma coisa terrível a você. Nós brigamos a noite inteira por causa disso.
? Pensei que você não fosse acreditar ? disse Kaye categoricamente.
A frase deve ter soado como um arrependimento de amiga, pois o tom de Janet tornou-se mais doce:
? Qual é, Kaye. É claro que acredito em você.
Kaye fez um esforço violento para encontrar o que dizer diante dessa absolvição inesperada.
? Você está bem? ? perguntou Janet.
? Conheci alguém quando voltava pra casa na noite passada. ? Kaye sentou na cama e percebeu que havia ido para a cama ainda vestindo o sutiã, a saia e as meias. Não sentira nem mesmo um traço de desconforto.
? É mesmo? ? Janet parecia surpresa e quase cética. ? Era um garoto?
? É ? respondeu Kaye. Queria falar isso alto, conservar o som na garganta. Sua lembrança de Roiben já estava desbotada pelo sol, os acontecimentos ocorridos nos sonhos se tornam enfraquecidos se não são registrados por escrito. ? Ele tem olhos cinza e cabelo longo.
? Como o de um metaleiro?
? Mais comprido. ? Ela enrolou o edredom de cor rosa-vômito de forma que ficasse mais apertado ao redor do corpo. Como tudo mais que havia no quarto, o cobertor também era ligeiramente pequeno para o tamanho dela.
? Que estranho. Qual é o nome dele?
? Robin. ? Kaye tinha um pequeno sorriso nos lábios. Ainda bem que Janet não podia vê-la naquele exato momento. Tinha certeza de que aparentava estar idiotamente feliz.
? Como Robin Hood? Você está falando sério? Rolou alguma coisa entre vocês?
? Nós só conversamos ? respondeu Kaye.
Janet suspirou.
? Você não conheceu ninguém, não é? Você está inventando tudo isso.
? Ele é real ? disse Kaye. Ele era real, a pessoa mais real que conhecera em muito tempo. Hiper-real.
? De qualquer forma, a festa foi uma droga ? continuou Janet. ? Quase quebrei a cara de uma garota. O Bolo-fofo ficava me falando pra manter a calma, mas eu estava muito perturbada e cansada. Bem, vem aqui pra casa que te conto o resto.
? Claro, tudo bem. Vou me vestir.
? Ok. Tchau. ? Kaye ouviu um clique quando Janet colocou o fone no gancho. Desligou o telefone e o largou no edredom.
Kaye olhou em volta do quarto. Suas roupas estavam amontoadas no chão, a maioria delas ainda dentro dos sacos de lixo pretos. Todos os móveis eram os mesmos de quando ela tinha quatro anos, móveis brancos do tamanho perfeito para uma criança, paredes cor-de-rosa e um exército de bonecas com seus acusadores olhos de vidro, arrumadas nas prateleiras.
Tenho de encontrar Gristle e Spike. Antes, Kaye nem ao menos precisava chamá-los. Eles sempre estavam por perto nas ocasiões em que necessitava deles. Mas isso quando era pequena, antes de suas pernas ficarem apertadas no estribo da cama e ela precisar se curvar para ver o rosto no espelho do armário. Kaye suspirou. Podia apostar que não era mais pura como um unicórnio. Talvez esse tipo de coisa fosse importante.
Kaye tirou o resto das roupas e achou um par de jeans surrados e uma camiseta azul da G-Force. No banheiro, jogou água gelada no rosto e o esfregou, fazendo com que a maquiagem da noite anterior fosse retirada. Inspecionou o próprio reflexo. A tinta roxa com que havia tingido o cabelo já estava desbotada. Contemplou os olhos puxados e o queixo fino. Pela primeira vez, ficou divagando a respeito de onde eles haviam vindo. Ela não vira Roiben muito bem sob a luz da lua, mas os olhos puxados que ele possuía podiam confundi-lo com um asiático, se não tivesse um nariz tão anguloso.
Ela suspirou novamente e prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo. Ei, se aparentasse ter dez anos novamente, talvez seres encantados protetores de crianças pudessem aparecer e falar com ela.
O casaco de leopardo estava úmido demais para que ela pudesse vesti-lo. Kaye pegou a jaqueta de couro de Lloyd e checou os bolsos. Um par de recibos amarrotados, uma palheta de guitarra de casco de tartaruga falso, alguns trocados. Kaye tirou a mão quando sentiu uma picada.
Um espinho marrom e fino estava fincado na ponta do dedo de Kaye. Isso apenas comprovava que Lloyd deveria ter carregado algo inoportuno no bolso. Ela arrancou a farpa e chupou o ponto vermelho que começava a surgir no dedo. Então, jogou o espinho dentro do armário e desceu as escadas.
A mãe de Kaye estava sentada à mesa da cozinha, folheando uma revista. Um quinto de uma garrafa de gin estava aberta sobre a mesa e um cigarro estava quase que virando cinzas num prato ao lado dela.
? Você vai na casa da Janet? ? perguntou Ellen.
? Vou.
? Quer tomar uma xícara de café antes de ir, querida? Você não parece muito desperta.
? Eu estou bem. A vovó vai surtar quando vir esse prato. ? Kaye nem se importou em mencionar o gin.
A mãe de Kaye se inclinou para trás na cadeira.
? Não fique tentando tomar conta de sua mãe. ? Foi só então que Kaye percebeu o desânimo na voz dela.
? Alguma notícia daquele babaca do Lloyd?
Ellen balançou a cabeça negativamente.
? Não. Liguei para duas velhas amigas da Sweet Pussy, mas todas elas se tornaram mulheres respeitáveis.
Kaye riu. Ela se lembrava de Liz pulando pelo palco em sua incrível roupa de gato roxa como uma Julie Newmar versão glam-rock. Era difícil imaginar de que maneira ela havia se tornado alguém respeitável.
? Vocês vão se encontrar?
? Talvez ? disse Ellen, como se sua mente estivesse a quilômetros de distância dali. ? Sue e Liz abriram uma loja de CDs minúscula em Red Bank.
? Isso é ótimo!
Ellen suspirou.
? É mesmo? Eu só fico imaginando qual foi a última vez em que elas pegaram na porra de um instrumento.
Kaye balançou a cabeça. Era estúpido pensar que a mãe simplesmente desistiria de voltar para a cidade, mas ela não podia ficar alimentando esperanças.
? Avise a vovó que não voltarei tarde.
? Você pode voltar pra casa quando quiser. Eu sou sua mãe.
? Obrigada, mãe. ? Kaye foi andando em direção à porta.
O vento soprava lufadas de folhas vívidas e com cor de batom pelo gramado. Kaye respirou fundo o ar fresco.
? Luttie-loo ? sussurrou ela para o vento ?, Spike, Gristle... por favor, voltem. Preciso de vocês.
Vou apenas andar até a casa da Janet. Apenas vou até a casa da Janet como disse que faria e, então, vou pensar num plano.
Janet morava em um estacionamento de trailers que se estendia pela estrada principal, nos fundos do posto de gasolina onde o irmão dela trabalhava desde que Kaye havia ido para a Filadélfia pela primeira vez. Ela acenou para Corny enquanto cortava o estacionamento.
Ele sorriu de má vontade. O cabelo dele parecia um esfregão alongado, cortado curto demais na frente e deixado muito comprido atrás. Estava usando uma jaqueta de brim e jeans sujos. Sua pele apresentava placas vermelhas. Continuava do mesmo jeito que Kaye se lembrava dele, só que mais alto.
Ela continuou caminhando, passando por trás do pequeno escritório e dos banheiros do posto de gasolina, e cortou caminho atravessando os arbustos excessivamente crescidos até o estacionamento de trailers. Os trailers eram veículos apenas no nome, pois nenhum deles tinha rodas e a maioria apresentava cercas e varandas presas com aço e cimento sob o teto. Ela andou pela estrada de seixos em direção ao trailer.
Uma garota de cabelos castanhos, aparentemente da mesma idade de Kaye, pendurava roupas na corda. Atrás dela, um opulento homem gordo estava jogado em uma rede; as banhas vazavam pelas linhas entrecruzadas. Um trio de bassês latia loucamente enquanto perseguiam uns aos outros através de uma cerca feita de elos de metal.
Kaye se aproximou da porta de tela e deu algumas batidas.
? Entre ? chamou-a Janet. Kaye podia ver os pés da amiga através da tela, jogados em cima do encosto do danificado sofá azul, as unhas pintadas com esmalte escuro. Os pés de Janet tinham chumaços de papel higiênico enfiados entre os dedos, por isso eles mal se tocavam.
A porta rangeu de forma horrenda quando Kaye a abriu. A ferrugem havia emperrado as dobradiças nas quais o verniz branco estava lascado. O cômodo principal do trailer estava escuro, as janelas cobertas por cortinas. A luz tremulava a partir de três fontes diferentes: a porta, a opaca luz cor de âmbar da cozinha e a televisão. Na tela, duas mulheres gritavam uma para outra diante de um auditório. Uma das mulheres tinha sobrancelhas falsas.
? Quer fazer as unhas? ? perguntou Janet. ? Tenho um esmalte azul bem legal.
Kaye balançou a cabeça, apesar de Janet provavelmente não haver visto o gesto.
? Posso fazer café?
? Claro. Faça um pouco para mim também. ? Janet se espreguiçou, esticando os dedos dos pés marrons brilhantes quando se curvou novamente. Vestia uma camiseta de garoto sem mangas e uma calcinha de algodão com desenhos de margaridas. ? Estou com uma ressaca terrível.
? Onde está todo o mundo?
? Mamãe e o marido estão no mercado de pulgas. Corny já deve estar chegando do trabalho. Você não vai acreditar no que ela me deu da última vez que esteve lá: um top com gatos de miçangas bordados! Eu quero dizer: onde mais ela pode encontrar esse tipo de coisa?
Kaye deu uma gargalhada. A mãe de Janet colecionava todos o tipos de coisas cafonas, especialmente itens relacionados a Jornada nas estrelas. As paredes do trailer eram cobertas por pratos colecionáveis e desenhos feitos por fãs. Uma coleção de almofadas bordadas com temas relativos ao dr. Spock disputava com Janet o espaço do sofá.
? Vi Corny quando estava vindo pra cá. Acho que ele não me reconheceu.
? Ele é um babaca. Tudo que faz é sentar no quarto dele e ficar se masturbando. Vai acabar ficando com a mão peluda.
Kaye tirou duas canecas da prateleira e as encheu com água da torneira.
? Talvez eu tenha mudado muito. ? Kaye apertou alguns dos botões do microondas e colocou as duas canecas lá dentro. Elas giraram sobre a bandeja de vidro engordurada.
? É, eu acho. ? Janet começou a mudar de canal, parando no VH1.
? Então, o que aconteceu na noite passada? ? Kaye sabia que iria agradar Janet se perguntasse.
E foi isso o que aconteceu, de fato ela se sentou e tirou o som da televisão.
? Bem, quando nós chegamos na casa da Fátima, a Aimée estava, tipo, brincando com o cabelo do Kenny, passando as mãos por todo ele e falando sobre como eles eram macios. Ela devia estar sabendo que nós tínhamos discutido.
? Sinto muito.
? Está tudo bem. ? Janet apertou uma almofada que tinha bordada a frase "Vida longa e próspera" contra o peito. ? Então, de qualquer forma, eu fui pra cima da Aimée e comecei a passar a mão no cabelo dela, dizendo que ele era muito bonito, passei a esfregá-lo com bastante força e Marcus começou a rir. Você sabe, aquela risada esquisita dele, que mais parece o ronco da barriga de um Buda. Aquelas risadas altas pra caralho.
? E o que Kenny fez? ? Kaye imaginava se Kenny tinha o poder de fazer com que toda garota que conhecia se apaixonasse por ele. Estava envergonhada por ter deixado que ele a tocasse. Às vezes, ela ficava pensando se não havia alguma parte doente de si mesma que realmente queria que garotos populares gostassem dela. Ele tinha mãos surpreendentemente suaves.
? Nada. Kenny adora que as garotas briguem por causa dele. ? Janet balançou a cabeça como se estivesse falando de uma criança incorrigível. ? Então ela começou a me chamar de maníaca e de sapatão, sem voltar atrás em nenhum momento, falando que ela estava apenas conversando.
Kaye inclinou a cabeça.
? Você bateu nela? ? O microondas apitou e Kaye misturou um pouco de café solúvel com a água quente com uma colher. Uma espuma fina e branca se formou na superfície.
Janet concordou:
? Eu parti com tudo pra cima dela, mas o Bolo-fofo me parou, o Kenny segurou a Aimée e a Fátima veio e começou a falar que tudo aquilo havia sido um grande mal-entendido e coisas do gênero, mesmo não tendo visto nada do que acontecera. Ela apenas não queria que alguma merda acontecesse na casa dela.
Ao olhar para a caneca, ela via a água negra e parada do riacho. De repente, seu coração começou a bater com o triplo da velocidade normal, apesar de nada ter acontecido. Roiben ? o garoto saído do livro de histórias mais legal, incrível e perigoso que já existiu ? disse que iria vê-la novamente. A alegria fez com que o peito de Kaye doesse.
? Você está me ouvindo? ? perguntou Janet.
? Aqui está o seu café ? disse Kaye, misturando açúcar e creme em pó na caneca de Janet antes de passá-la para ela. ? Estou ouvindo.
? Você já viu um pau circuncidado?
Kaye balançou a cabeça negativamente.
? Eu também não. Então eu disse, claro, nós te damos um dólar por cada um que você mostrar pra gente. E ele respondeu: "Isso dá apenas dez paus."
Kaye ria e inclinava a cabeça enquanto Janet falava, mas ainda tinha a imagem de Roiben na mente, encharcado de chuva e sangue, atingido por uma flecha retorcida que atravessou seu corpo, excessivamente próxima ao coração.
As dobradiças gritaram seu protesto quando Corny abriu a porta e entrou no trailer com passos pesados. Ele lançou um olhar feroz para ambas as meninas, se aproximou da geladeira, a abriu e então tomou um gole de soda direto da garrafa.
? E aí, cuzão? ? xingou Janet.
Uma gata branca, com a barriga inchada por filhotes prestes a nascer, havia escapulido para dentro quando Corny abriu a porta. Kaye afagou a pequena cabeça do animal.
? O filho-da-puta não apareceu essa manhã. Estou trabalhando desde a meia-noite. ? Kaye pôde ver que o aplique nas costas da jaqueta de Corny representava a cabeça de um demônio. No bolso de trás, o contorno da carteira estava conectado a uma corrente presa a um dos elos dianteiros do cós da calça.
? Mamãe odeia que você beba direto da garrafa ? disse Janet.
? E daí? ? Corny deu outro gole de propósito. ? Você vai contar a ela? E se eu também contar pra mamãe que você precisa ter seu próprio vomitório romano, hein, sua bulímica de merda?
? Cala a boca, punheteiro. ? Janet pegou o telefone na cozinha e começou a apertar as teclas enquanto andava em direção a seu quarto.
Corny encarou Kaye. Ela desviou o olhar e colocou a gata branca e macia no colo. O animal ronronava, fazendo um som parecido com o de abelhas.
? Você é a garota que acredita em fadas, certo? ? perguntou Corny.
Kaye deu de ombros.
? Eu sou Kaye.
? Quer soda? Pode deixar que eu não cuspi dentro da garrafa. ? Ele limpou a boca com a manga da jaqueta.
Kaye balançou a cabeça. Algo ? como uma pequena pedra ? havia batido no joelho dela e caído no chão.
As janelas estavam fechadas. Kaye olhou para o teto, mas não havia nenhuma peça pequena pendendo do lustre. Talvez tivesse vindo de uma prateleira. Quando olhou para o chão próximo a seus pés, o único objeto que viu foi uma semente semelhante a uma noz. Nessa época do ano, elas eram abundantes lá fora, se espalhando por todo o gramado a partir de uma das árvores do quintal. Ela pegou a semente e olhou para a janela de novo. Afinal, talvez ela estivesse aberta. A semente era leve e Kaye percebeu uma minúscula listra branca projetando-se por debaixo da linha que separava as duas metades.
Corny umedecia uma toalha e com ela esfregava o rosto. Kaye não achava que fosse ele quem arremessara a semente ? ela estava falando com Corny quando sentiu a batida.
Kaye separou com delicadeza as duas bandas da semente. Dentro, todo o conteúdo havia sido retirado, deixando um espaço no qual uma tira de papel estava enrolada. Kaye a removeu cuidadosamente e leu uma mensagem escrita com tinta rosada: "Não fale mais com o cavaleiro negro. Não diga o seu nome a ninguém. Tudo representa perigo. Gristle se foi. Precisamos de sua ajuda. Encontramos você amanhã à noite. LL&S."
O que aquilo significava, "Gristle se foi"? Foi para onde? E o cavaleiro negro? Seria Roiben? Ela não havia falado com ninguém mais que se encaixasse naquela descrição. O que aquilo queria dizer, "tudo representa perigo"?
? Kaye ? chamou Janet, se inclinando para fora do quarto ?, quer ir ao shopping?
Kaye enfiou desajeitadamente a semente dentro de um de seus bolsos.
? Imagino que você esteja esperando que eu leve você ? disse Corny. ? Você sabe, a maioria das pessoas que vão às compras realmente têm dinheiro.
? Cala a boca, nerd ? xingou Janet enquanto fazia sinais para que Kaye entrasse no quarto dela.
Kaye sentou na cama de Janet. O quarto de Janet era entulhado de mobília dos mais variados estilos: um armário de madeira com puxadores de vidro, uma penteadeira de papelão prensado e um sofá-cama de metal preto amassado. O quarto era tão bagunçado quanto o de Kaye, com roupas pendendo de gavetas abertas e espalhadas pelo chão, mas a desordem parecia bem mais glamourosa ali. Enquanto o vestuário de Kaye era composto apenas por camisetas e peças em estilo retro compradas em brechós, Janet tinha saias vermelhas com franjas de plumas e blusas que misturavam tons bruxuleantes de azul e dourado como escamas de peixe. Estojos de sombras, pregadores de cabelo com glitter, sprays corporais e tubos de gel cobriam a penteadeira e o topo do armário. Pôsteres de bandas competiam com mensagens escritas com canetas hidrocor multicoloridas nas paredes brancas. A frase Janet & Kenny, amor eterno estava escrita com caneta glitter atrás da porta. Kaye não tinha certeza, mas pensou ter visto traços de algum outro nome debaixo do de Kenny.
? O que devo vestir? ? Janet ergueu uma suéter cor-de-rosa felpuda e curta, que cobria apenas os seus seios. ? Será que vou congelar?
? Você precisa de uma minissaia daquele tecido que imita pêlo de poddle. ? Kaye recostou-se no travesseiro. No bolso da jaqueta, a semente ainda descansava contra a palma quente de sua mão, a pequena extremidade pontuda penetrando no dedão.
? O que você vai vestir?
? Isso. ? Kaye indicou sua camiseta e seus jeans, ambos desbotados, com um movimento de mão.
Janet suspirou e fez uma careta.
? Você sabe quantas garotas não morreriam para ter traços asiáticos e cabelo loiro?
Kaye balançou a cabeça demonstrando seu mau humor. Aquilo que os garotos gostavam nas meninas asiáticas era algo estranho. Tinha a ver, ao mesmo tempo, com noivas encomendadas pelo correio e kung fu.
? O que você acha de vestir isso? ? Janet ergueu uma camiseta preta com as costas totalmente nuas, que devia ser amarrada ao redor do pescoço e da cintura como um biquíni.
? Sem chance ? disse Kaye.
Dessa vez, Janet apenas riu.


Elas passaram pela entrada do cinema do shopping. Garotos e garotas se reuniam em grupos pelos degraus da escada, esperando para dar um último passeio ou fumar um cigarro antes do filme começar. Janet caminhava entre eles como uma deusa, sem olhar para ninguém, o cabelo perfeitamente cacheado e o batom cintilante. E, mesmo assim, não parecia estar fazendo nenhum tipo de esforço para se sobressair daquela forma. Isso fazia com que Kaye imaginasse onde ela havia aprendido a ter toda essa habilidade com a própria beleza quando era criança, o cabelo de Janet estava perpetuamente sob os efeitos de uma permanente que o deixou com um aspecto lanoso e sempre usava os tênis desamarrados.
Kaye capturou o próprio reflexo numa vitrine e fez uma careta. Sua camiseta estava um tanto transparente, desbotada e, ainda por cima, ostentava um par de buracos devidos ao excesso de lavanderia. Os jeans surrados haviam sido da mãe e ficavam pendurados nos ossos de sua bacia, forçando Kaye a levantá-los ocasionalmente quando sentia que estavam prestes a cair enquanto caminhava.
? Ok ? disse Janet. ? Quer me mostrar aqueles talentos de que você tanto se gabava?
Kaye deu um sorriso forçado. Um dos assuntos de seus e-mails durante algum tempo era sobre os roubos audaciosos de lojas. O maior roubo de Kaye de todos os tempos havia sido seus dois ratos. Eles podiam não ser caros, mas colocar um animal inquieto no bolso e mantê-lo lá era mais difícil do que parecia.
Ela balançou a cabeça.
? Eis os Princípios de Roubo da Kaye, ok?
Janet cruzou os braços.
? Você tá brincando, né?
? Escuta. Não roubamos lojas pequenas. Apenas grandes redes e megastores, eles podem arcar com isso e as pessoas que trabalham nesses lugares não ligam a mínima. Ah, e também nada de lugares em que os funcionários são realmente legais.
? Não acredito que você tem regras.
Kaye assentiu solenemente.
? Estou minimizando meu dano cármico.


Algumas horas depois, elas estavam sentadas no meio-fio em frente à Wiz, dividindo os produtos da pilhagem. Aquele não era um local distante o suficiente do shopping para ser considerado totalmente seguro, mas as garotas estavam se sentindo intocáveis. Kaye tinha nas mãos um grande e novo tubo de delineador esfumaçado, besuntando a parte inferior de seus olhos com uma camada grossa. Janet estava bebendo um suco de framboesa supergelado.
Kaye escavou os bolsos de seus jeans em busca de fósforos e acendeu um cigarro. Deu uma tragada bem fundo, se inclinou para trás na calçada e exalou, deixando a fumaça formar espirais no ar e depois desaparecer. Estendeu a mão para mudar o formato da fumaça. Ela se alterava de acordo com o toque de seus dedos e Kaye podia ver figuras dançando ? não, elas não estavam dançando, mas sim brigando. Esgrimistas em duelo ascendendo na fumaça.
? Por quanto tempo você vai ficar na cidade? ? perguntou Janet.
Kaye abaixou as mãos. Havia esquecido onde estava.
? Estimo que no mínimo pelos próximos dois meses.
? Isso é estranho, você sabe. Continuamos amigas depois de todo esse tempo, mesmo com você estando tão longe e tudo o mais. Estive pensando nisso na noite passada.
? É? ? indagou Kaye desconfiada.
? Ele estava dando em cima de você, não estava?
Kaye deu de ombros. Não havia como explicar o que realmente acontecera. Com certeza ela não conseguiria explicar por que tinha deixado a mão dele subir por sua coxa, por que ela não havia se importado minimamente até se lembrar, de repente, de quem eles eram e do que, na verdade, estava acontecendo.
? Um pouco, eu acho. Mas, honestamente, isso é uma sensação. Talvez eu tenha bebido demais.
? Em primeiro lugar, como você foi parar lá em cima?
Nesse momento, Kaye passou a sorrir com facilidade.
? Apenas explorando. Lá encontrei o antigo cavalo de carrossel mais incrivelmente legal do mundo. Você o viu? Ele perdeu as pernas, mas o resto estava em perfeito estado. A tinta nem estava muito desbotada. ? Ela suspirou ansiosamente. ? Mesmo se eu desse um jeito de levar aquela coisa para casa, não teria como arrastá-lo de apartamento para apartamento.
Janet suspirou. Era óbvio que aquele era o tipo de motivo em que ela poderia acreditar com facilidade.
Kaye deu outra tragada no cigarro, imaginando por que aquilo a tinha feito se sentir zangada. Dessa vez, os anéis de fumaça faziam com que ela se lembrasse do cabelo de Roiben, seda prateada em rama. Pensando em como aquilo fez com que ela se sentisse ainda mais inquieta e frustrada. Tinha de vê-lo de novo.
? Terra para Kaye ? brincou Janet. ? No que você estava pensando?
? Robin ? respondeu Kaye. Também havia algo que ela imaginava que Janet poderia acreditar com facilidade.
? Ele é real? Honestamente? ? Janet sugou seu suco com força, tentando expulsar um pedaço de framboesa congelada que estava obstruindo o canudinho.
? Não aja como uma cadela.
? Desculpe. Só que isso é tão improvável; conhecer um cara no meio de uma tempestade enquanto você está voltando pra casa. Quero dizer, o que ele estava fazendo ali fora? Eu nunca nem ao menos falei com ele.
? Acho que ele facilmente se encaixa na categoria de "forasteiro" ? comentou Kaye sorrindo.
Janet franziu as sobrancelhas em desaprovação:
? Ele não tem nem um carro, pelo menos?
? Olha, eu só vou ficar na cidade por alguns meses, no máximo. A única coisa que importa é que ele é de-partir-o-coração-e-lindo-de-morrer. ? Kaye sacudiu as sobrancelhas sugestivamente.
Isso ao menos trouxe uma arfada escandalizada.
? Sua vagabunda ? murmurou Janet. ? Você ao menos sabe se ele gosta de você?
Kaye jogou a guimba do cigarro no piso de cimento e pisou em cima dela grosseiramente, deixando uma mancha circular de cinzas no chão. Não queria começar a fazer uma lista de todas as suas qualidades que poderiam demonstrar que ela seria o par mais indicado para um cavaleiro do mundo das fadas; não havia nem ao menos uma única coisa que pudesse pensar em inserir.
? Ele vai gostar de mim ? disse ela, esperando que o feitiço de falar em voz alta pudesse fazer com que aquelas palavras se tornassem realidade.

* * *

Naquela noite, Kaye deixou que Isaac e Apocalipse corressem por toda a cama enquanto o aparelho de CD dinamitava a voz de Grace Slick cantando White Rabbit repetidas vezes. Uma Alice crescida e totalmente ferrada tinha tudo a ver com ela. Depois, colocou um CD do Hole e ficou ouvindo Courtney Love gritar: "I want to be the girl with the most cake... someday you will ache like I ache." ?
Ela escancarou a janela e acendeu um cigarro, soprando cuidadosamente a fumaça para o gramado.
A fila de bonecas na prateleira a observava impassivelmente, as boas maneiras da reunião social delas com certeza haviam sido ofendidas. Kaye pegou os dois ratos e os colocou junto com as bonecas para que eles se conhecessem. Então se voltou em direção à cama.
Empurrando-a contra a parede, ela arrastou o colchão para o chão. Ele acabou ocupando a maior parte do quarto, mas ao menos os pés de Kaye podiam balançar confortavelmente. E se ela cobrisse o estrado de molas com uma das mantas de batique da mãe, poderia ser quase um sofá.
Kaye jogou o cigarro pela janela, se deitou novamente e observou os ratos rastejando por cima dos colos de suas bonecas, casacos de passeio de veludo envelhecido e camisolas de princesa com laços dourados para farejarem os cabelos de plástico e mordiscar os delicados dedos de porcelana. Finalmente seus olhos se fecharam e ela foi levemente carregada para o mundo dos sonhos.








4


"Todo dia e toda noite
meu desejo por você
se desenrola como uma cobra venenosa." (

? SAMAR SEN,
Love



Naquela manhã de segunda-feira, Kaye acordou cedo, se vestiu e fingiu ir para a escola.
Já estava fingindo por quase uma semana, desde que a avó começara a insistir que ela marchasse para a escola e descobrisse por que estavam demorando tanto para matriculá-la. Não tinha como contar para a avó que seu histórico nunca chegaria, então empacotou um sanduíche de manteiga de amendoim com mel e uma laranja e foi matar o tempo.
Quando elas foram para a Filadélfia pela primeira vez, Kaye foi transferida para uma nova escola sem maiores problemas. Mas, então, começaram a se mudar o tempo todo, vivendo por seis meses em University City, outros quatro em South Philly e duas semanas em Museum District. Em cada uma dessas mudanças, ela tentou achar um jeito de continuar indo à antiga escola ou ser transferida para uma nova. Mais ou menos um ano depois, foi vencida pela confusão e, em vez de estudar, começou a trabalhar em tempo integral no Chow Fat. Elas precisavam de dinheiro e, além disso, precisavam da comida de graça.
Kaye chutava uma lata de soda amassada pela rua. Até mesmo ela podia ver que não estava seguindo um bom caminho, não apenas no sentido literal da coisa. A avó tinha razão ? Kaye estava se transformando na mãe ? não, pior, porque ela não tinha nem ao menos uma ambição. Seus únicos talentos eram roubar mercadorias de lojas e fazer alguns truques com um isqueiro Zippo.
Considerou a possibilidade de ir a Red Bank e tentar achar a loja de Sue e Liz. Tinha algum direito, mas ainda devia ser capaz de burlar sorrateiramente as catracas de algumas estações de trem. Seu maior problema era que Ellen não dissera qual era o nome do lugar.
Ocorreu a Kaye que talvez Corny pudesse saber. Provavelmente ele ainda teria de trabalhar por mais uma hora até seu turno no mausoléu terminar e o cara da manhã aparecer. Se comprasse café para ele, talvez Corny não se importasse muito com a presença dela por ali.
O Quick Check estava praticamente vazio quando ela entrou e comprou duas canecas de café com avelã. Na sua, adicionou canela, leite e creme. Como não sabia como Corny gostava do café, colocou no bolso vários pacotinhos de açúcar e vários tipos de creme. A vendedora lamurienta nem mesmo olhou para Kaye, enquanto marcava os cafés na máquina registradora.
Corny estava sentado no capo do carro dele, jogando xadrez em um pequeno tabuleiro magnético.
? Ei ? chamou Kaye. Ele levantou o olhar com uma expressão não muito amigável no rosto. Ela estendeu o café para Corny, e este apenas pareceu confuso.
? Você não deveria estar na escola? ? perguntou ele finalmente.
? Larguei ? respondeu Kaye. ? Vou fazer supletivo.
Ele levantou a sobrancelha.
? Você quer ou não o café?
Um carro estacionou em frente a uma das bombas. Ele suspirou, escorregando para fora do capo do carro.
? Coloque a caneca em cima do tabuleiro.
Ela sentou no carro e cuidadosamente colocou seu café em cima do capo, revirando os bolsos em busca dos pacotinhos que havia pegado. Tirou a tampa que cobria sua caneca e tomou um grande gole. O calor do líquido a protegeu contra aquela manhã de outono úmida e gelada.
Corny voltou alguns minutos depois, acomodando-se sobre o capô. Depois de ficar um tempo considerável examinando o café, começou a despejar açúcar na caneca, misturando-o com uma caneta imunda que tirou do bolso.
? Contra quem você está jogando? ? perguntou Kaye esticando os joelhos.
Ele olhou para ela com um riso de desdém.
? Você veio até aqui pra transar comigo? Pois fique sabendo que café é barato demais.
? Putz, fiz apenas uma pergunta. Quem está ganhando?
Corny sorriu afetadamente.
? Ele, por enquanto. Qual é, o que você está realmente fazendo aqui? Ninguém me visita. Socializar comigo é tão atraente quanto ser testemunha do apocalipse ou algo do tipo.
? Como assim?
Corny saltou do capo novamente com um gemido quando outro carro estacionou em frente à bomba de combustível. Kaye o observou enquanto ele vendia um maço de cigarros e enchia o tanque. Ela imaginou se o dono do posto não contrataria uma garota de dezesseis anos ? seu último contracheque não iria se esticar por muito mais tempo. Corny já trabalhava lá quando tinha menos do que a idade dela.
? Corny ? disse Kaye quando ele voltou ?, você conhece alguma lojinha de CDs em Red Bank?
? Tentando me subornar por uma carona?
Ela suspirou.
? Paranóico. Só quero saber qual é o nome da loja.
Corny deu de ombros, fazendo mais alguns gestos sem dizer uma única palavra.
? A loja onde compro revistas em quadrinhos é perto de uma loja de CDs, mas eu não sei o nome.
? Que quadrinhos você lê?
? Está querendo dizer que você lê quadrinhos? ? Corny a contemplou na defensiva, como se ela estivesse querendo fazer algum tipo de piada com ele.
? Claro. Batman, Lenore, Too Much Coffe Man. E, claro, leio Sandman.
Corny a olhou firme e especulativamente por um momento, então, finalmente, cedeu.
? Eu costumava ler qualquer coisa que tivesse X no nome, mas agora estou lendo um monte de coisas japonesas.
? Como Akira?
Ele negou com um movimento de cabeça.
? Não! Quadrinhos de menina, aqueles com garotos e garotas bonitas. Ei, você sabe o que significa shonen-ai? ? Essa expressão é duvidosa.
? Eu bem que queria saber falar um pouco de japonês ? disse Kaye, balançando a cabeça.
Corny bufou:
? Pensei que você fosse japonesa.
Ela deu de ombros:
? Minha mãe diz que, de certa forma, eu sou. Meu pai fazia parte de uma banda japonesa de rock glam-gótica que minha mãe idolatrava. Muito new wave. Nunca o conheci. Foi uma coisa de groupie.
? Que louco!
? É, eu acho.
Um carro entrou no posto mas, em vez de estacionar em frente às bombas, parou próximo ao carro de Corny. Um garoto de pele negra saiu de dentro dele.
? Legal de sua parte ter aparecido hoje. ? Corny jogou para ele um molho de chaves.
? Já pedi desculpas, cara ? disse o garoto.
Virando-se para Kaye, Corny perguntou:
? Para onde você vai agora?
Kaye deu de ombros.
? Quer ir lá pra casa? Você pode ficar por lá esperando a Janet chegar.
Ela assentiu:
? Claro.
Eles caminharam juntos até o trailer.
Corny ligou a televisão e foi andando em direção ao quarto dele.
? Vou checar meus e-mails.
Kaye assentiu e sentou no sofá, só então se sentindo um pouco constrangida. Era estranho estar na casa de Janet sem que a amiga estivesse presente. Começou a mudar os canais da televisão, parando no Cartoon Network.
Depois de alguns minutos, como Corny não retornava, ela foi até o quarto dele. O quarto de Corny era totalmente diferente do de Janet. Havia estantes em todas as paredes, superlotadas de livros baratos e revistas em quadrinho. Corny estava sentado a uma escrivaninha que parecia mal poder suportar todo o equipamento empilhado sobre ela. Outra caixa cheia de fios e do que parecia ser entranhas de computador estava próxima aos pés do garoto.
Ele estava digitando no teclado e grunhiu quando Kaye entrou:
? Estou quase acabando.
Ela sentou na beirada da cama da mesma forma como faria se estivesse no quarto de Janet e pegou a revista que estava mais próxima. Era toda em japonês. O herói e a heroína eram loiros ? ela sempre achou estranho o fato de existirem tantos loiros nos quadrinhos; o vilão tinha cabelos muito, muito escuros e um elmo incrível. Uma bola fofa e gorda com asas de morcego flutuava ao redor dos heróis. Era algo como a companheira inseparável deles. Ela folheou a revista um pouco mais. O herói nu e amarrado na cama do vilão. Ela parou de passar as páginas e contemplou a figura. A cabeça loira estava jogada para trás graças tanto em êxtase quanto em terror, enquanto o vilão lambia um de seus mamilos.
Ela olhou para Corny estendendo a revista.
? Deixe-me adivinhar... isso é o que eles chamam de shonen-ai?
Ele a olhou de relance, desviando por um momento os olhos da tela do computador, mas Kaye não pôde deixar de perceber a expressão presunçosa no rosto dele:
? É.
Kaye não estava certa do que dizer diante dessa situação, então foi direto ao ponto:
? Você gosta de garotos?
? Há um termo técnico para isso ? disse Corny. ? Viado. E, além disso, esses garotos são extremamente bonitos.
? Janet sabe? ? Kaye não conseguia entender por que ele diria a ela se nem mesmo Janet sabia, mas certamente a amiga devia ter falado alguma coisa. Os e-mails dela eram resumos de todo o seu dia, chatos e cheios de fofocas sobre pessoas que Kaye não conhecia.
? É, a família inteira sabe. Não é nada de mais. Uma noite, durante o jantar, eu disse: "Mãe, você sabe do amor proibido entre o Spock e o Kirk? Bem, eu também sinto o mesmo." Assim foi mais fácil para ela entender. ? A voz de Corny soava como se ele a estivesse desafiando a dizer algo.
? Espero que você não esteja esperando algum tipo de reação ? falou Kaye finalmente ?, por que a única coisa em que eu consigo pensar é que essa é a história de sair do armário mais estranha que já ouvi.
Os músculos do rosto dele relaxaram. Então ela começou a rir e, alguns instantes depois, ambos estavam rindo, olhando para a revista e rindo mais ainda.


Na hora em que Janet chegou da escola, Corny dormia e Kaye estava lendo uma pilha imensa de revistas pervertidas.
? Oi ? disse Janet, parecendo surpresa por ver seu sofá ocupado.
Kaye bocejou e tomou um gole de um copo de Cherry Coke pela metade.
? Ah, oi. Eu estava batendo papo com o seu irmão e decidi esperar você voltar pra casa.
Janet fez uma careta, despejando uma braçada de livros sobre uma cadeira:
? Você faz com que a escola pareça divertida. Se você vai largar os estudos, poderia ao menos... eu sei lá...
? Fazer alguma coisa deprimente?
? Exatamente. Olha, eu vou sair... Vou encontrar os garotos. Você quer ir comigo?
Kaye se espreguiçou e levantou do sofá.
? Claro.


O Blue Snapper era uma lanchonete barata que ficava aberta vinte e quatro horas e onde os funcionários não se importavam com o tempo em que os clientes ficavam sentados nos reservados com divisórias espelhadas ou com o tamanho dos pedidos. Kenny e Bolo-fofo estavam em uma mesa com uma garota que Kaye não conhecia. Ela tinha cabelo preto cortado curto, unhas pintadas de vermelho e sobrancelhas finas e desenhadas. Bolo-fofo estava usando uma camiseta da mangas curtas de algum time por cima de outra de mangas compridas; os cadarços de suas botas de escalada escapavam por debaixo da mesa. Havia cortado o cabelo desde a última vez que Kaye o vira, tinha raspado os lados e a parte de trás. Kenny estava usando sua jaqueta prateada por cima de uma camiseta preta e parecia exatamente o mesmo: largado, lindo e totalmente fora dos limites.
? Desculpe por eu ter surtado naquela noite ? disse Kaye, empurrando as mãos para dentro dos bolsos do seu jeans e torcendo para que ninguém quisesse falar muito sobre o assunto.
? O que aconteceu? ? perguntou a garota. Kaye ouviu um ruído enquanto ela falava e logo percebeu que ele era proveniente do atrito entre a tarraxa do piercing que a menina tinha na língua e seus dentes.
Bolo-fofo abriu a boca para fazer algum comentário, mas Kenny o cortou:
? Você é tão legal ? disse ele fazendo um movimento abrupto com o queixo. ? Vamos, senhoras, sentem-se.
? Kaye ? Janet a chamou, deslizando para dentro do reservado, sentando-se ao lado da garota ?, essa é Fátima. Eu te falei sobre ela nos meus e-mails. Kaye é minha amiga da Filadélfia.
? Ah, claro. Oi. ? Fátima era a dona da festa que Kaye perdera duas noites antes, e ela não fazia idéia do que haviam falado depois que foi embora. Kenny mal olhava para ela, mas Bolo-fofo a observava como se Kaye estivesse prestes a fazer algo estranho ou engraçado. Ela queria ter permanecido no trailer. Aquela situação era muito desconfortável.
? Você é a garota cuja mãe faz parte de uma banda ? disse Fátima.
? Não mais ? completou Kaye.
? É verdade que ela foi pra cama com Lou Zampolis? ? Janet disse que ela fazia backing vocals na Chainsuck.
Kaye fez uma careta. Ela imaginou se esse havia sido o assunto de todos os seus e-mails:
? Infelizmente.
? Isso não te deixa louca? Quero dizer, por exemplo, ela já transou com o seu namorado ou alguma merda do tipo?
Kaye levantou as sobrancelhas.
? Eu não saio com caras que têm banda ? tentou adivinhar o que a mãe acharia de Kenny. Era impossível imaginar Ellen conhecendo Roiben.
? Cara, eu tenho uma amiga ? contou Fátima ? cuja mãe e a irmã dormiram com o cara por quem ela era apaixonada. Quero dizer, como o Jerry Springer pode ser isso tudo?
? Você está falando da Erin, não é? ? perguntou Janet. ? Ela está na reabilitação.
A garçonete parou em frente à mesa deles. Estava usando um uniforme marrom que parecia ser muito pequeno para ela e tinha pendurado um crachá onde se podia ler Rita.
? Vocês querem pedir alguma coisa?
? Qualquer coisa diet ? disse Janet.
? Café ? falou Kaye maquinalmente.
? Eu quero... Será que você poderia arranjar umas batatas fritas com molho especial, Rita? ? perguntou Bolo-fofo.
? Voltarei com o carregamento num minuto ? comunicou a garçonete, sorrindo cautelosamente para Bolo-fofo por ele ter dito seu nome.
Kenny se virou para pegar os cigarros e o isqueiro que estavam no bolso da jaqueta, e Kaye pôde ver uma tatuagem na parte de trás do pescoço dele. Era um tribal que parecia representar um escaravelho. Isso fez com que ela imaginasse que outras tatuagens ele poderia ter serpenteando pelas áreas cobertas pela camiseta. Janet deveria saber.
? Alguém quer? ? ofereceu ele, estendendo o maço.
? Eu ? Kaye aceitou.
? Tudo o que você quiser. ? Ele pegou o maço de volta e lhe deu um cigarro com um sorriso pretensioso que fez com que ela sentisse um calor subindo pela face.
Janet falava com Fátima a respeito do bebê de Erin, sem prestar atenção a nenhum deles no momento. Bolo-fofo estava escarafunchado na travessa de batatas fritas cobertas com queijo e molho que a garçonete havia jogado diante dele.
? Quer ver um truque? ? perguntou Kaye de repente, sem querer recuar diante do desafio implícito na voz de Kenny. ? Me empresta seu isqueiro.
O isqueiro era prateado com um medalhão em forma de bola oito esmaltado e soldado na frente. Ele o entregou para Kaye.
Ela aprendera aquele truque com Liz na época em que a mãe fazia parte da Sweet Pussy. Liz se ofereceu para ensinar-lhe, dizendo que era uma maneira garantida de impressionar os garotos. Kaye não fazia idéia de quem Liz poderia querer impressionar, já que ela já tinha Sue, mas aprendeu o truque que, ao menos, havia funcionado para impressionar atendentes de bar.
Kaye segurou o corpo de metal do isqueiro entre os dois primeiros dedos da mão esquerda e o acendeu inicialmente em cima, e depois embaixo, de cada dedo, para que o metal bruxuleasse como as escamas de um peixe. Cada vez mais rápido, fez com que o isqueiro saltasse entre seus dedos. Então, parou, deu uma pancadinha para abrir a tampa do isqueiro e o acendeu, tudo isso enquanto a mão direita estava espalmada na mesa. Ela se inclinou e generosamente acendeu o cigarro de Kenny.
Quando Kaye achasse a loja de discos, iria poder dizer a Liz que ela estava certa. Ambos os garotos ficaram impressionados.
O sorriso atravessado de Kenny era um convite para a malícia.
? Legal ? disse Bolo-fofo. ? Você pode me mostrar como se faz isso?
? Claro ? respondeu Kaye, acendendo o próprio cigarro e dando uma tragada profunda de fumaça amarga. Ela mostrou para ele, fazendo o truque mais devagar para que Bolo-fofo pudesse ver como se fazia, e então deixou que ele tentasse.
? Preciso sair por alguns minutos ? disse Kenny, e Kaye e Bolo-fofo saíram apressadamente do banco para que ele se levantasse.
Antes que Kaye pudesse sentar, Kenny cutucou o braço dela e fez um sinal com a cabeça indicando os banheiros.
? Volto logo ? informou Kaye a Janet, deixando o cigarro no cinzeiro. ? Vou ao banheiro.
Janet não devia ter percebido nada, já que apenas concordou com um movimento de cabeça.
Kaye andou atrás de Kenny até o pequeno corredor. Apesar dela não fazer idéia do que o garoto queria, as bochechas já estavam quentes e um arrepio estranho embrulhava seu estômago.
Quando entraram no corredor, Kenny se virou para ela e apoiou o corpo elegante contra a parede.
? O que você fez comigo? ? perguntou Kenny, dando uma tragada rápida no cigarro e esfregando a barba por fazer com as costas das mãos.
Kaye balançou a cabeça.
? Nada. O que você quer dizer?
Ele abaixou a voz, falando com uma intensa calma:
? Na outra noite. O cavalo. O que você fez? ? Ele fez uma pausa e olhou para o outro lado antes de continuar. ? Não consigo parar de pensar em você.
Kaye estava atordoada:
? Eu... honestamente... eu não fiz nada.
? Bem, desfaça o que você fez ? disse ele, carrancudo.
Ela fez um esforço violento para achar uma explicação.
? Às vezes, quando sonho acordada... coisas acontecem. Eu estava simplesmente pensando em cavalgar naquele cavalo. Nem ao menos ouvi quando você entrou. ? As bochechas dela se tornaram ainda mais quentes quando se lembrou de uma teoria que Sue uma vez lhe explicara a respeito do porquê de todas as meninas quererem ter seu próprio pônei.
Ele olhou para ela tão intensamente quanto havia feito no sótão da construção em forma de carrossel, levando o cigarro até os lábios mais uma vez.
? Isso é uma merda ? disse ele, em tom de desespero. ? Quero dizer, não consigo tirar você da cabeça. Você é meu único pensamento, durante todo o dia.
Kaye não tinha idéia do que dizer.
Ele deu um passo para se aproximar mais dela aparentando não ter nem ao menos percebido esse gesto.
? Você precisa fazer alguma coisa.
Ela recuou um passo, mas a parede a impediu de voltar mais outro. Sentiu o azulejo gelado contra sua espinha. O telefone público à direita bloqueava a visão do caixa.
? Desculpe ? falou ela.
Ele deu mais alguns passos até que seu peito estivesse contra o dela.
? Quero você ? disse ele com urgência. O joelho dele tentava se encaixar entre as pernas dela.
? Estamos numa lanchonete ? disse Kaye, segurando-o pelos ombros de forma que ele fosse obrigado a olhar para o rosto dela. Ele estava pálido, exceto por um toque de rubor excitado nas bochechas. Os olhos pareciam vitrificados.
? Eu queria parar de desejar você ? disse ele e se aproximou para beijá-la. Kaye virou a cabeça e ele enfiou a boca num monte de cabelo, mas isso não pareceu chateá-lo. Começou a beijar o pescoço dela, mordendo a pele impunemente, lambendo as mordidas com a língua. Uma das mãos correram pelo peito de Kaye e agarraram um dos seios enquanto a outra se enroscava no cabelo dela.
As mãos de Kaye ainda seguravam os ombros de Kenny enquanto ela oscilava de indecisão. Ela podia empurrá-lo. Deveria empurrá-lo. Mas seu corpo traidor insistia para que ela esperasse mais um pouco, o abraçasse com um pouco mais de força e observasse o que poderia acontecer.
? Gente, eu estava... Que diabos está acontecendo aqui?
Kenny deu um pulo para trás, largando Kaye, quando ouviu a voz de Janet. Vários fios longos de cabelo loiro ainda estavam presos numa das mãos dele, bruxuleando como teias de aranha.
Ele se empertigou.
? Não me venha mais uma vez com toda essa merda de namorada insegura.
Janet tinha lágrimas nos olhos.
? Você estava beijando Kaye!
? Será que dá pra você se acalmar, porra!
Kaye fugiu para o banheiro, se trancando em uma das cabines e deixando o corpo escorregar até que ficasse sentada no chão sujo.
O coração dela batia tão forte que pensou que poderia pular para fora do peito. O espaço era pequeno demais para que pudesse caminhar, mas era isso o que queria fazer, queria fazer algo que pudesse extrair as respostas de sua mente confusa. A magia, se é que isso existe, não deveria funcionar dessa forma. Ela não podia ter a capacidade de enfeitiçar alguém que mal conhecia sem nem ao menos decidir fazê-lo.
O prazer era a pior parte, a parte dela que era capaz de passar por cima da culpa e ver a justiça perfeita em fazer com que Kenny não conseguisse parar de pensar naquela menina estranha que ela era. Devia ser fácil gostar dele, pensou Kaye, lindo, legal e alguém que a desejava. E, ao contrário de um inatingível guerreiro encantado, ele era alguém que realmente poderia ter.
Respirando fundo, ela saiu da cabine. Foi até as pias e jogou um pouco de água no rosto. Ao erguer os olhos, viu o próprio reflexo no espelho, a camiseta vermelha e desbotada do Chow Fat salpicada por gotas escuras de água, a maquiagem dos olhos borrada e indistinta, o cabelo loiro cheio de fios emaranhados.
Apesar de tudo, algo chamou sua atenção quando ela se afastou. Aproximando-se novamente do espelho, Kaye examinou o rosto mais uma vez com cuidado. Parecia a mesma de sempre. Balançou a cabeça e caminhou em direção à porta. Por um momento, havia pensado que a face que vira no espelho fosse verde.
Havia mais xícaras de café na mesa quando Kaye voltou e ela deu um gole na que estava diante do lugar onde sentara alguns minutos antes. O cigarro dela havia se transformado em cinzas no cinzeiro de vidro. Bolo-fofo estava contando a Kenny a respeito do mais novo carro que estava restaurando e Janet olhava para Kaye de relance.
? Perdão, Kaye ? disse uma voz, familiar e estranha ao mesmo tempo.
Por um momento, Kaye congelou. Sua mente gritava que isso era impossível. Era contra as regras. Eles nunca faziam isso. Acreditar em seres encantados era uma coisa, outra coisa era você não ter nem ao menos o direito de escolher não acreditar neles. Se eles podiam simplesmente entrar em nossas vidas cotidianas, então eles eram parte do mundo real e ela não conseguia mais separar os dois universos em sua mente.
Mas Roiben estava realmente de pé ao lado da mesa deles. Seu cabelo estava branco como o sal debaixo das luzes florescentes e presos num rabo-de-cavalo. Vestia um longo casaco de lã que escondia o que quer que ele estivesse usando por baixo, a ponta do sobretudo tocando suas modernas botas de couro. Havia tão pouca cor em seu rosto que ele parecia ser totalmente monocromático, um retrato tirado em filme preto-e-branco.
? Quem é o gótico? ? Kaye ouviu Bolo-fofo perguntar.
? Robin, acho que é esse o nome dele ? retrucou Janet sombriamente.
Roiben levantou uma de suas sobrancelhas ao ouvir isso, mas foi em frente:
? Poderia falar com você por um minuto?
Kaye se sentiu incapaz de fazer algo além de concordar com um movimento de cabeça. Saiu do reservado e caminhou com ele até uma mesa vazia. Nenhum dos dois sentou.
? Vim até aqui para te entregar isso. ? Roiben pôs a mão dentro do casaco e tirou um pedaço de tecido preto de dentro de um bolso muito bem escondido. Ele sorriu, o mesmo sorriso que fazia com que Kaye se lembrasse da floresta, aquele que era apenas para ela. ? É a sua camiseta, retornando do mundo dos mortos.
? Como você ? completou ela.
Ele balançou ligeiramente a cabeça.
? Você está correta.
? Meus amigos me avisaram para que não falasse com você. ? Ela não sabia que iria falar isso até a frase sair de sua boca. As palavras causavam a sensação de serem espinhos que caíam de sua língua.
Roiben olhou para baixo e respirou fundo.
? Seus amigos? Não aqueles amigos, suponho. ? Os olhos dele se moveram rapidamente em direção ao reservado e ela negou com um movimento de cabeça.
? Lutie e Spike ? disse ela.
Os olhos dele tinham uma expressão sombria quando olhou para ela novamente, e o sorriso havia sumido.
? Matei um amigo deles. Talvez ele fosse seu amigo também.
Em volta dela, as pessoas comiam, riam e falavam, mas esses sons comuns pareciam distantes e fora de lugar, como as risadas gravadas de comédias de televisão.
? Você matou Gristle.
Ele assentiu.
Kaye o encarou como se, de alguma forma, as coisas pudessem se desembaralhar e fazer algum sentido.
? Como? Por quê? Por que você está me contando isso?
Em nenhum momento enquanto ele falava, os olhos dele encontraram os de Kaye.
? Há alguma desculpa que eu possa dar para que você se sinta melhor? Alguma explicação que você considere aceitável?
? É essa a sua resposta? Você nem ao menos se importa?
? Já entreguei a sua camiseta. Já fiz o que vim fazer.
Kaye agarrou o braço dele e se virou para encará-lo.
? Você me deve três perguntas.
Ele retesou o corpo, mas seu rosto continuou livre de qualquer tipo de expressão.
? Muito bem.
A raiva cresceu dentro dela, um sentimento de impotência amarga.
? Por que você matou Gristle?
? Minha senhora ordenou que o fizesse. Não tenho muita escolha em minha obediência. ? Roiben enterrou os longos dedos nos bolsos do casaco. Ele falou de forma trivial, como se estivesse entediado com as próprias respostas.
? Certo ? disse Kaye. ? E se ela mandasse você pular de uma ponte...?
? Exatamente. ? Não havia ironia na voz dele. ? Posso considerar essa como sua segunda pergunta?
Kaye parou e respirou fundo, o rosto dela pegava fogo. Estava com tanta raiva que tremia.
? Por que você... ? começou ela, mas se conteve. Precisava pensar. A raiva estava fazendo com que ela agisse de maneira imprudente e estúpida. Tinha mais uma pergunta e estava determinada a utilizá-la para enfurecê-lo. Pensou no bilhete que havia achado na semente e o aviso que recebera. ? Qual é o seu nome completo?
Parecia que ele iria sufocar com o ar que respirava:
? O quê?
? Essa é a minha terceira pergunta. Qual é o seu nome completo? ? Ela não tinha noção do que havia feito, pelo menos não realmente. Kaye só sabia que o estava forçando a fazer algo que ele não queria fazer e isso soava muito bem para ela.
Os olhos de Roiben se tornaram sombrios de fúria:
? Rath Roiben Rye. Muito pode lhe conceder a posse desta informação.
Os olhos de Kaye se estreitaram.
? É um nome bonito.
? Você é muito esperta. Acho até que é esperta demais para a própria segurança.
? Quer saber de uma coisa? Beije minha bunda, Rath Roiben Rye.
Roiben agarrou o braço de Kaye antes que ela sequer pudesse vê-lo se movendo. Ela levantou a mão para se proteger do golpe que vinha em sua direção. Ele a derrubou no chão. Kaye deu um grito agudo. As mãos e os joelhos bateram com força no piso de pedra. Olhou para cima, quase que esperando ver o brilho de uma espada, mas, em vez disso, ele puxou a calça jeans dela com força pelo cós e pressionou a boca contra a elevação exposta do quadril.
O tempo pareceu ter passado devagar, como se ela houvesse dormido no chão encerado, enquanto Roiben se erguia novamente com facilidade, os fregueses da lanchonete olhavam com espanto e Kenny saía do reservado com violência.
Roiben estava de pé ao lado dela.
? Essa é a natureza da servidão, Kaye. É literal e nada inteligente. Tome cuidado com seus epítetos. ? O tom de voz dele permanecia inalterado.
? Quem você pensa que é, seu merda? ? disse Kenny, finalmente chegando até onde eles estavam. Ele se abaixou para ajudar Kaye a se levantar.
? Pergunte a ela ? disse Roiben, indicando Kaye com o queixo. ? Agora ela sabe exatamente quem sou. ? Ele deu meia-volta e caminhou para fora da lanchonete.
Lágrimas brotaram dos olhos de Kaye.
? Vamos levá-la para fora ? dizia Fátima, apesar de Kaye não estar prestando a mínima atenção ao que ela falava. ? Só as meninas.
Fátima e Janet a levaram para fora e se sentaram no capo de um dos carros estacionados. Kaye desejou vagamente que ele pertencesse a um deles quando se sentou, secando as lágrimas que corriam pelo rosto. Já havia parado de chorar, as lágrimas persistiam mais graças ao choque do que por causa de qualquer outra coisa.
Fátima acendeu um cigarro e o passou para Kaye. Ela deu uma longa tragada, mas sentiu a garganta arranhar e a fumaça apenas fez com que tossisse.
? Já tive um namorado como esse cara. Ele costumava me deixar maluca. ? Fátima sentou perto de Kaye e afagou as costas dela.
? Talvez ele a tenha visto com o Kenny ? comentou Janet sem olhar para ela. Ela estava apoiada num letreiro, olhando fixamente para o outro lado da estrada, na direção da base militar que ficava em frente à lanchonete.
? Desculpe ? disse Kaye. A voz dela demonstrava que estava se sentindo péssima.
? Dá um tempo, Janet! ? reclamou Fátima. ? Até parece que você nem fez a mesma coisa comigo.
Nesse momento, Janet se virou para olhar para Kaye.
? Você não vai ficar com Kenny, você sabe disso. Ele pode até querer trepar contigo, mas nunca vai namorar você.
Kaye apenas balançou a cabeça, levando o cigarro até a boca com as mãos trêmulas. Teria sido uma idéia melhor, ela concluiu, ter amaldiçoado todos os garotos, sem exceção.
? Esse tal de Roiben é capaz de ir atrás de você? ? perguntou Fátima. Kaye quase sentiu vontade de rir diante da preocupação da outra. Se ele resolvesse procurá-la, ninguém poderia fazer nada para detê-lo. Ele havia se movido mais rápido do que os olhos de Kaye eram capazes de ver. Fora muito idiota por não temê-lo.
? Acho que não ? respondeu ela finalmente.
Kenny e Bolo-fofo saíram da lanchonete em fila, passando pelas meninas com um ar de superioridade.
? Está tudo bem? ? perguntou Kenny.
? Só algumas manchas roxas ? disse Kaye. ? Nada de mais.
? Droga! ? comentou Bolo-fofo. ? Entre a outra noite e essa você pode acabar ficando paranóica demais para sair com a gente.
Kaye tentou rir, mas não conseguiu quando imaginou todos os duplos sentidos que aquelas palavras poderiam ter.
? Quer que eu a deixe em casa? ? Kenny se ofereceu.
Kaye olhou para ele e já estava prestes a agradecer quando Fátima a interrompeu:
? Por que você não leva Janet e eu dou uma carona para Bolo-fofo e Kaye?
Kenny olhou para baixo, observando as pontas arranhadas de suas botas Doc Martens, e concordou:
? Tudo bem.
Fátima dirigiu relativamente em silêncio, o que fez com que Kaye se sentisse agradecida. O rádio estava ligado e ela fingia ouvi-lo sentada no banco do carona. Quando Fátima estacionou em frente à casa da avó de Kaye, apagou os faróis.
? Não sei o que aconteceu entre você e Kenny ? começou Fátima.
? Eu também não ? disse Kaye com uma risada baixa.
A outra garota sorriu e mordiscou uma de suas unhas pintadas:
? Olha, eu não sei nada a respeito de você ou de Robin, mas se você está só procurando um jeito de sacanear o seu namorado, não faça isso. Janet ama o Kenny de verdade, sabe? Ela é muito devotada a ele.
Kaye abriu a porta e saiu do carro.
? Obrigada pela carona.
? Tudo bem. ? Fátima acendeu novamente os faróis do carro.
Kaye bateu a porta do Honda azul e entrou na casa.


