terça-feira, 13 de abril de 2010

Erico Verissimo O Tempo e o Vento 2

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..


ERICO VERISSIMO
O TEMPO E O VENTO
O CONTINENTE II
29" Edição
D
E D I T O R A
a
Copyright ® 1948 by Erico Veríssimo

Copyright © 1978 by Mafaida Volpe Veríssimo

Clarissa Veríssimo Jaffe

Luis Fernando Veríssimo
Ilustração de capa: Iberê Camargo

Foto de Geraldo Viola/Arq. Editora Globo
Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa,

para o Brasil, adquiridos por

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Brasil
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Impressão e acabamento:

Grafrca Editoriale Bologna, Milão, Itália
ap-Brasil. Catalogação-ria-fonte - Um~ Brasileira do I1vro, SP
Veríssimo, Erico, 19O5-1975
O tempo e o vento - O continente 2 / Erico Verissimo. - 29. ed. - São Paulo : Globo, 1997.

Tomo 1: 34. ed., 1997; t. 2: 29. ed., 1997. ISBN 85-25O-O27O-4 (obra completa) ISBN 85-25O-O271-2 (t. 1) ISBN 85-25O-O272-O (t. 2)

1. Romance brasileiro L Titulo. 11. Série.


89-1388 CM-869.935
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances : Século 2O : Literatura brasileira 869.935 2. Século 2O : Romances : literatura brasileira 869.935
#T E I N A G U Á
E m 185O a vila de Santa Fé foi elevada a cabeça de comarca e seu primeiro juiz de direito, o Dr. Nepomuceno Garcia de Mascarenhas, natural do Maranhão, veio morar
com a esposa numa das casas de alvenaria que o Cel. Bento Amaral mandara recentemente construir na Rua dos Farrapos. Era o Dr. Nepomuceno um homem de estatura mediana,
que impressionava logo pelo comedimento de gestos, palavras e opiniões. Andava sempre de sobrecasaca preta e dificilmente se separava de sua bengala de castão de
prata. De olhos empapuçados e mortiços, voz velada e lenta, tinha um ar de sonãombulo, acentuado pelo andar tateante e meio cansado, que aos íntimos ele explicava
ser devido ao fato de ter pés chatos. Passava o juiz de direito por bom latinista, razoável matemático e exímio jogador de xadrez. Era maçom, adorava Chateaubriand
e nas horas vagas fazia sonetos.
Juiz íntegro, homem austero, o novo magistrado de Santa Fé se impus desde logo ao respeito e à admiração dos habitantes da vila. E afeiçoou-se de tal maneira àquele
lugar, cujos bons ares lhe haviam restaurado a saúde da esposa, que resolveu não mais sair dali. E como prova de estima. e gratidão à vila e seus habitantes, organizou
e mandou publicar por conta própria, numa tipografia de Porto Alegre, o primeiro Almanaque de Santa Fé, que apareceu em janeiro de 1853, com informações sobre a
topografia, a geologia, a fauna e a flora do município, além dum calendário completo, com conselhos aos agricultores e horticultores, bem como páginas amenas e instrutivas
de literatura e humorismo, charadas, logogrifos, enigmas pitorescos, etc... .
Abria o almanaque uma descrição literária da cidade, feita pelo próprio Dr. Nepomuceno. Começava assim: "A vila de Santa Fé, cabeça da " comarca de São Bor ja, e
da qual temos a desvanecedora honra de ser O-Primeiro juiz de direito, é uma das flores mais formosas do vergel serrano. Situada sobre três colinas e cercada de
campinas onduladas, lembra ela ao viandante, "singelo mas gracioso pre-
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sege. Prodigamente dotada pela natureza, seus bons ares e suas cristalinas águas são propícios à longevidade, razão pela qual muitos de seus habitantes, em geral
de costumes morigerados, passam dos noventa anos, como foi o caso extraordinário do preto escravo conhecido pela antonomásia de Sinhô d"Angola, o qual durou mais
duma centúria, e do Cacique Fongue, que viu pela primeira vez a luz do dia na redução de Santo Angelo, por volta de 175O, e o qual ainda hoje por aqui vive em pleno
gozo de suas faculdades
mentais.
O Almanaque oferecia também a seus leitores um "escorço histórico" da vila, no qual o autor prestava uma homenagem à família Amaral, cujo fundador foi "esse venerando
cidadão, o Cel. Ricardo Amaral, o primeiro povoador destes campos, um bandeirante na verdadeira extensão do vocábulo, e que morreu como um bravo, no lendário combate
do Passo das Perdizes". Vinha a seguir uma referência de dez linhas ao filho de Ricardo, Francisco Amaral, "o fundador de Santa Fé", e depois uma página inteira
dedicada a seu meto, o Cel. Ricardo Amaral Neto, "que tanto contribuiu para o engrandecimento deste município, de cuja Câmara foi o primeiro presidente". Após a
enumeração das qualidades morais de Ricardo Amaral Neto e de seus feitos na paz e na guerra, a biografia terminava assim: "...e em 1836 baqueou como um bravo, de
armas na mão, dentro de sua própria casa, defendendo a legalidade". .Havia por fim três páginas dedicadas à personalidade do Cel. Bento Amaral - "atual chefe político
deste município, deputado à Assembléia Provincial, verdadeiro varão de Plutarco que perpetua no tempo e na admiração de seus coevos um nome honrado e uma tradição
de virtudes cívicas e privadas".
O Almanaque circulou em Santa Fé e arredores, onde -foi lido, comentado e apreciado. E -através de seus dados estatísticos e de suas informações - escrupulosamente
colhidos pelo próprio Dr. Nepomuceno - ficaram os santa-fezenses sabendo que a vila possuía agora sessenta e oito casas, entre as de tábua e de alvenaria, e trinta
ranchos cobertos de capim; e que sua população já subia a seiscentas e trinta almas. Informava ainda o Dr. Nepomuceno que Santá Fé contava com quatro bem sortidas
casas de negócio, uma agência do correio - "cuja mala, lamentamos dizê-lo, chega apenas uma vez por semana" - uma padaria, uma selaria e uma marcenaria. "A ciência
de Hipócrates está-representada entre nós pelo ilustrado Dr. Carl Winter, natural da Alemanha e formado em Medicina pela Universidade de Heidelberg e que fixou residência
nesta vila em 1851, data em que apresentou suas credenciais à nossa municipalidade. Não podemos deixar de mencionar o nosso Clotário Nunes, médico homeopata bem
conceituado, e o curandeiro conhecido popularmente por Zé das Pílulas, muito procurado por causa de su
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ervas medicinais cujos segredos diz ele ter aprendido dós índios coroados, dos quais parece ser descendente."
Causou também muito boa impressão a parte do almanaque em que o Dr. Nepomuceno rememorava as guerras em que os filhos de Santa Fé haviam tomado parte. "Nossa vila
(e aqui peço vênia para usar o possessivo nossa, uma vez que me considero um santa-fezense de coração se não de nascimento) tem pago pesado tributo de sangue e heroísmo
no altar da pátria. Muitos foram os oficiais e soldados que deu para as lutas de que esta Província tem sido teatro, e pode-se dizer sem exagero que não houve geração
que não tivesse visto pelo menos uma guerra. Durante a luta civil que por espaço de dez anos ensangüentou o solo generoso do Continente, muitos foram os santa-fezenses
que participaram dela, quer nas hostes farroupilhas quer nas forças legalistas. Não me cabe aqui, como magistrado e como homem infenso às paixões políticas, manifestar
simpatias ou lançar diatribes. O que passou passou e mais vale esquecido do que lembrado, pois uma luta fratricida é mil vezes mais; horrenda do que as guerras entre
as nações. Graças ao Suprema Arquiteto do Universo o sol da paz raiou benfazejo no horizonte da Província, e os inimigos de ontem se deram as mãos e recomeçaram
a trabalhar juntos em prol da grandeza da Pátria comum. Mas, ai!, ainda nem bem se haviam cicatrizado as feridas abertas pela guerra civil e já de novo eram nossos
irmãos arrancados ao aconchego dos seus lares e ao seu trabalho pacífico, convocados mais uma vez pelo pressago clarim da guerra. Rosas, o tirano argentino, ameaçava
a integridade de nosso Brasil, e era necessário fazer frente a essa ameaça. E assim mais uma vez os santa-fezenses formaram os seus batalhões de voluntários e nessa
luta que nem por ser relativamente curta foi menos cruenta, muitos foram os filhos desta vila que tiveram atuação destacada. Entre eles é de justiça salientar o
jovem Bolívar Terra Cambará, filho dum intrépido soldado, o Cap. Rodrigo Severo Cambará, morto heroicamente num combate que se feriu nesta mesma vila em princípios
de 1836. Bolívar, esse denodado jovem, cujo nome parece trazer em si uma destinação gloriosa, guiou os seus cavalarianos numa carga de lança, destruindo um quadrado
inimigo e arrancando, ele próprio, das mãos dum adversário a bandeira argentina! Esse ato de bravura valeu-lhe a promoção ao posto de primeiro-tenente, e uma citação
especial em ordem do dia."
As anedotas do Almanaque foram muito apreciadas, bem como as poesias, algumas da lavra do próprio Dr. Nepomuceno, e outras de poetas famosos como Camões, Tomaz Antônio
Gonzaga e Gregório de Matos. No "fecho de ouro" dum de seus sonetos, o juiz de direito concluía com rimas ricas que sob o veludo da rosa às vezes um acúleo se esconde.
Pouco tempo depois do aparecimento do Almanaque, o sone-
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tista teve ocasião de sentir na própria carne a pungente verdade do verso. Sim - refletiu o magistrado - seu anuário podia ser comparado a uma linda e perfumada
rosa que a todos deleitara com suas cores e seu perfume. Mas trazia ela um espinho escoa= dido e inesperado: o artigo intitulado "Residências de Santa Fé", que ele
próprio escrevera sob o pseudônimo de Atala. Essa página, traçada com sinceridade e sem a menor intenção de ofender ou criticar quem quer que fosse; desgostara e
irritara o Cel. Bento Amaral. Ocupava-se o infeliz ensaio do sobrado que um tal Aguinaldo Silva mandara construir em Santa Fé. Depois demencionar a simplicidade
rústica da maioria das casas do lugar e de elogiar a solidez e a sobriedade do casarão de pedra dos Amarais, "tão cheio de invocações históricas", .tala escreveu:
"O forasteiro que chega a nossa vila há de por certo quedar-se surpreso e boquiaberto diante duma maravilha arquitetõnica que rivaliza com as melhores construções
que vimos no Rio Pardo, em Porto Alegre e até na Corte. Referimo-nos à casa assobradada que o Sr. -Aguinaldo Silva, adiantado criador deste município, mandou recentemente
erguer na Praça da Matriz, num terreno de esquina com as dimensões de trinta e sinto braças de frente por uma quadra completa de fundo. Essa magnífica residência
deve constituir motivo de lídimo orgulho para os santa-fezenses. Dotada de dois andares e duma pequena água-furtada, destacam-se em sua fachada branca os caixilhos
azuis de suas janelas de guilhotina, dispostas numa fileira de sete, no andar superior, sendo que a do centro, mais larga e mais alta que as outras, está guarnecida
duma sacada de ferro com lindo arabesco; por baixo, desta sacada, no andar térreo, fica a alta porta de madeira de lei, tendo de cada lado três janelas idênticas
às de cima. Ao lado esquerdo, do sobrado, no alinhamento da fachada, vemos imponente portão de ferro forjado ladeado por duas colunas revestidas de víuoso azulejo
português nas cores branca, azul e amarela, e encimadas as ditas colunas por dois vasos de pedra de caprichoso lavor. O terreno, a que esse portão dá acesso, está
todo fechado por um muro alto e espesso que por assim dizer (perdoe-se-nos a ousadia da imagem) aperta a casa como uma tenaz. O efeito é assaz formoso, pois o `Sobrado"
(assim é a residência conhecida na vila) dá a impressão desses solares avoengos, relíquias de nossos antepassados lusitanos. Não devemo esquecer outro encanto, qual
seja o seu vasto quintal todo cheio d árvores de sombra e frutíferas, como laranjeiras, pessegueiros, gua birobeiras, lindos pés de primaveras, cinamomos, magnálias
e u esplêndido e altaneiro marmeleiro-da-índia.
"Convidados gentilmente pelo Sr. Aguinaldo Silva para vi si tar-lhe a residência, pudemos verificar que esta se acha dividida e 18 amplas peças, mui bem arejadas
e . iluminadas, com pé-direis bastante alto; é que as portas que separam essas peças umas d outras terminam em arco, em bandeirolas com vidros nas cor
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amarela, verde e vermelha. Os móveis são de autêntico jacarandá, muito pesados e severos, tendo pertencido, como nos informou o dito Sr. Silva, a uma Casa Senhorial
de Recife, e sendo de lá trazidos para Porto Alegre num patacho e desta última localidade para cá em carretas."
O artigo terminava com um parágrafo que por assim dizer constituía a ponta do traiçoeiro espinho "Assim, pois, seria o sobrado do Sr. Aguinaldo Silva um solar digno
de hospedar até Sua Majestade D. Pedro II, caso o nosso querido Imperador nos desse a altíssima honra de visitar Santa Fé."
Pois esse artigo, escrito com um entusiasmo inocente e. desinteressado, deixara o Cel. Bento" Amaral furioso.
- Essa é muito boa! - exclamou ele um dia na loja do Alvarenga. - O Imperador parando na casa do Aguinaldo! É de primeiríssima! Uma idéia estúpida assim só podia
ter saído da cabeça daquele pé-de-pato!
Ficou muito vermelho e começou a sentir uma comichão na cicatriz em forma de P que lhe marcava uma das faces. O Pe. Otero, que tinha ido comprar um emplastro na
loja, ouviu a explosão, e como era amigo do juiz de direito, com quem habitualmente jogava longas partidas de xadrez (apesar de sabê-lo pedreiro-livre), arriscou:
- O Dr. Nepomuceno não escreveu isso por mal, coronel.. .
- Não sei se foi por bem ou pot mal - retrucou o outro, fitando o olhar encolerizado na face amarela do vigário. - O que sei é que escreveu. Ele devia saber quem
é esse Aguinaldo Silva:
Pigarreou com fúria e escarrou no chão.
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Mas, para falar a verdade, em Santa Fé ninguém sabia ao certo quem era Aguinaldo Silva. Claro, pela entonação da voz, via-se logo que o homem era do Norte. Ele próprio
declarara ter nascido no Recife; o que não contava, mas. os outros murmuravam, era que tivera de fugir de lá, havia muitos anos, por ter matado a esposa e o homem
com quem ela o traíra. "Isso não é crime" - observara um dia o Alvarenga, de cuja loja o nortista era bom freguês. - "Um homem de vergonha não podia fazer outra
coisa." Mas pessoas que sabiam ida história com todos os pormenores explicavam que o duplo assassínio fora premeditado. Ao descobrir que a mulher o enganava,_ Aguinaldo
a obrigara a marcar um encontro com o amante em seu próprio quarto de dormir. Simulara uma viagem mas ficara escondido debaixo da cama, e saltara do esconderijo
em dado momento para estripar a facadas tanto o amante como a mulher. Havia no drama um detalhe dum trágico grotesco que os maldi-
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tentes usavam como remate humorístico do caso: "O homem catava começando a tirar a roupa quando Aguinaldo saiu debaixo -da cama. O infeliz nem teve tempo de dizer
ai: a faca do marido rasgou-lhe o. bucho." Risadas. "No fim, acho que ele não sabia se segurava as calças ou as tripas." Pausa dramática. "Mas tanto as calças como
as tripas acabaram caindo no chão." Nova risadas.
Eram essas as histórias que corriam em Santa Fé. Mas ninguém -sabia de nada com certeza. Contava-se também que depois de passar alguns anos no Rio de Janeiro -e
em Curitiba, com nome trocado, Aguinaldo viera para a Província de São Pedro, onde durante a guerra civil andara ora com as tropas farroupilhas ora com as forças
legalistas, ao sabor de suas conveniências. Os que o conheciam de perto pintavam-no como um homem ladino, de olho vivo para os negócios, e que, obcecado pelo medo
de ser logrado e sabendo que a melhor maneira de a gente se defender é atacar, tinha a preocupação permanente de lograr os outros. Baixo, de pernas muito curtas
para o tórax anormalmente desenvolvido, era levemente corcunda e tinha, plantada sobre os largos ombros ossudos, uma cabeça triangular, de pescoço curto, e uma cara
de chibo que a peta grisalha acentuava. Era feio, mas duma fealdade aliciante
- simpática, muito ajudada por uma voz de inflexões - macias e musicais. Apesar da cor amarelada do rosto, tinha uma saúde de ferro e aos setenta e dois anos ainda
fazia tropas, dormia ao relento,
- campereava com o entusiasmo e a eficiência dum moço de vinte. Por muito tempo Aguinaldo recusara vestir-se como os gaúchos da 1rovíncia. Conservara a indumentária
de couro dos vaqueiros do Nordeste - o que lhe valera muitas vezes a desconfiança e a má vontade dos continentinos - e mesmo agora que decidira a abandoná-la em
favor da bombacha, do pala e do poncho, conservava ainda o chapéu de sertanejo, de abas viradas para cima, o que, como dizia o Dr. Nepomuceno, lhe dava uns ares
napoleônicos. Aguinaldo amava o dinheiro mas não era sovina. Gostava de pagar "comes
- bebes" para os amigos, vivia ajudando os necessitados, e era generoso para com seus agregados, peões e comissionados. Quando pela primeira vez aparecem em Santa
Fé, no ano em quê fora assinada a paz entre farroupilhas e legalistas, causara a pior das impressões. Chegara escoteiro, montado num cavalo magro e manco, e fazendo
questão, de mostrar a toda a gente que tinha as guaiacas atestadas de moedas de ouro. Começaram então a murmurar naa vila que Aguinaldo havia descoberto uma "manca
lá para as bandas de São Borja. "Salamanca? Lorotasl" retrucavam outros. - "Isso é dinheiro de contrabando. Conheço pelo cheiro." E um dia, numa roda de bisca na
casa do Alvarenga, o Pe. Otero comentou: "Seja como for, não deve ser dinheiro limpo." Mas os que.precisavam de crédito para sena negócio@ não se preocuparam com
averiguar a origem dos patacões, cruzados e onças de Aguinaldo Silva, quando
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este se aboletou num rancho nos arredores de Santa Fé e começou a emprestar dinheiro a juro alto. Quando sabia que um lavrador ou criador estava em dificuldades
financeiras, procurava-o, blandicioso, e oferecia-lhe um empréstimo, pedindo como garantia terras ou gado num valor que em geral correspondia ao dobro ou ao triplo
do capital emprestado. Se o homem era bem sucedido nos negócios, lá voltava o dinheirinho para a bolsa de Aguinaldo, acrescido dos gordos juros. Mas se a dívida
se vencia e o devedor não estava em condições de liquidá-la, Aguinaldo, sem desmanchar dos lábios o sorriso amigo, sem a menor dureza na voz cantante, executava
a hipoteca. Foi assim que com o passar dos anos, em que fez também muitas tropas e vendeu-as a charqueadores, Aguinaldo se apossou de várias propriedades de Santa
Fé - inclusive da de Pedro Terra - e multiplicou sua fortuna de tal forma que já se dizia estar ele tão rico de campos, gados e moeda sonante quanto o próprio Bento
Amaral.
Muito religioso, Aguinaldo ia à missa todos os domingos e fazia donativos à Igreja. O Pe. Otero gostava de ouvi-lo contar histórias do sertão de Pernambuco em torno
de cangaceiros, cabras valentes, lutas de família e casas assombradas, ficava admirado de ver como aquele caboclo analfabeto sabia narrar com fluência e colorido;
com, um sabor até literário.
Também dava muito na vista em Santa Fé o apego que Aguinaldo Silva tinha por dois filhos do lugar: Bolívar Cambará e Florêncio Terra. Conversando certa ocasião com
o Pe. Otero, Aguinaldo lhe dissera:
- Esses dois meninos são mesmo que filhos meus. Vosmecé sabe, seu vigário, perdi toda a minha gente. Da minha família só me sobrou uma neta, a Luzia, que está estudando
num colégio na Corte. Quero que ela tenha o que eu não tive e o que os pais dela não tiveram. Tudo do bom e do melhor.
E um dia quando o vigário e Aguinaldo se encontravam na praça, debaixo da figueira, conversando e olhando para o sobrado, enquanto trabalhadores lhe caiavam a fachada,
o Pe. Otero perguntou:
Ainda que mal pergunte, amigo, não acha que o Sobrado e um pouco grandote pra uma família tão pequena? Vosmecê não disse que só tinha uma neta?
- Disse. Mas acontece que um dia a Luzia vai casar e ter filhos. E os filhos da Luzia vão casar também e ter família. Quero reunir toda a cambada no Sobrado. . .
Ficou um instante pensativo, olhando para a casa. Depois acocorou-se à maneira dos sertanejos e começou a picar fumo. E assim nessa posição, com uma palha de milho
atrás da orelha, contou ao padre que um dia, quando menino, vira uma cena que nunca mais lhe saíra da memória: um senhor de engenho cofiando as
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barbas brancas e sorrindo à cabeceira duma mesa comprida a que estavam sentados, comendo, rindo e conversando, os vinte e tantos membros de sua família - filhos,
filhas, genros, noras, netos Desde esse momento Aguinaldo decidira trabalhar como um burro para um dia ter também casa e família grande, com mesa farta e alegre.
- Mas Deus não quis que eu visse minha família reunida -murmurou ele, enrolando o cigarro. - Foi matando todos, um por um...
Ergueu os olhos para o vigário, ficou a contemplá-lo por alguns segundos, e depois murmurou:
- Nunca fui ao confessionário, padre, mas vou lhe contar aqui um segredo que nunca contei a ninguém. - Riu. - Não sei por que estou lhe dizendo isto, mas de repente
me deu vontade...
Calou-se por um instante, seus olhos se perderam na direção dos campos. Depois, baixinho, num cicio, olhando furtivamente para os lados, contou:
- A Luzia não é minha neta de verdade. Peguei ela num asilo, quando ainda de colo. Era órfã de pai e mãe. Mas criei a menina como se fosse minha neta. Um homem não
pode viver sem ninguém de seu, pode, padre?
O vigário sacudiu a cabeça negativamente. E o nortista acrescentou:
- Ela não sabe da verdade. Pensa que é minha neta mesmo. O Pe. Otero ficou um instante pensativo e depois disse:
- Não desanime, seu Aguinaldo. Vosmecê está ainda forte e
se a Luzia casar o Sobrado pode estar cheio de crianças dentro de
poucos anos.
- Se eu viver até lá.
Há de viver, sim, se Deus quiser.
Aguinaldo fechou um olho, ficou um instante como que dormindo na pontaria e finalmente perguntou
- Mas será que o Velho quer mesmo?
Dessa conversa resultou um novo donativo gordo para a Igreja. O vigário o recebeu sorrindo e a refletir assim: Esse caboclo pensa que pode comprar a dinheiro favores
de Deus. Mas bendisse os cruzados do pernambucano, pois precisava deles para custear um puxado que ia fazer na casa paroquial e. para comprar uns castiçais novos
para o altar-mor.


Quando Luzia deixou o colégio e mudou-se para Santa Fé, onde passou a ser a "senhora do Sobrado", todos acharam que, mais do que ninguém, ela merecia o título. E
durante muito tempo a neta de Aguinaldo Silva foi o assunto predileto das conversas da vila. As mulheres reparavam nos um vestidos, nos seus penteados,
nos seus "modos de cidade", mas, bisonhas, não tinham coragem de se aproximar da recém-chegada, tomadas duma grande timidez e duma sensação de inferioridade. Em
muitas esse acanhamento se transformava em hostilidade; noutras tomava a forma de maledicência. Luzia era rica, era bonita, tocava citara - instrumento que pouca
gente ou ninguém ali na vila jamais ouvira - sabia recitar versos, tinha bela caligrafia, e lia até livros. Os que achavam que Santa Fé não podia dar-se o luxo de
ter um sobrado como o de Aguinaldo, agora acrescentavam que a vila também "não comportava" uma moça como Luzia. Para alguns severos pais de família tudo aquilo que
a forasteira era e tinha constituía uma extravagância ostensiva que os deixava até meio afrontados. E quando viam Luzia metida nos seus vestidos de renda, de cintura
muito fina e saia rodada; quando aspiravam o perfume que emanava dela, não podiam fugir à impressão de que a neta do pernambucano era uma `;mulher perdida" e portanto
um exemplo perigoso para as moças do lugar. Por outro lado, o passado escuro de Aguinaldo não contribuía em nada para melhorar a situação da moça. Aqueles homens,
dum realismo rude, olhavam para o Sobrado e para seus moradores como para intrusos e acabavam dizendo: "Isso não vai dar certo."
Os rapazes da vila, conquanto se sentissem atraídos por Luzia, concluíam quase todos que ela não era o tipo que desejavam para esposa. A moça causava-lhes um vago
medo que eles não sabiam explicar com clareza, mas que em geral resumiam para si mesmos numa frase: "Não nasci pra corno." No entanto, desde o momento em que a rapariga
chegara, Bolívar Cambará e Florêncio Terra ficaram fascinados por ela, cercaram-na de atenções e não perdiam pretexto para visitar o Sobrado. Faziam isso, porém,
de maneira diferente. Bolívar não escondia seus sentimentos: mostrava-se como era - sôfrego, apaixonado, explosivo. Florêncio, entretanto, mantinha-se reservado,
silencioso,. mas duma fidelidade canina; portava-se, em suma, como um cachorro triste que - temendo ou sabendo não ser querido pela dona - limitava-se a ficar de
longe a contemplá-la com olhos cálidos e compridos, cheio dum amor dedicado mas que não "tem coragem de se exprimir.
Aguinaldo percebera tudo desde a primeira hora e observava, deliciado, a maneira como a neta tratava os dois rapazes, mangando com ambos, dando a um e outro esperanças
que ela própria se encarregava de desmanchar dias ou horas depois com um gesto, uma palavra ou um encolher de ombros.
Como era natural a história se espalhou depressa pela vila: Bolívar e Florêncio, primos-irmãos e amigos de infância, estavam apaixonados por Luzia Silva. Qual dos
dois a moça iria escolher?
- Escolhe o Florêncio - dizia um - porque é o preferido
do Velho.
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- Não. O preferido do Aguinaldo é o Bolívar - afirmav outro.
- Mas, no fim de contas, qual é o preferido da moça?
- Decerto os doisl - maliciava um terceiro. -Ela tem olho de mulher falsa.
- Mas não pode casar com os dois ...
- Ué Casa com um e depois fica amásia do outro. Gent
de cidade grande não tem vergonha na cara. Um dia alguém disse:
- O Florêncio e o Bolívar vão acabar brigando. É uma pena. Primos-irmãos... cresceram juntos como unha e carne. Agora ve essa bruaca estrangeira .. .
- Mas ela não é estrangeira. Nasceu em Pernambuco.
Sei lál Não sendo continentino pra mim é estrangeiro.
Em princípios de 1853, quando os santa-fezenses ainda comeu tavam o almanaque do Dr. Nepomuceno, espalhou-se por toda vila a notícia de que Luzia Silva ia contratar
casamento com Bolívia Cambará.
Um habitante antigo do lugar, que conhecera o Cap. Rodrigo murmurou: - Se o rapaz puxou pelo pai, tenho pena da moça. .
Mas um outro, que sabia das histórias que corriam sobre o pas sado de Aguinaldo, retrucou
- Mas se a moça puxou pela avó, a corrida vai ser parelha
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Acordou sobressaltado, sentindo que havia soltado um gnt Pulou da cama automaticamente e ficou de pé no meio do quart escuro, na estonteada aflição de quem se vê
de súbito sem memó e não sabe quem é nem onde está - mas sente que algo de terrív está acontecendo.
"Meu filhol"
Donde vinha aquela voz? Da direita? Da esquerda? De on "Meu filhol" Quase sem sentir, como uma criança que- t
medo da escuridão, ele gritou: "Mamãe!"" A memória então lhe voltou. Era Bolívar Cambará, estava
sua casa, em seu quarto e fazia algum tempo que- se deitara p dormir. Mas o medo ainda lhe comprimia o peito, e era terrível ainda porque ele não lhe conhecia a
causa. Alguma co o fizera soltar um grito e acordar assustado,. alguma coisa -que certo estava agora escondida num dós .cantos -dó quarto escuro. Por isso a voz
de sua mãe era uma esperança de socorro. Ele qu luz: ele queria a mãe.
Uma porta se abriu e Bibiana apareceu com uma vela acesa na mão. A chama alumiava-lhe o rosto. E por um segundo Bolívar de novo voltou à infância. Pareceu-lhe até
sentir o cheiro do óleo da lamparina. O rosto da mãe lhe deu-a sensação de segurança de que ele precisava. Seu primeiro ímpeto foi o de caminhar para ela, buscando
a proteção de seus seios, de seus braços, de seu ventre. Para ele mãe e luz eram duas coisas inseparáveis. Quando menino, muitas vezes acordava assustado no meio
da noite, começava a chorar e só se acalmava quando a mãe acendia a lamparina e o tomava nos braços para o embalar.
- Que foi que aconteceu, meu filho? - perguntou ela caminhando descalça para o rapaz e pondo-lhe a mão no ombro. - Está_ sentindo alguma coisa?
- Não é nada, mãe.
De repente teve vergonha da situação. Um homem de quase vinte e três anos portando-se daquela maneira. . .
Bibiana empurrou Bolívar para a cama, de mansinho. Bolívar deixou-se levar.
- Deita, meu filho.
Ele obedeceu. Bibiana sentou-se na beira da cama, depôs o castiçal sobre a mesinha de cabeceira e puxou a colcha de algodão, cobrindo o filho.
- O sonho veio outra vez?
- Veio.
Desde que voltara da guerra, Bolívar sonhava periodicamente
com o homem que matara numa carga de lança. Claro, tinha matado muitos outros, em diversos entreveres: mas havia um que ele não podia esquecer. .. Vira-lhe bem o
rosto no momento em que sua lança lhe penetrara o tórax, num estalar de costelas - uma cara contorcida pela dor e pelo medo, com o sangue a escorrer pelos cantos
da boca ...
E agora, ali junto da mãe, pensando em tudo isso, Bolívar mais uma vez teve vontade de desabafar .com ela, contar-lhe o que nunca contara a ninguém. Queria dizer:
"Foi de mau que matei ele- O combate tinha terminado. O quadrado estava -rompido. Os argentinos se entregavam. Foi então que vi aquele homem. Olhou pra mim, ergueu
os braços e gritou: "Amigo, amigol" Estáva doido de medo, o pobre... Estava desarmado... Esporeei o cavalo, arranquei pra cima dele e enterrei-lhe a lança no peito.
Eu estava como louco, meio cego... O homem caiu de costas com a lança espetada no peito e eu fiquei olhando... Era bem mo~o e estava de olhos vidrados. Eu matei
aquele homem por maldade. Mas não sou bandido, mãe, juro por Deus que não soul"
Bolívar olhava para a mãe mas não dizia nada. Falava apenas em Pensamento, confessava tudo. E em pensamento também chorava, tirava aquela ânsia do peito, desabafava...
338 O CONTINENTE

Como se tivesse ouvido as palavras que o filho não pronunciara, Bibiana começou a passar-lhe as mãoss pelos cabelos e a dizer:
- Não é nada, Boli. Guerra é guerra.
Ela sempre lhe contava as histórias do Cap. Rodrigo e as que sua avó Ana Terra lhe narrara sobre revoluções, violências e crueldades. Parecia que aquelas mulheres
estavam habituadas à idéia de que um homem para ser bem macho precisava ter matado pelo menos um outro homem.
- Sonhei que o morto estava em cima do meu peito - disse Bolívar - e que o sangue que saía da boa dele escorria pra dentro da minha e me afogava. . .
- Por que não esquece isso, meu filho? O que passou passou.
- Mas não passou, mãe. De vez em quando o sonho volta. Cada vez que ele vem, é o mesmo que matar de novo aquele homem.
- São os nervos, Boli. É por causa de amanhã.
No dia seguinte ia haver uma festa no Sobrado para festejar o contrato de casamento de Bolívar com Luzia Silva. Era natural que o noivo estivesse preocupado.
Bibiana tomou de novo o castiçal e ergueu-o diante do rosto de Bolívar. Viu a chama refletida nas pupilas do filho uma pequena vela acesa em cada olho.
- Agora dorme. Tudo passa. Fecha os olhos e faz força pra não pensar.
Bolívar cerrou os olhos e pediu: - Deixa a lamparina acesa.
- A lamparina? - estranfiou ela. A vela, digo.
Lembrou-se dos tempos de menino quando suplicava: "Não apaga a luz, que_ eu tenho medo."
Os dedos dela eram frescos e leves sobre sua testa. Sentiu quando ela se erguia, ouviu-lhe os passos macios nas tábuas do soalho. e o ruído "da porta que se fechava
de mansinho. De novo teve a sensação de abandono e de inexplicável medo. No silêncio começou a ouvir o tique-taque do relógio sobre a mesinha de cabeceira.
Era o relógio que pertencera a seu avô, Pedro Terra. Quando menino, Bolívar costumava pedir ao velho que lhe deixasse escutar o coração do relógio. "Não é coração,
Boli. E uma máquina" - explicava Pedro. O coração de Pedro Terra tinha parado para sempre. Mas o do relógio ainda continuava a bater.
Bolívar revolveu-se na ama, e então o pensamento que estava tentando evitar, lhe veio-de novo, com uma força tão terrível qu lhe pós o sangue a pulsar nas têmporas
com fúria entontecedora O quarto de súbito como que ficou cheio da presença do negr Severino.
O suor escorria pela testa e pelas faces de Bolívar, e ele seu a camisa pégajosa e úmida colada às costas e ao peito. Precisav
A TEINIAGUA 339

sair para o ar livre, procurar a companhia de alguém. Pensou em ir icordar o primo. Florincio era o seu melhor amigo, a única pessoa com quem se podia abrir. Sim,
devia levantar-se e sair. Mas não saía. Ficou na ama, deitado de costas, com a impressão de ter o mundo iáteiro em cima do peito.
Havia uma coisa que não lhe saía da mente: Amanhã Severino vai ser enforcado por minha culpa. Todos diziam que fora o depoimento de Bolívar Cambará que o condenara.
O júri se realizara havia mais de ano, o processo se arrastara, fora mandado em recurso final ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, que confirmara a sentença.
Severino ia ser enforcado no dia seguinte, às cinco da tarde, na Praça da Matriz... Era a primeira condenação à morte na história de Santa Fé. Na expectativa do
grande espetáculo, a população estava excitada, como em vésperas de quermesse ou de cavalhadas. Iam até botar cadeiras ao redor da forca...
Havia pouco mais de um ano aquele crime ocupara todas as atenções na vila e no município. Os habitantes. antigos do lugar afirmavam que fora. o- mais horrível de
quantos tinham lembrança. Dois tropeiros desconhecidos haviam pedido pousada numa chácara das cercanias da vila, onde morava um oleiro viúvo servido por um único
escravo, Severino. Jantaram os viajantes na companhia do oleiro e durante -o jantar - em que foram atendidos pelo preto dedataram ter recebido muito dinheiro da
venda duma tropa de mulas. E como fossem partir no dia seguinte,. antes do nascer do sol, quiseram, antes de se recolherem, pagar a hospedagem, e um deles tirou
uma onça de ouro da guaiaa recheada de moedas. O dono da casa - segundo ele próprio contou mais tarde às autoridades - mostrou-se melindrado com aquele gesto e recusou
receber o dinheiro. Onde se viu um gaúcho cobrar hospedagem em sua asa? Os viajantes recolheram-se ao quarto e no dia seguinte foram ambos encontrados mortos, com
as cabeças esmigalhadas. Ao descobrir os cadáveres o oleiro - de acordo com seu próprio depoimento - gritou por Severino e verificou que o negro havia desaparecido.
Aconteceu que na noite do crime Severino pedira guarida a Bolívar, dizendo ter fugido do amo por não poder suportar-lhe os maus tratos. Bolivar ficou intrigado ao
ver manchas frescas de sangue na camisa e nas alças do escravo.
- Que é isso, Severino?
- Sangre.
- Eu sei. Mas de quem?
O negro pareceu hesitar um instante e depois disse:
Meu. Foi da sova que apanhei ind"agorinha.
- Tire a camisa. Vamos botar remédio nas feridas.
Não carece.
- Tire a camisa! - ordenou Bolívar.
34O O CONTINENTE
Severino então começou a tremer e a balbuciar coisas que B lívar não entendeu, e num dado momento olhou para a porta co olhos cheios de pavor, precipitou-se na direção
dela, e fugiu. Fo preso no dia seguinte nuns matos dos campos dos Amarais e trazid para a vila. Chamado a depor, Bolívar contara o que vira. Inter rogado pelas autoridades,
o negro chorou, negando ter cometido crime. Como as guaiacas das vítimas não tivessem sido achadas perguntaram a Severino onde as havia escondido.
- Não escondi nada - choramingou ele. - Não matei nin guém. Não sei nada. Sou um pobre negro.
Contava mais, que na noite do crime o patrão o acordara chicotadas e ameaçara-o com um facão, gritando:
- Vai-te embora, negro sujo, senão eu te sangrol
O oleiro, entretanto, negava tudo isso, como negara també haver surrado o escravo na noite em que os tropeiros lhe pedira hospitalidade.
O júri foi dos mais movimentados em toda a vida de Santa F desde que ela fora elevada a cabeça de comarca. Entre os juízes d fato estavam Bento Amaral, Aguinaldo
Silva e Juvenal Terra. promotor foi implacável. Achava que um crime daquela nature não podia ficar impune; tinha de ser punido com a máxima severidade - "... para
que,.senhores jurados, não fique estabelecid um precedente horrível que haveria de trazer a inquietude e o pavo permanentes a todos os senhores de escravos, a todas
as casas, a tòd as famílias". E continuou: "O depoimento do Sr. Bolívar Cam barri, pessoa que nos merece a maior confiança, deixa o caso ciar como um cristal. Na
noite do crime o negro o procurou e esta com as roupas ensangüentadas. Que dúvida pode ainda subsistir Era o sangue das vítimas inocentes, pois se fosse o sangue
à própn escravo, como ele parecia insinuar, por que se recusou Severino mostrar suas feridas ao homem junto do qual buscava proteção?
Severino foi declarado culpado por todos os juízes, menos Juvenal Terra, que mais tarde afirmou a amigos: Esse negro e conheço desde menino. Brincou com o Florêncio
e o Bolívar. Nã é capaz de matar uma mosca. Homem e cavalo eu conheço pe
jeito de olhar."
Bolívar revolveu-se na cama e ficou deitado de bruços, com braços dobrados e os punhos cerrados debaixo do peito, sentindo bater furioso do coração. Pensou no coração
do Severino a pui naquele pobre peito escuro e lanhado. Decerto àquela hora o neg estava acordado na sua cela, esperando o clarear do dia de s morte. Mas quem Bolívar
via em pensamentos na cadeia não era Severino homem feito, mas sim o menino que brincava com ele Florêncio debaixo da figueira da praça. E esse menino agora
A TEINIAGUA 341
morrer só por causa dumas palavras que seu amigo Boli dissera às autoridades...
Bolívar procurou pensar em Luzia, esforçou-se por se convencer a si mesmo de que tudo estava bem : ele ia casar com a mulher que amava, com a mais linda moça de
Santa Fé: um dia seria o senhor do Sobrado... Mas era inútil. Seu mal-estar continuava : aquela aflição, aquele peso no peito, a sensação de que algo de horrível
estava por acontecer... E a lembrança de Luzia agravava essa sensação. E, sem compreender como, Bolívar odiou a noiva. Odiou-a por tudo quanto sentia por ela, odiou-a
porque ela era bela, rica e inteligente. E odiou-a principalmente por causa de seus caprichos de mocinha mimada. Ele lhe pedira, lhe suplicara quase, que transferisse
a festa do noivado para outro dia qualquer, a fim de que a cerimônia não coincidisse com a hora do énforcamento de Severino. Luzia batera pé: "Não, não e nãol" O
Pe. Otero interviera, dizendo que não era" direito estarem se divertindo no Sobrado enquanto um cristão morria ali na praça. Mas Luzia não cedera. Achava que não
havia nenhuma, fazão para modificar seus ólanos. Já tinham preparado tudo: os convites estavam feitos, os doces prontos... Se as autoridades quisessem, que transferissem
a execução. E Aguinaldo, que sempre acabava fazendo as vontades da neta, deu-lhe todo o apoio: "Luzia é a dona da casa e da festa. Ela é quem manda." /
Bolívar sentia o pulsar do próprio sangue no ouvido que apertava contra a fronha. Seu coração batia com tanta força que parecia sacudir a cama, a casa, o mundo.
E batia de medo - medo do que ia acontecer depois que o dia -siasse...
De repente Bolívar descobriu por que sentia aquilo. Era a imPressão de que ele, e não Severino, é que ia ser enforcado. Aquela era a sua última noite. Não podia
dormir. Era inútil tentar. O Pavor da morte mantinha-o de olhos abertos.
Atirou as pernas para fora da cama e levantou-se. Como era seu hábito, dormia vestido.. Apanhou as botas e começou a caminhar na direção da porta, procurando não
fazer barulho. E quando se viu a andar pé ante pé na casa silenciosa, teve a impressão de que era um ladrão ou de que ia matar alguém... E " num segundo passou-lhe
pela mente uma idéia confusa e horrenda: Ele, Bolívar, unha assassinado os dois tropeiros: Severino escava inocente. Agora se lembrava. A machadinha, os dois homens
ressonando no quarto escuro. Depois o estralar dos ossos daquelas cabeças, como cocos que se Partem. Bolívar respirava com dificuldade. Tinha.os olhos fechados procurava
espantar aquela idéia. Devo estar louco por
essas barbaridades.
Continuou a andar, com todo o cuidado. Mas o soalho rangeu a voz da mãe veio do outro quarto: "Bolívarl"
Por um instante ele não respondeu. Estava trêmulo, assustado.
#342 O" CONTINENTE

como se tivesse sido descoberto no momento em quc ia cometer crime. A porta abriu-se, e de novo lá estava D. Bibiana, com cabelos grisalhos caídos sobre os ombros.
A luz da vela, que alumiava o quarto, não chegava até o rosto dela.
- Que é que o meu filho tem?
- Não é nada, mãe. Só que não pude dormir.
- São os nervos.
Houve um -silêncio. Bolívar calçou as botas, e depois disse: - Vou caminhar um pouco pra refrescar. - Vai, meu filho, mas não demora. Amanhã precisas
bem disposto.
Bolívar saiu com a impressão de que não voltaria mais, nun mais.
A TEINIAGUA 343
Era uma noite calma, e morna, de lua cheia. Bolívar começo a andar sem saber ao certo aonde ia, mas seus passos o levaram direção da casa de Florêncio. Tinha a impressão
esquisita de nã estarr bem acordado. Seus pés pesavam como chumbo e parecia. q o chão lhe fugia às pisadas. Galos amiudavam nos terreiros e deixava tudo mais estranho-
pois embora ele sentisse que os gal estavam cantando, esse canto não chegava a mover o ar morto noite. Houve um instante em que Bolívar* desconfiou de que tu aquilo
era apenas um sonho. Talvez fosse. Talvez de ripes acordasse para verificar que estava ainda em sua cama. No entan andava sempre, via as casas ao luar, os quintais
onde árvores escure javam, as sombras das casas na ma, os frades-de-pedra -na frente venda do Schultz, da loja do Alvarenga e da agência do correi Ele estava acordado,
não havia dúvida. E agori começava a doer lhe a cabeça - uma dor de canseira e de tontura, um mal-estar febre. Um, gato cinzento passeava por cima dum telhado e
olhos fuzilaram. De repente, num choque, Bólívar lembroudum gato que, quando menino, ele vira um escravo enforcar fundo do quintal, e o guincho estrangulado do animal
lhe passou a memória como uma agulhada. E lá de novo estava tino pendurado na forca, e o coração de Bolívar a bater-lhe um possesso dentro do peito.
Decerto estou doente, com febre - refletiu ele ao chegar frente da casa de Florêncio Terra. Ficou indeciso. Precisava rha o amigo sem acordar as outras pessoas da
casa. Entrou pelo lateral e bateu de leve na janela do quarto do primo. Não nenhuma resposta. Tornou a bater com mais força, chamam "Florêncio... Florêncio."
Esperou. Ouviu um arrastar de pés dentro do quarto. Depois a janela se entreabriu.
- Quem é?
- Sou eu. O Boli.
- Que foi que houve?
A cabeça de Florêncio apareceu.
- Nada. Só que não posso dormir. .. - começou a dizer Bolívar. E de repente sentiu vergonha daquela situação. Estava ali como um menino assustado pedindo a proteção
dum mais velho. Ficou* desconcertado, sem atinar com o que fazer. Florêncio compreendeu tudo e murmurou
- Espera um pouquinho que já saio. - E fechou a janela.
Bolívar encostou-se na parede -da casa, tirou do bolso um pedaço de fumo, desembainhou a faca e começou a fazer um cigarro. Havia no ar um perfume de madressilvas
e agora,, longe, um cachorro começava a uivar. De novo Bolívar pensou em Severino. Ele decerto estava ouvindo da cadeia o uivo do animal, uma lamúria agourenta,
prolongada e trêmula, que Bolívar sentia repercutir-lhe dentro do peito. Pensou na "simpatia" que sua mãe costumava fazer quando ouvia um cachorro uivar: virava
uma chinela de sola para o ar e imediatamente o uivo cessava.
O vulto de Florêncio apareceu, vindo do fundo da casa. Os dois primos começaram a caminhar lado a lado, em silêncio, ganharam a rua e sem a menor combinação se dirigiram
para a praça. Era assim que faziam quando crianças: mal se juntavam corriam a brincar debaixo da figueira grande.
Pararam por um instante à frente da capela, e Florêncio, vendo que o primo tinha preso entre os dentes o cigarro apagado, bateu a pedra do isqueiro. E quando o outro
aproximou a ponta do cigarro da brasa do pavio, Florêncio percebeu que os dedos do amigo tremiam.
- Calma, tenente - murmurou ele. - Calma ...
Era assim que dizia quando estavam na véspera dum combate. Tinham feito juntos a campanha contra Rosas, e pouco antes de entrarem em ação, Bolívar ficava tão nervoso
que começava a bater queixo, a tremer e às vezes rompia até a chorar. Florêncio tinha de tomar conta dele, leva-lo para o mato, metê-lo na barraca, abafar-lhe o
choro como podia para que os companheiros não ouvissem, para que não pensassem que Bolívar estava com medo. Porque covarde ele não era. Quando ouvia os primeiros
tiros, quando via o inimigo aproximar-se, o rapaz mudava completamente. Ficava assanhado como um potro bravo, de narinas infladas, cabeça erguida, ardendo por se
meter num entrevero. E era preciso contê-lo para que não fizesse temeridades.
Florêncio agora olhava para o primo à luz do luar. Como era difícil compreender aquele homem! Viviam juntos desde meninos
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e ele ainda não conseguira entender o outro, nunca sabia o que aspar dele. Era uma criatura desigual: num momento-estava exaltado fogoso, mas no minuto seguinte
podia cair no mais profund desânimo. Passava da doçura à cólera com uma rapidez que das norteava os amigos.
Depois que decidira contratar casamento com Luzia, seu ner vosismo aumentara, e agora ele começava a portar-se como se esta vesse em véspera de combate.
Florêncio apagou o isqueiro e perguntou:
- O sonho veio outra vez?
- Veio - murmurou o primo, puxando uma baforada
fumaça.
-,O mesmo de sempre?
Bolívar sacudiu a cabeça, numa afirmativa meio relutant Depois, disse
- Desta vez o Severino também apareceu.
Florêncio sempre achara que os sonhos traziam avisos de coi que iam acontecer. Conhecia casos... Mas o Dr. Winter afirma que isso era crendice, porque os sonhos
nada tinham a ver com futuro.
Agora os dois caminhavam calados para o centro da praça Florêncio via que os olhos de Bolívar estavam postos na forca Compreendeu então que era que estava roendo
o amigo por dentro mas achou melhor não dizer nada. O outro que puxasse o assunt se quisesse.
Sentaram-se debaixo da figueira, ficaram por algum tempo silêncio, pensando os dois nos tempos da infância, quando vinha ali brincar com Severino. O negrinho subia
na árvore, ágil e escu como um bugio, fazia piruetas, soltava guinchos. Bolívar er ao rosto um pedaço de pau, fazendo de conta que era uma espi garda, apontava-o
para o bugio, gritava: pêiI, e Severino, segun uma combinação prévia, tinha de atirar-se ao chão e ficar imóvel um bugio morto - até que Florêncio vinha ajoelhar-se
ao pé de encostar o ouvido no peito do "animal" e depois declarar mui sério para o primo: "Bem no coração." Mal, porém, ele dizia palavras o negrinho começava a
rir desesperadamente, a retorcer todo e a espernear. Era a hora de Florêncio tirar da cintura ;a faca de madeira e "sangrar" o bugio bem como os homens da ch queada
sangravam os bois...
O bugio vai ser enforcado amanhã - pensou Bolívar. De n começou a sentir as batidas violentas do próprio coração. Es sentado com as costas apoiadas no largo tronco
da figueira, e um momento em que lhee pareceu que a árvore tinha também grande coração que pulsava, numa cadência de medo. Aquela gueira sempre lhe dera a impressão
duma pessoa, duma mulher tivesse a cabeça, os braços e os ombros enterrados no chão e
A TEINIAGUA 345
pernas erguidas para o ar, muito abertas. Bolívar tinha treze anos quando descobriu a semelhança, e desde então começou a amar secretamente a figueira. Às vezes
ficava montado bem na parte em que as duas pernas da "mulher" se ligavam ao tronco: enlaçava com ambos os braços uma das coxas e, de olhos fechados, ansiado e trêmulo,
ficava ali longo tempo, com o coração a bater descompassado de prazer e de medo - prazer de amar a figueira-mulher: medo de que alguém aparecesse e o visse fazendo
aquilo. Nunca contara seu segredo a ninguém, nem a Florêncio, pois o primo não gostava de "bandalheiras". E aquela árvore tinha sido para ele tudo: cavalo, carreta,
castelo, abrigo, amante... Pensou em Luzia, imaginou-a meio enterrada no chão, de pernas para o ar. Luzia devia ter pernas bonitas. Ele ia amar Luzia como amara
a figueira. Mas Luzia não era boa como a figueira, Luzia não era amiga como a figueira ...
Olhou para o Sobrado : grande, branco, imóvel ao luar. Por trás daquelas paredes sua noiva decerto dormia sem remorsos, como uma criança. Tinha tudo o que queria,
todos lhe faziam as vontades, era como uma rainha. Um homem ia morrer na forca, mas que era para aquela moça mimada a vida dum homem, de cem homens?
Bolívar olhou para o primo, tomado dum súbito desejo de contar-lhe o que sentia:, mas a voz se lhe trancou na garganta. Depois, havia tanta coisa a dizer que ele
não sabia por onde começar. Ficou olhando alternadamente para o Sobrado,. para a forca e para a cadeia onde Severino estava preso. Galos cantavam. Dentro de algumas
horas a manhã ia raiar.
De repente, como se seus pensamentos se transformassem em palavras à revelia da vontade, Bolívar murmurou:
- É uma barbaridade enforcarem um homem.
Atirou longe o cigarro. Florêncio encolheu os ombros.
- Barbaridade por barbaridade, há muitas outras no mundo e a gente acaba se habituando com elas.
- Mas vai ser uma injustiça! - gritou Bolívar. E suas palavras foram absorvidas pelo ar parado da noite.
Florêncio voltou a cabeça para o primo. Não lhe podia distinguir bem as feições ali à sombra da figueira, mas sentiu que no rosto dele havia sofrimento.
- Injustiça? O júri condenou o Severino.
- Mas o negrinho está inocente.
Quê?
Quem matou os trapeiros fui eu.
Florêncio sentiu no peito estas palavras como um soco que lhe cortou o fólego. Mas logo se refez e reagiu:
Não seja bobo. Vassuncê está mas é doente.
Agora ele ouvia a respiração arquejante do outro, como a dum
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O CONTINENTE
A TEINIAGUA 347
cachorro cansado. Bolívar meteu as mãos pelos cabelos e começ a sacudir a cabeça devagarinho. Foi com voz fosca que disse:
- Mas se eu fosse me apresentar às autoridades confèssan que matei os dois homens, ninguém podia duvidar da minha pala
- o Severino se salvava.
O luar era como uma geada morna sobre os telhados. Florên arrancou um talo de capim e mordeu-o.
- Vassuncê precisa é dormir, descansar - disse ele simpl mente.
Bolívar continuava a sacudir a cabeça.
- O negrinho vai morrer por minha culpa.
- Não diga isso, Boli. Vassuncê fez o que era direito. Cont
- que viu...
- Não sei.
- Que é que não sabe?
- Se contei o que vi. No princípio achei que estava falara a verdade. Mas depois do júri comecei a duvidar. Hoje não anais nada ... Parece que o sangue era mesmo
do negro...
- Nesse caso, quem foi que matou os tropeiros?
- Sei lá! Algum ladrão que entrou de noite pela janela. O quem sabe, o dono da casa.
Florêncio mordia o talo de capim e sua voz estava calma, r signada e triste quando ele disse,
- Agora é tarde.
Bolívar ergueu a cabeça e lançou um olhar na direção da cadei - Não é tarde. O Severino ainda está vivo. - Mas está preso, Boli, e vai ser enforcado amanhã. Florêncio
sentiu a mão quente e úmida do amigo apertar
- pulso com uma força quase furiosa.
- Florêncio, ainda tem tempo!
O rosto de Bolívar estava agora tão próximo que Florêncio lh
sentia o hálito ácido.
- Tempo de quê?
- De salvar o negrinho.
- Mas como?
- Tirando ele da cadeia.
- Está louco?
- Não, mas sou capaz de ficar se o Severino morrer enforcad
Não posso agüentar mais essa morte na consciência.
- Mas o que é que vassuncê quer fazer?
- Escuta, tem só dois guardas na cadeia. Nós somos dois. . Florêncio agora compreendia. Cuspiu de súbito o talo de ap
- sacudiu vigorosamente a cabeça.
- Vamos até a cadeia - continuou Bolívar - amarram
os guardas, tiramos o Sevèrino, eu dou um dos meus cavalos p
ele e mandamos o negro embora. Pode sair na direção da Cruz Al
e ir pra São Borja e depois, pra: Argentina, pra qualquer lugar. Qualquer coisa e melhor que a forca.
Florêncio tirou do bolso um pedaço de fumo em rama. desembainhou a faca e começou a fazer um cigarro. Bolívar esperava a imposta. Só depois de algum tempo é que
o primo respondeu:
Vassuncê está bem doido mesmo.
- Não estou, já disse. Ainda tem tempo. Vamos.
Florêncio picava fumo, calmo. Ele. conhecia o primo. Tudo aquilo ia passar. Ainda bem que não havia ninguém por ali pau ouvir aqueles despautenos.
Vassuncê precisa mas é de descansar. Amanhã quando raiar o dia tudo vai ficar direito.
- Não fica. Fica pior.
- Sabe duma coisa? Um banho no lajeado ia lê fazer bem. Vamos?
Bolívar pareceu não ouvir o que o outro propusera.
- Vamos tirar o Severino da prisão enquanto é tempo - insistiu. Quando amanhecer vai ser tarde demais.
Viam uma janela iluminada na casa da cadeia. Era o candeeiro que passava a noite aceso. Havia dois guardas que se revezavam na vigília. As vezes- fiavam acordados
jogando bisca e bebendo. Contava-se que no raro ambos caíam no sono.. Os olhos de Bolívar agora estavam #fitos na janelinha iluminada.
Florêncio guardou a faca na bainha e começou a amassar o fumo no côncavo da mão.
- Nós tiramos o Severino da cadeia.. - disse ele com sr" voz calma - e depois, que vai ser de nós?
Bolívar encolheu os ombros.
- Que me importa?
- Como, homem? Não vê que é uma coisa muito séria dar escapula pra um condenado à morte? .
- Pois então fugimos também com ele, vamos pro outro lado do Uruguai.
- Vassuncê perdeu o juízo. Não se lembra que amanhãs é o dia de seu contrato de casamento?
t3aciaQue me importa? A vida duma pessoa tem mais impor
.
Que tem, tem. Mas o cano aqui é diferente. Os jurados acharam que o negrinho era .culpado. & alguém errou não foi vasauncê, foi o júri.
- Mas houve um jurado que não achou o Severino culpado. FO1 o deu pai. Ele disse que conhece as pessoas pelo jeito de olhar. Ele jura que o negrinho não em capaz
.de cometer aquele crime. Tio Juv*"l conhece as pessoas. Ele nuns se engana.
Florêncio alisava agora a palha do cigano.
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O ~ vriea também re engana. Todo o mura engana. r~ ~ é infalível. Só Dona.
- Dcnr também se engana. Há moita injustiça no moa
- Vaanaá .precisa é dom banho frio. Por qsc não era mos os avalos e vamos até o lajeado?
De sovo galos cantaram: eram como sm relógio dando Cada vez mais se aprozimava o, fim da noite. Bolívar olhou o horizonte através duma boca de roa. Temia ver aquela
parte céu clarear. Mas que m mesmo que ele temia? A hora do umecto? A hora do noivado? O aaor . agora lhe eatnva cantos da boca, pelos olhos, e por algaras segandos
éle via a através dama cortina líquida: fado trêmalo e vago. Scsa pr pensamentos pareciam .encharcados de suor, estavam confasoa, fundos, eram como sm miagas gseate
de febre.. Pensava-entoa dameate em Severino e em Luzia: ora lhe parecia que fora .L quem mandara matar Srverino; ora era Severino quem estava na de Luzia, montado
nela, com sena buços negros a enlaçar-lhe cozas; ora era Latia quem talava na cadeia e ia ser enforcada. imaginava-os todos a fugir pau o Uruguai, a galope, montados
cavalos em pelo - ele. Luzia, Florêncio, Severino - petsegat pela polícia, peraegaidaa pelos galos e pelas barras do dia.
Levantou-se, bronco.
- Pois sc yaassacê não quer ir comigo, era vou sozinho. - Vai .aonde? - pergaaton Florêncio, apesar de saber a Ooutro a< referia.
- Tirar o Severino da cadeia.
Floréncio soltou uma risadiaha seca.
- Man primeiro tem qae lotar comigo.
"Ergueu-se também, mas lento, tom o cigarro apagado entre
dentes.
Bolívar olhou para o amigo, cuja calma o enervava. vontade de esbofeteá-lo. E - estranho - num relâmpago praaden qse .naquele momento ele tinha inveja do outro.
l~lo não sofria, eco trm homem liwe, náo ia casar-se cora Luzia St Sentiu também ciúme dele, porque sabia que FlorBacio sempre tara de Luzia, e esta moitas vezes
deu mostos de não lhe ser fer+cnte. E ali catava agora o primo, pachorrento, batendo o " para acender o aen cigarro: Invejava-lhe também aquela cal eoaaciáncia tranggila,
a segannp de suas palavras, de seus g de soas coavicçôes.
Bolívar. olhou de novo para a janela da odeia. Atnvesaa praça cornado, armado de pistola e, entrando de. repente, farïa a gaardas .dessem liberdade a Srverino. "Corre,
negro, fogel a meu cavalo ~da estrebaria e foge pro Uragoai. Drpreaaa l"
Passou a mão pelo soato, enzugaado o saor. Sentis qae podia fazer nada "do que pensava. Era loacára. Severiao
"do. 81e estava perdido. Toda eabvsm perdidos. Todos m~,os Luzia. Ela sempre fazia e tinha o que gsena. Ela e Flo~ao, E então de repente lhe veio sma idéia. "Eu
solto o Severino e fojo com_ ele pra Argentina. Florgntio fica e acaba casando-se com Lnzta." Ali estava a solaçãoI Nesse momento vetifimn que estava desarmado.
Tinha de ir até a cana pau búsar dinheiro e soas armas. Entraria na ponta dos pés, sem fazer baralho .. . Lembrou-se da máe. Que ia ser dela . se ele fagiaae? Por
algara instantes teve tia mente a imagem de Bibiana, de camisola, os abe= los grisalhos soltos, ama lamparina sa mão... A mãe morreria de desgosto re ele fagisae.
Flore"ncio pitava serenamente. Bolívar aprozimoa-se da figueira e passou-lhe a mão pelo tronco áspero. Quando meninos. eles tinham gravado sena nomes a ponta de
faca naquele tronco.. Como não soubesse esàever, Sevenno desenhara ali apenas sma~ traz. Agora o coitado ia morrer aa forca, talvez nem o enterrassem como trintão.
Náo teria de seu nem ama traz. Bolívar prometes a si mesmo que havia de compor para Severino uma sepultara com ama cruz e ama iascrição, como sepsltara de busco.
ã?assara a fúrias Lentamente tornos a sentar-se. O chão estava tépido como -um corpo hamano. Pensou em Latia e desejou estar na cama com ela, não para amá-la, mas
para ter um neío onde repousar a cabeça assada e chorar. Porque a vontade de chorar lhe crescia aos pontos no peito. Por algaras instantes latos com ela, mas por
fim cedes, e o chóro rompeu-lhe da garganta num soluço. Escondeu o rosto nas máos e fitos a soluçar coavalsi"vamente.
Florêncio baixos oa olhos para o amigo e pensos: Sle tem medo da Luzía. Mas não disse nada.. Olhou pau o Sobrado e pensou na moça. Agora que ela ia casal com o primo,
deitava de ser mulher para ele.. Estava todo acabado: Doença de amor se cura com o tempo. No fendo ele se sentia feliz por Luzia não o ta escolhido. Feliz filão
era bem a palavra : aliviado, isso sim. Lszia raio era mulher para ele nem para Bolívar. Ia casar com o rapaz por capricho os por birra, ninguém sabia bem ao certo
por qn8. Amor nãoo era, que Lszia não era mulher para isso. Pobre do Bolil Sr náo botasse cabresto na tapása desde o primeiro, dia, catava perdido.. Luzia era como
certos cavalos que precisavam de rédea curta. el~ gwll Boli estava cego de amor, ia passar a vida dominado.por
Em todo aquilo só havia ama esperança: era tia Bibiana, que u morar também ao Sobrado. Ela caidaria de Boli, seria sempre
escudo pau o filho. Lszia era volnatariosa, autoritária, cheia
caprichos, mas ia encontrar pela frente uma adversária de respeito. T~ Bibiana tinha a cabeça no lagar: era uma mulher dos bons ~Pos. Estava habituada a lidar com
gente, e tinha a fibra. da
~s concluis Florfncio com certo orgalho, finado uma
baforada,
A TEINIAGUA 3~9
#35O O CONTINENTE
A TEINIAGUÁ 351
Neasc instante viu que am vulto se aproximava. Reco os contornos do Dr. Grl Wiater. O médico alemão en incoafand Ntagném mais em Santa Fé se vestia daquele jeito
engraçado. gném ali asava chapéu alto como dzamiaé nem. aquelas roupas pafárdias.
A pontos passos da figueira Carl Winter garoa.
- Boa noite, doutor! - exclamou Florêncio.
Por alguns instantes o médico ainda hesitou mas. po
nconheceado o rapaz, .responder:
- Boa noite. Florêncio. Boa noite: Den mais alguns passos à frente.
Qne anda ..fazendo por aqui a estas _horas? Virou lo
mem?
Winter soltou a sua risada em falsete e antes de responder f a acender um de seus charutinhos.
- Fui chamado para ir ver o. Cel. Sento. Comem ch atrainado e ficou com cãibras no estômago.
- Deve ter sido charque da chargntada .dele - observou râncio.
Foi então que. Winter viu Bolívar.
- Ahl Bolívar. Não .rinha visto o amigo. Boa noite. Bolívar fungou.
- Boa noite.
- Está resfriado?
- Um ponto.
Florêncio aspirava com certo prazer a fumaça. do charutinho médico: Ali em Santa Fé só ele fumava aqueles charutos do ta nho dum cigarro. O Dr. Winter era am homem
fora do com que vestia roupas de velado nas cores mais egtravagantes, tom esquisitos- coleEes de fantasia. Fazia uns dois anos que estava vila e diziam que tinha
.emigrado da Alemanha por se ter me numa revolução. .Sena inimigos afirmavam que ele não era orado, mas o Dr. Winter tinha em casa nm diploma -para_ q gwsesse ver:
en nm papel escrito em alemão que ele .gear destro .dum surdo de lata. O Schnltz ganntia que o dipl
en legítimo.
Fêz-se nm silêncio. O Dr. Winter parecia estar olhando p
forca e Florêncio, temendo que ele falasse cat Severino, pr
levar a conversa para outro ramo.
- )a grave í" - perguntou.
- Grave? - repetia o médico. - A aoença ao Cel. Bento.
- Ach! Um pargante de . sal amargo resolve fado. Flosêncio sempre -admirava a maneira correta com que a
lesmem se. exprimia em português: tinha.. um sotaque muito f
era verdade, carregava nos erres, mas quanto ao resto falava fl
mente como um brasileiro educado, quase tão bem como o juiz de direito ou o padre. E diziam que sabia também o seu latim e que em sua casa tinha muitos livros escritos
em línguas estrangeiras.
Florêncio continuava a aspirar a fumaça do charutilho do médico, de cheiro tão forte como o do seu cigarro de palha.
- Ainda não se decidiu a pitar um crioulo, doutor?
- outro sacudiu a cabeça.
- Nem a dormir com mulatas - respondeu com voz risonha. - Há muitos produtos desta terra que não são para meu paladar.
Florêncio sorria. De cabeça baixa, protegido pela sombra, Bolívar pedia a Deus que o médico fosse logo embora.
- Pelo cigarro crioulo eu respondo - assegurou-lhe Florêncio. mostrando os dentes num lento sorriso. - Também nunca fui apreciador de mulatas.
- Que é que diz o Bolívar?
Bolívar não respondeu. Limitou-se a erguer a cabeça para o médico.
- Ele agora vai sentar o juízo - disse Florenao. - Amanhã fica noivo.
- Dr. Winter coçou o queixo onde crescia, revolta, uma barbicha ruiva.
- Não acha então que devia estar na cama descansando? - perguntou com jeito quase paternal.
Florêncio apressou-se a responder:
- O homem perdeu o sono e então viemos pra cá palestrar e tomar a fresca.
- médico resmungou qualquer coisa, puxou uma baforada de fumo, cuspinhou para o lado e disse:
- Bom. Vou ver se durmo um pouco. Dizem que a noite foi feita para dormir.
- Dizem - repetiu Florêncio.
- Boá noite, rapazes.
- Boa noite, doutor.
Wiater afastou-se na direção de sua residência. 1~Iorava numa meia-água atrás da igreja, ao lado da casa do padre. Por alguns instantes Florêncio acompanhou-o com
os olhos. Gostava do Dr. Winter. Sentia por ele uma espécie de respeitosa confiança, como a que a gente sente por uma pessoa séria e idosa. No entanto o médico não
teria muito mais de trinta anos. Devia ser aquela barba e aqueles óculos que lhe davam um ar assim tão respeitável.
- Será que ele notou? - perguntou Bolívar.
Notou o quê?
Que eu estava chorando .. .
Florêncio encolheu os ombros.
Sei lá! Esse homem parece que não- olha pra nada enxerga tudo com o rabo dos olhos.
mas
#352
O CONTINENTE
A TEINIAGUA 353
Houve um curto silêncio e depois Bolívar perguntou
- Será que vão mandar o Dr. Winter examinar o corpo - Qne corpo, homem? -
- O do Severino, depois que enfortirem ele. - Pára cóm isso, Boli. Que homem tustosol
Bolívar olhou para o Sobrado e tornou a pensar em Luzia.
5
Naquele mesmo instante o Dr. Carl Winter - que atrav
a praça com suas passadas lentas e largas. - olhava para a casa Aguinaldo Silva e também pensava -em Luzia. Tinha-a na me tal como a vira no Sobrado na festa de
seu aniversário, toda vesti de preto, junto duma mesa, a tocar cítara com seus dedos fin .brancos. Nessa noite ficara fascinado a observá-la, e houve minuto em"que
uma voz -- a sua propna a sussurrar-lhe em semento - ficara a repetir: Melpômene, Melpômene ... Sim, L lhe evocava a musa- da tragédia. Havia naquela bela mulher
dezenove anos qualquer coisa de perturbador: uma aura de dra uma atmosfera abafada de perigo. Winter sentira isso desde o mento em que pusera os olhos nela e por
isso ficara, com rela à neta de Aguinaldo, numa permanente atitude defensiva. Nu terra de gente simples, sem mistérios, Luzia se lhe revelara u criatura complexa,
uma alma cheia de refolhos, uma pessoa, en - para usar da expressão das gentes do lugar - "que tinha ou por dentro". Ao conhecê-la, Winter ficara todo alvoroçado
co um colecionador de borboletas que descobre um espécime raro lugar mais inesperado do mundo. Ao contrário, porém, do que riria um colecionador, nãoo desejou apanhar
aquela borboleta sua rede; ficou, antes, encantado pela idéia de seguir-lhe o vôo, observá-la de longe, viva e livre. Que mistérios haveria deu daquela cabeça bonita?
Boas coisas nãoo havia de ser - concluíra ele. O instinto insinuava isso. Lembrou-se de seu professor de clínica, segnnd qual em Medicina, como em tudo mais, o instinto
é tudo. Sen o clínico, ou seu sexto sentido fazia soar nma sineta d4 alarme t a vez que ele via Luzia Silva. E- sempre que visitava o Sobra enquanto o velho Aguinaldo
contava com sua voz cantante híst do sertão pernambucano, ele ficava a examinar furtivamente, c olhares oblíquos, a menina Luzia. Que tinha ela de tão serra Talvez
os olhos ... Eram grandes e esverdeados ... Ou seriam zentos? Era difícil chegar a nma definiçâó, pois lhe parecia que mudavam de cor de acordo com os dias ou com
as horas.. Possu ama fixidez e um lustro de vidro e pareciam completamente va
de emoção. Winter descobrira que Luzia fitava as pessoas com a mesma indiferença com que olhava para as coisas: não fazia nenhuma distinção entre o noivo, uma mesa
ou um bule. Pobre Bolívar! Winter achava absurdo que duas pessoas tão desiguais estivessem para casar, morar na mesma casa, dormir na mesma cama e juntar-se para
produzir outros seres humanos. Bolívar mal sabia ler e assinar o nome: era um homem rude. Carl não acreditava que Luzia o amasse; para falar a verdade não a julgava
capaz de amor por ninguém .. - Quanto ao rapaz, era natural que estivesse fascinado por ela. Winter sabia o quanto era difícil para qualquer homem que estivesse
na presença de Luzia desviar os olhos de seu rosto. Reconhecia que ele próprio sentïa pela senhora do Sobrado um certo desejo físico. Era, porém, um desejo sem ternura,
um desejo frio e perverso.
Afastou os olhos do casarão e baixou-os para a terra onde se projetava sua sombra alongada. E então de repente sentiu o silêncio da noite e aquela impressão de mistério
que o envolvia sempre que ele caminhava sozinho de madrugada, pelas ruas desertas. Sentira isso na sua aldeia natal, em Heidelberg,. em Paris, em Berlim. Era como
se nessas horas solitárias ele fosse uma espécie de fantasma de si mesmo.
"Melpômene" - murmurou. E imediatamente lhe veio uma idéia curiosa: nunca ninguém pronunciara aquele nome naquela vila. Talvez nem naquela província ... Depois,
mais alto, como se se dirigisse à própria sombra, repetiu: Melpômene. Nunca - refletiu - eu sou o primeiro. E o primeiro também que passeia sob este céu com estas
roupas. E rindo o seu riso interior o Dr. Winter olhou para a própria silhueta no chão e teve mais que nunca consciência da maneira como estava vestido: a sobrecasaca
de veludo, verde, as calças de xadrez preto e branco, muito ligadas às coxas e às pernas, e principalmente aquele chapéu alto, que era um dos grandes espetáculos
de Santa Fé. Sabia que suas roupas davam muito que falar. Os colonos alemães em sua generalidade haviam já abandonado seus trajos regionais e adotado os dos naturais
da Província. Mas ele, Winter, preferira conservar-se fiel à indumentária européia e citadina, e continuava a vestir-se bem como se ainda vivesse em Berlim ou Munique.
Por outro lado, no que dizia respeito às coisas do espírito, também continuava a usar as modas européias; e não queria mudar, pois sabia que no dia em que se adaptasse
e começasse a comer e vestir como os nativos, mais da metade do encanto de viver naquela terra remota estaria perdida. Winter sempre amara sua independência : era
um individualista. Não via, pois, melhor maneira de se afirmar como um indivíduo, e de defender sua independência do que a de andar vestido daquele modo inconfundível.
Antes de entrar em sua rua lançou um olhar enviesado na dire-
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ção da figueira grande. Ela lhe dera a impressão duma eno galinha . a acolher sob as asas aqueles dois pintos ~ Florêncio Bolívár. Ble vira claramente que um dos
pintos estava assustado. Se en fosse me casar com Luzia Silva - refletiu Carl Winter jóga do ao chão o toco do charuto - também perderia o sono . , E entrou em
casa.
O cheiro de picumâ e mofo - que ele tanto detestava mas c o qual já começava a habituar-se - envolveu-o num abraço f miliar. Winter acendeu o candeeiro, franzindo
o nariz ao cheiro sebo frio; brotou dele. uma chama amarelenta e móvel, e aos pouc as coisas daquele quarto como que foram crescendo da sombra pa fazer-lhe companhia:
a cama-de-vento, a gamela de pau que 1 servia de bacia, o jarro de folha amassada, as cadeiras de palhin a estante com os livros, a mesa de pinho, sebosa e guenza,
com papéis, o tinteiro, o secador de Louça e a pena de pato ... As pa dos caiadas estavam manchadas de umidade.
Que contraste aquele ambiente oferecia quando Winter o co parava com os aposentos que tivera na Alemanhal Mas aque rusticidade, aquela pobreza davam-lhe um absurdo
prazer como que uma pessoa sente ao se infligir certos castigos sem propósit tomar banhos frios no inverno, dormír em camas duras.
Winter pendurou o chapéu nnm prego cravado na parede começou a despir-se lentamente. Ouvia o ressonar pesado da ne Gregória, uma escrava que ele comprara havia pouco
mais de an
- à qual dera alforria imediatamente. Ela lhe preparava a come
- tomava conta da casa. Era uma preta de carapinha amarelen velha e reumática, de pernas elefantinas. Sua presença- faziasentir duma maneira muito aguda, impunha-se
à vista, ao olfa
- ao ouvido, porque Gregória cheirava mal, era grande, moviacom ruído e passava quase todo o dia cantando, falando consi mesmá ou arrastando pesadamente os pés inchados
pela cozinha.
Por que era que ele insistia em continuar naquela casa? Extr vagância? Autoflagelação? Ou simples preguiça? Talvez f preguiça.. A verdade era que costumava divertir-se
imaginando o q diriám seus amigos de Berlim se o vissem naquele ambiente. O vindo os roncos de Gregória, Garl disse para si mesmo: Eu pod" estar morando com Gertrude
Weil numa casinha limpa de Eberbac com vasos de flores nas janelas. No entanto estou nesta pocilg em Santa Fé, na companhia da negra Gregória. Ach, du lieber Got
Estava agora completamente nu. Tinha um corpo muito esgar
- ossudo, dum branco de marfim. pintalgado de sardas e recobert duma penugem fulva. Ficou a imaginar o que aconteceria se u dia saísse a andar assim despido pelas
ruas do povoado. Certamen aqueles homens sairiam a caçá-lo a" tiros e as mulheres que o visse soltariam gritos de horror. E só de pensar nisso Carl ficou sacudi
de riso. Baixou os olhos na contemplação do próprio corpo.
magro e dessangrado como o Crucificado de Van der Weyden que ele vira em Viena. Apenas o Cristo da pintura nãoo usava óculos. T1em era ruivo. Nem formado em Medicina.
Nem ... Ach! .. . pu bist ein Hanswurst, Carl!
Estendeu-se na cama e apanhou um livro de poesias de Heine. Mas nãoo abriu o volume. Pô-lo em cima do ventre, achando gostoso o contato fresco da capa de couro negro.
Cerrou os olhos e em breve verificou que estava sem sono. Abriu o livro e começou a ler um poema, mas com a atenção vaga. Tornou a fechar o volume, soprou a lamparina,
e o ar, que estava amarelento, ficou azulado: o foco de luz deixou de ser a velha candeia de ferro para ser a janela escancarada por onde entrava o luar. E nesse
retângulo violeta Winter começou a ver o crivo miúdo das estrelas.
Tirou os óculos e pô-los com todo o cuidado em cima da cadeira, ao lado da cama. E de repente, como já acontecera antes tantas vezes, sentiu- se tornado de uma sensação
de estranheza que ele poderia toscamente resumir nestas palavras: Eu, -Cari Winter, natural de Eberbach, formado em 16ledicina pela Universidade de Heidelberg, completamente
nu deitado numa cama tosca, num quarto malcheirante, numa casa miserável na vila de Santa Fé, perdida no meio das campinas da Província de São Fedro do_ Rio Grande,
Brasil, América do Sul. Como? Por quê? Para quê? Enlaçou as mãos -sobre o ventre e ficou de olhos cerrados a pensar. Era o melhor estratagema que conhecia para apüsionar
o sono. Procurava narcotizar-se com pensamentos até dormír.. E nunca conseguia ver claro o momento em que cruzava a tênue linha que separa o devaneio do sono.
Como? Por quê? Para quê? Não cometi nenhum crime. Não sou nenhum imbecil. O mundo é muito largo. Eu podia estar no Cairo, em .Bombaim, em Cantão, em Caracas. E por
que não em Munique, Berlim ou mesmo Eberbach .. .
Sempre hesitava antes de responder, quando lhe perguntavam Por que deixara a pátria. Certo; não era um "colono" como os outros alemâes que se haviam estabelecido
às margens do Rio dos Sinos. Não viera à procura do E1-Dorado nem da Galinha dos Ovos de Ouro. Refugiado pólítico? Talvez fosse essa a sua classificação. Sua malícia,
entretanto, recusava o título dramático e levava-o a resumir sua história em poucas palavrás: "Estou aqui Pr"mcipalmente porque Gertrude Weil, a Frciulein que eu
amava, preferiu casar-se corri o filho do Burgomestre. Isso me deixou de tal maneira desnorteado, que me meti numa conspiração, que .redundou numa revolução, a qual
por sua vez me atirou numa barricada. Ora, essa revolução fracassou e eu me vi forçado a emigrar com alguns companheiros."
Carl Winter gostava de relembrar a série de acontecimentos fortnitos que o haviam trazido de-Berlim a Santa Fé, através das mais
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curiosas escalas. Desembarcara no Rio de Janeiro com o diplo
a caixa de instrumentos cirúrgicos e algum dinheiro no bolso, cidido a estabelecer-se ali, fazer clínica, juntar uma pequena fortu para um dia - depois que seu governo
tivesse indultado os rev lucionários e ele conseguido esquecer Trude Weil - retornár à A manha. Achou, porém, que o Rio era insuportavelmente quen tinha um incômodo
excesso de mosquitos e mulatos, além da ames permanente da febre amarela. Meteu-se com armas e bagagens n patacho que se faziá de vela para a Província de São Pedro
- q lhe diziam ter um clima semelhante ao do sul da Europa - desembarcou na cidade do Rio Grande, onde julho o esperou co ventos gelados que cheiravam a maresia
e nevoeiros que o lembrar agradavelmente dum inverno que ele passara em Hamburgo, quan adolescente. Apresentou suas. credenciais à prefeitura e, sabendo ex tir na
cidade uma grande carência de médicos, ofereceu-se para t balhar gratuitamente no hospital de caridade local. Foi 1a qne u dià, . fazendo. sua visita matinal aos
doentes, encontroa deitado nu daqueles catres sujos e malcheirosos, num contraste com as cor tostadas dos nativos, um homem louro, extremamente jovem, e~ aspecto
europeu. Deteve-se, interrogou-o e verificou que se trata de um alemão que viera com as tropas mercenárias que o govern brasileïro havia contratado para lutar contra
os soldados do ditad Rosas. E o pasmo de Winter chegou ao auge quando o moço 1 declarou chamar-se Carl von Koseritz e ser descendente duma famíl nobre do ducado
de Anhalt. Foí, pois, com uma mistura de s presa e cepticismo que o médico ouviu áyuele homem de feiç" finas, ali estendido num ,sórdido leito de hospital de indigent
contar-lhe que seu irmão Kurt fora ministro do duque e sua irm Tony, dama de honor da duquesa.
- Mas como foi que veio parar neste país, nesta cidade, nes hospital?
- Fui renegado pela minha família - sorriu o moço.
O médico. ia perguntar: "Por quê?" - mas conteve-se a tem Era uma pergunta indiscreta. Talvez o rapaz houvesse falsifica a firma do .pai em alguma. letra para pagar
dívidas de jogo. . Ou então, amante de alguma condessa, tivesse sido obrigado a mat o conde num duelo .. .
Von Koseritz, porém, apressou-se a explicar que, sendo est dante em Berlim, se metera, contra a vontade dos pais, na revol ção de 48. E acrescentou: "
- E já que estava eni ritmo de guerra, achei melhor vir pa cá com os "Brumers" para lutar contra o tirano Rosas. .Sabe o q cn era? - perguntou a sorrir com malícia.
- Canhoneiro do 2 Regimento de Artilharia! - Suspirou. - Mas aconteceu qne tropa se insubordinou e foi dissolvida. Assim um dia me vi deen e sem recursos nesta cidade
estranhá. Eis a minha história.
A TEINIAGUÀ 3 5 7
Winter olhava para o outro numa confusão de sentimentos. Tudo aquilo lhe cheirava vagamente a ópera-bafa. O rapaz, porém, lhe mostrou os documentos comprobatórios
de sua identidade. Tinha um belo nome:. Carlos Júlio Cristiano Adalberto von Koseritz. Nascera em 183O: estava portanto com apenas vinte e um anos!
- E agora? - perguntou Winter. - Que vai fazer depois que der alta do hospital?
- Ficar nesta província.
- E plantar batatas como nossos compatriotas de São Leopoldo?
- Não. Abrir uma escola e ensinar; fundar um escrever .. .
- Mas como, se nesta terra se fala o português?
- Dentro de pouco tempo estarei habilitado a escrever nessa língua tão bem como na minha.
Era assombrosa a certeza .que aquele moço tinha de seu futuro.
- E sabe duma coisa, doutor? - perguntou Von Koseritz, passando os dedos pela barba loura que lhe cobria o rosto - talvez eu ainda venha a me naturalizar brasileiro
.. .
- Mas ... e sua família?
O outro Carl deu de ombros.
- Um dia eles vão compreender que não precisei de seu nome nem de seu auxílio para abrir caminho na vida.
Aquele diálogo marcara o início duma boa e sólida amizade. E fora por conselho de Carl voa Koseritz que Carl Winter transferira residência de Río Grande para Porto
Alegre. Perguntara-lhe o barão numa carta: "Por que nãoo vai. clinicar na bela cidade que os açorianos ergueram às margens dum magnífico estuário e no meio de colinas
verdes? Entre as muitas vantagens que ela oferece, tem a de ficar a pequena distância de São Leopoldo, que meu caro amigo poderá. visitar periodicamente quando sentir
a nostalgia do Vaterland."
Winter, porém, não tardou a declarar guerra à cidade açoriana. Para principiar não era o que ele esperava. Gostou do cenário mas detestou os atores. Por outro lado,
não conseguiu fazer muita dínica, pois os médicos locais o hostilizavam. Os costumes da terra o irritavam tanto como os habitantes, e por fim Carl, só por bina,
começou a meter-se em discussões políticas, o que lhe valeu mais Inimizades. Escrevia longas cartas ao barão dándo-lhe conta de sena agravos e idiossincrasias. Von
Koseritz respondia-lhe com sugestões animadoras: "A única vantagem que um homem solteiro tem sobre o casado é a da mobilidade. Pois se nãoo gosta de Porto Alegre,
mude-se. O meu caro doutor é ttm homem livre. Por que noo tenta as colônias? Vá visitá-las a título de experiência. Talvez goste delas e fique por lá." Winter foi,
não gostou e nãoo ficou. Conduta qne seus compatriotas o irritavam tanto ou mais" que os
jornal e
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nativos. Muitos deles eram estúpidos e cheios . de preconceitos. via-os de toda a natureza e de todas as origens, inclusive os que envergonhavam do título _de "colonos"
e declaravam náo t vindo para o Brasil trazidos peia fome, pela desejo de fugir impostos ou de enriquecer: eram, isso sim, exilados políticos. Al chegavam a insinuar
até vagos antepassados de sangue azul. sua maioria ficavam indignados quando alguém os julgava makl burgueses, pois contava-se que as primeiras levas ~ de colonos
viu de Mecklenburgo eram formadas de mendigos e presidiários.
Wínter encontrara compatriotas que haviam assimilado t os maus hábitos dos naturais da terra, e vira até colonos alem que viviam ámasiados com mulatas e negras,
das quais tinham filh Moravam em ranchos miseráveis, andavam descalços e já estav roídos de vermes e sífilis. Em sua maioria, porém, prosperava moravam bem, ganhavam
dinheiro, aumentavam as propriedad Desprezavam o caboclo e eram por sua vez desprezados pelos esta cieíros, dos quais -não gostavam, embora parecessem temê-loa.
triste ver como em seus baús e sacos, junto com roupas e tarec haviam trazido para o Brasil todos os prejuízos, rivalidades e m quinhezas de suas aldeias natais.
Não compreendiam - os inse satos! - que lhes seria possível passar a vidà a limpo vaque patna nova.
Winter decidiu então procurar a zóna rural do Rio Gran onde nãoo havia núcleos coloniais alemães. Sempre desejara co cer as terras que ficavam para as bandas de oeste.
Um dia compr uma bússola, um mapa e um cavalo e meteu-se pelo interior Província. Queria ir até as ruínas das reduções jesuíticas, cuj lendas tanto o seduziam. E
assim de estância em estância, de pov do em povoado, melhorando e enriquecendo cada vez mais português, fazendo curas aqui e ali e íecebendo como. pagamen hospitalidade,
mantimentos ou dinheiro, foi penetrando o ínteri subiu a serra e, antes de entrar na zona missioneis, thegon Santa Fé num entardecer de maio. Pernoitou na vila e
ficou de modo fascinado" pelo lugar, que resolveu ali permanecer poi al tempo, esquecido da visita às Missões. Que havia naquele vilare pobre que tanto lhe falava
à fantasia? Não sabia explicar. Gos daquelas ruas tortas, de terra batida e muito vermelha, em co traste com o intenso verde das campinas em derredor. Achara encanto
rude e áspero nas casas :e nas caras das gentes, na p aca de árvores copadas, nos quintais lamacentos onde roupas secav ao sol. Por uma razão misteriosa Santa Fé
lhe parecera uma familiar, que ele cónhecia dum sonho ou doma outra vida: tinha. impressão de haver já cruzado aquelas ruas num pastado mui remoto e só agora descobria
que sempre desejara voltar ali: entanto aquele conglomerado de casinholas sem estilo .nem tória nãoo se parecia em nada com sua cidade natal de Eberba
por ali não corria nenhum rio que lhe pudesse lembrar o Neckar, não se via nenhuma elevação de terreno que sugerisse a Serra de Odenwald. E estava claro que só num
pobre espírito de paródia ele poderia comparar o sobrado de Aguinaldo Silva com o velho castelo dos tempos de Barbarroxa, uma das relíquias históricas de Eberbach.
Mas a verdade era que Winter pensara passar apenas uma semana em Santa Fé e no entanto lá estava havia já mais de dois anos! Por quê? Por quê? Por quê?
Por alguns instantes, de olhos sempre cerrados, Carl Winter ficou a passar a mão pelo tórax, sentindo o relevo das costelas. Por quê? Um mosquito esvoaçava-lhe em
torno da cabeça, tocando em surdina seu violino miudinho. Mas por quê? D. Bibiana dera uma explicação simples: Santa Fé tinha feitiço. E explicara: "O meu homem,
o falecido Cap. Rodrigo, um dia chegou pra passar a noite na vila- e ficou aqui o resto da vida, que infelizmente foi mui curta." Sim, Santa Fé devia ter um poderoso
sortilégio. Gregóría acreditava em mandinga. (Luzia Silva devia ter mandinga naqueles olhos de réptil.) Desde que chegara à vila, Winter fazia projetos de "ír embora
na próxima semana". Ficar era absurdo. não havia nenhuma razão ponderável para isso. Podia ir para Buenos Aires, ou voltar para qualquer capital européia onde houvesse
teatro, música (que falta ele sentia de teatro e de músical) e museus onde de quando em quando pudesse encher os olhos "e o espírito com a beleza das obras dos grandes
mestres. Queria um lugar que lhe oferecesse conforto e oportunidades de agradável convívio humano. Mas os dias e as semanas passavam e ele ia ficando. Assustava-se
à idéia das léguas que teria de vencer, montado no lombo dum cavalo ou então sacolejando dentro duma diligência desconjuntada para chegar a Porto Alegre e Rio Grande,
a fim de tomar um navio. Outras vezes deixava-se ficar à espera dum acontecimento: umas cavalhadas, umas carreiras, um batizado ou um casamento para o qual fora
convidado. Mas a verdade era que ía ficando por pura inércia. Durante o inverno vivia a praguejar em alemão. O minuano entrava assobiando pelas frestas de sua casa
e o frio lhe enregelava os membros. Punha todas as roupas quentes que tinha; vivia na proximidade dos fogões, erguia os olhos coléricos para o céu nublado e jurava
que iria embora na semana seguinte. Mas vinham dias de sol e o céu, despejado de nuvens, ficava de novo dum limpo azul. Carl Winter gostava das laranjas que as geadas
faziam amadurecer, das bergamotas gordas e douradas, sentia um prazer especial em beber todas as maphâs leite momo, recém= saído dos úberes da sua vaca malhada,
e adorava os churrascos que Gregória lhe assava no fundo do quintal e que ele comia com gosto, reSPingando de farinha a barba ruiva. E havia os hábitos: a conversa
de após o almoço na loja do Alvarenga, as partidas. de xadrez e ~ discussões com o juiz ou com o vigário, os seríies semanais no
#3.6O O" CONTINENTE
Sobrado, .quando Latia toava cítara e tortnnva Bolívar com indifertiaça, e-ama casava vinha _com a panela de pinhão cozi ora mm putos cheios de bolos de polvilho.
No fim de contas inverno não durava toda a vida e se a gente tivesse um -porco paciência a primavera não tardaria maito a vir ... E Winter ficando. Nio raro apaizonava-se
por um aso de sua clíaia. Cel. Amaral se tornara de amores por ele e o -fato de contar com simpatia e a pio eção do chefe político da tema dava-lhe facilida e vantagtns
que le não aproveitava por para preguiça, pela mes preguiça que o f zia ir fiando, ficando sempre .. .
Gostava de r pila manhã longos passeios a pé pelo cam sentindo no a brisa fresca que cheirava a sereno batido de so Nessas oasi" deixava os olhos passearem pelas
cozilhas ver onde aa ma pareciam as cabeleiras de milhares de Frãulein sol ao vento. rudel Trndel Ich Bebe dich, abei das isr ja unm$ glich ... ) uma carta que dirigira
a Von Koseritz; descrevendo-l a vida ae levava, dissera: "Ich berausche micte an der aleite d Horizontes" - tomo bebedeiras de horizontes. ATnna em toda sua vida
vira céus mais largos nem sentira tamanha impressão d liberdade. Na paisagem ele descobria então o mais poderoso motivo de sua permanência em .Santa Fé. É que ela
lhé dava uma vertiginosa" sensação de ser livre, de nãoo ter peias nem limites. De certo modo naquela vida ele realizava pela primeira vez seu velho ideal de nãoo
assumir compromissos definitivos com ninguém nem com coisa alguma. Não ter amo nem mestre, e poder - ahl principalmente isso - poder de vez em. quando dar-se o luxo
da solidão, da mais absoluta e hermétia solidão, eram positivamente coisas voluptuosas I P_ pàisagem daonela província perdida nos confins do continente americano
era doce e amiga, supinamente civilizada, nm cenário digno de abrigar a gema da raça humana. Parecia que ao má-la Deus tivera em mente, povoá-la de figuras como
Platão, Sócrates, Goethe e Shakespeare. No entanto por ali andavam homens rudes como Bento Amaral ou então aberrações humanas como aquele gnomo que se chamava Agnínaldo
Silva. Nem mesmo Luzia pertencia à paisagem. Havia naquelas distâncias e campinas, lagoas e horizontes, uma pureza e uma inocência que ele nãoo sentia na neta do
pernambucano.
O pôr de sol de Santa Fé também o deixava exaltado. Em certos dias de outono subia à coxilha do cemitério para ver os crepúsculos vespertinos, que eram longos e
fantasticamente coloridos. Em certas bons o céu do poente tomava uma tonalidade esverdeada e transparente: era como se a cor dos campos se refletisse no vidro do
horizonte. E sobre toda a paisagem em torno pairava uma vaga neblina violeta que acentuava as sombras.. tingia as pessoas, os animais e aa coisas, parecendo aumentar
a quietude do ar e da hora. Winter ficava imóvel janto dos muros do cemitério - entre o
A TEINIAGUA 361 silëncio dos mortos e aquela fantasmagofis de ctofetas barbudos,
nuvens castelos das lendas do Reno, pe p
monstros antediluvianos, rebanhos de carneiros brancos e rosados, exércitos em fuga, vulcões, ou fabulosas cidades de gelo iluminadas pelo clarão de incêndios. Mas
quando não havia nuvens os crepúsculos eram doces - azul desbotado, malva e rosa - e a paisagem adquiria uma pureza e uma simplicidade tão grandes que Carl Winter
ficava com lágrimas nos olhos e começava a murmurar versos de Heine, e ao mesmo tempo a achar-se muito piegas e muito romântico por estar naquela atitude, fazendo
e sentindo aquelas coisas. E desse modo - através de seu eu cínico e de seu eu senti mental - ele gozava duplamente da situação.
Adquirira o hábito de falar consigo mesmo em voz alta. Fazia-o em- alemão, em geral quando caminhava pelas ruas da vila ou saía em seus passeios solitários pelos
arredores. Os caboclos miravam-no- intrigados - Winter percebia com o rabo dos olhos. Mas mesmo quando encontrava estranhos continuava em seu solilóquio, pois tinha
a impressão de que, como falava alemão, a coisa toda perdia o seu caráter absurdo. Ouvira um tila uma das velhotas da vila dizer: "O alemão é louco da cabeça." 1~lein
Gott! Louco da cabeça. Lúcido demais, isso sim. E era essa lucidez que às vezes o impedia de gozar melhor a vida.
Um dia seu eu romântico lhe perguntara : Carl, quando voltas para casa?" Com casa ele queria dizer - a pátria, a cidade natal, Eberbach. "Ãch!" - respondera o seu
eu cínico. "Quando a Alemanha for unificada e eu nãoo correr o perigo de ser preso. E quando Trude Weü estiver tão gorda e feia que meu coração já nãoo possa mais
bater de amor por ela."
Winter deu um tapa no ar, procurando apanhar o mosquito e silenciar aquele violino enjoativo. Trude... Trude... Quando se olhava no espelho Winter compreendia por
que Gertrude o tinha esquecido em favor do filho do Burgomestre. Seus olhos eram dum cinzento frio e feio; seus cabelos, dum louro avermelhado como Odas barbas
de milho das roças de Santa Fé; sua pele, branca e oleosa, com manchas rosadas, lembrava salsichas cruas. Não. 131e nãoo tinha a menor ilusão quanto à sua aparência
física. Trude era uma rapariga de bom-gosto e uma criatura sensata. Dono duma loja de Delikatessen, o filho do Burgomestre era gordo, corado e tinha uma beleza sólida
e estúpida. A escolha nãoo podia ter sido melhor. Grande rapariga! Sensata Frãulein!
E Carl Winter de novo começou a apalpar o tórax e as pernas, como se tivesse certo orgulho de seu corpo angaloso e feio ora como se o fato de ser magro e desengonçado
o divertisse.
Tentava agora lembrar-se de Gertrude. Não podia. O mais que via em seus pensamentos en uma silhueta de mulher de tranças louras, e com uma face vazia de feições.
Mas era ainda com um
#362 O CONTINENTE

certo desfalecimento de coraçio que pensava nela. A ferida esta cicatrizada - concluía - mas a cicatriz era sensível, comicha muito e ao menor descuido podia abrir-se
e sangrar.. .
Mas como pode a gente amar uma mulher de cujas feições nã se lembra mais com nitidez? Será que eu amo a idéia de Ttu mais "que sua ptssoa? Quem sabe? Ach!
~: Winter revolveu-se na uma, ficou deitado de lado e finalmeate7 resolveu erguer-se e ir até á janela. Foi. Debruçou-se no peitoril e ficou olhando para o quintal
da casa do vigário. Nu, debrufad a uma janela em Santa Fé, olhando para o quintal da casa do Pe. Oteco. Meias Gott! Tudo aquilo parecia impossível; pel menos era
improvável.. .
As estrelas brilhavam. Do galinheiro do vizinho veio um ruído de asas. Raposa ? Não. Se fosse, haveria nm pânico geral. Um galo cantou num terreiro distante.. Winter
ficou a pensar no que havia de contar daquela província a seus amigos, se um dia voltasse para casa. .
A paisagem. era civilizada, mas os homens não. Tinham rudes almas sem complexidade, e eram movidos por. pai~Eces primárias. A lida dos campos e das fazendas tornava-os
ásperos e agressivos. Lidar com potros bravos, curar bicheiras, sangrar e carnear o gado, laçar, fazer tropas - eram atividades violentas que exigiam fortaleza não
só de corpo como também de espírito. (Winter sempre prometia a si mesmo tornar nota daquelas reflexões num caderno, mas nunca chegava a fazê-ío. Ach, és um vadio,
Carl! ) Depois havia as guerras. Era raro passar uma geração que -não visse pelo menos uma guerra ou uma revolução. E como eram primitivas aquelas guerras em que
brasileiros e castelhanos se engalfinhavam - primitivas na estratégia e nos armamentos. Mas nem por isso eram menos brutais e cruéis que as guerras européias. Winter
ouvia sempre contar histórias de entreveros, de cargas de lança, de atos de coragem .e desprendimento mas também de crueldades e . traições. Em muitos casos os soldados
lutavam descalços e armados de lanças de pau: enm mal alimentados e raramente ou nunca recebiam seu soldo. Poucos sabiam ao certo por qae lutavam, mas havia na Província
a tradição de "pelear com oa castelhanos", e seus homens encaravam as invasões como asma fatalidsde, como nm ato de Deus - uma espécie de praga periódica tão .inevitável
como uma seca ou uma nuvem de gafanhotos. Mercê dessas lutas haviam surgido verdadeiros senhores fendais na Província. Eram os estancieiros como o Cel. Amaral, a
quem o governo amparava e dava privilégios, na certeza de que na hora da guerra álea viriam com seus peões, agregados, amigos e assalariados para engrossar o. exército
regular. Winter achava esquisito sabor em cómparar estancieiros como Bato P.maral com os Junker prussianos; e quando via a cicatriz em forma de P que ele tinha numa
das faces, são podia deixar de fazer para
A TEINIAGUA 363

lelos entre os duelos acadêmicos de Heidelberg e o feroz corpo-a-corpo como aquele em que o falecido marido de D. Bibiana havia deixado sua marca no rosto do adversário.
D. Bibiana! Ali estava uma criatura de valor. Com umas duzentas matronas como aquela estaria garantido o futuro da Província. Entretanto o destino das mulheres naquele
fim de mundo era bem melancólico. Não tinham muitos direitos e arcavam com quase todas as responsabilidades. Sua missão era ter filhos, criá-los, tomar conta da
casa, cozinhar, lavar, coser e esperar. Dificilmente ou nunca falavam com estranhos e Winter sabia que um forasteiro que dirigisse a palavra a uma senhora corria
o risco de incorrer na ira do marido, do pai ou do irmão dessa senhora, que lhe viria imediatamente "tirar uma satisfaçao". Os homens, esses podiam sair em aventuras
amorosas, a fazer filhos nas chinocas que encontrassem pelo caminho, nas escravas ou nas concubinas; mas ai de quem ousasse olhar mais demoradamente para suas esposas
legítimas! Eram estas em sua maioria anaïfabetas ou de pouquíssimas letras e tinham uma assustadora tendência para a obesidade. (Trude! Trude! Toma cuidado.) Eram
tristes e bisonhas, e as contínuas guerras quase não lhes permitiam tirar o luto do corpo; por isso traziam nos olhos o permanente espanto de quem está sempre a
esperar uma notícia trágica.
O código de honra daqueles homens possuía um nítido sabor espanhol. Falavam muito em honra. No fim de contas o que realmente importava para eles era "ser macho".
Outra preocupação dominante era o de "não ser cornó ". Não levar desaforo para casa, saber montar bem e ter tomado parte pelo menos numa guerra eram as glórias supremas
daquela gente meio bárbara que ainda bebia água em guampas de boi. E a importância que o cavalo tinha na vida da Província! Para os "continentinos" o cavalo era
um instrumento de trabalho e ao mesmo tempo uma arma de guerra, um companheiro, um meio de transporte; para alguns gaúchos solitários as éguas serviam eventualmente
de esposa. Winter conhecia ali homens que à força de lidar com cavalos começavam já a ter no rosto traços eqüinos.
Mas era preciso ter paciência e compreender que aquele era um país novo, ainda na sua primeira infância. Havia nas gentes da Província um certo acanhamento desconfiado
que nos homens se transformava num ar agressivo. Falavam alto, com jeito dominador, de cabeça erguida. Entre fascinado e assustado, Winter assistira a várias carreiras
em cancha reta, e mais de uma vez o haviam chamado para atender algum homem que. fora est ~ípado num duelo por causa duma "diferença de pescoçó " on de qualquer
outra dúvida quanto à decisão do juiz. Gostava de ver certo tipo de gaúcho que se sentava no chão para jogar cartas e antes de começar o jogo
#364 O CONTINENTE
cravava sua adaga na terra, entre as pernas abertas, numa advertência muda ao adversário.
Os lavradores daquela província só agora começavam a conhecer e usar o arado bíblico. E ninguém ali - suprema medida duma civilização! - sabia fazer bom pão e bom
vinho.
Tratava-se positivamente duma sociedade tosca e carnívora, que cheirava a sebo frio, suor de cavalo e cigarro de palha. As casas eram pobres, primitivas, sem gosto
nem conforto, quase vazias de móveis; em suas paredes caiadas não se via um quadro, uma nota de cor que lhes desse um pouco de graça. No inverno o minuano entrava
pelas frinchas, cortante como uma navalha. Nos dias de chuva os homens traziam barro para dentro de casa nas suas botas ou nos pés descalços. Havia em tudo uma rusticidade
e uma aspereza que estavam longe de ter o encanto antigo e a madureza das coisas
- gentes camponesas da Baviera, da Pomerânia ou do Tirol - onde existia uma tradição no que dizia respeito a móveis, roupas, comidas, danças, lendas e canções. Os
"homens machos" da Província de São Pedro pareciam achar que toda a preocupação artística era, além de inútil, efeminada e -por isso olhavam com repugnada desconfiança
para os que se preocupavam com poesia, pintura ou certo tipo de música que não fossem as toadas monótonas de seus gaiteiros
- violeiros.
Como era escassa a música daquela gente! Não passava duma cantilena que tinha o ritmo do trote do cavalo, um lamento prolongado, pobre de melodia.
Infelizmente em Santa Fé Winter tinha de contentar-se com as peças que Luzia dedilhava na cítara ou então com a música que ele próprio produzia. Na Alemanha fizera
parte dum quarteto de cordas de amadores, como violinista. (Hans, Hugo, Joseph, onde estais a estas horas?) Reuniam-se nas noites de sábado para tocar 1~Iozart,
Beethoven e Schubert, beber cerveja e fumar cachimbo nos intervalos entre um e outro quarteto.
.Cari olhou para o céu estrelado e por alguns momentos ficou.a ouvir fragmentos de melodias do passado. Depois fez meia volta e, grave e nu, caminhou até o lugar
onde estava o estojo do violino, abriu-o e tirou dele o instrumento com o ar de c~uem ergue o cadáver duma criança de pequeno esquife negro. Feriu as cordas com
o indicador, afinou-as como pôde e depois começou a tocar em surdina a Serenata de Haydn. A musiquinha doce encheu o quarto, fugiu para a noite.
Nunca esta melodia andou no ar de Santa Fé - pensou Winter com esquisita satisfaçào. Continuou a tocar marcando o compasso com o pé longo e.descarnado, enquanto
em-sua mente Hans, Joseph e Hugo faziam o acompanhamento em pizzicato. Era como se o velho quarteto de amigos se tivesse reunido de novo para um serão musical.
A TEINIAGUÁ 365
Na praça, sob a figueira, Bolívar dormia, recostado ao velho tronco, com a cabeça caída sobre o peito, a boca entreaberta. A, seu lado, fumando em paz, Florêncio
velava o sono do amigo, como um anjo da guarda.
Sentada na cama, com o busto muito teso, as mãos pousadas no colo, Bibiana contemplava o filho que, diante do pequeno espelho, procurava dar a laçada na gravata
de seda preta. Ela via que o colarinho alto e engomado sufocava o rapaz, e que sua roupa domingueira de casimira preta o deixava contrafeito e ao mesmo tempo irritado.
O suor escorria-lhe em grossas bagas pelo rosto, empapando-lhe o colarinho e a camisa. Bolívar .fungava e bufava, impaciente, enquanto seus dedos desajeitados lutavam
em vão com a gravata.
Como ele está abatido! - refletiu Bibiana. - Também passou a noite em claro e não é brincadeira ficar noivo duma moça como Luzia Silva. Tem de estar nervoso mesmo
.. .
- Não posso! - exclamou Bolívar, dando um puxão na gravata. - Não sei arrumar esta porcaria.
- Tenha paciência, meu filho.
- Não posso!
- Pode, sim. Querer é poder.
Bibiana lembrou-se de sua avó e achou graça por ter falado exatamente como ela. Querer é poder. Se Ana Terra estivesse ali agora ia ficar orgulhosa do bisneto. Se
o Cap. Rodrigo pudesse ver o Bolívar crescido...
Seus olhos de repente se turvaram de saudade. E ela viu o marido em pensamento. Apeava do cavalo, de bombachas brancas, esporas de prata, lenço vermelho no pescoço
e caminhava para ela de cabeça erguida e olhos atrevidos: "Como le vai, minha prenda?"
A voz do filho cortou-lhe o devaneio.
- Não tem jeito. Não posso.
Bibiana ergueu-se e caminhou para ele.
- Deixe ver. Quem sabe se sua mãe acerta .. .
Bolívar alçou um pouco o queixo. A cabeça de Bibiana mal lhe chegava ao ombros. Enquanto seus dedos procuravam dar a laçada, ela foi envolvida pelo calor do corpo
suado do filho e não pôde evitar um pensamento que lhe pareceu vagamente indecente: O cheiro do pai. Sentiu também como batia forte o coração do rapaz e como seu
peito arfava. Lembrou-se dos tempos em que o embalava nos braços e sorriu para esta lembrança.
- De que é que está rindo? - quis ele saber.
- De nada. Duma coisa que pensei.
#366 O CONTINENTE

Depoís, mudando de tom, perguntou: - Está nervoso?
- Não - mentiu ele.
Tinha na cabeça uma forca e uma voz que cochichava: "Daqui a pouco vão matar o Severino." A apreensão e o medo como que lhe apertavam o coração, insuportavelmente.
- Pronto - disse Bibiana, dando o último toque na laçada. - Veja se está direito.
Voltou a sentar-se na cama. Bolívar mirou-se no espelho. - Acho que está - disse.
Tomou dum pente e começou a passá-lo na cabeleira preta e ondulada.
Foi então que Bibiana percebeu que ela também estava nervosa. Não era só por causa do pobre do negro Severíno que ia morrer. Era também por causa do noivado. Seu
segredo - um segredo tão grande que não tivera a coragem de contá-lo a ninguém, tão grande que às vezes tinha medo de comentá-lo consigo mesma - o seu imenso segredo
como que se lhe avolumava agora dentro do peito, apertando-lhe o coração, e tornando-lhe custosa a respiração. Ninguém compreendia por que tinha ela aprovado o casamento
do filho com a neta de Aguinaldo. Só .ela sabia o motivo.. .
Lembrava-se -duma conversa que tivera com o irmão:
- Mana, vassuncê fez mal - dissera Juvenal, com seu jeito sério e sossegado.. - Fez muito mal em ajudar esse noivado. Não compreendo como é que uma pessoa ajuizada
como vassuncê faz gosto nesse casámento. A Luzía não é mulher pro Boli. )E: uma moça de cidade criada com mimo, e sem a menor serventia.
Ela ficara calada, apertando os lábios para evitar que seu segredo se escapasse. Podia contar tudo ao Juvenal. Não era uma pessoa do mesmo sangue? Não era o seu
único irmão? Mas não contou, e por isso sentiu aumentar o peso daqueles pensamentos secretos.
Juvenal tinha dito mais:
- Depois, a Aguinaldo é um ladrão. Não sei como é que vassuncê pode esquecer que esse homem. roubou as terras de nosso pai. - Quem lhe disse que m"esqueci?
- Pois se não esqueceu, pelo menos parece.
- En sei o que estou fazendo, mano.
E estas palavras cortaram a discussão. Juvenal encolhera os
ombros, murmurando:
- Queira Deus que tudo. saia bem. Mas en duvido.
Sim, um dia Pedro Terra necessitara de recursos para plantar uma lavoura de linho e trigo (sempre a mania do trigo!) e por isso fora obrigado e pedir dinheiro emprestado
a Aguinaldo Silva, dando-lhe como garantia sua casa e o terreno de esquina, cujo valor era três vezes maior que o do empréstimo. Numa secessão de
A TEINIAGUA 367

safras infelizes a lavoura se fora águas abaixo e como, vencido Oprazo da hipoteca, Pedro não tivesse dinheiro para resgatá-la e Aguinaldo não quisesse dar-lhe
a menor prorrogação, as propriedades dos Terras passaram inteiras para as mãos do avô de Luzia. f-oi com dor no coração que Pedro abandonou sua casa, pois Aguinaldo
queria o terreno para construir nele um sobrado. Bibiana lembrava-se de que o único comentário que o pai fizera no dia em que se mudara para um rancho. de barro,
resumia-se em poucas palavras: "Ainda bem que a Arminda está morta." E nunca mais falou no assunto. Mas via-se no rosto dele que alguma coisa o estava roendo aos
poucos por dentro. Começou a definhar, a edvelhecer, nãoo tomava interesse em mais nada e vivia triste, com olhos de cachorro escorraçado. Chorou - sim, Chorou como
Bibiana jamais vira homem algum chorar - no dia em que .pedreiros -começaram a derrubar-lhe a casa. Era como se aquelas macetas, martelos e picaretas que golpeavam
as paredes de sua meia-água estivessem também a quebrar-lhe os ossos, um por um.
Agora lá estava o Sobrado como um intruso em cima daquela terra querida, Era como se o casarão do pernambucano houvesse esmagado a casinha onde vivera Ana Terra
e onde ela, Bibiana, noivara com o Cap. Rodrigo. Lá estavam aínda as árvores que_ Pedro aiudara a plantar com suas próprias mãos e amava quase tanto como a seus
próprios filhos.. Sempre que passava pelo Sobrado, Bibiana lançava uma olhar para aquelas laranjeiras, pessegueiros, cinamomos e marmeleiros e tinha a sensação de
qúe eles eram parentes seus que a espiavam, tristes, por trás .das grades duma prisão. Era por isso que contiriuava a alimentar a certeza de que aquela terra ainda
lhe pertencia e que portanto o Sobrado, era também um pouco seu.
O tempo passou. Dizem que tempo é remédio para tudo. O tempo faz a gente esquecer. Há pessoas que esquecem depressa. Outras apenas fingem que não se lembram mais
.. .
Quando Aguinaldo começou a procurar e adular Bolívar e Florêncio, ela teve vontade de dizer-lhes: "Não falem - com esse excomungado. Foi ele que matou. meu pai de
desgosto." Mas não disse. Os rapazes eram aínda muito novos quando todas aquelas coisas tristes haviam acontecido. E mesmo que ela. dissesse, não adiántava nada.
Os moços nunca aceitam muito as razões dos velhos. Além disso, o diabo do nortista era- jeitoso, sabia falar bem, tinha mel na voz. E quando Luzía chegou da Corxe
e os meninos começaram a andar atrás dela como cachorrinhos assanhados ao redor duma cadela, seu primeiro ímpeto foi o de levar Bo1i para longe, a fim de evitar
que ele se apaixonasse pela forasteira.
Foi então que lhe veio aquela idéia doida ... A coisa aconteceu de madrugada. Ela acordou de repente, pensando na marido. Teria sonhado com ele? Não se lembrava.
Mas ficou em todo caso pen-
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A TEINIAGUÁ
369
sendo na noite da morte de Rodrigo.... Ela estava sozinha em casa, com o coração pulando no peito e uma apertura na garganta; ouvia o pipocar do -tiroteio e esperava
em agonia o fim do combate. E quando o Pe. Lara lhe apareceu, não foi preciso que ele dissesse uma única palavra. Eía adivinhou tudo:- tinham matado seu homeml 3rIais
tarde lhe contaram que o capitão recebera um balaço. no peito quando tentava. tomar o casarão dos Amarais. Tomar o casarão .. .
Sentada na cama, no quarto escuro, ela começou a pensar no Sobrado, nas suas árvores, em Luzia e em Bolívar. Tomar o Sobrada.... Se Bolívar casasse cóm Luzia, ele
ficava sendo o dono do Sobrado. Ela, Bibiana, iria viver com o filho, voltaria para o seu chão ... Aguinaldo estava velho e não podia durar muito tempo...- "~No
princípio ía ser difícil viver com aquele. corcunda, sob o mesmo teto. Mas a casa "afinal de contas era grande, e sua posse valia todos os sacrifícios...
Naquela noite Bibiana tomou a grande resolução. Ia casar Bolívar com Luzia. A moça podia ser leviana, podia ser isto e mais aquilo. Mas seu filho afinal tinha nas
veias o sangue do Cap. Rodrigo, e nunca uni Cambará se deíxária dominar por uma mulher. Fosse como fosse, ela estaria sempre junto dele pará ampará-lo e dar-lhe
conselhos.
.Estava resolvido: ia tomar o Sobrado. Não de assalto, aos tiros, como o ~Cap. Rodrigo.. Agora nãoo havia nenhuma pressa. Era mulher, tinha paciencia, estava acostumada
á esperar... ~. Que era um ano,. dois anos, dez anos? Um dia Aguinaldo morre, Bolívar fica de dono de" tudo, eu volto .pias minhas árvores, vou ver nascer os filhos
de meu filho, vou a judar a criar meus netos .. .
Bibiana agora sorria para seus pensamentos. Mas no fundo do coração ela temia o futuro.
Faltavam poucos minutos para as quatro quando Florêncio apareçeu.
- Está quase na hora - disse ele. - Vamos embora ? Por que será que esse menirto não olha direito pra mim? - estranhou , Bibiana.
- Vamos, Boli - disse ela. - O noivo não pode chegar tarde. Dirigiu-se\à outra peça_ para apanhar o guarda-sol, e ao passar pelo sobrinho, perguntou:
- E o Juvenal ?
Sem encarar a tia o rapaz deu uma resposta evasiva - O papai Lest em casa.
- Brabo com gente?
Florêncio hesitou.
- N... não. Por que havia de estar?
- ple é contra este noivado.
- Não é bem assim, titia. - É. Eu sei.
- A senhora compreende ... O velho é opiniático. - Basta ~ ser Terra.
Florêncio sorriu, brincando com o chapéu. O suor escorria-lhe
pela testa e seus olhos estavam estriados de sangue. Coitado -
pensou Bibiana. E sorriu com simpatia para o sobrinho.


