Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite
Um filme da vida real que ninguém merece assistir. Ou merece?
ebrum@edglobo.com.br
Gostaria que o episódio "Câmara dos Deputados contra Tropa de Elite" fosse ficção. Se fosse, seria muito engraçado. Uma coisa meio bufa. Tão absurda que corria
o
risco de parecer inverossímil, um defeito que a realidade é pródiga, mas a ficção não perdoa.
Vamos aos fatos, para quem perdeu o show. O cineasta José Padilha pediu autorização para gravar cenas do filme Tropa de Elite 2 na Câmara de Deputados. As cenas
da ficção seriam ambientadas no conselho de ética e teriam um personagem de nome Fraga. No filme, Padilha faz relações entre segurança pública e financiamento de
campanha.
Michel Temer (PMDB-SP), o presidente da Câmara de Deputados, negou autorização para as filmagens. Ele justificou: "De fato, não foi possível, sem nenhum antagonismo
democrático, ceder o plenário, as dependências da Casa, para essa filmagem. Fizéssemos a autorização para essa matéria, haveríamos de fazer para toda e qualquer
outra tentativa de filmar no plenário da Câmara. Este é o plenário do povo brasileiro. Não havia como autorizar essa filmagem".
A negativa de Temer é questionável. Na condição de integrante do povo brasileiro, eu gostaria de compreender em que uma filmagem comprometeria "o plenário do povo
brasileiro". Justamente por ser "o plenário do povo brasileiro" seria legítimo poder usá-lo também como cenário de filme ou qualquer outra apropriação legal. Mas,
vá lá. Padilha então filmou a cena em um conselho de ética improvisado na Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro.
O que se seguiu a isso é que virou comédia. E, como não é um filme de ficção, para nós é uma tragédia. O deputado Alberto Fraga (DEM-DF) tomou a atenção do plenário
na terça-feira, 11 de maio, para reclamar do roteiro do filme. Eu poderia enumerar dezenas de motivos vitais para o país que deveriam ser capazes de motivar a indignação
do deputado Fraga. Mas não, sua preocupação era com o roteiro do filme. Ele queria que Temer enviasse o roteiro do filme para análise da procuradoria da Câmara.
(!!!!!!!!!!)
Acompanhem o raciocínio do Fraga real: "Sou o artista desse filme, mas, o pior, o cidadão coloca que o deputado Fraga será o antagonista, ou seja, o bandido do
filme,
que vai lutar contra o Capitão Nascimento, contra as milícias assassinas". E, mais adiante: "Ele poderia escolher qualquer nome: João, José, mas deputado Fraga
nesta
Casa só tem eu. E eu, numa campanha majoritária, no Distrito Federal, já imaginou o que vai acontecer comigo, o bandido na história do filme?".
Recebeu de imediato o apoio do colega José Genoino (PT-SP). "Estão tentando colocar o parlamento como piada. A defesa do parlamento está em jogo, não podemos achar
que isso é normal. Se a moda pega, a Câmara será colocada como uma instituição que não tem poder nenhum", disse Genoino.
E, acreditem, Michel Temer afirmou que enviaria o caso para a procuradoria da Câmara.
Dá para acreditar?
A rigor, não dá para acreditar. Mas é preciso. Na "Casa" que vive uma crise moral de autoridade foi preciso apelar para o autoritarismo.
A Câmara que, junto com o Senado, vem protagonizando uma série interminável de escândalos de corrupção e impunidade acusa o cineasta José Padilha de tentar transformá-la
em "piada". Faça um rápido teste. Quantos escândalos você lembra nestes últimos quatro anos? E quantos projetos importantes para o destino do país debatidos e votados
pela Câmara você recorda de imediato?
Eu sei. É triste.
