sexta-feira, 19 de março de 2010

vento de neve.txt

VENTO DE NEVE
Hugh Miller

Megan Roberts está revoltada. Ao fim de
dois anos a trabalhar como enfermeira de
saúde pública numa cidade mineira pobre
do País de Gales, começou finalmente a
conquistar a confiança dos seus pacientes.
Mas agora chega um novo médico, um
londrino convencido, cheio das últimas
ideias da moda. O Dr. Timothy Morris
intromete-se no trabalho de Megan,
corrige-a, dá-lhe ordens. A situação é
intolerável. No entanto, quando começa
a grassar uma epidemia na cidade, que
reaviva um episódio trágico do passado
de Megan, é o Dr. Morris quem a faz sair
de uma crise paralisante. E de repente
começa a vê-lo com novos olhos ...

Um

Pencwn acordava aos poucos, como qualquer outro lugar, mas
naquela cidade o despertar era um confronto monótono e triste com
luz do dia. A pobreza e as calamidades eram o quotidiano. Porém,
esta manhã um dos principais adversários das privações e da doença de Pencwm fora convocado pelo outro.
Megan Roberts, a enfermeira de saúde pública, arrumou a bicicleta à porta do consultório do Dr. O'Casey e entrou. Atravessou a
sala de espera, já cheia de gente. As pessoas cumprimentaram-na,
algumas delas tratando-a pelo nome. Megan sorria a todas, esforçando-se, como sempre, por mostrar a sua confiança. Os desfavorecidos não podem esquecer que há entre eles guardiões da esperança.
- Entre, entre - disse o Dr. O'Casey quando ela espreitou pela
porta do gabinete de consulta.
Megan sentou-se em frente da secretária, aspirando o cheiro a
éter e a anti-séptico que pairava permanentemente no compartimento. O Dr. O'Casey sorriu e levou a mão à sua densa cabeleira
grisalha, sempre muito bem penteada.
- Desculpe ter interrompido as suas visitas - disse -, mas há
uma coisa que achei que tinha de lhe dizer quanto antes. - Apontou
para uma carta que estava em cima da secretária. Megan reparou
que a mão dele tremia. - Consegui finalmente arranjar um lugar-tenente, isto é, um substituto. Por isso, dentro de pouco tempo vai
começar a trabalhar com outra pessoa.
- Isso quer dizer que se vai embora?
O médico acenou afirmativamente.
- Vou tirar umas férias forçadas e prolongadas.
- Já não era sem tempo.
- Eu podia-lhe dizer o mesmo a si.
Megan encolheu os ombros. As pessoas precisavam dela e não
havia ninguém para a substituir se fosse de férias.
- Disse que eram umas férias forçadas?
- É por causa do meu estado de saúde, Megan. - O'Casey
levou a mão ao peito. - A minha recordação de guerra tem andado
a dar sinal de si nestes últimos meses. Não é que a minha vida corra
perigo, mas ando tão cansado ...
Dez anos antes, um fragmento de metralha tinha rasgado um

bocado do pulmão esquerdo do Dr. O'Casey; a operação, efectuada
num hospital de campanha provocara uma deformação interna que
lhe causava dores e perturbações recorrentes. Durante os dois anos
em que trabalhara como enfermeira em Pencwm, Megan tivera
ocasião de verificar que as crises eram cada vez mais frequentes e
prolongadas.
- Fui mostrar este motor barulhento a um especialista de Cardiff, aqui há umas semanas atrás - explicou O'Casey. - Andou
para aqui a dar pancadinhas e a auscultar-me e acabou por dizer que
precisava de repouso. Muito mesmo, pelo menos um ano.
Megan ficou a olhar para ele.
- Tanto tempo?
- A alternativa era reformar-me mais cedo. Dado que tenciono
trabalhar até ao fim da vida, resolvi seguir o conselho dele.
Megan tentou imaginar como seria um ano inteiro sem o Dr.
O'Casey, sem a sua presença tranquilizante. Mas não conseguiu.
- Para onde é que vai? - perguntou.
- Vou apanhar sol durante umas semanas. Para a Grécia, se
conseguir marcar. Depois, vou para a Irlanda, para casa do meu
irmão.
Megan percorreu o gabinete com o olhar, tentando imaginá-lo
ocupado por um estranho. Mas também não foi capaz.
- O novo médico ...
- Chama-se Morris. Tem trinta e sete anos e é do Sul do País de
Gales, de Newport, acho eu, mas tirou o curso em Londres. E é lá
que trabalha agora num consultório fino, em Kensington. Mas quer
voltar para o País de Gales e trabalhar numa comunidade pobre. -- O'Casey suspirou baixinho. - Com certeza que vai achar isto aqui
suficientemente pobre.
- E um bocado chocante, comparado com Kensington.
Megan começava a estar preocupada. Já era mau o Dr. O'Casey
ir-se embora durante tanto tempo. Mas ser substituído por um londrino petulante, cheio de pretensões arrogantes e ideais salvadores,
isso ainda era pior.
- Tente não fazer juízos precipitados sobre o Dr. Morris -- disse O'Casey, como se estivesse a ler os pensamentos de Megan. -- É possível que ele tenha dificuldades em se adaptar de princípio.
Vai precisar dos seus conselhos ... e da sua paciência.
- Claro. - Megan fez um sorriso forçado. - Quando é que o
senhor se vai embora?
- Lá para o fim do mês, o Dr. Morris vai passar aqui uma semana comigo antes de eu me ir embora.
- Bom, obrigada por me ter avisado. - Megan levantou-se,
alisando o sobretudo azul do uniforme e endireitando o chapéu. -- Tenho de ir andando. Já devia estar em casa dos Prentices há dez
minutos.
O Dr. O'Casey acompanhou-a até à sala de espera.
- Temos de organizar uma despedida antes de eu me ir embora
- disse.
- Fico à espera disso - respondeu Megan. Abriu a porta e saiu
para o sol pálido de Outubro, pensando outra vez em como iria ser a
sua vida sem o Dr. O'Casey para a ajudar. E ainda por cima a aturar
o novo médico. Era assim como se ficasse sem uma perna ou um
braço, pensou, e tivesse de viver com uma prótese de madeira incómoda.

Pelo Mundo fora, o ano de 1927 foi um ano de progresso, revolução e mudança. Na Primavera, um aviador americano Charles

Lindbergh, fez sozinho pela primeira vez a travessia aérea do Atlântico. Na China, um general chamado Chang Kai-Chek formou um
governo em Nanquim. Na Grã-Bretanha, a avaliar pelo que diziam
os jornais, as grandes preocupações sociais eram o sexo, a moda e a
última dança em voga, o charleston.
Mas para as pessoas de Pencwm as preocupações tinham uma
cor mais sombria. Nesta comunidade mineira dominada pela pobreza e pelas inúmeras consequências de uma greve geral de sete meses
nas minas de carvão, haveria poucos prazeres capazes de eclipsar o
da certeza esporádica de uma semana sem passar fome.
Pencwm parecia estar destinada a atrair adversidade e desgraça.
O cinzento das filas de casitas de pedra sombrias harmonizava-se
com o fundo ainda mais escuro dos edifícios das minas e dos montes pretos de carvão. Pairava sobre toda a cidade uma nuvem obstinada de pó de carvão que a envolvia num manto de escuridão que
nem o sol conseguia despir.
A maioria das pessoas sobrevivia em condições que até os habitantes mais pobres das cidades considerariam de subdesenvolvimento. O único divertimento dos adultos do sexo masculino eram as
idas à taberna ou um jogo de futebol improvisado na rua uma vez por
outra. As mulheres distraíam-se principalmente a falar de doenças,
das vizinhas que se portavam mal, de crianças transviadas e dos
recém-chegados à cidade. Apesar dos seus dois anos de trabalho
intensivo na localidade, Megan continuava a ser considerada por
muita gente como uma estranha; nessa tarde, quando subia a Cardower Road a empurrar a bicicleta, arrumando-a depois à porta de
casa dos Prentices, as mulheres que estavam nas soleiras das portas
faziam sinais umas às outras e ficavam a olhar para ela. Megan
cumprimentou amavelmente duas mulheres, enquanto tirava a sua
maleta preta do cesto da bicicleta. Uma das mulheres esboçou um
sorriso tímido, mas a outra voltou-lhe as costas.
Megan bateu à porta e Mrs. Prentice veio abrir. Era uma mulher
baixa, de trinta e muitos anos, cabelo grisalho e expressão desconfiada.
- Desculpe o atraso - disse Megan, entrando atrás dela.
- Não tem importância. - A mulher dava sempre a Megan a
impressão de estar à espera de assaltos, de contrariedades e de toda
a espécie de desgraças, como se não merecesse mais nada na vida.
Megan pousou a maleta na sala de estar e tirou lá de dentro um
frasco com um líquido turvo.
- Trouxe mais remédio para Gareth. Já deve estar a precisar.
Vamos vê-lo.
O quarto era pequeno e abafado. Gareth Prentice estava sentado
na cama, apoiado numa almofada sem fronha e num travesseiro
dobrado. Tinha uma cara tão magra que as maçãs do rosto pareciam
postiças. Gareth tinha dezoito anos e não pesava mais do que um
rapaz de doze anos saudável.
- Então, Gareth - disse Megan, aproximando-se da cama com
a sua expressão decidida e confiante. - Como é que tens passado
desde a última vez?
- Na mesma.
- Tens tomado o remédio, não tens?
Os olhos encovados do rapaz desviaram-se de Megan.
- Às vezes - disse. - Não gosto dele. Dá-me vómitos. -- Gareth olhou para a mãe, que pairava ao lado de Megan. - Diga-Lhe
que mal que eu estive no sábado logo de manhã.
- Esteve muito mal - disse Mrs. Prentice, obediente.
Megan franziu o sobrolho, olhando para Gareth.
- Lembras-te de eu te dizer que não devias tomar o remédio
depois de comer?

Os olhos dele desviaram-se outra vez. Fechou a boca com força
e pôs-se a olhar para o cobertor. Era um rapaz caprichoso, com tendências depressivas e que amuava constantemente, mesmo antes de
estar doente.
- Não percebo como é que podes ter ficado enjoado se tomaste
o remédio como eu te disse. Tens de fazer o que te dizem, se queres
melhorar.
A doença de Gareth era uma combinação persistente de carências vitamínicas e gastrite. O Dr. O'Casey consultara um especialista, que Lhe dissera que o único tratamento conhecido para aquela
doença era a administração de um suplemento dietético líquido. A
doença fora agravada, ou talvez mesmo causada, pela recusa do
rapaz em comer legumes e fruta frescos. Para piorar as coisas, ele só
comia carne frita e só bebia leite misturado no chá. O suplemento
era praticamente a única contribuição válida para a sua dieta.
- Não estou nada melhor, pois não? - disse Gareth, fitando
Megan com um olhar feroz. Mas havia também medo nesse olhar,
como Megan já constatara em visitas anteriores. - O pai do Bob
Malcolm teve a mesma coisa. Ficou pele e osso e estava sempre com
dores de barriga e a vomitar.
- Ouve - disse Megan. - A doença de Mr. Malcolm não tinha
nada a ver com a tua. - O homem morrera com um cancro no fígado, pouco depois de Megan ter chegado a Pencwm. - A tua doença
tem cura e a dele não tinha.
- Também não deixou Mr. Malcolm chamar Nesta Mogg, como
não deixa que a minha mãe a traga cá a casa ...
- Deixa-te disso, Gareth! - Megan cruzou os braços. - A tua
doença não é mortal. Podes curar-te se tomares o remédio e se
comeres mais legumes e beberes mais leite. Quanto a Nesta Mogg,
ela é uma bruxa ignorante e perigosa. - Megan olhou para o frasco
do remédio, que estava em cima de uma cadeira ao lado da cama. -- Já estou a ver que não tens tomado o remédio, ou pelo menos que
não tomaste ? quantidade que devias, nem pouco mais ou menos, e
se te faz vomitar, é porque não o tens tomado como deve ser.
Gareth fez um gesto de impaciência.
- Quanto tempo é que vai levar?
- Duas ou três semanas, se fizeres o que te digo. - Não valia a
pena desencorajá-lo. Ao fim de três semanas, podia levantar-se da
cama, mas era preciso pelo menos mais um mês para recuperar o
peso perdido e as forças.
Gareth recostou-se e virou a cara para a janela, amuado. Megan
e Mrs. Prentice voltaram para a sala.
- Tem de ser mais firme com ele - disse Megan.
- Não é mau rapaz, no fundo. - O olhar da mulherzita exprimia o carinho desesperado que os cães espancados manifestam ao
seu dono. - Só que Lhe custa a acreditar que vai melhorar. - Hesitou um momento e acrescentou: - Às vezes, também me custa a
acreditar. Quer dizer, o que ele tem é uma coisa má, não é?
Megan sentiu uma vez mais a presença daquele espectro, um
monstro de casaco e capuz pretos, chamado Ignorância, que assombrava e dominava as casas da velha cidade. As pessoas preferiam
confiar nos seus preconceitos a deixar entrar um simples raio de
esclarecimento.
- Já lhe disse imensas vezes - replicou. - Vai demorar o seu
tempo, mas ele vai melhorar. Não me volte a falar nesses disparates
de uma doença má. A cura dele depende de si ... ou dele, já que a
senhora não é capaz de ter mão nele.
- O pai ... - Mrs. Prentice apontou para uma poltrona vazia,

que tinha as costas escuras e gordurosas devido ao contacto de muitos anos do cabelo de Mr. Prentice. - Bem, ele e o pai estão sempre
a falar-me em Nesta Mogg. Têm ouvido muitas histórias de coisas
que ela faz.
- Isso são tretas e superstições - respondeu bruscamente
Megan. - Metade das vezes é a própria Natureza que cura as pessoas em que ela põe as mãos, isto é, as que ela não põe num estado
tal que a cura se torna impossível. - Megan agarrou na maleta. -- É uma mulher perigosa. Há muita gente que ficou cega, envenenada ou aleijada para o resto da vida por causa das rezas dela e dos
pseudo-remédios nojentos que lhes dá. Devia ir presa para não poder
fazer mal a mais ninguém. - Megan foi até à porta, seguida por
Mrs. Prentice.
- Mas está a demorar tanto, enfermeira. O problema é esse. A
gente nova não gosta de esperar.
Megan saiu e pegou na bicicleta.
- Se nos tivessem informado do estado de fraqueza de Gareth
umas semanas mais cedo - observou -, há muito tempo que o rapaz já estava a pé. Assim, ele tem de ter paciência e fazer o que eu
lhe digo.
Megan afastou-se a pedalar, levando nos olhos a imagem de
Mrs. Prentice, de pé à porta de casa, com um ar triste e encolhido.
Não devia ter sido tão brusca com ela. A mulher não tinha culpa de
ser ignorante. Megan devia ter-se mostrado mais simpática e compreensiva - ao fim e ao cabo, isso fazia parte dos seus deveres
profissionais.
Enquanto se dirigia de bicicleta para a visita seguinte, percebeu
porque é que a chama da sua simpatia estivera tão fraca em casa dos
Prentices. Não era por ressentimento, por saber que muita gente em
Pencwm desconfiava dela automaticamente só por ela ser do Norte
do País de Gales e ainda por cima se comportar como se fosse inglesa. Também não fora por causa da atitude de Gareth nem pelo seu
desejo irritante de consultar a bruxa Nesta Mogg. No fundo, fora por
uma contrariedade mais profunda, por saber que o Dr. O'Casey ia
sair da cidade.
Ainda não conseguia imaginar como é que ia ser. O Dr. O'Casey
era simultaneamente um apoio e um adversário; era um guia e um
crítico benevolente. Era um amigo. Ia ser difícil suportar o vazio
criado pela sua partida. Bom, tinha que se habituar. O que podia ser
insuportável era ter de aturar o novo médico. Claro que não podia
ser um substituto à altura do Dr. O'Casey. Era impossível. Um presunçoso de Londres, um homem pouco mais velho que ela, sem
preparação nenhuma para exercer medicina neste meio. Como é que
ela o podia respeitar, quanto mais trabalhar com ele?
??Não faças juízos precipitados??, disse a si mesma. Tinha de ter
paciência e compreensão com o Dr. Morris, quer gostasse dele ou
não. Ela, melhor que ninguém, sabia o que era ser rejeitada à partida. Dobrou uma esquina e parou em frente de uma casa que tinha um
cão a ladrar à porta. Sem querer, começou de repente a formar uma
imagem pouco caridosa do Dr. Morris. Devia ser um chato, insensível, ter olhos de carneiro mal morto, ser um ignorante e indeciso que lhe ia dar ordens parvas, à espera que ela se ajoelhasse e encobrisse as asneiras dele.
??Isso é que era bom??, resmungou Megan, agarrando na maleta e
esquecendo as suas boas intenções de paciência e compreensão.

Ex? uma mulher alta e esbelta, de cabelo castanho curto, com
um penteado moderno espreitando por baixo do chapelinho. Atravessou a sala de espera com um passo gracioso e seguro, acentuado

pelos sapatos de salto alto e por um casaco comprido fechado por
um único botão grande na anca. Via-se que era rica e de boas famílias, que de resto eram as únicas pessoas que frequentavam consultórios como aquele.
Empurrou a grande porta de carvalho e entrou no consultório
bem mobilado.
- Sr. Doutor! - exclamou, como se fosse surpreendente encontrar ali um médico. - Tenho muito prazer em vê-lo!
O Dr. Timothy Morris sorriu enquanto avançava de mão estendida.
- É sempre um prazer vê-la, Mrs. Burke. - Apertou-lhe a mão
durante um instante e depois fez um sinal na direcção de uma cadeira. - Faz favor de se sentar. - Ficou de pé ao lado, como se fosse
um criado, enquanto a mulher instalava na cadeira a sua figura elegante. Depois, sentou-se à secretária. - Espero que não seja nada
de grave?
Mrs. Burke suspirou.
- É uma coisa que me anda a preocupar há algum tempo, Sr.
Doutor. - Arregaçou uma das mangas do casaco e pôs a mão em
cima da secretária. - É este alto ... - Apontou para um inchaço do
tamanho de um ovo de pássaro que tinha no pulso. - Já tenho isto
há meses e não liguei, mas ultimamente tem crescido e agora dói-me.
O Dr. Morris inclinou-se para a frente e tocou no alto. Era mole
e deslocava-se quando ele fazia pressão com o dedo.
- Hummm ... - disse.
A doente lançou-lhe um olhar inquiridor. A cara decidida do
médico, de feições bem definidas, não lhe revelava nada.
- Dobre várias vezes os dedos, se faz favor - disse.
Mrs. Burke obedeceu e ele observou os tendões do pulso a movimentarem-se. O inchaço parecia ficar no mesmo sítio, flutuando
sobre as estruturas móveis subjacentes.
- Óptimo. - Morris olhou para ela. - É o que eu pensava, um
gânglio. Não é grave. É uma coisa totalmente benigna.
Mrs. Burke pareceu não ficar muito sossegada.
- Desaparece por si ou tem de ser tirado?
- Não desaparece por si, mas posso tirar-lho. Uma pancada
forte com um livro pesado dá cabo dele.
Olhou para ele.
- É só isso? - Parecia desapontada. A situação não tinha grandes potencialidades dramáticas. Não podia empolgar as amigas com
a história de um alto abominável que desaparecera com uma pancada de um livro. - Bom, então o melhor é fazer isso ...
O Dr. Morris escolheu um grande calhamaço. Disse a Mrs.
Burke para assentar bem o braço em cima da mesa e, quando ela
fechou os olhos com força, deu-lhe uma pancada forte com o livro.
Quando o levantou, o inchaço tinha desaparecido completamente e
só se via no braço uma mancha rosada no sítio onde o livro batera.
- Pronto. - Pôs o livro em cima da mesa e Mrs. Burke abriu os
olhos. - Está completamente curada.
Ela passou o dedo sobre a pele macia e depois puxou a manga
para baixo.
- Quando penso que andei uma quantidade de semanas preocupada por causa disto. - Olhou para Morris. - Vinha mais ou menos preparada para ouvir dizer que era uma coisa grave.
- Isso acontece muitas vezes. - O médico deu um passo, afastando-se da secretária. - É sempre um prazer podermos tranquilizar as pessoas. '
Mrs. Burke levantou-se.
- Estou-lhe muito agradecida, Sr. Doutor. - Quando chegou à
porta, voltou-se e apertou-Lhe outra vez a mão. - Não sei como é

que vamos poder passar sem si. O Sr. Doutor tem imensos admiradores! Vai-nos fazer imensa falta.
- Também vou ter saudades - disse Morris calmamente.
Acompanhou-a na travessia da sala de espera e abriu-lhe a porta.
Depois de Mrs. Burke sair, Morris bateu à porta do consultório
do seu colega e entrou. Geoffrey Lloyd estava a deitar café numa
chávena.
- Ouvi sair o seu doente - resmungou o Dr. Lloyd. ?- Achei
que lhe devia estar a apetecer um café. - Deu a chávena de café a
Morris. - Era mais uma grande urgência, não?
- Ora, foi toda a manhã o mesmo. - Morris sentou-se numa
poltrona de cabedal ao pé da janela. - Mr. Priors estava às portas da
morte com uma constipação, veio uma senhora queixar-se de uma
dor fortíssima no coração do lado contrário do peito e Mrs. Burke
tinha um gânglio. - Bebeu um gole do café. - Este trabalho aqui,
nas fronteiras da medicina, é um inferno, não acha?
- Ora, ora, Timothy. - O Dr. Lloyd sentou-se no banco da janela com um ligeiro sorriso nos lábios. Era um homem baixo e forte,
de cabelo louro, mais velho do que Morris. - Não se esqueça de que
eles são o nosso pão.
- Pois - suspirou Morris. - Para mim, são-no há tempo demais. Quer saber uma coisa? Tenho andado a dar atenção ao que
lhes digo. Às respostas ocas, à conversa bem-educada e snobe que já
faço sem dar por isso. Tenho vergonha dos meus modos. Estou a
transformar-me no tipo de homem que mais me irrita. E a culpa é
deles, desses meus doentes ricos e egocêntricos.
- Nem todos são assim.
- São quase todos - repetiu Morris. - Já nem me lembro da
última vez que exerci medicina a sério. Há meses que não faço nada
que valha a pena.
O Dr. Lloyd estava convencido, embora nunca o tivesse exprimido, de que Morris só dizia estas coisas para se convencer a si próprio de que ir para o País de Gales era uma boa decisão.
- Daqui a pouco, vai ter ocasião de exercer medicina a sério, se
calhar mais do que queria, Tim. Acho que vai arrepender-se e
muito. Mas já sabe o que eu penso.
Timothy Morris já sabia. Tinham discutido muitas vezes a sua
saída do consultório.
- Geoffrey - replicou -, sei que vou ter saudades de algumas
coisas e de algumas pessoas. Mesmo sem me referir a si. Mas, tirando isso, considero que sou um médico que abandonou a prática
da medicina para andar a apaparicar pessoas. E não estou disposto a
continuar assim.
Lloyd dirigiu ao colega um sorriso afectuoso.
- Não me pode levar a mal o facto de eu pensar que se está a
iludir. Tem de ver as coisas como elas são. Trabalhou oito anos aqui
e está a ganhar muito bem. - Inclinou-se para a frente, assentando
os cotovelos nos joelhos. - Vai ter um choque enorme quando
chegar lá a esse fim de mundo e tiver de se aguentar com aquilo. Já
está muito habituado ao luxo e às facilidades de uma clientela elegante. E nem sequer vai beneficiar os seus doentes, porque não é o
género de médico de que eles precisam.
- Mas posso vir a ser. Ao fim e ao cabo, tenho os instrumentos
para isso. Tenho o curso, de que não tiro partido há muitos anos, e
sou um homem decidido. Não tenho ilusões acerca do que me espera. Vão surgir obstáculos e muitos problemas graves no princípio.
Mas já sabe qual é o meu lema: os problemas são só oportunidades
com alguns espinhos.
O Dr. Lloyd encostou-se à janela, espreitando lá para fora.

- Isso são só palavras bonitas - murmurou. Gostava de saber
qual era o verdadeiro motivo que levava Morris a partir para o País
de Gales. Lloyd tinha a certeza de que Morris nunca o revelara. Os
argumentos que apresentava eram demasiado bem estudados, como
se se destinassem a ocultar a verdade fundamental.
- Tenho de ir ver um doente - disse Morris, levantando-se. -- E depois vou assistir a uma conferência no Guy's Hospital.
Geoffrey Lloyd acenou com a cabeça.
- Doenças respiratórias complexas e respectivo tratamento,
não?
Morris riu baixinho.
- Tem aí uma bola de cristal escondida debaixo da secretária ou
quê?
- Vi o programa das conferências deste mês. Você não podia
deixar de ir a essa. O único som que se ouve nos vales e nas montanhas do País de Gales, além do assobio do vento, é a tosse seca dos
mineiros.
Depois de Morris sair, o Dr. Lloyd ficou outra vez a pensar nas
razões que podiam levar o seu colega a sair de Londres, a cidade de
que ele tanto gostava. Provavelmente, nunca .ninguém iria saber, a
não ser o próprio Timothy.

Dois

MEGAN pegou no envelope que estava atrás da porta, ao mesmo
tempo que afagava o cão, Scratch. O envelope parecia conter um
livro. A sensação de desânimo com que entrara em casa atenuou-se
um pouco ao ver o cão e o peso da encomenda. Tirou a capa molhada
e pendurou-a no cabide, depois abriu o envelope. Era mesmo um
livro, que ainda cheirava a novo. Chamava-se Tarka, a Lontra. O
cartão de Miss Williams dizia: ??Espero que goste.??
- Temos um livro novo para ler na cama - disse Megan a
Scratch, que abanava a cauda e ofegava de alegria por vê-la. - A nossa Miss Williams é muito boazinha connosco, não achas? -- Megan baixou-se para fazer uma festa a Scratch e depois pôs o livro
em cima da mesa. - Vamos buscar água para ti, está bem? E depois
vou fazer chá.
A casa era pequena, mas arejada e cheia de luz. Estava mobilada
de forma modesta, mas cómoda, e tinha mais prateleiras com livros
do que era costume nas casas da região, mesmo nas mais ricas. A
casa pertencera a um professor. Quando ele se foi embora, a organização de beneficência que contratara Megan providenciou para que
a casa ficasse para ela - mais um gesto bondoso planeado por Miss
Williams, que presidia a essa organização.
Megan foi encher uma tigela de água à torneira do lava-louça e
pô-la em frente de Scratch. Sorriu-lhe com ternura enquanto ele
bebia a água. Era um cão pequeno castanho de raça indistinta, o
único amigo íntimo de Megan e por vezes também o seu confidente.
Eram 3.10 e estava a chover. A cortina sombria de chuva miudinha caía das nuvens baixas amontoadas no céu desde manhã.
Megan reparara que algumas pessoas se riam dela à socapa quando
a viam passar na bicicleta, embrulhada na sua grande capa. Podiam
rir à vontade que ela ralava-se pouco. Aquele círculo de oleado,
com um buraco no meio para a cabeça e um capuz agarrado, protegia-a lindamente do frio e da chuva. Encheu a chaleira de água,
olhando para as poças do quintal. Havia dias em que parecia que a
chuva nunca mais acabava. O mesmo se passava na época do granizo e da neve.
Megan dirigiu-se ao fogão e quase deixou cair a chaleira com o

susto quando ouviu o estrondo de qualquer coisa a bater na porta da
frente.
- Meu Deus, que é isto?
Scratch começou a ladrar, com gotinhas de água a escorrerem-lhe pelo focinho. O estrondo repetiu-se, uma vez e outra, cada fez
mais forte. Megan percebeu que o ruído era provocado por um
punho humano - quase sobre-humano, a avaliar pela força da pancada. Pousou a chaleira com força em cima do fogão e foi à porta.
Abriu-a com um puxão e um homem volumoso avançou, ocupando
quase toda a moldura da porta.
- Quero dizer-lhe uma palavrinha - gritou.
Megan sentiu o seu hálito a cerveja e a cebola.
- Se não se porta com termos, vai mas é dar uma palavrinha à
Polícia, e mais depressa do que pensa! - Sabia quem era apesar de nunca ter falado com ele. Era Owen Clark, um brutamontes, bêbado
e brigão, com cara de macaco e olhar tresloucado. - Faça o favor de
sair lá para fora - disse Megan em voz ríspida - e dizer o que quer
em tom de voz mais respeitoso. .
- Olha esta! - A boca de Clark esboçou um trejeito irónico,
mas os seus olhos manifestavam alguma incerteza.
Megan achou que, se calhar, nunca ninguém Lhe tinha falado assim, muito menos uma mulher. Ficou a olhá-lo enquanto ele recuava uns passos, pestanejando quando a chuva lhe começou a escorrer
pela cara e a entrar nos olhos.
- Então? Que é que quer? - Ela julgava saber.
- É por causa da minha Rose - rosnou ele, de mãos nas ancas.
- Não quero que você se meta onde não é chamada. Ela está bem.
- Eu não me meti, Mr. Clark. Chamaram-me.
- É mentira! Ninguém a chamou! - O esforço de uma simples
discussão era o suficiente para ele ficar com a cara encarnada.
Megan sabia que Owen Clark normalmente discutia com os punhos.
Se fosse com outra pessoa, nesta altura já estava aos murros. - A
Rose e eu não precisamos de ninguém. Sei que não foi ela quem a
chamou.
- Eu não disse que foi ela que me chamou. - Megan pensou em
Rose Clark. Era baixinha, magra e morena. Tinha catorze anos e
uma carinha de anjo, mas os seus olhos não tinham uma expressão
serena.
- Só sei que foi falar com a minha Rose e ...
- Não sei porque é que ficou tão aborrecido com isso. - Megan
falou deliberadamente com uma voz mais calma. - Não há que ter
medo de mim. A minha missão é ajudar as pessoas.
- Não se meta. - Clark tirou uma das mãos da anca, num aviso
claro que dizia: ??Não pense que não lhe bato lá por ser mulher.?está a ouvir?
- Sim, estou a ouvir. - Megan avaliou a sua situação para tentar saber se era muito arriscado dizer aquilo que a sua intuição lhe
ditava. Resolveu que ele estava suficientemente perturbado para
não reagir. - Mr. Clark ... - Deu um passo em frente, aproximando-se dele. - Será que o senhor tem alguma coisa a esconder?
Durante um instante terrível, pareceu-lhe que afinal se tinha
enganado. Os olhos amarelados de Owen Clark faiscaram de raiva e
os seus ombros avançaram. No mesmo instante em que pensou que
ele lhe ia bater, Megan percebeu que tinha razão. A suspeita que alimentava desde que vira Rose transformara-se agora em certeza.
Leu-o naqueles olhos ameaçadores e naquela boca raivosa. Clark
levantou um punho de repente. Megan fez um esforço para não
fechar os olhos nem fugir com a cara. Mas ele não lhe bateu. Limitou-se a abanar o punho junto ao queixo dela.