Saíram. A claridade da tarde era tão forte que por um instante os deixou ofuscados. Começaram a caminhar de olhos apertados. Sob o guarda-sol aberto, Bibiana ia
muito tesa no seu vestido de cassa preta, ladeada pelos dois rapazes. Ar parado. As sombras sobre a terra vermelha eram dum preto arroxeado. Corvos voavam contra
o azul desbotado e luminoso do céu.
Bolívar sentia o sangue martelar-lhe as têmporas com fúria compassada, e a cabeça agora lhe doía tanto que parecia prestes a estourar. Pensava simultaneamente no
Sobrado e na forca, emSeverino e em Luzia. O colarinho dava-lhe uma sensação de estrangulamento, e sob a grossa roupa preta, seu corpo estava já todo úmido de suor.
Andaram por algum tempo em silêncio. Iam cumprimentando os conhecidos que se achavam às portas de suas casas ou que espiavam por cima das cercas dos quintais. Ondina,
a filha do Alvarenga, assomou à sua janela, sorriu e disse:
- Então, D. Bibiana, é hoje o grande dia?
Era pálida, tinha uma voz meiga, e olhos negros duma tristeza humilde de ovelha.
- B verdade - respondeu a mãe de Bolívar. - A sua vez também há de chegar, Ondina.
Florêncio viu os olhos da rapariga pousarem um instante nos seus, muito a médo, mas dum modo que o deixou perturbado. Desajeitado, bateu com dois dedos na aba do
chapéu.
Quando já estavam longe de Ondína, Bibiana voltou a cabeça para o sobrinho e murmurou:
- Uma boa moça pra vassuncê casar, Florêncio. - Deu meia dúzia de passos em silêncio e depois prosseguiu: - É muito prendada, sabe fazer renda de bilro como ninguém,
é sossegada, boa dona de casa e uma doceira de mão-cheia.
Florêncio nada disse. Coçou a ponta da orelha, encabulado: pigarreou de leve e continuou a olhar para a frente na direção da capela.
- E é bem bonitinha - acrescentou Bibiana. - Mas por que é que vassuncê está com cara de velório, meu filho?
Bolívar não respondeu. O suor fazia arder-lhe as faces recém-
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escanhoadas e uma dor latejante na cabeça deixavaahe as idéias confusas.
- Ele anda triste por causa do Severino - explicou Florêncio.
Estavam agora os três a menos duma quadra da praça e já podiam ver o movimento das pessoas que pr"uravam lugares em torno da forca. Lenços, roupas e vozes alegres
ao sol - aquilo parecia uma festa.
- É o diabo - concordou Bibiana. - E o diabo. Eu tam
bém tenho pena do negro. Afinal de contas a gente viu ele crescer
como se fosse uma pessoa da família ... - Suspirou. - Mas não
foi pelo que eu fiz que ele vai set enforcado.
Estas palavras doeram em Bolívar.
- Mas vão cometer uma injustiçat- - .exclamou ele. - O
Severinó está it~ocentel
Bibiana achou melhor não discutir. Ficou pensando, apreensiva, no que podia acontecer na hora do enforcamento. Bolívar estava nervoso: a forca tinha sido erguida
bem na frente do Sobrado.. . Sim, teria sido melhor que Luzia houvesse concordado. em transferir a festa para outro dia.
Começaram a atravessar a praça. Um homem achava-se sentado numa pedra, alisando uma palha de milho com as costas da faca. Era o Chico Carreteiro. Ao ver o grupo
o caboclo dirigiu-se " a Bolívar e caçoou:
- Então vamos ter hoje dois enforcamentos ao mesmo tempo, nãoo?
Mostrou os dentes escuros num sorriso rasgado. Bolívar teve vontade de atirar-se sobre ele e partir-lhe a cara a bofetadas. Cerrou os punhos, olhou duro para a frente
e não respondeu. Bibiana, porém, sorriu para o carreteiro e disse:
- L verdade, seu Clüco, é verdade.
- 1~ preciso ser muito malvado pra gozar com o sofrimento alheio - observou Florêncio em voz baixa, olhando as pessoas que disputavam lugares ao redor do cadafalso.
Tirou o relógio do bolso e olhou o mostrador. - E ainda falta mais d~ima horal
Aproximavam-se do Sobrado que lá estava, muito branco, com soas janelas de caixilhos azuis, o telhado pardo e limoso, as vidraças chamejando ao sol. Como ficavam
bonitos os azulejos do portão assim num dia claro, - refletia Bibiana. E seus olhos saudaram as árvores: "Tenham paciência. Qualquer dia eu venho tomar conta de
vassancês."
O Cap. Rodrigo naquela noite de 1836 correra armado de espada e pistola para a usa dos Amarais ... Mas ela agora ia tomar o Sobrado completamente desarmada : levava
apenas um guarda-sol na mão e -aquele segredo no peito. O dono da usa ia recebê-la de braços abertos.
Sentado em uma cadeira de respaldo alto e lavrado - que achava supínamente incômoda - o Dr. Winter passeava em torno Oolhar curioso. Fora o último dos convidados
a chegar ao Sobrado e lamentava ter perdido a arenga que Aguinaldo Silva fizera aos presentes para anunciar o contrato de casamento da neta com Bolívar Cambará.
A vasta sala de visitas estava muito clara de sol e Carl notou que o reflexo tricolor da bandeirola duma das janelas tingia a face e o pescoço de Luzia. Uma estigmatizada
-fantasiou ele. Achou-a perversamente linda. Estava ela sentada no sofá ao lado do noivo, vestida de rnnolina verde, de saia muito rodada com aplicações de renda;
tinha cravado nos cabelos dum castanho profundo grande pente em forma de leque, nõ centro do qual faiscava um brilhante. Winter pensou imediatamente na bela e jovem
broxa moura que o diabo, segando a lenda que corria pela Província, transformara numa lagartixa cuja eabeça consistia numa pedra precigsa de brilho ofnscante. Como
era mesmo o nome do animal? Ah? Teiniaguá. A sua Mesa da Tragédia havia agora virado teiníagaá. Winter pensava essas coisas e soma, apertando o charatinho-entre
os dentes.
O Dr. 1VIascarenhas conversava animadamente com Aguinaldo. Bibiana gritava ao ouvido da esposa do juiz, que era surda, e a boa senhora lhe respondia com sua voz
f"ca e branda. Winter percebem qae trocavam receitas de d"es e gastavam açúcar e ovos em grande profnsáo: era, por assim dizer, uma conversa. temperada de canela,
cravo e noz-moscada. Bolívar parecia nervoso e Winter sentia no ar algo de pressago e egnív"o qae começava a deixá-lo um pouco inquieto.
Sentado numa cadeira, pitando trangiïílamente seu cigarro ~de palha, Florêncio de vez em quando lançava am olhar morno na direção de Luzia e do primo. O Pe. Otero
nãoo chegara ainda, pois estava "rapado com Severínó: tinha de prepará-lo para morrer e devia assisti-lo até o último momento.
Winter julgava perceber no rosto do dono da casa certo desapontamento ante o fato- de nãoo ver ali na sala a maioria das pessoas -que convidara para a festa. Toda
a gente sabia que os Amarais detestavam Aguinaldo Silva e recusavam-se a pôr os pés no Sobrado. Quanto aos outros, era também sabido que não morriam de amores pelo
pernambucano, pois raro era o santa-fezense que nãoo se julgasse de qualquer forma lesado por ele ou que nãoo tivesse pessoa da família ora amiga de peito entre as
vítimas do que eles chamavam "as bandalheiras do corcunda". Além disso - refletiu Winter - maitos dos convidados decerto acharam que seria mais divertido
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ficar na praça para ver Severino estrebuchar na forca do que vi para o Sobrado ouvir Luzia tocar cítara.
Aguinaldo, desinquieto como sempre, andava dum lado para outro na sala. Com sua corcunda pronunciada, a cabeça triangular, a barba de chibo, o avô de Luzia lembrava
a Winter um , gnomo em versão cabocla.
- -lsso está muito desanimado, minha gente! - e~damou o velho. - Até parece velório de pobre. Luzia, toque um pouco de música. Vamos animar a festa.
Deu dois pulinhos, esfregando as mãos fortemente uma contra a ostra, e gritou na diréção da cozinha:
- Sia Rosa, mande trazer a refresulhadal
Bolívar passava o lenço vagarosamente entre o coláriaho e o pescoço. A cabeça ainda lhe -doía e agora a sede, uma sede desespe. rada, secava-lhe a goela, ressequia-lhe
a boca. Um refresco chegava em boa hora.
- Vamos, menina, toque um poucol - tornou a -pedir Aguinaldo.
Luzia sacudiu a cabeça de léve: o diadema chispou.
- L muito ceda .ainda, vovô. Depois eu toco.
Tinha uma voz grave e musical, uma noz"- achava Winter -cujo registro correspondia ao da viola. Era quente, úmida, profunda, veludosa - tão excitante :que parecia
qir-lhe do sego e nãoo da boca - refletia ainda o médico. A comparação ,podia ser grosseira; pelo menos ele nunca a poderia fazer em voz alta. Entretanto, era exatamente
isso que, ele sentia. Pensou em Trude, cuja voz , fina e melodiosa lembrava a dum oboé. Que contrastei
Bolívar nono conseguia explica r a si mesmo por que ficava . tão excitado quando a noiva falava. Aquela voz tinha feitiço, punha-lhe uns arrepios no corpo. Quando
a ouvia, ele tinha ímpetos de saltar sobre Luzia, rasgar-lhe as roupas e amá-la com fúria. Agora, porém, , eram outros os séntimentos que o perturbavam. Metade de
seu ser estava na sala:.a outra metade, lá fora. Seus olhos de instante a instante, voltavam-se para a janela, mesmo contra sua vontade. Uma sensação de perigo iminente
apertava-lhe o peito. ~ Ele sabia que às cinco em ponto Severino ia ser enforcadó; era por "isso também que não perdia de vista o relógio grande de pêndulo qpe estava
a um unto da sala contígua, e o qual ele via através da porta. Eram quatro e vinte: o pêndulo dè latão oscilava compass3damente. As rinco Severino ia ficar pendurado
na foro, balançando dum lado para outro.
Bolívar olhou para as mãos muito brancas de Luzia, que rcponsavam sobre o verde da saia, segurando o leque:. seus dedos eram finos, compridos,_ delicados, e estavam
cheios. de anéis. Olhou para as próprias mãos redes, queimadas de sol, cabeludas e sombreadas de veias. As anãos dele nada tinham a ver com as dela. No entanto
em breve um padre ia uni-las para sempre. Bolívar percebeu que a noíva o contemplava e sentiu seu mal-estar aumentar, pois sabia que seu rosto estava revelando todos
os seus segredos. Levou automaticamente o lenço às faces, ficou a fingir que enxugava o suor, mas aa verdade o que queria era escondê-las:
Um escravo entrou com uma bandeja cheia de copos de limonada e começou a andar à roda, oferecendo-os aos convivas.
- Chegue sua cadeira pra cá, doutor! - convidou o juiz de direito, dirigindo-se ao médico. - Faz tempo que não trocamos idéias. É. Faz tempo.
Winter obedeceu. Aguinaldo deu-lhe um copo de refresco, dizendo:
- Sinto muito não ter uma boa cerveja. pra oferecer ao amigo.
- Ach! Não faz mal.
- Dizem que. em São Leopoldo já se fabrica boa cerveja -~comentou o Dr. Nepomuceno. - seus compatriotas, Dr: Winter, são especialistas em cerveja. - Inclinou a
cabeça, numa reverência. - Como em muitas outras coisas mais. - E repetiu: - Como em muitas outras coisas mais.
Falava sémpre com. ar sentencioso, por mais terra-a-terra que fossem as coisas que . dissesse. Orgulhava-se de ser um conhecedor profundo da política nacional, que
acompanhava através dos jornais da Corte com escrupuloso interesse e com a ímgarcialidade que convinha a um juiz.
- Eu estava dizendo ao Sr. Aguinaldo - contou ele, inclinando a cabeça na direção de Carl Winter - que se o Marquês de Olinda tivesse ficado no governo com seu ministério
conservador, as coisas teriam tomado outro rumo.. Ele era contra a nossa interferência nas questões do Prata. Mas veio o encalmo Sousa e seguiu a política intervencionista,
fez aliança com Urquiza e o resultado foi a guerra contra Rosas.
- Mas ganhamos essa guerral - exclamou Aguinaldo, com os bigodes e a pera respingados de limonada. - E ali estão dois moços que viram a coisa de pertol
Lançou para Bolívar e Florêrnio um. olhar cheio duma ternura quase paternal
A esposa do juiz dizia a Bibiana:
- Agora, a senhora sabe,. quindim gasta muito ovo. Mas o Nepomuceno é louco por quindim.
A outra, porém, não a escutava. Olhava para o filho com uma seasação de amoroso orgulho que chegava quase a ser. sufocante. Parecia vir dele uma onda de calor que
a envolvia como um abraço: Mas quando Bibiaaa desviou . o olhar de Bolívar e focou-o em Luzia teve a impressão de receber de repente um sopro de gelo. Diziam que
o mínuano vinha dumas montanhas_ geladas do Chile e da Argentina. Pois Luzia parecia mesmo uma montanha coberta
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#374 O CONTINENTE
de geada. lr bonita - refletiu Bibiana - isso ninguém pode negar. Mas é uma boniteza má, ama boniteza de pecado. Bolívar precisa domar essa potranca no primeiro
dia do casamento, senãoo estí perdido.
- ... e o ano passado eu quis fazer marmelada branca maa nãoo pude acertar direito o ponto - prosseguia a esposa do magistrado, com seu peito magro de tísica a arquejar.
Bibiana voltou para ela uns olhas onde havia um tépido interesse e sorriu para dar a entender à interlocutora que a escutava. Mas, na verdade,. naquele momento ela
estava era sentindo o Sobrado. Não! Ela estava sentindo seu chão. A casa de seu pai ficava naquele mesmo lugar onde agora estava o Sobrado. Faz de conta que esta
é a nossa varanda. -.Ali está a parede empenada, que vovó dizia que estava grávida. Ali a mesa, com as cadeiras; lá naquele canto, a talha. Papai está pitando, senta_
do na cadeira de balanço. Eu até vejo a fumaça do cigarrão dele. A mamâe está fazendo croché perto da mesa. Eu estou aqui e o Cap. Rodrigo, que chegou há pouco,
pediu. licença e está picando fumo pra fazer um crioulo. Por que será que papai não fala com ele? Bírrãs de velho. Não faz mal: com o tempo ele vai acabar gostando
do genro. Ninguém resiste àqueles olhos de gavião. Eu até nem posso olhar direito pra eles: ficó meio zonza. lr por isso que estou olhando só Aras botas do capitão.
E ele vai dizendo cóisas, contando histórias da sua vida: guerras, viagens, brigas, guerras, viagens, brigas... Todos escutam. Noite de Finados. Alguém está cantando
na venda do Nicolau. A voz é a do capitão. Mas ele não pode estar lá na venda e aqui em casa ao mesmo tempo. Por que nãoo pode? O Cap. Rodrigo pode tudo. O Pe. Lara
chega, diz boa noite, senta-se, chiando como um gato velho. Coitado! Está enterrado perto da sepultura da vovó. Decerto de noite os dois ficam ali no cemitério conversando
sobre os vivos, rindo-se deles... O Cap. Rodrigo já acendeu o cigarro. Papai olha o relógio como quem quer dar a entender que é tarde. Então meu noivo se levanta,
vai embora e eu fico pensando nele e nas coisas que tenho que fazer amanhã. Pular da cama às cinco, tirar leite, encher lingüiça, dar milho pras galinhas, matar
formigas pra elas não estragarem as plantas... Com essa cintara fina a Luzia parece uma formiga, uma saúva grande. Mas formiga se esmaga com o pé. E sapo também.
E os olhos de Bibiana se voltam para Aguinaldo.
Depois passeiam lentos e avaliadores em torno da sala. Aquele espelho grande de moldura dourada é muito bonito, deve ter custado um dinheirão. E nm dia ainda quero
ver naquele vidro o Aguinaldo dentro dum caixão de defunto, com gaatro velas acesas dos lados. Deus me perdoe,_nãoo desejo o mal de ninguém, mas todos um dia morrem.
Amém. E é bem bonita a mobília - refletiu ela, olhando para o consolo de mármore, sobre o qual estava a cítara de Luzia,
A TEINIAGUA 375
dentro dum estojo de madeira lavrada. E pra que estas cadeiras todas cheias de regaififes, Santo Deus? Não troco as minhas de palha trançada por estes monstrengos.
Mas gosto desta casa. Como são grossas as paredes! Num casarão assim a gente se sente garantida. Pode vir chuva, ventania, tempestade e até guerra. Bala nãoo passa
por elas.
- Está boa a limonada? - perguntou Aguinaldo, jovial.
Bibiana teve um leve sobressalto, ergueu os olhos para o dono da casa e respondeu
- Não provei ainda.
Só então é que se lembrou de que tinha na mão o copo de limonada. Levou-o à boca e começou a beber devagar. O cheiro de timão trouxe-lhe à mente um certo dia de
sua vida, havia muitos anos. O Cap. Rodrigo chegou duma viagem e lhe disse: "Estou louco de sede, minha prenda. Me faz uma limonada bem ligeiro. Mas bota pouco açúcar.
E depois, quando ela estava espremendo
.,
o limão dentro-dum copo, ele se aproximou por trás, enlaçou-lhe a
cintura e beijou-lhe a nua.
Bolívar bebia sua limonada com avidez, mas a comoção parecia
trancar-lhe a garganta.
Florêncio ergueu-se, foi até a janela e olhou para o cadafalso,
a cujo redor a multidão engrossava. Crianças cornam e brincavam
sob a figueira grande. Uma brisa leve começava a bulir com. as
folhas das árvores e à porta da cadeia curiosos se aglomeravam, anda
vam dum lado para outro, erguendo poeira do chão. Pobre do
Severino! E o nome de Severino que Florêncio pronunciara men
talmente repetiu-se num eco. Mas o eco era o de um outro nome:
Bolívar. Pobre Bolívar!
Bolívar tornou a olhar para o relógio, mas não pôde distinguir
o mostrador, porque o suor lhe entrara pelos olhos e lhe turvava a
visão. Começou a esfregá-los com os dedos.
- Entrou alguma poeira? - perguntou Luzia, num súbito
interesse. - Deixe ver.
Bolívar sacudiu a cabeça.
- Não. Não é nada. Foi o suor. - Está ardendo? - Um pouco.
- Deixe ver. - Não carece.
Os olhos de ambos se encontraram.
- Qne é que vosmecê tem? - perguntou ela. - Eu? Nada.
- Tem, sim. Está se vendo: - Não é nada.
Bolívar nãoo pôde suportar o olhar da noiva. Baixou os olhos
para o chão,
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- Se está arrependido - prosseguiu ela num murmúrio - ainda é tempo de desmanchar o casamento. Há pessoas que voltam até da porta da igreja.
Felizmente - pensou Bolívar - os outros estavam entretidos a conversar e não ouviam aquelas coisas estúpidas que Luzia lhe sussurrava. Assim em cochicho a voz dela
ficava ainda mais excitante. Era como se o estivesse convidando a ir para a cama.
- Ninguém está falando em arrependimento... - retorquiu ele pondo o copo de refresco em cima da mesa redonda, na frente do sofá.
- Então diga que é que tem.
- Ora, estou me sentindo mal. Minha cabeça está estourando.
Bolívar achava difícil conversar com a noiva cara a cara. Não podia resistir ao olhar dela : dava-lhe um acanhamento que ele nunca sentira diante de mulher alguma.
E por se sentir acanhado ficava com raiva da moça, de si mesmo, de tudo e de todos.. Vinhamlhe desejos de fazer violências, dizer nomes feios,. de portar-se como
um cavalo. Sempre que discutia e lhe faltavam argumentos, palavras, ele tinha gana de usar as patas.
- Passou mal a noite?
Com relutância Bolívar sacudiu afirmativamente a cabeça:
- A bem dizer passei a noite em claro.
Ergueu os olhos para a mãe e percebeu que, fingindo escutar a
esposa dó juiz, ela procurava ouvir o que Luzia estava dizendo. - Pensando no Severino? - insistiu a moça. - Como é que vosmecê sabe?
- B natural. O negro vai morrer por causa de seu testemunho.
Disse isso e seus olhos escrutaram o rosto do noivo, verrumantes, como se quisessem ver-lhe os sentimentos. Bolívar sentiu um pingo de suor escorrer-lhe frio sob
a camisa, ao longo da espinha. Sua cabeça latejava com força e de repente ele. se lembrou dum homem que um dia vira cair em plena rua, fulminado por um ataque de
cabeça..
- Vosmecê também acha que o negrinho está inocente? Luzia encolheu os ombros.
- Eu não acho nada. Vosmecê é que devia saber o que dizia quando falou às autoridades.
Bolívar fez um gesto de impaciência e meteu os dedos trêmulos pelos cabelos. Procurou alguma coisa para dizer, mas não encontrou nada. Teve vontade de mandar todos
para os confins do inferno.
- Mas como é ... - principiou - como é ... o .. . Calou-se de novo. Tinha-se feito um hiato na conversação e
de repente a sala ficara silenciosa e os olhos do Dr. Winter, de
Florêncio e de Bibiana estavam voltados para o sofá.
- Será que já começaram a brigar? - troçou Aguinaldo.
A TEINIAGUÁ 377

fazendo com a cabeça um (sinal na direção dos noivos. - Tem
tempo, meninos tem tempo.
Florêncio olhava para Luzia e achava-a parecida cóm uma
imagem de Santa Rita que ele vira nas missôes.
O Dr. Winter, o Dr. Nepomuceno e o dono da casa de novo
entraram numa discussão política, e Bibiana agora contava animadamente à interlocutora o que costumava fazer para secar a roupa
lavada em dias de chuva; a mulher do juiz, com a mão em concha atrás da orelha, escutava-a arfante e atenta.
- Falta só meia hora - murmurou Luzia, lançando nm rápido olhar para o relógio de pêndulo.
Alguém abriu uma porta nos fundos da çasa e a brisa entrou na sala trazendo um cheiro de cozinha que, ao passar por Luzia. se misturou com um perfume de essência
de rosas e de pele limpa de mulher recém-saída do banho - o que contribuiu para aumentar a confusão de Bolívar, que de repente sentiu pela. noiva nm desejo estúpido
que era ao mesmo tempo náusea, medo e impotência. Seus olhos voltaram-se mais uma vez para o mostrador do relógio grande. e ele tornou a ver o gáto enforcado, e
o grito do animal cruzou-lhe o espírito.
Bolívar ergueu-se como que impe,~ido por uma mola, e caminhou apressado pára a janela. Luzia seguiu-o`com ó olhar, depois voltou a cabeça para Florêncio e sorriu.
O rapaz respondeu com um sorriso meio constrangido e perguntou:
- Que foi que houve?
- Sen primo está _ nervoso.
Aguinaldo soltou uma risada.
- É natural. No dia que contratei casamento fiquei tão nervoso que até me deu uma soltura.
- Vovô! - repreendeu-o Luzia. - Isso não se diz.
Bibiana olhava apreensiva para o filho. Junto da janela Bolívar mal enxergava o que se passava na praça, pois diante de seus` olhos manchas dum preto esverdeado
dançavam, estonteantes. Mais uma vez teve vontade de arrancar fora o colarinho, a gravata, o colete, sair correndo daquela casa, montar a cavalo è meter-se campo
adentro a galope.
Sentiu que lhe seguravam o-braço. Voltou-se: era a mâe. Tinha nas mãos um copo de refresco.
- Beba mais um pouco, meu filho.
Sem pensar, Bolívar obedeceu. Emborcou o copo e bebeu toda a limonada dum sorvo só. O líquido adocicado, meio enjóativo e pegajoso, lhe desceu com dificuldade goela
abaixo.
- Vá agora sentar-se perto da sua noiva - sussurrou-lhe Bibiana. - Coragem! Isso passa.
Bolívar voítou para o sofá.
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Aguinaldo agora contava coisas do Angico ao juiz de direito !ao médico.
- Minha orvalhada anda muito ruim. Essas guerras estragam oa nossos rebanhos. lr uma lástima... Muito cavalo superior ac perdeu na Guerra dos Farrapos. Miles de
miles - concluiu Aguinaldo, enrolando um cigarro.
O juiz sacudia a cabeça lentamente, de olhos meio cerrados. - Muito homem superior morreu nessa guerra - corrigiu-o Biüana.
- Pra mim animal é o mesmo que gente - explicou Aguinaldó. - Pego amizade por elés. Pode ser cavalo, boi, cachorro ou gato. Um dia peguei um dos meus. escravos maltratando
uma pobre mula. Ah, seu compadre, fiquei fulo de raiva e comecei a enzergar vermelho. Negro sim-vergonha, gritei,- vai bater na tua mâe, desgraçadol Pois o diabo
do negro estava tão possesso que nãoo me- vín nem m"escutou. Continuou a dar com o chicote no lombo do pobre animal. A .mula estavá já toda lanhada, escorrendo sangue.
Então perdi as estribeiras, tomei o chicote das mãos do negro, me atirei pra cima dele e comecei. a dar-lhe na cara, a dar-lhe na cara, e fui ficando tão furioso
que acabei dando com o cabo do chicote na cabeça do bandido. E dê-lhe pau, dê-lhe pau! No principio ele meio que ficou estonteado sem saber o que estava acontecendo.
Mas quando compreendeu tudo, se ajoelhou, botou a boca no mundo e depois quis fugir. lulas corri atrás dèle, o negro tropeçou, caiu e ea me atirei em cima do cachorro,
cego de raiva .. . E lá vai pau, e lá vai pau. Pois nãoo é que quase mato o desgraçado?..- Os olhinhos de Aguinaldo brilharam.. ple fez uma pausa para acender o cigarro
e depois continuou: - A sorte do crioulo é que já sou um homem velho e nãoo tenho a mesma força dos tempos de dantes.. Cansei logo e parei pra nãoo cair. Se nãoo fosse
isso, e~ acabava fazendo mingau da cabeça do negro. ~ - Pnxou uma tragada, soltou o fumo no ar e disse. - Animal é mesmo que gente pra mim. - Caminhou até a porta
da sala de "jantar e gritou:
- Sia Rosa, mande trazer as cflisas de comer!
O Dr. Winter contemplava Aguinaldo com a mesma curiosidade meio horrorizada com que um dia olhara um terneiro do Angico que nascera com duas cabeças.
Entraram duas escravas com bandejas cheias de bolos e doces.
Winter cruzou as pernas e disse ao dono da casa.
- Mas o senhor parece que não teve nenhuma piedade do negro. Me diga então uma coisa: quando vê um branco batendo num escravo, vosmecê nãoo fica também revoltado?
Aguinaldo coçou a para e estava para responder quando ouviu a voz de Luzia
- Negro nãoõ é gente - disse ela.
Todos os olhos se voltaram para a moça. Santa Rita disse uma barbaridade - pensou Florêncio. Bolívar parafraseou mentalmente "s palavras da noiva: "Severino não
é gente. Vão enforcar um
bicho-"
O Dr. Winter tirou os &ulos e começou a limpá-los lentamente cóm o lenço.
- 1f~lecn liebes Frãulein! - exclamou èle, com sua voz aflautada. - O que vosmecê acaba de dizer é uma inverdade científica.
Luzia encolheu os ombros e seus dedos brincaram com o leque.
- Não sei se o que eu disse é científico ou nãoo. Mas é o que sinto. Para mim o negro está mais perto do macaco que dos seres humanos.
O juiz fechou os olhos, como para não se deixar influenciar por aquelas idéias, franziu os lábios reflexivamente, e quedou-se a procurar um ponto de conciliação.
Bibiana ficou mais tesa ainda m cadeira, como cobra pronta para dar o bote. Então é isso que essas moças aprendem nos colégios da Corte? - pensou ela. Credol É melhor
a gente nãoo saber ler nem escrever mas ter nm bom coração. Cruzes!
- l~fein liebes Fr~ulein! - repetiu o Dr. Winter. Erguem-se e foi postar-se na frente da moça. Seu cheiro de desinfetante envolveu Bolívar, que por um rápido segundo
o achou confort~d~ Uma vez tinha caído de cama, com febre, e sua mâe chamara v Dr. Winter. Só a presença do médico lhe trouxera alívio; e ele associava essa presença
e essa impressão de alívio àquele cheiro de remédio.
- l~lein liebes Fraulein! Como pode a minha graciosa amiga conciliar seu cristianismo com essas idéias? - perguntou Winter. balançando o corpo na ponta dos pés.
- Onde está sua caridade? Que um herege como eu pense assim, ainda se. admite. Mas que uma jovem cristã diga essas barbaridades, mero Gott!, isso eu nãoo compreendol
- Há muita coisa que vosmecê nãoo compreende, doutor.
Bolívar sentia-se constrangido por wer a noiva a conversar com o médico aqueles assuntos de que ele nada entendia. Teve vontade de gritar para Winter: "Cuide da
sua vida. Volte pro seu lugar. Nos deixe em pazl"
Luzia abriu o leque e começou a abanar-se serenamente.
- Vosmecê náo acha, doutor - perguntou ela - que ser bom ou ser mau é uma questão de mais ou mènos coragem?
- Hein? - fez o médico, perplexo, a coçar o queixo com dedos frenéticos. - Quer dizer então que bondade é sinônimo de covardia?
- E o senhor acha que nãoo é? Nunca pensou que ser bom é a coisa mais fácil do mundo? E que qualquer pobre-diabo pode se dar o luxo de ser bom?
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38O
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O Dr. Wínter ergueu ambos os braços e depois deixou-os cair, batendo com força nas coxas com as palmas das mãos. Era um gesto que queria dizer: se a menina pensa
assim, desisto de discutir.
Mas o diabo - pensava - era que de certa maneira misteriosa Luzia parecia ter alguma razão. Era preciso uma pessoa ter muita coragem para dar expressão a todos os
seus desejos e sentimentos maus. Sím, ser bom era fácil. A teiniaguá não se deixava apanhar facilmente.
Aguinaldo contemplava a neta com admiração, sacudindo a cabeça devagarinho e rindo o seu riso encatarroado.
O juiz, ainda de olhos fechados, a papada comprimida entre o maxilar inferior e o colarinho engomado, lotava com palavras e idéias, tentando formar mentalmente uma
sentença que, sendo ao mesmo tempo gramatical e judiciosa, tivesse a peregrina virtude de clarificar a situação.
A esposa queria saber do que estavam falando, e Bibiana explicou-lhe tudo como pôde. A surda lançou para o marido. um olhar que foi um apelo: "Tira-me do escuro,
Nepomuceno!" O juiz continuava a sortir. as palavras, a ajustá-las às idéias. Que o negro era um ser humano, constituía uma verdade científica incontestável. Mas
ele próprio às vezes não deixava de sentir nas pessoas de cor qualquer coisa de bestial que as aparentava aos- animais inferiores. Como nãoo encontrasse a frase conciliadorá,
soergueu o corpo na cadeira, estendeu o braço e apanhou um quindim da bandeja que .estava sobre uma pequena mesa e começou a mordiscá-lo cóm alguma solenidade.
Uma questão de coragem ... Florêncío não entendia .bem o que Luzia pretendia dizer com aquilo. Mas sentià que boa coisa nãoo era ... Baixou os olhos e ficou olhando
meio vago. para a ponta das botinas que lhe apertavam os pés.
Questão de coragem ... Estas palavras soavam ainda na mente de Bolívar. Se ele tivesse coragem sairia correndo e iria gritar. para aquela gente que estava reunida
ao redor da forca
- Vão pra casa, bandidos! Onde se viu estarem. se divertindo com a morte dum homem?1 Severino está inocente. Quem devia estar pendurado nessa forca era eu. Matei
um homem uma vez, só de mau. O combate tinha terminado. Ele pediu misericórdia. ~ Mata de mau. Eu bem podia ter matado também aqueles dois tropeiros. O Severino
é um homem bom. Nunes fez mal a uma mosca. Tio Juvenal que conhece as .pessoas, diz qué o aegrinho está ütotente. Vão pra casa! Vão pedir perdão a Deus!
Winter voltara para~sua cadeira e agora observava Luzia. Qnt haveria naquela alma? Ele ainda não sabia, roas começava a adivinhar, através duma névoa, e o que entrevia
lhe dava um aperto de coração, um frio horror. Como era que naquele fim de mundo naquele lugarejo perdido nos confins do continente americano, entre
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gente rude e primária, existia uma mulher assim? Podia estar numa tragédia de Sófocles ou de Schiller, num conto de Hoffmann ou num. - . 1[dein Gott! Contado ninguém
acreditaria. E por nm instante se imaginou num Biergarten dé Berlim, dali a muitos anos. sentado ao redor duma mesa a tomar cerveja com amigos e a falar-lhes de
seu passado de Santa Fé. E se viu e ouviu a dizer:
"Há muitos anos, nos confins da terra, conheci uma rapariga singular. Chamava-se Luzia. Eu só queria saber que. foi feito dela..."
Agora o rosto da teiniaguá tinha uma expressão angélica: estava sereno, limpo e luminoso. Sua voz profunda tornou a envolver o médico
- Por que nãoo trouxe seu violino, doutor? - perguntou ela. - Podia tocar um pouco para nós.
Winter pensou no sacrista-o da lenda e viu a lagartixa encantada enroscar-se néle.
Deu um tapa cômico no ar.
- AchC Já não sei mais tocar. Vou enterrar o violino.
- Talvez nasça um pé de couve - observou. $ibiana.
Aguinaldo soltou uma risada .seca e disse:
- Por falar em enterrar, está quase na hora de enforcarem. o negro.
Como era que ele podia falar com- tanta despreocupação na morte duma pessoa? - perguntou Florêncio a si mesmo, com uma. sensação de .mal-estar.- E" de novo ouviu
na memória. as palavras de Luzia: Negro não é gente. Com que frieza ela tinha dito aquilo! Por contraste pensou em Ondina Alvarenga e a lembrança de seus olhos mansos
lhe fez algum bem.
Silêncio. O Dr. Nepomuceno - que tinha lavrado a sentença de morte - pigarreou, constrangido, e Começou a tamborilar nervosamente com os dedos sobre a guarda da
cadeira. O Dr. Wínter voltou-se para o magistrado:
- O senhor tem de estar presente à cerimônia? - perguntou.
O juiz tornou a inclinar o -corpo para a frente,- estendeu o bráço e apanhou outro quindim.
- Eu devia estar lá - disse, com relutância, mordiscando .o doce. - Mas não gosto dessas coisas. Sou um homem nervoso. Não gosto dessas coisas. - Pedaços de quindim
pintalgaram-lhe de ouro a barba grisalha. - Alei não obriga propriamente o juiz a comparecer. É. A lei não obriga ... propriamente.
Aguinaldo tirou do bolso o relógio e olhou para o mostrador.
- Faltam quinze minutos.
O coração de Bolívar começou a bater com mais força. Ainda havia tempo. Podia levantar-se e dizer: "Senhor juiz.. tenho de fazer uma confissão: O negro Severino
está inocente. -Quem matou os dois tropeiros fui eu. Juro por Deus Nosso Senhorl"
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Agninaldo aproximou-se da janela, relanceou os olhos e disse:
- Está assim de gente.. Parece até quermesse.
On então - pensava ainda Bolívar - podia sair co
até o cadafalso, beijar a mão de Severino e pedir-lhe perdão
ginon-se fazendo isso. A mão do negro está gelada de
Sentiu na garganta um aperto que o impedia de engolir a sali - Não quer um doce? - perguntou-lhe Luzia. - Não - respondeu ele.
- Ainda está doendo a cabeça? - Ainda.
A senhora do juiz contava que tinha encomendado umas de bilro a Ondina Alvarengá. Mas D. Bibiana estava com a ção no filho. Fêz-rse um novo silêncio difícil. Parecia
que todos só pensavam na hora do enforcamento.
- Querem ir lá na praça ver a coisa de perto? - Aguinaldo.
- Deus me livrei - apressou-se a dizer Bibiana. - E o senhor, doutor?
Winter sacudiu negativamente a cabeça. O juiz limitou fechar os olhos e a repetir:
- A lei não obriga. Não gosto desses espetáculos. A 1 obriga.
Agninaldo esfregou as mãos, de olho alegre. Piscou Dr. Winter e, inclinando a cabeçona na direção do juiz,
- Será que a consciência está lhe doendo?
O Dr. Nepomuceno ficou soturno, brincou com a meda pendia da corrente do relógio e redargüiu:
- Tenho a consciência tranqüila, Sr. Aguinaldo. T ~nscrencra . tranqüila. Fêz-se justiça. Os juízes de fato
o réu culpado. A condenação foi feita de acordo com o numero 271 do Código Criminal do Império. Tenho a co tranqüila. - Lançou um olhar na díreção de Bolívar e ajun
Ali está casualmente o cidadão cujo depoimento contribui esclarecer o crime.
Fez com a mão um sinal solene que queria dizer.: um honesto, íntegro, acima de qualquer suspeita.
Florêncio estava sentado na ponta da cadeira, com os postos no primo, temendo que ele fizesse ou dissesse alguma inconveniente.
Bolívar, porém, limitava-se a olhar para o soalho, com reluzente de suor e os largos ombros a subir e descer ao ritmo respiração ófegante.
Por alguns instantes todos ficaram calados, como que à dalgama coisa. Agninaldo fez nora ou duas tentativas para am assunto.. mas foi em vão. O silêncio voltava
sempre, e
~~ os olhos estavam voltados para as janelas que davam para a Quantas daquelas pessoas - perguntava Winter a si mes

p~- desejariam ir ver o negro espernear na forca, levadas por aro - ,
rrma cenosidade mórbida que parecia ser um dos atributos da natu

reza humana? E se não se dispunham a ir até as proximidades do pdafalso ou a ficar olhándo de longe, ali das janelas, seria porque, de mistura com a curiosidade,
sentissem também uma ponta de horror? Ou era porque queriam afetar bons sentimentos? Da parte de Bolívar e do juiz - refletia o médico - devia haver um pouco de
remorso, pois ambos tinham contribuído para a condenação do negro. D. Bibiana e a esposa do magistrado deviam detestar sinceramente a idéia de assista à cena. Florêncío
era um homem de bom eoração... E Luzia? Continuaria sentada ou viria espiar o enforcamento?

Aguinaldo estava excitado, ía de instante a instánte à janela, ficava ali num pé só, fungando, aflito.

- Parece que vão trazer o negro - disse ele em dado momento, pondo a mão em pala sobre os olhos. - Estou vendo um movimento na frente da cadeia.

Começou a esfregar as mãos, satisfeito,. numa antecipação do espetáculo.

Uma escrava entrou com uma grande bandeja cheia de talhadas de melancia.
- Pode botar em cima da mesinha - ordenou Luzia, com voz impaciente. - E vá lá pra dentro.

A negra obedeceu, hesitou um instante e depois se dirigiu ao amo, de cabeça baixa, com voz humilde:
- A negrada da cozinha também quer ir ver .. .

- Pois vãol - gritou Aguinaldo.

Luzia, porém, interveio

- Naol Não vão. Fiquem lá no fundo e nãoo venham nem pra frente.

A escrava saiu da sala de olhos baixos.
Winter sentiu que ele também estava inquieto. Se se erguesse e fosse até a janela poderia ver todo. O cadafalso ficava a uns hinU e poucos metros do Sobrado e erguia-se
a mais de três do alo.. Podam dali ver a execução muito melhor que muitos dos que se acotovelavam ao -.redor da força, sob o sol quente. Vou ou nãoo vou? -. PKguntava
ele a si mesmo. Ir seria ceder a uma curiosi~~ ~v~. a um sentimento inferior. Mas não ir seria levar morto a sério aquela história toda. No fim de contas era médico

urra coisas piores em sua carreira: crânios esmagados, membros

Pados, tripas à mostra. Nunca, porém, assistira ao asaasaínio

~°" glct~do e legal dum homem. O fantasma de Luzia tochi
cbon"1~ na mente: Negro não é gente.
A TEINIAGUÁ 383
382
Agninaldo aproxint~ e disse:
- Está assim de
On entãq - pensa até o cadafalso, bri jax ad ginon-se fazendo isso, Sentiu na garganta uxn s
- Não gnex um a
- Não - respan~
- Ainda está does
- Ainda.
A senhora do juiz d de bilro a Ondina Alvad ção no filho. Fêt-se todos só pensavam na
- Querem ic lá na~ Agninaldo.
- Deus me livre!
- E o senhor, do-
Winter sacudiu n fechar os olhos e a r
- A -lei não obrigs
obriga.
Agninaldo esfregou Dr. Winter e, indinand~
- Será que a ço
O Dr. Nepgmuceno pendia da corrente do r/
- Tenho a to consciência. trangiila. o réu culpado. A com numero 271 do Código ~~ tranqüila. - Lanáon x1u Ali está casualmente o I esclarecer o crime.
Fez com a mão nm , honesto, íntegro, aúma f
Florêncio estava sei postos no primo, temem inconveniente.
Bolívar, porém, 1" reluzente de suor e os la respiração ófegants. ,
Por alguns instantes dalguma coisa. Agniaal~ am assunto.. mas foi t~1
#3 84 O CONTINENTE

- Faltam oito minutos - disse Aguinaldo. E de repente uma alegria infantil, exclamou: - Lá vem ele!
Winter ergueu-se, como que galvanizado, e aproximonjanela. O juiz continuou sentado onde estava, a balouçar as nervosamente.
O médico olhou para fora. Um grupo compacto movia cadeia na direção do cadafalso. Houve na multidão que se a ao redor da forca um como que movimento de onda. Wiat
lumbrou no grupo menor a batina negra do Pe. Otero e uniformes da Guarda Nacional. Tudo se processava no mel grande silêncio.
O Dr. Nepomuceno foi atacado dum acesso de tosse a Voltando a cabeça para dentro da sala; Winter viu que B duma palidez de morte, de olhos sempre baixos remexia-se
fortavelmente no sofá, ao passo que Luzia olhava atentamente: ele, sentada, multo ereta, na ponta do sofá, como que a sofrimento do noivo. Q médico tornou a olhar
para a praça, quando dois guardas fizeram Severino subir os degraus do cada Dali Winter nãoo podia distinguir as feições do condenado percebeu que os guardas o amparavam
para que ele se mau. de pé. Ao lado do negro, o Pe. Otero ergueu um crucifixo voltou-se para a multidão e pronunciou algumas palavras médico não ouviu com clareza.
Começou então a erguer povo um clamor uníssono, cadenciado e fúnebre. Rezavam o nosso. As vozes, graves e foscas, erguiam-se no ar luminoso, en a praça e tinham
qualquer coisa que lembrava o som dum Winter começou a sentir a garganta seca, a língua grossa. um perfume ativo de essência de rosas lhe chegava às nazi então ele
sentiu, antes de ver, que Luzia estava a seu lado, à Olhou-a de soslaio. Os seios da moça palpitavam, seus olhos vam fitos no cadafalso, imóveis, arregalados, cheios
duma fascinação.
De repente o coro cessou num amém que se esfarelou O padre voltou-se para o condenado e encostou-lhe aos lá crucifixo. Naquele instante o relógio começou a dar as
horas: badaladas que Bolívar sentiu como pancadas no aânio.
O carrasco experimentou o nó corredio e depois colocou a em torno do pescoço do escravo. Havia agora na praça um de cemitério. De repente um galo cantóu atrás da
igtel Dr. Winter voltou a cabeça para Luzia. E foi no semb teiniagná que ele viu o resto da cena macabra. Primeiro o r
se contorceu num puxão nervoso, como se ela tivesse sentida súbita dor aguda. Depois se fixou numa expressão de interesse que aos poucos se foi transformando numa
m gozo que pareceu chegar quase ao orgasmo. Winter o estarrecido. Na multidão ao redor do cadafalso uma mulher
pm grito que subiu no ar como um dardo. Winter olhou para o cadafalso. Pendente da forca o corpo de Severino estrebuchava.
p Dr. Nepomuceno tossia ainda. Sua esposa apertava o lenço nas mãos e tinha lágrimas nos olhos bondosos e palermas. Bibiana e Florêncio olhavam ainda para Bolívar
"com pena, como se fosse ele e nãoo Severino o enforcado.
Winter voltou para a sua cadeira e acendeu um charutinho. Estava subitamente triste por contraste pensava em Trnde, especialmente-num certo dia em qne a vira èntrar
na igreja de Eberbach, toda de branco, com pequenas flores azuis nos cabelos dourados.
- Lá se foi o negrol - exclamou Aguinaldo, esfregando as mãos e caminhando na direção das melancias. Apanhou uma talhada e convidou: - Vamos, minha gente, antes
que a melancia esquente.
1~Ias ninguém fez o menor movimenta Luzia deixoa a janela: Seu rosto estava iluminado por uma Iuz de bondade que a transfigurava. Sentou-se junto do consolo, abriu
o estojo de madeira e tirou de dentro dele a cítara. Fez tudo isso com gestos cuidados e tranqüilos como quem segue um rito.
Tirou alguns acordes do instrumento e depois começou a tocar uma valsa brilhante. - Winter observava-a, perplexo. A melodia alegre encheu a sala. A. senhora. do
juiz aproximou-se mais de Latia. e, com a mão atrás da orelha,- tentava escutar, com uma expressão de estranheza nos olhos ainda úmidos.
De repente Bolívar rompeu a chorar, escondeu o iostó nas mãos e ficou onde estava, os ombros sacudidos pelos soluços. Bibiana correu a sentar-se junto dele.
- 1~Ieu filho - murmurou. ela, entre penalizada. e cheia de vergonha. - Não faça isso. Um homem não chora.
Luzia olhou para o noivo, com olhós ínespressivos, e continuou a tocar. Winter, embaraçado, mascava ferozmente seu charatinho. Florêncio ergueu-se, caminhou para
o primo e tomoa-lhe do braço, . dizendo:
- Boli, vamos dar um passeio ,lá no quintal.
O outro não se moveu.. Florêncio obrigou-o a levantar-st. Bolívar deixou-se arrastar pelo primo para fora da sala.
- Vou mandar fazer um chá de folha de laranjeira pra élt - d~ Aguinaldo.
Os olhos de Bibiana Terra chisparam.
- Meu filho não é mulher pra tomar chás, seu Aguinaldo. Neap~ terra nãoo há nenhum homem mais macho qne o Bolívar. ~em tiver dúvida que experimente.
Passeou rapidamente o olhar em torno, num desafio, fez cotia °pl~ e saia no encalço dos dois rapazes.
Como se nada tivesse acontecido, Luzia continuava a dedilhar
A TEINIAGUk 385
#3 84 O CONTINENTE

- Faltam oito minutos - disse Aguinaldo. E de repente uma alegria infantil, exclamou: - Lá vem ele!
Winter ergueu-se, como que galvanizado, e aproximoujanela. O juiz continuou sentado onde estava, a balouçar as nervosamente.
O médico olhou para fora. Um grupo compacto movia cadeia na díreção do cadafalso. Houve na multidão que se a ao redor da forca um como que movimento de onda. Wiat
lumbrou no grupo menor a batina negra do Pe. Otero e uniformes da Guarda Nacional. Tudo se processava no meia grande silêncio.
O Dr. Nepomuceno foi atacado dum acesso de tosse Voltando a cabeça para dentro da sala; Winter viu que B duma palidez de morte, de olhos sempre baixos remexia-se
fortavelmente no sofá, ao passo que Luzia olhava atentamentt~ ele, sentada, multo ereta, na ponta do sofá, como que a g sofrimento do noivo. Q médico tornou a olhar
para a praça, quando dois guardas fizeram Severino subir os degraus do cada Dali Winter nãoo podia distinguir as feiçôes do condenado percebeu que os guardas o amparavam
para que ele se maat de pé. Ao lado do negro, o Pe. Otero ergueu um crucifixo voltou-se para a multidão e pronunciou algumas palavras médico não ouviu com clareza.
Começou então a erguer povo um clamor uníssono, cadenciado e fúnebre. Rezavam o nosso. As vozes, graves e foscas, erguiam-se no ar luminoso, e a praça e tinham qualquer
coisa que lembrava o som dum Winter começou a sentir a garganta seca, a língua grossa. um perfume ativo de essência de rosas lhe chegava às nazi então ele- sentiu,
antes de ver, que Luzia estava a seu lado, à Olhou-a de soslaio. Os seios da moça palpitavam, seus olham vam fitos no cadafalso, imóveis, arregalados, cheios doma
fascinação.
De repente o coro cessou num amém que se esfarelou O padre voltou-se para o condenado e encostou-lhe aos lá crucifixo. Naquele instante o relógio começou a dar as
horas: badaladas que Bolívar sentiu como pancadas no crânio.
O carrasco experimentou o nó corredio e depois colocou a em torno do pescoço do escravo. Havia agora na praça nm de cemitério. De repente um galo cantón atrás da
igrt Dr. Winter voltou a cabeça para Luzia. E foi no semb teiniagná que ele viu o resto da cena macabra. Primeiro o r se contorceu num puxão nervoso, como se ela
tivesse senti súbita dor aguda. Depois se fixou numa expressão de interesse que aos poucos se foi transformando numa má gozo que pareceu chegar quase ao orgasmo.
Winter o estarrecido. Na multidão ao redor do cadafalso uma mulher
cadafalso. Pendente da forca o corpo de Severino estrebuchava.
O Dr. Nepomuceno tossia ainda. Sua esposa apertava o lenço nas mãos e tinha lágrimas nos olhos bondosos e palermas. Bibiana e Florêncío olhavam ainda para Bolívar
"com pena, como se fosse ele e nãoo Severino o enforcado.
Winter voltou para a sua cadeira e acendeu nm charutinho. Estava subitamente triste por contraste pensava em Tande, especialmente-num certo dia em que a vira èntrar
na igreja de Eberbach, toda de branco, com pequenas flores azuis nos cabelos dourados.
- Lá se foi o negrol - exclamou Aguinaldo, esfregando aa mãos e caminhando na direção das melancias. Apanhou uma talhada e convidou: - Vamos, minha gente, antes
que a melancia esquente.
Mas ninguém fez o menor movimento. Luzia deixou a janela: Seu rosto estava iluminado por uma luz de bondade que a transfigurava. Sentou-se junto do consolo, abriu
o estojo de madeira e tirou de dentro dele a cítara. Fez tudo isso com gestos cuidados e tranqüilos como quem segue um rito.
Tirou alguns acordes do instrumento e depois começou a tocar uma valsa brilhante. - Winter observava-a, perplexo. A melodia alegre encheu a, sala. A. senhora. do
juiz aproximou-se mais de Luzia. e, com a mão atrás da orelha,- tentava escutar, com uma expressão de estranheza nos olhos ainda úmidos.
De repente Bolivar rompeu a chorar, escondeu o rostó nas mãos e ficou onde estava, os ombros sacudidos pelos sólnços. Bibiana correu a sentar-se junto dele.
- Meu filho - murmurou. ela, entre penalizada. e cheia de vergonha. - Não faça isso. Um homem não chora.
Luzia olhou para o noivo, com olhós inexpressivos, e continuou a tocar. Winter, embaraçado, mascava ferozmente seu charutinho. Florêncio ergueu-se, caminhou para
o primo e tomou-lhe do braço, . dizendo
- Boli, vamos dar um passeio ,lá no quintal.
O outro nãoo se moveu.. Florêncio obrigou-o a levantar-se. Bolívar deixou-se arrastar pelo primo para fora da sala.
- Vou mandar fazer um chá de folha de laranjeira pra élt - du~ Aguinaldo.
Os olhos de Bibiana Terra chisparam.
- Men filho nãoo é mulher pra tomar chás, seu Aguinaldo. Nesc,~ terra nãoo há nenhum homem mais macho que o Bolívar. ~m tiver dúvida que experimente.
Passeou rapidamente o olhar em torno, num desafio, fez meia °pl~ e saiu no encalço dos dois rapazes.
Como ~ nada tivesse acontecido. Luzia coatianava a dedilhar
A TEINIAGUA 385 ,~ grato que subiu no ar como um dardo. Winter olhou para o
A TEINIAGUA 387
A moça começou a tocar em surdina uma barcarola, ao mesmo
tempo que dizia
Uma vez na Corte, quando eu era menina, vi um enfor
camentó ~aAum Miá f °Náou"pode se compara rcomso Rio de Janeiro,
Fé é ape
é natural. - Olhava para os propnos dedos, como que enamorada deles. Prosseguiu : - O condenado era um turco que tinha matado
a mulher. São-detló.o Pe Sor°riu~lsa adindo de leve a abParto e Ém pedaço de p
Braçado, não é? Quando o padre veio para a confissão, o turco disse que era muçulmano ou coisa que o valha ... O padre ficou furioso.
Winter mirava ora as mãos de Luzia ora o seu rosto, e deixava-se embalar pela vòz dela.

- Depois fizeram um cortejo pela rua- continuou a moça. - Vinha na frente o juiz das execuções, o meirinho, os irmãos da Santa Casa, com os seus balandraus... Ahl
Vestiram um casacão branco no condenado." Depois vinham os funcionários, os soldados .. .
A escrava entrou trazendo uma bandeja com cálices de licor de pêssego. e distribuiu-os entre os convivas.
- Ind"agorinha eu vi tudo ali da janela - disse Luzia, parando de tocar e descansando as mãos no regaço. Seus olhos pousaram no rosto do vigário. - Vosmecê ouviu
quando o pescoço do negro se quebrou?
- Se ouvi? - perguntou o padre, franzindo a testa.
- Quero dizer, quviu o barulho de ossos se quebrando?
O sacerdote encolheu os ombros, em dúvida.
- E ele ficou de língua de fora?
- Minha filha ... eu ... vosmecê sabe que a gente não presta bem atenção a essas coisas. Na hora se fica tão ... Ora, pra falar a verdade, nem olhei quando puxaram
o alçapão. Estava de olhos fechados, rezando.
Luzia insistiu
- Mas depois, quando vosmecê olhou ... ele estava de língua de fora?
O padre voltou a cabeça para Aguinaldo e. disse com um sorriso constrangido
- A curiosidade das moças de hoje não tem limites.
No espírito de Winter a palavra curiosidade transformou-se em crueldade. Luzia positivamente tinha a coragem de sua crueldade. Agora a névoa se ha"via dissipado
ao redor dela. Lá estava a Musa da Tragédia com toda a sua alma desnudada.
A mulher do juiz, aflita, olhava com ar desamparado dum para outro, sem conseguir ouvir o que diziam.
O Dr- Nepomuceno cruzou as pernas, ergueu os olhos para o
386 O CONTINENTE
a cítara. Um reflexo da bandeirola da janela manchava-lhe de verde.
A teiniaguá - pensou o Dr. Carl Winter. E ficou ol para o "animal", como que enfeitiçado .. .
A TEINIAGUA 387
a cítara. Um reflexo da bandeirola da janela manchava-lhe a de verde.
A teiniaguá - pensou o Dr. Carl Winter. E ficou nl para o "animal", como que enfeitiçado .. .
8
Quando o Pe. Otero chegou ao Sobrado por volta das a meia, Bibiana, o filho e o sobrinho já se haviam retirado. O entrou com ar cansado, cumprimentou os presentes
e foi senta um unto da sala, na sua. cadeira de balanço predileta. E homem baixo e franzino,"ainda moço;- tinha um rosto alo duma, palidez eswerdeads de hepático.
De tão surrada sua já se fazia ruça e .estava toda manchada de sebo.
- Come uns docinhos, padre? - perguntou Aguinaldo
O vigário sacudiu melancolicamente ã~ cabeça.
- Nãó.: Muito obrigado.
Uma talhada de melancia?
- Também não. Não estou com fome.
- Então vamos tomar um licorzinho de pêssego .. .
O Pe. Otero fez primeiro uma careta de. dúvida; depois
- Está bem, aceito.
Aguinaldo gritou para Rosa que trouxesse o licor. Luzia lhava ainda a cítara, de leve. Já tinha tocado quase tudo q sabia e a saídá do noivo não a deixara nem um
pouco pertur
- Então, vigário? - perguntou o Dr. Nepomuceno. -nos conta?
O sacerdote fez um gesto desalentado.
- Consummatum est.
Houve um curto silêncio, ao cabo do qual°ó Dr. Winter guntou:
- E o condenado ... cómo se portou?
- Não fez a menor qúeíxa. Não fez nenhum pedido es Confessou-se e na hora de morrer beijou o crucifixo. Seu-: tremiam, mas seus olhos estavam secos. Não soltou um
ai. como um homem.
Luzia ergueu a cabeça e indagou:
- E na hora da confissão... ele confessou o crime, ou r que estava inocente?
- Minha filha - respondeu o padre com triste calma -~-
posso quebrar o sigilo do confessionário.
O juiz de direito ergueu os olhos bovinos para Luzia e ref - r. Ele nãoo pode. Não pode.
A moça começou a tocar em surdina uma barcarola, ao mesmo ttmpo que dizia:
Uma vez na Corte, quando eu era menina, vi um enforp~ento. Ah! Mas foi muito mais bonito que este. Enfim, Santa Fé é apenas uma vila. Não pode se comparar com o
Rio de Janeiro, é natural. - Olhava para os proprios dedos, como que enamorada deles. Prosseguiu: - O condenado era um turco que tinha matado a mulher. Seu último
pedido foi um cálice de vinho do Porto e um pedaço de pão-de-ló. - Sorriu, sacudindo de leve a cabeça. - Engraçado, nãoo é? Quando o padre veio para a confissão,
o turco disse que era muçulmano ou coisa que o valha ... O padre ficou furioso.
Winter mirava ora as mãos de Luzia ora o seu rosto, e deixava-se embalar pela vóz dela.
- Depois fizeram um cortejo pela rua- continuou a moça. - Vinha na frente o juiz das execuções, o meirinho, os irmãos da Santa Casa, com os seus balandraus ... Ah!
Vestiram um casacão branco no condenado." Depois vinham os funcionários, os soldados .. .
A escrava entrou trazendo uma bandeja com cálices de licor de pêssego. e distribuiu-os entre os convivas.
- Ind"agorinha eu vi tudo ali da janela - disse Luzia, parando de tocar e descansando as mãos no regaço. Seus olhos pousaram no rosto do vigário. - Vosmecê ouviu
quando o pescoço do negro se quebrou?
- Se ouvi? - perguntou o padre, franzindo a testa.
- Quero dizer, quviu o barulho de ossos se quebrando?
O sacerdote encolheu os ombros, em dúvida.
- E ele ficou de língua de fora?
- Minha filha ... eu ... vosmecê sabe que a gente não presta bem atenção a essas coisas. Na hora se fica tão ... Ora, pra falar a verdade, nem olhei quando puxaram
o alçapão. Estava de olhos fechados, rezando.
Luzia insistiu:
- Mas depois, quando vosmecê olhou ... ele estava de língua de fora?
O padre voltou a cabeça para Aguinaldo e. disse com um sorriso constrangido
A curiosidade das moças de hoje não tem limites.
No espírito de Winter a palavra curiosidade transformou-se em crueldade. Luzia positivamente tinha a coragem de sua crueldade. Agora a névoa se havia dissipado ao
redor dela. Lá estava a Musa da Tragédia com toda a sua alma desnudada.
A mulher do juiz, aflita, olhava com ar desamparado dum para outro, sem conseguir ouvir o que diziam.
4 Dr. Nepomuceno cruzou as pernas, ergueu os olhos para o
386 O CONTINENTE
a cítara. Um reflexo da bandeirola da janela manchava-lhe de verde.
A teiniaguá - pensou o Dr. Carl Winter. E ficou nl para o "animal", como que enfeitiçado .. .
8
Quando o Pe. Otero chegou ao Sobrado por volta das meia, Bibiana, o filho e o sobrinho já se haviam retirado. O entrou com ar cansado, cumprimentou os presentes
e foi senU um unto da sala, na sua. cadeira de balanço predileta. Erat homem baixo e franzino,"ainda moço;- tinha um rosto aloa duma, palidez eswerdeads de hepático.
De tão surrada sua já se fazia ruça e .estava toda manchada de sebo.
- Come uns docinhos, padre? - perguntou Aguinal
O vigário sacudiu melancolicamente a~ cabeça.
- Nãó.: Muito obrigado.
Uma talhada de melancia?
- Também não. Não estou com fome.
- Entáo vamos tomar um licorzinho de pêssego .. .
O Pe. Otero fez primeiro uma careta de. dúvida; depois
- Está bem, aceito.
Aguinaldo gritou para Rosa que trouxesse o licor. Luzia lhava ainda a cítara, de leve. Já tinha tocado quase tudo q sabia e a saídá do noivo não a deixara nem um
pouco pertur
- Então, vigário? - perguntou o Dr. Nepomuceno. -- nos conta?
O sacerdote fez um gesto desalentado.
- Consummatum est.
Houve um curto silêncio, ao cabo do qual ° ó Dr. Winter guntou:
- E o condenado ... cómo se portou?
- Não fez a menor qúeíxa. Não fez nenhum pedido c~ Confessou-se e na hora de morrer beijou o crucifixo. Seu-: tremiam, mas seus olhos estavam secos. Não soltou um
ai. como um homem.
Luzia ergueu a cabeça e indagou:
- E na hora da confissão ... ele confessou o crime, ou r que estava inocente?
- Minha filha - respondeu o padre com triste calma -
posso quebrar o sigilo do confessionário.
O juiz de direito ergueu os olhos bovinos para Luzia e ref - r. Ele nãoo pode. Náo pode.
A moça corneçou a toca
tampo que dizia:
_. Uma vez na Corte,{ gmeato. Ah! Mas foi mU~ Fé é apenas uma vila. Não GQ
é natural. - Olhava para d~f4o
deles. Prosseguiu: - O CO~"íu~
a mulher. Seu último pedi~l pedaço de pão-de-ló. - S°~ Gy Braçado, nãoo é? Quando ~1 ase que era muçulmano O, furioso. ~
Winter mirava ora as f9 va-se embalar pela vóz de1~~~1~
- Depois fizeram um ~ Vinha na frente o juiz d9~~o Santa Casa, com os seus ba^
branco no condenado." D¢1DQ
dos .. .
A escrava entrou trazef~ ~ ~ pêssego. e distribuiu-os ent~a
- Ind"agorinha eu vi y~ do de tocar e descansando ~y~ no rosto do vigário. - VO t se quebrou? ~
- Se ouvi? - pergu
- Quero dizer, quvi~~
O sacerdote encolheu dia
- E ele ficou de lín~~
- Minha filha ... eu bem atenção a essas coisas. ~ ~ P a verdade, nem olhei quan fechados, rezando.
Luzia insistiu : D ~
- Mas depois, quand

de fora? ~ ~aD
O padre voltou a cabe( constrangido
A curiosidade das
No espírito de Winter nueldade. Luzia positiva Agora a névoa se havia di
~ Tragédia com toda a ~G a~ olá
A mulher do juiz, afli"/ OQ outro, sem conseguir ouvis/ ~~ b
O Dr. Nepomuceno c~/
#388 O CONTINENTE
alto, com o jeito de quem procura alguma coisa no cérebro e depois disse:
- Essa execução vai custar ao governo .. , deixe ver .. , mil e quinhentos mais oitocentos e cinqüenta ... - Tinha a fama de ser muito bom no fazer contas de cabeça.
- Vai custar exatamente cinco mil e duzentos e noventa e um réis.
Via-se que dizia isso porque estava contrafeito e achava que tinha de dizer alguma coisa.
Luzia sorriu.
- Morre-se barato - dísse ela. - Viver é que custa caro.
O Pe. Otero olhava fixamente para o seu cálice de licor. Tinha a testa franzida, o ar preocupado.
- Que bicho le mordeu, padre? - perguntou Aguinaldo. - Ficou impressionado com a coisa?
- No fim de contas, não foi nenhuma festa ... - replicou o sacerdote.
.Winter tomou um gole de licor e sentiu que o líquido doce e grosso lhe descia, ardido, pela garganta, como um filete de fogo.
- Mas não acha, reverendo - perguntou - que indo ver a morte do negro seus paroquianos não se portaram dum modo muito cristão?
- padre cruzou as pernas, tornou a olhar para o cálice e respondeu
- É. O espetáculo não foi nada edificante. Mas o senhor sabe, doutor, o fato deve ser olhado como um exemplo.
- Mas a sua igreja não condena a pena máxima? Temos o direito de tirar a vida dum ser humano, mesmo em nome da justiça?
O Pe. Otero remexeu-se na cadeira, numa visível sensação de mal-estar. O Dr. Nepomuceno voltou vivamente a cabeça na direção do médico.
- sacerdote tirou do bolso um lenço muito encardido e passou-o pela testa num gesso largo e depois respondeu, com sua voz lenta, escandindo bem as sílabas:
- A Igreja é de Deus e o reino de Deus não é deste mundo. Os homens podem errar, mas Deus nunca erra. No fim os pecadores sempre são punidos e os justos recompensados.
E aqueles que são condenados por um erro da justiça dos homens, no céu serão exaltados e redimidos .. .
Winter sorriu.
- Acha então possível que no caso de Severino tenha havido um erro da justiça?
- padre empertigou-se de repente, como se lhe tivessem alfinetado as costas.
- Eu nãoo dísse isso.
- Acredita então que o negro matou mesmo os tropeiros? - Também não afirmei tal coisa.
A TEINIAGUA 389
_. Qual é a sna opinião sobre o caso?
- Como sacerdote de DRus nãoo me .cabe criticar a justiça do estado. Cristo disse: "A César o qne é de César. A Deus o que é
de Deus."
O juiz de direito franziu o sobrolho e foi com uma gravidade ressentida. que disse:
- E um caso límpido. ~ um caso límpido.
Winter emborcou o cálice de licor, lançou um olhar para Luzia, que seguia a discussão com interesse, e perguntou com ar agressivo:
- E quem me prova que não foi o próprio dono dá olaria que matou os seus hóspedes. Quem me prova?
- "Não levantes falso testemunho contra o teu próximo" - sentencíou o vigário.
- É uma hipótese .. .
- Que não deixa de envolver uma calúnia - retrucou o Dr. Nepomuceno.
- Pois bem. En posso me retratar duma calúnia ... duma afirmação leviana. Mas o que fizeram com Severino é irremediável. E uma retratação da justiça não devolveria
o negro à vida.
- Mas é úm caso límpido - afirmou outra vez o juiz. - Um caso límpido. Doze, digo: onze juízes de fato reconheçeram a culpabilidade do réu.
E começou a rememorar o processo, a repetir trechos do depoimento de Bolívar e do próprio amo de Severino.
Luzia afastou-se do consolo e foi sentar-se no sofá.
- O Dr. Nepomucèno me deixou ler o auto do corpo de delito - contou ela. - Eu até decorei ... Querem ouvir? Havia uma _parte assim: "Passando os ditos peritos a
examinar os cadáveres, declararam .estarem ambos deitados e com a cabeça bastaniemente moída de maneira que espirraram os miolos, sendo a pancada recebida do lado
esquerdo na altura da orelha e a contusão mostráva ter sido feita com pau ou outro qualquer instrumento contundente. Declararam mais não encontrarem papéis nem outra
qualquer coisa que indicasse o nome ou residência dos ditos mortos, que- eram ambos jovens, brancos, cabelos crespos, feições regulares e urrt parecido com o outro,
presumindo-se por isso serem irmãos."
Winter notou que Luzia repetia aquelas palavras como se recitasse um poema lírico.
Fez-se um silêncio de constrangimento em que apenas Aguinaldo mostrava uma face desanuviada e alegre. Tinha ofgulho da neta, das coisas que ela sabia e fazia.
- O senhor examinou as vítimas, doutor? - perguntou a moça.
- Sim. Foi um dos meus primeiros "casos", em Santa Fé.
- E verdade que mesmo com as cabeças esmigalhadas eles viveram ainda muitas horas?
#39O O CONTINENTE

- r. Por que pergunta?
- Vosmecê acha que eles tinham ainda conhecimento das coisas ?
- Claro que não.
- Então não sofriam?
- É muito difícil fazer uma afirmação positiva, mas creio que não sofriam mais.
- Uma vez quando menina eu vi uma cozinheira decapitar uma galinha, e o bicho .mesmo sem cabeça continuou de pé e depois saiu caminhando e entrou direitinho no galinheiro.
Nunca mais me esqueci- disso.
O vigário fez um gesto de impaciência.
- Mas por que não mudamos de assunto.? - perguntou. ~ Basta de sangue, de cabeças cortadas, de enforcamentos. - E para começar um novo tópico de conversação, voltou-se
para o dono da casa e perguntou. - Então, Sr. Aguinaldo, como vão os negócios?
- De mal a pior - respondeu Aguinaldo, que comia vorazmente uma talhada de melancia. Cuspinhou as sementes no prato e continuou: - A guerra estragou a cavalhada,
reduziu a gadaria. Os garanhões que sobraram não valem dez réis de mel coado.
Era sempre o que acontecia em tempo de guerra - refletiu Winter, - morria .a flor das nações não só em homens como em cavalos. Ficavam os velhos, os doentes, os
incapazes.
Wínter tinha ouvido contar que na Província se matavam éguas aos milhares para aproveitar a graxa. E que os estancieiros vendiam para as charqueadas até as vacas
de cria. Sabia também que desde 1823 as gentes de S. Pedro do Rio Grande haviam abandonado a cultura do trigo para se dedicarem à pecuária. Ora, as guerras periódicas
dizimavam a cávalhada e o gado, ao passo que a .agricultura continuava decadente ou quando muito estacionária. Os campos se achavam despovoados e ele tínfia a impressão
de que ninguém tinha plano, ninguém pensava no futuro; os continentinos viviam ao acaso das improvisações, confiando sempre na sorte. Por que não tentavam alguma
coisa? - impacientava-se ele.
- O negócio de gado está liquidado - declarou Aguinaldo. E levou a talhada de melancia aos lábios, como se ela fosse .uma gaita de boca, e ficou a tocar uma música
feita das notas líquidas dos chupões.
- Nada está perdido quando a gente tem força de vontade e amor ao trabalho - sentenciou o juiz de direito.
Luzia e a senhora surda ergueram-se e saíram da sala. A mulher do Dr. Nepomuceno queria ver as toalhas bordadas que a moça recebera de Porto Alegre como parte de
seu enxoval.
- Ainda por cima - acrescentou Aguinaldo - o governo proíbe a passagem do gado da Banda Oriental para cá. Quando nem o governo ajuda, que .esperança podemos ter?
A TEINIAGUA 391

- Não culpemos o governo de tudo - observou cautelosamente o juiz.
Winter ergueu-se e deu um puxão nos fundilhos das calças que se lhe colavam incomodamente às nádegas.
- Por que ós fazendeiros nãoo mandam vir reprodutores estrangeiros para melhorar seus rebanhos? - perguntou, fazendo um. gesto largo como para dar a entender que
o mundo era muito vasto e rico. - Importem cavalos da Inglaterra, da Alemanha, do Cabo da Boa Esperança. Mandem vir vacas da Holanda.
- Alguns estancieiros de Cruz Alta - informou Aguinaldo - receberam há pouco um lote de cavalos pampas.
Muitas das coisas da Província, Wínter ficava sabendo através de sua correspondência com Carl vou Koseritz, ao qual ele chamava com afetuosa ironia "méú ilustre
barãó ". Fazia pouco mais duma semana, escrevera-lhe uma carta em que dizia: "Tu ao menos tens como desabafar: és jornalista, escreves os teus artigos e de certo
modo já pertences a esta. pátria: Quanio a mim, continuo a sec apenas o Dr. Carl Wínter, um exilado, um imigrante, um intruso; e tenho de calar a boca mesmo quando
sinto vontade de sacudir esta gente de sua apatia exasperante. 141as é preciso reconhecer que essa apatia se revela apenas no que diz respeito ao trabalho metódico
e previdente, pois quanto ao resto -nunca vi gente mais ativa. Estão sempre prontos a laçar, domar, parar rodeios, correr carreiras e principalmente a travar duelos
e ir para a guerra."
Agora o padre balançava-se de leve na sua cadeira e dizia:
- Ainda hoje o Cel. Amaral estava se queixando que o negócio de charque vai muito mal.
- Mas esta província nãoo pode depender eternamente do charque e do couro! - exclamou Winter. - Foi um erro terem abandonado o trigo. ~ uma insensatez não cuidar
dos rebanhos.. . um crime não cultivar melhor a terra.
Havia. outros problemas sérios: o da instrução pública, por exemplo. Existiriam quando muito umas òitenta escolas em toda a Província, e todas eram de primeiras
letras. Havia uma assustadora escassez de professores.
Inflamado por suas idéias, Winter ergueu o dedo e disse:
- Os senhores. ainda não. perceberam o grande perigo que correrão no futuro ... ?
Conteve-se. O que ia dizer era muito ousado, talvez até ofensivo àquela gente. Viu que os outros esperavam a terminação da frase. Não teve remédio senão continuar.
- .. se nãoo promoverem ò .progresso desta região? Pode ser que algema nação estrangeira poderosa, de gente superior, volte um dia para cá os olhos cobiçosos. Não
será a primeira vez na História. Não basta ter uma terra - é necessário mereeê-la.
O juiz ergueu para éle os olhos mortiços.
#392 O CONTINENTE

- O doutor quer insinuar que uma outra nação pode procurar
tomar posse da nossa terra pelas armas?
Winter pôs as mãos nos quadris, inclinou-se sobre o juiz e disse: - Exatamente.
Aguinaldo teve um arroubo patriótico:
- Pois que venham. Havemos de expulsar essa estrangeirada a grito e pontaço de lança.
- Que venham! - repetiu Nepomuceno, numa velada ameaça, como se dispusesse dum poderoso exército secreto pronto para qualquer emergência. - Que venham!
O padre olhava para Winter dum modo estranho, e o doutor viu que se havia metido em terreno perigoso. Mas agora já não podia mais recuar.
Adoçou mais a voz, deu-lhe um tom persuasivo para dizer:
- Esta terra é boa demais para ficar abandonada, despovoada de gentes, de gado e de lavouras ... lr incrível que a Província tenha de importar os cereais que consome:
nãoo só os cereais, mas até a farinha de mandioca.
Houve um silêncio ressentido em que só se ouviu o ruído líquido que Aguinaldo produzia ao mastigar nacos de melancia, e o tan-tan da cadeira de balanço do padre.
- Boa ou má - disse o Dr. Nepomuceno depois de alguns segundos de reflexão - rica ou pobre, esta terra é nossa, dos brasileiros. Havemos de defendê-la contra qualquer
invasor, venha ele de que quadrante vier, seja de , que raça for.
Olhou para o sacerdote como a pedir-lhe a aprovação para o que acabava de dizer.. O Pe. Otero sacudiu a cabeça gravemente. De novo o juiz esparramou a papada sobre
o peito e, com ar sonolento, ficou a brincar com a medalha do relógio.
Winter lançou o olhar para a janela. Fora, a luz se fazia mais cor de âmbar e mais suave, à medida que entardecia. Na praça a multidão se havia dispersado, mas viam-se
ainda curiosos a conversar aos grupos nas proximidades da forca. Mentalmente o médico escrevia agora uma carta ao seu "ilustre barão". Assim: Ainda
ontem no Sobrado com a mais sã das intenções, eu disse umas verdades cruas ao dono da casa, ao vigário e ao juiz de direito. Por um tolo sentimento de patriotismo
mal compreendido parece que ficaram Zangados. Como resultado de tudo também fiquei irritado, e já que havia saído para a chuva e estava molhado, resolvi continuar
enfrentando o aguaceiro e cheguei a sugerir àqueles senhores que.. .
- Mas não basta melhorar os rebanhos - disse Winter em voz alta. Aproximou-se do consolo e ficou a dedilhar distraidamente as cordas da cítara. - E preciso também
cuidar dos homens...
- Cuidar dos homens? - estranhou o padre.
A TEINIAGUA 393

- Explique-se - pediu o juiz - explique-se.
- Calma - disse o médico, fazendo um gesto de paz.
- Estamos perfeitamente calmos. Vamos!
- Quero dizer que seria melhor casar vossos homens e mulheres com os imigrantes alemães do que com negros e índios. .
- O meu caro doutor acha èntão que somos uma nação inferior?
Winter tirou um acorde dissonante da cítara, e olhou para o juiz.
- Eu não afirmei propriamente isso.. Mas se vosmecê conhecesse a Alemanha teria uma idéia do que é capaz o povo alemão.
- O que o doutor quer insinuar - observou o padre - é que os alemâes merecem mais que nós este país .. .
O juiz lutava com suas idéias. Elas lhe ocorriam sèmpre tar-, diamente. Invejava os que tinham resposta sempre pronta na ponta da língua. O ".padre sacudia a cabeça
devagarinho numa dúvida taciturna. Não eram aqueles alemâes em sua maioria protestantes? Que aconteceria se casassem com brasileiros? Como iriam educar os filhos?
Em que igreja? No amor e temor de que deus?
Finalmente o juiz çonseguiu formar uma frase que lhe pareceu à altura do assunto, do momento e do interlocutor.
- Poís digam o que quiserem, eu cá acho que um povo latino como o nosso deve .. .
O médico soltou uma risada e avançou para o juiz:
- Latinos os homens desta província? - exclamou. - Ach mero lieber Gott! Acha então o doutor que os gaúchos descendem dos romanos?
- Oral - fez o Dr. Nepomuceno, que estava muito vermelho. e agitado. - Ora!
- Preste bem atenção, Sr. Juiz. .Quem foram os primeiros povoaaores destes campos? Paulistas descendentes de portuguèses. Pois bem. Os portugueses já têm uma boa
dose de sangue mouro. Mais tarde chegaram aqui os casais açorianos, muitos dos quais eram de origem flamenga. Nesta província houve novas misturas cpm sangue índio
e negro. Já vê que de latinos tegdes muito pouco.
- Digam o que disserem. Somos latinos pela civilizaçãol .
Carl Winter sentou-se de repente, como se o peso da palavra civilização fosse demasiadamente grande para ele suportá-lo de pé.
De que feitos espirituais se podia gabar aquela áspera sociedade pastoril que florescia - se é que se podia no caso usar este verbo - no tão gabado "Continente"
de D. L.uia.ra? Onde estavam seus artistas, seus cientistas, seus pensadóres? Até aquela data Winter não vira um único livro impresso na Província. Poderiam os continentinos
a" ^gar que as guerras nãoo lhe davam tempo para as ativi- . dades do esp~.ito, e talvez aí tivessem alguma razão. Mas quem não tinha razão era o Dr. Nepomuceno quando
enchia a bóca com a
#39~ O CONTINENTE
palavra civilização. Lie e o padre pareciam estar convencidos não somente de que eram descendentes dos romanos como também de quc, por ipso, representavam a essência
da sabedoria, da espiritualidade e do progresso.
Tornou a erguer-se, aproximou-se da janela e ficou olhando para as campinas de Santa Fé. Que grandes coisas os homens de séu sangue poderiam fazer naquela terra
privilegiada onde nãoo havia.. angústia de espaço, nem terremotos, inundações ou secas calamitosasl Ali estava ela, generosa e mansa, oferecendo-se femininamente
aos seus homens que pareciam recusar-se a fecundá-la, preferindo transformá-la em cancha para seús jogos, conflitos e andanças.
No silêncio que se fizera óuviu-se a voz de Aguinaldo:
- Mas será que só eu é que estou comendo melancia? Não quer uma- talhada, Dr. Nepomucenó? E o Pe. Otero? E o Dr. Winter?
- Muito obrigado - respondeu o juiz. - Não quero estragar o apetite. para o jantar.


Eram mais de seis horas quando o Dr. Winter deixou o Sobrado. Sabia que o padre e o juiz de direito tinham ficado magoados com suas observaçõces. Que fossem para
a diabol Eram homens adultos, podiam muito bem agüentar um bom par de verdades. Deu alguns. passos,- batendo forte com a ponteira da bengala no chão, ao mesmo tempo
que lhe vinha à lembrança uma água-forte que vira quando estudante em Heidelberg: Jesus diante de Pilatos. E ele "leu" a legenda que havia por baixo da gravura,
em letras góticas: "Que é a Verdade? - perguntou Pilatos." Winter sorriu. Estaria ficando intolerante, oú - pior ainda - convencido de ser o único portador da Verdade,
uma espécie de saco de absolutos?
Parou um instante na praça e ficou olhando para a forca. Pobre Severinol Tinha morrido por causa dum absoluto. Um absoluto que o Dr. Nepomuceno adorava, como a um
deus. Encolheu os ombros como quem diz: "Não sou daqui, não tenho nada com isso." E decidiu que o melhor que tinha a fazer era ir ver o pôr de sol.
~A iuz da tarde era doce, e andavam por toda a paiságem uns lilases rosados positivamente fantásticos. Winter achava um grande encanto naqueles quintais quietos
ao anoitecer. Um porco fossando na lama, uma galinha bicando o chão, um passarinho piando numa árvore, uma criança nua a brincar com um osso, um cão vadio dormitando
num vão de porta - tudo isso eram coisas que o deixavam inexplicavelmente enternecido.
Comparava o mundo em que nascera e vivera até os trinta anos com o mnndjmho de Santa Fé. Ali naquela vila perdida na extre
A TEINIAGUÁ 395

midade sul do Brasil representava-se também uma comédia humana, que era uma paródia da que Winter vira na Europa. Os atores seriam menos consumados, o cenário mais
pobre. Mas os eternos elementos do drama lá estavam: o amór, o ódio, a cobiça, a inveja, o desejo de poder e de riqueza, a sensualidade, a vingança ... e o mistério.
.Caminhando na direção do campo, Winter pensava agora em Luzia. O que éle vira aquela tarde deixara-o perplexo. Não se achava preparado para comentar o caso nem
consigo mesmo. O melhor era esqúecê-lo por enquanto ... Pobre Bolívar! Qual seria o destino daquele casamento? Fosse qual fosse, ele, Carl Winter, gostaria de ver
o desenvolvimento da rústica comédia provinciana. No fim de contas, nãoo havia do outro teatro em Santa Fé .. .
9
Em parte como ator e em parte como espectador, Carl Winter pôde realmente acompanhar o desenvolvimento da comédia.
Quando. por setembro de 1853 Bolívar Cambará casou com Luzia Silva, houve festa grande no Sobrado.. Aguinaldo mandou buscar gaiteiros e violeiros de Rio Pardo e
Cruz Alta e fez matar três novilhas. Dançou-se o fandango à luz dama. grande fogueira acesa no meió do quintal. Luzia - acharam todos - estava linda no seu vestido
branco de noiva. O Pe. Otero fez um discurso e perorou desejando aos noivos uma vida longa e feliz, e muitós filhos. Em certa altera da cerimônia, D. Bibiana cutucou
o Dr. Winter, que estava a seu lado na igreja e, olhando através das janelas as franças das árvores sacudidas pelo vento, murmurou: "Minha avó costumava dizer que
sempre está ventando quando alguma coisa importante acontece."
Em princípios do ano. seguinte ventava forte quando trouxeram do Angico para a vila, numa carreta puxada a bois, o velho Aguinaldo Silva agonizante, com a cabeça
enfaixada em panos. Tinha caído do cavalo e batera com o" crânio no solo. Chamado imediatamente para vê-lo, o Dr. Winter verificou que não havia mais nada a fazer.
Aguinaldo tinha fraturado a base do crânio: era nm caso perdido. Deu-lhe uma hora de vida quando multo. Mas o nortista viveu ainda quase três. Viveu? Não. Ficou
em agonia, deitado de costas na sua grande cama, com os olhos vidrados, a boca aberta deixando escapar a respiração estertorosa. Luzia não se afastou um instante
do leito do avô. Ficou ao lado dele, com as mãos do velho presas nas suas, os olhos fitos no rosto dele, como se não quisesse perder um minuto sequer daquela lenta
agonia. Bolívar estava pálido e de olhos úmidos. E quando Winter murmurou
396 O CONTINENTE

para Bibiana: "Agora é o fim. Questão de minutos" - julgou ver no rosto -dela uma expressão estranha que o deixou desconcertado. Os olhos da mãe de Bolívar brilharam
com uma súbita luz de alegria que lhe _ iluminou o rosto inteiro por uma fração de segundo.
Winter tinha outras coisas que fazer, mas achou conveniente ficar no Sobrado para esperar o desenlace. Era noite e tinham trazido para a mesa de cabeceira de Aguinaldo
um velho candelabro com cinco velas. Uma preta entrou e disse baixinho a Bibiana que o relógio grande de pêndulo tinha parado de repente, e que isso era mau agouro.
Como se algum bom agouro fosse possível num caso daqueles - refletiu o médico.
A notícia espalhou-se rapidamente pela vila. Começaram a aparecer amigos, conhecidos, curiosos - gente que vinha perguntar como "estava passando o velho". O Pe.
Otero foi chamado para administrar a extrema-unção -ao moribundo. Puseram uma vela acesa na mão de Aguinaldò, e Luzia teve de apertar-lhe os dedos com. os seus para
que o avô pudesse sustentar a vela. No quarto silencioso ouviu-se a voz monótona do padre, murmurando palavras em latim. Winter olhava para Luzia e via que ela estava
gozando aquele mómento. Tinha a respiração òfegante e um brilho meio embaciado nos olhos claros. Agora, à luz das velas, Winter via-lhes melhor a cor: eram verdes,
nãoo havia a menor dúvida, dum tom que o mar assume em certos dias de sol fraco.
Aguinaldo expirou poucos minutos depois que o Pe. Otero saiu do quarto. Luzia nãoo consentiu que lhe cerrassem os olhos, pois o velho sempre lhe dizia: "Quando eu
morrer nãoo me fechem os olhos: quero entrar nò outro mundo enxergando tudo." Luzia quis vestir o avô com suas próprias mãos. Quando a sogra se ofereceu para ajudá-la,
ela respondeu com uma voz que a Winter pareceu uma navalhada:
- Não carece. Quem tem de fazer issò é um parente. Eu sou aqui a única parenta dele!
Pediu que os outros saíssem do quarto e fechou a porta a chave. Bolívar tinha já mandado fazer o caixão. Como não houvesse armador na vila, trouxeram um carpinteiro
para o Sobrado e ali mesmo na despensa o homem ficou a trabalhar no esquife. E assim durante muito tempo, enquanto Luzia estava fechada no quarto com o cadáver do
avô, os outros ficaram a ouvir os sons das marteladas que ecoavam pela casa toda. Winter procurava alguma coisa para dizer mas nãoo lhe ocorria nada. Bolívar estava
visivelmente abalado. Bibiana, serena, já começava a tomar providências- para o velório. Iam deixar o corpo na sala de visitas: podiam fazer o enterro às oito da
manhã seguinte. E o vento continuava a soprar, fazendo as vidraças trepidarem num rufar de tambores aflito.
A TEINIAGUA 397

Em dado momento, quando Bibiana veio trazer o chimarrão para os primeiros homens chegados ao velório, Carl Winter ouviu-a dizer em voz baixa ao filho:
- Tua mulher está de olho seco.
Olhando para as caras rudes e barbudas dos santa-fezenses que conversavam em surdina nas salas do Sobrado, Winter desejou a presença de Trude Weil que, em contraste
com aquelas figuras sombrias, lhe pareceu uma imagem de cromo, toda feita de leite, ouro, mel e lápis-lazúli. Mas qual! - refletiu ele em seguida - àquela hora talvez
sua bem-amada longínqua, gorda e desbotada, estivesse a vender salsichas atrás dum balcão de mercearia, enquanto o filho do Burgomestre lhe dava palmadas nas nádegas,
soltando grandes risadas que recendiam a chucrute e cerveja.
O mundo estava errado irremediavelmente errado. A teiniaguá continuava lá em cima fechada no quarto com o defunto. Bolívar tinha no rosto a marca da infelicidade.
E a Trude Weil, que ele amara um dia, nãoo existia mais.


Florêncio apareceu mais tarde, quando o cadáver de Aguinaldo já estava dentro do esquife, metido na sua roupa preta .domingueira, as mãos amarradas sobre o -peito
de polichinelo, as pernas cobertas de flores. Quatro círios ardiam na sala e mais quatro dentro do espelho.
Pessoas começavam . a chegar. Bento Amaral também compareceu - deu pêsames a Luzia, Bolívar, e cumprimentou Bibiana, que lhe negou a mão e virou as costas - e foi
seátar-se, taciturno, a um canto da sala, junto, do Pe. Otero. O Dr. Nepomuceno chegou com- a esposa por volta das nove horas, murmurandò desculpas: só mui tarde
ficara sabendo do triste evento, puís estivera fora da vila, etc ... , etc . .
No velório os homens a princípio estavam meio bisonhos e silenciosos; mas começaram a animar-se aos poucos, à medida que o chimarrão foi correndo a roda e as escravas
iam trazendo roscas de polvilho, bolos de coalhada e finalmente licor de pêssego. Um caboclo que Winter nunca vira - um tipo alto, muito trigueiro e de zigomas salientes
- começou a contar histórias do velho Aguinaldo: andanças, ditos e espertezas. Os outros puseram-se a rir baixinho, sacudindo muito a cabeça. Bibiana mandou trazer
para a sala mortuária todas as escarradeiras que havia no Sobrado e espalhou-as pelo chão. Alvarenga puxou com o juiz de direito e o padre uma discussão sobre a
imortalidade da alma. No seu caixão préto, de ròsto descoberto - como a neta exigira - e olhos arregalados, Aguinaldo também parecia escutar.
Winter olhava para Luzia. Luzia olhava para o defunto. O defunto olhava para o teto.
#398 O CONTINENTE
1O
Depois da missa do sétimo dia, $olívar, a mulher e a mãe foram para o Angico, resolvidos a ficar lá até princípios do inverno. E quando Ooutono entrou, Carl Winter
decidiu fazer uma excursão às missões. Seu interesse pelas ruínas daquela curiosa civilização revivera de repente. E como no momento nenhum paciente necessitasse
de sua presença em Santa Fé, e como os dias andassem -belos
- elmos, o médico fez a mala, comprou um cavalo, contratou um vaqueano e pôs-se a caminho. Partiram de madrugada, pouco antes d~ sol nascer. O ar estava frio e úmido,
galos cantavam nos terreiros. Como o guia - que era neto do Chico Pinto - fosse homem de pouca conversa, a primeira légua foi percorrida quase em silêncio. E como
ao entrarem na segunda o moço ainda continuasse calado, Winter decidiu conversar consigo mesmo, e em alemão, coisa que o companheiro pareceu não estranhãr muito.
Quando, porém, o sol estava já a pino, o vaqueano voltou paxá o médico a face curtida
- disse:
- Ainda.que mal pergunte, doutor, vosmecê.vai procurar algum tesouro?
Winter soltou .uma risada. Um quero-quero gritou perto, como numa resposta.
- Está claro que não, amigo. Vosmecê acrédita mesmo que há tesouros enterrados nas .missões?
O outro tirou detrás da orelhã um toco de cigarro, batem o isqueiro com pachorra e depois de puxar a primeira baforada, quando Carl já havia quase esquecido a pergunta,
respondeu:
- Pode que sim, pode que não.
Ao fim do primeiro dia de viagem, de rins doloridos, pernas dormentes,.Winter estava já arrependido de se haver metido naquela aventura. Era um homem curioso - não
havia dúvida - gostava de conhecer gentes e lugares novos; mas por outro lado -seu comodismo obrigava-o a ficar sempre no mesmo lugar, repelindo com certo horror
a idéia de móvimentar-se, vencer distâncias, enfrentar as asperezas das jornadas, a intempérie, a mudança de regime alimentar, o desconforto das pousadas de emergência...
Passaram aquela primeira noite na casa dum pequeno estancieiro, que os recebeu com a hospitalidade característica das gentes da Província e lhes deu um bom churrasco
com farinha, uma guampa de leite gordo e um catre sofrível.
No dia seguinte ao entardecer chegaram às ruínas da redução de Santo Angelo e Winter foi imediatamente olhar o que restara do templo.. Estava ainda de pé o grande
frontispício, cuja porta principal era flanqueada por dois nichos, num dos quais Winter
A TEINIAGUA 3 9 9

viu uma imagem de pedra representando um sacerdote paramentado, com um livro debaixo do braço esquerdo. Devia ser Santo Inácio de Loyola - refletiu o médico. O santo
do outro nicho estava sem .cabeça, e no pedestal da estátua nãoo havia nenhuma inscrição esclarecedora. O vaqueano olhou para a imagem decapitada e disse:
- A la fresca, lo degolaram!
Winter sorriu e ficou a examinar as quatro grandes colunas derrocadas que se erguiam à frente do templo e que deviam ter servido de sustentáculo ao pórtico. Por
toda a parte cresciam guanxumas, urtigas e marras-moles. Durante muito tempo o alemão ficou olhando o horizonte do anoitecer através das aberturas daquela fachada
em ruínas. E quando a .noite caiu, sua impressão de soledade e abandono foi tão profunda, que ele ficou meio deprimido. O vaqueano cozinhou arroz com charque, que
ambos comeram em silêncio, e depois preparou um chimarrão, de que o médico teve de participar, para não ofender o companheiro. Dormiram ao relento, sobre os arreios.
Antes, porém, de fechar os olhos, Winter ficou deitado de costas, com as mãos trançadas sob a cabeça, pensando na singular civilização que ali havia florescido e
em como era estranho estar ele, Carl Winter, naquela terra remota à luz das estrelas, diante dum templo jesuítico em ruínas. Começou afazer considerações sobre o
tempo, a História e a Geografia.
De certo modo o tempo histórico dependia muito do espaço geográfico. Na Europa agora a humanidade se achava em ,pleno século xIX. Mas em que idade estariam vivendo
os habitantes de Santa Fé e da maioria das vilas, cidades e estâncias da Província do Rio Grande do Sul? Existiam vastas regiões do globo que ainda se encontravam
no terceiro dia da Criação. ,E o viajante que em meados do século XVIII visitasse os Sete Povos de 1VIissões, haveria de encontrar ali uma esquïsita mistura de Idade
Média e Renascimento, ao passo que se se afastasse depois na direção do nascente ele como que iria recuando no tempo à medida que avançasse no espaço, até chegar
ao Continente de São Pedro do Rio Grande, onde entraria numa época mais atrasada em que homens vindos do século XVIII com suas roupas, armas, utensílios, hábitos
e crenças se haviam estabelecido numa terra de tribos pré-históricas, onde ficaram a viver numa idade híbrida.
Dias depois Winter e seu guia chegaram a São Miguel, cujo grande templo em ruínas causou ao médico umà ímpressão ainda mais funda que o de Santo Angelo. Carl passeou
vagarosamente aa longo, das colunas coríntias, agora dilapidadas e cobertas de parasitas, e que outrora, em número de dezoito, tinham sustentado um majestoso pórtico.
Tentou subir ao alto da torre principal, onde se via ainda o revestimento de madeira que protegia o maquinismo do
#4OO O CONTINENTE
grande relógio do templo - mas os degraus da escada do camvanário, carunchados e podres, cederam aò peso de seu corpo e partiram-se.
O vaqueano, que o observava, gritou:
- Cuidado, doutor, que vosmecë pode cair e quebrar as guampas.
Quebrar as guampas! - repetiu Winter mentalmente, sem saber se devia zangar-se ou não. Que expressão! Mas sua experiência da maneira de falar das gentes da Província
o aconselhava a nunca tomar aqueles ditos muito ao pé da letra.
Continuou a andar dum lado para outro, à frente das ruínas, enquanto o guia lhe preparává o almoço e de quando em quando lhe lançava olhares furtivos e desconfiados.
Pensa que ando procurando tesouros - refletiu Winter, que tinha agora nas mãos um lápis e um caderno de notas no qual procurava reproduzir o desenho das cabeças
de leão esculpidas em pedra e que encamavam os capitéis das colunas, nos ângulos da torre principal. - -Que teria existido no alto do zimbório? - perguntou ele a
si mesmo em voz alta. Um galo de ouro - afirmavam os antigos.. E sobre a cimalha majestosa? As imagens de São Miguel e dos doze apóstolos - informávam os cronistas.
E Winter tomava notas, rabiscava desenhos. - Evidentemente o estilo lembra o Renascimento ítaliano ... - murmurou ele, umedecendo com a língua a ponta do lápis.
E pisando em ervas daninhas e pensando vagamente na possibilidade de tropeçar. numa cascavel, Winter visitou o interior do .templo, onde ficou por algum tempo tentando
reconstituir com a imagínação a pompa antiga dos nove altares, com seus candelabros, lâmpadas de prata, imagens, vitrais e alfaias.
Depois foi examinar a grande muralha de pedra que circundava a quinta da redução, atrás da igreja; estava ela toda coberta de trepadeiras e de rosas silvestres brancas
e escarlates. À sombra dessa muralha florida, Winter sentou-se aquela tarde para ler o volume de poemas de Heine que havia levado consigo. E à noite ao deitar-se
pensou em todas as criaturas que no passado tinham pisado aquele chão - índios, missionários, bandeirantes, aventureiros, cientistas, via jantes ... Aquelas pedras
- refletiu ele - haviam sido envolvidas por melodias inventadas por compositores europeus e reproduzidas por jesuítas e índigenas em instrumentos fabricados na própria
redução. Onde estavam agora as melodias do passado? Onde? Para se divertir fez em voz alta essa pergunta ao vaqueano. O rapaz mirou-o com ar sério e disse:
- Vosmecê está mangando comigo, doutor.
- Não estou, meu amigo! - protestou Winter, erguendo-se. -Pense bem. Os sinos da igreja badalavam, não badalavam? Os :índios batiam tambores, não batiam? E tocavam
instrumentos, não tocavam? Pois bem, onde está agora o som dos sinos, dos tambores, das cornetas, das clarinetas, das liras? Onde?
A TEINIAGUÁ 4O1

Acocorado perto do fogo o rapaz encarou o companheiro por alguns segundos e depois respondeu
- O senhor,. que é doutor, deve saber. Eu sou um bagualão.
Winter tornou a deitar-se e ficóu olhando para as estrelas: as mesmas estrelas que brilhavam neste mesmo céu no tempo da glória dos Sete Povos! Por aqui andou Sepé
Tiaraju, o santo índio que tínha um lunar na testa. Foi na redução de São Tomé que a teiniaguá desgraçou um sacristão. O diabo - refletiu o médico - era que tudo
aquilo não passava de pura lenda, como a história do anel dos Nibelungen e a da Lorelei. O mundo da realidade, meia lieber Heine, é muito prosaico! Como eu gostaria
"de ver surgir daquele cemitério abandonado ali aò lado dá igreja o fantasma de algum defunto -r padre ou índio. Seria uma revelação, uma novidade, uma quebra de
rotina,. o princípio de alguma coisa nova em minha vida.
Um cornjãò passou em vôo rápido sobre a cabeça dos dois viajantes e entrou no campanário. As estrelas palpitavam. Wïnter fechou os olhos e pelos seus pensamentos
começaram a desfilar pessoas "e paisagens : Luzia, o quárteto de amadores, Trude, nm Biergarten de Heidelberg, um trechp do Rio Neckar, seu pai fumando cachimbo,
Von Koseritz num leito de hospital, a figueira da praça, o vulto do castelo de Barbárroxa .. .
- Boa noite, doutor - disse o guia, estendendo-se sobre os pelegos.
- Boa noite. Durma bem e tenha bonitos sonhos.
- Eu nunca sonho.
Winter tornou a abrir os olhos e a fitá-los no cemitério. Se ele visse agora um fantasma sua vida mudaria por completo, ganharia um novo sentido. Seria melhor que
encontrar o tesouro dos jesuítas.