Quando entrou na cozinha, a mãe estava ao telefone, sentada à mesa com um caderno espiralado diante de si. Quando viu que Kaye entrava, apontou para o fogão. Lá havia uma panela cheia de espaguete frio com salsichas. Kaye pegou um garfo e pescou um pouco do macarrão.
? Então você acha que a gente convence a Charlotte? ? dizia a mãe ao telefone enquanto rabiscava nomes de bandas no caderno.
? Tudo bem, me ligue quando você souber. Claro. Tchau, gatinha.
Ellen desligou e Kaye olhou para ela com expectativa.
A mãe sorriu e tomou um gole de uma caneca que estava em cima da mesa.
? Vamos para Nova York!
Kaye apenas arregalou os olhos.
? O quê?
? Bem, isso ainda não está totalmente definido, mas Rhonda me quer na sua nova banda de garotas, Meow Factory, e acha que consegue convencer Chalotte Charlie a se juntar a elas. Eu disse que se a Charlotte estiver dentro, eu também estarei. Há tantos clubs em Nova York...
? Eu não quero mudar ? protestou Kaye.
? A gente pode ficar na casa da Rhonda até acharmos outro lugar para morar. Você vai amar Nova York.
? Eu amo Nova Jersey.
? Não podemos fazer com que minha mãe nos aceite aqui para sempre ? continuou Ellen. ? Além disso, ela enche o seu saco tanto quanto o meu.
? Eu me candidatei a um emprego hoje. A vovó ficará muito mais feliz quando eu começar a trazer dinheiro para casa. Você pode se juntar a uma banda daqui.
? Ainda não há nada cem por cento decidido ? concluiu Ellen o assunto ?, mas acho que você realmente deveria se acostumar com a idéia de morar em Nova York, querida. Se eu quisesse ficar em Jersey, teria feito isso muitos anos atrás.


Cem caixinhas de fósforos, de cem bares em que a mãe havia tocado por uma única noite, ou de restaurantes nos quais elas haviam comido uma refeição ou de homens com quem elas tinham vivido. Cem caixinhas de fósforos, todas elas pegando fogo.
Ela também estava pegando fogo, ardendo de uma maneira que não tinha certeza de entender. A adrenalina transformava os dedos em gelo, puxando o calor em direção ao interior do corpo dela, para dançar em sua cabeça, raiva e uma estranha sensação de possibilidade zunindo através de suas veias.
Kaye olhou ao redor do quarto escuro, iluminado apenas pela luz laranja bruxuleante. Os olhos de vidro das bonecas dançavam com as chamas. Os ratos se enroscavam um no outro no canto mais afastado da gaiola. Kaye respirou o odor penetrante do enxofre quando lançou outra caixinha na pira, observando as chamas capturarem as fileiras de cabeças de fósforos brancas, o invólucro de papelão explodindo em meio às chamas. Ela virou o papel nas mãos, observando-o enquanto ele queimava.






















5


"Comi mitologia e sonhei." (

? YUSEF KOMUNYAKAA
"Blackberries"



Kaye acordou com algo arranhando a janela. O quarto estava escuro e a casa silenciosa.
Algo a examinava. Pequenos olhos negros piscavam embaixo de sobrancelhas cerradas e orelhas pontudas se elevavam de ambos os lados de uma cabeça careca.
? Spike? ? sussurrou Kaye, rastejando para fora do colchão jogado sobre o piso onde ela dormira. O cobertor se entrelaçou nas pernas dela.
Ele deu outra batida, as sobrancelhas vincadas. Spike era menor do que ela lembrava e trajava apenas uma casca de árvore fina que cobria sua cintura descendo até metade de suas pernas. Nos cotovelos, pontas se estendiam no formato de espinhos.
Atrás dele, ela podia perceber a forma esguia de Lutie-loo, incandescendo contra o telhado escuro. As asas estavam tão translúcidas que pareciam quase invisíveis.
Kaye empurrou a janela, mas precisou repetir o gesto várias vezes para desprendê-la do peitoril velho e estufado. Duas mariposas brancas entraram no quarto.
? Spike! ? exclamou Kaye. ? Lutie! Onde vocês estavam? Já faz dias e dias desde que eu voltei. Deixei leite lá fora para vocês, mas acho que um dos gatos da vizinhança deve ter tomado.
O homenzinho levantou um dos olhos na direção dela como um pardal.
? A bruxa do Cardo está esperando ? disse Spike. ? Ande logo.
O tom de voz dele era estranho, urgente e pouco amigável. Ele nunca havia falado com ela daquela forma antes. Mesmo assim, ela obedeceu por familiaridade: o mesmo quarto antigo, os mesmos amiguinhos vindo no meio da noite e levando-a para caçar vaga-lumes ou colher cerejas azedas. Vestiu um suéter preto por cima da camisola branca e antiquada que a avó havia lhe emprestado e enfiou as botas apressadamente. Por fim, olhou ao redor em busca do casaco, mas ele era apenas mais um monte preto e macio na escuridão do quarto, então resolveu deixá-lo para trás. O suéter era quente o suficiente.
Kaye saiu pela janela e escalou a casa até o telhado.
? Por que ela quer me ver?
Ela sempre havia pensado na bruxa do Cardo como uma tia rabugenta, alguém que não gostava de brincar e que certamente poderia lhe colocar em maus lençóis.
? Ela precisa lhe dizer algo.
? E você mesmo não poderia me dizer? ? Kaye se perguntou, balançando as pernas na beirada do telhado enquanto Spike caminhava, nervoso, de um lado para o outro na quina formada pelas telhas e Lutie planava com suas asas incandescentes.
? Vamos logo ? disse Spike.
Kaye empurrou o corpo para fora e deixou-se cair. Os galhos secos de uma moita de rododendros arranharam suas pernas quando alcançou o chão, ágil como um gato, com os dois pés ao mesmo tempo.
Eles correram pela rua, Lutie-loo dançava no ar ao redor de Kaye, sussurrando:
? Senti saudades, senti saudades...
? Por aqui ? disse Spike desnecessariamente. Kaye se lembrava do caminho.
? Também senti sua falta ? disse Kaye a Lutie, levantando uma das mãos para acariciar o corpo luminoso. A sensação de tocar Lutie era semelhante à que se tem ao atravessar a água ou a fumaça.
O Pântano de Vidro era assim chamado graças à abundância de garrafas quebradas que obstruíam o pequeno regato que acompanhava a estrada por mais de um quilômetro e meio. Eles desceram pela margem íngreme, as botas de Kaye escorregavam na lama. Garrafas de cerveja estavam jogadas sobre as pedras, algumas já quebradas em pedaços grandes. O riacho estreito bruxuleava com nuances multicoloridas como uma janela de igreja.
? O que está acontecendo? Qual é o problema? ? perguntou ela o mais silenciosamente possível de forma que Spike pudesse ouvi-la. Algo estava definitivamente errado, ele corria na frente dela como se não pudesse olhar para a menina. Mas talvez a explicação para esse fato fosse que ela estava muito velha para ser divertida.
Ele não respondeu.
Lutie disparou na direção de Kaye, o cabelo chicoteava contra o vento como uma faixa de creme:
? Precisamos correr. Não se preocupe. São boas notícias... boas notícias.
A vegetação densa que ladeava o riacho obrigou Kaye a procurar uma passagem próxima à água. Caminhava com cuidado pela margem, a escuridão tornava difícil enxergar se o próximo passo iria fazer com que mergulhasse a bota na água gelada. Eles caminhavam em silêncio enquanto Kaye tentava escolher o caminho mais fácil, iluminado pela luz pálida propiciada pelo corpo brilhante de Lutie.
Um raio branco atingiu os olhos dela ? cascas de ovos quebradas flutuavam no riacho estreito. Kaye parou para admirar a frota de cascas, algumas pequenas e manchadas, outras brancas e brilhantes, recém-saídas do supermercado. No centro de uma delas, uma aranha andava de um lado para o outro, como um capitão relutante. Outra, com um espinho preto cravado no centro, girava vertiginosamente.
Kaye ouviu um risinho.
? Muito pode ser profetizado a partir de uma casca de ovo ? disse a bruxa do Cardo. Grandes olhos negros a examinavam através das ervas e urzes trançadas que cobriam a cabeça dela como se fossem cabelos. Ela estava sentada na margem oposta, o corpo agachado coberto por camadas de trapos. ? Eles até já nos pegaram uma vez ? continuou a bruxa do Cardo ? graças a uma infusão de casca de ovos. O orgulho faz com que até mesmo o mais sábio membro do povo aja como um ignorante, é o que se fala.
Kaye sempre teve um pouco de medo dela, mas, dessa vez, não sentiu nada além de conforto. A bruxa do Cardo tinha olhos gentis e a voz rouca era docemente familiar. Ela era tão incomum quanto Roiben e seu cavalo demoníaco.
? Oi. ? Kaye não estava certa de como deveria se dirigir a ela. Quando criança, a maior parte das conversas que havia tido com a fada relacionavam-se a farpas, joelhos ralados ou pedidos de desculpas por ter arrastado um dos amigos durante uma brincadeira, fingindo que ele era um soldado.
? Spike disse que você tinha algo para me falar.
A bruxa do Cardo a observou atentamente por um longo tempo, como se estivesse tirando as medidas da menina.
? Tantos significados possui um ovo. Ele é vida, ele é comida, ele é resposta para uma centena de enigmas. Mas, olhe para a casca. Os segredos estão inscritos em suas paredes. Os segredos descansam nas entranhas das coisas, nos restos. ? A bruxa do Cardo atravessou um minúsculo ovo azul com um espinho e o colocou nos lábios. As bochechas se inflaram com ar e um fio de um líquido claro e denso com aparência de catarro escorreu para dentro de uma tigela de cobre que estava no colo dela.
Kaye observou as cascas dos ovos, ainda sendo carregadas pela correnteza. Não entendia. Que segredos elas poderiam conter além de uma aranha e um espinho?
A bruxa do Cardo bateu de leve na terra úmida próxima a ela.
? Você vê o que eu vejo, Kaye? Sente-se perto de mim.
Kaye procurou por um caminho seco e cruzou o riacho com um pequeno salto.
Um ser minúsculo vestindo um casaco de molesquim escorregou pelo colo da bruxa do Cardo e enfiou inquisitivamente a cabeça dentro da tigela.
? Um dia, existiram duas cortes, a iluminada e a escura, a Digna e a Indigna, o povo do ar e o povo da terra. Elas brigavam como uma serpente que devora a própria cauda, mas nós nos mantivemos longe de suas disputas, nos escondendo em bosques e regatos subterrâneos, e então eles nos esqueceram. Mas, agora, as cortes deram uma trégua e se recordaram de que soberanos precisam de súditos. Temos uma forte tradição servil. ? A bruxa do Cardo acariciava distraidamente o pêlo brilhante do casaco da pequena fada enquanto falava. ? Eles resgataram o Tributo, o sacrifício de uma mortal bela e talentosa. Na corte Digna, eles sequestraram uma poetisa para que se juntasse a eles, mas a corte Indigna clama por sangue. Em troca, aqueles que habitam as terras da corte Indigna têm de se juntar ao exército deles. Esse exército é implacável, Kaye, e seus divertimentos são cruéis. E, agora, você atraiu a atenção deles.
? Por causa de Roiben?
? Oh, não diga esse nome de novo ? sibilou Spike. ? Ou será que queremos convidar toda a corte Indigna para tomar o chá da tarde enquanto comprovamos o quanto somos tolos?
? Silêncio! ? A bruxa do Cardo tentou acalmar Spike. Ele bateu o pé e olhou para o outro lado. ? Você não deve nem mesmo falar o nome deles em voz alta ? continuou a falar, dessa vez dirigindo-se a Kaye. ? A corte Indigna é terrível, terrível e perigosa. E, entre seus cavaleiros, nenhum é tão temido quanto... aquele com quem você conversou. Quando a trégua foi selada, as rainhas trocaram seus melhores cavaleiros, e ele foi oferecido à corte Digna. A rainha o enviou na pior de suas missões.
? Ele é tão imprevisível que nem mesmo sua rainha pode confiar nele. Esse cavaleiro seria capaz de matar você ? interpôs Spike. ? Ele matou Gristle.
? Eu sei ? disse Kaye. ? Ele me contou.
Spike olhou para a bruxa do Cardo surpreso.
? É exatamente isso o que quero dizer! Que perversa aclamação à amizade é essa?
? Como... como ele fez isso? ? perguntou Kaye, uma parte de seu ser temia a resposta, entretanto, ela precisava saber. ? Como Gristle morreu?
Lutie se moveu rapidamente e flutuou diante de Kaye, o pequeno rosto de fada tinha uma expressão chorosa:
? Ele estava comigo. Tínhamos ido até a montanha das fadas. Havia uma prímula com vinho e Gristle queria que eu o ajudasse a surrupiar uma garrafa. Ele pensava em trocá-la por um par de botas ornamentadas com um dos seus amigos duendes. Foi fácil achar o caminho dentro da prímula. Havia uma trilha de grama marrom que levava até a porta. Pegamos uma garrafa, rapidinho e disfarçando bem, e estávamos voltando quando vimos os bolinhos.
? Bolinhos? ? Kaye estava desconcertada.
? É, belos bolinhos brancos com recheio de mel, empilhados num prato, prontos para serem comidos. Você sabe, se você comer esse tipo de bolinho fica mais esperta.
? Não acho que funcione dessa forma ? comentou Kaye.
? Claro que funciona! ? resmungou Lutie-loo. ? Como mais poderiam funcionar?
Continuando, a fadinha se segurou em um galho fino de um arbusto pequeno, se balançando enquanto falava:
? Gristle engoliu cinco bolinhos antes que eles o capturassem.
Kaye não comentou que se esses bolinhos realmente o deixassem mais esperto, deveria ter passado pela cabeça de Gristle que ele deveria ter parado depois de comer o primeiro. Isso não tornou sua morte nem um pouco menos horrível.
? Eles provavelmente o deixariam ir, mas ela precisava de uma raposa para a caçada. E já que Gristle havia roubado os bolinhos, ela disse que ele seria a raposa perfeita. Ah, Kaye, foi terrível. Eles tinham todos aqueles cachorros e cavalos, e simplesmente começaram a persegui-lo. Roiben foi aquele que o pegou.
? O que está havendo com vocês, idiotas? Por que estão dizendo o nome dele? ? rosnou Spike.
Kaye balançou a cabeça. Roiben matara Gristle por diversão? Por que ele roubara alguns bolinhos? E ela ajudara aquele maldito. Sentia a pele ferver ao lembrar da forma doce com que havia falado com Roiben, a maneira com que havia pensado nele. Ela imaginou o que exatamente poderia ser feito com um nome, que tipo de vingança ela realmente poderia conseguir.
A bruxa do Cardo estendeu o pequeno ovo para a menina:
? Tome, Kaye, estoure as vísceras do ovo e o quebre para que se abra. Há um segredo para você lá dentro.
Kaye pegou o pequeno ovo azul. Era tão leve que ela teve medo de quebrá-lo com a leve pressão dos próprios dedos.
Ela se abaixou sobre a tigela da bruxa do Cardo e soprou ligeiramente no buraquinho do ovo. Um jorro viscoso de clara e gema escorreu pelo outro lado, caindo dentro da tigela.
? Agora quebre-o.
Kaye pressionou o dedão contra o ovo e um lado inteiro dele desmoronou, os pedaços mantendo-se unidos apenas por uma membrana fina.
Spike e Lutie pareciam surpresos, mas a bruxa do Cardo apenas balançou a cabeça.
? Eu fiz errado ? disse Kaye e espalhou as cascas do ovo no riacho. Diferentemente dos pequenos barcos, os restos desse ovo pareciam uma saraivada de confetes na água.
? Então deixe-me contar outro segredo, criança, já que esse lhe escapou. Se pensar um pouco, tenho certeza de que irá reconhecer que alguma coisa estranha está acontecendo com você. Uma estranheza, não apenas de conduta mas de algo além. A essência, o rastro dessa mudança atraiu a atenção dos soldados, deixando-os desconfiados e atraídos ao mesmo tempo.
Kaye balançou a cabeça, sem estar certa de que rumo aquela conversa estava tomando.
? Conte para ela um segredo diferente ? advertiu Spike. ? Esse apenas deixará as coisas mais difíceis.
? Você é uma de nós ? disse a bruxa do Cardo para Kaye, os olhos negros brilhando como pedras preciosas.
? O quê? ? Ela ouvira o que foi dito, havia entendido, apenas tentava arranjar tempo suficiente para que o cérebro voltasse a trabalhar. Os pulmões pareciam estar vazios, sem uma única lufada de ar que pudesse respirar. Havia estágios para o impossível, pelo menos existiam níveis para a irrealidade. E cada vez que Kaye achava que estava no grau mais baixo, o chão parecia ceder debaixo de seus pés.
? Meninas mortais são estúpidas e lentas ? falou Lutie. ? Você não precisa mais fingir.
Ela estava chacoalhando a cabeça, mas, mesmo enquanto fazia isso, reconhecia que aquela revelação era verdadeira. Sentia que era verdade, uma notícia que desequilibrava o seu mundo para depois recolocá-lo no lugar certo. Afinal de contas, por que só ela recebia a visita de fadas? Por que só ela era dona de uma magia que não conseguia controlar?
? Por que vocês não me contaram? ? Kaye exigia uma resposta.
? Muito arriscado ? disse Spike.
? Então por que estão me contando agora?
? Porque você foi escolhida como pagamento para o Tributo. ? A bruxa do Cardo cruzou serenamente os braços flácidos. ? E porque é seu direito saber.
Spike bufou.
? O quê? Mas você disse que eu não... ? ela se conteve. Nem um único comentário inteligente havia saído de sua boca até aquela altura da noite, e Kaye tinha dúvidas de que essa situação pudesse mudar.
? Eles acham que você é humana ? disse Spike. ? E isso é bom.
? Um bando de fadas malucas quer me matar e você acha que isso é bom? Ei, eu achava que nós éramos amigos.
Spike não se deu nem ao menos ao trabalho de rir daquela piada fraca. Estava totalmente envolvido por seu plano.
? Há um cavaleiro da corte Digna que pode desfazer o encanto que está sobre você. Isso pode significar que a rainha da corte Indigna quer sacrificar, na verdade, um de nós, esse é um truque bem típico dela. Spike respirou fundo. ? Precisamos da sua ajuda.
Kaye mordeu o lábio superior, com os dentes para fora, em profunda concentração:
? Agora fiquei confusa de verdade. Vocês estão percebendo isso, não é?
? Se você nos ajudar, nós estaremos livressssssssss ? exclamou Lutie. ? Sete anos de liberdade.
? Então, qual é a diferença entre a corte Digna e a Indigna?
? Existem muitas, muitas cortes, bem parecidas com a Digna e a Indigna. Mas é quase sempre verdade que a corte Indigna é a pior delas, e que a nobreza de ambas as cortes dita suas regras para se aproveitar dos plebeus e mais ainda das fadas independentes. Nós, que não temos ligação com nenhuma corte, ficamos à mercê daquela que governa as terras onde vivemos.
? E por que vocês simplesmente não vão embora?
? Alguns de nós são incapazes de fazê-lo, como o povo das árvores, por exemplo. Mas, em relação aos outros, para onde poderíamos ir? Outra corte pode ser ainda mais cruel do que essa.
? Por que as fadas independentes trocam a liberdade delas por um sacrifício humano?
? Algumas o fazem pelo sangue, outras pela proteção. O sacrifício humano é uma demonstração de poder. Poder que nos obriga a sermos obedientes.
? Mas então por que eles simplesmente não trazem vocês de volta para o lado deles à força?
? Não, eles têm de obedecer ao acordo, assim como nós. São limitados pelas sujeições do pacto. Se o sacrifício for invalidado, estamos livres por sete anos. Nesse período, ninguém poderá nos comandar.
? Olha, pessoal, vocês sabem que eu os ajudarei. Ajudaria vocês a fazerem qualquer coisa.
O sorriso imenso que surgiu no rosto de Spike afugentou toda a preocupação de Kaye a respeito da rispidez do amigo. Ele devia estar apenas assustado com a idéia de que a menina pudesse dizer não. Lutie voou alegremente ao redor dela, levantando mechas de cabelo ao mesmo tempo em que as embaraçava ou trançava, Kaye não tinha certeza.
Ela respirou fundo e, ignorando as intervenções de Lutie, perguntou para a bruxa do Cardo:
? Como isso aconteceu? Se sou como você, como acabei indo viver com a minha... com Ellen?
A bruxa do Cardo olhou para o rio, o olhar seguia fixamente os oscilantes barcos de cascas de ovos:
? Você sabia que as fadas às vezes fazem trocas mágicas de crianças? Nos tempos antigos, geralmente pegávamos um monte de pedacinhos de madeira ou uma fada à beira da morte, embrulhávamos em uma manta para que parecessem um bebê roubado e os deixávamos dentro de um berço. É raro que um de nós seja abandonado, mas, quando isso acontece, a natureza encantada se torna cada vez mais difícil de ser escondida à medida que a criança cresce. No fim, todas elas retornam ao Mundo das Fadas.
? Mas por que... não quero saber a razão delas retornarem, mas por que eu? Por que logo eu fui abandonada?
Spike balançou a cabeça:
? Sabemos tanto a respeito disso quanto sabemos do motivo pelo qual nos disseram que deveríamos observá-la. Isso aconteceu há muito tempo. Não temos mais essas respostas.
Era assustador para ela descobrir que poderia haver outra Kaye Fierch, a verdadeira Kaye Fierch, vivendo em algum lugar do Mundo das Fadas:
? Você disse... enfeitiçada. Isso quer dizer que minha aparência é diferente?
? Esse é um feitiço muito poderoso. Alguém o fez para que durasse. ? Spike inclinou a cabeça sabiamente.
? Como eu sou realmente?
? Bem, você é uma fada alada, se é que essa descrição ajuda em alguma coisa. ? Spike coçou a cabeça. Isso geralmente significa ser verde.
Kaye fechou os olhos, apertando-os com força, chacoalhando a cabeça.
? Como posso me ver?
? Eu não recomendaria isso ? aconselhou Spike. ? Uma vez que você desfaça o encanto, ninguém poderá refazê-lo exatamente com o mesmo resultado. Vamos simplesmente deixar as coisas como estão até o Dia do Sol e da Chuva, quando o Tributo será pago. Alguém pode descobrir o que você é se o feitiço for alterado.
? Logo ele será desfeito naturalmente e você não vai mais precisar fingir que é uma mortal, se não quiser ? disse Lutie alegremente.
? Se o encantamento que jogaram em mim é tão bem feito, como saberei quem eu era?
A bruxa do Cardo sorriu.
? O encantamento é a matéria-prima da ilusão, mas, às vezes, se este for habilmente elaborado, ele pode se tornar mais do que um mero disfarce. Bolsos fantásticos podem realmente conter bugigangas, um guarda-chuva feito de ilusão pode proteger da chuva e ouro mágico pode ter valor verdadeiro, pelo menos até que o calor das mãos do mágico abandone o contato com as moedas. A mágica que está sobre você é a mais forte que já vi, Kaye. Ela a protege até mesmo do toque do aço, que queima a pele das fadas. Sei que você é uma fada alada porque a vi quando era muito pequena e vivia nas terras da corte Digna. A própria rainha pediu para que tomássemos conta de você.
? Mas por quê?
? Quem pode desvendar os caprichos das rainhas?
? E se eu quiser remover o encanto? ? insistiu Kaye.
A bruxa do Cardo deu um passo na direção dela.
? As formas de se remover a magia de uma fada são muitas. Um trevo de quatro folhas, sorvas, olhar para você mesma através de uma pedra naturalmente furada. É uma escolha sua.
Kaye respirou fundo. Precisava pensar.
? Vou para cama.
? Só mais uma coisa ? disse a bruxa do Cardo enquanto Kaye se levantava da margem do riacho e limpava com as mãos a parte de trás das coxas. ? Preste atenção no aviso dado pela casca de ovo que você despedaçou. Aonde quer que você for, o caos e a discórdia a acompanharão.
? O que isso significa?
A bruxa do Cardo sorriu.
? O tempo irá dizer. Ele sempre diz.

* * *

Kaye estava parada no gramado da casa da avó. Tudo estava escuro, a não ser pela lua prateada, a lua que não parecia antropomórfica naquela noite, mas apenas uma rocha brilhando graças à luz refletida. As árvores nuas é que pareciam estar vivas, os galhos retorcidos como flechas afiadas capazes de perfurar o coração dela.
Ainda não conseguia entrar na casa. Sentou-se no gramado úmido de orvalho e arrancou pedaços de grama, jogando-os para o ar e se sentindo vagamente culpada por isso. Algum gnomo poderia sair de repente de dentro da árvore e censurá-la por molestar o gramado.
Uma fada alada. A palavra soava tão... tão divertida. Apesar de tudo, ela fazia com que Kaye sorrisse, ao pensar em ter asas como Lutie ou dedos rápidos como o pobre Gristle.
Porém, sentiu um aperto no estômago quando pensou na mãe. Sua mãe, cuja cabeça ela havia pescado para fora de privadas, que a arrastava de apartamento em apartamento, de bar em bar, perseguindo um sonho distante. Sua mãe, que uma vez quebrou um de seus discos favoritos porque estava "de saco cheio de ouvir aquela vagabunda sem talento". Sua mãe, que nunca havia dito que ela era estranha, que sempre a encorajou a pensar por si mesma, a apoiou e nunca, em hipótese alguma, disse que ela era uma mentirosa.
O que a mãe pensaria se descobrisse que a filha não era a garota com quem ela vivera por dezesseis anos? Não, o bebê de Ellen havia sido recolhido por duendes de dedos rápidos.
Aquela situação já estava confusa o suficiente para ser prolongada.
E se não era Kaye Fierch, a estranha garota humana, então quem era ela? Sabia que eles não queriam que estragasse o plano que tinham para o Dia das Bruxas, mas, naquele momento, ela só queria saber qual era a própria aparência.
Havia punhados de trevos em meio ao gramado.
Ajoelhando-se diante de um monte deles, de folhas amarronzadas, quase mortas, ela arrastou os dedos e procurou. Apesar de estarem no outono, havia tantos que deveria ter algum com quatro folhas.
A escuridão começava a se dissipar devagar, mas nenhum dos trevos que ela arrancou tinha mais ou menos de três folhas. Estava ficando desesperada o bastante para partir uma das folhas em forma de coração ao meio e tentar descobrir se esse negócio de magia não seria mais simbólico do que literal. Ainda assim, parecia que ela deveria tocá-lo e não necessariamente encontrá-lo...
Ah, isso era muito idiota. Poderia não funcionar nunca. E, mesmo que funcionasse, continuava sendo estúpido.
Kaye deitou-se no chão com o corpo espalhado, torcendo para que nenhum carro estivesse passando pela rua àquela hora. Começou a rolar pelo monte de trevos. O solo estava frio, o orvalho havia se transformado em gotas de gelo. Rolava vertiginosamente, com os braços ao redor da cabeça. Precisava rir enquanto fazia isso. Tudo aquilo era absurdo, o corpo dela estava úmido e muito, muito gelado, mas havia algo no cheiro da terra e no toque da grama que a energizava. A risada rodopiava para fora da boca de Kaye em lufadas de ar quente.
Ela não se sentia diferente, mas se sentia melhor. Dava risadinhas como uma idiota, a ansiedade dando lugar à tolice.
Deitando-se de costas, Kaye tentou se imaginar como uma fada, toda brilhante com o cabelo sempre esvoaçando pela brisa. Apesar disso, a única imagem que lhe vinha à cabeça era o rosto verde pálido que vira quando estava saindo do banheiro da lanchonete. Podia se lembrar dele tão detalhadamente que parecia menos real do que uma recordação. Talvez tenha sido algo tirado de um filme.
Kaye se enroscou para levantar e ir para dentro quando percebeu que um pedaço da pele da mão estava solto. Confusa, tocou um dos dedos e a pele se desprendeu como se fosse uma queimadura causada pelo sol, revelando uma pele macia e verde. Kaye lambeu o dedo e tentou apagar o pigmento. A mancha não saiu, apenas se espalhou ainda mais. A mão dela tinha gosto de terra.
Kaye ficou imóvel. Estava assustada. Muito assustada. Terrivelmente assustada, mas, ao mesmo tempo, permanecia calma, calma como o vazio. Dá um tempo, ela disse para si mesma, afinal, você queria ver isso.
Os olhos dela coçaram e Kaye os esfregou com os ossos do pulso. Algo se desprendeu de seus dedos. A sensação era de que eram lentes de contato, mas quando olhou para a mão, viu que era pele e que, com o atrito, maior era a quantidade de tecido que se soltava.
Quando olhou para cima, parecia que o mundo inteiro havia se tornado mais brilhante, resplandecendo com luz. Cores dançavam pela grama. O marrom das árvores tinha vários tons e as rugas das sombras eram profundas, fazendo voltas de maneiras novas, secretas e belas.
Ela abriu os braços até o máximo onde eles poderiam chegar. Podia sentir o cheiro acre e verde da grama que esmagava enquanto se erguia. Podia sentir a frieza aguda do ar enquanto girava, cheio de gás vindo dos escapamentos de carros, folhas amassadas, da fumaça distante de algum monte de folhas em chamas. Podia sentir o cheiro de putrefação da floresta dessecada, a deterioração das provisões que as formigas armazenavam para o inverno. Podia ouvir as batidas dos cupins, os gemidos da eletricidade da casa, o vento farfalhando um milhão de folhas tão secas quanto papel.
Podia sentir o gosto da química no ar: aço, fumaça e outros elementos que ela não sabia como nomear. Eles brincavam em sua língua com uma harmonia mórbida.
Aquilo era demais. Era irresistível. Eram muitas as sensações que a golpeavam, sensações demais para que pudesse filtrá-las. Não podia entrar na casa nesse estado, mas, naquele momento, era isso o que desejava. Queria se enterrar debaixo dos cobertores de sua cama e esperar pela aurora que a tudo perdoa. Não estava preparada para aquilo. A curiosidade dela havia sido um capricho.
Como ela realmente era?
Deveria voltar agora, voltar para o pântano, confessar tudo e deixar que a bruxa do Cardo lhe explicasse o que acabara de fazer consigo mesma. Kaye se obrigou a respirar depressa durante alguns momentos sem pensar nos sabores que tinha o ar. Ela estava bem. Melhor do que bem. Ela era a porra de um ser sobrenatural. Tudo que tinha de fazer era andar novamente até o pântano sem tocar em sua pele pelo caminho.
Iniciado o trajeto, porém, ela não conseguia simplesmente andar. Estava correndo. Correndo através dos quintais das casas, ouvindo cachorros latirem e sentindo as pernas molhadas pelo contato com a grama que não estava cortada. Correndo através de um estacionamento quase vazio, onde um menino que empurrava uma carroça parou para olhar para ela, entrando no terreno seguinte, sentindo o cheiro doce, forte e desagradável de lixo, onde ela parou, ofegante, e apertou a cintura com as mãos. E lá estava, as árvores tenuamente espaçadas e o riacho que corria entre elas.
? Spike, Lutie ? chamou Kaye, apavorada pela própria voz arfante. ? Por favor...
Não houve resposta além do silêncio.
Kaye descia a margem em ziguezague, as botas atolando na lama. As cascas de ovo desapareceram. Havia apenas o fedor da água estagnada. As garrafas estilhaçadas brilhavam como jóias pontiagudas através dos novos olhos dela. Ela parou, admirada com tanta beleza.
? Por favor, Lutie, alguém...
Ninguém respondeu.
Kaye se sentou na lama fria. Ela podia esperar. Teria de esperar.


Kaye espreguiçou-se e se virou. As folhas acima dela se soltavam e eram carregadas pela brisa da manhã. Gotas de água gelada pingavam na bochecha da garota, atingindo depois o braço e, então, as pálpebras de um dos olhos. Kaye se sentou. Os olhos estavam pesados e os lábios feridos e inchados.
Havia um reflexo esverdeado em sua pele quando ela ergueu um dos braços para se proteger da luz. Os dedos pareciam ter se alongado e estavam fluidamente encurvados graças a uma nova quarta articulação, se enrolando como caracóis quando ela fechou as mão em punho. Levantou a outra mão, aquela cuja pele estava descascando na noite anterior. Debaixo de uma fina película, a pele tinha um tom esmeralda escuro.
Ninguém tinha vindo. Outra gotícula caiu na perna nua de Kaye e ela se colocou de pé num movimento súbito. A camisola estava imunda e ela estava tremendo, mesmo debaixo do suéter.
Prendendo o choro, Kaye passou os braços ao redor de si mesma e começou a andar. Não podia ir para casa, não ainda, sabendo que não era a menina que pertencia àquele lugar. Por outro lado, precisava se abrigar da chuva. Ao menos Janet não podia chamá-la de mentirosa dessa vez.
Parou no estacionamento e virou o espelho retrovisor de um carro na direção dela para que pudesse ver seu perfil. O cabelo estava emaranhado num nimbo de nós, molhados de orvalho, e ela viu que um exuberante verde escuro, cor de musgo, manchava a pele dela. Não era exatamente uma mancha, mas sim um sombreado, como se um véu verde estivesse sobre ela. As orelhas estavam mais compridas, fincadas no alto da cabeça, atravessando o cabelo. Os ossos do rosto estavam saltados e os olhos, oblíquos e negros, de uma cor totalmente preta brilhante, com uma minúscula pupila branca. Como os olhos de um pássaro ou uma conta solitária.
Ela levantou uma das mãos e tocou o rosto. O tecido se rompeu com facilidade, revelando uma tira de pele verde-grama.
A mão de Kaye socou o espelho, dando ao vidro um aspecto de teia de aranha. Ela ficou surpresa. Ignorou a dor no pulso e a queimação viscosa do sangue nos nós dos dedos e começou a correr.


Corny apertou os olhos tentando enxergar melhor. Uma garota usando maquiagem verde atravessou a rua correndo e estava alcançando a parte coberta pelo toldo do posto de gasolina. Ela olhou na direção dele e Corny pensou tê-la reconhecido, mas, quando ela se aproximou, ele não tinha mais tanta certeza.
? Estava indo procurar a Janet na casa dela ? disse a garota, soando exatamente como Kaye. ? Mas acabei de me lembrar que ela está na escola.
De perto, a garota não se parecia em nada com Kaye. Ela não se parecia com nenhuma outra pessoa. Os olhos voltados para cima eram tão negros quanto óleo derramado. Orelhas compridas despontavam do cabelo emaranhado de ambos os lados da cabeça. A pele parecia estar descamando, mostrando pedaços de camadas inferiores de cor verde.
? Kaye? ? perguntou Corny.
A garota sorriu para ele, mas o sorriso dela era muito feroz. A pele do lábio inferior se rompeu.
Corny estava paralisado, olhando fixamente para ela.
Ela passou por ele correndo em disparada em direção ao escritório, esticando os dedos, que mais pareciam galhos de plantas. Corny conteve uma lamentação, tentando manter os olhos focados na máquina de cartões de crédito, nos papéis sujos, no purificador de ar laminado fora do invólucro que normalmente o cobria, todas as coisas familiares. Podia sentir o cheiro dela, uma estranha combinação de espinhos de pinheiros, musgo e pilhas de folhas. O odor estava fazendo com que ele se sentisse tonto.
Ela se sentou no chão em cima de papéis e caixas de fast-food.
? Que diabos aconteceu com você?
Kaye levantou uma das mãos e a inclinou ligeiramente contra a luz.
? Estou doente. Doente de verdade.
Ele se abaixou e olhou novamente para a garota. Havia uma luminescência na pele dela, um tipo de fulgor que pairava sobre Kaye que fazia com que os olhos dela brilhassem febrilmente. Tinha algo de estranho na própria forma dela, os ombros estavam arqueados, havia uma ligeira protuberância nas costas.
Corny pegou uma prancheta de madeira com uma chave pendurada.
? Vamos para o banheiro. A luz de lá é mais forte e você pode limpar melhor essa sujeira.
Ela se levantou do chão.
? Posso levar você para o hospital ? disse Corny. Ela não respondeu, e ele não insistiu no assunto. Sabia que aquilo não era algo que pudesse ser resolvido num hospital, mas apenas considerara que aquilo era o tipo de coisa que deveria dizer.
O banheiro era imundo. Corny certamente não se recordava de ninguém fazendo por aquele local algo mais do que trocar o papel higiênico durante todo o tempo em que trabalhava lá. Os azulejos, que um dia já haviam sido brancos, estavam quebrados e acinzentados. Havia o espaço exato para duas pessoas, mas Kaye se espremeu obedientemente próximo à privada e tirou o suéter.
? Tire o resto da roupa. Tem alguma coisa nas suas costas.
Kaye lançou um olhar de julgamento para ele e aparentemente decidiu que nem Corny nem ela própria iriam se importar com aquilo. Arrancou as botas e tirou a camisola até ficar apenas de calcinha.
Ele colocou a camisola dela debaixo da torneira até que esta ficasse encharcada. Em seguida, utilizou-a para esfregar o corpo de Kaye, tirando o que havia restado de pele e o pigmento do cabelo dela. A pele das costas de Kaye estava fina como crepe. Quando ele passou o pano pela protuberância entre os ombros, a pele se rompeu.
Um fluido esbranquiçado translúcido escorreu das omoplatas dela.
? Ecaaaaa. ? Corny recuou um pouco, afastando-se dela.
Kaye olhou para trás na direção dele e a expressão no rosto da garota dizia que ela simplesmente não era capaz de suportar mais nenhuma esquisitice. Obviamente, era difícil saber se ele conseguia decifrar corretamente a mensagem contida nos estranhos olhos de Kaye.
? Está tudo bem ? disse ele no tom mais reconfortante que sua voz conseguiu transmitir. Ouviu um carro estacionar lá fora. Ignorou-o.
? O que aconteceu? ? Havia algo se movendo pela superfície das costas dela, algo viscoso e incandescente.
? Espere ? pediu ele. O fluido grosso estava escorrendo, deixando à mostra nervuras brancas e brilhantes que cobriam toda a extensão das costas dela. De repente, algo se desprendeu com uma sacudidela, elevando-se tanto que quase atingiu Corny antes de cair, ainda úmido, contra as costas de Kaye.
? Meu Deus! ?exclamou Corny. ? Você tem asas.
As asas úmidas se moveram debilmente.
A visão delas deixava Corny empolgado, apesar do medo. Aquilo era real.
? Vamos ? disse ele. ? Para a minha casa.