- Está a meter-se numa alhada que nem imagina - rosnou o
homem. - Não se meta, senão ...
Voltou-Lhe as costas, e Megan começou a tremer. Esquecendo
toda a prudência, quase sem saber o que fazia, disse:
- Mr. Clark, tome cuidado, se acontecer alguma coisa a Rose,
quem se mete numa alhada terrível é o senhor.
Clark parou, voltando a cabeça para trás, mas sem olhar para ela.
Pigarreou e cuspiu para o chão. Megan entrou em casa, ouvindo o
ruído das suas botas a esmagar o cascalho.
Só ao fim de dez minutos é que deixou de tremer o suficiente
para conseguir fazer o chá. Em seguida, sentou-se à lareira com as
mãos à volta da chávena e Scratch deitado aos seus pés.
??Pobre criança??, murmurou para o guarda-fogo.
O medo de Rose Clark era específico; e a vizinha que falara com
Megan não exagerara nada.
- Ela tem um ar apavorado - dissera a vizinha. - Nunca sai, a
não ser para ir ao quintal, mas vejo-a por detrás das persianas. Fica
ali em pé, a olhar para ontem. Há qualquer coisa que não está nada
bem. Nunca mais ninguém a viu na rua desde que a mãe morreu, há
um ano. Só isso já é mau, não é? Uma rapariguinha da idade dela,
sempre ali metida, sozinha, só com o mandrião bêbado do pai. Tem
um ar tão assustado que eu tinha de dizer isto a alguém ...
Megan não tinha o direito de entrar numa casa sem ser chamada,
portanto arranjou um subterfúgio e falou com Rose quando ela estava no quintal. O que até tinha sido melhor, porque à luz do dia era
mais difícil a rapariga disfarçar o seu desespero.
- Sim - declarara ela. - Claro que tenho amigos. Saio muitas
vezes com eles.
Mas percebia-se pela voz que raramente falava e tinha uma cor
pálida de quem não apanha sol há muito tempo.
- Faço o trabalho de casa. Tenho muito que fazer.
O cheiro a sujidade era nítido, mesmo à distância, através da
porta entreaberta. Era uma casa desmazelada, uma pequena prisão
húmida.
- Não, não estou doente. Estou bem.
Mas a palidez de Rose não era só de fome. A tremura das mãos e
dos ombros magros não era só de nervosismo por estar a falar com
uma pessoa estranha. Aqueles olhos doridos, muito mais velhos do
que a sua idade, reflectiam muito mais do que fadiga. Megan já
tinha visto o mesmo quadro em Liverpool, em tempos, quando andava a tirar o curso de enfermagem. Quando vira pela primeira vez
aquela criança desesperada, suspeitara inevitavelmente.
A visita do pai tornara o caso ainda mais urgente. Sabia-se lá do
que ele era capaz agora, principalmente se a sua fúria fosse ateada
pela bebida. Megan já tencionava falar do assunto com o Dr.
O'Casey no dia seguinte. Mas, em face do acontecido, levantou-se
e agarrou na capa.

- MRS. CL?tK aceitou a sua doença ... - O'Casey calou-se, procurando a palavra exacta - quase com serenidade. As vezes, tinha
a impressão de que ela considerava que merecia a sua sentença de
morte. Mas como uma recompensa, e não como um castigo.
Ainda não eram 4 horas, mas lá fora já estava tão escuro que o
médico acendera o candeeiro da secretária para consultar a ficha da
família Clark. Levantou os olhos da ficha da mãe de Rose e fitou
Megan.
- É isso mesmo. Uma mulher que tinha tanto medo do marido
que aceitou com satisfação o abraço da morte. E uma filha que, pela

sua descrição, parece ir pelo mesmo caminho.
- Tem mais medo de viver do que de morrer - comentou
Megan.
O'Casey arrumou as fichas num montinho em cima da secretária.
- De acordo com o meu ficheiro, já não examino Rose há três
anos. Por isso, apesar de estar praticamente convencido de que os
seus receios não são infundados, devo dizer que não tenho provas
suficientes para justificar uma intervenção da minha parte.
- Então, que é que eu preciso de fazer para poder intervir?
- Tem de me arranjar provas concretas de que Rose Clark está
a sofrer maus tratos. Nessa altura, posso tirá-la daquela casinhota
miserável.
- Mas com certeza que pode fazer alguma coisa! - exclamou
Megan.
- Não, não posso. - O'Casey abriu as mãos num gesto de impotência. - Não posso invadir a casa para ver com os meus olhos o
que se passa. Além disso, mesmo que o fizesse, que é que podia
descobrir? O que aqui há mais são crianças subalimentadas e apáticas. Isso não prova que os pais as maltratem.
Megan remordeu o lábio durante uns instantes.
- Sr. Doutor, já Lhe disse que acho que Rose corre um grande
perigo. A verdade é que - o olhar dela exprimia alguma incerteza
- acho que é pior do que isso.
O'Casey encostou-se para trás na cadeira e a sua cara ficou na
sombra.
- Pior do que isso? Quer dizer que não me contou tudo?
- Eu sabia que o senhor ia reagir como de costume quando eu
tenho um pressentimento. - Megan afastou da testa uma madeixa
de cabelo escuro. - Não ia aceitar, ia discutir comigo. Não lhe
queria dizer uma coisa que Lhe parecesse tão inverosímil que a negasse logo à partida.
- Tenho muita confiança nos seus pressentimentos, Megan.
Mas também sei que é impulsiva. Por isso, normalmente interrogo-a, só para ter a certeza de que você tem mesmo a certeza. - Cruzou
as mãos em cima do colete. - Então, diga-me lá o que é essa tal
coisa que pensa que eu vou achar inverosímil.
- Bom - começou ela, falando devagar. - Há coisas que eu
vejo logo. E o senhor também. Tal como a maioria dos médicos e
enfermeiras com prática. Vi uma coisa em Rose Clark. Não é uma
coisa que eu tenha visto centenas de vezes, nem mesmo dezenas de
vezes, mas é uma imagem tão ... - hesitou um instante - tão profunda que ficou gravada para sempre na minha mente. - Calou-se,
relutante em continuar.
- Vá lá - disse O'Casey docemente -, diga-me lá de que é que
desconfia.
- É mais do que desconfiança. Tenho a certeza. A Rose está a
ser maltratada pelo pai. - Calou-se novamente. - Sexualmente.
O'Casey fechou os olhos e só os abriu novamente ao fim de
alguns segundos.
- Como é que pôde chegar a essa conclusão depois de falar com
a rapariga durante um minuto ou dois? Quer dizer, nem sequer a examinou.
- Já lhe expliquei. - Megan franziu o sobrolho, de olhos fitos
na secretária, perscrutando as suas certezas íntimas. - É uma coisa
que não engana. Uma coisa terrível, diferente de tudo, Sr. Doutor.
Ficaram os dois calados durante cerca de um minuto. Finalmente, O'Casey disse:
- É verdade, tenho de confessar que também já vi isso. Esse
Q]har. - Suspirou baixinho. - Mas, mesmo assim, nunca fiz um
diagnóstico só com base no aspecto de uma rapariga, Megan.

- Então continua a dizer que não pode fazer nada?
O'Casey inclinou-se outra vez para a frente.
- Estou muito inclinado a acreditar que tem razão, até porque
conheço Owen Clark. Mas não temos provas. Não posso ir contar
isso assim à Polícia ou a uma organização de defesa da criança,
porque não me vão ligar nenhuma com as bases que temos.
Megan levantou-se de repente, toda corada.
- Se são precisas provas para alguém fazer alguma coisa, então
tenho de as arranjar.
- Bom, veja lá o que vai fazer - advertiu O'Casey, levantando-se também. - Já arranjou bastantes sarilhos com as autoridades
desde que cá chegou. Não ponha em risco a sua carreira só por causa
de ... - Mas calou-se quando viu o ar furioso dela.
- Só por causa de uma criança que está a viver no inferno? Era
isso o que ia dizer, Sr. Doutor?
O'Casey deu a volta à secretária e veio até junto dela.
- O que eu ia dizer era para não arriscar tudo por causa de um
pressentimento. Pense bem. Pode ter-se enganado.
- E se não me tiver enganado?
- Não sei. - O Dr. O'Casey olhou para ela com um olhar
desamparado. - Estes casos não são fáceis.
- Vai ver que é fácil - declarou Megan com firmeza.
Quando ela se virou para a porta, o médico tocou-lhe no braço e
disse-lhe quase a medo:
- Não se esqueceu que amanhã chega o Dr. Morris? Gostava
que passasse por cá depois das consultas da manhã para eu lho apresentar.
Megan já se tinha esquecido.
- Claro, estou aqui amanhã, às onze horas.
Megan saiu para a chuva da rua, lutando com a sua capa esvoaçante e perguntando a si mesma, quase com desespero, o que é que
ia fazer para arranjar provas. E como se esse dilema não bastasse,
ainda a esperava o aborrecimento de ter de ir conhecer o presunçoso
do Dr. Morris. Era como se estivesse com uma dor muito forte e uma
dor de dentes ao mesmo tempo.
Enfiou a cabeça no buraco da capa de oleado rijo, levantou o
capuz, agarrou no guiador da bicicleta e começou a andar com ela
pela mão. Não havia nada que não se pudesse resolver, pensou.
Todos os obstáculos, todas as desgraças, podiam ser superados.

GI.ADYsi e Wyn Brewster eram dois bons amigos de Megan Roberts. Seis meses depois de a enfermeira distrital ter chegado a
Pencwm, os Brewsters tinham resolvido que era preciso fazer alguma coisa para combater a hostilidade com que a maior parte da
população a recebera. Portanto, Wyn convenceu a irmã, Gladys, a ir
ter com Megan e a convidá-la para ir tomar chá com eles. A partir
desse dia, começara uma grande amizade.
Gladys era uma solteirona de quarenta anos, de medidas generosas, cabelo negro-brilhante e uns olhos que pareciam dançar quando falava. Nunca se casara, e realizava-se cuidando do irmão, Wyn,
o que fazia há vinte anos, desde que tinham ficado órfãos. Wyn
tinha trinta e oito anos e. também era solteiro. Era mineiro, mas desempenhava também o cargo de secretário da Associação de Ajuda
às Viúvas e Órfãos de Pencwm e todos os anos fazia conferências na
escola sobre o seu tema favorito, as Cruzadas.
Gladys e Wyn moravam numa casa na Vaughan Road, numa fila
de casinhas térreas localizadas na encosta nordeste de Pencwm. As
janelas das traseiras davam para uma escarpa abrupta que se erguia
sobre um maciço de árvores enfezadas conhecido pelo nome de

Colwen Wood. Na manhã de sol ventosa em que ia conhecer o substituto do Dr. O'Casey, Megan meteu pelo caminho íngreme que passava por Colwen Wood até casa deles e encostou a bicicleta ao muro
do jardinzinho da frente da casa.
Gladys abriu a porta antes de Megan ter batido.
- Vi-a da janela das traseiras, querida. Deve estar estafada,
depois de ter subido isto tudo de bicicleta. Porque é que veio pelo
pior caminho?
Megan entrou na sala de estar atrás de Gladys, desabotoando o
casaco.
- Tive de ir ver o bebé dos Rawlings - disse -, por isso vim
pelo caminho mais curto de casa deles até aqui.
Wyn levantou os olhos do livro que tinha em cima da mesa
quando Megan entrou e ergueu as sobrancelhas.
- Olha, olha, mas que agradável surpresa. - Levantou-se e
puxou uma cadeira que estava do outro lado da mesa.
- Vou pôr a chaleira ao lume - disse Gladys, e saiu da sala.
Megan sentou-se com um suspiro de satisfação e alívio. Gostava
muito daquela sala, que era um refúgio agradável, o lar de pessoas
simpáticas e inteligentes que a tratavam como uma igual. Sorriu a
Wyn e não lhe escapou o calor do sorriso dele. As Cruzadas não
eram a única paixão de Wyn. No entanto, nunca manifestara os seus
sentimentos em relação a ela e Megan estava-Lhe grata por isso. Não
queria por nada deste mundo magoá-lo com uma recusa.
- Não estou aqui só de visita, Wyn. Tenho um problema e achei
que talvez me pudessem ajudar a resolvê-lo.
- Se estiver nas minhas mãos, ajudo-a com certeza. Que é?
- Não podemos esperar pela Gladys? É uma coisa que eu que?ia falar com os dois. - Megan apontou para o livro que estava em
cima da mesa. - Que é que está a ler?
- É um manual sobre os passatempos culturais dos Chineses.
- Então desistiu das Cruzadas?
Wyn franziu a testa.
- Não, nada disso. Mas temos de evitar as obsessões, não acha?
- Sorriu, mostrando uns dentes grandes e fortes por baixo do bigode espesso. - Com certeza que já ouviu dizer isto: ??O maior especialista mundial de um assunto é a pessoa mais ignorante do Mundo
em tudo o resto.?? - Acenou na direcção do livro. - Estou a alargar
os meus horizontes há uma hora ou mais. É um assunto fascinante.
Megan detectou no entusiasmo e na inteligência de Wyn umas
certas semelhanças com Alun, o seu noivo, que morrera na I Grande
Guerra. Reparava agora que até os movimentos de cabeça que fazia
- para baixo, quando queria sublinhar qualquer coisa, ou para
cima, quando ficava surpreendido - lhe lembravam Alun. Mas
afastou a ideia quando essas recordações perturbadoras começaram
a espreitar através do muro que tinha erguido para as conter.
Felizmente, Gladys voltou da cozinha nesse momento, trazendo
?o som tranquilizante do tilintar das chávenas e dos pires. Gladys pôs
?o chá e os pãezinhos na mesa e sentou-se em frente de Megan.
- Tirou uma folga entre as visitas, foi?
- Tem um problema - disse Wyn. - Precisa da nossa ajuda.
Gladys olhou atentamente para Megan.
- É por causa dos Clarks, que moram em Trevor Street.
- O urso do Owen - resmungou Wyn.
- E a pobre da filha dele. - Gladys abanou a cabeça. - A
"pobrezinha tem uma vida desgraçada.
- É com ela que estou preocupada - disse Megan. - Sabe se

vai alguém lá a casa deles? - Entre outros talentos, Gladys tinha uma capacidade de recolha de informações aparentemente triviais
sobre a vida dos habitantes de Pencwm que muitas vezes era útil a
Megan. ? Outros homens, por exemplo?
Gladys apertou os lábios durante uns instantes, meditando.
- Não - disse finalmente. - Tenho a certeza de que Owen
nunca deixa entrar ninguém lá em casa. Nem sequer quando a
mulher ainda era viva.
- E a rapariga, Rose, sai às vezes?
- Isso é que é um escândalo, na minha opinião. A rapariga não
sai de casa há um ano ou mais.
O que confirmava as informações da vizinha. Na noite anterior,
Megan tinha acalmado o suficiente para seguir os conselhos do Dr.
O'Casey. Meditara muito no assunto, mas acabara por concluir que
o seu pressentimento estava certo. No entanto, tinha de ter a certeza
de que estava a acusar o verdadeiro culpado. Agora, tinha mesmo a
certeza disso.
- É alguma coisa que nos possa contar, Megan? - perguntou
Wyn.
- Não, em pormenor não posso. - Megan inclinou-se para ele.
- Qual é o horário de trabalho de Owen Clark esta semana?
- Quer dizer, durante que horas é que ele faz o mínimo possível
para não ser despedido? Deixe ver. Vi-o entrar na taberna quando ia
para a mina, ontem. Não trabalha à noite, por causa da rapariga. Por
isso, deve estar no turno da madrugada.
- Isso quer dizer que Rose está sozinha até à uma e meia ou duas
da tarde todos os dias desta semana?
Wyn acenou afirmativamente.
- Ouça - disse ele -, não estou a querer ser bisbilhoteiro, mas
já percebi que quer apanhar a rapariga sozinha. Há uma maneira de
saber se Owen está ou não em casa. Ele deixa as botas nojentas da
mina no quintal antes de entrar em casa. É a única concessão que faz
à higiene, tanto quanto eu sei.
Gladys deitou o chá nas chávenas.
- Se vai a casa dos Clarks - disse em voz grave -, tome cuidado. Owen é um homem mau. Acho que é capaz de tudo.
- Eu também - respondeu Megan, e começou a beber o chá.

A coNsuLTA terminou por volta das 11 horas. Mrs. Colville, que
vinha todas as manhãs fazer a limpeza, fez chá para os médicos e
nessa manhã trouxera também uns pãezinhos caseiros.
- É para dar as boas-vindas ao novo médico - explicou, sorrina Timothy Morris com a sua boca desdentada antes de sair da sala.
Timothy deitou o chá nas chávenas, enquanto O'Casey arruava a secretária e se sentava depois na sua velha cadeira rotativa.
- Então, que lhe parece? - perguntou o velho médico.
Timothy colocou uma chávena de chá em frente de O'Casey e
sentou-se diante dele.
- Estou um tanto ou quanto abalado. Estava à espera de uma
certa pobreza, mas ... - Fez um gesto na direcção da porta da sala
de espera.
- Isto aqui não há lugar para as subtilezas da medicina - disse
o'Casey. - Já cheguei à conclusão de que as doenças complicadas
? atacam as pessoas bem alimentadas e que vivem em boas casas.
as pessoas pobres estão imunizadas contra essas doenças.
Nessa manhã, Timothy Morris assistira à consulta do Dr.
o'Casey, que atendera dois homens com grandes hérnias, uma criança com tinha, dois casos de pneumoconiose, um cancro da língua em

solução e três casos de tuberculose com diagnóstico não confirmada Nestas últimas horas, vi mais pessoas realmente doentes do
que nos últimos três anos da minha vida - murmurou Timothy.
Mas o que mais o impressionava era o estoicismo dos doentes.
ninguém se queixava; alguns quase pareciam pedir desculpa, como
os seus corpos os envergonhassem, adoecendo.
- A pobreza e a ignorância são os nossos maiores inimigos em
Pencwm - disse O'Casey. - Assim como os preconceitos, claro.
a doença prolifera tanto no meio da estupidez como numa casa
onde há fome.
Timothy ia dizer qualquer coisa quando bateram à porta e apareceu a cabeça de Megan a espreitar. Tinha um ar sério.
- Entre, entre, Megan. - O Dr. O'Casey levantou-se para a receber. - Dr. Morris, a nossa enfermeira, Megan Roberts.
Timothy levantou-se e apercebeu-se logo de uma desconfiança,
mesmo de hostilidade. A enfermeira percorreu-o rapidamente
com o olhar, tomando nota do seu elegante fato às risquinhas, da
camisa branca impecável e da gravata escura de seda. Depois, observou mais demoradamente a cara dele, enquanto lhe apertava a
mão estendida. Percebeu que ela estava a tentar, sem grandes espeiças, descobrir nele alguma coisa que lhe agradasse.
- Muito prazer em conhecê-la, Sr.á Enfermeira Roberts.
Ela murmurou qualquer coisa e depois voltou-se bruscamente
para o Dr., O'Casey. Estendeu-lhe uma caixa metálica que trazia na
mão.
- Que é isso? - O'Casey franziu o sobrolho, numa expressão
de curiosidade e ao mesmo tempo de desaprovação pelos seus modos bruscos para com o Dr. Morris.
- Veja - respondeu ela.
O'Casey abriu a tampa da caixa e Timothy aproximou-se até ficar ao lado dele.
- Meu Deus! - sussurrou.
O'Casey fitou o conteúdo da caixa durante muito tempo e depois
olhou para Megan.
- Onde é que encontrou isto?
- Em casa dos Clarks. Há meia hora. Fui lá procurar provas. -- Olhou para a caixa. - Mas não estava à espera de uma coisa destas.
De uma prova tão concludente ...
Estava escuro em casa dos Clarks, as cortinas sujas estavam
quase fechadas por detrás das janelas pretas de fuligem. A escuridão
condizia com o cheiro, uma mistura desagradável de odores a comida rançosa, a humidade e a suor humano. Após ter entrado na casa
sem bater à porta, Megan precisara de uns momentos para se habituar àquela luz fraca. Rose aparecera, descalça, vinda de um compartimento que ficava do outro lado da pequena entrada.
- O meu pai disse para eu não falar consigo.
Megan sorriu.
- Só queria ver se estavas bem, Rose.
A rapariga enrolou-se mais no casaco de malha velho que trazia
vestido e fitou o chão com uma expressão sombria.
- É o teu quarto?
Rose acenou que sim com a cabeça.
- Posso entrar?
- Não. - A voz de Rose parecia apreensiva quando olhou para
Megan. - O meu pai não quer que ninguém entre cá em casa. Vá-se
embora, por favor.
- Vou só dar uma vista de olhos, minha querida. É para ver se
tens uma cama como deve ser para dormires. - Megan não sabia v
que é que queria ver. O mais que podia fazer era observar o ambiente e tentar que a rapariga falasse com ela. =

Megan atravessou a entrada e empurrou a porta do quarto. lá
dentro havia uma cama estreita por fazer, uma cadeira manca e um
toucador com o verniz todo lascado. Megan parou a olhar e Rose
entrou e pôs-se ao lado dela. Mexia nervosamente os dedos.
- Por favor, miss, é melhor ir-se embora.
- É só um minuto, Rose. Não te aflijas. - Megan foi até junto
do toucador. Havia um livro ilustrado solitário em cima do tampo.
- Não tens mais livros?
- Não, só tenho esse.
- Que é que fazes todo o dia, minha querida?
Rose parecia cada vez mais nervosa, sem saber o que responder
á pergunta. Era evidente que queria que Megan saísse do quarto.
- Vá-se embora, miss, se faz favor ...
Megan suspirou.
- Está bem, Rose. - Mas quando se voltou, viu qualquer coisa
debaixo da cama. Parecia uma lata de bolachas velha. Baixou-se
para a apanhar e Rose correu para ela.
- Não! Não! - Parecia aterrada.
- Estou só a ver - sussurrou Megan, tentando acalmar a criança. - Que mal é que faz? Porque é que não lhe posso mexer? É uma
caixa tão bonita.
- Não! - Rose tentou arrancar-lhe a lata das mãos antes de
? Megan a abrir. - É minha! - A mudança da rapariga era surpreendente. - Dê-me isso! - Estava muito perturbada, tinha uma respiração ofegante e puxava a caixa.
- Não a vou estragar, minha querida. - Megan tinha a certeza
de que era por causa da caixa que a rapariga não queria que ela tivesse entrado no quarto.
- Dê-me isso! - Rose puxava pela caixa com os seus dedinhos
miudos. - É minha! - A tampa abriu-se de repente e ela deu um
to para trás, levando as mãos à boca.
Megan olhou para o interior da caixa. Por instantes, nem soube
?? que estava a ver. Mas depois percebeu.
- Valha-me Deus .. - Pelo aspecto, já devia estar dentro da
caixa há muito tempo. Estava ressequido e mudara de cor devido à
composição, mas o olhar experiente de Megan identificou imediatamente um feto humano.
Olhou para a criança desesperada, que começara a chorar tapando a cara com as mãos.
- Não tenhas medo, Rose. Vai tudo correr bem.
Agora, no gabinete do Dr. O'Casey, Timothy Morris disse:
- Parece estar parcialmente mumificado.
O'Casey assentiu. Fechou a tampa e olhou para Megan.
- Onde é que está a rapariga?
- Está em casa de Gladys Brewster. Lá é bem tratada até ver o
que se há-de fazer. - Megan olhou para a caixa, abanando a cabeça. - Tinha lá isto escondido há três meses. Acho que era a única
coisa que a consolava.
- Deve ter estado muito doente - disse o Dr. O'Casey.
- Nunca havemos de saber o que ela passou. - Megan estremeceu, imaginando Rose sozinha naquela casa horrível, enrolada no
escuro, cheia de dor e de medo.
- O homem é um monstro - resmungou o Dr. O'Casey.
- A avaliar pela cara do guarda Davis quando lhe dei conhecimento disto, acho que Owen Clark vai ficar com algumas nódoas
negras antes de o fecharem na cela.
- É uma história incrível - disse o Dr. Morris. - Nunca tinha
visto uma coisa assim.
Megan olhou-o friamente.

- E natural que não.
Esta observação foi muito elucidativa para Timothy. Era uma
censura à sua experiência anterior, que tornava pouco própria a sua
presença em Pencwm. Além disso, recebera também um aviso claro
sobre o que ia ser a sua futura relação profissional com a enfermeira
Roberts.
Sorriu a Megan.
- É evidente que tenho de pedir a sua ajuda para me pôr a par de
certas coisas.
- Quer-me parecer que vão ser muitas. - Megan abotoou o
casaco e dirigiu-se para a porta. - Vou fazer o possível para que o
Sr. Doutor não tenha muitos choques ao mesmo tempo. - Abriu a
porta. - Agora tenho de ir. Já estou atrasada nas visitas. Passo por
cá mais logo, Dr. O'Casey.
O último olhar dela dizia-lhe mais uma coisa, pensou Timothy.
Estava convencida de que ele não se ia aguentar ali muito tempo.

Três

?rustin Pym tossiu baixinho na sala de espera do consultório do Dr.
O'Casey. Olhou para as mãos, enquanto os outros doentes, encostados à parede da frente, suspiravam e mudavam a posição dos pés.
?estava convencido de que detestava as cores sombrias e as linhas
?retorcidas e feias da cidade há quase quarenta e seis anos, que era a
sua idade. Nestes últimos tempos, andava obcecado com esse ódão.
?rustin detestava Pencwm. Não que alguma vez tivesse conhecido
algo melhor; mas, mesmo assim, sentia-se encurralado e sempre ti?ha tido essa sensação. Faltavam vinte minutos para entrar no gabinete de consulta do médico.
Timothy Morris levantou os olhos e viu um homem alto e magro
de cabelo ruivo. Tinha um olhar cansado e a boca contraída. O
homem sentou-se com um aceno de cabeça cordial.
- Mr. Pym - disse Timothy, olhando para a ficha que tinha na
sua frente -, não é verdade?
Austin fez novamente um aceno de cabeça.
- Sou o Dr. Morris. Estou a substituir o Dr. O'Casey.
- Já ouvi falar de si.
Timothy estudou a ficha. O Dr. O'Casey partira há duas semanas
e, entretanto, Timothy vira já cerca de vinte fichas clínicas com a
mesma história de agravamento gradual do estado de saúde do
paciente.
- Então, Mr. Pym, que é que eu posso fazer por si?
- Era para ver se o Sr. Doutor me podia dar mais remédio igual
ao que levei da última vez. - Falava com a solenidade de um pregador, apesar de a voz ser fraca. - Fez-me bem.
Timothy olhou outra vez para a ficha. Austin sofria de acessos de
bronquite desde criança. Com o tempo, os seus pulmões enfraquecidos eram cada vez mais vulneráveis a perturbações crónicas, que
afectavam muito o seu estado geral. Da última vez que fora ao
médico, há dois anos, apresentava já sintomas claros de que a essa
inflamação pulmonar já muito antiga se estava a juntar a doença que
era o flagelo dos mineiros, a pneumoconiose.
- Tem tido muitos problemas respiratórios - disse Timofhy,
com plena consciência do eufemismo. - Tem notado algumas mudanças ultimamente? Quer dizer, tem passado melhor ou pior?
- Bom ... - Austin olhou para as mãos. - Há alturas em que
perco o fôlego muito depressa, quando ando ou levanto pesos.
Timothy fez um aceno de cabeça. O homem estava a entrar numa
nova fase da doença.

- Tire o casaco e a camisa. Quero auscultá-lo.
O estetoscópio revelou-lhe que a situação era ainda mais grave
do que ele pensava. Era de prever que se ouvissem roncos nos pulmões, mas não que o ritmo cardíaco já fosse irregular. Quando
Timothy ajustou melhor o estetoscópio, ouviu um estalo, que era
sem dúvida algum? o ruído produzido por uma válvula deficiente
que tentava lentamente dar vazão ao fluxo sanguíneo.
Timothy recuou.
- Pode vestir-se - disse. Sentou-se e ficou à espera até que
Austin acabasse de abotoar o casaco, e depois disse: - Quantas
horas trabalha por dia?
- Dez - disse Austin. - Quando estou a trabalhar.
- Então tem faltado?
- Há quatro dias. Tenho passado mal, é verdade.
Sempre o mesmo estoicismo, pensou Timothy.
- Sabe, devia ter cá vindo há mais tempo. Está a criar líquido
nos pulmões. O melhor remédio é o descanso.
- Mas eu preciso de trabalhar!
- Eu sei. - Timothy tinha aprendido depressa. A greve das
minas de carvão começara em Maio do ano anterior e só acabara em
fins de Novembro. Essa longa luta enfraquecera a posição dos mineiros e levara os proprietários das minas a adoptarem um comportamento cada vez mais duro. Era muita sorte um homem ter trabalho, e os doentes não estavam interessados em fazer publicidade à
sua incapacidade. Era muito fácil substituir um mineiro que não
tinha o rendimento desejado.
- Mr. Pym - continuou Timothy -, vou falar-lhe francamente. Se não descansar durante bastante tempo, dentro em breve
não pode trabalhar. Não é capaz. Um mês de descanso era já o suficiente para melhorar.
No consultório de Kensington, isto não seria problema para os
doentes. Agradeciam a Timothy e partiam imediatamente para o Sul
de França. Mas em Pencwm o dilema era terrível, e Timothy sabia-o muito bem.
Como era de esperar, quando Austin falou novamente foi com
estoicismo.
- Não posso descansar durante um mês. Despediam-me.
- E se eu falasse com o encarregado da mina?
Austin piscou os olhos, alarmado.
- Não, não, não faça isso. Não sabe como é Mr. Lowther. Está
sempre pronto a prejudicar-nos. Talvez se me desse mais daquele
remédio da outra vez ...
Timothy abanou a cabeça.
- Nem que eu lhe desse cinco litros, já não lhe fazia nada. Ouça.
?- O médico inclinou-se para a frente. - Garanto-lhe que não o vão
despedir. E mais, posso tratar de lhe arranjar um subsídio especial,
para si e para a sua família, para não passarem mal. Tem é de melhorar. - Quando Austin começou outra vez a protestar, Timothy
?levantou a mão para o fazer calar. - Se eu não for falar com o seu
capataz, não tarda nada fica mesmo desempregado.
Austin meditou na questão.
- Se acha que consegue que eles me dispensem ...
- Prometo que sim.
- Então, nesse caso .. - Austin acenou três vezes com a cabeça, num gesto brusco. - Muito obrigado, Sr. Doutor.
Timothy sentiu um arrepio de comoção quando apertou a mão
que Austin lhe estendia timidamente.
Meia hora depois, ao percorrer a calçada irregular que levava à
sua casinha, Austin continuava espantado com a sensação de alívio

e contentamento que se apoderara dele ao sair do consultório. Nunca na sua vida conhecera ninguém importante que se tivesse preocupado com ele ou tentado ajudá-lo. Aquele Dr. Morris tinha sido
um grande apoio, pelo simples facto de ter falado com ele e se ter
mostrado interessado no seu caso e lhe dizer o que ia fazer por ele.
Quando chegou em frente da porta de casa, voltou-se para trás e
olhou para cima, para a zona ventosa que se estendia em direcção a
Colwen Wood. Uma paisagem miserável, pensou. Uma cidade miserável. Mas naquele momento, pelo menos, Austin achou que tudo
aquilo era muito mais tolerável.

- EntÃo é a última quinta-feira em que vem fazer aqui os seus
exames - disse Miss Pryce. Piscou suavemente os olhos por detrás
dos grandes óculos redondos, olhando para Megan, que tirava da
maleta frascos de loção. - Sexta-feira é um dia muito melhor para
toda a gente.
Megan lançou-lhe um olhar intrigado.
- Mas não vou mudar o dia. Quem é que lhe disse isso?
- Bom ... - Miss Pryce espreitou pela janela do seu gabinete,
como se pudesse estar alguém lá fora para a apoiar. - O médico
concordou que era melhor, por isso pensei que já tivesse falado
consigo.
Megan respirou fundo, devagar. A sua paciência estava sempre
nos limites quando tinha de lidar com esta mulher. Miss Pryce era a
directora da escola primária. Apesar de também dar aulas, interessava-se muito mais pelos problemas administrativos do que pelo
ensino. Depois de fazer um esforço para se dominar, Megan disse:
- Falou do assunto com o Dr. Morris, foi? Achou que não valia
a pena falar directamente comigo?
- Sr.á Enfermeira Roberts! - O nome foi dito em tom de acusação. - Sou de opinião de que a sua visita quinzenal a esta escola
Para examinar as crianças a ver se têm piolhos, sarna ou outras coisas no género, perturba o nosso trabalho. É claro que isso é inevitável, mas à sexta-feira, ao fim do dia, a perturbação seria menor.
- Não lhe pedi para expor as suas razões - respondeu bruscamente Megan. - Perguntei-lhe porque é que não me fez directamente a mim essa sugestão. Vê-me bastantes vezes.
- Tanto quanto sei, Sr.á Enfermeira, o médico é o seu superior
imediato e é a ele que lhe compete tomar decisões deste género.
- Foi o médico quem me disse para ser eu a combinar o dia das
visitas escolares - observou Megan. - Escolhi um horário que se
coadunasse com as minhas outras obrigações e a sua antecessora
não pôs objecções.
- Os meus pontos de vista sobre a maneira como esta escola
deve ser dirigida - disse Miss Pryce num tom doutoral - diferem
em muitas questões dos da minha antecessora. - Voltou as costas à
enfermeira e avançou decididamente para trás da secretária, com o
seu vestido de algodão preto a roçagar. - Vamos esperar pela decisão do Dr. Morris. Não estou disposta a falar mais no assunto.
- Pois eu estou. - Megan fechou a maleta e meteu os frascos de
loção nas algibeiras. Nunca levava a mala preta para a sala de aula, porque havia crianças que ficavam assustadas quando a viam.
Quando chegou à porta, parou. - Vou falar no assunto ao Dr. Morris ainda hoje à tarde.