Voltou para Santa Fé em princípios de maio. Vinha cansado da solidão dos campos e ansióso por cònvívio humano. Como OSobrado continuasse fechado, não teve outro
remédio senão aceitar o convite de Alvarenga e freqüentar-lhe os serões em que Florêncio noivava insipidamente com Ondina, cada um sentada na sua cadeira e separados
por léguas, e léguas de distância,. sob o olhar fiscalizador de Fraca Alvarenga.
Em fins de junho, numa noite serena particularmente fria, Gregória, cuja autoridade em assuntos climatéricos Winter respeitava profundamente, disse:
- Amanhã vai gear.
Efetivamente, no dia seguinte ao levantar-se da cama o médico viu que a relva, as árvores e os telhados achavam-se brancos de
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geada. O céu estava limpo e rútilo e começava a soprar um ventinho frio e cortante.
Mais um inverno! - pensou Winter. E de novo perguntou. a si mesmo por que não se ia embora.. Von Koseritz continuava a insistir para que ele voltasse ao litoral
e se instalasse em Pelotas.. Seu ilustre barão tinha planos grandiosos: ia fundar um jornal e uma escola, meter-se na política, naturalizar-se brasileiro e gror
vávelmente casar-se com uma moça natural da Província.
Tremendo de frio Winter derramou a água do balde na gamela, experimentou-a com a ponta dos dedos e gritou:
- Gregória!
" Pronunciava este nome com um excesso de emes. A escrava apareceu.. Estava mais molambenta que nunca e seus olhos continuamente vertiam água. Winter contemplou-a
com uma mistura de repulsa e piedade e disse:
-r Aquente um pouco d"água para eu me lavar.
Ficou junto do espelho a passar os dedos pelas barbas ruivas, a examinar os próprios olhos. Estavam um pouco sujos e injetados de sangue. $orou a língua para fora:
saburrosa. Devia ser o fígado. Naquela excursão comera muito charque de qualidade duvidosa e várias "vezes, depois ide tomar chuva, bebera cachaça. E o pïor de tudo
- lembrou-se ele - foi que uma noite em que suas resistências .morais estavam enfraquecidas e seu desejo exacerbado, dormira com uma índia. Ach!
Enquanto Gregória fazia fogo na cozinha, Carl apanhou o violíno e começou- a tocar. Tinha. os dedos duros de frio. A voz do instrumento pareceu-lhe rouca, e lembrou-lhe,
nas notas graves, a voz de Luzia.
De repente Winter sentiu saudade do Sobrado. Do Sobrado? Sim. Não era propriamente das pessoas da casa. Admirava D. Bibiana. Tïnha pena de Bolívar. Sentia por Luzia
uma atração estranha que não. chegava nunca a ser desejo de estar perto dela - mas que o compelia a olhar irresistivelmente para a moça, quando em sua presença.
Gostava, porém„ do Sobrado como dum velho amigo calado e acolhedor, que tudo dá e nada pede. Era a única casa daquela vila que lhe dava uma impressão de conforto,
de abrigo. Gostava dos serões do casarão, que cheiravam a açúcar queimado
- defumação de alfazema.
Carl arranhava no violino um minueto de Beethoven, e quando Gregória apareceu trazendo a chaleira preta de picumã e arrastando os pés de paquiderme, ele teve uma
consciência tão aguda do contraste - o minueto e a figura da escrava - que soltou uma risada. .Gregória ficou parada no meio do quarto, de cabeça baixa, humilde
- calada.
- Tá aqui"a água - disse ela com sua voz de areão.
A TEINIAGUA 4O3
11
Naquele mesmo dia Winter foi chamado para ver Juvenal Terra,
que estava de cama- com uma pontada nas costas.
- O velho não gosta de médico - explicou-lhe Florêncio no
caminho. - Parece que a coisa não é muito séria, mas é sempre
bom o senhor ir ver ele.
Caminharam alguns passos em - silêncio e de repente Winter
perguntou
- Tem visto o Bolívar? - Tenho.
- Como vai ele?
- outro encolheu os ombros.
- Bem. - E depois acrescentou, vago : - Eu acho .. .
- o assunto ficou cortado.
Juverial estava deitado na-cama do casal, mas completamerite
vestido e de chapéu na cabeça. Era um homem ainda forte, de
rosto muito queimado, onde crescia em desalinho uma barba negra
com raros fios grisalhos.
- A bênção - murmurou Florêncio, beijando a mão do pai. - Deus le abençoe, meu filho.
Os olhos miúdos e meio oblíquos de Juvenal fitaram-se no
médico.
- Ué ... - fez ele, pondo-se de pé.. - Que é que le traz
por estas paragens, amigo?
- rapaz foi logo explicando:
- Não vê que o doutor ia passando, papai, e eu achei melhor
convidar ele para dar uma olhada em vosmecê.
Juvenal apertou a mãó de Winter. - Mas eu nãoo tenho nada, doutor.
Carl sentou-se na beira da cama, suspirou de mansinho, esfregou
as mãos e disse:
- Pois se nãoo tem, melhor. Vamos então conversar. Florêncio inventou um pretextõ e retirou-se. O médico acendeu
um charutínho.
- Quer um dos meus mata-ratos? - perguntou, sorrindo. - Não, gracias. Prefiro um crioulo.
Tirou da cava do colete um punhal com cabo de prata lavrada
e começou a alisar com ele um pedaço de palha.
- Ouvi dizer que vosmecê andou viajando .. .
- E verdade - respondeu o médico - andei visitando ss
missões. Ruínas de causar dó.
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E começou a contar das coisas que vira, dos lugares por ondé andara e das pessoas com quem conversara; terminou dizendo:
- Mas cheguei meio adoentado, com umas dores do lado, a língua suja.
- Isso acontece. Eu também tenho andado com umas pontadas .. .
Levou a mão esquerda às costas. Mas de repente calou-se, pois compreendeu que estava caindo em contradição. Winter desatou a rir.
- Seu Juvenal, uma das manias dos homens desta terra é acharem que nãoo podem adoecer. Sabe que isso é puro orgulho? - Qual nada, seu doutor.
- As mulheres são diferentes, essas sempre pensam que estão doentes e não podem enxergar um médico que não comecem a queixar-se que sentem uma dor aqui que responde
não sei onde .. . Mas os homens podem estar morrendo que nunca se queixam. Acham que doença é coisa de mulher.
-.Enãoé?
- Ãch! Está claro que nãoo. Os touros nãoo adoecem tanto
quanto as vacas?
- Adoecem.
- Os garanhões não adoecem?
Juvenal agora picava fumo calmamente, sorrindo um sorriso canino que lhe expunha os dentes fortes e amarelos.
- Vamos! - disse o médico com ar trocista. - .Diga o que sente.
Com alguma relutância Juvenal confessou que ultimamente andava sentindo dores no lombo. E antes do médico dizer o que quer que .fosse, ele concluiu:
- Deve ter sido alguma friagem que apanhei.
Winter não respondeu. Tomou o pulso do doente, examinoulhe a língua, auscultou-lhe os pulmões, fêz-lhe muitas perguntas e depois tomou dum lápis e escreveu uma receita
numa folha de papel.
- Mande comprar isto na loja do Alvarenga. Peça à sua mulher que lhe bote uns sinapismos nas costas. E se dentro de dois dias não estiver melhor... o remédio é chamar
uma dessas negras velhas benzedeiras.
Juvenal riu, bateu o isqueiro e acendeu o cigarro. Falaram do tempo e da política local. E quando Winter mencionou o nome de Bolívar, teve a impressão de que o rosto
do outro escurecia. Houve um curto silêncio em que Juvenal ficou pitando e olhando para o chão.
- Não sei se o doutor sabe - disse ele lentamente, depois de algum tempo. - Fui muito amigo do pai dèsse menino. O Bolívar a bem -dizer se criou junto com o Florëncio.
A TEINIAGUÁ 4O5

Puxou um pigarro, como se estivesse constrangido e achando difícil falar naquelas coísas.
Winter sacudiu a cabeça em silêncio. Apanhou o punhal que o outro deixara sobre uma cadeira, ao lado da cama, e começou a brincar distraidamente com ele.
- O senhor às vezes vai no Sobrado, não vai, doutor?
- Sim, vou.
Novo silêncio. Outro pigarro.
- Doutor, vosmecê é uma pessoa de fora, um estrangeiro... - Juvenal interrompeu a sentença para tossir uma tosse seca sem vontade. - Sou homem de poucas palavras,.
gosto de ir direito ao assunto. Mas nem sempre é fácil. Há coisas muito sérias, negócios de família, e a gente fica meio desajeitado...
Winter largou o .punhal sobre a cadeira e disse:
- Refere-se ao casamento do Bolívar?
Juvenal apertou forte o cigarro entre os dentes e murmurou:
- Vosmecê leu os meus pensamentos.
- Pode falar com toda a franqueza. Um médico é como um padre: tem de guardar segredo. Diga o que é que há.
- Pois aí é que está o difícil da coisa. Eu não sei o que é que há. Só sinto que há qualquer coisa errada ... Não quero me meter na vida de ninguém; mas no final
de contas o rapaz é meu sobrinho., Ando preocupado com o jeito dele. O Boli envelheceu dez anos depois que casou; anda triste como carancho em tronqueira.
- Vosmecê tem conversado com sua irmâ a esse respeito?
Juvenal sorriu um sorriso descrente.
- O doutor não conhece bem os Terras. r uma gente rnui custosa.
- Tenho observado que os Terras são reservados.
- L isso. E meio teimosos também. Não gostamos de discutir. Cada qual fica com suas idéias. - Novo pigarro. - Mas para le ser franco nunca botei nem pretendo botar
os pés naquela casa. Assim sendo, não. vejo muito seguidamente a mana Bibiana. Às vezes ela aparece de visita, fica por aí conversando com a minha velha, mas não
fala na nora. Não quer dar o braço a torcer, porque sabe que sempre fui contra esse casamento. Mas a gente vê na cara dela que a coisa anda mal lá pelo Sobrado.
Conheço bem a minha irmâ.
Winter cofiou a barba e generalizou:
- Vosmecê- sabe, sogra e nora nunca se entendem, principalmente quando moram na mesma casa.
- Mas nãoo é só isso. Deve haver coisa mais séria. Eu sinto. O Bolívar está se consumindo. Será que...
Ia formular uma pergunta mas conteve-se. Moveu-se na cama, gemendo baixinho: a cama gemeu com ele. Winter esperava...
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- O Bolívar me apareceu umas doas vezes depois que casou continuou Juvenal. - Tomou uns mates, falou no Angico, n negócios que tinha em vista, mas nem chegou a me
olhar direita: Estava- assim com um jeito assustado de negro fugido, era coma se andasse -acuado ... Que é que o senhor acha, doutor?
Winter encarou-o. A fumaça de seu charutinho casava-se com a do cigarro de palha do outro e juntas subiam no ar frio.
- Vosmecê quer saber a minha opinião franca? - perguntou o médica O outro sacudiu a cabeça afirmativamente. Winter lançou um olhar para a porta, antes de responder.
Vendo que nãoa havia ninguém na peça contígua, disse, baixando a voz: - O Bolívar casou com uma mulher doente.
- Como doente?
- Não é uma doença do corpo,. dessas que se curam com
cataplasmas, pílulas ou poções. 1; uma doença do espírito.
Bateu. com a ponta do indicador no centro da testa- e repetiu:
"Do espírito."
- Quer dizer então que ela nãoo é belo certa do juízo? - Não é bem ísso. 1; difícil explicar. - Sou um homem muito ignorarite. O alemão sorriu:
- Não diga isso, seu Juvenal. Eu queria saber a metade do que vosmecê sabe. Há moitas coisas qué os livros não ensinam. A melhor. escola que há é a da vida e por
essa escola o senhor é formado. ~ tão bom doutor .que mesmo de longe percebeu que havia alguma coisa errada naquele casamento.
Juvenal ficou algum tempo em silêncio, fitando no interlocutor seus olhos tristes e foscos.
- E o que é" que a gente pode fazer? - perguntou.
- Por enquanto, nada. Só ficar observando a coisa. Vosmecê
compreende que só posso intervir quando Bolívar me pedir. Antes,
não. E em qualquer caso nãoo acho que possa fazer muito.. . - E será que o Bolívar pede?
- Vosmecê, que é parente,. sabe melhor. Será que pede?
- Pode ser. O Bolívar sempre foi mais expansivo que a mãe, que eu on que o Florêncío. Herdou um pouco o gênio do pai. Mas o senhor sabe duma coisa? Por falar em
gênio, tenho muito medo que o rapaz um dia faça alguma loucura.
- Loucura ?
- Sim, que perca a paciência e serre a mulher.
- Pois isso não faria nenhum mal.
Juvenal ficou pensativo por alguns instantes. Depois, tentando
em vão tirar uma baforada do cigarro que se apagara, disse:
- Parece mentira. Tanta moça boa por aí e ele foi escolher
justamente aquela. Veja o que é o destino duma pessoa... - De
A TEINIAGUA 4O7

repente mudou de tom. - No princípio fiquei com medo que o Florêncio andasse também enrabichado por ela. Mas graças a Deus ele vai casar com uma moça muito direita
e trabalhadeira. A filha do Alvarenga, vosmecê sabe .. .
Tornou a acender o cigarro e acrescentou
- Esse negócio de rabicho é muito engraçado. - Fez uma pausa, meio relutante, e depois prosseguiu: - Vou lhe contar porque vosmecê é um doutor, um homem de bem e
de saber. A mínha mana Bibíana quando era moça também se meteu na cabeça de casar com nm homem contra a vontade do pai. Era um certo Cap. Rodrigo, que velo dessas
guerras da Banda Oriental, passou por Santa Fé e aqui acampou. Pois olhe, doutor, essa menina nos deu o que fazer. Menina ... - Sorriu. - A gente continua a chamar
as irmâs de menina mesmo depois que elas ficam avós. Pois a Bibiana foi um caso sério. O senhor conhece o Cel. Bento Amaral. Pois era um rapagão vistoso, rico, disputado
pelas moças. Estava louco pela Bibiana. Mas ela não quis saber dele. Queria Ooutro, o tal Cap. Rodrigo. Bateu pé e casou. Meu pai lavou as mãos.
Aquela gente - refletiu Winter com um súbito bom humor - parecia nãoo fazer outra coisa senão lavar as mãos ante os casamentos dos parentes.
~- E ela foi feliz? - perguntou, só para fazer o outro continuar.
- Bom-. Diz ela que foi .. .
- Mas que é vosmecê acha ?
- Eu? Pois, homem, é difícil dizer. Sei que a Bibiana passou o diabo com o marido. Ele era chineiro, jogador, gostava de empinar o seu copo, vivia metido em fandangos
e nãoo era amigo do trabalho. Mas a Bibiana jura que foi feliz. Vosmecê conhece o nosso ditado: "o que é de gosto regala a vida".
- L o amor, seu Juvenal.
- Pois é. Uma coisa esquisita. O Cap. Rodrigo tinha um não sei quê aaquela cara, que deixava a gente brabo e ao mesmo tempo gostando dele. No primeiro dia quase
brigamos a arma brana, mas depois ficamos amigos e até sócios num negócio. -~ Fez uma pausa. - Mas acho que estou falando demais.
Calou-se, meio ressentido, como se tivesse adivinhado nos pensamentos do outro qualquer censura ou mesmo surpresa ante sua tagarelice.
- Por amor de Deus, seu Juvenal! Continue. Estou muito interessado nas coisas que o senhor está contando.
Winter calou-se. E de repente ele não estava mais em Santa Fé, conversando com Juvenal Terra e sim num café de Berlim, dali a muitos anos, numa roda de amigos, recordando
aquele momento: "Era um homem calado, muito discreto ... Mas en tinha certa
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ascendência sobre aquelas criaturas e elas sempre me faziam confidências. Eu só queria saber que fim levou Herr Juvenal Terra ... "
- Pra le ser franco - continuou Juvenal, remexendo-se na cama - eu gostava do Cap. Rodrigo. Achava que ele era valente, engraçado, um bom companheiro pra tudo.
Mas pra falar bem a verdade, nunca me senti à vontade perto dele .. .
- Tinha sempre medo que. ele fizesse uma das suas .. .
- Isso I E ele sempre acabava fazendo.. Depois que fazia, eu tinha vontade de ir pra cima dèle de rebenque em punho. Mas isso era só no primeiro momento. Em seguida
o homem desarmava a gente com uma risada, com uma palavra ou só com um jeito de olhar.
- Pois se vosmecê, que é homem, sentia isso, como é que pode censurar a sua irmã por ter amado um, tipo dessa têmpera?
- Pois é. como le digo.. Isso de gostar é uma coisa engraçada. A amizade também. Vosmecê não acha que a gente pode querer bem até um homem sem-vergonha, um ordinário,
um patife?
Winter sacudia a cabeça com uma gravidade de que ele mesmo achava graça.
- Claro. qne pode. Os patifes são em geral pessoas muito simpáticas. Não há nada mais aborrecido que um homem de caráter.
- Nesse ponto não estou de acordo com vosmecê. Há homens direitos que dá gosto a gente conhecer.
Winter deu "uma palmada aa própria coxa e levantou-se.
- Boml Mande fazer a receita e bote o sinapismo. Amanhã eu volto.
Juvenal quis levantar-se.
- Não. Não se levante. Vosmecê precisa ficar de resguardo. - Mas ... doutor. Quando puder vá ao Sobrado, bombeie e
veja o que é que pode fazer pelo Bolívar. Pode ser que o rapaz se
abra com vosmecê. Pode ser que a Bibíana deixe escapar alguma coisa. - Está bem. Prometo fazer o que puder. - Eu le agradeço muito.
Winter saiu do quarto. A mulher de Juvenal, que estava na cozinha, veio a seu encontro. Era uma criatura raquítica, de rosto ossudo e lábios muito finos. Tinha cabelos
lisos, dum grisalho amarelado, e falava com as pessoas sem nunca encará-las.
- Que é qne ele tem, doutor?
- Nada de sério. Passei uma receita. Bote um sinapismo nele hoje mesmo. E não deixe seu marido se levantar nem apanhar frio. Até logo, D. Marota.
Florêncio esperava-o à porta: saíram a caminhar juntos.
- Estivemos conversando sobre o Bolívar - contou Winter. Florêncio nada disse por algum tempo. Depois desconversou - Eu ouvia o zunzum das conversas e estava admirado
do Velho
estar falando tanto. O senhor pode se gabar de ter conseguido O
A TEINIAGUA 4O9

que ninguém consegue. Por que será que as pessoas se abrem com vosmecê ?
- Deve ser por causa do meu chapéu alto.
Winter caminhava com suas largas passadas de pernilongo. Voltou a cabeça bruscamente para Florêncio "e disse:
- ~. Algumas pessoas têm confiança em mim. Mas nem todas. - Olhou o outro bem nos olhos e repetiu : - Nem todas.
Florêncio sorria um sorriso vago, mastigando um talo de capim. Mas continuava silencioso.
12
Carl Winter voltou ao Sobrado num domingo de fins de julho, para almoçar. E quando se viu sentado na sala de.jantar.à grande mesa que Aguinaldo sonhava encher de
bisnetos, mas em tornò da qual estavam agora apenas Luzia, Bolívar e Bibiana - o medicó temeu que aquele almoço não passasse duma sucessão dè. silênPos pontuados
de pigarros, , suspiros e . tosses falsas. Em breve, porém, verificou que se enganava. Porque Luzia estava loquaz, amavel, simpática como ele jamais a vira. Parecia
outra pessoa.. Tratava tanto o marido como a sogra eom naturalidade e quase com cordialidade. Isso facilitava tudo. E embora Bibiar<a passasse a maior parte do tempo
dando ordens às escravas que serviám a mesa, e Bolívar se mantivesse mergulhado núm silêncio qne á Winter pareceu de ressentimento - -a conversa decorrem fácil desde
a sopa até a sobremesa. `
D. Bibiana mergulhou a colher grande - a que chamavam "cucharra" - na terrina fumegante.
- Gosta de canja, doutor? - perguntou Luzia.
- Se gosto de canja, meine liebe Frau Cambará? Isso nem se pergunta. A canja é uma. das delícias desta terra.. Num dia frio como este uma canja assim não só aquece
o corpo como também a alma.
Luzia sorriu.
- Vosmecê sabe, Dr. Winter, do que eu mais me admiro? p da maneira correta como vosmecê se exprime em nossa língua. Tem um pouquinho de sotaque, é verdade. Mas,
fala .gramaticalmente certo e com um vocabulário muito rico.
Winter tomou uma colherada de canja e respondeu:
- Muito obrigado pelo elogio. Acontece que sempre amei as línguas e o latim é um dos meus fortes.
- Mas se o Pe. Otero, que também sabe latim, tivesse a facilidade de expressão de vosmecê, nós teríamos melhores prédicas.
Winter limitou-se a soltar uma risada. O luto sentava bem para Luzia - refletiu ele - realçava-lhe a pele branca e oferecia
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A TEINIAGUA
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nas belo. contraste com os olhos verdes. Verdes? Não. Agora estavam azulados... Or cinzentos?
O alemão olhou em torno. Gostava daquela sala com a sua mobília sevem, o grande retógío de pêndulo e aquele lustre de cobre que pendia do teto, sobre a mesa. Pena
era que nãoo houvesse ali bons tapetes e quadros. A nudez de soalhos e paredes parecia aumengr a sensação de frio que davam em geral as casas da Província.
- Mais suja, doutor?
Winter ergueu a mão num gesto que queria dizer: vamos devagar. - Não. Obrigado. A sopa está deliciosa, mas quero reservar lagar para os outros pratos.
O frio lhe desaparecera do corpo e uma sensação de bem-estar agora o animava. E quando abriram a garrafa dum velho vinho português e ele viu o líquido vermelho cair
no copo, ao mesmo tempo que aquele. cheiro agridoce e inebriante lhe entrava pelas narinas, Carl Winter se sentiu positivamente feliz. E depois que sorveu o primeiro
gole, estalando a língua, degustando bem o vinho, teve vontade de cantar.
- Os brasileiros não gostam muito de cantar ... - observou ele. - Por quê?
- Somos gente triste, doutor - observou Luzia. E seus dedos apertaram a haste do cálice.
- Mas por quê? - perguntou. o médico. - Por quê? Bibiana encolheu os ombros e disse: - Nós sabemos bem por quê.
- Ach, meíne liebe Frau Cambará! Não há um ditado que diz "Tristezas não _pagam dívidas" ?
Bolívar tornou a .encher seu copo, e bebeu-o em seguída dum sorvo só.
- 1~ mamãe sabe por que ela é triste - disse.
Winter coçou o queixo. Quis dizer . alguma coisa mas achou melhor mudar de assunto. Sabia da vida que Bibiana levara: conhecia a sina das mulheres da Província.
- Traga os outros pratos - ord¢nou Bibiana à escrava que estava parada junto da porta.
Ela tomou conta do Sobrado - refletiu Winter. - Parece a dona da casa. Havia no rosto daquela mulher um ar tão resoluto, que ele achou que a coisa não podia ser
de outro modo.
- Recebi ontem jornais de Porto Alegre - disse Luzia. - O doutor depois quer ler?
- Claro! Quero ver o que está acontecendo por esse mundo velho.
Luzia pousou os cotovelos na mesa e uniu as mãos como se fosse rezar.
Mas não é uma coisa horrível a vida que a gente leva aqui? . perguntou ela, erguendo de leve as sobrancelhas.
Alí sentada à cabeceira da mesa, parecia uma colegial que x esforçava para representar o papel de mulher adulta num drama de amadores-
- Não temos teatros - prosseguiu ela - não temos concertos. nãoo temos bailes, nãoo temos nada.
Sem olhar para a nora, Bibiana observou:
- Há pessoas .que passam muito bem sem festas.
Luzia sorriu com doçura.
- Eu sei que há, D. Bibiana. Mas é que eu gosto dessas coisas. Prinápalmente de música.
Seca e brusca, a outra replicou
- Pois então toque cítara.
Luzia sacudia a cabeça com um sorriso indulgente, e o ar . de quem quer dizer: "Como é que se vai discutir com gente assim?"
- Vosmecê tem razão - disse o Dr. Winter. - Devíamos ter pelo menos uma banda de música em Santa Fé. Pode ser que am dia en decida organizar uma.
Bibiana segurou a travessa de arroz que a escrava acabava de trazer, e retrucou
- Temos vivido muito bem até agora sem banda de música.
- Mas deixe estar que era bem bom a gente ter uma banda - arriscon Bolívar. Winter notou .que o vinho deixava o rapaz com o rosto afogueado e os olhos brilhantes...
Inclinou-se, sorrindo, sobre a- mesa na direção de Bibiana, que estava sentada à sua frente, e perguntou:
- Mas no fim de contas, meíne liebe Freundin, de. que é que vosmecê gosta mesmo?
- De cuidar das minhas obrigações - responder ela sem hesitar. E em seguída, dirigindo-se à escrava. - Depressa, Natália, traga o resto, antes que a comida esfrie.
Entraram duas escravas com bandejas cheias de pratos. Bibiana os foi. enfileirando um por um em cima da mesa. Havia uma travessa cheia de arroz pastoso, levemente
rosado e muito luzidio; uma terrina de feijão preto; um prato de galinha assada com batatas; outro de guisadinho com abóbora e finalmente uma travessa de churrasco
com farofa. Winter olhava admirado para aquilo todo. Era simplesmente assustadora a quantidade de pratos que havia nas refeições das gentes remediadas ou ricas da
Província. Nana menos de seis, e às vezes até dez. Não raro numa refeição serviam-se quatro ou cinco variedades de carne, e nenhuma verdura. Por fim, como um pós-escrito
a uma longa carta, Natália trouxe uma travessa com mandioa frita.
- Gosta de tudo, doutor? - perguntou Bibiana.
#412 O CONTINENTE
Winter achava estúpido encher o prato com todas aquelas co mas sacudiu a cabeça afirmativamente: - Gosto. Muito obrigado.
Bibiana começou a servi-lo. O médico agora a observava
trás da tênue cortina de vapor que subia da travessa de arroz. A quarenta e oito anos tinha Bibiana Terra Cambará uma fisiono ainda moça, a pele lisa, e os cabelos
aperras levemente grisalhos e seus olhos oblíquos, achava Winter, davam-lhe uma certa graça, ao rosto. Deve ter sido uma moça bonita - concluiu.
Já estavam todos com seus pratos cheios quando Luzia retomo o assunto de havia pouco:"
- Nunca me esqueço duma noite no Rio de Janeira, no Teatro D. Pedro de Alcântara. - Sorriu, -mostrando os dentes muito brancos e regulares. - Levavam a ópera A Rainha
de Chipre. Oh, isso faz já mais de três anos... A prima-dona era Ida Edelvira. O senhor ouviu falar nela, doutor?
Winter sacudiu negativamente a cabeça.
- L uma cantora. divina! - exclamou Luzia. - Quando a cortina se abriu fiquei. quase sem respiração vendo o cenário. Tão lindo, tão ... - Calou-se e baixou os olhos
para o prato. - Quando a -lda Edelvira começou a cantar senti uma coisa na garganta e rompi a chorar com tanta força. que tive de botar um lenço na boca para abafar
os soluços.
E ao .dizer aquelas palavras os olhos de Luzia encheram-se de lágrimas. Com a cabeça muito baixa, quase a tocar o prato, Bolívar comia com uma pressa nervosa. Lançou
para a mulher nm olhar enviesado e disse
- No entanto vosmecê nãoo chorou quando seu avô morreu.
Bibiana voltou a cabeça vivamente na direção do filho. Winter puxou um pigarro nervoso. Mas Luzia continuou com a expressão de êxtase no rosto.
- Mas é diferente, Boli, é diferente. - Olhou para o médico. -
Se eu lhe contar, doutor, que chorei como uma criança quando
soube da morte de Chopin, vosmecê se admira? - Eu nãoo me admiro de nada.
- Que Chopin? - perguntou Bibiana.
Luzia, paciente, voltou-se para a sogra.
- É um compositor, D. Bibiana. Um homem que escrevia
músicas, lindas músicas. Aquela valsa que eu toco e que a senhora
gosta é dele .. .
Bibiana sorriu enigmaticamente.
- Pois chorei, doutor - continuou Luzia. - E sabe por que chorei mais? Porque Chopin morreu em 1$49 e só três anos depois é que fiquei sabendo, por puro acaso. No
Brasil a gente vive num Eim de mundo, nãoo é mesmo?
Winter estava pasmado. Lembrava-se das palavras da proptta
A TEINIAGUÁ 413

Luzia no dia do seu contrato de casamento. Ser bom ou mau é uma questão de mais ou menos coragem.
_ ; realmente um fim de mundo ... - concordou ele. E olhou para a janela através de cujas vidraças via as vastas campinas onduladas que cercavam Santa Fé. Teve,
mais que nunca, uma sensação de distâncias invencíveis e de irremediável desterro. Pensou nas centenas de léguas que teria de percorrer para chegar ao mar, e nos
milhares de milhas de oceano que teria de navegar antes de poder ver de novo a face de Gertrude Weil. Era assustador o isolamento em que viviam aquelas estâncias,
povoados, vilas e cidades da Província. As estradas eram poucas e más. Em 1835 haviam começado a abrir uma que ligaria Cruz Alta e Rio Pardo, passando por Santa
Fé. A guerra civil, porém, interrompera o trabalho, que só ficaria pronto dentro duns cinco anos, no mínimo.
Luzia comia vagarosamente, levando à boca o garfo com minúsculas porções de alimento.
- Não hei de morrer sem conhecer a Europa ... - murmurou ela, descansando os talheres nas bordas do prato. - O senhor não pretende voltar, doutor?
- Um dia, quem sabe .. .
- Me diga uma coisa, amigo - disse Bolívar, voltando-se para o médico. - O que é que vosmecê acha dessas tais estradas de ferro?
- Acho que está nelas o futuro dos transportes. Um país vasto como o Brasil não pode depender das carretas, dos cavalos e das diligências.
- Não sei, doutor. Posso ser muito atrasado, mas nãoo troco um bom cavalo por essas tais máquinas que cospem fumaça e fogo.
Winter riu. Não era de admüar que Bolívar Cambará reagisse daquela forma, pois ele vira gente letrada na Alemanha olhar com supersticiosa desconfiança para as locomotivas.
O próprio Thiers, o grande Thiers, havia alguns anos, declárara que as estradas de ferro de nada serviriam à França.
- E o senhor viu mesmo alguma dessas engenhocas? - perguntou Bibiana.
Winter fez um sinal afirmativo, passou a descrever com minúcias um trem de ferro, e acabou fazendo a lápis o esboço duma locomotiva numa folha de papel. Bibiana
ouviu-o com um sorriso ao mesmo tempo divertido e descrente : era como se estivesse a es
cutar, com certa indulgência, a narrativa das travessuras duma criança. E quando o médico terminou o esboço e passou-lhe o papel,
ela o examinou com olho desconfiado e depois perguntou:
- E vosmecê acha q~.~e um dia essas coisas vêm aqui pra
Província ?
Winter ia responder quando Luzia o interrompeu:
#414 O CONTINENTE
- Estile lendo nos jornais que vão inaugurar este ano a meíra estrada de ferro no Brasil.
- Mas vai custar a chegar até aqui - observou Bolívar. Trado casta. Leva anos e anos.
- Quanto mais custar - sentenciou Bibiana - melhor p nós.
A estrada de ferro a que Luzia se referira pertencia a u companhia inglesa. Quando passara pelo Rio de Janeiro, Wint ficara surpreendido ante o número de firmas
e agências comerei britânicas que lá existiam. O Brasil - refletira éle então - pr clamara sua independência cortando as amarras que o prendiam Portugal, mas de
certo modo continuara a ser uma colônia, e colôn da Inglaterra.
Winter não podia disfarçar sua malquerença pelos ingleses, q na sua opinião outra coisa não eram senão piratas que tudo faziam por parecerem gentlemen. Depois de
encorajarem por muitos ane~ o tráfico de escravos, agora haviam decidido proibi-lo, mandand sua esquadra policiar os mares à caça de navios negreiros. Depois de
velha a prostituta esforçava-se por parecer dama respeitável - refletiu Winter, tomando um gole de vinho. Mas que grandes interesses estariam por trás daquele gesto
aparentemente nobre? Que tremendos desígnios?
Pensou nos colonos alemães. Estava certo de que eles poderiam ajudar com seu trabalho e seus conhecimentos o progresso do Brasil. Os que ali haviam chegado até -então
lutavam com -toda a sorte de dificuldades: as distâncias, a falta de meios de ~comunicaçào, a ignorância dos nativos e a indiferença dos governos. Faziam, entretanto,
o que podiam. Aos poucos iam realizando coisas, fundando colônias novas, cultivando a terra, exercendo, enfim, um apreciável artesanato. Quando, porém, esse trabalho
começava a dar frutos, lá viera aquela estúpida guerra civil que atrasara a Províncía de muitos anos. Von Koseritz escrevera-lhe, havia pouco, certas cheias de entusiasmo
pelo futuro da colonização germânica. Contava-lhe, com orgulho, o que seus compatriotas já tinham feito. Ezístiam nas colônias alemãs da Província mais de trinta
engenhos para a fabricação de aguardente, vários teares para linho (linho que eles próprios, colonos, plantavam) , curtumes, engenhos para mandioca, serrarias movidas
a água, olarias, cervejarias e até uma oficina para lapidar pedras finas.
Pensando nessas coisas, Winter mastigava, observando Bolívar. Ali estava nm belo tipo. Era robusto, másculo, tinha coragem, conhecia as lidas do campo e as da guerra.
Mas era homem de pontas letras, mal sabia ler e escrever e nãoo possuía a menor noção de História ora Geografia. Havia anos que os santa-fezenses tinham pedido ao
governo o provimento de escolas públicas para as parógnias do município, a abertura de mais estradas e o estabelecimento
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de colônias. A indiferença da Assembléia Provincial ante aqueles pedidos era simplesmente pasmosa. Não era pois, de admirar que as pessoas em Santa Fé crescessem
e morressem analfabetas ... Às vezes - refletiu Winter - parecia que a única função dos homens da Província- do Río Grande do Sul era a de servirem periodicamente
como soldados a fim dè manterem as fronteiras do país com a Banda Oriental e a Argentina. Numa carta recente ao seu lieber
Baron, ele escrevera: "Parece que a regra geral aqui é a guerra, sendo a paz apenas uma exceção; pode-se dizer que esta gente vive guerreando e nos intervalos cuida
um pouco da atividade agrícola e pastoril e do resto; mas um pouco, só um pouco, porque parece que tudo é feito com o pensamento na próxima guerra ou na próxima
revolução. Há nos olhos destas mulheres uma permanente expressão de susto."
A voz quente de Luzia tirou Winter de seu devaneio.
- ... não é maravilhoso, doutor? - Perdoe-me, mas nãoo ouvi.
- Estou dizendo que na Corte já foi inaugurada. a íluminação
a .gás.
- Minha avó morava num rancho perdido no meio do campo - disse Bibiana - alumiado de noite por uma lamparina de óleo de peixe feita duma guampa. Não acho que mais
luz ou menos luz possa fazer uma pessoa mais feliz ou infeliz.
- Essas invenções trazem mais conforto à vida - replicou Luzia.
- Vosmecê já pensou, D. Bibiana - disse Winter, descansando os talheres sobre a mesa - que um dia Santa Fé vai ser uma cidade, com muitas casas, lampiões rias ruas,
teatros, fábricas, e gente, muito mais gente que agora?
Bibiana, que olhava fixamente para o prato do médico, perguntou:
- Quer mais. alguma coisa, doutor?
- Não, minha senhora, muito obrigado.
- Pode tirar os pratos, Natália! - gritou a viúva do Cap. Rodrigo. E depois, entrelaçando as mãos e pousando-as sobre a mesa, olhou para Winter com seus olhos chineses
e disse: - Já penséi, sim, doutor. Já pensei em todas essas coisas. Mas também pensei que quando Santa Fé ficar mais grande vai haver muito mais maldade, muito mais
bandalheiras que agora. - Soltou um suspiro quase imperceptível. - Às vezes acho que até é melhor uma pessoa não ser instruída, náo saber ler. Os livros estão cheios
de porcarias e perversidades.
Winter compreendeu que aquelas farpas eram dirigidas contra Luzia..
- Nem todõs os livros - disse ele.
#416 O CONTINENTE
A TEINIAGLJ~ 417
Natália colocou diante de Bibiana uma pilha de pratos fundos um tarro de leite cru e frio.
- Quer mogango com leite, doutor?
- Se quero mogango com leite? Certamente) L das grande invenções desta Província. Gosto muito também de batata-doce com leite.
Bibiana sorria quando contou:
- Meu marido costumava. dizer que homem bem macho não come nenhuma coisa doce com leite.
- Na opinião dele - perguntou o alemão - qual é a mistura digna do homem forte?
Despejando leite no prato fundo, Bibiana respondeu:
- Marmelo assado, milho verde, farinha de beija... Era o que o capítão dizia.
Pela primeira vez durante aquele almoço Winter_ -viu Bolívar sorrir.
- A mamâe às vezes me conta coisas do papai ... - disse ele. - Ele sempre. dizia que Cambará macho não morre na cama.
- Será que queria dar a entender que o único fim digno dum homem de coragem é morrer lutando? - perguntou Winter, rimado do bolso um charutinho _ e pedindo licença
às damas . para acendê-lo.
- Acho que sim - respondeu Bolívar ainda sorrindo e fazendo dístraidamente riscos na toalha com a lâmina duma faca. Prosseguiu
- O papai tambéan dizia que gostava de mulher de bom gênio, faca de bom corte, cavalo. de boa boca e onça de bom peso.
Winter estendeu o braço na direção de Bibiana, que .naquele momento lhe passava o prato com um pedaço de mogango.
- Meu marido também gostavá de dizer que quando falava com homem olhava prol olhos dele; e quando falava com mulher, olhava pra boca, e assim ficava logo sabendo
com quem estava tratando,
- Se nãoo me engano - observou o médico - isso quer dizer que o Cap. Rodrigo julgava tanto as mulheres como os cavalos pela boca .. .
Luzia, que até então estivera com ar abstrato, falou:
- Mas, Dr. Winter, nesta terra os homens não fazem muita diferença entre as mulheres e ~ cavalos.
Bolívar de súbito empertigou o corpo e, sem voltar a cabeça para a mulher, protestou
- Ora, vosmecê nem devia dizer uma coisa dessas.
Bibiana sorria o sorriso misterioso de quem sabe mais do que diz.
- Mas é verdade, Bolívar! - replicou Luzia. - Veja bem. doutor; a idéia dos gaúchos em geral é a de que o cavalo e a mulher
foram feitos para servirem os homens. E nós nem podemos ficar ofendidas, porque os rio-grandenses dão muito valor aos seus cavalos .. .
Winter no fundo estava disposto a concordar com Luzia, mas achou melhor dizer
- Vosmecê está exagerando um pouco.
- Um pouco, talvez, mas nãoo muito.
Todos estavam servidos de leite. Winter meteu a colher no bojo da metade de mogango que lhe coubera, e começou a misturar a polpa dourada com o leite. Luzia prosseguiu
- Eu sei que sou censurada, que sou falada na vila só porque não quero ser como as outras mulheres que levam uma vida de escravas.
Outra vez Bibiana ficou tesa e tensa na sua cadeira. Tinha olhos e lábios apertados, o rosto contraído numa expressão de expectativa meio agressiva.
- Fui educada na Corte. Sei como vivem as mulheres nas grandes cidades do mundo.
Bolívar estava sombrio e mexia com mão distraída o seu leite com mogango. Winter sorvia a sua mistura com gosto e seus bigodes estavam respingados de leite.
- 1; por isso que eles não querem mandar as mulheres, para a escola - continuou Luzia.
- Na .escola nãoo ensinam a costurar, nem a cozinhar, nem a cuidar dos filhos - murmurou Bibiana sem olhar para a nora e mal descerrando os lábios.
Luzia sorriu para o médico com indulgência.
- Opiniões - murmurou Winter, com a boca cheia. - Opiniões .. .
Aquele leite com mogango estava delicioso, mas ele se sentia enfarado, com uma bola no estômago, uma preguiça de pensar, um desejo de sair a caminhar ao ar livre.
Mesmo assim continuava a comer, irresistivelmente, confirmando um ditado muito do gosto de D. Bibiana : "Comer e coçar, é questão de começar."
- A Luzia ainda não se acostumou com a vida num lugár pequeno como Santa Fé - explicou Bolívar. - E a gente tem de compreender; pra uma moça educada em cidade grande,
morar em Santa Fé não é fácil.
Luzia, que ainda não tinha tocado seu leite, disse com grande tranqüilidade:
- Mas eu não moro em Santa Fé, Bolívar. Moro no Sobrado.
Winter sabia que Luzia não visitava ninguém nem récebía visitas. Detestava o Angico e a vida do campo. Raramente saía de casa; e mesmo quando estava no Sobrado passava
a maior parte das horas fechada em seu quarto de dormir.
418 O CONTINENTE
Eram quase duas horas quando deixaram a mesa. Luzia pediu licença ~ retirou-se para o andar superior. Bolívar começou a fazer nm cigarro. Bibiana convidou o médico
para irem até o quíntal e quando o filho fez menção de segui-los, ela o deteve com um gestó, dizendo
- Fique aqui, Boli. Quero um particular com o doutor. O rapaz sacudiu a cabeça em silêncio e ficou.
Fora, fazia um frio -seco e o ar era límpido. Bibiana e Carl Winter caminhavam vagarosamente sob as árvores. O chão de terra batida e avermelhada estava manchado
de sombras e borrifado de sol. Por entre as folhagens das .árvores avistavam-se nesgas de céu, dum azul muito lavado e longínquo. Debaixo dum pé de magnólia via-se
uma carroça de varais caídos. Penduradas duma taquara posta horizontalmente entre dois cinamomos, pendiam várias lingüiças frescas. As laranjeiras estavàm carregadas
de frutos.
- Neste. quintal eu brinquei quando era menina ... - disse Bibiana.. Parou e apontou para uma árvore. - Essa foi a minha avó que plantou. ~ um marmeleiro-da-índia.
Veja que bonita, doutor. Dá "uma fruta grande, amarelona.
- Comestível?
- Não. Mas mui linda.
Continuaram a andar.
- Está vendo aquele poço ali? - perguntou Bibiana, estendendo a mão. O médico sacudiu afirmativamente a cabeça. - Foi o meu pai que fez, com tijolo da olaria dele.
Fez tudo. Até o balde e a corda.. Náo é mesmo pra gente ter amor a estas coisas?
- A senhora deve estar feliz agora.
- Por quê ?
- Voltou para o seu chão.
Bibiana franziu a testa, ficou um instante num silêncio réflexivo e depois disse
- Sim, mas não estou na minha casa.
Continuou a andar, calada, olhando para baixo. Winter acompanhou-a, também em silêncio.
- Aquela árvore ali é uma goiabeira. Não há muitas em Santa Fé. A outra, a pequena, de folha lustrosa, é uma pitangueíra. As flores do jardim a geada matou. Mas
quando chegar a primavera vão ficar lindas. Tem hortênsia, dália, amor-perfeito, bonina, primavera, begônia .. .
Winter sabia que Bibiana não o levara até ali para falar em flores e árvores. Chegaram ao muro do fundo do quíntal, janto
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do qual havia um galinheiro onde um esplêndido galo branco de crista escarlate estava postado com certa imponência em cima duma pedra, como que a olhar com superioridade
para as galinhas em torno.
Bibiana ficou olhando por muito tempo "seus bichos", como que esquecida da presença do doutor. Aninhada num caixão cheio de palha, uma grande galinha branca estava
no choco. De repente Bibiana disse:
- Ela vai ter um filho.
- Quem? - perguntou Winter quase sem sentir.
- A mulher do Boli.
O médico meteu os dedos nas barbas e coçou o queixo distraidamente. .
- Foi ela mesma que lhe contou?
Sem olhar para o interlocutor, Bibiana sacudiu negativamente a cabeça.
- Não. Mas eu vi. Tenho bom olho. Estou acostumada com esse negócio. O senhor notou alguma coisa?
- Para ser bem franco... só notei que ela hoje estava muito bem disposta e até agradável.
- B. Mas tem andado pálida, com tonturas e enjôos.
Winter jogou no chão o toco do charutínho e ficou a esmagá-lo com a sola da botina, demoradamente, de olhos baixos, como se aquele ato fosse duma enorme importância
para o assunto de que estavam tratando.
- O Bolívar já sabe?
- Sabe porque eu contei.
- Mas a Luzia não disse nada ao marido?
- Não. E quando o Boli perguntou, elá negou. O pobre do rapaz estava louco de alegria. Foi todo entusiasmado falar com a mulher, mas ela respondeu: "Não seja bobo.
Nâó há novidade nenhuma." Foi mesmo que botar água fria na fervura.
No galinheiro três galinhas disputavam uma minhoca, cacarejando e bicando o chão freneticamente. O galo branco continuava impassível.
- Mas quem sabe se nãoo há nada mesmo? - insinuou o médico.
Bibiana ergueu os olhos para ele. Sua cabeça mal chegava à altura do peito de Cárl Wínter.
- Nessas coisas eu nunca me engano. Ela está grávida:
- Mas então eu nãoo posso compreender.. .
Bibiana atalhou-o:
- Pois eu posso. Ela faz tudo isso de má pra deixar o pobre do rapaz louco da vida. Uma vez chegou a dizer que se ficasse grávida botava o filho fora. Imagine!
Calou-se de repente. Fez meia volta e disse:
13
#42O O CONTINENTE

- Quero lhe mostrar um pé de magnólia que plantei o mês passado.
Winter seguia-a em silêncio. Num dado momento sentiu uma vontade irreprimível de falar claro. Falou:
- Pelo que tenho observado vosmecê não morre de amores pela sua nora .. .
Disse isso e esperou uma explosão. Mas a voz da mãe de Bolívar veio calma:
- Nem ela por mim.
- Então está tudo bem. Ou está tudo mal.
- Está tudo mal. Porque meu filho tem loucura por ela. Está ali a magnólia. Leva muito tempo pra crescer. Mas quando cresce fica uma árvore muito bonita. Já viu
alguma? Dá uma flor assim meio creme, muito cheirosa. Ah I Tenho jasmim-dò-cabo e jàsmim miúdo. E um pé de primavera ali do lado. Tudo isto aqui era campo ráso,
pura barba-de-bode, quando meu pai veio pra cá. Não existe aqui um arbusto que não tenha sido plantado pela mão dum Terra.
De repente, sem mudar a entonação da voz, perguntou:
- Vosmecê não acha que ela não é -bem certa do juízo? Winter ergueu o braço e arrancou uma folha de laranjeira e
começou a mordiscá-la.
- Bom, a Luzia não é uma pessoa normal, isso não é .. . - Não acha que ela é capaz de botar o filho fora, só de malvada, pra nos fazer sofrer?
- L possível... Mas não é provável.
Bibiana ajeitou o xale sobre os ombros.
- Me diga uma coisa, doutor ... - Sua voz agora era um murmúrio quase inaudível. O médico teve de inclinar um pouco a cabeça .para ouvir melhor. - Se depois de ter
a criança ela continuar com essas loucuras . .
Calou-se. Estava de olhos no chão, evitando encarar. o interlocutor. ~ Ouvia-se agora, vindo da rua, um tropel de cavalos e o badalar dum cincerro. Por cima do muro
lateral erguia-se uma nuvem de poeira rosada.
- Pode falar, D. Bibiana. Pode dizer tudo com a maior confiança.
- ...não era o caso de se mandar essa mulher...
- Para um hospício? - terminou Winter.
Bibiana sacudiu afirmativamente a cabeça. Winter teve uma repentina sensação de frio interior. E refletiu imediatamente: "Com Luzia no hospício, D. Bibiana completa
a sua. conquista do Sobrado." Mau grado seu, sentiu-se chocado. Costumava cònsiderar-se um realista e encarar as criaturas humanas com cinismo, sem nunca esperar
delas nobreza de sentimentos e altruísmo. Era em ocasiões como aquela que ele via como estava ainda dominado pelos
A TEINIAGUA 421
mus preconceitos cristãos.. A sngestão de Bibiana deixara-o quas< espadalizado. I~abitnara-se a ver nela uma mulher de caráter e _ oh, as frases feitas, os sentimentos
feitosl - de coração bem formado. Via-a -agora como sob ama nova luz fria, crua e reveladora: tinha a medida ezata de sua capacidade de ódio. Mas... por que não
virar a coisa do lado do avesso e dizer - de sua capacidade de amor? Não estaria Bibiana a sugerir aquelas coisas pelo mníto que amava o filho e o Sobrado? E aquela
atitude não revelaria, ear $ltíma anílise, o espírito prático dama mulher realista que, no dizer do povo da Província, costumava, dar sempre nome aos bois?
- E vosmecê teria coragem de fazer ao seu filho ama sugestão dessas? - perguntou elé, com um sorriso que os bigodes .escondiam.
- O doutor é vosmecê - responder Bibiana secamente.
- E qre é qre acha que ser filho faria se eu lhe aconselhasse mandar a mulher para rm hospício?
Bibianá teve nm rápido encolher de ombros.
- Decerto ele esgoelava vosmecê.
- Então? - sorria o médico. - Quer que seu amigo seja esgoelado 7 ..
- Não.. Mas também não quero que ela acabe aos pouquinhos com a vida do meu filho.
Winter atirou os braços para o ar e deixou cair as palmas das mãos com força. sobre os lados das coxas..
- Então- que é que se vai fazer?
- En já -disse que o doutor é vosmecê.
- Mas há moitas coisas qt<e um doutòr não sabe.
Bibiana ajoelhou-se por um instante e arrancou do chão nm pé de gnangnma. Para a sogra - refletiu Winter - Luzia não passiva dama erva daninha que vicejava maleficamente
no jardim do Sobrado e que era preciso extirpar antes que ela sufocasse as plantas úteis e belas.
- Já conversor com o Pe. Otero a ésse respeito? - perguntou ele, só para dizer algema coisa.
- Já.
- Ele lhe der algum conselho?
- Den. Me pediu que tivesse paciência e fé. Prometeu falar francamente com Luzia. Mas sei que não fala.
- Por quê?
- Porque tem médo dela. Todo mundo tem.
- Mas que foi que vosmecê contou ao padre?
- Contei das malvadezas da ... dessa mulher. O senhor já vir como anda a cara do Bolívar? Toda lanhada, toda cheia de artanhôes. Um dia amanheceu com os beiços inchados,
estava-se vendo que tinha sido uma mordida. Uma pouca vergonha I Ainda ontem descobri uma queimadura na mão do rapaz. "Que foi isso?" perguntei. Ele ficou meio desconcertado
e respondeu:
#422 O CONTINENTE
"Não foi nada, mamãe. Me queimei no fogão." Mas sei que nio foi no fogão. - Bibiana estava de olhos baixos olhando uma fileira de formigas que saíam dum buraco,
ao pé duma bergamoteira. - Essas malditas formigas me estragam as plantas. Ouvi dizer que o Cel. Amaral mandou buscar em Sorocaba umas for= migas miúdas que comem
as formigas daninhas. Ele vai botar no quintal dele para ver se acaba com a saúva. Vosmecê acha que dá
certo?
- Tudo é possível, D. Bibiana, tudo é possível.
Winter lembrou-se de ter lido num almanaque que em todo Oreino animal só os homens e as formigas é que têm o instinto da guerra.
- Vosmecê nunca falou claro com seu filho sobre .. , essás coisas ?
Bibiana sacudiu a cabeça com tristeza.
- Muitas vezes comecei o assunto: Más ele nunca quis continuar. Sempre achava um jeito- de fugir. Ele anda diferente, doutor. Às vezes chego até a acreditar em feitiço.
Aquela mulher enfeitiçou ele. O Boli ... eu acho . , , o Boli já nem me quer, mais bem. Depois que casóu, mudou de um tudo.. O Florêncio tambéfon tem estranhado
ele. Eram tão amigos. Agora ele parece que deu pta ter ciúmes do prima Já não trata ele como dantes. O pobre rapaz nem aparece mais no Sobrado. São histórias que
essa mulher mete na cabeça do Boli.
- Mas como é que o padre explica essas coisas todas que a Luzia faz?
- Diz ele que há pessoas assim no mundo porque_ os demónios. entram no corpo delas. Diz que nas Escrituras Sagradas há muitos casos como esse e que Jesus Cristo
expulsou o demónio do corpo de muita gente.
Winter cuspinhou os pedaços. de folha de laranjeira que tinha na boca.
- Não acredite, dona. Não há tal coisa.
- Eu sei que não há. Não acredito no diabo nem em álmas do outro mundo. Já visitei muitas vezes o cemitério de noite: Não vi nada de mais; só um lugar muito quieto,
muito triste, ónde a gente pode se sentar e ficar pensando em paz, porque ninguém vem nos incomodar. Sou como o meu pai. Só acredito no que vejo. Meu pai não acreditava
em almas do outró mundo. O senhor acredita?
- Positivamente não.
Bibiana começou a caminhar lentamente na direção da Winter seguiu-a.
- Então, D. Bibiana, que é que quer que eu faça? .
- Se puder, doutor, fale com ela, Díga que ela precisa tet esse filho.
A TEINIAGUA 423

- Não é fácil, mas prometo fazer isso quando houver ocasião.
- Se vosmecê soubesse como eu quero um neto! Sempre tive vontade de ter a casa cheia de crianças. Minha filha, a Leonor, mora em Cruz Alta, é casada com um fazendeiro,
mas não tem filhos. Como é que eu podia imaginar que Luzia era assim? A gente às vezes ouve contar coisas esquisitas de certas pessoas, mas acha que é invenção,
exagero.
- Vosmecê é uma mulher que viveu e lutou muito. Devia estar habituada a tudo.
Bibiana soltou uma risadinha seca. .
- Habituada? Haverá coisa. mais corriqueira que a morte? Desde criança a gente sabe que um dia xem de morrer. Toda a hora ouve falar em, morte. Mas a gente se habitua
com a morte? Não. Quando ela chega sempre é uma surpresa.
Uma grande nuvem branca, que lembrou a Winter um iceberg, agora se erguia no céu, por cima do Sobrado.
- Tenho a impressao - disse ele, em parte para tranqüilizar D. Bibiana, em parte para dar voz a um pressentimento - que a Luzia vai ter esse filho.
- Vosmecê acha mesmo?
- Acho.
- Deus le ouça.
- Vosmecê acredita mesmo em Deus, D. Bibiana?
- Às vezes.
Disse isto e entrou no Sobrado.
lq.
A fresca luz dourada daquela manhã de princípio de primavera entrava pelas jánelas da casa de Carl Winter, que, sentado à sua mesa, escrevia a Carlos von Koseritz:

"lblein lieber Baron. Faz hoje quatro anos que estou em Santa Fé. Já não uso mais chapéu alto, minhas roupas européias se acabam e eu desgraçadamente me vou adaptando.
Isso me dá uma sensação de decadência, de dissolugão, de despersonalização. Sinto que aos poucos, como um pobre camaleão, vou tomando a cor do. lugar onde me encontro.
Já aprendi a tomar chimarrão, apesar de continuar detestando essa amarga beberagem. (Pode alguém. compreender as contradições da alma humana?) Eu vivia em castidade
forçada por falta de mulheres de que eu gostasse e que quisessem dormir comigo. l~leus sonhos eróticos eram povoados de fêmeas louras e eu tinha de me contentar
com esses amores oníricos, mas agora, "meu caro, de vez em quando, este espírito iá vacilante cede aos gritos
#424 O CONTINENTE
desta carne fraca - que, diga-se de passagem, continua muito magra sobre a ossatura - e trago para a minha cama, altas horas da noite, com a cumplicidade soturna
da bela Greyória, chinocas, índias, e até mulatas. Depois dessas orgias, tiro o violino do estojo e tomo um banho de música.. Oú então abro o meu Heine e me encharco
de poesia. E nas muitas semanas de castidade que se seguem volto a sonhar vagamente com mulheres brancas e germânicas. Ah, meu amigo, sou personagem dum drama que
Goethe não escreveria nunca, um drama que não daria glória a ninguém porque é sórdidó, sem propósito e vazio. ll~ias é um drama ou, melhor, uma comédia. Por que
não me vou daqui? Por quê? Não sei. Alguma coisa me prende %~ esta terra. Não é propriamente afeição, não é amor. É hábito, e o hábito é como uma esposa que cessamos
de amar e que já aborrecemos, mas à qual estamos apegados pela força... do hábito, e por preguiça. A inércia, Catl, tem muita força. A rotina é uma balada insípida
de rimas óbvias.
"A vida aqui é monótona. Nunca acontece nada. De vez em
quando sou chamado a atender um homem que foi estripado por outro num duelo por causa de pontos de honra, discussões em carreiras, jogos de osso, cartas ou chanteira.
Mas mesmo isso se transforma em rotina, porque um intestino é igual a .outro intesüno; as reações das pessoas em tais ocasiões são mais ou menos as mesmas. Os pacientes
agüentam os curativos sem gemer. .Os outros nunca estão de acordo sobre quem provocou a briga ou quem está com a razão.
"Raramente aparece uma cara nova ná vila. Um dia é igual a outro dia. O correio chega uma vez por semana, quando chega. Uma carroça leva uma eternidade para ir ao
Ftío í~ardo e voltar. As pessoas em geral são boas, mas duma bondade meio seca e áspera. Os assuntos, Imitados. Fala-se em gado, em cavalós, em tropas invernadas,
comidas, campos "ou então em histórias de brigas, guerras e revoluções passadas ou guerras e revoluções que estão para vir.
"Ah! Ia esquecendo de te participar um grande acontecimento. Luzia, a minha Melpômene, teve um filho. Deu-lhe o nome de Licurgo, não porque admire o estadista espartano,
mas porque (confessou-me ela com um sorriso angélico) ` o nome tem um som escuro, um tom dramático. Vê bem: Licetrgo. É realmente um nome noturno. Não me chamaram
na hora do pacto; preferiram uma negra velha parteira que bota a criança no mundo com mãos sujas mas hábeis. Regozt jei-me com isso pois não queria por nada mo mundo
ver minha lusa da Tragédia naquela conjuntura tragigrotesca. Vi-a poucas horas depois que a criança nasceu. Estava mais bela que nunca e seu rosto parecia irradiar
luz e bondade. Sim, bondade, Carl. Depois de tudo que te tenho contado dela, isso parece absurdo. Mas estou te dizendo exatamente o que senti. Nesta hora, mein lieber
Baron, eu a amei. j, Amei-a com ternura pela primeira vez, e
A TEINIAGUÁ 425

esse amor durou precisamente o tempo que passei naquele quarto que cheirava a incenso. A mãe não tem lute; mandaram buscar uma preta da estância para amamentar a
criança. O pai, de tão orgulhoso, chega a estár páteta. A avó se está contente, sabe esconder seus sentimentos debaixo daquela máscara de pedra.
"E agora, meu amigo, as coisas parece terem melhorado lá pelo Sobrado. Faço as minhas visitas- quase diárias, como médico que sou da casa. Melpômene se tem revelado
uma mãe mais carinhosa do que eu esperava, mas seu carinho se revela em gestos e palavras pois ela olha para o filho com a mesma falta de expressão com que fita
um objeto, uma coisa. É um olhar vazio, um olhar de estátua.
"Será que por um desses mistérios da natureza o cheque do parto restituiu a saúde àquele espírito doentio? Possível,, mas não provável. Como a Medicina está atrasada,
meu amigo! E como neste fim de mundo, sem livros nem colegas cultos com quem trocar idéias, eu vou ficando para trás mesmo dessa Medicina atrasada! Às vezes, pura
explicar a epilepsia e certas formas de loucura, chego quase,a aceitar a teoria dos antigos, que falávam em demônios e possessos. É uma explicação pitoresca, além
de cômoda, e~ que nos permite a nós, pobres médicos, lavar as mãos diante desses casos, transferindo-os para feiticeiros, sacerdotes e taumaturgos.
"`Mudando de assunto direi que estes invernos rigorosos de Santa Fé, em que às vezes sentimos mais frio dentro .das casas. que fora delas, me ensinaram a beber uma
mistura deliciosa, que mein lieber Baron deve já conhecer. ~ cachaça com mel e suco de limão. Positivamente divino! Se te contarem. Carlos, que morri embriagado
numa sarjeta em Santa Fé, podes acreditar na história, apenas com uma restrição: é que em Santa Fé não tem sarjetas pela simples razão de que não tem calçadas, como
não tem também lampiões nas ruas, e como, em última análise,- não tem nada. Talvez seja essa carência de tudo que me fascina e prende.
"Para não deixar de falar em política, o meu amigo não acha que é muito mau para todos nós que a Fránça tenha agora um novo Napoleão? Sinto maus pressentimentos,
Carl, muito maus pressentimentos.
"Manda-me notícias de teus planos. Quando sai o jornal? E a escola? Já encontraste a brasileira do teu coração? Quando puderes, manda-me livros e jornais. Os jornais
podem ser até bem antigos, porque nesta vila esquecida de Deus e dos homens, estou me convencendo cada vez mais de que o tempo, afinal de contas, não passa duma
invenção dos relojoeiros suíços para venderem suas engenhocas. Manda livros, senão vou acabar esquecendo até o alemão. Já li -mais de mil vezes meu volume de Heine.
E o meu Fausto está inutilizado, porque a bela Gregória deixou-o cair dentro da água da tina de lavar roupa."
#426 O CONTINENTE
Tinha essa carta a data de 25 de setembro de 1855, o dia em que Florêncio Terra casou com Ondina, a filha do Alvarenga. A cerimônia realizou-se na intimidade e toda
a gente na vila comentou o fato de Luzia nãoo ter comparecido à boda.
Foi também nesse ano que a Assembléia Provincial autorizou o estabelecimento duma colônia alemâ, a três léguas de Santa Fé. Os primeiros colonos chegaram em carroças
com suas famílias. Traziam seus tarecos, seus instrumentos agrícolas e suas mulheres e filhos. Winter recebeu-os com uma certa má vontade que ele mesmo nãoo sabia
explicar. Além dele, até então os únicos alemâes que viviam naquele município eram os Schultz e os Kunz, que haviam chegado ali pouco antes da Guerra dos Farrapos.
O Cel. Bento Amaral reunia os colonos em sua casa e fez-lhes uma preleção na presença de Winter, para o qual ele olhava de quando em quando com o rabo dos olhos.
Tinha uma voz gutural, falava alto, com ar patronal. Os colonos o escutavam numa atitude entre respeitosa e assustada. Havia entre eles um tal Otto Spielvogel, um
alemão corpulento da Renãonia, de quase dois metros de altura, com grandes manoplas sardentas recobertas de pelo ruivo, nariz vermelho e fino, e olhos de pupilas
.tão claras que chegavam quase a parecer vazios. Era uma espécie de chefe natural daquele grupo: e era a ele que Bento Amaral principálmente se dirigia:
- E têm de obedecer às autoridades - discursava o chefe político de Santa Fé. - Não queremos badernas nem anarquia. E .quem sair fora do regulamento, tem de se entender
comigo.
Deram à colônia o nome de Nova Pomerânía, porque° a maioria dos imigrantes tinha vindo daquela região. Os recém-chegados começaram a abrir picadas e a construir
casas. A cada família coube um lote de 1OO braças de frente por 15OO de fundo.
De tempos em tempos Wínter montava a cavalo e ia visitá-los. Fazia isso ou porque o chamavam parã atender algum doente ou então porque desejava ver como ia marchando
o trabalho. Ficava surpreendido com o que via. A região transformava-se dia a dia, tomava já um jeito de povoado, e por toda a parte viam-se valos, lavouras, cercas,
roçados, sinais, enfim, de que aqueles estrangeiros começavam a dominar a paisagem, que de resto ali era suave e submissa. Haviam construído uma ponte sobre um riacho
que cruzava aquelas terras e Otto Spíelvogel já tinha posto a funcioáar seu moinho d água. Era curioso - refletia VGínter - ver aquelas caras e ouvir aquelas vozes
alemás sob o céu de Santa Fé. De quando em quando passava a cavalo um caboclo moreno, de olhos e cabelos negros, parava, olhava para os colonos por muito tempo,
sem dizer nada, depois esporeava a cavalgadura e seguia caminho. Carl nãoo conseguia ler nem aprovação nem censura naquelas caras inestratáveis.
Um dia quando Wínter fazia uma sangria num dos colonos.
A TEINIAGUÁ 427

apareceu em Nova Pomerânía Bento Amaral montado em seu gvalo branco, com aperos chapeados, e grande- botas de couro, mníto pretas e lustrosas., Trazia na cabeça
um chapéu de abas largas e seu pala de seda creme esvoaçava ao vento. Alguns colonos vieram a aen encontro. O Cel. Amaral -nãoo quis apear. Falou .com a "alemoada"
de ama do cavalo, òlhou em torno, fez perguntas e deu conselhos. Depois, se foi. Da janela da casa do paciente, Winter ficou a contemplar o Junker de Santa Fé, que
se afastava ao trote faceiro e majestoso de seu cavalo - o busto muito ereto, o rebenque pendente do pulso por uma presilha de couro. Winter sorria. À tardinha,
em certos dias, Bento Amaral costumava passear a cavalo pelas roas de Santa Fé. "Boa tarde, coronel, como le vai?" - pergnntavam os santa-fezenses, descobrindo-se.
lrle se limitava a bater mau o dedo na àbá do chapéu e continuava seu passeio. Se encontrava nm desconhecido, fazia o cavalo estacar e gritava : "Ainda que mal pergunte,
quem é o senhor?" Fosse qual fosse a resposta, a segunda pergunta era- "Que é que anda fazendo por aqui?"
Naquele dia os colonos fiçaram a seguir o Cel. Bento com o olhar até que ele se sumiu atrás duma, coxilha. Wínter esperava ouvir deles algum comentário. Os homens,
porém, não disseram nada- voltaram discretamente para o trabalho.. Winter achava-os ignorantes e ponto simpaticos. Em sua maioria tinham vindo para o Brasil porque
achavam os impostos demasiadamente pesados em sena_ prinápados. Havia entre eles alguns que esperavam enriquecer dentro em ponto para depois voltarem para suas aldeias
natais na esperança de lá ocuparem uma posição social melhor que a primitiva. Dentre_ todas aquelès colonos Winter gostava especialmente de Jacob Vogt, um velho
dè oitenta anos, natural da Vestfália. Tínha longas barbas dam branco .amarelado, que lembravam as macegas dos campos em derredor da Nova Pomerânía. Completamente
desdentado, ~ de lábios cor-de-rosa, pele dum creme seco de marfim, olhos muito azais, o velho Vogt morava com o filho, que era canado e por sua vez tinha oito filhos.
Um dia, quando VJ"inter veio vet ama das crianças da casa, que estava com catapora, Jacob aprozimon-se dele e perguntou-lhe em alemão, com sua voz fina e Eras, quase
inaudível:
- Hí broxas nesta terra?
- Brazas? - estranhou o médico.
- Sim, feiticeiras. - E contou : - Quando eu era mocinho vi queimarem viva ama bruxa na minha aldeia.
O filha de Jacob esclareceu
- Essa é ama história que papai conta, mas que não sei se é verdade ora adngnice.
Wíntér sabia que os camponeses da Vestfália eram muito supersticiosos e quando adolescente ele ouvira falar num caso parecido com o que o velho Vogt lhe contara.
#428 O CONTINENTE

- Não. Em Santa Fé não há bruxas ... - disse ele. E achou melhor acrescentar - :.. que eu saiba.
Por uma inquietadora associação de idéias pensou em Luzia. Aa coisas no Sobrado ultimamente pareciam ter-se azedado ainda mais que antes. Quando lá ia nas suas visitas,
Winter percebia os ressentimentos nos silêncios, nos olhares, nas indiretas. O pequeno Licurgo _crescia com saúde, graças ao leite da ama preta. Bibiana encarregava-se
do resto. Luzia vivia a ler e a tocar cítara, e isso parecia enervar a sogra. Contava-se que havia dias em que as duna mulheres se fechavam, cada qual num quarto,
e lá ficavam durante largas horas. Passavam dias e dias sem se falar, ao passo que, pálido e infeliz, Bolívar andava de uma para a outra como uma mosca tonta.
Um dia Florêncio encontrou Winter na rua e lhe contou com calma e máscula alegria que esperava o primeiro filho para julho do próximo ano. E quando o médico lhe
falou na gente do Sobrado. Florêncio pigarreou, desviou o olhai e murmurou, sombrio:
- Aquilo vai de mal a pior.
E por mais que se esforçasse, Winter nãoo lhe arrancou nem mais uma palavra.


15
Quando, ao levantar-se uma manhã e ao ver da sua janela a paineira do quintal do vigário toda cheia de flores cor-de-rosa, o Dr. Cari Winter compreendeu que mais
um outono estava por chegar. Gostava daquela estação porque descobria sempre nela uma dignidade que as outras não possuíam.
De meados de março a meados de junho a luz era madura e cor de âmbar, e o ar, morno ao sol e fresco à sombra. O vento. que ele tanto detestava, o enervante vento
que às vezes o fazia praguejar, amaldiçoando aquela terra e aquele clima - cessava pór completo. Os crepúsculos faziam-se mais .ricos e longos, .como se Deus ou
lá quem quer. que fosse dispusesse de maís tinta, de mais tempo e de mais arte para pintar o céu do anoitecer. Nos quintais faziam-se fogueiras com folhas secas,
e a fumaça que delas se evolava, invadindo o ar, tinha um perfume que para Winter possuía uma qualidade nostálgica. No outono as moscas diminuíam, oa mosquitos começavam
a desaparecer e aquela luz generosa parecia deizar menos feias as pessoas e as coisas.
Quando Gregória apareceu aquela manhâ com o chimarrão, encontrou o médico à mesa escrevendo uma carta. Winter apanhou a cuia, distraído, levou a bomba aos lábios,
enquanto a negra depunha a cháleira chamuscada ao pé da cadeira do amo.. Chupando metodicamente o chimarrão, Winter releu o que havia escrito:
A TEINIAGUÁ 429

"No outono, meu caro harão, fico em permanente estado de poesia. É quando me lembro mais de Eberbach e de Trude. Mas tanto a aldeia como a moça~me parecem agora
ficções, elementos dum conto de fadas tão distante como a história de Hãnsel und Gretei que ouvíamos no tempo de meninos. Se há coisa que lamento é não saber pintar.
Tenho visto crepúsculos incrivelmente belos, tão belos que é uma pena que se percam. Alguém devia prendê-los numa tela. .
"Jogo partidas de gamão com o juiz de direito e me divirto duplamente: com o jogo e com a cara de meu parceiro. O Pe. Oteco, que parecia tão meu amigo, ultimamente
deu para reprovar a vida que levo, pois não vou à missa, nãoo contribuo com dinheiro para as obras da igreja e de vez em quando externo minhas idéias heréticas. E
sabes como se desforra? Recomendando aos paroquianos que procurem o Clotário da homeopatia ou o Zé das Eruas, o curandeiro. Continuo nas boas graças do Junker. O
velho Amaral tem sete filhos, dois homens e cinco mulheres, "de sorte que no casarão sempre há alguém. doente, o que me obriga a visitas quase diárias.
" "Quero dar-te notícias da "minha comédia", cujo desenvolvimento acompanho com interesse de espectador que às vezes é obrigado a entrar em cena como ator. A peça
tomou um novo rumo ou, melhor, mudou de cenário. Como Luzia andasse irritadiça e inquieta, recomendei a,Bolívar que a levasse numa viagem de recreio qualquer. A
sugestão foi uretra. D. Bibiana me apoiou, pois a pobre criatura estava cansada, queria respirar um pouco em paz. Depois de aYguma selui&uris, Bolívar decidiu levar
a mulher a Porto Alegre. Luzia exultou. Vivia numa permanente saudade de concertos, y estas e teatros. Desde o . momento em que, a viagem foi resolvida, ela como
que se transfigurou. Naturalmente começou a tocar cítara; e tocou as puas mais aleg"res de seu repertório. Os preparativos foram frenéticos. Iriam de jardineira,
pelo Rio- Pardo, levariam uma mucama e dois homens"de confiança na boléia. Não preciso dizer que a noricia se espalf:ou rapidamente pela vila e que na hora da partida
da cameagem, em princípios de paneiro último;. meio mundo estava na praça, d frente do Sobrado, _olhando. o grande acontecimento. 14fuitos vieram despedir-se. O
padre, o juiz, o Alvarenga. Florêncio não se fez visível. D. Bibtana abraçou e beijou longamente o filho e dei a ponta dos dedos à nora, que para surpresa minha
e dos outros se inclinou sobre ela e lhe beijou as faces. D. Bibiana, porém, fieou imóvel, de lábios apertados. Confesso que naquele momento tipé vontade de beijar
a teiniaguá. Estava linda, o contentamento dava-lhe coces vivas às faces. Houve muitos adeuses, acenos e gritos de boa viagem. E lá se foi a jardineira, levantando
pó pela r+ua em fora: Quando ela desapareceu na primeira esquina, D. Bibiana traçou o xale e antes de entrar no Sobrado me disse: `Nesta província, doutor, quando
uma mulher se despede do
#43O O CONTINENTE
marido, do filho, do irmão ou do noivo, nunca sabe se é por pouco tempo ou para sempre."
"E sabes, meu cato barão, o que me impressiona nesta gente? L~ o ar natural, terra-a-tetra com que dizem e fazem as coisas mais d~amáticas. Estou começando já a
descobrir diferenças entre os habitantes das- várias regcces desta província. Os da fronteira são mala dramáticos e pitorescos que os desta região missioneira. Gostam
de .lenços de cores vivas, falam mais alto, contam bravatas e amam os gestos e frases teatrais. Se e& tivesse de eleger o homem re~esentativo desta região, não escolheria
Bento Amaral nem Bolívar, mas Florêncio, o meu bom, discreto e bravo Florêncio Tetra.
"Perdoa-me estas minúcias. Quando vivemos por muito tempo num mundo tão limitado e pobre como este, acabamos conferindo às suas intriguínhas, às suas pessoínhas
e às suas coisinhas uma importância universal.
"lf~las este outono, meu caro Carlos, é grande aqui como seria em qualquer outra pane do universo. Aristóteles haveria de gostar de dias e campos como estes para
as suas dissertações peripatéticas. Estou certo de que houve um erra qualquer na distribuição das raças. Quando Deus criou o mundo, Ele destinou a esta terra outras
gentes que não estas. Haverá ainda um meio de corrigir esse erro? Eis aqui uma pergunta perigosa, que nos poderá levar a complicações tremendas."


Foi nesse outono de 1856 -que passou por Santa Fé nm mascate judeu vendendo bugigangas. Era um homem retaco, muito vermelho, de nariz adunco e barbas louras. Alegre,
conversador e bem informado, contoú, no seu português arrevesado mas fluente, coisas das tersas por" onde tinha andado. Conhecia o Oriente, a Ãfrica e tinha visitado
.recentemente os países platinos.
- Sabem da última novidade? - perguntou ele nm dia a nm grupo na botica do Alvarenga. - Terminou a Guerra da Criméia.
A notícia foi recebida com indiferença. Ninguém tinha ouvido falar nessa guerra. Ninguém sabia onde ficava a Criméia, a não ser talvez o juiz de direito e o padre,
que nessa hora estavam ambos -distraídos a jogar xadrez. Por isso ninguém se interessou pela notícia.
Em fins daquele mesmo outono o Dr. Winter foi chamado às pressas a Nova Pomerânia para atender Otto Spíelvogel, que, tendo fincado nm prego enferrujado na perna
- fazia já duas semanas - estava agora ardendo em febre e com muitas dores. O médico pegou a maletá, montou a cavalo e partiu a todo galope para a colônia. Examinou
a perna do paciente e concluiu: Starrkrampf. Chamou os membros da família e disse:
- Se nãoo cortarmos a perna do homem imediatamente ele morrerá.
A TEINIAGLJA 431

A choradeira começou. Todos, poxsm, puseram-se de acordo em que se devia fazer a amputáção. Winter pediu água fervente num tacho e dois homens decididos para o ajudarem.
Mandou amarrar Otto Spielvogel fortemente a uma mesa e deu-lhe uma bebedeira de gchaça que o deixou quase inconsciente. E depois, asando o próprio, serrote com que
um colono estivera aquele mesmo dia a cortar barrotes para a casa, am atou-lhe a perna à altura do joelho, enquanto a mulher e os fios do paciente choramingapam
no quarto contíguo.
Ao anoitecer do dia seguinte, voltou para casa, pois nm dos filhos de Beato Amaral estava de cama e o Junker exigia sua presença à cabeceira do doente. Montou a
cavalo, .acendeu a vela da lanterna e pôs-se a caminho: Como não havia lampiões nas roas de Santa Fé, sempre que saía à rua em noites sem lua o Dr. Winter levava
sua lanterna acesa.
Durante todo o trajeto da colônia à vila desejou chegar ao quarto para tomar uns bons goles. de cacháça com mel e limão. O inesperado ~ frio úmido na noite lhe penetrava
até os ossos. A garoa gelada lhe respingava o rosto, a barba, as roupas: e seus dedos estavam entanguidos sob as luvas de lâ. Winter tinha ainda nas narinas o cheiro
de sangue.. Sentia-se como um carniceiro e amaldiçoava sua profissão. Perdera os ferros cirúrgicos no Rio Grande: tinha de operar agora com os instrumentos mais
rudimentares. E como a Medicina estava atrasada ! Naquela segunda metade do século XIX eles sabiam pouco mais que os .curandeiros da Idade Média. Qne era que cansava
as doenças? Que era que originava o tétano? Ninguém podia dizer. Algumas vezes ele, Winter, dera como perdidos paaentes que depois se erguiam da cama, curados com-
mezinhas caseiras ou chás fornecidos por negras velhas curandeiras.
Perto de Santa Fé a cavalgadura estacou diante dum vulto. Winter erguer a lanterna, num sobressalto, e gritou: `.`Quem é lá?" Era uma vaca que ruminava placidamente,
atravessada no caminho. O médico soltou uma blasfêaua. O Código de Posturas Municipal dizia claramente: 8 proibido ter vacas soltas em noites escuras, salvo se levarem
lanternas presas aos chifres."
Eatron em Santa Fé no piór estado de espírito possível. Desejava calor, uma cama limpa e quente e uma boa companhia. humana. Sabia que nãoo encontraria em casa nada
disso. O remédi+5 era em
bebedar-ae. podia ser indigno, podia ser brutal, podia ser sórdido.
Man era nm narcótico. Bêbedo, esqueceria a perna de Otto Spiel
vogel, que. ele vira cair pesadamente num balde com um ruído medonho; esqueceria aquele. tempo horrível, e esqueceria principalmente
que ele, Carl Winter, nm homem de trinta e cinco anos, formado
em Medicina pela Universidade de Heidelberg estava preso, irreme
diavelmente preso a Santa Fé, sem coragem de abandonar aquele
432 O CONTINENTE

vilarejo marasmento e sair em busca duma vida melhor... Poe
quê? Por quê? Por quê? Winter fez essas perguntas em voz alb.
O cavalo seguia a passo pelas ruas. Seriam umas onze horas da noite e as casas estavam todas fechadas. Ao passar pela frente do Sobrado, Carl Winter pensou em Luzia.
Havia já quatro meses que o casal tinha partido para Porto Alegre. Fazia uma semána, o estafeta que trazia a mala do Río Pardo contara na venda do Schultz que havia
irrompido em Porto Alegre uma epidemia de cólera-morbo. Cólera-morbo I Era só o que faltava I Se a peste chegasse até Santa Fé, morreriam todos como ratos - conduin
Winter. E de súbito ocorreu-lhe uma idéia : se Luzia morre de cólera o problema está resolvido, a comédia. acabada. Sim, era nata solução. Bolívar sofreria muito
a princípio, mas com o- passar_ do tempo a esqueceria. Era moço, tinha a mãe para o amparar, o filho para criar. Sim, seria uma solução de mau gosto, de mau autor,
mas o problema daquela gente ficaria resolvido .. .
Foi no momento em que pensava essas coisas que Winter viu luz numa das janelas do andar superior do Sobrado. Féz parar a cavalgadura e ficou , olhando. Avistou um
vulto de mulher. com uma vela na mão. Devia ser D. Bibiana. Que estaria acontecendo lá dentro? Alguém doente? Algum ladrão? Achou que seu dever era bater à porte
para ver o que se passava. Decidiu, porém, não fazer nada disso. Fincou os calcanhares nos flancos do animal e fê-lo seguir a trote rumo. de casa.
16
Parada no centro do patamar da escada; com uma vela acesa na mão, Bibiana escutava... Julgara òuvír um pesado .arrastar de pés no casarão e saíra do quarto. para
ver de onde vinha o ruído. A ama de Licurgo dormia no quarto contíguo ao seu. As outras negras estavam alojadas no porão. Um peão do Angico, homem de confiança,
dormia na despensa.
D. Bibiana esperava,, imóvel, de ouvido atento. O silêncio agora era absoluto. Decerto está trovejando - concluiu ela. E resolver voltar para o quarto. Nesse momento
o relógio grande lá em baixo c©meçou a dar as horas. Comõ não esperasse aquilo, Bibiana teve a impressão de que as pancadas soavam não apenas em seus ouvidos, mas
também dentro de seu peito. A primeira delas lhe causou um estremecimento. Começou a contar mentalmente. Duas... Três.-. . Cada batida ecoava. pela casa, parecia
deixá-la ainda maior do que era, como se em vez de dezoito peças o Sobrado tivesse cem. Quatro ... cinco ... Bibiana sentia que o coração lhe pulsava um pouco mais
forte e vià a vela tremer-lhe na mão... Seis... Sete.. .
Oito ... Nove ... Tinha agora a impressão de que alguma coisa ia acontecer. Dez ... Devia ser meia-noite. As negras diziam que a almá do velho Aguinaldo costumava
passear pela casa depois que o relógio grande dava a última badalada da meia-noite. Onze .. . Doze... O som se desfez no ar e Bibiana ficou ali com aquele pequeno,
e débil foco de luz na mão, esperando ... Seu olhar dirigiu-se para a porta do quarto que fora de Aguinaldo, e que estava fechado desde o dia da morte do velho.
Foi um olhar duro e decidido, como se ela estivesse desafiando a alma do morto a aparecer. Uma viga do tetõ rangeu, e foi como se o silêncio subitamente se trincasse
como um prato de louça. Por um momento Bibiana teve a sensação de que havia alguém às suas costas. Fez uma rápida meia volta, mas só viu a solidão e a penumbra do
patamar e sua própria sombra refletida na parede branca. Lembrou-se das palavras de Natália - "O velho aparece de noite, anda por tòda a casa arrastando uma corrente
e gemendo: Rezem por mim. ~ Rezem por mim." Havia de ter graça -refletiu Bibiana - que nem depois de morto Aguinaldo abandonasse o Sobrado. Mas quem morre se acaba.
"Vassuncê viu mesmo a alma dò velho, Natália?" A voz da escrava era um ronco medroso: "Por esta luz que me alumeia, juro que vi. Foi numa noite de tormenta. Primeiro
pensei que fosse o vento. Depois ouvi a voz do velho. Rezem poc mim. Rezem por. mim." Quem gostava daquelas histórias era- Luzia. À noite fazia as criadas repetirem
todos os casos de assombração que conheciam. Ficava arrepiada e com médõ de subir sòzinha para .o quarto. Mas subia, de vela na mão, tremendo, e parece que até achando
gostoso aquele medo.
Bibiana voltou para seu quarto lentamente. Não temia as almas do outro mundo.. Tinha medo, isso sim, das almas deste mundo. Lembrava-se das noites em que Luzia se
metia em seu quarto de dormir, fechava a porta a chave e não deixava o marido entrar: o pobre rapaz ficava vagueando a noite inteira pela casa, como uma alma penada.
Dessas almas é que ela tinha medo.
Entrou no quarto, fechou a porta de mansinho, aproximou-se do berço onde Licurgo dormia e ergueu sobre ele a vela. No sono a criança movia os lábios rosados e úmidos,
como a procurar o bico dos seios da mãe preta. O comilão ainda mamava no peito, apesar de já ter feito nm anoI - socou ela. Ficou por longo tempo contemplando o
neto. Aquèle ser pequenino _um dia havia de crescer, fazer-se homem - um belo homem como o pai ou como o avô. (E Bibiana apressou-se a acrescentar mentalmente: avó
por parte do pai.) De súbito, numa esquisita sensação de desfalecimento, que era ao mesmo tempo desagradável surpresa, apreensão e piedade, ela pensou: O Licurgo
é bisneto daquele_ corcunda. Odiou Aguinaldo por isso. E a figura do velhote desenhou-se-lhe no pensamento: lá estava ele com sua barba de chibo, a cabeça chata,
òs
A TEINIAGUA 43 3
#434 O CONTINENTE
olhinhos de bicho... O sangue daquele monstrengo coma nas
veias da criança I Bibiana aproximou mais a vela do rosto do neto.
Não, não havia naquela carinha mimosa nenhum traço de Agui
naldo Silva. Licurgo podia parecer-se com a mãe, que era bonita,
on com o pai, mas nunca com o Velho. E quem garantia que Luzia
en neta mesmo de Aguinaldo? A mulher do nortista não o enga
nava? Bibiana apegava-se agora a essa possibilidade, esforçando-se para transformá-la numa consoladora certeza.
Licurgo ergueu de repente a mãozinha e deixou-a air com força sobre o cobertor, Um gluglu se lhe escapou da boca, e em seus lábios se formou uma bolha dè saliva.
Quem vai criar esse menino sou èu - disse Bibiana para si mesma. Se quiserem me tirar ele, eu brigo, como uma galinha defendendo seus pintos. Começou a fazer cálculos
... Tinha cinqüenta anos: podia bem durar mais vinte... ou vinte e cinco, e assim veria Licurgo homem feito, encaminhado na vida. Aquele menino que tinha o sanguè
do Cap. Rodrigo Cambará, ia ser o dono do Sobrado, dos campos do Angico e de milhares de cabeças de gado. Sen peito inflou-se de contentamento e de esperança.
Bibiana olhou para a cama grande, ao .lado do berço. Náo estava com sono. Sentia no peito uma coisa esquisita que não a deixava .dormir. Desde que soubera da notícia
da peste em Porto Alegre ficara apreensiva. Por que Bolívar não viera embora imediatamente ao saber que o cólera tinha irrompido na cidade? Por quê I Era uma peste
brrba, pior que o tifo e a bubônica. Bibiana cevou os olhos e viu em seus pensamentos .Luzia morta em cima duma mesa, ladeada por quatro círios, Bolïvar chorando,
gente cochichando: "Morreu do cólera. Morreu do cólera." De repente a cena mudou: a jardineira chegou a Santa Fé, levantando poeira.. . Bolívar desceu da carruagem,
todo de preto, a barba crescida, os olhos vermelhos. "Mamâe!" Atirou-se nos braços dela. E ela abraçou e beijou o filho, dizendo: "Não há de ser nada, Boli. Vassnncê
é moço ainda. Pense no Licurgo. Não é nada." Bibiana abriu os olhos, confrangida inopinadamente pela sensação de frio deixada por uma idéia terrível que acabava
de cruzar-lhe a mente. Bolívar podia morrer. Nesse caso, quem voltaria para o Sobrado era ela. Ela ... toda de preto, mas de olhos secos - aqueles olhos maus de
gata. Morto Bolívar, a outra podia mudar-se pata Porto Alegre ou para a Corte, levando consigo Licurgo ... Venderia o Sobrado, o Angico ... Não tinha apego à casa
nem à estância. E mesmo que ela ficasse no Sobrado, .como ia ser a vida das doas naquele casarão, odiando-se dia a dia, hora a hora, minuto a minuto? Que ia ser
do menino entre aqueles dois ódios?
Bibiana apagou a vela e sentou-se na sua cadeira de balanço. O quarto ficou alumiado apenas pela lamparina que com tíbia chama ardia junto do berço da criança.
A TEINIAGUA 435

De braços cruzados sob o xale, os olhos cerrados, Bibiana balouçava-se devagarinho e pensava. Tinha pago pelo Sobndo um preço demasiadamente alto. Mas agora era
tarde: o mal estava feito. Voltar atrás não só sèria pior como também impossível. Por assim dizer, tinha perdido o filho. Desde que casara. Bolívar não en mais o
mesmo. Andava arisco, já não se abria com a mâe, nãoo dependiá mais dela, nãoo lhe pedia conselhos em nenhum assunto. Vivia enfeitiçado, dominado pela óutra. Se a
mulher foasc má sempre, todos os dias, poderia haver alguma esperança de o npaz um dia compreender com quem se havia casado.. Mas o diabo en que em certas horas
- às vezes durante dias inteiros - Luzia mostrava-se amável e atenciosa não só com ~ o marido como também com os outros. Depois; tinha estudado na Corte, sabia falar
bonito, contava casos da Europa, ou então histórias que tinha lido em livros. Às vezes até recitava versos enquanto tocava cítara. Bolívar ficava olhando para ela,
de boca.. meio aberta, e via-se que ele estava perdido de amór, que era capaz- de fazer tudo que ela pedisse. Nessas ocasiões ele ficava bobo de contentamento, era
o homem-mais feliz do mundo, chegava até a cantar e assobiar. Mas lá de repente a mulher de novo fazia das suas. Muitas vezes ela, Bibiana, acordara no meio da noite
ouvindo gritos no quarto do casal. Saía para o corredor de camisolão; pés descalços, para ver o . que tinha acontecido. Nunca vira mas adivinhava o que se estava
passando lá dentro. As malvadezas de Luzia não tinham mais conta. Fechava a Dita. a negrinha filha de Natália, no sótão durante dias, sem água nem comida, e de vez
em quando ia lá em cima .para espiar a rapariguinha pelo buraco da fechadura. Quando Bolívar ia para o Angico, ela aproveitava a ocasião para fazer essas coisas.
Depois de ver bastante tempo a criaturinha sofrer, ela descia e. ia tocar cítara. "Negro é bichó " - ela dizia. "Negro não tem sentimento.."
Bibiana balouçava-se na sua cadeira e pensava ... Sim, tinha pago caro demais pelo Sobrado. E só Deus sabia que ela não queria aquela casa para si mesma, mas sim
para Bolívar e para os filhos de Bolívar. No fim de contas .aquela terra pertencia de direito a seu pai. Se havia algum intruso no caso, esse intruso en a neta de
Aguinaldo Silva.
Bibiana ouvia agora o fofo tamborilar da chuva nas vidráças. lrncolheu-se toda, de frio e de tristeza.
17
Conheciam-se agora notícias mais detalhadas da epidemia de cólera-morbo. Tinha sido trazida do Rio por passageiros do vapor Imperatriz, que ancorara em fins de 1855
no porto do Rio Grande.
#436 O CONTINENTE
A TEINIAGUA 437
A peste começara nas charqueadas de Pelotas, alastrara-se pelaá loalidades vizinhas e atingira Porto Alegre onde se dizia que o número dé casos fatais ia além de
mil. As carroças da municipalidade andavam pelas ruas a recolher os cadáveres, que na maioria dos çasos estavam de tal modo desfigurados, que se tornava impossível
identificá-los. Coutavam-se pormenores horripilantes. Havia pessoas que eram ateadas subitamente pelo mal e caíam fulminadas nas ruas: Temia-se que moitas tivessem
sido enterradas vivas, pois os médica, os enfermeiros e os funcionários municipais estavam de tal modo cansados,. tresnoitados e nervosos que nem tinham tempo para
maiores verificações. Recolhiam-se os mortos às carroçadas. Abriam-se no cemitério valas comurts onde os corpos eram despejados é em seguida cobertos de terra~~O
êxodo da udade era enorme. Quem podia fugir, fugia. Havia pavor em todas as caras e em algemas pessoas a palidez e a algidez do medo eram confundidas com os sintomas
da peste asiática. O Baráo de Muritiba, chefe do governo provincial, estava .tomando providências para evitar que. o mal se alastrasse pelo resto da Província. Contratava
médicos e enviava-os para vários municípios. "
Mandos para Santa Fé o Dr. Homero Viegas, que chegou um dia de diligência, reuniu imediatamente a Câmara Municipal e sugeria uma medida que foi aceita por unanimidade:
fechar a estrada da serra e evitar qué por ela passassem gentes e animais vindos das cidades oade grassava o cólera.
Bibiana andava agoniada. Bolívar ainda não voltara. .Suas últimas cartas eram lacânias, mas até certo ponto tranqüilizadoras: Luzia e éle estavam bem de saúde e
voltariam para casa "assim que fosse possível"".
- L ema loucura, doutor! - disse ela um dia a Winter. - En náo posso compreender. Por que é que náo vieram embora. logo que começos a peste?
Winter encolhes os ombros:
- Nunca se sabe, D. Bibiana, nunca se sabe. Talvez tivessem surgido dificuldades.
- D caldades? Numa hora dessas ninguém pensa em dificuldades. A gente bota o pé ao mundo. O medo da peste é mais forte qae fado.
- Há coisas mais fortes... - retrucou o médico, sem saber muito claramente a que coisas se referia. Estava um pouco despeitado, mas grado seu, por náo ter sido convidado
pelo Dr. Viegas a tomar parte na reunüo da Câmara.
- E agora," se álea fecham. a estrada ... - perguntou Bibiana - como é que o Boli vai passar?
- Vosmecê sabe que essas coisas levam tempo. )g bom náo
perder a esperança.
Estavam os dois àmigos na sala de visitas do Sobrado e Bibiana tinha os olhos voltados para as janelas.
- Esperança? - repetiu ela, sem tirar os olhos da rua. - Esperando vivo eu há muitos anos.
- Vosmecê não acredita no destino? Não acha que o que tem de ser traz força?
- Acho.
- Pois então? Tenha paciência. Há um ditado latino que diz que o destino conduz os que querem ser conduzidos e arrasta os que nãoo querem.
- Eu tenho andado mais ou menos de arrasto. Nem sempre quero ir pra onde o destino me leva. - E imediatamente, sem mudar de tom: - Toma um licor?
Winter disse que não, agradeceu e se foi.
Naquele mesmo dia, ao entardecer, postada na janela da águafurtada do Sobrado, de onde se avistavam os campos em torno de Santa Fé, Bibiana viu poeira na estrada.
Seu coração começou a bater num ritmo entre alegre e medroso. Pouco depois avistou uma carruagem que parecia vir das bandas do Rio Pardo. Só podia ser a jardineira
de Bolívar - garantia ela para si mesma. Nunca se enganava em seus pressentimentos .. .
Era quase noite fechada quando a carruagem parou à frente do Sobrado. Curiosos vieram para a praça e ficaram olhando de longe, sem coragem de ir apertar a mão daquela
gente que chegava da zona da peste.
- Não deviam ter deixado a diligência entrar - murmurou um dos filhos de Bento Amaral, que estava ali por perto em cima de seu cavalo. Disse essas palavras e saiu
a todo o galope na direção de sua casa.
Bolívar deu a mão à mulher para ajudá-la a descer da diligência. Luzia estava toda vestida de preto. Depois delá desceu a mucama. À boléia vinha só um dos homens:
soube-se mais tarde que o outro morrera de peste.
Parada ao portal do Sobrado, Bibiana abraçou e beijou o filho e deu molemente a mão à nora, que mal a apertou. Entraram. Cinco velas estavam acesas num candelabro
no vestíbulo da escada grande. Luzia limpou com palmadas impacientes a poeira do vestido.
- Como vai o Licurgo? - perguntou.
- Vai bem - respondeu Bibiana secamente.
- Onde é que está ele?
- Dormindo.
Luzia tirou o lenço que lhe envolvia a cabeça e sentou-se numa poltrona com um suspiro de alívio.
- Que viagem horrível? - exclamou.
#438 O CONTINENTE
A TEINIAGUÁ
439
à luz das velas "Bibiana viu a cara do filho e ficou alarmada.
Bolívar estava duma palidez esverdeada e tinha os olhos no fundo.. - Está sentindo alguma coisa, meu filho? Ele sacudiu negativamente a cabeça. - Não. Estou só um
pouco cansado. Evitava encarar a mãe.
- O jantar já está pronto - avisou ela. - Não estou com fome.
- Tem um bom churrasco de ovelha, Boli. - Gritou para a outra sala : - Natália, pode servir 1
- Mas eu preciso me lavar um pouco antes de ir para a mesa... - disse .Luzia.
- Pois vá. Ninguém está atacando vosmecê.
Bibiana estava ansiosa por ficar a sós com o filho. Luzia ergueu-se e, apanhando um castiçal com uma vela acesa, dirigiu-se para a escada.
Sentado numa cadeira. Bolívar descalçava lentamente as botas.
Houve um longo silêncio. De pé na frente do filho, Bibiana espe
rava, e como ele continuasse calado por vários segundos, ela disse: - Pensei que nãoo quisessem voltar mais. Bolívar. permaneceu muda
- Com essa peste horrorosa foi uma loucura terem ficado tanto tempo lá. As autoridades não deixaram vosmecês saírem? Houve algum impedimento?
Sem olhar para a mãe, irritado, Bolívar respondeu:
- Não houve nada. Era uma _coisa. e outra e a gente ia ficando .. .
- Mas não tiveram medo?
- Tivemos, mãe, tivemos.
- Sou capaz de apostar como foi ela que quis ficar. - Ora, mamãe ... .
- Só de maldade. Decerto queria que voàmecê pegasse a peste. Assim ela ficava viúva, vendia o Sobrado e o Angico ia morar na Corte com o Licurgo.
Bolívar entesou o busto e tomou uma atitude agressiva:
- Nem diga uma coisa dessas! A Luzia também estava se arriscando a pegar o cólera.
- Mas então por que é que não vieram antes?
Bolívar de novo se fechou no seu silêncio soturno.
Depois de algum tempo, com voz mais tranqüila, perguntou - Vai tudo bem por aqui?
- Vai.
- Nenhuma novidade?
- Nasceu o filho do Florêncio. L homem. - E no Angico?
- Nada de novo. Não tem morrido gado. Vai tudo bem.
Bolívar sacudia a cabeça, devagarinho. Ficaram num longo
silêncio: Bibiana contemplando o filho, Bolívar olhando para o
soalho.
Luzia desceu, tornou a entrar na sala e aproximou-se da sogra: - O Licurgo não está no quarto ... - estranhou ela. Bibiana ficou imperturbável.
- Eu sei.
- Onde botaram o menino? - Na água-furtada. - Na água-furtada? - Vai ficar lá uns tempos. - Mas por quê ?
- Vosmecês vieram dum lugar que tem peste. Não quero que
o menino pegue.
Luzia parecia ainda não compreender. Lançou para o marido
um olhar que foi um pedido de esclarecimento. Bolívar olhou para
a mãe.
- Quanto tempo ele tem de ficar lá? - perguntou. - Quantó tempo for preciso. Bolívar ergueu-se.
- Mas a criança vai ficar sozinha lá em cima?
- A ama está junto. Não vai faltar nada pro menino.
- Mas é uma bobagem, mamâe. Nós nãoo pegamos a peste. - Podç.ser, Boli. Mas sempre é melhor esperar. - Foi g Dr. Winter que lhe aconselhou fazer isso? - pergun
tou Luzia.
Sem olhar para a nora, Bibiana respondeu:
- Tenho juízo suficiente pra resolver essas coisas sem precisar
do conselho de ninguém.
Bolívar e Luzia entreolharam-se de novo.
A negra Natália apareceu à porta da sala de jantar. - A comida está na mesa - roncou ela.
- A comida está na mesa - repetiu Bibiana. Fez menção
de se encaminhar para a outra" peça, mas Luzia deteve-a.
- E vosmecê pensa que vou chegar de viagem e nãoo ver o meu
filho? Pensa que vou passar dias sem ver o Licurgo?
- Penso.
- Pois está enganada. Vou já já subir à água-furtada. Encaminhou-se de novo para a esçada.
- Não adianta - disse a outra. - Fechei a porta a chave. - Onde está a chave?
- .Não digo.
- Bolívar! Obrigue sua mãe a me Bolívar ergueu-se.
- Mamãe .. .
- Não adianta, meu filho. Não dou.
dar essa chave.
44O O CONTINENTE

- Bolívar! - exclamou Luzia. E na penumbra da sala seus olhos fuzilaram como os de uma gata. - O filho é nosso!
Bolívar aproximou-se da mãe, pegou-lhe da mão, tentou falar com calma. Mas havia em sua voz uma falsa doçura que mal encobria a raiva crescente.
- Escute, mamâe. Não vamos brigar. A Luzia quer ver o menino. B só por um momento, não é, Luzia? - Lançou um olhar para a mulher, que não fez o menor sinal de assentimento.
- Ela promete não pegar o Licurgo, só olhar .. , olhar de longe, nãoo é, Luzia?
Luzia estava parada junto da porta do vestíbulo, com o castiçal na mão. Nos seus olhos havia uma expressão de frio ódio:
- A comida está na mesa - repetiu Bibiana, esforçando-se por falar com naturalidade.
Féz meia volta e dirigiu-se para o còmedor.
- Diga pra essa velha amaldiçoada que me dê a chaveI
Luzia não pronunciou estas palavras: cuspiu-as. A sogra, porém, continuou a caminhar, sem -voltar-se, e foi sentar-se à mesa. Descalço, os braços caídos, um pouco
encurvado, Bolívar encsminhou-se também para a sala de jantar. Luzia continuou na outra peça por alguns instantes: a vela tremia-lhe na mão, o espermacete pingava
no soalho. De repente ela gritou:
-- Bolívar, vá já arrombar. aquela porta!
Ele não respòndeu.. Sentou-se à mesa, de cabeça baixa.
- Não seja covarde, Bolívar.l Não se deixe dominar por essa mulher.
Bibiana tinha as mâós caídas sobre o regaço. Seus lábios tremeram por um instante.
- Quer sopa, meu filho?
- Esta casa- é minha - dizia. agora Luzia com uma fúria que quase não lhe permitia completar as palavras. - Foi -feita com o dinheiro do meu avô. Vocês são dois
intrusos! Intrusos! O filho também é meu. Os. móveis são .meus. Tudo que está aqui dentro é meu. En odeio vocês! Odeio esta vila! Odeio esta província!
A vela que , Luzia tinha na mão apagou-se. Ela arremessou o castiçal contra um vidro da vidraça, que se espedaçòu. Bibiana ergueu os braços, destampou a terrina
de sopa e tornou a perguntar:
- Sopa, meu filho? ,
Bolívar não respondia.
Luzia avançou até a porta da sala de jantar. A raiva desfigurava-lhe o rosto, còmo se ela tivesse sido subitamente atacada duma peste. Bibiana nem sequer ergueu
os olhos para a nora. Luzia gritou:
- Me dê imediatamente essa chave, sua cadela!
Bolívar ergueu-se tão abruptamente que a pesada cadeira em que estava sentado tombou para trás com um ruído surdo. Deu dois,
A TEINIAGUA 441

passos rápidos na direção da mulher, agarrou-a violentamente pelos braços e sacudiu-a.
- Cadela é tu! É tu! É tu!
E repetindo essas palavras, continuava a sacudi-la. Luzia esforçava-se por desvencilhar-se do marido..Ergueu os braços e fincou as unhas no rosto dele que começou
a sangrar.
Enfurecido pela dor, Bolívar esbofeteou a mulher, uma, duas, três, muitas vezes, alternadamente com as costas e a palma da mão. Luzia deixou cair ambos os braços.
Seus joelhos se vergaram e ela foi deslizando devagarinho para o chão, até ficar sentada, com nm lado da cabeça e o braço direito encostados no encaixe da porta.
A expressão de ódio que havia em seu rosto deu lugar a uma serenidade triste :. agora as lágrimas lhe rolavam pelas faces, os soluços lhe sacudiam os ombros e ela
ali estava como uma menininha que acabasse de ser injustamente castigada pelo pai. - Bolívar olhava estupidamente. para a mulher, arquejante, a baba a escorrer-lhe
da boca entreaberta.
- Meu filho! - exclamou Bibiana pondo-se de pé e encarando o rapaz com um olhar duro. - Isso nãoo se faz! Onde se viu um homem bater numa mulher ?
Por alguns segundos Bolívar ficou assim como que acuado, a olhar aflito da mãe para a esposa. Por fim fez meia volta e saiu a correr na direção . da escada, onde
seus passos soaram fortes e apressados.
Bibiana olhava para a nora sem saber que fazer nem dizer. Botar-lhe arnica na cara? Dar-lhe um chá de folhas de laranjeira? Quis adoçar a voz e dizer-lhe uma palavra
de consolo..Mas quando deu acordo de si estava dizendo:
- Quem semeia ventos colhe tempestades.
Virou-lhe as costas e saiu também da sala.
18
Na manhã do dia seguinte correu pela vila uma notícia sensacional: a Câmara Municipal, por sugestão do Cel. Bento Amaral, declarara o Sobrado de quarentena, isolando-o
da cidade; seus moradores, desde os patrões até a negrada da cozinha, foram notificados de que estavam positivamente proibidos de deixarem a casa durante quarenta
dias a contar da noite anterior. Para que a quarentena fosse observada com rigor, postaram-se guardas armados ao redor do casarão, com ordens - murmurava-se - de
atirar aa primeira pessoa que saísse pelas portas ou janelas do Sobrado, ou que tentasse saltar seus muros.
Os santa-fezenses em sua maioria aprovaram a medida.. Bolívar
442 O CONTINENTE
A TEINIAGUA
443
- diziam - tinha procedido mal, pondo em risco a segurança d+e Santa Fé. pauis ter ficado no Rio Pardo, ora então, em último asq, seguido para o Angico. Mas na loja
do Alvarenga comentou-se que todo agnílo era apenas uma "bina do velho Amaral". No fundo a coisa não passava dum acinte, duma provocação. Ele ainda nãoo esquecera
que Bolívar era filho do homem que não só lhe roubara a rr~alher que ele amava como ainda por cima lhe deixara a marca na cara. Também nãoo perdoava ao falecido Aguinaldo
o ter construído um sobrado tão grande e confortável que deixara o seu famoso casarão "achicado", num segundo plano.
Muitas pessoas vinham agora para a praça olhar. o Sobrado. Reconheceram nos gnardás que o cercavam, peões da estância do velho Amaral. Estavam eles sentados debaixo
das árvores, conversando, com o olho posto ria casa de Bolívar, cujas janelas e portas permaneciam fechadas.
No segando dia de quarentena o Dr. Carl Winter, depois de muito instar com o senhor de Santa .Fér conseguiu licença pau entrar no Sobrado. Seu melhor argumento foi
o de que alguém, no fim de enatas, tinha de ir ver se havia algum pesteado lá dentro, e que, a pessoa mais indicada para isso era ele, o médico da família.
O sino da capela batia as primeiras badaladas da ave-mana quando os curiòsos viram o doutor atravessar a praça com seu andar de girafa e bater à porta do Sobrado.
Viram também quando a porta se abriu e o alemão entrou.
- Suba, doutor - disse Bibiana.
Subiram lado a lado os degraus que levavam do portal ao
soalho de vestíbulo. Winter tirou o chapéu.
- Vim ver se estão precisando de meus serviços aqui. - Estão.
- Alguém doente?
- Do cólera, nãoo. Mas passe aqui pra sala. Sente-se.
O médico sentou-se. A sala estava sombria, de ar enfumaçado, e cheirava a incenso.
- Onde está o Bolívar?
- Lá em cima, no quarto dos fundos. Está lá desde ontem, fechado a chave. Não come, não bebe, não -fala com ninguém. - Mas que foi que aconteceu?
Bibiana contou-lhe em voz baixa, sem omitir nada, tudo quanto se passara ali no Sobrado após a chegada do casal. Winter escutou-a em silêncio, com ar reflexivo,
e de quando em quando coçando Oqueixo.
- E o diabo - murmurou ele; mais para si mesmo que para a interlocutora.
- Qae foi que vosmecê disse?
- Digo que é o diabo .. .
. Agora nãoo adianta chorar. r preciso a gente fazer alguma
coisa-
Como vai a criança?
Bem. Contínua encerrada na água-furtada.
E a mãe?
- Está no quarto dela, também fechada a chave. Hoje de
manhã desceu, me deu bom dia e me pediu desculpa das coisas que
me disse ant"ontem. Eu respondi: Palavras loucas, orelhas moucas."
O médico sorriu.
- Moucas? Que é isso?
Bibiana encolheu os ombros.
- Sei lá3 É um ditado. Quer dizer que a gente não deve dar ouvidos quando os loucos falam. Mas como eu ia dizendo, ela pediu café pra Natália e depois voltou pro
quarto. Levou a cítara. De vez em quando toca. Não é bem louca mesmo? .

Winter sacudia a cabeça dum lado para outro, perdido em dúvidas. A situação cómplicava-se. E com que freqüência na vida o dramático e o grotesco se juntavam e saíam
a pular de mãos dadas!
- Nenhum deles viu ainda o filho?
- Nenhum. Eu nãoo deixo. A-vida da criança é mais importante que tudo mais.

- E que é que vosmecê quer que eu faça?

- Quero que fale com o Bolívar. Pode ser que ,ele le onça. Tenho muito medo que -ele faça alguma loucura. É genioso como Opai. Tenho tanto medo que de hora em hora
vou bater na porta. e só fico sossegada quando ele me responde lá de dentro.
Winter habituara-se a sempre falar claro com Bibiana.
- Quer dizer que vosmecê tem medo que ele se mate?
- ~. Que se enforque. Desde que enforcaram o Severino ele vive com essa .idéia na cabeça.
- A idéia de se enforcar?

- Não. A mania de falar em forca. Sonha com gente enforcada.
Winter pediu licença para acender um charudnhó. E quando já o tinha aceso e apertado entre os dentes, disse:
- O Bolívar é um homem que gosta muito da vida. Pessoas assim nãoo se matam. Além de tudo, ele tem loucura pelo filho e há de querer pelo menos ver o menino crescido.
Bibiana fez uma careta de dúvida e perguntou:
- O senhor acha mesmo ou está dizendo isso só pra era fiar sossegada?
- Está claro que acho.