6


Desci morro abaixo e então,
Esqueci-me dos caminhos dos homens
Pelas essências da noite, intoxicantes, úmidas e frescas
O êxtase foi despertado dentro de mim. (

? SARA TEAS DALE
"August Moonrise", Flame and Shadow



Kaye se sentou cautelosamente na ponta do sofá de forma que as novas asas ficassem penduradas no encosto do sofá e não fossem esmagadas se ela se movesse de repente ou se se inclinasse para trás.
Estava usando um par de jeans de Corny, preso por um cinto e enrolado nas bainhas, e um moletom preto com capuz. Ele havia pegado uma tesoura e cortado um grande buraco nas costas para que Kaye pudesse acomodar as asas. A pele estava tão sensível que ela achava que podia sentir as partículas de poeira à medida que flutuavam pelo ar.
Corny se serviu de um copo de soda:
? Você pode tomar soda?
? Acho que sim ? respondeu Kaye. ? Eu tomava antes.
Ele encheu outro copo e o passou para ela. Ela nem ao menos provou a bebida. O líquido era da mesma cor da pele dela.
Ela podia sentir o cheiro da soda, os corantes verdes e a gaseificação química. Podia sentir o cheiro de Corny, a acidez do seu suor excitado, o hálito azedo. O ar que ela respirava tinha gosto de cigarros, gatos, plástico e ferro de um jeito que nunca havia percebido antes. Isso fazia com que ela quase se engasgasse com o simples ato de respirar.
? As coisas estão começando a fazer sentido ? comentou Corny. ? Eu já quase que consigo olhar para você sem sentir vontade de bater com a cabeça na parede.
? Não estou certa de como posso explicar o que está acontecendo. Começou há muito tempo. Não tenho certeza de que consigo me lembrar de coisas importantes.
? Então comece pelo que aconteceu mais recentemente. ? Corny sentou no sofá. Encarava Kaye com uma expressão que parecia uma combinação de fascinação e repulsa.
? Rolei em cima de alguns trevos. ? Ela deu uma risadinha diante do absurdo do fato.
? Por quê? ? Corny não soltou nenhuma risada. Estava totalmente sério.
? Porque a bruxa do Cardo me disse que essa era uma das maneiras pelas quais eu poderia me ver do jeito que eu realmente sou. Está vendo... Eu disse que iria parecer ridículo...
? E, então, essa é a sua aparência verdadeira?
Kaye balançou a cabeça cuidadosamente.
? Acho que sim.
? E essa tal de bruxa do Quarto? Quem é ela?
? Bruxa do Cardo ? corrigiu Kaye. E contou tudo para ele. Contou que conhecia os seres encantados desde que se entendia por gente, contou como Spike se empoleirava no estrado da cama dela quando ela era pequena e contava histórias sobre goblins e gigantes enquanto Lutie voava freneticamente pelo quarto como uma lâmpada maníaca. Contou como Gristle a ensinara a fazer um apito que emitia assobios agudos com uma folha de grama e descreveu as adivinhações que a bruxa do Cardo fazia, utilizando-se de cascas de ovos.
Durante todo o discurso, Corny a encarava com olhos gananciosos.
? Quem sabia sobre esses seus amigos?
Kaye deu de ombros.
? Minha mãe, minha avó... Bem, acho que não sou parente delas de verdade... ? parou Kaye de repente. A voz soou vacilante, até mesmo para ela própria e a garota respirou fundo. ? Todo o mundo da minha turma da primeira série. Você. Janet.
? Alguma dessas pessoas já viu fadas? Pelo menos uma vez?
Kaye balançou a cabeça negativamente.
Corny virou seu olhar para a parede, com o cenho franzido, concentrado.
? E você não pode chamá-los?
Kaye negou novamente com um movimento de cabeça.
? Eles me acham quando querem. Foi sempre assim. Agora esse é o problema. Não posso ficar desse jeito e não sei como restaurar o encanto.
? Não há ninguém que você possa procurar?
? Não ? disse Kaye veementemente. ? Já disse que não. O pântano era o único lugar, e eu passei a noite inteira lá.
? Mas você também é uma fada. Você não tem nenhuma habilidade extraordinária?
? Eu não sei ? respondeu Kaye pensando em Kenny. Esse definitivamente não era um assunto que queria discutir naquele momento. A cabeça dela já estava doendo o suficiente.
? Você é capaz de lançar algum feitiço?
? Eu não sei. Eu não sei. Eu não sei! Será que você não consegue entender que eu não sei nada?
? Vamos lá para os fundos. Precisamos entrar na Internet.
Foram para o quarto de Corny e ele ligou o computador. A tela ficou azul e então a figura que servia de papel de parede surgiu. Era um mago debruçado sobre um tabuleiro de xadrez onde duas rainhas travavam uma batalha, uma totalmente negra e a outra, toda branca.
Kaye se jogou pesadamente sobre os lençóis emaranhados da cama de Corny, com a barriga virada para baixo e as asas para cima.
Ele apertou algumas teclas e o modem rosnou.
? Ok. F-A-D-A. Vamos ver. Hummmm. Material gay. Não vamos entrar nessas páginas.
Ela conteve uma risadinha, apesar de tudo.
? Lá vamos nós. Crianças alemãs trocadas ao nascer pelas fadas. Figuras. Poesias de Yeats.
? Aparentemente, sou uma fada alada ? informou Kaye. ? Mesmo assim, clique nesse negócio de crianças trocadas pelas fadas.
? Interessante.
Corny foi descendo a barra de rolagem da página e ela tentou ler de seu ponto de observação, vagamente distante da tela.
? O quê?
? Aqui diz que você precisa jogá-las no fogo para conseguir seu bebê verdadeiro de volta... Isso ou enfiar um atiçador de brasas quente pela garganta delas.
? Ótimo. Próximo.
? Lá vamos nós. Fadas aladas. São capazes de identificar o bem ou o mal, odeiam orcs e têm entre trinta e sessenta centímetros de altura... ? Ele começou a rir. ? Produzem pó de fada.
? Ores? ? inquiriu Kaye. Ela mudou de posição, repentinamente consciente de que era difícil separar quais músculos eram responsáveis pela contração das asas. Elas pareciam se mover independentemente uma da outra e também não respeitavam a vontade de Kaye, como dois insetos macios pousando nas costas dela.
Corny não conseguia parar de rir.
? Pó de fada. Como os anjos fazem pó de anjo. Cartéis internacionais de drogas prendem serafins e os sacodem. Padres que varrem as igrejas armazenam a poeira em sacos de plástico.
Ela bufou:
? Você é um idiota, sabia?
? Eu tento ? disse ele ainda rindo.
? Bem, tente corte Indigna.
Após alguns cliques de mouse, Corny disse:
? Parece que é nesse lugar que ficam todos os caras maus do Reino das Fadas. O que isso tem a ver com você?
? Tem um cavaleiro que pode ou não estar querendo me matar. Meus amigos querem que eu finja ser humana porque existe uma coisa chamada O Tributo... É difícil de explicar.
Corny ficou de pé novamente.
? Por que você não me conta?
? Acabei de contar para você toda a parte que faz sentido.
? Tudo bem ? concordou Corny com a cabeça. - Agora me conte a parte que não faz sentido.
? Não entendo tudo muito bem, mas basicamente existem fadas solitárias e fadas que pertencem a cortes. Roiben faz parte de uma das cortes e eu o conheci na floresta depois dele ter levado uma flechada. Ele pertence à corte Indigna.
? Tudo bem. Ainda estou acompanhando sua linha de pensamento, ainda que com dificuldade.
? Spike e Lutie-loo me mandaram uma mensagem dentro de uma semente para me avisar de que ele era perigoso. Ele matou o meu outro amigo, Gristle.
? Uma mensagem dentro de uma semente?
? Ela se abria em duas metades e era oca.
? Sei. Acredito.
? Engraçadinho. Procure por "Tributo" agora, está bem? Pelo que sei, o Tributo é um sacrifício que garante que as fadas que não fazem parte de nenhuma corte continuem fazendo o que os membros das cortes mandam. Eles querem que eu finja ser humana para que eles possam simular o meu sacrifício.
Ele digitou a palavra no teclado.
? Só estou conseguindo achar umas merdas de evangélicos fanáticos. "Me dê dez por cento do seu dinheiro e então eu poderei comprar uma casinha de cachorro com ar-condicionado", coisas do gênero. Esse sacrifício... É seguro? Quero dizer, o quanto você sabe a respeito dessas pessoas?
? Eu acredito totalmente nelas...
? Mas... ? instigou Corny.
Ela sorriu pesarosamente:
? Mas eles nunca me contaram. Eles me conheciam durante todo esse tempo e nada... Nem uma pista. ? Kaye observou os nós dos dedos melancolicamente. Por que uma articulação extra deveria fazer com que eles parecessem horripilantes? Mas isso era verdade, apesar de tudo. Ficava aborrecida toda vez que os dobrava.
Corny entrelaçou os dedos das mãos, estalando as juntas como um vilão.
? Me conte toda a história de novo, devagar e desde o princípio.


Kaye acordou atordoada, sem ter certeza de onde estava. Tentou mudar de posição e sentiu uma forma sólida que gemia e a empurrava. Corny. Ela olhou para ele de soslaio e esfregou os olhos. Estava escuro no quarto, os únicos traços de luz entravam furtivamente pelas extremidades das pesadas cortinas marrons. Ouviu vozes vindas de algum lugar dentro do trailer sobressaindo sobre o som distante de gargalhadas enlatadas de televisão.
Ela se virou novamente, tentando voltar a dormir. A mesa-de-cabeceira estava diante da linha de visão dela. Um livro, intitulado Moda, uma frasco de xarope, um despertador com chamas no fundo do visor e um cavaleiro de xadrez de plástico preto.
? Corny. ? Kaye sacudiu o que pensou ser o ombro de um bloco maciço. ? Acorde. Eu sei o que fazer. Sei o que podemos fazer.
Corny empurrou os cobertores que cobriam-lhe a cabeça. Os olhos do rapaz eram fendas úmidas nas pilhas de edredons.
? É melhor que essa idéia seja a boa ? murmurou ele, semi-acordado.
? O Cavalo das Águas. Eu sei como chamá-lo.
Ele empurrou os cobertores e se sentou, subitamente desperto:
? Certo. Tudo bem. ? Corny deslizou para fora da cama, coçando as partes íntimas através das cuecas que um dia já haviam sido brancas, e se sentou diante do computador. O descansador de tela desvaneceu quando ele balançou o mouse.
No corredor, Kaye podia ouvir nitidamente a voz de Janet, discutindo com a mãe sobre o fato de que ela não iria tirar sua licença de motorista se Corny não lhe emprestasse o carro.
? Que horas são? ? perguntou Kaye.
Corny olhou para o relógio na parte inferior da tela.
? Já passa das cinco.
? Posso usar o telefone?
Ele concordou com um movimento de cabeça.
? Ligue agora antes de eu entrar na Internet. Nós só temos uma linha de telefone.
O telefone do quarto de Corny era uma cópia do telefone de emergência do Batman, vermelho brilhante, coberto por uma redoma de plástico, ficava largado no chão. O aparelho tinha até mesmo uma pequena lâmpada que deveria piscar quando o telefone tocava. Kaye se sentou no chão com as pernas cruzadas, retirou a redoma e discou o número da casa dela.
? Alô? ? atendeu a avó de Kaye.
? Vovó? ? Ela arrastou os dedos pelos fios sintéticos do tapete sobre o qual estava sentada. Os olhos encontraram os longos e verdes dedos dos seus pés, cujas unhas, pintadas com esmalte vermelho já descascado, eram pontudas e havia muito não viam uma tesoura.
? Onde você está?
? Estou na casa da Janet ? respondeu Kaye, mexendo os dedos dos pés, desejando que ela própria tomasse consciência de que aqueles membros lhe pertenciam. Era difícil falar com a avó depois de tudo o que descobriu. A única razão de a avó aturá-la e a Ellen era o fato de que elas faziam parte da família e sempre se deve zelar pelos familiares. ? Só queria avisar onde estou.
? Onde você esteve esta manhã?
? Acordei cedo ? explicou Kaye. ? Precisava encontrar com alguns amigos antes das aulas começarem. ? De certa forma, isso era quase verdade.
? Bem, então quando você vai voltar para casa? Ah, e deixaram dois recados para você. Joe, do Amoco, ligou para falar sobre um emprego. Espero que você não esteja pensando em trabalhar num posto de gasolina... E também um garoto chamado Kenny telefonou duas vezes.
? Duas vezes? ? Kaye não conseguiu esconder o sorriso que estava empurrando para cima as extremidades de uma boca que ela estava determinada a manter inflexível.
? É. Você vem para o jantar?
? Não. Vou comer aqui ? respondeu Kaye. ? Tchau, vovó. Eu amo você.
? Acho que sua mãe iria gostar se você viesse jantar em casa. Ela quer falar com você sobre Nova York.
? Preciso ir. Tchau, vovó.
Kaye desligou o telefone antes que a avó pudesse começar outra frase.
? Pode entrar na Internet agora ? avisou ela a Corny.
Poucos minutos depois, ele fez um ruído.
Kaye olhou para ele.
? Seu plano tem um pequeno problema.
? Será que todos os meus planos... Não... Me diga. Qual é a dúvida?
? Cavalos das Águas basicamente gostam de afogar pessoas e comer a maior parte delas. Eles devoram tudo menos as tripas. Você não deve montar neles, blablablá, eles são tão malignos como a porra do demônio, blablablá, isso sem mencionar que eles mudam de forma. Ah, sim, você pode amansá-los se por acaso conseguir colocar rédeas neles. As chance de se conseguir fazer isso é realmente muito grande...
? Oh!
? Você já imaginou se alguns desses sites foram criados por fadas? Estou pensando que se eu continuar procurando talvez possa encontrar uma newsletter, uma página central ou alguma coisa do gênero.
? Então se não montarmos neles estamos salvos?
? O quê? Ah... Eu não sei.
? Bem, nessa página eles contam algum caso em que os cavalos das águas afogaram pessoas sem que elas tenham subido nas costas deles?
? Não, isso aqui não é tão completo assim.
? Eu vou tentar. Vou falar com o Cavalo das Águas.
Ele olhou para ela por cima da mesa do computador:
? Você não vai sem mim.
? Tudo bem ? concordou Kaye. ? Eu só acho que pode ser perigoso.
? Isso é o que há ? disse Corny, a voz se tornava mais baixa ? e eu não quero perder nadinha. Nem pense em fugir.
Ela levantou ambas as mãos, simulando um ato de rendição:
? Eu quero que você vá comigo. De verdade. Certo?
? Não estou a fim de acordar num lugar estranho com as idéias confusas e ninguém acreditar em mim. Você entende? ? A face de Corny estava rubra.
? Qual é, Corny. Daqui a pouco sua mãe ou Janet vão acabar ouvindo você e vindo até aqui. Não estou abandonando você.
Kaye o observou enquanto ele se acalmava um pouco, pensando que deveria parar de tentar adivinhar o que iria acontecer a seguir. Apesar de tudo, quando já se está numa posição traiçoeira, realmente não se tem condições de prever com exatidão como as coisas caminharão dali em diante.


O metal do carro fez com que ela se sentisse pesada, entorpecida e enjoada, do jeito como uma pessoa se sentiria pouco antes de morrer intoxicada pelo monóxido de carbono. Kaye apoiou o queixo contra o vidro gelado da janela. A garganta estava seca e a cabeça, pesada. Aquilo tinha algo a ver com o ar que circulava dentro do carro, que parecia queimar os pulmões dela quando respirava. O trajeto era curto e ela estava grata por isso. Kaye praticamente se jogou para fora do carro quando Corny abriu a porta para ela.
À luz do dia, era fácil de se enxergarem fileiras de casas através das árvores, e ela imaginou como aquilo podia ter parecido uma floresta fechada quando andara a esmo por ali. O riacho, quando eles o encontraram, estava lotado de lixo. Corny se abaixou e esfregou uma garrafa marrom que aparentemente não era de cerveja, para retirar a sujeira. Parecia que o recipiente de vidro havia armazenado algum tônico capilar de óleo de cobra vendido por um caixeiro-viajante ou algo do gênero.
? É um vidro de vaselina ? disse ele. ? Alguns desses troços são velhos de verdade. Aposto que dá para vender algumas dessas garrafas. ? Ele empurrou outro frasco com os dedos dos pés. ? E então, como você vai chamar a coisa?
Kaye pegou uma folha marrom.
? Você tem alguma coisa afiada?
Ele procurou dentro do bolso traseiro e puxou um canivete, abrindo-o com um hábil movimento do polegar.
? Só não se esqueça do que estava escrito no site: não monte no Cavalo das Águas, de jeito nenhum, em nenhuma ocasião, não importa o que aconteça.
? Eu vi o site, certo? Não precisa ficar me lembrando. Um cavalo das águas é o mesmo que um demônio aquático que afoga as pessoas por diversão. Eu entendi.
? Bem, já que você está dizendo...
Corny deixou que Kaye pegasse o canivete. Ela deslizou a ponta pela parte mais carnuda do dedão. Uma gota brilhante de sangue brotou, e ela a esfregou na folha.
? E agora? ? perguntou Corny, porém, por mais que essas palavras soassem cínicas, ele estava quase sem ar quando as pronunciou.
Ela jogou a folha no riacho, com o lado ensanguentado virado para baixo, como fizera antes.
? Eu sou Kaye ? disse ela, tentando se lembrar das palavras. ? Não pertenço a nenhuma corte, mas preciso de sua ajuda. Por favor, me escute.
Houve um longo momento de silêncio e Corny soltou a respiração. Kaye podia ver que ele começava a acreditar que nada iria acontecer, e ela estava dividida entre o desejo de provar que sabia o que estava fazendo e o medo de que a criatura não desse nenhum sinal de vida.
Um minuto depois, não havia mais dúvidas de que um cavalo negro estava surgindo das águas.
A criatura parecia diferente. Talvez fosse porque era dia ou por causa da nova visão de Kaye. O tom do pêlo do Cavalo das Águas já não era mais tão negro, mas um esmeralda tão profundo que parecia ser preto. E os olhos nacarados brilhavam como pérolas. Mesmo assim, quando ele voltou o olhar firme na direção de Kaye, a menina foi forçada a se lembrar da pesquisa que Corny fizera. Aquilo era arrepiante.
O Cavalo das Águas deu uma passada larga até a margem e sacudiu a crina comprida, borrifando Kaye e Corny com gotas brilhantes de água do pântano. Ela tentou se proteger com as mãos, mas isso não ajudou muito.
? O que você procura? ? falou o cavalo, a voz macia, porém profunda.
Kaye respirou fundo:
? Preciso saber como lançar um encantamento sobre mim e necessito descobrir como controlar minha magia. Você pode me ensinar?
? E o que você vai me dar em troca, criança?
? O que você quer?
? Talvez esse aí que a está acompanhando queira montar em mim. Posso ensinar a você se ele der uma volta comigo.
? Para que você possa matá-lo? Sem chance.
? Eu me maravilho com a morte, eu que talvez nunca vá conhecê-la. Ela se assemelha muito ao êxtase, a maneira como eles abrem as bocas enquanto submergem, o jeito como enterram os dedos em minha pele. Os olhos se arregalam de terror e eles desfalecem em minhas mãos como se estivessem perdidamente apaixonados.
Kaye sacudiu a cabeça, horrorizada.
? Você não pode me culpar. Essa é a minha natureza. E tem sido assim já por um longo tempo.
? Não vou ajudar você a matar pessoas.
? Pode existir algo mais que me seduza, mas não consigo pensar no quê. Darei a você a oportunidade de tentar encontrar alguma outra coisa.
Kaye suspirou.
? Você sabe onde me encontrar.
Com isso, o Cavalo das Águas desapareceu novamente no riacho.
Corny ainda estava sentado, confuso, na margem.
? Aquela coisa queria me matar.
Kaye assentiu.
? Você vai tentar achar algo que ele queira?
Kaye concordou novamente:
? Vou.
? Não sei o que pensar sobre isso.
? Você leu no site. Sabia que seria assim.
? Eu achava que sabia. Ver a coisa é diferente... Ouvi-la falar...
? Quer ir embora?
? Que inferno, não.
? Alguma idéia do que o Cavalo das Águas possa querer que não ande sobre duas pernas?
? Bem ? disse ele após ponderar por alguns momentos ?, na verdade existe um monte de gente que eu não me importaria em ver se tornando alimento para essa coisa.
Ela riu.
? Estou falando sério.
? O que você quer dizer com isso?
? Quero dizer que existe um monte de gente que eu não ligaria se as visse se afogando. Sério. Acho que nós devíamos procurar algumas delas.
Kaye olhou para Corny. Ele não parecia particularmente incomodado pelo que acabara de propor.
? Sem chance ? discordou ela.
Corny suspirou.
? O namorado da Janet, por exemplo. Aquele otário.
? Kenny? ? Kaye deu um grito agudo.
? Olha, não estou dizendo que precisa ser ele. Poderia pensar em mais de uma dúzia de pessoas. O melhor é que eles são tão burros que tenho certeza de que não teríamos nenhum problema para convencê-los a vir até aqui e montarem no cavalo. Acho que a estupidez deve ter consequências. Qual é, podemos fazer uma pequena limpeza na raça humana. ? Ele moveu as sobrancelhas.
? Não ? disse ela. ? Pense em outra coisa que não seja pessoas.
? Aveia? ? disse ele distraidamente. ? Uma caixa tamanho família de mingau de aveia instantâneo? Uma assinatura da revista do jóquei clube? Montes e montes de feno?
? Nós não vamos deixar que pessoas morram, então desista, está bem?
Ela já estava ficando cansada das idéias de Corny.
Kaye apostava que o nome completo de Roiben seria um preço justo. Apesar de tudo, aquela coisa provavelmente não fazia parte de nenhuma corte, estando presa àquele riacho. Ela apostava que, mesmo assim, ele acharia essa uma troca equilibrada. E isso não mudaria o fato de que ela também continuaria sabendo o nome dele.
Essa seria uma boa vingança pela morte de Gristle.
Mas, então, ela se deu conta de que o Cavalo das Águas apenas ordenaria que ele trouxesse mais pessoas para serem afogadas. E Roiben atenderia a esses desejos.
O que mais ela poderia barganhar que interessasse ao Cavalo das Águas?
Pensou nas bonecas em seu quarto, mas tudo que conseguia imaginar era alguma garotinha seguindo o rastro delas pelo riacho. Idem para qualquer tipo de instrumento musical. Precisava pensar em algo que o Cavalo das Águas pudesse desfrutar sozinho... Roupas? Comida?
Então ela pensou em algo... Uma companhia. Uma companhia que jamais pudesse ser afogada. Alguma coisa com que o Cavalo das Águas pudesse falar e a que admirar. O cavalo do carrossel.
? Corny! ? disse Kaye. ? Sei exatamente do que precisamos!


Voltar para o carro era a última coisa que Kaye queria, mas ela o fez, escorregando para o banco de trás, apertando a camiseta contra a boca para que o tecido filtrasse o ferro que pairava no ar.
? Você sabe para onde estamos indo, certo? ? perguntou ela, imaginando se ele poderia entender as palavras dela, que saíram abafadas graças ao tecido.
? Sei.
Ela deixou que a cabeça escorregasse pelo banco de plástico, uma das asas encolhidas fora do seu campo de visão, enviando as cores do arco-íris difusamente luminescentes através da membrana fina para dançar na perna dela sobre cada raio de luz pelo qual eles passavam. Não havia nenhum Corny no banco da frente, nenhum rap tocando no rádio, nenhum carro passando, nenhuma casa, nenhum shopping, nenhuma coisa real para protegê-la dos desenhos brilhantes que se formavam em suas coxas verde-grama.
Não havia palavras que pudessem descrever o que ela sentia, nenhum som, nada. Não havia palavras para designar o que ela era, nenhuma explicação que resgatasse a ignorância adormecida e muda. Sentia que a tontura ameaçava dominá-la.
? Você poderia abrir a janela, por favor? ? perguntou ela. ? Não estou conseguindo respirar.
? O que há de errado com você?
Ela se curvou na beirada do banco e esticou as mãos para a frente do carro, com as palmas viradas para cima, como uma pedinte.
? Toda vez que toco nos puxadores, elas queimam. Veja. ? Kaye estendeu as mãos para ele e Corny pôde ver que parte delas estava avermelhada. A menina sacudiu os dedos. ? Isso foi obra do puxador da porta.
? Merda. ? Corny respirou fundo, mas não dava ares de quem iria desistir de ajudar Kaye. Ele girou a manivela e abriu a janela dele.
O sal contido no ar limpava a garganta de Kaye a cada lufada que entrava pela janela aberta, mas isso não era suficiente para combater a náusea crescente.
? Preciso sair desse carro!
? Já estamos quase lá. ? Corny parou num sinal vermelho.
Ele estacionou o carro do lado de fora do grande edifício. Era estranho vê-lo à luz do dia. O céu nublado fazia com que o exterior parecesse ainda mais sujo.
? Você está bem? ? perguntou Corny, virando a cabeça para vê-la no banco de trás.
Kaye balançou a cabeça. Ia vomitar, ali mesmo, em cima de latas de soda e caixas de fast food amassadas. Colocou as mãos nos bolsos do moletom e abriu a porta.
? Kaye! O que você está fazendo?
Ela meio que caiu, meio que rastejou no asfalto do estacionamento e se arrastou pela grama antes de começar a vomitar. Havia pouco em seu estômago, e a maior parte do que expeliu era composta de ácido e saliva.
? Meu Deus! ? Corny se agachou junto a ela.
? Estou bem ? informou Kaye, se erguendo, zonza, e ficando de pé. Foi culpa de todo aquele metal.
Ele balançou a cabeça, olhando ceticamente para trás, na direção do carro, e depois para a paisagem ao redor.
? Talvez devêssemos esquecer essa história.
Kaye respirou fundo.
? Não. Vamos.
Ela correu pelo lado oposto, seguindo a calçada por onde andara com Janet.
? Me dê a sua jaqueta ? pediu ela para Corny. ? Tem vidro aqui.
Tudo era diferente à luz do dia.
Subiram as escadas e lá estava ele. Naquele momento parecia muito mais encardido, tanto que ela teve que dar uma boa olhada para reconhecê-lo, mas, ainda assim, era bonito. A cor creme de seus flancos estava mais próxima ao marrom, e a crina dourada estava praticamente apagada. Os lábios eram entalhados no que Kaye pensou ser um leve sorriso de escárnio, e ela sorriu ao vê-lo.
Juntos, eles arrastaram o cavalo pelo chão em direção às escadas. Durante a descida, a maior parte do peso pendeu para Corny, enquanto eles o carregavam lentamente para baixo. O espaço era quase que insuficiente.
Lá embaixo, Kaye passava uma perna, depois a outra, pelo umbral da janela enquanto Corny empurrava cuidadosamente o cavalo através dela.
Do lado de fora, Corny começou a entrar em pânico. O cavalo não cabia, de jeito nenhum, na parte de trás do carro. Pior, a mala estava cheia de caixas cheias de livros velhos e ferramentas esquisitas.
? Alguém vai nos ver!
? Temos que arranjar um jeito de amarrar isso no teto do carro.
? Merda! Merda! Merda! ? Corny enterrou a cabeça no interior da mala e surgiu com um único pedaço de corda, dois sacos de plástico e alguns barbantes.
? Esse barbante é muito fino ? disse Kaye ceticamente.
Corny torceu a corda ao redor do pescoço da criatura de madeira e, depois, passou-a pelo corpo do cavalo e pelo lado de dentro do carro.
? Entre pelo outro lado. Corra antes que alguém nos veja.
Ele arremessou o barbante para Kaye e ela o passou por toda a extensão do corpo do cavalo antes de jogá-lo de volta para ele. Corny o prendeu com um nó.
? Tudo bem. É o melhor que podemos fazer. Vamos dar no pé.
Corny pulou para dentro do carro e Kaye deu a volta e entrou, envolvendo a mão com a jaqueta dele para fechar a porta. Ele acelerou, pisando no acelerador com tanta força que os pneus cantaram.
Kaye tinha a impressão de que todos os carros que se aproximavam da traseira deles eram da polícia ou que o cavalo iria se desprender e ser arremessado na estrada ou atingir outro carro. Mas eles conseguiram fazer todo o caminho de volta mantendo-o unido à carroceria do carro.
Eles estacionaram o carro na margem da estrada e arrastaram o cavalo de carrossel pela floresta até o riacho.
? É bom que aquela coisa goste disso aqui. Vou ficar detonado por uma semana de tanto carregar essa droga.
? Ele vai gostar.
? E eu ainda vou ter de desamassar a capota do carro, que está achatada bem no meio.
? Eu sei. Eu ajudaria você se pudesse tocar em metal, está bem?
? Estou apenas dizendo. É melhor que aquela coisa goste desse troço.
? Ele vai gostar.
Eles colocaram o cavalo sem as pernas na margem lamacenta, ajeitando-o de forma que ficasse relativamente de pé sem que precisassem segurá-lo. Kaye procurou por outra folha e Corny tirou o canivete do bolso sem que ela pedisse.
? Não precisa. Vou só tirar a casquinha da ferida causada pelo outro corte.
Ele fez uma careta, mas não disse nada.
? Cavalo das Águas ? chamou Kaye, deixando que a folha caísse no riacho. ? Tenho algo de que você pode gostar.
O cavalo se elevou das profundezas e observou o cavalo de carrossel aleijado por um longo momento. Relinchando, ele cavalgou até a margem.
? Não tem pernas.
? É bonito mesmo assim ? disse Kaye.
O Cavalo das Águas caminhou ao redor da estátua de madeira, farejando como se estivesse avaliando o objeto.
? É até mais belo, eu acho. Coisas mutiladas são sempre mais bonitas.
? São as imperfeições que revelam a beleza.
Kaye deu uma risadinha. Ela conseguira. Realmente conseguira.
? Então você vai me ensinar?
A criatura olhou para Kaye e mudou de forma. Onde estava antes, agora havia um homem de pé, ainda pingando e com o cabelo emaranhado cheio de folhas de junco. Ele olhava de Kaye para Corny.
? Para ela eu ensinarei, mas você deve fazer meu tempo valer a pena se quiser que eu lhe ensine também. Venha e sente-se perto de mim.
? Nada vale isso ? disse Kaye.
O Cavalo das Águas em forma de homem sorriu, mas os olhos dele estavam voltados para Corny enquanto traçavam mentalmente uma linha no peito dele. A respiração do rapaz se tornou arfante.
? Não ? falou Corny tão baixo que foi difícil ouvir sua voz.
Então a criatura se transformou de novo, a energia sinuosa se movimentava em espirais até Kaye estar olhando para si mesma.
? E então, está pronta para começar? ? falou o Cavalo das Águas com a voz de Kaye e com uma boca idêntica à dela. Mas, em seguida, um sorriso, que não se parecia nem um pouco com o da menina, fez com que os lábios se curvassem dissimuladamente:
? Tenho muito para ensinar para você. E fará bem para o menino ouvir o que tenho a dizer. A magia não é um campo de conhecimento exclusivo dos predestinados.
? Achei que você tinha dito que ele teria de fazer valer a pena o seu tempo.
? O medo dele já faz valer alguma coisa, por enquanto. Eu admito muito pouco consolo. ? O Cavalo das Águas olhou para ela com os mesmos olhos pretos que pertenciam a ela e Kaye observou aqueles lábios, tão parecidos com os dela, sussurrarem:
? Faz tanto tempo desde que descobri o que era caçar.
? Como assim? ? perguntou Kaye, afrontando-se.
? Nós, que não somos aqueles que ditam as regras, devemos obedecer aos que o fazem. Mortais são um divertimento para a nobreza e não para seres como eu e você. A não ser, é claro, que eles o desejem.
Kaye inclinou a cabeça, ponderando as palavras do Cavalo das Águas.
? Você sabe como é a sensação de se construir energia mágica? ? perguntou ele. ? É como levar uma picada. Junte suas mãos em concha e se concentre em construir energia dentro delas. Qual é a sensação?
Kaye uniu as mãos como o Cavalo das Águas havia ordenado e imaginou que o ar que passava por elas se tornava mais denso e bruxuleante devido à energia. Após um momento, ela olhou para cima, surpresa.
? A sensação é a mesma de quando as mãos ficam dormentes e se tenta mexê-las. Parece uma picada, como você disse, como se elas estivessem levando pequenos choques. Dói um pouco.
? Movimente a energia de um lado para o outro em suas mãos. Assim, você irá sentir a magia em seu estado bruto, pronta para se tornar o que você quiser.
Kaye assentiu, aninhando a energia, que parecia um punhado de urtigas, deixando que um pouco escorresse pelos dedos abertos. Aquele era um sentimento do qual ela se lembrava, às vezes ele serpenteava pelas suas entranhas ou sentia o mesmo tipo de pontada nos lábios, antes de alguma coisa estranha acontecer.
? Agora, como você pode completar a construção da energia? O que você faz?
Kaye balançou levemente a cabeça.
? Eu não sei... Simplesmente a imaginei e fiquei olhando para minhas mãos.
? Você imaginou a energia. Esse é o mais fácil dos sentidos. Agora você deve aprender a ouvi-la, cheirá-la, sentir o sabor dela. Só então sua magia se tornará real. E seja cuidadosa, às vezes um encanto simples pode ser visto, nem que seja de relance, por outra pessoa. ? A criatura piscou os olhos.
Kaye assentiu.
? Quando você faz magia, há dois estágios: foco e renúncia. A renúncia é a parte que a maioria não entende. Para fazer magia, você deve se focar no que deseja fazer e então deixar com que a energia flua, acreditando que ela irá cumprir suas ordens. Feche os olhos. Agora imagine que a energia está envolvendo você. Imagine, por exemplo, um anel num de seus dedos. Acrescente detalhes a ele. Imagine o ouro do aro e então pense na pedra preciosa, a clareza dela, a maneira como reflete a luz... Certo. É exatamente assim que deve ser feito.
Os olhos da menina se abriram, confusos, quando Corny gritou com a voz entrecortada:
? Kaye! Tem mesmo um anel no seu dedo. Um anel imaginário de verdade. Eu posso vê-lo.
Kaye abriu os olhos e lá estava ele, em seu dedo indicador, exatamente como o havia imaginado, a prata modelada na forma de uma garota com uma esmeralda brilhante cravada na boca aberta. Ela o virou contra a luz e, mesmo sabendo que o anel era fruto de sua magia, ele era sólido como uma pedra.
? E sobre desfazer... coisas? ? perguntou Kaye.
O Cavalo das Águas jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, os dentes brancos resplandecendo mesmo na escuridão.
? O que você fez?
? Joguei um feitiço em um pessoa para que ela... gostasse de mim ? disse Kaye em voz baixa. Corny olhou para ela, surpreso e um pouco chateado. Ele não ficaria nada feliz em saber que havia outra parte da história que ela não havia lhe contado.
O Cavalo das Águas deu uma risadinha e estalou a língua:
? Você deve remover o encantamento do rapaz da mesma forma com que você faria para desfazer uma ilusão. Sinta a teia de sua magia, entenda-a e dê cabo dela. Pratique com o anel.
Kaye se concentrou, deixando que a energia rodopiasse ao seu redor, sentindo-a correr através de seu corpo. A cada batida de seu coração, parecia que a energia iria voltar para seu ponto de origem.


Eles estavam voltando de carro quando Kaye apontou para o monte.
? Olhe aquelas luzes. Imagine quem é que está ali.
? Não estou vendo nada. ? Corny lançou-lhe um olhar cortante pelo retrovisor.
O monte do cemitério era um morro com declives bastante acentuados e um precipício que podia ser visto da rodovia. Este lado do monte não apresentava nenhuma cova ou tumba, e no inverno as crianças podiam escorregar alegremente com seus trenós e deixar luvas perdidas e cachecóis nos monumentos. Um mausoléu, cuja construção fora abandonada pela metade, se erguia na base de um dos lados onde a inclinação era menos acentuada. Com dois andares, mas sem telhado, o topo estava tomado por árvores menores do que o habitual e por trepadeiras demasiadamente crescidas. Havia dezenas e dezenas de monumentos, tumbas e lápides erigidas naquele lado do monte.
? Você acha que a corte Indigna pode ser aqui? ? perguntou ela suavemente.
? Eu quero ver isso.
Ele dirigiu em direção à entrada do cemitério.
Estacionaram junto ao caminho de pedras revolvidas. Ela olhou fixamente através do pára-brisa traseiro enquanto esperava que Corny desse a volta ao redor do carro para abrir a porta para ela, e viu luzes que se agitavam em movimentos rápidos.
? Essas luzes são definitivamente fadas ? disse Kaye.
? Não consigo ver nada. ? Havia um traço de pânico na voz de Corny.
Kaye seguiu as luzes, observando-as enquanto se ofuscavam e giravam, mantendo a distância exata para que a menina não pudesse vê-las com clareza. Ela apressou o passo, as botas agarravam na grama enrijecida pelo congelamento. As luzes estavam tão perto que Kaye só precisou fazer um pequeno esforço para agarrar uma delas no ar...
? Kaye! ? chamou Corny e ela se virou. ? Porra! Não me deixe para trás, fazendo com que eu seja obrigado a passar o resto da minha vida imaginando que não passo de um belo de um estúpido.
? Não estou deixando você! Estou tentando agarrar uma dessas coisas.
De repente, houve uma impossível explosão de vaga-lumes, que voavam em disparada para dentro e para fora das árvores. Já devia ser muito mais de meia-noite e, de qualquer forma, o outono já estava muito avançado para que houvesse vaga-lumes, as baixas temperaturas da estação e a chuva recente tornaram a grama debaixo dos pés deles rígida graças ao gelo. Mas os insetos voavam ao redor de Corny e Kaye, cada um deles brilhava por um longo tempo, depois desaparecia, brilhando novamente em seguida. Eles eram pequenas criaturas aladas, até mesmo menores do que aquelas que ela havia alcançado antes. Um deles passou rapidamente perto de Kaye e mostrou os dentes.
Kaye fez um som estridente.
? O que foi? ? perguntou Corny.
? Não são insetos... mas sim fadas minúsculas e asquerosas.
Ele soltou a mão de Kaye e apanhou uma delas, apesar dela ter conseguido fugir das garras dele.
? Não consigo enxergar nada. Essas coisas... são as mesmas que você viu da estrada?
Ela balançou a cabeça.
? Não. Aquelas luzes eram maiores.
Ele se abaixou, a respiração saía de seus lábios como baforadas de vapor branco.
? Você pode vê-las agora?
Ela chacoalhou a cabeça mais uma vez.
? Lutie falou algo a respeito de a abertura ficar num local onde a grama era marrom, mas praticamente o morro inteiro está coberto por grama dessa cor.
? Talvez esse trecho esteja sem nenhum tipo de vegetação agora.
Kaye se ajoelhou ao lado de Corny e encostou a orelha no solo. Havia uma música longínqua.
? Ouça. Você é capaz de ouvir isso.
Ele se moveu para perto dela, colocando, também, a orelha contra o chão.
? Música ? disse ele. ? Parece vir de flautas.
? É bonito. ? Kaye sorria antes de se lembrar de que aquele não era um bom lugar para eles tentarem entrar.
? Vamos dar uma volta ao redor do monte e procurar por algum pedaço de grama que pareça estranho. Corny se pôs de pé e ficou esperando que Kaye começasse a andar.
O cemitério estava fantasmagoricamente calmo. A lua estava, para falar a verdade, mais cheia e gorda do que na última vez que Kaye a contemplara. Parecia sobrenatural, como se fosse algo inchado no céu, e a menina pensou novamente no sol sangrando até a morte enquanto a lua crescia, intumescente com sua luz devoradora.
Todas novas, as lápides de granito estavam polidas como um reluzente espelho sobrenatural que refletia os rostos de Kaye e Corny quando estes passavam diante delas. Os marcos mais antigos eram de um mármore pálido e leitoso, com manchas de grama e sujeira lavadas pela luz da lua. Pálidos como o cabelo de Roiben.
? Ei, o que é isso aqui? ? Corny apontou para um pedaço de grama que parecia ter um tom diferente de marrom.
Ajoelhando-se sobre a grama, Corny puxou para trás uma das extremidades do trecho que havia indicado como se fosse a entrada de um alçapão. Corny se inclinou como se estivesse prestes a entrar.
? Não ? interrompeu-o Kaye. ? Tenho de entrar aí sozinha.
? Eu quero fazer isso ? insistiu Corny. ? Você disse que não me deixaria para trás.
? Talvez. Se você for, acabará tornando as coisas menos seguras para mim. E eu voltarei assim que puder. ? Kaye oscilou o corpo para passar pela entrada. ? Eu prometo.
Então, a música parecia mais alta, o som de flautas e de risos se espalhava pela noite calma. Kaye ouviu Corny dizer: "Você sempre tem que ficar com toda a parte divertida", enquanto tentava acompanhar a música que vinha lá de dentro.











7


"Ouvindo o grilo aprisionado
Gorjear seu terrível disfarce
Música no monte de granito" (

? LOUISE BOGAN
Men Loved Wholly Beyond Wisdom



Ela escorregou para dentro da fenda no interior do monte.
O próprio ar parecia denso, com um aroma doce, e respirar era desconcertante.
Mesas longas e baixas estavam abarrotadas com pêras douradas, castanhas, rolos de pães encharcados de leite amanteigado, romãs cortadas em quatro partes, pétalas de violeta em pratos de cristal e todo o tipo de iguaria delicada e estranha. Cálices amplos e prateados com um formato semelhante ao de um sapo estavam postos sobre as mesas, longos e emborcados na mesma proporção. Fadas idosas vestidas de escarlate jogavam charme para homens com trapos rasgados e bajuladores dançavam com velhas enrugadas.
Foliões dançavam e cantavam, bebiam e desmaiavam. Os trajes eram de estilo medieval, variados e completamente diferentes uns dos outros. Pareciam mais terem saído de alguma coleção de alta-costura orgânica e louca. Colares se elevavam como grandes barbatanas. As roupas eram inteiramente compostas de pétalas ou folhas. Barras rasgadas arrematavam vestidos adoráveis. Horrendos, estranhos ou adoráveis como a Lua, nenhum daqueles trajes era simples.
? A corte Indigna ? disse ela em voz alta. Ela havia esperado mais do que aquilo, uma caverna, talvez, repleta de ossos humanos roídos e fadas aprisionadas. Algo simples. Ao olhar para aquela multidão de foliões, ela não sabia o que pensar.
O próprio salão era imponente, tão grande que Kaye não estava certa do que havia do outro lado. Mais afastado, na extremidade oposta da sala, um ser que mais parecia um gigante, tinha desabado perto de um tablado. Cada passo parecia empurrá-la para uma nova direção, cheia de esplendores. Um violinista estava tocando um insólito instrumento, com diversos braços e tantas cordas que o músico tinha de passar seu arco por elas com selvageria. Uma mulher de nariz comprido, coberta de sardas e com orelhas que pareciam as de um chacal, fazia malabarismo com pinhas. Três homens com cabelo vermelho e duas fileiras de dentes de tubarão pescaram suas capas do meio de uma pilha de cadáveres, torcendo-as para retirar o sangue. Uma criatura imensa, com asas de morcego e membros que pareciam pernas de pau estava em cima de uma mesa e tomava às lambidelas uma espécie de creme contido em uma tigela de cobre batido como se fosse um cachorro. Ele rosnou para Kaye quando ela cruzou seu caminho.
Acima de todos eles, o teto abobado era decorado com afrescos feitos de raízes penduradas.
Kaye pegou um cálice de uma das mesas. Ele era ornamentado e muito pesado, mas parecia limpo. Ela se serviu de um líquido fluido e avermelhado que estava em uma jarra de prata no centro da mesa. Pequenas sementes flutuavam na superfície, mas o cheiro da bebida era agradável e não totalmente estranho, então, ela tomou um gole. Era ao mesmo tempo doce e amargo, e logo subiu à cabeça dela, tanto que, por um momento, Kaye foi obrigada a se segurar na mesa para não cair.
Kaye pegou uma maçã prateada da pilha de frutas estranhas e espinhosas, examinou-a rodando-a nas mãos, e cuidadosamente deu uma mordida. O interior da fruta era carmim e o sabor se assemelhava ao de um mel aguado. Era tão gostosa que Kaye a comeu inteira, até o caroço, e ainda lambeu o suco que escorria por sua mão. A fruta seguinte era marrom e parecia estar podre quando ela a mordeu, mas, ainda assim, a carne era granulada e o gosto era como o de um licor, ardente e doce.
Kaye sentiu uma tonteira contagiante tomar conta de seu ser. Ali, nada do que fazia era estranho. Ela podia rodopiar, dançar e cantar.
De repente, Kaye se deu conta do quanto havia avançado em meio à multidão. Dera tantos volteios que não tinha mais sequer idéia da direção em que se localizava o caminho de volta.
Kaye vagarosamente tentou retraçar seus passos. Três mulheres passaram por ela, suas vestes prateadas esvoaçavam como uma névoa fina. O corte baixo dos vestidos idênticos deixava as costas encurvadas das mulheres à mostra. Ela olhou novamente, mas as costas côncavas delas eram tão lisas e vazias quanto tigelas. Kaye se forçou a continuar andando. Um homem baixo ? seria um anão? ? com braceletes prateados intricados e cachos negros que iam até a altura dos ombros, olhou para ela com malícia enquanto mordia um abricó.
Cada momento se tornava mais irreal. Um menino alado saltou por cima dela dando risadinhas:
? Você cheira a ferro. ? Ele estendeu um dos dedos e cutucou a cintura de Kaye.
Ela fugiu precipitadamente das mãos dele indo em direção a um coro de gargalhadas. Os olhos de Kaye se focaram no pálido verde gafanhoto das asas de inseto atadas às costas do menino.
Kaye foi abrindo caminho pela multidão, desviando-se de dançarinos, tendo de realizar movimentos bruscos em complexos círculos entrelaçados. Desviou-se também de uma mão com garras que prendeu seu tornozelo por debaixo da pesada toalha escarlate de uma das mesas, localizada logo depois do que parecia um orgiástico jogo de xadrez vivo.
Um sátiro com barba encaracolada e chifres de marfim estava encurvado cuidadosamente, arrancando as asas de uma pequena fada presa em suas mãos carnudas. A coisinha gritava, batendo sua outra asa tão depressa quanto um beija-flor contra os dedos que a aprisionavam. Sangue de cor verde pálida escorria pela mão do homem-bode. Kaye parou, chocada e cheia de nojo ao ver o sátiro jogar a criaturinha para o ar. Ela voou em círculos desesperados, descendo em espirais até o chão de barro.
Antes que Kaye pudesse chegar mais perto e pegar a fada, uma das botas do homem a esmagou, transformando-a em poeira.
Kaye cambaleou para trás, empurrando as pessoas para longe em sua pressa de fugir dali. Movendo-se angulosamente pela multidão, pensou na própria estupidez que fez com que fosse até ali. Essa era a corte Indigna. Era ali onde os piores indivíduos do Mundo das Fadas iam para beber até cair.
Três homens vestindo roupas com abas verdes brilhantes e cujos braços e pernas eram longos e magros como cabos de vassoura estavam empurrando um garoto com olhos de coelho e pernas de gafanhoto entre eles. O garoto se encurvava cautelosamente como se fosse pular, mas em nenhuma de suas tentativas contava com uma agarrada ou um empurrão súbitos.
? Deixem-no em paz ? disse Kaye avançando na direção deles. O menino lhe lembrava muito Gristle para que ela pudesse ficar apenas observando.
Os homens viraram os olhos para ela. Todos eles eram idênticos. O garoto tentou escapulir por entre eles, mas um dos magrelos lhe deu uma chave de braço.
? O que é isso? ? perguntou um deles.
? Eu lhe dou algo em troca dele ? disse Kaye, revirando sua mente em busca de um plano.
Um dos homens reprimiu o riso e outro sacou uma pequena faca com uma empunhadura de marfim e uma lâmina de metal que fedia a ferro puro. O terceiro enrolava a mão nos cabelos do menino, fazendo com que a cabeça dele se inclinasse para trás.
? Não! ? gritou Kaye quando a adaga de ferro golpeou o olho esquerdo do garoto. A órbita estourou como uma uva, e um líquido claro e sangue corriam pela face dele enquanto ele gritava. A carne sibilava nas regiões onde o ferro havia encostado.
? É muito melhor quando se tem platéia ? falou um dos homens esquálidos.
Kaye deu um passo para trás, procurando algo na mesa próxima com que pudesse atacá-los, achando apenas um cálice. Ela o ergueu como se fosse uma pequena clava, sem ter certeza de como o usaria.
Um dos homens esquálidos arrastou a lâmina de ferro ao longo da pele do rosto do menino, descendo até o pescoço, enquanto ele tremia e gritava, seu olho sadio rolando fracamente na órbita. O ferro havia deixado uma fina linha vermelha por onde passara, a pele borbulhava em vergões brancos.
? Vai salvá-lo, bonequinha? ? debochou outro dos homens esqueléticos de Kaye.
As mãos dela tremiam e o cálice não parecia nada além de algo pesado em suas mãos, que, com certeza, não serviria como arma.
? Nós não vamos matá-lo ? disse o homem que estava segurando o cabelo do menino.
? Estamos apenas fazendo um pouco de carinho nele ? interpôs o que empunhava a faca.
A fúria cresceu dentro de Kaye. O cálice voou da mão dela e atingiu o ombro do homem com a faca, manchando o casaco dele com gotas do vinho antes de cair ineficazmente no chão sujo, onde rolou em círculos impotentes.
Um dos homens deu uma gargalhada e outro investiu na direção dela. Kaye se esquivou se misturando à multidão, empurrando para longe uma mulher elegante e caminhando de lado.
Então ela parou de repente. Semi-escondido por três criaturas com pele de sapo acocoradas sobre um jogo de dados, estava Corny.
Ele estava inclinado contra uma mesa virada de cabeça para baixo, um cálice pendia de sua mão. Ele balançava para a frente e para trás com os olhos fechados. Uma poça de vinho empapava as calças dele, mas Corny parecia não notar.
O salão estava tão lotado de foliões que Kaye se sentia como sardinha em lata, tanto que teve de se refugiar debaixo da mesa.
? Corny? ? chamou Kaye, sua respiração estava pesada.
Ele estava bem na frente dela, mas parecia não vê-la.
Kaye o sacudiu.
Corny finalmente percebeu a presença da menina e olhou para ela de relance. Ele parecia bêbado ou pior que isso: como se estivesse bêbado havia anos.
? Eu conheço você ? disse Corny com grosseria.
? Sou eu, Kaye.
? Kaye?
? O que você está fazendo aqui?
? Eles disseram que isso não era para mim.
? O que não era para você?
A mão que segurava o cálice se movimentou debilmente.
? O vinho?
? Não era para mim. Então eu bebi. Eu quero tudo que não é para mim.
? O que aconteceu com você?
? Isso ? disse ele e contorceu a boca em algo que poderia ter sido um sorriso. ? Eu o vi.
Ela olhou rapidamente para a multidão.
? Quem?
Corny apontou na direção de uma plataforma mais elevada onde fadas altas e pálidas conversavam e bebiam em cálices prateados.
? O seu carinha. Robin do cabelo branco. Pelo menos eu acho que era ele.
? O que ele estava fazendo?
Corny balançou a cabeça. Ela pendia molemente do pescoço dele.
? Você vai passar mal? ? perguntou Kaye.
Corny olhou para ela e sorriu.
? Eu estou passando mal.
Ele começou a cantar "King of Pain", suavemente e fora do tom. Os olhos estavam focados no nada e ele esboçava um sorriso, uma das mãos brincava preguiçosamente com um dos botões da camisa. Parecia que estava tentando reabotoá-lo. "There's a king on a throne with his eyes torn out. There's a blind man looking for a shadow of doubt. Oh-oooh, king of pain. I will always be, king of pain." ?
? Eu vou procurá-lo ? disse Kaye.
Ela olhou para Corny, que estava murmurando, esfregando o interior do cálice com um dedo que depois levava até os lábios.
? Espere por mim aqui, está bem? Não vá a lugar nenhum.
Ele não lhe deu nenhuma resposta, mas, de qualquer forma, Kaye tinha dúvidas se ele estava em condições de ficar de pé. Ele parecia definitivamente acabado.
Kaye misturou-se novamente à multidão, caminhando na direção em que Corny havia apontado.
Uma mulher com o cabelo cor de carmim penteado em grossas tranças se sentou em um trono alto cujas arestas se transformavam em pontas afiadas e agulhas gastas. A madeira com que era feito estava carcomida de ponta a ponta, permeada por buracos de cupins, o que lhe dava a aparência de uma treliça. Aos pés da mulher, gnomos faziam piruetas.
Roiben caminhava em direção ao trono e se ajoelhou, apoiando-se em um dos joelhos.
Kaye teve de chegar mais perto. Não estava conseguindo enxergar. Foi então que reparou que havia uma pequena reentrância na parede, onde ela poderia se esconder, permanecendo perto o suficiente para observar o que iria acontecer. Ela podia assistir e tentar achar uma maneira de fazer com que Roiben se arrependesse do que havia feito.