Depois de ter visto o último doente, Timothy Morris tirou da
secretária uma garrafinha de conhaque e deitou um bocado num
copo de remédio. Já tinha engolido metade quando Megan bateu à

porta do consultório e entrou.
- Boa tarde, Sr.á Enfermeira. - Timothy levantou o copo. -- Quer fazer-me companhia?
- Vou fazer-lhe companhia - disse Megan -, mas não preciso de bebidas.
- Eu também não - disse Timothy -, mas estava a apetecer-me. - Sorriu-lhe. - Não sei como é que foi o seu dia, mas o meu
foi muito cansativo.
- Queria falar consigo sobre as minhas visitas à escola - disse
ela em voz dura. - Soube que Miss Pryce veio falar consigo para
mudar o dia.
Timothy acenou afirmativamente, com a sua habitual expressão
franca e cordial.
- Falei com ela na segunda-feira, parece-me. Há algum problema?
Megan cerrou os dentes.
- Queria saber porque é que não me consultaram acerca da
mudança.
Timothy suspirou.
- Ia falar consigo amanhã. É o dia em que temos a nossa conversa sobre os problemas e os êxitos da semana, não é? Ou estou enganado?
- Que é que tencionava dizer-me amanhã?
- Que Miss Pryce tinha falado comigo para as visitas mudarem
para a sexta-feira. Mas, fora isso, não lhe ia dizer nada. Pensei que
podíamos discutir o assunto os dois. - Pegou no copo e foi sentar-se na poltrona que estava ao pé da janela, fazendo sinal a Megan
para se instalar na cadeira da frente.
Megan avançou e sentou-se.
- Pensei que ia dizer a Miss Pryce que falasse directamente
comigo sobre qualquer mudança.
- Realmente, sugeri-lhe isso. Mas acho que ela tem um bocado
medo de si - respondeu Timothy ingenuamente. - O Dr. O'Casey
também a intimidava, acho eu. Não é que ela me tenha dito isso, é
claro. Foi uma impressão com que fiquei por causa de uma ou duas
coisas que me disse.
Fez-se silêncio no consultório durante uns instantes: o único
som que se ouvia era o tiquetaque do relógio na chaminé. Megan
olhou para a secretária, iluminada por um candeeiro, sentindo que
os fios do seu aborrecimento se estavam a embaraçar, em vez de
tecerem uma corda forte de indignação, como deviam. Por causa do
Dr. Morris. Tinha uns modos sempre tão calmos, seguros e educados. Através do seu sorriso, desviara todas as torrentes de exasperaÇão que lhe dirigira nas últimas duas semanas.
Megan falou finalmente.
- Miss Pryce não gostava de falar com o Dr. O'Casey - disse - porque ele não se deixava intimidar por uma velha mandona?
como ela, que acha que toda a gente lhe deve obedecer. E não fala ?
comigo p?la mesma razão.
Timothy abriu as mãos.
- Então é isso. Como vê, acertei. - Bebeu mais um golinho de
conhaque. - Mas qual é o problema?
- A sua atitude - disse Megan. - Miss Pryce saiu daqui convencida de que o senhor tinha concordado com a mudança que ela
queria.
O sorriso de Timothy punha os nervos de Megan em franja.
- Então saiu com uma impressão errada. Explicou-me que era
mais conveniente fazer a visita na sexta-feira à tarde. Tive de concordar que parecia melhor. Disse-lhe que ia falar consigo, mas não
lhe dei nenhuma certeza. - Esvaziou o copo e pô-lo no chão ao lado
da cadeira. - Já agora, que é que acha da ideia de Miss Pryce?

Megan estava desorientada. Fora ali para barafustar com aquele
estranho complacente e ele tinha-a desviado completamente do
objectivo. Tinha a sensação de que fora astuciosamente privada de
qualquer coisa.
- Se Miss Pryce me tivesse perguntado a mim - disse -, provavelmente teria concordado com ela. Mas ...
- Está aborrecida por ela ter vindo falar comigo em vez de falar consigo. - Timothy reclinou-se na cadeira e cruzou as pernas.
A luz do candeeiro reflectiu-se nos seus sapatos bem engraxados. -- É isso?
- Sim, Sr. Doutor, é isso. - Megan levantou-se, sentindo-se
incapaz de ficar ali sentada mais um segundo que fosse a aturar o
autocontrole dele. Pelo menos em pé olhava para ele de cima. - O
meu trabalho aqui já é difícil e só me faltava ter de aturar ...
- Interferências - interrompeu Timothy, mas num tom calmo.
- Faço o possível por não interferir, Sr.á Enfermeira. Sei muito
bem que faz um excelente trabalho. O Dr. O'Casey já mo tinha dito
e tive ocasião de o comprovar pessoalmente. Não há razão para eu
interferir e por isso não o faço.
Ela ficou a olhá-lo. Como é que ele podia dizer aquilo? Contrariara-a, opusera-se a ela e molestara-a vezes sem conta, a ponto de
ficar muitas vezes acordada de noite com a raiva.
Timothy levantou-se, anulando a vantagem mínima que ela detinha.
- Já percebi - disse - que há qualquer coisa que lhe desagrada na minha atitude para com o trabalho que tenho a fazer aqui.
Também me parece que considerou que as minhas perguntas e sugestões ocasionais são uma intromissão. - Sorriu novamente, mas
desta vez como se se estivesse a desculpar. - Não conheço este
território, este género de medicina, tão bem como o Dr. O'Casey.
Portanto, tenho de me informar. Estou a tentar aprender, não sei se
percebe. E se expresso as minhas opiniões uma vez por outra, não é
para a criticar. São observações que faço do meu ponto de vista actual, que vai certamente mudar quando tiver aprendido mais.
Megan ficou sem fala, condenada ao silêncio pela franqueza e a
amabilidade de Timothy, observando o médico enquanto ele se dirigia à secretária e arrumava a pasta com as fichas. Depois de ter
feito este trabalho, Timothy bocejou e voltou-se outra vez para ela.
- Estou muito cansado, Megan. Não se importa de que a conversa sobre as visitas escolares fique para amanhã?
Murmurou que não se importava nada. Timothy acompanhou-a
à porta e deu-lhe as boas-noites.
Megan, perturbada e desconcertada, subiu a rua que levava à sua
casita. Como é que fora possível?, perguntava a si mesma. Como é
que tinha ido atacar um adversário, armada com uma indignação tão
grande, e constatara que afinal não tinha adversário? Sentia-se tão
frustrada como uma britadeira a funcionar no vazio, sem pedra para
partir.
Quando chegou à porta de casa, teve um novo ataque de fúria.
Ele tinha-Lhe chamado Megan! Tratara-a pelo nome próprio. Enfiou
a chave na fechadura com toda a força e deu um empurrão à porta.
??A lata dele!??, sibilou entre dentes, ao mesmo tempo que
Scratch se atirava para cima dela.

Quatro

NUMA manhã de frio cortante da segunda semana de Novembro,
Timothy N?orris subiu a Cardower Road de automóvel e saiu do
carro no cimo da rua, a tremer de frio. As empenas dos telhados das

casas estavam orladas com uma geada espessa, que enfeitava também com uma cobertura brilhante os muros e os pilares dos portões.
Há dois dias que estava aquele tempo. Timothy nunca tinha visto
um tempo assim, nem mesmo na sua infância, no País de Gales.
do consultório só há dez minutos e já tinha os dedos a ficarem
frios. Esfregou as mãos uma na outra com força, tirou a mala do
banco do passageiro e atravessou a rua até à porta dos Prentices.
bateu e ficou à espera.
Mrs. Prentice levou muito tempo a abrir a porta. E quando abriu,
i só uma fresta, o suficiente para a cara dela aparecer a espreitar.
- Bom dia - disse Timothy alegremente. - Sou o Dr. Morris,
o substituto do Dr. O'Casey. ,- O sorriso dele não parecia acalmar
a inquietação da mulher. - Vim por causa do seu rapaz, Gareth.
não se importa que eu o veja?
Mrs. Prentice abriu um nadinha mais a porta.
- Está ... está a dormir agora. Não o quero acordar, porque ...
Timothy ouviu passos na entrada, atrás da mulher. alguns instantes
depois, alguém bateu com a porta das traseiras.
- Bom - disse, franzindo o sobrolho -, se calhar, é melhor vir
noutra altura.
Mrs. Prentice acenou afirmativamente e fechou a porta sem dizer mais nada. Timothy deu rapidamente a volta à casa. Viu uma
mulher alta e desgrenhada, que parecia uma cigana, a afastar-se
rapidamente das traseiras da casa dos Prentices.
Ao regressar à cidade, Timothy viu a bicicleta de Megan parada
à porta de casa dela. Arrumou o carro e saiu, preparando-se para
enfrentar mais gelo dentro de casa. Megan abriu a porta assim que
ele bateu e pareceu surpreendida ao vê-lo.
- Passei por aqui e achei que talvez fosse boa ideia falar consigo - disse.
Megan recuou para o deixar entrar. O cão começou a saltar à
volta das pernas de Timothy, enquanto este se aproximava da lareira, estendendo as mãos para o lume.
- Tem uma casa muito agradável - disse a Megan, acenando
na direcção das prateleiras com livros. - Mais parece a casa de um
professor do que de uma enfermeira.
- Tenho juntado livros desde criança. - Megan apontou para o
tabuleiro que estava em cima da mesa. - Quer uma chávena de
chá?
- Obrigado. - Timothy sorriu. - Estou mesmo a precisar de
qualquer coisa para me aquecer o sangue.
- Não garanto que dê esse efeito - respondeu Megan, servindo duas chávenas. - Mas pelo menos dá essa ilusão.
Timothy achou que, a avaliar pelo seu tom de voz, Megan estava a habituar-se a ele. Ainda falava com uma voz cerimoniosa,
mas já sem frieza.
- A razão por que passei por aqui foi para falar de Gareth Prentice. - Começou a beber o chá com satisfação. - Fui lá a casa há
bocadinho, mas a mãe não estava interessada em que eu visse o
rapaz.
- Mas entrou?
- Não. Havia ali qualquer coisa suspeita. Ouvi passos por detrás de Mrs. Prentice e quando alguém bateu com a porta das traseiras, resolvi despedir-me e ver quem era o visitante. Era uma mulher
com um aspecto desgraçado.
Megan franziu o sobrolho.
- Uma mulher grande, muito desmazelada? Com uma cabeleira toda desgrenhada?
- Sim. Uma descrição muito fiel.
- Era Nesta Mogg! Há que tempos que Gareth anda a tentar
convencer a mãe a chamá-la.

- Ela é alguma espécie de praticante de medicina popular? Conheço alguns ervanários em Londres que têm uma clientela muito
fiel.
- Nesta não pratica medicina de espécie nenhuma, nem é ervanária. É uma criminosa. Aproveita-se da superstição e do medo das
pessoas para ganhar fama de curandeira. Gosta de ter poder sobre a
gente daqui e não se rala nada com a saúde deles.
- Quer dizer que é uma bruxa - observou Timothy.
- É o que eu costumo dizer às pessoas. Mas há muita gente que
não quer acreditar. - Megan pousou a chávena no pires com toda a
força. - Se fossem mais racionais ...
- A fé e a razão não combinam - disse Timothy. - E a fé está
muitas vezes ligada ao mistério.
Megan olhou para ele.
- Mistério? Os remédios de Nesta Mogg não têm nada de misterioso. Faz cataplasmas com cocó de galinha e urina fervida. Rebenta os furúnculos com um alfinete sujo e depois aplica-lhes uma
pomada feita com lama do rio.
- Valha-me Deus!
- E isto não é nada - resmungou Megan. Começou a andar
para cá e para lá em frente da lareira, com os olhos a chisparem de
indignação. - Para tratar a tinha, usa uma geleia de maçãs podres e
melaço preto. E sabe como é que ela trata as infecções dos olhos?
mastiga folhas de salva até as reduzir a uma papa e cospe-a para os
olhos do doente.
Timothy abanou a cabeça.
- Nem quero pensar no que é que ela andará a dar a Gareth
Prentice. Acha que eu vá lá já e me imponha? Ou quer ser você a
tratar do assunto? - Agora Timothy tinha sempre o cuidado de tratar Megan com toda a consideração.
- Eu trato do assunto - disse Megan
Timothy bebeu o seu chá e agradeceu-lhe.
- Diga-me depois o que se passou. Tenho um interesse especial
no caso, para além das feitiçarias. - Foi até à porta. - Li há algum
tempo um trabalho sobre carências nutricionais persistentes. lembrei-me de umas coisas quando li a história clínica de Gareth.
- O Dr. O'Casey estudou a fundo o caso dele - observou Megan , na defensiva.
Timothy abriu a porta.
- Uma mudança de terapêutica não lhe pode fazer mal, até porque o que temos andado a dar a Gareth não parece ter surtido muito efeito.

Megan não se podia calar. Foi atrás de Timothy até à rua.
- O rapaz já tinha melhorado se tomasse sempre os remédios e
não tivesse caído nas garras de Nesta Mogg.
Timothy concordou com um aceno de cabeça.
- É provável que sim. Mas também é um pouco bruxaria não
experimentarem remédios novos, não acha, Megan? A diferença
entre a nossa medicina e a de Nesta e dos outros da sua laia é que nós
evoluímos. Ou pelo menos devíamos fazê-lo. - Sorriu. - Vemo-nos mais logo no consultório, não é verdade?
Megan entrou em casa de sobrolho franzido. Na sua opinião, o
dr. Morris estava outra vez a intrometer-se num caso, apesar de
confirmar que não era essa a sua intenção. O Dr. O'Casey estudara a
fundo e durante muito tempo para diagnosticar a doença de Gareth
Prentice e receitar uma dieta terapêutica. A própria Megan vigiava
o doente há semanas. Tanto trabalho para o Dr. Morris aparecer e
resolver que agora ia tomar conta do caso. Quando estava mesmo a
pensar que a coisa não ia ficar por ali, ouviu bater à porta.

Megan abriu e viu Timothy Morris na soleira.
- Desculpe - disse o médico -, mas as suas histórias de bruxas fizeram-me esquecer a outra coisa, a outra coisa de que lhe
queria falar.
-- o que é? - perguntou Megan com aspereza.
- Vi duas crianças no consultório ontem à tarde e mais duas esta manhã. - Timothy tirou um papel da algibeira e entregou-o a
Megan. - Estão aqui os nomes e moradas. Gostava que as vigiasse
durante os próximos dois dias. E que examinasse todas as crianças
pequenas das casas que visitar.
- Examiná-las à procura de quê?
- Deus queira que me engane, mas acho que estas crianças estão com tosse convulsa. Podemos estar a braços com uma epidemia.
Megan nem deu pela saída dele. Ficou no meio da sala, a olhar
fixamente para a lareira.
?<Meu Deus??, sibilou.
Ao longo destes anos, tinha-se preparado para enfrentar tudo que
lhe aparecia pela frente em matéria de sofrimento humano. Ou quase tudo. Mas agora sentiu que lhe tremiam as mãos, pois uma parte
enterrada do seu passado ressuscitava com uma clareza cruel e insuportável.

RoSE Clark, sentada numa cadeira de espaldar de braços de
madeira escura muito brilhante, conversava com Gladys Brewster.
Em cima da mesa estava um livro que Megan dera a Rose há um mês
e que ela quase nunca largava.
- Bom, vais ver que não há nada que ter medo - disse Gladys.
- Megan tratou de tudo.
Rose assentiu com um gesto de cabeça. Tinha um vestido novo
azul com uma faixa lilás e uma fita igual no cabelo. Ao fim deste
tempo passado fora de casa do pai, já não tinha olheiras e a pele
perdera a palidez. A senhora que a trouxera a casa dos Brewsters
nessa tarde dissera que Rose tinha gostado de estar no lar de religiosas e que engordara.
- Sabe - acrescentou em tom de confidência, dirigindo-se a
Gladys -, ela falava muito desta casa, de si e do seu irmão. Parecia
que tinha cá estado muito tempo.
Rose só passara cinco dias em casa dos Brewsters; e eles desconheciam totalmente o que ela passara, só sabiam que tinha sofrido
muito. Gladys reagira de uma forma pragmática, encarregando-se
de fazer com que a rapariga comesse bem, apanhasse bastante ar e
tivesse sempre que fazer, para não ter tempo de pensar em coisas
tristes. Para Wyn, a jovem Rose era uma coisa preciosa. Era inteligente e tinha uma elegância de fada; esta combinação de recursos
mentais inaproveitados e de graciosidade física era o que Wyn deiminava o epítome da promessa juvenil. E a pequena passara horas a ouvi-lo contar histórias dos Templários.
No dia em que Rose partira para o Lar de Glamorgan, Wyn tinha
chorado com cara de enterro. Gladys nem tentou consolá-lo, porque
achava sempre que não valia a pena perder energias. Wyn havia de
?esquecer com o tempo; na semana anterior ao saber que Rose ia
voltar, enchera um caixote de livros para lhe dar, alguns da sua
própria colecção e outros comprados de propósito.
Gladys não sabia ao certo para onde é que Rose ia. Só sabia que
[Megan tinha arranjado um sítio para ela ficar, no Norte do País de
Gales. Há uma semana, anunciara que Rose ia viver para uma terra
chamada Drynfor e perguntara a Gladys se não se importava de que
pequena dormisse lá em casa nessa noite até a virem buscar para a
levarem para a sua nova casa.

Wyn voltou de uma reunião da Associação de Ajuda às Viúvas e
órfãos de Pencwm dez minutos antes da hora do chá. Entrou na sala
? de estar com um ar radioso, estendendo os braços a Rose.
- Então, como é que isso vai, minha flor? Estás com óptimo
?aspecto! Têm-te andado a alimentar a bifes com batatas fritas, não?
Rose ficou encantada quando viu Wyn.
- Gostei de lá estar - disse-lhe. - Estava num quarto com
mais quatro raparigas. Fizeram-me prometer que lhes escrevia.
Wyn sentou-se.
- Isso é óptimo, manter o contacto com os amigos. Já te disseram como é que é o sítio para onde vais?
- Pouca coisa - respondeu Rose, franzindo a testa. - Acho
que é muito longe.
- Ouve, querida - disse Gladys lá da cozinha, onde estava a
?fazer o chá. - Nenhum sítio é longe quando se está ao pé de pessoas
que gostam de nós.
Wyn acenou a cabeça, satisfeito pelo jeito que a irmã tinha para
?fazer o comentário certo na ocasião certa.
- Também não te sei dizer muito sobre o sítio para onde vais,
mas Megan conta-nos tudo quando chegar. - Apontou para o caixote de cartão que estava ao lado da cadeira dele. - Isto é para ti.
- Ficou a olhar para ela com um sorriso terno, enquanto Rose se
ajoelhava junto da caixa e examinava os livros. Quando ela levantou novamente os olhos, também estava a sorrir.
- São aquelas coisas todas de que me falou ... - Rose acariciou
os livros com os dedos, mas depois franziu novamente o sobrolh?
- Acha que me deixam levá-los ... para o sítio para onde vou?
- Claro que sim, minha querida. Não estou a ver Megan Robert
a mandar-te para um sítio onde não se possa ter livros.
Rose ainda estava de joelhos a olhar para os livros quando
Megan chegou. Corando novamente de prazer, a pequena mostrou ?
Megan o que Wyn lhe oferecera.
- Isso lembra-me muitas coisas - disse Megan.
Lembrava-Lhe um episódio da sua vida há vinte anos, quando
também ela abrira embrulhos de livros novos que lhe tinham dado
de presente e que lhe haviam alargado os horizontes e revelado um mundo novo.
Durante o chá, levaram Rose a falar da sua vida no lar. Enquanto
a pequena lhes contava as amigas que fizera, Megan pensava como
ela tinha mudado. Era um milagre, mas naturalmente só para
Megan, que vira e falara com Rose quando ela ainda vivia no inferno sufocante que lhe era imposto por Owen Clark. Agora, Rose era
a encarnação da infância feliz e despreocupada.
Depois do chá, sentaram-se à lareira e Megan explicou o que
tinha feito por Rose.
- Sabia que ias gostar do lar - disse a Rose - porque já tinha
tido contactos com eles. Mas precisas de uma educação que te prepare para levares uma vida o mais completa possível. O lar não te
podia proporcionar isso. É um orfanato, um asilo e pouco mais. Sorriu a Rose. - Mereces mais.
- Sem dúvida - disse Wyn. Estava recostado na cadeira, de
braços cruzados, olhando para Rose como um tio orgulhoso!
Esta cena despertou em Megan outra recordação. No Natal quando ela tinha treze anos e ia entrar para o seu primeiro emprego numa
casa, também ela se sentara assim à lareira com a família. E os olho?
de Wyn tinham a mesma expressão dos do seu pai há muitos anos --a
de ternura, mas com uma pontinha de tristeza, um presságio de
perda. E Rose lembrava-lhe a Megan desse tempo, que fazia das
fraquezas forças para enfrentar um novo mundo que não conhecia.

- Para onde é que Rose vai? - perguntou Gladys.
- Vai para onde eu fui quando saí da escola. - Reparou que
Wyn e Gladys se inclinaram para a frente. Megan nunca Lhes falara
da sua infância. Tinha a certeza de que sentiam curiosidade, mas
nunca Lhe fariam perguntas. - É uma casa, uma casa muito bonita?
três quilómetros a sul de Drynfor, a cidade de minas de ardósia onde A casa e a propriedade onde se encontra pertencem a Mrs.
?Mor?an. Fui trabalhar para lá em 1906 como ajudante de cozinha.
- Que nome tão selecto, Pughe-Morgan - resmungou Wyn,
pouco satisfeito. - Vê-se logo que é nome de gente fina.
- E é mesmo - disse Megan. - Mas é também uma das mulheres mais bondosas e inteligentes que eu conheço. Foi ela que fez de
mim o que sou, Wyn. Incitou-me a estudar e ajudou-me sempre em
tudo com entusiasmo. - Wyn fez um ar contrito. - De resto, nunca teria estudado enfermagem se não fosse ela. - Megan olhou
outra vez para Rose. - Concordou em que fosses trabalhar para lá.
- vais ganhar um ordenado. Mas o mais importante é que vais passar
a pertencer à família ... e é uma família formidável.
Nos dez minutos seguintes, Megan fez uma descrição da vida em
casa dos Pughe-Morgans. Falou a Rose da velha governanta, Mrs.
?skett, e do jardineiro-chefe, Griffiths. Descreveu o bonito quarto
onde Rose ia ficar, as tarefas que ia partilhar com a cozinheira, Mrs.
Edgar, e com as outras criadas. As recordações atropelavam-se na
mente de Megan ao descrever simultaneamente o seu passado e o
futuro de Rose. Tinha havido e ia haver muitos dias de trabalho
duro, mas o riso também não faltaria.
- E a maior preciosidade é a própria Mrs. Pughe-Morgan. Vai
dar-te um lar, ensinar-te e ajudar-te a encontrar o teu verdadeiro
lugar no mundo, Rose. E não te deixa seguir por outro caminho que
não seja esse.
Rose, apesar de estar nervosa com a ideia do que seria o seu futuro, como era natural, foi deitar-se com um sentimento de perspectiva agradável.
- Tenho de ir andando - disse Megan a Gladys e a Wyn assim
que a pequena saiu de junto deles. - Amanhã tenho muito que fazer.
Wyn tentou convencê-la a tomar um cálice de vinho do Porto,
mas Megan recusou firmemente o convite, explicando novamente
que no outro dia de manhã um emissário de Mrs. Pughe-Morgan
avia de vir buscar a pequena.
- Vou fazer o possível para aparecer a despedir-me - acrescentou Megan -, mas não prometo nada.
Quando chegaram à porta, Gladys disse:
- É espantoso o que fez pela pequena, Megan. Não há dúvida de
que fez tudo o que podia.
- Ora - disse Megan baixinho -, coitada, ela merece uma vida
boa.
Agradeceu aos Brewsters terem hospedado Rose e afastou-se,
enquanto eles lhe ficavam a dizer adeus do degrau da porta.
Ao descer as ruas escuras e frias que conduziam a sua casa, agradeceu silenciosamente a Gwendolyn Pughe-Morgan, que se prontificara novamente a responsabilizar-se por outra jovem, à sua maneira capaz e eficiente. Se não fosse a qualidade dos seus cuidados,
Megan sabia muito bem que não teria resistido. Fora assaltada durante toda a tarde pelas recordações sombrias, que julgara bem enterradas, de uma época em que quase enlouquecera de desgosto.
Mrs. Pughe-Morgan salvara-a desse turbilhão. E Megan duvidava
muito de que qualquer outra pessoa tivesse sido capaz de o fazer.
Quando chegou à porta de casa, começou a procurar a chave,
suspirando ao pensar no que a esperava no dia seguinte. A avaliar

pelo que vira nesse dia, o Dr. Morns era capaz de ter razão sobre as
tais crianças. Amanhã iria ter a certeza.
E se fosse uma epidemia? Perguntou a si mesma, olhando para a
Lua pálida. E se tivesse de enfrentar isso? Desta vez, Mrs. Pughe-Morgan não estaria a seu lado para lhe apontar o caminho da sanidade mental.

NEs'rA Mogg saiu de Colwen Wood curvada sob o peso do saco
que trazia ao ombro. Apesar do vento frio, estava a suar; estivera a
cavar a terra gelada com os dedos durante mais de uma hora para
desenterrar as raízes que eram os instrumentos da sua arte.
Nesta não era velha, mas não lhe restavam sinais físicos de juventude. A cara curtida pelo tempo era grande e de feições grosseiras, parecendo um homem. Tinha orelhas de abano, quase a cinco
centímetros da cabeça, espreitando por entre as farripas de cabelo
oleoso. Quando andava, o seu corpo pesadão fazia um movimento
oscilante, que era ainda mais agravado pelas pernas tortas, herança
do raquitismo de que sofrera em criança. As pessoas chamavam-lhe
a Velha Nesta há tantos anos que já nem se lembrava quantos. Calculava que devia ter entre trinta e quatro e trinta e sete anos. Mas o
seu nascimento não estava registado em sítio nenhum e, mesmo que
estivesse, o registo não lhe diria nada, porque Nesta não sabia ler.
Baixou-se, pôs o saco no chão e abriu-o, examinando o seu
conteúdo. Era só um punhado de plantas enlameadas, mas sendo Inverno não podia esperar melhor. Levantou-se, endireitou as costas e de?pois embrulhou-se melhor no xaile. Mas antes de pegar novamente no saco que estava no chão, uma voz rasgou o ar.
- Nesta Mogg! Quero falar consigo!
Nesta voltou-se com um ar feroz e viu a enfermeira a encaminhar-se na sua direcção. Semicerrou os olhos, pois detestava o
casaco da farda dela, o distintivo que trazia ao peito e a maneira ele?ante como punha o chapéu. A figura dela encarnava tudo o que
Nesta mais odiava - á curandeira oficial, com a boca cheia de grandes palavras e a cheirar a hospital.
- E em que é que a posso ajudar, Sr.á Enfermeira? - Pronunciou o título de Megan no tom de voz mais desprezível de que era
capaz. - Parece que está aborrecida.
- Que é que tem andado a dar a Gareth Prentice? - perguntou
Megan imperiosamente. - Coisas bem alimentícias, tais como excremento de cotovia e vinagre?
Nesta deixou escapar um rugido.
- Dei-lhe uma papa muito boa, de manjericão e raiz de funcho,
fique sabendo. Melhor do que aquelas porcarias que a senhora Lhe
anda a dar, que só o fazem vomitar.
- Você faz a menor ideia do que se passa com Gareth?
- Sei muito bem o que é que ele tem, não se preocupe. - Nesta
limpou um bocado de cuspo dos lábios. - A senhora é que está às
escuras, não sou eu. Tem-lhe andado é a dar porcarias e à espera de
que a Natureza o ponha bom. Sei muito bem como é que tenta convencer as pessoas de que sabe o que está fazer ...
- Cale essa boca ignorante e ouça!
Nesta agarrou no saco.
- Não sou obrigada a ouvi-la!
Megan, com um olhar de fúria, esticou o braço e atirou o saco ao
chão. O saco caiu de lado e metade do seu conteúdo espalhou-se no
chão. Nesta recuou um passo, surpreendida.
- Devia mandá-la prender por tentativa de envenenamento -- gritou Megan. - Já viu como é que está Gareth?

- Está a melhorar. - Nesta apanhava do chão as raízes enlameadas, metendo-as outra vez dentro do saco. - O meu remédio
está a fazer-lhe bem.
- Está a melhorar? - Megan deitou um olhar irado à figura
curvada de Nesta. - Está tão fraco que já nem é capaz de se levantar da cama. Isso é que é estar melhor?
- As pessoas da sua laia não percebem nada das minhas artes de
curar. - Nesta pôs as mãos nas ancas. Arreganhava os lábios, mostrando os dentes manchados. - Vem para aqui fazer-se de importante, como se soubesse tudo, só porque anda de farda e sabe dizer
coisas bonitas e tem um distintivo a dizer que aprendeu a curar as
pessoas nos livros. Mas a verdade é que não sabe nada.
- E você, onde é que aprendeu as suas artes? - perguntou
Megan.
- São remédios que a minha família conhece há muitas gerações! A minha mãe ensinou-me os segredos, como a mãe dela lhe
ensinou a ela!
- Segredos? - Megan perdeu completamente a cabeça. -- Você, seu monte de trapos sujos e fedorentos, tem a lata de dizer que
as suas bruxarias são segredos? - Chegou muito perto de Nesta, tão
perto que sentiu o cheiro da mulher, e depois espetou um dedo
ameaçador. - Se voltar a dar algum dos seus venenos nojentos a um
dos meus doentes, enfio-lho pela boca abaixo e fico a vê-la morrer
envenenada. Está a perceber?
- Vou onde me chamarem - disse Nesta em voz mal-humorada. - Há quem não queira que a senhora meta o nariz onde não é
chamada. A maior parte das pessoas em Pencwm gostam mais que
seja eu a tratá-las do que a senhora se meta. - Pegou no saco. - As
pessoas têm o direito de terem o que querem.
- Só depois de terem aprendido o que é ou não realmente bom
para elas. - Megan abanou outra vez o dedo. - Não se esqueça do
que eu lhe disse.
- E a senhora também não se esqueça de uma coisa - resmungou Nesta ameaçadoramente ao afastar-se - É que há muita gente
que já se arrependeu de se ter metido comigo.
- Só chegar ao pé de si já é perigoso - murmurou Megan, que
não resistiu a coçar-se quando Nesta se afastou.

o médico, sentado à secretária, dirigiu a luz do candeeiro para as
fichas clínicas espalhadas à sua frente. Já passava das 9 da noite e o
vento assobiava por detrás das janelas do consultório. Ouvia-se um
bater surdo nas janelas, indicando que devia ter começado a nevar.
??Despache-se, Megan??, pensou Tim. Estava dez minutos atrasada. O cansaço estava a enevoar-lhe o espírito. Passara duas horas a
preencher fichas e de repente sentiu-se inútil. Escrever nas fichas
era tudo o que podia fazer na maior parte daqueles casos. Não podia
fazer mais nada de útil além de aguardar sem perder a esperança.
Ouviu Megan entrar na sala de espera e chamou-a. Os flocos que
brilhavam nos ombros do casaco dela confirmaram as suas suspeitas
em relação à neve.
Megan desabotoou o casaco e sacudiu-o, fazendo voar gotinhas
de água que brilhavam como fagulhas.
- Se isto continuar assim, não vou poder andar de bicicleta. -- Sentou-se em frente de Timothy. - Fui outra vez a casa dos Thomas
ver o bebé - disse. - Tem garrotilho, não há dúvida nenhuma. Mas
os outros ... - Olhou para a secretária de sobrolho franzido.
- Tenho aqui treze - disse Timothy, apontando as fichas. -- Todos confirmados. Tosse convulsa.
Trocaram olhares desesperados.