Por que estou metido nisso? - perguntou Winter de repente a si mesmo.
Bibiana olhou para os lados com ares misteriosos e disse em voz baixa:
+44
O CONTINENTE

- Doutor, alguma coisa aconteceu em Porto Alegre que deiz
o pobre rapaz desnorteado. Depois dessa viagem parece que ficou pior. E en tènho medo que elè acabe ficando com ódio mim. porque afinal de contas foi por minha causa
que ele a mulher.
Winter ergam-se.
- Acho melhor eu ir conversar com ele. - Qacr ir agora?
- .Vamos.
Encaminharam-se para a escada e subiram os degraus em silênci No patamar, lá em uma, Bibiana fez" com a cabeça um sinal ãireção duma porta fechada.
- Ela está lá dentro.
Seguiram pelo .corredor mal-.alumiado e finalmente chegaram uma. ostra porta.
- Eu vou descer, doutor. O senhor bata, entre, fale com ek dê conselhos, veja se pode fazer algema coisa:
Winter limitou-se a sacudir a cabeça, num assentimento, depois que viu a mât de Bolívar afastar-se no corredor -bateu porta. Não teve resposta. Tornou a bater. De
dentro do quarta
veio uma voz abafada.
- Qnem é?-
- Soa en. O Dr. Winter.
- Que é que quer?
-~ Faça o favor. de abrir.
O médico ouviu soas de passos que se aproximavam da porta. De repente eles cessaram e Winter teve a impressão de sentír a presença do outro através da madeira chegava
quase a ouvú-lhe s respiração ansiada. Teve receio do que ia ver.. Qaase se arrepender de ter vindo. Aquela gente era teimosa,. difícil; seu raciocínio sem sutilezas
seguia uma inflexível linha reta, era como um boi enfarecido gne.leva tudo por diante. Selvagens! Eis o que eram. SelvageasI Mas no fundo Wintèr sentia que seu refinamento
europeu aão passava dam eterno assobiar no escuro, dum permanente fugir aos problemas. Aqueles homens rudes da Província pelo menos davam nome às coisas e nãoo se
envergonhávam de sena sentimentos.
- BolívarI - tornou a dizer. - Faça o favor de abrír. Só por nm instante.
A maçaneta movem-se e a porta entreabriu-se. Na .fresta aparecem em penumbra metade do rosto de Bolívar. . - Que é que o senhor quer?
- Duas palavras.
Houve uma leve hesitação do outro. Por fim ele abriu a ~ porra por completo e disse:
O alemão entrou. As janelas estavam fechadas, o quarto escuro, e andava no ar viciado um cheiro azedo de suor humano muitas vezes dormido.
Winter caminhou para uma das janelas, abriu os postigos e ergueu a vidraça. A luz e o ar frio da tard° entraram no quarto. Era uma peça quase nua, onde havia ums
cama-de-vento, duas cadeiras e um velho baú de lata. A um canto se via uma roca antiga, de pedal quebrado.
- Quem foi que mandou abrir a janela? - perguntou Bolívar.
Estava de barba crescida, olhos injetados, em mangas de camisa, pés descalços, as bombachas brancas amassadas. Envelheceu vinte anos - pensou Winter, contemplando
o rapaz.
_Foi com voz calma que disse
- Um médico nunca pede .licença para fazer essas coisas.
- Mas en não mandei chamar nenhum médico.
Winter respirou fundo, como para dominar seu. desejo de dar uma resposta violenta.
- Olhe, Bolívar, não vamos .perder tempo com bobagens.
E ao dizer essas coisas notou que quando se comovia seu português piorava, seus erres se faziam mais rascantes, ele trocava o b pelo p e por nada deste mundo conseguia
pronunciar direito o áo. Mas prosseguiu
- Sei de tudo que se passou nesta casa. Sua mãe me contou.
Bolívar olhava-o, num desafio, como quem diz: "Contou? E daí?"
- Vosmècê talvez não saiba - prosseguiu Winter - que quando nós recebemos o diploma, fazemos um juramento solene de guardar o segredo profissional. Nada do que um
cliente me diz ea posso contar a outros. Nada. Estou aqui não sb . como seu , amigo, mas principalmente como médico da casa.
Deu dois passos na direção do rapaz. Sentia agora que o hálito do outro cheirava a cachaça. Com o canto dbs _ olhos viu uma garrafa junto da cama.
- Por que não vamos nos sentar é conversar com calma, hã? Por quê? Hâ?
Puxou uma cadeira e sentou-se. Bolívar hesitou nm instante e depois se recostou- na cama.
- Vamos fumar? - convidou o médico.
- Não tenho fumo nem palha.
- Eu tenho - replicou Winter, tirando do bolso um maço de palhas e um pedaço de fumo em rama.
A voz de Bolívar mudou por completo, tornou-se calma,.riataral e - estranho! - quase trocista quando ele perguntou:
- Então sempre resolveu fumar os nossos crioulos?
Winter soltou uma risadinha rápida.
- A crente se habitua a tudo.
A TEINIAGUA 445
- Entre.
#~F46 O CONTINENTE
Bolívar pegou o fumo que o médico lhe dera, apanhou à qac tinha debaixo do travesseiro, e começou a fazer nm ci Winter observava-o com o rabo dos olhos, enquanto
fingia exa
- quarto.
- Vosmecê e sua mulher tiveram sorte ... - disse ele, de, algum tempo.
- Sorte? Por quê?
- Andaram no meio dos pesteados e não pegaram a doe Bolívar baixou os olhos.
- ); melhor a gente nãoo falar nisso.
- Mas nós temos que falar em alguma coisa 1 - exdamoa médico, quase exaltado. - Será que lhe falta coragem para enfren
- assento?
- Não é questão de coragem. - Então de que é?
- L que náo adianta falar.
- Adianta, sim.
Winter bateu a pedra do isqueiro e quando o pavio estava a aproximou-o do cigarro que o outro tinha pzeso entre os dentes.
Guardou no bolso o pedaço de fumo e o pacotinho de palha fez uma pergunta brusca
- Por que é que está metido neste quarto?
- Porque quero. ,
- Era essa mesma a resposta que era esperava. A resposta dum homem macho. Estou porque eu quero. Mas isso não esclarece nada. As crianças também respondem assim.
Vamos, fale com franqueza. .Fugir a nm problema nãoo é resolver esse problema. Por que é que está metido neste quarto? Não vê que nãoo pode passar o lesto da vida
assim? Mais cedo ora mais tarde tem de descer. Vosmec8 precisa comer, beber, fazer as suas necessidades. Vosmecê é o chefe desta casa. Náo compreende que essa atitude
nãoo resolve nada?
Bolívar sacudia a cabeça com impaciência. Tiroe uma baforada de fumo e depois cuspiu no chão com força.
- En sei, eu sei. Mas é que soe nm homem de vergonha. Ontem bati no rosto da minha mulher. Entoe envergonhado. Homem nãoo dá em mulher. Só nm covarde. Me portei como
nm covarde. En devia mas era queimar estas mãos.. .
Abrie ambas as mãos, de palmas voltadas pau o alto, e mirou-a oom rancor, como se só elas doessem culpa de fedo quanto atoa Leem.
Winter sacudia a cabeça e coçava freneticamente o queizo.
- Vosmecê não conhece ainda a mulher com quem vïve? Não
sabe que ela é doente e que sente prazer em fazer os outros sofrerem? Apontoa para a cicatriz de queimadura aa mão de Bolívar. - Isso aí, por ezemplo .. .
- Me queimei no fogão .. .
A" TEINIAGUA 4f7

Não é verdade. En sei de tudo, Nio se esqueça que sou médico e não nasci ontem.
A voz lhe saíra incisiva e tine. Ergueu-se e foi até a janela. Olhou pau as- árvores do pátio, tão calmas e belas àquela fiou, e ficou am instante a aspirar o cheiro
leve e claro da tardinha.
- Por que foi que demonnm tanto em Porto Alegre? - pagnnton Winter de repente, sem se voltar pau o interlocutor.
Porque era quis.
4 médico fez meia volta:
- Diga antes: porque Luzia quis.
- Pois se o senhor sabe de fado, por que é que pergunta?
Winter tentou ontn tática.
- Seja homem. Bolívar, encare o seu problema de frente. Fiar babo não adianta nada. Os homens desta provmcia parecem achar que podem resolver todo a gritos, tiros
ora facadas.
Bolívar pitava em silêncio, olhando para o chão. Por muito tempo ficou assim. como que esquecido da- presença do médico. Depois mudou. de posição na cama, cruzou
as pernas e disse com voz magoada
- L ema história muito triste e muito compnaa, doutor.
- Um médico está habituado a ouvir histórias tristes. Não tenho nenhuma pressa. Pode contar.
- Por que vosmecê abriu tanto a janela?
- Pata entrar ar fresco e um pouco de sol.
- Não podia. fechar nm pouquinho?
Winter compreender. Erguem-se e fechou os postigos, deixando apenas uma fresta por onde entrava agora uma estreita faixa de sol.
- Há coisas que um homem tem vergonha de contar, doutor.
Honra e vergonha ... - pensou Winter. Como os homens do Rio Grande falavam em honra e vergonha) Honra manchada lavava-se com sangue. Havia uma lei que proibia os
duelos, mas os duelos se realizavam assim mesmo, a tiros, a espada, a adaga. O Dr. Nepomnceno falava com solenidade em Justiça, mas aqueles homens realistas náo
confiavam em juízes e tribunais. Resolviam suas pendências pelas armas: faziam justiça pelas próprias mãos.
- Estafe aqui. Bolívar. Se vosmecê tivesse uma dessas deenças ... pegadas ... compreende? ... dessas que a gente tem vergonha de contar, que é que fazia? Sofria
calado e ficava estragado pau o resto da vida ora ia contar tudo ao médico?
- Contava todo ao médico. Mas o caso aqui é diferente, doutor.
- Náo é muito. Vejá bem. Luzia é uma mulher doente, doente do espírito. E vosmecê vai. acabar também doente da cabeça se continuar nessa atitude.
- Que é qqe vou lhe contar? Vosmecê pelo jeito já sabe de todo. .
- De tudo não. Conte o que foi que aconteceu em Porto Alegre.
448 O CONTINENTE
A TEINIAGUA 449
Bolívar mordia com força o cigarro apagado. Depois deizoa cair no chão, apertou uma mão contra a outra, entrelaçou os
- Só depois que começou a peste lá em Porto Alegre é qne
vi com quem tinha casado. Dizem que o pior cego é o que quer ver. Eu andava cego, assim como enfeitiçado. Muitas v quando Luzia brigava com a mamáe eu ficava do
lado de Luzia. Cheguei até a ficar meio indiferente. como Florêncio por causa dela; Agora o Florêncio nem entra mais nesta casa.
Calou-se, como que engasgado. Vendo que o outro nãoo proa seguia, Winter quis ajudar a narrativa e antecipou:
- Vosmecê descobriu que todas aquelas coisas horríveis, gente sofrendo e morrendo nas ruas, tudo aquilo para sua mulher eras mesmo que uma festa, não foi?
Bolívar sacudiu a cabeça numa lenta afirmação.
- Logo que ficamos sabendo da peste, eu quis wir embora. Ela ficou furiosa. Disse que não tinha feito aquela viagem cansativa só pra passar um mês em Porto Alegre.
Quando, falei que a gente podia pegar - o cólera, ela me chamou de covarde. Assim, fomos ficando. Eu andava desnorteado, desconfiava da água qne bebia, das coisas
que comia. Não podia dormir de noite. Sentia por todos os lados cheiro de morte, de podridão. Mas Luzia andava contente. Ficava na janela olhando as pessoas que
caíam na rqa. Às vezes ia pra fora pra esperar a carroça que vinha recolher os defuntos, ia olhar de perto a cara deles ... Uma vez chegou a entrar numa casa onde
estavam velando um morto; náo conhecia ninguém mas foi direito. ao caixão e tirou o lenço .da cara do defunto e ficou olhando. Fazia tòdas essas coisas .mas de noite,
aa camas tremia e chorada de medo. E quando eu convidava pra vir embòra, ela não queria. `"Só mais uns dias, Boli" - ela dizia - "só mais uns dias".
- E que era que vosmecê achava de tudo isso?
- Ora,. doutor, às vezes eu tinha vontade de surrar ela, de pegar ela à força, botar dentro da jardineira e vir embora. Outras vezes ficava com pena, principalmente
quando de noite ela se agarrava em mim, começava a tremer e a choramingar.
Winter sacudia a cabeça. Tudo aquilo parecia puro melodrama.
- Foi entáo que me convenci que tinha casado com .uma mulher louca. E o pior era que eu continuava louco por ela. Vosmecê nãoo pode imaginar como os homens lá em
Porto Alegre olhavam pra Luzia. Uma noite no teatro um capitão dos Dngôes não tirava os olhos dela. Eu até quis ir tirar uma satisfação~ . .
Winter aprendera que naquela província a expressão "tirar uma satisfaçâó " eqüivalia quase sempre a um desafio para duelo.
- Poís esse homem depois vivia rondando o hotel onde nós estávamos parando. Fiquei sabendo que o tal capitão se chamava Paiva... Não .sei,,o que Paiva. Descobri
que morava na Rua da
Olaria ... Eu estava disposto a ir falar com ele pra acabar duma vez com aquela história. Foi quando a peste começou forte. Por fim eu já nãoo sabia o que fazer.
Um dia comecei até a pensar qne a Luzia não queria vir embora por causa desse capitão. Senti o ciúme assim como uma facada no peito.
- Mas vosmecê acha que ela estava. interessada no capitão?
- Camo é que a gente vai saber o que uma mulher como a Luzía está sentindo? No teatro- vi que ela também olhava pra ele, que estava gostando de ser olhada. Um dia
peguei ela perto da janela do quarto, olhando pra rua, e vi o capitão parado numa esquina. Desci como uma bala. Quando cheguei lá em baixo ele tinha desaparecido.
Aí se passou um coisa engraçada. Depois disso quem não queria vir embora era eu. Precisava primeiro agarrar o tal: capitão .. .
Bolívar calou-se. Winter esperava, com o toco de charuto apagado no canto da boca.
- En não devia lhe contar essas coisas, doutor.
- Por que não?
- Porque há coisas que um homem não conta nem pro pai, nem pra mâe, nem pro melhor amigo.
Ergueu-se de repente, caminhou até um ângulo do quarto, ficou junto da velha roca e suá mão distraída começou a fazer a roda girar. Era um canto sombrio. Como que
se sentindo protegido pela penumbra, Bolívar continuou:
- Mas eu preciso contar isso pra alguém. Preciso desabafar. Não é mesmo? Uma tarde a Luzia saiu e disse que ia na costureira. Mas quem é que se lembra de fazer vestido
no meio da peste? Todo mundo andava louco de medo. Quem podia fugir, fugia. As casas de negócio estavam fechadas. Ninguém queria sair na rua de medo de ter um desmaio,
cair e ser levado como morto pro cemitério. Pois Luzia nessa tarde saiu. Menti que estava me sentindo mal e disse que ia ficar no hotel. Mas na verdade fui seguindo
a minha mulher. seguindo. Ela entrou na Rua da Olaria. Vai se encontrar com o
capitão - pensei. Vi que tinha de matar os dois. Vosmecê nãoo
imagina como meu coração batia. Mil vezes uma guerra, um entre
vero, uma carga de lança ... Mil vezes um combate bem brabo do
que aquela situação. Porque eu vi que podia cortar o corpo do
capitão em mil pedaços, mas que nãoo ia ter córagem de fazer nada
pra Luzía. E que i~ continuar vivendo com ela depois de tudo.. .
Para deixar o outro mais à vontade, Winter nãoo olhava para ele.
- Pra encurtar a história, doutor, a Luzia parou na frente
duma casa cor-de-rosa da Rua da Olaria. O senhor sabe, lá na
Capital as casas têm número. Era o 165. Me lembro bem. O 165.
A portá estava meio aberta. A Luzia entrou. Esperei um pouco.
entrei também. O corredor estava esçuro. Subi a escada devaga
rinho, com a cabeça latejando, ía meio catacega, meio transtornado.
45O O CONTINENTE
Primeiro não entendi o que estava acontecendo. Tinha muita gente por ali, conversando baixinho.. A Luzia estava de branco. Vi aquele vulto claro na sala meio escura.
Depois ~é que compreendi que era um velório. Espiei por cima do ombro dum homem e vi quando a Luzia chegou perto do caixão, tirou o lenço do rosto do defunto e ficou
olhando. Custei um pouco a reconhecer o Cap. Paiva. Estava muito desfigurado. Fiquei com as pernas moles, fiz meia volta e até agora nãoo sei com saí daquela sala.
Naquele dia tomet uma bebedeira braba, dessas de cair. Quase me levaram na carroça, pensando que eu estava pesteado. - Bolívar fez uma pausa. Entostou-se na parede,
como que subitamente cansado. - Dois dias depois foi a Luzia que me convidou pra vir embora. Disse que estava com saudade do Licurgo.
Winter ficou por um instante num silêncio reflexivo. perguntou
- E qué foi que vosmecê disse a sua mulher, depois que ela voltou para a pensão naquela tarde?
- Nada.
- E ela não sabe que vosmecê a seguiu? - Não sei. Acho que não.
- E até hoje nãoo tocaram no assunto?
- Até hoje... Agora eu me arrependo de não ter falado. Porque desde ontem estou aquí sozinho pensando, matutando. Passei a noite de olho aceso, me lembrando daquilo.
Luzia olhando pro morto ... Se ela sabia onde o capitão morava era porque tinha estado lá antes, vosmecê não acha? Rua da Olaria, 165... vosmecê não acha?
- )r possível até que ela nunca tenha falado com esse homem.
Decerto ouviu dizer que o capitão tinha morrido e teve vontade de ir ver o corpo dele .. .
- Pode ser. Mas não sei. Quero deixar de pensar nisso e não posso.
- Sabe o que estou pensando? É que Luzia fez tudo isso de pura malvadeza. Ela sabia que vosmecê ia segui-la. Viu quando vosmecê entrou na casa .. .
Bolívar tornou a dar um tapa brusco na roda da roca.
- O doutor quer dizer que ela nunca teve nada com esse tal Cap. Paiva?
- Exatamente.
Bolívar sacudiu a cabeça.
- Isso é bom demais pra ser verdade. Mas de qualquer jeito eu devia ter falado com ela naquele dia. Agora é tarde. Não tenho nem coragem. Mas essa coisa não me sai
da cabeça.
Winter aproximou-se da janela e jogou fora pela fresta o tõco de charuto.
A TEINIAGUÃ 451

- Mas essa nãoo é a pior parte do assunto, Bolívar. Faça o possível para esquecer isso.
- Mas ela é louca, nãoo é, doutor? - perguntou Bolívar de repente, e no tom de-sua voz havia como que uma súplica: era como se implorasse uma resposta negativa.
- 13 uma pessoa doente e como tal tem de ser tratada.
.- Mas en gosto dela, não posso viver sem ela, nunca vou ter coragem de mandar a minha mulher pra um hospício.
Winter estava perplexo. Náo sabia que dizer. Era uma situação com que nunca se havia defrontado em toda a sua vida. Poderia a propósito dela fazer reflexões filosóficas,
recorrendo a um palavrório bonito. Mas para um homem como Bolívar, tinha de dar uma solução prática, concreta, clara.
- Temos que pensar ... - disse, ao cabo de alguns segundos de reflexão. - Temos que pensar ... - E achou-se tolo, ignorante e impotente. - Mas a primeira coisa que
vosmecê tem a fazer é deixar este quarto e retomar sua vida. Não se esqueça que é o homem desta casa, o chefe. Com o tempo havemos de descobrir uma solução .. .
Aquilo era uma promessa vã, uma mentira. Sabia que acharia paliativos para aquele problema, mas nunca uma solução. Se a ciência curava casos como o de Luzia, essa
ciência nãoo estava a seu alcance; ele a ignorava.
Com o tempo? - repetiu Bolívar, saindo de seu canto escuro. Por um momento ficou dentro da fita luminosa de sol, que lhe acentuou a palidez amarelada. - Mas vosmecê
não compreende que está tudo de pernas pro ar? O menino fechado lá na água-furtada, a casa de quarentena .. .
- A quarentena há de passar.
- Mas é um abuso! O Bento Amaral féz isso porque não gosta de mim. Era inimigo de meu pai. Tem raiva do Sobrado.
- O Dr. Viegas concordou com a medida.
- O Dr. Viegas já está dominado pelo velho Amaral. Todo mundo aqui diz amém a esse patife.
- Tenha paciência, Bolívar. Não junte mais esse problema aos outros que são muito mais sérios.
- Mas é que preciso sair daqui, ir ao Angico ver como estôo os meus negócios. Muita coisa pode acontecer em quarenta dias. E vosmecê já pensou no que é a gente ficar
aquí fechado dentro de casa, depois de tudo que aconteceu? Já pensou?
Winter ergueu-se.
- Vou falar com o Cel. Amaral e dizer que nãoo há perigo de vosmecês terem pegado a doença. Todo mundo sabe que tem chegado gente do Rio Pardo todos os dias. Vou
pedir que acabem com a quarentena.
- Não peço favor pr"aquele canalha.
452 O CONTINENTE
A TEINIAGUA 453
- Não se preocupe. Farei o pedido em meu próprio nome. - E se ele nãoo atender?
- O remédio é esperar com paciência. A usa está orada de guardas.
- São os bandidos do Bento Amaral, os capangas dele. Eu conheço. É o bentinho de Ouro, que matou três homens na Soledade. ir o Quinzote, que degolou um velho na
Vaaria. Conheço bem essa corja. Estão armados e de guarda por aí. O Bento Amaral pensá que tenho medo dos apaniguados dele.
Winter pôs a mão no ombro de Bolívar.
- Olhe aqui, meu amigo. Desça, tome um banho, um bom chimarrão e alimente-se direito. Sua mâe está aflita por sua cansa. Ela tem medo .. .
Calou-se abruptamente.
- Medo que eu faça alguma loucura?
- Medo de que vosmecê se enforque.
- Só se eu estivesse louco. Preparar uma corda, fazer o laço, escolher um ramo de árvore, botar o pescoço na corda e depois .. . Não. Leva muito tempo. Só se eu
estivesse louco. - Encarou o doutor bem de frente. - Vosmecê acha que estou correndo o perigo de ficar louco?
- Absolutamente. Vosmecê é um homem normal. Só está um pouco apaixonado. Ias isso passa. Principalmente se -fizer o que digo._ Reaja, pense assim: sou moço, nãoo
estou em nenhuma dificuldade financeira, tenho um filho bonito e são .. .
- Tudo isso é fácil de dizer, doutor. Mas mão sou nenhuma criança que o senhor pode engambelar pra fazer. tomar óleo de rícino.
- Quer dizer então que vosmecê acha mais fácil entrar numa carga de cavalaria e atirar-se em cima dum quadrado de soldados de baionetas caladas?
- Acho, doutor. Vosmecê disse uma coisa agora que... Pois é. Uma guerra resolvia tudo. Se houvesse uma guerra eu ia. Era o mesmo que deixar a coisa correr. O destino
que resolva. Men pai tinha razão. Guerra é remédio pra tudo.
- Não diga tamanho absurdo!
- Eu digo o que sinto. Mil vezes uma boa guerra.
E dizendo isso dava tapas nervosos e repetidos na roda da roo, fazendo-a girar.
Alguns minutos depois Winter descem. Bibiana esperava-o aa sala de visitas.
- Então? - perguntou ela.
- Não tenha medo - respondeu o médico. - O Bolívar mão vai se enforcar. No fundo ele ama a vida. Tenha paciência. Va
mos dar tempo ao tempo, como se diz por aqui. O tempo é um remédio infalível.
- Tempo é remédio de pobre.
Winter apanhou o chapéu e já no vestíbulo disse:
- 81e prometem descer e fazer o -possível para encarar a situação com calma. Vou pedir ao Cel. Amaral que acabe com a qua
rentena. Não há razão para isso.
- Vosmecê acha que ele acaba.?
- Acho.
- Pois eu duvido.
O médico estendem a mão para Bibiana, que a apertou de leve. rapidamente, à maneira das mulheres da Província, que pareciam temer que as mãos de home~ps estranhos
lhes transmitissem alguma doença.
Vinham agora lá de cima os sons da cítara de Luzia. A teiniaguá toava uma valsa. Meïo desconcertado, Winter lançou um olhar
rápido para Bibiana, abriu a porta e saiu.
19
Por aqueles dias Carl Winter escreveu a Von Koseritz: "Espero que o meu caro barão tenha realizado os seus sonhos, que seu jornal seja um sucesso e a escola outro.
Quanto a mim, sou um fracassado. O médico da municipalidade tem agora as preferências do nosso Junker local. O Sobrado continua de quarentena, já vai para uma semana.
Devo dar graças por me permitirem entear e sair de lá à vontade.. Bolívar anda irritado, considera-se vítima duma intriga política e já fala, em duelo. Falei com
Florêncio, perguntei-lhe que podíamos fazer para evitar um conflito. `Nada" - me respondeu ele. E explicou que se um Terra é teimoso, um Terra com sangue de Cambará
é uma mula, e uma mula coiceira. (Foi essa a expressão que ele usou.) Parece mesmo que da parte do velho Amaral o que há mesmo é birra, desejo de desmoralizar Bolívar.
O Dr. Nepomuceno recusou-se a interceder em favor do rapaz. O Pe. Otero nem quer ouvir as minhas razões. E lá está aquela gente filhada no Sobrado e, pior que isso,
filhada cada um em si mesmo. O meu caro amigo já reparou- que, em última análise, uma pessoa não passa duma porção de paixões, cercada de incompreensão por todos
os lados? Este pequeno arquipélago de Santa Fé não está propriamente no Mar Tenebroso, -mas sob sua aparência de quietude e rotina tem também seus dramas. E eu,
como médico, faço o curioso papel de lançadeira, indo e vindo a conduzir a frágil linha que costura esse tecido dramático. Creio que estou ficando literato, tão
literato que não~se admire o meu óom amigo se um dia eu lhe mandar sonetos ou
#454 O CONTINENTE
A TEINIAGUA 455
pensamentos filosóficos para seu jornal. Pois dramas não falt por aqui, meu caco. Eu os vejo, eu os cheiro, eu os ouço, eu os apal Há dramas no casarão do velho
Amaral. Dramas nas casas d colonos da Nova Pomerânia. Drama até no quintal do vigário, vizinho e inimigo. Drama há também no peito encatarroadp do Dr. Nepomuceno.
l~ías o maior drama de todos está no Sobrado,. Como médico - ah, a nobre, a sublime profissão médica! - nãa devo quebrar o sigilo sagrado; mas como velho tagarela
que aprecia: o espetáculo da vida, fico ardendo por contá-los ao mundo. Um dia ainda nos havemos de encontrar para uma longa palestra. Falaremos de tuas realizações,
Carl, de teus projetos. Falaremos um pouco também sobre o passado. Diremos mal de Napoleão III, da Inglaterra e pcincfpalmente dessa augusta vaca, a Ranha Vitória."
Winter interrompeu a carta. Olhou o relógio. Eram quatro e meia da tarde e ele tinha prometido ir ao Sobrado para ver Licurgo, que estava um pouco febril. Vestiu-se,.
pensando nas muitas outras coisas que .diria ao barão no restante da carta. Ia perguntar-lhe como conseguia ele escrever tão bem em português, se não sentia saudade
da Pátria; se sabia o preço duma passagem de vapor do Rio de Janeiro a Bremen .. .
Botou o chapéu na cabeça, acendeu um charutinho e saiu.
O céu estava limpo, o ar parado, o sol morno.. Ao passar pela
casa de Florêncio, Winter aproximou-se da janela e gritou: - D. Ondina l
A mulher apareceu, vindo do fundo da casa, com o filho no solo.
- Boa tarde, dòutor.
- Como vai o menino?
- Vai bem. Tem andado com uns sapinhos na língua, mas já está melhorando.
- Onde está o Florêncio?
- Anda pra fora, fazendo uma tropa.
- Está bom. Precisando de alguma coisa é só mandar me chamar.
- Muito obrigada, doutor.
Winter lançou um olhar de soslaio para o ventre de Ondina. A rapariga estava outra vez grávida. Sorriu ao pensar na história que Bibiana lhe contara um dia sobre
uma famosa tesoura de podar
da velha Ana Terra.
Atnvesson a praça em passo lento. Não tinha pressa de chegar. Ultimamente achava opressiva a atmosfera do Sobndo - opressivz e árida.
Lnzía andava paradoxalmente humilde, terna e submissa. Passava como sempre muito tempo fechada no quarto, tocando cítan ou lendo, e quando descia falava pouco. Bibiana
desvelava-se em
cuidados para com o neto e tomava conta da casa. Vinham mantimentos da estância ou da venda do Schultz; os sacos e pacotes entravam pelo portão dos fundos, sob o
olhar fiscalizador dos capangas de Bento Amaral. Bolívar andava cada vez mais impaciente, fumava cigarro sobre cigarro, e ultimamente (contara-lhe Bibiana. apreensiva)
dera para passar os dias a beber cachaça. "~ essa maldita quarentena" - queixara-se ela.
Não. Ele não tinha nenhuma pressa em chegar. A praça estava bonita. Poucas eram as árvores que o inverno despira. Lá estava a grande figueira, muito copada, dum
verde-garrafa sombreado de negro, e com seu tronco e galhos que pareciam membros humanos. Ela também era comparsa daquela comédia - refletiu Winter - mais do que
mera parte do cenário.
Começou a atravessar a rua.
- Boa tarde, doutor!
O médico voltou a cabeça na direção da voz. O bentinho de Ouro estava sentado debaixo do cinamomo da praça que ficava fronteira ao Sobrado. Tinha o chapéu atirado
para trás, deixando descoberta a testa curta e bronzeada. Seu dente de ouro luziu quando ele arreganhou os beiços para o alemão. Este se limitou a bater com o dedo
na aba do chapéu, lançou um rápido olhar para o homem e continuou seu caminho.
Ouviu de novo a voz do capanga:
- Sete dias, dontorl Faltam ainda trinta e três!
Não respondeu nem se voltou. Mas bentinho de Ouro tornou a gritar:
- Hoje. termino o meu trabalho. De tarde vou pra estânciá do coronel. O Mané Borba vem me render.
E eu com isso? - pensou Winter, batendo na porta do casarão. Uma das negras escravas veio abri-la e ele entrou. O cheiro do Sobrado - madeira, porão, cozinha, defumação
- envolveu-o. Agora para ele aquilo era "cheiro de drama", uma emanação dos problemas mesmos daquela casa e de seus moradores.
Bibiana levou-o imediatamente ao quarto de Licurgo. O médico aproximou-se do berço, pousou a mão na testa do menino e disse :
- Está fresquinha. Acho que a febre se foi.
Pôs o termômetro na axila da criança. Pouco depois tirou-o, leu-o e murmurou:
- Temperatura normal.
Naquele momento ouviram-se passos pesados no corredor. Era Bolívar. Ao ver o médico, através da porta, parou e disse:
- Foi bom vosmecê ter vindo.
Havia em sua voz um tom que Winter não gostou. Era algo de apertado, gutural e ameaçador.
- Está sentindo alguma coisa?
45ó O CONTINENTE
As mãos do rapaz tremiam e seus olhos tinham um brilho anormal.
- Não. ~ Estou bem. Muito bem até. Bem demais.
- Ele anda nervoso por causa da quarentena, doutor .. . explicou Bibiana.
Bolívar voltou, brusco, a cabeça para ela e disse; - Não se meta, mamãe, nãoo se meta. Tornou a encarar o médico:
- Vosmecê é testemunha. Tive muita paciência até agora. Mas estou resolvido a nãoo .agüentar mais. ~ um desaforo. Eu...
- Não se exalte, não há omeçou Winter. Mas o outro cortou-lhe a palavra:
- Meus negócios andam de pernas pro ar. Na vila todo Omundo se ri de mim, encurralado aqui dentro, como um bicho, só porque o Bento Amaral deu uma ordem. Quem é
ele pra se meter na minha vida? Quero botar a mínha marca no outro lado da cara desse canalha!
- Espere um pouco. Posso falar de novo com o homem .. .
- Não espero nem mais um dia nem maís uma hora. Não quero ficar louco .fechado aqui dentro.. Vosmecê como pode andar livre por toda a parte não sabe o que estou
sofrendo. - Calou-se, ofegante. Olhou o médico bem nos olhos e disse: - Desça comigo. Quero que seja testemunha.
- Mas testemunha dv quê .... ? - principiou o outro. - Venha I
Encaminhou-se para a escada e desceu apressado. Winter e Bibiana o seguiram.
- Que é que vai fazer, meu filho? - perguntou ela. - Vosmecê já vai ver.. .
Aproximou-se da janela que dava para a praça, ergueu a vidraça de guilhotina e gritou para fora:
- bentinho de Ouro! Vá dizer pro seu amo que eu vou sair!
Aquela voz positivamente nãoo era de Bolívar - refletiu Winter. O ódio a desfigurava.
Winter aproximou-se da janela e olhou para fora por cima do ombro do rapaz. Viu o capanga erguer-se, sob o cinamomo, aproximar-se lento do meio da rua. e perguntar:
- Que tem ?
- Vá dizer pro seu patrão que eu, Bolívar Cambará, vou já já sair do Sobrado.
Lá de baixo Ooutro gritou:
- Temos ordens de não deixar ninguém sair, moço.
- Vá chamar o Bento Amaral. Diga pr"aquele comoduma
figa que venha me atacar se ele é homeml
E ao dizer isto Bolívar espumava na comissura dos lábios e seu
A TEINIAGUÁ 457

corpo inteiro trepidava. Winter estava simplesmente imóbilizado pelo espanto. . .
O capanga teve um momento de hesitação, mas depois replicou sem rancor:
- ~ melhor vosmecê não experimentar. Nós estamos armados.
- Eu também estou!
Voltou-se, enfiou o chapéu na cabeça e disse:
- Chegou a guerra. Agora não tem mais jeito. Eu já disse que saía e saio mesmo.
- Rodrigo! - grítou Bibiana. Imediatamente corrigiu=se: - Bolívar!
Agarrou o braço do filho, mas este se desvencilhou dela com um repelão. -
- Não deixe ele saír, doutor! Por amor de Deus, não deixei Vão matar o meu filho.
Winter tentou deter Bolívar, mas o .rapaz o empurrou com tanta violência que o médico perdeu o equilíbrio e caiu de costas.
Bolívar precipitou-se para o vestíbulo de pistola na mão. Desceu em duas largas passadas a escada que ievava à porta, abriu esta com um safanãoo e saiu.
- Volte, moço! - gritou bentinho de Ouro "do meio dá rua, começando a recuar devagarinho na díreção do cinamomo. -Volte que eu não quero le lastimar..
-.Que venha o Bento Amaral! - gritava o filho do Cap. Rodrigo. - Que venha esse canalha ladrão cachorro covarde corno! Que venha se é homem! , Que venha a capangada!
- Não atirem no menino! - suplicava Bibiana, aos gritos, debruçada na janela.
De pistola erguida Bolívar caminhava devagar mas impladvelmente, olhando sempre para bentinho de Ouro.
- Pare, senãoo eu atiro! - gritou éste último..
- Pois atira, capachoI Atira, pústula!
E continuava a avançar. bentinho de Ouro recuou ainda. uns três passos: estava agora com as costas tocando o tronco do cinamomo. Vultos apareciam às janelas das
casas próximas. Mulheres que andavam por ali deitaram a correr em pânico, aos gritos. Homens escondiam-se atrás de árvores. Um velho que ia atravessando a praça
naquele momento atirou-se no chão e ficou como que costurado à terra. "
Bolívar estava agora no meio da rua a olhar fixamente para o capanga:
- Onde está o comoladrão .que nãoo- vem?. Chama esse wvardeI Que venha toda a corja dos Amarais2
- Volte senão eu atirol - ameaçou ainda o outro.
Dïsse isso e levou, brusco, a máo à cintura. Bolívar fez fogo e
458 O CONTINENTE

bentinho de Ouro tombou de joelhos, segurando Oombro es querdo onde o sangue começou a escorrer. - Que venha mais um! - gritou Bolívar, triunfante.
Mal tinha pronunciado essas palavras quando se ouviram novos disparos: dois outros capangas dos Amarais haviam aparecido e alvejavam de alguma distância: um deles
atirava protegido por um dos pilares do portão do Sobrado; o outro achava-se ajoelhada atrás dos degraus da capela. Bolívar não se moveu de onde estava e começou
a fazei fogo também para a direita e para a esquerda, gritando:
- Que venham mais! Dois é pouco! Que venham!
Para afastar Bibiana 8a janela o Dr. Winter teve de segurá-U pelos pulsos e arrastá-la até uma cadeira; obrigou-a a sentar-se e ficou a fazer-lhe pressão nos ombros
para que ela ficasse imóvel. Por alguns segundos Bibiana relutou, tentou desvencilhar-se do amigo: mas de repente teve um relaxamento de músculos e ali se quedou
de olhos vidrados e fixos, a boca entreaberta, os braços caídos, a respiração arquejante.
Por alguns segundos ficaram os dois a ouvir o tiroteio. Num dado momento os tiros cessaram e fêz-se um silêncio pressago. Bibiana deixou cair a cabeça para trás.
Trêmulo, engasgado, sentindo que o coração queria saltar-lhe pela garganta, Winter aproximou-se da janela e olhou.
Bolívar estava caído de borco no meio da rua, com a cara metida numa poça de sangue.
Só dois dias depois é que o Dr. Winter terminou a carta para Von Koseritz. Depois de narrar-lhe a cena da morte de Bolívar, acrescentou: "Havia muita gente no enterro.
O corpo do rapáz foi sepultado entre o de Ana Terra, sua bisavó, e o do Cap. Rodrigo, seu pai. Luzia parecia inconsolável, chorava como uma criança a quem tivessem
roubado o brinquedo predileto. No cemitério, antes de descerem o caixão à cova, ela pediu para ver uma vez mais o
marido. Abriram o esquife. Eu não quis olhar o rosto do morto, mas olhei o da viúva: Não saberei descrever-te a expressão daquele semblante. Não era de gozo mórbido,
como eu esperava e temia, mas sim de dor, de profunda dor. Houve, porém, algo mais que me deixou com uma sensação de frio interior e de repugnãoncia por mim mesmo..
Naquele momento, meu caro, tive um vislumbre da besta que dorme dentro de cada um de nós, e o que senti me assustou, e até agora no momento em que te escrevo ainda
me perturba. É que me surpreendi a desejar violenta e carnalmente Luzia Cambará, ali
no cemitério, naquele momento mesmo em que ela contemplava pela última vez o rosto do marido defunto. E de mistura com essé desejo eu senti náusea, como se meu sexo
se tivesse transferido para a boca do estômago. Fiz meia volta e ..saí do cemitério apressadamente."

Carl Winter releu o que acabara de escrever e depois concluiu que uma confissão de tal natureza era grande demais para se fazer numa carta. Rasgou o papel em muitos
pedaços. foi até a cozinha e atirou-os no fogo, concluindo: Uma confissão dessas a gente não
faz nem a si mesmo.
A TEINIAGUA
459
#- sonho de 161ingote Caré era ter um cavalo.
- dia a tentação foi maior que o medo e ele roubou um tordilho numa est8ncia da fronteira.
filas não teve sorte: a peonada saiu-lhe nas pegadas e agarrou-o.
Está aqui o ladrão, coronel, que é que fazemos com ele?
- estancieiro estava furioso, vermelho que nem gringo.
Botem a minha marca no lombo desse bandido. Depois the apliquem trezentos e sessentá e cinco açoites, um pra cada dia dó anó. Sou homem de bem e justiça: se não
procedo com energia, esses abusos não acabam.
Deixaram 161ingote nu, amarrada a um palanque.
- quando lhe encostaram o ferco em brasa na paleta, o coronel gritou:
Isso é pra tu aprenderes a respeitas a propriedade alheial

1~lingote foi atirado na estrada, marcada como uma rês.
Sai a andas estonteado, com o lombo ardendo e sangrando, e como a dor o cegJSSe, invadiu sem saber outra propriedade alheia.
Tinha febre e em seu delírio era o Crioulo do Pastoreio, repontando campo em fora trinta cavalas de fogo.
Por fim caiu sem forças no chão duma est8ncia porrgntosa que começava em Bagé e entrava Uruguai adentro: diziam que o dono dela podia ir de sua casa até lf~lontevideu
sem sair de suas terras.

Base foi o fim de hlingote, mas nãoo o de sua raça. Porque havia outros Carés espalhados pelo Continente.
461
O Lulu, por exemplo.
Vivia sozinho, era barqueiro, e andava por muitos daqueles rios
- Caí
- Jacuí
- Taquasi
a cujas macgens agora colonos alemães estavam erguendo casas,
abrindo picadas, fazendo. roças.
Um dia Lulu Caré viu quando os índios saíram do mato, ataca
ram um desses povoados e mataram muitos colonos.
Ficou de longe, denrco do barco, olhando de olho pacado. Não fez um gesto, não deà um passo, só disse Chô égua!
Não rinha nada com aquilo e afinal de contas, pra falar a vec
dade, a terra era mesmo dos bugres.

Havia também o José Cacé, por alcunhá Juca Feio.
Nunca dobcou a espinha diante de ninguém, sempre estava contra
o governo.
Contam que rinha cavalo, boas botas e pistolas na cinta, Usava chapéu de barbicacho e cabeleira tão comprida que dava
até para fazer trança.
Era indiático, carrancudo, mal-encarado e de fala fina.
(Com cavalo de olho de porco, cachorro calado e homem de fala
fina... de celancina.)
Tinha a cara tão riscada de cicatrizes que parecia um campo
lavrado.
Perguntavam.
l~le diga uma coisa Juca, onde foi que te deram esse talho que
te vai de orelha a orelha, cheio de voltas que nem o Rio Camaquâ? No combate do Poncho Verde.
- esse nos beiços?
Na tomada de Caçapava.
- esse no meio da testa?
A baioneta dum cocrentino, na guerra contra Rosas.
- esse no pescoço?
Juca Feio fechava a cacranca e cornava lesse é um talho particular.
- não dizia mais nada.

De todos os Carés o que tinha família maior era o Chiru.
Dez filhos, sem contar os mortos.
Depois de muüo andar com a mulher e as crias batendo estradas
e cruzando invecnadas, conseguiu licença paca erguer um rancho nos
campos do Angico, no município de Santa Fé.
Quando a casa ficou pronta, olhou para a mulher e suspirou Queira Deus que agora a gente fique sossegado no seu canto.
#462
Por algum tempo Deus quis.
Viviam dos restos da cozinha da estância
tinham licença de trazer para casa a fressura das reses carneadas. E D. Bibiana Terra Cambará, senhora do Angico, deu-lhe de
presente uma vaca leiteira.
Tudo corria tão bem que Chiru começou a desconfiar, porque a experiência lhe dizia que
laranja madura na beira da estrada ou está azeda ou tem marimbondo,
Um dia apareceram pelo rancho dos Cacés um sargento e duas praças, montados em bons cavalos:
andavam recrutando gente
pois tinha rebentado outra guerra, Chiru não ouviu direito con
tra quem, mas desconfiava que era outra vez contra os castelhanos. Disse adeus à mulher e aos dez filhos e seguiu a pé os homens do governo.

Aprendeu a dar tiro de espingarda
a marchar
a entender a língua dos superiores, das cornetas e dos tambores.
E quanto se viu de uniforme ficou faceiro como potrilho novo. Pela primeira vez na vida andava completamente vestido.
Generais de uniforme bonito bandeiras, espadas, clarins e cargas de lanceiros lembrando as cavalhadas
dos cristãos contra os mouros.

Foi também na guerra que Chiru pela primeira vez na vida
ouviu uma banda de música.
Ficou meio louco, com vontade de chorar.
Mas ficou mais louco ainda quando espetou o primeiro para
guaio na ponta da baioneta.
Teve tamanha alegria que chegou a soltar um urro. Estava acostumado a matar passarinho para comer
mas nunca matara bicho maior que um veado dos pequenos. Via agora que matar homem era bom, porque enchia mais o peito. Daí por diante só pensou na hora do entrevem.
Derrubar paraguaio de longe a tiro não tinha graça
- bonito era carga de baioneta.
Várias vezes foi repreendido pelos superiores
porque era muito afoito e não esperava a ordem de avençar.
Os batalhões ganhavam fama e com a fama apelidos:
- 2.° era o Dois de Ouro
- 12.° o Treme-Terra
- 13.° o Arranca-Toco
- 16.° o Glorioso
- o 1.° de artilharia, o Boi de Botas.
Uma coisa Chiru nunca entendeu:
Por que era que os argentinos e os orientais estavam agora do
lado dos brasileiros?
Ficava também meio confuso quando conversava com os camara
das doa batalhões que vinham do Norte.
Eram homens de fala esquisita
de pouca comida mas muita coragem bons na arma branca, ligeiros e ladinos. Só não tinham era resistência para o frio. Aquele inverno de 65 foi brabo.
Muito nortista baixou enfermaria encarangado. Alguns morreram de doenças dos bofes.
Chiru deu o Capote a um soldado do Pará e trocou com um ans
peçada da Bahia os seus coturnos por um pedaço de fumo em rama. Gaúchos galhofeiros recitavam versinhos
463
Correame negro e paramentos carabina com bandoleira sabre-baioneta
patronas, bornal e cantil cartucheiras na cintura mochila às costas coturnos nos pés.
E na manga da túnica um
Império e três palavras Voluntário da Pátria.
Eu só queria que minha gente me visse agora!

Chapéu de fèltro com barbicacho:
na aba levantada, o tope nacional e o verdes
numero
do batalhão.
emblema cor de ouro com a coroa do
Chiru Caré gostou da guerra.
Nunca pensei que fosse tão linda!
Era mesmo que uma festa: fandango ou puxirão. 16luita gente bem fardada muito cavalo e canhão
muito barulho, tiro e grito muito sangue pelo chão.
#464
1~landai, 161ãe de Deus, mais uns dias de minuano Pra acabar com tudo que é baiano.

No cerco de Uruguaiana Chiru viu o Imperador que passava em revista as suas tropas.
Ficou petrificado, de boca aberta.
Quando eu contar isto pra minha mulher e meus filhos, vão dizer que sou mentiroso.
lulas por esta luz que me alumeia, juro que vi D. Pedro II, Pai de todos nós, passar na minha frente em cima dum cavalo branco com arreios de ouro e prata.

Doutra feita Chiru avistou o grande Osório montado no seu ginete
com o pala-poncho batendo ao vento seu chapéu preto de copa redonda
sua famosa lança de ébano com lavores de marfim. Era natural do Continente
tinha brigado nas Guerras da Cisplatina e na doa Farrapos. Contavam que havia sido o primeiro soldado brasileiro a pisar terra .paraguaia, à frente de seu piquete.

Era por coisas assim que Chiru gostava. da guerra.

lulas foi uma campanha comprida e custosa.
1ólonia mais soldado de peste que de bala, metralha ou armo branca.
Não houve praga ,que não atacasse aqueles exércitos. Veio a bexiga negra.
Chiru carregou muita padiola com camaradas agonizantes, de
cara enegrecida, a pele se descolando e toda coberta de pus. Veio o cólera " Vieram mil febres
- as cãibras de sangue.
Era gente a tombar por todos os .lados, retorcendo-se de dor, com á cara mais branca que papel.
No inverno marchavam debaixo de chuva
ou com o minuano na cara
e muita vez Chiru ajudou os companheiros a empurrar canhôes t
canetas que se atolavam na lama. No verão marchavam na soalheira
- soldados caíam de insolação.

Foi uma campanha comprida e custosa.
1~Ias Chiru Cacé andava contente
porque em tempo de paz sua vida nunca fosa melhor.
465

Agora ao menos comia carne, tinha amigos, uma carabina com baioneta
e matar homem era bom
enchia o peito.
Um dia descobriu que seu companheiro de óarcaca era um tal de Florêncio Terra, natural de Santa Fé, sobrinho da velha Bibiana, dona do Angico e do Sobrado.
1~iundo velho bem pequenol

Vassuncês não acreditam?
Por Deus Nosso Senhor: sobrinho da velha Bibiana! Dormia perto de mim. e nunca gritou comigo me tratava de igual pra igual.
Um dia caiu ferido, com um balaço na perna, e ia ficando pra
trás ... -
Se os paragúaios pegassem ele, adeus tia Chica! Vai então corri
pro homem, botei o bicho nas minhas costas e voltei a meio galope
pra dentro das nossas trincheiras..
O moçó perdeu um pouco de sangue, mas quando entreguei ele
prol padioleiros, inda teve força pra arreganhar os dentes e me dizer
baixinho
Obrigado, companheiro.
Quem havia de dizer!. Sobrinho da velha Bibiana, dona do
Angico e do Sobrado.

Foi por tudo isso que Chiru Caré gostou daquela. campanha. Na paz vivia como um bicho. Na guerra era. um homem.
#O S O B R A D O
26 de junho de 1895: Manhã


Quando o dia amanhece, Curgo sobe à água-furtada para falar com o homem que passou a noite de vigília. Encontra-o enrolado no poncho, sentado junto da janela, a
espiar à praça- e arredores através das vidraças meio embaciadas.
- Que tal, Ernesto?
- Nada de novo. Estou aqui desde as duas da madrugada. Lá pelas quatro mais ou menos vi gente safado da cidade a cavalo pras bandas de Passo Fundo. Acho que os maragatos
já começanm a se retirar.
Licurgo olha pra fora e murmura
- Não sei, não sei ... Pode ser uma cilada pra fazer a gente sair do Sobrado. 1; bom nãoo arriscar...
- Pode ser ... - repete o outro, abrindo a boca num largo bocejo.
- Desça, que eu fico aqui por enquanto. Quando o Damüo acordar, diga pra ele que suba. Vá comer alguma coisa. Tem muita laranja e bastante água. Nossos companheiros
passaram a noite caminhando pelo quintal, trouxeram quanta água quiseram. Chegaram até a tirar o Aflauto de cima da tampa do poço e entemram ele atrás do marmeleiro.
- É engraçado. Os federalistas estes dois últím~ dica . aio deram nenhum tiro. Acho até que nãoo ficou ninguém na torre esta noite.
- Não sei. Fs,~ negócio aio me cheia bem. A corja decei.o está_ ,..preparando algema tníçio.
Ernesto põe-se de pé, espreguiçando-se num estralar de junina: encaminha-se para a escada e dentro em breve seus passos começam a soar surdamente nos degnus. Cargo
abre de par em par a janela da água-furtada, senta-se num mocho janto dela e debrdça-se nobre o peitoril. A brisa úmida da maahi o envolve, dando-lhe a impreasão
de que mergulhou a cabeça na ágaa fria dum açude. Aa faces e as orelhas lhe ardem, e ele aspira com força o ar que cheira a setcno e a campo. Pensa no Angico e em
Ismália com uma saudade impaciente. Onde estará ela agora? Qne lhe terá acontecido? Talvez
#f68 O CONTINENTE
tcnha conseguido fugir... Mas fugir para onde? O mais provi. vel é que haja sido presa e obrigada a ir para a cama com aqueles maragatos do inferno. Por alguns segundos
Licurgo fica a ruminar o prazer carnal que tantas vezes a rapariga lhe deu ; lembra-se do: olhos dela, da voz dela, das formas- e do contato do corpo dela - tudo
isso, porém, dum modo remoto, apagado, frio. Talvez a esta hora Ismália esteja morta, enterrada e podre. E Licurgo pensa na filha recém-nascida, dentro da caixeta
de marmelada, e como que sente de novo o cheiro da terra úmida e limosa do porão, ao mesmo
- tempo que se imagina a enterrar Alice naquele chão negro: em aegaida é um dia de sol e de paz, num outro tempo, e vozes cochicham nas roas: ".`Aquele que ali vai
é o Cel. Licurgo Cambará. Uma feral Na revolução de 93 os mangatos cercaram o Sobrado, mas ele aão se entregou. Sacrificou a filha, a mulher, os amigos, mas náo
afrouxou. Uma fera!" Ele reconhece as vozes: gentes de Santa Fé. Que vão todos pro diabo I
Dirige o olhar. pesado de sono para a graça, que uma luz pálida começa a iluminar. As árvores, os telhados e a terra estão úmidos de rocio e prateados de geada.
Lá do outro lado. continuam fechadas as janelas. e as portas do edifício da Intendência. Nenhum galo canta. Não se enxerga viva alma nas redondezas do Sobrado. Santa
Fé parece uma cidade de taperas.
Curgo olha para o alto do campanário. E se neste momento um maragato estiver fazendo pontaria na minha cabeça? Dessa distância- é tiro certo ... Mas que me importa?
Deixa-se ficar onde está, com o queixo sobre os braços, os braços sobre o peitoril, as pálpebras_ pesadas, a , cabeça oca, uma broca fria a verrumar-lhe o estómaga
Por sua mente desfilam imagens de pessoas, trechos de conversas, cenas dum passado recente - e de súbito Licurgo torna a sentir, çomo em tantas outras vezes desde
que começou o cerco de sua casa, a impressão de que foi vítima duma terrível, colossal ira justiça. "Fazerem isso pra mim, Logo pra mim ... " - murmura ele com os
olhos postos na figueira grande, como se a ela ~estivesse dirigindo a queixa. .
Desde que se proclamou a República foi ele sempre a autoridade máxima de Santa Fé. Com a queda da monarquia os Amarais perderam os cargos públicos e o prestígio.
E desde 89 ele. Cargo, não fez outra coisa sento trabalhar pelo progresso e pela felicidade de sua terra. Foi eleito intendente municipal de Santa Fé pelo voto livre
da população e por uma maioria inapelável. Não pediu nem comprou votos, nãoo coagiu eleitores. Aos próprios pcôes, agregados e amigos íntimos disse: "Votem em quem
quiserem, pois esta vai ser a - primeira eleiçào livre na história do município." Depois de eleito, recusou-se a receber seus honorários. Muitas vezes chegou a tirar
dinheiro do próprio bolso para custear óbras públicas: construir pontes, reparar estradas e ruas. Tratava toda a gente com
O SOBRADO - V 469

afabilidade, recebia a todos. ouvia a todos. Os colonos de Garibal
dina e Nova Pomerfnia obtinham dele tudo quanto pediam. A Ìn
tendência era a casa do povo. No entanto, muitos dos homens a
quem prestou favores se voltaram contra ele, estão agora atirando
conte esta casa a cuja mesa tantas vezes comeram, esta casa onde sem
pre foram recebidos por assim dizer como pessoas da família. Mas de
todas as mágoas a que mais lhe dói é a que lhe causou Toríbio Rezende, seu melhor a~ngalidade de GaspardSilvei~ra gMartins, uTo~bio Fascinado pela penso
abandonou os companheiros de ontem, fêz-se parlamentarista, tarou- fileiras com os maragatos, afastou-se aos poucos do Sobrado e por fim chegou até a escrever vemnas
contra Júlio de Castilhos, chamando-lhe ditador. Castilhos ditadorI Era o cúmulo do absurdo chamar tirano a um homem que para evitar a guerra civil abaadonoa voluntariamente
o cargo de presidente do Estado para o qual fora legalmente eleito. E quando a revolução rebentou, Tonteio uniu-se às forças de Jaca Tigre, convencido - o idiotal
- de que os federalistaa queriam salvar o Rio Grande da ditadura, não compreendendo - o infelizl - que por trás daquelas conversas de parlamentarismo e liberdade,
o que os maragatos queriam mesmo era restaurar a monarquia, destruir a república pela qual o próprio Toríbio tanto se batera.
Mas agora; - reflete Licurgo - aprozima-se a hora do ajuste de contas.. Gnmercindo Saraiva está morto. O Alm. Saldanha. da Gama aceda burlequeando pelo Estado com
seu batalhão de marinheiros sobrados da revolta da Armada. e que nada podem fazer em terra firme sen3o fugir e evitar os combates.. Muitos dos chefes federalistas
já começam. a emigrar para o Uruguai e a Argentina.
Talvez dentro de mais um dia ou - quem sabe? - de poucas horas as forças de Firmiao de Paula estejam entrando em Santa Fé. E nunca - pensa Licurgo, olhando pau o
casarão dos Amarais, lá do outro: lado da praça - nunca Alvarino Amaral poderá dizer: "Perdi a revolução .mas tomei Santa Fé e tive o gosto de entrar: no Sobrado
de chapéu aa cabeça e fazer o Licurgo. dobrar a espinha." Nunca. Quando no futuro se falar na .Revolução de 93, hão de dizer: "O Sobrado agüentou um cerdo de mais
de dez dias. e não se rendeu." Ton~io e Rodrigo crescerão ouvindo essa história e aprendendo com ela a dar valor à casa onde nasceram - a amá-la, respeitá-la e defendê-la:
e compreendendo acima de fado que existem na vida dum homem de honra duas coisas sagradas que ele deve fazer respeitar à casta de todas os sacrifícios: a cara e
a casa.
A luz do sol noa pontos vai ficando mais viva e dourada e os campos ao redor da cidade lentamente emergem _ da sombra gris e ganham tons esverdeados. A geada brilha
como vidro moído.
Licargo passa os dedos eatanguidos pelos . cabelos. A vontade de fumar dá-lhe uma ardência na língua. Torna a pensar em Ismália
47O O CONTINENTE
e em Alice, mas entre as duas surge em seu espírito a figura de Valéria. Cadela ! Aquela solteirona seca e antipática a meter-sr onde nãoo é chamada! Torna a ouvir-lhe
a voz: "Então podemos fazer três enterros. O da criança, o do Tinoco e o da Alice." Não. Alice não pode morrer, nãoo deve morrer. A morte da coitadinha dt nada servirá
aos maragatos nem aos republicanos. Será, isso sim, mais uma injustiça dolorosa.. Mas acontece - reflete Cargo engolindo a saliva grossa e amarga - que este mondo
parece andar mesmo sem governo. Não há bom-xnso, não há justiça. pessoas direitas sofrem; canalhas gozam. Inocentés pagam pelos pecadores, Nem sempre o justo e o
bom triunfam. E nesta revolução cruel bandidos sao glorificados. Diz o Pe. Romano que, a verdadeira jaatiça está no Cén e nãoo importa muito o que acontece neste
mundo. Mesmo quem observar a revolução com caidado achará difícil dizer de que lado está Deus. Duma coisa era sei - pensa ele - é que oe Deus está do lado dos fedenlistas
o melhor é Ble ir tratando desde já dé emigrar para a Banda Oriental.
O sol agora bate em cheio ao rosto de Licargo Cambará, que de novo apóia os buços no peitoril, descansa sobre eles uma das faces e cerra ce olham.
Liroa está de novo no aen posto, no alto da torre. Deitado nas lajes, ele espia o Sobrado através da seteira. Faz, alguns minutos qae acordou, enanngado de frio,
trêmulo de fome, doido de vou-~ fade de tomar uma coisa gneste, mate ora. cachaça. Ao despertar olhou para o Sobrado e viu nm homem 3 janela da água-fartada; reconhecer
Licnrgo. Teve uma vontade danada de gritar: "O" Curgol Então como vai a caixa por aí?" Mas ficou calado, porque inimigo é inimigo. Qual! Se fossem inimigos de verdade
sua obrigação tn meter ama bala na cabeça do outro. Muito fácil: bastava dormir na pontaria e - pêi! - era uma vez nm tal de Licnrgo Cambará. Muito bonito. O Rodrigo
e o Tordo ficavam órfâas, D. Alice enviuvava, Maria Valéria perdia o cunhado. E ele, Jasé Lírio, ía carregar pelo resto da vida o peso daquele removo. MaUr nm homem
em combate era uma coisa; matar de tocaia. 3 traição, era am crime, nm assassinato.
Lima saspin. Está fado agora caminhando pau o fim. O Cel. Alvarino já começos a retirar saa gente ds adade; e oorn à boca pequena que ele está preparando todo #xira
emigrar pau o outro lado do rio. O bom. mesmo, condoí Leoa, é era levantar uma bandeira buas, correr pros pica-pari e me entregar.
Passou a noite a ver o movimento dos repablianos no quintal do Sobrado: iam e vinham do poço pau a asa carregando ágaa. A princípio andavam de rastos, depois escarvados,
por fim já aminhavam naturalmente. Chegaram até a tirar o alça bnna de
O SOBRADO - V 471

cima do poço. E ele, Líroca, nem teve coragem de atirar. Teve, isso sim, foi vontade de gritar
"Andem ligeiro! Levem água pras crianças, pras mulheres! E dêem lembrança pra Maria Valéria!"
Se ela aparecesse agora assim de repente a nina das janelas, ele nãoo resistiria à tentaçáo de lhe gritar alguma coisa que lhe desse a entender que enquanto José
Lírio estiver de vigia na torre da igreja os republicanos podem ir e vir no quintal sem serem molestados. Mas qual! Maria Valéria náo vai aparecer... Ninguém sabe
aqui fora o que está acontecendo lá naquele casarão. Pode ser até que a moça esteja doente ora ferida... Ninguém está livre dama bala perdida. Guerra malvada! Guerra
tirana!
Liroa acaricia a coronha da Comblaia, como sé ela fosse o ombro da mulher amada. Encosta depois uma das faces na pedra fria do parapeito e fica mirando com olho
triste as jazrelas do Sobrado.


Maria Valéria acha-se ao pé da caria de Alice com a mão
espalmada sobre a testa da írmâ, que tem ainda os olhos cerrados.
Graças a Deus a testa são está tão quente, a febre deve ter baizado.
Se ao menos agora o sítio terminasse e o Dr. Winter pudesse vir
com remédios ... Ou então se Cargo abafasse seu orgulho e pedisse
uma trégua ... Ela sabe que é costume fazer isso até mesmo nas
guerras grandes entre nações.
Alice abre os olhos e fia por algum tempo a fitar a irmã com
uma expressão estonteada. Depois seus lábios que a febre crestou,
se movem, procurando formar uma palavra.
- Fica quieta, Alice.
- Os meninos? - balbucia a doente. =- Espera .. .
Maria Valéria sai do quarto e volta após um breve instante tra
zendo os sobrinhos, que ficam parados em silêncio junto do leito
da mãe. Primeiro os olhares de ambos fixam-se no rosto dela, mas
depois descem-lhe pelo seio e demoram-se sobre o ventre. Por fim
os dois meninos se entreolham significativamente.
- Beijem a mâe de vocês - ordena a tia.
Bles se inclinam sobre Alice e beijam-lhe chôdumente a testa.
Ela continua com os braços estendidos ao longo do corpo, sob aa
cobertas, e seus olhos se enchem de lágrimas.
- Agora saiam - diz Maria Valéria. - E nãoo façam barulho. - Podemos ir lá pra baixo? - pergunta Toríbió. - Não. Fiquem no quarto. E não abram a janela. - Por que,
madrinha?
- Porque não.
As duas crianças lançam mais um olhar para a mãe e saem do
quarto na ponta dos pés.
X72 O CONTINENTE
O rosto ~ Alue está crispado numa expressão de pesar e as lágrimas lhe acorrem pelas Enes afogueadas. Sem dizer palavra, Maria Vakria toma dum lenço e começa a enxugar
o rosto da irmã com mais eficrencia do que ternura. Podia tentar consolá-la com mentiras - reflete. -Mas é inútil. Por mais qne se esforce não conscgairá pronunciar
a menor palavra de esperança. Porque a rq~lidade é só rama, dan, fria e triste. O Sobrado continha cercado. A comida se acabou. A criança nasceu morta. E se o sítio
se prolongar, ningaém sabe quantas coisas horríveis podem ainda acontecer.
Maria Valéria cruza os braços, aperta-os contra o estômago, que lhe dói desde a noite anterior. Quantas horas faz que não come? Vinte e quatro? TrinU? Mas o pior
de tudo é não poder dormir, despnaar. esquecer...
"Tião agüento mais. Acho que vou acabar louca, abrir a porta da rua e sair correndo e gritando ... "
Tem de súbito a impressão de que uma terceira pessoa acaba de entrar. Volta a cabeça e vê a própria imagem refletida no espelho do lavatório: um fantasma de xale
nos ombros.
Do quarto vizinho vêm agora as batidas da cadeira de balanço dé D. $ibiana. A velha já começou a funcionar ... - pensa Maria Valéria. E fica a escnUr o ban-ban cadenciado
e surdo, que lhe parece rama voz. 1: como se Bibiana Terra Cambará estivesse procurando dizer-lhe alguma coisa. E Maria Valéria, sem saber claramente como nem por
.que, enche-se aos poucos dum ãnimo novo, ao mesmo tempo qne diz para- si mesma: Se ela que tem noventa anos pode agüentar todo isto, eu também posso. E atira um
olhai de desafio para a mulher cadavérica do fundo do espelho.
Quando Licurgo desce da água-furtada para a sala de jantar. encontra seus companheiros a comerem laranjas com rama voracidade raidasa de porcos esfaimados. Não se
pode fartar a am sentimento de mal-estar e impaciência. Esquece por nm instante que estes homens são sena correligionários, seus amigos, qne não somente estão partiápando
com ele das perigos e dnrezaa desU gnem civil como Umbém estão defendendo o Sobrado. E nesse rípido instante de untado esgnaimento sente-se ofcndido por ver aquelas
gentes - entn as grama se acham ánco pcües do Angico - rasarem as salas de sua casa daarimoniosamente. cuspindo e esamndo no chão, encostando nas paredes as nbeças
sebosas. riscando o soalho com a tnseta de suas esporas. empestando o ar com o cheiro azedo de seus corpos sejas. E Licurgo. qne suba de vir lá de cima, onde respirou
ar paro. fnnzc o nariz e tem ímpetos de mandar escancarar imediaUmente todas as janelas.
A luz do sol bate em cheio no rosto do velho Fandango, que dorme senUdo numa adeír. a cabeça caída sobre o peito. Curgo
O SOBRADO - V 473
olha-o por alguns segundos, num vago .temor de que ele esteja morto. Tem a impressão de que seu peito não se -move. Pousa-lhe a mão na testa: fria. Começa então
a sacudir o velho. pelos ombros. Fandango abre os olhos e põe-se de pé como um automato:
- Que foi? Que foi? - pergunta ele, atarantado.
- Nada - responde Curgo - nada. ~ que te vi meio parado e fiquei pensando...
- outro esfrega os olhos, ,boceja e estende os braços, espreguiçando-se.
- Pensou que o velho tivesse morrido?
- Pensei.
- Chô égua? Já te disse miles e miles de vezes que o Fandango pode morrer um dia, mas nãoo sentado. Há_ de ser em cima do lombo dum cavalo ou então de pé, dançando.
- esfregando as nádegas com as palmas das mãos, ele sai no seu tranco de cavalo marchador na direção da cozinha, a gritar:
- Que é que .tem pra se comer, Laurinda?
Neste mesmo instante Florêncio. Terra sai. da despensa, aproxima-se rengueando do genro e diz-lhe em voz baixa:
- O Tinoco morreu.
Curgo franze a testa.
- Quando?
- sogro encolhe os ombros.
- Não sei. Decerto esta noite .. .
Licurgo fica a olhar para Florêncio, perdidó. Tinoco lhe havia saído por completo do pensamento. As outras preocupações eram tantas e tão fortes, que ele nem sequer
se lembrava do pobre-diabo que agonizava na despensa. Seja como for, sente-se agora aliviado. Morto Tinoco, ele fica livre da responsabilidade de fazer alguma coisa
por ele: cortar-lhe a perna ou meter-lhe uma bala na cabeça para abreviar-lhe o sofrimento.
Florêncio resmunga
- Morreu como um cachorro sem dono, abandonado, sem um cristão que botasse uma vela na mão dele. Todo o mundo se esque
ceu do coitado .. .
Curgo toma essas palavras como uma censura e fica logo espinhado.
- Que era que o senhor queria que eu fizesse? Que ficasse lá dia e noite lambendo o ferimento dele?
Florêncio não responde. Fica cofiando os bigodes com seus dedos magros e amarelos, os olhos baixos. E como o genro nada mais lhe diz e continua a mirá-lo com olhos
agressivos, ele torna
a falar:
- 1; preciso enterrar ele o quanto antes. Já estava meio po.. .
- Chega! - vocifera Curgo. - Eu sei.
- velho faz meia volta e encaminha-se para a escada.
474 O CONTINENTE

Erguendo a voz, Licurgo anuncia:
- O Tinoco morreu.
Os homens nada dizem. Agachado a um canto, Antero começa a fungar ao passo que as lágrimas lhe vão brotando nos olhos. Um dos companheiros lança-lhe um olhar enviesado
e estranha
- Ué ? Que é isso ?
Cuspi na cara dele - pensa Antero. - Fui um prevalecido.
A bem dizer cuspi na cara dum defunto.
- Precisamos enterrar o corpo duma vez - diz Curgo. Jango Veiga, que está à porta da cozinha, pergunta: - Onde?
- No quintal, perto da parede da casa. Acho que não há perigo. Não tem ninguém na torre.
- Poz que não no porão? - sugere o outro.
- Não! - apressa-se a responder Curgo, quase ofendido. A simples sugestão de enterrar Tinoco no mesmo chão onde está sua filha, lhe é tão repugnante que ele a repele
como uma ofensa pessoal.
- Se estão com medo de sair pro quintal, deixem que eu mesmo faço o serviço sozinho.
Jango Veiga cerra os dentes e diz com voz apertada:
- Ninguém está com medo de coisa nenhuma, seu! Se quiser podemos ír enterrar o Tinoco até lá na frente da Intendência. Quer?
Por um instante os dois homens se miram com rancor. Curgo sente gana de esbofetear Jango Veiga, mas contém-se, e com voz alterada diz:
- Enterrem onde quiserem, menos no porão. Jango Veiga volta-se para os companheiros e grita:
- Vamos buscar o Tinoco! Podemos enterrar ele debaixo da escada da cozinha.
Ao anoitecer rompe inesperaaamente um tiroteio. Os homens correm para seus postos de Comblain em punho. Curgo, que estava deitado a dormir um sono leve, de superfície,
desperta sobressaltado, salta da cama, apanha a espingarda e desce as escadas a correr.
- Não atirem sem primeiro ver o inimigo! - grita. - Não desperdicem munição.
Algumas vidraças das janelas que dão para o norte se partem.
Uma bala entra por uma das bandeirolas e vai cravar-se no teto. - Acho que estão atirando da casa do Naziazeno. Esse tiro
veio de baizo - grita João Batista, olhando para o teto.
O chorão dera menos dum minuto. Cessa de repente. Curgo
s~^be pau a água-fartada.
- Que foi que houve. Damião?
O caboclo está ajoelhado junto da janela semi-aberta, com a espingarda apoiada no peitoril.
O SOBRADO - V 475

- Ainda não sei - diz ele, sem erguer a cabeça. Curgo ajoe
lha-se junto dele.
- Donde vieram os tiros?
- Lá do outro lado da praça. Ouvi um barulho de cascos.
Acho que atiraram de cima de cavalos a galope.
- Deve ser algum grupo que está se rettrando.
- Pode que sim, pode que não.
Curgo olha a praça deserta.
- Tem alguém na torre? - pergunta.
- Não ví ninguém.
- Fique de olho na estrada. Acho que não demora muito as tropas republicanas aparecem.
Lícurgo ergue-se e desce para o primeiro andar, sentindo que o coração lhe bate, acelerado, que a ação lhe fez bem, deu-lhe. nm calor bom ao corpo. Ahl 1; mil vezes
mais fácil suportar o sítio lutando!
Sentado numa cadeira, de faca em punho, para se distrair Florêncio tira lascas duma vara de marmeleiro, e as esquírolas se vão acumulando a seus pés. Curgo olha
para o sogro com má vontade. e seu sentimento de culpa, longe de torna-lo humilde e conciliador. predispõe-no à agressividade. Ele sabe ,exatamente o que Florênció
está pensando, conhece as queixas que ele recalca no peito. Seria melhor que o velho falasse claro e alto, pois assim ele tens também a oportunidade de desabafar,
de dizer-lhe um bom par de verdades. Sim, ele respeita o sogro. ~ seu párente de sangue, primo-irmão dt seu pai. Um homem de bem não há dúwida alguma, mas não nm
homem de ação ou princípios políticos. No fundo ainda suspira pela monarquia, e foi só forçado pelas circunstâncias que tomou partido nesta revolução... Curgo tem
o olhar fito em Florêncío. espera que ele erga a cabeça para provocá-lo a uma discussão. O velho, porém, continua entretido a tirar lascas da vara, como se disso
dependesse a sorte do Sobrado.
Antero está acocorado a nm canto da sala, o busto encarnado. a cabeça metida entre os joelhos. Os outros homens mmeçaut a reunir-se ao redor do fogão, pois com o
cair da noite o frio aumentou. Sobre suas cabeças soa a cadenciada e mansa trovoada produzida pela cadeira de balanço de Bibíana.
Aos ouvidos de Curgo chega a voz alegre de Fandango, que conversa ao pé do fogo:
- Aquilo é que foi guerra braba.
#A
1
aquele dezembro - o sexto dezembro da Guerra - já não
havia em Santa Fé família que não chorasse nm morto. Desde o início da campanha a vila fornecera ao exército nacional seis corpos de voluntários. Os que nãoo morriam
ou desertavam, voltavam feridos ou mutilados, e em sena. rostos os outros podiam ler todo o horror da guerra. As mulheres já não tiravam mais o luto do corpo: viviam
a rezar, a fazer promessas e a acender velas em seus. oratórios.
Durante aqueles cinco anos de campanha, Santa Fé nãoo apenas estacionara: mostrava mesmo sinais de decadência. As obra, da igreja nova, iniciadas em 1,863, foram
interrompidas por falta de dinheiro e de braços.- Os homens válidos da vila estavam em terras do Paraguai - em cima dela lutando on debaixo dela apodrecendo. Os
campos do município achavam-se quase despovoados: o governo. fizera pesadas requisições de cavalos e reses; e os peões em idade militar haviapi-se apresentado como
voluntários. As lojas viviam às mercas; fazia-se pouco negócio. O correio chegava com irregularidade, quando chegava. As residências conservavam suas janelas quase
sempre fechadas, e as que. ficavam desabitadas dentro em ponto se transformavam em ruínas. Durante todos aqueles anos poucas vezes se ouviu som de gaita on canto
em Santa Fé; nem houve ali fandango. quermesse, cavalhadas ou outra festa qualquer. Ninguém tinha vontade de se divertir nem ânimo para cantar, dançar ou brincar,
sabendo que parentes e amigos estavam na guerra. E por mais que ae dissesse que Solano Lopes estava perdido, nenhuma esperança havia de paz próxima.
No entanto, numa manhã de princípios de 1869 o sino da igreja repicara, festivo, para anunciar que a paz fora finalmente assinada. Um estafeta, vindo de Rio Pardo
com a mala postal, fora o portador da grande notícia. Houve risadas, dioros de contentamento, gritos e vivas. Os santa-fezenses saíam para a rua e abraçavam-se;
velhos inimigos, estonteados de alegria,. reconciliavam-se. Janelas abriamse e as mulheres preparavam-se para pagar as promessas feitas aos santos de sua devoção.
#478 O CONTINENTE
No dia seguinte a .Câmara Municipal mandou rezar uma
em ação de graças pela . terminação da guerra. A igreja ficou guante de gènte: homens, mulheres e crianças amontoavam-se dentro, sentados nos bancos on de pé nos
corredores; havia até soas escarranchadas nas janelas. À frente do templo uma multid enchia a rua e ia até quase o meio da praça. Gente que em t
sua vida nunca tinha ido à missa, naquele dia se encontrava igreja. Na hora do sermão o Pe. Otero estava de tal forma com vido, que quase nãoo pôde falar. "Meus irmãos
..." - balbucio "A guerra terminou. Deus, na sua infinita bondade e sabedoria . , . Então ouviu-se um zunzum de vozes abafadas à porta da igre O . padre calou-se.
O murmúrio continuou, cada vez mais fo Alguém fez - cht! "Deus na sua infinita bondade e sabedoria. : - repetiu o .vigário, olhando alarmado a entrada do templo
oâd cabeças se agitavam e o vozerio se fazia cada vez mais alta sacerdote tornou a calar-se. Do meio da multidão, lá fora,_ va -.uma voz de homem: "Chegou um ofício
pra Câmara. Foi tn boato. A guerra ainda continha 1" Estas últimas. palavras for berradas com raiva, numa .espécie de repto. ao Deus sábio e misen cordioso de que
o vigário acabava de falar. Houve uma pausa atônita, como se a respiração de toda aquela gente ficasse subitamente cortada.. Mas em seguida romperam .gritos e choros,
e os fiéis pre apitaram-se para fora, numa pressa aflita, quase em pânico, como se alguém tivesse gritado - "Incêndiol" O padre desceu do púlpito e encaminhou-se
para o meio da rua, onde os membros da Câtri~ra Municipal estavam reunidos. Havia realmentè chegado um ofício do governo da Província prevenindo contra as falsas
notícias da terminação da guerra e pedindo mais cem voluntários, cem cavalos e duzentas reses.
Foi como se uma sombra caísse sobre a vila. As mulheres . passaram a olhar com pena e temor para os filhos adolescentes. "Se a guerra dura mais uns anos, eles. ficam
homens e têm de marchar pro Paraghai." E de novo se puseram a rezar, e dia e noite ardiam velas no altar de Nossa Senhora ~ da Conceição e em todos os oratórios
de Santa Fé. E o primeiro inverno depois daquela falsa notícia parecer-lhes mais frio, mais escoro, mais duro de suportar que todos os outros. Quando soprava o mínhano
ou chovia, elas pensavam nos seus homens que estavam longe, lutando. E quando ao despertar pela manhâ viam a geada nos telhados, lembravam-se num arrepio dos soldados
que tinham passado a noite ao relento, e choravam.
Velhos quietos pitavam sentados à tardinha na frente de shas asas, pensando. nas guerras em que haviam tomado parte, e nos tempos d"antanho quando tinham a força
da mocidade e andavam a fazer tropas ou a amperear. Agora não prestavam mais para as lidas do ~ampo nem para as da guerra, e ali estavam parados,
Foi naquele quente e abafado dezembro de 1869 que chegaram de volta a Santa- Fé alguns voluntários que a guerra deixara inválidos. Entre eles estava Florêncio ferra,
que recebera hm balaço no joelho. Desceu da carroça apoiado em muletas. Estava tão ba;budo, tão magro e sujo, que a própria mulher não o .reconheceu no primeiro
momento. Ficaram os dois frente a frente, parados, mu~íos, a olhar estupidamente um para o outro. De repente ela se atirou nos braços de seu homem e .desatou o choro.
Florêncio abraçou-a, úm pouco desajeitado por vê-la fazer aquela cena no meio de tanta gente. Ao redor deles havia uma grande balbúrdia, mistura de risadas, de choro
e também de silêncios : o silêncio pesado das mulheres e dos velhos cujos .parentes tinham morado, e que ali estavam ,para ver a felicidade. dos outros.
Ondina soluçava,. com a cabeça encostada ao peito do marido.
- Não chore - disse ele, acariciando de leve os cabelos da mulher. - Não é nada. Voltei vivo.
Ela queria dizer alguma coisa mas não podia.
- Como vão as crianças? Por que é que não vieram?
Finalmente Ondina conseguiu falar. Contou que os filhos o esperavam em casa,- e que estavam todos bem.
Fazia quatro anos que não via Florêncio. Um dia. no inverno de 66, correra por Santa Fé a notícia de . que ele tinha morrido. Ela, porém, tivera o pressentimento
de que aquilo não era verdade, e nunca deixara de esperar a volta do marido.
Caminharam para casa, parando aqui e ali quando conhecidos vinham cumprimentar Florêncio.. Qúeriam saber onde e como tinha sido ferido; se a coisa era grave; como
ia a guerra; quando vinha a paz; se era verdade que Solapo Lopes eslava morto.:. Florêncio respondia na sua maneira lacônica, constrangido por estar sendo alvo de
tantas atenções. Caminhava apoiado nas muletas, com á perna esquerda, dobrada e rígida, o pé no ar. O ferimento lhe ardia: o
corpo todo lhe doía e ele tinha uma desagradável sensação de febre.
A viagem até ali fora tão dura como a própria guerra. Eram quinze
homens imundos e doentes amontoados numa arroça. Um morrera
no caminho, outro estava agonizando. Tinham toanado chuva e
passado fome na estrada..
Ondina não dizia palavra. Chorava mansamente, sena roído e
já nem mais se dava o trabalho de enxugar as lágrimas. Florêncio,
que tanta saudade sentira de sua terra naqueles anos de ausênáa.
agora nem sequer olhava para as casas. Era. como se temesse, ena-
A GUERRA 479
inúteis, fracos como mulheres. Olhavam melancolicamente as outras pessoas, meio envergonhados, como a pedir desculpas por terem envelhecido. E ninguém ficava sabendo
se tinham os olhos lacrimejantes de velhice ou de tristeza.
#48O O CONTINENTE

rí-las, como se elas fossem pessoas e lhe pudessem fazer alguma per;. gunU embaraçosa. Quando chegou à praça, fez alto e olhou pn
melro para a figueira e depois para o Sobrado. Lá estava o casara com suà fachada caiada a reverberar a luz da tarde. Florêncio sentr um aperto no coração.
Lembrou-se de , Bolívar, de Bibiana, de Luzia e todo o- passado pareceu cair sobre ele como cinza fria. Um pergunta se lbe formou no espírito: chegou a descerrar
os lábios para a- formular, mas cònteve-se em tempo. Era melhor não reme zer naquelas coisas ..:. Continuou a andar.
Os filhos. o esperavam à .frente da casa.. Juvenal, Maria Valéri e Alice..: Flòrêncio parou a ~ alguns passos deles sem saber q fazer nem dizer. Estava contrafeito,
como se defrontasse estranhos. Olhava as três caras morenas, e tristes que ò miravam com expreasao bisonha. Teve ímpetos de apertá-los todos num longo abraço, de
beijar-lhes ce rostos muitas, muitas vezes. Mal, porém, nasceu ase deRejo,..uma vergonha antecipada desse gesto o congelou. Continou parado,. olhando .. , Mas precisava
dizer alguma coisa. I pergantar. "Se .portaram direito quando o papai nãoo estava em casa?" - quando Ondina falou:. -
- Peçam .a.. bênçãò.
Primeiro veio Juvenal. Tinha quase quatòrze anos e um ar oblíquo de bugre. Beijou a mão do pai e ergueu. para ele os olhos muito pretos e lustrõsos. Florêncio pousou
a mão na cabeça" do filbo e disse:
- Deus -te abençoe e guarde, Juvenal
Depois veio Maria Valéria, que ele. achou magra e alta demais para. seus nove anos.
- A bênção.
Florêncio sentiu na mão os lábios úmiçios e frescos da menina. - Deus te crie pro bem, minha filhe ,Quando chegou a vez de Alice, a criança rompeu a chorar,
agarrou-se à - saia da mãe, gritando
- Esse homem não é meu pai ! Não é meu pai ! Não é meu pai ! f Desconcertado, Florêncio lançou um olhar patético para Ondiná . e entrou em casa de cabeça baixa,
arrastando as muletas no chão.
Na manhâ seguinte foi com a mulher ao cemtério levar flores aos túmulos dos pais, que haviam morrido ambos de bexigas pretas ponto antes de ele" partis para a guerra.
Ficaram longo tempo em silêncio a olhar para as duas sepulturas rasas. O cemitério estava completamente abandonado. Ervas cresciam por entre .os túmulos,
A GUERRA 481
os muros de pedra caíam aos pedaços e joãos-de~-barro tinham feito seus ninhos no telhado do jazrgo da família Amaral.
Eram dez horas e o sol brilhava num céu limpo. Florêncio olhava para as duas cruzes e pensava nos pais. Mas era a imagem do velho Juvenal que ele guardava na memória
com mais nitidez. Sua mãe já era tão apagada mesmo em vida, a coitada! Na cruz estava escrito: Juvenal Terra, 18O3-1864. Paz à Sua Alma. Sim - refletia Florênciò
- paz era o que o Velho sempre desejara. Era um homem direito que gostava de viver em paz com as outras criaturas e com- sua consciênciá~ Nunca tinha feito mal a
ninguém, era trabalhador, cumpria suas òbrigações, não era homem de violências, mas quando era necessário brigar, brigava mesmo. Deus tinha feito bem em levar o
casal na mesma semana. Agora ali estavam os dois, lado a lado, déscansando na terra onde tinham nascido, na terra que haviam cultivado e amado. E Florêncio, pensou
: um dia hei de vir descansar aqui. E a Ondína também. E mais -tarde até as Crianças. E os filhos dos meus. filhos . .
Uma grande pergunta de repente cresceu dentro dele. Para quê? Para que tudo isso? Para que tanta trabalheira, tanta doença, tanta desgraça, tantas andanças, tanta
aflição? Para que, se um dia a gente vem parar mesmo numa cova de sete palmos onde fica servindo de comida aos bichos da terra?
Apoiado nas muletas, Florêncio olhava fixamente para a sepultura do pai e lembrava-se agora daqueles dias horríveis do ano de 64, quando a bexiga grassava em Santa
Fé. O primeiro caso tinha aparecido num rancho- no fim da Rua da Independência, e depois se alastrara por toda a vila. Sua mâe fora das primeiras a serem atacadas
: ficara com a garganta cheia de pústulas e só podia se alimentar de leite, às colherinhas. U rosto da coitada tinha ficado completamente préto e as solas de seus
pés começaram a cair assim como casca de marmelo cozido. O Dr. Viegas mandava conservar- os doentes num quarto escuro completamente fechado. O velho Juvenal foi
atacado em seguida e morreu sufocado em menos de vinte e quatro horas. Como tinha sido duro e cruel aquele fim de ano! Ir quando a cidade começava a convalescer
da peste, chegou a notícia de que havia arrebentado a guerra. E algumas pessoas emendaram o luto pelos parentes mortos de peste com o luto pelos parentes mortos
na guerra. A casa dele, Florêncio, havia sido milagrosa mente poupada pela doença. E no dia em que partiu para o Para
guai ele disse à mulher:
- Deus nãoo me matou de bexiga decerto pra me matar na guerra. Ninguém foge à sua sina.
Mas Deus também nãoo consentira que ele morresse na guerra. E agora ali estava ele, decerto aleijado para todo o resto da vida. Procurava interessar-se de novo pelas
pessoas e pelas coisas, mas nio conseguia. Queria pensar em plantar, em criar gado, em reco-
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meçar a vida de qualquer modo, mas nãoo sentia a menor vont
de trabalhar, só queria ficar parado, calado, pensando, lembrando das coisas do passado, e concluindo sempre que nada, nada valia a pena. Nem mesmo quando olhava
para a mulher e para filhos que agora estavam lá em casa quase nus, comendo pouco mal, nem quando pensava no futuro da família sentia ânimo paq~ lutar. Tinha passado
o diabo naquela guerra, onde nãoo só se morram varado de bala, de baioneta ou lança, mas também de tifo e câmara de sangue. Tinha visto coisas de arrepiar. E a idéia
de q com suas própnas maos matara outros homens - pessoas que nem conhecia e que antes nãoo lhe tinham feito nenhum mal deixava-o perturbado, com a sensação de ter
cometido vários crim Trazia ainda nas ventas o cheiro da guerra : suor de homem e tk cavalo misturado com cheiro de pus, de podridão e morte. Não ar livrara ainda
das. muquiranas que trouxera das trincheiras e daR acampamentos. Muitas vezes, naquelas terras estrangeiras, quandq, conseguia repousar por algumas horas entre um
combate e outro ficava deitado de costas no chão, olhando para o céu, pensando em Santa Fé, na sn,t casa, na sua gente, nas campinas ao redor da vila, imaginando
tomo seria bom voltar, dormir de novo numa cama limpa, comer um bom churrasco numa mesa decente, tomar nm banho no Lajeado do Bugre Morto, conversar com os parentes
e os amigos. Que era que ele estava fazendo ali no meio daquela soldadesca, com a carabina ao lado, esperando e temendo que o clarim de repente rompesse. num toque
a rebate? Nessas horas lhe vinha um desejo enorme de desertar. Mas em seguida envergonhavase só de pensar naquilo. Só um covarde seria capaz de fazer uma coisa daquelas
uma traição tão grande aos companheiros. Pensando melhor, acabava achando que era preciso mais coragem para desertar do que para continuar pelejando. Finalmente
dormia, porque o cansaço era grande. E muitas vezes em sonhos se via a si mesmo voltando para Santa Fé, conversando com Bolívar debaixo da figueira ou então caminhando
como uma alma penada pelos corredores infindáveis dum casarão.
Desde sua chegada Florêncio ainda nãoo falara no Sobrado. Era um assunto que sempre evitava. Desde o dia da morte de Bolívar ele nunca mais pusera os pés naquela
casa. Havia, porém, uma coisa que ele ardia por perguntar à mulher. Ondina ali estava a seu lado, calada, arrumando as flores sobre as duas sepulturas.
Deixando Oolhar fugir por cima do muro de pedra na direção do horizonte, Florêncio perguntou:
. - Vassuncê entrou alguma vez no Sobrado quando eu estava na guerra ?
Ondina continuou muda a mexer nas flores. - Não ouviu o que lhe perguntei?
- Ouvi - respondeu ela, levantando-se, limpando as mãos no vestido mas evitando encarar o marido.
- Esteve ou nãoo?
- Estive.
- Mas nãoo devia.
- Ora, Florêncio, tia Bibiana vivia me chamando.
- Mas nãoo devia.
- Ela mandou me chamar tantas vezes que . no fim eu já nem tinha mais desculpas pra dar.
- Não é por causa da tia Bibiana. r por causa da outra.
- A outra nem vi. Sempre que eu ia lá, estava fechada no quarto.
- Foi melhor assim.
Ondina apanhou do chão. um toco de veia e começou a limpá-lo distratdamente na ponta da saia, ao mesmo tempo que perguntava:
- E vassuncê? Não. vai visitar tia Bibiana?
- Ela sabe que nãoo boto os pés naquela casa.
Ondina olhou para o marido e disse:
- Vassuncê está ficando cada vez mais parecido com o seu pai.
- Com quem mais eu havia de estar parecido? Qnem me dera que eu fosse como ele. Meu pai era um homem de bem.
Por um rápido momento Florêncio teve a impressão de que Juvenal Terra o estava escutando, e isso o deixou um pouco desconcertado, póis ele sabia que, se havia coisa
que o Velho detestasse, era que lhe fizessem elogios assim à queima-roupa.
Saiu a visitar outras sepulturas, e ao ver a própria sombra no chão - um homem de muletas com a perna dura e. o pé no ar começou apensar em que talvez no futuro
ele viesse a ser conhecido na vila como o "Florêncio Pepé". Anteouvia cochichos: "Lá vai o Florêncio Pepé. Foi na Guerra do Paraguai, coítadol Uma bala no nervo.
Lembrava-se dum tipo de sua infância, o Joca Madureira, que tinha uma perna mais curta que a outra. Muitas vezes ele e Bolívar, trepados na figueira e escondidos
entre seus ramos, viam o homem atravessar a praça rengueando e gritavam: "doca Pepé!" Joca voltava-se para todos os lados, nãoo enxergava ninguém mas gritava, cuspindo-se
de raiva: "Papá é a mãe."
Florêncio parou diante da sepultura de Bolívar Cambará. Era toda de alvenaria e tinha em vez de cruz uma estátua de mármore, uma mulher de asas - um anjo - tocando
lira. Florêncio sempre achara aquilo uma ostentação de que Boli não havia de gostar. Além disso, aquela estátua parecia Luzia ... Era por isso que agora Florêncio
fazia o possível para nãoo olhar para o anjo: lia apenas a inscrição na lápide de granito. Mas a inscrição também lhe dava um certo mal-estar, porque era um epitáfio
em verso, feito por ela. Com todas aquelas coisas em cima, o pobre do Bolívar estava mais morto do que se repousasse numa sepultura rasa.
A GUERRA 483
#4E4 O CONTINENTE
A GUERRA f85
Florêncio começou a lembrar-se de outros tempos. Viu cria brincando debaixo da figueira grande, seus pés de menino es vam figos verdes no chão a fumaça cheirosa
duma fogueira .ramos secos subia para o céu. Viu também o lajeado, ouviu o ru
da água, sentiu cheiro de sabão preto e de mato. Bolívar na
em largas braçadas, fazendo muito barulho. "Vamos jogar carreira!" - gritou. - "Barro!" E perto dele, num contr surgiu o corpo negro e lustroso do Severino .. .
Florêncio teve a sensação de que todos os amigos que posa
ao mundo estavam mortos. Pior que isso: tinham-se matado .aos outros. Meu lugar também é aqui no cemitério - pensou.
também estou morto. Teve vontade de dizer à companheira:
pra casa, Ondina. Eu fico, porque o meu lugar é aqui."
porém, pensou essas palavras, a imagem do pai se lhe desenhou espírito e ele lhe ouviu a voz descansada e grave: Quando a seca gcande não há nada como tocar fogo
no pastó ruim pra que vera o bom. Era assim que Juvenal Terra costumava falar quando acontecia alguma desgraça. Ele não desanimava nunca, estava s pre pronto a recomeçar.
Florêncio suspirou, olhou para a mulher e convidou - Vamos pra casa?
No dia seguinte, por volta das três da tarde, Florêncio foi visit o Dr. Carl Winter, que .agora morava numa meia-água na Rua d Farrapos, na quadra que dava pata
a Praça da Matriz. Fazia muit calor - e o médico, que havia pouco - despertara da sesta, recebèu completamente nu, e só depois de cumprimentar o visitante é q se
lembrou_ de amarrar na cintura uma toalha de algodão. Florên estranhou que o alemão nãoo lhe fizesse as perguntas habituais sob a guerra. Notou também que o Dr. Winter
envelhecia e que havia. fios brancos em suas barbas e cabelos ruivos.
- Sente-se, sente-se, - disse o médico, mostrando uma ca deis. - Toma nm mate?
- Aceito.
- Heinrich Reine!
Do fundo da casa surgiu um negrinho de canela fina, cabeçorr oval e grandes olhos- de jabuticaba.
- Senhor I
- Vá fazer um mate. Schnell
- Jau~ohl.
O moleque fez meia volta e tornou a desaparecer. Florêncio estava admirado.
- Ble fala mesmo alemão? - perguntou.
- Náo. Só sabe dizer sim senhor.
i- E como E mesmo o nome dele?
~- Foi batizado como Sebastião. Mas eu o chamo Heiarich Reine.
Florgncio olhou para o médico sem compreender. Tinha a vaga suspeiq de que o homem nïo eabva muito bom. do juízo.
Wtnter 3cenden uan cigarro de palha, lançou nm olhar enviesado para F1o~+Encio e ezplicon:
Reine é o nome dum grade. poeq alemão. - Apontou parr nm volume: enadernado em touro que esgva em cima da mesa. - Foi o homem que escreveu aquele livro:. Se era
tïvesse um filho. poria- mele o nome de Heinrich Heíne em homenagem a um dos meus poetas favoritos. Como raso tenho, dou esse nome a meu escravo.
Mao confaso, sem saber que dizer, Florêncio remeaen-se na pdein e observoa:
- Pelo que vejo, o doutos" até agora nãoo quis saber de casamento .. .
Wiater começou a. coçar a coza peluda.
- Dá muito trabalho, Florêncio,- dá muito trabalho.
- 8. Há pes ozs que aïo contra.
O dono da casa sentou-se, de pernas muito abertas, os braços uazados .sobre o tónz -.onde se via o relevo das costelas. Fïcon (amando em silêncio e a pergangr a
si mesmo se a visiq de Flo
rêncio era. de caráter. aocíal -ou profissional.
- Que fim levou a Gregória?
Wiater .fez am gesto vago.
Entrou na fresca noite...
- Como?
- Kaputt: Morreu. - E para si mesmo recitou baixinho: - "Der Tod, das. iat die "kcihle Nacht."
~ae foi que o ,senhor. disse?
- Nada. Esgva recitando nrri verso de Heiae sobre a morte.
Ah.
~lorênáo achava um ponto difícil entrar no assento que o levara à casa do médico. Sempre lhe fora desagradável pedir t muito mais desagradável ainda colocar-se numa
situação de inferioridade perante outro homem. Não era orgulho: era ... nem mesmo ele sabia quê.
Pazott um pigarro, agarrou as muletas que tinha posto horizontalmente sobre as_ cozas, e começou:
- Doutor, era vim pra vosmecê dar uma olhada na minha perna.
- Qae é que há com a sua . perna ? - perguntou winter sem olhar pau o outto.
- Como vosmecê sabe, fui ferido num combate, e fiquei com a perna encolhida e dera.
- E -que é que quer que eu faça?
#486 O CONTINENTE
Florêncio ficou chocado com estas palavras, o sangre lhe s ao rosto, as orelhas lhe arderam; e por um instante, penar não achou as palavras de que precisava. Por
fim, tartamudeou:
- Bom. Queria que vosmecê me examinasse . ,. , pois é. me dizer se há esperança ....
Winter levantou-se e caminhou para o outro. - Deixe ver.
Florêncio arregaçou as alças até acima do joelho, que esta envolto em ataduras. Winter acocorou-se ao lado dele e começou desfazer as ataduras. Ficou longo tempo
olhando o ferimento; a panda a perna, e fazendo perguntas ao paciente. Depois ergueu foi até a gamela e começou a esfregar as mãos cóm sabão de sem dizer palavra.
Florêncio esperava.
- Então; doutor?
Winter meteu os dedos pelas barbas e coçou o queixo.
- Não precisa mais usar esses panos. A ferida. está ciatrizada, Florêncio olhava o outro bém nos olhos. - Será que vou fiar com a perna dura pro resto da vi
doutor?
Winter continuava a coçar o queixó sem dizer palavra, lançandp olhares enviesados para a perna do outro.
- Talvez não fique bem como ãntes - disse, ao abo. de. alguma reflexão. - Mas com um pouco de exercício sua pesca, vai ficar quase bóa. É preciso fazer umas massagens.
Vou ensinar` a D. Ondina como se faz.
O moleque èntrou com a cuia e a chaleira d"água quente, entre gou-as ao amo e retirou-se sem fazer o menor ruído.
Winter encheu a cuia d"água e deu-a a Florêncio; que começou chupar na bomba melancolicamente. Estaria o doutor dizem aquelas coisas só para o animar? Ou poderia
ele mesmo um di caminhar sem muletas?
- Experimente andar sem muletas, só com um bastão. Fa força para endireitar a perna, mesmo que dóa. E procure aminhar, caminhar bastante.
Winter. começou a andar dum lado para outro, e quando Florêncio lhe vín as nádegas muito bramas, recobertas dum pelo fulvo. ficou tomado dum certo constrangimento
e temeu - ele mesmo nãa: sabia ao certo por que - que alguém entrasse naquele momento e os visse em tão grotesa situação.
Passou a caia para o outro. Winter começõu a tomar o seu mate. Estava agora dominado pelo hábito do chimarrão,, que sempre achara eive grose Schweinerei, uma grande
porcaria.
Florêncio ardia por saber como iam as coisas no Sobrado, mas nãoo queria principiar o assunto. Como se estivesse a ler-lhe os pensamentos, o outro perguntou:
- Já viu D. Bibiana?
- Não. Vosmecê sabe que nãa entro naquela casa.
- Sei. , Mas vai contiawr sempre assim? - Não há nenhuma razão pr"eu mudar.
- Há muitas. Uma delas é que o menino precisa de sua
amizade.
- Mas nãoo acha que o que aconteceu é bastantt pí en nana
mais bótar os pés no Sobrado?
Winter deu una tapa "no vácuo.
- Àch! ,Isso aconteceu há muito tempo. - Foi ontem, doutor:.
- Pois acho que vosmecê devia quebrar ser. orgulho .. . - Não é orgulho.
- Qne é entro? Teimosia? - )~ vergonha.
- Vergonha de quê? Vosmecê não vai pedir nada. Vosmecê
rio tem. do que se envergonhar.
-.Aquela mulher... - principiou Florêncio, mas não pôde
continuar. O que ele na verdade sentia não podia -dizer a ninguém.
Winter terminou a frase duma maneira para o outro inesperada e
choante.
- Aquela mulher não tem vida pra muito tempo! - Como assim?
- Um temor maligno no estômago! - exclamou o médico,
quase com raiva. As vezes perdia a paciência com . aquela comédia
provinciana que de quando em quando queria tomar- o caráter" de
tragédia. Não era também muito tolerante para com suas rudes
personagens, que nãoo podiam compreender certas sutilezas da vida.
E desforrava-se delas falando-lhes com -uma franqueza que às vezes
chegava a ser brutal..
Florêncio ficou silencioso por um instante. E depois
- Ela sabe?- - perguntou. - Sabe.
- Vosmecê falou -franco ~ Disse que ela tinha vida pra pouco
temo?
- Disse. Uma mulher como Luzia tem mais coragem que
muito homem que conheço. - E isso nãoo tem cura?
- Não.
- Nem em Porto Alegre? Nem. na Corte?
- Não.
- Tia Bibiana também sabe de tudo?
- Sabe.
- Que é que elá diz?
Winter encolheu " os ombros angulosos. - Nada. Que é que podia dizer?
A GUERRA 487
#488 O CONTINENTE
Florêncio brincou um instante com as muletas, pigarreou, mei embaraçado, e depois perguntou:
- Como é que elas vivem naquela casa, doutor? - Odiando-se.
- Mas como é que duas pessoas que se odeiam assim podem viver debaixo do mesmo teto?
- Estão jogando uma carreira.
- Como?
- Sim, uma carreira. Não em cancha reta, mas numa cancha cheia de curvas. A raia da chegada é a morte. Só que nessa carreira quem chegar primeiro perde .. .
- Perde?
- O Sobrado e o menino.
Florêncio olhou para o médico com olhos vazios. - Vosmecê me desculpe, mas não cómpreendo.
- O que mantém aquelas duas mulheres juntas na mesma casa
é a esperança qué uma tem de que a outra morra primeiro.
- Não acredito, doutor, vosmecê me desculpe, mas náo acredito. - Por quê?
- Tia Bibiana não é capaz duma coisa dessas.
Winter soltou uma risada seca e falsa.
- Sua tia é capaz de muito mais coisa do que vosmecê ima
gina. Ela odeia a nora com a mesma -fórça com que amava o filho. - E a nora odeia ela! - retrucou Florêncio, como se estivesse
num duelo dé sabre e revidasse um golpe do adversário com outro
golpe imediato e igualmente .vigoroso.
- Exatamènte!
- Mas eu não compreendo então por que ela continua no Sobrado.
- Muito simples. Se ela deixa o Sobrado, perde o neto. Pense bem, Florêncio. Se Luzia morrer, o problema se resolve. D. Bibiana fica com o menino e com o Sobrado
e pode assim governar os dois- como bem entender.
Florêncio sacudia a cabeça com obstinação.
- Vosmecê está enganado. , Tia Bibiana é uma mulher de bom coração.
- D. Bibiana é uma mulher prática. Aguinaldo Silva tomou a terra do pai dela por meio duma hipoteca. Ela recuperou a terra por meio dum casamento.
De novo Florêncio sentiu um formigueiro no corpo, um ímpeto de erguer-se e começar a gritar desaforos. Mas conteve-se. Ac nele homem branco, magro, estrangeiro e
nu desconcertavà-o um ponto. Se um compatriota seu lhe tivesse dito aquelas mesmas palavras, ele já estaria de faca desembainhada, pronto para brigar. Mas. o diabo
do doutor tinha um jeito de dizer as coisas... Limitou-se a retrucar: "
A GUERRA 489

- Vosmecê está só imaginando .. .
- A coisa é tão clara que só nãoo vê quem nãoo quer.
- Náo acredito.
- Vosmecê nãoo quer acreditar. Porque tem medo. E sabe por quê? - Aproximou-se tanto de Florêncio que este sentiu no rosto Ohálito morno do médico e o seu cheiro
de desinfetante. - ~ porque, se acreditar nas coisas que estou lhe dizendo, vosmecê acabará se desiludindo de todo o mundo. Há quase quatorze anos vosmecê perdeu
Bolívar, o seu melhor amigo. Depois perdeu seu pai, o único homem que vosmecê respeitava e admirava de verdade. Só lhe resta agora D. Bibiana, que vosmecê sempre
se habituou a ver como uma mulher decente, de bom coração, incapaz dum sentimento de maldade. Agora nãoo quer matar a sua última ilusão e por isso se esforça para
não acreditar .. .
Winter calou-se, fez meia volta e foi até a janela dos fundos da casa. Por que- dissera aquelas coisas brutais? Estava torturando o pobre homem. Florêncio era uma
alma simples, acreditava que as pessoas podiam-ser ou absolutamente más ou absolutamente boas. Tinha um código rudimentar e rígido de comportamento e dispunha duma
única medida para avaliar as criaturas. Voltara da guerra inválido, estava desiludido, cansado e triste. Era uma malvadeza-dizer aquelas verdades a uma pessoa em
tal estado de espírito e de corpo. Mas já agora Winter nãoo via mais jeito de parar. Andava amargurado, cansado daquela vida e impaciente até consigo mesmo. Toda
vez que pensava em deixar Santa Fé e voltar para a Alemanha ou para qualquer outra parte da Europa, surpreendia-se a sentir uma preguiça invencível, uma abulia que
acabava chumbando-o àquela terra cuja gente ele aborrecia ,e em certos momentos chegava a odiar - àquela terra absurda que apesar de tudo o prendia poderosamente,
como pela ação dum sortilégio maléfico. Desabafava em suas cartas a Von Koseritz. Seu lieber Baron agora era uma figura pública importante, escrevia belos artigos
em português, fàzia jornalismo, metia-se em política e interessava-se pelas colônias alemâs - das quais era uma espécie de maioral. Seu amigo Carlos
von Koseritz; que ele não vira mais depois do primeiro encontro
em 1851, era praticamente a única pessoa com quem ele podia desa
bafar., Acontecia, porém, qne numa conversa epistolar o mterlo
..-
cutor " náo está presente, não pode fornecer a resposta ao pé da letra. a fim de animar a polêmica, de avivar a discnssão. Ali em Santa Fé, Winter se ressentia da
falta de bons interlocutores. Discutia com o padre, e para exasperá-lo exagerava seus pontos de vista ateus. O Dr. Nepomuceno envelhecia e estava envolto numa tão
espessa carapaça de estupidez, que suas farpas irônicas nem lhe chegavam a arranhar a pele. O Dr. Viegas o pobre Ur. Viegas, que fora trazido a Santa Fé para combater
o cólera-morbo e acabara estabelecendo-se na cidade, era duma burrice dolorosa: desperdiçar ironias
#49O O CONTINENTE
com ele seria, para usar uma expressão da Província, "gastar pólvora em chimango". Winter sentia agora uma necessidade permanente de agredir, e sua arma de agressão
mais contundente era a franqueza, a verdade. Dizer verdades desagradáveis tinha-se-lhe tornado ultimamente um hábito que lhe valia muitas inimizades e desconfianças.
No entanto os dientes continuavam aparecendo: os colonos de Nova Pomerânia e de Garibaldina não queriam saber do Dr. Viegas.
Florêncio permanecia num silêncio reflexivo. O que o Dr. Winter acabara de dizer era a pura verdade. Ele admirava, a tia, tinha-a como uma dessas mulheres raras.
Era-lhe difícil acreditar em que ela realmente tivesse feito o filho casar com Luzia só para se apoderar do Sobrado. Sentia que era seu dever replicar ao doutor
com veemência, defender tia Bibiana. Mas não. encontrava argumentos.
Foi Winter. quem falou primeiro:
- Vosmecê está enganado se pensa que por ter procedido assim sua tia se revelou uma mulher má. Não! Ela é, sem a menor dúvida, uma mulher prática. Não só recuperou
as terras de seu pai, que o nortista espoliou, como também garantiu o futuro do neto. Licurgo agora é o dono do Sobrado e do Angico.
Florêncio suspirou de leve.
- Mas o preço foi muito caro.
- Nem sempre se pode fazer pechinchas com a vida, meti amigo - retrucou o médico, tornando a encher a cuia d"água.
- Como vai o Licurgo? - perguntou Florêncio depois duma longa pausa.
- Não viu ainda o menino?
- Não. Ele e a tia Bibiana andam agora lá pelo Angico. - Licurgo está quase um homem.
- Só no tamanho?
- Não. Em tudo. Um homem segundo o conceito que vosmecês nesta província fázem de homem.
- Sempre tive medo da criação desse menino. Por causa da mãe.
- Não se impressione. Quem toma conta dele é a avó. -Eamãe?...
- Sei lá !
- E o Curgo gosta muito dela?
Winter fez um gesto evasivo.
- L difícil dizer.
Winter já notara que Bibiana e Florêncio nunca pronunciavam o nome de Luzia. Era como se a palavra fosse um ácido que lhes corroesse a língua.
- Será que o menino percebeu que a mãe é ... é uma mulher doente?
- Quem sabe? Agora é que ele está chegando à idade de compreender melhor as coisas.
A GUERRA 491

- E impossível que ele nãoo tenha notado qne a avó e a mãe não se falam, nãoõ se gostam.
- A verdade é que Licurgo está demasiadamente interessado na estância para se preocupar com outros assentos. Luzia nunca vai ao Angico e o rapaz passa lá todo o
verão e boa parte do outono em companhia da avó. Vem no inverno para estadar. ~ possível que nem tenha percebido nada. No fim de contas, a gente desta terra nãoo
é lá muito conversadora .. .
- Mas mais cedo ou mais tarde o Curgo vai compreender todo, descobrir o que houve entre a mâe e o pai. Há muita gente malvada no mundo. Alguém pode contar...
- A própria avó pode encarregar-se disso..
Florêncio recebeu essas palavras como ema bofetada.
- Vosmecê não tem direito de dizer- ema coisa dessas.
Winter avançou resoluto dois passos na direção do outro e, tirando a bomba de prata da boca, perguntou:
- E ,por quê?
- Porque tia Bibiana nãoó é capaz de tamanha maldade.
- Um dia ela será abrigada a isso.
- Obrigada?
- 1; a carreira, Florênrio! Vosmecê sabe qne há corredores qné são capazes de tudo pra ganhar a carreira ... -
Florêncio sacudia a cabeça, rel-atando em aceitar ó ponto de vista do alemão.
- Olhe, preste atenção no que lhe voe dizer. D. Bibiana vive atormentada, roída de medo. Tem medo qne esta guerra dure mais três ou quatro anos e o Licurgo acabe
se apresentando como voluntário. Vosmecê reparou no gtte isso significa? Se Licurgo morre, acabam-se os Cambarás. Licurgo é para sua tia a contínnação de Bolívar,
assim como Bolívar eia a continnação do Capa Rodrigo. Se Licurgo morre, tudo se acaba para ela. - Mndon de tom. - Heinrich Heine! - berrou. E quando o negrinho apareceu
com ar assustado, o médico disse: - A água esfriou. Vá aquentar mais. Schnell!
Tornou a encarar Florêncio:
- O outro medo não ë menor e faz sua tia perder muitas noites de sono. ~ o medo de que Lnzía nm dia resolva vender o Sobrado e o Angico e mudar-se com o filho para
a Corte.
- E vosmecê acha que ela pode fazer isso?
- Agora não, porque está doente, nãoo tem parentes, e o filho- está ainda muito novo para tomar conta dela.
- E mais tarde, quando o Curgo ficar homem?
- Mais tarde, talvez. Mas todo vai depender da espéde dç homem que Licurgo sair. Acredito qne, criado pela avó, ele não pensará nunca em se desfazer do : Sobrado
nem do Angico.
- Essa é a minha esperança.
f92 O CONTINENTE
Houve um silêncio. Wínter olhou para a sua estante, que estava agora cheia de livros alemães e franceses que ele encomendara do Rio de Janeiro. Entre o mundo de
que tratavam aquelas obus e o mundo de Florêncio, havia uma distância abismal, que não ~ media só em espaço, mas também e principalmente em tempo.
- Doutor :.. - principiou Florêncio, pigarreando. - Onvi falar umas coisas .. .
- Que coisas?
- Um tal major que anda por . aí .. .
- Sim... - Winter olhou com o rabo dos olhos para o interlocutor.
- Estiveram me contando que .ele anda- apaixonado pela .. . por ... pela mãe do Curgo.
- Pode ser.
- Dizem que vai muitas vezes visitar ela no Sobrado e que ficam horas e bons conversando .. .
- E verdade.
- Qnem é ele, doutor ?
- Um tal Maj. Erasmo Graça, do Rio de Janeiro. Por quê? - En só queria saber. - Pausa. - Que é que anda- fazendo Por aqui?
- Veio tratar dumas requisições do governo. 1? um homem muito insinuante e simpático. Tem uma comenda da Ordem da Rosa e dizem que ê valente como nm leão,
RTinter pronunciou estas últimas palavras num- tom de paródia. FlOrênciO %tou por alguns segundos alado e depois:
- Vosmeâ acha que ela gosta dele? - perguntou.
- Não sei. Mas s gostar não é de admirar. O Maj. Graça é nm homem e tanto.
- Mas não será que ele. está interessado mais no dinheiro delà do quc nela mesma.?
- Não creio. Luzia é uma mulher apaz de inspirar paizões, não acha?
E ao fazer esta pergunta, Winter olhou firme nos olhós do outro. Florêncio piscou, tomado dum mal-estar. .Quem estava nu agora era ele, completamente nn :.. Desviou
os olhos e prosseguiu
- Se eles asarem ... - .
- Rase é outro medo que rói as entranhas. da velha - interrompeu-o o médico. - O medo de que Luzia venha a asar-se. Nestes últimos .anos apareceram vária homens
que foram ao Sobrado e fiaram apaizonadoa por ela. D. Bibiana andou pisaàdo em brasas todo o tempo.
- E o senhor acha que agora há perigo dela se apaízonar por este?
- Franamente: acho.
A GUERRA 493

- Mas é uma barbaridade!
- Barbaridade? Por quê? Luzia tem apenas trinta e cinco
anos e está viúva há. quase quatorze. Não vejo nada de mal em
que ela se case. Não será a primeira viúva a dar esse passo.
- Mas é uma injustiça! Por causa do menino.. .
Winter encolheu aos ombros como a dizer: "Seja como for, o
problema não é meu.
Florêncio ergueu-se e de novo apoiou-se nas muletas. - Bom, doutor, vou andando. Wiater acompanhou-o até a porta.
=- Faça bastante exereírio e mande sua mulher fazer-lhe mas
sagens na perna.
Junto da porta Florêncio ainda perguntou: - Quando é que ele vai embora? - Ele quem?
- O tal major.
- Dentro duns cinco ou seis dias. - Ainda bem. Volta pra gnem?
- Volta. Não se apoquente. Pode ser que ele morra ou então
que ela morra. Deus é grande.
E foi emperrando Ooutro para a rua com certa impaciência.
4