Rath Roiben Rye andou através da multidão, passando por uma mesa onde uma fada se contorcia, de prazer ou de pavor, nos braços de um ogro. O velho Roiben com certeza teria parado. A espada prateada ainda estava na cintura dele, mas sua Senhora o esperava e o cavaleiro aprendeu a ser um escravo obediente e continuou seu caminho.
Lady Nicnevin, rainha da corte Indigna, estava rodeada por seus cortesãos. Cabelos cor de sangue esvoaçavam ao redor de um rosto branco cravejado com um par de olhos de safira, e Roiben se pegou mais uma vez paralisado pela beleza gélida da rainha. Quatro gnomos faziam travessuras ao lado dela. Um deles se agarrava e dava puxões na saia de lady Nicnevin como uma criança que está aprendendo a andar. Rath Roiben Rye deixou-se cair de joelhos e curvou a cabeça de forma que seu cabelo de peltre chafurdou no chão. Ele beijou a terra em frente a ela.
Roiben não queria estar ali naquela noite. O peito ainda doía, e ele não queria nada, exceto deitar-se de olhos fechados. Mas, quando suas pálpebras se fechavam, tudo que via era o rosto de uma garota humana, repleto de choque e horror quando ele a derrubou no chão sujo de uma lanchonete.
? Pode se levantar ? disse a rainha. ? Aproxime-se. Tenho uma tarefa para você.
? Sou todo seu ? disse Rath Roiben Rye, limpando a terra de seus lábios.
Ela esboçou um sorriso.
? É meu mesmo? E você serve a mim tão bem quanto servia à minha irmã?
Ele hesitou antes de responder:
? Melhor até, talvez, pois a senhora sempre me submete a provas cada vez mais difíceis.
O sorriso sumiu do rosto dela.
? Você está zombando de mim?
? Perdão, lady. Não quis desdenhar da senhora. A questão é que as tarefas que a senhora me designa raramente são agradáveis.
Ela riu ao ouvir isso, a gargalhada fria como a prata brotou de sua garganta como corvos alçando vôo.
? Você não fala a língua da cortesia, cavaleiro. Mas, mesmo assim, eu ainda acho que você me agrada. Por que isso?
? Diversão, milady? ? arriscou ele.
Os olhos dela estavam duros e molhados, mas seu sorriso não exibia qualquer tipo de amabilidade.
? Certamente sabedoria é que não é. Erga-se. Concluo que devo agradecer a uma menina mortal por sua presença aqui hoje.
O rosto de Roiben assumiu uma expressão séria enquanto ele se levantava. Assim, ele não deixaria que sua surpresa transparecesse.
? Eu fui imprudente.
? Que boa garota ela deve ser. Conte-nos a respeito dela. ? Alguns poucos membros da nobreza Indigna que prestavam atenção ao que ela dizia sorriram abertamente, observando aquele jogo como se Roiben e a rainha fossem duelar.
Ele estava sendo cauteloso, tomando muito cuidado para esconder a perplexidade que parecia querer se estampar em seu rosto. A voz precisava ser branda, as palavras não deveriam parecer meticulosamente calculadas.
? Ela disse que era conhecida das fadas independentes. E tinha a Visão. Uma garota esperta e gentil.
A rainha riu ao ouvir isso.
? Não foram as fadas independentes que atiraram em você, cavaleiro?
Ele assentiu com um movimento de cabeça, sem conseguir esconder a sombra de sorriso que lhe brotava no rosto.
? Suponho que eles não estejam tão fortemente unidos, milady.
Roiben podia perceber que ela não havia gostado disso.
? Tenho uma idéia, então ? disse a rainha, levando um dos dedos delicados até os lábios sorridentes. ? Traga-nos a menina. O pagamento do Tributo pelas fadas independentes irá cimentar a lealdade deles. Uma garota jovem dotada da segunda visão seria uma excelente candidata.
? Não! ? Roiben soltou um grito agudo, uma ordem, e as cabeças dos cortesãos se voltaram para a direção do som. Ele sentiu a bile subir-lhe pela garganta. Aquilo não havia sido inteligente. Ele não estava sendo nada inteligente.
O sorriso de lady Nicnevin fez com que os lábios dela se encurvassem triunfantes.
? Devo ressaltar que, já que eles conhecem a garota, ela será a presa perfeita para fazer com que as fadas independentes se lembrem de que não devem quebrar meus brinquedos. ? Ela não mencionou o surto de Roiben.
Havia escárnio naquele termo que a rainha havia utilizado para se referir a ele. O brinquedo dela. Entretanto, Roiben mal ouviu o que ela disse. Ele já podia ver a morte da menina. Os lábios dela o amaldiçoando com seu verdadeiro nome.
? Deixe que eu lhe encontre outra menina ? ouviu-se dizendo. Uma vez que sua senhora achara divertido discutir com ele, não custava nada tentar convencê-la a achar uma inocente para tomar o lugar de outra inocente.
? Acho que não. Traga-me a garota daqui a dois dias. Pode ser que depois que a veja eu reconsidere. Nephanael acabou de chegar da corte de minha irmã com uma mensagem. Talvez ele possa ser persuadido a ajudar você a encontrá-la.
O olhar de Roiben oscilou na direção do outro cavaleiro, que aparentemente estava falando com uma poeta com patas de cabra e ignorava a conversa entre ele e a rainha. Roiben se sentiu enjoado apenas ao olhar para a argola de ferro queimando na testa dele. Diziam que mesmo quando ele a removesse, a cicatriz ressequida iria atravessar profundamente sua carne, deixando uma marca negra. O cavaleiro usava um manto com fileiras de espinhos. Roiben tinha sua pequena vingança contra a corte Digna na forma de Nephanael. Ele havia percebido a frequência com que essa corte enviava seu novo cavaleiro de volta à corte Indigna para uma ou outra missão simples.
Ele se inclinou suficientemente baixo para que os joelhos e a testa tocassem o solo, mas a atenção dele ainda estava em outro lugar.
Roiben andou pela multidão, passando pela mesa onde havia visto o ogro. Nada restava do casal salvo três gotas de sangue cor de cereja e o pó brilhante das asas da fada.
Os juramentos que fizera o cortavam como um arame fino.


Kaye observou Roiben abandonar a plataforma com seu andar imponente, lutando contra os sentimentos que pareciam estar prestes a dilacerar sua garganta. Uma garota esperta e gentil. Essas palavras simples fizeram com que o coração dela disparasse de uma forma que não lhe agradava nem um pouco.
Será que ele sabia que a própria voz havia se tornado mais suave quando falou a respeito dela?
Ele é tão imprevisível que nem mesmo sua rainha pode confiar nele. Esse cavaleiro poderia tanto agir com gentileza com você quanto ser capaz de matá-la.
Mas a lembrança dos lábios dele em sua pele não enfraquecia. Mesmo que esfregasse o local que ele havia beijado. Mesmo que o arranhasse.
Kaye voltou à realidade quando o outro cavaleiro se aproximou da rainha e se abaixou para beijar a bainha do vestido dela.
? Levante-se, Nephanael ? disse a rainha. ? Julgo que você tem uma mensagem para mim. ? A figura esguia de lady Nicnevin se ergueu com a mesma formalidade graciosa e cadenciada de Roiben. O cavaleiro usava uma tira de metal na testa, a pele ao redor estava escurecida, como se houvesse sido queimada. Havia algo naqueles olhos amarelos que Kaye pensou ser familiar.
? Essa é a mensagem que minha Senhora gostaria que Vossa Alteza ouvisse. ? O sorriso dele enfatizava sua deslealdade. ? Minha Senhora disse que apesar de haver uma trégua no campo da guerra, ela imagina que existam problemas no que diz respeito à influência mortal. Minha Senhora tem alguns protegidos que cruzaram as fronteiras da corte Indigna e busca um meio de lhes dar uma passagem segura por essas terras. Fui ordenado para esperar pela resposta de Vossa Alteza. Minha Senhora aparentemente não espera que eu me apresse em meu retorno. Devo confessar que é bom estar em casa para assistir ao pagamento do Tributo.
? Isso foi tudo o que ela disse?
? Na verdade, uma das cortesãs da rainha implorou para que eu perguntasse para Vossa Alteza a respeito do irmão dela. Parece que ela não tem nenhuma notícia dele desde que ele se juntou à corte de Vossa Alteza. Uma doçura, aquela menina. Cabelos brancos muito longos, tão compridos que quase se podiam ficar enroscados em uma das mechas, se assim o quisesse. Ela se parecia muito com o cavaleiro com quem Vossa Majestade acabou de falar. ? Nephanael sorriu com malícia novamente. ? Ela gostaria de saber por que Vossa Alteza nunca o usou como mensageiro.
A rainha também sorriu.
? É bom ter você novamente em casa, Nephanael. Talvez você possa ajudar nosso cavaleiro a conseguir nosso sacrifício.
? Isso será uma honra para mim. Na verdade, acho que ouvi falar a respeito de uma candidata bastante adequada. Ela até mesmo já é conhecida de um dos membros da corte de Vossa Alteza.
De repente, Kaye sentiu alguém agarrar seu braço e se virou. Ela soltou um gritinho.
? Você não deveria estar aqui. ? O tom de voz de Roiben era gélido e uma das suas mãos apertava o braço de Kaye com força.
Respirando fundo, ela encontrou os olhos dele.
? Eu só queria ouvir a rainha.
? Se algum dos outros cavaleiros perceber que você está aqui espionando, sem dúvida irá adorar fazer com que você sirva de exemplo para outros invasores. Isso não é um jogo, pixie. Esse lugar é perigoso demais para você.
Pixie? Naquele momento, Kaye se lembrou. Roiben estava vendo pele verde, olhos pretos, asas enrugadas. Ele não a conhecia ou pelo menos não sabia que a conhecia. Ela soltou a respiração que, até então, nem havia percebido que estava prendendo.
? Eu não sou problema seu ? disse ela, torcendo o braço, tentando se livrar do domínio dele. Claro que ele a deixaria ir, disse Kaye para si mesma, porém as palavras de Spike ecoavam na cabeça dela. Ela viu Roiben em um cavalo preto com olhos brancos resplandecentes, o rosto salpicado de sangue e poeira, os olhos brilhantes em frenesi, atropelando o pobre Gristle quando trombou com um arbusto.
? Sério? ? Ele não reparou que ainda a estava segurando e, na verdade, estava empurrando-a pela multidão. A partir desse ponto de superioridade, era fácil ver que as pessoas não apenas abriam caminho para Roiben, elas praticamente se jogavam umas contra as outras para isso. ? Sou espadachim de Nicnevin. Talvez você devesse se preocupar mais com o que irei fazer com você do que com o que poderia fazer.
Ela tremeu.
? E então, o que você vai fazer?
O cavaleiro suspirou.
? Nada, contanto que você abandone a corte Indigna imediatamente.
Nada? Ela não estava certa do que esperava ver no rosto dele quando o olhasse, mas não achava que encontraria aquela expressão de fadiga. Não havia ódio irradiando daqueles olhos pálidos.
Mas ela não podia ir embora e também não podia contar que tinha um amigo totalmente humano que estava dormindo, entorpecido, no outro lado do monte. Tinha de terminar com aquela encenação:
? Minha presença não é permitida aqui? Não parece que há uma lista de convidados.
Os olhos de Roiben se tornaram sombrios diante daquelas palavras, e a voz dele se tornou muito baixa:
? A corte Indigna tem prazer em receber espiões enviados pelas fadas independentes. Raramente temos voluntários para nossos divertimentos.
Naquele momento, Kaye sentiu que estava pisando em um campo perigoso. A tristeza havia ido embora e as feições dele estavam cuidadosamente inexpressivas. Ela sentiu o estômago revirar. Prazer... Nossos divertimentos. A implicação da participação dele não passou despercebida por Kaye.
? Você pode sair por aqui ? disse Roiben, indicando um túnel cujas paredes eram recobertas de terra, que não era o mesmo através do qual ela havia chegado até ali. Este estava escondido atrás de uma cadeira e parecia estar mais próximo ao gigante. ? Mas você deve ser rápida. Vá logo, antes que alguém me veja falando com você.
? Por quê? ? perguntou Kaye.
? Porque eles podem presumir que eu esteja começando a me afeiçoar a você. Então podem acabar considerando divertido ver minha expressão enquanto eu te machuco de verdade. ? O tom de voz de Roiben era frio e monótono. As palavras pareciam cair dos lábios dele como se não significassem nada, apenas palavras sendo jogadas na escuridão.
As mãos dela estavam muito geladas quando se lembrou do que aconteceu na lanchonete. Qual deveria ser a sensação de ser um fantoche? Como deveria ser observar suas próprias mãos desobedecendo a você?
A fúria cresceu dentro dela como uma nuvem negra. Não queria entender como ele podia ter matado Gristle. Não queria perdoar-lhe. E, mais do que tudo, não queria desejá-lo.
? Agora, pixie ? ordenou ele. ? Vá!
? Não sei se devo acreditar em você ? disse ela. ? Me dê um beijo. ? Se ela não conseguia parar de pensar nos lábios dele, talvez se os provasse fosse capaz de tirá-los de sua cabeça. Apesar de tudo, a curiosidade matou o gato, mas foi a satisfação que o trouxe de volta.
? Não há tempo para suas traquinagens esporádicas de pixie.
? Se quer que eu vá embora logo, é melhor andar depressa. ? Kaye estava surpresa com as próprias palavras, pensando sobre a malícia irrefletida que elas continham.
Kaye ficou ainda mais atônita quando os lábios dele colidiram contra os dela. Um choque súbito de sentimento atravessou-lhe o corpo como uma lança antes que o corpo dele se separasse do dela.
? Vá ? disse Roiben num sussurro, como se ela houvesse lhe tirado o fôlego. Os olhos dele estavam obscuros.
Kaye mergulhou através do túnel antes que fosse obrigada a pensar no que acabara de fazer. E, com certeza, antes de ter tempo de se dar conta de como aquilo não era nada parecido com uma vingança.
Lá fora, estava frio e claro. Não parecia possível, mas a noite havia passado. Uma brisa fez com que as folhas remanescentes tremessem nos galhos, e Kaye cruzou os braços para tentar conservar qualquer calor possível enquanto cruzava o monte correndo. Sabia onde se localizava o trecho de grama marrom. Era simplesmente uma questão de entrar novamente. Se ficasse apenas encostada na parede, ela pensou, seria provável que ninguém a notasse. Corny deveria estar lá e, dessa vez, ela prestaria mais atenção, marcaria a saída de alguma maneira.
A grama não estava mais marrom em uma parte do que na outra. Ela se lembrava muito bem da localização. Perto de um olmo e ao lado de uma lápide na qual estava escrito ADELAIDE. Ela caiu de joelhos e cavou, enterrando as unhas freneticamente na camada mais superficial do solo, que estava semicongelada. Havia terra e mais terra, o invólucro era duro, como se nunca houvesse existido uma passagem para um palácio subterrâneo.
? Corny ? gritou ela, mesmo sabendo muito bem que ele não seria capaz de ouvi-la das profundezas da terra.





















8


"Para a beleza nada é
mas o início do terror nós podemos apenas
suportar com dificuldade,
e o admiramos tanto porque ele calmamente despreza
para nos destruir." (

? RAINER MARIA RILKE
"The First Elegy", Duino Elegies



Corny acordou na encosta do monte ao som de sinos. Ele tremia de frio e batia o queixo, a cabeça estava pesada e confusa, e o simples ato de deslocar seu peso fazia com que o estômago dele desse uma guinada. A jaqueta não estava lá.
Estava deitado sozinho em um monte no meio do cemitério e não tinha idéia de como havia ido parar ali. Corny viu seu carro onde havia estacionado, bem ao lado da via. O pisca-alerta ainda estava ligado. Uma onda de tontura o atingiu. Ele rolou para o lado, sem forças, e vomitou.
O sabor do vinho que veio com o vômito trouxe de volta a memória da boca de um homem na dele, as mãos de um homem golpeando-o. Chocado, tentou formar a imagem do rosto que acompanhava aquela boca e aquelas mãos, mas sua cabeça doía muito para que pudesse se lembrar de mais.
Ele se pôs de pé, tentando manter sua náusea sob controle enquanto cambaleava morro abaixo em direção ao carro. Apesar das luzes terem ficado acesas durante toda a noite, quando girou a chave na ignição, o motor despertou e rugiu, totalmente vivo. Girou o botão do aquecedor até o nível máximo e ficou sentado, lagarteando diante das golfadas de ar quente. O corpo dele se arrepiava de prazer.
Corny sabia que havia um frasco de aspirinas debaixo de todas as embalagens de fast food e livros descartados. Não conseguia se mexer. Inclinou a cabeça para trás e esperou que o calor que se arrastava por sua garganta o relaxasse e espantasse a náusea. Foi então que se lembrou de Kaye no banco de trás e as recordações do início da noite passada voltaram a sua mente com uma intensidade perturbadora.
A pele de Kaye rachada e descascando, a primeira vibração das asas molhadas, a nova e estranha Kaye deitada no carro, a música... e então ele estava sozinho na encosta, memórias confusas tropeçando umas nas outras. Já havia ouvido histórias como essa ? homens e mulheres andando em um monte, sonhando com uma noite no Reino das Fadas. O monte nunca se abriria para eles novamente. Com raiva, ele imaginou se Kaye ainda estava lá, dançando ao som de flautas longínquas, esquecendo-se de que ele havia sido deixado para trás.
Corny sentiu um aperto no estômago quando pensou em alguma outra explicação para ser deixado sozinho no monte. Aquilo havia acontecido de verdade, Kaye se inclinando sobre ele e sussurrando: Vou encontrá-lo. Espere por mim aqui.
Quanto mais ele pensava, mais se lembrava das partes brutais. O grito distante que não conseguiu situar, o olhar penetrante de alguns foliões, dentes vermelhos de sangue e o homem, o homem com o manto de espinhos que o encontrara sentado bêbado em meio à sujeira e...
Ele balançou a cabeça. Era difícil se lembrar das especificidades, apenas da boca macia e dos arranhões causados por aqueles espinhos. As mãos dele desfraldando as mangas de sua camisa e depois as desenrolando novamente. As feridas inflamadas que se espalhavam pelos braços eram provas de como ele havia passado a noite.
O simples ato de tocá-las o inundava com um desejo tão intenso que fazia com se sentisse enjoado.


Kaye estava diante da porta dos fundos. Uma olhada rápida nos números vermelhos e digitais do microondas indicava que a manhã já estava avançada.
A exaustão caiu sobre ela quando se esforçou para sentir as idas e as vindas da magia em seus dedos. Sentia-se como um pedaço de corda esticada demais, que poderia romper-se se fosse puxada. Olhou várias e várias vezes mas não havia nenhum caminho que levasse ao interior do monte. Talvez a passagem se abrisse apenas ao anoitecer. Ela teria de voltar naquela noite, retraçar o mesmo caminho e esperar.
Seus sentidos estavam superacurados, a ilusão frágil que estava sobre ela naquele momento nada tinha de similar à anterior. Ainda podia sentir o leve farfalhar das asas contra suas costas, ainda podia sentir o cheiro do lixo debaixo da pia, era até mesmo capaz de separar os odores ? borra de café, cascas de ovos, um pedaço de queijo mofado, detergentes, um pouco de veneno grosso e açucarado usado como isca em armadilhas para baratas. O ar vibrava com uma energia que ela havia antes ignorado. Se abrisse a porta, talvez pudesse deixar a fadiga para trás.
Mas Kaye não queria fazer isso ? queria agarrar-se à fachada da humanidade com ambas as mãos.
? Kaye, é você? ? A avó de Kaye entrou na cozinha vinda da sala. Usava um robe e chinelos, o cabelo cinza e fino cheio de bobs presos com grampos. ? Você chegou agora?
? Oi, vovó ? disse Kaye bocejando. Ela foi até a mesa da cozinha, empurrou uma pilha de jornais e correspondências e abaixou a cabeça, apoiando-a nas mãos. Era quase que um alívio o simples fato de ouvir a avó gritando com ela, como se tudo pudesse ficar normal novamente.
? Eu liguei para a escola hoje de manhã.
Kaye se segurou para não soltar um gemido.
? Sabia que você não está autorizada a abandonar a escola sem uma permissão por escrito de seus pais? De acordo com o seu histórico, você não vai a escola desde que tinha catorze anos!
Kaye balançou a cabeça.
? O que isso significa? Isso é um não?
? Eu sei que não tenho ido à escola ? disse Kaye, revoltada com o quão infantil soou sua voz.
? Bem, essa é uma boa coisa para se saber, senhorita, mas eu quero saber o que você esteve fazendo. Por onde você esteve vagabundeando?
? Em lugar nenhum ? disse Kaye em voz baixa. ? Só não queria que você soubesse. Tinha certeza de que ficaria irritada.
? Bem, então por que não volta para a escola? Você quer ser um nada durante toda a sua vida?
? Vou fazer supletivo ? disse Kaye.
? Supletivo? Como um traficante? Uma adolescente grávida? Você quer acabar como uma pobretona, vivendo em um trailer como aquele de sua amiguinha?
? Cala a boca! ? gritou Kaye, as mãos segurando a cabeça. ? Você acha que sabe tudo sobre tudo, não é? Você acha que o mundo é tão fácil de ser entendido... Você não me conhece nem um pouco, não sabe nem uma única coisa a meu respeito! Como pode saber alguma coisa sobre Janet se você não sabe nada sobre mim?
? Não vou tolerar que você grite comigo em minha própria casa. Você e sua mãe são exatamente iguais. Você acha que querer as coisas é suficiente. Acha que basta querer e você irá, como num passe de mágica, conseguir o que deseja.
Mágica. O rosto de Kaye se contorceu em uma expressão a meio caminho entre um estremecimento e um sorriso tolo.
? Nada além do trabalho árduo leva a algum lugar. Mesmo assim, as pessoas não conseguem o que querem. Elas só sofrem, e ninguém sabe a razão desse sofrimento. Pessoas talentosas, como a sua mãe, não conseguem chegar lá apesar de seu talento e então, o que você vai fazer? Não se deve confiar na sorte. Como se pode saber se você tem ou não sorte?
Kaye ficou surpresa em ouvir que a avó achava que a mãe tinha talento.
? Não estou confiando na sorte. ? A voz de Kaye era sonolenta.
? Ah, é? O que você vai fazer então?
? Eu não sei ? respondeu Kaye. Ela estava cansada e podia sentir um tremor lamuriento na própria voz. Estava com medo de que começasse a chorar e, se o fizesse naquele momento, não tinha certeza de que seria capaz de parar. Pior, ela sabia que havia soado petulante, irritada apenas com o fato de ter sido pega. Isso não estava longe da verdade. ? Nós precisávamos do dinheiro.
A avó olhou para ela horrorizada.
? Que dinheiro?
? É isso que você está pensando? Não olhe mais para a minha cara! ? disse Kaye, escondendo a cabeça nos braços cruzados. Ela murmurou contra a própria pele: ? Estava trabalhando na porra de um restaurante chinês, tá? Na cidade. Período integral. Nós precisávamos do dinheiro.
A avó olhou para ela confusa.
? Eu ainda não arranjei um emprego ? confessou Kaye ?, mas acho que vou pegar uma vaga no posto de gasolina onde o irmão da Janet trabalha. Coloquei um currículo lá.
? Você vai para a escola, mocinha, e, mesmo que não fosse, um posto de gasolina não é lugar para uma menina. Que tipo de rapaz vai namorar uma garota assim?
? E quem liga para garotos? ? disse Kaye. ? Olha, a minha mãe vai assinar qualquer formulário que eu precise para fazer meu supletivo.
? Não, ela não vai não! ? berrou a avó. ? Ellen!
? O quê? ? um grito irritado veio do andar de cima.
? Desça até aqui e ouça o que a sua filha está dizendo. Você sabe o que ela está planejando fazer? Você sabe o que ela está fazendo?
Alguns minutos depois, a mãe de Kaye também estava lá, com o cabelo puxado para trás por um arco vermelho de couro. Usava uma camiseta preta e calças justas de ginástica.
? O que você andou fazendo?
? Eu não estava fazendo nada ? respondeu Kaye. Ela devia saber que essa briga iria acontecer, mas, naquele momento, ela se sentia distante daquilo, como se estivesse apenas assistindo de longe, muito longe. ? Eu não estava indo à escola e não contei isso para a vovó.
? Não banque a espertinha ? disse a avó de Kaye.
Ellen apoiou o corpo contra o batente da porta da cozinha.
? Olha, não importa o que ela anda fazendo porque nós vamos estar em Nova York no início da próxima semana. Eu vou liderar a Meow Factory.
Tanto Kaye quanto a avó olharam para Ellen com uma expressão de horror quase idêntica. Ellen deu de ombros, passando por elas para encher a cafeteira com água.
? Eu ia te contar na noite passada, mas você nunca aparece para jantar.
? Eu não vou para Nova York ? disse Kaye, aborrecida por quão infantil sua voz soou. Essa era a mesma menina que havia insultado o cavaleiro favorito da rainha Indigna? Que havia falado com um Cavalo das Águas?
? Ellen, você não pode estar falando sério quando diz que não se importa que sua única filha não esteja frequentando a escola. - Os lábios da avó estavam pressionados, formando uma linha fina.
A mãe deu de ombros novamente.
? Kaye é uma menina inteligente, mamãe. Ela pode tomar essas decisões por ela mesma.
? Você é a mãe dela. É seu dever se assegurar de que ela esteja tomando as decisões certas.
? Isso alguma vez funcionou comigo? Você tentou fazer todas as minhas escolhas por mim e veja aonde isso nos levou. Não vou cometer o mesmo erro com Kaye. E daí se ela não quer ir mais à escola? A escola já era uma porcaria quando eu era obrigada a frequentá-la e não acho que isso tenha melhorado muito desde então. Kaye sabe ler e escrever, isso é mais do que um monte de alunos do terceiro ano pode fazer. Ela lê mais livros do que a maioria das meninas da idade dela.
? Ellen, não seja estúpida. O que ela vai fazer para sobreviver? O que Kaye fará no futuro? Você não quer que ela tenha uma vida melhor do que a sua?
? Eu quero que minha filha tenha o futuro que ela quiser.
Kaye subiu as escadas sorrateiramente até o quarto dela. Elas iriam ficar discutindo por tanto tempo que não a notariam nem lhe dariam atenção por alguns momentos. Tudo o que ela queria era dormir.


O telefone sem fio tocou perto da cabeça de Kaye, onde ela o havia largado. Kaye soltou um grunhido e apertou o botão para atendê-lo.
? Alô ? disse ela, grogue. Não havia conseguido dormir direito, acordava o tempo inteiro, se debatendo e se revirando na cama. Os cobertores estavam quentes demais, mas, quando os chutou, ela se sentiu desprotegida, exposta. Seus sonhos eram permeados por criaturas de olhos cortados que a cutucavam com seus dedos em forma de garras.
? Porra. Você está aí. ? Ela reconheceu que a voz do outro lado pertencia a Corny. Ele parecia assombrado e muito aliviado.
? Corny! Fui obrigada a cair fora. Não consegui achar um caminho que me fizesse voltar para pegar você. ? Ela olhou para o relógio. Era uma da tarde. ? Pensei que talvez o monte só se abrisse à noite.
? Estou ouvindo.
Ela balançou a cabeça, mas depois se deu conta de que ele não podia vê-la, então expressou o pensamento em voz alta:
? É. Definitivamente. Ouça. Você está bem?
Ela ouviu o clique do telefone sendo desligado e passou a mão pelo cabelo inquietamente, antes de deixar que a cabeça caísse de volta contra o travesseiro.


? A ilusão parece boa. ? Foi a primeira coisa que Corny disse quando entrou no quarto dela. ? Ei, você tem ratos!
Ela piscava os olhos enquanto tentava focar a visão nele.
? Como você conseguiu sair? Estava ficando maluca de tanto procurar por você. Se os tiras me vissem, iriam pensar que eu era alguma ladra de sepulturas maluca tentando desenterrar corpos com as mãos nuas.
? Acordei do lado de fora do monte hoje de manhã e percebi que você tinha me abandonado e eu ia virar um Rip Van Winkle, descobrindo que eu estava no ano de 2112 e ninguém nunca tinha nem ao menos ouvido falar de mim. ? Ele forçou um sorriso enviesado.
? Roiben me expulsou. Desculpe. Não queria ter deixado você, mas fiquei com medo de que, se eu contasse que você estava lá, ele pudesse descobrir quem eu era.
Corny sorriu.
? Ele não sabia?
Ela balançou a cabeça negativamente e deu de ombros.
? E então, o que você achou da corte Indigna?
Um sorriso lento e repulsivo se espalhou pelo rosto dele.
? Ah, Kaye ? ele respirou fundo ?, lá é maravilhoso. Perfeito.
Ela apertou os olhos.
? Eu estava brincando. Eles estavam matando criaturas, Corny. Por diversão. Criaturas como nós.
Ele não parecia estar ouvindo, o olhar estava voltado para além de Kaye, na direção da janela iluminada.
? E tinha aquele cavaleiro, não era o seu. Ele... ? Corny tremeu e pareceu mudar abruptamente o rumo da frase. ? Ele estava usando um manto forrado de espinhos enfileirados.
? Eu o vi falando com a rainha ? disse Kaye.
Corny tirou a jaqueta com um movimento de ombros. Havia arranhões compridos ao longo dos braços dele.
? O que aconteceu com você?
Corny deu um largo sorriso, mas o olhar dele estava trancado em alguma recordação. Ele o desviou novamente para a direção de Kaye.
? Bem, obviamente eu fui parar dentro do manto ? disse Corny.
Ela riu com desdém.
? Que eufemismo! Ele machucou você?
? Não mais do que eu gostaria que machucasse ? respondeu Corny.
Kaye não estava gostando disso. Não lhe agradava aquilo que ele estava contando nem o jeito como ele agia quando falava a respeito.
? E você, Kaye? Se vingou do Robin do Cabelo Branco?
Ela não conseguiu evitar o rubor que se espalhou através de suas bochechas.
? O quê? ? perguntou Kaye. E então ela contou para Corny, o rubor crescendo, se tornando cada vez mais quente enquanto falava. Aquilo parecia ainda mais patético quando dito em voz alta.
? Então, o que você está me dizendo é que fez com que ele uma vez a beijasse nos lábios e, outra vez, na bunda.
Kaye olhou ferozmente para ele, mas não pôde evitar uma gargalhada.
? Não sei se devo chamar isso de esperteza ou se seria melhor ficar realmente com medo dos motivos que você vai arranjar para usar o nome dele no futuro. Você pode ficar simplesmente chamando por ele por aí, indefinidamente?
Kaye mirou um soco de brincadeira na direção dele:
? E você e o seu cavaleiro? Quero dizer, olhe para os seus braços. Isso é normal?
? Eu sinto um calafrio toda vez que os toco ? disse Corny reverenciosamente.
? Pelo menos nós estamos assustando um ao outro.
? É, bem, é melhor eu voltar para casa. Qual é o próximo compromisso da agenda da fada?
Kaye deu de ombros.
? Eu ser sacrificada, eu acho.
? Ótimo. Quando isso vai acontecer?
Kaye balançou a cabeça.
? Também gostaria de saber. Samhain, isso é o mesmo que Dia das Bruxas, não é? Provavelmente à noite.
Corny olhou para ela incrédulo.
? O Dia das Bruxas é daqui a dois dias.
? Eu sei ? explicou Kaye ?, mas eu não preciso fazer alguma coisa. Eu só preciso urrar e gritar e fingir ser humana durante algum tempo.
? E se eles desconfiarem que estão sendo enganados?
Kaye deu de ombros.
? Eu não sei. Isso não é problema meu, certo? Tudo o que tenho de fazer é ser uma boa vítima.
? É, só espero que você não seja uma vítima boa demais.
? Spike e Lutie nunca seriam capazes de me colocar em uma situação de perigo real.
? É. Bem, isso é uma coisa boa.
? Você acha que eles me colocariam em risco?
? Eu acho que tudo isso parece perigoso. Acho que até agora ainda não vimos muitas coisas que fazem parte do Mundo das Fadas e não são perigosas.
? É verdade ? concordou Kaye.
? Ah ? se lembrou Corny ?, encontrei com o Jimmy quando estava voltando para casa. Ele disse que se você quiser o emprego, pode começar hoje às seis. É o turno depois do meu, então eu acho que ainda não fui demitido, apesar de tudo.
Ela sorriu.
? A gente se vê à noite, então. Fico aliviada por você estar bem.
? Eu estaria até melhor se ainda estivesse lá ? disse ele, e todas as preocupações de Kaye retornaram em um turbilhão.
? Corny...
Ele sorriu, aquele sorriso estranho e distante que ele trazia na face quando estava no interior do monte e ela sentia vontade de sacudi-lo pelos ombros. Algo tinha de tirá-lo daquele estado.
? Vejo você à noite. ? Corny se despediu, vestindo a jaqueta. Ele se encolhia quando o forro roçava contra os braços dele e, como o tecido não era dos melhores, Kaye esperava que ele estivesse fazendo isso porque os arranhões ardiam.
Quando Corny saiu, Kaye olhou para os bilhetes escritos em papel cor-de-rosa grudados atrás da porta do quarto. Eram recados que a mãe anotara para ela. Um deles era de Jimmy, provavelmente ele queria falar sobre o emprego, e os outros eram todos de Kenny.
Kaye se acomodou no colchão jogado no chão, pegou o telefone e discou o número que estava no primeiro bilhete de Kenny. Ela podia deixar um recado para ele dizendo onde ela estaria trabalhando naquela noite. Era um lugar público. Se ele fosse visitá-la lá, Kaye poderia retirar o encantamento e então tudo voltaria ao normal com Janet.
? Alô ? atendeu uma voz masculina. Havia um vago zumbido metálico e desagradável ao fundo.
? Ah, oi ? gaguejou ela. ? Pensei que você estivesse na escola.
? Você ligou para o meu celular ? explicou Kenny. ? Estou tendo aula de mecânica.
? Aqui é a Kaye. ? Ela se sentiu estúpida novamente, como se as poucas palavras ditas por Kenny fossem algum tipo de bênção do qual não era digna.
? Eu sei. O professor está a ponto de ter uma hérnia, então temos que falar rápido. Quero te ver. Essa noite.
? Eu tenho de trabalhar. Você poderia ir até...
? Que horas? ? interrompeu-a. Kaye se sentiu desconfortável, prestando a maior atenção possível em cada palavra que saía de sua boca, esperando que Kenny começasse a zombar dela, e ficando absurdamente grata por ele não estar fazendo isso.
? Seis.
? Me encontre depois da escola. Você sabe qual é o meu carro?
? Não. Por que você não vai até o meu trabalho? ? Ela tentou trazer para si o controle da conversa novamente.
? Na entrada então. A principal. Preciso ver você.
Kaye hesitou, mas não tinha nenhuma razão verdadeira para não o encontrar lá. Apesar de tudo, ela poderia retirar o encanto num minuto. O que aconteceria depois, bem, talvez fosse melhor ela estar num lugar de onde pudesse ir embora.
? Tudo bem.
? Ótimo. ? Com isso, o telefone foi desligado, fazendo com que ela se sentisse como se tivesse tomado café de dois dias atrás com o estômago vazio. Os nervos de Kaye estavam fritando. Quando ergueu a mão, não ficou surpresa ao descobrir que ela estava vibrando ligeiramente, como uma corda de guitarra depois de ser dedilhada. Fechou os olhos, respirou fundo e então tirou as roupas mulambentas de Corny e vestiu algo que pertencia a ela própria. Elas se encaixaram com facilidade sobre a ilusão de um par de costas lisas, mas os sentidos duais de Kaye podiam sentir o algodão macio da camiseta contra as asas.


Era estranho estar parada do lado de fora da escola que ela deveria estar frequentando. Alguns dos alunos pareciam familiares, pessoas que ela conhecia do ensino fundamental. A maioria deles se parecia exatamente com os estranhos que eles, na verdade, eram.
Humanos, a mente dela sussurrou. Todos eles são humanos e você não é.
Kaye balançou a cabeça. Ela não estava gostando da direção para a qual seus pensamentos a estavam levando. Já era esquisito o suficiente o fato de fazer anos desde que ela pisara em uma escola pela última vez. Ela e Janet tinham se tornado amigas por pura carência. As crianças zombavam de Janet por causa das roupas de segunda mão e de Kaye por causa das histórias dela. Mas, na cidade, ninguém conhecia Kaye e, além disso, havia um monte de crianças esquisitas por lá. Porém, logo quando as coisas na escola se tornaram melhores, ela largou os estudos.
? Ei ? chamou-a Kenny. Ele estava usando óculos escuros e uma camiseta cinza por baixo de uma pesada camisa de flanela azul-marinho. Tirou os óculos quando se aproximou dela. Círculos escuros contornavam os olhos dele. ? Por que você não me ligou ontem? Deixei um milhão de recados na sua casa. Sua mãe disse que você estava na Janet, mas eu chequei. Você não estava lá.
? Desculpe ? disse ela. ? Eu tinha dado uma saída. ? O rosto dele estava tão sério que havia algo de subitamente engraçado em sua expressão. A magia vinha fácil agora, correndo pelos dedos dela e causando um formigamento ao longo de sua língua, mesmo assim ela ficou imóvel para que pudesse lançar o encantamento.
? Kaye, eu... ? começou Kenny, parecendo então pensar melhor no que quer que fosse falar. ? Não consigo dormir. Não consigo comer. Tudo o que eu faço é pensar em você.
? Eu sei ? disse ela docemente. Os estudantes que passavam por eles olhavam de relance para Kenny. De repente, Kaye entendeu por que havia deixado que ele a beijasse na lanchonete, porque, afinal de contas, ela o havia desejado.
Ela queria controlá-lo.
Ele era todos os namorados que haviam tratado a mãe dela mal. Ele era todos os garotos que lhe falavam que ela era muito esquisita, que riam dela ou que simplesmente queriam que ela calasse a boca e fosse até o fim. Ele era mil vezes mais real do que Roiben.
O rosto de Kaye se rompeu num imenso sorriso. Ela não sentia mais vontade de brincar de faz de conta, não precisava mais provar seu valor por meio da afeição de Kenny, não desejava saber quão diferentes os lábios de um menino popular eram comparados aos de qualquer outro garoto.
? Por favor, Kaye ? disse ele, agarrando a cintura dela, envolvendo-a com força, puxando a menina para si.
Dessa vez ela se afastou abruptamente, não deixando que Kenny a imprensasse contra ele, os lábios não estavam próximos o suficiente para que ele pudesse beijá-la novamente. Em vez disso, ela torceu as mãos até conseguir se livrar das garras dele e se elevou sobre o último degrau da escadaria de cimento.
? Vocês desejam alguma coisa? ? gritou Kaye sarcasticamente para os alunos que haviam parado ao longo da calçada para assistir.
? Você ? disse Kenny tentando agarrá-la novamente, mas ela foi, de longe, muito mais rápida. Dançando para longe das garras dele, ela soltou uma gargalhada.
? Você não pode ter aquilo que não consegue pegar ? ela instigou, empinando a cabeça para o lado. A fúria fazia com que o sangue dançasse nas veias de Kaye. Como ele podia se atrever a deixá-la desconfortável? Como ele podia se atrever a fazer com que ela medisse as próprias palavras?
Kenny fez um esforço para tentar segurar a mão dela, mas ela a moveu para longe com facilidade, rodopiando ao longo da parede de cimento.
? Kaye! ? disse ele.
Ela se agachou, as pernas amplamente distantes, o queixo empinado na direção dele.
? Você me adora, Kenny?
? Sim ? disse ele freneticamente.
? Você fica intoxicado quando me vê? Você morreria para me ter?
? Sim! ? Os olhos de Kenny estavam escuros de desejo e fúria. Atrás dele, os alunos riam e sussurravam uns para os outros.
Kaye riu também. Ela estava se lixando para tudo aquilo.
? Diga novamente o que você faria para me ter.
? Qualquer coisa ? respondeu ele sem hesitar. ? Me dê uma chance. Peça para eu fazer alguma coisa.
A risada morreu na garganta de Kaye. Ela retirou o encanto dele, dispersando seus fios com um impetuoso movimento de mãos, como alguém que afasta teias de aranha do caminho.
? Deixa pra lá ? disse ela, sentindo raiva sem ter certeza do porquê. Raivosa e subitamente envergonhada.
Kenny olhou ao redor de si, a escola aparentemente entrando em foco pela primeira vez. Ela podia ver o rubor subir lentamente pelo pescoço tatuado dele. Kenny olhou para ela com algo semelhante a horror nos olhos.
? Que merda você fez comigo?
? Peça para Janet me ligar ? disse ela, sem dar a mínima para o fato de suas palavras não fazerem sentido, sem se importar com nada, exceto que ela precisava dar o fora dali antes que tombasse no chão, totalmente fora de controle. Ela nem mesmo reservou um olhar de relance para Kenny enquanto cruzava o estacionamento dos alunos, tomando a direção de casa.

* * *

Jimmy estava esperando por ela no escritório do posto de gasolina. Ele passou para Kaye uma jaqueta azul com o logo da Amoco num dos cantos que ela nunca havia visto Corny usar. A menina a vestiu obedientemente enquanto Jimmy explicava o que ela tinha de fazer.
Poucos carros apareceram, e ela empunhava a bomba cautelosamente, tomando cuidado com o metal.
Sentia vertigem devido aos vapores nocivos da gasolina e às lembranças terríveis do que fizera. A sensação fora tão boa, parecia tão absolutamente justo insultar Kenny como ela havia feito. E agora, que tinha consciência daquilo que era capaz de fazer, seria impossível desaprendê-lo, ou poderia ser apenas uma questão de tempo antes que usasse seus poderes novamente?
Havia um som sussurrante ali por perto e Kaye olhou com desconfiança na direção da floresta. Aquela era a Noite do Diabo, quando os garotos começavam a pregar as peças do Dia das Bruxas, e Jimmy já havia lhe avisado que alguns garotos poderiam tentar cobrir o posto com papel higiênico.
A figura que emergiu do meio das árvores, no entanto, tinha o cabelo tão preto quanto petróleo, e o manto preso a seus ombros foi afastado para trás pelo vento, revelando um forro de espinhos, dispostos como uma cama de pregos. Além da palidez da pele, a única coisa branca naquela criatura era uma pedra solitária que pendia de uma longa corrente.
? Você? ? perguntou Kaye. ? É você o súdito da corte Digna de quem Spike havia me falado? ? Ela o havia visto falando com Nicnevin no baile. Ele parecera ser leal à rainha. Seria aquilo parte do plano?
? Você está em boas mãos agora ? disse Nephanael.
? Você deixou marcas nos braços de Corny.
? Realmente deixei. Ele é belo.
Vistos de perto, os olhos dele eram amarelos. Ao olhar para eles, ela subitamente descobriu por que eles haviam parecido familiares. Ela os havia visto no bar na noite em que Lloyd surtara.
? Você ? disse Kaye. ? Você fez alguma coisa com o Lloyd, não fez?
? Nós tínhamos de fazer com que você voltasse para casa, Kaye.
O cavaleiro tocou a pedra que pendia do pescoço dele e Kaye sentiu a magia se movimentar ao redor de si, fixando-se no corpo dela com um peso opressivo. Sentiu-se asfixiada por um momento, enquanto os odores se tornavam vagos e a visão ficou opaca.
? Lembre-se, você precisa fazer com que pareça real ? disse ele enquanto Kaye se sufocava.
? O que você está fazendo comigo? ? conseguiu dizer Kaye. Tudo parecia entorpecido e estranho.
? Essa ilusão que está sobre você não engana ninguém. Estou simplesmente restaurando aquela que você deveria estar usando.
? Mas o Dia das Bruxas é só amanhã ? protestou Kaye. Ela sentia uma comichão estranha ao longo do braço. Dessa vez, não parecia que as picadas vinham de dentro dela. Algo estava acontecendo. O coração dela se acelerou e ela podia sentir... alguma coisa, uma estranheza. E então, uma forma escura foi atirada violentamente das nuvens.
Kaye cobriu o rosto com os braços. Tentou gritar, mas quando abriu a boca tudo que saiu foi uma lufada de ar.
Mãos agarraram a saia, as pernas e o cabelo de Kaye, erguendo-a e fazendo com que ela passasse por cima de uma massa de criaturas. Ela chutou e mordeu, dilacerando os longos cabelos daqueles seres, que mais pareciam barbas de milho, e despedaçando as asas empoeiradas que possuíam. Rostos pontudos, semelhantes aos de um gato, sibilavam e dedos a beliscavam, mas eles continuaram voando em um longo cortejo de monstros, e Kaye estava com eles.













9


"Você, a quem não pude salvar,
Ouça-me." (

? CZESLAW MILOSZ
"Dedication"



A garganta de Kaye estava ferida de tanto que ela gritou. Garras afiadas afundavam em seus pulsos, enquanto asas de morcegos, pássaros e insetos se moviam mais silenciosamente do que folhas de papel apodrecendo em um arquivo. Eles voaram, invisíveis, pelas ruas. Ela gritou, mas parecia que eles estavam se movimentando entre esse e o outro mundo, pois ninguém olhava para cima, ninguém falava e ninguém fazia nada além de, talvez, sentir arrepios ou se encolherem um pouco enquanto uma horda de monstros saltava através dos céus acima deles. Kaye mordeu, arranhou, se contorceu e investiu contra seus raptores, até que a ira plúmea de suas asas tremeluzisse por todos eles. Nem uma única vez as criaturas alargaram suas garras. Eles eram um único ser sinuoso do qual ela era apenas uma parte mínima e relutante, e tudo que Kaye podia fazer era gritar.
Então eles arremeteram subitamente para baixo, caindo do céu tão rápido que a respiração de Kaye cessou por um instante. O monte do cemitério saltou em direção a ela. O ar forçou os gritos de volta para a garganta da menina, e ela os engoliu.
Kaye torceu o tornozelo quando caiu de frente sobre as mãos e os joelhos. Por um momento ela não conseguiu respirar. Os monstros pousaram com facilidade ao redor dela, roçando e pulando no solo ao aterrissar. Todos os cortes e contusões do corpo dela pareciam ganhar vida, latejando com vigor. Ela sentia os ossos frouxos em seus encaixes.
Olhos pretos e brilhantes como os da própria Kaye a encaravam entre a dúzia de criaturas que apenas a olhava de relance. Algo com garras segurou o cabelo dela e puxou a cabeça da menina para trás, de forma que ela foi obrigada a fitar olhos de coruja salpicados de dourado.
? Ratinha apetitosa. ? Os lábios finos e escuros da criatura se moveram lentamente ao pronunciarem essas palavras. A voz dela era como o som de folhas secas sendo esmagadas.
Kaye se calou. Outras criaturas se juntaram à multidão, os rostos espremidos muito próximos a ela. O calor faminto que eles exalavam a deixava tonta. Kaye sacudiu as mãos para mantê-los afastados. Pequenas criaturas aladas se movimentavam com rapidez ao redor dela e mostravam os dentes.
? Brincar de pega-pega é uma grande diversão ? comentou a mulher com olhos de coruja, puxando o cabelo de Kaye com tanta força que o corpo inteiro da menina o acompanhou ?, que trato admirável, muito admirável. ? A criatura a soltou e ela caiu sobre os joelhos, que já estavam em carne viva.
? Deixe-a em paz ? disse Nephanael, puxando Kaye para que ela ficasse de pé.
Foi como se algo houvesse serrado o monte para fora de sua base e o erguesse em pilares grossos. Cogumelos pálidos como cadáveres e do tamanho do pulso de Kaye formavam círculos pelo chão e nas paredes. Debaixo do teto de barro, um povo maravilhoso festejava como se estivesse em um pavilhão de eventos.
Os dedos de Nephanael pressionavam os ombros dela como se desejassem machucá-los. Os espinhos que cobriam as pontas de cada dedo enluvado penetravam a pele de Kaye a cada passo cambaleante.
Ele a conduziu até o palanque de terra elevada, e ela teve de respirar fundo várias vezes para manter afastado o terror que ameaçava tomar conta dela. A rainha sentou no trono; meninos gêmeos com pés de bodes se ajoelharam ao lado dela, um à sua direita e o outro à sua esquerda, um deles tocava distraidamente uma flauta. Roiben estava de pé à esquerda da rainha, as roupas dele eram todas feitas de um material que conseguia parecer, ao mesmo tempo, metal e tecido. Pérolas de água doce pontiagudas circulavam a gola e os punhos, fazendo com que Kaye as achasse semelhantes a dentes. A visão dele era magnífica, brilhante como a própria Lua.
Ele também estava tão distante quanto a Lua, inexpressivo e soturno.
Do lado direito da rainha, havia mais dois cavaleiros: um vestido de um vermelho tão escuro que era quase marrom e o outro em azul enfumaçado. Mais afastada, no fundo do palanque, praticamente encoberta pelo trono, uma criatura com cara de raposa, usando um barrete estranhamente moldado, hesitou, uma das patas segurava um pincel sobre uma longa folha encrespada de casca de bétula branca que ela utilizava como pergaminho.
Kaye foi empurrada rudemente para que ficasse de joelhos. Ela podia sentir Nephanael se ajoelhando lentamente atrás dela.
A rainha da corte Indigna olhou para Kaye, os lábios se encurvando em um sorriso. O cabelo estava preso em tranças grossas adornadas com jóias e o cinza escuro do vestido contrastava com a pele, fazendo com que parecesse ainda mais pálida e cremosa. A rainha era inumanamente bela, mas o seu sorriso não continha ternura alguma. Kaye ficou perturbada ao se flagrar, contudo, sorrindo de volta para aqueles olhos azuis cruéis, ansiando que eles se iluminassem em aprovação.
O ar estava denso graças ao pólen de cheiro doce que fazia com que ela se sentisse tonta e fora de foco. Os olhos da rainha eram tão claros, tão azuis, pensou Kaye. Eles pareciam falsos. E então a vertigem a golpeou.
? Kaye Fierch, a corte Indigna lhe concederá uma grande honra. ? As palavras da rainha foram entrando aos poucos na mente de Kaye, cada uma delas ecoando separadamente, não fazendo sentido quando colocadas juntas. ? Você irá aceitar esta dádiva?
Kaye sabia que lhe haviam feito uma pergunta e que era importante que respondesse. Tentou reunir seus pensamentos dispersos. Olhos azuis a dominaram. Queria acabar com o calafrio que se expandia dentro dela, se espalhando através do peito, deixando-a repleta de uma ânsia trêmula. O máximo que podia fazer era piscar lentamente.
? Talvez o silêncio dela seja uma resposta suficientemente satisfatória. ? Ela ouviu a voz de Roiben como se ele estivesse a uma longa distância. Algumas risadas foram ouvidas depois que ele falou.
? Aproxime-se, pequena mortal. ? A rainha se inclinou para a frente, esticando uma de suas mãos alvas e, antes que Kaye tivesse tempo suficiente para considerar a oferta com mais cuidado, ela já estava rastejando para tocá-la. A rainha correu os dedos pelos cabelos de Kaye, desarrumando-os e depois os ajeitando novamente.
? Você quer nos agradar, não é, pequenina?
? Sim. ? Ela queria. Nunca desejara tanto uma coisa.
Nicnevin sorriu ao ouvir isso, um sorriso que se encurvava nas beiradas.
? Na verdade, seu único desejo é nos agradar, estou certa?
? Sim. ? Ela tremeu de prazer quando uma das mãos da rainha tocou seu queixo.
?Você irá nos agradar imensamente, criança, se for obediente, agradável e não fizer perguntas a respeito daquilo que achar estranho. Você entendeu?
? Sim.
? Nós lhe indagamos se você nos honrará com sua participação na cerimônia do Tributo. Você aceitará a responsabilidade desta honra?
Havia algo de estranho na pergunta, mas Kaye sabia qual era a resposta que deveria dar.
? Sim.
O sorriso da rainha era fascinante. Fora do campo de visão de Nicnevin, Kaye viu Roiben lançar um olhar mal-humorado. Ele não deveria estar satisfeito, já que sua Senhora o estava?
? Meu cavaleiro irá lhe preparar e vestir de forma apropriada. Você não deve se empenhar em agradar-lhe. Isso será uma perda de tempo. - A rainha fez um gesto afirmativo quase imperceptível com a cabeça.
Logo Roiben estava ao lado de Kaye, puxando-a para que ela ficasse de pé. Ele cheirava a folhas queimadas.