A resposta do cineasta José Padilha, publicada na Folha de S. Paulo, lança alguns litros de lucidez no deserto de inteligência do episódio: "O filme Tropa de Elite
2 não tem nenhum deputado corrupto chamado Fraga. Existe, sim, um personagem com esse nome, mas ele não é um deputado corrupto. O deputado corrupto de 'Tropa de
Elite 2', totalmente fictício, diga-se de passagem, chama-se Guaracy. (Espero que não exista algum deputado corrupto com esse nome. Se existe, vou logo avisando
que é coincidência!) Confesso que, até ler a matéria da Folha, eu nunca havia ouvido falar na existência de um deputado com o nome Fraga. Hoje, depois de uma rápida
pesquisa na internet, aprendi que ele existe. É um deputado do DEM, considerado por parte da imprensa como membro da base parlamentar do ex-governador Arruda. Longe
de mim querer denegrir a sua imagem. Deputado Fraga, pode ter certeza: você não tem nada a ver com o Fraga do meu filme! Também não posso deixar de comentar a declaração
do deputado José Genoino, que, apesar de nunca ter visto o filme 'Tropa de Elite 2', afirmou que o filme está 'tentando colocar o Parlamento como piada '. Ao nobre
deputado quero dizer que, em uma democracia, tem que haver liberdade de expressão. Em uma democracia, se um artista quiser fazer piada com o Parlamento, ele deve
ter liberdade para tal. De minha parte, não fiz piada alguma com a Câmara em 'Tropa de Elite 2'. Para mim, o Parlamento brasileiro e os inúmeros casos de corrupção
que a imprensa associa a ele são um assunto sério demais para piadas. Finalmente, a ameaça que o presidente Michel Temer fez à liberdade de expressão, ao afirmar
que 'vai encaminhar para análise da procuradoria o fato de o filme 'Tropa de Elite 2' ter cenas inspiradas na rotina da Casa e nos próprios deputados', me fez pensar
na época da ditadura. Será que a procuradoria da Câmara vai virar um órgão de censura cuja função é tentar proibir que artistas se inspirem na Câmara e em seus
membros
para fazer filmes? Espero que não!".
Quando soube da polêmica, fiquei buscando mentalmente informações sobre o Fraga do espetáculo da vida real, não o do filme do Padilha: "Fraga, Fraga, Fraga....".
Me veio à cabeça uma vaga notícia de um deputado, coronel da Polícia Militar, membro da chamada "bancada da bala", que atuou contra a aprovação do Estatuto do Desarmamento
e, em 2006, teve parte da campanha financiada por fabricantes de armas. Também tinha lembrança de uma denúncia relacionada a uma empregada doméstica paga com dinheiro
público. Fui checar. Sim, era este o Fraga. Que também foi secretário de Transportes do Distrito Federal na gestão do governador José Roberto Arruda, aquele que
foi preso e cassado por acusações de corrupção. Durante o período em que foi secretário, o Correio Braziliense denunciou que Fraga empregou no governo a mulher,
um filho, dois sobrinhos, um cunhado, uma cunhada e o namorado da filha.
Sim, sim, este é o mesmo Fraga da vida real que acredita que o filme pode manchar sua imagem e prejudicá-lo nas próximas eleições. O mesmo que disse em uma entrevista,
para explicar sua preocupação com o xará de Tropa de Elite 2: "O que mais prezo em minha vida pública é meu nome".
A vida real, no que já virou um clichê, é mesmo insuperável. Nem inventando muito um ficcionista consegue alcançar esse nível de licença poética.
Não, deputado José Genoino, cujas credenciais vêm rapidamente à memória, não é o cineasta que quer transformar a Câmara em piada.
Não vou nem falar da percepção do "povo brasileiro" sobre o Congresso. Mas dos próprios congressistas, deputados e senadores, numa pesquisa feita em 2009 pelo Instituto
FSB, a pedido de ÉPOCA. Nela, quase 70% dos 247 entrevistados afirmam que a corrupção tem presença marcante no Congresso. Apenas 35% estão convencidos de que o
Legislativo
faz leis claras, concisas e inteligentes. E, claro, metade reclama que o salário é baixo.
O próprio Congresso, portanto, reprova a si mesmo. Este mesmo Congresso gasta, segundo pesquisa da organização Transparência Brasil realizada em 2007, R$ 11.545,04
por minuto. Comparado ao parlamento de 11 países (Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Itália, México e Portugal),
só perde para os Estados Unidos. O mandato de cada um dos 513 deputados federais custa R$ 6,6 milhões por ano. E o de cada um dos 81 senadores, R$ 33,1 milhões
por
ano. Nesse cálculo estão computados apenas os custos dentro da lei, não os gerados pela corrupção promovida por alguns membros do Congresso.
Os integrantes deste mesmo Congresso que reprova a si mesmo e é um dos mais caros entre as democracias do mundo apresentam um patrimônio com enorme disparidade
na
comparação com o do cidadão comum, segundo outra pesquisa da Transparência Brasil. Os números mostram a grande concentração de renda na classe política, mostrando
o quão distante da realidade dos eleitores vivem seus representantes. No Ceará, uma pessoa comum precisaria trabalhar durante 1770 anos, sem gastar um centavo,
para
gerar o equivalente ao patrimônio de seus senadores. Em Alagoas, esse período seria um pouco menor: 1603 anos. No Maranhão, 751 anos. Cada paranaense teria de trabalhar
durante 669 anos para gerar riqueza equivalente à média do patrimônio de seus deputados federais. Apenas em 11 Estados é preciso trabalhar menos de cem anos, sem
nenhum gasto, para atingir patrimônio semelhante ao de seus representantes na Câmara dos Deputados. No Rio de Janeiro, Estado que apresenta a menor disparidade,
são 31 anos.