Aos quinze anos Licurgo Cambará era já um homem. Usava faa na ava do colete, fumava, fazia a barba e já tinha conhecido mulher. Estudava História e Linguagem com
o Dr. Nepomuceno, Aritmétia e Geografia com o vigário, e Ciências com o Dr. Wiater. O resto - que pau ele era o prindpal - aprendia com a própria vida, com a .peoaada
do Angico e prinápalmente com o velho Fandango, o apataz. O português que o Dr. Nrpomuceno lhe ensinava era um idionu estranho que muito ponto tinha a ver com a
língua que s falava no galpão e aa cozinha da estância. Fandango achava que- o coahccimento da Aritmética não fazia nenhuma falta àa praaoaa. Tinha uma teoria própria.
sobre ap quatro operações. "O homem trabalhador - dizia ele, pisando Oolho - soma; o preguiçoso diminui: o sábio multiplia e só o bobo divide." Nunca frcgnentan
escola, e no entanto era apaz de, numa passada d"olhos, dizer quantas abeçaa de gado havia numa tropa.
Geografia? Fandango tinha toda a geografia da Província na abcça. Desde meninote vivia viajando, conduzindo arritas, fazendo tropas, e não havia cafundó do Rio Gnade
que de aáo conhcceasc tão bem como as palmas de sena próprias mãos. Sabia. onde fiavam as agnadas, onde os rios davam vau, onde havia
494 O CONTINENTE
melhor pasto ore melhor pouso. Parecia nãoo existir em todo o território do Continente rancho, estância, povoado, vila ou cidade onde ele não tivesse nm conhecido.
"Até as árvores e os bichos me conhecem por onde passo" - gabava-se ele.
Certa vez no galpão, meio por caçoada e meio a sério, reco peão lhe perguntou:
- Por onde é que a gente sai pra ir pra tal de Europa?
Fandango olhou primeiro para a direita, depois para a esquerda, fechou reco olho, ergueu o braço na direção do norte e disse com ar de entendedor:
- Sai-se aqui direito por Passo Frendo.
História? Fandango sabia as melhores histórias do mando- casos de assombração, lotas de família, guerras, duelos, lendas .... Com dezesseis anos vira sua primeira
gnerta, e era por isso que costumava dizer: "Dês que me conheço por gente ando brigando com esses castelhanos."
Os livros de História falavam em generais, governadores, lagares, datas e coisas difíceis de entender. Curgo achava mais fácil acreditar nos "tansos" de Fandango,
qué se referiam a gente e lugares conhecidos ali da Província "César conquistou a Gália" - lia o Dr. Nepomuceno. Cargo escutava-o sem o menor interesse; ficava porém,
de olho aceso e atenção alerta quando o velho Fandango se acocorava ao pé do fogo e começava uma história : "Pois diz-que uma vez o Xaxá Pereira resolveu ír visitar
um compadre . que ele tinha na Soledade ... " As conquistas de Napoleão Bonaparte descritas pelos livros e comentadas pelo juiz de direito empalideciam ante as proezas
de Bento Gonçalves narradas pór Fandango.
Corgo gostava mais das aulas do Dr. VJinter que das do padre ore as do Dr. Nepomnceno. O vigário tinha um cheiro azedo e uma voz desagradável. O outro - pobre do
velho! - cochilava durante as lições e límïtava-se a Ier com sua voz arrastada o que estava escrito nos livros.
O Dr. Winter era diferente. Nunca fiava parado dentro de usa com o aluno. Levava-o a passear pelo empo, explicava-lhe que a Terra era redonda como uma laranja e
achatada nos pólce. Apontava à noite para as estrelas e dizia-lhes os nomes e as distâncias a que se encontravam da Terra. E quando dava lições de Botânica era mostrando
plantas de verdade e não apenas as gravuras dos livros. Tinha uma magnífica lente de -cabo de madre
pérola com a qual fazia o aluno examinar flores e folhas, talce de relva ore gomos de laranjas e bergamotas. De que são feitas as nuvens? Por que é que quando a
gente solta reco livro que tem na mão o livro cai? Como é que a água se transforma em gelo? Por que é que ezistem o dia, a noïte e as estações do ano? O Dr. Winter
explicava todas essas coisas a Licurgo, que as achava fantásticas, impossíveis - "invenções de estrangeiro pra fazer a gente de bobó ".
Sempre que ia para o Angico o rapaz pedia a opinião do capataz sobre os ensinamentos do alemão.
.- Patacoadas! - exclamava Fandango. - Patacoadas! Estrangeiro é bichõ besta. Esses negócios que aparecem nos livros são bobagens. Não hai nada como a experiência
do indivíduo. Pra ver se vai chover esses doutores da mula ruça olham numa engenhoca parecida com um relógio. Gaúcho nãoo. precisa disso.
-"- Elp sabia ver sinais de chuva no cheiro do vento ou no jeito das nuvens. Havia um certo- lado do céu - opoente - que ele chamava de chovedor, pois quando as
nuvens preteavam para aquelas bandas, era chuva na certa. Existiam ainda outras maneiras dum campeiro prever o tempo sem precisar olhar naquelas geringonças de gringo.
Havia um ditado que Fandango repetia com freqüência no inverno: "Geada na lama, chuva na cama." Um dia Curgo perguntou:
- Por que "na cama", Fandango?
- Pra rimar, hombre.
Em suas muitas andaàças guerreiras pelà Banda Oriental, e principalmente depois duma famosa viagem que fizera a Concepcióa do Paraguai - onde fora levar uma tropa
de mulas - Fandango incorporara a seu vocabulário vários termos castelhanos. Nunca dizia homem, mas sim hombre; em vez de chapéu ".usava sombreio, e empregava com
freqüência palavras como - despacito, calavera, muchacho, iemprano...
Às vezes para mangar com Curgó, quando-o menino lhe perguntava se ía chover ou não, "o velho gaúcho olhava grave para o céu, consultava as nuvens e respondia: -
Céu pedrento, chuva ou vento ... - Fazia uma pausa breve, soltava sua risadinha seu e acrescentavà : - ou qualquer outro tempo.
Quando andavam os dois pelo campo sob a soalheira e, sentindo sede, ficavam a buscar ansiosamente uma aguada, Fandango fazia o cavalo parar e começava a fungar com
força, cheirando Ovento. Ao cabo de algum tempo dizia:
- Tem água perto. E é pr"aquele lado!
Dirigiam-se para o lado indicado e encontravam água. .
- Como é que tu sabes essas coisas? - admirava-se Curgo.
O outro respondia:
- Sou índio velho mui vivido.
Fandango estava chegando à casa dos sessentá, mas era reco homem vigoroso e desempenado, e tinha mais resistência para o trabalho do que muitos dos peões mais moços
do Angico."
Para Licurgo, Fandango era uma espécie de oráculo - o homem que tudo sabe e tudo pode. Um peão era um peão, uma pessoa que hoje podia estar aqui e amanhã na estrada
ou no galpão de outro estancieiro. Mas com Fandango a coisa era completamente diferente. O velho se achava mais preso às terras do Angico. do que aquelas
A GUERRA
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#X96 O CONTINENTE
árvores que tinham raízes profundas no chão. ilesde que nascem, burgo se habituara a ver o capataz ali na estância, como um elemento mesmo da paisagem. Era inconcebível
o Angico sem Fandango ora Fandango sem o Angico.
Um dia nupia aula o Dr. Winter dissera a Curgo alga qne o dtizan intrigado. Com nma pequena bússola de bolso na mão, o mEdico falava do globo terráqueo e dos pólos.
- Sua vida, Curgo - disse ele - oscila entre dois pólos magnéticos: Fandango. e D. Bibiana.
O qne o capataz do~ Angico e sua avó tinha a ver com a bússola foi coiaa que Curgo não pôde nem procurou compreender. O doutor 3s .vezes parecia que não era muito
bom do juízo!
Era José Fandango um Homem de estatura meã, pele tostada de aol, olhinhos pretos e pícáros metidos no fundo de órbitas ossudas, bigodes e barbicha grisalhos, é bochechas
dum corado de goiaba madura. Tinha nma voz de cana rachada, que lembrava muito Opalrar dum papagaio, e que ficava pastosa quando o velho comia carne gorda e falava
de boca cheia.
Costumava ele resumir seus gostos e desgostos numa frase que já corria mnndó:: "Trés coisas hai nesta vida que me fazem muito mal: mulher velha, noite escura e cachorrada
no quintal."
Sen nome verdadeiro. era José Menezes„mas quando mocinho era táo grande sua fama de trovador- è bailarico, que os amigos acabaram por dar-lhe o apelido de Fandango,
A alcunha pegou de tal modo que ele resõlveu adotá-la cómo nome. Viúvo, sua família x resumia no filho, conhecido por Fandango Segando, e num neto, o Fandanguinho,
rapazola de treze anos e "amigaço" de Licurgo.
Era voz . geral que "onde está o Fandango tem sempre fandangó ". Quando lhe perguntavam de onde vinha e quem eram seus pais; o capataz respondia em verso:
Eu não tenho pai nem mãe, Nem nesta terra parentes. Sou filho das águas claras,
Neto das águas .correntes.
Mas o verso de que Fandango mais gostava de recitar continha, por assim dizer, uma declaração de princípios
índio velho sem governo 1~linha ler é o coração. Quando me pisam no poncho Descasco logo o facão, E se duvidam perguntem
A moçada do rincão.
A GUERRA 497
Era verdade. Ninguém duvidava disso. Contavam-se proezas de Zé Fandango. Duma feita, quando moço, tinha acabado um baile a facão. Como a filha do dono da casa se
recusasse a dançar com ele, Fandango sem se perturbar lhe gritara: "Não é a primeira égua que me nega estribo. Um irmáo da moça estava perto e puxou a adaga. "Fechou
o tempo" - contava Fandango. "A primeira coisa que fiz foi dar um pontapé no candeeiro. Daí por diante brigamos no escuro." Dizia-se também que de 35 a 45 Fandango
fizera coisas do arco-da-velha como oficial de lanceiros dos Farrapos.
O prato que ele mais apreciava era arroz com guisado de charque - arroz-de-carreteiro - e sua sobremesa predileta: canjica com leite. Para Licurgo era dia de festa
na estância quando o velho resol
via ir para a cozinha preparar a comida.
Num dia de inverno, depois do almoço, Fandango ficara a tomar sol sentado no portal da casa do Angico. Curgo aproximou-se dele
- perguntou:
- Lagarteando, nãoo, Fandango? E o gaúcho respondeu:
- O sol é o poncho do pobre, hombre.
Curgo gostava dos ditados do capataz. Para tudo tinha um
provérbio. Uma vez uma china solteira da estância apareceu grávida
- todos ficaram curiosos por saber quem era o pai da criança. Um
dos peóes perguntou:
- Fandango, quem foi que emprenhou a Dica?
O velho gaúcho fechou um olho, encarou o interlocutor e res
pondeu:
- Vaca de rodeio não tem touro certo, menino.
Tinha também ditados misteriosos, cujo sentido Curgo não
conseguia penetrar:
- A pedra grande faz sombra, mais a sombra não pesa nada. Um dia o rapaz perguntou:
- Que é que quer dizer isso?
- Quando vassuncê for mais velho vai compreender sem nin
guém. explicar. Agora é mui temprano.
Em sua vida andarenga Fandango conhecera muita gente em
muitos lagares. Tinha nma memória prodigiosa, nunca esquecia
nomes, datas`,-caras ou pormenores. Uma noite no galpão do Angico,
quando os peões e um forasteiro conversavam e pitavam ao redor
do fogo, alguém perguntou:
- Que fim levou o Mané Tarumã?
- Foi morto por um cunhado no Poncho Verde - respondeu
o capataz.
- E o tio dele, o Antônio Tarumã? Fandango pensou um ponto e depois informou:
Foi degolado em 68 pela gente do Jota Brabo.
Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..
498 O CONTINENTE
- E aquele tropeiro de olho torto ... como era mesmo o nome dele?
- O Mingote Fagundes? - Isso!
- Foi morto por um gaiteiro num baile.. Deixe ver... Faz uns dois anos.
O estranho - um tropeiro paulista que escutara a conversa em silêncio - observou
- Pelo que vejo por aqui ninguém :morre de morte natural.. . Fandango cuspiu no fogo e replicou: - É meio difícil, moço. Mas alguns morrem ...
Com Fandango, Curgo aprendeu sobre as plantas coisas que os livros não ensinavam e o Dr. Winter parecia ignorar.
- O melhor pasto pro gado é a grama rasteira ou o capimminoso. Capim-limão não presta. Pé-de-galinha e milhã? Só pra gado manso. E Deus me livre dum campo de barba-de-bode!
- Está vendo aquele umbu ali? - perguntou um dia o gaúcho ao menino, quando este tinha apenas oito anos.
- Estou. É muito lindo.
- Pois o umbu é como certas pessoas : só estampa. - Por que, Fandango?
- Porque a madeira não vale um caracol. Curgo sacudiu a cabeça. O capataz prosseguiu:
- Agora, tu quer ver madeira bem boa mesmo? Pega o cambará ou o angico ...
Licurgo sorriu com certo orgulho. Seu nome era Cambará: Angico era o nome de sua estância. Todas essas coisas lhe davam uma sensação de firmeza, de resistência,
de força.
- E depois, menino, não é só a madeira. Folha de cambará ou de angico é muito bom pra tosse.
E ensinava-lhe outros remédios. Urinas presas? Chá de ervade-touro. Prisão de ventre? Batata-baririçó. Fraqueza do peito? Agrião. Lombrigas? Mastruço. Contra mordida
de jararaca? Trazer em qualquer parte do corpo um toco de cipó-mil-homens.
- Conheci um carreteiro - contou Fandango noutra ocasião - que estava com os dentes frouxos. Queria ir ao dentista mas eu disse pra ele: Não faça isso! Não bote
fora o seu dinheiro. Tome um chá de molho. O homem tomou e ficou bom.
Fandangd ensinava também a Licurgo coisas a respeito dos bichos.
Para descobrir o sexo dum terneiro que ainda não nasceu, a gente examina a cauda da vaca que está para dar cria, se sua ponta for aguda, vem macho; se for arredondada,
vem fêmea.
- Matar corvo - explicou Fandango - traz má sorte, porque esse bicho tem parte com o diabo. Arma que mata corvo fica
#A GUERRA 499

estragada, não pára de verter água. Devemos também respeitar o joão-de-barro, muchacho, porque foi ele que ensinou o homem a fazer casas de barro. Depois, esse bichinho
todas as manhãs acorda o gaúcho com seu canto.
- E tu sabe duma coisa, Curgo? João-de-barro, é um passarinho mui engraçado. Nunca trabalha nos domingos. E quando a companheira dele morre, tu sabe o que ele faz?
Empareda ela dentro de casa. Pois é. Não presta matar joão-de-barro. Traz desgraça.
- E bem-te-vi?
- Onde tu enxergar um bem-te-vi, trata uma pedrada nele. O lo bicho simbergüenza! É um passarinho amaldiçoado por Deus, porque quando a Virgem Maria fugiu pro Egito
com o Meniro Jesus; os judeus saíram atrás dela. A Virgem se escondeu, os judeus iam passando sem enxergar nada, mas o diabo do passarinho começou a gritar: bem-te-vi!
bem-te-vi! E ainda por cima soltou uma risada.
- E coruja?
- Não presta matar coruja. Ela limpa o campo de cobra e de outros anieetos. Mas coruja também traz mau agouro. Quando canta de noite perto da casa da gente é pra
anunciar a morte duma pessoa da família.
- E grilo?
- Não se deve matar. Traz prejuízo de dinheiro ao matador. - E sapo?
- Também não presta. Traz chuva.
- Então o que é que presta?
- Matar correntino quando ele passa a fronteira pro lado de cá.
Fora também com Fandango que Curgo aprendera a nadar, laçar, curar bicheira, e parar rodeio. Mas de todos os conhecimentos que o velho lhe transmitira os de que
Licurgo mais se orgulhava eram os que se referiam aos cavalos. O rapaz os absorvera através de aulas práticas, durante viagens, rodeios e domas em que ele observava
de perto as manhas e hábitos dos cavalos, as peculiaridades de cada raça e de cada pelo. Depois, nas conversas de galpão e nas horas de folga, Fandango lhe dava
por assim dizer as aulas teóricas, em geral resumidas na forma de ditados que corriam de boca em boca por toda a Província, nascidos da experiência de gaúchos anônimos
em dezenas de estâncias.
Se Licurgo perguntava ao capataz sobre as qualidades dos cavalos tostados, ele fechava um olho, mirava o menino por algum tempo e sentenciava
- Tostado? Antes morto que cansado.
- E tordilho, Fandango?
- N"água é melhor que canoa.
- E baio?
- Se encontrares um viajante na estrada com os arreios nas
#5OO
O CONTINENTE
costas, pergunta logo: "Onde ficou o baio?" - E sempre que prevenia os outros contra as traições dos cavalos desse pelo, acrescentava: - Uma vez, lá pras bandas
de São Sepé um baio me deixou a pé.
Ninguém nunca ficou sabendo se a coisa tinha acontecido mesmo "pras bandas de São Sepé" ou se Fandango escolhera esse povoado só por causa da rima.
Havia outros conselhos que Licurgo não esquecia:
"Se tens :pela frente viagem larga, não faças pular teu ca"alo. Sai no tranquiloo até o primeiro suor secar; depois ao trote até, o segundo; dá-lhe um alce no terceiro
e terás cavalo pro dia inteiro."
Quando certo dia Licurgo teve de escolher um cavalo para seu uso, aproximou-se de Fandango e perguntou:
- Que pelo vou escolher?
Fandango estava picando fumo para fazer um cigarro. Tinha a palha enfiada atrás da orelha, a perna direita dobrada em repouso, o peso do corpo sobre a esquerda,
o busto um pouco inclinado para a frente, o olhar vago posto nos largos horizontes do Angico. Ficou por um instante calado, como se não tivesse ouvido a pergunta.
As partículas de fumo caíam-lhe no concavo da mão. Com as abas do sombrero quebradas na frente, o sol a bater-lhe em cheio no rosto, Fandango ali estava na frente
da casa da estância, imóvel como um tronco de árvore. E quando Lícurgo ia repetir a pergunta o velho lhe deu a resposta. Falava descansadamente, escandindo bem as
sílabas, dum jeito quadrado e meio seco. E o que ele disse foi um resumo de sua experiência pessoal:
- Não te fies em tobiano, bragado ou melado. Pra água, tordilho. Pra muito, tapado. Pra tudo, tostado.
Diante desse conselho, Licurgo ficou indeciso. O velho, porém, sorriu, acrescentando:
- Mas cavalo é como gente. Uma pessoa tem seus dias bons e seus dias ruins, não tem? Pois com o cavalo se dá o mesmo. Tudo é bom e tudo não presta.
Dentre os outros conselhos que Fandango lhe dava com relação aos cavalos havia um de que o rapaz gostava particularmente: "Doma tu mesmo o teu bagual. Não enfrenes
em lua nova, que ele fica babão. Não arreies na minguante, que te sai lerdo."
Aqueles homens do campo costumavam fazer comparações entre o cavalo e a mulher. Fandango aconselhava aos peões que casassem com moças conhecidas, se possível com
meninas que eles tivessem visto crescer. E aplicava o ditado : "Cria perto de teu olhar a po tranca pro teu andar.
- Com mulher sardenta e cavalo passarinheiro - prevenia também - alerta, companheiro!
Pelas quadras populares e pelas modinhas que ouvia recitar ou cantar, Licurgo aprendera a classificar as mulheres de acordo com o
#A GUERRA 5O1

"p21o"". Concluía que as morenas eram mais constantes que as claras: e que as ruivas eram geniosas e as de cabelo preto, sinceras:

Vou escolher uma dona No rebanho das formosas, Escolherei trigueirinhas, As claras são enganosas.

"Mulher, arma e cavalo de andar lembravam elas - nada de emprestar."
Mas, para aqueles viòleiros e .cantadores, a mulher era principalmente uma tirana

Eu amei uma tirana,
E ela não.me,quis bem, ai!

Passei pela tua porta
Dei de mão na fechadura; E não me quiseste .abrir, Coração de pedra dura.

Nunca vi mulher bonita Ter cabelos no nariz, Nunca vi mulher alguma Ter constância no que diz.

Licurgo ouvia essas cantigas e rimas. e ficava pensando. Era engraçado... As mulheres que ele conhecia estavam longe de merecer aquelas quadras. Eram quietas, trabalhadoras,
sérias, mal ousavam erguer os olhos para os homens que não fossem seus maridos ou parentes muito chegados. Decerto as "tiranas" falsas de que falavam tais versos
eram as mulheres de cidade" grande. E por mais que se esforçasse, sempre que ouvia quadras e modinhas sobre mulheres malvadas que tinham desgraçado a vida de homens,
ele não podia deixar de pensar na mãe. E ficava perturbado.
Muitas vezes pensara: "Quando eu fizer vinte e dois anos, me caso." Havia na vila algumas meninas que ele achava bonitas, embora não chegasse a gostar de verdade
de nenhuma delas. A avó vivia a dizer-lhe que um homem para ser bem completo tem de casar e ter filhos, muitos filhos. Os trovadores do galpão, porém, recomendavam

Todo o homem quando embarca Deve rezar uma vez. Quando vai à guerra duas Quando se casa, três.
#5O2 O CONTINENTE
Fosse como fosse, ele teria ainda muitos anos para pensar em casamento. A lida da estância enchia-lhe as horas e os pensamentos. Mal anoitecia, Curgo ia para a cama
cansado e dormia sono solto até o amanhecer do dia seguinte. Mas em certas noites em que lhe vinha um desejo de mulher, ele acabava encilhando Q seu cavalo para
ir até o rancho da china Rosa. Voltava de lá de madrugada ao trote do animal, ouvindo os grilos, mirando as estrelas e saboreando seu cigarro de palha.
Aos quinze anos Licurgo Cambará era já um homem.
5
Muitas vezes olhando os campos do Angico de cima do seu cavalo ou da porta da casa da estância,. e pensando em que eram suas aquelas terras que iam muito além do
ponto até onde a vista alcançava, Licurgo sentia, inflar-se-lhe o peito numa sensação de orgulhoso contentamento. Isso às vezes chegava a tirar-lhe o folego. Os
meus campos, os meus peões, a minha cavalhada, o meu gado... O rapaz enchia a. boca e o espírito comm essas palavras e com o mundo de coisas em que elas implicavam.
.
Gostava da vida campestre, e quando estava no Angico não tinha nunca um minuto sequer de aborrecimento. Despertava antes de raiar o dia, pulava da cama. e ia para
a mangueira, levando uma guampa com bocal,de prata onde a avó mandara gravar seu nome. Os galos cantavam, como se quisessem acordar o sol com sua balbúrdia. Licurgo
tinha um prazer especial em caminhar descalço sobre a grama ainda úmida de sereno. Empoleirava-se depois nos troncos da mangueira e gritava para-a escrava que ordenhava
as vacas:
- Buenos dias, Luciana?
- Bom dia, só Curgo - resmungava a preta.
Seus dedos escuros apertavam as tetas da brasína ou da malhada o leite esguichava no balde com um rufar de tambor, Como era bom ficar ali vendo o horizonte clarear
aos poucos e aspirando os cheiros da mangueira - esterco úmido, leite morno, pelo de vaca.
Depois de beber duas ou três guampas de leite, quando o sol começava a apontar por trás da Coxilha do Coqueiro Torto, Curgo ia para o galpão comer um churrasco mal
passado nas brasas, seguido dum amargo bem quente. A essas horas já o gado mugia, os passarinhos cantavam nos cinamomos, à frente da casa, e os quero-queros andavam
a gritar pelo campo.
Começava então a faina do dia e Curgo acompanhava Fandango e a peonada que saíam a percorrer as invernadas. Sabia laçar, parar rodeio, marcar, e seu maior sentimento
era o de não saber domar potros, pois a avó não lhe dera ainda permissão para apren
A GUERRA 5O3

der. Temia que ele rodasse do bagual, quebrasse a cabeça e morresse "como aconteceu com o falecido seu bisavô". Como o rapaz vivesse insistindo, ela prometia com
certa relutância
- Quando vassuncê fizer dezoito anos eu dou licença.
Curgo voltava do campo com o sol já a pino: vinha com uma fome tão grande que se sentia capaz de devorar um boi. Segundo Fandango, era ele "um garfo de respeito".
Comia com prazer e muitas vezes, de olho contente diante dum bom churrasco de costela ou duma sopa de mocotó, filosofava: "Uns comem pra viver, outros vivem pra
comer, mas eu como porque gosto." A avó sorria
- murmurava : "Puxou ao avô. Pra o Rodrigo, comer era mesmo que uma festa." Entre os pratos prediletos de Licurgo estavam o arroz-de-carreteiro, o matambre, a morcilha
e o fervido. Uma vez por semana mandava fazer uma feijoada com bastante toicinho, lingüiça e charque, e esfregava as mãos quando via a panela fumegando na mesa.
Nessas ocasiões desprezava os outros pratos e comia feijoada até empanturrar-se. Por fim, "pra feijoada não sentar mal", bebia um copo de cachaça. Erguia-se da mesa
"empachada", lerdo, sonolento, com a impressão de ter engolido um tijolo,
- atirava-se na cama como um peso morto, para uma sesta longa de sono inquieto, do qual despertava com a boca amarga, a cabeça dolorida, irritado e infeliz. Quando,
porém, chegava a hora do jantar já estava pronto para limpar várias costelas de assado, e mais um prato ou dois de mondongo com farinha ou guísadinho com abóbora.
Nunca deixava de tomar, após cada refeição, uma tigela de leite com marmelo cozido ou milho verde. Suas sobremesas favoritas eram pessegada e rapadura com queijo.
"O Curgo não é homem de festas" - costumava observar Bibiana. E não era mesmo. Quando se via obrigado a ir a algum fandango, não se misturava com os outros, preferia
ficar olhando os ,pares de longe. E olhava-os dum jeito esquisito assim como se estivesse reprovando o que via.
- Cai na dança, lorpa? - gritava-lhe Fandango, que não perdia marca.
- Me deixa - respondia o rapaz, esquivando-se.
Quando via os homens sapateando e rodopiando ao compasso da chímarrita, da tirana ou do tatu, ficava tomado dum certo malestar, como se dançar fosse coisa indigna
de macho. Por outro lado, encarava também com desconfiança e má vontade as jovens dançadeiras, e prometia a si mesmo nunca se casar com mulher que ao dançar meneasse
as cadeiras, requebrasse o corpo.
Nas raras vezes em que os outros conseguiam arrasta-lo a festas onde havia jogos de prendas entre moços e moças, ele ficava a um canto, arredio, observando tudo
de carranca cerrada, com olhos tristonhos e graves.
#XO2
Fosse como fosse, ele y casamento. A lida da estâ P6~, Mal anoitecia, Curgo ía ~ `fie até o amanhecer do dia Goa" o", vinha um lese o de PO ~ d
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G~de,~ ~o r ~~,~ P fQão animal e a gravidade

r d q. ~y . por "precisar dessas piguan
Muita~ or~;~d ~ ~o d ,~ juntava nem o esboço dum

cavalo o~ ór~ ~ o es "pagava o serviço".

suas aqr ~~ ~P q rar rodeió, de curar bicheiras, de car

alcanç~ dd, P - tos de festa. Gostava de .montar a cavalo

orgul,~~, o po, só pelo puro pràzeí da corrida. Nessas

Os n Q -fanfava, era feliz. Noutras ocasiões, quando cor

O , ~ milhões verdes que cercavam a casa do Angico e pen

rn tudo aquilo lhe pertencia, ficava tomado duma pro

lácida alegria. E seu grande sonho era -ter um dia mais

e mais gado que os Amarais.

mbora $ibiana lhe tivesse proibido meter-se em carreiras, quase todos os domingos ele levava seus parelheiros para correr em cancha reta com cavalos das estânciàs
lindeiras do Retiro e do Rincão Bonito. Não raro essas carreiras davam em briga, e duma feio. Curgo se pusera a discutir acaloradamente com um homem que devia ter
o dobro de sua idàde. Num certo momento o interlocutor lançou-lhe
um olhar de desdém e disse:

- Cala essa boca, guri.

Cargo ficou vermelho e retrucou, meio engasgado: - Eu te mostro quem é guri.

Tirou a faca da bainha e precipitou-se para cima do outro. Mais urde, a caminho do Angico, queixou-se

- Se tn náo tivesse apartado a briga, Fandango, eu furava o bucho daquele patife.

- Furava coisa nenhuma! - troçou o capataz. - Tu te borra todo quando vê sangue.
Aquilo, claro, era uma brincadeira do velho, pois Curgo estava acostumado a ver sangre. Na primeira vez que vira abaterem uma rês, tinha ficadò pálido, tonto, e
com engulhos. Mas depois se fora noa poucos habitaando àquilo. Agora ele próprio sangrava bois e até ,á gostava de cheiro de sangue. Foi por isso que quando um touro
bravo furòp com uma chifrada os intestinos dum peão do
A GUERRA 5O5

Angico, ele póde ajudar Fandango a botar as tripas do homem para deatro da barriga sem sequer pestanejar. Era também por isso que quando ia caçar bugios no Capão
da Onça e os via cair. no chão ensangãenados, com os corpos furados de chumbo, nãoo ficava nem nm poluo impreaeionadb. Fosse como .fosse, tinha de ír-se habituando
àgneíaa coisas, porque se a guerra - com o Paraguai durasse mais dois anos, ele tencionava apresentar-se como voluntário.
Licrrgo gostava muito da casa da estância, embora ela nãoo. pudesse comparai-se com o Sobrado ... Muito menor, de um andar aó. nãoo tinha soalho nem vidraças, nas
janelas. No entanto, sentia sempre nm alvoroço quando, ao chegar da vila, avistava aquela casa compnda, de três portas e oito janelas, Iá no alto da coxilha e brangrejaado
por trás dum renque de cinamomos copados. E de todas aa peças dessa casa ama das que ele móis gostava era a cozinha, onde àa vèzes ia conversai com as negrás, que
lhe contavam histórias belas e terríveis da África - uma África que nada .tinha a ver com a dos livros de Geografiã do Pe. Oterò.
Ostro dos. grandes- prazeres do rapaz - e um dos que mais o prendiam ao Angico - era o de tomar .parte nas conversas do galpão à noite, depois do jantar. Reuniam-se
os peões. ao redor do fogo e ficavam a coutar histórias. Eram "conversas de homem", quase sempre em torno de avalos, jogo, mulheres, duelos, revoluções, heróis e
bandidos. E através dessas conversas Liciugo ia como que absor-vendo os artigos do código de honra daquela gente - um código que nãoo fora escrito mas que tomava
corpo, fazia-se visível em milhares de exemplos e casos que andavam de boca em boca. Segundo esse código, nm homem para ser bem macho precisava ter barba e vergonha
na cara. Ter vergonha na cara significava possuir .uma cara limpa em que nunca nenhum outro homem .tivesse batido. "Se am homem te esbofetear, finta o canalha no
sufragante." Ter vergonha na cara significava também nunca faltar à palavra empenhada,_ tosasse o que custasse. Contava-se que na Província se faziam grandes transações
a crédito em que, em vez de assinar uma lem, o devedor dava ao credor um fio de barba, o qual para aqueles homens de honra valia tanto como um documento selado com
firma reconhecida por um tabelião.
Licargo orgulhava-se de saber que o avô e o pai tinham tido morte digna de homem: lutando de arma na mão. Era assim umbém ~.qre ele queria morrer quando sua hora
chegasse.
Uma noite no galpão, como se falasse em homens valentes e generosos, Fandango tocou no ombro de Curgo e disse:
- Onve esta, que te interessa, menino. Passou-se com teu avô, o finado Cap. Rodrigo Severo Cambará.
- Tr te lembra bem dele, Fandango? - perguntou o rapaz.
- Me lembrar nãoo me ltmbro, porque nunca nos encontramos. Man foi tua avó, D. Bibiana, que me contou o caso.
o cc
~aas?
#5O2
E
um gole de mate. Um dos
a um inimigo, um tal de
deza muito grande. Bri
am a bala porque houve
a furioso e disse pra mu
o na garganta. Onde eu
e o rebenque na .cara."
ia nada. Pois um dia o
da e vai então de repente
, lha e vê dois bandidos
_ _,. adaga atacando um hómem que se defendia com o cabo
~~ do rebenque. O pobre do cristão ía recuando na direção dum valo, estava malito mesmo. O capitão esporeou o ca"alo, chegou-se perto dos peleadores e viu que o
que brigava sozinho era mem mais nem menos que o seu inimigo, o tal de Mário Leite. Vejam só como são as coisas. Apeou ligeiro, já de adaga desembainhada, e entrou
na briga, gritando:- "Cobardes! Atacarem um homem desarmado. E dois contra um!" Disse isso e atirou-se pra cima dos bandidos a golpe de adaga, como quem vai matar
cobra. Os bandidos se assustaram e meteram o pé no mundo. O capítão enfiou a adaga na bainha, montou a cavalo e, sem -olhar pro outro, sem dizer uma palavra, foi-se
embora.
Fandango fez uma pausa e depois rematou a história
- Eram assim os homens de antigamente. -
Era assim o meu avô - pensou Curgo. E ficou olhando refle
xivamente para o fogo.
Havia também histórias de bandidos famosos. Dentre elas a
favorita de Licurgo era a do Zé Viau.
- Esses bandidos valentes e pícaros do tempo antigo estão se acabando - lamentou Fandango noutra noite. - Onde é que se encontra hoje em dia um homem como o Zé Viau?
Andava de flor no peito, sombrero de aba quebrada na frente, barbicacho nos queixos e espada na cinta. Vivia desafiando os milicos e era homem de entrar a cavalo
num bolicho e levar doas chinas na garupa I
Contava-se que por volta de 183O aparecera por. São Borja nm cidadão francês, uin certo Jean Víaud, que se dizia médico formado por uma academia de Paris. Era um
belo homem de maneiras fidalgas, barbas ruivas, olhos azuis e mãos de moça: Costumava viajar pelas estâncias, curando gentes e bichos e recebendo comp pagamento
dos seus serviços nãoo só dinheiro como também galinhas, porcos, roupas ou objetos para seu uso pessoal. Uma noite o francês pernoitou na estância dos Belos, dormiu
com a donzela da casa e no dia seguinte foi embora. Dois meses depois, quando desco
briram que a moça estava grávida, .seus irmãos obrigaram-na a
dizer o nome do sedutor e puseram-se a campo para descobrir o para
deiro do infame. Encontraram-no finalmente em Rio Pardo, deram
lhe ~ uma sova de rabo-de-tatu em praça pública, trouxeram-no
maneado para a estância e fizéram-no casar com sua vítima. O
casamento realizou-se em sigilo, com a presença. apenas dos pais e
dos irmãos da noiva. A çriança nasceu dali a sete meses, mas o
Dr. Jean Viaud, de belos olhos azuis e mãos de moça, parece que
achou o casamento um peso .excessivo para seus ombros delicados.
Um día fez a mala às escondidas, montou a cavalo e fugiu. Nunca
mais ninguém ouviu falar nele. Os cunhados encolheram os odí
bros e disseram : "O mal foi reparado. ; até melhor que esse diabo
nãoo apareça mais: Seja como for, a criança tem um -pai." Era um
menino e haviam-lhe dado o nome de José. , Cresceu na estância,
guapo e vivo. Com o correr do tempo os Belos peideram sua fortuna
e o menino criou-se ao deus-dará. Aos quatorze anos- fugiu de casa, e dizg que andou fazendo contrabando na fronteira com a Argentina. os dezoito matou o- seu primeiro
homem. Parece que gostou, pois aos, vinte já .tinha cinco mortes nas costas. Aos porcos soas proezas começaram a ser contádas em toda a Província. Ora, como ninguém
lhe pronunciava direito o nome - pois em vez de viô, diziam viau - o jovem bàndido ficou sendo.conhecido por Zé Vian, nome que correu mundo e ganhou fama.
Fandango remexeu no fogo com nm pau.
- Hai uma história dele que é mui linda - disse. -. Conhecem?
Ninguém falou: todos ficaram esperando, pois sabiam que o capataz havia de contá-la, mesmo que eles dissessem que a conheáam.
- Díz-que uma vez o Zé Viau matou nm homem em Uraguaiana, e se bandeou para a República Argentina. Os parentes do morto juraram que nãoo descansavam enquanto não
matassem o Zé Víau e deixassem ele estaqueádo no meio da praça.
Fez uma pausa e "perguntou:
- Vassuncês sabiam que quando a gente Bota uma moeda aa boca dum homem que foi assassinado, o criminoso volta ao lagar do crime? Pois é. Enterraram o homem com uma
anceda de tostão na boca. Passou-se um tempinho e um dia qual nãoo foi a surpresa dum bolicheiro de Uruguaiana quando viu o Zé Vian entrar na casa dele, todo lampeiro,
de flor no peito, arrastando aa chilenas no chão. O coitado ficou branco de medo e começou a gagncjar e olhar pra todos os lados. "Viu algema alma do outro mando.
patrício?" - perguntou o bandido. O bolicheiro contou a história da moeda. Zé Viau fechou a cara e indagou - "Então~eles~un óer; Taram aquele cachorro com uma moeda
na boca? Espera Saiu da venda, montou a cavalo, foi ao cemitério- deaenterroq o defunto, xírou a moeda da boca dele, voltou pro bolich°, amou
O
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Fosse como fosse casamento. A lida ~ ~ Mal anoitecia, Cr °" até o amanhecer ó ~
vinha um dg- ~ ó ~
para ír até ~ ~
ao trote d-Á i~ ~
do seu N °~ °
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ão de aça, amigo!" ficou verde. dentes, sacudiu a cabeça
eio passar dois dias na ecidin levar consigo O
até o fim do verão?
A GUERRA
5O9
Fosse como fosse, casamento. A lida ~ p Mal anoitecia, Cr °" até o amanhecei ~ ó ~ vinha um dg- ~ ó para ír até ~ p °"
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....~;pvr qae ~ que não pode?
- Tenho a que fazer no Sobrado.
O que. ela tinha a fazer em casa nãoo podia çontar a ninguém: era vigiar a nora. Aquele maldito Maj..Erasmo Graça, freqüentava o Sobrado, estava ~ perdido de amores
por Luzia.. Sémpre que o homem aparecia. Bibiana . plantava-se também ~ na sala de visitas, sentava-se numa cadeira t ali .ficava, -de máos no regaço, calada. mas
sem tirar oa olhos- do major. Era preciso nãoo deixar aqueles dois soziáhos, nãoo dar aa forasteiro tempo de se declarar. Assim vigiados, eles se viam. forçados a
conversar sobre coisas que nada tinham a ver-com amor ou casamento. Agora Bibiana aproveitara
:ama ausência temporária do major para vir até o Angico, porque lhe batera de repente uma .grande saudade do neto. Mas .era preciso voltar em segaida, pois fóra
informada de qae o "desgraçadó " dentro de dois dias estaria de volta a Santa Fé.
-~- Vamce sair de jardineira, de manhâ cedinho - áisse ela ao neto. - Arinme as suas coisas.
- Está bem, vó.
Naquela- noite Curgo procurou Fandango e contou-lhe suas mágoas.
- Faça a vontade da velha.
- Mas é que eu não gosto de passar o verão na vila!
- Tu tem ainda muito verão pela frente, mnchacho, muito verão.
Assim, no dia seguinte, mal. o sol rompeu, avó e neto embarcaràm na jardineira. Licurgo ia taciturno, de testa franzida. Bibiana mirava-o de soslaio mas não dizia
nada. Sabia que o neto tinha sangre de Tena .e de Cambará. Não seria por causa do sangue do Rodrigo que ele estava assim de cara fechada,-e bico calado. O capitão
era homem alègre, conversador e andava sempre bem disposto. Agora ali na jardineira que ia sacolejando pelas estradas cheias de "costelas" e buracos, Bibiana reparava
no quanto Licurgo se pare
cia com seu próprio bisavô. Pedro Terra. Quando o menino estava "com os burros . o melhor era a gente nem falar com ele. E como um Terra sempre respeitava os silêncios
de outro Tema. Bibiana não disse palavra ao neto. durante muito tempo. Ficou a conversar com o boleeiro .sobre as vacas que iam dar cna, as colheitas e os calores
daquele verão.
O sol já estava alto e soprava um ventinho de leste quando eles deitaram os campos do Angico e entraram na estrada real, que era tão má como as da estância. E como
o silêncio de Curgo se estivesse prolongando demais, e como ele no momento em que o boleeiro fechou a porteira lançasse um olhar triste para os campos que ficavam
para trás, Bibiana deu-lhe uma palmadínha rápida no joelho e disse:
- Não há de ser nada, Curgo. No mês que vem ta volta.
O rapaz então sorriu um sornso rápido e meio triste:
- Vosmecê sabe. vovó, o que o Fandango disse quando se despediu de mim? - Ela. sacudiu a cabeça negativamente. -Disse que nem por mil cruzados entrava numa jardineira.
- Ué! Por quê?
- Porque carro é condução de mulher e criança de peito.
Gaúcho anda mas é a cavalo. - Velho desfrutávell
Na noite daquele mesmo dia, na sala de visitas dó Sobrado, pela primeira vez em múitos meses Licurgo ficou a sos cóm a mãe. Foi após o jantar: as cinco velas do
candelabro estavam acesas em cima do consolo, e Bibiana se encontrava no . andar superior a defumar os quartos com incenso.
Sentada junto da mesinha redonda, Luzia tocava cítara para o filho. Os cabelos lhe caíam sobre os ombros cobertos por um xale de seda preta, que lhe acentúava ainda
mais a palidez: De vez em quando a dor crispava-lhe o rosto e ela começava a gemer baixinho. Curgo, então, desviava os olhos, todo perturbado.. A idéia de que sua
mãe sofria, de que tinha um tumor maligno, lhe causava uma grande pena e ao mesmo tempo um grande remorso, pois embora soubesse que seu dever era mostrar-se carïnhoso
e paciente para com ela, o que sentia mesmo era uma certa impaciência, uma vontade de fugir da presença "daquela mulher", como se pelo simples fato de não vê-la
ela cessasse de sofrer.
Luzia tocava uma barcarola e o rapaz escutava, olhando para os dedos que beliscavam as cordas do instrumento. Agora ele descobria por que era que. apesar de gostar
do Sobrado não se sentia bem nó casarão. Era porque sua mâe dava àquelas grandes salas
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51l
Fosse como fosse casamento. A lida r" ~ Mal anoitecia, Cr p1 até o amanhecer ~ ó ~
vinha um dgr ~ c ~ para ír até ~ p °" ao trote d~N °~ w M A do seu N ~ ~ °" ó
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uando desavisada
o compasso dama
no rego daqueles
_..a - a chave do quarto
_ ..moras fechada, fazendo ninguém sabia
r, __~..~-~rve a curiosidade de ver o que havia dentro daquela
_ cvvá-ónde nenhuma outra pessoa entrara depois da morte do seu pai.
Curgo olhou para as mãos de Luzia que se agitavam sobre a cítara e pensou em cavalos brancos a galope. Depois alçou os olhos para o rosto dela. .Quando a mãe o acariciava,
quando passava aqueles dedos frios pelo seu rosto e principalmente quando lhe fazia cócegas no lóbulo da orelha, ele ficava todo encolhido e arrepiado, com um desejo
de gritar, de dizer nomes, de fazer uma brutalidade.
Licurgo escutava. Luzia agora sorria para ele. Seus olhos muito graúdos e claros lembravam-lhe o poço da sanga do Angico onde à tardinha ele costumava nadar em companhia
do Fandanguinho.
Par fim Luzia deixou cair os braços ao longo dó corpo e disse:
- Meu filho, vou tocar uma músíca e quero que prestes bastante atenção.
Curgo sacudiu a cabeça num assentimento.
Vindo lá de cima chegava até ele o cheiro da defumação, um. cheiro triste de igreja. À luz das velas o rosto de Luzia tinha um reflexo alaranjado como o das caras
dos peões à noite. ao redor do fogo.
Luzia começou a tocar uma música multo lenta e suave, e enquanto tocava sorria um sorriso lento e suave como a música.
- Em que é que estás pensando? - perguntou ela sem parar de tocar.
- Em nada.
- Não. Eu quero saber o que é que a música te evoca. - Evoca ?
- Quero dizer: quando .ouves esta música, em que é que pensas? Curgo ficou um instante com ar reflexivo. - Na - estância.
- A música então te faz pensar na estância? .. .
- Faz.
- Que parte da estância? - Todas as partes. Ela continuava a tocar.
- Não, meu filho. Deve haver uma parte especial. Não há? - Há, sim senhora.
- Qual é?
- As coxilhas que a gente avista da porta da casa .. .
- Estás vendo agora esse campo ... quero dizer, no teu pen
samento ?
- Estou.
- Não é uma coisa triste que estás sentindo? - E. sim.
- Não sentes algo que te aperta o peito? - Sinto.
A músíca continuava, calma e melancólica. Curgo agora estava
"vendo" as campinas do Angico.
- Estás pensando nesses campos de manhã? ... de noite? .. .
ou de tardezinha?
- De tardezinha, assim ao anoitecer. - )r muito triste tudo, não é? - ~.
- Não dá vontade de chorar? Curgo hesitou por um instante. - ~ ... dá.
- Não está brilhando uma estrela no céu? É a estrela ves
pertina .. .
Licurgo lembrava-se agora duma tarde em que ficara olhando
o pôr do sol sentado no portal da casa da estância. Um negro que
vinha repontando um rebanho de ovelhas cantava uma toada tris
tonha, dessas puxadas do fundo dum peito dolorido.
- Presta bem atenção, meu filho. Ouve a música. Agora tua
mãe vai te dizer bem. direitinho tudo que estás sentindo.
Os cavalos brancos galopz iam em cima da cítara. Lá em cima
soavam, surdos, os passos :e vovó Bibiana. Um cheiro de igreja
enchia a casa toda.
Tomara que a vovó desça - pensou Licurgo, olhando de viés
na direção da porta do vestíbulo.
Luzia começou a tocar em surdina e a dizer:
- Presta atenção. Estás sentado no portal da casa do Angico.
Está ficando noite e tudo é muito triste. A estância está deserta.
A peonada foi toda embora, a negrada da cozinha foi embora.
Tu estás sozinho, olhando o descampado e pensando... Sabes o
que estás pensando? Estás pensando assim. Vivo só no mundo.
Tenho quinze anos. Mataram meu pai. ?Minha avó morreu. Minha
mãe vai morrer, está na vila sentada numa cadeira esperando a hora
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la própria en quase a o deixavam sempre esquisita sensaçio de to pareciam sair não
de sua mãe. Dam , era como se aquela
estômago. Curgo asou em como síria da praça e ficar lá
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Fosse como fosse
casamento. A lida ~ ~
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__-..~a~ ene i-oi tão insuportável que éle decidiu
~rr. -~õs-se de pé subitamente e saiu quase a correr na direção da porta da rua. Mas ao passar por perto da mãe, esta agarrou-lhe a mão com força, puxou-o para
si, estreitou-o contra o peito e come~ou a beijar-lhe o rosto, a beber-lhe as lágrimas, a chorar também com ele e a murmurar coisas muito ternas e lamurientas.
- Vou morrer, meu filho, vou morrer. Tu vais ficar, vais esquecer a tua mãe,. todos vão esquecer. A vida é triste, meu filho, eu vou morrér.
Apertava o rapaz contra os seios. A chave - pensava Curgo - a chave dourada. Mas outro pensamento fazia-o esquecer a chave; a ferida ... E ele queria acariciar a
mãe, dizer alguma coisa, mas seus lábios continuavam apertados, os braços caídos. Por fim, num grande esforço levantou a mão e passou-a desajeitadamente pelo rosto
dela: sentiu-o frio e úmido e isso lhe lembrou o rosto dum afogado que uma vez ele tocara. O corpo da mâe era morno e cheirava a essência de rosas. Por cima dos
ombros dela Licurgo olhava a sombra de ambos projetada na parede da sala. Luzia apertava o filho contra o peito, e o rapaz tinha medo de machucar com a pressão de
seu corpo a ferida do estômago. Pensava em alguma coisa para dizer mas não lhe ocorria nada. , Por alguns instantes Luzia ficou acariciando os cabelos do menino
e por fim afrouxou a pressão dos braços e começou a falar num cochicho:
- Curgo, quero que prometas uma coisa pra tua mãe. Prometes ?
No espírito do menino o velho Fandango ergueu-se e falou
"Não faças promessas no escuro."
Ele não respondeu. , Uma lágrima entrou-lhe, salgada, na boca. - Prometes?
A GUERRA 513
Curgo tinha medo de falar, pois se falasse talvez nãoo lhe saíssem da boca palavras, mas sim soluços. Homem não chora. Homem
nãò chora. .
- Prometes?
Luzia sacudia q filho com ambos os braços. Curgo aproximou os lábios do ouvido da mãe e perguntou baixinho:
- Prometer o quê ?
- Prometes que nãoo vais passar toda a tua vida aqui em Santa Fé nem no Angico?
O corpo de Licurgo de repente enrijeceu. Ele ficou de músculos retesados numa atitude de defesa, como se de repente tivesse avistado
um inimigo inesperado.
- Prometes, meu filho?
Silêncio. Luzia apertou os braços do rapaz com mais força.
- Fala, Curgo 1
Agora as unhas dela apertavam as carnes do rapaz. Curgo continuava calado.
- Olha, men amor, não quero que sejas como esses homens brutos que não sabem ler- nem escrever, que vivem como animais, no meio de cavalos e bois. - Calou-se, como
..que afogada pelas próprias palavras. -.Prometes?
Nenhuma resposta. Curgo adivinhava onde a mãe queria chegar e esperava com uma rigidez de corpo e de espírito.
- O mundo é muito bonito, meu filho. Tem cidades com teatros, circos de cavaliríhos, bandas de música 1 Olha ... - E de repente a voz dela ficou quase risonha. -
Em Londres uma vez houve uma grande exposição, tu nem eras nascido ... Foi num palácio maravilhoso todo feito de vidro e de ferro.
Curgo recusava acreditar naquelas palavras. Palácios de vidro só existiam nos contos ~ da . carochinha.
-~ Um dia nós vamos embora daqui, Curgo. Tu e eu. Os dois juntos. Mãe e filho. Vamos de diligência, depois tomamos um trem e finalmente o vapor ... Não tens vontade
conhecer o mar, não"tens?
Ele nãoo respondia. Estava vendo as campinas do Angico, escutando a voz dum tropeiro que conhecia o mar e que lhe dissera
"O mar é lindo, mas nãoo troco estas coxilhas nem por tudo quanto
é mar deste mundo."
- Não tens? - repetia Luzia.
- Não.
- Não digas isso, meu filho. O mar é uma beleza. O Dr. Winter te explicou tudo na aula de Ciências. Tem uns peixes muito bonitos, outros muito engraçados. O mar
muda de cor, às vezes é verde. outras é azul, outras cor de cinza. Não tens vontade de ver o mar"
- Não.
Sou um pobre

ginava no Angico incenso. do - prosseguiu s que têm pai e es. Mas eu estou
cinco velas enanhas lhe subia
aflitivamente na pensou : esfortou num soluço, m frescas pelas s mãos e tapar o, continuou a
E
5O2
Fosse como fosse casamento. A lida ~ ~ Mal anoitecia Cr até o amanhecer vinha um dgr para ir até ~ p ao trote d~Á °~ do seu N °á ~
p$ ó á
_ ado.
___,,,~ a chorar de novo, mansammtc, _ .-_. -=annmas pingarem no chão. Luzia contemplava-o,
m_ ~_-~~...__._
§ornndo.
- Posso ir agora, mamâe? - perguntou ele ao cabo de alguns segundos.
- Ir aonde?
- Passear lá fora.
- Não. Fíca aqui. ,
Só a avó o poderia salvar - pensava Licurgo, agoniado. - Que é que a sérihora quer?
- Conversar contigo. Senta-te.
Ele obedeceu, limpando as lágrimas com a manga da camisa. - Olha pra mim, Curgo.
Ele fitou os olhos no rosto de Luzia.
- Por que é que não gostas de tua mãe? - 1VIas eu gosto!
- Não gostas, não.
Ele tornou a baixar o olhar.
- Olha pra mim. Por que é?
- Eu gosto, mãe. Mas gosto também do Angico, do Sobrado, dos outros .. .
- Tua avó algum dia te disse que nãoo devias gostar de mim?
A GUERRA 515

Luzia de novo entesou o busto, tirou alguns acordes da cítara e começou a tocar uma valsa lenta.
- Se tu tivesses de escolher entre tua mâe e ela, qual era qne escolhias? - perguntou, sem interromper a música.
O menino nãoo respondeu. Havia em seus olhos uma expressão de animal acossado.
- Qual era? - repetiu Luzia.
- As duas.
- Mas- se um dia eu chegasse e dissesse: "Curgo, tua mâe vai embora. Queres ir com ela ou ficar com tua avó?" Que era que respondias?
No seu espírito Curgo berrava: "Ficar! Ficar! Ficar?" Mas não tinha coragem de dizer aquilo. Se dissesse era quase.- o mesmo qne dar um sòco no estômago dá mâe.
Ela ia morrer. Todos sabiam que não tinha vida para muito tempo .. .
- Fala a verdade, Curgo. Ias ou ficavas?
Ele olhava para a porta, à procura dum pretexto para sair.
- Mas aonde é que a senhora ia? - perguntou.
- Embora.
- Embora pra onde?
- Pra Còrte.
- Mas por quê?
- Pensas então que Santa Fé é o único lugar do mundo onde a gente pode viver?
= Mas foi aqui que eu nasci.
- Pois eu não.
- Aqui é que estão os meus parentes, os meus amigos, tudo.
- Não tenho amigos. Meu único parente vivo és tu. E tn sabes - acrescentou ela, parando de tocar - que se eu quiser te levar, eu te levo, porque a lei está do meu
lado? Tu és meu filho e só tens quinze anos, sabes?
O rosto do rapaz ganhou de repente uma dureza de pedra. Como única defesa fechou-se num silêncio ressentido e feroz. Não diria mais nada, acontecesse o que acontecesse.
Luzia pareceu compreender isso e mudou de tom
- )rs ainda muito novo, meu filho. Um dia vais crescer e então te lembrarás - do que eu te disse. Mas aí será tarde demais, muito tarde. Eu estarei morta e podre
debaixo da terra. Mas tu estarás apodrecendo vivo aqui em Santa Fé ou com os animais lá no Angico. Apodrecendo vivo, estás ouvindo?
Curgo não respondia. Tinha no rosto uma tal expressão de horror que ao chegar naquele momento à porta da sala, Bibiana olhòu
para o neto e compreendeu o que se estava passando.
- Venha lavar os pés, Curgo - disse ela com voz calma. -
Está na hora de ir pra cama.
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a mãe. Comprem_ ngíco, da rompadecerto ia mesmo
ra verdade o qtu
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- Nao.
- Não mesmo? -.Não.
- Juras por Deus? - Juro.
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Fosse como fosse . casamento. A lida d ~
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=QuJo simbólico, Achou absurdo que seu
__...~~n de feltro fosse também ficar ali ao lado dos outros. Que representava ele? Nada. Nem o colono alemão que havia quarenta e tantòs anos se estabelecera na
Feitòria do Linho Cânhamo às margens do Rio dos Sinos. Era simplesmente um indivíduo, o Dr. Carl Winter. E se quisesse ser bem honesto para consigo .mesmo, teria.
também- de chegar à conclusão de .que _não representava nem mesmo a Medicina. Naquele fim de mundo ele ia de tal modo" perdendo contato com a literatura médica,
que nm dia talvez chegasse a descer aò nível dos curandeiros da terra.
Olhou-se no espelho. Na penumbra do vestíbulo não .pode ver mais que ama silhueta. Atirou o chapéu em cima do quepe francês do Maj. Graça - um quepe que lhe lembrava
desagradavelmente o de Napoleão III, segundo nm retrato a bico de pena que vira reproduzido numa revista - e encaminhou-se para a sala de visitas, onde a conversa
começava a acalorar-se. Quando o Dr. Winter entrou, fêz-se nm. súbito silêncio.
- Continuem, senhores! - pediu o médico, apertando a mão de Bibiana e depois a de Luzia.
O Maj. Graça levantou-se e ficou perfilado. Era um homem alto, de barbas e cabelòs castanhos, e estava metido em seu nmforme azul-escuro, de túnica com ombreiras
e galões dourados, e calças debruadas duma fita carmesim. Estendem para o médico a longa mão energia, que Winter apertou. O Pe. Otero permaneceu sentado. limitando-se
a, dar ao recém-chegado um boa noite indíFerente. E como o juiz de direito começasse a erguer-se do fendo de sua ordeira, o Dr. Winter apressou-se a dizer
A GUERRA 517

- Nio se incomode, doutor.
Aproximou-se dele e tomou-lhe da mão flácida.
O Dr. Nepomnceno perdera a mulher havia dois anos e agora levava ama -vida solitária de viúvo sem filhos. A velhice fazia-o mais sonolenEò e tardo ore movimentos.
- Estávamos "discutindo - explicou éle ao médico - o Maj. Graça e en. L, estávamos discutindo...
Winter seaton-se, cruzou as pernas e disse
- Pois contianem, senhores..
- Discutíamos a questão Zacarias - esclareceu ò major.
Tem uma voz de poeira - pensòu Winter. Sim. Ali estava a comparação que ele buscava para descrever a voz do major. Uma voz de poeira, inesperada naquele corpanzil
militar: uma voz sem música nem ressonãoncias, esfarelada. e farfalhante. Tuberculose. da laringe? On cordas vocais gastas de"tanto gritar ordens de comando?
- Senhores - confessou Winter - não se esqueçam de que em matéria de polítia naciònal, como .em quase tudo o mais, sou duma: ignorância colossal.
- O que vosmecê acaba de dizer - observou o Pe. Otero, balançando-se na suà cadeira - é nm sinal de modéstia. No entanto suas opiniões sòbre a Religião, Ciência
e Filosòfia são as dum homem que sabe todo e c~ue não. tem dúvidas sobre coisa alguma deste mando ou do outro.
Carl Winter soltòu uma risada.
- Meu. caro vigário -.replicou - náo quero com a minha chegada desviar o ramo da discussão. Para encenar o assunto admito que eu seja um poço de vaidade e presunçáo.
Mas, pelo amor. de Dèns, esclareçam-me a respeito do caso Ananias!.
.- ~aorrias - corrigia o Dr. Nepomuceno, com um ar de mestre-escola..
Winter. ólhon para Luzia. Lá estava ela na sua cadeira de respaldo- sito, jnntò da mesinha redonda sobre a qual se achava o estojo da cítara. Tinha no rosto emagrecido
a palidez cor de palha que AVinter tão bem conhecia. Ali imóvel, toda vestida de escoro, parecia ama figura de céra com olhos . de- vidro. O sofrimento e a maturidade
lhe haviam marcado o .rosto, tirando-lhe a dureza de óntros tempos, dando-lhe até um certo encanto lânguido e ama dignidade que talvez lhe viesse da vizinhança da
morte. Não en coisa agradável para ,nenhum médicó ver um cliente finar-se sob sena olhos sem que ele pudesse fazer alguma coisa para salvá-lo. O maïs que Winter
conseguia era aliviar-lhe as dores com gotas debeladona. Não se atrevia a dizer-lhe palavras de esperança e conforto porque estava certo de que Luzia. mão as tomaria
a serio. De resto ela gostava de falar da morte que se aproximava ; era com gozo qae, numa antecipação, descrevia-se a si mesma metida numa mortalha negra, dentro
dam esquife, ladeada por quatro círios. En
do Sobrado para disposto e em r baixinho um ateira da benveio abrir-lhe
#518 O CONTINENTE
sorrindo que antevia o velório, descrevia as pessoas qae chegavam e mencionava as coisas que iam dízer ou pensar da defanta. Em pensamentos acompanhava o próprio
enterrò até o cemitério, via guando desciam o caixão ao fundo da cova, ouvia o ruído cavo da terra a cair na tampa do esquife. Winter estava presente quando um dia
ela repetiu essa estúpida história diante do filho com tanU riqueza de detalhes mórbidos, que o rapaz rompeu a chorar e acabou fugindo da sala.
- Dr. Nepomuceno começava a explicar quem era Zacarias.
- Vosmecê, Dr. Winter, deve estar lembrado dele. Zacarias de Góis e Vasconcelos. Em 62 derrubou os conservadores do poder e formou um gabinete seu.
- Mas ficou só seis dias no poder - observou o major.
- magistrado daquela vez foi pronto na resposta:
- Era bom demais para durar, májor, era bom demais.
- militar lançou um olhar cálido na direção de Luzia. Winter percebeu que Bibiana o vigiava. Só não pôde descobrir para onde olhava a teiníaguá - para o espelho?
para a porta? para o major? on para parte nenhumai"
- Mas nãoo estávamos discutindo a queda dos conservadores em 62 - continuou o júiz. - Não_ estávamos. Isso são águas passadas.
A voz do Dr. Nepomuceno sumiu-se, afogada, e por nm imfan~e ele ficou de olhos semicerrados, como num súbito cochila Com_ alguma impaciência o major resumiu a história:
- O caso é o seguinte, doutor. Vosmece deve estar lembndo que depois que expulsamos-os paraguaios da Província, a coisa toda parecia que ia ser muito fácil.. Fomos
empurrando o inimigo pau dentro de seu próprio temtório e todo mundo esperava que a gnern terminasse em poucos meses. Mas as tropas de Solano Lopes sc entrincheiraram
em Curupaíti e íesistiram. Vosmecê sabe como aáo essas coisas. Não há nada pior. pau nm exército do que a certrrs da vitória fácil. Quando levamos a coisa na certa,
qualquer resistência do inimigo nos desnorteia. Foi o que aconteceu. Nosso ezército começou a se desorganizar, a desanimar e nossos comandantes começaram a se desentender
.. .
Ele está se .dirigindo à mim - refletiu Winter - mas mantém os olhos fitos em Luzia. Mesmo agonizante a teiniaguá nãoo ptrde o seu feitiço
- O imperador então - interveio o Dr. Nepomuceno - achou que a guerra tinha chegado a nm ponto crítico, e que só nm homem podia salvar a situação.
- Esse homem - disse o ma jor, sempre olhando pau Luzia - era Lima e Silva.
O padre, que ainda se balouçava na sua cadeira, sorria e avisou: - Esse nome não deve ser pronunciado nesta casa. - Fez um
A GUERRA 519

sinal na direção de Bibiana. - Ela não esquece que Caxias era um legalista que combateu os Farrapos. O marido de D. Bibiana, capitão dos rebeldes, foi morto no princípio
da guerra civil.
- major voltou-se solene para Bibiana:
- Caxias é antes de mais nada um brasileiro e um patriota, minha senhora.
- Pra mim é um caramuru - replicou ela, seca.
- major olhou para a ponta das botinas muito lustrosas, acariciou a barba e depois suspirou, dizendo:
- Vejo que muita gente nesta província ainda nãoo esqueceu a Guerra dos Farrapos. É lamentável.. Nesta hora devemos deixar de lado todas as questões regionais. O
destino da pátria comum está em jogo.
- ~ nm caramuru e basta - insistiu Bibiana, olhando para o Dr. Winter como a dizer: "Vosmecê me entende, sabe por que estou. dizendo isto."
Winter sacudiu a cabeçà numa aquiescência muda.
- Mas voltemos ao nosso assunto - pediu ele.
- Ficou então resolvido entregar-se o comando de nosso exército a Caxias - continuou o Maj. Graça. - Mas aconteceu. que o ministro da guerra, Angelo Muniz da Silvá
Ferraz ... .
- Um grande homem - atalhou o juiz - diga-se de passagem, um grande estádista .. .
O major encolheu de leve os ombros e prosseguiu:
- O ministro "da guerrá teria dito: "Com esse homem nãoo sirvo."
O Dr. Nepomuceno pareceu animar-se de repente e interrompeu Ooutro:
Assim Zacarias ficou num dilema. Ou aceitava a nomeação de Caxias e perdia o seu grande, ministro, ou mantinha o ministro e
- major quase chegou a dar um pulo na cadeira quando gritou:
- ...sacrificava a campanha!
- Mas Caxias não era o único general em condiçôes de assumir a direção da guerra.
- Era!" - O major lançou esta palavra como uma ordem de comando.
- Vosmecê há de dízer que como militar entende melhor do riscado que eu. Concordo. Mas em matéria de política, peço vênia para declarar que poucos, em que pese à
modéstia, poucos como en .. .
- Mas nãoo devemos pensar em política quando a pátria está em perigo.
Winter já observara que só dois assuntos tinham a virtude de tirar o juiz de direito da sda apatia habitual: política e gramática. Uma queda de gabinete ou a colocação
dum pronome oblíquo en coisa capaz de levá-lo a discussões calorosas e intermináveis.
#52O O CONTINENTE
- Vosmecê, Maj. Graça, não negará que Zacarias é dos nossos maiores estadistas.
- ele provou que era acima de tudo um -homem muito apegado ao poder. Em vez de tomar nma das duas pontas do dilema, seguiu um terceiro caminho. Sacrificou o ministro
ao general, mas não resignou.
O Dr. Nepomuceno. áoitou uma risada inesperada que foi quase um ronco, e disse
- 8 a arte da política. A arte da política.
- Mas náo da decência - retrucou o major, dando um brusco puxão na túnica.
O Pe. Otero interveio:
- Política e decência nunca andam de mãos dadas. São inimigos .mortais. -
O oficial, voltou-se para o sacerdote:
- Mas o nosso Imperador sabe fazer uma política hábil com nma decência indiscutível.
- O nosso Imperador é um homem excepcional... - observou o padre.
Winter simpatizavá com aquele imperador barbudo e paternal. a respeito de quem se contavam tantas histórias e anedotas. Havia ao "redor dele uma aura de lenda. O
médico observara também como a reputaçáo de integridade de caráter do soberano influía poderosamente ma vida social, da naçáo. Era .um exemplo de honradez e bondade
a ser seguido. D..Pedro II como que dava a nota tônica ao ambiente moral do país. De certo modo = refletiu ainda Winter - $ua Majestade já fazia parte do folclore
nacional como uma espécie de anti-Malazarte.
- Mas seja como for - prosseguiu o major - Lima e Silva foi nómeado, encontróu nossas tropas desorganizadas e atacadas de cólera-morbo, e- levou um ano no trabalho
insano de reorganizá-las. Mas conseguiu. E se hoje a campanha se aproxima do fim é graças a grande brasileiro!
~- Vou mandar servir o café - disse Bibíana, erguendo-se de " `s àte é saindo da sala.
Luzia acompanhou-a com o olhar. Agora, pela expressão do rosto de sua paciente, Winter notava que ela sofria. Por que não se retirava? Por que não tomava as suas
gotas? Seria que gozava também com o próprio sofrimento? Inacreditável!
- Quer que eu vá preparar o remédio? - murmurou, inclinando-se para ela.
Luzia sacudiu a cabeça
- Não. Obrigada. Estou bem.
E sorriu um sorriso doloroso e quase terno. Wínter não pôde deixar de ficar perturbadó. Já não sabia mais ao certo o que sentia por aquela mulher. Logo que a conhecera,
desejara-a fisicamente
A GUERRA 5 21

duma forma mórbida que o assustava um- pouco. Depois fugira dela cóm certo horror. Agora o que sentia era pena mesclada de curiosidade. Sempre que a via pensava
naquele tumor que lhe crescia uo estômago core o viço maligno duma flor que se alimenta de carne. Era-lhe inconcebível a idéia de desejar carnalmente uma mulher
em tais condições, pois isso seria quase uma inclinação necrófila .. .
- Pe. Otero, que na discussáo parecia estar decididamente do lado do Maj. Graça, dizia agora:
- No entanto, as intrigas políticas contra Caxias continuaram no Rio de Janeiro.
- major ergueu a mão com o dedo indicador enristado na direção do Dr. Nepomuceno:
- Agora vosmecê veja a nobreza desse homem de prol. Tendo tudo na mão: prestígio, coragem, força, um exército inteiro, ao invés de jogar todos esses trunfos na mesa
em seu favor, preferiu escrerer nma carta a Paranaguá, queixando-se amargamente desses homens que colocavam seus interesses pessoais acima dos da pátria e dizendo
que, em vista de náo lhe darem liberdade de ação, e . do governo náo lhe mandar os homens e o material pedidos, preferia resignar. Estava doente, cansado e desiludido.
- A carta explodia como um petardo no Rio de Janeiro - ajuntou o Pe. Otero, dirigindo-se desta vez. ao Dr. Winter. - Todos sabiam. que Caxias era insubstituível.
Caxias valia mais que todo um ministério
- Náo diga isso, padre! - protestou o Dr. Nepomuceno. - A guerra um dia termina e nós vamos precisar de homens da fibra de Zacarias e outros para reconstruir a naçáo.
- Mas seja como for - disse o major - essa carfa abalou o ministério e Zacarias compreendeu que estava diante duma nova crise. Viu que o Imperador náo hesitaria
em sacrificar o ministério para náo perder o seu grande general, para nãoo perder a guerra l
- Mas Zacarias náo quis ceder a uma imposiçáo da espada - recitou o Dr. Nepomuceno com gravidade.
- Era preciso salvar as aparências, achar um pretexto para renunciar.
- Sempre os interesses individuais! - exclamou o major. - O que importava nãoo eram os fatos, náo era a solução da guerra, eram as aparências, o prestígio pessoal,
a vaidade do Ministro Zacarias.
- Dr. Winter náo se pôde conter:
- Mas o meu caro major não acha que a honra não é um
privilégio dos militares, e que um civil pode achar que sua sobre
casaca e suas calças merecem tanto respeito quanto a farda?
- major mirou o médico num silêncio meio irritado. E na
#X22 O CONTINENTE
expressão do rosto do militar Winter leu tudo quanto ele queria dizer mas calava: "Não se meta. Vosmecê é um estrangeiro."
O Pe. Otero livrou o major de dar uma resposta, pois continuou a história:
- Zacarias então achou um pretexto para resignar quando Sales Torres Homem foi nomeado senador do Império. Esse tida_ dão tempos atrás tinha feito grande oposição
à família real em artigos escritos sob o pseudônimo de ... como era mesmo? Ah 1 Timandro. O pretexto era ótimo. Zacarias saiu de cabeça erguida. Não fora derrubado
pela espada dum general mas. sim pela pena dum político.
- E perdemos assim -concluiu Nepomuceno - o nosso mais ilustre estadista 1
- Mas ganhamos a guerra - observou o major. - Ganhamos?
- Claro, Lopez está perdido. A vitória. agora é questão apenas de meses .. .
Winter viu corzi alegria entrar uma escrava com uma bandeja cheia de xícaras de café fumegante. Apanhou a sua, serviu-se de açúcar e, enquanto mexia o líquido escuro
com a colherinha de prata ("Maurício de Nassau - afirmava Aguinaldo Silva - já tomou chá com estas colheres") perguntou:
- Mas vosmecê nãoo acha, major, que quando Caxias voltar
da guerra triunfante e cheio de prestígio pessoal ele vai ser para
este país o que Bismarck é para a Prússia?
- Que quer dizer o senhor com isso?
- Quero dizer que vai,ser a verdadeira força por trás do trono,
o homem que daqui por diante governará o Brasil.. .
- Meu caro doutor, Caxias é um patriota e não um ambicioso! - 1VIas já se fala por aí em república. Suponhamos que
Caxias .. .
- Ah, isso é que nunca 1 Seria uma traição ao Imperador e Caxias não é um traidor.
Winter achou melhor não continuar. Homens como o major não sabíam discutir com calma. Tomavam tudo multo a peito, ofendiam-se com facilidade, só sabíam discutir
com palavras e sentimentos grandiloqüentes: pátria, honra de classe, altruísmo,. nobreza, heroísmo. Era impossível esfriar-lhes o entusiasmo e trazê-los a examinar
os fatos com objetividade desapai~COnada.
- Nosso Imperador é um sábio e um santo - disse o militar. - Nossa monarquia é considerada no mundo inteiro uma verdadeira democracia. O prestígio do nosso soberano
é conhecido nos países mais civilizados do orbe. Falar em república nesta hora é um crüne, uma traição que deve ser punida com fuzilamento.
Lá vem .ele com o seu pelotão de fuzilamento - pensou o médico. E por contraste lembrou-se de seus poetas. Por um instante
A GUERRA 5 23

Gocthe c Heinc estivmm naquela sala. visíveis apenas para Winter. E geando ecos fantasmas se snminm, a médico exclamou
- O café está -uma delícial
Os antros, com as zícaras nas mãos, fizeram um sinal de assentimento, menos o pr. Nepòmnceno, que .nunca tomava cafés noite, pois sofria de insônia.
Bibiana entrou com ama bandeja cheia de bolinhos de polvilho e saia a distribuí-los. O major olhava para Luzia com seus olhos cálidos.
- Fala-sc em repúblïca, nãoo há dúvida - concordou éle, com mais alma. - Mas é meia dúzia de mocinhos que andam com as rabtp cheias de leituras ezóticas e idéias
eztravagantes.
- O mando inteiro anda cheio de idéias eztravagantes - opiaon o Pe. Otero, crazando os baços e atirando a cabeça para trás.
- O que é eztnvagante hoje - observou o Dr. Winter - pode ser mnüo natural e sensato amanhã.
- E o progresso - concluiu o Dr. Nepomuceno, que mastigava am bolinho de polvilho. - E o progresso - repetiu, expelindo com a última palavra nm chuveiro de farelo.
O Pe. Otero fez nm sinal mm a cabeça na direção de Bibiana:
- Aqui a nossa prezada amiga não se conforma com o sistema métrico decimal.
Muito tesa em sua cadeira, e sem tirar os olhos do rosto da nora. Bibiana disse:
- L uma invenção triste. A gente estava muito bem como antes. Agora vem essa história de metro e quilo e centímetro e não sei mais o quê ... Por que será que vivemos
sempre macagneando o que- esses estrangeiros fazem?
O -padre sorriu.
- Reformas como essas, D. Bibiana, não fazem mal- a ninguém. O perigo está. em certas idéias radicais que importamos da Europa. - E ao -dizer estas últimas palavras
olhou enviesado para o Dt. Winter.
- Um dia elas virão para ficar - retorquiu o médico, sorvendo nm gole de café - quer vosffecê queira, quer não queira.
Nesse instante Luzia faloa pela primeira vez depois que Winter cerne:
- Vosmecês nãoo acham que estamos vivendo numa época
muito interessante? - perguntou ela, passeando os olhos em torno
Qae se passa-com essa voz de viola? - perguntou o Dr. Winter
a si mesmo. Não tinha mais a veludosa profundeza de outros
tempos: estava cansada e gasta.
- - En acho - respondeu ele em voz alta - que todas as
épocas são interessantes. O essencial é a gente estar vivo...
Luzia. pareceu animar-se.
524 O CONTINENTE
- Mas não, doutor. Veja bem. Quanta coisa está acontecendo no mundo hoje? Basta ler um jornal.
Assanhada! - dizia Bibiana em pensamento,- olhando para a nora. Esta doente, com um tumor na barriga, anda qne nem c?e dor e no entanto fica aqui em baixo conversando_.
Por quê? Só porque tem homem em casa.. Assanhada!
- A guerra civil nos Estados Unídos ... - enumerava Luzia. - A libertação dos escravos, a morte de Abraão Lincoln .. . Ah? e a maravilhosa- história de Maximiliano,
ímperador do Mfxico ... Ainda ontem estive lendo a respeito dele num almanaque.
- Mas que é que vosmecê vê de tão maravilhoso aa aventura infeliz desse austríaco? - perguntou Winter..- Não passou. de um fantoche nas mãos de Napoleão III, esse
outro maluco. que está convencido de que é mesmo Napoleão Bonapartè.
- Vosmecê conhece bem" a história de Maximiliano, doutor? "
- O suficiente para julgá-lo um,idíota.
Luzia sacudiu a cabeça com ar de desaprovação.
- Pois eu gostava de ser a Imperatriz Carlota ... - murmurou.
Está louca-? - exclamou Bibiana em pensamento. Decerto Otumor já está atacando a cabeça dela. Onde se viu? A Imperatriz Carlota!
O Maj. Graça olhava ..para Luzia com olhos cheios de apaizonada admíração..O Pe. Otero balançava-se na sda cadeira e escutava tudo a sacndïr a cabeça lentamente,
numa silenciosa mas decidida reprovação. O ,Dr. Nepçmuceno parecia ter mergulhado num de seus cochilos intermitentes.
- Pense bem na história, doutor - continuou Lins. - Um arquiduque austríaco que viajou por todo o mundo; um belo .áomem de pele clara e olhos azais,., ura} , homem
educado, um homem bom, e de repente se vê imperador dum país .de índios de cara de bronze, um país tão diferente da Áustria como. a noite do dia. E gomecê já pensou-
no~ papel da Imperatriz Carlota quando foi falar. com Napoleão III para lhe .pedir. que não .abandonasse MaXimiliano?
- Perdeu o seu -latim - iàtenompeu-a Winter.
- Mas que importa ? .
- .E acabou transtornada do juízo - acreEaentou o doutor, tomando o último gole de café.
- E todo isso náo é belo?
O Dr. Nepomnceno abriu os olhos e manifestou-se:
- Não acho nada belo.. Não há nada mais sublime qne o juízo perfeito, a lucidez das idéias.
- Mas o mando dos sãos é um mundo triste - sorria Luzia. - O mundo dos loucos, esse sim, deve ser maravilhoso e sempre cheio . de coisas novas e fantásticas.
Vosmecê é que pode dizer - pensou Bibiana. E lançou para a .
A GUERRA 525

nora nm olhar carregado de censura e rancor. Achava quase indecente que uma viúva ainda moça estivesse a conversar aquelas coisas com homens. Aquilo positivamente
nãoo era assunto de mulher..
Via-se que o Maj. Graça estava fascinado; aquele sortilégio parecia roubar-lhe a voz.
- As pessoas normais - continuou Luzia - são as mais sem graça do mundo.
Winter olhou para o major e leu espanto e decepção em seu rosto. O Pe. Otero sacudiu a cabeça, penalizado.
- Vosmecé precisa vir à igreja, confessar-se e depois tomar a comunhão, D. Luzia.
Havia. anos que o vigário insistia em trazer aquela ovelha negra para o seu rebanho - refletiu o médico. Luzia, porém, recusava-se, com uma obstinação e uma coragem
que ele, Winter, não podia deixar de admirar. Sabia que ia morrer e seria natural que diante da incerteza do que pudesse haver para além da morte, ela tentasse uma
reconciliação com Deus através da Igreja.
- Fiz um donativo em dinheiro para as obras da igreja, padre - replicou ela. - L o mais que posso dar.
- Mas nós queremos também a sua alma, D. Luzia.
- Vosmecê tem certeza de que eu tenho uma alma:
O major empertigou o busto e olhou para o padre com espanto. O Dr. Nepomnceno ficou de boca aberta a mirar a dona da casa.
- Não- diga uma coisa dessas, ~ D. Luzia? - exclamou o vigário. - Que Deus lhe perdoe? Nunca mais diga uma coisa dessas.
Por que é que ela. nãoo vai pra cama dormir! - perguntava Bibiana em agonia. Por quê? Por causa do major. Quer ficar aqui se mostrando pra ele. Por isso diz coisas
que nãoo devia, coisas que só uma mulher perdida pode dizer.
Luzia levou os dedos à altura do estômago e ficou como que a. acariciar o tumor.
- E depois - continuou ela, como se não tivesse ouvido as palavras do padre - temos todos esses inventos maravilhosos: ,o vapor, a estrada de feno, o telégrafo..
.
- Não sei aonde essas engenhocas todas nos vão levar - observou o .padre, com um gesto de quem queria empurrar para o futuro uma preocupação que ao faturo pertencia.
Winter sentiu que a conversa entrava num terreno que lhe era agradável pisar. Por intermédio de Voa Koseritz recebia jornais da Alemanha e acompanhava com o interesse
de quem lê .uma novela fascinante, a marcha das idéias políticas na Europa. E o fato de ele estar em Santa Fé - por assim dizer num outro planeta - tornava . todas
aquelas coisas mais esquisitas ainda.
- Há uma idéia em marcha, senhores - disse ele. E, em seguida, percebendo que tinha falado com ar teatral, sorriu, achando-se ridículo. Ergueu-se, enfiou ambas as
mãos nos bolsos das_
#526 O CONTINENTE
calças, uminhon até a janela, olhou para fora, viu a figueira na noite morna e calma e lembrou-se duma madrugada em que encontrara ali Florêncio e Bolívar a conversar...
Os outros esperavam em silêncio.
- Que idéia? - perguntou o padre, com o ar provocador de
quem já sabia o que o outro ia responder. - Ainda a idéia da Revolução Francesa. - Ora! - fez o padre. -Ora!
- Uma idéia cuja marcha - continuou o médico - a vossa Santa Aliança se esforçou por .deter. "
- major, que brincava distraído com a fivela dourada do cintarão, soltou no ar a poeira de sua voz:
- Vosmecê não poderia esclarecer melhor seu ponto de vista? Na minha fraca opinião; a Revolução Francesa...
Calou-se de súbito, fícõm olhando para Luzia e não disse o que era a Revolução Francesa na sua fraca opinião. O Dr. Winter interveio
- Napoleão Bonaparte atrasou o relógio da História com suas
guerras de conquista. Em soma: traio a Revolução.
- Não diga tamanho absurdo, doutor! - protestou Erasmo
Graça,. entesando o busto e ficando sentado na ponta da cadeira. Solidariedade de classe - pensou Winter.
- Deixem o doutor explicar seu ponto de vista - pediu Luzia. - O ponto. de vista não é propriamente meu. Mas en o aceito.
Li-o em algum livro ou artigo de jornal.
- Pe. OEero não perdeu a deixa e resmungou, irônico: - Se o ponto de vista não é seu, como pode ser bom? Wínter sorriu.
- Os outros às vezes pensam e dizem coisas inteligentes ... - replícon ele, inclinando-se numa paródia de mesura.
- prosseguiu:
- Havia uma idéia liberal nascida da Revolução Francesa .. .
- Revolução essa - atalhou o vigário - que não passou duma conseqüência das idéias heréticas de livres-pensadores como Voltaíre, Diderot e outros.
- Vosmecê me desculpe, padre, mas acho que o peso dos impostos influiu mais na balança que o das idéias dos enciclopedistas. As causas de Revolução Francesa foram
mais políticas e econômicas do que propriamente intelectuais.
- Vosmecê fala como se a política da França do sécalo passado fosse a política local de hoje.
- A proximidade em que me encontro no tempo e no espaço da política de Santa Fé só me confunde e prejudica a visão: A distância geográfica e histórica em que estou
da Revolução Francesa só pode dar-me uma perspectiva melhor, principalmente quando en a contemplo trepado nos ombros de gigantes como Carlyle e outros.
A GUERRA 527
Luzia apoiou-o
- Quando estamos diante dum quadro não nos afastamos dele para apreciá-lo melhor?
- Aí está ... - disse Winter. E, mudando de tom, continuou: - A nõbreza e o alto clero da França viviam à tripa forra. e quem pagava as contas era a burguesia: Os
camponese"s vegetavam num estado de servidão que não era muito melhor que o que prevalecia na Idade Média.
- O clero é sempre o bode expiatório - exclamou o padre, dando uma palmada na coxa.
- Em suma - e neste ponto o Dr. Winter abriu ambos ,os braços, - descontados erros, violências, matanças inúteis, vinganças- e ódios pessoais, dessa Revolução sobrou
alguma coisa. E essa alguma coisa sobreviveu também às guerras napoleônicas. "
- E se me faz favor - perguntou Nepomuteno, olhàndo significativamente para o Maj. Graça - que vem a ser essa "alguma coisa" ?
Winter esclareceu:
- Os Direitos do Homem, as liberdades inalienáveis do indivíduo, o direito que cada cid~dão tem à liberdade, à propriedade e à segurança. A liberdade de imprensa,
de. culto e de palavra para todõs, sem nenhuma distinção.
- Patacoadas! - exclamou o vigário. - Liberdade? Para que é que o povo quer liberdade? Para ser ateu, herege, licencioso? Liberdade para tomar a mulher do próximo?
Lïberdade para caluniar, mentir, ofender? Liberdade para quebrar os mandamentos divinos? Libertinagem, isso "era o que queriam esses senhores da Revolução Francesa. .
- Eu nãoo esperava outra reação da parte- de vosmecê - disse o Dr. Winter.
O major perguntou:
- E vosmecê acha, doutor, que essas idéias foram alguma vem postas em prática?
- Eu já disse que Napoleão atrasou o relógio da História. Ainda há países que não saíram de todo das sombras da Idadé Média. Mas em certos círculos do mundo floresce
o pensamento liberal. A semente foi lançada. Não resta a menor dúvida.
- Mas o grosso do povo - interveio o Dr. Nepomuceno - esse continua no mesmo. -
,~- Exatamente.
- E há de continuar sempre - replicou o major.
- Não vejo razão para fazer-se uma afirmativa tão categórica.
- Essa igualdade com que os senhores liberais sonham = insistiu o militar - pode muito bem significar desordem, desrespeito e anarquia.
- Eu compreendo muito bem que vosmecês prefiram a idéia
#52"8 O CONTINENTE
A GUERRA 529
da monarquia, da manutenção dos privilégios da Igreja e da nobreza, e da submissão do povo.
- E"para a mulher - interveio Luzia - uma posição idêntica à qne ela tinha "na idade do obscurantismo.
Por que-é que ela nãoo fica de boca fechada? - perguntava Bibiana a si mesma. A atitude da nora lhe dava uma vergonha tão grande que ela como que" sentia formigas
lhe passearem pelo corpo. Por que é que essa sem-vergonha não vai pra cama?
- Se o Pe. Otero pudesse - disse ainda Luzia, sorrindo - ele erguia uma muralha para evitar que as invenções e as ídéias novas da Europa entrassem no $rasil.
- Não seremos mais felizes nem melhores - replicou o sacerdote - por adotarmos essas tais "idéias novas" e essas engenhocas fedorentas, nãoo é, major?
O militar fez um gesto de finde"são.
- Não .vejo neahuma incompátibilidade entre o progresso, a
decência e as nossas tradições políticas e relïgiosas - declarou ele. - E quais são .essas tradições? ~ perguntou Carl Winter. O major hesitou por nm instante e
depois dísse: - Na política, a idéia conservadora. Na religíão, o catolicismo.
De resto, nãoo estamos ainda preparados para ter todos esses inventos
e novidades.
- -Ainda teremos de esperar muito pelas estradas áe feno e pelo .telégrafo. Pelo menos nesta provín"a.
- Graças a Deus I - egdamou o vigário.
Winter deu de ombros. Fosse como- fosse, ele nãoo podia imaginar uma- locomotïva entrando em Santa Fé, cortando o silên"o dos campos com seu apito e sujando aqueles
belos céus com a fumaça escura de sua chaminé.
- L uma pena ~ que a gente nãoo possa viver cem anos para ver tudo isso .:. - murmurou Luzia. E com estas palavras criou am silênáo de constrangimento.
Pouco antes daa dez horas o vigário e o Dr. Nepomnceao fizeram suas despedidaa e retiraram-se. O Maj. Graça, entretanto, permaneceu sentado. A princípio fêz-se um
silên"o um pouco difí"l, como se todos os assuntos se tivessem esgotado. Bibiana nãoo tirava oa olhos da nora. Winter percebia claramente que o major ainda tinha
esperança de poder ficar a sós com Luzia aquela noite, nem qne fosse por um breve momento. Sabia, porém, que Bibiana estava de"dida a náo arredar pé dali. O ofi"al
pigarréon, olhou para o médico como para lhe pedir que começasse um assunto, e
como Ooutro permanecesse calado, a mírá-lo com seus olhos irónicos. ele olhou na direção da janela e disse:
- Está uma linda noite.
- E nem parece - observou Luzia - que a esta hora homens estão se matando em terras do Paraguai. Não é extraordinário? Neste exato instante, um soldado está enterrando
a sua baioneta no peito dum inimigo. E numa sepultura perdida no campo o cadáver dum oficial brasileiro está se decompondo. Estou vendò as dragonas dele sujas de
terra. - Luzia olhava intensamente para o major. - E os cabelos e as barbas dele estão ainda crescendo. É mesmo verdade que os cabelos da gente continuam a crescer
depois que morremos ?
O major tinha agora no rosto uma expressão de perplexidade.
Em vez de responder, Winter disse:
- A esta hora em algum outro lugar do mundo alguém pode estar compondo uma sonata ou escrevendo um verso.
- Ou fazendo alguma coisa que preste - atalhou Bibiana.
- Bom - disse o médico de repente. - Preciso ir embora. p tarde.
- Fique- mais um pouco, doutor - pediu Bibiana. - Preciso falar com vosmecê.
O major ergueu-se, deu um puxão na túnica e disse:
- Vou fazer as minhas despedidas. Volto amanhâ para o campo de batalha.
Winter achou a expressão "campo de batalha" um pouco teatral, mas perdoou ao major. Ele estava diante de sua bem-amada: precisava impressioná-la.
- Minha missão em Santa Fé está terminada - continuou ele. - Quero agradecer às senhoras. - Fez um sinal com a cabeça - abrangendo sogra e nora - e a vosmecê, "doutor,
por todas as considerações que me dispensaram .. .
Winter, repetindo uma fórmula corrente na Província, disse:
- Vosmecê é merecedor.
Bibiana permanecia de lábios apertados, sem tirar os olhos do oficial.
- Peço a Deus - prosseguiu ele - que um dia eu possa voltar a esta terra de onde levo as mais gratas recordações .. .
Winter contemplava Luzia, que acariciava o tumor com a ponta dos dedos.
- D. Luzia - prosseguiu o major - não posso ír-me embora sem lhe dizer da grande impressão que vosmecê me causou. Confesso que nunca encontrei em toda a minha vida
dama mais culta nem mais virtuosa, isso para não falar na sua formosura.
A emoção apagava ainda mais a voz de poeira. Bibiana trocou com o médico um olhar travesso.
- Vosmecê é muito bondoso, major - murmurou Luzia.
#53O O CONTINENTE

- Diga antes que sou justo. Há mais uma coisa que vou pedir a Deus. ir que no dia em que eu voltar a Santa Fé possa ter o prazer e a honra de revê-la.
Luzia estendeu ambas às mãos sobre a tampa do estojo da cítara.
- Não, major - disse ela. - Quando vosmecê voltar da guerra e quiser me ver, não é nesta vila que deve me procurar. p num outro lugar, muito mais quieto e mais triste
que este. Fica no alto- duma coxilha.
- O cemitério - explicou Bibiana quase sem sentir, temendo
que o major nãoo compreendesse a alusão.
Erasmo Graça olhava com ar perdido para Luzia, que voltou a
cabeça para a sogra e confirmou:
- p isso mesmo. O cemitério.
- Por favor, minha senhora - exclamou o militar - não diga isso.
Os dedos de Luzia acariciavam as incrustações. de madrepérola do estojo.
- Todo mundo sabe que não tenho vida para muito tempo.
Se duvida, major, pergunte ao Dr. Winter.
Por um instante Erasmo Graça ficou sem saber que fazer.
- Deus é grande - disse ele por fim. - E Deus nãoo é cruel. Ninguém ouviu a risada seca e sarcástica que D. Bibiana soltou ;
porque ela riu em pensamento, Ríu como se só ela conhecesse o
caráter de Deus.
Na expectativa de que alguém ali dissesse-uma palavra de esperança, mesmo que fosse uma palavra hipócrita, o major olhava do médico para a velha.
- Mas nãoo é possível - tartamudeou éle - deve haver um remédio ... Deve. haver recursos, em Porto. Alegre, no Rio, quem sabe se na Europa .. .
Luzia sacudia a cabeça lentamente, numa serena negativa.
- Para meu mal não há remédio, major. Mas não se aflija.
A maior interessada no caso sou eu. Estou resignada.
O oficial olhava perdidamente para o bico das próprias botinas. - A vida é bem triste - murmurou ele. - Hoje estamos
aqui, amanhã .. .
Não completou a frase.
- Mas para quem mora em Santa Fé - replicou Luzia - tanto faz estar em cima da terra como debaixo dela, é a mesma coisa .. .
Louca varrida - pensava Bibiana. Não sabe o que diz.
O major permaneceu um instante num silêncio de constrangi
mento. P.or fim deu um passo na direção de Luzia e disse:
- Então adeus, D. Luzia. Que Deus vos abençoe e guarde. Tomou-lhe da mão e beijou-a respeitosamente. Depois apertou
a mão de Bibiana e murmurou:
A GUERRA 5 31

- Muito agradecido por tudo, minha senhora. - Voltando-se para o doutor, perguntou: - Vosmecê vai também?
- En fico, maior.
Apertaram-se as mãos em grave silêncio. Bibiana acompanhou Ooficial até a porta sem dizer palavra. Mas quando o viu sair para a rua, ainda de gnepe na mão, deixou
escapar um quase involuntário:
- Vá com Deusl
Através da fresta da porta ficou acompanhando com os olhos o volto de Erasmo Graça. que atravessava a rua na direção da praça. Um cheiro morno de vento que passou
por muito campo lhe chegou às narinas. O volto do major sumiu-se nas sombras das árvores. Bibiana ficou olhando fixamente para o lugar onde Bolívar tinha caído morto
.. .
Qaando voltou para a sala, Luzia já se havia recolhido e o Dr. Winter começava a acender um de seus charutinhos.
- Então? - perguntou o médico, erguendo as sobrancelhas.
Bibiana sentou-se pesadamente numa cadeira e deixou escapar am suspiro de alívio..
- Desse estamos livres, pelo menos por enquanto.
Winter gostou daquele verbo no plural. O estamos de certo modo o índnía na grande conspiração.
- Sabe que estive na casa do Florêncio hoje de manhâ? - pergnnton ela. Winter sacudiu a cabeça negativamente. - Pois estive. Aquele menino é teimoso como uma mula.
- ~ um Terra.
- Está rceado nm osso duro mas não se entrega. L tão orgulhoso- que não quis aceitar nenhum a~utono meu.
- Vosmecê bem sabe por quê.,
- Seí. Mas é uma bobagem. O dinheiro a bem dizer é do primo dele.
O dinheiro é do velho Agninaldo - pensou Winter - e, por sinal, dinheiro muito mal ganho. Mas não deu voz a essa reflexão. I.imiton-se a fazer um gesto vago.
- Eu quis emprestar um dinheirinho pro rapaz comprar noras cabeças de gado e começar uma criação. Também ofereci em arrendamento nm pedaço do Angico. Ele só sabia
era sacudir a cabeça e dizer: "não carece, titia. Não carece. Já tenho um negócio em vista." Para invenção. Não tem nada.
- Como é que à. família tem vivido?
- A mulher faz renda de bilro pra fora e o Florêncio faz uns laços, uns lombilhos e vende por aí. Mas isso nãoo chega pra dar de comer pras cinco bocas que tem em
casa.
Fez uma pausa durante a qual ficou alisando um friso ímaginárío na saia. Depois
- E verdade que o Florêncio vai ficar com a perna dura pro resto da vida?
#532 O CONTINENTE
- Boa como antes a perna não ficará. Mas acho que ele poderá andar, a cavalo e caminhar sem muleta.
Bibiana soltou um suspiro de pena.
- Coitado! Merecia outra sorte. E um homem de bem como o pai. Seja como for, voltou da guerra. Muitos não voltaram. Pois é, doutor. Às vezes eu penso que Deus escreve
direito por linhas tortas. Se o Bolívar não tivesse sido assassinado pelos capangas do Amaral, ele decerto tinha ido pra essa guerra e talvez já tivesse morrido.
- Também podia ter morrido de cólera-morbo em Porto Alegre...
- Ou podia ter nascido morto.
- 1: como lhe digo sempre. Não adianta a gente se preocupar. O que tem de ser traz força.
- As vezes, sentada nesta cadeira, fico pensando, pensando e não chego a compreender direito o que é que Deus quer da gente. - Talvez nem Ele mesmo saiba.
- Dizem que fez o mundo em seís dias e descansou no sétimo. Más por que foi. que fez o mundo? Pra ficar depois vendo a .gente . penar aqui em baixo? Será que Deus
é como ela, que gosta de ver o próximo sofrendo? Deus me perdoei
A religião de D. Bibiana - refletiu Winter - era muito curiosa. Tudo indicava que ela ia à missa por puro hábito, porque antes dela sua mãe e sua avó também tinham
ido. Tratava os santos de igual para igual e em certas ocasiões revoltava-se contra eles com o _mesmo fervor com que noutras lhes invocava a ajuda.
De resto - sorria Winter para seus pensamentos - as relações entre os habitantes da Província e os santos eram singularíssimas. As solteironas que faziam promessas
a Santo Antônio para que ele lhes desse um marido, quando não viam seus desejos satisfeitos tratavam de castigar o santo casamenteiro, pondo-lhe a imagem dentro
d"água, de cabeça para baixo, e só livrando-a dessa penitência quando um pretendente aparecia. Mais de um crente lhe assegurara que. não se devia nunca deixar bebida
perto da imagem de Santo Onofre, ":pois o diabo do santo é achaceiró".
- De vez em quando penso na minha mãe - prosseguia Bíbiana com sua voz calma e seca - no meu pai, na minha avó e no que eles fizeram e sofreram, e nos trabalhos
que passaram. De que serviu tudo isso? Me diga, de que serviu? Aqui estamos nós sofrendo, considerando, trabalhando, esperando. Primeiro esperei o meu marido que
foi pra guerra: e no dia que voltou só tive ele por uns minutos, e logo em seguida foi morto pelos bandidos dos Amarais. Esperei que o Boli nascesse, que ele crescesse
e tivesse nm filho. Agora Boli está morto, o filho está crescendo e eu esperando que ele fique homem. Minha avó esperou muitas vezes o filho que tinha ido pra guerra.
Uma vez fiquei na minha cadeira me balançando
A GUERRA 533

dum lado pra outro e esperando o Boli que tinha ido brigar com os
antilhanos.. Agora está aí essa oura guerra baba que não acaba
mais, Minha Nossa Senhora! .Faz mais de cinco .anos que começou! Bibiana ralou-se e pensou naquele medonho julho de 1865.
As tropas pangwiás tinham invadido a Província e saqueado São
Borja. Contava-se que passaram cinco dias a levar em canoas pau
o território argentino tudo quanto podiam roubar na vila brasileira.
Nio respèitanm nem as igrejasl $nm uns índios bandidos e quan
do bebiam cachaça ficavam .piores que demônios. Ante a notícia
de que unia coluna. paraguaia avançava rumo de Santa Fé, a gente
ali na vila começara a preparar-se pau fugir. Durante muitos dias
mulheres, velhos e crianças estiveram- de trouxas feitas, os tarecos
dentro das carretas, os cavalos encilhados - todo pronto, enfim,
para a fuga. Haviam sido dias e noites de susto e agonia. Mas ela.
Bibiana, tinha dito desde o princípio: "."Da minha casa não saio."
Traçava já seu. plano: mandaria Licargo .com Fandango para longe
e ficaria esperando os paraguaios sentada na sua cadeíra de balanço
ali mesmo no meio da sala .. .
- Se esta guerra dura mais dois anos - murmurou ela - o
Cargo é capaz de se apresentar voluntário. Quando penso nisso,.
sinto até nm frio na bamga.
- Nio tenha cuidado. A guerra não dura nem três meses mais. - Quem sabe? Sempre acontece o pior. Esse Solaao Lopez
parece que tem sete fôlegos.
- Pois agora ele vai perder o sétimo._
-~- Tomara que vosmeoê tenha razão. Mas não sei .. . Bibiana voltou a abcça e olhou demoradamente na direção da
cacada.
- Sabe da 6ltima, doutor?. - Baizou a voz. - Ant"ontem
ela conversou muito tempò com o Curgo. Era nisso, que eu queria
lhe falar .. .
Vosmecê ouviu a conversa?
~- Não, mas ele me contou todo. Essa mulher perguntou se o
menino queria ir embon com ela.
- E que foi que ele respondeu?
- Respondeu que não, brm como eu esperava. Mas tanta coisa
ela_ fez que aabon fazendo o Cargo chorar.
- Mas Luzia pensarf mesmo em ir embora?
Bibiana aáo respondeu. Ficou por nm instante a olhar, para o
soalho e depois, goaae num cochicho
- Será que da vai dnnr muito ainda? - perguntou, sem
erguer a olhos.
Winter hesitou por breves segundos.
- Pode ser que dure ainda alguns anos, mas pode ser qce dure
apega: alguns meses.
- Dera me perdoe, mas .. .
#534 O CONTINENTE

Calou-se de súbito, como que se arrependendo em tempo do que ia dízer.
" - Não precisa dizer o resto. Eu sei o que vosmecê está pensando.
- Sou uma mulher muito malvada. não sou, dòhtor?
- Absolutamente. Acho que vosmecê é uma pessoa muito prática e muito sincera.
- Não. fica me querendo mál, então? - Claro que nãoo.
- Mas é que nãoo me sinto bem quando penso essas coísasr - A gente não sente porque quer. Sente porque sente. Bibíana sorriu.
- Engraçado! Sabe quem costumava dízer isso? O faleádo Cap. Rodrigo.
- Se ele estivesse vivo tudo podia ser diferente, não?
- Qual? Se ò Rodrigo não tivesse morado na Guerra dos Farrapos, tinha morrido noutra. Decerto nesta. Ou em algum duelo. Ele gostava de comprar briga. Brigava por
gosto. Quando não havia uma guerrinha, andava triste..:
O gato cinzento de Bibíana entrou lento na sala e veio enroscar-se aos pés da dona.
" - Ah 1 - fez ela, como quem de repénte se lembn. - Quero lhe mostrar uma coisa.
Tornou a olhar furtivamente na direção da escada e pôs em cima da mesa seu lenço amárrado à feição de- trouza, desfez-lhe os nós, estendeu-o hórizontalmente e tirou
do centro dele nm papelucho cor-de-rosa, cuidadosamente dobrado, que- ali estava junto com algumas moedas de cruzado e um naco de fumo de mascar. e deu-o ao médica
- Leia isso, doutor.
Winter aproximou o papel da luz das velas e leu
placa filho, quando eu morrer Vai um dia aò campo-santo E reza a Deus por alguém Que em vida te amou tanto.
E lembra então, meu querido, Que ali no frígido cáão Vermes me roem o corpo Podre está meu coração
- Que é isto?
- Versos. Foi ela que fez. Dca pro Cargo ler. Winter sacudia a cabeça lcntamtate.
- Inda mais essa 1- comentou D. Bibiana, com surda índignação. - Faz versos.
A GUERRA 5 3 5

O doutor devolveu-lhe o papel sem dizer uma palavra.
- Então?
- Fazer versos não é o pior. Perto das outras coisas isso é .até inocente .. .
- Eu sei. Mas ela está judiando do menino. Faz agora dois dias que não olha pra ele, que nãoo fala com ele. L como se a criança nem existisse. Tudo por causa daquela
conversa de ant"ontem.
- Por que vosmecê não manda o Curgo para o Angico? Lá ele leva a vida que gosta e fica longe da influência da mãe.
- É o que- vou fazer.
- E quanto ao resto... esperar.
Entreolharam-se em silêncio por alguns segundos, ao cabo dos quais Bibiana murmurou:
- Deus me perdoe.
Inclinou-se para a frente e começou a fazer cafuné na cabeça do gato, que cerrou os olhos num sonolento gozo.
Winter olhou em torno como se quisesse abnager com o olhar nãoo apenas aquela sala e aquele momento, mas também o espaço de tempo que separava aquele minuto exato
do dia em que Bibiana entrara pela primeira vez no Sobrada
- Quase dezessete anos, não, D. Bibiana?
Ela sacudiu a cabeça, devagarinho.
- r verdade. Um tempão. Nenhuma guerra, que eu saiba, durou tanto.
Winter pensou na sua curiosa sithação de neutro; e reconhecer que naquele conflito ele mantinha uma neutralidade benevolente para com a sogra em detrimento da nora.
- E depois - continuou ela - se houvesse muitas pessoas nesta casa a coisa nãoo era tão difícil. A gente se distraía mais, tinha com quem conversar. Quando o Curgo
está no Angico nós duas ficamos sozinhas. Ela come os seus mingaus no quarto e eh como solita na mesa. Vosmecê sabe, o prato e os talheres e a cadeia do Boli continham
no mesmo lugar, como se ele estivesse vivo. E às vezes eh faço de conta que ele está, converso com o meu filho. As negras quando entram com os pratos olham pra mim
e decerto pensam que estou louca ou caduca. Por falar nisso, ao princípio quase fiquei louca mesmo. Um casarão deste tamanho e eu aqui dentro sozinha andando dum
lado pra outro, resmungando e procurando nãoo sei o quê. A sorte é que eu trabalhava o qhe dava o dia e nãoo tinha muito tempo pra pensar em coisas ruins. Ia de noite
pra uma com o corpo moído, fechava os olhos e não gheria pensar. Me doíam as cadeiras, os braços, as pernas, o corpo todo, mas muitas vezes, apesar de cansada, eu
não podia dormir. Nunca lhe acontecer isso, doutor?
- Já, muitas vezes. E nessas ocasiões quando consigo dormir
#536 O CONTINENTE

é um sono cheio de sonhos aflitivos. No outro dia acordo cansado, como se tivesse levado uma sova.
- Isso mesmo. Pois eu ficava de luz apagada, ouvindo todos os barulhos do Sobrado, òs ratos correndo pelos cantos, o teto estralando, um que outro grilo cantando
dentro de casa ... Ficava pensando no que ia acontecer no outro dia. Le digo, doutor, passei o diabo. No princípio ela fez o possível pra me obrigar a ir embora.
Fez horrores. Mas eu finquei pé. Só por causa do menino. Se eu fosse embora, perdia éle, perdia .tudo .. .
- Eu sei muito bem disso, D. Bibiana.
- E mesmo eu lhe contei muita coisa. Vosmecê é a única pessoa que me entende direito. Acho que nem o Florêncio é bem do meu lado nessa questão. O pai dele nunca
me perdoou por eu ter ajudado o casamento do Boli.
- E o que torna sua vida mais difícil, dona, é que por causa do gênio da Luzia pouca gente tem coragem de visitar o Sobrado.
Bibiana fez um gesto de resignação.
- Mas a gente se habitua a tudo. Converso com à negrada da cozinha, falo com o gato, e quando o Curgo está aqui a coisa toda muda de figura.
- Deve ser um alívio quando vosmecê vai para o Angico. Lá peló menos fica sozinha com seu neto, longe dela .. .
- Em parte é um alívio mas em parte não é. Porque chega uma hora que eu penso assim : "Que será que ela está fazendo sozinha lá no Sobrado? Decerto maltratando as
negras." E começo a ficar com medo de que ela prenda fogo na casa. Não tenho mais sossego e acabo achando melhor voltar pra cá. Então volto e a luta começa de novo.
Quase dezessete anos nessa campanha, doutor. Não é nenhuma brincadeira.
- E uma situação terrível ... que a beladona não resolve - sorríu Winter.
E em pensamento completou cinicamente a frase: "Veneno resolveria." E ficou a brincàr com uma idéia. Um dia chamam-no às pressas ao Sobrado porque Luzia morreu repentinamente.
Ele chega e descobre que ela foi envenenada. Lá está a teiniaguá estendida na cama, o rosto esverdinhado e contorcido, os olhos vidrados e mais vazios que nunca.
D. Bibiana e ele trocam por cima do cadáver de Luzia um olhar carregàdo de significação. No da velha há medo, dúvida e uma interrogação ansiosa. E no seu? Uma benevolente
promessa de silêncio. Depois ele senta-se à mesa para lavrar o atestado de óbito. Causa mortis? Ach! Já bastavam os dramas da realidade, era pura estupidez ajuntar
a eles os criados pela imagínação. Mas quem lhe garantia que os chamados dramas da vida real não eram também produto da imaginação? Fosse como fosse, o ódio de D.
Bibiana pela nora nãoo era tão grande que pudesse um
A GUERRA 537

dia induzi-la ao crime ... Ou era? Nunca se sabe de todas as coisas de que um ser humano é capaz .. .
- De que É que está rindo, doutor?
- De nada. Dumas bobagens que estou pensando.. .
Por um instante ficaram ambos calados. Depois. Bibiana disse:
- É uma coisa bem triste ver esta casa vazia. Eu sempre quis ter um bando de netos e bisnetos..Acho que vou morrer sem poder
ver os filhos do Curgo.
- Vosmecê diz isso de faceira. Tem uma saúde de ferro. - Isso tenho. Mas acho que nãoo passo dos sessenta e oito." - Quer dizer então que já marcou a data de sua
morte?
- É um palpite .. .
- Qual! Aposto como vosmecê chega aos noventa.
- Pois Deus lhe ouça. Não é que eu tenha .medo de morrer.
Ninguém fica pra semente. Mas é qne nãoo costumo deixar nenhum
trabàlho pela metade. Quando começo um bordado, termino. ele
nem qne leve dez anos. Sè eu morrer antes de ver o Curgo homem
feito, casado e com filhos, então é porque não adiantou nada pra
ninguém eu ter vindo a éste mundo.
- Garanto qne vai até passar dos noventa. Desde que estou
nesta vila nunca vi vosmecê de cama.
- Minha avó também nunca ficou doente de ir pra cama. E
passou o diabo.
- É porque á raça é boa, dona.
- Hum! Pergunte pra ela se é da mesma opinião.
- Talvez seja, D. Bibiana. A gente às vezes se engana com
as pessoas .. .
- O doutor está sempre disposto_ a desculpar os outros e achar
que todos são bons. ~ que vosmecê tem bom coração.
- O que eu tenho é bons nervos.
- Dá no mesmo.. Ah! Por falar em nervos, a Leoaor, minha
filha, me escreveu dizendo que tem andado muito nervòsa e me
convidando pra ir visitar ela na Cruz Alta.
- E vosmecê vai?
- Não. Como é que vou deixar essa mulher sozinha aqui?
E capaz de fazer alguma barbaridade. Vosmecê sabe o que aconteceu
um dia destes? Pois descobriu que tenho um amor especial por
aquele pé de marmeleiro-da-índia e a malvada, sem eu saber, man
dou cortar ele .. .
- ~ E cortaram?
- É mais fácil me cortarem o pescoço. B que ando sempre de
olho vivo e pé ligeiro. Cheguei bem na hora que o negro Faustino
estava de machado em punho, perto da árvore.. - E que foi que aconteceu?
#538 O CONTINENTE
- Vosmecê vai dar risada se en contar.
Um risinho convulsivo sacudiu os ombros de Bibiana. - Diga lá..
- En estava na janela do quarto dos fundos quando vi o negro se preparando pra cortar o marmeleiro. "Pára com issol" - gritei. "Não corte essa árvorel" E ela, que
estava perto da porta da cozinha, gritou também: "Corta, negroI" O pobre do Fanstino ficou olhando ora pra - mim ora pra ela, com ar de pateta. Então ela teve um
acesso de nervos. e começou a berrar: "Corta, .negro sem-vergonha, seuao en mando te dar umas chicotadas e botar salmoura nas feridas!" O Faustino, coitado, tremia
todo da cabeça aos pés. Levantou o machado devagarinho e então eu peguei a pistola do Bolí e apontei pra ele: "L~rga esse machado e vai t"embora, senãoo eu faço fogo!"
O negro largou o machado e disparou. pro fundo do quintal. Vai então en disse com toda a calma: "Quem encostar a mão em qualgner árvore deste _quintal leva bala."
Winter sorria.. O gato abriu os olhos e pareceu ficar .escutando também.
- E vosmecê era capaz de atirar mesmo? - perguntou o médico. Bibiana hesitou por um segundo.
- .Não sei.. Mas acho que era. - Um brilho de malícia lhe passou pelos olhos.. - De qualquer modo, doutor, a pistola estava descarregada. E en nunca dei nm tiro
em- toda a minha vida. Contam que minha avó nm dia matou um bugre. Mas nãoo é uma história engraçada, essa que lhe contei?
- Engraçada? Sim. E um _pouco dramática também.
- Pois tansos como esse há muitos. Se eu quisesse contar todos, a gente" passava aqui a noite inteira. Birras, desaforos que ela me faz, indiretas, malvadezas fininhas
.. .
.~ Encolheu os ombros.
- No princípio eu me incomodava. Agora nãoo. Estou acostumada. Ela faz as coisas e eu ... nem água. E como se não fosse comigo. Sei que tudo é uma questão de tempo.
Estou habituada a passar trabalho. A vida nunca foi fácil pra mim, nem pra minha mãe e meu pai, nem pra meus avós. Parece que a sina dos Terras é passar trabalho.
- Nesta província os homens em geral resolvem suas questões a arma branca ou a arma de fogo. O duelo dura poucos minutos, um dos adversários fica estendido no chão
.. .
- Ou os. dois .. .
- Sim, ou os dois. E a questão está resolvida.
- Mas nós mulheres nãoo somos assim. Ficamos com a nossa guerra miudinha, dia a dia, hora a hora .. .
A GUERRA 539

- E é preciso mais coragem pra esse tipo de guerra feminino do qqe pra um duelo a adaga ou pistola. `
- A paciência é a nossa maior arma, doutor.
Mais do que a paciência - refletiu Winter - as mulheres tinham uma constância feroz no ódio. Não era nm ódio que se concentrasse todo num ímpeto para produzir um
gesto ~de selvagem violência. Diferente do ódio dos homens, que se fazia labareda devastadora, mas se extinguia logo, o ódio das mulheres era uma brasa lenta que
ardia, às vezes escondida sob cinzas, e que durava anos, anos e anos . .
- No final de contas, doutor, eu estou sempre arpolandoy o senhor com as minhas histórias. Mas também vosmecê é a única pessoa com quem posso me abrir. Que diacho,
a, gente também cansa de falar sozinha.
Winter ergueu-se, abafando um bocejo.
- Vosmecê já pensou - perguntóu ele, espreguiçando-se - que para ela também todos esses anos não têm sido nada agradáveis? Ela odeia esta casa, esta vjla, esta vida.
E tem vivido ultimamente roída de ódio e roída ao mesmo tempo pelo temor .. .
Bibiana ficou -olhando por um instante, absorta, para o pedaço de noite que a janela emóldurava.
- .Há males que vêm pra bem, doutor. Se não fosse esse .tumor, decerto ela já tinha ido embora. Vendia a casa, o Angico e levava o menino.
= E eu não compreendo até hoje por que é que ela nãoo foi. Já reparei que as pessoas podem ter um ódio de morte a outra pessoa, . lugar ou situação, mas .quando têm
uma oportunidade de fugir deles, não fogem. Vosmecê se lembra daquele paulista fazendeiro de café que passou por aqui e quis casar com ela?
Bibiana sacudiu a cabeça, fazendo que sim.
- Pois eu estava certo de que ía sair casamento. O homem andava entusiasmado. e parece que Luzia também não estava de tódo indiferente .. .
- Ué I Andava até bem influída. Ouviu dizer que ó homem
tinha um palacete na Capital, carruagem com cocheiro de. libré e
não sei mais o quê .. .
- De repente o fazendeiro foi embora sem dizer nada a nin
guém ... e nunca mais voltou.
Bibiana sorriu enigmaticamente.
- E vosmecê nãoo sabe por quêl
- Porque Luzia não quis casar com ele?
- Não. Foi porque um dia tive um particular com o homem
e contei tudo .. .
- Vosmecê?
#54O O CONTINENTE
- Contei que ela não é boa da cabeça. Contei o que ela fez pro Boli ... Não escondi nada. Fiquei com as orelhas ardendo de vergonha, nãoo tive nem coragem de olhar
pra ele ... Mas confiei.
- E que foi que o homem disse?
- Ficou meio pateta.. de queixo caído. No outro dia montou a cavalo e foi embola. Não voltou aqui nem pra dizer " `Adeus, cachorrol"
E Luzia percebeu alguma. coisa?
- Sabei-me lál Se percebeu nãoo deu demonstração. Inclinou-se e acariciou a cabeça do gato.
Eram quase onze horas quando o Dr. Winter se retirou. Bibiana mandou. Natália fechar as janelas e portas e depois, como costumava fazer todas as noites antes de
deitar-se, tomou dum castiçal, acendeu-lhe a vela e saiu a percorrer as peças do Sobrado. Aquela casa era como uma filha querida para a qual tinha cuidados e carinhos
especiais. Sentia cada arranhão na parede, cada falha no reboco como uma ferida aberta em sua própria carne. Fazia as negras esfregarem o soalho com sabão e casca
de coco todos os sábados, e lavarem as vidraças. pelo menos uma vez por semana: Os móveis andavam sempre reluzentes, sem o menor grão de poeira. E ai de quem_ entrasse
no Sobrado com as botas embarradas!
Depois de revistar todas as peças dõ primeiro andar, Bibiana subiu para o segundo. Até o ranger dos degraus da escada sob o peso de seu corpo era uma musiquinha
familiar e agradável para seus ouvidos. Junto da porta da sacada, parou e espiou a praça através das vidraças. Lá estavam as árvores, suas velhas amigas, imóveis
sob o luar; e o vulto escuro da igreja, com sua torre incompleta. Pela rua passava naquele momento uma vaca com uma lantérna acesa nos chifres. Bibiana pensou no
Amâncio Braga, .agente " do correio. Diziam que a mulher dele o enganava com um dos filhos do Bento Amaral. Imaginem o Amâncio passeando de noite com uma lanterna
presa nas guampas! Riu um risinho baixo de garganta e continuou a caminhar ao longo do corredor. Suas chinelas de lã eram tão silenciosas como as pisadas do gato.
E na quietude do casarão ela ouviu sons estranhos vindos do quarto de Luzia. Parou e prestou atenção: eram gemidos trêmulos e prolongados, de mistura com soluços.
Ficou imóvel, de castiçal na mão, a imaginar o que se estaria passando no quarto da nora. Decerto estava estirada na cama, com dor no estômago. Pensou em bater e
perguntar se ela precisava de alguma coisa. Mas tudo isso ficou só em pensamento. Não disse palavra nem se moveu. O que a gente faz de mal neste mundo, aqui mesmo
paga. O sebo da vela escorreu
A GUERRA 541

e pingou na mão de Bibiana, que despertou do amargo devaneio e
continuou seu caminho: Depois de certificar-se de que lá em cima
tudo estava em ordem, entrou no quarto de Curgo, fechou a porta
devagarinho, aproximou-se da cama do neto e ergueu a .vela. O
rapaz estava de olhos abertos.
- Ué ... - estranhou ela. - Ainda não dormiu? - Não, vó.
- Por quê?
- Perdi o sono.
- Então acende uma vela pro Negrinho do Pastoreio pra achar
ele de novo.
O rapaz sorriu tristemente. Bibiana sentou-se na beira da cama "
e perguntou:
- Quer voltar pra. estância?
Curgo soergueu o corpo, numa súbita animação. - Quero, sim. Quando? - Amanhã.
A luz amarelada da vela alumiava em cheio o rosto do me
nino ... Por um instante ela viu todos os seus mortos queridos no
semblante do neto. Pedro, Ana, Bolívar.:. A maneira que Curgo
tinha de olhar as pessoas, com a cabeça ugi pouco atirada para trás,
era francamente do Rodrigo .. .
- Pois encilhe o zaino amanhã de manhã e toque pro Angico.
O Faustino vai junto.
- O Faustino? Mas eu já sou homem, vó, posso ir sozinho. Bibiana sorriu, sacudiu a cabeça num assentimento e murmurou: - Pois sim, Cap. Rodrigo, pode ir sozinho.
Avó e neto ficaram a entreolhar-se por um instante em silêncio.
Do quarto contíguo, abafados e dolofosos, vinham .os gemidos de
Luzia: A testa de Curgo franziu-se, seus lábios tremeram, e por
"seus olhos brilhantes e úmidos passou uma sombra.
Bibiana fez com a cabeça um sinal na direção da alcova da nora. - É por causa disso que tu nãoo podes dormir? - ~.
- Não há de ser nada, Curgo. Isso passa. Deita e dorme.
Uma vez havia muito tempo, ela dissera essas mesmas palavras a
Bolívar... "Isso passa. Deita e dorme."
O rapaz obedeceu, puxou a colcha até, o queixo e sorriu para a
avó. Em pensamento Bibiana deu-lhe um longo beijo na face. Mas
só em pensamento, pois na realidade limitou-se a bater-lhe três vezes
no ombro com a ponta dos dedos. Ergueu-se e saiu serra fazer o
menor ruído.
Os gemidos de Luzia tinham cessado. Bibiana entrou no pró
prio quarto, despiu-se lentamente, enfiou o camisolão de dormir e
#542 O CONTINENTE
estendeu-se na cama. O bom mesmo seria dormir logo sem pensar, porque seus pensamentos sempre eram maus e tristes. Fechou os olhos. Pela sua mente passou o vulto
do Maj. Erasmo Graça. Depois, o de Florêncio, caminhando e puxando por uma perna. Viu também Bolívar caído de borco no meio da rua, tom a cara numa poça de sangue.
Revolveu-se na cama, inquieta, e" por algum tempo ficou escutando o silêncio. Diziam que a guerra estava por terminar: era questão de meses ou talvez até de semanas...
Mas, fosse como fosse, quando terminasse a guerra contra Solano Lopes, a outra guerra ia continuar feroz ali no Sobrado.
Soltou um profundo suspiro, soergueu-se na cama e apagou a vela com um sopro.
Num verão mui seco José Fandango foi levar a tropa a São
Gabriel. "
Como sempre acontecia, a peonada. das estâncias por onde ele
passava ficava alvorotada quando via o velho chegar
pois não havia quem não apreciasse seus ditos, chistes e histórias. Foi assim -,que numa bela noite, numa estância de Tupanciretã,
Fandango sentou no galpão perto do fogo e, enquanto o chimarrão
andava à roda, ficou a solar
porque quando pegava a palavra não entregava a mais ninguém. Disse:
Dês de gurizote ando cruzando e recruzando o Continente
- não hai canto destes pagos que eu não conheça. diz muita tropa nos campos da Vacaria nos de Cima da Sena
nos de Baixo da Serra Andei pelo vale do Uruguai
- muita areia comi nesse deserto brabo que vai do Mampituba
ao Chuí.
Miles de vezes cortei a Serra Geral
- outros tantos a Coxilha Grande.
Pela zona missioneira e pela Campanha, meu Deus, sou capaz até
de andar de olhos tapados.
Tenho conhecido gente de todo o jeito: estancieiro pequeno e grande tropeiro e carreteiro mascate e bolicheiro
doutor formado e curandeiro polícia e contrabandista padre e bandido soldado e paisano
índio vago e juiz de roupa preta. Também tenho encontrado mulher de todo o pelo morocha, castanha, ruiva rica, pobre, remediada gorda, magra, alta, baixa moça de
família, china campeira mulher com medo de rato
- fêmea que briga como macho. Mas fui aprendendo aos pouquinhos que hai moças e moças
- que é sempre bom a gente atentar no que. diz a língua do povo:

Em Sãò Borja e São Vicente, _Pra casar não se demora Que as moças lá desses panos Cortam a gente de espo-tal

Lá na terra de Pelotas
As moças vivem fechadas. De dia fazem biscoito, De noite bailam caladas.
Õ moço, se eu le contasse, Vancë diria que-eu _ minto: As moças de Livramento Usam pistola. no cinto!