Rath Roiben Rye estava de pé do lado direito de sua senhora, em seu lugar de honra, os punhos fechados apertados com tanta força que podia sentir as incisões em forma de meia-lua que as unhas faziam nas palmas de suas mãos. A garota respondia fatalmente às perguntas com aquela voz tão macia quanto um monte de cinzas. Ela não fez nenhuma menção de dizer o nome dele e agora estava muito longe de ser capaz de fazê-lo.
Roiben gostaria que as mãos relaxassem. Não queria que a rainha imaginasse o risco cada vez maior que ele estava correndo. Deixar que a garota perguntasse seu nome ? tivesse poder absoluto sobre ele ? foi algo não premeditado, mas com certeza foi um caso isolado de insensatez. No começo, ele dizia a si próprio que estava se autotestando, mas seus motivos pareciam mais complexos. Estavam se tornando menos claros para ele mesmo ? uma cadeia de ações unidas pelo nada, sem nenhuma sequência que ele pudesse entender.
Deixou que o olhar deslizasse pela multidão. Ele conhecia a corte Indigna, conhecia as facções e seus planos, as disputas entre elas, seus desejos e hábitos. Ele as conhecia como apenas um forasteiro poderia conhecer, e sua senhora dava valor a isso. Esse valor equilibrava o prazer que ela sentia em vê-lo sentir dor.
Tudo é equilíbrio. Tudo é ritual. Tudo é dor.
As fadas independentes estavam reunidas desconfiadamente à beira do palanque. Ele sabia que muitas delas não desejavam se unir à corte Indigna e, por um momento, ele imaginou se, de alguma forma, elas poderiam recusar o sacrifício. Mas, de onde ele estava, podia vê-las tomando o tradicional vinho de urtigas prensadas. Na verdade, a servidão poderia oferecer a elas um amparo que seria impossível na independência.
Um som suave fez com que os olhos dele se voltassem novamente para Kaye. Roiben percebeu as manchas roxas e marcas levemente avivadas que pareciam arranhões. Ela contemplava a rainha com uma adoração que o deixava enojado. Seria essa a mesma forma com que ele olhara para a rainha Digna quando se entregou a ela? Ele se recordou de que bastava a Senhora Reluzente olhar de relance para um de seus cavaleiros para que parecesse que o sol estava brilhando apenas para este servo. O próprio juramento de Roiben fora tão fácil de ser dito, todas as promessas que ele gostaria de fazer contidas naquelas frases formalizadas. E ele ainda estava sob as ordens dela, não estava? Roiben ficou pensando nisso mais uma vez enquanto olhava fixamente para o rosto de Kaye, enquanto a menina esperava alegremente para ser conduzida por ele pelas cavernas do palácio Indigno, onde o sol nunca batia, e embelezá-la para o próprio assassinato, a única coisa que fazia com que aquela dor valesse a pena.
? Venha ? disse ele.
Eles atravessaram o palanque e desceram pelos corredores que brilhavam graças à mica, os tetos repletos de raízes emaranhadas. As luzes eram opacas e pouco frequentes, cera escorria dos cantos das paredes, de nichos onde as velas estavam colocadas. Roiben ouvia o ruído surdo e monótono das botas pesadas de Kaye enquanto ela o seguia e sentiu vontade de olhar para trás, dar para a menina ao menos o conforto de um sorriso enquanto ela tentava acompanhá-lo através daquelas passagens sinuosas. Mas um sorriso seria uma mentira e, também, que serventia isso teria para ela?
Eles passaram por pomares de árvores brancas como ossos e carregadas de frutas púrpuras. Passaram através de cavernas de quartzo e opala. Atravessaram uma série de portas, cada uma com um rosto diferente entalhado. Acima de tudo isso, o céu brilhava com uma luz distante.
? Você pode me perguntar aquilo que desejar. Não possuo as mesmas censuras que a rainha. ? Roiben torcia para que, não importando qual fosse o feitiço que a rainha houvesse jogado sobre ela, este não fosse irresistível.
? Sinto muito, você sabe... ? disse ela suavemente. Os olhos dela estavam dopados de encantamento, as pálpebras quase fechadas. Uma das mãos corria pela reluzente parede de mica, esfregando-a como se a rocha fosse a barriga de um grande animal.
? Perdão? ? a voz dele soou estúpida.
? Na lanchonete ? disse ela, hesitando ligeiramente, apoiada na mão que estava na parede para que pudesse se manter de pé. ? Eu não sabia o que eu estava perguntando.
Roiben ficou perplexo ao ouvir aquilo. O poder dela sobre ele era maior do que qualquer juramento ? ele estava literalmente sob o comando de Kaye ? e lá estava ela, se desculpando por sua esperteza. Mas talvez pudesse ser também a magia, obrigando a mente dela a se esquecer de seus instintos de sobrevivência.
A mão de Kaye se aquietou na parede e os olhos dela encontraram o chão.
Ele respirou fundo.
? Sua pergunta foi bem arquitetada. Talvez você ainda arrume alguma serventia para essa informação. ? Esse não fora um conselho sábio. Ele não sabia por que a havia envolvido em toda aquela confusão quando pediu para que Kaye puxasse a flecha do peito dele no momento em que sentia uma dor tão terrivelmente intensa que não conseguia nem se imaginar passando por aquilo novamente.
Tão tresloucada como se, assim como Roiben, também fizesse parte do Povo Encantado, ela de repente soltou uma gargalhada.
? Você vai mesmo me dar um vestido?
Ele assentiu.
? Há uma costureira que tece teias de aranha, transformando-as em seda. Ela com certeza fará um vestido para você... ? Ele fez uma pequena pausa antes de completar a frase, sem saber como terminá-la. Aquele não era um vestido de baile, na verdade, aquela seria uma mortalha. ? Um bom vestido ? completou a frase desafortunadamente, mas pelo menos conseguiu responder à pergunta.
Kaye deu gargalhadas com prazer, girando delicadamente em um pé só, improvisando uma dança cambaleante enquanto o seguia, descendo o corredor brilhante, repetindo as palavras dele:
? Teias de aranha em seda...


As quadras da Hábil Torta ficavam nas profundezas cavernosas do palácio, onde Roiben raramente tinha algum motivo para ir. Peças de cetim resplandeciam como o sol do verão e o ouro, sedas que poderiam passar facilmente através do buraco de uma agulha, brocados pesados e ricos com estranhos animais em movimento estavam jogados pelo chão da sala sombria. Uma longa mesa de madeira estava coberta por tigelas prateadas de vários tamanhos que continham alfinetes, carretéis de linha e indumentárias: peles de rato, gotas de orvalho reluzente, folhas que nunca murchavam e outros itens menos agradáveis.
Roiben sabia que as coisas mais fantásticas na sala eram aquelas que aparentavam ser as mais comuns. O tear que podia prender membros do Povo Encantado em tapeçarias, deixando-os atados ali até que uma ou outra condição fosse cumprida, aparentava ser apenas um velho e maltratado tear, nada mais. O fuso era igual a qualquer outro, feito de madeira lisa e grosseira, mas Roiben sabia que o fio negro que estava enrolado nele era feito de cabelo humano.
A própria costureira era uma criatura pequena com membros espichados, longos e desajeitados. Estava envolvida por um tecido negro diáfano que lhe escondia metade do rosto e era tão corcunda que os longos braços quase tocavam o chão. Roiben se curvou levemente enquanto olhos brilhantes o saudavam.
A Hábil Torta sibilou suas saudações, foi até Kaye arrastando os pés e ergueu os braços finos da menina, medindo a largura deles ao pressioná-los entre o polegar e o dedo mínimo de uma de suas mãos. Quando os olhos castanhos de Kaye encontraram os de Roiben, ele pôde ver um cintilar de medo neles, embora o corpo dela permanecesse vacilante.
? Delicioso ? a Hábil Torta especulou com sua voz desagradável ?, pele macia. O que devo lhe oferecer em troca dela? Posso lhe fazer uma túnica com essência de macieiras em flor. Isso deve fazer com que você se lembre de casa, não?
Kaye sentiu um arrepio.
? Vim até aqui em busca de uma vestimenta, não uma troca ? disse Roiben, ele próprio reprimindo um tremor. ? A rainha deseja que ela esteja muito bem-vestida para que os foliões vejam que ela... ? mais uma vez era difícil encontrar as palavras certas, que não alarmassem a garota ? é uma convidada de honra.
Tagarelando, a Hábil Torta começou a revirar suas peças de tecido. O atordoamento drogado de Kaye parecia afastá-la da lembrança de que a costureira a amedrontava, e agora ela estava afagando um tecido que mudava de cor quando tocado.
? Abra os braços ? grasnou a costureira. Deixe-os tão esticados quanto as asas de um pássaro. Isso.
Kaye suspendeu os braços enquanto a Hábil Torta a cobria com tecidos e sussurrava palavras incoerentes. A velha pequena e enrugada segurou o queixo de Kaye e de repente empurrou-o para baixo, então arrastou os pés até as tigelas, catando algo dentro delas. Roiben não podia fazer mais nada além de esperar.
Macieiras em flor não mais faziam com que Roiben se recordasse de seu lar, apesar de elas fumegarem na corte Digna. Não, agora a essência de macieiras em flor lhe lembravam da mulher-árvore, cujo rosto marrom era tão sereno quanto a poeira, não importando quão longe ela estivesse de sua árvore. Ela fora uma profetisa, mas não poderia fazer profecias para a rainha Digna. A mulher árvore havia recebido ordens para persuadi-la.
De qualquer forma, do que ele mais se lembrava agora era das últimas palavras que a mulher-árvore lhe proferiu, ela falava enquanto dedos musgosos arranhavam a bochecha dele e seiva viscosa corria dos muitos cortes que ela tinha no corpo. "É você quem está morrendo", dissera ela.
Pode-se quebrar uma coisa, mas, posteriormente, não se pode sempre conduzi-la da forma como se deseja.
? Cavaleiro? ? chamou a Hábil Torta, segurando uma meada de seda fina e branca. ? Isso combina?
? Mande o vestido para os meus aposentos ? ordenou Roiben, afastando-se de seus pensamentos. ? A rainha deseja que a menina esteja muito bem-vestida no palanque esta noite.
A Hábil Torta levantou os olhos do conjunto que ela estava reunindo, piscando como uma coruja, e resmungou. Isso já era uma resposta mais do que suficiente para ele; não tinha necessidade de clamar para que a costureira fosse ainda mais veloz. Qualquer atraso beneficiaria Kaye.
? Venha ? disse Roiben, e Kaye o seguiu docilmente. Ela parecia bêbada com a magia.
Eles retraçaram seus passos através do palácio das Térmites até que por fim ele parou diante de uma porta de madeira com um unicórnio toscamente entalhado. Roiben a abriu com uma chave prateada e deixou que Kaye entrasse antes dele. Ele a observou quando ela parou para olhar os livros que cobriam uma mesa baixa, passando as mãos pelos volumes esguios de capa de papel de Yeats e Milton, demorando-se quando tocou em um de capa de couro e fechos prateados. Aquele era um livro de velhas canções, mas não havia título na capa empoeirada, e ela não abriu os fechos para folheá-lo. Na parede, havia uma tapeçaria antiga, a mesma que ele cortara violentamente até transformar em farrapos em uma noite, muito tempo atrás. Roiben imaginou se seu quarto pareceria uma cela aos olhos dela. Não deveria ser aquilo que ela estava esperando depois de todas as coisas maravilhosas que havia visto nos outros lugares.
Kaye estava olhando a tapeçaria, estudando o que havia sobrado dela.
? Ela é linda. Quem é?
? Minha rainha ? respondeu Roiben. Ele queria se corrigir, mas isso não era possível.
? Não é a rainha Indigna? É a outra? ? Kaye sentou na colcha de tecido grosso da cama dele, inclinando a cabeça, ainda olhando para a figura. Ele não precisava olhar para ver o que estava no quadro, cabelo preto caindo como um manto pelas costas do vestido esmeralda da rainha, belo, mas apenas um monte de bordados. Um mortal o havia tecido, um homem que, ao avistar a rainha Digna um dia, passou o restante de sua curta vida bordando retratos dela. Ele havia morrido de inanição, dedos vermelhos, em carne viva, manchando a derradeira tapeçaria. Há muito tempo, Roiben havia invejado tanta devoção.
? A outra ? concordou ele.
? Eu li aquele. ? Kaye apontou para Paraíso perdido. ? Bem, li uma parte.
? "O horror e a dúvida distraem seus pensamentos conturbados e do âmago o Inferno revira seu interior, de dentro de si ele traz o Inferno, e perto dele, nem pode dar mais um passo do Inferno a não ser que ele possa voar para mudar de lugar" ? ? citou Roiben.
? Eu li um trecho em uma daquelas antologias imensas, mas na verdade nós nem falamos sobre isso em sala de aula. Eu continuei com o livro depois que larguei a escola. Você sabe o que é uma escola? ? A voz dela soava entorpecida, ele pensou, mas a conversa seguia relativamente normal. Enquanto o encantamento desfalecia, ele parecia não mais dominá-la. Roiben se permitiu perceber que aquele era um sinal positivo.
? Nós sabemos sobre o seu mundo, mesmo que superficialmente. As fadas independentes sabem mais. Elas são aquelas que se amontoam secretamente em frente às janelas, assistindo à televisão através das persianas. Eu até já vi um batom que foi trocado por uma quantia imprópria entre as dríades.
? É uma pena que eles não tenham me deixado trazer minha bolsa. Eu poderia ter pagado uma propina para que me tirassem daqui ? disse Kaye dando risadinhas, esticando o corpo, tomando conta de toda a cama dele.
Ela se agarrou na cabeceira, içando o corpo para cima, o jeans preto estava puído na altura dos tornozelos, onde encontravam as botas arranhadas. Apenas uma garota. Uma garota que não precisava ser corajosa desse jeito. Ao redor da cintura, um elástico rodeava a carne, desenhos desbotados feitos em tinta azul ainda visíveis. Não havia anéis naqueles dedos. Unhas roídas até o sabugo. Detalhes. Coisas que ele nunca deveria ter reparado.
Ela parecia cansada, Roiben percebeu. Sabia pouco a respeito de como a vida dela era antes de ele virá-la de cabeça para baixo. Com uma careta, se lembrou da blusa em farrapos que ela rasgou em tiras para usar como atadura no ferimento dele.
? Ao menos nós achamos que sabemos algo a respeito do seu mundo. Entretanto, eu não sei muito além do que aprendi com você.
? Não sei muita coisa sobre o mundo ? disse Kaye. ? Só conheço a cidadezinha de merda onde cresci e a cidade grande para onde eu me mudei depois, que era ainda pior. Eu nunca nem mesmo saí do país. Minha mãe quer ser cantora, mas na maioria das vezes ela sempre acaba ficando bêbada e gritando como as outras garotas vocalistas são uma droga. Deus, isso deve soar deprimente.
Roiben pensou no que aconteceria se o sacrifício não fosse realizado, se, por engano, por acaso ou graças a qualquer outra coisa, Kaye escapasse. As fadas independentes poderiam ficar livres por sete anos. Ele imaginou o caos que disso resultaria.
Esse pensamento quase o agradou.
? Isso não está me deixando exatamente animado, bela Kaye.
Ela suspirou sorrindo e deixou que a cabeça caísse para trás, o cabelo loiro e malcuidado se espalhando em um halo sobre os travesseiros de Roiben. Ele pensou distraidamente como gostaria de trançar o cabelo dela da mesma forma que trançava os cabelos da irmã dele.
? Eu frequentei a escola por um tempo ? continuou ela, displicente ? e então perdi o hábito. As pessoas costumavam dizer que eu era estranha, o que era engraçado naquela época. Talvez engraçado não seja a palavra certa.
Ele se sentou na ponta da cama, apenas ouvindo.
? Eu pensei que esquisitice fosse uma coisa boa. Mas também não quero que isso acabe soando como algo defensivo. Eu achava que a estranheza era algo que deveria ser cultivado. Perdi um monte de tempo indo a bares, montando equipamentos, quebrando-os, carregando vans, pescando a cabeça da minha mãe de dentro de privadas... Coisas que outras pessoas da minha idade não costumam fazer. E às vezes as coisas simplesmente aconteciam, coisas mágicas que eu não conseguia controlar. Mas ainda, mesmo depois de tudo isso, você, é tão difícil de aceitar que você, na verdade, não é real. ? Ela pronunciou a última frase com um respeito silencioso que era completamente injusto.
Mesmo assim, ela parecia tão normal. Familiar. Ela ainda parecia normal, apesar de estar deitada de uma forma excessivamente confortável na cama de um estranho.
? Você ainda quer satisfazer minhas vontades?
O sorriso dela era surpreendente, um tanto atarantado.
? Claro que quero.
? Seria melhor se você não o quisesse ? disse Roiben, hesitante, tentando achar uma forma de persuadi-la a se livrar do encantamento. Ele não poderia fazer nada por Kaye se ela continuasse dessa forma quando a verdadeira cerimônia acontecesse. ? Seria melhor para você agir de acordo com suas próprias vontades.
Kaye se sentou e olhou atentamente para ele.
? Você não quer voltar para casa?
? Para a corte Digna? ? Ele se permitiu dizer. Por um longo momento, Roiben considerou o que ela perguntara e então balançou a cabeça. ? Um dia, eu queria isso mais do que tudo. Agora, acho que não seria mais bem-vindo entre eles e, mesmo se fosse, é improvável que nós nos ajustemos.
? Você não é como todos falam ? disse Kaye, olhando para ele tão furiosamente que ele não conseguia contemplá-la. ? Eu sei que você não é.
? Você não sabe de nada a meu respeito ? rebateu Roiben. Ele queria puni-la pela confiança que viu no rosto dela, apagar agora essa boa impressão da memória da menina para que ele fosse poupado do horror da garota quando essa confiança fosse traída.
Ele queria contar para Kaye que a considerava impossivelmente atraente, mesmo que estivesse semienfeitiçada, com o corpo cheio de manchas roxas e arranhões, sem ter nenhuma consciência de que não estaria viva ao amanhecer. Roiben imaginou o que ela diria diante de tudo isso.
Em vez disso, ele forçou uma risadinha.
? Deixe-me explicar novamente. Entre a turba da corte Indigna, muitos são indiferentes ao sangue e à morte, a não ser quando o fazem por diversão. Mas fazer parte da turba é mais do que um castigo. Nicnevin governa apoiada em segredos antigos, enterrada nas entranhas dos guetos de criminosos e dos pântanos. O crepúsculo contém tantas verdades quanto o amanhecer, talvez mais, já que ao anoitecer os fatos são percebidos com menos facilidade. Não, não acho que eles iriam me receber de volta, agora eu consigo ver isso.
? Mas eles... ? começou Kaye, e ele ergueu as mãos para o alto com o intuito de prevenir qualquer objeção da parte dela.
? Seitas de seres menores que o habitual, certamente o Reino das Fadas é uma delas, precisam de inimigos para lhes dar propósito. Pense nos anjos de Milton. Não foi sábio da parte do Deus dele lhes dar demônios para combater?
Kaye ficou quieta por um momento.
? Tudo bem, você está falando que a corte Digna precisa odiar a corte Indigna. Mas isso significa que você não acha que eles sejam de todo maus?
? Não sou capaz de pensar em nenhum insulto forte o suficiente para a rainha Indigna, mas tenho observado benevolência em alguns membros da sua corte. Claramente há aqui mais bondade e sabedoria do que eu poderia, algum dia, esperar encontrar.
? Então quais são os adversários da corte Indigna?
? De novo, os paralelos com os demônios das pessoas do seu mundo são impressionantes. Eles lutam contra o próprio tédio. É uma batalha que geralmente requer divertimentos cada vez mais cruéis.
Kaye sentiu um arrepio.
? E você?
Roiben deu de ombros. Havia praticamente se esquecido de como era a sensação de simplesmente se sentar e conversar com alguém.
? Sou uma outra coisa, não pertenço a nenhuma corte, nem sou verdadeiramente independente. Muitos possuem minha alma.
Kaye ficou de joelhos e segurou ambas as mãos dele.
? Então agora você sabe, eu confio em você.
? Você não deveria ? disse ele automaticamente. Todavia, Roiben se pegou não mais desejando puni-la pela fé que ela depositava nele. Em vez disso, descobriu que estava querendo ser merecedor dessa confiança. Queria ser o cavaleiro que um dia havia sido. Só por um momento.
Roiben a observou enquanto ela respirava fundo, afiando-a, talvez, para a próxima revelação da conversa. Ele se deu conta de que não poderia suportar aquilo.
Roiben se inclinou para frente antes que pudesse ao menos pensar em fazer alguma outra coisa e estampou um beijo nos lábios secos de Kaye. A boca da garota se abriu com um turbilhão de hálito quente e os braços dela correram pelos ombros dele até descansarem levemente, quase que hesitantes, na nuca de Roiben.
A língua dele fez um movimento circular na boca de Kaye, procurando por alguma saída para a frieza que residia dentro dele. A sensação era tão boa que fez com que os dentes dele doessem.
Nem pode dar mais um passo do Inferno a não ser que ele possa voar. Enfeitiçada. Ele estava beijando uma garota enfeitiçada. Com um movimento brusco, Roiben afastou a boca da dela. Kaye parecia estar levemente tonta e passou a língua pelo lábio superior, mas não falou nada.
Ele imaginou o que Kaye pensaria exatamente sobre aquilo quando a cabeça dela estivesse mais bem ordenada e ela pudesse refletir sobre aqueles acontecimentos. Mas, então, a mente dele sussurrou: "O amanhã nunca chegará para ela, não é?" Ele só tinha aquele momento e, se queria beijá-la, bem, tudo que tinha de fazer era beijar.
Kaye se moveu ligeiramente para longe dele, dobrando os joelhos contra o peito.
? Isso poderia irritá-la? ? Novamente Roiben não precisava perguntar a respeito de quem ela estava se referindo.
? Não ? respondeu ele, esfregando uma das mãos pelo próprio rosto, dando uma risadinha. ? Dificilmente. Isso sem dúvida a divertiria.
? E a outra... a outra senhora?
Ele fechou os olhos em reflexão, como se algo houvesse sido atirado nele. Ele imaginou a razão pela qual estava apaixonado por uma garota que era capaz de dividi-lo com o comentário mais casual, desequilibrá-lo com a pergunta mais vã e ardente.
? Você pode me beijar se quiser ? disse Kaye, sua voz era suave e rude ao mesmo tempo, antes que ele pudesse achar uma resposta. Parecia que a mágica havia se extinguido dela, pois os olhos de Kaye estavam tão límpidos quanto estavam anteriormente brilhantes. Ele não era capaz de dizer se o feitiço da rainha a havia dominado ou que coações o encantamento havia colocado na cabeça dela. ? Eu deveria parar de ficar lhe fazendo perguntas estúpidas.
Ele se inclinou para frente, mas alguém estava batendo à porta, as batidas eram suaves, porém insistentes. Por um momento, Roiben não se moveu. Queria dizer algo a respeito dos olhos dela, talvez fazer uma pergunta mais esclarecedora sobre o encantamento ou ao menos alguma que produzisse uma resposta melhor. Dizer-lhe que poderia perguntar para ele qualquer coisa que desejasse. E que queria beijá-la, desejava isso tão desesperadamente que mal foi capaz de se pôr de pé, marchar até a porta e abri-la com um certo esforço.
De alguma forma, a Hábil Torta arranjara um barrete vermelho para fazer os serviços de entrega. O entregador estava de pé no batente da porta, fedendo a sangue coagulado e putrefação. Dentes pontudos eram visíveis enquanto ele sorria, olhando, além de Roiben, para a menina que estava na cama.
Roiben arrancou a veste branca das mãos da criatura.
? É melhor que isso esteja limpo.
? A senhora deseja saber se você já terminou com ela. ? O olhar malicioso estampado no rosto do barrete vermelho deixava óbvia a maneira como ele interpretava aquelas palavras.
A fúria cresceu dentro de Roiben, perturbando-o de forma tão inesperada que teve medo de estar tremendo. Ele respirou fundo uma vez e depois outra. Acreditava que o mensageiro não deveria ter reparado em seu estado. Barretes vermelhos não prestam muita atenção em detalhes.
? Você pode dizer a ela que ainda não terminei ? disse Roiben, encontrando aquele olhar que ele esperava ser fruto de uma risadinha e uma inclinação de cabeça como cumprimento quando fechou a porta ?, mas eu espero fazê-lo em um curto período de tempo.
Roiben se virou novamente, ficando de frente para Kaye, o rosto dela não apresentava nenhum tipo de expressão.
Ele engoliu a emoção que sentia sem ao menos se dar ao trabalho de identificá-la.
? Vista-se ? ordenou Roiben asperamente, sem tentar esconder o ódio em sua voz, deixando que Kaye achasse que a raiva era direcionada a ela. Jogou a camisola na direção da menina, observando-a sobressaltar-se quando a seda escorregadia deslizou pela beirada da cama, observou-a se abaixar, sem dizer uma palavra, para pegá-la novamente.
Ela não confiava nele afinal de contas. Isso era bom.
? Está na hora ? disse ele.















10


"Uma palavra morre
Quando é dita
Alguns dizem.
Eu digo que ela só
Começa a viver
Nesse dia." (

? EMILY DICKINSON
"VI. A Word."

Corny mergulhou um pouco mais na água morna e lodosa enquanto Nephanael andava impetuosamente pela sala. A fada que havia cortado o cabelo e passado óleo no corpo dele terminou suas tarefas e se foi sem que precisasse receber nenhuma ordem para isso.
? Elas deixaram você lindo. ? Os olhos amarelos de Nephanael refletiam na luz bruxuleante das velas.
Corny, semiconsciente, mudou de posição. O óleo causava uma sensação estranha na pele, mesmo debaixo d'água. O pescoço coçava onde fios perdidos de cabelo cortado haviam grudado no óleo.
? Me deixar bonito é o mesmo que transformar latão em ouro ? murmurou ele, esperando ter soado espirituoso.
? Você está com fome? ? perguntou Nephanael, naquela sua voz encorpada. Corny queria perguntar sobre Kaye, mas isso era tão difícil de ser feito enquanto o cavaleiro andava em direção a ele, devagar, ainda que em passos largos.
Corny balançou a cabeça afirmativamente. Não confiava na própria voz. Ainda não conseguia acreditar totalmente que Nephanael o havia tirado daquela vida miserável e ridícula, e o levado para esse mundo.
? Neste país há frutas que são mais saborosas do que toda a carne de sua terra. ? Os lábios largos dele se curvaram em um sorriso.
? E eu tenho permissão para comê-las?
? Claro, claro. ? Nephanael apontou para uma pilha de roupas. ? Vista-se, eu as mostrarei.
Corny ficou ao mesmo tempo agradecido e desapontado quando Nephanael o deixou a sós para que se vestisse. Jogando apressadamente a túnica de veludo azul e a calça justa sobre o corpo, Corny ignorou a umidade de sua pele.
Nephanael o esperava no hall. Ele passou os dedos pelo cabelo de Corny, penteando-o com as mãos.
? Um elogio pode levar alguém para o mau caminho, tenho certeza.
Com aquelas mãos em seu corpo, dificilmente Corny conseguiria pensar em uma resposta.
? Venha ? disse Nephanael, e Corny o seguiu.
Cera proveniente das velas pingava pelas paredes, formando uma imitação de estalactites sobre eles.
Nephanael e Corny atravessaram as portas abertas de hera prateada que davam para um jardim onde os galhos das árvores quase arrastavam no chão de tão carregados de maçãs prateadas. Um caminho delgado de pedras brancas circundava as árvores e se espalhava ao longo do jardim. Acima do pomar, o teto curvado era claro como se fosse dia, e eles não mais estivessem debaixo do monte. Corny sentia o cheiro da terra recém revirada, da grama cortada e de frutas que apodreciam.
? Vá em frente ? encorajou Nephanael, fazendo um movimento com a cabeça na direção das árvores. Coma tudo que desejar.
Corny não tinha mais tanta certeza se estava com fome. Entretanto, para ser educado e não ofender o cavaleiro, atravessou o pomar e arrancou uma maçã de uma das árvores. A fruta cedeu facilmente. A casca prateada era quente ao toque, como se corresse sangue por baixo de sua superfície.
Corny olhou para Nephanael, que aparentemente estava examinando um pássaro branco empoleirado em uma das árvores. Corny deu uma mordida cautelosa na fruta.
Tinha gosto de plenitude, de pensamentos, desejos ansiosos e repletos de cobiça, tanto que aquela única mordida o deixara faminto. Nephanael sorriu com pretensão enquanto observava Corny lamber a fruta mordida, devorando a polpa, desmoronando, caindo de joelhos, sugando o caroço pálido escondido no centro da maçã.
Muitos dos componentes da turba se reuniram para vê-lo se empanturrar, rostos belos com feições ascendentes e olhos marejados de lágrimas voltados para ele como flores. Eles davam gargalhadas. Corny mal percebia que Nephanael ria ruidosamente. Uma mulher com chifres finos e curvos jogou uma ameixa amassada para Corny. A ameixa se partiu no chão e ele correu para sorver a polpa gulosamente, engolindo até mesmo a terra que grudara na casca. Quando não sobrou mais nada, ele lambeu o chão em busca de uma gota escurecida.
Formigas pretas se arrastavam por cima das frutas viscosas caídas das árvores, e ele também as comeu, procurando cegamente por qualquer pedaço.
Depois de um tempo, Nephanael se pôs diante dele e pressionou um biscoito contra os lábios do rapaz. Corny deixou que o biscoito entrasse em sua boca sem pensar. Tinha gosto de serragem, mas ele o engoliu.
O biscoito caiu como uma pedra no estômago de Corny, e a fome esmagadora e sem sentido foi enfraquecendo. Isso fez com que ele se agachasse debaixo de uma árvore, desperto e atento. Corny olhou para suas mãos imundas, as roupas manchadas, o Povo Encantado que gargalhava e teve de prender a respiração para não chorar como uma criança por pura impotência.
? Olha só ? exclamou Nephanael, dando tapinhas no ombro de Corny.
Corny ficou de pé, cerrando os punhos.
? Pobre Corny. Parece tão frágil, temo por seu coração, ele pode se despedaçar. ? Havia graça no tom de voz do cavaleiro.
Corny podia sentir que estava reagindo ao ouvir aquela voz encorpada e acetinada, podia sentir o constrangimento e a humilhação recendendo até que parecessem apenas algo de vaga importância.
? Venha até aqui, meu bichinho. Você se emporcalhou todo. ? Nephanael ergueu uma das mãos e acenou.
Um simples vislumbre daqueles olhos amarelos poderiam partir alguém como se fosse um palito de dente. Corny adentrou no círculo formado pelos braços de Nephanael, aquecendo-se com a sensação causada pelos espinhos.


Naquela noite, os foliões estavam mais quietos. Não havia duelos de violinistas ou gays espalhafatosos dançando. Não havia pilhas de frutas nem bolos de mel. Em vez disso, havia sussurros e risadas sufocadas. As únicas luzes vinham de braseiros espalhados por todo o palanque e de pequenas fadas que voavam por cima da congregação.
Era difícil pensar. Os pés de Kaye estavam congelando à medida que iam caminhando, descalços, pelo chão de terra. A confusão causada pela magia foi se dissipando aos poucos, mas quanto menos enfeitiçada ela estava, maior era o seu terror.
Ela ia morrer. O fato de os pés estarem gelados não tinha a menor importância.
As costas de Roiben estavam diante dela, o cabelo de peltre escorregava como mercúrio pelos ombros do casaco enquanto ele a conduzia através da multidão.
Ela não morreria, Kaye lembrou a si mesma. Aquilo era um jogo. Apenas um jogo.
Um dedo se ergueu, inconsciente, para tocar-lhe a boca, o toque era estranhamente macio e inchado. Ela se lembrava muito bem da pressão dos lábios de Roiben, a suavidade deles, e se recordou da expressão que ele trazia no rosto quando recuou para longe dela ? horror, talvez, ou nojo. Ela balançou a cabeça para fazer com que essas lembranças desaparecessem, mas tudo se tornava mais claro.
Alguns dos olhos que se voltaram para Kaye quando ela passava faiscavam de ganância, e a menina especulou sobre como as fadas independentes haviam planejado dividir o que restaria dela.
Uma das mãos de Roiben agarrou com força a parte superior do braço dela, guiando-a através de criaturas tão belas quanto grotescas. A lama grudava nos pés descalços de Kaye, e ela se concentrou nisso para tentar se acalmar.
A rainha estava de pé no que parecia ser uma grande pista de dança prateada. A plataforma era composta de muitas partes, cada uma delas encravada com representações de terras de humanos e de seres encantados encaixadas como se formassem um quebra-cabeça. No cetro, Kaye podia ver com facilidade algemas ligadas a correntes curtas e pesadas. Ao contrário da base, as algemas e as correntes eram inconfundivelmente feitas de ferro. Ela podia sentir o cheiro.
As camadas de mantos negros e diáfanos que Nicnevin vestia esvoaçavam ao sabor da brisa. A camada mais comprida, composta pela cauda, era erguida por três gnomos serviçais em pontos diferentes. O colarinho era engomado, se erguendo como uma barbatana negra e translúcida por trás do pescoço dela. Kaye voltou os olhos para o colarinho e deixou que seu olhar se perdesse nas curvas dos montículos de tranças vermelhas empilhadas na cabeça da rainha, deixou que seu olhar se voltasse para qualquer lugar que não aqueles olhos mortalmente azuis.
Roiben se abaixou, apoiando-se em um dos joelhos, e ela não precisava ter nenhuma pressa para acompanhá-lo.
? Ergam-se ? ordenou a rainha. E Kaye e Roiben se levantaram.
A rainha fez um gesto dispensando Roiben, um movimento impaciente de uma das mãos. Ele hesitou por um momento e então se aproximou da rainha, ficando de joelhos novamente.
? Daria qualquer coisa para libertá-la ? disse Roiben tão baixo que Kaye estava certa de que só aqueles que estavam mais próximos ouviram. Ele olhou fixamente para baixo, para o chão de barro ou para as pantufas que cobriam os pés da rainha, Kaye não tinha certeza.
A sinceridade contida na voz de Roiben a apavorou. Não havia nenhuma cautela na maneira como falava. Será que ele achava que tinha de retribuir alguma dívida que acreditava ter com ela? Será que achava que precisava fazer aquilo porque a beijara?
As mãos de Nicnevin afagaram a parte superior da cabeça de Roiben. A voz dela era tão suave quanto a dele, mas o olhos faiscavam com um prazer feroz. O olhar dela estava voltado para algum lugar distante dele, na escuridão além da plataforma.
? Você ainda é meu servo em todas as coisas, não é? Há algo em você que eu ainda não possuo?
Nesse momento, ele ergueu a cabeça, olhando para cima, na direção dos olhos azuis da rainha Indigna, e Kaye sentiu vontade de gritar uma advertência, ou alguma outra coisa, mas o momento estava congelado e ela não conseguiu se mover.
? Talvez eu possa oferecer o meu entusiasmo ? disse ele. ? Foram tantas as vezes em que você reclamou que ele me faltava.
Os lábios da rainha se curvaram nas extremidades em um quase sorriso, mas ela não parecia estar se divertindo.
? Acho que não. Descobri que gosto de você teimoso.
? Deve haver algo ? insistiu Roiben.
Nicnevin pôs o dedo indicador contra os lábios carmins e deu pancadinhas de leve. Quando falava, a voz dela era alta o suficiente para atravessar o anfiteatro do monte oco.
? A tragédia é tão constrangedora. Sinto-me instigada a oferecer-lhe um jogo. Você gostaria de jogar comigo?
? Fico agradecido, milady ? disse Roiben, ainda com a cabeça abaixada em reverência.
Ela voltou o olhar para Kaye.
? Bem, criança, parece que, apesar de tudo, você agradou meu cavaleiro. Responda à charada e a corte Indigna a entregará a ele.
Houve um murmúrio na multidão. Kaye balançou a cabeça, sem ter certeza do que constituía a propriedade em uma corte de seres encantados. Havia satisfação verdadeira na voz da rainha:
? Corte-me e eu irei chorar lágrimas tão vermelhas quanto a minha carne, ainda que meu coração seja feito de pedra. Por favor, diga-me, garota mortal, quem sou eu?
Você é você mesma, ora. Kaye mordeu os lábios para conter a risada histérica que ameaçava bombardear a garganta dela. Tudo bem ? pele vermelha, centro de pedra ?, o que batia com aquela descrição? Ela pensou em uma velha história da qual se lembrava vagamente a respeito de alguém que teve o coração transformado em pedra e lágrimas fizeram com que voltasse ao normal, mas não tinha certeza da onde vinha aquela lembrança. Não, charadas geralmente são simples, coisas de senso-comum, que podem ser respondidas com uma única palavra. Elas sempre parecem óbvias uma vez que você sabe a resposta.
Carne. Poderia ser talvez algum tipo de fruta? E a pedra seria o caroço? Ah, uma cereja. Isso era para ser engraçado?
Kaye mordeu um dos lábios. Se respondesse à charada corretamente, poderia ir caminhando até a saída daquele lugar, algo que queria desesperadamente fazer. Ela passou os olhos por ambos os lados da rainha, procurando por Spike ou Lutie, mas, se eles estivessem em meio à multidão, não os acharia apenas com olhares sorrateiros. Andar até a saída não fazia parte do plano. Naquele exato momento, ela não tinha muita certeza se dava muita importância para o que fazia ou não parte do plano.
Ela mordeu o lábio com mais força quando percebeu o quão longe Roiben havia ido por ela. Será que Lutie e Spike perceberiam que ela poderia precisar de proteção enquanto prisioneira da corte Indigna? Se os vários comentários que ela ouvira naquela noite fossem alguma indicação, Roiben estava sendo um santo ? estava claro que um cavaleiro da Turba poderia fazer o que quisesse com um prisioneiro humano. Naquele momento, sabendo de tudo aquilo, se Spike achava que Roiben era um canalha, por que a havia convencido a seguir em frente com um plano que a deixava nas mãos dele pela maior parte da noite?
Não, ela iria responder à pergunta antes que as coisas fugissem do controle. Ela iria responder à pergunta, contar tudo a Roiben ? sobretudo o quão arrependida ela estava ? e esperar que ele entendesse. Então ela acharia Spike e conseguiria algumas respostas de verdade.
? Uma cereja ? respondeu Kaye o mais firmemente que pôde.
Roiben soltou o ar com um silvo agudo apesar de ainda permanecer de joelhos. Ela imaginou por quanto tempo ele prendera a respiração.
? Milady, a senhora não pode... ? começou o escriba com cara de raposa, mas a rainha pôs fim ao apelo com um gesto de mão.
? Erga-se, meu cavaleiro. Você escolheu bem. Ela é sua.
Roiben se ergueu e virou-se levemente para a direção de Kaye, seu rosto trazia uma expressão de alívio. Kaye estendeu uma das mãos para ele. Ela explicaria tudo assim que eles fossem dispensados. Faria com que ele entendesse.
? Agora, eu ordeno que você ofereça seu prêmio para ser sacrificado na cerimônia do Tributo.
A multidão caiu na gargalhada.
Kaye viu a fúria e a vergonha fundindo-se em algo terrível. Ela viu a mão de Roiben puxar o punho da espada.
Então ele pareceu recuperar o controle de si mesmo e se inclinou em reverência à sua rainha com um sorriso. Voltando-se para Kaye, ele apertou os lábios contra o pescoço dela, as mãos envolvendo a cintura da menina, falando bem próximo à sua pele, de forma que só ela pudesse ouvi-lo.
? O que pertence a você, mas que os outros usam mais do que você?
A boca de Roiben, se movendo contra a pele do pescoço de Kaye, fazia com que ela tremesse. Ela abriu a boca para falar, mas ele balançou a cabeça, erguendo a mão para que o polegar corresse pelo queixo dela.
? Pense nisso.
Roiben a abandonou e caminhou com arrogância até a extremidade da plataforma, para se juntar aos outros cavaleiros.
Três figuras vestidas em mantos brancos acorrentaram Kaye, as mãos enluvadas pesadamente eram cuidadosas ao lidar com o ferro. Primeiro, elas algemaram os tornozelos da menina e, depois, os pulsos. As algemas de ferro queimavam brandamente quando em contato com a pele dela.
Quatro cavaleiros da corte Indigna ficaram de pé ao redor de Kaye, cobrindo os pontos norte, sul, leste e oeste. Roiben estava ao sul, próximo aos pés dela. Os olhos dele não encontraram os de Kaye.
O que pertence a você, mas que os outros usam mais do que você?
O escriba com cara de raposa da rainha ergueu ambos os braços, e toda a plataforma ficou inteiramente silenciosa. Sinistramente silenciosa. Kaye procurou por algum rosto conhecido na multidão. Por um momento, pensou ter visto Spike, mas não tinha certeza. Havia tantas criaturas ali.
Mais chamas verdes tremeluziam pelas extremidades da plataforma, lançando sombras estranhas.
Em algum lugar longe do círculo, um tambor solitário começou a ser tocado.
A rainha Indigna começou a falar, a voz ecoando pelo silêncio contíguo.
? Reunimo-nos nesta noite sagrada para cumprir nosso débito sagrado. Nesta noite, nós que dominamos devemos nos ajoelhar.
Como se fosse um único ser, a corte Indigna ficou de joelhos. Apenas as fadas independentes permaneceram de pé. Até a rainha se ajoelhou, amassando o vestido, que caía em camadas ao redor dela.
? Nós, a corte Indigna, guardiões dos segredos da Terra, aqueles que dominam o sangue e os ossos, oferecemos um sacrifício voluntário pela obediência voluntária daqueles que habitam em nossas terras.
Obviamente, o fato do sacrifício voluntário estar acorrentado não aborreceu ninguém, pensou Kaye. O toque lento do tambor estava se tornando enfurecido. Um contraste calmo com o coração dela, que estava batendo como se fosse explodir na gaiola formada pelas costelas.
A rainha Indigna continuou a falar:
? Que sacrifício estamos oferecendo?
A corte respondeu a uma só voz:
? Sangue mortal. Espírito mortal. Paixão mortal.
Mais distante, em um dos lados da rainha, os olhos de Kaye finalmente encontraram Corny, cujo rosto não trazia nenhum tipo de expressão, ao lado de Nephanael. O cabelo marrom pálido dele fora cortado muito mais curto e penteado para a frente. Isso e a ausência dos óculos faziam com que ele parecesse franzino e vulnerável. Corny estava totalmente vestido de veludo azul, adornado como se estivesse esperando para encenar um drama jacobino quando o sacrifício estivesse terminado.
Nephanael a observava com seus implacáveis olhos amarelos. Kaye esperava que ele, em breve, fizesse alguma coisa.
Experimentalmente, ela tentou buscar a própria magia para arrancar a ilusão que estava sobre ela. O feitiço não esmoreceu. A sensação era de que ele era pesado como um lençol molhado. Ela não podia nem mesmo sentir as asas.
? O que pedimos em retorno? ? A voz da rainha Indigna soava bela e terrível.
Novamente, a Turba respondeu:
? Obediência. Restrição. Submissão.
O olhar de Kaye mudou de direção e encontrou os olhos de Roiben. De joelhos, declamando as palavras do ritual, os olhos em chamas enquanto tentava se comunicar com ela através de improváveis canais de expressão.
O que pertence a você, mas que os outros usam mais do que você?
Essa era, obviamente, outra charada. O que pertence a você? No mundo das charadas, isso é o básico ? corpo, mente, espírito. Kaye tinha certeza absoluta de que ela usava esses pertences mais do que qualquer outra pessoa.
? Nós perguntamos: vocês entenderam o pacto que estamos oferecendo?
Dessa vez foram as fadas independentes que falaram, as vozes não estavam bem sincronizadas, criando um efeito semelhante ao de ecos.
? Nós entendemos.
Kaye percebeu que estava olhando para trás. Roiben queria que ela fizesse alguma coisa. A charada era sobre algo que ela já sabia.
Kaye olhou para o rosto retorcido de Roiben e entendeu aquilo tão completamente que sentiu uma pancada que lhe deixou com falta de ar.
O que pertence a você, mas que os outros usam mais do que você?
O seu nome.
A voz da rainha Indigna quebrou a concentração dela. A rainha parecia estar falando compassadamente com o tambor distante.
? Vocês aceitam essa mortal como sacrifício?
? Nós aceitamos.
Kaye olhou ao redor, agora em pânico. Para que diabos Roiben queria que ela usasse o nome dele? O palanque era imenso e estava lotado. Será que ele realmente achava que conseguiria tirá-la dali de alguma forma?
? Então vocês se sujeitam a nós?
As fadas independentes responderam a uma só voz:
? Nós nos sujeitamos a vocês.
Kaye não conseguia evitar suas tentativas frenéticas de arrancar as correntes. O pânico se espalhava por ela como líquido, transformando seu sangue em gelo.
? Qual é a duração da servidão de vocês?
O amanhecer estava se aproximando. Kaye viu o vermelho inflamando-se através das chamas verdes que queimavam.
? Sete anos é a extensão de nossa servidão. A rainha baixou sua adaga.
? Que o pacto seja selado com sangue.
Ninguém se aproximava para salvá-la. Kaye puxou as correntes com força, jogando todo o seu peso contra elas, mas elas eram apertadas e a extremidade da palma de sua mão não era capaz de escorregar pelas algemas. Elas a queimavam ainda mais quando Kaye se mexia. A rainha Indigna parecia surpresa. Kaye indistintamente percebeu que a calma e o silêncio dela deviam fazer com que parecesse ainda estar enfeitiçada.
Ela lutou para abafar seu pânico por tempo suficiente para que pudesse pensar.
Tinha de usar o nome dele. Ela não tinha idéia do que ordenar para ele.
Um comando específico... Me salve... Pare isso... Me tire daqui?
Roiben estava olhando fixamente para ela.
Como ele poderia querer que ela agisse? Isso não fazia nenhum sentido, mas não havia mais tempo para pensar.
? Rath Roiben Rye. ? A voz dela era macia, as palavras correndo juntas em seu pânico. Ela se deu conta do que estava fazendo e sua garganta quase se fechou. ? Corte minhas amarras.
Roiben sacou sua espada, tão delgada que tinha a largura de um dedo, e a rainha Indigna se agitou ruidosamente. Houve um momento de hesitação e então ele sorriu. Aquele foi um sorriso sombrio e terrível, a expressão mais horrível que ela já vira.
Três cavaleiros vieram para cima de Roiben antes mesmo que ele alcançasse o interior do círculo. A pesada espada do cavaleiro verde se chocou contra Roiben no mesmo momento em que um cavaleiro vestido de vermelho golpeou as costas dele. Roiben desviou, mais rápido do que ela poderia acreditar, e sua lâmina dilacerou o rosto do cavaleiro. O ser de vermelho apertou os olhos, cambaleante, sua espada caiu com estrondo dentro do círculo.
Roiben tentou defender um golpe do terceiro cavaleiro, uma mulher que empunhava um machado, mas já era tarde. A lâmina atingiu-lhe o ombro direito com tanta força que provavelmente alcançara o osso.
Roiben cambaleou para trás, arfando de dor, a espada pendendo de sua mão direita, a ponta sendo arrastada pelo círculo de metal. A arma voltou à vida no tempo exato para apunhalar o ombro do cavaleiro verde enquanto ele investia para a frente. O cavaleiro caiu ao lado de Roiben, completamente inerte. Havia apenas um pequeno buraco na armadura dele, mas o orifício já estava coberto de sangue.
Roiben e a mulher ficaram andando em círculos um de frente para o outro, trocando tentativas de golpes. As armas deles não eram adequadas para esse tipo de combate, a espada de Roiben era muito frágil e o machado da mulher muito lento, mas ambos os combatentes eram perigosos o suficiente para compensar esse fato. Ela investiu para frente, balançando o machado mais na direção do braço dele do que na do torso, esperando pegá-lo com a guarda em baixa. Ele desviou dando um passo para o lado, esquivando-se do golpe, mas a perdendo de um largo movimento da própria lâmina.
Outras tropas Indignas avançavam na direção deles, tantas e tão variadas que Kaye não conseguia contá-las ? trolls, trasgos e barretes vermelhos. A rainha estava calada, os lábios contraídos formando uma linha fina.
Kaye puxou as correntes, arqueando o corpo para cima com força. Nada se soltou.
O sangue escureceu o tecido no ombro de Roiben em uma mancha imensa e perturbadora. Mesmo quando ela o viu golpear um dos lados do tronco da mulher com força o suficiente para fazê-la ficar de joelhos, havia mais dez oponentes circundando-o. Houve uma indistinção de defesas e ataques, o corpo de Roiben girando para talhar uma mão com garras, para estripar uma barriga exposta.
E mais estava por vir.
Kaye virou a cabeça o máximo que era capaz e cuspiu nas mãos, tentando, inutilmente, lubrificá-las o suficiente para que escorregassem pelas algemas, murmurando:
? Não, não, não.
Agora a rainha berrava, mas Kaye não conseguia entender suas palavras sob o ranger das lâminas e os gritos dos espectadores.
Uma pequena forma se esgueirou por trás de Kaye na plataforma de metal. Spike estava escarafunchando as algemas que prendiam os punhos dela com uma faquinha.
? Isso está muito, muito ruim ? disse o homenzinho. ? Ah, Kaye, tudo está indo mal.
? Ele vai morrer! ? gritou ela. E então lhe ocorreu o que poderia fazer. Ela gritou, o mais alto que pôde:
? Rath Roiben Rye, corra!
A rainha Indigna deu um pulo ao ouvir isso e, com uma expressão furiosa no rosto, ela avançou na direção de Kaye. Os lábios estavam repuxados graças às palavras que exclamava, mas Kaye ainda não podia ouvi-las.
Roiben golpeou outro oponente, mantendo-se ainda de costas para Kaye. Ela não sabia nem se ele ouvira sua ordem. Talvez ele já tivesse corrido o mais rápido de que era capaz.
? Rápido, Spike ? disse Kaye, lutando para manter o corpo afastado do animal adornado que batia os membros agitadamente, tentando impedir que Spike tivesse qualquer chance de arrebentar o fecho.
As sobrancelhas do homenzinho estavam estreitadas em uma concentração furiosa, os dedos queimados onde haviam tocado o metal. De repente, ele foi golpeado para o lado como se houvesse sido atingido por mãos invisíveis.
? Enquanto você tem se divertido a maior parte do tempo, eu tenho achado tudo isso tedioso. ? A rainha da corte Indigna posicionou um dos pés calçados com pantufas na garganta de Kaye. A menina soltou um silvo, a pressão havia lhe cortado o ar, ameaçando quebrar-lhe o pescoço.
Então, a pressão desapareceu e a rainha começou a cair. Gotículas de sangue salpicaram a bochecha de Kaye antes de a rainha tombar sobre ela. Houve um ruído sibilante quando a face da rainha tocou o metal. Ela estava morta.
Roiben voltou o olhar para baixo, observando-a, mas os olhos dele estavam fora de foco e traziam uma expressão de fúria. Havia uma mancha de sangue na boca do cavaleiro, mas Kaye não achava que aquele sangue pertencesse a ele. Roiben ergueu a espada, e ela só teve tempo suficiente para gritar antes de a lâmina estraçalhar as correntes que atavam seus tornozelos, atingindo o metal com tanta força que este chegou a ressonar.
Spike estava se arrastando para perto dela novamente, bisbilhotando o corpo inerte da rainha Indigna e murmurando. Um silêncio caiu sobre a corte.
De repente, houve uma ondulação no ar que cercava Kaye. Ela podia sentir a magia rodopiando ao seu redor, fazendo com que as algemas de ferro que ainda estavam presas aos pulsos e aos tornozelos queimassem insuportavelmente. Subitamente, a pele se tornou muito justa, muito quente, descascando como havia acontecido no gramado da casa dela, mas, dessa vez, não aconteceu aos poucos. As asas se libertaram, rasgando a carne fina que as continham assim que Roiben golpeou a espada contra a corrente que prendia a mão direita de Kaye.
Os olhos de Roiben se arregalaram e ele tropeçou enquanto andava para trás. Estava tão atordoado que se descuidou da própria defesa enquanto outro barrete vermelho investiu contra ele. Roiben se virou, quase que tarde demais, e a pequena lâmina curva do barrete vermelho cortou a coxa dele.
Sem a proteção da ilusão intensa e estranha, o ferro queimou os pulsos e os tornozelos de Kaye como fitas em brasa. Ela gritou de dor, lutando para tirar aquelas coisas, para sair debaixo do corpo da rainha, que pesava sobre o dela.
Spike aparentemente havia se recuperado o suficiente para voltar a trabalhar nas algemas e, naquele momento, ele conseguiu romper a única fechadura remanescente e soltá-la da corrente. A carne estava cheia de bolhas onde o ferro tocara.
? Temos de ir! Ande! ? Spike puxava a mão de Kaye, o rosto dele pálido de medo.
A corte explodiu num caos ao redor deles. Ela não podia dizer quais das criaturas que lutavam, corriam ou se escondiam eram inimigas ou se, na verdade, havia algum amigo seu ali, a não ser o duende que implorava de joelhos para que eles se apressassem. E Roiben, cuja espada fazia um volteio em forma de arco, colidindo com uma lança empunhada por uma criatura sarapintada e cujos olhos dourados brilhavam.
Sangue escorria da mão direita de Roiben, ensopando, também, a perna esquerda de suas calças. Os movimentos dele se tornavam difíceis, ela podia ver isso.
Kaye tentou se distrair da dor causada pelo ferro e se concentrar em se pôr de pé.
? Não podemos deixá-lo aqui.
Uma saraivada de pinhas eram atiradas por cima deles, explodindo em chamas quando caíam.
? Ah, sim, nós podemos ? disse Spike, puxando com determinação renovada. ? É melhor que ele não te domine depois de você ter usado o nome dele desse jeito.
? Não, você não está entendendo ? rebateu ela, mas Kaye sabia que era ela quem não tinha entendido. Era ela quem havia tentado fingir. O tempo todo Roiben estava sabendo que havia lhe oferecido sua própria vida.
Seu idiota, ela queria berrar.
? Rath Roiben Rye, eu ordeno que você caia fora dessa porra de lugar comigo e com Spike agora! ? gritou
Kaye o mais alto que pôde, certa de que dessa vez ele estava perto o suficiente para escutá-la.
Roiben se virou, os olhos faiscando de fúria. Parecia canalizar a raiva para sua espada, pois seu próximo golpe cortou a garganta da criatura de olhos dourados.
Kaye cambaleou de pé, tentando se sustentar sobre os joelhos, tentando não cair na escuridão. Os tornozelos e os pulsos queimavam, e os únicos odores e aromas que podia sentir eram os do ferro.
Então Roiben começou a empurrá-la pela multidão com a mão que estava encharcada de sangue. Ele a arrastava enquanto corria. Spike estava ao lado deles e também andava depressa.
Assim que abandonaram a plataforma, uma figura avançou contra eles, porém ela foi abatida antes que percebesse alguma coisa além de algo inoportunamente alto e de cor cinza pálida.
Logo eles estavam no cemitério, descendo, desembestados, pelo caminho de quartzo semidestruído, passando por túmulos demarcados por canteiros de flores de plástico e latas de soda amassadas, pisando em bitucas de cigarros que pareciam talismãs que talvez pudessem manter os monstros dentro do monte.
Até que Kaye se deu conta de que ela era um dos monstros.