Se o Congresso reprova a si mesmo, a nós cabe reprovar deputados e senadores que desrespeitaram nosso voto - ou aprová-los reelegendo-os no próximo pleito, daqui
a alguns meses. E este é o ponto mais importante.
É muito fácil xingar deputados e senadores, falar mal de todos os políticos, afirmar que são todos da mesma laia. Primeiro, não são. Toda generalização é burra,
como sabemos. E, sim, há políticos honestos e que pensam no bem público. Cabe a nós descobrir quem são e dar a eles o nosso voto. Cabe a nós dar mais valor ao nosso
voto, não o dando a qualquer um. E valorizar um Congresso que não é deles - mas nosso.
Este Congresso que aí está não apareceu do nada. É o que é porque nós escolhemos esses indivíduos - e não outros. Fomos nós que colocamos essas pessoas em Brasília
para nos representar. Pode xingar à vontade, mas esse Congresso é nosso espelho. Quando olhamos para ele, olhamos para nós. Gostando ou não, o Congresso é a nossa
cara.
É duro se olhar no espelho sem autoindulgência. Você pode dizer: "ah, mas eu não votei nesses sujeitos. Os que eu votei..." Com toda honestidade, quantos de nós
sabem o que o senador, o deputado federal e o deputado estadual que elegeu estão fazendo, se é que estão fazendo alguma coisa? Quantos de nós acompanham e fiscalizam
aqueles que legitimaram com seu voto? Se não começarmos a fazer isso não amanhã, mas já, continuaremos cúmplices desses parlamentares que transformam a Câmara e
o Senado em piada.
E a democracia não é piada. Um Congresso atuante é vital para o país. Quem torce para que vire piada, para alegar que a democracia não vale a pena, é irresponsável
ou mal-intencionado. O que nós precisamos é aprender a votar, um direito fundamental que nos foi sequestrado durante anos pela ditadura militar. E que enxovalhamos
sempre que votamos mal. Teremos uma chance daqui a pouco de eleger um Congresso do qual possamos nos orgulhar. E mandar todos aqueles que o transformam em piada
e em caso de polícia para casa.
É fácil repetir que são os mais pobres e com menos acesso à educação dos rincões esquecidos que votam mal. Se perguntar a um cidadão urbano e com curso superior
- ou a si próprio - o que seu deputado ou senador anda fazendo, que projetos propôs, como votou nas questões importantes, que empresas financiaram a sua campanha,
será que a resposta é de um eleitor esclarecido? Você tem estas respostas?
Acho que somos muito complacentes com nós mesmos. Achamos que não precisamos acompanhar e participar da educação escolar dos filhos (até a educação dentro de casa
muitos delegam com as mais variadas justificativas), que não temos de nos organizar para reclamar por melhorias no nosso bairro, que não cabe a nós reivindicar
um
transporte decente ou um sistema de saúde que não deixe pessoas com câncer esperando um exame por meses. Há quem discurse sobre o aquecimento global, mas acha que
pode continuar com a torneira aberta, deixar a TV ligada enquanto vai fazer outra coisa e não reciclar lixo por preguiça. E, óbvio, se votou acredita que já fez
toda a obrigação: não vai perder tempo fiscalizando seu candidato e cobrando o que ele deixou de fazer ou fez errado.
Boa parte das informações que precisamos para votar com consciência está nos sites oficiais, como os do TSE, Câmara e Senado. Outra fonte é o site da Transparência
Brasil, que concentra vários indicadores em um banco de dados. Com alguns cliques, agora mesmo você descobre o que andaram fazendo aqueles que se elegeram com a
ajuda do seu voto. Basta entrar em www.transparencia.org.br e clicar no ícone "Excelências: como se comportam os nossos parlamentares". Você digita o nome do seu
deputado ou senador e pronto, fica sabendo como ele vem se comportando, o que fez, como votou, se foi processado na Justiça, o que a imprensa publicou sobre ele,
quem financiou sua campanha, qual é seu patrimônio declarado, se é assíduo ou um campeão de faltas. Alguns minutos do seu tempo e você pode avaliar se votou bem
e se preparar para votar melhor nas próximas eleições.
A desfaçatez de parte dos parlamentares atingiu índices tão absurdos que já passou da hora de darmos uma resposta que seja mais do que falar mal dos políticos na
mesa do boteco. Se parte dos parlamentares não se dá o respeito, nós que os elegemos precisamos ter vergonha na cara. Quero muito ver o filme do José Padilha. Mas
não quero mais ter de assistir a cenas patéticas do Congresso real. Passou da hora de votar direito. E fiscalizarmos o que foi - e será - feito do nosso voto.
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Renata Coutinho
"Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera;
esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora."
(Rabindranath Tagore)
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