Aprendi também que cada hombre, como o cavalo, terra seu lado de montar.
A questãó é a gente descobrir...
Porque hai gaúchos e gaúchos, nem todo o nosso povo é igual. Os da fronteira sãó largados, falam sempre meio gritando e com
ar de provocação. . Gostam de contar bravatas e de fazes gauchadas tëm mão aberta e coração grande
e assim como se espinham poe qualquer coisa e querem logo brigar em seguida ficam amigos e dão a vida por vassuncê.
Os da zona missioneis são retraídos, falam pouco, nãoo gostam
de ostentação.
545
Dão um boi pra não entrar em briga, mas depois de entrar dão
uma bóiada pra não sair.
Agora, o que eu acho_ engraçado é esse povo que vive lá Aras
bandas do mar, nos campos de Viamão, de Conceição do Arroio e
- Santo Antônio da Patrulha.
Têm fala cantada que só galego são gente pacata e meio sovina
mas cumprideira de suas obrigações. Uma coisa, patrícios, eu les garanto:
pra meu gosto o verdadeiro Rio Grande fica da margem direita
do Jacuí, Aros lados de São Borja e pra baixo
na direção de Uruguaiana, Santana do Livramento, Dom Pedrito
- Bagé
principalmente na Campanha, onde sempre terçamos armas com
os castelhanos.
Da margem esquerda pro norte e pro mar tem gringo demais.
Não gosto de alemão. Falam uma língua do diabo
olham pra gente com um ar de pouco caso. Tudo neles é diferente: as roupas, as danças, as comidas, as casas até o cheiro.
Quando vejo um homem de pele -muito branca cabelo de barba de milho e olho de bolita de vidro até me dá nojo.
Se eu fosse governo, mandava essa alemoada embora. Não é que eu seja mesquinho, somítico ou malevo: estrangeiro também é filho de Deus. Mas cada qual deve ficar
sossegado na sua terra com seus parentes e amigos, seus costumes e .cacoetes.
Duns anos pra esta parte, tem chegado também muito italiano. Se empoleiraram na Serra, porque a alemoada, que chegou pri
meiro, pegou os melhores lugares na beira dos rios.
Já andei por essas novas colônias da região serrana. A fala deles tem música
- é doce como laranja madura
- meio parecida com a nossa.
Gostam de comer passarinho de fazer e beber vinho de cantar, de ouvir missa de padre e de procissão.
Vassuncês são muito moços, não pegaram a Guerra dos Farrapos. Pois o velho Fandango teve a honra de servir com José Garibaldi, que também era gringo
mas gringo de senhoria.
#546
B R A D O- - V I
Sabem o que foi que ele disse na sua língua atrapalhada? Que com a nossa cavalaria era capaz de conquistar o mundo. Pois é como eu les ia dizendo:
do Jacuí Aras bandas do mar tem muito estrangeiro. Na vida do continente
tudo anda demudado
quase ninguém mais usa chiripá
agora é só bombachos.:
Nos fandangos já não dançam tanto
a chimarrita, o tatu e a meia-Ganha:
o que querem é valsa, chótis, mazurca, polca, essas bobagens estrangeiradas.
Se há coisa que me dá guizília é ver esses tais postes do telégrafo, quando ando viajando pela campanha.
Se eu fosse governo mandava derrubar tudo.
Onde se viu a gente passar bilhete pra outra pessoa por um arame? Issó até é uma: pouca vergonha, porque. se quero dar algum recado, justo um charque, arranjo um
próprio ou vou eu mesmo.
Ainda no avio passado eu ia levando uma boiada pro município
de Uruguaiana quando pela beira da estrada vi passar um trem. O diabo da locomotiva vomitava fumaça e fogo, e parecia dizer já-te-pego .. já-te-largo ... , já-te-pego
... já-te-largo .. . De repente soltou um apito,
a boiada meio que se assustou e quase houve um estouro. Fiquei fulo de raiva, tirei a pistola da cinta e troquei bala no trem. Vassuncês meninos são modernos
falam em metro, quilo e litro.
Eu sou homem mui antigo
do tempo da onça
do palmo craveiro e da bebida em quartilho. Pois é como estou dizendo
com tanto gringo, tanto estrangeiro
com tanta moda nova
com tanta gente morando em cidade
nossos homens estão ficando mui frouxos.
E se não hai logo uma guerra ou alguma revolução vai tudo acabar maricas.
Nesse dia a castelhanada cruza a fronteira brincando e toma o Continente a grito.
lblas náo há de ser nada, porque como diz o rifão
Em qualquer pocinho d"água, Deus pode fazer um peixe. E uenha de lá esse mate, que já estou de goela seca.
26 de junho de 1895: Noite


Maria Valéria acende a lamparina no gaarto dos sobtinhós e retira-se, depois de recomendar:. - Fiquem bem quietos. Já vou- trazer alguma coisa- pra .~
roerem.
Qaando aporta sé fecha. Toríbio e Rõdrigo se entreolham.
- Vam~ brincar de voa-amarela? - pergunta o primeiro. - Vamos. En digo: " vaca-amarela cagou na panela, três a
mexer, quatro a comer, . quem -falar primeiro come.
Ambos apertam os lábios para não falar, e a muito custo roa
têm o riso. Ficam assim durante vários segundos, as bochechas
cheias de ar - um ar que ameaça saír-lhes na forma dama rís:da
explosiva. De repente a porta se abre e Fandango entra.
- Ué! Que é qúe estão .fazendo aí tão quietos?
Os meninos rompem numa gargalhada, pulam~da cama e come
çam a gritar: "
- O Fandango comeu! O Fandango comem!
O velho baixa para -eles nm olhar desconfiado e pergunta:- Comeu o quê?
- Bosta de vaca ! - ezdamam os doía ao mesmo tempo. -
Bosta de vaca!
Fandango sorri mostrando os dentes escama e miúdos, senta=se
na cama e fica olhando- para o chão.
- B o que todos nós vamos acabar comendo se o sítio con
tinha ... - mnnnuroa ele. - Bosta de vaca com farinha e caldo
de laranja!
Rodrigo e Toríbio aproximam-se do velho: o mais moço mon
ta-lhe na perna, o outro fama-lhe do braço.
- Conta uma história pra nós. - Estore mui cansado.
- Ué ... - faz Toríbio. - Tn conta é com a boca ~ não com
a perna. Tua boca também está cansada? . - Conta uma história do Pedro Malazarte logrando o Joào
Bobo - sugere Rodrigo. = Aquela que o Pedro aquentou no fogo
ama panela de feno até que ela ficou em brasa e depois vendem ela
p S O
#546
p S O B R A D O- - V I
Sabem o que foi que ele disse na sua língua atrapalhada? Que com a nossa cavalaria era capaz de conquistar o mundo. Pois é como eu les ia dizendo:
do Jacuí Aras bandas do mar tem muito estrangeiro. Na vida do continente
tudo anda demudado
quase ninguém mais usa chiripá
agora é só bomóachas.
Nos fandangos já nãoo dançam tanto
a chimarrita, o tatu e a meia-ranha:
o que querem é valsa,- chótis, mazurca, polca, essas bobagens estrangeiradas.
Se há coisa que me dá quizília é ver esses tais postes do telégrafo, quando ando viajando pela campanha.
Se eu fosse governo mandava derrubar tudo.
Onde se viu a gente passar bilhete pra outra pessoa por um arame? Issó até é uma: pouca vergonha, porque. se quero dar olgum recado, justo um chasque, arcanjo um
próprio ou vou eu mesmo.
Ainda no arfo passado eu ia levando uma boiada pro município .
de Uruguaiana quando pela beira da estrada vi passar um trem.
- diabo da locomotiva vomitava fumaça e fogo, e parecia dizer já-te-pego .. já-te-largo ... , já-te-pego ... já-te-largo .. . De repente soltou um apito,
a boiada meio que se assustou e quase houve um estouro. Fiquei fulo de raiva, tirei a pistola da cinta e traquei bala no trem. Vassuncês meninos são modernos
falam em metro, quilo e litro.
Eu sou homem mui antigo
do tempo da onça
do palmo craveiro e da bebida em quartilho. Pois é como estou dizendo
com tanto gringo, tanto estrangeiro com tanta moda nova
com tanta gente morando em cidade nossos homens estão ficando mui frouxos.
- se nãoo hai logo uma guerra ou alguma revolução vai tudo acabar maricas.
Nesse dia a castelhanada cruza a fronteira brincando e toma o Continente a grito.
lias nãt~ há de ser nada, porque como diz o rifão
Em qualquer pocinho d"água, Deus pode fazer um peixe.
- venha de lá esse mate, que já estou de goela seca.
26 de junho de 1895: Noite


Maria Valéria acende a lamparina no quarto dos sobrinhos c retira-se, depois de recomendar:_ _ - Fiquem bem quietos. Já vou tnzér alguma coisa pra comerem.
Quando a _porta sé fecha, Toríbio e Ròdrigo se entreolham.
- Vamos brincar de vaca-amarela? - pergunta o primeiro.
- Vamos. En digo:" vau-amarela cagou na lxinela, três a mexer, quatro a comer.. quem .falar primeiro come.
Ambos apertam os lábios para não falar, e a muito custo contêm o ríso. Ficam assim- durante vários segundos, as bochechas cheias de ar - um ar que ameaça sair-lhes
na forma duma risada explosiva. De repente a porta se abre e Fandango entra.
- Ué! Que é gire estôo .fazendo aí tão quiét~?
Os meninos rompem numa gargalhada, pulam~da cama e começam a gritar: "
- O Fandango comem! O Fandango comeu?
O velho baixa para -eles nm olhar desconfiado e pergunta:
- Comera o quê?
- Bosta de vaca ! - exclamam os dois ao mesmo tempo. - Bosta de vau!
Fandango sorri mostrando os dentes escanos e miúdos, senta-se na cama e fica olhando- para o chão.
- ~ o que todos nós vamos acabar comendo se o sítio comtinua ... - murmurou ele. - Basta de vaca com farinha e caldo de laranja!
Rodrigo e Toríbio aproximam-se do velho: o mais moço monta-lhe na perna, o outro toma-lhe do braço.
- Conta uma históría -pra nós.
- Estou mui cansado.
- Ué ... - faz Toríbio. - Tn conta é com a boca ~ não com a perna. Tua boca também está cansada? .
- Conta uma história do Pedro Malazarte logrando o Joáo Bobo - sugere Rodrigo. = Aquela que o Pedro aquentou no fogo ama panela de feno até que-ela ficou em brasa
e depois vendem ela
#548
O CONTINENTE
O SOBRADO - VI 549
pro João Bobo dizendo que era uma panela mágica que náo previ siva de fogo pra fazer comida. Vai então o Joáo Bobo compra panela e quandó ela esfria ele vê que foi
empulhado. Conta 1
- Pois tu já côntou, muchachol - boceja Fandango.
- Mas agóra conta tu.
Toríbio tira a pistola do cinto de Fandango e começa a brincar com ela.
Larga essa arma, menino, que ela pode disparar. Arrebata a pistola das mãos do menino e torna a pô-la cóldre.
- Então conta outra histórïa - pede Rodrigo. - A do Negrinho . do Pastoreio - reforça Bio. - Jã contei essa mais de mil vezes. - Mas cònta outra vez.
Fandango sorri, faz Rodrigo sentar-se no chão e diz: .
- Muita história_ contei pro Licurgó quando ele era assim do tamanho de vassuncês .. .
E por um instante ele revê os campos da estância em outros tempos, quando saía pelas. invernadas com o Gurgo de quinze anos, a ensinar-lhe coisas.
Um dia perderam no Angico um terneiro brasino da estima de Licnrgo, e o menino ao anoitecer acendeu um coto de vela e fez uma promessa ao Negrinho . do Pastoreio..
No . dia seguinte, mal rompeu a alvorada, lá estava o terneiró perdido, berrando na frente da case da estância.
- Conta! - insistem os meninos.
- Está bem, xaroposos! _ Está bem. .
Fandango recosta-se na cama e com a sua voz especial de contar casos, uma voz pausada .de conversa ao pé do fogo, começa:
- Era uma vez um estancieirô podre de rico -e louco de tão malvado... (Isso se passou nos tempos de dantes.) Pois diz-que esse hombre mato tinha até dinheiro enterrado,
mas era tão sovina q$e nãoo comia ovo pra náo botar a casca fora. Na estância dele não dava pousada nem comida pra ninguém. Pra encurtar o caso, o diabo do hombre
era tão ruim que por onde ele andava nem os quero-queros cantavam. Pois essa peste tinha um filho, um menino, ruim como o pai, porque quem sai aos seus nãoo degenera
.. .
O velhò faz uma curta pausa, puxa um pigarro e prossegue:
- Tinha também nessa estância um negrinho escravo, preto como fundo de panela, mas de dentes brancos que nem asa de garça. Negro lindo, .mesmo!
- Como era o nome dele? - pergunta Rodrigo.
- Não tinha - Toríbio apressa-se a responder. - Tu sabe. - I~ - confirma o velho. - Não tinha. Quando "um padre
passou pela estância e começou a batizar quem ainda era pagão, o
negrinho também quis um padrinho. Vai entonces o estancieiro gritou: "Negro nãoo se batiza!" O pobre do moleque baixou a cabeça e resolveu que ia ser afilhado da
Virgem Nossa Senhora.
- E foi?
- Foi.
De olhos acesos, os meninos escutam a história com uma atenção fascinada, e com um gosto novo de quem ouve um belo conto pela primeira vez.
- Todo o mundo judiava do Negrinho naqueia estância maldita, principalmente o estancieiro e o filho. Pois diz que um dia o hombre malo mandou o Negrinho pastorear,
num potreiro enorme de trinta quadras, trinta cavalos tordilhos. O Negrinho montou num baio e se foi .. .
- E os cavalos fugiram - antecipa-se Rodrigo.
- Cala a boca !
- Pois é - continua Fandango. - Quando anoiteceu, o Negrinho ficou cansado, pegou no sono, deixando o baio à soga. Alta noite vieram uns guaraxains, roeram a soga,
o baio fugiu, os tordilhos também se foram e, num abrir e fechar de olhos se sumiram na noite grande. Quando acordou, o pobre do Negrinho viu que tinha perdido o
pastoreio. Entonces desandou a chorar.
- E quem é que foi contar pro estancieiro que os cavalos tinham fugido? - pergunta Rodrigo.
- Orat - faz Toríbio. - Tu sabe. Foi o filho dele, não foi, Fandango?
- E, foi o filho da mãe do guri, xereta simbergüenza. Foi contar ao pai. O pai entonces manda amarrar o Negrinho num palanque e aplica-lhe uma sumanta de relho dessas
de tirar a alma dum vivente a guascaços. LeptI Lept! LeptI O Negrinho ficóu chorando e sangrando. E como castigo o hombre malvado mandou o pobre do menino sair na
noite escura pra campear o baio e os trinta tordilhos perdidos.
Fandango faz uma pausa para observar melhor os dois meninos, cujos, rostos a luz da vela tinge dum amarelo alaranjado. Do outro quarto vem o barulho surdo da cadeira
de balanço da velha Bibiana. Ela também sabe a história do Negrinho do Pastoreio - reflete o velho - mas conta-a de outro modo. Há mil modos de narrar esse mesmo
"canso" Fandango ouviu um no galpão de certa estância de São Gabriel uviu outro na Soledade e finalmente um outro muito diferente `em Vacaria. Bem diz o ditado:
"Quem conta um conto aumenta um ponto."
- E daí? - pergunta Toríbio.
- Daí o Negrinho teve uma idéia. Foi ao oratório da Virgem sua madrinha e tirou de lá um coto de vela acesa e saiu com ela na mão pelo campo .. .
- E foi pingando cera no chão, não foi? - pergunta Rodrigo
#55O O CONTINENTE
- Isso mesmo. Foi pingando cera e uda pingo quando n" fiava aceso e brilhando como uma ontn vela. E tinha tantos PinSd que o empo ficou todo alumiado, claro como
o dia. Entonas o Negrinho achou o seu baio e os trinta tordilhos. Montou no bei e repontou a tropilha pn estância, pi um lugar que o estancieis. tínha marcado. Mas
de repente chegou a noite, o Negrinha fitos com sono, amarrou de novo o baio e dormia. E de noite o filho do estanáeiro veio, o malvado, e enzoton os trinta tordilhos,
e a tspilha ontn vez se perdem no campo.
- E-que foi que o estancieiro fez?
- Den outra sova no Negrinho, uma sova tào forte que o desgnçadinho dessa vez começou a se esvair em cangar e a revim os olhos. Então o estancieiro pensou: "O diabo
vai morrer. 8 noite e eu não vou me dar o trabalho de abrir uma cova pra enterrar esse molegne~, -Vou botar ele dentro do panelão dum formigaeiro que tem no meio
do campo. Lá as formigas comem as cernes dele e ficam só os ossos. ~ isso que eu vou fazer."
- E fez?
- Fez. Primeiro se quedou ali pra ver o que as formigas-faziam. Os . bichinhos se assanhaam e cobriam logo o corpo do Negrinho e começaram a comer as carnes dele.
Entonces o estancieiro foi-st embora satisfeito, dando risada, o cachorrol
- E os cavalos?
- Os cavalos continuavam sumidos.
- E aonde é que foi o estancieiro?
- Foi dormir. Diz-que teve . sonhos de arrepiar o cabelo. t
que a noite ficou feia, e que veio uma cerração da cor de pelo de
ratão, e durou trvs dias e três noites.
Fandango cala-se e fica olhando paa a chama da vela, que dança, fazendo dançar também nas paredes caiadas as sombras das três pessoas que ali estão.
- ç depois?
- _Ora, um dia o estancieiro resolve ir até o formigueiro pra ver a calavera do Negrinho. Mas quando chegou lá ficou de boca aberta com o que viu.
Fandango entesa o busto, ergue as mãos ossadas e tostadas. Sua cace está séria, os olhos arregalados, como se ele fosse o próprio estancieiro no momento de fazer
a descoberta espantosa. Toríbio e Rodrigo estão pandos, de boca entreaberta, nm ar entre medroso e palerma e no qual, não obstante, há nm leve toque de maliciosa
incredulidade.
- O Negrinho lá estava de pé - continuou o velho - dando uma risada, no meio do formigueiro, nnzinho mas inteirinho, tirando as formigas do corpo com os dedos. E
ao lado dele, assim no ar, numa nuvem de luz, a imagem da Virgem Nossa Senhora, rindo pro afilhado. Não muito longe do formigueiro, o cavalo baio pas
O SOBitADO - VI 551

cava e em roda dele os trinta tordilhos sacudiam as crinas. O estancieiro perdeu a fala e ficou ali duro como uma estauta.
"Nesse instante Maria Valéria entra no quarto, abrindo a porta com um gesto brusco. Num sobressalto os meninos voltam a cabeça para a recém-chegada e uma careta
de contrariedade contorce-lhe os rostos. `
- Venham comer - diz ela. - Laranja e farinha. Foi o que se pode arranjar.
- Espera, madrinha - diz Rodrigo. - O Fandango está contando a história do Negrinho.
Maria" Valéria faz que os sobrinhos agarrem os pratos, onde gomos de laranja descascada estão sobre uma camada de farinha de mandioca, empapada aqui e ali de sumo.
Com os pratos nas mãos, mas os olhos postos em Fandango, os dois rapazes esperam a continuação do "causo".
O velho ergue os olhos para Maria Valéria e diz:
- Já estou no fim, dona.
Ela fica de braços cruzados, imóvel e tesa, esperando. À tíbia luz da lamparina seu rosto está todo manchado de sombras que a envelhecem, e como que lhe tornam maior
o nariz, . mais encovadas as faces:
- E depois, Fandango? - pergunta Rodrigo.
- O Negrinho solta uma risada, pula pra cima do lombo do baio .. .
- Em pelo?
- Em pelo no mais ... E sai _repontando campo fora os trinta cavalos tórdílhos.
O velho faz uma pausa, respira fundo e a seguir, com voz mais macia, remata a história
- Diz-que daí por diante em mtütos lugares do Rio Grande tropeiros, carreteiros, gaúchos andarengos e peões de muitas estâncias começaram a ver o Negrinho passar
certas noites montado no seu baio tocando por diante a cavalhada tordílha. Todos sabiam do causa do estancieiro melo e achavam que tudo tinha sido um milagre da
Nossa Senhora. Diz-que agora tudo que se perde no mundo o Negrinho acha, mas ele só entrega os perdidos a seus donos se estes lhe acenderem uma vela. O Negrinho
não quer vela pra ele, mas sim pro altar da sua Madrinha.
- E ele ainda anda por aí, Fandango? - pergunta Rodrigo.
- Diz-que.
Toríbio fica pensativo por um instante e depois indaga:
- E essa história é de verdade ou de mentira?
Fandango ergue-se devagarinho, respondendo:
- ~ uma história linda, chiquito.
Depois, dirigindo-se a Maria Valéria, murmura:
#552 O CONTINENTE

- Acho que vou acender hoje uma vela pro Negrinho pra tle trazer de volta pra casa o meu neto qüe se perdeu nessa revolução. - Sorri. Fecha um olho. - E prò afilhado
da Virgem me devolva outras coisas, muitas outras coisas que tenho perdido nesta vida.
Sai do quarto caminhando no seu tranco sutil e faceiro.
- Vamos, comam duma vez! - diz Maria Valéria aos sobrinhos.
- Estou enjoado de laranja - choraminga Rodrigo. - D3 dor de barriga.
- 1: o que tem.
Bio esfrega um gomo na farinha e depois mete-o na boca, trincando-o; o sumo lhe escorre pelas comissuras dos lábios.
- Então conta outra história, titia.
- Chega de histórias. Comam e vão dormir.
De repente, numa invencível sensação de cansaço, ela- se senta pesadamente na cama e leva ambas as mãos às têmporas. A cabeça- agora lhe dói tantõ que parece que
se vai partir. Senhor, quando acabará este martírio? Quando? Quando? Quando?


Pé ante pé Fandangó entra no quarto de Bibiana, que está 3s escuras. O soãlho estrala.
- Quem é lá? - pergunta ela.
- Sou eu.
- Eu quem?
- O Fandángo.
Na penumbra ele distíàgue a silhueta da - velha, sentada na soa cadeira. Por alguns seguàdos Bibiana permanece silenciosa.
- Ah! - faz ela por fim, como se só agora reconhecesse o capataz. - Que é que anda fazendo na cidadel Quem é que ficou tomando conta do Angico?
Fandango fica um pouco confuso. Valerá a pena lembrar à pobrezinha do que está acontecendo?
- Vassuncê nãoo se lembra mais? - pergunta ele. - A cevolução .. .
Cala-se de súbito,. sem jeito de explicar.
- Ah ... pois é. Os caramurus estão aí. - Como é que vasuncê vai passando?
- Como Deus manda. Me acabando aos pontos. Estou gaasc
cega. Ninguém me cònta mais nada. Os Farrapos já chegaram? Pobre da velha, caducando!
- Não - responde ele. - Mas vão chegar , logo, não sc preocupe.
- Se o Cap. Rodrigo voltar, diga pra ele que suba, que não repare eu não descer. Estou mui cansada e enxergando pouco. Nin
O SOBRADO - VI 553

guém me conta mais nada. Onde está essa gente toda? Parou o tiroteio? O Bolívar aind"agorinha esteve aqui conversando comigo. Me trouxe notícias da Leonor.
Fandango fica pensativo. Tenho só cinco anos menos que ela.
.,
Qualquer dia vou andar também por aí caducando, dizendo bobagens, servindo de palhaço pros outros. Mil vezes uma boa morte!" O melhor seria morrer num baile, com
as idéias ainda claras, cair de repente sem vida no meio duma tirana ou duma chimarrita, como uma vela nova de chama brilhante que o minuano apaga com um sopro,
e não como um coto que se queima até o fim, numa agonia triste.
- Vassuncê não quer nada? - pergunta ele.
A velha fica pensativa por um instante e depois diz:
- Quero que vá amolar o boi, que tem o couro grossõ.
- Está bem, dona.
Fandango sai do quarto lentamente, caminhando- na ponta dos pés.
A noite avança e o silêncio lá fora continua. Os homens conversam em vòz baixa na cozinha, onde João Batista conta casos do tempo da escravatura. Na sala de jantar,
enrolado no poncho, Florêncio senta-se numa cadeira e prepara-se para a vigília da noite. Em cima do consolo, ao pé do espelho, arde a última vela.
Licurgo aproxima-se do sogro e pergunta
- Por que não sobe. pra deitar na sua cama?
- Estou bem aqui.
- Não adianta nada o senhor se martirizar desse jeito. Já ontem passou a noite aí sentado. Não tem comido. nada. Um homem da sua idade não pode agüentar essas coisas.
Florêncio cerra os olhos e não responde. Curgo recebe o silêncio do sogro como uma bofetada.
Ruído de passos na escada. Maria Valézia entra na sala, aproxima-se de Licurgo e diz
- A Alice está de novo com muita febre.
Florêncio continua mudo, sem sequer erguer a cabeça para a filha. E como Licurgo também nada diz, Maria Valéria traça o xale e encaminha-se para o vestíbulo.
- Vou chamar o Dr. Winter - anuncia ela.
- O quê? - exclama Curgo, dando alguns passos na direção da cunhada.
- Se os homens desta casa vão deixar a Alice rlorrer por falta de recursos - diz ela, parando à porta do vestíbulo - eu preciso fazer alguma coisa.
- Está louca!
Florêncio levanta-se, aproxima-se de Maria Valéria, toma-lhe do braço e murmura:
- Tenha calma, minha filha. Pense bem no que vai fazer.
#554 O COl`ITINENTE

Esta cena toda tem um tom heróico-teatral que deixa Licurgo constrangido e ao mesmo tempo irritado. Está certo de que a cunhada não terá coragem de sair sózinha
àquela hora da noite, sabendo que o Sobrado está cercado de inimigos. O que ela quer mesmo é pôr em brios os homens da casa. Mas ele não se deixa levar assim tão
facilmente pot este ardil.
- A senhora não consegue dar nem trës passos na rua - diz ele sem encarar Maria. Valéria. -` Tem um maragato de tocaia na torre da igreja.
- Que me importa? - exclama ela.
- E a senhora sabe onde está o Dr. Winter a estas horas? Florêncio tenta puxar a filha para dentro da sala. - Mé largue, papai!
- Por favor,. não grite 1 suplica o velho num sussurro. - Os outros podem nos ouvir.
- Pois que ouçam? É possível grie algum deles crie vergonha .. . Aparece um vulto à porta da sala de jantar. Pela altura Curgo reconhece Antero.
- Que é que quer? - pergunta com rispidez. O homenzinho dá alguns passos e pede- Vassuncê me dá licença?
- Licença pra quê?
- Para ir buscar o douto?
- Ninguém .lhe encomendou sermão!
- Curgo! - exclama Florêncio, - A intenção do homem é boa.
Antero continua parado, eN~olhidq dentro do poncho.
- Se vassuncê dá licença eu vou. Sou pequeno, é mais fácil pra mim sair sem ninguém me ver.. .
Cala-se. Os outros esperam-
- Pois é - continua o "Nanico"". - Saio pelos fundos, pulo o muro, sigo de rasto. Dou volta pel as ruas de trás e entro pelos fundos dz casa do doutor e digo pra
ele que D. Alice está passando mal e que o Cel. Licurgo .. .
- Não meta o meu nome nesse negócio. Não pedi nada a ninguém.
- Está bem - concorda Antero oom humildade. - Não meto o seu nome. Só digo que D. AIice está passando mal e peço pro doutor vir.. .
- E depois - pergunta Florênc;io - como é que vassuncês vão voltar?
Antero encolhe os ombros magros .
- Dá-se um jeito ... - diz. ^- Podemo"s erguer uma bandeira branca. Sabendo que é um caso de doença, os maragatos não atiram e nos deixam passar.
O SOBRADO - VI 555

Por alguns instantes ninguém diz palavra. Maria Valéria é quem fala primeiro:
- Muito obrigada, moço. - E depois, dirigindo-se ao cunhado: - Então? Qne é que diz?
Sem olhar nem para a cunhada nem para Antero, Curgo responde:
- Vá. Mas não peço favor pra maragato. Não meta meu nome nesse negócio. E se receber algum balaço nãoo me culpe. En não pedi nada. A lembrança foi sua.
- Mas a mulher é sua - replica Maria Valéria.
Curgo explode:
- Cale a boca!
Antero faz meia volta. e encaminha-se para a cozinha. Florêncío aproxima-se dele, põe-lhe a mão no ombro e diz:
- Deus le acompanhe. Vassuncê é um homem de coragem e nm homem de bem.
Mas cuspi na cara do Tinoco - pensa Antero. Sou nm covarde, nm malvado. Decerto agora chegou a hora de Deus me castigar. Se eu tiver sorte e voltar vivo com o doutor,
é porque Deus me perdoou. Mas acho que vou ficar mas é estendido no meio da rua com cinco balas no corpo, me esvaindo em sangue. Será que morrendo en encontro no
outro mundo minha. mãe. e meu irmão? .
Antero funga, e com -mão trêmula pega o chapéu e enfia-o na c~.beça. Na cozinha conta aos companheiros o que vai fazer. Um deles diz:
- Tn é bem louco, nanico.
Outro vem apertar-lhe a mão:
- Tu é mais homem do que eu pensava. Deus te guie.
O velho Fandango, que remexe nos tições do fogo, limita-se a dizer, sem olhar para Antero:
- Bem diz o ditado: "Tamanho não é documento".
~A voz do negro João Batista vem do fundo da cozinha
- Tn sabe, Antero, que se os maragatos te pegarem te tratam como espião?
- Não . .
- E tu sabe o que é que eles fazem com espião?
Antero espera, de boca entreaberta, uma secura na garganta.
- Passam a faca no pescoço - conclui o negro, com voz risonha.
- Não assusta o outro! - protesta Jango Veiga. - Seja feliz. companheiro.
Antero abre . a porta da cozinha. A noite entra no Sobrado num bafo gélido. As árvores do quintal estão paradas no silêncio azulado. Sem voltar a cabeça e sem dizer
palavra, Antero começa a descer lentamente a escada.
#556 O CONTINENTE

As conversas cessaram. Os homens acham-se deitados no chão da cozinha, ao redor do fogão onde as brasas ainda estão vivas. Muitos dormem, ressonam alto: às vezes
um deles fala no sono, balbucia uma palavra, solta uma exdamação.
De olhos abertos e fitos no vão da porta da cozinha, que o reflexo das brasas vagamente alumia, Florêncio continua sentado na sua cadeira. Extinguiu-se a luz da
última vela, e ele tem a impressão de que a escuridão e o silêncio aumentam o frio. A dor no peito lhe voltou e, com ela, a falta de ar e a aflição. Para ele a noue
é pior de passar que o dia. Tem de dormir recostado em travesseiros, pois quando se deita a falta de ar aumenta. Sente um frio que lhe vem subindo dos pés e tomando
conta das pernas, das coxas, do ventre ; quando este gelo lhe chegar ao coração todo estará acabado .. .
Pensa em Antero. Quanto tempo fará que o homemzinho se foi? Duas horas? Três? Quanto tempo faltará ainda para clarear o dia?
Ruído, macio de passos. Florêncio vê um vulto aproximar-se dele, parar diante de sua cadeira.
- Quem é ?
- Sou eu. O Fandango.
- Que foi que houve?
- Nada. Só vim ver como vassuncê vai passando. Falam em cochichos para não acordarem os outros. - A dor me voltou.
- Mui forte?
- Mais forte que da última vez.
- ir o diabo. Mas daqui a pouco decerto o nanico chega aí com ò Dr. Winter e ele dá uma arrumação nesse seu peito.
- Vassuncê acredita mesmo que ele vem?
Fandango fica mudo por um instante. Senta-se no chão ao lado do amigo, encruza as pernas e depois sussurra:
Pra le falar a verdade, náo acredito muito. O doutor pode ter ido embora de Santa Fé, pode ter morrido... sei láI E o Antero a esta hora decerto está amarado suma
árvore, com a garganta aberta .. .
Passos no andar superior.
- Como estará a Alice? - pergunta Florêacio.
- Vim de lá ind"agorinha. A febre voltoa e ela está se remexendo muito, batendo com a cabeça dum lado pa outro, e até.
variando .. .
A Alice que Florêncio agora vê em seus pensamentos tem oito anos. tnnças compridas e está correndo no quintal atrás dama borboleta. Maria Valéria aparece a uma janela
e grita com sua voz esganiçada: "Dcixa quieto o pobre do bichinhoI"
Florêntio suspia fundo e depois pergunta
- E vassuncê .náo dorme, Fandango?
O SOBRADO - VI 557

- Já tirci a minha toninha. Não sou homem de macho dormir. Acho até que sou meio parente de coruja. Gosto da noite que me lambo todo.
Uma pausa curta. Depois a voz calma de Florêncio
- Vassuncê se lembn do Monarca, o meu bngadò? "~
- Se nãoo vou me lembnrl En flor de animal.
O Monarca en o cavalo de estimação de Florêntio. Serviu-o dunnte muitos anos e foi morto nàm combate no principio da revolução.
- Pois tive a noite passada um sonho esquisito com ele. Sonhei que estava num potreiro muito gnnde e de repents vi o Monarca saindo do meio duma cerração. Estava
,bem apmdó e Encruo, sacudindo a cabeça e fazendo sinais pra mim assim cómo gncrendo dizer: "Vim le buscar. Vamos embon." E -vaaaunão sabe dnms coisa? No sonho fiquri
até contente quando compreendi que o bragado ia me levar pro outro mundo. De repente não senti mais. dor neste peito nem frio. nem tristeza nem nada. Tudo en como
noa tempos de dantes. Mòntei no animal e entramos a troto na cernçáo ... _
Fandango levanta-se e diz:
- g. Tem sonhos engaçados. Mas Beja se dorme um pouco, seu Florêntio. "
- Estou com os pés gelados.
- Está porque quer. Vamos lá pn perto da fogo.
Toma do buço de Florêacio e ajuda-o a erguer=se. Encaminhamse os dois para a cozinha. Fandango leva a tadrira do outro, qac coloca na frente do fogão.
- Vamos animar este fogo - cicia ele. - Tome assento, seu Florêncio. Não está melhor aqui?
Florêncio senta-se e fica olhando para as brasas. Fandango vai até a despensa e depois de alguns tainutos volta sobnçando um pacote e alguns .pedaços de madeira.
- Veja só o que amostrei - cochicha.
Ajoelha-se diante da boca dó fogão e mostra a Florgncio Opacotc à luz das brasas.
- Que é isso?
- Jornais velhos. Voa meter tudo no fogo.
- Não faça isso. Deve ser a coleçao do Licnrgo.. .
- Qual nada I Pa mim jornal ~ó é bom mesmo pra comcçar fogo.
Florêncio permanece calado c imóvel, enquanto Ooutro começa a rasgar velhos números de O Arauto e de O Danocrata c a atirai os pcdaçoa doutro do fogão
#I S M Á L I A C A R ~ 1
redação e as oficinas de O Arauto ficavam numa meia-água
quase em ruínas, apertada entre o Paço Municipal e o casarão dos Amarais. Toda a gente em Santa Fé sabia que o jornal dirigido por Manfredo Fraga se mantinha graças,
ao apoio financeiro que lhe dava o Cel. Bento, o qual da janela lateral de sua residência costumava berrar sugestões para os artigos de fundo: "Ataque esses republicanos
duma figa. Diga que são uma corja de traidores!" On então: "Responda ao artigo de Júlio. de Castilhos e conte que- A Federação é financiada pela Maçonaria." On ainda:
"Ameace que vamos contar donde saia o dinheiro pra construir o sobrada dum certo republicano de Santa Fé. Dê a entender que vamos desenterrar cadáveres, e que muita
roupa suja vai .ser lavada em praça pública 1"
Aos oitenta e um anos de idade era ainda Bento Amaral um homem-cheio de energia. Caminhava lentamente, arrastando. os pés, mas recusava-sè a usar bengala, mantinha
uma postura ereta e detestava ser tratado como velho. Tinha o crânio completamente calvo, liso e lustroso como uma bola de bilhar; a pele de seu rosto, duma tonalidade
citrina, estava cortada de rugas fundas e terrosas; as pálpebras empapuçadas se lhe dobravam roxas sobre os olhos de bordas vermelhas e inflamadas e quase cobriam
as pupilas dum cinzento frio e líquido. Toda a gente ali na vila achava difícil conversar com o Cel. Bento porque o homem falava sincopadamente, aos arrancos, soltando
as palavras em rajadas e fazendo longas pausas nervosas de gago. Quando estava enfurecido a gagueira aumentava e, em vez de falar, ele ficava a silvar como cobra.
Tinha o cacoete de levar de quando em quando a mão ao rosto e esfregar com a ponta do indicador a cicatriz que lhe marcava a face esquerda. Ultimamente deixais de
fumar, mas adquirira o hábito de mascar fumo, de sorte que muitas vezes quando da janela de seu quarto gritava ordens para "o salafrário do Fraga" - que lhe era
útil, mas que no fundo ele detestava - as palavras lhe saíam da boca junto com um chuveiro de saliva parda. Da outra casa, com a mão em
#56O O CONTINENTE
concha atrás da orelha - pois era meio surdo - o diretor de O Acauto escutava-lhe as ordens num silêncio selvil e depois ia sentar-se à mesa de trabalho, molhava
a pena na tinta e tom caligrafia caprichada traçava o artigo de fundo, de acordo com as instruções do Chefe. Nunca publicava nada em seu jornal sem primeiro pedir
a aprovação do Cel. Bento.
Naquela fria manhâ de junho, Manfredo Fraga terminava de revisar o editorial que devia aparecer no. número do dia seguinte. Sentado junto da escrivaninha, metido
num largo poncho cor de chumbo, do qual sobressaía seu pescoço descarnado e cheio de pregas, a sustentar precariamente a cabeça oval, de rosto rosado e glabró, o
diretor de O Arauto parecia uma enorme tartaruga. Acariciando. o lóbulo da orelha direita com a ponta da caneta, os ócnlós .acavalados no nariz adunco, os lábios
a se moverem silenciosamente, Manfredo Fraga relia o artigo mais importante que escrevera desde que tomara a dire~ão do semanário.
Amanhã, 24 de junho de 1884, será um dia assinalado na História de nossa idolatrada terra. Santa Fé comemorará festivamente sua elevação à categoria de cidade. Aleluia!
Aleluia! Que os sinos de nossa bela e alterosa igreja badalem e encham os ares de sons álaaes, anunciando o fasto. grandioso. Finalmente a Assembléia Provincial
fez justiça, (gnae acra Eamen) , pois já a todos causava estranheza a tardança da concessão de foros de cidade à nossa vila, quando umá outra localidade menos progressista
e importante que a nossa (e cujo nome a discrição manda calar) já o tem de há.muito.
Manfredo Fraga ergueu a cabeça de gnelônio e sorriu.
Todos iam perceber .que ali estava uma referência velada a Cruz Alta, que era cidade desde 1879. O Velhó ia gostar da indircta. pois tinha bina dos cruzaltenses
e vivia às turras com o Baráo de
S. Jacó, chefe político do município .vizinho.
Sorrindo ainda, Fraga tornou a baizar os olhos para . o artigo:

A nossa Câmara Municipal e o Comitê de Festejos à cuja frente se encontra o ilustre e benemérito cidadão Alvarino Ãmaral, organizou para amanhâ um prograrra à altura
do magno acontecimento. Ao romper da alvorada a Banda de Música Santa Cecília, organizada e orientada pelo provecto médico e musicista germânico, Dr. Carl Winter,
.percorrerá as ruas principais de nona urós, tocando marchas festivas. As dez da manhâ haverá na l~latriz um Te Deum, com prédica especial Pelo nosso culto vigário,_
o Pe. Atílio Romano. .+Is quatro da tarde.
ISMALIA CARÉ 561

na Praça da Matriz, realizar-se-ão as tcadicionais Cavalhadas, nas quais tomarão parte, como moucos e cristãos, pessoas da nossa melhor sociedade. Como de costume,
seguir-se-ão as famosas provas das angolinhas, em que nossos garbosos contercâneos terão ocasião de revelar sua perícia de cavalheiros.
Finalmente à noite, o Paço Municipal abrirá seus salões para um grande baile de gala, abrilhantado pela supracitada Banda, e iniciado por um cotillon, e ao qual
comparecerá o que Santa Fé tem de mais seleto e representativo. Por essa ocasião será prestada significativa homenagem ao -venerando Cel. Bento Amaral, neto do fundador
desta cidade, e por muitos anos chefe político liberal deste município.

Seguia-se um elogioso perfil biográfico do Chefe. Manfredo acrescentou-lhe alguns adjetivos e a seguir, .fazendo uma pausa- na leitura, apanhou a garrafa de cachaça
que tinha a seus pés, janto da cadeira, tomou um longo sorvo, estralóu os beiços e limpón-os com a manga do casacó. Fazia frio, ele estava com os pés .gelados e
o diabo do Velho não mandava nunca fazer. os consertos de que a casa necessitava: uma das paredes estava rachada, havia goteiras no telhado e o vento -entrava pelas
fretas das janelas sem vidraças. Agora, porém, Fraga sentia no peito nm calor confortável que aos poucos lhe ia subindo à cabeça e que acabaria por aquecer-lhe também
os pés. Ainda estralando e lambendo os lábios chegou ao que se lhe afigurava o trecho mais sensacional do artigó de fendo:

Achamos .que é nosso dever prevenir o público em geral contra a manobra de certas pessoas de má fé que, põr simples inveja e despeito, estão procurando desvirtuar
as finalidades dos festejos de amanhã, lançando a semente da discórdia no seio da população local. Esses maus patriotas, movidos por mero_ Interesse pessoal e mal
disfarçada ambição de mando, estão tratando de confundir os espíritos. Por isso avisamos nossos leitores de que nenhuma outra comemoração, além das acima mencionadps,
tem a sanção da Comissão Central de Festejos. Dizemos isso porque sabemos que se organiza para a noite de amanhâ uma festa de finalidade política e subversiva, com
o visível propósito de perturbar o baile de gala do Paço Municipal, que deverá encerrar cõ~n chave de ouro o grande dia. Trata-se duma farsa montada e ensaiada P~
maçons, livres-pensadores, hereges e mazorqueiros, cct~o objetivo precípuo é solapar o Regime, destruir a Família, menoscabar a Religião, atacar nosso querido e
impoluto So
#562 O CONTINENTE

berano; em suma, substituir a democrática Monarquia Braêileira pela mais nefanda e nefária das anarquias. Os verdadeiros patriotas hão de saber nãoo só evitar a companhia
desses traidores da Pátria como também dar-lhes o desprezo e o castigo que merecem.

Ali estava um artigo de arromba - concluiu o diretor de O Arautó, esfregando as mãos. Ficou imaginando a cara com que ia ficar Licurgo Cambará quando lesse aquele
editorial no dia seguinte.
Ergueu-se, puxou nm pigarro com tamanho gosto e tanta força, que ele lhe saiu do peito como um grito de triunfo.


No dia seguinte, por volta das nove da manhâ, O Arauto de Santa Fé foi distribuído de casa em casa entre seus assinantes e depois posto à venda avulsa na Farmácia
Galena, na Casa Sol e na Sapataria Serrana. O artigo de Fraga foi muito- comentado e, farejando polêmica, quase todos puseram-se a imaginar o que iria dizer O Democrata,
órgão do Clube Republicano local. Ficaram um tanto decepcionados quando às dez da mesma manhâ o número semanal dessa folha apareceu, trazendo na primeira página
um editorial muito sereno, que terminava assim:

Entre as comemoraçóes mais significativas do dia de amanhã, além do Te Denm, encontra-se a festa que nosso correligionáriò, o cidadão Licurgo Cambará, realizará
na sua residência e durante a qual, num gesto que deve ser imitado por todos os bons brasileiros, dará carta de manàmissão a todos os seus escravos. Na mesma ocasião
dezenove outros cativos, cuja liberdade foi comprada a seus senhores a peso de ouro, com dinheiro da caixa dò nosso Clube, coletado especialmente para esse fim,
serão
igualmente manumitidos. Haverá danças nas salas do So
brado e fandango no seu quintal, onde se acenderão fogueiras em homenagem ao santo do dia. O Sr. Cambará nãoo fez convites especiais para essa festa de fraternidade
e
humanidade, mas por nosso intermédio convida a tomar parte nela todos os santa-fezenses e forasteiros que simpatizam com a idéia abolicionista e que, mesmo não sendo
republicanos, desejam ver implantado no Brasil um regi
me verdadeiramente igualitário.

Pouco antes do meio-dia Bento Amaral apareceu à sua janela e berrou:
- Fraga! ,Ó Fraga!
O diretor de O Arauto respondeu da outra janela:
ISMALIA CARÉ 563

- Pronto, coronel! Que foi que houve?
O Chefe brandiu no ar um exemplar de O Democrata.
- Vassuncê já leu esta bosta?
- Já.
- En devia mas era fazer o Rezende engolir este jornal.
- No- próximo número de O Arauto eu desanco esse baiano.
- Palavra não dói na pele. O que ele merece mesmo é uma sova de cabo-de-tatu. .
O velho mascava fumo freneticamente e pelos cantos da b"a lhe escorriam dois filetes de saliva pardacenta. Ficou um instante a olhar para a cara do Fraga e depois
rosnou:
- Regime igualitário! Eles vão ver com quantos paus se faz ama canoa. -. De repente, como se quisesse que todo o mundo ouvisse, gritou : - Eles que dêem graças a
Deus eu ser um homem de bem, senãoo mandava acabar a festa do Licurgo a porrëte.
Naquele instante ia passando a cavalo pela rua um tropeiro de Soledade, que ouvia as últimas palavras do velho. Apeou pouco depois à frente da venda do Kunz: amarrou
o animal num frade-depedra, entrou, pediu um trágo de caninha - "Pr"esquentar" - e foi logo contando:
- Sabe da última? O velho Amaral diz que é capaz de mandar acabar o baile do Licurgo a pau.
- Quem foi que disse? - perguntou o alemão de olhos arregalados.
- Ninguém - rep:ícou o tropeiro. - Eu mesmo ouvi com estes ouvidos que a terra há de comer.
- Não diga I
Kunz foi para o fundo da casa e contou à mulher:
= O Cel. Amaral diz que vai acabar a festa do Sobrado a bala.
- Ach! Que horrorI - replicou Frau Kunz. Corrëu para a cerca e chamou a vizinha:
- Sabe o que me contaram, comadre? O Cel. Amaral vai mandar acabar com "o baile do Sobrado a facão.
A vizinha passou a. notícia ao marido. Este, que era sócio do Clube Republicano, correm para a redação de O Democrata onde chegou ofegante e despejou a novidade
em cima do seu diretor, o Dr. Toríbio Rezende:
- Os Amarais vão mandar a capangada atacar o Sobrado amanhã de noite. Diz que vão armados e dispostos a acabar com a festa.
O Dr. Rezende franziu a testa, fitou os olhos no correligionário e depois perguntou com calma:
- O senhor acredita nisso?
- Ué. Por que é que nãoo? Esses sujeitos são capazes de tudo.
O outro encoiheu os ombros, sorriu e disse:
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- Cão que ladra não morde.
Dois homens que estavam na sala . da redação e ouviram o diálogo, saíram, cada qual para seu lado, e começaram a espalhar a notícia pela cidade. Por volta das três
da tarde, toda Santa Fé já sabia que o Cel. Bento Amaral estava preparando seus capangas para atacar o Sobrado, prender Licurgo Cambará e Toríbio Rezende, empastelar
O Democrata e fechar o Clube Republicano.
2
Antes de raiar o dia de São João, Jacob Geibel, o sacristão da Matriz de Santa Fé, deixou a cama ainda estremunhado de sono, enfiou o poncho sobre o camisolão de
dormir e dirigiu-se para o campanário. ~ra um homúnculo atarracado, de pernas arqueadas
- curtas, barbas ruivas e olhos cor de malva. Viera da Alemanha havia cinco anos e ali em Santa Fé e arredores era conhecido como
- "Barbadinho do Padre". Poucos, porém, podiam gabar-se de terlhe ouvido a voz: além de nãoo saber português, o sacristão era um homem taciturno e azedo, que parecia
detestar o convívio humano.
Diante do altar-mor dobrou os joelhos rapidamente, sem entretanto encostá-los no chão, fez um vago sinal-da-cruz e saiu a arrastar as chinelas ao longo do corredor
central do templo. Entrou no batistério, ficou por um instante coçando a cabeça e bocejando; depois agarrou a corda do sino com ambas as mãos e deu-lhe um brusco
puxão.
A badalada fendeu o ar quase com a intensidade duma explosão
- cobriu a cidade como uma onda, espraiando-se pelos campos em derredor. Jacob continuou a tocar sino com um vigor apaixonado,
- como o atroar aumentasse, ficou de tal maneira estonteado, que por fim foi como se um demônio lhe tivesse entrado no corpo: pendurou-se na corda e começou a dar
pulos, ao. mesmo tempo que gritava em alemão os piores nomes que conhecia, na confusa asperança de que a zoada do sino impedisse Deus e os santos de lhe ouvirem
os impropérios. Num dado momentó fez. uma pausa para tirar o poncho, e depois, só de camisolão, tornou a agarrar a corda com redobrada fúria. Odiava Santa Fé, odiava
aquela gente de língua bárbara, odiava o vigário e às vezes chegava a odiar até as imagens dos santos.
Quando algum enterro saía da igreja e ele tinha de dobrar a finados, era com secreta alegria que murmurava a cada badalada: Wieder einer wenigec! Menos um! Wieder
einer weniger! Menos umI Agora, porém, o ulmo do sino não era lento e fúnebre, mas frenético, desesperado, como um toque a rebate.
ISMALIA CARE 565

Verflucáte Stadt! - gritava ele. Cidade maldita! Cachorrada do inferno! ,Porcos excomungados! Que Deus vos amaldiçoe! Que um raio vos parta I "


O Sobrado ali estava na luz indecisa da alvorada, pesado como uma fortaleza e ao mesmo tempo com o jeito dum grande animal adormecido. Fora recentemente, caiado
de novo, os caixilhos das janelas pintados dum azul de anil, os azulejos polidos; e nas grades do portão a tinta estava ainda fresca. Pombas que tinham fugido da
torre da igreja, assustadas pelo badalar do sino, estavam agora pousadas no telhado do casarão dos Cambarás. Apesar de tudo, o monstro continuava a dormir. Num dado
momento, porém, como uma pálpebra que se ergue, revelando o brilho dama pupila, abriu-se o postigo duma das janelas do andar superior, deixando aberto na fachada
um quádrilátero luminoso onde se recostou o vulto dum hõmem alto. e espadaúdo, metido num camisolão.
Licurgo Cambará fora despertado pelo bater do sino, pulara da cama. meio atordoado, viera até a janela e agora ali estava a olhar para fora com olhos embaciados
de sono. Em pontos segundos sua confusão, que continha um vago elemento de pânico, foi dïssipada pela própria voz do sino, que parecia anunciar: "Santa Fé já é cidade!
Santa Fé já é cidade!" Licurgo sentia o soalho frio sob os pés descalços. ("Vá calçar as botinas, menino!" - gritou-lhe a avó em seus pensamentos.) Passando a mão
pelos cabelos revoltos e duros, ele olhou para os lampiões da praça, cujas chamas morriam e, erguendo os olhos, viu que começavam a apagar-se também as estrelas.
Passara mal a noite, num sono de febre mais cansativo que uma vigília forçada. Andara dum lado para outro, ora ~a cavalo ora a pé, metido em roupagens vermelhas,
"com um turbante mouro na cabeça, distribuindo a torto e a direito títulos de manumissão e pontaços de lança.. De vez em quando acordava, agoniado, com a sensação
de não ter dormido um só minuto,, e ficava olhando a escuridão, escutando a quietude da casa, ouvindo o. relógio grande lá ern baixo bater os quartos de hora. E
assim, pensando nas coisas que tinha a fazer no dia seguinte, caía de trovo em modorra, e outra vez começava a lida, a angústia, a luta entre mouros e cristãos,
que de repente se transformava na quadrilha dos lanceiros em que seu par era prima Alice, a qual não era bem prima Alice, mas um pouco Ismália Cáré. Assim passara
toda a noite, e agora ele sentia a cabeça oca como um porongo que o som do sino fazia vibrar. .
Mas tudo estava bem : o dia em breve ia nascer, o grande dia I Fez meia volta, apanhou o lampião que se achava em cima da mesinha de cabeceira, e encaminhou-se para
o lavatório. Despejou a
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água do jarro na bacia de louça, lavou o rosto com ambas as mãos, bufando e respingando o espelho; depois escovou os dentes com força, borrifando as faces com o
pó cor-de-rosa do dentifrício. Tirou
- camisolão e começou a vestir-se com uma pressa nervosa. Como
- sino cessasse de bater, pôs-se a cantarolar O Boi Barroso.

Eu mandei fazer um laço Do couro do jacaré, Pra -laçar o Boi Barroso No cavalo pangaré.
Enquanto enfiava as botas, gemeu a música do estribilho, imitando o choro sincopado da gaita. Depois cantou:

1{deus, priminha, Eu vou m"embora Não sou daqui Sou lá de fora.
Por um instante teve na mente a imagem de Alice. Dali a pouco mais de um mês estaria casado com a prima. Ia ser engraçado, porque ele nãoo podia esquecer a Alice
dos tempos de menina: magricela, de tranças, compridas, olhos pretos muito graúdos, pernas finas e fala chorosa. Nunca lhe ocorrera a idéia de aamorar a prima. Sua
avó tinha cada lembrança 1
Licurgo pousou as mãos sobre os joelhos e ficou sentado na
`beira da cama, a olhar fixamente para o soalho. Sempre que pensava
na noiva, sua imagem lhe vinha acompanhada pela da amante.
Havia poucos dias mantivera com a avó nm diálogo embaraçoso - Pensa que sou cega, Cnrgo? Eu vejo tudo. - Pois é verdade. A Ismália é minha amásia. Não tivera coragem
de encarar a velha.
- Mas agora vassuncê vai casar, precisa deixar a china o
,quanto antes.
Ele permanecera silencioso.
- Promete?
- Não.
A conversa terminara aí. Desde então nunca mais haviam tocado no assunto. Era impossível explicar a uma senhora de quase oitenta anos o que ele sewtía pela rapariga.
Aquela gente antiga era muito positiva nas suas opiniões. Para ela uma coisa era boa ou má, preta ou branca, decente ou indecente. Não conhecia o meiotermo. Seria
inútil tentar explicar à avó que ele gostava da prima Alice o suficiente para fazê-la feliz; que a achava bonitinha, prendada, e que tinha a certeza de que ela ia
ser ótima dona de casa, boa esposa e boa mãe - mas que todas essas coisas nada tinham a ver
ISMALIA CARE 567

som o que ele sentia pela Ismália. A chinoca não pedia nada, não esperava coisa alguma. Gostava dele quase assim como uma cadelinha gosta do dono. Se por um lado
ele sabia que não teria nunca a coragem de abandonar a amante, por . outro também estava certo de que seu rabicho pela Ismália nunca, mas nunca mesmo, poderia influir
em sua afeição pela prima nem perturbar-lhe a paz do casamento.
Tornou a erguer-se, postou-se na frente do espelho e passou o pente nos cabelos. Depois alisou cam a ponta dos dedos o grosso bigode negro, acariciou os zigomas
salientes, dum moreno lustroso
- avermelhado de couro curtido, e tornou a pensar em Ismália. Começara a desejar violentamente a rapariga desde o dia em que a vira pela primeira vez no rancho dos
Carés, no fundo dufia das ínvernadas do Angico.. E certa manhã, após longo assédio, muitos negaceios e engodos, conseguira levá-la para o mato. Nos últimos momentos,
porém, tivera de pegá-la à força, e desses minutos agitados e resfolgantes de luta corporal lhe haviam ficado lembranças meio confusas e .perturbadoras: o desejo
que, exacerbado pela longa espera e pela resistência de Ismália, se havia traásformado numa fúria quase homicida; os gritos. da chinoca, primeiro de protesto e finalmente
de dor;_ os guinchos dos bugios que, empoleirados nas árvores
- excitados pela cena, háviam rompido numa gritaria endoidecedora.
Aplacado o desejo, ele ficara estendido de costas, os braços abertos em cruz, olhando com um vago remorso para os bugios que perseguiam suas fêmeas e .ouvindo o
choro manso de Ismália a seu lado. Sentia vergonha de sua brutalidade e começava a impacientar-se pelo fato de nãoo achar o que dizer à rapariga. Pedir desculpas
não adiantava nada, e mesmo isso não era de seu feitio. Dar-lhe dinheiro seria brutal.
Erguera-su em silêncio, saíra do mato resolvido a não ver mais Ismália e convencido também de que daquele momento em diante ela passaria a votar-lhe um ódio de morte.
Na certa ia contar tudo aó pai e este iria imediatamente queixar-se a D. Bibiana. Imaginara-se diante da avó a responder a uma interpelação:
- Pois é verdade. Fiz e sústento. Mulher é pra isso mesmo. Se não fosse eu, havia de ser qualquer outro.
A coisa no entanto acontecera da maneira menos esperada. Depois daquela manhâ passara vários dias sem pôr os olhos na menina. E uma tarde, à nora da sesta, estando
ele deitado no seu quarto já quase a cair no sono, vira um vulto de mulher esgueirar-se pela porta entreaberta e caminhar na direção de sua cama. Era Ismália. Fêz-lhe
um sinal e a chinaweio enroscar-se a seu lado como uma gata.

Licurgo desceu para o andar térreo, atravessou a passos largos a sala de. jantar, e entrou na cozinha, onde Fandango conversava ao pé do fogo com a negra Lindóia.
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- Bom dia, Fandango! - Buenos!
- Então sempre chegou a grande data, heiã?
- Que remédio? Dês que o mundo é mundo, depois do hoje vem o amanhã e assim por diante até a hora da gente ir pra cidade dos pés juntos.
- Está pronto o mate?
- Quase - informou a negra.
Sobre uma das chapas do grande fogão, a chaleira começava a despedir jactos de vapor pelo bico.
Licurgo esfregou as mãos, sentou-se nem mocho e perguntou
- Sabe quantas pessoas dormiram aqui em casa esta noite? - Umas quatro ... - troçou Fandango. - Quase trinta!
Os escravos do Angico e de outras estâncias que iam receber carta de manumissão tinham passado a noite no porão do Sobrado.
Fandango coçou a barbicha com a unha do indïcador e "murmurou
- Eu só quero ver o que é que .essa negrada vai fazer depois que receber papel de alforria.
- Ora! Vai ficar livre.
- Sim mas vassuncê acha que vão viver melhor? - Claro que vão.
- Pois eu duvido.
- Velho cabeçudo!
A tampa da chaleira começou a dar pulinhos: - Que venha esse amargo, Lindóia! A negra cevava o mate.
- Vassuncê vai ver - prosseguiu o capataz. - Recebem dinheiro e gastam. todo em cachaça. Vão passar o dia na vadiagem, dormindo ou se divertindo. Nenhum desses negros
alforriados vai querer trabalhar. No fim acabam morrendo de fome.
- Não seja tão agourento, Fandango
- Qual ! O que sou é nm índio velho mui vivido. Na minha idade um cristão acaba descobrindo que o que hai áa vida é muita conversa fiada. Vassuncês moços que lêem
nos livros gostam demais dessas novidades estrangeiras.
- Mas a abolição vaí melhorar tudo. A escravatura é a vergonha do Brasil.
- Qual vergonha, qual nada! Deixe de história. Negro é negro. Hai gente que nascem pra ser mandada. - Vassuncê está me desiludindo.
- Chô égua! Não nasci ontem. Essa história de cidade é a mesma coisa. Dias atrás nãoo se sabia de nada, Santa Fé era vila. Muito bem. De repente chega nm desses tais
de telegramas e começa
ISMALIA CARA 569

a folia. A Assembléia resolveu que agora Santa Fé é çidade. Todo mundo fica louco, a festança começa, é sino, viva e foguete. Mas, me diga, cambiou alguma coisa?
Nasceu alguma casa nova, algema rua nova, alguma árvore nova só por causa do decreto? Não. Pois é ... Pura conversa fiada, hombre!
Licurgo sorria.
- Se é assim, vassuncê deve ser também contra a república.
- Aí está outra bobagem. Se vier a república a gente vaí ver como não cambia nada. Pode cambiar a posição das pessoas. Quem está -por baixo sobe, quem está por cima,
desce. Mas as coisas ficam no mesmo, e o povinho continua na merda.
- A república há de vir, seja como for. Mas tóme esse mate -~ disse Licurgo, estendendo para o velho a cuia que Lindóia lhe entregara.
Fandango, porém, sacudiu negativamente a cabeça
- Não. Gracias. Nada de "prïmeiros" comigo. Nem com mulher nem com mate.
Licurgo começou a chupar na bomba e a cuspir o líquido esverdeado no chão.
- Na próxima eleição - disse ele - vassuncê vai votar com os republicanos.
- Posso votar com o Curgo, que é meu amigo. O resto é bobagem.
- Dessa vez havemos de eleger os nossos candidatos.
- Pode ser. 1VIas na última eleição esse tal de Assis Brasil não fez nem pro fumo .. .
- Espere, Fandango, que no ano que vem a coisa muda.
O capataz encolheu .os ombros.
- O Velho é bom. Certos apaniguados dele é que nãoo prestam.
Referia-se ao Imperador.
- Mas pra derrubar essa cambáda é preciso derrubar também o Velho e o regime, substituindo esses figurões por gente nova como Júlio de Castilhos, Rui Barbosa, Venãoncio
Aires e outros.
- Conversas! São todos uns bons filhos da mãe.
Licurgo tornou a encher a cuia d"água e passou-a a Fandango. E enquanto o velho ficou entretido a chupar na bomba, ele falou com entusiasmo nos festejos do dia.
Tinha a impressão - disse - de que o baile de gola do .Paço Municipal, com suas formalidades e seus medalhões, ia ficar apagado diante da festa do Sobrado, onde
reinaria a verdadeira democracia: negros e brancos, "ricos e pobres, todos misturados e irmanados no ideal abolicionista e republicano. Mas no momento mesmo em que
dizia essas coisas, Curgo percebeu que não estava sendo sincero, que nãoo estava dizendo o que sentia. Era-lhe inconcebível a idéia ~e que aquéles negros sujos pudessem
vir dançar nas salas de sua casa, em íntimo contato com sua família.
#5 7O O CONTINENTE

-Sabia também que pouca, muito pouca gente em Santa Fé compreendia o àentic~o da palavra república .. .
Fandango fez uma careta.
- Pois eu cá nãoo preciso de desculpa pra me divertir. Quando estou com vontade de dançar, danço. Quando estou com vontade de cantar, canto. Inste peito não conhece
tristeza. Vassuncês é que são uns capados. Não. fazem nada sem muito discurso. Chô égua!
Licurgo contemplava o amigo. Gostava daquela cara indiática, do contraste entre a pele tostada e o branco prateado da barba esfalriFada. Sentia-se fascinado principalmente
pelo jeito dô velho falar
- pela expressao travessa e maliciosa de seu olhar. Só se lembrava de tê-lo visto triste no dia em que chegara a Santa Fé a notícia dt que seu filho, o Fandango
Segundo, havia sido morto em combate nas terras do Paraguai. O velho ficou pa-nado, com uma névoa nos olhos, e por alguns segundos nãoo disse palavra. Depois, como
O quisessem consolar, murmurou: :"T~dos têm de morrer mais cedo ou mais tarde; nãoo é? Só que uns morrem .cedo demais ... " Nesse dia, quando Fandango montou a cavalo
e saiu para o campo sózinho, Licurgo viu-lhe lágrimas nos olhos. O capataz passou horas e horas andando à toa- pelas. invernadas do Angíco. Voltou ao entardecer
- já assobiando ao tróte do cavalo. E à noite no galpão ao redor do.fogo contou à peonada as proezas de Fandango Segundo, suas andanças e amores; e rematava cada
episódio da vida do fïlho com estas palavrás: "Era nm alarife, mas tinha por quem puxar." Depois dessa noite nãoo pronunciou mais. o nome do morto, e suas esperanças
então passaram a concentrar-se no neto, o Fandanguinho, que crescia ali na estância ao calor de seus olhos e à luz de seus confeYhos: "Um piá mui ladino" - dizia
o velho, piscando Oolho. - "Vai me sair melhor que a encomenda."
As pessoas com quem Licurgo mais gostava de conversar eram Fandango, sua avó e Toríbio Rezende. Este último, um baiano formado pela Faculdade de Direito de São Paulo,
estabelecera-se em Santa Fé em princípios de 1881, trazendo para o município a" idéia republicana, da qual era ardoroso propagandista. Desde o primeiro dia provocara
a ira dos Amarais, que o ameaçaram de todos os modós, primeiro indireta e depois diretamente, procurando for. çá-lo a deixar a vila. Mas o diabo do nortista fincara
pé, impávido, e fizera frente aos potentados da terra com tanta altivez e coragem, que Licurgo fora espontaneamente procurá-lv, òferecendo-lhe seu apoio, sua casa,
sua fortuna, enfim, tudo de que ele precisasse. Começara assim uma amizade que já durava mais de três anos e que se fazia mais forte à medida em que o tempo e os
acontecimentos passavam. -
O convívio com Toríbio Rezende, a leitura dos artigos que Júlio de Castilhos publicava na imprensa atacando o império e fazendo a propaganda da aboliçáo e da república
- tudo isso tinha
feito de Licurgo Cambará nm republicano e um abolicionista. Ficara de tal modo dominado por essas idéias que acabara quase faàatizado por dia. Fandango observara
um dia: "O Curgo tem três amantes: a Repáblica, a Abolição e a Ismália. Às vezes- vai pra cama com as três ao mesmo tempo."
Em 83 Toríbio Rezende e Licurgo Cambará fundaram em Santa Fé o Clube Republicano, que contava agora com quase sessenta sócios e mantinha uma folha semanal. As notícias
~ do progresso do movimento no resto do país davam-lhes ânimo e estímulo. Sabiam que o Ceará começara a libertar seus escravos, e que havia poderosos clubes republicanos
em. Porto Alegre e na capital de São Parlo, onde Borges de Medeiros, jovem estudante gaúcho, dirigia nm jornal.
Fandango entregou a cuia a Lindóia, que tornou a enchê-la d"água, passando-a a Curgo, o qual tinha os olhos postos na janela, através de rnjas . vidraças via um
pálido pedaço de "céu. O grande dia estava prestes a raiar. Santa Fé ia dar um exemplo ao resto da Províncía, e esse exemplo partia daquela casa, do Sobrado! Aquilo
- refletia Curgo - ia ser um ato de humanidade, de eoragem, e ao mesmo tempo valia como uma bofetada na cara dos monarquistas: era nm desafio capaz de repercutir
até nó estrangeiro. Tinha razão Tonbío Rezende quando afirmava que a idéia republicana podia ser cóm~rada com uma onda que ia aos poucos crescendo e que acabaria
nãoo só lavando a mancha da escravidão como também derribando o trono! Proclamada a República, Santa Fé ficaria livre
- Amarais, e homens como Toríbio e ele, Licurgo, iriam .dirigir a política municipal, eliminando o favoritismo, as injustiças. e as arbitrariedades. Em pensamento
Licurgo via Toríbio afalar e gesticalar: "O Cap. Rodrigo botou sua marca no rosto do velho Bento: só ficou faltando o raliinho do R. Pois bem, Curgo. Quem vai completar
o serviço (Toríbio pronunciava serviço com um é muito aberto) é você, não com uma adaga, mas simbólicamente, levando par diante a campanha abolicionistá e republicana,
e livrando Santa
- de ser sátrapa." Como Toríbio falava bem, com que elogüência, cóm que facilidade! Na mente de Licurgo a imagem do amigo desaparecer para dar lugar à de Júlio de
Castilhos, cuja mão ele apertara comovidamente por ocasião do último congressò republírano de Porto Alegre. Era incrível que aquele moço retraído e de poucas palavras
estivesse abalando o trono com seus artigos políticos, escritos e publicados na Província! Agora os republicanos do Rio Grande tinham em Porto Alegre o seu jornal:
A Federação, fundado em janeiro daquele ano. Em Santa Fé os sócios do Clube Republicano esperavam com ansiedade a mala postal que trazia semanal-
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mente os números da folha em que Castilhos publicava seus artigos candentes.
Havia num desses escritos certo trecho que Licurgo aprendera de cor, por achar que ele definia, melhor que qualquer outro, a idéia abolicionista. Repetiu-o em voz
alta para Fandango:
- "Quando se trata de tornar livres todos os filhos do Rio Grande, quando urge acabar com a imoral instituição que nos rrntcula, não deve haver, partidos. 3ó há
lugar paia um partido: é o partido da moral, do direito e da liberdade, que protestam contra a escravidão. À margem, pois, das desavenças e dos ódios das lutas .
partidárias, emudeça a voz do partidarisrrro político quando é imperioso combater este inimigo comum: a escravidão."
Fandango escutou o amigo em silêncio, e quando Curgo se calor, o velho cuspinhou por entre os cacos de dentes e disse:
-.Conversa fiada. O inimigo do hombre é o hombre mesmo.
Licurgo ergueu-se, caminhou para a porta da cozinha, abriu-a de par em par e respúou profundamente o ar frio da manhâ.
Uma negra com um grande balde na mão se dirigia para o fendo do quintal, onde ia ordenhar as vacas. Aos poucos saíam vultos do porão da" casa. Eram os escravos que
acabavam de despertar. Uns se espreguiçavam, bocejando longamente. Outros caminhavam encolhidos, tiritando de frio. Quando viam Licurgo murmuravam
- A bênção, sinhô.
- Deus vos abençoe - respondia ele.
Em breve aquela gente toda ia ser livre - pensou. E por um momento ficou como que afogado pela idéia da própria bondade. O que ia acontecer no Sobrado aquela noite
era grande: o mais belo. gesto da sua vida. Fechou os olhos, conteve a respiração como para avaliar melhor a intensidade de seus sentimentos. Acabou, porém, por
descobrir, decepcionado, que a emoção que sentia diante de tudo aquilo nãoo era tão dominadora como ele esperava: nãoo estava, em suma, à altura dos acontecimentos
que a despertavam.
Galos cantavam nos terreiros. e seus gritos se cruzavam no ar do amanhecer. O horizonte começava a clarear.
- Está ouvindo, Fandango? - perguntou Licurgo em voz alta, sem se voltar. - Os galos estão bem loucos. Parece que sabem que dia é hoje. Lindóia) Me prepare um churrasco.
Estou com fome.
Fandango ergueu-se.
- Deixe isso por minha conta. Vou trazer um bom costilhar pra nós. Também estou louco de fiambre.
Caminhou com seu passo miúdo e meio gingante para a despensa, onde havia quartos de reses pendurados em ganchos.
Com um gale sobre os ombros, os braços cruzados, Bibiana entrou na cozinha. Aos setenta e oito anos tinha ainda o porte ereto, o andar firme e vivo, e os cabelos
apenas grisalhos.
ISMALIA CARír 573

Licurgo voltou-se e caminhou para .ela.
- A bênção, vovó.
Bibiana estendeu a mão, que o neto beijou.
- Deus te abençoe, meu filho.
Fandango voltou . com o costilhar aos braços.
- Bom dia, Fandango.
- Buenos dias, dona. Passou .bem a noite?
- Dormi com os anjos.
A malícia deu um brilho súbito aos olhos do velho.
- Com quem que vassuncê dormiu?
- Com os anjos, velho indecente)
- Ah 1 - fez Fandango, que tratava de tirar brasas do fogo para assar a carne.
- Pra que todo esse barulho? - perguntou Bibiana, olhando para o neto.
- O sino? ~ do programa, vovó.. Hoje é o grande dia.
Bibiana sacudiu lentamente a cabeça.
- Pra mim é um dia como qualquer outro.
Depois, mudando de tom:
Já pensaram no que é que vão dar pra essa negrada comer agora de manhâ?
- Não.
- Pois é. Vassuncês só pensam-em bobagens, em discursos.
velha é que tem de tratar da comida. Carta de manumissão não enche barriga de ninguém. L preciso dar alguma coisa pra entreter o estômago desses negros.
Ficou dando instruçóes a Lindóia. Não havia em casa pão nem biscoito que chegasse para todos.
- 1Gles que comam laranja e bergamota - sugeria o capataz.
- Chame a Doca e a Noêmia - gritou Bibiana para a preta. - Vamos começar a trabalhar, senão fica tudo atrasado.
Tinham de dar de comer à noite para mais de cem pessoas. Iam mandar carrear cinco novilhas, três porcos e duas ovelhas. Havia na despensa várias caixas com garrafas
de cerveja, vinho e cachaça.
E por que toda essa folia? - refletiu a velha, Só porque" o homem ~ do telégrafo, que vivia batendo com o dedo naquela engenhoca que fazia ter-ter-ter-ter-ter, tinha
recebido pelo fio (coisa que ela não podia compreender) um recado dizendo que Saata Fé havia sido elevada à categoria de cidade. Licurgo andava com aquelas manias
de acabar com a escravatura e atacar o Imperador. Era uma verdadeira loucura. O Sobrado estava cheio não só da negrada do Angico como de escravos de outras casas
e estâncias. Era o maior disparate do mundo dar liberdade àquela gente. Mas o menino queria porque queria. E o outro, o Dr. Rezende, esse era o mais doido de todos.
"Era por causa do baiano que Curgo andava com
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aquelas idéias na cabeça. Enfim, sú alma, sua palma, como diz ~o ditado. En é que nãoo me meto nessas coisas. Contanto qnc não prendam fogo na casa, podem fazer o
que entenderem.
Licurgo aproximou-se de novo da porta dos fundos e ficou miando o quintal. Ansiava pelo náscer do sol. Queria ver Toado. Querí~ ver gente, muita. gente : os amigos
do Clube, pessoas, enfim. com quem pudesse discutir os planos do dia. A madrugada fria. aqueles vultos silenciosos no pátio e o cocoricó dos galos começavam a deixá-lo
deprimido.
Sentiu que a avó estava a seu lado, os braços cruzados debaizo do xale. E no silêncio ele esperou a pergunta que temia, e que finalmente fói formulada:
- Mandou buscar a Ismália?
Seu primeiro impulso foi o de dizer que.não. Mas não sabia mentir.
- Mandei. .
- Então a coisa nãoó está acabada? - Não.
- Mas é preciso acabar o quanto antes. - Eu sei.
- Se sabe, por que é que nãoo acaba? Fãlta seu casamento.
Curgo pensou.: móis cedo ou mais tarde a Alice tem de saber. Mas nada disse.
O relógio. deu uma . badalada.
- Seis e meia - murmurou Fandango..
- O dia clareava aos póucos. De longe vinham agora os sons dama banda de música.
- Aí vem ela! - exclamou Lindóiá.
Licurgo aproveitou o ensejo para cortar o diálogo. Tomou dó braço da velha e disse:
- Vamos ver a banda, vovó.
Foram, seguidos de Fandango. Abriram uma das janelas da frente do Sobrado e debruçaram-se sobre o peitoril. Na boca da Rua do ãomércio apontou a Banda de Santa Cecília.
Vinham os músicos formados em duas filas de quatro. Pistão, flauta, contrabaixo, bombardino, clarineta, violão, bombo e tambor. Tocavam uma marcha, mas a melodia
cantada pela voz do pistão e da darineta, rendilhada pelos trilos do flautim, era quase abafada pelos roncos do bombardino e do contrabaixo, em duas notas repetidas.
que davam á impressão do grunhir dum porco descomunal.
Quando a banïia passou pela frente do Sobrado, Licurgo acenou amistosamente, para os músicos. Bibiana olhava impassível, resmungando .para o neto:
- O Dr. Winter merecia ser enforcado por ter inventado essa droga.
ISMÁLIA CARÉ 575

Fandango deixou a janela, correu para a porta da rua, abriu-a
saltou para fora, gritando:
- Olha. a furiosa, minha gente!
Pôs-se a pular e a dançar na frente da charanga. Nas árvores da praça os passarinhos chilreavam. Abriam-se janelas, onde assomavam cabeças. Homens, mulheres e crianças
vinham para afrente de suas casas, trocavam-se acenos e cumprimentos. O Pe. Romano apareceu à porta da igreja, com o rosto rubicundo iluminado em cheio pela luz
do sol, que começava a aparecer por cima da coxilha do cemitério. Fez na direção do Sobrado um largo aceno, e que Licurgo respondeu.
- Até o vigário ficou assanhado com a música - comentou Bibiana.
- Não é só a música, vovó. ) o grande dia!
A velha encolheu os ombros.
- Quando vassuncê chegar. à minha idade, vai ver que no final de contas tódos os dias são iguais.
Erguendo poeira do chão, a Banda de Santa Cecília passou pela frente da Matriz e seguiu pela Rua dos Farrapos.
J
Quando Fandango entrou na igreja e viu-a abarrotada de gente. disse em voz alta a Bibiana, que caminhava a seu lado:
- Está apertado que nem queijo em cincho.
- Cht! - repreendeu-o a velha, franzindo a testa e acrescentando num cochicho: - Na igreja não se fala.
O sino começou a badalar. Eram quase dez horas da manhã,
- o rosto da velha imagem de Nossa Senhora da Conceição resplandecia à luz do morno sol de inverno que entrava pelas janelàs do templo. Para Bibiana a santa tinha
uma fisionomia familiar, pois desde menina ela se habituara a vê-la ali no altar com as mesmas roupas, a mesma postura e o mesmo sorriso bondoso. Vezes sem conta,
quando moça, Bibiana viera ajoelhar-se ao pé da imagem da padroeira de Santa Fé, confiar-lhe suas dificuldades e fazer-lhe promessas. Fora por obra e graça de Nossa
Senhora que Bibiana casara com o Cap. Rodrigo. Quando aos três anos Bolívar caíra de cama com um febrão medonho, ela viera um dia à igreja
- dissera à santa: "Se vosmecê faz o Boli melhorar, prometo mandar rezar dez missas e dar cinco patacões pra igreja." Ao chegar à casa encontrara já o menino com
as roupas úmidas de suor e a testa fresquinha. Depois, com o passar do tempo, e à medida que Bibiana perdia sua fé nos homens e nos santos, suas relações com Nossa
Senhora foram deixando de ser de santa para crente para serem
só um mes pro
#576 O CONTINENTE

quase de mulher para mulher. E agora o olhar que a velha ao sentar-se lançara para a imagem parecia querer dizer: "Bom dia, comadre, como vão as coisas?" Eram ambas
donas de casa e tinham grandes responsabilidades. Durante mais de cinqüenta anos Bibiana nãoo tivera segredos para com a santa. Eram velhas amigas e confidentes:
entendiam-se tão bem que nem precisavam falar...
Alice entrou de braço dado com Licurgo. Atrás do par vinham Florêncio Terra, o pai da noiva, e sua outra filha, Maria Valéria.
Segundo uma tradição local, os liberais e seus familiares deviam ocupar os bancos que ficavam à direita de quem entrava no templo; os conservadores, os da ésquerda,
que era agora o lado onde se sentavam também os republicanos. Os três primeiros bancos da direita estavam permanentemente reservados para Bento Amaral e seus filhos,
genros, noras e netos. O Pe. Romano mandara reservar o primeira- banco da esquerda para Licurgo Cambará e sua gente. Quando estes últimos se acomodaram, os Amarais
nem sequer voltaram a cabeça para o lado dèles. Ouviu-se um murmúrio na igreja. A rivalidade entre aquelas duas famílias era um dos assuntos prediletos da vila.
Todos sabiam que o velho Bento costumava dizer:
-Quando vejo gente do Sobrado fico com o dia estragado." Por sua vez, sempre que mencionava o nome Amaral, Licurgo acrescentava: "Com o perdão da má palavra ...
"
Curgo sentou-se ao lado da noiva. Respirou fundo. Andava no ar um cheiro de água de toilette misturado com o do óleo de mocotó que muitas das mulheres usavam nos
cabelos. Era uma mescla quente, entre adocicada e rançosa, temperada pelo olor de incenso e de cera queimada.
Quando o sino cessou de badalar, fêz-se um silêncio pontilhado de tosses nervosas, de pigarros e do estralar de bancos.
Jacob Geibel deixou o campanário e encaminhou-se para o altarmor, pelo corredor central. Vestia a sua melhor roupa, uma fatiota preta que o uso tornara ruça. Estava
muito vermelho, com as orelhas em fogo. Caminhava encurvado,: de olhos baixos, e suas botinas de elástico, que ele só usava na hora da missa, rangiam agudamente,
coisa que lhe aumentava o embaraço. Verfluchte Stadtl Lá estavam aquelas mulheres gordas e peitudas, que tinham bigode e cheiravam a leite e queijo. E aqueles homens
escuros e cabeludos, de mãos rudes e vozes guturais, aquelas bestas que. recendiam a suor de cavalo e a esterco. Animais!
Jacob desapareceu na sacristia e pouco depois voltou para acender as velas dos altares. Fez primeiro uma reverência rápida diante do altar-mor e a seguir acendeu
uma a uma as longas velas de cera, pensando irritadamente no negro Caetano, que todós os dias ao anoitecer saía pelas ruas com sua escadinha às costas para acender
os lampiões da vila. À medida em que o tempo passava, mais vermelhas iam ficando as orelhas do sacristão e mais forte sua sensação
ISMf~LIA CARr 577
de mal-estar. Ble sabia - oh se sabia! - que aquela gente ali na igreja estava rindo dele às suas costas. Porcos! Quando saía à rua, as crianças o seguiam, gritando:
"Olha o Barbadinho do Padre!"
Depois de acender a última vela. Jacob retirou-se. O altar agora estava todo pontilhado de pequenas chamas móveis, que atiravam reflexos dourados nas alfaias e ouropéis.
Licurgo olhou de soslaio para a noiva e por um instante ficou a contemplar-lhe o perfil delicado e tranqüilo. Alice trazia o seu melhor vestido de cassa e tinha
uma mantilha negra na cabeça. Por um tímido instante seus olhos escuros e mansos fitaram o noivo, mas desviaram-se logo, furtivos, fixando-se no altar. Licurgo sentiu
que devia dizer alguma coisa. Podia cochichar: "A senhora está muito bonita hoje." Mas continuou calado. Não podia vencer a sensação de constrangimento que a presença
da prima lhe causava. Por outro lado, havia coisas que não aprendera ainda a dizer nem fazer. Detestava as pessoas que viviam com a preocupação de agradar e elogiar
os outros. Considerava Toríbio Rezende o seu melhor amigo, mas havia no rapaz traços e hábitos com os quais ainda não se acostumara. O baiano era demasiadamente
derramado de palavras e gestos, e tinha o hábito constrangedor de chamar-lhe "meu querido", coisa que causava a Curgo um certo desagrado, pois achava esse tratamento
demasiadamente efeminado.
Curgo estava de tal modo absorto em seus pensamentos (andava agora a cavalgar pelos campos do Angico com. Ismália Caré na garupa) , que nem percebeu que à entrada
do padre a congregação se erguia. Alice bateu-lhe de leve no braço com a ponta dos dedos e dirigiu-lhe um rápido sorriso. Licurgo levantou-se. O Te Deum começava.


Quando o Pe. Atílio Romano subiu ao púlpito para fazer a sua prédica, o Cel. Amaral puxou um pigarro que encheu sonoraménte o recinto. "Velho porco" - murmurou Bibiana.
Fandango abafou uma risada.
Era o vigário de Santa Fé um homem alto e corpulento, de rosto carnudo e olhos dum castanho de mel queimado. A barba . forte e escura, sempre visível mesmo quando
escanhoada, envolvialhe as faces sanguíneas numa sombra arroxeada, dando-lhe à fisionomia um certo ar crepuscular que só o sorriso aberto, de dentes muito brancos,
conseguia neutralizar. Era um sorriso tão aliciante, que chegava quase a ser feminino. A primeira vez que Licurgo vira o padre sorrir ficara tomado duma impressão
desagradável. O padre, porém, tinha um aspecto tão másculo - a voz, os gestos, o andar - que Curgo acabou convencido de que ""o vigário era mesmo macho cento por
cento".
Natural da Itália, Atílio Romano viera para o Brasil logo depois
#578 O CONTINENTE

de ordenado. Voraz ledor de livros, adorava as línguas e a oratória, e gostava de tal modo de conversar e discursar, que pareçia encontrar no simples pronunciar
das palavras, na formação das sentenças, no uso dos adjetivos, no engendrar dos tropos um prazer tão sensual como o que o comum dos homens encontra no ato. de comer
ou de amar. Falava com um leve sotaque italiano e tinha .uma voz cantante e macia que, por assim dizer, lubrificava as palavras, de sorte que elas lhe rolavam fáceis
e ágeis pela língua e enchiam o ar de música e ritmo. Seus gestos, como a voz, possuíam também cadência e melodia. Agora ali no púlpito o sacerdote media o auditório
com um olhar dramático, o cenho cerrado, as mãos enlaçadas à altura do peito, a respiração contida, as narinas palpitantes. Encheu os pulmões de ar, estendeu os
braços para a frente, como se quisesse enlaçar toda a congregação, e disse:
- Meus queridos paroquianos?
Sua voz encheu o recinto, grave e bem modulada. Jacob Geibel saiu da sacristia na ponta dos pés e veio sentar-se num mocho atrás do púlpito, num lugar em que não
podia ser visto pelos fiéis.
- Meus queridos - repetiu o vigário - meus muito queridos paroquianos.
Lambeu os lábios e respirou fundo.
- Santa Fé acaba de receber seu título de cidade l - exclamou de repente; còm voz cheia de exultação e agarrando as bordas do púlpito com suas manoplas rosadas e
peludas.
Nesse momento ouviu-se um forte zumbido no ar. Cabeças voltaram-se para todos os lados, olhos procuraram , .. Um colibri que acabara de entrar na igreja, voejava
agora, estonteado, dum lado para outro, à procura duma saída. O padre calou-se. Houve um momento de embaraçosa expectativa. Fandango não se conteve e disse em voz
perfeïtamente audível:
- Beija-flor é bicho muito burrol
Súrdiram aqui e ali risinhos abafados. O passarinho volitava, aflito, sobre as cabeças dos fiéis. Por fim frechou na direção da porta e saiu para o ar livre. Houve
como que um ah 1 de alívio e de novo as atenções se voltaram para o orador. Atílio Romano sorria, de olhos brilhantes. Estendendo o braço na direção da porta, com
o indicador a apontar acusadoramente para o colibri, disse com suave gravidade:
- Esse pobre passarinho desnorteado que acaba de sair daqui, meus queridos cristãos, é um símbolo de importância tremenda. - Carregou no erre de tremenda, como para
tornar a palavra ainda mais cheia de signifícação. - Ele me lembra certas almas sem rumo que procuram às cegas algo de melhor e mais alto na vida e passam seus dias
a bater com a cabeça em muros, paredes, cercas e gbstáculos de toda a ordem. Como esse passarito que buscava a liberdade do ar livre, essas almas se esforçam por
fugir às prisões humanas e querem
ISMALIA CABE 579

alçar o vôo para o alto, para o infinito. Pobres almas aflitas. transviadas, sem norte.. que se ferem nessa basca alucinada 1 Como lhes seria fácil achar a saída_
se compreendessem, como esse colibri a princípio pareáa nãoo compreender, que a liberdade está- na direção da luz, na direção da porta. -Mas aqui, meus queridos paroquianos.
há uma diferença. Se para a avezita a liberdade e a vida estavam lá fora, para as criaturas humanas a verdadeira liberdade e a verdaBeira vida estão aqui dentrol
~ na igreja que se encontra a salvaçãol
Ao pronunciar esta última palavra inclinou o busto para a frente. como se quisesse atirar-se do púlpito de ponta-cabeça. Passeou o olhar por aquelas muitas fileiras
de caras, em sua maioria inexpressivas, que estavam voltadas para ele.
Tornou a retesar o busto, Afrouxou-se-lhe a expressão tensa do rosto, e sorrindo, ele prosseguiu:
- Vede como um simples bípede emplumado que errou o caminho, pode desviar um orador sacro do rumo traçado para seu sermão. Mas para . voltar ao grande assento do
dia, quero ainda usar duma imagem. que esse colibri me sugeriu. Como pássaros agitados que deixam a fronde duma árvore e, um após outro, se vão pelo ar, batendo
as asas em todas as direções, assim são as palavras que neste momento se rne escapam da boca. - Aproximou os dedos dos lábios, num gesto que tinha a leveza duma
pluma. De repente ficou sério, cerrou o punho e brandiu-o na direção do auditório. - Mas eu quisera que esses pobres e apagados pássaros tivessem a mais rica, bela,
colorida e brilhante das plumagens, e que sua revoada constituísse um arabesco gracioso e expressivo; quisera. em outras palavras, ter a eloqüência dum Cícero ou
de nm Demástenes para poder exprirrii"r neste instante o júbilo que me vai na alma diante desse acontecimento memorabilíssimo que é a elevação da Santa Fé à categoria
de cidade!
f Jacob Geibel escutava a voz do padre, mas sem compreender o que ele dizia. Seres pensamentos o levavam a outros lugares e horas. De braços cruzados, olhos entrecerrados,
a barba ruiva espalhada sobre o peito, ele agora se via numa. certa manhâ dominical, com o guarda-sol aberto, montado num burro que trotava rumo de Nova Pomerânía.
.Ia meio adormentado ao tranco do animal e já avistava os telhados da colônia. Começava a encontrar conhecidos. Guten l~lorgen, Jacob! Guten lbíorgen, Heinrich!
Depois começava a peregrinação de todos os domingos. Café com leite, cuca e mauteiga de nata doce na casa do Spielvogel. Apfelstrudel no chalé de Frau Sommer. Canecas
de cerveja espumante e partidas de boião no Clube dos Atiradores. Música de acordeão e cantigas. Ach du lieber Augustin, Augustin, Augustin.
A voz do vigário era um pano de fundo para o devaneio do sacristão.
- ,Santa Fé, que era menina - dizia Atílio Romano - agora
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ISMI~LIA CARÉ 581
se faz moça. E nós, que a amamos e nos envaidecemos dela, apresentamo-la ao mundo e exclamamos : "Vede como cresceu a nossa menina, como se fez graciosa e bela!"
- Rendamos graças a Deus e à nossa padroeira - trovejou o vigário, apontando para a imagem de Nossa Senhora da Conceição - pelos favores que o Céu nos tem concedido.
Esta cidade é obra de homens que nasceram, aprenderam, trabalharam, sofreram, esperaram, envelheceram e morreram: de homens que produziram filhos que por sua vez
.nasceram, aprenderam, trabalharam, sofreram, esperaram, envelheceram e também morreram, e assim por diante de geração em geração, até este dia memorável. Mas enquanto
os homens aparecem e desaparecem .na face da terra, há Alguém que é permanente, Alguém que é eterno. E esse Alguém, meus caros cristãos, é Deus, que está em todos
os lugares e em todos os tempos. Sem Ele nada existe, nada vive. Rendamos, pois, graças ao Altíssirvo, pois a Ele mais que à Câmara Municipal, mais que à Assem-.
- bléia Legislativa da .Província, mais que aos figurôes da politiza .. .
Licurgo teve um estremecimento de entusiasmo. Aquelas palauras indiscutivel*nente visavam os Amarais. O padre era dos bonsl Desde que chegara à Santa Fé compreendera
a situação e resolvera não se deixar dominar pelo Cel. Bento, como acontecera com o pobre Pe. Otero. (Que a terra lhe seja leve!) Embora não pertencesse ao Clube
Republicano, o vigário simpatizava com a idéia nova e era francamente, partidário da abolição. Licurgo esfregou. as . mãos uma na outra, freneticamente, remexendo-se
no banco.
- ... a Ele devemos nossa cidade - continuava o pregador - as nossas casas, as nossas terras; os nossos entes queridos e o simples e maravilhoso fato de estarmos
vivos. Rendam, pois. humildemente, reverentemente, suavemente, comovidamente, graças a Deus!
Bibiana escutava com atenção, ao mesmo tempo que em pensamento fazia comentários à oração do padre. Render graças a Deus? Sim.. Deus lhe dera um neto. que era um
homem de bem. Por outro lado, porém, Deus também lhe fizera "boas": matara-lhe o marido na flor da idade e deixara que os Terras passassem dificuldades. No entanto,
ela se consideraria paga e satisfeita de todos ~ trabalhos e daria a vida por bem vivida se Deus agora, como compensação, lhe permitisse viver o tempo suficiente
para ver. os bisnetos e deixar seu trabalho na terra terminado: o Curgo casado; pai de família e senhor do Sobrado e do Angico.
- Porque - prosseguia o vigário, sacudindo ritmicamente os braços como se estivesse à reger uma orquestra - é necessário que matemos, assassinemos: expulsemos`
de _nós o demônio do orgulho que às vezes sorrateiramente, traiçoeiramente, solenemente e maleficamente nos entra nos corações, levando-nos a crer que somos o sal
da terra, chefes supremos dos nossos corpos e das nossas almas.
e dos corpos e das almas daqueles que nos cercam e que nós, na nossa vaidade, na nossa cegueira, na nossa inconsciência consideramos nossos subordinados, nossos
inferiores, nossos servos, nossos escravos !
Calou-se para tomar fôlego. Tornou a inclinar o busto para a frente e escrutar os rostos dos ouvintes. Licurgo vibrava. Não podendo mais conter-se, cutucou a noiva
com o cotovelo. "Todo isso é pro velho Amaral" - cochichou ele aproximando os lábia do ouvido da rapariga e sentindo o perfume dos cabelos dela. (Que estará .fazendo
a Ismália a esta hora?)
- Santa Fé - exclamou o padre - não é obra dum homem. embora seja de justiça que prestemos nossa homenagem ao seu fundador, que foi uma figura de prol, tronco de
respeitável família .. .
Licurgo nãoo gostou da ressalva. Aquela cambada não merecia a menor consideração. .Ricardo Amaral nãoo tinha passado dum tiranete que falava à sua gente decima do
cavalo, de cabeça- e rebenque erguidos. Começara a vida como ladrão de gado e mandara matar e surrar muita gente, passando por cima de todas as leis. O padre nãoo
precisava dar nenhuma barretada para aquela corja.
- Santa Fé é obra de muitos homens, de muitas famílias e principalmente uma dádiva do Todo-Poderoso!
Fez uma pausa e passeou o olhar cálido em torno, como num desafio a que contestassem o que acabava de afirmar. Fandango voltou a cabeça para a direita, avistou Fandanguinho
na extremidade do banco - de casaco de riscado, bombachas brancas, lenço branco no pescoço e flor no peito - sorriu e piscou o olho para o neto.
- Não é também por meio da calúnia oral ou escrita ... - prosseguiu o pregador.
Chegou a hora do Manfredo levar a sua dose -pensou Licurgo. Rezende conversara com o padre na véspera e lhe pedira fizesse uma referência à linguagem de O Arauto.
Licurgo olhou para a direita e viu o Fraga sentado junto dum dos Amarais, de beiçola caída, boca semi-aberta, calva reluzente, ar palerma, os óculos acavalados no
nariz lustroso e vermelho de cachaceiro.
- ... nãoo é com a verrïna, com a intriga, com o impropério... - As palavras eram. como um vinho embriagador que o padre produzia e ao mesmo tempo consumia; e sua
sede parecia insaciável não é com o aleive, com a mentira, com a agressão, com o apodo, com a calúnia que havemos de conseguir que nossas idéias prevaleçam.
Elas só poderão impor-se se estiverem amparadas na verdade, e a verdade, meus queridos católicos, a verdade é simples e cristalina como a água que brota, borbotante,
transparente. translúcida e pura do seio da terra, dessa mesma terra que Deus fez e que os homens habitam e às vezes conspurcam, maltratam. esterilizam e mancham
de sangue.
#582 O CONTINENTE

"Mas esse padre é um portento!" - murmurou Licurgo, dessa vez pau ninguém. O vigário evidentemente se referia à ameaça que o velho Amaral fizera de atacar o Sobrado
aquela noite.
- Esta data, portanto, pertence a todos aqueles que, santafezenses de nascimento on não, amam esta cidade, este torrão abençoado, esta comunidade cristã. E se alguém
tentar manchar este dia assinalado com algum ato de violência, que sobre ele caia a maldição do Todo-Poderoso. E que contra ele, em justo protesto, se ,volte a in
de todos os homens de bem desta terra 1
As palavras tinham um tom de ameaça : os punhos cerrados do pregador esmurraram o vácuo. De súbito, porém, uma transformação se operou nele. Suas mãos não eram mais
clavas de ferró: abriraãz-se e ficaram leves e esvoaçantes como pombas. Sua voz se fez alcalina e seu rosto se iluminou quando éle disse:
- Curiosos são os caminhos do mundo e misteriosos os desígnios de Deus ... - Sorriu e por alguns segundos ficou com a cabeça inclinada. para um lado, o ar sonhador.
- Há trinta e cinco ano nascia na cidade italiana de Nizza este humilde, insignificante sacerdote que agora vos dirige a palavra. ~ E nessa mesma cidade. no aao
da graça de mil oitocentos, e sete, via pela primeira vez a inz bendita do dia uma criança que recebeu na pia batismal o nome de Giuseppe. Era filho legítimo de
Domenico Garibaldi, um marinheiro, e, como o pai, ao fazer-se homem, sentiu o fascínio do mar. En também um patriota e amava a aventura. Meteu-se na conspiração
republicana de Mazziní e, perseguido pelas autoridades, fugiu para a América do Sul. Já sabeis, queridos cristãos, de quem vos falo. r de Giuseppe Garibaldi, ó
guerreiro de dois mundos.
Fez uma pausa teatral. Bibiana, que nos tempos da mocidade ouvira narrar, encantada, as proezas daquele lendário italiano, impertigon-se e, redobrando a atenção,
ficou sentada na ponta de banco, de cabeça alçada e boca entreaberta. O padre falava num companheiro do Cap. Rodrigo!
- Conta a tradição oral que ao passar uma tarde por Santa Fé, Garibaldi contemplou longamente a vila do alto da coxilha do cemitério e depois murmurou a nm dos companheiros:
Un bel villaggio! Dizem também que dormiu uma sesta à sombra da grande figueira da praça, sobre os arreios, enquanto seu cavalo, companheiro leal de tantas batalhas,
pastava tranqüilamente a poucos passos de distância. Que sonhos, meus amigos, que sonhos teriam visitado Osono do herói? Se me permitis dar asas à fantasia, direi
que ele sonhou com a vitória dos Farrapos .. .
Neste ponto do sermão ouviu-se um murmúrio e um arrastar de pés nos primeiros bancos da direita. O padre calou-se. Cabeças, olhos e atenções voltaram-se para lá.
O velho Amaral ergueu-se, olhou duramente para o vigário e disse a meia voz:
- Isso também é demais! Falar na minha frente nesse gringo
ISMÁLIA CARA 583

sujo e traidor, nesse Farrapo canalha, é um abuso. - Voltou-se brusco para os filhos e ordenou: - Vamos todos embora daqui.
No meio dum silêncio tenso retirou-se da igreja, arrastando os pés e puxando pigarros, acompanhado por todos os Amarais com suas mulheres e filhos. Manfredo Fraga
seguiu-os como um cão fiel.
- rosto e as orelhas purpúreos, as narinas a vibrar, as mãos a apertar fortemente as bordas do púlpito, o Pe. Romano acompanhou os Amarais com o olhar, e depois
que os viu saírem da igreja, cerrou os olhos, baixou a cabeça, uniu as mãos espalmadas e ficou por um instante na postura de quem reza.
Um sussurro encheu o ar, como o farfalhar dum arvoredo batido por um súbito golpe de vento. Mas não se ouviu nenhuma voz. Todos os olhos estavam fitos no padre.
Atílio Romano levantou a cabeça, sorrindo, e recomeçou o sermão:
- Como eu dizia, Giuseppe Garibaldi sonhou com a vitória das armas farroupilhas e sonhou também, decerto, com a unificação da pátria distante.
- padre tem fibra! - pensou Licurgo. Não se atrapalhou. Esse é dos bons! A seu lado Alice estava meio trêmula de medo e torcia nervosamente a ponta da rpantilha.
Fandango olhou para o neto e tornou a piscar-lhe o olho. Bibiana não tirava os olhos da imagem de Nossa Senhora da Conceição, dizendo-lhe em pensamento: "Vosmecê
está vendo? É como le digo. Amaral nãoo presta nem pro fogo."
- Anos depois, na Igreja de São Francisco de Assis, em Montevidéu - prosseguiu o orador - Giuseppe Garibaldi casava-se com uma brasileira que encontrara na Laguna,
Ana de Jesus Ribeiro, mais conhecida como Anita Garibaldi, a heroína. De volta à Itália, Garibaldi jamais esqueceu esta província, e eu peço vênia para ler-vos
caros cristãos, trechos da carta que ele escreveu a seu amigo e companheiro de campanha Domingos José de Almeida.
- padre tirou do bolso um papel.
- Ouvi o que disse de vossa província o insigne guerreiro. "Quando penso no Rio Grande, nessa bela e cara província, quando penso no acolhimento com que fui recebido
no grêmio de suas famílias, onde fui considerado filho; quando me lembro das minhas primeiras campanhas entre vossos valorosos concidadãos e dos sublimes exemplos
de amor pátrio e abnegação que deles recebi, fico verdadeiramente comovido.. E esse passado de minha vida se imprime em minha memória como alguma coisa de sobrenatural,
de mágico,. de verdadeiramente romântico." - O vigário fez uma pausa, lambeu os lábios e, num tom menos solene, acrescentou:. - Agora vou ler uma passagem que por
certo encherá de orgulho principalmente os homens de Santa Fé: "Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril
e destemida gente, que sustentou por mais de nove anos contra um poderoso
#584 O CONTINENTE

império a mala encarniçada e gloriosa das lutas!" - Neste ponto Opadrc ezalton-se, como se estivesse fazendo um discurso político. - "Oh quctntaa vezes tenho desejado
nestes campos italianos um só esquadrão de.vossos centataos avezados a carregar uma massa de infantaria com o mesmo desembaraço como se fosse uma ponta de gado!
Onde estão agora esses belicosos filhos do Continente, tão majestosamente terríveis nos combates? Ondé, Bento Gonçalves, Neto, Canabarro, Teixeira e tantos valorosos
que não lembro?"
Licurgo vibrava, com ímpetos de aplaudir, de gritar. Mas limitava-se a bater com o cotovelo no braço da noiva. Fandango, porém, não s~e conteve e exclamou: "Oigalê
bicho bom!"
- "Que o Eio Grande ateste com uma modesta lápide o sítio em que descansam os seus óssos. E que vossas belíssimas patrícias...".- O padre fez uma pausa, passeou
os olhos pela assistência. e repetia: - "que as vossas belíssimas patrícias cubram de flores esses santuáríoa de vossas glórias, é o que ardentémente desejo." -
Calou-se, dobrou o papel e tornou a metê-lo no bolso.
- Mas por que falei em Garibaldi, que aparentemente nada tem a ver. com a data de hoje? - Fez. uma .breve pausa, como se esperasse de alguém resposta à sua pergunta
retórica.. Ergueu o braço direito, com o indicador enristado.. - L porque quem vos fala é um sacerdote italiano,de nascimento que começa a ser brasileiro de conçio;
porque nesta mesma igreja hoje, sentados no meio. de brasileiros, acham-se imigrantes italianos que há quase dez anos chegaram a esta província e fundaram .néste
mesmo município de Santa Fé ama colônia que se chama Garibaldina, em homenagem ao herói. E é porque esses colonos italianos, bem como os alemães de Nova Pomerânia,
estão trabalhando juntamente com os brasileiros pela grandeza deste município, desta província, déste grande país. E nesta terra cujos. conquistadores primitivos
tinham nomes como Magàlhâes, Pereira, Fagundes, Xavier, Terra, vivem hoje homens que se chamam Bernardi, Natdini, Sorio, Conte, Bauermann, Schultz, Schaeider, Schmitt,
Kunz. E nesta igreja espero um dia com a graça de Deus lxnir em matrimônio uma Dela Mea com um Pinto ou um Spielvogell
Filho meu não casa com gringa - declarou Bibiana mentalmente.
Atílio Romano abriu os braços e por alguns momentos ficou asma atitude de crucificado.
- Aleluial - exclamou. - Aleluia? Que os sinos cantem-, bimbalhem, badalem, clamem, anunciando ao mundo que Santà Fé é cidade. E praza aos Céus que nunca mais outra
guerra fratricida encha de luto e sangue esta terra abençoada !
Quando o padre terminou o sermão, os paroquianos começaram a ouvir òs roncos compassados de Jacob Geibel, que dormia sono solto atrás do púlpito.
ISM.4LIA CARE 585
4