11


"Mas para que você não se torne meu inimigo
Devo indagar."
"Oh, não, minha cara, deixe estar
O que importa, se tudo que há é apenas o fogo
Em você, em mim?" (

? YEATS
"The Mask"

Kaye caminhou pela entrada de carros, o Pinto? de sua mãe parecia ao mesmo tempo familiar e estranho, como se fosse parte de uma pintura que se, de repente, fosse virada de lado, revelaria ser plana. A porta da varanda de trás parecia um portal entre dois mundos e, apesar de ela estar tão perto, Kaye não estava certa se tinha permissão para entrar no outro mundo além da cozinha.
Mais do que cansada, ela se sentia entorpecida.
Roiben se encostou num olmo e fechou os olhos, a espada desembainhada balançava debilmente em uma das mãos. O corpo tremia levemente e, perto de coisas familiares, o sangue que lhe ensopava o braço e a coxa era horripilante.
Nesse exato momento, Lutie investiu para baixo, vinda de uma das árvores, voando ao redor de Kaye duas vezes antes de pousar no ombro dela e se equilibrar com dificuldade para estampar um beijo na pele úmida do pescoço da amiga. Isso surpreendeu Kaye, fazendo-a recuar devido ao toque súbito.
? Assustada, boba assustada, assustada, assustada, assustada ? cantarolou Lutie contra o pescoço de Kaye.
? Eu também ? disse ela, apertando em uma das mãos o corpinho agitado.
? Até o cair da noite já terão escrito um monte de músicas a seu respeito. ? Os olhos de Spike brilhavam de orgulho.
? Teriam duas vezes mais músicas se eu tivesse morrido como você havia planejado, não é?
Os olhos de Spike se arregalaram.
? Nós nunca...
Kaye mordeu o lábio, forçando-se a engolir a histeria que ameaçava escapar de sua garganta.
? Se Nephanael ia tirar a ilusão de mim, ele teria que retirá-la do meu cadáver.
? Dispense-me, fada ? pediu Roiben. Ele olhava para eles com um olhar tão vazio que fazia o estômago de Kaye revirar. ? Fui descuidado. Não vou guardar ressentimentos seus nem deles, mas essa tolice irá terminar agora.
? Eu não planejei isso... Seu nome. Nunca tive a intenção de usá-lo para o que quer que fosse. ? Kaye estendeu uma das mãos para acariciar a ponta da manga da camisa dele.
O efeito foi instantâneo. Roiben circundou o pulso dela com uma das mãos e o torceu com força. Lutie soltou um grito agudo, saltando do ombro de Kaye para o ar.
Não havia raiva na voz de Roiben, nem sarcasmo ou fúria. O tom era tão estranhamente vazio quanto os olhos dele.
? Se deseja que eu suporte o seu toque, deve me dar uma ordem para que eu o faça.
Então o cavaleiro deixou que a mão caísse tão depressa que parecia que ela era feita de ferro. Kaye tremia, amedrontada demais para chorar, muito infeliz para falar.
Spike olhou para ela com os olhos arregalados, como se estivesse argumentando com uma lunática:
? Bem, Kaye, então diga-lhe que se vá. Ele disse que não guardaria rancor... Essa é uma oferta generosa.
? Não ? disse ela, mais alto do que era sua intenção. Todos olharam surpresos para Kaye, apesar do olhar de Roiben ter se tornado sombrio.
Ela precisava explicar. Virou para ele, tomando cuidado para não tocá-lo.
? Vamos para dentro. Você pode limpar os seus cortes lá. Eu só quero me explicar. Você tem permissão para ir embora essa noite.
Os olhos dele não estavam mais apáticos; eles chispavam com raiva. Por um momento, ela pensou que Roiben fosse matá-la antes que conseguisse balbuciar o nome dele. Então pensou que ele poderia simplesmente sair andando, desafiando-a a contê-lo. Mas Roiben não fez nenhuma dessas coisas.
? Como você ordenar, minha senhora. ? As palavras saíam da língua dele como se formassem espirais, causando cortes tão profundos quanto Kaye acreditava que elas eram capazes de causar. ? Eu preferiria que ninguém mais soubesse como me chamo.
Spike contemplava o cavaleiro Indigno com os olhos semicerrados, aparentemente incapaz de controlar um arrepio. Lutie os observava de um dos galhos do olmo.
? A bruxa do Cardo precisará saber o que aconteceu essa noite ? disse Spike, devagar.
? Vá em frente ? incentivou Kaye. ? Podemos falar sobre isso mais tarde. Pegando a chave reserva debaixo de um vidro de alvejante empoeirado, abriu a porta o mais silenciosamente possível. Nenhum ruído vinha de dentro da casa.
Roiben seguiu Kaye pela cozinha, e a visão do cavaleiro fechando cuidadosamente a porta detrás e enchendo o que era provavelmente um copo sujo com água da bica era tão incongruente que ela teve de parar para observá-lo. Ele bebeu, inclinando a cabeça para trás para que a coluna do pescoço fosse encaixada em seu perfil. Ele devia ter percebido que Kaye o estava admirando. Assim que terminou o resto da água, Roiben olhou na direção dela.
? Perdão ? desculpou-se ele.
? Não, continue. Estava apenas indo fazer um pouco de café. Uhn, o banheiro é ali ? apontou ela.
? Você teria um pouco de sal?
? Sal?
? Para a minha perna. Não tenho certeza do que pode ser feito a respeito do braço.
? Ah. ? Ela remexeu a prateleira de temperos da avó e apareceu com um saleiro. ? Será que iodo ou alguma outra coisa não seria melhor?
Ele simplesmente balançou a cabeça carrancudamente e andou em direção ao banheiro.
Alguns minutos depois, ele retornou em sua ilusão mais humana. Como antes, o cabelo dele estava mais branco do que prateado, os ossos ligeiramente menos pontudos e as orelhas menos proeminentes. Estava sem camisa, e ela ficou desconcertada ao ver a quantidade de cicatrizes que Roiben tinha no peito. Ele devia ter encontrado gaze, pois uma de suas coxas parecia acolchoada debaixo da calça.
Kaye encheu duas canecas com café, alarmada em ver que suas mãos tremiam. Mexendo o açúcar em uma das canecas com uma colher, olhava para Roiben com um olhar de dúvida. Ele rejeitou o leite duas vezes com movimentos de cabeça.
? Quando vi você pela primeira vez, não sabia que eu era uma fada ? começou Kaye.
Ele levantou uma sobrancelha.
? Presumo que você sabia que não era humana quando me chantageou em troca de um beijo meu.
Kaye sentiu o rosto ser inundado por um calor. Fez apenas um movimento de cabeça.
? A pergunta é, obviamente, se você me auxiliou na floresta interessada na recompensa de saber meu nome.
Ela gaguejou, o sentimento de enjôo na boca do estômago se intensificava. Se era isso o que Roiben pensava, não era surpresa o fato de ele estar nervoso.
? Não havia como eu saber o que você iria me oferecer. Eu só queria irritar você na lanchonete... e... eu sabia que fadas não gostam de dar seus nomes verdadeiros.
? Um dia, alguém ainda vai cortar essa sua língua engenhosa.
Kaye mordeu o lábio inferior, enquanto ele falava. O que ela esperava? Uma declaração de amor por causa de um beijo frio?
Kaye olhou para a caneca fumegante diante dela. Tinha certeza de que se tomasse um gole iria vomitar.
Precisava de um cigarro. A jaqueta de Ellen estava pendurada nas costas de uma cadeira e Kaye procurou, nervosa, pelo cigarro e o isqueiro. Ela o acendeu, apesar do olhar surpreso de Roiben, e deu uma longa tragada.
A fumaça queimou os pulmões de Kaye como fogo. Subitamente ela se viu de joelhos no chão de linóleo, asfixiada, o cigarro queimava o ladrilho de plástico onde havia caído.
Roiben jogou o cigarro para longe com um volteio de sua bota e se inclinou para a frente.
? O que você estava fazendo?
? Eu fumo ? respondeu ela, sentando-se no chão. Os olhos já marejados devido à tosse não conseguiram mais conter as lágrimas. Parecia idiota que fosse aquilo que a fizesse cair em prantos, mas ela soluçou mais como se fosse vomitar sem ter nada no estômago do que por ter chorado.
? Cigarros são venenosos ? explicou Roiben, incrédulo ?, eles podem matar até mesmo os cavaleiros mais bravos.
? Eu sei. ? Ela apertou o rosto contra os joelhos, enxugou a bochecha com o traje de fada, desejando que fosse capaz de deixá-lo ir quando ele quisesse.
? Você está cansada ? disse ele com um longo suspiro que poderia indicar um sinal de chateação. ? Onde você dorme? Você também deveria considerar a necessidade de restaurar a ilusão sobre seu corpo. ? O rosto dele estava impassível, sem nenhuma emoção.
Kaye esfregou as lágrimas que escorriam pelas bochechas e assentiu com a cabeça.
? Você está cansado?
? Exausto. ? Roiben não deu exatamente um sorriso, mas o rosto dele relaxou um pouco.
Eles subiram as escadas sem fazer barulho. Os novos sentidos de Kaye a distraíam. Podia ouvir o ronco sibilante da mãe e a respiração mais leve e abafada da avó. No alto da escada, podia sentir o cheiro das lascas de madeira e do excremento dos ratos, o cheiro da química dos sabonetes e dos sprays no banheiro, podia sentir até mesmo o cheiro da grossa camada de poeira oleosa que cobria a maior parte das superfícies. De alguma forma, cada odor estava mais vívido e distinto do que ela poderia se lembrar de terem sido antes.
Ignore isso, disse para si mesma; as coisas estão do mesmo jeito do que da última vez em que ela havia removido a ilusão pesada. Só era desagradável descobrir que não poderia mais tocar em metade das coisas de metal da casa e saber que uma única tragada em um cigarro poderia matá-la.
Eles entraram no quarto dela e Kaye virou a chave de modelo antiquado para trancar a porta. Não tinha como explicar a presença de Roiben para a avó, estando ele usando ou não um feitiço de ilusão.
? Bem, eu vi o seu quarto ? disse ela ?, agora você está vendo o meu.
Ele atravessou a bagunça com dificuldade e se sentou no colchão que estava no chão. Kaye revirou os sacos de lixo e encontrou um edredom verde mofado e crispado de marcas de cigarro. O cor-de-rosa com que ela costumava dormir estava dobrado sobre o colchão, e Kaye torceu para que não estivesse fedendo a suor.
Roiben tirou as botas, olhando ao redor do quarto. Ela observou os olhos dele primeiro se fixarem na gaiola de ratos e depois nos montes de roupas, livros e revistas que cobriam o chão.
? Pode falar, parece um depósito de lixo ? ela sentou no estrado de molas que ainda adornava a armação da cama Branca.
Kaye o observou enquanto ele se esticava no colchão dela, fascinada pela forma com que os músculos compactos se moviam debaixo da pele. Ele parecia perigoso, apesar de estar cansado, com curativos e coberto pelo edredom cor-de-rosa de Kaye.
? O que você fez a ela? ? Ele olhou para cima através das pestanas prateadas de pálpebras pesadas de sono.
? O quê?
? À menina a quem esse quarto realmente pertence... O que você fez a ela?
? Vá se danar ? xingou Kaye com tanta raiva que por um minuto nem mesmo se importou com o fato de que deveria convencê-lo de que estava arrependida.
? Você acha que darei crédito às lágrimas de uma fada? ? perguntou Roiben, virando-se de modo que o rosto ficasse fora do campo de visão dela.
Críticas veladas estavam presas à língua de Kaye como espinhos, ferindo-lhe a garganta graças ao esforço de engoli-las. Ambos estavam cansados. Ela tinha sorte, ele ainda falava com ela.
Apesar de estar extremamente cansada, não conseguia dormir. Em vez disso, Kaye o observava enquanto ele se revirava, emaranhando os cobertores ao redor dele. Ela o admirava quando o rosto dele relaxou em exaustão, uma das mãos agarrando com força uma das pontas do travesseiro.
Roiben jamais parecera tão real para ela como naquele momento, o cabelo solto e despenteado, um dos pés descalços pendendo da extremidade do colchão sobre um livro que ela sempre quis devolver para a biblioteca.
Mas ela não queria pensar em Roiben como algo real. Não queria pensar nele de maneira nenhuma.

* * *

Kaye estava sendo sacudida para que acordasse. Ela piscava na escuridão sobrenatural das sombras criadas pela persiana fechada. Roiben estava sentado próximo a ela na dura armação da cama, as mãos agarravam os ombros dela com tanta força que Kaye tinha certeza de que deixaria marcas roxas.
? Me diga o que você queria me contar, Kaye. ? Os olhos dele brilhavam.
Ela lutou para tentar despertar totalmente. Nada naquela cena fazia sentido, muito menos a angústia sincera que Roiben trazia no rosto.
? Você ia me contar que era uma fada ? insistiu ele ?, mas não houve tempo.
Kaye balançou a cabeça afirmativamente, ainda atordoada pelo sono. Ele parecia imenso, o quarto inteiro fora engolido pela presença dele de forma que era impossível olhar para qualquer outro lugar que não fosse os olhos de Roiben.
? Diga-me ? disse ele, soltando os ombros de Kaye. Com gestos suaves, as mãos de Roiben afastavam os fios de cabelo da face dela.
? Eu nunca tive a intenção de... Eu queria isso ? balbuciou ela sonolentamente, era difícil juntar as palavras.
Ele parou de acariciá-la. Dessa vez, seu tom de voz era baixo:
? Me faça acreditar nisso.
? Não posso ? rebateu Kaye. Precisava se focar, arranjar uma resposta que fizesse com que tudo ficasse bem novamente. ? Você sabe que não posso.
? Volte a dormir, Kaye ? pediu Roiben suavemente, sem mais tocá-la, os braços envolvendo os próprios joelhos.
Ela se apoiou nos cotovelos, percebendo de forma turva que tinha de impedi-lo antes que ele se levantasse da cama.
? Deixe eu mostrar para você ? ofereceu ela, inclinando-se para frente para apertar sua boca contra a dele. Os lábios de Roiben se abriram sem nenhum tipo de resistência, deixando que Kaye o beijasse como se pudesse sentir o gosto da verdade na língua dela.
Depois de um momento, ele afastou gentilmente o corpo dela.
? Não foi isso o que eu quis dizer ? disse ele, com um sorriso contido e triste. Ela deixou-se cair pesadamente, agora totalmente desperta e estarrecida consigo mesma.
Roiben escorregou pela armação da cama até atingir o chão. Olhava para a direção oposta a que ela estava, para um feixe de luz que escapava da persiana suja.
Rolando de volta para seu lado, ela admirou o pouco que podia ver do rosto dele. Os dedos tentavam arrancar nervosamente uma gota de cera endurecida do edredom.
? Eu respondi à charada. Pensei que ela me deixaria ir e, seja como for, eu respondi.
Roiben olhou para ela de forma abrupta, espantado.
? Você fez isso. Por quê?
Kaye queria explicar da melhor forma possível. Roiben a estava ouvindo, pelo menos naquele momento. Ela se certificou de que sua voz permanecesse totalmente no mesmo tom, completamente sincera.
? Porque eu não deveria ter ido daquela maneira. Nunca nem ao menos pensara em usar você como acabei usando... Você jamais deveria...
? Esteja grata por tê-lo feito ? interrompeu ele, mas em um tom gentil. Ele ergueu as mãos e passou três dedos pelo queixo de Kaye.
? É estranho ver você desse jeito.
Ela sentiu um arrepio.
? De que jeito?
? Verde ? respondeu Roiben, os olhos parecendo névoa, fumaça, todas as coisas insubstanciais.
Kaye perdeu o sangue frio ao olhar para aqueles olhos. Ele era tão bonito. Roiben era um feitiço que ela iria quebrar por mero acidente.
A voz dele estava muito macia quando falou novamente:
? Estou farto de matar, Kaye.
Ela não podia dizer se isso significava uma súplica para o passado ou uma desculpa para o futuro.
Dessa vez, quando ele se deitou no colchão e ajeitou o lençol sobre os ombros, Kaye observou as teias de aranha que balançavam a cada lufada de ar e que deslizavam em arfadas pelas velhas janelas. Palavras ecoavam nos confins dos pensamentos dela, frases que ela escutara, mas que não foram realmente ouvidas. Ela viu as cicatrizes que atravessavam o peito dele, dezenas de marcas, listras brancas de pele descorada circundadas de cor-de-rosa.
Imaginou a corte Indigna como a vira na noite em que se esgueirara com Corny para seu interior, só que dessa vez todos estavam olhando para seu novo brinquedo, um cavaleiro Digno com cabelos prateados e lindos olhos.
? Roiben? ? sussurrou ela no silêncio do quarto. ? Você ainda está acordado?
Mas, se ele estava, não respondeu.
A outra vez em que Kaye acordou foi graças a alguém esmurrando a porta.
? Kaye, é hora de acordar ? a voz da mãe soava tensa.
Kaye gemeu. Ela se esticou obstinadamente, abandonando a posição desconfortável na pequena cama, ainda sentindo as marcas de cada mola de metal em suas costas.
Ellen não parou de bater.
? Sua avó vai me matar se eu deixar que você falte a mais um dia de escola. Abra essa porta.
Kaye cambaleou para fora da cama, tropeçando em Roiben e virando a chave na fechadura. Roiben se sentou, os olhos talhados de sono.
? Ilusão ? a voz dele parecia estar enferrujada.
? Merda. ? Ela quase tinha aberto a porta com asas imensas presas às costas e com a pele verde.
Kaye se concentrou por um momento, conduzindo a energia pelas mãos, sentindo seus fios através dos dedos. Ela se focou nas próprias feições, nos olhos, na pele, no cabelo, nas asas. Os pulsos e os tornozelos ainda estavam feridos e Kaye se assegurou de que a ilusão compensaria a descoloração da pele onde ela havia sido queimada pelo ferro.
Então abriu a porta.
Ellen olhou para ela e depois voltou sua atenção para dentro do quarto, para Roiben.
? Kaye...
? É Dia das Bruxas, mãe ? explicou Kaye, a voz arfando em um gemido baixo.
? Quem é ele?
? Robin. A gente ficou muito doido para dirigir. Não me olhe desse jeito. Nós nem dormimos na mesma cama.
? É um imenso prazer conhecê-la ? cumprimentou Roiben, atordoado. Nesse contexto, a formalidade dele soava como embriaguez, e Kaye sentiu uma incontrolável vontade de rir.
Ellen ergueu as sobrancelhas.
? Tudo bem, pode dormir aqui. Mas não faça disso um hábito ? informou ela finalmente. ? E se algum dos dois vomitar, vocês limpam a sujeira.
? Ok. ? Kaye bocejou, fechando a porta. Considerando o imenso volume de vômito que ela limpara nos últimos dezesseis anos, a maior parte pertencente à própria mãe, ela pensou que aquele era um comentário bastante cruel, mas estava cansada demais para insistir no assunto.


Na terceira vez em que Kaye acordou, já estava escuro lá fora. Espreguiçou-se com indolência e sentiu um nó no estômago. Alcançou o abajur na mesa-de-cabeceira e o ligou, banhando o quarto com luz amarela.
Roiben não estava lá.
O edredom cor-de-rosa estava dobrado aos pés do colchão, ao lado de dois travesseiros. O lençol que cobria o colchão estava espremido em um dos cantos, como se Roiben tivesse tido um sono agitado. Não havia nenhuma pista para onde ele poderia ter ido, nada que dissesse adeus.
Ela pedira que Roiben ficasse apenas por um dia. Quando a escuridão caísse, ele estaria livre para ir.
Apressadamente, Kaye tirou o vestido de fada pela cabeça, jogando-o no chão junto com as outras roupas sujas, vestindo de qualquer jeito as primeiras roupas que achou: uma camiseta branca lisa e um par de calças xadrez com zíperes ao longo de ambas as pernas.
Destrançou o cabelo e o penteou grosseiramente com as mãos. Precisava encontrá-lo... Ela iria encontrá-lo.
Kaye parou com uma das mãos ainda presa ao cabelo embaraçado. Roiben não queria que ela o seguisse. Se não queria ter mais nada a ver com ela, ele deveria ao menos ter dito adeus. Ela pedira desculpas e ele havia ouvido. Ele até mesmo lhe perdoara ou algo do gênero. Foi isso, estava tudo acabado. Não tinha razão para procurá-lo, a não ser que se levasse em conta o toque estranho e macio das mãos dele em seu queixo ou o consentimento gentil de mais outro beijo. E, de qualquer forma, o que essas coisas significavam? Menos do que nada.
Mas, quando ela desceu as escadas, Roiben estava lá, exatamente lá, sentado no sofá florido da avó dela e Ellen estava sentada ao lado dele. A mãe de Kaye usava um vestido vermelho e tinha dois chifres de lantejoulas presos na cabeça por um arco.
Kaye parou na escada, atordoada pela total impossibilidade da cena colidindo contra a absoluta normalidade daquilo tudo. A televisão estava ligada e sua luz bruxuleante acentuava os traços do rosto de Roiben, e ela não tinha como dizer se ele ainda estava utilizando a ilusão.
Ele passava mel direto do pote em pedaços de pão branco comum, encharcando cada porção, a despejando na boca e comendo.
? Obrigado ? agradeceu ele. ? Está muito bom.
A mãe de Kaye riu com desdém diante da educação dele.
? Não sei como você pode comer isso. Eca! ? Ellen fez uma careta. ? É doce demais.
? Está perfeito. ? Ele deu uma risadinha e lambeu os dedos. O sorriso de Roiben era tão honesto e indefeso que parecia deslocado em seu rosto. Kaye imaginou se era assim que ele era antes de chegar à corte Indigna.
? Você é um jovem peculiar ? disse Ellen, e isso fez com que o sorriso de Roiben se tornasse ainda maior. Kaye pensou se ele ria por causa da mudança de comportamento da mãe dela ou graças à possibilidade daquilo ser verdade.
Kaye desceu mais alguns degraus e a mãe olhou para ela. Roiben também se virou na direção dela, mas Kaye não conseguia decifrar nada naqueles olhos cinzentos.
? Bom-dia. ? A voz de Roiben era tão quente e macia quanto o mel que ele estava comendo.
? Sua aparência ainda está péssima, garota ? comentou a mãe dela. ? Beba um pouco d'água e tome uma aspirina. O álcool desidrata o organismo.
Kaye bufou e desceu o resto das escadas.
Na televisão, estava passando um desenho do Batman em que ele perseguia o Coringa em um armazém velho e fantasmagórico. Isso a fez lembrar-se do edifício em forma de carrossel.
? Vocês estão assistindo ao desenho?
? O jornal começa em dez minutos. Quero ver a previsão do tempo. Vou para o desfile em Nova York. Ah, querida, quando eu me encontrei com a Liz outro dia, contei a ela como você estava e tudo o mais. Ela falou que tinha uma coisa para te dar.
? Você viu a Liz? Pensei que você estivesse com ódio dela.
? Não mais. Águas passadas. ? Ellen sempre ficava mais feliz quando estava numa banda.
? Ela me mandou um disco?
? Não. É uma sacola de roupas antigas. Liz ia se desfazer desses troços, já que nenhum cabe mais nela. Está na sala de jantar. É a bolsa cinza.
Kaye abriu o saco de plástico. Estava cheia de tecidos com glitter, couro e vinil brilhante. E sim, lá estava ela, de um roxo tão reluzente quanto em suas lembranças, a fantasia de gato. Ela a tirou cerimoniosamente da sacola.
? Como você pôde não ter me dito o verdadeiro motivo para não querer se mudar para Nova York? ? Ellen lançou um olhar sugestivo na direção de Roiben.
O rosto dele estava sugestivamente sem nenhum tipo de expressão.
Kaye não conseguia colocar seus pensamentos em ordem de maneira satisfatória o suficiente para achar uma resposta.
? Alguém quer um café ou alguma outra coisa?
A mãe deu de ombros.
? Tem um resto de café na cozinha. Acho que foi o que sobrou de hoje de manhã. Posso fazer um fresco.
? Não, eu tomo esse mesmo ? respondeu Kaye.
Ela foi até a cozinha e despejou o líquido escuro em uma caneca. Ao misturar o leite, ele se tornou uma substância de cor cinza escura nauseante. Kaye acrescentou várias colheres generosas de açúcar e o bebeu como penitência.
Roiben não parecia estar nem um pouco furioso. Ao contrário, parecia absurdamente confortável espalhado no sofá. Ela deveria estar se sentindo melhor, mas em vez disso parecia que o nó em seu estômago se tornava mais apertado.
Já era noite e logo Roiben poderia ir embora. Ela o queria, desejava que ele a quisesse mais do que tinha qualquer direito ou razão para esperar isso dele, e ter consciência desse fato era mais amargo do que o café velho.
? Kaye? ? era Roiben, encostado no batente da porta, com um vidro de mel quase vazio em uma das mãos.
? Ah, oi ? disse ela estupidamente, segurando a caneca. ? Isso está mesmo horrível. Vou fazer um novo.
? Eu estava... Eu queria agradecer-lhe.
? Pelo quê?
? Por me explicar o que aconteceu. Por fazer com que eu ficasse aqui na noite passada.
Ela pegou o café velho e o despejou na pia, escondendo o sorriso envergonhado que brincava em seus lábios. Encheu a panela com água quente e a balançou algumas vezes antes de também jogar fora o conteúdo.
A voz de Roiben estava muito tranquila quando ele falou de novo:
? Por não ter medo de mim.
Ela bufou.
? Você só pode estar brincando. Você me deixa apavorada.
Ele sorriu para Kaye, um daqueles sorrisos cheios de vivacidade, breve e deslumbrante.
? Obrigado por esconder isso. Foi realmente verossímil.
Ela riu de volta para ele.
? Sem problemas. Quero dizer, se eu soubesse que você admirava tanto isso e tudo o mais...
Ele virou os olhos e era tão bom ficar ali de pé, um sorrindo timidamente para o outro. Todas as palavras idiotas que Kaye desejara dizer de repente começaram a rasgar a garganta dela, desesperadas para serem ditas.
? Ainda bem que está tudo terminado ? comentou ela, quebrando o encanto enquanto despejava uma colher de pó de café em um filtro.
Ele olhou para Kaye incrédulo.
? Terminado?
Ela congelou, a colher ainda erguida em uma das mãos.
? É, terminado. Estamos aqui, sãos e salvos, e está tudo terminado.
? Não quero angustiar você ? disse ele ?, mas eu duvido muito que...
? Kaye! ? chamou Ellen da outra sala. ? Venha ver isso. Tem um urso solto por aí.
? Só um minuto mãe ? gritou Kaye da cozinha, voltando-se para Roiben. ?- O que você quer dizer com não está terminado?
? Kaye, o Reino das Fadas é um lugar governado por um conjunto de regras tão severas quanto restritas. O que você fez possui consequências.
? Tudo tem consequências ? rebateu ela. ? E a consequência disso é que as fadas independentes estão livres novamente, você está livre e a rainha má está morta. Na minha opinião, a situação parece totalmente terminada.
? Kaye, já vai ter acabado quando você chegar aqui ? berrou a mãe novamente. Ela respirou fundo e foi até a outra sala. Ellen apontava para a televisão.
? Você viu isso?
Na tela, um repórter estava de pé no meio do parque estadual de Allaire anunciando que um homem havia sido morto e parcialmente devorado. Julgando pelas marcas de garras, especulava-se que o causador da morte fora um urso.
? Agora eu fiquei com fome ? comentou Kaye, sarcástica.
O repórter continuou, o cabelo crespo estava puxado para trás com tanto gel que nem mesmo se movia, e sua voz era excessivamente dramática:
? O cachorro do homem foi encontrado aparentemente ileso, preso ao cadáver por uma coleira de pulso. O animal foi levado sob a custodia da sucursal da Sociedade Protetora dos Animais da região de West Long, onde espera que os parentes do dono reclamem por ele.
? Imagino que tipo de cachorro seja esse ? Kaye disse a Roiben quando ele voltou pra a sala de estar.
Ellen fez uma careta.
? Vou terminar de me maquiar. Você pode ver para mim se vai chover? A previsão do tempo deve começar logo.
? Claro ? respondeu Kaye se espalhando no sofá.
Na televisão, o mesmo repórter retornou com outro aviso sobre o animal, informando que havia diversos relatos não confirmados sobre bebês e crianças perdidas. Nos casos mais estranhos, crianças tinham sido roubadas das próprias camas, de carrinhos de bebê, de balanços em parquinhos. De qualquer forma, ninguém vira nada, o que deixava o urso em paz por enquanto.
Um representante do zoológico de Popcorn dava uma entrevista coletiva. O homem de cabelos grisalhos polia os óculos metodicamente, quase em lágrimas, enquanto explicava como era difícil dizer que o animal havia escapado, já que naquela manhã todos os animais foram encontrados nas jaulas erradas. Os tigres haviam comido várias lhamas antes que as duas espécies pudessem ser separadas. O cervo estava em uma pequena gaiola de pássaros, em pânico por estar em um espaço tão pequeno. Ele não entendia como aquilo podia ter acontecido em um zoológico tão bem administrado.
? Seguindo com as notícias, esta manhã uma jovem foi sequestrada, quando voltava da Universidade de Monmouth, por um agressor não-identificado. Ela foi libertada agora de noite depois de um dia angustiante, em que foi forçada a responder a charadas para evitar torturas. No momento, a estudante está internada no Centro Médico de Monmouth e seu quadro é estável.
Kaye sentou-se com um pulo.
? Charadas?
? Eis a sua obra ? disse Roiben, olhando para Kaye do outro lado da sala de estar escura. ? O que você achou do primeiro dia dos próximos sete anos?
Kaye balançou a cabeça, sem entender.
A televisão mostrou um homem e uma mulher sendo amarrados a macas no parque Thompson. Eles foram encontrados nus, dançando ao redor de um círculo, e tiveram de ser energicamente reprimidos pela polícia. As roupas foram encontradas perto do local e as identificações disponíveis mostravam que não havia nenhuma ligação entre os dois. Eles estavam sendo medicados por desidratação e bolhas nos pés.
Por trás das câmeras, Kaye podia facilmente ver cogumelos grandes que cresciam, formando um círculo grosso.
Kaye passou a mão pelo rosto.
? Mas por quê? Eu não entendo.
Roiben falava enquanto ela andava de um lado para o outro pela sala.
? Tudo é sempre muito mais simples quando você enxerga em preto e branco, não é? Seus amigos são, apesar de tudo, bons e sábios, então todas as fadas independentes devem ser boas e sábias. Seus amigos respeitam, temem e conhecem os humanos, então todas as fadas independentes devem seguir o mesmo exemplo.
O telefone tocou, fazendo com que Kaye se sobressaltasse. Ela foi até o aparelho e o atendeu.
? Alô?
Era Janet. Ela parecia estar mais calma.
? Oi, Kaye.
? Ah, oi. ? Janet era a última pessoa que Kaye esperava que telefonasse.
? Estava pensando se você está a fim de sair.
? O quê? ? perguntou Kaye.
? É sério. Toda a galera vai a uma rave hoje. Quer ir com a gente?
? Você assistiu ao jornal?
? Não, por quê?
Kaye procurou, nervosa, por uma explicação.
? Parece que tem um urso solto por aí.
? Bem, nós vamos ao píer. Não seja esquisita. Você vai com a gente?
? Ninguém deve ir, Janet, de verdade, não é seguro.
? Então não vá. Ah, por acaso você viu meu irmão?
De repente, Kaye sentiu uma rajada gélida em suas entranhas.
? Corny está desaparecido?
? É ? respondeu Janet. ? Desde ontem.
Kaye não podia evitar um estremecimento. Corny ainda estava debaixo do maldito monte. Ela sabia disso. Olhou desesperadamente para Roiben, mas o rosto dele se manteve inexpressivo. Ele não podia ouvir Janet e nunca havia nem mesmo sido apresentado a Corny.
? Vou te ver, ok? ? disse Kaye.
? Claro. Que seja. Tchau.
Ela desligou.
? Quem era? ? perguntou Roiben.
? O irmão da Janet ainda está debaixo do monte... com Nephanael.
O nome de Nephanael fez com que Roiben ficasse congelado em seu lugar.
? Mais segredos?
Ela tremeu.
? Corny. Ele estava comigo naquela noite... quando eu era uma fada.
? Você é uma fada.
? Ele estava lá naquela noite, quando eu não estava usando a ilusão e você não me reconheceu, e, quando fui embora, ele... conheceu... Nephanael.
As sobrancelhas de Roiben se arquearam quando ele ouviu isso.
? Corny estava totalmente fora de si. Nephanael o feriu e Corny... gostou. Ele queria voltar para lá.
? Você deixou um amigo, um mortal, debaixo do monte... sozinho? ? Roiben parecia incrédulo. ? Será que você é alguém totalmente sem coração? Você sabe para que destino ele foi abandonado.
? Você me obrigou a ir embora! Não consegui voltar. Eu tentei.
? Pensei que fôssemos ser honestos um com outro. Que tipo de honestidade é essa?
Kaye se sentia totalmente arrasada.
Ela balançou a cabeça, o medo fez com que sentisse arrepios pelo corpo, parecia estar pesada, sentia vontade de afundar no chão.
? Foi ele... ele que jogou o encantamento sobre mim e depois o tirou.
? Um dia, ele já foi o melhor cavaleiro da corte Indigna. Isso antes de ser mandado para a corte Digna como parte dos acordos de uma trégua. Ele foi enviado para lá e eu fui entregue a Nicnevin.
Kaye ficou apenas ali parada, lembrando-se da conversa que por acaso ouvira entre Nicnevin e Nephanael. Por que não havia deduzido aquilo? Que outro significado aquelas palavras poderiam ter?
? Então Nephanael ainda serve a Nicnevin?
? Talvez. Parece mais provável que ele sirva apenas a si mesmo. Kaye, você sabe quem tramou o plano para sabotar o Tributo?
? Você acha que foi Nephanael?
? Eu não sei. Diga-me, como seus amigos sabiam que você era uma fada enquanto nem mesmo a rainha da corte Indigna podia ver através da ilusão que estava sobre seu corpo?
? A bruxa do Cardo disse que ela se lembrava de quando eu fui trocada.
? Agora, como elas podem ter conhecido Nephanael?
? Eu não sei.
? Bem, nos faltam algumas informações, Kaye.
? Por que Nephanael iria querer criar problemas para Nicnevin?
? Talvez ele buscasse por vingança por ter sido enviado para outro lugar. Duvido que a corte Indigna tenha agradado ao gosto dele.
Ela balançou a cabeça.
? Eu não sei. Preciso resgatar Corny.
? Kaye, se o que você disse é verdade, você sabe que ele pode não estar mais vivo.
Ela soltou um suspiro súbito e profundo.
? Ele está bem.





12


"E para aqueles cujas máscaras perduram
Para regalarem-se à noite sobre o mar límpido!" (

? ARTHUR RIMBAUD
"Does She Dance"

Havia apenas mais uma única outra pessoa que ela já trouxera ao Pântano de Vidro. No verão, quando tinha nove anos, Janet começou a implicar o tempo todo com ela por causa dos amigos imaginários, e Kaye decidiu que iria provar que eles eram reais de uma vez por todas. No caminho para o pântano, Janet pisou em uma garrafa quebrada ao meio, que cortou o tênis dela, fincando-se no pé da menina. Elas nunca nem mesmo chegaram a atingir a encosta.
Não tinha ocorrido a Kaye até aquele momento que Lutie, Spike ou até mesmo o pobre e falecido Gristle podiam ter alguma coisa a ver com o que acontecera.
Luzes cortando o céu em disparada eram facilmente visíveis da rua e gritos eram carregados pelo ar parado. Ela podia ouvir as vozes suficientemente bem para discernir quando elas estavam a ponto de explodir em um bando de garotos bebendo cerveja ou algo do tipo.
Roiben estava todo de preto, vestindo um par de jeans, uma camiseta e um casaco longo. Tudo aquilo devia ter sido conjurado a partir de raios de luar e teias de aranha, pois Kaye tinha certeza de que aquelas roupas não haviam vindo de nenhum dos armários da casa da avó. Ele havia prendido a parte de cima do cabelo, mas o choque da cor branca dos fios fazia com que parecesse ainda menos humano quando vestido em roupas modernas.
Ela imaginou se também estava com aquela aparência pouco humana. Havia algo nela que avisava às pessoas para se afastarem? Kaye sempre assumiu que era simplesmente estranha, nenhuma outra explicação era necessária. Olhando para ele, Kaye pensou nisso.
Roiben olhou de relance para ela sem virar a cabeça e ergueu as sobrancelhas em uma interrogação silenciosa.
? Estava apenas olhando para você ? disse Kaye.
? Olhando para mim?
? Eu... eu estava imaginando onde você conseguiu isso... as roupas.
? Ah ? ele olhou para baixo, como se só naquele momento houvesse pensado no que estava vestindo ?, é ilusão.
? Então o que você está vestindo realmente? ? As palavras saíram da boca de Kaye antes que pudesse se dar conta do que estava falando. Ela se encolheu.
Roiben não pareceu se importar; na verdade, ele lampejou um de seus sorrisos breves.
? E se eu dissesse que não estou usando absolutamente nada?
? Então eu deveria salientar que, às vezes, se você olhar para alguma coisa com o canto do olho, poderá ver direitinho através da ilusão.
Esse comentário trouxe uma risada de surpresa aos lábios dele.
? Que alívio para nós que eu esteja, na verdade, vestindo exatamente as roupas que você viu de tarde. Se bem que se poderia apontar que, nesses trajes, sua última preocupação deveria ser a minha modéstia.
? Você não gostou? ? Ela olhou para baixo, para a fantasia de gato de vinil roxo. Não tinha motivo para não a colocar imediatamente. Apesar de tudo, ainda era Dia das Bruxas.
? Agora, vamos ao tipo de pergunta que começo a esperar que você faça. Aquelas para as quais não existem respostas satisfatórias.
Kaye sorriu, e podia dizer que provavelmente aquele sorriso permaneceria no rosto dela por um bom tempo. Eles podiam fazer aquilo. Resolveriam todos os problemas. Tudo iria ficar bem.
? Devemos descer por aqui? ? perguntou Roiben, e ela fez que sim com a cabeça.
? Imprudente ? foi tudo o que ele disse antes de prender a bota na saliência enlameada e cuidadosamente descer a encosta.
Kaye o seguiu, tropeçando nas próprias pernas.
Homens e mulheres verdes estavam imersos até metade de seus corpos nas partes mais fundas do riacho, grosseiras formas andróginas que berravam e lançavam uma luz resplandecente.
Algumas poucas criaturas viram Roiben e deslizaram para a água ou voltaram para a margem. Ouviram-se alguns sussurros:
? Kaye ? uma voz irritante a chamou, e ela rodopiou, tentando descobrir de onde vinha o chamado.
Era a bruxa do Cardo, sentada em um tronco. Ela deu algumas palmadinhas no lugar ao lado dela, convidando Kaye.
? As coisas não foram muito bem debaixo do monte.
? Não ? disse Kaye sentando-se. Ela queria colocar mais raiva na voz, mas não conseguiu. ? Eu quase morri.
? E o cavaleiro de Nicnevin salvou você, não é?
Kaye assentiu com um movimento de cabeça, olhando para cima com a intenção de vê-lo, parcialmente escondido nas sombras, as mãos enfiadas nos bolsos do casaco, resplandecendo de forma impressionante. Isso fazia com que ela sentisse vontade de sorrir para ele, apesar de temer que Roiben lhe sorrisse de volta e arruinasse sua conduta furiosa.
? Por que você o trouxe para junto de nós?
? Se não fosse por ele, eu estaria morta.
A bruxa do Cardo olhou na direção do cavaleiro e depois voltou o olhar novamente para Kaye.
? Você sabe a respeito das coisas que ele fez?
? Você não entende? Ela o obrigou a fazê-las!
? Não tenho nenhum desejo de ser bem-vindo entre vocês, velha mãe ? disse Roiben se ajoelhando com uma das pernas apoiada na terra fofa. ? Apenas quero saber se vocês estão conscientes em relação ao preço de sua liberdade. Existem trolls e outras criaturas ainda piores que adorariam viver sem nenhum outro senhor além de suas próprias vontades.
? E daí que há trolls? ? perguntou Spike, surgindo detrás deles. ? Deixe que os mortais sofram como nós sofremos.
Kaye estava escandalizada. Pensou novamente no desdém que Lutie possuía pelas meninas mortais. Eles só eram seus amigos por causa do que ela era e não por nenhuma outra razão além dessa. Os dedos roçaram contra o plástico roxo que cobria suas pernas, deixando que as unhas abrissem pequenas linhas no vinil. Gostava tanto deles porque os considerava melhores do que as pessoas, mas eles não eram, e Kaye não sabia mais o que aquelas criaturas eram. Ela estava sendo violentamente arremessada de um lado para o outro através de uma quantidade imensa de emoções nos últimos dias, estava de ressaca pelo excesso de adrenalina, preocupada com Corny e Janet.
? Então agora somos nós contra eles? Não estou falando da corte Indigna. Desde quando os mortais são inimigos das fadas independentes? ? A voz de Kaye vertia tanta raiva que estava até mais grossa. Ela olhou para Roiben novamente, buscando confiança na proximidade dele, e isso também a preocupava. Como ele podia ter se transformado da pessoa que ela praticamente desprezava em alguém em quem confiava no espaço de meras horas?
Uma das mãos de Roiben tocou levemente o ombro dela em um gesto de conforto. Kaye achou engraçado ver a maneira com que os olhos de Spike se arregalaram ao presenciarem a cena. Ela imaginou o que exatamente Spike pensava que estava acontecendo entre eles.
? Você pensa como uma mortal ? disse Spike.
? Por Deus! Eu passei todas as semanas da minha vida, com exceção da última, achando que era uma!
A pele grossa do cenho de Spike se franziu e ele pendeu a cabeça para um dos lados, seus olhos pretos faiscavam.
? Você não sabe nada sobre o Reino das Fadas. Você não sabe quem merece sua fidelidade.
? Se eu não entendo, é porque você não me disse. Vocês me deixaram na escuridão e me usaram.
? Você concordou em nos ajudar. Você percebeu a importância do que estávamos fazendo.
? Você tem de dizer às fadas independentes que Nicnevin era inocente no que dizia respeito ao sacrifício. Isso precisa parar, Spike.
? Não vou voltar para me tornar um escravo. Por nenhum mortal. Por nada.
? Mas a rainha Indigna está morta.
? Isso não importa. Sempre há outra, pior do que a última. Não se atreva a arruinar tudo isso. Não se atreva a sair por aí contando histórias.
Ou você vai fazer o quê? ? perguntou Roiben com suavidade.
? Esse não é o lugar dela ? protestou Spike, enrolando nervosamente os longos pêlos de uma das sobrancelhas nos dedos.
? A cerimônia do Tributo não foi completada. As razões que explicam por que isso aconteceu são o que menos importa. O resultado é o mesmo. Por sete anos as fadas independentes estão livres nas terras de Nicnevin.
? A não ser que eles entrem em um novo acordo.
? E por que fariam isso? ? inquiriu Spike. ? Segundo o que ouvi, há rumores de que a rainha Digna está vindo do norte, trazendo praticamente toda a sua corte.
Roiben congelou ao ouvir isso.
? Por que ela está vindo? ? bufou ele. Spike deu de ombros.
? Provavelmente para ver o que pode pegar antes que a corte Indigna se erga novamente. É um péssimo momento para se fazer acordos com quem quer que seja.
? Você acha que Nephanael levará Corny para a corte Digna? ? perguntou Kaye a Roiben.
Ele balançou a cabeça afirmativamente uma única vez.
? Ele terá que levá-lo se tiver intenção de mantê-lo. ? A suposição de que Corny já estaria morto se Nephanael não estivesse pensando em conservá-lo em sua companhia fazia parte daquela frase, mesmo que não houvesse sido expressa em palavras.
? Você sabe onde eles vão acampar? ? Dessa vez, a pergunta de Kaye era direcionada a Spike.
? Em um pomar ? respondeu ele. ? Um lugar onde as pessoas colhem suas próprias maçãs. Eles devem chegar amanhã ao amanhecer.
Kaye sabia onde era esse pomar. Já estivera lá durante uma excursão da escola e algumas outras vezes com a avó. Pomar das Delícias era como se chamava o lugar.
? Espere, eu quero ir com vocês ? pediu Lutie enquanto voava até o ombro de Kaye. Kaye sentiu um puxão brusco no cabelo quando uma das mechas prendeu no corpo da fadinha.
? Desculpe ? disse Lutie, contrita.
? Roiben, essa é Lutie-loo. Lutie-loo, Roiben.
Kaye adorava quando ele sorria. Realmente amava.
? É um prazer indubitável conhecê-la ? cumprimentou Roiben, tocando a mãozinha minúscula com dois de seus dedos.