- Nove estão no estado catarral - continuou Timothy, como se
o facto de falar dos casos lhe desse alguma ideia para os tratar. - Os
outros quatro são espasmódicos. Penso que há pelo menos três que
estão em perigo iminente. Crianças mal alimentadas que vivem em
casas sem condições ...
- Tenho tintura de ópio canforada em quantidade suficiente para
o que for preciso - disse Megan.
- Não serve assim de muito ... - observou Timothy. - No
entanto, temos de deitar mão a tudo. É melhor do que não fazer
nada.
Levaram quinze minutos a combinar um horário de visitas.
Megan iria todos os dias a dois terços das casas onde havia casos de
tosse convulsa, enquanto Timothy visitaria duas vezes por dia o
outro terço. A única coisa que podiam fazer nessas visitas era verificar a evolução da infecção e tentar sossegar os pais. As horas das
visitas seriam escalonadas de maneira que cada família tivesse uma
visita tardia, pois à noite a doença piorava. Além disso, também era
mais provável as urgências surgirem de noite.
Depois de terem combinado os respectivos horários, Timothy
recostou-se na cadeira e bocejou. Megan achou que ele tinha aspecto de não se deitar há dias. Mais uma prova de que não estava à altura das exigências da vida de um médico de uma comunidade operária pobre, pensou ela.
Quando Megan se levantou para sair, Timothy levantou-se também e foi à frente dela para lhe abrir a porta.
- Se não me for deitar depressa - disse -, acho que adormeço
aqui mesmo no tapete. Isto aqui parece que só há tempo para trabalhar e dormir.
- É assim a vida no resto do Mundo. - Depois de ter falado,
Megan achou que o seu tom de voz fora demasiado desagradável,
quando não era essa a sua intenção. Atribuiu o facto ao seu próprio
cansaço, apesar de saber que não era bem verdade.
Quando chegou a casa, brincou cinco minutos com Scratch e
depois foi preparar a chávena de cacau da noite. Enquanto esperava
que o leite fervesse, relembrou os acontecimentos do dia, tentando
manter o espírito ocupado.
Afinal, sempre tinha arranjado tempo para se ir despedir de
Rose. Wyn tinha um ar choroso. Gladys mal conseguira falar, com
um nó na garganta. Mas Megan quase sentiu inveja quando pensou
que Rose ia para casa de Mrs. Pughe-Morgan. Recordou a sensação
que tivera quando vira a casa pela primeira vez.
- Parece um palácio - murmurara a sua mãe, agarrando-lhe
com força na mão, enquanto esperavam as duas no vestíbulo para
falar com a senhora, olhando para as meias-cómodas de mógno, de
pernas com barriga, para o opulento tapete indiano e para o enorme
gongo de latão. Megan ainda se lembrava do grande jarrão de porcelana, encarnado e azul, da mesma altura dos seus treze anos; à
medida que os anos passavam, constatara que o jarrão parecia diminuir de tamanho.
Megan encontrara na casa dos Pughe-Morgans um ambiente
acolhedor e educativo. Tinha bons amigos e uma patroa que a tratava como filha. Mas as recordações agradáveis desse lugar tão
amado foram inevitavelmente obscurecidas por lembranças mais
sombrias. Não tinham sido só rosas, também houvera tempos terríveis. Terríveis ...
Megan pegou no fervedor antes de o leite ir por fora e deitou-o na
caneca. As recordações ainda lá estavam, impunham-se impiedosamente, era impossível afastá-las distraindo-se com outras coisas.
Pousou novamente o fervedor e olhou para a parede sem ver nada.
A minha pobre pequenina ...??

De repente, com uma nitidez deslumbrante, viu a carinha de
Bronwen, a sorrir, a rir, encostada à dela, ensonada - um caleidoscópio dos seus primeiros anos de vida. Bronwen, a sua querida filha,
que ela e Alun tinham concebido com tanto amor antes de o ter perdido na guerra. Megan tinha então vinte e três anos. Mrs. Pughe-Morgan promovera-a ao cargo de governanta e dava-lhe tempo
para tratar de Bronwen. A criança foi crescendo e toda a gente
naquela casa tomava conta dela à vez. Bronwen ainda não tinha dois anos e já sabia o nome de todos. Era a filha de todos, um anjo de
cabelo escuro e olhos vivos que nunca parava quieto.
Mas depois as imagens tornaram-se insuportáveis. Megan fechou os olhos com força, esforçando-se por as expulsar, por as mandar novamente para onde as relegara todos esses anos. Mas a
imagem permaneceu - Bronwen com a cara roxa, a sufocar com
tosse convulsa, com uma respiração estertorosa, que soava como
papel a ser amarrotado. Megan experimentou novamente a mesma
sensação de impotência, como quando se esforçava por acalmar o
medo e o sofrimento de Bronwen. As noites pareciam infindáveis,
as horas sucediam-se interminavelmente, sempre a ouvir o ruído
ofegante daqueles pulmõezinhos que se esforçavam por respirar
com inspirações sibilantes. Depois, foram as convulsões, a criança
de lábios roxos que se agitava freneticamente, enquanto Megan,
desesperada, tentava desimpedir-lhe a garganta ...
Finalmente, surgiu irreprimivelmente a pior imagem - Bronwen deitada de costas, com as mãozinhas imóveis e uma expressão
serena. A morte dera-lhe a paz e incrustara o tormento no coração da
sua jovem mãe.
Mrs. Pughe-Morgan conseguiu conduzi-la para fora da escuridão a tempo. Não fora fácil, porque Megan perdera completamente
a vontade de viver. Dissera com uma voz fria e implacável:
- Tudo o que aprendi na vida foi que ela só dá sofrimento. Dei
todo o meu amor a Alun e perdi-o. Pensei que nunca mais podia
sofrer tanto como nessa altura, mas acabei por recuperar a esperança no futuro e dei todo o meu amor à minha pequenina, à minha
Bronwen. E agora nada me resta.
Quando viu que a compaixão não servia de nada, Mrs. Pughe-Morgan foi severa com ela.
- Megan, já te vejo há tempo demais a andar aí pela casa como
um fantasma. Toda a gente te tentou ajudar, mas tu não deixaste. Por
isso, resolvi obrigar-te a regressar à realidade. Vou mandar-te para
fora daqui. Em tempos pensaste em estudar enfermagem. É o que
vais fazer agora. Vais sair para o mundo e aprender uma profissão.
Megan descobrira assim a sua vocação, mas não esquecera as
suas recordações. Estavam sempre à espreita e de vez em quando
ressurgiam em alturas terríveis como esta. Escondeu a cara nas
mãos e as lágrimas correram-lhe por entre os dedos. Ficava sempre
horrorizada quando via uma criança com tosse convulsa. Até à data,
tinha sempre conseguido aguentar-se, reprimindo as suas emoções
com um profissionalismo feroz. Mas até agora nunca se tinha visto
a braços com uma epidemia.

Cinco

À ?DIDA que a neve tinha mais altura, o caminho que levava à porta
do consultório do Dr. Morris começou a ficar coberto de gelo, pois
a neve era compactada pelos passos de um número crescente de
doentes. Em quatro dias, o número de consultas quase duplicou. E o
número de domicílios triplicou. Timothy levantava-se às 7 horas e

nunca se deitava antes da 1 hora da manhã. Quando os montes dos
arredores de Pencwm estavam já todos brancos, Miss Williams, a
presidente da organização de beneficência que pagava a Megan,
resolveu ir falar com o Dr. Morris acerca de uma questão que a estava a preocupar.
Estavam na sala de estar de Miss Williams, a tomar chá. Timothy não podia perder muito tempo, mas sabia que, se ela queria falar
de alguma coisa, o assunto era de certeza importante.
- É por causa de Megan Roberts. - Miss Williams levantou os
olhos para ele, lá da sua grande poltrona de orelhas. Afastou uma
pequena madeixa de cabelo claro da cara, sem saber bem como é
que havia de abordar o assunto. - É muito aborrecido ... estar assim
a falar dela pelas costas.
- Que é que a preocupa? - perguntou Timothy. - Tenho a
certeza de que Megan não se aborrecia com o seu interesse. Tem
muita consideração por si.
- É muito boa rapariga. - Miss Williams pegou na sua chávena de chá, que estava pousada numa mesinha ao lado da poltrona. -- O que me aborrece é que posso estar enganada. - Bebeu um golinho de chá. - Mas não, acho que não estou enganada, Sr. Doutor.
Vi três ou quatro vezes Megan esta semana. - Concentrou-se durante uns instantes. - Há qualquer coisa que está a correr mal.
- Mas de que género? Acha que ela está doente?
- Não, não está doente. São os modos dela. Falou-me muito
bem, é claro. Mas era como se estivesse a representar, e mal. Fiquei
com a impressão de que ela estava sob uma tensão enorme. - Miss
Williams fez um sorrisinho, como se estivesse a desculpar-se. -- Tinha um ar tão tenso, tão distante. Era como se a personalidade
dela estivesse diminuída. Como um daqueles doentes que parece
que perdem faculdades ...
Timothy percebia muito bem o que ela queria dizer. Chamava a
esse fenómeno a destruição espiritual. Os doentes crónicos e incuráveis muitas vezes davam a impressão de que perdiam progressivamente partes da sua personalidade ... Timothy sabia que Megan
não estava doente, mas a destruição espiritual podia ser também
sintoma de uma depressão iminente.
Miss Williams bebeu outro golinho de chá e pôs a chávena de
lado.
- Achei que o devia alertar, Sr. Doutor, uma vez que está em
melhor posição do que eu para observar Megan. Se ela por qualquer
razão está a sofrer, temos de fazer qualquer coisa, não acha?
- Claro. - Timothy pousou também a sua chávena. - Ainda
bem que falou comigo, Miss Williams. - Levantou-se para sair.
Quando já estavam à porta, Miss Williams disse:
- A minha opinião é que não se deve falar directamente com
Megan.
Timothy fez-lhe um sorriso.
- Não se preocupe. Vou ser discreto. Além de que, se eu lhe
dissesse alguma coisa, ela saltava-me em cima.
Quando descia o caminho que levava à rua, Timothy pensou que
Miss Williams não se tinha limitado a sorrir quando ouvira a sua
última observação, tinha também corado. Megan devia ter-lhe dito
exactamente o que pensava do intruso de Londres.
Quando chegou novamente ao consultório, começou a fazer os
preparativos para a invasão da tarde. Costumava verificar se os instrumentos estavam esterilizados e se as fichas dos doentes da manhã
tinham sido actualizadas. Em seguida, geralmente fazia algumas
visitas atrasadas e ia até casa comer uma refeição ligeira preparada

pela empregada do Dr. O'Casey. Depois, voltava para o consultório
e trabalhava até depois da meia-noite. Mas hoje resolvera alterar a
rotina num pequeno pormenor. Sentou-se, adiando para mais tarde
a actualização das fichas, e gastou esse tempo a meditar.
Tanto quanto podia avaliar, as pessoas em Pencwm começavam
a aceitá-lo. Não era nem nunca seria o Dr. O'Casey. Mas, mesmo
assim, Timothy achava que estava a ser comparado bastante favoravelmente com o médico de Pencwm. A única pessoa que continuava
a desconfiar dele era Megan Roberts. Considerava que não era o
homem indicado para aquele trabalho e tinha muitas razões para o
pensar - ou pelo menos estava convencida disso.
Que outra coisa a poderia perturbar? Timothy estava intrigado.
Megan vivia sozinha e não havia nenhum homem na sua vida - ele
tinha a certeza. Portanto, não havia nenhum problema doméstico
nem amoroso. Também não tinha problemas de dinheiro; só tinha
de se sustentar a si própria e era muitíssimo poupada, segundo o
Dr. O'Casey.
??Então, que será??? Timothy recostou-se na cadeira e pôs as
mãos atrás da cabeça. Se Megan estava a sofrer - e não punha em
dúvida o diagnóstico de Miss Williams -, a causa desse sofrimento
ou radicava num factor da sua vida que ele desconhecia totalmente,
ou então, e isto era o mais provável, na relação profissional de
ambos. Tentara sempre ser diplomático nos contactos, mas isso em
nada alterara o facto de ela não gostar dele. À medida que o tempo
passava, esse ressentimento crescera e agora estava a perturbar-lhe
o espírito. Timothy achava que esta apreciação da situação devia ser
a mais correcta. Mas que é que se podia fazer?
Observar, resolveu finalmente. Limitar-se a observar. Quando
descobrisse quais eram os aspectos da sua relação com Megan que
mais a perturbavam, talvez conseguisse encontrar remédio.
Comparada com a situação dele, a de Megan era normal, pensou.
Talvez se soubesse mais coisas a respeito dele o seu ressentimento
diminuísse. Mas Timothy resolvera que ninguém devia saber mais
do que o necessário. Conseguira eliminar a sua autocompaixão;
seria loucura atrair deliberadamente a dos outros.

GAretH Prentice estava recostado numa cadeira ao pé da lareira
e tapado da cabeça aos pés por um cobertor castanho que ocultava a
sua magreza. O cabelo, espigado devido à falta de vitaminas, estava espetado em tufos, o que lhe daria um aspecto cómico se a sua expressão não fosse tão sombria. A mãe agitava-se junto à cadeira
dele, olhando para Megan, que tirava da maleta dois frascos de xarope castanho e uma tablete de comprimidos.
- O Dr. Morris mandou vir estas coisas de Londres de propósito
para ti - disse Megan a Gareth. - São remédios novos e foram
difíceis de arranjar. Vais tomar isto até à última gota. - Colocou os
frascos em cima da mesa. Voltando-se para Mrs. Prentice, disse: -- Deita-se uma colher de sopa de cada frasco num copo pequeno e ele
tem de tomar dois comprimidos ao mesmo tempo. Está a perceber?
A mulher fez sinal que sim e Megan aproximou-se de Gareth.
- Agora, ouve bem o que eu vou dizer, Gareth. Dá muita atenção. O que tu fizeste ou obrigaste a tua mãe a fazer foi uma grande asneira. O aspecto de Nesta Mogg devia ser o suficiente para assustar qualquer pessoa com dois dedos de testa. Ela é uma porca e os
remédios dela também são uma porcaria.
- Se tivesse continuado a tomá-los, já estava melhor. - Gareth
fez a sua cara mais feia a Megan, semicerrando os olhos e fechando
a boca com força. - Nesta sabe muito bem o que faz.

- Ah, pois sabe. - Megan falou também com os dentes cerrados. - Sabe muito bem enganar os parvos como tu com os venenos
e o palavreado dela. E escolhe muito bem os alvos, Gareth. São
sempre os parvos. - Ultimamente, era incapaz de se controlar. Há
mais de uma semana que Megan dizia sempre às pessoas exactamente aquilo que pensava. E agora, olhando para a expressão
ofendida de Gareth, não sentia o menor remorso. - Não és capaz de
meter isto na tua cabeça obtusa? Nada do que ela faz dá resultado.
Gareth acenou na direcção da mesa.
- E essas porcarias, dão resultado?
- Não são porcarias! São remédios bem estudados que servem
para te fornecer as substâncias de que necessitas para ajudar o teu
organismo a curar-se.
Megan olhava para Gareth, furiosa, e ao mesmo tempo lembrava-se de como o Dr. Morris lhe tinha mais uma vez cortado as vasas.
Limitara-se a pôr os remédios à frente dela e a explicar-lhe os seus
efeitos. Sem sombra de intromissão. Sem conselhos condescendentes. Mas Megan ficara ainda mais furiosa com ele por causa disso.
Gareth mexia os lábios, preparando uma recusa da ajuda que lhe
estava a ser oferecida.
- Sei muito bem o que é melhor para mim. Se certas pessoas
deixassem de se meter onde não são chamadas ...
- Muito bem - gritou Megan. - Vou levar isto tudo outra vez,
se é o que queres! Chama Nesta Mogg e toma uns frascos do seu
tónico de asas de morcego. Ao fim e ao cabo, sabes muito bem o que
é melhor para ti! Todos vocês aqui em Pencwm sabem muito bem o
que lhes convém, por isso é que estão todos tão gordos, com tão boas
cores e tão cheios de saúde! - Atirou os frascos para dentro da mala
e fechou-a ruidosamente.
Estava outra vez em Cardower Road quase sem ter dado por isso,
arrastada pela cólera, e atirou com a maleta para o cesto da bicicleta. Quando pegou no guiador, as mãos tremiam-lhe. Percebeu
que não era capaz de andar de bicicleta, por isso desencostou-a da
parede e começou a empurrá-la.
Para que é que se havia de ralar?, perguntou a si mesma. Para que
é que havia de desperdiçar a sua experiência, adquirida a tanto
custo, com ,uma comunidade de atrasados mentais que preferiam
acreditar numa bruxa a tratar-se com um médico? Para que é que
havia de perder o seu tempo com estes idiotas, quando havia cidades
onde as suas capacidades não só seriam necessárias como também
apreciadas? Que é que andava a fazer à sua vida, com os diabos?
Parou, olhando para as nuvens escuras que se acumulavam no
céu e sentindo a mudança do vento, que traria o degelo. Ultimamente, tudo parecia correr-lhe mal. Há muito tempo que não se sentia
tão infeliz. Já estava arrependida de ter perdido a cabeça de um
modo tão pouco profissional em casa dos Prentices. Percebeu que
estava a perder o sentido das proporções nos seus contactos com as
pessoas.
??Para a alma inquieta tudo é difícil; não há doçura que entre ou
saia dela.?? Fora o pai que lhe chamara a atenção para esta frase,
extraída de uma pequena homilia de The Rayburn Encyclopedia of
Life, um grande livro que ele costumava ter sempre ao lado da
sua cadeira. Nunca esquecera essa frase em todos estes anos, entre
outras pérolas de sabedoria que Owen Roberts lhe legara. Esta aplicava-se perfeitamente ao seu estado actual. Se ela tinha alma, estava certamente o mais perturbada possível, em vias de desintegração.
O pai, que morrera de cancro há muitos anos, era um pobre trabalhador das minas de ardósia, mas fora um homem de grande força

interior. Megan estava convencida de que tinha herdado essa força.
Só gostava de saber o que era feito dela ultimamente, do seu talento
para desviar a lâmina cortante da vida. Quando era pequena, tinha
aprendido de cor uma outra citação do grande livro do pai:

A vida é um dom. Estima-a sempre e aprende a dominar os seus
desafios. O domínio da vida é o segredo para uma vida cheia, em
que todos os caminhos autênticos serão conhecidos e nenhuma
porta estará fechada.

Era essa a filosofia por que se guiava desde a infância. Mas ultimamente não dominava nada, nem mesmo o seu temperamento.
Sabia que estava a proceder mal, mas não conseguia mudar. Quanto
mais era obrigada a enfrentar aquelas pobres crianças com os pulmões inflamados e os corpos exaustos, mais o passado a perseguia e paralisava a sua capacidade para fazer face aos problemas mais
simples da vida quotidiana.
??Quem me dera que estivesse agora aqui comigo, pai.?? Voltou a
bicicleta e recomeçou a subir a Cardower Road. Reparou que ainda
tinha as mãos a tremer. ??O domínio da vida??, murmurou, pensando
em como essa frase soava oca. O domínio da vida significava isso
mesmo, o domínio da própria existência e das influências que mais
profundamente a afectavam. Mas como é que podia recuperar essa
capacidade sem sucumbir ao peso de um sofrimento que se renovava uma dúzia de vezes por dia?


Seis

PAUL Wood tinha cinco anos. Vivia com os pais e dois irmãos numa
casa de três divisões em Logan Road, num pequeno aglomerado
disperso de casinhas de mineiros situado à sombra de uma mina de
carvão a norte de Pencwm. Paul já estava doente há dois dias quando chamaram o médico. Timothy Morris foi encontrar um rapazinho
magro e louro deitado numa cama improvisada e tapado com dois
cobertores. O rapaz olhou com desconfiança para Timothy; a sua
garganta emitia um ruído sibilante ao esforçar-se para respirar.
- Achámos que ele estava só constipado e com febre - informou Mrs. Wood. - Mas esta manhã doía-lhe muito a garganta.
Timothy contou as pulsações da criança e depois pôs-lhe a mão
na testa. Paul estava muito quente e tremia.
- Ele consegue falar?
- Consegue, mas faz-lhe doer.
- Vamos ver isso. - Timothy sentou-se no banco que estava ao
lado da cama e abriu a mala. - Não te vou magoar, Paul. - Amparou a cabeça do pequeno e fez-Lhe uma leve pressão no queixo. -- Tenta abrir a boca para eu ver. O mais que puderes. - Quando os
lábios secos se afastaram, introduziu na boca da criança uma espátula para baixar a língua e espreitou para a garganta inchada. As
membranas para lá das amígdalas estavam congestionadas; tinham
uma cor de carne crua. Em volta da úvula acumulavam-se secreções
espessas e no início da língua havia uma tumefacção cor de cereja.
- Pronto, Paul, podes fechar a boca.
A criança engoliu em seco quando o médico lhe tirou a espátula
da boca. Mrs. Wood aproximou-se.
- São as amígdalas, Sr. Doutor?
- Não, não são as amígdalas.
Timothy estava ainda a meditar no que vira. Achava que Paul

podia ter uma de três doenças. Os sintomas pareciam-se com os da
difteria, do crupe ou de uma infecção perigosa chamada epiglotite
aguda. Não devia ser difteria; o aspecto dos tecidos da garganta não
- era bem igual. Timothy preferia que fosse crupe, mas a tumefacção
cor de cereja não era característica. Olhou novamente para a criança
e quase sentiu que acertara no diagnóstico. O olhar ansioso, a febre,
a respiração ofegante - todos esses sintomas juntamente com o que
se via na garganta, não podia haver dúvidas. Timothy levantou-se.
- Acho que temos de o levar para o hospital.
Mrs. Wood ficou logo assustada.
- Que é que ele tem? - Inclinou-se sobre a cama e fez uma
festa na cara da criança.
- Tem uma infecção da epiglote - disse Timothy, apressando -se a explicar antes que a palavra complicada apavorasse ainda mais
a mulher. - É uma cartilagem elástica que há atrás da língua que
não deixa a comida passar para as cordas vocais quando se engole.
A de Paul está muito inflamada. Precisa de tratamentos que só podem ser feitos no hospital. - Timothy pegou na maleta. - Vou
telefonar para lá a combinar tudo. Não me demoro nada.
Timothy saiu e entrou no automóvel. Quando já ia arrancar, viu
Megan a aproximar-se de bicicleta. Travou e saiu do carro, fazendo-Lhe sinal para parar. Quando ela parou, contou-lhe o caso da
criança que acabara de ver.
- Estou convencido de que é epiglotite. Vou telefonar para o
Hospital de Llengwyn. - Sabiam ambos que a doença de Paul podia ser fatal de um momento para o outro. Se o inchaço aumentasse,
as vias respiratórias seriam obstruídas e era necessária uma intervenção cirúrgica para salvar a vida da criança.
- Fique aqui com o pequeno enquanto eu vou telefonar, está
bem, Megan?
Megan assentiu com um sinal de cabeça e atravessou a rua em
direcção à casa dos Woods, empurrando a bicicleta sem dizer palavra. Quando Tim arrancou, já estava a bater à porta, apresentando-se.
- Ainda nunca a vim visitar, pois não? - perguntou a Mrs.
Wood, que a levou até ao quarto onde estava o pequeno Paul.
-Não - respondeu Mrs. Wood distraidamente. Suspirou e abanou a cabeça na direcção de Paul, que dormitava. - Que é que o pai
vai dizer quando souber disto.
Megan percebeu que a mulher se estava a autocriticar.
- Não se podia fazer nada - disse. - Não se pode adivinhar
uma coisa destas.
- Pois não - concordou Mrs. Wood, pouco convencida. - Se
calhar, devia ter tido mais cuidado com ele, pôr-lhe roupa mais
quente quando ele saía à rua ...
Outra mãe a culpabilizar-se, pensou Megan. Ao fim e ao cabo,
não podia deixar de ser assim. Afinal, as mulheres eram responsáveis pelo trabalho de casa e pelas crianças. Megan já ouvira alguns homens ralharem com as mulheres por não terem sabido proteger os filhos de uma infecção ou de um acidente. Era lancinante
ver as mães das crianças com tosse convulsa exaustas de ansiedade
e cansaço, e muitas vezes também devido ao peso de culpa inconfessada.
Megan chamou-se a si mesma à razão. Estava a pensar demais
nessas coisas, a dedicar-se demais à introspecção. A verdade é que
começava a estar farta de si própria. Há semanas que não tinha um
único pensamento alegre ou optimista.
- Ele vai ficar bom?
- Vai ficar em muito boas mãos - respondeu Megan.
Era uma evasiva; uma outra mudança que houvera nela, pensou,

era que se tornara incapaz de tranquilizar as pessoas convincentemente quando ela tinha dúvidas. E o caso do pequeno Paul era muitíssimo duvidoso. Que bom que era se estivesse aqui o velho médico, em vez do seu novo substituto espertalhão. Ela aguentar-se-ia
melhor; tinha a certeza disso.
- Sr.á Enfermeira ... - A voz de Mrs. Wood estava cheia de inquietação. Em pé, mesmo ao lado da cama, estava debruçada sobre
a criança. - A respiração dele está diferente.
Megan empurrou-a e destapou os ombros de Paul. Ele tinha os
olhos muito abertos, com uma expressão suplicante, enquanto o seu
peito subia e descia. Megan apercebeu-se repentinamente de que
não se ouvia o ruído da respiração.
- Meu Deus - implorou Mrs. Wood a chorar. - Faça qualquer
coisa!
O raciocínio de Megan estava adormecido. As vias respiratórias
do rapaz estavam obstruídas e havia uma voz dentro de Megan que
?gritava: ??Isto é uma emergência??, mas ela estava paralisada.
- Por amor de Deus, Sr.á Enfermeira - gritou Mrs. Wood. Os
outros dois filhos vieram a correr da sala de estar com uma cara
alarmada. - Sr.á Enfermeira! Faça qualquer coisa!
Mas a cara da criança impedia-a de agir. Tinha os lábios arreganhados e começava a revirar os olhos. Tal e qual como Bronwen
devia ter estado antes de morrer sozinha, num momento em que a
mãe, exausta adormecera a menos de um metro dela ...
- Saia daí! - Era uma voz de homem. Megan sentiu que alguém a empurrava. O Dr. Morris olhou para o pequeno e depois atirou a maleta para cima da cama e abriu-a com um puxão. - Ponha -lhe uma almofada por baixo do pescoço e dos ombros! - ordenou, olhando ferozmente para Megan.
Mas ela continuava a não ser capaz de se mexer. Não conseguia
despregar os olhos da boca da criança, que começava a ficar roxa. O
pequeno estava a morrer. Ia morrer tal e qual como Bronwen.
Megan sentiu um gemido crescer-lhe na garganta, ecoando o som
que vinha de Mrs. Wood, que abraçava freneticamente os outros
dois filhos.
- Sr.á Enfermeira! - Timothy gritou-lhe a palavra na cara, despertando-a da letargia.
Ela viu as suas mãos dobrarem a almofada e entalarem-na por
baixo dos ombros frágeis da criança quase sem saber o que fazia.
Agora, o roxo expandira-se para a cara e orelhas.
- Agora, segure-lhe a cabeça bem direita com força! - Timothy
? ? estava a abrir a bolsa dos instrumentos de traqueotomia em cima do
cobertor, de onde tirou um bisturi. - Completamente imóvel!
Megan relembrou involuntariamente as regras do manual, obedecendo ao médico como se tudo aquilo se estivesse a passar com
outra pessoa. Tem de se manter a traqueia completamente imóvel na
linha mediana, sem o menor desvio lateral ..
- Valha-me Deus! - gritou Mrs. Wood ?quando Timothy colocou a lâmina do bisturi sobre a garganta de Paul. - Não o corte!
Timothy abanou a cabeça em direcção à porta.
- Lá para fora! Todos! - Atirou com um molho de compressas
para junto da mão de Megan. - Tenha-as a jeito - ordenou.
Ao mesmo tempo que Megan segurava na cabeça da criança,
Timothy baixou os cotovelos, entalando os braços de Paul. Colocando o bisturi em posição sobre a cartilagem da traqueia, imobilizou-se por um momento, para firmar a mão, e depois fez um corte
rápido de cima para baixo.
Quando o sangue começou a correr abundantemente, Megan
apertou com mais força a cabeça do pequeno, continuando a recitar

silenciosamente as instruções do manual. Os anéis da traqueia devem ficar à vista. Injectam-se umas gotas de cocaína entre dois
anéis para evitar a tosse violenta que se verifica quando a traqueia
é aberta ... Continuava a sentir-se como se estivesse muito longe
- dali, fora de si mesma, a observar os seus próprios movimentos
mecânicos, segurando na cabeça com uma das mãos e aplicando
uma compressa com a outra para Timothy poder injectar a cocaína.
- Agora. Mantenha-o totalmente imóvel ...
Timothy, arfando de concentração, colocou o bisturi em posição, pronto para fazer a segunda incisão. O bisturi entrou na carne e
foi mantido nessa posição até à inserção de um pequeno dilatador de
osso. Paul já estava a respirar pela incisão, com as faces a ficarem
novamente rosadas. Timothy tirou de um invólucro de celofane um
pedaço de tubo de borracha esterilizado e introduziu-o no corte feito na cartilagem. Em seguida, fixou o tubo com adesivo e chamou
Mrs. Wood. Quando ela entrou, com os olhos vermelhos de chorar,
ele contou-lhe o que tinha acontecido.
- A garganta do Paul ficou tapada. Tive de fazer uma abertura
mais abaixo para ele poder respirar. Agora vou levá-lo para o hospital. Passo por cá depois a dizer-lhe quando é que o pode ir ver.
Ela acenou a cabeça sem dizer nada, olhando fixamente para o
filho. Estava meio inconsciente, mas já a voltar a si, à medida que o
teor de oxigénio no sangue aumentava.
- Pronto, enfermeira - disse Timothy, lançando a Megan um
olhar perscrutador. - Vamos embrulhá-lo bem para não apanhar
frio na viagem. - Ao aproximar-se dela para guardar os instrumentos, murmurou: - Já está melhor agora?
- Sim - respondeu Megan -, já estou bem.
Nunca tivera uma sensação tão estranha em toda a sua vida. A
angústia paralisante que a invadira quando vira o rapaz a sufocar
desaparecera completamente. Mas agora mergulhara numa apatia
igualmente intensa, era como se estivesse envolvida por um nevoeiro gelado, movimentando-se e agindo sem sentir sequer que estava
viva.