E um serelepe - pensava Bibiana - parece que tem bicho-carpinteiro no corpo.
Sentada à cabeceira da mesa, na sala de jantar que o sol do meio-dia tocava duma luz alegre, ela contemplava o Dr. Toríbio Rezende, que dava pulinhos na frente de
Licurgo, atirava os braços para o ar e movia a cabeçorra para a direita e para a esquerda - hein? }~ein? - com movimentos vivos de pássaro. Fazia já algum tempo
que ela tentava acomodar os convivas à mesa, mas não conseguia, pois aquele baiano desinquieto não parava de falar, de andar dum lado para outro, como se quisesse
lançar confusão no ambiente. Mirando o advogado com olhó crítico, mas não sem uma certa simpatia, Bibiana esperava pacientemente, com as mãos trançadas postas sobre
a mesa.
Toríbio exclamou:
- Pois que venham os capangas dos Amarais! Havemos de recebê-los a bala. E quando a munição acabar, brigaremos com batatas, laranjas, mandiocas, pratos, garfos,
panelas. - E à enumeração de cada uma dessas coisas, movia vigorosamente os braços, como se estivesse atirando pedras contrá inimigos invisíveis. Agitava a cabeleira
negra, longa e ondulada, que o tornava tão parecido com Castro Alves.
De repente cessou de falar, mas continuou a produzir ruído: uma risada de garganta, trepidante e prolongada, que lembrou a Bibiana a matraca da igreja em Sexta-feira.
Santa.
- Quando vassuncê terminar de brigar - disse ela a Toríbio - venha pra mesa.
- Dr. Rezende aproximou-se da velha, tomou-lhe da cabeça com ambas as mãos, e deu-lhe um sonoro beijo na testa. A fisionomia de Bibiana permaneceu impassível. Não
gostava muito dafluelas liberdades, principalmente quando vinham dum estranho: Nunca fora "mulher de beijos".
- Sente-se na minha direita - ordenou ela.
Toríbio obedeceu, piscou o olho para Licurgo e disse:
- Ainda vou acabar sendo seu avô, Curgo.
- Cale a boca, menino. Me deixe acomodar essa gente na mesa:
- baiano empunhou uma faca e começou a fazer riscos paralelos na toalha.
- O senhor, Dr. Winter, fique aqui na minha esquerda. Preciso de alguém bom ~o juízo perto de mim .. .
- médico sentou-se à frente de Toríbio. Bibiana olhou para o neto:
#586 O CONTINENTE
- Deixe o Florêncio sentar hoje na cabeceira, meu filho. Florêncio ficou constrangido:
- Não carece, titia. Qualquer lugar me serve..
- Faça o que. estou dizendo. Sente na cabeceira.
O sobrinho obedeceu. Bibiana olhou para as duas moças que
estavam de pé, à espera de suas ordens:
- Alice, sente do lado esquerdo do seu pai. E vassuncê, Curgo,
fique na frente da sua noiva. Maria Valéria, espere um ponto. Alice e Licurgo sentaram-se nos lugares indicados. - Onde está o Juvenal ?
- Estou aqui - respondeu o rapaz, que naquele instante entrava na sala, limpando os lábios com a manga dò çasaco.
- Garanto como já esteve bebendo um trago na cozinha,-não?
O rapaz sorriu. Era grandalhão e tinha o rosto largo e tostado.
- Pr"esquentar ... - desculpou-se ele.
- Eu sei - resmungóu a velha. - Nò inverno bebem cachaça pr"esquentar. No verão, pra refrescar. Quando- se molham bebem gra evitar resfriado. Conheço bem esse negócio.
Mas sente ali ao lado do Dr. Toríbio. - Voltou-se para Maria Valéria. - E vassuncê, menina, fique entre o Dr. Winter e o Curgo.
Esperou que todós se acomodassem e depois., abrangendo a mesa com um olhar satisfeito, murmurou:
- Até que enfim! Tudo arrumado.
Mas em pensamentó corrigiu: Minto. Nem tudo está arrumado. Ainda falta muita. coisa. Falta o Curgo e a Alice casarem, terem filhos e encherem esta" mesa de crianças.
Falta o menino abandonar a amásia. Falta casar também a Maria Valéria.
Lançou um olhar enviesado para o Dr. Toríbio, que estava já com a "matraca" funcionando, a cotar _ ao Dr. Wiuter suas polêmicas com o Manfredo Fraga d"O Ãráuto.
O Dr. Rezende podia ser um bom partido... Ou nãoo? Embora gostasse do rapaz, Bibiana nunca conseguira vencer a impressão de que o baiano era um estrangeiro, de fala
e costumes diferentes dos da gente da Prov~ncia. Ficava meio atordoada pela sua tagarelice, e sua gesticulação exagerada às vezes a deixava com uma "coisa" nos olhos
... Havia de ser muito engraçado casar um moço agitado, conversador e festeiro com uma rapariga seca, retraída e caladona como a Maria Valéria, qüe herdara da mãe
(pobre -da Ondína, tão quieta, tão sem sal!) a falta de graça e do pai a teimosia. Não. A coisa nãoo podia dar certo.
Bibiana bateu palmas:
- Lindóia, a sopa!
-As mulheres estavam caladas: Alice brincava com o guardanapo, de olhos baixos; Maria Valéria, muito tesa, as mãos pousadas no regaço, olhava fixamente para uma
das janelas, onde uma abelha " voejava e zumbia, batendo às tontas contra a vidraça. Juvenal
ISM.S.LIA CARA 587
contava ao pai a história dum tropeiro que conseguira vender a certa charqueada um lote de vacas magras por preço exorbitante. Florêncio sacudia a cabeça num gesto
que era metade incredulidade e metade censura. A risada do Dr. Rezende de novo vibrou no ar ensolarado.
Bibiana abarcava a sala com um olhar morno e tranqüilo. Sentia-se feliz. Tinha ao redor da mesa os parentes mais chegados e queridos. No princípio daquele ano sua
filha Leonor e o marido tinham vindo passar um mês no Sobrado. Se o Florêncio não fosse tão teimoso podia também morar ali com sua gente. Era um casarão enorme que
por assim dizer vivia vazio. Mas o diabo do sobrinho só um ano depois da morte de Luzia é que tornara e entrar no Sobrado, e assim mesmo meio trazido à força. Agora
lá estava ele à cabeceira da mesa, com os seus bigodes caídos, seus olhos tristes, macambúzio e contrafeito, como se estivesse num almoço de cerimônia. Ela tinha
às vezes vontade de agarrar o Florêncio pelos ombros e sacudi-lo, sacudi-lo muito. "Deixe de bobagem, homem! Esta casa é nossa, é dos Terras. Sempre foi!"
A criada entrou com a grande terrina de louça branca e depô-la sobre a mesa, à frente da patroa. Bibiana ergueu-lhe a tampa e o vapor subiu, envolvendo-lhe o rosto.
Com a grande cucharra de prata ela mexeu a sopa loura e cheirosa, e depois, tirando pratos fundos da pilha que tinha à sua direita, começou a servir.
- Vá passando adiante - disse ela ao Dr. Toríbio, ao entregar-lhe o primeiro prato. - E não precisa cheirar a comida!
- Que delícia! - exclamou o advogado. - A ambrosia dos deuses e os manjares dos banquetes de Sardanapalo não cheiravam tão bem quanto esta sopa! D. Bibiana, tenho
a honra de pedi-la em casamento.
- Então primeiro passe adiante a sopa - retrucou ela. E vendo que Florêncio ia entregar o prato a Curgo, disse: - Não, Florêncio. Esse é seu.
Dentro de alguns segundos estavam, todos servidos, à espera de que a dona da casa começasse a comer. Bibiana tomou da colher, mexeu a sopa com ar distraído e por
fim, depois de soltar um prófundo suspiro, com cujo sentido o Dr. Winter não pôde atinar, sorveu o primeiro gole. Os outros começaram .também a tomar sopa, e por
alguns momentos o silêncio da sala ficou cheio de chupões sonoros.
Bibiana olhou para a terrina: tinha quase vinte anos de uso. Viam-se sobre aquela mesa outros utensílios antigos aos quais a velha se afeiçoara como se eles também
fossem membros da família: a farinheira de madeira (com a tampa já muito lascada) ; os pratos de louça creme com debrum dourado; o paliteiro de platina - um homem
magro de guarda-sol aberto e cheio de furinhos onde se espetavam os palitos; os cálices de cristal verde e longas hastes, que
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vínham do tempo do velho Aguínaldo (que Deus ou o diabo Otenha ! ) .
Corgo comia com sofreguidão, encurvado sobre a mesa, o nariz quase a entrar no prato. Era sempre assim quando andava preocupado com algum problema: havia momentos
em que os pensamentos se lhe atropelavam na mente e ele se esquecia por completo do que estava fazendo ... Agora comia por assim dizer ao ritmo das coisas em que
pensava. Naquele instante em sua mente era noite, a festa tinha começado, dançava-se na sala grande do Sobrado e no quintal os negros pulavam ao redor da fogueira,
mas ele, Curgo, estava de revólver em punho à janela da frente esperando os capangas de Bento Amaral. Venham, seus capados! Venham se são homens! E eles vinham ...
Surgiam de todos os cantos da praça e rompiam fogo. Sobre. a cabeça de Licnrgo uma vidraça partiu-se, os cacos de vidro lhe caíram na cara. Ele começou também a
atirar. Pêi ! Lá caiu um. Pêi ! Lá se foi outro ... E com fúria assassina Curgo levava as colheradas de sopa à boca.
- Coma mais devagar, menino! - gritou-lhe a avó.
Só então Licurgo voltou à sala de jantar. E, como se os outros tivessem estado a presenciar aquele combate imaginário, disse:
- Mas acho que ele nãoo tem caracu!
Alice corou e baixou os olhos para o prato. Com exceção de Maria Valéria, todos olharam para Licnrgo interrogadoramente.
- Quem é que não tem caracu? - perguntou Juvenal. A sopa que lhe enchia a boca, tornava-lhe mole a voz.
- O velho Amaral - esclareceu Curgo. - Digo que não tem caracu pra atacar o Sobrado. - Inclinou o busto sobre a mesa, voltou a cabeça para a direita e perguntou:
- Qual é a sua opinião, Dr. Winter?
- médico passou o guardanapo pelos bigodes, pigarreou e respondeu
- Coragem talvez não lhe falte. Mas o velho é esperto demais para fazer uma loucura dessas.
- Mas não seria a primeira! - observou Toríbio.
- alemão sacudiu negativamente a cabeça.
- Não, Curgo. Ele não vai fazer uma asneira assim tão grande.
- E por quê? - indagou Toríbio. - Hein? hein? Por quê?
Carl Winter começou a riscar distraidamente a toalha com a ponta da faca, enquanto Bibiana o mirava com ar de reprovação.
- Por várias razões - prosseguiu o médico. - Vejam bem. Primo, atacar uma casa de família onde se realiza uma festa em que há mulheres e velhos, é um ato reprovável
que fatalmente repercutiria mal em toda a Província. Segundo, esse ataque só poderia prejudicar moralmente o Partido Liberal e fornecer aos jornais abolicionistas
um motivo para atacarem a monarquia. Finalmente, porque o Cel. Amaral sabe muito bem que o Conselheiro não apro
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varia um gesto de violência como esse, principalmeate dirigido contra o Sobrado .. .
Havia algum tempo, Gaspar Silveira Martins passara por Santa Fé, onde realizara uma conferência, após a qual - para surpresa de todos - em vez de ir ao casarão dos
Amarais, visitara o Sobrado. onde ficara até altas horas da noite a conversar com Bibiana, Licnrgo e o Dr. Rezende. Tinha sido uma noitada memorável,
- a casa ficara toda cheia da voz trovejante daquele extraordinário orador cuja legenda o país inteiro conhecia., O Conselheiro deixara "a gente do Sobrado" impressionadíssima.
Era um homem alto, de largo peito, e postura atlética: tinha um olhar magnético e uma irresistível capacidade de sedução. O Dr. Toríbio, que quase não tivera a coragem
de abrir a boca na presença do estadista, dissera dele mais tarde: "E um misto de Sansão e Demóstenes. E se me pedissem para pintar Júpiter, barbudo e formidável
por entre nuvens de tempestade, com um feixe de raios nas mãos eu o representaria na figura do Conselheiro!"
Depois que Silveira Martins se retirara, avó e neto- ficaram ainda por mais duma Dora a conversar, entusiasmados, sobre a personalidade do visitante da noite. Comentara
Licurgo: "~ um grande tribuno. Pena que náo seja dos nossos." Fandango, que durante todo o tempo da visita ficara de longe, "bombeando e escutandó " o Conselheiro,
resumira sua admiração numa frase: "Bichinho mui especial." Bibiana dissera simplesmente.: "Tem o jeito do Cap. Rodrigo. ~ um homem."
O Dr. Winter tinha razão. O velho Amaral nãoo era tão insensato que quisesse correr o risco de provocar a ira do Conselheiro.
- Mas pelas dúvidas - contou Licnrgo - já tomei minhas providências. A peonada do Angico vai dançar de pistola na cinta
- olho alerta, preparada pro que der e vier. L bom a gente nãoo confiar muito. O seguro morrem de vero.
- Mas morreu - acrescentou Bibiana.
Winter soltou uma risada.
- Ah I - fez o advogado bruscamente. - Já ia me esquecendo ... Recebi de Cruz AIta um boletim que o Diniz Dias mandou distribuir. Ir a propósito de sua briga com
o Dr. Gaspar Martins.
Por motivos políticos, o Conselheiro destituía o Barão de São Jacó da chefia dó diretório liberal do município vizinho.
- Leve os psatos de sopa,,Lindóia - ordenou Bibiana.
Toríbio tirou do bolso um papel, desdobrou=o e disse:
- Ouçam só esta belezaI - Começou a ler: - "O Sr. Conselheiro decretou a deposição do Barão de São Jacó e a outro se entregou o bastão que lhe fora confiado pelo
voto un8nime do partido local." - Toríbio fez uma pausa, fifpn em Curgo os olhos inquietos, somo e disse: - Quem está radiánte com essa briga é o velho Amaral.
59O O CONTINENTE
ISMÃLIA CARE 591
- São vinho da mesma pipa - resmungou o amigo.
O advogado baixou a cabeça e continuou a leitura:
- "Quarenta anos de lutas, vinte e .três de chefia não valer ao soldado de quatro campanhas para evitar de ser alijado e ma goado pelo~Sr. Conselheiro. Declaro no
entretanto perante a Psovíncia e meu partido, que nãoo é propriedade exclusiva do Sr. Gasp~ que não aceito a demissão de chefe..."
Juvenal tomou a última colherada de sopa e disse:
- Começaram a se comer uns aos outros.
- Que se entredevorem! - exclamou Toríbio. - Que ~ estraçalhem! Essa confusão só poderá ser benéfica para a propaganda republicana.. Mas ouçam isto, agora. É de
primeiríssima: "Estaremos na Rússia, _sob a pressão despótica do Czar? Somos servos ou cidadãos livres?"
- Somos servos da canalha monarquista! - aparteou Curgo.
Toríbio tornou a dobrar e guardar o papelucho.
- Se o gabinete liberal cair e os conservadores subirem - observou o Dr. Winter - o Bento Amaral é capaz de começar .a atacar à monarquia.
- Sim - concordou o Dr. Rezende - porque nenhum desses dois partidos é sinceramente monarquista. O que eles querem ê governar. Quando estão com o osso na boca,-
defendem o Imperador. Quando perdem o osso, começam, a rosnar.
- Por isso eu digo sempre - tornou Winter - que nãoo é de admirar se amanhã os Amarais de novo virarem a casaca. Náo foram já conservadores? Tudo depende de onde
sopra o vento .. . Lançou um olhar trocista e oblíquo para Licurgo, acrescentando: -O velho Bento ainda vai acabar no Clube Republicano.
- Essa é que não! - protestou o outro.
Juvenal sentenciou
- Em política nunca devemos dizer "dessa água não beberei". Curgo bateu na mesa com o punho fechado.
- Pois é pra acabar com essas imoralidades que nós queremos
a república.
- E quem vai derrubar a monarquia - declarou Rezende com voz empontada - é aquele moço austero que nasceu na estância da Reserva, e que escreve artigos em A Federação.
A república, tomt nota das minhas palavras, Dr. Winter, vai cair aos golpes duma pena e nãoo duma espadà.
O médico sacudiu a cabeça, céptico.
- Neste país nunca se fará nada sem a interferência direta ou indiretà da espada. Só virá a república se o Exército quiser.
Sempre que Licurgo ouvia ou lia a palavra exército, a imagem que lhe vinha à- mente era a dum certo Ma j. Erasmo Graça, que freqüentara o Sobrado em princípios de
187O.
- Qual Exército qual nada! - vociferou ele, lançando um olhar agressivo para o Dr. Winter.
- Quando chegar a oportunidade - disse Toríbio remexendo-se na cadeira - o Castilhos saberá atirar habilmente, o Exército contra a monarquia. Não há nada que aquela
pena mágica não possa fazer.
- ~ um homem inteligente, não há dúvida ... - murmurou o Dr. Winter com ar benevolente.
- Um homem inteligente? Só isso, meu caro doutor, apenas isso? Hein? Hein? - E Rezende voltava a cabeça dum lado para outro. - Hein? Júlio de Castilhos é o maior
escritor político do Brasil !
Naquele instante entraram duas pretas trazendo bandejas com travessas fumegantes, que foram enfileiradas no centro da mesa. Juvenal ficou de olho alegre. Florêncio
mirou a comida com melancólica inapetência. Winter mais uma vez se maravilhou ante a fartura: havia feijão preto com lingüiça; carne assada com batata inglesa; galinha
ensopada; um pratarrão de mondongo - que o doutor detestava; uma travessa de arroz rosado e lustroso; um prato fundo .com abóbora e outro com iscas de rins.
- Agora, que cada um faça pela vida! - exclamou Bibiana. - Sirvam-se !
Houve uma troca animada de pratos, e por alguns instantes todos ficaram a servir-se.
Curgo levantou-se, foi até a despensa e voltou de lá com duas garrafas abertas.
- Vamos experimentar um vinho feito pelos italianos de Garibaldina - disse.
Encheu o cálice de Florêncio, depois aproximou-se de Maria Valéria.
- Eu não tomo - murmurou esta sem erguer os olhos.
- Dr. Winter? Talvez vassuncê prefira cerveja..
- Vinho - disse o médico.
Licurgo encheu-lhe o copo.
- E a senhora, vovó, não bebe um pouquinho?
- Não sou gringa.
Licurgo serviu Toríbio e depois Juvenal.
- Toma vinho, Alice?
Ela olhou para o noivo e respondeu com um meio sorriso:
- Não, obrigada.
Por um breve instante o olhar de Curgo fixou-se, morno, no doce relevo dos seios de Alice, e imaginou-a nua em seus braços. Mas repeliu logo esse pensamento. Era
indecente, absurdo. Alice ia ser sua esposa, a mãe de seus filhos. Para "aquelas coisas" ele teria a Ismália. (Onde estará ela a estas horas?)
Fez a volta da mesa, encheu o próprio copo e sentou-se.
#592 O CONTINENTE
- A República! - exclamou Toríbio, erguendo o cálice. - Hein? Hein? À República!
Juvenal e Curgo participaram imediatamente do brinde. O Dr. Winter imitou-os com um resignado encolher de ombros. - Vá lá! À República!
Florêncio olhava sombriamente para seu copo. Os outros homens tomaram um largo gole.
- Como é, seu Florêncio? - interpelou-o Toríbio Rezende. - Não nos acompanha no brinde?
- Acho que o papai é monarquista - disse Juvenal, olhando para o velho com um sorriso que ainda lhe alargava mais o rosto e obliquava os olhos.
- Eu sei bem o ,que o Florêncio é - resmungou a velha. - Um teimoso.
- Eu não sou coisa nenhuma, tia Bíbiana.
- Um homem tem de ter opinião! - exclamou Curgo, partindo com desnecessária fúria um pedaço de carne.
- Eu cá tenho as minhas. Só acho que não preciso andar gritando na rua o que é que penso .. .
- Estou falando de política - tornou Curgo. - Nesta hora nãoo é possível ser neutro.
Florêncio deu-lhe uma resposta indireta:
- O Imperador é um homem de bem. Eu só queria saber onde é que vassuncês vão arranjar outro melhor. que ele pra botar no governo.
Curgo lançou um olhar cálido para Toríbio.
- Está ouvindo, Toríbio? Está ouvindo?
- Como esse há milhares e milhares em .todo o Brasil -
exclamou o advogada
- B por isso - interveio o Dr. Winter - que eu digo que nãoo se pode contar com o povo para derrubar a monarquia.
- Mas não se trata duma revolução armada, doutor, e sim duma revoluçao de idéias. Estamos no século do progresso, do caminho de ferro, do vapor, do telégrafo elétrico,
da fotografia ... hein? hein? A era da barbárie já passou.
Carl Winter, que estava a tomar um novo gole de vinho, riu dentro do copo tão brusca e violentamente que, engasgado, rompeu numa tosse convulsa, apertando os lábios
com o guardanapo. Sem a menor mudança de expressão fisionômica, Maria Valéria ergueu o braço direito e desferiu uma sonora palmada nas costas do médico.
- Que é isso, menina ? - repreendeu-a Bibíana.
- O doutor está engasgado - respondeu a moça, imperturbável.
Winter tossia e ria ao mesmo tempo. E quando, muito vermelho,
ISMÁLIA CARÉ 593

com os olhos cheios de lágrimas, a respiração arquejante, ele bebia pequenos goles d"água, Toríbio lhe perguntou:
- Mas por que o senhor riu, hein?
O alemão encarou-o, subitamente sério.
- Vassuncê disse que a era da barbárie passou e que estamos no século do progresso, das idéias .. .
- E que é que há de tão extraordinário nisso? Acaso não terei enunciado um axioma irretorquível?
Winter atirou o guardanapo sob-~ a mesa, inclinou o busto para a frente, e, escandindo bem as sílabas, disse com voz ainda apagada:
- Não se iluda, meu jovem amigo. Os homens inventaram algumas engenhocas úteis, nãoo há dúvida, mas no que diz respeito a sentimentos não estão em muito melhor situação
que seus antepassados das cavernas. Suas reações animais são " basicamente as mesmas.
- Experto crede! - exclamou o advogado.
- No ano passado a Inglaterra ocupou o Egito - prosseguiu o médico. - Que significa isso? A vitória da civilização sobre a barbárie? Não. Significa, a meu ver.
que essa nobre vaca, com o perdão das senhoras presentes. que essa respeitável bruaca que é a Rainha Vitória vai ter mais escravos e os comerciantes ingleses mais
lucros.
Os olhos ainda úmidos, Winter apertava a haste do cálice com seus longos dedos rosados, cobertos duma penugem fulva. Os outros dividiam a atenção entre a comida
e a polêmica.
- Qual progresso, qual nada! - E o médico tornou a passar o guardanapo nos lábios. - Diga antes interesse material, comércio, ganãoncia. O homem é o lobo do homem.
Vosmecê deve saber dizer isto em latim, Dr. Rezende .. .
- Mas o meu caro e irônico esculápio - retorquiu Toríbio - achará que a Inglaterra com seu adiantamento científico, a sua civilização, a sua experiência nãoo pode
levar o progresso ao Egito? Hein?
- Pode mas nãoo leva. Para ela os egípcios nãoo são propriamente homens.
- No entanto - rebateu Toríbio, cujas faces o vinho e. o entusiasmo deixavam afogueadas - no entanto vosmecê nãoo negará que foi graças à grande Inglaterra que abolimos
o tráfico de negros. Só uma política altamente humanitária -seria capaz de conduzir a um gesto tão altruísta. Dei:<e 18O7, se não me falha a memória, a Inglaterra
não faz mais o comércio de escravos.
- Mas dizem que ainda vendem negros por baixo do poncho - observou Juvenal.
- Qual nobreza, qual humanitarismo, qual nada! - exclamoa Winter. - Tudo interesse comercial.
#i
594 O CONTINENTE

- O senhor é um espírito de contradição! - acusou-o Curgo agastado.
Espetou no garfo um pedaço de batata, levou-a à boca num gesto brusco e ficou a mastigá-lo com uma ferocidade cômica.
- Sou um homem sem paixões - disse Winter. - Não tenho partido. Nem sequer nasci neste país. Um dia posso ir-me embora para a Alemanha e não voltar mais. Limito-me
a ler, ouvir, observar e tirar minhas conclusões. Os senhores botam todas essas questões num pé puramente ideológico. Eu prefiro levar a coisa para o lado do interesse
material.. .
- O senhor então - perguntou Curgo, inflamado - acha çne não há no mundo lugar para o coração, e que as pessoas só fazem as coisas com o olho no lucro, no benefício
próprio?
- Não quero dizer exatamente isso ... - começou o médico. O outro, porém, nãoo lhe deu tempo para terminar a sentença, pois prosseguiu
- Tome o meu caso. Vou hoje dar liberdade a todas os meus escravos. Qual é o meu lucro material nessa história? Me diga. Me diga.
Winter encolheu os ombros.
- Vassuncê é um sentimental.
- Graças a Deus! E não me envergonho disso.
Lançou um olhar rápido para Alice, que naquele instante o contemplava com expressão amorosa. Depois ergueu o copo e bebeu, como num brinde a si mesmo, ao seu bom
coração e aos seus sentimentos nobres.
- A Província do Ceará está libertando seus escravos - ajuntou Toríbio. - A do Amazonas também. Que lucro material têm elas nisso?
Winter lutava com uma sambiquira de galinha. Sem erguer os olhos para os interlocutores, respondeu:
- A explicação é simples. Para a lavoura do Norte o braço escravo já não é mais. negócio. No fim de contas é muito melhor pagar ao negro um salário baixo e seco
do que dar-lhe de comer e vestir.
Juvenal largou a sua perna de galinha e disse:
- Mas um dia destes conversei com um fazendeiro de São Paulo que não quer nem ouvir falar em abolição .. .
- Mas está certo - replicou o médico - rigorosamente certo. A lavoura de café é a mais próspera do país, a mais lucrativa. Os fazendeiros de São Paulo estão tendo
lucros cada vez maiores.
Destacando bem as sílabas e atirando-as uma a uma na direção de Licurgo e Toríbio, com uma lentidão provocadora, o Dr. Winter concluiu
- Os fazendeiros de café precisam do trabalho barato do escravo. Por isso são contra a abolição. O governo por sua vez se
ISMALIA CARr 595
encontra ente dois fogos: o ínteresse dos .senhores fendais paulistas e a opinião pública, qne é anti-esrnvagista.
~- Seja como for - disse Toríbio - a idéia abolicionista está em marcha vitoriosa.
- E vencerá 1 - eadamon Licnrgo.
Winter sorriu:
- Espero qne não me tornem por um miserável escravagista. Sou apenas um homem que se quer dar o luxo de ver claro .. .
Mas ~ qne era "ver daró " ? - perguntou ele a si mesmo, chupando a sambiquira da galinha. Seria coisa sábia procurar a gente viver sempre com lógica e lucidez? Às
vezes lhe parecia que o melhor era participar de tódas as paixões, enlamear-se nelas, nãoo ficar à margem da vida, preocupado com examinar todos os lados das pessoas
e das. questões, querendo dizer sempre a palavra mais justa e serena. que no fim era quase sefipre a mais cínica e a menos humana. Apesare de toda a sua famosa lucidez,
aos sessenta e três anos de í"dade eacontrava-se ele ainda- em Santa Fé, solteirão, solitário, escravo da rotina, pensando sempre em ir-se embora,. em voltar para
a Europa, mas ao mesmo tempo sentindo-se poderosamente preso àquela .terra como ~nma velha árvore de raízes profundas - mas ama árvore que nãoo ama o solo em .que
está plantada e nãoo tira dele o alimento de que necessita para vicejar com toda a plenitude.
Lenta e meio cansada, como se viesse do fundo dum longo corredor sombrio, ouviu-se a voz de Florêncio
- Não tenho nem nunca tive escravos. Mas acho que no Rio Grande os negros são felizes. Nas estâncias e nas charqueadas eles trabalham ombro a ombro com os bràncos.
A não ser um ou outro caso; em geral são bem tratados. Dizem que lá no Norte os senhores de engenho maltratam os escravos. Não sei. Há moita conversa fiada. O que.
sei é que aqui. na Província os negros passam bem..
Curgo sacudia a cabeça, obstinadamente.
- Mas isso nãoo é razão pra manter a escravatura, primo Florêncio.
O velho fez um gesto vago.
- Vassuncês são moços, lêem nos livros, devem saber o que fazem. En sou nm homem antigo.
Bibiana lançou-lhe um olhar de estranheza. Se Florêncio se considerava "antigo", ela entâó, que era? Um caco velho, um trapo. No entanto àão se trocava por nenhum
daqueles moços que ali estavam ao redor da mesa.
Juvenal voltas-se para Toríbio e perguntou:
- Como é mesmo aquela frase do Conselheiro sobre a escravatura?
- "Amo mais a minha pátria do que ao negro" - citou o advogado.
#596 O CONTINENTE
- Frase indigna dum grande homem - disse Licurgo. - Nem parece ter saído duma cabeça privilegiada como aquela. Toríbio olhou para o amigo:
- Não aprovo a atitude de Gaspar Martins, mas compreendo-a. O que ele quer dizer é que teme que a luta pelo abolicionismo degenere em guerra civil como nos Estados
Unidos ~da .América do Norte.
- E tem razão - observou Florêncío. - Há esse perigo.
Licurgo levantou-se ïntempestívamente, foi até a sala de visitas, voltou de lá trazendo o último número de A Federação, que recebera nas véspera, tornou a sentar-se
e anunciou:
- O que vou ler .agora foi o Dr. Castilhos que escrevén: "Abandonada aos impulsos naturalmente irregulares da paixão revolucionária que anima tanto o .abolicionismo
intransigente como a escravocracia emperrada, a questão do elemento servil assumè uma gravidade excepcional." Agora prestem bem atenção a este final: "Se a luta
violenta sobrevier, .desabe todo o peso da responsabilidade sobre o governo medíocre que. compromete a paz pública."
Tornou a dobrar o jarnal e colocou-o junto do guardanapo com o ar de quem havia dito á palavra definitiva sobre o assunto. Houve um curto silêncio, ao cabo do qual
Toríbio falou:
- O que o Dr. Castilhos quer dizer - explicou ele - é que o . . governo não tem seguido uma política sensata nesse assunto da abolição.
Mas que é que o doutor chama de política sensata? - perguntou Winter.
- Uma política que visasse acabar gradualmente, heinT baia?, a propriedade escravagista por meio, digamos, dum imposto que os senhores de escravos teriam de pagar
e cujo produto podia ser empregado num fúado de emancipação. Uma. política que promovesse o decreto de leis- tendentes á dificultar o negócio de escravos e sua transmíssão
por herança. Por ezemplo: devia ser proibido Ocomércio de negros entre as províncias. E a melhor maneira de snbatituir o braço escravo na lavoura seria estimular
a imigraç~o. Tudo isso o governo podia fazer e não faz. .
- Só conseguiremos essas coisas com a repúblia - afirmou Curgo.
Florêncío meneou a cabeça.
- Estore muito velho pra acreditar em conversas - observou ele, de olhos baixos, como. se estivesse se dirigindo ao próprio puto e não aos outros. - Tenho visto
muita mudança de governo aa minha vida e tenho lido e ouvido muita. promessa de políticos Acho que as coisas nãoo vão mudar se vier a repúblia.
Curgo olhou vivamente para o tio e, quase agressivo, replicou:
- É por essa e por outras que o Brasil aão vai pra frente. Sc homens como o senhor acham que nãoo há diferença entre repúblip
1SMALIA CARE 597

e monarquia, o que é que a gente pode esperar dum gaúcho bronco.
dum peio, dum... dum... homem da rua? - Olhou. pau o
advogado e pediu:.- Toríbio, conte ao primo Florêncío o que é
que a república quer.
Toríbio cruzou os talheres, fincou os cotovelos aa mesa, tran
çou as mãos à alteia do queixo e principiou:
- Pan aão fazer uma dissertação muito comprida, direi pri
meiro que. com a república, as províncias ficarão transformadas
em estados. autônomos e confederados, mas politicamente. unidos. Esfregou as mãos t fez uma pausa. Bibiana aproveitou o breve
silêncio para perguntar - - - Mais carne, Dr. Winter?
- Não, muito obrigado. ,
Teremos também um poder legislativo central; um tribunal
superior de justiça, colaboração proporcional de todos os Estados
para as despesas da naçáo .. .
Winter sabia que Florêncío não estava entendendo nada. Como
ele havia no país milhões de pessoas para as quais aquelas palavras
não tinham sentido. -
A enumeração continuava. O senado seria temporário. O voto,
alargada Todos teriam liberdade ¢e associação e de culto. Os
-cemitérios-seriam secularizados...
Neste ponto Bibiana interveio:
- E os defuntos vão continuar mortos, sem saber de nada .. . Curgo fuzilou para- a avó um olhar de-censura.
- Teremos o casamento civil obrigatório - prosseguiu Torí
bio. - A Igreja será separada do .Estado. Os ministros, responsa
bilizados. Não só os ministros, mas também todos os agentes da
administração. Acabarémos com o poder moderador e com o con
selho dos Estaãos. Ah! E haverá a mais ampla liberdade de
ensino .. .
~ repente o advogado calou-se. Florêncío fez- apenas este
comentário:
- Tudo isso é muito bonito. Mas o Imperador é nm homem
de bem.
Cargo deizon escapar um suspiro de impaciência.
- E um caixeiro-viajante! - explodiu. - Víve passeando na
Europa, fazeàdo versos e visitando museus, enquanto o país aqui
se vai águas abaixo!
Florêncío não respondeu. Continuou a comer serenamente. Toríbio retomou a palavra
- 8 um Imperador para uso externo, cujo principal motivo
de orgulho é ser amigo íntimo de Victor Hugo! Florêncío repetiu simplesmente: - O Imperador é um homem de bem.
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5
O relógio grande bateu uma hora.
Os pratos foram recolhidos e veio a sobremesa - doce-de-coco -
nnma grande compoteira de vidro azul, na fòrma duma galinha no choco. Todos gostam de doce-de-coco? Se não gostarem, tem pessegada, marmelada e figada ... Mas todos
gostàvam.
Durante aqueles últimos dez minutos o Dr. Toríbio estivera com a palavra, continuando sua catilinária contra o Imperador e seris ministros enquanto os outros o escutavam
em silêncio com uma atenção duvidosa.
Vendo que o advogado nãoo tocava na sobremesa, Bibiana" lhe disse
- Coma, moço.. Vassuncê mais fala -do que outra coisa.
- Mas ë da profissão, minha senhora. Se nós os advogados nãoo falarmos, perdemos as- causas, e se perdermos as causas,. morreremos de fome.
- Pois então coma enquanto tem comida - retorquia a velha. Rezende soltou a risada de matraca.
- A senhora é uma mulher que me agrada. Realista, positiva,
hein? hein? De gente assim é que vamos precisar quando vier a república, não é mesmo, Corgo? Pois sua avó vai ser a primeira presidenta do Estado do Rio Grande do
Sul, hein?
Bibiana, que partia uma fatia de queijo, somo e replicou:
- Se eu continuar- sendo presidenta do Sobrado me doa .por muito satisfeita. - Fez com a cabeça. um sinal na direção-de Alice. - Ali está quem vai me derrubar. Deátro
dum mês- será a dona desta casa.
- Ora, titia - protestou Alice debilmente. - Nem diga uma coisa dessas .. .
Maria Valéria, que pouco falara durante todo o almoço, observou
- Todo o mundo sabe, tia Bibiana, qne quem- vai conünuar mandando aqui dentro é a senhora.
Winter voltou a cabeça para a moça que estava a seu lado. Tinha uma simpatia particular por aquela rapariga que tòda a gente achava feia, mas na qual ele descobria
um encanto secreto e meio áspero, muito mais atraente para seu gosto do que a "boniteza" comum de Alice. Sempre que a via, muito alta, tesa e esbelta, o rosto alongado,
os grandes olhos negros um pouco saltados, o nariz longo e fino, a boca rasgada de expressão um tanto sardônica - ele nãoo podia deixar de fazer uma comparação: "comprida
e aguda como uma lança". A própria voz de Maria Valéria tinhà
algo de contundente. Em várias ocasiões, com o intuito de conhecê-la melhor, Winter procurara levá-la a confidências, pois suspeitava de que havia naquela criatura
muito mais coisas do que seus gestos e palavras revelavam. Não conseguira, entretanto, quebrar aquela espécie de armadurà de gelo que envolvia a filha mais moça
de Florêncio Terra. Aos vinte e quatro anos Maria Valéria tinha mentalmente quase a idade de Bibiana. Quando as duas mulheres se encontravam, Winter divertia-se
a observá-las. Era evidente que existia entre ambas uma certa má vontade recíproca a qne as gentes da Província davam o nome de .birra. Eram - comparava o médico
- duas personalidades de pederneira, que ao se chocaram produziam chispas de fogo. No entanto ele estava certo de que, sendo necessário, qualquer uma daquelas duas
mulheres seria .capaz dos maiores sacrifícios pela outra.
Bibiana lançou um olhar duro para a sobrinha, mas nada disse. Quando veio o café, Rezende acendeu um charuto e Florêncio e Carl Winter começaram a fazer seus cigarros.
Licurgo aproximou-se da janela e olhou para o quintal onde os escravos comiam sentados no chão, sob as árvores, ou nos degraus da escada que levava à porta da cozinha.
Eram homens, mulheres, crianças e velhos, todos descalços e molambentos. ~~JriS tinham nas mãos latas ora velhas panelas cheias de arroz e"feíjão; ,outros metiam
os dentes em costelas, arrancando-lhes a pelanca,. ao passo que uns quatro ou cinco caminhavam dum lado para outro, a chupar laranjas e bergamotas. Comiam num silêncio
impressionante, e sobre as carapinhas e os chapéus de palha, as faces, mãos, pernas e pés pretuscos que o frio gretava, brilhava o claro e tépido sol de bunho. Licurgo
ficou a imaginar a cara que os escravos fariam aquela noite quando recebessem na sala grande do Sobrado seu título de manumissão. Compadecia-se daquela pobre gente,
mas reconhecia que nem sempre tinha paciência suficiente para tratá-la com doçura. Mais duma vez fora obrigado a dar de relho em pretos que lhe faltaram com o respeito.
Fizera isso, porém, de homem para homem, mas nunca, nunca mesmo, mandara açoitar um escravo.
Acendendo o charuto que o Dr. Toríbio lhe oferecera, Juvenal disse: "
- Eu só queria saber quem vem à festa hoje aqui no Sobrado e quem vai ao baile do Paço .. .
Licurgo ouviu as palavras do primo e deixou a janela.
- Pra vir aqui hoje - disse, aproximando-se do outro - é preáso ter tutano. Quem entra nesta casa fica marcado pelos Amarais pro resto da vida.
- Tenho receio que não venha ninguém - confessou Bibíaaa. - Depois que espalharam que o velho vai mandar atacar o Sobrado, muita gente pode ficar com medo de vir
.. .
- Pois quem tiver medo que não apareça! - exclamou Li-
ISMÃLIA CARB 599
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Curgo. - Só queremos aqui dentro gente de coragem e de opinião. Se for preciso, fazemos o baile com o pessoal de casa e com a negrada.
Juvenal puxou uma baforada com gosto e, olhando intencionalmente para Maria Valéria murmurou:
- Eu seí dum moço que vem .. .
Os outros riram porque sabiam a quem ele se referia. José Lírio, o Liroca, andava perdido de amor por Maria Valéría, a qual tinha por ele invencível repulsa. E o
que deixava a situação ainda maís cômica era o fato de o rapaz ser mais baixo e mais moço que sua amada.
- Se sabe, diga logo! - desafiou Maria Valéria.
Um pontaço de lança - refletiu Winter, acendendo o cigarro e olhando reflexivamente para Bibiana.
- A senhora se lembra - perguntou ele - quando um dia, faz muito tempo, nesta mesma sala, nesta mesma mesa, eu lhe disse que Santa Fé ia progredir e ter muitas dessas
coisas de cidade grande?
- Nunca me esqueço de nada, doutor.
- Pois é. Não me enganei. Hoje temos lampiões nas ruas, números nas casas, mala postal.. .
Curgo interrompeu-o:
- Mala postal, essa, que devia chegar uma vez por semana mas que chega sempre com o atraso de duas semanas, quando chega... Belezas da monarquia!
Sem fazer caso da interrupção, o médico prosseguiu:
- Temos um teatrinho, um telégrafo .. .
- E casas de mulheres à-toas - ajuntou Bibiana acidamente. Havia para as bandas da coxilha do cemitério uns dois ranchos
onde viviam algumas chinas. Dizia-se que até homens casados
freqüentavam essas ordinárias.
Winter soltou uma risada curta e seca.
- Que é que a senhora quer? Essa é a maís antiga das profissões.
- Uma pouca vergonha, isso sim é que é - replicou a velha. Lançando um olhar oblíquo para o neto e baixando a voz, ajuntou: - Há homens que nem precisam visitar
essas sem-vergonhas, porque têm as amásias em casa mesmo.
Licurgo teve a desnorteadora impressão de que a avó acabava de esbofeteá-lo em público. Sentiu um súbito formí.gamento quente em todo o corpo e olhou automaticamente
para a noiva, que conversava em voz baixa com o pai e parecíà nãoo ter prestado atenção às palavras da velha.
Maria Valéria ergueu-se da mesa, acercou-se da janela que dava para a Rua dos Farrapos, e ficou olhando com atenção vaga para a meia-água caiada, lá do outro lado,
e à frente da qual uma criança brincava com um cachorro. Desconcertada diante da observação de D. Bibiana, tratara de afastar-se do grupo, para que ninguém lesse
ISMALIA CARE 6O1
em seu rosto que ela sabía do caso de Licurgo com Ismália. Passara todo tempo do almoço esforçando-se por não olhar para o primo. Que gostava dele, era uma verdade
que só admitia com relutância. Morreria de vergonha se alguém viesse a suspeitar desses sentimentos que em vão procurava ocultar até de si mesma. Temendo trair-se,
chegava a tratar Curgo com aspereza, dando muitas vezes aos outros a impressão de que lhe queria mal. Sempre, porém, que o via oú que lhe ouvia a voz, ficava toda
perturbada, com a garganta seca, as mãos trêmulas, o coração a bater descompassado. No seu orgulho, irritava-se com isso, pois lhe fora sempre agradável a idéia
de considerar-se diferente das outras moças que viviam preocupadas com "essas bobagens de amor". Maria Valéria era muito sensível aos mexericos da vila, embora declarasse
não dar-lhes a menor importância. Era costume chamar aos maldizentes "filhos da candinha". Seria horrível se eles um dia começassem a murmurar: "Sabem da última?
A Maria Valéria está apaixonada pelo noivo da irmã."
Com a testa encostada na vidraça, os olhos fitos na rua, ela agora ouvia mentalmente vozes repetirem aquelas palavras. E "os filhos da candinha" tinham caras conhecidas:
eram os homens que bebiam cachaça e contavam histórias sujas na venda do Schultz e na Casa Sol; eram também as mulheres que se encontravam à saída da missa e murmuravam
segredinhos: "Ouvi dizer que a Maria Valéria tem um rabicho danado pelo Curgo. Quem diria, hein? Vá a gente se fiar nessas santinhas ... " Só de pensar em tais coisas
ela ficava com as orelhas vermelhas, as faces quentes como chapa de fogão, e até a respiração se lhe tornava difícil, çomo se ela estivesse cansada dum. esforço
físico.
- Pois é, doutor - dizia Bibiana. - Fique com o seu progresso. Me deixe cá com as minhas antiguidades.
Rezende caminhava pela peça, em passos rápidos e aflitos, soltando no ar a fumaça azulada do charuto. De repente estacou junto de Curgo, segurou-lhe um dos botões
do paletó como se quisesse arrancá-lo e disse:
- Preciso voltar à redação. Estou preparando um número especial de O Democrata para amanhã. Os monarquistas vão ficar com a canela ardendo de inveja. Já comecei
a escrever a notícia da nossa festa.
- A festa de hoje de noite? - estranhou Bibiana.
- E que tem isso? Não é difícil imagínac o que vai acontecer. Não se esqueça de que estamos em 1884. O jornalismo moderno difere do antigo principalmente na presteza
com que dá as notícias.
A velha sacudiu a cabeça lentamente, murmurando: "Ora já se viu?" Rezende beijou-lhe a mão: "
- Muito obrigado pelo almoço - disse. - Foí um banquete digno dum nababo. - Fez um gesto largo. - Até logo para todos? Curgo, por volta das quatro estarei aqui nas
minhas roupagens
#6O2 O CONTINENTE

vermelhas de mouro, hein? Derrotaremos os cristãos e imporemos ao mundo o Império do Crescente. Viva ~ a República !
Precipitou-se para o vestíbulo, acompanhado de Juvenal que, de olhos ~á pesados, pensava na sesta.
- É bem doido - comentou Bibiana, sorrindo. E depois, mudando de tom: - Só não sei por que é que vassuncês, meninos, vão de mouros e nãoo de cristãos.
- p porque o vermelho representa a revolta, D. Bibiana - explicou Winter - a revolução, e também porque é a cor da mo- - cidade, nãoo é, Curgo?
- Não. Nós somos mouros porque os Amarais são cristãos. Bibiana olhou para o neto, sobressaltada. - Não vai haver perigo de sair briga de verdade? Não quero
que vocês se lastimem.
Licurgo sacudiu os ombros.
- .Estamos prontos pro que der e vier.
Florêncio olhava para Maria Valéria, que estava ainda ao pé da janeÍa. Sentia pelos filhos uma profunda afeição, embora não soubesse manifestá-la em gestos ou palavras
. de carinho. Admirava Maria Valéria: era ela quem, depois da morte da mãe, tomava conta da casa. Tinha coragem, bom-senso e espírito prático; não se preocupava
com vestidos ou enfeites, e não era dessas que vivem na frente do espelho, pensando em festas e namorados. Sabia fazer queijos, doce e pão; era uma cozinheira de
primeira ordem e herdara as mãos habilidosas da mãe, sendo hoje talvez a melhor rendeira de Santa Fé. Quando ela trabalhava com o bilro, Florêncio ficava distraído
a olhar o movimento de seus dedos a tramarem os fios por entre os alfinetes do almofadão. Já a Alice era diferente .. . Florêncio sentia por ela uma afeição misturada
de pena. Sempre a achara menos independente e corajosa que a outra. Parecia ser dessas moças que precisam permanentemente de proteção, que nasceram para viver à
sombra dum homem - pai, irmão ou marido. Quanto a Juvenal, era sem a menor dúvida o mais alegre e despreocupado de toda a família. Às vezes Florêncio ficava a perguntar
a si mesmo de onde o rapaz teria herdado aquele gênio. Olhava a vida sem pessimismo, gostava de festas, era trocista e costumava dizer que nãoo se casaria nunca porque
não era homem de gostar da mesma mulher a vida inteira. Florêncio lembrou-se dum dia em que chegara à casa abatido e contara aos filhos a decepção que tivera com
um homem que até então ele julgara ser seu amigo de verdade. Alice mirara-o com uma expressão de pesar. Maria Valéria, ocupada com preparar o jantar, não pronunciara
palavra. Mas Juvenal, sorrindo e encolhendo os ombros, dissera: "Faca que nãoo corta, pena que nãoo escreve, amigo que não serve, que se perca pouco importa." Era
bom ter um gênio assim - refletiu Florêncio. A gente sofre menos.
ISMALIA CAR; 6O3

- É am costume português - dizia Curgo à avó, que lhe perguntara sobre a origem das cavalhadas. - Foram os açorianos que tronxeiam pra cá.
- Mas a coisa vem de mais longe - acrescentou o Dr. Winter. E começou a dissertar sobre o reino dos visigodos e a citar nomes como Pelágio, Hermengarda, Roderico,
Vamba .. .
Esse alemão sabia coisas - refletiu Florêncio. Talvez fosse a única pessoa no mundo que sabia o que se tinha passado entre Bolívar e a mulher. em Porto Alegre, no
tempo da peste. Tudo Olevava a crer que pouco antes de ser- assassinado pelos capangas de Bento Amaral, Boli contara a Winter o seu segrédo.
O médico, porém, conservara a boca fechada. Depois ,daquele ~a em que Florêncio correra para o Sobrado ao ouvir tiros, e fora erguer do meio da rua o corpo ensangüentado
do primo - depois daquele dia horrível nunca mais tinham tocado no assunto. Era melhor nãoo remexer naquela ferida. Era melhor esquecer ... No entanto, tudo ali no
Sobrado agora lhe lembrava Luzia, Bolívar e os anos difíceis .que se _haviam seguido àquele casamento desastroso. Florêncio nãoo podia esquecer que Bolívar ficara
indiferente com ele, a ponto de por fim tratá-lo como a um éstranho. Essa era uma das grandes tristezas de sua vida. Outra de suas mágoas era a de nunca ter podido
dar à família uma vida de conforto e fartura. Perdia dinheiro em todos os negócios em que se metia. Era pura falta de sorte, porque não jogava, não . bebia, nunca
fora dado a mulheres; pulava da cama com o sol, ao raiar o dia é com o sol se deitava ao anoitecer. Não rejeitava trabalho, e Deus era testemunha do quanto ele amava
a família e do quanto desejava fazê-la feliz. Sempre que se lembrava da falecida era com uma saudade tocada de remorso: o remorso de não lhe ter podido dar uma-vida
melhor. Desde o dia eni que se casara até o dia em que a puseram no caixáo, enrolada numa mortalha que as próprias filhas coseram, Ondina havia trabalhado sem parar,
cozinhando, lavando e passando a roupa, cuidando da casa, dos filhos e do marido e ainda por cima`- coitada! - fazendo renda para vender. No entanto ele não lhe
ouvira nunca a menor queixa:
Florêncio olhou para Curgo, que discutia animadamente com o Dr. Winter. O rapaz era opiniático como os Terras e esquentado como o avô. Dentro de poucas semanas seria
seu genro. Florêncio aprovara o noivado mas nada fizera para encorajá-lo: nãoo queria dar motivo para dizerem que estava procurando casamento rico para a filha. Queria,
isso sim, que ela fosse feliz como merecia. Mas infelizmente aqueles dois iam começar a vida de casados já com uma dificuldade muito séria. Curgo tinha uma amásia.
Diziam que o rabicho era forte..Florêncio nãoo acreditava que o rapaz abandonasse a china. Conhecia dezenas de casos como aquele: duravam quase sempre toda uma vida.
Pensara a princípio em falar francamente
#6O4 O CONTINENTE
no assunto com o futuro genro, mas desistira da idéia, temendo um atrito. Licurgo tinha o sangue quente e detestava que lhe dessem conselhos. Que fosse tudo como
Deus quisesse!
O Dr. Winter levantou-se, espichou os braços, espregui~ando-se, e disse:
- Bom, vou fazer a parte do çachorro magro que enche a birríga e sai sacudindo o rabo.
Despediu-se e saiu. Bibiana acompanhou-o com os olhos e, antes de vê-lo desaparecer, gritou-lhe:
- Vassuncê vem à festa hoje de noite? O médico voltou-se e respondeu:
- Está claro que venho. Me acha com cara de capacho dos Amarais?
A velha fez um muxoxo.
- Ué! A genté vê de tudo no mundo.
- Argumentam ad ignorantiam! -.exclamou o médico. E
abalou.
Bibiana ficou-rindo seu risinho gutural e lento.
- Esse Dr. Winter sempre empalhando a gente com o seu alemão! - Depois olhou para o neto, que conversava com a noiva. e disse: - Vá dormir . a sua sesta, menino.
Licurgo franziu a testa, contrariado." Não lhe era nada agradável receber ordens da avó diante das primas.
- Não estou com sono - respondeu ele, com uma má vontade que lhe dava certo fio ás palavras.
- Mas vá - insistiu a velha. - Vassuncê .precisa descansar um pouco. O dia vai ser brabo e comprido. Sna noiva- não repara. não é, Alice?
- Não reparo, titia.
- Poís é. Vá!
Cargo apertava nQs dentes o cigarro agora apagado. De repente sentiu que a sesta ~lhe seria uma boa desculpa. para deixar. a sala: era=lhe difícil manter conversação
com i noiva.
- Está bom. Com. licença de todos, até mais tarde!
- Até mais tarde - disse Alice.
Maria Valéria não olhou para o primo.
Depois que Licurgo se retirou, Flòrêncio pôs-se dé pé. - Nós também vamos indo:
Bibiana ergueu a ,mão:
- Fiquem um pouquinho mais.
- A senhora não vai dormir a sesta?
- Quem foi que le disse que_ eu durmo a sesta?
Florêncio não respondeu. Sabia que todos os dias após o almoço
velha apanhava um jornal, acavalava os óculos no nariz, senta
va-se na cadeira de balanço e ficava a ler e a lutar . com o sono, de
pálpebfas pesadas -e meio caídas, mas mesmo assim teimando em
ISMALIA CARÉ 6O5

manter os olhos abertos. Por fim, vencida, deixava tombar o jornal e, de cabeça pendida sobre o peito, dormia profundamente. Acordava dali a meia hora num sobressalto,
piscava estonteada, remexia os lábios e estalavas a língua como se estivesse provando alguma coisa e, se via gente perto, tratava de disfarçar, dizendo:
- Quase peguei no sono .. .
Florêncio mirava-a agora, indeciso.
- Sente-se - ordenou ela. - E vassuncês também, meninas. Precisamós tratar dum assunto.
Pai e filhas obedeceram.
- Então - perguntou Bibiana, que continuava sentada à cabeceira da mesa - quando é que. resolvem se mudar. pro Sobrado?
Por um instante Florêncio" ficou mudo. Depois, sem olhar para a tia, murmurou
- Eu já lhe disse mais duma vez que nãoo acho direito.
- O que nãp é direito é roubar, matar, pregár mentiras, tirar a mulher dò próximo. -
- Se a senhora quer a minha opinião, titia - interveio Maria Valéria - eu estou com o. papai. Não fica diréito.
- Ninguém pediu a sua opinião.
- Mas eu dei.
- Que é isso, minha filha? - repreendeu-a Florêncio suavemente.
Bibiana mirou a moça sem rancor. _Por mais que Maria Valéria às vezes a imtasse, não podia deixar. de adurirá-la. Gostava de gente franca é despachada. "
- Pois é - prosseguiu a velha tranqüilamente. - Esta casa é gnnde que. nem potreiro e no entanto vive a bem dizer vazia. Vassuncês moram naquelé coçhicholo velho,
úmido, sem vidraças nas janelas, todò cheio de goteiras. E pagam um despropósito de aluguel. Isso é que não é direito.
,Florêncio sacudia negativamente a cabeça, chupando o cigarro com nm certo constrangimento,-pois ainda nãoo se habituara a fumar diante da tia.
- Tudo isso está bem - concordou. - Mas é que podem dizer que estamos vivendo à custa da senhora e do Cargo.
- Póis que digam. Não é verdade. - Olhou para Alice e sorriu. - O seu caso já está resolvido, não é, minha filha? - Píscon-lhe o olho, fazendo um sinal de cabeça
na direção de Florêncio e de Maria Valéria. - Deixe esses dois velhos cabeçudos morando sozinhos naquela baiúca. Um dia eles hão de se entregar, não é?
Ergueu-se, dizendo
- Está bom. l~gora podem ir.
Florêncio beijou a mão da velha e saiu a manquejar na direção d= porta da rua. ,
#6O6 O CONTINENTE
Alice beijou a tia em ambas as faces, mãs Maria Valéria limitou-se a apertar-lhe a ponta dos dedos. Quando, acompanhadas do pai, as moças já estavam no vestíbulo,
Bibiana gritou-lhes:
- Venham logo que anoitecer! Quero que me ajudem a receber os convidados.
Ficou parada junto da mesa, pensando... Ouvia a batida da porta que se fechava. Sabia que queria uma coisa mas nãoo se lembrava do que era. Por alguns segundos teve
uma sensação estonteante de vazio na cabeça. De repente, lembrou-se.
- Lindóia! - gritou. E quando a negra apareceu, ela pediu- -~ O jornal.
A escrava trouxe-lhe o último número de O Democrata, que Bibiana pôs debaixo do braço, e depois, em passos lentos, dirigiu-se para a escada e começou a subir devagarinho,
pensando em como ia arranjar-se quando estivesse velha demais para galgar aqueles degraus. Havia três soluções. Ficava lá em çima e não descià mais; mudava-se para
o andar de baixo e nunca mais subia; on então pediria que dois negros. a carregassem no colo, sempre que precisasse subir. Mas nenhuma das três soluções prestava!
O melhor mesmo talvez fosse morrer. Assim ficava estendida dentro do caixão, quieta, debaixo da terra; não tinha de subir nenhuma escada e não incomodava mais ninguém...
Próntó!
6
Pouco antes das quatro , da tarde, com o charuto preso entre os dentes, Toríbio Rezende irrompeu dramaticamente Sobrado. adentro, todo metido nas -suas vestes vermelhas
de mouro, ,pregando um susto à escrava que lhe veio abrir a porta. Galgou "em dois pelos os degraus do vestíbulo e, arrancando a espada, precipitou-se para o andar
superior e fez algo que não teria a coragem de fazer em condições normais, isto é, se aquele fosse nm dia como os ostros e ele envergasse sua roupa preta. domíngaeira
e tivesse o pescoço entalado num colarinho duro: entrou no quarto de Licurgo sem bater. Abriu a porta num repelão e, erguendo a espada, bradou:
- Alá! Alá! Alá! Sangue! Quero muito sangre!
Estacou à frente do amigo que, também metido nas soas roupas de mouro, se encontrava sentado na cama, numa atitude de profundo desânimo. Toríbio baixou a mão -que
segurava a espada, franzia a testa e perguntou:
- Mas que cara é essa, homem?
Curgo ergues para ele dois olhos infelizes: - Que horas acro?
Toríbio não respondeu de imediato. Um pouco ofegante da
ISMÁLIA CARA 6O7

corrida, tratava de meter a arma na bainha, o que fez com alguma dificuldade. Depois, encarando o companheiro, disse:
- Quase quatro. Mas que foi que houve?
Curgo levantou-se lentamente. Naquelas roupagens berrantes, com o turbante de veludo na cabeça, parecia ainda mais alto e corpulento do que realmente era. Estava
de blusa e bombachas de cetim vermelho, botas de couro negro, muito lustrosas, e esporas de prata.
Preso ao turbante luzia um crescente de lata ; e do lado esquerdo da blusa, como a indicar ao inimigo o coração do guerreiro, via-se outra meia-lua ainda maior,
bordada com fio- de prata.
A mão de Curgo crispava-se, nervosa, sobre o cabo do alfanje (de madeira, feito pelo Tuta Marceneiro) que pendia do cinturão de couro juntamente com o revólver de
cabo de madrepérola.
- Nunca pensei que ia ficar tão esquisito com esti fantasia - resmungou ele, baixando os olhos. - Quando me olhei no espelho, cheguei a encabular .. .
- Ora, não seja bobo!
- Pois bobo é como me sinto, vestido deste jeito. Não tenho coragem de sair pra rua.
Toríbio cruzou os braços, puxou uma baforada e ficou a mirar o amigo com um olhar entre impaciente e irônico. Não era de admirar que Licurgo sentisse aquilo - refletiu.
Parecia ser nm traço dos Terras detestar tudo quanto fosse ostentação e atitude teatral. Não gostavam de pessoas "semostradeiras" : eram homens secos, prosaicos
e reservados, que viviam por assim dizer em surdina, procurando nãoo chamar sobre si mesmos a atenção dos demais. Licurgo até que não era dos piores. Florêncio, esse
sim, levava aquelas manias ao extremo.
- Estou que nem um palhaço ... E dizer que tenho de montár a cavalo e me mostrar na frente de centenas de pessoas!
Tinha horror ao ridículo. Achava que a vida real era muito diferente da imitação dela que nos apresentam as novelas e as peças de teatro. Nunca tivera paciência
para ler um livro até o fim. Instado por Toríbio, começara a ler romances de autores famosos como José de Alencar e Bernardo Guimarães; nunca, porém, chegara a passar
da página cinqüenta. Parecia-lhe uma infantilidade perder tempo com histórias de gente que nunca tinha existido de verdade e que, além do mais, pensava, fazia e
dizia coisas que uma pessoa sã do juízo não pensa, não diz nem faz. De todos os romances que começara nenhum lhe parecera mais absurdo que O Guacari. Onde se viu
um bugre bronco como Perí falar bonito e difícil como um advogado ou um deputado?
Travestido de mouro, Licurgo agora se senta improvável e grotesco como uma personagem de romance. Vira muitas cavalhadas em sua vida. Apreciava a coisa como jogo,
mas sempre re-
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cusara tomar parte nela por causa da "palhaçada das roupas". Daquela- vez, porém, havia cedido ante a insistência de Toríbio e de outros amigos, e levado também
pelo caráter excepcional daqueles festejos.
- Pois eu gosto tanto desta fantasia e desta cor - confessou Toríbio com veemência - que se pudesse andava sempre vestido assim .. .
- Cada qual com o seu gosto, nãoo é?
- Bom, mas agora é tarde pra voltar atrás. Vamos embora. Não te esqueças de que há mais dez sujeitos vestidos como nós. E mais doze de azul, com penachos na cabeça.
Tomou do braço do amigo, procurando arrastá-lo para fora do quarto.
- Depois, meu caro, lembra-te de que as cavalhadas são uma tradição desta província. Antes de ti teus avós andaram vestidos assim, e não me venhas dizer que és melhor
e mais respeitável que eles.
Curgo apanhou com relutância a espada que pertencera ao avô
- apresilhou-a à cinta. Soltou um suspiro e postou-se mais uma vez diante do espelho do lavatório. O pior de tudo era aquele turbante feminino a coroar-lhe o rosto
tostado, num ridículo contraste com a bigodeira preta. Parecia mesmo um turco. Imaginou a cara de certas pessoas de Santa Fé que deviam estar. presentes à festa.
Viu-as cochichando e rindo à socapa quando ele passava. Teve gana de precipitar-se sobre elas e dar-lhes umas boas esgaldeiradas no lombo. Canalhas!
- Coragem, homem! - exclamou Toríbio. - Não é questão de coragem .. .
.Curgo olhava para a imagem do espelho como para um estranho,
- um estranho com quem não simpatizava nem um pouco. Fez meia volta e balbuciou
- Não há outro remédio. Vamos.
Saíram do quarto e desceram a escada, num tinir de espadas e esporas.
Encontraram Bibiana na sala de visitas, sentada numa cadeira de balanço. Pararam na frente dela perfilados, como para uma revista. Toríbio tirou respeitosamente
o charuto da boca e escondeu-o no côncavo da mão. Na verdade a expressão de seu rosto equivalia a uma pergunta infantil: "Estou bonito?" Curgo, entretanto, tinha
um aspecto taciturno: sentia-se como um menino que acaba de fazer nma travessura e espera a repreensão do pai. Por alguns segundos os dois quedaram-se nà frente
da velha, silenciosos
- expectantes. Bibiana olhou-os criticamente e depois, com um brilho de malícia nos olhos, disse:
- Parecem dois burlantins.
Curgo voltou a cabeça para o amigo e vociferou: - Eu uão te disse?
ISMALIA CARA 6O9

Naquele momento a Banda de Santa Cecília rompeu num dobrado. Em passadas largas; Curgo aproximou-se da janela e olhou para fora. Sob um céu sem nuvens, dum azul
intenso, a praça cintilava ao sol, numa mobilidade colorida de calidoscópio. Soprava uma brisa fria, o ar estava leve e picante. Coladas a fios suspensos entre os
postes da ilumínação e as árvores, esvoaçavam bandeirinhas triangulares azuis, encarnadas, verdes, amarelas e brancas. Dos ramos da figueira grande pendiam guirlandas
de~ flores artificiais. A luz reverberava nas fachadas brancas das casas, fazia chispar as vidraças
- os instrumentos da banda de música - o que contribuía para aumentar ainda mais a.claridade festiva da tarde. À frente da igreja erguia-se um coreto rústico, também
enfeitado de bandeiras e flores,
- no qual já estavam acomodados o vigário e as autoridades municipais com suas famílias. Ao longo dos quatro lados da arena retangular na qual se iam bater mouros
e crístãos, homens, mulheres e crianças, metidos quase todos em suas roupas domingueiras, achavam-se sentados em bancos ou cadeiras que haviam trazido de suas casas.
O estandarte dos cristãos tremulava ao vento, plantado à frente do palanque principal. O "castelo" dos mouros, tendo a uma de suas quinas a bandeira vermelha do
crescente, não passava duma plataforma quadrada feita de pranchas de madeira que repousavam sobre pilares de tijolos, à frente da figueira grande.
O estrado onde os músicos se esfalfavam- a tocar o dobrado marcial, ficava no lado da arena que dava para o Sobrado.
Licurgo contemplou por alguns segundos o quadro alegre. Pombas voavam ao redor do campanário da Matriz. O vento que agitáva as bandeirinhas cheirava a campo. (Por
que será que a Ismália ainda não chegou?)
A senhora não vai à festa? - perguntou Toríbio.
- Vou assistir à coisa aqui da janela. As meninas do Florêncio também vêm pra cá. É melhor do que ficarem naquele amontoame_ nto, tomando sol na cabeça.
Toríbio tocou o ombro do companheiro.
- Vamos embora!
Curgo voltou-se e respondeu:
- Vamos, antes que eu me arrependa. A bênção! - pediu, beijando a mão da avó.
- Deus te abençoe. E tenham juízo. Não façam nenhuma loucura. Olhem que isso é um brinquedo e nãoo uma guerra de verdade.
Quando viu Licurgo afastar-se, de espada e pistola à cinta, Bibiana Terra Cambará teve um mau pressentimento. Lembrou-se da hora em que, havia quarenta e oito anos,
dissera adeus ao marido que ia atacar o casarão dos Amarais... ("Me frita uma lingüiça que eu já volto, prenda minha!") Em sua mente a imagem de
#61O O CONTINENTE
Rodrigo fundiu-se com a de Bolívar, que atravessava a rua de pistola na mão, gritando como um possesso .. . - Licurgo! - exclamou ela.
O rapaz estacou e fez meia volta.
Naquele momento Bibiana teve a impressão de que o neto era uma mistura de Pedro Terra, do Cap. Rodrigo e de Bolivar. Três homens num só e esse um agora também ia
para a guerra. Era nma guerra de brinquedo, sim, mas nela entravam homens, armas, cavalos e perigos. Tudo podia acontecer. Cambará macho não morre na cama. Ela não
podia. esquecer aquele ditado do capitão .. . Curgo era Cambará e macho. Uma rodada ... Um pontaço de lança que alguém lhe desse sem querer ... ou de propósito,
porque um Amaral é capaz de tudo .. .
- Que é, vó?
- Nada. Vá com Deus:
Licurgo se foi. Bibiana ficou a ouvir dentro_ da cabeça o eco de suas próprias palavras. Vá com Deus. Era sempre o que as mulheres diziam quando seus homens partiam
para a guerra. Vá com Deus. Eles iam com Deus. Uns voltavam inteiros. Outros voltavam estropiados, como o pobre dõ Florêncio. Outros não voltavam mais, nunca mais,
como o Fandango Segundo. Adiantava algema coisa dizer - Vá com Deus? Deus, me perdoe.. .
Ficou onde estava, sofrendo não apenas aquele momento, mas os muitos outros momentos negros do passado em que dissera adeus a entes queridos que partiam para a guerra,
para longas viagens ou que saíam daquela casa para o cemitério dentro dum caixão.. .
Na rua ao sol, Licurgo teve a impressão de que as cores de suas vestes ficavam ainda mais berrantes. Sentia-se perturbado como se estivesse prestes a desfilar completamente
nu pelo meio de todo aquele povo.
Os companheiros, os restantes dez mouros, estavam já montados em seus cavalos, à frente do Sobrado. Cinco deles eram membros do Clube Republicano; os outros cinco
pertenciam aos Partidos Liberal e Conservador, pois a comissão organizadora das festas achara conveniente "misturar os rebanhos", a fim de evitar que as cavalhadas
degenerassem em conflito político.
Ao ver aqueles homens também vestidos de vermelho, alguns até com enfeites de vidrilho no turbante, Licurgo ficou um pouco mais consolado.
Levaram algum tempo para fazer o Dr. Toríbio montar. Além de ser mau cavaleiro, o homem tinha as pernas curtas, e o espadagão que trazia à cinta embaraçava-lhe os
movimentos. Dois companheiros seguraram-lhe as pernas e ergueram-no para a sela, trocando sorrisos maliciosos, pois para aqueles gaúchos nenhum homem era
ISMALIA CARA 611

digno desse nome se não fosse bom cavaleiro. Curgo achava qne teria sido melhor se Toríbio houvesse desistido de tomar parte nas cavalhadas: estava farto de qne
o amigo ia fazer papel ridículo, e isso o deixava inquieto.
Uma batida de bombo, qne ecoou na praça como um tiro de mortéiro, pôs fim ao dobrado, o que nãoo impediu que a pistonista, distraído, soltasse ainda duas- notas,
que subiram desgarradas no ar, provocando risos entre õ público.
O-sino da igreja deu três lentas badaladas. Era o sinal convencionado para começar o torneio.
Licurgo gritou
- Vamos embora, minha gente!
Pondo os cavalos_ a trote, os mouros dirigirarrl-se para o lado do quadrilátero que dava para a igreja, pois era por lá que deviam entrar_ na arena. Com a mão esquerda
segurando as rédeas e com a dir~Yta .empenhando a lança,. Licurgo .abria a marcha. Sentia no rosto uri calorão de vergonha, o suor começava a brotar-lhe da testa
e seus olhos estavam meio ofnsc~dos. (Quem ~sería o "gracioso" que da janela duma das casas, lá do outro lado da praça, estava focando nele o reflexo cegante dum
espelho? Cachorro 1 Só a bala 1) Curgo não distinguia as pEssoas com clareza: via manchas, vultos, faces móveis mas sem fisionomia ... Passando pela frente do palanque
principal, vislumbrou a~silhneta negra do padre. Mantinha a cabeça ergnídà, os olhos, à altura dos telhados das casas fronteiras. Começaram os aplausos, primeiro
tímidos, depois mais fortes e coesos. A banda atacou um novo dobrado: Cavalaria Farroupilha, da antoris do Jota Paz, o trombonista. Aos compassos vibrantes da música
Curgo teve, mau grado seu, um estremecimento de entusiasmo, nma espécie de exaltação patriótica que lhe deu um frenético desejõ de ação guerreira e heróica. Procurou
dominar esses sentimentos, que iam tão bem com suas roupagens mouriscas e que lhe pareceram tão espalhafatosos e absurdos quanto elas. Bobagem! Aquilo não passava
duma festa, dum jogo: nãoo havia razão para tais entusiasmos. Mas aquele diábo de música sugeria-lhe mesmo ama erga dos cavalarianos de Bento Gonçalves. E ele tinha
na cintura a espada do Cap. Rodrigo: aquela arma na verdade tomara parte na Guerra dos Farrapos! Licurgo apertou com força a haste da lança. Devia ser bom a gente
entrar numa carga de lanceiros, rachar nm quadrado inimigo.. .
Esporeou o animal, que transformou o trote num galope: os outros cavaleiros mouros o imitaram e assim, sob gritos e aplausos.
#612 O CONTINENTE _
chegaram ao seu "castelo", diante do qual se dispuseram numa fila singela.
- Que espetáculo! - exclamou Toríbio.
- E que dia ! - comentou o homem que estava a seu lado. - Parece que foi feito de encomenda. Um céu azul e limpito!
- E bem frescote - observou outro cavaleiro mouro.
Corgo permanecia silencioso. Um suor frio escorria-lhe pelo rosto, que ele escanhoara havia menos duma hora. Seu peito arfava ao ritmo duma respiração comovida,
e sua mão apertava ainda com apaixonada força a haste da lança. Olhou. para o Sobrado e viu a avó, a noiva e Maria Valéria debruçadas à janela. Desviou o olhar de
sua casa, demorou-o um instante no palanque principal e depois passeou-o em torno da arena. Via agora os bonifrates que se alinhavam nos dois lados mais longos do
quadriláterò, com suás caras grotescas e suas cabeças descomunais de pano. Licurgo contou-os: havia dez "guerreiros" de cada lado.
- Lá vêm os crístáos! - exclamou alguém.
O que Licurgo viu a princípio por trás das árvores da-praça foi uma mancha azulada e móvel, picada de rebrilhos. Finalmente Alvarino Amaral, de penacho ao vento,
entrou na arena à frente de seu. grupo, montado num belo alazão muito bem aperado. Os cristãos postaram-se à frente da igreja. Envergavam blusas e bom= bachas dum
azul claro, uma capa curta atirada sóbre o ombro esquerdo e chapéus também azuis de aba larga, dobrada e costurada a copa, e enamados por penachos brancos. Curgo
agora observava o garbo com que se apresentava Alvarino Amaral: seus arreios eram chapeados de ouro e no boçal, no cábresto, no rabicho e nas rédeas luziam filigranas
de prata.
- Palhaço! - murmurou. O patife nãoo perdia ocasião de ostentar sua riqueza. A pratariá do casarão dos Amarais era famosa peia abundância e pela variedade. Prata
roubada - diziam -.produto de pilhagens feitas em muitas guerras e em muitos lugares da Província e da Banda Oriental por várias gerações de Amarais, a começar pelo
famigeradó Cel. Ricardo, tronco da família.
- Olhem só a faceiríce daqueles fletes - exclamóu um dos mouros.
Os cavalos dos cristãos tinham as colas trançadas e amarradas
com fitas azuis e brancas. Para Licurgo todo aquele aparato era
vaga e repulsivamente- feminino. Só por isso - "concluiu ele -
Alvarino merecia levar uns pranchaços de espáda nas paletas.
- Moçada linda ! - exclamou um dos mouros. - E bem montada! - elogiou outro. Corgo voltou-se para os companheiros:
Preparem-se. Quando derem o sinal, vamos começar as evolu
ções de picaria.
Alguém se pôs de pé no palanque das autoridades. Era o juiz
ISMALIA CARE 613

de direito. Ergueu para o céu uma pistola, e disparou-a: a arma cuspiu fogo e seu estampido séco ecoou atrás da igreja. Era o sinal.
- Vamos embora! - exclamou Licurgo. - Primeiro a um de fundo.
Seguindo seu "mantenedor-", os mouros fizeram a voltá da arena a galope, ~ soltando gritos de guerra e brandindo as lanças. Depois, prendendo estás ao arção da selá,
desembainharam as espadas e simularam umá carga contra os cristãos, fazendo estacar dramaticamente os animais a poRcos metros das fileiras inimigas. Estrugiram palmas.
A banda de música interrompeu o. dobrado e começou a tocar uma valsa, cuja melodia era familiar a Licurgo. Chamava-se Saudades do Reno e tinha sido composta por
um colono de Nova Pomeranía. Olhou para Toríbio e viu-o agarrado à cabeça do lombilho, ofegante e suado. Em todas as evoluções ficara sempre para trás, provocando
risos:da assistência, de onde alguém já lhe gritara: "Socando canjica, miserável!"
Os mouros formaram uma circunferência e puseram os cavalos a andar a passo, ao ritmo da música.. Quando já tinham feito um bom- número de evoluções e figuras, Licurgo
ordenou:
- Agora, a toda a brida pro castelo l
Os mouros precipitaram-se na direção de sua bandeira a todo Ogalope, gritando fino - hip-hip-hip-hip! Toríbio. foi o último a chegar. Curgo lançou-lhe um olhar
rancoroso, mas o advogado como única resposta -lhe sorriu candidamente.
Poucó antes. de os cristãos çomeçarem suas evoluções, ergueu-se da assistência um ah! de admiração. Cabeças voltaram-se na direção da fortaleza dos infiéis. Surgia
de trás da figueira, montada em belo cavalo branco, uma donzela de cabelos louros soltos ao vento e com o rosto escondido sob uma máscara de pano preto. Donzela?
Tódos logo perceberam que se tratava, como de costume, dum homem vestido de mulher. Era Floripa, a princesa cristã que os mouros mantinham prisioneira em seu castelo,
e que os cristãos em breve iriam libertar. Mas quem era que estava fantasiado de Floripa? - perguntavam-se os espectadores. Ninguém párecia saber ao certo. Alguns
davam palpites .. .
Um dos mouros aproximou seu cavalo do de Floripa e perguntou:
- Como é moça, vamos ou não vamos dormir juntos esta noite?
A "princesa", porém, permanecia silenciosa. Seu vestido branco, batido pelo sol, era também um foco de , luz. Pela abertura da máscara viam-se dois olhos escuros
meio assustados.
- Como vai a coisa? - perguntou-lhe Toríbio.
A resposta veio numa voz grossa e aflita:
- Puxa! Estou com falta de ar.
#614 O CONTINENTE

- Não há de ser nada - replicou Corgo. - Os monargnistas, digo, os cristãos já vêm aí e a folia acaba logo. Paciêncis.
Do público partiam risadas, gritos e dichotes dirigidos a Floripa. A banda prosseguia na valsa lenta e o contrabaixo fazia nm-pa-pa.. . nnn-pa-pa ... Os cristãos
começaram soas evoluções. Estavam magnificamente ensaiados, e nos seus cavalos-bem aneados e faceiros, "fizeram mais vista" que os mouros, como disse o Dr: Tonáio.
Alvarino comandava-os com o garbo dum grão-senhor. Ao passo pela frente dos adversários fez nm floreio cavalheiresco com a espada nua e sorriu, mostrando o canino
de ouro qne lhe cintilou sob oa bigodes negros, lustrosos de cosmético.
- Filho da mãe? - resmungou Corgo.
No centro da arena os cristãos agora erguiam para o ar sena bacamartes e disparavam. O tiroteio deu a impressão de . qne a praça era uma enorme panela onde pipocas
gigantèscas estivessem a estourar. A assistência rompeu em aplausos entusiásticos.
- O velho sentimentalismo popular - comentou Totíbio a Licurgo. - O povo está sempre- do lado da justiça e do bem, contra õ crime e o mal, sempre do lado dos anjos
contra os dem& nios. E natural que nesta oiça o coração da turbamulta bata de amor pelos cristãos e de ódio pelos mouros. Amigo Corgo, não podemos contar.com a simpatia
da assistência. O remédio é batizarmo-nos, trocando o .crescente. pela cruz de Cristo.
Em obediência às regras do jogo, Corgo mandou aos cristãos o seu emissário, o Veiguinha, filho do proprietário da Casa Sol. O rapaz aproximou~se a galope do reduto
cristão e bradou ao comandante inimigo que veio a seu encontro:
O mui alto e poderoso rei da 16laurit~ia, Senhor do meio sol e da meia lua, lGlandou-me cá à presença tua Impor-te com a maior severidade, Qual é, e qual deve ser
sua vontade!
Declamou os outras versos a plenos pulmões, mas -sua voz. abafada pela música, principalmente pelos roncos do contralxiizo, não chegava até a assistência.
Quando Veiguinha terminou, Alvarino Amaral deu-lhe a sw resposta altiva : os cristãos não se renderiam aos moncos. maa lutariam até a vitória final e a libertação
de Floripa. - E dedaron:
ISMALIA CARA 615
Veiguinha voltou, sob apupos, a seu castelo, para dar conta da missão ao chefe.
A batalha começou. A um sinal partido do palanque, ambos os grupos precipitaram-se a toda. a brida um contra o outro, em fila simples, gritando como selvagens e
brandindo nd ar suas armas. No centro da arena fizeram os cavalos estacar, quase peito contra peito, e terçaram lanças, por alguns segundos. Licurgo viu-se a "lutai
" contra um membro do Clube Republicano. Não trocaram palavras nem sorrisos: estavam demasiadamente compenetrados de seus papéispara se lembrarem de que eram correligionários.
e amigos.
Depois de rápida escaramuça, ambos os grupos voltaram para seus lugares. No dos mouros, Floripa esperava, sentada agora pacientemente numa cadeira, no centro do
estrado.
Estava combinado que um cavaleiro cristâõ iniciaria os torneios individuais. Alvarino Amaral esporeou o cavalo e, de lança em riste, saiu a alvejar os bonifrates.
A cada "homem" que derrubava, a multidão aplaudia com gritos e palmas. Depois de percorrer o lado direito, Alvarino voltou pelo esquerdo, fazendo tombar ao todo
quinze bonecos. Quando o comandante cristão tornou a seu lugar; Licurgo saiu a lancear açodadamente os bonifrates, como se todos eles fossem membros da fàmília Amaral..
Sua fúria era tão grande e perturbadora, e ele precipitara o cavalo a tamanha velocidade que. errou os primeiros cinco golpes - o que provocou gargalhadas na multidão.
Cada vez mais enfurecido, Corgo continuou a carregar: acertou num, depois noutro e assim foi até o fim, deitando por terra os bonecos restantes sendo que trespassou
a cabeça do último com a lança e ergueu-o dramaticamente no ar. A assistência prorrompeu em grandes aplausos. A banda de música tocava um galope. íJfegante, o rosto
lustroso, o suor a entrar-lhe incomodamente nos olhos, Corgo voltou para junto dos seus homens. Os bonecos foram de novo postos de pé e o torneio prosseguiu, enquanto
no palanque o Dr. Winter e o juiz de direito, munidos de lápis e papel, tomavam nota do número de pontos feitos pelos membros de cada grupo. Quando chegou a vez
de Toríbío, o baiano ficou onde estava, todo encolhido e de olhos baixos em cima do cavalo, pois sabia que para andar a galope teria de agarrar-se na cabeça do lombilho,
o que lhe tornaria impossível manejar a lança. Da assistência partiam gritos: "Que saia o baiano! Que saia o baiano!" Estouravam risadas. 1Vluito vermelho, o Dr.
Rezende erguia a mão para o ar, fazendo que não com gestos frenéticos. Indignado, Licurgo murmurava
- Eú bem te dizia, Toríbio. Devias ter dado teu lugar pro Fandanguinho ou pra qualquer outro. Estás nos fazendo passar uma vergonha danada.
- Não seja bobo - replicou o advogado. - A vergonha é minha. Olha só pra minha cara. Estou tranqüilo, hein?
Um só de meus guerreiros bastaria
Para dar cabo de toda a mouraria. Volta e vai tuas hostes preparar
Que dentro em pouco hei de vencer e batizar.
#616 O CONTINENTE

Naquele momento ouviu-se um tropel e um cavaleiro surgiu de trás da figueira. O mascarado! - gritaram vozes. Era costume nas cavalhadas haver um palhaço, um cavaleiro
mascarado que fazia evoluções humorísticas para divertir a assistência nos intervalos entre os torneios. Tinha, porém, ficado resolvido pela comissão organizadora
da festa que nãoo haveria nenhum mascarado naquela cavalhada. Quem era, pois, o recém-chegado?
- público rompeu a rir. A banda parou de repente de tocar e os músicos ficaram olhando a sorrir para o mascarado, que vestia um macacão amarelo, e tinha na cabeça
o velho chapéu de chaminé que pertencera ao Dr. Winter; seu rosto. estava. escondido por trás duma grotesca máscara de papelão. O mascarado desembainhou a espada,
aproximou-se do palanque principal e fez uma continência.
O juiz de direito ergueu-se e perguntou:
- Quem sois?
- desconhecido não respondeu. Um dos cristãos acercou-se dele e disse:
- Vá tirando a máscara, moço .. .
Sem pronunciar palavra, o homem de amarelo bateu com a espada na lança do outro, numa provocação. Por alguns instantes ficaiam a terçar armas, sob as risadas- dos
espectadores. O mascárado soltava gritinhos - hi-hi-hí-hüi - e num dado momento deu de rédeas, fez o .ginete sair a todo o galope, e; perlongando o quadrilátero,
começou a golpear os bonifrates. Com uma felicidade e uma destreza raras, foi-lhes decepando as cabeças uma por uma, errando apenas cinco golpes. Por fim, com um
"crânio" espetado na ponta da espada, sofrenou o cavalo diante dos juízes, sob grandes aplausos. O Pe. Romano pôs-se de pé e sua larga cara rosada lúziu risonha
ao sol.
- Convido o meu belo amigo a tirar a máscara! - disse ele de maneira aliciante.
De vários pontos da praça partiram gritos: "Tira a máscara! Tira a máscara!"
- mascarado saltou do cavalo para o chão, jogou para o ar a cabeça do boneco, embainhou a espada e, voltando-se para o estrado da banda, pediu
- Música, moçada!
- Dr. Wínter julgou reconhecer a voz ... Mas seria mesmo quem ele suspeitava? Não. Impossível.
A banda começou a tocar uma polca e, quando o homem de amarelo arrancou a máscara, as pessoas mais próximas exclamaram em uníssono
- O Fandango!
- clamor da multidão aumentou. Explodiram gargalhadas e palmas, que se misturaram no ar com a melodia saltitante da polca. E ali na frente do palanque, os olhinhos
vivos e travessos postos
ISMÃLIA CARA 617

nos juízes, a barbicha branca esvoaçando à brisa da tarde, José Fandango sorria, de braços abertos .. .
A novidade chegou aos ouvidos de Curgo.
- O homem tirou o disfarce - contaram-lhe. - ~ o Fandango.
- Velho desfrutável! - exclamou ele, entre zangado e enternecido. - Vestido de amarelo, como um palhaço de circo de cavalinhos! E nem me contou que ia fazer isso,
o ingrato!
Outro mouro comentou;
- Mas viram que destreza tem o diabo do velhote?
- Está com mais de setenta no lombo, rnínha gente. Isso é que é, resistência.
- O Dr. Toríbio devia até- ficar envergonhado.
- baiano limitou-se a resmungar:
- Não me amolem.
- Pe. Romano desceu do palanque para ir apertar a mão do capataz.
- Venha sentar-se conósco, Sr. Fandango - convidou. Vassuncê é o herói do dia.
Fandango deu o braço ao padre e caminhou com ele para o estrado das autoridades.
A notícia do inesperado acontecimento chegara já à janela do Sobrado. Bibiana disse às sobrinhas:
- Esse velho assanhado ainda vai acabar morrendo numa dessas travessuras.
Fingia zanga, mas no fundo estava orgulhosa.. Fandango era "gente do Sobrado" e acabara de dar àquele povo uma demonstração do quanto os antigos eram melhores que
os "moços de hoje em dia".
Alice e 1V~aria Valéria assistiam com interesse ao espetáculo. A primeira perguntou:
- E agora, tília?
- Agora - respondeu Bibiana - os cristãos vão salvar a Floripa.
Na praça o povo preparava-se para o momento culminante da guerra. Ouviu-se uma clarinada. Era o sinal convencionado para a carga final. Os mouros desceram de seus
cavalos, amarraram-nos ao tronco da figueira e depois vieram entrincheirar-se à frente de sua fortaleza, de espingardas em punho, enquanto Floripa, sempre sentada
na sua cadeira, pernas e braços cruzados, esperava pachorrenta. Alvarino Amaral ergueu a espada e gritou: "Avante!" Soltando gritos de guerra, os cristãos se atiraram
ao ataque a todo o galope. Batido pelas patas dos doze animais, o chão soava como um grande tambor surdo.
- Fogo! - bradou Curgo. Seus homem dispararam as espingardas quase ao mesmo tempo. Os cristãos fizeram alto subita-
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mente e simularam uma retirada em desordem. Um dos mouros, nam gesto absolutamente fora do programa, apanhou a bandeira vermelha que estava plantada a uma das gnínas
do "castelo", e começou a agitá-la no at, gritando: "Já se entropigaitaram os cristãos!" Soltou uma gargalhada rascante, que foi abafada pelo ruído dos aplausos.
Voltaram os cavaleiros da cruz ao ataque e, apeando dos cavalos, lançaram-se contra o forte mouro de espadas desembainhadas. Os infiéis também arrancaram as espadas
e o entrevero começou. Retinindo e lampejando, ferros chocaram-se no ar. A banda tocava um galope frenético em que o contrabaixo resfolgava como um homem gordo à
cadência duma respiração de susto. Os guerreiros vociferavam blasfêmias. Licurgo defrontou-se com o coletor estadual, mas com o rabo dos olhos viu Alvaríno Amaral,
que sorria mostrando o canino de ouro. (Que cara boa pra uma bofetada") A princípio mouros e cristãos terçaram armas, cada grupo formado numa fila simples mais ou
menos regular, mas depois de meio minuto de luta a formação foi quebrada, os mouros saltaram do estrado para o chão e o entrevero então foi completo. Os contendores
trocavam gravatas:
- Olha que te degolo!
- Lá vai ferro!
- Já te capo!
- Te defende!
- Toma esta que a tia Chica te mandou!
O público, exaltado, aplaudia sempre. Muitos daqueles homens
que ali estavam sentados tinham tomado parte em revoluções e
guerras. Quando sentiam cheiro de pólvora ou ouviam o tinir de
arma branca, ficavam excitados. Um velho magro, que se achava
acocorado nas proximidades do forte mouro, picando fumo com
sua faca de cabo de osso, gritou para os vizinhos:
- Como é, moçada, vamos também entrar no barulho? Um homem de barba cerrada e chapéu de palha exclamou - Sai, velhote! Tu nem pode mais com as calças... O velho
voltou-se para ele, fulo, e vociferou: - Eu te mostro, cachorro!
E atirou-se contra o outro de faca em riste. "Que é isso, sen Pires?" - gritaram. O velho foi agarrado e levado à força para seu lugar, enquanto o homem de chapéu
de palha desculpava-se, com nm sorriso amarelo:
- Estou brincando, amigo. Então não se pode nem caçoar?
O velho ofegava; lançando para o outro um olhar torvo.
As atenções tornaram a voltar-se para o torneio. Um cristio naquele momento saltava para dentro do "casteló ", arrebatava Florípa, montava no seu corcel, içava a
princesa para a garupa e saía a galopar na direção de seu reduto, sob aplausos gerais. Flo
ISMI~LIA CARr 619

ripa fora libertada! Mas. agora o público queria ver a cara da "princesa". "Tira a máscara!" - gritavam. O cavaleiro que salvara Floripa fê-la descer do ginete.
Alguns espectadores não se contiveram: invadiram a arena e ali mesmo, -abaixo de gritos e risadas, arrancaram-lhe primeiro a máscara e depois as roupas. "E o Liroca!"
- exclamaram. "O Liroca!" - "1VIe larguem!" - gritava José Lírio, quase chorando de ráíva. - "Me larguem, miseráveis!"
Os outros continuavam a despi-lo sem piedade, e iam agitando no ar as vestes da "donzela", enquanto Liroca se debatia, todo confuso, em mangas de camisa, com as
bombaehas arregaçadas até os joelhos, mostrando as pernas cabeludas, e tendo ainda na cabeça a cabeleira loura de mulher, num, contraste com o rosto másculo onde
azulava a barba de dois dias. Por um instante ficou sem sader que fazer, mas de repente, arrancando e atirando longe a cabeleira, deitou a correr na direção da igreja..
As atenções, que se haviam desviado -da luta para a cena cômica. focaram-se de novo - no entrevero.
- Que é aquilò? - perguntou o juiz de direito. - Dois hómens ainda lutando?
Estava combinado que quando libertassem Florípa, os mouros se renderiam.
Alguém gritou:
- É o Curgo e o Alvarino se duelándo .. .
O Dr. Winter ergueu-se num salto.
- Ai-ai-ai - fez ele, voltando-se para o padre. - 1~ bom irmos até lá.
Saltou do palanque e saiu a caminhar apressado, com o charutinho apertado nos dentes,. uma das mãos segurando a bengala e a outra a aba do chapéu para que ele não
lhe voasse da cabeça. O padre seguiu-o, em passadas largas, fungando. O público começou a invadir a arena. "Abram cancha!" - gritavam. "Abram cancha!" Peló meio
da multidão desordenada Florêncío Terra também corria, arrastando a perna, apalpando já o cabo do punhal, com uma expressão belicosa no rosto. Juvenal seguia-o de
perto, gritando: "Chegou a hora! Chegou a hora!"
Tinham formado um círculo cómpacto em torno dos homens que se batiam.
- Eu te mostro, cachorro! - gritou Alvarino.
- Temos contas a ajustar, ladrão! - replicou Curgo.
E atiravam-se como feras um contra o outro. Ouviam-se exclamações desencontradas na multidão. "Apartem!" "Não se metam!" "Mas vão se matar!" "Que se matem!" "Barbaridade!"
"Olha o padre!" "Abram cancha!"
Com as caras contorcidas de ódio e reluzentes de suor, os dentes à mostra, a respiração ofegante quase transformada numa estertpr de fera malferida,- os dois inimigos
batiam ferros, avançavam e
#62O O CONTINENTE
ISMALIA CARi~ 621
recuavam, brandindo as espadas. Licurgo tinha na~ testa um ferimento de onde o sangue brotava, escorrendo-lhe pelo rosto e entrando-lhe pelos olhos e pela boca.
O peitilho azul da blusa de Alvarino Amaral estava também empapado de sangue.
- Pe. Romano conseguiu abrir caminho e penetrar na pequena clareira onde os homens duelavam.
- Parem, pelo amor de Déusl - suplicou o vigário, erguendo os braços. E por breves segundos seu vozeirão dramático dominou todos os outros ruídos. O duelo, porém,
continuava com a mesma ferocidade. Alvarino, muito pálido, apertava o peito com a mão esquerda, como a procurar a ferida, e o sangue já começava a escorrer-lhe por
entre os dedos. Licurgo tinha o olho esquerdo. completamente vermelho e sua respiração era tão forte que ao expelir o ar ele produzia -um chuvisqueiro de saliva
misturada com sangue..
- ,padre teve um instante de hesitação, mas a seguir, bailando a cabeça e estendendo os braços para a frente, investiu como um touro e, procurando evitar o nível
ém que as espadas se chocavam, meteu-se entre os adversários. Houve da parte destes um instante de perplexidade e indecisão, do qual se aproveitaram, o Dr..Winter,
Toríbio, Juvenal. e outros homens, que seguraram poderosamente os duelistas pelos ombros e pelos braços, imobilizando-os.
- Me larguem I - cuspinhava Licurgo, tentando libertar-se,
- com a espada ainda na mão. Alvarino, porém, já nãoo opunha aos apertadores a menor resistênda. Deixou cair a arma ao solo e, muito pálido, ora olhava para a mão
ensangüentada ora apalpava o peito, murmurando
- O canalha me feriu! O canalha me feriai Chamem um médico I Chamem um médico I
- padre andava dum lado para outro, tenUndo acalmar. os ânimos. O Cel. Bento Amaral surgiu de repente, seguido do filho mais moço e dé dois genros, todos de pistolas
em punho, façanhudos
- ameaçadores. Abriam caminho na multidão e procaravam aproximar-se de Licurgo Ao vê-los, Florindo e Juvenal amncaram também das pistolas e, acompanhados de Fandango,
que tiah?~ na mão apenas sua faca de picar fumo, postaram-se defensivamente na frente de Licurgo.
- 1VIe larguem I - gritava este último. - Por amor de Deus me larguem 1
Sen olho vermelho piscava repetidamente; seus dentes estavam tintos de sangue.
- Vamos ajustar contas com a cachomda do Sobrado) - gritou o velho Bento, arrastando os pés. A pistola tremia-lhe, na mão, e a deatriz que. tinha ao rosto esUva
purpúrea contra a pde cor de palha.
O padre avançou alguns passos e barrou o caminho aos Amarais.
- Em nome de Indo quanto há de mais sagrado, nãoo avancem
nem um centímetro mais I
Naquele instante muitas das pessoas que haviam invadido a arena
começaram a correr .e a fugir, na expectativa dum tiroteio. Atrás
do padre, Florêncio, Juvenal e fandango, sem tirar os olhos dos
Amarais, esperavam. Toríbio dava pulos. e gritava
- Até qne um dia o tumor veio a. furo)
- Não estrague a parada, padre I -, pediu Licurgo. - Mé
soltem que era mostro pra essa corja)
O velho Bento quis fizer alguma coisa, mas a raiva roabou-lhe
a voz, seus lábios descorados moveram-se, flácidos, sob os bigodes
brancos, mas deles. saiu apenas um silvo.
Ao redor de Curgo estavam agora, reunidos muitos companheiros
do Clube Republicana
Alvarino foi carregado pelos amigos na direção ,de sua casa,
enquanto o Dr. Winter se esforçava, mas em vão, para que Curgo
fosse também afastado daquele lugar. ,
- O covarde vai fugirI - gritou o mais moço dos Amarais. Florindo Terra bradou:
- Cala a bóca, ordinário)
O jovem Amaral deu dois passos à frente, apontou a pistola
para Florindo e, quando quis fazer fogo, o padre segurou-lhe a arma
com a mão direita, e erguem-a para o ar, enquanto com o braço
qne tinha livre enlaçava fortemente a cintura do rapaz. Ficaram
assim por uns segundòs como que a dançar. O vigário gritou
- Pelo amor de Nossa Senhora da Conceição, padroeira desta
vila I
Seu carão vermelho estava alagado de suor, suas narinas palpi
tavam, e havia em seus olhos, de ordinário doces, um brilho belicoso.
Conseguiu finalmente tirar a pistoia das máos do outro, mas con
tiauon a enlaçá~lo.
- Solta o meu filho senãoo eu faço fogo ) - ameaçou-o O
Cel. Bento.
`O Pe. Romano obedeceu. Não se limitou, porém, a afrouxar o
abraço; afastou o moço com um repelão tão forte que ele, tombou
. de costas.
- Padre - do diabo I - vociferou o velho Amaral. - En te
ensino a respeitar os superiores I
Avançou. com a pistola ergaida à altura do peito do vigário,
qne se limitou a abrir os braços e dizer:
- Pois atire!
O velho hesitou. Féz-se um silêndo súbito e nesse silêndo se
ouviu a voz de Florindo:
- Vai morrer muita gente ... - disse ele com uma calma
dramática na sua falta de dramatiddade.
Passavam-se os segundos. O padre continuava de braços abertos,
#622 O CONTINENTE
como que pregado a uma cruz invisível. Por trás dele os amigos de Licurgo, de armas em punho, esperavam. Toríbio repetia num automatismo nervoso:
- Saia fora, padre, porque a parada é nossal
Bento Amaral desceu o braço e meteu a pistola no coldre. Voltou-se para seus homens e disse, babando-se de mal contida raiva
- Não vamos estragar a nossa festa so por causa desses republicanos mazorqueiros.
Voltou as costas para o padre e se foi, arrastando os pés na direção de sua casa, seguido de parentes, amigos e capangas. O padre baixou os braços e por alguns instantes
ficou a seguir o grupo com
- olhar. Depois, voltando-se para os homens que estavam às suas costas, exclamou:
- Porca miséria! Desta vez quase me arrebentam a alma. Começou a enxugar o rosto com seu grande lenço de alcobaça.
O Sobrado estava cheio de amigos, qne comentavam o incidente. " Em mangas de camisa e sentado numa cadeira na sala de visitas, Licurgo deixava que o Dr. Winter lhe
pensasse o ferimento da testa. Era um talho longo mas nãoo muito profundo. Fora necessário dar-lhe cinco pontos, que Curgo suportara sem gemer.
- Costure direito o menino - dissera-lhe Bibiana,. qne seguira
- curativo de perto, sem desviar os olhos.
Curgo era um homem - pensava ela. Quem tivesse antes alguma dúvida, agora a perdia, porque o rapaz nãoo soltara um ai. Estava .ali " com a camisa aberta, um pedaço
do peito cabeludo e forte à mostra : macho como o pai e o avô.
- Pronto! - disse o Dr. Winter, terminando de amarrar um pano ao redor da cabeça do ferido. E, com o prazer. de sempre, repetiu um ditado da Província: - "Não há
de ser nada: quando casar, sara."
Bibiana pensou na Alice, coitadinha, que estava lá em cima deitada na cama, muito pálida, tomando o chá de fõlha de laranjeira que Maria Valéria lhe preparara.
- Canalhas! - murmurava Toríbio, ainda vestido de mouro
- sentado numa cadeira a trançar e destrançar as pernas. Bibiana lançou-lhe um olhar frio:
- Pare quieto, doutor. Finalmente a coisa podia ter sido pior. Ninguém morreu, que eu saiba.
Contava-se que Alvarino estava ferido no peito e havia perdido
muito sangue. O Cel. Bento, esse continuava a ameaçar céus e terra. Curgo mirava suas bombachas vermélhas. - Preciso tirar estas roupas o quanto antes - disse. O
Dr. Winter fechou a bolsa onde trouxera medicamentos e
instrumentos cirúrgicos.
ISMÁLIA CARr 623

- Mas conte direito como começou a coisa - pediu ele, acendendo um charutinho. - Ainda nãoo pude formar uma idéia. Cada qual conta a história a seu modo.
O Dr. Toríbio pulou da cadeira
- Pois eu estava terçando armas com o cachorro do Alvarino enquanto o Curgo, a meu lado, brigava com outro cristão. De repente ouvi o canalha gritar: "Já te corto
a cara, republicano patife!"
Curgo interrompeu o amigo para corrigi-lo:
- Não, Toríbio. Eu me lembro bem. O que ele disse foi "En te mostro, republicano sem-vergonha!"
- Pois então foi isso - concgrdou Toríbio. - Fiquei possesso e gritei .. .
Curgo de novo o interrompeu
- Quando ouvi isso, deixei o meu parceiro e ,respondi: "Monarquista ordinário, é contigo mesmo que eu quero tirar uma diferença." E nos atracamos.
- E se nãoo fosse o Pe. Romano - concluiu Bibiana - vocês se matavam.
- Tinha sido melhor assim, vó. A gente resolvia o assunto duma vez por todas.
- Qual! - exclamou o Dr. Winter, soltando uma baforada. - Não diga asneiras. Vassuncês precisam mas é criar juízo
- acabar com essas rivalidades. Não digo que fiquem amigos, mas ao menos parem de brigar. Já que têm de viver na mesma cidade, é melhor que vivam em paz.
De dentes cerrados Curgo resmungou:
- Amaral, comigo., só na ponta da faca.
Naquele momento Fandango, que estivera a contar a "questã" à negrada da cozinha, apareceu à porta da sala de visitas, com as faces iluminadas por um sorriso.
Curgo dirigiu-lhe um olhar .enviesado:
- Velho gaiteiro! Como é que vassuncê faz uma coisa dessas
- nem avisa a gente antes?
Todos os olhares se voltaram para o capataz, que encolheu os ombros e respondeu
- Ué: Eu queria fazer uma surpresinha. - Deu alguns passos na direção de Bibiana. - Vassuncê viu as minhas proezas?
A velha sacudiu afirmativamente a cabeça:
- Vi. Parecia um palhaço de circo.
Fandango meteu os polegares nas cavas do colete, entortou a cabeça e filosofou
- O mundo é mesmo um circo, dona. Tem de tudo. Burlantins que viram cambota, equilibristas, os que fazem piruetas em riba dum cavalo, os palhaços. E quem nasce pra
palhaço, como eu, morre palhaço e nunca endireita. - Neste ponto o Dr. Winter;
#624 O CONTINENTE

que observava o velho, julgou perceber-lhe no tom da voz uma pontinha de tristeza. (Ou estaria fantasiando?)
- Pois é - prosseguiu o capataz. - Já pedi ao meu neto que quando eu morrer me botem no caixão com uma roupa bem bonita. Em vez de velório, façam um baile no terreiro,
com bons violeiros. E dan~_em a tirana-grande, o anu e a chímarrita em roda do meu corlio. veto que o enterro seja abaixo de gaita. E que seis motochas hem guapas
carreguem o meu caixão.
~ Houve um curto silêncio, ao cabo do qual Bibiana murmurou
- Velho assanhado.
E lançou para Fandango um olhar entre repreensivo e afetuoso.
8
Eram sete horas da noite e Jacob Geibel estava recostado a um poste, à esquina da praça, olhando para o Sobrado, cujas janelas do andar térreo se achavam iluminadas.
Havia uma boa hora que o sacristão ali se- encontravá, falándo consigo mesmo e olhando os convidados què tinham começado a chegar logo depois das seis. Via com uma
raiva surda os vultos .que se moviam por trás das vidraças que o. frio =embaciara. Fazia já algum tempo que alguém discursava lá dentro, e a voz. do orador chegava
de vez em .quando, meio apagada, aos ouvidos do sacristão. Encolhido sob o poncho, com as abas do chapéu de feltro puxadas sóbre os olhos, Jacob Geibel contemplava
o Sobrado com ressentimento. Havia ali fora, no meio da rua, grupos de curiosos que espiavam a festa. No outro lado da praça, o Paço 1~Iunicipal tinha .suas janelas
também iluminadas, e lá de dentro vinham os sons da banda de música, que tocava uma valsa.. A noite estava estrelada e o ar parado e não muito frio:- De quando em
quando um cachorro latia numa rua distante. Pòr trás do Sobrado erguia-se o clarão da grande fogueira de São João.
Deviam prender fogo naquela casa - soliloqueava o sacristão. Ele gostaria de ver aquelas fêmeas saírem correndo e gritando lá de dentro, com suas vestes em chamas.
Seria muito bem-feito. Se morressem todos os convivas, não se perderia nada. E se o vigário também ficasse carbonizado a coisa então seria muito melhor.
Jacob Geibel tirou de baixo do poncho uma garrafa de cachaça, levou-a à boca e bebeu nm, gole largo. Depois lámbeu os beiços e chupou os bigodes, ao mesmo tempo
que lhe vinha à mente uma idéia excitante: tirar toda a roupa e entrar nas salas do Sobrado para escandalizar aquelas mulheres com sua nudez ... Por alguns segundos
o sacristão ficou a masturbar-se com essa idéia.
A músicá da valsa de vez em quando ficava mais forte, vinha
ISMÁLIA CARA 625
como que em rajadas que o envolviam, e Jacob pôs-se a pensar num baile da mocidade, em sua aldeia natal, havia mais de trinta ãnos .. . Viu-se atravessando o salão
na direção duma rapariga: inclinou-se à frente dela, convidou-a para dançar e a Fráulein como única resposta rompeu numa gargalhada. A vergonha daquele momento!
Todo o mundo olhando e rindo. O chão pareceu faltar a seus passos quando, perturbado e vermelho, ele voltava a seu. lugar. Cadelinha! Agora Jacob Geibel tornava
a sentir aquele calorão, aquele formi~ gueiro aflitivo a percorrer-lhe o corpo. Mas não era vergonha, não. Era a cachaça. Cadelas! Isso é que eram as mulheres. Cadelas!
Todas inclusive sua mâe, que ele nunca conhecera, e que tivera a coragem de pô-lo na roda. Ordinárias!
Sob o lampião de luz amarelada e tíbia, o Barbadinho do Padre olhava para as janelas do Sobrado e imaginava-se a correr completamente nu pelo meio daquelas mulheres,
que gritavam e tampavam os olhos com as mãos. Naquele instante a voz do orador se fez mais forte e até aos ouvidos do sacristão chegaram estas palavras ... ancha
negra da escravatura.
De costas para o grande espelho, na sala de visitas, metido no seu bem cortado croisé preto, com uma pérola a brilhar-lhe foscamente contra o fundo escuro do plastrão,
o Dr. Toríbio Rezende enchia o ambiente com- sua voz metálica e vibrante. Fazia já vinte minutos que discursava, traçar_do a história da escravatura no mundo. Começara
por dissertar sobre a índia, o país das castas, em que os sudras constituíam a classe inferior, cuja sina era submeter-se e servir. Passara depois pára o Egito,
na descrição de cuja paisagem gastara prodigamente adjetivos, pedindo emprestado a Castro Alves duas estrofes, "duas jóias lapidares sem par na literatura universal",
e que na sua opinião melhor do que qualquer tela, que qualquer daguerreótipo, descrevia o país da esfinge e das pirâmides:

Lá no solo onde o cardo apenas medra, Boceja a Esfinge colossal de pedra Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim.. .
Onde branqueja a caravana errante E o camelo monótono, arquejante,
Que desce de Efraim.
Pois nessa terra que em tempos pretéritos atingiu um grau de civilização de que o mundo ainda hoje se assombra - prosseguira
#626 O CONTINENTE

O orador - os faraós faziam guerras para se apoderarem de escravos, e o Rei Amenhotep - e Rezende repetiu o nome com certa volúpia - o Rei Amenhotep chegara a mandar
ao Sudão uma expedição com o fim exclusivo de caçar negros para transformá-los em servos!
Do Egito o Dr. Toríbio transportou-se para a China, em que os primeiros escravos, segundo se calculava, haviam surgido durante a dinastia de Chow. Na ponta ,dos
pés, Rezende atirava aquelas palavras como farpas contra as muitas dezenas de pessoas que o ouviam, em respeitoso silêncio na sala do Sobrado. A dinastia de Chow!
Ele arrasava aquela gente com sua erudição. Aquilo de certo modo lhe era uma compensação para as frustrações da tarde em que como cavalheiro fizera figura triste.
Agora ele fazia evoluções de picaria verbais, e nessa arte sabia nãoo ter rival em Santa Fé. Pronunciar, aqueles nomes de brâmanes, faraós, mandarins e reis; empregar
com destreza e naturalidade os adjetivos mais raros, era o mesmo que. derrubar bonifrates a golpes de lança ou espada.
"Sim, meus senhores e minhas senhoras, na China da antiguidade, os prisioneiros de guerra, fosse qual fosse a cor de sua epiderme, eram transformados em escravos."
E, sem tómar fôlego, Toríbio Rezende saltara da China para a Babilônia - cuja descrição se prestara à maravilha para novos jogos florais de eloqüência - e entrara,
quase sem fôlego, na história dos hebreus, para depois chegar, com um sorriso nos lábios, à Grécia, "a gloriosa Hélade, a serena Hélade dos filósofos, dos sábios
e dos artistas, e cujo grande vate, Homero, na sua Ilíada, menciona Aquiles e Agamemnon como possuindo escravos em suas tendas ... "
Nas salas iluminadas pela luz de dezenas de velas e lampiões a querosene, as damas estavam sentadas e os cavalheiros de pé. Bibiana, vestida de preto, fitava no
orador seus olhinhos galhofeiros, sacudindo a cabeça a cada nome arrevesado de guerreiro, monarca ou filósofo que o baiano soltava no ar com sua voz cantante. Era
um moço de fala engraçada - achava ela. Dizia luiz e cruiz em vez de luz e cruz; e sabia que como revide o baiano troçava dela quando a ouvia dizer rés e depôs,
em vez de réis e depois.
Sentado junto da dona da casa o Pe. Romano de quando em quando sacudia a cabeça numa grave aprovação. E seus lábios se. abriram num sorriso feliz quando Toríbio
Rezende afirmou que com o advento do cristianismo a situação dos escravos melhorara. e as manumíssões se fizeram mais freqüentes. Entrando na Roma antiga o orador
estudou a situação dos escravos à luz do Direito romano, e, avançando tempo em fora, com botas de sete léguas, passou dramaticamente sobre a Idade Média e - tropeçando
em instrumentos de tortura, chamuscando-se em fogueiras de auto-de-fé - chegou com a testa rorejada de suor aos tempos modernos. Fez uma súmula das conquistas do
homem mercê da Revolução Francesa
ISMALIA CARA 627

e depois traçou a história da escravatura no Brasil, desde o dia em que os primeiros escravos negros puseram. o pé em terras de Santa Cruz até aquëk momento, àquela
"já histórica" noite de 24 de junho de 1884, no Sobrado, em que por iniciativa do Clube Repablicano de Santa Fé mais de trinta escravos iam: receber -sua carta de
manumissão.
Fez uma pausa para beber um gole de água dum copo que estava às soas costas, sobre õ consolo. Curgo olhou para a avó e sorriu. A velha piscou-lhe o olho. Trepado
numa cadeira, na sala de jantar, o velhõ Fandango "bombeava" o orador por cima das cabeças das pessoas que se comprimiam na sala. Do quintal vinha de quando em quando
o murmúrio das vozes dos escravos junto com o crepitar da fogueira.
Passaüdo o lenço de leve pelos lábios, Toríbio Rezende tornou a encarar o auditório.
- Senhoras e senhores - disse. -" Do significado desta noite, o Futuro e a História hão de dizer com uma elóqüência muito maior que a de minhas pobres palavras!
- Não apoiadó! - aparteou o padre.
Enquanto_ o advogado discursava, Licurgo passeava os olhos em tomo - demorava-os um pouco na face de cada conviva, como- a escrutar as reaçôes de cada nm àquele
discurso- ao qual ële próprio são prestava muita atençao. Era engraçado - achava ele - ver barbeados e penteados,- de roupa . nova e escura, colarinho duro e botinas
lustradas,. aqueles homens que ele estava habituado a ver diariamente de bombachas é botas, casaco de riscado ou então metidos nos ponchos, com as barbas ,geralmente
crescidas. Como as mulheres ficavam mais bonitas quando vestiam suas roupas domingueiras e faziam" penteados especiais! Com o canto dos olhos ele mirou por alguns
instantes a noiva, que se achava sentada a seu lado. Seus cabelos negros e lustrosos de óleo estavam puxados para cima, num penteado alto que lhe acentuava o oval
do rosto. De suas orelhas pendiam brincos de pedras azuis na forma de losangos. Nnm contraste cóm o vestido de gorgorão preto, muito rodado, a pele de Alice tinha
uma tonalidade de marfim antigo. Licurgo achava que a fita de velado negro que. a noiva trazia ao redor do pescoço, e da~ qual pendia um medalhão dourado, lhe dava
um ar de moça de cidade. Sentada junto dela, com o busto ereto, Maria Valéria tinha as mãos caídas sobre o regaço, e seu perfil se recortava nítido e agudo contra
o croisé negro dum dos convivas.
Licurgo tornou a voltar a cabeça para Toríbio, que agora ateava o gabinete liberal e o Imperador, dizendo:
- .. e homens. como Rui Barbosa, o do verbo candente. Joaquim Nabnco, o nobre estilista, e José do Patrocínio, que é a propus voz da raia negra escravizada estão,
com um punhado de outros heróis, preparando o advento da Abolição ao mesmo tempo
#628 O CONTINENTE
que o da República, porque, minhas senhoras e meus senhores,
abolição e república são sinônimos perfeitos)
Licurgo pensou em seu duelo cóm Alvarino Amaral e ficou
ruminando o sabor violento, acre e embriagador daquele momento.
Havia muito que não sentia uma exaltação assim tão grande. Comparados com ela, a festa do Sobrado, a manumissão dos escravos, seu noivado com Alice e a própria idéia
de república empalideciam, como coisas de menor importância.
Levou a mão à testa e com a ponta dos dedos apalpou de leve as. ataduras bem no ponto em que sentia o ferimento. Estava orgulhoso daquele talho. O fato de nunca
ter tomado parte em nenhuma guerra ou revolução sempre o deixara numa incômoda posição de inferioridade perante seus conterrâneos de meia-idade qãe haviam lutado
no Paraguai e os velhos que tinham feito a .campanha contra Rosas e a Guerra dos Farrapos. Sempre fon considerado um "espada virgem". Naquela tarde, porém, tivera
seu batismo de sangue, e isso pau ele tinhà uma significação extraordinária. Era como se só agora se pudesse . considerar .completamente adulto. E essa sensação
de ser" homem, a certeza de que na hora dò perigo a mão não lhe tremera, o coração não lhe falhara, davam-lhe uma. força nova, uma .confiança exaltada em si mesmo,
e ao mésmo tempo uma certa impaciëncia "que no fundo era desejo de mais ação violenta, de mais oportunidades para pôr à prova sua hombridade. Daquele duelo interrompido
ficara-lhe também um sentimento de frastração, a impressão irritante de ter deixado nm serviço incompleto, .bem como acontecera com . seu avô, que não pudera fazer
o rabinho do R na cara de Bentó - Amaral. Porque - achava Cargo - a" coisa só devia terminar quando -Alvarino ou ele ficasse estendido no chão lá na praça .. .
Licurgo passou o indicador da mão direita entre o pescoço e o colarinho. Aquelà coisa engomada. sufocava-o: o discurso também começava a impacientá-lo. Gostara de
Toríbio, achava-o inteligente, leal, o melhor amigo do muado...Mas o diabo_ do n~az falava demais; quando começava, Santo Deus!, não havia. quem
- fizesse parar. Lá estava ele a atacar violentamente a monarquia. Licurgo via uma ezpressão de interesse na fisionomia de muitas das pessoas que o escutavam; mas
nos rostos ~ da maioria dos convivas
- que ele via era fome. Misturado com o perfume de pó de arroz
- de eztrato, que emanava das mulheres, andava no ar um cheiro de comida, e de vez em quando vinha-da cozinha um~bafejo de frítuns. A entrega dos títulos de manumissão
levária àlgum tempo. Quando era, pois, que aquela pobre gente ia pau a mesa?
Licurgo estava prestes a fazer para o amigo uma carda de impaciência quando Toríbio ergueu a mão e gritou, rematando, o
Vozes masculinas uniram-se num coro e repetiram
- Vivai
Romperam os aplausos. Alguns hòmens avançaram para estreitar Toríbio num abraço. Bibiana soltou um suspiro de alívio e cochichou ao ouvido do padre
- Esse moço fala pelos cotovelos..
Atílio Romano mostrou os belos dentes num sorriso tolerante:
- O dom da palavra é uma graça divina, bela I - exclamou ele. Cóstnmava chamar aos amigos belo ou bela. O Dr. Winter até achava que esse era o tratamento que o vigário
dava na intimidade a Nossa Senhora da Conceição. - E o Dr. Toríbio usa da sua palavra em prol da boa causa I - acrescentou o padre já em tom declamatório.
O médico inclinou o busto para a frente e voltou a cabeça para o vigano.
- Pe. Romano - disse ele em Qoz muito alta para ser ouvido no meio da balbúrdia - ainda não. compreendi como é que, sendo o senhor um sacerdote católico, pode simpatizar
com a idéia republicana .. .
- Por que não? Por que não, belo? Acha que um padre não deve ou não pode ter emoção cívica?
- Não é isso. Um~ dos pontos. do programa republicano é a separação da Igreja do Estado.. .
O Pe. Romano ergueu-se.
- E entãoI E daí? - exëlamóu, aproximando-se do outro, como se o quisesse agredir: Segurando o médico pelos ombros com suas manoplas peludas, perguntou: - Pensa
o doutor que a Igreja para sobreviver precisa do amparo do Estado? - Soltou uma risada. gostosa. - Essa é magnífica I O Estado é que não poderá viver se não se amparar
espiritualmente na Igreja)
O Dr. Winter sacudia a cabeça, ao passo que Bibiana voltava os olhos ora para um ora para outro. Depois esqueceu-os e passeou o olhar em torno da sala. Os hòmens
agora conversavam em voz alta, animadamente, divididòs em pequenos grupos. No meio deles Licurgo parecia uma mosca tonta. Como ficava esquisito com aquele pano amarrado
na testa I Parecia um bugre - somo Bibiana.