Kaye andou pelo píer como fizera havia menos de uma semana. Naquela noite, a lua estava no quarto minguante, parecendo deformada, e as gotículas de água salgada provenientes do mar aderiam à pele dela como uma névoa fina. As minúsculas partículas prateadas brilhavam no vinil roxo e elástico da fantasia de gato de Liz quando Kaye se movia.
A impotência estampada em seu rosto pelo fato de não saber onde Corny estava a deixava inquieta. Queria ir a todos os lugares, a qualquer lugar, qualquer lugar onde Nephanael pudesse tê-lo levado, mas não tinha noção de onde ficava nenhum deles. Finalmente, decidiu ir à rave, apesar de tudo. Estava preocupada com Corny, preocupada com Janet, tão preocupada que tinha de fazer alguma coisa, não importando o que precisasse ser feito.
As batidas da música que vinha de dentro do edifício abandonado eram tão altas que ela podia senti-las ressoando através das tábuas da plataforma. Um dia chamado de Galáxia, o clube ficava metade na rua e metade no que restara do píer. Muitos anos atrás, parte do píer havia se incendiado, destruindo barracas de jogos, um toboágua e um trem-fantasma. A carcaça escurecida remanescente era usada apenas para colocar os fogos de artifício das comemorações anuais da cidade. O Galáxia já fora um típico bar e danceteria das praias de Jersey. A placa aerografada ainda pendia sobre o batente da porta, mesmo estando arranhada pela areia lançada pelo vento.
Naquela noite, ela via bastões fluorescentes e roupas brilhantes pulsando com cada lampejo da luz do estroboscópio que escapava das janelas. Kaye não tinha certeza se o lugar havia sido alugado ou simplesmente invadido. Uma grande multidão estava reunida ao redor da porta, alguns fantasiados para o Dia das Bruxas vestindo máscaras e com os rostos pintados, outros usando seus habituais jeans largos e camisetas. Uma garota com o cabelo separado em centenas de tranças brilhantes pulava sem sair do lugar, um urso de pelúcia amarrado em um dos elos do cós de sua calça por um cordão amarelo fluorescente.
Antes que eles chegassem perto, Roiben apanhou duas folhas que estavam caídas na calha. Nas mãos dele, elas se tornaram duas cédulas de dinheiro que ele dobrou rapidamente e pôs no bolso do casaco. Lutie se esgueirou para dar uma olhadela e rapidamente mergulhou de volta para dentro.
? Preciso treinar esse negócio de ilusão... ? disse Kaye, mas ele apenas sorriu.
Na entrada, uma menina com uma peruca azul em forma de colméia, batom azul e um piercing de argola azul no lábio entregou o troco para Roiben.
? Visual maneiro ? disse a garota para Kaye, o olhar brilhando de inveja na direção da fantasia de gato. Kaye sorriu em agradecimento e eles entraram.
Corpos se comprimiam uns contra os outros, ondulando como uma imensa onda, e os dançarinos tinham espaço suficiente apenas para pular sem sair do lugar. Um palhaço dançava sobre o bar, a maquiagem feita com tinta néon resplandecia na luz negra. Duas garotas vestidas de gato, ambas usando colantes com rabos seguros por alfinetes, dançavam ao lado dele. A música estava tão alta que Kaye nem mesmo tentava falar com Roiben, apenas deslizou a mão para dentro da dele e o conduziu através da multidão. Ele deixou que ela o guiasse até o fundo do salão, onde portas duplas se abriam para a plataforma escura que estava sendo utilizada como pista de dança improvisada para o público extra, que o interior do clube não comportava.
Estava tão lotada quanto lá dentro, corpos tão espremidos que até mesmo aqueles que estavam sentados com as costas apoiadas nas paredes eram tocados pelos outros.
? Está vendo alguma coisa? ? berrou Kaye.
Ele balançou a cabeça negativamente.
Duas metades de um cavalo segurando garrafas de água os empurraram com os ombros. Kaye pensou ter visto Bolo-fofo, aparentemente sem nenhum tipo de fantasia, mas não tinha certeza se era mesmo ele.
? Kaye ? gritou Roiben no ouvido dela ?, olhe lá.
Ela acompanhou com os olhos o movimento rápido da mão dele, mas não viu nada. Deu de ombros, sabendo que esse gesto seria mais fácil de ser entendido do que palavras.
? Procure por seus amigos ? berrou Roiben. Kaye assentiu com a cabeça enquanto ele se lançava em direção a uma mulher alta com lábios grossos e cabelo castanho. Ela parou de dançar e começou a gritar com ele, os braços balançando agitadamente quando ele chegou perto. A mulher se virou, como se fosse correr, mas Roiben agarrou o braço dela.
Kaye os deixou enquanto ainda discutiam e avançou com dificuldade pela multidão. Se havia apenas um único ser encantado ali e Roiben já o encontrara, então talvez não houvesse naquele local nada que lhe desse motivo para ficar nervosa. No acotovelamento dos dançarinos saltitantes, parecia impossível haver algo de perigoso ou sobrenatural. Kaye percebeu que estava relaxando.
Kenny estava no píer dançando com Fátima e Janet. Fátima usava três camadas diferentes de saias longas, um lenço na cabeça e grandes argolas nas orelhas, parecendo uma cigana ou uma pirata. Janet estava toda de preto com bigodes de gato desenhados no rosto com lápis de olho. Para Kaye, os bigodes se pareciam mais com os de um rato.
Kaye respirou fundo.
? Ei!
Fátima ergueu as sobrancelhas e Kenny a encarou como se não houvesse nenhum tipo de ilusão sobre ela.
? Oi ? disse Janet. Aquela não foi a primeira vez em que Kaye ficou imaginando por que a amiga a convidara. Seria para dar uma lição em Kenny? Pela maneira como que ele empalideceu quando ela surgiu diante deles, Kaye concluiu que aquilo provavelmente estava funcionando.
Kaye pulou ao ritmo da música. Havia pouco espaço para balançar os braços, a não ser que eles ficassem diretamente acima da cabeça dela.
? Vou pegar água ? gritou Kenny.
Ele saiu à francesa, em direção ao interior da danceteria.
? Volto já ? disse Kaye para Janet, que tentou falar algo para ela quando a amiga se virou para seguir Kenny.
Kaye o encontrou esperando na fila do banheiro masculino.
? Desculpe.
Kenny apertou os olhos. Não respondeu.
Ela respirou fundo. A mente girava devido a todas as suas preocupações, e Kaye concluiu que não tinha nada para dizer e tampouco nada que precisasse ouvir dele. Era suficiente saber que ele estava bem, com os olhos límpidos e livres de qualquer feitiço.
? Vejo você lá fora ? disse Kaye, se sentindo como uma idiota por tê-lo perseguido até o outro lado da danceteria sem motivo algum. Ela começou a dançar enquanto voltava para onde Janet e Fátima estavam.
Foi então que a música mudou.
Aquele ainda era o som espacial e desconexo do trance, mas havia instrumentos pouco usuais ao fundo, ruídos agudos e sussurros estranhos. Dance. O corpo de Kaye obedeceu sem pensar, girando entre a multidão espremida.
Todos estavam dançando. Pessoas esbarravam umas nas outras, braços balançavam no ar, cabeças se inclinavam para a frente e para trás ao som da música. Ninguém sentava encostado na parede. Ninguém esperava em filas nem fumava debruçado no batente que dava para o mar. Todos dançavam; corpos suados extremamente comprimidos, bêbados com o som.
No começo, foi uma compulsão leve, que escorregava para a mente de Kaye com facilidade. Então, ela começou a perceber os seres encantados.
Uma fada de rosto enrugado e cabelos vermelho-fogo que formavam um único cacho à la dr. Seuss foi a primeira que ela viu. Estava dançando com os outros, mas quando percebeu que Kaye a encarava, piscou para ela. Dando uma rápida olhada ao redor, Kaye percebeu mais: minúsculas fadas aladas com argolas prateadas milimétricas atravessando as pontas das orelhas, gnomos do tamanho de cachorros empoleirados no topo do bar bebiam água de garrafas, um garoto, Kaye o reconheceu como sendo da mesma espécie de ser encantado que ela, iluminava o interior da boca com um bastão fluorescente azul. E ainda havia outros seres, indistintos nos cantos da danceteria, lampejos de lascas resplandecentes, dançarinos mortalmente atraentes nos banheiros vazios e lá fora, ao longo do píer.
Um garoto de pele escura estranhamente familiar dançava ao lado de Janet. Kaye começou a abrir caminho brutalmente pela multidão, empurrando as pessoas para o lado com os cotovelos, aproximando-se deles no momento exato em que Janet sorriu para o Cavalo das Águas e deixou que ele a conduzisse para a beirada do píer.
? Janet! ? gritou Kaye, abrindo caminho até a água.
Mas quando ela chegou lá havia apenas cachos vermelhos afundando sob as ondas. Ela ficou paralisada por um instante, até o desespero crescer dentro dela, e pulou.
Ela desapareceu debaixo da água negra, tão gelada que fazia com que os ossos doessem.
Os músculos ficaram dormentes com o choque logo que ela mergulhou, mas depois voltaram à vida. Ela batia queixo, cuspindo água salgada. As mãos que tentavam agarrar algo a esmo acabaram encontrando mechas de cabelo que ela puxou, dolorosamente, com desespero. Em uma atitude automática, as pernas começaram a dar chutes, fazendo com que ela avançasse dentro d'água.
As mãos de Kaye voltaram vazias, salvo por um emaranhado de cabelos vermelhos embaraçados.
? Janet! ? gritou, antes de ser quase completamente coberta por uma onda, que a empurrou em direção às estacas do píer. Respirando fundo, Kaye mergulhou, abrindo os olhos quando alcançou o fundo, esperando, desesperadamente, por um lampejo de cabelos vermelhos, agitando as mãos como se fossem garras.
Kaye voltou à tona novamente, com falta de ar e tossindo. Estava muito escuro para que ela pudesse ver alguma coisa, e a busca realizada por seus braços não resultara em nada.
? Janet! ? berrou Kaye, batendo com uma das mãos na superfície da água, fazendo com que vários respingos caíssem ao seu redor. Dava passos na água com violência, amaldiçoando Janet, ela mesma e principalmente o mar frio, escuro e insensível que havia engolido sua melhor amiga.
E, então, elevando-se sobre as ondas como uma estátua magnífica, estava o Cavalo das Águas, em carne e osso, as narinas dilatadas com nuvens de vapor quente exalando delas.
? Onde está Janet?
? Ah, não! Agora você está no meu elemento. Sem exigências.
? Vamos fazer um acordo então, por favor. Apenas deixe que ela vá embora. ? Era difícil falar enquanto os queixos batiam. O corpo se acostumava aos poucos, tornando-se insensível à temperatura do oceano.
Kaye olhou dentro daqueles olhos que traziam um leve brilho e cuja brancura resplandecia no mar escuro como luas distantes.
? Por favor.
? Acordos e barganhas não são necessários. Já terminei. Você pode ficar com os restos, se quiser.
Um corpo emergiu para a superfície ao lado do cavalo negro, o cabelo vermelho emaranhado com algas marinhas, o rosto virado para baixo, os braços flutuando sob a superfície.
Kaye nadou até a amiga e ergueu-lhe a cabeça. Empurrou o cabelo para o lado e viu os olhos vazios, a sombra dos bigodes desenhados ainda marcando o rosto, os lábios azuis e a boca aberta, repleta de água.
? Ela padeceu de uma forma muito bela ? disse o Cavalo das Águas.
? Não, não, não, não. ? Kaye abraçou o corpo, tentando, desesperadamente, erguer a cabeça da amiga para fora do mar. A água transbordava por entre os lábios de Janet como se a boca fosse uma garrafa.
? Por que a tristeza? Ela iria morrer um dia de qualquer jeito.
? Mas não esta noite! ? berrou Kaye, engolindo a maior parte da onda que estava tentando evitar. ? Ela não tinha de morrer essa noite.
? Um dia é muito parecido com o outro.
? Diga isso a Nicnevin. Algum dia você vai saber como Janet se sentiu. Todos morrem, Cavalo das Águas, e isso inclui você e eu, fadas e humanos.
O Cavalo das Águas parecia estranhamente subjugado e soltou uma baforada de ar quente antes de afundar, deixando Kaye sozinha no mar, dando passos na água, segurando Janet. Outra onda veio, empurrando o corpo na direção da praia. Kaye pegou uma das mãos da amiga, tão gelada quanto as dela, só que assustadoramente maleável. Segurando Janet pelas pernas, ela a levou até a areia. À medida que se aproximavam, as ondas se tornavam maiores e mais violentas, quebrando sobre elas. O corpo de Janet escapou de suas mãos e foi arremessado para a praia.
Kaye viu Roiben correndo em direção à praia. Ele se abaixou para olhar para Janet enquanto Kaye lutava para se manter de pé na água rasa, as ondas que recuavam ainda puxando-a com força suficiente para quase derrubá-la. Ela tossiu e cuspiu uma mistura de saliva e areia.
? Que tipo de confusão você está procurando? Achava que depois de todos esses anos como humana você tivesse criado um senso maior de mortalidade ? berrava ele.
O que ele dizia parecia uma espécie de eco da última conversa que Kaye havia tido naquele lugar.
Roiben tirou o casaco e a envolveu com ele, indiferente ao fato de as roupas de Kaye estarem encharcando seu sobretudo. Sirenes gritavam e ela podia ver luzes piscando ao longe.
? Não. ? Uma das mãos dele segurou o queixo de Kaye antes que ela pudesse se virar. ? Não olhe. Temos de ir embora.
Kaye se afastou.
? Preciso vê-la. Dizer adeus.
Após dez passos pela areia, ela caiu de joelhos ao lado do corpo, ignorando as ondas que quebravam, sorvendo a areia ao redor dos joelhos dela e lambendo o corpo de Janet como se ela fosse um resto. Os membros estavam jogados em ângulos estranhos. Kaye os ajeitou de forma que Janet ficasse deitada com as costas na areia, os braços ao lado do corpo.
Kaye afagou o cabelo vermelho, puxando-o para trás, e tocou o rosto de Janet com os dedos gelados. E, naquele momento, parecia que o mundo inteiro havia se tornado frio e ela nunca mais ficaria aquecida novamente.




















13


"Prometi justiça em vosso nome, e para vós lancei
pensamentos gloriosos,
Vós, cujos ofícios são mórbidos como o inferno, escuros
como a noite." (

? WILLIAM SHAKESPEARE
Soneto CXLVII



Kaye acordou no colchão de sua cama, enrolada nos cobertores, vestindo apenas a calcinha e a camiseta que emprestara para Roiben no dia anterior. A cabeça estava apoiada no peito nu dele e, por um momento, ela não conseguiu se recordar da razão de seu cabelo estar duro e os cílios grudados uns nos outros por uma camada fina de sal. Quando se lembrou, pulou da cama com um gemido.
Janet estava morta, havia se afogado. Os pulmões repletos de água. Morta. A palavra ecoou na cabeça de Kaye como se sua repetição pudesse trazer alguma pista de como reverter aquela situação.
Memórias vagas da noite anterior, de Roiben levando-a para casa, ele jogando um encanto em sua avó para que ela parasse de berrar enquanto ele a ajudava a subir as escadas. Ela gritara com ele por causa disso, gritou e chorou até finalmente pegar no sono.
Kaye foi até o espelho sem fazer barulho. Parecia abatida. A cabeça estava pesada de tanto chorar e os olhos inchados de sono. Havia manchas roxas e escuras debaixo deles e a até mesmo os lábios estavam pálidos e rachados. Ela os lambeu. Tinham gosto de sal.
Janet estava morta. Tudo culpa de Kaye. Se ela simplesmente não tivesse seguido Kenny. Se não tivesse deixado Janet com ciúmes, talvez a amiga nunca tivesse acompanhado o Cavalo das Águas logo em um primeiro momento. Se...
E Corny continuava desaparecido.
Com os olhos fechados, Kaye desfez a ilusão que estava sobre seu corpo e deixou que se dispersasse no ar. O que ela viu era ainda pior. O cabelo ainda estava duro de sal, os lábios rachados e, de certa forma, os traços graves de seu rosto de fada acentuavam ainda mais sua aparência cansada.
No espelho, ela viu o reflexo da camiseta que vestia e vagamente se lembrou de como Roiben havia tirado sua roupa alguns quarteirões depois do píer, quando nenhum amontoado de roupas debaixo do casaco de Roiben seria capaz de fazer com que o queixo dela parasse de bater. A fantasia de gato aparentemente não havia sido suficiente para funcionar como uma segunda pele, acumulando água dentro dela. Ele a ajudou a tirar a roupa e então a envolveu com a camiseta e o casaco.
Concentrando a magia nos dedos, tentou diminuir as manchas escuras ao redor dos olhos e transformar os cabelos secos em cachos acetinados. Era fácil fazer isso, e um pequeno sorriso impressionado brotou nos cantos de sua boca quando ela aplicou delineador com um simples toque de suas unhas e bateu de leve nos olhos, fazendo com que a cor deles se tornasse azul brilhante. Kaye os tocou novamente e eles passaram a ser de um violeta profundo.
Olhando para baixo, ela lançou uma ilusão para que estivesse vestida em um traje de baile, e foi exatamente isso o que surgiu, de seda vermelho rubi e com uma armação de tule bufante, todo incrustado de pedras preciosas. A roupa parecia estranhamente familiar, e então ela percebeu de onde a imagem viera ? de uma ilustração de A princesa sapo, um velho livro de histórias que ela possuía. Então, em um toque de suas mãos, estava vestindo uma casaca renascentista verde-esmeralda sobre um par de meias arrastão verdes, uma versão modificada do príncipe da mesma história.
Roiben se virou no colchão, piscando, enquanto olhava na direção dela. Não havia nenhum tipo de ilusão sobre ele, o cabelo estava tão brilhante quanto uma moeda de prata, onde era tocado pela claridade. Lutie estava deitada sobre o mesmo travesseiro, enrolada nos cabelos dele como se fossem um cobertor.
? Não posso ir lá para baixo ? disse Kaye. Ela não seria capaz de encarar a avó, não depois da noite anterior, e duvidava muito de que a mãe já tivesse chegado. As lembranças da última vez em que tinha ido à parada de Dia das Bruxas de Nova York era uma multidão de penas, glitter e homens em pernas de pau. Naquela ocasião, Ellen bebera tantas garrafas de champanhe de três dólares que se esquecera totalmente de como chegar até a casa onde estavam, e elas terminaram dormindo no metrô.
? Podemos sair pela janela ? disse Roiben, complacente. Kaye tentou adivinhar se ele estava zombando dela ou se realmente aceitara tão facilmente o seu estranho pedido. Não conseguia se lembrar muito do que dissera na noite anterior, talvez fossem coisas tão terríveis e irracionais que mais um pouco daquilo não o surpreenderia.
? Como vamos chegar até o pomar? Fica longe daqui, em Colt's Neck.
Ele passou os dedos pelo cabelo, penteando-o com as mãos, e então se voltou para a direção de Lutie.
? Você deu nós no meu cabelo.
Lutie soltou uma risadinha que deixava transparecer que estava começando a entrar em pânico.
Suspirando, Roiben olhou novamente para Kaye.
? Existem algumas maneiras ? disse ele ?, mas acho que você desaprovaria a maior parte delas.
De alguma forma, Kaye não teve dúvidas a respeito disso.
? Vamos pegar o carro do Corny ? sugeriu ela.
Roiben ergueu ambas as sobrancelhas.
? Eu sei onde ele está e também sei onde Corny guarda as chaves.
Roiben levantou-se do colchão e sentou no estrado como se fosse o sofá em que, um dia, ela havia tentado transformá-lo.
? Carros são feitos inteiramente de aço, caso você tenha se esquecido.
Kaye ficou parada, de pé, por um momento, e começou a revirar a montanha de sacos de lixo pretos. Depois de uma busca rápida, ela ergueu, triunfante, um par de luvas cor de laranja, ignorando o olhar incrédulo de Roiben.
? Minhas botas têm ponteiras de aço ? explicou ela enquanto as calçava ?, mas o couro impede que o metal encoste em mim... Mal posso senti-lo.
? Você quer um cigarro para acompanhar isso? ? perguntou Roiben asperamente.
? Acho que eu gostava mais de como você era antes de adquirir senso de humor.
A voz dele era comedida.
? E eu que pensava que você não gostava nem um pouco de mim.
Kaye escovou seu agora sedoso cabelo para trás e esfregou as têmporas. Ela devia dizer algo, fazer alguma coisa, mas tinha certeza de que se parasse para colocar em ordem o turbilhão de pensamentos que reviravam sua cabeça, iria quebrar-se em pedaços. Teria isso a ver com a noite anterior? Naquele momento, não conseguia se lembrar de praticamente nada do que havia gritado para ele; tudo aquilo era um borrão de desgraça e raiva. Mas as coisas estavam diferentes entre eles naquela manhã, e ela não sabia como ajeitá-las novamente.
Ela ergueu uma das mãos, tocando Roiben suavemente logo abaixo da clavícula, abrindo a boca para falar... e logo fechando-a novamente. Kaye balançou a cabeça levemente, esperando que, de alguma forma, ele entendesse que ela sentia muito, que estava agradecida, que gostava muito dele.
Ela balançou a cabeça novamente, mais intensamente, afastando-se.
Corny vinha primeiro. Todas as outras coisas deveriam ficar para depois.
Eles saíram pela janela. Roiben desceu agarrado na árvore com facilidade, Lutie voou e Kaye realizou uma mistura desajeitada de salto com voo planado, se esborrachando no chão quando aterrissou.
? Voando! ? exclamou Lutie.
Kaye lançou um olhar feroz para ela e calçou as luvas. Olhando para baixo, percebeu que ainda estava sob os efeitos da ilusão, de forma que ainda vestia a sobrecasaca. Roiben estava vestido inteiramente de preto, da cabeça aos pés, e a maior parte de suas roupas era feita de couro. As asas de Lutie refletiam arco-íris iridescentes sobre os dois quando ela dava cambalhotas no ar como uma libélula louca.
? Por aqui. ? Kaye os conduziu até o lugar onde ficavam os trailers. A porta do carro estava trancada e ela não hesitou antes de golpear o vidro com uma das mãos enluvadas. Formou-se uma rachadura em forma de teia de aranha e ela golpeou a janela várias e várias vezes, até que os nós de seus dedos sangrassem.
? Pare com isso ? ordenou Roiben segurando a mão de Kaye quando ela recuou para armar outro soco. Ela parou, confusa, olhando para a janela. Roiben tirou uma faca de dentro da bota. Será que ela sempre estivera ali ou ele a havia conjurado naquele momento?
? Use o cabo ? propôs ele. A voz dele soava muito cansada. ? Ou uma pedra.
Kaye conseguiu abrir uma fenda no vidro, grande o suficiente para que sua mão passasse e levantasse o pino com força. Olhando ao redor, no estacionamento de trailers, ficou espantada por ninguém ter nem ao menos saído para repreendê-la por estar arrombando um carro em plena luz do dia.
Recolocando a luva, Kaye abriu a porta e entrou, estremecendo ao respirar o ar viciado e metálico. Ela se esticou, puxou o trinco do outro lado e abriu a janela antes de pegar a chave que estava presa no guarda-sol.
Roiben sentou-se desconfiadamente no banco do carona e Lutie voou para dentro junto com ele, franzindo o nariz para Kaye enquanto flutuava pelo banco detrás até finalmente pousar no painel empoeirado.
Kaye colocou a chave na ignição e a girou, sentindo o calor do aço apesar das luvas. Aquela não era exatamente uma sensação desagradável, mas havia um zumbido em sua cabeça que ela sabia que iria piorar.
Kaye pisou no acelerador. O motor sibilou, mas o carro não se moveu. Os xingamentos que saíam de sua boca eram abafados pela respiração ofegante. Puxou o freio de mão furiosamente, girou a chave mais um pouco e pisou novamente no acelerador. O carro roncou e avançou para a frente tão rápido que ela teve de praticamente esmagar o pedal do freio para parar. Lutie caiu no colo de Kaye.
Roiben olhou para ela do canto do banco, onde ele havia se escorado para se proteger do choque.
? Quantas vezes você já dirigiu?
? Nenhuma ? rosnou Kaye.
? Nenhuma?
? Eu ainda não tenho idade suficiente. ? Kaye soltou uma risadinha ao dizer isso, mas o som que saiu foi um tanto agudo, quase histérico. Ela pisou no acelerador mais suavemente e o carro respondeu melhor. Girando o volante, ela começou a dirigir pela rua.
Lutie deu um gritinho agudo e escalou a sobrecasaca de Kaye.
O cheiro do metal era esmagador.
Kaye pegou a rampa que dava acesso à rodovia, aliviada graças ao fato de a estrada não possuir mais curvas, cruzamentos ou sinais fechados. Tudo que tinha a fazer era manter-se em uma das faixas até que eles estivessem quase chegando. Mentalizar que deveriam chegar lá antes que qualquer outra coisa acontecesse com Corny. Pisou no acelerador com mais força, torcendo para que o carro permanecesse no meio da pista enquanto ela acelerava pela rodovia.
Kaye podia perceber que a visão se tornava embaçada à medida que o ferro fazia com que sua cabeça girasse. Nem mesmo as lufadas de ar que entravam através da janela aberta eram suficientes. Ela balançou a cabeça, tentando afastar a sensação de peso que parecia ter se fixado como uma atadura em suas têmporas.
- Kaye! - Lutie soltou um grito agudo, no momento exato para que Kaye pudesse dar uma guinada violenta para a direita e desviasse de um outro automóvel com que ela quase colidiu. Uma das rodas do carro de Corny atingiu a beirada da grama que cobria o acostamento direito da rodovia antes que Kaye pudesse recuperar o controle. O grito de Lutie era semelhante ao gorjeio de um pardal. Roiben não emitiu nenhum tipo de som, mas ela não queria tirar os olhos da estrada pelo tempo que seria suficiente para ver a expressão estampada no rosto dele.
Finalmente, a saída que eles precisavam pegar estava próxima, e Kaye virou em direção à agulha, em uma velocidade perigosa. Manteve o carro à beira da estrada, já que não conseguia achar uma forma de transitar com habilidade pelas pistas regulares. Surgiram apenas dois sinais de trânsito antes de eles entrarem no pomar e Kaye estacionar, com um dos lados do carro bem afastado da faixa amarela que demarcava a vaga. Com um suspiro, ela girou a chave para desligar o motor.
Roiben já estava na calçada antes mesmo de o carro parar completamente. Lutie agarrou-se na casaca de Kaye, ainda tremendo.
? Corny pode dirigir na volta ? disse Kaye quase num sussurro.
? Isso faz com que eu sinta um novo entusiasmo por nossa busca. ? A voz de Roiben estava levemente trêmula, apesar da tentativa de parecer durão.
Devido à excursão da escola, Kaye lembrava que o pomar era composto por hectares e mais hectares de árvores frutíferas e uma loja que imitava um mercado de interior, onde vendiam geléia, leite e sidra de canela. Naquele dia, havia pilhas de abóboras, remarcadas com um preço ridiculamente barato. Algumas delas pareciam amassadas.
O estacionamento estava cheio de caminhonetes lotadas de crianças que eram perseguidas pelas mães que tentavam mantê-las juntas. Kaye seguiu Roiben enquanto ele abria caminho pela multidão e contornou um imenso monumento feito de feno e abóboras. Uma das mães puxou o filho abruptamente para o lado, tirando-o do caminho deles. De imediato, Kaye conferiu a ilusão que estava sobre ela, levantando uma das mãos para inspecioná-la, e a girou na luz para ter certeza de que a tonalidade ainda era homogeneamente cor-de-rosa. Olhou de relance para Roiben e percebeu que a aparência deles era esquisita o suficiente para essa ser uma atitude materna normal.
Kaye podia sentir o ar mudando quando eles entraram no bosque e os sons dos motores de carro e das risadas se tornaram cada vez mais fracos. Ela não sentia mais o cheiro do metal, por isso respirou fundo, exalando toda a fumaça. Como na ocasião em que entrou no monte, sentiu a estranha sensação de fissão que estava começando a associar com a passagem do mundo humano para o Mundo das Fadas.
Cavalos brancos pastavam nos prados, os sinos prateados presos em suas coleiras tilintavam quando abaixavam as cabeças. Macieiras com os galhos enredados ainda estavam carregadas com a última leva de frutas do fim do outono. O ar era quente e doce, trazendo a promessa da primavera e de um novo crescimento. Membros da corte Digna estavam espalhados pelo campo, havia mantas de seda estendidas na grama com seres encantados sentados ou deitados nelas. Enquanto caminhava entre eles, Kaye podia sentir o aroma de lavanda fresca e urzes.
Os seres encantados eram tão variados quanto os da corte Indigna, apesar dos da corte Digna se vestirem com cores mais brilhantes. Eles passaram por um homem com rosto de raposa, trajando um casaco esfarrapado feito de vários tecidos, com fios que se arrastavam pelo chão. Outra fada usava um vestido dourado, a fazenda tão brilhante quanto o sol. Ela sussurrava no ouvido de um menino que também estava de vestido, sendo que o dele era inteiramente de um azul esverdeado claro. Um grupo de fadas estava acocorado sobre o que parecia um jogo, uma delas atirava pedras brilhantes no meio de um círculo desenhado na terra. Kaye não conseguia entender qual era o objetivo da disputa, mas o grupo soltava suspiros ou comemorava dependendo, ela imaginava, da maneira como as pedras caíam.
Perto dali, nos limites da multidão de seres encantados, uma mulher-árvore, cuja pele parecia uma casca de tronco e cujos dedos se transformavam em folhas na altura das unhas, estava sussurrando para uma macieira muda, de vez em quando virava a cabeça devagar para olhar furiosamente para sete homenzinhos que se equilibravam uns nos ombros dos outros. Formavam uma escada de seres encantados que ondulava para a frente e para trás, da base até o topo, onde um deles tentava agarrar desesperadamente uma maçã carnuda.
Uma garota alada corria pelo pomar com um menino humano andando, ainda cambaleante, atrás dela. A fada tinha o cabelo trançado adornado com flores. Uma criança humana. Kaye sentiu um arrepio.
Ao olhar ao redor mais uma vez, Kaye percebeu que havia mais delas, nenhuma parecia ter mais de seis anos de idade. As crianças eram acariciadas e aninhadas, os olhos tinham as pálpebras semicerradas e uma expressão sonhadora. Uma delas se sentou com uma mulher de pele azul e apoiou a cabeça em seus joelhos. Um grupo de três crianças, todas coroadas com guirlandas feitas com margaridas, dançava desajeitadamente com três homenzinhos que usavam cogumelos como se fossem boinas. Damas e cavalheiros do Reino das Fadas aplaudiam.
Kaye apressou o passo com a intenção de parar Roiben e perguntar a respeito das crianças. Mas, então, olhou para a direção em que ele estava e esqueceu todas as perguntas.
Perto das árvores carregadas com uma floração típica da primavera, apesar de estarem no outono, havia uma fada de cabelo castanho-avermelhado vestida com um sobretudo verde-esmeralda que esvoaçava como um manto. Kaye parou de andar quando viu a mulher. Mal conseguia se lembrar de respirar. Aquele ser era a coisa mais linda que Kaye já vira. A pele dela era impecável, o cabelo brilhava, tão resplandecente quanto cobre sob o sol, debaixo de um diadema feito de heras e comisos em florescência, entrelaçados. Os olhos eram tão cintilantes quanto as maçãs verdes que pendiam das árvores próximas a eles. Kaye não era capaz de olhar apenas de relance para a fada. Os olhos da menina foram atraídos por aquela imagem até que esta tomasse totalmente conta de seu campo de visão, tornando todas as outras coisas pálidas e sem graça.
Roiben não precisou dizer a ela que aquela era a rainha da corte Digna.
As mulheres daquela corte usavam vestidos feitos de tecidos leves de cor cinza-tempestade ou rosa-claro. À medida que se aproximavam, uma das mulheres inspirou tão profundamente que sua respiração se assemelhou quase a um grito e ela cobriu a boca com uma das mãos. Roiben virou a cabeça para olhar para Kaye e sorriu.
Kaye sentiu a tensão tomar conta de seu corpo. O sorriso pareceu se fixar de forma imprópria nos lábios dele, mais semelhante a uma contração do que uma expressão de prazer.
Subitamente, um cavaleiro se interpôs entre eles e a rainha. Estava vestido com uma armadura articulada de cor verde e o cabelo era tão fino e de um dourado tão pálido que se assemelhava à penugem de uma espiga de milho. Ele empunhava uma lança bastante curiosa, extremamente ornamentada, de forma que Kaye teve dúvidas de que a arma realmente pudesse ser utilizada.
? Talathain ? cumprimentou Roiben, inclinando brevemente a cabeça.
? Você não é bem-vindo aqui ? comunicou o cavaleiro.
Lutie pulou para fora do bolso da cintura de Kaye e examinou o novo cavaleiro com verdadeiro fascínio.
? Anuncie-me à rainha ? pediu Roiben. ? Se ela não quiser me ver, sairei do pomar imediatamente. ? Kaye ameaçou fazer uma objeção, mas Roiben pousou uma das mãos no braço dela. ? Meus companheiros estão, obviamente, livres para permanecer ou me acompanhar, de acordo com suas próprias vontades ? continuou ele.
O olhar de Talathain se alternava da rainha para Roiben com algo semelhante à inveja estampado no rosto. Um gesto de uma de suas mãos cobertas pelas manoplas da armadura chamou uma grande quantidade de cavaleiros adicionais. Um pajem se aproximou, ouviu Talathain e, então, correu em disparada para falar com a rainha.
Após se inclinar graciosamente para ouvir o pequeno pajem, a rainha abriu caminho entre suas damas e atravessou o gramado indo em direção a eles. Ela não olhou para Kaye. A rainha só tinha olhos para Roiben.
Kaye pôde ver o rosto de Roiben se transformar quando ele olhou para sua senhora. Havia ali uma saudade que desarmou Kaye. Aquele era o olhar leal de um cão se tornando bravio, mas ainda esperando por um toque gentil das mãos de seu mestre.
Ela pensou na tapeçaria na parede do quarto dele e em todas as coisas que ele disse e nas que não disse. E, então, descobriu por que Roiben não se afastara de seus beijos. Ele deveria ter acalentado aquele amor durante todo aquele tempo, esperando por uma chance para ver sua rainha novamente. Kaye estivera cega, muito contagiada por seus pensamentos irreais, os quais ela desejava desesperadamente que se tornassem realidade, para perceber o que deveria ser óbvio.
Kaye ficou imensamente grata quando Roiben se ajoelhou, para que ela também pudesse apoiar o corpo em um dos joelhos e esconder a dor que estava estampada em seu rosto debaixo da cabeça inclinada.
? Tão formal, meu cavaleiro ? disse a rainha. Kaye apreendeu, de relance, o olhar ascendente da rainha. Os olhos dela eram tão apaixonantes, úmidos e verdes quanto uma pedra preciosa. De repente, Kaye se sentiu cansada e muito comum. Desejou que Roiben simplesmente perguntasse sobre Corny, e então ela pudesse ir para casa.
? Não sou mais seu ? corrigiu ele, se arrependendo em seguida.
? Se não é meu, então de quem é? ? A conversa tinha muitos trechos que ficavam pouco claros para que Kaye pudesse ter certeza de que a estava acompanhando. Será que eles haviam sido amantes?
? De ninguém, Silarial ? respondeu Roiben respeitosamente, com um pequeno sorriso no rosto e surpresa nos olhos. Ele falava como alguém que tinha medo de elevar a voz temendo que algo frágil, e muito caro para ser pago, pudesse se quebrar. ? Talvez eu pertença a mim mesmo.
O sorriso dela não desapareceu, nem se alterou. Era um sorriso perfeito ? a curva dos lábios era perfeita, equilibrando perfeitamente alegria e afeição ?, tão perfeito que Kaye não podia evitar se perder diante daquela visão e desviar-se do rumo da conversa. Estava assim, totalmente distraída, quando a rainha falou novamente.
? E por que então você está entre nós se seu desejo não é voltar para casa?
? Procuro por Nephanael. Há um jovem com ele que minha companheira deseja levar de volta para o Mundo de Ferro.
Silarial balançou a cabeça.
? Ele não está mais entre o meu povo. Quando a rainha Indigna morreu e as fadas independentes se tornaram livres... ? Nesse ponto, ela fez uma pausa, olhando para Roiben. Havia algo de perturbado no rosto dela. ? Ele se apossou do trono e se sagrou rei.
Kaye sentiu uma onda atravessar sua garganta. Com os olhos arregalados, impensadamente, ela falou:
? Nephanael é o rei da corte Indigna? ? Kaye mordeu os lábios, mas o olhar da rainha voltou-se para ela com complacência.
? Quem você trouxe para nós?
? O nome dela é Kaye. Ela foi trocada quando criança.
As sobrancelhas castanho-avermelhadas da rainha se ergueram.
? Você está auxiliando-a no resgate do garoto mortal que Nephanael raptou?
? Estou ? respondeu Roiben.
? E qual é o preço que você cobra por seus serviços, Roiben que pertence apenas a si mesmo? ? Ela ergueu a mão e preguiçosamente começou a brincar com o amuleto que estava preso em seu pescoço.
Kaye não era capaz de suportar a visão do rosto perfeito da rainha. Em vez disso, ela olhou para o colar. A pedra era pálida e leitosa, pendendo de uma longa corrente. O objeto lhe parecia muito familiar.
Uma mancha rosada tingiu as faces de Roiben. Será que ele estava corando?
? Não há preço.
Kaye se lembrou do cordão ? Nephanael estava usando uma jóia idêntica. Ele a trazia ao redor do pescoço na noite em que fora buscá-la para o pagamento do Tributo.
A rainha se inclinou para a frente, quase que de forma conspiratória, como se Kaye tivesse sido esquecida houvesse muito tempo.
? Um dia, você disse que faria qualquer coisa para provar seu amor por mim. Ainda seria capaz disso?
O rubor se tornou mais intenso. De qualquer forma, quando Roiben falou, a voz dele era gélida:
? Não, não seria.
Kaye imaginou o que aquilo poderia significar. Com toda a certeza, esse diálogo significava alguma coisa, algo que nada tinha a ver com amor e que estava totalmente relacionado à rainha morta. Era esse o tema daquela conversa, Kaye percebeu. A senhora de Roiben o havia tratado como um brinquedo do qual se entediara e acabou por trocá-lo, sem se importar se a nova dona seria cuidadosa com ele, sem nem mesmo se preocupar se a nova dona seria capaz de quebrá-lo. Claramente fazia parte dos planos dela trazer seu brinquedo de volta.
? E se eu lhe dissesse que você já deu provas satisfatórias de seu amor? Venha, fique um pouco conosco. Há vinho doce e maçãs frescas. Sente ao meu lado novamente.
Kaye mordeu o próprio lábio com força. A dor a ajudou a aceitar que Roiben não era dela. E, se já era tarde demais para fingir que isso não doía, ela podia ao menos empurrar esse sentimento tão profundamente para dentro de si mesma que o cavaleiro nunca saberia de sua existência.
Roiben encarou Silarian com um misto de saudade e desprezo.
? Perdoe-me, mas o cheiro de maçãs faz com que eu sinta ânsia de vômito.
A rainha primeiramente pareceu chocada, depois irada. Ao que tudo indicava, Roiben observava, impassível, enquanto aquelas emoções moviam-se rapidamente pelo rosto dela.
? Então é melhor que você se apresse ? disse a rainha.
Ele assentiu com um movimento de cabeça e fez uma reverência. Kaye quase se esqueceu de acompanhá-lo em seus gestos.
Quando se afastaram alguns passos, a mulher de cabelos brancos agarrou o braço de Roiben, puxando-o, para que ele a encarasse às gargalhadas.
? Roiben! ? chamou a mulher que já havia abafado um grito antes. O cabelo dela ia até os joelhos, algumas das mechas estavam trançadas e enroladas no alto da cabeça. Estava trajada como as criadas da rainha.
? Estava preocupada com você. ? Mais uma vez o sorriso vacilava no rosto dela. ? As coisas que ouvi...
? É tudo verdade, não duvide ? disse Roiben, tocando-a levemente. Ele correu os dedos pelos cabelos da menina, e Kaye tremeu compreensivamente, sabendo qual era a sensação causada pelos afagos daqueles dedos longos. ? Seu cabelo está tão comprido.
? Não corto desde quando você foi embora. ? A mulher se virou para Kaye. ? Percebi que meu irmão mal apresentou você à rainha. Minha pergunta é... será que Roiben está tentando nos proteger de você ou proteger você da gente?
Kaye riu, surpresa.
? Ethine ? apresentou Roiben, meneando a cabeça de uma para a outra. ? Kaye.
A gargalhada tilintada da mulher se assemelhava ao som de vidro quebrado.
? Você anda abandonando seus ares corteses.
? Assim me disseram que deveria fazer ? respondeu Roiben.
Ethine se esticou entre os galhos da macieira para arrancar uma única flor.
? Tudo que importa é que agora você está em casa. ? Ela prendeu a flor atrás da orelha dele. Kaye percebeu um leve recuo da parte dele quando Ethine o tocou e imaginou se essa reação a havia magoado.
? Essa não é mais minha casa ? disse Roiben.
? Claro que é. Para onde mais você poderia ir? ? Os olhos dela se deslocaram para Kaye, interrogadores pela primeira vez. ? Ela machucou você, sei disso, mas você irá esquecê-la com o tempo. Você sempre a esquece.
? Os desejos mudam ? disse ele.
? O que eles fizeram com você? ? Ethine parecia horrorizada.
? O que quer que tenham feito comigo, o que quer que eu tenha feito... tão certo quanto o sangue que já encharcou minhas mãos, e que não foi pouco, as máculas do que aconteceu alcançaram até mesmo as bordas do manto da rainha da Terra dos Elfos.
? Não fale assim. Você, um dia, já a amou.
? Ainda a amo, tanto pior.
Kaye se afastou. Não queria mais ouvir. Aquilo não tinha nada a ver com ela.
Foi andando para o carro em silêncio. Uma das crianças humanas estava na ponta dos pés, se esticando para pegar uma maçã que estava fora do alcance dela. O menino vestia uma túnica verde, amarrada na cintura por uma corda prateada.
? Olá ? cumprimentou Kaye.
? Oi. ? O garoto lançou um imenso sorriso suplicante para ela e Kaye arrancou a maçã. A fruta soltou do galho com um estalo.
? Onde está a sua mãe? ? perguntou Kaye enquanto lustrava a maçã com a casaca.
Ele lhe lançou um olhar mal-humorado, um dos cachos castanhos cobria um dos olhos.
? Me dá.
? Você sempre viveu com as fadas?
? Ahã ? Os olhos dele estavam fixos na maçã.
? Por quanto tempo? ? perguntou ela.
Ele ergueu uma das mãos gorduchas e Kaye lhe deu a fruta. O menino a mordeu imediatamente. Ela esperou enquanto ele mastigava, mas assim que engoliu um pedaço, ele começou a roer a maçã novamente. Então, como se acabasse de lembrar dela, olhou, culpado, para Kaye. O menino deu de ombros e murmurou com a boca cheia:
? Desde sempre.
? Obrigada ? agradeceu Kaye, despenteando o cabelo castanho da criança. Não tinha nenhum motivo para lhe perguntar mais nada. Ele sabia tanto quanto ela. Mas, Kaye se voltou para ele novamente.
? Ei, você conhece uma garotinha chamada Kaye?
Ele enrugou o rosto em uma expressão de pensamento exagerada e então apontou na direção de um dos cobertores.
? Ahã. Procure por ali.
Como se todo o sangue do corpo dela houvesse corrido para a cabeça, Kaye sentiu uma onda de calor e tontura como se tivesse sido pendurada de cabeça para baixo. Os dedos pareciam ser feitos de gelo.
Deixando o menino com sua maçã, ela caminhou entre os cobertores de tecido, parando a cada garotinha que passava, não importando qual fosse a aparência da criança.
? Seu nome é Kaye, docinho?
Mas, quando viu a si mesma, ela soube. Os olhos amendoados se encaixavam estranhamente com os cabelos loiros desgrenhados, fazendo com que a criança parecesse superexcitada apesar do corpo gordinho e das orelhas redondas. Asiática e loira. Kaye não conseguia fazer mais nada além de encarar a menina enquanto ela ? muito, muito jovem para ser Kaye em qualquer mundo sensato ? arrancava ervas daninhas, ocultava a raiz cuidadosamente e arremessava as extremidades na direção de uma fada já idosa, que ria.
Todas as perguntas que Kaye queria fazer a deixaram asfixiada. Ela deu meia-volta e marchou raivosamente até Roiben e Ethine, agarrando o braço dele com força.
? Temos de ir agora ? berrou Kaye furiosa e trêmula. ? Corny pode estar morto.
Ethine arregalou os olhos enquanto Roiben engoliu o que quer que estivesse dizendo e balançou a cabeça. Kaye deu-lhes as costas, andando afetadamente em direção ao carro, deixando que Roiben a seguisse.