No x?Gx?SSo de Llengwyn, Timothy parou o automóvel numa
elevação da estrada de onde se via um vale salpicado de neve.
- Quer esticar as pernas? - perguntou a Megan.
A rapariga estava rigidamente sentada a seu lado, a olhar para a
frente, na mesma posição desde que saíra do hospital.
- Pode ser - respondeu.
Saíram do automóvel e dirigiram-se à berma coberta de erva.
Timothy observou o vale e durante um minuto não disse nada. Depois, voltou-se e olhou para Megan. Ela contemplava as colinas e os
vales ondulantes com o sobrolho ligeiramente franzido, como se
fossem um puzzle, mas pouco interessante.
- Não quer contar-me o que tem?
- O quê? - Megan deitou-lhe uma olhadela rápida, mas depois
desviou os olhos. Parecia incapaz de o olhar de frente.
- Teve um comportamento muito estranho hoje. De resto, não
foi só hoje, já dura há umas semanas. Durante uns tempos, pensei
que era por minha causa, mas agora acho que não. Está doente?
- Não tenho nada, Sr. Doutor.
- Isso é que tem. Basta olhar para si agora, parece uma sonâmbula.
Megan voltou-se para ele.
- Se tiver um problema pessoal, guardo-o para mim e resolvo-o sozinha.
- Não é assim tão simples. - Timothy passou as pontas dos dedos enregelados pelo cabelo e olhou para o vale. - Vê-se que anda

tensa, é cada vez mais evidente. Há semanas que está à beira de um
esgotamento. Agora, parece-me que já está mesmo com um esgotamento.
- Não sabia que também era psiquiatra - ripostou Megan asperamente.
- As perturbações funcionais não são do domínio exclusivo da
psiquiatria. Houve alguma coisa que a pôs nesse estado, Megan, e
não pode resolver o problema sozinha, como parece que pensa.
Megan abriu muito os olhos.
- Não se meta na minha vida.
Timothy estava a começar a tremer de frio, mas não se mexeu,
olhando fixamente para o vale como se quisesse decorar todos os
pormenores da paisagem.
- Tenho de me meter. O seu estado de espírito actual está a afectar o seu trabalho. E muito.
- Está a dizer que não faço o meu trabalho como deve ser?
- É isso mesmo que Lhe estou a dizer - respondeu pacientemente Timothy. - Há já algum tempo que anda transtornada e o seu
trabalho ressente-se. - Voltou-se e olhou para Megan, aproximando-se dela. - E hoje o nível do seu desempenho profissional foi tão
insatisfatórió que não estou disposto a que isto continue assim.
A mudança de Megan foi repentina. Passou da apatia rígida em
que se encontrava no minuto anterior a um estado de agitação ofendida.
- Anda a ver se corre comigo do meu emprego desde que chegou a Pencwm! Fez tudo o que pôde para me contrariar e esforçou-se também por arruinar a reputação do Dr. O'Casey! - A voz de
Megan estava à beira da histeria e via-se que ela tentava controlar-se, mas a indignação que a agitava fazia-a perder a cabeça. -- Mudou o meu horário sobrecarregou-me de trabalho e interroga-me sobre tudo o que faço!
- Está muito enganada a meu respeito. Não tinha a menor intenção de a contrariar, percebeu mal. A minha grande preocupação é o
bem-estar dos meus doentes. Tudo o que faço é com esse fim. Se às
vezes pode parecer que a estou a questionar, faço-o no interesse dos
doentes, e não para a correr do emprego!
Megan tremia.
- E muito fácil dizer uma coisa e fazer outra. Sei muito bem o
que tem andado a fazer. Não pense que eu sou estúpida ...
- Ouça - disse Timothy calmamente -, está num estado de nervos terrível. Não sei a causa, mas sei como é que isso se trata. Repouso. Quero que tire umas férias. Pelo menos um mês, para se recompor. Eu trato disso com a organização de beneficência.
- Não me pode obrigar - começou a dizer Megan, mas calou-se com a voz embargada e tapou a boca com as mãos.
- Posso, posso. E obrigo mesmo, se for preciso. Está doente, e
não sabemos o que pode acontecer se não descansar.
Megan abanou a cabeça em ar de desafio, mas sempre com a mão
na boca.
- Está resolvido. Vai descansar. E a partir deste momento. -- Timothy pegou-Lhe no cotovelo e conduziu-a suavemente até ao
carro.


Sete

A 19 DE dezembro, uma segunda-feira escura e chuvosa, chegou ao
consultório no correio da manhã uma carta com o carimbo de Londres. Timothy reconheceu a letra regular e inclinada do envelope e
resolveu só abrir a carta depois da última consulta da tarde. Desde
criança que tinha o costume de guardar as coisas boas para o fim.
Tal como Lhe parecera, a carta era do Dr. Geoffrey Lloyd, o seu

antigo colega de consultório. Timothy leu a carta ao mesmo tempo
que bebia um brandy. Depois de uma abertura em tom jocoso, a
carta tornava-se séria.

Não posso fugir ao assunto, Timothy, e uma vez que é a razão
por que lhe escrevo esta carta, vou direito a ele. Acabo de descobrir porque é que você se foi embora para esse lugar do fim do
Mundo e não tenho palavras para descrever a minha comoção.
Depois de pensar muito no assunto, resolvi que tinha de lhe dizer
isto. De todos os médicos que conheço, você tipifica no seu trabalho a maneira de aproximação e execução que eu, um homem muito
menos dotado, tenho como ideal. Acho que esta é uma maneira
floreada de dizer que o admiro imenso. E tenho saudades suas.
Dá-me licença que o vá visitar? Queria falar consigo. É claro
que nunca lhe imporia a minha presença sem ser convidado. Mas
nunca mais terei um momento de sossego se se recusar a ver-me.

Timothy pousou a carta. Geoffrey descobrira porque é que ele
tinha saído de Londres, o que era muito elucidativo relativamente à
confidencialidade da junta de nomeações médicas. Geoffrey sabia,
e Timothy perguntou a si mesmo quantas pessoas é que saberiam.
Teve a sensação de que estava a ser espiado por numerosos membros da profissão médica de Londres, que trocavam sem dúvida
impressões sobre o seu comportamento, emitindo juízos soberbos.
Timothy fez rodar o brandy no copo, olhando para o reflexo da
luz do candeeiro que deslizava no turbilhão de âmbar.
??Velho Geoffrey??, murmurou.
Que é que ele queria dizer e ouvir? Timothy calculava. Quem lhe
dera que os seus motivos tivessem permanecido secretos. Porque
assim era obrigado a tomar uma decisão.
Levantou-se, foi até à janela e espreitou para a escuridão lá fora.
Viu o seu próprio reflexo rodeado pelas ténues auréolas luminosas
dos candeeiros da rua. Há muito tempo que não se sentia tão só.
Quem lhe dera ter alguém com quem falar. Mas aquilo que queria
dizer não era para ser ouvido por Geoffrey. Só ia fazer com que ele
se sentisse ainda pior.
??É nisto que eu acredito??, disse Timotty, alto. ??É este o caminho que vou seguir.??
Estas palavras, ditas assim no compartimento silencioso, eram
impressionantes. Tinham o tom firme do homem que declara com
determinação as suas intenções. Mas quem é que ia concordar com
ele? Quem é que ia achar sensata a sua atitude quando estivesse a
par de tudo?
Megan Roberts, talvez. Não estava a ver mais ninguém que o
pudesse compreender. Megan regressara há uma semana às suas
raízes, no Norte do País de Gales, uma viagem que, independentemente de ela acreditar ou não, teria o efeito de a restabelecer e de
restaurar as suas forças espirituais.
Timothy voltou-se e atravessou a sala para ir buscar mais um
brandy, antes de ir para a cama. Facilitaria muito a difícil decisão
que acabara de tomar: não ia aceder ao pedido de Geoffrey. Custava-lhe muito, mas o sofrimento causado pela decisão seria de curta
duração. Com as pedras que a vida lhe atirara nos últimos anos,
construíra uma fortaleza que o protegia. Agora nada o podia fazer
sofrer. Esperava ardentemente que essa fortaleza se aguentasse de
pé à medida que o tempo fosse passando.

- SEMPre achei que, por muito bem que as coisas corram, podem

sempre correr melhor - disse Mrs. Pughe-Morgan. Sorriu a Megan:
estavam as duas na salinha de estar, de pé em frente da lareira. -- Este ano tenho andado a arranjar apoios para mandar crianças de
fracos recursos para colónias de férias no Verão. E sempre que vejo
que estou a conseguir alguma coisa, começo logo a alargar os meus
horizontes.
Esses horizontes eram os mais largos que Megan conhecia. Aos
cinquenta e oito anos, Mrs. Pughe-Morgan continuava com a mesma vivacidade e entusiasmo que tinham impressionado Megan há
vinte e dois anos atrás. Não perdera nem o porte erecto, nem o brilho vivo dos seus olhos verdes.
- Uma das coisas que deixei de fazer, Megan, foi falar constantemente do meu trabalho. Já cá estás há uma semana e só agora é que
te comecei a maçar com as histórias das minhas organizações de
beneficência.
- Sabe muito bem que não me aborrece.
Durante algum tempo, na altura da Grande Guerra, quando as
suas funções domésticas foram alteradas e passara a ser assistente pessoal de Mrs. Pughe-Morgan, Megan fora muito activa num programa de auxilio aos soldados organizado pela sua patroa. Nesse
período, aprendera o valor de se ser organizada. A eficiência característica de Megan - que parecia ter perdido nos últimos tempos fora adquirida sob as directrizes de Gwendolyn Pughe-Morgan.
No segundo dia da sua estada, Megan conversara durante mais
de uma hora com Mrs. Pughe-Morgan. Contara-Lhe tudo, uma vez
que estava a falar com a única pessoa no Mundo que sabia praticamente tudo o que havia a saber sobre ela. Explicou-lhe como fora
obrigada a interromper o seu trabalho em Pencwm e reconheceu que
provavelmente não estava em condições de trabalhar. Mas deu largas ao profundo ressentimento que alimentava em relação ao Dr.
Timothy Morris.
Durante a conversa, Mrs. Pughe-Morgan incitara Megan a relembrar os dias sombrios, os momentos e os acontecimentos que
continuavam a fazê-la sofrer e, no caso da morte de Bronwen, a
causar-lhe um abalo emocional tremendo. Foi um processo de depuração que em dado momento fez Megan chorar, mas nos dias seguintes sentiu-se muito melhor. Agora, uma semana depois, já era
capaz de pensar em Alun, o seu noivo desaparecido, e na filha de
ambos, Bronwen, sem o sofrimento terrível que a atormentara em
Pencwm.
- Ah! - exclamou Mrs. Pughe-Morgan, olhando para o relógio
da chaminé que batia as horas. - Três horas.
Olharam ambas para a porta. Quando soou a última badalada, a
porta abriu-se e Rose Clark entrou com o tabuleiro do chá. Megan
fitou-a com um grande sorriso. Estava tão bonita, com a sua bata
preta e avental branco; o cabelo preso atrás e a touquinha branca
empoleirada no alto da cabeça. Mas hoje pareceu-Lhe diferente, o
seu encanto tinha mais um ingrediente. Megan esforçou-se por descobrir o quê e percebeu que Rose perdera o nervosismo que manifestara nas outras duas ocasiões em que viera servir o chá. Tinha um
ar completamente calmo e controlado.
Quando Rose saiu, Mrs. Pughe-Morgan disse:
- Ela está a fazer progressos extraordinários, Megan. Ainda bem
que a trouxeste cá para casa.
- É uma criança encantadora - disse Megan. - Acha que superou o que lhe aconteceu?
- Parece sentir-se bastante feliz. Nunca se mostra preocupada.

Espero que seja possível darmos-lhe toda a afeição necessária para a fazermos esquecer para sempre as terríveis recordações. No entanto, sabemos ambas que há recordações que nunca se apagam, por
mais que se? tente.
- Começo a acreditar que podem sempre ser mantidas a um nível
pacífico - disse Megan - desde que estejamos rodeados de um
certo calor humano. Aqui, em sua casa, eu tinha isso, e em Pencwm
podia apoiar-me no Dr. O'Casey.
Mrs. Pughe-Morgan bebeu um gole de chá e depois perguntou:
- Megan, achas que tinhas aguentado a tensão da epidemia de
tosse convulsa se o Dr. O'Casey estivesse lá contigo?
- Sinceramente não sei.
- Bom - disse Mrs. Pughe-Morgan devagar. - Se me dás licença que faça esta observação, tu hoje és uma mulher que precisa de
ter o seu próprio mundo. Acho que nunca lá deixarás entrar ninguém. Mas, por outro lado, precisas de uma força cá fora, de uma
pedra-de-toque especial, talvez. De um critério para te ajudar a
manter as tuas próprias normas e regras de conduta.
- Isso é uma observação muito perspicaz - replicou Megan,
sorrindo.
- É claro que é. Sou uma velhota muito perspicaz. E extremamente modesta. - Mrs. Pughe-Morgan fez um grande sorriso. -- Megan, está na altura de irmos apanhar ar. Toda esta análise está a
fazer-me dores de cabeça. Só mais uma coisa. Estou muito grata ao
teu Dr. Morris.
Megan, intrigada, perguntou:
- Mas porquê?
- Porque, se não fosse ele, não estavas aqui a passar o Natal
connosco.
Quando saíram para o vestíbulo, Megan reflectiu no que Mrs.
Pughe-Morgan acabara de dizer. Fazia sentido, pensou. No entanto,
pessoalmente não tinha nada que estar grata a Timothy Morris.

No DIA DE NAtAL, de manhã cedo, a cozinheira, Mrs. Edgar, iniciou os últimos preparativos para o jantar, que este ano não ia ser só
uma reunião de família e amigos íntimos. Comemorava-se nesse
mês o décimo aniversário da Associação Galesa de Assistência
Médica Rural, da qual Mrs. Pughe-Morgan era um dos membros
fundadores, e o conselho de administração praticamente em peso ia
estar presente no jantar.
Mrs. Pughe-Morgan resolvera contratar pessoal de fora para a ocasião, uma vez que dava sempre folga ao seu pessoal no dia de
Natal. Mas Mrs. Edgar era viúva e preferiu ficar a trabalhar, e Rose
ofereceu-se para ajudar na cozinha. Portanto agora, às 7 horas de
uma manhã de Natal muito ventosa, a velha e gorda cozinheira e a
sua ajudante trabalhavam animadamente quando Megan entrou.
- Feliz Natal para as duas - disse num tom alegre. Entregou a
cada uma delas um pequeno embrulho atado com fio prateado.
Mrs. Edgar franziu a testa em sinal de desaprovação enquanto
abria o presente, dizendo que Megan não devia ter gasto dinheiro a
comprar-lhe um presente. Rose, corada de excitação, levou o seu
presente para a bancada do lava-louça antes de desatar o fio.
- Meu Deus - Mrs. Edgar mostrou a jóia oval de âmbar sobre
prata. - Não devia ter comprado isto, Megan. Deve ter-lhe custado
uma fortuna.
- O importante é gostar.
Mrs. Edgar segurou a jóia pelo alfinete, virando-a para reflectir
a luz.
- É a coisa mais bonita que já tive em toda a minha vida, não há

dúvida nenhuma. Muito obrigada, minha querida.
Rose deu um gritinho. Estendeu o braço na direcção de Mrs.
Edgar, mostrando-lhe um medalhão em forma de coração, com um
fio de ouro fino. A expressão da jovem era de deslumbramento puro.
- É lindo - disse. - Ainda mais bonito do que o que a minha
mãe tinha. Não sei o que é feito dele.
??Se calhar, foi vendido para comprar bebidas mesmo antes de a
pobre mulher ter arrefecido na campa??, pensou Megan. Sentiu uma
satisfação amarga, para além da alegria daquele momento, ao pensar que Owen Clark não ia beber nada nos tempos mais próximos.
- Muitíssimo obrigada, Megan. - Rose deu um beijo tímido a
Megan. - Dá-me um retrato seu para pôr aqui?
- Vou procurar nos meus retratos quando chegar a casa - respondeu Megan num tom brusco - e hei-de arranjar um para te
mandar.
A porta das traseiras abriu-se e entrou uma golfada de ar frio
juntamente com Griffiths, o jardineiro-chefe.
- Lá fora está um frio que até corta as orelhas - disse. - Boas-festas para todos.
Rose aproximou-se do homenzinho gorducho e mostrou-lhe o
medalhão.
- Foi Megan quem mo deu.
- Viva o luxo - disse Griffiths, olhando para o medalhão. -- Temos mas é de pôr fechaduras mais fortes nas portas. Os ladrões
vão querer deitar a mão a uma coisa assim tão fina.
Megan; com um grande sorriso, pensou que o tempo não mudara
nada a velha cozinheira e o jardineiro, que continuavam tão calorosos como sempre neste lugar maravilhoso. Depois do seu regresso,
às vezes chegava a pensar que o tempo não passara por aquela casa,
deixando tudo e todos como eram em 1906, quando lá entrara pela
primeira vez.
Nessa mesma manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço com
Mrs. Pughe-Morgan, Megan fez uma observação sobre o carácter
intemporal daquele lugar.
- Quanto mais tempo aqui estou, mais me dou conta disso -- observou.
- O uno permanece, a multidão muda e passa ... - disse Mrs.
Pughe-Morgan.
- Adonais, de Shelley. Lembro-me de me ter dito para o ler. É
um lindo pensamento ... este lugar, estas pessoas, intemporais e
imutáveis no centro de tanta turbulência.
- Mas também te lembras do fim da passagem, não lembras?
Megan reflectiu durante uns instantes. Mas depois lembrou-se.
- A vida, como uma cúpula de vidro multicor - recitou -,
mancha a radiosidade branca da Eternidade até a Morte a pisar em
bocados. - Olhou, para Mrs. Pughe-Morgan. - Nada é duradouro,
ao fim e ao cabo. E bem verdade.
- E ficas perturbada quando pensas nisso? Qualquer dia nada
disto aqui está, nenhum de nós ...
- Preocupa-me um bocado, sim. - Megan percebeu que Mrs.
Pughe-Morgan estava a aplicar-lhe uma terapêutica qualquer. -- Aqui há pouco tempo essa ideia era suficiente para me pôr fora de
mim.
- Mas agora já não?
- Não. Porque não é isso que interessa. Acho que o que interessa é que, se aguentarmos sem perdermos a esperança, mesmo que
seja quase impossível aguentar e ter esperança, podemos viver felizes. Temos de manter a esperança até ao último dia da nossa vida.
Mrs. Pughe-Morgan olhou-a com um sorriso encantado.

- Agora parecia mesmo a antiga Megan a falar. E ela não mudou. Desviou-se do bom caminho durante algum tempo, foi tudo.
Megan assentiu.
- Acho que sim.
- Nesse caso - disse Mrs. Pughe-Morgan -, já que recuperaste
as tuas faculdades, podes ajudar-me a decidir que vestido vou pôr
hoje à noite ao jantar, se não te importas.

QUANDo os convidados começaram a chegar, Megan estava firmemente convencida de que a escolha do vestido de Mrs. Pughe-Morgan fora perfeita. Era um vestido direito de seda verde-clara,
que à frente lhe tapava os joelhos e atrás era ligeiramente mais comprido. À cintura tinha um cordão dourado.
- Não está uma estampa? - sussurrou Mrs. Foskett, a governanta reformada, ao ouvido de Megan quando se sentaram todos à
mesa para jantar.
- E de longe a mulher mais bonita das redondezas - concordou
Megan. ??Mas às vezes é também a mais solitária??, pensou.
A grande tragédia da vida de Mrs. Pughe-Morgan fora o facto de
o seu casamento ter falhado quando ela tinha pouco mais de trinta
anos. Desde então, as únicas pessoas com quem tinha verdadeira
intimidade eram Megan e Mrs. Foskett.
No fim da sopa, o homem que estava à direita de Megan dirigiu-se-lhe.
- Desculpe ... - Fez um pequeno sorriso, e Megan tentou
lembrar-se do nome dele. - Há bocado, quando fomos apresentados, acho que Mrs. Pughe-Morgan disse que você era enfermeira de
saúde pública, se não estou enganado.
Megan sorriu-Lhe também.
- Sou. Estou colocada no Sul do País de Gales.
- Estou ligado a essa área há muito tempo - murmurou o
homem.
Megan julgou detectar uma ligeira timidez e portanto resolveu
facilitar-lhe a vida.
- Está ligado a algum dos comités directivos dos serviços de
enfermagem? - perguntou.
- Não, não. Pertenço à junta de nomeações médicas e entrevisto
muitas vezes os candidatos a lugares de enfermagem da minha zona.
- Pensava que falava mais com médicos do que com enfermeiras, Mr. Halliday. É o seu nome, não é? Nomes não são o meu forte.
- É, é, chamo-me Halliday - confirmou ele com uma ligeira
atrapalhação. - E a resposta à outra pergunta também é sim, falo
mais com médicos, mas também falo com muitas enfermeiras. Tem
graça você trabalhar no Sul do País de Gales, porque nomeei muita
gente para já. Já há uns anos, claro. Agora sou responsável por uma
zona de Londres.
- Qual é ao certo a sua ligação com Mrs. Pughe-Morgan?
- Sou consultor do projecto de assistência médica rural. Ensino-lhes o que é que hão-de fazer para resolver os problemas administrativos ... coisas assim.
- O seu trabalho deve ser muito interessante.
Olhou para ela.
- Talvez. Mas às vezes penso que nós somos muitos e que vocês
são poucos. Quer dizer, os vossos horários de trabalho, por exemplo, ainda por cima sem nenhumas ajudas. Eu trabalho muito poucas
horas e tenho todos os apoios de que necessito.
Megan assentiu, percebendo o que ele queria dizer.
- E verdade que lá em Pencwm fazia jeito ter alguma ajuda.
Halliday pareceu interessado.
- Pencwm? Isso não é aquela terra onde o Dr. Morns foi fazer

uma substituição?
Megan fez um sinal que sim.
- Conhece-o?
- Não, não o conheço. Mas já ouvi falar dele. - Fez um pequeno gesto com a mão. - É um caso triste, não é?
Megan franziu a testa.
- Desculpe?
- O caso de Morris, a ... - A expressão de Halliday mudou de
repente. Tornou-se cautelosa. - Bom, acho que já falei demais.
Megan percebeu que Mr. Halliday partira do princípio de que ela
sabia qualquer coisa, qualquer coisa de muito importante, segundo
parecia. Mas não era correcto fazer mais perguntas. No entanto,
ficou intrigada. Um caso triste. Que é que ele quereria dizer?
Duas horas depois, quando o jantar acabou, foram todos para a
sala. Na primeira oportunidade que teve, Megan chamou Mrs.
Pughe-Morgan de lado e contou-lhe o que Mr. Halliday lhe dissera,
ou melhor, começara a dizer.
- Estou cheia de curiosidade - reconheceu Megan. - Não era
capaz de saber o que é?
- Vou recorrer a toda a minha astúcia, Megan. Apesar de isso
geralmente não resultar muito com Mr. Halliday.
Nos vinte minutos seguintes, Megan fez conversa com vários
convidados enquanto observava Mrs. Pughe-Morgan a preparar o
terreno e depois a falar com Mr. Halliday. Esta, ao fim de uns minutos, pediu licença e afastou-se, aproximando-se de Megan por um
caminho indirecto, falando com outras duas pessoas entretanto.
Finalmente, chegou ao pé de Megan, que estava junto à lareira.
- Então? - Megan olhou para Mrs. Pughe-Morgan com uma
expressão de franca curiosidade. - Descobriu alguma coisa?
- Descobri. - Mrs. Pughe-Morgan tinha uma expressão séria,
quase triste. - Mas quem me dera não ter descoberto nada.
- Que foi?
- Megan ... Vou contar-te, claro, e sei que és muito discreta,
mas não contes isto a ninguém. E faz o possível por não deixar que
influencie o teu trabalho.
Megan olhou para ela, espantada. Que é que ela queria dizer?
- Porque é que isso havia de influenciar o meu trabalho? Ele fez
alguma coisa ..
- Não, não é nada que ele tenha feito. - Mrs. Pughe-Morgan
suspirou. - Depois de tudo o que disseste dele, fiquei confundida.
Não sei que pensar, até estou arrependida de ter feito juízos sobre
ele. Sabe Deus o que é que tu vais sentir.
Megan começou a ficar nervosa.
- Mas que é ? Que é que foi?
- Bem - disse lentamente Mrs. Pughe-Morgan -, é que esse teu
Dr. Morris ... parece que está às portas da morte.


Oito

MEGAN voltou para Pencwm na segunda semana de Janeiro. Era
uma mulher diferente quando regressou, recuperara o vigor físico e
mental e estava resolvida a emendar o seu comportamento em relação ao Dr. Morris, que, como o compreendia agora, fora de obstrução deliberada. Enquanto o comboio percorria os trilhos sinuosos
do vale, olhava para as encostas cobertas de neve, surpreendida com
a sua própria cegueira. Como é que podia ter deixado de ver uma
coisa tão óbvia? O lugar do velho médico fora preenchido por um

desconhecido. Não gostara dele só porque não era o Dr. O'Casey, e
o seu ressentimento inventara razões para existir: o Dr. Morris era
autoritário, mandão, presunçoso e metediço.
Megan estava profundamente envergonhada. Os factos, analisados sem a subjectividade de preconceitos e ressentimentos, eram
muito simples. O Dr. Morris era um homem justo e bondoso que
fazia tudo o que podia pelos seus doentes. Megan recordou o trabalho que ele? tivera no caso de Austin Pym, do esforço que fizera com
Gareth Prentice e com muitos outros. E lembrou-se também de
como salvara a vida de uma criança enquanto ela ficara a olhar,
incapaz de fazer o que quer que fosse antes de ele a obrigar. O Dr.
Morris até a tinha salvo de si mesma. Se não a tivesse obrigado a
tirar uma férias ... Nem queria pensar no que podia ter acontecido.
Fora salva à beira do precipício. E tudo graças a Timothy Morris.
Mas agora Megan sabia que havia o grande perigo de a simpatia
que sentia pelo homem se transformar numa compaixão piegas. E
também sabia que isso era a última coisa que ele havia de querer.
Mas o que ela podia fazer era facilitar o mais possível a vida ao Dr.
Morris.
Relembrou novamente todos os detalhes enquanto o comboio
avançava por uma passagem estreita cortada na rocha. De acordo
com o que Mr. Halliday dissera, Timothy Morris tivera febre reumática quando era pequeno. Em consequência disso, ficara com uma
lesão numa válvula cardíaca e chegara agora a altura em que o coração começava a falhar. Megan sabia por experiência que as complicações possíveis eram numerosas. O organismo degradar-se-ia à
medida que a circulação sanguínea se tornasse cada vez mais lenta;
haveria uma perda de energia. Os medicamentos podiam atrasar o
processo, mas a morte precoce era praticamente inevitável. Megan
já vira o Dr. Morris ficar exausto no fim de um dia de trabalho.
Também reparara que ficava com a boca e os dedos roxos após um
curto período de exposição ao frio. Na altura, não dera a devida
atenção a esses sintomas porque estava irritada demais para ver as
coisas objectivamente.
- Foi morrer a casa - dissera Mrs. Pughe-Morgan. - Parece
sentimentalismo, mas acho que foi o que ele fez.
Timothy Morris dissera à junta de nomeações médicas que queria mudar-se para o País de Gales e que preferia fazer substituições.
Era um pedido estranho da parte de um médico estabelecido em
Londres, com uma boa clientela. No entanto, arranjaram-lhe um
lugar de substituto, e o Dr. Morris partiu para o País de Gales, levando o seu segredo consigo. Fora só por acaso que, no decurso de
uma conferência médica, um cardiologista fizera uma observação
acerca de um dos seus doentes, que também era médico, e a observação despertara a atenção de um dos membros da junta de nomeações médicas. As pessoas passaram palavra umas às outras e dentro
em pouco toda a gente sabia que Morris sofria de uma doença cardíaca grave e queria esconder o seu estado aos amigos.
Os factos de que Megan tinha agora conhecimento alteravam
radicalmente a sua opinião sobre o médico. Enquanto dantes pensava que ele era movido por uma ambição desmedida, agora suspeitava de que mergulhava no trabalho para se distrair do seu estado
desesperado. Lembrou-se das palavras que dissera a Mrs. Pughe-Morgan:
??Se aguentarmos sem perdermos a esperança, mesmo que seja
quase impossível aguentar e ter esperança, podemos viver felizes.??
Timothy Morris pensaria o mesmo? Estaria assim numa sintonia tão
grande com a concepção de vida de Megan?
O pensamento era perturbante. Não só não era seu inimigo,

como até era muito provável que tivesse pontos de vista muito
semelhantes aos dela. A luz de tudo o que sabia e suspeitava agora,
ia ser-lhe difícil esconder dele a sua compreensão. De certeza que
ele ia notar uma mudança na sua atitude. Sabia que teria de refrear
as manifestações de simpatia.
Sorriu ligeiramente ao ver o amontoado de casinhas de Pencwm
à distância. Tinha feito trinta e cinco anos há duas semanas. Regressava às suas obrigações mais velha e mais sábia. E principalmente
voltava com a firme intenção de só se preocupar com o que acontecia à sua volta, ignorando o que se passava no seu íntimo.

- ANDAm para aí a dizer uma data de disparates sobre este novo
pacto Briand-Kellogg - anunciou Wyn Brewster numa terça-feira,
depois do chá.
Gladys, sentada à sua frente, levantou a cabeça do tricô e não Lhe
passaram despercebidos certos pormenores da atitude dele. Tinha
os braços cruzados com força, a cabeça inclinada para trás e batia
com o pé direito no tapete com irritação. Estava preocupado com
qualquer outra coisa, pensou Gladys, qualquer coisa de que lhe não
queria falar, portanto estava a desviar o seu aborrecimento para a
política.
- Que é esse pacto? Que é isso? - perguntou.
- O pacto é um acordo que vai ser assinado por mais de sessenta países. Vão renunciar à guerra como instrumento político.
Gladys pensou no assunto.
- Parece boa ideia.
- É tudo um disparate - disse Wyn peremptoriamente. - Não
passa de conversa fiada.
Devia ?star preocupado com uma coisa muito séria, concluiu
Gladys. Geralmente, nunca ficava tão irritado.
- Que é que tens, Wyn? E não me digas que não é nada.
Abriu a boca para dizer que não, mas depois suspirou.
- Há quanto tempo é que Megan voltou para Pencwm?
Para Gladys, a neblina começou a dissipar-se.
- Há mais ou menos três semanas.
- E quantas vezes é que nos veio visitar?
- Sabes muito bem que ela tem muito trabalho, Wyn. O Inverno
tem sido muito duro e está muita gente doente. Ela vinha cá muito
mais vezes se tivesse tempo.
- Isso é que eu não sei. Ouve, ultimamente tenho-a visto várias
vezes a conversar com o tal Dr. Morris à porta do consultório ou na ponte para Powys Cleft. - Wyn olhou para Gladys com a expressão de um juiz que vai pronunciar uma sentença. - Megan diz que
Morris é um ambicioso arrogante. Que está sempre a meter-se no
trabalho dela e a contrariar as decisões dela. Não foi o que ela nos
disse?
Gladys assentiu.
- Mais ou menos. Que é que tu queres dizer, Wyn?
- Quero dizer que ela deixou de vir cá a casa porque mudou de
opinião acerca de muitas coisas, e se calhar também acerca de nós.
- Que disparate. E como é que sabes isso? Tu próprio disseste
que quase não a temos visto desde que voltou.
Wyn cofiou o bigode.
- Tenho olhos, Gladys. Observei uma mudança muito interessante na atitude da nossa Megan em relação ao elegante Dr. Morris.
Havias de os ter visto ao pé da ponte. Megan a olhar para ele com um
ar respeitoso, acenando com a cabeça enquanto ele desfiava as suas
palavras cheias de sabedoria.