A entrega dos títulos de manumissão foi feita no meio dum silêncio grave e comovido, Os escravos estavam no quintal, junto da porta da cozinha, e entravam à medida
que seus nomes iam sendo chamados. Sob o espelho da sala de visitas, os títulos empilhavam-se em tino do consolo de mármore. Toríbio Rezende lia a lista de nomes:
- Antônio Tavares! Marcolino Almeida! Terêncio Rodrigues! - e muitas vezes Licurgo tinha de soprar-lhe
ISMALIA CARE 629 .
discurso:
- Viva a Abolição! Viva a República)
#63O O CONTINENTE

ao ouvido o apelido do negro chamado, pois mnitoa daqueles homens já haviam esquecido os nomes de batismo. "Maneco Torto! - gritava Toríbio - Dente de Porco! Inácio
Moçambique!" Por entre alas de convidados os pretos entravam na sala, piscando os olhos à luz forte, e acanhados, de cabeça baixa, sèm ousarem olhar para os lados,
aproximavam-se de Licurgo, recebiam o título
- beijavam-lhe a mão; alguns ajoelhavam-se depois diante da cadeira em que Bibiana estava sentada e levavam aos lábios a fímbria de sua saia. Retiravam-se, estonteados,
buscando aflitamente a porta da cozinha. Muitos dos escravos choraram ao receber a arfa de alforria. Houve, porém, um deles que entrou de cábeça erguida, olhou arrogante
para os lados, como num desafio, recebeu o título
- sem o menor gesto ou palavra de agradecimento, fez mela golfa
- tornou a voltar para o quintal, impassível como nm rei que acaba de receber a homenagem a que tem direito. Licurgo acompanhou-o com um olhar furibundo. Era o João
Batista! Merecia una bons chícotaços na cara. Sempre fora assim altivo e provocador. En um bom peão, um bom domador, um trabalhador incansável, mas tinha um jeito
tão atrevido, que por mais duma vez Licurgo estivera prestes a "ir-lhe aa lombo".
A chamada continuava. Negros entravam e saíam. Havia entre eles homens e mulheres, moços e velhos. Licurgo começava a imtar-se. A cerimônia não só se estava prolongando
demais, como também não oferecia metade da emoção que ele ésperava: era uma coisa tão lenta e aborrecida como uma eleição. "Bento Assis!" - gritou Toríbío. E como
o preto chamado não aparecesse, ele repetiu em voz mais alta: "Bento Assis!" O peão que, estava à porta da cozinha gritou para fora: "Bento Assis!" .Nenhuma resposta
veio. Licurgo, que sacudia a perna nervosamente, bradou de repentc: "Bento Burro! -Onde está esse aaimâl?" "Bento Burro!" - repetiu o peão. Então uma voz soturna
saiu do meio dos escravos que esperavam, no sereno:. "Pronto, patráo!" E entrou na asa.
E o desfile continuou. Licurgo mal podia conter sua impaciência. Não conseguia convencer-se a si mesmo de que aquela en uma grande hora - uma hora histórica. Não
achava nada, agradável ver aqueles negros molambentos e sujos, de olhos remelentoa
- arapinha enardida a exibir toda a sua fealdade e sua miséria naquela asa iluminada. E çomo eram estúpidos em sua maioria 1 Levavam a vida inteira para atravessar
a sala e depois fiavam wm o papel na mão, atarantados, sem saber que fazer nem para onde ir. Era preciso que ele gritasse: "Agora vá embora. Nãol Por ali. Volte
pro quintal!"
O pior era que o Sobrado já começava a cheirar a senzala.
Foi com um suspiro de alívio que entregou o último título. E quando o último escravo desapareceu na cozinha, houve um
momento de silêncio e imobilidade, como se os convidados espc
ISMALIA CARA 631

rassem de Licurgo algumas palavras. Mas quem falou primeiro foi a velha Bibiana
- Agora abram as janelas pra sair o bodum!
Licurgo mandou erguer as vidraças. Estava meio decepcionado. Esperara durante meses por aquele instante e ao entanto ele não lhe trouxera a menor emoção. De repente
viu-se tarado por amigos que lhe apertavam a mão e o abraçavam efusivamente. Um deles gritou: "Viva o Clube Republicano! Víva o nosso correligionário Licurgo Cambará!"
Os outros gritaram em coro: "Vivai" E começaram todos a bater palmas estrepitosamente. Os gaiteiros que estavam no vestíbulo romperam a tocar uma marcha. Licurgo,
então,. sentiu com tamanha e repentina força a beleza daquele instante, que esteve quase a rebentar em lágrimas. Foi com esforço que se conteve. Entregou-se passivamente
àqueles abraços, alguns dos quais chegavam a cortar-lhe a respiração. Não ouvia as palavras que lhe diziam. Só sabia que aquele momento era glorioso, raro, grande.
Com um gesto de suas mãos tinha dado liberdade a mais de trinta escravos! Lá fora estava acesa uma grande fogueira ao redor da qual os negros - agora homens livres,
felizes e dignos - iam dançar, cantar, comer e beber!
Uma preta de turbante vermelho, os dentes arreganhados, andava por entre os convidados com uma bandeja cheia de copos de cerveja: Alguém deu a Licurgo um copo, que
ele apanhou e levou avidamente aos lábios, bebendo-lhe todo o conteúdo dum sorvo só. Ficou depois lambendo cíístraidamente os bigodes, a olhar em torno, meio zonzo,
sentindo um calor e um tremor de febre, as idéias confusas e sempre aquela vontade absurda de chorar. Bibiana aproximou-se dele e abraçou-o e - pela primeira vez
em muitas anos - seus lábios úmidos pousaram na face do n¢to num beijo chocho:
- Deus te abençoe, meu filho - balbuciou ela.
Licurgo inclinou-se, encostou uma das faces na cabeça da avó e rompeu a chorar como uma criança. Bibiana arrastou-o para o vestíbulo e depois para o escritório,
cuja porta fechou apressadamente. Não queria. que os convidados vissem aquele acesso de nervos de seu rapaz.
- Que é"isso, Cargo? Não chore. Vamos, enxuga as lágrimas. Ora, ~a se viu?
Licurgo passava o lenço nos olhos e nas faces e fungava, furioso consigo mesmo por ter fraquejado, e já com uma vaga vontade de brigar. .Mas brigar com quem e por
quê?
- Vamos botar essa gente na mesa! - exclamou de repente. - Devem estar morrendo de fome.
Puxou bruscamente a avó pelo braço, e sempre fungando, com vontade de dizer nomes feios a seus convidados e ao mesmo tempo de abraçá-los, voltou para a sala, exclamando:
#632 O CONTINENTE

- Vamos comer, .minha gente! Vamos pra mesa! Esta casa é de vassuncês!
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Tinham posto na sala de jantar uma longa mesa, coberta. de toalhas de linho muito alvo, e sobre a qual se alinhavam travessas com carne de porco fria e farofa, pedaços
de galínha assada, lingüiça frita e rodelas de salame e presunto de Garibaldina. Assím que os convivas se sentaram à mesa, as negras começaram a trazer os espetos
de churrasco quente è pratarraços cheios de pastéis recémsaídos da frigideira.
- São de carne - anunciou Bibiana, que estava já sentada à cabeceira - e estão quentinhos.
Os convidadós atiravam-se com vontade às comidas. Bibíana ficou a observar, deliciada, o Pe. Romano que comia com tanto apetite, que era um gosto vê-lo. Sentado
à frente do vigário, o Dr. Winter, que andava ultimamente tão enfastiado, mordiscava com indiferença uma coxa de galinha. Ouvia-se o som claro e alegre do vinho
no instante em que era despejado nos copos. As conversas ganhavam anímação à medida em que os convivas iam bebendo,
- os homens agóra precisavam gritar para se fazerem ouvir, pois todos falavam ao mesmo tempo e os gaiteiros nãoo tinham parado de tocar.
Sem fome, Licurgo olhava para a janela, através de cujas vidraças via o clarão da fogueira. Onde estaria Ismália? Já teria chegado? Náo podia compreender aquela
demora. Segundo suas instruções, a rapariga devia ter deixado o Angico ao raiar do dia .. .
Maria Valéria- lançou um olhar furtivo para o primo. Achou-o taciturno e inquieto. Que se estaria passando com ele? Por que nãoo falava com a Alice, que estava ali
_esquecida à sua direita? Olhou para a frente e deu com os olhos ansiosos de Liroca, do outro lado da mesa. O rapaz lhe sorriu. A face de Maria Valéria permaneceu
impassível José Lírio fizera já duas tentativas para puxar conversa, mas ela lhe respondera com monossílabos secos, a fim de
- desencorajar. O diabo do rapaz, porém, era persistente. Apesar de todas as desfeitas que ela lhé fazia - bater ostensivamente a janela quando ele se aproximava
na calçada; voltar-lhe as costas quando ele a convidava para dançar nos bailes; recusar as flores que ele lhe mandava - apesar de tudo isso o infeliz continuava
a persegui-la
- ultimamente se dava até ao desfrute de cantar-lhe serenatas com sua voz de taquara rachada.
Maria Valéria baixou a cabeça e começou a comer, meio pertúrbada, fazendo o possível para esquecer que o primo se achava
ISMÃLIA CARr 633

àquela mesma mesa, e que bastava erguer os olhos e. voltar a cabeça para vê-lo.
Os gaiteiros tocavam agora uma valsa r Ondas do Danúbio, reconheceu ela. " Por um rápido instante imaginou-se a dançar nos braços de Lícurgo, mas repeliu logo esse
pensamento, irritada, e já com um sentimento de culpa, como se só por pensar aquilo tivesse traídò a irmã.
Bibiana contemplou Alice por alguns ,instantes com olho crítico e depoís, inclinando-se para ela, disse:
De amanhâ em diante vassuncê vai tomar todos os dias depois do almoço uma. gema de ovo cru com um cálice de vinho do Porto.
Alice fitou na velha seus olhos graúdos:
- Mas eu nãoo gosto de ovo cru, titia!
- Goste ou nãoo goste, tem de tomar. Vassuncê anda muíto pálida e precisa eágordar. Homem ~ não gostà de mulher magra. Faça ,o que eu digo. E comece amanhã !
- Está bem, titia -.concordou Alice, com um sorriso submisso. Baixou os olhos para o prato e continuou a comer sem nenhum entusiasmo um pedaço de peito de galinha.
Bibiana continuava a olhar obliquamente para a futura mulher de Curgo. A moça tinha os quadris estreitos: -nãoo podia ser boa parideira. Mas fosse tudo pelo amor
de Deus! Ela conhecia muitas mulheres. de bacia estreita que botaram muitos filhos no mundo e só morreram de velhice.
O ar estava cheio do rumor das conversas e do tinido de pratos, copos e talheres. Os homens conversavam animadamente e comentavam, muitos deles, o incidèrite da
tarde. Curgo comia devagar e sem vontade, mas esvaziava em largos goles seu copo de vinho. Tinha o rosto afogueado e os lábios muito vermelhos e lustrosos. De vez
em quando voltava-se para a noiva e procurava começar uma conversa: "Está sem fome?" - dizia. Ou "Olhe só o apetite do padre." Ou então: "Está gostando da festa?"
Alice, porém, respondia apenas com monossílábos acanhados, e a conversa como que se congelava no ar.
O Pe. Atílio Romano tinha diante de si um prato dè pastéis, que ia devorando rapidamente, com tal entusiasmo que às vezes chegava a melê-los inteiros na boca. Mastigava
com bravura e ao mesmo tempo não queria deixar de falar, porque o Dr. Winter, aquele ateu incorrigível, nãoo o deixava em paz. Agora estava a repetir-lhe de cor trechos
dum livro de seu amigo Carlos vou Koseritz, outro herege de má morte. Com o busto inclinado sobre a mesa, o garfo em riste, o médico olhava fixamente para o padre
enquanto falava
- "O mais crente dentre vós acreditará que a Terra seja o
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centro do Universo e que o Sol, a Lua e todos os astros só foram criados para fazerem o serviço de lampiões?"
O vigário escutava-o, sorrindo e mastigando.
- E por que não? - exclamou, interrompendo Ooutro. - Por que nãoo, se Deus assim o quis? - - Recostou-se na cadeira e gritou para uma negra que passava : - Me traga
mais pastéis, bela! - E com os lábios reluzentes de banha, á face corada, o olho alegre, tornou a voltar a àtenção para o médico: - E por que nãoo..?
Winter .brandia ainda o garfo.
- "A Bíblia é obra de homens ignorantes; a história da cciação é_ um mito, e Laplace tinha razão quando Napoleão 1 lhe perguntou, por que nãoo falara em Deus ao expor
o seu sistema de mecânica celeste: `Sire, je n"avais pas óesoin de refle hypothèsel""
- "Quos Deus vult perdere, prius dementat" - citou o padre, soltando um arroto feliz.
- "O estado das camadas terrestres demonstra à evidência que o homem é simplesmente fruto da e-.iolução da matéria como a própria Terra, como são os mundos- todos
que póvoam o espaço do Universo."
Atílio Romano bebericava seu vinho, fazendo-o demorar sobre a língua e depois engolindo-o com um vagar sensual. Tornou a encher o cálice.
-.Nada disso é novidade pra .mim, doutor r- disse ele. - Todos esses autóres ateus seus amigos são também meus conhecidos. Tenho seus livros à minha cabeceira e
isso é um sinal de que nãoo os temo.
- E não acha que eles têm razão?
- Toda. Ah! Cá estôo os pastéis quentinhos. - Esfregou as mãos. - Sirva-se, belo!
O Dr. Winter não se deixou comover pelà presença dos pastéis
recém-saídos da frigideira e que ali estavam à sua frente, nédios,
cheirosos, trigueiros, polvilhados de açúcar e canela. Lançou-lhes
um olhar frio e tornou a encarar o interlocutor:
- Mas se acha que eles têm razão, como é que continha a
exercer o sacerdócio duma religião baseada num mito pueril?"
A manopla do padre avançou e seus dedos pinçaram hm pastel. - A razão não tem nada a ver com a fé! - sentenciou ele,
metendo o pastel na boca e empurrando-o com os dedos. - Vosmecê leu Darwia e Lamarck, não leh? - Li. E talvez melhor que o doutor. - Aceita as leis da evolução e
da seleção? - Aceito.
- Então?
- Então quê?
- Como pode reconhecer ao mesmo tempo a autoridade da Bíblia?
ISMALIA CARA 635

- Mas a Bíblia fala uma linguagem simbólica, belo! .
- Isso é um sofisma.
- A hipótese evolucionista não exclui necessariamente Deus. Ela é antes uma prova da suprema, da incomparável, da sutil e imaginosa inteligência do Todo-Poderoso.
- Limpou com a ponta da toalha os beiços engraxados. - A Bíblia não passa duma versão poética do gênesis ào alcance da inteligência popular.
- Isso é uma heresia, padre!
- E ninguém mais àutorizado que um padre para proferir uma heresia, belo! - exclamou o vigário, soltando uma gargalhadà.
O Dr. Winter sacudiu a cabeça, rindo o seu riso em falsete. Contemplou o interlocutor com simpatia. Admirava o Pe. Romano. Conhecera outros vigários de Santa Fé:
alguns deles eram homens de poucas luzes, que viviam no sagrado temor de desgostar o chefe polïtico local. Não liam nada e tiziham medo de discutir todo. Agora Santa
Fé possuía nm vigário independente, exuberante de saúde e bom humor, um liberal e, por mais absurdo que parecesse, um livre-pensador.. Tinha em casa uma rica biblioteca,
onde Winter, encantado, encontrava em belas encadernações de couro, alguns de seus autores queridos : Renan, Schopenhauer, Diderot ... Um dos livros de cabeceira
do vigário era o Candide, de Voltaire. Um dia o Dr. Winter pilhara o Pe. Romano a ler os contos de Boccacio e a soltar gargalhadas homéricas.
- O vigário lendo Boccacio! ,-exclamara, admirada
Fechando o livro com_ estrondo e erguendo-$e de súbito, o padre explicou
- Leio este patife por duas razões poderosas. Primo, porque gosto..Secundo, .porque com suas histórias materialistas e frascárias ele me capacita a sentir melhor
as delícias da castidade e da vida espiritual.
Era o Pe. Romano geralmente estimàdo em sua paróquia. Sabia contar com graça uma anedota e, pastor amável, não vivia como seus predecessores a ameaçar as ovelhas
com o fogo do inferno. Alguém pecou? Vamos ver, sente-se aí, fique à vontade, descanse um pouquinho. .Não se aflija. Tudo se pode arranjar, porque Delis é uma boa
pessoa. Abra-lhe seu coração, bela. Pronto, -estou escutando .. .
N~ domingos à tarde montava no seu zaino-perneira e de guarda-sol aberto tocava-se ao trote do animal, rumo das colônias. seguido pelo sacristão, qué cavalgava numa
mula magra. D. Qhixote e Sancho Pança - pensava Winter quando os via passar. ~`.Em Garibaldina o padre comia macarronadas memoráveis, bebia vinho à sombra fresca
das bojudas pipas das cantinas, e jogava ruidosamente bocha, ou mora com os colonos, em companhia dos quais ficava depois a cantar cantigas do óel paeee.
#636 O CONTINENTE
E la Violetta la vá, la vá, la vá,
La vá nel campo e la si sognava
Ch"el gera el so" Gigin che la rimirava. - Perché ~ mi rimiri, Gigin, de amor,
Gigin d"amor?
- lo ti~ rimiro perché sei belfa,
E se vuoi venir con me alia guerra. - No, alia guerra nora vó venir,
Non vo" venic!
Non vó venir con te alia .guerra
Perché si mangia male e si dorme per terra.

O Dr. Winter jamais esquecera o dia em que vira o padre com nm copo de vinho na mão cantar um solo com sua bela voz de barítono:

Non ti ricordi, oh Adelina, Sotto 1"ombra di quel ramo, Tu dicevi: T"amo, t"amo! Eri tutta felicità?
Ao redor dele os colonos, de faces rosadas e lustrosas, cantavam o coro

141a perchè, Adelino, ma perchè Tu non pensi pici a me?

Certo domingo, quando de volta de Nova Pomerânia apeava do cavalo em Garibaldina para um breve descanso, o Dr. Winter ouviu gritos e risadas vindos dum grupo que.
cercava dois homens. Aproximou-se do ajuntamento e ficou embasbacado com o que viu. De batina erguida, o Pe. Atílio Romano jogava uma luta romana com Arrigo Cervi,
o ferreiro da colônia. De rosto suado, vermelho como um tomate, o vigário bufava e gemia, deixando escapar de quando em quando blasfêmias: Porca miseria! Hostis?
Figlio dum cave!
Os vigários de Santa Fé sempre se impacientavam com a falta de religião dos homens da terra, que em sua maioria nunca iam à missa ou, quando iam, nãoo se ajoelhavam
nem oravam, limitando-se a ficar de pé. atrás do último bano, com o ar entre sestroso e contrariado; em geral se retiravam, mal começava o sermão. Dizia-se que nenhum
vigário jamais conseguira levar um daqueles homens ao confessionário. O Pe. Romano, porém, fizera-se amigo de todos, conquistando-lhes a confiança, de sorte que
muitas vezes ouvira, de
ISMÁLIA CARE 637

homem para homem, diante dum copo de cachaça ora à mesa de jogo, tonfissõea íntimas, e não raro era chamado para resolver pe iências de honra ou prpblemas de família
que seus paroquianos queriam ajustar em particular. Escandalizava as beatas. pela irreverência com qnc às vezes tratava as coisas de religião. Mas tinha um -comportamento
exemplar e a maledicência local nunca conseguira descobrir-:he na vida o mais leve cheiro de mulher.
Mirando agora Atílio Romano, que ainda comia com voracidade os pastéis quentes, Winter sacudia a cabeça com ar benevolente dum adulto diante das travessuras dum
menino. Desríou depois Oolhar na direção de Licurgo e pensou imediatamente em Bolívar. O rapaz tinha o jeito desinquieto do pai: sugeria v~n potro de cabeça alçada,
farejando perigo, prestes a tomar o freio nos dentes e disparar. Qae contraste com a tranqüilidade a calma força de Florêncio, que parecia. ter seus pés tão bera:
plantados no chãot Mas - achava Winter - era a tranqüiliúade- e a força dum boi que se .resigna a ,passar a vida puxando carreta.
Tornou a encher o copo de vinho e bebeu-o todo dum sorvo só. O melhor que tinha a fazer era embriagar-se para poder. participar da alegria gèrah pára: esquecer que
a vida para ele nãoo prometia mais nada. Já "não lhe restavam esperaàças de sair de Santa Fé. A distância em quilômetròs que o separava da Alemanha era enorme. Mas
a distância em tempo, essa era ainda mais aterradora: Sentisse solto no tempo e no espaço, sem lígação com ninguém e com coisa alguma. Mas não fora sempre esse o
seu ideal? Não ter compromissos, nem esposa nem família nem propriedade nem contratos. Ser física e espiritualmente um viajante sem bagagem. Estar sempre. _em disponibilidade,
poder, dum .minuto para outro, sem ter de dar satisfações a ninguém, mover-se dentro da geografia, mudar de paisagem, de ambiente, de hábitos .... Pois bem. Conseguira
tudo isso. Mantivera-se livre, disponível, sentimentalmente intocado... Mas que uso fizera de sua liberdade? Guardara-a apenas como algumas daquelas famílias de
Santa Fé éntesouravam jóias antigas dentro dum escrínio, no fundo duma gáveta, nãoo as usando nunca, nunca se desfazendo delas nem mesmo nos momentos de maior necessidade.
Um luxo inútil, enfiml
Tornou a encher o copo. de vinho. Bebeu um gole, passou o guardanapo nos bigodes e olhou em torno. Lá estava a velha Bibiana à cabeceira da mesa, atenta a tudo,
nãoo perdendo uma palavra do que se dizia a seu redor, sempre a vigiar o neto com seu olhar vivo e dissimulado. Winter pensou ecn Luzia ... Segundo as teorias do
padre ela tinha uma alma, e essa alma devia estar àquela "gora (será que no-outro mando existe o tempo?) purgando seus pecados nas chamas do inferno. O médico sorriu.
A teiniaguá tinha parte com o díábo: ~ o fogo náo lhe faria ~ menor mal aó corpo
#638 O CONTINENTE

verde de réptil. Mas onde estaria a alma do pobre Bolívar? Decerto penando pelos corredores do purgatório.
- Padre, vassuncê é uma besta! - gritou Winter olhando para o vigário. Foi como se lhe tivesse de repente atirado na can o vinho do copo. Sua voz, porém, perdeu-se
na balbúrdia gml. Os homens conversavam em altos bradós. As gaitas enchiam os sa= lões com sua música rasgada e chorona. No quintal os pretos cantavam, dançavam
e batucavam em tambores.
Um homem ergueu-se e bateu palmas, pedindo silêncio.
- Queremos que o D.r. Tóríbio nos recite alguma coisa! - gritou. Vozes o apoiaram: "Muito bem! Bravos! Que recite o Dr. Toríbio!"
O advogado nãoo se fez rogar. Ergueu-se com um entusiasmo avinhado, amassou o guardanapo nas m"aos miúdas e delicadas, e ficou um instante de cabeça baixa, como que
a pensar no que ia dizer. Quando a música parou e os convivas fizeram silênáo, o baian6 passou os dedos pelos cabelos e disse com voz macia:
- Vou recitar um poema do grande vate cóndoreiro Castco Alves, glória da Bahia e do Brasil. - Fez uma pausa grave e depois,. já em tom de discurso, acrescentou:
L O Navio Negreiro, poema que tem .feito pela cansa da abolição da escravatnn no Brasil o que Cabana do Pai Tomás fez pela mesma cansa sublime. na América. do I`dorte.
Bibiana inclinou-se para. Alice e cochichou: - Lá vem discursório outra vez.
Curgo voltou vivamente. a cabeça pau a ~ avó e, de cenho cerrado, lançou-lhe" um olhar sombrio de repreensão, que a velha rebateu com um sorriso pícaro.
O Dr. Toríbio pós-se na ponta dos pés e, traçandó no ar com a mão direita uma semicircunferência, começou;
~Stamos em pleno mar.... Doudo no espaço Brinca o luar - dourada borboleta.
Suas mãos agitaram-se como borboletas morenas, que imediatamente se transformanm em óndas quando ele disse:
E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta.
Havia no rosto do padre uma expreasão de absoluta felicidade: Tinha comido e bebido bem: agora estafava um belo poema. Alimentava assim o corpo e o espírito.
O Dr. Toríbio lançou ao ar uma pergunta patética: Por que foges assim, barco ligeiro?
ISMALIA CARE 639
O Dr. Winter tinha os cotovelos fincados na mia e segurava a face barbuda com ambas as mãos. Por que foges, barco ligeiro? Imaginou-se a bordo dum brigue, sentindo
no rosto o vento picante do mar; estava a caminho da Alemanha e ali no convés do navio pensava em Santa Fé, especialmente numa certa noite de festa no Sobrado -
fazia tanto tempo! - em que alguém recitara nm verso que falava em barco, e eíe se imaginara a bordo dum brigue que o levava de volta à pátria, e chegara a sentir
o vento do mar no rosto, e ficara pensando numa noite remota em Santa Fé, em que numa festa no Sobrado alguém recitara nm poema que falava em barco e ele se imaginara
... Ach! Estava mas era embriagado. Bebera demais. Mas beber era bom; fazia-o sentir-se como nm balão leve, aéreo; colorido, despreocupado - bem como um balão de
São João. Achava tudo bom, tudo bonito, todo certo. Em todo o caso, seria melhor tratar de beber uma xican de café bem forte sem açúcar. Um médico nãoo deve embriagar-se,
mero lieber Doktór. Que .língua estava falando o Dr. Toríbio? Ble já não compreendia nada ... Aquelas palavras não tinham sentido. O poema era puro ritmo. Ra-ta-tá
... ra-ta-tá ... n-ta-tá .. . Pensou em Jahann Wolfgang vou Gcethe. Onde estava ele? Feito pól De nada lhe. adiantara ter. escrito que Zwei Seelen wohnen ach!, in
meiner Brust. Duas almas habitam, ai!, em meu peito. Seu peito se havia enchido de vermes.. Hoje, nãoo havia mais vermes nem peito. Pó. Olhou para o padrè que ainda
mordiscava nm pastel. Onde estão as almas do poeta? No céu, responderia o sacerdote. Goethe entre os anjos. Não Gcethe seria um arcanjo, como Heine, Schihet e tantós
outros.
Toríbio prosseguia

1tilas que vejo eu aí... Que quadro d"amargura
Que funéreo cantar! Que tétricas figuras!
Que céu infame e vil... lbleu Deus! 161eu Deus? Que horror!

A voz do advogado se fez cava e tetral:

Era um sonho dantesco... o tombadilho, Que das luzernas avermelha o brilho,

Apontava para a mesa, como se ela fosse o tómbadilho. E num rompante dramático pegou o copo de vinho, despejou-lhe o conteúdo na toalha branca, e, mostrando a mancha
vermelha, declarou:

Em sangue a se banhar

Bibiana resmungou:
- Não é ele que vai lavar a toalha . .
A voz do advogado agora estava límpida e empostada:
#64O O CONTINENTE

Tinir de fenos... estalar de açoite Legiões de homens negros como a noit Horrendos a dançar.. .

Negras mulheres, suspendendo às retas Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças, mas nuas e espantadas No turbilhão de espectros arrastadas
Em ânsia e mágoas vãs .. .

Winter tornou a encher o seu copo de vinho. Mulheres suspendendo às tetas... Seus olhos passearam pelas pessoas que estavamdo .outro lado da mesa. A tendência que
as mulheres daquela província tinham para engordar! Com exceção das filhas de Florêncio. as outras moças eram rechonchudas, tinham ancas largas e seios fartos. Os
gaúchos pareciam gostar de mulheres desse tipo, pois talvez as julgassem como julgavam as vacas leiteiras: quanto maior
- úbere, mais leite. Depois que casavam, então, aquelas fêmeas botavam corpo e ficavam como a esposa do Veiga da Casa Sol, que aIi estava junto do vígário, apertada
num vestido de cetim azul-marinho, com sua cara de bolo de milho abalumado, o seu duplo queixo duma moleza e duma brancura de requeijão, a mirar
- declamador com seus olhinhos empapuçados em que havia uma vaga luz de espanto... Meias Gott! Se Deus existisse, toda aquela comédia talvez tivesse um sentido.
Quem sabe Deus existe?

Qual num sonho dantesco as sombras voam!.. . Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!

Um dos peôes de Curgo entrou na sala na ponta dos pés, apro~zimon-se do patrão, indinon-se e cochichou-lhe ao ouvido: - Está tudo calmo.
Era o homem que ele pusera de sentinela na água-furtada a vigiar a praça. Havia outro no fundo do quintal e nm terceiro debaixo da figueira grande, com o olho no
Paço Municipal. Curgo não acreditava que os Amarais se atrevessem a atacar o Sobrado. mas achava que era bom ficarem de sobreaviso.
Sacudiu a cabeça e murmurou
- Está bem. Diga aos rapazes que _venham comer.
O peão olhou para os lados e, num sussurro ainda mais leve. comunicou:
- A Ismália chegou, patrão.
Aquelas palavras caíram sobre o peito de Licnrgo com o peso duma pedra. Ele olhou automaticamente para a avó.
ISMALIA CARr 641

- Muito bem, Neco. Onde está ela ?
- No quintal.
O homem retirou-se na ponta dos pés. Licnrgo olhou para
Alice, meio desconcertado. Depois pau Tóríbio, que gesticulava.
ezdamando

Õ mar. porque não apagas Có"a esponja de ruas vagas
De teu manto este borrão?

Se ele pudesse apagar Ismália com rama esponja... teria congem pau tanto? Não. Embora os outros pudessem considerar Ismália um borão em sua vida, ele nãoo deixava
de sentir por ela o que sentia. Agora todo desaparecia: a festa, o declamador, o poema,- a abolição, a noiva, a avó, a república - tudo. O que ele séntia era nm
desejo urgente de ver a chinoca, de apalpá-la, abraçá-la, penettá-la. Súa sensação de febre aumentava e ele sentia o pulsar surdo do próprio cotação e começava a
remexer-se na cadeira .como se ,estivesse sobre um braseiro.. Era sangre ou fogo o que lhe corria nas veias? Não era apenas a ferida da testa que latejava: seu corpo
inteiro pulsava, gnénte, dum desejo que chegava a doer. Olhou em torno mais uma vez.. Levantou-se devagar, procurando nãoo fazer barulho. Sentiu que a noiva e a avó
O observavam disfarçadamente. O próprio vigário voltou para ele uma cara interrogadora. Fossem todos pro inferno. Ele ,era dono daquela casa e era dono de sua vida.
Pro inferno l Levantou-se e saiu a caminhar na ponta dos pés na díreção da cozinha, com a desconcertanté impressão de que tião só todos os olhos estavam postos nele,
como também de que era para ele que Toríbio dirigia aquelas perguntas desesperadas

Quem são estes desgraçados Que .não encontram em vós ll~aia que o rir calmo da tcuba Que excita a furia do algoz?

Abriu .caminho com gestos impa"entes pelo meio da negrada que se aglomerava na cozinha, e chegou finalmente à porta dos fundos. Parou no portal e contemplou o quintal,
que a grande fogueira iluminava. Os negros que dançavam ao redor do fogo - as caras reluzentes, transfiguradas por um êxtase de batoque, as dentnçaa à mostra, olhos
revindos, as narinas arregaçadas, as bocas retorcidas a babujar palavras duma língua bárbara - pareceramlhe mais demônios que seres humanos. Teve ímpetos de gritar:
"Chega I Vamos parar com esse barulho I"
Mas num segundo esqueceu os pretos, a fogueira, o batuque. Porque o que ele queria era Ismália. Onde estaria a china? Começou
#642 O CONTINENTE

a procurá-la, aflito ... Finalmente avistou-a - estava ela acatada sozinha debaixo duma bergamoteira, enrolada num poncho, a olhar fixamente para o fogo.
Desceu a escada quase a correr.
1O
Levou-a sem dizer palavra para o fundo do quintal, para uma zona que a luz da fogueira não atingia. E ali, debaixo duma árvore copada, num ângulo formado pelo muro,
abraçou Ismália e beijonlhe repetidamente os lábios úmidos e frios. O poncho que eaaolvia a rapariga, demasiadamente grande para seu corpo franzino, nãoo só lhe embaraçava
o movimento dos braços como ~ também tornava difícil para Licurgo abraçá-la. Este continuou a beijá-la e seus lábios ávidos colaram-se ao lóbuló da orelhá da amante,
depois rasa têmporas, na testa, n,~s olhos, nas faces e outra vez aa boca, onde ficaram por longos instantes..
Curgo afastou a rapariga de si para melhor ver-lhe o rosto.
Na penumbra, porém, nãoo lhe pôde distinguir as feições. Meteu aa
mãos pela abert~ira do poncho e apertou-lhe os baços. - Por que demorpn tanto a chegar? - Não tive a culpa.
- Mas por quê?
- A aranha agiu tarde do Angico.
- Mesmo assim tinham tempo de chegar antes do anoitecer. - Viemos devagarinho. Eu enjoei coai o balanço.. Paramos
no Rincão Bonitò pra descansar.
- Quem foi que te trouxe?
- O Bentinho.
- O Bentinho? - A pressão de sena dedos no braço da moça aumentou. - Mas eu te disse que viesses com o teu irmão. - O Laco está doente, de cama.
- O Bentinho não se passou contigo? - Não.
- Jura por Deras?
Mal fez esta pergunta, arrependera-se. Estava fazendo itma una, colocando-se numa posição ridícula perante Ismália.
ISMALIA CARA 643
Ele nãoo respondeu. Seu corpo é que estava doendo e latejando de desejo por Ismália.
A rapanga esperava, imóvel, calada, encolhida dentro do poncho. Tinha a envolver-lhe a cabeça um pano branco amarrado sob o queixo. Respirava pela boca e de seus
lábios entreabertos se escapava um tênue vápor.
- Vem - ordenou Curgo.
Fez meia volta e caminhou para o barracão que se erguia contra o muro dos fundos do quintal. Abriu a porta e entròu. Ismália seguiu-o silenciosamente.
Dentro estava completamente escuro. Curgo tomou da mão da rapariga e conduziu-a para cima duns fardos de alfafa.
- Senta aqui.
Ela obedeceu.
- Está com muíto frio? - perguntou ele.
- Muito não.
- Então tira o poncho.
Ela tirou e Curgo estendeu-o sobre dois fardos.
- Deita aqui.
Ismália deitou-se. Ele fez o mesmo e em seguida abraçou-a e estreitou-a com força contra o peito.. Por longo tempo fícon a chupar-lhe os lábios, só fazendo pausas
para tomar fôlego. Agora ele aspirava, excitado, o cheiro de Ismália: corpo quente e moço recendendo a sabão preto. Era uma pena nãoo ter trazido rama lanterna -
pensava ele. Estava com saudade das feições da rapariga, daquela cara dam moreno terroso, bem como mingau respingado de canela, e principalmente daquelas pupilas
dum verde desbotado de malva, com esquisitos pontinhos dourados. Nunca puden compreender como duma família de porteiros miseráveis e molambentos havia nascido uma
criatura bonita como a Ismália, com traços mais finos que o de muita filha de estancieiro rico.
O sangue martelava as têmporas de Licurgo quando suas mãos apalparam os ombros da china, acariciaram-lhe os seios miúdos, desceram-lhe pelo ventre, pelas coxas e
finalmente começaram a arrepanhar-lhe a saia, desajeitadas e .aflitas.
- Espere - disse Ismália. E ela própria ergueu a saia.
Deitado e de olhos cerrados, Lícnrgo sentia na nuca a rigidez elástica do braço da rapariga. Estava agora saciado mas tristé, e desejava dormir, dormir nm profundo
sono sem sonhos. Infelizmente tinha de voltar para a festa, pois no Sobrádo já deviam estar estanhando sua ausência. Não sentia,. porém, o menor desejo de ergaerse.
Era boa a presença daquela criatura, bom o calor de seu corpo, o contato de sua carne. Ismália não pedia nada, não perguntava nada. Era fácil estar ao lado dela.
- Juro.
Soltou-lhe os braços. A chinoca tocou-lhe a -testa com a ponta
dos dedos.
- Que foi isso?
Não valia a pena contar todo. Era melhor resumir: - Me lastimei esta tarde.
- Está doendo muito?
#644 O CONTINENTE
ISMALIA CARB 6f5
Chegavam até o banacão as vozes dos negros, a músia das gaitas e, de quando em quando, o amiudar longínquo ,dam galo ora
- latido dum cachorro em algema rua próxima.
- Agora vá pra casa da velha Rosa - disse Licurgo. - Já falei com ela. Se poder, amanhã voa te visitar. Ouviu?
- Ouvi.
- Está precisando de alguma coisa ? - Não.
Cargo voltou-se para Ismália, segurou-lhe a cabeça com ambas as mãos e tornou a beijar-lhe a boca. Pouco depois, seus lábios lhe tocaram as faces e sentiram-nas
úmidas: Levou os dedos aos olhos da rapariga e descobriu-os cheios de lágrimas.
-"Que é isso? Por que está chorando? - perguntou, já meio imtado.
- Nada.
- Está doente?
- Não.
- Eu te machuquei?
- Não.
- Então que é?
Ela não respondeu:. Licurgo anancon nm talo de alfafa, levou
- à boca e começou a mordê-ío, impáciente. Ismália decerto estava triste porque ele ía casar. Era a hora de dizer-lhe que o casamento não ia mudar a situação, que
eles continuariam como antes, como sempre, e que o fato de ele casar com Alice nãoo significava que .. . Mas- nãoo. Dar aquelas explicaçííes à filha do Mané Caré seria
rebaixar-se , muito. Não dava. De resto, ela nãoo compreenderia .. . No entanto aquelas lágrimas o afligiam e, percebendo que estava prestes a enternecer-se, ele
se agastava e pensava já em fazer algum gesto áspero.. Tórnou a passar os dedos pelas faces da china e sentiu que as lágrimas agora escorriam mais abundantes.
Cuspia o talo de alfafa e soltou nm fundo suspiro. Era preciso voltar ao Sobrado. As danças decerto haviam começado e ele tinha de dançar com a noiva. Sentia ímpetos
de entrar em casa e gritar: "A festa acabou, minha gente.. Já comeram, não comeram? Já beberam, não beberam? Já dançaram, não dançaram? Pois então vamos todos dormir.
Boa noite!"
O silêncio continuava. Curgo descansou a mão espalmada sobre
o seio esquerdo da rapariga e ficou sentindo o pulsar de seu coração. Foi nesse momento que ela balbuciou - Vou ter um filho.
Ele não disse nada. Ficou ouvindo por muito tempo, com todo
- corpo,. aquelas palavras. Vou ter um filho. Continuou sentindo
- pulsar do coração de Ismália juntamente com as batidas violentas de seu próprio sangue nas têmporas doloridas.
Com passos lentos Licurgo dirigia-se pau o Sobrado. Parou nas prozimidades da fogueira e fitos olhando pau as chamas. As danças e cantigas haviam cessado. Acotoados
perla das bnaas, negros é negras assavam batatas-doces na ponta de vaus. Outros. exaustos, dormiam sob as árvores, enrolados em molambos. Uma nega-mina, acocorada
debaixo duma laranjeira, gemia uma melopéia africana. A parede dos fundos dò Sobrado refletia a luz alaranjada da fogueira.
Vou ter um filho. Licurgo carregava consigo a voz de Ismália. Vou tec um filho. Uma voz fininhà, dolorida, triste. Vou tet um filho. O ar cheirava a sereno, o fogo-
crepitava. Que fazem Que fazer? Talvez o melhor fosse deixar o problema para o dia segninte~ Estava cansado, com o corpo moído, a cabeça latejando de dor. Talvez
estivesse até com febre. Mas ama: coisa deáde já estava decidida : aquela criança não podia nascer ... . No entanto, era lhe repugnante a idéia de mandar Ismália
botar o filho fora. Sempre censurara os que faziam isso... Pensou na avó. A velha reprovaria aquilo, sem a menor dúvida ... Mas não. Ble sabia dos dissabores que
lhe viriam se a criança nascesse. Filho. natural. Isso é que eia ia ser. Filho natural. Se fosse- nm homem a coisa seria má: mas se fosse mulher, -tudo ficaria a~tda
pior. Cresceria como a mãe. ao abandono, no rancho dos Carés. Quando ae fize8ae mocinha algum graúdo a levaria para a cama- e depois a deixaria ao abara
dono com um filho na bamga. E pensando nisso, Licurgo chegou ... ..
a odiar o homem que ia fazer aquilo. De repente comprandeu.
que de certo modo estáva se odiando a sí mesmo.- Sim, ia mandar a Ismália fazer o aborto. Isso" simplificaria tudò. Mas... se a rapariga morresse? Cónhecia casos.
Talvez o ,melhor mesmo fòsse deixar. Ismália ter o filho, e quando a criança nascesse,. faria todo para que ela fosse criada direito e nada lhe faltasse. Um dia
contaria tudo a Alice: ela havia de compreençler,. porque agnilò rinha acontecido no tempo em que ele, ~Curgo, era solteiro. Man aio. Dentro dum mês estaria casado.
Era .até. -bem possível que o primeiro filho de Alice nascesse apenas dois meses depois do de Ismália. Iam crescer juntos no Angico. Um na casa grande, o outro no
rancho dos Carés. Se fossem de sexo diferente era até possível que ... Licurgo levou a mão à cabeça, que estava a estourar-lhe de dor. Talvez o talho estivesse infeccionado..On
tudo no mondo estivesse emdo. podre. Mas. quando é que esses , gaiteiros do inferno vão parar de tocar?
Tinha a língua seca, , a garganta ardida e estavi com sède. Beberia um canecão de cerveja e mandaria todo para o diabo. Continuou a andar na direção da casa, pensando
no que diriam ~ os outros quando o vissem voltar. Fagulhas voavam no ar. Da fogueia saía um cheiro enjoativo de laranja assada.
Não. O melhor mesmó era a Ismália botar o fiiho fora. A
6~6 O CONTINENTE

aggra Anastácia conhecia amas ervas infalíveis: todo ia ser fácil. Ã Anastácia resolveria o caso ... Já bastavam as outras preocapações de saa vida..O filho ia~
dar qne falar. Pensou. nas exploraçôes que sons ~uaugoa políticos podiam fazer. Ele e os outros membros do Clube Republicano estavam empenhados numa campanha de
regeneração em que falavam em decência e bons costumes. O Manfredo Fraga era capaz. de insiáaar nos seus editoriais infetos que o presidente do Chibé Republicano
de Santa Fé havia desonrado ~ filha dam humilde posteiro, deixando-lhe . no ventre o freto do pecado, etc., etc.... Estava decidido. A criança nãoo ia nascer . .
Come~on a subir os degraus que levavam à porta da cozinha. Lá de dentro vinham os sons duma polca e o arrastar de pés dos panes, de mistura .com vozes e risadas.
Vendo um vulto enquadrado pela pòrt,~ ~ da cozinha, estacou, reconhecendo a avó. Bibiana e o neto se miraram por algum tempo em silêncio.. Será que ela desconfia
de alguma coisa? - pensou Licnrgq. ~Ia falar quando a velha se antecipou, dizendo-lhe com uma calma arrasadora
- Vá somenos cavar as niáos.
11
O Dr. Winter entrou no escritório de Curgo com a intenção dt fugir am pouco à algazarra _que ia pelas outras salas. O Pe. Romeno estava demasiadamente .loquaz. O
Dr. Toríbio, empapado de álcool, derrubava b Império. O baile ficava cada vez mais animado e ò Veiga tinha acabado de gritar: "Polca de damal" Antes. que. algema
daquelas matronas gordas o viesse convidar para dançar, ele batera em retirada. Fechou a porta com caídado e foi direito 3 cadeira de balanço.
- Aoade vai? - perguntou ama voz. Nnm sobressalto, o médico voltou a cabeça para o canto da peça donde viera a voz e viu Bibianá sentada numa poltroaa.
- Como foi que nãoo vi vassnncê aí?
- Porque está ficando velho, com a vista avariada.
Winter sorria, sentou-se perto da amiga e deízon escapar nm
sospiró de alívio.
- B verdade. Estou envelhecendo. Já não agúento mais muito baralho: Vím aqui descansar nm ponto, pois já me fizeram dançar doas valsas.
Fiaram por alguns instantes em silêncio, estafando a polca que os gaiteiros tocavam, e as risadas dos pares. O escritóriò estava alarmado apenas-pala luz do lampião
que se achava sobre a mesinha janto da qual Winter se sentara e de onde agora lançava para Bibiana nm olhar. oblíquo.
ISMALIA CA1tE 647

- Por qne é que está tão abichornada?
- Não estou abichornada.
- Está, sim. Conheço muito bem a minha freguesia.
Ela enoolhen os ombros mas contiauon calada. Vinha agora. da sala o tantã bardo e cadenciado de pés que batiam no soalho.
- Dá licença de fumar? - pediu Winter.
A velha tornou a sacudir os ombros.
- Se en digo que nãoo, vassnncê fica aí triste como terneiro desmamado. Acenda um dos sena mata-ratos. Mas levante nm ponto a vidraça pra fumaça não ficar toda aqui
dentro.
- Está bem. Não fumo. A coisa não é "tão argente assím.
- Fnme. Já disse que pode. Se não fumar, en tomo isso como desfeita.
Winter tirou do bolso nm charatinho, acendeu-o, puxou ama baforada e depois insistiu:
- Vassnncê está abichornada, sim. Alguma coisa acóateceu.
Bíbiana nada disse.. Encolhem-se mais sob o emale, pigarreou em surdina e continuou a olhar para a janela. A polca, os gritos e as batidas ritmadas continuavam.
- Qne horas são? - perguntou ela.
Winter tirou o relógio do bolso, aproximou-o do lampião e olhou.
- Faltam vinte pra meia-noite.
De novo se fez silêncio entre os dois amigos. O médico seclinon a cabeça contra o respaldo da cadeira e cerrou os olhos. Alguma coisa havia acontecido, e ele sabia
qne Bibiana acabaria por contarlhe fado: era questão apenas de tempo. Podia esperar. A vélha era assim. Quando estava doente - o qne era raro - fazia mil rodeios
antes de admitir qne sentia algema coisa ; depois é que, aos pontos, ia contando soas dores, -mas achando que não tinham importância, iam passar on podiam ser aliviadas
com seus chás caseiros.
A música de repente cessou. Soaram palmas e gritos, e os gaitemos bisaram a polca.
- A Ismália chegou - disse de repente Bibiana, sem. nenhum preámbnlo.
Winter abria os olhos e entesou o basto.
- Ao Sobrado?
- Lá fora. O Corgo ind"agorinha foi com ela pro fendo do quintal e ficaram lá um tempão.
O médico não achou o que dizer. Limitou-se a entortar a cabeça e ficar assim com um jeito hesitante.
- Imagine só - continuou a velha. - Com festa em casa, a aviva aqui dentro, nem ao menos .. .
Calou-se o Dr. Winter ficou olhando fixamente para a ponta do charatinho e depois, sem olhar para a amiga, murmurou:
- Coisas de moço. Isso passa.
#648 O CONTINENTE

No fundo sabia que não era assim. Conhecia Curgo e conhecia Ismália. O rapaz era obstinado em suas paixões e o diabo da rapariga tinha realmente um certo encanto.
- Deus le ouça! - fez a velha. - Mas eu duvido.
Ficaram a conversar sobre outros tempos e outras aventuras. amorosas de Curgo. E Bibiana desatou a rir, recordando a- "história da mulher do mágico". Licurgo devia
andar por volta dos vinte anos quando apareceu em Santa Fé uma companhia de circo de cavalinhos que armou o seu barracão. na praça, perto da figueira. Tinha um malabarista,
um equilibrista, um contorcionista, cachorros amestrados, dois palhaços que só falavam espanhol, e um mágico ixaliano, um sujeito gordo e vermelho, de grandes bigodes
pretos, casado (casado? qual! decerto amasiado... ) .com uma mulher ruiva. Trabalhavam os dois num palco, ele todo de sob~ecasaa preta e gravata branca e ela - a
desavergonhada - vestida de homem, bem como esses pajens das histórias da carochinha. Os homens de Santa Fé andavam assanhados com a piguancha: iam ao circo só para
verem a mulher do mágico. Chamava-se Maria, imagine, nome de gente direita, nome da Virgem! Aparecia com carmim nas faces, uma sombra- azul ao redor dos olhos muito
saltados e azuis, e ficava todo o tempo rindo para os machos que estavam nas arquibancadas ou nas cadeiras. E eles lhe diziam coísinhas ... Imaginem que até
- Fandango perdeu a cabeça ; não queria mais voltar para. o Angico, ia a todos os espetáculos e quando a mulher do mágico apareewsi, o velho gritava -das bancadas:
"Eta potranca estrangeira bem linda!"
- ficava rindo e se babando. O mágico fazia coisas do arco-da-velha, dizia umas bobagens em italiano e tirava ovos dò nariz da mulher, fazia o vinho virar leite,
dava um tiro numá caixa vazia e lá de dentro saía uma pomba voando. 1VIas o .número de. mais sucesso era o em que o mágico botava a mulher dentro dnm caixão, mandava
dois homens da assistência amarrá-la com cordas e cobri-la com um pano preto, depois. dizia umas bobagens !, abria de novo
- caixão e a mulher não estava mais lá dentre Ias o Curgo, qne nãoo era mágico nem nada,- fez um dia a mulher do italiano desaparecer. Havia algum tempo que andava
de namoro com eia. Uma bela manhâ o italiano acordou no seu quarto no hotel ali na Rua do Comércio e nãoo viu a mulher na cama. Onde está? Onde nãoo está? Mas lugar
pequeno é o diabo, a gente dá um espirro e todo o mundo ouve. O italiano logo descobriu com quem andava a safada
- se tocou como um louco para o Sobrado.
Bibiana ria o seu riso macio.
- Parece que estou vendo a cara do homem - contou ela. - Chegou perto de mim, com os olhos cheios de lágrimas, e falou lá na sua língua arrevesada, queria que eu
desse conta da mulher dele. Respondi: "Ué! Vassuncê nãoo é mágico? Pois faça a sua mulher aparecer."
ISMALIA CARA 649

Winter levantou-se para ir erguer um pouco a vidraça e, ao voltar para sua cadeira, disse:
- Mas confesse que vasuncê estava alarmada...
A velha franziu os lábios.
- Muito não. O Licurgo tinha me deixado um bilhete dizendo que ía pro Angico passar uns dias com a gringa. Vassuncê sabe, doutor, ele sempre teve muita franqueza
comigo. O menino se criou assim, sempre me contou todas as patifarias que fazia, a começar com as chinocas do Angico. Vassuncê sabe, ele é neto do Cap. Rodrigo.
Quem herda não furta.
Winter sorriu. As proezas eróticas do Cap. Rodrigo que no passado tinham sido uma fonte de inquietação e dissabores para D. Bibiana, agora lhe serviam como motivo
de humorismo e" ela parecia orgulhar-se de ter tido um marido "alarife".
- Sempre achei que é mil vezes melhor um rapaz fazer. todas essas coisas em solteiro, pra depois de casado sossegar o pito e cuidar das obrigações. - Calou-se. Seu
rosto ficou de novo sério. - É por isso que a história com a Ismália me preocupa. A coisa com a mulher do mágico durou uma semana. O circo foi embora. O Curgo andou
uns dias abichornado, querendo seguir os burlantins até Santa Maria, mas acabou esquecendo. Teve outro rabicho por uma castelhana: durou um mês. Parece que quando
foi a Porto Alegre andou metido com uma polaca ... mas a coïsa não durou muito também. Mas com a Ismália é diferente.
- Um dia há de acabar - disse Winter sem muita convicção.
Os gaiteiros tocavam uma mazurca. A luz do lampião ali no escritório morria aos poucos. Winter estendeu o braço e, fazendo subir a mecha, avivou a , chama.
- E é por essa e por outras. - concluiu Bibiana com um tom magoado na voz - que o Curgo está com vinte e nove anos e ainda solteiro. Estou beirando os oitenta e
ainda não vi os meus bisnetos. Eu que tanto queria a casa cheia de crianças!
- Pois elas hão de vir. Tudo chegará a seu tempo. O Curgo casa o mês que vem. Lá por ... deixe ver. - Fez a conta nos dedos. - Lá por abril de 85 podemos ter choro
de criança no Sobrado. Em 86 pode aparecer outro bisneto... Não é possível apressar a natureza. Tenha paciência.
- Paciência eu tenho, mas é que duma hora pra outra posso bater com a cola na cerca .. .
- Aposto todo o meu dinheiro como vasuncê passa dos noventa.
- E se eu morrer antes, quem vai pagar a aposta?
- Vassuncê não morre.
- A verdade é que ninguém quer morrer, nem os que são desgraçados, os que sofrem muito.. Medo da morte, medo mesmo não tenho. Mas querer morrer, isso não quero.
- Encolheu-se
#65O O CONTINENTE

mais sob o gale. - Vassuncê bem podia fechar a vidraça. Está entrando uma friagem. Dizem que a morte gosta de entrar pelas janelas .. .
Winter pôs-se de pé e foi baixar a vidraça. Lançou um olhar pau fora. Viu os lampiões alumiando a solidão das ruas e um vulto deitado na calçada da praça. Devia
ser. o Jacob Geibel.. . Que estranha criatura, aquela? Nas noites de ventania - contavase - o sacristão saía como um louco a andar sem destino certo pelas ruas,
falando sozinho e gesticulando, com o jeito de quem quer fugir de alguém ou de alguma coisa.
- Poís é, doutor - disse a velha, depois que Winter tornou a sentar-se - agente se habitua tanto à vida que no fim viver, fica sendo uma espécie de cacoete.
O médico soltou uma risada.
- Estou de pleno acordo. Viver é mesmo nm cacoete! Atirou a ponta do charutinho na escarradeia que tinha a seas
pés e ficou minado a velha com olhos cheios de simpatia.Quedaam-se ambos por algum tempo calados, a escutar a mú
sica.
De repente, sem saber bem por que, Bibiana teve um pressentimento de desgraça.
- Acho que alguma coisa ruim está .pra acontecer .. ~. - murmurou.
O Dr. Winter franziu a testa e perguntou - Por quê?
- Tive um palpite ... uma coisa aqui ... - E a velha espalmou a mão sòbre o peito. - Nunca me engano.
- Qual! Não há razôo pra isso. Tudo está bem: o .Corgo vendendo saúde, os negócios marchando direito. E depois, que diabo! faz já quatorze anos que nãoo temos guerra
nem revolução.
- Pois é justamente isso que me dá medo. Quando a esmola é demais o pobre desconfia. Depois da guerra com os paraguaios àão tem havido barulho. - Lançando um olhar
malicioso para o amigo, acrescentou : - Anão ser aquela guerrínha contra os seus patrícios .. .
Winter pigarreou, meio embaraçado, mas nada disse. Não gostava de falar no assunto. Bibiana referia-se aos l~luckers, uma seitï de colonos alemães qne se formara
no Ferrabraz, nas prozimidade de São Leopoldo, em torno dum carpinteiro que ,vinn cnnadeir~ e de sua mulher, Jacobina, estanha criatura sujeita a ataque periódicos
de catalepsia. Mercê de suas interpretações da Bíblia de suas "curas milagrosas", Jacobina conseguira fanatizar seus adeptos, levando-os a estranhas práticas. E
tudo não teria passado dama tolice inocente se os l~luckers nãoo se pusessem a hostilizar os colonos que nãoo faziam parte da seita, chegando ao ponto de assassinar
alguns deles e incendiar-lhes as casas.. E a Província,
ISMALIA CARB 651

estarreçida, vira aquele incidente local transformar-se num sério caso de polícia e degenerar mais tarde numa pequena guerra intestina, em qne o governo, vendo derrotado
o primeiro destacamento policial que fora. atacar os 1Gluckers, tivera de mandar uma segunda egpedição mais numerosa e com artilharia, a qual só à custa de muitas
baixas e ao cabò de numerosos e encarniçados combates conseguiu tomar a cidadela dos fanáticos. Contaram-se, na época, histórias sangrentas e cruéis dessa campanha.
O curandeiro, que as forças legalistas nãoo tinham conseguido capturar, fora encontrado mais tarde enforcado nas matas do Ferrabraz. E Jacobina; que estava grávida
de muitos meses, tivera o ventre trespassado por uma baioneta.
Durante a "Guerra dos Muckers" o Dr. Winter escrevera a seu amigo Von Koseritz: ..esse lamentável episódio vem confirmar a opinião que tenho de meus compatriotas:
individualmente são excelentes, sensatas pessoas, mas quando reuniaÍos em grupos aeabam sempre fazendo alguma asneira brutal. Creio, porém, que Goethe já disse isso
antes de mim e em muito melhor alemão. Seja como for, às vezes chego a achar que a unificação da ~ilemanha foi um erro. Temo que depois da vitória de Sedara, embriagados
de orgulho nacional, os alemães tomem gosto pelas guerras (Há um ditado gaúcho que conheces: `Cachorro que come ovelha uma vez...") e não possam mais passar sem
elas. Parece-me que homens como 16lozart e Heíne só podem ser produzidos por naçóes que nãoo perdem tempo nem energia em arquitetar guerras e multo menos em levá-las
a cabo."
Fingindo nãoo ter percebido a deixa de Bibiana, Winter disse:
- Há de chegar o dia em que nãoo .haverá mais guerras.
Ele próprio nãoo acreditava no que acabava ele dizer. As guerras tolas nãoo acabariam nunca pela simples razôo de que os homens jamais deixariam de praticar as tolices
que levam os povos à luta.
Bibiana olhava fixamente para a chama do lampião. Os gaiteiros fizeram uma pausa dentro da qual se ouviram palmas, gritos, risadas e batidas de pé. Depois começaram
a gemer uma valsa lenta e sentimental. Winter abafou um bocejo. Olhando para Bibiana, viu que uma estranha transformação se operava no rosto da velha. Era como se
ela estivesse sozinha no casarão e de repente ouvisse nm ruído de passos suspeitos na sala contígua ... Lá estava ela de cenho franzido, olhos vidrados, mãos crispadas
sobre a guarda da cadeira, busto retesado .. .
Que seria? De repente Winter compreendeu... A valsa que os gaiteiros tocavam era uma das que Luzia mais gostava de dedilhar na cítara.
- Sabe duma coisa T - perguntou Bibiana baixinho, como a temer que sua voz fosse ouvida do outro lado daquelas paredes. - Ultimamente o Corgo deu pra perguntar coisas
sobre a mâe.. .
#652 O CONTINENTE

O médico sacudia vagarosamente a cabeça.
- Quer saber como ela era, donde tinha vindo ... - prosseguiu a velha. - En fico meio desajeitada, nãoo sei se devo contar tudo. As vezes tenho ~ vontade, porque
a verdade nona fez mal a ninguém.
- A verdade agora nada adianta. Luzia está morta. Bibiana sorxin enigmatiamente e por alguns segundos ficou a menear a abeça lentamente.,
- Não está tão morta. çomo vassuncê pensa.. .
Estas palavras foram como água fria no espírito do médico. Foi-se-lhe de repente o sono e ele ficou alerta.
- Que é que vassuncê quer dizer com isso?
- Não se passa um mês que eu não sonhe com ela. Sonhos loucos que me deixam cansada como se en tivesse passado a noite em claro. Me vejo sempre às voltas com ela,
conversando, discutindo, brigando ... Enxergo tudo tão claro .como se ela ainda estivesse viva. Vassuncê sabe,- o quarto dela está bem _direitinho como no tempo
que ela estava neste mundo. Náo u mexeu em nada.
Fez uma pausa. A chama do lampião começava de novo a morrer
- Winter já não podia distinguir bem as feições da amiga.
- Quem guarda a chave dourada do quarto é o Curgo. Não deixa ninguém entrar. lá. As vezes o menino se levanta no meio da noite, mete-se no quarto da mãe e fecha
a porta.
- E o que é que faz lá dentro?
- Sabei-me lá! Acho que fia remexendo nos baús e gavetas dela ... e lendo um cuaderno onde ela escrevia_ umas bobagens. En até não sei por que nãoo rasguei a maís
tempo .esse cuaderno... O Curgo tem ada coisa! Agora deu pra querer saber por que foi que a mâe nãoo deixou nenhum retrato .. .
Winter franziu a testa.
- Mas eu me lembro que lá por 69 ou 7O andou por aqui um
fotógrafo francês que tirou uns retratos da Luzia, não foí?
Por alguns segundos Bibiana hesitou. Depois,, sem olhar para
- amigo, respondeu
- Não me lembro.
Mas Winter agora se lembrava com clareza. Vira muitos retratos de Luzia no Sobrado até o dia de sua morte. Por sinal havia um com moldura dourada em cima do consolo
... Sim. Luzia de preto sentada numa ordeira de respaldo alto, as mãos aídas sobre
- regaço, a segurar um leque. Todos aqueles retratos tinham desaparecido de repente ... Olhou para Bibiana, pigarreou de leve
- soma.
De novo a velha falou
- Sabe o que foi que o Corgo me disse um dia destes? Disse: "Vovó, às vezes quando passo no corredor pela porta do quarto da mamãe, tenho a impressão que ela está
lá dentro me esperando,
ISMALIA CARA 653

porque quer falar comigo ... " Ora, já se viu? E uma coisa atf diferente do Curgo, dizer isso. Onde se viu esse amor assim de npente? O menino não era assim. Duns
dois anos pra cá é que mudou. Chegou á me dizer até que tem remorsos.
- Remorsos de quê?
- De não ter sido bom filho, de nãoo ter gostado da mâe como devia. Vassuncê já ouviu maior disparate? Bom filho ele foi. Ela é que não soube ser boa mâe. - Bibiaaa
teve um estremecimento e, mudando de tom, disse: - Estou fiando gelada. Será que estí" frio mesmo, doutor, on .. .
.Winter não ouviu o resto da frase, não só porque Bibiaaa o pronunciou num sussurro inaudível mas também .porque ele logo se perdeu em pensámentos. Estava á lembrar-se
dama curiosa conversa que mantivera com Licurgo, havia menos dum mês. Primeiro com ar fingidamente casual e depois com indisfarçável interesse, o rapaz lhe fizera
perguntas sobre a mãe. Queria saber exatamente de que morrera ela, e se era realmente bela como ele a tinha em soror memória. Por fim mostrara-lhe o diário da aiâe
e fizera-o ler alguns . trechos assinalados. Havia nm que deixara Winter particularmente impressionado. -Fora. escrito nos .últimos dica da vida de Luzia. .
Estou me acabandq devagarinho. Ontem ainda me olhei no espelho. Eu era bonita, agora estou que acra caveicq: 1ólas gosto de me olhar, e quando me vejo assim envelhecida,
acabada, horrluel, fico até alegre. Sempre que me enxergo no espelho digo pra mim mesma. "Bem-feito, Luzia, bem-feito." Acho gtte nunca gostei de mim mesma e que
toda a minha vida não passou dota suicídio bento, miudinho. Só não sei o que foi, que eu fiz pra .mim mesma para me odiar dessa maneira.
Essas palavras haviam deixado Winter perplexo. Não s< tra
- fava apegas de mera atitude literária duma moça influenciada pela leitura de Noites na Taverna e dos contos de Hoffmaan.. Era algo de mais profuado que
ele não compreendia; mas que o deixava perturbado.
Winter ficara com. a impressão de que Licargo se atormeatava quando lía as páginas daquele diário escrito com letra miúda e regular, e ao qual Luzia confiava suas
mágoas, soror revolta wntn Santa Fé e soas angústias de prisioneira. E o que mais intrigava o rapaz era o fato de Luzia não ter mcncíonado -seu nome ama vez sequer
naquelas páginas. A verdade, porém, era que havia no diário muitas folhas amornadas. Mas amaradas por quem? Com que propósito? E que haveria nessas páginas?
- Quando Licnrgo lhe perguntara "Que é que o doutor acha de tudo isto?", -ele lhe respondera com toda a fraagneza: "Acho que vassuncê deve esquecer, esquecer tudo.
Idá na Bíblia um veraícalo que diz: `Deixa que os mortos sepultem os acua ,mortos"."
#65~F O CONTINENTE

- Ostro que não esquece é a Florêacio - ajuntou Bibiana. - E se ele não decide vir morar no Sobrado com a família é ainda por causa daquela mulher .. .
No vestíbulo alguém gritou: "D. Bibiana!" De repente a porta se abriu. e Fandango irrompeu no escritlirio, exclamando:
- T3 quase meía-noite, minha gente. Venham I V ão soltar o balão. ,Dépoia todo o mondo vai dançar a quadrilha dos lanceiros.
Sem esperar resposta, fez mcia volta .e se foi, no seu passo lépido de bailarim.
Bibiana suspirou fundo, ergueu-se lentamente, deu alguns passos na díreção do médico, parou junto dele e murmurou:
- Nunca me agradei da cara dessa china, a Ismália. No princípio eu não sabia por quê. Aggra sei .. .
Ficou esperando que o Dr. Winter perguntasse: "Por quê?" N1as ele. permaneceu calado, os olhos fitos na amiga. Das outras salas vinham, agora mais fortes, as vozes
dos convivas. Os gaiteiros romperam a tocar os primeiros compassos dama quadrilha. Bibiana iadinon-se para o médico" e esclarecer:
- O diabo da menina tem na cara, nos olhos, no jeito, qual. quer coisa que lembra a mãe do Corgo.
Winter encarou por alguns instantes a interlocutora e depois, levantando-se também, disse:
- L verdade. A Luzia não está tão morta _como muita gente pensa.
Lado a lado e silenciosos, os dois amigos voltaram a passo lento para a festa.
Não há em Santa Fé quem não conheça o velho 14laneco Lírio major da Guarda Nacional
veterano do Paraguai ledor de almanaques charadista consumado
e monarquista dos quatro costados.

Todos os .dias antes de nascer o sol
lá está ele na frente da casa
de bombachos e em mangas de camisa, a tomar seu chimarrão seja inverno, primavera, outono ou verão.

Depois do almoço vai sempre dar um dedo de prosa na farmácia e à noite joga sua partidinha de gamão cote o coletor federal.
Sofre de bronquite asmática
e fuma com cérta relutdncia cigarros de cartucho roxo.

LC católico por tradição mas nãoo reza nao vat a missa não gosta de padre.
Em festas familiares nunca se faz rogar: basta que peçam uma ue2 Recite um verso, major
(principalmente quando quem pede é uma dama)
dá dois passos à frente,-limpa o peito e solta a voz de cascalho líquele "Ranchinho", da lavra de Lobo da Costa.
#656
Tu me perguntas a história daquele triste ranchinho,
que abandonado encontramos, coberto por negros ramos de pessegueiro maninho, aquele rancho de palha, aquelè triste ranchinho?

É num tom cavo e macabro que diz o último verso

No outro dia os destroços de um rancho viam-se então;
- incêndio levara tudo
- fora cúmplice mudo,
fora cúmplice o trovão!
- aí tens a história que pedes do ranchinho do sertáo.

O majoc é viúvo e só tem um filho, que é a menina de seus olhos mas agora vive sozinho, na sua meia-água branca da Rua Voluntários da Pátria.
Nas paredes úmidas de sua sala de visitas, três retratos o de D. Pedro II
- do Conselheiro Gaspar lblartins
- o da Falecida, que Deus a tenha em Sua Santa Glória Amém!

São seis horas da tarde, na primavera de 93. O major olha o calendário
uma tricromia onde cisnes brancos nadam num lago azul por entre nelumbos e vitórias-régiàs
brinde dà Casa Sol a seus prezados favorecedores. Franze a testa
Diacho! Hoje é 15 de novembro.
Arranca a folhinha e lê a efeméride
1889. O l~lal. Deodoro proclama a República.
Chô mico! Antes não tivesse proclámado coisa alguma e ficasse
em casa quieto, deixando a nação em paz.

l~laneco Lírio vai sentar-se à janela, com a cuia de mate, uma chaleira d"água quente
- mais suas lembranças e mágoas.
Na calçada fronteira meninos jogam sapata
no meio da rua meninas fazem roda- e cantam no céu pisca-pisca a estrela vespertina.
657

O major volta a cabeça para dentro dà sala e olha com ternura
- retrato do Imperador. Expulsarem do país um -homem como esse .verdadeiro neto de ll~larco Aurélio!

Na rua as menininhas cantam

O meu belo do Castelo mata-tira-tiracei
Amigo de grandes homens como o Papa, Lamartine, Pasteur
- outros
soberano democrata pai -dos necessitados sábio como poucos.
Traduziu o Velho Testamento do hebraico para o francês
- "Júlio César" de Shakespeare para o latim
os poemas de Longfellow para a língua materna
- fazia sonetos adamantinos da mais pura inspiração. Versado em Astronomia
olhava a lua em telescópios .
estudou in loco as ruínas de Pompéia
conhecia os museus da Europa como a palma .de sua augusta mão

Na calçada os meninos tiram a socte
Canivetinho pintadinho gorro, mingorro tua mão está forro.

E apesar de tudo isso era a modéstià em pessoa
O grande Vicroc Hugo, o vate de "Os l~liseráveis", recebeu a
Imperador em sua casa de Paris
chamou o netínho e disse Beije a mão de Sua l~lajestadè.
Vai então o nosso Monarca aponta para o poeta e exclama Esta sala, mon enfant, agora só tem uma majestade: vosso avô.
Expulsarem do país um homem como ësse!
Se esta rua fosse . minha Eu mandava ladrilhar
De pedrinhas de brilhante Para o meu amor paàsar
#658
Doutra feita, na América do Norte, sem cortejos nem faniarraa, tomo um simples viajante
nosso D. Pedro II visitou a Exposiçáo do Centenário, na cidade de Filadélfia
Falóu com Alexandre Graham Bell, mas não se deu a conhecer Só perguntou
Que diabo de aparelho é esse que vosmecê tem na mão?
Pois é uma maquinazinha em que botei muito engenho. Quer experimentar? Encoste eàte canudo. no ouvido e escute.
- Soberano encostou, o inventor foi. paru outra sala e começou a falar dentro dum funil.
E de repente Sua Majestade sentiu cocega no ouvido, pois do canudo saía uma voz
Santo Deua! Esta coisa fala.
- da outra ponta do fio Aléxandre Graham Bell dizia:
Isto é .o telefone. Dentro de pouco tempo todas as casas do
mundo vão precisar_ dum aparelho assim.
D. Pedro entusiasmado abraçou o inventor e disse:
Quero fazer uma. encomenda desses tais de telefones pro go
verno do meu país "
Mas afinal de" contas quem é o senhor? Imperador do Brasil..
- outro quase caiu pra trás.
E foi um homem como esse que os republicanos mandaram embora.
~ Seu João das Calças Brancas! Pronto, mèu amo!
Quantos pães ,tem no forno? Vinte e cinco e um queimado. Quem foi que queimou? Foi o Bico de Latão.
Ora pega esse ladrão
na panela de feijão.

Tudo foi obra desses moços da propaganda republicana.
Viviam com a cabeça cheia de idéias da estranja.
Queriam a abolição Tiveram
- pioraram a sórte dos negros. Queriam a república Tiveram
Derrubaram a monarquia Instituíram" a anarquia Mandaram embora o Imperador que morreu, coitado, no exílio.
Mudaram a nossa bandeira
que agora é ordem e progresso.
Só por milagre não mudaram o hino nacional
- país está entregue à camarilha positivista. Foram mexer com o Exército
que no tempo do império vivia quieto no seu canto Corremos agora o perigo duma ditadura militar. " E daqui por diante ninguém vai fazer mais nada Sem primeiro ouvir
e cheirar os generais.
- o resultado dessa beleza é o que vemos
Só aqui no Río Grande de 89 a 9O tivemos cinco governos Botaram boçal na imprensa hou~ tiroteio nas ruas
a canhoneira Marajó quis bombardear Porto Adegre,.
- que o povo anda descontente
dês que mandaram o Velhinho embora.

Deodoro fechou o Congresso deu o seu golpe de Estado logo depois renunciou veio a revolta- da esquadra com o Custódio José de Melo a revolução no Rio Grande
- a ditadura do Floriano.
- ninguém se entende mais.
659
Ciranda,. cirandinha Vamos todos cirandar Vamos dar a meia. volta A meia volta vamos dar

Mas no meei fraco entender, só existe um homem no mundo capaz de salvar o país "
- Conselheiro Gaspar Martins, honra e glória da nação gigante no físico e no moral, no saber e na inteligência conhecedor de quinze línguas entoe vivas e mortas
r mais eloqüente que Gambetta, Demóstenes ou Mirabeau E até a grande Eleonora Duse, quando viu o Conselheiro disse lá na sua língua dela
Que magnífico Otelo ele não faria!
- quando Gaspar Martins solta o verbo "de fogo
com sua voz de trovão
os pigmeus da República se encolhem.
Pois o nosso Conselheiro é contra esta situação
E nas campinas do Rio Grande deu o grito de revolução
#66O
E de todos os quadrantes surgiram federalistas e gaaparístas de lenço colorado no pescoço
E meu filho José Lírio foi o primeiro a se apresentar. Os dias do Castilhismo estão contados.

Rei, capitão Soldado, ladrão Faca na cinta Pistola na mão.

Eu não sei o qúe é .que estou fazendo aqui parado
que não azeito as minhas pistolas nem limpo a minha espada
- boto um lenço vermelho no pescoço e vou também pra coxilha com as forças dos maragatos.
Não estou tão velho assim que não possa dar uns tirinhos ou manejar uma espada.
Porque é bem como o Conselheiro diz Idéias não são metais que se fundem.

Senhora D. Cândida Coberta de ouro e prata Descubra o seu rosto Quero ver a sua graça
Um apito de trem vara como uma lança o devaneio do major. 1Glaneco Lírio tira o relógio do bólso e olha o mostrador
Seis e meia. O trem de carga de Santa 161aria está no horário ouro e fio

O trem agora vai passando
pela frente do rancho de Quirnas Caré
que sai para fora com a mulher e os filhos
- ficam rodos olhando de boca aberta para a locomotiva

E depois que o trem desaparece na curva do .cemitério Quintas cospe nd chão, volta-se para a mulher e diz com ar de entendido
Esse bicho traz seca.
S O B R A D O - V I I
27 de junho de 1895: Manhá
~o clarear do dia o sudoeste irrompe em Santa. Fé. De seu poeto l " na água-furtada, Faadaago, a quem tocou o ~ último quarto da vigília da noite, contempla o céu
e "tem a impressão de que é o minuano que vai apagando aos pouca com seu sopro de -gelo aa últimas estrelas. Das árt!ores agitadas cai um chnvisqueiro de sereno.
A figueira grande, que a geada prateia, parece uma cabeça que envelhecer durante a noite. Tiritando de frio, o rosto- muito prósímo da vidraça, seátindo aa ponta
do nariz o contato gelado do vidro, o veiho capataz agora espia a rua. Lá está o maragato morto todo coberto de geada ... Quem será o infeliz? Decerto algum pai
de família. Amanhã a revolução termina, os .inimigos de hoje fazem as pazes, mas os que morreram não voltam mais.
Fandango suspira. ~Gnerra malvada! Irmão contra irmão, amigo contra amigo. O Fandaagninho dum lado e o -Juvenal do outro: A esta hora decerto jia degolaram também
o Aatero... Não deve
- brinquedo levar nm talho de faca com um frio destes. Craz credo I
Fandango pensa nas gargantas abertas que viu ,desde que a revolução começou. Curgo vive dizendo que os maragatos sio barlidos. Mas quald Todo o meado sabe que há
gente boa e gente raim doa dois lados. 131e se .lembra do Boi Preto, onde a Divisão do Norte pegou duzentos federalistas . dormindo num acampamento e liquidou todos
a arma branca. E o caso do Gumercindo Saraiva ~ Foi enterrado num dia pelos companheiros e desenterrado no ou
- pelos inimigos. Contam até que um chefe repnblicaao gritou: , "Quero as orelhas do bandidos" - e passou-lhes a faa. Uma sangueira braba, uma perda horrível de
vidas, de ,dinheiro e de tempo! E no entanto o mando tem tanta coisa goatosal Mulher bonita, cavalo bom, baile, churrasco, mata .amargo... Laranja madura, melancia
fresca, uma guampa de leite gordo siada quente doe úberes da vaca ... Uma boi prosa perto do fogo ... Uma pescaria, .uma caçada, uma sesta debaizo dum umbu... Tanta
coisa!
#662 O CONTINENTE
Para esquecer o frio, a fome e as mágoas Fandango põe-se a assobiar.
E o vento, qne assobia mais forte, faz trepidar as janelas do Sobrado, entra pelos buracos dos vidros quebradas, pelas frestas dos postigos e vai enchendo a casa
com seu bafo polar. Um jornal que .veio nãoo se sabe donde, esvoaça no ar, sobe é desce em movimentos agônicos de pássaro ferido, e há nm momento em que Ba aberto
e como qne colado à parede da igreja, mostrando Ocabeçalho da primeira página em letras garrafais: - OS FEDERA
LISTAS DERROTADOS. EM CAROVII: depois torna a cair, rola na
calçada e é levado pelo minnano num vôo rasteiro, Rua dos Farrapos em fora. .
No Sobrado os homens estão quase todos acordados. Passaram a noïte ao redor do fogão, agarrados uns aos outros, numa busca meio inconsciente de calor e aconchego,
e agora estão vagamente envergonhados dessa promiscuidade, como se tivessem feito algo que um homem que se preza nãoo faz com outro homem. Esfregam as mãos, batem
pés, tossem, pigarreiam, escarram, bocejam ... Mas nada dizem. porque decerto acham qne nada mais têm a dizer.
.Quando Fandango desce, seu priràeiro +cuidado é o de ir ver como Florêncio passou a noite. Encontra-o ainda a dormir, com a cabeça atirada para trás e pousada num
travesseiro: Bem bom que o velho está descansando - reflete o capataz. O coitado merece.
Volta-se para os homens e cochicha:
- Não façam muito baralho, que seu Florêncio . está dormindo.

O sol já apareceu por trás dos meros do cemitério. A velha Bibiana está de novo a balançar-se na sua cadeira. E Cargo, que dormia algemas horas de sono pesado no
quarto de Florêncío, acorda de repente num sobressalto, com ama sensação de desastre iminente. Atira as pernas para fora da cama, e, zonzo, os olhos piscos, fica
tentando varar a~ névoa da sonolência, para ver o qne acontecer... Qne foi? Rompeu de novo o tiroteio? Morreu alguém?
Maria Valéria ali está, parada no meio do quarto, o rosto voltadó para ele.
- Que é qne quer? - pergunta, untado com a desagradável
impressão de que a cunhada esteve a espioná-lo.
- Nada. Vim só ver se vassnncê estava dormindo. - Me acordei agora.
- Estou vendo.
- Acontece_n alguma coisa?
- Não.
- Como vai a Alice?
- A febre baixou um ponto.
O SOBRADO - VII 663

Cargo passa a mão pela cabeça num gesto perdido.
- Dormi como uma pedra - murmura, como a penitencias
se dam ato reprovável.
- Era de sono que vassuncê precisava. - E o seu pai?
- Está lá em baixe. Parece que finalmente conseguiu dormir. - O Antero deu algum sinal de vida? - Não.
- Eu bem disse que nãoo ia adiantar nada .. .
- Mas alguém precisava fazer alguma coisa, nãoo é? - En sei 1
Sentado na beira da cama, Licurgo mantém os olhos baixos,
pois sabe que nao lhe é possível olhar de frente para a cunhada,
cuja presença chega a ser-lhe quase repulsiva.
- As laranjas estão se acabando e nãoo tem mais farinha em
casa. Não sei o que é que vou daY pros homens comerem hoje.
Ble tem ganas de responder: "Me matem, me carreiem, me
comam l" Imóvel na sua frente, Maria Valéria espera. Parece que
o bafo gelado que entra no quarto não vem de fora, vem dela. E
quando esta mulher fala, ele sente sua voz como ama lixa a raspar
lhe os nervos.
- Me diga! Que é que vou dar pros .homens?
Por que nãoo dorme com eles? - pergunta-lhe Licurgo em
pensamento. Assim eles esquecem a fome, a senhora fica sossegada
e me deixa em paz.
Continua, porém, calado, de cabeça baixa, friccionando ner
vosamente os joelhos com as palmas das mãos. De repente, vendo
as próprias unhas crescidas e sujas, encolhe os dedos para que
Maria Valéria não os veja, e fica ao mesmo tempo contrariado por
ter feito esse gesto. Por que será que ela não vai embora?
- Já pensou nas crianças? Todos éstes dias sem leite nem
pão? E na velha? -
De súbito ele ergue a cabeça, encara a cunhada e pergunta,
agressivo:
- Qne é qne- a senhora quer que en faça?
- Já lhe disse mil vezes. Bote bandeira branca na sacada e
peça trégua enquanto é tempo de salvar Alice.
Curgo põe-se de pé abruptamente, inclina-se sobre a cama e
com em gesto brusco arranca-lhe o lençol.
- Pois é isso mesmo que eu voa fazer agora? - exclama. -
E depois não me culpem pelo que acontecer.
Maria Valéria fita nele os olhos plácidos e melancólicos e mur
mura
- Era o que o sephor devia ter feito há muito tempo.
Após uma breve hésítação, Licurgo encaminha-se para a porta.
#664 O CONTINENTE
arrastando o lençol. Neste momento vem do corredor um ruído de passos apressados, seguido duma voz: - ... de bandeira branca!
-J` ~~ Licurgo deixa o lençol cair no chão e precipita-se para fora do quarto. Jango Veiga que se acha junto da porta da sacada, a espiar pelo postigo entreaberto,
volta a cabeça para ele e exclama, meio engasgado:
- Um grupo atravessando a praça ... na frente um homem com uma bandeira branca ... parece o vigário .. .
Licurgo aproxima-se do companheiro, olha por cima do ombro dele e avista por entre as árvores que o vento sacode furiosamente, uns quinze homens que caminham na
direção do Sobrado, tendo à frente - sim, não há a menor dúvida! - o vigário de Santa Fé, que carrega uma bandeira branca na ponta duma lança. Um dos homens ergue
o chapéu no ar e solta um brado; os outros o imitam mas o" vento leva-lhe as vozes para longe.
- ~ a nossa gente - diz Jango, excitado. - Lá está o nanico... o Dr. Winter... está vendo?
- Estou - responde Curgo com impaciência. - Não sou cego.
Abre a porta da sacada e dá dois passos à frente. Respira fundo, e com o olhar abarca a praça. O vento faz esvoaçar-lhe os cabelos, as barbas, o poncho e o lenço
branco que ele não tirou do pescoço desde que começou o cerco. Sente uma repentina tontura e por momentos as imagens se lhe turvam "diante dos olhos. Lá em baixo,
impelido pela ventania, um pedaço de jornal arrasta-se pela rua, bate nas pernas do maragato morto, sobe-lhe pelas coxas, fica por um instante preso nas dobras do
poncho e acaba por cobrir-lhe a cara.
Perfilado, Licurgo Cambará espera .. .
O Pe. Atílio Romano entrega a bandeira a um companheiro, adianta-se do grupo e, de braços abertos, atravessa a rua.
- Graças a Deus! - exclama, de rosto iluminado. - Graças ao bom Deus! Os federalístas abandonaram a cidade antes do dia raiar. As forças republicanas da Crnz Alta
já entraram no nosso município.
Curgo baixa os olhos para o padre mas não diz palavra. Os homens estão todos agora no meio da rua, com as faces erguidas para a sacada. O senhor do Sobrado e do
Angico reconhece os companheiros que foram aprisionados pelos federalístas durante o combate pela posse da cidade. Erguem-se no ar espadas ~ chapéus, lenços e lanças.
Viva o Partido Republicano! Viva o Cel. Licurgo Cambará! Viva o Rio Grande do Sul! Antero põe o chapéu na ponta duma lança, levanta-o bem alto e, com sua voz estrídula,
brada: "Viva o Sobrado!"
Ãs janelas do casarão assomam aos poucos seus defensores.
O SOBRADO - VII 665

Curgo volta o rosto para a torre da igreja e com uma fixidez estúpida fica a mirar o galo do cata-vento, que rodopia como uma piorra. "
- Curgo! - grita-lhe o padre lá de baixo. - Não conhece. mais seus amigos? Por que não manda abrir a porta?
Licurgo faz meia volta, dá alguns passos e no patamar entoatra a cunhada de braços cruzados sob o xale, esperando...
- A cidade está livre! - exclama éle com a voz cheia duma exultação em que há também um elemento de rancor. - Os federalístas fugiram, nenhum canalha botou o pé
na minha casa!
Man grado seu, lágrimas começam a escorrer-lhe pelas faces e,. furioso por estar fraquejando, e ainda mais desconcertado por-y que Maria Valéria está percebendo
que ele chora, grita
- A senhora e seu pai queriam a todo transe entregar o Sobrado pros Amarais. Está vendo agora o que aconteceu? Foi ou não foi como eu le disse?
Maria Valéria diz simplesmente:
- Não se esqueça que sua mulher está passando mal. Mande o Dr. Winter subir imediatamente.
Curgo desce a escada com uma lentidão nervosa. No andar térreo encontra Fandángo a cantar e a dançar. A alegria do velho deixa-o agastado, pois para ele o momento
é grave e triste: não se trata de dançar e dar vivas, mas de salvar a vida de Alice, enterrar decentemente os mortos, dar de comer aos vivos e fazer ressuscitar
a cidade.
- Mas que cara emburrada é essa, muchacho?
Os outros homens cercam o chefe, à espera de ordens. Licurgo põe.na cabeça o chapêu em cuja fita se lê - Viva o Dr. Júlio de Castílhos! - apresilhas cinta a espada
e ordena a .Jango Veiga, que neste momento entra na sala
- Abre a porta e mande essa gente. entrar!
Jango precipita-se para o vestíbulo, desce os degraus em" dois pulos, tira a tranca da porta, dá-lhe volta à chave, puxa-lhe o ferrolho e abre-a de par em par. O
primeiro a entrar é o vigário, que tem os olhos turvos de comoção. Abraça Jango Veiga e sobe apressado, seguido do Dr. Winter e do resto do grupo. E ili no vestíbulo
os recém-vindos e os sitiados ficam a abraçar-se, a se fázerem perguntas, a contar coisas entrecortadas e atabalhoadamente. O vigário envolve Curgo com seus braços
atléticos e dá-lhe um beijo estralado em cada face.
- Que é isso, padre? - pergunta Cargo, cónstrangido. E desvencilhando-se do sacerdote, aproxima-se do Dr. Winter, que lhe pergunta:
- Como vai a Alice?
As palavras do médico saem-lhe da boca num bafio de cachaça. Licurgo agarra-lhe fortemente os braços.
#666
- Snba, doutor, soba ligeiro e salve a minha mulher. - Voa fazer o possível.
- Faça o impossível!
Ao dizes istó apula com mais força os braços do outro. - Eatáo nãoo me quebre os ossos.
Curgo larga-o. Winter começa a subir a escada grande, levando na cabeça uma pergunta: Salvar pra quê? Salvar pra quê?
Montados no corrimão, Rodrigo e Toríbio passam por ele deslizando velozmente.
- Olha o Dr. Winter!
- O alemão batata!
Sem dar atenção aos .meninos, de chapéu na cabeça, encurvado
- tateante (quebrou os óculos üá nm mês e -com esta maldita revolução não - pôde encomendar outros) Winter sobe penosamente os degraas.
Na sala de jantar Rodrigo puxa a manga cio casaco do írmão. - Vamos toçar sino na igreja?
Os olhos do outro brilham.
- Vamos!
Passam pelo vestíbulo, por entre os homens, ganham a rua
- deitam a correr na direção da Matriz. Como encontram fechada a porta da frente, contornam o templo, .entram pela sacristia, fazem um rápido sinal-da-cruz
ao passarem pelo altar-mor, metemse no batistério, penduram-se na corda do sino e começam a puxála com fúria desesperada. A guerra .acabou! O Sobrado ganhou a guerra!
Viva!. Viva! Atordoado pela zoada do sino, Rodrigo encolhe-se, trêmulo, arregala òs olhos, assustado e já meio arrependido da travessura. Dizem que o Barbudinho
do Padre morreu surdo e louro por causa do barulho do sino .. .
- Estore com medo, Bio! - grita èle.
Mas o irmão não pode ouvi-lo. Rodrigo larga a corda, ajoelha-se no chão, fecha os olhos e leva ambas as mãos aos ouvidos, tapando-os, enquanto Bio continua a badalar,
virando cambalhotas como um burlantim.
Os ares de Santa Fé atroam, e o minuano como que se enrosca no som do sino, num corpo-a-corpo frenético, e se vai lutando com ele campo em fora. O galo, do cata-vento
contínua a rodopiar. As árvores da praça farfalham. O pedaço de jornal que cobre a cara do morto sobe de repente e começa a esvoaçar sobre os telhados, como uma
pandorga extraviada.
Estonteado no meio da zoada, Curgo leva os dedos às têmporas
- fica um instante de olhos fechados, procurando pôr ordem nos pensamentos. É preciso fazer algema coisa. Acabam de informarlhe que o trem que partiu de Cruz Alta
de madrugada, conduzindo as tropas republicanas, chegará dentro de meia. hora.
- Jango! -=- grita ele para o companheiro. - Providencie
O SOBRADO - V I I 6 6 7
imediatamente pra arranjar comida pra nossa gente. Veja primeiro se consegue leite pros meninos e pra D. Bibiana. - Volta-se para o vigano e diz: - Padre, venha
comigo.
- Aonde vamos?
- Vou primeiro tomar conta da Intendência. Acho que vassnncê nãoo se esqueceu que ainda sou intendente de Santa Fé .. .
- Claro que nãoo, coronel.
- Depois quero passar um telegrama pro Dr. Júlio de Castilhos.
Ergue a voz e pede silêncio. Os homens obedecem-lhe, mas o sino continua a tocar, a tocar .. .
- Quem quiser vir comigo que venha! - grita Licurgo.
Todos querem. Saem num grupo compacto, com o dono da casa e o padre à frente. Marcham lentamente, numa gravidade religiosa de enterro: é como se estivessem saindo
do Sobrado conduzindo um defunto, rumo do cemitério.
- Por que mandou tocar sino desse jeito, padre? - pergunta Licurgo, franzindo o cenho.
- Eu nãoo mandei coisa nenhuma, belo!
- Devem ser os seus filhos, coronel - esclarece um dos homens. - Vi quando eles saíram ind"agorinha correndo pra igreja.
No meio da rua Licurgo detém-se ao pé do inimigo morto, e, tapando o nariz com um lenço, baixa os olhos. para o rosto dele. A princípio tem a impressão de que aquela
fisionomia lhe é desconhecida. Não leva, porém muito tempo para identificá-la, pois vê na face do defunto os olhos verdes e mosqueados de Ismália.
- João Batista!
- Pronto, coronel.
- Mande enterrar imediatamente esses maragatos!
Diz isto e retoma a marcha. O negro olha para o morto e murmura
- Quem havia de dizer! O Mauro Caré atirando contra o Sobrado! A gente dele sempre viveu nas costas do Cel. Licurgo. B o mesmo que comer e depois cuspir no prato.
Há muita ingratidão neste mundo!
Cuspinha, enojado.
De longe o padre lhe grita:
- Não enterrem os defuntos sem encomendação. Levem os corpos para a igreja, que eu já volto.
Licurgo caminha de cabeça erguida, com o sol e o minuano na cara. A seu lado o padre fala incessantemente, contando-lhe suas provações daqueles últimos dez dias.
Ficou prisioneiro de Alvarino Amaral enquanto durou o cerco, e por mais de uma vez lhe suplicou que o deixasse ir até o Sobrado para ver como estavam as mulheres
e as crianças. O chefe federalista, porém, repelira-lhe a sugestão. Sabia que a revolução estava perdida para seu partido, mas
O CONTINENTE
668 O CONTINENTE

tinha esperanças de forçar Licurgo a pedir trégua: queria "quebrarlhe o corincho".
O padre tem de gritàr para se fazer ouvir, pois o sino continua a bimbalhar. Aos poucos se vão abrindo as portas e janelas das casas ali da praça ; algumas .pessoas
metem a cabeça para . fora, espiam, ariscas, e depois, compreendendo , o .que se está passando, aventuram-se a vir para a calçada e, descobrindo conheádos no grupo
que atravessa a praça, çomeçam a acenar-lhes e gritar-lhes coisas,
Na mente de Licurgo o telegrama já tomou forma:

Ilmo. Sc. Dc. Júlio de Castilhos Palácio do Governo .Porto Alegre

Tenho a honra comunicar Vossência Santa Fé acaba ser libertada. Após vários dias de cerco minha residência onde resisti com grupo valerosos .leais correligionários,
inimigos abandonaram cidade aproximação bravas forças republicanas Ccuz Alta. Viva o Partido Republicano! Viva o Rio Grande! Viva o Brasil!

Licurgo Cambará.


De olhos. fitos na fachada da Intendência, Curgo atravessa a rua em silêncio. Doem-lhe os olhos e o peïto; suas pernas estão fracas e trêmulas,. a garganta seca,
as mãos e os pés gelados. Mas ele se mantém empertigado, e vai andando sempre, enquanto um sino enorme, um sino brutal badala-que-badala-que-badala implacavelmente
dentro de sua cabeça, confundindo-lhe as idéias, martelando-lhe os nervos, deixando-o quase louco .. .


Sozinho no meio da sala de visitas do Sobrado, Fandango de repente tem a vaga mas estranha impressão de que algo de anormál está acontecendo.. Que será? Nos primeiros
segundos não. atina com o que seja, mas, ao olhar na direção da cozinha, percebe o que é... O velho Florêncio continua a dormir, apesar de toda a gritaria. que os
homens fizeram há pouco, e apesar do sino que continua a tocar.
Com um mau pressentimento aproxima-se do amigo e tocalhe o ombro, primeiro de leve e depois, como Ooutro não se mexe, com mais força, e repetidamente. Vê então,
num susto, que os olhos de Florêncio estão abertos e vidrados, fixamente
O SOBRADO - VII 669

fitos no teto fuliginoso da cozinha. Toma-lhe da mão: fria. Apalpa-lhe a testa: gelada. Èncosta o ouvido no peito do amigo e aio lhe ouve o pulsar do coração. Apanha
um copo, aproxima-o dos lábios do outro e deixa o ali por alguns instantes; depois ergue o copo no ar, contra o sol, para ver se está embaciado. Nada!
Fandango coça a cabeça, estonteado, sem saber que fazer. Os homens todos foram embora. As mulheres estão. lá em cima. 1; preciso que alguém lhes vá contar que o
velho Florêncio morreu.
Se ao menos esse maldito sino parasse ... Quem será o canalha que está tocando? Decerto é a alma do Barbadinho do Padre, que voltou dos quintos do inferno. Filho
da mâe!
Fandango olha fixamente para o amigo morto. Pobre do velho! Como é que eu não vi logo que ele se tinha finado? Está que nem . um boneco de cera, já com as ventas
meio roxas. Deus me livre de morrer sentado! Mas deve ter sido uma morte fácil, sem agonia. Decerto morreu dormindo. Ou não? Quem sabe acordou de noite, com a pontada
no peito? Era homem de vergonha, nãoo gostava de dar parte de fraco nem de incomodar o próximo.. . Não gemeu pra nãoo acordar os outros. E morreu sozinho sem ter ninguém
que botasse uma vela acesa na mão dele ... É bem como dizia o falecido Maneco Lírio: Mundo velho sem porteiral
Pé por pé, como para aão despertar o amigo, o capataz encaminha-se- para a escada e começa a -subir os degraus lentamente, com uma vontade danada de não chegar nunca
lá em cima.
Credo cruz! Dar notícia de morte é . a coisa pior do mundo. Logo eu, o Fandango, o gaiato, o festeiro, o bom de farra .. . Como é que vou dizer? D. Maria Valéria,
seu pai está lá em baixo morto. Acho Que o bragado apareceu esta noite e levou ele na garapa pro outro mundo... Mas não se .aflija, dona, a vida é assim mesmo. Todos
morrem, mais cedo ou mais tarde. A morte nãoo pede licença pra entrar na casa da gente. Seu pai era mais moço que eu: Seu pai era muito melhor que eu. Me des..ulpe
por eu estar ainda vivo... Quem manda é o Velho, lá em cima.
Com os dedos crispados sobre o corrimão, Fandango vai subindo. Sino desgraçado, por que nãoo calas essa boca? Vento do inferno, por que nãoo paras de zunir? Vão acabàr
deixando todo o mundo fora do juízo. E como é que vou dizer pra Alicínlia que o pai dela se finou? E pra velha Bibiana? Por que foi que esse negócio estourou na
minha cacunda? Logo eu, o Fandango, o festeiro, o gaiato, o bom de farra... Mundo velho sem ,porteira!
Os olhos do capataz estão cheios de lágrimas, que lhe escorrem pelas faces tostadas e entram-lhe pelas barbas. Junto da porta do quarto de Alice, ele as enxuga com
a ponta do poncho. Depois de alguma hesitação, bate de leve... Ouve o ruído de passos macios lá dentro. A porta entreabre-se e na fresta aparece a metade do . rosto
de Maria Valéria.
#67O O CONTINENTE

- Que é, Fandango?
- Preciso falar com vassuncê.
- : muito urgente?
O capataz titubeia.
- Muito ... não.
- Então espere. Estou ajudando o Dr. Winter. - Está bem.
A porta torna a fechar-se. Fandango suspira, aliviado. De repente o sino cessa de badalar e ele fica com uma zoada nos ouvidos, como se sua cabeça fosse um ninho
de marimbondos.
Sem saber ao certo por que, dirige-se para o quarto de Bibiana, bate na porta e, como não obtém nenhuma resposta, abre-a devagarinho e entra. Lá está a velha sentada
na sua cadeira de balanço, com o xale nas costas, mascando fumo, remexendo a boca como uma vaca a ruminar.
Mas que foí mesmo que vim fazer aqui? A velha está catacega e meio caduca: não tenho coragem de contar pra ela que seu Florenao morreu.
- Quem é lá? - pergunta Bibiana. - Sou eu. O Fandango, dona.
- Ah!
- O sítio terminou. Os maragatos fugiram. O Curgo está na Intendência com os companheiros .. .
A velha permanece impassível como se não tivesse ouvido as
palavras do capataz, ou como se não as tivesse compreendido. Fandango aproxima-se dela e toca-lhe o ombro. - Vassuncê está se sentindo bem?
O vento uiva, fazendo matraquear as vidraças. Bibiana Terra Cambará sorri, leva o indicador aos lábios, como a pedir silêncio. e, estendendo a mão na direção da
janela, sussurra:
- Está ouvindo?

Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a
intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma
manifestação do pensamento humano..

 

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