14


"Na montanha, os carvalhos gigantes
caem de joelhos
Você pode tocar partes
Que não são de seu direito..." (

? KAY RYAN
"Crown"

Ela não se lembrava de onde estacionara o carro.
? Kaye, pare. Pare agora. ? A voz de Roiben vinha logo atrás dela.
Ela parou, olhando através das árvores para as minivans e a rodovia mais ao longe. Qualquer coisa para não olhar para trás e ver a corte Digna, a criança sem idade e Roiben.
? Você está tremendo.
? Estou com raiva. Você fica perdendo tempo enquanto temos assuntos importantes para resolver. ? A calma dele apenas fazia com que Kaye ficasse mais irritada.
? Bem, me desculpe por isso. ? Roiben não parecia achar exatamente que devesse pedir desculpas, a voz dele pairava nos limites do sarcasmo.
O rosto dela estava quente.
? Por que você está aqui?
Houve uma pausa.
? Porque você simplesmente me arrancou de uma conversa com uma repreensão que não foi das mais educadas.
? Não... Por que você ainda está aqui? Por que você está aqui, afinal de contas?
A voz dele era tranquila. Kaye não podia olhar o rosto dele a não ser que se virasse, e ela não iria fazer isso.
? Posso ir, então?
Os olhos dela queimavam graças a lágrimas que se recusava a verter. Sentia-se completamente sobrecarregada.
? Tudo que eu faço... ? começou Kaye e sua voz falhou. ? Merda, não temos tempo para isso.
? Kaye...
? Não. ? Ela andava de um lado para o outro. ? Temos de ir. Agora.
? Se você não se acalmar, pouco poderá fazer por Cornelius.
Kaye parou de andar e ergueu as mãos, os dedos espalmados.
? Não consigo. Não sou como você!
Roiben fez com que Kaye parasse, colocando as mãos nos ombros dela. A menina se recusava a olhar dentro dos olhos dele e abruptamente ele fez com que ela se virasse para a frente, puxando o corpo dela contra o seu. Os músculos dela se enrijeceram, mas ele a abraçou ainda mais forte, sem dizer uma única palavra. Após um momento, ela cedeu, o ar corria para fora de seus pulmões em um longo e arrepiante suspiro. Dedos longos acariciaram o cabelo de Kaye. Ele cheirava a mel, suor e ao detergente que a avó dela usava.
Ela friccionou a bochecha contra o peito dele, fechando os olhos para evitar os pensamentos que inundavam sua cabeça, sussurrando promessas em troca de atenção.
? Estou aqui porque você é doce, amável e espantosamente corajosa ? O tom de voz de Roiben foi se tornando mais baixo. ? E também porque eu quero estar.
Kaye olhou para cima, em direção a ele. Roiben sorriu e descansou o queixo no alto da cabeça dela, deslizando uma de suas mãos pelas costas da menina.
? Você quer estar?
Ele riu.
? Obviamente. Você tinha alguma dúvida?
? Ah ? suspirou ela. A mente dela era incapaz de processar a felicidade estonteante que sentia. Alegria que era, naquele momento, suficiente para empurrar todas as outras aflições para longe. Porque era verdade, de alguma forma, Roiben estava ali com ela e não com a rainha Digna. ? Ah.
As mãos dele fizeram carícias longas e serenas, que iam desde onde surgiam as asas, nas omoplatas, até a cintura dela.
? E isso lhe agrada?
? O quê? ? Kaye inclinou a cabeça para cima novamente, franzindo as sobrancelhas. ? Claro que isso me agrada. Você está brincando?
Ele recuou para olhar para Kaye por um momento, procurando pelo rosto dela.
? Ótimo. ? Roiben balançou a cabeça para cima e para baixo e apertou mais o rosto dela contra o peito, acariciando o cabelo de Kaye enquanto fechava os olhos. ? Ótimo.
Eles permaneceram assim por um longo momento. Finalmente ele se afastou, interrompendo o abraço.
? Felizmente ? disse ele ? não vamos precisar do carro para ir até a corte Indigna. Me acompanhe.


A árvore era retorcida e imensa, seu tronco enesgado e cheio de protuberâncias dava a impressão de estar arqueado devido ao próprio peso. A casca era fina, lascada e escamava como pele seca. Na base, havia uma fenda onde raízes rompiam a superfície.
Lutie zuniu para fora do buraco.
? Não há guardas ? informou ela, acomodando seu minúsculo corpo no cabelo emaranhado de Kaye.
? E aonde isso leva? ? Kaye procurava controlar a tremedeira, tentando esconder o quanto estava despreparada para enfrentar aquele tipo de situação.
? Às cozinhas ? respondeu Roiben, afundando cuidadosamente pelas fendas da árvore, introduzindo primeiro os pés. Finalmente, a cabeça dele desapareceu na escuridão, mechas prateadas ficaram agarradas na casca lascada. Kaye ouviu um estrondo quando ele atingiu o chão.
Kaye forçou as botas contra a entrada, sentindo um pedaço mais macio da madeira cedendo, quebrando em lascas, à medida que ela escorregava para dentro, enterrando as pernas até os joelhos. Então, de costas, movimentando-se sinuosamente como uma cobra, ela empurrou o corpo para dentro. Foi uma longa queda e Kaye conteve um grito quando aterrissou.
O túnel era quente e enevoado devido ao vapor. Gotas de umidade pontilhavam o rosto de Roiben e o cabelo tinha uma aparência viscosa e pesada quando ele o penteou para trás com uma das mãos. Roiben apontou para a esquerda com um movimento de cabeça e Kaye foi andando na frente dele através da névoa cada vez mais densa.
A cozinha era uma sala imensa com uma pira no centro e não havia sistema de ventilação visível. Fadas corriam pelo local carregando grandes panelas, pilhas de ratos peludos, bolinhos, cestas de maçãs prateadas e tonéis cilíndricos de vinho. O cheiro forte e desagradável de sangue a tomou de assalto. Sangue manchava as paredes e o chão, fervia em panelas e pingava de pratos de carne crua. Roiben caminhava atrás de Kaye, com uma das mãos na cintura dela, empurrando-a quando queria que ela continuasse e agarrando sua casaca em sinal de que deveria parar.
Eles rastejaram pela cozinha, permanecendo junto à parede. Um ser encantado idoso e enrugado estava sentado em um banco próximo aos dois, as pernas franzinas pendiam de um dos lados, a língua esticada para fora da boca demonstrando concentração enquanto pintava maçãs pretas com uma tinta vermelha brilhante, que mais parecia esmalte de unhas. O cabelo branco do velho se projetava em tufos despenteados e de vez em quando ele ajeitava os pequenos óculos que escorregavam pelo nariz.
Próximo ao pintor de maçãs, um imenso homem verde, com pequenos chifres na cabeça calva e caninos que se projetavam sobre o carnudo lábio superior, brandia um cutelo de açougueiro sobre uma coleção de cadáveres de animais de aspecto estranho e pendurava-os em ganchos. Tatuagens de rosas e espinhos tomavam ambos os braços musculosos do homem.
Kaye se movimentava tão furtivamente como quando precisara entrar em casa às escondidas, tarde da noite, e como quando saíra de uma loja com os bolsos cheios. Concentrou-se nos próprios pés, abaixando a cabeça e passando devagar e calmamente pela porta.
Logo o corredor estreito se tornou uma descida e se abriu em uma passagem mais larga, cujo piso era de mármore acinzentado e as paredes sustentadas por pilastras entalhadas. Estalactites pendiam do teto. Kaye podia ouvir pessoas mais adiante, sapatos crepitavam como besouros no chão de pedra.
Roiben empurrou ambos para trás de uma pilastra, desembainhou a espada e a segurou contra o peito. Kaye achou a adaga que ele lhe dera mais cedo e apertou desesperadamente o punho.
O som dos passos, porém, deslocou-se para outro corredor. Kaye soltou a respiração que não havia reparado que estava prendendo.
Eles se movimentaram furtivamente ainda em guarda até que chegaram a um par de portas pintadas de preto.
? O que é isso? ? perguntou Kaye.
? Câmaras de envelhecimento de vinho ? respondeu ele sussurrando.
A sala era toda feita de pedra e fedia a levedo. Barris e garrafas contendo infusões de várias flores estavam alinhados nas paredes. Havia pétalas de rosa, de violeta, botões inteiros de cravo-de-defunto, urtigas que flutuavam como naves espaciais orgânicas e mais outras ervas que Kaye não conseguiu identificar.
? Quais são essas? ? sussurrou ela. Não havia ninguém na sala.
? Absinto, milerólio, calta, goivo, agrimônia, erva-doce...
? Aposto que você bebe muito chá de ervas.
Ele não sorriu enquanto a conduzia pela menor das duas portas da sala. Ela se perguntou se Roiben havia pelo menos se dado conta de que aquilo fora uma brincadeira.
? Lavanderia ? indicou ele.
A próxima sala estava repleta de tanta ou mais névoa do que as cozinhas. O vapor era sugado para cima graças a pequenos orifícios no teto. Havia uma série de grandes tinas de madeira contendo água com sabão. Uma mulher pálida com olhos negros torcia uma peça branca de tecido enquanto outra mexia o conteúdo de uma tina com um bastão longo e curvado. Um homem corcunda com braços longos adicionava alguns grânulos à mistura, fazendo com que a água sibilasse.
Aquele era um lugar pequeno, e Kaye olhou de relance para Roiben. Não havia como atravessar a sala sem que fossem vistos.
? Maigret ? chamou ele, sorrindo enquanto escancarava os braços.
Uma das lavadeiras olhou para cima, o sorriso dela mostrava que lhe faltava um dente.
? Nosso cavaleiro! ? Ela caminhou com dificuldade e abraçou Roiben como se este fosse um ato totalmente rotineiro. Os pés dela estavam escondidos debaixo das longas saias de suas vestes e Kaye não foi capaz de entrever se havia realmente algo de errado com eles. Do outro lado da sala, o homem e a outra mulher desviaram os olhos de suas tarefas e também sorriram. ? Pensei que nunca mais o veria.
? Estou procurando por um menino ? disse Roiben. ? Humano. Está em companhia de seu novo rei.
A mulher fez um som de desgosto.
? Aquele ali... Rei! Nem me diga! É, tem um menino por aí, mas não posso lhe dizer mais do que isso. Sou mais sábia e experiente do que a imagem que os olhos da nobreza fazem de mim.
Roiben deu um sorriso de esguelha.
? Eu igualmente.
? Eles estão lhe procurando, você sabe.
Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça.
? Sem dúvida, terminei meus ofícios aqui de uma forma espetacular.
A velha lavadeira soltou uma gargalhada e lançou um aceno de despedida para eles. Roiben abriu a portinha e, junto com Kaye, emergiu no corredor de mica resplandecente.
? Como você sabe que ela não vai dizer a ninguém que nos viu?
? Maigret acha que tem uma dívida comigo. ? Ele estremeceu.
? Há algo de errado com os pés dela?
? Ela desapontou um dos nobres da corte Indigna. Ele tinha um par de sapatos de ferro e os aqueceu até que ficassem rubros antes de fazer com que ela dançasse com eles nos pés.
Kaye sentiu um calafrio.
? Isso tem algo a ver com o favor que ela deve a você?
? Talvez ? admitiu ele.
? O que há por ali?
? Lá fica a biblioteca, a sala de música, a estufa de plantas e a sala de xadrez.
? Sala de xadrez?
? Sim, o xadrez também era uma das paixões da rainha. Eles faziam apostas nos jogos de xadrez como os mortais apostam nas cartas. Recordo-me de que, certa vez, ela utilizou o jogo para ganhar um marido.
? Corny ama xadrez... Ele até fazia parte da equipe de xadrez da escola.
? Temos de atravessar a biblioteca para chegar até lá ? hesitou Roiben.
? Qual é o problema?
? Não vimos nenhum guarda. Nem na entrada, nem mesmo aqui.
? E se isso significar que nós estamos simplesmente indo muito, muito bem?
? Com certeza isso significa alguma coisa.
A porta da biblioteca era imensa e elegante, claramente diferente das portas mais simples das câmaras inferiores. Era feita de madeira escura, com faixas de cobre e entalhes que formavam inscrições em uma língua que Kaye não conhecia. Roiben empurrou a porta e ela se abriu.
Estantes de livros estavam organizadas em forma de labirinto, tão altas que era impossível olhar para o outro lado da sala, onde se localizava a saída. As próprias prateleiras tinham entalhes intrincados que formavam rostos de gárgulas e de outros monstros estranhos, e o intenso odor de terra revirada tomava conta do local. Sempre que Kaye olhava para um lado, algo parecia se modificar no canto de seu campo de visão. Os próprios livros eram de tamanhos tão variados que ela tentou imaginar quem lia todos aqueles volumes.
Enquanto andavam, Kaye tentou examinar os títulos, mas todos estavam escritos em línguas estranhas.
Quando viraram uma esquina, ela viu uma forma deslizar entre as sombras. Era esguia e lembrava vagamente um ser humano.
? Roiben - sussurrou.
? Os guardiões dos segredos ? disse ele, sem olhar para trás. ? Eles não irão contar a ninguém que passamos por aqui.
Kaye sentiu um calafrio. Ficou imaginando o que estava escrito nos tomos que se enfileiravam nas prateleiras da biblioteca se a idéia era guardar segredos. Seriam aquelas sombras guardas, guardiões ou escribas?
Quando chegaram a uma encruzilhada formada por prateleiras, Kaye viu outra forma escura. Esta tinha cabelos longos e pálidos que começavam a nascer bem no alto da fronte e olhos negros e brilhantes. A figura escorregou pelas sombras tão leve e silenciosa quanto a primeira.
Kaye se sentiu muito aliviada quando chegaram a uma porta pequena e oval que abriu facilmente ao toque de Roiben.
Cortinas pesadas pendiam das paredes da sala de xadrez. Todo o piso era marchetado com ladrilhos pretos e brancos e peças de xadrez com mais de dois metros e meio de altura agigantavam-se nas extremidades da sala. Corny estava dormindo no chão, sobre dois quadrados do tabuleiro.
? Cornelius? ? Roiben ajoelhou-se e sacudiu Corny pelos ombros.
O rapaz olhou para cima. Os olhos dele estavam vazios e desfocados. O corpo era uma massa de hematomas, mas pior ainda era o sorriso farto estampado em sua face quando olhou para eles. O rosto de Corny parecia envelhecido de alguma forma e havia um tufo de fios brancos no cabelo dele.
? Oi ? balbuciou ele. ? Você é o Roiben da Kaye. Kaye se ajoelhou.
? Você está bem agora ? disse ela, mais para si mesma do que para Corny, afastando reverentemente mechas viscosas da testa dele. ? Você vai ficar bem.
? Kaye ? chamou Roiben sem expressar nenhum tipo de emoção.
Ela virou-se. Nephanael estava entrando na sala, vindo de trás das cortinas da parede mais afastada de onde eles estavam. Uma de suas mãos golpeava o cabelo comprido do cavaleiro de madeira montado na peça que representava o cavalo negro.
? Saudações ? cumprimentou Nephanael. ? Perdoe-me pelo meu senso de humor, mas devo dizer que você é uma tormenta tão notória quanto constante em minha vida.
? Prefiro pensar que você me deve um favor ? disse Roiben. ? Fui eu quem lhe deu a coroa.
? Deste ponto de vista, é uma pena que a vida às vezes seja tão injusta, Rath Roiben Rye.
? Não! ? a voz de Kaye saiu entrecortada. Não era possível. Nephanael estava muito distante dos outros quando ela disse o nome dele. Ela falou tão baixo que mal foi capaz de ouvir a própria voz. Roiben havia matado todos os cavaleiros que estavam próximos a eles, todos que poderiam ter ouvido.
? Ninguém mais sabe disso. ? Nephanael parecia estar lendo os pensamentos de Kaye. ? Eu matei o duende que achou que podia se engraçar comigo devido ao fato de ter me dado essa informação.
? Spike ? murmurou Kaye. Isso não foi uma pergunta.
? Rath Roiben Rye, pelo poder de seu verdadeiro nome, eu ordeno que você nunca cause nenhum mal à minha pessoa e que me obedeça tão imediata quanto irrestritamente.
Roiben respirou tão fundo que parecia estar gritando, apesar de não emitir nenhum tipo de som. Nephanael jogou a cabeça para trás e riu, com a mão ainda golpeando a peça de xadrez.
? Eu ainda ordeno que você não deve causar nenhum dano a si mesmo, a não ser que eu lhe peça especificamente para fazê-lo. E agora, meu recém-ordenado cavaleiro, aprisione a pixie.
Roiben se virou para Kaye enquanto Lutie berrava dentro do bolso dela. Kaye correu em disparada para a porta, mas ele foi muito mais rápido. Roiben agarrou um pedaço do cabelo dela, empurrando-a para trás. E então, de repente, ele a soltou. Após um momento de espanto, Kaye se lançou pela porta.
? Você pode ser bastante entendida no que diz respeito a seguir ordens, mas é uma novata em dá-las. Kaye ouviu Roiben dizer enquanto ela corria de volta ao labirinto da biblioteca.
Antes, ela simplesmente seguira Roiben através do caminho tortuoso formado pelas prateleiras. Agora, ela não tinha idéia de aonde estava indo. Virou várias e várias esquinas, aliviada por não ter visto nenhum dos estranhos guardiões de segredos. Então, quando ela passou correndo por um pódio com uma pequena quantidade de livros empilhados sobre ele, escolheu um caminho sem saída.
Lutie rastejou para fora do bolso de Kaye e dava vôos rasantes ao redor da fada.
? O que vamos fazer, Kaye? O que vamos fazer?
? Shhh. Tente ouvir.
Kaye podia ouvir a própria respiração, as páginas sendo viradas em algum outro ponto da sala e um ruído que parecia ser o de tecido arrastando no chão. Nenhum som de passos. Nada para ser seguido.
Ela tentou jogar uma ilusão ao redor de si mesma para fazer com que a pele ficasse da mesma cor da parede atrás dela. Kaye sentiu as pequenas ondas de magia se movimentarem em círculos através dela e olhou para baixo, para a nova mão cor de madeira.
O que elas iriam fazer? A culpa e a tristeza ameaçavam dominá-la. Ela colocou a cabeça entre as pernas e respirou fundo por um momento.
Precisavam sair livres.
Essa necessidade era tremenda. Ela era apenas uma jovem pixie. Mal sabia como utilizar a ilusão, mal sabia como utilizar as próprias asas.
Esperta. Essa palavra a atormentava, a soma de todas as coisas que poderia ter sido e não era.
Pense, Kaye, pense.
Ela respirou fundo. Matara charadas. Tirara Roiben da corte. Descobrira mais ou menos como usar a ilusão. Ela poderia fazer isso.
? Vamos. Por favor... Vamos ? implorou Lutie enquanto pousava no joelho de Kaye.
Todos eles eram seres encantados. Tudo bem, então ela precisava pensar como uma garota humana. Tinha de considerar coisas que soubesse como fazer. Truques com isqueiros. Roubar coisas de lojas. E, especialmente, precisava pensar em algo de que fadas não gostassem.
Ferro.
Kaye olhou para Lutie.
? O que aconteceria se eu engolisse ferro?
Lutie deu de ombros.
? Você queimaria a boca. Poderia até morrer.
? E se eu envenenasse alguém com ferro?
Lutie mudou de posição, desconfortável, no joelho de Kaye, aparentemente incrédula.
? Mas não existe ferro aqui.
Kaye respirou fundo e deixou que o ar abandonasse lentamente seu corpo. A mente trabalhava em ritmo acelerado, ela precisava ir mais devagar, se acalmar. Devia haver ferro na corte Indigna, certamente componentes de armas. Mas ela não fazia idéia de onde elas eram guardadas. Podiam estar em todos os lugares lá fora. Em qualquer lugar.
Ela olhou para baixo, para o próprio corpo. O que poderia ter do Mundo de Ferro? A camiseta, a calcinha, as botas... a casaca verde era apenas uma ilusão, afinal de contas.
Kaye desamarrou as botas depressa. Definitivamente havia ferro ali, mesmo que protegido do contato direto com a pele dela. Tirou o calçado e o examinou. Havia ferro nos ilhoses, podia sentir o calor, encobertos pelo revestimento de plástico. Também existiam placas de aço escondidas nas biqueiras das botas, apesar de elas serem muito grandes para serem usadas, a não ser que pudesse limá-las de alguma forma. Kaye tirou do bolso da casaca a faca que Roiben lhe dera e começou a arrancar a sola de uma das botas. Então, à medida que o solado era rasgado, as tachinhas do calçado ficavam expostas, revelando pregos de metal brilhante tão pequenos que poderiam ser engolidos sem que ninguém percebesse.
Kaye pegou a faca com uma das mãos, a bota com a outra e começou a trabalhar.


As novas emoções de Corny estavam à flor da pele. Ele estava sentado no chão sujo de um imenso palácio debaixo da terra. Cortesãos tocavam instrumentos e Nephanael o alimentava com uvas carnudas e de casca escura. Ao redor de Corny, criaturas, pequenas e largas, saciavam a sede, faziam apostas na solução de charadas e em um jogo que envolvia o arremesso de algo parecido com pedras redondas.
Todo o resto do mundo perdia a importância comparado àquelas uvas. Nada era melhor do que esfregar os lábios contra aqueles dedos, nada mais doce do que a explosão de cada jóia negra em sua boca.
? Acho que você inspira dignidade em demasia. Eu ordeno que dance ? disse Nephanael para seu novo prisioneiro.
Abaixo da plataforma, uma pequena multidão se reuniu, abandonando suas atividades normais para ver Roiben dançar.
O corpo do cavaleiro parecia uma corda frouxa de instrumento musical. O cabelo prateado ondulava como uma flâmula, mas os olhos pareciam estar separados do corpo, se movendo como os de um animal que precisa cortar a própria perna para se livrar de uma armadilha. Ele não vacilou, mas seus movimentos eram imprevistos, suas piruetas, desesperadas. Corny não queria sentir pena dele, então olhou para o outro lado. Uma uva caiu das mãos do rei, mas Corny não estava mais prestando atenção.
O cavaleiro continuava dançando enquanto a nobreza Indigna ria e zombava dele.
? Fácil demais. Vai levar muito tempo para que ele se canse. Chicoteiem-no enquanto ele faz sua performance.
Três gnomos deram um passo à frente para fazer o que lhes foi ordenado. Linhas vermelhas se abriram ao longo do peito e das costas de Roiben.
Corny estava muito grato por Kaye não estar ali naquele momento.
? Que tarefa eu devo lhe designar para que ele seja redimido em minha corte? Quero conservá-lo. Ele tem sido um talismã de boa sorte até agora.
? Faça com que ele ache um pássaro sem asas que ainda seja capaz de voar.
? Ache-nos uma cabra cujas tetas estejam cheias de vinho em vez de leite.
? Sim, traga-nos uma cabra adorável como essa.
? Chato, chato, chato. ? Nephanael se refestelou no trono. Olhando para baixo, na direção de Corny, soltou um sorriso que mais parecia estar cravando os dentes num pedaço de bolo. ? Você perdeu algumas bugigangas ? disse ele, implicante. ? Cate-as... com os dentes.
Corny desviou o olhar de Roiben, sem perceber que os próprios olhos haviam sido desviados. Ele fez o que lhe foi ordenado.


Na verdade, aquilo mal era um plano. Kaye jogou uma ilusão sobre si mesma para fazer com que se parecesse com a Hábil Torta, a única pessoa da corte Indigna da qual se recordava bem e que tinha quase certeza de que não estaria ao lado do trono. Ela fez algumas imitações da velha, silenciosamente, no hall, mas Lutie não a ajudou nem um pouco, rindo tanto que a fadinha mal era capaz de controlar o próprio voo.
Com os pequenos pregos de aço queimando a palma da mão emborcada, ela seguiu em busca do salão principal. Não foi uma tarefa difícil. Após a sala de xadrez, havia outras portas, mas apenas uma escada que levava para o andar de cima.
O salão da corte Indigna parecia estar quase igual ao que ela se lembrava e praticamente tão cheio naquela noite quanto na última ocasião em que estivera ali. Dessa vez, tendo vindo do centro do palácio, ela saiu diretamente atrás da plataforma suspensa. Roiben dançava lá em cima, linhas vermelhas em carne viva atravessavam suas costas. Nephanael estava sentado no trono ornado de madeira, o aro de metal queimava na testa dele. Kaye o viu abaixar uma das mãos para acariciar o cabelo de Corny. Ela respirou fundo e adentrou a plataforma, aproximando-se, depressa, de um barrete vermelho que servia como copeiro encarregado do vinho, segurando uma garrafa prateada de pele de lagarto pronta para encher o cálice do novo rei.
? Costureira? ? inquiriu a criatura, dando-lhe um sorriso sinistro, que revelou dentes afiados, amarelos e sobrepostos.
E, então, Lutie fez exatamente o que deveria fazer, voando bem perto do rosto do rei de forma que ele tentou agarrá-la com uma das mãos e não percebeu que Kaye derrubava pregos de aço dentro do vinho. Era o oposto de roubar coisas de lojas. Fácil. Muito mais fácil que fazer com que ratos escorregassem para dentro de seus bolsos.
? Hábil Torta. ? Kaye se virou e constatou que Nephanael estava falando com ela. ? Venha até aqui, costureira.
Ela olhou ao redor. Lutie escapara das mãos do rei, mas Kaye não estava conseguindo vê-la. Mesmo sabendo que isso era a melhor coisa, a mais segura, não conseguia evitar a preocupação. Muita gente já havia sido machucada por sua causa. Kaye respirou fundo, caminhou até Nephanael e, como reverência, inclinou o corpo da forma que julgava ser uma aproximação fiel da costureira.
? Ah ? ele fez um gesto na direção de Roiben ?, meu novo brinquedo. Ele é forte, como você pode ver. Adorável, firme. Preciso de uma veste para ele. Acho que gostaria de algo verde. Talvez o uniforme de um pajem da corte Digna? Acredito que isso seria do meu agrado.
Kaye concordou com um movimento de cabeça e, quando olhou para Roiben novamente, começou a se afastar do trono.
? Mais um momento ? disse Nephanael. O coração de Kaye batia decompassadamente no peito. ? Aproxime-se.
Ela deu um passo à frente, com obediência.
Dando gargalhadas perversas, Nephanael levantou-se do trono com um pulo e agarrou-a por um único ombro magro. A expressão no rosto dele era próxima demais ao deleite para fazer com que o estômago dela revirasse de tanto medo. A magia a cercou, quebrando a ilusão. A sensação era a de estar sendo destroçada por garras. Ela sabia que estava soltando gritos agudos, mas não podia evitar, não era capaz de fazer nada enquanto a ilusão era extirpada. Kaye caiu de joelhos, vestindo agora a camiseta e as roupas de baixo com que tinha acordado, o cabelo ainda duro devido à maresia.
Houve gritos e suspiros altos.
? Amordacem-na ? ordenou Nephanael. ? Amarrem as mãos dela para trás e me dêem o chicote. Um dos membros da corte se aproximou para obedecer às ordens do rei.
Refestelando-se no trono, Nephanael fez um gesto pedindo mais vinho. Kaye prendeu a respiração, mas ele simplesmente pegou o cálice e não bebeu.
? Agora temos um regalo inesperado. Um complemento para minhas brincadeirinhas. Venha até aqui, Roiben.
O cavaleiro parou, seu corpo tremia graças ao esforço e à violência. Os vergões vermelhos que tomavam conta de suas costas e peito, alguns ainda sangrando, eram horríveis de ser vistos. Ele se aproximou para ficar de pé diante de Nephanael.
? Ajoelhe-se.
Roiben deixou-se cair de joelhos com um pequeno suspiro de dor.
Nephanael procurou nas dobras de seu manto e tirou uma adaga. A lâmina era de ouro e o punho, de chifre. O rei jogou-a para Roiben, fazendo com que ela aterrissasse diante do cavaleiro com um estrondo.
? Minha ordem é: quando eu disser "comece", pegue a faca e corte a pixie até que ela morra. O jogo consiste em adivinharmos se você irá matá-la devagar, fazendo com que ela sofra encantadoramente para meu divertimento enquanto tenta ganhar tempo... ou corta a garganta dela em um único e simples golpe. Essa é a coisa mais recomendável a ser feita. Ah, se você simplesmente deixasse de ter esperanças... ? suspirou ele dramaticamente, erguendo o cálice acima da cabeça.
O rosto de Roiben empalideceu, chocado.
Kaye suspirou. Era difícil respirar com a mordaça na boca e, além disso, não podia falar.
? Comece ? ordenou Nephanael, saudando com o cálice.
Roiben virou-se, os olhos estavam molhados e ele batia o queixo. Respirou fundo, olhando para a faca em suas mãos, e depois observou Kaye. Ele fechou os olhos e ela o viu realizar algum tipo de reconciliação mórbida consigo mesmo, chegando a alguma decisão terrível.
Kaye queria fechar os olhos, mas não conseguia. Em vez disso, tentou encontrar o olhar de Roiben, para implorar por misericórdia através da expressão que trazia no rosto, mas o cavaleiro não olhou para ela.
Enquanto esperava que a faca pronunciasse sua trajetória, Kaye viu Nephanael levar o cálice até a boca, inclinando a extremidade da taça para dar um gole mais profundo. Por um momento, não houve reação. Ele apenas enxugou as bordas dos lábios com dois de seus dedos. Mas, de repente, começou a tossir, olhando desesperadamente ao redor da plataforma. Os olhos dele encontraram os de Kaye. Nephanael caiu de joelhos, arranhando o pescoço. Ele abriu a boca, talvez para falar ou, quem sabe, com a intenção de soltar um grito, mas nenhum som foi ouvido.
Então a visão dela foi bloqueada por Roiben, que respirava tropegamente, a faca dourada ainda nas mãos dele. Kaye se lembrou de que nenhuma contra-ordem fora dada. Roiben ainda estava atado ao comando.
Ela debateu-se em todas as direções.
E sentiu dedos minúsculos desatando os nós da mordaça.
O rosto de Roiben era uma máscara de choque e horror enquanto observava a própria mão ir abaixando a lâmina de metal contra a pele de Kaye.
Ela respirou fundo diversas vezes, preparando-se. Quando sentiu a mordaça ser afrouxada, arrancou-a com um tapa e marchou em direção à faca, sussurrando:
? Rath Roiben Rye, pare... Eu ordeno que você pare... Eu ordeno que você...
Kaye sentiu a faca afundar em seu braço enquanto falava e o ouviu soluçar antes que a arma caísse das mãos dele.
Ela levantou-se rapidamente, batendo as asas com força. Kaye se elevou com facilidade indo em direção à cúpula emborcada do teto, hesitando por um momento. Lutie se elevou logo atrás dela, atrapalhada pela corda que atava suas mãos.
Então, vindo de uma das entradas, ouviu-se um estrondo típico de cavaleiros, um som de armaduras e sinos. A corte Digna havia chegado.





15


"Melhor reinar no Inferno do que ser escravo no Paraíso." (

? MILTON
Paraíso perdido (Livro 1)



Os cavaleiros foram os primeiros a entrar no salão, todos vestidos com armaduras de um verde profundo, que lembravam carapaças de insetos. A seguir, vieram uma dúzia de senhoras, cada uma delas usando um vestido de cor diferente. Kaye percebeu que Ethine era a que estava de dourado claro. Depois dos cortesãos, veio a rainha, resplandecente em uma veste da cor dos raios do luar, muito parecida com a que usava na tapeçaria de Roiben. Por cima desse vestido, ela usava uma capa azul-pavão que se arrastava pelo chão enquanto caminhava em direção à plataforma.
? Roiben ? disse a rainha. Uma vaia partiu da corte Indigna. Uma criatura imensa ofendeu-se e estava prestes a atacar, quando foi abrandada por um olhar cortante de um dos cavaleiros.
Nephanael ainda se contorcia sobre a plataforma, arranhando o pescoço e o peito com os dedos. Parecia completamente alheio à chegada de sua senhora.
Roiben olhou para a rainha Digna e seus olhos se fecharam. Ele soltou o ar dos pulmões de uma forma que parecia tão aliviada que Kaye se sentiu repleta de pavor. Havia algo errado com tudo aquilo.
Ao redor do pescoço da rainha Digna, um pingente branco pendia de uma corrente prateada. Kaye olhou fixamente para o objeto como se ele a estivesse hipnotizando. O olhar da rainha estava voltado para a plataforma, onde o auto-aclamado rei da corte Indigna se debatia.
? Nephanael estava servindo a você. ? A revelação era tão chocante que Kaye pronunciou aquelas palavras em voz alta antes mesmo de cogitar suas consequências. Ela aterrissou ao lado de Roiben.
Parecia que o que Kaye dissera havia feito com que tudo parasse. Até a rainha estava congelada. Kaye tropeçou. Olhando para Roiben, desejou que ele acreditasse.
? Roiben, você tinha de servir a Nicnevin, e Nephanael tinha de servir à rainha Digna. Era seu dever. Ele não tinha o direito de ser mais desobediente do que você.
A rainha deu um sorriso meigo.
? A fada alada está correta, mesmo tendo explicado o acontecido à sua maneira. Se eu houvesse lhe ordenado que ficasse ao meu lado o tempo todo, ele não poderia ter me deixado. Mas não lhe dei essa ordem. E, uma vez longe, ele não podia mais ouvir os meu comandos, portanto, não tinha como considerá-los. Vim até aqui hoje para colocar as coisas no lugar.
As palavras pareciam muito razoáveis quando faladas por aqueles lábios. Kaye queria estar errada, mas o amuleto ainda pendia pesadamente do pescoço da rainha.
? Mas eu vi o amuleto. Estava em poder de Nephanael quando ele lançou a ilusão sobre mim para que eu parecesse humana. Aparentemente, o poder dele vinha do pingente.
? Você está enganada, fada alada, e ficará quieta. Há assuntos muito mais urgentes a serem discutidos ? a voz da rainha Digna era firme, e vários de seus cavaleiros vieram na direção de Kaye.
? Kaye... ? Roiben balançava a cabeça. ? O amuleto é dela. Sempre foi.
Ela virou-se na direção dele, os olhos faiscavam.
? Eu não estou errada.
Houve um murmúrio na multidão quando Kaye disse isso. Ela não tinha certeza de que resultados poderiam agradar mais à corte Indigna. Provavelmente os que envolvessem mais derramamento de sangue. Pelo menos ela não tinha dúvidas de que a nobreza Indigna estava grata por alguém estar insultando a rainha Digna.
Roiben ergueu uma das mãos.
? Eu a ouvirei. ? O pronunciamento dele trouxe algum silêncio à corte. Isso maravilhou Kaye. Roiben estava apoiado contra o trono com a roupa manchada de sangue, desarmado, e, ainda assim, inspirava respeito suficiente para que a multidão se calasse.
Ele fez um gesto com a cabeça na direção de Kaye.
? Fale.
Ela respirou fundo e, quando começou seu discurso, fez questão de averiguar se seu tom de voz era alto o suficiente para que todos ouvissem:
? Acho que agora já é mais do que óbvio para todos que eu sou uma fada alada, mas tenho vivido como humana por... bem... por dezesseis anos. Consegui achar a garota humana pela qual fui trocada. Ela ainda está na corte de Silarial.
Roiben lançou um olhar penetrante na direção de Kaye, mas ela apressou-se em continuar:
? Isso quer dizer que foi um membro da corte Digna quem realizou a troca, apesar de eu estar vivendo em território Indigno, muito perto da corte de Nicnevin. Quando eu era criança, havia três fadas que cuidavam de mim. Elas também eram da corte Digna. Mudei-me para a Filadélfia, onde vivi por dois anos até ele ? Kaye apontou para Nephanael ? aparecer em um dos shows da minha mãe. Ele levou o cara com quem nós estávamos morando para um canto e, alguns minutos depois, esse cara tentou matar a minha mãe. No dia seguinte, nos mudamos para cá novamente. Alguns dias depois, meus velhos amigos do Mundo das Fadas entraram em contato comigo e pediram que eu tomasse parte em um plano. Mas eles não eram poderosos o suficiente para me indicar a Nicnevin para servir como pagamento para o Tributo. Nephanael tinha esse poder. Ele era o responsável por conseguir uma vítima. Mas como Nephanael acabou indo parar em meio a uma intriga da corte Digna? Porque isso foi uma ordem de Silarial. Essa é a única explicação que faz sentido. Nephanael só foi beneficiado porque Roiben entrou em cena. Se Nicnevin não houvesse morrido, Nephanael não teria subido ao trono, mas sim Silarial. Mesmo que ele se mantivesse como rei, ela governaria a corte Indigna por intermédio dele.
? Não vou ouvir nem mais uma palavra ? anunciou a rainha Digna.
? Vai sim ? disse Roiben. A voz dele se elevou, impaciente, para depois baixar o tom mais uma vez. ? Você é imortal, Silarial, portanto tem todo o tempo do mundo. Então, espere um pouco junto conosco. Eu gostaria de ouvir o restante da história.
Kaye falou depressa, as palavras se emendavam umas nas outras enquanto ela tentava pronunciá-las alto o suficiente:
? O amuleto em torno do pescoço dela. Ele me fez perceber o que estava acontecendo. Nephanael o trazia consigo na noite em que me buscou para ser sacrificada. Usou-o para jogar uma forte ilusão sobre mim. Era o colar dela, a ilusão dela. Eles iriam deixar que eu fosse sacrificada e depois revelariam o truque, culpando Nicnevin. E hoje, quando nós chegamos aqui, Nephanael nos esperava, mas ninguém sabia que estávamos vindo para procurar por Corny, a não ser Silarial e sua corte. ? Ao mencionar o nome de Corny, Kaye não pôde evitar que seu olhar oscilasse para a direção onde o rapaz estava. O que ela viu congelou sua língua.
Ele se moveu sorrateiramente até onde o corpo de Nephanael se contorcia. Um dos cachos de seu cabelo lhe caíra no rosto. Ele tinha um ferimento na bochecha que estava da mesma cor da boca manchada pelas uvas. Ao ver isso, a única coisa de que Kaye conseguia se lembrar era dos lábios gélidos de Janet.
Como se houvesse sentido o calor do olhar de Kaye, Corny olhou para cima. A angústia estava estampada no rosto dele.
? Corny ? chamou Kaye, ensaiando dar um passo à frente.
Ainda olhando para ela, Corny pegou a faca de ouro que Roiben deixara cair. Um sorriso afetado começava a se formar nos lábios dele à medida que erguia o punhal.
? Não ? gritou Kaye, correndo desvairadamente em direção a ele para impedi-lo de apunhalar-se.
A lâmina mergulhou no peito de Nephanael. Corny cravou diversas vezes a faca no corpo do cavaleiro, cada investida originando um som nauseante devido aos fluidos corporais de Nephanael. O sangue encharcou as calças de Corny. Um som agudo veio do fundo de sua garganta.
Os cortesãos, tanto os da corte Indigna quanto os da Digna, observavam a cena com uma fascinação arrebatada. Ninguém fez um único movimento para ajudar Kaye a agarrar Corny pelos pulsos e tentar afastá-lo do corpo.
Ele tremia, mas quando Kaye o puxou para a frente para abraçá-lo, percebeu que Corny estava rindo. Dando tantas gargalhadas que quase se engasgava.
? Olhe o que você fez ? disse a rainha Digna. Levou um momento até Kaye perceber que ela estava falando com Corny e não a respeito de Corny.
Um cavaleiro Digno deu um passo à frente e procurou algo debaixo de seu manto. Kaye observou, horrorizada, enquanto ele tirava um longo galho lá de dentro. Ele o afiou até que se tornasse uma flecha repugnantemente familiar. A arma estava apontada na direção dela.
? Roiben, termine logo com isso ou o farei para você ? ordenou a rainha. ? Já fui paciente demais. Já passou da hora de você voltar para casa.
Roiben não falou alto, mas sua voz ecoava pelo salão enquanto ele caminhava até onde Kaye estava:
? Estou em casa, senhora. Agora ordene que seu homem baixe a arma e permitirei que deixem a corte Indigna ilesos.
Kaye suportou, firme, o silêncio atordoante. Nicnevin havia feito um bom uso de Roiben, talvez até muito melhor do que imaginava. Ela o manteve sempre por perto, o usou contra o resto da corte Indigna. Kaye se lembrou de como eles haviam recuado quando ele a acompanhou através da multidão. Roiben não era um deles, isso era verdade, mas ele era distante como um rei.
Ninguém o desafiou.
As sobrancelhas delgadas e perfeitas da rainha se ergueram:
? Como você ousa?
A irmã de Roiben deu um passo à frente, mas não falou nada. Os olhos dela imploravam algo.
Roiben olhou ao redor da corte e Kaye pôde vê-lo respirar fundo. Então, falou:
? Ouça-me e tome conhecimento do pacto que ofereço. As fadas independentes conquistaram sete anos de liberdade, mas sete anos passam em um piscar de olhos. Unam-se a mim agora, tanto a corte Digna quanto as fadas independentes, e eu concederei a Samhain a todos. Liberdade do anoitecer até o nascer do sol eternamente.
Kaye viu diversas criaturas da corte Indigna rastejarem para cima da plataforma. Eles não avançaram na nobreza Digna, mas os sorrisos cheios de dentes que traziam nos lábios eram de pura malícia.
A rainha se empertigou.
? Acredito, meu cavaleiro, que você esteja achando que clamar por um reino é mais fácil do que mantê-lo. ? Com isso, ela virou as costas, sua longa capa azul-pavão deixou uma marca circular no chão empoeirado. Os cavaleiros e cortesãos de sua corte também se viraram. Apenas Ethine hesitou.
Roiben balançou a cabeça.
Silarial olhou para trás e, ao avistar Ethine, abriu o manto. A irmã de Roiben deixou-se ser abraçada e acompanhou o resto da corte Digna. Ela jamais veria o sorriso cruel que brincou nos lábios da rainha Digna ou a forma como os olhos dela encontraram os de Roiben por cima da cabeça abaixada da irmã do cavaleiro.
Quando o último membro da corte Digna deixou o salão, Roiben, o autodeclarado rei da corte Indigna, praticamente despencou em seu trono. Kaye tentou sorrir para ele, mas Roiben não estava olhando para ela. Ele contemplava fixamente o outro lado da plataforma, os olhos tinham a cor de cinzas.
Corny não havia parado de rir.

* * *

A própria casa funerária era pequena e vitoriana, com móveis ornamentados feitos de madeira escura. Até mesmo o papel de parede era sombrio, com flores de lis castanho-avermelhadas de veludo felpudo em relevo. Havia gente da escola lá, pessoas de quem Kaye se recordava apenas vagamente. Kenny, Bolo-fofo, Marcus e Fátima estavam todos lá, sentados um ao lado do outro, sussurrando entre si durante toda a cerimônia, até mesmo enquanto o pastor falava.
Corny segurou a mão de Kaye durante toda a celebração fúnebre, os dedos dele estavam frios, suados e apertavam a mão dela com força suficiente para machucar. Ele não chorou, nem mesmo quando as lágrimas verteram pelo rosto de Kaye, mas parecia pálido e abatido no terno preto que estava vestindo. Cada vez que ela via a mancha azulada na bochecha dele, mais obsceno o ferimento parecia.
A mãe de Kaye havia ficado apavorada, pensando que a filha também tivesse morrido... Tão apavorada que decidira permanecer na cidade em vez de se mudar. Até a avó estava sendo generosa. Ellen deixou a filha na casa funerária e prometeu buscá-la novamente quando Kaye telefonasse. Isso era estranho e, de alguma maneira, gentil, mas ela não queria se acostumar com essa mordomia.
Janet estava deitada como se fosse uma pintura, toda cachos e lábios vermelhos. Ela estava tão bonita quanto Ofélia cercada por buquês de flores. Mas Kaye podia sentir o cheiro dos produtos químicos que haviam injetado nela, podia sentir o odor da carne que começava a apodrecer e quase ficou nauseada quando chegaram mais perto. Entretanto, não pôde evitar que sua mão se perdesse na pele gélida e estranhamente firme do braço de Janet. Kaye deixou o presente que havia trazido, um frasco de esmalte azul com glitter, dentro do caixão.
Corny deixou a braçadeira preta que estava usando em sinal de luto nas mãos dela, enquanto olhava fixamente para o corpo da irmã.


Mais tarde, Kaye e Corny foram para o lado de fora enquanto esperavam que a mãe dele terminasse de se despedir dos parentes.
? Ah, eu quase me esqueci ? disse Corny, em voz muito baixa. ? Minha mãe parou em uma loja antes de virmos para cá. Eu precisava comprar cigarros. ? Ele procurou algo em um dos bolsos internos da jaqueta de couro e tirou vários canudinhos com listras das mais diferentes cores, que circundavam uma embalagem. Um buquê de Pixy Stix. ? É um tipo de doce.
Kaye sorriu.
? Eu é que deveria estar tentando animar você.
? Você já fez sua boa ação de hoje ? disse ele. ? Preste atenção... Destaque esse canudo para abrir e você terá pó de fada autêntico. Tem gosto de uma espécie de açúcar azedinho.
Ela soltou uma risada abafada e ele a acompanhou, uma risada estranha e desesperada que ascendeu em espirais em direção ao céu noturno.
? O que você vai fazer agora? ? perguntou Kaye.
? Não sei. Merda, ainda preciso digerir tudo que fiz.
? Entendo o que você quer dizer... Mas você sabe que nada disso foi culpa sua, certo?
? Exceto a parte com a faca, já no fim de tudo?
? Nem mesmo essa parte. Talvez, especialmente essa parte.
? Da próxima vez... ? Os olhos de Corny se iluminaram de uma forma que deixou Kaye aliviada até que ouvisse as palavras brandas que vieram em seguida. ? Kaye, nunca mais serei um cara sem nenhum poder novamente. Não importa o que tenha de dar em troca. O que quer que seja.
? O que você quer dizer com isso?
Ele apenas apertou a mão dela com mais força. Depois de alguns momentos, disse:
? E você, o que vai fazer?
Kaye deu de ombros.
? Eu já disse alguma vez que sei como transformar folhas em dinheiro?
? É mesmo? - Ele ergueu as sobrancelhas. A mãe dele se aproximou com alguns parentes e Corny finalmente se afastou de Kaye para entrar no carro. A mão dela estava úmida e quente e, quando a brisa a atingia, parecia que estava do avesso.
As últimas pessoas deixavam a casa funerária e já estavam trancando as portas. Então, Kaye atravessou a rua para usar o telefone público em frente ao supermercado. Ela ligou para a mãe e sentou no meio-fio em frente a um cavalo de plástico que balançava para frente e para trás quando era alimentado com moedas. As luzes fluorescentes, os odores orgânicos dos vegetais que apodreciam e a agitação das sacolas de plástico que voavam pelo estacionamento pareciam tão absolutamente normais que ela se sentiu desconectada dos eventos de dois dias atrás.
Não tinha visto Roiben. Não que houvesse ocorrido algo de ruim entre eles, mas ela simplesmente precisava levar Corny para casa e ele tinha de ficar e fazer o que quer que os novos monarcas fazem. Kaye nem se sentiu realmente mal por não o ter visto. Era mais como um sentimento de alívio que se tem quando se sabe que algo doloroso está a caminho, mas que se pode evitá-lo em qualquer momento. Se ela o visse, então teria de escutar o que ele realmente pensava sobre o fato dos dois estarem juntos agora que ele era rei.
Olhando para o cavalo de plástico, ela convocou sua magia. Um momento depois, o animal jogou a crina para trás e saltou da suspensão de metal à qual estava preso. Enquanto Kaye observava, ele galopou para longe, na noite, com os cascos de plástico estalando contra o asfalto.
? Há algo que pertence a você que eu gostaria de devolver. ? A voz de Roiben fez com que Kaye pulasse. Como ele conseguiu se aproximar sem que ela ouvisse? Mesmo assim, não podia evitar o sorriso sem graça mais do que podia fugir de suas próprias repreensões por estar sorrindo.
? O quê?
Ele se inclinou na direção de Kaye e capturou-lhe a boca com os próprios lábios. Os olhos da fada se fecharam, palpitantes, e os lábios se abriram com facilidade enquanto sentia o beijo crepitar através dos nervos, transformando seus pensamentos em fumaça.
? Hum... ? Kaye deu um passo para trás um tanto irresoluta. ? Por que isso me pertence?
? Esse foi o beijo que eu roubei quando você estava enfeitiçada ? explicou ele, com paciência.
? Ah... Bem, e se eu não quisesse?
? Você não queria?
Ela não respondeu, deixando que um sorriso se espalhasse pelo rosto, torcendo para que a mãe atropelasse alguma coisa pelo caminho e demorasse mais um pouco.
? Gostaria que você me devolvesse o beijo, por favor.
? Sou seu servo ? disse o rei da corte Indigna com os lábios muito próximos aos dela. ? Considere-o feito.







Fim



AGRADECIMENTOS



Agradeço a meu gentil editor, Kevin Lewis, por sua paciência; a meus queridos amigos Steve Berman, Dianna Muzaurieta e Frank Burkhead, por seus comentários cruéis e inventivos; a Katja Byrne, por me dizer que este era, acima de tudo, um romance para jovens adultos; para Tony Di'Terlizzi e Angela de Francis, pela ajuda antes e depois do chamado do dever, e a Theo, por suportar a infelicidade ao longo do caminho. E, ainda, estou em débito com meus primeiros leitores: Caitlin, Ed, Gram, Jay, Jenni, Judy, Joe, Jon, Katherine e Mike.


Digitalização/Formatação:
SAYURI

( "And malt does more than Milton
can to justify God's ways to man."
( "Coercive as coma, frail as Bloom
innuendoes of your inverse dawn
suffuse the self;
our every corpuscle become as elf."
( "The stones were sharp,
The wind came at my back;
Walking along the highway,
Mincing like a cat."
( "A cigarette is the perfect type of perfect
pleasure. It is exquisite, and it leaves one
unsatisfied. What more can one want?"
* "Eu quero ser a garota com mais grana... um dia, você vai sentir a dor que eu sinto."
( "All day and all night
my desire for you
unwinds like a poisonous snake."
( "I ate the mythology & dreamt."
( "Down the hill I went, and then,
I forgot the ways of men
For night-scents, heady and damp and cool
Wakened ecstasy in me."
( "Listening to the prisoned cricket
Shake its terrible dissembling
Music in the granite hill"
* "Há um rei em um trono com os olhos arrancados. Há um homem cego procurando por uma sombra de dúvida. Oh-oooh, rei da dor, eu sempre serei, rei da dor."
( "For beauty is nothing
but the beginning of terror we can just
barely endure,
and we admire it so because it calmly disdain
to destroy us."
( "You whom I could not save
Listen to me."
? "Horror and doubt distract his troubled thoughts and from the bottom stir the Hell within him, for within him Hell brings, and round about him, nor from Hell one step more than from himself can fly by change of place."
( "A word is dead
When it is said
Some say.
I say it just
Begins to live
That day."
( "But lest you are my enemy
I must enquire"
"O no, my dear, let all that be;
What matter, so there is but fire
In you, in me?"
? Automóvel de fabricação americana pela Ford Motor Company na década de 1970. (N. da digitalizadora Say)
( "And for those masks who linger on
To feast at night upon the pure sea!"
( "For I have sworn thee fair, and thought thee bright,
who art as black as hell, as dark as night.
( "In the hills giant oaks
fall upon their knees
You can touch parts
You have no right to..."
( "Better to reign in Hell then to serve in Heaven."
??

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?246?


o primeiro livro é o Tithe, e o segundo é o Valiant
 
cumprimentos
 
paulo
 


__________ Informação do ESET Smart Security, versão da vacina 4988 (20100331) __________

A mensagem foi verificada pelo ESET Smart Security.

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Um comentário:

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