Gladys pousou o tricô.
- Nem pareces tu, Wyn Brewster. Isso é uma conversa de rancoroso. Além disso, não está certo, porque não sabes o suficiente
para poderes fazer juízos. E que é que tem se Megan mudou de opinião em relação ao Dr. Morris? É livre de o fazer, não achas? Não
temos nada a ver com isso, nem tu nem eu.
Wyn olhou à volta da sala.
- Acho que ela se fartou mas foi de nós. Já não lhe servimos.
- E eu acho que não estás bom da cabeça. - Gladys levantou-se, alisando o avental. - Vou fazer mais chá.
- Podes dizer o que quiseres que eu não mudo de opinião. - Deu
uma risadinha cínica. - É espantoso o que um fato elegante e um
bocado de conversa fiada podem fazer por um homem. Ela está de
cabeça virada, é o que é.
Gladys foi para a cozinha e pegou no bule com um gesto brusco.
Ela também não era parva nenhuma, pensou. E quer as conclusões
de Wyn estivessem certas ou não, uma coisa era evidente: acabara
de ouvir as palavras de um homem cheio de ciúmes.

A MANHA de sexta-feira 16 de Março foi a mais trabalhosa e
cansativa desde que Timothy Morris chegara a Pencwm. Às 10 horas, já tinha visto onze doentes: quatro com doenças pulmonares,
três que precisavam de fazer tratamento para úlceras no estômago,
dois com doenças de pele, um que estava anémico e uma mulher
grávida com uma carência crónica de ferro.
Depois de Timothy ter feito um intervalo para o café, o catálogo
das doenças começou a ser ainda mais dramático. Um homem de
mais de sessenta anos tinha um aneurisma que em breve o havia de
matar, por muito que ele descansasse. Um jovem mineiro revelou
uma grande hémia que comprimia com um cinto para poder continuar a trabalhar. O sapateiro da terra, Gomer Lloyd, jurava que tinha na cabeça uma ratazana que lhe estava a comer os miolos.
Megan chegou pouco depois das 11 horas. Também tivera uma
manhã muito trabalhosa.
- A tosse convulsa está finalmente a acabar - disse a Timothy.
- Mas esta humidade é muito má para as bronquites.
- Tenho de ir ver quatro doentes depois das consultas - disse
Timothy.
- Agora são cinco. - Megan examinou os apontamentos que
tirara nas suas visitas da manhã, onde tomava nota dos casos em que
era necessária uma visita do médico. - Mr. Purve, em Lampeter
Crescent, 4. Tem cinquenta e tal anos, os pulmões estão muito congestionados e tem febre.
Timothy tomou nota e depois falou-lhe do sapateiro.
- Que é que lhe fez? - perguntou Megan.
- Dei-lhe um frasco de sais. Mandei-o cheirar aquilo três vezes,
de manhã e à noite, e a ratazana evapora-se com o cheiro.
Megan riu-se.
- Agora nunca mais se vai ver livre dele. Vai aparecer-lhe sempre que tiver uma nova alucinação.
- Se Calhar - disse Timothy. - Mas é um velhote simpático e
inofensivo. Prefiro ficar aqui a inventar tratamentos para doenças
imaginárias do que mandá-lo para o manicómio. - Apontou para os
apontamentos de Megan. - Há mais alguma coisa para eu saber?
- Não. - Megan hesitou, mas depois disse: - Bom, há. - Olhou
para ele de sobrolho franzido. - Há uma coisa. Tem o queixo sujo
de ovo.


NESSA noite, regressando de automóvel a casa do Dr. O'Casey
após um dia de trabalho extenuante, Timothy sorriu ao lembrar-se
do riso de Megan quando ele limpara o queixo com um lenço húmido. Já se habituara à mudança de atitude dela, mas continuava a
considerá-la espantosa. Enquanto ela estivera fora, tentara imaginar como se passariam as coisas depois do seu regresso. Pensara que
voltaria de boa saúde, executando com eficiência o seu trabalho,
mas reforçando a barreira de hostilidade em relação a ele. Não tinha
motivos para prever uma mudança de atitude tão radical.
No dia em que voltara, Megan não perdera tempo: fora ter com
ele e explicara-lhe francamente que revira os seus pontos de vista. O
descanso e o tempo que tivera para pensar tinham-Lhe permitido
compreender que estava a ver tudo ao contrário, dissera. Pediu desculpa e fez um esforço para explicar os seus motivos. E, ao fazê-lo,
Megan revelara-lhe uma coisa que quase ninguém sabia: tivera em
tempos uma filha muito querida, Bronwen, que morrera com tosse
convulsa. Falara também a Timothy do noivo, Alun, que morrera
sem ter conhecido a filha. Timothy ficara comovido com a história.
Mas ficara também confuso. Tinha a certeza de que ela não lhe revelara os segredos só para conquistar a sua simpatia. Sentira perfeitamente que aquelas confidências lhe eram feitas em troca de outras
semelhantes. Mas nunca lhe fizera confidências; além dos assuntos
profissionais, nunca contara nada a Megan que tivesse ocultado a
outras pessoas.
Já tinham passado dois meses depois do seu regresso. Durante
esse tempo, haviam posto a antiga relação para trás das costas e
rapidamente estabelecido uma cooperação harmoniosa. Timothy
sentia, sem exagero, que nunca gostara tanto de trabalhar com uma
pessoa como com Megan Roberts. Um facto irónico, com um lado
triste. Após se ter esforçado por evitar todas as afeições humanas duradouras, na previsão de um futuro inevitável e fatal, estava agora a criar laços que finalmente se transformariam numa perda dolorosa.
Mas afastou firmemente esse pensamento. Para já, corria tudo
lindamente. Sentia-se bem, apesar de se cansar com facilidade; tinha de viver no presente e no futuro próximo, que eram agradáveis.
Não fora para ali à espera de mais que muito trabalho e tempo para
que as recordações do seu passado se afastassem o suficiente para se
tomarem agradáveis e deixarem de ser dolorosas. Entretanto, tinha
acontecido uma coisa agradável, e era disparate analisar o caso de
maneira diferente.
Timothy virou o carro para o caminho que ia dar à casa e saiu
assobiando baixinho. Estava ansioso pelo descanso da noite. Megan
convidara-o para jantar. Era a primeira vez que alguém lhe fazia um
convite desde que chegara a Pencwm. Só receava ser acometido por
um cansaço repentino. Portanto, para o evitar, resolveu passar pelas
brasas.

Às 9 HoRAs, Megan abriu a garrafa de vinho do Porto e serviu
dois cálices. Passou um a Timothy, que estava sentado à frente dela,
na pequena mesa de jantar. Começou a beber o seu Porto em golinhos pequenos.
- Gostou mesmo do jantar?
Timothy fez um gesto com a mão, apontando para a mesa e depois para a sala toda.
- O jantar foi óptimo. A companhia encantadora. E o ambiente,
passando pelo cão a dormir à lareira, não podia ser mais agradável.
Megan sorriu.
- Perna de borrego, comida na companhia da enfermeira, numa
casinha modesta de Pencwm. Se acha que isso é um jantar elegante,

é porque devia levar uma vida muito recatada.
Timothy riu-se.
- Por acaso, até tinha uma vida social muito intensa.
- E não tem saudades disso?
- Às vezes.
Megan ficou a olhar para Timothy enquanto ele examinava os
seus livros, percorrendo com os olhos os títulos das lombadas. Era
uma imagem de perfeita saúde. Há semanas que andava a observá-lo. Até à data, não tinha notado nada que indicasse que ele não era
o que parecia - um homem saudável e enérgico. Realmente andava
devagar, mas tão discretamente que parecia que não tinha nenhuns
cuidados especiais com a saúde.
- Importa-se que eu dê uma vista de olhos por aqui? - perguntou, levantando-se. - Tem alguns livros em que eu gostava de mergulhar.
- Com certeza - disse Megan.
Observar Timothy com um olhar crítico fora recompensador;
Megan descobrira muitas coisas inesperadas. Tinha uma personalidade muito mais sensível e afectuosa do que imaginara. O entusiasmo dele pelo seu trabalho era enorme e sabia muitas coisas que estavam para além dos limites da sua profissão. Gostava de teatro e de
cinema e os seus conhecimentos literários eram muito vastos.
- Gostou deste? - Timothy voltou-se de costas para a estante,
mostrando-lhe o livro que tinha na mão. - Gone to Earth, de Mary
Webb.
- Quando Miss Williams mo deu, andava tão atarefada que
só tinha tempo para trabalhar, comer e dormir. Pu-lo na estante e
nunca mais lhe toquei.
- Aconselho-a a lê-lo. - Arrumou novamente o livro no lugar e
fez menção de voltar para a mesa.
Megan sugeriu que se sentassem à lareira. Trouxe os cálices e a
garrafa de Porto e sentaram-se um em frente do outro; Megan pôs os
pés ao lado de Scratch, que estava deitado em cima do tapete.
Timothy bebeu um golinho de Porto e estava a saboreá-lo quando alguém bateu à porta.
- Logo vi que era bom demais para durar - disse Megan. Foi
abrir a porta. Lá fora estava um rapazinho com um casaco fino
demais para o frio que estava. - Sim? Que foi?
- A minha mãe é Mrs. Boyle. Disse-me para lhe dizer que o bebé
ia nascer.
- Está bem - suspirou Megan. - Diz à tua mãe que eu vou já.
Megan voltou-se para Timothy.
- Acabou-se a festa - disse e de repente sentiu um arrepio de
susto. Ele estava com um aspecto terrível. Há um minuto sorria e
parecia descontraído. Agora estava pálido, com os olhos encovados; parecia uma pessoa prestes a desmaiar. Mas levantou-se, desviando os olhos dela.
- Não faz mal, Megan, eu sei muito bem o que isso é. Também
me estão sempre a interromper. - Foi até à porta e tirou o casaco do
cabide. Megan ficou a olhar para ele, tentando esconder a sua preocupação. - Para dizer a verdade - observou ele -, até estou precisado de ir cedo para a cama.
- Mesmo assim, foi pena isto ter acontecido - disse Megan.
Timothy sorriu. Estava com um ar muito cansado, tinha a pele
amarelada e cerosa.
- Mais uma vez, obrigado pelo seu óptimo jantar. Foi muito
agradável.
- Obrigada por ter vindo.
Megan ficou a dizer-lhe adeus do degrau da porta e a vê-lo entrar

para o automóvel. Depois de ter entrado novamente em casa e enquanto preparava a maleta para o parto, tentava reprimir o medo que
a invadia. Não era nada, pensou. Ele estava cansado; os doentes
cardíacos eram assim. Mas assustara-se, no entanto, e ficara triste.
O medo havia de passar, mas a tristeza não. Timothy gostava tanto
de viver. Havia milhões de pessoas que não tinham amor à vida e
que mesmo assim continuavam a viver. A Natureza não se preocupava nada com a justiça.
Quando pegou no casaco, Megan percebeu que aquilo que sentira ao observar a mudança sofrida por Timothy não era só medo,
mas também uma sensação de perda iminente. Ele tornara-se um
amigo muito querido.

Nove

As SEMANAS fluíram e chegou o mês de Maio, que se manifestou nos
campos dos arredores de Pencwm criando manchas floridas de tojo,
pervincas e eufrásias lilases. As crianças voltaram a brincar nas
ruas, os homens davam passeios pelos montes e as mulheres juntavam-se às esquinas a conversar.
Numa linda manhã de domingo, Harry Benson subiu até ao alto
do penhasco a que chamava Monte Místico, embora nunca lhe chamasse esse nome em voz alta. Harry tinha trinta anos. Era um homem sossegado que tinha poucos amigos, casado com uma rapariga
que sabia que não havia nada de que ele mais gostasse do que ir
passear aos montes.
O Monte Místico era um lugar que fazia com que Harry se sentisse privilegiado; provava-lhe que até um pobre mineiro de carvão
podia fugir às cadeias de uma realidade monótona e conhecer o milagre. Estava convencido de que era a única pessoa que sabia da
existência daquele lugar especial a oeste do cume, onde só se podia
chegar escalando saliências rochosas perigosas e serpenteando sob
uma saliência larga coberta de musgo. Descobrira esta linda gruta
há dois anos, quando, por acaso, se desviara involuntariamente do
caminho habitual.
Agora, neste domingo calmo, Harry dobrou-se por baixo da saliência e espreitou para a cavidade maravilhosa. Era uma câmara
forrada de musgo que tinha ao meio uma piscina natural rodeada de
quartzo cor-de-rosa-brilhante e iluminada por raios oblíquos de luz,
coada por fendas na cúpula abobadada. Harry nunca vira nada tão
bonito. E era só dele. Deixou-se lá ficar durante dez minutos, para
imprimir bem na memória esse espectáculo de sonho, o lago rosado
da caverna secreta.
Quando saiu cá para fora, ficou encandeado durante uns instantes pelo brilho do sol. Estava de pé por baixo da saliência, com os
pés apoiados em dois pedregulhos, e estendeu o braço para se agarrar à rocha do lado direito. Mas quando deslocou o peso do corpo, a
pedra por baixo do pé direito moveu-se. Desequilibrou-se para o
lado. A superfície rochosa passou por ele a correr, enquanto Harry
navegava em espaço aberto. Agitava os braços, procurando desesperadamente qualquer coisa onde se agarrar. Ainda estava a tentar
em vão agarrar-se quando bateu com a cabeça numa grande saliência do rochedo. Viu relâmpagos prateados à frente dos olhos que
depois desapareceram, ficando tudo escuro.
Quando voltou a si, tinha as costas quentes do sol. Virou-se,
sentindo uma dor na nuca, que Lhe pesava como chumbo, e sentou-se. Parecia que não havia partido nada. Só tinha uns arranhões nos
joelhos, nos cotovelos e nas costas. E um alto do tamanho de um ovo
de avestruz na parte de trás da cabeça. Resmungando, pôs-se em pé.

Tanto quanto Lhe parecia, estava num campo. Olhou para cima, para
a extensão de rochedo. Depois de uma queda daquela altura, podia
considerar que tivera muita sorte por ainda estar vivo.
A dor que sentia na cabeça era terrível. Fazia-o esquecer as feridas das pernas, dos braços e das costas. Começou a andar em direcção a casa, pensando que tinha pago muito caro a visita ao Monte
Místico.
Duas horas depois, Mary Benson, a mulher de Harry, entrou a
correr na casinha deles, acompanhada de Nesta Mogg.
- Está no sofá - disse Mary, apontando para a porta da sala de
estar. - Como que tropeçou e depois sentou-se e disse que se sentia muito mal; fui-lhe buscar um copo de água e quando voltei estava caído no sofá.
Nesta empurrou Mary e entrou na sala de estar. Harry estava
deitado de lado, com as pernas encolhidas. Tinha os olhos semicerrados e respirava ruidosamente pela boca.
Nesta inclinou-se sobre ele.
- Está a ouvir-me, Harry Benson? - Abanou-lhe o ombro, mas
ele não reagiu. Nesta olhou para Mary. - Andou à briga ou quê?
Está todo arranhado.
- Disse-me que caiu nos montes.
Nesta cheirou o hálito de Harry. Apalpou-Lhe a cabeça, sentindo
o hematoma na base do crânio.
- Deu aqui uma grande pancada. - Levantou uma pálpebra e
depois a outra. - É um traumatismo - disse, recuando.
- Isso é perigoso?
- Às vezes. - Nesta procurou qualquer coisa no seu saco preto
atado com um cordel e tirou um trapo sujo. Olhou para Mary. -- Ferva um bocado de água.
Quando Mary trouxe a água num tacho, Nesta deitou o trapo lá
para dentro. A água ficou amarela e com um cheiro nauseabundo.
- Que é isso? - perguntou Mary.
- O pano está embebido em ervas raras. - Foi tudo o que Nesta
revelou. Tirou o trapo e torceu-o. - Guarde a água - ordenou a
Mary. - Ele tem que beber uma chávena de duas em duas horas. -- Dobrou o trapo e apertou-o de encontro à nuca de Harry. - Agora,
rapariga, tem de segurar isto aqui.
- Isto faz com que ele volte a si? - perguntou Mary, ajoelhando-se junto ao sofá.
- Mais tarde ou mais cedo. - Nesta fechou o saco. - Volto à
hora do jantar para ver como é que ele está.
Quando Nesta saiu, Mary olhou para o marido. Parecia-lhe que
já estava com melhor cor. Felizmente que existia uma Nesta Mogg,
pensou Mary. Não admirava que as pessoas acreditassem tanto nela.

Durante algum tempo, Megan acreditara que era capaz de fazer
o impossível. Ao longo dessas semanas, enquanto ajudava Timothy
no consultório e fazia tudo o que podia para lhe aliviar a quantidade
de trabalho e estar a seu lado, parecera-Lhe que ele estava a ganhar
forças.
Mas agora, há três dias, Timothy estava com um ar doente, apesar de negar obstinadamente sentir-se mal. Megan tivera o cuidado
de não insistir. Perguntara-lhe duas vezes se queria descansar e duas
vezes lhe' respondera, com modos bastante bruscos, que não precisava. Qualquer sugestão no sentido de que não estava muito bem
de saúde parecia irritá-lo.
Dado que naquele dia era domingo, Megan esperava que ele tivesse tempo para descansar. Mas uma urgência fizera-o levantar da
cama antes das 7 da manhã e só voltou quase ao meio-dia. Megan

estava no consultório desde as 11 horas, preenchendo as fichas dos
doentes e limpando os instrumentos, obrigações que agora assumira, afirmando que eram da sua competência. Timothy entrou no
consultório para a cumprimentar e Megan ficou assustada com o
que viu. Estava com o aspecto de um doente que se levantara da
cama muito antes do que devia.
Megan não conseguiu ficar calada.
- Tem de descansar - disse-lhe. - Já sei que diz que não tem
nada, mas é evidente que tem alguma coisa.
A reacção de Timothy recordara a Megan a sua própria explosão
de cólera quando ele lhe dissera que tinha de tirar umas férias.
- Convença-se disto de uma vez por todas, Megan, estou óptimo! Sou tão saudável como qualquer outra pessoa!
Saíra do consultório batendo com a porta e fora-se embora de automóvel. Megan começara a chorar, com um pressentimento triste.
Agora, de volta a casa, Megan pensava na sua vida. Tivera o
mesmo sonho duas noites seguidas, um sonho tão vivo que se lembrava dele várias horas depois de ter acordado. Estava a passear com
Timothy por montes e vales, nas vizinhanças da propriedade de
Mrs. Pughe-Morgan. Mas o sonho não era propriamente alegre.
Havia nele uma serenidade, uma sensação de paz, mas uma paz que
existia fora da vida. Quando analisou o sonho, Megan compreendeu
o seu significado, que era simples, mas doloroso. Desejava estar
junto de Timothy depois de ele ter sido arrancado à vida. Apesar de
ser completamente irracional, havia nela qualquer coisa que aspirava a ficar junto dele, para onde quer que a morte o levasse.
Os sonhos revelam verdades perturbantes. Nunca conseguira
imaginar que podia afeiçoar-se tanto a outro ser humano depois de
Alun. A morte dele fizera-a sofrer tanto que jurara nunca mais se
expor a passar pela mesma dor. Mas agora ...
Os pensamentos de Megan foram interrompidos por uma pancada na porta. Abriu-a e viu Mary Benson. Parecia desesperada.
- Sr.? Enfermeira, não se importa de vir comigo? O meu Harry
está muito mal. Caiu nas rochas esta manhã e agora parece que está
fora de si ...
- Espere aí, vou só buscar as minhas coisas. - Megan tirou
uma mão-cheia de pensos esterilizados de um armário e atirou-os
para dentro da maleta. Pegou no casaco, fechou a porta e deu volta à
chave. - Pronto - disse a Mary. - Vá à frente.

O médico adormecera numa cadeira na sala de estar. Estava cansado demais para subir as escadas, despir-se e meter-se na cama.
Mas antes de adormecer sentado na cadeira, recriminara-se pela
maneira como tinha tratado Megan. Sabia que ela estava preocupada consigo; via-se-lhe na cara. Mas não podia conter a sua irritação
quando via essa expressão. A cólera não era dirigida a ela, mas a si
próprio. O seu coração era como um espírito maligno que lhe recordava que a alegria de viver que encontrara recentemente não ia
durar muito. Tinha pensado se havia de contar tudo a Megan. A
pergunta atormentara-o quando estava prestes a adormecer. Mas
adormecera achando que não lhe devia dizer nada, com receio de
despertar a compaixão dela. Isso seria terrível.
- Sr. Doutor ...
Acordou de repente. A governanta estava a abanar-lhe o braço
suavemente.
- Desculpe incomodá-lo. Mas veio cá uma mulher que trouxe
este recado. Diz que é muito importante.
- Obrigado. - Timothy levantou-se a custo da cadeira e pegou

no papel. Leu duas vezes o recado, esfregando os olhos, e depois
saiu a correr de casa.
Quando chegou a casa dos Bensons, viu uma mulher jovem com
um ar apavorado num dos cantos da sala e Megan tentando imobilizar um homem novo no sofá. Ela estava com a cara vermelha do
esforço.
- Graças a Deus - disse em voz ofegante, olhando para Timothy. - Não o queria incomodar, mas ...
- Viste o pai? - gritou Harry, lutando para libertar os braços.
Rebolava os olhos. - O pai! Estava naquela vagoneta!
Timothy pousou a mala no chão ao pé do sofá e ajoelhou-se ao
lado de Hany.
- Agarre-o com mais força, se for capaz. - Pegou na cabeça do
homem e voltou-a para a luz que entrava pela janela.
- O delírio vai e volta - disse Megan. - Fica inconsciente
durante um minuto, parece que está em coma e depois começa outra
vez a dizer disparates.
Timothy apalpou o inchaço com os dedos das duas mãos.
- As pupilas estão desiguais - murmurou. - E tem febre ... a
pele parece papel quente. Há quanto tempo é que ele sofreu a lesão?
- Foi esta manhã. Há quatro ou cinco horas, ou talvez mais.
Timothy olhou para Mary.
- E quando é que ele começou a ficar assim?
- Bom ele primeiro disse que tinha caído nos montes. Depois,
disse que lhe doía a cabeça. E pouco depois desmaiou.
- E vai daí - disse Megan em tom ríspido -, ela foi à procura
de Nesta Mogg. A Nesta pôs uma compressa no inchaço e deixou
uma tachada de uma porcaria qualquer para ele tomar.
- Devia ter ido logo chamar a Sr.á Enfermeira ou a mim - disse
Timothy a Mary. - Temos de levar Harry para o hospital. Tenho a
certeza de que tem fractura craniana. Já devia ter sido operado há
horas.
Quando Timothy se levantou, Harry agitou-se violentamente,
apanhando Megan de surpresa. Escapou-se das mãos dela e foi cair
de joelhos em cima do tapete. Pôs-se a olhar para Megan de gatas.
? - Puseram-no dentro de uma caixa! Não deviam ter feito aquilo Não conseguia respirar lá metido dentro!
- Está a falar do pai dele - disse Mary. - Morreu na mina uma
semana depois de Harry lá ter começado a trabalhar.
Harry levantou-se vacilante, dando uma volta completa. Depois,
sempre a olhar para Megan, abriu a boca como se quisesse falar, mas
não saiu nenhum som; levou as mãos à cabeça, os joelhos dobraram-se e caiu no chão.
- Depressa! - Timothy baixou-se e pegou nós ombros largos
do homem. - Agarre-o pelos pés.
- Cuidado - advertiu Megan com uma expressão preocupada.
Timothy sabia que ela estava tão preocupada por causa dele
como por causa de Harry.
- Deite-o no sofá - gritou. - Com a cara voltada para baixo e
a cabeça em cima do braço.
Quando Harry ficou na boa posição Timothy pegou na mala e
tirou um rolo de tela. Quando estava a desenrolar o tecido no chão,
ouviu-se um ruído de passos na entrada. A porta da sala de estar
abriu-se de repente. Nesta Mogg ficou à porta a olhar.
- Que é que vai fazer ao rapaz? - perguntou imperiosamente.
Estava a olhar para a tela desenrolada no chão. Entretanto,
Timothy tirara da algibeira um berbequim de Hudson e uma broca.
- Está doido! Vai furar a cabeça do rapaz! - Nesta olhou para

Mary. - Vai deixá-los fazer aquilo?
- Não a consegui encontrar - choramingou Maiy. - Tinha de
ir buscar alguém.
Nesta abanou o dedo na direcção de Timothy.
- Ele tem um traumatismo! Não é preciso abri-lo!
Timothy fitou Nesta.
- Tem um coágulo que está a fazer pressão sobre o cérebro.
Tenho de aliviar essa pressão, porque, se não ó fizer, ele morre. De
resto, pode morrer de qualquer maneira por causa do atraso.
- Por sua causa - gritou Megan. - Desapareça! - Deu um
empurrão à mulher que a atirou aos tropeções em direcção da entrada. - Depois trato de si, Nesta Mogg! Não perde pela demora!
Antes de Nesta ter saído, Timothy já rapara a base do crânio de
Harry, aplicara tintura de iodo na pele e enrolara um pano esterilizado à volta da zona onde ia fazer a operação.
- Vai doer-lhe? - guinchou Mary.
Megan abanou a cabeça. Harry estava profundamente inconsciente; mesmo que lhe amputassem uma perna, não sentiria nada.
- Vamos a isto - murmurou Timothy. - Mary, não se importa
de ir fazer um chá? Não pode ajudar aqui. - Levantou a broca
acima da cabeça de Harry e depois olhou para Megan. - Está
pronta?
Ela assentiu com um sinal afirmativo de cabeça.
- Acha que ele tem hipóteses? - sussurrou.
- Ainda há uma centelha de vida - disse Timothy. - Uma
centelha já é o suficiente, Megan. - Tinha os olhos bem abertos,
com uma expressão firme. - Podemos atear novamente o lume.

PAsSAvA das 5 horas quando chegaram ao Hospital de Llengwyn. Megan ficou sentada com Mary Benson na pequena sala de
espera pintada de verde, enquanto Timothy e o cirurgião que estava
de serviço examinavam Harry na sala de operações.
- Ele está muito mal? - perguntou Mary ao fim de um longo
silêncio, ouvindo as vozes abafadas que vinham do outro lado das
portas giratórias.
- Está bastante mal - disse Megan. - Mas o Dr. Morris aliviou a pressão no cérebro de Harry e ele estava a respirar muito melhor no caminho. Há esperanças, Mary. Agarre-se a isso.
Mary ficou a olhar para a parede com uma cara inexpressiva e
tão pálida como a do marido quando entrara na maca.
- Quer saber uma coisa, Sr.á Enfermeira?
- O quê?
- Foi a primeira vez que andei de automóvel.
Megan sorriu e apertou a mão de Mary, pensando na incongruência das coisas. Nem sempre essa incongruência era tão expressa,
como na observação desajeitada de Mary, mas nem por isso deixava
de existir. Quando Timothy se ajoelhara naquela sala de estar
modesta, operando o crânio de Harry, Megan pensara de repente:
??Adorava beijar-lhe as mãos.?? O pensamento atravessara-lhe o
espírito e o coração repentinamente, mas sem sobressaltos, quase
como uma observação casual - uma incongruência passageira.
Mais tarde, durante a viagem de automóvel até Llengwyn, apercebera-se de que estava apaixonada por Timothy Morris. Não valia a
pena negá-lo ou defender-se de uma coisa que não podia evitar.
Megan sabia que ia sofrer ao entregar-se a esse amor, mas estava
também consciente de uma outra contradição: não se importava.
Apesar das suas preocupações imediatas com a saúde de Timothy,
sentia-se estranhamente feliz.

Timothy saiu da sala de operações vinte minutos depois. Ficou
parado à porta, fazendo sinal a Mary Benson.
- Vai ficar óptimo - disse. - Só precisa de descanso. - Aproximou-se e pôs-lhe a mão no ombro. - Foi mesmo a tempo. Se
alguma vez tornar a acontecer uma coisa destas, Deus queira que
não, chame-nos imediatamente.
- Sim, Sr. Doutor - disse Mary por entre lágrimas.
Megan tirou um lenço da algibeira e entregou-o à rapariga, depois olhou para Timothy e sorriu, agora com vontade de o beijar na
boca.

EraM 7.10 quando deixaram Mary em casa, em Cardower Road.
Quando ela saiu do carro, Megan viu Gareth Prentice à porta de
casa, um pouco mais à frente. Engordara nove quilos desde o Natal.
- Dois êxitos sensacionais na mesma rua - disse Megan, reparando que Timothy estava a olhar para o rapaz. - Está a deixar a sua
marca por aqui, não acha? - Sorriu-lhe e pensou: ??Não é imaginação minha; ele está com melhor aspecto.??
á Realmente, Timothy tinha quase o mesmo aspecto que da primeira vez que ela o vira, até o cansaço parecia ter-se evaporado.
O médico agarrou o volante com as duas mãos e suspirou.
- Megan ver Harry Benson ressuscitar à minha frente animou-me imenso. Uma centelha de vida era tudo o que restava. Uma centelha quase a apagar-se, e fomos nós que a ateámos. Recebeu outra
vez o dom da vida.
A vida é um dom. Estima-o sempre ... As palavras de Timothy
eram um eco da filosofia que guiava a vida de Megan, e ela foi invadida por uma onda de emoção. Há muitos anos que não tinha um
desejo tão ardente, quase uma necessidade, de abraçar uma pessoa.
Timothy tirou uma das mãos do volante e apontou para fora do
automóvel.
- Vai ali a má da fita - disse.
Megan olhou. Nesta Mogg ia ao fundo da estrada, afastando-se
deles com o seu saco preto atado com um cordel às costas.
- Não se importa de levar a minha maleta? - perguntou Megan. Já estava a abrir a porta. - Passo depois a buscá-la.
- Cuidado, Megan - avisou Timothy. - Não faça disparates.
- Esteja descansado - disse ela, saindo do carro.
Timothy arrancou com um sorriso nos lábios e abanando a cabeça.
Megan apanhou Nesta na ponte de muros baixos que separava
Powys Cleft do resto da vila.
- Nesta, quero falar consigo.
Nesta voltou-se, surpreendida.
- Vai ter de dar contas da selvajaria que fez - rosnou ameaçadoramente. - Você e esse médico bem-falante.
- O Harry Benson vai ficar bom - disse Megan -, apesar da
sua interferência obscena. - Aproximou a cara da de Nesta. - Já a
tinha avisado para não se meter onde não é chamada, não tinha?
- A mulher foi-me chamar primeiro a mim - disse Nesta, desviando os olhos. - Fiz o que devia ser feito. A vossa interferência é
que fez mal ao rapaz.
Megan agarrou no ombro de Nesta.
- Já a tinha avisado. Não quis saber. - Apertou-lhe com mais
força o ombro, lembrando-se do contentamento triunfal de Timothy
e do que podia ter acontecido se ele não tivesse conseguido salvar
Harry Benson.

- Está a magoar-me, é o que está a fazer! - Nesta tentou libertar-se e Megan apertou ainda com mais força. - Deixe-me! -- Nesta fungou e pigarreou e Megan afastou a cara mesmo a tempo de
não ser atingida por um escarro.
- Animal! - Megan fez força com os dois braços, empurrando
os ombros de Nesta e dando largas a um impulso que a acometera já
há alguns segundos. Empurrou-a com força para a frente e recuou de
repente. Nesta passou por cima do muro da ponte, agitando as pernas num turbilhão de saias sujas, e caiu de chapão na água.
Megan debruçou-se, vendo a mulher, que se levantou a custo até
ficar de joelhos dentro de água, encharcada e aos berros, tentando
apanhar o saco atado com um cordel, que flutuava rio abaixo.
- Da próxima vez, Nesta Mogg, ainda vai ser pior!
Megan voltou-Lhe as costas e foi-se embora. O coração batia-lhe
com força e a satisfação cantava-lhe nas veias. Estava ansiosa por
contar a Timothy o que fizera. É claro que ele não ia aprovar e de
resto tinha toda a razão. Mas ia também ficar encantado. ??Que
dia!??, pensou, estugando o passo.


Dez


NA SEGUNDA-FEIRA 4 de Junho, Megan chegou ao consultório com
um ramo de flores silvestres para pôr na jarra que estava ao pé da
janela. Bateu à porta e entrou, mas depois ficou paralisada. Não era
Timothy que estava sentado à secretária: o homem que lá se encontrava era o Dr. O'Casey.
Megan ficou a olhar para ele.
O'Casey retribuiu-lhe o olhar. Apontou para as flores.
- Estou a ver que já sabia que eu tinha voltado. Estou comovido, Megan.
Megan achou que ele tinha melhor aspecto do que nunca, mas
essa constatação foi abafada pela surpresa.
- Que é que está aqui a fazer?
- Ah, então quer dizer que não sabia que eu tinha voltado. Pois
voltei. Estava farto. A Irlanda é muito bonita, mas há semanas que
estava ansioso por voltar ao trabalho. Como vê, estou como novo e
cheio de entusiasmo. Voltei para o meu cantinho.
- Onde é que está o Dr. Morns?
- Neste momento - disse O'Casey, tirando o relógio do bolso
e vendo as horas -, deve estar a fazer as malas.
O coração de Megan começou a bater com força.
- A fazer as malas?
- Para a viagem para Londres. - O Dr. O'Casey fez-lhe um
grande sorriso. - Se calhar está aborrecida, Megan, mas não tem
razão. Sei que detesta que façam as coisas sem lhe dizerem nada,
Mas acontece que telefonei ao Dr. Morris na quinta-feira para lhe
dizer que não aguentava ficar mais tempo fora. Chegámos a um
acordo. Como ele tem tido imenso trabalho na minha ausência, uns
dias de férias faziam-lhe bem mas tive de insistir muito. Depois
dessas férias, ficamos a trabalhar juntos até ao fim do contrato. O
que me deixa muito satisfeito.
- Disse que ele ia para Londres? - Megan começava a sentir-se embaraçada por ter trazido flores. - Estou admirada por ele não
me ter dito nada.
O'Casey ajeitou as mãos no tampo da secretária.
- Não faça essa cara tão ofendida. Daqui a pouco, vai perceber
tudo. - Fez uma cara feia, a fingir que estava zangado. - Nem
sequer me disse que estava satisfeita por eu ter voltado.

- Claro que estou. Só que foi uma surpresa. - Megan esforçou-se por dominar o tumulto de recordações que a assaltavam. De princípio, tinha sentido tanto a falta do Dr. O'Casey! E agora, apesar de
ficar contente por o tornar a ver, tinha a sensação de que ele estava
a mais.
- Para quem são as flores?
Megan corou.
- Achei que davam um ar mais alegre ao consultório.
- É claro que dão! - O'Casey levantou-se, tirou as flores das
mãos de Megan e pô-las na jarra, depois sentou-se outra vez atrás da
secretária. - O Dr. Morris fez um óptimo trabalho com as fichas
dos doentes, e as suas notas estão esplêndidas, como sempre, Megan. Se não fosse toda esta nova energia, tinha quase a sensação de
nunca ter estado fora.
Megan sabia que, se ficasse ali mais tempo, ia ficar impaciente.
- E melhor eu ir andando para as minhas visitas - disse. -- Estou muito contente por o ver outra vez por cá.
Durante o resto da manhã, Megan esforçou-se por não pensar no
que tinha acontecido. Mas as tentativas para refrear os seus pensamentos eram inúteis porque eles voltavam ainda com mais força.
Agora que o Dr. O'Casey estava de volta, tinha de começar a habituar-se à ideia de que Timothy ia sair de Pencwm. E depois?
Às 11 horas, foi fazer a sua visita diária aos Hewletts para ver
Denis, que estava tuberculoso. Denis tinha dezasseis anos e estava
apaixonado por Megan. Tornava-se embaraçoso para ela ver o seu
olhar de adoração, mas em termos terapêuticos era um autêntico
bónus. O moral para um doente com tuberculose é de importância
crucial: a boa disposição é mais eficaz do que os remédios.
- Como é que te sentes esta manhã, Denis? - Megan sentou-se
na cadeira ao lado da cama. - Tens passado melhor da tosse com o
novo remédio?
- Estou muitíssimo melhor. - O rapaz tinha um aspecto precocemente envelhecido, com a pele da cara fina e translúcida. -- Estou mesmo melhor. Até me levantei da cama e estive um bocado
sentado na sala ontem à noite.
Mrs. Hewlett trouxe uma chávena de chá a Megan.
- Como é que o acha esta manhã, Sr.á Enfermeira? - perguntou.
- Ele já me disse que se sente muito melhor - respondeu
Megan.
Esta resposta evasiva era a única alternativa a uma mentira.
Denis não estava melhor, e se calhar nunca iria melhorar.
Além da pergunta do costume sobre como é que achava o rapaz
nesse dia, a mãe de Denis nunca perguntava nada a Megan sobre o
estado do filho. Mrs. Hewlett sabia que a tuberculose era uma
doença grave, mas não era capaz de aceitar uma coisa evidente -- que o filho estava de dia para dia mais incapaz de agarrar a vida.
Megan apercebia-se de que havia muitas semelhanças entre a atitude de Mrs. Hewlett e a sua própria recusa em pensar muito na
doença de Timothy nesses últimos tempos. Devia ser uma defesa
instintiva, uma maneira de evitar o sofrimento até ao dia em que se
tornasse inevitável.
Megan pensou outra vez no assunto depois de ter saído de casa
dos Hewletts. Pressentia que não podia continuar a evitar todos os
pensamentos acerca do futuro de Timothy e do seu. Pouco depois do
incidente com Nesta Mogg na ponte, Megan tomara uma decisão.
Nunca iria submeter Timothy, nem submeter-se a si própria, à tensão de lhe revelar o seu amor por ele. E não ia pensar mais no estado
de saúde dele. Até à data, isto resultara. Mas agora a situação estava
a mudar e começava a sentir-se novamente inquieta.

Quando se dirigia para a visita seguinte, aproximou-se um automóvel a buzinar. Megan parou, franzindo o sobrolho. Era Timothy.
O médico pôs a cabeça fora da janela.
- Tenho andado à sua procura por todo o lado.
Megan tinha vontade de lhe fazer várias perguntas ao mesmo
tempo: porque é que não lhe tinha dito que o Dr. O'Casey ia voltar?
Porque é que ia a Londres? Como é que era ao certo o acordo que
eles tinham feito? Mas não teve oportunidade para fazer nenhuma
dessas perguntas.
- Combinei tudo às escondidas, Megan, e espero que não fique
muito zangada comigo. Queria fazer-lhe uma surpresa. Vou para
Londres amanhã de manhã. Três dias de férias. Não quer vir comigo?
Megan não sabia o que dizer.
- Eu ... Não posso largar tudo assim de repente e ir para
Londres. - Timothy queria que ela fosse com ele! - Que é que ...
- Tratei de tudo, Megan. O Dr. O'Casey não se importa de
acumular o trabalho de enfermeira durante estes dias.
- Ele já sabe?
- Falei-lhe nisso assim que ele voltou.
Megan desviou o olhar para a estrada, com o coração aos pulos
de alegria. Era demais para ser verdade. Depois, fitou novamente
Timothy.
- Mas porquê? Porque é que quer que eu vá consigo?
- É para lhe agradecer - disse Timothy, sorrindo. - Pela sua
ajuda e compreensão. Por ser uma óptima companheira. Então, que
é que me diz? Vai ficar furiosa por eu ter resolvido tudo de uma
forma tão machista, volta-me as costas e pedala para longe, ou vai-me dizer que sim, que vai comigo?
Megan sorriu, e a sua expressão de alegria era já uma resposta.

Geoffrey Lloyd levou duas chávenas de café até ao banco que
ficava junto à janela e deu uma a Timothy.
- Acho que a primeira coisa que deve ter estranhado quando
voltou foi o ritmo de vida aqui.
- Claro. - Timothy percorreu com o olhar o elegante consultório. - Isso e o facto de nem sequer me dar conta da luxuosidade
que aqui tinha. Só queria que visse o consultório onde tenho trabalhado. Uma coisa pré-histórica.
- E o trabalho, pareceu-lhe tão satisfatório como esperava?
- Sim - respondeu Timothy. - Quem me dera ter começado a
exercer medicina daquela maneira há muitos anos. Tenho a sensação de estar a fazer um trabalho importante e necessário. Ganha-se
pouco, mas as recompensas emocionais são consideráveis.
- Então, não foi tudo um engano. Ficou mesmo convencido de
que estava a desperdiçar os seus talentos profissionais aqui?
- Fiquei. Mas apesar de tudo o que disse, não estava muito convencido de que os confins do País de Gales fossem a solução para a
minha inquietação. Só queria ir-me embora de Londres, antes ...
antes de não poder continuar a desfrutar das pessoas, dos lugares e
dos acontecimentos daqui ... de tudo aquilo que eu gostava. Queria
relegar tudo isso definitivamente para o passado, e para o presente
precisava de arranjar um trabalho muito absorvente. O País de Gales
é a minha terra natal, por isso pareceu-me uma boa alternativa.
Geoffrey olhava para a rua, franzindo o sobrolho.
- É difícil falar nisto. - Olhou de soslaio para Timothy. -- Porque é que mudou de ideias e me veio ver? A sua carta pareceu-me muito determinada.
- Mudei de ideias. A minha espiral descendente de mau humor
acabou e comecei a subir outra vez. Em vez de embrutecer o espírito

com o trabalho árduo, comecei a gozar a vida. Foi por isso que resolvi vir visitá-lo, quanto mais não fosse para o sossegar, para Lhe
mostrar que não estou a definhar de tristeza.
- Não há dúvida de que tem um ar bastante satisfeito - disse
Geoffrey. - E que é que está na origem dessa mudança?
- Uma mulher - respondeu Timothy. - Uma mulher excepcional.
Na cara de Geoffrey desenhou-se a sombra de um sorriso.
- Quem é ela?
- Chama-se Megan Roberts. É a enfermeira de Pencwm. Tem
sido um anjo. Apesar de nos primeiros tempos eu ter achado que
havia o perigo de ela me deitar veneno no chá. Não simpatizou nada
comigo. Mas desde o princípio deste ano que me tem ajudado imenso em tudo, fez-me companhia nas poucas horas vagas, reformulou
os horários para me aliviar a carga de trabalho ... e é uma mulher
extremamente encantadora e inteligente.
- Parece a mulher ideal. - Geoffrey semicerrou os olhos. Nos
seus tempos, Timothy tivera vários casos amorosos. - Vocês ...?
- Não - respondeu Timothy com firmeza. - A nossa relação
é platónica. - Olhou para Geoffrey. - Não acredita?
Geoffrey encolheu os ombros.
- Se é você que o diz, é porque é verdade.
- Ouça. - Timothy pousou a chávena no pires. - Vou ser franco e pôr tudo em pratos limpos. Sou um homem que conseguiu
esconder a sua doença durante muito tempo. Tenho a certeza de que
você nunca suspeitou de nada.
- Não. Nunca.
- É uma insuficiência cardíaca. Tive o primeiro aviso há dois
anos. Você conhece bem os sintomas, Geoffrey. Tinha-os todos.
Portanto, já vê. No meu estado, não podia ter uma relação a sério. E
menos do que isso seria um insulto para Megan Roberts. Se a conhecesse, percebia o que eu quero dizer.
- Quer dizer que em circunstâncias diferentes teriam namoro?
- perguntou Geoffrey, tentando falar em voz calma.
Timothy pestanejou.
- Não sei. Acho que Megan não sente qualquer atracção por
mim.
- E você? - insistiu Geoffrey. - Que é que sente por ela?
Tanto quanto me parece, ela desperta-lhe sentimentos profundos.
Timothy ficou calado durante uns instantes.
- Tenho-me esforçado por disciplinar os meus pensamentos.
Não analisei os meus sentimentos mais profundos em relação a ela.
De qualquer maneira, não tenho o direito de me apaixonar.
Geoffrey pousou a chávena e o pires com tanta força que a louça
tiniu.
- Bolas, Timothy! Não consigo aceitar isto. Eu ... - Abanou a
cabeça com força. - Bolas!
Timothy estendeu a mão e tocou no braço de Geoffrey.
- Não tenha pena de mim. Por favor. Tenho um certo tempo de
vida e você também. Só que no meu caso esse tempo é mais curto, e
pronto. Mas, por outro lado, já vivi bastante. Pode invejar-me por
isso, se quiser. Não me importo que me invejem.
- Mas está tudo errado - protestou Geoffrey. - Você é um
médico brilhante, um homem capaz de tirar o máximo partido da
vida ... - Passou a mão pelos olhos. - Queria dizer-lhe tantas coisas e não sou capaz, estou a ficar comovido ...
- Então, deixe-me falar a mim - replicou Timothy. - Sinto-me revoltado com o que me está a acontecer, não posso negá-lo.
Mas não posso começar a ter pena de mim, nem as outras pessoas

devem fazê-lo. Tive uma boa vida; não, tenho uma boa vida. Aqui,
neste consultório, contactei com pessoas que levavam vidas ociosas
e inúteis. Em Pencwm, vejo pessoas que têm uma vida marcada pela
maior das tristezas. Considero-me feliz em comparação com qualquer destes casos. Até agora, tenho tido uma vida muito feliz. E é
preferível morrer enquanto ainda sou feliz ..
Geoffrey suspirou. Olhou para Timothy e? viu que ele sorria.
- Nunca conheci ninguém assim, Tim. Você é fenomenal. -- Desistiu, sorrindo também. - Quer mais café? - perguntou, levantando-se.
- Não, tenho de me ir embora. Combinei com Megan encontrar-me com ela à porta do Museu Britânico ao meio-dia.
- Ela está cá? - Geoffrey pegou nas chávenas. - Julguei que
tinha dito ...
- É tudo muito como deve ser - interrompeu Timothy. -- Queria fazer-lhe um gesto de gratidão e pareceu-me que era a oportunidade ideal. - Fez um ar sério. - Geoffrey, a Megan e eu somos
amigos. Bons amigos. Já lhe disse. Nunca permitiria que houvesse
mais nada entre nós. Não podia ser assim tão egoísta nem irresponsável, atendendo às circunstâncias. - Timothy apontou para a cafeteira. - Afinal, acho que vou tomar outro café.
Recostou-se e fez um sorriso, consciente de que Geoffrey não
acreditara totalmente nas suas palavras. Timothy interrogou-se momentaneamente sobre os seus verdadeiros sentimentos em relação a
Megan. Mas essa curiosidade foi imediatamente abafada por um
desejo ardente de pensar noutra coisa.

MEGAN estava à porta do Museu Britânico a observar Timothy,
que chamava um táxi.
- Onde é que vamos?
- Vamos a Chelsea, a um restaurante que eu conheço e de que
gosto imenso.
Era o primeiro dia completo que passavam em Londres. Tinham
chegado na véspera ao fim da tarde. Timothy estava com um ar bastante cansado. No luxuoso hotel de Knightsbridge, como Megan
nunca vira igual, ficaram em quartos adjacentes. Timothy descansara até às 7 horas, enquanto Megan fora comprar postais e passara
uma hora a escrever a Mrs. Pughe-Morgan, a Rose e aos Brewsters,
falando-lhes de coisas que até à data só vira e ouvira pela janela do
táxi. Às 7.30, ela e Timothy jantaram no hotel. Depois, foram à última sessão de uma revista da Shaftesbury Avenue e regressaram ao
hotel, felizes e cansados, uns minutos depois da meia-noite.
Agora, percorrendo de táxi as ruas movimentadas da cidade,
Megan percebeu de repente que se sentia mais feliz que nunca. Estava a desfrutar de uma avalancha de novas experiências na companhia de um homem que lhe monopolizava os pensamentos e o coração como' ninguém o fazia há muitos anos. Não podia haver nada
melhor.
- Como é que: -- estava o seu antigo colega? - perguntou a Timothy. - Ficou contente de o ver?
- Acho que sim. Falámos dos velhos tempos como se não nos
víssemos há muitos anos e despedimo-nos prometendo que íamos
continuar a dar notícias regulares um ao outro. Foi uma manhã agradável. - E uma manhã triste. Quando se despediram, Timothy percebeu que Geoffrey estava quase a chorar.
- Tentou convencê-lo a voltar?
- Ao princípio - respondeu Timothy. - Até perceber como eu
estava enfeitiçado por Pencwm.
- Claro. Londres não tem a menor hipótese ao pé de um lugar

daqueles.
Riram ambos. Timothy apertou a mão de Megan - num gesto
breve e muito natural - e o coração dela exultou. Riu outra vez,
sentindo crescer em si aquela felicidade transbordante da adolescência, acompanhada da certeza irracional de que o presente é eterno.

O TEMPO voou, mas aproveitaram ao máximo a estada em
Londres. Viram pela primeira vez um filme sonoro, chamado The
Singing Fool, num cinema da Leicester Square. Entraram nas livrarias da Charing Cross Road com uma alegria infantil, folheando
livros e comprando alguns. Passearam no Hyde Park e resolveram
impulsivamente subir o rio de barco até Kew, explorando, deslumbrados, as maravilhas botânicas dos jardins. Nunca paravam de
fazer coisas novas e guardavam ciosamente a recordação de todos
os momentos.
Na última noite que passaram na capital, Timothy anunciou que
iam jantar ao Tavistock.
- Vai adorar - disse. - Mas tem de pôr de lado os seus preconceitos de classe durante umas horas. O Tavistock dedica-se ao luxo
ostensivo. - Piscou o olho. - E eu às vezes também.
Megan levou uma hora a arranjar-se. Escovou muito bem o seu
cabelo escuro, penteando-o em ondas soltas caídas sobre os ombros,
e cedeu à tentação dos cosméticos. Vestiu um fato de linho azul-escuro e pôs um alfinete de prata que Mrs. Pughe-Morgan Lhe tinha dado no dia em que fizera vinte anos. Antes de sair do quarto, olhou-se ao espelho do toucador.
- Não estás nada mal para trinta e cinco anos - disse para a sua
imagem no espelho, e depois deu uma gargalhadinha, sentindo-se
mais nova e feminina, como não lhe acontecia há muitos anos.
O Tavistock era impressionante. A sala, muito alta e circular,
mais parecia um salão de banquetes do que um restaurante, com
arcos que abriam para recantos discretos situados fora do seu perímetro. As paredes estavam forradas de seda acolchoada cinzento-clara e os lustres de cristal derramavam uma luz suave sobre as
toalhas adamascadas das mesas.
Depois de se sentarem, Timothy disse:
- Sabe, Megan, você hoje está linda. Esplendorosa, de facto.
- Acho que o ambiente tem muito a ver com isso.
Megan recordou repentinamente uma imagem - ela, aos doze
anos, descalça e a tremer de frio numa manhã de Inverno, pondo a
cafeteira ao lume à hora a que o pai se levantava para ir trabalhar na
mina de ardósia. E olha agora, pensou. Rodeada por todos os lados
por senhoras elegantes acompanhadas por homens bem vestidos,
todos eles a tresandarem a dinheiro e a privilégios. E ali estava ela,
Megan Roberts, a enfermeira de Pencwm, no meio daquela gente.
A sua meditação foi interrompida pela chegada do criado com as
ementas.
- Muito bem - disse Timothy, abrindo a grande folha enfeitada com uma borla. - Vamos dar largas à nossa gula pecaminosa.
A refeição que se seguiu ocuparia sempre um lugar proeminente
no tesouro de recordações destas férias que estava a amealhar, pensou Megan.
- Faça de conta que é a nossa festa de despedida - disse Timothy, uma observação que entristeceu subitamente Megan, mas que
ela logo se esforçou por esquecer.
Começaram com um crème St. Germain, acompanhado com
uma garrafa de Borgonha branco. O prato principal foi faisão mandarim. Os acompanhamentos - gratin Dauphinois, ervilhas frescas, cenouras de Vichy e salada de couve-roxa com um tempero
magnífico - só por si teriam constituído uma excelente refeição. O

vinho, um Bordéus tinto chamado Martillac, era o complemento
perfeito. Remataram com uma sobremesa tradicional, o syllabub, e
recostaram-se nas cadeiras, alegres e satisfeitos, à espera do café e
do brandy.
Timothy cruzou os braços com um ar feliz.
- Diga lá, gostou mesmo disto tudo? De vir a Londres e das
coisas que fizemos?
- Pensei que não era preciso perguntar. Acho que se deve perceber bem. - O vinho estava a exercer efeito sobre a sua disposição, pensou Megan, pois sentia-se docemente melancólica. -- Nunca me diverti tanto em toda a minha vida. - Uma observação
muito espontânea talvez um tanto ou quanto imprudente, pensou,
mas que era sem dúvida verdadeira. - Não sei como é que alguma
vez lhe hei-de agradecer.
- Arriscando-me a parecer um poeta de trazer por casa - disse
Timothy -, atrevo-me a dizer que já me agradeceu de sobra por ter
passado este tempo na minha companhia.
O momento era precioso e Megan esforçou-se por prolongá-lo.
Olhava Timothy nos olhos sem tentar esconder o que sentia. O que
eu estou a ver é amor, diziam-Lhe os seus pensamentos. Ficaram
assim a olhar um para o outro, imóveis, e Megan sentia-se simultaneamente triste e alegre, um estado de espírito que se cristalizou num pensamento, a recordação do vento de neve. Era uma expressão que ouvira muitas vezes em criança, nos dias bonitos de Outono
em que começava a soprar de repente uma brisa gelada anunciando
a aproximação do mau tempo.
- Quero dizer-lhe uma coisa, Megan.
A felicidade de Timothy levava-o a ter vontade de ser sincero.
Os olhos dele tinham uma expressão franca. Megan, assustada,
endireitou-se na cadeira, procurando desesperadamente um pretexto para mudar de assunto. Sabia instintivamente porque é que ele
lhe queria revelar o seu segredo. Mas não podia ser; isso iria perturbar a harmonia.
- Espero que não seja nada sério - disse, forçando a brincar
uma nota de desaprovação. - Estou um bocado tonta e sinto-me
bem assim. Prefiro falar de coisas estúpidas do que de coisas sérias,
se não se importa.
O perigo passou. Ele acenou com a cabeça, regressando ao terreno do prazer do momento. Chegou o café e o brandy.
- Foi uma noite formidável - disse Megan, levantando o copo.
- Se foi! - Timothy rodou o brandy no copo. - Que pena ter
de acabar.
Megan concordou com um gesto de cabeça, pensando repentinamente que, pelo menos na sua vida, houvera muitos fins que contrastavam tristemente com princípios felizes. Mas estava decidida a
não pensar no futuro. Nada de pensar no vento de neve, disse de si
para consigo. O presente era demasiado bom para ser contaminado
pelo que estava para vir.

- insisto, - afirmou Timothy no átrio do hotel. - Tem de vir
ao meu quarto tomar um último brandy. - Timothy mostrava bastante determinação e ao mesmo tempo fingia estar razoavelmente
embriagado para ela ceder com mais facilidade.
- Está bem, só mais um - disse Megan enquanto se dirigiam
para o elevador.
Tinham vindo do Tavistock a pé. Passando pelas ruas tranquilas
de Mayfair, gozando o ar da noite, a certa altura estavam de braço
dado. Megan não se lembrava como é que acontecera; só reparou de

repente, quando já tinham o hotel à vista. Quase no mesmo momento, Timothy parara a olhá-la.
- Nós os dois - disse, e depois parou, muito próximo dela. -- Somos ... somos uma coisa muito especial.
Megan assentiu com um gesto de cabeça e replicou:
- Pelo menos para nós.
Timothy fez um ar embaraçado, como se tivesse dito qualquer
coisa que não devia. Mas quando chegaram aos degraus do hotel,
estava outra vez alegre e brincalhão.
Quando entrou no quarto com Megan, essa disposição mantinha-se. Já lá dentro, voltou-se para ela e exclamou em tom de brincadeira:
- Enfim, sós!
Enquanto foi buscar a garrafinha de brandy à mala, Megan olhou
à sua volta, notando o silêncio que reinava no quarto. Apesar dos
modos pretensamente despreocupados de Timothy, a verdade é que
estava a criar-se entre eles uma atmosfera muito pesada. Timothy
trouxe dois pequenos copos de metal cheios de brandy quase até
acima. Entregou um a Megan. Começaram a beber pequenos goles
de brandy, sorrindo um para o outro.
- Que pena isto ter de acabar daqui a tão pouco tempo - disse
Timothy.
- Mas por enquanto ainda não acabou.
Megan observou a expressão de Timothy. Dissera aquilo inocentemente, como quem diz ??Não vale a pena pensar no futuro??, ou
pelo menos estava convencida disso. Os olhos de Timothy semicerraram-se durante uns instantes, como se estivesse a sentir uma dor.
Pousou o copo. Megan, com a sensação de que estava a obedecer ao
destino, deixou-o também pegar no seu copo e pô-lo na mesa ao lado
dele. Olharam um para o outro. Timothy aproximou-se, mas depois
fechou os olhos com força e virou-se para o lado.
- Que foi?
- Megan ... - Olhou outra vez para ela. - Não devia ter permitido que as coisas chegassem a este ponto.
Megan achou que não valia a pena fingir que não percebia o que
é que ele queria dizer.
- Fomos cúmplices - disse. - Você não fez nada sozinho.
O vinho estava a bulir com a intensidade dos seus sentimentos,
obrigando-a a revelar uma verdade que jurara manter secreta.
- Eu estou apaixonada por si há muito tempo.
Timothy olhou-a fixamente.
- E eu ... bom, acho que me tenho recusado a enfrentar o que
sinto por si. Mas lá muito no fundo sabia. - Aproximou-se novamente de Megan. - Mas não está certo ... não está certo, por uma
razão que eu Lhe quis dizer ...
- Acha que essa razão pode anular os seus sentimentos ou os
meus?
Timothy abanou a cabeça.
- Não, não pode, mas ...
- Então não me diga nada. - Estavam tão próximos um do outro que Megan sentia o hálito de Timothy na sua cara. Ouviu as suas
próprias palavras, como se não fosse ela a dizê-las: - Dê-me um
beijo, por favor. ?
O contacto das duas bocas desencadeou em Megan um turbilhão
delirante e vertiginoso. Sentiu o coração a bater com toda a força
quando Timothy pôs os braços em volta dela.
- Megan, não é justo. Eu ...
Ela beijou-o com ardor e murmurou:
- Um acto de puro amor não pode fazer mal a ninguém.

GLADYS Brewster já tinha o chá feito quando Wyn voltou da
reunião da Associação de Ajuda às Viúvas e Órfãos de Pencwm. A
tarde estava feia, ouvia-se o ribombar dos trovões a oeste.
- Como é que correu?
- Uma perda de tempo, como de costume. Foram apresentadas
três moções e as três aprovadas. As mesmas três moções que foram
aprovadas há seis meses, só que com uma forma diferente. Assim,
perdemos duas horas e não sobrou tempo para as questões práticas,
tais como pôr o programa de distribuição de suplementos alimentares a funcionar e organizar uma festa para as crianças.
Gladys deu uma chávena de chá a Wyn e ficou a olhar para o
irmão enquanto ele a tomava. Ultimamente, nunca estava contente.
Estava a ficar um velho rabugento, e nem sequer tinha quarenta
anos. Deitou um olhar furioso à janela quando ouviu Scratch a ladrar no pátio.
- Devíamos cobrar pensão a Megan pelo cão. Vai arruinar-nos
com o que come.
Gladys suspirou.
- Não digas disparates, está bem? Megan dá-me sempre dinheiro para comprar comida para o cão quando o deixa cá em casa. E tu
dantes gostavas de o ter cá.
- Dantes suportava-o - respondeu Wyn bruscamente. - Uma
pessoa sempre vai dando um jeito para ajudar os outros. É para isso
que são os amigos. Mas uma coisa é ajudar e outra coisa é abusarem
de nós.
- Não comeces outra vez com isso - avisou Gladys.
- É a verdade - disse Wyn, pousando a chávena. - Que é que
a Sr.á Enfermeira Roberts tem andado a fazer nestes últimos dias?
Anda na borga com o finório do Dr. Morris.
- Wyn! Páras com isso? Como é que tu sabes as razões do que
Megan faz? Estás só a dar largas a um despeito mesquinho.
Wyn voltou-lhe as costas e saiu da cozinha com um andar pesado. Quantas vezes é que aquilo tinha acontecido nos últimos tempos?, pensou Gladys. Era impossível falar com ele.
Scratch ladrou novamente, mas desta vez era um latido de excitação. Gladys espreitou pela janela. O portão do quintal estava aberto e Megan, agachada junto ao cão, brincava com ele.
Gladys dirigiu-se rapidamente à sala de estar, onde Wyn estava
sentado à mesa com um livro aberto à sua frente. Fitava as páginas
com um olhar feroz, como se o tivessem ofendido.
- Megan chegou - disse Gladys. - Por favor, porta-te decentemente.
Wyn levantou os olhos.
- Estás com medo que eu diga o que penso, é?
Gladys teve vontade de lhe bater.
- Porta-te como deve ser enquanto ela cá estiver. - Voltou à
cozinha e abriu a porta a Megan. Scratch veio atrás dela aos pulos,
sempre a ladrar.
- Então está de volta! - Beijaram-se e Gladys foi direita ao
bule do chá. - Está com óptimo aspecto. Tome uma chávena de chá
e conte-me tudo.
Megan pousou o saco das compras em cima da mesa.
- Trouxe presentes para os dois. Wyn está cá?
- Está na sala. - Gladys foi até à porta. - Wyn - chamou,
falando tão alto como se ele estivesse a vinte metros de distância. -- Megan está aqui! Trouxe-te uma coisa! - Voltou-se e viu Megan a
tirar um grande embrulho do saco. - Já lhe disse muitas vezes que
não devia gastar dinheiro a comprar-nos presentes.
- É uma coisa que eu gosto de fazer, Gladys - respondeu
Megan. - Este é para si.

Gladys começou a desembrulhar o seu presente.
- Oh! - Levou uma mão à cara. - Há que tempos que gostava
de ter uma coisa destas! - Quando Wyn entrou na cozinha com uma
expressão amuada, mostrou-Lhe a cafeteira de esmalte encarnado.
- Não é linda?
- Muito bonita - resmungou Wyn.
- Tenho aqui uma coisinha para si - disse Megan alegremente.
Wyn pegou no embrulho. Desatou a fita, abriu o papel e pegou
num livro encadernado a cabedal vermelho, com as margens douradas. Era Os Direitos do Homem, de Thomas Paine.
- Andava à procura disto já há um tempo ...
- Eu sei - replicou Megan.
- Foi muito simpática. - Wyn ficou a olhar para o livro, mas
não o abriu.
- Então conte-nos lá o que é que fez em Londres - disse Gladys.
Megan sentou-se à mesa enquanto Gladys deitava chá numa
chávena.
- Não sei por onde hei-de começar. Fiz tantas coisas e vi tantas
coisas. Fui ao Museu Britânico, a Kew, andei pelas livrarias, mas,
para dizer a verdade, passei mais tempo nos teatros e nos restaurantes do que em qualquer outro lado.
Gladys estava a tentar dar atenção a Megan e a Wyn ao mesmo
tempo.
- Foi sozinha? Quer dizer, ao teatro? Com certeza que o Dr.
Morris tinha muito que fazer ...
- Não, não - disse Megan. - Andámos quase sempre juntos.
Levou-me a lugares que eu nunca teria descoberto sozinha. Foi
maravilhoso. Como se fossem três férias só numas.
- Bem as merecia - declarou Gladys, dirigindo um olhar furioso a Wyn, que olhava para o tecto sem dizer nada.
- Foram uns dias memoráveis. - Megan inclinou-se e acariciou Scratch. - Como eu dizia agora mesmo a Timothy ...
- Ah! - Wyn descontrolou-se de repente. - Então agora já é
Timothy? - As duas mulheres ficaram a olhar para ele. - Já a
seduziu mesmo, não é verdade?
- Wyn - gritou Gladys. - Megan é uma visita! Se não és
capaz de ter tento na língua, põe-te já a andar daqui para fora!
- Com todo o prazer. - Wyn pôs o livro em cima da mesa, ao
lado de Megan. - Pensando melhor - disse, corando de raiva -,
não posso aceitar isso. Tenho a certeza de que Tom Paine não ficava
satisfeito se visse a obra dele assim tão bem encadernada. Pode dá-la ao seu amiguinho janota, com certeza que ele vai gostar de uma
coisa assim bonita e vistosa. - Wyn voltou-lhe as costas, afastou-se e entrou na sala. Pouco depois, ouviram bater a porta da frente.
Gladys tapou a cara com as mãos.
- Megan, peço imensa desculpa.
- Você não tem nada que me pedir desculpa - disse Megan,
levantando-se. - Sabemos ambas muito bem o que se passa com
Wyn. Vamos combinar uma coisa - continuou. - Venho cá amanhã visitá-la. Nessa altura, conto-lhe tudo o que fiz durante a minha
estada em Londres.
Quando chegaram à porta, Gladys pediu-lhe novamente desculpa. Megan apertou-lhe a mão e disse-lhe para não se preocupar. Saiu
para Vaughan Road, com Scratch colado a ela. Menos de um minuto
depois viu Wyn. Estava voltado para sul, a olhar para os montes,
com as mãos enterradas nas algibeiras.
- Wyn - gritou -, preciso de falar consigo!
Ele voltou-se.

- Acho que não há nada para dizer.
- Pois eu acho que sim. - Megan aproximou-se dele. - Preferia não termos de passar por isto, porque é difícil para ambos, mas
acho que temos de esclarecer este assunto.
- Não percebo do que é que está a falar - resmungou Wyn.
- Percebe perfeitamente. Refiro-me ao seu comportamento. E
não fique a olhar para mim como se fosse estúpido e não compreendesse nada do que eu estou a dizer. Anda a alimentar os seus ciúmes
há tanto tempo que o estão a envenenar.
- Não estou para ouvir isto. - Wyn fez menção de se ir embora,
mas Megan agarrou-Lhe na manga.
- Eu faço uma cena aqui no meio da rua, se não tiver outro
remédio - preveniu.
Ele soltou o braço e meteu outra vez as mãos nas algibeiras.
- Ouça. Sei o que sente por mim. Mas eu não tenho esses sentimentos em relação a si. Você e Gladys são para mim dois bons
amigos. Mas tenho o direito de ter outras amizades. Timothy Morris é meu amigo e você tem de aceitar isso.
- É seu amigo, não é? - Wyn esforçou-se por fazer uma cara de
desprezo.
- É. Está a insinuar que ele não é meu amigo?
- Não, pelo contrário, é mais do que isso.
Megan respirou fundo, dominando a sua vontade de lhe dar um
grito.
- Não me agradam nada as intenções com que diz isso, Wyn.
- E as intenções dele? Sabe quais são? - Falava numa voz
surda, como se tivesse relutância em pronunciar as palavras. -- Esse homem conspirou para a desviar do bom caminho ... e nem sequer lhe foi difícil. Nunca vi uma vítima de maior boa vontade ..
- Muito bem. - Megan chegou-se muito perto dele. - Nem
mais uma palavra. Pensei que era capaz de o chamar à razão, Wyn
Brewster, mas já estou a ver que é impossível. Você insultou-me e
insultou o Dr. Morris. Foi mesquinho e malvado. Nunca mais quero
saber de si, Wyn. Nunca mais.
Ao afastar-se, com o cão ao lado, sentiu o ardor das lágrimas nos
olhos. Como é que a felicidade de uma pessoa podia tornar outra tão
infeliz? E porque é que o sofrimento de Wyn a fazia sentir-se tão
vazia, tão desolada? Tinha a sensação de que estava a pagar por
alguma coisa. Quem lhe dera que Timothy ali estivesse. De repente,
sentiu um nó na garganta, pensando que gostava que ele estivesse
sempre ao pé dela.

Onze

NumA sexta-feira de Agosto, de manhã cedo, Megan foi chamada a
casa de Denis Hewlett. Disseram-lhe que nessa noite ele estivera
com febre muito alta durante uma hora. Começara a delirar, chamando pela enfermeira Roberts. Quando Megan chegou lá a casa,
Denis parecia muito pequenino e encolhido dentro do pijama lavado
que a mãe lhe vestira. Fez a Megan o seu sorriso cadavérico quando
ela se sentou na borda da cama.
- Está um lindo dia - disse. - Não me importava de me sentar um bocado lá fora.
- Qualquer dia - disse Megan. - Mas hoje não, Denis. Estiveste com febre de noite. E quando isso acontece, o melhor é descansar dentro de casa. Na segunda-feira, logo vemos se podes ir lá
para fora.
Apanhar sol era a última coisa que os tuberculosos deviam fazer,

pois pensava-se que acelerava a doença. Mas os pulmões de Denis já
estavam cheios de cavernas escavadas pela doença. E agora talvez
fosse mais importante deixá-lo gozar ao máximo a vida do que tentar evitar o agravamento da doença.
- Posso ficar muito tempo lá fora?
- Uma hora mais ou menos. - Reparou que as narinas de Denis
palpitavam e que ele tentava abafar um bocejo. Uma simples conversa era suficiente para o cansar. - Agora, vou dar uma palavrinha
à tua mãe. Tenta descansar.
Mrs. Hewlett já tinha uma chávena de chá à espera de Megan.
- Este tempo abafado não é bom para a tosse, pois não? - perguntou, dando a chávena à enfermeira.
- Não, não é nada bom. - Tosse, pensou Megan. Chamar
àquilo tosse era o mesmo que dizer que a ruptura de uma úlcera
gástrica era uma indigestão. Mas Mrs. Hewlett havia de se apegar às
suas ilusões até ao último momento. A palavra ??ilusões?? desviou os
pensamentos de Megan para outras águas. Nas semanas que se
seguiram ao regresso de Londres, Timothy parecera de excelente
saúde. Por isso, apesar de tudo o que sabia, Megan tinha começado
a acreditar outra vez que o inevitável estava a ser contrariado.
- Ele disse que gostava de ir apanhar sol lá para fora - observou Mrs. Hewlett.
- Pois, falou-me nisso. Mas disse-lhe que talvez pudesse ser
para a semana que vem. - Megan engoliu rapidamente o chá e levantou-se. - Na segunda-feira, torno a passar por cá - disse.
Afastando-se de casa dos Hewletts na sua bicicleta, Megan foi
assaltada pela certeza de que Denis Hewlett estava irrevogavelmente condenado.
??O melhor é não pensares mais nisso??, sussurrou para si mesma.
Era preferível a pessoa apegar-se às ilusões enquanto elas duravam. Ao fim e ao cabo, o desespero é um exemplo irrefutável de
uma ponte que só deve ser atravessada quando lá se chega.

O doutor O'CAsEY surpreendeu-se com o facto de ter ficado tão
chocado. Sabia que aquelas coisas podiam sempre ser repentinas.
Mas quando viu Timothy Morris ofegante e com a boca roxa, ficou
paralisado durante uns instantes.
Assim que recuperou a presença de espírito, tirou o casaco a
Timothy, recostou-o na cadeira giratória, desapertou-lhe a gravata
e puxou-Lhe a manga da camisa para cima. A injecção de digitalina
fez logo efeito; ao fim de um minuto, recuperara a cor e já respirava
melhor.
- Acho que lhe devo uma explicação, Dr. O'Casey - disse em
voz ofegante. - Insuficiência cardíaca ...
- Não fale. Encoste a cabeça para trás e respire fundo.
Timothy obedeceu. O'Casey ficou sentado a olhar para ele. Ao
fim de uns minutos, o Dr. O'Casey perguntou:
- É o primeiro ataque deste género?
Timothy assentiu com um gesto de cabeça.
- Estava convencido de que ia ser menos espectacular. Mas
tenho isto desde criança. Febre reumática.
O'Casey levantou-se.
- Vou levá-lo para o hospital.
- Não. Por favor, não faça isso.
- Mas você está doente, homem! Tem o coração a pular no peito
como um pássaro apanhado numa armadilha. Precisa de cuidados
especiais.
Timothy endireitou-se na cadeira.
- Já tomei providências. Tenho uma tia em Newport. Ela está

preparada para o meu regresso a casa ... Já há muito. O número de
telefone dela está na algibeira de cima do meu casaco. Se não se ?
importa, telefona-lhe ...
O Dr. O'Casey encontrou o bocado de papel e tirou-o.
- Acha que ela está à altura? Vai precisar de muitos cuidados na
convalescença. Estas coisas não passam assim ao fim de umas horas, sabe muito bem disso. ?
- Não há problemas - disse Timothy. - A minha tia era enfermeira-chefe de um hospital antes de se reformar. - Fez um ligeiro
sorriso. - Para além deste coração manhoso, a minha vida está
muito bem organizada. A tia Dilys manda buscar-me de carro. Basta só explicar-lhe o que aconteceu.
O Dr. O'Casey pegou no telefone, mas depois imobilizou-se.
- E Megan? Tenho de a prevenir.
- Depois. Quando eu me tiver ido embora. Tenho uma carta
para ela. Deixo-lha a si.
- Não a quer ver?
Timothy ficou a olhar para o tampo da secretária, ofegando.
- Não há nada que eu queira mais do que vê-la. Mas não devo.
- Levantou os olhos. - Deve ter reparado numas coisas, não é
verdade? Não podia deixar de notar.
O'Casey encolheu os ombros.
- Percebi o suficiente, parece-me ...
- O suficiente para saber que não posso sujeitar Megan ao que
vai seguir-se.
Ao fim de uns instantes de silêncio, o Dr. O'Casey suspirou e
olhou novamente para o bocado de papel.
- Você é um homem notável, Timothy Morris - murmurou,
marcando o número.

A lUz que restava lá fora tingia de cor de laranja-escuro o contorno dos montes. Megan aproximou-se do candeeiro que estava em
cima da secretária, agarrando na carta com as mãos a tremer e tentando absorver as palavras.

Minha querida Megan
Já aí não estarei quando ler isto. Peço-lhe que leia com atenção
e que leve a sério o que lhe digo, sem se esquecer de que a amo como
nunca amei ninguém.

Megan levantou os olhos e o Dr. O'Casey, que estava sentado
por detrás da secretária, começou imediatamente a brincar com a
faca de papel.
- Porque é que não me diz para onde é que ele foi? Tenho o
direito de saber!
- Ele pediu-me para lhe dar a carta. Se a ler até ao fim, talvez
compreenda.
Megan olhou outra vez para a folha de papel, pestanejando para
reprimir as lágrimas de cólera e receio.
Estou doente há muito tempo, e nestas últimas semanas percebi
que você o sabia. Não lhe vou falar da minha doença - só quero
pedir-lhe desculpa e tentar consolá-la. Em primeiro lugar, peço-lhe
desculpa pelo sofrimento que esta separação lhe vai causar; nunca
devia ter deixado que os sentimentos me fizessem esquecer as minhas responsabilidades. Em segundo lugar, quero que saiba que
nunca estarei realmente longe de si. Vai viver no meu coração - o
meu fraco coração - até ao fim.


A carta continuava, mas Megan não foi capaz de ler mais.
- Tem de me dizer para onde é que ele foi.
- Megan ... - O Dr. O'Casey estendeu as mãos num gesto de
impotência. - Tenho de respeitar os desejos dele. E devo dizer-lhe
com franqueza que acho que ele tem razão. Que é que você pode
fazer por ele? Ele já está num estado em que ...
- Começou a entrar em declínio - disse Megan com a voz a
tremer. - Já aconteceu, e eu sabia que ia acontecer. Porque é que
não o posso ver?
- Acho que ele não quer que o veja assim. Ele preferia ...
- Preferia que o recordasse como era. Mas eu sou capaz de enfrentar o estado em que ele está. Sr. Doutor, por amor de Deus, diga-me para onde é que ele foi.
O'Casey tapou a cara com as mãos.
- Eu dei-lhe a minha palavra.
- Então resta-me procurá-lo sozinha. - Megan enfiou a carta
na algibeira e dirigiu-se para a porta.
- Megan, pense bem no que disse. Lembre-se das suas responsabilidades aqui, não se precipite.
Megan saiu para o crepúsculo cor de púrpura com um passo firme, mas sentindo o coração cair-lhe aos pés. Quando chegou junto
ao portão, parou, encostou a cara ao pilar de pedra e deixou as lágrimas correrem livremente.
- Maldito sejas, Timothy Morris - soluçou, recordando a cara
do seu amor, e foi inundada por uma angústia que desfez para sempre a sua querida ilusão.

ToDos os sábados de manhã, Dilys Carter levava para a sala de ?
estar um espanador de penas. Durante vinte minutos, levantava o pó
da colecção de bibelôs vitorianos que herdara. Este ritual, que em
nada contribuía para a limpeza da colecção, era no entanto agradável e tranquilizante. Dilys sentia-se sempre melhor depois desse trabalho. Mas neste sábado estava tão agitada quando acabou de limpar o pó como antes de ter começado.
Parou lá fora, na grande entrada alcatifada de cor escura, junto às
escadas, a escutar não sabia bem o quê. Timothy estava a dormir no
quarto, no segundo andar. Adormecera uma hora depois de ter chegado, na véspera à noite. E já era quase meio-dia. Mas, a avaliar
pelo aspecto dele, devia dormir durante a maior parte do dia, pensou
Dilys.
A aldraba da porta bateu com força, sobressaltando Dilys. Ficou
à espera que quem quer que fosse desistisse. Mas bateram novamente, com mais força ainda. Dilys percebeu que quem batia estava
decidido e tinha pressa. Avançou e abriu á porta.
Viu uma mulher lá fora no degrau, uma rapariga bonita, muito
pálida, que tinha na mão enluvada de preto uma pequena mala de
cabedal.
- Miss Carter?
- Sou eu.
- O meu nome é Megan Roberts. Sou amiga do seu sobrinho
Timothy. Queria vê-lo, se faz favor.
- E que é que a fez supor que ele estava aqui? - Dilys revestiu-se da sua expressão severa de enfermeira-chefe, utilizando um tom
imperioso. O doente não tinha visitas. Timothy insistira nisso. Não
queria ver ninguém.
- Tenho a certeza de que ele está aqui, Miss Carter. A senhora
é a única pessoa de família que ele tem. De resto, ele falou-me em si
e nesta casa.
Dilys percebeu que esta mulher tinha uma personalidade forte,

honesta e franca, semelhante à sua.
- De onde é que conhece Timothy, -- já agora?
- Trabalhei com ele em Pencwm. Sou a enfermeira da cidade.
A mulher era enfermeira. E Dilys era uma antiga enfermeira-chefe.
- Desculpe, mas não posso fazer nada por si - declarou com
uma determinação de aço. - Não vejo Timothy há dois anos, pelo
menos. E agora, se me dá licença ...
- Não. Tenho a certeza de que Timothy está cá e, se for preciso,
fico à espera aqui neste degrau até me deixar entrar para o ver.
Dilys empertigou-se majestosamente.
- Ouça lá, menina ...
- Não tenho medo de enfermeiras-chefes - disse Megan bruscamente. - Lá na minha terra sou eu quem manda, Miss Carter.
Tenho a certeza de que Timothy está aqui. E não me vou embora
sem falar com ele.
- Ai sim? E quais são os seus direitos?
- Nós gostamos um do outro! - Megan gritou estas palavras,
batendo com o punho fechado na ombreira da porta. - Ele foi-se
embora sem se despedir de mim! Eu não posso aceitar isso!
Dilys viu a cólera e a determinação inabalável dela. Viu também
que sofria muito. Abriu mais a porta.
- Ele vai ficar zangado, mas o melhor é entrar - disse. - Foi
peremptório que não queria visitas. Pensando melhor, tenho a certeza de que era exactamente a si que ele não queria ver, ou antes, não
queria que você o visse.
- Nunca pensei que ele me fizesse uma coisa destas - disse
Megan quando as duas atravessavam a entrada em direcção à sala de
estar. - Pensei que ele soubesse que não fazia diferença nenhuma
eu vê-lo fraco e doente.
- Fazia-Lhe diferença a ele. - Dilys olhou de frente para Megan durante uns instantes. - Deve gostar muito dele.
- Gosto mais dele do que de tudo no Mundo.
Do outro lado da entrada, na cozinha, soou uma campainha.
- É ele - disse Dílys. - Vou ver como é que está. Se achar que
ele aguenta, digo-lhe que você está aqui.
Dilys esteve alguns minutos ausente. Quando voltou, ficou de pé
à porta da sala e fez sinal a Megan.
- Está melhor. Tive de discutir com ele, mas vai recebê-la.
Megan subiu as escadas atrás da senhora de idade até ao quarto
de Timothy. Quando entrou, de princípio quase que não o reconheceu. Estava sentado na cama, encostado às almofadas, e parecia
ter envelhecido dez anos nos últimos dois dias. A luz do candeeiro
que ficava por cima da cabeceira da cama fazia-o parecer ainda
mais pálido, realçando-lhe as maçãs do rosto, estranhamente salientes. Tinha uma expressão severa que o envelhecia ainda mais.
- Disse-lhe para não vir cá, Megan.
- Pois disse. - Beijou-o na testa e sentou-se numa cadeira ao
lado da cama. - Devia saber que não valia a pena dizer-me isso.
Timothy ficou a olhar para as mãos durante um minuto; depois,
disse:
- Nada disto devia ter acontecido ... nós dois, quer dizer. Eu
não devia ter deixado adiantar as coisas. Em Londres, tinha obrigação de ...
- Nessa altura, eu disse-lhe que éramos cúmplices - murmurou Megan. - Por isso, não tenha remorsos de nada. Para dizer a
verdade, fui eu que forcei as coisas, por isso você nem sequer teve
culpa nenhuma. Foi uma vítima inocente, essa é que é a verdade.
Timothy abanou a cabeça.
- Fez com que eu não lhe contasse, não foi? Tentou impedir-me

de a obrigar a enfrentar a verdade?
- Não. Evitei que a verdade manchasse a nossa felicidade.
Tínhamos direito a essa felicidade, Timothy. E foi bom para os dois.
- Há momentos de felicidade que são um pagamento adiantado
da infelicidade, Megan.
- Isso é uma das maneiras de ver as coisas. - Megan pegou-lhe
na mão. - Tive uma coisa que recordarei sempre com prazer, o seu
amor, a sua companhia, o que rimos juntos.
Timothy suspirou.
- Ia ralhar consigo. Mas agora já não sou capaz. - Fechou os
olhos. - Ai, Megan, Megan ... Porque é que cá veio?
- Eu gosto de si. Você gosta de mim. Somos duas metades do
mesmo todo. Como é que podia ficar longe de si?
- Isso é sentimentalismo, e não podemos ser sentimentais, Megan. Não é altura para isso. Por amor de Deus, sabe muito bem o que
me vai acontecer!
- Você precisa de uma enfermeira - respondeu Megan com
firmeza. - E isso é uma razão muito pouco sentimental para a
minha presença.
- Com certeza que não está a falar a sério! - Timothy olhou-a
nos olhos, apertando-lhe a mão com os dedos. - Você tem um
emprego, uma carreira profissional, tem obrigações. É uma loucura
voltar as costas a isso tudo só para tratar de mim. Tenho a minha tia,
que pode fazer isso.
- Tenho por direito essa obrigação. É a única obrigação que me
interessa, Timothy. Não vai conseguir demover-me.
Apesar de estar muito fraco, Timothy tirou a mão de dentro da de
Megan e endireitou-se.
- Ouça bem o que eu vou dizer - declarou com voz ofegante,
devido ao esforço. - Cheguei a um ponto em que o meu coração
está a piorar a olhos vistos. Por muito bem tratado que seja, já não
vou melhorar. - Calou-se, ao ver Megan ficar com os olhos rasos
de lágrimas. - Por amor de Deus, por favor, não chore. Assim é-me
muito mais difícil dizer-lhe o que tenho a dizer.
Megan pegou no lenço e passou-o pelos olhos.
- E há ainda uma outra razão para você não ficar aqui. Viu a sua
filha morrer e essa visão atormenta-a desde essa altura. Foi poupada ao espectáculo da morte de Alun e suportou-a melhor. Quer
mesmo mutilar o seu espírito ficando a assistir à minha transformação numa ruína ofegante e sem forças ...
- Cale-se! - gritou Megan.
- Não me posso calar, e você tem de me ouvir. Enquanto estiver aqui a tratar de mim, pessoas que precisam de si, que você tem
obrigação de tratar, vão morrer sem a sua ajuda. Acha que isso é
justo? Que é razoável?
Megan soluçava, tapando a cara com o lenço. Timothy inclinou-se para a frente e pôs-lhe as mãos nos ombros.
- Deixe-me as minhas boas recordações, Megan - disse baixinho. - Poupe-me o sofrimento de saber que está a abandonar a
sua gente para ficar aqui a ver-me definhar.
- Você ... está a dar cabo de mim - soluçou Megan.
- Acredite no que eu lhe digo, meu amor, não precisa de infligir esse sofrimento a si mesma. Passe o fim-de-semana aqui comigo
e depois volte para Pencwm. Faz-me muito feliz e para si acaba por
ser igual.
Megan levantou-se e inclinou-se sobre a cama, encostando a
cara encharcada de lágrimas à de Timothy.

- Meu querido, meu querido ... - Abraçou-o com força, agarrando-se à presença física dele para apagar o seu sofrimento.

NA SEGUNDA-FEIRA de manhã estava a chover. Gladys Brewster
observava pela janela da sala a água que caía em catadupas. Às
vezes, o Verão em Pencwm era ainda mais deprimente do que o
Inverno, pensou.
Gladys ouviu um leve ganido e voltou-se para trás. Scratch estava deitado debaixo da mesa a dormir. Perguntou a si mesma se o
cão não acharia estranho aquelas estadas intermitentes em casa
deles. Desta vez, até a própria Gladys tinha estranhado. Megan não
lhe dera qualquer explicação, limitando-se a dizer que tinha de se
ausentar de Pencwm por uns tempos. Não dissera por quanto tempo.
Gladys ficara com a sensação de que nem ela própria sabia.
A porta da cozinha abriu-se e fechou-se outra vez com força.
Gladys foi até lá. Wyn estava ao pé do lava-louça a tirar o casaco
encharcado.
- Porque é que vieste para casa a meio do dia?
- Foi a chuva. - Começou a desabotoar os atacadores das botas. - A galeria começou a ficar inundada. Os directores da mina
estão outra vez a cortar nas despesas. Não drenaram a galeria abandonada que fica por cima da nossa da última vez que ficou inundada, e agora foi só preciso uma hora deste dilúvio para começar a
encher. Quando consegui sair, já tinha água acima da cintura.
- Valha-me Deus, podias ter ficado afogado!
- Pois podia - resmungou Wyn, tirando uma das botas. - E os
patrões sabiam muito bem disso. Por isso, para nos acalmarem, disseram que podíamos ir para casa durante o resto do turno e que não
nos descontavam no ordenado.
- Não fizeram mais que a obrigação deles. Vou buscar-te roupa
seca.
- Espera. - Wyn enxugou a cara à toalha que estava pendurada
atrás da porta. - Quero contar-te uma coisa. É uma coisa de que me
envergonho por isso quanto mais depressa deitar isto para trás das
costas, melhor. Sabes quem é a Mrs. Colville, aquela mulher que
limpa o consultório do médico?
Gladys acenou com a cabeça.
- Sei. Tem um filho que trabalha contigo.
- É essa mesma. Bom, tens andado intrigada com a ausência de
Megan? Já sei para onde é que ela foi, graças às bisbilhotices de
Mrs. Colville. - Wyn abanou a cabeça com um ar triste. - O
Colville disse-me que o Dr. Morris tinha tido um ataque cardíaco.
- Valha-me Deus!
- Também ficaste chocada, não foi? Levaram-no para casa de
um parente em Newport. Parece que foi bastante grave.
- Pobre homem ...
- Mas ainda há mais. - Wyn dobrou a toalha e pô-la na borda
do lava-louça. - Mrs. Colville estava a ouvir atrás da porta quando
o Dr. O'Casey falou com um funcionário qualquer ao telefone.
Disse que o Dr. Morns sofria do coração desde criança. Tinha muito
poucas hipóteses de viver para além dos quarenta anos.
- Oh Wyn ... - criticou Gladys baixinho. - Achas que a
Megan sabia ... quer dizer, antes disto?
- Tenho andado a pensar nisso. - Wyn olhava fixamente a parede. - Eu tinha obrigação de ter percebido que não era só uma
paixoneta e que não havia maldade da parte dele. Pelo menos não
devia ter julgado Megan. Deus sabe que ela tem um coração do
tamanho de uma casa. Nem sei com que cara vou olhar para ela.
- Coitadinha. Mas olha que eu acho que ela está apaixonada por

ele.
Wyn assentiu com a cabeça.
- Também eu. Pobre-diabo, devia ser a única consolação que
ele tinha. - Gladys reparou que Wyn estava outra vez a falar como
antigamente. Estava a ser outra vez razoável e bondoso. - Esta
notícia - continuou ele - fez-me pensar nas razões por que ele
veio para cá. Já ouvi falar de outras pessoas que fizeram o mesmo.
Homens bons que trocaram uma vida fácil por um trabalho difícil.
Foi o que fizeram muitos cruzados.
Gladys dirigiu-se para a porta da sala de estar.
- Vou buscar-te roupa seca antes que apanhes uma pneumonia.
- Parou. - Vamos ter de tratar a Megan com mais carinho quando
ela voltar.
- Pois vamos. Vou fazer as pazes com ela, Gladys. Está prometido.
- Assim é que eu gosto de ouvir falar o meu irmão. - Olhou
para a janela e viu que chovia cada vez mais. - Que é que vais fazer
o resto do dia, já que tens tanto tempo livre?
- Já pensei nisso - disse Wyn. - Vou tomar uma chávena de
chá e depois vou sentar-me à mesa e escrever uma carta a Rose. -- Fez um sorriso alegre. - Há muito tempo que não lhe dou notícias
minhas.

- TIvE a sensação terrível - disse o Dr. O'Casey - de que nos
tinha fugido de vez. Não sei o que seria de mim, Megan. - Sorriu
ternamente, pondo-lhe a mão no ombro e apontando para a cadeira
que estava em frente da secretária. - Sente-se. Vou buscar-lhe um
cálice de xerez.
Já passava das 4 horas e continuava a chover. Megan viera directamente da estação para o consultório.
- Só tinha uma ideia na cabeça quando me fui embora - disse,
sentando-se. - Estar com Timothy. Tratar dele.
- Mas mudou de ideias. - O'Casey pôs um cálice de xerez em
frente dela e serviu um para si. - Porquê?
- Foi ele que me convenceu.
- É um excelente homem. - O velho médico deixou-se cair na
cadeira giratória e ficou a olhar para o xerez. - Como é que ele
? está?
- Fraco. Mas de espírito está forte como sempre.
O'Casey ficou a olhar para Megan enquanto ela tomava a sua
bebida. Tinha cara de não dormir há muito tempo.
- Vai visitá-lo?
- Ele explicou-me que havia muitas e boas razões para não o
fazer. - Megan pousou o copo. - Vai ser difícil, mas vou fazer o
que Timothy disse. Continuar com o meu trabalho. Absorver-me
nos meus deveres.
- Tenciono ajudá-la o melhor que puder, Megan.
- Aconteceu alguma coisa de especial na minha ausência?
- Bom ... - O'Casey percebeu que ela se estava a fazer forte,
forçando-se a si mesma a assumir novamente as suas funções. -- Denis Hewlett voltou a ter febre na noite de sábado.
- Disse-lhe que íamos ver se ele podia sair para apanhar ar hoje
- disse Megan com um suspiro. Olhou para a chuva que escorria
pela janela. - Mas não há muitas hipóteses, se o tempo continuar
assim.
- Megan. Denis morreu ontem de manhã.
Ficou inexpressiva uns instantes. Piscou duas vezes os olhos,
depois levou as mãos à testa de repente.
- Meu Deus ...

- Você não podia ter feito nada para o evitar.
- Ele estava muito assustado?
- Não recuperou a consciência depois da febre, Megan. - O
médico apontou para o cálice de xerez. - Beba isso - disse. -- Depois, vá para casa, descanse e comece a trabalhar amanhã de
manhã o mais cedo possível. Se sentir que está a descarrilar, venha
falar comigo em qualquer altura. Eu ajudo-a.
Megan pegou no copo e esvaziou-o. Olhou de frente para o Dr.
O'Casey.
-Estou doente da alma com todas as tragédias que vivi - disse.
- Perseguiram-me a vida toda.
- Não é só a si que isso acontece, a mim também - observou
O'Casey. - Pessoas como nós, que passam os dias a tentar preservar a vida, não podem deixar de ter uma relação muito íntima com a
tragédia e a morte. É o caminho que escolhemos, Megan. Mas só
podemos estar de bem connosco mesmos se não sairmos desse caminho.

Alguns minutos depois, após ter metido pela Vaughan Road para
ir buscar o cão Megan parou, olhando para a ponte sobre o rio - a
ponte onde tinha falado tantas vezes com Timothy e de onde atirara
Nesta Mogg. Limpou a água da chuva que lhe escorria pela cara sem
ver a ponte. Via só a cara de Timothy, a última imagem querida que
trouxera consigo. Ele sorrira-lhe, mostrando-lhe a sua coragem e o
seu amor.
Recomeçou a andar pela estrada, baixando a cabeça para a chuva
não lhe bater na cara. O Dr. O'Casey tinha razão. A vida que escoLhera implicava um contacto constante com o sofrimento, portanto tinha de ser capaz de lidar com ele melhor do que as outras pessoas.
Era enfermeira e muito provavelmente nunca viria a ser outra coisa.
Tal como O'Casey, esperava trabalhar até ao fim da vida.
A pouco e pouco, começou a sentir que havia uma coisa que a
podia consolar. É claro que ainda faltava muito tempo para que essa
consolação fosse suficientemente forte para lhe dar novo ânimo,
mas achava que um dia o havia de ser. A sua vida fora enriquecida
- muito para além do que poderia ter imaginado - por ter conhecido Timothy Morris e desfrutado do seu amor. Não era isso uma
consolação muito grande?
A tristeza sombria dos últimos dias esbateu-se um pouco perante a recordação da expressão triunfal de Timothy no dia em que salvara a vida de Harry Benson. ??Uma centelha??, dissera. Uma centelha ateada até reacender o
fogo da vida. Tinha ficado tão feliz. Megan sorriu, apesar da chuva.
Tinha a certeza de que o seu querido Timothy ia atear o melhor
possível o fogo com as fracas centelhas de vida que lhe restavam.

ACERCA DO AUTOR


Megan Roberts já foi a personagem
principal de mais obras de Hugh
Miller, mas o que a tomou verdadeiramente famosa em Inglaterra foi a
sua qualidade de personagem principal de uma série televisiva da BBC
chamada District Nurse.
Hugh Miller é um escritor a
tempo inteiro, autor de livros sobre
temas variados, que vão de romances
policiais a manuais de instruções
para eventuais prestidigitadores.
Quando fez a investigação necessária

para a preparação de Vento de Neve,
descobriu que os médicos estavam sempre prontos a ajudá-lo.
- Os médicos por vezes têm dificuldade em traduzir a informação
médica em termos acessíveis aos seus doentes - diz. - Ficam satisfeitos
quando vêem um escritor explicar essas coisas numa linguagem fácil de
compreender.
Efectivamente, seja qual for o tema escolhido, Miller tenta sempre não só divertir como também ensinar o seu público, uma característica derivada da sua formação de realizador de documentários. Tentou durante
muitos anos prosseguir uma dupla carreira no cinema e na literatura, mas:
- A escrita acabou por ser mais bem-sucedida e naturalmente sobrepôs-se - explica.
Hugh Miller vive com a mulher e a filha na cidade inglesa de Warwick:
- Muito perto da árvore que assinala o centro geográfico exacto de
Inglaterra - declara orgulhosamente.

FIM DO LIVRO.

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